Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM CORPO PARA O CRIME / Val McDermid
UM CORPO PARA O CRIME / Val McDermid

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Inverno de 1963: duas crianças desaparecem em Manchester, na Inglaterra. É o começo da trajetória de homicídios praticados por Myra Hindley e Ian Brady. Em um dia gélido de dezembro, Alison Carter, treze anos, desaparece de um vilarejo isolado na região central da Inglaterra. Para o jovem George Bennett, recém-promovido a inspetor, este é o começo de seu caso mais difícil - um assassinato sem corpo e uma investigação cheia de becos sem saída e lábios selados, com conseqüências que repercutirão ao longo de muitos anos.
Após décadas, ele finalmente conta sua história à escritora Catherine Heathcote, mas, quando o livro dela está prestes a ser publicado, Bennett tenta inexplicavelmente fazê-la abandonar seu projeto. Ele possui novas informações, mas se recusa a divulgá-las, já que ameaçam o equilíbrio de sua própria vida. Catherine vê-se forçada a investigar novamente o passado, com resultados surpreendentes.

 

 

 

 

 

 

Livro 1
Introdução
Assim como Alison Carter, nasci no condado de Derbyshire, em 1950. Como ela, eu também cresci familiarizada com os vales de pedra calcária da região de White Peak e acostumada com as nevascas que nos isolam regularmente do resto do país. Afinal, foi em Buxton que, certo verão, uma partida de críquete precisou ser cancelada por causa da neve.
Por isso, quando Alison Carter desapareceu, em dezembro de 1963, o choque foi maior para mim e minhas colegas que para a maioria das outras pessoas. Conhecíamos cidadezinhas como aquela em que ela vivia. Sabíamos que tipo de coisas alguém como Alison gostava de fazer, todos os dias. Também mantínhamos as mesmas discussões, durante as aulas e nos banheiros, debatendo qual era nosso Beatle favorito. Achávamos que tínhamos as mesmas esperanças, sonhos e medos e, por causa disso, desde o primeiro momento, imaginamos que algo terrível havia acontecido a Alison Carter, porque também sabíamos que garotas como aquela - como nós - não fugiam de casa. Não em Derbyshire e em um dezembro gelado, pelo menos.
Esta impressão não era apenas das meninas de treze anos. Meu pai estava entre as centenas de homens que vasculharam voluntariamente as charne-cas elevadas e os vales de mata densa nos limites de Scardale, e ainda tenho gravada com clareza em minha memória sua expressão sombria ao voltar para casa após um dia inteiro procurando a garota, sem qualquer pista.
Acompanhávamos as buscas pelos jornais e a cada dia, na escola, durante semanas a fio, alguém fatalmente começava a formular hipóteses para o desaparecimento. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda tinha perguntas a fazer a George Bennett, mas o ex-policial parecia incapaz de respondê-las.
Não baseei minha narrativa apenas nas anotações feitas por ele na época ou em suas recordações atuais. Enquanto realizava pesquisas para este livro, fiz várias visitas a Scardale e à área adjacente, entrevistando muitas das pessoas que participaram da história de Alison Carter, reunindo suas impressões e comparando seus relatos sobre os acontecimentos. Eu não teria conseguido terminar este livro sem a ajuda de Janet Carter, Tommy Clough, Peter Grundy, Charles Lomas, Kathy Lomas e Don Smart. Tomei algumas liberdades artísticas ao atribuir pensamentos, emoções e diálogos às pessoas, mas essas concessões baseiam-se em minhas entrevistas com os protagonistas sobreviventes, que concordaram em me ajudar na tentativa de criar um quadro fiel de uma comunidade e dos indivíduos que nela residiam.
Obviamente, jamais saberemos em detalhes o que aconteceu naquela terrível noite de dezembro de 1963. Ainda assim, para qualquer um que tenha sido afetado direta ou indiretamente pela vida e morte de Alison Carter, a história de George Bennett é uma visão fascinante sobre um dos crimes mais bárbaros dos anos 60.
Por muito tempo, este crime hediondo permaneceu escondido, na sombra dos assassinatos do pântano que chamaram mais a atenção do público. Contudo, o destino de Alison Carter não é menos terrível por ter sido cometido por um assassino que fez uma única vítima. Além disso, a mensagem transmitida por sua morte ainda é relevante. Se a história de Alison Carter nos ensinou algo, é que até o maior dos perigos pode vir com um rosto amistoso.
Nada trará Alison de volta. Entretanto, lembrar ao mundo o que aconteceu com esta menina pode ajudar a evitar que outros tenham a mesma sina. Se tal fim for atingido, George Bennett e eu já sentiremos alguma satisfação.
Catherine Heathcote Longnor, 1998
Referência às cinco crianças e adolescentes comprovadamente assassinados com requintes de crueldade pelo casal Ian Brady e Myra Hindley em locais pantanosos da Inglaterra, na década de 1960. Ambos foram sentenciados à prisão perpétua por seus crimes. (N.T.)

Prólogo
A garota despedia-se de sua vida, e não era fácil dizer adeus.
Como qualquer adolescente, ela sempre encontrara muito de que se queixar, mas agora que estava por perder tudo aquilo, a vida que tivera parecia, subitamente, muito desejável. Começava a perceber, finalmente, por que seus parentes idosos se agarravam com tanta tenacidade a cada pequeno momento, mesmo se este contivesse também muita dor. Não importava o quanto a vida que tinham parecesse ruim, a alternativa era infinitamente pior.
Já começara até a se arrepender de certas coisas. De todas as vezes em que desejara a morte da mãe; de todas as vezes em que desejara descobrir que havia sido trocada na maternidade; da raiva que sentira de outras crianças na escola, que lhe dirigiam palavrões por não ser como elas; de toda a vontade de crescer logo e deixar o sofrimento para trás. Ilido parecia irrelevante agora. A única coisa que importava era a vida incrivelmente preciosa que estava prestes a perder.
Sentia medo e não podia evitá-lo. Medo do que havia depois e também do que estava imediatamente à sua frente. Seus pais haviam falado sobre o paraíso e de seu oposto, o inferno, que mantinham o mundo estável, um com peso igual ao outro. Em sua mente, ela sempre tivera uma idéia muito clara de como seria o paraíso. Mais do que jamais desejara qualquer coisa em sua curta vida, esperava que este fosse seu destino, assustadoramente próximo agora.
Contudo, havia também o medo desesperado de ir para o inferno. Quanto a este, não tinha uma idéia muito clara de como seria. Sabia apenas que, comparado com tudo o que odiava em sua vida, o inferno deveria ser bem pior. E dado o que sabia, isto significava que seria muito, mas muito ruim mesmo.
Ainda assim, não havia outra escolha possível. A menina precisava despedir-se da vida que tivera.
Para sempre.
Primeiro Porte: O Começo de Tudo
Manchester Evening News, terça-feira, 10 de dezembro de 1963, p. 3
Recompensa de
100 nas buscas por garoto
A polícia deu continuidade hoje às buscas por John Kilbride, 12 anos, esperando que uma recompensa de
100 possa produzir alguma nova pista sobre a sua localização.
Um empresário desta cidade ofereceu a quantia a quem der informações que levem diretamente à descoberta de John, que desapareceu de sua casa, na estrada Smallshaw, em Ashton-under-Lyne, 18 dias atrás.
1
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 19h53
- Ajude-me. Por favor, ajude-me - pediu a voz feminina, trêmula e à beira das lágrimas. O policial de plantão que atendera a ligação ouviu um som semelhante a um soluço, como se a mulher tivesse dificuldade para continuar falando.
- É para isso que estamos aqui, senhora - disse o policial Ron Swindells, quase com apatia. Trabalhava em Buxton havia quinze anos e já fizera de tudo. Nos últimos cinco, sentia dificuldade para se livrar da sensação de que apenas revivia os dez primeiros. Parecia-lhe não haver nada de novo sob o sol. Tal visão das coisas seria abalada para sempre pelos acontecimentos que estavam por se desdobrar à sua volta, mas naquele instante bastava-lhe recitar a fórmula que, até então, sempre funcionara:
- Qual é o problema? - indagou, sua sonora voz grave delicadamente impessoal.
- Alison - disse a mulher, ofegante. - Minha Alison não voltou para casa.
- Alison é sua filha? - perguntou Swindells, mantendo a voz deliberadamente suave e tentando tranqüilizar a mulher.
- Ela saiu para passear com o cachorro assim que chegou da escola e não voltou para casa - disse a voz, que se tornava mais aguda e alta, à medida que o nervosismo aumentava.
Swindells olhou automaticamente para o relógio. Faltavam sete minutos para as oito da noite. A preocupação da mulher era legítima. Provavelmente, a menina estava na rua havia mais de quatro horas, o que não era brincadeira naquela época do ano.
- Será que ela, sem pensar, não decidiu visitar algum amigo ou amiga? - perguntou, já sabendo que a mãe seria a primeira a consultar os amigos da filha, antes de ligar para a polícia.
- Bati em cada casa de nosso vilarejo. Ela desapareceu, acredite! Algo aconteceu com minha Alison. - Agora, a mulher começava a desmoronar, e as palavras eram sufocadas nos intervalos entre os soluços. Swindells julgou ouvir outra voz ao fundo.
A mulher mencionara um vilarejo, de modo que ele indagou:
- De onde, exatamente, a senhora está ligando?
Escutou o som de conversas abafadas. Depois, ouviu uma voz masculina e controlada ao telefone, com sotaque sulino e o tom inconfundível de alguém que se sente no comando:
- Aqui é Philip Hawkin, falando do Solar Scardale - disse ele.
- Entendo, senhor - respondeu Swindells, com cautela. Embora a informação não chegasse a acrescentar algo novo, bastava para torná-lo levemente precavido, consciente de que Scardale estava fora de sua jurisdição em muitos sentidos, além do mais óbvio. Scardale não era apenas um mundo diferente da cidade efervescente na qual Swindells crescera e trabalhava, mas também tinha a reputação de cuidar de seus próprios assuntos. Algo bastante incomum devia ter acontecido para chegarem a lhe pedir ajuda.
A voz do homem baixou um pouco, dando a impressão de que falava em particular com Swindells:
- Por favor, desculpe minha esposa. Ela está bastante perturbada. Mulheres são sempre tão emotivas, não concorda? Olhe, tenho certeza de que Alison está bem, mas minha esposa insistiu em ligar para vocês. Estou certo de que nossa filha aparecerá a qualquer momento e a última coisa que pretendo é fazê-lo perder tempo.
- Queira me passar mais detalhes, por favor - pediu o impassível Swindells, puxando para perto de si um bloco de anotações.
O detetive-inspetor George Bennett já deveria estar em casa. Eram oito da noite, bem além do horário em que se espera que detetives de sua posição estejam trabalhando. Por direito adquirido, estejam em sua poltrona preferida, esticando as pernas compridas na frente de uma lareira quentinha, de estômago cheio e assistindo a Coronation Street na televisão à sua frente. Depois, enquanto Anne tirava a mesa e lavava a louça, ele sairia para um gole e uma boa conversa no bar Duke of York ou no Baker's Arms. Não havia modo mais rápido de se familiarizar com um lugar que pelo bate-papo em um bar. Bem que precisava tirar vantagem disso, mais que qualquer de seus colegas, tendo chegado ali menos de seis meses antes. Sabia, pelas fofocas, que ainda não merecia a confiança do povo da cidade, mas, aos poucos, começava a ser tratado com naturalidade, como se os habitantes o perdoassem e esquecessem que seu pai e avô haviam bebido em bares bem distantes dali.
Olhou rapidamente o relógio de pulso. Teria sorte se conseguisse ir ao bar esta noite. Não que sentisse muita falta, já que não era tão chegado à bebida. Se não fosse obrigado a manter a cidade na linha, por suas responsabilidades profissionais, passaria semanas sem entrar em um lugar onde vendiam álcool. Preferiria levar Anne para dançar ao som de novos talentos que tocavam regularmente no Pavilion Gardens, ou ir ao cinema com a esposa. Ou, simplesmente, ficar em casa. Casado havia apenas três meses, George ainda não conseguia acreditar que Anne concordara em passar o resto de sua vida ao seu lado. Este milagre o ajudava a suportar as piores agruras de sua profissão. Até aqui, os piores momentos vinham do tédio, e não da natureza hedionda dos crimes que encontrava. Os eventos dos sete meses seguintes testariam duramente este milagre.
Naquela noite, porém, pensar que Anne estava em casa, tricotando na frente do televisor e esperando por seu retorno, era uma tentação maior que qualquer gole de cerveja. George rasgou metade de uma folha de seu bloco de anotações, colocou-a entre os papéis que estivera lendo para marcar onde parara e fechou com firmeza a pasta, enfiando-a na gaveta de sua mesa. Amassou o cigarro e depois esvaziou o cinzeiro no balde de lixo junto à mesa, sempre seu último ato antes de pegar o sobretudo e, quase sem pensar, seu chapéu de feltro com aba larga que sempre o fazia sentir-se um pouco tolo. Anne adorava o chapéu e lhe dizia que o fazia parecer-se com James Stewart, o que ele mesmo jamais percebera. Nunca seria um astro de cinema apenas porque tinha um rosto comprido e cabelos loiros e finos. Vestiu o casaco, percebendo que estava quase apertado demais, por causa do forro acolchoado que Anne o fizera comprar. Apesar de seus amplos ombros de jogador de críquete parecerem comprimidos, sabia que se sentiria bem tão logo saísse da delegacia e fosse mordido pelo vento terrivelmente gélido que chegava do pântano pelas ruas de Buxton.
Com um último olhar pelo escritório, verificando se não esquecera de algo que a faxineira não deveria ver, fechou a porta às suas costas. Uma rápida olhadela mostrou-lhe que não havia mais ninguém na sala do departamento de investigações criminais, de modo que voltou para desfrutar de um instante de vaidade, lendo as palavras "Detetive-Inspetor G. D. Ben-nett" gravadas com letras brancas em uma pequena placa de plástico preto. Já era algo de que se orgulhar, pensou ele. Ainda nem tinha trinta anos e já era detetive-inspetor. Isto compensava cada minuto de tédio dos três anos de estudos intermináveis para obter o diploma de direito que acelerara sua carreira, sendo um dos primeiros favorecidos pela nova tendência de promoção acelerada na força policial de Derbyshire. Agora, sete anos depois do juramento, era o mais jovem inspetor já promovido pela polícia civil daquela comarca.
Não havia ninguém ali para presenciar seu pequeno lapso de dignidade, de modo que subiu correndo as escadas. Seu impulso levou-o a cruzar as portas de vai-vem e a ingressar na sala do esquadrão fardado ainda acelerado. Três cabeças voltaram-se imediatamente ante sua entrada impetuosa. Por um instante, George não entendeu por que estava tudo tão quieto. Então ele lembrou. Metade da cidade devia estar no memorial para o presidente Kennedy, assassinado recentemente, que consistiria de um culto especial aberto a pessoas de todos os credos. A cidade estimava o líder americano assassinado como se fosse um filho adotado. Afinal, JFK estivera praticamente ali, alguns meses antes, visitando o túmulo de sua irmã a alguns quilômetros de distância, em Edensor, nas cercanias de Chatsworth House.
O fato de uma das enfermeiras que ajudaram os cirurgiões na luta infrutífera pela vida do presidente em um hospital de Dallas também ser filha de Buxton apenas reforçava a ligação, aos olhos do povo local.
Residência do duque e duquesa de Devonshire, Chatsworth House, cuja construção iniciou-se em 1552, localiza-se em Derbyshire, no coração da Inglaterra, e recebe visitantes do mundo inteiro em seus muitos cômodos e vastos jardins. (N.T.)
- Tudo tranqüilo então, sargento? - perguntou ele.
Bob Lucas, o sargento de plantão, franziu a testa e levantou um ombro, em sinal de incerteza. Olhou para a folha de papel em sua mão e respondeu:
- Estava tudo calmo até cinco minutos atrás, senhor. - Ele endireitou-se na cadeira e disse: - Provavelmente não é nada importante. Aposto que tudo já estará resolvido quando chegarmos lá.
- Algo interessante? - perguntou George, em tom leve. A última coisa que desejava era que Bob Lucas o considerasse o tipo de homem que tratava policiais fardados como macacos e via a si mesmo como o adestrador.
- Uma garota desaparecida - disse Lucas, estendendo-lhe a folha. - Swindells atendeu o telefonema. Ligaram diretamente para cá, não pelo serviço de emergência.
- Temos um homem nosso lá, sargento? - indagou, tentando imaginar Scardale em seu mapa mental da área.
- Não é preciso. É uma aldeia minúscula. Dez casas, no máximo. Não, Scardale é coberta por Peter Grundy, de Longnor, a apenas três quilômetros de distância. Entretanto, a mãe parece considerar o caso importante demais para Peter.
- E o que você acha? - indagou George, com cautela.
- Acho que é melhor eu pegar uma viatura e ir até Scardale para trocar umas palavrinhas com a senhora Hawkin, senhor. Apanho Peter no caminho.
Enquanto falava, Lucas pegou seu quepe e o ajeitou sobre os cabelos quase tão negros e brilhantes quanto suas botas. Suas bochechas avermelhadas e cheias davam a impressão de que ele escondia um par de bolas de pingue-pongue dentro da boca. Combinadas com olhos escuros e faiscantes e sobrancelhas também negras e retas, elas lhe davam a aparência de um boneco de ventríloquo. Ainda assim, George já havia descoberto que Bob Lucas seria a última pessoa a permitir que alguém lhe colocasse palavras na boca. Sabia que, se lhe perguntasse algo, obteria uma resposta direta.
- Você se importa se eu for junto? - perguntou George.
Peter Grundy pousou o telefone no gancho devagar e friccionou o polegar no queixo áspero pela barba de um dia inteiro. Estava com trinta e dois anos naquela noite de dezembro de 1963. As fotografias mostram um homem de rosto jovial, com queixo estreito e nariz curto e fino, acentuado por um corte de cabelo quase militar. Até quando sorria, como fazia ao tirar fotografias durante as férias com seus filhos, seus olhos pareciam vigilantes.
Dois telefonemas no espaço de dez minutos haviam quebrado a paz rotineira de uma noite na frente da TV ao lado da esposa, Meg, com as crianças já de banho tomado e na cama. Não que não tivesse levado a sério o primeiro telefonema. Quando a velha Mamãe Lomas, que sabia de tudo o que acontecia em Scardale, dava-se ao trabalho de sujeitar sua artrite ao frio cortante, abandonando o conforto de sua casa para ir até o telefone público na praça da aldeia, era melhor prestar atenção. Achou, entretanto, que poderia esperar até as oito da noite e até o fim do programa, antes de tomar alguma providência. Afinal, a velhinha poderia até afirmar que a razão para seu telefonema era preocupação pelo desaparecimento de uma garota, mas Grundy não duvidaria se isto fosse uma desculpa para complicar um pouco a vida da mãe da menina. Ele ouvira as conversas e sabia que algumas pessoas em Scardale achavam que Ruth Carter pulara rápido demais na cama com Philip Hawkin, mesmo tendo sido ele o primeiro homem a fazê-la sorrir desde a morte de seu esposo, Roy.
Então o telefone tocara novamente, trazendo uma careta ao rosto de sua esposa e tirando-o de sua poltrona confortável para levá-lo ao corredor gélido onde estava o aparelho. Desta vez não conseguiu ignorar a urgência. O sargento Lucas, de Buxton, soubera da menina desaparecida e estava a caminho. Como se não fosse suficientemente ruim ter gente de Buxton invadindo seu território, Lucas trazia consigo o professor. Era a primeira vez que Grundy ou qualquer de seus colegas precisaria trabalhar com alguém que cursara uma universidade, e ele sabia, pelas fofocas em suas visitas ocasionais à subdivisão em Buxton, que nenhum deles gostava muito da idéia. Concordava com a teoria de que a universidade da vida era a melhor escola para um policial. Essa gente com diploma não agüentava o tranco - não se podia enviá-los para a rua em Buxton, em um sábado à noite. Pessoas assim jamais haviam visto uma briga em um bar, e nunca saberiam lidar com uma. Para Grundy, a única coisa boa que se podia dizer sobre o detetive-inspetor Bennett era que tinha talento para o críquete.
E esta não era razão suficiente para alegrar-se por vê-lo chegando a sua área para perturbar seus contatos cuidadosamente cultivados.
Com um suspiro, Grundy abotoou o colarinho de sua camisa, ajeitou a parte de cima do uniforme, endireitou o quepe e pegou o sobretudo. Depois, enfiou a cabeça na porta da sala de estar com um sorriso conciliador, mas nervoso.
- Tenho de ir a Scardale - disse.
- Shhh - repreendeu-o a esposa, com ar aborrecido. - Agora é a melhor parte!
- Alison Carter desapareceu - acrescentou vingativamente, fechando a porta às suas costas e caminhando apressado pelo corredor antes que ela pudesse reagir. Sabia que a reação viria, já que o desaparecimento de uma criança em Scardale era próximo o suficiente para causar arrepios em Longnor.
George Bennett seguiu o sargento Lucas até o estacionamento das viaturas. Teria preferido ir com seu próprio carro, um Ford Corsair preto cheio de estilo, tão novo quanto sua promoção, mas o protocolo exigia que sentasse no banco do passageiro do Rover de serviço e deixasse Lucas dirigir. Enquanto viravam rumo ao sul na estrada principal e passavam pela praça central, George tentou conter a fisgada de excitação que sentira ao ouvir as palavras "garota desaparecida". Muito provavelmente, como Lucas apontara, tudo não passaria de um engano. Mais de 95% dos casos de crianças dadas como desaparecidas terminavam com o retorno do fugitivo antes da hora de dormir ou, na pior das hipóteses, antes do café da manhã.
Às vezes, porém, o caso era diferente. Às vezes, uma criança continuava desaparecida por tempo suficiente para gerar a certeza de que nunca mais voltaria para casa. Ocasionalmente, isso ocorria por opção. Com mais freqüência, a ausência prolongava-se porque a criança estava morta, e a questão para a polícia, então, dizia respeito ao tempo que levariam para encontrar o corpo.
Em outras ocasiões, as crianças não deixavam rastro, como se tivessem sido engolidas pela terra.
Nos últimos seis meses, dois casos assim haviam ocorrido, ambos a menos de cinqüenta quilômetros de Scardale. George sempre dava muita atenção aos boletins que recebia de outros distritos, bem como de outras divisões de Derbyshire, e atentara especialmente para estes dois casos de pessoas desaparecidas, porque haviam ocorrido próximos o bastante para, talvez, topar com uma das crianças. Morta ou viva.
A primeira delas era Pauline Catherine Reade, de dezesseis anos, cabelos escuros e olhos castanhos, que trabalhava como aprendiz de costureira em Gorton, Manchester. Magra e medindo 1,52m, a garota usava vestido rosa e amarelo e casaco azul-claro ao desaparecer. Saíra da casa com alpendre na qual morava com os pais e o irmão mais jovem para ir a uma festa, pouco antes das oito da noite da sexta-feira, 12 de julho. Ninguém mais a vira. Não havia problemas em casa ou no trabalho, nem um namorado com quem pudesse ter fugido. A garota não tinha dinheiro para uma fuga, mesmo se desejasse. A área havia sido extensamente vasculhada e três reservatórios de água haviam sido esvaziados, mas nenhuma pista fora encontrada. A polícia de Manchester examinara cada relato de possíveis testemunhas, mas nenhum levara à menina desaparecida.
A segunda criança parecia não ter nada em comum com Pauline Reade, exceto pela natureza inexplicável e quase mágica de seu desaparecimento. John Kilbride, doze anos de idade, 1,47m de altura e estatura miúda, tinha cabelos castanho-escuros, olhos azuis e pele clara. Usava uma jaqueta esportiva xadrez em tons de cinza, calças compridas de flanela, também cinzentas, camisa branca e sapatos pretos. De acordo com um dos detetives de Lancashire que jogavam críquete com George, o menino não parecia muito esperto, mas era obediente e gentil. John foi ao cinema com alguns amigos no sábado à tarde, um dia após a morte de Kennedy em Dallas. Depois, separou-se do grupinho, dizendo que iria à feira em Ashton-under-Lyne, onde muitas vezes ganhava algumas moedas fazendo chá para os donos das bancas. Na última vez em que foi visto, John estava encostado em um latão de lixo, por volta das cinco e meia da tarde.
A caçada resultante recebera um incentivo desesperado no dia anterior, quando um negociante local oferecera uma recompensa de cem libras por informações sobre o garoto, mas tal providência de nada adiantara. Esse mesmo colega comentara com George, durante um baile da polícia no sábado, que John Kilbride e Pauline Reade teriam deixado mais pistas se tivessem sido abduzidos por homenzinhos verdes tripulando um disco voador.
E agora, uma garota desaparecida. Ele olhou pela janela, para os campos iluminados pelo luar à beira da estrada para Ashbourne, com seu pasto irregular coberto pelo sereno e os muros de pedra que os separavam apresentando-se quase luminosos sob a luz prateada. Uma nuvem fina passou nela frente da lua e, apesar de seu casaco quente, George tremeu ante a idéia de estar sem abrigo em uma noite como esta, em um local tão inóspito.
Vagamente desgostoso consigo mesmo por permitir que sua ansiedade por um caso importante sobrepujasse a preocupação com a garota e sua família, que deveria ser seu único objetivo, George voltou-se abruptamente para Bob Lucas e disse:
- Fale-me sobre Scardale.
Tirou cigarros do bolso e ofereceu um ao sargento, que recusou.
- Não, obrigado, senhor. Estou tentando reduzir. Scardale pode ser vista como um lugar que parou no tempo - disse Lucas. Sob a luz breve do fósforo que George acendeu, sua expressão era grave.
- De que maneira?
- É como se ainda estivessem na Idade Média. Há apenas uma estrada que entra e sai da cidade e dá em um beco sem saída quando se chega ao telefone público, na praça da aldeia. Há uma casa principal, o solar, que é para onde estamos indo. Há cerca de uma dúzia de outras casas pequenas e os galpões usados pelos agricultores. A aldeia não tem bares, lojas ou correio. O senhor Hawkin é o dono das terras. É proprietário de cada casa em Scardale, além da fazenda e de toda a terra em quase dois quilômetros em todas as direções. Todos que vivem lá são seus inquilinos e empregados. É como se fosse dono daquelas pessoas. - O sargento diminuiu a velocidade para dobrar à direita, saindo da estrada principal e entrando em uma estradinha estreita que passava por uma pedreira. - Pelo que sei, existem apenas três sobrenomes naquele lugar. Todos se chamam Lomas, Crowther ou Carter.
George notou que Hawkin não fora citado e arquivou a inconsistência em seu cérebro, para investigá-la depois.
- Mas é claro que as pessoas saem de lá, para casar ou arranjar emprego, não?
- Ah, claro que sim, mas, de qualquer maneira, sempre serão filhos de Scardale. Nunca se afastam demais. E a cada geração uma ou duas pessoas realmente se casam com alguém de outro lugar. É o único modo de evitar o casamento consangüíneo. Ainda assim, com muita freqüência, pessoas de fora que se mudam para Scardale após o casamento acabam se divorciando. O esquisito é que sempre deixam os filhos para trás. - Ele deu uma rápida olhada na direção de George, como se para captar sua reação ao que ouvia. George tragou seu cigarro e se calou por um momento. Já ouvira falar de lugares como esse, mas jamais estivera em um deles. Não podia sequer imaginar como seria viver em um mundo tão contido em si mesmo, tão limitado, onde tudo sobre seu passado, presente e futuro é compartilhado com toda a comunidade.
- É difícil acreditar que exista um lugar assim tão próximo à cidade. Quantos quilômetros são? Dez?
- Doze - disse Lucas. - É um lugar histórico. Olhe a pavimentação dessas estradas. - Ele apontou para a curva acentuada à esquerda que levava à aldeia de Earl Sterndale, na qual as casas construídas pela pedreira para alojar seus empregados amontoavam-se, competindo por espaço no declive. - Antes de existirem carros com motores decentes e estradas asfaltadas, precisava-se de quase um dia inteiro para ir de Scardale a Buxton no inverno. Isso quando a estrada não estava bloqueada pelo acúmulo de neve. As pessoas tinham de contar com seus vizinhos e parentes. Alguns lugares por aqui continuam assim até hoje. Veja essa garota, por exemplo. Mesmo com ônibus escolar, Alison provavelmente leva quase uma hora para ir ou voltar da escola. O distrito tem tentado convencer os pais a matricularem os filhos em regime de semi-internato de segunda a sexta-feira, para poupá-los de uma jornada tão longa. Entretanto, em lugares como Scardale, eles simplesmente se recusam a isso e não percebem que a intenção é ajudá-los. Acham que as autoridades querem tirar-lhes os filhos. Não há como convencê-los do contrário.
O carro passou por uma série de curvas acentuadas e começou a subir uma colina íngreme, com o motor penando, enquanto Lucas trocava as marchas. George abriu um pouquinho a janela e atirou o toco de seu cigarro no acostamento. Uma lufada de ar gélido cheirando a fumaça de uma fogueira de carvão irritou-lhe a garganta, e ele fechou apressadamente a janela.
- E, ainda assim, a senhora Hawkin apressou-se a nos ligar.
- De acordo com Swindells, ela bateu em cada porta de Scardale antes de nos chamar - disse Lucas, em tom seco. - Não me leve a mal. Não é que sejam hostis com a polícia. É só que... não são muito hospitaleiros. Querem que encontremos Alison, de modo que se dispõem a nos suportar.
O carro enfrentou a subida e iniciou a longa descida até a aldeia de Longnor. A luz do luar mostrava o branco sujo dos prédios baixos de calcário, com colunas de fumaça subindo de cada chaminé à vista. No cruzamento existente no centro do lugar, George viu a silhueta inconfundível de um policial fardado que batia os pés no chão para mantê-los aquecidos.
- Esse deve ser Peter Grundy - falou Lucas. - Não precisava esperar na rua...
- Talvez esteja impaciente para descobrir o que está acontecendo. Afinal, é sua jurisdição.
- Ou então deve ter ouvido poucas e boas da mulher por ter de sair à noite - resmungou Lucas.
Ele freou bruscamente e o carro deu um solavanco junto ao meio-fio. Peter Grundy abaixou para ver quem estava no banco do carona e, então, sentou-se atrás.
- Boa-noite, sargento - disse. - Senhor, preciso dizer-lhe algo - acrescentou, inclinando a cabeça na direção de George. - Tenho um pressentimento ruim sobre este caso.
2
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 20h26
Antes que o sargento Lucas pudesse arrancar, George Bennett levantou um dedo, pedindo atenção.
- Scardale fica a apenas três quilômetros, certo? - Lucas assentiu. - Antes de chegarmos, quero saber tanto quanto possível sobre nosso caso. Será que poderíamos dar ao policial Grundy alguns minutos para nos inteirar dos detalhes?
- Acho que um ou dois minutos não farão diferença - disse Lucas, colocando o carro em ponto morto.
Bennett retorceu-se em seu assento para poder enxergar pelo menos os contornos do rosto de Grundy sob a luz fraca.
- Então, policial Grundy, parece que você acha que não encontraremos Alison Hawkin sentada junto ao fogo e levando uma bronca fenomenal da mãe...
- É Carter, senhor. Alison Carter. A garota não é filha do proprietário - informou Grundy, com o ar de vaga impaciência de um homem que percebe que terá uma longa noite de explicações a dar pela frente.
- Obrigado - disse George, gentilmente. - Pelo menos você me poupou de dizer uma asneira quando chegarmos lá. Gostaria que nos desse algumas informações sobre a família, para sabermos com quem lidamos.
Ele mostrou seus cigarros a Grundy, oferecendo-lhe um, com a intenção de aliviar qualquer impressão de que tentava mostrar-se superior.
Com um rápido olhar para Bob Lucas, que assentiu, Grundy tirou um cigarro do maço e remexeu no bolso de seu sobretudo em busca de fósforos.
- Já contei ao inspetor como as coisas funcionam em Scardale - disse Lucas, enquanto Grundy acendia o cigarro. - Eu lhe disse também que Hawkin é dono do vilarejo e de toda a terra.
- Certo - falou Grundy, através de uma nuvem de fumaça. - Bem, até cerca de um ano atrás, o dono de quase tudo em Scardale era o tio de Hawkin, o velho Castleton. Há Castletons no Solar Scardale desde que os nascimentos começaram a ser registrados pela paróquia de lá. O filho único do velho William Castleton morreu na guerra. Ele pilotava bombardeiros, mas teve azar em uma noite ao sobrevoar a Alemanha e sumiu. Provavelmente morreu em combate. Seus pais já tinham uma certa idade quando o jovem William nasceu, e não tiveram outros filhos. Assim, quando o senhor Castleton morreu, Scardale foi herdada pelo filho de sua irmã, este Philip Hawkin, um homem que todos na aldeia só tinham visto quando ainda usava calças curtas.
- O que sabemos sobre ele? - perguntou Lucas.
- Sua mãe, a irmã do dono das terras, cresceu aqui. mas casou-se com o homem errado. O homem era Stan Hawkin. Ele servia na RAF
na época, mas isto não durou muito. Segundo ele, um de seus superiores o perseguia, mas a verdade é que foi expulso por vender ferramentas roubadas do almo-xarifado. De qualquer modo, Castleton quis deixá-lo bem e lhe conseguiu um emprego com um velho conhecido, como vendedor de automóveis no sul do país. De acordo com todos os relatos, ele nunca mais foi pego roubando, mas acho que a raposa nunca perde o hábito, e por isso a família nunca mais veio a Scardale visitar Castleton.
- E quanto ao filho, Philip? - perguntou George, tentando acelerar o relato.
Grundy sacudiu os ombros, fazendo o carro chacoaliar com seu peso.
- É um sujeito de boa aparência, devo admitir. Tem muito charme e sabe agradar. As mulheres gostam dele. Nunca me tratou mal, mas eu não confiaria nele para segurar um cachorro, enquanto eu abro as calças para fazer xixi.
- E esse sujeito casou-se com a mãe de Alison Carter?
- Eu ia chegar lá - disse Grundy, lentamente. - Ruth Carter estava viúva havia seis anos, quando Hawkin chegou do sul para assumir sua herança.
início da Nota: de Rodapé: RAF - Royal Air Force, a força aérea britânica. Fim da Nota de Rodapé.
Segundo ouvi, ele se encantou com Ruth desde o primeiro instante. É uma bonita mulher, é verdade, mas nem todos os homens desejariam assumir uma filha de outro homem. Veja bem, de acordo com o que eu ouvi, isso nunca foi problema para ele. Hawkin nunca afrouxou o cerco a Ruth, que não se fez de rogada. Hawkin devolveu o brilho aos olhos da mulher, sem dúvida. Casaram-se três meses depois da primeira vez que ele apareceu em Scardale. Formam um belo casal.
- Tudo bem rápido, não? - comentou George. Aposto que isto causou mal-estar, mesmo em um lugar de pessoas tão unidas quanto Scardale.
Grundy encolheu os ombros.
- Não ouvi nenhum comentário desse tipo - disse.
George reconhecia uma parede, quando via uma. Percebeu que teria de conquistar a confiança de Grundy para ter acesso ao que ele aprendera sobre o povo do lugar ao longo de anos. Não tinha dúvida de que sabia muito.
- Então, vamos a Scardale para ver de perto essa gente - disse ele. Lucas colocou o carro em movimento e passou pelo vilarejo. Ao avistar uma placa de "estrada sem saída", ele virou o volante abruptamente e saiu da estrada principal. - Bem sinalizado - comentou George, secamente.
- Acho que qualquer pessoa que precise ir a Scardale conhece a estrada - disse Bob Lucas, enquanto dirigia com atenção pela trilha estreita que parecia desdobrar-se em uma série de subidas e descidas. As lâmpadas em suas margens mal conseguiam aliviar a escuridão da estrada, ladeada por barrancos altos e muros antigos de pedras empilhadas que se arqueavam e inclinavam em ângulos aparentemente impossíveis.
- Ao entrar no carro você disse que tinha um mau pressentimento sobre este caso, Grundy - lembrou-se George. - Por quê?
- Essa Alison parece uma garota ajuizada. Eu a conheço, pois freqüentou a escola fundamental em Longnor. Minha sobrinha está na mesma classe que ela agora. Enquanto eu esperava vocês, tive uma breve conversa com Margaret. Ela disse que Alison estava como sempre, hoje. Vieram juntas no ônibus, como sempre. A garota disse que talvez parasse em Buxton depois da escola uma noite dessas, para comprar alguns presentes de Natal. Segundo Margaret, Alison não é o tipo de menina que fugiria de casa, já que quando tem um problema ela o enfrenta sem demora. Assim, parece que, seja lá o que lhe aconteceu, não foi sua opção.
As palavras graves de Grundy caíram como pedra no estômago de George. Como reflexo da sensação de mau agouro, os muros ladeando a estrada desapareceram, sendo substituídos por abismos de calcário. O caminho por onde seguiam passava pelo estreito desfiladeiro, com seu percurso inteiramente ditado pela topografia. Meu Deus, pensou George, é como um cânion em um filme de faroeste. Deveríamos usar chapéus de caubóis e andar montados em mulas, não dentro de um carro.
- Logo depois da próxima curva, sargento - falou Grundy do banco de trás, com o hálito pesado de tabaco.
Lucas diminuiu a velocidade a ponto de quase parar, acompanhando a curva do ponto mais alto de um rochedo. Quase que imediatamente, a estrada à frente deu lugar a um pesado portão fechado. George prendeu o fôlego, assustado. Se estivesse na direção e não soubesse do obstáculo, certamente teria colidido. Enquanto Grundy saía para abrir o portão, George percebeu vários avisos pintados com as mais diversas cores nos muros de pedra em cada lado da estrada.
- Parece que não recebem estranhos de braços abertos por aqui, não é? Lucas deu-lhe um sorriso seco.
- Não é preciso. Passando deste portão, a estrada é particular e o asfalto só chegou de dez anos para cá. Antes, só se subia ou descia a estrada para Scardale com um trator ou Land Rover. - Ele cruzou devagar o portão, esperando um pouco adiante para que Grundy o fechasse e voltasse ao carro.
Puseram-se novamente a caminho. Cerca de cem metros adiante, os abismos de calcário desapareceram, dando lugar a um horizonte amplo em cada um dos lados da estrada, trazendo-os subitamente da escuridão para a luz da lua cheia outra vez. Contra o céu estrelado, parecia a George que era como se saíssem do túnel dos jogadores para um vasto estádio com pelo menos um quilômetro e meio de largura e com montes altos no lugar de arquibancadas. O campo, porém, não se prestava para esportes. Sob a claridade lúgubre da lua, George viu pastagens surgindo suavemente a partir da estrada que dividia em duas partes o solo do vale. Ovelhas aninhavam-se contra os muros, com sua respiração saindo em pequenas lufadas de vapor no ar gélido. Manchas mais escuras revelavam-se extensas áreas de reflorestamento. George jamais vira algo parecido. Era um mundo secreto, escondido e isolado.
Agora ele via luzes, débeis contra o brilho prateado da lua, mas suficientes para delinearem um punhado de construções contra os rochedos pálidos no lado mais longínquo do vale.
- Esta é Scardale - proclamou Grundy, sem necessidade, do banco traseiro.
O amontoado de pedras logo revelou-se como casas separadas, mas arranjadas em torno de um círculo raquítico de capim. Uma única pedra destacava-se perpendicular no meio do verde, como suporte para um telefone público vermelho, a única coisa realmente colorida em Scardale sob o luar. Parecia haver cerca de uma dúzia de casas, nenhuma igual à outra e cada uma separada de suas vizinhas por apenas alguns metros. A maior parte exibia luzes por trás das cortinas, e mais de uma vez George percebeu mãos que as afastavam para permitir uma espiada para a rua, mas não se permitiu olhar diretamente para os inquilinos curiosos.
Bem no fundo do campo havia um ajuntamento de formas arquitetônicas e janelas que deveria ser o Solar Scardale. George não sabia bem o que esperava encontrar, mas certamente não era essa casa de fazenda austera que parecia ter sido construída aos poucos durante vários séculos, por pessoas com mais necessidade que bom gosto. Antes que pudesse dizer algo, a porta da frente abriu-se, e um retângulo de luz amarela espalhou-se para a rua. A silhueta de uma mulher projetou-se contra a luz.
Enquanto o carro parava, a mulher deu alguns passos impulsivos em sua direção. Então, um homem apareceu às suas costas e passou um braço em torno de seus ombros. Juntos, esperaram a aproximação dos policiais. George ficou um pouco atrás para permitir que Bob Lucas mantivesse o primeiro contato. Assim, podia analisar a mãe e o padrasto de Alison Carter, enquanto Lucas fazia as apresentações.
Ruth Hawkin parecia ser pelo menos dez anos mais velha que sua Anne, o que a colocaria na faixa dos trinta e tantos anos. Media em torno de 1,60m, com o físico robusto de uma mulher acostumada ao trabalho árduo. Seus cabelos castanhos estavam puxados para trás em um rabo-de-cavalo, salientando o cansaço dos olhos cinza-azulados que mostravam sinais de choro recente. Sua pele parecia curtida, mas seus lábios apertados mostravam traços de batom entre as dobras. Vestia um conjuntinho de blusa e casaco curto em tons de azul, obviamente tricotado à mão, e uma saia cinza de lã plissada. Suas pernas estavam protegidas por meias de lã e calçava botas meia-canela com zíper frontal. Era difícil conciliar o que ele via com a descrição de Grundy, que lhe falara sobre uma bela mulher. George não a teria olhado uma segunda vez em uma fila de ônibus, exceto por seu óbvio sofrimento, que transparecia na tensão de seu corpo e braços cruzados defensivamente no peito. Talvez isto colaborasse para diminuir tanto sua beleza.
O homem de pé atrás dela parecia bem mais à vontade. A mão que não tocava levemente o ombro da esposa estava enfiada casualmente no bolso de um casaco marrom-escuro com adornos de camurça. Ele vestia calças cinzentas de lã, cujas barras dobradas caíam sobre chinelos de couro já bastante usados. George concluiu que Philip Hawkin não andara batendo nas portas da aldeia com a esposa.
Hawkin era o oposto da esposa, em termos de aparência. Com pouco menos de 1,80m, tinha cabelos lisos e escuros penteados reto para trás, fixados no lugar com brilhantina. Seu rosto lembrava um brasão, com testa ampla e quadrada afinando rumo a um queixo pontudo. Sobrancelhas retas sobre olhos castanho-escuros eram como um adorno heráldico; o nariz fino parecia apontar para lábios que pareciam sempre prestes a sorrir.
George classificou e anotou mentalmente suas observações. Bob Lucas ainda falava:
- Portanto, se pudéssemos entrar para sabermos mais alguns detalhes, teríamos um quadro mais claro do que aconteceu - disse ele, fazendo uma pausa cheia de expectativa, ao final.
Hawkin falou pela primeira vez, com sotaque indubitavelmente estranho à área de Derbyshire.
- Claro, claro. Entrem, senhores. Tenho certeza de que ela aparecerá sã e salva, mas não custa seguir os procedimentos, não é? - A mão baixou para as costas da esposa e a guiou de volta a casa. Ela parecia entorpecida e claramente incapaz de tomar qualquer iniciativa. - Lamento trazê-los até aqui em uma noite tão fria - acrescentou Hawkin suavemente, enquanto cruzava a sala.
George seguiu Lucas e Grundy até a cozinha ampla da casa rural. O piso era de pedra e as paredes, também de pedra, haviam recebido uma camada de cal e cola, descolorida em certos pontos, dependendo de sua proximidade com os fogões a lenha e elétrico. Um aparador e diversos armários de diferentes alturas, em tom verde-hospital, alinhavam-se contra as paredes, e sob as janelas que davam para o fundo do vale havia um par de grandes pias de pedra. Outro par de janelas permitia ver a praça do vilarejo, com seu telefone vermelho sobressaindo na escuridão. Várias panelas e utensílios de cozinha estavam pendurados em vigas pretas que cruzavam o cômodo, afastadas cerca de meio metro umas das outras. O cheiro era de fumaça, repolho e gordura animal.
Sem esperar pelos outros, Hawkin sentou-se imediatamente em uma cadeira entalhada, na cabeceira de uma mesa antiga de madeira.
- Faça um chá para os homens, Ruth - disse ele.
- Muito obrigado, senhor - apressou-se George em dizer, vendo que a mulher já pegava a chaleira sobre o fogão -, mas é melhor irmos direto ao ponto. Quando se trata do desaparecimento de uma criança, é melhor não perder tempo. Senhora Hawkin, por favor, sente-se e conte-nos o que sabe.
Ruth olhou para Hawkin, como se pedisse permissão. As sobrancelhas dele ergueram-se, mas assentiu. Ela puxou uma cadeira e sentou-se pesadamente, cruzando os braços sobre a mesa. George sentou-se na sua frente, com Lucas ao seu lado. Grundy desabotoou o sobretudo e sentou-se na extremidade oposta à de Hawkin. Ele tirou o bloco de anotações do bolso do uniforme e o abriu. Lambendo a ponta do lápis, olhou-os em expectativa.
- Qual é a idade de Alison, senhora Hawkin? - indagou George, em tom gentil.
A mulher pigarreou.
- Quase quatorze. Seu aniversário é em março. - Sua voz falhou, como se algo em seu íntimo estivesse se partindo.
- Houve algum problema entre vocês?
- Calma, inspetor - protestou Hawkin. - O que quer dizer com "problema"? O que está sugerindo?
- Nada, senhor - disse George. - O fato é que Alison está em uma idade difícil, e às vezes adolescentes vêem as coisas de um modo exagerado.
Um pequeno problema pode parecer uma catástrofe para eles. Estou tentando determinar se há motivos para supor que Alison resolveu fugir de casa.
Hawkin recostou-se com a testa franzida e inclinou a cadeira para trás, apoiando-a em apenas dois pés. Pegou um maço de cigarros e um pequeno isqueiro cromado do aparador e acendeu um, sem oferecer a ninguém.
- Claro que ela fugiu - disse ele, com um sorriso suavizando a ruga entre suas sobrancelhas. - Adolescentes fazem isso para preocuparem seus pais e serem perdoados por algum erro imaginário. Vocês sabem o que quero dizer - continuou, com um ar de superioridade que incluía os policiais. - O Natal está chegando. Lembro-me de um ano em que sumi por algumas horas. Achei que minha mãe ficaria tão feliz por me ver de volta em segurança, que concordaria em me dar a bicicleta no Natal. - Seu sorriso tornou-se pesaroso. - A única coisa que ganhei foi um traseiro dolorido de palmadas. Escreva o que lhe digo, inspetor: ela voltará antes do amanhecer, esperando boas-vindas.
- Ela não é assim, Phil - disse Ruth, queixosa. - Estou lhe dizendo, algo aconteceu com ela. Alison não nos deixaria preocupados.
- O que aconteceu esta tarde, senhora Hawkin? - perguntou George, tirando do bolso seus próprios cigarros e oferecendo-os à mulher. Assentin-do com gratidão tensa, ela aceitou um e pegou-o com dedos trêmulos e avermelhados pelo trabalho doméstico. Antes que ele pudesse acendê-lo, Hawkin inclinou-se para fazê-lo. George acendeu seu próprio cigarro e esperou, enquanto a mulher preparava-se para responder.
- O ônibus escolar deixa Alison e duas de suas primas no fim da estrada, por volta das quatro e quinze da tarde. Alguém da aldeia sempre vai até lá pegá-las, de modo que mais ou menos às quatro e meia já está em casa. Ela chegou no horário de sempre. Eu estava aqui na cozinha, descascando uns legumes. Deu-me um beijo e disse que iria sair com o cachorro. Perguntei se não queria uma xícara de chá primeiro, mas ela disse que estivera trancada o dia inteiro e só queria correr com o cachorro. Fazia isso com freqüência. Detestava ficar dentro de algum lugar o dia inteiro. - Emocionada pela recordação, Ruth hesitou e então parou de falar.
- O senhor a viu? - perguntou George a Hawkin, mais para dar algum tempo a Ruth que por importar-se com a resposta.
- Não. Eu estava no meu laboratório fotográfico. Perco a noção do tempo quando estou lá.
- Eu não sabia que era fotógrafo - disse George, percebendo que Grundy remexia-se na cadeira.
- Inspetor, a fotografia é minha grande paixão. Quando eu era um reles empregado, antes de herdar este lugar de meu tio, nunca foi mais que um passatempo. Agora tenho meu próprio laboratório, e no último ano tornei-me quase um profissional. Claro que às vezes fotografo pessoas, mas na maior parte do tempo são paisagens. Alguns de meus cartões-postais estão à venda em Buxton. Derbyshire possui uma luminosidade impressionante. - Desta vez, o sorriso de Hawkin foi de orelha a orelha.
- Entendo - disse George, imaginando que homem conseguiria pensar na qualidade da luz quando sua enteada desaparecera em uma noite gélida de dezembro. - Então não sabia que Alison havia chegado e saído novamente?
- Não, não ouvi nada.
- Senhora Hawkin, Alison tinha o hábito de visitar alguém quando saía com o cachorro? Um vizinho? A senhora disse que ela vai à escola com as primas.
Ruth sacudiu a cabeça.
- Não, só anda pelo campo, vai até o bosque e volta. No verão costuma ir mais longe, atravessa o arvoredo e vai até a nascente do rio. Há um vão entre duas colinas. Mal se percebe até chegar lá, mas é possível atravessá-lo pela ribanceira do rio e chegar a Denderdale. Mesmo assim, Alison nunca vai tão longe no inverno. - Ela suspirou. - Além disso, já andei por toda a aldeia. Ninguém viu nem sombra dela desde que passou pelo campo.
- E quanto ao cão? - perguntou Grundy. - Ele voltou?
Esta era a indagação de alguém criado no campo, pensou George. Ele acabaria fazendo aquela pergunta, mas não com tanta rapidez quanto Grundy.
Ruth fez que não com a cabeça.
- É uma cadela, e não voltou. Se Alison tivesse sofrido um acidente, Shep não a abandonaria. Teria latido, mas não sairia de perto de minha filha.
Em uma noite como a de hoje, seria possível ouvir os latidos de qualquer ponto do vale. Você esteve lá fora. Não ouviu nada?
- Por isso eu perguntei - disse Grundy. - Estranhei o silêncio.
- Pode descrever o que Alison vestia? - perguntou o sempre prático Lucas.
- Estava com uma japona azul-marinho sobre o uniforme da escola.
- Da escola Peak Gilts High? Ruth assentiu.
- Usava uma jaqueta preta, um colete marrom, blusa branca, gravata escolar preta e marrom e saia marrom. Vestia meias de lã pretas e botas pretas de pele de carneiro, com cano médio. Não se foge de casa com uniforme escolar - disse ela com vigor, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas, que enxugou com as costas da mão, zangada. - Por que estamos sentados aqui como se estivéssemos tomando o chá de domingo? Por que vocês não estão lá fora, procurando minha filha?
George abaixou e levantou a cabeça, em sinal de compreensão.
- Faremos isso, senhora, mas precisamos saber de tudo antes, para não desperdiçarmos nossos esforços. Qual é a altura de Alison?
- Já está quase da minha altura. Um metro e cinqüenta e sete ou oito, algo assim. É delgada, está começando a adquirir formas de mulher.
- Há alguma fotografia recente de Alison que possamos mostrar aos nossos policiais? - perguntou George.
Hawkin recolocou a cadeira sobre as quatro pernas, causando um rangido agudo no chão de pedra. Ele abriu a gaveta da mesa da cozinha e retirou dali um punhado de fotografias.
- Tirei-as no verão, uns quatro meses atrás. - Ele inclinou-se e colocou-as na frente de George. O rosto que o olhava nas fotos coloridas de meio-corpo não era daqueles que se esquecem facilmente.
Ninguém o alertara sobre a beleza da menina. Sentiu o ar preso em sua garganta enquanto fitava o rosto na foto. Cabelos até os ombros, cor de mel, emolduravam um rosto oval salpicado de sardas claras. Seus olhos azuis tinham um quê de eslavo, bastante separados em relação ao nariz bem-feito e reto. Sua boca era generosa, com o sorriso mostrando uma covinha única em sua bochecha esquerda. A única imperfeição era uma cicatriz oblíqua que atravessava sua sobrancelha direita, deixando uma fina linha branca entre os pêlos escuros. Em cada uma das fotografias, sua pose variava um pouco, mas o sorriso aberto jamais se alterava.
Ergueu os olhos para Ruth, cujo rosto suavizara-se imperceptivelmente ante a visão da filha. Agora entendia o que os olhos de Hawkin haviam percebido na viúva do fazendeiro. Sem a tensão que tirara a suavidade do rosto de Ruth, sua beleza era tão óbvia quanto a da filha. Com a sombra de um sorriso insinuando-se nos lábios da mulher, era difícil imaginar como pudera considerá-la comum.
- É uma garota adorável - murmurou George, levantando-se e pegando as fotografias. - Eu gostaria de ficar com elas por enquanto. - Hawkin concordou com um aceno de cabeça. - Sargento, será que poderíamos trocar algumas palavras lá fora?
Os dois homens saíram da cozinha quente para o ar noturno congelante. Ao fechar a porta às suas costas, George ouviu Ruth dizer, desanimada:
- Vou fazer o chá.
- O que você acha? - perguntou George. Não precisava da confirmação de Lucas para saber que o caso era grave, mas se tirasse a autoridade do homem fardado neste momento, seria o mesmo que dizer que, em sua opinião, a menina havia sido assassinada ou espancada com violência. Apesar de sua crescente convicção de que este era o caso, tinha um temor supersticioso de que agir de acordo com seus piores palpites levaria à concretização do que temia.
- Acho que deveríamos solicitar o apoio de cães farejadores o quanto antes, senhor. Ela pode ter sofrido uma queda. Pode estar incapacitada de se mover devido aos ferimentos. Se foi atingida por alguma pedra pesada por acidente, talvez a cadela esteja morta. - Ele consultou o relógio. - Temos quatro policiais extras, fardados e de plantão no memorial a Kennedy. Se formos rápidos, poderemos pegá-los antes de terminarem seus turnos e trazê-los até aqui, com todos os outros homens que conseguirmos recrutar. - Lucas passou à sua frente para abrir a porta. - Preciso usar o telefone da casa. É inútil tentar o rádio aqui. Teríamos melhores chances se estivéssemos no fundo de uma mina.
- Está bem, sargento. Organize o que puder para um mutirão de buscas. Ligarei para o detetive-sargento Clough e para o policial Cragg. Eles podem dar início às buscas na aldeia de porta em porta, para sabermos quem a viu por último e onde. - George sentiu um vago mal-estar estomacal, como um nervosismo de principiante. Naturalmente, era exatamente isto. Se seus temores se confirmassem, estava no limiar do primeiro caso importante que já tivera sob seu comando. Pelo resto de sua carreira, seria julgado de acordo com os resultados. Se não descobrisse o que acontecera com Alison Carter, a mancha em sua reputação profissional jamais seria apagada.
3
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 21h07
O bafo do cão retorcia-se e pairava por instantes no ar noturno, como se tivesse vida própria. O pastor sentou-se calmamente sobre as patas traseiras, com orelhas levantadas e os olhos alertas varrendo as pastagens do vilarejo. O policial Dusty Miller, adestrador dos cães, estava ao seu lado, acariciando com uma das mãos, distraidamente, o pêlo curto e malhado de marrom entre as orelhas do animal.
- Príncipe precisa de roupas e sapatos da garota - disse ele ao sargento Lucas. - Quanto mais usados, melhor. Podemos fazer o trabalho sem isso, mas facilitaria tudo para o cachorro.
- Falarei com a senhora Hawkin - disse George rapidamente, antes que Lucas pudesse entregar a tarefa a outro. Não que um policial fardado não pudesse lidar com isto, mas ele queria aproveitar a oportunidade para observar a mãe e o padrasto de Alison novamente.
Entrou na cozinha quente, onde Hawkin ainda estava sentado à mesa e ainda fumando. Agora, ele tinha uma xícara de chá na sua frente, assim como a policial sentada na outra ponta da mesa. Ambos voltaram as cabeças ao vê-lo entrar. Hawkin levantou as sobrancelhas em muda interrogação. George fez um "não" também sem falar, e Hawkin apertou os lábios, passando a mão sobre os olhos. George sentiu um certo alívio ao perceber que o homem finalmente demonstrava sinal de preocupação com o destino de sua enteada. Parecia que só agora seu egocentrismo permitira a aceitação de que Alison poderia estar em perigo.
Ruth Hawkin estava junto à pia, com as mãos enfiadas em água com sabão, mas não lavava nada. Estava imóvel, fitando intensamente a escuridão compacta da noite. O luar mal penetrava a área atrás da casa; neste ponto avançado do vale, os rochedos estavam suficientemente próximos para cortarem a maior parte de sua claridade. Nada havia além da janela, exceto um contorno débil e escuro contra o cinza-claro das rochas. Um galpão, talvez, pensou George, imaginando se já havia sido vasculhado. Limpou a garganta e começou a falar:
- Senhora Hawkin...
Ela voltou-se devagar. Mesmo naquele curto período em que ele estava em Scardale, a mulher parecia ter envelhecido, com a pele esticando-se em sua face e os olhos mais fundos que no momento em que os policiais haviam chegado.
- Sim?
- Precisamos de algumas peças de roupa de Alison, para facilitar o trabalho do cão farejador.
- Vou buscar alguma coisa - disse ela.
- O adestrador sugeriu sapatos e algo que ela use com freqüência. Um pulôver ou casaco, talvez.
Ruth saiu dali com os passos automáticos de uma sonâmbula.
- Será que eu poderia usar seu telefone outra vez? - perguntou ele.
- A vontade - respondeu Hawkin, fazendo um aceno na direção do corredor.
George seguiu Ruth pela porta e chegou à mesa na qual estava o antigo telefone preto de baquelita, próximo a uma fotografia de casamento de Ruth, radiante com seu novo marido. George achou que, se Hawkin não fosse tão inconfundível em sua bela figura, não teria conseguido identificar a noiva.
Tão logo fechou a porta atrás de si, voltou a sentir o frio terrível. Se a menina estivesse acostumada com temperaturas como esta, teria mais chances de sobreviver lá fora. Viu quando Ruth desapareceu na curva das escadas, enquanto tirava o telefone do gancho e começava a discar. Depois de quatro toques, alguém atendeu.
- Buxton 422 - disse a voz familiar, aliviando instantaneamente sua ansiedade.
- Anne, sou eu. Tive de vir a Scardale a serviço. Uma garota desaparecida.
- Ah, pobres pais - disse Anne, imediatamente. - E pobrezinho de você, tendo de enfrentar uma noite como esta.
- Estou preocupado apenas com a menina. Claro que chegarei tarde. Na verdade, dependendo do que acontecer, talvez eu nem volte esta noite.
- Você exige demais de si mesmo, George. Isso lhe faz mal, sabia? Se não chegar até a hora em que eu for para a cama, deixarei sanduíches na geladeira para que ao menos se alimente um pouco. É melhor que tenham sumido, quando eu acordar - acrescentou ela, repreendendo-o com leve ar de brincadeira.
Se Ruth Hawkin não tivesse reaparecido na escada, ele teria dito à esposa o quanto adorava que cuidasse dele, mas disse apenas:
- Obrigado. Entrarei em contato quando puder.
Desligou e deu alguns passos até o pé da escada, onde Ruth aconchegava junto ao peito uma pequena trouxa.
- Estamos fazendo o possível - disse ele, sabendo que sua resposta não a ajudava em nada.
- Eu sei - respondeu a mulher, abrindo os braços e revelando um par de pantufas e um casaquinho amassado de pijama. - Pode entregar isso ao adestrador?
George pegou as roupas, sentindo uma fisgada de emoção intensa ao perceber como as circunstâncias tornavam patéticas as pantufas aveludadas e o casaco cor-de-rosa. Segurando as peças com cuidado para evitar que fossem contaminadas com seu odor, George voltou à cozinha e, de lá, saiu para o ar noturno. Sem dizer uma palavra, entregou os itens para Miller e observou, enquanto o adestrador dizia palavras gentis de comando para Príncipe, colocando as peças de roupa sob seu focinho comprido.
O cachorro levantou a cabeça com delicadeza, como se cheirasse alguma delícia culinária no vento. Depois, começou a cheirar o chão junto à porta da frente, com a cabeça indo para lá e para cá em longos arcos, alguns centímetros acima do solo. Em intervalos de alguns metros, ele bufava alto e olhava para cima, voltando as narinas para as roupas de Alison e seu odor, como se para lembrar a si mesmo o que deveria procurar. Cão e treinador moviam-se à frente quase ao mesmo tempo, cobrindo cada centímetro do caminho a partir da porta da cozinha. Depois, exatamente no fim da trilha de terra que contornava o fundo da praça da aldeia, o pastor enrijeceu-se subitamente. Como se fosse uma criança brincando de estátua, Príncipe ficou imóvel por longos segundos, examinando com vigor o cheiro que vinha do capim raquítico. Depois, em um único movimento fluido e suave, moveu-se rapidamente pelo capim, com seu corpo próximo ao solo e o focinho parecendo puxá-lo à frente em um trote lento.
Miller apressou o passo para poder acompanhá-lo. A um aceno do sargento Lucas, quatro dos homens fardados que haviam chegado minutos depois da equipe do cão colocaram-se atrás deles, espalhando-se para cobrir o chão com os fachos de suas lanternas. George seguiu-os por alguns metros, incerto quanto a unir-se a eles ou esperar pelos dois policiais do departamento de investigações que chamara, mas que ainda não haviam chegado.
A trilha seguida desviou-se da praça da aldeia e, então, passou por uma escadaria pequena entre duas casas, que terminava em um campo muito mais amplo. Enquanto o cão os guiava pelo campo sem qualquer hesitação, George ouviu um carro subindo pela estrada em direção à aldeia. Reconheceu o Ford Zafira do sargento-detetive Tommy Clough, enquanto ele estacionava atrás das viaturas que já estavam lá. Ele deu uma rápida olhada sobre os ombros para a equipe de rastreamento. As lanternas indicavam sua posição. Não seria difícil alcançá-la. Voltou-se então, foi até o enorme carro preto e abriu a porta do motorista. A familiar cara rosada e redonda de seu sargento abriu-lhe um largo sorriso.
- Como vai, senhor? - disse Clough, envolvido pelo odor de cerveja.
- Temos trabalho pela frente - disse George, sem perder tempo. Mesmo tendo tomado uns goles, Clough ainda era melhor no que fazia que a maioria dos outros policiais que não haviam bebido. A porta do passageiro bateu, e o detetive Gary Cragg veio andando sacolejante, contornando o carro pela frente. Na primeira vez em que vira o policial desengonçado, George pensara que ele havia assistido a muitos filmes de faroeste. Cragg ficaria bem com um par de calças de couro com pistolas Colt em cada lado de seus quadris estreitos e um chapéu de vaqueiro puxado para a frente sobre seus olhos cinzentos. Quando usava terno, parecia alguém que não tinha muita certeza de como chegara até ali, mas que desejaria do fundo da alma estar em outro lugar.
- Garota desaparecida, não é? - perguntou ele, com sua fala arrastada. Até mesmo sua voz lenta combinava mais com um saloon, pedindo uma dose de uísque ao garçom. A única coisa que o salvava de ser um legítimo caubói era a ausência total de rebeldia contra a ordem, tanto quanto George soubesse.
- Alison Carter. Treze anos - resumiu George, enquanto Clough desentalava o corpo robusto do assento do motorista. Fez um gesto sobre o ombro com o polegar. - Ela mora no solar e é enteada do proprietário. A menina e sua mãe são de Scardale.
Clough bufou e enfiou um boné de tweed na cabeça de cachos castanhos.
- Então ela não se perdeu, simplesmente. Você sabe como é em Scardale, não? Todos se casam com primos, há muitas gerações. A maioria é tão estúpida, que teria dificuldade para encontrar seu próprio traseiro na hora de limpá-lo.
- Bom, apesar dessas deficiências, parece que Alison conseguiu chegar à escola secundária - comentou George. - O que, pelo que sei, é mais do que se pode dizer a seu respeito, sargento Clough. - Clough olhou para seu superior, três anos mais jovem que ele, mas nada disse. - Alison chegou da escola no horário de sempre. Depois, saiu com o cachorro. Nenhum dos dois foi visto desde então. Isso ocorreu quase cinco horas atrás. Quero que você faça uma busca de porta em porta na aldeia. Quero saber quem a viu pela última vez, onde e quando isso aconteceu.
- Já devia estar escuro quando ela saiu - disse Cragg.
- Mesmo assim, alguém pode tê-la visto. Tentarei alcançar o adestrador, de modo que é onde me encontrarão se precisarem, está bem? - Enquanto se virava, um pensamento enregelante capturou-o. Olhou para as casas agrupadas em forma de ferradura em torno da praça e então voltou-se novamente para Clough e Cragg: - E cada uma das casas. Quero que verifiquem se as crianças estão onde deveriam estar. Não quero que alguma outra mãe tenha um ataque amanhã de manhã ao descobrir que o filho ou filha também sumiu.
Não esperou resposta, colocando-se a caminho da passagem entre as casas. Quase lá, parou de repente e se voltou, vendo que Lucas já orientava os seis outros policiais que conseguira trazer de algum lugar.
- Sargento - disse -, há uma espécie de galpão que se pode ver da janela da cozinha do solar. Não sei se alguém já verificou o lugar, mas não custa dar uma olhada para o caso de ela não ter saído para sua caminhada habitual.
Lucas assentiu e fez um aceno de cabeça para um dos policiais.
- Veja o que consegue, rapaz. - Ele assentiu para George. - Muito obrigado, senhor.
Kathy Lomas colocou-se junto à janela e observou enquanto a escuridão engolia o homem de sobretudo e chapéu de feltro. Iluminado pelos faróis do carro grande que acabava de estacionar perto do telefone público, ele se parecia muito com James Stewart. Isto deveria ser reconfortante, mas, estranhamente, só fazia com que os acontecimentos da noite parecessem ainda mais irreais.
Kathy e Ruth eram primas, com menos de um ano de diferença em idade e ligadas por laços sangüíneos pelos lados tanto materno quanto paterno. Haviam se tornado mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam inextricavelmente interligadas. Assim, ao ser alertada por Derek, Kathy entrara na cozinha de Ruth e encontrara a prima andando ansiosamente, fumando um cigarro atrás do outro e chorando. Sentira a punhalada do medo tão intensa quanto se a criança desaparecida fosse seu próprio filho.
Haviam percorrido a aldeia juntas, convencidas inicialmente de que encontrariam Alison aquecendo-se junto à lareira de alguém sem perceber que já era tarde, cheia de remorso por ter causado preocupação à mãe. Contudo, à medida que passavam de casa em casa e não achavam sinal da menina, a convicção transformara-se em pálida esperança e, depois, em desespero.
Kathy ficou junto à janela escura da minúscula sala de visitas da Casa da Cotovia,
observando a atividade que agitava subitamente a feia noite de dezembro. O detetive à paisana que viera dirigindo o carro, aquele que se parecia
Início de Nota de Rodapé: Em pequenas aldeias rurais inglesas, os camponeses dão nomes às suas casas. Fim da Nota de Rodapé.
com um touro Hereford com seus cachos e cabeça larga, levantou o casaco para coçar o traseiro, disse algo a seu colega e, depois, começou a andar na direção de sua porta da frente, com os olhos parecendo encontrar os seus na escuridão.
Kathy moveu-se para a porta, lançando um olhar para a cozinha, onde o marido tentava concentrar-se em terminar uma obra de marchetaria com tema de barcos de pesca em um ancoradouro.
- A polícia está aqui, Mike - anunciou ela em voz alta.
- Já era hora - ouviu-o resmungar.
Ela abriu a porta exatamente quando o touro Hereford levantava a mão para bater. O olhar assustado do homem transformou-se em um sorriso enquanto absorvia as curvas generosas de Kathy, ainda óbvias mesmo sob seu avental folgado.
- Você deve estar aqui por causa de Alison - disse ela.
- Sim, senhora. Sou o sargento-detetive Clough e este é o detetive Cragg. Será que podemos entrar um minuto?
Kathy deu um passo para o lado para lhes dar passagem, deixando que Clough roçasse em seus seios ao fazer isso, sem reclamar.
- A cozinha é logo à frente. Meu marido está ali - disse ela, com frieza. A mulher seguiu-os e se encostou no fogão, tentando eliminar o medo gelado em seu íntimo, esperando que os homens se apresentassem e se acomodassem. Clough virou-se para ela.
- Vocês viram Alison depois que ela chegou da escola? Kathy respirou fundo.
- Sim. Era minha vez de pegar as crianças quando desceram do ônibus escolar. No inverno, um de nós sempre vai até o fim da estrada para pegá-las.
- Percebeu algo diferente em Alison? - indagou Clough. Kathy pensou por um momento e depois sacudiu a cabeça.
- Nada. - Ela encolheu os ombros. - A mesma coisa de sempre. Apenas... Alison. Ela se despediu e subiu a trilha até sua casa. A última vez em que a vi foi quando entrava e dizia olá para sua mãe.
- Viu alguém estranho pelas redondezas? Na estrada ou lá embaixo?
- Ninguém.
- Suponho que a senhora acompanhou a senhora Hawkin em suas buscas - disse Clough.
- Eu não a deixaria ir sozinha, não é? - disse Kathy, com alguma agressividade.
- Como a senhora soube que Alison havia desaparecido?
- Nosso filho Derek contou. Ele não está indo tão bem quanto deveria na escola, de modo que tenho tentado garantir que está fazendo seus deveres. Em vez de deixá-lo sair com Alison e sua prima Janet quando chegam em casa, eu o mando ficar em casa, estudando.
- Ela o faz sentar à mesa da cozinha e completar todo o trabalho que os professores mandaram, antes de deixá-lo sair com as garotas. Pura perda de tempo, se querem saber. O garoto vai trabalhar no campo, como eu - interrompeu Mike Lomas, em voz baixa.
- Não se eu puder evitar - disse Kathy, inflexível. - Eu lhe digo o que é perda de tempo. É aquele toca-discos que Phil Hawkin comprou para Alison. Derek e Janet estão sempre lá, ouvindo os discos novos. Derek estava louco para ir à casa de Alison hoje à noite. Ela acabou de comprar o novo sucesso dos Beatles, - Want to Hold Your Hand. Mas só o deixei sair depois do chá. Devia faltar pouco para as sete horas. Ele voltou em cinco minutos, dizendo que Alison havia saído com Shep e ainda não estava em casa. É claro que fui direto até lá para conferir.
"Ruth estava uma pilha de nervos. Eu lhe disse que deveria ir a todas as casas da aldeia, para o caso de Alison ter parado para ver alguém e esquecido do tempo. Ela sempre visita Mamãe Lomas, e faz companhia à velhota e escuta suas histórias sobre os velhos tempos, junto com seu primo Charlie. Mamãe Lomas pode falar durante a noite inteira. É uma grande contadora de histórias e nossa Alison adora escutá-la."
Ela ajeitou-se melhor contra o fogão. Clough percebeu a agitação da mulher e decidiu deixá-la falar, para ver aonde sua história os levaria. Ele assentiu.
- Continue, senhora.
- Bem, estávamos quase saindo quando Phil entrou. Ele disse que estava no laboratório, revelando suas fotografias, e que acabara de perceber que já era tarde. Começou a perguntar onde estava seu chá e onde estava Alison. Eu lhe disse que havia coisas mais importantes em que pensar que em sua barriga, mas Ruth serviu-lhe algo que estava cozinhando.
Depois nós o deixamos e fomos bater nas portas dos vizinhos. - Ela parou de repente.
- Então a senhora não tornou a ver Alison depois que ela saiu do carro na volta da escola?
- Land Rover - grunhiu Mike Lomas.
- Perdão?
- Era um Land Rover, não um carro. Ninguém tem carros por aqui - disse ele, com desdém.
- Não a vi desde que entrou pela porta da cozinha em sua casa - falou Kathy. - Mas vocês vão encontrá-la, não? Quer dizer, é seu trabalho. Vão achá-la?
- Faremos todo o possível - disse Cragg, recorrendo à frase batida para aliviar a ansiedade da mulher.
Tommy Clough falou rapidamente, antes que ela pudesse verbalizar a resposta irritada que pressentia.
- E quanto ao seu filho, senhora Lomas? Está onde deveria? A boca abriu-se, em choque.
- Derek? E por que não estaria?
- Talvez pela mesma razão pela qual Alison não está onde deveria.
- Não diga isso! - Mike Lomas saltou da cadeira, com as bochechas rubras e os olhos apertados de raiva.
Clough sorriu, abrindo as mãos em um gesto conciliador.
- Não me levem a mal. O que eu quis dizer é que vocês devem verificar para o caso de algo ter acontecido com ele, só isso.
Quando George cruzou a passagem entre as casas, os fachos das lanternas da equipe de busca não eram mais que débeis manchas trêmulas a distância. Ele achou que os homens haviam entrado em algum matagal, pelo modo como os fachos amarelos pareciam desaparecer e reaparecer intermitentemente. Ligando a lanterna que tomara emprestada do Land Rover da polícia que trouxera policiais de Buxton, cruzou apressadamente o capim irregular com o máximo de rapidez que conseguia.
As árvores apareceram antes do que esperava. Inicialmente, ele viu apenas vegetação rasteira, que não parecia ter sido pisada, mas, ao mover a lanterna em todas as direções, percebeu uma trilha estreita, na qual a terra mostrava-se compactada. George mergulhou entre as árvores, tentando conciliar pressa e cautela. O facho da lanterna enviava sombras loucas que dançavam em todas as direções, forçando-o a concentrar-se mais na trilha do que precisaria se estivesse em campo aberto. Folhas endurecidas pelo frio estalavam sob seus pés, galhos ocasionais roçavam por seu rosto ou ombros e o odor adocicado de decomposição da vegetação o assaltava por todos os lados. A cada vinte metros, ou algo em torno disso, ele desligava a lanterna para conferir sua posição em relação às lanternas mais à frente. A escuridão absoluta o engolia, mas era difícil resistir à sensação de que olhos ocultos o observavam, seguindo todos os seus movimentos. Era um alívio ligar a lanterna outra vez. Alguns minutos depois de entrar na mata, percebeu que as luzes à sua frente haviam parado. Acelerando a ponto de quase cair ao tropeçar na raiz de uma árvore, por pouco não colidiu com um policial que vinha ao seu encontro.
- Encontraram? - perguntou George, sem fôlego.
- Não tivemos esta sorte, senhor, mas encontramos a cadela.
- Viva?
O homem assentiu.
- Sim, mas foi amarrada.
- Em silêncio? - indagou George, incrédulo.
- Alguém fechou sua boca com esparadrapo, senhor. O pobre animal mal conseguia gemer. O policial Miller mandou-me de volta para trazer o sargento Lucas antes de fazermos alguma coisa.
- Assumirei a responsabilidade - falou George, com firmeza. - Mas volte e conte ao sargento Lucas o que aconteceu. Acho que seria bom manter as pessoas afastadas desta parte do matagal até amanhecer. O que quer que tenha acontecido com Alison Carter, podemos estar destruindo provas neste exato momento.
O policial assentiu e partiu pela trilha, correndo.
- Mas que cabritos saltadores eles criam por aqui - murmurou George para si mesmo, enquanto seguia vacilante à frente.
A clareira na qual emergiu era um misto de fachos de lanternas e sombras estranhamente alongadas. Na extremidade mais distante, uma collie preta e branca contorcia-se atada a uma corda presa em uma árvore. Suas íris castanho-claras destacavam-se contra o branco de seus olhos arregalados. O rosa-escuro do esparadrapo que selava sua boca parecia incongruente naquele ambiente campestre. George sentiu os olhares especulativos que os homens uniformizados lhe dirigiam.
- Acho que deveríamos aliviar o sofrimento desta cadela. O que você acha, policial Miller? - perguntou, dirigindo sua questão ao adestrador, que cobria a clareira metodicamente, com Príncipe.
- Acho que ela adoraria, senhor - disse Miller. - Tirarei Príncipe daqui, para que não a perturbe.
Com um puxão na correia do cão e uma palavra de comando, ele dirigiu-se ao outro lado da clareira. George percebeu que seu cachorro ainda cheirava o ar, como fizera perto da casa algum tempo antes.
- Será que perdeu o rastro? - perguntou, subitamente preocupado com coisas mais importantes que o desconforto de um cão.
- Parece que a pista acaba aqui - disse o adestrador. - Já percorri a clareira duas vezes, andei na direção oposta, mas não há nada.
- Isso quer dizer que Alison foi carregada daqui? - perguntou George, com um tremor frio nascendo no estômago e escalando seu corpo.
- Acho que sim - falou Miller, sombrio. - Uma coisa é certa: ela não saiu andando daqui, a menos que tenha dado meia-volta e refeito seu trajeto até a casa. E se fez isso, por que atar e amordaçar a cadela?
- Talvez quisesse assustar a mãe. Ou o padrasto - arriscou um dos policiais.
- A cadela não teria latido para eles, não é? Então não haveria necessidade de amordaçá-la ou deixá-la aqui - falou Miller.
- A menos que ela achasse que um deles poderia estar com alguém estranho - disse George, quase que para si mesmo.
- Aposto que a menina não saiu desta clareira com seus próprios pés - falou Miller, determinado, enquanto levava seu cão pela trilha.
George aproximou-se devagar da cadela. Os gemidos na garganta do animal tornaram-se um queixume suave. Como era mesmo seu nome? Shep. O nome do animal era Shep.
- Ok, Shep - disse ele com gentileza, estendendo a mão para que a cadela pudesse cheirar seus dedos. O queixume parou. George puxou as pernas de suas calças para cima e ajoelhou-se no solo congelado, desigual e desconfortável. Percebeu, automaticamente, que o esparadrapo era do tipo mais grosso e viera de um rolo de cinco centímetros de largura com uma faixa de compressa com um centímetro de largura no meio.
- Calma aí, garota - murmurou, agarrando com uma das mãos os pêlos espessos na nuca da cadela para mantê-la imóvel. Com a outra mão, segurou a ponta do esparadrapo até liberar o suficiente para poder puxá-lo todo. Olhou para cima.
- Um de vocês venha aqui para segurar a cabeça do bicho enquanto arranco essa coisa.
Um dos policiais agachou-se de pernas abertas sobre o animal nervoso e agarrou sua cabeça com firmeza. George segurou a ponta do esparadrapo e o puxou com força, levando quase um minuto para arrancar tudo, enquanto mal conseguia evitar os dentes afiados da collie, que entrara em pânico ao ter seus pêlos arrancados junto com a fita colante. O policial atrás dela saltou para trás, quando a cadela virou-se para tentar abocanhá-lo. Tão logo percebeu que sua boca estava livre, Shep começou a latir furiosamente para os homens.
- O que fazemos agora? - perguntou um dos policiais.
- Vou soltá-la e ver aonde deseja nos levar - disse George, parecendo mais confiante do que se sentia. Ele andou para a frente com cautela, mas Shep não parecia disposta a atacá-lo. Com o canivete, ele cortou a corda, já que era mais fácil que tentar desamarrá-la enquanto a cadela se retorcia de agonia, além da vantagem de preservar o nó, para o caso de haver algo digno de atenção nele. George achou que não, parecia bem comum.
Instantaneamente, Shep saltou para a frente. Pego de surpresa, George cortou o dedo enquanto tentava segurá-la.
- Mas que droga! - exclamou, enquanto a corda corria entre seus dedos, queimando a pele onde tocava. Um dos policiais tentou agarrá-la enquanto Shep fugia, mas não conseguiu. George segurou a mão que sangrava e observou, impotente, enquanto o cão corria pela trilha que Miller e Príncipe haviam tomado a partir da clareira.
Momentos depois, ouviu a algazarra dos cães e o comando rígido e alto de Miller dizendo "Sente-se". Depois, o silêncio, e instantes mais tarde um uivo arrepiante que cortou a noite.
Apalpando seu bolso em busca de um lenço, George seguiu o rumo que Shep havia tomado. Alguns metros à frente, dentro da mata, deparou-se com Miller e os dois cães. Príncipe estava deitado, com o focinho entre as patas. Shep estava sentada, a cabeça erguida para o céu, abrindo e fechando a boca em uma série de uivos de congelar o sangue. Miller segurava a corda, evitando a fuga da collie rebelde.
- Parece que ela quer ir nessa direção - disse Miller, mostrando com a cabeça o caminho que se afastava da clareira.
- Então vamos segui-la - falou George, pegando a corda do adestrador depois de envolver seu polegar com o lenço. - Venha, garota - disse, incentivando a cadela e sacudindo a corda. - Mostre-me.
Imediatamente, Shep pôs-se de pé e partiu pela trilha, abanando a cauda. Andaram entre as árvores por alguns minutos e, então, viram uma trilha que levava à margem de um córrego estreito e rápido. A cadela sentou-se prontamente e voltou a cabeça para olhá-lo, com a língua de fora e os olhos espantados.
- Este deve ser o Scarlaston - disse a voz de Miller, às suas costas. - Eu sabia que nascia por aqui. Rio esquisito. Ouvi dizer que parece brotar do nada, em algum ponto por aqui. Se temos um verão seco, ele às vezes desaparece completamente.
- E aonde nos leva? - perguntou George.
- Não tenho certeza. Acho que desemboca no Derwent ou no Manifold. Não lembro qual deles. Seria preciso conferir no mapa.
George assentiu.
- Então, se Alison foi carregada para fora da clareira, perderíamos seu rastro aqui, de qualquer maneira. - Ele suspirou e voltou-se, dirigindo o foco da lanterna para seu relógio. Eram quase nove e quarenta e cinco. - Não podemos fazer mais nada no escuro. Vamos voltar à aldeia.
Praticamente arrastou Shep para afastá-la da margem do Scarlaston. Enquanto avançavam lentamente de volta a Scardale, George refletia sobre o desaparecimento de Alison Carter. Nada fazia sentido. Se alguém havia sido cruel o bastante para raptar uma menina, certamente não teria piedade da cadela. Especialmente uma tão esperta quanto Shep. Ele não imaginava uma cadela como aquela collie simplesmente submetendo-se enquanto alguém envolvia todo seu focinho com esparadrapo. A menos que Alison tivesse feito isso.
Neste caso, será que agira por iniciativa própria ou alguém a forçara a silenciar sua cadela? E, se tivesse feito aquilo por vontade própria, onde estaria agora? Se a menina pretendia fugir, por que não levaria a cadela para protegê-la, pelo menos até a manhã? Quanto mais pensava naquilo, menos entendia.
George andou penosamente pelo bosque e atravessou o campo, com a cadela relutante em seus calcanhares. O sargento Lucas conversava com o policial Grundy sob a luz de um lampião pendurado na traseira do Land Rover. George resumiu a situação na mata.
- Não adianta nada nos metermos lá na escuridão - disse ele. - Acho que o melhor a fazer é colocar alguns homens de guarda e, logo que amanhecer, examinar aquela área centímetro a centímetro.
Ambos os homens olharam-no como se tivesse enlouquecido.
- Com todo respeito, senhor, se pretende manter o povo longe da mata, não há muito sentido em deixar homens congelando lá - disse Lucas, cansado. - Os habitantes daqui conhecem a mata bem melhor que nós. Se quiserem entrar lá, entrarão e jamais saberemos. Além disso, acho que não existe ninguém que não tenha se oferecido como voluntário para ajudar nas buscas. Se lhes dissermos o que devem fazer, serão os últimos a destruir quaisquer pistas.
- E quanto aos de fora da aldeia? - perguntou George, percebendo que ele tinha razão.
Lucas encolheu os ombros.
- Tudo que precisamos fazer é colocar um guarda no portão da aldeia. Acho que ninguém conseguiria chegar até aqui vindo da outra colina. O caminho pelas margens do Scarlaston já é traiçoeiro com bom tempo, imagine então em uma noite gelada de inverno.
- Estou contente por tê-lo ao meu lado, sargento - disse George. - Acho que foram os seus homens que fizeram buscas nas casas e galpões, não foram?
- Sim. Nenhum sinal da garota - disse Lucas, com seu rosto naturalmente animado agora sombrio. - A construção atrás do solar é o laboratório fotográfico do proprietário. Não há espaço para uma garota se esconder ali.
Antes que George pudesse responder, Clough e Cragg apareceram das sombras na praça da aldeia. Ambos pareciam tão enregelados quanto ele, com as golas de seus pesados casacões levantadas contra o vento cortante que soprava. Cragg folheava seu bloco de anotações.
- Algum progresso? - perguntou George.
- Nada, como você pode ver - queixou-se Clough, oferecendo seus cigarros a todos. Apenas Cragg aceitou um. - Falamos com todo mundo, incluindo os primos com os quais a menina voltou da escola. Era a vez de Kathy Lomas pegá-los no fim da estrada, o que ela fez, como sempre. Na última vez em que viu Alison, a menina estava entrando pela porta da cozinha do solar. Então, a mãe diz a verdade; a garota chegou inteira em casa. A senhora Lomas entrou com seu filho e não tornou a ver Alison. Ninguém viu um traço sequer da garota depois que voltou da escola. É como se tivesse evaporado.
4
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 1h14
George passou os olhos pelo salão da igreja, com ar resignado. Na luz pálida e amarelada, o lugar parecia sombrio e pequeno, com as paredes verde-claras aumentando a sensação de que se estava em um local público. Contudo, precisavam de um local para acomodar a equipe do departamento de investigações criminais, bem como os policiais, e as chances de encontrar tal luxo perto de Scardale eram minguadas. Sob pressão, Peter Grundy conseguira apenas pensar na prefeitura em Longnor e neste anexo deprimente da capela metodista, localizado acanhadamente na avenida principal, logo depois do desvio para Scardale. Tinha a vantagem não apenas de ser mais perto de Scardale, mas também de contar com uma linha telefônica já instalada no que seria, de acordo com a placa na porta, a sacristia.
- Que bom que metodistas não são chegados a paramentos - falou George, parado na soleira da porta e examinando o armário antigo. - Anote aí, Grundy, precisamos de um telefone de campanha também.
Grundy adicionou o telefone a uma lista que já incluía máquinas de escrever, formulários para depoimentos de testemunhas, mapas em diversas escalas, caixas e pastas de arquivos, registro de eleitores e listas telefônicas. Mesas e cadeiras não eram problema, pois o salão já continha o suficiente. George voltou-se para Lucas:
- Precisamos montar um plano de ação para a manhã - disse, decidido. - Vamos juntar algumas cadeiras e ver o que podemos fazer.
Colocaram uma mesa e cadeiras diretamente sob um dos aquecedores elétricos pendurados em vigas do telhado. Eles mal disfarçavam o frio úmido da noite gélida, mas os homens sentiam-se satisfeitos com qualquer alívio. Grundy desapareceu na pequena cozinha e voltou com três xícaras e um pires.
- Para servir de cinzeiro - disse ele, deslizando o pires sobre a mesa, na direção de George. Depois, retirou uma garrafa térmica de dentro de seu sobretudo e a plantou com firmeza sobre a mesa.
- De onde veio isso? - indagou Lucas.
- De Betsy Crowther, da Casa da Campina - disse Grundy, abrindo a garrafa. George olhou com avidez a espiral de vapor que saiu dali. - Prima da mãe de Alison, por parte da mãe.
Revigorados por chá e cigarros, os três homens começaram a planejar:
- Precisaremos de tantos policiais quantos pudermos conseguir - falou George. - Precisamos vasculhar toda a área de Scardale, mas, se não acharmos nada, teremos de ampliar a busca até o curso do rio Scarlaston. Pretendo contatar o Exército, para ver se podem nos ceder pessoal para ajudar nas buscas.
- Se ampliarmos mais as buscas, talvez seja útil pedir ajuda ao Clube de Caça de High Peak - disse Lucas, encurvado sobre seu chá para aproveitar ao máximo o calor. - Seus cães de caça estão acostumados a rastrear, e seus cavaleiros conhecem o terreno.
- Lembrarei isso - disse George, inalando a fumaça de seu cigarro como se esta pudesse aquecer suas entranhas endurecidas de frio. - Grundy, quero que você faça uma lista de todos os fazendeiros locais dentro de um raio de, digamos, dez quilômetros. Primeiro, enviaremos alguns homens para pedir-lhes que verifiquem suas terras para verem se a garota está lá. Se ela fugiu, pode ter sofrido algum acidente, andando por aí no escuro.
Grundy assentiu:
- Farei isso. Senhor, lembrei-me de uma coisa que talvez valha a pena mencionar. - George fez sinal positivo com a cabeça, e ele continuou: - Ontem foi dia da feira Agropecuária e do Show de Natal de Leek. Eles exibem gado de corte e leiteiro, com bons prêmios em dinheiro, essas coisas. Isso significa que houve um tráfego bem maior que o habitual nas estradas por esses lados. Muitos vão para Leek por causa do show, não importando se estão participando da feira ou não. Alguns aproveitam para fazer suas compras de Natal. Alguém poderia estar voltando para casa na hora em que Alison desapareceu. Assim, se a garota estava em uma das estradas, há uma chance bem grande de ter sido vista.
- Bem pensado - disse George, anotando algo. - Talvez seja útil perguntar sobre isso aos fazendeiros, quando falar com eles. Também posso abordar o assunto na coletiva da imprensa.
- Coletiva da imprensa? - perguntou Lucas, desconfiado. Até aquele momento, aprovara totalmente o professor, mas agora parecia que George Bennett planejava usar Alison Carter para se promover. Isso o baixava em seu conceito.
George assentiu.
- Já solicitei ao QG que providencie uma coletiva da imprensa aqui, às dez horas. Precisamos de toda a ajuda possível, e a imprensa pode chegar às pessoas com mais rapidez que nós. Talvez levemos semanas para entrar em contato com todos que estavam na Feira de Leek ontem, e mesmo assim deixaremos algumas pessoas de fora. Com a cobertura pela imprensa, praticamente todo mundo saberá que temos uma garota desaparecida em uma questão de dias. Felizmente, o High Peak Courant sai hoje, de modo que na hora do chá provavelmente a notícia já estará nas ruas. A publicidade é vital em casos assim.
- Não parece ter funcionado tão bem para nossos colegas de Man-chester e Ashton - disse Lucas, com ar de dúvida. - Só serviu para fazer com que os policiais perdessem tempo seguindo pistas falsas.
- Se ela fugiu, será mais difícil continuar escondida. E se foi levada para outro lugar, isto aumenta nossas chances de encontrar uma testemunha - falou George, com firmeza. - Conversei com o superintendente Martin, que concorda comigo. Ele virá para a coletiva da imprensa e já confirmou que, a partir de agora, estou no comando da operação - acrescentou, sentindo-se meio sem graça com seu tom autoritário.
- Faz sentido - disse Lucas. - Afinal, o senhor está aqui desde o começo. - Ele levantou, empurrando a cadeira, e inclinou-se para apagar seu cigarro. - Assim, será que devemos voltar para Buxton agora? Não vejo o que mais podemos fazer aqui. Os homens do turno do dia podem dar continuidade ao trabalho quando vierem, às seis.
Intimamente, George concordou, mas não queria sair dali. Também não queria dar a impressão de que forçava sua autoridade, insistindo que permanecessem sem uma razão lógica, de modo que acompanhou Lucas e Grundy até o carro com alguma relutância. Pouco foi dito no trajeto até Longnor para deixar Grundy em casa e ainda menos nos dez quilômetros até Buxton. Os dois homens estavam cansados e ocupados com seus próprios pensamentos.
De volta à sede da divisão em Buxton, George pediu que o sargento datilografasse uma lista de ordens para o turno do dia e para os homens recrutados de outras partes da comarca. Entrou em seu carro, tremendo ante o sopro de ar frio que veio das aberturas do painel quando ligou o motor. Dez minutos depois, chegava ao lugar que a polícia de Derbyshire considerava apropriado para um homem casado em sua posição - uma casa geminada de três dormitórios, com fachada de pedra e jardim espaçoso, graças à curva acentuada da rua. Das janelas da cozinha e do quarto dos fundos tinha-se uma visão da floresta de Grin Low prolongando-se ao longo do cume até o começo de Axe Edge e pelos quilômetros e mais quilômetros de charneca onde Derbyshire confundia-se com Staffordshire e Cheshire.
George estava na cozinha iluminada apenas pela luz da lua, olhando a paisagem desanimadora. Tirara obedientemente os sanduíches da geladeira e coara chá, mas ainda não dera uma mordida sequer. Não sabia nem de que eram os sanduíches. Havia uma pilha pequena de cartões de Natal sobre a mesa, que Anne deixara ali para que ele desse uma olhada, mas George ignorou-os. Com a xícara aninhada entre suas mãos grandes e quadradas, recordava o rosto arrasado de Ruth Hawkin quando levara a cadela de volta e interrompera a vigília particular da mulher.
Ela estava parada junto à pia da cozinha, olhando para a escuridão atrás da casa pela janela. Agora que pensava nisso, George imaginava por que a mulher não cuidava da frente da casa. Afinal, se Alison voltasse, supunha-se que viria da direção da praça da aldeia e dos campos para onde partira naquele dia. Além disso, quaisquer notícias também viriam daquela direção. George pensou que talvez Ruth Hawkin não pudesse suportar os lugares que conhecia tão bem cheios de policiais e a presença deles a lembrasse dolorosamente da ausência da filha.
Fosse qual fosse a razão, ela olhava pela janela, de costas para o marido e para a policial que ainda estava embaraçosamente sentada à mesa da cozinha, com a intenção de oferecer um apoio que obviamente era indesejado. Ruth não se movera nem quando ele abrira a porta. O que a fez afastar os olhos da janela foi o som das patas da cadela no piso de pedra. Ao voltar-se, a cadela já se abaixara e, gemendo, rastejava em sua direção, arrastando a barriga no piso.
- Encontramos Shep amarrada no meio do mato - dissera George. - Alguém fechou sua boca com esparadrapo.
Os olhos de Ruth arregalaram-se e sua boca retorceu-se em um ricto de dor.
- Não - protestara baixinho. - Não pode ser. - Ela caiu de joelhos ao lado da cadela, que se retorcia em torno de seus tornozelos em uma paródia de desculpas subservientes. Ruth escondera o rosto entre os pêlos da cadela, agarrando o animal contra seu corpo, como se fosse uma criança. Uma língua rosada e longa lambera sua orelha.
George olhou para Hawkin. O homem sacudia a cabeça, parecendo verdadeiramente perplexo.
- Isso não faz sentido - dissera Hawkin. - É a cadela de Alison. O bicho jamais permitiria que tocassem em um fio de cabelo da menina. - Ele deu uma risada curta e seca. - Eu levantei a mão para ela uma vez, e a cadela abocanhou meu braço antes que eu pudesse tocá-la. A única pessoa que poderia ter feito isso seria a própria Alison. Shep nunca deixaria que eu ou Ruth a dominasse, menos ainda um estranho.
- Alison pode não ter tido escolha - disse George, com suavidade. Ruth levantara a cabeça, com o rosto transformado pela percepção de que seus medos anteriores poderiam refletir-se na realidade.
- Não - disse ela, numa súplica rouca. - Não a minha Alison. Por favor, Deus, não a minha Alison.
Hawkin levantara-se e cruzara a cozinha, indo até a esposa. Agachado ao seu lado, passara um braço desajeitadamente por seus ombros.
- Não fique assim, Ruth - dissera ele, lançando um rápido olhar para George. - Isso não ajudará Alison. Temos de ser fortes.
Hawkin parecia embaraçado por ter de demonstrar preocupação com a esposa. George já vira muitos homens que se sentiam desconfortáveis com qualquer exibição de emoção, mas raramente um deles parecia tão consciente deste desconforto.
Sentia muita pena de Ruth Hawkin. Não era a primeira vez que via um casamento entrar em crise sob o peso de uma grande investigação. Ele passara menos de uma hora na companhia do casal, mas sabia, por instinto, que o que via ali não era uma crise, mas um grande abismo. Já era difícil, em qualquer casamento, descobrir que a pessoa com quem se casou é menos que se imagina, mas para Ruth Hawkin, com um casamento tão recente, era duplamente difícil, devido ao peso adicional da ansiedade pelo desaparecimento da filha.
Quase sem pensar, George abaixara-se e cobrira uma das mãos de Ruth com a sua.
- Não podemos fazer muito por enquanto, senhora, mas estamos fazendo tudo o que podemos. Logo que amanhecer, os homens vasculharão por todos os lados. Prometo que não vou desistir de Alison. - Seus olhos haviam se encontrado, e ele sentira a intensidade de uma gama de emoções complicadas demais para serem explicadas.
Enquanto olhava para o pântano pela janela, George percebeu que não conseguiria dormir naquela noite. Embrulhando os sanduíches em papel impermeável, encheu uma garrafa com chá quente e subiu as escadas em silêncio, para pegar seu barbeador elétrico no banheiro.
No alto da escada, parou. A porta de seu quarto estava entreaberta, e não conseguiu resistir a um olhar para Anne. Com as pontas dos dedos, ele empurrou a porta um pouco mais para trás. O rosto da esposa era uma mancha pálida contra o brilho branco da fronha. Ela estava de lado, com uma das mãos fechada sobre o travesseiro ao seu lado. Deus, como era linda! Vê-la dormindo era o bastante para despertar-lhe desejo. Gostaria de poder tirar a roupa e deitar-se ao lado dela, sentindo seu calor junto ao seu corpo. Esta noite, porém, não poderia escapar da recordação dos olhos assustados de Ruth Hawkin.
Com um suspiro baixo, ele voltou-se e saiu dali. Meia hora depois, estava de volta à igreja metodista, olhando para a foto de Alison Carter. Havia pendurado quatro fotos da garota no mural de avisos. Deixara a outra na delegacia, pedindo que fizessem uma fotocópia com urgência, para poder distribuí-la na coletiva da imprensa. O inspetor de plantão não tinha certeza se poderiam fazer a cópia a tempo. George não deixara dúvidas quanto ao que esperava.
Com cuidado, abriu o mapa daquela área e tentou estudá-lo com olhos de alguém que decidira fugir de casa. Ou de alguém que decidira tirar a vida de outra pessoa.
Depois, saiu da igreja e percorreu a estrada estreita até Scardale a pé. Alguns metros adiante, a luz débil e amarelada que se derramava das janelas altas do salão da igreja foi engolida pelo manto da noite. Os únicos pontos de luz vinham das estrelas que conseguiam aparecer em meio às nuvens esparsas. George foi andando, tomando cuidado para não tropeçar nos tufos de capim nas margens da estrada.
Aos poucos, suas pupilas expandiram-se ao máximo, permitindo que sua visão noturna furtasse imagens dos fantasmas e sombras que formavam a paisagem. Entretanto, quando esses vultos já revelavam muros e árvores, ovelhas e beirais de portas, o frio capturou-o por inteiro. Os sapatos de solado fino que serviam na cidade eram inúteis para o chão gelado, e nem mesmo suas luvas forradas de algodão protegiam-no do vento terrivelmente frio que parecia usar a estrada de Scardale como um túnel para concentrar-se. Suas orelhas e nariz haviam perdido toda sensibilidade, exceto à dor. A pouco mais de um quilômetro da igreja, desistiu da caminhada. Se Alison Carter estivesse por ali, deveria ser mais resistente que ele.
Ou isto, ou já nem sentia mais nada.
Manchester Evening News, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 11
Garoto acampado traz novas esperanças às buscas a John
POLÍCIA RESGATA MENINO EM ACAMPAMENTO Da reportagem local
Policiais que investigam o desaparecimento de John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, correram a um descampado na periferia da cidade.
Segundo relatos, havia um menino acampado ali.
As esperanças renasceram quando se descobriu que o menino estava bem, mas tudo não passou de um alarme falso.
O menino encontrado e que havia sido dado como desaparecido era quase da mesma idade que John - mas seu nome era David Marshall, 11 anos, de Gorse View, Alt Estate, Oldham, e seu desaparecimento havia sido comunicado apenas algumas horas antes.
Depois de "meter-se em apuros" em casa, ele juntou seus pertences - e uma barraca - e foi acampar próximo a uma fazenda em Lily Lanes, na fronteira entre Ashton e Oldham.
Este foi outro incidente frustrante nas buscas a John, residente na estrada Smallshaw, em Ashton, que já duram 19 dias.
A polícia disse, hoje: "Achamos que tínhamos uma pista quente, mas pelo menos estamos satisfeitos por devolvermos um menino são e salvo à sua família."
David foi visto em seu acampamento solitário por alguém que visitava a fazenda próxima e que informou o fato imediatamente à polícia.
"Isto nos mostra que o público está realmente disposto a cooperar", disse a polícia.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 7h30
Ao ver Janet Carter, George lembrou-se de uma gata que sua irmã tivera. Seu rosto triangular, com o nariz atrevido, olhos grandes e a pequena boca carnuda e rosada, era tão fechado e cauteloso quanto o de qualquer predador doméstico que ele já vira. Ela chegava a ter algumas espinhas minúsculas em cada um dos lados de seu lábio superior, como se alguém tivesse arrancado seus bigodes. Estavam sentados frente a frente à mesa, na cozinha de teto baixo do chalé dos pais da menina, em Scardale. Janet mordiscava delicadamente um pedaço de torrada com manteiga, consumindo pequeninos pedaços em formato de lua em cada canto do pão. Seus olhos estavam baixos, mas a intervalos ela lançava-lhe um olhar rápido e oblíquo através de seus cílios longos.
Mesmo na juventude, ele jamais se sentira à vontade com garotas adolescentes, um resultado natural de ter uma irmã três anos mais velha cujas amigas consideravam o frangote George primeiro como um brinquedinho conveniente e, depois, como um ótimo campo de provas para a esperteza e charme que planejavam experimentar com alvos mais velhos. Às vezes, naqueles anos, George sentia-se como o equivalente humano a rodinhas extras na primeira bicicleta de uma criança. A única vantagem que conquistara com a experiência era que agora podia dizer quando uma garota estava mentindo, o que era mais que a maioria dos homens poderia alardear.
Contudo, mesmo esta certeza desaparecia frente ao autocontrole de Janet Carter. A prima desaparecera, com todas as suposições que isto envolvia, mas, ainda assim, Janet parecia tão calma como se Alison tivesse simplesmente saído para fazer compras. Sua mãe Maureen, não parecia tão dona de suas emoções, já que sua voz tremia ao falar da sobrinha e tinha lágrimas nos olhos quando retirou as três crianças menores dali, deixando George à vontade para interrogar a garota. E o pai de Janet, Ray, já saíra, colocando seus conhecimentos sobre as cercanias a serviço de uma das equipes que procuravam a filha de seu irmão falecido.
- Você provavelmente conhece Alison melhor que qualquer um - disse George, finalmente, lembrando a si mesmo de usar o tempo presente ao falar, o que lhe parecia cada vez mais inadequado.
Janet assentiu.
- Somos como irmãs. Ela é oito meses e duas semanas mais velha que eu, por isso estamos em séries diferentes na escola. Somos como irmãs de verdade.
- Vocês cresceram juntas aqui em Scardale?
Janet confirmou e outra lua crescente de torrada desapareceu entre seus dentes.
- Nós três, eu, Alison e Derek.
- Então, além de primas, vocês são amigas íntimas?
- Não sou sua melhor amiga na escola, porque estamos em turmas diferentes, mas sou a melhor amiga fora da escola.
- Que tipo de coisas vocês fazem?
A boca de Janet remexeu-se e torceu-se nos cantos enquanto ela pensava.
- Nada especial. Às vezes, Charlie, nosso primo mais velho, nos leva a Buxton para patinarmos. Às vezes, vamos às lojas de Buxton ou Leek, mas na maior parte do tempo simplesmente ficamos aqui. Levamos os cachorros para passear. Às vezes ajudamos na fazenda se há falta de pessoal. Ali ganhou um toca-discos de aniversário, então muitas vezes Derek fica ouvindo os discos com ela, no quarto.
Ele tomou um gole do chá que Maureen Carter lhe servira, surpreso por alguém conseguir fazer um chá mais forte que o da cantina da polícia.
- Sabe se algo a incomodava? - perguntou. - Algum problema em casa ou na escola?
Janet levantou a cabeça para olhá-lo, com as sobrancelhas juntando-se ao franzir a testa.
- Ela não fugiu - disse, com vigor. - Deve ter sido levada por alguém. Ali nunca fugiria. Por que faria isso? Não há nada do que fugir!
Talvez não, pensou George, admirado com a veemência da garota. Mas talvez houvesse algo para o que fugir.
- Alison tem namorado?
Janet respirou pesadamente pelo nariz.
- Nada sério. Ela foi ao cinema com um garoto de Buxton algumas vezes. Alan Milliken. Mas não era um encontro de namorados, na verdade. Eles foram com mais meia dúzia de pessoas. Ele tentou beijá-la, mas Alison não quis. Disse que, se o garoto achava que lhe pagar o ingresso do cinema significava que poderia fazer o que quisesse, estava errado. - Janet olhou-o de modo desafiador, animada por seu ímpeto.
- Então não tem alguém que ela deseje namorar? Talvez alguém mais velho?
Janet sacudiu a cabeça.
- Nós duas gostamos de Dennis Tanner, de Coronation Street, e de Paul McCartney, dos Beatles. Mas nada disso é sério, e não há ninguém real que Alison queira namorar. Ela sempre diz que meninos são chatos. Tudo o que querem é falar sobre futebol, sobre irem ao espaço em um foguete e no tipo de carro que teriam, se pudessem dirigir.
- E quanto a Derek? Onde ele se encaixa? Janet pareceu confusa.
- Bom, Derek é só... Derek. De qualquer maneira, ele tem espinhas. Não dá nem para pensar em namorar Derek.
- E quanto a Charlie, seu primo mais velho? Eu soube que os dois passam muito tempo juntos na casa da avó dele.
Janet sacudiu a cabeça, com um dedo tocando distraidamente uma pequena espinha de cabeça amarelada ao lado de sua boca.
- Ali só vai até lá para ouvir as histórias de Mamãe Lomas. Acontece
que Charlie mora lá. De qualquer maneira, não entendo por que você está perguntando sobre namorados quando deveria estar procurando quem a raptou. Aposto que pensam que tio Phil tem muito dinheiro, só porque mora em uma casa grande e é dono de todas as terras da aldeia. Aposto que tiveram essa idéia por causa do seqüestro do filho de Frank Sinatra semana passada. Deve ter aparecido na televisão, nos jornais e em todos os lugares. Não temos televisão, porque não há recepção, então dependemos do rádio. Mas até aqui em Scardale ouvimos falar do seqüestro. Alguém poderia ter ouvido a notícia e tido a mesma idéia. Aposto que pedirão um resgate enorme por Ali. - Seus lábios brilhavam, besuntados de manteiga enquanto a ponta de sua língua corria apressada por eles, em sua animação.
- Como é o relacionamento de Alison com seu padrasto?
Janet encolheu os ombros, como se a pergunta não pudesse ser menos interessante:
- É normal, acho. Ela gosta de viver no solar, isso posso garantir. - Um brilho de malícia acendeu-se em seus olhos. - Sempre que alguém pergunta onde ela mora, Ali responde imediatamente "no Solar Scardale", como se fosse algo muito especial. Quando éramos pequenas, inventávamos histórias sobre a casa. Histórias de fantasmas e sobre assassinatos. Assim, Alison agora acha que é grande coisa por morar lá.
- E o padrasto? O que ela dizia sobre ele?
- Não dizia muito. Quando ele estava namorando sua mãe, ela o considerava um pouco assustador, porque estava sempre rondando a casa das duas, trazendo presentinhos para tia Ruth. Você sabe, flores, chocolate, meias de náilon, coisas assim. - Ela remexeu-se em sua cadeira e estourou uma espinha entre o polegar e a unha do indicador, tentando inconscientemente disfarçar a ação por trás de sua mão.
- Acho que ela tinha ciúme, porque estava acostumada a ser a queridinha de tia Ruth e não suportava a competição. Mas depois que os dois se casaram e aquela fase de namoro terminou, acho que Ali o aceitou bem. Acho que ele não lhe dava muita importância. Ele não parece interessado em ninguém, a não ser nele mesmo. E em tirar fotos. Está sempre fazendo isso. -Janet voltou à sua torrada, como se o dispensasse.
- Fotos de quê? - disse George, mais para manter a conversa que por real interesse.
- Paisagens. Ele também gosta de ver as pessoas trabalhando. Ele diz que é preciso que pareçam naturais, então só tira as fotos quando acha que não estão olhando. Só que ele é recém-chegado e não conhece Scardale como nós. Assim, na maior parte das vezes em que ele se esgueira tentando não ser percebido, metade da aldeia sabe o que está fazendo. - Ela deu uma risadinha e, depois, lembrando-se do motivo para a presença de George, cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos.
- Então, até onde você sabe, Alison não teria motivos para fugir? Janet abaixou a torrada e franziu os lábios.
- Já disse que ela não fugiu. Ali não fugiria sem mim. E ainda estou aqui. Assim, alguém deve tê-la levado. E você tem de encontrá-los. - Seus olhos desviaram-se e George voltou-se um pouco, vendo Maureen Carter na porta da cozinha.
- Diga-lhe, mãe - falou Janet, com desespero na voz. - Estou dizendo, mas parece que ele não escuta. Diga-lhe que Ali nunca fugiria. Diga!
Maureen assentiu.
- Ela está certa. Quando Alison está com problemas, ela os enfrenta. Se estivesse preocupada com algo, todos saberíamos. O que quer que tenha acontecido não foi por sua escolha. - Ela deu um passo à frente e tirou a xícara da frente da filha. - É hora de você e os pequenos encontrarem Derek. Kathy os levará até o ônibus.
- Posso fazer isso - ofereceu George.
Maureen olhou-o da cabeça aos pés, claramente insatisfeita com o que via:
- É muita gentileza sua, mas já tivemos bastante perturbação por aqui esta manhã. Não precisamos de mais ainda. Vá, Janet, pegue seu casaco.
George levantou as mãos.
- Antes de ir, só mais uma pergunta. Alison costumava freqüentar algum lugar especial no vale? Um esconderijo, uma cabana onde a turma se reúne, algo assim?
A menina lançou um olhar rápido e desesperado para sua mãe.
- Não - disse ela, mas a voz revelava o oposto do que dizia. Janet enfiou o resto da torrada na boca e correu para fora, acenando apressadamente para George.
Maureen pegou o prato sujo e virou a cabeça para o lado, pensativa.
- Se Alison pretendesse fugir, não agiria assim. Ela adora a mãe. Sempre foram muito próximas, por viverem só as duas durante tanto tempo. Alison jamais faria sua mãe passar por isto.
5
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 9h50
O salão da igreja metodista sofrera uma transformação. Oito mesas de armar haviam sido montadas e cada uma era o centro de alguma atividade. Em uma delas, um policial com um telefone de campanha estabelecia contato com o QG. Em outras três, havia mapas abertos, com grossas linhas vermelhas desenhadas para separar as áreas de buscas. Em uma quinta mesa, um sargento estava cercado por fichas de arquivo, formulários para depoimentos e caixas para arquivamento, confrontando as informações à medida que lhe chegavam. Nas mesas restantes, os policiais martelavam em máquinas de escrever. Em Buxton, investigadores interrogavam colegas de Alison Carter, enquanto o vale que cercava o vilarejo de Scardale e com este dividia seu nome era vasculhado por trinta policiais e pelo mesmo número de voluntários locais.
No fim do salão e próximo à porta, um semicírculo de cadeiras fora armado em torno de uma mesa de carvalho. Atrás desta, havia duas cadeiras. Na frente da mesa, George prestava informações ao superintendente Jack Martin. Nos três meses desde que chegara a Buxton, ele jamais tivera de trabalhar pessoalmente com o oficial fardado encarregado da divisão. Sabia que seus relatórios passavam pela mesa de Martin, mas jamais haviam se comunicado pessoalmente sobre um caso. Tudo o que sabia sobre o homem havia sido filtrado pelos outros.
Martin servira como tenente em um regimento de infantaria na guerra, aparentemente sem distinção ou desonra. Ainda assim, seus anos no Exército lhe deram um gosto pelas minúcias da vida militar. Ele insistia na observação da hierarquia, repreendendo policiais que abordavam seus iguais ou em posição inferior pelo nome, em vez de pelo posto. Um nome de batismo ouvido por acaso na sala do pelotão podia elevar sua pressão sangüínea em vários pontos, de acordo com o sargento Clough. Martin conduzia inspeções regulares de seus policiais fardados, com freqüência berrando com aqueles cujas botas não refletiam seus rostos ou cujos botões do uniforme não reluziam. Ele tinha o perfil aquilino e olhos de águia. Marchava acelerado por onde quer que andasse, e se dizia que detestava o que via como a aparência desleixada dos investigadores sob seu comando.
Por trás do rigoroso militar, porém, George suspeitava que havia um policial astuto e eficiente. Agora, estava prestes a descobrir. Martin escutara atentamente seu relato sobre os acontecimentos, com as sobrancelhas grisalhas juntando-se em uma careta de concentração. Com o indicador e o polegar de sua mão direita, ele esfregava o bigode bem cuidado na direção inversa à dos pêlos e, depois, alisava-o novamente.
- Você fuma? - perguntou ele finalmente, oferecendo a George seu maço de cigarros sem filtro. George balançou a cabeça, preferindo seu Gold Leaf com filtro e mais suave. Contudo, considerou a oferta como permissão e imediatamente acendeu um cigarro.
- Não estou gostando nada do que ouvi - disse Martin. - Foi tudo planejado com cuidado, não acha?
- Acho que sim, senhor - disse George, impressionado porque Martin também se apegara ao detalhe crucial do esparadrapo. Ninguém saía para uma caminhada casual carregando consigo um rolo desse esparadrapo, nem mesmo o escoteiro mais consciente quanto à segurança. O tratamento dado à cadela anunciava premeditação a George, embora nenhum de seus colegas parecesse dar grande peso a este detalhe.
- Acho que a pessoa que a pegou conhecia bem seus hábitos. Deve ter observado a garota por algum tempo, esperando pela oportunidade certa.
- Então você acha que é alguém da aldeia? - perguntou Martin. George correu a mão por seus cabelos claros.
- Parece que sim - falou, hesitante.
- Acho que é melhor deixarmos esta possibilidade em aberto. O trajeto de Denderdale até a nascente do Scarlaston é bem popular. Dúzias de andarilhos devem percorrer a trilha no verão. Qualquer um deles poderia ter visto a menina, sozinha ou com seus amigos, e resolvido voltar para pegá-la. - Martin assentiu, concordando consigo mesmo, dando um piparote num fragmento de cinzas de cigarro que caíra no punho de seu uniforme impecavelmente passado.
- É possível - concordou George, embora não conseguisse imaginar que alguém se tornasse instantaneamente obcecado pela garota e esperasse meses pela oportunidade certa. Entretanto, a razão principal para sua incerteza era bem diferente. - Acho que não consigo imaginar ninguém desta comunidade praticando algo tão terrível. Essas pessoas são incrivelmente ligadas, senhor. Elas estão acostumadas a contar umas com as outras há gerações. Seria contra tudo em que acreditam, ter um de seus filhos raptado por alguém de Scardale. Além disso, é difícil imaginar como alguém daqui poderia raptar uma criança sem que todos os outros habitantes soubessem. Ainda assim, aparentemente, é muito provável que tenha sido alguém do vilarejo. - George suspirou, surpreso com seus próprios argumentos.
- A menos que todos estejam errados sobre a direção que a menina seguiu - observou Martin. - Ela pode ter fugido ao hábito e tomado o rumo da estrada principal. Ontem foi dia da Feira Agropecuária de Leek e certamente houve mais tráfego que o habitual na estrada para Longnor. Ela poderia ter entrado em algum carro, para oferecer informações a alguém que usou isso como pretexto para levá-la.
- Mas e quanto à cadela? - apontou George.
Martin fez um gesto impaciente com a mão que segurava o cigarro.
- Quem a levou poderia ter vindo até perto do vale e deixado a cadela no meio do mato.
- Seria muito arriscado, e ele teria de conhecer o terreno. Martin suspirou.
- Acho que sim. Também reluto em ver o vilão como alguém daqui. Temos essa visão romântica sobre pequenas comunidades rurais, mas infelizmente nos enganamos, com muita freqüência. - Ele olhou para o relógio no salão, apagou o cigarro, ajeitou os punhos do uniforme e se empertigou. - Vamos lá. Está na hora de enfrentarmos a imprensa.
Ele voltou-se para as mesas de armar.
- Parkinson, vá dizer a Morris que os jornalistas podem entrar.
O policial fardado levantou-se imediatamente, balbuciando um "sim senhor".
- Seu quepe, Parkinson - vociferou Martin. Parkinson parou de súbito e correu de volta à cadeira. Enfiou o quepe e quase correu até a porta. Já ia saindo quando Martin acrescentou:
- Corte os cabelos, Parkinson.
A boca do superintendente retorceu-se no que poderia ter sido um sorriso, enquanto ia até as cadeiras atrás da mesa.
A porta abriu e meia dúzia de homens entrou, enquanto uma espécie de bruma parecia formar-se à sua volta, quando seus corpos frios chocaram-se com o calor abafado do salão. O grupo espalhou-se pela sala, e os homens sentaram-se ruidosamente nas cadeiras dobráveis. Suas idades variavam de vinte e poucos a cinqüenta e poucos anos, na opinião de George, embora não fosse fácil dizer, com chapéus de abas largas e bonés puxados bem à frente para protegerem os rostos, golas de casacos viradas para cima contra o vento gélido e cachecóis envolvendo os pescoços. Ele reconheceu Colin Loftus, do High Peak Courant, mas os outros lhe eram estranhos. Imaginou para quem trabalhariam.
- Bom-dia, cavalheiros - começou Martin. - Sou o superintendente Jack Martin, da polícia de Buxton, e este é meu colega, detetive-inspetor George Bennett. Como vocês já sabem, uma garota desapareceu de Scardale. Alison Carter, de treze anos, foi vista pela última vez mais ou menos às quatro e vinte da tarde de ontem. Ela saiu da casa de sua família, o Solar Scardale, com a intenção de levar sua cadela para passear. Ao perceberem a demora, a mãe, senhora Ruth Hawkin, e o padrasto, senhor Philip Hawkin, entraram em contato com a polícia de Buxton. Respondemos ao chamado e demos início às buscas nas redondezas de Scardale, usando cães farejadores da polícia. A cadela de Alison foi encontrada no meio do mato, perto de sua casa, mas não encontramos nenhum sinal da menina.
Ele pigarreou.
- Teremos cópias de uma fotografia recente de Alison disponíveis na delegacia de Buxton ao meio-dia.
Enquanto Martin dava uma descrição detalhada da aparência e das roupas da garota, George estudou os jornalistas. Suas cabeças estavam abaixadas e os lápis voavam pelas folhas de seus blocos de anotações. Pelo menos pareciam interessados o suficiente para tentar obter todos os detalhes da história. Ele imaginou quanto disso tinha a ver com os desaparecimentos de Manchester. Achava que não teriam comparecido normalmente em número tão grande apenas porque uma garota estava desaparecida havia dezesseis horas de uma pequena aldeia em Derbyshire. Martin continuava, falando rapidamente:
- Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Não sabemos o que aconteceu com ela e estamos todos muito preocupados, ainda mais com a temperatura extremamente baixa que estamos enfrentando no momento. Agora, se tiverem alguma pergunta, eu ou o detetive-inspetor Bennett teremos prazer em responder.
Uma cabeça levantou-se.
- Brian Bond, do Manchester Evening Chronicle. Vocês suspeitam de crime?
Martin respirou fundo.
- Neste ponto não descartamos nada. Não encontramos um motivo para o desaparecimento da menina, já que não tinha problemas em casa ou na escola. Entretanto, também não encontramos até agora nada que sugira que foi levada com violência.
Colin Loftus ergueu a mão, com um dedo levantado.
- Há alguma indicação de que Alison possa ter sofrido um acidente?
- Até agora não - respondeu George. - Como o superintendente Martin lhes disse, neste momento há uma equipe de buscas vasculhando a área do vale. Também pedimos que todos os agricultores locais verifiquem suas terras com muito cuidado, para o caso de Alison ter-se ferido em uma queda e não ter conseguido voltar para casa.
O homem na extremidade da fileira de cadeiras recostou-se e soprou um anel perfeito de fumaça.
- Parece haver algumas características comuns entre o desaparecimento de Alison Carter e o das duas crianças da área de Manchester: Pauline Reade, de Gorton, e John Kilbride, de Ashton. Vocês entraram em contato com os detetives de Manchester e Lancashire acerca de uma possível conexão entre os casos?
- E você, quem é? - perguntou Martin, em tom de comando.
- Don Smart, do Daily News, sucursal norte. - Ele abriu um sorriso, que pareceu a George o esgar predatório de uma raposa. Smart tinha até mesmo as cores do animal: cabelos avermelhados que se mostravam sob Seu boné de tweed, face corada e olhos castanhos que se apertavam contra a fumaça de seu charuto.
- É cedo demais para fazermos suposições como esta - disse George rapidamente, desejando ele mesmo fazer esta pergunta que ecoava suas próprias dúvidas. - É claro que ouvi falar sobre os casos mencionados, mas até agora não encontramos razões para nos comunicarmos com nossos colegas de outros distritos acerca de qualquer outra coisa além de providências para as buscas a Alison. A polícia de Staffordshire já indicou que nos dará toda assistência necessária se precisarmos ampliar a área de buscas.
Smart, porém, não desistia tão facilmente:
- Se eu fosse a mãe de Alison Carter, acho que não gostaria de saber que a polícia menospreza indicações tão fortes de ligação com o desaparecimento de outras crianças.
Martin levantou a cabeça repentinamente, abrindo a boca para responder ao jornalista, mas George chegou antes.
- Para cada similaridade há uma diferença - disse bruscamente. - Scardale é uma comunidade isolada, não uma área urbana e movimentada; Pauline e John desapareceram em um fim de semana, mas Alison sumiu em um dia de semana; estranhos seriam uma visão comum para as outras duas crianças, mas um estranho que aparecesse na hora do chá em dezembro, em Scardale, colocaria Alison em alerta. Além disso, e talvez o mais importante, a menina não estava sozinha, mas levava o cachorro para passear. Scardale fica a uns bons trinta ou quarenta quilômetros dos outros dois locais em que as crianças desapareceram. Qualquer um que quisesse raptar uma criança teria de passar por muitas até chegar a Alison Carter. Centenas de pessoas desaparecem, todos os anos. Estranho seria se não houvesse semelhanças entre os casos.
Don Smart lançou-lhe um frio olhar de desafio e disse apenas:
- Obrigado, detetive-inspetor Bennett. Seria Bennett com dois "t"?
- Sim - disse George. - Mais alguma pergunta?
- Vocês pretendem drenar os reservatórios nos pântanos? - perguntou novamente Colin Loftus.
- Comunicaremos as providências que decidirmos tomar quando for o momento certo - disse Martin, cortante. - Agora, a menos que alguém tenha mais alguma dúvida, a coletiva está encerrada. - Ele levantou-se.
Don Smart inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Quando será a próxima coletiva?
George viu o pescoço de Martin tornar-se vermelho como a papada de um peru. Estranhamente, a cor não se difundiu para seu rosto.
- Comunicaremos à imprensa quando encontrarmos a garota.
- E se não a encontrarem?
- Estarei aqui amanhã de manhã, à mesma hora - disse George. - E estarei aqui todas as manhãs, até encontrarmos Alison.
As sobrancelhas de Don Smart levantaram-se.
- Vou esperar ansiosamente - disse ele, ajeitando as dobras de seu pesado sobretudo em torno do corpo esguio e levantando seu 1,70m. Os outros jornalistas já se dirigiam para a porta, comparando anotações e decidindo sobre as chamadas para a matéria.
- Atrevido esse Smart - comentou Martin, depois que ficaram a sós.
- Suponho que está apenas fazendo seu trabalho - suspirou George. Passaria bem sem alguém tão teimoso e desagradável quanto Don Smart em seu cangote, mas não podia fazer muito a esse respeito, exceto evitar que o homem o provocasse demais.
Martin torceu o nariz.
- É um encrenqueiro. Os outros conseguiram fazer seu trabalho sem insinuar que não sabemos fazer o nosso. É melhor ficar de olho nele, Bennett.
George assentiu.
- Preciso lhe fazer uma pergunta, senhor. Quer que eu assuma o comando das operações aqui?
Martin franziu a testa.
- O inspetor Thomas será responsável pelos policiais fardados, mas acho que você deve assumir o comando geral. O detetive e inspetor-chefe Carver não pode ir a lugar algum com aquele gesso no tornozelo. Ele se ofereceu para comandar o departamento de investigações criminais em Buxton, mas preciso de um homem aqui. Posso confiar-lhe esta missão, inspetor?
- Darei o melhor de mim, senhor - disse George. - Tenho certeza de que encontraremos esta menina.
Manchester Evening Chronicle, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 1
POLÍCIA FAZ BUSCAS EM VALE ISOLADO Cães auxiliam na procura por menina desaparecida Da reportagem local
Policiais com cães farejadores realizaram hoje buscas a uma menina de 13 anos que desapareceu de sua casa, no vilarejo remoto de Scardale, em Derbyshire, ontem à tarde.
A menina, Alison Carter, desapareceu da casa onde vive com a mãe e o padrasto, depois de dizer que levaria sua collie, Shep, para passear.
Alison deveria atravessar os campos e ir até um bosque próximo, no vale de pedra calcária onde mora. Desde então não foi mais vista.
Buscas foram realizadas após um telefonema de sua mãe à polícia. A cadela foi encontrada sem ferimentos, mas não havia sinal de Alison.
Depoimentos de seus vizinhos e amigos da Peak Girls
High School não revelaram um motivo para a fuga da bonita garota.
Hoje, sua mãe, a senhora Ruth Hawkin, 34 anos, esperava ansiosamente por notícias, enquanto continuavam as buscas no vale. Seu marido, o senhor Philip Hawkin, 37 anos, uniu-se aos vizinhos e fazendeiros que ajudaram a polícia a vasculhar o vale ermo.
Um policial veterano nos disse: "Não encontramos motivos para o desaparecimento de Alison. A menina não tinha problemas na escola ou em casa, mas também não descobrimos nada que sugira um crime, até o momento."
As buscas continuarão amanhã, se Alison não for encontrada até a noite de hoje.
Don Smart jogou para o lado a primeira edição do Chronicle. Pelo menos não haviam roubado sua linha de questionamento. Havia sempre esse risco quando se tentava algo um pouco diferente em uma coletiva da imprensa. De agora em diante, ele tentaria se afastar daquela cambada e cavar suas próprias reportagens. Tinha a sensação de que George Bennett lhe daria ótimas matérias e estava determinado a tirar o possível do jovem e atraente detetive.
Estava certo de que aquele homem era um buldogue e que não largaria o caso de Alison Carter de jeito nenhum. Smart sabia, por experiência própria, que, para a maioria dos policiais, o desaparecimento de Alison Carter era apenas mais um trabalho. Claro que lamentavam pela família. Também podia apostar que aqueles que tinham filhas iam para casa e lhes davam um abraço mais apertado que o habitual a cada noite que passavam procurando por Alison naquela região de pântanos.
Contudo, George parecia-lhe diferente. Para ele, o caso representava uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Carter, mas George não demonstraria maior paixão pela causa se fosse o pai da garota. Smart percebia que ele simplesmente não toleraria o fracasso.
Para Smart, isto era um presente dos deuses. Seu emprego na sucursal norte do Daily News era o primeiro em um jornal de circulação nacional, e estivera buscando uma reportagem que o levaria ao topo. Já cobrira parcialmente os desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News e estava determinado a persuadir George Bennett ou alguém de sua equipe a ligar os dois casos ao de Alison Carter. Daria manchetes incríveis.
O que quer que acontecesse, Scardale seria um excelente cenário para uma história dramática e misteriosa. Em uma comunidade tão fechada quanto aquela, as vidas de todos seriam colocadas sob o microscópio. Subitamente, toda espécie de segredos viria à tona, e coisas feias seriam vistas, com certeza. Don Smart estava resolvido a testemunhar tudo.
De volta ao salão da igreja metodista, George Bennett também largou o jornal. Não tinha dúvidas de que a manhã traria uma matéria bem menos agradável nas páginas do sensacionalista Daily News. Martin teria um ataque se houvesse qualquer sugestão de incompetência da polícia. Ele marchou para fora do salão e cruzou a estrada até seu carro.
Dirigir até Scardale à luz do dia era apenas um pouco menos assustador que chegar lá à noite ou de madrugada. Pelo menos, o negrume obscurecia as rochas ao lado da estrada que, em sua imaginação, poderiam facilmente partir-se e esmagar seu carro como uma lata de alumínio sob um rolo compressor. Hoje, porém, havia uma diferença crucial: o portão no meio da estrada estava totalmente aberto, permitindo livre acesso aos veículos. Um policial fardado que estava no portão espiou para dentro do carro de George e bateu continência ao reconhecer o ocupante. Pobre infeliz, pensou George. Seus próprios dias de vigília no frio felizmente haviam durado pouco. Imaginou como aqueles que, diferente dele, não estudavam para galgar os degraus mais rapidamente, podiam suportar, semana após semana, a perspectiva de fazer a ronda das ruas, preservar locais de crimes e, como hoje, vagar de modo infrutífero pelos arredores mais inóspitos.
A aldeia, assim como a estrada, não parecia melhor à luz do dia. Não havia nada de charmoso nos pequenos chalés sombrios de Scardale. Os prédios de pedra cinzenta pareciam agachar-se na direção do chão, mais como cães acovardados que animais prestes a saltar. Os telhados de um ou dois deles pareciam prestes a desabar e a maior parte da madeira poderia beneficiar-se de uma camada de tinta. Galinhas andavam por ali à vontade, e cada carro que entrava no vilarejo provocava uma cacofonia de latidos de uma variedade de cães usados para conduzir ovelhas e vacas. O que não havia mudado eram os olhos que observavam os passos de qualquer recém-chegado. A medida que se aproximava, George ia percebendo estes olhos. Sabia um pouco mais sobre eles que na noite anterior. Para começo de conversa, sabia que todos os olhos eram femininos. Cada homem de Scardale em condições de ajudar participava das buscas, acrescentando tanto determinação quanto conhecimento do local à tarefa.
George encontrou uma vaga para seu carro no lado mais distante da Praça da aldeia, ao lado do muro do Solar Scardale. Hora de ter outra conversa com a senhora Hawkin, decidiu. A caminho da casa, parou por um momento junto ao trailer que chegara de manhã, do quartel-general. Estavam usando o veículo como um ponto de ligação para as equipes de busca, em vez de como centro de operações, e um par de policiais femininas ocupava-se com a tarefa incessante de coar chá e café. George abriu a porta e congratulou-se em silêncio por ganhar sua aposta consigo mesmo de que o inspetor Alan Thomas estaria acomodado confortavelmente no cantinho mais quente do trailer, com uma chávena em um lado, próxima de uma de suas mãos grandes, e o cinzeiro contendo seu cachimbo de roseira-brava perto da outra.
- George - disse Thomas, animado. - Venha e sente aqui, garoto. Está gelado lá fora, não é? Estou contente porque não preciso sair e vasculhar a mata.
- Alguma novidade? - perguntou George, assentindo quando a policial lhe ofereceu uma xícara de chá. Ele derramou o açúcar de um saquinho e encostou-se na parede do trailer.
- Nadinha, garoto. Ninguém marcou pontos ainda, por assim dizer. Acharam pedaços de tecido, mas era coisa velha, nada que nos levasse à garota - disse Thomas, com seu sotaque galês parecendo tornar as notícias deprimentes um pouco mais leves. - Sirva-se - acrescentou, fazendo sinal com a mão para um prato de bolinhos. - A mãe da menina os trouxe. Disse que não suportaria ficar apenas sentada à espera de notícias.
- Irei vê-la daqui a pouco. - George pegou um bolinho. Muito bom, decidiu ele. Definitivamente melhor que os que Anne fazia. A esposa era ótima cozinheira, mas em matéria de bolos não era grande coisa. Sempre mentia para ela, dizendo que nem gostava tanto assim de bolos. Se não mentisse, sabia que terminaria elogiando, porque não saberia criticá-la. E não queria condenar-se a cinqüenta anos de esponjas pesadas, massa semi-crua e bolos semelhantes a pedras que pareciam ter vindo diretamente da pedreira mais próxima.
De repente, a porta se abriu com um estrondo. Um homem de rosto corado, usando uma pesada jaqueta de couro sobre várias camadas de camisas e coletes de malha entrou, sem fôlego e suando muito.
- Você é Thomas? - perguntou, olhando para George.
- Sou eu, garoto - disse Thomas, levantando-se e deixando cair uma chuva de migalhas. - O que aconteceu? Encontraram a menina?
O homem sacudiu a cabeça, com as mãos nos joelhos enquanto lutava para recuperar o fôlego.
- No arvoredo abaixo do Rochedo do Escudo - disse ele, com a voz entrecortada. - Parece que houve luta por ali. Galhos quebrados. - Ele endireitou o corpo. - Pediram-me que os levasse lá.
George largou o chá e o bolinho e seguiu o homem até a rua, com Thomas arrastando-se atrás. Apresentou-se e perguntou:
- Você é de Scardale?
- Sim, sou Ray Carter, tio de Alison. E pai de Janet, lembrou George.
- Isso fica a que distância do lugar onde encontramos a cadela? - perguntou, forçando suas pernas a acompanharem os passos largos do fazendeiro, que conseguia se mover muito mais depressa que seu corpo atarracado fazia supor.
- A uns quatrocentos metros, no máximo.
- Levamos muito tempo para cobrir uma distância tão pequena - disse George, baixinho.
- Não se pode ver o lugar da trilha. Por isso vocês o ignoraram na primeira vez - disse Carter. - Além disso, não é um lugar óbvio. - Ele parou por um momento, voltando-se para apontar para a casa de Alison. - Olhe, lá está o Solar Scardale. - Ele virou novamente. - Ali está o campo que leva ao matagal em que vocês encontraram a cadela e o Scarlaston. - O homem virou-se de novo. - Ali está o caminho que sai do vale. E é para lá - concluiu, indicando uma área de árvores entre a casa de Alison e o bosque em que Shep fora amarrada - que estamos indo. A caminho de lugar nenhum - acrescentou em tom amargo, envolvendo os altos rochedos de calcário e o céu cinzento com um aceno final de mão.
George franziu a testa. O homem estava certo. Se Alison estava no arvoredo quando foi atacada, por que a cadela foi amarrada em uma clareira do bosque, a quase meio quilômetro de distância? Mas, se tivesse sido capturada sem luta na clareira, e a luta tivesse ocorrido quando ela viu uma chance de se livrar de seu raptor, o que estavam fazendo naquele ponto sem saída do vale? Era outra inconsistência a ser lembrada, pensou ele, seguindo Ray Carter rumo ao cinturão estreito de árvores.
O arvoredo era um misto de faias, freixos, plátanos e olmos, com plantas mais jovens que aquelas entre as quais haviam estado na noite anterior. As árvores eram menores, com troncos mais delgados. Pareciam estar demasiadamente próximas umas das outras, com seus ramos formando uma tela grossa, por entre a qual quase nada podia ser visto. A vegetação rasteira era densa entre as árvores jovens, espessa demais para permitir passagem fácil.
- Por aqui - disse Carter, voltando-se para uma abertura quase invisível entre as samambaias marrons e a folhagem vermelha e verde dos arbustos. Tão logo entraram no arvoredo, a maior parte da luz da tarde desapareceu. Sentindo-se meio cego, George entendeu por que a primeira leva de homens ignorara o lugar. Ele não percebera antes a dificuldade dessa área e a facilidade com que se poderia ignorar algo tão grande como, Deus que o perdoasse, um corpo. À medida que seus olhos habituavam-se à penumbra, começou a distinguir alguns arbustos entre as árvores. Sob seus pés, a trilha era escorregadia, com folhas mortas e pisoteadas.
- Há meses venho dizendo a Hawkin que este lugar deveria ser desmatado - queixou-se Carter, empurrando para o lado os ramos flexíveis de um sabugueiro baixo. - A gente poderia perder metade dos animais do Clube de Caça aqui dentro, e ninguém ia descobrir.
Depararam-se subitamente com o resto da equipe de busca. Três policiais e um rapazinho estavam parados junto a uma curva da trilha. O rapaz não parecia ter mais de dezoito anos e vestia-se como Carter, com jaqueta de couro e pesadas calças de veludo cotelê.
- Muito bem - disse George. - Quem vai nos mostrar o que está acontecendo aqui?
Um dos policiais limpou a garganta e respondeu-lhe:
- É bem ali na frente, senhor. Outra equipe já havia passado por aqui de manhã, mas o senhor Carter sugeriu que deveríamos olhar de novo, porque o mato rasteiro é denso demais. - Ele fez sinal para que George e o inspetor Thomas seguissem em frente e os outros deram um passo desajeitado para trás, permitindo-lhes a passagem. O policial apontou para um espaço quase imperceptível no mato, no lado sul da trilha. - O garoto foi quem viu primeiro. Charlie Lomas. Há uma trilha muito sutil de galhos quebrados e plantas pisoteadas. Parece que houve luta alguns metros à frente.
George abaixou-se e espiou a trilha. O homem tinha razão. Não havia muito para ver. Era um milagre alguém ter conseguido perceber algo. Ele supôs que os habitantes de Scardale conheciam tão bem seu território que o que lhe parecia oculto saltaria aos olhos deles.
- Quantos de vocês já andaram por ali com seus grandes sapatos? -
perguntou Thomas.
- Só eu e o garoto Lomas, senhor. Tivemos todo o cuidado possível. Tentamos não danificar o local das buscas.
- Darei uma olhada - disse George. - Senhor Thomas, será que um de seus rapazes poderia ligar para o centro móvel de operações para enviarem um fotógrafo para cá? Depois que o fotógrafo terminar, também varreremos com pente-fino o lugar. - Sem esperar resposta, George afastou os ramos que encobriam a trilha quase invisível e se moveu à frente, tentando manter-se alguns centímetros à esquerda da trilha original. Aqui era ainda mais escuro e ele parou um pouco para permitir que seus olhos se acostumassem à escuridão.
A descrição do policial havia sido admirável, em termos de exatidão. Após alguns passos apertados, George encontrou o que procurava. Ramos quebrados e samambaias esmagadas marcavam uma área de cerca de um metro e cinqüenta por dois metros. Ele não era um homem do campo, mas mesmo assim sabia que o dano era recente. Parecia que os galhos e as samambaias haviam sido destruídos fazia pouco. Um arbusto que havia sido parcialmente pisoteado estava apenas murcho, mas não totalmente morto. Se isto não estivesse ligado ao desaparecimento de Alison Carter, seria uma coincidência muito estranha.
George inclinou-se para a frente, com uma das mãos agarrando-se a um galho de árvore para obter apoio. Talvez houvesse alguma prova importante ali e não queria andar naquele terreno e causar ainda mais danos do que a equipe de buscas já causara. Enquanto o pensamento cruzava sua mente, seu exame atento revelou uma bola de material escuro, presa na ponta aguda de um galho quebrado. Meias pretas de lã, dissera Ruth Hawkin. O estômago de George contraiu-se. "Ela esteve aqui", disse baixinho para si mesmo.
Moveu-se para a esquerda, contornando a área remexida, parando de vez em quando para examinar o que via. Estava quase na diagonal oposta ao ponto em que deixara a trilha quando viu. Bem à sua frente, à direita, havia uma mancha escura na casca muito clara de uma bétula. Irresistivelmente atraído, ele se aproximou da árvore.
O sangue secara, mas preso a ele, sem chances de engano, havia algumas mechas de fios de cabelos loiros. E no chão, perto da árvore, um botão de osso com fiapos de tecido ainda presos a ele.
6
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 17h05
George respirou fundo e levantou a mão para bater na porta. Antes que o fizesse, a porta se abriu. Ruth Hawkin estava na sua frente, com o rosto tenso e cinzento à luz da noite. Ela deu um passo para o lado, inclinando-se no batente para obter apoio.
- Vocês encontraram alguma coisa - disse ela, sem entonação. George cruzou o batente e fechou a porta às suas costas, determinado a não dar aos bisbilhoteiros mais espetáculo do que seria inevitável. Seus olhos varreram automaticamente o cômodo.
- Onde está a policial? - perguntou ele, voltando-se para Ruth.
- Mandei-a embora - disse ela. - Não preciso que cuidem de mim como se eu fosse uma criança. Além disso, acho que ela poderia fazer algo mais útil pela minha Alison que ficar sentada bebendo chá o dia inteiro.
Havia uma nota ácida em sua voz que não estava ali antes. George considerou a reação saudável. Esta mulher não era do tipo que desmaiaria a cada notícia ruim. Sentiu alívio com isso, porque achava que seu papel seria, definitivamente, de portador de más notícias.
- Será que podemos sentar? - perguntou ele. Sua boca torceu-se em uma careta amarga.
- É tão ruim assim? - Mas afastou-se da parede e desabou em uma das cadeiras da cozinha. George sentou-se no outro lado, percebendo que ela ainda vestia as mesmas roupas que na noite anterior. Então nem chegara a se deitar e certamente não dormira. Provavelmente nem sequer tentara.
- Seu marido está ajudando nas buscas? - indagou ele.
Ela assentiu.
- Acho que não estava muito entusiasmado. Meu Phil se dá bem com tempo bom. Gosta quando o sol está brilhando e o dia se parece com um de seus cartões-postais. Mas em dias como hoje, frio e úmido, com um toque de névoa gelada no ar, ele sempre se senta junto ao fogão de lenha ou se tranca em seu estúdio com aquecedores a parafina, mas tenho de admitir que hoje fez uma exceção, felizmente.
- Se quiser, posso esperar que ele volte - falou George.
- Isto não mudará o que você tem para me dizer, não é? - perguntou, com voz cansada.
- Não, infelizmente não. - George abriu seu sobretudo e removeu dois sacos plásticos do bolso interno. Um deles continha a bola macia e fofa que estivera presa no galho quebrado; o outro, o botão polido e serri-lhado em suas bordas, com sua cor natural de osso parecendo estranha contra o plástico nada natural. Preso a ele por linha azul-marinho resistente, havia um fragmento de tecido azul-marinho semelhante a feltro. - Preciso perguntar-lhe: reconhece algum desses objetos?
O rosto à sua frente empalideceu, enquanto ela pegava os sacos e os olhava por um longo tempo.
- O que é isto? - perguntou ela, tocando o material sob o plástico com o indicador.
- Achamos que é lã - respondeu George. - Talvez das meias que Alison usava.
- Isto poderia ser qualquer coisa - disse ela, defensivamente. - Pode ser que estivesse lá há dias ou semanas.
- Teremos de ver o que nosso laboratório descobre então. - Não havia sentido em forçá-la a aceitar o que a mente não queria admitir. - E quanto ao botão? Reconhece?
Ela pegou o saco e correu o dedo sobre o pedaço esculpido de osso; então, encarou-o com súplica nos olhos.
- Isso é tudo o que descobriram dela? Só tem isso para me mostrar?
- Descobrimos sinais de luta no arvoredo. - George apontou para o que julgava ser a direção certa. - Entre a casa e o matagal onde encontramos Shep, lá para o fim do vale. Está escuro agora, de modo que não podemos conseguir muito, mas a primeira coisa que faremos pela manhã é realizar uma busca com pente-fino em todo o arvoredo, para tentarmos descobrir mais algum sinal de Alison.
- Mas foi só isso que encontraram? - Agora havia ansiedade em seu rosto.
Ele detestava acabar com suas esperanças, mas não poderia mentir.
- Também encontramos fios de cabelo e um pouco de sangue. Como se ela tivesse batido a cabeça em uma árvore. - Ruth tapou a boca com a mão, contendo um grito. - Mas era muito pouco sangue, senhora Hawkin. Eu garanto, nada que indique qualquer coisa além de um pequeno ferimento.
Os olhos arregalados o fitaram e os dedos da mulher enterraram-se em sua própria face, como se manter fisicamente sua boca fechada pudesse conter sua resposta, de algum modo. Ele não sabia o que fazer ou dizer. Tinha muito pouca experiência com respostas a crises e tragédias. Sempre pedia que os policiais mais velhos ou colegas com mais experiência amortecessem a dor aguda de outras pessoas. Agora estava sozinho e sabia que seu conceito de si mesmo seria medido, para sempre, de acordo com a forma como lidasse com esta mulher abalada.
George inclinou-se sobre a mesa e cobriu a mão livre de Ruth Hawkin com a sua.
- Eu estaria mentindo se dissesse que não há motivo para se preocupar - disse ele -, mas nada indica que Alison tenha sofrido algo grave, muito pelo contrário. Podemos ter certeza de uma coisa pelo menos. Alison não fugiu por conta própria. Sei que isso não parece um grande consolo neste momento, mas significa que não esgotaremos nossos recursos em coisas que não levariam a nada. Sabemos que Alison não fugiu e não pegou um ônibus ou trem, de modo que não faremos com que nossos policiais verifiquem estações de trem ou a rodoviária. Usaremos cada homem disponível em linhas de investigação que realmente nos levem a algum lugar.
A mão de Ruth Hawkin afastou-se da boca.
- Ela está morta, não é? George apertou-lhe a mão.
- Não há razão para pensar nisso.
- Tem um cigarro? Os meus acabaram. - Ela deu uma risada curta e amarga. - Eu deveria ter enviado sua policial até Longnor para me comprar cigarros. Isso teria sido algo útil.
Quando os dois já estavam fumando, ele guardou os sacos plásticos e empurrou o maço de cigarros sobre a mesa.
- Fique com estes. Tenho mais no carro.
- Obrigada. - A tensão pareceu desaparecer por um instante e George viu pela primeira vez o mesmo sorriso que tornava a fotografia de Alison inesquecível.
Ele deixou que a nicotina fizesse algum efeito e, então, disse:
- Preciso de ajuda, senhora Hawkin. Ontem à noite tivemos de trabalhar contra o relógio para encontrar pistas de Alison. E hoje fizemos buscas. São coisas mecânicas e rotineiras que muitas vezes têm sucesso e que precisamos fazer, mas ainda não tive uma chance de sentar com a senhora e conversar sobre o tipo de menina que Alison era. Se alguém a levou... e não vou mentir, já que isso parece cada vez mais provável, preciso saber tudo o que puder sobre ela, para poder estabelecer um ponto de contato entre Alison e esta pessoa. Assim, preciso que me conte sobre sua filha.
Ruth suspirou.
- É uma menina adorável e sempre foi muito esperta. Seus professores dizem que se estudar direitinho poderá cursar uma faculdade. - Ela inclinou a cabeça para o lado. - Você cursou uma faculdade. - Era uma afirmação, não uma pergunta.
- Sim, estudei Direito na Universidade de Manchester. Ela assentiu.
- Então você sabe como é isso de estudar. Nunca precisei mandá-la fazer as lições, sabe, não como Derek e Janet. Acho que ela até gosta dos deveres, embora provavelmente Alison preferisse cortar sua própria língua a admitir uma coisa dessas. Só Deus sabe de quem ela herdou isso. Nem eu nem seu pai estudamos muito. Mal podíamos esperar para abandonar os livros. Mas é bom frisar que ela não chega a ser fanática pelos estudos. Gosta de se divertir e brincar, a nossa Alison.
- O que ela faz para se divertir? - indagou George, com suavidade.
- Os três são loucos por música popular, ela, Janet e Derek. Beatles, Gerry and the Pacemakers, Freddie and the Dreamers, coisas assim. Charlie também, embora não tenha tempo para sentar-se todas as noites para escutar os discos, mas ele vai aos bailes no Pavilion Gardens, e sempre recomenda discos a Alison. Estou sempre dizendo que ela tem mais discos que a própria loja. Uma pessoa precisaria ter mais de duas orelhas para ouvir todos eles. Phil compra-os para ela. Ele vai a Buxton todas as semanas e escolhe os últimos sucessos, além daqueles que Charlie recomenda... - Sua voz sumiu.
- E o que mais ela faz?
- Às vezes, Charlie os leva a Buxton para patinar nas noites de quarta-feira. - Sua respiração ficou presa na garganta. - Ah, meu Deus, eu gostaria que ele a tivesse levado ontem à noite. - Gemeu, com a súbita percepção. Ela abaixou a cabeça e tragou o cigarro com tanta vontade que George chegou a ouvir estalidos. Ao levantar novamente a cabeça, seus olhos estavam cheios de lágrimas e tinham um apelo que atravessava suas defesas profissionais, chegando direto a seu coração. - Encontre-a, por favor - disse, em um gemido.
Ele apertou os lábios e assentiu.
- Acredite, senhora Hawkin, pretendo encontrá-la.
- Mesmo que seja apenas para eu poder enterrá-la.
- Espero que não cheguemos a isso - disse ele.
- Sim. Você e eu. - Ela exalou um fluxo fino de fumaça. - Você e eu. Ele esperou um pouco e, depois, perguntou:
- E quanto a amigos? Com quem ela mantinha alguma intimidade? Ruth suspirou.
- É difícil fazer amigos fora de Scardale. Eles nunca conseguem fazer nada com sua turma depois da escola. Se forem convidados para festas ou algo assim, provavelmente não poderão voltar para casa depois. O mais Próximo que podem ir de ônibus é a Longnor. Assim, simplesmente não fazem muita coisa. Além disso, as pessoas de Buxton têm preconceito contra as de Scardale. Acham que somos todos idiotas de nascença, cruzando com primos o tempo todo - disse, em tom sarcástico. - As crianças sofrem provocações, de modo que ficam perto dos seus quase o tempo todo. Nossa Alison é boa companhia, e ouvi dizer, por seus professores, que é bem popular na escola, mas ela nunca teve o que se chama normalmente de "melhor amiga", exceto por seus primos. Outro beco sem saída.
- Há uma outra coisa - disse George. - Eu gostaria de olhar o quarto de Alison, se não houver problema. Apenas para senti-la mais de perto. - Ele não acrescentou, "e para tirar um pouco dos cabelos de sua escova, para que o pessoal do laboratório possa compará-los com os que encontramos grudados no sangue, na árvore".
Ela se levantou, com movimentos que mais pareciam de uma idosa.
- Liguei o aquecedor lá. Para o caso... - A frase não foi concluída. George seguiu-a pelo corredor, que parecia tão frio quanto na noite anterior. A transição quase cortou-lhe o fôlego. Ruth levou-o por uma escadaria ampla com corrimãos de carvalho quase pretos, devido a anos de polimento.
- Outra coisa - disse ele, enquanto subiam -, presumo que seu atual marido não adotou Alison formalmente, já que seu sobrenome ainda é Carter.
A tensão dos músculos no pescoço e costas da mulher era tão clara, que George quase acreditou que estava sendo levado pela imaginação.
- Phil queria adotá-la. Era a favor disso, mas Alison tinha apenas seis anos quando seu pai... morreu. Tinha idade suficiente para recordar o quanto o amava, mas era jovem demais para ver que ele era um ser humano com defeitos também. Ela acha que, se Phil adotá-la, estará traindo a memória do pai. Acho que com o tempo isso passa, mas minha filha é teimosa e não faz nada que não queira. - Estavam no alto da escada agora, e Ruth voltou-se para ele, com expressão indecifrável e composta. - Eu persuadi Phil a esquecer este assunto, por enquanto.
Ruth apontou além de George, para um corredor que se dobrava em um ângulo estranhamente agudo onde o prédio fora aumentado, em algum período indeterminado.
- O quarto de Alison é o último à direita. Desculpe-me por não lhe fazer companhia - disse, determinada, e George descobriu-se admirando o modo como esta mulher ainda conseguia dominar-se, mesmo sob tão grande pressão.
- Obrigado, senhora Hawkin. Não demorarei.
Ele caminhou pelo corredor, consciente de que ela o olhava, mas mesmo este conhecimento desconfortável não era distração suficiente para evitar que notasse o ambiente. O carpete era gasto, mas obviamente do tipo mais caro. Algumas das pinturas e aquarelas que forravam as paredes estavam manchadas pela idade, mas ainda retinham seu charme. George reconheceu diversas paisagens da parte sul da comarca onde crescera, bem como as casas históricas e conhecidas de Chatsworth Haddon e Hardwick. Ele percebeu que o piso era desigual na curva do corredor, como se os construtores fossem incompetentes em todas as três dimensões. Na última porta à direita, ele fez uma pausa e respirou fundo. Talvez nunca mais estivesse tão perto de Alison Cárter.
O calor que o recebeu como um cobertor parecia curiosamente apropriado para o que era, apesar de seu tamanho, um quarto bem confortável. Uma vez que se localizava em um canto da casa, o quarto de Alison tinha duas janelas, aumentando a sensação de espaço. Elas eram compridas e divididas em quatro por profundas vergas de pedra que revelavam a espessura de quarenta e cinco centímetros das paredes. Ele fechou a porta e se dirigiu para o meio do cómodo.
Lembrou a si mesmo sobre a importância das primeiras impressões. Aquecido: havia uma lareira elétrica, além de um radiador elétrico a óleo. Confortável: a cama espaçosa tinha um cobertor grosso, coberto por cetim verde-escuro e as duas poltronas de vime em forma de cesto continham almofadas volumosas. Moderno: o carpete era felpudo, marrom com espirais verde-oliva e mostarda espalhadas em toda sua extensão, e as paredes eram decoradas com fotografias de astros da música, a maioria recortada de revistas, pela aparência de suas bordas tortas. Caro: havia um guarda-roupa de madeira e uma penteadeira que lhe fazia conjunto, com um espelho comprido e baixo e um banquinho em sua frente, tudo tão impecável que tinham de ser relativamente novos. George vira quartos assim quando ele e Anne estavam escolhendo seus próprios móveis, e tinha uma boa ideia do quanto custavam. Nada barato, isso era certo. Em uma mesa sob a janela, viu um toca-discos Dansette de plástico vermelho-escuro com botões bege-claros. Havia uma pilha grande e desalinhada de discos sob a mesa. Philip Hawkin estava claramente determinado a causar boa impressão em sua enteada, concluiu ele. Talvez pensasse que conseguiria chegar ao coração da menina se lhe desse os bens materiais que ela não tivera na infância, como filha de uma viúva em uma comunidade pobre como Scardale.
George foi até a penteadeira e sentou-se desajeitadamente no banquinho. Olhou seus olhos no espelho. A última vez em que tivera um olhar tão ansioso fora na época em que estudava para seus exames finais. Deixara um pedaço de barba por fazer sob sua orelha direita, um resultado direto da falta de vaidade da fé metodista. A ausência de um espelho na sacristia o forçara a barbear-se na frente do espelho retrovisor. Nenhuma agência respeitável de publicidade o contrataria para promover qualquer coisa, exceto soníferos. Fez uma careta para si mesmo e voltou ao trabalho. A escova de cabelos de Alison estava com as cerdas para cima na penteadeira, de modo que George removeu rapidamente o máximo de fios de cabelos que conseguiu. Felizmente, ela não era excessivamente caprichosa e ele conseguiu reunir algumas dúzias deles, que transferiu para um saco plástico vazio.
Então, com um suspiro, iniciou a busca desagradável nos pertences pessoais de Alison. Meia hora depois, não encontrara nada de inesperado. Chegara a folhear cada um dos livros na pequena estante junto à cama. Nancy Drew, The Famous Five, Chalet School, Georgette Heyer, O Morro dos Ventos Uivantes ejane Eyre não continham nem segredos nem surpresas. Uma edição bastante manuseada de Golden Treasury, de Palgrave, continha apenas poesia. A penteadeira revelou apenas roupas íntimas de uma adolescente, alguns sutiãs bastante pudicos, meia dúzia de sabonetes perfumados, meio pacote de absorventes higiênicos, uma caixinha de jóias que continha alguns brincos baratos e um bracelete de prata para bebês, no qual estava gravado "Alison Margaret Carter". A única coisa que ele esperava encontrar, mas não achou, era uma Bíblia. Por outro lado, Scardale era tão isolada do resto do mundo que ainda poderiam estar adorando uma deusa da colheita. Talvez os missionários nunca tivessem chegado a este lugar.
Uma pequena caixa de madeira sobre a penteadeira ofereceu-lhe itens mais interessantes. Ela continha meia dúzia de fotografias em preto-e-branco, a maior parte enrolando-se para dentro e amarelando nas bordas. Ele reconheceu uma Ruth Hawkin jovem, com a cabeça jogada para trás em uma risada, olhando para um homem de cabelos escuros cuja cabeça abaixava-se em timidez desajeitada. Havia duas outras fotografias do casal, de braços dados e expressões despreocupadas, todas obviamente tiradas na Golden Mile
em Blackpool. Lua-de-mel?, cogitou George. Sob elas, havia duas fotos do mesmo homem, com seus cabelos escuros caídos na testa. Vestia roupas de trabalho, um cinto largo segurando as calças que pareciam ter sido feitas para um homem com torso muito mais longo. Em uma, estava de pé sobre um arado preso a um trator. Na outra, estava agachado ao lado de uma criança loira, que sorria feliz para a câmera. Alison, sem dúvida. A fotografia final era mais recente, a julgar por suas margens brancas, e mostrava Charlie Lomas e uma mulher idosa, encostados em uma parede de pedra, com rochedos turvos de calcário ao fundo. O rosto da mulher era obscurecido por um chapéu de palha cuja aba ampla era forçada para baixo sobre suas orelhas por um lenço, amarrado sob o queixo. Tudo o que se podia ver era a linha reta de sua boca e o queixo protuberante, mas estava claro, pelo corpo encurvado e desajeitado, que a mulher era velha demais para ser a mãe de Charlie Lomas. Como se tivessem sido capturados por um fotógrafo da era vitoriana, mantidos imóveis por alertas contra movimentos durante a exposição, Charlie, o rosto sem expressão, olhava diretamente para a câmera. Seus braços estavam cruzados no peito e ele parecia tão rude e desafiador quanto qualquer rapazote que George já vira alegando inocência em uma delegacia.
- Fascinante - murmurou.
As fotografias do pai da menina eram previsíveis, embora ele tivesse esperado vê-las em uma moldura e em exibição no quarto. Contudo, o fato de a única outra imagem guardada com carinho por Alison incluir o primo que fizera a conveniente descoberta no matagal era, no mínimo, algo muito interessante para uma mente treinada em suspeitas como a de George. Com cuidado, ele recolocou as fotos na caixa. Depois, pensando melhor, tirou aquela de Charlie e da velhinha e enfiou-a em seu bolso.
George encontrou as primeiras amostras da caligrafia de Alison no meio dos discos. Em tiras de papel rasgadas de cadernos escolares, encontrou fragmentos de letras de músicas que, obviamente, tinham algum significado para a menina. Frases de Devil in Disguise, de Elvis Presley, Ws My
Início da Nota de Rodapé: Nome de um espaço com aproximadamente uma milha (1,6km), famoso por casas de Jogos eletrônicos e locais de diversão em Blackpool, Inglaterra. Fim da Nota de Rodapé.
Party (And Vil Cry if - Want To), de Lesley Gore, It's Ali in the Game, de Cliff Richard e - (Who Have Nothing), de Shirley Bassey, pintavam um quadro inquietante de infelicidade, que não combinava com a imagem da garota que todos haviam projetado. As letras falavam de amor e traição, perda e solidão. George sabia que não havia nada de estranho na experiência dessas sensações por adolescentes, que muitas vezes acreditavam ser os únicos que as tinham. Contudo, se estas eram as emoções de Alison Carter, a menina fora muito eficiente no sentido de mantê-las em segredo.
Isto era uma pequena incongruência, mas a única encontrada por ele, que enfiou as tiras de papel em outro saco plástico. Não havia razão real para imaginar que pudessem servir como provas, mas era melhor prevenir. Nunca se perdoaria caso um único detalhe menosprezado se revelasse crucial. Isso não apenas prejudicaria sua carreira, mas, bem mais importante, deixaria o assassino de Alison à solta. Ele parou no meio do caminho, quando já ia abrir a porta.
Era a primeira vez que admitia a si mesmo o que sua lógica profissional mostrava como sendo a verdade. Não estava mais procurando por Alison Carter. Estava procurando seu corpo. E seu assassino.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 18h23
George caminhou pesadamente pela estradinha na frente do solar. Pretendia conferir as novidades no centro de operações na igreja metodista e, depois, deixar as amostras de cabelos no QG da divisão em Buxton. Finalmente, iria para casa tomar um banho quente, fazer uma refeição quente e dormir algumas horas, ou seja, tudo o que se parecia com uma vida normal em uma investigação como esta. Mas, primeiro, queria trocar algumas palavras com o jovem Charlie Lomas.
Mal havia chegado à praça do vilarejo quando uma figura saiu das sombras, na sua frente. Assustado, parou e arregalou os olhos, esforçando-se para acreditar no que estava vendo. Seu cansaço fez com que um riso nervoso lhe subisse à garganta, mas conseguiu sufocá-la antes que se derramasse no ar nevoento da noite. A forma definira-se em algo que um artista teria adorado. A mulher encurvada que o espiava era o arquétipo da bruxa encarquilhada, desde o nariz de águia que quase se encontrava com o queixo até a verruga com pêlos nascentes e xale preto cobrindo a cabeça e os ombros. Tinha de ser a velhota da fotografia em seu bolso. A estranha e súbita coincidência provocou um tapinha involuntário no bolso que continha a imagem da criatura à sua frente.
- Então você é o chefe - disse ela, em uma voz que soava como um portão que rangesse estridente.
- Sou o detetive-inspetor Bennett, se é o que quer dizer, senhora - respondeu ele.
A pele da mulher enrugou-se em uma expressão de desdém.
- Títulos pomposos - disse. - Perda de tempo em Scardale, rapazinho. Olhe, todos vocês estão perdendo tempo. Ninguém tem imaginação suficiente para entender o que está acontecendo aqui. Scardale não é como Buxton, sabe? Alison Carter não está onde deveria estar, e a resposta está na cabeça de alguém de Scardale, não na floresta, esperando ser descoberta como uma raposa em uma armadilha.
- Talvez então eu pudesse contar com sua ajuda, senhora...?
- E por que eu o ajudaria, senhor? Sempre resolvemos nossos assuntos sozinhos. Não sei o que deu em Ruth para chamar estranhos ao vale. - Quando ela ia passá-lo na trilha, George deu um passo para o lado e a impediu de seguir em frente.
- Uma menina desapareceu - falou, com suavidade. - Isto é algo que Scardale não pode resolver por si mesma. Quer a senhora goste ou não, ainda vive no mundo real. Mas precisamos de sua ajuda, tanto quanto precisam da nossa.
A mulher subitamente pigarreou alto e cuspiu no chão, aos pés de George.
- Até que vocês me mostrem algum sinal de que sabem o que deveriam estar procurando, esta é toda a ajuda que terão de mim, senhor.
Num rompante, ela deu meia-volta e enveredou pela praça, com pés surpreendentemente rápidos para uma mulher que, em sua opinião, devia ter, no mínimo, oitenta anos de idade. George continuou olhando até que a bruma a engoliu, como um homem que se descobre vítima de uma dobra do tempo.
- Já conheceu Mamãe Lomas então? - perguntou o detetive-sargento Clough com um grande sorriso, aparecendo do nada.
- Quem é Mamãe Lomas? - perguntou George, confuso.
- A questão não deveria ser "Quem é Mamãe Lomas", mas "O que ela é?" - disse Clough, em tom solene. - Mamãe é a matriarca de Scardale. É a habitante mais velha, a única que sobrou de sua geração. Diz que celebrou seus vinte e um anos no Jubileu do Diamante da rainha Vitória,
mas não tenho certeza.
- Parece idosa o suficiente para isso.
- Sim, mas me diga quem, em Scardale, chegou mesmo a saber que Vitória estava no trono e, mais ainda, por quanto tempo permaneceu nele? Hein? - Clough finalizou, com um sorriso zombeteiro.
- Então, onde é que ela se encaixa? Qual é seu parentesco com Alison? Clough encolheu os ombros.
- Quem sabe? Bisavó, prima em segundo grau, tia, sobrinha? Todas as opções acima? Teria de ser muito esperto para entender todas as ligações entre este pessoal, senhor. Tudo o que sei é que, de acordo com o policial Grundy, ela serve de olhos e ouvidos do mundo por aqui. Nem um rato emite um pum em Scardale sem que Mamãe Lomas saiba.
- E ainda assim não parece disposta a nos ajudar a encontrar uma menina desaparecida. Uma menina que é sua parente. O que acha disso?
Clough tornou a sacudir os ombros.
- São todos iguais. Não gostam de estranhos em nenhuma circunstância.
- Foi este o tipo de atitude que você e Cragg encontraram ontem à noite quando perguntaram às pessoas se haviam visto Alison Carter?
- Na maioria das vezes. Eles respondem às perguntas, mas nunca dizem espontaneamente uma única coisa além do que lhes perguntamos.
- Você acha que todos diziam a verdade, isto é, não viram mesmo Alison? - indagou George, tateando seus bolsos em busca dos cigarros.
Clough estendeu-lhe seu próprio maço, enquanto George lembrava que dera o seu a Ruth Hawkin.
Início da Nota de Rodapé: Descoberto em 1895 e denominado primeiramente Reitz, em homenagem ao sr. F. W. Reitz, presidente do Estado libero de Orange, este diamante foi chamado de Jubileu em 1897 por ser uma lembrança à rainha Vitória da Inglaterra no jubileu do 16º aniversário de seu reinado. Fim da Nota de Rodapé.
- Aí está - disse Clough. - Acho que não estavam mentindo. Mas todos poderiam muito bem estar retendo informações relevantes. Especialmente se não sabíamos quais seriam as perguntas certas.
- Teremos de falar com todos novamente, não acha? - disse George, suspirando.
- Acho que sim, senhor.
- Mas isto terá de esperar até amanhã. Exceto pelo jovem Charlie Lomas. Por acaso você sabe onde ele está?
- Um dos nabos o levou ao salão da igreja metodista para prestar depoimento. Talvez meia hora atrás - disse Clough, sem dar grande importância ao fato.
- Não quero mais ouvir este tipo de coisa, sargento - disse George, com o cansaço transformando-se em irritação.
- O quê? - perguntou Clough, parecendo confuso.
- Nabo é um vegetal que se dá a ovelhas. Já conheci muitos agentes do departamento de investigações criminais que se qualificariam bem mais como vegetais que a maior parte dos policiais fardados. Precisamos da cooperação dos policiais fardados neste caso, e não quero que você estrague tudo com essa forma desrespeitosa de tratamento. Está claro, sargento?
Clough coçou o queixo.
- Bem claro, mas como não terminei nem o segundo grau na escola, não sei se conseguirei lembrar.
George sabia que este era um momento decisivo.
- Vou lhe dizer uma coisa, sargento. No fim deste caso, lhe darei um maço de cigarros por conta de cada dia que você conseguir lembrar-se disso.
Clough abriu um amplo sorriso.
- Ah, isso é o que chamo de incentivo!
- Vou falar com Charlie Lomas. Quer vir comigo?
- Será um prazer, senhor.
George começou a andar na direção de seu carro, mas parou de repente olhando para o sargento com uma ruga na testa.
- Mas o que você está fazendo aqui, por falar nisso? Achei que ainda estaria no turno da noite até o fim de semana!
Clough parecia embaraçado.
- Ainda estou no turno da noite, mas decidi vir esta tarde. Queria dar uma mãozinha. - Ele deu um sorriso maroto. - Está tudo bem, senhor. Não pretendo cobrar hora extra.
George tentou esconder sua surpresa.
- É muita gentileza sua - disse.
Enquanto encaminhavam-se para a estrada de Scardale, George pensou na capacidade do sargento para confundi-lo. Considerava-se bom juiz de caráter; porém, quanto mais conhecia Tommy Clough, mais contradições descobria nele.
Clough parecia rude e vulgar, sempre o primeiro a pagar uma rodada de bebida, sempre o mais ruidoso e com as piadas mais sujas. Contudo, seu histórico de detenções feitas falava de alguém diferente, de um investigador sutil e sensato, que preferia descobrir os pontos fracos dos suspeitos e pressioná-los até vê-los ceder e lhe dizer o que desejava ouvir. Ele era sempre o primeiro a grudar os olhos em uma mulher atraente, mas vivia sozinho em um apartamento de solteiro com vista para o lago em Pavilion Gardens. Fora até lá uma vez buscá-lo para o comparecimento imprevisto em um tribunal. Achava que o encontraria em um pardieiro, mas o apartamento era limpo, maravilhosamente decorado e cheio de álbuns de jazz, com as paredes decoradas com desenhos a bico-de-pena de pássaros britânicos. Clough parecera desconcertado por encontrá-lo em sua porta, esperando para entrar, e se aprontara para sair em tempo recorde.
Agora, o homem que era sempre o primeiro a cobrar por qualquer minuto a mais trabalhado cedera seu tempo livre para percorrer a zona rural de Derbyshire em busca de uma menina de cuja existência ele não tivera conhecimento sequer vinte e quatro horas antes. George sacudiu a cabeça. Imaginou se Tommy Clough não o consideraria esquisito também. Por alguma razão, duvidava disso.
Deixou suas reflexões de lado e apresentou sua suspeita sobre Charlie Lomas a seu sargento.
- Não é muito, eu sei, mas não temos mais nada no momento - concluiu.
- Se ele tem algo a esconder, não fará mal nenhum perceber que levamos o caso muito a sério - disse Clough, sombrio. - E se tem um segredo, não conseguirá mantê-lo por muito tempo.
O salão da igreja tinha um clima curiosamente quieto. Alguns policiais uniformizados estavam processando relatórios e outros documentos burocráticos. Peter Grundy e um sargento que George não conhecia examinavam mapas detalhados da área próxima, eliminando as já percorridas com quadrados grossos feitos a lápis. No fundo da sala, a figura desengonçada de Charlie Lomas estava sentada em uma cadeira de madeira dobrável, com as pernas enroladas uma na outra e os braços abraçando o próprio peito. Um policial estava sentado à sua frente, separado por uma mesa de jogo sobre a qual ele redigia atentamente um depoimento.
George foi até Grundy e levou-o para um canto.
- Pretendo trocar uma palavrinha com Charlie Lomas. O que você pode me dizer sobre o garoto?
Imediatamente, o rosto do policial de Longnor tornou-se impassível.
- Em que sentido, senhor? - perguntou, em tom formal. - Não se sabe nada sobre o garoto.
- Sei que não tem ficha policial - falou George. - Mas esta é sua área. Você tem parentes em Scardale...
- Minha esposa tem - interrompeu-o Grundy.
- Que seja, tanto faz. Você deve ter alguma impressão sobre ele. Do que é capaz.
Suas palavras ficaram suspensas no ar. No rosto de Grundy, formou-se lentamente uma expressão de hostilidade indignada.
- Você não pode estar pensando que Charlie tem algo a ver com o desaparecimento de Alison! - Seu tom era de absoluta incredulidade.
- Quero esclarecer algumas coisas, e seria útil se eu tivesse alguma idéia do tipo de garoto com quem falarei - disse George, cansado. - É só isso. E então, como ele é, Grundy?
Grundy olhou à sua direita e, depois, à esquerda, depois para a frente outra vez, como uma criança esperando para atravessar corretamente uma estrada. Contudo, não havia como fugir dos olhos de George. Assim, coçou a pele macia atrás de sua orelha e respondeu:
- Charlie é um bom rapaz, mas está em uma idade difícil. Todos os garotos desta idade vão à cidade e tomam umas e outras para tentar sair-se bem com as meninas, mas por aqui isso não é tão fácil. Outra coisa sobre Charlie é que é muito esperto. O suficiente para saber que poderia ser qualquer coisa na vida, se pudesse sair de Scardale, só que não tem coragem para fazer isso, por enquanto. Assim, ele se mostra um pouco atrevido de vez em quando, demonstrando sua insatisfação sem meias-palavras e com bastante grosseria. Mas seu coração está onde deveria estar. Ele mora em um chalé com Mamãe Lomas, porque ela não consegue fazer tudo sozinha e a família gosta de saber que há alguém por perto para trazer carvão e fazer coisas para a velhota. Esta vida não é grande coisa para um garoto de sua idade, mas é a única coisa da qual ele nunca se queixa.
- Ele tinha intimidade com Alison?
George percebeu que Grundy pesava até onde poderia responder. Esta era uma das partes mais difíceis de seu emprego, ter de permanecer firme no comando e demonstrar sua autoridade com seus colegas.
- Todos são íntimos uns dos outros por aqui - disse Grundy finalmente. - Não há qualquer problema entre ele e Alison, pelo menos até onde eu saiba.
Entretanto, não era em problemas que George estava interessado, no que se referia aos dois primos de Scardale.
Percebendo que já extraíra tudo que podia de Grundy, agradeceu e rumou para o fundo do salão, rezando para não parecer tão exausto quanto se sentia. Provavelmente, teria de esperar até a manhã para interrogar Charlie Lomas, mas preferia fazer isto agora, quando o garoto já estava com a guarda levantada. Além disso, sempre havia uma chance em um milhão de que Alison ainda estivesse viva, e Charlie Lomas poderia saber de algo que esclareceria o paradeiro da menina. Ainda que a chance fosse muito pequena, não podia ser desperdiçada.
Enquanto se aproximava, George pegou uma cadeira e a largou casualmente no terceiro lado da mesa, em ângulo reto com Charlie e o policial fardado. Sem que precisassem mandá-lo, Grundy fez o mesmo, ocupando o quarto lado da pequena mesa e cercando Charlie. Os olhos deste foram de um para outro, enquanto se remexia em seu assento.
- Você sabe quem eu sou, não é, Charlie? - perguntou George. O jovem assentiu.
- Fale quando lhe dirigirem a palavra - comandou Clough, áspero. - Aposto que isso é o que sua avó sempre lhe diz. Ela é sua avó, não é? Quer dizer, não é sua tia, sobrinha ou prima, não é? É difícil saber dessas coisas,
por aqui.
Charlie retorceu a boca para um lado e balançou a cabeça.
- Não há necessidade disso - protestou. - Estou ajudando no que posso.
- E somos muito gratos por você ter vindo prestar seu depoimento voluntariamente - disse George, incorporando sem esforço o papel de Policial Bonzinho, enquanto Clough parecia ser o Policial Malvado. - Já que estamos aqui, queria fazer-lhe uma ou duas perguntas, está bem?
Charlie respirou ruidosamente pelo nariz.
- Tá. Vá em frente.
- Ficamos impressionados por você encontrar aquele ponto remexido no meio do arvoredo - disse George. - Uma equipe inteira já havia passado por ali antes, e ninguém viu um traço sequer do lugar.
Charlie conseguiu encolher os ombros sem realmente soltar qualquer de seus membros do abraço que dava em si mesmo.
- Conheço o vale como a palma da minha mão. Quando se conhece bem um lugar, a mínima mudança salta aos olhos, só isso.
- Mas você não foi o único de Scardale a andar por ali, apesar de ser o primeiro a perceber.
- Ah, bem, acontece que meus olhos são melhores que os dos velhotes daqui - disse ele, tentando impressionar, mas sem fazer muito esforço.
- Olhe, estou interessado, porque notamos que às vezes pessoas que se envolveram em um crime tentam incluir a si mesmas na investigação - disse George, baixinho.
O corpo de Charlie liberou-se como se galvanizado. Seus pés bateram no chão e seus antebraços golpearam a mesa. Os policiais que estavam mais à frente no salão voltaram-se, assustados.
- Você é um doente - disse ele.
- Não sou doente, mas acho que alguém daqui é. Minha tarefa é descobrir quem. Agora, se alguém queria raptar ou fazer mal a Alison, seria muito mais fácil se fosse alguém conhecido, ou em quem ela confiasse. Obviamente, você a conhece. Ela é sua prima, cresceram juntos. Você indica discos e o padastro os compra para ela. Você senta perto do fogo com ela em sua casa, enquanto sua avó desfia suas histórias sobre o passado na ensolarada Scardale. Você a leva ao rinque de patinação em Buxton às quartas-feiras. - George encolheu os ombros. - Você não teria problema para persuadi-la a ir a algum lugar em sua companhia.
Charlie afastou-se violentamente da mesa e enfiou as mãos trêmulas nos bolsos das calças.
- E daí?
George mostrou-lhe a fotografia que encontrara no quarto da menina.
- Alison guardava uma foto sua no quarto - foi tudo o que disse. O rosto do garoto contorceu-se e ele cruzou as pernas.
- Deve ter feito isso por causa de Mamãe Lomas - disse, insistente.
- Alison adora Mamãe, e a velha bruxa detesta que tirem sua foto. Acho que essa aí é a única foto que já conseguiram bater dela.
- Será, Charlie? - interveio Clough. - Meu chefe e eu achamos que Alison gostava de você de um jeito especial. Uma garota bonita como aquela ao seu lado, adorando o chão em que você pisa... não conheço muitos garotos que diriam não a isto, você conhece? Especialmente uma garota adorável como Alison. Uma fruta madura, pronta para ser colhida, pronta para cair bem na sua mão. Tem certeza de que não era isso, Charlie?
O garoto remexeu-se, sacudindo a cabeça.
- O senhor entendeu tudo errado.
- Será? - perguntou George, gentil. - Então nos conte como era, Charlie. Será que era embaraçoso andar ao lado da garota quando você saía para patinar? Será que Alison estragava seus planos com as meninas mais velhas? Será que era este o problema? Você se encontrou com ela no vale ontem, na hora do chá? Será que perdeu a paciência com sua prima?
Charlie abaixou a cabeça e respirou fundo. Depois, ergueu-a e voltou-se para fitar George.
- Eu não entendo. Por que estão me tratando assim? Fiz o que podia para ajudar. Ela é minha prima. É parte de minha família. Nós cuidamos uns dos outros aqui em Scardale. Não é como em Buxton, onde ninguém dá a mínima para os outros. - Ele apontou para cada um dos policiais. - Vocês deveriam estar lá fora, procurando por ela, não aqui me insultando.
- Levantou-se em um pulo. - Sou obrigado a ficar aqui?
George levantou-se, e fez um gesto na direção da porta.
- Pode ir se quiser, senhor Lomas, mas precisaremos conversar novamente.
Clough levantou-se e se colocou do lado de George, enquanto Charlie saía com seus ossos desengonçados e sua imensa raiva.
- Ele não tem nada a ver com isso - disse.
- Parece que não - concordou George. Os dois homens seguiram no rastro de Charlie, fazendo uma pausa junto à porta, enquanto o jovem afastava-se pela estrada de Scardale. George olhou-o, pensativo. Depois, pigarreou. - Vou para casa agora. Volto antes de amanhecer. Você está no comando, pelo menos do departamento de investigações, até meu retorno.
Clough riu e sua risada pareceu morrer em uma lufada de hálito branco no ar opressivo da noite.
- Eu e Cragg, é? Isso dará o que falar aos patifes. Você desejava seguir alguma linha específica de investigação lá dentro?
- Quem quer que tenha levado Alison, deve tê-la tirado do vale, de algum modo - disse George, quase que pensando em voz alta. - Ele não poderia tê-la levado durante muito tempo, não uma adolescente com desenvolvimento normal de treze anos. Se ele a levou pelo vale de Scardale até Denderdale, teria de andar cerca de seis quilômetros antes de chegar a uma estrada. Mas se a trouxe até aqui pela estrada de Longnor, provavelmente a distância é de cerca de dois quilômetros. Por que você e Cragg não vão de porta em porta em Longnor, hoje à noite, para ver se alguém percebeu um veículo estacionado no acostamento, próximo à entrada para Scardale?
- Tem razão, senhor. Encontrarei o detetive Cragg e partiremos imediatamente.
George voltou à central móvel de operações e providenciou para que os cães farejadores trabalhassem em Denderdale na manhã seguinte, passou meia hora na delegacia de Buxton preenchendo formulários de requisição para que o laboratório examinasse o material colhido no arvoredo e na escova de cabelos de Alison e, então, finalmente se pôs a caminho de casa.
Os habitantes de Scardale teriam de esperar até o dia seguinte.
7
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 20h06
George não se lembrava da última vez em que fechara sua porta da frente com tamanha sensação de alívio. Antes de sequer tirar o chapéu, a porta que dava para a sala abriu-se e Anne estava ali, dando três pequenos passos e se aninhando entre seus braços.
- É ótimo estar em casa - disse ele num suspiro, inalando o aroma almiscarado dos cabelos da esposa, consciente também de que não se lavara desde a noite anterior.
- Você trabalha demais - ela o repreendeu, suavemente. - Ninguém lucrará se você morrer de cansaço. Venha, a lareira está acesa e não levarei cinco minutos para aquecer sua comida. - Ela afastou-se um pouco do abraço e olhou-o criticamente. - Você parece exausto. Recomendo um banho quente e cama tão logo termine de comer e tomar seu chá.
- Prefiro tomar o banho antes, se a água está quente.
- Tudo bem, a banheira está cheia. Eu ia tomar meu banho, mas é melhor você aproveitar a água. Tire a roupa, e eu vou ajudá-lo. - Ela empurrou-o gentilmente para as escadas.
Meia hora depois, ele estava de roupão à mesa da cozinha, devorando uma porção generosa de cozido de carne com cenoura, acompanhado por um prato com pão e manteiga.
- Desculpe, não temos batata - disse Anne. - Achei que pão com manteiga seria mais rápido e sabia que você precisaria comer alguma coisa logo que chegasse, já que nunca come direito quando está trabalhando.
- Humm - concordou ele, com a boca cheia.
- Encontraram a menina, então? A que desapareceu? Foi por isso que voltou para casa?
A comida em sua boca pareceu congelar-se em um bolo indigerível. George forçou-a garganta abaixo. Sentia-se como se engolisse uma bola de pêlos do tamanho de uma bola de golfe.
- Não - respondeu, olhando para seu prato. - E acho que não a encontraremos viva, se chegarmos a encontrá-la.
O rosto de Anne empalideceu.
- Mas isso é horrível, George. Como pode ter certeza? Ele sacudiu a cabeça e suspirou.
- Não tenho certeza, mas sabemos que ela não foi embora espontaneamente. Não me pergunte como, mas sabemos. O tipo de família no qual foi criada não atrairia seqüestradores. Além disso, pessoas que roubam crianças não as mantêm vivas por muito tempo. Assim, meu palpite é de que já está morta e, se não estiver, estará quando e se a encontrarmos, porque não temos absolutamente nenhuma pista. O pessoal do vilarejo age como se fôssemos o inimigo, não pessoas que querem ajudá-los, e é tão difícil fazer buscas naquela área que parece que até isso conspira contra nós. - Ele empurrou o prato e pegou os cigarros de Anne.
- Que horror. Como a mãe consegue lidar com o que está acontecendo?
- Ruth Hawkin é uma mulher forte. Acho que se alguém cresce em um lugar onde a vida é tão difícil quanto em Scardale, aprende a curvar-se em vez de quebrar. Mas não sei como está suportando. Ela perdeu o primeiro marido em um acidente na fazenda, sete anos atrás, e agora isto. O novo marido também não é muito útil. Um daqueles coitados egoístas que vêem tudo em termos de como os afetará.
- O quê? Ah, sim, um homem normal - brincou ela.
- Engraçadinha. Não sou assim. Não espero que meu chá esteja servido quando entro pela porta, entende? Você não precisa me servir o tempo todo.
- Você logo enjoaria de mim se eu não o servisse.
George deixou passar, com um encolher de ombros e um sorriso.
Acho que tem razão. Nós, homens, nos acostumamos a ser cuidados por vocês, mulheres. Mas, se tivéssemos um filho e ele sumisse, acho que não "caria exigindo meu chá antes de minha mulher sair à procura dele.
- O marido fez isso?
- Sim, de acordo com uma testemunha. - Ele sacudiu a cabeça. - Eu não deveria lhe contar essas coisas.
- E a quem eu contaria? As únicas pessoas que conheço aqui são as esposas dos outros policiais e elas não são exatamente minhas amigas do peito. As da minha idade são esposas de policiais inferiores na hierarquia, de modo que não confiam em mim, especialmente porque sou professora e nenhuma delas jamais fez algo mais difícil que trabalhar em uma lojinha ou em um escritório. E as esposas dos mais graduados são todas mais velhas que eu e me tratam como se eu fosse uma boba. Assim, pode ter certeza de que não sairei contando fofocas sobre seu caso, George - disse Anne, com um quê de irritação.
- Desculpe. Sei que não está sendo fácil fazer novas amigas aqui. - Ele tomou a mão da esposa na sua.
- Não sei como eu reagiria se perdesse um filho. - Quase que inconscientemente, a mão deslizou para o ventre.
Os olhos de George estreitaram-se.
- Está me escondendo alguma coisa? - perguntou, olhando-a com atenção.
A pele clara de Anne ruborizou-se.
- Não sei, George. É só que... bem, minhas regras estão atrasadas. Uma semana de atraso. Então... Desculpe, meu amor, eu não queria dizer nada até ter certeza, bem no meio de sua investigação sobre uma criança desaparecida. Mas, sim, acho que posso estar grávida.
Um sorriso vagaroso espalhou-se pelo rosto de George, enquanto assimilava as palavras:
- Mesmo? Vou ser papai?
- Pode ser alarme falso, mas nunca atrasei antes - falou Anne, parecendo quase apreensiva.
George levantou-se rapidamente e a tirou de sua cadeira, girando com a esposa em um abraço de alegria.
- É maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso. Pararam, e ele a beijou com paixão, murmurando:
- Eu a amo, senhora Bennett.
- Eu o amo também, senhor Bennett.
George puxou-a para junto de seu corpo, enterrando o rosto entre seus cabelos. Um filho. Seu filho. Tudo o que tinha de fazer agora era descobrir como lidar com o problema enfrentado por todos os pais desde Adão: como proteger seu filho.
Até este ponto, Alison Carter havia sido um caso importante para o detetive-inspetor George Bennett. Agora, tinha importância simbólica. Transformara-se em uma cruzada.
Em Scardale, o humor era tão soturno quanto os penhascos de calcário que cercavam o vale. A experiência de Charlie Lomas nas mãos da polícia correra o vilarejo com a mesma rapidez que as notícias sobre o desaparecimento de Alison. Enquanto as mulheres conferiam ansiosa e regularmente se os filhos estavam dormindo em suas camas, os homens se reuniam na cozinha do chalé em que Ruth e a filha haviam morado até o casamento com Hawkin.
Terry Lomas, pai de Charlie, mascava a ponta de seu cachimbo e se queixava da polícia:
- Eles não têm o direito de tratar nosso Charlie como criminoso - disse.
O irmão mais velho de Charlie, John, disse, com uma expressão severa:
- Eles não têm idéia do que aconteceu com nossa Alison. Usaram Charlie apenas como exemplo, para parecer que estão fazendo algo.
- Mas não vão deixar as coisas assim, vão? - perguntou Robert, tio de Charlie. - Interrogarão cada um de nós, um por um, se não conseguirem nada de Charlie. Aquele Bennett está com idéia fixa no caso de Alison, qualquer um percebe.
- Mas isso é bom, não é? - Ray Carter questionou. - Significa que está fazendo seu trabalho direitinho. Não sossegará até obter uma resposta.
- Tudo bem, se for a resposta certa - falou Terry.
- É - disse Robert, pensativo. - Mas como podemos garantir que ele não se desviará do que deveria estar fazendo porque está ocupado demais Perseguindo pessoas como o pobre Charlie? O menino não é muito durão, todos nós sabemos. Logo começarão a colocar palavras em sua boca. A gente sabe que, se não pegarem o homem certo, decidirão pegar Charlie de qualquer modo, e que se dane o resto.
- Temos duas opções - disse Jack Lomas. - Podemos fechar a boca. Não lhes diremos nada, exceto o que precisamos dizer para proteger Charlie. Logo perceberão que precisam encontrar outro bode expiatório. Ou podemos retroceder e ajudá-los. Talvez assim percebam que perseguir as pessoas que cuidaram de nossa Alison não ajudará em nada, no sentido de encontrarem quem a pegou, quem quer que seja.
Houve um grande silêncio na cozinha, pontuado pelo ruído de Terry chupando seu cachimbo. Finalmente, o velho Robert Lomas falou:
- Acontece que podemos fazer as duas coisas.
Sem George, o trabalho prosseguiu. As equipes de busca haviam encerrado os trabalhos por aquele dia, mas, no centro de operações, policiais fardados faziam planos para o dia seguinte. Já haviam aceitado ofertas dos voluntários do Exército Territorial
local e dos cadetes da RAF, que deveriam juntar-se às buscas no fim de semana. Ninguém verbalizava seus pensamentos, mas o pessimismo era geral. O que não significava que não cobririam cada centímetro de Derbyshire, se precisassem.
Em Longnor, Clough e Cragg estavam fartos de chá, mas famintos por pistas. Uma vez que todos dormiam mais cedo em comunidades rurais que em Buxton, eles haviam decidido encerrar os trabalhos às nove e meia da noite. Pouco antes desse horário, Clough teve sorte. Um casal idoso voltava das compras de Natal em Leek e havia percebido um Land Rover estacionado na grama, ao lado da capela metodista.
- Faltava pouco para as cinco da tarde - disse o marido, confiante.
- O que o fez notar o veículo? - perguntou Clough.
- Sempre vamos à capela - disse ele. - Em geral, apenas o pastor estaciona ali. Os fiéis deixam seus carros na beira da estrada. Todos sabem que deve ser assim.
- Você acha que o motorista estacionou fora da estrada para evitar ser notado?
.- Suponho que sim. Ele não sabia que, sendo um estacionamento exclusivo, isso chamaria mais ainda a atenção, entende?
Clough fez que sim e perguntou:
- Vocês viram o motorista? Os dois sacudiram a cabeça.
- Estava escuro - comentou a esposa. - Não havia qualquer luz acesa no carro e logo passamos por ele.
- Havia algo diferente no Land Rover? Era um veículo comprido ou menor? De que cor? Tinha capota fixa ou era conversível? Memorizaram alguma letra ou número da placa? - indagou Clough.
Novamente, os dois sacudiram as cabeças, em dúvida.
- Não estávamos prestando muita atenção, para ser honesto - falou o marido. - Conversávamos sobre a feira agropecuária. Um camarada de Longnor conquistou um dos primeiros prêmios e fomos convidados por ele para bebermos algo em Leek. Acho que metade da aldeia estaria lá, mas decidimos vir para casa. Minha esposa queria decorar a árvore de Natal.
Clough olhou à sua volta e viu as correntes de papel feitas em casa e a árvore de Natal artificial, cheia de cordões patéticos com luzes coloridas e uma guirlanda de ouropel que parecia ter sido mastigada desde o Natal anterior por um cachorro.
- Estou vendo - disse ele, com o rosto sério.
- Gosto de ter tudo pronto no dia da feira - disse a mulher, com orgulho. - Só então sentimos que o Natal está próximo, não é, pai?
- É isso mesmo, Dóris, bem assim. Como pode ver, sargento, nossas mentes não estavam ligadas no Land Rover.
Clough levantou-se e sorriu.
- Não se preocupem - falou ele. - Pelo menos vocês perceberam o carro. Isso é mais que qualquer outra pessoa na aldeia conseguiu lembrar.
- Estão todos ocupados demais celebrando a novilha de Alec Grundy comentou o homem, com ar de sábio.
Clough agradeceu-lhes novamente e partiu, encontrando-se com Cragg no bar mais próximo. Nunca achou que a regra sobre não beber durante o serviço devia ser aplicada com rigidez especialmente no turno da noite.
Como óleo de alta qualidade em uma máquina, alguns drinques sempre azeitavam sua mente. Consumindo uma cerveja Marston's Pedigree, ele contou o que ouvira a Cragg.
- Isso é ótimo - exclamou Cragg, entusiasmado. - O professor gostará da novidade.
Clough fez uma careta.
- Até certo ponto. Ele gostará de saber que temos duas testemunhas que viram um Land Rover estacionado onde o povo daqui não costuma estacionar. Ele gostará de saber que isto aconteceu por volta do mesmo horário em que Alison desapareceu. - Então Clough lhe disse o que, em sua opinião, desagradaria George.
- Que merda! - disse Cragg.
- É. - Clough baixou o conteúdo de seu copo em cinco centímetros, em um único gole. - Que merda.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 5h35
George entrou na delegacia de Buxton pela porta da frente e encontrou um policial fixando sininhos natalinos de papel sanfonado na parede com percevejos.
- Muito festivo - resmungou. - O sargento Lucas está?
- Creio que o senhor pode alcançá-lo. Lucas disse que iria à cantina buscar um sanduíche de bacon. Foi seu primeiro intervalo durante a noite inteira!
- O sino vermelho está mais alto que o verde - disse George, já saindo. O policial olhou com raiva enquanto a porta fechava.
George encontrou Bob Lucas mastigando ruidosamente o sanduíche de bacon e fitando aborrecido os jornais da manhã.
- Já viu isto, senhor? - perguntou ele à guisa de cumprimento, empurrando o Daily News para o outro lado da mesa. George pegou-o e começou a ler.
Daily News, sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, p. 5
MENINA SUMIDA: EXISTE UMA LIGAÇÃO?
Cães na busca por Alison
Do repórter do Daily News
Ontem, a polícia recusou-se a descartar uma ligação entre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, e outros dois casos semelhantes, a menos de cinqüenta quilômetros de distância, nos últimos seis meses.
Há similaridades óbvias entre os três casos, e os detetives debateram, em particular, sobre a necessidade de considerarem o estabelecimento de uma força-tarefa comum entre as três forças policiais que investigam os casos.
As buscas mais recentes concentram-se em Alison Carter, que desapareceu do vilarejo remoto de Scardale, Derbyshire, quarta-feira passada. A menina havia levado sua collie, Shep, para uma caminhada após chegar da escola, mas como não voltou para casa, a mãe, senhora Ruth Hawkin, alertou a polícia local em Buxton.
As buscas realizadas com cães farejadores não revelaram qualquer vestígio da menina, embora sua cadela tenha sido encontrada sem ferimentos, em um matagal próximo.
O misterioso desaparecimento ocorre menos de três semanas depois que John Kilbride, de 12 anos, também desapareceu em Ashton-under-Lyne. O menino foi visto pela última vez no mercado da cidade, à tardinha. A polícia de Lancashire ainda não conseguiu localizar uma única pista de seu paradeiro.
Pauline Reade, 16 anos, iria a um baile quando saiu da casa de sua família em Gorton, Manchester, no mês de julho. A garota não voltou para casa e, como nos casos de John e Alison, a polícia não tem idéia do que lhe aconteceu.
Um policial veterano de Derbyshire disse: "Neste ponto, não descartamos nenhuma possibilidade.
Não descobrimos uma razão para o desaparecimento de Alison. Ela não tinha problemas nem em casa nem na escola."
"Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu e estamos muito preocupados, até mesmo em virtude do mau tempo que estamos enfrentando."
Um investigador da polícia de Manchester disse ao Daily News: "É claro que esperamos que Alison seja encontrada rapidamente. Contudo, dividiríamos os frutos de nossas investigações de bom grado com a polícia de Derbyshire, se este caso se prolongar."
- Malditos jornalistas - queixou-se George. - Distorcem tudo que dizemos. Onde está aquilo que eu disse, de que existem mais diferenças que semelhanças entre os casos? Eu bem poderia ter ficado de boca fechada. Este Don Smart só escreve o que quer, sem a mínima consideração pela verdade.
- O mesmo acontece em toda a imprensa de Londres - disse Lucas, amargo. - Os rapazes daqui mantêm-se fiéis à verdade, porque precisam recorrer a nós semana após semana para suas matérias, mas essa turma da cidade grande não dá a mínima se nos perturbam ou não. - Ele suspirou. - Estava à minha procura, senhor?
- Só queria lhe pedir para transmitir algo à equipe do turno do dia. Acho que é hora de localizarmos quaisquer pessoas envolvidas com crimes sexuais na área e interrogá-las.
- Em toda a divisão, senhor? - Lucas parecia chateado.
Às vezes, pensou George, dava para entender exatamente por que alguns policiais permaneciam presos dentro de suas fardas até se aposentarem.
- Acho que nos concentraremos na área imediata em torno de Scardale. Talvez num raio de oito quilômetros, estendendo-se um pouco mais do lado norte, para incluir Buxton.
- Vagabundos vêm de todos os lados - disse Lucas. - Não há garantia de que nosso homem não tenha vindo de Manchester ou Sheffield, ou até mesmo de Stoke.
- Eu sei, sargento, mas temos de começar por algum lugar. - George afastou sua cadeira da mesa e levantou-se. - Vou a Scardale. Acho que ficarei lá o dia inteiro.
- O senhor já soube do Land Rover? - perguntou Lucas, em tom neutro e expressão convencida.
- Land Rover?
- Seus homens conseguiram duas testemunhas em Longnor ontem à noite. Eles viram um Land Rover estacionado perto da entrada para Scardale mais ou menos na hora em que a jovem Alison saiu de casa.
O rosto de George iluminou-se.
- Mas esta notícia é fantástica!
- Não de todo. Estava escuro e as testemunhas não puderam dar nenhuma descrição, exceto de que o veículo era um Land Rover.
- Mas conseguiremos marcas dos pneus. Já é um começo - disse George, esquecendo-se de sua irritação com Lucas e com o Daily News em sua animação.
Lucas balançou a cabeça.
- Infelizmente não, senhor. O lugar onde o Land Rover esteve no dia do desaparecimento é o mesmo em que estacionamos nossas viaturas durante todo o dia e a noite de ontem. Ao lado da capela metodista.
- Que merda - disse George.
Tommy Clough bebericava uma caneca de chá e fumava devagar quando George chegou ao centro de operações.
- Bom-dia, senhor - disse ele, sem se dar ao trabalho de se levantar.
- Ainda aqui? - perguntou George. - Pode ir embora agora, se quiser. Deve estar exausto.
- Não estou pior do que o senhor estava ontem. Se for possível, eu gostaria de ficar. É meu último dia no turno da noite, de modo que gostaria de me acostumar a ir para a cama no horário certo. Eu poderia ajudar, se for preciso interrogar os moradores daqui. Já vi a maior parte deles e já recolhi uma boa parte de suas histórias.
George pensou por um momento. O rosto normalmente avermelhado de Clough estava mais pálido que o habitual, a pele em torno de seus olhos parecia inchada, mas os olhos permaneciam alertas e o homem possuía um conhecimento sobre o local que lhe faltava. Além disso, já era hora de estabelecer uma parceria de trabalho um pouco mais profunda com um de seus três sargentos.
- Tudo bem, mas se você começar a bocejar quando alguma velhinha decidir lhe contar a história de sua vida, irá direto para casa.
- Ótimo, senhor. Por onde quer começar?
George foi até uma das mesas e puxou um bloco de papel, dizendo:
- Um mapa. Quem mora onde e quem é quem. É por onde quero começar.
George coçou a cabeça.
- Suponho que você não conhece os laços de parentesco entre todos? - perguntou, fitando o mapa que Tommy Clough desenhara.
- Não - confessou. - Além do óbvio, como o fato de Charlie ser o caçula de Terry e Diane. Mike Lomas é o filho mais velho de Robert e Christine. Temos também Jack, que mora com eles, e o casal tem duas filhas: Denise, casada com Brian Carter, e Angela, casada com um chacareiro lá para os lados de Three Shires Head.
- Já chega - gemeu George, levantando a mão. - Uma vez que você demonstra um talento natural para isto, está encarregado da genealogia de Scardale. Lembre-me sempre da casa em que moram e quem são, quando eu precisar. Neste momento, tudo o que quero saber é onde Alison se encaixa aí.
Tommy lançou os olhos para cima, como se tentasse imaginar a árvore da família.
- Muito bem, esqueça os primos em primeiro, segundo ou terceiro graus. É melhor ficarmos apenas com o parentesco mais imediato. De algum modo, Mamãe Lomas é bisavó da menina. O pai, Roy Carter, era irmão de David e de Ray. Pelo lado da mãe, ela era uma Crowther. Ruth é irmã de Daniel e também da esposa de Terry Lomas, Diane. - Clough apontou para as casas relevantes no mapa. - Mas todos estão unidos por algum laço de parentesco.
- Mas de vez em quando deve haver sangue novo! - protestou George. - De outro modo, todos seriam idiotas e retardados!
- Realmente, temos um ou dois "estrangeiros" para diluir essa mistura. Cathleen Lomas, esposa de Jack, veio de Longnor. E John Lomas casou-se com uma mulher lá dos lados de Bakewell. Durou o suficiente para que ela tivesse Amy, antes de se mandar para algum lugar onde pudesse assistir a Coronation Street e sair para um drinque sem precisar de todo um planejamento logístico para isso. E, é claro, temos Philip Hawkin.
- Sim, não devemos esquecer o senhor das terras - disse George, pensativo. Suspirou e levantou-se. - Talvez fosse útil descobrir um pouco mais sobre ele. Ele veio de St. Albans, não é? - Pegou seu bloco de anotações e escreveu um lembrete. - Não me deixe esquecer de investigar isto. venha, Tommy. Vamos dar mais uma espiada em Scardale.
nan Carter limpou as tetas da próxima vaca na fila e, com surpreendente Sentileza, fixou a máquina de ordenha em seu úbere. Ainda faltavam algumas horas para raiar o dia quando ele deixou a cama quente que dividia com sua nova esposa, Denise, na Casa da Ribanceira, a construção de dois quartos, onde Alison Carter nascera em uma noite chuvosa de 1950. Marchando pela aldeia silenciosa com seu pai, não pudera evitar o pensamento amargo de que o desaparecimento de sua prima já mudara seu mundo.
Sua vida sempre havia sido simples e descomplicada. Em Scardale, eram todos muito unidos e contavam apenas uns com os outros. Habituara-se a ser xingado na escola e, mais tarde, nos bares, quando os freqüentadores já haviam enchido a cara. Conhecia todas as velhas e cansativas piadas sobre casamentos com parentes e rituais secretos de magia negra, mas aprendera a ignorá-las e a seguir com sua vida.
Durante o dia, trabalhava-se na terra em Scardale, e, quando não havia mais luz, ainda estavam ocupados. As mulheres fiavam lã, tricotavam ceroulas, faziam xales de crochê, cobertores e roupinhas de bebês, conservas e molhos picantes, coisas que poderiam vender no mercado da Cooperativa das Mulheres, em Buxton.
Os homens faziam reparos dentro e fora dos prédios. Também trabalhavam com madeira. Terry Lomas fazia belas tigelas de madeira torneada, elegantes e lustrosas, com espessura escolhida de acordo com a complexidade dos padrões. Ele as enviava para um centro de artesanato em Londres, onde eram vendidas por somas que pareciam absurdas para todos os outros moradores da aldeia. O pai de Brian, David, confeccionava brinquedos de madeira para uma loja de Leek. Não teriam tempo para loucos rituais pagãos sobre os quais os beberrões ingênuos especulavam nos bares de Buxton, mesmo supondo que qualquer um se interessasse por tais atividades. A verdade era que, em Scardale, todos trabalhavam demais para ter tempo para qualquer coisa exceto comer e dormir.
Havia pouca necessidade de contato com o mundo externo, em termos do dia-a-dia. A maior parte do que consumiam era produzida ali mesmo - carne, batatas, leite, algumas frutas e alguns vegetais. Mamãe Lomas fazia vinho de flor e bagas de sabugueiro, de urtiga, dentes-de-leão, de seiva de vidoeiro, ruibarbo, groselha e tojo. Se algo crescia, ela fermentava. Todos bebiam, e até as crianças recebiam uma taça de vez em quando, para fins medicinais. Às terças-feiras, aparecia sempre uma caminhoneta trazendo neixes e verduras. Outra caminhoneta vinha de Leek às quintas-feiras, vendendo alimentos em geral. Qualquer outra coisa necessária era comprada no mercado de Leek ou em Buxton, por qualquer um que fosse até lá vender seus produtos ou animais.
Tivera dificuldade com a transição enfrentada ao deixar de ir à escola, quando saía do vale cinco dias por semana, e se tornar um adulto, trabalhando na terra e às vezes permanecendo em Scardale um mês inteiro. Não havia sequer televisão para perturbar o ritmo da vida. Ele se lembrou de quando o velho senhor Castleton voltou de Buxton com um aparelho de TV que havia comprado para a Coroação. Seu pai e seu tio Roy montaram a antena e toda a aldeia se reunira na sala do dono do solar. Com um floreio, o velho ligara o aparelho e todos haviam assistido, abestalhados, a uma tempestade de chuviscos. Por mais que David e Roy mexessem na antena, tudo o que aquela coisa fazia era chiar como gordura jogada ao fogo, e tudo o que viam era interferência. O único tipo de interferência que qualquer um em Scardale já conseguira suportar.
Tudo mudara. Alison desaparecera e, de repente, suas vidas pareciam pertencer a todos. A polícia, os jornais, todos queriam respostas para suas perguntas, fossem ou não de sua conta. E Brian sentia-se como se não tivesse defesas naturais contra tal invasão. Sentia vontade de agredir alguém, mas não havia ninguém à mão.
Ainda estava escuro quando George e Clough chegaram aos limites da aldeia. A primeira luz que viram vinha de uma porta de estábulo entreaberta.
- Podemos começar por aqui - disse George, estacionando na beira da estrada. - Quem será que encontraremos? - perguntou, enquanto percorriam os poucos metros de concreto enlameado até a porta.
- Provavelmente Brian e David Carter - disse Clough. - Os dois criam gado.
Os dois homens no estábulo não puderam ouvir sua aproximação, em Virtude do ruído pesado da máquina de ordenhar. George esperou que eles se voltassem, assimilando os odores estranhamente doces de estérco, animais suados e leite, observando enquanto os homens lavavam as tetas de cada vaca antes de fixarem a ordenhadeira a seus úberes. Finalmente, o mais velho voltou-se. A primeira impressão de George foi de que os olhos vigilantes de Ruth Hawkin haviam sido transplantados para uma estátua da Ilha de Páscoa. O rosto do homem era cheio de planos e ângulos, com bochechas como lajes e órbitas como entalhes em cera rosada.
- Alguma novidade? - perguntou ele em voz alta, para ser ouvido sobre o ruído da máquina.
George negou com a cabeça.
- Vim para me apresentar. Sou o detetive-inspetor George Bennett. Estou no comando da investigação.
Enquanto caminhava na direção do homem mais velho, o mais jovem parou o que estava fazendo e encostou-se nas ancas volumosas de uma das vacas holandesas com braços cruzados junto ao peito.
- Sou David Carter - disse o homem mais velho. - Tio de Alison. E este é meu filho Brian. - Brian Carter balançou a cabeça num cumprimento curto. Tinha o rosto do pai, mas seus olhos eram estreitos e claros, como cacos de topázio. Não teria muito mais que vinte anos, mas a boca voltada para baixo parecia ter sido talhada em pedra.
- Eu queria dizer que estamos empenhados em descobrir o que aconteceu com Alison - falou George.
- Mas ainda não a encontraram, não é? - perguntou Brian, em tom tão duro quanto sua expressão.
- Não. Tão logo amanheça, recomeçaremos as buscas, e se vocês quiserem colaborar conosco serão bem-vindos. Entretanto, não é por isto que estou aqui. Não posso evitar o pensamento de que a resposta para o que aconteceu com Alison está em algum lugar de sua vida. Não acredito que a pessoa que fez isso agiu irrefletidamente. Foi planejado, e isto significa que alguém deixou alguma pista. Quer vocês saibam ou não, alguém nesta aldeia viu algo, ou ouviu algo, que nos dará um rumo. Vou conversar com o povo da aldeia hoje e direi o mesmo a todos que encontrar. Preciso que tentem recordar qualquer coisa fora do comum, como, por exemplo, se viram algum estranho por aqui.
Brian fungou, parecendo-se surpreendentemente com uma de suas vacas.
- Se vocês procuram por algum estranho, não precisam ir muito longe.
- Em quem você está pensando? - perguntou George.
- Brian - alertou o pai.
Brian fez uma carranca e remexeu no bolso do macacão em busca de cigarros.
- Pai, ele não é daqui. Nunca será.
- De quem estamos falando? - insistiu George.
- De Philip Hawkin, ora! - resmungou Brian, com a boca cheia de fumaça. Levantou a cabeça e olhou desafiador para a parte posterior da cabeça do pai.
- Você não está sugerindo que o padrasto de Alison teve algo a ver com o desaparecimento, está? - perguntou Clough, com uma ponta de desafio em sua voz que, na opinião de George, Brian Carter consideraria irresistível.
- Você não perguntou isso. Perguntou sobre forasteiros. Bem, ele não é daqui. Desde que apareceu só tem se intrometido em tudo, tentando dizer-nos como cuidar de nossa terra, como se ele fizesse isso há gerações. Ele acha que é especialista, só porque leu algum livro ou panfleto. E o modo como cortejou minha tia Ruth. Não a deixava em paz. O jeito foi casar com ele para acabar com a perseguição - desabafou Brian.
- Achei que não se importava - disse o pai, sarcástico. - Se Ruth e Alison não tivessem saído da Casa da Ribanceira, você e Denise teriam de começar suas vidas de casados em seu quarto de solteiro. Não sei quanto a você, mas estou contente por não ouvir a cabeceira batendo na parede quase a noite inteira.
Brian ruborizou-se e olhou furioso para o pai.
- Deixe Denise fora disso. Estávamos falando sobre Hawkin. E você sabe tão bem quanto eu que o lugar dele não é aqui. Não aja como se não Passasse metade de cada dia resmungando sobre o inútil que ele é e como desejaria que o antigo proprietário tivesse mais juízo e não deixasse a terra Para um forasteiro como Hawkin.
- Isso não significa que o homem teve algo a ver com o sumiço de Alison - falou David Carter, esfregando o queixo em um gesto claramente
familiar de exasperação.
- Seu pai tem razão - disse George, com suavidade.
8
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 12h45
Quatro horas depois, George achava que havia visto todas as evidências de hereditariedade que precisaria durante toda sua vida. Os sobrenomes podiam variar, de acordo com linhas genealógicas rígidas, mas as características físicas pareciam espalhadas aleatoriamente. A face de laje de David Carter, o nariz aquilino de Mamãe Lomas, os olhos felinos de Janet Carter repetiam-se em várias combinações, juntamente com outros traços igualmente distintivos. George sentia-se como uma criança brincando com um daqueles livros nos quais as páginas são divididas horizontalmente e o leitor mistura e combina olhos, narizes e bocas.
O que o povo de Scardale também tinha em comum era sua confusão completa acerca do desaparecimento de Alison. Como Clough já previra, poucos se dispunham a oferecer até mesmo o pouco que Brian Carter lhes dera. A maior parte das conversas era um esforço inútil. George apresentava-se e proferia seu pequeno discurso. Os moradores pareciam pensativos e então sacudiam as cabeças. Não, nada de incomum acontecera. Não, não haviam visto nenhum estranho. Achavam que ninguém do vilarejo tocaria em um fio de cabelo de Alison. E por falar nisso, Charlie Lomas era um menino bom como nenhum outro e não merecia ser tratado como um criminoso.
O único ponto de interesse era que ninguém apontara o dedo para o Proprietário das terras. Nem uma palavra de queixa foi dita sobre o homem, nenhuma voz levantou-se contra ele. A verdade é que ninguém o elogiava, mas, no fim da manhã, seria tentador pensar que Brian Carter era a única pessoa em Scardale que encontrava motivos para criticar Philip Hawkin.
Finalmente, George e Clough voltaram de mãos vazias para o trailer, onde só encontraram uma policial que saltou para preparar-lhes chá tão logo entraram.
- Você estava errado.
- Perdão? - Clough abriu seu maço de cigarros e retirou um para George sem se dar ao trabalho de perguntar se ele queria.
- Você disse que ouviríamos muitas reclamações contra Hawkin, mas ninguém o criticou, a não ser Brian Carter, aquele jovem esquentado.
Clough pensou por um momento, com uma ruga franzindo sua testa ampla como a superfície de um pudim de caramelo.
- Talvez por isso mesmo. Ele é jovem o bastante para pensar que, em um caso como esse, o fato de Hawkin ser um forasteiro é importante. Os outros têm juízo suficiente para compreender que há muita diferença entre não gostar de alguém porque ele quer lhe ensinar como cuidar da terra e suspeitar que raptou uma criança.
George tomou um gole de seu chá, com cuidado. Não tão quente a ponto de escaldá-lo. Bebeu metade da xícara para aliviar a garganta seca; independentemente de qualquer outra característica, o povo de Scardale não era generoso com suas bebidas quentes. Haviam chegado à cozinha de Diane Lomas enquanto ela saboreava um bule de chá, sentada à mesa, e em nenhum momento a mulher lhes ofereceu uma xícara.
- Talvez, mas não quero me esquecer de que esta é uma comunidade bastante unida. O tipo de lugar em que pensam que linchamento é o melhor modo de lidar com suas dificuldades. Pode ser que achem que Hawkin está por trás disso e somos estúpidos demais para o pegarmos. Acontece que podem achar que o melhor modo de lidar com ele é esperar até desistirmos de Alison e irmos embora. Então acontece um acidente horrível na fazenda e adeus, senhor Hawkin. Isto me traz dois problemas. O primeiro é que não há razão, exceto pelo preconceito, para suspeitarmos que Philip Hawkin teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. O segundo é que não quero o sangue dele em minhas mãos, esteja ou não envolvido.
Clough parecia respeitosamente cético:
- Se o senhor não fosse meu chefe, eu diria que está assistindo a muita televisão, mas conhecendo-o um pouco, eu diria que esta idéia é interessante.
George lançou-lhe um olhar duro.
- É uma idéia que manteremos em mente, sargento - foi tudo o que disse. Levantou sua caneca para mostrá-la à policial. - Tem mais um pouco?
Antes que ela pudesse servi-lo novamente, a porta se abriu e Peter Grundy entrou. O policial de Longnor balançou a cabeça, satisfeito, ao dizer:
- Achei que estaria aqui. Há uma mensagem do inspetor-chefe Carver. Poderia ligar para ele em Buxton, com a máxima urgência?
George levantou-se, pegando o chá. Engoliu a maior parte dele em segundos e fez um sinal para Clough.
- Podemos ir até o centro de operações - disse, rumando para seu carro.
De repente, a porta de um Ford Anglia abriu-se em seu caminho e a cabeça ruiva de Don Smart projetou-se.
- Bom-dia, inspetor - disse, animado. - Ainda nada? Algo a relatar? Eu esperava vê-lo na coletiva das dez da manhã, como você disse ontem, mas é claro que teve coisa melhor a fazer.
- Isso mesmo - disse George, desviando-se da porta do carro. - Os policiais com quem você falou em Buxton esta manhã estavam plenamente atualizados sobre a situação.
- Leu nossa matéria?
- Estou no meio de uma grande investigação, senhor Smart. Se deseja algum comentário da polícia de Derbyshire, terá de seguir os canais apropriados. Agora, se me der licença...
O sorriso de predador de Smart apareceu.
- Se não deseja considerar com seriedade minha sugestão sobre a ligação com os outros casos... Já pensou em contratar um vidente?
George franziu a testa.
- Vidente?
- Um vidente poderia apontar-lhe a direção certa. Concentrá-lo em um rumo, em vez de terem de espalhar tanto suas buscas.
George sacudiu a cabeça, perplexo.
Eu lido com fatos, senhor Smart, não com manchetes de jornal. - We deu alguns passos rápidos, afastando-se do jornalista, e então se voltou para ele outra vez. - Se realmente deseja fazer algo por Alison Carter, em vez de por sua própria carreira, por que não imprime uma fotografia dela?
- Devo entender que não descobriram nada de novo? - perguntou Smart a Clough, enquanto George seguia para seu carro.
- Por que não some daqui e volta para Manchester? - sugeriu Clough, em voz baixa, mas firme, o rosto franco e sorridente. Sem esperar para ver o efeito de suas palavras, ele seguiu George.
- Só porque se chama Smart,
ele pensa que é esperto - disse George, amargamente, enquanto o carro seguia pelo vale. - Isso me enoja, porque não é uma oportunidade para subir na carreira. O que está em risco aqui é a vida de uma menina.
- Ele nem mesmo pensa nisso. Se pensasse, nunca conseguiria escrever a matéria - observou Clough.
- Seria melhor para todos - disse George. Ainda estava tenso de irritação quando entrou no salão da igreja metodista e seguiu direto para a mesa mais próxima com um telefone. Inclinou-se sobre o policial que o usava, batendo a ponta de um Gold Leaf apagado contra o maço. O policial deu-lhe uma rápida olhada e o branco de seus olhos traiu seu nervosismo.
- Isso é tudo, senhora, muito obrigado - balbuciou ele, levando a mão ao gancho para cortar a chamada mesmo antes de terminar de falar. - Aqui está, senhor - acrescentou, estendendo o telefone para George com apreensão.
- Aqui é o detetive-inspetor Bennett para o inspetor-chefe Carver - disse George, rapidamente.
Houve uma pausa e, então, ouviu o sotaque anasalado e interiorano de seu chefe:
- Bennett? É você?
- Sim, sou eu. Recebi o recado de que o senhor queria falar comigo.
- Demoraram para chamá-lo - reclamou Carver. George já havia descoberto que, após quase trinta anos como policial civil, Carver elevara a queixa a uma forma de arte. George passara seu primeiro mês em Buxton pedindo desculpas e seu segundo mês apaziguando. Depois, percebera
Início de Nota de Rodapé: Smart, em inglês, significa "esperto". Fim da Nota de Rodapé.
como todos lidavam com as queixas de Carver e também aprendeu a ignorá-las.
- Houve algo novo, senhor?
- Você deixou instruções para a turma do dia com o sargento Lucas -
acusou-o Carver.
- Sim, deixei.
- Cercar os suspeitos habituais geralmente é perda de tempo para todos os envolvidos.
George aguardou, calado. A raiva de seu encontro com Smart estava represada por trás de uma parede de imperturbabilidade profissional, mas, graças às reclamações de Carver, o peso de sua fúria chegava a um ponto crítico. A última coisa que precisava em sua carreira era que sua raiva explodisse sobre a cabeça de Carver, por isso respirou fundo, liberando lentamente o ar pelo nariz.
- Desta vez, porém, talvez tenhamos conseguido alguma coisa - continuou Carver. As palavras mal-humoradas vieram com lentidão enervante. Parecia que seu chefe teria preferido um fracasso, pensou George, com amargura incrédula.
- É mesmo, senhor?
- Acontece que temos um suspeito. Exposição indecente para jovens garotas. Roubo de roupas íntimas de varais. Nada muito terrível e nada muito recente - acrescentou Carver, em um parêntese insatisfeito. - Contudo, o interessante sobre este idiota em particular é que é tio de Alison Carter.
A boca de George abriu-se.
- Tio? - conseguiu dizer, após um momento.
- Peter Crowther.
George engoliu com força. Nem mesmo sabia que existia um Peter Crowther.
- Posso comparecer ao interrogatório, senhor?
- E por que acha que liguei? Estou sofrendo como um cão com este tornozelo. Além disso, não creio que vá causar grande impressão em Crowther se entrar como um saci-pererê. Faça o favor de vir imediatamente.
- Sim, senhor.
- Outra coisa, Bennett.
- Sim?
- Traga-me peixe e batatas fritas, sim? Não agüento mais a comida da cantina. Dá uma bruta indigestão.
George desligou, sacudindo a cabeça. Acendeu um cigarro, olhando com o canto dos olhos a sala quase às suas costas. Clough estava encostado negligentemente em uma mesa, examinando um dos mapas fixados na parede. Grundy hesitava perto da porta, incerto quanto a ir ou ficar. Então, chamou-os, através da fumaça em sua boca:
- Clough, Grundy. Pro carro, agora. Vamos a Buxton.
As portas mal haviam se fechado quando George voltou-se em seu banco, olhou fixamente para Grundy e disse:
- Peter Crowther.
- Peter Crowther, senhor? - Grundy tentava fingir inocência, mas os olhos nervosos o traíam.
- Sim, Grundy. O tio de Alison, aquele com passagem pela polícia por atentado ao pudor. Esse Peter Crowther - falou George, com sarcasmo, pisando fundo no acelerador e os empurrando contra os assentos com o impulso, enquanto corria pela estrada, rumo a Longnor.
- O que tem ele, senhor?
- Como é que só ouço falar sobre o homem quando meu chefe o menciona? Como é que com todo seu conhecimento sobre o povo daqui você não me falou dele? - o sarcasmo fora abandonado e a voz de George tinha a gentileza aduladora de um professor sádico que tranqüiliza seus alunos incautos com uma falsa segurança, antes de lhes cortar os joelhos.
- Achei que não era relevante. Quer dizer, ele mora em Buxton, acho que há mais de vinte anos. Nem me passou pela cabeça - falou Grundy, com as orelhas vermelhas.
- Por isso você ainda é um simples policial, Grundy - disse Clough, virando-se em seu assento e dando ao homem o olhar insolente e duro que já levara um número perturbador de prisioneiros à violência, mais que duplicando as sentenças por seus crimes originais. - Você não pensa.
- Isso é verdade, Clough, mas não é preciso ter um cérebro para ficar marcando tempo no meio de uma rua na cidade de Derby durante anos - disse George, com o tom mais angelical que encontrou. - Policiaizinhos de aldeias, porém, deveriam ser capazes de pensar sozinhos. Grundy, a menos que você realmente deseje ser designado para um outro trabalho, sugiro que use os quilômetros que faltam até Buxton para nos contar tudo que sabe sobre Peter Crowther.
Grundy esfregou uma sobrancelha com a junta do dedo indicador.
- Peter Crowther é irmão de Ruth Hawkin - disse, como um homem que precisa pensar em um difícil problema de aritmética. - Diane é a mais velha, e se casou com Terry Lomas. Depois vem Peter, depois Daniel e, finalmente, Ruth. Peter deve ser uns dez anos mais velho que Ruth. Acho que anda pelos quarenta e cinco anos. Nunca o conheci realmente, já que saiu de Scardale bem antes de eu me tornar o policial encarregado da aldeia em Longnor, mas já ouvi falar dele. Parece que não é boa coisa. Seu irmão Daniel o mantinha na linha quando Peter ainda morava em Scardale, mas algo aconteceu... Não sei o quê, ninguém fora de Scardale sabe, e eles decidiram que não o queriam mais na aldeia. Assim, o despacharam para Buxton. Ele mora em um hotel para solteiros perto do campo de golfe, em Waterswallows, e trabalha naquela oficina para deficientes atrás do pátio da estrada de ferro, aquela que faz abajures e cestos para papel. Eu sabia que ele já havia sido preso por espiar mocinhas, mas achei que isso era passado.
George suspirou pesadamente.
- Você sabia tudo isto sobre Peter Crowther e nunca lhe passou pela cabeça mencionar?
Grundy mudou seu peso de uma nádega para a outra.
- Vocês entenderão quando o virem. O sujeito tem medo da própria sombra. Acho que não seria capaz de abordar ninguém, menos ainda raptar uma menina.
- Mas ele não teria de levá-la à força, não é? - interveio Clough, com sarcasmo cortante e gelo nos olhos azuis. - Ele era tio de Alison. Ela não teria medo. Se ele dissesse "Ei, querida, tenho um par de patins que lhe servem, quer vir experimentá-los?", ela não teria pensado duas vezes antes de acompanhá-lo. Tio Peter podia ser um pouquinho estranho, mas não era um desconhecido, não é, policial Grundy? - ele conseguiu fazer com que o Posto do outro soasse como um insulto.
- Crowther não teria coragem - teimou Grundy. - Além disso, quando eu disse que não o queriam no vale, falei sério. Tanto quanto eu saiba, Peter Crowther não voltou a Scardale nesses últimos vinte anos. E ninguém de Scardale o visita. Duvido que pudesse reconhecer Alison se passasse por ela na rua.
- Veremos - resmungou Clough, com expressão tão tensa quanto os olhos, estreitados pela fumaça de seu cigarro.
Janet Carter pediu e suplicou para não ir à escola logo após o desaparecimento de Alison. Seria melhor ter poupado seu fôlego. Em 1963, não se permitia que crianças tivessem vontades. Os adultos lhes contavam todo tipo de histórias, pensando que assim as protegeriam. O pior crime, na mente adulta, era a perturbação da rotina, já que nada serviria como um sinal melhor para a geração mais jovem de que algo estava muito errado. Assim, o mundo podia estar prestes a terminar no vale, mas Janet e seus primos ainda teriam de ser levados até o fim da estrada e mandados à escola, como se fosse um dia como outro qualquer.
Contudo, ao chegar à escola na manhã seguinte ao desaparecimento de Alison, as coisas revelaram-se inesperadamente excitantes. Para começo de conversa, Janet tornou-se o centro das atenções. Todos sabiam que sua prima havia desaparecido. Policiais entrevistavam colegas e professores de Alison. Havia apenas um assunto nas conversas durante o intervalo, e Janet vivera de perto os acontecimentos. De certo modo, portanto, tornara-se uma celebridade. Isto foi o bastante para fazê-la esquecer-se do terror que a mantivera acordada metade da noite, imaginando onde Alison estaria e o que lhe havia acontecido.
Havia uma espécie deliciosa de medo no ar, a sensação de que algo proibido acontecera, algo cuja importância nenhuma das crianças poderia compreender. Mesmo aquelas que viviam em fazendas. Elas sabiam o que os animais faziam, mas pareciam ainda não ter extrapolado aquilo para a espécie humana. Naturalmente, já tinham ouvido falar que alguém "mexera" com uma menina, mas ninguém sabia o que isto significava exatamente, exceto que tinha algo a ver com "lá embaixo" e com o tipo de coisa que acontecia se uma garota deixasse o menino "ir longe demais". Apesar disso, ninguém ali tinha a mínima idéia do quanto seria "longe demais".
Portanto, a atmosfera na escola Peak Girls
High tornou-se altamente carregada quando Alison Carter desapareceu. Embora a maioria de suas colegas também estivesse assustada, ansiosa e quase tão abalada quanto a própria Janet, algo nelas agitava-se de um modo agradável, ainda que soubessem que não deveriam sentir-se assim. Com todas essas emoções, quinta e sexta-feira haviam sido dias extremamente cansativos na escola. Quando a campainha anunciou o fim das aulas, tudo em que Janet podia pensar era em chegar em casa e deixar que a mãe a mimasse com uma xícara de chá.
Assim, ela tinha pouca reserva de energia para o choque recebido ao entrar no ônibus escolar. O motorista estava contando que o tio de Alison estava na delegacia, sendo interrogado. A reação de Janet foi imediata. De repente, pareceu encerrar-se em si mesma. Estava sentada no primeiro banco, onde sempre sentara-se com Alison, tão perto do motorista quanto se podia estar.
- Que tio? - perguntou Derek.
O motorista tentou fazer o tipo de piada costumeira sobre o parentesco de todos em Scardale, mas percebeu que Janet não estava no clima para aquilo. Disse apenas:
- Peter Crowther. Janet franziu a testa.
- Deve ser algum outro Crowther, não alguém de Scardale. Alison não tem um tio chamado Peter.
- Bom, isso é o que vocês pensam - disse ele, piscando um olho. - Peter Crowther é o irmão maluco da mãe de Alison. Aquele que foi expulso de Scardale.
Janet olhou para Derek. que encolheu os ombros, tão perplexo e confuso quanto ela. Nunca havia escutado uma palavra sequer sobre um segundo irmão Crowther. Seu nor.e nunca fora mencionado.
Durante todo o trajeto até o começo da estrada para Scardale, o motorista continuou falando sobre Peter Crowther, contando que o homem vivia em um albergue e trabalhava em uma oficina para pessoas que não estavam ainda suficientemente loucas para serem trancadas em um hospício. Disse-lhes que ele parecia ter algum segredo horrível em seu passado e que, agora, a polícia achava que dera um fim a Alison. Janet concentrou-se na parte de trás do pescoço grosso e vermelho do motorista, desejando que ele morresse.
Porém, mais que isso, desejava saber a verdade. Seu pai esperava-os no começo da estrada havia dez minutos. Ninguém mais em Scardale estava disposto a dar chances ao azar. A primeira coisa que Janet disse quando a porta do ônibus fechou-se às suas costas foi:
- Pai, quem é Peter Crowther? E o que ele fez?
Ray Carter, sendo um homem honesto, contou-lhe. E então a menina desejou que não tivesse contado.
Pelo menos sobre uma coisa Grundy estava certo, pensou George, encostado na parede da sala de interrogatório. Peter Crowther tinha medo da própria sombra. E da sombra de qualquer outra pessoa. A primeira coisa a surpreendê-lo quando o homem entrou na sala abafada foi o odor pungente de seu medo, um cheiro bastante diferente do fedor azedo de seu corpo magro e imundo.
- Vamos fumar um cigarro atrás do outro - havia murmurado Clough, com o nariz franzido ao enfrentar a emanação fétida de Peter Crowther.
- O quê? - resmungara George em resposta, enquanto permaneciam na soleira da porta, medindo deliberadamente o homem com seus olhares, para meter-lhe ainda mais medo.
- Precisamos fumar um cigarro atrás do outro. Se não, acabaremos vomitando - esclareceu Clough.
George assentiu.
- Comece - disse ele, movendo-se para colocar-se contra a parede e permitir que Clough se ajeitasse na cadeira de frente para Crowther. George fez um sinal de cabeça para a porta e o policial fardado que estivera de guarda saiu, com um olhar de alívio.
- Tudo bem, Peter? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente e apoiando-se nos cotovelos.
Peter Crowther pareceu encolher-se ainda mais para dentro de si mesmo. Sua cabeça tinha a cor e o formato de uma cunha de queijo pairylea - decidiu George. Queijo Dairylea com agrião germinando em cima. Estranhou que o homem parecesse tão oleosamente pálido e fedesse tanto. Não parecia realmente sujo. Seu queixo pontudo e bem barbeado estava quase enfiado em seu tórax e seus olhos de gato voltavam-se para Clough. O homem poderia ter servido como a definição ilustrada de "submissão". Não respondeu nada à pergunta de Clough, embora seus lábios se movessem, formando palavras silenciosas.
- Mais cedo ou mais tarde você terá de falar comigo, Peter - disse Clough, confiante, levando a mão ao bolso e tirando seus cigarros dali. Acendeu um e, de modo casual, soprou a fumaça na direção de Peter Crowther, que franziu o nariz e inalou profundamente, enquanto ele continuava: - Melhor que seja mais cedo. Portanto, conte-nos: o que o levou a voltar a Scardale quarta-feira?
Crowther enrugou a testa, parecendo verdadeiramente confuso. Qualquer que fosse o motivo para sentir-se culpado, não parecia envolver Scardale.
- Peter nunca - disse ele, com a entonação ascendente indicando dúvida, em vez da bazófia do verdadeiro culpado. - Peter mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17. Peter não mora mais em Scardale.
- Sabemos disso, Peter. Mas você voltou a Scardale quarta-feira à noite. Não há por que negar, já que sabemos que esteve lá.
Crowther tremeu.
- Peter nunca. - Desta vez, a voz soou firme. - Peter não pode voltar a Scardale. Não deixam. Ele mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17.
- Quem disse que não deixam?
- Nosso Dan. Ele diz que corta as mãos de Peter se Peter colocar os pés em Scardale outra vez. Então Peter não vai lá, entende? Será que Peter Poderia fumar?
- Em um minuto - disse Clough, soprando negligentemente mais fumaça em sua direção. - E quanto a Alison? Quando foi a última vez que a viu?
Crowther levantou os olhos, com expressão perturbada e confusa.
- Alison? Peter não conhece nenhuma Alison. Há uma Ângela que trabalha ao lado dele e coloca as franjas nos abajures. É Ângela que o senhor quer dizer? Peter gosta dela. Angela tem uma jaqueta de couro. Ela a tirou de seu irmão. Ele trabalha no curtume em Whaley Bridge. O irmão de Angela, quero dizer. Peter trabalha com Angela. Peter faz as armações dos abajures.
- Alison. Sua sobrinha Alison. Filha de sua irmã Ruth - disse Clough, com firmeza.
Ao som do nome da irmã, Crowther pareceu ter um espasmo. Seus joelhos ergueram-se na direção de seu peito e ele abraçou com força as pernas.
- Peter nunca. - Soluçou. - Peter nunca!
George moveu-se para a frente e encostou os punhos fechados na mesa.
- Você não sabia que Ruth tem uma filha? - perguntou, com gentileza.
- Peter nunca - repetiu Crowther, como um mantra.
George sinalizou discretamente para Clough, pedindo-lhe que fosse com calma. O sargento encostou-se na cadeira e dirigiu a fumaça para o teto. George tirou seus próprios cigarros do bolso, acendeu um e o estendeu para Crowther, que agora tremia inteiro e continuava a murmurar "Peter nunca. Peter nunca", levando alguns segundos para perceber a oferta. Então olhou com suspeita para o cigarro e, depois, para George. Com uma das mãos pegou o cigarro com a rapidez de uma serpente. Ele manteve o cigarro protegido dentro de sua mão, com a ponta presa entre o polegar e o indicador, como se esperasse que o roubassem. Inalou-o em rápidas baforadas, enquanto os olhos iam para lá e para cá, entre George, Clough e o cigarro.
- Quando foi a última vez que você falou com alguém de Scardale, Peter? - indagou George baixinho, sentando-se perto de Clough.
Crowther sacudiu os ombros, tenso.
- Não sei. Às vezes, Peter vê um parente no mercado, aos sábados, mas os parentes não falam com Peter. Uma vez, no verão, Peter estava na papelaria, comprando cigarros, e nossa Diane entrou. Ela cumprimentou com a cabeça, mas não disse nada. Acho que queria, mas sabia que, se fizesse isso, nosso Dan machucaria Peter. Dan sempre assusta Peter. Por isso Peter nunca volta a Scardale.
- E você não sabia mesmo que Ruth tinha uma filha? - perguntou Clough, o cético.
O rosto de Crowther contraiu-se em torno do cigarro, como se em um espasmo intenso.
- Peter nunca - gemeu. Inclinou-se para a frente sobre os joelhos e
começou a balançar-se. - Peter nunca.
George olhou para Clough e sacudiu a cabeça. Levantou-se e foi em direção à porta.
- Pediremos que alguém lhe traga uma xícara de chá, Peter - falou,
sendo seguido por Clough até o corredor. - Ele está escondendo algo - disse George, confiante.
- Talvez, mas acho que não tem nada a ver com Alison.
- Não estou tão certo. Não ousarei dizer nada até saber por que sua família o expulsou de Scardale. Seja qual for a razão, deve ter sido bem ruim, já que mesmo depois de vinte anos a irmã ainda não fala com ele, nem de passagem.
- Quer que fique detido, então? - perguntou Clough, incapaz de esconder a dúvida em sua voz.
- Ah, certamente. É o lugar mais seguro para ele, não acha? - disse George, voltando um pouco a cabeça, enquanto seguia para o escritório do departamento de investigações. - O inspetor-chefe Carver está convencido de que este é o nosso culpado, e apenas a minha opinião não o fará mudar de idéia. Além disso, uma delegacia nunca consegue manter segredos. Antes do fim do dia, metade da cidade saberá que Peter Crowther está sendo interrogado sobre o desaparecimento de Alison. Acho que o albergue Water-swallows número 17 não é o melhor lugar para ele nessas circunstâncias.
Ele empurrou a porta e contemplou o inspetor-chefe, que tinha a perna engessada apoiada em um cesto de papéis e o jornal à sua frente. Toda a sala ainda retinha o aroma inconfundível de peixe e batatas fritas encharcados com vinagre e embrulhados em jornal.
- Já conseguiram fazer com que dissesse onde a menina está? - perguntou Carver, autoritário.
- Acho que ele não sabe, senhor - disse George, esperando que sua voz não denunciasse seu abatimento.
Carver emitiu um ronco de desagrado.
- É isso que uma formação universitária faz por você? Inacreditável, - dou-lhes até amanhã de manhã para que façam aquele infeliz recitar tudinho o que desejamos. - Ele se controlou e indagou: - Ele ainda está na Cadeia, não está? Não o liberaram, por acaso...
- O senhor Crowther ainda está sob custódia.
- Bom. Vou para casa agora, está tudo em suas mãos. Se não extraírem a verdade do sujeito até de manhã, eu assumirei com pé engessado e tudo Ele acabará cuspindo uma confissão, acreditem. Cuspirá para mim.
- Tenho certeza que sim, senhor. Agora, se me dá licença, preciso voltar a Scardale. - George retirou-se antes que Carver pudesse oferecer algum outro insulto à sua capacidade profissional.
- Vamos mesmo? - perguntou Clough, seguindo George até o carro. - Voltar a Scardale?
- Preciso saber o que Peter Crowther fez - disse George. - Ele não nos contará, de modo que precisaremos perguntar a outros. Estou cansado dessa gente de Scardale que não nos diz o que precisamos saber.
9
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 16h05
George começava a pensar que sonharia com a estrada para Scardale pelo resto de sua vida. O carro mergulhou no desfiladeiro estreito ao entardecer de um dia lúgubre de inverno. Se o sol tinha aparecido através das nuvens e brumas do dia, ele certamente ignorara, pensou, diminuindo a velocidade enquanto aproximavam-se da praça da aldeia. Os homens estavam reunidos em torno do trailer policial, com o vapor de suas xícaras de chá unindo-se à névoa que envolvia o vale. As buscas infrutíferas do dia haviam terminado com o morrer da luz.
Ignorando-os, George cruzou a praça até a Casa do Outeiro. Já era hora de Mamãe Lomas parar de se comportar como uma personagem de um melodrama vitoriano e começar a assumir responsabilidade pelo que poderia acontecer com Alison se a matriarca e sua família continuassem de bico fechado - disse a si mesmo, resoluto. Enquanto contornava a pilha de lenha que quase bloqueava o caminho até a porta da frente, seu pé prendeu-se em algo e ele tropeçou. Apenas os reflexos rápidos de Clough, que agarrou seu braço, evitaram uma queda humilhante.
- Mas que diabos...? - exclamou George, readquirindo a compostura. Voltou-se e espiou através da escuridão crescente, vendo Charlie Lomas estirado de costas e gemendo em meio a toras de lenha espalhadas.
- Acho que você quebrou meu tornozelo! - queixou-se Charlie.
- Pelo amor de Deus, o que você estava fazendo aí? - cobrou-lhe George, friccionando com desagrado o ponto de seu braço onde os dedos
fortes de Clough haviam se enterrado nos músculos.
- Eu estava apenas sentado aqui, cuidando da minha vida, tentando ter cinco minutos de paz. Não é crime, é? - Charlie conseguiu sentar-se e esfregou o dorso de sua mão com força em seu rosto. Sob a luz que vinha da janela da casa, George percebeu que os olhos do jovem brilhavam com lágrimas presas. Não parecia capaz de raptar um gatinho, menos ainda uma adolescente.
- Pensando em Alison? - perguntou George, em tom gentil.
- É um pouco tarde para começar a me tratar como ser humano, senhor - disse Charlie, com os ombros encurvados em desafio. - Qual é o problema com vocês? Ela era minha prima. Minha família. Vocês não têm alguém com quem se preocupar, para considerarem tão estranho nosso abatimento?
As palavras de Charlie atiçaram a recordação de George. Ele aprendera desde cedo, em sua vida de policial, que não poderia fazer bem seu trabalho, a menos que suas preocupações pessoais fossem mantidas sob firme controle, protegidas da dor bruta e da feiúra de grande parte do que fazia. Na maior parte do tempo, ele conseguia manter seus muros intactos. Ocasionalmente, como agora, as duas realidades colidiam. Subitamente, George lembrou que ganhara, da noite para o dia, alguém novo com quem se preocupar.
Um sorriso aflorou a seus lábios, inevitavelmente. Podia ver o rancor nos olhos de Charlie Lomas e a surpresa nos de Clough. Contudo, a súbita recordação da criança que Anne carregava em seu ventre era irresistível.
- Qual é a graça? - perguntou Charlie, irritado.
- Não foi nada - respondeu George, áspero, forçando-se a voltar ao estado de ânimo apropriado. - Eu estava pensando em minha família. Você tem razão. Eu me sentiria terrivelmente mal se algo lhes acontecesse. Desculpe-me se o ofendi.
Charlie levantou-se, batendo o pó da roupa com as mãos.
- Como eu disse, é um pouco tarde para isso agora. - Ele voltou um pouco a cabeça, de modo que os olhos ficassem nas sombras. - Estavam procurando por mim ou por minha vó?
- Sua avó. Ela está?
- Ainda não voltou - disse ele, balançando a cabeça.
- Não voltou de onde?
- Eu a vi quando estávamos voltando da busca por Alison. Ela estava caminhando pelos campos, lá perto de onde vocês encontraram Shep e onde estivemos hoje, quando vocês descobriram aquela... coisa. - Charlie franziu o rosto, como se recordasse algo semi-enterrado. - Era como se ela estivesse fazendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez, quando saiu para caminhar na hora do chá, quarta-feira.
Existem momentos em que uma determinada combinação de palavras coloca o mundo em câmera lenta. A medida que assimilava a importância das palavras do garoto, George teve a estranha e vertiginosa sensação de um homem cujos sentidos aceleram-se em uma fração de segundo, fazendo com que o mundo exterior arraste-se em um ritmo desagradavelmente lento. Ele piscou com força, limpou a garganta e depois perguntou, com cautela:
- O que você acabou de dizer, Charlie?
- Eu disse que minha vó estava caminhando pelos campos. Como se estivesse indo ao solar, mas por trás - acrescentou ele. Aparentemente, ele decidira que, apesar do mau tratamento recebido, era melhor, para Alison, se fosse prestativo com este policial esquisito que não se comportava como nenhum outro que já havia visto em carne e osso ou nos filmes, em Buxton.
George esforçou-se para manter o autocontrole. Sua vontade era agarrar o garoto pela garganta e gritar com ele, mas tudo o que disse foi:
- Você disse que ela estava percorrendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez quarta-feira, na hora do chá.
Charlie retorceu o rosto.
- E daí? Por que o homem não poderia caminhar por seus próprios campos?
- Quarta-feira, na hora do chá, foi o que ouvi.
- Isso mesmo. Lembro-me bem, por causa de toda a agitação que ocorreu depois que percebemos que Alison havia desaparecido.
George trocou um olhar com Clough. Sua incredulidade encontrou a raiva do colega.
- Nós lhe perguntamos se havia visto alguém nos campos ou no matagal, na quarta-feira - lembrou-lhe Clough, com irritação.
- Não perguntaram - disse Charlie, na defensiva.
- Eu mesmo perguntei - disse Clough, com os lábios esticados sobre os dentes, cuspindo as palavras.
- Não mesmo - insistiu Charlie. - O senhor me perguntou se havíamos visto estranhos. Perguntou se eu havia visto algo fora do comum. E não vi. Só vi a mesma coisa que já vi mil vezes: o dono das terras andando pela sua propriedade. De qualquer modo, não pode ter nada a ver com o desaparecimento de Alison, porque ainda estava claro e eu pude vê-lo claramente. De acordo com o que vocês disseram, já estava escuro quando Alison saiu de casa. Assim, não há motivo para usar este tom de voz comigo - acrescentou, endireitando os ombros e tentando aparentar maturidade além de seus talentos. - Além disso, vocês estavam ocupados demais tentando fazer com que parecesse que eu tinha algo a ver com isso, para ouvirem qualquer coisa que eu tivesse a dizer.
George deu-lhe as costas, abalado, fechando os olhos por um instante.
- Precisamos de um depoimento seu a esse respeito - disse, animado pelas possibilidades abertas por esta informação e superando a frustração pelo tempo perdido porque as mentes simplórias de Scardale não conseguiam ver além do óbvio, quando ouviam uma pergunta. - Vá até o salão da igreja metodista e diga a um dos policiais que eu o mandei. Dê-lhe todos os detalhes. A hora, a direção que o senhor Hawkin tomou ao caminhar, se levava algo consigo, o que estava vestindo. Vá agora, por favor, senhor Lomas, antes que eu ceda à tentação de prendê-lo por obstruir o trabalho da polícia.
Ele olhou sobre os ombros, a tempo de ver os olhos de Charlie, esbuga-lhados de pânico.
- Nunca obstruí nada - disse ele, parecendo ter metade de sua idade. - Ele nunca me perguntou sobre Hawkin.
- Também não lhe perguntei sobre o duque de Edimburgo, mas se ele estivesse caminhando pelo campo, esperaria que você me contasse - vociferou Clough. - Agora, não perca mais tempo. Ponha-se a caminho, antes que eu decida ajudá-lo com minha bota no seu traseiro!
Charlie passou por eles zunindo e partiu em uma corrida louca, atravessando a praça para um dos Land Rovers enlameados estacionados no lado oposto.
- Dá para acreditar nessa gente? Meu Deus, estou começando a duvidar que desejam encontrar Alison Carter. - George suspirou. - Precisaremos falar com Hawkin sobre isso. Ele mentiu para nós e quero saber Dor quê. - Olhou para o relógio de pulso. - Mas também quero descobrir sobre Peter Crowther.
- Dependendo do que Hawkin tiver a dizer, Peter Crowther poderá tornar-se irrelevante.
George franziu a testa.
- Você não acha que... Hawkin? Clough encolheu os ombros.
- Se acho que ele é capaz? Não tenho idéia, mal falei com o homem. Por outro lado, ele mentiu para nós. - Ele enumerou as possibilidades, com dedos fortes. - Ou ele tem algo para esconder ou está acobertando outra pessoa. Se não, é irresponsavelmente distraído.
Antes que George pudesse responder, a questão foi resolvida pelo aparecimento de Mamãe Lomas, embrulhada em um casaco pesado e usando um lenço na cabeça. Ela virou a cabeça para um lado e disse:
- Vocês estão no meu caminho.
Os dois homens deram um passo para o lado. Ela seguiu até a porta, sem cumprimentá-los.
- Precisamos falar com a senhora - anunciou George.
- Eu não preciso falar com vocês - respondeu ela, esforçando-se para enfiar uma grande chave na fechadura de sua porta. - Nunca precisamos trancar nossas portas antes de Ruth Carter trazer estranhos para o vale. - A fechadura abriu-se com um ranger agudo de metal batendo em metal.
- Não se importa com o que acontece com alguém de sua própria família?
- Você não sabe de nada - disse ela, encarando-o com olhos estreitos e abrindo a porta.
- Iremos falar com o dono das terras depois de falarmos com a senhora - disse Clough, quando ela estava prestes a entrar. Ela parou, imóvel como um rato ao ver uma águia. - Sabemos que ele andou caminhando pelo campo de onde a senhora acabou de voltar. Senhora Lomas, precisamos eliminar Peter Crowther de nossas investigações, se ele é inocente.
Ela pensou por um momento, permitindo que as frases aparentemente desconexas fizessem sentido. Depois, assentiu, inclinando a cabeça e fixando um olhar de avaliação em Clough.
- É melhor entrarem, então - disse, finalmente. - Sequem os pés. E nada de cigarros lá dentro. Fazem mal aos meus pulmões.
Os dois a seguiram para uma saleta que não tinha mais que três metros quadrados. Era um cômodo lúgubre, com apenas uma pequena janela, e cheirava vagamente a cânfora e eucalipto. O piso de pedra estava coberto com vários tapetes desbotados e em frangalhos. Havia uma poltrona em cada lado de uma lareira flanqueada por dois fogões pretos de ferro, cada um do tamanho de um engradado de cerveja. Havia uma chaleira sobre um dos fogões, com um fio de vapor desaparecendo pela chaminé, e um aparador no lado oposto, coberto com animais entalhados em madeira e pedaços semipolidos de calcário contendo fósseis. Perto da pequena janela de venezianas, três cadeiras altas de carvalho escuro com encostos de sisal projetavam-se acima de uma pequena mesa de jantar, como se ameaçassem espancá-la.
Os únicos adornos eram dúzias de cartões-postais extravagantes, que retratavam desde praias da Espanha até prédios barrocos de algum lugar na Escandinávia. Ao perceber o olhar confuso de George, Mamãe Lomas disse:
- São de Charlie. É como trocar cartas, só que ele troca cartões-postais com pessoas de longe. É um sonhador. O que me faz rir é que há centenas de pessoas no mundo inteiro olhando os postais que o senhor Hawkin fez de Scardale e pensando que a vida nesta aldeia de Derbyshire é feita de ovelhas brancas como leite em um campo ensolarado. - Dirigiu-se penosamente até a poltrona que ficava de frente para a porta e deixou-se cair nela, remexendo os ombros até sentir-se confortável.
- Posso sentar? - pediu George.
- Você não gostará da poltrona - disse-lhe ela, fazendo um aceno de cabeça para uma das cadeiras. - É melhor para suas costas, pelo menos.
Os dois viraram duas cadeiras de frente para a mulher. Esperaram enquanto ela se inclinava, reacendendo os carvões em brasa.
- Peter Crowther está sob custódia em Buxton - disse George, quando percebeu que ela estava confortável.
- Já me disseram.
- A senhora acha que devemos mantê-lo na cadeia?
- Você é o policial, não eu. Sou apenas uma velha que nunca viveu fora do vale de Derbyshire.
- Talvez estejamos perdendo um tempo enorme tentando ligar Peter a rowther a Alison - continuou George, recusando-se a desviar-se do assunto. - Poderíamos aproveitar melhor este tempo procurando a menina.
- já lhe disse, o problema com você e seus detetives é que não entendem nada sobre este lugar - falou a mulher, irritada.
- Estou tentando compreender, mas as pessoas daqui parecem mais
interessadas em atrapalhar que em me ajudar. Acabei de descobrir que seu neto omitiu algo que poderia servir como prova crucial.
- Isto não chega a ser surpresa, considerando o modo como vocês o trataram. Como é que alguém pode pensar que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison? Isto não é possível! Quando ela desapareceu, Charlie estava aqui em casa, comigo. Isto é o que chamam de álibi, não é? - perguntou ela, com desdém.
- Tem certeza? - indagou George, em dúvida.
- Posso ser velha, mas ainda não perdi a memória. Charlie entrou pouco antes das quatro e meia e começou a descascar batatas. Não consigo fazer certas coisas por causa de minha artrite, de modo que ele faz para mim. Todas as noites é a mesma rotina. Ele não estava com Alison. Estava aqui, cuidando de mim.
George respirou fundo.
- Teríamos poupado muito tempo se a senhora ou mesmo Charlie tivesse nos contado isso. Senhora Lomas, em casos envolvendo o desaparecimento de crianças, as primeiras quarenta e oito horas são cruciais. Este período já está quase no fim e não temos pistas para encontrar uma menina que também é de sua família. - A frustração aumentava o volume de sua voz. - Senhora Lomas, juro que encontrarei Alison Carter. Mais cedo ou mais tarde, saberei o que aconteceu aqui dois dias atrás. Se isto significar que terei de vasculhar cada casa nesta aldeia do telhado às fundações é o que farei. Se tiver de cavar cada campo e jardim do vale, farei isso e não darei a mínima para suas plantações e gado. Se tiver de prender todos vocês e acusá-los de obstruir a lei, mesmo que indiretamente, também prenderei. - Ele parou de repente e inclinou-se para a frente. Assim, diga-me. Acha que Peter Crowther teve algo a ver com o desaparecimento de Alison?
Ela sacudiu a cabeça, impaciente.
- Tanto quanto eu saiba, e sei da maior parte das coisas que acontecem em Scardale, Peter não colocou os pés no vale desde o fim da guerra Acho que nem sabe que Alison existe. E eu colocaria minha mão sobre a Bíblia e juraria que a menina nunca ouviu seu nome. - Seus lábios apertaram-se, fazendo com que o nariz e o queixo se aproximassem, como as pontas de um compasso.
- Não podemos ter certeza disso. A escola da menina é em Buxton. Ela se parece com a mãe. Não se esqueça, a senhora Hawkin teria mais ou menos a idade de Alison na última vez em que o irmão conviveu com ela. Para alguém com um parafuso a menos, ver Alison na rua poderia ter ativado toda espécie de recordação.
Mamãe Lomas cruzou os braços no peito e balançou a cabeça com vigor, enquanto George falava. Depois, disse:
- Não acredito nisso, não acredito.
- Então, será que deveríamos estar interrogando Peter Crowther, senhora Lomas? - perguntou ele, em tom novamente gentil em resposta ao visível sofrimento dela.
- Se ele tivesse pisado no vale, todos saberiam. Além disso, acho que estava trabalhando naquele horário - acrescentou ela, em desespero.
- Às quartas-feiras à tarde não há expediente. Ele poderia ter vindo até aqui. Senhora Lomas, o que Peter Crowther fez para ser mandado embora?
- Isso não é da conta de ninguém agora - foi a resposta enfática. Os olhos estavam apertados, como se a lareira fosse o sol do meio-dia.
- Preciso saber.
- Não.
Tommy Clough inclinou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e o bloco de anotações caído entre suas pernas. George invejava sua capacidade para parecer relaxado mesmo em uma ocasião tão tensa quanto esta havia se tornado.
- Acho que Peter Crowther não machucaria uma mosca - disse Clough. - Infelizmente, não sou eu quem toma as decisões. Talvez fique detido por um bom tempo. Alguém como a senhora, que nunca viveu fora deste vale, não sabe o que os prisioneiros fazem com homens suspeitos de maltratar crianças. Homens saudáveis ficam loucos. Eles se enforcam, pendurando cordas nas barras de suas janelas. Engolem água sanitária. Cortam os pulsos com facas de manteiga, se alguém levar-lhes uma. Seu Peter será usado e abusado pior que uma prostituta de rua em uma zona de guerra. Acho que nem a senhora nem qualquer um em Scardale desejam isso. Se desejassem, teriam castigado Peter dessa forma vinte anos atrás, mas apenas o expulsaram daqui. Vocês o deixaram construir sua vida longe do vale. Qual é a lógica em se omitir e deixá-lo sofrer por nada agora? Era um discurso persuasivo, mas não teve efeito.
- Não posso lhe dizer - disse a mulher, decidida, com a cabeça movendo-se quase que imperceptivelmente de um lado para outro.
George empurrou sua cadeira para o lugar ruidosamente, com as pernas arranhando o chão de pedras.
- Não posso perder meu tempo aqui. Se a senhora não se preocupa com Peter Crowther ou não quer encontrar Alison, procurarei quem esteja disposto. Tenho certeza de que a senhora Hawkin nos dirá o que queremos saber. Afinal, trata-se de seu irmão.
A cabeça de Mamãe Lomas levantou-se, como se alguém a tivesse puxado pelos cabelos. Os olhos arregalaram-se.
- Não Ruth. Por favor, não. Ruth não.
- E por quê? - quis saber George, dando vazão a parte de sua raiva. - Ela quer que encontremos Alison e não deseja que percamos tempo com pistas falsas. Ela nos dirá qualquer coisa que quisermos saber, acredite.
Os olhos arregalados fixaram-se nos seus e o rosto parecia o de uma bruxa má.
- Sente-se - sibilou a mulher. Era um comando, não um convite. George voltou à sua cadeira. Mamãe Lomas levantou-se e foi, vacilante, até o aparador. Ela abriu a porta e retirou dali uma garrafa cujo rótulo anunciava uísque. Entretanto, o conteúdo era tão incolor quanto gim. Ela encheu um pequeno copo e bebeu-o de uma só vez. Tossiu alto duas vezes, encurvando os ombros, e depois se voltou para os homens, com os olhos lacrimejantes.
- Peter sempre foi um problema - disse lentamente, voltando à sua cadeira. - Sempre teve a mente suja. Era nojento, asqueroso. Costumávamos encontrá-lo nos campos, observando os animais que acasalavam. Quanto mais velho se tornava, pior ficava. Seguia todos que estavam namorando, até seus parentes, desesperado para ver o que fariam. Sabíamos que um carneiro cruzava com uma ovelha quando entrávamos na mata e encontrávamos Peter de pé, com seu... - ela fez uma pausa, apertou os lábios e depois, continuou: - Sua coisa na mão, com os olhos arregalados, bisbilho-tando enquanto os bichos faziam o que a natureza mandava. Mesmo que apanhasse, ouvisse berros ou fosse chutado, nada fazia diferença. Depois de algum tempo, as pessoas nem se importavam mais com isso. Em um lugar como Scardale, precisamos suportar aquilo que não conseguimos curar. Ela olhou para a lareira, suspirou e disse:
- Então, a pequena Ruth ficou mocinha. Peter estava obcecado. Ele a seguia como um cachorro segue uma cadela no cio. Dan pegou-o algumas vezes no alto de uma escada, junto à janela do quarto da menina, olhando-a através de uma abertura estreita na cortina. Todos tentaram enfiar algum juízo em sua cabeça, ela era sua própria irmã, aquilo não podia continuar. Mas Peter nunca mudou. No fim, Dan o fez sair de casa e ele passou a dormir aqui, comigo.
Mamãe Lomas fez uma pausa breve para friccionar suas pálpebras fechadas. George e Clough não moveram um músculo, determinados a não perturbar o andamento do relato.
- Então, uma noite, Dan voltou de Longnor. Havia bebido um pouco. Isto foi durante a guerra e precisávamos manter todas as luzes apagadas. Tão logo entrou no vale, viu um facho de luz brilhando na aldeia. Veio o mais rápido que podia, na intenção de avisar quem quer que fosse para apagar a luz, já que um policial poderia vê-la e dar uma multa. Ele estava a quase um quilômetro de distância quando percebeu que estava vindo de sua própria casa. Veio mais rápido ainda e, logo, reconheceu aquela janela... era o quarto de Ruth. Ele sabia que Diane estava sozinha com Ruth, e achou que algo terrível havia acontecido a uma ou outra.
Ela voltou o rosto para sua platéia emudecida.
- Bem, a verdade é que algo terrível havia acontecido mesmo. Veio zunindo como um furacão para casa e subiu voando as escadas, quase caindo. Abriu depressa a porta do quarto de Ruth e lá estava Peter, de pé junto à cama da menina, com as calças arriadas e a lanterna lançando uma sombra no teto que fazia seu pinto parecer com um cabo de vassoura. A menina estava dormindo, mas acordou com aquela entrada louca de Dan. Deve ter pensado que estava tendo um pesadelo. - A mulher sacudiu a cabeça. - Eu a ouvia gritando, do outro lado da praça.
"Depois, Peter começou a gritar. Foram necessários três homens para tirar Dan de cima dele. Achei que estava morto, coberto de sangue como um bezerro que passou por um parto ruim. Nós o trancamos em um curral, até suas feridas começarem a sarar. Depois, o senhor Castleton deu um jeito de mandá-lo para o albergue em Buxton. Dan lhe disse que se voltasse a se aproximar de Ruth ou de Scardale o mataria com suas próprias mãos. Peter acreditou na época, e ainda acredita. Sei que vocês acham que o que lhes contei significa que ele poderia ter visto Ruth em Alison e feito algo horrível a ela, mas não é isso. E bem o contrário. Se querem fazer com que Peter Crowther rasteje pelo chão pedindo perdão, digam-lhe que Ruth e Dan estão à sua procura. O último lugar aonde viria seria Scardale. A última pessoa com quem faria contato seria alguém de Scardale. Podem acreditar."
Ela recostou na poltrona, terminando sua narrativa. A tradição oral jamais morreria enquanto Mamãe Lomas estivesse viva, pensou George. Ela representava a anciã da aldeia, que conservava as histórias da tribo, protegendo a integridade de tais relatos apenas por meio de suas habilidades pessoais. Ele jamais esperaria encontrar alguém assim em 1963, em Derbyshire.
- Obrigado por nos contar, senhora Lomas - disse, em tom formal. - A senhora nos foi muito útil. Apenas mais uma coisa, antes de a deixarmos em paz. Charlie disse que viu o senhor Hawkin no campo, entre a floresta e o arvoredo, quarta-feira à tarde. Ele nos disse que a viu refazendo este trajeto ainda há pouco. A senhora também viu o dono das terras na quarta-feira?
Ela o examinou, com os olhos tão brilhantes quanto os de um papagaio.
- Não depois que Alison desapareceu.
- Mas viu antes?
- Sim. Eu estava tomando uma xícara de chá com nossa Diane. Quando saí, Kathy acabava de entrar no Land Rover para pegar Alison, Janet e Eerek no fim da estrada após as aulas. Vi David e Brian perto do local de ordenha, levando as vacas para dentro. E vi Hawkin cruzando o campo.
- Por que não nos contou antes? - indagou George, exasperado.
- E por que deveria? Não havia nada de anormal nisso. São suas terras, por que ele não poderia andar por elas? Sempre está perambulando por todos os lados, tirando fotos com sua câmera quando menos se espera. Além disso, como já falei, Alison ainda nem havia chegado da escola. Ele teria de caminhar muito, mas muito devagar mesmo, para ainda estar no campo quando ela saiu com Shep. E com este tempo ninguém caminha devagar em Scardale - acrescentou ela em tom decisivo, como se desse fim a uma discussão.
George fechou os olhos e respirou profundamente pelo nariz. Ao abri-los novamente, poderia ter jurado que vira um sorrisinho nos cantos da boca da velha senhora.
- Mandarei datilografar seu depoimento - disse ele. - Espero que a senhora assine.
- Se foi fiel ao que falei, não haverá problema. Peter poderá ser solto agora?
George levantou-se e devolveu sua cadeira ao lugar, sob a mesa.
- Levaremos o que ouvimos aqui em consideração quando tomarmos nossa decisão.
- Ele não é um homem violento, inspetor - disse ela. - Mesmo supondo que tenha visto Alison, mesmo supondo que a menina o lembrou de Ruth, tudo o que ela teria de fazer seria empurrá-lo e ele a deixaria em paz. É um covarde. Não perca seu tempo com Peter e não deixe que o culpado continue solto.
- Parece que a senhora está convencida de que o que quer que tenha acontecido a Alison foi ato deliberado de alguém - falou Clough, levantando-se, mas fazendo questão de manter seu bloco de anotações aberto.
O rosto da mulher fechou-se - seus olhos estreitaram-se, enquanto apertava os lábios e enrugava o nariz.
- O que eu acho e o que vocês sabem são duas coisas muito diferentes. Vejam se conseguem aproximar um pouco mais minha opinião e seus conhecimentos, sargento Clough. Então, talvez possamos saber o que aconteceu com nossa menina. - Ela olhou para o relógio. - Achei que tinha ouvido dizerem que iriam falar com o senhor Hawkin?
- Sim, pretendemos ir até lá.
- Então é melhor se apressarem. Ele gosta que lhe sirvam o chá às seis em ponto, e tenho certeza de que não mudará seus hábitos por sua causa, já na rua, George indagou:
- O que você achou disso tudo, Tommy?
- Ela nos contou a verdade segundo sua interpretação, senhor.
- E o álibi para Charlie?
Clough sacudiu os ombros.
- Pode ser que esteja mentindo para favorecê-lo. Acho que não temos dúvida de que ela mentiria por ele. Mas até que alguém nos diga algo diferente ou encontremos algo mais sólido para ligá-lo ao desaparecimento de Alison, não temos razão para duvidar dela. E concordo com ela sobre Crowther.
- Eu também. - George passou a mão pelo rosto. A pele parecia mais sensível que o normal, pelo cansaço, e os próprios ossos pareciam mais próximos da superfície. Suspirou.
- Deveríamos liberá-lo - disse Clough, tirando os cigarros do bolso e oferecendo a George. - Ele não fugiria. Não tem para onde ir. Eu poderia ligar do telefone público para a delegacia e ordenar que o soltassem. Podem impor certos limites, como não se aproximar a menos que dez quilômetros de Scardale, permanecer no albergue, prestar contas de seus movimentos todos os dias... Mas certamente não há por que mantê-lo preso.
- Não acha que podemos expô-lo a um linchamento?
- Quanto mais o mantivermos preso, pior parecerá para ele. Podemos fazer com que o policial de plantão diga aos jornalistas que Crowther nunca foi suspeito, apenas um parente vulnerável que mantivemos detido para podermos questioná-lo sem a pressão do mundo externo. Alguma baboseira desse tipo. E eu poderia mencionar a necessidade para espalhar a mesma história pelos bares. - Havia determinação no rosto de Clough. Ele estava certo, e George estava cansado demais para apresentar argumentos, quando não se sentia inclinado a nenhum dos lados.
- Tudo bem, Tommy. Ligue e diga que eu dei as ordens. Apenas garanta que alguém informará ao departamento de investigações criminais. O chefe não gostará disso, mas terá de engolir. Vejo-o no trailer. Se eu não tomar algo quente, cairei duro de sono antes que possa extrair alguma coisa de Hawkin.
George nem mesmo esperou resposta e cruzou direto a praça até o trailer da polícia. Nada, em sua intuição, lhe dizia para impedir que Clough desse a ordem de liberar Crowther. Afinal, Clough estava convencido de que fazia a coisa certa. Nem mesmo os instintos de Mamãe Lomas clamavam contra a liberação de Peter Crowther.
Teriam de dividir igualmente o peso desta decisão.
10
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 17h52
Ruth Hawkin enxugava as mãos no avental ao abrir a porta da cozinha do Solar Scardale. Uma breve esperança brilhou em seus olhos, mas não encontrou nada nos rostos dos dois homens para alimentar aquela fagulha. Quando a esperança abandonou-a, o medo não perdeu tempo e ocupou seu lugar. A julgar pelas olheiras e pela aparência extenuada de sua pele clara, a ansiedade estivera presente durante todos os momentos daqueles dois últimos dias. Vendo seu sofrimento, George apressou-se a dizer:
- Não temos novidades, senhora Hawkin. Desculpe-me. Podemos entrar por um minuto?
Ruth fez que sim e, em silêncio, deu um passo para o lado, ainda esfregando as mãos no tecido floral de algodão de seu avental. Os ombros estavam encurvados, os movimentos eram lentos e distraídos. George e Clough passaram por ela e ficaram de pé, desajeitados, no meio da cozinha. O aroma inconfundível de cozido de carne e rim bovino flutuava no ar, fazendo com que os dois salivassem de fome. George imaginou, brevemente, o que Anne teria deixado para ele, se algum dia conseguisse chegar em casa. De uma coisa tinha certeza: quando finalmente fosse para casa, qualquer comida já teria estragado, do jeito como as coisas iam.
- Seu marido está em casa? - perguntou. - Na verdade, era com ele que desejávamos conversar.
- Estava nas buscas com seus homens - disse ela, rapidamente. - Chegou exausto, de modo que foi tomar banho. Posso ajudá-los?
- Não se preocupe. Só queríamos trocar uma palavra com ele.
Ela lançou um olhar para o despertador envernizado e velho que havia em uma prateleira perto do fogão.
- Ele descerá para o chá em dez minutos. - Ela mordeu o canto direito do lábio inferior, em uma demonstração inconsciente de ansiedade. - Seria melhor voltarem depois. Depois que ele tiver comido. Talvez às seis e meia? Avisarei sobre sua vinda - completou, com um sorriso nervoso.
- Se não se importa em esperar um pouquinho para servir o chá, senhora Hawkin, falaremos com seu marido quando ele descer - disse George, em tom gentil. - Não queremos perder tempo.
A pele em torno dos olhos e da boca da mulher retesou-se.
- Acham que não entendo? Sei disso, mas ele precisa tomar seu chá depois de andar pelo vale a tarde inteira.
- Sabemos disso, e seremos breves.
- Serão breves em quê, inspetor?
George virou-se. Não ouvira Hawkin abrir a porta às suas costas. O dono do solar usava um roupão bege felpudo sobre um pijama listrado. Sua pele rosada brilhava e os cabelos estavam ainda mais rentes ao crânio e puxados para trás que antes. Uma das mãos estava enfiada no bolso e a outra segurava um cigarro, em uma pose que teria passado por descontraída em uma peça teatral, mas parecia ridícula em uma cozinha de fazenda de Derbyshire. George inclinou a cabeça para a frente, à guisa de cumprimento.
- Precisamos de alguns minutos de seu tempo, senhor Hawkin.
- Está em meu horário de comer, inspetor - disse ele, com petulância. - Acho que minha esposa já lhe disse isso. Quem sabe os senhores voltam depois?
Interessante, pensou George. Hawkin nem mesmo perguntara se o motivo da visita era alguma novidade sobre Alison. Nenhuma menção à menina, nem indicação de que estava preocupado com qualquer coisa além de encher a barriga.
- Temo não ser possível. Como já indiquei, em investigações desta natureza é crucial pouparmos tempo. Assim, se a senhora Hawkin não se importa em manter seu jantar aquecido, gostaríamos de lhe falar.
O suspiro de Hawkin foi alto e teatral.
- Ruth, você ouviu o inspetor. - Ele foi até a mesa, tirando a mão do bolso e puxando uma cadeira.
- Seria melhor em outro lugar, senhor - interveio George.
As sobrancelhas de Hawkin ergueram-se.
- Como?
- Preferimos entrevistar testemunhas isoladamente umas das outras. E
uma vez que sua esposa está ocupada aqui, parece razoável irmos a outro lugar. A sala, talvez? - George era inexoravelmente educado, mas irresistivelmente firme.
- Não vou à sala. Está gelado lá e não pretendo contrair pneumonia por sua culpa. - Ele tentou suavizar suas palavras com um sorriso curto, que não conseguiu convencer George. - Meu estúdio é mais quente - acrescentou Hawkin, voltando-se para a porta.
Seguiram-no pelo corredor gélido até um cômodo que se parecia com um clube de cavalheiros em miniatura. Um par de poltronas de couro ladeava um aquecedor a parafina. Hawkin foi direto a uma delas, junto à janela. Uma escrivaninha branca com um tampo de couro já bastante gasto ocupava a ponta oposta do estúdio, com sua superfície coberta por pesos de papel decorativos. As paredes eram revestidas por estantes de mogno, cheias de volumes de tamanho variado encadernados em couro. O piso de parquê, desgastado por anos de uso, era parcialmente coberto por um tapete persa frágil e desbotado. Junto à porta havia um armário esmaltado contendo um par de espingardas iguais. George não entendia de armas, mas ainda assim reconhecia que essas não eram do tipo usado por fazendeiros para espantar gralhas.
- Belo aposento, senhor - disse ele, indo até a poltrona oposta à de Hawkin.
- Acho que meu tio não mudou nada, desde a época de seu avô - comentou o dono da casa. - Eu gostaria de fazer algumas mudanças. Livrar-me dessa escrivaninha velha e eliminar alguns desses livros, para abrir espaço para algo mais moderno. Preciso de um lugar para guardar meus álbuns fotográficos e meus negativos.
George mordeu a língua, contendo-se. Teria adorado um escritório como este, que lhe parecia unir passado e presente, um cômodo que pudesse deixar de herança para um filho. Se tivesse sorte o bastante para ter um.
Achou dolorosa a idéia do que Hawkin pretendia fazer com a decoração - embora reconhecesse que não era de sua conta. Entretanto, isso só o fazia antipatizar ainda mais com o homem. Deu uma olhada para Clough, que sentara na cadeira junto à escrivaninha e já estava preparado, com bloco e lápis à mão. O sargento assentiu. George limpou a garganta, desejando possuir o tipo de autoridade que alguns anos a mais lhe trariam automaticamente.
- Antes de abordar a principal razão para virmos até aqui, eu gostaria de saber se vocês receberam algum pedido de resgate por Alison.
- Ninguém imaginaria que tenho dinheiro para pagar resgate, inspetor - disse Hawkin, com a testa franzida. - Só porque tenho algumas terras?
- As pessoas às vezes têm as idéias mais malucas, senhor. Além disso, com as notícias sobre o seqüestro do filho de Frank Sinatra, é razoável pensar nesta possibilidade.
Hawkin meneou a cabeça, com pesar.
- Não recebemos nada. Nem carta, nem telefonema. Recebemos várias cartas hoje, de pessoas de Buxton que ouviram falar do desaparecimento de Alison, mas todas ofereciam solidariedade e nenhuma pedia dinheiro. Pode examiná-las, se quiser. Estão todas sobre o aparador da cozinha.
- Se receberem pedido de resgate, por favor comuniquem. Mesmo se os avisarem para não comunicarem à polícia, pelo bem de Alison, façam isso. Precisamos de sua cooperação.
- Inspetor - disse Hawkin, com uma risadinha nervosa -, acredite, se alguém pensa que colocará a mão em meu dinheiro e em minha enteada é melhor pensar duas vezes. Pode crer que irei direto a vocês se alguém for tolo o bastante para pensar que pagaremos resgate. Agora, o que os trouxe até aqui? Fiquei fora de casa a tarde inteira e estou faminto.
- Descobrimos uma pequena discrepância nos depoimentos do pessoal daqui e queremos esclarecer as coisas. Encontrar Alison é nossa maior prioridade, de modo que qualquer mal-entendido precisa ser esclarecido com a maior rapidez possível.
- Claro que sim - disse Hawkin, virando-se para amassar o cigarro no cinzeiro empoleirado sobre uma pilha de jornais, próximo à sua poltrona.
- O senhor declarou que estava no laboratório na tarde em que Alison desapareceu.
Hawkin inclinou a cabeça para o lado.
- Sim - disse com voz arrastada e um olhar de cautela.
- A tarde inteira?
- Mas que importância tem o horário em que fui para o laboratório? Não entendo o que minhas atividades da tarde têm a ver com Alison.
- Se o senhor me permitir, podemos resolver este problema rapidamente. Pode nos dizer quando foi para o laboratório?
Hawkin esfregou a lateral de seu nariz estreito com o indicador.
- Almoçamos meio-dia e meia, como sempre. Depois, vim até aqui para ler o jornal. Um dos problemas da vida rural é que a correspondência e o jornal da manhã raramente chegam antes do almoço. Assim, faço meu pequeno ritual depois do almoço, retirando-me para cá para cuidar da correspondência e ler o Express. Quarta-feira passada tinha que responder a algumas cartas, de modo que fui para o laboratório por volta das duas e meia da tarde. É naquele prédio pequeno nos fundos, que já tinha instalações hidráulicas. Eu o converti em câmara escura. O senhor se interessa por fotografia, inspetor? Duvido que haja um laboratório tão bem equipado e montado quanto o meu. - O sorriso de Hawkin era a coisa mais próxima de espontaneidade sincera que George já vira em seu rosto.
- Gostaria de dar uma olhada depois, se puder.
- Será bem-vindo. Seus homens estiveram lá, na noite em que Alison desapareceu, apenas conferindo se ela não estaria escondida ali, mas expliquei que geralmente mantenho o lugar trancado. Por causa do equipamento caro. Por favor, veja com seus próprios olhos. E se precisar de fotografias profissionais... - Hawkin fez um sinal para a aliança que brilhava no dedo de George. - Talvez uma foto do casal?
A ideia de ter o encanto adulador de Hawkin concentrado em Anne, mesmo que mediado pela lente de uma câmera, era imensamente repugnante. Disfarçando seu mal-estar, George disse, apenas:
- É uma oferta muito gentil, senhor. Agora, quanto à tarde de quartafeira. O senhor nos disse que foi para seu laboratório por volta das duas e meia da tarde. Por quanto tempo ficou lá?
Hawkin franziu a testa e pegou os cigarros:
- Ampliei muitas fotos... São para um concurso, de modo que é importante obter o máximo de perfeição. Voltei para casa pouco antes da hora de Jantar. Encontrei minha esposa e Kathy Lomas na cozinha, muito nervosas Por causa de Alison. Isto responde à sua pergunta, inspetor?
- Responde sim, mas não resolve meu problema. Entenda, nos disseram que o senhor estava caminhando pelo matagal onde encontramos Shep e foi até o arvoredo onde descobrimos traços que julgamos ser de uma luta física envolvendo Alison. Disseram-nos que eram mais ou menos quatro da tarde de quarta-feira. Será que pode explicar por que alguém o veria no mato, se não esteve lá?
As orelhas de Hawkin ficaram vermelhas primeiro e, depois, o rubor espalhou-se por sua mandíbula e subiu para o rosto inteiro.
- Porque são camponeses estúpidos, talvez.
George endireitou-se na poltrona, atônito pela hostilidade da resposta.
- Como?
- Essa gente cruza entre si há séculos, inspetor. Uma aldeia com apenas três sobrenomes? Não são exatamente gênios, certo? Alguns deles mal sabem em que ano estamos, para não dizer o dia do ano. Apenas porque um desses idiotas confundiu terça com quarta-feira... bem, não é algo para ser levado a sério, é? Olhe, meu tio administrou esta aldeia como se fosse seu passatempo pessoal por uma boa razão. Ele sabia que, sem a proteção de alguém, o povo daqui jamais sobreviveria. Não estão equipados para o mundo moderno. - De repente, Hawkin pareceu esgotar seu repertório de veneno. Correu a mão pelos cabelos e conseguiu dar um de seus fabulosos sorrisos. - Acredite, inspetor, não saí de meu laboratório na tarde de quarta-feira. Se alguém lhe disse o contrário, enganou-se.
Antes que George pudesse responder, Clough interveio, com a sincronia perfeita que transforma duplas de comediantes em astros. Folheando dramaticamente as folhas de seu bloco de anotações, ele disse, em tom de pedido de desculpas:
- Senhor, foram dois depoimentos dizendo a mesma coisa. Dois indivíduos afirmam que o viram no mesmo lugar, por volta das quatro da tarde de quarta-feira. Se fosse apenas um... Bem, francamente, já vimos o suficiente, nos últimos dias, para compreendermos exatamente seu ponto de vista sobre as pessoas daqui. Contudo, as coisas ficam meio... esquisitas, quando duas pessoas afirmam a mesma coisa.
Desta vez, o sorriso de Hawkin parecia verdadeiro. Pela primeira vez, George teve um vislumbre do que atraíra uma viúva de Scardale, como Ruth Tarter. Ao sorrir, Hawkin parecia tão malicioso quanto o jovem David
. Jovem. E tão inocente quanto este, George acrescentou mentalmente, quanto Hawkin oferecia cigarros aos dois policiais com um gesto amplo.
- Felizmente, há uma explicação perfeitamente razoável - disse, com esforço visível para manter um tom leve.
- E qual seria? - indagou George, inclinando-se para a frente para que o homem acendesse seu cigarro, mas sem permitir que seus olhos se afastassem dos de Hawkin.
- Costumo caminhar pelo vale. Tiro fotografias. Ando por minhas terras para garantir que está tudo bem. E preciso mantê-los com pulso firme ou os muros desabam. Quanto aos portões... - Ele apertou os lábios e balançou a cabeça de um lado para outro. - De qualquer modo, estive nos locais que o senhor mencionou, mas na terça-feira. Obviamente, alguns dos moradores da aldeia me viram andando por lá. Depois que Alison desapareceu, acho que começaram a questionar-se quanto ao dia em que me viram andando pelo campo. Agora, se eu fosse um Carter, Crowther ou Lomas, poderia me dar o benefício da dúvida e todos concordariam que me viram terça-feira. Acontece que sou um forasteiro, de modo que tendem a pensar sempre o pior de mim. Não se esqueçam de que são como crianças, um diz algo e todos concordam. Assim, se havia alguma dúvida no que teoricamente seriam as mentes do pessoal daqui, eles escolheram automaticamente a versão que os faria parecer importantes e me condenaria. - Hawkin recostou-se, cruzando uma perna sobre a outra e revelando um tornozelo ossudo, além de alguns centímetros de pele branca e peluda entre o pijama e o chinelo.
- Tem certeza de que não era quarta-feira? - insistiu George.
- Absoluta.
- E está disposto a assinar um depoimento? - perguntou novamente.
Nada do que Hawkin dissera o convencera de que Mamãe Lomas e Charlie estavam enganados, mas ainda era a palavra dos dois camponeses contra a o dono do solar e das terras. George sabia quem seria a testemunha mais convincente.
Alguns minutos depois, estavam de volta à cozinha. Ruth Hawkin estava sentada, e um cigarro esquecido no cinzeiro próximo transformara-se em oito centímetros de cinzas. Sua mão cobria a boca e os olhos estavam fixos na primeira página de um jornal sobre a mesa, à sua frente.
- Qual é o problema? - perguntou Hawkin, com a voz mostrando mais preocupação pela esposa do que jamais antes, desde que George o conhecia.
Em silêncio, ela empurrou o jornal na direção dos três homens. Era o High Peak Courant semanal, impresso naquela mesma tarde. George olhou para as manchetes, quase sem acreditar no que lia.
PARENTE DETIDO NO CASO DE MENINA DESAPARECIDA
Um homem está sendo interrogado pela polícia de Buxton, no seguimento das investigações do desaparecimento da menina Alison Carter, de Scardale.
O homem é, supostamente, um parente da garota desaparecida de 13 anos, que não é vista desde a tarde de quarta-feira.
Alison levou sua cadela collie, Shep, para uma caminhada pela floresta próxima, junto ao rio Scarlaston, como fazia com freqüência ao voltar da escola.
Policiais com cães farejadores realizaram buscas intensivas durante dois dias naquele vale isolado. Fazendeiros locais vasculharam os anexos de suas propriedades e a Equipe de Resgate de High Peak examinou córregos e valetas mais afastadas, onde Alison poderia ter caído.
Buscas adicionais ocorrerão no fim de semana. A polícia pede que os voluntários apresentem-se no salão da igreja metodista, na estrada ao sul de Longnor, às oito e meia da manhã de sábado.
Segundo informações, o homem detido é parente próximo de Alison Carter e está familiarizado com a área de Scardale, embora não resida no vale há vinte anos.
O homem mora em um albergue para homens solteiros, na periferia de Buxton, e trabalha em uma oficina para deficientes na cidade, onde foi procurado pela polícia ao chegar para trabalhar esta manhã.
Um porta-voz da polícia recusou-se a confirmar ou negar a matéria do Courant, dizendo apenas que as investigações deste caso são bastante amplas.
Entre os interrogados estão os colegas de sala de Alison no Peak Girls
High...
George mal podia acreditar no que lia. O detetive e inspetor-chefe Carver, caçador da fama, não perdera tempo em vazar a história para a imprensa local. Provavelmente, ligara para os repórteres antes mesmo de Peter Crowther chegar à delegacia. George ficou decepcionado. Achava que ele e Clough haviam protegido Crowther ao providenciarem para que se espalhasse a notícia de que o homem detido não tinha ligação com o desaparecimento da sobrinha. Seus cálculos não haviam incluído as fofocas de Buxton e a manchete oportunista do semanário Courant. Este jornal estava nas ruas de Buxton. E graças a ele, Peter Crowther também estava.
Então, viu o rosto sofrido de Ruth Hawkin e lembrou a si mesmo que sua raiva teria de esperar.
- Desculpe-me - disse. - Não há razão para supor que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. Já foi liberado. Esta matéria nem deveria ter sido publicada.
- Sobre o que vocês estão falando? - indagou Hawkin em tom exigente, parecendo realmente confuso. Ele puxou o jornal e leu novamente os primeiros parágrafos. - Não entendo. Quem é este parente detido pela polícia? Por que não fomos informados? E por que o senhor veio me perturbar com essas perguntas inúteis, quando já tinham um suspeito?
- Muitas perguntas de uma só vez - disse George. - Vamos lá, uma a uma. O homem do artigo no jornal é o irmão de sua esposa, Peter Crowther.
- Não pode ser. O irmão de Ruth chama-se Daniel - protestou Hawkin.
- O nome do outro irmão da senhora Hawkin é Peter - insistiu George. Hawkin lançou um olhar penetrante para a esposa.
- Que outro irmão, Ruth? - Sua voz estava tão tensa quanto uma linha de pesca puxando um salmão.
A mulher, emudecida, conseguiu apenas sacudir a cabeça. George veio em seu auxílio:
- Peter Crowther não se ajustava a Scardale, de modo que a família providenciou para que vivesse e trabalhasse em Buxton. Ele não vem a Scardale há vinte anos, e não há razão para supor que tenha estado aqui quarta-feira.
- Mas vocês o prenderam! - objetou Hawkin.
- O jornal não diz isso - falou George, consciente de sua mentira. - O artigo baseia-se em insinuações e em alguns poucos fatos que levam a esta suposição. Peter Crowther foi levado à delegacia para ser questionado porque meu chefe achou que seria melhor interrogá-lo lá que em seu local de trabalho ou no quarto que divide com outro residente do albergue. Ele foi interrogado e já foi liberado. - Voltou-se novamente para Ruth, puxando uma cadeira e sentando-se. - Sinto muito por isso, senhora Hawkin. Conhecemos as circunstâncias e a última coisa que desejávamos era causar-lhe mais transtornos. Gostaria que um de nós explicasse a seu marido ou prefere conversar com ele a sós?
Ela balançou a cabeça. Tirou a mão da boca e estendeu-a para pegar o cigarro apagado, parecendo surpresa por encontrar apenas o filtro e centímetros de cinzas. Clough colocou um cigarro aceso em sua mão, antes que ela conseguisse encontrar os seus.
- Pergunte a Mamãe - disse ela, exausta, dando a Hawkin um olhar suplicante. - Ela contará. Por favor. Eu não posso.
Hawkin levantou-se.
- Malditos camponeses - resmungou ele. Afastando-se da mesa abruptamente, ele saiu da cozinha, batendo a porta às suas costas.
Ruth suspirou e disse:
- Peter estava assustado?
- Temo que sim - respondeu George.
- Bom. - Ela olhou especulativamente para seu cigarro. - Muito bom mesmo.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 21h47
George fora para casa quando seus olhos já não conseguiam mais manter o foco nos depoimentos das testemunhas. Havia comparecido a uma reunião de planejamento entre os policiais fardados e o departamento de investigações criminais para organizarem as buscas dos voluntários pela manhã. Um representante do departamento de águas e esgotos estivera presente para discutirem a drenagem dos dois reservatórios em um raio de seis quilômetros de Scardale, um nas regiões montanhosas mais desoladas e o outro nos montes mais verdes, entre Scardale e Longnor. George considerara sua ânsia por essas buscas quase vampiresca.
Após o término dos arranjos para a manhã, convidara Tommy Clough para um drinque. Haviam dirigido até o minúsculo Baker's Arms e se acomodado no canto mais escuro, cada um com um caneco de cerveja.
- Liguei para o albergue - dissera Clough. - Crowther foi direto para lá depois que o liberamos. Tomou seu chá e saiu uma hora depois. Não disse aonde ia, mas não há nada de anormal nisso. O porteiro acha que ele saiu para tomar alguma coisa. Entretanto, ninguém o procurou, de modo que parece que ele poderia ter evitado a possibilidade de lhe apontarem o dedo.
- Espero que sim. Já tenho muito em que pensar, sem ter de me sentir responsável pelo que acontece a Peter Crowther.
- Não é sua culpa. Se algo acontecer, será culpa do departamento de investigações criminais e de Colin Loftus, o nojento do Courant. Se alguém mereceria ter sido afogado ao nascer, é Loftus.
- Mas eu ordenei a liberação de Crowther.
- E com razão, senhor. Não tínhamos motivos para mantê-lo. O coitado não tem nada a ver com o crime.
- Presumindo que haja um crime - dissera George, devagar.
- Nós dois sabemos que há. Quarenta e oito horas já se passaram e não temos nem rastro da menina, exceto por sinais de uma briga e um pouco de sangue. Está morta, não há dúvida.
- Não necessariamente. Ela pode estar sendo mantida em cativeiro. Clough olhara-o com ceticismo.
- Como o bebê Lindbergh.
- Eu a encontrarei, Tommy - dissera George, com o olhar fixo na cerveja em seu caneco. - Idealmente, viva. Mas, de qualquer modo, encontrarei Alison Carter. Custe o que custar, a senhora Hawkin saberá o que aconteceu com sua filha. - Ele engolira o resto da cerveja com um gole e se levantara. - Vou voltar para ler alguns depoimentos. Você precisa dormir um pouco. Isso é uma ordem.
Tivera de abandonar os depoimentos, quando a fome e a exaustão conspiraram contra sua disposição. Em casa, Anne estava à sua espera, sentada placidamente em sua poltrona, tricotando e assistindo à TV. Alguns minutos depois de seu cansado retorno, ela já colocara uma tigela de sopa na sua frente. Ele sentou-se à mesa da cozinha, quase incapaz de realizar o simples movimento monótono de levar a colher do prato à boca. Às suas costas, Anne fritava bacon picado, cebolas, batatas e ovos.
- Como se sente? - conseguiu perguntar, entre o término de sua sopa e o começo do prato principal.
- Estou bem - disse Anne, sentando-se no outro lado da mesa com uma xícara de chá. - Estou grávida, não doente. Não se preocupe. Não tenho nenhum problema de saúde. Estou mais preocupada com você, que não descansa nem come o suficiente.
George olhou para sua comida, mastigando automaticamente.
- Não posso evitar. Alison Carter tem mãe. Não posso deixá-la sem saber o que aconteceu com sua filha. Fico pensando em como eu me sentiria se meu filho ou filha sumisse, sem que ninguém soubesse o que lhe aconteceu ou onde está, e sem que ninguém pudesse fazer algo para me ajudar.
- Pelo amor de Deus, George, você está assumindo uma carga grande demais! Você não é o único policial responsável pelo que está acontecendo lá. Você se cobra demais - disse Anne, com uma ponta de irritação na voz.
- É fácil dizer isso, mas não consigo me livrar da idéia de que estamos correndo contra o tempo. Talvez ela ainda esteja viva. Enquanto ainda houver esta possibilidade, preciso dar tudo o que puder de mim.
- Mas achei que vocês haviam detido alguém. Certamente você pode descansar um pouco agora! - Ela inclinou-se para encher-lhe a xícara de chá novamente.
George torceu o nariz, e falou em tom pesaroso, embora quisesse brincar:
- Você continua acreditando no que lê no jornal, não é?
- Bem, o Courant não deixou muita margem para dúvidas.
- A matéria do Courant é uma mistura de insinuações e incorreções. Sim, pegamos o tio de Alison Carter. E sim, ele já foi condenado por atentado ao pudor. Aí termina a semelhança entre a verdade e o que foi publicado pelo jornal. O sujeito tem medo da própria sombra. Definitivamente não bate bem. Tudo o que já fez de errado foi expor seus genitais, e isso foi muitos anos atrás. Porém, quando o chefe de polícia Carver descobriu sobre o infeliz, ficou todo excitado e partiu com a mesma rapidez do Sputnik.
- Bem, nem se pode culpá-lo, George. Você está todo agitado com este caso. Não me surpreenderia se alguém perdesse o senso de proporção. O tio deve ter parecido um suspeito óbvio. Pobre homem - disse Anne. - Deve ter ficado apavorado. Este caso parece cheio de dor - falou ela, balançando a cabeça.
- E parece que isso não vai terminar tão cedo. - Ele afastou o prato vazio. - Na maioria dos casos, podemos ver alguma saída e sempre está claro quem fez o quê, ou, na pior das hipóteses, para onde deveríamos estar olhando. Neste, as coisas são diferentes. Topamos com becos sem saída e cantos escuros a todo momento. Eles vasculharam todo o vale e não encontraram nada que nos leve a Alison Carter. Alguém deve saber o que aconteceu à menina. - Ele suspirou, exasperado. - Ah, como eu queria descobrir quem!
- Você descobrirá, querido - disse Anne, reabastecendo-o de chá. - Se alguém é capaz disso, é você. Agora, tente relaxar. Amanhã você verá tudo com novos olhos.
- Espero que sim - exclamou George, com fervor. Estendeu a mão Para pegar seus cigarros, mas, antes que pudesse tirar um do maço, o telefone tocou. - Ah, meu Deus. Lá vamos nós novamente.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 22h26
George inclinou-se para a frente, no banco do passageiro do Zafira de Tommy Clough, olhando intensamente através do pára-brisa. Lá fora, os feixes de luz que vinham dos postes iluminavam porções oblíquas de granizo e neve que giravam no vento como cortinas de renda apanhadas por uma corrente de ar. Entretanto, não era no clima que George estava interessado. O que o interessava era o conflito feroz que ocorria no lado de fora do albergue para solteiros, em Waterswallows, e que se mostrava apenas intermitentemente, sob os fachos de luz.
- Quase não dá para acreditar - disse, sacudindo a cabeça. - Eu acharia que, em uma noite como esta, qualquer um adoraria sair do bar e ir direto para casa. Você não preferiria estar na frente de sua lareira, em vez de se arriscar a uma pneumonia dupla e a umas porretadas de um policial mais exaltado?
- Depois de algumas cervejas, nem se percebe o frio - disse Clough, cinicamente. Ele mesmo estava no bar, quando ouviu falar que um grupo de linchadores estava a caminho do albergue em Waterswallows. Parando apenas para ligar para a delegacia, ele fora direto até a casa de George, sabendo que o chefe já teria sido avisado. Agora, observavam enquanto uma equipe de doze policiais fardados dispersava o grupo de cerca de trinta bêbados irados com um grau de selvageria tão coreografado quanto um balé. George sentiu uma gratidão profunda por aquilo acontecer em um clima que impossibilitava fotos. A última coisa de que precisava era de um punhado de defensores de direitos civis afirmando que os policiais agiam com truculência, quando apenas tratavam de garantir que um bando de justiceiros embriagados não teria a oportunidade de liquidar com um homem inocente.
Subitamente, três dos homens que brigavam apareceram na frente do carro - dois policiais fardados e um homem com ombros imensos e o rosto pingando sangue. Um cassetete subiu e desceu nos ombros do sujeito e ele caiu inconsciente, atravessado sobre o capô do Zafira.
- Ah, mas que bom. Agora podemos acusá-lo também de dano intencional - afirmou Clough, com ironia, enquanto um policial algemava o homem, puxando seus braços para as costas, e o deixava escorregar lentamente até o chão. No capô, restou uma trilha de sangue e baba.
- Suponho que é melhor darmos uma mãozinha - falou George, com todo o entusiasmo de um homem que enfrenta um tratamento dentário sem anestesia.
- É o senhor quem manda, mas talvez só aumentemos a confusão, já que estamos à paisana.
- Tem razão. É melhor ficarmos aqui até que a coisa esfrie.
Eles observaram em silêncio, por mais dez minutos. A essa altura, uma dúzia de homens em estados variados de consciência se amontoava, no fundo de um camburão. Dois policiais seguravam lenços contra o nariz, enquanto outro procurava o quepe que perdera no tumulto. Bob Lucas apareceu, com a gola de sua capa de chuva levantada. Abriu a porta de trás e mergulhou dentro do carro.
- Mas que noite! - disse, com voz azeda. - Vocês sabem de quem é a culpa disso, não?
- Do Courant? - indagou Clough, com inocência na voz.
- Pode apostar - disse Lucas. - Melhor ainda, a culpa é de quem achou que o Courant deveria saber sobre Peter Crowther. Eu o esfolaria vivo se achasse que foi um de meus homens.
- Bem - disse Clough, com um suspiro -, sabemos que não foi um de seus homens, Bob. Nenhum dos policiais fardados teria coragem de oferecer informações sigilosas à imprensa. - Ele suavizou o insulto velado com um sorriso torto. - Você os treinou bem demais para isso.
- Crowther está seguro? - indagou George, virando-se no assento e estendendo a mão para oferecer um cigarro ao sargento.
- Ele não está aqui - disse Lucas, pegando um cigarro. - Depois que o soltamos, ele voltou, tomou chá e saiu novamente. Todos devem estar no albergue às nove da noite, quando fecham as portas. O diretor do albergue diz que Crowther não apareceu. Deu quinze minutos de tolerância, por compreender que o coitado tivera um dia difícil, mas depois trancou tudo como sempre. Diz que ninguém tocou a campainha ou bateu na porta antes de este bando aparecer por aqui. Felizmente, teve o juízo de não atendê-los e eles não conseguiram invadir, antes de aparecermos.
- Então, onde ele está? - perguntou Clough, abrindo uma fresta do vidro para que o vento pudesse levar a fumaça.
- Não temos idéia - admitiu Lucas. - Em geral, Crowther vai ao Wagon tomar uns goles, de modo que pensei em passar lá no caminho para a delegacia e ver o que eles têm a dizer.
- Faremos isso agora - disse George, contente porque a ação o distraía da preocupação constante com a investigação.
- Ainda preciso acertar alguns pontos aqui - protestou Lucas.
- Muito bem. Faça isto. Nós veremos o dono do Wagon.
George falara em tom definitivo. Lucas lançou-lhe um olhar rancoroso, tragou fundo o cigarro e saiu do carro sem dizer mais nada. Se lhe perguntassem, diria que a porta da viatura só batera por causa do vento.
- Conhece o dono do Wagon? - perguntou George, enquanto Clough guiava com cautela pela pista escorregadia.
- Ferguson, o Punho? Conheço.
- Punho?
- É. Foi boxeador profissional. Dizem que aceitou suborno para perder uma luta, foi pego e perdeu sua licença. Depois, sobreviveu por algum tempo no circuito ilegal de luta livre e ganhou o suficiente para comprar o bar.
- É incrível como qualquer um consegue um alvará para ter um bar - comentou George, ao estacionarem junto ao meio-fio na frente do nada convidativo Wagon Wheel. Não havia luzes acesas por trás das portas fechadas e cortinas das janelas.
- O bar está em nome da mulher dele.
Saíram depressa do carro, foram até a lateral do prédio e tiveram de se espremer entre uma pilha de engradados para protegerem-se da chuva-Clough golpeou a porta.
- Eu não me incomodaria de fazer buscas neste lugar amanhã com reforços, se as coisas continuarem como estão - disse, levantando a cabeça para enxergar as janelas no piso superior. Bateu com força na porta outra vez.
Um quadrado amarelo pálido apareceu acima de suas cabeças. Um homem careca espiou para fora, obscurecendo a maior parte da luz.
- Abra, Punho, é Tommy Clough.
Ouviram passos que soavam como trovões descendo as escadas. Ferrolhos foram destrancados e então a porta se abriu, revelando um homem que preenchia quase todo o espaço disponível no corredor estreito. Ele usava um conjunto de blusão e casaco de lã que um dia já havia sido branco, mas agora tinha a cor de ranho seco.
- Mas que raios vocês querem a esta hora da noite? Se estão atrás de bebida, podem desistir. - Ele coçou os testículos lentamente, sem o menor pudor.
- Bom vê-lo também, Punho - disse Clough. - Tem um minuto? Ferguson deu um passo para trás, com relutância. Entraram, com George na retaguarda.
- E quem é este? - indagou Ferguson, apontando para ele com um dedo gordo.
- Meu chefe. Diga olá para o detetive-inspetor Bennett.
Ferguson fez um estranho ruído gutural que George tomou como risada.
- Parece jovem o bastante para ser seu filho. Qual é o problema? Deve ser algo bem mais sério que uma saideira para trazer o chefe, Tommy.
- Peter Crowther costuma beber aqui - disse Clough.
- Depois desta noite não bebe não - disse Ferguson, com as mãos fechando-se inconscientemente em punhos. - Não vou deixar que alguém que se mete com mocinhas freqüente meu bar.
- O que aconteceu esta noite? - indagou George.
- Crowther apareceu na mesma hora de sempre. Achei-o bem corajoso - mas a verdade é que o infeliz pensava que ninguém sabia que ele havia Passado o dia todo no xadrez. Esfreguei o jornal em seu nariz e ele praticamente explodiu em lágrimas. Eu lhe disse que se quisesse beber em Buxton hoje era melhor encontrar um bar cheio de analfabetos. Depois, proibi sua entrada aqui pelo resto da vida. - Ferguson inflou o peito e jogou os ombros para trás.
- Teve muita coragem - disse George, em tom seco. - Então o senhor Crowther foi embora?
- Claro que sim - disse Ferguson, indignado.
- Sabe para onde ele foi? - perguntou Clough.
- Não sei e não dou a mínima - disse Ferguson, desinteressado.
- Só para sua informação, senhor Ferguson - disse George. - o senhor Crowther não teve nada a ver com o desaparecimento de sua sobrinha. A matéria publicada no Courant não passa de invencionice. Eu agradeceria se cancelasse a proibição ao ingresso de Crowther aqui antes da renovação de seu alvará de funcionamento. - Ele girou nos calcanhares e saiu novamente para a rua, com a impressão de que o clima lá fora parecia mais hospitaleiro que o dono do bar.
- Acho melhor dar ouvidos ao senhor Bennett - disse Clough, seguindo o chefe. - Ele ficará por aqui por um bom tempo.
Ferguson olhou furioso para as costas de George, mas não disse nada. Os dois sentaram no carro e olharam desanimados para a chuva com neve.
- É melhor voltarmos à delegacia e requisitar uma procura por Crowther pelas ruas. - George suspirou. - Você acha que amanhã será um pouquinho melhor que hoje?
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 7h18
Não havia muito com que pudesse contribuir nos planos de buscas que os policiais mais experientes faziam para o dia, de modo que George voltou a seu escritório e retomou a cansativa tarefa de examinar os depoimentos de testemunhas, em busca de algo que pudesse produzir uma pista. Estava lendo uma entrevista com a professora de inglês de Alison quando Tommy Clough enfiou a cabeça na porta para perguntar-lhe:
- Já leu o Daily News desta manhã?
- Não. A banca de jornais ainda estava fechada quando passei por lá. Clough entrou e fechou a porta.
- O trem acabou de chegar de Manchester. O maquinista me deu este.
- Acho que você não gostará da novidade. - Ele largou o jornal na frente do chefe, dobrado e aberto na página 3.
Vidente une-se às buscas por Alison Da Redação
Uma conhecida vidente francesa revelou com exclusividade ao Daily News que Alison Carter ainda está viva. A mulher ofereceu seus serviços nas buscas à menina de 13 anos, cujo desaparecimento desafia a polícia.
Os poderes de Madame Colette Charest já impressionaram a polícia de seu país e ela acredita que pode ajudar a encontrar a menina, que desapareceu de casa quarta-feira passada.
Com a permissão dos pais de Alison, um membro de nossa equipe de jornalismo telefonou para Madame Charest e lhe deu detalhes sobre os movimentos de Alison depois que a menina voltou da escola à aldeia de Scardale, em Derbyshire, onde morava com a mãe e o padrasto.
Viva e em segurança.
Madame Charest disse estar convencida de que a menina ainda está viva.
"Alison está em segurança", disse ela ao nosso repórter. "Foi embora de carro, com alguém que conhecia. Está em uma casa pequena, uma entre muitas semelhantes. Acho que é em uma cidade grande, mas a muitos quilômetros de sua aldeia. Já esteve em perigo, mas creio que está em segurança, por enquanto."
Madame Charest explicou que não podia oferecer informações mais detalhadas sem uma fotografia de Alison e um mapa da área. O material foi enviado a Lyon, na França, por correio aéreo especial, e um relatório completo das conclusões de Madame Charest será publicado na edição de segunda-feira do News.
Esforços da polícia
Um porta-voz da polícia disse: "Não temos planos de consultar videntes, embora não possamos desmerecer os comentários de Madame Charest. Já vimos as coisas mais estranhas acontecerem."
Sobre Madame Charest, policiais franceses disseram que seus poderes são "misteriosos", depois que obtiveram seu auxílio em casos nos quais a polícia não tinha pistas.
Se o clima permitir, membros da comunidade se juntarão hoje à polícia de Derbyshire em novas buscas nos pântanos e vales no entorno de Scardale.
George amassou o jornal, transformando-o em uma bola, e o jogou no outro lado da sala.
- Maldito Don Smart - praguejou, com as faces vermelhas sob as olheiras fundas. - Dá para acreditar nisso? Viva e em segurança?
- Suponho que é possível. - Clough encostou-se em um arquivo de metal e acendeu um cigarro.
- Claro que é possível - explodiu George. - É possível que Martin Bormann
esteja vivo, saudável e vivendo em Chesterfield, mas não é nem um pouco provável, ora! O que isso fará com Ruth Hawkin? Não posso acreditar que um jornal possa ser tão irresponsável! E quem fez aquele comentário idiota sobre não desmerecer a vidente?
- Ninguém. Provavelmente Smart inventou a declaração.
- Ah, meu Deus - suspirou George. - O que mais nos espera, Tommy - Ele tirou um cigarro do maço que já estava aberto sobre a mesa
inalou profundamente. - Vou lhe comprar outro jornal - disse, como um pedido de desculpas. - Qualquer coisa que você quiser, exceto o Daily Neivs. Deus, esse indivíduo estará na coletiva da imprensa, todo sorridente e faceiro.
- Você poderia pedir que o superintendente proibisse a entrada de Smart.
- Não vou lhe dar esse prazer. - George empurrou sua cadeira para trás e se levantou. - Vamos a Scardale. Estou enjoado de olhar para essas paredes.
Smart já estava lá quando chegaram. Ao estacionarem na praça da aldeia, eles o viram empurrando um jornal para dentro da caixa de correspondência da Casa do Rochedo. Enquanto observavam, Smart seguiu até a Casa da Campina e entregou ali outro exemplar.
- Vou dar um jeito nele - disse George, abrindo a porta do carro e atravessando a praça a passos largos para confrontar o jornalista.
Com um suspiro, Clough saiu e o seguiu.
- Parabéns - rosnou George, enquanto ainda estava a alguns passos de Smart.
- Boa matéria, não? - disse Smart, com sua cara de raposa agradavelmente surpresa. - Juro que pensei que um homem letrado como você não a apreciaria.
- Ah, eu não estava dando parabéns pela matéria - disse George, agora muito próximo. - Estava dando parabéns por seu prêmio.
- Prêmio?
Clough não acreditava que Smart mordera a isca. Ele mordeu o lábio, Para esconder seu sorriso.
- Sim, seu prêmio - continuou George, com gentileza obviamente falsa. - o Prêmio da Polícia para o Jornalista Irresponsável do Ano.
- Ah, inspetor, não lhe ensinaram na universidade que o sarcasmo é a demonstração mais desprezível de esperteza? - Smart encostou-se na parede da Casa da Campina e cruzou os braços no peito.
- Ninguém ganhará o título de nada mais desprezível enquanto você estiver vivo, Smart. Será que chegou a considerar, por um minuto, a cruel dade de aumentar as esperanças da senhora Hawkin com sua matéria?
- Está dizendo que ela deveria abandonar as esperanças? Este é o ponto de vista da polícia? - Smart inclinou-se para a frente, com olhos alertas, coçando a barba.
- Claro que não. Mas o que ofereceu aquele lixo que você escreveu foram falsas esperanças. Agarrou-se à manchete chamativa, sem pensar nas conseqüências. - George sacudiu a cabeça, desgostoso. - Esta Madame Charest existe? Ou você a inventou, assim como fez com a declaração do policial?
Agora foi a vez de Smart tornar-se rubro de raiva. Sua pele tinha a aparência de carne enlatada, manchada de pontos de rubor e pedaços mais pálidos.
- Eu não invento nada. Tenho a mente aberta. Seria muito bom se você fizesse o mesmo, inspetor. E se Madame Charest estiver certa? E se Alison estiver a quilômetros daqui, trancada em uma casa em Manchester, Sheffield ou Derby? Por acaso pensaram nesta possibilidade?
George puxou o ar com força, incrédulo.
- Está dizendo que deveríamos bater de porta em porta em cada cidade da Inglaterra, para talvez confirmar que uma charlatã francesa teria dado sorte com suas previsões fantasiosas? Você é ainda mais estúpido do que eu pensava.
- Claro que não é isso que estou dizendo. Mas você poderia fazer um apelo na imprensa. Seria algo como "Você viu esta garota? Acredita-se que Alison Carter possa estar com algum conhecido. Se alguém em sua vizinhança recebeu uma adolescente nos últimos dias, ou se você conhece alguém que tenha ligação com alguém de Scardale ou Buxton cujo comportamento lhe pareça estranho ultimamente, entre em contato com a polícia de Derbyshire". Isto é o que pretendo sugerir ao seu chefe na coletiva da imprensa, mais tarde. - Smart endireitou o corpo, com expressão de triunfo. - Sim, pretendo fazer esta sugestão. Quero ver sua cara de bobo, sentado ao lado dele, quando o chefe disser que a idéia é ótima.
- Sabe de uma coisa, Smart? Você é um doente. - Foi apenas o que George conseguiu dizer, sabendo que sua resposta era tola mesmo enquanto falava.
- Você mesmo disse que faria o que fosse preciso para descobrir o que aconteceu com Alison Carter. Acreditei em suas palavras. Achei que era um homem especial, George. No fim das contas, me enganei e você é tão tacanho quanto os outros policiais. Bem, que Deus tenha piedade de Alison Carter, se você é tudo o que lhe resta.
Smart deu um passo para o lado, tentando passar por George, mas este plantou a mão em seu peito. Não chegou a empurrá-lo, mas o manteve com firmeza onde estava.
- Vou descobrir o que aconteceu com Alison - disse, com a voz rouca de emoção. - E quando eu descobrir, você será o último a saber. - Deu um passo para trás e liberou o jornalista, que ficou parado a olhá-lo.
Então, Smart sorriu, mas a linha tensa e fina que formava o sorriso não chegava a disfarçar o brilho duro em seus olhos.
- Ah, eu duvido muito - falou. - Pode ser que você não goste da idéia, George, mas você e eu somos muito parecidos. Não nos importamos com quem magoamos, desde que façamos nosso trabalho da melhor maneira possível. Você pode não concordar comigo agora, mas quando for para casa e conversar com sua adorável esposa, saberá que tenho razão.
George inspirou com tanta força que seu peito inflou-se sob o casaco. Clough deu um passo à frente depressa e pousou a mão no braço do chefe.
- Acho melhor ir andando, senhor Smart - disse, bastando um olhar para seu rosto para que o jornalista passasse pelos dois e se encaminhasse rapidamente para seu carro.
- Que pena eu pegaria se eliminasse o sorriso da cara dele com um cassetete? - perguntou George, através de seus lábios esticados de raiva.
- Depende de o juiz conhecer Smart ou não. Aceita um chá?
Foram juntos até o trailer onde, mesmo tão cedo, as policiais já coavam chá. George fixou o olhar em uma xícara e falou baixinho:
- Suponho que você já trabalhou em casos assim antes, Tommy. Cheio de becos sem saída e frustrações...
É, um ou outro - admitiu Clough, mexendo três colheres de açúcar em seu chá. - Acontece que precisamos ir em frente. Pode parecer que estamos batendo com a cabeça em uma parede de tijolos, mas, com muita freqüência, parte da parede é de papelão pintado como tijolo. Mais cedo ou mais tarde aparece uma saída. E ainda é cedo, embora não pareça.
- E se a saída não aparecer? E se nunca descobrirmos o que aconteceu com Alison Carter? O que acontecerá? - George olhou para cima, com os olhos cheios de apreensão acerca do significado de um fracasso, em termos tanto pessoais quanto profissionais.
Clough respirou fundo e, depois, expirou lentamente.
- Se isso acontecer, o senhor pegará seu próximo caso. Levará sua esposa para dançar, irá ao bar tomar umas cervejas e tentará não ter insônia preocupando-se com o que não pode ser mudado.
- E esta receita dá certo? - perguntou George, sombrio.
- Não sei, senhor, eu não tenho esposa.
O sorriso apertado de Clough não disfarçava o que ambos sabiam. Se não descobrissem o destino de Alison Carter, ambos guardariam as marcas do fracasso para sempre.
- A minha está grávida - disse George, quase sem perceber que falava.
- Parabéns - a voz de Clough saiu curiosamente sem entonação. - Não é o melhor dos momentos para receber este tipo de notícia. Como está a senhora Bennett?
- Até aqui, sem problemas. Ainda não está sentindo enjôos. Só espero... bem, só espero que tudo dê certo, porque não posso ignorar esta investigação, não importa o tempo que demore. - George olhou pelas janelas embaçadas do trailer, sem perceber que o céu se iluminava gradualmente, sinalizando o começo de outro dia de buscas.
- Não seguiremos neste ritmo por muito tempo, sabe? - disse Clough, lembrando a George o que ele sabia em teoria, mas não por experiência própria. - Se não a encontrarmos depois de dez dias, ou, digamos, até o próximo fim de semana, cessaremos as buscas. Fecharemos a central de operações e voltaremos para Buxton. Ainda seguiremos todas as pistas, mas, se não avançarmos depois de um mês, o caso ficará em segundo plano. Você e eu já estaremos envolvidos com outros casos, mas não fecharemos este. Permanecerá em aberto e examinaremos a situação de três em três meses, mais ou menos, mas não trabalharemos tanto quanto agora.
- Eu sei, mas há algo neste caso. Quando eu era detetive em Derby, trabalhei em um caso de assassinato não resolvido, mas não me envolvi tanto quanto estou envolvido com este. Talvez porque a vítima estivesse na casa dos cinqüenta anos. Pelo menos já vivera um bom bocado. Agora, parece-me, a cada dia mais, que não encontraremos Alison com vida, e isto me enche de raiva, porque ela mal havia começado a viver. Mesmo se o destino da menina fosse ficar em Scardale, ter filhos e tricotar casacos, isto lhe foi negado e quero que a lei faça o mesmo com quem lhe tirou o futuro. Só lamento não enforcarmos mais esses imundos.
- Então ainda defende o enforcamento? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente em sua cadeira.
- Sim, em casos de assassinato a sangue-frio. É diferente com assassinatos por impulso. Eu colocaria esses em prisão perpétua, dando-lhes tempo suficiente para arrependerem-se do que fizeram. Mas o tipo de monstro que rapta crianças, ou os animais que matam um inocente porque estava no caminho durante um assalto, sim, eu os enforcaria. Você não faria o mesmo?
Clough demorou para responder.
- Eu achava que sim, mas alguns anos atrás li um livro sobre o caso de Timothy Evans, Ten Rillington Place. Todos acreditavam que ele havia matado a esposa e a filha pequena. A polícia tinha até uma confissão. Depois descobriram que o senhorio de Evans assassinou pelo menos quatro outras mulheres, de modo que provavelmente foi ele que assassinou Beryl Evans. Agora é tarde demais para irem até Timothy Evans dizendo: "Desculpe aí, camarada, fizemos uma tremenda confusão."
George deu-lhe um meio-sorriso de concordância.
- Talvez. Mas não posso assumir responsabilidade pelos erros e imperícia de outros. Acho que nunca faria com que um homem inocente confessasse e estou disposto a arcar com meus atos. Se Alison Carter foi assassinada,
Início de Nota de Rodapé: Timothy Evans foi enforcado em 1950, na Inglaterra. Seu senhorio, John Christie, oferecera-se para ajudar a esposa de Evans na realização de um aborto, ilegal na época, mas a mulher morreu durante o procedimento. Christie ofereceu-se para livrar-se do corpo e disse a Evans que, se este cooperasse, cuidaria de seu bebê. Evans viajou por imposição de Christie, mas, duas semanas depois, foi à polícia e confessou o assassinato da esposa. Ao chegarem à residência, os policiais descobriram os corpos da filha e da esposa de Evans, que, sem conseguir provar sua inocência e incriminado pelo senhorio, foi condenado à morte. Posteriormente, Christie assassinou a própria esposa e também morreu enforcado. Fim da Nota de Rodapé.
como achamos que provavelmente foi, então eu adoraria ver o canalha pendurado e balançando na forca.
- Se esse monstro usou arma de fogo, talvez ainda seja possível enforcá-lo. Não se esqueça de que ainda há enforcamento para isso.
George não teve tempo de responder. A porta abriu-se de repente e Peter Grundy parou, emoldurado pelo batente, com o rosto cinzento como os rochedos de Scardale.
- Encontraram um corpo - falou.
12
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 8h47
O corpo de Peter Crowther jazia protegido do vento por uma parede de calcário, a uma distância de, no máximo, cinco quilômetros ao norte de Scardale. Estava encolhido em posição fetal, com os joelhos junto ao queixo e os braços envolvendo os tornozelos. A geada da noite, que tornava as estradas traiçoeiras, lhe dera uma cobertura branca semelhante a açúcar cristal, tornando-o quase belo à primeira vista. Entretanto, a morte era indubitável.
Ela estava lá, na pele azulada, olhos arregalados e baba congelada no queixo. George Bennett olhou para a casca de um ser humano, com o reconhecimento congelando-o mais que a temperatura cruel. Ele olhou para o céu miraculosamente azul, estranhamente surpreso porque o sol de inverno brilhava como se houvesse algo a celebrar. Ele certamente nada tinha para comemorar. Sentia-se nauseado, tanto física quanto espiritualmente. O gosto da responsabilidade azedava-lhe a boca. Não fizera direito seu trabalho e, agora, havia um homem morto.
Abaixou a cabeça e virou-se, deixando Tommy Clough agachado junto ao corpo, em um exame rápido. Cruzou o portão para o campo, onde dois Policiais estavam dentro de uma viatura para proteger o local até a chegada da perícia.
- Quem encontrou o corpo?
- Um camponês, Dennis Dearden. Bem, em termos técnicos, seu cão Pastor foi quem encontrou o corpo. O senhor Dearden saiu de casa assim que o sol nasceu para verificar o gado, como sempre faz. O cão alertou-o sobre a presença do cadáver - disse o policial mais velho.
- E onde está Dearden agora?
- Em sua casa, mais adiante na estrada. - O policial apontou para um chalé, a algumas centenas de metros dali.
- Estarei lá, se alguém precisar de mim.
George caminhou pela estrada com os passos tão pesados quanto seu coração. Na entrada para a pequena casa, parou para recompor-se. Antes que pudesse bater, a porta abriu-se e um rosto semelhante a uma maçã murcha apareceu na sua frente, com olhos pequenos e castanhos fazendo as vezes de sementes em cada lado de um nariz tão disforme quanto uma bolota de creme.
- Então, você deve ser o chefe - disse o homem.
- Senhor Dearden?
- Sim, rapaz, estou sozinho em casa. Minha patroa foi visitar a irmã em Bakewell. Sempre vai para lá durante alguns dias em dezembro, compra todos os presentes de Natal na feira. Entre, você deve estar congelando aí fora.
Dearden deu um passo para trás e levou George a uma cozinha ensolarada. Tudo brilhava: o esmalte do fogão, a madeira da mesa, as cadeiras e prateleiras, o cromo da chaleira, os copos em um armário de canto, até mesmo o aquecedor a gás.
- Sente-se junto ao fogo, aqui. - Dearden acrescentou hospitaleiro, empurrando uma cadeira na direção de George. O homem sentou-se, rígido, e sorriu. - Está melhor, não é? Aqueça um pouco seus ossos. Mas que coisa, sua aparência está pior que a de Peter Crowther.
- O senhor o conhecia?
- Para falar a verdade, não. Mas sabia quem era. Tenho feito alguns negócios com Terry Lomas, ao longo dos anos. Conheço todo mundo em Scardale. Vou lhe dizer, por um minuto terrível, lá fora, achei que fosse a menina. Acho que, como todos por aqui, não consigo tirá-la da cabeça. - Ele puxou um cachimbo de urze do bolso de seu colete e começou a limpá-lo com um canivete. - Que coisa horrível. A pobre mãe deve estar morta de preocupação. Nós todos estamos atentos para garantir que a menina não esteja ferida em alguma valeta ou escondida em alguma estrebaria ou estábulo. Assim, é claro que quando vi... bem, minha conclusão natural foi a de que devia ser a jovem Alison. - Ele fez uma pequena pausa para encher o cachimbo, dando a George a primeira oportunidade para manifestar-se.
- O que aconteceu, exatamente? - indagou, aliviado, porque, finalmente, deparava-se com uma testemunha aparentemente ansiosa para oferecer informações. Depois de apenas três dias em Scardale, ele já começava a tomar gosto pela tagarelice.
- Assim que abri o portão, Sherpa saiu correndo junto ao paredão do rochedo. Eu soube logo que havia algo estranho ali. Ela não é o tipo de cadela que saia correndo assim, sem mais nem menos. Então, no meio do campo, ela se atirou de barriga, como se tivesse caído. Com a cabeça baixa e entre as patas da frente. Eu podia ouvi-la ganindo de longe. Como se tivesse topado com uma ovelha morta, mas eu sabia que não era uma ovelha, porque o campo está vazio nesta época. Abri o portão porque é um atalho para aquele lugar. - Dearden acendeu um fósforo e chupou seu cachimbo. O tabaco encheu o ar de aroma de cereja e cravo-da-índia. - Sirva-se se quiser, rapaz - disse ele, empurrando um saquinho de fumo oleado até George. - A mistura de fumos é criação minha.
- Não, obrigado. - George pegou um de seus cigarros e fez uma expressão de quem pede desculpas.
- Ah, sim, você não tem tempo para nada mais complicado que um cigarro em seu trabalho. Ainda assim, deveria pensar em fumar cachimbo. Faz maravilhas para a concentração. Se me colocarem em algum lugar onde não permitam fumar, mal poderei completar as palavras cruzadas mais simples. - Ele fez um gesto com o polegar na direção do Daily Telegraph do dia anterior. George tentou não mostrar que estava impressionado. Todos sabiam que as palavras cruzadas do Telegraph eram mais fáceis que as do The Times, mas não era pouca coisa completá-las regularmente. Obviamente, por trás da língua solta de Dennis Dearden, havia um cérebro afiado.
- Assim, quando vi o comportamento da cadela, meu coração saltou. A única pessoa desaparecida, pelo que eu sabia, era Alison. Não suportei a ideia de ver seu cadáver a alguns minutos de minha porta da frente. Assim, corri pelo campo que nem louco, o que não significa que seja muito rápido, atualmente. Detesto dizer, mas me senti um pouco aliviado quando vi que era Peter.
- O senhor chegou a tocar no corpo?
- Nem precisei chegar tão perto. Eu pude ver que Peter não se levantaria mais, antes de chegar até ele. - O homem sacudiu a cabeça, pesaroso. - Coitado daquele maluco. Tinha de escolher a pior das noites para vir até Scardale a pé. Ficou longe daqui por tempo demais e esqueceu o que temperaturas como as de ontem à noite podem fazer com seres humanos. Aquela chuvinha com neve atravessa a pele. Depois, quando o céu fica limpo e a geada começa a cair, não se tem mais resistência. Só se continua em frente, mas o frio penetra até os ossos. Então, tudo o que se deseja fazer é deitar e dormir para sempre. Acho que isso foi o que Peter fez ontem à noite. - Ele chupou o cachimbo, deixando escapar de sua boca um fio gordo de fumaça. - Ele deveria ter parado em Buxton. Sabia como manter-se em segurança na cidade.
George apertou a boca contra o cigarro, pensando que não, Peter Crowther não sabia mais como manter-se em segurança. Suas opções haviam se esgotado. O terror de perder apenas o segundo lugar em que se sentira seguro o trouxera de volta, apesar do medo, ao lugar que o rejeitara. George temera exatamente isto. Apesar de suas preocupações, porém, permitira que Tommy Clough o persuadisse a liberar Crowther, porque era o modo mais conveniente de lidarem com o problema. E graças a um chefe fofoqueiro e a um jornal sensacionalista, agora Peter Crowther estava duro e congelado em um pasto de ovelhas de Derbyshire.
- Sua fazenda é um pouco afastada do caminho que alguém faria, vindo de Buxton a Scardale, não é? - indagou. Apenas isso lhe dava motivo para duvidar da teoria de Dearden sobre a forma como Crowther morrera.
- Você está pensando como um motorista, rapaz - disse Dearden, rindo baixinho. - Peter Crowther pensava como alguém que cresceu andando por esses vales. Volte e dê uma olhada em um mapa. Se traçar uma linha de Scardale a Buxton, evitando o pior das subidas e descidas, terá de passar direto por este campo. Antigamente, antes dos Land Rovers, eu via alguém de Scardale cruzar minhas terras pelo menos uma vez por dia. Não está marcado como uma trilha no mapa, é claro. Não é um caminho público, mas qualquer um por aqui respeita o gado dos outros, de modo que nunca me aborreci, nem meu pai antes de mim, e deixo que o pessoal de Scardale use minhas pastagens como atalho. - Ele sacudiu a cabeça. - Nunca pensei que um deles encontraria a morte neste trajeto.
George levantou-se.
- Obrigado pela ajuda, senhor Dearden. E por permitir que eu me esquentasse um pouco. Voltaremos para tomar um depoimento formal, pedirei que alguém lhe avise quando removerem o corpo.
- Muito obrigado. - Dearden seguiu-o até a porta da frente e espiou para fora, além de George, para o Jaguar marrom estacionado com duas rodas sobre o canteiro. - Deve ser o legista.
Quando George voltou pela mesma estrada e chegou ao campo, o legista da polícia levantava-se e corria as mãos por seu casacão bege de ombros largos para espaná-lo. Ele espiou George com curiosidade através dos óculos quadrados com armação preta e pesada.
- E você é?... - indagou.
- Este é o detetive-inspetor Bennett - interveio Clough. - Senhor, este é o doutor Blake, legista. Ele acabou de realizar um exame preliminar.
O médico concordou, com um breve aceno de cabeça, dizendo:
- Bem, obviamente está morto. Pela temperatura retal, eu diria que o óbito ocorreu entre cinco e oito horas atrás. Nenhum sinal de violência ou ferimento. Pelo modo como está vestido, sem sobretudo, sem roupa impermeável, eu diria que a causa mais provável foi exposição ao frio. É claro que só saberemos com certeza após a necropsia, mas eu diria que as causas foram naturais. A menos que se encontre um modo de responsabilizar o clima de Derbyshire por assassinato - acrescentou, retorcendo a boca com ironia.
- Obrigado, doutor - disse George. - Sendo assim, a que horas ocorreu a morte? Entre uma e quatro da madrugada?
- Humm, então não é apenas mais um detetive inspetor de carinha bonita? Ah, sim, você deve ser aquele com estudos universitários sobre o qual temos ouvido falar - disse o médico, com um sorriso condescendente. - Sim, inspetor, é isso mesmo. Depois de sabermos quem é, poderemos até imaginar o que fazia, perambulando pelos pântanos de Derbyshire no meio da noite com um par de sapatos gastos que mal suportariam a temperatura na cidade e não adiantariam nada aqui. - Blake enfiou um par de Pesadas luvas de couro.
Sabemos quem é ele e o que estava fazendo aqui - disse George, em tom brando. Já fora tratado com condescendência por especialistas, e não estava disposto a deixar-se irritar por um pomposo qualquer que não poderia ser mais de cinco anos mais velho que ele. As sobrancelhas do médico levantaram-se.
- Meu Deus! Aí está, sargento, o exemplo perfeito de como a educação aos nossos policiais melhorará a luta contra o crime. Bem, eu os deixarei agora. Terão meu relatório no início da semana que vem. - Ele desviou de George com um aceno sem muita disposição e rumou para o portão.
- Na verdade, senhor, eu gostaria de vê-lo amanhã. Blake parou e virou-se.
- É fim de semana, inspetor, e não pode haver urgência, já que vocês já têm a identidade de seu cadáver e uma razão para encontrá-lo aqui.
- Sim, mas esta morte está ligada a uma investigação mais ampla e preciso do relatório para amanhã. Desculpe-me se isto interfere em seus planos, mas é por isso que este distrito lhe paga tão bem, caro doutor. - O sorriso de George era agradável, mas seus olhos enfrentavam os de Blake sem piscar.
- Muito bem - disse o médico, impaciente. - Mas aqui não é Derby, inspetor. Somos uma comunidade pequena. A maioria tenta manter isto em mente o tempo todo - finalizou, afastando-se depressa.
- Obviamente esta é a minha semana de fazer novos amigos - comentou George, enquanto se voltava para Clough.
- É um tremendo preguiçoso, esse médico - disse Clough, despreocupado. - Já era hora de alguém lembrar-lhe quem paga por seu Jaguar e seu clube de golfe. Seria de pensar que ele sentiria curiosidade para conhecer a identidade de um corpo com o qual lidou com tanta intimidade, não é mesmo? Aposto que fará uma ligação hoje à tarde exigindo o nome para escrever em seu relatório.
- Temos de dar a notícia à senhora Hawkin - lembrou George. - E rápido. Os tambores da aldeia já devem estar transmitindo as notícias. Ela saberá que há um corpo e pensará o pior. - Ele sacudiu a cabeça. - Deve ser um dia bem ruim, quando saber que seu irmão está morto é uma boa notícia.
Kathy Lomas alimentava os porcos, enchendo seus cochos com uma mistura de pontas murchas de nabos, restos de vegetais e sobras de refeições da aldeia. O ruído alto de pés apressados sobre o solo congelado chamou sua atenção e ela se voltou, vendo Charlie Lomas, que corria pelo campo como cães danados o perseguissem. Ele teria passado direto se ela não o tivesse agarrado em meio à sua agitação.
A velocidade com que o garoto vinha fez com que girasse e batesse com toda força na parede do chiqueiro, onde teria caído bem dentro da pocilga, se a tia não segurasse com força sua jaqueta grossa de couro.
- O que houve, Charlie?
Sem ar, ele curvou-se com as mãos nos joelhos e o peito arfando para poder respirar. Finalmente, gaguejou:
- A cadela do velho Dennis Dearden encontrou um corpo no campo. A mão de Kathy voou para o peito, enquanto exclamava:
- Não pode ser, Charlie. Não acredito nisso.
Charlie conseguiu colocar-se semi-ereto, ofegante e ainda encostado na parede.
- Eu estava andando pelas margens do Scarlaston. Coloquei umas armadilhas ilegais lá e queria tirá-las antes da chegada da equipe de buscas. Cortei caminho pela propriedade de Carter e ouvi alguns policiais conversando. É isso mesmo, tia Kathy, encontraram um cadáver nas terras de Dennis Dearden.
Kathy estendeu a mão convulsivamente na direção de seu sobrinho e agarrou-se a ele. Permaneceram no abraço desajeitado até a respiração de Charlie voltar ao normal.
- Precisamos contar a Ruth - disse ela, finalmente.
- Não posso - disse o garoto, balançando a cabeça. - Eu não posso. Eu estava indo contar a Mamãe Lomas.
- Irei com você - disse Kathy, com firmeza, agarrando-lhe o braço acima do cotovelo e marchando com ele pelos campos até o solar. - Esses Malditos - resmungou com raiva, enquanto caminhavam. - Como ousam falar sobre isso antes de contarem a Ruth? Bem, não ficarei esperando decidirem contar-lhe.
Kathy arrastou Charlie até a cozinha do solar, sem bater. Ruth e Philip estavam sentados à mesa da cozinha, tendo à sua frente os restos do desjejum. Do desjejum dele, Kathy percebeu. Achava que Ruth não comera nada além de chá e cigarros desde o desaparecimento da filha.
- Charlie tem algo para contar - disse, sem preâmbulos. Sabia que era inútil tentar adoçar más notícias.
Charlie repetiu sua história com palavras trêmulas, fitando Ruth com ansiedade. Se ela já não estivesse sentada, teria caído. A pouca cor que restava em seu rosto desapareceu, deixando-a com a aparência de um modelo de cera. Depois, começou a tremer como se tivesse febre. Seus dentes batiam e todo o corpo sacudia. Kathy cruzou a cozinha em meia dúzia de passos largos e abraçou-a, embalando-a como fazia com seus filhos.
Philip Hawkin parecia alheio a tudo à sua volta. Como Ruth, empalide-ceu ao ouvir a notícia, mas este foi o único ponto em comum da resposta de ambos. Ele empurrou sua cadeira, levantou-se e saiu da cozinha, como um sonâmbulo. Kathy estava ocupada demais com Ruth para dar atenção ao fato, mas Charlie ficou olhando para o homem, boquiaberto, incapaz de acreditar no que acabara de presenciar.
George notou que Ruth trocara de roupa. Um vestido de jérsei marrom sob um casaco de malha de lã rústica indicava que ela provavelmente fora para a cama e tentara dormir pela primeira vez desde o desaparecimento da filha. As olheiras escuras de insônia denunciavam seu fracasso. Ela sentou-se encolhida à mesa da cozinha, segurando um cigarro entre os dedos trêmulos. Kathy Lomas estava encostada no fogão, com os braços cruzados e a testa franzida.
- Não entendo - disse Kathy. - Por que Peter pensaria em voltar a Scardale agora, com tudo o que está acontecendo?
- Ele não deve ter pensado nisso, Kathy - disse Ruth, com um suspiro. - Nada penetra em sua mente, exceto o que o afeta diretamente. Devia estar chateado por ter sido detido pela polícia. Depois, quando saiu para beber e pensou que estava seguro, sentiu-se aterrorizado pelo dono do lugar. Ele conhece apenas dois lugares, Buxton e Scardale. Por Deus, deve ter sentido o maior medo de sua vida se pensou que voltar a Scardale era a melhor opção. - Ela amassou o cigarro e esfregou o rosto, como se o lavasse. - Não suporto isso.
- Não foi culpa sua - disse Kathy, com amargura. - Sabemos de quem é a culpa - completou, apertando os lábios e lançando um olhar raivoso para George e Clough.
- Não estou falando de Peter. Isso posse suportar. Não sinto pesar por que não suporto é pensar em Alison. Quando Charlie veio voando para contar que havia um corpo na fazenda de Dearden, eu mal pude respirar Era como se me tivessem golpeado no peito. Tudo em mim parou de funcionar.
Mas ela ainda não estava plenamente recuperada quando ele chegara ali pensou George. Ruth estava sentada à mesa, com as mãos sobre a cabeça como se não quisesse ouvir nem ver nada. Kathy fazia-lhe companhia sentada ao seu lado, com um braço passado sobre seus ombros e acarician-do-lhe os cabelos com a outra mão. George não vira sinal de Philip. Ao indagar sobre ele, Kathy dissera, amarga, que o dono do solar empalidecera ao ouvir a notícia sobre o corpo e, depois, saíra de casa.
- Não deve ter ido longe - dissera a mulher. - É provável que esteja trancado em seu laboratório. É para lá que sempre vai quando não quer participar de algo.
George decidira que o direito de Ruth Hawkin, de ouvir as novidades tão rapidamente quanto possível, suplantava o direito do marido de dividir com a esposa este momento. Assim, transmitira-lhe os fatos de um fôlego só:
- O corpo que encontramos é de um homem.
Ruth levantara a cabeça como se impulsionada por uma mola. A expressão de alegria intensa teria superado o brilho das luzinhas de Natal nas ruas da cidade.
- Não é ela? - indagara Kathy.
- Não é Alison - confirmara George. Respirou fundo e continuou: - Infelizmente, parece que as notícias não são tão boas. Fizemos uma identificação preliminar do corpo. Algum membro da família precisará confirmar, mas acreditamos que o cadáver é de Peter Crowther.
Houve um silêncio longo e perplexo. Ruth simplesmente o fitara, como se tivesse assimilado tudo o que podia com a notícia de que o corpo encontrado não era o da filha. Kathy parecera chocada. Depois, levantara-se com expressão de asco. Dera alguns passos nervosos e, então, encostara-se no fogão, onde ainda estava, com uma carranca. Ah, sim, pensou George, ela sabe a quem culpar.
- Agora, tudo em que posso pensar é: graças a Deus não é minha Alison - continuou Ruth. - Não é terrível? Peter também era um ser humano, mas duvido que alguém queira velá-lo.
- Não precisamos velar ninguém - disse Kathy com sua voz ardendo em George como um buquê de urtiga. - Quando Mamãe Lomas começou sua ladainha sobre as tragédias que veríamos por trazermos estranhos - aldeia, achei que estava apenas fazendo seu discurso enjoado, como sempre. Mas havia alguma verdade no que ela disse. Vocês não conseguiram encontrar Alison, e agora um dos nossos está morto.
- Talvez se vocês o tivessem tratado como um dos seus quando estava vivo, ele não tivesse morrido - disse uma voz atrás deles. George virou-se e viu Philip Hawkin. Não tinha idéia do tempo em que ele estivera parado junto à porta semi-aberta, mas estava claro que ouvira boa parte da conversa. - O pessoal daqui o expulsou e, então, a Gestapo o trouxe de volta - continuou. - Meu Deus, a ignorância das pessoas. O coitado era inofensivo. Nunca havia sido violento. Nunca chegou a encostar a mão em uma mulher, pelo que sei. Sinto pena do infeliz.
- Deveria sentir alívio por não ser o corpo de Alison - disse Clough, ignorando o sentimentalismo de Hawkin.
- Claro que sim. Quem não sentiria? Apesar disso, preciso dizer que estou desapontado com você e seus homens, inspetor. Dois dias e meio e nenhuma notícia de Alison. Vocês estão vendo o sofrimento de minha esposa. Seu fracasso a atormenta. Não podem fazer mais nada? Usar sua imaginação? Fazer buscas mais completas? E quanto à vidente mencionada no jornal? Será que não poderiam dar ouvidos ao que ela tem a dizer? - Ele apoiou os punhos fechados sobre a mesa, com as faces vermelhas. - Estamos sob uma tensão terrível, inspetor. Não esperamos milagres, só queremos que façam seu trabalho e descubram o que aconteceu com nossa garotinha.
George tentou disfarçar sua frustração por trás da máscara de profissionalismo.
- Estamos fazendo o possível, senhor. Ampliamos o número de equipes de buscas. Temos centenas de voluntários de Buxton, Stoke, Sheffield e Ashbourne, bem como daqui mesmo. Se ela está em algum lugar onde possa ser encontrada, nós a encontraremos. Prometo.
- Sei que sim - sussurrou Ruth. - Phil sabe que vocês estão fazendo o possível. É que... o fato de não sabermos é uma tortura lenta.
George balançou a cabeça, demonstrando compreensão.
- Nós os manteremos informados sobre qualquer progresso.
Na rua, o ar impiedoso do inverno açoitou seus pulmões enquanto cruzava rapidamente a praça, respirando fundo. Quase trotando para alcançá-lo, Tommy Clough disse:
- Há algo em Philip Hawkin que me deixa com uma pulga atrás da orelha.
- Suas respostas parecem artificiais - disse George. - Como quando se aprende um idioma em um curso ruim. Pode-se saber a gramática e a pronúncia, mas nunca passamos por falante nativo, porque eles não precisam pensar no que estão dizendo o tempo todo. - Ele se jogou no banco do carona. - Entretanto, apenas o fato de ele parecer estranho não o torna um assassino ou alguém que rapta mocinhas.
- Ainda assim... - Clough ligou o carro.
- Ainda assim, é melhor nos colocarmos a caminho para enfrentar a coletiva da imprensa. O superintendente deve estar querendo a cabeça de alguém, e tenho certeza absoluta de que Carver foi o primeiro a receber sua raiva. - George recostou-se e acendeu um cigarro. Fechou os olhos e imaginou por que optara por ser policial. Poderia ter apresentado seu diploma de Direito em um escritório de advocacia em Derby e iniciado uma carreira. Já poderia estar a caminho da sociedade na firma, especializando-se em algo calmo, como um tabelionato ou direito sucessório. Na maior parte do tempo, repudiava esta idéia. Esta manhã, porém, curiosamente ela parecia interessante.
Abriu os olhos e se deparou com longas filas de homens movendo-se Pelo vale, a uma distância menor que um braço um do outro.
- Não encontrarão nada aqui, exceto o que as equipes anteriores deixaram cair - falou, amargurado.
- Estão usando os menos aptos aqui no vale - ouviu Clough dizer, com segurança. - Os melhores homens farão buscas nos rochedos e partes mais distantes do vale. Em terrenos como este, sempre há pontos que ignoramos porque não os conhecemos como a palma de nossas mãos.
- Acha que encontrarão algo? Clough torceu a boca.
- Depende do que há para encontrarem. Se acho que encontrarão o corpo? Não.
- E por quê?
- Se não encontramos até agora é porque está bem escondido. Isto significa que foi colocado onde está por alguém que conhece melhor essas redondezas que qualquer das pessoas envolvida nas buscas. De modo que em minha opinião, não acharão o corpo. Penso que já descobrimos tudo que podíamos.
George balançou a cabeça.
- Não posso pensar assim, Tommy. Seria como dizer que não apenas não encontraremos Alison, mas também não encontraremos quem a levou e provavelmente matou.
- Sei que é difícil, senhor, mas é com isso que nossos colegas de Cheshire e Manchester têm lidado. Sei que o senhor gostaria de não se lembrar do que Don Smart escreveu, mas talvez aprendamos com a experiência dos policiais daquelas cidades, mesmo se for apenas para sabermos como lidar com o fato de não chegarmos a lugar nenhum. - Clough freou de repente. Não havia onde estacionar na estrada principal, tanto quanto pudessem ver. Automóveis, caminhonetas e Land Rovers amontoavam-se nos meios-fios. Onde parecia haver espaço, este era ocupado por motos e lambretas. - Que bela maçaroca. E agora, o que eu faço?
Havia apenas uma solução sensata. George desceu e, na frente da igreja metodista, viu quando Clough manobrou o grande carro, retornando rumo à estrada para Scardale. Ele endireitou os ombros, deu uma tragada final em seu cigarro e o jogou no meio da rua. Não tinha nenhuma vontade de participar do que o aguardava no salão da igreja, mas também não podia adiar este compromisso.
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 10h24
O purgatório da coletiva da imprensa terminou antes do que George temia, graças ao prático enfoque militar do superintendente Martin, que lidou com a morte de Peter Crowther com uma expressão lacônica de condolência. Quando um dos repórteres perguntara-lhe sobre vazamentos oficiosos para o Courant, Martin voltara sua artilharia para o homem:
- A especulação irresponsável do Courant foi pura invencionice - disse, em tom de comando que, obviamente, não admitia contestação. - Se eles tivessem verificado o boato, teriam ouvido exatamente o mesmo que os outros repórteres, isto é, que um homem estava detido na delegacia para interrogatório, para sua própria proteção, e fora liberado por ser inocente. Não admitirei que meus policiais sofram pressão por causa da irresponsabilidade da imprensa. Agora, temos uma menina desaparecida e precisamos encontrá-la. Responderei a perguntas ligadas a esta investigação.
Alguns repórteres fizeram perguntas rotineiras e, então, inevitavelmente, a cara de raposa de Don Smart fez-se visível, quando ele desviou o olhar de seu bloco de anotações e levantou a cabeça.
- O senhor chegou a ler a matéria desta manhã no News?
A risada de Martin, semelhante a um latido, era tão dura quanto suas Palavras.
- Até conhecê-lo, senhor, eu só havia visto meretrizes do sexo femini-no) em tempos de paz. Ainda assim, talvez eu não esteja muito longe da verdade, apesar de suas suíças, porque seu trabalho, senhor, só presta para encher as colunas das revistas femininas mais sensacionalistas. Não valorizarei suas tentativas débeis de causar tumulto com um comentário, exceto para dizer que sua matéria é lixo da espécie mais fedorenta. Senti-me tentado a proibir sua presença aqui, mas fui persuadido relutantemente por meus colegas, frente ao argumento de que isso só o faria ganhar a própria notoriedade pela qual anseia. Assim, o senhor pode permanecer, mas não se esqueça de que a finalidade de nossa reunião aqui é encontrar uma garota jovem e vulnerável que sumiu de casa, e não vender mais exemplares de seu lixo desprezível.
Ao fim de seu pequeno discurso, o pescoço de Martin tinha o tom avermelhado da crista de um galo. Don Smart apenas encolheu os ombros e voltou a olhar para suas anotações.
- Considerarei isto como "sem comentários", então - disse, baixinho. Martin terminara com a coletiva logo depois. Enquanto os repórteres saíam, murmurando entre si e comparando anotações, George pôs-se em guarda. Agora que o superintendente já se aquecera com Smart, esperava ser feito em pedacinhos por seu chefe. Martin correu um dedo pelos fios curtos e grisalhos de seu bigode e fitou-o. Sem desviar o olhar, tirou seus cigarros do bolso e acendeu um.
- Bem? - disse apenas.
- Perdão? - indagou George.
- Quero sua versão dos acontecimentos de ontem.
George apresentou uma versão resumida de seu envolvimento pessoal com Crowther.
- ... De modo que instruí o sargento Clough a pedir que o policial de Buxton soltasse Crowther. Concordamos em pedir que este policial espalhasse para a imprensa e para os curiosos que Crowther não era suspeito de nada.
- Você não leu o artigo do Courant? - perguntou Martin, áspero.
- Não, senhor. Estivemos em Scardale o dia inteiro. O jornal só chega lá no sábado e não tivemos oportunidade de ler a edição matinal.
- E o policial de plantão não disse nada sobre a matéria ao sargento Clough?
- Certamente não, porque, se tivesse dito, Clough teria vindo a mim, antes de autorizar a liberação do homem.
- Tem certeza?
- Eu teria de verificar com Clough, senhor, mas, pelo que conheço de sua personalidade, creio que ele teria considerado uma matéria assim como uma mudança nas circunstâncias, que poderia afetar a decisão que tomei. George percebeu a testa enrugada de Martin e se preparou para o massacre, mas este não veio. Martin simplesmente assentiu.
- Achei mesmo que havia sido um erro de comunicação. Bem, já temos
dois pontos contra nós. Primeiro, um de nossos homens contou algo que a imprensa nunca deveria saber. Segundo, o policial de plantão não deu aos policiais em campo as informações relevantes para que tomassem decisões importantes. Devemos ser gratos porque a família de Crowther está preocupada demais com a outra perda para ficar pensando em nosso papel em sua morte. Quais são seus planos para hoje?
George fez um sinal com o polegar na direção de uma pilha baixa de caixas de papelão junto a uma das mesas dobráveis.
- Tomei providências para que os depoimentos do pessoal de Buxton fossem trazidos para cá, a fim de que eu possa examiná-los e, ainda assim, estar próximo se as buscas produzirem algum resultado.
- As buscas terminam às quatro, não?
- É, mais ou menos nesse horário - disse George, intrigado pela pergunta.
- Se não houver novidade, quero que você esteja em casa às cinco.
- Como?
- Sei que você e Clough têm trabalhado muito neste caso, e não vejo razão para matarem-se assim. Os dois estão de folga hoje à noite, e isto é uma ordem. Amanhã será um dia importante, por isso quero que você descanse.
- O que tem amanhã, senhor? Martin estalou a língua, impaciente.
- Ninguém lhe contou? Meu Deus, precisamos melhorar a comunicação nesta divisão. Amanhã, Bennett, teremos o prazer de receber dois policiais de outras forças, um de Manchester e outro de Cheshire. Como você certamente já sabia, mesmo antes de o senhor Smart, do Daily News, chamar sua atenção para o assunto, as duas forças tiveram casos recentes de desaparecimentos misteriosos de adolescentes. Esses policiais querem reunir-se conosco para discutirmos possíveis ligações entre nossos casos.
George sentiu-se decepcionado. Perder seu tempo com diplomacia para com outras forças não iria ajudá-lo a descobrir o que acontecera com Alison Carter. A polícia da cidade de Manchester tivera mais de cinco meses para tentar encontrar Pauline Reade, e a de Cheshire já procurava John Kilbri havia três semanas, sem qualquer resultado. Os detetives que trabalhavam nesses casos estavam simplesmente desesperados, mais preocupados em parecer que faziam algo em prol de seus casos sem solução que em ajudar nas investigações em Scardale. Se fosse dado a jogos, apostaria que a reu-nião já era tema de um release para a imprensa, feito pelas outras forças.
- Não seria melhor se Carver se encarregasse da reunião? Afinal, ele é o chefe das investigações - disse, desesperado.
Martin olhou para seu cigarro com ar de repulsa.
- Seu conhecimento sobre os detalhes do caso é superior ao dele - disse apenas. Ele virou-se e começou a encaminhar-se para a porta. - Às onze horas, no quartel-general da divisão - ordenou, sem voltar-se e sem levantar a voz.
George ficou olhando para a porta por um longo tempo, após a saída de Martin. Sentia um misto de raiva e desilusão. As pessoas já começavam a considerar o desaparecimento de Alison como um caso insolúvel. Quer estivesse ligado aos outros casos ou não, estava claro que seus superiores não esperavam mais que ele a encontrasse e, menos ainda, com vida. Apertando as mandíbulas, ele puxou uma cadeira para junto das caixas de papelão e deu início à tarefa de ler os depoimentos restantes das testemunhas. Sabia que, provavelmente, isto era inútil, mas havia uma pequena chance de descobrir algo importante. E parecia-lhe que só poderia contar com pequenas chances.
Domingo, 15 de dezembro de 1963, 10h30
Pelo menos uma vez, um dos jornais havia acertado. Cada exemplar do Sunday Standard continha um pôster de 30 x 50cm. Exemplares adicionais haviam sido distribuídos a cada banca de jornais no país, e cada uma pela qual George passava a caminho da delegacia o exibia em local bem visível-Sob a manchete em grandes letras pretas, que dizia:
VOCÊ VIU ESTA MENINA?
jornal reproduzira um dos excelentes retratos de Alison feitos por Philip. O texto sob a manchete dizia:
Alison Carter está desaparecida de sua casa, na aldeia de Scardale, Derbyshire, desde às quatro e meia da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro.
Descrição: 13 anos, 1,52m, magra, cabelos loiros, olhos azuis, pele clara, com uma pequena cicatriz que atravessa sua sobrancelha direita; usava japona azul-marinho sobre uniforme escolar que consistia de jaqueta preta, colete marrom, saia marrom, blusa branca, gravata preta e marrom, meias pretas de lã e botas pretas de pele de carneiro.
Qualquer informação pode ser dada à polícia do condado de Derbyshire, em Buxton, ou a qualquer policial.
É assim que os jornalistas ajudam a polícia, pensou George. Ele esperava que Don Smart tivesse se engasgado com o café da manhã ao ver o pôster escorregando de dentro das páginas do Sunday Standard. Imaginou, também, quantas casas naquela área estariam exibindo o pôster ao anoitecer, achando que veria mais fotos de Alison Carter coladas nas janelas de High Peak que árvores de Natal através delas.
Era um bom começo de dia, pensou George, animado. Já começara bem. Uma vez que não precisara sair correndo antes da primeira luz do dia, tivera a chance de despertar naturalmente e ficar deitado, conversando com Anne no conforto da cama. Ele trouxera o chá para cima e haviam desfrutado de uma rara hora de intimidade, que selara a noite que haviam passado juntos. Se lhe tivessem perguntado antes, George teria negado com veemência a possibilidade de tirar Alison Carter de sua mente por mais de um ou dois minutos. Entretanto, a companhia de Anne, sempre tão descomplicada, permitira-lhe desligar-se das frustrações de sua investigação. aviam jantado à luz de velas e, depois, ouvido rádio, aconchegados no sofá, dando uma forma vaga a seus sonhos com relação ao filho ainda não nascido. Fora um descanso muito curto, mas que servira para repousá-lo um pouco, restaurando sua confiança, apesar do sono agitado.
George prendeu o pôster no quadro de avisos do departamento de investigações criminais com percevejos que tirou de alguns comunicados que ali estavam. Isto serviria como um lembrete muito claro de que o caso ainda estava vivo, para os detetives visitantes.
- Ficou bem, aí - disse Tommy Clough, com a voz ecoando pela sala enquanto a porta batia às suas costas. Ele retirou o sobretudo e lançou-o no cabide.
- Eu não sabia que estavam planejando isto - disse George, batendo com a ponta do dedo no pôster.
- Combinaram tudo ontem de manhã - disse Clough, despreocupado, fechando o botão do colarinho de sua camisa e apertando a gravata enquanto cruzava a sala.
George sacudiu a cabeça.
- Gostaria de saber de tudo o que você sabe, Tommy. Nada acontece aqui sem seu conhecimento.
Clough deu-lhe um sorriso ao dizer:
- Quando você estiver aqui há tanto tempo quanto eu, terá esquecido mais do que eu jamais saberei. Descobri sobre os pôsteres apenas porque estava passando pelo escritório da frente quando o mensageiro entrou para pegar a foto. Eu ia lhe contar, mas acabei esquecendo. Desculpe, senhor.
- Se trabalhamos juntos neste caso, é melhor me chamar apenas de "George" quando estamos sozinhos - disse ele, oferecendo cigarros a Clough, que pegou um.
- Como quiser, George - respondeu.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, a porta abriu-se novamente e o superintendente Martin entrou, em seu passo de marcha, seguido por dois homens que usavam ternos azul-marinhos quase idênticos, chapéus de feltro e capas impermeáveis. Apesar das roupas semelhantes, não havia como confundi-los. Um tinha ombros largos, tronco volumoso e pernas quase que comicamente curtas, que mal lhe permitiam atingir a altura de 1,72m exigida pela polícia. O outro devia medir dez centímetros mais que o primeiro, mas dava a impressão de que desapareceria se ficasse atrás um poste. Martin apresentou-os. O corpulento era o detetive e inspetor-hefe Gordon Parrott, da polícia de Manchester; o outro era o detetive inspetor-chefe Terry Quirke, da força policial de Cheshire.
Martin deixou-os, prometendo que mandaria chá para todos. Inicialmente, os quatro homens pareciam cautelosos como cães desconhecidos, apresentando seu melhor comportamento em um ambiente estranho. Aos poucos, porém, à medida que ofereciam detalhes de suas próprias operações sem que ninguém os criticasse, começaram a relaxar. Algumas horas depois, os quatro haviam concordado que havia tanta razão para suporem que as três crianças desaparecidas haviam sido raptadas pelo mesmo indivíduo quanto para pensarem que eram três desaparecimentos perpetrados por pessoas diferentes.
- Isto é, não podemos afirmar nada, nem num sentido nem no outro - disse Parrott, taciturno.
- Exceto que não é muito comum termos casos nos quais não há sequer um indício apontando para o que aconteceu - disse George. - Isso é o que vocês têm. Eu, pelo menos, encontrei uma cadela atada em uma árvore e sinais de luta em outro ponto do matagal. Este é o elemento crucial que separa o desaparecimento de Alison Carter dos casos de Pauline Reade e John Kilbride.
Ouviram-se sons de concordância entre todos.
- Vou lhes dizer uma coisa - acrescentou Clough. - Eu apostaria que Pauline e John foram levados por alguém de carro. Talvez até por duas pessoas diferentes. Uma que serviu de motorista e outra que dominou as crianças. Se o raptor estivesse a pé, teríamos testemunhas, mas entrar em um carro é uma questão de segundos. Contudo, apesar daquele casal que viu um Land Rover estacionado perto da igreja, não vejo como isso possa ter acontecido a Alison. Um raptor não teria levado a menina da floresta de "Cardale até a igreja metodista, a menos que fosse Tarzan. Além disso, ninguém viu veículos estranhos na aldeia naquela tarde.
- E um veículo estranho certamente seria notado - confirmou George. Se um rato espirrasse em Scardale, receberia a oferta de meia dúzia de remédios caseiros contra resfriado antes de poder limpar o nariz.
Perdemos nosso tempo - disse Parrott, com um suspiro. George negou com a cabeça.
- Por incrível que pareça, não foi tempo perdido. Nossa reunião clareou minhas idéias. Agora sei que posso eliminar uma opção. Quanto mais eu falava e ouvia, durante esta manhã, mais me convencia de que não estamos lidando com um rapto por um estranho. O que quer que tenha acontecido com Alison, ela sabia com quem estava lidando.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 7h40
A boa disposição que ajudara George a superar mais um dia de buscas infrutíferas desapareceu ao ver a edição matinal do Daily News. Desta vez, a vidente de Don Smart conseguira dar-lhe a primeira página do jornal.
GAROTA DESAPARECIDA: VIDENTE FRANCESA OFERECE PISTA DRAMÁTICA
Exclusivo da equipe de reportagem
As investigações sobre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, assumiram um curso dramático hoje, quando uma clarividente deu novas pistas cruciais à polícia sobre o paradeiro da menina.
Madame Colette Charest forneceu detalhes sobre os supostos movimentos de Alison ao desaparecer, cinco dias atrás, da pequena aldeia de Scardale, em Derbyshire.
Falando de sua casa em Lyon, na França, Madame Charest relatou seus achados com base em um mapa do distrito, uma fotografia da bonita menina loira e recortes do Daily News.
Impressionante
Os detalhes foram passados, ontem à noite, ao detetive e inspetor-chefe M.C. Carver, que chefia a equipe de detetives encarregada de investigar o misterioso desaparecimento. Segundo Carver, "Não podemos nos permitir ignorar coisa alguma. O relatório dela parece impressionante".
Madame Charest já surpreendeu a polícia francesa com seus poderes, auxiliando em buscas anteriores.
A viúva francesa de 47 anos disse que "viu" Alison andando entre as árvores com um homem conhecido. Este teria entre 35 e 45 anos de idade e cabelos escuros.
Ela disse que Alison estava esperando o homem perto da água, e que seu estado de espírito era de tristeza e medo.
Ainda viva
O que impressiona é que Madame Charest insiste em sua convicção de que Alison ainda está viva e em segurança. "Ela está vivendo em uma cidade. Está em uma casa dentre outras semelhantes, de tijolos aparentes, sobre uma colina."
"Ela chegou lá em algo como uma pequena caminhoneta. Era noite e, desde que chegou a casa, a menina não saiu à rua. Não tem permissão para sair, mas não sente nenhuma espécie de dor."
"Há um pátio de escola próximo da casa. Ela pode ouvir as crianças brincando e isto a deixa triste."
Enquanto isso, equipes de voluntários trabalharam incansavelmente com os policiais e equipes de resgate de montanhistas que vasculham os vales e pântanos em torno de Scardale.
Cães e ganchos foram usados para a verificação de uma grande área de pântanos que compreende vários lagos e poços.
O chefe de polícia Carver disse: "Estamos ampliando as buscas por uma extensão tão abrangente quanto possível. O público tem cooperado imensamente, mas ainda precisamos de informações positivas sobre os movimentos de Alison depois que saiu de casa com sua cadela, na tarde de quarta-feira."
"Talvez esta nova informação possa acender a memória de alguém. Não importa quão insignificante possa parecer, queremos ouvir os populares que possam saber de algo."
- Mas o que Carver pensa que está fazendo? - reclamou George voltando-se para Anne. - A última coisa que desejamos é incentivar este tipo de coisa. Seremos engolfados por todas as cartomantes lunáticas do país.
- Provavelmente distorceram o que ele falou. - Anne disse, passando calmamente a manteiga no pão.
- E você provavelmente está certa - reconheceu ele, dobrando o jornal e empurrando-o sobre a mesa na direção da esposa, enquanto se levantava. - Estou indo. Não tenho hora para voltar.
- Tente chegar em casa em um horário decente, George. Não quero que você adquira o hábito de chegar nos horários mais malucos. Não quero que nosso filho cresça sem conhecer o pai direito. Já ouvi outras esposas falando sobre seus maridos. É quase como se falassem sobre parentes distantes dos quais elas não gostam muito. Parece que esses homens tratam suas casas como um último recurso, um lugar aonde vão quando bares e clubes fecham. As mulheres dizem que até as férias são tensas, porque saem da cidade com um estranho que passa o tempo todo preocupado e mal-humorado. Ou, então, bebendo e jogando.
George sacudiu a cabeça.
- Você sabe que não sou este tipo de homem.
- Acho que a maior parte delas também não achava que acabaria assim, logo que se casaram - disse Anne, seca. - Seu trabalho não é como os outros. Você não o deixa para trás quando acaba o expediente. Só quero garantir que você se lembrará de que há mais, na vida, que prender criminosos.
- Como eu poderia esquecer, quando tenho você me esperando em casa? - Ele curvou-se para beijá-la. Ela exalava um aroma doce, como o de biscoitos quentes. Agora ele sabia que aquela era a fragrância matinal natural de sua esposa. Ela lhe dissera que o cheiro dele era vagamente almiscarado, Como o pêlo de um gato limpo. Fora então que ele descobrira que todo mundo tinha seu próprio odor característico. Imaginou se a lembrança da assinatura aromática da filha seria outra das torturas pelas quais Ruth
rrawkin passava. Contendo um suspiro, ele abraçou Anne rapidamente e correu para seu carro, antes que as emoções saíssem de seu controle.
Parando na sede de sua divisão para pegar Tommy Clough, decidiu faltar à coletiva da imprensa. O superintendente Martin lidava com Don Smart muito melhor do que ele jamais conseguiria, e a última coisa de que precisava era ser levado a uma confrontação pública, que pressentia ser quase inevitável, devido à raiva que sentia.
- Vamos falar com os Hawkins - disse a seu sargento. - Acho que, lá no fundo, eles sabem que a esperança está morrendo. Não querem admitir, nem para si nem para os outros. Temos o dever de ser honestos com eles sobre a situação.
O limpador de pára-brisas varria a chuva com monotonia aborrecida enquanto cruzavam os pântanos até Scardale. Finalmente, Clough disse, com desânimo:
- Ela não poderia estar viva, exposta a este clima.
- Ela não poderia estar viva em nenhum lugar. Não é como raptar uma criancinha que se pode intimidar e manter trancada em um sótão. Manter uma adolescente cativa é algo totalmente diferente. Além disso, assassinos sexuais não esperam para obter o que desejam. Querem fazer tudo imediatamente. Se ela tivesse sido raptada por alguém idiota o bastante para pensar que Hawkin tem dinheiro para pagar pela libertação de Alison, já teríamos um pedido de resgate a esta hora. - George suspirou, enquanto levantava a mão para cumprimentar o policial encharcado que ainda montava guarda no portão de acesso a Scardale. - A questão nem diz respeito ao - e os Hawkins pensam. Nós é que precisamos enfrentar o fato de que, agora, estamos buscando apenas um corpo.
O silêncio foi quebrado apenas pelo limpador de pára-brisas, até chegarem à praça da aldeia e estacionarem ao lado do trailer da polícia. Os dois homens correram pela chuva e encolheram-se sob a pequena varanda, esperando que Ruth Hawkin respondesse às batidas na porta. Para sua surpresa quem a abriu foi Kathy Lomas. Ela deu um passo para trás, para permitir-lhes a passagem.
- É melhor entrarem - disse, com rispidez.
Seguiram em fila até a cozinha. Ruth estava sentada à mesa, encolhida em um roupão de náilon acolchoado cor-de-rosa, com olhos avermelhados cabelos soltos e desgrenhados. Do outro lado estava sentada Mama Lomas, usando camadas de casaquinhos de lã encimados por um xalp xadrez preso por um alfinete de segurança. George reconheceu a quarta mulher no cômodo como sendo Diane, irmã de Ruth e mãe de Charlie Lomas. As três mulheres mais jovens fumavam, mas Mamãe Lomas parecia confortável em meio à fumaça.
- O que houve? - perguntou Mamãe Lomas, antes que George pudesse dizer algo.
- Não temos novidades - admitiu ele.
- Bem diferente dos jornais, então - disse Diane Lomas, amarga.
- É, eles sempre encontram o que dizer - acrescentou Kathy. - Mesmo que seja pura besteira, como Alison estar presa em alguma casa sobre uma colina, em alguma cidade. Não se pode esconder alguém em uma cidade, exceto se a pessoa deseja permanecer escondida. Essas casas têm paredes finas como papelão. Não podem impedir que publiquem esse lixo?
- Vivemos em um país livre, senhora Lomas. Também não gostei do que li no jornal esta manhã, mas não podemos fazer nada a respeito.
- Olhe para o estado dela - disse Diane, apontando Ruth com a cabeça. - Eles não pensam no efeito que as notícias terão sobre ela. Isso não é certo.
Os lábios de George apertaram-se, formando uma linha fina. Finalmente, ele disse:
- É por isso, em parte, que estamos aqui, senhora Hawkin. - Ele puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Ruth e sua irmã. - Seu marido está?
- Foi a Stockport - respondeu Mamãe Lomas, com azedume. - Ele precisava comprar produtos químicos para suas fotografias. É claro que pode ir e vir como bem entende, o que não é verdade para todos os que nascem e crescem em Scardale. - Suas palavras permaneceram no ar, como um desafio.
George recusou-se a ser atingido pela ironia. Sua própria consciência ja o entristecia o suficiente por seu papel na morte de Peter Crowther; não precisava que a língua afiada de Mamãe Lomas o machucasse ainda mais. Simplesmente balançou a cabeça, em reconhecimento, e continuou falando:
- Queria dizer-lhes que continuamos procurando por Alison. Contudo,
eStaria mentindo se não lhes comunicasse que acho que as chances de encontrá-la viva estão a cada dia mais escassas.
Ruth levantou a cabeça, com o rosto transformado em uma máscara de resignação.
- Acha que isso é novidade para mim? - disse, cansada. - Não espero nada além disso, desde o minuto em que percebi que minha filha havia desaparecido. Suporto isso apenas porque preciso. O que não suporto é ignorar o que lhe aconteceu. É tudo que peço, que vocês descubram o que aconteceu com ela.
George respirou fundo.
- Acredite, senhora Hawkin, estou determinado a isso. A senhora tem minha palavra de que não desistirei de Alison.
- Belas palavras, rapazinho, mas o que significam? - indagou a voz irônica de Mamãe Lomas, cortando o clima de profunda emoção.
- Significa que continuaremos procurando. Que continuaremos interrogando pessoas. Já vasculhamos o vale de uma ponta a outra, já procuramos nas adjacências. Dragamos reservatórios e os mergulhadores da polícia verificaram o fundo do rio Scarlaston. Não encontramos nada além do que já havíamos achado nas primeiras vinte e quatro horas, mas não desistiremos.
Mamãe Lomas fez um esgar de desprezo, com o nariz e o queixo quase se encontrando ao retorcer todo o rosto.
- Como pode sentar aí e encarar Ruth, dizendo que vasculharam todo o vale? Vocês não chegaram nem perto da antiga mina de chumbo.
14
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 9h06
Perplexo, George viu sua surpresa espelhada nos rostos à sua frente. Ruth franziu as sobrancelhas, como se não tivesse certeza de que ouvira direito. Diane parecia atônita.
- Que antiga mina de chumbo, Mamãe? - indagou.
- Você sabe, dentro do Rochedo de Scardale.
- Nunca ouvi falar nisso - disse Kathy, parecendo levemente afrontada.
- Espere aí - interrompeu George. - Sobre o que estamos falando? A que mina de chumbo a senhora se refere?
Mamãe emitiu um suspiro exasperado.
- Como posso ser ainda mais direta? Dentro do Rochedo de Scardale há uma antiga mina de chumbo. Túneis, câmaras, essas coisas. Não é muito visível, mas está lá.
- E quanto tempo faz que fechou? - perguntou Clough.
- Como eu poderia saber? - protestou a velha. - Desde que me entendo por gente ela está fechada. Que eu saiba, existe desde que os romanos chegaram à Inglaterra. Eles extraíram chumbo e prata por esses lados.
- Nunca ouvi falar de uma mina de chumbo dentro do rochedo - insistiu Diane. - E vivo aqui desde que nasci.
Com dificuldade, George resistiu ao impulso de gritar com as mulheres, indagando apenas:
- Onde, exatamente, é esta mina?
Clough estava contente porque não era a ele que se dirigia esta voz cortante como uma lâmina. Ele não sabia que George era capaz de ser tão assertivo, mas isto só lhe confirmava que fizera bem em unir-se a ele.
Mamãe Lomas encolheu os ombros.
- Como posso saber? Como eu disse, desde que me entendo por gente a mina está fechada. Tudo o que sei é que a entrada é em algum ponto lá trás do arvoredo. Havia um riacho por perto, mas secou anos atrás, quando eu era mocinha.
- Assim, provavelmente ninguém sequer sabe sobre a existência da mina - disse George, curvando os ombros em desânimo. O que parecera conduzir a algo digno de ser investigado desmanchava-se em suas mãos.
- Bem, eu sei sobre ela - disse Mamãe, com energia. - O dono das terras me mostrou. Em um livro. O antigo dono das terras, quero dizer. Não Philip Hawkin.
- Que livro? - indagou Ruth, mostrando o primeiro sinal de ânimo desde a chegada dos dois homens.
- Não sei como se chamava, mas acho que poderia reconhecê-lo - disse a velha senhora, empurrando sua cadeira para longe da mesa. - Será que aquele seu marido jogou fora os livros do antigo dono desta casa? - Ruth negou. - Então vamos dar uma olhada.
Na ausência de Philip Hawkin, o estúdio era tão frio quanto um corredor gélido. Ruth estremeceu e apertou o roupão ainda mais contra seu corpo. Diane jogou-se em uma poltrona e pegou seu maço de cigarros, acendendo um sem oferecer aos outros. Depois, encolheu-se como um gato vira-latas gorducho com um rato entre as patas. Kathy ficou mexendo com um par de prismas sobre a escrivaninha, segurando-os contra a luz e virando-os de um lado para outro. Enquanto isso, Mamãe examinava as estantes e George prendia o fôlego.
Mais ou menos na metade da prateleira do meio, ela esticou um dedo ossudo:
- Ali - disse, satisfeita. - Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vole do Scarlaston.
George estendeu um braço e puxou o volume para baixo. Certamente já era um livro atraente, mas estava quase destruído pelo tempo e manuseio.
Encadernado originalmente em marroquim vermelho, media 25 x 20cm e tinha aproximadamente dois centímetros de espessura. Ele o deitou sobre a escrivaninha e abriu-o.
-Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vale do Scarlaston, no Condado de Derbyshire, Incluindo a Caverna do Gigante e a Misteriosa Fonte do Próprio Rio. De acordo com os relatos do Reverendo Onesiphorus Jones. Publicado pelos senhores King, Bailey & Prosser, de Derby, MDCCCXXII - leu George. - 1822 - disse. - E então, onde está o trecho sobre a mina, senhora Lomas?
Os dedos artríticos da mulher passaram pela folha-de-rosto do livro e percorreram o sumário.
- Lembro que era perto do meio - disse, em voz baixa.
George curvou-se sobre o ombro de Mamãe Lomas e examinou rapidamente o sumário.
- Será aqui? - indagou, apontando para Capítulo XIV- Os Mistérios Secretos do Rochedo de Scardale; Homens Antigos no Vale; Ouro-de-Tolo e o Metal do Alquimista.
- Acho que sim. - Ela deu um passo para trás. - Foi há muito tempo. O antigo proprietário gostava de me contar a história do vale. Sua esposa era uma forasteira, entende?
George ouvia, mas com atenção dividida, folheando páginas grossas e amareladas, manchadas de mofo aqui e ali, até chegar à seção que buscava. Ali, ao lado de desenhos a bico-de-pena competentes, mas artificiais, estava a história da mina de chumbo em Scardale. Os veios de chumbo e pintas de ferro haviam sido descobertos no final da Idade Média, mas apenas no século XVIII começaram a ser explorados plenamente, quando quatro galerias principais e algumas cavernas foram escavadas. Entretanto, os filões eram menos produtivos do que pareciam inicialmente e, em algum ponto durante a década de 1790, a mina deixara de operar comercialmente. À época em que o livro fora escrito, ela já havia sido fechada com uma paliçada de madeira.
George apontou para a descrição.
- Será que essas instruções bastam para encontrarmos a mina?
- Você nunca a encontraria - disse Diane. Ela viera por trás e espiava sobre seu braço. - Mas posso dizer-lhe quem poderia achá-la.
- Quem? - perguntou George. Não poderia ter sido mais difícil tirar chumbo do chão que extrair informações dos nativos de Scardale, pensou ele, cansado.
Aposto que nosso Charlie os levaria até lá - disse Diane, ignorando a exasperação do detetive. - Ele conhece o vale melhor que qualquer um por aqui, e está em boa forma. Se for preciso escalar ou penetrar entre as rochas, ele será capaz. É o que vocês precisam, senhor Bennett. De nosso Charlie. Isto é, se ele estiver disposto a ajudá-los, depois do modo como foi tratado.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 11H33
Charlie Lomas era tão ágil quanto um cachorrinho puxando a guia ao sentir o cheiro de coelho em suas narinas. Como George, ele se dispôs a correr até o lugar em que o rio encontrava o rochedo assim que soube o que estava acontecendo. Contudo, diferentemente de George, que aprendera a virtude da paciência, ele não via vantagem em esperar a chegada de espeleólogos. Para Charlie, ter crescido em Scardale era suficiente, no que se referia a investigar os mistérios do Rochedo de Scardale. Assim, pusera-se a andar de um lado para outro junto ao trailer da polícia, fumando sem parar e bebericando nervosamente uma xícara de chá, muito depois que este provavelmente já estava prestes a transformar-se em uma pedra de gelo.
George olhava furiosamente através da janela do trailer para a aldeia.
- Não que não estejamos acostumados a ter informações sonegadas, mas geralmente há uma razão bem clara para isso. A maioria das pessoas está protegendo a si mesma ou a outra pessoa. Ou, então, são uns sabotadores que sentem prazer quando nos frustram. Mas qual é o caso aqui? É como querer tirar leite de pedra.
Clough suspirou:
- Não creio que façam isso por mal. Eles nem mesmo percebem o que estão fazendo na maior parte do tempo. É um hábito adquirido ao longo dos séculos, e acho que não vão mudar de repente. É como se achassem que seus assuntos não são da conta de ninguém.
- Vai além disso, Tommy. Eles vivem na companhia uns dos outros há tanto tempo que sabem tudo o que há para saber sobre Scardale e sobre os habitantes daqui. Eles simplesmente não percebem que as pessoas de fora não têm esse mesmo conhecimento.
- Entendo o que você quer dizer. Sempre que descobrimos algo que deveriam ter nos contado, é como se estivessem perplexos por ainda não sabermos o que já sabiam.
George concordou com a cabeça.
- Este é o exemplo perfeito. Mamãe Lomas não disse, em nenhum momento: "Ah, vocês sabiam que há uma antiga mina de chumbo dentro do Rochedo de Scardale? Talvez seja bom procurar por lá." Não. Como todos os outros, ela presumiu que saberíamos sobre a mina e sua única intenção, ao mencioná-la, foi provocar-me, porque acha que temos sido incompetentes.
Clough levantou-se e pôs-se a caminhar pelo espaço apertado do trailer.
- É de enlouquecer, mas não podemos fazer nada a esse respeito, porque nunca sabemos o que não sabemos, até descobrirmos que não sabíamos...
George esfregou os olhos, cansado.
- Não consigo parar de pensar que se pelo menos eu tivesse conseguido fazer com que essas pessoas me contassem o que sabem, poderíamos ter salvado Alison.
Clough parou de caminhar e fitou o chão.
- Acho que não. Provavelmente, quando o primeiro telefonema foi dado para a delegacia de Buxton, já era tarde demais para Alison Cárter. - Ele levantou a cabeça e seu olhar encontrou o de George. Incapaz de suportar o que via ali, ele acrescentou: - Mas talvez toda essa minha confiança seja só porque não suporto a alternativa.
George voltou a ler o texto no livro do século XIX, tentando combinar sua descrição com o mapa em escala ampliada daquela área. Tommy Clough, reconhecendo suas Incitações, sentou-se novamente junto à janela e observou enquanto um casal de melros ciscava na terra sob o abrigo fechado da copa de um teixo muito antigo. Logo haveria algo a fazer; por enquanto, contentava-se em ficar ali sentado pensando.
Os espeleólogos chegaram em uma caminhoneta Commer com fileiras de assentos fixados com rebites ao piso. Resgate em Cavernas de Peak Park estava pintado de forma amadora na lataria. Meia dúzia de homens espalhou-se pela praça, aparentemente ignorando a chuva e retirando muitos equipamentos da traseira do veículo. Um dos homens afastou-se do grupo e foi até o trailer. Charlie parou de andar e olhou-o com ansiedade, como um cão perdigueiro pronto para cumprir seu dever. Detendo-se na porta, o homem perguntou:
- Quem é o chefe por aqui?
George levantou-se, curvando-se por causa do teto baixo.
- Detetive-inspetor George Bennett - disse, estendendo a mão.
- Você se parece com Jimmy Stewart, já lhe disseram? - perguntou o homem, sacudindo a mão de George brevemente.
George franziu a testa, enquanto percebia o sorriso largo de Clough.
- É, já me disseram. Obrigado por vir.
- O prazer é nosso. Há tempos não fazemos um resgate verdadeiro. Estamos ansiosos por algo que saia um pouquinho do comum. Como faremos? - Ele sentou-se em um dos bancos, com a borracha de seu traje de mergulho enrugando-se sobre a barriga plana.
- Temos uma vaga idéia de onde é o ponto de entrada para a mina - disse George, apresentando um resumo de suas conclusões a partir da leitura do livro e do exame do mapa. - Charlie é morador de Scardale e conhece o vale, de modo que provavelmente poderá nos dar algumas dicas no caminho. Se encontrarmos a caverna, quero estar com vocês, quando entrarem.
O homem olhou-o, em dúvida.
- Já explorou cavernas? Tem experiência com alpinismo ou escaladas?
- Não, mas estou em boa forma e sou forte.
- Não importa o que diga, você não está preparado. Somos uma equipe e estamos acostumados a trabalhar juntos e a cuidar uns dos outros. Você quebrará nosso ritmo. Não quero entrar em um sistema de cavernas inexploradas com alguém que não tem a mínima idéia do que está fazendo.
Ele friccionou a bochecha com as juntas, em um gesto nervoso. - Pessoas morrem em cavernas - acrescentou. - Por isso estamos aqui.
- Tem razão - disse George. - Pessoas morrem em cavernas. Exatamente por isso é que preciso estar lá com vocês. É possível que se deparem com a cena de um crime, e não estou disposto a comprometer possíveis Provas. Vocês são especialistas em uma área, não nego isso. Mas também sou, em minha área. Sendo assim, vocês não entrarão lá sem mim. E então?
- Pretende providenciar equipamento extra ou terei de fazer com que um de seus homens tire a roupa e me dê seu traje emborrachado?
O espeleólogo parecia prestes a iniciar uma guerra.
- Não colocarei minha equipe em risco por causa de sua inexperiência.
- Não estou pedindo isso. Ficarei atrás, deixarei que façam seu trabalho e verifiquem se há perigo. Seguirei suas ordens, mas preciso estar lá - disse, implacável.
- Também quero ir junto e tudo mais - falou Charlie, incapaz de se manter em silêncio por mais um minuto. -Já estive em cavernas, já explorei algumas e fiz escaladas. Tenho experiência. Conheço o terreno. Precisam me levar junto.
Tommy pousou a mão em seu braço.
- Não é uma boa idéia, Charlie. Se Alison está lá, acho que não será uma visão agradável. Você ficaria abalado e poderia destruir provas, sem querer. Em meu primeiro caso de assassinato, achei que seria a próxima vítima. Vomitei na cena do crime e o investigador-chefe olhou para mim como se fosse me matar. Acredite, é melhor se apenas nos ajudar a encontrar o caminho.
O jovem fez uma careta, empurrando os cabelos para tirá-los da testa.
- É minha prima, senhor Clough. Alguém da família tem que estar lá.
- Confie no detetive Bennett. Ele fará o que é melhor - disse Tommy. - Ele também quer encontrá-la tanto quanto você.
Charlie virou-se, com os ombros caídos.
- Então, o que é que estão esperando agora? - perguntou, tentando ser ríspido, mas sendo traído pelo tremor em sua voz.
- Preciso me trocar - falou George. - Não sei seu nome - acrescentou para o espeleólogo.
- Sou Barry. - Ele suspirou. - Tudo bem, temos um traje extra que deverá servir, mas as botas são por sua conta.
- Tenho botas de cano alto no carro. Será que servem?
- Terão de servir - disse Barry, de mau humor.
Vinte minutos depois, eles formavam uma estranha procissão descendo o vale, encaminhando-se para o matagal em que Charlie descobrira o local em que Alison brigara com alguém. O rapaz ia na frente, seguido de perto por George e Clough. Atrás, vinham os espeleólogos, rindo, conversando e fumando, animados como se não fossem enfrentar nada mais difícil que a exploração dominical costumeira de um sistema fascinante de cavernas.
Ao chegarem à base do rochedo, os espeleólogos agacharam-se sob as árvores mais próximas e esperaram orientações. Charlie moveu-se lentamente ao longo da borda do calcário, empurrando arbustos e, ocasionalmente, escalando com dificuldade rochas tombadas para verificar se obscureciam o que restaria de uma paliçada de cento e cinqüenta anos. George acompanhava-o sempre que podia, mas deixava a maior parte do esforço de busca para Charlie, comparando constantemente a topografia com a descrição do livro.
Charlie forçou caminho entre árvores pequenas que se entrelaçavam, então avançou por cima de um conjunto de rochas soltas e desapareceu do outro lado. Não podiam vê-lo, mas sua voz chegava claramente até os homens que aguardavam.
- Há uma brecha no rochedo, aqui. Parece... Parece que havia uma barricada, mas já está podre.
- Espere aí, Charlie - ordenou George. - Sargento, venha comigo. Precisamos ver se há algum sinal de desordem além do rastro deixado pela passagem de Charlie.
Eles atravessaram com dificuldade o ajuntamento de rochas, tentando evitar o açoite de ramos finos suspensos e tropeços nos arbustos espinhosos que estavam por toda parte, misturados à vegetação rasteira.
- É impossível dizer se alguém esteve aqui - disse Clough, com óbvia frustração. - Pode-se chegar a este lugar cruzando a floresta ou vindo pelo outro lado do vale. Como cenário de um crime, não poderia ser mais inútil.
Eles subiram penosamente sobre as rochas e encontraram Charlie dançando impacientemente, saltitando de um para outro pé.
- Olhem - exclamou o garoto, tão logo os viu. - Tem de ser aqui, não é, senhor Bennett?
Era difícil conciliar o que podiam ver com a representação da entrada da mina que George estivera estudando a manhã inteira. Pedaços de pedra haviam caído da boca do túnel, transformando totalmente seu formato. O arco que ferramentas rústicas haviam escavado no calcário macio agora Parecia-se mais com uma fenda triangular estreita, pelo menos duas vezes mais alta que havia sido originalmente. Samambaias chegavam à altura dos quadris, enquanto um sabugueiro camuflava a parte mais alta do que parecia ser a entrada.
- Vejam - exclamou Charlie, orgulhoso. - Dá para ver os restos de rebites que usaram para prender a barricada de madeira. - Ele apontou para algumas protuberâncias escuras que se projetavam da rocha em um dos lados. - E aqui... - ele puxou uma samambaia para um lado, revelando os restos apodrecidos de madeira grossa. - Achei que conhecia cada centímetro deste vale, mas nunca vim até aqui.
George olhou à sua volta, desanimado. Charlie pisoteara o terreno como um jovem elefante. Se Alison passara por ali, sozinha ou com alguém, a essa altura não havia nenhum traço que denunciasse isso. Respirou fundo e chamou:
- Barry, traga seus homens até aqui. - Virou-se para Clough. - Sargento, quero que você e o senhor Lomas voltem ao trailer. Precisarei de alguns policiais aqui, para isolarem a área. E nem uma palavra para a imprensa, por enquanto.
- Certo, senhor. - Clough segurou o ombro de Charlie com força. - É hora de deixarmos os especialistas fazerem seu trabalho.
- Eu tenho que entrar - disse Charlie, afastando-se com agilidade e disparando rumo à entrada da caverna, mas George estendeu uma perna e lhe deu uma rasteira. Charlie desabou no chão, olhando-o com raiva e mágoa.
- Agora estamos quites - disse George. - Por favor, Charlie, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Prometo que você será o primeiro a saber, se encontrarmos algo.
Charlie levantou-se e arrancou pedaços de samambaia de seus cabelos.
- Vou voltar para contar à minha avó o que descobri - resmungou, em desafio.
Mas a atenção de George já estava com os espeleólogos, que passavam sobre as rochas caídas como se fossem apenas ondulações em uma trilha. Agora que havia trabalho a ser feito, mostravam-se calados e metódicos. Cada um dos homens verificou seu equipamento com cuidado. Barry estendeu um capacete de mineiro com uma lanterna frontal a George.
Olhe, faremos a coisa da seguinte maneira: você fica sempre atrás.
Não sabemos como será lá dentro. A julgar pelo estado da entrada, não parece muito promissor. Ou seguro. Assim, nós entramos e você nos segue quando eu disser, nunca antes. Entendido?
George concordou, ajustando a correia do capacete, dizendo:
- Mas se encontrarmos algo que pareça recente, vocês não deverão mexer em nada. E se a menina estiver lá dentro... bem, teremos de sair imediatamente.
Barry virou a cabeça para um de seus colegas.
- Trevor tem uma câmera especial, para tirar fotografias em cavernas. Nós a trouxemos, para o caso de precisarmos. - Ele olhou em torno. - Muito bem, então. Des, você vai na frente. Estarei atrás, para garantir que George, aqui, fará o que deve fazer. Vocês ouviram, rapazes: não mexam em nada que encontrarem. Ah, George, nada de fumar lá dentro. Nunca se sabe que tipo de gás a terra pode estar expelindo.
Era como entrar em um mundo subterrâneo. A fenda na colina engoliu-os, privando-os de luz tão logo passaram pelo portal. Débeis cones de luz amarela batiam nas paredes com filetes brancos de calcário do período Carbonífero. Aqui e ali pedaços de quartzo brilhavam; um chuvisco úmido de depósitos de carbonato de cálcio brilhou momentaneamente; minerais riscavam e pontilhavam a rocha com suas cores particulares. George lembrou-se de um passeio que fizera com Anne a uma das cavernas abertas ao público perto de Castleton, mas não conseguiu recordar a correspondência entre essas estranhas marcas na pedra e suas origens. Levou algum tempo para perceber que estava em um corredor estreito, com não mais que 1,20m de largura por 1,70 de altura. Tinha de caminhar flexionando um pouco os joelhos para evitar bater com o capacete contra as exóticas excrescências que brotavam do teto.
O ar estava úmido, mas estranhamente fresco, como se fosse continuamente renovado. Em intervalos irregulares, mas contínuos, ouvia o ruído de água respingando, à medida que gotas das estalactites tornavam-se pesadas demais e a tensão em sua superfície tornava-se excessiva. O solo sob seus Pes era desigual e escorregadio, e George teve de mirar o facho de luz de Sua lanterna de mão para baixo, para não tropeçar em uma das muitas estalagmites que pontuavam o chão naquele ponto.
- Impressionante, não é? - indagou Barry, voltando-se levemente e cegando George por instantes com a luz de sua lanterna.
- Realmente.
- Deixe-a fechada por cento e cinqüenta anos e estará a caminho de se tornar uma daquelas cavernas às quais os turistas gostam de ir. Eu lhe digo que, se não encontrarmos nada aqui hoje, voltaremos no fim de semana para explorarmos melhor. Sabe, o rio Scarlaston parece brotar de repente do chão, e isto significa que deve haver um sistema de cavernas subterrâneas em algum ponto por aqui. Esta mina pode ser o caminho até ele. - O tom animado de Barry fez com que George se sentisse ligeiramente nauseado. Estava longe de sofrer de claustrofobia, mas o desejo indisfarçável do outro homem de passar horas sob essas toneladas de rochas hostis parecia-lhe totalmente estranho. Gostava demais do sol e do vento em sua pele para sentir-se atraído por este mundo exótico.
Antes que pudesse responder, ouviu um chamado distorcido por ecos e impossível de decifrar, que vinha dos homens mais à frente. Ele começou a se mover, mas o braço de Barry barrou-lhe o caminho.
- Espere - ordenou-lhe o homem. - Vou ver o que há e já volto.
George ficou ali, ansioso, tentando entender o que as vozes à sua frente diziam. Teve a impressão de que uma eternidade se passara, mas alguns minutos depois Barry estava na sua frente.
- O que é?
- Não é um corpo - disse Barry, rapidamente. - Parece que são roupas. Mais adiante. É melhor você dar uma olhada.
Os exploradores espremeram-se contra a parede para lhe dar passagem. Alguns metros à frente, o corredor ampliava-se e se tornava uma junção de quatro passagens. As outras saídas haviam sido bloqueadas com pedras e entulho, deixando apenas uma pequena caverna com cerca de três metros de largura por dois de altura. No lado mais longínquo, fracamente visível sob as luzes das lanternas, era possível avistar o que pareciam ser peças de roupa.
- Alguém tem uma lanterna mais potente? - indagou George.
Mãos lhe lançaram uma pesada lanterna. Ele apontou seu facho poderoso para as roupas. Algo escuro estava amontoado contra as pedras. O que à primeira vista pareciam ser duas tiras escuras revelou-se um par de meias cortadas. George percebeu, com uma fisgada de dor e repulsa, que o tecido preto perto delas era uma calcinha rasgada.
Forçou-se a respirar fundo.
- Sairemos todos agora. O último homem da fila, lá atrás, simplesmente vire-se e saia da caverna. Todos devem segui-lo. Eu estarei atrás de vocês. Por um momento, ninguém se moveu. - Eu disse agora - gritou, liberando um pouco da tensão acumulada que parecia tornar seus nervos mais esticados que uma corda de violino.
Ficou ali, olhando irritado para todos. Finalmente, eles se viraram e começaram a voltar, com seus passos firmes parecendo-lhe um insulto a seus esforços vacilantes no piso traiçoeiro. Ao emergirem na luz do sol, ele sentia-se como se tivessem permanecido lá dentro por horas, mas uma rápida olhada no relógio de pulso revelou que haviam passado menos de quinze minutos. Agora, dois policiais fardados emergiam do meio do matagal para isolar o local e evitar que bisbilhoteiros e pés destrutivos invadissem a mina.
George pigarreou e disse:
- Barry, eu gostaria que seu colega Trevor ficasse aqui e tirasse algumas fotos. Quanto aos outros, eu agradeceria se esperassem até isolarmos a área. Se voltarem à aldeia agora, todos saberão que encontramos algo e este lugar virará um inferno.
Os exploradores murmuraram em concordância. Barry puxou um maço de cigarros de uma bolsa impermeável pendurada por um cordão em seu pescoço.
- Você está com cara de quem precisa de um destes - disse.
- Obrigado. - George virou-se para os dois policiais fardados. - Um de vocês volte ao trailer e diga ao sargento Clough que encontramos roupas e precisamos de uma equipe inteira aqui para isolarmos um possível local de crime. E, pelo amor de Deus, seja discreto. Se alguém perguntar, trate de garantir que não encontramos um corpo. Não quero uma repetição da matéria de jornal de sexta passada.
Um dos policiais concordou, agitado, e girou nos calcanhares, correndo de volta à trilha, rumo ao coração da aldeia.
- Sua tarefa é garantir que ninguém que não seja um policial se aproxime a menos de vinte metros da entrada da mina - disse George ao outro policial, antes de se dirigir a Barry. - Aquela área central lá dentro, há alguma possibilidade de acesso às outras passagens por lá?
Barry encolheu os ombros com vigor.
- Não me parece provável, mas não posso ter certeza sem verificar direito. Talvez exista uma saída e alguém tenha fechado a passagem atrás dela para fazer com que parecesse impenetrável. Mas isto aqui é uma mina, não um sistema de cavernas. Ainda assim, acho que há apenas uma entrada e uma saída. Qualquer um que se metesse naquela caverna ainda estaria ali, mas provavelmente já estaria morto. Acho que a menina não está lá. - Ele pousou a mão no braço de George e, depois, virou-se para agachar-se sobre as pedras com seus colegas.
Uma busca completa na caverna consumiu sete horas. Trevor levou sua câmera de volta à mina e fotografou com cuidado cada centímetro das paredes e do chão. Nenhuma das passagens bloqueadas mostrava qualquer sinal de interferência recente. Não havia indicação de que um corpo houvesse sido abandonado lá dentro. George não sabia se deveria sentir-se deprimido ou animado com esta última afirmação.
No meio da tarde, uma japona sem um dos botões, uma meia-calça rasgada com tanta brutalidade que as pernas estavam totalmente separadas, e uma calcinha azul-marinho estavam a caminho do laboratório da polícia do distrito, cuidadosamente embaladas para preservação de quaisquer elementos que pudessem ser identificados pelo laboratório. Contudo, George não precisava que um especialista lhe dissesse que as manchas nos panos úmidos tinham origem humana.
Ele já estava na polícia tempo suficiente para reconhecer sangue e sêmen, quando os via.
Duas descobertas adicionais eram ainda mais perturbadoras. Encravado nas paredes da caverna, um policial encontrara um pedaço deformado de metal que já fora uma bala de arma de fogo. Tal descoberta levara a um exame mais detalhado do calcário cheio de fissuras. Escondido em uma rachadura, havia um segundo pedaço de metal.
Desta vez não havia como negar. Era, sem dúvida, uma bala de revólver.
Segunda Parte: A Longa Espera
Daily News, sexta-feira, 20 de dezembro de 1963, p. 5
Natal de lágrimas para mãe de menina desaparecida
Por Donald Smart
Ruth Hawkin não comprará presentes de Natal para a filha Alison este ano. Mas Philip, o padrasto da menina desaparecida, encheu o quarto da enteada de pacotes alegremente decorados contendo discos, livros, roupas e maquiagem.
A senhora Hawkin, 34 anos, não tem ânimo para comprar presentes para a filha. Nove dias atrás, ela acenou para a garota de 13 anos, que saiu de casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para passear com sua cadela de estimação e, desde então, não foi mais vista.
Um parente disse: "Se Alison não for encontrada, será um Natal muito triste para todos em Scardale. Somos uma comunidade muito unida e todos estão perplexos com o desaparecimento de Alison. Ela é adorável, e ninguém consegue imaginar por que fugiria de casa."
A polícia já ouviu milhares de pessoas, vasculhou vales e pântanos remotos e dragou rios e reservatórios em vão, nas buscas pela linda estudante loira.
Duas outras famílias também terão lugares vagos em suas mesas na ceia de Natal. Um mês atrás, John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, desapareceu. Ele foi visto pela última vez na feira livre daquela cidade. Cinco meses atrás, Pauline Reade, de 17 anos, saiu de sua casa na rua Wiles, em Gorton, Manchester, para ir a um baile. Nenhum deles foi visto novamente.
Este não era o Natal que George Bennett desejara, alguns meses atrás. Ele ansiara por seu primeiro Natal em sua própria casa, a sós com a esposa, mas não contara com as pressões da família. Anne era filha única, de modo que não havia disputa de irmãos pela presença de seus pais e, sendo recém- casados, os dois haviam se tornado automaticamente o foco da atenção dos pais de George. Percebendo que seria sua primeira e última chance de celebrarem sozinhos, Anne fizera o possível para persuadir as duas famílias de que uma reunião de todos no dia 26 seria o mais conveniente para todos, mas fracassara. Na verdade, pouco faltou para que, além de seus pais, tivessem de receber também a irmã de George, seu cunhado e os três filhos pequenos.
De qualquer maneira, fora um almoço maravilhoso. Anne planejara e trabalhara durante semanas para que tudo desse certo. Nem mesmo o desaparecimento de Alison Cárter conseguiu deter sua determinação de que o primeiro Natal em sua própria casa fosse perfeito. E fora mesmo. Depois da distribuição de presentes e de fazer as caras e bocas adequadas de prazer pelas meias, camisas, suéteres e cigarros que ganhara, George tivera pouco a fazer, exceto garantir que as taças das mulheres continuassem cheias de sherry e champanhe doce e que não faltasse cerveja nos copos dos homens.
De acordo com o que haviam combinado de antemão, revelaram a gravidez de Anne depois do discurso da rainha. As mães competiam uma com a outra em sua alegria e, usando a hora de lavar a louça como desculpa, logo desapareceram na cozinha para oferecer conselhos à futura mamãe. O Pai de Anne cumprimentou George de um modo desajeitado e sentou-se Para celebrar com uma taça de conhaque e um charuto, enquanto assistia a TV. George e seu pai, Arthur, continuaram sentados à mesa de jantar e, como sempre, não se sentiam totalmente à vontade um com o outro, mas a notícia sobre o bebê preenchera parte do abismo que um diploma universitário colocara entre o advogado e o maquinista de trem.
- Você parece cansado, garoto - disse Arthur.
- As últimas semanas têm sido difíceis.
- É aquela menina desaparecida, não é?
George concordou.
- Alison Cárter. Temos feito de tudo, mas não nos distanciamos muito do ponto em que estávamos na noite em que ela sumiu.
- Mas li em algum lugar que haviam encontrado algumas roupas - falou Arthur, lançando um perfeito anel de fumaça para o alto.
- Sim, isso mesmo. Em uma mina abandonada. Mas tudo o que isso realmente nos diz é que ela não fugiu de casa. A descoberta das roupas não nos levou nem um pouco mais perto de descobrirmos o que lhe aconteceu ou onde está agora. Exceto que também encontramos algumas balas de pistola encravadas no calcário - acrescentou. - Uma estava tão deformada que não pudemos identificar a arma, mas tivemos mais sorte com a outra. Ela foi parar em uma fenda na parede de pedra, de modo que o pessoal da perícia conseguiu retirá-la mais ou menos intacta. Se chegarmos a encontrar a arma da qual foi disparada, poderemos fazer uma identificação positiva.
Seu pai tomou um pequeno gole do conhaque e balançou a cabeça, pesaroso.
- Pobre garota. Imagino que não a encontrarão com vida. Estou certo?
George suspirou, ao responder:
- Eu não apostaria nada nesta possibilidade. Este caso está me dando insónia. Especialmente agora, com a gravidez de Anne, que muda tudo, não é? Eu nunca havia pensado muito nesta questão antes. Sabe como é, voce acha que encontrará a garota certa, se casará e terá uma família. E assim que acontece, quando temos sorte. Mas eu nunca cheguei a pensar no significado de ser pai. Mas sabendo que irá acontecer, e estando no meio de uma investigação como esta... Bem, não posso evitar o pensamento de como me sentiria se fosse o meu filho.
- Entendo. - Seu pai respirou ruidosamente pelas narinas. - Você tem razão, George. Ter um filho faz com que nos lembremos a todo instante dos perigos do mundo, mas não conseguimos viver direito se nos preocupamos demais. Precisamos dizer a nós mesmos que nada de ruim acontecerá com nossos filhos. - Ele deu um sorriso oblíquo. - Você até que conseguiu chegar inteiro à idade adulta.
Isto era uma dica para a troca de histórias sobre os acidentes de George na infância. Contudo, parte dele estava imune à mudança de assunto. Alison Cárter estava entalada em seu íntimo como uma sujeirinha no cano de um cachimbo. Depois de alguns minutos, George apagou seu charuto e se levantou.
- Se você me permite, pai, vou dar uma saída. Meu sargento ofereceu-se para fazer plantão hoje, e eu gostaria de dar uma chegada na delegacia para lhe desejar feliz Natal.
- Ah, vá em frente, garoto. Vou me sentar perto do pai de Anne e fingir que estou assistindo à televisão. - Ele piscou um olho.- Vamos tentar não roncar alto demais.
George guardou no bolso uma caixa com cinqüenta cigarros que ganhara de uma tia e cruzou a cidade até a delegacia, encontrando a mesa de Tommy Clough vazia, exceto pelo relatório do exame de balística sobre as balas encontradas na caverna. A jaqueta de Clough estava sobre o encosto da cadeira, de modo que ele não deveria ter ido longe. George pegou o relatório já bem conhecido e folheou-o outra vez. Uma das balas estava totalmente irreconhecível, mas a outra, encontrada na fenda da pedra, revelara alguns detalhes para o especialista em armas:
O objeto é um projétil de chumbo, cilindro cónico, com cápsula totalmente revestida de metal, leu George. O calibre é .38. O projétil apresenta sete cheios e sete sulcos, com cheios estreitos e sulcos largos. Estes revelam um giro Para a direita. Esses padrões de raias são consistentes com um projétil disparado por um revólver Webley.
A porta se abriu e Tommy Clough entrou, com as sobrancelhas enrugadas enquanto lia um telex.
Feliz Natal, Tommy - disse George, jogando a caixa de cigarros até o outro lado da sala.
O mesmo para você, George - disse Clough, parecendo surpreso. - O que o traz aqui? A família entrou em guerra? - Ele cruzou a sala e Sentou-se, enfiando o telex na pasta de arquivo.
- Eu estava lá sentado, com meu chapéu de papelão, estourando fogos comendo peru e imaginando como estaria sendo o Natal no Solar Scardale.
Clough rasgou o celofane do maço de cigarros. Endireitando-se em sua cadeira, empurrou a pasta de arquivo para um lado e ofereceu a caixa aberta a George.
- Eu diria que depende do humor de Ruth Hawkin - falou. - E de mostrarmos ou não este telex a ela.
- O que você quer dizer?
Clough acendeu seu cigarro e somente depois respondeu:
- Uma vez que não chegamos a lugar nenhum pelos canais oficiais que liguem Hawkin a uma arma Webley, decidi tentar outras vias. Assim, enviei uma solicitação por informações sobre quaisquer comunicados de roubo de Webleys. Entre um monte de coisas inúteis havia algo interessante. De St. Albans. Dois anos atrás, um certo Richard Wells relatou uma invasão era sua casa. Entre os itens roubados havia um revólver Webley calibre .38.
Por seu ar de expectativa, George sabia que havia mais novidades.
- E daí? - perguntou.
- O senhor Wells mora a duas casas da residência da mãe de Philip Hawkin. As famílias costumavam jogar bridge juntas uma vez por semana. O senhor Wells mantinha sua Webley como lembrança de guerra, e se vangloriava dela com freqüência, de acordo com o oficial de plantão no departamento de investigações criminais. Ninguém foi preso pela invasão. A família estava de férias, de modo que pode ter acontecido em qualquer dia ou horário naquela semana. - Clough sorriu-lhe de uma orelha à outra. - Feliz Natal, George.
- Este presente é melhor que uma caixa de cigarros.
- Quer dar uma chegada até lá? Para sondar o ambiente?
- E por que não?
Mantiveram-se em silêncio durante a maior parte do percurso. Enquanto entravam na estrada que levava a Scardale, George disse:
- Se importaria de me falar mais sobre aquilo que disse antes, que o Natal dependia do humor da senhora Hawkin?
- Não é nada que já não tenhamos comentado uma dúzia de vezes nos últimos dias - disse Clough. - Em primeiro lugar, temos o conflito entre e Hawkin nos contou sobre seus movimentos na tarde em que Alison desapareceu e o ""vimos de Mamãe Lomas e de Charlie. Em segundo lugar, temos a mina de chumbo. Além de Mamãe Lomas, todos em Scardale negam já terem ouvido falar da antiga mina, e obviamente todos negam conhecer sua localização. Acontece que o livro que explica detalhadamente a localização da entrada estava bem na estante da biblioteca de Philip Hawkin.
E não esqueçamos os resultados do laboratório - disse George,
quase num sussurro. A conclusão inescapável do que haviam descoberto na mina de chumbo era que Alison Cárter havia sido estuprada e quase certamente assassinada. O sangue que manchava as roupas era do grupo O, que batia com os registros médicos de Alison. O indivíduo que sujara as calcinhas de Alison Cárter com sêmen era um secretor. Graças a isso, agora a polícia sabia que o homem pertencia ao grupo sangüíneo A. Isto era algo que Philip Hawkin tinha em comum com quarenta e dois por cento da população, assim como três outros homens do vale - dois dos tios de Alison e seu primo Brian. O que os separava de Philip Hawkin era o fato de todos terem álibis para o momento do desaparecimento da menina. Um dos tios estava em um bar em Leek, depois de visitar a feira de gado, e Brian estava ordenhando as vacas na companhia do pai. Se Alison tivesse sido atacada por alguém de dentro do vale, começava a parecer que existia apenas um candidato.
- Poderia ter sido alguém que subiu o vale do Scarlaston vindo de Denderdale. Alguém que a conhecia de Buxton. Um professor ou colega de escola. Ou simplesmente algum pervertido que a observava na escola - disse Clough, quando voltou ao carro após fechar o portão que separava a aldeia da estrada.
- Não poderia ter chegado lá a tempo. A caminhada da estrada em Denderdale até a margem do rio leva uma hora e meia, mais ou menos. E ele não voltou aqui no escuro com Alison, viva ou morta. Teria parado em definitivo perto do rio - disse George, em tom seguro. - Concordo com você. Todas as evidências circunstanciais apontam para um homem, mas não temos um corpo nem provas diretas. Sem isso, não podemos justificar um interrogatório, menos ainda um indiciamento.
- E então, o que fazemos?
- Não faço idéia. - George suspirou. O carro parou ao lado da trilha marrom de capim que marcava o ponto em que o trailer da polícia havia estado. Sob as ordens do superintendente Martin, o veículo fora levado de volta a Buxton na sexta-feira. As buscas haviam terminado no mesmo dia já que não havia mais onde procurar.
George saiu para o ar gelado da noite. A aldeia parecia curiosamente inalterada, apesar do que acontecera. Não havia sinal de que algo mudara além do pôster do jornal colado na parte de trás do telefone público. Em torno da praça, as casas ainda pareciam aconchegar-se umas às outras. Luzes estavam acesas por trás das cortinas e o latido ocasional de um cão cortava o silêncio. Era preciso admitir que não se podiam ver árvores de Natal por trás das janelas e as portas não exibiam guirlandas festivas. Contudo, George não estava convencido de que as coisas seriam diferentes em qualquer outro Natal em Scardale.
Ele e Clough encostaram-se no capô do carro, fumando em silêncio. Pouco depois, uma cunha de luz amarela saiu da porta da Casa do Outeiro. A silhueta inconfundível de Mamãe Lomas apareceu, realçada contra o interior iluminado. Depois, a luz desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. A velha mulher estava junto deles antes que George pudesse dar-se conta de que ela não tornara a entrar em casa.
- Vocês não têm uma casa para onde ir? - indagou ela.
- Ele está de plantão - disse George.
- E qual é a sua desculpa?
- Natal é para crianças, não é o que dizem? Bem, não consegui tirar uma garota de meus pensamentos.
- Mas que incrível, um tira com sentimentos - riu-se ela, com ironia, abrindo seu casaco volumoso e tirando uma garrafa com o líquido transparente que bebera durante a conversa que mantivera com os dois no início da investigação. De outro bolso, tirou três copos.
- Achei que vocês poderiam gostar de beber algo para afastar o frio.
- Isto seria um verdadeiro ato de caridade cristã - disse Clough.
Eles a viram colocar os copos sobre o capô e servir três doses generosas. Cerimoniosamente, deu um copo a cada um e, depois, ergueu o seu num brinde.
- a que estamos bebendo? - perguntou George.
Ao fato de terem descoberto evidências suficientes - falou ela, em uma voz mais fria que o ar noturno.
- Eu preferiria beber à descoberta de Alison - disse ele.
A mulher sacudiu a cabeça.
Se fosse para encontrá-la, isso já teria acontecido. Onde quer que a tenham colocado, só poderá ser descoberta por acaso. Tudo o que nos resta, agora, é a esperança de que vocês o façam pagar.
- A senhora está pensando em alguém específico? - indagou Clough.
- Assim como vocês, não devo especular - disse, gélida, virando-se para olhar o solar e levantando seu copo. - Às provas.
George tomou um pequeno gole e quase sufocou.
- É puro álcool! - exclamou, quando conseguiu falar novamente. - Mas, por Deus, o que há nessa garrafa? Combustível de foguete?
Ela riu baixinho.
- Nossa Terry chama isso de Fogo do Inferno. É destilado de flor de sabugueiro e vinho de groselha espinhosa.
- Não encontramos nenhum alambique quando fizemos buscas na aldeia - comentou Clough.
- Bem, e por que deveriam? - Ela esvaziou seu copo. - E então, o que pretendem fazer? Como conseguirão pegá-lo?
George forçou-se a engolir o resto daquele fogo líquido. Ao recuperar a capacidade da fala, respondeu:
- Não sei se podemos fazer isso, mas não vou desistir.
- É melhor mesmo - falou ela, em tom duro. Estendeu a mão para os copos vazios, deu-lhes as costas e voltou para sua casa.
- Bem feito para nós - disse Clough.
- É um maldito feliz Natal para você também.
Era a primeira segunda-feira de fevereiro e George estava em sua mesa de trabalho já às oito horas. Tommy Clough bateu na porta alguns minutos depois, segurando duas xícaras de chá.
- Como estava o clima? - perguntou.
- Melhor do que se poderia esperar - respondeu George. - Estava frio, mas todos os dias foram ensolarados. Ninguém se importa com o frio desde que o tempo esteja seco, e Norfolk é tão plana que Anne conseguiu caminhar por quilômetros.
Clough ajeitou-se na cadeira oposta à de George e acendeu um cigarro.
- Você está com ótima aparência. Parece até que passou quinze dias na Costa Brava, em vez de uma semana em uma praia próxima.
George sorriu-lhe, alegre.
- Então Martin estava certo.
Ele resistira furiosamente quando o superintendente Martin insistira que tirasse alguns dias de folga, para compensar as horas intermináveis que passara no caso de Alison Cárter. Finalmente, quando Jack Martin transformara a sugestão em ordem, George desistira, mal-humorado, e permitira que Anne fizesse reservas em uma pousada na cidade litorânea de Norfolk. Depois, descobriram que eram os únicos hóspedes, e foram mimados por uma proprietária que acreditava que todos deveriam fazer pelo menos três refeições generosas por dia. Uma semana de alimentação regular, ar puro e a atenção exclusiva de sua esposa o haviam enchido de energia e determinação.
- Ele tem insistido para que eu também tire férias - admitiu Clough. - Talvez eu saia, agora que você voltou.
- Alguma novidade? - perguntou George, soprando seu chá.
- Bem, levei aquela nova policial de Chapel-en-le-Frith para ver Acker Bilk e sua Paramount Jazz Band no Pavilion Gardens, sexta à noite, e foi muito agradável. Acho que vou perguntar se ela quer assistir comigo àquele novo filme com Albert Finney na Opera House. O nome é Tom Jones. Parece um filme apropriado para colocar uma senhorita no clima certo - falou Clough, com um sorriso brincalhão e inocente.
- Eu perguntei se há novidades sobre o caso, não em sua patética vida amorosa - respondeu George, com bom humor.
- Por incrível que pareça, há uma novidade. Recebemos um telefonema de Philip Hawkin, domingo passado. Ele disse que estava vendo uma fotografia do Spot the Ball no jornal e podia jurar que uma das pessoas na multidão,
Início da Nota de Rodapé: Competição popular até hoje, em que a bola é eliminada da fotografia de uma partida de futebol e o leitor deve tentar descobrir onde estava originalmente, marcando-a na grade sobreposta à fotografia. Fim da Nota de Rodapé.
ao lado do gol, era Alison. - Ele apertou os olhos para enxergar George através da fumaça. - O que você acha disso? George sentiu um mal-estar estranho no estômago.
Conte-me tudo, Tommy, sou todo ouvidos. - Esquecendo-se do chá,
ele inclinou-se para a frente e fitou intensamente o sargento.
Fui direto até lá para ver o que estava acontecendo. Era o Sunday
Sentinel e mostrava a partida do Nottingham Forest. Tão logo vi a foto, entendi o motivo do telefonema. Admito que a imagem era pequena, mas parecia-se realmente com Alison. Assim, entrei em contato com o jornal e eles ampliaram o original. Enviaram para mim pelo trem e chegou aqui segunda-feira à tardinha. - Ele não precisava continuar, seu rosto contava o resto da história. Um exame mais atento provara que a menina na multidão era bem diferente de Alison.
George respirou fundo e fechou os olhos.
- Obrigado - sussurrou. Olhou para Clough e sorriu. - Você por acaso sabe se Philip Hawkin tem assinatura do Manchester Evening News?
- Por acaso sei. Kathy Lomas falou sobre isso quando nos relatou a rotina dos adolescentes de Scardale. Uma vez que o jornal diário só chega a Scardale na hora do almoço e Hawkin gosta de ler o jornal no café da manhã, o jornaleiro de Longnor deixa um exemplar do Evening News na caixa do correio no fim da estrada todas as manhãs, e a pessoa encarregada de deixar as crianças no ônibus o pega e entrega no solar logo depois.
O sorriso de George ampliou-se.
- Achei que era isso mesmo. - Ele levantou-se rapidamente e abriu com energia a gaveta de seu arquivo. Remexeu ali dentro e, então, retirou Um grande envelope pardo, acenando com ele para Clough e dizendo em tom triunfante: - Isso é o que chamo de dar um novo impulso ao caso.
Clough pegou o arquivo que veio voando em sua direção. As palavras escritas no envelope eram "Pauline Catherine Reade". Ele abriu o envelope e um punhado de recortes de jornais caiu sobre a mesa. Ele franziu a testa ao ver as datas anotadas em vermelho na borda dos recortes.
- Você está acompanhando este caso desde o início, em julho. Isso aconteceu quatro meses antes do desaparecimento de Alison - disse, num tom de voz que indicava o quanto achava aquilo estranho.
George afastou os cabelos loiros da testa.
- Sempre me interesso por casos que podem acabar caindo nas minhas mãos - falou, simplesmente.
- E o que eu deveria ver aqui? - perguntou Clough, manuseando os recortes.
- Você saberá, quando vir. - George encostou-se no armário com os braços cruzados e um sorriso de satisfação.
De repente, Clough pareceu paralisado. Bateu levemente com a ponta do indicador em um único recorte, como se este pudesse atacá-lo.
- Macacos me mordam... - sussurrou.
Manchester Evening News, segunda-feira, 2 de novembro de 1963, p. 3
FOTOGRAFIA ACABA COM ESPERANÇAS DE MÃE
Por breves momentos, a senhora Joan Reade sentiu renascer a esperança de voltar a ver a filha desaparecida de 16 anos, diante da foto de uma multidão, publicada no Manchester Evening News & Chronicle Football Pink.
Contudo, a esperança desapareceu quando a senhora Reade viu uma cópia ampliada da fotografia. Em sua casa na rua Wiles, em Gorton, a mãe de Pauline comentou"com tristeza, hoje: "Está claro que esta não é minha filha."
Pauline está desaparecida desde 12 de julho, quando saiu para um baile e não voltou.
O filho caçula da senhora Reade, Paul, de 15 anos, viu alguém que julgou ser Pauline em meio à multidão, na foto tirada durante a final da Copa da Liga de Rúgbi de Lancashire e publicada pelo Football Pink de sábado.
Clough ergueu o olhar.
- Ele acha que somos burros.
- Tem certeza de que foi Hawkin, e não sua esposa, quem percebeu a semelhança?
Foi ele quem ligou e assumiu ter visto a menina. Quando perguntei à senhora Hawkin o que achava da semelhança, ela disse que a achou mais parecida com Alison na primeira vez em que viu a foto, mas depois não estava mais tão certa. Ele pareceu um pouco irritado com isso, como se a esposa devesse apoiá-lo sempre e não estivesse se comportando como deveria.
George pegou seus cigarros e começou a andar pela sala, enquanto falava:
- Então nós o pegamos tentando salvar sua pele. Por que fez isso agora? - Clough esperou, sabendo que o chefe responderia à própria pergunta. - Por quê? Porque esperava que desistíssemos de Alison muito tempo atrás e pegássemos um novo caso. Está desconcertado porque você e eu ainda vamos a Scardale duas ou três vezes por semana, conversamos com as pessoas, andamos por suas terras e não esmorecemos. Ele não é estúpido; deve perceber que estamos de olho nele pelo que quer que tenha acontecido com Alison. Sem falar no fato de que Mamãe Lomas o julga culpado e não posso imaginar que ela seja menos franca em sua presença do que é conosco.
- Exceto que todos naquela aldeia devem a Hawkin o teto sobre suas cabeças e o pão de cada dia - lembrou-o Clough. - Até mesmo Mamãe Lomas talvez tenha pudores em lhe dizer que o considera responsável pelo estupro e assassinato de Alison Cárter.
George concordou com a cabeça.
- Muito bem, digamos que você tem razão. Contudo, devemos ter em mente que os moradores de Scardale suspeitam que ele fez algo terrível com Alison, no mínimo porque é um forasteiro. Assim, quando Hawkin percebe que tudo isso não será engavetado e esquecido, ele decide que já é hora de fazer algo para melhorar sua imagem. Então, ele lembra o artigo que leu no Manchester Evening News sobre Pauline Reade. - George parou de caminhar e apoiou-se na mesa. - O que acha, Tommy? Será que temos o bastante para interrogá-lo?
Clough apertou os lábios.
- Não sei. O que perguntaríamos a ele?
- Se costuma ler o Evening News. Como era seu relacionamento com Alison. Essas coisas. Tudo o que possa colocá-lo sob pressão. Será que a menina sentia rancor por ver outro homem no lugar de seu pai? Será que Hawkin a considerava atraente? Meu Deus, Tommy, podemos até perguntar qual é a cor favorita dele. Só quero que ele fique ali, sob pressão, para vermos o que acontece. Pegamos leve com ele até agora porque não tínhamos razões suficientes para tratá-lo de outro modo que não como um padrasto preocupado. Bem, acho que agora temos.
Clough coçou a cabeça.
- Sabe o que eu acho?
- O quê?
- Que não nos pagam para tomarmos decisões tão importantes. É para isso que Carver e Martin ganham tão bem. Se eu fosse você, falaria com eles e contaria toda essa história, para saber o que acham.
George deixou-se cair pesadamente em sua cadeira, como um saco de batatas, uma expressão desanimada no rosto.
- Ah, Tommy, não me diga que estou falando bobagem!
- Não, acho que você está certo. Na minha opinião, Hawkin é o homem que sabe o que aconteceu com Alison, mas não sei se este é o momento certo para pressioná-lo e não quero perdê-lo porque fomos com muita sede ao pote. George, estamos envolvidos demais com este caso. Temos respirado, dormido e sonhado com ele, noite após noite, há sete semanas. Não somos imparciais. Vá falar com Martin. Depois, se tudo der errado, não poderão nos usar como bodes expiatórios.
- Acha mesmo isso? - George deu uma risada amarga. - Tommy, se tudo der errado, voltaremos a orientar o trânsito em Derby pelo resto de nossas carreiras.
Clough sacudiu os ombros.
- Então é melhor fazermos o que é certo.
Clough conduziu Hawkin até a sala de interrogatório, onde George já os esperava, lendo com grande atenção o conteúdo de uma pasta de arquivo. George sequer levantou a cabeça para olhá-lo. Simplesmente prosseguiu na leitura com expressão de concentração intensa. Este era o primeiro movimento em um processo cuidadosamente orquestrado. Em silêncio, Clough indicou uma cadeira na frente de George, e Hawkin, com os lábios apertados e olhos indecifráveis, obedeceu. Clough girou uma cadeira, de modo a colocá-la entre Hawkin e a porta. Suas pernas robustas ajeitaram-se uma de cada lado e ele se apoiou no encosto, com o bloco de anotações virado para baixo. Hawkin respirou pesadamente pelo nariz, mas nada disse.
Finalmente, George fechou a pasta, ajeitou-a à sua frente na mesa e fitou Hawkin, percebendo o sobretudo caro que o homem trazia atravessado sobre um dos braços, a jaqueta esportiva de lã feita sob medida sobre o suéter de malha fina com gola pólo e as pernas cruzadas nas calças bege claras de sarja. Apostaria um mês de seu salário que Hawkin gastara um bom bocado de sua herança na tarefa de comprar sua aparência de fazendeiro em Austin Reed. Tal aparência parecia completamente inadequada para alguém que combinava mais com um terno azul-marinho barato.
- Foi muita gentileza sua vir até aqui, senhor Hawkin - disse George, com a voz isenta de qualquer inflexão calorosa.
- Eu já planejava vir a Buxton hoje, de modo que não foi nenhum incômodo - falou Hawkin, em voz arrastada. Ele mostrava-se à vontade, sua Pequena boca triangular parecendo prestes a sorrir.
- Ainda assim, sempre somos gratos quando o público reconhece seu dever de ajudar a polícia - disse George, generosamente, pegando seus cigarros. - O senhor fuma, não?
- Obrigado, inspetor, mas tenho meus próprios cigarros - agradeceu Hawkin, rejeitando com leve desprezo o maço que George lhe oferecia Isso vai demorar?
- Depende do senhor - respondeu Clough, sem nenhuma gentileza por trás do ombro direito de Hawkin.
- Acho que não gosto do tom de voz de seu sargento - disse Hawkin petulante.
George olhou-o, sem responder. Quando o homem remexeu-se na cadeira, George então lhe disse, com formalidade:
- Preciso fazer-lhe algumas perguntas ligadas ao desaparecimento de sua enteada, Alison Cárter, no dia 11 de dezembro do ano passado.
- É claro. Por que mais eu estaria aqui? É muito improvável que eu esteja envolvido em algum crime, não é? - O sorriso de Hawkin era de satisfação íntima, como se tivesse um segredo que outros jamais poderiam desvendar.
- Enquanto eu estava fora, semana passada, o senhor entrou em contato conosco porque julgou ver Alison em uma fotografia de jornal.
Hawkin concordou com a cabeça, completando:
- Infelizmente, eu estava enganado. Poderia jurar que era ela.
- E é claro que o senhor tem um olho de fotógrafo para essas coisas. Não deveria enganar-se - continuou George.
- Tem razão, inspetor. - Hawkin deu-lhe um pequeno sorriso de condescendência e pegou seus cigarros. Começava a relaxar, como George queria.
- Assim, não foi sua esposa quem percebeu a semelhança...
Agora, Hawkin vangloriava-se:
- Minha esposa tem qualidades ótimas, inspetor, mas em nossa casa sou eu quem percebe as coisas. - Depois, como se lembrasse de repente da razão para estar ali, assumiu um ar solene. - Além disso, o senhor deve ter em mente que, desde que Alison saiu de nossas vidas, minha esposa deixou de prestar atenção ao mundo externo. É seu modo de manter alguma aparência de normalidade em nossa vida doméstica. Eu insisto nisso, obviamente. É melhor, para ela, concentrar-se em questões rotineiras, como cozinhar e limpar a casa.
- Muito sensível de sua parte - falou George. - Esta fotografia estava no Sunday Sentinel, não é?
- Correto, inspetor.
Que jornais o senhor costuma ler com alguma regularidade? - perguntou George, com um leve franzir de testa.
- Sempre tivemos assinatura do Express e do Evening News. Ah, e também do Sentinel aos domingos. É claro que, com toda a cobertura sobre o desaparecimento de Alison pela imprensa, comprei todos os jornais enquanto o senhor ainda conduzia suas coletivas diárias com os jornalistas. Bem, alguém precisa garantir que não darão a versão incorreta das coisas, não é? Eu não queria que escrevessem mentiras sobre nós. Além disso, queria me precaver, porque não desejava que Ruth fosse perturbada por algum insensível que lhe contaria o que andam dizendo nos jornais, sem qualquer aviso prévio. Assim, tratei de me manter informado. - Ele bateu a cinza no cinzeiro e sorriu. - Esses repórteres são medonhos. Não sei como vocês conseguem lidar com eles.
- Precisamos lidar com todo tipo de gente em nosso trabalho - disse Clough, insolente.
Hawkin apertou os lábios, mas nada disse. George inclinou-se um pouco para a frente.
- Então o senhor lê o Evening News?
- Já lhe falei isso - disse Hawkin, impaciente. - É claro que só o recebemos na manhã seguinte à publicação, mas é o único jornal que conseguem entregar a tempo para o café da manhã, de modo que preciso me contentar com esta visão provinciana do mundo.
George abriu sua pasta de arquivo e dela retirou um plástico transparente. Dentro havia um recorte de jornal. Empurrou-o sobre a mesa até o outro homem.
- Então o senhor se lembrará desta reportagem.
Hawkin não pegou o recorte. Apenas seus olhos moveram-se, percorrendo as linhas impressas. A cinza em seu cigarro esquecido cresceu e curvou-se levemente para baixo por seu peso. Finalmente, ele ergueu os olhos para George e falou, lenta e deliberadamente:
- É a primeira vez que leio esta matéria.
- É uma coincidência estranha, não acha? Uma garota desaparecida, um familiar que detecta a semelhança na foto dos espectadores de uma partida de futebol, mas suas esperanças terminam quando descobrem que a semelhança era apenas um erro trágico. E esta matéria foi publicada em um jornal enviado seis dias por semana para sua casa.
- Eu já disse que nunca vi esta matéria!
- Seria difícil ignorá-la. Estava na página 3.
- Ninguém lê o Evening News do início ao fim. Devo ter ignorado esta reportagem por que teria algum interesse para mim?
- O senhor é padrasto de uma adolescente - lembrou George, em voz baixa. - Achei que matérias sobre adolescentes chamariam sua atenção Afinal, esta experiência lhe é relativamente nova. Em seu lugar, eu provavelmente pensaria que tenho muito a aprender.
Hawkin esmagou seu cigarro.
- Alison era assunto de Ruth. É tarefa das mães cuidar dos filhos.
- Ainda assim, está claro que o senhor gostava da menina. Não se esqueça de que estive no quarto dela. Belos móveis, carpete novo. Pelo que vi, não poupou esforços nem dinheiro para agradá-la.
Hawkin franziu o rosto antes de responder, irritado:
- A menina ficou sem pai durante anos. Ela não teve a maior parte das coisas que outras crianças consideram normais. Eu era bom para ela porque isso fazia Ruth feliz.
- Tem certeza de que esta era a única razão? - indagou Clough. - O senhor comprou um toca-discos para Alison e lhe dava discos novos todas as semanas. O que estivesse nas paradas de sucesso, o senhor comprava para ela. O senhor comprava tudo o que Charlie Lomas recomendava à prima. Se me perguntassem, eu diria que isso é mais do que generosidade para agradar a mãe da garota.
- Obrigado, sargento - interrompeu George, em tom de reprimenda.
- Senhor Hawkin, qual era o grau de intimidade entre o senhor e Alison?
- indagou.
- O que o senhor quer dizer? - Ele pegou outro cigarro e precisou de várias tentativas para acender o isqueiro. Depois de uma longa tragada, repetiu a pergunta que não fora respondida: - O que o senhor quer dizer? Quanto ao grau de intimidade, é como lhe disse, quem cuidava de Alison era Ruth.
- O senhor gostava da menina?
Os olhos de Hawkin estreitaram-se.
Que tipo de pergunta capciosa é esta? Se eu disser que não, o senhor dirá que eu desejava me livrar dela. Se responder que sim, implicará que havia algo condenável em meus sentimentos. Quer a verdade? Eu me sentia indiferente a Alison. Olhe... - Ele inclinou-se para a frente e deu um sorrisinho cúmplice. - Casei com Ruth por três razões. A primeira é que eu a considerava razoavelmente bonita. Em segundo lugar, precisava de alguém que cuidasse de mim e da casa e sabia que nenhuma empregada que prestasse aceitaria viver naquele fim de mundo que é Scardale. E, em terceiro lugar, eu queria que os camponeses parassem de me tratar como um ser de outro mundo. Não casei com ela por estar de olho em sua filha. Esta idéia é repugnante. - Ele recostou em sua cadeira, como se desafiasse George a prosseguir.
George olhou-o com curiosidade, dizendo:
- Eu nunca sugeri algo neste sentido. Entretanto, é interessante que sua mente siga este rumo por conta própria. Também acho interessante que, ao falar sobre Alison, o senhor sempre use o tempo verbal no pretérito.
Suas palavras permaneceram no ar, tão palpáveis quanto a fumaça do cigarro. O rosto de Hawkin tingiu-se de carmim, mas ele conseguiu manter-se em silêncio.
- Como se falasse sobre alguém que já morreu - continuou George, impiedoso. - Qual a razão para isso, em sua opinião?
- Apenas um modo de falar - retrucou Hawkin. - Alison sumiu há tanto tempo. Meu modo de falar não significa nada. Todo mundo fala assim ultimamente.
- Na verdade, não. Percebi, durante minhas idas a Scardale, que as pessoas ainda falam sobre Alison no presente. Como se ela tivesse saído para voltar logo. Não é apenas sua esposa que se refere à menina assim, mas simplesmente todos na aldeia. Todos, exceto o senhor. - George acendeu um cigarro, tentando demonstrar uma segurança que não sentia. Ao ensaiar este interrogatório com Clough, nenhum dos dois sabia ao certo como Hawkin reagiria. Era bom vê-lo vacilar, mas ainda estavam muito longe de qualquer confissão útil.
- O senhor só pode estar enganado - disse Hawkin, abruptamente. - Agora, se os senhores já terminaram... - Ele empurrou a cadeira para trás.
- Eu mal comecei, senhor Hawkin - disse George, com a expressão imperturbável acentuando sua semelhança com James Stewart. - Eu gostaria que voltássemos à tarde em que Alison desapareceu. Sei que já o interrogamos antes, mas gostaria de repassar os fatos.
- Ah, pelo amor de Deus! - explodiu Hawkin.
Uma batida na porta não permitiu que dissesse mais nada. O rosto sonolento do detetive Cragg apareceu e ele desculpou-se:
- Perdão, sei que não deveria interromper, mas há um telefonema urgente para o senhor.
George tentou não demonstrar a raiva e o desapontamento que o invadiram. O ritmo do interrogatório estava seguindo como planejado, mas a interrupção podia perturbar sua continuidade.
- Será que não pode esperar, Cragg? - indagou, irritado.
- Acho que não. Achei que o senhor gostaria de atender.
- Quem é?
Cragg lançou um olhar preocupado para Hawkin.
- Eu... Humm... Não posso dizer.
George levantou-se depressa, arrastando os pés da cadeira.
- Sargento, fique aqui com o senhor Hawkin. Voltarei assim que puder. - Ele marchou para fora da sala, exercitando sua última gota de controle ao fechar a porta devagar, em vez de batê-la com força, como gostaria.
- Mas que inferno! O que está acontecendo? - perguntou, enquanto dirigia-se a passos largos para seu escritório. - Eu disse claramente que não queria ser interrompido. Será que você entende a nossa língua, Cragg?
O jovem detetive tentava acompanhar seus passos rápidos, esperando uma brecha para poder falar-lhe.
- É a senhora Hawkin, senhor - conseguiu dizer, finalmente.
George parou de repente, fazendo com que Cragg colidisse com ele.
- O quê? - perguntou, incrédulo, virando-se.
- É a senhora Hawkin. Está muito nervosa, pedindo para falar com o senhor.
- Disse por quê? - George virou-se novamente e praticamente correu até seu telefone.
- Não, apenas que precisava falar imediatamente com o senhor.
- Jesus - murmurou George, agarrando o telefone mesmo antes de sentar-se. - Alô, aqui é o detetive-inspetor Bennett.
Senhor Bennett? - A voz parecia sufocada em meio às lágrimas.
É a senhora Hawkin?
Sim, sou eu. Ah, senhor Bennett... - Seus soluços aumentavam de volume.
O que aconteceu? - indagou ele, imaginando desesperadamente se havia uma policial de plantão.
Poderia vir até aqui, senhor Bennett? Será que poderia vir agora? -
perguntou ela, com as palavras saindo entre a respiração entrecortada.
- Estamos com seu marido aqui. Quer que o levemos para casa?
- Não! - disse Ruth, quase gritando. - Só o senhor. Por favor!
- Vou já para Scardale. Tente se acalmar. Peça que alguém da família lhe faça companhia. Logo estarei aí. - Ele bateu o telefone e ficou imóvel por um momento, surpreso com a intensidade da mulher ao telefone. Não tinha idéia do motivo para o chamado, mas tinha certeza de que era algo traumático. Ela não poderia ter descoberto o corpo... Ele afastou a idéia antes que esta pudesse formar-se claramente.
- Cragg! - berrou, ao sair do escritório. - Renda o sargento Clough. Fique lá com Hawkin até meu retorno. Não o deixe sair. Explique educadamente que saímos em uma emergência e ele deve esperar nosso retorno. Se insistir em ir embora, vá com ele. Não deixe que ele o intimide.
Cragg parecia perplexo. Este não era o ritmo habitual na polícia de Buxton.
- E se ele entrar em seu carro?
- O carro dele não está aqui. Hawkin veio com o sargento Clough. Mexa-se, Cragg!
George agarrou o sobretudo de Clough e seu próprio impermeável, enfiando o chapéu apressadamente. Tão logo Clough emergiu da sala de interrogatório, parecendo confuso, George segurou-lhe o braço e levou-o escada abaixo.
- É Ruth Hawkin - disse, antes que Clough pudesse perguntar-lhe algo. - Parecia desesperada ao telefone. Quer que eu vá a Scardale imediatamente.
- Por quê? - perguntou Clough, enquanto quase corriam até o estacionamento.
- Não sei. Estava abalada demais para dizer algo que fizesse sentido. Tudo o que sei é que pareceu totalmente apavorada quando perguntei se queria que eu levasse Hawkin de volta comigo. Seja o que for, é importante.
- Melhor ir de uma vez, então - disse Clough, dando partida no carro.
George não sabia que o trajeto até Scardale podia ser feito em tão pouco tempo. Clough violou todos os limites de velocidade e a maior parte das proibições ao fazer conversões com o carro. Falaram pouco durante o percurso, ambos tensos demais pela perspectiva de que algo poderia reavivar o caso Alison Cárter. Ao aproximarem-se da praça da aldeia, George falou:
- Já é hora de termos alguma sorte, Tommy. Já conseguimos algo com Hawkin, mas, se Ruth tiver algo para nós, talvez agora seja a nossa hora.
Os dois correram pela trilha até o solar, mas antes que pudessem bater na porta, esta abriu-se e Mamãe Lomas cumprimentou-os.
- Estamos fazendo o trabalho de vocês novamente - disse ela.
Ruth Hawkin estava sentada à cabeceira da mesa, com o rosto manchado de lágrimas e maquiagem. Tinha os olhos avermelhados e inchados. Kathy estava ao seu lado. As mãos de ambas, calejadas pelo trabalho doméstico, estavam entrelaçadas com tanta força que as juntas pareciam brancas. Na frente de ambas, sobre a mesa, os dois homens viram algo como tecido xadrez embolado. Estava sujo de terra e, mais sinistro ainda, o material apresentava grandes manchas de um vermelho-ferrugem que se parecia demais com sangue sèco.
- A senhora encontrou alguma coisa - disse George, cruzando a cozinha e sentando-se na frente de Kathy.
Ruth estremeceu e fez que sim, dizendo:
- É uma camisa. E um... E um... - a voz falhou e ela desistiu de continuar.
George retirou uma caneta do bolso e, usando-a como uma vareta, separou as dobras do tecido. Era realmente uma camisa, feita de sarja fina. O nome da confecção estava bordado na etiqueta. Ele já vira Philip Hawkin usando camisas semelhantes na maior parte das vezes em que haviam se encontrado. No meio do tecido havia um revólver. George não sabia muito sobre armas de fogo, mas teria apostado seu salário de um ano de que esta era uma Webley calibre .38.
- Onde encontrou isso, senhora Hawkin?
Kathy lançou-lhe um olhar penetrante.
Phil Hawkin ainda está na delegacia?
O senhor Hawkin ainda está nos ajudando em nossa investigação -
disse Clough, com firmeza, sentado na outra ponta da mesa com seu bloco de anotações aberto. - Ele não pode sair sem nossa permissão.
Kathy apertou ainda mais as mãos de Ruth.
- Está tudo bem, Ruth. Conte para ele.
- Eu geralmente limpo o laboratório de Philip só depois que ele sai, todos os dias. Ele detesta me ver fazendo faxina, de modo que sempre espero até ter certeza de que demorará algumas horas para voltar. Não sei o que deu em mim para descobrir isso... Achei que desta vez eu poderia limpar o lugar de alto a baixo. Estava ficando louca, sem nada para me manter ocupada...
George esperou, pacientemente. Ruth soltou suas mãos das de Kathy e cobriu o rosto.
- Ah, meu Deus, preciso fumar - disse, de modo quase incompreensível.
George ofereceu-lhe um cigarro e conseguiu acendê-lo, apesar do tremor nos dedos da mulher. Sentiu vontade de reconfortá-la, mas sabia que seria inútil dizer-lhe que tudo estava bem. Nada jamais estaria bem para esta mulher. Tudo o que ele podia fazer era ficar sentado em silêncio e olhar, enquanto ela tragava fundo e se acalmava o suficiente para recomeçar sua narrativa. Desta vez, parecia que falava em meio a um sonho:
- A bancada na qual ele trabalha é uma mesa antiga, com gavetas. Eu a afastei da parede. Foi um tremendo esforço, porque é muito pesada, mas eu queria limpar atrás. Vi este tecido saindo do buraco onde ficava uma das gavetas, há muito tempo. Fiquei curiosa para saber o que era. Então, tirei-o dali.
- Ela estava gritando como um porco com a garganta cortada - comentou Mamãe Lomas. - Dava para ouvir seus berros por toda a aldeia.
George respirou fundo.
- Pode haver uma explicação inocente para isto, senhora Hawkin.
- Ah, é? - disse Mamãe Lomas, irônica. - Vamos ouvi-la, então Leve essa coisa e teste o sangue, rapazinho. Olhe onde está, seu tolo. Está todo na frente, bem onde se espera que esteja. E a arma? Até que ponto um revólver pode ser inocente? Examine-o. Aposto que a bala que vocês encontraram foi disparada daí. - Ela balançou a cabeça, inconformada. - Achei que vocês tinham feito buscas no laboratório.
- Lembro-me que o senhor Hawkin foi muito reservado com relação ao seu laboratório - disse George.
- Mais uma razão para que o examinassem de cabo a rabo! - exclamou Kathy, sombria. - E agora, pretendem prendê-lo?
- Tem um saco de papel no qual eu possa colocar a camisa e a arma? - indagou George.
Ruth lançou um olhar de mudo apelo a Kathy. Esta levantou-se de um pulo e procurou no armário sob a pia, trazendo-lhe um grande saco marrom. George pegou a camisa com a ponta da caneta e a deixou cair no saco, sem tocá-la. O revólver foi embrulhado cuidadosamente em um lenço limpo que ele tirou do bolso e colocado sobre a camisa.
- Tenho de voltar a Buxton - disse. - O sargento Clough ficará aqui para garantir que ninguém entrará no laboratório de seu marido. - Suspirou. - Mandarei uma equipe de policiais para uma busca completa tão logo consiga o mandado.
- Mas vocês vão prendê-lo? - insistiu Kathy.
- Nós as manteremos informadas de tudo o que acontecer - disse George.
As mulheres entreolharam-se e Mamãe Lomas falou:
- Se não o prenderem, será melhor mantê-lo longe daqui. Para o bem dele.
George fitou-a demoradamente, sem piscar.
- Vou fingir que não ouvi a ameaça, senhora Lomas.
Ele dirigiu o carro de Tommy Clough até Buxton, com um misto estranho de pesar e alegria a agitar-lhe o peito. Estacionou com cuidado e subiu as escadas até a sala de interrogatório, com um ar de tranqüila determinação.
Sabia que deveria falar com o detetive e inspetor-chefe Carver ou com o superintendente Martin antes de agir, mas este era seu caso. Assim, empurrou a porta e fitou Hawkin, cuja queixa petulante morreu nos lábios ao ver a expressão do inspetor.
George respirou fundo e disse:
- Philip Hawkin, você está preso por suspeita de homicídio.
George não perdeu tempo. Hawkin foi levado para a cela, lamuriando-se sobre mentiras forjadas e exigindo um advogado. George não lhe deu ouvidos. Haveria muito tempo para lidar com Hawkin depois. Se estivesse certo, ninguém questionaria suas ações. Se estivesse errado, ninguém o culparia. Ninguém, exceto, talvez, o detetive e inspetor-chefe Carver, que via tudo o que ele fazia como censurável e se regozijaria com o fracasso e embaraço de seu jovem detetive. Contudo, continuar na lista de amiguinhos de Carver era a última das considerações em sua mente naquele momento.
Após trancar a porta da cela de Hawkin, que ainda protestava, George levou Cragg para um canto.
- Quero que você ligue para o departamento de investigações criminais da divisão em St. Albans, de onde Hawkin veio. Sabemos que ele tem ficha limpa, porque o sargento Clough já havia verificado. O que desejo saber é se alguém de lá já ouviu algum boato ou fofoca. Quaisquer alegações para as quais não havia evidências suficientes para uma acusação formal.
- O que você tem em mente? Crimes de natureza sexual?
- Qualquer coisa, Cragg. Apenas fale com o pessoal de lá e veja se descobre algo. - Ele percebeu que ainda segurava o saco de papel contendo a camisa suja e o revólver cuidadosamente embrulhado. Em sua pressa, esquecera-se da necessidade de identificá-los e enviá-los ao laboratório. Olhou para o relógio em seu pulso. Quase meio-dia. Se corresse, pegaria um dos juízes no tribunal de High Peak. Estava certo de que não teria dificuldade para fazer com que alguém assinasse um mandado de busca. Todos queriam esclarecer o desaparecimento de Alison Cárter, e Hawkin ainda não tivera tempo para fazer qualquer amizade importante em uma cidade na qual pessoas a dez quilômetros de distância ainda eram vistas como forasteiras. Assim, preencheu rapidamente o formulário e saiu correndo da delegacia. Ignorando seu carro, correu pelas ruas do bairro de Silverlands e cortou caminho pela feira livre rumo ao tribunal. Dez minutos depois, saiu do prédio com um mandado de busca assinado para o Solar Scardale e seus anexos. Assim que pisou na rua, o sol surgiu, iluminando-o com um breve raio de luz pálida e invernal. Era difícil não interpretá-lo como um bom presságio.
De volta à divisão, ainda levando consigo o saco de papel, sentiu-se aliviado por encontrar o sargento Bob Lucas de plantão. Pareceu-lhe uma coincidência providencial que o policial que o levara pela primeira vez a Scardale estivesse disponível para ajudar na procura do que, talvez, desse um rumo novo para o caso. George fez um resumo dos acontecimentos e finalmente cuidou da documentação necessária para enviar a camisa e a arma ao laboratório. Nesse meio-tempo, Lucas formou uma pequena equipe de buscas com dois policiais e um cadete, tudo o que conseguiu retirar do movimentado turno do dia.
A viatura seguiu o carro de George, saindo da cidade e percorrendo a paisagem desolada de fevereiro até Scardale. A notícia sobre a descoberta de Ruth já se espalhara tão rapidamente quanto ocorrera com o desaparecimento de Alison. Mulheres os espiavam nas portas de suas casas e os homens observavam encostados nas paredes, sem nenhum pudor, enquanto os policiais contornavam o solar até o anexo onde Philip Hawkin mantinha seu laboratório fotográfico. O que mais impressionava não eram os olhares, mas o silêncio do povo local.
George encontrou Clough de pé, do lado de fora da porta do pequeno prédio de pedra, com braços cruzados e um cigarro pendurado no canto da boca.
- Algum problema? - indagou.
- A parte mais difícil foi ficar aqui fora - disse Clough, depois de fazer um "não" com a cabeça.
George abriu a porta do anexo e viu pela primeira vez o laboratório de Hawkin. Era óbvio que seis policiais teriam dificuldade para permanecer ali dentro, e mais ainda para fazer uma busca minuciosa.
- Muito bem - disse. - O sargento Clough e eu examinaremos o laboratório. Sargento Lucas, eu gostaria que seus homens vasculhassem a casa.
Como todos sabem, já fizemos buscas lá, mas nossa preocupação, na época era verificar se Alison não deixara algum recado escondido ou se não havia sinais de arrombamento ou assassinato no local. Agora, procuramos qualquer coisa que lance luz sobre o relacionamento de Philip Hawkin com sua enteada. Ou qualquer coisa que nos dê uma idéia sobre esse homem. Sem um corpo, precisamos de todas as provas circunstanciais que pudermos encontrar para pressionarmos Hawkin. Podem começar pelo estúdio.
- Certo, senhor - disse Lucas, muito sério. - Venham, rapazes Vamos revistar esse lugar até o último tijolo.
Os quatro homens fardados rumaram para a porta dos fundos. George percebeu que Kathy Lomas os espiava através da janela da cozinha. Ao perceber que ele a vira, a mulher afastou-se.
- Muito bem, Tommy, vamos lá. - George cruzou o limiar e acendeu uma lâmpada. A luz avermelhada encheu o cômodo. - Ótimo - murmurou. Olhou para a parede e viu uma segunda chave de luz. Ao pressioná-la, uma luz elétrica comum acendeu-se, substituindo a estranha luz vermelha.
George olhou à sua volta, determinando o que precisava ser examinado. Além da mesa pesada junto à parede, tudo estava incrivelmente limpo e arrumado. Duas pesadas pias de pedra que pareciam estar ali desde a Idade Média estavam apoiadas numa das paredes, as torneiras novas brilhando, assim como o equipamento fotográfico.
Em um canto, viu arquivos de metal contra a parede e foi até eles, mas descobriu que as gavetas estavam trancadas.
- Que bela porcaria - murmurou.
- Sem problema - disse Clough, afastando o chefe para o lado. Ele segurou com força o arquivo mais próximo, puxou-o em sua direção e, então, quando o móvel estava a alguns centímetros da parede, inclinou para trás. - Pode mantê-lo assim para mim? - perguntou.
George apoiou-se contra o arquivo, mantendo-o inclinado. Clough agachou-se e mexeu por baixo do móvel por mais ou menos um minuto. George ouviu estalos enquanto a tranca existente ali era destravada e, depois, um grunhido de satisfação de Clough.
- Aí está, George. Que descuidado esse Hawkin, saindo e deixando seus arquivos destrancados...
- Começarei por este. Verifique a mesa e as prateleiras. - Ele puxou a gaveta superior e olhou para as dúzias de pastas contidas ali. Em cada uma havia negativos, folhas de contato e fotos reveladas. Ele verificou rapidamente as outras gavetas, encontrando praticamente a mesma espécie de material em todas elas.
Isso levará uma eternidade - gemeu.
Clough aproximou-se.
- Temos milhares de fotos aqui.
- Eu sei. Mas teremos de verificar todas. Se Hawkin chegou a tirar fotos pornográficas, pode tê-las escondido no meio de outras, nessas gavetas. - Ele suspirou.
- Será que não deveríamos dar uma olhada no outro arquivo, para termos uma idéia mais clara do tamanho de nosso problema? - sugeriu Clough.
- Boa idéia. Do mesmo jeito que antes?
Desta vez ele mesmo afastou o arquivo da parede, enquanto Clough abaixava-se para destrancá-lo.
- Espere um minuto - disse Clough, remexendo por baixo da base de metal. - Prendi minha manga em alguma coisa. - Enfiou a outra mão no bolso da jaqueta e pegou seu isqueiro, usando a chama deste para iluminar a área sob o móvel. - Deus do céu... - sussurrou, levantando o olhar. - Eis algo que você vai adorar. Há um buraco no chão, com um cofre dentro.
George, surpreso, quase deixou o arquivo cair sobre Clough.
- Um cofre?
- Isso mesmo. - Clough afastou-se do arquivo e levantou-se. - Vamos afastá-lo para que você veja direito.
Os dois lutaram para arrastar o pesado móvel de aço até o outro lado do cômodo, deixando espaço suficiente para estudarem o cofre. George abaixou-se e olhou-o. A frente de metal verde tinha cerca de um metro quadrado, com fechadura de bronze e um trinco que se projetava cerca de dois centímetros acima da porta do cofre, e poderia acomodar-se na cavidade existente na base do arquivo. Ele suspirou.
- Precisamos de peritos para tirar as impressões digitais de Hawkin desse trinco. Não quero que ele diga, depois, que não tem nada a ver com o conteúdo do cofre e alegue que outra pessoa plantou provas aí dentro.
- Tem certeza? - indagou Clough, incerto. - Teremos sorte de conseguir uma impressão parcial em um trinco assim. O que nos interessa é o que está aí dentro. Certamente, Hawkin não usou luvas e suas digitais estarão por toda parte no que há dentro do cofre.
George agachou-se, ponderando:
- Acho que você tem razão. E então, onde está a chave?
- Se eu fosse ele, levaria sempre comigo.
George negou com um movimento de cabeça.
- Cragg revistou-o quando o prendemos. As únicas chaves eram as de seu carro. - Ele pensou por um momento. - Vá perguntar ao sargento Lucas se já encontraram alguma chave que se pareça com a de um cofre. Darei uma olhada por aqui.
George sentou-se junto à mesa e se pôs a examinar o conteúdo das gavetas. Uma continha uma coleção meticulosa de acessórios úteis - tesouras, estiletes, pinças, pincéis macios e minúsculos e canetas-nanquim. A outra era uma típica "gaveta da bagunça", com pedaços de cordão, alfinetes, uma lixa de unhas quebrada, alguns rolos parcialmente usados de fita adesiva, tocos de velas, lâmpadas, caixas de fósforos e parafusos de diversos tamanhos. Nenhuma das gavetas continha uma chave. George acendeu um cigarro e o fumou furiosamente. Sentia-se como um relógio no qual alguém dera corda até o limite de sua mola.
Ao longo de toda a investigação, forçara-se a manter a mente aberta, sabendo como seria fácil desenvolver uma idéia fixa e forçar cada informação subseqüente a se encaixar nela. Contudo, a verdade é que em nenhum momento fora totalmente imparcial com relação a Philip Hawkin. Quanto mais aumentava a probabilidade de Alison estar morta, mais provável tornava-se a culpa de seu padrasto. Isso era o que as estatísticas sugeriam, e sua antipatia pelo homem apenas as corroboravam. Ele tentara bloquear sua resposta instintiva a Philip, sabendo que o preconceito seria seu inimigo na construção de um caso sólido, mas Hawkin enfiara-se em sua consciência vezes sem conta como o principal suspeito, se um homicídio viesse a ser a conclusão inevitável das investigações.
Agora, esta possibilidade acenava-lhe de forma irresistível. A certeza acomodara-se em sua mente como a lingüeta em uma fechadura bem lubrificada.- A única questão dizia respeito à sua capacidade para juntar as provas que a transformariam em condenação.
George saiu do laboratório, encontrando o ar frio do entardecer. As luzes da casa derramavam um amarelo pálido em seu interior e ele podia ver silhuetas movendo-se por trás das janelas. Vislumbrou Ruth Hawkin cruzando a cozinha e percebeu que temia o momento em que talvez tivesse de confirmar-lhe aquilo em que todos já acreditavam. Não importava o quanto ela pudesse considerar-se conformada com a perda de sua filha, no instante em que ele lhe dissesse que o caso agora estava sendo tratado formalmente como um assassinato, a mulher teria seu coração dilacerado pela dor.
Ele acendeu outro cigarro e andou em círculos pequenos no lado de fora do laboratório. Por que Clough demorava? Não poderia sair de perto do anexo, agora que as buscas haviam começado, por temer que, posteriormente, a defesa argumentasse que provas incriminadoras haviam sido plantadas durante seu afastamento. Também não queria continuar procurando, percebendo que, com uma gama tão circunstancial de evidências, cada achado crucial deveria ter testemunhas. Forçou-se a respirar fundo, girando os ombros dentro de seu casaco na tentativa de liberar parte da tensão que endurecia seu pescoço.
Clough emergiu da casa com um amplo sorriso, quando os últimos sinais do dia desapareciam no fim do vale.
- Desculpe a demora - disse. - Tive de examinar todas as gavetas da escrivaninha. Não encontramos chaves. Então eu percebi que uma das gavetas não estava fechando direito. Assim, eu a tirei do lugar e bingo! Lá estava a chave do cofre, grudada no fundo da gaveta com esparadrapo. - Ele sacudiu a chave na frente de George. - O mesmo tipo de esparadrapo usado para amordaçar a cadela, por falar nisso.
- Belo trabalho, Tommy. - Ele tomou a chave e voltou ao laboratório. Agachou-se sobre o cofre e olhou sobre o ombro para seu sargento. - Quase sinto medo de abrir isto aqui.
- Porque podem haver provas de que ela está morta?
George fez um "não" com a cabeça.
- Porque pode não haver prova de nada. Agora estou convencido, Tommy. As pequenas coincidências são numerosas demais. Hawkin matou Alison e quero que balance na forca por isto. - Voltou à sua tarefa e enfiou a chave na fechadura, que girou com suavidade. Ele fechou os olhos por alguns segundos. Cinco minutos antes, teria chamado a si mesmo de agnóstico. Agora, era um fanático.
Virou lentamente o trinco e abriu a pesada porta de aço. Nada havia ali dentro, exceto uma pequena pilha de envelopes pardos. George retirou-os quase com reverência. Contou o total de envelopes em voz alta para Clough que já mantinha seu lápis preparado para escrever no bloco de anotações aberto.
- Seis envelopes pardos - disse, levantando-se e colocando-os sobre a bancada. Sentou-se, com a sensação de que precisaria do apoio. Retirou suas luvas de pelica e se pôs a trabalhar.
As abas de todos os envelopes haviam sido enfiadas para dentro. George inseriu o polegar e abriu o primeiro deles, descobrindo ali fotografias 20 x 25. Ele as removeu empurrando os lados do envelope para dentro e deixando que as fotos caíssem sobre a mesa, para evitar deixar suas digitais no envelope ou nas fotos. Havia meia dúzia delas, que espalhou usando sua caneta.
Alison Cárter estava nua em todas. O encanto natural de seu rosto não se mostrava, subjugado pelo medo. Seu corpo expressava a relutância em adotar poses que teriam sido lascivas em uma mulher, mas que em uma criança eram revoltantemente trágicas. A menos, é claro, que aquele que as visse fosse o pedófilo que as produzira. Nesse caso, tudo pareceria erótico.
Clough olhou sobre seu ombro.
- Ah, meu Deus - disse com a voz rouca de asco.
George não encontrou nada para dizer. Juntou as fotografias e enfiou-as de volta no envelope, separando-o dos outros. O segundo envelope continha tiras de negativos em formato grande. Com o auxílio da caixa de luz sobre a mesa, conseguiram estabelecer que estes eram os negativos das fotos que haviam acabado de ver. Havia dezesseis deles. Hawkin deixara de revelar dez, nos quais Alison parecia estar chorando.
O terceiro envelope era pior, com poses ainda mais explícitas. Desta vez, porém, a cabeça de Alison parecia pender e seu olhar era distante.
- Ela está bêbada ou drogada - disse Clough.
George ainda não conseguia falar. Recolocou metodicamente as fotos novelope edepois, comprovou que os negativos no quarto envelope correspondiam às últimas fotos vistas. o quinto envelope ia além de tudo o que George teria imaginado. Desta vez todos os dezesseis negativos haviam sido revelados e, agora, Hawkin estava nas fotos, com sua enteada. O ambiente era, indubitavelmente, o quarto de Alison, contrastando em sua inocência com o contraponto obsceno dos atos cometidos ali. O aposento servia de cenário para experiências às quais nenhuma criança de treze anos deveria submeter-se. Em uma série de terríveis imagens monocromáticas, o pênis ereto de Hawkin penetrava na vagina, no ânus e na boca de Alison. Seus dedos enfiavam-se no corpo da menina com eficiência cruel e repelente. Em todas as fotos, ele olhava diretamente para a lente da câmera, exultante com seu poder.
- Desgraçado! - gemeu Clough.
George afastou-se de repente da mesa, derrubando ruidosamente a cadeira. Passou pelo sargento e cruzou a porta, varrido por uma onda de náusea que não conseguia conter. Com as mãos nos joelhos, vomitou até sentir espasmos de dor no estômago vazio e, então, apoiou-se quase caindo contra a parede, suando. Lágrimas escorriam por seu rosto, enquanto ignorava o gélido vento noturno e a chuva de granizo e neve que varria o vale.
Teria preferido descobrir o cadáver da menina a ter de suportar aquelas imagens de seu corpo violado. Não havia como negar que havia motivos suficientes para fugir de casa. Mas a motivação era maior ainda para o homem que a estuprara, se ela tivesse finalmente se rebelado e ameaçado revelar a perversão doentia. George correu a mão trêmula pelo rosto molhado e esforçou-se para endireitar o corpo.
Clough, de pé logo atrás na entrada, estendeu-lhe um cigarro já aceso. Seu rosto largo estava tão pálido quanto as nuvens que passavam pelo céu escuro. George tragou fundo e tossiu quando a fumaça passou por sua garganta irritada pelo vômito.
- Ainda acha que a pena de morte é injusta? - indagou, arfante.
- Eu poderia matar o canalha com minhas próprias mãos - rosnou Clough, com voz grave.
- Deixe-o para o carrasco, Tommy. Faremos tudo como manda o figurino. Ele não sofrerá um acidente fatal, nem será colocado convenientemente em uma cela com um bêbado que detesta depravados. Nós o levaremos ao tribunal inteirinho - disse George, roufenho.
- Não será fácil. Nesse meio-tempo, o que diremos à mãe da garota? A... a esposa daquele animal? Como se diz a uma mulher "E por falar nisso querida, esse homem com quem você casou, ele estuprou e abusou de todas as formas de sua filha. Provavelmente também a matou"?
- Ah, meu Deus. Precisamos de uma policial aqui. E um médico.
- Ela não quer uma policial, George. Confia em você e tem o apoio da família. Eles cuidarão melhor dela do que qualquer médico poderia fazer. Só precisamos entrar ali e descobrir um modo de lhe contar.
- É melhor contarmos aos outros policiais também, para prestarem uma atenção especial em fotografias e negativos, enquanto vasculham a casa. - Ele teve um calafrio, enquanto inspirava profundamente. - Vamos ensacar e rotular os envelopes com as fotos. A perícia precisará deles.
Os dois forçaram-se a voltar para o laboratório e a juntar os envelopes com seu conteúdo terrível.
- Leve esses para o sargento Lucas - pediu ele a Clough. - Não quero ter de segurá-los enquanto falo com Ruth Hawkin. Darei uma última olhada por aqui para ver se há mais alguma coisa óbvia. Precisaremos de uma equipe para examinar cada um desses negativos, mas não hoje.
Clough desapareceu na noite. George verificou o cômodo, mas não encontrou nada mais que merecesse atenção e saiu de novo para o clima inclemente, fechando a porta do laboratório e fixando nela o lacre da polícia, para que ninguém pudesse mexer nas provas. Teria de colocar um guarda ali durante a noite para proteger o anexo. Amanhã, organizaria uma equipe para varrer com pente-fino o lugar e iniciar a penosa tarefa de examinar a coleção fotográfica de Hawkin. Não teria escassez de voluntários.
- Já entreguei o material ao sargento Lucas - disse Clough, correndo em sua direção.
- Obrigado. Agora, façamos o seguinte: você fala com os parentes e eu conto a Ruth sozinha. Apenas diga a eles que descobrimos evidências que sugerem que Hawkin pode estar envolvido no desaparecimento de Alison e que o indiciaremos no mínimo por um crime grave esta noite. Ruth decidirá o que mais deve contar a eles, depois.
Todos vão querer saber tintim por tintim. Especialmente Mamãe lomas - alertou-o Clough.
Que compareçam ao tribunal, então. Estou preocupado é com Ruth Hawkin. Ela é minha principal testemunha, neste momento, e tem o direito de decidir até onde sua família pode saber das novidades - disse George, decidido. - Conte-lhes o mínimo que puder. - Ele aprumou-se e jogou o toco de cigarro longe. Depois, correu a mão por seus cabelos molhados, respingando minúsculas gotas de água em Clough. - Muito bem. - Respirou fundo. - Vamos lá.
Cruzaram a porta dos fundos e atravessaram o corredor, entrando no calor aconchegante da cozinha enfumaçada. Diane, irmã de Ruth, e a mãe de Janet, Maureen, agora se juntavam a Mamãe Lomas e Kathy na equipe de apoio a Ruth. Os cinco rostos femininos denunciaram medo ao ver as expressões sombrias dos dois homens.
- Temos algo a lhe dizer, senhora Hawkin - disse George, pesadamente. - Eu gostaria de lhe falar a sós, se for possível. Se as outras senhoras fizerem o favor de acompanhar o sargento Clough, ele explicará o que está acontecendo.
Kathy abriu a boca para argumentar, mas um segundo olhar para George abortou seu protesto.
- Iremos para a sala - disse a mulher, mansamente.
Ruth nada disse, enquanto as outras saíam com Clough. Seu rosto era como uma porta trancada, cuidadosamente contido, com os músculos da mandíbula acentuados pelo esforço do silêncio. Seu olhar não se desviou de George, que se sentara no outro lado da mesa, à sua frente. Ele esperou até ouvir a porta fechar-se e, então, disse:
- Perdoe-me, mas não há um modo de suavizar o que tenho para lhe dizer. Descobrimos provas de que Philip Hawkin cometeu graves abusos sexuais contra sua filha. Não há dúvidas disso, e ele será indiciado antes do fim do dia.
Um som estrangulado de lamúria saiu dos lábios da mulher, mas seu olhar continuou fixo nele. George remexeu-se na cadeira e pegou automaticamente o maço de cigarros. Ela sacudiu a cabeça em recusa, quando ele lhe ofereceu um, de modo que George deixou o maço entre os dois sobre a mesa.
- Somando nossos achados à camisa manchada e à arma que a senhora encontrou no anexo, é difícil resistir à conclusão de que, muito provávelmente, ele também a matou. Sinto muito, muitíssimo mesmo, senhora Hawkin.
- Não me chame assim - disse ela, com a voz transformada em uma série de soluços. - Não me chame pelo nome dele.
- Não chamarei mais. E farei o possível para que nenhum outro policial a chame assim também.
- Você tem certeza, não é? - perguntou ela entre os lábios duros. - Em seu íntimo, você tem certeza de que ela está morta, não tem?
George desejou estar em qualquer outro lugar, menos na cozinha de Ruth Cárter, preso à verdade por aqueles olhos que não o abandonavam.
- Sim, tenho certeza - disse. - Não consigo encontrar razão para pensar diferente, e um conjunto significativo de provas circunstanciais me leva a esta conclusão. Só Deus sabe como eu gostaria de não acreditar nisso, mas não posso fechar os olhos.
Ruth começou a balançar-se para a frente e para trás na cadeira, com os braços enlaçando o próprio corpo e as mãos transformadas em garras sob as axilas. Sua cabeça levantou-se e ela emitiu um urro de agonia, o berro de um animal ferido mortalmente. Impotente, George permaneceu sentado como um bloco de madeira. De algum modo, ele sabia que o pior que poderia fazer seria tocá-la.
O ruído cessou e a cabeça da mulher tombou para a frente, com a boca frouxa e o rosto ruborizado. Seus olhos brilhavam com lágrimas presas.
- Enforque-o - disse, em voz dura e clara.
George assentiu, acendendo um cigarro.
- Farei o possível.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não quero que faça o possível. Enforque-o, George Bennett, porque se não o matar, alguém fará isso e o transformará em algo muito mais feio do que ficará depois de enforcado. - Sua veemência parecia ter-lhe esgotado a última reserva de energia. Ela virou-se e disse, em um sopro de voz: - Agora vá.
George levantou-se devagar.
- Voltarei amanhã para tomar um depoimento formal. Se precisar de algo, qualquer coisa, ligue-me. Estarei na delegacia. - Ele puxou um bloquinho do bolso de seu paletó e escreveu o número do telefone de sua casa numa folha. - Se eu não estiver lá, ligue para minha casa. A qualquer momento. Lamento por tudo.
Saiu e, ao fechar a porta, encostou-se na parede do corredor, com a fumaça do cigarro subindo por seu braço em uma espiral fragmentada. O som de vozes mais adiante levou-o ao cômodo em que as outras mulheres de Scardale cercavam Tommy Clough.
Para o inferno com o intermediário. Vamos direto à fonte - disse Maureen Cárter, ao avistar George. - Diga-nos. Vocês vão enforcar esse bastardo do Hawkin?
- Não sou eu quem toma esse tipo de decisão, senhora Cárter - respondeu ele, tentando não demonstrar o quanto se sentia cansado. - Será que posso sugerir que é melhor gastarem seu tempo e energia com Ruth? Ela precisa de apoio. Logo iremos embora, mas um guarda ficará do lado de fora do anexo a noite inteira. Eu agradeceria se todas vocês se unissem a Ruth agora e espremessem seus cérebros para nos oferecer quaisquer detalhes que possam ser úteis.
- Ele tem razão, vamos deixá-lo em paz - disse Mamãe Lomas, inesperadamente. - Ele é apenas um rapazinho e já suportou muita coisa hoje. Venham, meninas. É melhor cuidarmos de Ruth. - Ela empurrou-as gentilmente para a porta e, depois, voltou-se para proferir sua inevitável ironia final: - Não pense que o deixaremos fazer o que bem entender, mocinho. É hora de agir como homem. - Ela sacudiu a cabeça. - A culpa é do antigo proprietário das terras. Deveria ter tido mais juízo. Meia hora com Philip Hawkin é suficiente para saber-se de uma coisa, com certeza: não se perderia nada se o tivessem afogado ao nascer. - A porta fechou-se às costas dela com um ruído seco.
Como se coreografados, George e Clough atiraram-se em cadeiras, frente a frente, com expressões tão exaustas quanto desanimadas.
- Espero nunca mais ter de fazer isso. - George suspirou ao expelir a fumaça. Olhou em volta, procurando um cinzeiro, mas nenhum dos enfeites serviria para este fim. Assim, apagou a brasa do cigarro com os dedos, atirando o toco na lareira vazia.
- Acho que você enfrentará mais situações como esta antes de se aposentar - disse Clough.
O telefone tocou e, no sexto ou sétimo toque, alguém pegou a extensão. Os dois homens ouviram murmúrios de interrogação e, depois, passos aproximaram-se da porta. Diane Lomas espiou-os e disse:
- É para o inspetor. Alguém chamado Carver.
George levantou-se, desanimado, e atravessou a sala para atender a ligação.
- Bennett.
- Diga-me, Bennett, que idiotice é essa que você está fazendo? Alfie Naden está aqui fazendo um discurso, dizendo que jogamos seu cliente na cadeia sem qualquer justificativa e o deixamos lá, mofando, enquanto você saía para passear por Derbyshire em outra caçada inútil.
E por falar nisso, cogitou George, como o advogado mais caro da cidade descobriu que Philip Hawkin estava sob custódia? Cragg era um inútil, mas não teria ligado para o homem sem autorização. Parecia que Carver não aprendera nada com a morte de Peter Crowther e se comportava novamente como se tivesse direito a tudo e fosse a própria lei. George conseguiu conter um comentário irritado e falou, apenas:
- Eu já estava de saída. Pretendo voltar à delegacia para indiciar o senhor Hawkin.
- Indiciar? Naden disse que você prendeu Hawkin por suspeita de homicídio. Mas não há um homicídio para podermos indiciá-lo! - O pesado sotaque interiorano de Carver sempre tornava-se mais pronunciado sob tensão. George reconhecia os sintomas de alguém que estava por um fio para perder a cabeça. Se era assim, podia-se dizer o mesmo a seu respeito.
Esforçando-se para controlar sua raiva, respondeu com a voz mais calma que conseguiu encontrar:
- Eu o indiciarei por estupro, senhor. Para começar. Isto nos dará o suficiente para perguntarmos ao diretor do Ministério Público se é possível indiciarmos por homicídio sem um cadáver.
Do outro lado da linha, um silêncio de perplexidade.
- Estupro? - perguntou Carver, com a incredulidade alongando a palavra.
- Temos provas fotográficas. Acredite, é para valer. Agora, se me der licença Preciso ir. Chego aí em meia hora e mostro-lhe o que encontramos. George pousou o telefone no gancho devagar e virou-se, vendo Bob Lucas na porta que dava para o estúdio. - Carver quer que voltemos a Buxton - Preciso levar aqueles envelopes comigo. Será que posso incumbi-lo de colocar um guarda para vigiar a porta do laboratório fotográfico durante a noite?
Pode deixar comigo, senhor. Apenas para constar: folheamos cada um dos livros no estúdio e não encontramos nenhuma fotografia, mas continuaremos procurando. Boa sorte com Hawkin. - Balançou a cabeça num aceno de apoio. - Esperemos que ele facilite as coisas para a senhora Hawkin e decida contar tudo.
- Não sei por quê, mas duvido muito disso - disse Clough, parado na soleira. - O nojento se acha esperto demais.
- Ah, antes que eu me esqueça. Ela não quer mais ser chamada pelo sobrenome do marido. Suponho que devemos chamá-la de "senhora Cárter". - George suspirou. - Diga aos outros. - Ele passou a mão por seus cabelos ainda úmidos. - Vamos lá então. Quero que o desgraçado sofra um pouco.
Carver silenciou ao ver as fotografias. George imaginou que veria o mesmo efeito outras vezes. Carver fixou o olhar nas fotos como se, olhando-as assim, pudesse apagar as imagens e substituí-las pelas paisagens de cartão-postal de Scardale que Hawkin vendia no comércio local. Depois, virou-se abruptamente, apontando para uma folha de papel.
- É o número de Naden. Ele quer estar presente quando você interrogar o prisioneiro. - Ele levantou-se e agarrou seu casaco do gancho na parede, atrás de sua mesa.
- E o senhor? Não estará presente? - perguntou George, sem esconder o desapontamento.
- Este é seu caso, desde o início. Vá até o fim - disse Carver, com frieza. - Você e Clough, façam isso - concluiu, enfiando o casaco.
- Mas, senhor - começou George e então parou. Desejava dizer que jamais tivera um caso tão grave, que jamais conduzira um interrogatório no qual tivesse tão pouco em qye se basear, que era tarefa de Carver, como chefe, assumir esta situação. As palavras morreram em sua boca ao perceber que Carver achava que esse trem descarrilaria em algum ponto, ao longo do caminho, e não queria estar a bordo quando isso ocorresse.
- Mas o quê?
- Nada, senhor.
- E então, o que está esperando? Não posso fechar minha sala se você está parado no meio do caminho como um poste, não é?
- Desculpe-me. - George pegou a folha de papel da mesa de Carver, virou-se e saiu da sala. - Sargento! - chamou, ao avistar Clough. - Pegue seu casaco. Estamos de saída.
Surpreso, Clough fez o que George mandava. Carver franziu a testa:
- Aonde vão? Você precisa indiciar e interrogar um prisioneiro.
- Vou ligar para Naden e pedir-lhe para estar aqui em uma hora. Depois levar o sargento Clough comigo, para comermos algo em minha casa Só tomamos o café da manhã e um interrogatório demorado exige mais do que apenas café e nicotina, senhor - disse George com firmeza.
Carver torceu o nariz:
É isso o que ensinam na universidade?
Não, senhor, é algo que aprendi com o superintendente Martin, para falar a verdade. Ele diz que nunca devemos enviar soldados para combater de estômago vazio. - George sorriu. - Agora, se nos der licença, precisamos ir.
Virou-se e pegou o telefone. Podia sentir os olhos de Carver queimando-lhe as costas, enquanto discava.
- Alô? Senhor Naden? Aqui é o detetive-inspetor Bennett, do departamento de investigações criminais de Buxton. Pretendo interrogar seu cliente, por suspeita de homicídio e estupro, daqui a uma hora. Eu apreciaria se pudesse tê-lo aqui nesse horário... Muito bem, eu o espero então. Obrigado. - Ele terminou a ligação pressionando o gancho e discou novamente. - Anne? Sou eu. - Virou-se e fixou um olhar intenso em Carver, que bufou e marchou rumo às escadas.
Exatamente uma hora depois, Alfie Naden foi levado à sala de interrogatório. Ele parecia o exemplo perfeito do advogado interiorano bem-sucedido, com sua barriga modesta escondida em um terno de três peças impecável, de lã penteada. Usava óculos em meia-lua, com armação dourada, empoleirados em um nariz batatudo flanqueado por bochechas coradas. Sua cabeça calva brilhava sob as luzes, e seu queixo era tão liso como se ele tivesse feito a barba antes de sair para este compromisso. Teria sido fácil confundi-lo com um matuto se não fossem seus olhos pequenos e escuros, brilhavam como os olhos de vidro de um ursinho de pelúcia antigo. Raramente parados, exceto quando sondavam uma testemunha, eles não ignoravam detalhe algum. Era um adversário astuto e George desejou que Hawkin não conhecesse o suficiente sobre as pessoas da cidade para contratar o homem.
Clough trouxe Hawkin e pronunciou as palavras formais e decoradas sempre. O acusado nada disse, com os lábios franzidos levemente em desgosto, parecendo tão tranqüilo e confiante quanto parecera às dez da manhã.
George fez-lhe as advertências de praxe e, depois, disse:
- Após sua detenção esta manhã, por suspeita de homicídio, obtive um mandado de busca dos magistrados de High Peak. - Ele estendeu o mandado para exame de Naden, que o olhou e acenou em assentimento. -
e meus homens executamos o mandado esta tarde, no Solar Scardale Durante as buscas, descobrimos um cofre em um esconderijo no chão do anexo que o senhor converteu em laboratório fotográfico. Ao abrirmos o cofre com uma chave que encontramos escondida em seu estúdio dentro do solar, descobrimos seis envelopes pardos.
- Seis? - indagou Hawkin.
- Seis envelopes que continham certas fotografias e negativos cujo conteúdo me leva a acusá-lo agora, Philip Hawkin, de estupro.
Durante o pronunciamento formal de George, a expressão de Hawkin não se alterara. Então ele acha que pode se safar, pensou George. Acha que se livrou da acusação de assassinato e, assim, pode assumir um crime menor, como estupro.
- Podemos ver as provas? - perguntou Naden, calmamente.
George fitou Hawkin.
- O senhor realmente deseja que seu advogado veja as fotografias? Quero dizer, o senhor Naden é o melhor profissional que há por aqui. Se eu estivesse em seu lugar, não me arriscaria a perdê-lo.
- Senhor Bennett - advertiu-o Naden.
- Ele não poderá me defender se não souber o que vocês forjaram contra mim, seus desgraçados - disse Hawkin. Seu linguajar descera vários degraus na escala social, depois da superioridade que demonstrara pela manhã.
George abriu um envelope na frente do homem. Enquanto jantava com Clough, Cragg inserira cada uma das fotos e tiras de negativos em seu próprio saco plástico individual. O policial de plantão etiquetara cada uma enquanto era enfiada pelas bordas para dentro do saco. Amanhã, os peritos fariam seu trabalho. Finalmente, os fotógrafos da polícia fariam cópias dos negativos. Mas esta noite George precisava manter as provas consigo.
Em silêncio, ele pôs a primeira fotografia de Alison na frente de Hawkin e de Naden. Hawkin cruzou as pernas e perguntou:
Você me trouxe cigarros?
Naden afastou o olhar horrorizado da fotografia e olhou para Hawkin como se este fosse uma criatura de outro universo.
- O quê? - indagou, em voz débil.
- Cigarros. Os meus terminaram - disse Hawkin.
Naden piscou uma dúzia de vezes em rápida sucessão e, depois, abriu sua pasta. Tirou dali um maço de Benson & Hedges fechado e o jogou na direção de Hawkin, que fez questão de não olhar para as outras fotografias que George colocava metodicamente na frente de Naden. O advogado parecia hipnotizado pelas mostras de depravação que se acumulavam ante seus olhos. Quando a última foto foi exibida, ele pigarreou.
- São forjadas - disse Hawkin. - Qualquer um sabe que se pode manipular fotografias. Minha enteada desapareceu, eles não conseguiram encontrá-la e, agora, estão me enquadrando para mostrar serviço.
- Também temos os negativos - disse George, sem se alterar.
- Pode-se forjar negativos também - disse Hawkin, com desdém. - Primeiro, manipula-se a foto e, depois, ela é fotografada. Aí, obtém-se um negativo para fazer novas fotos.
- Está negando que estuprou Alison Cárter? - perguntou George, cético.
- Sim - respondeu Philip, tranqüilo.
- Também apreendemos uma camisa manchada de sangue, idêntica em cada detalhe às camisas que o senhor manda fazer em um alfaiate de Londres. Estava escondida em seu laboratório.
Enfim, Hawkin mostrava-se assustado.
- O quê?
- A camisa apresentava muitas manchas de sangue na frente, na parte inferior das mangas e nos punhos. Provavelmente será do tipo sangüíneo encontrado nas roupas íntimas de Alison quando for testado.
- Que camisa? Não havia camisa nenhuma em meu laboratório exclamou Hawkin, inclinando-se para a frente e fazendo um movimento agudo com o cigarro, como se esfaqueasse o ar para salientar o que dizia.
- Foi onde a encontramos. Com o revólver.
Hawkin arregalou os olhos.
- Que revólver?
- Uma arma Webley calibre .38. Idêntica àquela que roubaram do vizinho de sua mãe, o senhor Wells, alguns anos atrás.
- Não tenho revólver - disse Hawkin, rapidamente. - Você está cometendo um erro enorme, Bennett. Talvez ache que pode se dar bem me enquadrando, mas não é tão esperto quanto pensa!
O sorriso de George era tão gelado quanto o vento que soprava lá fora.
- Acho que devo informá-lo que pretendo apresentar esta informação ao Ministério Público, na convicção de que ele nos autorizará a acusá-lo de homicídio - continuou, implacável.
- Isso é absurdo! - explodiu Hawkin, remexendo-se na cadeira e voltando sua agressividade para o advogado. - Diga-lhes que não podem fazer isso! Tudo o que têm são algumas fotos falsificadas! Diga-lhes!
Naden dava a impressão de que desejaria ter ficado em casa.
- Devo aconselhá-lo a calar-se a partir de agora. - Hawkin abriu a boca para protestar, mas foi calado. - Não diga nada - repetiu Naden, com a irritação na voz que contradizia sua aparência afável. - Senhor Bennett, meu cliente não fará nenhuma declaração adicional, por enquanto, nem responderá a suas perguntas. Agora, solicito uma reunião em particular com meu cliente. Nós o veremos amanhã de manhã, perante os juízes.
George sentou-se, olhando para a máquina de escrever. Precisava preparar um relatório sobre a acusação de estupro para o inspetor que lidava com o Juizado Especial Criminal. Tal relatório era uma solicitação clara de pedido de prisão preventiva, mas com Alfie Naden defendendo o proprietário de Scardale perante um tribunal com os mais importantes nomes daquela região, George não queria correr qualquer risco. O fato de sua cabeça latejar com uma dor tão poderosa que ele precisava resistir ao impulso de fec'har um olho para aliviá-la, não o ajudava nada.
Ele suspirou e acendeu outro cigarro.
Razões para opor-se à fiança - resmungou para si mesmo.
Ouviu uma batida firme na porta. A esta hora da noite, provavelmente seria um dos policiais de plantão, trazendo-lhe uma xícara de chá em sinal de solidariedade.
Entre!
O superintendente Martin abriu a porta e entrou, vestindo um smoking impecável, em vez do uniforme.
- Não estou incomodando?
- Sua presença aqui é uma agradável interrupção, senhor - disse George, com sinceridade.
Martin acomodou-se na cadeira à frente de George e retirou um frasco prateado de seu bolso traseiro.
- Tem algo em que beber? - perguntou.
- Nem uma xícara suja. Desculpe.
- Não importa. Faremos como no campo de batalha - disse Martin, tomando um gole do frasco e o estendendo para George, após limpar a boca da garrafinha. - Vá em frente. Aposto que lhe fará bem.
Agradecido, George tomou um gole generoso do conhaque. Fechou os olhos e saboreou a ardência, enquanto a bebida descia por sua garganta e aquecia seu peito.
- Não havia percebido suas qualificações médicas, senhor. Isso era exatamente o que o médico receitou.
- Estava em um jantar da maçonaria. Encontrei o detetive e inspetor-chefe Carver lá, e ele me contou o que estava acontecendo. - Martin olhou-o fixamente. - Gostaria de ouvir sua versão da história.
- As coisas... andaram depressa hoje. Eu me sentia muito desconfortável com aquela história da fotografia no jornal, semana passada. Achei que seria bom investigar esta questão um pouco mais, mas não planejava nada além de interrogar Hawkin para ver se poderia deixá-lo inquieto e, talvez, fazê-lo soltar a língua. Depois, quando recebi o telefonema de Ruth Hawkin... Eu pensei em procurá-lo antes de fazer buscas no solar, mas se eu tivesse feito isso, não teria conseguido o mandado, e o senhor sabe como alguns juízes relutam em assinar mandados quando acham que estamos invadindo seus horários livres. Assim, eu simplesmente... fui em frente.
- E então, o que estamos enfrentando, exatamente?
- Eu o acusei de estupro. Ele comparecerá perante os juízes de manhã para pedirmos a prisão temporária. Estou preenchendo a papelada. Alfie Naden o defende, e já está preparando a alegação de que forjamos as fotografias para que não parecesse que fracassamos totalmente no caso de Alison Cárter.
Martin torceu o nariz, em menosprezo.
- Isso não cola. Duvido que tenhamos um fotógrafo ou equipamento necessário para fazermos algo tão complicado. Ainda assim, essa alegação pode causar confusão suficiente para fazê-lo escapar de fininho no meio do barulho. Nunca se sabe com os jurados, e este canalha tem boa aparência.
- Ele retirou um estojo com charutos do bolso interno do smoking. Afrouxou sua gravata-borboleta e abriu o botão superior da camisa branca.
- Assim está melhor. Quer um charuto?
- Fico com os meus cigarros, obrigado. Martin exalou um gordo fio de fumaça azul.
- O que temos para acusá-lo de assassinato? Dê-me uma visão geral das coisas.
- Número um - disse George, recostando-se na cadeira -, agora sabemos que ele abusava da menina e tirava fotografias pornográficas dela. Número dois, na tarde em que ela desapareceu, Hawkin afirma que estava sozinho em seu laboratório, mas duas testemunhas o viram cruzando o campo entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo em que descobrimos sinais de luta envolvendo a garota.
- Bem sugestivo - comentou Martin.
- Número três, a cadela vivia na casa. A pessoa que amarrou seu focinho com esparadrapo sem ser mordida deveria conhecer bem o animal. Teremos de investigar nas lojas próximas para sabermos se alguém se lembra de ter vendido um rolo deste esparadrapo a Hawkin. Número quatro, ninguém na aldeia, além de Mamãe Lomas, admite conhecer a mina de chumbo abandonada, mas encontramos um livro com detalhes sobre uma estante no estúdio de Hawkin. Sugestivo, mas circunstancial. George assentiu.
. Tudo é circunstancial, mas com que freqüência temos uma testemunha que corrobore um assassinato?
. É verdade. Deixe-me ouvir o resto, então. George fez uma pausa para organizar seus pensamentos.
- Ok. Número cinco, Hawkin é do mesmo grupo sangüíneo que a pessoa que deixou sêmen nas roupas íntimas de Alison. Naquelas roupas e no arvoredo também havia sangue do mesmo grupo que o da menina. Sabemos disso porque a presença de corpúsculos de Barr indica que o sangue era feminino. Assim, é razoável presumir que Alison foi, no mínimo, ferida, se não morta, nas mãos de um criminoso sexual. E sabemos, pelas fotografias que encontramos, que Hawkin se encaixa nesta categoria. Número seis, a suposta identificação de Alison em uma foto de jornal. Esta história é exatamente igual a uma matéria de jornal sobre a menina desaparecida de Manchester, Pauline Reade. Acredito que Hawkin usou esta matéria para parecer um padrasto carinhoso e preocupado, algo que não havia sido até aquele ponto, pelo menos em minha opinião.
- Número sete - continuou -, encontramos duas balas de revólver na mina abandonada. Uma estava suficientemente inteira para ser identificada como tendo sido disparada de uma Webley calibre .38. Uma arma semelhante foi roubada de uma casa que Hawkin visitava regularmente, alguns anos atrás. Um revólver semelhante foi encontrado em seu laboratório. Estava escondido e tinha o número de série raspado. Ainda não sabemos se o homem cuja arma foi roubada identificará este revólver como sendo o seu. E ainda não sabemos se esta é a arma que disparou as balas encontradas na mina. Mas saberemos. Finalmente, a camisa manchada de sangue. É idêntica às que Hawkin faz sob medida em Londres, inclusive na etiqueta do alfaiate, no colarinho. Ela estava ensopada de sangue. Se este sangue corresponder àquele que já identificamos circunstancialmente como sendo de Alison, poderemos ligar Hawkin ao ataque a ela. - George levantou as sobrancelhas. - O que o senhor acha?
- Se tivéssemos um corpo, eu diria que deveríamos indiciá-lo mas não temos. Não temos provas diretas de que Alison Cárter não está viva. A promotoria não aceitará um indiciamento por homicídio sem um corpo.
- Há precedentes - protestou George. - Haigh, o assassino da banheira com ácido. Não havia corpo naquele caso.
- Mas estava claro que um corpo havia sido colocado na banheira e traços laboratoriais apontaram para sua vítima, se estou bem lembrado.
- Há outro precedente, com menos provas ainda, de 1955. Um ex- soldado polonês, que foi condenado por assassinato de seu sócio nos negócios. A acusação sustentou que ele dera o corpo aos porcos de sua fazenda Tudo que a acusação tinha eram amigos e vizinhos que afirmavam que os dois homens haviam discutido. Havia algumas manchas de sangue na cozinha da sede da fazenda e o sócio desaparecera por completo, deixando para trás sua conta de poupança. Nós temos bem mais que isso. Ninguém confirma ter visto Alison Cárter desde seu desaparecimento. Temos evidências de que ela foi atacada sexualmente e que teve uma perda sangüínea considerável. Não acha improvável que ainda esteja viva?
Martin reclinou-se na cadeira e soprou a fumaça de seu charuto para o ar.
- Há uma grande diferença entre "improvável" e "além de qualquer dúvida razoável". Mesmo com a arma. Se ele a matou à queima-roupa, por que encontramos duas balas na parede?
- Talvez ela tenha resistido, no início, e ele atirou para assustá-la.
Talvez a menina estivesse lutando e ele a tenha ameaçado com os outros
dois tiros. Para fazê-la ceder, Martin pensou por algum tempo. Depois, disse:
- É possível, mas a defesa usará essas duas balas para confundir os jurados. E se ele matou a garota na mina, por que remover o corpo dali?
George afastou os cabelos de sua testa.
- Não sei. Talvez conhecesse um lugar ainda melhor para esconder o corpo. Deve ser isso, não acha? De outro modo, já o teríamos descoberto.
- Se ele conhecia um lugar melhor para livrar-se do corpo, por que deixar pistas do ataque sexual na mina?
George suspirou. Embora se sentisse frustrado com as perguntas de Martin, sabia que os advogados de defesa questionariam muito mais.
- Não sei. Talvez não tenha tido oportunidade. Precisava aparentar inocência pouco depois. Não poderia atrasar-se, logo naquela noite. Quando terminou de jantar, a notícia sobre o desaparecimento já se espalhara e não conseguiu voltar à mina.
- É muito pouco, George. - Martin sentou-se ereto e fitou seu detetive - Não basta. Você terá de encontrar o corpo.
Terceira Parte: Julgamentos e Aflições
Prisão preventiva
Tudo terminou em poucos minutos. Olhando à sua volta no tribunal, George surpreendeu-se com a perplexidade nos rostos dos moradores de Scardale, que haviam comparecido em peso. Estavam ali para satisfazerem algum impulso primitivo e verem aquele que consideravam como um vilão no banco dos réus. Precisavam de uma solenidade para amenizar o impulso, mas ali, em um tribunal moderno, que se parecia mais com o auditório de uma escola que com o antigo prédio do tribunal criminal de Londres, nada havia que pudesse satisfazer esta necessidade.
Todas as variações faciais de Scardale estavam ali, nos sete homens e oito mulheres presentes, desde o nariz adunco de Mamãe Lomas até os traços achatados de Brian Cárter. A ausência notável era da própria Ruth Cárter.
Naturalmente, havia repórteres, embora não tantos quanto haveria no julgamento. Tinham tão pouco para contar aos leitores, neste estágio, que quase não valia a pena estarem ali. Em virtude das leis que governavam a presunção de inocência, agora que Hawkin era acusado de algo, os editores precisariam ter grande cautela com suas palavras. Qualquer sugestão de que Hawkin poderia enfrentar uma acusação adicional por homicídio era tabu.
O detento foi trazido ao tribunal, onde três juízes de paz, dois homens e uma mulher, estavam sentados atrás da banca. Alfie Naden estava ali, preparado e à espera, assim como o inspetor do tribunal. Hawkin parecia mais confortável que qualquer um deles, com o rosto recém-barbeado parecendo o retrato da inocência e pureza e seus cabelos escuros brilhando sob as uzes. O murmúrio baixo proveniente dos assentos nos quais os habitantes e Scardale estavam foi silenciado por uma palavra ríspida do oficial de Justiça.
O auxiliar de tribunal levantou-se e leu a acusação contra Hawkin. Quase antes de terminar, Naden já estava de pé.
- Excelências, tenho um pedido a fazer. Como Vossas Excelências sabem, é dever do tribunal, sob a seção 39 da Lei de Proteção à Infância e à Juventude, proteger a identidade de menores vítimas de crimes sexuais. Com isto em mente, o procedimento normal dos tribunais é proibir que a imprensa mencione o nome do acusado, já que isto seria um modo indireto de identificar a vítima, quando há um relacionamento estreito entre ambos, como vemos nessas alegações. Portanto, peço que Vossas Excelências façam a mesma determinação neste caso.
Enquanto Naden sentava-se, o inspetor levantou-se outra vez. Ele já havia discutido isto com George e com o superintendente Martin.
- Eu me oporia a esta determinação - disse, em tom grave. - Em primeiro lugar, por causa da extrema gravidade das circunstâncias neste caso. Acreditamos que não é a primeira vez que o réu cometeu atos sexuais com crianças. Publicar seu nome pode levar ao reconhecimento e denúncia por outras vítimas. - Esta parte do argumento era pouco mais que uma esperança; as tentativas de Cragg para fazer com que os policiais de St. Albans levassem adiante as fofocas já sinalizavam o fracasso de tal intenção. George planejava enviar Clough às ruas para uma segunda tentativa, mas, por enquanto, só podiam cogitar que Hawkin cometera crimes semelhantes anteriormente.
- Em segundo lugar - continuou o inspetor -, a opinião da promotoria é que a vítima desta agressão não está mais viva e, portanto, não precisa da proteção do tribunal.
Bocas abriram-se em espanto. Uma das mulheres de Scardale deu um pequeno gemido. Repórteres olharam-se, desconcertados. Será que poderiam publicar esta declaração, por ter sido feita em um tribunal aberto ao público? Será que, ainda assim, seria proibido? Será que dependeria da determinação dos magistrados?
Naden levantou-se.
- Excelências - protestou ele, a própria imagem da indignação -, tal sugestão é escandalosa. É verdade que a suposta vítima desta suposta agressão está desaparecida atualmente, mas a sugestão da polícia de que a garota está morta é premeditada para gerar calúnia contra meu cliente.
Devo insistir para que Vossas Excelências determinem que nada será citado pela imprensa, exceto o fato de que um homem foi acusado do crime de estupro.
Os magistrados conferenciaram com o auxiliar do tribunal. George tamborilava impacientemente sobre um dos joelhos. Para ele, tanto fazia se a imprensa citasse Hawkin ou não. Tudo o que desejava era terminar esta investigação.
Finalmente, o presidente da banca limpou a garganta.
- Concordamos que, para fins de uma audiência de pedido de prisão preventiva, a imprensa está proibida de mencionar o nome do acusado. Entretanto, esta decisão não precisará ser acatada por qualquer dos juízes em qualquer audiência subsequente.
Naden fez sinal de que concordava e agradeceu. Quando a audiência preliminar foi marcada para dali a quatro semanas, Naden protestou novamente:
- Excelências, solicito a consideração de fiança. Meu cliente é um membro respeitado desta comunidade, sem antecedentes ou máculas em seu caráter. Ele administra uma grande propriedade e, sem dúvida, sua ausência será prejudicial a todos aqueles que trabalham em suas terras.
- Besteira! - gritou alguém do fundo da sala. George reconheceu Brian Cárter, com o rosto rubro de raiva. - Estamos melhor sem ele.
O presidente da banca parecia perplexo.
- Retirem esse homem imediatamente - disse, indignado por tal demonstração de desrespeito.
- Eu ia embora, de qualquer maneira - gritou Brian, colocando-se de pé antes que qualquer um pudesse alcançá-lo. Saiu quase correndo, batendo a porta às suas costas e deixando atrás de si um silêncio chocado.
O presidente da banca respirou fundo.
- Se eu ouvir mais uma intervenção do público, evacuarei este tribunal - disse, rígido. - Por favor, prossiga, senhor Naden.
- Obrigado. Como eu ia dizendo, a presença do senhor Hawkin é vital Para os trabalhos em suas terras. Como Vossas Excelências já devem ter uvido falar, sua enteada desapareceu de casa e ele acha que seu lugar é ao lado da esposa, para oferecer-lhe conforto e ajuda. Não estamos tratando com um criminoso que não tem paradeiro. Ele não tem intenção de sair desta jurisdição. Insisto pela fiança nessas circunstâncias excepcionais. O inspetor levantou-se, lentamente.
- Excelências, a polícia opõe-se à fiança, sob a alegação de que o acusado possui fundos suficientes à sua disposição para apresentar risco de fuga. Ele não tem raízes firmes nesta área e apenas mudou-se para cá quando da morte de seu tio, pouco mais de um ano atrás. Também estamos preocupados com sua possível interferência junto às testemunhas. Muitas testemunhas potenciais da acusação não apenas são seus inquilinos, mas também seus empregados, e há um risco muito grande de intimidação. Além disso, na opinião da polícia este homem é acusado de um crime muito grave e tende a enfrentar acusações adicionais, no futuro próximo.
George sentiu-se aliviado por ver que a juíza acenava com firmeza a cada argumento do inspetor. Se os outros ainda estivessem indecisos, ele achava que a convicção dela seria suficiente para convencê-los. Quando os juízes retiraram-se, ouviu-se um murmúrio indistinto de vozes no banco da imprensa. O contingente de Scardale permaneceu em silêncio, com os olhos perfurando o pescoço de Philip Hawkin, que parecia muito concentrado em uma conversa com seu advogado.
George gostaria de acender um cigarro.
Alguns minutos depois, os magistrados retomaram seus assentos.
- Não haverá fiança - disse o presidente, com determinação. - Levem o prisioneiro.
Ao passar por George, Hawkin lançou-lhe um olhar de puro ódio. O olhar de George passou direto por ele, sem se fixar. Prudência e distanciamento eram sua melhor atitude às reações daqueles que prendia.
Daily News, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1964, p. 2
Determinada prisão de suspeito
Um homem acusado de estupro teve sua prisão temporária decretada pelos magistrados de High Peak em Buxton, ontem. O homem, que não pode ter seu nome revelado por razões legais, vive na aldeia de Scardale, em Derbyshire.
A acusação de homicídio
Era estranho, pensou George, que todos os escritórios públicos fossem tão parecidos. De algum modo, ele esperara que o do Ministério Público fosse tão grandioso quanto o nome sugeria. Embora o prédio no estilo da Regência na rua Queen Anne's Gate não pudesse ser menos semelhante ao moderno edifício retangular de alvenaria que abrigava a subdivisão de Buxton, seu interior era como o de qualquer outro órgão público. O advogado com quem ele e Tommy Clough haviam marcado horário quatro dias após a audiência de prisão preventiva trabalhava em um espaço tão parecido com seu próprio escritório que George sentiu-se quase desorientado. Pastas estavam empilhadas sobre arquivos de ferro, alguns livros de direito ocupavam uma prateleira sob a janela e o cinzeiro precisava ser esvaziado. O chão estava coberto com um linóleo idêntico e as paredes tinham o mesmo tom de branco-sujo.
Jonathan Pritchard também contrariou suas expectativas. Na casa dos trinta anos, Pritchard tinha uma cabeleira indomável, cor de cenoura, que se levantava em tufos e ângulos em toda sua cabeça, até erguer-se em uma espécie de crista, em um canto de sua testa. Suas feições eram igualmente rebeldes. Os olhos, no azul-acinzentado aquoso dos galeses, eram redondos e muito separados, com longos cílios dourados. Seu nariz longo e ossudo dava uma guinada súbita para a esquerda na ponta, e sua boca torcia-se em um ângulo seco para baixo. As únicas coisas ordenadas nele eram seu terno cinza-escuro em risca-de-giz imaculado, sua camisa incrivelmente branca e uma gravata com nó perfeito.
- Então - o advogado cumprimentara-os, levantando-se rapidamente - vocês são os camaradas sem um corpo. Entrem, sentem-se. Espero que tenham se abastecido de antemão, porque aqui não há qualquer chance de uma xícara de café que preste. - Ele permaneceu de pé, educadamente, até ver que George e Clough haviam sentado, e então tornou a sentar-se em sua velha cadeira giratória de madeira. Abriu uma gaveta, pegou outro cinzeiro e empurrou-o para os dois. - Este é o máximo de nossa hospitalidade - disse, pesaroso. - E agora, quem é quem?
Eles apresentaram-se. Pritchard anotou algo no bloco à sua frente.
- Perdoem-me - disse. - Mas é um pouco incomum ver um caso de tal magnitude ser coordenado por um detetive-inspetor. Principalmente um que está no cargo há apenas cinco meses.
George conteve um suspiro e encolheu os ombros.
- O detetive e inspetor-chefe estava com o tornozelo engessado quando a garota desapareceu, de modo que fiquei no controle da operação, reportando-me ao superintendente Martin. Ele é o policial mais experiente na subdivisão de Buxton. De qualquer modo, à medida que o caso avançava, o QG pensou em ceder um policial mais experiente do departamento de investigações criminais, mas o superintendente resistiu à ideia. Queria que seus próprios homens lidassem com o caso.
- Muito elogiável, mas talvez os oficiais de seu quartel-general não tenham gostado muito... - comentou Pritchard.
- Não sei dizer, senhor. Clough inclinou-se para a frente.
- O superintendente serviu no Exército com o chefe de polícia, de modo que tem credibilidade.
Pritchard assentiu.
- Eu mesmo fui advogado no Exército. Sei como são essas coisas. - Ele tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. George imaginou a impressão que Pritchard causaria no tribunal se acabasse apresentando o caso para a acusação na audiência de aprisionamento. Graças a Deus os juízes não estariam lá também. - Li a papelada referente ao caso e examinei as fotografias. São realmente as mais repugnantes que já vi. Não tenho dúvida de que conseguiremos uma condenação por estupro com base apenas nas fotos. O que precisamos discutir, agora, é se temos provas suficientes para avançar para uma acusação de homicídio. Naturalmente, o principal obstáculo é a ausência de um corpo.
George abriu a boca, mas Pritchard levantou um dedo de alerta para garantir o silêncio.
- Agora, devemos considerar o corpo de delito. Não como a maioria das pessoas pensa, o corpo da vítima, mas o corpo do crime. Quer dizer, os elementos essenciais de um crime e as circunstâncias nas quais foi cometido. No caso de homicídio, é necessário que a acusação estabeleça a ocorrência da morte, que a pessoa morta é aquela que supostamente foi assassinada e que a morte resultou de violência criminosa. O modo mais fácil de demonstrar isto é pela presença de um corpo, ou cadáver, não é?
- Mas existem precedentes para condenações por homicídio na ausência de um corpo - disse George. - Haigh, o homicida da banheira com ácido, e James Camb. Além disso, temos Michael Onufrejczyk, o criador de porcos. É o caso em que o presidente do tribunal disse que o fato da morte poderia ser estabelecido por provas circunstanciais. Creio que temos o suficiente para levarmos este caso avante.
Pritchard sorriu.
- Vejo que você estudou os principais precedentes. Devo dizer, inspetor Bennett, que me sinto muito intrigado pelas circunstâncias deste caso. Não há dúvida de que apresenta alguns problemas aparentemente incontornáveis. Entretanto, como você aponta, existe uma quantidade substancial de provas circunstanciais. Agora, se pudermos rever essas provas...
Durante duas horas, os três repassaram todos os detalhes que apontavam para o assassinato de Alison Cárter por Philip Hawkin. Pritchard questionou-os, com inteligência e atenção, sondando-os na tentativa de extrair deficiências na cadeia lógica. O advogado não ofereceu praticamente nada em termos de sua opinião pessoal sobre as explicações que ouvia, mas estava claramente fascinado.
- Há mais uma coisa, algo que não estava em seus papéis - concluiu Clough. - Só tivemos o relatório no fim da tarde de ontem. O sangue na camisa é do mesmo grupo que o de Alison, e vem de uma mulher, igual ao outro sangue. Mas a camisa está um pouco chamuscada e apresenta resquícios de pólvora, como seria de esperar se um revólver tivesse sido disparado muito próximo dela. E não há dúvida de que a roupa pertence a Hawkin.
- Tudo é material útil, sargento. Mesmo sem esta última prova, tenho quase certeza de que Hawkin matou a menina. Contudo, ainda resta a dúvida de podermos montar um caso que satisfaça um júri. - Pritchard correu a mão por seus cabelos, tornando-os ainda mais caóticos. George entendeu por que o homem optara por ser advogado: sob uma peruca de crina de cavalo, ele pareceria quase normal. E embora não houvesse como negar que viera de família de posses, sua voz não era tão arrogante a ponto de causar antipatia nos jurados.
- Onde quer que o corpo esteja, ele fez um bom trabalho ao escondêlo. Não iremos encontrá-lo, a menos que alguém tropece nele por acidente. Acho que não teremos muito mais do que já conseguimos - disse George, tentando não parecer tão desanimado quanto sempre se sentia, quando o sono inquieto de Anne o acordava e fazia-o permanecer desperto e preocupado durante a madrugada.
Pritchard girou da esquerda para a direita em sua cadeira.
- Ainda assim, é um desafio fascinante, não acham? Não me lembro da última vez em que li relatórios sobre um caso que me fizeram vibrar tanto. Que batalha de mentes em um tribunal! Não consigo evitar o pensamento de que seria muito divertido irmos ao tribunal.
- Então você atuaria na acusação? - indagou Clough.
- Uma vez que certamente será um julgamento controvertido, teríamos um promotor de renome atuando, mas eu certamente o auxiliaria e seria responsável pela preparação do caso. Sinto-me na obrigação de dizer que sou a favor de irmos a julgamento. - Ele levantou novamente um dedo, em tom de advertência. - Mas isso não significa que vocês podem ir em frente e acusá-lo. Terei de falar com o diretor e convencê-lo de que não nos exporemos ao ridículo se formos em frente. Tenho certeza de que vocês sabem como nossos superiores detestam ser motivo de chacotas - acrescentou, com um sorriso irónico.
- E então, quando teremos uma resposta? - perguntou George.
- No fim da semana - disse Pritchard, decidido. - Ele provavelmente desejará estudar seus relatórios por algumas semanas, mas o tempo é crucial aqui, eu acho. Ligarei para vocês sexta-feira, o mais tardar. - Pritchard levantou-se e estendeu a mão. - Inspetor. Sargento - cumprimentou-os. - Foi um prazer conhecê-los. Vamos cruzar os dedos, está bem?
Daily News, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso da menina desaparecida: Suspeito acusado de homicídio
Da Redação
Ontem à noite, a polícia acusou Philip Hawkin, do homicídio de sua enteada, Alison Cárter, que desapareceu em dezembro, em uma reviravolta surpreendente neste caso.
O que torna esta acusação incomum é que o corpo de Alison ainda não foi descoberto. A bonita garota de 13 anos não é vista desde que saiu de sua casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para caminhar com sua cadela após a escola, em 11 de dezembro do ano passado.
Hawkin comparecerá no Juizado Especial Criminal de Buxton amanhã, para o pedido de detenção até o julgamento.
Antecedentes
Esta não é a primeira vez em que alguém é acusado de homicídio sem a descoberta do corpo. No caso de John George Haigh, o famoso assassino da banheira com ácido, foram encontrados apenas uma pedra renal, alguns ossos e a dentadura de sua vítima.
Contudo, estes poucos elementos foram suficientes para demonstrar que a banheira contivera o corpo da vítima e Haigh foi enforcado por homicídio.
James Camb, camareiro em um navio de luxo que realizava um cruzeiro entre a África do Sul e a Inglaterra, foi acusado de assassinar uma passageira, a atriz Gay Gibson.
Camb afirmou que Gibson havia morrido de ataque cardíaco enquanto estavam sozinhos na cabine dela. Em pânico, e achando que seria acusado de matá-la, ele empurrou o corpo através de uma portinhola.
Os jurados não acreditaram em sua história e ele foi condenado.
Outro caso ocorreu em uma fazenda distante no País de Gales, onde um herói de guerra polonês foi condenado por matar seu sócio e dar o corpo aos porcos na propriedade de ambos.
A espera do julgamento.
George despertou às seis horas na segunda-feira, 24 de fevereiro, e escorregou para fora da cama, tentando não perturbar Anne. Desceu em silêncio, com seu roupão e chinelos. Fez um bule de chá e levou-o até a sala. Afastando as cortinas para observar a alvorada, surpreendeu-se ao ver o carro de Tommy Clough estacionado ali. O brilho da brasa de um cigarro revelou que o sargento estava tão acordado quanto ele.
Minutos depois, Clough estava sentado à sua frente, com uma xícara de porcelana fumegante em uma de suas grandes mãos.
- Achei que você acordaria antes da hora. Espero que Hawkin tenha perdido o sono, como nós - comentou, amargo.
- Não consigo me lembrar da última vez em que dormi oito horas seguidas, com o sono agitado de Anne e minha preocupação com esta audiência nos últimos tempos - concordou George.
- Como ela está?
George encolheu os ombros.
- Cansa-se facilmente. Fomos assistir a Fugindo do Inferno no Opera House sexta à noite, e ela cochilou no meio. Anne também se preocupa demais. - Ele suspirou. - Acho que o fato de nunca saber quando estarei em casa não ajuda em nada.
- Tudo ficará mais fácil após o julgamento - disse Clough, consolando-o.
- Suponho que sim. Ainda assim, fico sempre imaginando que ele pode safar-se desta. Quer dizer, temos de fazer o possível para que os juízes concordem em mandá-lo para julgamento. Então, ele terá pelo menos alguns meses para construir uma defesa, sabendo exatamente o que temos para pegá-lo. Não é como Perry Mason, onde um elemento-surpresa sempre aparece no último minuto.
- Os advogados não iriam em frente se não achassem que têm uma boa chance de vencer - lembrou Clough. - Fizemos nossa parte. Tudo o que nos resta é deixar que façam a deles - acrescentou, filosoficamente.
George fez pouco caso, torcendo o nariz.
- Eu deveria me sentir melhor com isso? Tommy, detesto este estágio, em qualquer investigação. Tudo está fora do meu controle e não posso influenciar os acontecimentos. Sinto-me tão impotente! E se Hawkin não for condenado... bem, não sei quanto aos advogados, mas eu me sentirei um fracassado. - Ele recostou em sua cadeira e acendeu um cigarro. - Não suportaria isso, por todas as razões possíveis, principalmente porque um assassino sairia livre. Mas sou suficientemente humano para ver as coisas pelo meu lado pessoal. Dá para imaginar como Carver se sentiria feliz? Será que você consegue imaginar as manchetes que aquele rato de esgoto, Don Smart criaria para seu jornal?
- Ah, George, espere aí, todos sabem como você se esforçou neste caso. Se Carver estivesse no comando, nunca teríamos a prova para a acusação de estupro. E nossas provas são conclusivas. Não é possível que ele possa se livrar dessa acusação, não importa o que aconteça com a acusação por homicídio. E pode apostar seu último dólar que qualquer juiz que atentar para as provas e ouvir um júri estúpido pronunciar "inocente" para a acusação de homicídio usará a condenação por estupro para dar a Hawkin a maior sentença possível. Ele não voltará tão cedo a Scardale.
George suspirou.
- Você tem razão. Só gostaria de ter conseguido fazer uma ligação mais estreita entre Hawkin e o revólver. Quer dizer, será que ainda podemos ter mais azar? Apenas um homem poderia identificar a arma que temos como sendo a Webley roubada de St. Albans O dono anterior, o vizinho da mãe de Hawkin, senhor Wells. E onde ele está? Viajou para a Austrália, para passar alguns meses com a filha que emigrou para lá. E nenhum de seus amigos ou vizinhos tem um endereço para onde possamos escrever-lhe. Nem conseguem lembrar direito quando ele voltará. É claro que suspeitamos que a mãe de Hawkin tem todos esses detalhes, sendo a melhor amiga do casal Wells, mas certamente não contará a esses policiais nojentos que estão acusando seu filhinho querido de coisas tão horríveis - acrescentou,
com sarcasmo.
Ele se levantou.
" - Vou tomar uma chuveirada e me barbear. Quer fazer mais chá? Levarei uma xícara para Anne, quando me vestir. Depois, lhe pago um café da manhã compk to no bar mais próximo.
- Parece ótimo. Precisamos nos prevenir mesmo, porque o dia será longo.
O relógio da prefeitura bateu dez horas, com sua nota grave penetrando no tribunal, no outro lado da rua. Jonathan Pritchard levantou a cabeça da pilha de papéis na sua frente e ergueu as sobrancelhas, em expectativa. Próximo dele, ainda absorto em suas anotações, estava a figura corpulenta de Desmond Stanley, promotor do Ministério Público. Ex-jogador de rúgbi de Oxford, Stanley conseguia evitar o acúmulo de gordura, aos quarenta e poucos anos, com um regime rígido de exercícios que insistia em praticar onde quer que trabalhasse. Além da peruca habitual, toga e faixas de advogado, a sacola de Stanley sempre continha seus halteres. Ele já se curvara e alongara, realizara flexões e agachamentos por todo o país antes de entrar no tribunal e acusar ou defender os piores criminosos que o sistema legal podia lançar-lhe nas mãos.
O mais estranho era que ele nunca parecia saudável. Sua pele tinha um tom amarelado e doentio, seus lábios eram pálidos e seus olhos castanhoescuros lacrimejavam constantemente. Stanley sempre levava escondido na manga um lenço de seda de cors vivas, para poder enxugar seus olhos regularmente. Na primeira vez que o encontrara, George imaginara se Stanley viveria o bastante para comparecer àquele julgamento. Depois, Pritchard o tranquilizara:
- Ele sobreviverá a muitos de nós - confidenciara. - Sinta-se feliz por ele estar do nosso lado, não contra nós, porque Desmond Stanley é um monstro de competência. Pode acreditar.
Pritchard sentiu-se ainda mais grato por ter Stanley do seu lado ao ver quem era o advogado de defesa. Rupert Highsmith conquistara sua formidável reputação como um inquiridor implacável e de precisão cirúrgica em uma série de casos famosos no começo dos anos 50, quando ainda iniciava sua carreira. Outros dez anos nos tribunais não haviam embotado suas habilidades; ao contrário, haviam lhe ensinado uma série de novos truques que causavam aflição em seus oponentes, tanto que os menos talentosos relutavam em extrair materiais dúbios de suas testemunhas, por temerem o que Highsmith poderia fazer com elas em seu favor quando chegasse sua vez.
Agora, Highsmith estava reclinado em sua cadeira, em atitude confiante, olhando atentamente para os bancos lotados de repórteres e para o público, com seu perfil tão geométrico que parecia ter sido construído com blocos de madeira em uma brincadeira de criança. Os colegas mais maldosos comentavam, às escondidas, que ele fizera cirurgia plástica para manter seus contornos tão precisos. Ele gostava de conferir sua plateia, para avaliar o impacto que seu caso poderia ter. Havia bastante público hoje, pensou. Uma boa vitrine para seus talentos.
Ele era um dos poucos advogados de defesa que brilhavam nessas audiências preliminares. Uma vez que a única finalidade de tais audiências era decidir se a promotoria tinha um caso claro contra o acusado, geralmente apenas o promotor falava para os magistrados. A única oportunidade que Highsmith teria para demonstrar suas habilidades seria durante o interrogatório das testemunhas. E isso era o que fazia melhor.
A porta lateral abriu-se e Hawkin entrou, ladeado por dois policiais. Por instrução de George, suas mãos estavam sem algemas. O detetive estava determinado a não fazer coisa alguma que pudesse causar a mais leve simpatia por Hawkin. Além disso, ele sabia que a primeira ação da defesa seria exigir a remoção das algemas, e que os magistrados provavelmente concordariam, no mínimo porque seria difícil não verem Hawkin como alguém de seu próprio nível. Pritchard também salientara a importância de não permitir que a defesa levasse vantagem primeiro.
Dezoito noites atrás das grades haviam causado pouco impacto sobre a aparência de Philip Hawkin. Seus cabelos escuros estavam mais curtos, uma vez que os prisioneiros não tinham como escolher barbeiro e precisavam aceitar o corte que recebiam, mas ainda estavam sedosos e brilhantes, Penteados para trás e deixando visível sua testa ampla e quadrada. Seus olhos castanho-escuros percorreram rapidamente o tribunal antes de se fixarem em seu advogado. O sorriso que parecia sempre brincar em seus lábios ampliou-se em reconhecimento ao aceno curto de Highsmith. Hawkin entrou sem pressa em seu reservado, ajustando cuidadosamente as pernas das calças de seu traje escuro e sóbrio, enquanto se acomodava no assento. A porta atrás dos assentos dos juízes abriu-se e o oficial de justiça levantou-se, comandando em voz alta:
- Todos de pé!
Cadeiras arrastaram-se no chão de ladrilhos, enquanto os três juízes entravam. Hawkin estava entre os primeiros a se levantarem, demonstrando um respeito que Pritchard percebeu e anotou mentalmente, para poder usar mais tarde, se fosse o caso. Ou Hawkin era bom ator, ou realmente acreditava que esses juízes poderiam usar o poder que detinham em seu favor.
Os três homens que julgariam o caso acomodaram-se, seguidos em uma desordem ruidosa por todos os outros, exceto o oficial de justiça. Ele lembrou-lhes que o tribunal estava em sessão e que deveriam considerar o processo para enviar a julgamento Philip Hawkin, do Solar Scardale, em Scardale, no condado de Derbyshire.
Desmond Stanley ergueu-se.
- Excelências, eu represento o diretor do Ministério Público nesta questão. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele é acusado ainda de, em uma outra ocasião ou na data exata ou próxima de 11 de dezembro de 1963, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
A única pessoa a sorrir no tribunal era Don Smart, curvado sobre seu pequeno bloco de anotações. O animador do circo estava de pé. O espetáculo já começara.
Depois de apresentar suas provas e sofrer os golpes da inquirição astuta de Highsmith, George saiu do banco das testemunhas e voltou para o meio da plateia, tonto e com duas manchas rosadas queimando-lhe as faces. Amanhã, voltaria para sentar-se no meio do público e escutar o resto, mas agora queria um cigarro e paz, por uma hora. Estava prestes a descer correndo as escadas quando ouviu Clough chamando seu nome e voltou-se.
- Agora não, Tommy. Encontre-me no Baker's, quando abrir. Usando o pilar do corrimão como apoio, desceu as escadas depressa,
saindo do prédio.
Quarenta minutos depois, estava no topo redondo do Rochedo Mam Tor, bem sobre o cume, onde o calcário encontra-se com pedregulhos, com as áreas de White Peak, de calcário branco, à sua direita, e Dark Peak, com seus pântanos e paisagem desolada, à esquerda. O vento chicoteava seu rosto e a temperatura caía ainda mais rapidamente que o sol. George levantou a cabeça e berrou sua frustração reprimida até aquele momento para as nuvens que se moviam rapidamente e para as ovelhas indiferentes.
Virou-se para avistar o platô de Kinder Scout com seus campos e charnecas estéreis bloqueando qualquer visão mais ao norte. Virou-se noventa graus e seu olhar passou pelo cume, vendo Hollins Cross, o Monte Lose Hill Pike e a projeção distante que era o Monte Win Hill, com Stanage Edge e Sheffield invisíveis, mais além. Depois, virando-se mais noventa graus, avistou a cicatriz branca da garganta de Winnats Pass e as elevações e depressões dos vales de calcário além. Finalmente, voltou-se para o leste, vasculhando o cimo crespo de Rushup Edge e o suave declive de Chapel-enle-Frith. Em algum lugar, naquela imensidão, estava deitada Alison Cárter, com seu corpo exposto à natureza, roubada de sua vida.
Ele havia feito o que podia. Agora estava nas mãos de outros. Ele tinha que aprender a esquecer.
Mais tarde, encontrou-se com Clough, que bebericava o resto de uma cerveja em uma mesa de canto do Baker's Arms. Os frequentadores sabiam que era melhor deixá-los em paz, e o proprietário já se recusara a atender três jornalistas, incluindo Don Smart, que ameaçara apresentar queixa contra ele na próxima sessão dos magistrados que forneciam a licença de funcionamento do bar. O dono apenas dera uma risadinha e dissera:
- Eles me dariam uma medalha. Saia daqui agora mesmo, não temos tempo para palhaçadas.
George foi até Clough, levando duas cervejas.
- Eu precisava de ar puro - disse ao sentar-se. - Se ficasse por aqui, acabaria preso por assassinar um advogado do Ministério Público.
- Que merda - disse Clough, fingindo cuspir no chão.
- Suponho que ele diria que está apenas fazendo seu trabalho.
George tomou um grande gole de sua bebida. - Ah, assim está melhor. Fui até Mam Tor para dar uma arejada. Bem, pelo menos agora podemos ver qual é a linha da defesa. É tudo uma conspiração, de minha parte, para condenar Philip Hawkin e garantir minhas futuras promoções.
- Os magistrados não acreditarão nessa asneira.
- Mas os jurados podem acreditar - disse George, com amargura.
- E por que deveriam? Você é o mocinho. Basta olhar para Hawkin e todos os alarmes começam imediatamente a soar. Ele tem aquela aparência que as mulheres consideram irresistível e os homens odeiam à primeira vista. A menos que Highsmith consiga formar um júri só de mulheres, a defesa não tem como livrá-lo.
- Espero que você esteja certo. De qualquer modo, tente me alegrar. Diga-me o que perdi ao sair de lá.
Clough deu-lhe um grande sorriso.
- Você perdeu Charlie Lomas. Ele se saiu bem, devo admitir. Conseguiu usar um terno sem parecer estar em uma camisa-de-força. Estava nervoso como um gato em um canil, mas conseguiu manter-se firme. Stanley fez um bom trabalho, revertendo as tentativas de Highsmith de desmerecêlo. Ele conseguiu fazer com que Charlie falasse sobre a mina de chumbo e afirmasse que ninguém de fora de Scardale poderia chegar até lá, mesmo com o livro. Ele também conseguiu fazer com que Charlie explicasse que, embora Hawkin seja relativamente novo no vale, já havia explorado bastante o lugar, tirando fotografias para cartões-postais.
George deu um suspiro de alívio.
- E como ele se saiu com Highsmith?
- Manteve sua história. Não permitiu que o distraíssem ou fizessem vacilar. Afirmou que tinha certeza de ter visto Hawkin andando pelos campos na quarta-feira. Disse que não era terça. Também não era segunda. Foi firme como uma rocha o nosso Charlie. Garanto-lhe que causou boa impressão nos magistrados.
- Graças a Deus alguém causou.
- Pare de se sentir uma vítima, George. Você foi bem. Highsmith tentou fazê-lo vacilar, mas não conseguiu. Considerando a escassez de provas sólidas, eu diria que estamos indo muito bem. Agora, quer as boas notícias?
A cabeça de George levantou-se como se puxada por um cordão.
- E há alguma boa notícia? Clough sorriu.
- Ah, acho que sim. - Ele retirou os cigarros do bolso e acendeu um. - Troquei mais uma palavrinha com o sargento, lá em St. Albans.
- Wells apareceu? - George mal podia conter-se.
- Ainda não.
George afundou na cadeira, suspirando.
- São essas as boas notícias que estou esperando - admitiu.
- Bem, mas a que eu tenho também é. A verdade é que nosso sargento conhece Hawkin. Ele não queria dizer nada até falar com uma ou duas pessoas para obter permissão e me contar. Clough secou seu caneco. - Quer outra?
George concordou, em frustração divertida:
- Vá em frente, sei que você está gostando de me ver aqui, ansioso para saber mais. Então pague por seu prazer.
Quando Clough voltou, ele já havia fumado meio cigarro com a concentração nervosa de alguém prestes a entrar em um compartimento de nãofumantes em um trem, rumo a uma longa jornada.
- Conte-me agora - insistiu, inclinando-se para a frente e puxando a cerveja para si. - Vamos lá.
- A esposa do sargento Stillman é chefe de um grupo de bandeirantes. Hawkin apareceu um dia, oferecendo-se para ser o fotógrafo oficial do grupo. Ele tiraria fotos em desfiles, acampamentos, esse tipo de coisa, e venderia as fotos para as bandeirantes e suas famílias a um precinho muito camarada. Em troca, ele desejava tirar retratos das meninas, para seu próprio portfólio. Tudo parecia muito correto. Afinal, Hawkin não era um estranho. Ele e sua mãe eram membros da igreja à qual as bandeirantes estavam vinculadas, e sempre aceitava alegremente a presença das mães quando tirava fotos das garotas. - Clough fez uma pausa, com as sobrancelhas levantadas.
- E o que deu errado? - indagou George, sentindo que o amigo esperava a pergunta.
- O tempo passou. Hawkin fez amizade com algumas das meninas mais velhas e começou a marcar sessões sem a presença das mães. Então ocorreram alguns... incidentes. Na primeira vez, ele negou tudo, disse que a menina estava mentindo para chamar a atenção. Na segunda vez, a mesma coisa, só que então ele disse que a menina estava se vingando por que ele não a queria mais como modelo. De acordo com ele, a garota sabia da confusão envolvendo a acusação da primeira menina e ameaçara dizer as mesmas coisas se não recebesse dinheiro para comprar doces e não continuasse com as fotos. Bem, ninguém queria problemas e não tinham provas de modo que o sargento Stillman trocou umas palavrinhas com Hawkin sugerindo-lhe que se afastasse de adolescentes para evitar qualquer possibilidade de mal-entendidos.
George assoviou baixinho.
- Bem, bem, bem... Achei que deveria haver algo, em algum lugar. Pedófilos não começam de repente, na idade de Hawkin. Muito bem, Tommy. Pelo menos, sabemos que não nos deixamos levar por alguma ideia esdrúxula. Hawkin é exatamente o que achamos que é.
Clough concordou, mas ressaltou:
- Só que não podemos usar nada disso no tribunal. O que Stillman me disse são apenas rumores que ouviu de outros.
- E quanto às garotas?
- Stillman nem mesmo me disse seus nomes - Clough bufou. - A principal razão para não ter havido qualquer acusação formal antes é que as mães não queriam ver suas filhas em um tribunal. Se não querem saber disso quando o assunto tem a ver com suas meninas, não há nenhuma chance de persuadi-las por causa de um homicídio que está nas manchetes dos jornais.
George assentiu em concordância. Não poderia argumentar com pessoas que desejavam proteger seus filhos, mesmo quando o dano já estava feito. Agora que também se tornaria pai, entretanto, sentia pela primeira vez em sua vida o impulso de agir como vigilante. Não conseguia entender por que Hawkin ainda estava livre. Como policial, Stillman tivera muitos recursos disponíveis para prejudicar aquele homem, física e socialmente, mas não fizera nada. Chegara a relutar em contar a verdade a Clough.
- Está claro que agem diferente de nós em St. Albans - disse, preocupado. - Se eu soubesse, como policial, que algum pervertido havia molestado um filho de um amigo meu, não o deixaria escapar. Descobriria um modo de fazê-lo pagar. Pela lei ou...
- Achei que você não acreditava nos corredores escuros da justiça - comentou Clough, com ironia.
- É diferente quando crianças estão envolvidas, não acha?
Esta era a grande pergunta sem resposta. Ambos pensaram nisso em silêncio, enquanto terminavam suas bebidas. Quando George voltou com a terceira rodada, parecia um pouco mais alegre:
- Ainda temos muita coisa em nosso favor, mesmo sem essa parte de St. Albans.
- Acho que Stillman sente-se culpado por não ter agido - disse Clough.
- Pois deveria mesmo. Talvez ele nos avise quando o senhor e a senhora Wells voltarem.
- Espero que sim, George. Mesmo se conseguirmos nosso indiciamento, ainda estaremos longe de garantir uma condenação.
Daily News, Sexta-feira, 28 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso Alison: padrasto será julgado por homicídio.
O padrasto da adolescente desaparecida Alison Cárter irá a julgamento por seu homicídio, embora o corpo da garota de 13 anos ainda não tenha sido descoberto.
Em uma decisão dramática ontem, os magistrados de Buxton indiciaram Philip Hawkin por homicídio e estupro, encaminhando-o a julgamento pelo tribunal de Derby.
Alison não é vista desde seu desaparecimento da remota aldeia de Scardale, em Derbyshire, em 11 de dezembro do ano passado.
Durante a audiência preliminar, que durou quatro dias, sua mãe, que se casou com Hawkin pouco mais de um ano atrás, prestou depoimento para a acusação. Foi a senhora Cárter (como ela prefere ser chamada atualmente) quem descobriu a arma que o advogado do Ministério Público, senhor Desmond Stanley, afirma ter sido usada para assassinar a garota.
Ontem, o tribunal ouviu o professor John Hammond, que afirmou que a ausência de sangue na suposta cena do crime não significava, necessariamente, a inexistência do crime.
Ele também declarou que o sangue encontrado em uma camisa bastante manchada e identificada como pertencendo a Hawkin poderia ter vindo de Alison. (Continua na p. 2.)
O julgamento
High Peak Courant, sextafeira, 12 de junho de 1964
Julgamento por homicídio em Derby semana que vem.
O julgamento de Philip Hawkin, proprietário de terras de Scardale, começa segunda-feira, no tribunal superior de Derby.
Hawkin é acusado de estupro e homicídio de sua enteada, Alison Cárter. Ao comparecer perante os juízes de Buxton em fevereiro, Hawkin viu a esposa entre as testemunhas de acusação.
Alison não é vista desde a tarde de 11 de dezembro do ano passado, quando desapareceu depois de levar a cadela collie Shep para uma caminhada no vale, após a escola.
O juiz Fletcher Sampson presidirá o julgamento.
A fanfarra de trombetas parecia suspensa no ar como a luz pálida de um arco-íris. Vestido em toda a sua glória, em escarlate e arminho, o juiz Fletcher Sampson chegara ao prédio do salão de paredes de carvalho com sua escolta da polícia montada. George Bennett estava sentado na antevia, fumando um cigarro junto a uma janela aberta. Ele imaginou o teatral cortejo do juiz até o tribunal para tomar seu lugar na tribuna, sob o brasão real. Ao seu lado, neste primeiro dia de julgamento, estaria o Alto Xerife je Derbyshire, em seu uniforme cerimonial.
Neste momento, pensou George, eles estariam no tribunal, olhando de cima os advogados, dispostos à sua frente com suas perucas grisalhas e becas negras, faixas brancas e colarinhos que os faziam parecer estranhos híbridos de corvos e gralhas. Por trás dos advogados, sua equipe de consultores e estagiários. Por trás deles, o reservado ornamentado, mas sólido em que Hawkin ficaria, flanqueado por um par de policiais, contido por madeira de lei e mantido com firmeza em seu lugar por uma fileira de cavilhas de ferro encravadas na madeira. Atrás de Hawkin, os bancos da imprensa, com sua diversidade de jovens ansiosos por sucesso e velhos jornalistas sem entusiasmo que precisavam achar que já haviam visto e ouvido de tudo. Os cabelos vermelhos de Don Smart destacavam-se entre os demais como uma labareda. Acima e por trás dos jornalistas via-se a galeria para o público, lotada dos rostos preocupados dos habitantes de Scardale e de olhos curiosos das outras pessoas.
E em uma das laterais do grande salão, pouco além do banco das testemunhas, logo se sentariam as pessoas mais importantes naquele lugar. Os jurados. Doze homens e mulheres teriam o destino de Philip Hawkin em suas mãos. George tentara não pensar na possibilidade de rejeitarem o caso que se esforçara tanto para elaborar, com a ajuda dos advogados, mas não conseguia evitar o temor que se infiltrava em seu íntimo à noite, quando tentava dormir e, como muitas vezes lhe ocorria agora, fracassava. Ele suspirou e jogou o toco de cigarro na rua. Imaginou onde estaria Tommy Clough. Deveriam encontrar-se na delegacia às oito horas, mas, quando chegara lá, Bob Lucas lhe dissera que Clough deixara uma mensagem de que o encontraria no tribunal.
- Provavelmente está atrás de algum rabo-de-saia em Derby - disse Lucas, piscando-lhe um olho. - Tentando distrair-se um pouco.
George acendeu outro cigarro e apoiou-se no parapeito. Agora, o escrevente convocaria aqueles que tinham causas a resolver no Supremo Tribunal de Sua Majestade, a Rainha, para se aproximar e prestar atenção. E Deus Salve a Rainha. George lembrava-se de, em seus primeiros tempos de paixão pelo Direito, ter estudado a fundo os termos pomposos usados em julgamentos. No caso, empregavam-se palavras rebuscadas que literalmente significavam apenas ouvir e determinar. Em 1964 esta abertura tornara-se arcaica, com a delegação de autoridade concedida aos juízes de tribunais itinerantes para que realizassem seus julgamentos. As autoridades carcerárias eram então obrigadas a entregar ao juiz todas as pessoas que aguardavam julgamento e cujos nomes estivessem relacionados na agenda do tribunal.
Na prática, hoje isto se aplicaria apenas a Philip Hawkin. Sendo o único julgamento por homicídio marcado para este tribunal, o caso seria ouvido primeiro.
Dois dias antes, George fizera uma última tentativa para persuadir Hawkin a confessar, conversando com ele cercado pelas paredes altas e sombrias da prisão. Haviam se encontrado frente a frente, em uma pequena sala de entrevistas que não parecia mais acolhedora que as celas. George percebera, contente, que Hawkin estava mais magro. O princípio de que um homem deveria ser considerado inocente até prova em contrário nunca valia muito em uma prisão. Hawkin já recebera uma dose amarga de seu próprio remédio atrás das grades. Os carcereiros nunca intervinham com rapidez quando um estuprador virava vítima de estupro, e sempre garantiam que os outros prisioneiros soubessem exatamente quem eram os pedófilos. Embora sua parte mais civilizada protestasse, o futuro pai em George mostrava total simpatia pelo comportamento brutal dentro da prisão.
Sentados em lados opostos da mesa estreita, haviam fitado um ao outro.
- Você trouxe cigarros? - indagara Hawkin, rudemente.
Em silêncio, George colocara um maço aberto entre os dois. Hawkin agarrara um ansiosamente e George o acendera, vendo-o tragar fundo enquanto o corpo relaxava. Hawkin correu a mão pelos cabelos e disse:
- Sairei daqui em alguns dias. Você sabe disso, não é? Minha missão, então, será contar ao mundo que a polícia distorceu tudo para me incriminar. Você sabe que nunca matei Alison, e vou fazê-lo engolir cada uma de suas palavras.
George sacudiu a cabeça, quase admirando a confiança do homem.
- Você está sendo otimista demais - disse, com condescendência deliberada. - Não importa o quanto se esforce para que o mundo acredite em sua história, sou um daqueles tiras honestos, sabe? Nós dois sabemos que ninguém o incriminou falsamente. Não era preciso, porque você matou Alison e nós o pegamos.
- Nunca matei minha enteada - disse, com a voz tão intensa quanto seu olhar. - Vocês me trancaram aqui e o criminoso que levou Alison está à solta, rindo de sua cara.
George balançou a cabeça.
- Não vai funcionar, Hawkin Você é bom ator, mas todas as evidências o incriminam. - Ele tirou um cigarro do maço e acendeu-o, descontraído. - Lembre-se de que ainda lhe resta uma opção.
Hawkin permaneceu em silêncio, mas inclinou a cabeça para um lado, formando uma linha fina e grave com os lábios.
- Você pode optar pela prisão perpétua, com uma chance de ver o mundo fora da prisão novamente, daqui a uns vinte anos. Ou pode ser enforcado. A decisão é sua. Ainda dá tempo de confessar. Declare-se culpado e viverá. Dê trabalho para nós e será enforcado. Pendurado pelo pescoço até terem certeza de que morreu mesmo.
Hawkin torceu o nariz.
- Não vão me enforcar. Mesmo se me considerarem culpado, nenhum juiz nesse mundo teria coragem de me mandar para a forca. Não com as provas que você tem.
George reclinou-se em sua cadeira, levantando as sobrancelhas.
- Acha que não? Se você merece a condenação, também merece a forca. Especialmente se o juiz for um cara durão como Fletcher Sampson. Ele não tem medo dos liberais sensíveis que são contra a pena de morte. - Ele saltou para a frente subitamente, apoiando os braços na mesa e prendendo seu olhar no de Hawkin. - Faça um favor a si mesmo. Diga-nos onde podemos encontrar Alison. Dê este descanso a Ruth. Isso pegará bem em seu julgamento. Talvez você consiga sair da prisão em dez anos.
Hawkin sacudiu a cabeça, frustrado.
Início de Nota de Rodapé: Não existe uma pena mínima para homicídio na Inglaterra. Todos os casos de condenação por este crime recebem como pena a prisão perpétua, o que não significa aprisionamento até o fim da vida. Dependendo de certos requisitos, o condenado terá direito à liberdade. Desde 1964 ninguém é executado naquele país. Fim de Nota de Rodapé.
- Você não está ouvindo, George - disse, transformando o nome do detetive em um insulto, pelo tom de desprezo. - Eu não sei onde ela está.
George levantou-se, guardando rapidamente o maço de cigarros em seu bolso.
- Faça como quiser, Hawkin. Para mim, tanto faz. Serei promovido, de qualquer maneira, porque conseguiremos condená-lo.
Agora, enquanto olhava os pedestres na rua, todos vivendo suas vidas e ignorantes do drama que se desdobrava ali, desejou sentir-se tão confiante quanto parecera. Afastou-se da janela e desabou em uma cadeira. As acusações já deveriam ter sido lidas a esta hora e Hawkin certamente já teria respondido "inocente" duas vezes, uma para cada um dos crimes.
Stanley esperaria que os jurados se acomodassem e, então, faria a declaração de abertura para a acusação. George achava que este era o momento mais crucial em qualquer julgamento e acreditava que as pessoas se impressionavam mais com o que ouviam no início, quando ainda estavam descansadas e mais receptivas à persuasão. Se o advogado da acusação fizesse seu discurso inicial cheio de convicção e declarasse o que pretenderia provar como se já fosse fato demonstravelmente incontroverso, a defesa teria pela frente uma longa e penosa jornada. George tinha plena confiança na capacidade de Stanley para fazer isso. Esperava ter de apresentar suas provas apenas no segundo dia do julgamento, mas não conseguia ficar longe do tribunal.
Só desejava que Clough aparecesse logo. Então, pelo menos teria alguém com quem dividir sua inquietação.
- Meritíssimo - disse Desmond Stanley, levantando-se. - Venho a este tribunal em nome do diretor do Ministério Público. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele ainda é acusado de, em 11 de dezembro de 1963 ou próximo dessa data, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
Stanley fez uma pausa, para permitir que se assimilasse a gravidade das acusações. O tribunal estava em silêncio; era como se todos tivessem parado de respirar, para ouvir melhor a voz sonora do advogado.
"Senhoras e senhores do júri, Philip Hawkin mudou-se para Scardale no verão de 1962, após a morte de seu tio. Ele herdou um patrimônio substancial: todo o vale, consistindo de terras férteis, muitas cabeças de ovelhas e gado, o próprio Solar Scardale e as oito casas que formam a aldeia de Scardale. Todos que vivem e trabalham em Scardale o fazem unicamente sob sua bênção, o que os senhores deverão ter em mente quando ouvirem os testemunhos de seus inquilinos e empregados. É preciso coragem e desprendimento para alguém nessas condições vir depor como testemunha da acusação.
"Pouco tempo depois de chegar a Scardale, Philip Hawkin começou a demonstrar interesse por uma das mulheres da aldeia, Ruth Cárter. A senhora Cárter enviuvara seis anos antes e tinha uma filha, Alison, desse casamento. Alison estava com doze anos na época. Os senhores deverão considerar, enquanto ouvirem nossas testemunhas e verificarem nossas provas, se o interesse principal de Hawkin era pela mãe ou pela filha. Pode ser que ele tenha tentado afastar suspeitas de seu interesse pervertido por Alison, casando-se com a mãe da menina. Quem teria acreditado se a filha da nova esposa do proprietário de Scardale tivesse acusado seu atormentador? Seja qual for o motivo, o acusado assediou intensamente a senhora Cárter, até convencê-la a desposá-lo.
"Nós afirmamos que, em algum ponto após as bodas, Hawkin começou a molestar sua enteada sexualmente. Os senhores verão provas fotográficas de natureza sórdida, que não apenas demonstram a corrupção da garota, mas também provam, além de qualquer dúvida, que Philip Hawkin é culpado do estupro de Alison Cárter, do modo mais calculado e revoltante.
"A Coroa pretende mostrar que Alison foi vítima de crueldades adicionais por um homem que tinha o dever de cuidar dela como um pai. Talvez nunca venhamos a conhecer o motivo de Hawkin para silenciá-la para sempre. Talvez ela ameaçasse revelar aquelas práticas bestiais para a mãe ou para alguma autoridade; a garota pode ter-se recusado a continuar cooperando com suas exigências terríveis ou, ainda, Hawkin pode ter simples' mente perdido o interesse e desejado livrar-se dela, para poder abusar de outra criança. Como eu disse, talvez nunca venhamos a saber. Mas o que pretendemos provar é que, seja qual for o motivo, Philip Hawkin raptou Alison Cárter sob ameaça de arma de fogo, abusou sexualmente da menina pela última vez e, então, a matou.
"Na tarde de 11 de dezembro do ano passado, Alison Cárter saiu da casa de sua família para dar uma caminhada com sua cadela, Shep, ao voltar da escola. Estamos convictos de que Philip Hawkin seguiu-a até o matagal próximo, forçando-a a acompanhá-lo. A cadela foi encontrada mais tarde, amarrada em uma árvore e com o focinho fechado com esparadrapo, idêntico àquele comprado por Hawkin na semana anterior, em uma farmácia próxima.
"Depois, Hawkin levou-a para um local isolado, uma caverna em uma mina desativada, cuja existência era desconhecida de todos os outros habitantes no vale, exceto por um deles. A caminho, enquanto passava por outra parte do matagal, Alison conseguiu livrar-se e ocorreu uma luta física. Ela bateu a cabeça contra uma árvore durante a briga e, então, Hawkin conseguiu transportá-la até a caverna. Apresentaremos provas laboratoriais que confirmarão nossas asserções. Após levá-la para este local isolado, a salvo de olhos e ouvidos bisbilhoteiros, ele a estuprou com brutalidade mais uma vez. Depois, matou-a, escondendo o corpo em outro lugar, posteriormente. Embora ainda não tenhamos encontrado o corpo de Alison, isso não é de todo surpreendente, já que o calcário nas adjacências de Scardale encontra-se repleto de sistemas de cavernas subterrâneas e caldeirões. Entretanto, Hawkin não teve tempo de voltar e eliminar o resto dos indícios de sua presença na mina, já que ao chegar em casa na hora do chá, a caçada por sua enteada já havia começado.
"Sabemos, com certeza, que foram feitos disparos naquela caverna, por uma arma que depois foi encontrada na propriedade de Philip Hawkin, em um anexo trancado que ele usava como laboratório para suas fotografias. Sabemos que uma camisa pertencente a Philip Hawkin estava muito manchada de sangue, que não era de seu tipo. Os exames da perícia não contradizem a conclusão convincente de que Hawkin assassinou Alison Cárter.
"Temos provas abundantes sustentando nossas alegações, que pretendemos demonstrar neste tribunal. Com a permissão de Vossa Excelência, gostaria de chamar minha primeira testemunha."
Sampson concordou, dizendo:
- Por favor, prossiga, senhor Stanley.
- Obrigado. Chamo a senhora Ruth Cárter.
O silêncio que havia na plateia foi rompido por uma onda de murmúrios. A única ilha de silêncio era entre o contingente de rostos impenetráveis dos habitantes de Scardale. Todos os adultos que não haviam sido requisitados como testemunhas estavam ali, sentindo-se desconfortáveis em suas roupas de domingo, determinados a terem justiça para a morte de Alison.
Ruth Cárter atravessou o tribunal olhando fixamente à frente. Nem por uma vez ela cedeu à tentação de olhar para seu marido. Vestia um conjuntinho de duas peças, com a gola branca da blusa sendo o único alívio na escuridão de seus trajes, e carregava uma bolsinha preta de mão, que agarrava apertada entre os dedos enluvados. Ao chegar ao reservado das testemunhas, posicionou-se com cuidado, de modo a não vislumbrar Hawkin sequer por acaso, e prestou o juramento sem vacilar, em voz baixa e clara. Stanley enxugou os olhos. Fitou-a, muito sério, fazendo-lhe perguntas rotineiras sobre identidade e relacionamento com o réu e, depois, foi ao ponto:
- A senhora se lembra da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro do ano passado?
- Nunca esquecerei aquele dia - disse simplesmente.
- Pode contar aos magistrados o que aconteceu naquela data?
- Minha filha Alison chegou da escola e entrou na cozinha, onde eu preparava o chá da tarde, mas logo a seguir saiu para passear com sua cadela. Ela fazia isso sempre, a menos que o tempo estivesse ruim demais. Alison gostava de ficar na rua um pouco, já que passava quase o dia inteiro dentro da sala de aula. As últimas palavras que a ouvi dizer foram: "Nos vemos daqui a pouco, mamãe." Não a vi mais. Ela não voltou. - Ruth olhou para os juízes. - Tenho vivido no inferno desde então.
Com gentileza, Stanley guiou-a na narrativa dos acontecimentos daquela tarde - sua busca desesperada de porta em porta na aldeia, seu apelo angustiado à polícia e a chegada das autoridades ao solar.
- Qual foi a reação de seu marido à ausência de Alison? Ruth apertou os lábios antes de responder:
- Ele não levou a sério. Ficou dizendo que Alison estava fazendo aquilo de propósito para nos assustar, para que nos sentíssemos tão contentes ao vê-la chegar a ponto de permitirmos que fizesse o que bem entendesse.
- Ele concordou em chamar a polícia?
- Não, mostrou-se contrário à ideia. Disse que não havia necessidade e que nada de ruim poderia acontecer à minha filha em Scardale, já que Alison conhecia cada pedaço de terra e todos os que moram lá. - Sua voz tremeu e ela pegou um lencinho branco de dentro da bolsa preta. Stanley esperou, enquanto Ruth enxugava os olhos e assoava o nariz.
- Seu marido demonstrava algum ressentimento por sua dedicação à sua filha? - indagou Stanley. - Quero dizer, de um modo geral.
- Sempre achei que não. Pensava que ele, sim, mimava-a demais, dando-lhe de presente um toca-discos caro e indo a Buxton todas as semanas para comprar-lhe os últimos lançamentos de músicas. Ele gastou uma fortuna decorando o quarto dela... mais que na decoração de nosso quarto. Sua explicação era que tentava compensá-la pelo que não recebera até nos casarmos, e eu fui estúpida o bastante para acreditar nisso.
Stanley deixou que as palavras da testemunha fossem assimiladas.
- E agora, o que a senhora acha?
- Acho que ele estava comprando o silêncio de minha filha. Eu deveria ter prestado mais atenção às reações de Alison a ele.
- E como sua filha reagia?
Ruth suspirou e olhou para o chão.
- Ela nunca gostou dele. Sempre evitava ficar sozinha com ele, só agora me dou conta disso. Andava tristonha nos últimos tempos, e nunca havia sido assim, embora todos dissessem que era a mesma de sempre, quando estava longe de casa. Na época, pensei que sua tristeza era por saudade do pai e por perceber que ninguém poderia substituí-lo, mas estava apenas enganando a mim mesma. - Ela ergueu os olhos e fitou o juiz, suplicante. - Achei que estava fazendo o melhor, para mim e para ela, ao me casar novamente. Pensei que, com o tempo, tudo se ajeitaria.
- A senhora sabia que seu marido fotografava Alison?
- Ah, sim - disse, com amargura. - Ele sempre pedia-lhe para posar. Mas como é esperto, na maior parte do tempo era tudo muito inocente e sempre em público. Alison junto às vacas ou perto do rio. Assim, jamais questionei os outros momentos em que ele a levava a um dos estábulos, ou quando dizia que faria uma sessão com ela enquanto eu estivesse na cidade, fazendo compras. - Ela pousou uma das mãos na face, como que estarrecida com o que dizia. - Alison tentou contar-me o que estava acontecendo, mas eu só ouvia as palavras, não o que estava por trás. Ela me disse algumas vezes, que odiava as sessões e não gostava de posar para ele. Mas eu lhe dizia para deixar de ser boba, que era o passatempo de seu padrasto, algo que podiam fazer juntos.
Suas palavras caíram como pedras. Durante o depoimento da esposa, Hawkin apenas sacudia a cabeça, como se perplexo e confuso por ouvi-la contar tais coisas a seu respeito.
- Prosseguindo, senhora Cárter. Seu marido possuía uma arma de fogo?
- Sim. Ele me mostrou seu revólver, depois que nos casamos. Disse que era de seu pai, uma lembrança dos tempos de guerra, mas, como não tinha licença, ninguém deveria saber de sua existência.
- Havia alguma característica fora do comum na arma?
- O cabo continha desenhos de linhas cruzadas e havia uma lasca no canto inferior, em um dos lados.
Stanley anotou algo e, depois, continuou:
- Onde a arma era guardada?
- Em seu estúdio, em uma caixa de metal fechada a chave.
- A senhora viu esta caixa recentemente?
- A polícia encontrou-a, durante buscas no estúdio no dia em que o prenderam. Mas estava vazia.
- Será que a senhora Cárter poderia ver a prova... - Stanley remexeu em seus papéis. - A prova número 14?
O auxiliar de tribunal entregou a Webley a Ruth, etiquetada.
- É esta - disse ela. - A lasca do cabo está aqui embaixo, como afirmei.
Hawkin franziu a testa, olhando brevemente para seu advogado, Rupert Highsmith, que sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente.
Stanley avançou para a descoberta da camisa e do revólver no laboratório fotográfico de Hawkin, guiando Ruth na verificação das provas com cortesia e paciência. Finalmente, ele pareceu chegar ao fim de suas perguntas, mas parou quando já se encaminhava para seu assento, como se recordasse subitamente algo.
- Mais uma coisa, senhora Cárter. A senhora pediu, alguma vez, que seu marido lhe comprasse esparadrapo?
Ruth olhou-o como se o advogado tivesse enlouquecido.
- Esparadrapo? Quando precisamos de esparadrapo, compramos da caminhoneta.
- Que caminhoneta?
- A caminhoneta que vai a Scardale uma vez por semana, vendendo miudezas. Nunca pedi que ele comprasse esparadrapo.
- Obrigado. Não tenho mais perguntas, mas a senhora deve aguardar para ver se meu douto colega deseja indagar-lhe algo. - Ele sentou-se.
O relógio da prefeitura dera as doze badaladas do meio-dia muito antes de Stanley terminar com sua inquirição, de modo que Sampson recostou-se em sua cadeira e disse:
- Faremos um recesso agora. Reiniciaremos às catorze horas.
Antes mesmo que a porta se fechasse após a saída do juiz, Hawkin já era retirado do tribunal. Ao lançar um olhar para a esposa sobre o ombro, sua máscara de imperturbabilidade finalmente caiu, revelando um ódio profundo por ela. Highsmith flagrou aquele olhar e suspirou, desejando que houvesse outro modo de exercer suas habilidades plenamente, mas infelizmente não havia nada mais difícil e fascinante que defender alguém que ele sabia ser culpado. Às vezes, perguntavam-lhe como se sentia ajudando homicidas a escaparem da punição. Nessas ocasiões, ele sorria e dizia que era um erro confundir lei com moralidade. Afinal, era tarefa da acusação provar que o réu era culpado - não do advogado de defesa.
Depois do almoço, ele entrou disposto a causar tanto dano quanto pudesse à causa da promotoria. Não chegou sequer a demonstrar amabilidade com Ruth. Com expressão rígida, foi direto ao âmago do caso:
- Já foi casada antes, senhora Hawkin? - A promotoria poderia ter optado por obscurecer seu relacionamento com o réu, mas ele o usaria contra ela, como uma arma.
Ruth franziu a testa.
- Não respondo mais por este nome - disse com frieza, mas sem desafiá-lo.
As sobrancelhas de Highsmith ergueram-se e ele voltou-se para o júri.
- Mas este é seu nome legal, não é? É ou não é esposa de Philip Hawkin?
- Para minha vergonha, sou - respondeu Ruth. - Mas escolhi não ser lembrada disso e agradeceria se o senhor me fizesse a gentileza de me chamar de senhora Cárter.
O advogado assentiu.
- Obrigado por deixar tão clara sua posição, senhora Cárter. Agora, talvez a senhora pudesse responder à minha pergunta. Foi casada antes de prometer amar, honrar e obedecer ao senhor Hawkin?
- Enviuvei quando Alison estava com seis anos.
- Assim, presumo que a senhora sabe a que me refiro quando falo sobre uma vida conjugal plena.
Ruth enviou-lhe um olhar hostil.
- Não sou estúpida. E fui criada em uma fazenda.
- Responda à pergunta, por favor - pediu Highsmith, com voz cortante.
- Sim, sei a que o senhor se refere.
- E a senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com seu primeiro marido?
- Sim.
- E então casou-se com Philip Hawkin. A senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com o senhor Hawkin?
Ruth encarou-o, ruborizada.
- Ele se dispunha a isso, mas não com a frequência com a qual eu estava acostumada - disse, tremendo levemente, com repulsa.
- Assim, havia algo anormal no apetite sexual de seu marido?
- Como eu disse, seu interesse não era muito grande, pelo menos em comparação com meu primeiro marido.
- Que, naturalmente, era muito mais jovem que o senhor Hawkin. Diga-me: a senhora algum dia viu seu marido em alguma posição comprometedora com Alison?
- Não entendi a pergunta.
Highsmith estava impressionado. Ela aguentava muito bem a pressão, melhor que imaginara. A maioria das mulheres de sua classe sentia-se tão intimidada e inferiorizada por sua presença atraente que acabava por ceder bem depressa, dando-lhe o que desejava ouvir quase que imediatamente. Ele balançou a cabeça e lançou-lhe um sorriso condescendente.
- Tenho certeza de que entendeu, senhora Cárter. O senhor Hawkin visitava sua filha no quarto tarde da noite?
- Não que eu soubesse.
- Ele entrava no banheiro quando ela estava lá?
- Claro que não.
- Ele alguma vez a colocou sentada sobre seus joelhos?
- Não, Alison era grande demais para isso.
- Em resumo, portanto, a senhora nunca viu nem ouviu nada que causasse a mínima suspeita sobre o relacionamento de seu marido com sua filha. - O tom era tão definitivamente o de uma afirmação que Ruth sequer pareceu considerar uma resposta às implicações do que o advogado dizia. Highsmith deu uma rápida olhada nos documentos que segurava. Levantou a cabeça e inclinou-a para um lado.
- Agora, vamos à arma. A senhora disse, aqui, que seu marido tinha uma arma de fogo, que mantinha em uma caixa em seu estúdio. A senhora contou a alguém sobre esta arma? A algum parente ou amigo?
- Ele disse que eu deveria manter a arma em segredo. Fiz o que mandou.
- Portanto, temos apenas sua palavra sobre a existência da arma, para começo de conversa. - Ruth abriu a boca para falar, mas ele a atropelou: - E, é claro, foi a senhora quem entregou a arma à polícia, de modo que teve muito tempo para memorizar qualquer característica marcante neste revólver que, de outro modo, poderia ser facilmente confundido com outro. Assim, temos apenas sua palavra para fazermos qualquer conexão entre seu marido e a arma, não é?
- Eu não estuprei minha filha, senhor, e também não a matei - disse Ruth, entredentes. - Assim, não tenho necessidade de mentir.
Highsmith fez uma pausa, permitindo que sua expressão mudasse e se transformasse em clara solidariedade:
- Mas a senhora deseja culpar alguém pelo que aconteceu, não é? Mais que qualquer coisa, deseja acreditar que sabe o que aconteceu com sua filha, e quer colocar a culpa em alguém. Por esta razão, mostra-se tão disposta a colaborar com essa história que a polícia tramou. Sua intenção é ter paz de espírito. Assim, precisa culpar alguém.
Stanley levantou-se, objetando, mas era tarde demais. Highsmith já murmurara "Não tenho mais perguntas" e sentara-se. O mal estava feito. Sampson fitou Highsmith com uma carranca.
- Senhor Highsmith, não permitirei que use a inquirição às testemunhas como desculpa para fazer seus pronunciamentos. O senhor terá sua chance para expressar suas opiniões ao júri. Por favor, limite-se a isto. Agora, senhor Stanley, estou certo ao pensar que sua próxima testemunha é a principal testemunha da polícia, o detetive-inspetor Bennett?
- Sim, meritíssimo.
- Penso que seria melhor começarmos com este testemunho amanhã de manhã. Este tribunal precisa atender a causas civis ainda hoje.
- Como desejar, meritíssimo - disse Stanley, abaixando a cabeça em deferência.
No banco da imprensa, Don Smart traçou uma linha que cruzava a folha, com um floreio. Já tinha muito material para boas manchetes. E amanhã certamente veria George Bennett colocando o laço em torno do pescoço nojento de Hawkin. A porta mal se fechara às costas do juiz quando ele levantou-se e rumou para o telefone mais próximo.
Clough ainda não havia aparecido no fim da tarde, embora um meirinho tivesse lhe trazido uma mensagem telefónica do sargento Lucas, que dizia: "Clough teve questões urgentes a tratar. Diz que o verá amanhã em Derby, antes do reinício do julgamento." George imaginou, por um instante, em que o detetive estaria metido, concluindo que provavelmente era algo a ver com outro caso. Desde a detenção de Philip Hawkin, os dois haviam tido muito trabalho para ocupá-los durante qualquer momento que lhes sobrava, durante a construção do caso de Alison Cárter.
George emergiu da ante-sala quando ouviu o burburinho que lhe disse que os trabalhos estavam encerrados até o dia seguinte. Viu Ruth de relance, cercada por amigos e parentes, mas fez questão de não olhar ninguém nos olhos. Agora que o julgamento começara, era importante que as testemunhas não trocassem qualquer palavra antes de serem convocadas a oferecer seus depoimentos. Assim, ele moveu-se contra o fluxo de pessoas que saíam e entrou no salão do tribunal. Highsmith e seu assistente já haviam saído, mas Stanley e Pritchard ainda estavam em suas mesas, com as cabeças muito próximas, em uma profunda discussão.
- Como foi? - indagou George, sentando-se em uma cadeira perto de pritchard.
- Desmond foi maravilhoso - disse Pritchard, com entusiasmo. - Fez um tremendo discurso de abertura. O júri estava hipnotizado. Highsmith nem mesmo falou conosco na hora do almoço. Você teria ficado impressionado, George.
- Muito bem - disse George. - E como estava a senhora Cárter? Os dois advogados trocaram olhares.
- Um pouco emocional - disse Pritchard. - Ela mostrou-se nervosa algumas vezes, no reservado das testemunhas. - Ele juntou o resto de seus papéis e enfiou-os em uma pasta de papelão.
- Isso é vantajoso para nós - comentou Stanley. - Ainda assim, não sinto prazer nenhum em levar uma mulher às lágrimas.
- Ela tem vivido no inferno - disse George. - Não consigo imaginar a sensação de descobrir estar casada com o homem que estuprou e matou sua filha.
Pritchard concordou:
- Ela está se saindo bem, considerando as circunstâncias. É uma boa testemunha. Não hesita e sua teimosia e firmeza fazem com que Highsmith pareça um provocador malvado, o que não é bem-visto pelos jurados.
- Que tipo de defesa ele planeja? Vocês sabem? - perguntou George, levantando-se para permitir que Pritchard e Stanley pegassem suas pastas e deixassem o tribunal para trocarem de roupa.
- Difícil imaginar o que possa fazer e ainda ter credibilidade, a menos que tente convencer o júri de que a polícia preparou uma armadilha para seu cliente.
Stanley concordou:
- E isto seria um erro grave, acho. O júri britânico, como o público britânico, não gosta de ataques à polícia. - Ele sorriu. - Eles vêem policiais da mesma forma que vêem cães labradores: leais, nobres, bons com as crianças e protetores e amigos dos seres humanos. Apesar de provas em contrário, eles se recusam a admitir que policiais possam ser corruptos, Maliciosos ou falsos, porque se os virem assim, terão de admitir que estamos à beira da anarquia. Assim, ao atacá-lo, Highsmith estaria empregando uma estratégia muito arriscada.
- Se não houver alternativa, é o que fará - comentou Pritchard, secamente. - Ele usará tudo que tem. Pode ser que tenhamos apenas provas circunstanciais mas são tantas que Highsmith precisa de uma teoria contrária muito coerente para nos prejudicar. Não basta apenas oferecer explicações alternativas para cada uma de nossas provas.
George sentiu-se reconfortado pela competência tranquila dos dois advogados.
- Espero que tenham razão.
- Nós o veremos no reservado das testemunhas amanhã - disse Pritchard. - Vá para casa, para sua adorável esposa, e tenha uma boa noite de sono, George.
Viu-os sair por uma porta lateral e, então, seguiu lentamente até a saída do tribunal vazio. A última coisa que desejava era cruzar o verde luxuriante sob a noite de Derbyshire. Gostaria de encontrar um bar silencioso e embriagar-se, mas tinha uma esposa com quase sete meses de gravidez em casa, e ela precisava vê-lo forte, não vacilante. Com um suspiro, George catou as chaves do carro de seu bolso e voltou ao mundo.
O julgamento
Ao entrar na sala de testemunhas, no segundo dia do julgamento de Philip Hawkin, George encontrou Tommy Clough atirado displicentemente em uma cadeira, com uma garrafa de limonada aos seus pés, um cigarro no canto da boca e o Daily News aberto no colo. Ele cumprimentou seu chefe com um aceno e mostrou-lhe o jornal.
- Ruth Cárter parece ter causado boa impressão nesses abutres. Achei que a transformariam em bode expiatório. Você sabe, algo como "A Mulher que se Casou com um Monstro" - disse Clough, em tom dramático.
- Também estou surpreso por livrarem a senhora Cárter de suas maldades - admitiu George. - Esperava que dissessem que ela deveria ter sabido como Hawkin era, ou o que ele fazia com Alison. Como você, eu também achei que a culpariam, mas suponho que viram por si mesmos o estado em que a pobre se encontra. Este não é o tipo de mulher que fecharia os olhos e seria conivente com o que o desgraçado fazia com sua filha.
- Tomei café da manhã com Pritchard no hotel chique em que ele está hospedado - confidenciou Clough. - Ele disse que ela não poderia ter sido melhor testemunha se a tivesse treinado durante meses sobre o que dizer. Hoje você é que terá de se sair bem, George.
- Café da manhã com o advogado? Tommy, você está se misturando com os grã-finos. Por falar nisso, aonde você foi ontem?
Clough endireitou-se na cadeira, fechando o jornal, dobrando-o e jogando-o no chão.
- Achei que nunca iria perguntar. Recebi um telefonema domingo à noite, bem tarde. Lembra-se do sargento Stillman?
- De St. Albans? - George tornou-se subitamente alerta, inclinando-se para a frente como um cão forçando a guia.
- Ele mesmo. Ele ligou para me contar que o senhor e senhora Wells haviam voltado da Austrália. Fazia duas horas que haviam chegado, para ser exato. Assim, entrei no carro e dirigi direto até lá. Às oito da manhã de ontem, eu já estava batendo na porta da frente da casa deles. Não ficaram muito contentes por me verem, mas obviamente sabiam por que eu estava ali.
George assentiu, muito sério, e jogou-se em uma cadeira.
- A mãe de Hawkin.
- Pois é. Como pensávamos, ela devia ter o endereço do casal na Austrália o tempo todo. De qualquer modo, banquei o inocente. Expliquei que a descrição da Webley que fora roubada de sua casa correspondia a uma arma usada em um crime ocorrido em Derbyshire. Cheguei a comentar que estávamos impressionados por sua descrição e de como esta tornava muito provável que a arma do crime fosse a sua.
George sorriu. Podia imaginar a sutil manipulação de Clough, colocando o senhor Wells contra a parede, sem escapatória.
- Assim, é claro que, quando você lhe mostrou a fotografia, ele obrigou-se a identificar sua arma?
Clough deu-lhe um amplo sorriso.
- Isso mesmo. De qualquer modo, tive de falar sobre Hawkin e sobre o julgamento esta semana. Então, Wells saiu pela tangente. Disse que não poderia testemunhar contra um amigo e vizinho, que cometemos um engano com Hawkin, blablablá.
George acendeu um cigarro.
- E o que você fez?
- Eu praticamente virara a noite acordado, de modo que não estava com humor muito gentil. Assim, eu o prendi por obstrução à lei.
- Você o prendeu? - perguntou George, assustado.
- Claro que sim. Ele estava me irritando - disse Clough, com ares de dignidade ferida. - De qualquer modo, antes que eu pudesse acabar meu discurso, ele concordou em testemunhar, em vir a Derby comigo. Portanto, concordamos em esquecer que eu lhe dera voz de prisão. Depois, ele serviu um conhaque à esposa, já que a coitada parecia à beira de um desmaio, pegou seu casaco e chapéu e me acompanhou, que nem um carneirinho.
George sacudiu a cabeça, com um misto de irritação e admiração.
- Um dia, Tommy, um dia... Bem, e onde ele está agora?
- Em um quarto muito confortável no hotel Lamb and Flag. Tomei um depoimento completo ontem, quando chegamos aqui, e o senhor Stanley quer ouvi-lo no tribunal, assim que o julgamento reiniciar. - Clough abriu um largo sorriso.
- Antes de mim?
- Stanley não quer adiar o depoimento de Wells. Não quer correr o risco de a senhora Wells entrar em contato com a mãe de Hawkin e alertála de que o marido servirá como testemunha no julgamento. Ele quer pegar Highsmith desprevenido, se puder.
- Mas a mãe de Hawkin está aqui para presenciar o julgamento do filho.
- Sim, mas eu aposto meu último centavo que a senhora Wells saberá onde perguntar, para descobrir o paradeiro da amiga.
- Highsmith se oporá a uma testemunha de última hora.
- Sei disso, mas Stanley diz que o juiz permitirá, já que Wells estava viajando. - Clough levantou-se e espanou as cinzas de cigarro que caíram em seu terno cinzento de flanela. Ele ajeitou sua gravata e piscou um olho para George.
- Assim, é melhor eu entrar e ver como ele se sairá.
Richard Wells, funcionário público aposentado, já fizera seu juramento quando Clough entrou discretamente no tribunal. Não parecia o tipo que participaria em uma guerra que, como lembrança, lhe deixaria uma Webley, pensou o sargento. Se já houvera alguém feito sob medida para funções burocráticas em tempos de guerra, era Richard Wells. Terno cinza, cabelos grisalhos e gravata cinza, até mesmo seu bigode parecia tímido e sem graça contra o rubor espantoso da pele que não se dera bem com o forte sol australiano.
Hawkin estava inclinado para a frente em seu reservado, com duas linhas verticais de preocupação visíveis entre suas sobrancelhas. Clough sentiu um prazer infantil ao ver tal demonstração óbvia de temor. Stanley iniciou com a parte formal de sua inquirição, indagando os dados pessoais de Wells e, então, disse em tom descontraído:
- Há alguém nesta sala que o senhor já tenha visto antes?
Wells acenou na direção do reservado.
- Philip Hawkin.
- De onde conhece o senhor Hawkin?
- Sua mãe é nossa vizinha.
- Ele conhecia o interior de sua casa?
- Ele acompanhava sua mãe até nossa casa para jogar bridge à noite, antes de se mudar para Scardale. - Os olhos de Wells iam do advogado para o réu. Seu desconforto com a situação era óbvio, apesar dos modos informais de Stanley.
- O senhor possuía uma Webley calibre .38, não?
- Sim.
- Chegou a mostrá-la ao senhor Hawkin algum dia?
Clough acompanhou o olhar angustiado de Wells, que se fixou em um ponto da plateia, onde estava a idosa mãe de Hawkin. Wells respirou fundo e resmungou:
- Talvez eu tenha mostrado.
- Pense bem, senhor Wells - a voz de Stanley era gentil. - O senhor mostrou ou não mostrou a Webley ao senhor Hawkin?
Wells engoliu em seco.
- Sim - afirmou.
- Onde o senhor guardava a arma?
Wells relaxou visivelmente, com os ombros saindo de sua posição rígida e defensiva.
- Em uma gaveta trancada na escrivaninha da sala.
- E foi desta gaveta que o senhor a tirou, ao mostrá-la ao senhor Hawkin?
- Deve ter sido - disse, arrastando cada palavra.
- Então o senhor Hawkin sabia onde a arma era guardada? Wells baixou o olhar.
- Suponho que sim - murmurou. O juiz inclinou-se para a frente.
- O senhor deve falar claramente. Os jurados precisam escutar suas respostas.
Stanley sorriu.
- Obrigado, meritíssimo. Agora, senhor Wells, quer nos contar o que aconteceu com a arma?
Wells apertou muito os lábios por um momento e, então, respondeu em voz baixa:
- Foi roubada. Em um arrombamento. Pouco mais de dois anos atrás.
Estávamos viajando, em férias.
- Deve ter sido bem ruim voltar de férias e descobrir que sua casa foi invadida. Tiveram um prejuízo muito grande? - indagou Stanley, solidário.
Wells negou com a cabeça, dizendo:
- Um relógio de bolso, de prata. Um relógio de pulso de ouro e a arma. Só foram até a sala. O relógio de ouro estava na gaveta com o revólver.
- O senhor ofereceu uma descrição muito boa da arma à polícia. Pode lembrar-se do que a tornava tão diferente, além do número de série?
Wells pigarreou e alisou o bigode. Seus olhos voltaram-se novamente para Hawkin, cuja ruga entre as sobrancelhas aprofundara-se.
- O cabo estava lascado, no canto inferior - disse, com as palavras atropelando-se.
Stanley voltou-se para o auxiliar de tribunal:
- Teria a gentileza de mostrar a prova número 14 ao senhor Wells?
O auxiliar pegou a Webley da mesa onde estavam as provas e atravessou a sala, até onde estava Wells. Ele virou a arma, para que a testemunha pudesse ver os dois lados do cabo trabalhado.
- Não tenha pressa - disse Stanley, suavemente.
Wells olhou novamente para o público. Clough viu a expressão de choque no rosto da mãe do réu ao perceber a verdade.
- É o meu revólver - disse ele, em voz frouxa e sem emoção.
- Tem certeza?
- Sim - disse o homem, com um suspiro. Stanley sorriu.
- Obrigado por vir até aqui hoje, senhor Wells. Agora, por favor, permaneça onde está. Talvez meu nobre colega Highsmith tenha algumas perguntas a lhe fazer.
Isto seria interessante, pensou Clough. Não havia quase mais nada que Highsmith pudesse perguntar que não fosse prejudicar ainda mais seu cliente. Hawkin, que estivera escrevendo desesperadamente nos últimos minutos, passou um bilhete para o advogado ao seu lado, que o examinou rápida mente e então o entregou ao assistente de Highsmith, que o colocou na frente deste.
O advogado da defesa estava de pé agora, com as linhas agudas de seu rosto suavizada por um sorriso. Ele olhou brevemente para o bilhete e, então começou a interrogar Wells ainda mais gentilmente do que Stanley fizera:
- Quando sua casa foi arrombada, o senhor estava de férias, não é?
- Sim - disse Wells, cauteloso.
- O senhor deixou uma chave com algum dos vizinhos? Wells levantou a cabeça, com um brilho de esperança no olhar.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave. Para emergências.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave - repetiu Highsmith, com os olhos varrendo o júri para garantir que todos haviam compreendido o que pretendia. - A polícia tirou digitais em sua casa, após o arrombamento?
- Eles tentaram, mas disseram que o invasor usava luvas.
- Chegaram a dizer se tinham algum suspeito?
- Não.
- Chegaram a dizer-lhe algo que pudesse sugerir que suspeitavam do senhor Hawkin?
Wells ainda dizia "não" quando Stanley levantou-se.
- Meritíssimo - protestou. - Meu douto colega não apenas está conduzindo a testemunha, mas tenta levá-lo pela trilha dos boatos.
Sampson assentiu.
- Membros do júri, queiram desconsiderar a última pergunta e a resposta a ela. Senhor Highsmith?
- Obrigado, meritíssimo. Senhor Wells, chegou a suspeitar, algum dia, que o réu tivesse arrombado sua casa?
Wells negou com a cabeça.
- Nunca. Por que Phil faria algo assim? Éramos seus amigos.
- Obrigado, senhor Wells. Não tenho mais perguntas para lhe fazer.
Então, é para este lado que o vento está soprando, pensou Clough, saindo da sala do tribunal e entrando na das testemunhas à frente do oficial de justiça. George saltou da cadeira, com expressão de interrogação ansiosa.
- A defesa não questionou a prova. Acho que pretendem alegar que Hawkin comprou a arma em um bar, sem saber que havia sido roubada de Wells.
George suspirou.
- E eu a encontrei e usei-a para incriminá-lo. Assim, isso não muda
nada.
- Muda, sim - disse Clough, vibrante. - Liga Hawkin à arma. Pessoas comuns não possuem armas, George, lembra-se?
Antes que George pudesse responder, a porta abriu-se e o oficial de justiça perguntou:
- Detetive-inspetor Bennett? Pode entrar agora.
Foi uma das caminhadas mais longas de sua vida. Ele podia sentir os olhos que o acompanhavam e, ao chegar ao reservado das testemunhas, virou-se deliberadamente e olhou para o rosto impassível de Philip Hawkin. Esperava que Hawkin sentisse que estava olhando para o anjo da vingança.
Stanley esperou, enquanto George prestava juramento. Depois, levantou-se e secou delicadamente os olhos úmidos.
- O senhor pode declarar seu nome e ocupação para nossos registros, inspetor?
- Sou George Bennett, detetive-inspetor do distrito de Derbyshire, em Buxton.
- Eu gostaria de levá-lo ao início deste caso, inspetor. Quando ouviu falar pela primeira vez no desaparecimento de Alison Cárter?
Subitamente, George viu-se de novo na sala do pelotão naquela noite de dezembro, ouvindo o sargento Lucas dizer que uma menina sumira de Scardale. Ele começou seu depoimento com a clareza de um homem que consegue rever os acontecimentos do passado como se tivessem ocorrido recentemente. Stanley quase sorriu, aliviado, por ter uma testemunha da polícia com tamanha competência. Em sua experiência, era sempre uma loteria quando se tratava de agentes da lei. Às vezes, confiava menos neles que nas pessoas mais instáveis que se sentavam no reservado das testemunhas. Contudo, George Bennett era atraente e eficiente. Parecia e soava tão honesto quanto um astro de cinema encenando um policial decente.
Stanley não perdeu tempo e, ao final da manhã, já havia coberto o relato inicial sobre o desaparecimento de Alison, a primeira entrevista de George com a mãe e o padrasto da menina, as buscas preliminares e a descoberta da cadela no matagal.
Depois, por mais uma hora e meia durante a tarde, ele conduziu George meticulosamente pelas descobertas mais importantes da investigação o sangue e os fiapos de roupas no arvoredo; o livro no estúdio de Hawkin, com detalhes da antiga mina dentro do rochedo; as roupas manchadas e as cápsulas na mina de chumbo; a camisa ensanguentada e o revólver; as horríveis fotografias e negativos no cofre.
- Não é nada comum acusar um homem de homicídio quando não há um corpo - disse Stanley, no fim da tarde.
- Sim, senhor. Mas neste caso, achamos que as provas eram tão convincentes que não havia outra conclusão possível.
- E é claro que existem outros casos em que homens foram considerados culpados de homicídio na ausência de um corpo. Inspetor Bennett, dada a gravidade das acusações, o senhor ainda tem alguma dúvida de que agiu certo ao indiciar o senhor Hawkin?
- Qualquer um que tenha visto as provas fotográficas do que ele fez com sua enteada quando estava viva saberia que este homem não se detém frente a nada. Portanto, não, não tenho absolutamente nenhuma dúvida. - Pela primeira vez, George deixava transparecer suas emoções, e Stanley estava contente por ver que os jurados pareciam impressionados com sua ardente declaração.
Ele juntou seus papéis e disse:
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.
George achou que nunca desejara tanto um cigarro na vida, enquanto esperava que Rupert Highsmith terminasse de remexer em seus papéis e iniciasse seu ataque. As perguntas de Stanley haviam sido muito bem formuladas e profundas, mas não havia nada para que não tivesse sido bem preparado. Highsmith tentara sugerir ao juiz que deixassem a inquirição para a manhã do dia seguinte, mas Sampson não estava disposto a esperar.
Highsmith encostou-se negligentemente na grade de separação às suas costas.
- Não se esqueça de que está sob juramento, inspetor. Agora, diga sua idade a este tribunal.
- Tenho vinte e nove anos, senhor.
- E desde quando é policial?
- Quase sete anos.
- Quase sete anos - repetiu Highsmith, com admiração. - E já chegou à incrível e invejada posição de detetive-inspetor. Notável. Assim, presumo que não teve muito tempo para ganhar experiência no trabalho com casos graves e complicados.
- Já tive minha parcela desses casos, senhor.
- Mas o senhor faz parte do programa de promoções aceleradas para aqueles que se formaram em Direito, não é? Suas promoções não vieram por causa de seu desempenho brilhante no campo da investigação, mas simplesmente porque tem diploma universitário e prometeram-lhe promoção rápida, não importando se investigasse homicídios ou pequenos furtos em lojas, não é? - Highsmith franziu a testa, como se o pensamento realmente o surpreendesse.
George inspirou fundo e expirou pelo nariz.
- Realmente, entrei na polícia por ter me formado, mas ficou muito claro que se meu desempenho não atendesse a certas expectativas, eu não teria promoções automáticas.
- É mesmo? - Se Highsmith tivesse usado este tom de voz no clube de críquete, George o teria esmagado.
- É mesmo - ecoou e então se calou.
- É bastante incomum um policial tão jovem chefiar uma investigação desta gravidade, não é? - continuou Highsmith, pressionando-o.
- O detetive-inspetor-chefe da divisão estava incapacitado, porque fraturara o tornozelo. No início, não sabíamos que este caso se tornaria tão grave, de modo que o superintendente Martin pediu-me que assumisse o comando. Depois que a situação revelou-se mais séria, era preciso manter a continuidade, em vez de entregar a investigação a alguém do QG, que teria de recomeçar do zero. Estive, durante o tempo todo, sob a supervisão do detetive e inspetor-chefe Carver e do chefe da divisão, o superintendente Martin.
- Antes disso, chegou a envolver-se em um caso de desaparecimento de criança?
- Não, senhor.
Highsmith levantou o olhar e suspirou.
- Já liderou uma investigação de homicídio?
- Não, senhor.
Highsmith franziu a testa, friccionou a ponta de seu nariz com o indicador e disse:
- Corrija-me se eu estiver errado, inspetor, mas esta é a primeira grande investigação criminal que já comandou em toda a sua vida, não é?
- Que comandei, sim, mas eu...
- Obrigado, inspetor. Responda apenas ao que foi perguntado - Highsmith cortou-o com rispidez.
George lançou-lhe um olhar de frustração. Depois, conseguiu puxar de algum lugar em seu íntimo um pequeno sorriso, ao reconhecer que sabia o que o advogado tentava fazer com seu depoimento.
- O senhor interessou-se bastante por este caso, não é verdade?
- Fiz meu trabalho, senhor.
- Mesmo depois que as buscas iniciais foram canceladas, o senhor ainda visitava Scardale várias vezes por semana, não é?
- Sim, algumas vezes por semana. Eu queria que a senhora Cárter tivesse certeza de que o caso ainda estava aberto e que não nos esqueceríamos de sua filha.
- O senhor quer dizer "senhora Hawkin", não é? - O uso do nome de casada de Ruth por Highsmith dirigia-se claramente aos jurados e servia para lembrá-los do relacionamento da mulher com o réu.
George estava preparado para essas provocações, de modo que sorriu.
- Não é de surpreender que ela prefira ser conhecida pelo nome do primeiro marido. Ficamos felizes em acatar esta preferência.
- O senhor chegou a abandonar sua família, incluindo sua esposa grávida, para ir até Scardale na véspera de Natal.
- Não podia parar de pensar em como o desaparecimento de Alison havia afetado o Natal das pessoas em Scardale. Fui até lá com meu sargento para uma breve visita, apenas para marcarmos presença e mostrar que estávamos solidários.
- Para demonstrar solidariedade. Que nobreza de intenção - disse highsmith, condescendente. - O senhor visitava o solar com frequência,
não?
- Fui até lá algumas vezes, sim.
- Conhecia o estúdio?
- Estive lá.
- Quantas vezes, se é que recorda?
- É difícil lembrar exatamente - falou George, encolhendo os ombros. Antes de executarmos o mandado de busca, talvez quatro ou cinco vezes.
- E o senhor chegou a ficar sozinho naquele cómodo?
A questão chegou a George como uma chicotada. Agora estava claro o que Highsmith planejava.
- Apenas muito brevemente.
- Quantas vezes?
- Duas, acho - respondeu George, com cautela.
- E por quanto tempo? Stanley levantou-se rapidamente.
- Meritíssimo, isto deveria ser uma inquirição, mas parece que meu douto colega está tentando pescar alguma coisa com as perguntas à testemunha.
Sampson assentiu.
- Senhor Highsmith?
- Meritíssimo, a promotoria baseia-se maciçamente em provas circunstanciais, algumas das quais foram encontradas no estúdio de meu cliente. Penso que é razoável conceder-me uma oportunidade para determinar que outras pessoas tiveram oportunidade de deixar as provas lá.
- Muito bem, senhor Highsmith, pode continuar - disse o juiz, de mau humor.
- Por quanto tempo o senhor ficou sozinho no estúdio?
- Em uma ocasião, um ou dois minutos, no máximo. Na segunda vez, devo ter ficado lá por cerca de dez minutos, antes da chegada do senhor Hawkin - disse George, com relutância.
- Tempo suficiente - falou Highsmith, aparentemente para si mesmo, enquanto pegava outro bloco de anotações e folheava uma ou duas folhas.
- Pode contar-nos quais são seus passatempos, inspetor? - perguntou afável.
- Passatempos? - Surpreso, George descobriu-se despreparado para a pergunta.
- O senhor ouviu bem.
George olhou para Stanley em busca de ajuda, mas este apenas encolheu os ombros.
- Jogo críquete. Gosto de caminhar. Não tenho tempo para muitos passatempos - afirmou, parecendo tão confuso quanto realmente se sentia.
- O senhor se esqueceu de um - disse Highsmith, com a voz novamente fria. - Aquele com relevância particular neste caso.
- Desculpe-me, mas não sei do que está falando. Highsmith pegou um punhado de cópias fotostáticas.
- Excelência, gostaria que esses documentos fossem incluídos como provas da defesa, números 1 a 5. A prova número 1 é do anuário da Escola Secundária Cavendish para Meninos, do ano de 1951. É o relatório anual do Clube de Fotografia daquela instituição, escrito pelo secretário, George Bennett. - Ele entregou a folha de cima para o auxiliar de tribunal. - As outras provas são do boletim do Clube de Fotografia da Universidade de Manchester, onde o detetive-inspetor Bennett estudou. Elas contêm artigos sobre fotografia escritos por um certo George Bennett. - Highsmith tornou a estender a mão, liberando também essas folhas para o auxiliar de tribunal.
- Inspetor Bennett, o senhor nega que escreveu estes artigos sobre fotografia?
- Claro que não.
- O senhor diria que é especialista em fotografia?
George franziu a testa, consciente da armadilha que o advogado lhe preparava. Negando, pareceria um mentiroso. Admitindo, fatalmente prejudicaria o caso da promotoria.
- Mesmo que na época eu tivesse conhecimentos sobre fotografia, ja estariam desatualizados - disse, com cuidado. - Exceto por fotos que tiro de minha família, não mexo em uma câmera há cinco ou seis anos.
- Mas saberia onde procurar, se quisesse descobrir como forjar fotografias - disse Highsmith.
George era mais esperto que Ruth Cárter quanto às intenções de advogados, e sabia que não deveria deixar nenhuma pergunta sem resposta.
- Não mais que o senhor.
- Fotografias podem ser forjadas, não podem? - insistiu Highsmith.
- Pela experiência que tenho, nem de longe se pareceriam com essas - afirmou George.
Highsmith aproveitou o deslize, surpreendente em alguém como o inspetor:
- Em sua experiência? Está nos dizendo que tem experiência com fotografias falsas?
George fez que não com a cabeça.
- Não, senhor. Eu me referia às tentativas de falsificação que já vi, não que produzi.
- Mas o senhor sabe como se pode falsificar fotografias? George respirou fundo.
- Como já falei, meus conhecimentos de fotografia estão ultrapassados. Qualquer coisa que eu soubesse sobre qualquer aspecto da fotografia provavelmente já se tornou obsoleta pelas mudanças nas técnicas e tecnologia.
- Inspetor, por favor, responda à pergunta. O senhor sabe ou não sabe como as fotografias podem ser manipuladas? - Highsmith parecia irritado. George sabia que isto serviria para fazê-lo parecer vacilante, mas não podia fazer nada para alterar esta impressão, exceto admitir claramente que era um habilidoso falsificador de imagens.
- Tenho algum conhecimento teórico, mas nunca...
- Obrigado - disse Highsmith, alto, cortando-o. - Uma resposta simples já basta. Agora, quanto a esses negativos mostrados pela promotoria como provas. Que tipo de câmera o senhor precisaria para obtê-los?
Sob a borda da mureta do reservado das testemunhas, onde os jurados não poderiam ver, George fechou as mãos com tanta força que suas unhas deixaram meias-luas nas palmas.
- Seria preciso uma câmera portátil. Uma Leica ou Rolleiflex, algo assim.
- O senhor possui uma câmera deste tipo? •
- Faz no mínimo cinco anos que não uso minha Rolleiflex - disse sabendo que parecia estar fugindo pela tangente mesmo enquanto falava.
Highsmith suspirou.
- A pergunta que fiz é se o senhor possui uma câmera dessas, não quando foi a última vez em que a usou, inspetor. O senhor tem uma dessas câmeras? Pode responder apenas com um sim ou não.
- Sim.
Highsmith fez uma pausa e remexeu em suas anotações. Então, levantou a cabeça e perguntou, incisivo:
- O senhor acredita que meu cliente é culpado, não acredita? George voltou a cabeça na direção do júri.
- O que eu acredito não tem importância.
- Mas o senhor acredita na culpa de meu cliente? - insistiu Highsmith.
- Acredito no que as provas me dizem. Portanto, sim, acredito que Philip Hawkin estuprou e assassinou sua enteada de treze anos - disse George, com a emoção transparecendo na voz, apesar de sua intenção de contê-la.
- São dois crimes terríveis - disse Highsmith. - Qualquer homem sensato se sentiria horrorizado e desejaria condenar quem os cometeu. O problema, inspetor, é que não existem evidências sólidas de que algum desses crimes chegou realmente a ser cometido, não é?
- Se não houvesse nenhuma evidência, os magistrados jamais teriam trazido seu cliente a julgamento e não estaríamos aqui hoje.
- Mas há uma explicação alternativa para cada evidência circunstancial que vimos hoje. E muitas destas explicações nos levam diretamente ao senhor. O que nos trouxe aqui hoje foi sua obsessão por Alison Cárter, não concorda?
Stanley levantou-se novamente.
- Meritíssimo, eu protesto. Meu douto colega parece determinado a fazer discursos, em vez de interrogar a testemunha, a lançar difamações em vez de fazer acusações diretas. Se ele tem algo a indagar ao detetive-inspetor Bennett, muito bem. Mas se sua única intenção é despejar calúnias e insinuações no júri deveria calar-se.
Sampson lançou-lhe um olhar irritado.
- Ele não é o único a fazer belos discursos fora de hora, senhor Stanley.
Ele olhou sobre os óculos para o júri, como uma toupeira míope. - Os senhores devem ter em mente que estão aqui para atentar para as provas, de modo que os aconselho a desconsiderarem quaisquer comentários irrelevantes dos advogados. Senhor Highsmith, prossiga, por favor, mas vá direto ao ponto.
- Muito bem, meritíssimo. Inspetor, lembrando-o de responder com afirmação ou negação: o senhor se julga um homem ambicioso?
Stanley interveio novamente:
- Meritíssimo! - exclamou, indignado. - Isto nada tem a ver com a questão que nos importa aqui.
- Tem a ver com a motivação da testemunha - disse Highsmith, áspero. - A defesa sustenta que grande parte das evidências contra meu cliente foi forjada. Portanto, a motivação do inspetor Bennett torna-se uma preocupação para a defesa.
Sampson pensou por um momento e, então, disse:
- Sou obrigado a permitir a questão. George respirou fundo, antes de responder:
- Minha única ambição é contribuir para que a justiça seja feita. Acredito que o corpo de uma menina que foi monstruosamente abusada antes de ser morta ainda está em algum lugar, escondido. Acredito que o homem que fez isso está sentado no banco dos réus. - Highsmith tentava calá-lo, mas ele continuou, sem lhe dar atenção. - Estou aqui para tentar garantir que ele pagará pelo que fez, não para receber uma promoção.
Highsmith sacudiu a cabeça, demonstrando desagrado.
- Sim ou não, foi o que pedi. - Ele suspirou. - Não tenho mais perguntas para a testemunha - disse, com o rosto voltado para o júri e sem encarar o juiz, demonstrando para aqueles que lhe importavam um desdém que sua voz não transmitia.
George saiu do reservado das testemunhas. Não podia mais escapar da visão que tentara deliberadamente evitar durante todo o tempo em que estivera depondo. No olhar que Hawkin lhe enviou brilhava algo semelhante a triunfo. O sorriso que parecia sempre pendurado em seus lábios estava de Volta, e ele se sentava de um modo casual no banco dos réus, como se estivesse em sua cozinha. Com anseio de matá-lo, George marchou em frente, saindo da sala do tribunal e ouvindo, às suas costas, o juiz anunciar o fechamento dos trabalhos daquele dia. Ele apressou-se pelo corredor, rumo ao banheiro. Mergulhou em um dos cubículos, trancou a porta e curvou-se sobre o vaso sanitário, quase tarde demais. O vómito quente respingou na porcelana e o odor azedo subiu ao seu encontro, fazendo-o vomitar novamente.
Ele deu a descarga e encostou-se contra a parede, sentindo o suor frio na face. Por um momento terrível no tribunal, sentira o horror do que as insinuações de Highsmith poderiam causar-lhe. Era preciso, apenas, haver alguns jurados ingénuos com antipatia pela polícia e não apenas Hawkin sairia livre dali, mas afundaria sua carreira ao fazê-lo. Era uma ideia inconcebível, o tipo de coisa que vem à mente em um pesadelo às três da madrugada e que revira os intestinos. Tinha dado seu pescoço à guilhotina neste julgamento. Agora, pela primeira vez, percebia que podia ter-se tornado o agente de sua própria destruição. Não era de admirar que Carver tivesse sido tão magnânimo em sua insistência para que assumisse o caso sozinho. Na verdade, nem era o caso de lhe terem dado um cálice com veneno. Ele mesmo o tomara para si, com toda gana e empenho.
Mas o que mais poderia ter feito? Mesmo ali, de pé e com a garganta ardendo com o odor de água sanitária que o fazia lacrimejar, George sabia que nunca houvera qualquer escolha naquele caso.
Ao sair dali, Clough o esperava, com o cigarro pendurado, como sempre, em um canto de sua boca.
- Conheço um bar bem legal na estrada para Ashbourne - disse. - Vamos tomar um trago a caminho de casa.
Este era um tenente dos bons, pensou George.
O julgamento
Durante o resto da semana, George sentou-se no fundo da sala do tribunal, sempre se esforçando para chegar alguns minutos após o início de cada sessão e saindo tão logo o juiz dava por encerrados os trabalhos. Sabia que estava sendo ridículo, mas não conseguia escapar da ideia de que todos o olhavam, porque imaginavam se era corrupto ou, pior ainda, porque já haviam decidido que sim. Detestava a ideia de ser tomado por um daqueles policiais que decidiam incriminar alguém, mesmo sem provas. Ainda assim, não conseguia deixar de vir.
No terceiro dia de julgamento, as testemunhas de Scardale começaram a ser ouvidas. Charlie Lomas conseguiu repetir seu desempenho tranquilo, impressionando o júri com seus modos francos e sua infelicidade óbvia pelo desaparecimento da prima.
A seguir, Mamãe Lomas foi ao reservado das testemunhas, vestida para a ocasião com um casaco preto desbotado com um ramo de urze enfiado na gola. Ela admitiu que seu nome era Hester Euphemia Lomas. Estava claro que não sentia nem temor nem deferência pelo ambiente em que estava, respondendo aos dois advogados precisamente como teria feito com George, no conforto de sua própria sala. Ela insistiu em pedir uma cadeira e um copo de água, mas depois ignorou ambos. Stanley tratou-a com cortesia exagerada, que foi recebida com total indiferença.
- E a senhora está absolutamente certa de que era o senhor Hawkin cruzando o campo? - indagou Stanley.
- Uso óculos apenas para ler - disse a velhota. - Ainda consigo distinguir um gavião de um falcão a cem metros de distância.
- Como pode ter tanta certeza de que o dia era quarta-feira?
- Porque foi o dia em que Alison desapareceu - disse ela, parecendo irritada. - Quando algo assim acontece, tudo o mais que aconteceu naquele dia se fixa na memória.
Stanley obviamente não encontrou nada para argumentar, ante esta declaração, limitando-se a repassar o conhecimento da testemunha sobre a mina de chumbo, com base no livro que ela vira no estúdio do Solar Scardale.
- Era hábito do antigo proprietário das terras, o senhor Castleton contar-lhe histórias sobre o vilarejo?
- Ah, sim - disse ela, em tom casual. - Conhecia-o desde que era pequeno. Ele nunca foi arrogante com o povo do vilarejo, não aquele dono do solar. Sentávamos com frequência para conversar, ele e eu. Sempre dizíamos que, quando morrêssemos, metade da história do vale seria enterrada conosco. Ele sempre insistia para que eu escrevesse tudo o que ouvia, mas nunca dei importância a coisas assim.
- Mas foi assim que a senhora descobriu onde poderia encontrar o livro?
- Isso mesmo. Olhamos aquele livro, juntos, várias vezes. Eu já o conhecia de cor e foi fácil encontrá-lo.
- Por que a senhora não mencionou a antiga mina de chumbo à polícia desde o início das investigações? - perguntou Stanley, dando à questão um tom informal.
Ela coçou sua têmpora com um dedo encaroçado pela artrite.
- Não sei muito bem. Às vezes, esqueço que nem todos conhecem o vale como eu. Muitas vezes, durante a noite, tenho imaginado se teria feito diferença para a pobre Alison se eu tivesse mencionado a mina de chumbo para o inspetor Bennett na noite em que ela desapareceu. - Ela suspirou. - A dúvida me tortura.
- Não tenho mais perguntas a fazer, senhora Lomas, mas meu colega, o senhor Highsmith, precisará esclarecer algumas dúvidas. Quer, por favor, aguardar aí mesmo? - Stanley curvou-se levemente em respeito à matriarca, antes de voltar a sentar-se.
Desta vez, Highsmith esperou um pouco antes de se levantar.
- Senhora Lomas - começou. - Deve ser difícil ver o sobrinho de seu velho amigo como réu, hoje.
- Nunca pensei que ficaria contente porque o velho Castleton morreu disse ela, em voz baixa. - Isso teria partido seu coração. Ele amava Alison como se fosse sua própria neta.
- É mesmo? Bem, se não for pedir muito, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Ela levantou a cabeça e George, sentado no fundo da sala, percebeu o brilho travesso em seu olhar. Ele estremeceu, prevendo o que viria.
- Não tenho nada contra perguntas - retrucou a mulher. - Sempre é bom falar a verdade. Não tenho nada a temer com suas perguntas. Pode ir em frente.
Highsmith pareceu momentaneamente surpreso. As respostas dóceis da velhinha a Stanley não o haviam preparado para o humor combativo de Mamãe Lomas.
- Como a senhora pode ter certeza de que era o senhor Hawkin quem cruzava o campo naquela tarde?
- Como posso ter certeza? Porque eu o vi. Porque eu o conheço. Conheço sua aparência, o modo como caminha, as roupas que usa. Não podia confundi-lo com ninguém de Scardale - disse ela, indignada. - Posso ser velha, mas não sou estúpida.
Risos abafados foram ouvidos no banco da imprensa e sorrisos discretos podiam ser vistos no contingente de Scardale. Mamãe Lomas trataria de mostrar o que era bom àquele advogado londrino.
- Isso é óbvio, madame - falou Highsmith.
- Não me venha com essa de madame", rapazinho. Mamãe já basta. Highsmith piscou com força. A ponta de seu lápis quebrou contra o bloco de papel que segurava.
- Voltando ao livro no estúdio do solar. A senhora diz que sabia exatamente onde estava?
- Bem lembrado, rapaz - disse ela, azeda.
- E estava onde deveria estar?
- E onde mais poderia estar? É claro que estava onde deveria. Highsmith atacou:
- Ninguém mexeu nele?
- É claro que não posso saber disso. Como poderia? Não teria sido difícil recolocá-lo no lugar certo. As prateleiras estão cheias. Quando se tira um livro de uma estante assim, fica uma lacuna. Depois a gente coloca no mesmo lugar. É automático - falou, com desdém.
Highsmith sorriu.
- Mas não havia sinal de que alguém fez isso. Obrigado, senhora Lomas.
O juiz inclinou-se para a frente.
- A senhora pode ir.
Ela voltou-se para Hawkin e lançou-lhe um sorriso de puro triunfo. George sentiu-se aliviado porque ela estava de costas para o júri.
- Sei que posso ir - comentou. -Já ele não pode dizer o mesmo, não é? - Ela desfilou pela sala do tribunal como a respeitável e honrada figura que era em sua aldeia e acomodou-se em uma cadeira que foi desocupada especialmente para dar-lhe lugar, no meio de seus parentes.
O dia seguinte foi tomado por uma variedade de especialistas que poderiam dar seu testemunho sobre determinados aspectos do caso. O alfaiate de Hawkin viajara de Londres até ali para confirmar que a camisa manchada encontrada no laboratório fotográfico era uma dentre várias que o réu havia mandado fazer sob medida, menos de um ano antes. Um assistente de uma farmácia revelou que vendera a Philip Hawkin dois rolos de esparadrapo, que correspondiam tanto àquele encontrado no focinho da cadela de Alison quanto ao curto pedaço que fora usado para grudar a chave do cofre sob a gaveta, no estúdio.
Um datiloscopista revelou que as impressões digitais de Philip Hawkin estavam nas fotografias e nos negativos encontrados no cofre. Entretanto, não havia digitais na Webley e fora impossível colher digitais na capa do livro sobre a antiga mina de chumbo.
A última testemunha do dia foi o especialista em armas de fogo. Ele confirmou que um dos projéteis encontrados na caverna havia sido claramente identificado como uma bala calibre .38, disparada do revólver que Ruth Cárter encontrara escondido no laboratório fotográfico do marido.
Durante todo este testemunho, Highsmith perguntou pouco, exceto para tentar demonstrar que talvez houvesse outras explicações para todas as declarações feitas pela promotoria. De acordo com ele, qualquer um poderia ter obtido uma camisa pertencente a Hawkin. Podiam ter roubado uma do varal do solar. Hawkin poderia não ter comprado o esparadrapo para si, mas por pedido de outra pessoa. É claro que suas digitais estavam nas fotos e nos negativos, pois haviam sido jogados na direção de Hawkin sobre a mesa da sala de interrogatório antes de serem colocadas em envelopes plásticos e mesmo antes de seu advogado chegar à delegacia. E a única pessoa que fizera qualquer ligação entre a arma e Hawkin, é claro, havia sido sua esposa, tão desesperada para encontrar uma explicação para o desaparecimento da filha que poderia voltar-se até contra seu marido.
O júri pareceu imperturbável, sem dar indícios de sua reação às explicações do defensor do réu. No fim do terceiro dia, o tribunal entrou em recesso até a manhã seguinte.
Na manhã de sexta-feira, a mente de George viu-se forçada a sair de suas próprias preocupações. Uma matéria publicada no Daily Express angustiou-o:
Cães farejadores unem-se às buscas por menino perdido
Oito policiais com dois cães farejadores vasculharam hoje as cercanias da estrada de ferro, matagais e prédios abandonados, em busca do menino míope Keith Bennett, que desapareceu de sua casa há quase três dias.
Segundo um dos policiais, "Se não o encontrarmos hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu. Não suspeitamos de crime ainda, mas não descobrimos razão para seu desaparecimento".
Keith, de 12 anos, que reside na rua Eston, em Chorlton-on-Medlock, Manchester, desapareceu terça-feira à noite, a caminho da casa da avó.
Sua casa fica em uma área de Manchester na qual vários homicídios já ocorreram e pessoas desaparecidas ainda não foram localizadas.
Menino caseiro
Os óculos de lentes grossas e com uma das lentes rachada, sem os quais o menino tem dificuldade para enxergar, foram deixados em casa.
A mãe de Keith, Winifred Johnson, 30 anos, tem cinco outros filhos e espera o sétimo para daqui a duas semanas. Hoje, ela chorou enquanto falava sobre o filho desaparecido, dizendo: "Ele nunca fez nada parecido antes. É um menino caseiro, e mal pode ver sem seus óculos."
A avó do garoto, Gertrude Bennett, 63 anos, que reside na rua Morton, em Longsight, Manchester, disse: "Não conseguimos comer, dormir ou viver normalmente, preocupados com ele."
A equipe de buscas é formada por um sargento, cinco policiais e dois adestradores de cães. Eles vasculham uma área em um raio de dois quilómetros em torno da casa de Keith.
George ficou olhando para o jornal. O pensamento de outra mãe passando pelo que Ruth Cárter vivia era algo que o torturava. Contudo, em um canto de sua mente, não podia evitar a ideia de que, se tinha de acontecer, não poderia ter sido em um momento mais oportuno. Para qualquer jurado que lesse o jornal, a aflição de Winifred Johnson apenas reforçava a agonia de Ruth Cárter e diminuía qualquer inclinação que alguém tivesse para acreditar em Hawkin.
Uma súbita onda de vergonha envolveu-o. Como podia ser tão cínico? Como podia chegar a pensar em explorar o desaparecimento de outra criança? Enojado consigo mesmo, George amassou o jornal e jogou-o na lata de lixo.
Naquela tarde, enquanto subia as escadas rumo à sala do tribunal, viu uma figura conhecida esperando junto à porta. Impecável em seu uniforme de representação, o superintendente Martin ocupava-se com suas luvas pretas de pelica, mas levantou a cabeça ao perceber que George se aproximava.
- Inspetor - disse, como cumprimento, com expressão impenetrável. - Uma palavrinha, por favor.
George seguiu-o por um corredor lateral até uma pequena sala com cheiro de suor e cigarros. Ele fechou a porta e aguardou.
Martin acendeu um de seus cigarros sem filtro e disse, sem preâmbulos:
- Quero-o de volta ao trabalho semana que vem.
- Mas, senhor... - protestou George. Martin levantou a mão, interrompendo-o.
- Eu sei, eu sei. A promotoria deve terminar hoje, e então será a vez da defesa, semana que vem. E é exatamente por isso que eu o quero em Buxton novamente.
George ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de seu comandante.
- Este caso é meu, senhor.
- Sei disso, mas você sabe tão bem quanto eu o que Highsmith pretende fazer. Ele não tem escolha. E eu não pretendo deixar que um dos meus homens sente-se em um tribunal e assista enquanto seu caráter é aviltado por algum advogado esperto que não se importa com o dano que causa a um homem decente. - O rubor que denunciava emoção subia pelo pescoço de Martin e ele começou a andar de um lado para outro.
- Com todo o respeito, senhor, eu posso suportar tudo o que Highsmith lançar contra mim.
Martin parou de andar e fitou-o.
- Você acha mesmo? Bem, ainda que seja verdade, não pretendo deixálo à mercê da imprensa. Se você não se importa em proteger-se para seu próprio bem, faça isso por sua esposa. Já será bastante ruim, para ela, ler as matérias que o acusam de todo tipo de coisa, sem precisar ver fotografias do marido esquivando-se a todo momento, fugindo da imprensa como se fosse o réu.
George correu a mão pelos cabelos.
- Tenho direito a uma licença.
- E eu me recuso a dá-la - respondeu Martin, rapidamente. - Você ficará longe de Derby até o fim deste julgamento. Isto é uma ordem.
George virou-se de costas e acendeu um cigarro. Era difícil não ver a ordem de seu superior como um castigo dos deuses por sua reação ao desaparecimento de Keith Bennett.
- Deixe-me, pelo menos, comparecer no dia do veredicto - disse em voz baixa e quase incompreensível.
O professor John Patrick Hammond recitou as qualificações que o tornaram um dos peritos mais conhecidos no norte da Inglaterra. Seu nome ia lado a lado com os de Rernard Spilsbury, Sydney Smith e Keith Simpson na imaginação do público, como um dos poucos homens que conseguiam aplicar seus conhecimentos científicos a traços quase imperceptíveis e extrair deles provas incontroversas de culpa. Pritchard, da promotoria pública, insistira em trazer um perito de renome para o caso.
- Quando temos tão pouco com que contar, precisamos usar o talento dos mestres - dissera ele, e o superintendente Martin concordara.
Hammond era um homem miúdo e preciso, cuja cabeça parecia grande demais para o corpo. Ele compensava sua aparência vagamente ridícula com um porte solene e portentoso. Os jurados o adoravam, porque ele conseguia traduzir o jargão científico em linguagem popular compreensível sem jamais parecer que lhes fazia uma concessão. Stanley tivera o bom senso de fazer o mínimo de perguntas, permitindo que Hammond se expandisse à vontade.
Hammond certificou-se de que os jurados entenderiam os pontos principais de suas explicações. O sangue na árvore do arvoredo, nas roupas íntimas rasgadas encontradas na caverna e na camisa manchada vinha de uma mulher com tipo sanguíneo O, que era o de Alison. A quantidade de sangue na camisa era consistente com um ferimento grave. O sémen na camisa fora depositado por alguém com tipo sanguíneo A. O acusado tinha sangue do tipo A.
Ele também explicou que exames de laboratório haviam revelado que pontos chamuscados na camisa eram totalmente consistentes com o disparo de uma arma perto do tecido. Hammond demonstrou isso segurando a camisa contra o próprio corpo. George olhou para Ruth Cárter e viu-a esconder a cabeça entre as mãos. Kathy Lomas passou um braço em torno de seus ombros e puxou-a contra si.
- Como pode ver, meritíssimo - explicou Hammond -, há partes chamuscadas no punho direito e também no lado direito da camisa, na frenteSe alguém usando esta camisa segurasse um revólver próximo ao alvo, isto é exatamente o que esperaríamos encontrar. Não há outra explicação consistente com a apresentação dos resíduos e manchas que encontramos.
Highsmith levantou-se para interrogar a testemunha sentindo-se um pouco frustrado. Até aqui, este caso não estava sendo um dos melhores desempenhos em sua vida. Havia muito pouco em que se agarrar, e mesmo assim tudo era muito frágil. Aqui, pelo menos, havia algo concreto para atacar.
- Professor Hammond, pode dizer-nos que porcentagem da população tem sangue do tipo A?
- Aproximadamente quarenta e dois por cento.
- E que porcentagem da população é formada de homens cujo grupo sanguíneo está presente em suas outras secreções corporais?
- Aproximadamente oitenta por cento.
- Desculpe-me, a matemática nunca foi o meu forte. Que porcentagem da população é formada por secretores do tipo A?
As sobrancelhas de Hammond subiram e baixaram.
- Cerca de trinta e três por cento.
- Assim, tudo o que podemos dizer é que essas manchas de sémen poderiam ter sido deixadas por um terço da população masculina deste país?
- Correto.
- De modo que, em vez de apontar especificamente para meu cliente, o melhor que se pode dizer é que esses testes não o eliminam como suspeito. - Não era uma pergunta, e Hammond não respondeu. - Quanto à camisa manchada. Há algo que possa indicar que o acusado era a pessoa que a usava, quando o tiro foi disparado?
- Em termos forenses, não. - Hammond parecia relutante, como sempre fazia quando forçado a admitir que sua ciência não podia responder a todas as perguntas.
- Assim, qualquer um poderia estar usando a camisa?
- Sim.
- E a pessoa que a usava não precisaria ter sido aquela que depositou o sémen nas outras peças de vestuário?
Hammond fez uma pequena pausa.
- Considero bastante improvável, mas suponho que seja possível.
- A quantidade de sangue nas outras peças de vestuário era significativamente menor. Isto seria consistente com a espécie de sangramento que pode ocorrer quando o hímen é rompido?
- É impossível ter certeza. Algumas mulheres perdem um volume considerável de sangue quando perdem a virgindade. Outras simplesmente não sangram. Contudo, se as manchas de sangue na camisa tivessem esta origem, então a mulher estaria tendo uma hemorragia de proporções potencialmente fatais.
- Ainda assim, não havia sangue na suposta cena do crime. Certamente, se alguém tivesse recebido um tiro fatal naquela caverna, haveria sangue por toda parte? Empoçado no chão, respingado nas paredes ou no teto, não é? Como é possível não haver sangue, exceto o que vemos nas várias peças de roupa?
- Está me pedindo que faça especulações? - perguntou Hammond, vividamente.
- Estou perguntando se, em sua experiência, seria possível alguém receber um tiro fatal em uma caverna sem que o lugar apresentasse manchas de sangue - disse Highsmith, pronunciando as palavras com lentidão e clareza.
Hammond franziu a testa e pensou por um momento, voltando os olhos para cima ao recorrer à memória. Finalmente, respondeu:
- Sim, seria possível.
O rosto de Highsmith fechou-se, mas, antes que pudesse falar, o perito continuou:
- Se, por exemplo, a menina foi mantida perto e a arma estivesse enfiada sob suas costelas. Uma bala que faça uma trajetória para cima destruiria o coração, mas poderia muito bem alojar-se atrás da omoplata. Se não houvesse um ponto de saída do projétil não haveria um esguicho de sangue. E se ela fosse mantida perto do atirador, o esguicho de trás seria absorvido na mancha maior que vimos na camisa.
Highsmith recuperou-se rapidamente:
- Portanto, de todas as situações possíveis para este suposto homicídio, o senhor pode citar apenas uma que explicaria a ausência de sangue no local?
- Sempre supondo que a menina foi morta na caverna? Sim, esta é a única explicação que posso dar.
- Uma possibilidade em dúzias, centenas, talvez. Não é o que se poderia chamar de um cenário provável, então?
- Não sei dizer-lhe - disse Hammond encolhendo os ombros.
- Obrigado, professor. - Highsmith sentou-se. Conseguira mais do que esperava e tinha certeza de que poderia confundir os jurados com os detalhes científicos, de modo que, na dúvida, a absolvição seria a única opção.
- Isto conclui o caso para a promotoria - anunciou Stanley, enquanto o professor Hammond juntava seus papéis e saía do reservado de testemunhas.
- Entraremos em recesso até a semana que vem - anunciou Sampson.
O julgamento
Manchester Guardian, segunda-feira, 22 de junho de 1964
Nova pista no caso do menino desaparecido
Ontem à noite, a polícia mudou o local das buscas por um menino quase cego desaparecido há cinco dias, depois que um de seus colegas de escola afirmou: "Ele contava vantagem, dizendo que tinha um esconderijo supersecreto em algum lugar por aí."
As buscas foram transferidas da periferia da casa de Keith Bennett, de 12 anos, na rua Eston, em Longsight, Manchester, para o matagal próximo.
O porta-voz da polícia disse: "O menino pode estar em algum esconderijo, com um suprimento de comida suficiente para alguns dias. Onde quer que seja, o esconderijo é secreto mesmo."
A Rússia admitiu que seus satélites espaciais poderiam espionar inimigos. Um ataque cardíaco deu fim à liderança de Nehru na índia. O novo líder da Rodésia, Ian Smith, ameaçava a independência unilateral em relação à GrãBretanha. The Searchers e Millie and the Four Pennies chegavam aos primeiros lugares entre os mais vendidos nas lojas de discos. Contudo, ao ler o jornal, George só prestava atenção nas matérias sobre o julgamento de Philip Hawkin. Ele tentara manter os jornais longe de Anne, mas ela ia à banca próxima todos os dias e comprava seus próprios exemplares. Já que precisava conviver com as esposas de outros policiais, ela queria saber o que diziam sobre seu marido, para poder defendê-lo se alguém fosse tolo o bastante para romper com a solidariedade de todos na polícia, sob pressão.
A única testemunha de defesa, além do próprio Hawkin, era seu expatrão, que ofereceu um depoimento neutro e inócuo sobre seu ex-funcionário. Não se podia dizer que tentara defender o réu ardorosamente, mas o homem tivera a boa vontade de ir até ali para dizer que nunca ouvira nada que depusesse contra Hawkin.
Quando Hawkin foi conduzido até o banco dos réus, começou o barulho. As manchetes do dia seguinte diziam: "A POLÍCIA ARMOU PARA MIM", AFIRMA ACUSADO DE HOMICÍDIO. AS PROVAS APRESENTADAS NO JULGAMENTO FORAM FABRICADAS. "MENTIRAS E MAIS MENTIRAS", DIZ O RÉU. "O ASSASSINO DE ALISON AINDA ESTÁ EM LIBERDADE", DISSE ELE AOS JURADOS.
George sentou-se em seu gabinete e olhou com amargura para as manchetes à sua frente. Não importava se amanhã o jornal serviria apenas para embrulhar peixes no mercado. A lama já havia sido lançada e parte dela sujaria sua reputação para sempre. Independentemente de como este caso terminasse, ele pretendia pedir transferência.
Hawkin tivera um desempenho sensacional no banco dos réus, protestando sua inocência a cada oportunidade possível, e Highsmith lhe dera muitas brechas para fazer isso. Para cada prova apresentada pela promotoria ele encontrara uma refutação, algumas mais convincentes que outras. Falara com aparente sinceridade e encarara os jurados o tempo todo, parecendo não ter nada a esconder.
Hawkin chegara a admitir a posse da Webley, mas não que a roubara da casa de Richard Wells. Sua versão era de que a comprara de um ex-colega de trabalho, convenientemente já falecido. Segundo sua confissão sem um pingo de constrangimento, sempre desejara ter uma arma, e o homem já a havia oferecido, mesmo antes de ele tomar conhecimento do roubo na casa do vizinho. Depois, ao perceber que mantinha o produto do roubo consigo, tivera medo de revelar a verdade, porque talvez suspeitassem que ele mesmo invadira a casa de Wells para roubá-la. E, sim, ele mostrara a arma à esposa. Agora, sentia um remorso profundo pelo modo como se comportara. De acordo com os jornais, seu testemunho parecia o de alguém sem culpas. Hawkin afirmara, várias vezes, que embora tivesse sido traído pela polícia, ainda tinha fé na justiça e no bom senso do júri.
- Está fazendo o papel de bom moço - gemeu George, lendo a extensa reportagem escrita por Don Smart no Daily News.
Clough enfiou a cabeça pela fresta da porta.
- Se quer saber, ele está exagerando. Não há nada que os jurados detestem mais que a sensação de estarem sendo bajulados. Podemos adoçálos à vontade, desde que não percebam, mas Hawkin está sufocando a todos com tanta demonstração de boa-fé.
- Bela tentativa, Tommy. - George suspirou. - Gostaria de estar lá hoje para ouvir a inquirição de Stanley.
- Acho que ele se sairá melhor por saber que você não estará lá.
Manchester Evening News, quarta-feira, 24 de junho de 1964
Meninos desaparecidos e duas mães desesperadas
Da Redação
Duas mulheres de olhares tristes, que conhecem a agonia desesperadora de uma mãe que não sabe o paradeiro do filho, encontraram-se hoje em Ashtonunder-Lyne pela primeira vez.
Sheila Kilbride e Winifred Johnson sentaram-se a uma mesa na prefeitura de Ashton e conversaram sobre os garotos desaparecidos.
John Kilbride, que sumiu de casa em novembro do ano passado, estava com 12 anos, assim como Keith Bennett, de Chorlton-on-Medlock, Manchester, cuja mãe é a senhora Johnson. Keith desapareceu sete dias atrás.
Os dois são os primogénitos de grandes famílias. E ambos desapareceram sem deixar pistas.
"UM PESADELO"
As duas mulheres conversaram intimamente, com o ar de quem não podia acreditar no que lhes acontecera.
"Mesmo depois de todo este tempo, ainda é como um pesadelo", disse a mãe de John.
Segundo a senhora Kilbride, à medida que o tempo passava, ela teve de aprender a conviver com falsas esperanças e momentos de intensa ansiedade, sempre que um carro parava na frente de sua casa.
Contudo, as noites insones continuam, assim como os dias de profundo desespero.
Ela disse à mãe de Keith: "É preciso ir em frente. Nossa família também é grande, como a sua, e descobrimos que, nos últimos tempos, nem mencionamos muito o nome de John."
TROTES TELEFÓNICOS
A senhora Kilbride alertou a mãe de Keith quanto a trotes e brincadeiras de mau gosto, que só lhe trazem mais sofrimento.
"Aprendi a suspeitar de todos que me ligam", disse ela.
"Se dizem que são da polícia ou jornalistas, mas eu não os conheço, peço para ver suas credenciais."
A senhora Kilbride, casada com um operário da construção civil, tem sete filhos, incluindo John. A senhora Johnson, cujo marido é marceneiro desempregado, tem seis filhos e espera o próximo para o dia 5 de julho.
BUSCAS
A polícia ainda procura os dois meninos. A descrição de Keith já circulou por todo o país.
Um porta-voz de Manchester disse: "E claro que estamos preocupados com a segurança do garoto.
É um caso incomum, no sentido de que este rapazinho nunca saiu assim de casa antes e deixou seus óculos, sem os quais sua visão é péssima."
"Ele tinha apenas algumas moedas no bolso. Em geral, encontramos garotos assim rapidamente. Não temos pistas, mas estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance."
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; Desmond Stanley, promotor do Ministério Público, oferece seus argumentos finais ao júri, em favor da promotoria.
Senhoras e senhores do júri, eu gostaria de agradecer-lhe por sua paciência durante este difícil julgamento. É sempre doloroso contemplar a profanação da infância, como os senhores precisaram fazer, neste caso. Tentarei ser tão breve quanto possível, mas primeiro devo responder às insinuações feitas por meu douto amigo, durante a condução de sua defesa.
Os senhores viram e ouviram o testemunho ao detetiveinspetor George Bennett. Também viram e ouviram o acusado, Philip Hawkin. Agora, eu conheço o inspetor Bennett e sei que é um policial de integridade inatacável, mas, obviamente, os senhores não o conhecem pessoalmente, de modo que precisam basear-se nos fatos apresentados. A boa reputação do inspetor Bennett chegou a este tribunal antes mesmo de ele comparecer para seu depoimento. Ouvimos a senhora Cárter, esposa do réu, que o elogiou. Depois, escutamos enquanto a senhora Hester Lomas e o senhor Charles Lomas falavam com grande emoção sobre o apoio que o inspetor Bennett ofereceu às pessoas de Scardale que perderam um de seus membros queridos, e sobre seu compromisso incansável com a descoberta do que acontecera com Alison Cárter.
O senhor Hawkin, por outro lado, e de acordo com suas próprias palavras, é um homem que compra uma arma de fogo ilegal e a mantém em uma casa onde vivia uma adolescente.
Esses são os fatos, senhoras e senhores. Não conjecturas, mas fatos Apesar do que meu nobre colega insinuou, existem muitos outros fatos neste caso. É fato que Philip Hawkin possui um revólver Webley calibre 38 que foi disparado dentro de uma caverna isolada, onde foram descobertas roupas identificadas por Ruth Cárter como sendo de sua filha. É fato que Philip Hawkin possui um livro que descreve em detalhes a localização desta caverna cuja existência havia sido esquecida por todos, exceto por uma senhora idosa. É fato que o sémen encontrado nos farrapos das meias escolares de Alison Cárter poderia ser dele.
É fato, também, que a arma de Philip Hawkin estava embrulhada em uma camisa manchada de sangue e escondida em seu laboratório fotográfico, um anexo da casa em que ninguém, exceto o acusado, costumava entrar. É fato que a camisa pertence a ele. É fato que o sangue naquela camisa, a copiosa quantidade de sangue na camisa, poderia ter vindo de Alison Cárter. É fato que existe uma explicação perfeitamente razoável para a ausência de sangue na caverna.
Além disso, é fato que as fotografias obscenas e os negativos a partir dos quais foram impressas têm as impressões digitais de Philip Hawkin por toda parte, não as impressões do inspetor Bennett. É fato que algumas das fotografias foram batidas no quarto de Alison Cárter, não retiradas de alguma revista pornográfica. É fato que Philip Hawkin possuía todo o equipamento fotográfico necessário para tirar aquelas fotos e revelá-las. O inspetor Bennett pode ter uma câmera capaz de tirar aquelas fotos, mas ele não possui um laboratório fotográfico no fundo do quintal. Ele não possui bandejas para revelação, ampliadores, um estoque de papel fotográfico ou quaisquer dos outros utensílios necessários para perpetrar uma fraude tão elaborada. E, pensando bem, ele nem teria tempo para isso.
É fato que as fotos estavam bem escondidas em um cofre, cuja chave também estava escondida no estúdio de Philip Hawkin. É fato que Philip Hawkin instalou aquele cofre quando converteu o anexo em laboratório.
Fatos, senhoras e senhores, não faltam neste caso. Estes fatos são provas, e as provas apontam maciçamente para uma conclusão. Embora não exista um corpo, isto não significa que um crime não foi cometido. Talvez seja útil saberem que não estão sendo chamados a tomar uma decisão sem precedentes. Jurados já condenaram réus de homicídio quando o corpo da vítima ainda não havia sido encontrado. Se os senhores estão convencidos, com base nas provas apresentadas e em seu julgamento sobre os testemunhos prestados, de que os crimes de estupro e homicídio foram cometidos contra Alison Cárter pelo acusado, então é preciso cumprir seu dever e apresentar um veredicto de culpado.
Como eu já lhes disse, há um claro padrão nos acontecimentos deste caso e ele aponta inescapavelmente para uma conclusão. Philip Hawkin chegou a Scardale com poder e riqueza à sua disposição pela primeira vez em sua vida. Pela primeira vez em sua vida, ele conseguiu ver a perspectiva de dar vazão ao seu apetite pervertido por meninas jovens.
Para disfarçar suas reais intenções, ele cortejou Ruth Cárter, uma mulher que enviuvara seis anos antes. Ele não apenas mostrou-se persuasivo e atencioso, mas parecia bastante tranquilo ante a perspectiva de assumir a filha de outro homem. No íntimo, ele não estava tranquilo; estava em êxtase, ao pensar no que poderia ter se pudesse persuadir a mãe de que estava interessado por ela, não por sua garotinha bonita. Ele conseguiu. E foi aí que a infância de Alison Cárter terminou.
Ao tornar-se enteada de Philip Hawkin, ela também tornou-se sua vítima. Vivendo sob o mesmo teto, não havia como fugir. Ele tirou fotos pornográficas da menina. Violou-a. Estuprou-a. Sodomizou a. Forçou-a a realizar sexo oral. Aterrorizou-a. Sabemos disso porque podemos ver com nossos próprios olhos, nas fotografias que não mostram sinais de terem sido forjadas e dão todos os indícios de serem reais. São ultrajantes, odiosas, degradantes e, sem sombra de dúvidas, um registro do que realmente aconteceu com Alison Cárter nas mãos de seu padrasto.
O que deu errado nunca saberemos, já que o acusado recusou a oportunidade de livrar a senhora Cárter de seu sofrimento e de nos contar como se livrou de sua filha e por que fez isso. Talvez Alison já tivesse suportado o bastante e tivesse ameaçado contar tudo à sua mãe ou a um outro adulto. Talvez ele tenha se cansado dela, e quisesse livrar-se do problema. Talvez um jogo sexual doentio tenha saído de seu controle. Seja qual for a razão - e não é difícil imaginar o motivo, em um caso tão bárbaro quanto este -, Philip Hawkin decidiu matar sua enteada. Assim, em uma caverna escura e úmida, ele estuprou-a uma última vez e, depois, puxou o gatilho de seu revólver Webley e assassinou esta pobre colegial de treze anos.
Depois, quando confrontado com sua maldade, teve a audácia de tentar safar-se manchando a reputação de um policial honesto.
Philip Hawkin deveria cuidar de Alison Cárter. Em vez disso, usou sua posição para explorá-la sexualmente e, então, quando algo deu errado matou-a. Depois, livrou-se do corpo, imaginando que, sem um corpo, não haveria julgamento e não poderia ser condenado.
Senhoras e senhores do júri, sejam orientados pelas provas e provem que este homem está errado em sua presunção. Philip Hawkin é culpado, e insisto que lhe dêem o veredicto apropriado neste julgamento.
O julgamento
Trechos da transcrição original do julgamento de Philip Hawkin; Rupert Highsmith advogado de defesa, faz seu pronunciamento final ao júri em favor de seu cliente.
Senhoras e senhores do júri, sua tarefa é a mais importante deste tribunal. Em suas mãos está a vida de um homem acusado do estupro e homicídio de sua enteada. É tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que ele cometeu esses crimes. Minha missão é demonstrar todos os pontos em que a promotoria não provou a culpa de meu cliente. Acredito que, depois de ouvirem o que tenho a dizer, os senhores não poderão condenar Philip Hawkin por absolutamente qualquer crime.
A primeira coisa que a promotoria precisa comprovar é que realmente ocorreu um crime. Observem que este caso apresenta alguns problemas incomuns, desde o início. Não existe um queixoso. Alison Cárter está desaparecida, portanto incapaz de apresentar uma acusação de estupro, incapaz de identificar qualquer agressor - se houve um, já que a promotoria não conseguiu produzir qualquer terceira pessoa à qual Alison tivesse se queixado de um ataque sexual. Ninguém testemunhou o suposto estupro. Philip Hawkin não chegou em casa machucado e sangrando, como ocorreria se tivesse se envolvido em uma briga violenta. As fotografias são as únicas provas de estupro. Voltarei a elas daqui a pouco. Tudo o que direi, neste ponto, é que os senhores precisam ter em mente que câmeras podem mentir.
Os senhores poderiam pensar que a descoberta de roupas íntimas identificadas como pertencentes a Alison e manchadas com sangue e sémen são indicações de estupro. Não necessariamente. A atividade sexual assume muitas formas. Embora os senhores possam considerar repulsiva esta ideia as práticas sexuais incluem o uso de uniforme escolar por mulheres mais velhas, para satisfazer as fantasias masculinas. Elas também incluem a simulação de violência. Assim, por si mesmas, essas provas, na verdade, não provaram nada.
O que nos leva à segunda acusação, de homicídio. Novamente, não temos testemunhas. A promotoria foi incapaz de encontrar uma única pessoa que pudesse dizer que Philip Hawkin é um homem violento. Nem uma única testemunha apresentou-se para dizer que o relacionamento de Hawkin com sua enteada era qualquer coisa além de normal. Não apenas não temos testemunhas, mas também não temos um corpo. Não apenas não temos um corpo, mas também não temos sangue na suposta cena do crime. O primeiro tiro na história da ciência forense que não deixou traços no local em que supostamente aconteceu. Por tudo que sabemos, Alison Cárter pode ser uma fugitiva, sobrevivendo de algum modo à margem da sociedade. Na ausência de sangue, na ausência de um corpo, como podem acusar Philip Hawkin de homicídio? Como ousam acusá-lo de homicídio?
Tudo o que a promotoria tem é uma corrente feita de provas circunstanciais. Sabemos muito bem que a força de uma corrente vai apenas até onde podemos comprovar a força de cada um de seus elos. O que podemos pensar, portanto, de uma corrente que consiste unicamente de elos fracos? Examinemos as provas, uma por uma, e comprovemos sua fragilidade. Estou convencido de que após este exame os senhores considerarão impossível condenar Philip Hawkin por qualquer desses dois crimes horríveis dos quais é acusado.
Os senhores ouviram duas testemunhas que disseram que, na tarde do desaparecimento de Alison, viram Philip Hawkin nos campos, entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo onde, posteriormente, foram encontrados sinais de luta. Não estou sugerindo, por um momento sequer, que uma das testemunhas ou ambas estejam mentindo. Acho que ambas estão convencidas de que estão dizendo a mais pura verdade.
Entretanto, sugiro que, em uma pequena comunidade rural como Scardale, todas as noites de inverno são muito parecidas umas com as outras. Não seria difícil confundir terça-feira com quarta-feira. Tenham em mente que todos, em Scardale, sentiram-se intrigados e abatidos pelo desaparecimento de Alison Cárter. Se alguma autoridade, como um policial, sugerisse vigorosamente que foi cometido um engano, e que a correção deste engano ajudaria a resolver o mistério, será que nos surpreenderíamos se as testemunhas seguissem tal sugestão? Especialmente se isso ajudasse a colocar a culpa sobre alguém estranho à comunidade fechada, em um homem visto por todos como um forasteiro? Que tal o novo proprietário das terras, por quem todos sentiam antipatia, Philip Hawkin? Não podemos esquecer que, se Philip Hawkin for enforcado, Scardale e tudo nela será herdado por sua esposa, estimada por seus parentes residentes na aldeia.
A seguir, chegamos à própria senhora Hawkin. Embora ela deseje o contrário, ainda carrega o sobrenome do marido. Os senhores poderiam pensar que o próprio fato de ela dispor-se a testemunhar contra o marido já diz tudo. Afinal, o que poderia induzir uma esposa com um casamento de menos de dezoito meses a apoiar a condenação do marido, exceto provas muito convincentes? Será que não podemos inferir algo sobre o acusado, a partir do fato de ela ter testemunhado contra ele, quando as provas da promotoria são tão fracas?
Não, senhoras e senhores. O que seu testemunho nos diz é que não há nada mais forte para uma mulher que o vínculo da maternidade.
A filha da senhora Hawkin desaparece na quarta-feira, 11 de dezembro. Ela está completamente desesperada. Perplexa. A única pessoa que parece oferecer-lhe alguma esperança é um jovem detetive-inspetor que mergulha no caso com paixão e muito envolvimento. Ele está sempre lá. É solidário e dedicado. Mas não está chegando a lugar nenhum. No fim, ele forma uma suspeita de que o marido desta mulher pode estar envolvido no desaparecimento de Alison. Assim, mostra-se determinado a estabelecer sua teoria como fato. Imaginem o que isto causa a uma mulher no estado de fragilidade em que se encontra a senhora Hawkin. Claro que ela está suscetível a sugestões, e o que o detetive lhe diz faz muito sentido, porque ela deseja respostas. Ela quer dar um fim à sua incerteza. É melhor culpar seu marido que viver em temor constante pelo que pode ter acontecido com sua filha.
Além disso, os senhores devem tratar as provas apresentadas pela senhora Hawkin com extremo ceticismo.
Quanto às chamadas provas físicas, nenhuma delas, isoladamente, aponta para Philip Hawkin. Algo em torno de seis milhões de homens no país têm o mesmo grupo sanguíneo de Philip Hawkin e daquele que deixou manchas de sémen na mina de chumbo. De que maneira isso apontaria para ele? Existem quatrocentos e vinte e três volumes no estúdio do antigo proprietário de Scardale, Castleton, e nenhum sinal de que o único livro que oferece detalhes sobre a mina de chumbo tenha sido tocado por qualquer mão, incluindo as de Hester Lomas ou do detetive-inspetor Bennett. Como isso pode apontar meu cliente como culpado de algo? O farmacêutico de Buxton vende entre vinte e trinta rolos de esparadrapo todas as semanas, dois dos quais foram vendidos a Philip Hawkin, que mora em uma comunidade rural, na qual cortes e escoriações dificilmente seriam novidade. Como isso poderia apontá-lo como estuprador ou assassino?
A verdade é que nada disso aponta para meu cliente. Contudo, embora sejam frágeis, não podemos negar que, quando colocadas em um lado da balança, as provas pendem para o lado do senhor Hawkin. Assim, se não foi seu comportamento que produziu este efeito, o que o produziu?
Há um aspecto, na profissão de advogado, que todos detestamos. Embora a vasta maioria dos policiais seja honesta e incorruptível, de tempos em tempos algo dá errado. E de tempos em tempos cabe a nós expor as batatas podres. Em minha opinião, pior que o policial que muda para o lado errado da lei por ganância é aquele que toma a lei em suas mãos por zelo excessivo.
O que nos trouxe aqui hoje não foi a maldade de Philip Hawkin, mas o zelo excessivo do detetive-inspetor George Bennett. Seu desejo de solucionar o desaparecimento de Alison Cárter levou-o a perverter o curso da justiça. Não pode haver outra explicação para o que aconteceu. É realmente horrível ver o que um homem faz quando está cego por suas convicções, mesmo se completamente incorretas.
Quando examinamos as provas circunstanciais, torna-se claro que um homem teve motivos, meios e oportunidade para incriminar Philip Hawkin Ele é um policial jovem e inexperiente, frustrado por seu fracasso neste caso. Ele deve ter sentido a pressão de seus superiores e, assim, sua ânsia por encontrar um culpado e condená-lo só aumentou.
George Bennett ficou sozinho no estúdio do senhor Hawkin em mais de uma ocasião, certamente por tempo bastante para encontrar uma arma, examinar um livro, ou mesmo descobrir o esconderijo de uma chave de cofre. George Bennett tinha a confiança da senhora Hawkin e podia andar à vontade pelo Solar Scardale mesmo antes de ter um mandado de busca. Quem estaria em melhor condição para pegar uma das camisas do senhor Hawkin? Ele ganhou a confiança dos moradores da aldeia. Quem estaria em melhor posição para convencer a senhora Lomas e seu neto de que estavam enganados quanto ao dia em que viram o senhor Hawkin andando por suas próprias terras?
E, finalmente, temos as fotografias. George Bennett compartilha um passatempo com Philip Hawkin. Ele não tira apenas fotos de festas e férias com uma câmera qualquer, como a maioria de nós. Ele foi secretário do Clube de Fotografia de sua escola, escreveu artigos sobre aspectos da fotografia quando estava na faculdade e possui uma câmera do tipo que deve ter sido usado para manipular essas fotografias. Ele sabe o que é possível no mundo da fotografia. Ele sabe como forjar imagens. Philip Hawkin tem dúzias de fotografias de Alison em seus arquivos, muitas tiradas espontaneamente. Em algumas delas, a menina está irritada ou abatida. Ele também tem fotografias de si mesmo. Com materiais assim e acesso ao tipo de pornografia confiscada que muitas delegacias guardam, George Bennett poderia ter criado essas fotografias supostamente comprometedoras.
Na pior das hipóteses, nós revelamos uma terrível conspiração, fruto da convicção arrogante de um homem que sabia o que deveria fazer para impor a justiça ao seu modo. Na melhor, estabelecemos que o caso da promotoria certamente não foi provado além de qualquer dúvida razoável. Senhoras e senhores, coloco Philip Hawkin em suas mãos. Acredito, com firmeza e bom senso, que os senhores o absolverão das duas acusações. Muito obrigado.
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; resumo do Exmo. Juiz Fletcher Sampson para o júri.
Senhoras e senhores do júri, é tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que o acusado é culpado, de acordo com as acusações feitas a ele. É tarefa da defesa descobrir se existem fragilidades suficientes nas provas apresentadas pela promotoria que as tornem suscetíveis a dúvidas. Alguns dos senhores podem pensar que eu os ajudarei a decidir e lhes direi se, neste ponto, considero o réu culpado ou inocente. Entretanto, este não é meu papel. Esta é sua responsabilidade e os senhores não devem esquivar-se de sua obrigação. Meu papel é cuidar para que haja um julgamento justo e, para garantir que a justiça seja feita, é meu dever resumir o caso e lhes aconselhar sobre algumas questões legais.
O caso à nossa frente é djfícil, principalmente em virtude da ausência de Alison Cárter, viva ou morta. Se estivesse viva, a segunda acusação, de homicídio, obviamente não existiria, mas ela seria a testemunha mais valiosa quanto à primeira acusação, de estupro. Se seu cadáver tivesse sido descoberto, nossos legistas saberiam extrair a história que teria para contar e nos ofereceriam provas em volume considerável. Contudo, ela não está aqui para nos dar seu testemunho e, portanto, somos forçados a confiar em outras fontes de provas.
Em primeiro lugar, devo dizer-lhes que a promotoria não precisa mostrar um corpo para haver suposição de homicídio. Homens já foram condenados por homicídio em crimes nos quais o cadáver jamais foi encontrado.
Eu lhes darei dois exemplos que, em alguns aspectos, correspondem a este caso.
Uma atriz, Gay Gibson, voltava de navio para casa, vindo da África do Sul para este país, quando outros passageiros perceberam sua ausência. Houve uma busca no navio, e o capitão chegou a ajudar. Contudo, a mulher não foi encontrada. As suspeitas caíram sobre o comissário de bordo, James Camb, porque um colega o vira na porta do camarote da senhora Gibson no meio da noite. Ele foi detido quando o navio aportou e confessou que estivera na cabine, mas a convite da atriz, para manter relações sexuais com ela.
Ele afirmou, ainda, que durante o intercurso ela sofreu um mal súbito e morreu. Durante este ataque, ela teve espasmos musculares e se agarrou a ele, arranhando suas costas e ombros. De acordo com a história contada pelo comissário de bordo, ele entrou em pânico e empurrou o cadáver pela janela, para o mar aberto. A promotoria argumentou que ele a estrangulou durante o estupro e que, se os acontecimentos tivessem ocorrido de acordo com seu relato, não haveria razão para deixar de buscar ajuda médica para a passageira, enquanto ela passava mal.
James Camb foi condenado por homicídio.
Temos, ainda, o caso de Michael Onufrejczyk, polonês condecorado por serviços prestados na Segunda Guerra. Ele se tornou fazendeiro na região de Gales, em sociedade com um outro polonês, Stanislaw Sykut. Uma visita policial de rotina aos imigrantes revelou o desaparecimento do senhor Sykut. Onufrejczyk afirmou que seu sócio havia vendido sua parte na fazenda e voltado ao seu país de origem.
Entretanto, durante as investigações, a polícia descobriu que nenhum dos amigos de Sykut ouvira falar deste plano. Sua conta bancária estava intocada, e o amigo que, segundo Onufrejczyk, lhe emprestara dinheiro para comprar a parte do outro na fazenda, negou que tivesse feito algo parecido. Investigações adicionais revelaram que os homens haviam discutido e ameaçado um ao outro. Manchas de sangue foram encontradas na sede da fazenda, sem uma explicação satisfatória para elas.
No julgamento, a promotoria afirmou que Onufrejczyk dera o corpo do sócio aos porcos, daí a ausência de qualquer traço de um corpo. Em seu julgamento, no apelo contra a condenação o próprio juiz indicou que era possível demonstrar o fato de morte por meios outros que não a presença de um cadáver.
Assim, senhoras e senhores, pela a lei deste país não é necessário que exista um corpo para que um júri chegue à conclusão de que houve um homicídio. Se os senhores foram convencidos pela promotoria de que as provas são suficientes e apontam inexoravelmente para uma conclusão, é seu direito e dever pronunciar o veredicto de culpado. Igualmente, se a defesa conseguiu abalar sua certeza, o veredicto deverá ser de inocente.
Agora, quanto às provas apresentadas neste caso...
O veredicto
George fingia ler um relatório sobre um arrombamento em uma mercearia quando o telefone tocou.
- Os jurados retiraram-se para deliberar - a voz tensa de Clough lhe disse.
- Estou a caminho - respondeu, batendo o telefone e levantando-se rapidamente. Agarrou seu casaco e chapéu e saiu correndo de seu escritório. Parou de correr apenas depois de se jogar atrás do volante de seu carro. Enquanto saía do estacionamento, viu de relance o superintendente Martin na janela de seu escritório e imaginou se ele também recebera o recado.
Ele zuniu pela cidade e pela antiga estrada romana que cortava os campos verdes e paredes de calcário encardidas como uma lâmina atravessando uma colcha de retalhos. Com seu pé firme no acelerador, o ponteiro do velocímetro foi até oitenta, passou pela marca dos cem e estabilizou-se perto dos cento e vinte quilómetros por hora. Sempre que algo aparecia à sua frente, um longo toque de buzina afastava o animal ou pessoa para a margem, dando-lhe passagem livre.
Ele não tinha olhos para a beleza simples da tarde de verão. Seu foco estava na estrada que se desdobrava à frente. Passou pelo cruzamento de Newhaven e foi forçado a reduzir a velocidade quando a estrada romana desapareceu, substituída por uma estradinha rural sinuosa, que o levou sacolejando para cima e para baixo nos montes, por conversões fechadas e através de séries de curvas que desafiavam a velocidade. Tudo em que Podia pensar era nos dez homens e duas mulheres reunidos na sala do júri. Finalmente, ele passou pela pequena cidade de Ashbourne com sua feira livre e a estrada abriu-se à sua frente.
Ele imaginou se os jurados já teriam chegado a uma decisão quando chegasse lá. Achava que não, sem saber por quê. Embora desejasse acreditar que fornecera balas suficientes a Stanley para metralhar Hawkin, sabia que parte delas havia sido desviada pela defesa feita por Highsmith.
Enquanto entrava na ruazinha lateral junto ao prédio da prefeitura que abrigava o tribunal, alguém saiu de uma vaga no estacionamento justamente ao lado da porta lateral, o que ele considerou como um bom presságio resmungando isso para si mesmo ao enfiar-se na vaga. Entrou apressado no prédio, estranhando encontrá-lo quase vazio. As portas da sala do tribunal estavam abertas e não havia ninguém, exceto por um servente que lia o Mirror, sentado em uma das cadeiras.
George foi até lá e perguntou:
- Os jurados ainda estão deliberando?
- Sim, senhor - disse o homem, levantando a cabeça. George correu a mão pelos cabelos.
- Sabe onde posso encontrar a equipe da promotoria? O homem franziu o rosto.
- Provavelmente estão no hotel Lamb and Flag, do outro lado da praça. A cantina está fechada. - Ele enrugou a testa. - Você esteve aqui semana passada - disse, em tom acusador. - É o inspetor Bennett.
- Sim, sou eu - disse George, desanimado.
- Seu colega esteve aqui hoje - continuou o servente. - Aquele que parece um varapau.
- Sabe aonde ele foi?
- Disse que, se eu o visse deveria transmitir o recado para encontrálo no Lamb and Flag. É o único lugar em que se pode ter certeza de saber quando os jurados voltaram, sabe?
- Obrigado - disse George sobre o ombro, já saindo pela porta da frente e cruzando a praça até a antiga taberna. Quase tropeçou nas pernas de Clough enquanto cruzava a entrada principal. O sargento-detetive estava estirado em uma cadeira florida na recepção, com uma dose generosa de uísque em uma das mãos e um cigarro queimando em um cinzeiro de pedestal próximo a ele.
- Espero que você não tenha ficado preso no trânsito - disse Clough, endireitando-se. - Puxe uma cadeira. - Ele fez um gesto na direção de meia dúzia de cadeiras semelhantes à sua que se amontoavam em torno de minúsculas mesas redondas, enchendo a pequenina área na frente do balcão da recepção. O tecido colorido, com suas rosas em tons chocantes, contrastava violentamente com o vermelho e o azul profundos do carpete Wilton tradicional, mas nenhum dos homens percebeu ou se importou com isso. George sentou-se.
- Como você conseguiu isso? - perguntou, apontando para o uísque. Eles só abrem daqui a uma hora, no mínimo.
Clough piscou-lhe um olho.
- Conheci a recepcionista quando trouxe Wells lá de St. Albans Quer um?
- Não poderia recusar.
Clough foi até o balcão de madeira envernizada e debruçou-se sobre o móvel. George ouviu murmúrios e, ao voltar, o sargento lhe disse:
- Ela já vai trazer uma dose.
- Obrigado. E como foi o encerramento lá no tribunal?
- Bastante equilibrado para os dois lados. Nada que vá causar repercussões na Corte de Apelações. O juiz apresentou as provas, com bastante imparcialidade. Ele o fez parecer uma donzela que caiu em tentação, em um minuto e, no minuto seguinte, disse que alguém devia estar mentindo neste caso, e que os jurados precisariam decidir quem. Ele discorreu longamente sobre a diferença entre dúvida extravagante e dúvida razoável. Os jurados pareciam bem preocupados quando saíram.
- Obrigado por vir.
- Foi bem interessante.
- Eu sei, mas é seu dia de folga. Clough encolheu os ombros.
- Sim, mas Martin não me proibiu de vir, proibiu? George abriu um largo sorriso.
- Apenas porque não teve essa ideia. Onde estão todos aqueles repórteres, por falar nisso?
- Estão no andar de cima, no quarto de Don Smart, com uma garrafa de uísque. Um dos jornalistas daqui tirou o palito mais curto quando decidiram quem faria plantão no tribunal e ligaria para os outros tão logo o júri voltasse. Os advogados estão em uma sala reservada. Jonathan Pritchard está andando de um lado para o outro, como um pai que espera o nascimento do filho.
George suspirou.
- Sei como ele se sente.
- E por falar nisso, como está Anne?
George levantou as sobrancelhas, enquanto acendia um cigarro.
- Chateada com o que lê nos jornais. Esses dias quentes também a deixam abatida. Ela diz que se sente como se carregasse um saco de batatas na barriga. - Ele mordeu nervosamente a pele junto à unha de seu polegar. - Entre a gravidez e este caso, acho que não sobrou um nervo inteiro em todo o meu corpo. - Levantou-se de um pulo, indo até a janela mais próxima. Olhando para a praça, perto do tribunal, disse: - O que farei se o absolverem?
- Mesmo se ele se livrar da condenação por homicídio, ainda o pegarão por estupro - disse Clough. - Ninguém acreditará que você falsificou as fotos, não importa o que Highsmith tenha tentado fazer com sua reputação. Acho que o pior que pode acontecer é decidirem que você se empolgou muito ao encontrar as fotos e decidiu enquadrar Hawkin também por homicídio.
- Mas Ruth Cárter encontrou a arma antes de eu descobrir as fotos - protestou George, olhando com indignação para Clough.
- "Isso é o que ele diz", os jurados devem estar pensando. Olhe, não importa o que eles achem, não darão a ele o benefício da dúvida na acusação de estupro. Você estava lá quando eles viram as fotos. Naquele instante, os jurados ficaram contra Hawkin. Acredite, estão morrendo de vontade de descobrir um modo de considerá-lo culpado de ambas as acusações.
Agora venha, pegue sua bebida. Sente-se aqui e pare de se preocupar. Está me deixando nervoso - acrescentou, tentando em vão animá-lo.
George foi até a mesa, pegou sua bebida e voltou para a janela, detendo-se para olhar distraidamente um quadro vitoriano de cores sombrias,
representando uma caçada.
- Há quanto tempo estão reunidos?
- Uma hora e trinta e sete minutos - respondeu Clough, com uma breve olhada para seu relógio. Subitamente, o telefone na recepção tocou. George virou-se e olhou para a jovem atrás do balcão.
- Recepção do Lamb and Flag - disse ela, entediada. Olhou para George. - Sim, é possível. Em nome de quem? - Ela fez uma pausa e examinou o livro de hóspedes. - Senhor e senhora Duncan. A que horas chegarão?
Com um suspiro de frustração, George voltou a olhar para o prédio da prefeitura.
- Nunca entendi por que os jurados demoram tanto - queixou-se. - Deveriam apenas votar e seguir a decisão da maioria. Por que a votação precisa ser unânime? Quantos criminosos saem livres do tribunal porque um jurado teimoso não se deixa ser persuadido? Essas não são as pessoas mais espertas do planeta, não é?
- George, pode ser que isso leve horas. Podem levar a noite inteira e todo o dia de amanhã. Então, por que você não se senta, toma sua bebida e fuma seus cigarros? De outro modo, nós dois terminaremos em algum hospital, com pressão alta - disse Clough.
George suspirou pesadamente e arrastou-se até a cadeira.
- Tem razão. Sei que você está certo, mas estou inquieto demais. Clough puxou um baralho do bolso de sua jaqueta.
- Você joga cribbage?
- Não temos um tabuleiro.
- Não seja por isso. Doreen? - chamou Clough. - Tem como nos arranjar o tabuleiro de cribbage lá do bar?
Doreen lançou os olhos para cima, na expressão universal e irritada de "Homens!", e, então, desapareceu por uma porta no fundo da área da recepção.
- Você a treinou bem - comentou George.
- Faça sempre com que elas desejem mais, é o meu lema. - Clough cortou o baralho e distribuiu as cartas. Doreen voltou e colocou o tabuleiro entre os dois. - Obrigado, amorzinho.
- Veja bem quem você chama de amorzinho! - disse ela, jogando os cabelos para um lado enquanto voltava rebolando para trás do balcão em saltos altos demais.
- Estou vendo - disse Clough, alto o suficiente para que ela ouvisse. Normalmente, aquilo teria divertido George, mas hoje servia apenas para irritá-lo. Ele forçou-se a se concentrar nas cartas em sua mão, mas sempre que o telefone tocava, saltava como um homem picado por uma abelha.
Jogaram em um silêncio tenso, quebrado apenas para anunciarem resultados e pelo som da pedra do isqueiro quando um dos dois acendia um cigarro. Às seis e meia, haviam fumado quase vinte cigarros ao todo e tomado quatro grandes doses de uísque cada um. Quando chegaram ao fim da partida de desempate, George levantou-se.
- Preciso de ar fresco. Vou dar uma volta na praça.
- Eu lhe faço companhia - disse Clough. Deixaram as cartas e os copos sobre a mesa, depois que Clough anunciou a Doreen que pretendiam voltar.
A noite de verão estava agradável, e o centro da cidade estava vazio agora, exceto por algum trabalhador ocasional que fizera serão. Ainda era cedo demais para aqueles que pretendiam pegar uma sessão de cinema, e os dois homens tinham a praça mais ou menos para si. Pararam junto a uma estátua de George II, apoiando-se contra a base, enquanto fumavam mais um cigarro.
- Nunca me senti tão tenso em toda a minha vida.
- Sei como se sente - Clough respondeu.
- Sabe? Você está tranquilo como um bicho-preguiça, Tommy - protestou George.
- É só pose, George. Por dentro, meu estômago também está dando voltas. Sou melhor que você na arte de esconder meu nervosismo, só isso. Sabe o que você disse antes, sobre não saber o que fará se Hawkin sair dessa? Bem, eu sei exatamente o que farei. Vou me demitir e arranjar um emprego que não me dê úlceras. - Ele atirou longe o toco de cigarro e cruzou os braços na frente do peito, a boca formando uma linha fina em seu rosto largo.
- Eu... não fazia ideia.
- O quê? Não sabia que isso me perturbava tanto? Acha que é o único que fica acordado à noite, imaginando o que aconteceu com Alison Cárter? - indagou Clough, em tom azedo.
George esfregou o rosto com as duas mãos, empurrando para trás os cabelos em desalinho.
- Não, acho que não.
- Ela não tem mais ninguém que lute em seu favor - disse Clough, com raiva. - E se ele sair dessa livre hoje à noite, teremos fracassado com a menina.
- Eu sei - murmurou George. - E sabe de outra coisa, Tommy?
- O quê?
George sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado.
- Não acredito que cheguei a pensar nisso, e menos ainda que posso dizer em voz alta, mas...
Clough aguardou. Depois perguntou:
- Chegou a pensar o quê?
- Quanto mais leio nos jornais que sou um policial corrupto que armou tudo para condenar Hawkin, mais fico pensando que talvez devesse ter feito mesmo tudo o que pudesse para deixar a coisa toda bem mais explícita - falou, com amargura. - Vê como tudo isso me abalou?
Antes que Clough pudesse responder, os dois perceberam uma saída em massa do Lamb and Flag, liderada pelos advogados, suas togas flanando à sua volta como asas negras, com a velocidade de seus passos. Atrás deles, os jornalistas precipitavam-se rumo às portas, alguns ainda vestindo seus paletós e enfiando os chapéus. Clough e George olharam-se, respirando fundo.
- É agora - sussurrou George.
- Lá vamos nós, chefe.
Subitamente, a rua fervilhava. Carters, Crowthers e Lomas vinham do oeste, onde o proprietário de um café percebera que podia lucrar um pouco mais se permanecesse aberto enquanto os habitantes de Scardale desejassem um chá ou batatas fritas. A mãe de Hawkin veio do sul, acompanhada do casal Wells, de St. Albans. Todos convergiram para a entrada lateral, onde o afunilamento forçou-os a uma proximidade incómoda. George poderia ter jurado que a senhora Hawkin aproveitara a oportunidade para lhe dar uma forte cotovelada nas costelas, mas já nem se importava com isso. De algum modo, todos passaram e tomaram seus assentos na sala do tribunal. Enquanto se ajeitavam como um bando de pássaros nas árvores da cidade ao pôr-do-sol, Hawkin foi trazido, entre os dois policiais que já haviam se colocado ao seu lado em cada dia do julgamento. Parecia melancólico e mais cansado que na semana anterior, na opinião de George. Hawkin olhou à sua volta e conseguiu dar um pequeno aceno para a mãe, na parte reservada ao público. Desta vez, não sorriu para George, enviando-lhe apenas um olhar frio e indecifrável.
Todos levantaram-se desajeitadamente para receber o juiz, resplandecente em seus trajes suntuosos de púrpura e arminho e o chefe de polícia Finalmente chegara o momento que todos temiam, cada um por suas próprias razões. Os jurados acomodaram-se, tendo o cuidado de não olhar diretamente para ninguém. George tentou engolir, mas sua boca estava seca. As pessoas acreditavam que, quando o júri evitava olhar para o acusado, este seria condenado. Sua própria experiência era que os jurados nunca olhavam para o réu ao voltarem para o veredicto. Qualquer que fosse a decisão, parecia que havia algo vergonhoso em julgar um outro membro qualquer da sociedade.
O representante eleito dos jurados, um homem de meia-idade com rosto estreito, bochechas rosadas e óculos de aro de tartaruga, permaneceu de pé quando os outros sentaram-se, com o olhar fixo no juiz.
- Membros do júri, chegaram a um consenso em seu veredicto? O representante dos jurados assentiu e respondeu:
- Sim.
- E o que decidiram a respeito da primeira acusação?
- Culpado.
Um suspiro coletivo pareceu percorrer o ar no grande salão. George sentiu que o nó em seu estômago começava a se desfazer.
- E da segunda acusação?
O representante dos jurados limpou a garganta, antes de responder:
- Culpado.
Um murmúrio crescente encheu o ar, como o zumbido de abelhas em torno da colmeia à noite. George não sentiu qualquer vergonha do seu prazer ao ver a expressão devastada de Hawkin. A cor desapareceu daqueles traços atraentes, deixando seu rosto tão sem vida quanto um desenho a bico-de-pena. Sua boca abriu-se e fechou-se, como se lutasse para sorver o ar.
George espiou a turma de Scardale, em busca de Ruth Cárter. Naquele momento, ela virou em sua direção e seus olhos encheram-se de lágrimas, com a boca aberta transmitindo seu alívio e dizendo, sem palavras, um "obrigada", antes de se voltar para os braços protetores de seus parentes.
- Silêncio no tribunal! - comandou um funcionário.
O murmúrio cessou e todos se voltaram para o juiz. A expressão de Fletcher Sampson era muito dura e solene.
- Philip Hawkin, tem algo a dizer antes de a sentença ser pronunciada, de acordo com a lei?
Hawkin levantou-se e agarrou-se à borda da pequena mureta à sua frente. A ponta de sua língua apareceu em um e depois no outro canto de sua boca. Então, com intensidade desesperada, ele disse:
- Eu não a matei. Meritíssimo, eu sou inocente.
Pelo efeito de suas palavras sobre o juiz, Hawkin poderia muito bem ter poupado seu fôlego.
- Philip Hawkin, de acordo com o veredicto, os jurados consideraram-no culpado pelo estupro de sua enteada, Alison Cárter, uma menina de treze anos, e consideraram-no culpado por seu homicídio, depois. O fato de ter sido usada uma arma de fogo neste crime concede-me o direito de pronunciar a sentença que a lei permite e a justiça exige. - Em silêncio absoluto, ele pegou o pano preto e o pousou com cuidado sobre a peruca. Hawkin vacilou, mas o policial ao seu lado agarrou seu cotovelo e forçou-o a ficar de pé.
Sampson olhou para o cartão à sua frente, que continha as palavras decisivas. Depois, levantou a cabeça e encontrou o olhar desvairado do assassino de Alison Cárter.
- Philip Hawkin, você será levado ao lugar de onde veio e, deste, para um lugar de execução segundo a lei, onde será pendurado pelo pescoço até a morte. Depois, seu corpo será enterrado em uma vala comum nos limites da prisão na qual esteve confinado por último antes de sua execução; e que o Senhor tenha piedade de sua alma.
Em meio ao silêncio chocado que reinava, uma voz feminina gritou:
- Não!
- Policiais, levem o prisioneiro - ordenou Sampson.
Quase tiveram de carregar Hawkin para fora. O choque parecia ter destruído sua capacidade para caminhar. George entendia a reação. Suas próprias pernas pareciam incapazes de suportar seu peso. De repente, ele descobriu-se no centro de um grupo de pessoas que desejavam cumprimentá-lo. Charlie Lomas, Brian Cárter, até mesmo Mamãe Lomas gritavam-lhe
Início de Nota de Rodapé: Enquanto houve pena de morte na Inglaterra, os juízes colocavam um pano preto sobre a peruca para proferir a sentença capital. Fim de Nota.
parabéns. Toda a reserva que sempre julgara característica dos moradores de Scardale dissipara-se com o julgamento e sentença de Hawkin. O rosto de Pritchard apareceu em seu campo de visão.
- Ligue para sua esposa e diga-lhe que ficará em Derby hoje - gritou ele. - Temos champanhe para comemorar, no hotel.
- Tudo a seu tempo - gritou-lhe Mamãe Lomas. - Ele beberá com o povo de Scardale antes. Venha, George, não pretendemos perdê-lo de vista até beber com cada um de nós. E traga aquele sargento que sempre está ao seu lado.
Com a cabeça girando e o estômago inquieto, George Bennett foi levado para a rua. Contra todas as probabilidades, triunfara. Dera a Alison Cárter a justiça que ela merecia. Desafiara seus chefes, os princípios do sistema legal inglês e os terríveis caluniadores da imprensa. E triunfara.
O lugar da execução
Na noite de quinta-feira, 27 de agosto de 1964, dois homens desceram do trem na estação de Derby, cada um deles levando consigo uma pequena valise. Nenhum de seus companheiros de viagem lhes dera uma segunda olhadela, mas uma viatura policial esperava-os, para transportá-los pelas ruas da cidade até a prisão em que Philip Hawkin estava, vigiado por dois guardas da penitenciária, até o dia de sua morte. Mais tarde, naquela noite, o mais velho dos dois homens deslizou para o lado a tampa da portinhola que lhe permitia olhar para dentro da cela do condenado. Ele viu um homem moderadamente alto, cujo corpo havia se livrado de cada grama de gordura que não fosse absolutamente necessário. Ele andava pela cela com um cigarro queimando entre os dedos. O homem que o espiava não viu nada que contradissesse os cálculos que havia feito com base no pedaço de papel que lhe deram e que dizia: "Um metro e setenta e sete centímetros, sessenta e dois quilos". Uma queda de dois metros e vinte centímetros serviria.
Hawkin havia passado a noite acordado, dedicando parte do tempo a escrever uma carta para sua esposa. De acordo com o sargento-detetive Clough, a quem Ruth Cárter mostrou a carta, ele ainda afirmava inocência.
Embora eu tenha cometido muitos erros, matar sua filha amada não foi um deles. Cometi muitos pecados e crimes em minha vida, mas não o crime de homicídio. Eu não deveria ser enforcado por algo que não fiz, mas meu destino está selado agora, porque outras pessoas mentiram. Meu sangue está na consciência desses mentirosos. Não a culpo por ter acreditado neles. Acredite quando digo que não sei o que aconteceu com Alison. Não tenho mais nada a perder, exceto minha vida, e esta me será roubada pela manhã, de modo que não tenho nenhum motivo para lhe mentir. Sinto muito por não ter sido um marido melhor.
A menos de dez quilómetros dali, no outro lado da cidade, George Bennett também estava acordado, fumando na janela aberta do quarto, na casa que era seu lar desde sua transferência de Buxton, um mês antes. Entretanto, o que atrapalhava seu sono não era o destino de Philip Hawkin. Às sete e cinquenta e três da noite anterior, Anne retesara-se na cadeira e gemera, sentindo uma dor súbita. George correra em seu auxílio, para ajudá-la a colocar-se de pé. Chegara o momento pelo qual ansiavam havia duas semanas, desde que a data prevista para o nascimento do filho passara, sem sinal de trabalho de parto. Todos lhe haviam dito que o primeiro bebé muitas vezes atrasava, mas isso não o havia tranquilizado. Antes de terem chegado à porta da sala, sem qualquer aviso e para surpresa total de George, um líquido claro derramara-se pelas pernas de Anne. Ela descera a escada com dificuldade e garantira-lhe que isso era perfeitamente normal, mas que chegara a hora de ir para o hospital, apontando para a pequena mala no canto da sala, já pronta e à espera daquele momento.
Meio desnorteado pela preocupação, George ajudara a esposa a entrar no carro e correra para buscar a maleta. Depois, dirigira como louco pelas ruas tranquilas, atraindo olhares irritados de senhoras respeitáveis e admirados, de jovens rapazes que se reuniam nas esquinas. Ao chegarem ao hospital, Anne gemia de dor em intervalos de minutos.
Quase antes que pudesse registrar em seu cérebro tudo o que acontecia, Anne foi levada para o estranho mundo da ala da maternidade, um lugar onde nenhum homem que não portasse um estetoscópio seria admitido. Apesar de seus protestos, George foi firmemente encaminhado à recepção, onde soube, por uma enfermeira que bem poderia pertencer ao regimento do superintendente Martin por seus modos austeros, que poderia ir para casa, já que sua presença ali não beneficiaria nem sua esposa nem a equipe médica.
Perplexo e desorientado, ele se descobrira no estacionamento, sem sequer saber como chegara ali. O que deveria fazer agora? Anne havia lido muitos livros, preparando-se para a maternidade, mas ninguém dissera a ele o que deveria fazer. Depois que o bebé nascesse, o ritual era mais fácil. Essa parte ele conhecia. Charutos para os rapazes, depois uns drinques para brindar a chegada do herdeiro. Mas como preencher o tempo até aquele momento? E por falar nisso, quanto tempo levaria?
Com um suspiro, ele entrou no carro e rumou para casa. Ao chegar à pequena casa geminada, idêntica àquela que habitara em Buxton, exceto pela falta do jardim lateral, seu primeiro ato foi agarrar o telefone e ligar para o hospital.
- Nada acontecerá durante algumas horas - disse-lhe uma enfermeira nada amistosa. - Por que não vai dormir cedo e nos liga novamente de manhã?
George pousara o telefone no gancho, frustrado. Nem conhecia suficientemente seus novos colegas do departamento de investigações criminais para ligar e sugerir que se encontrassem para um drinque. Estava prestes a atacar a garrafa de uísque que guardava dentro do aparador da sala quando o telefone tocou, assustando-o a ponto de deixar cair um dos copos de cristal que ganhara de presente de casamento.
- Droga! - exclamou, enquanto atendia o telefone.
- Liguei em má hora, George? - o tom brincalhão de Tommy Clough era tão bem-vindo aos seus ouvidos quanto a confissão de um alcagúete.
- Acabei de deixar Anne na maternidade, mas, fora isso, estou bem. O que posso fazer por você?
- Consegui trocar meu plantão de amanhã com alguém. Achei que seria boa ideia presenciar o enforcamento daquele canalha pela manhã. E, depois, achei que poderíamos beber até cair. Mas parece que você já tem compromisso.
George agarrou o telefone como se este fosse uma bóia salva-vidas, e ele um homem prestes a se afogar.
- Venha até aqui. Estou precisando de companhia. Aquelas enfermeiras agem como se os homens não tivessem nada a ver com bebés.
Tommy riu.
- Há um motivo para isso, mas como você é um homem casado, não vou cansar seus ouvidos. Chego aí em uma hora, mais ou menos.
George preencheu parte do tempo indo até o bar mais próximo e comprando garrafas de cerveja como complemento para o uísque. No final das contas, acabaram bebendo muito pouco, ambos afetados, por motivos diversos, pela magnitude dos eventos que se desdobravam à sua volta.
Em algum momento após a meia-noite - e depois do quarto telefonema de George para a maternidade -, Clough havia ido dormir no quarto de hóspedes. O que manteve George acordado, porém, não foi o ruído suave de seu ronco. Enquanto a noite transformava-se em alvorecer, sua mente insistia em lhe trazer imagens do sofrimento de Alison Cárter mescladas ao sofrimento de sua própria esposa, até não ser mais capaz de distinguir entre ambas. No fim, quando o céu já se iluminara, ele cochilou, encolhido como um feto, em um canto da cama.
O despertador acordou-o às sete e ele abriu os olhos de uma vez, totalmente alerta. Será que já era pai? Ele esticou as pernas e atravessou de um pulo o quarto, quase tropeçando enquanto corria escadas abaixo até o telefone. O tom de voz de quem o atendeu era o mesmo, embora o sotaque fosse diferente. Não havia novidade. Podia perceber o recado que tentavam lhe dar: pare de nos incomodar!
Os cachos desgrenhados e os olhos vermelhos de Clough apareceram no andar superior.
- Alguma novidade?
- Nada ainda.
- É estranho - disse Clough, com um bocejo. - Anne entrar em trabalho de parto logo agora.
- Nem tanto. A data do parto era duas semanas atrás. As vezes, a ansiedade desencadeia o trabalho de parto, de acordo com um dos livros que ela andou lendo. E ela teve mais do que devia, em termos de ansiedade, por causa desse caso - disse George, subindo novamente a escada. Primeiro, teve de suportar minha ausência enquanto eu virava a noite trabalhando na investigação inicial, e depois teve de ler toda aquela porcaria publicada pelos jornais, sobre eu ser tão corrupto a ponto de mandar um inocente para a forca. Depois da apelação, teve de ler tudo isso de novo. ultimamente ficava o tempo todo pensando no fato de alguém ser enforcado porque fiz o meu trabalho. - Ele parou no alto da escada e balançou a cabeça, com sua franja loira e despenteada esvoaçando com o movimento. - É um milagre não ter abortado.
Clough pousou a mão em seu ombro.
- Ah, pare com isso. Vamos nos vestir e sair para tomar café. Há um bom lugar, perto da estrada da penitenciária.
George ficou paralisado.
- Você pretende ir até lá?
- E você não?
George parecia surpreso.
- Vou para a delegacia. Alguém me comunicará quando tudo terminar.
- Não vai comigo à penitenciária? Todos estarão lá, Lomas, Carters e Crowthers. É você que eles querem ver.
- Será? - perguntou George, com um pouco de amargura. - Bem, terão de se contentar com você, Tommy.
Clough sacudiu os ombros.
- Sempre achei que se tive alguma coisa a ver com o enforcamento de um homem, deveria assumir as consequências.
- Desculpe-me, mas não tenho estômago para isso. Vou lhe pagar um café da manhã na cantina da delegacia, mas depois você vai sozinho até lá, se quiser.
- Tudo bem, então.
George virou-se e foi para o banheiro.
- George? - chamou Clough, em voz baixa. - Não há por que se envergonhar. Não há nada pior neste emprego, nem mesmo comunicar a morte de uma criança à sua mãe. Mas você precisa aprender a conviver com essas coisas. Eu já aprendi, e você também acabará aprendendo. Esqueça o café da manhã. Eu o encontro depois. Podemos sair hoje à noite e, aí sim, encher a cara.
Eram oito e cinquenta e nove e George olhava o ponteiro dos segundos em Seu percurso em torno do mostrador. O padre devia estar terminando sua oração com Hawkin agora. Ele imaginou como Hawkin estaria se sentindo. Aterrorizado, com certeza. Talvez tentasse ter um pouco de dignidade.
O ponteiro chegou ao número 12 e o relógio da igreja próxima deu a primeira de nove badaladas. As portas duplas da cela do condenado se abririam e Hawkin andaria os últimos seis metros de sua vida. O carrasco estaria atando seus pulsos com a correia de couro.
A segunda badalada. Agora, o carrasco está caminhando à frente de Hawkin, com seu assistente atrás, mantendo o ritmo tão uniforme quanto possível - os assassinos oficiais tentando agir como se estivessem apenas caminhando na praça.
A terceira badalada. Hawkin está na forca agora, com os pés plantados em cada lado das portas duplas da armadilha que se abrirá e levará sua vida com aquele ato.
Quarta badalada. O carrasco vira-se para encarar o condenado, estendendo as mãos para mantê-lo imóvel, enquanto seu assistente agacha-se e ata juntas as pernas de Hawkin.
Quinta badalada. O saco de linho aparece como se por mágica. O carrasco enfia-o na cabeça de Hawkin, com a facilidade da prática. Agora tudo corre mais rápido, porque ninguém precisa olhar para o homem que estará morto em um minuto. Seus olhos pararam de implorar e de fitá-los com o pânico medonho do animal condenado. O carrasco puxa o saco para baixo e ajeita-o em torno do pescoço, de modo que o pano não se enfie no olho do laço.
Sexta badalada. O carrasco desliza o laço pela cabeça do condenado, verificando se a peça de metal que agora substitui o nó corrediço tradicional está posicionada atrás das orelhas de Hawkin, para velocidade máxima no processo de fratura e deslocamento que torna o enforcamento teoricamente rápido e relativamente indolor.
Sétima badalada. O carrasco dá um passo para trás e sinaliza para seu assistente, que puxa a cavilha que age como medida de segurança no mecanismo da forca. Depois, quase no mesmo instante, o carrasco puxa a alavanca.
Oitava badalada. A armadilha abre-se e Hawkin mergulha para a queda fatal.
Nona badalada. Acabou.
George sabia que suava sobre o lábio. Podia ver sua mão trémula enquanto a estendia para pegar os cigarros. Pequeninos gestos humanos que Hawkin perdera para sempre, como Alison Cárter também já perdera. George percebeu que prendera o fôlego apenas ao soltar o ar. Ele esfregou a face, sentindo a pele áspera com algo parecido com gratidão.
Quando o telefone tocou, ele reagiu com um pulo.
Dentro do mesmo período de cinco minutos, Philip Hawkin deixara o mundo dos vivos e Paul George Bennett uníra-se a eles.
Tommy Clough e George nunca chegaram a se encontrar para aquela rodada de bebidas.
Livro 2
Primeira parte
1 Fevereiro de 1998
Até mesmo o pálido sol de inverno dava contornos dramáticos ao White Peak. O azul frio do céu contrastava com o verde desbotado dos campos, que pareciam ter-se contaminado com uma nuança de cinza das paredes de calcário. Havia mais tons de cinza do que se poderia considerar possível; o branco-sujo dos abismos de calcário, estriados e manchados com um espectro que ia do cinza-claro, passava pelo cinzento dos navios de guerra e chegava ao quase preto; os tons mais escuros dos estábulos e casas que pontuavam a paisagem; o cinza fosco dos telhados de ardósia salpicados com o branco da geada onde o sol não chegava; o cinza sem graça dos carneiros da charneca. Ainda assim, o que dominava a paisagem era o verde e o azul da grama e do céu.
O carro esportivo vermelho que trafegava tranquilamente pela estrada rural estreita destacava-se como um papagaio exótico em uma floresta inglesa. Quando a igreja metodista surgiu à direita, a mulher loira ao volante pisou levemente no freio. O carro diminuiu a velocidade gradualmente e ela trocou de marcha quando avistou uma placa na estrada da qual não se lembrava. Apontando para uma entrada estreita à esquerda, ela dizia: "Scardale 1".
Finalmente, pensou. A placa estranha era um lembrete oportuno de que o mundo havia mudado. Agora, as pessoas que não sabiam aonde estavam indo precisavam ter um modo de encontrar Scardale. Se ela tivesse o sucesso que esperava, muitas outras pessoas desejariam ver a placa. Com um tremor de excitação, ela virou o volante. Embora recordasse vagamente as subidas e descidas súbitas da estrada sinuosa, achou melhor ir devagar. As paredes altas de calcário haviam mantido o sol fraco de fevereiro afastado da estrada de uma pista, que ainda estava coberta pela geada, exceto onde o tráfego anterior expunha o asfalto preto. Não seria um começo auspicioso para o projeto se acabasse derrapando e danificasse sua pintura.
Catherine Heathcote não sentiu surpresa quando as paredes rochosas subitamente deram lugar a abismos profundos de calcário listrado. O que lhe causou surpresa foi a ausência do portão no fim da estrada, que demarcava a propriedade particular. Agora, as únicas indicações de que certa vez Scardale isolara-se deliberadamente da civilização eram os marcos de pedra e os mata-burros, que os pneus largos de seu carro cruzaram com sacolejos suaves.
Catherine percebeu que nada mudara muito por ali. O Rochedo do Escudo e o Rochedo de Scardale ainda dominavam o vale. Os carneiros ainda pastavam em segurança, embora os ditames da moda tivessem imposto um rebanho de carneiros de Jacó entre as ovelhas mais resistentes e comuns àquela região. Os ajuntamentos de árvores estavam mais velhos, era verdade, mas haviam sido bem cuidados, com novas mudas substituindo as árvores que haviam sido cortadas ou morrido por causa do clima inclemente. Contudo, ainda se tinha a sensação de entrar em um universo paralelo, deixando para trás o mundo normal, pensou Catherine. Apesar de todas as mudanças que percebia, ela poderia ter voltado a ser criança, espiando do banco traseiro sobre os ombros de um adulto enquanto entravam neste mundo remoto para descobrirem a fonte misteriosa do rio Scarlaston em uma tarde de domingo durante o verão.
Apenas ao aproximar-se da praça da aldeia ela percebeu uma mudança real - pelo menos aparentemente. Nos anos que se haviam passado desde a execução de Hawkin, Scardale vira tempos de prosperidade. Ela lembrou de tudo que descobrira desde que escrevera sobre o assassinato de Alison Cárter pela primeira vez, uns doze anos antes, em um artigo de jornal suscitado por um novo caso de homicídio "sem corpo". As pesquisas de Catherine nos arquivos do jornal e entre as companheiras de bridge de sua mãe haviam revelado que, ao herdar o vale e a aldeia do marido, Ruth Hawkin decidira afastar-se das recordações. Ela vendera o solar e estabelecera um fundo para administrar a terra e a fazenda inteira. Os inquilinos haviam recebido a opção de comprar as casas em que moravam e, durante os anos seguintes, algumas haviam sido vendidas a pessoas de fora. Não conseguira localizar Ruth Hawkin, que recusara todas as tentativas de Catherine para uma entrevista, através do advogado que administrava sua herança.
Inevitavelmente, o processo desencadeado pelas ações de Ruth levou a uma revitalização da aldeia. As casas receberam pintura nova, jardins apareceram do nada e, mesmo no meio do inverno, açafrões precoces, íris anãs, e campainhas brancas salpicavam de cor a paisagem. E, é claro, os automóveis haviam invadido a praça da aldeia, onde antes havia apenas Land Rovers velhos e o Austin Cambridge do dono das terras. Um quiosque moderno de acrílico havia substituído o antigo telefone público vermelho, mas a pedra em que ele se apoiava ainda estava lá, com sua inclinação familiar. Mesmo com carros modernos e casas mais alegres, em uma tarde fria como esta não era difícil imaginar Scardale como havia sido quando ela fora ali pela primeira vez na infância e, depois, sem o olhar inocente, na adolescência.
Estava com dezesseis anos então. Dois anos e meio haviam passado desde o assassinato de Alison Cárter, e o namorado de Catherine tinha uma lambreta. Ela o persuadira a irem até Scardale em uma tarde de primavera, para poderem ver por si mesmos o lugar onde tudo acontecera. Ela admitia, com um pouco de vergonha, que seu motivo era uma curiosidade macabra. Naquela idade, o objetivo de qualquer coisa que se fizesse era chocar, mas não haviam tido coragem - nem calçados apropriados - para enfrentar o matagal e encontrar a antiga mina. Contudo, as carícias trocadas em meio às árvores atrás do solar pareceram mais excitantes por causa da notoriedade do lugar.
Agora ela percebia que aquilo também servira como um exorcismo ao horror em que se transformara o julgamento de Philip Hawkin. Naturalmente, a maioria dos detalhes havia sido encoberta pelos eufemismos sensacionalistas do jargão jornalístico, mas Catherine e todas as suas amigas sabiam que algo pavoroso havia acontecido com Alison Cárter, o tipo de coisa sobre a qual todos os adultos as alertavam que poderia acontecer se caíssem nas mãos de estranhos. Tudo fora ainda mais assustador porque Alison Cárter sofrera nas mãos de alguém que conhecia e em quem deveria confiar. Para Catherine e suas amigas, todas de famílias de classe média, preservadas das agruras da vida, a ideia de que o lar não era necessariamente um lugar seguro havia sido profundamente perturbadora.
Em um nível mais mundano, o acontecimento havia colocado limitações em suas vidas, impostas pelos pais e por elas mesmas. As garotas agora tinham de estar sempre acompanhadas, exatamente em uma época em que o resto dos adolescentes britânicos descobria a liberdade dos anos 60. O destino de Alison dera à adolescência de Catherine uma escuridão até então desconhecida, e ela nunca mais conseguira esquecer nem o caso nem a vítima. Mais que qualquer outro fator isolado, isto provavelmente influenciara sua própria decisão de sacudir a poeira de Buxton de seus sapatos tão logo pudesse. Universidade em Londres, depois um trabalho de cão em uma agência de notícias e finalmente um emprego como jornalista permitiram-lhe cortar os laços com o passado, enchendo sua vida de rostos novos e novas paixões, sem nenhum apego às recordações da adolescência.
À medida que subia os degraus em sua carreira, Catherine imaginara, muitas vezes, qual teria sido o futuro de Alison. Não que estivesse obcecada por isso, dizia a si mesma. Apenas contagiara-se da curiosidade natural que deveria afligir qualquer jornalista que tivesse crescido à sombra de um caso tão estranho e inquietante.
E agora, milagrosamente, ela seria a responsável por retirar o véu do passado e revelar a história por trás da história. Considerava aquilo bem apropriado. Não poderia haver outro jornalista mais qualificado para contar esta verdade.
Catherine saiu do carro e fechou sua jaqueta, enfiando o lenço que protegia seu pescoço bem para dentro. Cruzou a praça e passou pela escadaria que levava à trilha até o arvoredo em que Shep havia sido encontrada e, mais adiante, à nascente do Scarlaston.
Enquanto ouvia os estalos da grama congelada sob os pés, não pôde evitar a recordação da última vez em que estivera em Scardale, comparando-a com esta. Era uma tarde quente de julho, dez anos antes, e o sol tórrido brilhava em um céu de azul metálico, com as árvores servindo como um alívio abençoado do calor. Catherine e alguns amigos haviam alugado um chalé em Dovedale, que serviria como base para longas caminhadas de férias na região de Peaks. Uma das trilhas seguidas subia o Scarlaston, vindo de Denderdale até Scardale. Suados e esbaforidos após a aventura, eles haviam chamado um táxi do telefone público na praça e então se sentaram num muro, fofocando sobre seus colegas londrinos, enquanto esperavam. Catherine nem mencionara Alison, estranhamente supersticiosa no que dizia respeito a dividir a história com outros jornalistas.
Jamais lhe ocorrera, na época, que conseguiria persuadir George Bennett a romper seu silêncio de trinta e cinco anos e falar sobre o caso. Embora ela nunca tivesse esquecido Alison Cárter, escrever o livro definitivo sobre um dos casos mais interessantes do século sequer estivera em seus planos.
Isto certamente não lhe passara pela cabeça no outono anterior, em Bruxelas. Entretanto, em sua experiência, as melhores histórias nunca eram aquelas que se procuravam muito. Em sua mente, não havia nenhuma dúvida de que esta seria a melhor matéria de sua carreira.
2
Outubro de 1997-fevereiro de 1998
A chuva pesada caía sem parar. Isto seria suportável, se ela estivesse confortável e aconchegada em um bar envidraçado com vista para a GrandPlace, com um café irlandês aquecendo suas mãos enquanto se alegrava com a infelicidade daqueles que corriam com seus guarda-chuvas contra o vento na rua. Mas, ficar de pé em uma tarde chuvosa de quarta-feira, em um prédio de concreto que mais parecia uma caixa, com vista apenas para outros prédios de escritórios, enquanto esperava que uma política sueca lembrasse que haviam marcado hora, não era sua ideia de diversão. Não era absolutamente o que tivera em mente ao planejar sua pequena excursão à Europa.
Embora Catherine fosse a editora de uma revista feminina mensal, jamais perdera seu gosto pelas matérias jornalísticas que haviam construído sua carreira. De tempos em tempos, gostava de fugir da tensão da burocracia quotidiana e da política ridícula do escritório. Sua desculpa era a necessidade de continuar em contato com seu lado criativo e manter-se em dia com as diferentes circunstâncias enfrentadas pelos escritores a quem dava emprego. Assim, periodicamente, ela inventava uma pauta que lhe permitia fazer pesquisas, entrevistas e a própria redação da matéria.
Ela imaginara que seria interessante fazer uma série de entrevistas com mulheres em funções importantes na sede da União Europeia. Não contara com a burocracia interminável e com o mau tempo. Sem mencionar o fato
Início de Nota de Rodapé: La Grand-Place, em Bruxelas, é um conjunto arquitetônico homogéneo, composto de prédios particulares e públicos, construídos principalmente no fim do século XVII. Fim de Nota.
de que reuniões sempre atrasavam e ninguém chegava no horário para as entrevistas. Suspirando, Catherine pegou o telefone na sala de conferências e ligou para o seu contato, um assessor de imprensa britânico chamado Paul Bennett. Esperara que ele fosse frio e arrogante, como a maior parte dos assessores de imprensa do governo, mas tivera uma agradável surpresa. Depois de descobrirem que ambos haviam crescido em Derbyshire, o relacionamento tornara-se ainda mais afável, e Paul conseguira contornar a maior parte das dificuldades até agora.
- Paul? É Catherine Heathcote. Sigrid Hammarqvist não apareceu.
- Ah, mas que droga - disse ele, irritado. - Pode esperar um minutinho?
Uma música clássica berrou em seus ouvidos, com os violinos parecendo um bando de mosquitos irritados. Às vezes, Catherine gostaria de poder distinguir uma música clássica de outra, mas duvidava que isso lhe pudesse ser útil em um momento como este. Ela afastou o aparelho da orelha para evitar a irritação, mas deixou-o próximo o suficiente para ouvir quando Paul voltasse. Alguns minutos depois, ele falou:
- Catherine, acho que tenho más notícias. Ou boas, dependendo de sua opinião quanto à senhora Hammarqvist. Ela teve de ir a uma reunião em Estrasburgo e só voltará amanhã, mas a secretária prometeu marcar você para amanhã às onze. Pode ser?
- Agora é minha vez de dizer "mas que droga!" - disse Catherine, contrariada. - Eu esperava poder voltar à Inglaterra hoje à noite.
- Desculpe - disse Paul. - Os escandinavos têm uma tendência para ver os jornalistas como seres muito no final da cadeia alimentar para merecerem sua consideração.
- Não é sua culpa. De qualquer forma, obrigada por tentar me ajudar. E pelo menos ganhei outra noite na ensolarada Bruxelas - acrescentou, com ironia.
Paul riu.
- Ah, é verdade. Olhe, não gosto de imaginá-la sozinha num lugar estranho. Se você não tiver outros planos, por que não vem tomar alguma coisa no nosso apartamento?
- Ah, não se preocupe - disse Catherine, com despreocupação profissional.
- Não estou convidando apenas por obrigação - insistiu ele. - Eu gostaria que você conhecesse Helen.
Catherine lembrou-se da companheira de Paul, uma tradutora e intérprete da Comissão da União Europeia.
- Tenho certeza de que isso é exatamente o que ela deseja, depois de mais um dia na torre de Babel - falou, com ironia.
- Ela lê sua revista todos os meses, e me matará se eu deixar passar a chance de levá-la para beber uma ou duas taças de vinho conosco. Além disso, ela também é de Derbyshire - acrescentou ele, como se isso decidisse tudo.
De qualquer modo, algo fez com que Catherine tomasse a decisão, pois logo depois das sete da noite ela estava dando beijinhos no ar, em vez de no rosto de Helen Markiewicz. Este não era exatamente o cumprimento típico de Derbyshire, pensou ela com ironia, enquanto avaliava a companheira de Paul. Ela certamente era a imagem do público-alvo da revista de Catherine. Trinta e poucos anos, cabelos escuros e curtos num corte rebelde, caindo para a frente sobre uma testa ampla. Seu rosto tinha formato de coração, com sobrancelhas retas e negras, maçãs do rosto altas e um sorriso amplo. Sua maquiagem era sutil, mas eficiente, exatamente como as páginas da seção de estilo recomendavam para mulheres bem-sucedidas. Helen parecia vagamente familiar, e Catherine imaginou se já passara por ela nos corredores dos prédios da Comissão da União Europeia nos quais estivera nos últimos dias. Alguém tão cheia de estilo e tão bonita teria atraído seu olhar, ainda que inconscientemente. Era compreensível que Paul quisesse mostrá-la.
Enquanto Paul servia taças generosas de vinho tinto, as duas mulheres acomodaram-se em cantos opostos de um sofá fofo e informal.
- Paul me disse que Hammrqvist lhe deu um bolo - disse Helen, com os traços de um sotaque de Yorkshire ainda fortes em sua voz. - Deve ser como se encher de coragem para ir ao dentista e, chegando lá, descobrir que ele saiu mais cedo.
- Ela não é tão ruim - protestou Paul.
- Não se comparada com a mãe do capeta - disse Helen, de modo obscuro.
- Tenho certeza de que Catherine não a deixará escapar.
- Ah, disso eu tenho certeza, amor. - Helen lançou um sorriso luminoso para Catherine. - Ele lhe contou que sou sua fã número um? Falo sério, tenho até assinatura da revista.
- Estou impressionada - disse Catherine. - Mas me diga, como vocês dois se conheceram? É um Euro-romance?
- Olhe só, Helen, ela já está preparando a edição do Dia dos Namorados do ano que vem!
- Nem todo mundo leva trabalho para casa - falou Helen, provocando-o. - Nós nos conhecemos em Bruxelas. Paul foi a primeira pessoa que conheci na comissão com um sotaque do norte da Inglaterra, de modo que nos identificamos imediatamente.
- E eu a persegui como louco, de modo que não lhe dei chance de escapar - acrescentou Paul, olhando para Helen.
- De onde você é, Helen?
- De Sheffield.
- Perto de onde eu cresci, Buxton. Helen concordou com um gesto de cabeça.
- Minha irmã anda por lá nos últimos tempos. Você conhece um lugar chamado Scardale?
Catherine reconheceu o nome, surpresa.
- Claro que conheço Scardale.
- Jan mudou-se para lá alguns anos atrás.
- É mesmo? Mas por que Scardale?
- Uma dessas coisas que acontecem. Minha tia viveu conosco durante anos e, então, herdou uma casa em Scardale de um parente distante de seu falecido marido. Algum primo em segundo grau, algo assim. Quando minha tia faleceu, a casa ficou para nossa mãe. E quando mamãe morreu, três anos atrás, ela deixou-a para nós duas. Sempre esteve alugada, mas Jan achou que seria bom viver no campo, de modo que comunicou aos inquilinos e, depois, retomou a casa. Eu ficaria louca vivendo lá, no meio do nada, mas ela adora. Mas veja, ela viaja muito a trabalho, de modo que, assim, não tem nem tempo de se entediar com o lugar.
- E o que ela faz? - perguntou Catherine.
- Tem uma empresa de consultoria. Trabalha principalmente para grandes multinacionais, executando avaliações psicológicas de executivos e altos funcionários. Está neste ramo há apenas alguns anos, mas tem se saído muito bem. Sabe, não é com qualquer trocadinho que se paga o aquecimento de uma casa como aquela, que mais parece um celeiro.
Havia apenas uma propriedade em Scardale que se ajustava àquela descrição.
- Ela não está morando no Solar Scardale, está?
- Parece que você conhece mesmo o lugar - comentou Helen, rindo.
- É lá mesmo E então, como é que você conhece tão bem um fim de mundo como Scardale?
- Helen - disse Paul, com uma nota de advertência na voz. Catherine deu um sorrisinho torto.
- Houve um homicídio em Scardale quando eu era adolescente. Uma garota foi raptada e morta por seu padrasto. Ela e eu tínhamos a mesma idade.
- Alison Cárter? - perguntou Helen, admirada. - Você conhece o caso Alison Cárter?
- Fico surpresa por você conhecer - comentou Catherine. - Acho que você mal havia nascido quando tudo aquilo aconteceu.
- Ah, mas nós sabemos tudo sobre o caso Alison Cárter, não é, Paul?
- indagou Helen, quase com alegria.
- Não, Helen, não sabemos - disse Paul, parecendo levemente contrariado.
- Está bem, talvez não saibamos muito sobre o caso - disse Hellen, aplacando seu entusiasmo e estendendo a mão para tocar no braço dele. - Mas conhecemos alguém que sabe.
- Esqueça este assunto, Helen. Catherine não está interessada em um homicídio que aconteceu trinta e cinco anos atrás.
- Aí é que você se engana, Paul. Sempre fui fascinada pelo caso. E qual é sua ligação com ele? - Ela fixou o olhar na expressão de desagrado dele. De repente, algo estalou em seu cérebro. Uma vaga semelhança que chamara sua atenção ao se conhecerem, e agora seu nome, ligados ao caso de Alison Cárter. Ela juntou rapidamente as peças do quebra-cabeças. - Espere aí... Você não é o filho de George Bennett, é?
- Ele é - exclamou Helen, triunfante. Paul olhou-a desconfiado.
- Você conhece meu pai? Catherine balançou a cabeça.
- Não, não pessoalmente, mas sei bastante sobre ele, por causa do caso Alison Cárter. Ele fez um trabalho incrível na época.
- Sim, bem, isso foi antes de eu nascer, e papai nunca gostou muito de falar sobre seu trabalho.
- Foi um caso muito importante, sabe? Estudantes de direito ainda precisam estudá-lo, por causa de suas implicações em casos de homicídio sem corpo. E nunca houve nenhum livro sobre o caso. Tudo o que se encontra são artigos de jornal da época e precedentes legais que não nos transmitem a emoção da história. Fico admirada por seu pai não ter escrito suas memórias - disse Catherine.
Paul encolheu os ombros e correu a mão por seus cabelos loiros recém-cortados.
- Não é o tipo de coisa que combina com ele. Lembro-me de que, um dia, um jornalista procurou-o em casa. Eu deveria ter uns dezesseis anos. Este cara disse que cobrira o caso na época e queria que papai cooperasse em um livro contando toda a história, mas papai mandou-o embora sem sequer abrir a porta de todo. Depois, disse à minha mãe que a mãe de Alison já passara por sofrimento suficiente e não merecia que alguém ressuscitasse o caso.
Imediatamente, os instintos jornalísticos de Catherine puseram-se em alerta:
- Mas a mãe de Alison já morreu. Morreu em 95. Não há mais motivo para não falar sobre o caso agora. - Ela inclinou-se para a frente, subitamente animada. - Eu adoraria escrever a história do caso Alison Cárter contada por aqueles que a fizeram. Ela deveria ser contada, Paul. No mínimo porque todos os relatos da época abordaram apenas de leve os abusos sexuais de Philip Hawkin à enteada. Foi um caso muito importante. Não apenas em termos legais, mas em termos de como influenciou a vida de muitas pessoas.
Surpreendentemente, Helen apoiou a ideia:
- Catherine tem razão, Paul. Sabe como alguns jornalistas são inescrupulosos. E você sabe como esses casos históricos vivem reaparecendo. Se seu pai não contar a história, algum espertalhão a publicará na primeira oportunidade depois que ele também morrer e não houver mais ninguém para contradizer uma versão sensacionalista dos acontecimentos. E com nossa Jan morando lá, Catherine poderia penetrar facilmente na aldeia para sentir de perto os eventos.
Paul levantou as mãos, em sinal de derrota. Estava claro que Helen tinha o poder de levá-lo de um estado de espírito quase hostil para a vontade ansiosa de ajudar.
- Tudo bem, meninas. Vocês venceram. Conversarei com meu pai na próxima vez que ligar para casa. Direi que descobri a última jornalista confiável na Europa e que ela quer transformá-lo numa celebridade. Quem sabe eu posso aproveitar um pouquinho a fama dele depois? Agora, quem gostaria de ir ao restaurante do Jacques para comer uns mexilhões?
Uma semana depois, quando já estava em Londres, o telefone de Catherine tocou. O filho conseguira convencer o pai como nenhum estranho seria capaz. George Bennett estaria competindo em um campeonato de golfe para policiais aposentados próximo a Londres na semana seguinte e a encontraria para discutirem a possibilidade de ela escrever um relato sobre o caso de Alison Cárter com base no que ele lhe contasse.
Catherine vestira-se cuidadosamente para o encontro, com seu único conjunto Armani e saltos baixos. Desejava todo apoio que pudesse obter, e concordava com a editora de moda da revista, no sentido de que não havia nada como a soberba moda italiana para fazer com que uma mulher se sentisse no controle de tudo. Levara mais tempo do que sua impaciência exigia, aplicando com cuidado a base hidratante para o rosto, o delineador de olhos e o de lábios e, depois, o batom, até sentir-se satisfeita com sua aparência. A cada ano, gastava mais tempo para atingir aquele nível de satisfação. Algumas de suas colegas já haviam passado por cirurgias plásticas, mas Catherine achava que faziam isso para manterem seus casamentos. Catherine sabia que era muito mais difícil manter alguém ao lado depois que a novidade passava que encontrar alguém disposto a compartilhar alguns momentos de divertida aventura sem pensar no amanhã. Não que tivesse esta espécie de intenção com George Bennett, mas não via problema em fazê-lo sentir-se lisonjeado por dar-se ao trabalho de se esmerar na aparência para encontrá-lo.
Ao vê-lo, Catherine descobriu um homem ainda bastante atraente, o que a deixou ainda mais satisfeita por ter feito aquele esforço. Com cabelos loiros entremeados por fios prateados, sorriso levemente torto e olhos que ainda transmitiam a generosidade de sua alma, apesar de trinta anos na polícia, George Bennett, como Robert Redford, era um homem que já passara de sua fase de glória, mas que transmitia aos outros a sensação vívida de que ainda havia muito brilho e vitalidade em seus anos mais maduros.
E, surpreendentemente, George Bennett parecia disposto a falar. Ela suspeitava de vários motivos para isso. O mencionado por ele era que, agora que Ruth Cárter estava morta, ele se sentia livre para falar sem a preocupação de lhe causar mais dor. Contudo, Catherine imaginou que a aposentadoria não o agradava muito. Depois de se aposentar da polícia como detetive superintendente aos cinquenta e três anos, ele trabalhara como consultor de segurança para várias empresas, mas a crescente incapacidade física da esposa por causa da artrite deformante persuadira-o a abandonar esta atividade um ano atrás. George Bennett não era o tipo de homem que gostava de apreciar a vida de fora, nem parecia ser daqueles que gostavam do anonimato, de ser apenas mais um idoso, irrelevante para o resto da sociedade. Catherine achou que sua sugestão vinha no momento mais oportuno possível.
Quatro meses depois, haviam assinado um contrato para o livro e Catherine negociara uma licença de seis meses de seu emprego. Agora, estava em Scardale, finalmente no palco do drama que moldara sua adolescência.
3
Fevereiro de 1998
George Bennett fitou seu reflexo na janela da cozinha. Os contornos do jardim, do lado de fora, flutuaram por trás dos traços de seu rosto, suavizando alguns dos vincos que os últimos trinta e cinco anos haviam causado. O desaparecimento de Alison Cárter fora o primeiro caso a lhe dar insónia, embora estivesse longe de ser o último. Mas ali estava a garota novamente, roubando-lhe o sono em uma noite gelada de inverno. Cinco e meia da madrugada e nenhuma chance de voltar ao sono abençoado.
A chaleira chiou e ele voltou-se para o brilho claro e frio da cozinha, despejando água fervente sobre o sachê que já colocara na caneca e o remexendo com uma colher até produzir um chá forte. Longos anos de cantinas das delegacias haviam resultado em afinidade pelo sabor amargo do chá de laranja e tanino. Pegou o leite na geladeira e misturou o suficiente dele para esfriar o chá a ponto de poder bebê-lo imediatamente. Depois, sentou-se junto à mesa, puxando seu roupão para junto do corpo, estendeu a mão para o maço de cigarros e acendeu um deles.
Agora que chegara o dia da primeira entrevista real com Catherine para o livro, George arrependia-se de sua decisão. Sempre evitara falar sobre o caso. O nascimento de Paul parecera-lhe um encerramento perfeito, um reinício que lhe permitiria deixar a dor de Ruth Cárter para trás. Obviamente, isso não acontecera com tanta rapidez ou facilidade. O trabalho de rotina na polícia trazia muitos lembretes regulares, impedindo-o de varrer Alison Cárter da área mais acessível de sua memória. Entretanto, ele conseguira manter-se firme em sua decisão de não comentar o caso.
Nenhum de seus colegas entendera a razão para seu silêncio acerca de algo que teriam considerado como um triunfo digno de alarde em qualquer oportunidade. Somente Anne compreendera realmente que, por trás de sua decisão, estava a sensação de fracasso pessoal. Embora tivesse superado problemas tremendos para resolver o desaparecimento misterioso de Alison e tivesse reunido provas suficientes para enforcar o responsável por isso, George ainda era perseguido pela convicção de que fora longe demais em seu trabalho. Ruth Cárter vivera semanas de sofrimento, incerteza e falsas esperanças, agarrando-se à ideia de que a filha ainda poderia estar viva. Não apenas isso, mas Philip Hawkin tivera mais dias de liberdade do que merecera, comendo as refeições preparadas pela esposa, dormindo à noite quando ela permanecia acordada e apavorada, convencido de que seguiria impune pelo assassinato da enteada. George culpava-se por permitir que Hawkin tivesse até mesmo aquele pequeno período de vida tranquila após o que fizera.
Assim, resistira a todas as tentativas de persuadi-lo a falar sobre o caso. Rejeitara ofertas de vários escritores que desejavam rever o caso por meio de suas recordações. Até mesmo aquele escandaloso Don Smart julgara-se no direito de bater em sua porta e exigir seu tempo e seus pensamentos mais íntimos. Não fora difícil rejeitar tal solicitação, pensou George, com um sorriso amargo.
Ironicamente, o amor, que lhe permitira ir em frente, agora o fazia retroceder. Quando Paul contara a ele e a Anne sobre a mudança da irmã de Helen para Scardale, ele soubera que, se o filho tinha intenções tão sérias quanto parecia com esta mulher, mais cedo ou mais tarde sua resolução de jamais voltar ao cenário daquele crime teria de ser revista. Até ali isso não acontecera, mas ele sabia que o divórcio de Helen seria concluído logo e suspeitava que o casal não esperaria muito para se casar. Quando isso acontecesse, fatalmente conheceria a irmã de Helen, sua única parente viva, e não poderia mais evitar Scardale.
Com esta perspectiva pairando sobre sua cabeça, a intercessão de Paul em favor de Catherine Heathcote parecera-lhe um golpe do destino. Era como se os eventos conspirassem para forçá-lo a pensar novamente em Alison Cárter. Ele decidira que não lhe faria mal nenhum apenas encontrarse com a jornalista, para ver se poderia confiar nela. Sua primeira impressão fora a de que era apenas mais uma repórter interesseira, mas, à medida que falavam e ela revelava o impacto do assassinato de Alison Cárter em sua própria vida, ele percebera que jamais encontraria alguém mais apro priado para escrever uma história que, agora, parecia exigir ser contada.
O som familiar de passos que desciam as escadas perturbaram seus pensamentos. Ele ergueu o olhar e viu Anne, que veio ao seu encontro com o rosto inchado de sono.
- Eu a acordei, meu amor? - perguntou ele, virando-se para ligar o fogão novamente.
- Minha bexiga me acordou - disse ela, mal-humorada, movendo-se lentamente até a cadeira no outro lado da mesa. - Além disso, seu lado da cama estava frio, de modo que achei que você poderia desejar companhia.
George levantou-se e serviu a mistura de chocolate maltado e leite que Anne adorava em uma caneca.
- Eu não recusaria - disse, enquanto despejava a água, mexendo, em seguida, com vigor. Ele voltou para sua cadeira e estendeu a caneca para Anne, que a segurou entre seus dedos artríticos, gostando da sensação de calor contra o latejar constante de sua dor reumática.
- Está nervoso pelo encontro de hoje?
- Como seria de esperar - disse George. - Gostaria de não ter concordado.
- Ninguém o culparia por sentir-se nervoso com algo importante assim - disse ela, suavemente. - É inevitável que você queira acertar as coisas e fazer justiça a Alison.
Ele emitiu um pequeno grunhido de menosprezo.
- Meus motivos não são tão nobres, meu amor. Eu desejaria nunca ter concordado com isso porque não quero me expor em um livro como o tolo que fui no caso de Philip Hawkin.
Anne sacudiu a cabeça.
- Você é o único que pensa assim, George. Aos olhos de todo mundo, você foi o herói. Se tivessem uma condecoração em Scardale para coisas assim, já a teriam dado a você no dia em que o júri anunciou o veredicto.
- Talvez. Mas você sabe que nunca medi minhas ações pelo gabarito de outros, apenas por meus próprios critérios, e, de acordo com eles, eu falhei com aquelas pessoas. Eu era parte de um sistema que deixou Alison desamparada, em primeiro lugar, um sistema que não escutou os apelos de uma menina que estava sendo sexualmente abusada. Anne apertou os lábios, com impaciência.
- Agora você está sendo tolo. Na época, ninguém admitia a existência de algo como pedofilia. Certamente não dentro das famílias. Se quer sofrer imaginando que fracassou com Ruth Cárter, o problema é seu, mas eu não vou ficar aqui sentada enquanto você se condena pelos erros da sociedade britânica trinta e cinco anos atrás. Isso é bobagem, George Bennett, e você sabe muito bem.
Ele sorriu, reconhecendo que a esposa tinha razão.
- Talvez. E talvez eu devesse ter falado sobre tudo isso anos atrás. Não é isso o que os psicólogos sempre aconselham? Eles dizem que falar sobre frustrações traz a cura. Mantê-las reprimidas causa todo tipo de psicose.
Anne devolveu o sorriso.
- Como essa sua paranóia de se responsabilizar por todos os males do mundo.
Ele correu a mão pelos cabelos.
- Há outra coisa, também. Terei de exorcizar meus fantasmas pelo bem de Paul e de Helen. Teremos de ir até Scardale um dia desses, para nos encontrarmos com a irmã de Helen, e eu deixei que Scardale se tornasse uma espécie de bicho-papão para mim. Terei de mudar isso ou estragarei tudo para todos. E não quero fazer nada que possa prejudicar a felicidade de Paul. Falar com uma pessoa estranha sobre tudo o que aconteceu talvez me faça bem.
- Acho que você está certo, querido, e não posso negar que estou feliz por você ter finalmente decidido falar sobre Alison. Além de todos os outros motivos, aquilo aconteceu em uma época muito importante em nossas vidas. Muitas vezes, tive de segurar coisas que eu desejava dizer, recordações que queria compartilhar, porque sabia que, se falasse do tempo em que estava grávida, você sempre lembraria que, nesse mesmo período, estava trabalhando no caso de Philip Hawkin. Assim, não lamentarei se o fato de você se abrir para Catherine Heathcote significar que poderei lhe contar sobre algumas das recordações que precisei manter para mim mesma. E Poderei falar não apenas com você, mas também com Paul. Sei que é egoísmo de minha parte, mas adoro esta possibilidade.
Os olhos de George arregalaram-se, em surpresa.
- Eu nem imaginava que você se sentia assim - protestou, sacudindo a cabeça. - Como pude não perceber?
Anne tomou um gole de seu chocolate.
- Porque eu também nunca falei, amor. Mas agora você está aposentado, não faz mais trabalho de segurança e é hora de podermos olhar para nossa vida juntos, sem medo. Ainda temos um futuro, George. Não somos velhos, não pelos padrões de hoje. Esta é nossa chance de nos livrarmos do passado, de uma vez por todas, para que você veja que fez o que era certo e que seus atos fizeram diferença na vida de muitos. - Ela pegou a mão do marido entre suas próprias mãos nodosas. - É hora de perdoar a si mesmo, George.
Ele deu um suspiro profundo e disse:
- Bem, espero que Catherine Heathcote esteja com humor complacente hoje. - Ele bocejou. - Não estarei com muita energia às dez da manhã, a menos que consiga dormir um pouco. - Ele mudou a posição de sua mão, para poder, agora, segurar a da esposa. - Obrigado, meu amor.
- Por quê?
- Por me lembrar que não sou o monstro que imagino ter me tornado, às vezes.
- Você não é um monstro. Bem, exceto quando acorda de ressaca. Tudo dará certo, George. Pelo menos, o passado não nos reserva nenhuma surpresa, não é?
4
Fevereiro/março de 1998
Ao despertar pela primeira vez em sua pequena casa alugada em Longnor, Catherine sentiu um pânico momentâneo por não conseguir recordar onde estava. Deveria estar esparramada em um quarto quente com vidraças altas. Em vez disso, seu nariz estava congelando e ela estava encolhida em posição fetal sob um cobertor estranho, com a única luz vazando pelas bordas de uma fina cortina que cobria uma pequena janela na parede de pedra com mais de trinta centímetros de espessura.
Então, sua memória voltou com um calafrio de excitação que quase eliminou sua irritação contra o sobradinho de pedra gélido pelo qual pagara seis meses adiantados de aluguel. Os proprietários da casa haviam parecido realmente felizes por alugá-la. Pudera! Ninguém em sã consciência alugaria este congelador no inverno, pensou ela, enquanto saltava da cama, tremendo, ao expor as pernas compridas ao frio. Teria de comprar ainda hoje um pijama quentinho e uma bolsa de água quente ou não sobreviveria em Longnor sem uma recaída das frieiras que a torturavam na infância. Ela amaldiçoou os proprietários com adjetivos abundantes e capazes de ser proferidos apenas por um jornalista, e saiu correndo do quarto.
O banheiro era um refúgio bem-vindo. Um aquecedor preso na parede soprou ar quente instantaneamente, e a ducha potente enviou água fumegante. Ela já sabia que a sala-cozinha também se aqueceria rapidamente, graças a uma eficiente estufa a gás. O quarto, porém, era o purgatório. Ao voltar para lá depois do banho, resolveu que, no futuro, se lembraria de se vestir no banheiro.
Enquanto se vestia, lembrou-se de que não dormira em nenhum lugar tão frio desde os tempos da casa de seus pais, em Buxton, antes da instalação do aquecimento central, quando estava com quinze anos. Ela parou de repente, enquanto enfiava o suéter. Se estava tentando recriar a Scardale de 1963, não poderia ter acabado em um lugar melhor. Alison Cárter devia ter crescido acostumada a ter gelo até dentro das janelas de seu quarto, no meio do inverno. E com uma cozinha quente e aconchegante, antes de sua mãe trocar isso pela vida no solar. Catherine não tinha intenção de pesquisar com tanta autenticidade para seu livro, mas já que isto lhe estava sendo dado de bandeja, aceitaria e seria grata pela oportunidade. Além disso, estava a menos de cem metros da casa de Peter Grundy. Tinha certeza de que o policial aposentado de Longnor poderia tornar-se uma fonte preciosa de informações e, além disso, poderia ajudá-la a penetrar com mais profundidade na vida da aldeia. Ela sabia bem como os bares de cidades muito pequenas podiam ser hostis com aqueles vistos como forasteiros, e ela não desejava passar seis meses sem conversar com ninguém à noite. Mesmo se fosse apenas sobre o preço do gado.
Durante seu desjejum de café preto e sanduíche de bacon, ela folheou os recortes xerocados que descobrira depois de muito trabalho no arquivo nacional de jornais em Colindale. Não precisaria muito deles hoje, mas não lhe faria mal dar uma repassada no material para descobrir exatamente a forma que daria à série de entrevistas que faria com George Bennett. Eles haviam concordado que se reuniriam durante duas horas a cada manhã. Isto lhe daria tempo para transcrever as fitas gravadas das entrevistas e não perturbaria demais a vida dos Bennetts. A última coisa que desejava era encher-lhes a paciência com invasões constantes em sua rotina. Nada secaria o poço de lembranças de George com tanta rapidez quanto isso.
Meia hora depois, ela emergiu de um túnel de árvores, no centro da aldeia de Cromford. Seguindo as instruções de George, virou à direita no lago do moinho e cruzou a colina, fazendo a curva aguda à esquerda que dava na entrada da casa do detetive aposentado. Ao desligar o carro, a porta da frente já se abria. George estava ali, emoldurado pelo batente e com uma das mãos levantadas em um aceno. Vestindo calças cinza-escuras, um casaco de lã azul-marinho e camisa pólo em tom claro de cinza, ele parecia um modelo para roupas de tricô para homens maduros. Catherine pensou que só o que faltava era um cachimbo preso entre seus dentes para vê-lo como James Stewart em A Felicidade Não se Compra para maiores de sessenta anos.
- Prazer em vê-la, Catherine - disse ele em voz alta.
- Igualmente, George. - Ela tremia ao entrar na sala quente. - Eu havia esquecido como o clima pode ser cruel nesta época do ano por aqui.
- Isso me leva ao passado - disse ele, guiando-a pelo corredor acarpetado, até uma sala que se parecia com um show-room em uma loja de móveis. Tudo era elegante, até moderno, mas curiosamente sem personalidade. Até mesmo os pósteres emoldurados de pinturas de Monet pareciam insignificantes, em vez de indicarem bom gosto. Nem um único jornal largado em algum lugar perturbava a limpeza asséptica da sala, que cheirava a desodorizador floral. Se os Bennetts chegavam a exibir sua individualidade, não era em sua sala de estar.
- Estava frio assim quando Alison Cárter desapareceu - continuou George. - O clima fez com que eu desejasse, desde o início, que a menina tivesse sido raptada. Assim, haveria uma chance de podermos trazê-la de volta. Eu sabia que ela nunca sobreviveria a uma noite ao relento com esse tempo.
George fez um gesto na direção de uma poltrona que parecia firme e confortável.
- Fique à vontade. - Ele foi até a cadeira oposta. Catherine percebeu que ele tomara para si a poltrona que colocava a luz às suas costas e sobre ela, imaginando se era a escolha deliberada de um policial ou se ele apenas escolhera a poltrona em que sempre se sentava. Sem dúvida, ela poderia descobrir a resposta, após algumas sessões. - E então, como você quer fazer?
Antes que pudesse responder, uma mulher idosa entrou na sala, com cabelos grisalhos e curtos emoldurando um rosto envelhecido precocemente pelas rugas que o sofrimento escavara. Ela portava-se com a rigidez de alguém para quem os movimentos haviam se tornado apenas uma necessidade dolorosa. Até mesmo do outro lado da sala Catherine podia perceber os dedos enodoados e retorcidos com os caroços da artrite reumatóide. Contudo, o sorriso naquele rosto ainda era genuíno, dando aos olhos azuis um brilho de animação.
- Você deve ser Catherine! Que prazer conhecê-la. Sou Anne, esposa de George. Não vou atrapalhar suas entrevistas, a não ser para perguntar se você prefere chá ou café.
- O prazer é meu. Obrigada por permitir que eu invada sua casa assim - disse Catherine, calculando as probabilidades de conseguir um café decente em um lar inglês habitado por duas pessoas na casa dos sessenta anos. - Aceito um chá, obrigada. Bem fraco, sem leite nem açúcar - disse, imaginando que deste modo não teria surpresas. Alguns meses de café ruim seriam algo bem pior.
- Chá, então - disse Anne.
- Senhora Bennett, se quiser sentar-se conosco em algumas entrevistas, sinta-se à vontade. Eu ficaria muito grata se pudesse conversar com a senhora de vez em quando, para ter uma imagem completa sobre sua vida como esposa de um policial, quando seu marido investigava um caso tão complexo.
Anne sorriu.
- Claro, podemos conversar. Mas deixarei as entrevistas para você e George. Não quero atrapalhar o estilo dele e, além disso, tenho muito com que me ocupar. Agora, vou preparar seu chá.
Catherine tirou seu gravador da bolsa enquanto Anne saía, colocando-o sobre a mesa, entre os dois.
- Pretendo gravar as entrevistas, para diminuir as chances de cometer erros. Assim, se você quiser falar algo que não possa ser publicado, algo que sirva apenas para minha informação, por favor, deixe isso bem claro enquanto estivermos falando. Além disso, se você tiver dúvida sobre algo, deixe isso claro também. Assim, poderei fazer uma lista de pontos que precisam ser conferidos.
George sorriu.
- Tudo parece bem organizado. - Ele pegou um maço de cigarros do bolso e acendeu um, tirando um cinzeiro de dentro de uma gaveta na mesinha ao seu lado. - Espero que você não se importe por eu fumar. Reduzi bastante desde que me aposentei, mas ainda não consegui parar totalmente.
- Não há problema. Faz mais de doze anos que não fumo, mas ainda me vejo como uma fumante que deu um tempo com os cigarros, em vez de como uma ex-fumante. Sempre fico perto dos fumantes, nas festas. Em geral são as pessoas mais interessantes - disse, sorrindo, com sinceridade. Então, inclinou-se para a frente e apertou o botão para começar a gravar. - Provavelmente não chegaremos ao caso hoje. Gostaria de começar obtendo algumas informações pessoais a seu respeito. A maior parte disso não será publicada, mas acho importante formar uma imagem a seu respeito e de como se tornou esta pessoa, para escrever sobre seu trabalho nesse caso com o tipo de conhecimento e empatia que desejo usar. Além disso, falarmos um pouco sobre você serve para entrarmos gradualmente na história. Talvez você esteja um pouco nervoso por abordar os detalhes do caso depois de tantos anos, e quero que se sinta tão confortável quanto possível. Claro que, como policial, você está muito mais acostumado a fazer perguntas que a respondê-las. E então, podemos começar por você?
- Claro - respondeu George, sorrindo. - Terei prazer em responder a tudo o que você quiser saber. - Ele fez uma pausa, enquanto Anne entrava, movendo-se lentamente com uma bandeja e duas canecas. - Uma coisa eu lhe digo desde já. Foi por causa desta mulher que não terminei em um hospício depois de trinta e tantos anos na polícia de Derbyshire. Anne é meu rochedo, minha força.
Anne fez uma careta, enquanto pousava a bandeja na mesinha de centro.
- Você é um adulador, George Bennett. Na verdade, o que você quer dizer é: Anne é minha cozinheira, secretária e faxineira - falou, com um sorriso para Catherine.
Era óbvio que aquela era uma brincadeira familiar entre o casal. George acrescentou:
- Ela precisou ter artrite para que eu lhe desse uma mãozinha no serviço doméstico.
- Bem, eu precisava mesmo fazer algo - disse Anne, secamente. - Se não, você acharia que a aposentadoria significa que pode parar de fazer absolutamente tudo. Agora, pare com as bobagens e diga a Catherine o que ela precisa saber. Trarei biscoitos e, depois, só os verei quando tiverem terminado.
Assim começou o padrão dos dias que duraram de fevereiro a março. Catherine começava cada dia lendo a seção de seus recortes de jornal que envolvia a parte do caso sobre a qual haviam conversado. Depois do café da manhã, ela dirigia até Cromford, pensando nas perguntas que faria para extrair mais revelações de seu entrevistado.
Então, ela conduzia George gentilmente pelo caso, retrocedendo com paciência para capturar um determinado detalhe sobre o clima, odores ou paisagem, impressionada com o anseio dele para garantir o máximo de fidelidade em cada ponto. Ele demonstrava uma memória quase fotográfica para o caso Alison Cárter, embora afirmasse que não recordava tão bem outras investigações que fizera posteriormente.
- Suponho que me tornei um pouco obcecado por Alison - dissera ele no começo das sessões de entrevista. - Ah, sei que foi o meu primeiro grande caso, e estava determinado a mostrar que era capaz de resolvê-lo, mas havia algo mais. Acho que teve algo a ver com saber sobre a gravidez de Anne logo no começo daquela investigação. Eu estava atormentado pela preocupação, imaginando como me sentiria se aquilo acontecesse com um filho meu, de modo que não queria fracassar.
- Essa, pelo menos, era a minha maior motivação - continuou. - Não sei quanto a Tommy Clough, mas ele demonstrou tanto envolvimento com cada etapa deste caso quanto eu. Ele trabalhou ainda mais que eu, e foi sua persistência com a polícia de Hertfordshire que nos trouxe a prova mais importante, a ligação de Hawkin com a arma usada para matar Alison. Sabe, é esquisito, mas nunca mais conversei direito com ele depois que Hawkin foi enforcado. Tommy ainda estava em Buxton, mas eu já me mudara para Derby. Combinamos encontros algumas vezes, mas o trabalho sempre impediu que se concretizassem. E então, alguns anos depois do assassinato de Alison, ele pediu demissão e se mudou.
- Para onde? - indagou Catherine. Ela já fizera a mesma pergunta a Peter Grundy no bar, certa noite, mas ele lhe dissera que ninguém sabia. Era como se Tommy Clough tivesse desaparecido sem deixar rastros, como Alison.
Mas George sabia.
- Ele está em Northumberland, uma cidadezinha litorânea minúscula. Ele trabalhou durante alguns anos como fiscal da RSPB
, mas agora está aposentado, como eu. Nunca se casou, de modo que não tem alguém como Anne para fazê-lo ir em frente. Trocamos cartões de Natal, e aí se encerra nosso contato. Acho que sou o único da polícia com quem ele ainda mantém contato. Posso lhe dar o endereço. Talvez ele queira falar sobre Alison. Duvido um pouco, mas você me fez falar, não é? - Ele sorriu.
E assim continuaram as entrevistas, com um assunto levando naturalmente a outro, enquanto as manhãs passavam rapidamente. Depois de sair da casa de George, Catherine desenvolveu rapidamente uma rotina. Parava no caminho em um bar na estrada para Ashbourne onde almoçava e chegava em casa às duas horas. A tarde e o começo da noite eram dedicados à transcrição das fitas, uma tarefa que considerava monstruosamente enfadonha, apesar de seu fascínio com o material que juntava gradualmente. De meia em meia hora, ela dava um telefonema breve ou trocava e-mails com alguém, para preservar sua sanidade.
Com o trabalho terminado para aquele dia, ela aquecia uma das refeições prontas que comprava em um supermercado de Buxton. Depois, ficava uma hora junto à estufa, com sua própria revista ou da concorrência, armada com um bloco para anotações. Finalmente, terminava o dia bebendo alguma coisa no bar mais próximo. Isto geralmente envolvia pagar um drinque também para Peter Grundy, mas Catherine não se importava, uma vez que ele já lhe oferecera informações preciosas sobre a vida em Scardale e suas famílias. Além disso, ela gostava de sua companhia.
Ela via este estilo de vida como curiosamente satisfatório. O trabalho era fascinante, levando-a de volta a um mundo ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Quanto mais detalhes descobria sobre o caso, mais crescia seu respeito por George Bennett. Ela não tinha ideia daquilo que ele precisara enfrentar para levar Hawkin à justiça, tanto dentro quanto fora da polícia. Nunca tivera uma opinião particularmente favorável sobre policiais, mas George transformava gradualmente este preconceito.
Ela também se sentira nervosa por estar tão perto de sua casa, quase supersticiosamente temerosa de que, de algum modo, a vidinha tão limitada de cidade do interior, que tanto se esforçara por deixar, pudesse envolvê-la novamente. Em vez disso, descobrira uma estranha paz no ritmo de seus dias e noites. Não que desejasse viver assim para sempre, lembrava a si mesma, com energia. Afinal de contas, tinha uma vida à sua espera, longe dali. Agora, vivia apenas um agradável interlúdio, nada mais.
E o que mais poderia ser?
5
Abril de 1998
Catherine esquecera-se do quanto a primavera demorava a chegar por ali. Para qualquer um que vivesse na região dos picos de Derbyshire, abril trazia alívio, após os rigores do inverno. Bulbos que haviam florescido um mês antes, a algumas dezenas de quilómetros dali, na planície de Cheshire, finalmente irrompiam do solo. Árvores produziam botões tímidos e a grama cortada pelos carneiros lembrava novamente a cor verde.
Em Scardale, as primeiras folhas começavam a surgir em arvoredos e bosques, enquanto Catherine entrava na aldeia. Sentia-se quase triste por ter completado suas entrevistas iniciais com George, e o dia de hoje marcava o início da segunda fase de seu projeto. Catherine nunca pretendera tornar seu livro apenas um registro das recordações de George Bennett. Sempre planejara entrevistar o máximo possível de pessoas ligadas ao caso. Não lhe ocorrera, porém, que muitos relutariam em compartilhar suas recordações. Para sua surpresa, quase todos os Carters, Crowthers e Lomas haviam recusado terminantemente qualquer participação no projeto.
Entretanto, ela conseguira marcar uma entrevista com Kathy Lomas, tia de Alison. Talvez não tivesse muita importância que os outros parentes a tivessem rejeitado, já que, de acordo com George, Kathy sempre fora a pessoa mais íntima de Ruth. Só isso já lhe serviria como motivo para desejar conversar com a mulher. Entretanto, havia uma segunda razão para sua ansiedade hoje.
Apesar de Helen ter preparado o caminho com sua irmã, Catherine ainda não estivera dentro do Solar Scardale. A resposta ao seu pedido viera por uma carta do advogado de Janis Wainwright, que lhe dizia que sua cliente planejava fazer diversas viagens no fim do inverno e começo da primavera, e que, portanto, trabalharia em casa no restante do tempo, quando pretendia não ser perturbada. O advogado sugerira que, uma vez que a senhorita Wainwright não podia dizer nada a Catherine sobre o caso Alison Cárter, a melhor solução, que serviria aos propósitos do livro e não perturbaria a agenda cheia de Janis, era uma visita da escritora por conta própria ao solar, em uma das ocasiões em que a proprietária não estivesse em casa.
Catherine concordou com a sugestão do advogado, já que esta era a única maneira de entrar no solar. Finalmente hoje ela veria o interior da herança de Philip Hawkin. Melhor ainda: teria um guia que poderia revelarlhe onde havia sido o quarto de Alison, o estúdio de Hawkin e, além disso, descreveria a decoração daquela época.
Era impossível não especular sobre a mulher que estava prestes a conhecer. George Bennett pintara-a como uma mulher briguenta e controladora, sem respeito pela polícia, que constantemente o importunava, quando achava que tinha motivos. Peter Grundy descrevera-a como uma mulher que vivia à sombra do que poderia ter sido e não foi.
Com Peter, ela também vislumbrara alguns dos fatos da vida de Kathy Lomas. A tia de Alison vivia sozinha, atualmente. Seu marido, Mike, morrera cinco anos antes em um acidente na fazenda, pisoteado por um touro furioso. Seu filho, Derek, saíra de Scardale para cursar a universidade em Sheffield e tornara-se agrónomo, trabalhando para as Nações Unidas. Kathy, agora na casa dos sessenta anos, criava carneiros em Scardale. Ela transformava a lã em fios e, depois, fazia suéteres caros em uma máquina de tricotar que, de acordo com a esposa de Peter Grundy, tinha mais controles que uma nave espacial.
Kathy e Ruth Cárter eram primas, com diferença de menos de um ano em idade, ligadas pelo sangue dos lados tanto materno quanto paterno. Haviam crescido e se transformado em mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam muito ligadas. Se Catherine não pudesse obter o que pretendia com Kathy Lomas, provavelmente não obteria de mais ninguém. E se a mulher era tão difícil quanto George dizia, precisaria ser abordada com extrema habilidade.
Catherine estacionou junto à Casa da Cotovia, construída no século XVIII, onde Kathy vivia desde seu casamento, dezenove anos antes do desaparecimento de Alison. A mulher que abriu a porta ainda mantinha-se ereta e parecia forte. Tinha os cabelos grisalhos, presos com grampos em um coque no alto da cabeça. Isto, juntamente com as bochechas rosadas, fazia com que se parecesse com uma personagem de filme, algo como uma matrona típica e saudável do interior. Apenas seus olhos desmentiam sua aparência alegre. Eram frios e críticos, fazendo com que Catherine se sentisse examinada e avaliada em todos os sentidos, além do financeiro.
- Então você é a escritora - cumprimentou-a Kathy, virando-se para tirar do gancho junto à porta uma capa surrada. - Acho que você vai querer dar uma olhada no solar primeiro. - Seu tom não dava espaço para nenhuma outra sugestão.
- Seria ótimo, senhora Lomas - disse Catherine, andando ao lado da mulher idosa enquanto cruzavam a praça, rumo ao solar. - Sou muito grata por ceder seu tempo para me ajudar. - Ela amaldiçoou-se por mostrar-se efusiva demais.
- Não estou cedendo meu tempo para você - disse Kathy, sem nenhuma gentileza. - É pela memória de Alison. Penso nela com frequência. Era uma ótima garota. Imagino a vida que teria se tudo tivesse sido diferente. Eu a vejo trabalhando com crianças. Uma professora ou, talvez, pediatra. Algo positivo e útil. E então acordo para a realidade.
Ela fez uma pausa na porta do solar e fixou o olhar duro em Catherine.
- Se eu pudesse voltar no tempo e mudar algo em toda a minha vida, seria aquela noite de quarta-feira - disse, com amargura. - Eu não deixaria Alison sair das minhas vistas. Não adianta nada me dizer para não ficar me culpando. Sei que Ruth Cárter foi para o túmulo imaginando como poderia ter mudado as coisas, e eu irei para meu próprio túmulo pensando o mesmo quando chegar minha hora. Atualmente, minha vida parece conter muitos remorsos. Como é que se diz mesmo? Ah, que não adianta chorar sobre o leite derramado. Bem, já passei muitos anos pensando no que não fiz e não disse. O problema é que o único lugar em que poderei pedir perdão a quem importa é no túmulo. E é por isso que estou disposta a lhe contar como foi, senhora Heathcote.
Ela tirou uma chave de seu bolso e destrancou a porta, levando Catherine até a cozinha. A nova proprietária certamente não economizara ao reformar aquele cómodo. Os armários de pinho e o balcão mostravam a patina que os distinguia como antiguidades, não alguma reprodução moderna. Os tampos dos móveis eram um misto de mármore e madeira tratada. Além de um fogão Aga verde-escuro, havia um refrigerador-freezer com portas duplas e uma lavadora de louças. Catherine viu uma pequena pilha de jornais na ponta da mesa da cozinha. O jornal de cima trazia a data de dois dias atrás. Então Janis Wainwright partira recentemente, pensou ela. Apesar disso, a cozinha tinha o ar vazio de um local desocupado há muito tempo.
- Aposto que não era assim em 1963 - disse, em tom seco. Kathy Lomas sorriu, finalmente.
- Tem razão.
- Pode me contar como era?
- Acho que é melhor fazer um chá primeiro.
- Estou contente porque a senhorita Wainwright permitiu que eu viesse aqui. Você sabe que a irmã dela está noiva do filho de George Bennett?
- Ah, sim. Este mundo é pequeno mesmo. - Ela encheu a chaleira.
- Conheci Helen em Bruxelas - continuou Catherine. - É muito gentil. Que pena sua irmã não estar.
- Ela viaja muito, e duvido que desejasse se envolver em um livro sobre um homicídio - disse Kathy, em tom repressor, tirando duas canecas de um armário e colocando-as bruscamente sobre o balcão.
Catherine cruzou a cozinha até a janela que dava para a praça da aldeia. Ela imaginou as horas vazias que Ruth Cárter devia ter passado, esforçando-se em vão para ouvir o som dos passos da filha chegando em casa.
Como se lesse seus pensamentos, Kathy falou:
- Algo, em meu íntimo, transformou-se em pedra naquela noite, quando vi os policiais chegando à praça da aldeia. Se eu corresse o risco de esquecer, os pesadelos tratariam de me fazer lembrar. Ainda não consigo ver um uniforme de policial na aldeia sem me sentir nauseada.
Ela voltou-se para coar o chá.
- Aquela noite mudou tudo, não? - indagou Catherine, ligando disfarçadamente o gravador dentro do bolso de seu casaco.
- Ah, sim, mudou mesmo. Pelo menos tínhamos um detetive como George Bennett ao nosso lado. Se não fosse por ele, aquele bastardo do Hawkin poderia ter saído impune. Esta é a outra razão pela qual eu desejava falar com você. Já é hora de George Bennett receber o crédito que merece pelo que fez por Alison.
- A senhora é uma das poucas pessoas em Scardale que parece pensar assim. A maioria dos seus parentes não vê as coisas desse modo. Exceto por Janet Cárter e Charlie, que está em Londres, ninguém mais quis falar comigo - observou Catherine, ainda esperando poder recrutar a ajuda de Kathy para soltar a língua dos demais.
- Bem, não posso mandar na vontade dos outros. Eles têm suas razões. Nem posso dizer que os culpo por não desejarem revirar o passado. Nenhum de nós tem boas recordações daquela época. - Ela despejou o chá de uma chaleira de barro em duas canecas do mesmo material. - E então? Você quer saber como era este lugar?
Durante uma hora, as duas percorreram todos os cómodos, enquanto Kathy oferecia descrições detalhadas sobre os móveis e a decoração e Catherine tentava recriá-los em sua imaginação, surpresa por não ter qualquer sensação sinistra enquanto era levada pela casa. Chegara a imaginar que, de algum modo, os eventos que haviam levado à morte de Alison Cárter pudessem ter impregnado as paredes do Solar Scardale, deixando seus fantasmas no ar como partículas de poeira. Contudo, não havia nada parecido ali. Aquela era simplesmente uma casa antiga e que, embora reformada com criatividade e muito dinheiro, jamais seria particularmente notável. Até mesmo o anexo usado por Philip Hawkin como laboratório fotográfico era bastante ordinário. Agora, servia apenas como depósito para ferramentas de jardinagem e móveis velhos, nada mais que isso.
Ainda assim, o tour foi produtivo para Catherine, permitindo-lhe colocar seu conhecimento sobre os eventos contra um fundo concreto. Ela disse isso a Kathy Lomas, enquanto ela trancava novamente a porta da frente e as duas voltavam à Casa da Cotovia para a entrevista formal.
- Ah, sim. Bom, é melhor mesmo não cometer nenhum erro no livro. Agora, o que você queria me perguntar?
No fim, o testemunho de Kathy acrescentou pouco ao que George já lhe contara. Seu valor estava principalmente no conhecimento mais íntimo que a mulher possuía sobre as pessoas envolvidas no caso. Ao cair da tarde, Catherine sentia que finalmente conhecia Ruth Cárter e Philip Hawkin o suficiente para escrever convincentemente sobre eles. Isto já valia a ida até Scardale.
- Depois de mim, você falará com Janet - comentou Kathy, enquanto Catherine anotava os detalhes de identificação na última microfita cassete.
- Isso mesmo. Ela disse que preferia conversar comigo à noite.
- Sim. Janet trabalha o dia inteiro e prefere guardar os fins de semana para ela e Alison. - Kathy levantou-se e juntou as canecas que haviam usado.
- Alison? - perguntou Catherine, erguendo subitamente a cabeça.
- Sua filha. Nossa Janet nunca se casou. Desperdiçou a juventude com um homem casado. Depois, engravidou quando estava com trinta e cinco anos, em uma idade na qual já não deveria fazer asneiras. O pai é algum americano que ela conheceu em um hotel em que estava hospedada por causa de uma conferência. De qualquer forma, ele voltou para Cincinnati antes que Janet descobrisse a gravidez, de modo que ela criou a menina sozinha.
- Deu o nome de Alison à filha?
- Sim. É como eu disse. Alison não foi esquecida em Scardale. Olhe, Janet teve sorte. Ela tinha a mãe para cuidar de sua filha de graça, de modo que conseguiu continuar fazendo de conta que era uma mulher livre e batalhadora. - Havia uma nota surpreendente de crítica na voz de Kathy. Catherine imaginou se ela sentia rancor por ter sido deixada pelos filhos, que moravam longe, e ter negada a chance de cuidar dos netos, ou se apenas condenava Janet por ter feito o que fez.
- E o que ela faz?
- Administra a filial de uma construtora em Leek. - Kathy olhou para fora da janela, na qual as cortinas ainda estavam abertas, apesar da escuridão da noite. As luzes de um carro surgiram no fim da estrada. - Acho que ela chegou. É melhor você ir então.
Catherine levantou-se, ainda sentindo-se confusa com as mudanças imprevisíveis de humor de Kathy Lomas, que passava de confidências à frieza total.
- A senhora me ajudou muito.
Kathy apertou os lábios estreitos por um instante e disse:
- Bom. Tudo isso foi... interessante. É, interessante. Contei-lhe coisas que já havia esquecido que sabia. E então, quando poderemos ler seu livro?
- Infelizmente, não antes de junho - disse Catherine. - Mas assim que a versão final estiver disponível, tratarei de lhe enviar um exemplar.
- Faça isso, garota. Não quero ver algum repórter batendo em minha porta e fazendo perguntas sobre um livro que nunca li. - Ela abriu a porta da frente e deu passagem a Catherine. - Diga a Janet que ela me deve meia dúzia de ovos.
A porta já se fechara quando Catherine chegou ao fim da trilha. Vacilando um pouco no escuro, ela virou à direita e passou pela Casa do Outeiro, onde Charlie Lomas vivera com sua avó, e entrou na trilha curta que levava à Casa do Condado, onde Janet Cárter crescera com seus pais e três irmãos. De acordo com Peter Grundy, os pais haviam vendido a propriedade à filha três anos antes, quando decidiram mudar-se para a Espanha por causa do clima. Catherine nunca imaginaria viver na casa onde havia crescido. Sua infância havia sido feliz, mas não deixara escapar a chance de ter liberdade e oportunidades em Londres.
Fosse qual fosse a razão para Janet Cárter desejar continuar em Scardale, Catherine teve certeza de que não havia sido por sentimentalismo, ao ver o interior da casa. Todo o andar térreo havia sido convertido em um único espaço contínuo, rompido apenas pela lareira. Sendo uma das casas mais novas de Scardale - construída provavelmente no começo da era vitoriana, como explicou Janet -, o pé-direito era mais alto, de modo que a eliminação das paredes criara uma sensação impressionante de espaço. Em uma ponta do salão, havia um espaço reservado à pequena cozinha funcional, com unidades de aço inoxidável que refletiam os múltiplos tons de cinza das paredes expostas de pedra. A extremidade oposta era um espaço social dominado pelas cores ricas de quadros e tapetes indianos. No meio, havia uma grande mesa de pinho, que parecia servir duplamente para refeições e trabalho. Uma adolescente estava sentada ali, olhando para a tela de um computador com grande atenção. Ela olhou apenas de relance quando Catherine entrou.
- Mas isto aqui é maravilhoso - exclamou Catherine, sem conseguir conter-se.
- Incrível, não é? - Os traços de Janet haviam se tornado ainda mais felinos com a idade. Seus olhos amendoados formavam vincos nos cantos enquanto ela sorria, alegre. - Todos ficam surpresos quando vêem a minha casa. É muito mais convencional no piso de cima, mas eu queria que o térreo fosse totalmente diferente.
- Janet, é impressionante. Nunca vi algo assim em casas antigas como a sua. Você me deixaria fazer uma matéria com fotografias de sua casa para minha revista?
Janet lançou-lhe um sorriso afetado.
- Pagariam por isso, não é?
O sorriso que Catherine lhe devolveu em resposta não tinha nada de amável.
- Talvez a revista possa dar um jeito nisso. Desculpe-me se não posso lhe pagar pela entrevista para o livro. Mas, sabe, editores... bem, editores economizam cada centavo que podem. - O que desejaria dizer era que não tinha a mínima intenção de oferecer nada de seu adiantamento generoso para alguém tão obviamente gananciosa, imaginando até onde Janet Cárter espremera os pais para conseguir pagar-lhes o mínimo possível pela casa.
As duas ajeitaram-se em um sofá baixo e Janet serviu vinho tinto em copos pesados de vidro, fazendo um gesto vago na direção da filha.
- Ignore Alison. Ela não ouvirá uma palavra do que dissermos. Ela chega da escola, enfia algo pronto no microondas e, então, perde-se no ciberespaço. Está agora com a mesma idade de Alison e eu em 1963. Quando olho para a minha Alison, tenho as mesmas preocupações que minha própria mãe deve ter tido, embora minha vida seja muito diferente da que ela teve.
- Tudo mudou no dia em que Ali desapareceu - recordou Janet, começando como quem está pronta para uma longa conversa. - Suponho que nunca entendi como aquilo foi horrível para minha tia e meus pais até ter minha própria filha. Eu só sabia que Alison havia desaparecido, mas certamente nunca me passou pela cabeça que deveria preocupar-me por mim também. Os adultos, além de toda a ansiedade sobre Ali, devem ter sentido um imenso temor de que ela pudesse ter sido apenas a primeira vítima, de que nenhum de seus filhos estava em segurança.
- Lembre-se de que, na época, as crianças não participavam de assuntos dos adultos. Não líamos jornais, nem acompanhávamos os noticiários, a menos que houvesse algo sobre cantores ou astros de cinema. Assim, ignorávamos completamente que duas crianças já haviam desaparecido tão perto daqui, em Manchester. A única coisa que sabíamos era que o desaparecimento de Alison limitara nossa liberdade, e esta experiência foi muito estranha para nós em Scardale.
Catherine assentiu, dizendo:
- Sei exatamente o que você quer dizer. Em Buxton, nós sentimos a mesma coisa. De repente, éramos tratados como porcelana frágil. Por onde quer que andássemos, precisávamos ter um adulto ao nosso lado. Minha mãe não me deixava nem levar o cachorro para passear no bosque próximo se não houvesse um adulto para me acompanhar. Isso é irónico quando pensamos que o perigo estava dentro da casa de Alison. Mas deve ter sido mil vezes pior para você, com todo o medo e ansiedade bem ali, na casa de sua tia.
- É verdade - disse Janet, emocionada. - Estávamos acostumados a andar livremente pelo vale. Nunca estávamos dentro de casa no verão, e mesmo no inverno íamos até as colinas ou seguíamos o curso do Scarlaston até Denderdale, ou simplesmente ficávamos pelo matagal, nos divertindo. Como Derek, Alison e eu éramos praticamente da mesma idade, andávamos sempre juntos. E então, de repente, éramos somente Derek e eu, e não podíamos sair de casa. Como prisioneiros. Meu Deus, como aquilo foi difícil para nós.
- As pessoas se esquecem de como era ser um adolescente no começo dos anos 60 - disse Catherine, lembrando-se vividamente do papel enorme que o tédio tivera em sua própria adolescência.
- Especialmente em um lugar como Scardale - disse Janet. - Eu ia à escola e todas as minhas amigas só falavam sobre programas de televisão, sobre idas ao cinema ou com quem haviam dançado no baile da igreja. Nós não tínhamos nada disso. Todos riam de nós, porque aqui em Scardale não tínhamos a menor ideia do que acontecia no resto do mundo. Não era como se marchássemos em um ritmo diferente. Era como se estivéssemos paralisados em relação às outras pessoas. Bem, você sabe disso, se frequentou uma escola em Buxton.
Catherine concordou:
- Eu estava um ano adiante de você, mas lembro que não riam apenas das crianças de Scardale. Qualquer um que morasse em outra cidade também ria de nós, que morávamos em Buxton.
- Posso imaginar. As crianças sabem ser cruéis umas com as outras. E, comparado com o que nos aconteceu depois do desaparecimento de Alison, ser xingado era o menor de nossos pesadelos. Quando recordo as semanas que se seguiram ao desaparecimento de Alison, o que mais me lembro é de Derek e eu, sentados em meu quarto, escutando a rádio Luxemburgo naquele imenso rádio que tínhamos. A recepção era horrível, cheia de estática e ecos. Além de tudo, quase congelávamos por aqui, pois isso tudo aconteceu bem antes de instalarmos aquecimento central em nossas casas. Sentávamos no quarto, com nossos casacos de inverno. Mas mesmo hoje em dia, certas canções me fazem voltar no tempo, como Needles and Pins, do The Searchers, Anyone Who Had a Heart, de Cilla Black, World Without Love, de Peter e Gordon, e
Want To Hold Your Hand, dos Beatles. Sempre que as escuto, vejo-me outra vez em meu quarto, sentada sobre meu cobertor cor-de-rosa, e Derek sentado no chão, de costas para a porta, abraçando os joelhos. E sem Alison.
- Quando se é criança - continuou -, certas coisas parecem imutáveis. Passamos o dia inteiro na companhia de alguém, e jamais pensamos que, um dia, podem não estar mais ali. De certo modo, sinto-me feliz por você escrever este livro. Muitos de nós perderam alguém e não há nada para provar que um dia estiveram aqui, exceto nossas lembranças sobre eles. Pelo menos poderei pegar seu livro e saber que Ali esteve mesmo conosco. Não o bastante, mas ela esteve aqui.

6
Maio de 1998
George Bennett parou para respirar, com as mãos nos quadris, enquanto sorvia o ar morno e úmido. Seu filho esperava-o alguns passos à frente, apreciando a vista espetacular proporcionada pelas Colinas de Abraão, cruzando o desfiladeiro profundo escavado pelo rio Derwent até o perfil dramático do parque Riber Castle, sobre o monte. Haviam tomado o teleférico em Matlock Bath até o pico, e agora caminhavam pela crista arborizada rumo a uma trilha sinuosa que os levaria gradualmente de volta até o rio, lá embaixo.
Paul jamais conseguiria contar o número de caminhadas que já fizera com o pai ao longo dos anos. Assim que se tornara capaz de acompanhar seus passos, George levara-o para caminhar nos vales e picos de Derbyshire. Parte desses passeios estava gravada em sua memória, como a escalada do Mam Tor no dia anterior a seu décimo sétimo aniversário. Outros haviam desaparecido, aparentemente sem deixar rastros, reaparecendo apenas quando ele voltava ao local com Helen, ocasionalmente. Quando vinha sozinho à Inglaterra, como ocorrera neste fim de semana, ainda gostava de subir as colinas com seu pai, embora atualmente George preferisse caminhos menos íngremes e não se dispusesse mais a loucas aventuras ao acaso, como ocorrera quando era mais jovem e capaz.
Paul voltou-se para olhar o pai, que havia recuperado o fôlego, embora seu rosto ainda estivesse rubro pelo esforço do trecho pequeno, mas íngreme, que haviam completado.
- Você está bem? - perguntou.
- Não se preocupe - disse George, endireitando-se e indo até ele. - Só não sou mais tão jovem. Apesar disso, esta vista vale a pena.
- Sinto saudade disso, vivendo em Bruxelas. Fiquei mal-acostumado, tendo crescido perto de lugares como este. Lá, se desejamos fazer trilha em um monte decente, precisamos dirigir por horas. Então, geralmente, não nos damos ao trabalho. E exercitar-se em uma academia não tem graça quando lembro disso aqui - falou, com um gesto amplo na direção do horizonte.
- Pelo menos dentro da academia você não pega chuva - disse George, apontando para as nuvens ao longe, com a sombra de chuva sob elas. - Teremos de enfrentá-la daqui a pouco. - Ele começou a caminhar, sendo acompanhado pelo filho. - Não tenho saído tanto quanto gostaria ultimamente - continuou. - Depois de terminar as entrevistas com Catherine de manhã, cuidar do jardim e fazer todas as outras tarefas domésticas, mal tinha tempo para algo mais que uma partidinha de golfe, de vez em quando.
Paul sorriu-lhe.
- Isso é minha culpa, então?
- Não estou me queixando. De um modo esquisito, estou contente porque você me convenceu. Guardei tudo aquilo por tempo demais, só para mim. Eu achava que enfrentar as recordações seria mais traumático do que realmente foi. - Ele deu uma risada seca. - Durante todos esses anos, aconselhei meus subordinados a enfrentarem seus medos, a levantarem-se depois da queda, e fiz exatamente o oposto.
Paul concordou, com um aceno de cabeça.
- Você sempre me ensinou que é melhor enfrentar o que nos assusta.
- Sim, desde que você escolha onde quer confrontar seus monstros - disse George, em tom sombrio. - De qualquer modo, a verdade é que o caso Alison Cárter não era um monstro tão assustador quanto eu pensava. E Catherine facilitou as coisas. Ela fez muitas pesquisas, tenho de admitir. Assim, durante a maior parte do tempo, nos concentramos em detalhes. Isso me fez perceber que, no fim das contas, fiz um ótimo trabalho, sob as circunstâncias em que me encontrava.
Os dois chegaram a uma curva no caminho. George parou e olhou para o filho, respirando fundo.
- Preciso contar-lhe algo, porque não quero que você leia sobre isso em um livro antes de ouvir de mim. Sua mãe e eu lhe escondemos algo. Quando você era pequeno, não contamos porque achamos que isso o assustaria. Sabe como são as crianças, a imaginação é capaz de aumentar qualquer coisinha. E quando você cresceu, bem... nunca parecia ser a hora certa de lhe contar. Paul sorriu, inseguro.
- Bem, é melhor contar logo, então.
George pegou seus cigarros e lutou contra o vento leve para acender um.
- Philip Hawkin foi enforcado no dia em que você nasceu - disse, finalmente.
O sorriso de Paul transformou-se em perplexidade.
- No dia em que eu nasci?
- Sim... Recebi a notícia de seu nascimento pouco depois do enforcamento de Philip Hawkin.
- Então é por isso que você sempre festejou tanto meu aniversário? Para tentar se esquecer daquele outro aniversário? - perguntou Paul, incapaz de esconder sua mágoa.
George negou, sacudindo a cabeça.
- Não, não. Não foi assim. Seu nascimento foi... não sei bem como dizer... Foi como um sinal dos deuses para que eu deixasse Alison Cárter no passado e seguisse em frente. Em cada aniversário seu, o que me vinha à lembrança não era Philip Hawkin, mas... Olhe, eu pareço estar recitando o texto de algum livro americano de auto-ajuda, mas seu nascimento me trouxe uma sensação de renovação, de recomeço. Como uma promessa.
Os dois homens fitavam-se. A expressão de George era de súplica, para que o filho acreditasse em suas palavras. Após um momento em silêncio, Paul deu um passo à frente e enlaçou o pai em um abraço desajeitado.
- Obrigado por me contar - murmurou, consciente, agora, do quanto amava seu pai, embora os contatos físicos entre ambos sempre fossem raros. Ele separou-se do pai com um sorriso largo. - Agora entendo por que você não queria que eu descobrisse isso somente ao ler o livro de Catherine.
George devolveu-lhe o sorriso.
- A julgar por sua reação, você teria entendido tudo errado.
- Provavelmente - reconheceu Paul. - Mas entendo por que você não me contou quando eu era pequeno. Eu teria tido pesadelos, com certeza.
- Sim. Você sempre teve uma imaginação muito ativa - falou George, virando-se para apagar o cigarro sob o salto de sua bota e olhando Paul sobre os ombros. - Ah, outra coisa. Se você quiser, na próxima vez em que vier com Helen, podemos ir a Scardale para conhecer a irmã dela.
- Helen adoraria a ideia - disse Paul, sorridente. - Gostaria muito. Obrigado, pai. Sua proposta é muito importante. Sei que tudo isso deve ter sido muito difícil para você.
- É. Bem - disse George, um tanto bruscamente -, venha, garoto, vamos sair daqui antes que a chuva venha e nos afogue.
Catherine esperava que seu regresso a Londres fosse um alívio depois da vidinha tranquila e limitada que levara em Longnor, de modo que se sentiu chocada ao descobrir que a cidade na qual havia vivido durante mais de vinte anos lhe parecia estranha: muito barulho, muita sujeira, muito movimento. Até mesmo seu amado apartamento em Notting Hill parecia ridiculamente amplo para uma pessoa, com seus tons frios e suaves e móveis modernos parecendo-lhe insignificantes comparados com as grossas paredes de pedra e móveis avulsos e destoantes da pequena casa em Derbyshire.
A ideia de recomeçar a correria para preencher seus momentos livres com atividades sociais também lhe parecia estranha, mas forçara-se a marcar um jantar com alguns amigos e colegas. Catherine disse a si mesma que de nada adiantaria afastar-se demais do mundo do trabalho. Além disso, depois de mais duas entrevistas, uma reunião com o editor que encomendara seu livro e um encontro para trocar ideias com um produtor de documentários para a televisão que desejava fazer um programa baseado em suas pesquisas, ela achou que merecia algum prazer legítimo.
O primeiro de seus dois entrevistados havia sido Charlie - ou, como ele preferia ser chamado agora, Charles Lomas. Seu nome fora o único que Catherine encontrara, dentre seu elenco de envolvidos no caso - além, é claro, da própria Alison, ao fazer buscas em artigos de jornal. Descobrira algumas reportagens sobre ele, embora nenhuma mencionasse os acontecimentos traumáticos de 1963 e 1964.
A razão para Charles Lomas ter chegado às páginas dos jornais do país inteiro nada tinha a ver com Scardale. Em vez de permanecer no vale, onde esperavam que ele desse continuidade à tradição da família na criação de gado, Charles saíra de Scardale no inverno de 1964. Pegara carona até Londres e, lá, conseguira emprego como contínuo em uma gravadora, no Soho. Sua sorte foi ter chegado em um momento em que todo o país parecia dançar na batida do movimento Mersey. Em uma questão de meses, seu sotaque do norto rendeu-lhe um emprego de meio período, cantando com uma banda. No fim, ele já organizava as turnês do grupo e, em cinco anos lançara-se em um empreendimento lucrativo, agenciando bandas de rock.
Quando Catherine conseguiu localizá-lo, Charles já possuía um império internacional ligado à música e ainda agenciava meia dúzia dos músicos de rock mais bem pagos da Grã-Bretanha. Em resposta ao seu pedido por uma entrevista, ele lhe enviara um fax, afirmando que falaria com ela apenas porque sua família tinha uma dívida de gratidão com George Bennett e não havia outro modo de pagá-la.
Ao ser levada até o escritório no quinto andar, com vista para a praça do Soho, Catherine surpreendeu-se. Com seus cabelos grisalhos aparados com precisão e penteados para trás, testa ampla, mãos manicuradas e rosto liso e reluzente da barba recém-feita, usando jeans e camisa de grife, era difícil imaginar Charles Lomas como o fazendeiro de Scardale que poderia ter sido. Logo, porém, Catherine percebeu que ele herdara o talento lendário de contador de histórias de sua avó. Antes de começar a falar sobre Alison, ele a divertiu durante meia hora com fofocas do mundo da música.
Na terceira vez em que ela lhe perguntou, ele finalmente respondeu a sua pergunta sobre Alison.
- Ah, aquela garota tinha uma cabeça de dar inveja - disse, com admiração. - Se estava irritada com algo, sempre falava na cara. Não havia como se enganar com ela. Janet sempre foi um pouco falsa, agindo como um docinho na sua frente e apunhalando pelas costas. Bom, ela ainda é assim, para falar a verdade. Mas Alison não perdia tempo com baboseiras, por isso nunca acreditei que pudesse ser convencida por um estranho a acompanhá-lo. Ela deve ter sido levada à força, porque não era uma garotinha boba e impressionável.
Início de Nota de Rodapé: O movimento Mersey, cujo nome deriva-se do rio Mersey, junto a Liverpool, também chamado de "o som de Liverpool", formou-se nos anos 60, promovendo a música de mais de seiscentos grupos, dentre os quais os Beatles. Esses grupos tocavam em locais pequenos, como o Cavem, que os Beatles tornaram famoso, e o Jacarandá. Fim de Nota.
- Desde o primeiro momento - continuou - eu quis fazer o possível para ajudar. Juntei-me às equipes de busca e consegui descobrir o lugar em que ela brigou com alguém. Ainda me lembro de meu choque ao me deparar com aquilo. Já havíamos desenvolvido um ritmo para as buscas, especialmente entre nós, os habitantes de Scardale. Conhecíamos o terreno muito bem e qualquer coisa fora do normal saltaria aos nossos olhos, muito mais do que aconteceria com os policiais que trouxeram de todas as cidades vizinhas.
- Quando percebi que a vegetação rasteira estava remexida, foi como se alguém estivesse apertando meu peito, meu coração e pulmões e eu não conseguisse respirar ou fazer com que o sangue circulasse. E quando contei sobre aquilo à minha avó, a primeira coisa que ela disse foi: "Hawkin está sempre perambulando por lá, mais que qualquer um de nós." Eu lhe disse então que tinha visto Hawkin andando pelo matagal próximo ao Scarlaston e pelo arvoredo na mesma tarde do desaparecimento de Alison. Ela pediume que não dissesse nada sobre aquilo, que deveríamos contar à polícia apenas no momento certo, para que nos dessem atenção. De acordo com ela, se falássemos cedo demais, os policiais não dariam atenção, porque todos estavam oferecendo informações ao mesmo tempo, muitas delas sem nenhum proveito.
- Dois dias depois, ela me pediu que contasse aquilo ao inspetor Bennett, assim que o visse. Disse-me que daria uma olhada pelos campos, para ver se podia perceber alguma coisa que pudéssemos ter ignorado. - Ele sorriu, lembrando-se da avó com afeto. - Ela estava sempre jogando para a plateia. Parecia-se com uma bruxa, de modo que conseguiu convencer metade do condado de que tinha poderes mágicos e podia lançar feitiços e falar com os animais. Na verdade, ela era apenas mais esperta que todos nós juntos. Estava sempre afinada com coisas que ninguém mais percebia.
- Hoje em dia, acho que naquela tarde ela só atraiu a atenção para o campo entre o matagal e o arvoredo para que o inspetor Bennett desse mais peso à minha revelação. Acho que erramos ao guardar esta informação, mas é preciso lembrar que tínhamos uma vida muito isolada em Scardale. Não sabíamos quem eram aqueles homens estranhos, se realmente tentariam encontrar Ali ou se apenas pegariam o primeiro otário para culparem pelo crime que bem entendessem. Como o inspetor Bennett provavelmente já lhe disse, eu era o otário da hora, naquele ponto. Dezenove anos, esquálido e cheio de hormônios. Juro que eu não parecia mesmo muito esperto. Assim, é claro que me detiveram para interrogatório.
- George me contou - disse Catherine. - Deve ter sido muito desagradável.
- Sim, foi. Eu estava dividido entre a indignação por não perceberem que estávamos todos do mesmo lado e o pavor de que pudessem me acusar. Só conseguia pensar que precisava encontrar um modo de convencê-los de que jamais tocaria em um fio de cabelo de Alison, sem dizer realmente o que minha avó me pedira para guardar em segredo.
- Há muito tempo eu suspeito que ela revelou as andanças de Hawkin pelos campos no dia do desaparecimento de Alison no momento mais propício para livrar o misterioso tio Peter de qualquer acusação. Claro que eu não tinha qualquer conhecimento disso na época, mesmo porque nem mesmo sabia de sua existência até ler sobre ele no jornal. É incrível como a geração mais velha comandava Scardale como se o lugar fosse algum feudo medieval do qual se podia expulsar os indesejáveis. Ainda assim, tio Peter era parte da família e vovó sempre acreditou na força dos laços de sangue. Assim, usou o ás escondido em sua manga para afastar o inspetor Bennett do homem que, em sua opinião, jamais teria machucado Alison.
- Acho que isso significa que terei de arcar com parte da responsabilidade pelo que aconteceu depois. Tenho de confessar que esta ideia não é nada confortável. - Ele suspirou. - Minha única desculpa é que, até meus dezenove anos de idade, eu jamais pensaria em ir contra minha avó, e aquele não me parecia o melhor momento para começar a fazer isso.
A descoberta da entrada para a antiga mina de chumbo de Scardale era outra recordação vívida de Charles. Embora Catherine tivesse dificuldade para enxergar o jovem ansioso daquela época no empresário bem-sucedido de agora, ao falar sobre sua descoberta ele demonstrou, subitamente, toda a paixão e impulsividade de então.
- Quando minha mãe me disse, naquela manhã, que queriam que eu os ajudasse a encontrar uma mina de chumbo escondida dentro do Rochedo de Scardale, fiquei perplexo. Eu não acreditava que um lugar assim pudesse existir sem que eu sequer tivesse ouvido falar nele. Eu vivia em Scardale desde que nascera e ninguém jamais mencionara a mina. Mas o principal motivo para eu achar que a mina não existia era que eu teria jurado que conhecia cada centímetro de Scardale.
- O fato de vivermos em um lugar não significa que o conhecemos intimamente - continuou ele. - Veja meu primo Brian, por exemplo. Ele provavelmente conhece cada fio de grama de seus pastos. Acho que ele também conhece cada passo da trilha que vai de sua casa até o estábulo, cada pedacinho do caminho até seu ponto de pesca favorito no Scarlaston. Mas isso é tudo que ele conhece, já que nunca teve o instinto de explorador. A diferença é que eu gostava de explorar. Quando era garoto, passava cada hora do dia em que não estava na escola ou fazendo algum trabalho no meio do mato e nos campos. Eu tinha apenas sete anos quando escalei o rochedo pela primeira vez. Costumava subir e descer correndo o Rochedo do Escudo várias vezes por semana, apenas por prazer. Eu adorava cada cantinho de Scardale.
Por um instante, sua expressão fechou-se, enquanto ele era transportado ao passado.
- Sinto saudade - disse, abruptamente, mas logo sua expressão iluminou-se novamente e retomou o fio de suas recordações. - Então, como você vê, eu não entendia como podia haver uma mina de chumbo por lá sem que eu a conhecesse. Ainda assim, todos nós estávamos desesperados naquele estágio. Valia a pena fazer qualquer coisa para encontrar Ali, em nossa opinião. Minha surpresa foi total quando encontrei a entrada. Eu nunca havia ido tão longe junto à base do rochedo antes. No verão, os arbustos eram fechados demais, e no inverno, a passagem parecia intransponível, por causa das rochas no meio do caminho que a escondiam quando olhávamos da direção do rio. Na verdade, não era nada difícil chegar à caverna. Estava bem onde deveria estar, segundo aquele livro.
- O que me intrigou mais ainda era que outra pessoa já entrara naquela caverna secreta de Scardale, quando eu ainda não fizera isso. A percepção de que meu conhecimento do vale não era total foi profundamente inquietante. Perdi a confiança em meu próprio discernimento, e aquilo me abalou. O mais estranho é que, a longo prazo, isso me fez bem, já que nunca me deixo levar por bajulação. Estou sempre preparado para os aduladores. Sei que podemos nos enganar redondamente sobre alguém que vemos todos os dias e que pensamos conhecer. Assim, é loucura achar que podemos conhecer alguém apenas porque já vimos a pessoa algumas vezes. Embora eu não me sentisse assim na época, pelo menos isso eu tirei de bom, do que aconteceu com Ali.
Ele passou a mão pelo queixo, pensativo.
- Vou lhe dizer uma coisa. Eu ainda aceitaria servir de bobo para os outros se isso significasse que Ali ainda estaria conosco.
No que se referia a informações adicionais sobre os envolvidos no drama de Alison Cárter, Charles havia sido muito menos útil que Kathy ou Janet. Ele ofereceu-lhe um sorriso de desculpas, dizendo:
- Sempre vivi num mundinho todo meu. Estava sempre contando histórias para mim mesmo, inventando fantasias sobre maneiras de fugir de Scardale e mudar o mundo. Na maior parte do tempo eu nem sabia direito o que ocorria à minha volta. E quanto a relacionamentos com adultos, eles eram um verdadeiro mistério para mim. Eu sabia, apenas, que não queria o que todo mundo em Scardale parecia desejar.
Ele respirou fundo e fitou Catherine direto nos olhos.
- Tive de vir para Londres, para descobrir quem eu era de verdade. Sou gay, entende? Na minha adolescência, eu não entendia por que era diferente. Só sabia que era. Assim, quero que você entenda que não sou a pessoa mais indicada para lhe responder se havia algo errado no relacionamento entre Ruth e Phil. - Ele sorriu. - Eu achava esquisitos todos os relacionamentos.
7
Maio de 1998
Enquanto Catherine bebericava um gim com tónica na sala do andar superior do hotel Lamb and Flag, em Covent Garden, seu telefone celular tocou.
- Catherine Heathcote. Alô? - disse, torcendo para que não fosseDon Smart, ligando para cancelar a entrevista que haviam marcado.
- Catherine? É Paul Bennett. Meu pai me disse que você esta em Londres.
- Sim, vim por uns dias, para falar com algumas pessoas sobre o to,
- Também estou aqui. Voltarei a Bruxelas amanhã, mas pensei que talvez pudéssemos jantar juntos.
Deliciada, Catherine respondeu:
- Eu adoraria.
Combinaram de se encontrar às sete. Alegre com a perspectiva de pitar com Paul, ela levantou a cabeça e viu um homem de rosto lúgubre, que a olhava hesitante. Ele pagou por uma cerveja e veio em sua direção.
- Você é Catherine Heathcote? - indagou ele.
- Don Smart? - Ela levantou-se parcialmente e estendeu a mão para cumprimentá-lo, enquanto ele confirmava com um gesto de cabeça eacomodava-se na poltrona à sua frente. Catherine não o teria reconhecido pela descrição de George Bennett. Os cabelos ruivos agora eram de um braço encardido, não havia sinal de barba em seu rosto e a pele era seca e froisa, salpicada de manchas escuras da velhice em vez de sardas. Os olhos astutos que George recordara com tanta clareza e comparara aos de uma raposa eram avermelhados, e sua parte branca tinha um matiz amarelado e doentio.
- Smart de nome e esperto por natureza - disse ele, fazendo trocadilho com seu sobrenome, mas Catherine não acreditou que tal descrição fosse verdadeira.
- Obrigada por concordar em conversar comigo - disse apenas. Ele tomou um pequeno gole do grande caneco de cerveja que trazia.
- Estou me odiando por isso. Por direito, eu deveria ter escrito este livro. Cobri a história desde o primeiro dia, até o fim. Mas George Bennett jamais quis falar comigo, depois que tudo acabou. Suponho que sou uma amarga lembrança de seu fracasso.
- Fracasso?
- Ele desejava desesperadamente encontrar Alison Cárter viva. A ideia de que ela já estaria morta muito antes da primeira ligação para a polícia nunca lhe serviu de consolo. Acho que, desde então, ele tem sido assombrado pela morte da garota e, por isso, não quis falar comigo. Ele não conseguiria sentar-se na minha frente sem pensar que fracassou com Ruth Hawkin. - Ele enfiou a mão no bolso e puxou dali um maço de cigarros. - Você fuma?
Ela recusou.
- Nem sei por que ainda ofereço cigarros, atualmente - disse ele, acendendo o seu com um suspiro de prazer. - Todo mundo deixou de fumar. Proíbem cigarros até nas redações dos jornais hoje em dia. E então, Catherine, como está indo com meu livro?
- Está bem interessante, Don - respondeu, sorrindo.
- Aposto que sim - foi o comentário amargo. - Desde o primeiro momento, eu sabia que George Bennett daria boas matérias. O homem era um buldogue. Não desistiria de Alison Cárter de jeito nenhum. Para os outros policiais, era apenas um trabalho como outro qualquer. Claro que lamentavam pela família, e aposto que aqueles que tinham filhos iam para casa e davam um abraço ainda mais carinhoso neles depois de terem passado o dia naqueles brejos, procurando por Alison.
- Com George a coisa era diferente - continuou. - Para ele, era uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Cárter, mas George não se dedicaria mais ao caso nem se fosse sua própria filha. Passei muito tempo acompanhando George Bennett no caso Alison Cárter, mas nunca descobri por que ele se envolveu tanto. Era como se fosse uma questão pessoal. Para mim, foi um presente de Deus. O emprego na filial do News foi meu primeiro em um jornal de circulação nacional, e eu buscava uma história que me levasse a outros grandes jornais. Eu já havia coberto parte dos desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News, e achei que se pudesse fazer com que os policiais os ligassem a Alison Cárter, teria uma manchete incrível.
- E teria mesmo - concordou Catherine.
- George não entrou na minha - disse ele, com amargura. - Ele estava decidido a não entregar Alison Cárter aos detetives que investigavam os desaparecimentos das outras crianças. Não sei se era puro palpite ou teimosia, mas a verdade é que sua decisão revelou-se a mais correta. É claro que ninguém tinha a mínima ideia sobre Ian Brady e Myra Hindley na época, mas George parecia saber, por instinto, que Alison não era uma das crianças atacadas por assassinos em série. Além disso, queria cuidar do caso sozinho.
- Mas foi graças a ele que você finalmente chegou aos grandes jornais, não foi? - perguntou Catherine.
- Sem dúvida. O caso Alison Cárter me rendeu boas matérias. Lembre-se que redigi aqueles artigos com a vidente francesa, que foram meu cartão de visitas para os grandes jornais. Ironicamente, isso fez com que eu nunca escrevesse uma linha sequer sobre as verdadeiras revelações no caso dos assassinatos do pântano.
De repente, Smart começou a discorrer sobre seus tempos gloriosos como repórter de vários jornais, voltando finalmente ao Daily News como editor responsável pelas notícias da noite. Três anos atrás, seu cargo tornara-se desnecessário, mas ele ainda trabalhava três noites por semana no News, supervisionando jornalistas novatos.
- Esses repórteres de hoje não têm a menor ideia sobre jornalismo de verdade. Por isso precisam de alguém com experiência. Mas deixe-me dizer uma coisa: o caso Alison Cárter serviu para muito mais que promover minha carreira - confessou. - Quando Alison desapareceu, logo depois daquelas outras crianças, convenci-me de uma vez por todas que não deveria ter filhos. Infelizmente, minha esposa na época pensava diferente. Assim, acho que poderíamos dizer que meu casamento foi vítima acidental do que aconteceu com Alison Cárter. O que ocorreu naquela aldeia de Derbyshire certa noite de dezembro teve efeitos imprevisíveis em muitas vidas.
"Em muitos casos que envolvem um elemento real de mistério é isso mesmo que acontece. Ninguém sabe o que houve, e a vida de todos é colocada sob o microscópio. Subitamente, todos os segredos são levados a público. Em geral, esta visão não é nada bonita."
- Você tem algum arrependimento sobre o modo como cobriu o caso? - perguntou Catherine.
O sorriso de Don Smart era de pura condescendência.
- Catherine, querida, fui um dos melhores. Ainda sou, aliás. Eu via meu trabalho como tendo duas funções. A primeira delas era oferecer ao meu editor matérias boas e exclusivas, que mantivessem nossos leitores e nos trouxessem outros. A segunda função era provocar aqueles policiais, para que continuassem em frente e não se contentassem com pouco. Se isso me trouxesse alguns problemas com a polícia, eu estava disposto a enfrentá- los. O mais próximo que George e eu chegamos das vias de fato foi quando fiz as matérias com a vidente. Tive a ideia ao ler um artigo em uma revista americana. A imprensa daqui era muito mais moderada naquela época, e uma ou duas publicações americanas levavam vantagem sobre nós.
"Eu usava as matérias dessas publicações o tempo todo, como inspiração. A ideia da vidente foi um exemplo clássico disso. Eu havia lido a matéria sobre um assassinato ocorrido no deserto do Arizona que, supostamente, foi resolvido por uma vidente. Isto ficou no fundo de minha mente quando as buscas por Alison começaram. Troquei ideias com meu editor sobre esta pauta e ele adorou. Eu sabia que a polícia britânica jamais admitiria que havia trabalhado com um sensitivo, de modo que minha única chance de encontrar alguém com boa reputação seria no exterior.
"Liguei para um amigo meu que trabalhava na Reuters e pedi que verificasse os arquivos. Foi assim que cheguei a Madame Charest. Nunca encontrei-me com a mulher, mas se eu a tivesse visto isso não faria a menor diferença, porque ela não falava uma palavra de inglês. Tivemos de conversar por meio de um intérprete. É claro que nunca acreditei em uma só palavra do que ela dizia, mas deu uma excelente matéria, mesmo assim.
"Sei que George considerou-me irresponsável. Creio que, na opinião dele, só o que me interessava era o que viesse em meu proveito, mas não era bem assim. O outro lado dessa história é que eu desejava tanto quanto George que encontrassem a garota, mas matérias de jornal morrem rápidamente, a menos que tenhamos combustível para alimentar as chamas. Para manter o nome e a foto de Alison Cárter no jornal, eu precisava de um novo ângulo. A vidente me deu isso e me permitiu manter Alison Cárter mais alguns dias na primeira página. No caso específico dessa garota, provavelmente não fez diferença, mas poderia ter feito - disse, parecendo convicto da correção de suas atitudes."
- Mas sua Madame Charest estava errada, não?
Don Smart abriu um largo sorriso e, de repente, Catherine viu a raposa descrita por George.
- E daí? A notícia causou sensação. Se você fizer metade do que eu fiz, Catherine, talvez venda alguns exemplares a mais de seu livro do que aqueles que seus amigos e parentes vão comprar.
Don Smart deixara um gosto amargo na boca de Catherine que não passava nem mesmo com uma taça de vinho da Borgonha tomada na companhia de Paul em um bar.
- É um tremendo aproveitador - confidenciou para o filho de George Bennett. - Por causa de tipos como ele os jornais ingleses começaram a publicar lixo, e o homem orgulha-se disso.
- Agora talvez você entenda por que meu pai nunca falava com ele - disse Paul. - Devo dizer que fiquei surpreso quando papai aceitou seu convite, mas agora estou contente porque você e Helen me pediram para convencê-lo disso. Parece que o trabalho neste livro deu a meu pai um novo ânimo. Há muito não o vejo tão alegre. É como se o processo de reviver tudo permitisse que ele finalmente superasse o passado para poder ir em frente.
- Também percebi isso. É estranho, mas antes de iniciar este projeto eu estava muito nervosa. Nunca fiz nada nesta escala antes, e não sabia se poderia manter meu interesse e esforços por muito tempo. Mas contar esta história com o máximo de fidelidade transformou-se em uma missão. E perceber a importância disso para George acrescentou um novo ímpeto para dar o melhor de mim.
- Mal posso esperar para ler o livro - disse Paul. - Mas, para ser honesto, sinto-me um pouco apreensivo por ler sobre meu pai e sobre a vida que teve antes de eu nascer. É quase como espiar alguém quando não sabem que estamos ali. - Ele abaixou um pouco a cabeça, com expressão indecifrável. - A maior parte do material será novidade completa para mim, entende? Meu pai nunca foi um desses policiais que enchem a paciência de todo mundo contando histórias sobre seu trabalho. Acho que ele sequer mencionou Alison Cárter na minha frente, até o dia em que aquele jornalista apareceu em sua porta.
Ele ergueu a cabeça, com a sombra de um sorriso.
- Mas quando estive lá neste fim de semana, percebi sua animação. Papai me contou várias coisas sobre as quais não falava antes, embora sempre tenhamos sido bem íntimos. De um modo estranho, este projeto nos aproximou ainda mais. É como se ele tivesse adquirido um conhecimento maior do trabalho que eu realizo a cada dia, ao trabalhar com você. Ele fez muitas perguntas sobre meu trabalho. Queria saber como me sinto lidando com jornalistas, em que sentido eles diferem uns dos outros, como cumprem suas tarefas. Como se comparasse com o que está fazendo com você.
- E também tem sido bom para mamãe - continuou ele. - Ela sempre pisava em ovos quando eu perguntava como havia sido o início de seu casamento. Tinha de prestar muita atenção no que dizia, para não chatear papai. Só que eu nunca entendia exatamente o porquê disso. - Ele fez uma careta. - Eu pensava que eles não queriam falar sobre suas vidas antes de meu nascimento para que eu não pensasse que eram mais felizes sem mim. Não sei, Catherine, mas isso tudo está sendo tão bom para a minha família que eu quase desejaria ter roubado sua ideia e trabalhado eu mesmo com ele para escrever um livro assim.
Catherine riu.
- Ele jamais teria sido tão franco com você quanto foi comigo. Conhecendo seu pai como conheço agora, ele teria menosprezado seus sucessos o tempo todo, para que você não pensasse que se vangloriava.
- E eu o teria transformado em um herói - disse Paul, com tristeza. - Acontece que ando meio obcecado por essa história. Parece que só sei falar nisso atualmente. Vou acabar matando Helen de tédio se não me cuidar. Ah, isso me lembra que Helen deseja dar à irmã um dos primeiros exemplares. Ela acha que será interessante para Jan ler sobre o que aconteceu em sua casa.
Catherine fez uma careta brincalhona ao dizer:
- Talvez ela não sinta tanto prazer com seu esplêndido isolamento naquele solar depois que ler toda a história. Não será uma leitura muito divertida.
- Ainda assim, é melhor conhecer a história real que ouvir fofocas e boatos, não acha?
- Bem, de mim ela só terá a verdade. Estou absolutamente determinada a isso. - Catherine ergueu sua taça. - À verdade.
- A verdade - ecoou Paul. - Melhor proclamada que mantida em segredo.
8
Maio/junho/julho de 1998
Catherine saiu da auto-estrada A1 e descobriu-se imediatamente em uma estreita estradinha rural que serpenteava entre campos férteis e bosques antigos, com o mar brilhando à frente, mas distante. Por alguma razão que não conseguia precisar, a perspectiva de se encontrar com Tommy Clough dava-lhe mais prazer que entrevistar qualquer dos outros atores coadjuvantes no drama de Alison Cárter. Isso se devia, em parte, ao fato de George e Anne falarem dele com grande afeto, mesmo depois de trinta e cinco anos quase sem nenhum contato. Mas quanto mais ela pensava nisso, mais parecia-lhe que Clough era a figura mais enigmática de todas.
De acordo com George, na superfície o sargento parecia durão, até mesmo brutal às vezes. Bem mais que o próprio George, Clough parecera um policial típico de sua época. Sempre afinado com todos, sempre com o ouvido atento para fofocas e boatos que rondavam cada delegacia, sempre campeão no número de crimes resolvidos e prisões efetuadas, ele dera a impressão de ser o homem certo no lugar certo. Ainda assim, demitira-se da polícia de Derbyshire dois anos após o encerramento do caso Alison Cárter e tornara-se fiscal residente em um santuário de pássaros no condado de Northumberland. Afastara-se bastante de seu passado, trocando seu estilo gregário pelo isolamento.
Com sessenta e oito anos e aposentado, ele ainda vivia no nordeste da Inglaterra. Anne contara-lhe que o visitara uma vez, durante uma hora,
quando levara Paul até a Universidade de Newcastle, durante o período em que ele tentava decidir sobre o melhor lugar para seus estudos académicos.
Segundo ela, Tommy Clough passava seus dias observando e fotografando pássaros, e suas noites desenhando-os. O jazz, que ele amava, servia de fundo para isso e o isolava do mundo externo. De acordo com a descrição de Anne, Clough tinha uma vida solitária e pacífica, estranhamente incongruente com os quinze anos que ele passara levando os criminosos à justiça.
A estrada descia suavemente a colina até o destino de Catherine, um ajuntamento de casas - pequeno demais para ser considerado uma aldeia - alguns quilómetros ao sul de Seahouses. Excitada e ao mesmo tempo apreensiva, ela ergueu a pesada alça de latão na porta da antiga casa de pescadores e deixou-a bater para chamar seu morador.
Catherine teria reconhecido Tommy Clough em qualquer lugar, pelas fotografias que George lhe emprestara. Os cachinhos ainda estavam todos ali, embora agora tivessem tons de prata, em vez do castanho-claro de antes. Seu rosto era curtido pelo clima, mas os olhos ainda eram inteligentes e a boca ainda parecia mais acostumada a sorrir que a franzir-se. Embora vestisse calças largas de veludo cotelê e blusão também largo, era óbvio que seu corpo robusto ainda era musculoso. Diziam que parecia um touro, na juventude. Agora, seus cachos grisalhos faziam-no parecer mais com um carneiro reprodutor, pensou ela, ao sorrir em resposta ao sorriso que recebeu.
- Olá, senhor Clough - disse.
- Senhorita Heathcote? Entre. - Ele deu um passo para trás e deixoua entrar em uma sala simples, mas imaculadamente limpa. As paredes eram forradas com belos desenhos de pássaros, alguns pintados e outros feitos com tinta preta sobre papel branco e brilhante. Tocando ao fundo, ela reconheceu "Romances for Saxophone", de Branford Marsalis.
Ela virou-se para admirar os desenhos mais próximos.
- São maravilhosos - disse com sinceridade, como raramente fazia quando tentava colocar os entrevistados à vontade, elogiando seu gosto por algo.
- Não são ruins - respondeu Clough. - Agora, sente-se e tome alguma coisa. Acho que você merece, depois de dirigir de Derbyshire até aqui.
Ele desapareceu na cozinha, voltando com uma bandeja contendo um bule de chá, uma leiteira, açucareiro e duas canecas da Sociedade Real de Proteção aos Pássaros.
- Não tenho café - disse. - Uma das coisas que prometi a mim mesmo quando deixei a polícia era que nunca mais beberia uma xícara sequer de café instantâneo. E por aqui não há como comprar café moído, de modo que me contento com chá.
- Chá está ótimo - disse Catherine, sorrindo. Sem saber por quê, já confiava neste homem. - Obrigada por concordar em falar comigo.
- Você deve agradecer a George - disse Clough, pegando o bule e agitando-o um pouco, para apressar o processo. - Há muito tempo decidi que ele é quem deveria dizer quando chegasse a hora de falar sobre aquele caso. Sei que trabalhamos lado a lado na investigação, mas minha visão das coisas é diferente da visão de George. Ele é um homem mais voltado para a organização, enquanto eu sempre fui meio rebelde. Assim, minha versão nunca poderia ser tão clara quanto a história contada por ele.
"O caso Alison Cárter foi um momento definitivo para mim, sabe? Entrei na polícia porque acreditava na ideia de fazer justiça. Naquele caso, as coisas saíram de tal maneira que eu não tinha certeza se poderíamos confiar no sistema para punir o culpado. Acho que conseguimos, mas foi por pouco. Tudo poderia ter dado errado, e aí não teríamos nada para mostrar em troca de meses de trabalho e da vida da garota. Cheguei à conclusão de que, se não pudéssemos depender da polícia para a produção do resultado final que é a única justificativa para sua existência, então não faria sentido ser parte dela."
Ele sacudiu a cabeça e deu uma risada divertida, enquanto servia o chá.
- Veja só como estou falando. Pareço um grande pensador e tão fervoroso quanto um pregador. George Bennett não me reconheceria. Eu era um cara como outro qualquer. Gostava de uma cerveja, de fumar, rir e contar piadas. Nada era fingimento, mats esta parte de mim combinava com o trabalho que eu fazia, de modo que, de certo modo, acho que eu a exagerava um pouco. Ao mesmo tempo, sempre fui meio pensador demais. E quando Alison Cárter desapareceu, minha imaginação decolou. Minha mente estava cheia de diferentes possibilidades, uma pior que a outra. Eu conseguia mantê-la sob controle enquanto estava trabalhando, mas, durante minhas folgas, os pesadelos tornavam-se a cada dia piores. Eu também bebia muito, era o único modo de pegar no sono, à noite.
- Muitas vezes agradeci a Deus pela obsessão de George Bennett com o caso, porque assim sempre havia algo a fazer: arquivos para conferir, prováveis testemunhas para entrevistar... Mesmo depois que já deveríamos ter arquivado o caso. Sem que precisássemos formalizar nada, tornei-me seu faz-tudo nesta investigação, porque assim eu me sentia útil. Mas, por Deus, era difícil demais entender aquela gente de Scardale.
- Lembra-se daquele filme dos anos 70, The Wicker Man? Edward Woodward faz o papel de um tira que vai até uma ilha escocesa misteriosa para investigar o desaparecimento de uma menina e é envolvido nos rituais pagãos dos habitantes. É muito assustador e práticas sexuais pervertidas e crenças bizarras permeiam todo o filme. Bem, foi assim que me senti quando cheguei a Scardale em 1963, com a diferença de que voltávamos à normalidade de nossas casas no fim do dia. Além disso, ninguém tentou fazer sacrifícios humanos usando George e eu - acrescentou com um riso constrangido, como se soubesse que um policial com os pés na realidade não devesse acreditar no sobrenatural. - E, é claro, nós resolvemos o mistério, o que é mais do que Edward Woodward conseguiu fazer. - Ele misturou leite a seu chá e tomou um grande gole.
- Anne me disse que nenhum de seus vizinhos daqui sabe que você foi policial - observou Catherine.
- Não é que eu me envergonhe disso - disse ele, com algum constrangimento, levantando-se para trocar o CD. Mais saxofone suave, desconhecido para ela, agora. Catherine manteve-se em silêncio, sabendo que Tommy recomeçaria de onde parara quando estivesse pronto.
Ele sentou-se novamente.
- É só que as pessoas têm certas suposições quando sabem que alguém já foi da polícia. Eu queria evitar isso. Desejava começar de novo, sem sombras do passado. Achei que se pudesse ignorar meu passado Alison Cárter me deixaria em paz. - Sua boca torceu-se em algo que se parecia mais com uma careta que com um sorriso. - Não deu certo. Você está aqui, e cá estou eu também, recordando tudo aquilo. Ontem à noite eu estava pensando nisso, organizando meus pensamentos. Tudo ainda é tão vívido como se eu estivesse passando por essas experiências pela primeira vez. Então, estou pronto. Vamos lá, pergunte o que quiser.
Tommy Clough era o elemento que faltava na história de Catherine. Sua percepção singular preenchera lacunas, transformando um caleidoscópio de pedaços desconexos em um quadro coerente. Ele a fizera entender George Bennett como homem e como policial e lhe permitira compreender coisas que não estavam claras antes. Ela entendia, finalmente, as razões subjacentes do pessoal da aldeia naquilo que às vezes parecera ser uma falta de cooperação completa com o trabalho da polícia. E, agora, Catherine conseguia ver a forma geral de sua história com uma clareza muito maior.
De volta a Longnor, ela deu início à tarefa longa e complexa de organizar seu material. O ruído da impressora era o fundo constante, enquanto ela espalhava pilhas de papel pelo chão da sala. Transcrições de sua longa série de entrevistas com George; uma pilha separada para suas anotações e transcrições de cada uma das outras testemunhas; algumas fotocópias de artigos de jornal; as cópias que obtivera de transcrições do julgamento, graças a um amigo que trabalhava em uma biblioteca de direito, e uma coleção de volumes abordando julgamentos famosos, comprada em um sebo, que lhe ofereceria dicas e informações à medida que avançasse na redação.
As aquarelas sem graça que os locatários haviam pendurado em sua sala foram substituídas por fotografias de Scardale, da época e atuais, incluindo os cartões-postais de Philip Hawkin. Uma das paredes exibia apenas closes das principais personagens, da própria Alison a George, com sua expressão tensa, fotografado por um repórter ao sair de uma coletiva da imprensa com sua capa impermeável e chapéu de feltro. A terceira parede estava tomada por mapas em grande escala daquela área.
Durante quase dois meses, ela mergulhou totalmente em Scardale. Levantava-se às oito e trabalhava até meio-dia e meia. Depois, dirigia dez quilómetros até Buxton, estacionava junto à caverna Poole e atravessava o bosque até a charneca desolada acima, cruzando o terreno até o Templo de Salomão, o pórtico da era vitoriana com vista para toda a cidade. Depois, descia envolvida pelas sombras dos bosques de Grin Low e percorria a Green Lane, passando pela casa em que crescera. Seu pai morrera cinco anos antes e sua mãe vendera a casa e mudara-se para um asilo residencial em Devon, onde o clima era mais favorável para ossos velhos. Catherine não sabia quem habitava a casa agora, mas também não se preocupava muito com isso.
Provavelmente muitos de seus antigos colegas de escola ainda moravam por ali, mas ela se livrara de seu passado como uma cobra que larga a própria pele, ao se mudar para Londres. No que se referia a amigos, só os tivera bem tarde. Como filha única, sempre considerara o território da imaginação muito mais interessante que o mundo real de suas colegas adolescentes. Apenas ao trabalhar com outros com quem tinha afinidades intelectuais é que descobrira pessoas com quem poderia realmente formar vínculos genuínos. Portanto, sua infância não guardava amizades preciosas que desejasse ressuscitar. Esperara encontrar alguns rostos familiares no supermercado onde fazia compras, mas isso não acontecera, e assim era melhor. A única parte de seu passado que lhe importava dizia respeito às recordações que lhe permitiam envolver-se profundamente com a vida e morte de Alison Cárter.
Depois de sua caminhada diária, ela dirigia de volta a Longnor e fazia um lanche que consistia de um sanduíche de queijo e salada, antes de voltar ao trabalho. Às seis da tarde, abria uma garrafa de vinho e assistia ao noticiário. Depois, trabalhava novamente até às nove, quando parava e comia uma pizza ou alguma outra refeição semipronta comprada no supermercado. Durante o resto da noite, respondia a e-mails e lia qualquer livro de bolso que distraísse sua mente. Além disso, conversas ocasionais com seu editor sobre o progresso do livro e com o produtor do documentário sobre o cronograma deste era tudo o que podia suportar.
Pela primeira vez na vida, seus dias não giravam mais em torno de um escritório cheio de gente e uma vida social muito ativa. Ela se admirava por sentir tão pouco a falta de companhia humana e pensava, com humor amargo, que se tornara, em um período de seis meses, o que anteriormente teria classificado como "uma coitada solitária".
Quando o telefone tocou certa tarde e ela ouviu a voz de George Bennett, pareceu-lhe que suas palavras haviam adquirido vida de repente e, por um instante, não conseguiu compreender o que ele dizia.
- Desculpe-me, George, eu estava a quilómetros de distância quando você ligou. Pode repetir o que estava dizendo? - perguntou, hesitante.
- Espero não ter interrompido seu fluxo criativo em um momento crucial.
- Não, não é nada disso. E então, em que lhe posso ser útil? - Catherine readquiriu o controle, voltando imediatamente a ser a profissional de sempre.
- Estou ligando para lhe contar que Paul trará Helen para uma visita de alguns dias, semana que vem. Anne e eu queremos saber se você gostaria de jantar conosco sexta-feira.
- Será um prazer - disse ela. - Devo ter a primeira versão do original no fim desta semana. Levarei comigo, para que você possa dar uma conferida depois que Paul e Helen voltarem a Bruxelas.
- Você tem trabalhado demais - disse George. - Será um enorme prazer para mim. Então estamos combinados: sexta-feira, às sete horas. Até lá, Catherine.
Ela desligou o telefone e olhou para as fotografias na parede. Fizera quase tudo o que podia para fazê-las adquirir vida. Agora, como Philip Hawkin, teria de aguardar o veredicto dos outros.
9
Agosto de 1998
Catherine entregou a George o gordo envelope e disse, em tom de cerimónia:
- Esta é a primeira versão. Não poupe críticas, George. Preciso de sua opinião sincera. - Ela o seguiu até a sala de estar, onde Paul e Helen estavam sentados no sofá.
- Aqui está um motivo para celebração - disse George. - Catherine acabou de me entregar seu livro.
Helen sorriu.
- Parabéns, Catherine. Você não perdeu tempo! Catherine encolheu os ombros.
- Devo voltar ao trabalho em três semanas, então não podia desperdiçar tempo mesmo. Esta é a vantagem de ser jornalista, a escrita expande-se ou se contrai de acordo com o prazo.
Antes que pudessem continuar neste assunto, Anne entrou com taças e uma garrafa de champanhe.
- Olá, Catherine. George disse que tínhamos algo a celebrar, de modo que achamos boa ideia abrir uma dessas.
Paul sorriu, descontraído.
- Para nós não será a primeira esta semana. O divórcio de Helen finalmente saiu e decidimos casar. Assim, estouramos algumas garrafas uns dias atrás para selarmos nosso compromisso.
Catherine cruzou a sala e inclinou-se para cumprimentar Helen beijando-a no rosto.
- Que boas notícias! - exclamou, entusiasmada. Virou-se para Paul e beijou-o também. - Estou muito feliz por vocês dois.
George tomou a bandeja das mãos da esposa e pousou-a sobre a mesinha.
- Também estamos muito contentes. Esta semana será inesquecível.
Ele abriu o champanhe e encheu as taças. - Um brinde - disse, distribuindo-as. - Ao livro.
- E ao casal feliz - acrescentou Catherine.
- Não, ao livro, ao livro! - protestou Paul. - Assim, teremos de abrir outra garrafa para brindar a mim e a Helen. E você terá de vir ao casamento - ele acrescentou. - Afinal, se não fosse por você, meu pai nunca iria a Scardale para conhecer a irmã de Helen.
- Você foi a Scardale? - perguntou Catherine, sem conseguir conter sua surpresa. O único fracasso que lamentava em suas pesquisas era não ter conseguido persuadir George a voltar à aldeia e percorrer os locais importantes em sua companhia.
George pareceu levemente constrangido:
- Ainda não fomos lá, mas almoçaremos com Janis, irmã de Helen, segunda-feira.
Catherine levantou sua taça a Paul.
- Você conseguiu de novo. Só não raptei seu pai, mas fiz tudo que podia para convencê-lo a ir até lá comigo e não consegui.
- Bem, você preparou o terreno - disse Paul, sorridente.
- De qualquer maneira, estou contente porque você vai até lá. Em minha opinião, não resta muito para recordar daquela época no solar, George.
- O que você quer dizer? - indagou ele, inclinando-se para a frente.
- Foi tudo reformado. De acordo com Kathy Lomas, que me levou até lá, não há um único cómodo com a aparência que tinha em 1963. Não foi apenas a decoração que mudou, também foram feitas obras estruturais, abertura de paredes unindo cómodos menores... Um dos quartos virou banheiro... Esse tipo de coisa. Se você fechasse os olhos até chegar lá e então os abrisse dentro do solar, garanto que nada lá dentro lembraria a casa que você conheceu - acrescentou com um sorriso.
- Eu gostaria de acreditar nisso - disse George. - Mas tenho a sensação de que não conseguirei escapar do passado com tanta facilidade.
- Não sei, George - interrompeu-o Helen, alegre. - Sabe o que dizem, que certas casas têm uma aura própria? Que quando entramos em algumas sabemos de imediato que somos bem-vindos? E que em outras, não importa o dinheiro que se gaste em reformas, a casa ainda parece fria e hostil? Bem, o Solar Scardale é um desses lugares em que nos sentimos em casa no momento em que entramos. Foi isso que Jan me disse, quando esteve lá logo depois que o herdamos. Ela me ligou para dizer que, assim que cruzou a porta, soube que este seria seu lar. E entendo exatamente o que ela quis dizer. Sempre que durmo lá tenho o sono pesado e me sinto totalmente em casa. Assim, se havia algum fantasma, ele já se mudou há muito tempo.
- Então você poderá ter uma surpresa agradável, querido - disse Anne, tranquilizando-o.
A dúvida ainda transparecia no rosto de George, que disse, hesitante:
- Espero que sim.
- E nem se preocupe com a possibilidade de ser pego de surpresa por recordações. Se os Carters, Crowthers e Lomas restantes souberem que você está voltando ao vale, provavelmente estenderão um tapete vermelho e decorarão suas casas com bandeirinhas coloridas - disse Catherine. - A única ameaça à sua saúde e bem-estar será o excesso de hospitalidade.
- E, por falar nisso, já é hora de abrirmos a segunda garrafa - disse Paul, levantando-se rapidamente.
- Mas há uma coisinha que preciso saber, George - disse Catherine, sorrindo com o máximo de sedução que podia. - Se você sobreviver a seu retorno a Scardale, será que poderia considerar uma segunda ida até lá, comigo?
- Achei que você havia terminado o livro - disse ele, procurando uma desculpa para recusar.
- Apenas a primeira versão. Ainda há muito tempo para acrescentar algo ao que escrevi.
George suspirou.
- Suponho que lhe devo isso. Tudo bem. Se eu sair vivo de Scardale, voltarei com você. Prometo.
Livro 2
Segunda PARTE
Brookdne, 14 green close, cromford, Drbwshire
10 de agosto de 1998
Prezada Catherine,

Escrevo-lhe devido a um assunto de grande importância para nós dois.
Não é fácil, para mim, escrever esta carta, principalmente porque não posso lhe dar uma explicação para o que preciso lhe pedir. Posso apenas desculpar-me e pedir que continue confiando em mim, como tem feito nos últimos seis meses, enquanto trabalhamos juntos em "Um corpo para o crime".
Catherine, você precisa suspender a publicação deste livro. Não vá em frente. Peço-lhe para fazer o que for possível para impedir que ele seja lançado, agora ou em qualquer momento no futuro. Sei que o original definitivo acabou de ser enviado para a editora, de modo que não pode ter ido muito longe ainda. Entretanto, não importa o quanto isso possa ser inconveniente, faça com que seu editor entenda que este livro jamais deverá ser publicado.
Sei que isso deve lhe parecer ultrajante, especialmente porque lhe peço para cancelar a publicação sem oferecer um motivo. Tudo o que posso dizer é que obtive novas informações que torna imperativo impedir que seu livro se torne o registro definitivo do caso de Alison Carter. Não posso divulgar tais informações porque afetam outras pessoas além de mim. Meu temor é que, se o livro for publicado, o caso atraia muita publicidade, o qe, por sua vez, terá conseqüências terríveis para pessoas inocentes. Peço-lhe que não inflinja tais conseqüências a elas, já que não fizeram nada para merecê-las. A única pessoa que deve pagar por seus erros sou eu mesmo. Sei que o adiantamento que você recebeu da editora poderá ser devolvido, e pretendo reembolsá-la do valor integral. Você merece ser recompensada pelo trabalho que realizou, e não pretendo aumentar seus problemas esperando que você devolva um dinheiro que é seu por direito.
Sei que estou pedindo algo terrível a uma escritora profissional, mas suplico-lhe que esqueça deste livro, esqueça deste caso e dê as costas para sempre à história de Alison Carter e Philip Hukin. Você tem o talento e as ferramentas necessárias para descobrir a verdade, mas, pelo bem da sua sanidade, insisto que você abandone este projeto, embora isso possa ser muito doloroso.
Catherine, sei que você tentará demover-me dessa decisão, mas ela é definitiva. Se você tentar ir em frente com o livro, terei de empregar todas as medidas legais possíbeis para impedi-la. Detestaria ter de fazer isso, porque acho que, ao longo desse trabalho, desenvolvemos laços de amizade que eu lamentaria terminar. Contudo, a minha intenção de dar um fim a este livro é tamanha que eu sacrificaria a nossa amizade para evitar o seu lançamento.
É impossível para mim expressar o quanto lamento por tudo isso.
Acontecimentos recentes viraram a minha vida de pernas para o ar e mal posso pensar lucidamente. A única coisa que eu tenho certeza é que você precisa garantir que seu livro jamais seja publicado.
Com afeto,
George Bennett.
1
Agosto de 1998
Catherine não conseguia parar de olhar para a carta, em descrença total. Inicialmente, pensou que se tratava de uma brincadeira, mas rejeitou a ideia antes mesmo que se formasse de todo. Sabia que George Bennett era cavalheiro demais - e gentil demais - para fazer este tipo de brincadeira de mau gosto. Ela leu a carta novamente e imaginou se ele não estaria passando por um esgotamento nervoso. Talvez a visita a Scardale, logo depois de reviver o caso Alison Cárter, tivesse causado a mesma espécie de exaustão vivida por outras pessoas na época. Mas isso também parecia-lhe improvável. George Bennett era saudável demais e não perderia a razão trinta e cinco anos depois, não importando o quanto as recordações pudessem ser traumáticas. E ele mesmo havia comentado, mais de uma vez, que repassar o caso havia sido menos perturbador do que imaginara.
Esta percepção não lhe deixava nada em que se agarrar. A raiva começou a queimá-la, como se fosse indigestão. A carta lhe chegara quando estava no meio de um café da manhã tardio. Esperava uma carta de seu editor com comentários e solicitações de modificações, não esta catástrofe. Seu primeiro impulso foi o de pegar o telefone, mas antes que apertasse os três primeiros dígitos do número de George, bateu com o fone no gancho. Anos de jornalismo haviam lhe ensinado que era muito fácil insultar alguém pelo telefone. Esta situação exigia um encontro cara a cara.
Largou sobre a mesa metade do café e da torrada. Quarenta minutos depois, virava à direita, junto ao lago do moinho. Durante todo o trajeto, ela fumegara de frustração. Tudo o que conseguia enxergar era a arrogância de George, e não podia entender o que a provocara. Ele nunca dera o menor sinal de ser capaz de um comportamento tão autoritário. Ela pensara que haviam se tornado amigos, mas não entendia como um amigo poderia tratá-la assim.
No íntimo, Catherine sabia que o livro era mais seu que de George, e que ele não tinha o direito de tirá-lo dela. A ameaça de um processo não a amedrontava, pois sabia o que estava escrito no contrato do livro. O que a perturbava era o efeito que a oposição do detetive poderia ter sobre as vendas e sobre sua reputação. Ter o livro repudiado pela única pessoa que conhecia o caso pelo avesso poderia prejudicá-la para sempre. Não aceitaria isso sem lutar. Se George não dava a mínima importância para a amizade que se formara entre ambos, ela trataria de fazer o mesmo, ainda que sofresse demais.
Ela entrou na ruazinha estreita. Os carros do casal estavam na entrada da casa, de modo que ela passou pela residência e parou em uma área reservada para estacionamento no início da colina adiante. Voltou a pé até a casa e seguiu, furiosa, até a porta da frente.
A campainha ecoou lá dentro, como se a casa estivesse vazia. Contudo, mesmo se George tivesse ido à aldeia a pé, Anne estaria em casa. Sua artrite não lhe permitia dispensar o carro para nada. Catherine afastou-se da porta da frente e contornou a lateral da casa, achando que podiam estar no jardim, aproveitando o sol ainda fraco antes que este se tornasse desconfortável. Mas não havia ninguém. Não havia nada para ver, exceto o gramado bem cuidado e canteiros de flores coloridas.
Enquanto voltava até a frente da casa, ocorreu-lhe uma possível solução. Se Paul e Helen tivessem alugado um carro, talvez George e Anne tivessem saído para passar o dia com eles. Esta ideia simplesmente aumentou sua determinação de se ver com George. Se tivesse de esperar até o último minuto do dia para falar com ele, que fosse! Estava parada na entrada da garagem, decidindo se deveria vigiar a casa de dentro de seu carro ou ir até a livraria junto ao lago por uma hora, para passar o tempo, quando alguém chamou seu nome.
A vizinha do lado, parada em sua porta da frente, parecia surpresa.
- Catherine? - repetiu.
- Olá, Sandra - disse Catherine, tirando de seu íntimo um sorriso puramente profissional. - Sabe onde posso encontrar George e Anne?
A mulher abriu a boca, olhando-a com espanto.
- Você não soube? - perguntou finalmente, incapaz de esconder uma nota de alegria na voz por saber algo que Catherine desconhecia.
- Há algo que eu deveria saber? - indagou Catherine, com frieza.
- Achei que já soubesse. Ele teve um ataque cardíaco.
- Um ataque cardíaco? - repetiu, em completa perplexidade.
- Foi levado às pressas para o hospital hoje de manhã cedo - disse Sandra, quase com prazer. - É claro que Anne acompanhou-o na ambulância. Paul e Helen seguiram em outro carro.
Estarrecida, Catherine limpou a garganta.
- E você teve alguma notícia desde então?
- Paul voltou para pegar algumas coisas para George logo cedo e trocamos algumas palavras, é claro. George está na UTI. Paul disse que ele corre risco de morte, mas os médicos disseram que George é um lutador. Todo mundo sabe disso, não é?
Catherine não conseguia entender por que a mulher parecia orgulhar-se do que havia acontecido. Era desagradável pensar que o prazer da outra vinha de saber algo que ela ignorava, mas não havia outra explicação.
- Que hospital? - perguntou.
- Eles o levaram para uma clínica especializada em problemas cardíacos em Derby.
Catherine já estava a caminho, rumo à colina onde deixara seu carro, quando Sandra gritou:
- Não a deixarão entrar. Você não é da família. Não a deixarão vê-lo.
- Veremos - disse Catherine para si mesma. Previsivelmente, seus temores por George manifestavam-se na forma de uma raiva irracional. Como ele ousava privá-la da satisfação de descobrir o que estava acontecendo, fingindo estar à beira da morte?
Apenas quando chegou a Derby sua raiva esfriou o suficiente para perceber como a noite devia ter sido horrível para todos eles - Anne, Paul, Helen e, é claro, para o próprio George, preso dentro de um corpo que se recusava a funcionar como deveria. Ela não podia imaginar nada pior para alguém como George. Mesmo aos sessenta e cinco anos, ele era forte e capaz; sua mente também parecia mais afiada que a da maioria dos policiais que já conhecera. Ele ainda conseguia completar as difíceis palavras cruzadas do Guardian, algo de que Catherine jamais fora capaz. Trabalhar em tamanha proximidade despertara-lhe respeito, mas também afeto. Ela detestava pensar que aquele homem podia ser diminuído pela doença.
Não foi difícil encontrar a UTI. Catherine empurrou uma das portas duplas e se viu em uma recepção vazia. Pressionou uma campainha sobre o balcão e aguardou. Depois de alguns minutos, pressionou de novo. Uma enfermeira de avental branco emergiu de uma das três portas fechadas.
- Posso ajudá-la? - indagou a mulher.
- Queria saber como está George Bennett - disse Catherine, com um meio-sorriso ansioso.
- É da família? - perguntou a enfermeira, automaticamente.
- Trabalho com George. Sou amiga da família.
- Desculpe, mas só permitimos visitas de parentes - disse ela, com voz impessoal.
- Sim, eu sei. - Catherine sorriu novamente. - Mas estava pensando se você poderia dizer a Anne, isto é, à senhora Bennett, que estou aqui. Talvez pudéssemos tomar uma xícara de chá, se ela estivesse disposta...
A enfermeira sorriu pela primeira vez.
- Claro que direi a ela. Como se chama?
- Catherine Heathcote. Onde eu poderia encontrar a senhora Bennett? A enfermeira apontou na direção do bar e virou-se para ir embora.
Catherine perguntou, antes que a mulher desaparecesse de vez:
- E George? Pode dizer-me algo sobre o estado dele? Desta vez, a voz que lhe respondeu era suave:
- Ele está no que chamamos de estado crítico, mas estável. As próximas vinte e quatro horas serão cruciais.
Catherine voltou ao elevador, atordoada. Estar no hospital fazia com que sentisse a catástrofe pessoal de George mais de perto, como as palavras de Sandra não haviam feito. Em algum lugar, atrás dessas portas fechadas, George estava ligado a máquinas e monitores. Além do que acontecia com seu corpo, o que será que se passava em seu cérebro? Será que ele recordava a carta que lhe enviara? Teria contado a Anne? Será que deveria agir como se nada tivesse acontecido? Não apenas por seus próprios interesses, racionalizou, mas também para evitar mais uma preocupação à família?
Catherine encontrou o bar e sentou-se a uma mesinha de canto, com uma água mineral na sua frente. Estava tão preocupada que só viu Paul quando ele estava praticamente colado nela. Hoje, sua semelhança com George era assustadora. Ela passara tanto tempo olhando para a fotografia do pai dele com quase a mesma idade que era como se a imagem na parede tivesse adquirido vida e trocado o impermeável e o chapéu por um par de jeans desbotados e camisa pólo. Ele deixou-se cair em uma cadeira como se suas pernas não o sustentassem mais.
- Sinto muito, Paul.
- Eu sei. - Ele suspirou.
- Como ele está?
- Nada bem. Estão dizendo que teve um ataque cardíaco grave. Não recuperou a consciência ainda, mas acham que isso acontecerá. Ah, meu Deus... - Ele cobriu o rosto com as mãos, obviamente arrasado. Ansiosa, Catherine observou enquanto os ombros dele curvavam-se e ele respirava fundo para recuperar o controle. - Seu coração parou na ambulância, e acho que pensam que pode ter havido algum dano cerebral - disse, recuperando-se o suficiente para continuar falando. - Estão planejando uma tomografia, mas não dão nenhum prognóstico.
Ele olhava fixamente para a mesa. Catherine cobriu a mão dele com a sua, em um gesto simples de apoio.
- O que aconteceu? - perguntou, suavemente. Ele suspirou novamente.
- Não consigo evitar a ideia de que foi minha culpa. Minha e de Helen. Você se importa se sairmos daqui? Esta atmosfera de hospital é tão opressiva! Parece que minha cabeça está cheia de algodão. Talvez seja bom pegar ar fresco.
Desceram em silêncio no elevador. Catherine apontou para uma fileira de bancos no lado mais afastado do estacionamento. Sentaram-se e ficaram olhando, sem ver, os canteiros bem arranjados de roseiras. Paul jogou a cabeça para trás e respirou fundo.
- Por que o ataque cardíaco de seu pai seria sua culpa? - perguntou Catherine, finalmente.
Paul correu a mão pelos cabelos:
- Quando fomos a Scardale, algo aconteceu. Ele ficou muito agitado. Não sei o que foi exatamente... Meu pai não disse nada, mas quando chegamos à casa de Jan ele já não estava bem. Então, quando entramos, achei que ele fosse desmaiar. Ficou pálido, começou a suar, como acontece quando as pessoas têm uma enxaqueca horrível. Ele parecia alheio a tudo. Mal falou com Jan, olhando à sua volta como se esperasse ver fantasmas saindo de dentro dos armários.
- Ele não disse o que o perturbava? Paul friccionou o nariz com o dedo.
- Acho que foi apenas o trauma de voltar a Scardale. O lugar estava vívido em sua mente, é claro, com todo o trabalho que vocês fizeram para o livro. - Seus ombros caíram. - É tudo minha culpa. Eu deveria ter percebido que ele não estava exagerando, quando dizia que não queria ir à aldeia.
- Mas não havia razão para pensar que ele adoeceria por isso - disse Catherine, em tom gentil. - Não se culpe. Ataques cardíacos não acontecem da noite pro dia. As condições para eles são formadas durante a vida inteira. No caso de seu pai, foi muito trabalho em horários irregulares, cigarros demais, refeições gordurosas feitas às pressas. O que aconteceu não foi sua culpa.
A expressão de Paul era amarga.
- O que ativou o ataque cardíaco foi a ida a Scardale.
- Não necessariamente. Você já me disse que nada em especial o perturbou.
- Eu sei. E já repassei mentalmente tudo o que aconteceu várias vezes.
Almoçamos juntos no jardim. Ele mal comeu, o que não é de seu feitio. Ele disse que a culpa era do calor e, para falar a verdade, estava mesmo quente.
Depois do almoço, Jan levou mamãe para dar uma volta por ali. Demoraram, porque ficaram trocando ideias, combinando de trocar dicas de jardinagem, essas coisas. Papai saiu para uma caminhada pela praça da aldeia, mas demorou apenas dez minutos. Depois, sentou-se lá, sob o castanheiro, fitando o espaço. Saímos de lá às três da tarde, mais ou menos, porque mamãe queria passar na feira de artesanato de Buxton, e chegamos em casa às seis.
- E George não disse se algo o estava incomodando? Paul balançou a cabeça.
- Nada. Ele disse que precisava escrever uma carta e subiu para o quarto. Helen e mamãe fizeram uma salada para o jantar e eu cortei a grama. Ele desceu depois de meia hora e disse que iria ao correio em Matlock porque queria ter certeza de que sua carta seria recolhida logo, já que mais tarde não há coleta. Achei um pouco estranho, mas meu pai nunca gostou de adiar as coisas.
Catherine respirou fundo. Não era justo deixar que Paul ficasse especulando sobre aquela carta que havia sido tão importante para seu pai.
- A carta era para mim - disse.
- Para você? Mas sobre o que ele lhe escreveria? - Paul estava perplexo.
- Acho que George não queria conversar pessoalmente comigo. Acho que não estava preparado para a discussão que certamente viria.
- Não entendo - falou Paul, franzindo a testa.
- Seu pai queria que eu cancelasse a publicação do livro. Sem qualquer explicação.
- O quê? Mas isso não faz nenhum sentido!
- Também não fez sentido para mim. Por isso vim até Cromford hoje de manhã. Então a vizinha me contou o que havia acontecido.
Os olhos de Paul arregalaram-se.
- Então você veio para brigar com ele? Mas que falta de sensibilidade, Catherine!
Ela negou com a cabeça.
- Não me entenda mal, Paul. Quando soube o que havia acontecido com George, meu primeiro pensamento foi de solidariedade, de pesar por todos vocês. Queria oferecer minha ajuda e meu apoio. Qualquer coisa.
Paul ficou em silêncio, pensando no que ouvira, mas com dúvida no olhar.
- Apeguei-me muito aos seus pais nos últimos seis meses. Seja qual for o problema com o livro, isto pode esperar. Acredite, Paul, o que mais me preocupa agora é a saúde de seu pai.
Paul começou a tamborilar com os dedos no braço do banco. A ele faltava claramente o talento de George para manter-se impassível.
- Olhe, Catherine, desculpe-me se fui agressivo, mas foi uma noite bem difícil. Não estou pensando direito.
Ela estendeu a mão e tocou o braço dele.
- Eu sei. Se eu puder fazer alguma coisa, diga-me, está bem? Paul deu um suspiro profundo.
- Você pode fazer algo por mim. Quero saber o que causou tudo isso. Quero saber o que aconteceu ontem para provocar o ataque cardíaco. Para ajudá-lo, preciso saber o que está por trás disso. Você sabe mais que qualquer outra pessoa sobre o envolvimento de meu pai com Scardale, então talvez possa imaginar o que aconteceu lá para deixá-lo tão tenso a ponto de ser traído por seu coração.
Catherine sentiu que parte da tensão desaparecia de seus ombros. O apoio de Paul ao que já pretendia fazer de qualquer maneira facilitava tudo.
- Farei o que for possível - disse. - Não aconteceu mais nada ontem à noite que pudesse abalá-lo? Depois de voltar do correio, quero dizer.
- Não. Fomos todos ao bar da cidade. Eles têm um jardim nos fundos, e simplesmente sentamos lá com nossos copos de cerveja e conversamos sobre uma ou outra coisa, mas nada muito importante. - Ele fez uma pausa e franziu o rosto. - Mas papai estava nervoso. Tive de repetir o que dizia algumas vezes, porque ele não estava prestando atenção.
- E Helen? Percebeu algo estranho no comportamento de George?
- Concordou comigo e disse que papai parecia meio aéreo. Achou que ele estava assim desde que chegamos a Scardale. Ela percebeu, mas provavelmente não era óbvio para aqueles que não o conhecem. Se Janis ofendeu-se com o silêncio de papai, certamente não disse nada a Helen....
- George não faria nada que ofendesse Janis, mesmo se estivesse chateado com algo, sendo um homem tão gentil.
Paul pigarreou.
- É verdade... - Olhou para o relógio e observou: - Bem, melhor eu voltar.
- Quando você precisa estar em Bruxelas? - perguntou Catherine, levantando-se.
Ele encolheu os ombros:
- Deveríamos ir para casa depois de amanhã. É claro que não vamos mais. Vou esperar para ver como ele fica.
- Volto com você até o hospital.
Quando se aproximavam da entrada, Paul avistou a namorada e saiu correndo, em pânico. Helen, com uma lata de Coca-Cola a meio caminho de seus lábios, abriu um sorriso ao vê-lo, mas ele sequer percebeu, indagando:
- Aconteceu algo com papai?
- Não, eu só queria respirar um pouco de ar fresco. - Ela passou um braço pela cintura de Paul, puxando-o para si em um gesto de apoio.
- Alguma novidade sobre George? - perguntou Catherine.
- Tudo na mesma. Paul, acho que deveríamos tentar convencer sua mãe a comer algo. - Ela sorriu para Catherine, como se pedisse desculpas. - Você conhece Anne... Não saiu do lado de George desde que o levaram para a UTI. Assim, vai acabar esgotada.
- Fiquem à vontade, não quero prendê-los - disse Catherine. Paul tomou sua mão.
- Descubra o que ele viu. Ou ouviu. Ou lembrou. Por favor?
- Farei o que puder.
Catherine observou-os enquanto entravam no prédio, contente por ter algo para fazer que talvez aliviasse um pouco da culpa que Paul estava sentindo. O fato de isto também servir a seus interesses era secundário, percebeu de repente, com surpresa. George Bennett tornara-se, claramente, mais importante em sua vida do que reconhecera antes. Isto tornava ainda mais importante a publicação de um livro que lhe faria justiça, disse a si mesma, com convicção. E isto ela podia fazer.
2
Agosto de 1998
Catherine tinha certeza de que o que quer que tivesse perturbado George Bennett ocorrera durante sua visita a Scardale. Ele vira alguma coisa, mas o quê? Como uma ida tão breve a um lugar podia produzir uma resposta tão avassaladora? Catherine teria entendido, se George lhe dissesse que seria preciso fazer algumas mudanças no livro, devido a uma descoberta recente, mas o que seria tão extraordinário a ponto de colocar a perder todo o projeto? E se George observara algo tão impressionante, como passara despercebido para o resto da família?
No calor medonho de uma tarde de agosto, Scardale mal podia ser reconhecida como a aldeia tristonha e gélida à qual Catherine havia ido em fevereiro. Como o verão estava sendo bastante úmido, a grama estava verde e crescida e as árvores mostravam mais tons de verde que qualquer pintor poderia retratar. Em sua sombra, até mesmo as casas modestas dos camponeses de Scardale pareciam quase românticas. Não havia nada amedrontador e nenhum traço dos acontecimentos sinistros de trinta e cinco anos atrás.
Catherine estacionou junto ao solar, vendo uma caminhoneta Toyota de cinco anos estacionada junto à entrada. Parecia que Janis Wainwright estava em casa. Ela sentou-se no carro por um momento, pensativa. Não poderia ir até lá e dizer: "O que aconteceu com George Bennett aqui ontem, para fazê-lo cancelar nosso livro? O que, na visita à sua casa, foi tão horrível que provocou um ataque cardíaco quase fatal à noite?" Entretanto, o que mais poderia fazer?
Ela pensou em perguntar a Kathy Lomas se ela vira George no dia anterior. Voltou-se na direção da Casa da Cotovia, mas o carro de Kathy não estava à vista. Exasperada, saiu do carro, pensando que, quando todo o resto falhava, só lhe restava usar a técnica jornalística comprovada de mentir descaradamente. Seguiu pela trilha estreita até a porta da cozinha e levantou a pesada alça de metal. Deixou-a cair e ouviu o eco dentro da casa. Um minuto inteiro passou e, então, a porta se abriu de repente. Ofuscada pela luz do sol, Catherine mal conseguia discernir as formas femininas no interior escuro.
- Pois não?
- Você deve ser Janis Wainwright. Conheço sua irmã, Helen. Meu nome é Catherine Heathcote. Você foi muito gentil permitindo que eu visse o solar, para poder situar-me ao escrever meu livro sobre o caso Alison Cárter. - Ela não podia jurar, mas sentiu que a mulher retraía-se ao ouvi-la.
- Lembro-me disso - disse a figura na porta, sem entonação.
- Será que eu poderia dar mais uma olhada em sua casa?
Com os olhos começando a se ajustar à escuridão da cozinha, Catherine pensou que Janis Wainwright parecia realmente assustada.
- Não é conveniente. Talvez em outro momento. Providenciarei uma data com Kathy - disse rapidamente, com as palavras embolando-se em sua pressa.
- Apenas o térreo. Prometo não perturbá-la.
- Estou ocupada agora - disse a mulher, com firmeza.
A porta começava a fechar-se. Instintivamente, Catherine aproximou-se de Janis, para impedi-la de fechar de todo. Só então viu o que George Bennett havia visto no dia anterior e recuou assustada, quase tropeçando.
- Fale com Kathy - disse Janis Wainwright. Como se a uma grande distância, Catherine ouviu a chave girar na porta e, depois, o ruído das trancas de segurança. Tonta, voltou-se e andou até o carro, trôpega e cega como uma sonâmbula.
Agora ela achava que entendia por que George escrevera aquela carta. Mas se estivesse certa, não era algo que podia ser facilmente explicado a Paul. E não era algo que a fizesse desejar o cancelamento do livro. O que vira fazia com que percebesse que poderia haver uma verdade mais profunda no caso Alison Cárter, que nem ela nem George haviam sequer imaginado. E que a tornava ainda mais determinada a contar a verdade, à qual brindara com tanta alegria com Paul, naquela noite, em Londres.
Catherine permaneceu completamente imóvel dentro de seu carro, sem sequer perceber o calor sufocante. Agora que o primeiro momento de choque já passara, mal podia acreditar no que havia visto. Dizia a si mesma que aquilo não fazia sentido. Havia sido enganada por seus olhos. Mas se este era o caso, então George também se enganara. A semelhança era impressionante, até sobrenatural. Se fosse só isso, poderia interpretar aquilo como uma coincidência bizarra, mas sabia que nenhuma semelhança incluía até cicatrizes.
Durante suas leituras e suas entrevistas para escrever o livro, soubera que Alison Cárter tinha uma marca que a distinguia: uma cicatriz. Era uma fina linha branca com mais ou menos dois centímetros, que atravessava sua sobrancelha direita, estendendo-se para baixo até a cavidade ocular e para cima, na testa. Acontecera no verão seguinte à morte do pai. Alison corria no parquinho da escola com uma garrafa de leite durante o recreio e tropeçara, caindo sobre os cacos de vidro e sofrendo o corte próximo ao olho. A cicatriz, de acordo com sua mãe, sempre era mais perceptível no verão, quando Alison pegava um pouco de sol. Assim como Janis Wainwright também pegara.
Uma dor de cabeça latejante surgiu do nada. Catherine fez o retorno e dirigiu, lenta e cuidadosamente, de volta a Longnor. Parecia haver apenas uma explicação para o que vira, e esta era impossível. Alison Cárter estava morta. Philip Hawkin fora enforcado por seu assassinato. Mas, se Alison Cárter estava morta, quem era Janis Wainwright? Como uma mulher que poderia ser clone de Alison poderia estar vivendo no Solar Scardale e não ter qualquer ligação com o que acontecera ali em 1963? Mas se estivesse ligada ao que acontecera naquela época, como sua própria irmã não saberia disso?
Catherine estacionou e foi a pé até a banca de revistas, onde comprou um maço de cigarros light e uma caixa de fósforos. Já em casa, serviu-se de uma taça de vinho tão frio que seus dentes doeram. Isto, pelo menos, fazia sentido. Depois, acendeu seu primeiro cigarro em doze anos, sentindo a cabeça rodar, o que já era algo. A nicotina chegou à sua corrente sanguínea e pareceu a coisa mais normal do mundo naquele momento.
Ela fumou quase com fervor e, então, sentou-se com papel e lápis à sua frente, para fazer anotações. Depois de uma hora, escrevera duas possibilidades:
Possibilidade 1. Se Alison Cárter não tivesse morrido, teria a aparência exata de Janis Wainwright.
Possibilidade 2. Alison Cárter é Janis Wainwright.
Ela também tinha um plano de ação. Se estivesse certa, precisaria mais que alguns ajustes e adaptações para terminar seu livro. Se Alison Cárter ainda estava viva, Um Corpo para o Crime seria ainda mais excitante do que já era. E, de algum modo, convenceria George a ver seu ponto de vista, depois que ele se recuperasse o bastante para considerar adequadamente todas as implicações.
O primeiro passo era um telefonema para sua assistente editorial em Londres.
- Beverley, aqui é Catherine - disse, injetando em sua voz uma energia que não tinha.
- Oi! Como vai a vida aí no meio do nada?
- Quando o sol está brilhando como hoje, eu não trocaria por Londres.
- Bem, mal posso esperar por sua volta. Está uma loucura aqui. Você nem imagina o que Rupert quer fazer para o número de Natal...
- Agora não, Bev - disse Catherine, com firmeza. - Tenho um assunto urgente para você. Preciso de alguém especializado em envelhecimento de pessoas por computador. De preferência nesta parte do país.
- Parece interessante.
Vinte minutos depois, sua assistente ligara para lhe dar o número de um homem chamado Rob Kershaw, da Universidade de Manchester.
Catherine consultou seu relógio. Eram quase quatro horas. Se Rob Kershaw não estivesse fugindo dos estresses da vida em alguma outra cidade, provavelmente ainda estaria trabalhando. Valia a pena dar-lhe um telefonema.
Alguém atendeu no terceiro toque.
- Gabinete de Rob Kershaw - disse uma voz feminina.
- Rob está?
- Desculpe, ele está de férias. Voltará dia 24. Catherine suspirou.
- Quer deixar recado? - perguntou a mulher.
- Obrigada, mas não adianta.
- Será que não posso ajudá-la? Sou a assistente de pesquisas de Rob Tricia Harris.
Catherine hesitou. Então, lembrou-se de que não tinha nada a perder.
- Você sabe fazer envelhecimento por computador a partir de fotografias?
- Ah, sim, é minha especialidade.
Alguns minutos depois, já haviam combinado tudo. Tricia não tinha nada mais urgente para fazer além de uma noite na frente da TV, e sofria da eterna falta de dinheiro de todos os estudantes. Seduzida pela promessa de ser bem paga por seus serviços, Tricia mostrou-se disposta a ficar lá à espera, enquanto Catherine dirigia até a universidade com suas cópias das fotografias que Philip Hawkin tirara da enteada.
Logo que ela chegou, Tricia digitalizou eficientemente as duas fotografias, fez algumas perguntas e então iniciou seu trabalho com o teclado e o mouse. Catherine deixou-a em paz, sabendo o quanto também detestava que as pessoas espiassem sobre seu ombro quando tentava trabalhar. Foi até a janela aberta no outro canto da sala e acendeu seu quinto cigarro. Amanhã pararia de novo, pensou. Ou quando descobrisse a chave para aquele mistério. O que viesse antes.
Depois de cerca de uma hora e mais três cigarros, Tricia chamou-a, pegando três folhas de papel em formato A4 da impressora e espalhando-as na sua frente.
- A da esquerda é aquilo que eu chamaria de melhor hipótese. Uma vida com estresse mínimo, boa nutrição e bons cuidados, talvez uns quatro quilos acima do peso ideal. A do meio é mais típica, em alguns aspectos: mais tensão, não tanta preocupação com a aparência, peso certo. A terceira é aquela que ninguém quer ser. Ela é a que teve uma vida difícil, dieta pobre, consumo pesado de cigarros, o que é muito ruim para a pele e favorece o aparecimento de rugas, você sabe - acrescentou, com um sorriso esperto para Catherine. - Ela está um pouco abaixo do peso.
Catherine esticou um dedo e puxou a folha do meio em sua direção. Exceto pela cor dos cabelos, poderia ser a fotografia da mulher que atendera a porta no solar. O cabelo de Janis Wainwright era grisalho, com fios loiros entremeados. Alison Cárter, envelhecida pelo computador, ainda tinha cabelos dourados, com apenas alguns fios brancos nas têmporas.
- Incrível - disse, suavemente.
- Era isso que você esperava? - perguntou Tricia. Catherine não lhe dissera quase nada, afirmando que trabalhava em um artigo sobre uma herdeira desaparecida que surgira de repente para reivindicar a posse da herança.
- Isto confirma meus temores - disse Catherine. - Há alguém andando por aí que não é quem diz ser.
- Humm, isso é ruim - disse Tricia, com uma careta.
- Ah, não - disse Catherine, sentindo o peito agitar-se de satisfação. - Não é nada ruim. Na verdade, é exatamente o contrário.
3
Agosto de 1998
Enquanto se afastava da Universidade de Manchester, Catherine sentiu a agitação quente que queimava suas veias sempre que sabia estar à beira de um furo jornalístico. Sua emoção era tanta que, por um momento, esqueceu-se do que dera início a este frenesi. Naquele instante, o fato de um homem estar deitado em um hospital de Derby, ligado a máquinas que o mantinham vivo, era irrelevante. Excitada demais para poder comer, ela dirigiu de volta a Longnor com as possibilidades estonteantes do que estava por vir girando em sua mente.
A primeira coisa que deveria fazer, decidiu, era descobrir quem era Janis Wainwright legalmente. Não duvidava que tinha um registro legal de sua existência. Seria difícil comprar imóveis ou ter uma profissão sem uma identidade. Descobri-la envolveria uma busca pelos cartórios, para a verificação de nascimentos, casamentos e óbitos. Levaria dias para fazer isto sozinha, mas existiam agências que realizavam esta espécie de trabalho rotineiramente, para jornalistas. Ela ligou o laptop e começou a redigir uma solicitação por e-mail à Agência de Buscas Legais, uma empresa especializada na localização de informações ligadas tanto a indivíduos quanto a empresas.
Estava razoavelmente certa de que Janis nunca se casara. Em primeiro lugar, Helen não mencionara um marido. Além disso, uma rápida olhada na carta que havia recebido do advogado de Janis, em resposta a seu pedido de visita ao solar, revelou que ele se referia à cliente como "senhorita Wainwright". E, é claro, a própria Helen havia se casado e divorciado, o que explicava por que seu sobrenome era diferente.
Em algum lugar, portanto, deveria haver detalhes sobre a certidão de nascimento de Janis Wainwright. Para certificar-se de que faria o serviço completo, Catherine decidiu investigar os detalhes da existência legal também de Helen. E uma vez que, como todo bom jornalista, ela sempre mantinha um pé atrás com tudo, solicitou mais uma verificação, para conferir se haveria um atestado de óbito de Janis Wainwright em algum ponto entre seu nascimento e o desaparecimento de Alison em dezembro de 1963. A partir dos detalhes da certidão de nascimento, seria possível localizar a certidão de casamento dos pais de Janis e, a partir desta, suas certidões de nascimento, se fosse preciso. Este poderia ser o ponto de partida para descobrir se havia alguma ligação real entre Janis Wainwright e Alison Cárter.
Catherine enviou o pedido, deixando claro que desejava a opção de envio expresso do material pelo correio e por e-mail. Ainda assim, sabia que teria de esperar no mínimo até a tarde seguinte por uma resposta, e não tinha ideia do que fazer para preencher o tempo.
Então, lembrou-se de George. Sentindo-se culpada por tê-lo varrido da consciência por algumas horas, ligou para o hospital para informar-se sobre seu estado. A enfermeira da UTI disse-lhe que não havia alteração. Com emoções conflitantes, ela desligou. Detestava pensar no que havia acontecido com George, mas o momento de reconhecimento que lhe causara o ataque cardíaco também parecia estar levando à maior matéria de sua vida. Ela se conhecia bem o bastante para entender o que isto significava para sua carreira. Sempre se envolvera mais com seu trabalho que com qualquer ser humano. Sabia que a maior parte das pessoas acharia muito triste tal escolha de estilo de vida, mas para ela triste era apostar tudo em relacionamentos, quando as pessoas invariavelmente se decepcionavam. Pessoas iam e vinham, e se podia extrair muita alegria desses relacionamentos. Ela sabia disso, e extraía sempre todo o prazer e satisfação possíveis. Contudo, nenhum indivíduo, isoladamente, jamais fora tão constante quanto a onda de intensa excitação que vinha de um furo jornalístico bem-feito.
Ela se serviu de mais um drinque, pensando sobre o próximo passo. Quando chegou ao fundo do copo, sabia que só havia um rumo possível.
Três horas depois, Catherine registrava-se em um hotel quatro estrelas na periferia de Newcastle. Ela aprendera que um dos segredos do bom jornalismo era saber quando ir em frente e quando forçar-se a ter paciência. Sua ânsia por descobrir os mistérios desta história era temperada pela sabedoria da experiência. Aparecer sem anúncio na porta de alguém sempre era má ideia, se isso ocorresse tarde da noite. Ela sabia que a visita seria sempre associada com más notícias, mesmo antes de abrir a boca.
Pela manhã, contudo, as pessoas estavam mais otimistas. Muito antes da invenção do carteiro, com sua promessa de boas notícias, todos já sabiam disso. Assim, desde seus tempos como repórter, ela sempre evitava bater na porta de alguém tarde da noite e optava por chegar de manhã cedo.
Catherine finalmente adormeceu, assistindo ao canal de filmes. Já passava das nove quando acordou, contente por ter tido uma boa noite de sono, apesar de tudo o que rondava sua mente.
A primeira coisa que fez foi ligar para o hospital. Lá, disseram que pouco havia mudado, embora agora houvesse razão para otimismo. Ela tentou ligar para a casa dos Bennetts, mas apenas a secretária eletrônica atendeu. Assim, transmitiu seu desejo de rápida recuperação e desligou. Uma hora depois, corria pela auto-estrada Al.
Ela estava a meio caminho pela trilha até a casa quando a porta se abriu.
- Catherine - disse Tommy, com o rosto amplo enrugado em um sorriso. - Que prazer inesperado. Venha sentar-se comigo lá nos fundos.
Ela seguiu-o pela sala e cozinha imaculadamente limpas até o quintal, um paraíso de flores perfumadas e folhagens. Na primeira visita, ele lhe contara que todas as plantas haviam sido escolhidas para atraírem pássaros e borboletas. Hoje, ouvia-se o zumbido suave de abelhas e inúmeras asas multicoloridas chamavam continuamente sua atenção enquanto conversavam. Tommy puxou uma cadeira para ela e, então, sentou-se no banco que dava de frente para o jardim e para o mar, que se estendia mais adiante.
- E então, o que a traz aqui? - perguntou ao sentarem-se. Ela suspirou.
- Nem sei por onde começar, Tommy. Não importa como eu conte, parecerá que eu enlouqueci de vez. - Ela baixou o olhar. - Você já soube de George?
- O que aconteceu? - perguntou ele, alarmado.
Catherine fitou-o.
- Teve um ataque cardíaco. Um dos grandes, segundo me disseram. Está no Derby Royal, na UTI. Está inconsciente desde as primeiras horas de ontem, tanto quanto sei. De acordo com Paul, seu coração parou na ambulância, a caminho do hospital.
- E você veio até aqui para me contar? Catherine, é muita gentileza de sua parte. - Tommy afagou-lhe a mão. - Muito obrigado.
- Desculpe ser portadora de más notícias. - Naquele momento, ela satisfez-se com o papel de amiga preocupada.
Ele encolheu os ombros.
- Na minha idade, é natural receber más notícias. E como Anne está enfrentando a situação? Deve estar arrasada.
- Não saiu do lado de George. Paul está na cidade agora, com sua noiva, e os dois estão dando apoio a Anne.
- Pobrezinha. Dedicou sua vida a George. E com a artrite não poderá fazer muita coisa se ele precisar de cuidados de enfermagem que exijam força física. - Tommy suspirou e sacudiu a cabeça. Seu olhar cruzou o jardim e fixou-se no brilho azulado do Mar do Norte.
Catherine pegou seu maço de cigarros, perguntando:
- Importa-se se eu fumar?
As sobrancelhas dele levantaram-se.
- Achei que você não fumava. Mas fique à vontade. - Ele levantou e foi até o galpão no canto do jardim, voltando com um apoio de vaso de argila. - Use isso como cinzeiro. - Tommy recostou-se, cruzando as pernas na altura dos tornozelos e enfiando as mãos nos bolsos de sua calça larga de veludo cotelê.
- Segunda-feira, George foi a Scardale. E na segunda à noite sofreu o ataque cardíaco - disse ela, sem mais preâmbulos.
- Você o convenceu a ir até a aldeia? - perguntou ele, com os olhos arregalados de surpresa.
- Não fui eu. Eu jamais conseguiria persuadi-lo, mas Paul conseguiu a façanha. Ele veio com Helen, sua noiva. Estão planejando casar-se este ano ainda. De qualquer forma, a irmã de Helen, Janis, mudou-se para o Solar Scardale alguns anos atrás e eles conseguiram convencer George e Anne a almoçarem lá segunda-feira. Eu sabia que a ideia de voltar a Scardale era desagradável para George, mas depois de chegarem lá, de acordo com Paul o comportamento dele tornou-se realmente esquisito.
- Esquisito como?
- Paul disse que seu pai parecia muito tenso. Não tinha apetite. Exceto por uma caminhada solitária pela praça da aldeia, ficou sentado no jardim, sem falar com ninguém. Paul disse que George estava muito distraído e que se fechou pelo resto do dia e da noite. - Catherine fez uma pausa para organizar seus pensamentos. Precisava ter cuidado no modo como se expressava com Tommy, que era perspicaz o bastante para captar nas entrelinhas o que não lhe diziam.
- Antes de adoecer, ele escreveu uma carta para mim, pedindo que cancelasse o livro. Sem nenhum motivo. Disse apenas que tivera novas informações que exigiam este cancelamento para sempre. É claro que contei a Paul sobre a carta, quando o vi no hospital. Eu já estava convencida de que George havia visto alguma coisa em Scardale que talvez tivesse lhe trazido dados novos sobre um determinado aspecto do caso, ou lhe causasse preocupação por algo que incluímos no livro. Paul chegou à mesma conclusão e se sente muito culpado. Acha que é responsável pelo ataque cardíaco do pai, porque o convenceu a voltar a Scardale. Ele me perguntou se posso tentar descobrir o que está por trás da carta que George me mandou. Assim... - Ela sacudiu os ombros. - Preciso encontrar as respostas.
- Você teria sido uma ótima policial - disse ele, seco.
- Vindo de você, não tenho certeza se isto é um elogio. - Ela olhou para o cigarro, incerta, e depois o apagou com firmeza.
- Ah, sinto um respeito imenso por eles, porque fazem um trabalho que, para mim, foi demais - disse, fingindo uma infelicidade que ela sabia que ele não sentia. - E aonde você foi, em busca de suas respostas? Como se eu não soubesse...
- Isso mesmo. Voltei a Scardale. Pensei em pedir à irmã de Helen para dar mais uma olhada no solar para ver se conseguia descobrir o que poderia ter causado tanta emoção em George. - Ela remexeu-se na cadeira para poder também olhar para o mar.
- E descobriu?
Catherine ocupou-se com outro cigarro. Pelo canto do olho, percebia que Tommy a avaliava, com os olhos astutos em seu rosto curtido. Ele sabia que havia algo, mas nem mesmo em suas fantasias mais desvairadas poderia descobrir o que ela estava prestes a dizer.
- Nem cheguei a entrar no solar - disse, exalando a fumaça. - Mas vi o que quase matou George. - Ela abriu sua bolsa e tirou dali a pasta onde guardara a fotografia envelhecida digitalmente de Alison Cárter.
Tommy estendeu a mão. Ela fez um "não" com a cabeça.
- Espere um pouco - disse. - A mulher que abriu a porta, aquela que supostamente é a irmã de Helen... é um clone perfeito de Alison Cárter. Até no detalhe da cicatriz na sobrancelha. - Ela entregou a pasta a Tommy, que a abriu com grande inquietação, como se pudesse explodir em seu rosto. O que ele viu ali era pior que qualquer coisa que pudesse temer. Sua boca abriu-se e assim ficou. - Também não pude acreditar no que via. Levei as fotos que Philip Hawkin tirou de Alison a uma especialista, que as envelheceu com um programa de computador. Esta poderia ser uma foto da mulher que atendeu a porta no Solar Scardale. Mas esta também é a aparência que Alison teria se estivesse viva.
A pasta tremia nas mãos de Tommy.
- Não - murmurou ele. - Não pode ser. Deve ser uma parente.
- A cicatriz é a mesma, Tommy. Ninguém tem cicatriz idêntica à de outra pessoa.
- Você deve ter cometido um erro. Talvez não tenha visto a mulher direito. Deixou-se levar pela imaginação.
- Será? Acho que não, Tommy. Não foi minha imaginação que causou um ataque cardíaco em George. O que eu vi, George viu antes de mim. Por isso vim até aqui. Preciso de sua ajuda. Preciso que você vá até lá, veja Janis Wainwright e diga a mim e a George que ela não é Alison Cárter. Porque, do meu ponto de vista, parece que tropecei no furo jornalístico no século.
Ele cobriu o rosto com a mão livre, esfregando sua pele curtida, fazendo-a parecer o couro enrugado de um animal. A mão voltou ao colo e seu olhar fixou-se em Catherine.
- Se você estiver certa, sabe o que isso significa, não é?
Ela assentiu, lentamente. Não pensara em mais nada na longa viagem até ali, sua mente como uma montanha-russa, na qual o ponto mais alto era o efeito profissional da revelação que faria, e o ponto mais baixo era o que aquilo faria com George Bennett e sua família. Ela sabia que, em algum momento, teria de encontrar um equilíbrio entre essas duas consequências. Mas, primeiro, teria de segurar a verdade em suas mãos. Olhando Tommy diretamente nos olhos, disse:
- Significa que enforcaram Philip Hawkin por um crime que nunca aconteceu.
4
Agosto de 1998
Tommy Clough não era um homem sentimental. Sempre vivera no presente, extraindo sustento daquilo que o cercava. Sua outra grande qualidade era a persistência. Assim, embora nunca tivesse se sentido particularmente enriquecido pelos anos de trabalho na polícia, mantivera-se em seu emprego por causa do desejo duradouro por justiça, que o levara até lá em primeiro lugar. Entretanto, mesmo então ele conseguira manter-se com suas duas paixões, os pássaros e o jazz.
Ao revelar a Catherine que o caso Alison Cárter marcara o início do fim de sua carreira como policial, dissera nada menos que a verdade. Preocupara-se demais com o resultado de um caso que, na melhor das hipóteses, era frágil. A ideia de que o assassino de Alison pudesse sair impune o atormentara dia e noite, até o final do julgamento, e desejara não ter de passar por aquilo novamente. Precisara de alguns anos para entender o que realmente sentira sobre a investigação e seus resultados, mas, depois de tomar uma decisão, sair da polícia de Derbyshire fora uma questão de semanas. E não se arrependera dela um minuto sequer.
A chegada de Catherine Heathcote, alguns meses antes, forçara-o a reexaminar o passado, praticamente pela primeira vez desde que se demitira. Durante dias, antes da entrevista com ela, perambulara pelos rochedos e promontórios próximos à sua casa, revirando o caso de Scardale vezes sem conta em sua mente.
Um de seus pontos fortes, como policial, havia sido sua intuição. Com frequência, ela o fizera ir em frente mesmo quando não existiam evidências concretas, e isto compensara na maior parte das vezes, na forma de detenções e condenações. Ele estivera convencido, desde o início, que Philip Hawkin não valia um centavo. Todos os seus instintos haviam gritado isto desde seu primeiro encontro com o homem. Muito antes de George Bennett sequer verbalizar as primeiras suspeitas sobre Hawkin, Tommy Clough já achava que o dono de Scardale guardava um segredo muito sério.
Tão logo George indicara o desejo de prestar mais atenção em Hawkin, Tommy transformara-se em um cão farejador, em busca de qualquer fio de evidência que pudesse apoiar o caso. Ninguém trabalhara mais que ele, nem mesmo o próprio George, na tentativa de incriminar Philip Hawkin.
Apesar disso, em seu íntimo Tommy jamais se convencera de que Hawkin era um assassino. Não tinha dúvidas que o homem havia sido um predador sexual cruel, e tivera pesadelos com as fotografias que, certamente, não haviam sido forjadas nem por George nem por qualquer outra pessoa. Contudo, embora desprezasse e detestasse Hawkin, nunca se convencera inteiramente de que ele era o assassino que o haviam feito parecer. Talvez tivesse trabalhado tanto para construir um caso tão sólido contra ele exatamente porque aquela dúvida insistia em incomodá-lo no fundo de seu cérebro. Tentara convencer tanto o júri quanto a si mesmo. E a convicção final de que seu instinto falhara prejudicara sua confiança em sua capacidade para executar bem seu trabalho.
E agora, Catherine deixara cair uma bomba. Segundo ela, George Bennett estava deitado em um hospital, ligado a aparelhos que o mantinham vivo, porque percebera, assim como a própria Catherine, que Alison Cárter estava viva e morava em Scardale. De certo modo, não fazia sentido. Entretanto, se Catherine estivesse certa, isto só justificava a inquietação que Tommy Clough sentira anos atrás. Ainda assim, desta vez ele teria dado quase qualquer coisa para que estivesse errado por todos aqueles anos, porque, se Alison Cárter estava viva, então as repercussões seriam assustadoras. Além das consequências legais, quem quer que fosse a noiva de Paul Bennett, ela estava ligada, de algum modo, a um erro terrível no qual seu futuro sogro tivera uma participação crucial.
Tudo isso rolava pela mente de Tommy, sem uma solução, enquanto seguia o carro de Catherine com seu Land Rover pela Al, rumo a Derbyshire. Não havia alternativa, exceto voltar com ela e fazer o possível para proteger George e sua família das consequências do que ela pensava que havia descoberto. Tommy considerava-a determinada e teimosa, uma combinação perigosa com um material tão explosivo. Ela se oferecera para levá-lo de carona, mas ele insistira em manter a liberdade de ir e vir que lhe faltaria se dependesse de Catherine para tudo.
- Quero fazer visitas a George - disse ele. - E pode ser que nem sempre o momento seja conveniente para você.
Além disso, ele queria estar sozinho com seus pensamentos.
A viagem de cinco horas passara num piscar de olhos, e de repente estavam estacionando junto a uma casa na rua principal de Longnor. Catherine anunciou que a primeira coisa que precisavam fazer era encontrar um lugar para Tommy ficar. O bar alugava quartos, mas no meio de agosto já estava lotado, com excursionistas e pescadores. Tommy encolheu os ombros e, então, marchou direto até a porta da frente de Peter Grundy, anunciando que precisaria do quarto extra de Grundy por alguns dias e perguntando se dez libras seriam suficientes para pagar a hospedagem e o café da manhã.
A esposa de Grundy, que nunca gostara dos chefes do marido e se sentia bem contente por poder tirar dinheiro de um deles, quase mordeu sua mão quando ele estendeu as notas, embora Peter tivesse a elegância de parecer encabulado. Quaisquer perguntas que tivessem sobre o motivo da ida de Tommy a Derbyshire foram satisfeitas com a notícia sobre o ataque cardíaco de George.
- Em um momento assim, a gente precisa dos amigos por perto - disse a senhora Grundy, em tom profundo.
- Certamente - foi a resposta séria de Tommy. - E pretendo fazer tudo que puder para ajudar George e Anne. - Ele lançara uma rápida olhada para Catherine, para garantir que ela captara sua mensagem de que talvez seus interesses não fossem os mesmos. Ela inclinou a cabeça, em reconhecimento, e recusou uma xícara do chá industrializado e forte da senhora Grundy.
- Estarei em casa quando você estiver pronto, Tommy - foi tudo o que ela falou.
Catherine não tinha tempo para cogitar exatamente o que Tommy Clough pensava fazer, impaciente para colocar-se na frente de seu laptop. Ela entrou on-line e descobriu que a Agência de Buscas Legais lhe enviara o que pedira. Haviam digitalizado as fotocópias das certidões e atestados e enviado para ela como arquivos de imagens.
Janis Hester Wainwright vinha primeiro. Nascida em 12 de janeiro de 1951, em Consett. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Upington Terrace, 27, Consett.
Nome de solteira da mãe: Cárter. Era coincidência, mas nem tão grande. Cárter era um nome muito comum, disse ela a si mesma, com firmeza. Esta questão era importante demais para agarrar-se em frágeis indícios. O que precisava era de provas concretas.
A seguir, a certidão de Helen. Helen Ruth Wainwright. Nascida em 10 de junho de 1964, em Sheffield. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Lee Bank, 18, Rivelin Valley, Sheffield.
Nome no meio: Ruth. Junto com Cárter, isto começava a ficar interessante, pensou Catherine, sentindo a excitação sob a pele.
Ela rolou até a página seguinte do arquivo eletrônico para ver a certidão de casamento de Samuel e Dorothy Wainwright. A excitação era uma sensação física que rugia em seu estômago. Local do casamento: Igreja de Santo Estêvão, Longnor, distrito de Buxton. Data do casamento: 5 de abril de 1948. Samuel Alfred Wainwright, solteiro, casara-se com Dorothy Margaret Cárter, solteira. Ele estava com vinte e dois anos, e, ela, vinte e um. Ele era metalúrgico, e ela, uma ordenhadora. Na época do casamento, ele residia no número 27 de Upingtoh Terrace, Consett. Ela morava na Casa do Condado, em Scardale, Derbyshire. Seu pai era Albert Cárter, trabalhador rural. As testemunhas foram Roy Cárter e Joshua Wainwright.
Catherine mal podia acreditar nos seus olhos. Ela leu novamente os detalhes. A mãe de Janis Wainwright era Dorothy Cárter, da Casa do Condado, em Scardale. Uma das testemunhas do casamento de Dorothy era Roy Cárter. Ela podia apostar que ele também morava na Casa do Condado, em Scardale. O mesmo Roy Cárter que fora marido de Ruth Crowther e pai de Alison Cárter. Assim, não seria surpreendente descobrir uma forte semelhança entre Janis e Alison. A herança genética podia ser uma coisa estranha, mas, ainda assim, não explicava a cicatriz. Se Janis não era Alison, como podia ter uma cicatriz idêntica?
A única explicação na qual ela conseguiu pensar era que a cicatriz havia sido alguma forma bizarra de mutilação que Janis, adolescente, infligira a si mesma depois do desaparecimento e suposta morte de Alison. Ela podia imaginá-las crescendo juntas, os comentários da família de que poderiam ser gémeas idênticas. E, então, Alison havia morrido e Janis decidira mantê-la viva, fazendo em si uma marca igual, reafirmando a singularidade de Alison. Era uma ideia grotesca, mas Catherine sabia que garotas adolescentes eram capazes dos comportamentos mais fantásticos, incluindo lesões auto-infligidas.
O cursor piscava, chamando sua atenção. A agência de buscas enviara mais que os três documentos. Ela desceu mais uma página na tela do computador e, desta vez, não conseguiu parar de olhar, boquiaberta e atónita. Enviara seu pedido pelos documentos apenas por rotina, para cobrir todas
CÓPIA AUTENTICADA DE UMA CERTIDÃO DE CASAMENTO, DE ACORDO COM A LEI DE CASAMENTOS DE 1836
Distrito do Registro:
Casamento Celebrado em: Igreja de Santo Estêvão, Longnor Em: Debshire
Buxton
Número do Registro: 87
Sobrenome: Wainwright
Data do Casamento: 15 de abril de 1948 Nome: Samuel Alfred
Idade: 22
Estado Civil: Solteiro
Profissão: Metalúrgico
Residência: ypmgton.
Nome e Sobrenome do Pai: Alfred Wainwright
Profissão do Pai: Metalúrgico.
Nome da mãe: Dorothy Margaret
Sobrenome: Cárter
Idade: 21
Estado Civil: Solteira
Profissão: Ordenhadora
Residência: Condado, Scardale Derbyshire.
Nome e Sobrenome do Pai: Albert Carter
Profissão do Pai: Trabalhador rural.
Celebrado por: Paul Westfield.
as possibilidades. Mas a agência encontrara algo que ela mesma não acreditava que deveria procurar.
Janis Hester Wainwright falecera em 11 de maio de 1959.
Catherine olhou para a tela por muito tempo. Apenas uma coisa fazia sentido. Ela acendeu um cigarro e tentou imaginar qualquer outra situação que se encaixasse nos fatos, mas nada lhe ocorreu. Nada se encaixava, a menos que começasse com a suposição de que Alison Cárter não morrera em dezembro de 1963. Quem teria mais condições de assumir uma menina que desejava esconder-se que um ramo fisicamente distante de sua família? Assim, ela havia assumido a identidade de sua prima falecida, Janis, e vivera até a idade adulta em Sheffield.
Um pensamento veio-lhe subitamente e os pêlos em sua nuca eriçaram-se. Tantos anos atrás, Don Smart convencera o Daily News a consultar uma vidente que dissera que Alison estava viva e em segurança, morando em uma rua de uma cidade grande. Ninguém deu crédito à vidente na época. A situação descrita pela mulher era improvável demais. Agora, porém, Catherine achava que, contra todas as probabilidades, a vidente francesa podia estar certa.
Uma batida na porta assustou-a, tirando-a de seus devaneios. Tommy vinha para dizer-lhe que iria até Cromford, para ver se havia alguém em casa. Se não, pretendia ir até Derby.
- Antes de você ir - disse ela -, dê uma olhada nisso aqui.
Ela fez um gesto para que ele se sentasse na frente do laptop e mostroulhe como rolar a tela para baixo. Ele sentou em silêncio, lendo os quatro documentos com grande concentração. Depois, voltou-se para ela, perturbado:
- Diga-me que você tem outra explicação - disse, com voz suplicante. Catherine sacudiu a cabeça.
- Não consigo pensar em outra.
Ele massageou o queixo com dedos ainda fortes e grossos.
- Preciso visitar George e sua família - disse, finalmente, e suspirou. - Precisamos conversar sobre o próximo passo. Você estará acordada quando eu voltar?
- Sim. Vou até Buxton comer alguma coisa, porque, se ficar dentro de casa, acabarei enlouquecendo - disse, fazendo um gesto na direção das fotografias de Scardale espalhadas nas paredes. - Estarei de volta às nove.
ATESTADO DE ÓBITO
Distrito do Registro: Condado de Durham
Subdistrito de: Consett
Nome: Janis Hester Wainwright Sexo: Feminino
Data do Óbito: 11 de maio de 1959 Idade: 8 anos
Causa do Óbito: Tuberculose.
Médico Responsável: Dr. James Inchbald e Dr.Andrew Witherwick
Endereço: Upington Terrace, 27, Consett, Condado de Durham.
Nome e Sobrenome do Pai: Samuel Wainwright
Nome, Sobrenome e Nome de Solteira da Mãe: Dorothy Wainwright, anteriormente Cárter.
Ele acenou com a cabeça.
- Então estarei aqui quando você voltar. Não se preocupe, Catherine. Descobriremos tudo.
- Ah, acho que já descobrimos o mais importante, Tommy. O mais difícil é saber o que faremos com isso.
Tommy sorriu para a enfermeira da UTI.
- Sou parente - falou, com a confiança tranquila que nunca falhava.
- George é meu cunhado.
A enfermeira assentiu.
- O filho e a nora dele foram comer algo, de modo que apenas a esposa lhe faz companhia agora. Pode entrar direto. - Ela abriu a porta para ele.
- Terceiro leito, em frente.
Tommy andou lentamente. Parou a alguns metros da confusão de máquinas e aparelhos que mantinham seu velho amigo vivo. Anne estava sentada de costas para ele, a cabeça baixa, uma das mãos enlaçada na de George e a outra acariciando seu braço, maquinalmente atenta para não tocar no tubo ligado à veia do marido. A pele de George estava pálida, com um leve brilho viscoso. Seus lábios tinham um tom azulado e manchas escuras podiam ser vistas sob seus olhos fechados. Sob o lençol fino, seu corpo parecia estranhamente frágil, apesar dos ombros largos e músculos bem definidos. Vê-lo assim, sem vitalidade, fazia com que Tommy sentisse sua própria mortalidade, como uma lufada de ar frio em sua pele.
Ele deu um passo à frente e pousou a mão no ombro de Anne. Ela ergueu a cabeça, com olhos cansados e resignados. Pareceu confusa por um momento, mas depois o choque do reconhecimento atingiu-a.
- Tommy? - perguntou, incrédula.
- Catherine contou-me o que aconteceu. Eu quis vir.
- Claro que sim - disse ela, como se aquilo fizesse todo o sentido do mundo.
Tommy puxou uma cadeira e sentou-se próximo. A mão que estivera acariciando o braço de George soltou-o e segurou com força o braço do outro homem.
- Como ele está? - perguntou Tommy.
- Dizem que está aguentando firme, o que quer que isso signifique - respondeu com a voz cansada. - Não entendo por que ele ainda está inconsciente. Achei que ataques cardíacos vinham e pronto: a gente sobrevive ou não... Mas ele está assim há dois dias, e ninguém me diz quando recobrará a consciência.
- Acho que é o modo de o corpo curar-se - disse Tommy. - Se bem conheço George, se estivesse consciente teriam de atá-lo à cama para forçá-lo a repousar e recuperar-se direito.
Anne sorriu desanimada.
- Talvez você tenha razão.
Ficaram sentados em silêncio durante alguns minutos, observando enquanto o peito de George subia e descia. Finalmente, Anne falou:
- Estou contente por você ter vindo.
- Desculpe-me se foi preciso uma coisa assim para me forçar a vir. - Tommy acariciou a mão de Anne. - E quanto a você? Como está?
- Estou com medo, Tommy. Nem posso pensar em como seria minha vida sem ele. - Ela fixou o olhar no marido, com os ombros curvados em desamparo.
- Quando foi a última vez que você dormiu? Ou comeu? Anne balançou a cabeça.
- Não consigo dormir. Deitei-me ontem à noite. Eles têm um quarto para parentes aqui, mas não consegui me desligar. Não gosto de sair de perto dele. Quero estar aqui quando George abrir os olhos. Ele vai se assustar, sem saber onde está. Preciso estar aqui. Paul ofereceu-se para me substituir, mas não me sinto bem. Ele já está abatido demais, culpando-se, e tenho medo do que dirá a George se estiverem sozinhos. Não quero que George tenha novos problemas.
- Mas eu estou aqui agora, Anne. Posso ficar com ele, enquanto você ao menos toma um chá e come alguma coisa. Você parece à beira da exaustão.
Ela virou-se, olhando-o com curiosidade.
- E o que ele vai pensar se vir você sentado aí, como um fantasma do passado? - perguntou, com um traço de seu bom humor costumeiro.
- Bem, pelo menos isso o distrairia - respondeu Tommy, com um sorriso. - Você precisa descansar, Anne. Vá tomar alguma coisa e pegar um pouco de ar fresco.
Anne abaixou a cabeça, concordando.
- Talvez seja melhor mesmo. Mas não vou sair. Ficarei uns dez minutos no quarto para parentes. Mas você precisa conversar com ele. Dizem que isso ajuda. E se ele mexer um dedo sequer, chame a enfermeira. Mande alguém me buscar.
- Vá. Ficarei de olho nele.
Com relutância, Anne levantou-se e afastou-se, devagar. Ela andou até a porta, lançando um olhar para trás a cada dois passos. Tommy ocupou a poltrona em que ela estava antes e inclinou-se para a frente, com os cotovelos fincados nos joelhos. Ele começou a falar com George, baixinho, contando-lhe sobre suas últimas experiências de observação de pássaros. Depois de cerca de dez minutos, uma enfermeira veio para verificar os sinais vitais do paciente.
- Não sei como o senhor conseguiu - disse ela -, mas a senhora Bennett está dormindo pela primeira vez desde que trouxeram seu marido para cá. Mesmo se for apenas um cochilo, fará um bem enorme para ela.
- Fico feliz - respondeu Tommy.
Ele esperou até que a mulher se afastasse e recomeçou seu monólogo:
- Talvez você esteja imaginando o que vim fazer aqui. É uma longa história, acho, e talvez eu nem devesse lhe contar. Assim, não se dê ao trabalho de perguntar o que me trouxe aqui. Apenas agradeça, porque minha cara feia foi o bastante para fazer com que Anne se afastasse para dormir um pouquinho.
Enquanto falava, ele percebeu movimentos minúsculos sob as pálpebras de George. Então, os olhos abriram-se de repente. Tommy inclinou-se para o amigo, tomando-lhe a mão.
- Bem-vindo de volta, George - murmurou. Ele sacudiu a mão livre, tentando atrair a atenção da enfermeira. - Não entre em pânico, companheiro. Você ficará cem por cento de novo.
George franziu a testa, confuso.
- Anne já voltará - disse Tommy. - Não se preocupe com nada. - Enquanto falava, a enfermeira chegou junto ao leito. Tommy levantou o olhar. - Ele acordou.
Afastou-se, para permitir que ela se aproximasse mais.
- Vou buscar Anne - prometeu, afastando-se apressadamente, seguindo as placas que indicavam a localização do quarto de descanso para parentes. Anne estava estendida em um sofá, dormindo profundamente. Detestava ter de acordá-la, mas ela nunca o perdoaria se não fizesse isso. Tommy pousou uma mão em seu ombro e sacudiu-a levemente. Os olhos de Anne abriram-se de todo, imediatamente alertas, com o pânico estampado em seu rosto.
- Está tudo bem. Ele está acordando, Anne.
Ela levantou-se com dificuldade, exclamou um "Ah, Tommy!" e atirou os braços em torno de seu pescoço. Ele ficou ali, desajeitadamente preso em seu abraço, sem saber o que fazer com suas mãos.
- Voltarei amanhã - disse quando ela o liberou, pronta para voltar ao quarto de George.
Na porta, Anne olhou-o.
- Obrigada, Tommy. Você é um milagre.
Ficou ali por alguns instantes, acompanhando-a com os olhos.
- Existe mais de um tipo de milagre - disse com tristeza, saindo da UTI.5
Agosto de 1998
Catherine conseguiu prolongar um jantar sem graça durante quase uma hora e meia. Mesmo assim, mal passava das oito e meia da noite quando voltou a Longnor, mas Tommy já estava à sua espera, sentado sobre o muro baixo de calcário na frente de sua casa. Ele parecia acinzentado e pálido, e Catherine sentiu uma pontada de preocupação. Esquecia-se sempre de que Tommy não era jovem, já que parecia tão em forma e cheio de energia. Mas ele dirigira mais da metade do dia e provavelmente ainda não havia jantado.
- Graças a Deus você voltou. - Foi o cumprimento dele. - Precisamos sentar e conversar.
- Como está George? - perguntou Catherine, enquanto entravam. - Quer beber alguma coisa?
- Tem uísque?
- Só irlandês. - Ela apontou para o aparador. - Deixe-me pegar uma taça de vinho.
Ela foi à cozinha e abriu uma garrafa. Ao voltar, Tommy já se servira de cinco centímetros de uísque em um copo plástico.
- E então, como está George? - repetiu, esperando o pior.
- Recuperou a consciência. Eu estava com ele quando abriu os olhos.
- Você estava com ele? Como conseguiu entrar no quarto? Tommy suspirou.
- Como acha que consegui? Mentindo, ora! Obviamente, ele não estava em condições de conversar, mas acho que me reconheceu. Eu disse para Anne que voltarei amanhã de manhã. Talvez até lá eu já possa falar com ele.
- Acho que não é hora de falar sobre Scardale e Alison com George - disse Catherine.
Tommy lançou-lhe um olhar duro. Catherine pensou que ele não perdera seu jeito de policial, mesmo após tantos anos, já que a fazia sentir-se como uma borboleta presa em um alfinete.
- O que você quer dizer é que seria melhor se George não lembrasse do pedido para cancelar o livro.
- Não - protestou ela. - Só acho que, se o que aconteceu em Scardale realmente precipitou o ataque cardíaco, ele não deveria tocar neste assunto.
Tommy deu de ombros.
- E eu diria que esta decisão cabe a ele. Não pretendo pressioná-lo, mas se ele quiser falar sobre este assunto, também não vou impedir. Melhor falar que guardar tudo e talvez ter outro ataque cardíaco - disse, teimoso. - E por falar nisso, vi Paul quando estava saindo. Ele me apresentou à sua noiva. E você e eu precisamos ter uma conversa séria a este respeito - disse em tom grave, tomando um gole que eliminou metade do conteúdo do copo. - Vamos dar mais uma olhada nos documentos que você recebeu.
Catherine ligou o computador, enquanto Tommy andava de um lado para outro na pequena sala de estar. Tão logo a primeira certidão apareceu na tela, ele colocou-se ao seu lado.
- Mostre-me a certidão de nascimento de Helen outra vez. Ela rolou a tela e o documento apareceu.
- Ah, meu Deus - gemeu Clough. Ele virou-se e foi até a lareira. Ali, pousou um braço sobre a cornija e abaixou a cabeça.
Catherine girou em sua cadeira.
- Tommy, quer me contar o que está acontecendo?
Os ombros largos encurvaram-se e ele voltou-se para olhá-la. Se não lhe contasse, Catherine descobriria sozinha. Pelo menos assim, ele poderia ter algum controle sobre o que a jornalista sabia e o que faria com a informação.
- Você conheceu Helen, não? - perguntou, cansado.
- Sim, nós nos conhecemos ano passado, em Bruxelas.
- Ela não lembra alguém?
- Esquisito você perguntar, mas tive a impressão de que já a conhecia. Mas agora que sabemos de sua ligação com os clãs de Scardale, acho que só vi a semelhança genérica de todos os Carters.
Tommy suspirou.
- Sim, em parte é isso. Ela se parece um pouco com sua mãe, mas puxou muito mais ao pai.
Catherine franziu a testa.
- Tommy, não faz sentido. Você chegou a conhecer Samuel e Dorothy Wainwright?
Tommy sentou-se pesadamente em uma poltrona.
- Nunca vi nenhum dos dois em toda a minha vida. Não estou falando dos Wainwrights. Estou falando sobre Philip Hawkin.
- Hawkin? - ecoou Catherine, completamente perdida.
- Ela é a cara de Philip Hawkin. E tem seu tom de pele e cabelos. Acho que você não poderia captar a semelhança pelas fotos, mas está claro como o dia.
- Não pode ser - protestou Catherine. - George não teria percebido a semelhança?
- Não necessariamente. Talvez isso só tenha ocorrido quando a ligação com Scardale estava bem na frente de seu nariz. Além disso, você disse que Paul lhe contou que o pai estava inquieto, mesmo antes de chegarem a Scardale.
- Ainda poderia ser coincidência - disse Catherine, com teimosia. Se queria revelar esta história, precisava destrinchar cada fato, de modo a ter suas defesas já bem estabelecidas antes de precisar persuadir um editor. Ela até poderia tirar vantagem da experiência de Tommy para construir seus argumentos.
- Veja a certidão de nascimento'- disse ele. - O nome é Helen Ruth. Sei que Ruth não chega a ser um nome raro, mas, naquela época, a prática habitual por esses lados era dar o nome de alguém da família como nome do meio, em geral o nome do avô ou avó. Quando você acrescenta o resto dos detalhes que temos aqui, o fato de o nome do meio de Helen ser Ruth tornaria a coincidência grande demais.
Catherine acendeu um cigarro para adiar a pergunta inevitável:
- Então, se Philip Hawkin era pai de Helen... quem era a mãe?
- Bem, certamente não a esposa dele. Ruth Cárter não estava tendo um outro filho em junho de 1964, porque comparecia ao julgamento do marido. Nós a víamos uma vez por semana, durante os procedimentos para o julgamento, e ela não estava grávida.
- Algumas mulheres não aparentam. Elas parecem apenas um pouco mais gordas.
Ele sacudiu a cabeça.
- Catherine, quando conhecemos Ruth ela era uma mulher robusta. Na época do julgamento, tinha-se a impressão de que poderia ser levada por um vento forte, de Scardale até Denderdale. Ela não poderia ter dado à luz uma filha em junho de 1964.
- Então quem foi? - insistiu Catherine. - Presumo que estamos descartando um louco caso de amor ardente por Dorothy Wainwright?
- Suponho que isso seria possível - disse Tommy. - Dorothy estaria com trinta e poucos anos. Mas se Hawkin estivesse dormindo com ela, eu esperaria vê-lo mencionar seu caso extraconjugal no julgamento, como evidência de que era um homem normal, com fraquezas como outro qualquer, não algum pervertido com tara por meninas. Sempre imaginamos que a única razão para ter-se casado com Ruth era que, se alguém algum dia suspeitasse que andava abusando de Alison, ele apontaria para seu casamento, para provar que era um homem como outro qualquer. De qualquer maneira, não existem evidências indicando que ele algum dia tenha conhecido os Wainwrights. Mas se voltarmos à nossa teoria sobre a real identidade da mulher que se identifica como Janis Wainwright, então teremos uma garota em idade fértil na casa dos Wainwrights, que além disso tinha uma ligação comprovada com Hawkin. Uma garota que, como descobrimos pelas provas fotográficas, foi estuprada por Hawkin. - Suas palavras caíram pesadas como pedras.
- Alison Cárter é a mãe de Helen Markiewicz, nascida Wainwright - falou Catherine, colocando as elucubrações de Tommy em termos inequívocos. - E Philip Hawkin é o pai.
Ela olhou para Tommy, que sustentou seu olhar. Nenhuma outra explicação faria sentido, a partir dos fatos sólidos e da lógica que haviam descoberto. Mas esta solução trazia consigo tantas questões que Catherine nem sabia por onde começar.
Ela respirou fundo, verbalizando o que sabia estar na mente de Tommy:
- Então George Bennett está prestes a tornar-se sogro da filha de um homem por cujo enforcamento pelo homicídio da mãe ele foi responsável. Exceto que Helen ainda não havia nascido na época em que seu pai supostamente assassinou sua mãe. - Colocada assim, pensou Catherine, a coisa toda fazia com que Édipo Rei soasse como uma história banal ocorrida entre camponeses.
- Parece que sim. - Tommy esvaziou seu copo e pegou a garrafa de uísque no balcão.
- Sei que parece loucura... mas acho que Ruth e Alison conspiraram para que Philip Hawkin fosse preso.
Tommy serviu-se lentamente de outra dose. Tomou um gole, olhando diretamente para ela, sob as sobrancelhas abundantes. Depois, ele baixou o copo e falou:
- No mínimo, Catherine. No mínimo.
Ela tomou mais vinho, percebendo que sua mão tremia ao pegar o copo. Esta era mais que a melhor matéria na qual já tropeçara. Era uma tragédia com potencial para anular aquele intervalo de trinta e cinco anos e arruinar uma segunda geração de vidas que não tinham ideia de que sua história continha tamanha carga dramática. Sua situação era tanto aterrorizante quanto estimulante. Não se sentia inteiramente confiável com as informações que já tinha; estava quase contente porque Tommy estava ali para agir como freio para seus instintos mais desenfreados.
- E agora?
- Boa pergunta - disse Tommy.
- Ah, tenho um estoque de perguntas assim.
- Acho que temos apenas uma opção real. Acho que temos de nos afastar agora mesmo e esquecer toda essa história. Deixar Alison Cárter, se for ela, em paz. Deixar que Helen e Paul se casem sem uma nuvem no horizonte.
- De jeito nenhum - protestou Catherine. - Não posso ignorar tudo isso. Esses fatos viram do avesso um dos maiores casos legais do pós-guerra. Além disso, ele derruba um precedente legal importante.
- Poupe-me, Catherine - disse Tommy, irritado. - Você não dá a mínima para os precedentes legais. Tudo o que vê é o furo de reportagem de sua vida e o dinheiro que pode ganhar com ele. Não percebe quantas vidas você destruirá se publicar esta história? Você arruinará a reputação de George. Destruirá o futuro de Paul e Helen. Sem mencionar que estragará completamente a vida dela. Como acha que ela poderá se sentir quando descobrir que sua irmã é, na verdade, sua mãe e a mulher que considerava sua mãe conspirou para que seu pai verdadeiro fosse enforcado? E temos também Janis, ou Alison, como quer que ela deseje ser chamada. Ela poderá ser condenada por conspiração para assassinato. Tudo isso para que você possa ter seus quinze minutos de fama? - Agora ele gritava, e sua presença enchia a sala, fazendo com que Catherine prendesse o fôlego. Ela engoliu em seco e disse:
- Então você acha que devo simplesmente anular os últimos seis meses de minha vida? Também tenho algo em jogo, Tommy. Você mesmo me falou sobre a importância da justiça, disse que se demitiu porque achava que a polícia não era capaz de fazer a justiça como deveria. Agora você me diz que devo mandar às favas a justiça e cuspir na verdade para proteger sua reputação e encobrir o fato de que você e seu chefe enforcaram um homem inocente! - Agora Catherine estava tão zangada quanto ele.
Tommy tomou rapidamente um gole de seu uísque e tentou dominar sua raiva:
- Isso não diz respeito a mim, Catherine. Diz respeito a um bom homem e sua família inocente. Nenhum deles merece que sua vida seja destruída por algo que deveria ter sido morto e enterrado trinta e cinco anos atrás. Ouça, você não precisa desperdiçar os últimos seis meses. Publique seu livro como está e esqueça o resto.
- Mas George não queria esquecer o resto. Ele é mais íntegro que você, Tommy. Ele me pediu para cancelar o livro exatamente porque não conta a verdade.
Tommy balançou a cabeça.
- Ele estava agindo por impulso. Quando tiver tempo para pensar melhor, posso apostar que perceberá que faz sentido publicá-lo assim como está.
- Ou seja, quando você conseguir convencê-lo a deixar que o livro seja publicado como está - disse Catherine, descontrolada. - Mas o livro não presta mais, Tommy. Posso eliminar o e-mail com os documentos de meu computador, mas não posso apagar o que sei de meu cérebro. Descobrirei a verdade e você não poderá me impedir.
Houve um longo silêncio. Tommy sentiu suas mãos se fechando e esforçou-se para mantê-las relaxadas. Finalmente, ele respirou fundo e disse:
- Talvez eu não possa impedi-la, mas certamente posso desacreditá-la quando o livro for publicado. Posso dizer à imprensa que você explorou um homem que estava ligado a máquinas em um hospital. Posso dizer que você explorou deliberadamente a incapacidade de George Bennett para denegrir a ele e sua família. Ninguém a considerará uma grande justiceira quando eu terminar. Você será tão digna de pena quanto Philip Hawkin.
Nenhum dos dois se moveu, olhando-se como dois cães raivosos em uma rinha. Finalmente, Catherine disse, forçando-se a parecer calma:
- Nenhum de nós dois tem o direito de tomar uma decisão sem George. Nem temos certeza se estamos certos. Antes de irmos adiante, precisamos falar com Alison Cárter.
Tommy virou-se e fitou as fotografias na parede. Alison Cárter, George Bennett, Ruth Cárter e Philip Hawkin. Em seu íntimo, ele sabia que Catherine tinha razão. Não tinham o direito de tomar uma decisão sozinhos, e nenhuma decisão tão importante deveria ser tomada sem certeza absoluta sobre os fatos. Ele suspirou.
- Está certo, então. Amanhã iremos a Scardale para obtermos algumas respostas.
6
Agosto de 1998
Tommy estava parado junto à porta da frente da casa de Catherine às oito horas da manhã seguinte. Quando a porta abriu, ele teve a impressão de que ela dormira tão pouco quanto ele.
- Você está adiantado - disse ela, dando um passo para trás para deixá-lo entrar. - Alison não ficará muito contente se chegarmos tão cedo.
- Ainda não vamos a Scardale.
- Não?
- Não. Prometi a Anne que voltaria ao hospital hoje de manhã. Quero fazer isso primeiro. E quero que você me leve até lá - disse Tommy, pegando uma torrada do prato de Catherine.
- Sirva-se à vontade, como se estivesse em sua casa - disse ela, surpresa por sentir-se divertida, em vez de irritada. - Já entendi. Você não confia em mim o bastante para acreditar que vou esperar seu retorno. Acha que vou partir zunindo até Scardale sozinha e fazer com que Alison confesse toda a verdade apenas para mim.
Tommy negou com a cabeça.
- Pode ser que você não acredite, mas não é nada disso. Tem mais torrada?
- Farei mais.
Ele a seguiu até a cozinha.
- Não é que não confie em você. É que não sou mais tão jovem. Ontem já dirigi mais do que dirijo normalmente durante um mês inteiro, e nunca dormi bem em camas estranhas. Para resumir, prefiro ser levado que ter de dirigir até Derby e voltar.
Ela colocou duas fatias de pão na torradeira e disse, em tom aprovador:
- Essa foi boa, Tommy. Quase acreditei em você. - Ela abriu um largo sorriso ao perceber que o magoara. - Tudo bem, é claro que eu o levo a Derby. O que quer que Janis Wainwright tenha a dizer, acho que não mudará em uma questão de horas.
Falaram-se pouco durante o trajeto até Derby, ambos envolvidos com seus próprios pensamentos. Catherine ainda se esforçava para encontrar uma estratégia para o encontro que teriam em Scardale. Ela ficara acordada até muito depois da meia-noite, fumando, bebendo e pensando. Sempre acreditara que uma grande parte do sucesso de qualquer entrevista estava na eficiência de sua preparação. Contudo, por mais que ela revirasse mentalmente o que ela e Tommy já sabiam, não conseguira pensar em uma forma de enfocar esta história de modo a produzir apenas a verdade. Janis Wainwright ainda tinha muito a perder.
Sua primeira surpresa do dia veio quando Tommy disse à enfermeira da UTI que estava ali para ver seu cunhado, George Bennett.
- Não está mais conosco - disse a enfermeira, consultando uma prancheta sobre a mesa.
Por um momento, Tommy sentiu o coração apertar-se.
- Não pode ser. Ele recobrou a consciência ontem à noite. Eu vi seus olhos se abrirem.
A enfermeira sorriu.
- Sim, por isso nós o transferimos para outra ala, já que não está mais em risco. - Ela encaminhou-os para a unidade de cuidados cardíacos, onde George estava agora.
- Tato e diplomacia não são muito valorizados por aqui - disse Catherine, secamente.
Seguiram por um outro corredor e encontraram a ala que procuravam. Tommy espiou pela janela que havia na porta. Havia quatro leitos na sala, dois desocupados. Através da janela, viu Anne sentada junto a uma das camas, tapando a visão do ocupante, que parecia estar reclinado, mas não totalmente deitado. Tommy voltou-se para Catherine:
- Acho que você deveria esperar lá fora. Ela concordou, com relutância:
- Há uma cafeteria no sexto andar. Esperarei lá. - Ela tirou seu minigravador do bolso. - Talvez você...
- Não. Isto é entre mim e George. Mas não se preocupe, não vou mentir para você.
Esperou que ela se encaminhasse para o elevador; então, aprumou-se e empurrou a porta. Enquanto se aproximava, viu o rosto de George. Era difícil acreditar que este era o mesmo homem que parecia a um passo do túmulo na noite anterior. Embora ainda parecesse cansado, havia um tom rosado em suas faces e as olheiras não eram mais tão fundas. Ao ver Tommy, seu rosto iluminou-se em um grande sorriso.
- Tommy Clough - disse, com a voz fraca, mas claramente alegre. - E lá estava eu, achando que havia morrido e ido para o inferno quando abri meus olhos e o vi olhando para a minha cara.
Tommy segurou uma das mãos de seu antigo chefe entre as suas.
- Acho que você só acordou por causa do choque de ouvir minha voz.
- Isso mesmo. Eu sabia que não poderia confiar em um mulherengo como você perto de minha Anne e tive de voltar para cuidar dela.
- George - repreendeu-o Anne. - Que coisa horrível para dizer a Tommy quando ele veio de tão longe para vê-lo.
- Não lhe dê atenção, Anne - falou Tommy. - Talvez ainda esteja delirando. Como está se sentindo, George?
- Em frangalhos, se quer a verdade. Nunca me senti tão cansado em toda a vida.
- Você pregou um susto e tanto em todos nós.
- Desculpe. Olhe, se eu soubesse que só assim o tiraria de sua vida de ermitão, teria feito isso anos atrás.
Tommy e Anne trocaram olhares, ambos contentes por verem que, apesar da fraqueza, George não perdera seu senso de humor.
- Ah, bem, não vou sumir tanto, daqui pra frente. Sabe, quem me contou foi Catherine. Ela foi até Northumberland só para me dar a notícia.
George assentiu, com o brilho do olhar desaparecendo.
- Eu deveria ter adivinhado. Anne, meu amor, será que me faria o favor de me deixar sozinho com Tommy? Talvez uns quinze minutos? Temos alguns... assuntos a tratar, querida.
- Disseram que você não deveria se cansar, George - disse Anne, franzindo o rosto.
- Eu sei. Mas ficar aqui me preocupando não me ajudará em nada. Prefiro conversar com Tommy. Acredite, amor, não pretendo mais flertar com a morte. - Ele pegou a mão da esposa e acariciou-a. - Depois lhe explico tudo, prometo. Mas não agora.
Anne apertou os lábios em desaprovação, mas levantou-se.
- Não o canse, Tommy. George, vou ligar para Paul para dizer-lhe que devem vir hoje à tarde.
- Obrigado, querida. - Os olhos de George seguiram-na enquanto ela saía. Depois, com um suspiro, ele pediu que Tommy se sentasse. - Tive medo de que ela não fosse nos deixar a sós. Quanto vocês sabem?
- Não sabemos muito, George, mas acho que já descobrimos mais ou menos toda a história. - Tommy apresentou-lhe um rápido resumo da investigação feita por Catherine. - Isso não deixa muita margem para dúvidas - concluiu.
- É inacreditável, não é? Mas eu soube, assim que meus olhos bateram nela. Eu vivi com aquele rosto durante oito meses e ele me assombrou durante anos. Qualquer que fosse o seu nome, eu sabia que a mulher que vi no Solar Scardale era Alison Cárter. E, então, percebi quem era Helen. - Seus olhos fecharam-se e seu peito subiu e desceu enquanto respirava ofegante. Ele abriu os olhos e encontrou a expressão preocupada do amigo. - Estou bem. Só cansado, nada mais.
- Vá com calma. Não estou com pressa. George conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
- Não, mas aposto que Catherine está. Não acredito que tenhamos alguma chance de pará-la.
Tommy sacudiu os ombros.
- Não sei. Ela é durona. Ontem à noite, fiz com que prometesse que o consultaria antes de tomar quaisquer decisões sobre o que fazer, mas a promessa teve um preço. Tenho de ir a Scardale com ela, para confrontarmos a mulher que todos acreditamos ser Alison. Catherine não arreda pé, dizendo que precisamos de todos os fatos, e não posso negar que tem razão.
- Não me preocupo por mim. Estou pensando em Paul e Helen. Cometemos um erro terrível quando eles nem eram nascidos, mas são eles que pagarão por isso. Não vejo como eles podem continuar se isso tudo vier à tona. E acho que Anne não me perdoaria por causar tanto mal a eles.
- Eu sei. E não se trata apenas deles, George. Também diz respeito a Alison. O que quer que ela tenha feito, já lhe custou mais do que jamais saberemos. Ela ainda pode ser condenada por conspiração, e acho que não merece isto.
- E então, o que devemos fazer, Tommy? Não sirvo para grande coisa deitado aqui.
Tommy sacudiu a cabeça, incapaz de esconder sua frustração.
- Talvez tenhamos uma ideia melhor depois de ouvirmos o que Alison tem a dizer por si mesma.
- Faça o que puder. - A voz de George tornara-se mais fraca. - Estou cansado. É melhor você ir agora.
Tommy levantou-se.
- Farei o melhor que puder.
- Você sempre fez, Tommy. Eu não esperaria nada diferente agora. Sentindo-se vinte anos mais velho que no dia anterior, Tommy saiu do quarto, rumo a um encontro que jamais esperaria deste lado da vida. A última vez em que sentira um peso tão grande sobre seus ombros fora durante a construção do caso contra Philip Hawkin. Desta vez, ele esperava sair-se melhor.
7
Agosto de 1998
O tempo voltara a fechar, mostrando o céu cinzento e chuvas intensas que haviam marcado a maior parte do verão. Enquanto entravam na estrada para Scardale, uma torrente súbita de água derramou-se sobre o carro, transformando o asfalto à frente em um turbilhão de água rasa.
- Belo dia para isso - disse Tommy, lacónico, sentindo uma turbulenta mistura de emoções. Sua curiosidade estava agitada pela perspectiva de descobrir a verdade final, mas estava apreensivo quanto às consequências possíveis dessas revelações. Tinha consciência de sua responsabilidade para com George e sua família, mas não tinha certeza se poderia cumprir esta obrigação. Além disso, sentia uma enorme pena da mulher cujo refúgio em outra identidade estavam prestes a destruir. Desejou, do fundo do coração, que George jamais tivesse concordado em romper seu silêncio. Ou que tivesse escolhido uma jornalista menos inteligente e persistente com a qual trabalhar.
Por seu lado, Catherine recusava-se a sequer considerar qualquer outra coisa além de extrair a verdade de Janis Wainwright. Haveria muito tempo para imaginar o que fazer com as informações depois de obtê-las. Por enquanto, sua missão era garantir que teria todos os fatos exatos, não importando as decisões que tomasse depois. Ela verificou o pequeno gravador e enfiou-o no bolso de seu blazer de linho. Tudo que precisava fazer era pressionar os botões "record" e "play" simultaneamente e teria a gravação perfeita do que Janis Wainwright - ou Alison Cárter - tinha a dizer.
Ao chegarem, Catherine atravessou seu carro na entrada da garagem, de modo que Janis só poderia escapar a pé, se quisesse. Em silêncio, esperaram que a chuva aliviasse, depois correram pela grama até a trilha que levava à porta da cozinha.
Tommy deixou a pesada alça de metal bater na porta, que se abriu quase que no mesmo momento. Sem a visão prejudicada pelo sol, desta vez Catherine conseguiu ver direito a mulher que estava ali e mostrava cautela no olhar. A cicatriz era inegável. Quase além de qualquer dúvida, esta era Alison Cárter. A mulher abriu a boca para falar, mas Tommy levantou a mão e balançou a cabeça.
- Sou Tommy Clough. Ex-detetive-sargento Clough. Gostaríamos de ter uma conversa com a senhora.
Com um gesto de negação com a cabeça, a mulher começou a fechar a porta. Tommy pressionou sua grande mão contra ela, sem empurrar, mas evitando que se fechasse ainda mais, a menos que ela usasse o peso de seu corpo para empurrá-la.
- Não bata a porta em nossas caras, Alison - disse ele, com a voz firme, mas gentil. - Lembre-se, Catherine é jornalista. Ela já sabe o suficiente para escrever uma versão da história. Não existe prescrição para o crime de conspiração para assassinato. E o que Catherine escrever agora pode levá-la a julgamento e a uma condenação.
- Não tenho nada a dizer - explodiu a mulher, com o rosto tenso pelo pânico e a mão que não estava segurando a porta indo pousar automaticamente na face.
Às vezes, Catherine pensou, a brutalidade era o único caminho que restava.
- Muito bem - disse, então. - Terei de descobrir o que Helen tem para me dizer.
Os olhos da mulher cintilaram com fúria, mas depois seus ombros levantaram-se e abaixaram, em uma mostra de resignação. Ela abriu passagem para eles, mantendo a porta aberta como sua mãe devia ter feito centenas de vezes antes.
- É melhor eu corrigir a besteira que vocês acham que sabem, em vez de deixar que incomodem Helen sem razão - disse, com voz fria e ríspida.
Tommy permaneceu de pé junto à porta, quando esta fechou-se atrás deles.
- Você fez algumas mudanças aqui - disse, observando a cozinha de fazenda que poderia ter sido apresentada em uma matéria sobre decoração de época, sem grandes acréscimos para melhor efeito.
- Não fui eu. Quando minha tia era a dona, mandou reformar para agradar seus inquilinos - disse, bruscamente.
- Não estou surpreso - comentou Tommy. Ao seu lado, Catherine pressionou disfarçadamente os botões de seu gravador. - Hawkin gastava apenas com suas fotografias, ou com você, Alison, mas nunca dedicou um centavo para o conforto de sua mãe.
- Por que você insiste em me chamar de Alison? - perguntou a mulher, com as costas para a parede e braços cruzados na altura do peito, o sorriso no rosto tentando demonstrar uma descontração que obviamente não sentia. - Meu nome é Janis Wainwright.
- Tarde demais, Alison. - Catherine puxou ruidosamente uma cadeira e sentou-se junto à mesa de pinho. Se Tommy havia decidido bancar o policial bonzinho hoje, ela estava mais que disposta a ser a policial impiedosa. - Você deveria ter fingido espanto quando Tommy chamou-a de Alison na primeira vez. Você pareceu apenas chocada, mas não confusa. Você não disse "Desculpe, você errou de casa, aqui não mora nenhuma Alison".
O olhar de fúria encontrou o seu. Pela primeira vez, Catherine percebeu a grande semelhança com Ruth Cárter. Nas fotografias que havia visto, Ruth devia ser dez anos mais jovem que Alison era agora, embora parecesse mais velha.
- Você se parece muito com sua mãe - disse Catherine.
- E como você poderia saber, se não a conheceu? - perguntou Alison, desafiadora.
- Eu a vi em fotografias. Estava em todos os jornais, durante o julgamento.
- Lá vem você novamente, falando absurdos. Não tenho ideia do que você tem em mente, mas minha mãe nunca se envolveu em julgamento algum durante sua vida inteira.
Tommy cruzou a cozinha e parou no outro lado, olhando para a mulher e balançando a cabeça, com um meio-sorriso de simpatia.
- É tarde demais, Alison. É inútil manter esta farsa.
- Que farsa? Eu repito: não tenho a menor ideia do que vocês estão falando.
- Ainda afirma ser Janis Wainwright? - perguntou Catherine, em tom gelado.
- O que você quer dizer com "afirmar"? O que é isto? Vou ligar para a polícia - disse, dirigindo-se para o telefone.
Tommy e Catherine não fizeram nem disseram nada. Alison abriu o catálogo e procurou o número. Depois, olhou sobre o ombro para ver o que os dois estavam fazendo. Catherine sorriu-lhe delicadamente e Tommy balançou novamente a cabeça.
- Você sabe que não é boa ideia - disse ele, com tristeza, enquanto a mão da mulher aproximava-se do aparelho.
- Não, Tommy. Deixe-a. Eu quero mesmo saber como ela conseguiu ressuscitar - falou Catherine, com doçura exagerada. Alison imobilizou-se.
- É isso mesmo, Alison. Sei que Janis morreu em 1959. Em 11 de maio, para ser exata. Deve ter sido difícil para tia Dorothy e tio Sam. Difícil para você também, já que vocês duas tinham quase a mesma idade.
Agora, os olhos de Alison mostravam medo. Com uma fisgada de pena, Tommy pensou que ela devia ter tido pesadelos com este momento durante anos. Finalmente, o que mais temia estava acontecendo. Ele podia imaginar o medo que a percorria agora. Dois estranhos em sua cozinha, um com boas razões para querer vingar-se dela por tê-lo feito de idiota trinta e cinco anos atrás, e a outra aparentemente determinada a expor seus segredos mais pavorosos a um mundo com sede de matérias sensacionalistas. E Catherine não lhe facilitava as coisas com sua agressividade. De algum modo, ele precisava acalmar um pouco as coisas e fazer com que Alison sentisse que esta era sua melhor chance de tirar algo de bom desta situação estarrecedora.
- Sente-se, Alison - disse ele, gentilmente. - Não viemos aqui para maltratá-la. Só queremos saber a verdade, só isso. Se planejássemos destruí-la, teríamos ido à polícia assim que Catherine descobriu o atestado de óbito de Janis Wainwright.
Lentamente, com dificuldade, como um animal que prevê perigo, ela andou até a mesa e sentou-se na extremidade oposta à de Catherine.
- O que vocês têm a ver com isso?
- George Bennett está deitado em um hospital de Derby por causa do que viu nesta casa. Tenho certeza de que Helen já lhe contou, por telefone
- disse Catherine.
Ela fez que sim, dizendo:
- Sim. Lamento. Sempre desejei todo o bem para George Bennett.
- Se desejava mesmo, nunca deveria ter permitido que ele viesse até aqui - disse Tommy, incapaz de evitar a raiva e a dor em sua voz. - Você deveria saber que ele a reconheceria.
Ela suspirou.
- E o que mais eu poderia fazer? Como poderia explicar a Helen que não queria conhecer seus futuros sogros? Era melhor acabar logo com aquilo do que fazer com que ele me visse apenas no dia do casamento. Mas vocês ainda não responderam à minha pergunta: o que têm a ver com isso?
Catherine inclinou-se para a frente. Sua voz era tão intensa quanto sua expressão:
- Passei seis meses de minha vida trabalhando com George Bennett para contar uma história. Agora, descubro que fomos manipulados para acreditar em uma mentira. George Bennett pagou um preço enorme por descobrir isso. E eu não serei cúmplice na continuação desta mentira.
- Não importa o que custe para outras pessoas? Mesmo se envergonhar George Bennett? Mesmo se também destruir Paul Bennett e Helen? - explodiu Alison, com sua pose estilhaçando-se com a mesma rapidez que uma lâmpada em um chão de pedra. - E não apenas eles. - Sua mão voou para a boca em um gesto clássico, enquanto seus olhos arregalavam-se, como se percebesse que havia dito mais do que eles sabiam.
- Se você quer que eu mantenha seu segredo, precisará me dar uma razão melhor que o sentimentalismo. É hora de falar, Alison - disse Catherine, sem emoção. - É hora de Contar toda a história.
- Por que eu deveria dizer algo a vocês? Pode ser que estejam blefando. Todo mundo sabe que jornalistas fazem qualquer coisa para ter uma boa matéria. Como posso ter certeza de que você realmente sabe algo a meu respeito? - Esta era uma última tentativa desesperada de se livrar dos dois, e todos ali sabiam disso.
Catherine abriu sua bolsa e retirou dali os quatro documentos impressos.
- É por aqui que começamos - disse, jogando-os sobre a mesa na frente de Alison. As folhas aterrissaram em desordem. Alison leu-os lentamente, usando o tempo para readquirir o controle. Ao levantar a cabeça, seu rosto era novamente impassível, mas Catherine podia ver manchas escuras de suor formando-se sob as mangas de sua blusa verde-clara.
- E daí? - perguntou Alison.
Catherine tirou da bolsa as fotografias envelhecidas digitalmente e empurrou-as na direção de Alison.
- De acordo com os computadores da Universidade de Manchester, é assim que Alison estaria se ainda estivesse viva. Tem se olhado no espelho ultimamente?
Os lábios de Alison abriram-se, revelando dentes apertados, enquanto ela puxava o ar com força. O olhar que dirigiu a Catherine fez com que ela se sentisse contente pela presença de Tommy ali.
- O que sabemos é que você não é Janis Wainwright. Graças à tecnologia maravilhosa do DNA, provavelmente podemos provar que você é Alison Cárter. O que podemos comprovar com certeza é que Helen não é sua irmã, mas sua filha. A filha à qual você deu à luz quando mal tinha quatorze anos, após o abuso sistemático e estupro que sofreu nas mãos de seu padrasto, Philip Hawkin. O homem que enforcaram por seu assassinato. Se fôssemos à polícia com o que temos, eles poderiam exumar os corpos e provar o que dizemos, sem nenhuma dificuldade. - Catherine falava com precisão clínica.
- Sinto muito, mas ela tem razão, Alison - disse Tommy. - Mas estou falando a verdade. Não viemos aqui pensando em lhe causar mal. Pelo bem de todos os envolvidos, precisamos saber o que aconteceu, para podermos decidir juntos a melhor maneira de lidar com isto.
Sem pedir permissão, Catherine pegou seu maço de cigarros e acendeu um. Tommy atravessou a cozinha e trouxe-lhe um pires. A atividade preencheu o longo silêncio, enquanto Alison olhava, muda, sua fotografia envelhecida por computador. Seus olhos brilhavam, cheios de lágrimas não derramadas.
- Temos uma versão para o que aconteceu - disse Tommy, com suavidade, sentando-se perto dela. - Hawkin estava abusando de você e achamos que você não sabia o que fazer. Tinha medo do que aconteceria se contasse à sua mãe. A maioria das crianças sente medo dos pais. Mas sua mãe já havia perdido um marido e seu medo era fazê-la passar por toda aquela dor novamente, se a forçasse a escolher entre Hawkin e você. Então, veio a gravidez e sua mãe percebeu o que havia acontecido.
O movimento de cabeça de Alison era quase imperceptível. Uma lágrima solitária escapou de seu olho direito e deslizou por seu rosto. Ela não tentou enxugá-la.
- Assim, sua mãe a mandou viver com sua tia e seu tio, dizendo-lhe que, a partir de então, você teria de se transformar em Janis - continuou Tommy. - Depois, ela armou tudo para ele. Com as informações que você lhe deu, ela conseguiu fazer com que George Bennett tropeçasse nas pistas que ela plantou. Ruth chegou a descobrir o esconderijo das fotografias. E durante o tempo inteiro você permaneceu em silêncio. Suportou os horrores de uma gravidez indesejada e perdeu qualquer chance que tinha de ser feliz. Você nem mesmo conseguiu criar Helen como sua filha. Durante anos, o sacrifício foi suportável, porque significava que todos teriam algo semelhante a uma vida normal. Agora, por causa de uma terrível coincidência, porque Paul e Helen se conheceram e se apaixonaram, tudo saiu tragicamente errado.
Alison respirou fundo, estremecendo.
- Parece que vocês conseguiram descobrir tudo sem qualquer ajuda de minha parte - disse, abalada.
Tommy pousou uma das mãos em seu braço:
- Estamos certos, não?
- Não, Tommy - interveio Catherine, parecendo indiferente à cena emocional que se desenrolava na sua frente. - Há mais. Antes de chegarmos aqui, pensávamos que esta era história inteira, mas não é! Você mesma se entregou, Alison, quando disse que a verdade arruinaria a vida de mais gente, além de Paul e Helen. Há mais, e queremos ouvir.
Ela enfrentou o olhar de Catherine, com raiva.
- Você está errada. Não há mais nada para contar.
- Ah, eu acho que há, sim. E acho que você vai nos contar. Porque, do jeito como as coisas estão, não vou ficar do seu lado. Você e sua mãe assassinaram Philip Hawkin. Não foi algo feito impulsivamente, sob provocação imediata. O plano levou meses, e as duas mantiveram-se caladas o tempo todo. Tenho certeza de que você cozinhou bem sua vingança. Não vejo nenhum motivo para protegê-la das consequências do que fez. Se seu desejo era evitar o risco de destruir a vida de Helen, deveria ter-lhe contado a verdade anos atrás - disse, injetando raiva em sua voz. Estava determinada a não se deixar levar pela dor de Alison, mesmo sabendo que era verdadeira. - Agora, tudo o que você conseguiu foi pôr em risco a vida de um outro homem, um bom homem, tudo porque sua mãe não teve coragem para enfrentar Philip Hawkin de frente. A cabeça de Alison ergueu-se.
- Você não entende coisa nenhuma - falou, com amargura. - Você não tem ideia do que está dizendo.
- Então ajude-me a entender - desafiou-a Catherine. Alison fitou Catherine com um olhar longo e duro.
- Tenho de pegar uma coisa. Não se preocupem - acrescentou, enquanto Tommy empurrava sua cadeira para trás. - Não vou fugir. Não farei nada estúpido. Mas há algo que preciso lhes mostrar. Então, talvez vocês acreditem quando eu lhes contar o que realmente aconteceu.
Ela saiu da cozinha, deixando Tommy e Catherine a olharem um para o outro, imaginando o que viria a seguir.
- Você está pegando pesado com ela - disse Tommy. - A mulher já esteve no inferno. Não temos o direito de lhe trazer mais sofrimento.
- Ah, Tommy. Ela está escondendo algo. Pergunte-se o que poderia ser pior do que aquilo que já sabemos. Ela admitiu que conspirou com sua mãe para enviar o padrasto para a forca, mas guarda um segredo que considera pior ainda.
O olhar de Tommy beirava o desprezo.
- E você acha que tem direito a esta revelação?
- Acho que todos temos. Ele suspirou.
- Espero que não nos arrependamos disso para o resto da vida, Catherine.
8
Agosto de 1998
Alison voltou, trazendo consigo uma pequena caixa de metal trancada. Ela destrancou-a com uma chave que tirou da gaveta da mesa, abriu a tampa e deu um passo para trás, como se temesse ser atacada por seu conteúdo. Seus ombros encurvaram-se para a frente de modo protetor, enquanto ela cruzava os braços no peito.
- Vou ferver água. Querem café ou chá?
- Café - respondeu Catherine.
- Chá - disse Tommy. - Com leite e uma colher de açúcar.
- Eu já conheço de cor o que há nessa caixa - disse Alison, dando-lhes as costas e indo até o fogão. - Olhem quanto quiserem, e talvez então parem de bisbilhotar meu passado - acrescentou, voltando-se brevemente para lançar um olhar furioso a Catherine.
Tommy e Catherine aproximaram-se com a reverência cautelosa de especialistas em bombas próximos a um artefato suspeito. A caixa continha mais ou menos uma dúzia de envelopes pardos, todos com cerca de 25 x 20 centímetros. Tommy puxou o primeiro. Em letras maiúsculas trémulas e tinta desbotada, estava escrito "Mary Crowther".
Contra o fundo de ruídos domésticos rotineiros de preparação das bebidas quentes, Tommy inseriu seu polegar sob a aba virada para dentro do envelope. Ele virou o envelope e despejou o conteúdo sobre a mesa. Havia uma dúzia de fotografias em preto-e-branco, algumas tiras de negativos e duas folhas de contato. Essas não eram imagens alegres de uma menina inocente de sete anos. Eram paródias obscenas de sexualidade adulta, poses lascivas que reviravam o estômago de Catherine. Em uma delas, Philip Hawkin aparecia, enfiando a mão entre as pernas da criança que chorava.
Havia envelopes para o irmão de Mary, Paul, de nove anos; para Janet, de treze anos; Shirley, oito anos; Pauline, seis anos, e até mesmo para Tom Cárter, de apenas três anos; para Brenda e Sandra Lomas, de sete e cinco anos; e para Amy Lomas, quatro anos de idade. O horror contido naqueles envelopes escapava à compreensão dos dois. Era um tour guiado por um inferno que Catherine preferiria não conhecer. Suas pernas cederam e ela desabou em uma das cadeiras, pálida e abatida.
Tommy virou o rosto e jogou os envelopes de qualquer maneira para dentro da caixa. Agora, ele entendia o anseio primitivo para destruir Philip Hawkin. O que ele fizera a Alison já havia sido ruim o bastante. Mas isto era infinitamente pior em escala e depravação. Se ele tivesse visto essas fotografias trinta e cinco anos atrás, duvidava que tivesse conseguido manter suas mãos longe do pescoço daquele homem.
Alison colocou uma bandeja sobre a mesa.
- Se desejarem algo mais forte, terão de ir ao bar em Longnor. Não tenho nada com álcool em casa. Quando tinha vinte e poucos anos, passei por uma fase em que o mundo parecia melhor visto através de uma garrafa. Depois, percebi que esta era apenas uma outra forma de deixá-lo vencer. Eu não permitiria isso, depois de tudo que passei. - Sua voz era fria e áspera, mas os lábios tremiam enquanto ela falava.
Ela serviu café e chá e sentou-se na ponta oposta da mesa, longe de Catherine, de Tommy e da caixa de Pandora que lhes oferecera.
- Vocês queriam a verdade - disse. - Agora, sentirão o peso dela também. Vejam se é bom viver assim.
Catherine voltou-se para ela com o olhar perdido no vazio, mal começando a perceber o peso da praga que invocara sobre sua própria cabeça. Com aquelas imagens gravadas em sua mente, ela sabia que se condenara a uma vida inteira de pesadelos.
Tommy manteve-se em silêncio, a cabeça baixa e os olhos escondidos sob as sobrancelhas espessas. Ele sabia que ainda estava entorpecido pelo choque e desejou que este estado continuasse para sempre.
- Não sei como lhes contar esta história - disse Alison, em tom de extremo cansaço. - Eu a tenho em minha mente há trinta e cinco anos, mas nunca a contei em voz alta. Depois que tudo terminou, nenhum de nós tocou neste assunto outra vez. Vejo Kathy Lomas sempre que estou em Scardale, mas nunca mencionamos o que aconteceu. Mesmo quando vocês vieram e começaram a desenterrar antigas recordações, não nos sentamos para conversar a este respeito. Fizemos o que achávamos certo, mas não significa que não nos sentimos culpados. E nunca é fácil compartilhar a culpa. Aprendi isso com minha experiência pessoal, muito antes de estudar psicologia.
Ela afastou os cabelos do rosto e olhou diretamente nos olhos de Catherine.
- Nunca pensei que sairíamos impunes disso. Eu sentia medo sempre que alguém batia em minha porta. Lembro-me de minha verdadeira mãe ligando para Dorothy, para atualizá-la sobre o andamento das investigações. Ela ligava todos os dias, e estava com os nervos à flor da pele, porque George Bennett era um policial muito bom e honesto. Minha mãe elogiava a persistência dele e estava convencida de que ele descobriria o que havia realmente acontecido. Mas ele nunca descobriu.
Tommy levantou a cabeça.
- Todos vocês mentiram como os maiores atores do mundo - disse ele, áspero. - Ande, Alison, se chegou até aqui, conte o resto.
Alison suspirou:
- Vocês precisam lembrar como era a vida na década de 1960. O abuso de crianças não existia dentro das famílias ou comunidades. Era algo que algum pervertido ou um estranho poderia fazer. Mas se alguém fosse até o professor, a seu médico ou ao policial mais próximo e dissesse que o dono de Scardale estava estuprando e violando todas as crianças da aldeia, seria preso por insanidade.
- Vocês também precisam lembrar que Philip Hawkin era nosso dono. Possuía tudo por aqui. Ele tinha a posse de nosso sustento e de nossas casas. Quando o velho Castleton era o dono das terras, vivíamos mais ou menos em um sistema feudal. Nem mesmo os adultos questionavam o senhor de tudo. E nós éramos crianças. Não sabíamos que poderíamos denunciar o novo dono do solar. Nenhuma das crianças sabia sobre as outras, não com certeza, pelo menos. Sentíamos um medo grande demais para falarmos sobre o que estava acontecendo, até mesmo uns com os outros.
- Aquele canalha era bem cauteloso. Ele nunca deixou transparecer tendências pedófilas enquanto namorava minha mãe e não tinha muito tempo para mim antes de se casar com ela. Mostrava-se agradável e me dava presentes, mas nunca me incomodou naquele período. Tenho certeza de que a única razão para ele casar com minha mãe foi para ter uma fachada de normalidade. Se algum de nós ousasse denunciá-lo, ele poderia bancar o inocente ultrajado, o homem normal com um casamento feliz. - Ela apontou o dedo para Tommy. - E todos vocês teriam acreditado nele. Tommy suspirou e concordou.
- Acho que sim.
- Eu tenho certeza. De qualquer modo, como eu disse, ele nunca se aproximou de mim antes de se casar com minha mãe, mas assim que isso ocorreu, a coisa toda mudou. Era algo como "as menininhas precisam mostrar gratidão por tudo que seus papais fazem por elas" e todo o tipo de chantagem emocional nociva. Mas eu não era o bastante para ele. Aquele desgraçado abusou de cada uma das crianças daqui. Exceto Derek. Acho que Derek era um pouco velho demais para seu gosto. - Ela envolveu a xícara de chá com as duas mãos e suspirou novamente. - E todos ficamos de boca fechada. Estávamos chocados e aterrorizados demais, mas não sabíamos o que fazer.
- Então - continuou -, um dia, minha mãe perguntou por que eu não estava usando os absorventes higiénicos que havia comprado para mim quando tive minha primeira menstruação. Eu lhe disse que não havia menstruado mais. Ela começou a fazer perguntas e, assim, acabei revelando tudo. O que ele fazia comigo, as fotos que tirava quando abusava de mim. E mamãe percebeu que eu estava grávida.
Alison tomou outro gole de chá para aliviar a tensão de sua voz e se recompor.
- Alguns dias depois, quando ele saiu para voltar apenas à noite, ela vasculhou seu laboratório de cima a baixo. Foi quando encontrou o resto das fotos, naquele cofre. Foi então que descobriu com quem havia se casado. Mamãe convocou uma reunião com todos os adultos e lhes mostrou as fotografias. Imaginem como foi. Todos queriam linchar Hawkin. As mulheres eram a favor de castrá-lo e deixá-lo sangrando até a morte. Os homens falaram em matá-lo e fingir que ele havia morrido em um acidente na fazenda.
"Foi a velha Mamãe Lomas quem os trouxe de volta à razão. Ela disse que, se o matássemos, alguém sofreria as consequências. Mesmo se ele morresse sob as rodas de um trator, o caso não seria considerado apenas como mais um acidente. Seria investigado, porque o desgraçado era importante. Era o dono das terras, não apenas um pobre camponês que não contava para nada. Um pequeno deslize e alguém da aldeia acabaria preso, especialmente depois que minha gravidez se tornasse óbvia. Além disso, Mamãe Lomas achava que uma morte rápida não era castigo suficiente para ele.
"Outra preocupação dos adultos era que, se o abuso sofrido pelas outras crianças se tornasse público, todas seriam enviadas para instituições e separadas de seus pais, que seriam considerados negligentes e, portanto, não poderiam mais ter a guarda dos filhos. Achavam que estranhos não entenderiam a vida no vale, a liberdade que todas as crianças tinham para andar mais ou menos à vontade em um lugar que parecia muito seguro, sem tráfego e sem estranhos, em qualquer época do ano.
"Assim, eles falaram sobre tudo isso naquele dia e, finalmente, alguém lembrou-se de ter lido um artigo no jornal sobre uma menina desaparecida. Não sei de quem foi a ideia, mas então os adultos decidiram que eu deveria desaparecer e eles providenciariam para que pensassem que Hawkin havia me matado. Todos sabiam que ele tinha uma arma de fogo, e por causa das fotos que havia tirado de mim sabiam também que ele seria enforcado, se a encenação fosse convincente. Assim, ninguém de fora precisaria saber sobre as outras crianças e os outros pais não teriam de passar pela dor de contar a história toda para a polícia."
Alison suspirou.
- Este foi o fim da minha vida como eu a vivera até aquele dia. O planejamento foi rápido. Quem elaborou praticamente tudo foram minha mãe, Kathy e Mamãe Lomas, mas elas pensaram em todos os detalhes. Tia Dorothy e tio Sam, de Consett, foram obrigados a entrar no plano. Tia Dorothy havia sido enfermeira, de modo que sabia extrair sangue. Ela veio até Scardale alguns dias antes de eu desaparecer e extraiu um pouco do meu sangue, que foi usado para marcar a árvore no arvoredo e para manchar uma das camisas de Hawkin. Tiveram de adiar a descoberta da camisa e das minhas roupas íntimas, porque precisavam de seu sémen. Mais cedo ou mais tarde, elas conseguiriam também isso, porque ele sempre usava preservativo quando ia com minha mãe. - Ela deu uma risada amarga. - Ele não queria ter filhos seus. De qualquer modo, minha mãe finalmente conseguiu fazer sexo com ele. Teve de suplicar, dizendo que isso a reconfortaria em meio à sua angústia. Assim, as mulheres usaram o esperma do preservativo para sujar minhas roupas. Elas não sabiam o quanto os peritos da polícia poderiam descobrir, a partir do sangue e do sémen, mas queriam ter certeza de que não tropeçariam nos detalhes.
- E, é claro, todos precisavam ter uma versão única da história. Todos tinham um papel, e precisavam executá-lo da melhor maneira possível. Ninguém disse nada às crianças menores, mas Derek e Janet também participaram. Kathy passou horas com eles, certificando-se de que sabiam como era importante não deixar que a verdade viesse à tona. Quanto a mim, eu perambulava por lá, meio em transe, na maior parte do tempo. Continuei levando Shep para a rua e andando por lá com ela, como sempre fazia, tentando memorizar tudo o que nunca mais veria nem teria. Eu sentia uma culpa enorme, o tempo inteiro. Todo aquele tumulto, todos tão tensos, e tudo parecia ser minha culpa. - Ela mordeu o lábio e fechou os olhos por um momento. - Levei muito tempo e foram necessárias muitas sessões de terapia para que eu compreendesse que não havia errado. Naquela época, porém, odiei a mim mesma de um modo impossível de descrever.
Alison hesitou brevemente, com os olhos novamente brilhantes com lágrimas contidas. Ela piscou com força, enxugou os olhos bruscamente, esfregando-os com uma das mãos, e continuou:
- Enquanto tudo isso acontecia no vale, Dorothy e Sam providenciaram a mudança de Consett para Sheffield na mesma semana em que planejávamos o desaparecimento, para que os novos vizinhos não percebessem que eu não era a verdadeira Janis. Em 1963, isso foi razoavelmente fácil. - Alison fez uma pausa, com os olhos parecendo voltar para seu íntimo, como se procurasse o próximo capítulo de sua história trágica.
- Os gloriosos tempos do pleno emprego - murmurou Tommy.
- Sim. Sam era um metalúrgico competente e não foi difícil arranjar um novo emprego. Além disso, naquele tempo os trabalhadores ganhavam residência junto com o novo emprego. No dia combinado, Sam esperou por mim junto à igreja metodista, em seu Land Rover. Ele me levou até Sheffield e passei a morar com eles. Para os vizinhos, eles diziam que eu havia contraído tuberculose e precisava ficar confinada, sem contato com outras pessoas até me recuperar totalmente, para que ninguém descobrisse sobre a gravidez. A medida que o tempo passava, Dorothy colocava mais enchimento em sua barriga, para parecer grávida.
Alison fechou os olhos e um espasmo de dor cruzou seu rosto.
- Foi tão difícil! - disse, erguendo a cabeça e encontrando o olhar de Catherine. A escritora desviou os olhos primeiro. - Perdi tudo. Perdi minha família, meus amigos e meu futuro. Perdi Scardale. Coisas estranhas estavam acontecendo com meu corpo, e eu detestava aquilo. Minha mãe nem podia me visitar, e só fez isso depois do julgamento, porque ninguém na aldeia havia mencionado a existência dos Wainwrights para a polícia e ela não queria ter de explicar aonde ia. Dorothy e Sam foram muito bons para mim, mas isto nunca compensou tudo o que eu havia perdido. Fui convencida de que precisava passar por aquilo pelo bem de todas as outras crianças de Scardale; de que estávamos fazendo aquilo para que Hawkin nunca mais pudesse machucar outra criança como havia feito comigo.
- Fazia certo sentido - disse Catherine, em tom abafado. Alison bebericou seu chá e falou, desafiadora:
- Não me envergonho do que fizemos. Nem Tommy nem Catherine lhe responderam.
Alison afastou os cabelos do rosto novamente e continuou sua história:
- Helen nasceu em meu quarto, em uma tarde de junho, algumas semanas antes do julgamento daquele canalha. Sam registrou-a como sendo sua filha e de Dorothy, e eles a criaram assim, como se eu fosse sua irmã e Dorothy sua mãe. Alguns anos depois, consegui emprego em um escritório. - Um sorriso duro apareceu pela primeira vez em seu rosto naquela manhã. - Era o escritório de um advogado. Dá para acreditar? Eu já deveria ter esgotado minha quota com a lei, não é? De qualquer modo, estudei à noite para recuperar o tempo perdido. Cheguei a conquistar um diploma em uma universidade. Estudei psicologia ocupacional e, no fim, estabelecime profissionalmente. A cada passo que dava, eu me sentia como se cuspisse no olho daquele asqueroso. Mas nunca era o bastante, entendem?
"Minha mãe verdadeira veio morar conosco depois do enforcamento de Hawkin. Fiquei feliz. Eu precisava muito de sua presença ali. Ela não quis voltar para Scardale, de modo que contratou um advogado para administrar as propriedades, mas continuou com esta casa. Ela sabia que, um dia, eu desejaria voltar. Mantivemos Helen totalmente ignorante quanto à ligação com Scardale. Até hoje ela acha que Ruth e seu marido viviam perto de Sheffield. Ruth lhe disse que Roy havia sido cremado, de modo que não havia um túmulo para visitar. Helen jamais questionou nossa história.
"Quando minha mãe morreu, o solar foi herdado por Dorothy, com a promessa de que deveria ficar para mim e para Helen, e quando Dorothy morreu, nós herdamos a casa. Helen acha que sou louca por querer morar tão longe da cidade. Mas é meu lar e fiquei longe daqui por muito tempo, de modo que agora quero aproveitá-lo."
Ela olhou para seu chá.
- Então, essa é toda a história.
Catherine franziu a testa. Sabia que deveria ter muitas perguntas a fazer, mas não conseguia pensar em nenhuma.
- E sempre que você olha para Helen, é a ele que enxerga - disse Tommy.
Os músculos em torno da mandíbula de Alison contraíram-se quando ela apertou os dentes.
- A semelhança não era tão óbvia quando ela era pequena - disse, finalmente. - Quando realmente começou a se parecer com ele, convencime a usar isso em meu favor. Aquele desgraçado destruiu minha infância, privou-me de minha família e amigos. Ele teria me matado se tivesse descoberto minha gravidez. Tenho certeza disso. Era um homem poderoso e eu não era nada. Assim, não quero esquecer nunca que consegui ajudar a virar o jogo. Deixe-me dizer-lhes: assumir o controle de nossas vidas nos dá uma sensação de poder. E foi isso que eu fiz, mas é muito mais fácil perder o controle sobre nossas vidas que conquistá-lo. Por isso eu queria garantir que jamais desistiria e nunca me esqueceria do passado. Assim, aprendi a ser grata porque Helen era um lembrete constante de que havíamos lutado contra o homem que tentou nos tirar tudo que nos tornava o que éramos - disse, em tom fervoroso.
Depois de uma longa pausa, ela falou, como se admirada com seus próprios pensamentos:
- Sabem de uma coisa, Helen não tem nada de Hawkin. Ela herdou toda a força e bondade de minha mãe. Como se tudo o que tornava minha mãe tão especial tivesse saltado uma geração e chegado a ela.
Tommy pigarreou, obviamente comovido pela história de Alison.
- Então, todos na aldeia estavam envolvidos na conspiração?
- Todos os adultos - confirmou Alison. - Mamãe Lomas disse que no início todos deveriam fingir que não confiavam na polícia e deixar que nossa versão dos fatos chegasse a eles apenas aos poucos. Você e George Bennett foram um prémio, para falar a verdade. O pessoal de Scardale não poderia prever que receberiam um par de policiais tão obcecados com o caso a ponto de se empenharem ao máximo, até o fim. Graças a vocês, o povo daqui conseguiu relaxar, sabendo que não teria de perseguir a polícia para fazer com que pegassem os fios de pistas que lhes davam, depois do primeiro impacto e quando tudo parecia sem solução.
Tommy sacudiu a cabeça, confuso com a terrível ironia.
- Fomos vítimas de nossa própria integridade. - Ele deu um meio sorriso. - Não se pode dizer isso com muita frequência, em relação a policiais. Mas, se não estivéssemos tão determinados a ir até o fim no caso, a fazer justiça, vocês nunca conseguiriam tanto sucesso com um plano tão grandioso.
Por um momento, nenhum dos três falou. Alison levantou-se e foi até a janela. Ela olhou para a praça da aldeia, no vale do qual saíra em uma noite de dezembro, trinta e cinco anos atrás, e que nunca deixara de amar. Catherine pensou que, agora, aquela mulher retomara seu lar, mas pagara um preço terrível. Finalmente, Alison virou-se lentamente, endireitou os ombros e perguntou:
- E o que acontecerá agora?
- Essa é uma excelente pergunta -disse Tommy.
9
Agosto de 1998
Catherine e Tommy compraram outra garrafa de uísque irlandês, a caminho da casa da jornalista. Ótimo para um velório, pensou Catherine. Nesta noite, os dois enterrariam de uma vez por todas o fantasma de Alison Cárter. Catherine suspeitava que, amanhã, teriam ressaca, embora esta fosse a menor de suas preocupações. Hoje, porém, ela desejava estar entorpecida pelo álcool quando chegasse a hora de ir para a cama. Qualquer coisa para escapar àquele desfile de horrores e degradação que Philip Hawkin deixara como legado para o mundo.
Ao fechar a porta, Catherine falou pela primeira vez desde que haviam deixado Alison Cárter entregue às suas recordações:
- Bem, acabou. Temos a verdade. - Ela atravessou a sala, foi até o balcão e serviu doses de uísque puro para ambos.
Tommy pegou seu copo, em silêncio, olhando para as fotos nas paredes e enfrentando o amargo reconhecimento de que Mamãe Lomas e seu clã haviam enganado o mundo o suficiente para fazerem com que Philip Hawkin percorresse a tortuosa estrada que levara à condenação por homicídio. Não sentia satisfação por perceber que seu próprio instinto havia sido correto, sobre Hawkin. Afinal, o homem não era mesmo um assassino.
Confrontada com as fotografias com as quais Alison os arrasara, Catherine não pôde resistir à conclusão de que os moradores de Scardale haviam feito o mais certo ao transformarem seu pasmacento vilarejo em um lugar de execução. Eles sabiam que nada, exceto a morte, impediria Hawkin e salvaria as outras crianças que viessem a cair em suas mãos. Nem mesmo mandar seus filhos para longe o impediria de continuar. Ele encontraria outras crianças para destruir, e tinha tanto dinheiro quanto poder para fazer com que as testemunhas fossem desacreditadas, mesmo se ousassem denunciá-lo.
- Em nenhum momento cheguei a pensar que poderia haver outras crianças - disse Catherine, tristemente.
- Nem eu. - Tommy virou as costas para as fotografias acusadoras e afundou-se em uma cadeira.
- Eu não consigo culpá-los pelo que fizeram - disse Catherine.
- No lugar deles, eu não teria hesitado em aderir à conspiração - reconheceu Tommy.
- A terrível ironia é que, comparado ao que Alison passou, o sofrimento de Philip Hawkin foi abençoadamente curto. Ela conviveu com a dor todos os dias de sua vida, desde aquela época. Perdeu tanto e, no fundo de sua mente, deve ter havido sempre o medo de abrir a porta e encontrar alguém como você e eu no outro lado. - Catherine pegou a garrafa de uísque e colocou-a sobre a mesa, entre os dois.
Ficaram sentados em um silêncio atordoado, como os sobreviventes de um acidente terrível que mal conseguem assimilar sua sorte por terem escapado do pior. Ambos permaneceram imersos em seus pensamentos, enquanto fumavam um cigarro atrás do outro.
- George tinha razão - disse Catherine, finalmente. - Não posso ir em frente com o livro. É claro que eu conquistaria todos os louros por revelar que um caso tão famoso foi montado com base em mentiras e engodo. Mas não posso fazer isso com George e Anne. Não se trata apenas da vergonha que isso causaria a George, mas da dor que ele sentiria vendo o romance entre Helen e Paul desintegrar-se. Além disso, todos os moradores sobreviventes de Scardale enfrentariam julgamento por conspiração, não apenas Alison. - Como em uma tragédia grega, pensou ela, as reverberações do que havia acontecido em Scardale trinta e cinco anos antes abalariam outras vidas bem distantes daquela tarde, vidas de inocentes que mereciam proteção de um passado do qual não tinham culpa.
Tommy bebeu até o fim seu uísque e serviu-se de outra dose.
- Beberei a isso - disse. - Acho que ninguém discordaria de você.
- Pode ir e contar tudo a George de manhã - disse Catherine.
- Não quer contar-lhe pessoalmente? Ela abanou a cabeça.
- Já terei muito com que me ocupar tentando cancelar o contrato para o livro sem explicar a razão verdadeira. Não, Tommy. Você conta a ele. É o melhor a fazer. Se não fosse por você, não sei se algum dia teria descoberto que Helen era a filha de Alison com Hawkin. E então eu não teria como convencê-la a contar toda a verdade. Ou qualquer razão para manter-me em silêncio. Portanto, o crédito é seu.
- Crédito? - perguntou ele, com desprezo. - Por revelar essa podridão? Obrigado, mas dispenso, se você não se importa. Mas terei prazer em dizer a George que ninguém pretende arruinar a vida de Paul e Helen. Eu sei o quanto isso é importante para ele, mas o pouparei dos detalhes.
Catherine pegou a garrafa e disse, enquanto servia mais três centímetros de uísque em seu copo:
- Boa ideia. E, depois, sugiro que façamos o possível para esquecer de tudo que vivemos nesses últimos dias.
10
Outubro de 1998
George Bennett olhou através do pára-brisa. O mês de outubro chegava ao fim, e agora que as árvores já estavam nuas, o portão pelo qual entrava lhe dava uma visão clara do vale até Scardale. As conhecidas casas cinzentas pareciam uma parte orgânica da paisagem, a distância, lembrando-o como as peculiaridades da topografia haviam moldado o mundo social da aldeia à qual viera pela primeira vez trinta e cinco anos antes. Ele percorreu com o olhar os campos até o Solar Scardale e pensou na mulher que estava prestes a tornar-se oficialmente a cunhada de seu filho. Alguns poderiam pensar que ela - e os outros que haviam participado daquilo tudo - mereceria ser punida pela conspiração que levara à forca um homem que, apesar de seus outros crimes, não cometera um assassinato. Mas George não se importava com retaliação. Importava-lhe mais o futuro que o passado. Nada como enfrentar a morte para que um homem valorize sua vida.
Por este motivo vinha até ali hoje. Apenas três dias antes, o médico concordara que ele poderia dirigir novamente, desde que não fizesse viagens longas. A jornada de Cromford a Scardale não era longa, em termos de distância - dissera a si mesmo. A distância, aqui, era em termos emocionais e psicológicos, um abismo de trinta e cinco anos e um leque de emoções complexas demais para serem avaliadas. Dali a quatro dias, ocorreria o casamento que resolveria finalmente esta história horrível, e George estava determinado a fazer o que pudesse para garantir que os fantasmas não se levantariam nunca mais. Assim, ele ligara para a mulher que nunca mais poderia chamar por seu nome real depois de hoje e solicitara um encontro.
Trinta e cinco anos antes, ele percorrera pela primeira vez esta estrada estreita. Mesmo então, suas emoções estavam divididas. Ele lembrou-se com ironia amargurada de sua excitação ante a possibilidade de ser o encarregado por seu primeiro grande caso - uma excitação culpada, mesclada à sua preocupação tanto pela garota desaparecida quanto pela família dela. Nem mesmo em suas mais loucas fantasias ele poderia ter previsto como o desaparecimento de Alison Cárter voltaria a ameaçar não apenas sua paz de espírito, mas também a felicidade futura de seu filho amado.
Uma das maiores ironias dos acontecimentos do último ano fora a substituição de uma culpa por outra. Ele sempre estivera convicto de que fracassara com Ruth Cárter, de algum modo, até que o processo de rever o caso com Catherine finalmente lhe permitira compreender que fizera o melhor naquelas circunstâncias. Entretanto, agora que sabia o que realmente acontecera em Scardale naquele inverno tenebroso, uma nova preocupação o abatia. Certamente houvera momentos, durante a investigação, em que ele deveria ter percebido a ocorrência de algo que ia bem além daquilo que via. Será que se tornara tão cego por sua arrogância e sua obsessão em condenar Philip Hawkin que ignorara indicadores que seriam percebidos por um detetive mais experiente? E se tivesse descoberto a verdade, será que esta teria dado a Alison Cárter uma vida melhor que aquela que tivera de suportar?
Tommy Clough garantira-lhe que acreditara tanto na encenação do povo de Scardale quanto o próprio George. Isto, porém, não lhe servia como grande conforto. Ele tinha certeza de que Tommy teria dito o mesmo, de qualquer maneira, para reconfortar um homem doente.
Quaisquer que tivessem sido seus erros no passado, ele precisaria descobrir um modo de aceitá-los para poder ter paz. Talvez seu coração lhe desse mais alguns meses ou anos pela frente, mas fosse qual fosse a duração de sua vida, ele não queria que este tempo fosse contaminado com uma auto-recriminação que só o torturaria. Precisava perdoar a si mesmo, e talvez o primeiro passo nesta jornada tivesse a ver com encontrar Alison Cárter para que pudessem perdoar as dores reais e imaginadas um do outro.
Com um suspiro profundo, George ligou novamente o carro e, lentamente, seguiu a estrada até Scardale. Não importava o que o futuro lhe traria, era hora de dar o primeiro passo na estrada que o levaria a enterrar o passado, desta vez para sempre.

Inverno de 1963: duas crianças desaparecem em Manchester, na Inglaterra. É o começo da trajetória de homicídios praticados por Myra Hindley e Ian Brady. Em um dia gélido de dezembro, Alison Carter, treze anos, desaparece de um vilarejo isolado na região central da Inglaterra. Para o jovem George Bennett, recém-promovido a inspetor, este é o começo de seu caso mais difícil - um assassinato sem corpo e uma investigação cheia de becos sem saída e lábios selados, com conseqüências que repercutirão ao longo de muitos anos.
Após décadas, ele finalmente conta sua história à escritora Catherine Heathcote, mas, quando o livro dela está prestes a ser publicado, Bennett tenta inexplicavelmente fazê-la abandonar seu projeto. Ele possui novas informações, mas se recusa a divulgá-las, já que ameaçam o equilíbrio de sua própria vida. Catherine vê-se forçada a investigar novamente o passado, com resultados surpreendentes.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/UM_CORPO_PARA_O_CRIME.jpg

 

Livro 1
Introdução
Assim como Alison Carter, nasci no condado de Derbyshire, em 1950. Como ela, eu também cresci familiarizada com os vales de pedra calcária da região de White Peak e acostumada com as nevascas que nos isolam regularmente do resto do país. Afinal, foi em Buxton que, certo verão, uma partida de críquete precisou ser cancelada por causa da neve.
Por isso, quando Alison Carter desapareceu, em dezembro de 1963, o choque foi maior para mim e minhas colegas que para a maioria das outras pessoas. Conhecíamos cidadezinhas como aquela em que ela vivia. Sabíamos que tipo de coisas alguém como Alison gostava de fazer, todos os dias. Também mantínhamos as mesmas discussões, durante as aulas e nos banheiros, debatendo qual era nosso Beatle favorito. Achávamos que tínhamos as mesmas esperanças, sonhos e medos e, por causa disso, desde o primeiro momento, imaginamos que algo terrível havia acontecido a Alison Carter, porque também sabíamos que garotas como aquela - como nós - não fugiam de casa. Não em Derbyshire e em um dezembro gelado, pelo menos.
Esta impressão não era apenas das meninas de treze anos. Meu pai estava entre as centenas de homens que vasculharam voluntariamente as charne-cas elevadas e os vales de mata densa nos limites de Scardale, e ainda tenho gravada com clareza em minha memória sua expressão sombria ao voltar para casa após um dia inteiro procurando a garota, sem qualquer pista.
Acompanhávamos as buscas pelos jornais e a cada dia, na escola, durante semanas a fio, alguém fatalmente começava a formular hipóteses para o desaparecimento. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda tinha perguntas a fazer a George Bennett, mas o ex-policial parecia incapaz de respondê-las.
Não baseei minha narrativa apenas nas anotações feitas por ele na época ou em suas recordações atuais. Enquanto realizava pesquisas para este livro, fiz várias visitas a Scardale e à área adjacente, entrevistando muitas das pessoas que participaram da história de Alison Carter, reunindo suas impressões e comparando seus relatos sobre os acontecimentos. Eu não teria conseguido terminar este livro sem a ajuda de Janet Carter, Tommy Clough, Peter Grundy, Charles Lomas, Kathy Lomas e Don Smart. Tomei algumas liberdades artísticas ao atribuir pensamentos, emoções e diálogos às pessoas, mas essas concessões baseiam-se em minhas entrevistas com os protagonistas sobreviventes, que concordaram em me ajudar na tentativa de criar um quadro fiel de uma comunidade e dos indivíduos que nela residiam.
Obviamente, jamais saberemos em detalhes o que aconteceu naquela terrível noite de dezembro de 1963. Ainda assim, para qualquer um que tenha sido afetado direta ou indiretamente pela vida e morte de Alison Carter, a história de George Bennett é uma visão fascinante sobre um dos crimes mais bárbaros dos anos 60.
Por muito tempo, este crime hediondo permaneceu escondido, na sombra dos assassinatos do pântano que chamaram mais a atenção do público. Contudo, o destino de Alison Carter não é menos terrível por ter sido cometido por um assassino que fez uma única vítima. Além disso, a mensagem transmitida por sua morte ainda é relevante. Se a história de Alison Carter nos ensinou algo, é que até o maior dos perigos pode vir com um rosto amistoso.
Nada trará Alison de volta. Entretanto, lembrar ao mundo o que aconteceu com esta menina pode ajudar a evitar que outros tenham a mesma sina. Se tal fim for atingido, George Bennett e eu já sentiremos alguma satisfação.
Catherine Heathcote Longnor, 1998
Referência às cinco crianças e adolescentes comprovadamente assassinados com requintes de crueldade pelo casal Ian Brady e Myra Hindley em locais pantanosos da Inglaterra, na década de 1960. Ambos foram sentenciados à prisão perpétua por seus crimes. (N.T.)

Prólogo
A garota despedia-se de sua vida, e não era fácil dizer adeus.
Como qualquer adolescente, ela sempre encontrara muito de que se queixar, mas agora que estava por perder tudo aquilo, a vida que tivera parecia, subitamente, muito desejável. Começava a perceber, finalmente, por que seus parentes idosos se agarravam com tanta tenacidade a cada pequeno momento, mesmo se este contivesse também muita dor. Não importava o quanto a vida que tinham parecesse ruim, a alternativa era infinitamente pior.
Já começara até a se arrepender de certas coisas. De todas as vezes em que desejara a morte da mãe; de todas as vezes em que desejara descobrir que havia sido trocada na maternidade; da raiva que sentira de outras crianças na escola, que lhe dirigiam palavrões por não ser como elas; de toda a vontade de crescer logo e deixar o sofrimento para trás. Ilido parecia irrelevante agora. A única coisa que importava era a vida incrivelmente preciosa que estava prestes a perder.
Sentia medo e não podia evitá-lo. Medo do que havia depois e também do que estava imediatamente à sua frente. Seus pais haviam falado sobre o paraíso e de seu oposto, o inferno, que mantinham o mundo estável, um com peso igual ao outro. Em sua mente, ela sempre tivera uma idéia muito clara de como seria o paraíso. Mais do que jamais desejara qualquer coisa em sua curta vida, esperava que este fosse seu destino, assustadoramente próximo agora.
Contudo, havia também o medo desesperado de ir para o inferno. Quanto a este, não tinha uma idéia muito clara de como seria. Sabia apenas que, comparado com tudo o que odiava em sua vida, o inferno deveria ser bem pior. E dado o que sabia, isto significava que seria muito, mas muito ruim mesmo.
Ainda assim, não havia outra escolha possível. A menina precisava despedir-se da vida que tivera.
Para sempre.
Primeiro Porte: O Começo de Tudo
Manchester Evening News, terça-feira, 10 de dezembro de 1963, p. 3
Recompensa de
100 nas buscas por garoto
A polícia deu continuidade hoje às buscas por John Kilbride, 12 anos, esperando que uma recompensa de
100 possa produzir alguma nova pista sobre a sua localização.
Um empresário desta cidade ofereceu a quantia a quem der informações que levem diretamente à descoberta de John, que desapareceu de sua casa, na estrada Smallshaw, em Ashton-under-Lyne, 18 dias atrás.
1
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 19h53
- Ajude-me. Por favor, ajude-me - pediu a voz feminina, trêmula e à beira das lágrimas. O policial de plantão que atendera a ligação ouviu um som semelhante a um soluço, como se a mulher tivesse dificuldade para continuar falando.
- É para isso que estamos aqui, senhora - disse o policial Ron Swindells, quase com apatia. Trabalhava em Buxton havia quinze anos e já fizera de tudo. Nos últimos cinco, sentia dificuldade para se livrar da sensação de que apenas revivia os dez primeiros. Parecia-lhe não haver nada de novo sob o sol. Tal visão das coisas seria abalada para sempre pelos acontecimentos que estavam por se desdobrar à sua volta, mas naquele instante bastava-lhe recitar a fórmula que, até então, sempre funcionara:
- Qual é o problema? - indagou, sua sonora voz grave delicadamente impessoal.
- Alison - disse a mulher, ofegante. - Minha Alison não voltou para casa.
- Alison é sua filha? - perguntou Swindells, mantendo a voz deliberadamente suave e tentando tranqüilizar a mulher.
- Ela saiu para passear com o cachorro assim que chegou da escola e não voltou para casa - disse a voz, que se tornava mais aguda e alta, à medida que o nervosismo aumentava.
Swindells olhou automaticamente para o relógio. Faltavam sete minutos para as oito da noite. A preocupação da mulher era legítima. Provavelmente, a menina estava na rua havia mais de quatro horas, o que não era brincadeira naquela época do ano.
- Será que ela, sem pensar, não decidiu visitar algum amigo ou amiga? - perguntou, já sabendo que a mãe seria a primeira a consultar os amigos da filha, antes de ligar para a polícia.
- Bati em cada casa de nosso vilarejo. Ela desapareceu, acredite! Algo aconteceu com minha Alison. - Agora, a mulher começava a desmoronar, e as palavras eram sufocadas nos intervalos entre os soluços. Swindells julgou ouvir outra voz ao fundo.
A mulher mencionara um vilarejo, de modo que ele indagou:
- De onde, exatamente, a senhora está ligando?
Escutou o som de conversas abafadas. Depois, ouviu uma voz masculina e controlada ao telefone, com sotaque sulino e o tom inconfundível de alguém que se sente no comando:
- Aqui é Philip Hawkin, falando do Solar Scardale - disse ele.
- Entendo, senhor - respondeu Swindells, com cautela. Embora a informação não chegasse a acrescentar algo novo, bastava para torná-lo levemente precavido, consciente de que Scardale estava fora de sua jurisdição em muitos sentidos, além do mais óbvio. Scardale não era apenas um mundo diferente da cidade efervescente na qual Swindells crescera e trabalhava, mas também tinha a reputação de cuidar de seus próprios assuntos. Algo bastante incomum devia ter acontecido para chegarem a lhe pedir ajuda.
A voz do homem baixou um pouco, dando a impressão de que falava em particular com Swindells:
- Por favor, desculpe minha esposa. Ela está bastante perturbada. Mulheres são sempre tão emotivas, não concorda? Olhe, tenho certeza de que Alison está bem, mas minha esposa insistiu em ligar para vocês. Estou certo de que nossa filha aparecerá a qualquer momento e a última coisa que pretendo é fazê-lo perder tempo.
- Queira me passar mais detalhes, por favor - pediu o impassível Swindells, puxando para perto de si um bloco de anotações.
O detetive-inspetor George Bennett já deveria estar em casa. Eram oito da noite, bem além do horário em que se espera que detetives de sua posição estejam trabalhando. Por direito adquirido, estejam em sua poltrona preferida, esticando as pernas compridas na frente de uma lareira quentinha, de estômago cheio e assistindo a Coronation Street na televisão à sua frente. Depois, enquanto Anne tirava a mesa e lavava a louça, ele sairia para um gole e uma boa conversa no bar Duke of York ou no Baker's Arms. Não havia modo mais rápido de se familiarizar com um lugar que pelo bate-papo em um bar. Bem que precisava tirar vantagem disso, mais que qualquer de seus colegas, tendo chegado ali menos de seis meses antes. Sabia, pelas fofocas, que ainda não merecia a confiança do povo da cidade, mas, aos poucos, começava a ser tratado com naturalidade, como se os habitantes o perdoassem e esquecessem que seu pai e avô haviam bebido em bares bem distantes dali.
Olhou rapidamente o relógio de pulso. Teria sorte se conseguisse ir ao bar esta noite. Não que sentisse muita falta, já que não era tão chegado à bebida. Se não fosse obrigado a manter a cidade na linha, por suas responsabilidades profissionais, passaria semanas sem entrar em um lugar onde vendiam álcool. Preferiria levar Anne para dançar ao som de novos talentos que tocavam regularmente no Pavilion Gardens, ou ir ao cinema com a esposa. Ou, simplesmente, ficar em casa. Casado havia apenas três meses, George ainda não conseguia acreditar que Anne concordara em passar o resto de sua vida ao seu lado. Este milagre o ajudava a suportar as piores agruras de sua profissão. Até aqui, os piores momentos vinham do tédio, e não da natureza hedionda dos crimes que encontrava. Os eventos dos sete meses seguintes testariam duramente este milagre.
Naquela noite, porém, pensar que Anne estava em casa, tricotando na frente do televisor e esperando por seu retorno, era uma tentação maior que qualquer gole de cerveja. George rasgou metade de uma folha de seu bloco de anotações, colocou-a entre os papéis que estivera lendo para marcar onde parara e fechou com firmeza a pasta, enfiando-a na gaveta de sua mesa. Amassou o cigarro e depois esvaziou o cinzeiro no balde de lixo junto à mesa, sempre seu último ato antes de pegar o sobretudo e, quase sem pensar, seu chapéu de feltro com aba larga que sempre o fazia sentir-se um pouco tolo. Anne adorava o chapéu e lhe dizia que o fazia parecer-se com James Stewart, o que ele mesmo jamais percebera. Nunca seria um astro de cinema apenas porque tinha um rosto comprido e cabelos loiros e finos. Vestiu o casaco, percebendo que estava quase apertado demais, por causa do forro acolchoado que Anne o fizera comprar. Apesar de seus amplos ombros de jogador de críquete parecerem comprimidos, sabia que se sentiria bem tão logo saísse da delegacia e fosse mordido pelo vento terrivelmente gélido que chegava do pântano pelas ruas de Buxton.
Com um último olhar pelo escritório, verificando se não esquecera de algo que a faxineira não deveria ver, fechou a porta às suas costas. Uma rápida olhadela mostrou-lhe que não havia mais ninguém na sala do departamento de investigações criminais, de modo que voltou para desfrutar de um instante de vaidade, lendo as palavras "Detetive-Inspetor G. D. Ben-nett" gravadas com letras brancas em uma pequena placa de plástico preto. Já era algo de que se orgulhar, pensou ele. Ainda nem tinha trinta anos e já era detetive-inspetor. Isto compensava cada minuto de tédio dos três anos de estudos intermináveis para obter o diploma de direito que acelerara sua carreira, sendo um dos primeiros favorecidos pela nova tendência de promoção acelerada na força policial de Derbyshire. Agora, sete anos depois do juramento, era o mais jovem inspetor já promovido pela polícia civil daquela comarca.
Não havia ninguém ali para presenciar seu pequeno lapso de dignidade, de modo que subiu correndo as escadas. Seu impulso levou-o a cruzar as portas de vai-vem e a ingressar na sala do esquadrão fardado ainda acelerado. Três cabeças voltaram-se imediatamente ante sua entrada impetuosa. Por um instante, George não entendeu por que estava tudo tão quieto. Então ele lembrou. Metade da cidade devia estar no memorial para o presidente Kennedy, assassinado recentemente, que consistiria de um culto especial aberto a pessoas de todos os credos. A cidade estimava o líder americano assassinado como se fosse um filho adotado. Afinal, JFK estivera praticamente ali, alguns meses antes, visitando o túmulo de sua irmã a alguns quilômetros de distância, em Edensor, nas cercanias de Chatsworth House.
O fato de uma das enfermeiras que ajudaram os cirurgiões na luta infrutífera pela vida do presidente em um hospital de Dallas também ser filha de Buxton apenas reforçava a ligação, aos olhos do povo local.
Residência do duque e duquesa de Devonshire, Chatsworth House, cuja construção iniciou-se em 1552, localiza-se em Derbyshire, no coração da Inglaterra, e recebe visitantes do mundo inteiro em seus muitos cômodos e vastos jardins. (N.T.)
- Tudo tranqüilo então, sargento? - perguntou ele.
Bob Lucas, o sargento de plantão, franziu a testa e levantou um ombro, em sinal de incerteza. Olhou para a folha de papel em sua mão e respondeu:
- Estava tudo calmo até cinco minutos atrás, senhor. - Ele endireitou-se na cadeira e disse: - Provavelmente não é nada importante. Aposto que tudo já estará resolvido quando chegarmos lá.
- Algo interessante? - perguntou George, em tom leve. A última coisa que desejava era que Bob Lucas o considerasse o tipo de homem que tratava policiais fardados como macacos e via a si mesmo como o adestrador.
- Uma garota desaparecida - disse Lucas, estendendo-lhe a folha. - Swindells atendeu o telefonema. Ligaram diretamente para cá, não pelo serviço de emergência.
- Temos um homem nosso lá, sargento? - indagou, tentando imaginar Scardale em seu mapa mental da área.
- Não é preciso. É uma aldeia minúscula. Dez casas, no máximo. Não, Scardale é coberta por Peter Grundy, de Longnor, a apenas três quilômetros de distância. Entretanto, a mãe parece considerar o caso importante demais para Peter.
- E o que você acha? - indagou George, com cautela.
- Acho que é melhor eu pegar uma viatura e ir até Scardale para trocar umas palavrinhas com a senhora Hawkin, senhor. Apanho Peter no caminho.
Enquanto falava, Lucas pegou seu quepe e o ajeitou sobre os cabelos quase tão negros e brilhantes quanto suas botas. Suas bochechas avermelhadas e cheias davam a impressão de que ele escondia um par de bolas de pingue-pongue dentro da boca. Combinadas com olhos escuros e faiscantes e sobrancelhas também negras e retas, elas lhe davam a aparência de um boneco de ventríloquo. Ainda assim, George já havia descoberto que Bob Lucas seria a última pessoa a permitir que alguém lhe colocasse palavras na boca. Sabia que, se lhe perguntasse algo, obteria uma resposta direta.
- Você se importa se eu for junto? - perguntou George.
Peter Grundy pousou o telefone no gancho devagar e friccionou o polegar no queixo áspero pela barba de um dia inteiro. Estava com trinta e dois anos naquela noite de dezembro de 1963. As fotografias mostram um homem de rosto jovial, com queixo estreito e nariz curto e fino, acentuado por um corte de cabelo quase militar. Até quando sorria, como fazia ao tirar fotografias durante as férias com seus filhos, seus olhos pareciam vigilantes.
Dois telefonemas no espaço de dez minutos haviam quebrado a paz rotineira de uma noite na frente da TV ao lado da esposa, Meg, com as crianças já de banho tomado e na cama. Não que não tivesse levado a sério o primeiro telefonema. Quando a velha Mamãe Lomas, que sabia de tudo o que acontecia em Scardale, dava-se ao trabalho de sujeitar sua artrite ao frio cortante, abandonando o conforto de sua casa para ir até o telefone público na praça da aldeia, era melhor prestar atenção. Achou, entretanto, que poderia esperar até as oito da noite e até o fim do programa, antes de tomar alguma providência. Afinal, a velhinha poderia até afirmar que a razão para seu telefonema era preocupação pelo desaparecimento de uma garota, mas Grundy não duvidaria se isto fosse uma desculpa para complicar um pouco a vida da mãe da menina. Ele ouvira as conversas e sabia que algumas pessoas em Scardale achavam que Ruth Carter pulara rápido demais na cama com Philip Hawkin, mesmo tendo sido ele o primeiro homem a fazê-la sorrir desde a morte de seu esposo, Roy.
Então o telefone tocara novamente, trazendo uma careta ao rosto de sua esposa e tirando-o de sua poltrona confortável para levá-lo ao corredor gélido onde estava o aparelho. Desta vez não conseguiu ignorar a urgência. O sargento Lucas, de Buxton, soubera da menina desaparecida e estava a caminho. Como se não fosse suficientemente ruim ter gente de Buxton invadindo seu território, Lucas trazia consigo o professor. Era a primeira vez que Grundy ou qualquer de seus colegas precisaria trabalhar com alguém que cursara uma universidade, e ele sabia, pelas fofocas em suas visitas ocasionais à subdivisão em Buxton, que nenhum deles gostava muito da idéia. Concordava com a teoria de que a universidade da vida era a melhor escola para um policial. Essa gente com diploma não agüentava o tranco - não se podia enviá-los para a rua em Buxton, em um sábado à noite. Pessoas assim jamais haviam visto uma briga em um bar, e nunca saberiam lidar com uma. Para Grundy, a única coisa boa que se podia dizer sobre o detetive-inspetor Bennett era que tinha talento para o críquete.
E esta não era razão suficiente para alegrar-se por vê-lo chegando a sua área para perturbar seus contatos cuidadosamente cultivados.
Com um suspiro, Grundy abotoou o colarinho de sua camisa, ajeitou a parte de cima do uniforme, endireitou o quepe e pegou o sobretudo. Depois, enfiou a cabeça na porta da sala de estar com um sorriso conciliador, mas nervoso.
- Tenho de ir a Scardale - disse.
- Shhh - repreendeu-o a esposa, com ar aborrecido. - Agora é a melhor parte!
- Alison Carter desapareceu - acrescentou vingativamente, fechando a porta às suas costas e caminhando apressado pelo corredor antes que ela pudesse reagir. Sabia que a reação viria, já que o desaparecimento de uma criança em Scardale era próximo o suficiente para causar arrepios em Longnor.
George Bennett seguiu o sargento Lucas até o estacionamento das viaturas. Teria preferido ir com seu próprio carro, um Ford Corsair preto cheio de estilo, tão novo quanto sua promoção, mas o protocolo exigia que sentasse no banco do passageiro do Rover de serviço e deixasse Lucas dirigir. Enquanto viravam rumo ao sul na estrada principal e passavam pela praça central, George tentou conter a fisgada de excitação que sentira ao ouvir as palavras "garota desaparecida". Muito provavelmente, como Lucas apontara, tudo não passaria de um engano. Mais de 95% dos casos de crianças dadas como desaparecidas terminavam com o retorno do fugitivo antes da hora de dormir ou, na pior das hipóteses, antes do café da manhã.
Às vezes, porém, o caso era diferente. Às vezes, uma criança continuava desaparecida por tempo suficiente para gerar a certeza de que nunca mais voltaria para casa. Ocasionalmente, isso ocorria por opção. Com mais freqüência, a ausência prolongava-se porque a criança estava morta, e a questão para a polícia, então, dizia respeito ao tempo que levariam para encontrar o corpo.
Em outras ocasiões, as crianças não deixavam rastro, como se tivessem sido engolidas pela terra.
Nos últimos seis meses, dois casos assim haviam ocorrido, ambos a menos de cinqüenta quilômetros de Scardale. George sempre dava muita atenção aos boletins que recebia de outros distritos, bem como de outras divisões de Derbyshire, e atentara especialmente para estes dois casos de pessoas desaparecidas, porque haviam ocorrido próximos o bastante para, talvez, topar com uma das crianças. Morta ou viva.
A primeira delas era Pauline Catherine Reade, de dezesseis anos, cabelos escuros e olhos castanhos, que trabalhava como aprendiz de costureira em Gorton, Manchester. Magra e medindo 1,52m, a garota usava vestido rosa e amarelo e casaco azul-claro ao desaparecer. Saíra da casa com alpendre na qual morava com os pais e o irmão mais jovem para ir a uma festa, pouco antes das oito da noite da sexta-feira, 12 de julho. Ninguém mais a vira. Não havia problemas em casa ou no trabalho, nem um namorado com quem pudesse ter fugido. A garota não tinha dinheiro para uma fuga, mesmo se desejasse. A área havia sido extensamente vasculhada e três reservatórios de água haviam sido esvaziados, mas nenhuma pista fora encontrada. A polícia de Manchester examinara cada relato de possíveis testemunhas, mas nenhum levara à menina desaparecida.
A segunda criança parecia não ter nada em comum com Pauline Reade, exceto pela natureza inexplicável e quase mágica de seu desaparecimento. John Kilbride, doze anos de idade, 1,47m de altura e estatura miúda, tinha cabelos castanho-escuros, olhos azuis e pele clara. Usava uma jaqueta esportiva xadrez em tons de cinza, calças compridas de flanela, também cinzentas, camisa branca e sapatos pretos. De acordo com um dos detetives de Lancashire que jogavam críquete com George, o menino não parecia muito esperto, mas era obediente e gentil. John foi ao cinema com alguns amigos no sábado à tarde, um dia após a morte de Kennedy em Dallas. Depois, separou-se do grupinho, dizendo que iria à feira em Ashton-under-Lyne, onde muitas vezes ganhava algumas moedas fazendo chá para os donos das bancas. Na última vez em que foi visto, John estava encostado em um latão de lixo, por volta das cinco e meia da tarde.
A caçada resultante recebera um incentivo desesperado no dia anterior, quando um negociante local oferecera uma recompensa de cem libras por informações sobre o garoto, mas tal providência de nada adiantara. Esse mesmo colega comentara com George, durante um baile da polícia no sábado, que John Kilbride e Pauline Reade teriam deixado mais pistas se tivessem sido abduzidos por homenzinhos verdes tripulando um disco voador.
E agora, uma garota desaparecida. Ele olhou pela janela, para os campos iluminados pelo luar à beira da estrada para Ashbourne, com seu pasto irregular coberto pelo sereno e os muros de pedra que os separavam apresentando-se quase luminosos sob a luz prateada. Uma nuvem fina passou nela frente da lua e, apesar de seu casaco quente, George tremeu ante a idéia de estar sem abrigo em uma noite como esta, em um local tão inóspito.
Vagamente desgostoso consigo mesmo por permitir que sua ansiedade por um caso importante sobrepujasse a preocupação com a garota e sua família, que deveria ser seu único objetivo, George voltou-se abruptamente para Bob Lucas e disse:
- Fale-me sobre Scardale.
Tirou cigarros do bolso e ofereceu um ao sargento, que recusou.
- Não, obrigado, senhor. Estou tentando reduzir. Scardale pode ser vista como um lugar que parou no tempo - disse Lucas. Sob a luz breve do fósforo que George acendeu, sua expressão era grave.
- De que maneira?
- É como se ainda estivessem na Idade Média. Há apenas uma estrada que entra e sai da cidade e dá em um beco sem saída quando se chega ao telefone público, na praça da aldeia. Há uma casa principal, o solar, que é para onde estamos indo. Há cerca de uma dúzia de outras casas pequenas e os galpões usados pelos agricultores. A aldeia não tem bares, lojas ou correio. O senhor Hawkin é o dono das terras. É proprietário de cada casa em Scardale, além da fazenda e de toda a terra em quase dois quilômetros em todas as direções. Todos que vivem lá são seus inquilinos e empregados. É como se fosse dono daquelas pessoas. - O sargento diminuiu a velocidade para dobrar à direita, saindo da estrada principal e entrando em uma estradinha estreita que passava por uma pedreira. - Pelo que sei, existem apenas três sobrenomes naquele lugar. Todos se chamam Lomas, Crowther ou Carter.
George notou que Hawkin não fora citado e arquivou a inconsistência em seu cérebro, para investigá-la depois.
- Mas é claro que as pessoas saem de lá, para casar ou arranjar emprego, não?
- Ah, claro que sim, mas, de qualquer maneira, sempre serão filhos de Scardale. Nunca se afastam demais. E a cada geração uma ou duas pessoas realmente se casam com alguém de outro lugar. É o único modo de evitar o casamento consangüíneo. Ainda assim, com muita freqüência, pessoas de fora que se mudam para Scardale após o casamento acabam se divorciando. O esquisito é que sempre deixam os filhos para trás. - Ele deu uma rápida olhada na direção de George, como se para captar sua reação ao que ouvia. George tragou seu cigarro e se calou por um momento. Já ouvira falar de lugares como esse, mas jamais estivera em um deles. Não podia sequer imaginar como seria viver em um mundo tão contido em si mesmo, tão limitado, onde tudo sobre seu passado, presente e futuro é compartilhado com toda a comunidade.
- É difícil acreditar que exista um lugar assim tão próximo à cidade. Quantos quilômetros são? Dez?
- Doze - disse Lucas. - É um lugar histórico. Olhe a pavimentação dessas estradas. - Ele apontou para a curva acentuada à esquerda que levava à aldeia de Earl Sterndale, na qual as casas construídas pela pedreira para alojar seus empregados amontoavam-se, competindo por espaço no declive. - Antes de existirem carros com motores decentes e estradas asfaltadas, precisava-se de quase um dia inteiro para ir de Scardale a Buxton no inverno. Isso quando a estrada não estava bloqueada pelo acúmulo de neve. As pessoas tinham de contar com seus vizinhos e parentes. Alguns lugares por aqui continuam assim até hoje. Veja essa garota, por exemplo. Mesmo com ônibus escolar, Alison provavelmente leva quase uma hora para ir ou voltar da escola. O distrito tem tentado convencer os pais a matricularem os filhos em regime de semi-internato de segunda a sexta-feira, para poupá-los de uma jornada tão longa. Entretanto, em lugares como Scardale, eles simplesmente se recusam a isso e não percebem que a intenção é ajudá-los. Acham que as autoridades querem tirar-lhes os filhos. Não há como convencê-los do contrário.
O carro passou por uma série de curvas acentuadas e começou a subir uma colina íngreme, com o motor penando, enquanto Lucas trocava as marchas. George abriu um pouquinho a janela e atirou o toco de seu cigarro no acostamento. Uma lufada de ar gélido cheirando a fumaça de uma fogueira de carvão irritou-lhe a garganta, e ele fechou apressadamente a janela.
- E, ainda assim, a senhora Hawkin apressou-se a nos ligar.
- De acordo com Swindells, ela bateu em cada porta de Scardale antes de nos chamar - disse Lucas, em tom seco. - Não me leve a mal. Não é que sejam hostis com a polícia. É só que... não são muito hospitaleiros. Querem que encontremos Alison, de modo que se dispõem a nos suportar.
O carro enfrentou a subida e iniciou a longa descida até a aldeia de Longnor. A luz do luar mostrava o branco sujo dos prédios baixos de calcário, com colunas de fumaça subindo de cada chaminé à vista. No cruzamento existente no centro do lugar, George viu a silhueta inconfundível de um policial fardado que batia os pés no chão para mantê-los aquecidos.
- Esse deve ser Peter Grundy - falou Lucas. - Não precisava esperar na rua...
- Talvez esteja impaciente para descobrir o que está acontecendo. Afinal, é sua jurisdição.
- Ou então deve ter ouvido poucas e boas da mulher por ter de sair à noite - resmungou Lucas.
Ele freou bruscamente e o carro deu um solavanco junto ao meio-fio. Peter Grundy abaixou para ver quem estava no banco do carona e, então, sentou-se atrás.
- Boa-noite, sargento - disse. - Senhor, preciso dizer-lhe algo - acrescentou, inclinando a cabeça na direção de George. - Tenho um pressentimento ruim sobre este caso.
2
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 20h26
Antes que o sargento Lucas pudesse arrancar, George Bennett levantou um dedo, pedindo atenção.
- Scardale fica a apenas três quilômetros, certo? - Lucas assentiu. - Antes de chegarmos, quero saber tanto quanto possível sobre nosso caso. Será que poderíamos dar ao policial Grundy alguns minutos para nos inteirar dos detalhes?
- Acho que um ou dois minutos não farão diferença - disse Lucas, colocando o carro em ponto morto.
Bennett retorceu-se em seu assento para poder enxergar pelo menos os contornos do rosto de Grundy sob a luz fraca.
- Então, policial Grundy, parece que você acha que não encontraremos Alison Hawkin sentada junto ao fogo e levando uma bronca fenomenal da mãe...
- É Carter, senhor. Alison Carter. A garota não é filha do proprietário - informou Grundy, com o ar de vaga impaciência de um homem que percebe que terá uma longa noite de explicações a dar pela frente.
- Obrigado - disse George, gentilmente. - Pelo menos você me poupou de dizer uma asneira quando chegarmos lá. Gostaria que nos desse algumas informações sobre a família, para sabermos com quem lidamos.
Ele mostrou seus cigarros a Grundy, oferecendo-lhe um, com a intenção de aliviar qualquer impressão de que tentava mostrar-se superior.
Com um rápido olhar para Bob Lucas, que assentiu, Grundy tirou um cigarro do maço e remexeu no bolso de seu sobretudo em busca de fósforos.
- Já contei ao inspetor como as coisas funcionam em Scardale - disse Lucas, enquanto Grundy acendia o cigarro. - Eu lhe disse também que Hawkin é dono do vilarejo e de toda a terra.
- Certo - falou Grundy, através de uma nuvem de fumaça. - Bem, até cerca de um ano atrás, o dono de quase tudo em Scardale era o tio de Hawkin, o velho Castleton. Há Castletons no Solar Scardale desde que os nascimentos começaram a ser registrados pela paróquia de lá. O filho único do velho William Castleton morreu na guerra. Ele pilotava bombardeiros, mas teve azar em uma noite ao sobrevoar a Alemanha e sumiu. Provavelmente morreu em combate. Seus pais já tinham uma certa idade quando o jovem William nasceu, e não tiveram outros filhos. Assim, quando o senhor Castleton morreu, Scardale foi herdada pelo filho de sua irmã, este Philip Hawkin, um homem que todos na aldeia só tinham visto quando ainda usava calças curtas.
- O que sabemos sobre ele? - perguntou Lucas.
- Sua mãe, a irmã do dono das terras, cresceu aqui. mas casou-se com o homem errado. O homem era Stan Hawkin. Ele servia na RAF
na época, mas isto não durou muito. Segundo ele, um de seus superiores o perseguia, mas a verdade é que foi expulso por vender ferramentas roubadas do almo-xarifado. De qualquer modo, Castleton quis deixá-lo bem e lhe conseguiu um emprego com um velho conhecido, como vendedor de automóveis no sul do país. De acordo com todos os relatos, ele nunca mais foi pego roubando, mas acho que a raposa nunca perde o hábito, e por isso a família nunca mais veio a Scardale visitar Castleton.
- E quanto ao filho, Philip? - perguntou George, tentando acelerar o relato.
Grundy sacudiu os ombros, fazendo o carro chacoaliar com seu peso.
- É um sujeito de boa aparência, devo admitir. Tem muito charme e sabe agradar. As mulheres gostam dele. Nunca me tratou mal, mas eu não confiaria nele para segurar um cachorro, enquanto eu abro as calças para fazer xixi.
- E esse sujeito casou-se com a mãe de Alison Carter?
- Eu ia chegar lá - disse Grundy, lentamente. - Ruth Carter estava viúva havia seis anos, quando Hawkin chegou do sul para assumir sua herança.
início da Nota: de Rodapé: RAF - Royal Air Force, a força aérea britânica. Fim da Nota de Rodapé.
Segundo ouvi, ele se encantou com Ruth desde o primeiro instante. É uma bonita mulher, é verdade, mas nem todos os homens desejariam assumir uma filha de outro homem. Veja bem, de acordo com o que eu ouvi, isso nunca foi problema para ele. Hawkin nunca afrouxou o cerco a Ruth, que não se fez de rogada. Hawkin devolveu o brilho aos olhos da mulher, sem dúvida. Casaram-se três meses depois da primeira vez que ele apareceu em Scardale. Formam um belo casal.
- Tudo bem rápido, não? - comentou George. Aposto que isto causou mal-estar, mesmo em um lugar de pessoas tão unidas quanto Scardale.
Grundy encolheu os ombros.
- Não ouvi nenhum comentário desse tipo - disse.
George reconhecia uma parede, quando via uma. Percebeu que teria de conquistar a confiança de Grundy para ter acesso ao que ele aprendera sobre o povo do lugar ao longo de anos. Não tinha dúvida de que sabia muito.
- Então, vamos a Scardale para ver de perto essa gente - disse ele. Lucas colocou o carro em movimento e passou pelo vilarejo. Ao avistar uma placa de "estrada sem saída", ele virou o volante abruptamente e saiu da estrada principal. - Bem sinalizado - comentou George, secamente.
- Acho que qualquer pessoa que precise ir a Scardale conhece a estrada - disse Bob Lucas, enquanto dirigia com atenção pela trilha estreita que parecia desdobrar-se em uma série de subidas e descidas. As lâmpadas em suas margens mal conseguiam aliviar a escuridão da estrada, ladeada por barrancos altos e muros antigos de pedras empilhadas que se arqueavam e inclinavam em ângulos aparentemente impossíveis.
- Ao entrar no carro você disse que tinha um mau pressentimento sobre este caso, Grundy - lembrou-se George. - Por quê?
- Essa Alison parece uma garota ajuizada. Eu a conheço, pois freqüentou a escola fundamental em Longnor. Minha sobrinha está na mesma classe que ela agora. Enquanto eu esperava vocês, tive uma breve conversa com Margaret. Ela disse que Alison estava como sempre, hoje. Vieram juntas no ônibus, como sempre. A garota disse que talvez parasse em Buxton depois da escola uma noite dessas, para comprar alguns presentes de Natal. Segundo Margaret, Alison não é o tipo de menina que fugiria de casa, já que quando tem um problema ela o enfrenta sem demora. Assim, parece que, seja lá o que lhe aconteceu, não foi sua opção.
As palavras graves de Grundy caíram como pedra no estômago de George. Como reflexo da sensação de mau agouro, os muros ladeando a estrada desapareceram, sendo substituídos por abismos de calcário. O caminho por onde seguiam passava pelo estreito desfiladeiro, com seu percurso inteiramente ditado pela topografia. Meu Deus, pensou George, é como um cânion em um filme de faroeste. Deveríamos usar chapéus de caubóis e andar montados em mulas, não dentro de um carro.
- Logo depois da próxima curva, sargento - falou Grundy do banco de trás, com o hálito pesado de tabaco.
Lucas diminuiu a velocidade a ponto de quase parar, acompanhando a curva do ponto mais alto de um rochedo. Quase que imediatamente, a estrada à frente deu lugar a um pesado portão fechado. George prendeu o fôlego, assustado. Se estivesse na direção e não soubesse do obstáculo, certamente teria colidido. Enquanto Grundy saía para abrir o portão, George percebeu vários avisos pintados com as mais diversas cores nos muros de pedra em cada lado da estrada.
- Parece que não recebem estranhos de braços abertos por aqui, não é? Lucas deu-lhe um sorriso seco.
- Não é preciso. Passando deste portão, a estrada é particular e o asfalto só chegou de dez anos para cá. Antes, só se subia ou descia a estrada para Scardale com um trator ou Land Rover. - Ele cruzou devagar o portão, esperando um pouco adiante para que Grundy o fechasse e voltasse ao carro.
Puseram-se novamente a caminho. Cerca de cem metros adiante, os abismos de calcário desapareceram, dando lugar a um horizonte amplo em cada um dos lados da estrada, trazendo-os subitamente da escuridão para a luz da lua cheia outra vez. Contra o céu estrelado, parecia a George que era como se saíssem do túnel dos jogadores para um vasto estádio com pelo menos um quilômetro e meio de largura e com montes altos no lugar de arquibancadas. O campo, porém, não se prestava para esportes. Sob a claridade lúgubre da lua, George viu pastagens surgindo suavemente a partir da estrada que dividia em duas partes o solo do vale. Ovelhas aninhavam-se contra os muros, com sua respiração saindo em pequenas lufadas de vapor no ar gélido. Manchas mais escuras revelavam-se extensas áreas de reflorestamento. George jamais vira algo parecido. Era um mundo secreto, escondido e isolado.
Agora ele via luzes, débeis contra o brilho prateado da lua, mas suficientes para delinearem um punhado de construções contra os rochedos pálidos no lado mais longínquo do vale.
- Esta é Scardale - proclamou Grundy, sem necessidade, do banco traseiro.
O amontoado de pedras logo revelou-se como casas separadas, mas arranjadas em torno de um círculo raquítico de capim. Uma única pedra destacava-se perpendicular no meio do verde, como suporte para um telefone público vermelho, a única coisa realmente colorida em Scardale sob o luar. Parecia haver cerca de uma dúzia de casas, nenhuma igual à outra e cada uma separada de suas vizinhas por apenas alguns metros. A maior parte exibia luzes por trás das cortinas, e mais de uma vez George percebeu mãos que as afastavam para permitir uma espiada para a rua, mas não se permitiu olhar diretamente para os inquilinos curiosos.
Bem no fundo do campo havia um ajuntamento de formas arquitetônicas e janelas que deveria ser o Solar Scardale. George não sabia bem o que esperava encontrar, mas certamente não era essa casa de fazenda austera que parecia ter sido construída aos poucos durante vários séculos, por pessoas com mais necessidade que bom gosto. Antes que pudesse dizer algo, a porta da frente abriu-se, e um retângulo de luz amarela espalhou-se para a rua. A silhueta de uma mulher projetou-se contra a luz.
Enquanto o carro parava, a mulher deu alguns passos impulsivos em sua direção. Então, um homem apareceu às suas costas e passou um braço em torno de seus ombros. Juntos, esperaram a aproximação dos policiais. George ficou um pouco atrás para permitir que Bob Lucas mantivesse o primeiro contato. Assim, podia analisar a mãe e o padrasto de Alison Carter, enquanto Lucas fazia as apresentações.
Ruth Hawkin parecia ser pelo menos dez anos mais velha que sua Anne, o que a colocaria na faixa dos trinta e tantos anos. Media em torno de 1,60m, com o físico robusto de uma mulher acostumada ao trabalho árduo. Seus cabelos castanhos estavam puxados para trás em um rabo-de-cavalo, salientando o cansaço dos olhos cinza-azulados que mostravam sinais de choro recente. Sua pele parecia curtida, mas seus lábios apertados mostravam traços de batom entre as dobras. Vestia um conjuntinho de blusa e casaco curto em tons de azul, obviamente tricotado à mão, e uma saia cinza de lã plissada. Suas pernas estavam protegidas por meias de lã e calçava botas meia-canela com zíper frontal. Era difícil conciliar o que ele via com a descrição de Grundy, que lhe falara sobre uma bela mulher. George não a teria olhado uma segunda vez em uma fila de ônibus, exceto por seu óbvio sofrimento, que transparecia na tensão de seu corpo e braços cruzados defensivamente no peito. Talvez isto colaborasse para diminuir tanto sua beleza.
O homem de pé atrás dela parecia bem mais à vontade. A mão que não tocava levemente o ombro da esposa estava enfiada casualmente no bolso de um casaco marrom-escuro com adornos de camurça. Ele vestia calças cinzentas de lã, cujas barras dobradas caíam sobre chinelos de couro já bastante usados. George concluiu que Philip Hawkin não andara batendo nas portas da aldeia com a esposa.
Hawkin era o oposto da esposa, em termos de aparência. Com pouco menos de 1,80m, tinha cabelos lisos e escuros penteados reto para trás, fixados no lugar com brilhantina. Seu rosto lembrava um brasão, com testa ampla e quadrada afinando rumo a um queixo pontudo. Sobrancelhas retas sobre olhos castanho-escuros eram como um adorno heráldico; o nariz fino parecia apontar para lábios que pareciam sempre prestes a sorrir.
George classificou e anotou mentalmente suas observações. Bob Lucas ainda falava:
- Portanto, se pudéssemos entrar para sabermos mais alguns detalhes, teríamos um quadro mais claro do que aconteceu - disse ele, fazendo uma pausa cheia de expectativa, ao final.
Hawkin falou pela primeira vez, com sotaque indubitavelmente estranho à área de Derbyshire.
- Claro, claro. Entrem, senhores. Tenho certeza de que ela aparecerá sã e salva, mas não custa seguir os procedimentos, não é? - A mão baixou para as costas da esposa e a guiou de volta a casa. Ela parecia entorpecida e claramente incapaz de tomar qualquer iniciativa. - Lamento trazê-los até aqui em uma noite tão fria - acrescentou Hawkin suavemente, enquanto cruzava a sala.
George seguiu Lucas e Grundy até a cozinha ampla da casa rural. O piso era de pedra e as paredes, também de pedra, haviam recebido uma camada de cal e cola, descolorida em certos pontos, dependendo de sua proximidade com os fogões a lenha e elétrico. Um aparador e diversos armários de diferentes alturas, em tom verde-hospital, alinhavam-se contra as paredes, e sob as janelas que davam para o fundo do vale havia um par de grandes pias de pedra. Outro par de janelas permitia ver a praça do vilarejo, com seu telefone vermelho sobressaindo na escuridão. Várias panelas e utensílios de cozinha estavam pendurados em vigas pretas que cruzavam o cômodo, afastadas cerca de meio metro umas das outras. O cheiro era de fumaça, repolho e gordura animal.
Sem esperar pelos outros, Hawkin sentou-se imediatamente em uma cadeira entalhada, na cabeceira de uma mesa antiga de madeira.
- Faça um chá para os homens, Ruth - disse ele.
- Muito obrigado, senhor - apressou-se George em dizer, vendo que a mulher já pegava a chaleira sobre o fogão -, mas é melhor irmos direto ao ponto. Quando se trata do desaparecimento de uma criança, é melhor não perder tempo. Senhora Hawkin, por favor, sente-se e conte-nos o que sabe.
Ruth olhou para Hawkin, como se pedisse permissão. As sobrancelhas dele ergueram-se, mas assentiu. Ela puxou uma cadeira e sentou-se pesadamente, cruzando os braços sobre a mesa. George sentou-se na sua frente, com Lucas ao seu lado. Grundy desabotoou o sobretudo e sentou-se na extremidade oposta à de Hawkin. Ele tirou o bloco de anotações do bolso do uniforme e o abriu. Lambendo a ponta do lápis, olhou-os em expectativa.
- Qual é a idade de Alison, senhora Hawkin? - indagou George, em tom gentil.
A mulher pigarreou.
- Quase quatorze. Seu aniversário é em março. - Sua voz falhou, como se algo em seu íntimo estivesse se partindo.
- Houve algum problema entre vocês?
- Calma, inspetor - protestou Hawkin. - O que quer dizer com "problema"? O que está sugerindo?
- Nada, senhor - disse George. - O fato é que Alison está em uma idade difícil, e às vezes adolescentes vêem as coisas de um modo exagerado.
Um pequeno problema pode parecer uma catástrofe para eles. Estou tentando determinar se há motivos para supor que Alison resolveu fugir de casa.
Hawkin recostou-se com a testa franzida e inclinou a cadeira para trás, apoiando-a em apenas dois pés. Pegou um maço de cigarros e um pequeno isqueiro cromado do aparador e acendeu um, sem oferecer a ninguém.
- Claro que ela fugiu - disse ele, com um sorriso suavizando a ruga entre suas sobrancelhas. - Adolescentes fazem isso para preocuparem seus pais e serem perdoados por algum erro imaginário. Vocês sabem o que quero dizer - continuou, com um ar de superioridade que incluía os policiais. - O Natal está chegando. Lembro-me de um ano em que sumi por algumas horas. Achei que minha mãe ficaria tão feliz por me ver de volta em segurança, que concordaria em me dar a bicicleta no Natal. - Seu sorriso tornou-se pesaroso. - A única coisa que ganhei foi um traseiro dolorido de palmadas. Escreva o que lhe digo, inspetor: ela voltará antes do amanhecer, esperando boas-vindas.
- Ela não é assim, Phil - disse Ruth, queixosa. - Estou lhe dizendo, algo aconteceu com ela. Alison não nos deixaria preocupados.
- O que aconteceu esta tarde, senhora Hawkin? - perguntou George, tirando do bolso seus próprios cigarros e oferecendo-os à mulher. Assentin-do com gratidão tensa, ela aceitou um e pegou-o com dedos trêmulos e avermelhados pelo trabalho doméstico. Antes que ele pudesse acendê-lo, Hawkin inclinou-se para fazê-lo. George acendeu seu próprio cigarro e esperou, enquanto a mulher preparava-se para responder.
- O ônibus escolar deixa Alison e duas de suas primas no fim da estrada, por volta das quatro e quinze da tarde. Alguém da aldeia sempre vai até lá pegá-las, de modo que mais ou menos às quatro e meia já está em casa. Ela chegou no horário de sempre. Eu estava aqui na cozinha, descascando uns legumes. Deu-me um beijo e disse que iria sair com o cachorro. Perguntei se não queria uma xícara de chá primeiro, mas ela disse que estivera trancada o dia inteiro e só queria correr com o cachorro. Fazia isso com freqüência. Detestava ficar dentro de algum lugar o dia inteiro. - Emocionada pela recordação, Ruth hesitou e então parou de falar.
- O senhor a viu? - perguntou George a Hawkin, mais para dar algum tempo a Ruth que por importar-se com a resposta.
- Não. Eu estava no meu laboratório fotográfico. Perco a noção do tempo quando estou lá.
- Eu não sabia que era fotógrafo - disse George, percebendo que Grundy remexia-se na cadeira.
- Inspetor, a fotografia é minha grande paixão. Quando eu era um reles empregado, antes de herdar este lugar de meu tio, nunca foi mais que um passatempo. Agora tenho meu próprio laboratório, e no último ano tornei-me quase um profissional. Claro que às vezes fotografo pessoas, mas na maior parte do tempo são paisagens. Alguns de meus cartões-postais estão à venda em Buxton. Derbyshire possui uma luminosidade impressionante. - Desta vez, o sorriso de Hawkin foi de orelha a orelha.
- Entendo - disse George, imaginando que homem conseguiria pensar na qualidade da luz quando sua enteada desaparecera em uma noite gélida de dezembro. - Então não sabia que Alison havia chegado e saído novamente?
- Não, não ouvi nada.
- Senhora Hawkin, Alison tinha o hábito de visitar alguém quando saía com o cachorro? Um vizinho? A senhora disse que ela vai à escola com as primas.
Ruth sacudiu a cabeça.
- Não, só anda pelo campo, vai até o bosque e volta. No verão costuma ir mais longe, atravessa o arvoredo e vai até a nascente do rio. Há um vão entre duas colinas. Mal se percebe até chegar lá, mas é possível atravessá-lo pela ribanceira do rio e chegar a Denderdale. Mesmo assim, Alison nunca vai tão longe no inverno. - Ela suspirou. - Além disso, já andei por toda a aldeia. Ninguém viu nem sombra dela desde que passou pelo campo.
- E quanto ao cão? - perguntou Grundy. - Ele voltou?
Esta era a indagação de alguém criado no campo, pensou George. Ele acabaria fazendo aquela pergunta, mas não com tanta rapidez quanto Grundy.
Ruth fez que não com a cabeça.
- É uma cadela, e não voltou. Se Alison tivesse sofrido um acidente, Shep não a abandonaria. Teria latido, mas não sairia de perto de minha filha.
Em uma noite como a de hoje, seria possível ouvir os latidos de qualquer ponto do vale. Você esteve lá fora. Não ouviu nada?
- Por isso eu perguntei - disse Grundy. - Estranhei o silêncio.
- Pode descrever o que Alison vestia? - perguntou o sempre prático Lucas.
- Estava com uma japona azul-marinho sobre o uniforme da escola.
- Da escola Peak Gilts High? Ruth assentiu.
- Usava uma jaqueta preta, um colete marrom, blusa branca, gravata escolar preta e marrom e saia marrom. Vestia meias de lã pretas e botas pretas de pele de carneiro, com cano médio. Não se foge de casa com uniforme escolar - disse ela com vigor, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas, que enxugou com as costas da mão, zangada. - Por que estamos sentados aqui como se estivéssemos tomando o chá de domingo? Por que vocês não estão lá fora, procurando minha filha?
George abaixou e levantou a cabeça, em sinal de compreensão.
- Faremos isso, senhora, mas precisamos saber de tudo antes, para não desperdiçarmos nossos esforços. Qual é a altura de Alison?
- Já está quase da minha altura. Um metro e cinqüenta e sete ou oito, algo assim. É delgada, está começando a adquirir formas de mulher.
- Há alguma fotografia recente de Alison que possamos mostrar aos nossos policiais? - perguntou George.
Hawkin recolocou a cadeira sobre as quatro pernas, causando um rangido agudo no chão de pedra. Ele abriu a gaveta da mesa da cozinha e retirou dali um punhado de fotografias.
- Tirei-as no verão, uns quatro meses atrás. - Ele inclinou-se e colocou-as na frente de George. O rosto que o olhava nas fotos coloridas de meio-corpo não era daqueles que se esquecem facilmente.
Ninguém o alertara sobre a beleza da menina. Sentiu o ar preso em sua garganta enquanto fitava o rosto na foto. Cabelos até os ombros, cor de mel, emolduravam um rosto oval salpicado de sardas claras. Seus olhos azuis tinham um quê de eslavo, bastante separados em relação ao nariz bem-feito e reto. Sua boca era generosa, com o sorriso mostrando uma covinha única em sua bochecha esquerda. A única imperfeição era uma cicatriz oblíqua que atravessava sua sobrancelha direita, deixando uma fina linha branca entre os pêlos escuros. Em cada uma das fotografias, sua pose variava um pouco, mas o sorriso aberto jamais se alterava.
Ergueu os olhos para Ruth, cujo rosto suavizara-se imperceptivelmente ante a visão da filha. Agora entendia o que os olhos de Hawkin haviam percebido na viúva do fazendeiro. Sem a tensão que tirara a suavidade do rosto de Ruth, sua beleza era tão óbvia quanto a da filha. Com a sombra de um sorriso insinuando-se nos lábios da mulher, era difícil imaginar como pudera considerá-la comum.
- É uma garota adorável - murmurou George, levantando-se e pegando as fotografias. - Eu gostaria de ficar com elas por enquanto. - Hawkin concordou com um aceno de cabeça. - Sargento, será que poderíamos trocar algumas palavras lá fora?
Os dois homens saíram da cozinha quente para o ar noturno congelante. Ao fechar a porta às suas costas, George ouviu Ruth dizer, desanimada:
- Vou fazer o chá.
- O que você acha? - perguntou George. Não precisava da confirmação de Lucas para saber que o caso era grave, mas se tirasse a autoridade do homem fardado neste momento, seria o mesmo que dizer que, em sua opinião, a menina havia sido assassinada ou espancada com violência. Apesar de sua crescente convicção de que este era o caso, tinha um temor supersticioso de que agir de acordo com seus piores palpites levaria à concretização do que temia.
- Acho que deveríamos solicitar o apoio de cães farejadores o quanto antes, senhor. Ela pode ter sofrido uma queda. Pode estar incapacitada de se mover devido aos ferimentos. Se foi atingida por alguma pedra pesada por acidente, talvez a cadela esteja morta. - Ele consultou o relógio. - Temos quatro policiais extras, fardados e de plantão no memorial a Kennedy. Se formos rápidos, poderemos pegá-los antes de terminarem seus turnos e trazê-los até aqui, com todos os outros homens que conseguirmos recrutar. - Lucas passou à sua frente para abrir a porta. - Preciso usar o telefone da casa. É inútil tentar o rádio aqui. Teríamos melhores chances se estivéssemos no fundo de uma mina.
- Está bem, sargento. Organize o que puder para um mutirão de buscas. Ligarei para o detetive-sargento Clough e para o policial Cragg. Eles podem dar início às buscas na aldeia de porta em porta, para sabermos quem a viu por último e onde. - George sentiu um vago mal-estar estomacal, como um nervosismo de principiante. Naturalmente, era exatamente isto. Se seus temores se confirmassem, estava no limiar do primeiro caso importante que já tivera sob seu comando. Pelo resto de sua carreira, seria julgado de acordo com os resultados. Se não descobrisse o que acontecera com Alison Carter, a mancha em sua reputação profissional jamais seria apagada.
3
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 21h07
O bafo do cão retorcia-se e pairava por instantes no ar noturno, como se tivesse vida própria. O pastor sentou-se calmamente sobre as patas traseiras, com orelhas levantadas e os olhos alertas varrendo as pastagens do vilarejo. O policial Dusty Miller, adestrador dos cães, estava ao seu lado, acariciando com uma das mãos, distraidamente, o pêlo curto e malhado de marrom entre as orelhas do animal.
- Príncipe precisa de roupas e sapatos da garota - disse ele ao sargento Lucas. - Quanto mais usados, melhor. Podemos fazer o trabalho sem isso, mas facilitaria tudo para o cachorro.
- Falarei com a senhora Hawkin - disse George rapidamente, antes que Lucas pudesse entregar a tarefa a outro. Não que um policial fardado não pudesse lidar com isto, mas ele queria aproveitar a oportunidade para observar a mãe e o padrasto de Alison novamente.
Entrou na cozinha quente, onde Hawkin ainda estava sentado à mesa e ainda fumando. Agora, ele tinha uma xícara de chá na sua frente, assim como a policial sentada na outra ponta da mesa. Ambos voltaram as cabeças ao vê-lo entrar. Hawkin levantou as sobrancelhas em muda interrogação. George fez um "não" também sem falar, e Hawkin apertou os lábios, passando a mão sobre os olhos. George sentiu um certo alívio ao perceber que o homem finalmente demonstrava sinal de preocupação com o destino de sua enteada. Parecia que só agora seu egocentrismo permitira a aceitação de que Alison poderia estar em perigo.
Ruth Hawkin estava junto à pia, com as mãos enfiadas em água com sabão, mas não lavava nada. Estava imóvel, fitando intensamente a escuridão compacta da noite. O luar mal penetrava a área atrás da casa; neste ponto avançado do vale, os rochedos estavam suficientemente próximos para cortarem a maior parte de sua claridade. Nada havia além da janela, exceto um contorno débil e escuro contra o cinza-claro das rochas. Um galpão, talvez, pensou George, imaginando se já havia sido vasculhado. Limpou a garganta e começou a falar:
- Senhora Hawkin...
Ela voltou-se devagar. Mesmo naquele curto período em que ele estava em Scardale, a mulher parecia ter envelhecido, com a pele esticando-se em sua face e os olhos mais fundos que no momento em que os policiais haviam chegado.
- Sim?
- Precisamos de algumas peças de roupa de Alison, para facilitar o trabalho do cão farejador.
- Vou buscar alguma coisa - disse ela.
- O adestrador sugeriu sapatos e algo que ela use com freqüência. Um pulôver ou casaco, talvez.
Ruth saiu dali com os passos automáticos de uma sonâmbula.
- Será que eu poderia usar seu telefone outra vez? - perguntou ele.
- A vontade - respondeu Hawkin, fazendo um aceno na direção do corredor.
George seguiu Ruth pela porta e chegou à mesa na qual estava o antigo telefone preto de baquelita, próximo a uma fotografia de casamento de Ruth, radiante com seu novo marido. George achou que, se Hawkin não fosse tão inconfundível em sua bela figura, não teria conseguido identificar a noiva.
Tão logo fechou a porta atrás de si, voltou a sentir o frio terrível. Se a menina estivesse acostumada com temperaturas como esta, teria mais chances de sobreviver lá fora. Viu quando Ruth desapareceu na curva das escadas, enquanto tirava o telefone do gancho e começava a discar. Depois de quatro toques, alguém atendeu.
- Buxton 422 - disse a voz familiar, aliviando instantaneamente sua ansiedade.
- Anne, sou eu. Tive de vir a Scardale a serviço. Uma garota desaparecida.
- Ah, pobres pais - disse Anne, imediatamente. - E pobrezinho de você, tendo de enfrentar uma noite como esta.
- Estou preocupado apenas com a menina. Claro que chegarei tarde. Na verdade, dependendo do que acontecer, talvez eu nem volte esta noite.
- Você exige demais de si mesmo, George. Isso lhe faz mal, sabia? Se não chegar até a hora em que eu for para a cama, deixarei sanduíches na geladeira para que ao menos se alimente um pouco. É melhor que tenham sumido, quando eu acordar - acrescentou ela, repreendendo-o com leve ar de brincadeira.
Se Ruth Hawkin não tivesse reaparecido na escada, ele teria dito à esposa o quanto adorava que cuidasse dele, mas disse apenas:
- Obrigado. Entrarei em contato quando puder.
Desligou e deu alguns passos até o pé da escada, onde Ruth aconchegava junto ao peito uma pequena trouxa.
- Estamos fazendo o possível - disse ele, sabendo que sua resposta não a ajudava em nada.
- Eu sei - respondeu a mulher, abrindo os braços e revelando um par de pantufas e um casaquinho amassado de pijama. - Pode entregar isso ao adestrador?
George pegou as roupas, sentindo uma fisgada de emoção intensa ao perceber como as circunstâncias tornavam patéticas as pantufas aveludadas e o casaco cor-de-rosa. Segurando as peças com cuidado para evitar que fossem contaminadas com seu odor, George voltou à cozinha e, de lá, saiu para o ar noturno. Sem dizer uma palavra, entregou os itens para Miller e observou, enquanto o adestrador dizia palavras gentis de comando para Príncipe, colocando as peças de roupa sob seu focinho comprido.
O cachorro levantou a cabeça com delicadeza, como se cheirasse alguma delícia culinária no vento. Depois, começou a cheirar o chão junto à porta da frente, com a cabeça indo para lá e para cá em longos arcos, alguns centímetros acima do solo. Em intervalos de alguns metros, ele bufava alto e olhava para cima, voltando as narinas para as roupas de Alison e seu odor, como se para lembrar a si mesmo o que deveria procurar. Cão e treinador moviam-se à frente quase ao mesmo tempo, cobrindo cada centímetro do caminho a partir da porta da cozinha. Depois, exatamente no fim da trilha de terra que contornava o fundo da praça da aldeia, o pastor enrijeceu-se subitamente. Como se fosse uma criança brincando de estátua, Príncipe ficou imóvel por longos segundos, examinando com vigor o cheiro que vinha do capim raquítico. Depois, em um único movimento fluido e suave, moveu-se rapidamente pelo capim, com seu corpo próximo ao solo e o focinho parecendo puxá-lo à frente em um trote lento.
Miller apressou o passo para poder acompanhá-lo. A um aceno do sargento Lucas, quatro dos homens fardados que haviam chegado minutos depois da equipe do cão colocaram-se atrás deles, espalhando-se para cobrir o chão com os fachos de suas lanternas. George seguiu-os por alguns metros, incerto quanto a unir-se a eles ou esperar pelos dois policiais do departamento de investigações que chamara, mas que ainda não haviam chegado.
A trilha seguida desviou-se da praça da aldeia e, então, passou por uma escadaria pequena entre duas casas, que terminava em um campo muito mais amplo. Enquanto o cão os guiava pelo campo sem qualquer hesitação, George ouviu um carro subindo pela estrada em direção à aldeia. Reconheceu o Ford Zafira do sargento-detetive Tommy Clough, enquanto ele estacionava atrás das viaturas que já estavam lá. Ele deu uma rápida olhada sobre os ombros para a equipe de rastreamento. As lanternas indicavam sua posição. Não seria difícil alcançá-la. Voltou-se então, foi até o enorme carro preto e abriu a porta do motorista. A familiar cara rosada e redonda de seu sargento abriu-lhe um largo sorriso.
- Como vai, senhor? - disse Clough, envolvido pelo odor de cerveja.
- Temos trabalho pela frente - disse George, sem perder tempo. Mesmo tendo tomado uns goles, Clough ainda era melhor no que fazia que a maioria dos outros policiais que não haviam bebido. A porta do passageiro bateu, e o detetive Gary Cragg veio andando sacolejante, contornando o carro pela frente. Na primeira vez em que vira o policial desengonçado, George pensara que ele havia assistido a muitos filmes de faroeste. Cragg ficaria bem com um par de calças de couro com pistolas Colt em cada lado de seus quadris estreitos e um chapéu de vaqueiro puxado para a frente sobre seus olhos cinzentos. Quando usava terno, parecia alguém que não tinha muita certeza de como chegara até ali, mas que desejaria do fundo da alma estar em outro lugar.
- Garota desaparecida, não é? - perguntou ele, com sua fala arrastada. Até mesmo sua voz lenta combinava mais com um saloon, pedindo uma dose de uísque ao garçom. A única coisa que o salvava de ser um legítimo caubói era a ausência total de rebeldia contra a ordem, tanto quanto George soubesse.
- Alison Carter. Treze anos - resumiu George, enquanto Clough desentalava o corpo robusto do assento do motorista. Fez um gesto sobre o ombro com o polegar. - Ela mora no solar e é enteada do proprietário. A menina e sua mãe são de Scardale.
Clough bufou e enfiou um boné de tweed na cabeça de cachos castanhos.
- Então ela não se perdeu, simplesmente. Você sabe como é em Scardale, não? Todos se casam com primos, há muitas gerações. A maioria é tão estúpida, que teria dificuldade para encontrar seu próprio traseiro na hora de limpá-lo.
- Bom, apesar dessas deficiências, parece que Alison conseguiu chegar à escola secundária - comentou George. - O que, pelo que sei, é mais do que se pode dizer a seu respeito, sargento Clough. - Clough olhou para seu superior, três anos mais jovem que ele, mas nada disse. - Alison chegou da escola no horário de sempre. Depois, saiu com o cachorro. Nenhum dos dois foi visto desde então. Isso ocorreu quase cinco horas atrás. Quero que você faça uma busca de porta em porta na aldeia. Quero saber quem a viu pela última vez, onde e quando isso aconteceu.
- Já devia estar escuro quando ela saiu - disse Cragg.
- Mesmo assim, alguém pode tê-la visto. Tentarei alcançar o adestrador, de modo que é onde me encontrarão se precisarem, está bem? - Enquanto se virava, um pensamento enregelante capturou-o. Olhou para as casas agrupadas em forma de ferradura em torno da praça e então voltou-se novamente para Clough e Cragg: - E cada uma das casas. Quero que verifiquem se as crianças estão onde deveriam estar. Não quero que alguma outra mãe tenha um ataque amanhã de manhã ao descobrir que o filho ou filha também sumiu.
Não esperou resposta, colocando-se a caminho da passagem entre as casas. Quase lá, parou de repente e se voltou, vendo que Lucas já orientava os seis outros policiais que conseguira trazer de algum lugar.
- Sargento - disse -, há uma espécie de galpão que se pode ver da janela da cozinha do solar. Não sei se alguém já verificou o lugar, mas não custa dar uma olhada para o caso de ela não ter saído para sua caminhada habitual.
Lucas assentiu e fez um aceno de cabeça para um dos policiais.
- Veja o que consegue, rapaz. - Ele assentiu para George. - Muito obrigado, senhor.
Kathy Lomas colocou-se junto à janela e observou enquanto a escuridão engolia o homem de sobretudo e chapéu de feltro. Iluminado pelos faróis do carro grande que acabava de estacionar perto do telefone público, ele se parecia muito com James Stewart. Isto deveria ser reconfortante, mas, estranhamente, só fazia com que os acontecimentos da noite parecessem ainda mais irreais.
Kathy e Ruth eram primas, com menos de um ano de diferença em idade e ligadas por laços sangüíneos pelos lados tanto materno quanto paterno. Haviam se tornado mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam inextricavelmente interligadas. Assim, ao ser alertada por Derek, Kathy entrara na cozinha de Ruth e encontrara a prima andando ansiosamente, fumando um cigarro atrás do outro e chorando. Sentira a punhalada do medo tão intensa quanto se a criança desaparecida fosse seu próprio filho.
Haviam percorrido a aldeia juntas, convencidas inicialmente de que encontrariam Alison aquecendo-se junto à lareira de alguém sem perceber que já era tarde, cheia de remorso por ter causado preocupação à mãe. Contudo, à medida que passavam de casa em casa e não achavam sinal da menina, a convicção transformara-se em pálida esperança e, depois, em desespero.
Kathy ficou junto à janela escura da minúscula sala de visitas da Casa da Cotovia,
observando a atividade que agitava subitamente a feia noite de dezembro. O detetive à paisana que viera dirigindo o carro, aquele que se parecia
Início de Nota de Rodapé: Em pequenas aldeias rurais inglesas, os camponeses dão nomes às suas casas. Fim da Nota de Rodapé.
com um touro Hereford com seus cachos e cabeça larga, levantou o casaco para coçar o traseiro, disse algo a seu colega e, depois, começou a andar na direção de sua porta da frente, com os olhos parecendo encontrar os seus na escuridão.
Kathy moveu-se para a porta, lançando um olhar para a cozinha, onde o marido tentava concentrar-se em terminar uma obra de marchetaria com tema de barcos de pesca em um ancoradouro.
- A polícia está aqui, Mike - anunciou ela em voz alta.
- Já era hora - ouviu-o resmungar.
Ela abriu a porta exatamente quando o touro Hereford levantava a mão para bater. O olhar assustado do homem transformou-se em um sorriso enquanto absorvia as curvas generosas de Kathy, ainda óbvias mesmo sob seu avental folgado.
- Você deve estar aqui por causa de Alison - disse ela.
- Sim, senhora. Sou o sargento-detetive Clough e este é o detetive Cragg. Será que podemos entrar um minuto?
Kathy deu um passo para o lado para lhes dar passagem, deixando que Clough roçasse em seus seios ao fazer isso, sem reclamar.
- A cozinha é logo à frente. Meu marido está ali - disse ela, com frieza. A mulher seguiu-os e se encostou no fogão, tentando eliminar o medo gelado em seu íntimo, esperando que os homens se apresentassem e se acomodassem. Clough virou-se para ela.
- Vocês viram Alison depois que ela chegou da escola? Kathy respirou fundo.
- Sim. Era minha vez de pegar as crianças quando desceram do ônibus escolar. No inverno, um de nós sempre vai até o fim da estrada para pegá-las.
- Percebeu algo diferente em Alison? - indagou Clough. Kathy pensou por um momento e depois sacudiu a cabeça.
- Nada. - Ela encolheu os ombros. - A mesma coisa de sempre. Apenas... Alison. Ela se despediu e subiu a trilha até sua casa. A última vez em que a vi foi quando entrava e dizia olá para sua mãe.
- Viu alguém estranho pelas redondezas? Na estrada ou lá embaixo?
- Ninguém.
- Suponho que a senhora acompanhou a senhora Hawkin em suas buscas - disse Clough.
- Eu não a deixaria ir sozinha, não é? - disse Kathy, com alguma agressividade.
- Como a senhora soube que Alison havia desaparecido?
- Nosso filho Derek contou. Ele não está indo tão bem quanto deveria na escola, de modo que tenho tentado garantir que está fazendo seus deveres. Em vez de deixá-lo sair com Alison e sua prima Janet quando chegam em casa, eu o mando ficar em casa, estudando.
- Ela o faz sentar à mesa da cozinha e completar todo o trabalho que os professores mandaram, antes de deixá-lo sair com as garotas. Pura perda de tempo, se querem saber. O garoto vai trabalhar no campo, como eu - interrompeu Mike Lomas, em voz baixa.
- Não se eu puder evitar - disse Kathy, inflexível. - Eu lhe digo o que é perda de tempo. É aquele toca-discos que Phil Hawkin comprou para Alison. Derek e Janet estão sempre lá, ouvindo os discos novos. Derek estava louco para ir à casa de Alison hoje à noite. Ela acabou de comprar o novo sucesso dos Beatles, - Want to Hold Your Hand. Mas só o deixei sair depois do chá. Devia faltar pouco para as sete horas. Ele voltou em cinco minutos, dizendo que Alison havia saído com Shep e ainda não estava em casa. É claro que fui direto até lá para conferir.
"Ruth estava uma pilha de nervos. Eu lhe disse que deveria ir a todas as casas da aldeia, para o caso de Alison ter parado para ver alguém e esquecido do tempo. Ela sempre visita Mamãe Lomas, e faz companhia à velhota e escuta suas histórias sobre os velhos tempos, junto com seu primo Charlie. Mamãe Lomas pode falar durante a noite inteira. É uma grande contadora de histórias e nossa Alison adora escutá-la."
Ela ajeitou-se melhor contra o fogão. Clough percebeu a agitação da mulher e decidiu deixá-la falar, para ver aonde sua história os levaria. Ele assentiu.
- Continue, senhora.
- Bem, estávamos quase saindo quando Phil entrou. Ele disse que estava no laboratório, revelando suas fotografias, e que acabara de perceber que já era tarde. Começou a perguntar onde estava seu chá e onde estava Alison. Eu lhe disse que havia coisas mais importantes em que pensar que em sua barriga, mas Ruth serviu-lhe algo que estava cozinhando.
Depois nós o deixamos e fomos bater nas portas dos vizinhos. - Ela parou de repente.
- Então a senhora não tornou a ver Alison depois que ela saiu do carro na volta da escola?
- Land Rover - grunhiu Mike Lomas.
- Perdão?
- Era um Land Rover, não um carro. Ninguém tem carros por aqui - disse ele, com desdém.
- Não a vi desde que entrou pela porta da cozinha em sua casa - falou Kathy. - Mas vocês vão encontrá-la, não? Quer dizer, é seu trabalho. Vão achá-la?
- Faremos todo o possível - disse Cragg, recorrendo à frase batida para aliviar a ansiedade da mulher.
Tommy Clough falou rapidamente, antes que ela pudesse verbalizar a resposta irritada que pressentia.
- E quanto ao seu filho, senhora Lomas? Está onde deveria? A boca abriu-se, em choque.
- Derek? E por que não estaria?
- Talvez pela mesma razão pela qual Alison não está onde deveria.
- Não diga isso! - Mike Lomas saltou da cadeira, com as bochechas rubras e os olhos apertados de raiva.
Clough sorriu, abrindo as mãos em um gesto conciliador.
- Não me levem a mal. O que eu quis dizer é que vocês devem verificar para o caso de algo ter acontecido com ele, só isso.
Quando George cruzou a passagem entre as casas, os fachos das lanternas da equipe de busca não eram mais que débeis manchas trêmulas a distância. Ele achou que os homens haviam entrado em algum matagal, pelo modo como os fachos amarelos pareciam desaparecer e reaparecer intermitentemente. Ligando a lanterna que tomara emprestada do Land Rover da polícia que trouxera policiais de Buxton, cruzou apressadamente o capim irregular com o máximo de rapidez que conseguia.
As árvores apareceram antes do que esperava. Inicialmente, ele viu apenas vegetação rasteira, que não parecia ter sido pisada, mas, ao mover a lanterna em todas as direções, percebeu uma trilha estreita, na qual a terra mostrava-se compactada. George mergulhou entre as árvores, tentando conciliar pressa e cautela. O facho da lanterna enviava sombras loucas que dançavam em todas as direções, forçando-o a concentrar-se mais na trilha do que precisaria se estivesse em campo aberto. Folhas endurecidas pelo frio estalavam sob seus pés, galhos ocasionais roçavam por seu rosto ou ombros e o odor adocicado de decomposição da vegetação o assaltava por todos os lados. A cada vinte metros, ou algo em torno disso, ele desligava a lanterna para conferir sua posição em relação às lanternas mais à frente. A escuridão absoluta o engolia, mas era difícil resistir à sensação de que olhos ocultos o observavam, seguindo todos os seus movimentos. Era um alívio ligar a lanterna outra vez. Alguns minutos depois de entrar na mata, percebeu que as luzes à sua frente haviam parado. Acelerando a ponto de quase cair ao tropeçar na raiz de uma árvore, por pouco não colidiu com um policial que vinha ao seu encontro.
- Encontraram? - perguntou George, sem fôlego.
- Não tivemos esta sorte, senhor, mas encontramos a cadela.
- Viva?
O homem assentiu.
- Sim, mas foi amarrada.
- Em silêncio? - indagou George, incrédulo.
- Alguém fechou sua boca com esparadrapo, senhor. O pobre animal mal conseguia gemer. O policial Miller mandou-me de volta para trazer o sargento Lucas antes de fazermos alguma coisa.
- Assumirei a responsabilidade - falou George, com firmeza. - Mas volte e conte ao sargento Lucas o que aconteceu. Acho que seria bom manter as pessoas afastadas desta parte do matagal até amanhecer. O que quer que tenha acontecido com Alison Carter, podemos estar destruindo provas neste exato momento.
O policial assentiu e partiu pela trilha, correndo.
- Mas que cabritos saltadores eles criam por aqui - murmurou George para si mesmo, enquanto seguia vacilante à frente.
A clareira na qual emergiu era um misto de fachos de lanternas e sombras estranhamente alongadas. Na extremidade mais distante, uma collie preta e branca contorcia-se atada a uma corda presa em uma árvore. Suas íris castanho-claras destacavam-se contra o branco de seus olhos arregalados. O rosa-escuro do esparadrapo que selava sua boca parecia incongruente naquele ambiente campestre. George sentiu os olhares especulativos que os homens uniformizados lhe dirigiam.
- Acho que deveríamos aliviar o sofrimento desta cadela. O que você acha, policial Miller? - perguntou, dirigindo sua questão ao adestrador, que cobria a clareira metodicamente, com Príncipe.
- Acho que ela adoraria, senhor - disse Miller. - Tirarei Príncipe daqui, para que não a perturbe.
Com um puxão na correia do cão e uma palavra de comando, ele dirigiu-se ao outro lado da clareira. George percebeu que seu cachorro ainda cheirava o ar, como fizera perto da casa algum tempo antes.
- Será que perdeu o rastro? - perguntou, subitamente preocupado com coisas mais importantes que o desconforto de um cão.
- Parece que a pista acaba aqui - disse o adestrador. - Já percorri a clareira duas vezes, andei na direção oposta, mas não há nada.
- Isso quer dizer que Alison foi carregada daqui? - perguntou George, com um tremor frio nascendo no estômago e escalando seu corpo.
- Acho que sim - falou Miller, sombrio. - Uma coisa é certa: ela não saiu andando daqui, a menos que tenha dado meia-volta e refeito seu trajeto até a casa. E se fez isso, por que atar e amordaçar a cadela?
- Talvez quisesse assustar a mãe. Ou o padrasto - arriscou um dos policiais.
- A cadela não teria latido para eles, não é? Então não haveria necessidade de amordaçá-la ou deixá-la aqui - falou Miller.
- A menos que ela achasse que um deles poderia estar com alguém estranho - disse George, quase que para si mesmo.
- Aposto que a menina não saiu desta clareira com seus próprios pés - falou Miller, determinado, enquanto levava seu cão pela trilha.
George aproximou-se devagar da cadela. Os gemidos na garganta do animal tornaram-se um queixume suave. Como era mesmo seu nome? Shep. O nome do animal era Shep.
- Ok, Shep - disse ele com gentileza, estendendo a mão para que a cadela pudesse cheirar seus dedos. O queixume parou. George puxou as pernas de suas calças para cima e ajoelhou-se no solo congelado, desigual e desconfortável. Percebeu, automaticamente, que o esparadrapo era do tipo mais grosso e viera de um rolo de cinco centímetros de largura com uma faixa de compressa com um centímetro de largura no meio.
- Calma aí, garota - murmurou, agarrando com uma das mãos os pêlos espessos na nuca da cadela para mantê-la imóvel. Com a outra mão, segurou a ponta do esparadrapo até liberar o suficiente para poder puxá-lo todo. Olhou para cima.
- Um de vocês venha aqui para segurar a cabeça do bicho enquanto arranco essa coisa.
Um dos policiais agachou-se de pernas abertas sobre o animal nervoso e agarrou sua cabeça com firmeza. George segurou a ponta do esparadrapo e o puxou com força, levando quase um minuto para arrancar tudo, enquanto mal conseguia evitar os dentes afiados da collie, que entrara em pânico ao ter seus pêlos arrancados junto com a fita colante. O policial atrás dela saltou para trás, quando a cadela virou-se para tentar abocanhá-lo. Tão logo percebeu que sua boca estava livre, Shep começou a latir furiosamente para os homens.
- O que fazemos agora? - perguntou um dos policiais.
- Vou soltá-la e ver aonde deseja nos levar - disse George, parecendo mais confiante do que se sentia. Ele andou para a frente com cautela, mas Shep não parecia disposta a atacá-lo. Com o canivete, ele cortou a corda, já que era mais fácil que tentar desamarrá-la enquanto a cadela se retorcia de agonia, além da vantagem de preservar o nó, para o caso de haver algo digno de atenção nele. George achou que não, parecia bem comum.
Instantaneamente, Shep saltou para a frente. Pego de surpresa, George cortou o dedo enquanto tentava segurá-la.
- Mas que droga! - exclamou, enquanto a corda corria entre seus dedos, queimando a pele onde tocava. Um dos policiais tentou agarrá-la enquanto Shep fugia, mas não conseguiu. George segurou a mão que sangrava e observou, impotente, enquanto o cão corria pela trilha que Miller e Príncipe haviam tomado a partir da clareira.
Momentos depois, ouviu a algazarra dos cães e o comando rígido e alto de Miller dizendo "Sente-se". Depois, o silêncio, e instantes mais tarde um uivo arrepiante que cortou a noite.
Apalpando seu bolso em busca de um lenço, George seguiu o rumo que Shep havia tomado. Alguns metros à frente, dentro da mata, deparou-se com Miller e os dois cães. Príncipe estava deitado, com o focinho entre as patas. Shep estava sentada, a cabeça erguida para o céu, abrindo e fechando a boca em uma série de uivos de congelar o sangue. Miller segurava a corda, evitando a fuga da collie rebelde.
- Parece que ela quer ir nessa direção - disse Miller, mostrando com a cabeça o caminho que se afastava da clareira.
- Então vamos segui-la - falou George, pegando a corda do adestrador depois de envolver seu polegar com o lenço. - Venha, garota - disse, incentivando a cadela e sacudindo a corda. - Mostre-me.
Imediatamente, Shep pôs-se de pé e partiu pela trilha, abanando a cauda. Andaram entre as árvores por alguns minutos e, então, viram uma trilha que levava à margem de um córrego estreito e rápido. A cadela sentou-se prontamente e voltou a cabeça para olhá-lo, com a língua de fora e os olhos espantados.
- Este deve ser o Scarlaston - disse a voz de Miller, às suas costas. - Eu sabia que nascia por aqui. Rio esquisito. Ouvi dizer que parece brotar do nada, em algum ponto por aqui. Se temos um verão seco, ele às vezes desaparece completamente.
- E aonde nos leva? - perguntou George.
- Não tenho certeza. Acho que desemboca no Derwent ou no Manifold. Não lembro qual deles. Seria preciso conferir no mapa.
George assentiu.
- Então, se Alison foi carregada para fora da clareira, perderíamos seu rastro aqui, de qualquer maneira. - Ele suspirou e voltou-se, dirigindo o foco da lanterna para seu relógio. Eram quase nove e quarenta e cinco. - Não podemos fazer mais nada no escuro. Vamos voltar à aldeia.
Praticamente arrastou Shep para afastá-la da margem do Scarlaston. Enquanto avançavam lentamente de volta a Scardale, George refletia sobre o desaparecimento de Alison Carter. Nada fazia sentido. Se alguém havia sido cruel o bastante para raptar uma menina, certamente não teria piedade da cadela. Especialmente uma tão esperta quanto Shep. Ele não imaginava uma cadela como aquela collie simplesmente submetendo-se enquanto alguém envolvia todo seu focinho com esparadrapo. A menos que Alison tivesse feito isso.
Neste caso, será que agira por iniciativa própria ou alguém a forçara a silenciar sua cadela? E, se tivesse feito aquilo por vontade própria, onde estaria agora? Se a menina pretendia fugir, por que não levaria a cadela para protegê-la, pelo menos até a manhã? Quanto mais pensava naquilo, menos entendia.
George andou penosamente pelo bosque e atravessou o campo, com a cadela relutante em seus calcanhares. O sargento Lucas conversava com o policial Grundy sob a luz de um lampião pendurado na traseira do Land Rover. George resumiu a situação na mata.
- Não adianta nada nos metermos lá na escuridão - disse ele. - Acho que o melhor a fazer é colocar alguns homens de guarda e, logo que amanhecer, examinar aquela área centímetro a centímetro.
Ambos os homens olharam-no como se tivesse enlouquecido.
- Com todo respeito, senhor, se pretende manter o povo longe da mata, não há muito sentido em deixar homens congelando lá - disse Lucas, cansado. - Os habitantes daqui conhecem a mata bem melhor que nós. Se quiserem entrar lá, entrarão e jamais saberemos. Além disso, acho que não existe ninguém que não tenha se oferecido como voluntário para ajudar nas buscas. Se lhes dissermos o que devem fazer, serão os últimos a destruir quaisquer pistas.
- E quanto aos de fora da aldeia? - perguntou George, percebendo que ele tinha razão.
Lucas encolheu os ombros.
- Tudo que precisamos fazer é colocar um guarda no portão da aldeia. Acho que ninguém conseguiria chegar até aqui vindo da outra colina. O caminho pelas margens do Scarlaston já é traiçoeiro com bom tempo, imagine então em uma noite gelada de inverno.
- Estou contente por tê-lo ao meu lado, sargento - disse George. - Acho que foram os seus homens que fizeram buscas nas casas e galpões, não foram?
- Sim. Nenhum sinal da garota - disse Lucas, com seu rosto naturalmente animado agora sombrio. - A construção atrás do solar é o laboratório fotográfico do proprietário. Não há espaço para uma garota se esconder ali.
Antes que George pudesse responder, Clough e Cragg apareceram das sombras na praça da aldeia. Ambos pareciam tão enregelados quanto ele, com as golas de seus pesados casacões levantadas contra o vento cortante que soprava. Cragg folheava seu bloco de anotações.
- Algum progresso? - perguntou George.
- Nada, como você pode ver - queixou-se Clough, oferecendo seus cigarros a todos. Apenas Cragg aceitou um. - Falamos com todo mundo, incluindo os primos com os quais a menina voltou da escola. Era a vez de Kathy Lomas pegá-los no fim da estrada, o que ela fez, como sempre. Na última vez em que viu Alison, a menina estava entrando pela porta da cozinha do solar. Então, a mãe diz a verdade; a garota chegou inteira em casa. A senhora Lomas entrou com seu filho e não tornou a ver Alison. Ninguém viu um traço sequer da garota depois que voltou da escola. É como se tivesse evaporado.
4
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 1h14
George passou os olhos pelo salão da igreja, com ar resignado. Na luz pálida e amarelada, o lugar parecia sombrio e pequeno, com as paredes verde-claras aumentando a sensação de que se estava em um local público. Contudo, precisavam de um local para acomodar a equipe do departamento de investigações criminais, bem como os policiais, e as chances de encontrar tal luxo perto de Scardale eram minguadas. Sob pressão, Peter Grundy conseguira apenas pensar na prefeitura em Longnor e neste anexo deprimente da capela metodista, localizado acanhadamente na avenida principal, logo depois do desvio para Scardale. Tinha a vantagem não apenas de ser mais perto de Scardale, mas também de contar com uma linha telefônica já instalada no que seria, de acordo com a placa na porta, a sacristia.
- Que bom que metodistas não são chegados a paramentos - falou George, parado na soleira da porta e examinando o armário antigo. - Anote aí, Grundy, precisamos de um telefone de campanha também.
Grundy adicionou o telefone a uma lista que já incluía máquinas de escrever, formulários para depoimentos de testemunhas, mapas em diversas escalas, caixas e pastas de arquivos, registro de eleitores e listas telefônicas. Mesas e cadeiras não eram problema, pois o salão já continha o suficiente. George voltou-se para Lucas:
- Precisamos montar um plano de ação para a manhã - disse, decidido. - Vamos juntar algumas cadeiras e ver o que podemos fazer.
Colocaram uma mesa e cadeiras diretamente sob um dos aquecedores elétricos pendurados em vigas do telhado. Eles mal disfarçavam o frio úmido da noite gélida, mas os homens sentiam-se satisfeitos com qualquer alívio. Grundy desapareceu na pequena cozinha e voltou com três xícaras e um pires.
- Para servir de cinzeiro - disse ele, deslizando o pires sobre a mesa, na direção de George. Depois, retirou uma garrafa térmica de dentro de seu sobretudo e a plantou com firmeza sobre a mesa.
- De onde veio isso? - indagou Lucas.
- De Betsy Crowther, da Casa da Campina - disse Grundy, abrindo a garrafa. George olhou com avidez a espiral de vapor que saiu dali. - Prima da mãe de Alison, por parte da mãe.
Revigorados por chá e cigarros, os três homens começaram a planejar:
- Precisaremos de tantos policiais quantos pudermos conseguir - falou George. - Precisamos vasculhar toda a área de Scardale, mas, se não acharmos nada, teremos de ampliar a busca até o curso do rio Scarlaston. Pretendo contatar o Exército, para ver se podem nos ceder pessoal para ajudar nas buscas.
- Se ampliarmos mais as buscas, talvez seja útil pedir ajuda ao Clube de Caça de High Peak - disse Lucas, encurvado sobre seu chá para aproveitar ao máximo o calor. - Seus cães de caça estão acostumados a rastrear, e seus cavaleiros conhecem o terreno.
- Lembrarei isso - disse George, inalando a fumaça de seu cigarro como se esta pudesse aquecer suas entranhas endurecidas de frio. - Grundy, quero que você faça uma lista de todos os fazendeiros locais dentro de um raio de, digamos, dez quilômetros. Primeiro, enviaremos alguns homens para pedir-lhes que verifiquem suas terras para verem se a garota está lá. Se ela fugiu, pode ter sofrido algum acidente, andando por aí no escuro.
Grundy assentiu:
- Farei isso. Senhor, lembrei-me de uma coisa que talvez valha a pena mencionar. - George fez sinal positivo com a cabeça, e ele continuou: - Ontem foi dia da feira Agropecuária e do Show de Natal de Leek. Eles exibem gado de corte e leiteiro, com bons prêmios em dinheiro, essas coisas. Isso significa que houve um tráfego bem maior que o habitual nas estradas por esses lados. Muitos vão para Leek por causa do show, não importando se estão participando da feira ou não. Alguns aproveitam para fazer suas compras de Natal. Alguém poderia estar voltando para casa na hora em que Alison desapareceu. Assim, se a garota estava em uma das estradas, há uma chance bem grande de ter sido vista.
- Bem pensado - disse George, anotando algo. - Talvez seja útil perguntar sobre isso aos fazendeiros, quando falar com eles. Também posso abordar o assunto na coletiva da imprensa.
- Coletiva da imprensa? - perguntou Lucas, desconfiado. Até aquele momento, aprovara totalmente o professor, mas agora parecia que George Bennett planejava usar Alison Carter para se promover. Isso o baixava em seu conceito.
George assentiu.
- Já solicitei ao QG que providencie uma coletiva da imprensa aqui, às dez horas. Precisamos de toda a ajuda possível, e a imprensa pode chegar às pessoas com mais rapidez que nós. Talvez levemos semanas para entrar em contato com todos que estavam na Feira de Leek ontem, e mesmo assim deixaremos algumas pessoas de fora. Com a cobertura pela imprensa, praticamente todo mundo saberá que temos uma garota desaparecida em uma questão de dias. Felizmente, o High Peak Courant sai hoje, de modo que na hora do chá provavelmente a notícia já estará nas ruas. A publicidade é vital em casos assim.
- Não parece ter funcionado tão bem para nossos colegas de Man-chester e Ashton - disse Lucas, com ar de dúvida. - Só serviu para fazer com que os policiais perdessem tempo seguindo pistas falsas.
- Se ela fugiu, será mais difícil continuar escondida. E se foi levada para outro lugar, isto aumenta nossas chances de encontrar uma testemunha - falou George, com firmeza. - Conversei com o superintendente Martin, que concorda comigo. Ele virá para a coletiva da imprensa e já confirmou que, a partir de agora, estou no comando da operação - acrescentou, sentindo-se meio sem graça com seu tom autoritário.
- Faz sentido - disse Lucas. - Afinal, o senhor está aqui desde o começo. - Ele levantou, empurrando a cadeira, e inclinou-se para apagar seu cigarro. - Assim, será que devemos voltar para Buxton agora? Não vejo o que mais podemos fazer aqui. Os homens do turno do dia podem dar continuidade ao trabalho quando vierem, às seis.
Intimamente, George concordou, mas não queria sair dali. Também não queria dar a impressão de que forçava sua autoridade, insistindo que permanecessem sem uma razão lógica, de modo que acompanhou Lucas e Grundy até o carro com alguma relutância. Pouco foi dito no trajeto até Longnor para deixar Grundy em casa e ainda menos nos dez quilômetros até Buxton. Os dois homens estavam cansados e ocupados com seus próprios pensamentos.
De volta à sede da divisão em Buxton, George pediu que o sargento datilografasse uma lista de ordens para o turno do dia e para os homens recrutados de outras partes da comarca. Entrou em seu carro, tremendo ante o sopro de ar frio que veio das aberturas do painel quando ligou o motor. Dez minutos depois, chegava ao lugar que a polícia de Derbyshire considerava apropriado para um homem casado em sua posição - uma casa geminada de três dormitórios, com fachada de pedra e jardim espaçoso, graças à curva acentuada da rua. Das janelas da cozinha e do quarto dos fundos tinha-se uma visão da floresta de Grin Low prolongando-se ao longo do cume até o começo de Axe Edge e pelos quilômetros e mais quilômetros de charneca onde Derbyshire confundia-se com Staffordshire e Cheshire.
George estava na cozinha iluminada apenas pela luz da lua, olhando a paisagem desanimadora. Tirara obedientemente os sanduíches da geladeira e coara chá, mas ainda não dera uma mordida sequer. Não sabia nem de que eram os sanduíches. Havia uma pilha pequena de cartões de Natal sobre a mesa, que Anne deixara ali para que ele desse uma olhada, mas George ignorou-os. Com a xícara aninhada entre suas mãos grandes e quadradas, recordava o rosto arrasado de Ruth Hawkin quando levara a cadela de volta e interrompera a vigília particular da mulher.
Ela estava parada junto à pia da cozinha, olhando para a escuridão atrás da casa pela janela. Agora que pensava nisso, George imaginava por que a mulher não cuidava da frente da casa. Afinal, se Alison voltasse, supunha-se que viria da direção da praça da aldeia e dos campos para onde partira naquele dia. Além disso, quaisquer notícias também viriam daquela direção. George pensou que talvez Ruth Hawkin não pudesse suportar os lugares que conhecia tão bem cheios de policiais e a presença deles a lembrasse dolorosamente da ausência da filha.
Fosse qual fosse a razão, ela olhava pela janela, de costas para o marido e para a policial que ainda estava embaraçosamente sentada à mesa da cozinha, com a intenção de oferecer um apoio que obviamente era indesejado. Ruth não se movera nem quando ele abrira a porta. O que a fez afastar os olhos da janela foi o som das patas da cadela no piso de pedra. Ao voltar-se, a cadela já se abaixara e, gemendo, rastejava em sua direção, arrastando a barriga no piso.
- Encontramos Shep amarrada no meio do mato - dissera George. - Alguém fechou sua boca com esparadrapo.
Os olhos de Ruth arregalaram-se e sua boca retorceu-se em um ricto de dor.
- Não - protestara baixinho. - Não pode ser. - Ela caiu de joelhos ao lado da cadela, que se retorcia em torno de seus tornozelos em uma paródia de desculpas subservientes. Ruth escondera o rosto entre os pêlos da cadela, agarrando o animal contra seu corpo, como se fosse uma criança. Uma língua rosada e longa lambera sua orelha.
George olhou para Hawkin. O homem sacudia a cabeça, parecendo verdadeiramente perplexo.
- Isso não faz sentido - dissera Hawkin. - É a cadela de Alison. O bicho jamais permitiria que tocassem em um fio de cabelo da menina. - Ele deu uma risada curta e seca. - Eu levantei a mão para ela uma vez, e a cadela abocanhou meu braço antes que eu pudesse tocá-la. A única pessoa que poderia ter feito isso seria a própria Alison. Shep nunca deixaria que eu ou Ruth a dominasse, menos ainda um estranho.
- Alison pode não ter tido escolha - disse George, com suavidade. Ruth levantara a cabeça, com o rosto transformado pela percepção de que seus medos anteriores poderiam refletir-se na realidade.
- Não - disse ela, numa súplica rouca. - Não a minha Alison. Por favor, Deus, não a minha Alison.
Hawkin levantara-se e cruzara a cozinha, indo até a esposa. Agachado ao seu lado, passara um braço desajeitadamente por seus ombros.
- Não fique assim, Ruth - dissera ele, lançando um rápido olhar para George. - Isso não ajudará Alison. Temos de ser fortes.
Hawkin parecia embaraçado por ter de demonstrar preocupação com a esposa. George já vira muitos homens que se sentiam desconfortáveis com qualquer exibição de emoção, mas raramente um deles parecia tão consciente deste desconforto.
Sentia muita pena de Ruth Hawkin. Não era a primeira vez que via um casamento entrar em crise sob o peso de uma grande investigação. Ele passara menos de uma hora na companhia do casal, mas sabia, por instinto, que o que via ali não era uma crise, mas um grande abismo. Já era difícil, em qualquer casamento, descobrir que a pessoa com quem se casou é menos que se imagina, mas para Ruth Hawkin, com um casamento tão recente, era duplamente difícil, devido ao peso adicional da ansiedade pelo desaparecimento da filha.
Quase sem pensar, George abaixara-se e cobrira uma das mãos de Ruth com a sua.
- Não podemos fazer muito por enquanto, senhora, mas estamos fazendo tudo o que podemos. Logo que amanhecer, os homens vasculharão por todos os lados. Prometo que não vou desistir de Alison. - Seus olhos haviam se encontrado, e ele sentira a intensidade de uma gama de emoções complicadas demais para serem explicadas.
Enquanto olhava para o pântano pela janela, George percebeu que não conseguiria dormir naquela noite. Embrulhando os sanduíches em papel impermeável, encheu uma garrafa com chá quente e subiu as escadas em silêncio, para pegar seu barbeador elétrico no banheiro.
No alto da escada, parou. A porta de seu quarto estava entreaberta, e não conseguiu resistir a um olhar para Anne. Com as pontas dos dedos, ele empurrou a porta um pouco mais para trás. O rosto da esposa era uma mancha pálida contra o brilho branco da fronha. Ela estava de lado, com uma das mãos fechada sobre o travesseiro ao seu lado. Deus, como era linda! Vê-la dormindo era o bastante para despertar-lhe desejo. Gostaria de poder tirar a roupa e deitar-se ao lado dela, sentindo seu calor junto ao seu corpo. Esta noite, porém, não poderia escapar da recordação dos olhos assustados de Ruth Hawkin.
Com um suspiro baixo, ele voltou-se e saiu dali. Meia hora depois, estava de volta à igreja metodista, olhando para a foto de Alison Carter. Havia pendurado quatro fotos da garota no mural de avisos. Deixara a outra na delegacia, pedindo que fizessem uma fotocópia com urgência, para poder distribuí-la na coletiva da imprensa. O inspetor de plantão não tinha certeza se poderiam fazer a cópia a tempo. George não deixara dúvidas quanto ao que esperava.
Com cuidado, abriu o mapa daquela área e tentou estudá-lo com olhos de alguém que decidira fugir de casa. Ou de alguém que decidira tirar a vida de outra pessoa.
Depois, saiu da igreja e percorreu a estrada estreita até Scardale a pé. Alguns metros adiante, a luz débil e amarelada que se derramava das janelas altas do salão da igreja foi engolida pelo manto da noite. Os únicos pontos de luz vinham das estrelas que conseguiam aparecer em meio às nuvens esparsas. George foi andando, tomando cuidado para não tropeçar nos tufos de capim nas margens da estrada.
Aos poucos, suas pupilas expandiram-se ao máximo, permitindo que sua visão noturna furtasse imagens dos fantasmas e sombras que formavam a paisagem. Entretanto, quando esses vultos já revelavam muros e árvores, ovelhas e beirais de portas, o frio capturou-o por inteiro. Os sapatos de solado fino que serviam na cidade eram inúteis para o chão gelado, e nem mesmo suas luvas forradas de algodão protegiam-no do vento terrivelmente frio que parecia usar a estrada de Scardale como um túnel para concentrar-se. Suas orelhas e nariz haviam perdido toda sensibilidade, exceto à dor. A pouco mais de um quilômetro da igreja, desistiu da caminhada. Se Alison Carter estivesse por ali, deveria ser mais resistente que ele.
Ou isto, ou já nem sentia mais nada.
Manchester Evening News, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 11
Garoto acampado traz novas esperanças às buscas a John
POLÍCIA RESGATA MENINO EM ACAMPAMENTO Da reportagem local
Policiais que investigam o desaparecimento de John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, correram a um descampado na periferia da cidade.
Segundo relatos, havia um menino acampado ali.
As esperanças renasceram quando se descobriu que o menino estava bem, mas tudo não passou de um alarme falso.
O menino encontrado e que havia sido dado como desaparecido era quase da mesma idade que John - mas seu nome era David Marshall, 11 anos, de Gorse View, Alt Estate, Oldham, e seu desaparecimento havia sido comunicado apenas algumas horas antes.
Depois de "meter-se em apuros" em casa, ele juntou seus pertences - e uma barraca - e foi acampar próximo a uma fazenda em Lily Lanes, na fronteira entre Ashton e Oldham.
Este foi outro incidente frustrante nas buscas a John, residente na estrada Smallshaw, em Ashton, que já duram 19 dias.
A polícia disse, hoje: "Achamos que tínhamos uma pista quente, mas pelo menos estamos satisfeitos por devolvermos um menino são e salvo à sua família."
David foi visto em seu acampamento solitário por alguém que visitava a fazenda próxima e que informou o fato imediatamente à polícia.
"Isto nos mostra que o público está realmente disposto a cooperar", disse a polícia.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 7h30
Ao ver Janet Carter, George lembrou-se de uma gata que sua irmã tivera. Seu rosto triangular, com o nariz atrevido, olhos grandes e a pequena boca carnuda e rosada, era tão fechado e cauteloso quanto o de qualquer predador doméstico que ele já vira. Ela chegava a ter algumas espinhas minúsculas em cada um dos lados de seu lábio superior, como se alguém tivesse arrancado seus bigodes. Estavam sentados frente a frente à mesa, na cozinha de teto baixo do chalé dos pais da menina, em Scardale. Janet mordiscava delicadamente um pedaço de torrada com manteiga, consumindo pequeninos pedaços em formato de lua em cada canto do pão. Seus olhos estavam baixos, mas a intervalos ela lançava-lhe um olhar rápido e oblíquo através de seus cílios longos.
Mesmo na juventude, ele jamais se sentira à vontade com garotas adolescentes, um resultado natural de ter uma irmã três anos mais velha cujas amigas consideravam o frangote George primeiro como um brinquedinho conveniente e, depois, como um ótimo campo de provas para a esperteza e charme que planejavam experimentar com alvos mais velhos. Às vezes, naqueles anos, George sentia-se como o equivalente humano a rodinhas extras na primeira bicicleta de uma criança. A única vantagem que conquistara com a experiência era que agora podia dizer quando uma garota estava mentindo, o que era mais que a maioria dos homens poderia alardear.
Contudo, mesmo esta certeza desaparecia frente ao autocontrole de Janet Carter. A prima desaparecera, com todas as suposições que isto envolvia, mas, ainda assim, Janet parecia tão calma como se Alison tivesse simplesmente saído para fazer compras. Sua mãe Maureen, não parecia tão dona de suas emoções, já que sua voz tremia ao falar da sobrinha e tinha lágrimas nos olhos quando retirou as três crianças menores dali, deixando George à vontade para interrogar a garota. E o pai de Janet, Ray, já saíra, colocando seus conhecimentos sobre as cercanias a serviço de uma das equipes que procuravam a filha de seu irmão falecido.
- Você provavelmente conhece Alison melhor que qualquer um - disse George, finalmente, lembrando a si mesmo de usar o tempo presente ao falar, o que lhe parecia cada vez mais inadequado.
Janet assentiu.
- Somos como irmãs. Ela é oito meses e duas semanas mais velha que eu, por isso estamos em séries diferentes na escola. Somos como irmãs de verdade.
- Vocês cresceram juntas aqui em Scardale?
Janet confirmou e outra lua crescente de torrada desapareceu entre seus dentes.
- Nós três, eu, Alison e Derek.
- Então, além de primas, vocês são amigas íntimas?
- Não sou sua melhor amiga na escola, porque estamos em turmas diferentes, mas sou a melhor amiga fora da escola.
- Que tipo de coisas vocês fazem?
A boca de Janet remexeu-se e torceu-se nos cantos enquanto ela pensava.
- Nada especial. Às vezes, Charlie, nosso primo mais velho, nos leva a Buxton para patinarmos. Às vezes, vamos às lojas de Buxton ou Leek, mas na maior parte do tempo simplesmente ficamos aqui. Levamos os cachorros para passear. Às vezes ajudamos na fazenda se há falta de pessoal. Ali ganhou um toca-discos de aniversário, então muitas vezes Derek fica ouvindo os discos com ela, no quarto.
Ele tomou um gole do chá que Maureen Carter lhe servira, surpreso por alguém conseguir fazer um chá mais forte que o da cantina da polícia.
- Sabe se algo a incomodava? - perguntou. - Algum problema em casa ou na escola?
Janet levantou a cabeça para olhá-lo, com as sobrancelhas juntando-se ao franzir a testa.
- Ela não fugiu - disse, com vigor. - Deve ter sido levada por alguém. Ali nunca fugiria. Por que faria isso? Não há nada do que fugir!
Talvez não, pensou George, admirado com a veemência da garota. Mas talvez houvesse algo para o que fugir.
- Alison tem namorado?
Janet respirou pesadamente pelo nariz.
- Nada sério. Ela foi ao cinema com um garoto de Buxton algumas vezes. Alan Milliken. Mas não era um encontro de namorados, na verdade. Eles foram com mais meia dúzia de pessoas. Ele tentou beijá-la, mas Alison não quis. Disse que, se o garoto achava que lhe pagar o ingresso do cinema significava que poderia fazer o que quisesse, estava errado. - Janet olhou-o de modo desafiador, animada por seu ímpeto.
- Então não tem alguém que ela deseje namorar? Talvez alguém mais velho?
Janet sacudiu a cabeça.
- Nós duas gostamos de Dennis Tanner, de Coronation Street, e de Paul McCartney, dos Beatles. Mas nada disso é sério, e não há ninguém real que Alison queira namorar. Ela sempre diz que meninos são chatos. Tudo o que querem é falar sobre futebol, sobre irem ao espaço em um foguete e no tipo de carro que teriam, se pudessem dirigir.
- E quanto a Derek? Onde ele se encaixa? Janet pareceu confusa.
- Bom, Derek é só... Derek. De qualquer maneira, ele tem espinhas. Não dá nem para pensar em namorar Derek.
- E quanto a Charlie, seu primo mais velho? Eu soube que os dois passam muito tempo juntos na casa da avó dele.
Janet sacudiu a cabeça, com um dedo tocando distraidamente uma pequena espinha de cabeça amarelada ao lado de sua boca.
- Ali só vai até lá para ouvir as histórias de Mamãe Lomas. Acontece
que Charlie mora lá. De qualquer maneira, não entendo por que você está perguntando sobre namorados quando deveria estar procurando quem a raptou. Aposto que pensam que tio Phil tem muito dinheiro, só porque mora em uma casa grande e é dono de todas as terras da aldeia. Aposto que tiveram essa idéia por causa do seqüestro do filho de Frank Sinatra semana passada. Deve ter aparecido na televisão, nos jornais e em todos os lugares. Não temos televisão, porque não há recepção, então dependemos do rádio. Mas até aqui em Scardale ouvimos falar do seqüestro. Alguém poderia ter ouvido a notícia e tido a mesma idéia. Aposto que pedirão um resgate enorme por Ali. - Seus lábios brilhavam, besuntados de manteiga enquanto a ponta de sua língua corria apressada por eles, em sua animação.
- Como é o relacionamento de Alison com seu padrasto?
Janet encolheu os ombros, como se a pergunta não pudesse ser menos interessante:
- É normal, acho. Ela gosta de viver no solar, isso posso garantir. - Um brilho de malícia acendeu-se em seus olhos. - Sempre que alguém pergunta onde ela mora, Ali responde imediatamente "no Solar Scardale", como se fosse algo muito especial. Quando éramos pequenas, inventávamos histórias sobre a casa. Histórias de fantasmas e sobre assassinatos. Assim, Alison agora acha que é grande coisa por morar lá.
- E o padrasto? O que ela dizia sobre ele?
- Não dizia muito. Quando ele estava namorando sua mãe, ela o considerava um pouco assustador, porque estava sempre rondando a casa das duas, trazendo presentinhos para tia Ruth. Você sabe, flores, chocolate, meias de náilon, coisas assim. - Ela remexeu-se em sua cadeira e estourou uma espinha entre o polegar e a unha do indicador, tentando inconscientemente disfarçar a ação por trás de sua mão.
- Acho que ela tinha ciúme, porque estava acostumada a ser a queridinha de tia Ruth e não suportava a competição. Mas depois que os dois se casaram e aquela fase de namoro terminou, acho que Ali o aceitou bem. Acho que ele não lhe dava muita importância. Ele não parece interessado em ninguém, a não ser nele mesmo. E em tirar fotos. Está sempre fazendo isso. -Janet voltou à sua torrada, como se o dispensasse.
- Fotos de quê? - disse George, mais para manter a conversa que por real interesse.
- Paisagens. Ele também gosta de ver as pessoas trabalhando. Ele diz que é preciso que pareçam naturais, então só tira as fotos quando acha que não estão olhando. Só que ele é recém-chegado e não conhece Scardale como nós. Assim, na maior parte das vezes em que ele se esgueira tentando não ser percebido, metade da aldeia sabe o que está fazendo. - Ela deu uma risadinha e, depois, lembrando-se do motivo para a presença de George, cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos.
- Então, até onde você sabe, Alison não teria motivos para fugir? Janet abaixou a torrada e franziu os lábios.
- Já disse que ela não fugiu. Ali não fugiria sem mim. E ainda estou aqui. Assim, alguém deve tê-la levado. E você tem de encontrá-los. - Seus olhos desviaram-se e George voltou-se um pouco, vendo Maureen Carter na porta da cozinha.
- Diga-lhe, mãe - falou Janet, com desespero na voz. - Estou dizendo, mas parece que ele não escuta. Diga-lhe que Ali nunca fugiria. Diga!
Maureen assentiu.
- Ela está certa. Quando Alison está com problemas, ela os enfrenta. Se estivesse preocupada com algo, todos saberíamos. O que quer que tenha acontecido não foi por sua escolha. - Ela deu um passo à frente e tirou a xícara da frente da filha. - É hora de você e os pequenos encontrarem Derek. Kathy os levará até o ônibus.
- Posso fazer isso - ofereceu George.
Maureen olhou-o da cabeça aos pés, claramente insatisfeita com o que via:
- É muita gentileza sua, mas já tivemos bastante perturbação por aqui esta manhã. Não precisamos de mais ainda. Vá, Janet, pegue seu casaco.
George levantou as mãos.
- Antes de ir, só mais uma pergunta. Alison costumava freqüentar algum lugar especial no vale? Um esconderijo, uma cabana onde a turma se reúne, algo assim?
A menina lançou um olhar rápido e desesperado para sua mãe.
- Não - disse ela, mas a voz revelava o oposto do que dizia. Janet enfiou o resto da torrada na boca e correu para fora, acenando apressadamente para George.
Maureen pegou o prato sujo e virou a cabeça para o lado, pensativa.
- Se Alison pretendesse fugir, não agiria assim. Ela adora a mãe. Sempre foram muito próximas, por viverem só as duas durante tanto tempo. Alison jamais faria sua mãe passar por isto.
5
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 9h50
O salão da igreja metodista sofrera uma transformação. Oito mesas de armar haviam sido montadas e cada uma era o centro de alguma atividade. Em uma delas, um policial com um telefone de campanha estabelecia contato com o QG. Em outras três, havia mapas abertos, com grossas linhas vermelhas desenhadas para separar as áreas de buscas. Em uma quinta mesa, um sargento estava cercado por fichas de arquivo, formulários para depoimentos e caixas para arquivamento, confrontando as informações à medida que lhe chegavam. Nas mesas restantes, os policiais martelavam em máquinas de escrever. Em Buxton, investigadores interrogavam colegas de Alison Carter, enquanto o vale que cercava o vilarejo de Scardale e com este dividia seu nome era vasculhado por trinta policiais e pelo mesmo número de voluntários locais.
No fim do salão e próximo à porta, um semicírculo de cadeiras fora armado em torno de uma mesa de carvalho. Atrás desta, havia duas cadeiras. Na frente da mesa, George prestava informações ao superintendente Jack Martin. Nos três meses desde que chegara a Buxton, ele jamais tivera de trabalhar pessoalmente com o oficial fardado encarregado da divisão. Sabia que seus relatórios passavam pela mesa de Martin, mas jamais haviam se comunicado pessoalmente sobre um caso. Tudo o que sabia sobre o homem havia sido filtrado pelos outros.
Martin servira como tenente em um regimento de infantaria na guerra, aparentemente sem distinção ou desonra. Ainda assim, seus anos no Exército lhe deram um gosto pelas minúcias da vida militar. Ele insistia na observação da hierarquia, repreendendo policiais que abordavam seus iguais ou em posição inferior pelo nome, em vez de pelo posto. Um nome de batismo ouvido por acaso na sala do pelotão podia elevar sua pressão sangüínea em vários pontos, de acordo com o sargento Clough. Martin conduzia inspeções regulares de seus policiais fardados, com freqüência berrando com aqueles cujas botas não refletiam seus rostos ou cujos botões do uniforme não reluziam. Ele tinha o perfil aquilino e olhos de águia. Marchava acelerado por onde quer que andasse, e se dizia que detestava o que via como a aparência desleixada dos investigadores sob seu comando.
Por trás do rigoroso militar, porém, George suspeitava que havia um policial astuto e eficiente. Agora, estava prestes a descobrir. Martin escutara atentamente seu relato sobre os acontecimentos, com as sobrancelhas grisalhas juntando-se em uma careta de concentração. Com o indicador e o polegar de sua mão direita, ele esfregava o bigode bem cuidado na direção inversa à dos pêlos e, depois, alisava-o novamente.
- Você fuma? - perguntou ele finalmente, oferecendo a George seu maço de cigarros sem filtro. George balançou a cabeça, preferindo seu Gold Leaf com filtro e mais suave. Contudo, considerou a oferta como permissão e imediatamente acendeu um cigarro.
- Não estou gostando nada do que ouvi - disse Martin. - Foi tudo planejado com cuidado, não acha?
- Acho que sim, senhor - disse George, impressionado porque Martin também se apegara ao detalhe crucial do esparadrapo. Ninguém saía para uma caminhada casual carregando consigo um rolo desse esparadrapo, nem mesmo o escoteiro mais consciente quanto à segurança. O tratamento dado à cadela anunciava premeditação a George, embora nenhum de seus colegas parecesse dar grande peso a este detalhe.
- Acho que a pessoa que a pegou conhecia bem seus hábitos. Deve ter observado a garota por algum tempo, esperando pela oportunidade certa.
- Então você acha que é alguém da aldeia? - perguntou Martin. George correu a mão por seus cabelos claros.
- Parece que sim - falou, hesitante.
- Acho que é melhor deixarmos esta possibilidade em aberto. O trajeto de Denderdale até a nascente do Scarlaston é bem popular. Dúzias de andarilhos devem percorrer a trilha no verão. Qualquer um deles poderia ter visto a menina, sozinha ou com seus amigos, e resolvido voltar para pegá-la. - Martin assentiu, concordando consigo mesmo, dando um piparote num fragmento de cinzas de cigarro que caíra no punho de seu uniforme impecavelmente passado.
- É possível - concordou George, embora não conseguisse imaginar que alguém se tornasse instantaneamente obcecado pela garota e esperasse meses pela oportunidade certa. Entretanto, a razão principal para sua incerteza era bem diferente. - Acho que não consigo imaginar ninguém desta comunidade praticando algo tão terrível. Essas pessoas são incrivelmente ligadas, senhor. Elas estão acostumadas a contar umas com as outras há gerações. Seria contra tudo em que acreditam, ter um de seus filhos raptado por alguém de Scardale. Além disso, é difícil imaginar como alguém daqui poderia raptar uma criança sem que todos os outros habitantes soubessem. Ainda assim, aparentemente, é muito provável que tenha sido alguém do vilarejo. - George suspirou, surpreso com seus próprios argumentos.
- A menos que todos estejam errados sobre a direção que a menina seguiu - observou Martin. - Ela pode ter fugido ao hábito e tomado o rumo da estrada principal. Ontem foi dia da Feira Agropecuária de Leek e certamente houve mais tráfego que o habitual na estrada para Longnor. Ela poderia ter entrado em algum carro, para oferecer informações a alguém que usou isso como pretexto para levá-la.
- Mas e quanto à cadela? - apontou George.
Martin fez um gesto impaciente com a mão que segurava o cigarro.
- Quem a levou poderia ter vindo até perto do vale e deixado a cadela no meio do mato.
- Seria muito arriscado, e ele teria de conhecer o terreno. Martin suspirou.
- Acho que sim. Também reluto em ver o vilão como alguém daqui. Temos essa visão romântica sobre pequenas comunidades rurais, mas infelizmente nos enganamos, com muita freqüência. - Ele olhou para o relógio no salão, apagou o cigarro, ajeitou os punhos do uniforme e se empertigou. - Vamos lá. Está na hora de enfrentarmos a imprensa.
Ele voltou-se para as mesas de armar.
- Parkinson, vá dizer a Morris que os jornalistas podem entrar.
O policial fardado levantou-se imediatamente, balbuciando um "sim senhor".
- Seu quepe, Parkinson - vociferou Martin. Parkinson parou de súbito e correu de volta à cadeira. Enfiou o quepe e quase correu até a porta. Já ia saindo quando Martin acrescentou:
- Corte os cabelos, Parkinson.
A boca do superintendente retorceu-se no que poderia ter sido um sorriso, enquanto ia até as cadeiras atrás da mesa.
A porta abriu e meia dúzia de homens entrou, enquanto uma espécie de bruma parecia formar-se à sua volta, quando seus corpos frios chocaram-se com o calor abafado do salão. O grupo espalhou-se pela sala, e os homens sentaram-se ruidosamente nas cadeiras dobráveis. Suas idades variavam de vinte e poucos a cinqüenta e poucos anos, na opinião de George, embora não fosse fácil dizer, com chapéus de abas largas e bonés puxados bem à frente para protegerem os rostos, golas de casacos viradas para cima contra o vento gélido e cachecóis envolvendo os pescoços. Ele reconheceu Colin Loftus, do High Peak Courant, mas os outros lhe eram estranhos. Imaginou para quem trabalhariam.
- Bom-dia, cavalheiros - começou Martin. - Sou o superintendente Jack Martin, da polícia de Buxton, e este é meu colega, detetive-inspetor George Bennett. Como vocês já sabem, uma garota desapareceu de Scardale. Alison Carter, de treze anos, foi vista pela última vez mais ou menos às quatro e vinte da tarde de ontem. Ela saiu da casa de sua família, o Solar Scardale, com a intenção de levar sua cadela para passear. Ao perceberem a demora, a mãe, senhora Ruth Hawkin, e o padrasto, senhor Philip Hawkin, entraram em contato com a polícia de Buxton. Respondemos ao chamado e demos início às buscas nas redondezas de Scardale, usando cães farejadores da polícia. A cadela de Alison foi encontrada no meio do mato, perto de sua casa, mas não encontramos nenhum sinal da menina.
Ele pigarreou.
- Teremos cópias de uma fotografia recente de Alison disponíveis na delegacia de Buxton ao meio-dia.
Enquanto Martin dava uma descrição detalhada da aparência e das roupas da garota, George estudou os jornalistas. Suas cabeças estavam abaixadas e os lápis voavam pelas folhas de seus blocos de anotações. Pelo menos pareciam interessados o suficiente para tentar obter todos os detalhes da história. Ele imaginou quanto disso tinha a ver com os desaparecimentos de Manchester. Achava que não teriam comparecido normalmente em número tão grande apenas porque uma garota estava desaparecida havia dezesseis horas de uma pequena aldeia em Derbyshire. Martin continuava, falando rapidamente:
- Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Não sabemos o que aconteceu com ela e estamos todos muito preocupados, ainda mais com a temperatura extremamente baixa que estamos enfrentando no momento. Agora, se tiverem alguma pergunta, eu ou o detetive-inspetor Bennett teremos prazer em responder.
Uma cabeça levantou-se.
- Brian Bond, do Manchester Evening Chronicle. Vocês suspeitam de crime?
Martin respirou fundo.
- Neste ponto não descartamos nada. Não encontramos um motivo para o desaparecimento da menina, já que não tinha problemas em casa ou na escola. Entretanto, também não encontramos até agora nada que sugira que foi levada com violência.
Colin Loftus ergueu a mão, com um dedo levantado.
- Há alguma indicação de que Alison possa ter sofrido um acidente?
- Até agora não - respondeu George. - Como o superintendente Martin lhes disse, neste momento há uma equipe de buscas vasculhando a área do vale. Também pedimos que todos os agricultores locais verifiquem suas terras com muito cuidado, para o caso de Alison ter-se ferido em uma queda e não ter conseguido voltar para casa.
O homem na extremidade da fileira de cadeiras recostou-se e soprou um anel perfeito de fumaça.
- Parece haver algumas características comuns entre o desaparecimento de Alison Carter e o das duas crianças da área de Manchester: Pauline Reade, de Gorton, e John Kilbride, de Ashton. Vocês entraram em contato com os detetives de Manchester e Lancashire acerca de uma possível conexão entre os casos?
- E você, quem é? - perguntou Martin, em tom de comando.
- Don Smart, do Daily News, sucursal norte. - Ele abriu um sorriso, que pareceu a George o esgar predatório de uma raposa. Smart tinha até mesmo as cores do animal: cabelos avermelhados que se mostravam sob Seu boné de tweed, face corada e olhos castanhos que se apertavam contra a fumaça de seu charuto.
- É cedo demais para fazermos suposições como esta - disse George rapidamente, desejando ele mesmo fazer esta pergunta que ecoava suas próprias dúvidas. - É claro que ouvi falar sobre os casos mencionados, mas até agora não encontramos razões para nos comunicarmos com nossos colegas de outros distritos acerca de qualquer outra coisa além de providências para as buscas a Alison. A polícia de Staffordshire já indicou que nos dará toda assistência necessária se precisarmos ampliar a área de buscas.
Smart, porém, não desistia tão facilmente:
- Se eu fosse a mãe de Alison Carter, acho que não gostaria de saber que a polícia menospreza indicações tão fortes de ligação com o desaparecimento de outras crianças.
Martin levantou a cabeça repentinamente, abrindo a boca para responder ao jornalista, mas George chegou antes.
- Para cada similaridade há uma diferença - disse bruscamente. - Scardale é uma comunidade isolada, não uma área urbana e movimentada; Pauline e John desapareceram em um fim de semana, mas Alison sumiu em um dia de semana; estranhos seriam uma visão comum para as outras duas crianças, mas um estranho que aparecesse na hora do chá em dezembro, em Scardale, colocaria Alison em alerta. Além disso, e talvez o mais importante, a menina não estava sozinha, mas levava o cachorro para passear. Scardale fica a uns bons trinta ou quarenta quilômetros dos outros dois locais em que as crianças desapareceram. Qualquer um que quisesse raptar uma criança teria de passar por muitas até chegar a Alison Carter. Centenas de pessoas desaparecem, todos os anos. Estranho seria se não houvesse semelhanças entre os casos.
Don Smart lançou-lhe um frio olhar de desafio e disse apenas:
- Obrigado, detetive-inspetor Bennett. Seria Bennett com dois "t"?
- Sim - disse George. - Mais alguma pergunta?
- Vocês pretendem drenar os reservatórios nos pântanos? - perguntou novamente Colin Loftus.
- Comunicaremos as providências que decidirmos tomar quando for o momento certo - disse Martin, cortante. - Agora, a menos que alguém tenha mais alguma dúvida, a coletiva está encerrada. - Ele levantou-se.
Don Smart inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Quando será a próxima coletiva?
George viu o pescoço de Martin tornar-se vermelho como a papada de um peru. Estranhamente, a cor não se difundiu para seu rosto.
- Comunicaremos à imprensa quando encontrarmos a garota.
- E se não a encontrarem?
- Estarei aqui amanhã de manhã, à mesma hora - disse George. - E estarei aqui todas as manhãs, até encontrarmos Alison.
As sobrancelhas de Don Smart levantaram-se.
- Vou esperar ansiosamente - disse ele, ajeitando as dobras de seu pesado sobretudo em torno do corpo esguio e levantando seu 1,70m. Os outros jornalistas já se dirigiam para a porta, comparando anotações e decidindo sobre as chamadas para a matéria.
- Atrevido esse Smart - comentou Martin, depois que ficaram a sós.
- Suponho que está apenas fazendo seu trabalho - suspirou George. Passaria bem sem alguém tão teimoso e desagradável quanto Don Smart em seu cangote, mas não podia fazer muito a esse respeito, exceto evitar que o homem o provocasse demais.
Martin torceu o nariz.
- É um encrenqueiro. Os outros conseguiram fazer seu trabalho sem insinuar que não sabemos fazer o nosso. É melhor ficar de olho nele, Bennett.
George assentiu.
- Preciso lhe fazer uma pergunta, senhor. Quer que eu assuma o comando das operações aqui?
Martin franziu a testa.
- O inspetor Thomas será responsável pelos policiais fardados, mas acho que você deve assumir o comando geral. O detetive e inspetor-chefe Carver não pode ir a lugar algum com aquele gesso no tornozelo. Ele se ofereceu para comandar o departamento de investigações criminais em Buxton, mas preciso de um homem aqui. Posso confiar-lhe esta missão, inspetor?
- Darei o melhor de mim, senhor - disse George. - Tenho certeza de que encontraremos esta menina.
Manchester Evening Chronicle, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 1
POLÍCIA FAZ BUSCAS EM VALE ISOLADO Cães auxiliam na procura por menina desaparecida Da reportagem local
Policiais com cães farejadores realizaram hoje buscas a uma menina de 13 anos que desapareceu de sua casa, no vilarejo remoto de Scardale, em Derbyshire, ontem à tarde.
A menina, Alison Carter, desapareceu da casa onde vive com a mãe e o padrasto, depois de dizer que levaria sua collie, Shep, para passear.
Alison deveria atravessar os campos e ir até um bosque próximo, no vale de pedra calcária onde mora. Desde então não foi mais vista.
Buscas foram realizadas após um telefonema de sua mãe à polícia. A cadela foi encontrada sem ferimentos, mas não havia sinal de Alison.
Depoimentos de seus vizinhos e amigos da Peak Girls
High School não revelaram um motivo para a fuga da bonita garota.
Hoje, sua mãe, a senhora Ruth Hawkin, 34 anos, esperava ansiosamente por notícias, enquanto continuavam as buscas no vale. Seu marido, o senhor Philip Hawkin, 37 anos, uniu-se aos vizinhos e fazendeiros que ajudaram a polícia a vasculhar o vale ermo.
Um policial veterano nos disse: "Não encontramos motivos para o desaparecimento de Alison. A menina não tinha problemas na escola ou em casa, mas também não descobrimos nada que sugira um crime, até o momento."
As buscas continuarão amanhã, se Alison não for encontrada até a noite de hoje.
Don Smart jogou para o lado a primeira edição do Chronicle. Pelo menos não haviam roubado sua linha de questionamento. Havia sempre esse risco quando se tentava algo um pouco diferente em uma coletiva da imprensa. De agora em diante, ele tentaria se afastar daquela cambada e cavar suas próprias reportagens. Tinha a sensação de que George Bennett lhe daria ótimas matérias e estava determinado a tirar o possível do jovem e atraente detetive.
Estava certo de que aquele homem era um buldogue e que não largaria o caso de Alison Carter de jeito nenhum. Smart sabia, por experiência própria, que, para a maioria dos policiais, o desaparecimento de Alison Carter era apenas mais um trabalho. Claro que lamentavam pela família. Também podia apostar que aqueles que tinham filhas iam para casa e lhes davam um abraço mais apertado que o habitual a cada noite que passavam procurando por Alison naquela região de pântanos.
Contudo, George parecia-lhe diferente. Para ele, o caso representava uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Carter, mas George não demonstraria maior paixão pela causa se fosse o pai da garota. Smart percebia que ele simplesmente não toleraria o fracasso.
Para Smart, isto era um presente dos deuses. Seu emprego na sucursal norte do Daily News era o primeiro em um jornal de circulação nacional, e estivera buscando uma reportagem que o levaria ao topo. Já cobrira parcialmente os desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News e estava determinado a persuadir George Bennett ou alguém de sua equipe a ligar os dois casos ao de Alison Carter. Daria manchetes incríveis.
O que quer que acontecesse, Scardale seria um excelente cenário para uma história dramática e misteriosa. Em uma comunidade tão fechada quanto aquela, as vidas de todos seriam colocadas sob o microscópio. Subitamente, toda espécie de segredos viria à tona, e coisas feias seriam vistas, com certeza. Don Smart estava resolvido a testemunhar tudo.
De volta ao salão da igreja metodista, George Bennett também largou o jornal. Não tinha dúvidas de que a manhã traria uma matéria bem menos agradável nas páginas do sensacionalista Daily News. Martin teria um ataque se houvesse qualquer sugestão de incompetência da polícia. Ele marchou para fora do salão e cruzou a estrada até seu carro.
Dirigir até Scardale à luz do dia era apenas um pouco menos assustador que chegar lá à noite ou de madrugada. Pelo menos, o negrume obscurecia as rochas ao lado da estrada que, em sua imaginação, poderiam facilmente partir-se e esmagar seu carro como uma lata de alumínio sob um rolo compressor. Hoje, porém, havia uma diferença crucial: o portão no meio da estrada estava totalmente aberto, permitindo livre acesso aos veículos. Um policial fardado que estava no portão espiou para dentro do carro de George e bateu continência ao reconhecer o ocupante. Pobre infeliz, pensou George. Seus próprios dias de vigília no frio felizmente haviam durado pouco. Imaginou como aqueles que, diferente dele, não estudavam para galgar os degraus mais rapidamente, podiam suportar, semana após semana, a perspectiva de fazer a ronda das ruas, preservar locais de crimes e, como hoje, vagar de modo infrutífero pelos arredores mais inóspitos.
A aldeia, assim como a estrada, não parecia melhor à luz do dia. Não havia nada de charmoso nos pequenos chalés sombrios de Scardale. Os prédios de pedra cinzenta pareciam agachar-se na direção do chão, mais como cães acovardados que animais prestes a saltar. Os telhados de um ou dois deles pareciam prestes a desabar e a maior parte da madeira poderia beneficiar-se de uma camada de tinta. Galinhas andavam por ali à vontade, e cada carro que entrava no vilarejo provocava uma cacofonia de latidos de uma variedade de cães usados para conduzir ovelhas e vacas. O que não havia mudado eram os olhos que observavam os passos de qualquer recém-chegado. A medida que se aproximava, George ia percebendo estes olhos. Sabia um pouco mais sobre eles que na noite anterior. Para começo de conversa, sabia que todos os olhos eram femininos. Cada homem de Scardale em condições de ajudar participava das buscas, acrescentando tanto determinação quanto conhecimento do local à tarefa.
George encontrou uma vaga para seu carro no lado mais distante da Praça da aldeia, ao lado do muro do Solar Scardale. Hora de ter outra conversa com a senhora Hawkin, decidiu. A caminho da casa, parou por um momento junto ao trailer que chegara de manhã, do quartel-general. Estavam usando o veículo como um ponto de ligação para as equipes de busca, em vez de como centro de operações, e um par de policiais femininas ocupava-se com a tarefa incessante de coar chá e café. George abriu a porta e congratulou-se em silêncio por ganhar sua aposta consigo mesmo de que o inspetor Alan Thomas estaria acomodado confortavelmente no cantinho mais quente do trailer, com uma chávena em um lado, próxima de uma de suas mãos grandes, e o cinzeiro contendo seu cachimbo de roseira-brava perto da outra.
- George - disse Thomas, animado. - Venha e sente aqui, garoto. Está gelado lá fora, não é? Estou contente porque não preciso sair e vasculhar a mata.
- Alguma novidade? - perguntou George, assentindo quando a policial lhe ofereceu uma xícara de chá. Ele derramou o açúcar de um saquinho e encostou-se na parede do trailer.
- Nadinha, garoto. Ninguém marcou pontos ainda, por assim dizer. Acharam pedaços de tecido, mas era coisa velha, nada que nos levasse à garota - disse Thomas, com seu sotaque galês parecendo tornar as notícias deprimentes um pouco mais leves. - Sirva-se - acrescentou, fazendo sinal com a mão para um prato de bolinhos. - A mãe da menina os trouxe. Disse que não suportaria ficar apenas sentada à espera de notícias.
- Irei vê-la daqui a pouco. - George pegou um bolinho. Muito bom, decidiu ele. Definitivamente melhor que os que Anne fazia. A esposa era ótima cozinheira, mas em matéria de bolos não era grande coisa. Sempre mentia para ela, dizendo que nem gostava tanto assim de bolos. Se não mentisse, sabia que terminaria elogiando, porque não saberia criticá-la. E não queria condenar-se a cinqüenta anos de esponjas pesadas, massa semi-crua e bolos semelhantes a pedras que pareciam ter vindo diretamente da pedreira mais próxima.
De repente, a porta se abriu com um estrondo. Um homem de rosto corado, usando uma pesada jaqueta de couro sobre várias camadas de camisas e coletes de malha entrou, sem fôlego e suando muito.
- Você é Thomas? - perguntou, olhando para George.
- Sou eu, garoto - disse Thomas, levantando-se e deixando cair uma chuva de migalhas. - O que aconteceu? Encontraram a menina?
O homem sacudiu a cabeça, com as mãos nos joelhos enquanto lutava para recuperar o fôlego.
- No arvoredo abaixo do Rochedo do Escudo - disse ele, com a voz entrecortada. - Parece que houve luta por ali. Galhos quebrados. - Ele endireitou o corpo. - Pediram-me que os levasse lá.
George largou o chá e o bolinho e seguiu o homem até a rua, com Thomas arrastando-se atrás. Apresentou-se e perguntou:
- Você é de Scardale?
- Sim, sou Ray Carter, tio de Alison. E pai de Janet, lembrou George.
- Isso fica a que distância do lugar onde encontramos a cadela? - perguntou, forçando suas pernas a acompanharem os passos largos do fazendeiro, que conseguia se mover muito mais depressa que seu corpo atarracado fazia supor.
- A uns quatrocentos metros, no máximo.
- Levamos muito tempo para cobrir uma distância tão pequena - disse George, baixinho.
- Não se pode ver o lugar da trilha. Por isso vocês o ignoraram na primeira vez - disse Carter. - Além disso, não é um lugar óbvio. - Ele parou por um momento, voltando-se para apontar para a casa de Alison. - Olhe, lá está o Solar Scardale. - Ele virou novamente. - Ali está o campo que leva ao matagal em que vocês encontraram a cadela e o Scarlaston. - O homem virou-se de novo. - Ali está o caminho que sai do vale. E é para lá - concluiu, indicando uma área de árvores entre a casa de Alison e o bosque em que Shep fora amarrada - que estamos indo. A caminho de lugar nenhum - acrescentou em tom amargo, envolvendo os altos rochedos de calcário e o céu cinzento com um aceno final de mão.
George franziu a testa. O homem estava certo. Se Alison estava no arvoredo quando foi atacada, por que a cadela foi amarrada em uma clareira do bosque, a quase meio quilômetro de distância? Mas, se tivesse sido capturada sem luta na clareira, e a luta tivesse ocorrido quando ela viu uma chance de se livrar de seu raptor, o que estavam fazendo naquele ponto sem saída do vale? Era outra inconsistência a ser lembrada, pensou ele, seguindo Ray Carter rumo ao cinturão estreito de árvores.
O arvoredo era um misto de faias, freixos, plátanos e olmos, com plantas mais jovens que aquelas entre as quais haviam estado na noite anterior. As árvores eram menores, com troncos mais delgados. Pareciam estar demasiadamente próximas umas das outras, com seus ramos formando uma tela grossa, por entre a qual quase nada podia ser visto. A vegetação rasteira era densa entre as árvores jovens, espessa demais para permitir passagem fácil.
- Por aqui - disse Carter, voltando-se para uma abertura quase invisível entre as samambaias marrons e a folhagem vermelha e verde dos arbustos. Tão logo entraram no arvoredo, a maior parte da luz da tarde desapareceu. Sentindo-se meio cego, George entendeu por que a primeira leva de homens ignorara o lugar. Ele não percebera antes a dificuldade dessa área e a facilidade com que se poderia ignorar algo tão grande como, Deus que o perdoasse, um corpo. À medida que seus olhos habituavam-se à penumbra, começou a distinguir alguns arbustos entre as árvores. Sob seus pés, a trilha era escorregadia, com folhas mortas e pisoteadas.
- Há meses venho dizendo a Hawkin que este lugar deveria ser desmatado - queixou-se Carter, empurrando para o lado os ramos flexíveis de um sabugueiro baixo. - A gente poderia perder metade dos animais do Clube de Caça aqui dentro, e ninguém ia descobrir.
Depararam-se subitamente com o resto da equipe de busca. Três policiais e um rapazinho estavam parados junto a uma curva da trilha. O rapaz não parecia ter mais de dezoito anos e vestia-se como Carter, com jaqueta de couro e pesadas calças de veludo cotelê.
- Muito bem - disse George. - Quem vai nos mostrar o que está acontecendo aqui?
Um dos policiais limpou a garganta e respondeu-lhe:
- É bem ali na frente, senhor. Outra equipe já havia passado por aqui de manhã, mas o senhor Carter sugeriu que deveríamos olhar de novo, porque o mato rasteiro é denso demais. - Ele fez sinal para que George e o inspetor Thomas seguissem em frente e os outros deram um passo desajeitado para trás, permitindo-lhes a passagem. O policial apontou para um espaço quase imperceptível no mato, no lado sul da trilha. - O garoto foi quem viu primeiro. Charlie Lomas. Há uma trilha muito sutil de galhos quebrados e plantas pisoteadas. Parece que houve luta alguns metros à frente.
George abaixou-se e espiou a trilha. O homem tinha razão. Não havia muito para ver. Era um milagre alguém ter conseguido perceber algo. Ele supôs que os habitantes de Scardale conheciam tão bem seu território que o que lhe parecia oculto saltaria aos olhos deles.
- Quantos de vocês já andaram por ali com seus grandes sapatos? -
perguntou Thomas.
- Só eu e o garoto Lomas, senhor. Tivemos todo o cuidado possível. Tentamos não danificar o local das buscas.
- Darei uma olhada - disse George. - Senhor Thomas, será que um de seus rapazes poderia ligar para o centro móvel de operações para enviarem um fotógrafo para cá? Depois que o fotógrafo terminar, também varreremos com pente-fino o lugar. - Sem esperar resposta, George afastou os ramos que encobriam a trilha quase invisível e se moveu à frente, tentando manter-se alguns centímetros à esquerda da trilha original. Aqui era ainda mais escuro e ele parou um pouco para permitir que seus olhos se acostumassem à escuridão.
A descrição do policial havia sido admirável, em termos de exatidão. Após alguns passos apertados, George encontrou o que procurava. Ramos quebrados e samambaias esmagadas marcavam uma área de cerca de um metro e cinqüenta por dois metros. Ele não era um homem do campo, mas mesmo assim sabia que o dano era recente. Parecia que os galhos e as samambaias haviam sido destruídos fazia pouco. Um arbusto que havia sido parcialmente pisoteado estava apenas murcho, mas não totalmente morto. Se isto não estivesse ligado ao desaparecimento de Alison Carter, seria uma coincidência muito estranha.
George inclinou-se para a frente, com uma das mãos agarrando-se a um galho de árvore para obter apoio. Talvez houvesse alguma prova importante ali e não queria andar naquele terreno e causar ainda mais danos do que a equipe de buscas já causara. Enquanto o pensamento cruzava sua mente, seu exame atento revelou uma bola de material escuro, presa na ponta aguda de um galho quebrado. Meias pretas de lã, dissera Ruth Hawkin. O estômago de George contraiu-se. "Ela esteve aqui", disse baixinho para si mesmo.
Moveu-se para a esquerda, contornando a área remexida, parando de vez em quando para examinar o que via. Estava quase na diagonal oposta ao ponto em que deixara a trilha quando viu. Bem à sua frente, à direita, havia uma mancha escura na casca muito clara de uma bétula. Irresistivelmente atraído, ele se aproximou da árvore.
O sangue secara, mas preso a ele, sem chances de engano, havia algumas mechas de fios de cabelos loiros. E no chão, perto da árvore, um botão de osso com fiapos de tecido ainda presos a ele.
6
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 17h05
George respirou fundo e levantou a mão para bater na porta. Antes que o fizesse, a porta se abriu. Ruth Hawkin estava na sua frente, com o rosto tenso e cinzento à luz da noite. Ela deu um passo para o lado, inclinando-se no batente para obter apoio.
- Vocês encontraram alguma coisa - disse ela, sem entonação. George cruzou o batente e fechou a porta às suas costas, determinado a não dar aos bisbilhoteiros mais espetáculo do que seria inevitável. Seus olhos varreram automaticamente o cômodo.
- Onde está a policial? - perguntou ele, voltando-se para Ruth.
- Mandei-a embora - disse ela. - Não preciso que cuidem de mim como se eu fosse uma criança. Além disso, acho que ela poderia fazer algo mais útil pela minha Alison que ficar sentada bebendo chá o dia inteiro.
Havia uma nota ácida em sua voz que não estava ali antes. George considerou a reação saudável. Esta mulher não era do tipo que desmaiaria a cada notícia ruim. Sentiu alívio com isso, porque achava que seu papel seria, definitivamente, de portador de más notícias.
- Será que podemos sentar? - perguntou ele. Sua boca torceu-se em uma careta amarga.
- É tão ruim assim? - Mas afastou-se da parede e desabou em uma das cadeiras da cozinha. George sentou-se no outro lado, percebendo que ela ainda vestia as mesmas roupas que na noite anterior. Então nem chegara a se deitar e certamente não dormira. Provavelmente nem sequer tentara.
- Seu marido está ajudando nas buscas? - indagou ele.
Ela assentiu.
- Acho que não estava muito entusiasmado. Meu Phil se dá bem com tempo bom. Gosta quando o sol está brilhando e o dia se parece com um de seus cartões-postais. Mas em dias como hoje, frio e úmido, com um toque de névoa gelada no ar, ele sempre se senta junto ao fogão de lenha ou se tranca em seu estúdio com aquecedores a parafina, mas tenho de admitir que hoje fez uma exceção, felizmente.
- Se quiser, posso esperar que ele volte - falou George.
- Isto não mudará o que você tem para me dizer, não é? - perguntou, com voz cansada.
- Não, infelizmente não. - George abriu seu sobretudo e removeu dois sacos plásticos do bolso interno. Um deles continha a bola macia e fofa que estivera presa no galho quebrado; o outro, o botão polido e serri-lhado em suas bordas, com sua cor natural de osso parecendo estranha contra o plástico nada natural. Preso a ele por linha azul-marinho resistente, havia um fragmento de tecido azul-marinho semelhante a feltro. - Preciso perguntar-lhe: reconhece algum desses objetos?
O rosto à sua frente empalideceu, enquanto ela pegava os sacos e os olhava por um longo tempo.
- O que é isto? - perguntou ela, tocando o material sob o plástico com o indicador.
- Achamos que é lã - respondeu George. - Talvez das meias que Alison usava.
- Isto poderia ser qualquer coisa - disse ela, defensivamente. - Pode ser que estivesse lá há dias ou semanas.
- Teremos de ver o que nosso laboratório descobre então. - Não havia sentido em forçá-la a aceitar o que a mente não queria admitir. - E quanto ao botão? Reconhece?
Ela pegou o saco e correu o dedo sobre o pedaço esculpido de osso; então, encarou-o com súplica nos olhos.
- Isso é tudo o que descobriram dela? Só tem isso para me mostrar?
- Descobrimos sinais de luta no arvoredo. - George apontou para o que julgava ser a direção certa. - Entre a casa e o matagal onde encontramos Shep, lá para o fim do vale. Está escuro agora, de modo que não podemos conseguir muito, mas a primeira coisa que faremos pela manhã é realizar uma busca com pente-fino em todo o arvoredo, para tentarmos descobrir mais algum sinal de Alison.
- Mas foi só isso que encontraram? - Agora havia ansiedade em seu rosto.
Ele detestava acabar com suas esperanças, mas não poderia mentir.
- Também encontramos fios de cabelo e um pouco de sangue. Como se ela tivesse batido a cabeça em uma árvore. - Ruth tapou a boca com a mão, contendo um grito. - Mas era muito pouco sangue, senhora Hawkin. Eu garanto, nada que indique qualquer coisa além de um pequeno ferimento.
Os olhos arregalados o fitaram e os dedos da mulher enterraram-se em sua própria face, como se manter fisicamente sua boca fechada pudesse conter sua resposta, de algum modo. Ele não sabia o que fazer ou dizer. Tinha muito pouca experiência com respostas a crises e tragédias. Sempre pedia que os policiais mais velhos ou colegas com mais experiência amortecessem a dor aguda de outras pessoas. Agora estava sozinho e sabia que seu conceito de si mesmo seria medido, para sempre, de acordo com a forma como lidasse com esta mulher abalada.
George inclinou-se sobre a mesa e cobriu a mão livre de Ruth Hawkin com a sua.
- Eu estaria mentindo se dissesse que não há motivo para se preocupar - disse ele -, mas nada indica que Alison tenha sofrido algo grave, muito pelo contrário. Podemos ter certeza de uma coisa pelo menos. Alison não fugiu por conta própria. Sei que isso não parece um grande consolo neste momento, mas significa que não esgotaremos nossos recursos em coisas que não levariam a nada. Sabemos que Alison não fugiu e não pegou um ônibus ou trem, de modo que não faremos com que nossos policiais verifiquem estações de trem ou a rodoviária. Usaremos cada homem disponível em linhas de investigação que realmente nos levem a algum lugar.
A mão de Ruth Hawkin afastou-se da boca.
- Ela está morta, não é? George apertou-lhe a mão.
- Não há razão para pensar nisso.
- Tem um cigarro? Os meus acabaram. - Ela deu uma risada curta e amarga. - Eu deveria ter enviado sua policial até Longnor para me comprar cigarros. Isso teria sido algo útil.
Quando os dois já estavam fumando, ele guardou os sacos plásticos e empurrou o maço de cigarros sobre a mesa.
- Fique com estes. Tenho mais no carro.
- Obrigada. - A tensão pareceu desaparecer por um instante e George viu pela primeira vez o mesmo sorriso que tornava a fotografia de Alison inesquecível.
Ele deixou que a nicotina fizesse algum efeito e, então, disse:
- Preciso de ajuda, senhora Hawkin. Ontem à noite tivemos de trabalhar contra o relógio para encontrar pistas de Alison. E hoje fizemos buscas. São coisas mecânicas e rotineiras que muitas vezes têm sucesso e que precisamos fazer, mas ainda não tive uma chance de sentar com a senhora e conversar sobre o tipo de menina que Alison era. Se alguém a levou... e não vou mentir, já que isso parece cada vez mais provável, preciso saber tudo o que puder sobre ela, para poder estabelecer um ponto de contato entre Alison e esta pessoa. Assim, preciso que me conte sobre sua filha.
Ruth suspirou.
- É uma menina adorável e sempre foi muito esperta. Seus professores dizem que se estudar direitinho poderá cursar uma faculdade. - Ela inclinou a cabeça para o lado. - Você cursou uma faculdade. - Era uma afirmação, não uma pergunta.
- Sim, estudei Direito na Universidade de Manchester. Ela assentiu.
- Então você sabe como é isso de estudar. Nunca precisei mandá-la fazer as lições, sabe, não como Derek e Janet. Acho que ela até gosta dos deveres, embora provavelmente Alison preferisse cortar sua própria língua a admitir uma coisa dessas. Só Deus sabe de quem ela herdou isso. Nem eu nem seu pai estudamos muito. Mal podíamos esperar para abandonar os livros. Mas é bom frisar que ela não chega a ser fanática pelos estudos. Gosta de se divertir e brincar, a nossa Alison.
- O que ela faz para se divertir? - indagou George, com suavidade.
- Os três são loucos por música popular, ela, Janet e Derek. Beatles, Gerry and the Pacemakers, Freddie and the Dreamers, coisas assim. Charlie também, embora não tenha tempo para sentar-se todas as noites para escutar os discos, mas ele vai aos bailes no Pavilion Gardens, e sempre recomenda discos a Alison. Estou sempre dizendo que ela tem mais discos que a própria loja. Uma pessoa precisaria ter mais de duas orelhas para ouvir todos eles. Phil compra-os para ela. Ele vai a Buxton todas as semanas e escolhe os últimos sucessos, além daqueles que Charlie recomenda... - Sua voz sumiu.
- E o que mais ela faz?
- Às vezes, Charlie os leva a Buxton para patinar nas noites de quarta-feira. - Sua respiração ficou presa na garganta. - Ah, meu Deus, eu gostaria que ele a tivesse levado ontem à noite. - Gemeu, com a súbita percepção. Ela abaixou a cabeça e tragou o cigarro com tanta vontade que George chegou a ouvir estalidos. Ao levantar novamente a cabeça, seus olhos estavam cheios de lágrimas e tinham um apelo que atravessava suas defesas profissionais, chegando direto a seu coração. - Encontre-a, por favor - disse, em um gemido.
Ele apertou os lábios e assentiu.
- Acredite, senhora Hawkin, pretendo encontrá-la.
- Mesmo que seja apenas para eu poder enterrá-la.
- Espero que não cheguemos a isso - disse ele.
- Sim. Você e eu. - Ela exalou um fluxo fino de fumaça. - Você e eu. Ele esperou um pouco e, depois, perguntou:
- E quanto a amigos? Com quem ela mantinha alguma intimidade? Ruth suspirou.
- É difícil fazer amigos fora de Scardale. Eles nunca conseguem fazer nada com sua turma depois da escola. Se forem convidados para festas ou algo assim, provavelmente não poderão voltar para casa depois. O mais Próximo que podem ir de ônibus é a Longnor. Assim, simplesmente não fazem muita coisa. Além disso, as pessoas de Buxton têm preconceito contra as de Scardale. Acham que somos todos idiotas de nascença, cruzando com primos o tempo todo - disse, em tom sarcástico. - As crianças sofrem provocações, de modo que ficam perto dos seus quase o tempo todo. Nossa Alison é boa companhia, e ouvi dizer, por seus professores, que é bem popular na escola, mas ela nunca teve o que se chama normalmente de "melhor amiga", exceto por seus primos. Outro beco sem saída.
- Há uma outra coisa - disse George. - Eu gostaria de olhar o quarto de Alison, se não houver problema. Apenas para senti-la mais de perto. - Ele não acrescentou, "e para tirar um pouco dos cabelos de sua escova, para que o pessoal do laboratório possa compará-los com os que encontramos grudados no sangue, na árvore".
Ela se levantou, com movimentos que mais pareciam de uma idosa.
- Liguei o aquecedor lá. Para o caso... - A frase não foi concluída. George seguiu-a pelo corredor, que parecia tão frio quanto na noite anterior. A transição quase cortou-lhe o fôlego. Ruth levou-o por uma escadaria ampla com corrimãos de carvalho quase pretos, devido a anos de polimento.
- Outra coisa - disse ele, enquanto subiam -, presumo que seu atual marido não adotou Alison formalmente, já que seu sobrenome ainda é Carter.
A tensão dos músculos no pescoço e costas da mulher era tão clara, que George quase acreditou que estava sendo levado pela imaginação.
- Phil queria adotá-la. Era a favor disso, mas Alison tinha apenas seis anos quando seu pai... morreu. Tinha idade suficiente para recordar o quanto o amava, mas era jovem demais para ver que ele era um ser humano com defeitos também. Ela acha que, se Phil adotá-la, estará traindo a memória do pai. Acho que com o tempo isso passa, mas minha filha é teimosa e não faz nada que não queira. - Estavam no alto da escada agora, e Ruth voltou-se para ele, com expressão indecifrável e composta. - Eu persuadi Phil a esquecer este assunto, por enquanto.
Ruth apontou além de George, para um corredor que se dobrava em um ângulo estranhamente agudo onde o prédio fora aumentado, em algum período indeterminado.
- O quarto de Alison é o último à direita. Desculpe-me por não lhe fazer companhia - disse, determinada, e George descobriu-se admirando o modo como esta mulher ainda conseguia dominar-se, mesmo sob tão grande pressão.
- Obrigado, senhora Hawkin. Não demorarei.
Ele caminhou pelo corredor, consciente de que ela o olhava, mas mesmo este conhecimento desconfortável não era distração suficiente para evitar que notasse o ambiente. O carpete era gasto, mas obviamente do tipo mais caro. Algumas das pinturas e aquarelas que forravam as paredes estavam manchadas pela idade, mas ainda retinham seu charme. George reconheceu diversas paisagens da parte sul da comarca onde crescera, bem como as casas históricas e conhecidas de Chatsworth Haddon e Hardwick. Ele percebeu que o piso era desigual na curva do corredor, como se os construtores fossem incompetentes em todas as três dimensões. Na última porta à direita, ele fez uma pausa e respirou fundo. Talvez nunca mais estivesse tão perto de Alison Cárter.
O calor que o recebeu como um cobertor parecia curiosamente apropriado para o que era, apesar de seu tamanho, um quarto bem confortável. Uma vez que se localizava em um canto da casa, o quarto de Alison tinha duas janelas, aumentando a sensação de espaço. Elas eram compridas e divididas em quatro por profundas vergas de pedra que revelavam a espessura de quarenta e cinco centímetros das paredes. Ele fechou a porta e se dirigiu para o meio do cómodo.
Lembrou a si mesmo sobre a importância das primeiras impressões. Aquecido: havia uma lareira elétrica, além de um radiador elétrico a óleo. Confortável: a cama espaçosa tinha um cobertor grosso, coberto por cetim verde-escuro e as duas poltronas de vime em forma de cesto continham almofadas volumosas. Moderno: o carpete era felpudo, marrom com espirais verde-oliva e mostarda espalhadas em toda sua extensão, e as paredes eram decoradas com fotografias de astros da música, a maioria recortada de revistas, pela aparência de suas bordas tortas. Caro: havia um guarda-roupa de madeira e uma penteadeira que lhe fazia conjunto, com um espelho comprido e baixo e um banquinho em sua frente, tudo tão impecável que tinham de ser relativamente novos. George vira quartos assim quando ele e Anne estavam escolhendo seus próprios móveis, e tinha uma boa ideia do quanto custavam. Nada barato, isso era certo. Em uma mesa sob a janela, viu um toca-discos Dansette de plástico vermelho-escuro com botões bege-claros. Havia uma pilha grande e desalinhada de discos sob a mesa. Philip Hawkin estava claramente determinado a causar boa impressão em sua enteada, concluiu ele. Talvez pensasse que conseguiria chegar ao coração da menina se lhe desse os bens materiais que ela não tivera na infância, como filha de uma viúva em uma comunidade pobre como Scardale.
George foi até a penteadeira e sentou-se desajeitadamente no banquinho. Olhou seus olhos no espelho. A última vez em que tivera um olhar tão ansioso fora na época em que estudava para seus exames finais. Deixara um pedaço de barba por fazer sob sua orelha direita, um resultado direto da falta de vaidade da fé metodista. A ausência de um espelho na sacristia o forçara a barbear-se na frente do espelho retrovisor. Nenhuma agência respeitável de publicidade o contrataria para promover qualquer coisa, exceto soníferos. Fez uma careta para si mesmo e voltou ao trabalho. A escova de cabelos de Alison estava com as cerdas para cima na penteadeira, de modo que George removeu rapidamente o máximo de fios de cabelos que conseguiu. Felizmente, ela não era excessivamente caprichosa e ele conseguiu reunir algumas dúzias deles, que transferiu para um saco plástico vazio.
Então, com um suspiro, iniciou a busca desagradável nos pertences pessoais de Alison. Meia hora depois, não encontrara nada de inesperado. Chegara a folhear cada um dos livros na pequena estante junto à cama. Nancy Drew, The Famous Five, Chalet School, Georgette Heyer, O Morro dos Ventos Uivantes ejane Eyre não continham nem segredos nem surpresas. Uma edição bastante manuseada de Golden Treasury, de Palgrave, continha apenas poesia. A penteadeira revelou apenas roupas íntimas de uma adolescente, alguns sutiãs bastante pudicos, meia dúzia de sabonetes perfumados, meio pacote de absorventes higiênicos, uma caixinha de jóias que continha alguns brincos baratos e um bracelete de prata para bebês, no qual estava gravado "Alison Margaret Carter". A única coisa que ele esperava encontrar, mas não achou, era uma Bíblia. Por outro lado, Scardale era tão isolada do resto do mundo que ainda poderiam estar adorando uma deusa da colheita. Talvez os missionários nunca tivessem chegado a este lugar.
Uma pequena caixa de madeira sobre a penteadeira ofereceu-lhe itens mais interessantes. Ela continha meia dúzia de fotografias em preto-e-branco, a maior parte enrolando-se para dentro e amarelando nas bordas. Ele reconheceu uma Ruth Hawkin jovem, com a cabeça jogada para trás em uma risada, olhando para um homem de cabelos escuros cuja cabeça abaixava-se em timidez desajeitada. Havia duas outras fotografias do casal, de braços dados e expressões despreocupadas, todas obviamente tiradas na Golden Mile
em Blackpool. Lua-de-mel?, cogitou George. Sob elas, havia duas fotos do mesmo homem, com seus cabelos escuros caídos na testa. Vestia roupas de trabalho, um cinto largo segurando as calças que pareciam ter sido feitas para um homem com torso muito mais longo. Em uma, estava de pé sobre um arado preso a um trator. Na outra, estava agachado ao lado de uma criança loira, que sorria feliz para a câmera. Alison, sem dúvida. A fotografia final era mais recente, a julgar por suas margens brancas, e mostrava Charlie Lomas e uma mulher idosa, encostados em uma parede de pedra, com rochedos turvos de calcário ao fundo. O rosto da mulher era obscurecido por um chapéu de palha cuja aba ampla era forçada para baixo sobre suas orelhas por um lenço, amarrado sob o queixo. Tudo o que se podia ver era a linha reta de sua boca e o queixo protuberante, mas estava claro, pelo corpo encurvado e desajeitado, que a mulher era velha demais para ser a mãe de Charlie Lomas. Como se tivessem sido capturados por um fotógrafo da era vitoriana, mantidos imóveis por alertas contra movimentos durante a exposição, Charlie, o rosto sem expressão, olhava diretamente para a câmera. Seus braços estavam cruzados no peito e ele parecia tão rude e desafiador quanto qualquer rapazote que George já vira alegando inocência em uma delegacia.
- Fascinante - murmurou.
As fotografias do pai da menina eram previsíveis, embora ele tivesse esperado vê-las em uma moldura e em exibição no quarto. Contudo, o fato de a única outra imagem guardada com carinho por Alison incluir o primo que fizera a conveniente descoberta no matagal era, no mínimo, algo muito interessante para uma mente treinada em suspeitas como a de George. Com cuidado, ele recolocou as fotos na caixa. Depois, pensando melhor, tirou aquela de Charlie e da velhinha e enfiou-a em seu bolso.
George encontrou as primeiras amostras da caligrafia de Alison no meio dos discos. Em tiras de papel rasgadas de cadernos escolares, encontrou fragmentos de letras de músicas que, obviamente, tinham algum significado para a menina. Frases de Devil in Disguise, de Elvis Presley, Ws My
Início da Nota de Rodapé: Nome de um espaço com aproximadamente uma milha (1,6km), famoso por casas de Jogos eletrônicos e locais de diversão em Blackpool, Inglaterra. Fim da Nota de Rodapé.
Party (And Vil Cry if - Want To), de Lesley Gore, It's Ali in the Game, de Cliff Richard e - (Who Have Nothing), de Shirley Bassey, pintavam um quadro inquietante de infelicidade, que não combinava com a imagem da garota que todos haviam projetado. As letras falavam de amor e traição, perda e solidão. George sabia que não havia nada de estranho na experiência dessas sensações por adolescentes, que muitas vezes acreditavam ser os únicos que as tinham. Contudo, se estas eram as emoções de Alison Carter, a menina fora muito eficiente no sentido de mantê-las em segredo.
Isto era uma pequena incongruência, mas a única encontrada por ele, que enfiou as tiras de papel em outro saco plástico. Não havia razão real para imaginar que pudessem servir como provas, mas era melhor prevenir. Nunca se perdoaria caso um único detalhe menosprezado se revelasse crucial. Isso não apenas prejudicaria sua carreira, mas, bem mais importante, deixaria o assassino de Alison à solta. Ele parou no meio do caminho, quando já ia abrir a porta.
Era a primeira vez que admitia a si mesmo o que sua lógica profissional mostrava como sendo a verdade. Não estava mais procurando por Alison Carter. Estava procurando seu corpo. E seu assassino.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 18h23
George caminhou pesadamente pela estradinha na frente do solar. Pretendia conferir as novidades no centro de operações na igreja metodista e, depois, deixar as amostras de cabelos no QG da divisão em Buxton. Finalmente, iria para casa tomar um banho quente, fazer uma refeição quente e dormir algumas horas, ou seja, tudo o que se parecia com uma vida normal em uma investigação como esta. Mas, primeiro, queria trocar algumas palavras com o jovem Charlie Lomas.
Mal havia chegado à praça do vilarejo quando uma figura saiu das sombras, na sua frente. Assustado, parou e arregalou os olhos, esforçando-se para acreditar no que estava vendo. Seu cansaço fez com que um riso nervoso lhe subisse à garganta, mas conseguiu sufocá-la antes que se derramasse no ar nevoento da noite. A forma definira-se em algo que um artista teria adorado. A mulher encurvada que o espiava era o arquétipo da bruxa encarquilhada, desde o nariz de águia que quase se encontrava com o queixo até a verruga com pêlos nascentes e xale preto cobrindo a cabeça e os ombros. Tinha de ser a velhota da fotografia em seu bolso. A estranha e súbita coincidência provocou um tapinha involuntário no bolso que continha a imagem da criatura à sua frente.
- Então você é o chefe - disse ela, em uma voz que soava como um portão que rangesse estridente.
- Sou o detetive-inspetor Bennett, se é o que quer dizer, senhora - respondeu ele.
A pele da mulher enrugou-se em uma expressão de desdém.
- Títulos pomposos - disse. - Perda de tempo em Scardale, rapazinho. Olhe, todos vocês estão perdendo tempo. Ninguém tem imaginação suficiente para entender o que está acontecendo aqui. Scardale não é como Buxton, sabe? Alison Carter não está onde deveria estar, e a resposta está na cabeça de alguém de Scardale, não na floresta, esperando ser descoberta como uma raposa em uma armadilha.
- Talvez então eu pudesse contar com sua ajuda, senhora...?
- E por que eu o ajudaria, senhor? Sempre resolvemos nossos assuntos sozinhos. Não sei o que deu em Ruth para chamar estranhos ao vale. - Quando ela ia passá-lo na trilha, George deu um passo para o lado e a impediu de seguir em frente.
- Uma menina desapareceu - falou, com suavidade. - Isto é algo que Scardale não pode resolver por si mesma. Quer a senhora goste ou não, ainda vive no mundo real. Mas precisamos de sua ajuda, tanto quanto precisam da nossa.
A mulher subitamente pigarreou alto e cuspiu no chão, aos pés de George.
- Até que vocês me mostrem algum sinal de que sabem o que deveriam estar procurando, esta é toda a ajuda que terão de mim, senhor.
Num rompante, ela deu meia-volta e enveredou pela praça, com pés surpreendentemente rápidos para uma mulher que, em sua opinião, devia ter, no mínimo, oitenta anos de idade. George continuou olhando até que a bruma a engoliu, como um homem que se descobre vítima de uma dobra do tempo.
- Já conheceu Mamãe Lomas então? - perguntou o detetive-sargento Clough com um grande sorriso, aparecendo do nada.
- Quem é Mamãe Lomas? - perguntou George, confuso.
- A questão não deveria ser "Quem é Mamãe Lomas", mas "O que ela é?" - disse Clough, em tom solene. - Mamãe é a matriarca de Scardale. É a habitante mais velha, a única que sobrou de sua geração. Diz que celebrou seus vinte e um anos no Jubileu do Diamante da rainha Vitória,
mas não tenho certeza.
- Parece idosa o suficiente para isso.
- Sim, mas me diga quem, em Scardale, chegou mesmo a saber que Vitória estava no trono e, mais ainda, por quanto tempo permaneceu nele? Hein? - Clough finalizou, com um sorriso zombeteiro.
- Então, onde é que ela se encaixa? Qual é seu parentesco com Alison? Clough encolheu os ombros.
- Quem sabe? Bisavó, prima em segundo grau, tia, sobrinha? Todas as opções acima? Teria de ser muito esperto para entender todas as ligações entre este pessoal, senhor. Tudo o que sei é que, de acordo com o policial Grundy, ela serve de olhos e ouvidos do mundo por aqui. Nem um rato emite um pum em Scardale sem que Mamãe Lomas saiba.
- E ainda assim não parece disposta a nos ajudar a encontrar uma menina desaparecida. Uma menina que é sua parente. O que acha disso?
Clough tornou a sacudir os ombros.
- São todos iguais. Não gostam de estranhos em nenhuma circunstância.
- Foi este o tipo de atitude que você e Cragg encontraram ontem à noite quando perguntaram às pessoas se haviam visto Alison Carter?
- Na maioria das vezes. Eles respondem às perguntas, mas nunca dizem espontaneamente uma única coisa além do que lhes perguntamos.
- Você acha que todos diziam a verdade, isto é, não viram mesmo Alison? - indagou George, tateando seus bolsos em busca dos cigarros.
Clough estendeu-lhe seu próprio maço, enquanto George lembrava que dera o seu a Ruth Hawkin.
Início da Nota de Rodapé: Descoberto em 1895 e denominado primeiramente Reitz, em homenagem ao sr. F. W. Reitz, presidente do Estado libero de Orange, este diamante foi chamado de Jubileu em 1897 por ser uma lembrança à rainha Vitória da Inglaterra no jubileu do 16º aniversário de seu reinado. Fim da Nota de Rodapé.
- Aí está - disse Clough. - Acho que não estavam mentindo. Mas todos poderiam muito bem estar retendo informações relevantes. Especialmente se não sabíamos quais seriam as perguntas certas.
- Teremos de falar com todos novamente, não acha? - disse George, suspirando.
- Acho que sim, senhor.
- Mas isto terá de esperar até amanhã. Exceto pelo jovem Charlie Lomas. Por acaso você sabe onde ele está?
- Um dos nabos o levou ao salão da igreja metodista para prestar depoimento. Talvez meia hora atrás - disse Clough, sem dar grande importância ao fato.
- Não quero mais ouvir este tipo de coisa, sargento - disse George, com o cansaço transformando-se em irritação.
- O quê? - perguntou Clough, parecendo confuso.
- Nabo é um vegetal que se dá a ovelhas. Já conheci muitos agentes do departamento de investigações criminais que se qualificariam bem mais como vegetais que a maior parte dos policiais fardados. Precisamos da cooperação dos policiais fardados neste caso, e não quero que você estrague tudo com essa forma desrespeitosa de tratamento. Está claro, sargento?
Clough coçou o queixo.
- Bem claro, mas como não terminei nem o segundo grau na escola, não sei se conseguirei lembrar.
George sabia que este era um momento decisivo.
- Vou lhe dizer uma coisa, sargento. No fim deste caso, lhe darei um maço de cigarros por conta de cada dia que você conseguir lembrar-se disso.
Clough abriu um amplo sorriso.
- Ah, isso é o que chamo de incentivo!
- Vou falar com Charlie Lomas. Quer vir comigo?
- Será um prazer, senhor.
George começou a andar na direção de seu carro, mas parou de repente olhando para o sargento com uma ruga na testa.
- Mas o que você está fazendo aqui, por falar nisso? Achei que ainda estaria no turno da noite até o fim de semana!
Clough parecia embaraçado.
- Ainda estou no turno da noite, mas decidi vir esta tarde. Queria dar uma mãozinha. - Ele deu um sorriso maroto. - Está tudo bem, senhor. Não pretendo cobrar hora extra.
George tentou esconder sua surpresa.
- É muita gentileza sua - disse.
Enquanto encaminhavam-se para a estrada de Scardale, George pensou na capacidade do sargento para confundi-lo. Considerava-se bom juiz de caráter; porém, quanto mais conhecia Tommy Clough, mais contradições descobria nele.
Clough parecia rude e vulgar, sempre o primeiro a pagar uma rodada de bebida, sempre o mais ruidoso e com as piadas mais sujas. Contudo, seu histórico de detenções feitas falava de alguém diferente, de um investigador sutil e sensato, que preferia descobrir os pontos fracos dos suspeitos e pressioná-los até vê-los ceder e lhe dizer o que desejava ouvir. Ele era sempre o primeiro a grudar os olhos em uma mulher atraente, mas vivia sozinho em um apartamento de solteiro com vista para o lago em Pavilion Gardens. Fora até lá uma vez buscá-lo para o comparecimento imprevisto em um tribunal. Achava que o encontraria em um pardieiro, mas o apartamento era limpo, maravilhosamente decorado e cheio de álbuns de jazz, com as paredes decoradas com desenhos a bico-de-pena de pássaros britânicos. Clough parecera desconcertado por encontrá-lo em sua porta, esperando para entrar, e se aprontara para sair em tempo recorde.
Agora, o homem que era sempre o primeiro a cobrar por qualquer minuto a mais trabalhado cedera seu tempo livre para percorrer a zona rural de Derbyshire em busca de uma menina de cuja existência ele não tivera conhecimento sequer vinte e quatro horas antes. George sacudiu a cabeça. Imaginou se Tommy Clough não o consideraria esquisito também. Por alguma razão, duvidava disso.
Deixou suas reflexões de lado e apresentou sua suspeita sobre Charlie Lomas a seu sargento.
- Não é muito, eu sei, mas não temos mais nada no momento - concluiu.
- Se ele tem algo a esconder, não fará mal nenhum perceber que levamos o caso muito a sério - disse Clough, sombrio. - E se tem um segredo, não conseguirá mantê-lo por muito tempo.
O salão da igreja tinha um clima curiosamente quieto. Alguns policiais uniformizados estavam processando relatórios e outros documentos burocráticos. Peter Grundy e um sargento que George não conhecia examinavam mapas detalhados da área próxima, eliminando as já percorridas com quadrados grossos feitos a lápis. No fundo da sala, a figura desengonçada de Charlie Lomas estava sentada em uma cadeira de madeira dobrável, com as pernas enroladas uma na outra e os braços abraçando o próprio peito. Um policial estava sentado à sua frente, separado por uma mesa de jogo sobre a qual ele redigia atentamente um depoimento.
George foi até Grundy e levou-o para um canto.
- Pretendo trocar uma palavrinha com Charlie Lomas. O que você pode me dizer sobre o garoto?
Imediatamente, o rosto do policial de Longnor tornou-se impassível.
- Em que sentido, senhor? - perguntou, em tom formal. - Não se sabe nada sobre o garoto.
- Sei que não tem ficha policial - falou George. - Mas esta é sua área. Você tem parentes em Scardale...
- Minha esposa tem - interrompeu-o Grundy.
- Que seja, tanto faz. Você deve ter alguma impressão sobre ele. Do que é capaz.
Suas palavras ficaram suspensas no ar. No rosto de Grundy, formou-se lentamente uma expressão de hostilidade indignada.
- Você não pode estar pensando que Charlie tem algo a ver com o desaparecimento de Alison! - Seu tom era de absoluta incredulidade.
- Quero esclarecer algumas coisas, e seria útil se eu tivesse alguma idéia do tipo de garoto com quem falarei - disse George, cansado. - É só isso. E então, como ele é, Grundy?
Grundy olhou à sua direita e, depois, à esquerda, depois para a frente outra vez, como uma criança esperando para atravessar corretamente uma estrada. Contudo, não havia como fugir dos olhos de George. Assim, coçou a pele macia atrás de sua orelha e respondeu:
- Charlie é um bom rapaz, mas está em uma idade difícil. Todos os garotos desta idade vão à cidade e tomam umas e outras para tentar sair-se bem com as meninas, mas por aqui isso não é tão fácil. Outra coisa sobre Charlie é que é muito esperto. O suficiente para saber que poderia ser qualquer coisa na vida, se pudesse sair de Scardale, só que não tem coragem para fazer isso, por enquanto. Assim, ele se mostra um pouco atrevido de vez em quando, demonstrando sua insatisfação sem meias-palavras e com bastante grosseria. Mas seu coração está onde deveria estar. Ele mora em um chalé com Mamãe Lomas, porque ela não consegue fazer tudo sozinha e a família gosta de saber que há alguém por perto para trazer carvão e fazer coisas para a velhota. Esta vida não é grande coisa para um garoto de sua idade, mas é a única coisa da qual ele nunca se queixa.
- Ele tinha intimidade com Alison?
George percebeu que Grundy pesava até onde poderia responder. Esta era uma das partes mais difíceis de seu emprego, ter de permanecer firme no comando e demonstrar sua autoridade com seus colegas.
- Todos são íntimos uns dos outros por aqui - disse Grundy finalmente. - Não há qualquer problema entre ele e Alison, pelo menos até onde eu saiba.
Entretanto, não era em problemas que George estava interessado, no que se referia aos dois primos de Scardale.
Percebendo que já extraíra tudo que podia de Grundy, agradeceu e rumou para o fundo do salão, rezando para não parecer tão exausto quanto se sentia. Provavelmente, teria de esperar até a manhã para interrogar Charlie Lomas, mas preferia fazer isto agora, quando o garoto já estava com a guarda levantada. Além disso, sempre havia uma chance em um milhão de que Alison ainda estivesse viva, e Charlie Lomas poderia saber de algo que esclareceria o paradeiro da menina. Ainda que a chance fosse muito pequena, não podia ser desperdiçada.
Enquanto se aproximava, George pegou uma cadeira e a largou casualmente no terceiro lado da mesa, em ângulo reto com Charlie e o policial fardado. Sem que precisassem mandá-lo, Grundy fez o mesmo, ocupando o quarto lado da pequena mesa e cercando Charlie. Os olhos deste foram de um para outro, enquanto se remexia em seu assento.
- Você sabe quem eu sou, não é, Charlie? - perguntou George. O jovem assentiu.
- Fale quando lhe dirigirem a palavra - comandou Clough, áspero. - Aposto que isso é o que sua avó sempre lhe diz. Ela é sua avó, não é? Quer dizer, não é sua tia, sobrinha ou prima, não é? É difícil saber dessas coisas,
por aqui.
Charlie retorceu a boca para um lado e balançou a cabeça.
- Não há necessidade disso - protestou. - Estou ajudando no que posso.
- E somos muito gratos por você ter vindo prestar seu depoimento voluntariamente - disse George, incorporando sem esforço o papel de Policial Bonzinho, enquanto Clough parecia ser o Policial Malvado. - Já que estamos aqui, queria fazer-lhe uma ou duas perguntas, está bem?
Charlie respirou ruidosamente pelo nariz.
- Tá. Vá em frente.
- Ficamos impressionados por você encontrar aquele ponto remexido no meio do arvoredo - disse George. - Uma equipe inteira já havia passado por ali antes, e ninguém viu um traço sequer do lugar.
Charlie conseguiu encolher os ombros sem realmente soltar qualquer de seus membros do abraço que dava em si mesmo.
- Conheço o vale como a palma da minha mão. Quando se conhece bem um lugar, a mínima mudança salta aos olhos, só isso.
- Mas você não foi o único de Scardale a andar por ali, apesar de ser o primeiro a perceber.
- Ah, bem, acontece que meus olhos são melhores que os dos velhotes daqui - disse ele, tentando impressionar, mas sem fazer muito esforço.
- Olhe, estou interessado, porque notamos que às vezes pessoas que se envolveram em um crime tentam incluir a si mesmas na investigação - disse George, baixinho.
O corpo de Charlie liberou-se como se galvanizado. Seus pés bateram no chão e seus antebraços golpearam a mesa. Os policiais que estavam mais à frente no salão voltaram-se, assustados.
- Você é um doente - disse ele.
- Não sou doente, mas acho que alguém daqui é. Minha tarefa é descobrir quem. Agora, se alguém queria raptar ou fazer mal a Alison, seria muito mais fácil se fosse alguém conhecido, ou em quem ela confiasse. Obviamente, você a conhece. Ela é sua prima, cresceram juntos. Você indica discos e o padastro os compra para ela. Você senta perto do fogo com ela em sua casa, enquanto sua avó desfia suas histórias sobre o passado na ensolarada Scardale. Você a leva ao rinque de patinação em Buxton às quartas-feiras. - George encolheu os ombros. - Você não teria problema para persuadi-la a ir a algum lugar em sua companhia.
Charlie afastou-se violentamente da mesa e enfiou as mãos trêmulas nos bolsos das calças.
- E daí?
George mostrou-lhe a fotografia que encontrara no quarto da menina.
- Alison guardava uma foto sua no quarto - foi tudo o que disse. O rosto do garoto contorceu-se e ele cruzou as pernas.
- Deve ter feito isso por causa de Mamãe Lomas - disse, insistente.
- Alison adora Mamãe, e a velha bruxa detesta que tirem sua foto. Acho que essa aí é a única foto que já conseguiram bater dela.
- Será, Charlie? - interveio Clough. - Meu chefe e eu achamos que Alison gostava de você de um jeito especial. Uma garota bonita como aquela ao seu lado, adorando o chão em que você pisa... não conheço muitos garotos que diriam não a isto, você conhece? Especialmente uma garota adorável como Alison. Uma fruta madura, pronta para ser colhida, pronta para cair bem na sua mão. Tem certeza de que não era isso, Charlie?
O garoto remexeu-se, sacudindo a cabeça.
- O senhor entendeu tudo errado.
- Será? - perguntou George, gentil. - Então nos conte como era, Charlie. Será que era embaraçoso andar ao lado da garota quando você saía para patinar? Será que Alison estragava seus planos com as meninas mais velhas? Será que era este o problema? Você se encontrou com ela no vale ontem, na hora do chá? Será que perdeu a paciência com sua prima?
Charlie abaixou a cabeça e respirou fundo. Depois, ergueu-a e voltou-se para fitar George.
- Eu não entendo. Por que estão me tratando assim? Fiz o que podia para ajudar. Ela é minha prima. É parte de minha família. Nós cuidamos uns dos outros aqui em Scardale. Não é como em Buxton, onde ninguém dá a mínima para os outros. - Ele apontou para cada um dos policiais. - Vocês deveriam estar lá fora, procurando por ela, não aqui me insultando.
- Levantou-se em um pulo. - Sou obrigado a ficar aqui?
George levantou-se, e fez um gesto na direção da porta.
- Pode ir se quiser, senhor Lomas, mas precisaremos conversar novamente.
Clough levantou-se e se colocou do lado de George, enquanto Charlie saía com seus ossos desengonçados e sua imensa raiva.
- Ele não tem nada a ver com isso - disse.
- Parece que não - concordou George. Os dois homens seguiram no rastro de Charlie, fazendo uma pausa junto à porta, enquanto o jovem afastava-se pela estrada de Scardale. George olhou-o, pensativo. Depois, pigarreou. - Vou para casa agora. Volto antes de amanhecer. Você está no comando, pelo menos do departamento de investigações, até meu retorno.
Clough riu e sua risada pareceu morrer em uma lufada de hálito branco no ar opressivo da noite.
- Eu e Cragg, é? Isso dará o que falar aos patifes. Você desejava seguir alguma linha específica de investigação lá dentro?
- Quem quer que tenha levado Alison, deve tê-la tirado do vale, de algum modo - disse George, quase que pensando em voz alta. - Ele não poderia tê-la levado durante muito tempo, não uma adolescente com desenvolvimento normal de treze anos. Se ele a levou pelo vale de Scardale até Denderdale, teria de andar cerca de seis quilômetros antes de chegar a uma estrada. Mas se a trouxe até aqui pela estrada de Longnor, provavelmente a distância é de cerca de dois quilômetros. Por que você e Cragg não vão de porta em porta em Longnor, hoje à noite, para ver se alguém percebeu um veículo estacionado no acostamento, próximo à entrada para Scardale?
- Tem razão, senhor. Encontrarei o detetive Cragg e partiremos imediatamente.
George voltou à central móvel de operações e providenciou para que os cães farejadores trabalhassem em Denderdale na manhã seguinte, passou meia hora na delegacia de Buxton preenchendo formulários de requisição para que o laboratório examinasse o material colhido no arvoredo e na escova de cabelos de Alison e, então, finalmente se pôs a caminho de casa.
Os habitantes de Scardale teriam de esperar até o dia seguinte.
7
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 20h06
George não se lembrava da última vez em que fechara sua porta da frente com tamanha sensação de alívio. Antes de sequer tirar o chapéu, a porta que dava para a sala abriu-se e Anne estava ali, dando três pequenos passos e se aninhando entre seus braços.
- É ótimo estar em casa - disse ele num suspiro, inalando o aroma almiscarado dos cabelos da esposa, consciente também de que não se lavara desde a noite anterior.
- Você trabalha demais - ela o repreendeu, suavemente. - Ninguém lucrará se você morrer de cansaço. Venha, a lareira está acesa e não levarei cinco minutos para aquecer sua comida. - Ela afastou-se um pouco do abraço e olhou-o criticamente. - Você parece exausto. Recomendo um banho quente e cama tão logo termine de comer e tomar seu chá.
- Prefiro tomar o banho antes, se a água está quente.
- Tudo bem, a banheira está cheia. Eu ia tomar meu banho, mas é melhor você aproveitar a água. Tire a roupa, e eu vou ajudá-lo. - Ela empurrou-o gentilmente para as escadas.
Meia hora depois, ele estava de roupão à mesa da cozinha, devorando uma porção generosa de cozido de carne com cenoura, acompanhado por um prato com pão e manteiga.
- Desculpe, não temos batata - disse Anne. - Achei que pão com manteiga seria mais rápido e sabia que você precisaria comer alguma coisa logo que chegasse, já que nunca come direito quando está trabalhando.
- Humm - concordou ele, com a boca cheia.
- Encontraram a menina, então? A que desapareceu? Foi por isso que voltou para casa?
A comida em sua boca pareceu congelar-se em um bolo indigerível. George forçou-a garganta abaixo. Sentia-se como se engolisse uma bola de pêlos do tamanho de uma bola de golfe.
- Não - respondeu, olhando para seu prato. - E acho que não a encontraremos viva, se chegarmos a encontrá-la.
O rosto de Anne empalideceu.
- Mas isso é horrível, George. Como pode ter certeza? Ele sacudiu a cabeça e suspirou.
- Não tenho certeza, mas sabemos que ela não foi embora espontaneamente. Não me pergunte como, mas sabemos. O tipo de família no qual foi criada não atrairia seqüestradores. Além disso, pessoas que roubam crianças não as mantêm vivas por muito tempo. Assim, meu palpite é de que já está morta e, se não estiver, estará quando e se a encontrarmos, porque não temos absolutamente nenhuma pista. O pessoal do vilarejo age como se fôssemos o inimigo, não pessoas que querem ajudá-los, e é tão difícil fazer buscas naquela área que parece que até isso conspira contra nós. - Ele empurrou o prato e pegou os cigarros de Anne.
- Que horror. Como a mãe consegue lidar com o que está acontecendo?
- Ruth Hawkin é uma mulher forte. Acho que se alguém cresce em um lugar onde a vida é tão difícil quanto em Scardale, aprende a curvar-se em vez de quebrar. Mas não sei como está suportando. Ela perdeu o primeiro marido em um acidente na fazenda, sete anos atrás, e agora isto. O novo marido também não é muito útil. Um daqueles coitados egoístas que vêem tudo em termos de como os afetará.
- O quê? Ah, sim, um homem normal - brincou ela.
- Engraçadinha. Não sou assim. Não espero que meu chá esteja servido quando entro pela porta, entende? Você não precisa me servir o tempo todo.
- Você logo enjoaria de mim se eu não o servisse.
George deixou passar, com um encolher de ombros e um sorriso.
Acho que tem razão. Nós, homens, nos acostumamos a ser cuidados por vocês, mulheres. Mas, se tivéssemos um filho e ele sumisse, acho que não "caria exigindo meu chá antes de minha mulher sair à procura dele.
- O marido fez isso?
- Sim, de acordo com uma testemunha. - Ele sacudiu a cabeça. - Eu não deveria lhe contar essas coisas.
- E a quem eu contaria? As únicas pessoas que conheço aqui são as esposas dos outros policiais e elas não são exatamente minhas amigas do peito. As da minha idade são esposas de policiais inferiores na hierarquia, de modo que não confiam em mim, especialmente porque sou professora e nenhuma delas jamais fez algo mais difícil que trabalhar em uma lojinha ou em um escritório. E as esposas dos mais graduados são todas mais velhas que eu e me tratam como se eu fosse uma boba. Assim, pode ter certeza de que não sairei contando fofocas sobre seu caso, George - disse Anne, com um quê de irritação.
- Desculpe. Sei que não está sendo fácil fazer novas amigas aqui. - Ele tomou a mão da esposa na sua.
- Não sei como eu reagiria se perdesse um filho. - Quase que inconscientemente, a mão deslizou para o ventre.
Os olhos de George estreitaram-se.
- Está me escondendo alguma coisa? - perguntou, olhando-a com atenção.
A pele clara de Anne ruborizou-se.
- Não sei, George. É só que... bem, minhas regras estão atrasadas. Uma semana de atraso. Então... Desculpe, meu amor, eu não queria dizer nada até ter certeza, bem no meio de sua investigação sobre uma criança desaparecida. Mas, sim, acho que posso estar grávida.
Um sorriso vagaroso espalhou-se pelo rosto de George, enquanto assimilava as palavras:
- Mesmo? Vou ser papai?
- Pode ser alarme falso, mas nunca atrasei antes - falou Anne, parecendo quase apreensiva.
George levantou-se rapidamente e a tirou de sua cadeira, girando com a esposa em um abraço de alegria.
- É maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso. Pararam, e ele a beijou com paixão, murmurando:
- Eu a amo, senhora Bennett.
- Eu o amo também, senhor Bennett.
George puxou-a para junto de seu corpo, enterrando o rosto entre seus cabelos. Um filho. Seu filho. Tudo o que tinha de fazer agora era descobrir como lidar com o problema enfrentado por todos os pais desde Adão: como proteger seu filho.
Até este ponto, Alison Carter havia sido um caso importante para o detetive-inspetor George Bennett. Agora, tinha importância simbólica. Transformara-se em uma cruzada.
Em Scardale, o humor era tão soturno quanto os penhascos de calcário que cercavam o vale. A experiência de Charlie Lomas nas mãos da polícia correra o vilarejo com a mesma rapidez que as notícias sobre o desaparecimento de Alison. Enquanto as mulheres conferiam ansiosa e regularmente se os filhos estavam dormindo em suas camas, os homens se reuniam na cozinha do chalé em que Ruth e a filha haviam morado até o casamento com Hawkin.
Terry Lomas, pai de Charlie, mascava a ponta de seu cachimbo e se queixava da polícia:
- Eles não têm o direito de tratar nosso Charlie como criminoso - disse.
O irmão mais velho de Charlie, John, disse, com uma expressão severa:
- Eles não têm idéia do que aconteceu com nossa Alison. Usaram Charlie apenas como exemplo, para parecer que estão fazendo algo.
- Mas não vão deixar as coisas assim, vão? - perguntou Robert, tio de Charlie. - Interrogarão cada um de nós, um por um, se não conseguirem nada de Charlie. Aquele Bennett está com idéia fixa no caso de Alison, qualquer um percebe.
- Mas isso é bom, não é? - Ray Carter questionou. - Significa que está fazendo seu trabalho direitinho. Não sossegará até obter uma resposta.
- Tudo bem, se for a resposta certa - falou Terry.
- É - disse Robert, pensativo. - Mas como podemos garantir que ele não se desviará do que deveria estar fazendo porque está ocupado demais Perseguindo pessoas como o pobre Charlie? O menino não é muito durão, todos nós sabemos. Logo começarão a colocar palavras em sua boca. A gente sabe que, se não pegarem o homem certo, decidirão pegar Charlie de qualquer modo, e que se dane o resto.
- Temos duas opções - disse Jack Lomas. - Podemos fechar a boca. Não lhes diremos nada, exceto o que precisamos dizer para proteger Charlie. Logo perceberão que precisam encontrar outro bode expiatório. Ou podemos retroceder e ajudá-los. Talvez assim percebam que perseguir as pessoas que cuidaram de nossa Alison não ajudará em nada, no sentido de encontrarem quem a pegou, quem quer que seja.
Houve um grande silêncio na cozinha, pontuado pelo ruído de Terry chupando seu cachimbo. Finalmente, o velho Robert Lomas falou:
- Acontece que podemos fazer as duas coisas.
Sem George, o trabalho prosseguiu. As equipes de busca haviam encerrado os trabalhos por aquele dia, mas, no centro de operações, policiais fardados faziam planos para o dia seguinte. Já haviam aceitado ofertas dos voluntários do Exército Territorial
local e dos cadetes da RAF, que deveriam juntar-se às buscas no fim de semana. Ninguém verbalizava seus pensamentos, mas o pessimismo era geral. O que não significava que não cobririam cada centímetro de Derbyshire, se precisassem.
Em Longnor, Clough e Cragg estavam fartos de chá, mas famintos por pistas. Uma vez que todos dormiam mais cedo em comunidades rurais que em Buxton, eles haviam decidido encerrar os trabalhos às nove e meia da noite. Pouco antes desse horário, Clough teve sorte. Um casal idoso voltava das compras de Natal em Leek e havia percebido um Land Rover estacionado na grama, ao lado da capela metodista.
- Faltava pouco para as cinco da tarde - disse o marido, confiante.
- O que o fez notar o veículo? - perguntou Clough.
- Sempre vamos à capela - disse ele. - Em geral, apenas o pastor estaciona ali. Os fiéis deixam seus carros na beira da estrada. Todos sabem que deve ser assim.
- Você acha que o motorista estacionou fora da estrada para evitar ser notado?
.- Suponho que sim. Ele não sabia que, sendo um estacionamento exclusivo, isso chamaria mais ainda a atenção, entende?
Clough fez que sim e perguntou:
- Vocês viram o motorista? Os dois sacudiram a cabeça.
- Estava escuro - comentou a esposa. - Não havia qualquer luz acesa no carro e logo passamos por ele.
- Havia algo diferente no Land Rover? Era um veículo comprido ou menor? De que cor? Tinha capota fixa ou era conversível? Memorizaram alguma letra ou número da placa? - indagou Clough.
Novamente, os dois sacudiram as cabeças, em dúvida.
- Não estávamos prestando muita atenção, para ser honesto - falou o marido. - Conversávamos sobre a feira agropecuária. Um camarada de Longnor conquistou um dos primeiros prêmios e fomos convidados por ele para bebermos algo em Leek. Acho que metade da aldeia estaria lá, mas decidimos vir para casa. Minha esposa queria decorar a árvore de Natal.
Clough olhou à sua volta e viu as correntes de papel feitas em casa e a árvore de Natal artificial, cheia de cordões patéticos com luzes coloridas e uma guirlanda de ouropel que parecia ter sido mastigada desde o Natal anterior por um cachorro.
- Estou vendo - disse ele, com o rosto sério.
- Gosto de ter tudo pronto no dia da feira - disse a mulher, com orgulho. - Só então sentimos que o Natal está próximo, não é, pai?
- É isso mesmo, Dóris, bem assim. Como pode ver, sargento, nossas mentes não estavam ligadas no Land Rover.
Clough levantou-se e sorriu.
- Não se preocupem - falou ele. - Pelo menos vocês perceberam o carro. Isso é mais que qualquer outra pessoa na aldeia conseguiu lembrar.
- Estão todos ocupados demais celebrando a novilha de Alec Grundy comentou o homem, com ar de sábio.
Clough agradeceu-lhes novamente e partiu, encontrando-se com Cragg no bar mais próximo. Nunca achou que a regra sobre não beber durante o serviço devia ser aplicada com rigidez especialmente no turno da noite.
Como óleo de alta qualidade em uma máquina, alguns drinques sempre azeitavam sua mente. Consumindo uma cerveja Marston's Pedigree, ele contou o que ouvira a Cragg.
- Isso é ótimo - exclamou Cragg, entusiasmado. - O professor gostará da novidade.
Clough fez uma careta.
- Até certo ponto. Ele gostará de saber que temos duas testemunhas que viram um Land Rover estacionado onde o povo daqui não costuma estacionar. Ele gostará de saber que isto aconteceu por volta do mesmo horário em que Alison desapareceu. - Então Clough lhe disse o que, em sua opinião, desagradaria George.
- Que merda! - disse Cragg.
- É. - Clough baixou o conteúdo de seu copo em cinco centímetros, em um único gole. - Que merda.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 5h35
George entrou na delegacia de Buxton pela porta da frente e encontrou um policial fixando sininhos natalinos de papel sanfonado na parede com percevejos.
- Muito festivo - resmungou. - O sargento Lucas está?
- Creio que o senhor pode alcançá-lo. Lucas disse que iria à cantina buscar um sanduíche de bacon. Foi seu primeiro intervalo durante a noite inteira!
- O sino vermelho está mais alto que o verde - disse George, já saindo. O policial olhou com raiva enquanto a porta fechava.
George encontrou Bob Lucas mastigando ruidosamente o sanduíche de bacon e fitando aborrecido os jornais da manhã.
- Já viu isto, senhor? - perguntou ele à guisa de cumprimento, empurrando o Daily News para o outro lado da mesa. George pegou-o e começou a ler.
Daily News, sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, p. 5
MENINA SUMIDA: EXISTE UMA LIGAÇÃO?
Cães na busca por Alison
Do repórter do Daily News
Ontem, a polícia recusou-se a descartar uma ligação entre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, e outros dois casos semelhantes, a menos de cinqüenta quilômetros de distância, nos últimos seis meses.
Há similaridades óbvias entre os três casos, e os detetives debateram, em particular, sobre a necessidade de considerarem o estabelecimento de uma força-tarefa comum entre as três forças policiais que investigam os casos.
As buscas mais recentes concentram-se em Alison Carter, que desapareceu do vilarejo remoto de Scardale, Derbyshire, quarta-feira passada. A menina havia levado sua collie, Shep, para uma caminhada após chegar da escola, mas como não voltou para casa, a mãe, senhora Ruth Hawkin, alertou a polícia local em Buxton.
As buscas realizadas com cães farejadores não revelaram qualquer vestígio da menina, embora sua cadela tenha sido encontrada sem ferimentos, em um matagal próximo.
O misterioso desaparecimento ocorre menos de três semanas depois que John Kilbride, de 12 anos, também desapareceu em Ashton-under-Lyne. O menino foi visto pela última vez no mercado da cidade, à tardinha. A polícia de Lancashire ainda não conseguiu localizar uma única pista de seu paradeiro.
Pauline Reade, 16 anos, iria a um baile quando saiu da casa de sua família em Gorton, Manchester, no mês de julho. A garota não voltou para casa e, como nos casos de John e Alison, a polícia não tem idéia do que lhe aconteceu.
Um policial veterano de Derbyshire disse: "Neste ponto, não descartamos nenhuma possibilidade.
Não descobrimos uma razão para o desaparecimento de Alison. Ela não tinha problemas nem em casa nem na escola."
"Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu e estamos muito preocupados, até mesmo em virtude do mau tempo que estamos enfrentando."
Um investigador da polícia de Manchester disse ao Daily News: "É claro que esperamos que Alison seja encontrada rapidamente. Contudo, dividiríamos os frutos de nossas investigações de bom grado com a polícia de Derbyshire, se este caso se prolongar."
- Malditos jornalistas - queixou-se George. - Distorcem tudo que dizemos. Onde está aquilo que eu disse, de que existem mais diferenças que semelhanças entre os casos? Eu bem poderia ter ficado de boca fechada. Este Don Smart só escreve o que quer, sem a mínima consideração pela verdade.
- O mesmo acontece em toda a imprensa de Londres - disse Lucas, amargo. - Os rapazes daqui mantêm-se fiéis à verdade, porque precisam recorrer a nós semana após semana para suas matérias, mas essa turma da cidade grande não dá a mínima se nos perturbam ou não. - Ele suspirou. - Estava à minha procura, senhor?
- Só queria lhe pedir para transmitir algo à equipe do turno do dia. Acho que é hora de localizarmos quaisquer pessoas envolvidas com crimes sexuais na área e interrogá-las.
- Em toda a divisão, senhor? - Lucas parecia chateado.
Às vezes, pensou George, dava para entender exatamente por que alguns policiais permaneciam presos dentro de suas fardas até se aposentarem.
- Acho que nos concentraremos na área imediata em torno de Scardale. Talvez num raio de oito quilômetros, estendendo-se um pouco mais do lado norte, para incluir Buxton.
- Vagabundos vêm de todos os lados - disse Lucas. - Não há garantia de que nosso homem não tenha vindo de Manchester ou Sheffield, ou até mesmo de Stoke.
- Eu sei, sargento, mas temos de começar por algum lugar. - George afastou sua cadeira da mesa e levantou-se. - Vou a Scardale. Acho que ficarei lá o dia inteiro.
- O senhor já soube do Land Rover? - perguntou Lucas, em tom neutro e expressão convencida.
- Land Rover?
- Seus homens conseguiram duas testemunhas em Longnor ontem à noite. Eles viram um Land Rover estacionado perto da entrada para Scardale mais ou menos na hora em que a jovem Alison saiu de casa.
O rosto de George iluminou-se.
- Mas esta notícia é fantástica!
- Não de todo. Estava escuro e as testemunhas não puderam dar nenhuma descrição, exceto de que o veículo era um Land Rover.
- Mas conseguiremos marcas dos pneus. Já é um começo - disse George, esquecendo-se de sua irritação com Lucas e com o Daily News em sua animação.
Lucas balançou a cabeça.
- Infelizmente não, senhor. O lugar onde o Land Rover esteve no dia do desaparecimento é o mesmo em que estacionamos nossas viaturas durante todo o dia e a noite de ontem. Ao lado da capela metodista.
- Que merda - disse George.
Tommy Clough bebericava uma caneca de chá e fumava devagar quando George chegou ao centro de operações.
- Bom-dia, senhor - disse ele, sem se dar ao trabalho de se levantar.
- Ainda aqui? - perguntou George. - Pode ir embora agora, se quiser. Deve estar exausto.
- Não estou pior do que o senhor estava ontem. Se for possível, eu gostaria de ficar. É meu último dia no turno da noite, de modo que gostaria de me acostumar a ir para a cama no horário certo. Eu poderia ajudar, se for preciso interrogar os moradores daqui. Já vi a maior parte deles e já recolhi uma boa parte de suas histórias.
George pensou por um momento. O rosto normalmente avermelhado de Clough estava mais pálido que o habitual, a pele em torno de seus olhos parecia inchada, mas os olhos permaneciam alertas e o homem possuía um conhecimento sobre o local que lhe faltava. Além disso, já era hora de estabelecer uma parceria de trabalho um pouco mais profunda com um de seus três sargentos.
- Tudo bem, mas se você começar a bocejar quando alguma velhinha decidir lhe contar a história de sua vida, irá direto para casa.
- Ótimo, senhor. Por onde quer começar?
George foi até uma das mesas e puxou um bloco de papel, dizendo:
- Um mapa. Quem mora onde e quem é quem. É por onde quero começar.
George coçou a cabeça.
- Suponho que você não conhece os laços de parentesco entre todos? - perguntou, fitando o mapa que Tommy Clough desenhara.
- Não - confessou. - Além do óbvio, como o fato de Charlie ser o caçula de Terry e Diane. Mike Lomas é o filho mais velho de Robert e Christine. Temos também Jack, que mora com eles, e o casal tem duas filhas: Denise, casada com Brian Carter, e Angela, casada com um chacareiro lá para os lados de Three Shires Head.
- Já chega - gemeu George, levantando a mão. - Uma vez que você demonstra um talento natural para isto, está encarregado da genealogia de Scardale. Lembre-me sempre da casa em que moram e quem são, quando eu precisar. Neste momento, tudo o que quero saber é onde Alison se encaixa aí.
Tommy lançou os olhos para cima, como se tentasse imaginar a árvore da família.
- Muito bem, esqueça os primos em primeiro, segundo ou terceiro graus. É melhor ficarmos apenas com o parentesco mais imediato. De algum modo, Mamãe Lomas é bisavó da menina. O pai, Roy Carter, era irmão de David e de Ray. Pelo lado da mãe, ela era uma Crowther. Ruth é irmã de Daniel e também da esposa de Terry Lomas, Diane. - Clough apontou para as casas relevantes no mapa. - Mas todos estão unidos por algum laço de parentesco.
- Mas de vez em quando deve haver sangue novo! - protestou George. - De outro modo, todos seriam idiotas e retardados!
- Realmente, temos um ou dois "estrangeiros" para diluir essa mistura. Cathleen Lomas, esposa de Jack, veio de Longnor. E John Lomas casou-se com uma mulher lá dos lados de Bakewell. Durou o suficiente para que ela tivesse Amy, antes de se mandar para algum lugar onde pudesse assistir a Coronation Street e sair para um drinque sem precisar de todo um planejamento logístico para isso. E, é claro, temos Philip Hawkin.
- Sim, não devemos esquecer o senhor das terras - disse George, pensativo. Suspirou e levantou-se. - Talvez fosse útil descobrir um pouco mais sobre ele. Ele veio de St. Albans, não é? - Pegou seu bloco de anotações e escreveu um lembrete. - Não me deixe esquecer de investigar isto. venha, Tommy. Vamos dar mais uma espiada em Scardale.
nan Carter limpou as tetas da próxima vaca na fila e, com surpreendente Sentileza, fixou a máquina de ordenha em seu úbere. Ainda faltavam algumas horas para raiar o dia quando ele deixou a cama quente que dividia com sua nova esposa, Denise, na Casa da Ribanceira, a construção de dois quartos, onde Alison Carter nascera em uma noite chuvosa de 1950. Marchando pela aldeia silenciosa com seu pai, não pudera evitar o pensamento amargo de que o desaparecimento de sua prima já mudara seu mundo.
Sua vida sempre havia sido simples e descomplicada. Em Scardale, eram todos muito unidos e contavam apenas uns com os outros. Habituara-se a ser xingado na escola e, mais tarde, nos bares, quando os freqüentadores já haviam enchido a cara. Conhecia todas as velhas e cansativas piadas sobre casamentos com parentes e rituais secretos de magia negra, mas aprendera a ignorá-las e a seguir com sua vida.
Durante o dia, trabalhava-se na terra em Scardale, e, quando não havia mais luz, ainda estavam ocupados. As mulheres fiavam lã, tricotavam ceroulas, faziam xales de crochê, cobertores e roupinhas de bebês, conservas e molhos picantes, coisas que poderiam vender no mercado da Cooperativa das Mulheres, em Buxton.
Os homens faziam reparos dentro e fora dos prédios. Também trabalhavam com madeira. Terry Lomas fazia belas tigelas de madeira torneada, elegantes e lustrosas, com espessura escolhida de acordo com a complexidade dos padrões. Ele as enviava para um centro de artesanato em Londres, onde eram vendidas por somas que pareciam absurdas para todos os outros moradores da aldeia. O pai de Brian, David, confeccionava brinquedos de madeira para uma loja de Leek. Não teriam tempo para loucos rituais pagãos sobre os quais os beberrões ingênuos especulavam nos bares de Buxton, mesmo supondo que qualquer um se interessasse por tais atividades. A verdade era que, em Scardale, todos trabalhavam demais para ter tempo para qualquer coisa exceto comer e dormir.
Havia pouca necessidade de contato com o mundo externo, em termos do dia-a-dia. A maior parte do que consumiam era produzida ali mesmo - carne, batatas, leite, algumas frutas e alguns vegetais. Mamãe Lomas fazia vinho de flor e bagas de sabugueiro, de urtiga, dentes-de-leão, de seiva de vidoeiro, ruibarbo, groselha e tojo. Se algo crescia, ela fermentava. Todos bebiam, e até as crianças recebiam uma taça de vez em quando, para fins medicinais. Às terças-feiras, aparecia sempre uma caminhoneta trazendo neixes e verduras. Outra caminhoneta vinha de Leek às quintas-feiras, vendendo alimentos em geral. Qualquer outra coisa necessária era comprada no mercado de Leek ou em Buxton, por qualquer um que fosse até lá vender seus produtos ou animais.
Tivera dificuldade com a transição enfrentada ao deixar de ir à escola, quando saía do vale cinco dias por semana, e se tornar um adulto, trabalhando na terra e às vezes permanecendo em Scardale um mês inteiro. Não havia sequer televisão para perturbar o ritmo da vida. Ele se lembrou de quando o velho senhor Castleton voltou de Buxton com um aparelho de TV que havia comprado para a Coroação. Seu pai e seu tio Roy montaram a antena e toda a aldeia se reunira na sala do dono do solar. Com um floreio, o velho ligara o aparelho e todos haviam assistido, abestalhados, a uma tempestade de chuviscos. Por mais que David e Roy mexessem na antena, tudo o que aquela coisa fazia era chiar como gordura jogada ao fogo, e tudo o que viam era interferência. O único tipo de interferência que qualquer um em Scardale já conseguira suportar.
Tudo mudara. Alison desaparecera e, de repente, suas vidas pareciam pertencer a todos. A polícia, os jornais, todos queriam respostas para suas perguntas, fossem ou não de sua conta. E Brian sentia-se como se não tivesse defesas naturais contra tal invasão. Sentia vontade de agredir alguém, mas não havia ninguém à mão.
Ainda estava escuro quando George e Clough chegaram aos limites da aldeia. A primeira luz que viram vinha de uma porta de estábulo entreaberta.
- Podemos começar por aqui - disse George, estacionando na beira da estrada. - Quem será que encontraremos? - perguntou, enquanto percorriam os poucos metros de concreto enlameado até a porta.
- Provavelmente Brian e David Carter - disse Clough. - Os dois criam gado.
Os dois homens no estábulo não puderam ouvir sua aproximação, em Virtude do ruído pesado da máquina de ordenhar. George esperou que eles se voltassem, assimilando os odores estranhamente doces de estérco, animais suados e leite, observando enquanto os homens lavavam as tetas de cada vaca antes de fixarem a ordenhadeira a seus úberes. Finalmente, o mais velho voltou-se. A primeira impressão de George foi de que os olhos vigilantes de Ruth Hawkin haviam sido transplantados para uma estátua da Ilha de Páscoa. O rosto do homem era cheio de planos e ângulos, com bochechas como lajes e órbitas como entalhes em cera rosada.
- Alguma novidade? - perguntou ele em voz alta, para ser ouvido sobre o ruído da máquina.
George negou com a cabeça.
- Vim para me apresentar. Sou o detetive-inspetor George Bennett. Estou no comando da investigação.
Enquanto caminhava na direção do homem mais velho, o mais jovem parou o que estava fazendo e encostou-se nas ancas volumosas de uma das vacas holandesas com braços cruzados junto ao peito.
- Sou David Carter - disse o homem mais velho. - Tio de Alison. E este é meu filho Brian. - Brian Carter balançou a cabeça num cumprimento curto. Tinha o rosto do pai, mas seus olhos eram estreitos e claros, como cacos de topázio. Não teria muito mais que vinte anos, mas a boca voltada para baixo parecia ter sido talhada em pedra.
- Eu queria dizer que estamos empenhados em descobrir o que aconteceu com Alison - falou George.
- Mas ainda não a encontraram, não é? - perguntou Brian, em tom tão duro quanto sua expressão.
- Não. Tão logo amanheça, recomeçaremos as buscas, e se vocês quiserem colaborar conosco serão bem-vindos. Entretanto, não é por isto que estou aqui. Não posso evitar o pensamento de que a resposta para o que aconteceu com Alison está em algum lugar de sua vida. Não acredito que a pessoa que fez isso agiu irrefletidamente. Foi planejado, e isto significa que alguém deixou alguma pista. Quer vocês saibam ou não, alguém nesta aldeia viu algo, ou ouviu algo, que nos dará um rumo. Vou conversar com o povo da aldeia hoje e direi o mesmo a todos que encontrar. Preciso que tentem recordar qualquer coisa fora do comum, como, por exemplo, se viram algum estranho por aqui.
Brian fungou, parecendo-se surpreendentemente com uma de suas vacas.
- Se vocês procuram por algum estranho, não precisam ir muito longe.
- Em quem você está pensando? - perguntou George.
- Brian - alertou o pai.
Brian fez uma carranca e remexeu no bolso do macacão em busca de cigarros.
- Pai, ele não é daqui. Nunca será.
- De quem estamos falando? - insistiu George.
- De Philip Hawkin, ora! - resmungou Brian, com a boca cheia de fumaça. Levantou a cabeça e olhou desafiador para a parte posterior da cabeça do pai.
- Você não está sugerindo que o padrasto de Alison teve algo a ver com o desaparecimento, está? - perguntou Clough, com uma ponta de desafio em sua voz que, na opinião de George, Brian Carter consideraria irresistível.
- Você não perguntou isso. Perguntou sobre forasteiros. Bem, ele não é daqui. Desde que apareceu só tem se intrometido em tudo, tentando dizer-nos como cuidar de nossa terra, como se ele fizesse isso há gerações. Ele acha que é especialista, só porque leu algum livro ou panfleto. E o modo como cortejou minha tia Ruth. Não a deixava em paz. O jeito foi casar com ele para acabar com a perseguição - desabafou Brian.
- Achei que não se importava - disse o pai, sarcástico. - Se Ruth e Alison não tivessem saído da Casa da Ribanceira, você e Denise teriam de começar suas vidas de casados em seu quarto de solteiro. Não sei quanto a você, mas estou contente por não ouvir a cabeceira batendo na parede quase a noite inteira.
Brian ruborizou-se e olhou furioso para o pai.
- Deixe Denise fora disso. Estávamos falando sobre Hawkin. E você sabe tão bem quanto eu que o lugar dele não é aqui. Não aja como se não Passasse metade de cada dia resmungando sobre o inútil que ele é e como desejaria que o antigo proprietário tivesse mais juízo e não deixasse a terra Para um forasteiro como Hawkin.
- Isso não significa que o homem teve algo a ver com o sumiço de Alison - falou David Carter, esfregando o queixo em um gesto claramente
familiar de exasperação.
- Seu pai tem razão - disse George, com suavidade.
8
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 12h45
Quatro horas depois, George achava que havia visto todas as evidências de hereditariedade que precisaria durante toda sua vida. Os sobrenomes podiam variar, de acordo com linhas genealógicas rígidas, mas as características físicas pareciam espalhadas aleatoriamente. A face de laje de David Carter, o nariz aquilino de Mamãe Lomas, os olhos felinos de Janet Carter repetiam-se em várias combinações, juntamente com outros traços igualmente distintivos. George sentia-se como uma criança brincando com um daqueles livros nos quais as páginas são divididas horizontalmente e o leitor mistura e combina olhos, narizes e bocas.
O que o povo de Scardale também tinha em comum era sua confusão completa acerca do desaparecimento de Alison. Como Clough já previra, poucos se dispunham a oferecer até mesmo o pouco que Brian Carter lhes dera. A maior parte das conversas era um esforço inútil. George apresentava-se e proferia seu pequeno discurso. Os moradores pareciam pensativos e então sacudiam as cabeças. Não, nada de incomum acontecera. Não, não haviam visto nenhum estranho. Achavam que ninguém do vilarejo tocaria em um fio de cabelo de Alison. E por falar nisso, Charlie Lomas era um menino bom como nenhum outro e não merecia ser tratado como um criminoso.
O único ponto de interesse era que ninguém apontara o dedo para o Proprietário das terras. Nem uma palavra de queixa foi dita sobre o homem, nenhuma voz levantou-se contra ele. A verdade é que ninguém o elogiava, mas, no fim da manhã, seria tentador pensar que Brian Carter era a única pessoa em Scardale que encontrava motivos para criticar Philip Hawkin.
Finalmente, George e Clough voltaram de mãos vazias para o trailer, onde só encontraram uma policial que saltou para preparar-lhes chá tão logo entraram.
- Você estava errado.
- Perdão? - Clough abriu seu maço de cigarros e retirou um para George sem se dar ao trabalho de perguntar se ele queria.
- Você disse que ouviríamos muitas reclamações contra Hawkin, mas ninguém o criticou, a não ser Brian Carter, aquele jovem esquentado.
Clough pensou por um momento, com uma ruga franzindo sua testa ampla como a superfície de um pudim de caramelo.
- Talvez por isso mesmo. Ele é jovem o bastante para pensar que, em um caso como esse, o fato de Hawkin ser um forasteiro é importante. Os outros têm juízo suficiente para compreender que há muita diferença entre não gostar de alguém porque ele quer lhe ensinar como cuidar da terra e suspeitar que raptou uma criança.
George tomou um gole de seu chá, com cuidado. Não tão quente a ponto de escaldá-lo. Bebeu metade da xícara para aliviar a garganta seca; independentemente de qualquer outra característica, o povo de Scardale não era generoso com suas bebidas quentes. Haviam chegado à cozinha de Diane Lomas enquanto ela saboreava um bule de chá, sentada à mesa, e em nenhum momento a mulher lhes ofereceu uma xícara.
- Talvez, mas não quero me esquecer de que esta é uma comunidade bastante unida. O tipo de lugar em que pensam que linchamento é o melhor modo de lidar com suas dificuldades. Pode ser que achem que Hawkin está por trás disso e somos estúpidos demais para o pegarmos. Acontece que podem achar que o melhor modo de lidar com ele é esperar até desistirmos de Alison e irmos embora. Então acontece um acidente horrível na fazenda e adeus, senhor Hawkin. Isto me traz dois problemas. O primeiro é que não há razão, exceto pelo preconceito, para suspeitarmos que Philip Hawkin teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. O segundo é que não quero o sangue dele em minhas mãos, esteja ou não envolvido.
Clough parecia respeitosamente cético:
- Se o senhor não fosse meu chefe, eu diria que está assistindo a muita televisão, mas conhecendo-o um pouco, eu diria que esta idéia é interessante.
George lançou-lhe um olhar duro.
- É uma idéia que manteremos em mente, sargento - foi tudo o que disse. Levantou sua caneca para mostrá-la à policial. - Tem mais um pouco?
Antes que ela pudesse servi-lo novamente, a porta se abriu e Peter Grundy entrou. O policial de Longnor balançou a cabeça, satisfeito, ao dizer:
- Achei que estaria aqui. Há uma mensagem do inspetor-chefe Carver. Poderia ligar para ele em Buxton, com a máxima urgência?
George levantou-se, pegando o chá. Engoliu a maior parte dele em segundos e fez um sinal para Clough.
- Podemos ir até o centro de operações - disse, rumando para seu carro.
De repente, a porta de um Ford Anglia abriu-se em seu caminho e a cabeça ruiva de Don Smart projetou-se.
- Bom-dia, inspetor - disse, animado. - Ainda nada? Algo a relatar? Eu esperava vê-lo na coletiva das dez da manhã, como você disse ontem, mas é claro que teve coisa melhor a fazer.
- Isso mesmo - disse George, desviando-se da porta do carro. - Os policiais com quem você falou em Buxton esta manhã estavam plenamente atualizados sobre a situação.
- Leu nossa matéria?
- Estou no meio de uma grande investigação, senhor Smart. Se deseja algum comentário da polícia de Derbyshire, terá de seguir os canais apropriados. Agora, se me der licença...
O sorriso de predador de Smart apareceu.
- Se não deseja considerar com seriedade minha sugestão sobre a ligação com os outros casos... Já pensou em contratar um vidente?
George franziu a testa.
- Vidente?
- Um vidente poderia apontar-lhe a direção certa. Concentrá-lo em um rumo, em vez de terem de espalhar tanto suas buscas.
George sacudiu a cabeça, perplexo.
Eu lido com fatos, senhor Smart, não com manchetes de jornal. - We deu alguns passos rápidos, afastando-se do jornalista, e então se voltou para ele outra vez. - Se realmente deseja fazer algo por Alison Carter, em vez de por sua própria carreira, por que não imprime uma fotografia dela?
- Devo entender que não descobriram nada de novo? - perguntou Smart a Clough, enquanto George seguia para seu carro.
- Por que não some daqui e volta para Manchester? - sugeriu Clough, em voz baixa, mas firme, o rosto franco e sorridente. Sem esperar para ver o efeito de suas palavras, ele seguiu George.
- Só porque se chama Smart,
ele pensa que é esperto - disse George, amargamente, enquanto o carro seguia pelo vale. - Isso me enoja, porque não é uma oportunidade para subir na carreira. O que está em risco aqui é a vida de uma menina.
- Ele nem mesmo pensa nisso. Se pensasse, nunca conseguiria escrever a matéria - observou Clough.
- Seria melhor para todos - disse George. Ainda estava tenso de irritação quando entrou no salão da igreja metodista e seguiu direto para a mesa mais próxima com um telefone. Inclinou-se sobre o policial que o usava, batendo a ponta de um Gold Leaf apagado contra o maço. O policial deu-lhe uma rápida olhada e o branco de seus olhos traiu seu nervosismo.
- Isso é tudo, senhora, muito obrigado - balbuciou ele, levando a mão ao gancho para cortar a chamada mesmo antes de terminar de falar. - Aqui está, senhor - acrescentou, estendendo o telefone para George com apreensão.
- Aqui é o detetive-inspetor Bennett para o inspetor-chefe Carver - disse George, rapidamente.
Houve uma pausa e, então, ouviu o sotaque anasalado e interiorano de seu chefe:
- Bennett? É você?
- Sim, sou eu. Recebi o recado de que o senhor queria falar comigo.
- Demoraram para chamá-lo - reclamou Carver. George já havia descoberto que, após quase trinta anos como policial civil, Carver elevara a queixa a uma forma de arte. George passara seu primeiro mês em Buxton pedindo desculpas e seu segundo mês apaziguando. Depois, percebera
Início de Nota de Rodapé: Smart, em inglês, significa "esperto". Fim da Nota de Rodapé.
como todos lidavam com as queixas de Carver e também aprendeu a ignorá-las.
- Houve algo novo, senhor?
- Você deixou instruções para a turma do dia com o sargento Lucas -
acusou-o Carver.
- Sim, deixei.
- Cercar os suspeitos habituais geralmente é perda de tempo para todos os envolvidos.
George aguardou, calado. A raiva de seu encontro com Smart estava represada por trás de uma parede de imperturbabilidade profissional, mas, graças às reclamações de Carver, o peso de sua fúria chegava a um ponto crítico. A última coisa que precisava em sua carreira era que sua raiva explodisse sobre a cabeça de Carver, por isso respirou fundo, liberando lentamente o ar pelo nariz.
- Desta vez, porém, talvez tenhamos conseguido alguma coisa - continuou Carver. As palavras mal-humoradas vieram com lentidão enervante. Parecia que seu chefe teria preferido um fracasso, pensou George, com amargura incrédula.
- É mesmo, senhor?
- Acontece que temos um suspeito. Exposição indecente para jovens garotas. Roubo de roupas íntimas de varais. Nada muito terrível e nada muito recente - acrescentou Carver, em um parêntese insatisfeito. - Contudo, o interessante sobre este idiota em particular é que é tio de Alison Carter.
A boca de George abriu-se.
- Tio? - conseguiu dizer, após um momento.
- Peter Crowther.
George engoliu com força. Nem mesmo sabia que existia um Peter Crowther.
- Posso comparecer ao interrogatório, senhor?
- E por que acha que liguei? Estou sofrendo como um cão com este tornozelo. Além disso, não creio que vá causar grande impressão em Crowther se entrar como um saci-pererê. Faça o favor de vir imediatamente.
- Sim, senhor.
- Outra coisa, Bennett.
- Sim?
- Traga-me peixe e batatas fritas, sim? Não agüento mais a comida da cantina. Dá uma bruta indigestão.
George desligou, sacudindo a cabeça. Acendeu um cigarro, olhando com o canto dos olhos a sala quase às suas costas. Clough estava encostado negligentemente em uma mesa, examinando um dos mapas fixados na parede. Grundy hesitava perto da porta, incerto quanto a ir ou ficar. Então, chamou-os, através da fumaça em sua boca:
- Clough, Grundy. Pro carro, agora. Vamos a Buxton.
As portas mal haviam se fechado quando George voltou-se em seu banco, olhou fixamente para Grundy e disse:
- Peter Crowther.
- Peter Crowther, senhor? - Grundy tentava fingir inocência, mas os olhos nervosos o traíam.
- Sim, Grundy. O tio de Alison, aquele com passagem pela polícia por atentado ao pudor. Esse Peter Crowther - falou George, com sarcasmo, pisando fundo no acelerador e os empurrando contra os assentos com o impulso, enquanto corria pela estrada, rumo a Longnor.
- O que tem ele, senhor?
- Como é que só ouço falar sobre o homem quando meu chefe o menciona? Como é que com todo seu conhecimento sobre o povo daqui você não me falou dele? - o sarcasmo fora abandonado e a voz de George tinha a gentileza aduladora de um professor sádico que tranqüiliza seus alunos incautos com uma falsa segurança, antes de lhes cortar os joelhos.
- Achei que não era relevante. Quer dizer, ele mora em Buxton, acho que há mais de vinte anos. Nem me passou pela cabeça - falou Grundy, com as orelhas vermelhas.
- Por isso você ainda é um simples policial, Grundy - disse Clough, virando-se em seu assento e dando ao homem o olhar insolente e duro que já levara um número perturbador de prisioneiros à violência, mais que duplicando as sentenças por seus crimes originais. - Você não pensa.
- Isso é verdade, Clough, mas não é preciso ter um cérebro para ficar marcando tempo no meio de uma rua na cidade de Derby durante anos - disse George, com o tom mais angelical que encontrou. - Policiaizinhos de aldeias, porém, deveriam ser capazes de pensar sozinhos. Grundy, a menos que você realmente deseje ser designado para um outro trabalho, sugiro que use os quilômetros que faltam até Buxton para nos contar tudo que sabe sobre Peter Crowther.
Grundy esfregou uma sobrancelha com a junta do dedo indicador.
- Peter Crowther é irmão de Ruth Hawkin - disse, como um homem que precisa pensar em um difícil problema de aritmética. - Diane é a mais velha, e se casou com Terry Lomas. Depois vem Peter, depois Daniel e, finalmente, Ruth. Peter deve ser uns dez anos mais velho que Ruth. Acho que anda pelos quarenta e cinco anos. Nunca o conheci realmente, já que saiu de Scardale bem antes de eu me tornar o policial encarregado da aldeia em Longnor, mas já ouvi falar dele. Parece que não é boa coisa. Seu irmão Daniel o mantinha na linha quando Peter ainda morava em Scardale, mas algo aconteceu... Não sei o quê, ninguém fora de Scardale sabe, e eles decidiram que não o queriam mais na aldeia. Assim, o despacharam para Buxton. Ele mora em um hotel para solteiros perto do campo de golfe, em Waterswallows, e trabalha naquela oficina para deficientes atrás do pátio da estrada de ferro, aquela que faz abajures e cestos para papel. Eu sabia que ele já havia sido preso por espiar mocinhas, mas achei que isso era passado.
George suspirou pesadamente.
- Você sabia tudo isto sobre Peter Crowther e nunca lhe passou pela cabeça mencionar?
Grundy mudou seu peso de uma nádega para a outra.
- Vocês entenderão quando o virem. O sujeito tem medo da própria sombra. Acho que não seria capaz de abordar ninguém, menos ainda raptar uma menina.
- Mas ele não teria de levá-la à força, não é? - interveio Clough, com sarcasmo cortante e gelo nos olhos azuis. - Ele era tio de Alison. Ela não teria medo. Se ele dissesse "Ei, querida, tenho um par de patins que lhe servem, quer vir experimentá-los?", ela não teria pensado duas vezes antes de acompanhá-lo. Tio Peter podia ser um pouquinho estranho, mas não era um desconhecido, não é, policial Grundy? - ele conseguiu fazer com que o Posto do outro soasse como um insulto.
- Crowther não teria coragem - teimou Grundy. - Além disso, quando eu disse que não o queriam no vale, falei sério. Tanto quanto eu saiba, Peter Crowther não voltou a Scardale nesses últimos vinte anos. E ninguém de Scardale o visita. Duvido que pudesse reconhecer Alison se passasse por ela na rua.
- Veremos - resmungou Clough, com expressão tão tensa quanto os olhos, estreitados pela fumaça de seu cigarro.
Janet Carter pediu e suplicou para não ir à escola logo após o desaparecimento de Alison. Seria melhor ter poupado seu fôlego. Em 1963, não se permitia que crianças tivessem vontades. Os adultos lhes contavam todo tipo de histórias, pensando que assim as protegeriam. O pior crime, na mente adulta, era a perturbação da rotina, já que nada serviria como um sinal melhor para a geração mais jovem de que algo estava muito errado. Assim, o mundo podia estar prestes a terminar no vale, mas Janet e seus primos ainda teriam de ser levados até o fim da estrada e mandados à escola, como se fosse um dia como outro qualquer.
Contudo, ao chegar à escola na manhã seguinte ao desaparecimento de Alison, as coisas revelaram-se inesperadamente excitantes. Para começo de conversa, Janet tornou-se o centro das atenções. Todos sabiam que sua prima havia desaparecido. Policiais entrevistavam colegas e professores de Alison. Havia apenas um assunto nas conversas durante o intervalo, e Janet vivera de perto os acontecimentos. De certo modo, portanto, tornara-se uma celebridade. Isto foi o bastante para fazê-la esquecer-se do terror que a mantivera acordada metade da noite, imaginando onde Alison estaria e o que lhe havia acontecido.
Havia uma espécie deliciosa de medo no ar, a sensação de que algo proibido acontecera, algo cuja importância nenhuma das crianças poderia compreender. Mesmo aquelas que viviam em fazendas. Elas sabiam o que os animais faziam, mas pareciam ainda não ter extrapolado aquilo para a espécie humana. Naturalmente, já tinham ouvido falar que alguém "mexera" com uma menina, mas ninguém sabia o que isto significava exatamente, exceto que tinha algo a ver com "lá embaixo" e com o tipo de coisa que acontecia se uma garota deixasse o menino "ir longe demais". Apesar disso, ninguém ali tinha a mínima idéia do quanto seria "longe demais".
Portanto, a atmosfera na escola Peak Girls
High tornou-se altamente carregada quando Alison Carter desapareceu. Embora a maioria de suas colegas também estivesse assustada, ansiosa e quase tão abalada quanto a própria Janet, algo nelas agitava-se de um modo agradável, ainda que soubessem que não deveriam sentir-se assim. Com todas essas emoções, quinta e sexta-feira haviam sido dias extremamente cansativos na escola. Quando a campainha anunciou o fim das aulas, tudo em que Janet podia pensar era em chegar em casa e deixar que a mãe a mimasse com uma xícara de chá.
Assim, ela tinha pouca reserva de energia para o choque recebido ao entrar no ônibus escolar. O motorista estava contando que o tio de Alison estava na delegacia, sendo interrogado. A reação de Janet foi imediata. De repente, pareceu encerrar-se em si mesma. Estava sentada no primeiro banco, onde sempre sentara-se com Alison, tão perto do motorista quanto se podia estar.
- Que tio? - perguntou Derek.
O motorista tentou fazer o tipo de piada costumeira sobre o parentesco de todos em Scardale, mas percebeu que Janet não estava no clima para aquilo. Disse apenas:
- Peter Crowther. Janet franziu a testa.
- Deve ser algum outro Crowther, não alguém de Scardale. Alison não tem um tio chamado Peter.
- Bom, isso é o que vocês pensam - disse ele, piscando um olho. - Peter Crowther é o irmão maluco da mãe de Alison. Aquele que foi expulso de Scardale.
Janet olhou para Derek. que encolheu os ombros, tão perplexo e confuso quanto ela. Nunca havia escutado uma palavra sequer sobre um segundo irmão Crowther. Seu nor.e nunca fora mencionado.
Durante todo o trajeto até o começo da estrada para Scardale, o motorista continuou falando sobre Peter Crowther, contando que o homem vivia em um albergue e trabalhava em uma oficina para pessoas que não estavam ainda suficientemente loucas para serem trancadas em um hospício. Disse-lhes que ele parecia ter algum segredo horrível em seu passado e que, agora, a polícia achava que dera um fim a Alison. Janet concentrou-se na parte de trás do pescoço grosso e vermelho do motorista, desejando que ele morresse.
Porém, mais que isso, desejava saber a verdade. Seu pai esperava-os no começo da estrada havia dez minutos. Ninguém mais em Scardale estava disposto a dar chances ao azar. A primeira coisa que Janet disse quando a porta do ônibus fechou-se às suas costas foi:
- Pai, quem é Peter Crowther? E o que ele fez?
Ray Carter, sendo um homem honesto, contou-lhe. E então a menina desejou que não tivesse contado.
Pelo menos sobre uma coisa Grundy estava certo, pensou George, encostado na parede da sala de interrogatório. Peter Crowther tinha medo da própria sombra. E da sombra de qualquer outra pessoa. A primeira coisa a surpreendê-lo quando o homem entrou na sala abafada foi o odor pungente de seu medo, um cheiro bastante diferente do fedor azedo de seu corpo magro e imundo.
- Vamos fumar um cigarro atrás do outro - havia murmurado Clough, com o nariz franzido ao enfrentar a emanação fétida de Peter Crowther.
- O quê? - resmungara George em resposta, enquanto permaneciam na soleira da porta, medindo deliberadamente o homem com seus olhares, para meter-lhe ainda mais medo.
- Precisamos fumar um cigarro atrás do outro. Se não, acabaremos vomitando - esclareceu Clough.
George assentiu.
- Comece - disse ele, movendo-se para colocar-se contra a parede e permitir que Clough se ajeitasse na cadeira de frente para Crowther. George fez um sinal de cabeça para a porta e o policial fardado que estivera de guarda saiu, com um olhar de alívio.
- Tudo bem, Peter? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente e apoiando-se nos cotovelos.
Peter Crowther pareceu encolher-se ainda mais para dentro de si mesmo. Sua cabeça tinha a cor e o formato de uma cunha de queijo pairylea - decidiu George. Queijo Dairylea com agrião germinando em cima. Estranhou que o homem parecesse tão oleosamente pálido e fedesse tanto. Não parecia realmente sujo. Seu queixo pontudo e bem barbeado estava quase enfiado em seu tórax e seus olhos de gato voltavam-se para Clough. O homem poderia ter servido como a definição ilustrada de "submissão". Não respondeu nada à pergunta de Clough, embora seus lábios se movessem, formando palavras silenciosas.
- Mais cedo ou mais tarde você terá de falar comigo, Peter - disse Clough, confiante, levando a mão ao bolso e tirando seus cigarros dali. Acendeu um e, de modo casual, soprou a fumaça na direção de Peter Crowther, que franziu o nariz e inalou profundamente, enquanto ele continuava: - Melhor que seja mais cedo. Portanto, conte-nos: o que o levou a voltar a Scardale quarta-feira?
Crowther enrugou a testa, parecendo verdadeiramente confuso. Qualquer que fosse o motivo para sentir-se culpado, não parecia envolver Scardale.
- Peter nunca - disse ele, com a entonação ascendente indicando dúvida, em vez da bazófia do verdadeiro culpado. - Peter mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17. Peter não mora mais em Scardale.
- Sabemos disso, Peter. Mas você voltou a Scardale quarta-feira à noite. Não há por que negar, já que sabemos que esteve lá.
Crowther tremeu.
- Peter nunca. - Desta vez, a voz soou firme. - Peter não pode voltar a Scardale. Não deixam. Ele mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17.
- Quem disse que não deixam?
- Nosso Dan. Ele diz que corta as mãos de Peter se Peter colocar os pés em Scardale outra vez. Então Peter não vai lá, entende? Será que Peter Poderia fumar?
- Em um minuto - disse Clough, soprando negligentemente mais fumaça em sua direção. - E quanto a Alison? Quando foi a última vez que a viu?
Crowther levantou os olhos, com expressão perturbada e confusa.
- Alison? Peter não conhece nenhuma Alison. Há uma Ângela que trabalha ao lado dele e coloca as franjas nos abajures. É Ângela que o senhor quer dizer? Peter gosta dela. Angela tem uma jaqueta de couro. Ela a tirou de seu irmão. Ele trabalha no curtume em Whaley Bridge. O irmão de Angela, quero dizer. Peter trabalha com Angela. Peter faz as armações dos abajures.
- Alison. Sua sobrinha Alison. Filha de sua irmã Ruth - disse Clough, com firmeza.
Ao som do nome da irmã, Crowther pareceu ter um espasmo. Seus joelhos ergueram-se na direção de seu peito e ele abraçou com força as pernas.
- Peter nunca. - Soluçou. - Peter nunca!
George moveu-se para a frente e encostou os punhos fechados na mesa.
- Você não sabia que Ruth tem uma filha? - perguntou, com gentileza.
- Peter nunca - repetiu Crowther, como um mantra.
George sinalizou discretamente para Clough, pedindo-lhe que fosse com calma. O sargento encostou-se na cadeira e dirigiu a fumaça para o teto. George tirou seus próprios cigarros do bolso, acendeu um e o estendeu para Crowther, que agora tremia inteiro e continuava a murmurar "Peter nunca. Peter nunca", levando alguns segundos para perceber a oferta. Então olhou com suspeita para o cigarro e, depois, para George. Com uma das mãos pegou o cigarro com a rapidez de uma serpente. Ele manteve o cigarro protegido dentro de sua mão, com a ponta presa entre o polegar e o indicador, como se esperasse que o roubassem. Inalou-o em rápidas baforadas, enquanto os olhos iam para lá e para cá, entre George, Clough e o cigarro.
- Quando foi a última vez que você falou com alguém de Scardale, Peter? - indagou George baixinho, sentando-se perto de Clough.
Crowther sacudiu os ombros, tenso.
- Não sei. Às vezes, Peter vê um parente no mercado, aos sábados, mas os parentes não falam com Peter. Uma vez, no verão, Peter estava na papelaria, comprando cigarros, e nossa Diane entrou. Ela cumprimentou com a cabeça, mas não disse nada. Acho que queria, mas sabia que, se fizesse isso, nosso Dan machucaria Peter. Dan sempre assusta Peter. Por isso Peter nunca volta a Scardale.
- E você não sabia mesmo que Ruth tinha uma filha? - perguntou Clough, o cético.
O rosto de Crowther contraiu-se em torno do cigarro, como se em um espasmo intenso.
- Peter nunca - gemeu. Inclinou-se para a frente sobre os joelhos e
começou a balançar-se. - Peter nunca.
George olhou para Clough e sacudiu a cabeça. Levantou-se e foi em direção à porta.
- Pediremos que alguém lhe traga uma xícara de chá, Peter - falou,
sendo seguido por Clough até o corredor. - Ele está escondendo algo - disse George, confiante.
- Talvez, mas acho que não tem nada a ver com Alison.
- Não estou tão certo. Não ousarei dizer nada até saber por que sua família o expulsou de Scardale. Seja qual for a razão, deve ter sido bem ruim, já que mesmo depois de vinte anos a irmã ainda não fala com ele, nem de passagem.
- Quer que fique detido, então? - perguntou Clough, incapaz de esconder a dúvida em sua voz.
- Ah, certamente. É o lugar mais seguro para ele, não acha? - disse George, voltando um pouco a cabeça, enquanto seguia para o escritório do departamento de investigações. - O inspetor-chefe Carver está convencido de que este é o nosso culpado, e apenas a minha opinião não o fará mudar de idéia. Além disso, uma delegacia nunca consegue manter segredos. Antes do fim do dia, metade da cidade saberá que Peter Crowther está sendo interrogado sobre o desaparecimento de Alison. Acho que o albergue Water-swallows número 17 não é o melhor lugar para ele nessas circunstâncias.
Ele empurrou a porta e contemplou o inspetor-chefe, que tinha a perna engessada apoiada em um cesto de papéis e o jornal à sua frente. Toda a sala ainda retinha o aroma inconfundível de peixe e batatas fritas encharcados com vinagre e embrulhados em jornal.
- Já conseguiram fazer com que dissesse onde a menina está? - perguntou Carver, autoritário.
- Acho que ele não sabe, senhor - disse George, esperando que sua voz não denunciasse seu abatimento.
Carver emitiu um ronco de desagrado.
- É isso que uma formação universitária faz por você? Inacreditável, - dou-lhes até amanhã de manhã para que façam aquele infeliz recitar tudinho o que desejamos. - Ele se controlou e indagou: - Ele ainda está na Cadeia, não está? Não o liberaram, por acaso...
- O senhor Crowther ainda está sob custódia.
- Bom. Vou para casa agora, está tudo em suas mãos. Se não extraírem a verdade do sujeito até de manhã, eu assumirei com pé engessado e tudo Ele acabará cuspindo uma confissão, acreditem. Cuspirá para mim.
- Tenho certeza que sim, senhor. Agora, se me dá licença, preciso voltar a Scardale. - George retirou-se antes que Carver pudesse oferecer algum outro insulto à sua capacidade profissional.
- Vamos mesmo? - perguntou Clough, seguindo George até o carro. - Voltar a Scardale?
- Preciso saber o que Peter Crowther fez - disse George. - Ele não nos contará, de modo que precisaremos perguntar a outros. Estou cansado dessa gente de Scardale que não nos diz o que precisamos saber.
9
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 16h05
George começava a pensar que sonharia com a estrada para Scardale pelo resto de sua vida. O carro mergulhou no desfiladeiro estreito ao entardecer de um dia lúgubre de inverno. Se o sol tinha aparecido através das nuvens e brumas do dia, ele certamente ignorara, pensou, diminuindo a velocidade enquanto aproximavam-se da praça da aldeia. Os homens estavam reunidos em torno do trailer policial, com o vapor de suas xícaras de chá unindo-se à névoa que envolvia o vale. As buscas infrutíferas do dia haviam terminado com o morrer da luz.
Ignorando-os, George cruzou a praça até a Casa do Outeiro. Já era hora de Mamãe Lomas parar de se comportar como uma personagem de um melodrama vitoriano e começar a assumir responsabilidade pelo que poderia acontecer com Alison se a matriarca e sua família continuassem de bico fechado - disse a si mesmo, resoluto. Enquanto contornava a pilha de lenha que quase bloqueava o caminho até a porta da frente, seu pé prendeu-se em algo e ele tropeçou. Apenas os reflexos rápidos de Clough, que agarrou seu braço, evitaram uma queda humilhante.
- Mas que diabos...? - exclamou George, readquirindo a compostura. Voltou-se e espiou através da escuridão crescente, vendo Charlie Lomas estirado de costas e gemendo em meio a toras de lenha espalhadas.
- Acho que você quebrou meu tornozelo! - queixou-se Charlie.
- Pelo amor de Deus, o que você estava fazendo aí? - cobrou-lhe George, friccionando com desagrado o ponto de seu braço onde os dedos
fortes de Clough haviam se enterrado nos músculos.
- Eu estava apenas sentado aqui, cuidando da minha vida, tentando ter cinco minutos de paz. Não é crime, é? - Charlie conseguiu sentar-se e esfregou o dorso de sua mão com força em seu rosto. Sob a luz que vinha da janela da casa, George percebeu que os olhos do jovem brilhavam com lágrimas presas. Não parecia capaz de raptar um gatinho, menos ainda uma adolescente.
- Pensando em Alison? - perguntou George, em tom gentil.
- É um pouco tarde para começar a me tratar como ser humano, senhor - disse Charlie, com os ombros encurvados em desafio. - Qual é o problema com vocês? Ela era minha prima. Minha família. Vocês não têm alguém com quem se preocupar, para considerarem tão estranho nosso abatimento?
As palavras de Charlie atiçaram a recordação de George. Ele aprendera desde cedo, em sua vida de policial, que não poderia fazer bem seu trabalho, a menos que suas preocupações pessoais fossem mantidas sob firme controle, protegidas da dor bruta e da feiúra de grande parte do que fazia. Na maior parte do tempo, ele conseguia manter seus muros intactos. Ocasionalmente, como agora, as duas realidades colidiam. Subitamente, George lembrou que ganhara, da noite para o dia, alguém novo com quem se preocupar.
Um sorriso aflorou a seus lábios, inevitavelmente. Podia ver o rancor nos olhos de Charlie Lomas e a surpresa nos de Clough. Contudo, a súbita recordação da criança que Anne carregava em seu ventre era irresistível.
- Qual é a graça? - perguntou Charlie, irritado.
- Não foi nada - respondeu George, áspero, forçando-se a voltar ao estado de ânimo apropriado. - Eu estava pensando em minha família. Você tem razão. Eu me sentiria terrivelmente mal se algo lhes acontecesse. Desculpe-me se o ofendi.
Charlie levantou-se, batendo o pó da roupa com as mãos.
- Como eu disse, é um pouco tarde para isso agora. - Ele voltou um pouco a cabeça, de modo que os olhos ficassem nas sombras. - Estavam procurando por mim ou por minha vó?
- Sua avó. Ela está?
- Ainda não voltou - disse ele, balançando a cabeça.
- Não voltou de onde?
- Eu a vi quando estávamos voltando da busca por Alison. Ela estava caminhando pelos campos, lá perto de onde vocês encontraram Shep e onde estivemos hoje, quando vocês descobriram aquela... coisa. - Charlie franziu o rosto, como se recordasse algo semi-enterrado. - Era como se ela estivesse fazendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez, quando saiu para caminhar na hora do chá, quarta-feira.
Existem momentos em que uma determinada combinação de palavras coloca o mundo em câmera lenta. A medida que assimilava a importância das palavras do garoto, George teve a estranha e vertiginosa sensação de um homem cujos sentidos aceleram-se em uma fração de segundo, fazendo com que o mundo exterior arraste-se em um ritmo desagradavelmente lento. Ele piscou com força, limpou a garganta e depois perguntou, com cautela:
- O que você acabou de dizer, Charlie?
- Eu disse que minha vó estava caminhando pelos campos. Como se estivesse indo ao solar, mas por trás - acrescentou ele. Aparentemente, ele decidira que, apesar do mau tratamento recebido, era melhor, para Alison, se fosse prestativo com este policial esquisito que não se comportava como nenhum outro que já havia visto em carne e osso ou nos filmes, em Buxton.
George esforçou-se para manter o autocontrole. Sua vontade era agarrar o garoto pela garganta e gritar com ele, mas tudo o que disse foi:
- Você disse que ela estava percorrendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez quarta-feira, na hora do chá.
Charlie retorceu o rosto.
- E daí? Por que o homem não poderia caminhar por seus próprios campos?
- Quarta-feira, na hora do chá, foi o que ouvi.
- Isso mesmo. Lembro-me bem, por causa de toda a agitação que ocorreu depois que percebemos que Alison havia desaparecido.
George trocou um olhar com Clough. Sua incredulidade encontrou a raiva do colega.
- Nós lhe perguntamos se havia visto alguém nos campos ou no matagal, na quarta-feira - lembrou-lhe Clough, com irritação.
- Não perguntaram - disse Charlie, na defensiva.
- Eu mesmo perguntei - disse Clough, com os lábios esticados sobre os dentes, cuspindo as palavras.
- Não mesmo - insistiu Charlie. - O senhor me perguntou se havíamos visto estranhos. Perguntou se eu havia visto algo fora do comum. E não vi. Só vi a mesma coisa que já vi mil vezes: o dono das terras andando pela sua propriedade. De qualquer modo, não pode ter nada a ver com o desaparecimento de Alison, porque ainda estava claro e eu pude vê-lo claramente. De acordo com o que vocês disseram, já estava escuro quando Alison saiu de casa. Assim, não há motivo para usar este tom de voz comigo - acrescentou, endireitando os ombros e tentando aparentar maturidade além de seus talentos. - Além disso, vocês estavam ocupados demais tentando fazer com que parecesse que eu tinha algo a ver com isso, para ouvirem qualquer coisa que eu tivesse a dizer.
George deu-lhe as costas, abalado, fechando os olhos por um instante.
- Precisamos de um depoimento seu a esse respeito - disse, animado pelas possibilidades abertas por esta informação e superando a frustração pelo tempo perdido porque as mentes simplórias de Scardale não conseguiam ver além do óbvio, quando ouviam uma pergunta. - Vá até o salão da igreja metodista e diga a um dos policiais que eu o mandei. Dê-lhe todos os detalhes. A hora, a direção que o senhor Hawkin tomou ao caminhar, se levava algo consigo, o que estava vestindo. Vá agora, por favor, senhor Lomas, antes que eu ceda à tentação de prendê-lo por obstruir o trabalho da polícia.
Ele olhou sobre os ombros, a tempo de ver os olhos de Charlie, esbuga-lhados de pânico.
- Nunca obstruí nada - disse ele, parecendo ter metade de sua idade. - Ele nunca me perguntou sobre Hawkin.
- Também não lhe perguntei sobre o duque de Edimburgo, mas se ele estivesse caminhando pelo campo, esperaria que você me contasse - vociferou Clough. - Agora, não perca mais tempo. Ponha-se a caminho, antes que eu decida ajudá-lo com minha bota no seu traseiro!
Charlie passou por eles zunindo e partiu em uma corrida louca, atravessando a praça para um dos Land Rovers enlameados estacionados no lado oposto.
- Dá para acreditar nessa gente? Meu Deus, estou começando a duvidar que desejam encontrar Alison Carter. - George suspirou. - Precisaremos falar com Hawkin sobre isso. Ele mentiu para nós e quero saber Dor quê. - Olhou para o relógio de pulso. - Mas também quero descobrir sobre Peter Crowther.
- Dependendo do que Hawkin tiver a dizer, Peter Crowther poderá tornar-se irrelevante.
George franziu a testa.
- Você não acha que... Hawkin? Clough encolheu os ombros.
- Se acho que ele é capaz? Não tenho idéia, mal falei com o homem. Por outro lado, ele mentiu para nós. - Ele enumerou as possibilidades, com dedos fortes. - Ou ele tem algo para esconder ou está acobertando outra pessoa. Se não, é irresponsavelmente distraído.
Antes que George pudesse responder, a questão foi resolvida pelo aparecimento de Mamãe Lomas, embrulhada em um casaco pesado e usando um lenço na cabeça. Ela virou a cabeça para um lado e disse:
- Vocês estão no meu caminho.
Os dois homens deram um passo para o lado. Ela seguiu até a porta, sem cumprimentá-los.
- Precisamos falar com a senhora - anunciou George.
- Eu não preciso falar com vocês - respondeu ela, esforçando-se para enfiar uma grande chave na fechadura de sua porta. - Nunca precisamos trancar nossas portas antes de Ruth Carter trazer estranhos para o vale. - A fechadura abriu-se com um ranger agudo de metal batendo em metal.
- Não se importa com o que acontece com alguém de sua própria família?
- Você não sabe de nada - disse ela, encarando-o com olhos estreitos e abrindo a porta.
- Iremos falar com o dono das terras depois de falarmos com a senhora - disse Clough, quando ela estava prestes a entrar. Ela parou, imóvel como um rato ao ver uma águia. - Sabemos que ele andou caminhando pelo campo de onde a senhora acabou de voltar. Senhora Lomas, precisamos eliminar Peter Crowther de nossas investigações, se ele é inocente.
Ela pensou por um momento, permitindo que as frases aparentemente desconexas fizessem sentido. Depois, assentiu, inclinando a cabeça e fixando um olhar de avaliação em Clough.
- É melhor entrarem, então - disse, finalmente. - Sequem os pés. E nada de cigarros lá dentro. Fazem mal aos meus pulmões.
Os dois a seguiram para uma saleta que não tinha mais que três metros quadrados. Era um cômodo lúgubre, com apenas uma pequena janela, e cheirava vagamente a cânfora e eucalipto. O piso de pedra estava coberto com vários tapetes desbotados e em frangalhos. Havia uma poltrona em cada lado de uma lareira flanqueada por dois fogões pretos de ferro, cada um do tamanho de um engradado de cerveja. Havia uma chaleira sobre um dos fogões, com um fio de vapor desaparecendo pela chaminé, e um aparador no lado oposto, coberto com animais entalhados em madeira e pedaços semipolidos de calcário contendo fósseis. Perto da pequena janela de venezianas, três cadeiras altas de carvalho escuro com encostos de sisal projetavam-se acima de uma pequena mesa de jantar, como se ameaçassem espancá-la.
Os únicos adornos eram dúzias de cartões-postais extravagantes, que retratavam desde praias da Espanha até prédios barrocos de algum lugar na Escandinávia. Ao perceber o olhar confuso de George, Mamãe Lomas disse:
- São de Charlie. É como trocar cartas, só que ele troca cartões-postais com pessoas de longe. É um sonhador. O que me faz rir é que há centenas de pessoas no mundo inteiro olhando os postais que o senhor Hawkin fez de Scardale e pensando que a vida nesta aldeia de Derbyshire é feita de ovelhas brancas como leite em um campo ensolarado. - Dirigiu-se penosamente até a poltrona que ficava de frente para a porta e deixou-se cair nela, remexendo os ombros até sentir-se confortável.
- Posso sentar? - pediu George.
- Você não gostará da poltrona - disse-lhe ela, fazendo um aceno de cabeça para uma das cadeiras. - É melhor para suas costas, pelo menos.
Os dois viraram duas cadeiras de frente para a mulher. Esperaram enquanto ela se inclinava, reacendendo os carvões em brasa.
- Peter Crowther está sob custódia em Buxton - disse George, quando percebeu que ela estava confortável.
- Já me disseram.
- A senhora acha que devemos mantê-lo na cadeia?
- Você é o policial, não eu. Sou apenas uma velha que nunca viveu fora do vale de Derbyshire.
- Talvez estejamos perdendo um tempo enorme tentando ligar Peter a rowther a Alison - continuou George, recusando-se a desviar-se do assunto. - Poderíamos aproveitar melhor este tempo procurando a menina.
- já lhe disse, o problema com você e seus detetives é que não entendem nada sobre este lugar - falou a mulher, irritada.
- Estou tentando compreender, mas as pessoas daqui parecem mais
interessadas em atrapalhar que em me ajudar. Acabei de descobrir que seu neto omitiu algo que poderia servir como prova crucial.
- Isto não chega a ser surpresa, considerando o modo como vocês o trataram. Como é que alguém pode pensar que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison? Isto não é possível! Quando ela desapareceu, Charlie estava aqui em casa, comigo. Isto é o que chamam de álibi, não é? - perguntou ela, com desdém.
- Tem certeza? - indagou George, em dúvida.
- Posso ser velha, mas ainda não perdi a memória. Charlie entrou pouco antes das quatro e meia e começou a descascar batatas. Não consigo fazer certas coisas por causa de minha artrite, de modo que ele faz para mim. Todas as noites é a mesma rotina. Ele não estava com Alison. Estava aqui, cuidando de mim.
George respirou fundo.
- Teríamos poupado muito tempo se a senhora ou mesmo Charlie tivesse nos contado isso. Senhora Lomas, em casos envolvendo o desaparecimento de crianças, as primeiras quarenta e oito horas são cruciais. Este período já está quase no fim e não temos pistas para encontrar uma menina que também é de sua família. - A frustração aumentava o volume de sua voz. - Senhora Lomas, juro que encontrarei Alison Carter. Mais cedo ou mais tarde, saberei o que aconteceu aqui dois dias atrás. Se isto significar que terei de vasculhar cada casa nesta aldeia do telhado às fundações é o que farei. Se tiver de cavar cada campo e jardim do vale, farei isso e não darei a mínima para suas plantações e gado. Se tiver de prender todos vocês e acusá-los de obstruir a lei, mesmo que indiretamente, também prenderei. - Ele parou de repente e inclinou-se para a frente. Assim, diga-me. Acha que Peter Crowther teve algo a ver com o desaparecimento de Alison?
Ela sacudiu a cabeça, impaciente.
- Tanto quanto eu saiba, e sei da maior parte das coisas que acontecem em Scardale, Peter não colocou os pés no vale desde o fim da guerra Acho que nem sabe que Alison existe. E eu colocaria minha mão sobre a Bíblia e juraria que a menina nunca ouviu seu nome. - Seus lábios apertaram-se, fazendo com que o nariz e o queixo se aproximassem, como as pontas de um compasso.
- Não podemos ter certeza disso. A escola da menina é em Buxton. Ela se parece com a mãe. Não se esqueça, a senhora Hawkin teria mais ou menos a idade de Alison na última vez em que o irmão conviveu com ela. Para alguém com um parafuso a menos, ver Alison na rua poderia ter ativado toda espécie de recordação.
Mamãe Lomas cruzou os braços no peito e balançou a cabeça com vigor, enquanto George falava. Depois, disse:
- Não acredito nisso, não acredito.
- Então, será que deveríamos estar interrogando Peter Crowther, senhora Lomas? - perguntou ele, em tom novamente gentil em resposta ao visível sofrimento dela.
- Se ele tivesse pisado no vale, todos saberiam. Além disso, acho que estava trabalhando naquele horário - acrescentou ela, em desespero.
- Às quartas-feiras à tarde não há expediente. Ele poderia ter vindo até aqui. Senhora Lomas, o que Peter Crowther fez para ser mandado embora?
- Isso não é da conta de ninguém agora - foi a resposta enfática. Os olhos estavam apertados, como se a lareira fosse o sol do meio-dia.
- Preciso saber.
- Não.
Tommy Clough inclinou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e o bloco de anotações caído entre suas pernas. George invejava sua capacidade para parecer relaxado mesmo em uma ocasião tão tensa quanto esta havia se tornado.
- Acho que Peter Crowther não machucaria uma mosca - disse Clough. - Infelizmente, não sou eu quem toma as decisões. Talvez fique detido por um bom tempo. Alguém como a senhora, que nunca viveu fora deste vale, não sabe o que os prisioneiros fazem com homens suspeitos de maltratar crianças. Homens saudáveis ficam loucos. Eles se enforcam, pendurando cordas nas barras de suas janelas. Engolem água sanitária. Cortam os pulsos com facas de manteiga, se alguém levar-lhes uma. Seu Peter será usado e abusado pior que uma prostituta de rua em uma zona de guerra. Acho que nem a senhora nem qualquer um em Scardale desejam isso. Se desejassem, teriam castigado Peter dessa forma vinte anos atrás, mas apenas o expulsaram daqui. Vocês o deixaram construir sua vida longe do vale. Qual é a lógica em se omitir e deixá-lo sofrer por nada agora? Era um discurso persuasivo, mas não teve efeito.
- Não posso lhe dizer - disse a mulher, decidida, com a cabeça movendo-se quase que imperceptivelmente de um lado para outro.
George empurrou sua cadeira para o lugar ruidosamente, com as pernas arranhando o chão de pedras.
- Não posso perder meu tempo aqui. Se a senhora não se preocupa com Peter Crowther ou não quer encontrar Alison, procurarei quem esteja disposto. Tenho certeza de que a senhora Hawkin nos dirá o que queremos saber. Afinal, trata-se de seu irmão.
A cabeça de Mamãe Lomas levantou-se, como se alguém a tivesse puxado pelos cabelos. Os olhos arregalaram-se.
- Não Ruth. Por favor, não. Ruth não.
- E por quê? - quis saber George, dando vazão a parte de sua raiva. - Ela quer que encontremos Alison e não deseja que percamos tempo com pistas falsas. Ela nos dirá qualquer coisa que quisermos saber, acredite.
Os olhos arregalados fixaram-se nos seus e o rosto parecia o de uma bruxa má.
- Sente-se - sibilou a mulher. Era um comando, não um convite. George voltou à sua cadeira. Mamãe Lomas levantou-se e foi, vacilante, até o aparador. Ela abriu a porta e retirou dali uma garrafa cujo rótulo anunciava uísque. Entretanto, o conteúdo era tão incolor quanto gim. Ela encheu um pequeno copo e bebeu-o de uma só vez. Tossiu alto duas vezes, encurvando os ombros, e depois se voltou para os homens, com os olhos lacrimejantes.
- Peter sempre foi um problema - disse lentamente, voltando à sua cadeira. - Sempre teve a mente suja. Era nojento, asqueroso. Costumávamos encontrá-lo nos campos, observando os animais que acasalavam. Quanto mais velho se tornava, pior ficava. Seguia todos que estavam namorando, até seus parentes, desesperado para ver o que fariam. Sabíamos que um carneiro cruzava com uma ovelha quando entrávamos na mata e encontrávamos Peter de pé, com seu... - ela fez uma pausa, apertou os lábios e depois, continuou: - Sua coisa na mão, com os olhos arregalados, bisbilho-tando enquanto os bichos faziam o que a natureza mandava. Mesmo que apanhasse, ouvisse berros ou fosse chutado, nada fazia diferença. Depois de algum tempo, as pessoas nem se importavam mais com isso. Em um lugar como Scardale, precisamos suportar aquilo que não conseguimos curar. Ela olhou para a lareira, suspirou e disse:
- Então, a pequena Ruth ficou mocinha. Peter estava obcecado. Ele a seguia como um cachorro segue uma cadela no cio. Dan pegou-o algumas vezes no alto de uma escada, junto à janela do quarto da menina, olhando-a através de uma abertura estreita na cortina. Todos tentaram enfiar algum juízo em sua cabeça, ela era sua própria irmã, aquilo não podia continuar. Mas Peter nunca mudou. No fim, Dan o fez sair de casa e ele passou a dormir aqui, comigo.
Mamãe Lomas fez uma pausa breve para friccionar suas pálpebras fechadas. George e Clough não moveram um músculo, determinados a não perturbar o andamento do relato.
- Então, uma noite, Dan voltou de Longnor. Havia bebido um pouco. Isto foi durante a guerra e precisávamos manter todas as luzes apagadas. Tão logo entrou no vale, viu um facho de luz brilhando na aldeia. Veio o mais rápido que podia, na intenção de avisar quem quer que fosse para apagar a luz, já que um policial poderia vê-la e dar uma multa. Ele estava a quase um quilômetro de distância quando percebeu que estava vindo de sua própria casa. Veio mais rápido ainda e, logo, reconheceu aquela janela... era o quarto de Ruth. Ele sabia que Diane estava sozinha com Ruth, e achou que algo terrível havia acontecido a uma ou outra.
Ela voltou o rosto para sua platéia emudecida.
- Bem, a verdade é que algo terrível havia acontecido mesmo. Veio zunindo como um furacão para casa e subiu voando as escadas, quase caindo. Abriu depressa a porta do quarto de Ruth e lá estava Peter, de pé junto à cama da menina, com as calças arriadas e a lanterna lançando uma sombra no teto que fazia seu pinto parecer com um cabo de vassoura. A menina estava dormindo, mas acordou com aquela entrada louca de Dan. Deve ter pensado que estava tendo um pesadelo. - A mulher sacudiu a cabeça. - Eu a ouvia gritando, do outro lado da praça.
"Depois, Peter começou a gritar. Foram necessários três homens para tirar Dan de cima dele. Achei que estava morto, coberto de sangue como um bezerro que passou por um parto ruim. Nós o trancamos em um curral, até suas feridas começarem a sarar. Depois, o senhor Castleton deu um jeito de mandá-lo para o albergue em Buxton. Dan lhe disse que se voltasse a se aproximar de Ruth ou de Scardale o mataria com suas próprias mãos. Peter acreditou na época, e ainda acredita. Sei que vocês acham que o que lhes contei significa que ele poderia ter visto Ruth em Alison e feito algo horrível a ela, mas não é isso. E bem o contrário. Se querem fazer com que Peter Crowther rasteje pelo chão pedindo perdão, digam-lhe que Ruth e Dan estão à sua procura. O último lugar aonde viria seria Scardale. A última pessoa com quem faria contato seria alguém de Scardale. Podem acreditar."
Ela recostou na poltrona, terminando sua narrativa. A tradição oral jamais morreria enquanto Mamãe Lomas estivesse viva, pensou George. Ela representava a anciã da aldeia, que conservava as histórias da tribo, protegendo a integridade de tais relatos apenas por meio de suas habilidades pessoais. Ele jamais esperaria encontrar alguém assim em 1963, em Derbyshire.
- Obrigado por nos contar, senhora Lomas - disse, em tom formal. - A senhora nos foi muito útil. Apenas mais uma coisa, antes de a deixarmos em paz. Charlie disse que viu o senhor Hawkin no campo, entre a floresta e o arvoredo, quarta-feira à tarde. Ele nos disse que a viu refazendo este trajeto ainda há pouco. A senhora também viu o dono das terras na quarta-feira?
Ela o examinou, com os olhos tão brilhantes quanto os de um papagaio.
- Não depois que Alison desapareceu.
- Mas viu antes?
- Sim. Eu estava tomando uma xícara de chá com nossa Diane. Quando saí, Kathy acabava de entrar no Land Rover para pegar Alison, Janet e Eerek no fim da estrada após as aulas. Vi David e Brian perto do local de ordenha, levando as vacas para dentro. E vi Hawkin cruzando o campo.
- Por que não nos contou antes? - indagou George, exasperado.
- E por que deveria? Não havia nada de anormal nisso. São suas terras, por que ele não poderia andar por elas? Sempre está perambulando por todos os lados, tirando fotos com sua câmera quando menos se espera. Além disso, como já falei, Alison ainda nem havia chegado da escola. Ele teria de caminhar muito, mas muito devagar mesmo, para ainda estar no campo quando ela saiu com Shep. E com este tempo ninguém caminha devagar em Scardale - acrescentou ela em tom decisivo, como se desse fim a uma discussão.
George fechou os olhos e respirou profundamente pelo nariz. Ao abri-los novamente, poderia ter jurado que vira um sorrisinho nos cantos da boca da velha senhora.
- Mandarei datilografar seu depoimento - disse ele. - Espero que a senhora assine.
- Se foi fiel ao que falei, não haverá problema. Peter poderá ser solto agora?
George levantou-se e devolveu sua cadeira ao lugar, sob a mesa.
- Levaremos o que ouvimos aqui em consideração quando tomarmos nossa decisão.
- Ele não é um homem violento, inspetor - disse ela. - Mesmo supondo que tenha visto Alison, mesmo supondo que a menina o lembrou de Ruth, tudo o que ela teria de fazer seria empurrá-lo e ele a deixaria em paz. É um covarde. Não perca seu tempo com Peter e não deixe que o culpado continue solto.
- Parece que a senhora está convencida de que o que quer que tenha acontecido a Alison foi ato deliberado de alguém - falou Clough, levantando-se, mas fazendo questão de manter seu bloco de anotações aberto.
O rosto da mulher fechou-se - seus olhos estreitaram-se, enquanto apertava os lábios e enrugava o nariz.
- O que eu acho e o que vocês sabem são duas coisas muito diferentes. Vejam se conseguem aproximar um pouco mais minha opinião e seus conhecimentos, sargento Clough. Então, talvez possamos saber o que aconteceu com nossa menina. - Ela olhou para o relógio. - Achei que tinha ouvido dizerem que iriam falar com o senhor Hawkin?
- Sim, pretendemos ir até lá.
- Então é melhor se apressarem. Ele gosta que lhe sirvam o chá às seis em ponto, e tenho certeza de que não mudará seus hábitos por sua causa, já na rua, George indagou:
- O que você achou disso tudo, Tommy?
- Ela nos contou a verdade segundo sua interpretação, senhor.
- E o álibi para Charlie?
Clough sacudiu os ombros.
- Pode ser que esteja mentindo para favorecê-lo. Acho que não temos dúvida de que ela mentiria por ele. Mas até que alguém nos diga algo diferente ou encontremos algo mais sólido para ligá-lo ao desaparecimento de Alison, não temos razão para duvidar dela. E concordo com ela sobre Crowther.
- Eu também. - George passou a mão pelo rosto. A pele parecia mais sensível que o normal, pelo cansaço, e os próprios ossos pareciam mais próximos da superfície. Suspirou.
- Deveríamos liberá-lo - disse Clough, tirando os cigarros do bolso e oferecendo a George. - Ele não fugiria. Não tem para onde ir. Eu poderia ligar do telefone público para a delegacia e ordenar que o soltassem. Podem impor certos limites, como não se aproximar a menos que dez quilômetros de Scardale, permanecer no albergue, prestar contas de seus movimentos todos os dias... Mas certamente não há por que mantê-lo preso.
- Não acha que podemos expô-lo a um linchamento?
- Quanto mais o mantivermos preso, pior parecerá para ele. Podemos fazer com que o policial de plantão diga aos jornalistas que Crowther nunca foi suspeito, apenas um parente vulnerável que mantivemos detido para podermos questioná-lo sem a pressão do mundo externo. Alguma baboseira desse tipo. E eu poderia mencionar a necessidade para espalhar a mesma história pelos bares. - Havia determinação no rosto de Clough. Ele estava certo, e George estava cansado demais para apresentar argumentos, quando não se sentia inclinado a nenhum dos lados.
- Tudo bem, Tommy. Ligue e diga que eu dei as ordens. Apenas garanta que alguém informará ao departamento de investigações criminais. O chefe não gostará disso, mas terá de engolir. Vejo-o no trailer. Se eu não tomar algo quente, cairei duro de sono antes que possa extrair alguma coisa de Hawkin.
George nem mesmo esperou resposta e cruzou direto a praça até o trailer da polícia. Nada, em sua intuição, lhe dizia para impedir que Clough desse a ordem de liberar Crowther. Afinal, Clough estava convencido de que fazia a coisa certa. Nem mesmo os instintos de Mamãe Lomas clamavam contra a liberação de Peter Crowther.
Teriam de dividir igualmente o peso desta decisão.
10
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 17h52
Ruth Hawkin enxugava as mãos no avental ao abrir a porta da cozinha do Solar Scardale. Uma breve esperança brilhou em seus olhos, mas não encontrou nada nos rostos dos dois homens para alimentar aquela fagulha. Quando a esperança abandonou-a, o medo não perdeu tempo e ocupou seu lugar. A julgar pelas olheiras e pela aparência extenuada de sua pele clara, a ansiedade estivera presente durante todos os momentos daqueles dois últimos dias. Vendo seu sofrimento, George apressou-se a dizer:
- Não temos novidades, senhora Hawkin. Desculpe-me. Podemos entrar por um minuto?
Ruth fez que sim e, em silêncio, deu um passo para o lado, ainda esfregando as mãos no tecido floral de algodão de seu avental. Os ombros estavam encurvados, os movimentos eram lentos e distraídos. George e Clough passaram por ela e ficaram de pé, desajeitados, no meio da cozinha. O aroma inconfundível de cozido de carne e rim bovino flutuava no ar, fazendo com que os dois salivassem de fome. George imaginou, brevemente, o que Anne teria deixado para ele, se algum dia conseguisse chegar em casa. De uma coisa tinha certeza: quando finalmente fosse para casa, qualquer comida já teria estragado, do jeito como as coisas iam.
- Seu marido está em casa? - perguntou. - Na verdade, era com ele que desejávamos conversar.
- Estava nas buscas com seus homens - disse ela, rapidamente. - Chegou exausto, de modo que foi tomar banho. Posso ajudá-los?
- Não se preocupe. Só queríamos trocar uma palavra com ele.
Ela lançou um olhar para o despertador envernizado e velho que havia em uma prateleira perto do fogão.
- Ele descerá para o chá em dez minutos. - Ela mordeu o canto direito do lábio inferior, em uma demonstração inconsciente de ansiedade. - Seria melhor voltarem depois. Depois que ele tiver comido. Talvez às seis e meia? Avisarei sobre sua vinda - completou, com um sorriso nervoso.
- Se não se importa em esperar um pouquinho para servir o chá, senhora Hawkin, falaremos com seu marido quando ele descer - disse George, em tom gentil. - Não queremos perder tempo.
A pele em torno dos olhos e da boca da mulher retesou-se.
- Acham que não entendo? Sei disso, mas ele precisa tomar seu chá depois de andar pelo vale a tarde inteira.
- Sabemos disso, e seremos breves.
- Serão breves em quê, inspetor?
George virou-se. Não ouvira Hawkin abrir a porta às suas costas. O dono do solar usava um roupão bege felpudo sobre um pijama listrado. Sua pele rosada brilhava e os cabelos estavam ainda mais rentes ao crânio e puxados para trás que antes. Uma das mãos estava enfiada no bolso e a outra segurava um cigarro, em uma pose que teria passado por descontraída em uma peça teatral, mas parecia ridícula em uma cozinha de fazenda de Derbyshire. George inclinou a cabeça para a frente, à guisa de cumprimento.
- Precisamos de alguns minutos de seu tempo, senhor Hawkin.
- Está em meu horário de comer, inspetor - disse ele, com petulância. - Acho que minha esposa já lhe disse isso. Quem sabe os senhores voltam depois?
Interessante, pensou George. Hawkin nem mesmo perguntara se o motivo da visita era alguma novidade sobre Alison. Nenhuma menção à menina, nem indicação de que estava preocupado com qualquer coisa além de encher a barriga.
- Temo não ser possível. Como já indiquei, em investigações desta natureza é crucial pouparmos tempo. Assim, se a senhora Hawkin não se importa em manter seu jantar aquecido, gostaríamos de lhe falar.
O suspiro de Hawkin foi alto e teatral.
- Ruth, você ouviu o inspetor. - Ele foi até a mesa, tirando a mão do bolso e puxando uma cadeira.
- Seria melhor em outro lugar, senhor - interveio George.
As sobrancelhas de Hawkin ergueram-se.
- Como?
- Preferimos entrevistar testemunhas isoladamente umas das outras. E
uma vez que sua esposa está ocupada aqui, parece razoável irmos a outro lugar. A sala, talvez? - George era inexoravelmente educado, mas irresistivelmente firme.
- Não vou à sala. Está gelado lá e não pretendo contrair pneumonia por sua culpa. - Ele tentou suavizar suas palavras com um sorriso curto, que não conseguiu convencer George. - Meu estúdio é mais quente - acrescentou Hawkin, voltando-se para a porta.
Seguiram-no pelo corredor gélido até um cômodo que se parecia com um clube de cavalheiros em miniatura. Um par de poltronas de couro ladeava um aquecedor a parafina. Hawkin foi direto a uma delas, junto à janela. Uma escrivaninha branca com um tampo de couro já bastante gasto ocupava a ponta oposta do estúdio, com sua superfície coberta por pesos de papel decorativos. As paredes eram revestidas por estantes de mogno, cheias de volumes de tamanho variado encadernados em couro. O piso de parquê, desgastado por anos de uso, era parcialmente coberto por um tapete persa frágil e desbotado. Junto à porta havia um armário esmaltado contendo um par de espingardas iguais. George não entendia de armas, mas ainda assim reconhecia que essas não eram do tipo usado por fazendeiros para espantar gralhas.
- Belo aposento, senhor - disse ele, indo até a poltrona oposta à de Hawkin.
- Acho que meu tio não mudou nada, desde a época de seu avô - comentou o dono da casa. - Eu gostaria de fazer algumas mudanças. Livrar-me dessa escrivaninha velha e eliminar alguns desses livros, para abrir espaço para algo mais moderno. Preciso de um lugar para guardar meus álbuns fotográficos e meus negativos.
George mordeu a língua, contendo-se. Teria adorado um escritório como este, que lhe parecia unir passado e presente, um cômodo que pudesse deixar de herança para um filho. Se tivesse sorte o bastante para ter um.
Achou dolorosa a idéia do que Hawkin pretendia fazer com a decoração - embora reconhecesse que não era de sua conta. Entretanto, isso só o fazia antipatizar ainda mais com o homem. Deu uma olhada para Clough, que sentara na cadeira junto à escrivaninha e já estava preparado, com bloco e lápis à mão. O sargento assentiu. George limpou a garganta, desejando possuir o tipo de autoridade que alguns anos a mais lhe trariam automaticamente.
- Antes de abordar a principal razão para virmos até aqui, eu gostaria de saber se vocês receberam algum pedido de resgate por Alison.
- Ninguém imaginaria que tenho dinheiro para pagar resgate, inspetor - disse Hawkin, com a testa franzida. - Só porque tenho algumas terras?
- As pessoas às vezes têm as idéias mais malucas, senhor. Além disso, com as notícias sobre o seqüestro do filho de Frank Sinatra, é razoável pensar nesta possibilidade.
Hawkin meneou a cabeça, com pesar.
- Não recebemos nada. Nem carta, nem telefonema. Recebemos várias cartas hoje, de pessoas de Buxton que ouviram falar do desaparecimento de Alison, mas todas ofereciam solidariedade e nenhuma pedia dinheiro. Pode examiná-las, se quiser. Estão todas sobre o aparador da cozinha.
- Se receberem pedido de resgate, por favor comuniquem. Mesmo se os avisarem para não comunicarem à polícia, pelo bem de Alison, façam isso. Precisamos de sua cooperação.
- Inspetor - disse Hawkin, com uma risadinha nervosa -, acredite, se alguém pensa que colocará a mão em meu dinheiro e em minha enteada é melhor pensar duas vezes. Pode crer que irei direto a vocês se alguém for tolo o bastante para pensar que pagaremos resgate. Agora, o que os trouxe até aqui? Fiquei fora de casa a tarde inteira e estou faminto.
- Descobrimos uma pequena discrepância nos depoimentos do pessoal daqui e queremos esclarecer as coisas. Encontrar Alison é nossa maior prioridade, de modo que qualquer mal-entendido precisa ser esclarecido com a maior rapidez possível.
- Claro que sim - disse Hawkin, virando-se para amassar o cigarro no cinzeiro empoleirado sobre uma pilha de jornais, próximo à sua poltrona.
- O senhor declarou que estava no laboratório na tarde em que Alison desapareceu.
Hawkin inclinou a cabeça para o lado.
- Sim - disse com voz arrastada e um olhar de cautela.
- A tarde inteira?
- Mas que importância tem o horário em que fui para o laboratório? Não entendo o que minhas atividades da tarde têm a ver com Alison.
- Se o senhor me permitir, podemos resolver este problema rapidamente. Pode nos dizer quando foi para o laboratório?
Hawkin esfregou a lateral de seu nariz estreito com o indicador.
- Almoçamos meio-dia e meia, como sempre. Depois, vim até aqui para ler o jornal. Um dos problemas da vida rural é que a correspondência e o jornal da manhã raramente chegam antes do almoço. Assim, faço meu pequeno ritual depois do almoço, retirando-me para cá para cuidar da correspondência e ler o Express. Quarta-feira passada tinha que responder a algumas cartas, de modo que fui para o laboratório por volta das duas e meia da tarde. É naquele prédio pequeno nos fundos, que já tinha instalações hidráulicas. Eu o converti em câmara escura. O senhor se interessa por fotografia, inspetor? Duvido que haja um laboratório tão bem equipado e montado quanto o meu. - O sorriso de Hawkin era a coisa mais próxima de espontaneidade sincera que George já vira em seu rosto.
- Gostaria de dar uma olhada depois, se puder.
- Será bem-vindo. Seus homens estiveram lá, na noite em que Alison desapareceu, apenas conferindo se ela não estaria escondida ali, mas expliquei que geralmente mantenho o lugar trancado. Por causa do equipamento caro. Por favor, veja com seus próprios olhos. E se precisar de fotografias profissionais... - Hawkin fez um sinal para a aliança que brilhava no dedo de George. - Talvez uma foto do casal?
A ideia de ter o encanto adulador de Hawkin concentrado em Anne, mesmo que mediado pela lente de uma câmera, era imensamente repugnante. Disfarçando seu mal-estar, George disse, apenas:
- É uma oferta muito gentil, senhor. Agora, quanto à tarde de quartafeira. O senhor nos disse que foi para seu laboratório por volta das duas e meia da tarde. Por quanto tempo ficou lá?
Hawkin franziu a testa e pegou os cigarros:
- Ampliei muitas fotos... São para um concurso, de modo que é importante obter o máximo de perfeição. Voltei para casa pouco antes da hora de Jantar. Encontrei minha esposa e Kathy Lomas na cozinha, muito nervosas Por causa de Alison. Isto responde à sua pergunta, inspetor?
- Responde sim, mas não resolve meu problema. Entenda, nos disseram que o senhor estava caminhando pelo matagal onde encontramos Shep e foi até o arvoredo onde descobrimos traços que julgamos ser de uma luta física envolvendo Alison. Disseram-nos que eram mais ou menos quatro da tarde de quarta-feira. Será que pode explicar por que alguém o veria no mato, se não esteve lá?
As orelhas de Hawkin ficaram vermelhas primeiro e, depois, o rubor espalhou-se por sua mandíbula e subiu para o rosto inteiro.
- Porque são camponeses estúpidos, talvez.
George endireitou-se na poltrona, atônito pela hostilidade da resposta.
- Como?
- Essa gente cruza entre si há séculos, inspetor. Uma aldeia com apenas três sobrenomes? Não são exatamente gênios, certo? Alguns deles mal sabem em que ano estamos, para não dizer o dia do ano. Apenas porque um desses idiotas confundiu terça com quarta-feira... bem, não é algo para ser levado a sério, é? Olhe, meu tio administrou esta aldeia como se fosse seu passatempo pessoal por uma boa razão. Ele sabia que, sem a proteção de alguém, o povo daqui jamais sobreviveria. Não estão equipados para o mundo moderno. - De repente, Hawkin pareceu esgotar seu repertório de veneno. Correu a mão pelos cabelos e conseguiu dar um de seus fabulosos sorrisos. - Acredite, inspetor, não saí de meu laboratório na tarde de quarta-feira. Se alguém lhe disse o contrário, enganou-se.
Antes que George pudesse responder, Clough interveio, com a sincronia perfeita que transforma duplas de comediantes em astros. Folheando dramaticamente as folhas de seu bloco de anotações, ele disse, em tom de pedido de desculpas:
- Senhor, foram dois depoimentos dizendo a mesma coisa. Dois indivíduos afirmam que o viram no mesmo lugar, por volta das quatro da tarde de quarta-feira. Se fosse apenas um... Bem, francamente, já vimos o suficiente, nos últimos dias, para compreendermos exatamente seu ponto de vista sobre as pessoas daqui. Contudo, as coisas ficam meio... esquisitas, quando duas pessoas afirmam a mesma coisa.
Desta vez, o sorriso de Hawkin parecia verdadeiro. Pela primeira vez, George teve um vislumbre do que atraíra uma viúva de Scardale, como Ruth Tarter. Ao sorrir, Hawkin parecia tão malicioso quanto o jovem David
. Jovem. E tão inocente quanto este, George acrescentou mentalmente, quanto Hawkin oferecia cigarros aos dois policiais com um gesto amplo.
- Felizmente, há uma explicação perfeitamente razoável - disse, com esforço visível para manter um tom leve.
- E qual seria? - indagou George, inclinando-se para a frente para que o homem acendesse seu cigarro, mas sem permitir que seus olhos se afastassem dos de Hawkin.
- Costumo caminhar pelo vale. Tiro fotografias. Ando por minhas terras para garantir que está tudo bem. E preciso mantê-los com pulso firme ou os muros desabam. Quanto aos portões... - Ele apertou os lábios e balançou a cabeça de um lado para outro. - De qualquer modo, estive nos locais que o senhor mencionou, mas na terça-feira. Obviamente, alguns dos moradores da aldeia me viram andando por lá. Depois que Alison desapareceu, acho que começaram a questionar-se quanto ao dia em que me viram andando pelo campo. Agora, se eu fosse um Carter, Crowther ou Lomas, poderia me dar o benefício da dúvida e todos concordariam que me viram terça-feira. Acontece que sou um forasteiro, de modo que tendem a pensar sempre o pior de mim. Não se esqueçam de que são como crianças, um diz algo e todos concordam. Assim, se havia alguma dúvida no que teoricamente seriam as mentes do pessoal daqui, eles escolheram automaticamente a versão que os faria parecer importantes e me condenaria. - Hawkin recostou-se, cruzando uma perna sobre a outra e revelando um tornozelo ossudo, além de alguns centímetros de pele branca e peluda entre o pijama e o chinelo.
- Tem certeza de que não era quarta-feira? - insistiu George.
- Absoluta.
- E está disposto a assinar um depoimento? - perguntou novamente.
Nada do que Hawkin dissera o convencera de que Mamãe Lomas e Charlie estavam enganados, mas ainda era a palavra dos dois camponeses contra a o dono do solar e das terras. George sabia quem seria a testemunha mais convincente.
Alguns minutos depois, estavam de volta à cozinha. Ruth Hawkin estava sentada, e um cigarro esquecido no cinzeiro próximo transformara-se em oito centímetros de cinzas. Sua mão cobria a boca e os olhos estavam fixos na primeira página de um jornal sobre a mesa, à sua frente.
- Qual é o problema? - perguntou Hawkin, com a voz mostrando mais preocupação pela esposa do que jamais antes, desde que George o conhecia.
Em silêncio, ela empurrou o jornal na direção dos três homens. Era o High Peak Courant semanal, impresso naquela mesma tarde. George olhou para as manchetes, quase sem acreditar no que lia.
PARENTE DETIDO NO CASO DE MENINA DESAPARECIDA
Um homem está sendo interrogado pela polícia de Buxton, no seguimento das investigações do desaparecimento da menina Alison Carter, de Scardale.
O homem é, supostamente, um parente da garota desaparecida de 13 anos, que não é vista desde a tarde de quarta-feira.
Alison levou sua cadela collie, Shep, para uma caminhada pela floresta próxima, junto ao rio Scarlaston, como fazia com freqüência ao voltar da escola.
Policiais com cães farejadores realizaram buscas intensivas durante dois dias naquele vale isolado. Fazendeiros locais vasculharam os anexos de suas propriedades e a Equipe de Resgate de High Peak examinou córregos e valetas mais afastadas, onde Alison poderia ter caído.
Buscas adicionais ocorrerão no fim de semana. A polícia pede que os voluntários apresentem-se no salão da igreja metodista, na estrada ao sul de Longnor, às oito e meia da manhã de sábado.
Segundo informações, o homem detido é parente próximo de Alison Carter e está familiarizado com a área de Scardale, embora não resida no vale há vinte anos.
O homem mora em um albergue para homens solteiros, na periferia de Buxton, e trabalha em uma oficina para deficientes na cidade, onde foi procurado pela polícia ao chegar para trabalhar esta manhã.
Um porta-voz da polícia recusou-se a confirmar ou negar a matéria do Courant, dizendo apenas que as investigações deste caso são bastante amplas.
Entre os interrogados estão os colegas de sala de Alison no Peak Girls
High...
George mal podia acreditar no que lia. O detetive e inspetor-chefe Carver, caçador da fama, não perdera tempo em vazar a história para a imprensa local. Provavelmente, ligara para os repórteres antes mesmo de Peter Crowther chegar à delegacia. George ficou decepcionado. Achava que ele e Clough haviam protegido Crowther ao providenciarem para que se espalhasse a notícia de que o homem detido não tinha ligação com o desaparecimento da sobrinha. Seus cálculos não haviam incluído as fofocas de Buxton e a manchete oportunista do semanário Courant. Este jornal estava nas ruas de Buxton. E graças a ele, Peter Crowther também estava.
Então, viu o rosto sofrido de Ruth Hawkin e lembrou a si mesmo que sua raiva teria de esperar.
- Desculpe-me - disse. - Não há razão para supor que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. Já foi liberado. Esta matéria nem deveria ter sido publicada.
- Sobre o que vocês estão falando? - indagou Hawkin em tom exigente, parecendo realmente confuso. Ele puxou o jornal e leu novamente os primeiros parágrafos. - Não entendo. Quem é este parente detido pela polícia? Por que não fomos informados? E por que o senhor veio me perturbar com essas perguntas inúteis, quando já tinham um suspeito?
- Muitas perguntas de uma só vez - disse George. - Vamos lá, uma a uma. O homem do artigo no jornal é o irmão de sua esposa, Peter Crowther.
- Não pode ser. O irmão de Ruth chama-se Daniel - protestou Hawkin.
- O nome do outro irmão da senhora Hawkin é Peter - insistiu George. Hawkin lançou um olhar penetrante para a esposa.
- Que outro irmão, Ruth? - Sua voz estava tão tensa quanto uma linha de pesca puxando um salmão.
A mulher, emudecida, conseguiu apenas sacudir a cabeça. George veio em seu auxílio:
- Peter Crowther não se ajustava a Scardale, de modo que a família providenciou para que vivesse e trabalhasse em Buxton. Ele não vem a Scardale há vinte anos, e não há razão para supor que tenha estado aqui quarta-feira.
- Mas vocês o prenderam! - objetou Hawkin.
- O jornal não diz isso - falou George, consciente de sua mentira. - O artigo baseia-se em insinuações e em alguns poucos fatos que levam a esta suposição. Peter Crowther foi levado à delegacia para ser questionado porque meu chefe achou que seria melhor interrogá-lo lá que em seu local de trabalho ou no quarto que divide com outro residente do albergue. Ele foi interrogado e já foi liberado. - Voltou-se novamente para Ruth, puxando uma cadeira e sentando-se. - Sinto muito por isso, senhora Hawkin. Conhecemos as circunstâncias e a última coisa que desejávamos era causar-lhe mais transtornos. Gostaria que um de nós explicasse a seu marido ou prefere conversar com ele a sós?
Ela balançou a cabeça. Tirou a mão da boca e estendeu-a para pegar o cigarro apagado, parecendo surpresa por encontrar apenas o filtro e centímetros de cinzas. Clough colocou um cigarro aceso em sua mão, antes que ela conseguisse encontrar os seus.
- Pergunte a Mamãe - disse ela, exausta, dando a Hawkin um olhar suplicante. - Ela contará. Por favor. Eu não posso.
Hawkin levantou-se.
- Malditos camponeses - resmungou ele. Afastando-se da mesa abruptamente, ele saiu da cozinha, batendo a porta às suas costas.
Ruth suspirou e disse:
- Peter estava assustado?
- Temo que sim - respondeu George.
- Bom. - Ela olhou especulativamente para seu cigarro. - Muito bom mesmo.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 21h47
George fora para casa quando seus olhos já não conseguiam mais manter o foco nos depoimentos das testemunhas. Havia comparecido a uma reunião de planejamento entre os policiais fardados e o departamento de investigações criminais para organizarem as buscas dos voluntários pela manhã. Um representante do departamento de águas e esgotos estivera presente para discutirem a drenagem dos dois reservatórios em um raio de seis quilômetros de Scardale, um nas regiões montanhosas mais desoladas e o outro nos montes mais verdes, entre Scardale e Longnor. George considerara sua ânsia por essas buscas quase vampiresca.
Após o término dos arranjos para a manhã, convidara Tommy Clough para um drinque. Haviam dirigido até o minúsculo Baker's Arms e se acomodado no canto mais escuro, cada um com um caneco de cerveja.
- Liguei para o albergue - dissera Clough. - Crowther foi direto para lá depois que o liberamos. Tomou seu chá e saiu uma hora depois. Não disse aonde ia, mas não há nada de anormal nisso. O porteiro acha que ele saiu para tomar alguma coisa. Entretanto, ninguém o procurou, de modo que parece que ele poderia ter evitado a possibilidade de lhe apontarem o dedo.
- Espero que sim. Já tenho muito em que pensar, sem ter de me sentir responsável pelo que acontece a Peter Crowther.
- Não é sua culpa. Se algo acontecer, será culpa do departamento de investigações criminais e de Colin Loftus, o nojento do Courant. Se alguém mereceria ter sido afogado ao nascer, é Loftus.
- Mas eu ordenei a liberação de Crowther.
- E com razão, senhor. Não tínhamos motivos para mantê-lo. O coitado não tem nada a ver com o crime.
- Presumindo que haja um crime - dissera George, devagar.
- Nós dois sabemos que há. Quarenta e oito horas já se passaram e não temos nem rastro da menina, exceto por sinais de uma briga e um pouco de sangue. Está morta, não há dúvida.
- Não necessariamente. Ela pode estar sendo mantida em cativeiro. Clough olhara-o com ceticismo.
- Como o bebê Lindbergh.
- Eu a encontrarei, Tommy - dissera George, com o olhar fixo na cerveja em seu caneco. - Idealmente, viva. Mas, de qualquer modo, encontrarei Alison Carter. Custe o que custar, a senhora Hawkin saberá o que aconteceu com sua filha. - Ele engolira o resto da cerveja com um gole e se levantara. - Vou voltar para ler alguns depoimentos. Você precisa dormir um pouco. Isso é uma ordem.
Tivera de abandonar os depoimentos, quando a fome e a exaustão conspiraram contra sua disposição. Em casa, Anne estava à sua espera, sentada placidamente em sua poltrona, tricotando e assistindo à TV. Alguns minutos depois de seu cansado retorno, ela já colocara uma tigela de sopa na sua frente. Ele sentou-se à mesa da cozinha, quase incapaz de realizar o simples movimento monótono de levar a colher do prato à boca. Às suas costas, Anne fritava bacon picado, cebolas, batatas e ovos.
- Como se sente? - conseguiu perguntar, entre o término de sua sopa e o começo do prato principal.
- Estou bem - disse Anne, sentando-se no outro lado da mesa com uma xícara de chá. - Estou grávida, não doente. Não se preocupe. Não tenho nenhum problema de saúde. Estou mais preocupada com você, que não descansa nem come o suficiente.
George olhou para sua comida, mastigando automaticamente.
- Não posso evitar. Alison Carter tem mãe. Não posso deixá-la sem saber o que aconteceu com sua filha. Fico pensando em como eu me sentiria se meu filho ou filha sumisse, sem que ninguém soubesse o que lhe aconteceu ou onde está, e sem que ninguém pudesse fazer algo para me ajudar.
- Pelo amor de Deus, George, você está assumindo uma carga grande demais! Você não é o único policial responsável pelo que está acontecendo lá. Você se cobra demais - disse Anne, com uma ponta de irritação na voz.
- É fácil dizer isso, mas não consigo me livrar da idéia de que estamos correndo contra o tempo. Talvez ela ainda esteja viva. Enquanto ainda houver esta possibilidade, preciso dar tudo o que puder de mim.
- Mas achei que vocês haviam detido alguém. Certamente você pode descansar um pouco agora! - Ela inclinou-se para encher-lhe a xícara de chá novamente.
George torceu o nariz, e falou em tom pesaroso, embora quisesse brincar:
- Você continua acreditando no que lê no jornal, não é?
- Bem, o Courant não deixou muita margem para dúvidas.
- A matéria do Courant é uma mistura de insinuações e incorreções. Sim, pegamos o tio de Alison Carter. E sim, ele já foi condenado por atentado ao pudor. Aí termina a semelhança entre a verdade e o que foi publicado pelo jornal. O sujeito tem medo da própria sombra. Definitivamente não bate bem. Tudo o que já fez de errado foi expor seus genitais, e isso foi muitos anos atrás. Porém, quando o chefe de polícia Carver descobriu sobre o infeliz, ficou todo excitado e partiu com a mesma rapidez do Sputnik.
- Bem, nem se pode culpá-lo, George. Você está todo agitado com este caso. Não me surpreenderia se alguém perdesse o senso de proporção. O tio deve ter parecido um suspeito óbvio. Pobre homem - disse Anne. - Deve ter ficado apavorado. Este caso parece cheio de dor - falou ela, balançando a cabeça.
- E parece que isso não vai terminar tão cedo. - Ele afastou o prato vazio. - Na maioria dos casos, podemos ver alguma saída e sempre está claro quem fez o quê, ou, na pior das hipóteses, para onde deveríamos estar olhando. Neste, as coisas são diferentes. Topamos com becos sem saída e cantos escuros a todo momento. Eles vasculharam todo o vale e não encontraram nada que nos leve a Alison Carter. Alguém deve saber o que aconteceu à menina. - Ele suspirou, exasperado. - Ah, como eu queria descobrir quem!
- Você descobrirá, querido - disse Anne, reabastecendo-o de chá. - Se alguém é capaz disso, é você. Agora, tente relaxar. Amanhã você verá tudo com novos olhos.
- Espero que sim - exclamou George, com fervor. Estendeu a mão Para pegar seus cigarros, mas, antes que pudesse tirar um do maço, o telefone tocou. - Ah, meu Deus. Lá vamos nós novamente.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 22h26
George inclinou-se para a frente, no banco do passageiro do Zafira de Tommy Clough, olhando intensamente através do pára-brisa. Lá fora, os feixes de luz que vinham dos postes iluminavam porções oblíquas de granizo e neve que giravam no vento como cortinas de renda apanhadas por uma corrente de ar. Entretanto, não era no clima que George estava interessado. O que o interessava era o conflito feroz que ocorria no lado de fora do albergue para solteiros, em Waterswallows, e que se mostrava apenas intermitentemente, sob os fachos de luz.
- Quase não dá para acreditar - disse, sacudindo a cabeça. - Eu acharia que, em uma noite como esta, qualquer um adoraria sair do bar e ir direto para casa. Você não preferiria estar na frente de sua lareira, em vez de se arriscar a uma pneumonia dupla e a umas porretadas de um policial mais exaltado?
- Depois de algumas cervejas, nem se percebe o frio - disse Clough, cinicamente. Ele mesmo estava no bar, quando ouviu falar que um grupo de linchadores estava a caminho do albergue em Waterswallows. Parando apenas para ligar para a delegacia, ele fora direto até a casa de George, sabendo que o chefe já teria sido avisado. Agora, observavam enquanto uma equipe de doze policiais fardados dispersava o grupo de cerca de trinta bêbados irados com um grau de selvageria tão coreografado quanto um balé. George sentiu uma gratidão profunda por aquilo acontecer em um clima que impossibilitava fotos. A última coisa de que precisava era de um punhado de defensores de direitos civis afirmando que os policiais agiam com truculência, quando apenas tratavam de garantir que um bando de justiceiros embriagados não teria a oportunidade de liquidar com um homem inocente.
Subitamente, três dos homens que brigavam apareceram na frente do carro - dois policiais fardados e um homem com ombros imensos e o rosto pingando sangue. Um cassetete subiu e desceu nos ombros do sujeito e ele caiu inconsciente, atravessado sobre o capô do Zafira.
- Ah, mas que bom. Agora podemos acusá-lo também de dano intencional - afirmou Clough, com ironia, enquanto um policial algemava o homem, puxando seus braços para as costas, e o deixava escorregar lentamente até o chão. No capô, restou uma trilha de sangue e baba.
- Suponho que é melhor darmos uma mãozinha - falou George, com todo o entusiasmo de um homem que enfrenta um tratamento dentário sem anestesia.
- É o senhor quem manda, mas talvez só aumentemos a confusão, já que estamos à paisana.
- Tem razão. É melhor ficarmos aqui até que a coisa esfrie.
Eles observaram em silêncio, por mais dez minutos. A essa altura, uma dúzia de homens em estados variados de consciência se amontoava, no fundo de um camburão. Dois policiais seguravam lenços contra o nariz, enquanto outro procurava o quepe que perdera no tumulto. Bob Lucas apareceu, com a gola de sua capa de chuva levantada. Abriu a porta de trás e mergulhou dentro do carro.
- Mas que noite! - disse, com voz azeda. - Vocês sabem de quem é a culpa disso, não?
- Do Courant? - indagou Clough, com inocência na voz.
- Pode apostar - disse Lucas. - Melhor ainda, a culpa é de quem achou que o Courant deveria saber sobre Peter Crowther. Eu o esfolaria vivo se achasse que foi um de meus homens.
- Bem - disse Clough, com um suspiro -, sabemos que não foi um de seus homens, Bob. Nenhum dos policiais fardados teria coragem de oferecer informações sigilosas à imprensa. - Ele suavizou o insulto velado com um sorriso torto. - Você os treinou bem demais para isso.
- Crowther está seguro? - indagou George, virando-se no assento e estendendo a mão para oferecer um cigarro ao sargento.
- Ele não está aqui - disse Lucas, pegando um cigarro. - Depois que o soltamos, ele voltou, tomou chá e saiu novamente. Todos devem estar no albergue às nove da noite, quando fecham as portas. O diretor do albergue diz que Crowther não apareceu. Deu quinze minutos de tolerância, por compreender que o coitado tivera um dia difícil, mas depois trancou tudo como sempre. Diz que ninguém tocou a campainha ou bateu na porta antes de este bando aparecer por aqui. Felizmente, teve o juízo de não atendê-los e eles não conseguiram invadir, antes de aparecermos.
- Então, onde ele está? - perguntou Clough, abrindo uma fresta do vidro para que o vento pudesse levar a fumaça.
- Não temos idéia - admitiu Lucas. - Em geral, Crowther vai ao Wagon tomar uns goles, de modo que pensei em passar lá no caminho para a delegacia e ver o que eles têm a dizer.
- Faremos isso agora - disse George, contente porque a ação o distraía da preocupação constante com a investigação.
- Ainda preciso acertar alguns pontos aqui - protestou Lucas.
- Muito bem. Faça isto. Nós veremos o dono do Wagon.
George falara em tom definitivo. Lucas lançou-lhe um olhar rancoroso, tragou fundo o cigarro e saiu do carro sem dizer mais nada. Se lhe perguntassem, diria que a porta da viatura só batera por causa do vento.
- Conhece o dono do Wagon? - perguntou George, enquanto Clough guiava com cautela pela pista escorregadia.
- Ferguson, o Punho? Conheço.
- Punho?
- É. Foi boxeador profissional. Dizem que aceitou suborno para perder uma luta, foi pego e perdeu sua licença. Depois, sobreviveu por algum tempo no circuito ilegal de luta livre e ganhou o suficiente para comprar o bar.
- É incrível como qualquer um consegue um alvará para ter um bar - comentou George, ao estacionarem junto ao meio-fio na frente do nada convidativo Wagon Wheel. Não havia luzes acesas por trás das portas fechadas e cortinas das janelas.
- O bar está em nome da mulher dele.
Saíram depressa do carro, foram até a lateral do prédio e tiveram de se espremer entre uma pilha de engradados para protegerem-se da chuva-Clough golpeou a porta.
- Eu não me incomodaria de fazer buscas neste lugar amanhã com reforços, se as coisas continuarem como estão - disse, levantando a cabeça para enxergar as janelas no piso superior. Bateu com força na porta outra vez.
Um quadrado amarelo pálido apareceu acima de suas cabeças. Um homem careca espiou para fora, obscurecendo a maior parte da luz.
- Abra, Punho, é Tommy Clough.
Ouviram passos que soavam como trovões descendo as escadas. Ferrolhos foram destrancados e então a porta se abriu, revelando um homem que preenchia quase todo o espaço disponível no corredor estreito. Ele usava um conjunto de blusão e casaco de lã que um dia já havia sido branco, mas agora tinha a cor de ranho seco.
- Mas que raios vocês querem a esta hora da noite? Se estão atrás de bebida, podem desistir. - Ele coçou os testículos lentamente, sem o menor pudor.
- Bom vê-lo também, Punho - disse Clough. - Tem um minuto? Ferguson deu um passo para trás, com relutância. Entraram, com George na retaguarda.
- E quem é este? - indagou Ferguson, apontando para ele com um dedo gordo.
- Meu chefe. Diga olá para o detetive-inspetor Bennett.
Ferguson fez um estranho ruído gutural que George tomou como risada.
- Parece jovem o bastante para ser seu filho. Qual é o problema? Deve ser algo bem mais sério que uma saideira para trazer o chefe, Tommy.
- Peter Crowther costuma beber aqui - disse Clough.
- Depois desta noite não bebe não - disse Ferguson, com as mãos fechando-se inconscientemente em punhos. - Não vou deixar que alguém que se mete com mocinhas freqüente meu bar.
- O que aconteceu esta noite? - indagou George.
- Crowther apareceu na mesma hora de sempre. Achei-o bem corajoso - mas a verdade é que o infeliz pensava que ninguém sabia que ele havia Passado o dia todo no xadrez. Esfreguei o jornal em seu nariz e ele praticamente explodiu em lágrimas. Eu lhe disse que se quisesse beber em Buxton hoje era melhor encontrar um bar cheio de analfabetos. Depois, proibi sua entrada aqui pelo resto da vida. - Ferguson inflou o peito e jogou os ombros para trás.
- Teve muita coragem - disse George, em tom seco. - Então o senhor Crowther foi embora?
- Claro que sim - disse Ferguson, indignado.
- Sabe para onde ele foi? - perguntou Clough.
- Não sei e não dou a mínima - disse Ferguson, desinteressado.
- Só para sua informação, senhor Ferguson - disse George. - o senhor Crowther não teve nada a ver com o desaparecimento de sua sobrinha. A matéria publicada no Courant não passa de invencionice. Eu agradeceria se cancelasse a proibição ao ingresso de Crowther aqui antes da renovação de seu alvará de funcionamento. - Ele girou nos calcanhares e saiu novamente para a rua, com a impressão de que o clima lá fora parecia mais hospitaleiro que o dono do bar.
- Acho melhor dar ouvidos ao senhor Bennett - disse Clough, seguindo o chefe. - Ele ficará por aqui por um bom tempo.
Ferguson olhou furioso para as costas de George, mas não disse nada. Os dois sentaram no carro e olharam desanimados para a chuva com neve.
- É melhor voltarmos à delegacia e requisitar uma procura por Crowther pelas ruas. - George suspirou. - Você acha que amanhã será um pouquinho melhor que hoje?
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 7h18
Não havia muito com que pudesse contribuir nos planos de buscas que os policiais mais experientes faziam para o dia, de modo que George voltou a seu escritório e retomou a cansativa tarefa de examinar os depoimentos de testemunhas, em busca de algo que pudesse produzir uma pista. Estava lendo uma entrevista com a professora de inglês de Alison quando Tommy Clough enfiou a cabeça na porta para perguntar-lhe:
- Já leu o Daily News desta manhã?
- Não. A banca de jornais ainda estava fechada quando passei por lá. Clough entrou e fechou a porta.
- O trem acabou de chegar de Manchester. O maquinista me deu este.
- Acho que você não gostará da novidade. - Ele largou o jornal na frente do chefe, dobrado e aberto na página 3.
Vidente une-se às buscas por Alison Da Redação
Uma conhecida vidente francesa revelou com exclusividade ao Daily News que Alison Carter ainda está viva. A mulher ofereceu seus serviços nas buscas à menina de 13 anos, cujo desaparecimento desafia a polícia.
Os poderes de Madame Colette Charest já impressionaram a polícia de seu país e ela acredita que pode ajudar a encontrar a menina, que desapareceu de casa quarta-feira passada.
Com a permissão dos pais de Alison, um membro de nossa equipe de jornalismo telefonou para Madame Charest e lhe deu detalhes sobre os movimentos de Alison depois que a menina voltou da escola à aldeia de Scardale, em Derbyshire, onde morava com a mãe e o padrasto.
Viva e em segurança.
Madame Charest disse estar convencida de que a menina ainda está viva.
"Alison está em segurança", disse ela ao nosso repórter. "Foi embora de carro, com alguém que conhecia. Está em uma casa pequena, uma entre muitas semelhantes. Acho que é em uma cidade grande, mas a muitos quilômetros de sua aldeia. Já esteve em perigo, mas creio que está em segurança, por enquanto."
Madame Charest explicou que não podia oferecer informações mais detalhadas sem uma fotografia de Alison e um mapa da área. O material foi enviado a Lyon, na França, por correio aéreo especial, e um relatório completo das conclusões de Madame Charest será publicado na edição de segunda-feira do News.
Esforços da polícia
Um porta-voz da polícia disse: "Não temos planos de consultar videntes, embora não possamos desmerecer os comentários de Madame Charest. Já vimos as coisas mais estranhas acontecerem."
Sobre Madame Charest, policiais franceses disseram que seus poderes são "misteriosos", depois que obtiveram seu auxílio em casos nos quais a polícia não tinha pistas.
Se o clima permitir, membros da comunidade se juntarão hoje à polícia de Derbyshire em novas buscas nos pântanos e vales no entorno de Scardale.
George amassou o jornal, transformando-o em uma bola, e o jogou no outro lado da sala.
- Maldito Don Smart - praguejou, com as faces vermelhas sob as olheiras fundas. - Dá para acreditar nisso? Viva e em segurança?
- Suponho que é possível. - Clough encostou-se em um arquivo de metal e acendeu um cigarro.
- Claro que é possível - explodiu George. - É possível que Martin Bormann
esteja vivo, saudável e vivendo em Chesterfield, mas não é nem um pouco provável, ora! O que isso fará com Ruth Hawkin? Não posso acreditar que um jornal possa ser tão irresponsável! E quem fez aquele comentário idiota sobre não desmerecer a vidente?
- Ninguém. Provavelmente Smart inventou a declaração.
- Ah, meu Deus - suspirou George. - O que mais nos espera, Tommy - Ele tirou um cigarro do maço que já estava aberto sobre a mesa
inalou profundamente. - Vou lhe comprar outro jornal - disse, como um pedido de desculpas. - Qualquer coisa que você quiser, exceto o Daily Neivs. Deus, esse indivíduo estará na coletiva da imprensa, todo sorridente e faceiro.
- Você poderia pedir que o superintendente proibisse a entrada de Smart.
- Não vou lhe dar esse prazer. - George empurrou sua cadeira para trás e se levantou. - Vamos a Scardale. Estou enjoado de olhar para essas paredes.
Smart já estava lá quando chegaram. Ao estacionarem na praça da aldeia, eles o viram empurrando um jornal para dentro da caixa de correspondência da Casa do Rochedo. Enquanto observavam, Smart seguiu até a Casa da Campina e entregou ali outro exemplar.
- Vou dar um jeito nele - disse George, abrindo a porta do carro e atravessando a praça a passos largos para confrontar o jornalista.
Com um suspiro, Clough saiu e o seguiu.
- Parabéns - rosnou George, enquanto ainda estava a alguns passos de Smart.
- Boa matéria, não? - disse Smart, com sua cara de raposa agradavelmente surpresa. - Juro que pensei que um homem letrado como você não a apreciaria.
- Ah, eu não estava dando parabéns pela matéria - disse George, agora muito próximo. - Estava dando parabéns por seu prêmio.
- Prêmio?
Clough não acreditava que Smart mordera a isca. Ele mordeu o lábio, Para esconder seu sorriso.
- Sim, seu prêmio - continuou George, com gentileza obviamente falsa. - o Prêmio da Polícia para o Jornalista Irresponsável do Ano.
- Ah, inspetor, não lhe ensinaram na universidade que o sarcasmo é a demonstração mais desprezível de esperteza? - Smart encostou-se na parede da Casa da Campina e cruzou os braços no peito.
- Ninguém ganhará o título de nada mais desprezível enquanto você estiver vivo, Smart. Será que chegou a considerar, por um minuto, a cruel dade de aumentar as esperanças da senhora Hawkin com sua matéria?
- Está dizendo que ela deveria abandonar as esperanças? Este é o ponto de vista da polícia? - Smart inclinou-se para a frente, com olhos alertas, coçando a barba.
- Claro que não. Mas o que ofereceu aquele lixo que você escreveu foram falsas esperanças. Agarrou-se à manchete chamativa, sem pensar nas conseqüências. - George sacudiu a cabeça, desgostoso. - Esta Madame Charest existe? Ou você a inventou, assim como fez com a declaração do policial?
Agora foi a vez de Smart tornar-se rubro de raiva. Sua pele tinha a aparência de carne enlatada, manchada de pontos de rubor e pedaços mais pálidos.
- Eu não invento nada. Tenho a mente aberta. Seria muito bom se você fizesse o mesmo, inspetor. E se Madame Charest estiver certa? E se Alison estiver a quilômetros daqui, trancada em uma casa em Manchester, Sheffield ou Derby? Por acaso pensaram nesta possibilidade?
George puxou o ar com força, incrédulo.
- Está dizendo que deveríamos bater de porta em porta em cada cidade da Inglaterra, para talvez confirmar que uma charlatã francesa teria dado sorte com suas previsões fantasiosas? Você é ainda mais estúpido do que eu pensava.
- Claro que não é isso que estou dizendo. Mas você poderia fazer um apelo na imprensa. Seria algo como "Você viu esta garota? Acredita-se que Alison Carter possa estar com algum conhecido. Se alguém em sua vizinhança recebeu uma adolescente nos últimos dias, ou se você conhece alguém que tenha ligação com alguém de Scardale ou Buxton cujo comportamento lhe pareça estranho ultimamente, entre em contato com a polícia de Derbyshire". Isto é o que pretendo sugerir ao seu chefe na coletiva da imprensa, mais tarde. - Smart endireitou o corpo, com expressão de triunfo. - Sim, pretendo fazer esta sugestão. Quero ver sua cara de bobo, sentado ao lado dele, quando o chefe disser que a idéia é ótima.
- Sabe de uma coisa, Smart? Você é um doente. - Foi apenas o que George conseguiu dizer, sabendo que sua resposta era tola mesmo enquanto falava.
- Você mesmo disse que faria o que fosse preciso para descobrir o que aconteceu com Alison Carter. Acreditei em suas palavras. Achei que era um homem especial, George. No fim das contas, me enganei e você é tão tacanho quanto os outros policiais. Bem, que Deus tenha piedade de Alison Carter, se você é tudo o que lhe resta.
Smart deu um passo para o lado, tentando passar por George, mas este plantou a mão em seu peito. Não chegou a empurrá-lo, mas o manteve com firmeza onde estava.
- Vou descobrir o que aconteceu com Alison - disse, com a voz rouca de emoção. - E quando eu descobrir, você será o último a saber. - Deu um passo para trás e liberou o jornalista, que ficou parado a olhá-lo.
Então, Smart sorriu, mas a linha tensa e fina que formava o sorriso não chegava a disfarçar o brilho duro em seus olhos.
- Ah, eu duvido muito - falou. - Pode ser que você não goste da idéia, George, mas você e eu somos muito parecidos. Não nos importamos com quem magoamos, desde que façamos nosso trabalho da melhor maneira possível. Você pode não concordar comigo agora, mas quando for para casa e conversar com sua adorável esposa, saberá que tenho razão.
George inspirou com tanta força que seu peito inflou-se sob o casaco. Clough deu um passo à frente depressa e pousou a mão no braço do chefe.
- Acho melhor ir andando, senhor Smart - disse, bastando um olhar para seu rosto para que o jornalista passasse pelos dois e se encaminhasse rapidamente para seu carro.
- Que pena eu pegaria se eliminasse o sorriso da cara dele com um cassetete? - perguntou George, através de seus lábios esticados de raiva.
- Depende de o juiz conhecer Smart ou não. Aceita um chá?
Foram juntos até o trailer onde, mesmo tão cedo, as policiais já coavam chá. George fixou o olhar em uma xícara e falou baixinho:
- Suponho que você já trabalhou em casos assim antes, Tommy. Cheio de becos sem saída e frustrações...
É, um ou outro - admitiu Clough, mexendo três colheres de açúcar em seu chá. - Acontece que precisamos ir em frente. Pode parecer que estamos batendo com a cabeça em uma parede de tijolos, mas, com muita freqüência, parte da parede é de papelão pintado como tijolo. Mais cedo ou mais tarde aparece uma saída. E ainda é cedo, embora não pareça.
- E se a saída não aparecer? E se nunca descobrirmos o que aconteceu com Alison Carter? O que acontecerá? - George olhou para cima, com os olhos cheios de apreensão acerca do significado de um fracasso, em termos tanto pessoais quanto profissionais.
Clough respirou fundo e, depois, expirou lentamente.
- Se isso acontecer, o senhor pegará seu próximo caso. Levará sua esposa para dançar, irá ao bar tomar umas cervejas e tentará não ter insônia preocupando-se com o que não pode ser mudado.
- E esta receita dá certo? - perguntou George, sombrio.
- Não sei, senhor, eu não tenho esposa.
O sorriso apertado de Clough não disfarçava o que ambos sabiam. Se não descobrissem o destino de Alison Carter, ambos guardariam as marcas do fracasso para sempre.
- A minha está grávida - disse George, quase sem perceber que falava.
- Parabéns - a voz de Clough saiu curiosamente sem entonação. - Não é o melhor dos momentos para receber este tipo de notícia. Como está a senhora Bennett?
- Até aqui, sem problemas. Ainda não está sentindo enjôos. Só espero... bem, só espero que tudo dê certo, porque não posso ignorar esta investigação, não importa o tempo que demore. - George olhou pelas janelas embaçadas do trailer, sem perceber que o céu se iluminava gradualmente, sinalizando o começo de outro dia de buscas.
- Não seguiremos neste ritmo por muito tempo, sabe? - disse Clough, lembrando a George o que ele sabia em teoria, mas não por experiência própria. - Se não a encontrarmos depois de dez dias, ou, digamos, até o próximo fim de semana, cessaremos as buscas. Fecharemos a central de operações e voltaremos para Buxton. Ainda seguiremos todas as pistas, mas, se não avançarmos depois de um mês, o caso ficará em segundo plano. Você e eu já estaremos envolvidos com outros casos, mas não fecharemos este. Permanecerá em aberto e examinaremos a situação de três em três meses, mais ou menos, mas não trabalharemos tanto quanto agora.
- Eu sei, mas há algo neste caso. Quando eu era detetive em Derby, trabalhei em um caso de assassinato não resolvido, mas não me envolvi tanto quanto estou envolvido com este. Talvez porque a vítima estivesse na casa dos cinqüenta anos. Pelo menos já vivera um bom bocado. Agora, parece-me, a cada dia mais, que não encontraremos Alison com vida, e isto me enche de raiva, porque ela mal havia começado a viver. Mesmo se o destino da menina fosse ficar em Scardale, ter filhos e tricotar casacos, isto lhe foi negado e quero que a lei faça o mesmo com quem lhe tirou o futuro. Só lamento não enforcarmos mais esses imundos.
- Então ainda defende o enforcamento? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente em sua cadeira.
- Sim, em casos de assassinato a sangue-frio. É diferente com assassinatos por impulso. Eu colocaria esses em prisão perpétua, dando-lhes tempo suficiente para arrependerem-se do que fizeram. Mas o tipo de monstro que rapta crianças, ou os animais que matam um inocente porque estava no caminho durante um assalto, sim, eu os enforcaria. Você não faria o mesmo?
Clough demorou para responder.
- Eu achava que sim, mas alguns anos atrás li um livro sobre o caso de Timothy Evans, Ten Rillington Place. Todos acreditavam que ele havia matado a esposa e a filha pequena. A polícia tinha até uma confissão. Depois descobriram que o senhorio de Evans assassinou pelo menos quatro outras mulheres, de modo que provavelmente foi ele que assassinou Beryl Evans. Agora é tarde demais para irem até Timothy Evans dizendo: "Desculpe aí, camarada, fizemos uma tremenda confusão."
George deu-lhe um meio-sorriso de concordância.
- Talvez. Mas não posso assumir responsabilidade pelos erros e imperícia de outros. Acho que nunca faria com que um homem inocente confessasse e estou disposto a arcar com meus atos. Se Alison Carter foi assassinada,
Início de Nota de Rodapé: Timothy Evans foi enforcado em 1950, na Inglaterra. Seu senhorio, John Christie, oferecera-se para ajudar a esposa de Evans na realização de um aborto, ilegal na época, mas a mulher morreu durante o procedimento. Christie ofereceu-se para livrar-se do corpo e disse a Evans que, se este cooperasse, cuidaria de seu bebê. Evans viajou por imposição de Christie, mas, duas semanas depois, foi à polícia e confessou o assassinato da esposa. Ao chegarem à residência, os policiais descobriram os corpos da filha e da esposa de Evans, que, sem conseguir provar sua inocência e incriminado pelo senhorio, foi condenado à morte. Posteriormente, Christie assassinou a própria esposa e também morreu enforcado. Fim da Nota de Rodapé.
como achamos que provavelmente foi, então eu adoraria ver o canalha pendurado e balançando na forca.
- Se esse monstro usou arma de fogo, talvez ainda seja possível enforcá-lo. Não se esqueça de que ainda há enforcamento para isso.
George não teve tempo de responder. A porta abriu-se de repente e Peter Grundy parou, emoldurado pelo batente, com o rosto cinzento como os rochedos de Scardale.
- Encontraram um corpo - falou.
12
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 8h47
O corpo de Peter Crowther jazia protegido do vento por uma parede de calcário, a uma distância de, no máximo, cinco quilômetros ao norte de Scardale. Estava encolhido em posição fetal, com os joelhos junto ao queixo e os braços envolvendo os tornozelos. A geada da noite, que tornava as estradas traiçoeiras, lhe dera uma cobertura branca semelhante a açúcar cristal, tornando-o quase belo à primeira vista. Entretanto, a morte era indubitável.
Ela estava lá, na pele azulada, olhos arregalados e baba congelada no queixo. George Bennett olhou para a casca de um ser humano, com o reconhecimento congelando-o mais que a temperatura cruel. Ele olhou para o céu miraculosamente azul, estranhamente surpreso porque o sol de inverno brilhava como se houvesse algo a celebrar. Ele certamente nada tinha para comemorar. Sentia-se nauseado, tanto física quanto espiritualmente. O gosto da responsabilidade azedava-lhe a boca. Não fizera direito seu trabalho e, agora, havia um homem morto.
Abaixou a cabeça e virou-se, deixando Tommy Clough agachado junto ao corpo, em um exame rápido. Cruzou o portão para o campo, onde dois Policiais estavam dentro de uma viatura para proteger o local até a chegada da perícia.
- Quem encontrou o corpo?
- Um camponês, Dennis Dearden. Bem, em termos técnicos, seu cão Pastor foi quem encontrou o corpo. O senhor Dearden saiu de casa assim que o sol nasceu para verificar o gado, como sempre faz. O cão alertou-o sobre a presença do cadáver - disse o policial mais velho.
- E onde está Dearden agora?
- Em sua casa, mais adiante na estrada. - O policial apontou para um chalé, a algumas centenas de metros dali.
- Estarei lá, se alguém precisar de mim.
George caminhou pela estrada com os passos tão pesados quanto seu coração. Na entrada para a pequena casa, parou para recompor-se. Antes que pudesse bater, a porta abriu-se e um rosto semelhante a uma maçã murcha apareceu na sua frente, com olhos pequenos e castanhos fazendo as vezes de sementes em cada lado de um nariz tão disforme quanto uma bolota de creme.
- Então, você deve ser o chefe - disse o homem.
- Senhor Dearden?
- Sim, rapaz, estou sozinho em casa. Minha patroa foi visitar a irmã em Bakewell. Sempre vai para lá durante alguns dias em dezembro, compra todos os presentes de Natal na feira. Entre, você deve estar congelando aí fora.
Dearden deu um passo para trás e levou George a uma cozinha ensolarada. Tudo brilhava: o esmalte do fogão, a madeira da mesa, as cadeiras e prateleiras, o cromo da chaleira, os copos em um armário de canto, até mesmo o aquecedor a gás.
- Sente-se junto ao fogo, aqui. - Dearden acrescentou hospitaleiro, empurrando uma cadeira na direção de George. O homem sentou-se, rígido, e sorriu. - Está melhor, não é? Aqueça um pouco seus ossos. Mas que coisa, sua aparência está pior que a de Peter Crowther.
- O senhor o conhecia?
- Para falar a verdade, não. Mas sabia quem era. Tenho feito alguns negócios com Terry Lomas, ao longo dos anos. Conheço todo mundo em Scardale. Vou lhe dizer, por um minuto terrível, lá fora, achei que fosse a menina. Acho que, como todos por aqui, não consigo tirá-la da cabeça. - Ele puxou um cachimbo de urze do bolso de seu colete e começou a limpá-lo com um canivete. - Que coisa horrível. A pobre mãe deve estar morta de preocupação. Nós todos estamos atentos para garantir que a menina não esteja ferida em alguma valeta ou escondida em alguma estrebaria ou estábulo. Assim, é claro que quando vi... bem, minha conclusão natural foi a de que devia ser a jovem Alison. - Ele fez uma pequena pausa para encher o cachimbo, dando a George a primeira oportunidade para manifestar-se.
- O que aconteceu, exatamente? - indagou, aliviado, porque, finalmente, deparava-se com uma testemunha aparentemente ansiosa para oferecer informações. Depois de apenas três dias em Scardale, ele já começava a tomar gosto pela tagarelice.
- Assim que abri o portão, Sherpa saiu correndo junto ao paredão do rochedo. Eu soube logo que havia algo estranho ali. Ela não é o tipo de cadela que saia correndo assim, sem mais nem menos. Então, no meio do campo, ela se atirou de barriga, como se tivesse caído. Com a cabeça baixa e entre as patas da frente. Eu podia ouvi-la ganindo de longe. Como se tivesse topado com uma ovelha morta, mas eu sabia que não era uma ovelha, porque o campo está vazio nesta época. Abri o portão porque é um atalho para aquele lugar. - Dearden acendeu um fósforo e chupou seu cachimbo. O tabaco encheu o ar de aroma de cereja e cravo-da-índia. - Sirva-se se quiser, rapaz - disse ele, empurrando um saquinho de fumo oleado até George. - A mistura de fumos é criação minha.
- Não, obrigado. - George pegou um de seus cigarros e fez uma expressão de quem pede desculpas.
- Ah, sim, você não tem tempo para nada mais complicado que um cigarro em seu trabalho. Ainda assim, deveria pensar em fumar cachimbo. Faz maravilhas para a concentração. Se me colocarem em algum lugar onde não permitam fumar, mal poderei completar as palavras cruzadas mais simples. - Ele fez um gesto com o polegar na direção do Daily Telegraph do dia anterior. George tentou não mostrar que estava impressionado. Todos sabiam que as palavras cruzadas do Telegraph eram mais fáceis que as do The Times, mas não era pouca coisa completá-las regularmente. Obviamente, por trás da língua solta de Dennis Dearden, havia um cérebro afiado.
- Assim, quando vi o comportamento da cadela, meu coração saltou. A única pessoa desaparecida, pelo que eu sabia, era Alison. Não suportei a ideia de ver seu cadáver a alguns minutos de minha porta da frente. Assim, corri pelo campo que nem louco, o que não significa que seja muito rápido, atualmente. Detesto dizer, mas me senti um pouco aliviado quando vi que era Peter.
- O senhor chegou a tocar no corpo?
- Nem precisei chegar tão perto. Eu pude ver que Peter não se levantaria mais, antes de chegar até ele. - O homem sacudiu a cabeça, pesaroso. - Coitado daquele maluco. Tinha de escolher a pior das noites para vir até Scardale a pé. Ficou longe daqui por tempo demais e esqueceu o que temperaturas como as de ontem à noite podem fazer com seres humanos. Aquela chuvinha com neve atravessa a pele. Depois, quando o céu fica limpo e a geada começa a cair, não se tem mais resistência. Só se continua em frente, mas o frio penetra até os ossos. Então, tudo o que se deseja fazer é deitar e dormir para sempre. Acho que isso foi o que Peter fez ontem à noite. - Ele chupou o cachimbo, deixando escapar de sua boca um fio gordo de fumaça. - Ele deveria ter parado em Buxton. Sabia como manter-se em segurança na cidade.
George apertou a boca contra o cigarro, pensando que não, Peter Crowther não sabia mais como manter-se em segurança. Suas opções haviam se esgotado. O terror de perder apenas o segundo lugar em que se sentira seguro o trouxera de volta, apesar do medo, ao lugar que o rejeitara. George temera exatamente isto. Apesar de suas preocupações, porém, permitira que Tommy Clough o persuadisse a liberar Crowther, porque era o modo mais conveniente de lidarem com o problema. E graças a um chefe fofoqueiro e a um jornal sensacionalista, agora Peter Crowther estava duro e congelado em um pasto de ovelhas de Derbyshire.
- Sua fazenda é um pouco afastada do caminho que alguém faria, vindo de Buxton a Scardale, não é? - indagou. Apenas isso lhe dava motivo para duvidar da teoria de Dearden sobre a forma como Crowther morrera.
- Você está pensando como um motorista, rapaz - disse Dearden, rindo baixinho. - Peter Crowther pensava como alguém que cresceu andando por esses vales. Volte e dê uma olhada em um mapa. Se traçar uma linha de Scardale a Buxton, evitando o pior das subidas e descidas, terá de passar direto por este campo. Antigamente, antes dos Land Rovers, eu via alguém de Scardale cruzar minhas terras pelo menos uma vez por dia. Não está marcado como uma trilha no mapa, é claro. Não é um caminho público, mas qualquer um por aqui respeita o gado dos outros, de modo que nunca me aborreci, nem meu pai antes de mim, e deixo que o pessoal de Scardale use minhas pastagens como atalho. - Ele sacudiu a cabeça. - Nunca pensei que um deles encontraria a morte neste trajeto.
George levantou-se.
- Obrigado pela ajuda, senhor Dearden. E por permitir que eu me esquentasse um pouco. Voltaremos para tomar um depoimento formal, pedirei que alguém lhe avise quando removerem o corpo.
- Muito obrigado. - Dearden seguiu-o até a porta da frente e espiou para fora, além de George, para o Jaguar marrom estacionado com duas rodas sobre o canteiro. - Deve ser o legista.
Quando George voltou pela mesma estrada e chegou ao campo, o legista da polícia levantava-se e corria as mãos por seu casacão bege de ombros largos para espaná-lo. Ele espiou George com curiosidade através dos óculos quadrados com armação preta e pesada.
- E você é?... - indagou.
- Este é o detetive-inspetor Bennett - interveio Clough. - Senhor, este é o doutor Blake, legista. Ele acabou de realizar um exame preliminar.
O médico concordou, com um breve aceno de cabeça, dizendo:
- Bem, obviamente está morto. Pela temperatura retal, eu diria que o óbito ocorreu entre cinco e oito horas atrás. Nenhum sinal de violência ou ferimento. Pelo modo como está vestido, sem sobretudo, sem roupa impermeável, eu diria que a causa mais provável foi exposição ao frio. É claro que só saberemos com certeza após a necropsia, mas eu diria que as causas foram naturais. A menos que se encontre um modo de responsabilizar o clima de Derbyshire por assassinato - acrescentou, retorcendo a boca com ironia.
- Obrigado, doutor - disse George. - Sendo assim, a que horas ocorreu a morte? Entre uma e quatro da madrugada?
- Humm, então não é apenas mais um detetive inspetor de carinha bonita? Ah, sim, você deve ser aquele com estudos universitários sobre o qual temos ouvido falar - disse o médico, com um sorriso condescendente. - Sim, inspetor, é isso mesmo. Depois de sabermos quem é, poderemos até imaginar o que fazia, perambulando pelos pântanos de Derbyshire no meio da noite com um par de sapatos gastos que mal suportariam a temperatura na cidade e não adiantariam nada aqui. - Blake enfiou um par de Pesadas luvas de couro.
Sabemos quem é ele e o que estava fazendo aqui - disse George, em tom brando. Já fora tratado com condescendência por especialistas, e não estava disposto a deixar-se irritar por um pomposo qualquer que não poderia ser mais de cinco anos mais velho que ele. As sobrancelhas do médico levantaram-se.
- Meu Deus! Aí está, sargento, o exemplo perfeito de como a educação aos nossos policiais melhorará a luta contra o crime. Bem, eu os deixarei agora. Terão meu relatório no início da semana que vem. - Ele desviou de George com um aceno sem muita disposição e rumou para o portão.
- Na verdade, senhor, eu gostaria de vê-lo amanhã. Blake parou e virou-se.
- É fim de semana, inspetor, e não pode haver urgência, já que vocês já têm a identidade de seu cadáver e uma razão para encontrá-lo aqui.
- Sim, mas esta morte está ligada a uma investigação mais ampla e preciso do relatório para amanhã. Desculpe-me se isto interfere em seus planos, mas é por isso que este distrito lhe paga tão bem, caro doutor. - O sorriso de George era agradável, mas seus olhos enfrentavam os de Blake sem piscar.
- Muito bem - disse o médico, impaciente. - Mas aqui não é Derby, inspetor. Somos uma comunidade pequena. A maioria tenta manter isto em mente o tempo todo - finalizou, afastando-se depressa.
- Obviamente esta é a minha semana de fazer novos amigos - comentou George, enquanto se voltava para Clough.
- É um tremendo preguiçoso, esse médico - disse Clough, despreocupado. - Já era hora de alguém lembrar-lhe quem paga por seu Jaguar e seu clube de golfe. Seria de pensar que ele sentiria curiosidade para conhecer a identidade de um corpo com o qual lidou com tanta intimidade, não é mesmo? Aposto que fará uma ligação hoje à tarde exigindo o nome para escrever em seu relatório.
- Temos de dar a notícia à senhora Hawkin - lembrou George. - E rápido. Os tambores da aldeia já devem estar transmitindo as notícias. Ela saberá que há um corpo e pensará o pior. - Ele sacudiu a cabeça. - Deve ser um dia bem ruim, quando saber que seu irmão está morto é uma boa notícia.
Kathy Lomas alimentava os porcos, enchendo seus cochos com uma mistura de pontas murchas de nabos, restos de vegetais e sobras de refeições da aldeia. O ruído alto de pés apressados sobre o solo congelado chamou sua atenção e ela se voltou, vendo Charlie Lomas, que corria pelo campo como cães danados o perseguissem. Ele teria passado direto se ela não o tivesse agarrado em meio à sua agitação.
A velocidade com que o garoto vinha fez com que girasse e batesse com toda força na parede do chiqueiro, onde teria caído bem dentro da pocilga, se a tia não segurasse com força sua jaqueta grossa de couro.
- O que houve, Charlie?
Sem ar, ele curvou-se com as mãos nos joelhos e o peito arfando para poder respirar. Finalmente, gaguejou:
- A cadela do velho Dennis Dearden encontrou um corpo no campo. A mão de Kathy voou para o peito, enquanto exclamava:
- Não pode ser, Charlie. Não acredito nisso.
Charlie conseguiu colocar-se semi-ereto, ofegante e ainda encostado na parede.
- Eu estava andando pelas margens do Scarlaston. Coloquei umas armadilhas ilegais lá e queria tirá-las antes da chegada da equipe de buscas. Cortei caminho pela propriedade de Carter e ouvi alguns policiais conversando. É isso mesmo, tia Kathy, encontraram um cadáver nas terras de Dennis Dearden.
Kathy estendeu a mão convulsivamente na direção de seu sobrinho e agarrou-se a ele. Permaneceram no abraço desajeitado até a respiração de Charlie voltar ao normal.
- Precisamos contar a Ruth - disse ela, finalmente.
- Não posso - disse o garoto, balançando a cabeça. - Eu não posso. Eu estava indo contar a Mamãe Lomas.
- Irei com você - disse Kathy, com firmeza, agarrando-lhe o braço acima do cotovelo e marchando com ele pelos campos até o solar. - Esses Malditos - resmungou com raiva, enquanto caminhavam. - Como ousam falar sobre isso antes de contarem a Ruth? Bem, não ficarei esperando decidirem contar-lhe.
Kathy arrastou Charlie até a cozinha do solar, sem bater. Ruth e Philip estavam sentados à mesa da cozinha, tendo à sua frente os restos do desjejum. Do desjejum dele, Kathy percebeu. Achava que Ruth não comera nada além de chá e cigarros desde o desaparecimento da filha.
- Charlie tem algo para contar - disse, sem preâmbulos. Sabia que era inútil tentar adoçar más notícias.
Charlie repetiu sua história com palavras trêmulas, fitando Ruth com ansiedade. Se ela já não estivesse sentada, teria caído. A pouca cor que restava em seu rosto desapareceu, deixando-a com a aparência de um modelo de cera. Depois, começou a tremer como se tivesse febre. Seus dentes batiam e todo o corpo sacudia. Kathy cruzou a cozinha em meia dúzia de passos largos e abraçou-a, embalando-a como fazia com seus filhos.
Philip Hawkin parecia alheio a tudo à sua volta. Como Ruth, empalide-ceu ao ouvir a notícia, mas este foi o único ponto em comum da resposta de ambos. Ele empurrou sua cadeira, levantou-se e saiu da cozinha, como um sonâmbulo. Kathy estava ocupada demais com Ruth para dar atenção ao fato, mas Charlie ficou olhando para o homem, boquiaberto, incapaz de acreditar no que acabara de presenciar.
George notou que Ruth trocara de roupa. Um vestido de jérsei marrom sob um casaco de malha de lã rústica indicava que ela provavelmente fora para a cama e tentara dormir pela primeira vez desde o desaparecimento da filha. As olheiras escuras de insônia denunciavam seu fracasso. Ela sentou-se encolhida à mesa da cozinha, segurando um cigarro entre os dedos trêmulos. Kathy Lomas estava encostada no fogão, com os braços cruzados e a testa franzida.
- Não entendo - disse Kathy. - Por que Peter pensaria em voltar a Scardale agora, com tudo o que está acontecendo?
- Ele não deve ter pensado nisso, Kathy - disse Ruth, com um suspiro. - Nada penetra em sua mente, exceto o que o afeta diretamente. Devia estar chateado por ter sido detido pela polícia. Depois, quando saiu para beber e pensou que estava seguro, sentiu-se aterrorizado pelo dono do lugar. Ele conhece apenas dois lugares, Buxton e Scardale. Por Deus, deve ter sentido o maior medo de sua vida se pensou que voltar a Scardale era a melhor opção. - Ela amassou o cigarro e esfregou o rosto, como se o lavasse. - Não suporto isso.
- Não foi culpa sua - disse Kathy, com amargura. - Sabemos de quem é a culpa - completou, apertando os lábios e lançando um olhar raivoso para George e Clough.
- Não estou falando de Peter. Isso posse suportar. Não sinto pesar por que não suporto é pensar em Alison. Quando Charlie veio voando para contar que havia um corpo na fazenda de Dearden, eu mal pude respirar Era como se me tivessem golpeado no peito. Tudo em mim parou de funcionar.
Mas ela ainda não estava plenamente recuperada quando ele chegara ali pensou George. Ruth estava sentada à mesa, com as mãos sobre a cabeça como se não quisesse ouvir nem ver nada. Kathy fazia-lhe companhia sentada ao seu lado, com um braço passado sobre seus ombros e acarician-do-lhe os cabelos com a outra mão. George não vira sinal de Philip. Ao indagar sobre ele, Kathy dissera, amarga, que o dono do solar empalidecera ao ouvir a notícia sobre o corpo e, depois, saíra de casa.
- Não deve ter ido longe - dissera a mulher. - É provável que esteja trancado em seu laboratório. É para lá que sempre vai quando não quer participar de algo.
George decidira que o direito de Ruth Hawkin, de ouvir as novidades tão rapidamente quanto possível, suplantava o direito do marido de dividir com a esposa este momento. Assim, transmitira-lhe os fatos de um fôlego só:
- O corpo que encontramos é de um homem.
Ruth levantara a cabeça como se impulsionada por uma mola. A expressão de alegria intensa teria superado o brilho das luzinhas de Natal nas ruas da cidade.
- Não é ela? - indagara Kathy.
- Não é Alison - confirmara George. Respirou fundo e continuou: - Infelizmente, parece que as notícias não são tão boas. Fizemos uma identificação preliminar do corpo. Algum membro da família precisará confirmar, mas acreditamos que o cadáver é de Peter Crowther.
Houve um silêncio longo e perplexo. Ruth simplesmente o fitara, como se tivesse assimilado tudo o que podia com a notícia de que o corpo encontrado não era o da filha. Kathy parecera chocada. Depois, levantara-se com expressão de asco. Dera alguns passos nervosos e, então, encostara-se no fogão, onde ainda estava, com uma carranca. Ah, sim, pensou George, ela sabe a quem culpar.
- Agora, tudo em que posso pensar é: graças a Deus não é minha Alison - continuou Ruth. - Não é terrível? Peter também era um ser humano, mas duvido que alguém queira velá-lo.
- Não precisamos velar ninguém - disse Kathy com sua voz ardendo em George como um buquê de urtiga. - Quando Mamãe Lomas começou sua ladainha sobre as tragédias que veríamos por trazermos estranhos - aldeia, achei que estava apenas fazendo seu discurso enjoado, como sempre. Mas havia alguma verdade no que ela disse. Vocês não conseguiram encontrar Alison, e agora um dos nossos está morto.
- Talvez se vocês o tivessem tratado como um dos seus quando estava vivo, ele não tivesse morrido - disse uma voz atrás deles. George virou-se e viu Philip Hawkin. Não tinha idéia do tempo em que ele estivera parado junto à porta semi-aberta, mas estava claro que ouvira boa parte da conversa. - O pessoal daqui o expulsou e, então, a Gestapo o trouxe de volta - continuou. - Meu Deus, a ignorância das pessoas. O coitado era inofensivo. Nunca havia sido violento. Nunca chegou a encostar a mão em uma mulher, pelo que sei. Sinto pena do infeliz.
- Deveria sentir alívio por não ser o corpo de Alison - disse Clough, ignorando o sentimentalismo de Hawkin.
- Claro que sim. Quem não sentiria? Apesar disso, preciso dizer que estou desapontado com você e seus homens, inspetor. Dois dias e meio e nenhuma notícia de Alison. Vocês estão vendo o sofrimento de minha esposa. Seu fracasso a atormenta. Não podem fazer mais nada? Usar sua imaginação? Fazer buscas mais completas? E quanto à vidente mencionada no jornal? Será que não poderiam dar ouvidos ao que ela tem a dizer? - Ele apoiou os punhos fechados sobre a mesa, com as faces vermelhas. - Estamos sob uma tensão terrível, inspetor. Não esperamos milagres, só queremos que façam seu trabalho e descubram o que aconteceu com nossa garotinha.
George tentou disfarçar sua frustração por trás da máscara de profissionalismo.
- Estamos fazendo o possível, senhor. Ampliamos o número de equipes de buscas. Temos centenas de voluntários de Buxton, Stoke, Sheffield e Ashbourne, bem como daqui mesmo. Se ela está em algum lugar onde possa ser encontrada, nós a encontraremos. Prometo.
- Sei que sim - sussurrou Ruth. - Phil sabe que vocês estão fazendo o possível. É que... o fato de não sabermos é uma tortura lenta.
George balançou a cabeça, demonstrando compreensão.
- Nós os manteremos informados sobre qualquer progresso.
Na rua, o ar impiedoso do inverno açoitou seus pulmões enquanto cruzava rapidamente a praça, respirando fundo. Quase trotando para alcançá-lo, Tommy Clough disse:
- Há algo em Philip Hawkin que me deixa com uma pulga atrás da orelha.
- Suas respostas parecem artificiais - disse George. - Como quando se aprende um idioma em um curso ruim. Pode-se saber a gramática e a pronúncia, mas nunca passamos por falante nativo, porque eles não precisam pensar no que estão dizendo o tempo todo. - Ele se jogou no banco do carona. - Entretanto, apenas o fato de ele parecer estranho não o torna um assassino ou alguém que rapta mocinhas.
- Ainda assim... - Clough ligou o carro.
- Ainda assim, é melhor nos colocarmos a caminho para enfrentar a coletiva da imprensa. O superintendente deve estar querendo a cabeça de alguém, e tenho certeza absoluta de que Carver foi o primeiro a receber sua raiva. - George recostou-se e acendeu um cigarro. Fechou os olhos e imaginou por que optara por ser policial. Poderia ter apresentado seu diploma de Direito em um escritório de advocacia em Derby e iniciado uma carreira. Já poderia estar a caminho da sociedade na firma, especializando-se em algo calmo, como um tabelionato ou direito sucessório. Na maior parte do tempo, repudiava esta idéia. Esta manhã, porém, curiosamente ela parecia interessante.
Abriu os olhos e se deparou com longas filas de homens movendo-se Pelo vale, a uma distância menor que um braço um do outro.
- Não encontrarão nada aqui, exceto o que as equipes anteriores deixaram cair - falou, amargurado.
- Estão usando os menos aptos aqui no vale - ouviu Clough dizer, com segurança. - Os melhores homens farão buscas nos rochedos e partes mais distantes do vale. Em terrenos como este, sempre há pontos que ignoramos porque não os conhecemos como a palma de nossas mãos.
- Acha que encontrarão algo? Clough torceu a boca.
- Depende do que há para encontrarem. Se acho que encontrarão o corpo? Não.
- E por quê?
- Se não encontramos até agora é porque está bem escondido. Isto significa que foi colocado onde está por alguém que conhece melhor essas redondezas que qualquer das pessoas envolvida nas buscas. De modo que em minha opinião, não acharão o corpo. Penso que já descobrimos tudo que podíamos.
George balançou a cabeça.
- Não posso pensar assim, Tommy. Seria como dizer que não apenas não encontraremos Alison, mas também não encontraremos quem a levou e provavelmente matou.
- Sei que é difícil, senhor, mas é com isso que nossos colegas de Cheshire e Manchester têm lidado. Sei que o senhor gostaria de não se lembrar do que Don Smart escreveu, mas talvez aprendamos com a experiência dos policiais daquelas cidades, mesmo se for apenas para sabermos como lidar com o fato de não chegarmos a lugar nenhum. - Clough freou de repente. Não havia onde estacionar na estrada principal, tanto quanto pudessem ver. Automóveis, caminhonetas e Land Rovers amontoavam-se nos meios-fios. Onde parecia haver espaço, este era ocupado por motos e lambretas. - Que bela maçaroca. E agora, o que eu faço?
Havia apenas uma solução sensata. George desceu e, na frente da igreja metodista, viu quando Clough manobrou o grande carro, retornando rumo à estrada para Scardale. Ele endireitou os ombros, deu uma tragada final em seu cigarro e o jogou no meio da rua. Não tinha nenhuma vontade de participar do que o aguardava no salão da igreja, mas também não podia adiar este compromisso.
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 10h24
O purgatório da coletiva da imprensa terminou antes do que George temia, graças ao prático enfoque militar do superintendente Martin, que lidou com a morte de Peter Crowther com uma expressão lacônica de condolência. Quando um dos repórteres perguntara-lhe sobre vazamentos oficiosos para o Courant, Martin voltara sua artilharia para o homem:
- A especulação irresponsável do Courant foi pura invencionice - disse, em tom de comando que, obviamente, não admitia contestação. - Se eles tivessem verificado o boato, teriam ouvido exatamente o mesmo que os outros repórteres, isto é, que um homem estava detido na delegacia para interrogatório, para sua própria proteção, e fora liberado por ser inocente. Não admitirei que meus policiais sofram pressão por causa da irresponsabilidade da imprensa. Agora, temos uma menina desaparecida e precisamos encontrá-la. Responderei a perguntas ligadas a esta investigação.
Alguns repórteres fizeram perguntas rotineiras e, então, inevitavelmente, a cara de raposa de Don Smart fez-se visível, quando ele desviou o olhar de seu bloco de anotações e levantou a cabeça.
- O senhor chegou a ler a matéria desta manhã no News?
A risada de Martin, semelhante a um latido, era tão dura quanto suas Palavras.
- Até conhecê-lo, senhor, eu só havia visto meretrizes do sexo femini-no) em tempos de paz. Ainda assim, talvez eu não esteja muito longe da verdade, apesar de suas suíças, porque seu trabalho, senhor, só presta para encher as colunas das revistas femininas mais sensacionalistas. Não valorizarei suas tentativas débeis de causar tumulto com um comentário, exceto para dizer que sua matéria é lixo da espécie mais fedorenta. Senti-me tentado a proibir sua presença aqui, mas fui persuadido relutantemente por meus colegas, frente ao argumento de que isso só o faria ganhar a própria notoriedade pela qual anseia. Assim, o senhor pode permanecer, mas não se esqueça de que a finalidade de nossa reunião aqui é encontrar uma garota jovem e vulnerável que sumiu de casa, e não vender mais exemplares de seu lixo desprezível.
Ao fim de seu pequeno discurso, o pescoço de Martin tinha o tom avermelhado da crista de um galo. Don Smart apenas encolheu os ombros e voltou a olhar para suas anotações.
- Considerarei isto como "sem comentários", então - disse, baixinho. Martin terminara com a coletiva logo depois. Enquanto os repórteres saíam, murmurando entre si e comparando anotações, George pôs-se em guarda. Agora que o superintendente já se aquecera com Smart, esperava ser feito em pedacinhos por seu chefe. Martin correu um dedo pelos fios curtos e grisalhos de seu bigode e fitou-o. Sem desviar o olhar, tirou seus cigarros do bolso e acendeu um.
- Bem? - disse apenas.
- Perdão? - indagou George.
- Quero sua versão dos acontecimentos de ontem.
George apresentou uma versão resumida de seu envolvimento pessoal com Crowther.
- ... De modo que instruí o sargento Clough a pedir que o policial de Buxton soltasse Crowther. Concordamos em pedir que este policial espalhasse para a imprensa e para os curiosos que Crowther não era suspeito de nada.
- Você não leu o artigo do Courant? - perguntou Martin, áspero.
- Não, senhor. Estivemos em Scardale o dia inteiro. O jornal só chega lá no sábado e não tivemos oportunidade de ler a edição matinal.
- E o policial de plantão não disse nada sobre a matéria ao sargento Clough?
- Certamente não, porque, se tivesse dito, Clough teria vindo a mim, antes de autorizar a liberação do homem.
- Tem certeza?
- Eu teria de verificar com Clough, senhor, mas, pelo que conheço de sua personalidade, creio que ele teria considerado uma matéria assim como uma mudança nas circunstâncias, que poderia afetar a decisão que tomei. George percebeu a testa enrugada de Martin e se preparou para o massacre, mas este não veio. Martin simplesmente assentiu.
- Achei mesmo que havia sido um erro de comunicação. Bem, já temos
dois pontos contra nós. Primeiro, um de nossos homens contou algo que a imprensa nunca deveria saber. Segundo, o policial de plantão não deu aos policiais em campo as informações relevantes para que tomassem decisões importantes. Devemos ser gratos porque a família de Crowther está preocupada demais com a outra perda para ficar pensando em nosso papel em sua morte. Quais são seus planos para hoje?
George fez um sinal com o polegar na direção de uma pilha baixa de caixas de papelão junto a uma das mesas dobráveis.
- Tomei providências para que os depoimentos do pessoal de Buxton fossem trazidos para cá, a fim de que eu possa examiná-los e, ainda assim, estar próximo se as buscas produzirem algum resultado.
- As buscas terminam às quatro, não?
- É, mais ou menos nesse horário - disse George, intrigado pela pergunta.
- Se não houver novidade, quero que você esteja em casa às cinco.
- Como?
- Sei que você e Clough têm trabalhado muito neste caso, e não vejo razão para matarem-se assim. Os dois estão de folga hoje à noite, e isto é uma ordem. Amanhã será um dia importante, por isso quero que você descanse.
- O que tem amanhã, senhor? Martin estalou a língua, impaciente.
- Ninguém lhe contou? Meu Deus, precisamos melhorar a comunicação nesta divisão. Amanhã, Bennett, teremos o prazer de receber dois policiais de outras forças, um de Manchester e outro de Cheshire. Como você certamente já sabia, mesmo antes de o senhor Smart, do Daily News, chamar sua atenção para o assunto, as duas forças tiveram casos recentes de desaparecimentos misteriosos de adolescentes. Esses policiais querem reunir-se conosco para discutirmos possíveis ligações entre nossos casos.
George sentiu-se decepcionado. Perder seu tempo com diplomacia para com outras forças não iria ajudá-lo a descobrir o que acontecera com Alison Carter. A polícia da cidade de Manchester tivera mais de cinco meses para tentar encontrar Pauline Reade, e a de Cheshire já procurava John Kilbri havia três semanas, sem qualquer resultado. Os detetives que trabalhavam nesses casos estavam simplesmente desesperados, mais preocupados em parecer que faziam algo em prol de seus casos sem solução que em ajudar nas investigações em Scardale. Se fosse dado a jogos, apostaria que a reu-nião já era tema de um release para a imprensa, feito pelas outras forças.
- Não seria melhor se Carver se encarregasse da reunião? Afinal, ele é o chefe das investigações - disse, desesperado.
Martin olhou para seu cigarro com ar de repulsa.
- Seu conhecimento sobre os detalhes do caso é superior ao dele - disse apenas. Ele virou-se e começou a encaminhar-se para a porta. - Às onze horas, no quartel-general da divisão - ordenou, sem voltar-se e sem levantar a voz.
George ficou olhando para a porta por um longo tempo, após a saída de Martin. Sentia um misto de raiva e desilusão. As pessoas já começavam a considerar o desaparecimento de Alison como um caso insolúvel. Quer estivesse ligado aos outros casos ou não, estava claro que seus superiores não esperavam mais que ele a encontrasse e, menos ainda, com vida. Apertando as mandíbulas, ele puxou uma cadeira para junto das caixas de papelão e deu início à tarefa de ler os depoimentos restantes das testemunhas. Sabia que, provavelmente, isto era inútil, mas havia uma pequena chance de descobrir algo importante. E parecia-lhe que só poderia contar com pequenas chances.
Domingo, 15 de dezembro de 1963, 10h30
Pelo menos uma vez, um dos jornais havia acertado. Cada exemplar do Sunday Standard continha um pôster de 30 x 50cm. Exemplares adicionais haviam sido distribuídos a cada banca de jornais no país, e cada uma pela qual George passava a caminho da delegacia o exibia em local bem visível-Sob a manchete em grandes letras pretas, que dizia:
VOCÊ VIU ESTA MENINA?
jornal reproduzira um dos excelentes retratos de Alison feitos por Philip. O texto sob a manchete dizia:
Alison Carter está desaparecida de sua casa, na aldeia de Scardale, Derbyshire, desde às quatro e meia da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro.
Descrição: 13 anos, 1,52m, magra, cabelos loiros, olhos azuis, pele clara, com uma pequena cicatriz que atravessa sua sobrancelha direita; usava japona azul-marinho sobre uniforme escolar que consistia de jaqueta preta, colete marrom, saia marrom, blusa branca, gravata preta e marrom, meias pretas de lã e botas pretas de pele de carneiro.
Qualquer informação pode ser dada à polícia do condado de Derbyshire, em Buxton, ou a qualquer policial.
É assim que os jornalistas ajudam a polícia, pensou George. Ele esperava que Don Smart tivesse se engasgado com o café da manhã ao ver o pôster escorregando de dentro das páginas do Sunday Standard. Imaginou, também, quantas casas naquela área estariam exibindo o pôster ao anoitecer, achando que veria mais fotos de Alison Carter coladas nas janelas de High Peak que árvores de Natal através delas.
Era um bom começo de dia, pensou George, animado. Já começara bem. Uma vez que não precisara sair correndo antes da primeira luz do dia, tivera a chance de despertar naturalmente e ficar deitado, conversando com Anne no conforto da cama. Ele trouxera o chá para cima e haviam desfrutado de uma rara hora de intimidade, que selara a noite que haviam passado juntos. Se lhe tivessem perguntado antes, George teria negado com veemência a possibilidade de tirar Alison Carter de sua mente por mais de um ou dois minutos. Entretanto, a companhia de Anne, sempre tão descomplicada, permitira-lhe desligar-se das frustrações de sua investigação. aviam jantado à luz de velas e, depois, ouvido rádio, aconchegados no sofá, dando uma forma vaga a seus sonhos com relação ao filho ainda não nascido. Fora um descanso muito curto, mas que servira para repousá-lo um pouco, restaurando sua confiança, apesar do sono agitado.
George prendeu o pôster no quadro de avisos do departamento de investigações criminais com percevejos que tirou de alguns comunicados que ali estavam. Isto serviria como um lembrete muito claro de que o caso ainda estava vivo, para os detetives visitantes.
- Ficou bem, aí - disse Tommy Clough, com a voz ecoando pela sala enquanto a porta batia às suas costas. Ele retirou o sobretudo e lançou-o no cabide.
- Eu não sabia que estavam planejando isto - disse George, batendo com a ponta do dedo no pôster.
- Combinaram tudo ontem de manhã - disse Clough, despreocupado, fechando o botão do colarinho de sua camisa e apertando a gravata enquanto cruzava a sala.
George sacudiu a cabeça.
- Gostaria de saber de tudo o que você sabe, Tommy. Nada acontece aqui sem seu conhecimento.
Clough deu-lhe um sorriso ao dizer:
- Quando você estiver aqui há tanto tempo quanto eu, terá esquecido mais do que eu jamais saberei. Descobri sobre os pôsteres apenas porque estava passando pelo escritório da frente quando o mensageiro entrou para pegar a foto. Eu ia lhe contar, mas acabei esquecendo. Desculpe, senhor.
- Se trabalhamos juntos neste caso, é melhor me chamar apenas de "George" quando estamos sozinhos - disse ele, oferecendo cigarros a Clough, que pegou um.
- Como quiser, George - respondeu.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, a porta abriu-se novamente e o superintendente Martin entrou, em seu passo de marcha, seguido por dois homens que usavam ternos azul-marinhos quase idênticos, chapéus de feltro e capas impermeáveis. Apesar das roupas semelhantes, não havia como confundi-los. Um tinha ombros largos, tronco volumoso e pernas quase que comicamente curtas, que mal lhe permitiam atingir a altura de 1,72m exigida pela polícia. O outro devia medir dez centímetros mais que o primeiro, mas dava a impressão de que desapareceria se ficasse atrás um poste. Martin apresentou-os. O corpulento era o detetive e inspetor-hefe Gordon Parrott, da polícia de Manchester; o outro era o detetive inspetor-chefe Terry Quirke, da força policial de Cheshire.
Martin deixou-os, prometendo que mandaria chá para todos. Inicialmente, os quatro homens pareciam cautelosos como cães desconhecidos, apresentando seu melhor comportamento em um ambiente estranho. Aos poucos, porém, à medida que ofereciam detalhes de suas próprias operações sem que ninguém os criticasse, começaram a relaxar. Algumas horas depois, os quatro haviam concordado que havia tanta razão para suporem que as três crianças desaparecidas haviam sido raptadas pelo mesmo indivíduo quanto para pensarem que eram três desaparecimentos perpetrados por pessoas diferentes.
- Isto é, não podemos afirmar nada, nem num sentido nem no outro - disse Parrott, taciturno.
- Exceto que não é muito comum termos casos nos quais não há sequer um indício apontando para o que aconteceu - disse George. - Isso é o que vocês têm. Eu, pelo menos, encontrei uma cadela atada em uma árvore e sinais de luta em outro ponto do matagal. Este é o elemento crucial que separa o desaparecimento de Alison Carter dos casos de Pauline Reade e John Kilbride.
Ouviram-se sons de concordância entre todos.
- Vou lhes dizer uma coisa - acrescentou Clough. - Eu apostaria que Pauline e John foram levados por alguém de carro. Talvez até por duas pessoas diferentes. Uma que serviu de motorista e outra que dominou as crianças. Se o raptor estivesse a pé, teríamos testemunhas, mas entrar em um carro é uma questão de segundos. Contudo, apesar daquele casal que viu um Land Rover estacionado perto da igreja, não vejo como isso possa ter acontecido a Alison. Um raptor não teria levado a menina da floresta de "Cardale até a igreja metodista, a menos que fosse Tarzan. Além disso, ninguém viu veículos estranhos na aldeia naquela tarde.
- E um veículo estranho certamente seria notado - confirmou George. Se um rato espirrasse em Scardale, receberia a oferta de meia dúzia de remédios caseiros contra resfriado antes de poder limpar o nariz.
Perdemos nosso tempo - disse Parrott, com um suspiro. George negou com a cabeça.
- Por incrível que pareça, não foi tempo perdido. Nossa reunião clareou minhas idéias. Agora sei que posso eliminar uma opção. Quanto mais eu falava e ouvia, durante esta manhã, mais me convencia de que não estamos lidando com um rapto por um estranho. O que quer que tenha acontecido com Alison, ela sabia com quem estava lidando.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 7h40
A boa disposição que ajudara George a superar mais um dia de buscas infrutíferas desapareceu ao ver a edição matinal do Daily News. Desta vez, a vidente de Don Smart conseguira dar-lhe a primeira página do jornal.
GAROTA DESAPARECIDA: VIDENTE FRANCESA OFERECE PISTA DRAMÁTICA
Exclusivo da equipe de reportagem
As investigações sobre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, assumiram um curso dramático hoje, quando uma clarividente deu novas pistas cruciais à polícia sobre o paradeiro da menina.
Madame Colette Charest forneceu detalhes sobre os supostos movimentos de Alison ao desaparecer, cinco dias atrás, da pequena aldeia de Scardale, em Derbyshire.
Falando de sua casa em Lyon, na França, Madame Charest relatou seus achados com base em um mapa do distrito, uma fotografia da bonita menina loira e recortes do Daily News.
Impressionante
Os detalhes foram passados, ontem à noite, ao detetive e inspetor-chefe M.C. Carver, que chefia a equipe de detetives encarregada de investigar o misterioso desaparecimento. Segundo Carver, "Não podemos nos permitir ignorar coisa alguma. O relatório dela parece impressionante".
Madame Charest já surpreendeu a polícia francesa com seus poderes, auxiliando em buscas anteriores.
A viúva francesa de 47 anos disse que "viu" Alison andando entre as árvores com um homem conhecido. Este teria entre 35 e 45 anos de idade e cabelos escuros.
Ela disse que Alison estava esperando o homem perto da água, e que seu estado de espírito era de tristeza e medo.
Ainda viva
O que impressiona é que Madame Charest insiste em sua convicção de que Alison ainda está viva e em segurança. "Ela está vivendo em uma cidade. Está em uma casa dentre outras semelhantes, de tijolos aparentes, sobre uma colina."
"Ela chegou lá em algo como uma pequena caminhoneta. Era noite e, desde que chegou a casa, a menina não saiu à rua. Não tem permissão para sair, mas não sente nenhuma espécie de dor."
"Há um pátio de escola próximo da casa. Ela pode ouvir as crianças brincando e isto a deixa triste."
Enquanto isso, equipes de voluntários trabalharam incansavelmente com os policiais e equipes de resgate de montanhistas que vasculham os vales e pântanos em torno de Scardale.
Cães e ganchos foram usados para a verificação de uma grande área de pântanos que compreende vários lagos e poços.
O chefe de polícia Carver disse: "Estamos ampliando as buscas por uma extensão tão abrangente quanto possível. O público tem cooperado imensamente, mas ainda precisamos de informações positivas sobre os movimentos de Alison depois que saiu de casa com sua cadela, na tarde de quarta-feira."
"Talvez esta nova informação possa acender a memória de alguém. Não importa quão insignificante possa parecer, queremos ouvir os populares que possam saber de algo."
- Mas o que Carver pensa que está fazendo? - reclamou George voltando-se para Anne. - A última coisa que desejamos é incentivar este tipo de coisa. Seremos engolfados por todas as cartomantes lunáticas do país.
- Provavelmente distorceram o que ele falou. - Anne disse, passando calmamente a manteiga no pão.
- E você provavelmente está certa - reconheceu ele, dobrando o jornal e empurrando-o sobre a mesa na direção da esposa, enquanto se levantava. - Estou indo. Não tenho hora para voltar.
- Tente chegar em casa em um horário decente, George. Não quero que você adquira o hábito de chegar nos horários mais malucos. Não quero que nosso filho cresça sem conhecer o pai direito. Já ouvi outras esposas falando sobre seus maridos. É quase como se falassem sobre parentes distantes dos quais elas não gostam muito. Parece que esses homens tratam suas casas como um último recurso, um lugar aonde vão quando bares e clubes fecham. As mulheres dizem que até as férias são tensas, porque saem da cidade com um estranho que passa o tempo todo preocupado e mal-humorado. Ou, então, bebendo e jogando.
George sacudiu a cabeça.
- Você sabe que não sou este tipo de homem.
- Acho que a maior parte delas também não achava que acabaria assim, logo que se casaram - disse Anne, seca. - Seu trabalho não é como os outros. Você não o deixa para trás quando acaba o expediente. Só quero garantir que você se lembrará de que há mais, na vida, que prender criminosos.
- Como eu poderia esquecer, quando tenho você me esperando em casa? - Ele curvou-se para beijá-la. Ela exalava um aroma doce, como o de biscoitos quentes. Agora ele sabia que aquela era a fragrância matinal natural de sua esposa. Ela lhe dissera que o cheiro dele era vagamente almiscarado, Como o pêlo de um gato limpo. Fora então que ele descobrira que todo mundo tinha seu próprio odor característico. Imaginou se a lembrança da assinatura aromática da filha seria outra das torturas pelas quais Ruth
rrawkin passava. Contendo um suspiro, ele abraçou Anne rapidamente e correu para seu carro, antes que as emoções saíssem de seu controle.
Parando na sede de sua divisão para pegar Tommy Clough, decidiu faltar à coletiva da imprensa. O superintendente Martin lidava com Don Smart muito melhor do que ele jamais conseguiria, e a última coisa de que precisava era ser levado a uma confrontação pública, que pressentia ser quase inevitável, devido à raiva que sentia.
- Vamos falar com os Hawkins - disse a seu sargento. - Acho que, lá no fundo, eles sabem que a esperança está morrendo. Não querem admitir, nem para si nem para os outros. Temos o dever de ser honestos com eles sobre a situação.
O limpador de pára-brisas varria a chuva com monotonia aborrecida enquanto cruzavam os pântanos até Scardale. Finalmente, Clough disse, com desânimo:
- Ela não poderia estar viva, exposta a este clima.
- Ela não poderia estar viva em nenhum lugar. Não é como raptar uma criancinha que se pode intimidar e manter trancada em um sótão. Manter uma adolescente cativa é algo totalmente diferente. Além disso, assassinos sexuais não esperam para obter o que desejam. Querem fazer tudo imediatamente. Se ela tivesse sido raptada por alguém idiota o bastante para pensar que Hawkin tem dinheiro para pagar pela libertação de Alison, já teríamos um pedido de resgate a esta hora. - George suspirou, enquanto levantava a mão para cumprimentar o policial encharcado que ainda montava guarda no portão de acesso a Scardale. - A questão nem diz respeito ao - e os Hawkins pensam. Nós é que precisamos enfrentar o fato de que, agora, estamos buscando apenas um corpo.
O silêncio foi quebrado apenas pelo limpador de pára-brisas, até chegarem à praça da aldeia e estacionarem ao lado do trailer da polícia. Os dois homens correram pela chuva e encolheram-se sob a pequena varanda, esperando que Ruth Hawkin respondesse às batidas na porta. Para sua surpresa quem a abriu foi Kathy Lomas. Ela deu um passo para trás, para permitir-lhes a passagem.
- É melhor entrarem - disse, com rispidez.
Seguiram em fila até a cozinha. Ruth estava sentada à mesa, encolhida em um roupão de náilon acolchoado cor-de-rosa, com olhos avermelhados cabelos soltos e desgrenhados. Do outro lado estava sentada Mama Lomas, usando camadas de casaquinhos de lã encimados por um xalp xadrez preso por um alfinete de segurança. George reconheceu a quarta mulher no cômodo como sendo Diane, irmã de Ruth e mãe de Charlie Lomas. As três mulheres mais jovens fumavam, mas Mamãe Lomas parecia confortável em meio à fumaça.
- O que houve? - perguntou Mamãe Lomas, antes que George pudesse dizer algo.
- Não temos novidades - admitiu ele.
- Bem diferente dos jornais, então - disse Diane Lomas, amarga.
- É, eles sempre encontram o que dizer - acrescentou Kathy. - Mesmo que seja pura besteira, como Alison estar presa em alguma casa sobre uma colina, em alguma cidade. Não se pode esconder alguém em uma cidade, exceto se a pessoa deseja permanecer escondida. Essas casas têm paredes finas como papelão. Não podem impedir que publiquem esse lixo?
- Vivemos em um país livre, senhora Lomas. Também não gostei do que li no jornal esta manhã, mas não podemos fazer nada a respeito.
- Olhe para o estado dela - disse Diane, apontando Ruth com a cabeça. - Eles não pensam no efeito que as notícias terão sobre ela. Isso não é certo.
Os lábios de George apertaram-se, formando uma linha fina. Finalmente, ele disse:
- É por isso, em parte, que estamos aqui, senhora Hawkin. - Ele puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Ruth e sua irmã. - Seu marido está?
- Foi a Stockport - respondeu Mamãe Lomas, com azedume. - Ele precisava comprar produtos químicos para suas fotografias. É claro que pode ir e vir como bem entende, o que não é verdade para todos os que nascem e crescem em Scardale. - Suas palavras permaneceram no ar, como um desafio.
George recusou-se a ser atingido pela ironia. Sua própria consciência ja o entristecia o suficiente por seu papel na morte de Peter Crowther; não precisava que a língua afiada de Mamãe Lomas o machucasse ainda mais. Simplesmente balançou a cabeça, em reconhecimento, e continuou falando:
- Queria dizer-lhes que continuamos procurando por Alison. Contudo,
eStaria mentindo se não lhes comunicasse que acho que as chances de encontrá-la viva estão a cada dia mais escassas.
Ruth levantou a cabeça, com o rosto transformado em uma máscara de resignação.
- Acha que isso é novidade para mim? - disse, cansada. - Não espero nada além disso, desde o minuto em que percebi que minha filha havia desaparecido. Suporto isso apenas porque preciso. O que não suporto é ignorar o que lhe aconteceu. É tudo que peço, que vocês descubram o que aconteceu com ela.
George respirou fundo.
- Acredite, senhora Hawkin, estou determinado a isso. A senhora tem minha palavra de que não desistirei de Alison.
- Belas palavras, rapazinho, mas o que significam? - indagou a voz irônica de Mamãe Lomas, cortando o clima de profunda emoção.
- Significa que continuaremos procurando. Que continuaremos interrogando pessoas. Já vasculhamos o vale de uma ponta a outra, já procuramos nas adjacências. Dragamos reservatórios e os mergulhadores da polícia verificaram o fundo do rio Scarlaston. Não encontramos nada além do que já havíamos achado nas primeiras vinte e quatro horas, mas não desistiremos.
Mamãe Lomas fez um esgar de desprezo, com o nariz e o queixo quase se encontrando ao retorcer todo o rosto.
- Como pode sentar aí e encarar Ruth, dizendo que vasculharam todo o vale? Vocês não chegaram nem perto da antiga mina de chumbo.
14
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 9h06
Perplexo, George viu sua surpresa espelhada nos rostos à sua frente. Ruth franziu as sobrancelhas, como se não tivesse certeza de que ouvira direito. Diane parecia atônita.
- Que antiga mina de chumbo, Mamãe? - indagou.
- Você sabe, dentro do Rochedo de Scardale.
- Nunca ouvi falar nisso - disse Kathy, parecendo levemente afrontada.
- Espere aí - interrompeu George. - Sobre o que estamos falando? A que mina de chumbo a senhora se refere?
Mamãe emitiu um suspiro exasperado.
- Como posso ser ainda mais direta? Dentro do Rochedo de Scardale há uma antiga mina de chumbo. Túneis, câmaras, essas coisas. Não é muito visível, mas está lá.
- E quanto tempo faz que fechou? - perguntou Clough.
- Como eu poderia saber? - protestou a velha. - Desde que me entendo por gente ela está fechada. Que eu saiba, existe desde que os romanos chegaram à Inglaterra. Eles extraíram chumbo e prata por esses lados.
- Nunca ouvi falar de uma mina de chumbo dentro do rochedo - insistiu Diane. - E vivo aqui desde que nasci.
Com dificuldade, George resistiu ao impulso de gritar com as mulheres, indagando apenas:
- Onde, exatamente, é esta mina?
Clough estava contente porque não era a ele que se dirigia esta voz cortante como uma lâmina. Ele não sabia que George era capaz de ser tão assertivo, mas isto só lhe confirmava que fizera bem em unir-se a ele.
Mamãe Lomas encolheu os ombros.
- Como posso saber? Como eu disse, desde que me entendo por gente a mina está fechada. Tudo o que sei é que a entrada é em algum ponto lá trás do arvoredo. Havia um riacho por perto, mas secou anos atrás, quando eu era mocinha.
- Assim, provavelmente ninguém sequer sabe sobre a existência da mina - disse George, curvando os ombros em desânimo. O que parecera conduzir a algo digno de ser investigado desmanchava-se em suas mãos.
- Bem, eu sei sobre ela - disse Mamãe, com energia. - O dono das terras me mostrou. Em um livro. O antigo dono das terras, quero dizer. Não Philip Hawkin.
- Que livro? - indagou Ruth, mostrando o primeiro sinal de ânimo desde a chegada dos dois homens.
- Não sei como se chamava, mas acho que poderia reconhecê-lo - disse a velha senhora, empurrando sua cadeira para longe da mesa. - Será que aquele seu marido jogou fora os livros do antigo dono desta casa? - Ruth negou. - Então vamos dar uma olhada.
Na ausência de Philip Hawkin, o estúdio era tão frio quanto um corredor gélido. Ruth estremeceu e apertou o roupão ainda mais contra seu corpo. Diane jogou-se em uma poltrona e pegou seu maço de cigarros, acendendo um sem oferecer aos outros. Depois, encolheu-se como um gato vira-latas gorducho com um rato entre as patas. Kathy ficou mexendo com um par de prismas sobre a escrivaninha, segurando-os contra a luz e virando-os de um lado para outro. Enquanto isso, Mamãe examinava as estantes e George prendia o fôlego.
Mais ou menos na metade da prateleira do meio, ela esticou um dedo ossudo:
- Ali - disse, satisfeita. - Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vole do Scarlaston.
George estendeu um braço e puxou o volume para baixo. Certamente já era um livro atraente, mas estava quase destruído pelo tempo e manuseio.
Encadernado originalmente em marroquim vermelho, media 25 x 20cm e tinha aproximadamente dois centímetros de espessura. Ele o deitou sobre a escrivaninha e abriu-o.
-Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vale do Scarlaston, no Condado de Derbyshire, Incluindo a Caverna do Gigante e a Misteriosa Fonte do Próprio Rio. De acordo com os relatos do Reverendo Onesiphorus Jones. Publicado pelos senhores King, Bailey & Prosser, de Derby, MDCCCXXII - leu George. - 1822 - disse. - E então, onde está o trecho sobre a mina, senhora Lomas?
Os dedos artríticos da mulher passaram pela folha-de-rosto do livro e percorreram o sumário.
- Lembro que era perto do meio - disse, em voz baixa.
George curvou-se sobre o ombro de Mamãe Lomas e examinou rapidamente o sumário.
- Será aqui? - indagou, apontando para Capítulo XIV- Os Mistérios Secretos do Rochedo de Scardale; Homens Antigos no Vale; Ouro-de-Tolo e o Metal do Alquimista.
- Acho que sim. - Ela deu um passo para trás. - Foi há muito tempo. O antigo proprietário gostava de me contar a história do vale. Sua esposa era uma forasteira, entende?
George ouvia, mas com atenção dividida, folheando páginas grossas e amareladas, manchadas de mofo aqui e ali, até chegar à seção que buscava. Ali, ao lado de desenhos a bico-de-pena competentes, mas artificiais, estava a história da mina de chumbo em Scardale. Os veios de chumbo e pintas de ferro haviam sido descobertos no final da Idade Média, mas apenas no século XVIII começaram a ser explorados plenamente, quando quatro galerias principais e algumas cavernas foram escavadas. Entretanto, os filões eram menos produtivos do que pareciam inicialmente e, em algum ponto durante a década de 1790, a mina deixara de operar comercialmente. À época em que o livro fora escrito, ela já havia sido fechada com uma paliçada de madeira.
George apontou para a descrição.
- Será que essas instruções bastam para encontrarmos a mina?
- Você nunca a encontraria - disse Diane. Ela viera por trás e espiava sobre seu braço. - Mas posso dizer-lhe quem poderia achá-la.
- Quem? - perguntou George. Não poderia ter sido mais difícil tirar chumbo do chão que extrair informações dos nativos de Scardale, pensou ele, cansado.
Aposto que nosso Charlie os levaria até lá - disse Diane, ignorando a exasperação do detetive. - Ele conhece o vale melhor que qualquer um por aqui, e está em boa forma. Se for preciso escalar ou penetrar entre as rochas, ele será capaz. É o que vocês precisam, senhor Bennett. De nosso Charlie. Isto é, se ele estiver disposto a ajudá-los, depois do modo como foi tratado.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 11H33
Charlie Lomas era tão ágil quanto um cachorrinho puxando a guia ao sentir o cheiro de coelho em suas narinas. Como George, ele se dispôs a correr até o lugar em que o rio encontrava o rochedo assim que soube o que estava acontecendo. Contudo, diferentemente de George, que aprendera a virtude da paciência, ele não via vantagem em esperar a chegada de espeleólogos. Para Charlie, ter crescido em Scardale era suficiente, no que se referia a investigar os mistérios do Rochedo de Scardale. Assim, pusera-se a andar de um lado para outro junto ao trailer da polícia, fumando sem parar e bebericando nervosamente uma xícara de chá, muito depois que este provavelmente já estava prestes a transformar-se em uma pedra de gelo.
George olhava furiosamente através da janela do trailer para a aldeia.
- Não que não estejamos acostumados a ter informações sonegadas, mas geralmente há uma razão bem clara para isso. A maioria das pessoas está protegendo a si mesma ou a outra pessoa. Ou, então, são uns sabotadores que sentem prazer quando nos frustram. Mas qual é o caso aqui? É como querer tirar leite de pedra.
Clough suspirou:
- Não creio que façam isso por mal. Eles nem mesmo percebem o que estão fazendo na maior parte do tempo. É um hábito adquirido ao longo dos séculos, e acho que não vão mudar de repente. É como se achassem que seus assuntos não são da conta de ninguém.
- Vai além disso, Tommy. Eles vivem na companhia uns dos outros há tanto tempo que sabem tudo o que há para saber sobre Scardale e sobre os habitantes daqui. Eles simplesmente não percebem que as pessoas de fora não têm esse mesmo conhecimento.
- Entendo o que você quer dizer. Sempre que descobrimos algo que deveriam ter nos contado, é como se estivessem perplexos por ainda não sabermos o que já sabiam.
George concordou com a cabeça.
- Este é o exemplo perfeito. Mamãe Lomas não disse, em nenhum momento: "Ah, vocês sabiam que há uma antiga mina de chumbo dentro do Rochedo de Scardale? Talvez seja bom procurar por lá." Não. Como todos os outros, ela presumiu que saberíamos sobre a mina e sua única intenção, ao mencioná-la, foi provocar-me, porque acha que temos sido incompetentes.
Clough levantou-se e pôs-se a caminhar pelo espaço apertado do trailer.
- É de enlouquecer, mas não podemos fazer nada a esse respeito, porque nunca sabemos o que não sabemos, até descobrirmos que não sabíamos...
George esfregou os olhos, cansado.
- Não consigo parar de pensar que se pelo menos eu tivesse conseguido fazer com que essas pessoas me contassem o que sabem, poderíamos ter salvado Alison.
Clough parou de caminhar e fitou o chão.
- Acho que não. Provavelmente, quando o primeiro telefonema foi dado para a delegacia de Buxton, já era tarde demais para Alison Cárter. - Ele levantou a cabeça e seu olhar encontrou o de George. Incapaz de suportar o que via ali, ele acrescentou: - Mas talvez toda essa minha confiança seja só porque não suporto a alternativa.
George voltou a ler o texto no livro do século XIX, tentando combinar sua descrição com o mapa em escala ampliada daquela área. Tommy Clough, reconhecendo suas Incitações, sentou-se novamente junto à janela e observou enquanto um casal de melros ciscava na terra sob o abrigo fechado da copa de um teixo muito antigo. Logo haveria algo a fazer; por enquanto, contentava-se em ficar ali sentado pensando.
Os espeleólogos chegaram em uma caminhoneta Commer com fileiras de assentos fixados com rebites ao piso. Resgate em Cavernas de Peak Park estava pintado de forma amadora na lataria. Meia dúzia de homens espalhou-se pela praça, aparentemente ignorando a chuva e retirando muitos equipamentos da traseira do veículo. Um dos homens afastou-se do grupo e foi até o trailer. Charlie parou de andar e olhou-o com ansiedade, como um cão perdigueiro pronto para cumprir seu dever. Detendo-se na porta, o homem perguntou:
- Quem é o chefe por aqui?
George levantou-se, curvando-se por causa do teto baixo.
- Detetive-inspetor George Bennett - disse, estendendo a mão.
- Você se parece com Jimmy Stewart, já lhe disseram? - perguntou o homem, sacudindo a mão de George brevemente.
George franziu a testa, enquanto percebia o sorriso largo de Clough.
- É, já me disseram. Obrigado por vir.
- O prazer é nosso. Há tempos não fazemos um resgate verdadeiro. Estamos ansiosos por algo que saia um pouquinho do comum. Como faremos? - Ele sentou-se em um dos bancos, com a borracha de seu traje de mergulho enrugando-se sobre a barriga plana.
- Temos uma vaga idéia de onde é o ponto de entrada para a mina - disse George, apresentando um resumo de suas conclusões a partir da leitura do livro e do exame do mapa. - Charlie é morador de Scardale e conhece o vale, de modo que provavelmente poderá nos dar algumas dicas no caminho. Se encontrarmos a caverna, quero estar com vocês, quando entrarem.
O homem olhou-o, em dúvida.
- Já explorou cavernas? Tem experiência com alpinismo ou escaladas?
- Não, mas estou em boa forma e sou forte.
- Não importa o que diga, você não está preparado. Somos uma equipe e estamos acostumados a trabalhar juntos e a cuidar uns dos outros. Você quebrará nosso ritmo. Não quero entrar em um sistema de cavernas inexploradas com alguém que não tem a mínima idéia do que está fazendo.
Ele friccionou a bochecha com as juntas, em um gesto nervoso. - Pessoas morrem em cavernas - acrescentou. - Por isso estamos aqui.
- Tem razão - disse George. - Pessoas morrem em cavernas. Exatamente por isso é que preciso estar lá com vocês. É possível que se deparem com a cena de um crime, e não estou disposto a comprometer possíveis Provas. Vocês são especialistas em uma área, não nego isso. Mas também sou, em minha área. Sendo assim, vocês não entrarão lá sem mim. E então?
- Pretende providenciar equipamento extra ou terei de fazer com que um de seus homens tire a roupa e me dê seu traje emborrachado?
O espeleólogo parecia prestes a iniciar uma guerra.
- Não colocarei minha equipe em risco por causa de sua inexperiência.
- Não estou pedindo isso. Ficarei atrás, deixarei que façam seu trabalho e verifiquem se há perigo. Seguirei suas ordens, mas preciso estar lá - disse, implacável.
- Também quero ir junto e tudo mais - falou Charlie, incapaz de se manter em silêncio por mais um minuto. -Já estive em cavernas, já explorei algumas e fiz escaladas. Tenho experiência. Conheço o terreno. Precisam me levar junto.
Tommy pousou a mão em seu braço.
- Não é uma boa idéia, Charlie. Se Alison está lá, acho que não será uma visão agradável. Você ficaria abalado e poderia destruir provas, sem querer. Em meu primeiro caso de assassinato, achei que seria a próxima vítima. Vomitei na cena do crime e o investigador-chefe olhou para mim como se fosse me matar. Acredite, é melhor se apenas nos ajudar a encontrar o caminho.
O jovem fez uma careta, empurrando os cabelos para tirá-los da testa.
- É minha prima, senhor Clough. Alguém da família tem que estar lá.
- Confie no detetive Bennett. Ele fará o que é melhor - disse Tommy. - Ele também quer encontrá-la tanto quanto você.
Charlie virou-se, com os ombros caídos.
- Então, o que é que estão esperando agora? - perguntou, tentando ser ríspido, mas sendo traído pelo tremor em sua voz.
- Preciso me trocar - falou George. - Não sei seu nome - acrescentou para o espeleólogo.
- Sou Barry. - Ele suspirou. - Tudo bem, temos um traje extra que deverá servir, mas as botas são por sua conta.
- Tenho botas de cano alto no carro. Será que servem?
- Terão de servir - disse Barry, de mau humor.
Vinte minutos depois, eles formavam uma estranha procissão descendo o vale, encaminhando-se para o matagal em que Charlie descobrira o local em que Alison brigara com alguém. O rapaz ia na frente, seguido de perto por George e Clough. Atrás, vinham os espeleólogos, rindo, conversando e fumando, animados como se não fossem enfrentar nada mais difícil que a exploração dominical costumeira de um sistema fascinante de cavernas.
Ao chegarem à base do rochedo, os espeleólogos agacharam-se sob as árvores mais próximas e esperaram orientações. Charlie moveu-se lentamente ao longo da borda do calcário, empurrando arbustos e, ocasionalmente, escalando com dificuldade rochas tombadas para verificar se obscureciam o que restaria de uma paliçada de cento e cinqüenta anos. George acompanhava-o sempre que podia, mas deixava a maior parte do esforço de busca para Charlie, comparando constantemente a topografia com a descrição do livro.
Charlie forçou caminho entre árvores pequenas que se entrelaçavam, então avançou por cima de um conjunto de rochas soltas e desapareceu do outro lado. Não podiam vê-lo, mas sua voz chegava claramente até os homens que aguardavam.
- Há uma brecha no rochedo, aqui. Parece... Parece que havia uma barricada, mas já está podre.
- Espere aí, Charlie - ordenou George. - Sargento, venha comigo. Precisamos ver se há algum sinal de desordem além do rastro deixado pela passagem de Charlie.
Eles atravessaram com dificuldade o ajuntamento de rochas, tentando evitar o açoite de ramos finos suspensos e tropeços nos arbustos espinhosos que estavam por toda parte, misturados à vegetação rasteira.
- É impossível dizer se alguém esteve aqui - disse Clough, com óbvia frustração. - Pode-se chegar a este lugar cruzando a floresta ou vindo pelo outro lado do vale. Como cenário de um crime, não poderia ser mais inútil.
Eles subiram penosamente sobre as rochas e encontraram Charlie dançando impacientemente, saltitando de um para outro pé.
- Olhem - exclamou o garoto, tão logo os viu. - Tem de ser aqui, não é, senhor Bennett?
Era difícil conciliar o que podiam ver com a representação da entrada da mina que George estivera estudando a manhã inteira. Pedaços de pedra haviam caído da boca do túnel, transformando totalmente seu formato. O arco que ferramentas rústicas haviam escavado no calcário macio agora Parecia-se mais com uma fenda triangular estreita, pelo menos duas vezes mais alta que havia sido originalmente. Samambaias chegavam à altura dos quadris, enquanto um sabugueiro camuflava a parte mais alta do que parecia ser a entrada.
- Vejam - exclamou Charlie, orgulhoso. - Dá para ver os restos de rebites que usaram para prender a barricada de madeira. - Ele apontou para algumas protuberâncias escuras que se projetavam da rocha em um dos lados. - E aqui... - ele puxou uma samambaia para um lado, revelando os restos apodrecidos de madeira grossa. - Achei que conhecia cada centímetro deste vale, mas nunca vim até aqui.
George olhou à sua volta, desanimado. Charlie pisoteara o terreno como um jovem elefante. Se Alison passara por ali, sozinha ou com alguém, a essa altura não havia nenhum traço que denunciasse isso. Respirou fundo e chamou:
- Barry, traga seus homens até aqui. - Virou-se para Clough. - Sargento, quero que você e o senhor Lomas voltem ao trailer. Precisarei de alguns policiais aqui, para isolarem a área. E nem uma palavra para a imprensa, por enquanto.
- Certo, senhor. - Clough segurou o ombro de Charlie com força. - É hora de deixarmos os especialistas fazerem seu trabalho.
- Eu tenho que entrar - disse Charlie, afastando-se com agilidade e disparando rumo à entrada da caverna, mas George estendeu uma perna e lhe deu uma rasteira. Charlie desabou no chão, olhando-o com raiva e mágoa.
- Agora estamos quites - disse George. - Por favor, Charlie, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Prometo que você será o primeiro a saber, se encontrarmos algo.
Charlie levantou-se e arrancou pedaços de samambaia de seus cabelos.
- Vou voltar para contar à minha avó o que descobri - resmungou, em desafio.
Mas a atenção de George já estava com os espeleólogos, que passavam sobre as rochas caídas como se fossem apenas ondulações em uma trilha. Agora que havia trabalho a ser feito, mostravam-se calados e metódicos. Cada um dos homens verificou seu equipamento com cuidado. Barry estendeu um capacete de mineiro com uma lanterna frontal a George.
Olhe, faremos a coisa da seguinte maneira: você fica sempre atrás.
Não sabemos como será lá dentro. A julgar pelo estado da entrada, não parece muito promissor. Ou seguro. Assim, nós entramos e você nos segue quando eu disser, nunca antes. Entendido?
George concordou, ajustando a correia do capacete, dizendo:
- Mas se encontrarmos algo que pareça recente, vocês não deverão mexer em nada. E se a menina estiver lá dentro... bem, teremos de sair imediatamente.
Barry virou a cabeça para um de seus colegas.
- Trevor tem uma câmera especial, para tirar fotografias em cavernas. Nós a trouxemos, para o caso de precisarmos. - Ele olhou em torno. - Muito bem, então. Des, você vai na frente. Estarei atrás, para garantir que George, aqui, fará o que deve fazer. Vocês ouviram, rapazes: não mexam em nada que encontrarem. Ah, George, nada de fumar lá dentro. Nunca se sabe que tipo de gás a terra pode estar expelindo.
Era como entrar em um mundo subterrâneo. A fenda na colina engoliu-os, privando-os de luz tão logo passaram pelo portal. Débeis cones de luz amarela batiam nas paredes com filetes brancos de calcário do período Carbonífero. Aqui e ali pedaços de quartzo brilhavam; um chuvisco úmido de depósitos de carbonato de cálcio brilhou momentaneamente; minerais riscavam e pontilhavam a rocha com suas cores particulares. George lembrou-se de um passeio que fizera com Anne a uma das cavernas abertas ao público perto de Castleton, mas não conseguiu recordar a correspondência entre essas estranhas marcas na pedra e suas origens. Levou algum tempo para perceber que estava em um corredor estreito, com não mais que 1,20m de largura por 1,70 de altura. Tinha de caminhar flexionando um pouco os joelhos para evitar bater com o capacete contra as exóticas excrescências que brotavam do teto.
O ar estava úmido, mas estranhamente fresco, como se fosse continuamente renovado. Em intervalos irregulares, mas contínuos, ouvia o ruído de água respingando, à medida que gotas das estalactites tornavam-se pesadas demais e a tensão em sua superfície tornava-se excessiva. O solo sob seus Pes era desigual e escorregadio, e George teve de mirar o facho de luz de Sua lanterna de mão para baixo, para não tropeçar em uma das muitas estalagmites que pontuavam o chão naquele ponto.
- Impressionante, não é? - indagou Barry, voltando-se levemente e cegando George por instantes com a luz de sua lanterna.
- Realmente.
- Deixe-a fechada por cento e cinqüenta anos e estará a caminho de se tornar uma daquelas cavernas às quais os turistas gostam de ir. Eu lhe digo que, se não encontrarmos nada aqui hoje, voltaremos no fim de semana para explorarmos melhor. Sabe, o rio Scarlaston parece brotar de repente do chão, e isto significa que deve haver um sistema de cavernas subterrâneas em algum ponto por aqui. Esta mina pode ser o caminho até ele. - O tom animado de Barry fez com que George se sentisse ligeiramente nauseado. Estava longe de sofrer de claustrofobia, mas o desejo indisfarçável do outro homem de passar horas sob essas toneladas de rochas hostis parecia-lhe totalmente estranho. Gostava demais do sol e do vento em sua pele para sentir-se atraído por este mundo exótico.
Antes que pudesse responder, ouviu um chamado distorcido por ecos e impossível de decifrar, que vinha dos homens mais à frente. Ele começou a se mover, mas o braço de Barry barrou-lhe o caminho.
- Espere - ordenou-lhe o homem. - Vou ver o que há e já volto.
George ficou ali, ansioso, tentando entender o que as vozes à sua frente diziam. Teve a impressão de que uma eternidade se passara, mas alguns minutos depois Barry estava na sua frente.
- O que é?
- Não é um corpo - disse Barry, rapidamente. - Parece que são roupas. Mais adiante. É melhor você dar uma olhada.
Os exploradores espremeram-se contra a parede para lhe dar passagem. Alguns metros à frente, o corredor ampliava-se e se tornava uma junção de quatro passagens. As outras saídas haviam sido bloqueadas com pedras e entulho, deixando apenas uma pequena caverna com cerca de três metros de largura por dois de altura. No lado mais longínquo, fracamente visível sob as luzes das lanternas, era possível avistar o que pareciam ser peças de roupa.
- Alguém tem uma lanterna mais potente? - indagou George.
Mãos lhe lançaram uma pesada lanterna. Ele apontou seu facho poderoso para as roupas. Algo escuro estava amontoado contra as pedras. O que à primeira vista pareciam ser duas tiras escuras revelou-se um par de meias cortadas. George percebeu, com uma fisgada de dor e repulsa, que o tecido preto perto delas era uma calcinha rasgada.
Forçou-se a respirar fundo.
- Sairemos todos agora. O último homem da fila, lá atrás, simplesmente vire-se e saia da caverna. Todos devem segui-lo. Eu estarei atrás de vocês. Por um momento, ninguém se moveu. - Eu disse agora - gritou, liberando um pouco da tensão acumulada que parecia tornar seus nervos mais esticados que uma corda de violino.
Ficou ali, olhando irritado para todos. Finalmente, eles se viraram e começaram a voltar, com seus passos firmes parecendo-lhe um insulto a seus esforços vacilantes no piso traiçoeiro. Ao emergirem na luz do sol, ele sentia-se como se tivessem permanecido lá dentro por horas, mas uma rápida olhada no relógio de pulso revelou que haviam passado menos de quinze minutos. Agora, dois policiais fardados emergiam do meio do matagal para isolar o local e evitar que bisbilhoteiros e pés destrutivos invadissem a mina.
George pigarreou e disse:
- Barry, eu gostaria que seu colega Trevor ficasse aqui e tirasse algumas fotos. Quanto aos outros, eu agradeceria se esperassem até isolarmos a área. Se voltarem à aldeia agora, todos saberão que encontramos algo e este lugar virará um inferno.
Os exploradores murmuraram em concordância. Barry puxou um maço de cigarros de uma bolsa impermeável pendurada por um cordão em seu pescoço.
- Você está com cara de quem precisa de um destes - disse.
- Obrigado. - George virou-se para os dois policiais fardados. - Um de vocês volte ao trailer e diga ao sargento Clough que encontramos roupas e precisamos de uma equipe inteira aqui para isolarmos um possível local de crime. E, pelo amor de Deus, seja discreto. Se alguém perguntar, trate de garantir que não encontramos um corpo. Não quero uma repetição da matéria de jornal de sexta passada.
Um dos policiais concordou, agitado, e girou nos calcanhares, correndo de volta à trilha, rumo ao coração da aldeia.
- Sua tarefa é garantir que ninguém que não seja um policial se aproxime a menos de vinte metros da entrada da mina - disse George ao outro policial, antes de se dirigir a Barry. - Aquela área central lá dentro, há alguma possibilidade de acesso às outras passagens por lá?
Barry encolheu os ombros com vigor.
- Não me parece provável, mas não posso ter certeza sem verificar direito. Talvez exista uma saída e alguém tenha fechado a passagem atrás dela para fazer com que parecesse impenetrável. Mas isto aqui é uma mina, não um sistema de cavernas. Ainda assim, acho que há apenas uma entrada e uma saída. Qualquer um que se metesse naquela caverna ainda estaria ali, mas provavelmente já estaria morto. Acho que a menina não está lá. - Ele pousou a mão no braço de George e, depois, virou-se para agachar-se sobre as pedras com seus colegas.
Uma busca completa na caverna consumiu sete horas. Trevor levou sua câmera de volta à mina e fotografou com cuidado cada centímetro das paredes e do chão. Nenhuma das passagens bloqueadas mostrava qualquer sinal de interferência recente. Não havia indicação de que um corpo houvesse sido abandonado lá dentro. George não sabia se deveria sentir-se deprimido ou animado com esta última afirmação.
No meio da tarde, uma japona sem um dos botões, uma meia-calça rasgada com tanta brutalidade que as pernas estavam totalmente separadas, e uma calcinha azul-marinho estavam a caminho do laboratório da polícia do distrito, cuidadosamente embaladas para preservação de quaisquer elementos que pudessem ser identificados pelo laboratório. Contudo, George não precisava que um especialista lhe dissesse que as manchas nos panos úmidos tinham origem humana.
Ele já estava na polícia tempo suficiente para reconhecer sangue e sêmen, quando os via.
Duas descobertas adicionais eram ainda mais perturbadoras. Encravado nas paredes da caverna, um policial encontrara um pedaço deformado de metal que já fora uma bala de arma de fogo. Tal descoberta levara a um exame mais detalhado do calcário cheio de fissuras. Escondido em uma rachadura, havia um segundo pedaço de metal.
Desta vez não havia como negar. Era, sem dúvida, uma bala de revólver.
Segunda Parte: A Longa Espera
Daily News, sexta-feira, 20 de dezembro de 1963, p. 5
Natal de lágrimas para mãe de menina desaparecida
Por Donald Smart
Ruth Hawkin não comprará presentes de Natal para a filha Alison este ano. Mas Philip, o padrasto da menina desaparecida, encheu o quarto da enteada de pacotes alegremente decorados contendo discos, livros, roupas e maquiagem.
A senhora Hawkin, 34 anos, não tem ânimo para comprar presentes para a filha. Nove dias atrás, ela acenou para a garota de 13 anos, que saiu de casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para passear com sua cadela de estimação e, desde então, não foi mais vista.
Um parente disse: "Se Alison não for encontrada, será um Natal muito triste para todos em Scardale. Somos uma comunidade muito unida e todos estão perplexos com o desaparecimento de Alison. Ela é adorável, e ninguém consegue imaginar por que fugiria de casa."
A polícia já ouviu milhares de pessoas, vasculhou vales e pântanos remotos e dragou rios e reservatórios em vão, nas buscas pela linda estudante loira.
Duas outras famílias também terão lugares vagos em suas mesas na ceia de Natal. Um mês atrás, John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, desapareceu. Ele foi visto pela última vez na feira livre daquela cidade. Cinco meses atrás, Pauline Reade, de 17 anos, saiu de sua casa na rua Wiles, em Gorton, Manchester, para ir a um baile. Nenhum deles foi visto novamente.
Este não era o Natal que George Bennett desejara, alguns meses atrás. Ele ansiara por seu primeiro Natal em sua própria casa, a sós com a esposa, mas não contara com as pressões da família. Anne era filha única, de modo que não havia disputa de irmãos pela presença de seus pais e, sendo recém- casados, os dois haviam se tornado automaticamente o foco da atenção dos pais de George. Percebendo que seria sua primeira e última chance de celebrarem sozinhos, Anne fizera o possível para persuadir as duas famílias de que uma reunião de todos no dia 26 seria o mais conveniente para todos, mas fracassara. Na verdade, pouco faltou para que, além de seus pais, tivessem de receber também a irmã de George, seu cunhado e os três filhos pequenos.
De qualquer maneira, fora um almoço maravilhoso. Anne planejara e trabalhara durante semanas para que tudo desse certo. Nem mesmo o desaparecimento de Alison Cárter conseguiu deter sua determinação de que o primeiro Natal em sua própria casa fosse perfeito. E fora mesmo. Depois da distribuição de presentes e de fazer as caras e bocas adequadas de prazer pelas meias, camisas, suéteres e cigarros que ganhara, George tivera pouco a fazer, exceto garantir que as taças das mulheres continuassem cheias de sherry e champanhe doce e que não faltasse cerveja nos copos dos homens.
De acordo com o que haviam combinado de antemão, revelaram a gravidez de Anne depois do discurso da rainha. As mães competiam uma com a outra em sua alegria e, usando a hora de lavar a louça como desculpa, logo desapareceram na cozinha para oferecer conselhos à futura mamãe. O Pai de Anne cumprimentou George de um modo desajeitado e sentou-se Para celebrar com uma taça de conhaque e um charuto, enquanto assistia a TV. George e seu pai, Arthur, continuaram sentados à mesa de jantar e, como sempre, não se sentiam totalmente à vontade um com o outro, mas a notícia sobre o bebê preenchera parte do abismo que um diploma universitário colocara entre o advogado e o maquinista de trem.
- Você parece cansado, garoto - disse Arthur.
- As últimas semanas têm sido difíceis.
- É aquela menina desaparecida, não é?
George concordou.
- Alison Cárter. Temos feito de tudo, mas não nos distanciamos muito do ponto em que estávamos na noite em que ela sumiu.
- Mas li em algum lugar que haviam encontrado algumas roupas - falou Arthur, lançando um perfeito anel de fumaça para o alto.
- Sim, isso mesmo. Em uma mina abandonada. Mas tudo o que isso realmente nos diz é que ela não fugiu de casa. A descoberta das roupas não nos levou nem um pouco mais perto de descobrirmos o que lhe aconteceu ou onde está agora. Exceto que também encontramos algumas balas de pistola encravadas no calcário - acrescentou. - Uma estava tão deformada que não pudemos identificar a arma, mas tivemos mais sorte com a outra. Ela foi parar em uma fenda na parede de pedra, de modo que o pessoal da perícia conseguiu retirá-la mais ou menos intacta. Se chegarmos a encontrar a arma da qual foi disparada, poderemos fazer uma identificação positiva.
Seu pai tomou um pequeno gole do conhaque e balançou a cabeça, pesaroso.
- Pobre garota. Imagino que não a encontrarão com vida. Estou certo?
George suspirou, ao responder:
- Eu não apostaria nada nesta possibilidade. Este caso está me dando insónia. Especialmente agora, com a gravidez de Anne, que muda tudo, não é? Eu nunca havia pensado muito nesta questão antes. Sabe como é, voce acha que encontrará a garota certa, se casará e terá uma família. E assim que acontece, quando temos sorte. Mas eu nunca cheguei a pensar no significado de ser pai. Mas sabendo que irá acontecer, e estando no meio de uma investigação como esta... Bem, não posso evitar o pensamento de como me sentiria se fosse o meu filho.
- Entendo. - Seu pai respirou ruidosamente pelas narinas. - Você tem razão, George. Ter um filho faz com que nos lembremos a todo instante dos perigos do mundo, mas não conseguimos viver direito se nos preocupamos demais. Precisamos dizer a nós mesmos que nada de ruim acontecerá com nossos filhos. - Ele deu um sorriso oblíquo. - Você até que conseguiu chegar inteiro à idade adulta.
Isto era uma dica para a troca de histórias sobre os acidentes de George na infância. Contudo, parte dele estava imune à mudança de assunto. Alison Cárter estava entalada em seu íntimo como uma sujeirinha no cano de um cachimbo. Depois de alguns minutos, George apagou seu charuto e se levantou.
- Se você me permite, pai, vou dar uma saída. Meu sargento ofereceu-se para fazer plantão hoje, e eu gostaria de dar uma chegada na delegacia para lhe desejar feliz Natal.
- Ah, vá em frente, garoto. Vou me sentar perto do pai de Anne e fingir que estou assistindo à televisão. - Ele piscou um olho.- Vamos tentar não roncar alto demais.
George guardou no bolso uma caixa com cinqüenta cigarros que ganhara de uma tia e cruzou a cidade até a delegacia, encontrando a mesa de Tommy Clough vazia, exceto pelo relatório do exame de balística sobre as balas encontradas na caverna. A jaqueta de Clough estava sobre o encosto da cadeira, de modo que ele não deveria ter ido longe. George pegou o relatório já bem conhecido e folheou-o outra vez. Uma das balas estava totalmente irreconhecível, mas a outra, encontrada na fenda da pedra, revelara alguns detalhes para o especialista em armas:
O objeto é um projétil de chumbo, cilindro cónico, com cápsula totalmente revestida de metal, leu George. O calibre é .38. O projétil apresenta sete cheios e sete sulcos, com cheios estreitos e sulcos largos. Estes revelam um giro Para a direita. Esses padrões de raias são consistentes com um projétil disparado por um revólver Webley.
A porta se abriu e Tommy Clough entrou, com as sobrancelhas enrugadas enquanto lia um telex.
Feliz Natal, Tommy - disse George, jogando a caixa de cigarros até o outro lado da sala.
O mesmo para você, George - disse Clough, parecendo surpreso. - O que o traz aqui? A família entrou em guerra? - Ele cruzou a sala e Sentou-se, enfiando o telex na pasta de arquivo.
- Eu estava lá sentado, com meu chapéu de papelão, estourando fogos comendo peru e imaginando como estaria sendo o Natal no Solar Scardale.
Clough rasgou o celofane do maço de cigarros. Endireitando-se em sua cadeira, empurrou a pasta de arquivo para um lado e ofereceu a caixa aberta a George.
- Eu diria que depende do humor de Ruth Hawkin - falou. - E de mostrarmos ou não este telex a ela.
- O que você quer dizer?
Clough acendeu seu cigarro e somente depois respondeu:
- Uma vez que não chegamos a lugar nenhum pelos canais oficiais que liguem Hawkin a uma arma Webley, decidi tentar outras vias. Assim, enviei uma solicitação por informações sobre quaisquer comunicados de roubo de Webleys. Entre um monte de coisas inúteis havia algo interessante. De St. Albans. Dois anos atrás, um certo Richard Wells relatou uma invasão era sua casa. Entre os itens roubados havia um revólver Webley calibre .38.
Por seu ar de expectativa, George sabia que havia mais novidades.
- E daí? - perguntou.
- O senhor Wells mora a duas casas da residência da mãe de Philip Hawkin. As famílias costumavam jogar bridge juntas uma vez por semana. O senhor Wells mantinha sua Webley como lembrança de guerra, e se vangloriava dela com freqüência, de acordo com o oficial de plantão no departamento de investigações criminais. Ninguém foi preso pela invasão. A família estava de férias, de modo que pode ter acontecido em qualquer dia ou horário naquela semana. - Clough sorriu-lhe de uma orelha à outra. - Feliz Natal, George.
- Este presente é melhor que uma caixa de cigarros.
- Quer dar uma chegada até lá? Para sondar o ambiente?
- E por que não?
Mantiveram-se em silêncio durante a maior parte do percurso. Enquanto entravam na estrada que levava a Scardale, George disse:
- Se importaria de me falar mais sobre aquilo que disse antes, que o Natal dependia do humor da senhora Hawkin?
- Não é nada que já não tenhamos comentado uma dúzia de vezes nos últimos dias - disse Clough. - Em primeiro lugar, temos o conflito entre e Hawkin nos contou sobre seus movimentos na tarde em que Alison desapareceu e o ""vimos de Mamãe Lomas e de Charlie. Em segundo lugar, temos a mina de chumbo. Além de Mamãe Lomas, todos em Scardale negam já terem ouvido falar da antiga mina, e obviamente todos negam conhecer sua localização. Acontece que o livro que explica detalhadamente a localização da entrada estava bem na estante da biblioteca de Philip Hawkin.
E não esqueçamos os resultados do laboratório - disse George,
quase num sussurro. A conclusão inescapável do que haviam descoberto na mina de chumbo era que Alison Cárter havia sido estuprada e quase certamente assassinada. O sangue que manchava as roupas era do grupo O, que batia com os registros médicos de Alison. O indivíduo que sujara as calcinhas de Alison Cárter com sêmen era um secretor. Graças a isso, agora a polícia sabia que o homem pertencia ao grupo sangüíneo A. Isto era algo que Philip Hawkin tinha em comum com quarenta e dois por cento da população, assim como três outros homens do vale - dois dos tios de Alison e seu primo Brian. O que os separava de Philip Hawkin era o fato de todos terem álibis para o momento do desaparecimento da menina. Um dos tios estava em um bar em Leek, depois de visitar a feira de gado, e Brian estava ordenhando as vacas na companhia do pai. Se Alison tivesse sido atacada por alguém de dentro do vale, começava a parecer que existia apenas um candidato.
- Poderia ter sido alguém que subiu o vale do Scarlaston vindo de Denderdale. Alguém que a conhecia de Buxton. Um professor ou colega de escola. Ou simplesmente algum pervertido que a observava na escola - disse Clough, quando voltou ao carro após fechar o portão que separava a aldeia da estrada.
- Não poderia ter chegado lá a tempo. A caminhada da estrada em Denderdale até a margem do rio leva uma hora e meia, mais ou menos. E ele não voltou aqui no escuro com Alison, viva ou morta. Teria parado em definitivo perto do rio - disse George, em tom seguro. - Concordo com você. Todas as evidências circunstanciais apontam para um homem, mas não temos um corpo nem provas diretas. Sem isso, não podemos justificar um interrogatório, menos ainda um indiciamento.
- E então, o que fazemos?
- Não faço idéia. - George suspirou. O carro parou ao lado da trilha marrom de capim que marcava o ponto em que o trailer da polícia havia estado. Sob as ordens do superintendente Martin, o veículo fora levado de volta a Buxton na sexta-feira. As buscas haviam terminado no mesmo dia já que não havia mais onde procurar.
George saiu para o ar gelado da noite. A aldeia parecia curiosamente inalterada, apesar do que acontecera. Não havia sinal de que algo mudara além do pôster do jornal colado na parte de trás do telefone público. Em torno da praça, as casas ainda pareciam aconchegar-se umas às outras. Luzes estavam acesas por trás das cortinas e o latido ocasional de um cão cortava o silêncio. Era preciso admitir que não se podiam ver árvores de Natal por trás das janelas e as portas não exibiam guirlandas festivas. Contudo, George não estava convencido de que as coisas seriam diferentes em qualquer outro Natal em Scardale.
Ele e Clough encostaram-se no capô do carro, fumando em silêncio. Pouco depois, uma cunha de luz amarela saiu da porta da Casa do Outeiro. A silhueta inconfundível de Mamãe Lomas apareceu, realçada contra o interior iluminado. Depois, a luz desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. A velha mulher estava junto deles antes que George pudesse dar-se conta de que ela não tornara a entrar em casa.
- Vocês não têm uma casa para onde ir? - indagou ela.
- Ele está de plantão - disse George.
- E qual é a sua desculpa?
- Natal é para crianças, não é o que dizem? Bem, não consegui tirar uma garota de meus pensamentos.
- Mas que incrível, um tira com sentimentos - riu-se ela, com ironia, abrindo seu casaco volumoso e tirando uma garrafa com o líquido transparente que bebera durante a conversa que mantivera com os dois no início da investigação. De outro bolso, tirou três copos.
- Achei que vocês poderiam gostar de beber algo para afastar o frio.
- Isto seria um verdadeiro ato de caridade cristã - disse Clough.
Eles a viram colocar os copos sobre o capô e servir três doses generosas. Cerimoniosamente, deu um copo a cada um e, depois, ergueu o seu num brinde.
- a que estamos bebendo? - perguntou George.
Ao fato de terem descoberto evidências suficientes - falou ela, em uma voz mais fria que o ar noturno.
- Eu preferiria beber à descoberta de Alison - disse ele.
A mulher sacudiu a cabeça.
Se fosse para encontrá-la, isso já teria acontecido. Onde quer que a tenham colocado, só poderá ser descoberta por acaso. Tudo o que nos resta, agora, é a esperança de que vocês o façam pagar.
- A senhora está pensando em alguém específico? - indagou Clough.
- Assim como vocês, não devo especular - disse, gélida, virando-se para olhar o solar e levantando seu copo. - Às provas.
George tomou um pequeno gole e quase sufocou.
- É puro álcool! - exclamou, quando conseguiu falar novamente. - Mas, por Deus, o que há nessa garrafa? Combustível de foguete?
Ela riu baixinho.
- Nossa Terry chama isso de Fogo do Inferno. É destilado de flor de sabugueiro e vinho de groselha espinhosa.
- Não encontramos nenhum alambique quando fizemos buscas na aldeia - comentou Clough.
- Bem, e por que deveriam? - Ela esvaziou seu copo. - E então, o que pretendem fazer? Como conseguirão pegá-lo?
George forçou-se a engolir o resto daquele fogo líquido. Ao recuperar a capacidade da fala, respondeu:
- Não sei se podemos fazer isso, mas não vou desistir.
- É melhor mesmo - falou ela, em tom duro. Estendeu a mão para os copos vazios, deu-lhes as costas e voltou para sua casa.
- Bem feito para nós - disse Clough.
- É um maldito feliz Natal para você também.
Era a primeira segunda-feira de fevereiro e George estava em sua mesa de trabalho já às oito horas. Tommy Clough bateu na porta alguns minutos depois, segurando duas xícaras de chá.
- Como estava o clima? - perguntou.
- Melhor do que se poderia esperar - respondeu George. - Estava frio, mas todos os dias foram ensolarados. Ninguém se importa com o frio desde que o tempo esteja seco, e Norfolk é tão plana que Anne conseguiu caminhar por quilômetros.
Clough ajeitou-se na cadeira oposta à de George e acendeu um cigarro.
- Você está com ótima aparência. Parece até que passou quinze dias na Costa Brava, em vez de uma semana em uma praia próxima.
George sorriu-lhe, alegre.
- Então Martin estava certo.
Ele resistira furiosamente quando o superintendente Martin insistira que tirasse alguns dias de folga, para compensar as horas intermináveis que passara no caso de Alison Cárter. Finalmente, quando Jack Martin transformara a sugestão em ordem, George desistira, mal-humorado, e permitira que Anne fizesse reservas em uma pousada na cidade litorânea de Norfolk. Depois, descobriram que eram os únicos hóspedes, e foram mimados por uma proprietária que acreditava que todos deveriam fazer pelo menos três refeições generosas por dia. Uma semana de alimentação regular, ar puro e a atenção exclusiva de sua esposa o haviam enchido de energia e determinação.
- Ele tem insistido para que eu também tire férias - admitiu Clough. - Talvez eu saia, agora que você voltou.
- Alguma novidade? - perguntou George, soprando seu chá.
- Bem, levei aquela nova policial de Chapel-en-le-Frith para ver Acker Bilk e sua Paramount Jazz Band no Pavilion Gardens, sexta à noite, e foi muito agradável. Acho que vou perguntar se ela quer assistir comigo àquele novo filme com Albert Finney na Opera House. O nome é Tom Jones. Parece um filme apropriado para colocar uma senhorita no clima certo - falou Clough, com um sorriso brincalhão e inocente.
- Eu perguntei se há novidades sobre o caso, não em sua patética vida amorosa - respondeu George, com bom humor.
- Por incrível que pareça, há uma novidade. Recebemos um telefonema de Philip Hawkin, domingo passado. Ele disse que estava vendo uma fotografia do Spot the Ball no jornal e podia jurar que uma das pessoas na multidão,
Início da Nota de Rodapé: Competição popular até hoje, em que a bola é eliminada da fotografia de uma partida de futebol e o leitor deve tentar descobrir onde estava originalmente, marcando-a na grade sobreposta à fotografia. Fim da Nota de Rodapé.
ao lado do gol, era Alison. - Ele apertou os olhos para enxergar George através da fumaça. - O que você acha disso? George sentiu um mal-estar estranho no estômago.
Conte-me tudo, Tommy, sou todo ouvidos. - Esquecendo-se do chá,
ele inclinou-se para a frente e fitou intensamente o sargento.
Fui direto até lá para ver o que estava acontecendo. Era o Sunday
Sentinel e mostrava a partida do Nottingham Forest. Tão logo vi a foto, entendi o motivo do telefonema. Admito que a imagem era pequena, mas parecia-se realmente com Alison. Assim, entrei em contato com o jornal e eles ampliaram o original. Enviaram para mim pelo trem e chegou aqui segunda-feira à tardinha. - Ele não precisava continuar, seu rosto contava o resto da história. Um exame mais atento provara que a menina na multidão era bem diferente de Alison.
George respirou fundo e fechou os olhos.
- Obrigado - sussurrou. Olhou para Clough e sorriu. - Você por acaso sabe se Philip Hawkin tem assinatura do Manchester Evening News?
- Por acaso sei. Kathy Lomas falou sobre isso quando nos relatou a rotina dos adolescentes de Scardale. Uma vez que o jornal diário só chega a Scardale na hora do almoço e Hawkin gosta de ler o jornal no café da manhã, o jornaleiro de Longnor deixa um exemplar do Evening News na caixa do correio no fim da estrada todas as manhãs, e a pessoa encarregada de deixar as crianças no ônibus o pega e entrega no solar logo depois.
O sorriso de George ampliou-se.
- Achei que era isso mesmo. - Ele levantou-se rapidamente e abriu com energia a gaveta de seu arquivo. Remexeu ali dentro e, então, retirou Um grande envelope pardo, acenando com ele para Clough e dizendo em tom triunfante: - Isso é o que chamo de dar um novo impulso ao caso.
Clough pegou o arquivo que veio voando em sua direção. As palavras escritas no envelope eram "Pauline Catherine Reade". Ele abriu o envelope e um punhado de recortes de jornais caiu sobre a mesa. Ele franziu a testa ao ver as datas anotadas em vermelho na borda dos recortes.
- Você está acompanhando este caso desde o início, em julho. Isso aconteceu quatro meses antes do desaparecimento de Alison - disse, num tom de voz que indicava o quanto achava aquilo estranho.
George afastou os cabelos loiros da testa.
- Sempre me interesso por casos que podem acabar caindo nas minhas mãos - falou, simplesmente.
- E o que eu deveria ver aqui? - perguntou Clough, manuseando os recortes.
- Você saberá, quando vir. - George encostou-se no armário com os braços cruzados e um sorriso de satisfação.
De repente, Clough pareceu paralisado. Bateu levemente com a ponta do indicador em um único recorte, como se este pudesse atacá-lo.
- Macacos me mordam... - sussurrou.
Manchester Evening News, segunda-feira, 2 de novembro de 1963, p. 3
FOTOGRAFIA ACABA COM ESPERANÇAS DE MÃE
Por breves momentos, a senhora Joan Reade sentiu renascer a esperança de voltar a ver a filha desaparecida de 16 anos, diante da foto de uma multidão, publicada no Manchester Evening News & Chronicle Football Pink.
Contudo, a esperança desapareceu quando a senhora Reade viu uma cópia ampliada da fotografia. Em sua casa na rua Wiles, em Gorton, a mãe de Pauline comentou"com tristeza, hoje: "Está claro que esta não é minha filha."
Pauline está desaparecida desde 12 de julho, quando saiu para um baile e não voltou.
O filho caçula da senhora Reade, Paul, de 15 anos, viu alguém que julgou ser Pauline em meio à multidão, na foto tirada durante a final da Copa da Liga de Rúgbi de Lancashire e publicada pelo Football Pink de sábado.
Clough ergueu o olhar.
- Ele acha que somos burros.
- Tem certeza de que foi Hawkin, e não sua esposa, quem percebeu a semelhança?
Foi ele quem ligou e assumiu ter visto a menina. Quando perguntei à senhora Hawkin o que achava da semelhança, ela disse que a achou mais parecida com Alison na primeira vez em que viu a foto, mas depois não estava mais tão certa. Ele pareceu um pouco irritado com isso, como se a esposa devesse apoiá-lo sempre e não estivesse se comportando como deveria.
George pegou seus cigarros e começou a andar pela sala, enquanto falava:
- Então nós o pegamos tentando salvar sua pele. Por que fez isso agora? - Clough esperou, sabendo que o chefe responderia à própria pergunta. - Por quê? Porque esperava que desistíssemos de Alison muito tempo atrás e pegássemos um novo caso. Está desconcertado porque você e eu ainda vamos a Scardale duas ou três vezes por semana, conversamos com as pessoas, andamos por suas terras e não esmorecemos. Ele não é estúpido; deve perceber que estamos de olho nele pelo que quer que tenha acontecido com Alison. Sem falar no fato de que Mamãe Lomas o julga culpado e não posso imaginar que ela seja menos franca em sua presença do que é conosco.
- Exceto que todos naquela aldeia devem a Hawkin o teto sobre suas cabeças e o pão de cada dia - lembrou-o Clough. - Até mesmo Mamãe Lomas talvez tenha pudores em lhe dizer que o considera responsável pelo estupro e assassinato de Alison Cárter.
George concordou com a cabeça.
- Muito bem, digamos que você tem razão. Contudo, devemos ter em mente que os moradores de Scardale suspeitam que ele fez algo terrível com Alison, no mínimo porque é um forasteiro. Assim, quando Hawkin percebe que tudo isso não será engavetado e esquecido, ele decide que já é hora de fazer algo para melhorar sua imagem. Então, ele lembra o artigo que leu no Manchester Evening News sobre Pauline Reade. - George parou de caminhar e apoiou-se na mesa. - O que acha, Tommy? Será que temos o bastante para interrogá-lo?
Clough apertou os lábios.
- Não sei. O que perguntaríamos a ele?
- Se costuma ler o Evening News. Como era seu relacionamento com Alison. Essas coisas. Tudo o que possa colocá-lo sob pressão. Será que a menina sentia rancor por ver outro homem no lugar de seu pai? Será que Hawkin a considerava atraente? Meu Deus, Tommy, podemos até perguntar qual é a cor favorita dele. Só quero que ele fique ali, sob pressão, para vermos o que acontece. Pegamos leve com ele até agora porque não tínhamos razões suficientes para tratá-lo de outro modo que não como um padrasto preocupado. Bem, acho que agora temos.
Clough coçou a cabeça.
- Sabe o que eu acho?
- O quê?
- Que não nos pagam para tomarmos decisões tão importantes. É para isso que Carver e Martin ganham tão bem. Se eu fosse você, falaria com eles e contaria toda essa história, para saber o que acham.
George deixou-se cair pesadamente em sua cadeira, como um saco de batatas, uma expressão desanimada no rosto.
- Ah, Tommy, não me diga que estou falando bobagem!
- Não, acho que você está certo. Na minha opinião, Hawkin é o homem que sabe o que aconteceu com Alison, mas não sei se este é o momento certo para pressioná-lo e não quero perdê-lo porque fomos com muita sede ao pote. George, estamos envolvidos demais com este caso. Temos respirado, dormido e sonhado com ele, noite após noite, há sete semanas. Não somos imparciais. Vá falar com Martin. Depois, se tudo der errado, não poderão nos usar como bodes expiatórios.
- Acha mesmo isso? - George deu uma risada amarga. - Tommy, se tudo der errado, voltaremos a orientar o trânsito em Derby pelo resto de nossas carreiras.
Clough sacudiu os ombros.
- Então é melhor fazermos o que é certo.
Clough conduziu Hawkin até a sala de interrogatório, onde George já os esperava, lendo com grande atenção o conteúdo de uma pasta de arquivo. George sequer levantou a cabeça para olhá-lo. Simplesmente prosseguiu na leitura com expressão de concentração intensa. Este era o primeiro movimento em um processo cuidadosamente orquestrado. Em silêncio, Clough indicou uma cadeira na frente de George, e Hawkin, com os lábios apertados e olhos indecifráveis, obedeceu. Clough girou uma cadeira, de modo a colocá-la entre Hawkin e a porta. Suas pernas robustas ajeitaram-se uma de cada lado e ele se apoiou no encosto, com o bloco de anotações virado para baixo. Hawkin respirou pesadamente pelo nariz, mas nada disse.
Finalmente, George fechou a pasta, ajeitou-a à sua frente na mesa e fitou Hawkin, percebendo o sobretudo caro que o homem trazia atravessado sobre um dos braços, a jaqueta esportiva de lã feita sob medida sobre o suéter de malha fina com gola pólo e as pernas cruzadas nas calças bege claras de sarja. Apostaria um mês de seu salário que Hawkin gastara um bom bocado de sua herança na tarefa de comprar sua aparência de fazendeiro em Austin Reed. Tal aparência parecia completamente inadequada para alguém que combinava mais com um terno azul-marinho barato.
- Foi muita gentileza sua vir até aqui, senhor Hawkin - disse George, com a voz isenta de qualquer inflexão calorosa.
- Eu já planejava vir a Buxton hoje, de modo que não foi nenhum incômodo - falou Hawkin, em voz arrastada. Ele mostrava-se à vontade, sua Pequena boca triangular parecendo prestes a sorrir.
- Ainda assim, sempre somos gratos quando o público reconhece seu dever de ajudar a polícia - disse George, generosamente, pegando seus cigarros. - O senhor fuma, não?
- Obrigado, inspetor, mas tenho meus próprios cigarros - agradeceu Hawkin, rejeitando com leve desprezo o maço que George lhe oferecia Isso vai demorar?
- Depende do senhor - respondeu Clough, sem nenhuma gentileza por trás do ombro direito de Hawkin.
- Acho que não gosto do tom de voz de seu sargento - disse Hawkin petulante.
George olhou-o, sem responder. Quando o homem remexeu-se na cadeira, George então lhe disse, com formalidade:
- Preciso fazer-lhe algumas perguntas ligadas ao desaparecimento de sua enteada, Alison Cárter, no dia 11 de dezembro do ano passado.
- É claro. Por que mais eu estaria aqui? É muito improvável que eu esteja envolvido em algum crime, não é? - O sorriso de Hawkin era de satisfação íntima, como se tivesse um segredo que outros jamais poderiam desvendar.
- Enquanto eu estava fora, semana passada, o senhor entrou em contato conosco porque julgou ver Alison em uma fotografia de jornal.
Hawkin concordou com a cabeça, completando:
- Infelizmente, eu estava enganado. Poderia jurar que era ela.
- E é claro que o senhor tem um olho de fotógrafo para essas coisas. Não deveria enganar-se - continuou George.
- Tem razão, inspetor. - Hawkin deu-lhe um pequeno sorriso de condescendência e pegou seus cigarros. Começava a relaxar, como George queria.
- Assim, não foi sua esposa quem percebeu a semelhança...
Agora, Hawkin vangloriava-se:
- Minha esposa tem qualidades ótimas, inspetor, mas em nossa casa sou eu quem percebe as coisas. - Depois, como se lembrasse de repente da razão para estar ali, assumiu um ar solene. - Além disso, o senhor deve ter em mente que, desde que Alison saiu de nossas vidas, minha esposa deixou de prestar atenção ao mundo externo. É seu modo de manter alguma aparência de normalidade em nossa vida doméstica. Eu insisto nisso, obviamente. É melhor, para ela, concentrar-se em questões rotineiras, como cozinhar e limpar a casa.
- Muito sensível de sua parte - falou George. - Esta fotografia estava no Sunday Sentinel, não é?
- Correto, inspetor.
Que jornais o senhor costuma ler com alguma regularidade? - perguntou George, com um leve franzir de testa.
- Sempre tivemos assinatura do Express e do Evening News. Ah, e também do Sentinel aos domingos. É claro que, com toda a cobertura sobre o desaparecimento de Alison pela imprensa, comprei todos os jornais enquanto o senhor ainda conduzia suas coletivas diárias com os jornalistas. Bem, alguém precisa garantir que não darão a versão incorreta das coisas, não é? Eu não queria que escrevessem mentiras sobre nós. Além disso, queria me precaver, porque não desejava que Ruth fosse perturbada por algum insensível que lhe contaria o que andam dizendo nos jornais, sem qualquer aviso prévio. Assim, tratei de me manter informado. - Ele bateu a cinza no cinzeiro e sorriu. - Esses repórteres são medonhos. Não sei como vocês conseguem lidar com eles.
- Precisamos lidar com todo tipo de gente em nosso trabalho - disse Clough, insolente.
Hawkin apertou os lábios, mas nada disse. George inclinou-se um pouco para a frente.
- Então o senhor lê o Evening News?
- Já lhe falei isso - disse Hawkin, impaciente. - É claro que só o recebemos na manhã seguinte à publicação, mas é o único jornal que conseguem entregar a tempo para o café da manhã, de modo que preciso me contentar com esta visão provinciana do mundo.
George abriu sua pasta de arquivo e dela retirou um plástico transparente. Dentro havia um recorte de jornal. Empurrou-o sobre a mesa até o outro homem.
- Então o senhor se lembrará desta reportagem.
Hawkin não pegou o recorte. Apenas seus olhos moveram-se, percorrendo as linhas impressas. A cinza em seu cigarro esquecido cresceu e curvou-se levemente para baixo por seu peso. Finalmente, ele ergueu os olhos para George e falou, lenta e deliberadamente:
- É a primeira vez que leio esta matéria.
- É uma coincidência estranha, não acha? Uma garota desaparecida, um familiar que detecta a semelhança na foto dos espectadores de uma partida de futebol, mas suas esperanças terminam quando descobrem que a semelhança era apenas um erro trágico. E esta matéria foi publicada em um jornal enviado seis dias por semana para sua casa.
- Eu já disse que nunca vi esta matéria!
- Seria difícil ignorá-la. Estava na página 3.
- Ninguém lê o Evening News do início ao fim. Devo ter ignorado esta reportagem por que teria algum interesse para mim?
- O senhor é padrasto de uma adolescente - lembrou George, em voz baixa. - Achei que matérias sobre adolescentes chamariam sua atenção Afinal, esta experiência lhe é relativamente nova. Em seu lugar, eu provavelmente pensaria que tenho muito a aprender.
Hawkin esmagou seu cigarro.
- Alison era assunto de Ruth. É tarefa das mães cuidar dos filhos.
- Ainda assim, está claro que o senhor gostava da menina. Não se esqueça de que estive no quarto dela. Belos móveis, carpete novo. Pelo que vi, não poupou esforços nem dinheiro para agradá-la.
Hawkin franziu o rosto antes de responder, irritado:
- A menina ficou sem pai durante anos. Ela não teve a maior parte das coisas que outras crianças consideram normais. Eu era bom para ela porque isso fazia Ruth feliz.
- Tem certeza de que esta era a única razão? - indagou Clough. - O senhor comprou um toca-discos para Alison e lhe dava discos novos todas as semanas. O que estivesse nas paradas de sucesso, o senhor comprava para ela. O senhor comprava tudo o que Charlie Lomas recomendava à prima. Se me perguntassem, eu diria que isso é mais do que generosidade para agradar a mãe da garota.
- Obrigado, sargento - interrompeu George, em tom de reprimenda.
- Senhor Hawkin, qual era o grau de intimidade entre o senhor e Alison?
- indagou.
- O que o senhor quer dizer? - Ele pegou outro cigarro e precisou de várias tentativas para acender o isqueiro. Depois de uma longa tragada, repetiu a pergunta que não fora respondida: - O que o senhor quer dizer? Quanto ao grau de intimidade, é como lhe disse, quem cuidava de Alison era Ruth.
- O senhor gostava da menina?
Os olhos de Hawkin estreitaram-se.
Que tipo de pergunta capciosa é esta? Se eu disser que não, o senhor dirá que eu desejava me livrar dela. Se responder que sim, implicará que havia algo condenável em meus sentimentos. Quer a verdade? Eu me sentia indiferente a Alison. Olhe... - Ele inclinou-se para a frente e deu um sorrisinho cúmplice. - Casei com Ruth por três razões. A primeira é que eu a considerava razoavelmente bonita. Em segundo lugar, precisava de alguém que cuidasse de mim e da casa e sabia que nenhuma empregada que prestasse aceitaria viver naquele fim de mundo que é Scardale. E, em terceiro lugar, eu queria que os camponeses parassem de me tratar como um ser de outro mundo. Não casei com ela por estar de olho em sua filha. Esta idéia é repugnante. - Ele recostou em sua cadeira, como se desafiasse George a prosseguir.
George olhou-o com curiosidade, dizendo:
- Eu nunca sugeri algo neste sentido. Entretanto, é interessante que sua mente siga este rumo por conta própria. Também acho interessante que, ao falar sobre Alison, o senhor sempre use o tempo verbal no pretérito.
Suas palavras permaneceram no ar, tão palpáveis quanto a fumaça do cigarro. O rosto de Hawkin tingiu-se de carmim, mas ele conseguiu manter-se em silêncio.
- Como se falasse sobre alguém que já morreu - continuou George, impiedoso. - Qual a razão para isso, em sua opinião?
- Apenas um modo de falar - retrucou Hawkin. - Alison sumiu há tanto tempo. Meu modo de falar não significa nada. Todo mundo fala assim ultimamente.
- Na verdade, não. Percebi, durante minhas idas a Scardale, que as pessoas ainda falam sobre Alison no presente. Como se ela tivesse saído para voltar logo. Não é apenas sua esposa que se refere à menina assim, mas simplesmente todos na aldeia. Todos, exceto o senhor. - George acendeu um cigarro, tentando demonstrar uma segurança que não sentia. Ao ensaiar este interrogatório com Clough, nenhum dos dois sabia ao certo como Hawkin reagiria. Era bom vê-lo vacilar, mas ainda estavam muito longe de qualquer confissão útil.
- O senhor só pode estar enganado - disse Hawkin, abruptamente. - Agora, se os senhores já terminaram... - Ele empurrou a cadeira para trás.
- Eu mal comecei, senhor Hawkin - disse George, com a expressão imperturbável acentuando sua semelhança com James Stewart. - Eu gostaria que voltássemos à tarde em que Alison desapareceu. Sei que já o interrogamos antes, mas gostaria de repassar os fatos.
- Ah, pelo amor de Deus! - explodiu Hawkin.
Uma batida na porta não permitiu que dissesse mais nada. O rosto sonolento do detetive Cragg apareceu e ele desculpou-se:
- Perdão, sei que não deveria interromper, mas há um telefonema urgente para o senhor.
George tentou não demonstrar a raiva e o desapontamento que o invadiram. O ritmo do interrogatório estava seguindo como planejado, mas a interrupção podia perturbar sua continuidade.
- Será que não pode esperar, Cragg? - indagou, irritado.
- Acho que não. Achei que o senhor gostaria de atender.
- Quem é?
Cragg lançou um olhar preocupado para Hawkin.
- Eu... Humm... Não posso dizer.
George levantou-se depressa, arrastando os pés da cadeira.
- Sargento, fique aqui com o senhor Hawkin. Voltarei assim que puder. - Ele marchou para fora da sala, exercitando sua última gota de controle ao fechar a porta devagar, em vez de batê-la com força, como gostaria.
- Mas que inferno! O que está acontecendo? - perguntou, enquanto dirigia-se a passos largos para seu escritório. - Eu disse claramente que não queria ser interrompido. Será que você entende a nossa língua, Cragg?
O jovem detetive tentava acompanhar seus passos rápidos, esperando uma brecha para poder falar-lhe.
- É a senhora Hawkin, senhor - conseguiu dizer, finalmente.
George parou de repente, fazendo com que Cragg colidisse com ele.
- O quê? - perguntou, incrédulo, virando-se.
- É a senhora Hawkin. Está muito nervosa, pedindo para falar com o senhor.
- Disse por quê? - George virou-se novamente e praticamente correu até seu telefone.
- Não, apenas que precisava falar imediatamente com o senhor.
- Jesus - murmurou George, agarrando o telefone mesmo antes de sentar-se. - Alô, aqui é o detetive-inspetor Bennett.
Senhor Bennett? - A voz parecia sufocada em meio às lágrimas.
É a senhora Hawkin?
Sim, sou eu. Ah, senhor Bennett... - Seus soluços aumentavam de volume.
O que aconteceu? - indagou ele, imaginando desesperadamente se havia uma policial de plantão.
Poderia vir até aqui, senhor Bennett? Será que poderia vir agora? -
perguntou ela, com as palavras saindo entre a respiração entrecortada.
- Estamos com seu marido aqui. Quer que o levemos para casa?
- Não! - disse Ruth, quase gritando. - Só o senhor. Por favor!
- Vou já para Scardale. Tente se acalmar. Peça que alguém da família lhe faça companhia. Logo estarei aí. - Ele bateu o telefone e ficou imóvel por um momento, surpreso com a intensidade da mulher ao telefone. Não tinha idéia do motivo para o chamado, mas tinha certeza de que era algo traumático. Ela não poderia ter descoberto o corpo... Ele afastou a idéia antes que esta pudesse formar-se claramente.
- Cragg! - berrou, ao sair do escritório. - Renda o sargento Clough. Fique lá com Hawkin até meu retorno. Não o deixe sair. Explique educadamente que saímos em uma emergência e ele deve esperar nosso retorno. Se insistir em ir embora, vá com ele. Não deixe que ele o intimide.
Cragg parecia perplexo. Este não era o ritmo habitual na polícia de Buxton.
- E se ele entrar em seu carro?
- O carro dele não está aqui. Hawkin veio com o sargento Clough. Mexa-se, Cragg!
George agarrou o sobretudo de Clough e seu próprio impermeável, enfiando o chapéu apressadamente. Tão logo Clough emergiu da sala de interrogatório, parecendo confuso, George segurou-lhe o braço e levou-o escada abaixo.
- É Ruth Hawkin - disse, antes que Clough pudesse perguntar-lhe algo. - Parecia desesperada ao telefone. Quer que eu vá a Scardale imediatamente.
- Por quê? - perguntou Clough, enquanto quase corriam até o estacionamento.
- Não sei. Estava abalada demais para dizer algo que fizesse sentido. Tudo o que sei é que pareceu totalmente apavorada quando perguntei se queria que eu levasse Hawkin de volta comigo. Seja o que for, é importante.
- Melhor ir de uma vez, então - disse Clough, dando partida no carro.
George não sabia que o trajeto até Scardale podia ser feito em tão pouco tempo. Clough violou todos os limites de velocidade e a maior parte das proibições ao fazer conversões com o carro. Falaram pouco durante o percurso, ambos tensos demais pela perspectiva de que algo poderia reavivar o caso Alison Cárter. Ao aproximarem-se da praça da aldeia, George falou:
- Já é hora de termos alguma sorte, Tommy. Já conseguimos algo com Hawkin, mas, se Ruth tiver algo para nós, talvez agora seja a nossa hora.
Os dois correram pela trilha até o solar, mas antes que pudessem bater na porta, esta abriu-se e Mamãe Lomas cumprimentou-os.
- Estamos fazendo o trabalho de vocês novamente - disse ela.
Ruth Hawkin estava sentada à cabeceira da mesa, com o rosto manchado de lágrimas e maquiagem. Tinha os olhos avermelhados e inchados. Kathy estava ao seu lado. As mãos de ambas, calejadas pelo trabalho doméstico, estavam entrelaçadas com tanta força que as juntas pareciam brancas. Na frente de ambas, sobre a mesa, os dois homens viram algo como tecido xadrez embolado. Estava sujo de terra e, mais sinistro ainda, o material apresentava grandes manchas de um vermelho-ferrugem que se parecia demais com sangue sèco.
- A senhora encontrou alguma coisa - disse George, cruzando a cozinha e sentando-se na frente de Kathy.
Ruth estremeceu e fez que sim, dizendo:
- É uma camisa. E um... E um... - a voz falhou e ela desistiu de continuar.
George retirou uma caneta do bolso e, usando-a como uma vareta, separou as dobras do tecido. Era realmente uma camisa, feita de sarja fina. O nome da confecção estava bordado na etiqueta. Ele já vira Philip Hawkin usando camisas semelhantes na maior parte das vezes em que haviam se encontrado. No meio do tecido havia um revólver. George não sabia muito sobre armas de fogo, mas teria apostado seu salário de um ano de que esta era uma Webley calibre .38.
- Onde encontrou isso, senhora Hawkin?
Kathy lançou-lhe um olhar penetrante.
Phil Hawkin ainda está na delegacia?
O senhor Hawkin ainda está nos ajudando em nossa investigação -
disse Clough, com firmeza, sentado na outra ponta da mesa com seu bloco de anotações aberto. - Ele não pode sair sem nossa permissão.
Kathy apertou ainda mais as mãos de Ruth.
- Está tudo bem, Ruth. Conte para ele.
- Eu geralmente limpo o laboratório de Philip só depois que ele sai, todos os dias. Ele detesta me ver fazendo faxina, de modo que sempre espero até ter certeza de que demorará algumas horas para voltar. Não sei o que deu em mim para descobrir isso... Achei que desta vez eu poderia limpar o lugar de alto a baixo. Estava ficando louca, sem nada para me manter ocupada...
George esperou, pacientemente. Ruth soltou suas mãos das de Kathy e cobriu o rosto.
- Ah, meu Deus, preciso fumar - disse, de modo quase incompreensível.
George ofereceu-lhe um cigarro e conseguiu acendê-lo, apesar do tremor nos dedos da mulher. Sentiu vontade de reconfortá-la, mas sabia que seria inútil dizer-lhe que tudo estava bem. Nada jamais estaria bem para esta mulher. Tudo o que ele podia fazer era ficar sentado em silêncio e olhar, enquanto ela tragava fundo e se acalmava o suficiente para recomeçar sua narrativa. Desta vez, parecia que falava em meio a um sonho:
- A bancada na qual ele trabalha é uma mesa antiga, com gavetas. Eu a afastei da parede. Foi um tremendo esforço, porque é muito pesada, mas eu queria limpar atrás. Vi este tecido saindo do buraco onde ficava uma das gavetas, há muito tempo. Fiquei curiosa para saber o que era. Então, tirei-o dali.
- Ela estava gritando como um porco com a garganta cortada - comentou Mamãe Lomas. - Dava para ouvir seus berros por toda a aldeia.
George respirou fundo.
- Pode haver uma explicação inocente para isto, senhora Hawkin.
- Ah, é? - disse Mamãe Lomas, irônica. - Vamos ouvi-la, então Leve essa coisa e teste o sangue, rapazinho. Olhe onde está, seu tolo. Está todo na frente, bem onde se espera que esteja. E a arma? Até que ponto um revólver pode ser inocente? Examine-o. Aposto que a bala que vocês encontraram foi disparada daí. - Ela balançou a cabeça, inconformada. - Achei que vocês tinham feito buscas no laboratório.
- Lembro-me que o senhor Hawkin foi muito reservado com relação ao seu laboratório - disse George.
- Mais uma razão para que o examinassem de cabo a rabo! - exclamou Kathy, sombria. - E agora, pretendem prendê-lo?
- Tem um saco de papel no qual eu possa colocar a camisa e a arma? - indagou George.
Ruth lançou um olhar de mudo apelo a Kathy. Esta levantou-se de um pulo e procurou no armário sob a pia, trazendo-lhe um grande saco marrom. George pegou a camisa com a ponta da caneta e a deixou cair no saco, sem tocá-la. O revólver foi embrulhado cuidadosamente em um lenço limpo que ele tirou do bolso e colocado sobre a camisa.
- Tenho de voltar a Buxton - disse. - O sargento Clough ficará aqui para garantir que ninguém entrará no laboratório de seu marido. - Suspirou. - Mandarei uma equipe de policiais para uma busca completa tão logo consiga o mandado.
- Mas vocês vão prendê-lo? - insistiu Kathy.
- Nós as manteremos informadas de tudo o que acontecer - disse George.
As mulheres entreolharam-se e Mamãe Lomas falou:
- Se não o prenderem, será melhor mantê-lo longe daqui. Para o bem dele.
George fitou-a demoradamente, sem piscar.
- Vou fingir que não ouvi a ameaça, senhora Lomas.
Ele dirigiu o carro de Tommy Clough até Buxton, com um misto estranho de pesar e alegria a agitar-lhe o peito. Estacionou com cuidado e subiu as escadas até a sala de interrogatório, com um ar de tranqüila determinação.
Sabia que deveria falar com o detetive e inspetor-chefe Carver ou com o superintendente Martin antes de agir, mas este era seu caso. Assim, empurrou a porta e fitou Hawkin, cuja queixa petulante morreu nos lábios ao ver a expressão do inspetor.
George respirou fundo e disse:
- Philip Hawkin, você está preso por suspeita de homicídio.
George não perdeu tempo. Hawkin foi levado para a cela, lamuriando-se sobre mentiras forjadas e exigindo um advogado. George não lhe deu ouvidos. Haveria muito tempo para lidar com Hawkin depois. Se estivesse certo, ninguém questionaria suas ações. Se estivesse errado, ninguém o culparia. Ninguém, exceto, talvez, o detetive e inspetor-chefe Carver, que via tudo o que ele fazia como censurável e se regozijaria com o fracasso e embaraço de seu jovem detetive. Contudo, continuar na lista de amiguinhos de Carver era a última das considerações em sua mente naquele momento.
Após trancar a porta da cela de Hawkin, que ainda protestava, George levou Cragg para um canto.
- Quero que você ligue para o departamento de investigações criminais da divisão em St. Albans, de onde Hawkin veio. Sabemos que ele tem ficha limpa, porque o sargento Clough já havia verificado. O que desejo saber é se alguém de lá já ouviu algum boato ou fofoca. Quaisquer alegações para as quais não havia evidências suficientes para uma acusação formal.
- O que você tem em mente? Crimes de natureza sexual?
- Qualquer coisa, Cragg. Apenas fale com o pessoal de lá e veja se descobre algo. - Ele percebeu que ainda segurava o saco de papel contendo a camisa suja e o revólver cuidadosamente embrulhado. Em sua pressa, esquecera-se da necessidade de identificá-los e enviá-los ao laboratório. Olhou para o relógio em seu pulso. Quase meio-dia. Se corresse, pegaria um dos juízes no tribunal de High Peak. Estava certo de que não teria dificuldade para fazer com que alguém assinasse um mandado de busca. Todos queriam esclarecer o desaparecimento de Alison Cárter, e Hawkin ainda não tivera tempo para fazer qualquer amizade importante em uma cidade na qual pessoas a dez quilômetros de distância ainda eram vistas como forasteiras. Assim, preencheu rapidamente o formulário e saiu correndo da delegacia. Ignorando seu carro, correu pelas ruas do bairro de Silverlands e cortou caminho pela feira livre rumo ao tribunal. Dez minutos depois, saiu do prédio com um mandado de busca assinado para o Solar Scardale e seus anexos. Assim que pisou na rua, o sol surgiu, iluminando-o com um breve raio de luz pálida e invernal. Era difícil não interpretá-lo como um bom presságio.
De volta à divisão, ainda levando consigo o saco de papel, sentiu-se aliviado por encontrar o sargento Bob Lucas de plantão. Pareceu-lhe uma coincidência providencial que o policial que o levara pela primeira vez a Scardale estivesse disponível para ajudar na procura do que, talvez, desse um rumo novo para o caso. George fez um resumo dos acontecimentos e finalmente cuidou da documentação necessária para enviar a camisa e a arma ao laboratório. Nesse meio-tempo, Lucas formou uma pequena equipe de buscas com dois policiais e um cadete, tudo o que conseguiu retirar do movimentado turno do dia.
A viatura seguiu o carro de George, saindo da cidade e percorrendo a paisagem desolada de fevereiro até Scardale. A notícia sobre a descoberta de Ruth já se espalhara tão rapidamente quanto ocorrera com o desaparecimento de Alison. Mulheres os espiavam nas portas de suas casas e os homens observavam encostados nas paredes, sem nenhum pudor, enquanto os policiais contornavam o solar até o anexo onde Philip Hawkin mantinha seu laboratório fotográfico. O que mais impressionava não eram os olhares, mas o silêncio do povo local.
George encontrou Clough de pé, do lado de fora da porta do pequeno prédio de pedra, com braços cruzados e um cigarro pendurado no canto da boca.
- Algum problema? - indagou.
- A parte mais difícil foi ficar aqui fora - disse Clough, depois de fazer um "não" com a cabeça.
George abriu a porta do anexo e viu pela primeira vez o laboratório de Hawkin. Era óbvio que seis policiais teriam dificuldade para permanecer ali dentro, e mais ainda para fazer uma busca minuciosa.
- Muito bem - disse. - O sargento Clough e eu examinaremos o laboratório. Sargento Lucas, eu gostaria que seus homens vasculhassem a casa.
Como todos sabem, já fizemos buscas lá, mas nossa preocupação, na época era verificar se Alison não deixara algum recado escondido ou se não havia sinais de arrombamento ou assassinato no local. Agora, procuramos qualquer coisa que lance luz sobre o relacionamento de Philip Hawkin com sua enteada. Ou qualquer coisa que nos dê uma idéia sobre esse homem. Sem um corpo, precisamos de todas as provas circunstanciais que pudermos encontrar para pressionarmos Hawkin. Podem começar pelo estúdio.
- Certo, senhor - disse Lucas, muito sério. - Venham, rapazes Vamos revistar esse lugar até o último tijolo.
Os quatro homens fardados rumaram para a porta dos fundos. George percebeu que Kathy Lomas os espiava através da janela da cozinha. Ao perceber que ele a vira, a mulher afastou-se.
- Muito bem, Tommy, vamos lá. - George cruzou o limiar e acendeu uma lâmpada. A luz avermelhada encheu o cômodo. - Ótimo - murmurou. Olhou para a parede e viu uma segunda chave de luz. Ao pressioná-la, uma luz elétrica comum acendeu-se, substituindo a estranha luz vermelha.
George olhou à sua volta, determinando o que precisava ser examinado. Além da mesa pesada junto à parede, tudo estava incrivelmente limpo e arrumado. Duas pesadas pias de pedra que pareciam estar ali desde a Idade Média estavam apoiadas numa das paredes, as torneiras novas brilhando, assim como o equipamento fotográfico.
Em um canto, viu arquivos de metal contra a parede e foi até eles, mas descobriu que as gavetas estavam trancadas.
- Que bela porcaria - murmurou.
- Sem problema - disse Clough, afastando o chefe para o lado. Ele segurou com força o arquivo mais próximo, puxou-o em sua direção e, então, quando o móvel estava a alguns centímetros da parede, inclinou para trás. - Pode mantê-lo assim para mim? - perguntou.
George apoiou-se contra o arquivo, mantendo-o inclinado. Clough agachou-se e mexeu por baixo do móvel por mais ou menos um minuto. George ouviu estalos enquanto a tranca existente ali era destravada e, depois, um grunhido de satisfação de Clough.
- Aí está, George. Que descuidado esse Hawkin, saindo e deixando seus arquivos destrancados...
- Começarei por este. Verifique a mesa e as prateleiras. - Ele puxou a gaveta superior e olhou para as dúzias de pastas contidas ali. Em cada uma havia negativos, folhas de contato e fotos reveladas. Ele verificou rapidamente as outras gavetas, encontrando praticamente a mesma espécie de material em todas elas.
Isso levará uma eternidade - gemeu.
Clough aproximou-se.
- Temos milhares de fotos aqui.
- Eu sei. Mas teremos de verificar todas. Se Hawkin chegou a tirar fotos pornográficas, pode tê-las escondido no meio de outras, nessas gavetas. - Ele suspirou.
- Será que não deveríamos dar uma olhada no outro arquivo, para termos uma idéia mais clara do tamanho de nosso problema? - sugeriu Clough.
- Boa idéia. Do mesmo jeito que antes?
Desta vez ele mesmo afastou o arquivo da parede, enquanto Clough abaixava-se para destrancá-lo.
- Espere um minuto - disse Clough, remexendo por baixo da base de metal. - Prendi minha manga em alguma coisa. - Enfiou a outra mão no bolso da jaqueta e pegou seu isqueiro, usando a chama deste para iluminar a área sob o móvel. - Deus do céu... - sussurrou, levantando o olhar. - Eis algo que você vai adorar. Há um buraco no chão, com um cofre dentro.
George, surpreso, quase deixou o arquivo cair sobre Clough.
- Um cofre?
- Isso mesmo. - Clough afastou-se do arquivo e levantou-se. - Vamos afastá-lo para que você veja direito.
Os dois lutaram para arrastar o pesado móvel de aço até o outro lado do cômodo, deixando espaço suficiente para estudarem o cofre. George abaixou-se e olhou-o. A frente de metal verde tinha cerca de um metro quadrado, com fechadura de bronze e um trinco que se projetava cerca de dois centímetros acima da porta do cofre, e poderia acomodar-se na cavidade existente na base do arquivo. Ele suspirou.
- Precisamos de peritos para tirar as impressões digitais de Hawkin desse trinco. Não quero que ele diga, depois, que não tem nada a ver com o conteúdo do cofre e alegue que outra pessoa plantou provas aí dentro.
- Tem certeza? - indagou Clough, incerto. - Teremos sorte de conseguir uma impressão parcial em um trinco assim. O que nos interessa é o que está aí dentro. Certamente, Hawkin não usou luvas e suas digitais estarão por toda parte no que há dentro do cofre.
George agachou-se, ponderando:
- Acho que você tem razão. E então, onde está a chave?
- Se eu fosse ele, levaria sempre comigo.
George negou com um movimento de cabeça.
- Cragg revistou-o quando o prendemos. As únicas chaves eram as de seu carro. - Ele pensou por um momento. - Vá perguntar ao sargento Lucas se já encontraram alguma chave que se pareça com a de um cofre. Darei uma olhada por aqui.
George sentou-se junto à mesa e se pôs a examinar o conteúdo das gavetas. Uma continha uma coleção meticulosa de acessórios úteis - tesouras, estiletes, pinças, pincéis macios e minúsculos e canetas-nanquim. A outra era uma típica "gaveta da bagunça", com pedaços de cordão, alfinetes, uma lixa de unhas quebrada, alguns rolos parcialmente usados de fita adesiva, tocos de velas, lâmpadas, caixas de fósforos e parafusos de diversos tamanhos. Nenhuma das gavetas continha uma chave. George acendeu um cigarro e o fumou furiosamente. Sentia-se como um relógio no qual alguém dera corda até o limite de sua mola.
Ao longo de toda a investigação, forçara-se a manter a mente aberta, sabendo como seria fácil desenvolver uma idéia fixa e forçar cada informação subseqüente a se encaixar nela. Contudo, a verdade é que em nenhum momento fora totalmente imparcial com relação a Philip Hawkin. Quanto mais aumentava a probabilidade de Alison estar morta, mais provável tornava-se a culpa de seu padrasto. Isso era o que as estatísticas sugeriam, e sua antipatia pelo homem apenas as corroboravam. Ele tentara bloquear sua resposta instintiva a Philip, sabendo que o preconceito seria seu inimigo na construção de um caso sólido, mas Hawkin enfiara-se em sua consciência vezes sem conta como o principal suspeito, se um homicídio viesse a ser a conclusão inevitável das investigações.
Agora, esta possibilidade acenava-lhe de forma irresistível. A certeza acomodara-se em sua mente como a lingüeta em uma fechadura bem lubrificada.- A única questão dizia respeito à sua capacidade para juntar as provas que a transformariam em condenação.
George saiu do laboratório, encontrando o ar frio do entardecer. As luzes da casa derramavam um amarelo pálido em seu interior e ele podia ver silhuetas movendo-se por trás das janelas. Vislumbrou Ruth Hawkin cruzando a cozinha e percebeu que temia o momento em que talvez tivesse de confirmar-lhe aquilo em que todos já acreditavam. Não importava o quanto ela pudesse considerar-se conformada com a perda de sua filha, no instante em que ele lhe dissesse que o caso agora estava sendo tratado formalmente como um assassinato, a mulher teria seu coração dilacerado pela dor.
Ele acendeu outro cigarro e andou em círculos pequenos no lado de fora do laboratório. Por que Clough demorava? Não poderia sair de perto do anexo, agora que as buscas haviam começado, por temer que, posteriormente, a defesa argumentasse que provas incriminadoras haviam sido plantadas durante seu afastamento. Também não queria continuar procurando, percebendo que, com uma gama tão circunstancial de evidências, cada achado crucial deveria ter testemunhas. Forçou-se a respirar fundo, girando os ombros dentro de seu casaco na tentativa de liberar parte da tensão que endurecia seu pescoço.
Clough emergiu da casa com um amplo sorriso, quando os últimos sinais do dia desapareciam no fim do vale.
- Desculpe a demora - disse. - Tive de examinar todas as gavetas da escrivaninha. Não encontramos chaves. Então eu percebi que uma das gavetas não estava fechando direito. Assim, eu a tirei do lugar e bingo! Lá estava a chave do cofre, grudada no fundo da gaveta com esparadrapo. - Ele sacudiu a chave na frente de George. - O mesmo tipo de esparadrapo usado para amordaçar a cadela, por falar nisso.
- Belo trabalho, Tommy. - Ele tomou a chave e voltou ao laboratório. Agachou-se sobre o cofre e olhou sobre o ombro para seu sargento. - Quase sinto medo de abrir isto aqui.
- Porque podem haver provas de que ela está morta?
George fez um "não" com a cabeça.
- Porque pode não haver prova de nada. Agora estou convencido, Tommy. As pequenas coincidências são numerosas demais. Hawkin matou Alison e quero que balance na forca por isto. - Voltou à sua tarefa e enfiou a chave na fechadura, que girou com suavidade. Ele fechou os olhos por alguns segundos. Cinco minutos antes, teria chamado a si mesmo de agnóstico. Agora, era um fanático.
Virou lentamente o trinco e abriu a pesada porta de aço. Nada havia ali dentro, exceto uma pequena pilha de envelopes pardos. George retirou-os quase com reverência. Contou o total de envelopes em voz alta para Clough que já mantinha seu lápis preparado para escrever no bloco de anotações aberto.
- Seis envelopes pardos - disse, levantando-se e colocando-os sobre a bancada. Sentou-se, com a sensação de que precisaria do apoio. Retirou suas luvas de pelica e se pôs a trabalhar.
As abas de todos os envelopes haviam sido enfiadas para dentro. George inseriu o polegar e abriu o primeiro deles, descobrindo ali fotografias 20 x 25. Ele as removeu empurrando os lados do envelope para dentro e deixando que as fotos caíssem sobre a mesa, para evitar deixar suas digitais no envelope ou nas fotos. Havia meia dúzia delas, que espalhou usando sua caneta.
Alison Cárter estava nua em todas. O encanto natural de seu rosto não se mostrava, subjugado pelo medo. Seu corpo expressava a relutância em adotar poses que teriam sido lascivas em uma mulher, mas que em uma criança eram revoltantemente trágicas. A menos, é claro, que aquele que as visse fosse o pedófilo que as produzira. Nesse caso, tudo pareceria erótico.
Clough olhou sobre seu ombro.
- Ah, meu Deus - disse com a voz rouca de asco.
George não encontrou nada para dizer. Juntou as fotografias e enfiou-as de volta no envelope, separando-o dos outros. O segundo envelope continha tiras de negativos em formato grande. Com o auxílio da caixa de luz sobre a mesa, conseguiram estabelecer que estes eram os negativos das fotos que haviam acabado de ver. Havia dezesseis deles. Hawkin deixara de revelar dez, nos quais Alison parecia estar chorando.
O terceiro envelope era pior, com poses ainda mais explícitas. Desta vez, porém, a cabeça de Alison parecia pender e seu olhar era distante.
- Ela está bêbada ou drogada - disse Clough.
George ainda não conseguia falar. Recolocou metodicamente as fotos novelope edepois, comprovou que os negativos no quarto envelope correspondiam às últimas fotos vistas. o quinto envelope ia além de tudo o que George teria imaginado. Desta vez todos os dezesseis negativos haviam sido revelados e, agora, Hawkin estava nas fotos, com sua enteada. O ambiente era, indubitavelmente, o quarto de Alison, contrastando em sua inocência com o contraponto obsceno dos atos cometidos ali. O aposento servia de cenário para experiências às quais nenhuma criança de treze anos deveria submeter-se. Em uma série de terríveis imagens monocromáticas, o pênis ereto de Hawkin penetrava na vagina, no ânus e na boca de Alison. Seus dedos enfiavam-se no corpo da menina com eficiência cruel e repelente. Em todas as fotos, ele olhava diretamente para a lente da câmera, exultante com seu poder.
- Desgraçado! - gemeu Clough.
George afastou-se de repente da mesa, derrubando ruidosamente a cadeira. Passou pelo sargento e cruzou a porta, varrido por uma onda de náusea que não conseguia conter. Com as mãos nos joelhos, vomitou até sentir espasmos de dor no estômago vazio e, então, apoiou-se quase caindo contra a parede, suando. Lágrimas escorriam por seu rosto, enquanto ignorava o gélido vento noturno e a chuva de granizo e neve que varria o vale.
Teria preferido descobrir o cadáver da menina a ter de suportar aquelas imagens de seu corpo violado. Não havia como negar que havia motivos suficientes para fugir de casa. Mas a motivação era maior ainda para o homem que a estuprara, se ela tivesse finalmente se rebelado e ameaçado revelar a perversão doentia. George correu a mão trêmula pelo rosto molhado e esforçou-se para endireitar o corpo.
Clough, de pé logo atrás na entrada, estendeu-lhe um cigarro já aceso. Seu rosto largo estava tão pálido quanto as nuvens que passavam pelo céu escuro. George tragou fundo e tossiu quando a fumaça passou por sua garganta irritada pelo vômito.
- Ainda acha que a pena de morte é injusta? - indagou, arfante.
- Eu poderia matar o canalha com minhas próprias mãos - rosnou Clough, com voz grave.
- Deixe-o para o carrasco, Tommy. Faremos tudo como manda o figurino. Ele não sofrerá um acidente fatal, nem será colocado convenientemente em uma cela com um bêbado que detesta depravados. Nós o levaremos ao tribunal inteirinho - disse George, roufenho.
- Não será fácil. Nesse meio-tempo, o que diremos à mãe da garota? A... a esposa daquele animal? Como se diz a uma mulher "E por falar nisso querida, esse homem com quem você casou, ele estuprou e abusou de todas as formas de sua filha. Provavelmente também a matou"?
- Ah, meu Deus. Precisamos de uma policial aqui. E um médico.
- Ela não quer uma policial, George. Confia em você e tem o apoio da família. Eles cuidarão melhor dela do que qualquer médico poderia fazer. Só precisamos entrar ali e descobrir um modo de lhe contar.
- É melhor contarmos aos outros policiais também, para prestarem uma atenção especial em fotografias e negativos, enquanto vasculham a casa. - Ele teve um calafrio, enquanto inspirava profundamente. - Vamos ensacar e rotular os envelopes com as fotos. A perícia precisará deles.
Os dois forçaram-se a voltar para o laboratório e a juntar os envelopes com seu conteúdo terrível.
- Leve esses para o sargento Lucas - pediu ele a Clough. - Não quero ter de segurá-los enquanto falo com Ruth Hawkin. Darei uma última olhada por aqui para ver se há mais alguma coisa óbvia. Precisaremos de uma equipe para examinar cada um desses negativos, mas não hoje.
Clough desapareceu na noite. George verificou o cômodo, mas não encontrou nada mais que merecesse atenção e saiu de novo para o clima inclemente, fechando a porta do laboratório e fixando nela o lacre da polícia, para que ninguém pudesse mexer nas provas. Teria de colocar um guarda ali durante a noite para proteger o anexo. Amanhã, organizaria uma equipe para varrer com pente-fino o lugar e iniciar a penosa tarefa de examinar a coleção fotográfica de Hawkin. Não teria escassez de voluntários.
- Já entreguei o material ao sargento Lucas - disse Clough, correndo em sua direção.
- Obrigado. Agora, façamos o seguinte: você fala com os parentes e eu conto a Ruth sozinha. Apenas diga a eles que descobrimos evidências que sugerem que Hawkin pode estar envolvido no desaparecimento de Alison e que o indiciaremos no mínimo por um crime grave esta noite. Ruth decidirá o que mais deve contar a eles, depois.
Todos vão querer saber tintim por tintim. Especialmente Mamãe lomas - alertou-o Clough.
Que compareçam ao tribunal, então. Estou preocupado é com Ruth Hawkin. Ela é minha principal testemunha, neste momento, e tem o direito de decidir até onde sua família pode saber das novidades - disse George, decidido. - Conte-lhes o mínimo que puder. - Ele aprumou-se e jogou o toco de cigarro longe. Depois, correu a mão por seus cabelos molhados, respingando minúsculas gotas de água em Clough. - Muito bem. - Respirou fundo. - Vamos lá.
Cruzaram a porta dos fundos e atravessaram o corredor, entrando no calor aconchegante da cozinha enfumaçada. Diane, irmã de Ruth, e a mãe de Janet, Maureen, agora se juntavam a Mamãe Lomas e Kathy na equipe de apoio a Ruth. Os cinco rostos femininos denunciaram medo ao ver as expressões sombrias dos dois homens.
- Temos algo a lhe dizer, senhora Hawkin - disse George, pesadamente. - Eu gostaria de lhe falar a sós, se for possível. Se as outras senhoras fizerem o favor de acompanhar o sargento Clough, ele explicará o que está acontecendo.
Kathy abriu a boca para argumentar, mas um segundo olhar para George abortou seu protesto.
- Iremos para a sala - disse a mulher, mansamente.
Ruth nada disse, enquanto as outras saíam com Clough. Seu rosto era como uma porta trancada, cuidadosamente contido, com os músculos da mandíbula acentuados pelo esforço do silêncio. Seu olhar não se desviou de George, que se sentara no outro lado da mesa, à sua frente. Ele esperou até ouvir a porta fechar-se e, então, disse:
- Perdoe-me, mas não há um modo de suavizar o que tenho para lhe dizer. Descobrimos provas de que Philip Hawkin cometeu graves abusos sexuais contra sua filha. Não há dúvidas disso, e ele será indiciado antes do fim do dia.
Um som estrangulado de lamúria saiu dos lábios da mulher, mas seu olhar continuou fixo nele. George remexeu-se na cadeira e pegou automaticamente o maço de cigarros. Ela sacudiu a cabeça em recusa, quando ele lhe ofereceu um, de modo que George deixou o maço entre os dois sobre a mesa.
- Somando nossos achados à camisa manchada e à arma que a senhora encontrou no anexo, é difícil resistir à conclusão de que, muito provávelmente, ele também a matou. Sinto muito, muitíssimo mesmo, senhora Hawkin.
- Não me chame assim - disse ela, com a voz transformada em uma série de soluços. - Não me chame pelo nome dele.
- Não chamarei mais. E farei o possível para que nenhum outro policial a chame assim também.
- Você tem certeza, não é? - perguntou ela entre os lábios duros. - Em seu íntimo, você tem certeza de que ela está morta, não tem?
George desejou estar em qualquer outro lugar, menos na cozinha de Ruth Cárter, preso à verdade por aqueles olhos que não o abandonavam.
- Sim, tenho certeza - disse. - Não consigo encontrar razão para pensar diferente, e um conjunto significativo de provas circunstanciais me leva a esta conclusão. Só Deus sabe como eu gostaria de não acreditar nisso, mas não posso fechar os olhos.
Ruth começou a balançar-se para a frente e para trás na cadeira, com os braços enlaçando o próprio corpo e as mãos transformadas em garras sob as axilas. Sua cabeça levantou-se e ela emitiu um urro de agonia, o berro de um animal ferido mortalmente. Impotente, George permaneceu sentado como um bloco de madeira. De algum modo, ele sabia que o pior que poderia fazer seria tocá-la.
O ruído cessou e a cabeça da mulher tombou para a frente, com a boca frouxa e o rosto ruborizado. Seus olhos brilhavam com lágrimas presas.
- Enforque-o - disse, em voz dura e clara.
George assentiu, acendendo um cigarro.
- Farei o possível.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não quero que faça o possível. Enforque-o, George Bennett, porque se não o matar, alguém fará isso e o transformará em algo muito mais feio do que ficará depois de enforcado. - Sua veemência parecia ter-lhe esgotado a última reserva de energia. Ela virou-se e disse, em um sopro de voz: - Agora vá.
George levantou-se devagar.
- Voltarei amanhã para tomar um depoimento formal. Se precisar de algo, qualquer coisa, ligue-me. Estarei na delegacia. - Ele puxou um bloquinho do bolso de seu paletó e escreveu o número do telefone de sua casa numa folha. - Se eu não estiver lá, ligue para minha casa. A qualquer momento. Lamento por tudo.
Saiu e, ao fechar a porta, encostou-se na parede do corredor, com a fumaça do cigarro subindo por seu braço em uma espiral fragmentada. O som de vozes mais adiante levou-o ao cômodo em que as outras mulheres de Scardale cercavam Tommy Clough.
Para o inferno com o intermediário. Vamos direto à fonte - disse Maureen Cárter, ao avistar George. - Diga-nos. Vocês vão enforcar esse bastardo do Hawkin?
- Não sou eu quem toma esse tipo de decisão, senhora Cárter - respondeu ele, tentando não demonstrar o quanto se sentia cansado. - Será que posso sugerir que é melhor gastarem seu tempo e energia com Ruth? Ela precisa de apoio. Logo iremos embora, mas um guarda ficará do lado de fora do anexo a noite inteira. Eu agradeceria se todas vocês se unissem a Ruth agora e espremessem seus cérebros para nos oferecer quaisquer detalhes que possam ser úteis.
- Ele tem razão, vamos deixá-lo em paz - disse Mamãe Lomas, inesperadamente. - Ele é apenas um rapazinho e já suportou muita coisa hoje. Venham, meninas. É melhor cuidarmos de Ruth. - Ela empurrou-as gentilmente para a porta e, depois, voltou-se para proferir sua inevitável ironia final: - Não pense que o deixaremos fazer o que bem entender, mocinho. É hora de agir como homem. - Ela sacudiu a cabeça. - A culpa é do antigo proprietário das terras. Deveria ter tido mais juízo. Meia hora com Philip Hawkin é suficiente para saber-se de uma coisa, com certeza: não se perderia nada se o tivessem afogado ao nascer. - A porta fechou-se às costas dela com um ruído seco.
Como se coreografados, George e Clough atiraram-se em cadeiras, frente a frente, com expressões tão exaustas quanto desanimadas.
- Espero nunca mais ter de fazer isso. - George suspirou ao expelir a fumaça. Olhou em volta, procurando um cinzeiro, mas nenhum dos enfeites serviria para este fim. Assim, apagou a brasa do cigarro com os dedos, atirando o toco na lareira vazia.
- Acho que você enfrentará mais situações como esta antes de se aposentar - disse Clough.
O telefone tocou e, no sexto ou sétimo toque, alguém pegou a extensão. Os dois homens ouviram murmúrios de interrogação e, depois, passos aproximaram-se da porta. Diane Lomas espiou-os e disse:
- É para o inspetor. Alguém chamado Carver.
George levantou-se, desanimado, e atravessou a sala para atender a ligação.
- Bennett.
- Diga-me, Bennett, que idiotice é essa que você está fazendo? Alfie Naden está aqui fazendo um discurso, dizendo que jogamos seu cliente na cadeia sem qualquer justificativa e o deixamos lá, mofando, enquanto você saía para passear por Derbyshire em outra caçada inútil.
E por falar nisso, cogitou George, como o advogado mais caro da cidade descobriu que Philip Hawkin estava sob custódia? Cragg era um inútil, mas não teria ligado para o homem sem autorização. Parecia que Carver não aprendera nada com a morte de Peter Crowther e se comportava novamente como se tivesse direito a tudo e fosse a própria lei. George conseguiu conter um comentário irritado e falou, apenas:
- Eu já estava de saída. Pretendo voltar à delegacia para indiciar o senhor Hawkin.
- Indiciar? Naden disse que você prendeu Hawkin por suspeita de homicídio. Mas não há um homicídio para podermos indiciá-lo! - O pesado sotaque interiorano de Carver sempre tornava-se mais pronunciado sob tensão. George reconhecia os sintomas de alguém que estava por um fio para perder a cabeça. Se era assim, podia-se dizer o mesmo a seu respeito.
Esforçando-se para controlar sua raiva, respondeu com a voz mais calma que conseguiu encontrar:
- Eu o indiciarei por estupro, senhor. Para começar. Isto nos dará o suficiente para perguntarmos ao diretor do Ministério Público se é possível indiciarmos por homicídio sem um cadáver.
Do outro lado da linha, um silêncio de perplexidade.
- Estupro? - perguntou Carver, com a incredulidade alongando a palavra.
- Temos provas fotográficas. Acredite, é para valer. Agora, se me der licença Preciso ir. Chego aí em meia hora e mostro-lhe o que encontramos. George pousou o telefone no gancho devagar e virou-se, vendo Bob Lucas na porta que dava para o estúdio. - Carver quer que voltemos a Buxton - Preciso levar aqueles envelopes comigo. Será que posso incumbi-lo de colocar um guarda para vigiar a porta do laboratório fotográfico durante a noite?
Pode deixar comigo, senhor. Apenas para constar: folheamos cada um dos livros no estúdio e não encontramos nenhuma fotografia, mas continuaremos procurando. Boa sorte com Hawkin. - Balançou a cabeça num aceno de apoio. - Esperemos que ele facilite as coisas para a senhora Hawkin e decida contar tudo.
- Não sei por quê, mas duvido muito disso - disse Clough, parado na soleira. - O nojento se acha esperto demais.
- Ah, antes que eu me esqueça. Ela não quer mais ser chamada pelo sobrenome do marido. Suponho que devemos chamá-la de "senhora Cárter". - George suspirou. - Diga aos outros. - Ele passou a mão por seus cabelos ainda úmidos. - Vamos lá então. Quero que o desgraçado sofra um pouco.
Carver silenciou ao ver as fotografias. George imaginou que veria o mesmo efeito outras vezes. Carver fixou o olhar nas fotos como se, olhando-as assim, pudesse apagar as imagens e substituí-las pelas paisagens de cartão-postal de Scardale que Hawkin vendia no comércio local. Depois, virou-se abruptamente, apontando para uma folha de papel.
- É o número de Naden. Ele quer estar presente quando você interrogar o prisioneiro. - Ele levantou-se e agarrou seu casaco do gancho na parede, atrás de sua mesa.
- E o senhor? Não estará presente? - perguntou George, sem esconder o desapontamento.
- Este é seu caso, desde o início. Vá até o fim - disse Carver, com frieza. - Você e Clough, façam isso - concluiu, enfiando o casaco.
- Mas, senhor - começou George e então parou. Desejava dizer que jamais tivera um caso tão grave, que jamais conduzira um interrogatório no qual tivesse tão pouco em qye se basear, que era tarefa de Carver, como chefe, assumir esta situação. As palavras morreram em sua boca ao perceber que Carver achava que esse trem descarrilaria em algum ponto, ao longo do caminho, e não queria estar a bordo quando isso ocorresse.
- Mas o quê?
- Nada, senhor.
- E então, o que está esperando? Não posso fechar minha sala se você está parado no meio do caminho como um poste, não é?
- Desculpe-me. - George pegou a folha de papel da mesa de Carver, virou-se e saiu da sala. - Sargento! - chamou, ao avistar Clough. - Pegue seu casaco. Estamos de saída.
Surpreso, Clough fez o que George mandava. Carver franziu a testa:
- Aonde vão? Você precisa indiciar e interrogar um prisioneiro.
- Vou ligar para Naden e pedir-lhe para estar aqui em uma hora. Depois levar o sargento Clough comigo, para comermos algo em minha casa Só tomamos o café da manhã e um interrogatório demorado exige mais do que apenas café e nicotina, senhor - disse George com firmeza.
Carver torceu o nariz:
É isso o que ensinam na universidade?
Não, senhor, é algo que aprendi com o superintendente Martin, para falar a verdade. Ele diz que nunca devemos enviar soldados para combater de estômago vazio. - George sorriu. - Agora, se nos der licença, precisamos ir.
Virou-se e pegou o telefone. Podia sentir os olhos de Carver queimando-lhe as costas, enquanto discava.
- Alô? Senhor Naden? Aqui é o detetive-inspetor Bennett, do departamento de investigações criminais de Buxton. Pretendo interrogar seu cliente, por suspeita de homicídio e estupro, daqui a uma hora. Eu apreciaria se pudesse tê-lo aqui nesse horário... Muito bem, eu o espero então. Obrigado. - Ele terminou a ligação pressionando o gancho e discou novamente. - Anne? Sou eu. - Virou-se e fixou um olhar intenso em Carver, que bufou e marchou rumo às escadas.
Exatamente uma hora depois, Alfie Naden foi levado à sala de interrogatório. Ele parecia o exemplo perfeito do advogado interiorano bem-sucedido, com sua barriga modesta escondida em um terno de três peças impecável, de lã penteada. Usava óculos em meia-lua, com armação dourada, empoleirados em um nariz batatudo flanqueado por bochechas coradas. Sua cabeça calva brilhava sob as luzes, e seu queixo era tão liso como se ele tivesse feito a barba antes de sair para este compromisso. Teria sido fácil confundi-lo com um matuto se não fossem seus olhos pequenos e escuros, brilhavam como os olhos de vidro de um ursinho de pelúcia antigo. Raramente parados, exceto quando sondavam uma testemunha, eles não ignoravam detalhe algum. Era um adversário astuto e George desejou que Hawkin não conhecesse o suficiente sobre as pessoas da cidade para contratar o homem.
Clough trouxe Hawkin e pronunciou as palavras formais e decoradas sempre. O acusado nada disse, com os lábios franzidos levemente em desgosto, parecendo tão tranqüilo e confiante quanto parecera às dez da manhã.
George fez-lhe as advertências de praxe e, depois, disse:
- Após sua detenção esta manhã, por suspeita de homicídio, obtive um mandado de busca dos magistrados de High Peak. - Ele estendeu o mandado para exame de Naden, que o olhou e acenou em assentimento. -
e meus homens executamos o mandado esta tarde, no Solar Scardale Durante as buscas, descobrimos um cofre em um esconderijo no chão do anexo que o senhor converteu em laboratório fotográfico. Ao abrirmos o cofre com uma chave que encontramos escondida em seu estúdio dentro do solar, descobrimos seis envelopes pardos.
- Seis? - indagou Hawkin.
- Seis envelopes que continham certas fotografias e negativos cujo conteúdo me leva a acusá-lo agora, Philip Hawkin, de estupro.
Durante o pronunciamento formal de George, a expressão de Hawkin não se alterara. Então ele acha que pode se safar, pensou George. Acha que se livrou da acusação de assassinato e, assim, pode assumir um crime menor, como estupro.
- Podemos ver as provas? - perguntou Naden, calmamente.
George fitou Hawkin.
- O senhor realmente deseja que seu advogado veja as fotografias? Quero dizer, o senhor Naden é o melhor profissional que há por aqui. Se eu estivesse em seu lugar, não me arriscaria a perdê-lo.
- Senhor Bennett - advertiu-o Naden.
- Ele não poderá me defender se não souber o que vocês forjaram contra mim, seus desgraçados - disse Hawkin. Seu linguajar descera vários degraus na escala social, depois da superioridade que demonstrara pela manhã.
George abriu um envelope na frente do homem. Enquanto jantava com Clough, Cragg inserira cada uma das fotos e tiras de negativos em seu próprio saco plástico individual. O policial de plantão etiquetara cada uma enquanto era enfiada pelas bordas para dentro do saco. Amanhã, os peritos fariam seu trabalho. Finalmente, os fotógrafos da polícia fariam cópias dos negativos. Mas esta noite George precisava manter as provas consigo.
Em silêncio, ele pôs a primeira fotografia de Alison na frente de Hawkin e de Naden. Hawkin cruzou as pernas e perguntou:
Você me trouxe cigarros?
Naden afastou o olhar horrorizado da fotografia e olhou para Hawkin como se este fosse uma criatura de outro universo.
- O quê? - indagou, em voz débil.
- Cigarros. Os meus terminaram - disse Hawkin.
Naden piscou uma dúzia de vezes em rápida sucessão e, depois, abriu sua pasta. Tirou dali um maço de Benson & Hedges fechado e o jogou na direção de Hawkin, que fez questão de não olhar para as outras fotografias que George colocava metodicamente na frente de Naden. O advogado parecia hipnotizado pelas mostras de depravação que se acumulavam ante seus olhos. Quando a última foto foi exibida, ele pigarreou.
- São forjadas - disse Hawkin. - Qualquer um sabe que se pode manipular fotografias. Minha enteada desapareceu, eles não conseguiram encontrá-la e, agora, estão me enquadrando para mostrar serviço.
- Também temos os negativos - disse George, sem se alterar.
- Pode-se forjar negativos também - disse Hawkin, com desdém. - Primeiro, manipula-se a foto e, depois, ela é fotografada. Aí, obtém-se um negativo para fazer novas fotos.
- Está negando que estuprou Alison Cárter? - perguntou George, cético.
- Sim - respondeu Philip, tranqüilo.
- Também apreendemos uma camisa manchada de sangue, idêntica em cada detalhe às camisas que o senhor manda fazer em um alfaiate de Londres. Estava escondida em seu laboratório.
Enfim, Hawkin mostrava-se assustado.
- O quê?
- A camisa apresentava muitas manchas de sangue na frente, na parte inferior das mangas e nos punhos. Provavelmente será do tipo sangüíneo encontrado nas roupas íntimas de Alison quando for testado.
- Que camisa? Não havia camisa nenhuma em meu laboratório exclamou Hawkin, inclinando-se para a frente e fazendo um movimento agudo com o cigarro, como se esfaqueasse o ar para salientar o que dizia.
- Foi onde a encontramos. Com o revólver.
Hawkin arregalou os olhos.
- Que revólver?
- Uma arma Webley calibre .38. Idêntica àquela que roubaram do vizinho de sua mãe, o senhor Wells, alguns anos atrás.
- Não tenho revólver - disse Hawkin, rapidamente. - Você está cometendo um erro enorme, Bennett. Talvez ache que pode se dar bem me enquadrando, mas não é tão esperto quanto pensa!
O sorriso de George era tão gelado quanto o vento que soprava lá fora.
- Acho que devo informá-lo que pretendo apresentar esta informação ao Ministério Público, na convicção de que ele nos autorizará a acusá-lo de homicídio - continuou, implacável.
- Isso é absurdo! - explodiu Hawkin, remexendo-se na cadeira e voltando sua agressividade para o advogado. - Diga-lhes que não podem fazer isso! Tudo o que têm são algumas fotos falsificadas! Diga-lhes!
Naden dava a impressão de que desejaria ter ficado em casa.
- Devo aconselhá-lo a calar-se a partir de agora. - Hawkin abriu a boca para protestar, mas foi calado. - Não diga nada - repetiu Naden, com a irritação na voz que contradizia sua aparência afável. - Senhor Bennett, meu cliente não fará nenhuma declaração adicional, por enquanto, nem responderá a suas perguntas. Agora, solicito uma reunião em particular com meu cliente. Nós o veremos amanhã de manhã, perante os juízes.
George sentou-se, olhando para a máquina de escrever. Precisava preparar um relatório sobre a acusação de estupro para o inspetor que lidava com o Juizado Especial Criminal. Tal relatório era uma solicitação clara de pedido de prisão preventiva, mas com Alfie Naden defendendo o proprietário de Scardale perante um tribunal com os mais importantes nomes daquela região, George não queria correr qualquer risco. O fato de sua cabeça latejar com uma dor tão poderosa que ele precisava resistir ao impulso de fec'har um olho para aliviá-la, não o ajudava nada.
Ele suspirou e acendeu outro cigarro.
Razões para opor-se à fiança - resmungou para si mesmo.
Ouviu uma batida firme na porta. A esta hora da noite, provavelmente seria um dos policiais de plantão, trazendo-lhe uma xícara de chá em sinal de solidariedade.
Entre!
O superintendente Martin abriu a porta e entrou, vestindo um smoking impecável, em vez do uniforme.
- Não estou incomodando?
- Sua presença aqui é uma agradável interrupção, senhor - disse George, com sinceridade.
Martin acomodou-se na cadeira à frente de George e retirou um frasco prateado de seu bolso traseiro.
- Tem algo em que beber? - perguntou.
- Nem uma xícara suja. Desculpe.
- Não importa. Faremos como no campo de batalha - disse Martin, tomando um gole do frasco e o estendendo para George, após limpar a boca da garrafinha. - Vá em frente. Aposto que lhe fará bem.
Agradecido, George tomou um gole generoso do conhaque. Fechou os olhos e saboreou a ardência, enquanto a bebida descia por sua garganta e aquecia seu peito.
- Não havia percebido suas qualificações médicas, senhor. Isso era exatamente o que o médico receitou.
- Estava em um jantar da maçonaria. Encontrei o detetive e inspetor-chefe Carver lá, e ele me contou o que estava acontecendo. - Martin olhou-o fixamente. - Gostaria de ouvir sua versão da história.
- As coisas... andaram depressa hoje. Eu me sentia muito desconfortável com aquela história da fotografia no jornal, semana passada. Achei que seria bom investigar esta questão um pouco mais, mas não planejava nada além de interrogar Hawkin para ver se poderia deixá-lo inquieto e, talvez, fazê-lo soltar a língua. Depois, quando recebi o telefonema de Ruth Hawkin... Eu pensei em procurá-lo antes de fazer buscas no solar, mas se eu tivesse feito isso, não teria conseguido o mandado, e o senhor sabe como alguns juízes relutam em assinar mandados quando acham que estamos invadindo seus horários livres. Assim, eu simplesmente... fui em frente.
- E então, o que estamos enfrentando, exatamente?
- Eu o acusei de estupro. Ele comparecerá perante os juízes de manhã para pedirmos a prisão temporária. Estou preenchendo a papelada. Alfie Naden o defende, e já está preparando a alegação de que forjamos as fotografias para que não parecesse que fracassamos totalmente no caso de Alison Cárter.
Martin torceu o nariz, em menosprezo.
- Isso não cola. Duvido que tenhamos um fotógrafo ou equipamento necessário para fazermos algo tão complicado. Ainda assim, essa alegação pode causar confusão suficiente para fazê-lo escapar de fininho no meio do barulho. Nunca se sabe com os jurados, e este canalha tem boa aparência.
- Ele retirou um estojo com charutos do bolso interno do smoking. Afrouxou sua gravata-borboleta e abriu o botão superior da camisa branca.
- Assim está melhor. Quer um charuto?
- Fico com os meus cigarros, obrigado. Martin exalou um gordo fio de fumaça azul.
- O que temos para acusá-lo de assassinato? Dê-me uma visão geral das coisas.
- Número um - disse George, recostando-se na cadeira -, agora sabemos que ele abusava da menina e tirava fotografias pornográficas dela. Número dois, na tarde em que ela desapareceu, Hawkin afirma que estava sozinho em seu laboratório, mas duas testemunhas o viram cruzando o campo entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo em que descobrimos sinais de luta envolvendo a garota.
- Bem sugestivo - comentou Martin.
- Número três, a cadela vivia na casa. A pessoa que amarrou seu focinho com esparadrapo sem ser mordida deveria conhecer bem o animal. Teremos de investigar nas lojas próximas para sabermos se alguém se lembra de ter vendido um rolo deste esparadrapo a Hawkin. Número quatro, ninguém na aldeia, além de Mamãe Lomas, admite conhecer a mina de chumbo abandonada, mas encontramos um livro com detalhes sobre uma estante no estúdio de Hawkin. Sugestivo, mas circunstancial. George assentiu.
. Tudo é circunstancial, mas com que freqüência temos uma testemunha que corrobore um assassinato?
. É verdade. Deixe-me ouvir o resto, então. George fez uma pausa para organizar seus pensamentos.
- Ok. Número cinco, Hawkin é do mesmo grupo sangüíneo que a pessoa que deixou sêmen nas roupas íntimas de Alison. Naquelas roupas e no arvoredo também havia sangue do mesmo grupo que o da menina. Sabemos disso porque a presença de corpúsculos de Barr indica que o sangue era feminino. Assim, é razoável presumir que Alison foi, no mínimo, ferida, se não morta, nas mãos de um criminoso sexual. E sabemos, pelas fotografias que encontramos, que Hawkin se encaixa nesta categoria. Número seis, a suposta identificação de Alison em uma foto de jornal. Esta história é exatamente igual a uma matéria de jornal sobre a menina desaparecida de Manchester, Pauline Reade. Acredito que Hawkin usou esta matéria para parecer um padrasto carinhoso e preocupado, algo que não havia sido até aquele ponto, pelo menos em minha opinião.
- Número sete - continuou -, encontramos duas balas de revólver na mina abandonada. Uma estava suficientemente inteira para ser identificada como tendo sido disparada de uma Webley calibre .38. Uma arma semelhante foi roubada de uma casa que Hawkin visitava regularmente, alguns anos atrás. Um revólver semelhante foi encontrado em seu laboratório. Estava escondido e tinha o número de série raspado. Ainda não sabemos se o homem cuja arma foi roubada identificará este revólver como sendo o seu. E ainda não sabemos se esta é a arma que disparou as balas encontradas na mina. Mas saberemos. Finalmente, a camisa manchada de sangue. É idêntica às que Hawkin faz sob medida em Londres, inclusive na etiqueta do alfaiate, no colarinho. Ela estava ensopada de sangue. Se este sangue corresponder àquele que já identificamos circunstancialmente como sendo de Alison, poderemos ligar Hawkin ao ataque a ela. - George levantou as sobrancelhas. - O que o senhor acha?
- Se tivéssemos um corpo, eu diria que deveríamos indiciá-lo mas não temos. Não temos provas diretas de que Alison Cárter não está viva. A promotoria não aceitará um indiciamento por homicídio sem um corpo.
- Há precedentes - protestou George. - Haigh, o assassino da banheira com ácido. Não havia corpo naquele caso.
- Mas estava claro que um corpo havia sido colocado na banheira e traços laboratoriais apontaram para sua vítima, se estou bem lembrado.
- Há outro precedente, com menos provas ainda, de 1955. Um ex- soldado polonês, que foi condenado por assassinato de seu sócio nos negócios. A acusação sustentou que ele dera o corpo aos porcos de sua fazenda Tudo que a acusação tinha eram amigos e vizinhos que afirmavam que os dois homens haviam discutido. Havia algumas manchas de sangue na cozinha da sede da fazenda e o sócio desaparecera por completo, deixando para trás sua conta de poupança. Nós temos bem mais que isso. Ninguém confirma ter visto Alison Cárter desde seu desaparecimento. Temos evidências de que ela foi atacada sexualmente e que teve uma perda sangüínea considerável. Não acha improvável que ainda esteja viva?
Martin reclinou-se na cadeira e soprou a fumaça de seu charuto para o ar.
- Há uma grande diferença entre "improvável" e "além de qualquer dúvida razoável". Mesmo com a arma. Se ele a matou à queima-roupa, por que encontramos duas balas na parede?
- Talvez ela tenha resistido, no início, e ele atirou para assustá-la.
Talvez a menina estivesse lutando e ele a tenha ameaçado com os outros
dois tiros. Para fazê-la ceder, Martin pensou por algum tempo. Depois, disse:
- É possível, mas a defesa usará essas duas balas para confundir os jurados. E se ele matou a garota na mina, por que remover o corpo dali?
George afastou os cabelos de sua testa.
- Não sei. Talvez conhecesse um lugar ainda melhor para esconder o corpo. Deve ser isso, não acha? De outro modo, já o teríamos descoberto.
- Se ele conhecia um lugar melhor para livrar-se do corpo, por que deixar pistas do ataque sexual na mina?
George suspirou. Embora se sentisse frustrado com as perguntas de Martin, sabia que os advogados de defesa questionariam muito mais.
- Não sei. Talvez não tenha tido oportunidade. Precisava aparentar inocência pouco depois. Não poderia atrasar-se, logo naquela noite. Quando terminou de jantar, a notícia sobre o desaparecimento já se espalhara e não conseguiu voltar à mina.
- É muito pouco, George. - Martin sentou-se ereto e fitou seu detetive - Não basta. Você terá de encontrar o corpo.
Terceira Parte: Julgamentos e Aflições
Prisão preventiva
Tudo terminou em poucos minutos. Olhando à sua volta no tribunal, George surpreendeu-se com a perplexidade nos rostos dos moradores de Scardale, que haviam comparecido em peso. Estavam ali para satisfazerem algum impulso primitivo e verem aquele que consideravam como um vilão no banco dos réus. Precisavam de uma solenidade para amenizar o impulso, mas ali, em um tribunal moderno, que se parecia mais com o auditório de uma escola que com o antigo prédio do tribunal criminal de Londres, nada havia que pudesse satisfazer esta necessidade.
Todas as variações faciais de Scardale estavam ali, nos sete homens e oito mulheres presentes, desde o nariz adunco de Mamãe Lomas até os traços achatados de Brian Cárter. A ausência notável era da própria Ruth Cárter.
Naturalmente, havia repórteres, embora não tantos quanto haveria no julgamento. Tinham tão pouco para contar aos leitores, neste estágio, que quase não valia a pena estarem ali. Em virtude das leis que governavam a presunção de inocência, agora que Hawkin era acusado de algo, os editores precisariam ter grande cautela com suas palavras. Qualquer sugestão de que Hawkin poderia enfrentar uma acusação adicional por homicídio era tabu.
O detento foi trazido ao tribunal, onde três juízes de paz, dois homens e uma mulher, estavam sentados atrás da banca. Alfie Naden estava ali, preparado e à espera, assim como o inspetor do tribunal. Hawkin parecia mais confortável que qualquer um deles, com o rosto recém-barbeado parecendo o retrato da inocência e pureza e seus cabelos escuros brilhando sob as uzes. O murmúrio baixo proveniente dos assentos nos quais os habitantes e Scardale estavam foi silenciado por uma palavra ríspida do oficial de Justiça.
O auxiliar de tribunal levantou-se e leu a acusação contra Hawkin. Quase antes de terminar, Naden já estava de pé.
- Excelências, tenho um pedido a fazer. Como Vossas Excelências sabem, é dever do tribunal, sob a seção 39 da Lei de Proteção à Infância e à Juventude, proteger a identidade de menores vítimas de crimes sexuais. Com isto em mente, o procedimento normal dos tribunais é proibir que a imprensa mencione o nome do acusado, já que isto seria um modo indireto de identificar a vítima, quando há um relacionamento estreito entre ambos, como vemos nessas alegações. Portanto, peço que Vossas Excelências façam a mesma determinação neste caso.
Enquanto Naden sentava-se, o inspetor levantou-se outra vez. Ele já havia discutido isto com George e com o superintendente Martin.
- Eu me oporia a esta determinação - disse, em tom grave. - Em primeiro lugar, por causa da extrema gravidade das circunstâncias neste caso. Acreditamos que não é a primeira vez que o réu cometeu atos sexuais com crianças. Publicar seu nome pode levar ao reconhecimento e denúncia por outras vítimas. - Esta parte do argumento era pouco mais que uma esperança; as tentativas de Cragg para fazer com que os policiais de St. Albans levassem adiante as fofocas já sinalizavam o fracasso de tal intenção. George planejava enviar Clough às ruas para uma segunda tentativa, mas, por enquanto, só podiam cogitar que Hawkin cometera crimes semelhantes anteriormente.
- Em segundo lugar - continuou o inspetor -, a opinião da promotoria é que a vítima desta agressão não está mais viva e, portanto, não precisa da proteção do tribunal.
Bocas abriram-se em espanto. Uma das mulheres de Scardale deu um pequeno gemido. Repórteres olharam-se, desconcertados. Será que poderiam publicar esta declaração, por ter sido feita em um tribunal aberto ao público? Será que, ainda assim, seria proibido? Será que dependeria da determinação dos magistrados?
Naden levantou-se.
- Excelências - protestou ele, a própria imagem da indignação -, tal sugestão é escandalosa. É verdade que a suposta vítima desta suposta agressão está desaparecida atualmente, mas a sugestão da polícia de que a garota está morta é premeditada para gerar calúnia contra meu cliente.
Devo insistir para que Vossas Excelências determinem que nada será citado pela imprensa, exceto o fato de que um homem foi acusado do crime de estupro.
Os magistrados conferenciaram com o auxiliar do tribunal. George tamborilava impacientemente sobre um dos joelhos. Para ele, tanto fazia se a imprensa citasse Hawkin ou não. Tudo o que desejava era terminar esta investigação.
Finalmente, o presidente da banca limpou a garganta.
- Concordamos que, para fins de uma audiência de pedido de prisão preventiva, a imprensa está proibida de mencionar o nome do acusado. Entretanto, esta decisão não precisará ser acatada por qualquer dos juízes em qualquer audiência subsequente.
Naden fez sinal de que concordava e agradeceu. Quando a audiência preliminar foi marcada para dali a quatro semanas, Naden protestou novamente:
- Excelências, solicito a consideração de fiança. Meu cliente é um membro respeitado desta comunidade, sem antecedentes ou máculas em seu caráter. Ele administra uma grande propriedade e, sem dúvida, sua ausência será prejudicial a todos aqueles que trabalham em suas terras.
- Besteira! - gritou alguém do fundo da sala. George reconheceu Brian Cárter, com o rosto rubro de raiva. - Estamos melhor sem ele.
O presidente da banca parecia perplexo.
- Retirem esse homem imediatamente - disse, indignado por tal demonstração de desrespeito.
- Eu ia embora, de qualquer maneira - gritou Brian, colocando-se de pé antes que qualquer um pudesse alcançá-lo. Saiu quase correndo, batendo a porta às suas costas e deixando atrás de si um silêncio chocado.
O presidente da banca respirou fundo.
- Se eu ouvir mais uma intervenção do público, evacuarei este tribunal - disse, rígido. - Por favor, prossiga, senhor Naden.
- Obrigado. Como eu ia dizendo, a presença do senhor Hawkin é vital Para os trabalhos em suas terras. Como Vossas Excelências já devem ter uvido falar, sua enteada desapareceu de casa e ele acha que seu lugar é ao lado da esposa, para oferecer-lhe conforto e ajuda. Não estamos tratando com um criminoso que não tem paradeiro. Ele não tem intenção de sair desta jurisdição. Insisto pela fiança nessas circunstâncias excepcionais. O inspetor levantou-se, lentamente.
- Excelências, a polícia opõe-se à fiança, sob a alegação de que o acusado possui fundos suficientes à sua disposição para apresentar risco de fuga. Ele não tem raízes firmes nesta área e apenas mudou-se para cá quando da morte de seu tio, pouco mais de um ano atrás. Também estamos preocupados com sua possível interferência junto às testemunhas. Muitas testemunhas potenciais da acusação não apenas são seus inquilinos, mas também seus empregados, e há um risco muito grande de intimidação. Além disso, na opinião da polícia este homem é acusado de um crime muito grave e tende a enfrentar acusações adicionais, no futuro próximo.
George sentiu-se aliviado por ver que a juíza acenava com firmeza a cada argumento do inspetor. Se os outros ainda estivessem indecisos, ele achava que a convicção dela seria suficiente para convencê-los. Quando os juízes retiraram-se, ouviu-se um murmúrio indistinto de vozes no banco da imprensa. O contingente de Scardale permaneceu em silêncio, com os olhos perfurando o pescoço de Philip Hawkin, que parecia muito concentrado em uma conversa com seu advogado.
George gostaria de acender um cigarro.
Alguns minutos depois, os magistrados retomaram seus assentos.
- Não haverá fiança - disse o presidente, com determinação. - Levem o prisioneiro.
Ao passar por George, Hawkin lançou-lhe um olhar de puro ódio. O olhar de George passou direto por ele, sem se fixar. Prudência e distanciamento eram sua melhor atitude às reações daqueles que prendia.
Daily News, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1964, p. 2
Determinada prisão de suspeito
Um homem acusado de estupro teve sua prisão temporária decretada pelos magistrados de High Peak em Buxton, ontem. O homem, que não pode ter seu nome revelado por razões legais, vive na aldeia de Scardale, em Derbyshire.
A acusação de homicídio
Era estranho, pensou George, que todos os escritórios públicos fossem tão parecidos. De algum modo, ele esperara que o do Ministério Público fosse tão grandioso quanto o nome sugeria. Embora o prédio no estilo da Regência na rua Queen Anne's Gate não pudesse ser menos semelhante ao moderno edifício retangular de alvenaria que abrigava a subdivisão de Buxton, seu interior era como o de qualquer outro órgão público. O advogado com quem ele e Tommy Clough haviam marcado horário quatro dias após a audiência de prisão preventiva trabalhava em um espaço tão parecido com seu próprio escritório que George sentiu-se quase desorientado. Pastas estavam empilhadas sobre arquivos de ferro, alguns livros de direito ocupavam uma prateleira sob a janela e o cinzeiro precisava ser esvaziado. O chão estava coberto com um linóleo idêntico e as paredes tinham o mesmo tom de branco-sujo.
Jonathan Pritchard também contrariou suas expectativas. Na casa dos trinta anos, Pritchard tinha uma cabeleira indomável, cor de cenoura, que se levantava em tufos e ângulos em toda sua cabeça, até erguer-se em uma espécie de crista, em um canto de sua testa. Suas feições eram igualmente rebeldes. Os olhos, no azul-acinzentado aquoso dos galeses, eram redondos e muito separados, com longos cílios dourados. Seu nariz longo e ossudo dava uma guinada súbita para a esquerda na ponta, e sua boca torcia-se em um ângulo seco para baixo. As únicas coisas ordenadas nele eram seu terno cinza-escuro em risca-de-giz imaculado, sua camisa incrivelmente branca e uma gravata com nó perfeito.
- Então - o advogado cumprimentara-os, levantando-se rapidamente - vocês são os camaradas sem um corpo. Entrem, sentem-se. Espero que tenham se abastecido de antemão, porque aqui não há qualquer chance de uma xícara de café que preste. - Ele permaneceu de pé, educadamente, até ver que George e Clough haviam sentado, e então tornou a sentar-se em sua velha cadeira giratória de madeira. Abriu uma gaveta, pegou outro cinzeiro e empurrou-o para os dois. - Este é o máximo de nossa hospitalidade - disse, pesaroso. - E agora, quem é quem?
Eles apresentaram-se. Pritchard anotou algo no bloco à sua frente.
- Perdoem-me - disse. - Mas é um pouco incomum ver um caso de tal magnitude ser coordenado por um detetive-inspetor. Principalmente um que está no cargo há apenas cinco meses.
George conteve um suspiro e encolheu os ombros.
- O detetive e inspetor-chefe estava com o tornozelo engessado quando a garota desapareceu, de modo que fiquei no controle da operação, reportando-me ao superintendente Martin. Ele é o policial mais experiente na subdivisão de Buxton. De qualquer modo, à medida que o caso avançava, o QG pensou em ceder um policial mais experiente do departamento de investigações criminais, mas o superintendente resistiu à ideia. Queria que seus próprios homens lidassem com o caso.
- Muito elogiável, mas talvez os oficiais de seu quartel-general não tenham gostado muito... - comentou Pritchard.
- Não sei dizer, senhor. Clough inclinou-se para a frente.
- O superintendente serviu no Exército com o chefe de polícia, de modo que tem credibilidade.
Pritchard assentiu.
- Eu mesmo fui advogado no Exército. Sei como são essas coisas. - Ele tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. George imaginou a impressão que Pritchard causaria no tribunal se acabasse apresentando o caso para a acusação na audiência de aprisionamento. Graças a Deus os juízes não estariam lá também. - Li a papelada referente ao caso e examinei as fotografias. São realmente as mais repugnantes que já vi. Não tenho dúvida de que conseguiremos uma condenação por estupro com base apenas nas fotos. O que precisamos discutir, agora, é se temos provas suficientes para avançar para uma acusação de homicídio. Naturalmente, o principal obstáculo é a ausência de um corpo.
George abriu a boca, mas Pritchard levantou um dedo de alerta para garantir o silêncio.
- Agora, devemos considerar o corpo de delito. Não como a maioria das pessoas pensa, o corpo da vítima, mas o corpo do crime. Quer dizer, os elementos essenciais de um crime e as circunstâncias nas quais foi cometido. No caso de homicídio, é necessário que a acusação estabeleça a ocorrência da morte, que a pessoa morta é aquela que supostamente foi assassinada e que a morte resultou de violência criminosa. O modo mais fácil de demonstrar isto é pela presença de um corpo, ou cadáver, não é?
- Mas existem precedentes para condenações por homicídio na ausência de um corpo - disse George. - Haigh, o homicida da banheira com ácido, e James Camb. Além disso, temos Michael Onufrejczyk, o criador de porcos. É o caso em que o presidente do tribunal disse que o fato da morte poderia ser estabelecido por provas circunstanciais. Creio que temos o suficiente para levarmos este caso avante.
Pritchard sorriu.
- Vejo que você estudou os principais precedentes. Devo dizer, inspetor Bennett, que me sinto muito intrigado pelas circunstâncias deste caso. Não há dúvida de que apresenta alguns problemas aparentemente incontornáveis. Entretanto, como você aponta, existe uma quantidade substancial de provas circunstanciais. Agora, se pudermos rever essas provas...
Durante duas horas, os três repassaram todos os detalhes que apontavam para o assassinato de Alison Cárter por Philip Hawkin. Pritchard questionou-os, com inteligência e atenção, sondando-os na tentativa de extrair deficiências na cadeia lógica. O advogado não ofereceu praticamente nada em termos de sua opinião pessoal sobre as explicações que ouvia, mas estava claramente fascinado.
- Há mais uma coisa, algo que não estava em seus papéis - concluiu Clough. - Só tivemos o relatório no fim da tarde de ontem. O sangue na camisa é do mesmo grupo que o de Alison, e vem de uma mulher, igual ao outro sangue. Mas a camisa está um pouco chamuscada e apresenta resquícios de pólvora, como seria de esperar se um revólver tivesse sido disparado muito próximo dela. E não há dúvida de que a roupa pertence a Hawkin.
- Tudo é material útil, sargento. Mesmo sem esta última prova, tenho quase certeza de que Hawkin matou a menina. Contudo, ainda resta a dúvida de podermos montar um caso que satisfaça um júri. - Pritchard correu a mão por seus cabelos, tornando-os ainda mais caóticos. George entendeu por que o homem optara por ser advogado: sob uma peruca de crina de cavalo, ele pareceria quase normal. E embora não houvesse como negar que viera de família de posses, sua voz não era tão arrogante a ponto de causar antipatia nos jurados.
- Onde quer que o corpo esteja, ele fez um bom trabalho ao escondêlo. Não iremos encontrá-lo, a menos que alguém tropece nele por acidente. Acho que não teremos muito mais do que já conseguimos - disse George, tentando não parecer tão desanimado quanto sempre se sentia, quando o sono inquieto de Anne o acordava e fazia-o permanecer desperto e preocupado durante a madrugada.
Pritchard girou da esquerda para a direita em sua cadeira.
- Ainda assim, é um desafio fascinante, não acham? Não me lembro da última vez em que li relatórios sobre um caso que me fizeram vibrar tanto. Que batalha de mentes em um tribunal! Não consigo evitar o pensamento de que seria muito divertido irmos ao tribunal.
- Então você atuaria na acusação? - indagou Clough.
- Uma vez que certamente será um julgamento controvertido, teríamos um promotor de renome atuando, mas eu certamente o auxiliaria e seria responsável pela preparação do caso. Sinto-me na obrigação de dizer que sou a favor de irmos a julgamento. - Ele levantou novamente um dedo, em tom de advertência. - Mas isso não significa que vocês podem ir em frente e acusá-lo. Terei de falar com o diretor e convencê-lo de que não nos exporemos ao ridículo se formos em frente. Tenho certeza de que vocês sabem como nossos superiores detestam ser motivo de chacotas - acrescentou, com um sorriso irónico.
- E então, quando teremos uma resposta? - perguntou George.
- No fim da semana - disse Pritchard, decidido. - Ele provavelmente desejará estudar seus relatórios por algumas semanas, mas o tempo é crucial aqui, eu acho. Ligarei para vocês sexta-feira, o mais tardar. - Pritchard levantou-se e estendeu a mão. - Inspetor. Sargento - cumprimentou-os. - Foi um prazer conhecê-los. Vamos cruzar os dedos, está bem?
Daily News, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso da menina desaparecida: Suspeito acusado de homicídio
Da Redação
Ontem à noite, a polícia acusou Philip Hawkin, do homicídio de sua enteada, Alison Cárter, que desapareceu em dezembro, em uma reviravolta surpreendente neste caso.
O que torna esta acusação incomum é que o corpo de Alison ainda não foi descoberto. A bonita garota de 13 anos não é vista desde que saiu de sua casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para caminhar com sua cadela após a escola, em 11 de dezembro do ano passado.
Hawkin comparecerá no Juizado Especial Criminal de Buxton amanhã, para o pedido de detenção até o julgamento.
Antecedentes
Esta não é a primeira vez em que alguém é acusado de homicídio sem a descoberta do corpo. No caso de John George Haigh, o famoso assassino da banheira com ácido, foram encontrados apenas uma pedra renal, alguns ossos e a dentadura de sua vítima.
Contudo, estes poucos elementos foram suficientes para demonstrar que a banheira contivera o corpo da vítima e Haigh foi enforcado por homicídio.
James Camb, camareiro em um navio de luxo que realizava um cruzeiro entre a África do Sul e a Inglaterra, foi acusado de assassinar uma passageira, a atriz Gay Gibson.
Camb afirmou que Gibson havia morrido de ataque cardíaco enquanto estavam sozinhos na cabine dela. Em pânico, e achando que seria acusado de matá-la, ele empurrou o corpo através de uma portinhola.
Os jurados não acreditaram em sua história e ele foi condenado.
Outro caso ocorreu em uma fazenda distante no País de Gales, onde um herói de guerra polonês foi condenado por matar seu sócio e dar o corpo aos porcos na propriedade de ambos.
A espera do julgamento.
George despertou às seis horas na segunda-feira, 24 de fevereiro, e escorregou para fora da cama, tentando não perturbar Anne. Desceu em silêncio, com seu roupão e chinelos. Fez um bule de chá e levou-o até a sala. Afastando as cortinas para observar a alvorada, surpreendeu-se ao ver o carro de Tommy Clough estacionado ali. O brilho da brasa de um cigarro revelou que o sargento estava tão acordado quanto ele.
Minutos depois, Clough estava sentado à sua frente, com uma xícara de porcelana fumegante em uma de suas grandes mãos.
- Achei que você acordaria antes da hora. Espero que Hawkin tenha perdido o sono, como nós - comentou, amargo.
- Não consigo me lembrar da última vez em que dormi oito horas seguidas, com o sono agitado de Anne e minha preocupação com esta audiência nos últimos tempos - concordou George.
- Como ela está?
George encolheu os ombros.
- Cansa-se facilmente. Fomos assistir a Fugindo do Inferno no Opera House sexta à noite, e ela cochilou no meio. Anne também se preocupa demais. - Ele suspirou. - Acho que o fato de nunca saber quando estarei em casa não ajuda em nada.
- Tudo ficará mais fácil após o julgamento - disse Clough, consolando-o.
- Suponho que sim. Ainda assim, fico sempre imaginando que ele pode safar-se desta. Quer dizer, temos de fazer o possível para que os juízes concordem em mandá-lo para julgamento. Então, ele terá pelo menos alguns meses para construir uma defesa, sabendo exatamente o que temos para pegá-lo. Não é como Perry Mason, onde um elemento-surpresa sempre aparece no último minuto.
- Os advogados não iriam em frente se não achassem que têm uma boa chance de vencer - lembrou Clough. - Fizemos nossa parte. Tudo o que nos resta é deixar que façam a deles - acrescentou, filosoficamente.
George fez pouco caso, torcendo o nariz.
- Eu deveria me sentir melhor com isso? Tommy, detesto este estágio, em qualquer investigação. Tudo está fora do meu controle e não posso influenciar os acontecimentos. Sinto-me tão impotente! E se Hawkin não for condenado... bem, não sei quanto aos advogados, mas eu me sentirei um fracassado. - Ele recostou em sua cadeira e acendeu um cigarro. - Não suportaria isso, por todas as razões possíveis, principalmente porque um assassino sairia livre. Mas sou suficientemente humano para ver as coisas pelo meu lado pessoal. Dá para imaginar como Carver se sentiria feliz? Será que você consegue imaginar as manchetes que aquele rato de esgoto, Don Smart criaria para seu jornal?
- Ah, George, espere aí, todos sabem como você se esforçou neste caso. Se Carver estivesse no comando, nunca teríamos a prova para a acusação de estupro. E nossas provas são conclusivas. Não é possível que ele possa se livrar dessa acusação, não importa o que aconteça com a acusação por homicídio. E pode apostar seu último dólar que qualquer juiz que atentar para as provas e ouvir um júri estúpido pronunciar "inocente" para a acusação de homicídio usará a condenação por estupro para dar a Hawkin a maior sentença possível. Ele não voltará tão cedo a Scardale.
George suspirou.
- Você tem razão. Só gostaria de ter conseguido fazer uma ligação mais estreita entre Hawkin e o revólver. Quer dizer, será que ainda podemos ter mais azar? Apenas um homem poderia identificar a arma que temos como sendo a Webley roubada de St. Albans O dono anterior, o vizinho da mãe de Hawkin, senhor Wells. E onde ele está? Viajou para a Austrália, para passar alguns meses com a filha que emigrou para lá. E nenhum de seus amigos ou vizinhos tem um endereço para onde possamos escrever-lhe. Nem conseguem lembrar direito quando ele voltará. É claro que suspeitamos que a mãe de Hawkin tem todos esses detalhes, sendo a melhor amiga do casal Wells, mas certamente não contará a esses policiais nojentos que estão acusando seu filhinho querido de coisas tão horríveis - acrescentou,
com sarcasmo.
Ele se levantou.
" - Vou tomar uma chuveirada e me barbear. Quer fazer mais chá? Levarei uma xícara para Anne, quando me vestir. Depois, lhe pago um café da manhã compk to no bar mais próximo.
- Parece ótimo. Precisamos nos prevenir mesmo, porque o dia será longo.
O relógio da prefeitura bateu dez horas, com sua nota grave penetrando no tribunal, no outro lado da rua. Jonathan Pritchard levantou a cabeça da pilha de papéis na sua frente e ergueu as sobrancelhas, em expectativa. Próximo dele, ainda absorto em suas anotações, estava a figura corpulenta de Desmond Stanley, promotor do Ministério Público. Ex-jogador de rúgbi de Oxford, Stanley conseguia evitar o acúmulo de gordura, aos quarenta e poucos anos, com um regime rígido de exercícios que insistia em praticar onde quer que trabalhasse. Além da peruca habitual, toga e faixas de advogado, a sacola de Stanley sempre continha seus halteres. Ele já se curvara e alongara, realizara flexões e agachamentos por todo o país antes de entrar no tribunal e acusar ou defender os piores criminosos que o sistema legal podia lançar-lhe nas mãos.
O mais estranho era que ele nunca parecia saudável. Sua pele tinha um tom amarelado e doentio, seus lábios eram pálidos e seus olhos castanhoescuros lacrimejavam constantemente. Stanley sempre levava escondido na manga um lenço de seda de cors vivas, para poder enxugar seus olhos regularmente. Na primeira vez que o encontrara, George imaginara se Stanley viveria o bastante para comparecer àquele julgamento. Depois, Pritchard o tranquilizara:
- Ele sobreviverá a muitos de nós - confidenciara. - Sinta-se feliz por ele estar do nosso lado, não contra nós, porque Desmond Stanley é um monstro de competência. Pode acreditar.
Pritchard sentiu-se ainda mais grato por ter Stanley do seu lado ao ver quem era o advogado de defesa. Rupert Highsmith conquistara sua formidável reputação como um inquiridor implacável e de precisão cirúrgica em uma série de casos famosos no começo dos anos 50, quando ainda iniciava sua carreira. Outros dez anos nos tribunais não haviam embotado suas habilidades; ao contrário, haviam lhe ensinado uma série de novos truques que causavam aflição em seus oponentes, tanto que os menos talentosos relutavam em extrair materiais dúbios de suas testemunhas, por temerem o que Highsmith poderia fazer com elas em seu favor quando chegasse sua vez.
Agora, Highsmith estava reclinado em sua cadeira, em atitude confiante, olhando atentamente para os bancos lotados de repórteres e para o público, com seu perfil tão geométrico que parecia ter sido construído com blocos de madeira em uma brincadeira de criança. Os colegas mais maldosos comentavam, às escondidas, que ele fizera cirurgia plástica para manter seus contornos tão precisos. Ele gostava de conferir sua plateia, para avaliar o impacto que seu caso poderia ter. Havia bastante público hoje, pensou. Uma boa vitrine para seus talentos.
Ele era um dos poucos advogados de defesa que brilhavam nessas audiências preliminares. Uma vez que a única finalidade de tais audiências era decidir se a promotoria tinha um caso claro contra o acusado, geralmente apenas o promotor falava para os magistrados. A única oportunidade que Highsmith teria para demonstrar suas habilidades seria durante o interrogatório das testemunhas. E isso era o que fazia melhor.
A porta lateral abriu-se e Hawkin entrou, ladeado por dois policiais. Por instrução de George, suas mãos estavam sem algemas. O detetive estava determinado a não fazer coisa alguma que pudesse causar a mais leve simpatia por Hawkin. Além disso, ele sabia que a primeira ação da defesa seria exigir a remoção das algemas, e que os magistrados provavelmente concordariam, no mínimo porque seria difícil não verem Hawkin como alguém de seu próprio nível. Pritchard também salientara a importância de não permitir que a defesa levasse vantagem primeiro.
Dezoito noites atrás das grades haviam causado pouco impacto sobre a aparência de Philip Hawkin. Seus cabelos escuros estavam mais curtos, uma vez que os prisioneiros não tinham como escolher barbeiro e precisavam aceitar o corte que recebiam, mas ainda estavam sedosos e brilhantes, Penteados para trás e deixando visível sua testa ampla e quadrada. Seus olhos castanho-escuros percorreram rapidamente o tribunal antes de se fixarem em seu advogado. O sorriso que parecia sempre brincar em seus lábios ampliou-se em reconhecimento ao aceno curto de Highsmith. Hawkin entrou sem pressa em seu reservado, ajustando cuidadosamente as pernas das calças de seu traje escuro e sóbrio, enquanto se acomodava no assento. A porta atrás dos assentos dos juízes abriu-se e o oficial de justiça levantou-se, comandando em voz alta:
- Todos de pé!
Cadeiras arrastaram-se no chão de ladrilhos, enquanto os três juízes entravam. Hawkin estava entre os primeiros a se levantarem, demonstrando um respeito que Pritchard percebeu e anotou mentalmente, para poder usar mais tarde, se fosse o caso. Ou Hawkin era bom ator, ou realmente acreditava que esses juízes poderiam usar o poder que detinham em seu favor.
Os três homens que julgariam o caso acomodaram-se, seguidos em uma desordem ruidosa por todos os outros, exceto o oficial de justiça. Ele lembrou-lhes que o tribunal estava em sessão e que deveriam considerar o processo para enviar a julgamento Philip Hawkin, do Solar Scardale, em Scardale, no condado de Derbyshire.
Desmond Stanley ergueu-se.
- Excelências, eu represento o diretor do Ministério Público nesta questão. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele é acusado ainda de, em uma outra ocasião ou na data exata ou próxima de 11 de dezembro de 1963, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
A única pessoa a sorrir no tribunal era Don Smart, curvado sobre seu pequeno bloco de anotações. O animador do circo estava de pé. O espetáculo já começara.
Depois de apresentar suas provas e sofrer os golpes da inquirição astuta de Highsmith, George saiu do banco das testemunhas e voltou para o meio da plateia, tonto e com duas manchas rosadas queimando-lhe as faces. Amanhã, voltaria para sentar-se no meio do público e escutar o resto, mas agora queria um cigarro e paz, por uma hora. Estava prestes a descer correndo as escadas quando ouviu Clough chamando seu nome e voltou-se.
- Agora não, Tommy. Encontre-me no Baker's, quando abrir. Usando o pilar do corrimão como apoio, desceu as escadas depressa,
saindo do prédio.
Quarenta minutos depois, estava no topo redondo do Rochedo Mam Tor, bem sobre o cume, onde o calcário encontra-se com pedregulhos, com as áreas de White Peak, de calcário branco, à sua direita, e Dark Peak, com seus pântanos e paisagem desolada, à esquerda. O vento chicoteava seu rosto e a temperatura caía ainda mais rapidamente que o sol. George levantou a cabeça e berrou sua frustração reprimida até aquele momento para as nuvens que se moviam rapidamente e para as ovelhas indiferentes.
Virou-se para avistar o platô de Kinder Scout com seus campos e charnecas estéreis bloqueando qualquer visão mais ao norte. Virou-se noventa graus e seu olhar passou pelo cume, vendo Hollins Cross, o Monte Lose Hill Pike e a projeção distante que era o Monte Win Hill, com Stanage Edge e Sheffield invisíveis, mais além. Depois, virando-se mais noventa graus, avistou a cicatriz branca da garganta de Winnats Pass e as elevações e depressões dos vales de calcário além. Finalmente, voltou-se para o leste, vasculhando o cimo crespo de Rushup Edge e o suave declive de Chapel-enle-Frith. Em algum lugar, naquela imensidão, estava deitada Alison Cárter, com seu corpo exposto à natureza, roubada de sua vida.
Ele havia feito o que podia. Agora estava nas mãos de outros. Ele tinha que aprender a esquecer.
Mais tarde, encontrou-se com Clough, que bebericava o resto de uma cerveja em uma mesa de canto do Baker's Arms. Os frequentadores sabiam que era melhor deixá-los em paz, e o proprietário já se recusara a atender três jornalistas, incluindo Don Smart, que ameaçara apresentar queixa contra ele na próxima sessão dos magistrados que forneciam a licença de funcionamento do bar. O dono apenas dera uma risadinha e dissera:
- Eles me dariam uma medalha. Saia daqui agora mesmo, não temos tempo para palhaçadas.
George foi até Clough, levando duas cervejas.
- Eu precisava de ar puro - disse ao sentar-se. - Se ficasse por aqui, acabaria preso por assassinar um advogado do Ministério Público.
- Que merda - disse Clough, fingindo cuspir no chão.
- Suponho que ele diria que está apenas fazendo seu trabalho.
George tomou um grande gole de sua bebida. - Ah, assim está melhor. Fui até Mam Tor para dar uma arejada. Bem, pelo menos agora podemos ver qual é a linha da defesa. É tudo uma conspiração, de minha parte, para condenar Philip Hawkin e garantir minhas futuras promoções.
- Os magistrados não acreditarão nessa asneira.
- Mas os jurados podem acreditar - disse George, com amargura.
- E por que deveriam? Você é o mocinho. Basta olhar para Hawkin e todos os alarmes começam imediatamente a soar. Ele tem aquela aparência que as mulheres consideram irresistível e os homens odeiam à primeira vista. A menos que Highsmith consiga formar um júri só de mulheres, a defesa não tem como livrá-lo.
- Espero que você esteja certo. De qualquer modo, tente me alegrar. Diga-me o que perdi ao sair de lá.
Clough deu-lhe um grande sorriso.
- Você perdeu Charlie Lomas. Ele se saiu bem, devo admitir. Conseguiu usar um terno sem parecer estar em uma camisa-de-força. Estava nervoso como um gato em um canil, mas conseguiu manter-se firme. Stanley fez um bom trabalho, revertendo as tentativas de Highsmith de desmerecêlo. Ele conseguiu fazer com que Charlie falasse sobre a mina de chumbo e afirmasse que ninguém de fora de Scardale poderia chegar até lá, mesmo com o livro. Ele também conseguiu fazer com que Charlie explicasse que, embora Hawkin seja relativamente novo no vale, já havia explorado bastante o lugar, tirando fotografias para cartões-postais.
George deu um suspiro de alívio.
- E como ele se saiu com Highsmith?
- Manteve sua história. Não permitiu que o distraíssem ou fizessem vacilar. Afirmou que tinha certeza de ter visto Hawkin andando pelos campos na quarta-feira. Disse que não era terça. Também não era segunda. Foi firme como uma rocha o nosso Charlie. Garanto-lhe que causou boa impressão nos magistrados.
- Graças a Deus alguém causou.
- Pare de se sentir uma vítima, George. Você foi bem. Highsmith tentou fazê-lo vacilar, mas não conseguiu. Considerando a escassez de provas sólidas, eu diria que estamos indo muito bem. Agora, quer as boas notícias?
A cabeça de George levantou-se como se puxada por um cordão.
- E há alguma boa notícia? Clough sorriu.
- Ah, acho que sim. - Ele retirou os cigarros do bolso e acendeu um. - Troquei mais uma palavrinha com o sargento, lá em St. Albans.
- Wells apareceu? - George mal podia conter-se.
- Ainda não.
George afundou na cadeira, suspirando.
- São essas as boas notícias que estou esperando - admitiu.
- Bem, mas a que eu tenho também é. A verdade é que nosso sargento conhece Hawkin. Ele não queria dizer nada até falar com uma ou duas pessoas para obter permissão e me contar. Clough secou seu caneco. - Quer outra?
George concordou, em frustração divertida:
- Vá em frente, sei que você está gostando de me ver aqui, ansioso para saber mais. Então pague por seu prazer.
Quando Clough voltou, ele já havia fumado meio cigarro com a concentração nervosa de alguém prestes a entrar em um compartimento de nãofumantes em um trem, rumo a uma longa jornada.
- Conte-me agora - insistiu, inclinando-se para a frente e puxando a cerveja para si. - Vamos lá.
- A esposa do sargento Stillman é chefe de um grupo de bandeirantes. Hawkin apareceu um dia, oferecendo-se para ser o fotógrafo oficial do grupo. Ele tiraria fotos em desfiles, acampamentos, esse tipo de coisa, e venderia as fotos para as bandeirantes e suas famílias a um precinho muito camarada. Em troca, ele desejava tirar retratos das meninas, para seu próprio portfólio. Tudo parecia muito correto. Afinal, Hawkin não era um estranho. Ele e sua mãe eram membros da igreja à qual as bandeirantes estavam vinculadas, e sempre aceitava alegremente a presença das mães quando tirava fotos das garotas. - Clough fez uma pausa, com as sobrancelhas levantadas.
- E o que deu errado? - indagou George, sentindo que o amigo esperava a pergunta.
- O tempo passou. Hawkin fez amizade com algumas das meninas mais velhas e começou a marcar sessões sem a presença das mães. Então ocorreram alguns... incidentes. Na primeira vez, ele negou tudo, disse que a menina estava mentindo para chamar a atenção. Na segunda vez, a mesma coisa, só que então ele disse que a menina estava se vingando por que ele não a queria mais como modelo. De acordo com ele, a garota sabia da confusão envolvendo a acusação da primeira menina e ameaçara dizer as mesmas coisas se não recebesse dinheiro para comprar doces e não continuasse com as fotos. Bem, ninguém queria problemas e não tinham provas de modo que o sargento Stillman trocou umas palavrinhas com Hawkin sugerindo-lhe que se afastasse de adolescentes para evitar qualquer possibilidade de mal-entendidos.
George assoviou baixinho.
- Bem, bem, bem... Achei que deveria haver algo, em algum lugar. Pedófilos não começam de repente, na idade de Hawkin. Muito bem, Tommy. Pelo menos, sabemos que não nos deixamos levar por alguma ideia esdrúxula. Hawkin é exatamente o que achamos que é.
Clough concordou, mas ressaltou:
- Só que não podemos usar nada disso no tribunal. O que Stillman me disse são apenas rumores que ouviu de outros.
- E quanto às garotas?
- Stillman nem mesmo me disse seus nomes - Clough bufou. - A principal razão para não ter havido qualquer acusação formal antes é que as mães não queriam ver suas filhas em um tribunal. Se não querem saber disso quando o assunto tem a ver com suas meninas, não há nenhuma chance de persuadi-las por causa de um homicídio que está nas manchetes dos jornais.
George assentiu em concordância. Não poderia argumentar com pessoas que desejavam proteger seus filhos, mesmo quando o dano já estava feito. Agora que também se tornaria pai, entretanto, sentia pela primeira vez em sua vida o impulso de agir como vigilante. Não conseguia entender por que Hawkin ainda estava livre. Como policial, Stillman tivera muitos recursos disponíveis para prejudicar aquele homem, física e socialmente, mas não fizera nada. Chegara a relutar em contar a verdade a Clough.
- Está claro que agem diferente de nós em St. Albans - disse, preocupado. - Se eu soubesse, como policial, que algum pervertido havia molestado um filho de um amigo meu, não o deixaria escapar. Descobriria um modo de fazê-lo pagar. Pela lei ou...
- Achei que você não acreditava nos corredores escuros da justiça - comentou Clough, com ironia.
- É diferente quando crianças estão envolvidas, não acha?
Esta era a grande pergunta sem resposta. Ambos pensaram nisso em silêncio, enquanto terminavam suas bebidas. Quando George voltou com a terceira rodada, parecia um pouco mais alegre:
- Ainda temos muita coisa em nosso favor, mesmo sem essa parte de St. Albans.
- Acho que Stillman sente-se culpado por não ter agido - disse Clough.
- Pois deveria mesmo. Talvez ele nos avise quando o senhor e a senhora Wells voltarem.
- Espero que sim, George. Mesmo se conseguirmos nosso indiciamento, ainda estaremos longe de garantir uma condenação.
Daily News, Sexta-feira, 28 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso Alison: padrasto será julgado por homicídio.
O padrasto da adolescente desaparecida Alison Cárter irá a julgamento por seu homicídio, embora o corpo da garota de 13 anos ainda não tenha sido descoberto.
Em uma decisão dramática ontem, os magistrados de Buxton indiciaram Philip Hawkin por homicídio e estupro, encaminhando-o a julgamento pelo tribunal de Derby.
Alison não é vista desde seu desaparecimento da remota aldeia de Scardale, em Derbyshire, em 11 de dezembro do ano passado.
Durante a audiência preliminar, que durou quatro dias, sua mãe, que se casou com Hawkin pouco mais de um ano atrás, prestou depoimento para a acusação. Foi a senhora Cárter (como ela prefere ser chamada atualmente) quem descobriu a arma que o advogado do Ministério Público, senhor Desmond Stanley, afirma ter sido usada para assassinar a garota.
Ontem, o tribunal ouviu o professor John Hammond, que afirmou que a ausência de sangue na suposta cena do crime não significava, necessariamente, a inexistência do crime.
Ele também declarou que o sangue encontrado em uma camisa bastante manchada e identificada como pertencendo a Hawkin poderia ter vindo de Alison. (Continua na p. 2.)
O julgamento
High Peak Courant, sextafeira, 12 de junho de 1964
Julgamento por homicídio em Derby semana que vem.
O julgamento de Philip Hawkin, proprietário de terras de Scardale, começa segunda-feira, no tribunal superior de Derby.
Hawkin é acusado de estupro e homicídio de sua enteada, Alison Cárter. Ao comparecer perante os juízes de Buxton em fevereiro, Hawkin viu a esposa entre as testemunhas de acusação.
Alison não é vista desde a tarde de 11 de dezembro do ano passado, quando desapareceu depois de levar a cadela collie Shep para uma caminhada no vale, após a escola.
O juiz Fletcher Sampson presidirá o julgamento.
A fanfarra de trombetas parecia suspensa no ar como a luz pálida de um arco-íris. Vestido em toda a sua glória, em escarlate e arminho, o juiz Fletcher Sampson chegara ao prédio do salão de paredes de carvalho com sua escolta da polícia montada. George Bennett estava sentado na antevia, fumando um cigarro junto a uma janela aberta. Ele imaginou o teatral cortejo do juiz até o tribunal para tomar seu lugar na tribuna, sob o brasão real. Ao seu lado, neste primeiro dia de julgamento, estaria o Alto Xerife je Derbyshire, em seu uniforme cerimonial.
Neste momento, pensou George, eles estariam no tribunal, olhando de cima os advogados, dispostos à sua frente com suas perucas grisalhas e becas negras, faixas brancas e colarinhos que os faziam parecer estranhos híbridos de corvos e gralhas. Por trás dos advogados, sua equipe de consultores e estagiários. Por trás deles, o reservado ornamentado, mas sólido em que Hawkin ficaria, flanqueado por um par de policiais, contido por madeira de lei e mantido com firmeza em seu lugar por uma fileira de cavilhas de ferro encravadas na madeira. Atrás de Hawkin, os bancos da imprensa, com sua diversidade de jovens ansiosos por sucesso e velhos jornalistas sem entusiasmo que precisavam achar que já haviam visto e ouvido de tudo. Os cabelos vermelhos de Don Smart destacavam-se entre os demais como uma labareda. Acima e por trás dos jornalistas via-se a galeria para o público, lotada dos rostos preocupados dos habitantes de Scardale e de olhos curiosos das outras pessoas.
E em uma das laterais do grande salão, pouco além do banco das testemunhas, logo se sentariam as pessoas mais importantes naquele lugar. Os jurados. Doze homens e mulheres teriam o destino de Philip Hawkin em suas mãos. George tentara não pensar na possibilidade de rejeitarem o caso que se esforçara tanto para elaborar, com a ajuda dos advogados, mas não conseguia evitar o temor que se infiltrava em seu íntimo à noite, quando tentava dormir e, como muitas vezes lhe ocorria agora, fracassava. Ele suspirou e jogou o toco de cigarro na rua. Imaginou onde estaria Tommy Clough. Deveriam encontrar-se na delegacia às oito horas, mas, quando chegara lá, Bob Lucas lhe dissera que Clough deixara uma mensagem de que o encontraria no tribunal.
- Provavelmente está atrás de algum rabo-de-saia em Derby - disse Lucas, piscando-lhe um olho. - Tentando distrair-se um pouco.
George acendeu outro cigarro e apoiou-se no parapeito. Agora, o escrevente convocaria aqueles que tinham causas a resolver no Supremo Tribunal de Sua Majestade, a Rainha, para se aproximar e prestar atenção. E Deus Salve a Rainha. George lembrava-se de, em seus primeiros tempos de paixão pelo Direito, ter estudado a fundo os termos pomposos usados em julgamentos. No caso, empregavam-se palavras rebuscadas que literalmente significavam apenas ouvir e determinar. Em 1964 esta abertura tornara-se arcaica, com a delegação de autoridade concedida aos juízes de tribunais itinerantes para que realizassem seus julgamentos. As autoridades carcerárias eram então obrigadas a entregar ao juiz todas as pessoas que aguardavam julgamento e cujos nomes estivessem relacionados na agenda do tribunal.
Na prática, hoje isto se aplicaria apenas a Philip Hawkin. Sendo o único julgamento por homicídio marcado para este tribunal, o caso seria ouvido primeiro.
Dois dias antes, George fizera uma última tentativa para persuadir Hawkin a confessar, conversando com ele cercado pelas paredes altas e sombrias da prisão. Haviam se encontrado frente a frente, em uma pequena sala de entrevistas que não parecia mais acolhedora que as celas. George percebera, contente, que Hawkin estava mais magro. O princípio de que um homem deveria ser considerado inocente até prova em contrário nunca valia muito em uma prisão. Hawkin já recebera uma dose amarga de seu próprio remédio atrás das grades. Os carcereiros nunca intervinham com rapidez quando um estuprador virava vítima de estupro, e sempre garantiam que os outros prisioneiros soubessem exatamente quem eram os pedófilos. Embora sua parte mais civilizada protestasse, o futuro pai em George mostrava total simpatia pelo comportamento brutal dentro da prisão.
Sentados em lados opostos da mesa estreita, haviam fitado um ao outro.
- Você trouxe cigarros? - indagara Hawkin, rudemente.
Em silêncio, George colocara um maço aberto entre os dois. Hawkin agarrara um ansiosamente e George o acendera, vendo-o tragar fundo enquanto o corpo relaxava. Hawkin correu a mão pelos cabelos e disse:
- Sairei daqui em alguns dias. Você sabe disso, não é? Minha missão, então, será contar ao mundo que a polícia distorceu tudo para me incriminar. Você sabe que nunca matei Alison, e vou fazê-lo engolir cada uma de suas palavras.
George sacudiu a cabeça, quase admirando a confiança do homem.
- Você está sendo otimista demais - disse, com condescendência deliberada. - Não importa o quanto se esforce para que o mundo acredite em sua história, sou um daqueles tiras honestos, sabe? Nós dois sabemos que ninguém o incriminou falsamente. Não era preciso, porque você matou Alison e nós o pegamos.
- Nunca matei minha enteada - disse, com a voz tão intensa quanto seu olhar. - Vocês me trancaram aqui e o criminoso que levou Alison está à solta, rindo de sua cara.
George balançou a cabeça.
- Não vai funcionar, Hawkin Você é bom ator, mas todas as evidências o incriminam. - Ele tirou um cigarro do maço e acendeu-o, descontraído. - Lembre-se de que ainda lhe resta uma opção.
Hawkin permaneceu em silêncio, mas inclinou a cabeça para um lado, formando uma linha fina e grave com os lábios.
- Você pode optar pela prisão perpétua, com uma chance de ver o mundo fora da prisão novamente, daqui a uns vinte anos. Ou pode ser enforcado. A decisão é sua. Ainda dá tempo de confessar. Declare-se culpado e viverá. Dê trabalho para nós e será enforcado. Pendurado pelo pescoço até terem certeza de que morreu mesmo.
Hawkin torceu o nariz.
- Não vão me enforcar. Mesmo se me considerarem culpado, nenhum juiz nesse mundo teria coragem de me mandar para a forca. Não com as provas que você tem.
George reclinou-se em sua cadeira, levantando as sobrancelhas.
- Acha que não? Se você merece a condenação, também merece a forca. Especialmente se o juiz for um cara durão como Fletcher Sampson. Ele não tem medo dos liberais sensíveis que são contra a pena de morte. - Ele saltou para a frente subitamente, apoiando os braços na mesa e prendendo seu olhar no de Hawkin. - Faça um favor a si mesmo. Diga-nos onde podemos encontrar Alison. Dê este descanso a Ruth. Isso pegará bem em seu julgamento. Talvez você consiga sair da prisão em dez anos.
Hawkin sacudiu a cabeça, frustrado.
Início de Nota de Rodapé: Não existe uma pena mínima para homicídio na Inglaterra. Todos os casos de condenação por este crime recebem como pena a prisão perpétua, o que não significa aprisionamento até o fim da vida. Dependendo de certos requisitos, o condenado terá direito à liberdade. Desde 1964 ninguém é executado naquele país. Fim de Nota de Rodapé.
- Você não está ouvindo, George - disse, transformando o nome do detetive em um insulto, pelo tom de desprezo. - Eu não sei onde ela está.
George levantou-se, guardando rapidamente o maço de cigarros em seu bolso.
- Faça como quiser, Hawkin. Para mim, tanto faz. Serei promovido, de qualquer maneira, porque conseguiremos condená-lo.
Agora, enquanto olhava os pedestres na rua, todos vivendo suas vidas e ignorantes do drama que se desdobrava ali, desejou sentir-se tão confiante quanto parecera. Afastou-se da janela e desabou em uma cadeira. As acusações já deveriam ter sido lidas a esta hora e Hawkin certamente já teria respondido "inocente" duas vezes, uma para cada um dos crimes.
Stanley esperaria que os jurados se acomodassem e, então, faria a declaração de abertura para a acusação. George achava que este era o momento mais crucial em qualquer julgamento e acreditava que as pessoas se impressionavam mais com o que ouviam no início, quando ainda estavam descansadas e mais receptivas à persuasão. Se o advogado da acusação fizesse seu discurso inicial cheio de convicção e declarasse o que pretenderia provar como se já fosse fato demonstravelmente incontroverso, a defesa teria pela frente uma longa e penosa jornada. George tinha plena confiança na capacidade de Stanley para fazer isso. Esperava ter de apresentar suas provas apenas no segundo dia do julgamento, mas não conseguia ficar longe do tribunal.
Só desejava que Clough aparecesse logo. Então, pelo menos teria alguém com quem dividir sua inquietação.
- Meritíssimo - disse Desmond Stanley, levantando-se. - Venho a este tribunal em nome do diretor do Ministério Público. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele ainda é acusado de, em 11 de dezembro de 1963 ou próximo dessa data, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
Stanley fez uma pausa, para permitir que se assimilasse a gravidade das acusações. O tribunal estava em silêncio; era como se todos tivessem parado de respirar, para ouvir melhor a voz sonora do advogado.
"Senhoras e senhores do júri, Philip Hawkin mudou-se para Scardale no verão de 1962, após a morte de seu tio. Ele herdou um patrimônio substancial: todo o vale, consistindo de terras férteis, muitas cabeças de ovelhas e gado, o próprio Solar Scardale e as oito casas que formam a aldeia de Scardale. Todos que vivem e trabalham em Scardale o fazem unicamente sob sua bênção, o que os senhores deverão ter em mente quando ouvirem os testemunhos de seus inquilinos e empregados. É preciso coragem e desprendimento para alguém nessas condições vir depor como testemunha da acusação.
"Pouco tempo depois de chegar a Scardale, Philip Hawkin começou a demonstrar interesse por uma das mulheres da aldeia, Ruth Cárter. A senhora Cárter enviuvara seis anos antes e tinha uma filha, Alison, desse casamento. Alison estava com doze anos na época. Os senhores deverão considerar, enquanto ouvirem nossas testemunhas e verificarem nossas provas, se o interesse principal de Hawkin era pela mãe ou pela filha. Pode ser que ele tenha tentado afastar suspeitas de seu interesse pervertido por Alison, casando-se com a mãe da menina. Quem teria acreditado se a filha da nova esposa do proprietário de Scardale tivesse acusado seu atormentador? Seja qual for o motivo, o acusado assediou intensamente a senhora Cárter, até convencê-la a desposá-lo.
"Nós afirmamos que, em algum ponto após as bodas, Hawkin começou a molestar sua enteada sexualmente. Os senhores verão provas fotográficas de natureza sórdida, que não apenas demonstram a corrupção da garota, mas também provam, além de qualquer dúvida, que Philip Hawkin é culpado do estupro de Alison Cárter, do modo mais calculado e revoltante.
"A Coroa pretende mostrar que Alison foi vítima de crueldades adicionais por um homem que tinha o dever de cuidar dela como um pai. Talvez nunca venhamos a conhecer o motivo de Hawkin para silenciá-la para sempre. Talvez ela ameaçasse revelar aquelas práticas bestiais para a mãe ou para alguma autoridade; a garota pode ter-se recusado a continuar cooperando com suas exigências terríveis ou, ainda, Hawkin pode ter simples' mente perdido o interesse e desejado livrar-se dela, para poder abusar de outra criança. Como eu disse, talvez nunca venhamos a saber. Mas o que pretendemos provar é que, seja qual for o motivo, Philip Hawkin raptou Alison Cárter sob ameaça de arma de fogo, abusou sexualmente da menina pela última vez e, então, a matou.
"Na tarde de 11 de dezembro do ano passado, Alison Cárter saiu da casa de sua família para dar uma caminhada com sua cadela, Shep, ao voltar da escola. Estamos convictos de que Philip Hawkin seguiu-a até o matagal próximo, forçando-a a acompanhá-lo. A cadela foi encontrada mais tarde, amarrada em uma árvore e com o focinho fechado com esparadrapo, idêntico àquele comprado por Hawkin na semana anterior, em uma farmácia próxima.
"Depois, Hawkin levou-a para um local isolado, uma caverna em uma mina desativada, cuja existência era desconhecida de todos os outros habitantes no vale, exceto por um deles. A caminho, enquanto passava por outra parte do matagal, Alison conseguiu livrar-se e ocorreu uma luta física. Ela bateu a cabeça contra uma árvore durante a briga e, então, Hawkin conseguiu transportá-la até a caverna. Apresentaremos provas laboratoriais que confirmarão nossas asserções. Após levá-la para este local isolado, a salvo de olhos e ouvidos bisbilhoteiros, ele a estuprou com brutalidade mais uma vez. Depois, matou-a, escondendo o corpo em outro lugar, posteriormente. Embora ainda não tenhamos encontrado o corpo de Alison, isso não é de todo surpreendente, já que o calcário nas adjacências de Scardale encontra-se repleto de sistemas de cavernas subterrâneas e caldeirões. Entretanto, Hawkin não teve tempo de voltar e eliminar o resto dos indícios de sua presença na mina, já que ao chegar em casa na hora do chá, a caçada por sua enteada já havia começado.
"Sabemos, com certeza, que foram feitos disparos naquela caverna, por uma arma que depois foi encontrada na propriedade de Philip Hawkin, em um anexo trancado que ele usava como laboratório para suas fotografias. Sabemos que uma camisa pertencente a Philip Hawkin estava muito manchada de sangue, que não era de seu tipo. Os exames da perícia não contradizem a conclusão convincente de que Hawkin assassinou Alison Cárter.
"Temos provas abundantes sustentando nossas alegações, que pretendemos demonstrar neste tribunal. Com a permissão de Vossa Excelência, gostaria de chamar minha primeira testemunha."
Sampson concordou, dizendo:
- Por favor, prossiga, senhor Stanley.
- Obrigado. Chamo a senhora Ruth Cárter.
O silêncio que havia na plateia foi rompido por uma onda de murmúrios. A única ilha de silêncio era entre o contingente de rostos impenetráveis dos habitantes de Scardale. Todos os adultos que não haviam sido requisitados como testemunhas estavam ali, sentindo-se desconfortáveis em suas roupas de domingo, determinados a terem justiça para a morte de Alison.
Ruth Cárter atravessou o tribunal olhando fixamente à frente. Nem por uma vez ela cedeu à tentação de olhar para seu marido. Vestia um conjuntinho de duas peças, com a gola branca da blusa sendo o único alívio na escuridão de seus trajes, e carregava uma bolsinha preta de mão, que agarrava apertada entre os dedos enluvados. Ao chegar ao reservado das testemunhas, posicionou-se com cuidado, de modo a não vislumbrar Hawkin sequer por acaso, e prestou o juramento sem vacilar, em voz baixa e clara. Stanley enxugou os olhos. Fitou-a, muito sério, fazendo-lhe perguntas rotineiras sobre identidade e relacionamento com o réu e, depois, foi ao ponto:
- A senhora se lembra da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro do ano passado?
- Nunca esquecerei aquele dia - disse simplesmente.
- Pode contar aos magistrados o que aconteceu naquela data?
- Minha filha Alison chegou da escola e entrou na cozinha, onde eu preparava o chá da tarde, mas logo a seguir saiu para passear com sua cadela. Ela fazia isso sempre, a menos que o tempo estivesse ruim demais. Alison gostava de ficar na rua um pouco, já que passava quase o dia inteiro dentro da sala de aula. As últimas palavras que a ouvi dizer foram: "Nos vemos daqui a pouco, mamãe." Não a vi mais. Ela não voltou. - Ruth olhou para os juízes. - Tenho vivido no inferno desde então.
Com gentileza, Stanley guiou-a na narrativa dos acontecimentos daquela tarde - sua busca desesperada de porta em porta na aldeia, seu apelo angustiado à polícia e a chegada das autoridades ao solar.
- Qual foi a reação de seu marido à ausência de Alison? Ruth apertou os lábios antes de responder:
- Ele não levou a sério. Ficou dizendo que Alison estava fazendo aquilo de propósito para nos assustar, para que nos sentíssemos tão contentes ao vê-la chegar a ponto de permitirmos que fizesse o que bem entendesse.
- Ele concordou em chamar a polícia?
- Não, mostrou-se contrário à ideia. Disse que não havia necessidade e que nada de ruim poderia acontecer à minha filha em Scardale, já que Alison conhecia cada pedaço de terra e todos os que moram lá. - Sua voz tremeu e ela pegou um lencinho branco de dentro da bolsa preta. Stanley esperou, enquanto Ruth enxugava os olhos e assoava o nariz.
- Seu marido demonstrava algum ressentimento por sua dedicação à sua filha? - indagou Stanley. - Quero dizer, de um modo geral.
- Sempre achei que não. Pensava que ele, sim, mimava-a demais, dando-lhe de presente um toca-discos caro e indo a Buxton todas as semanas para comprar-lhe os últimos lançamentos de músicas. Ele gastou uma fortuna decorando o quarto dela... mais que na decoração de nosso quarto. Sua explicação era que tentava compensá-la pelo que não recebera até nos casarmos, e eu fui estúpida o bastante para acreditar nisso.
Stanley deixou que as palavras da testemunha fossem assimiladas.
- E agora, o que a senhora acha?
- Acho que ele estava comprando o silêncio de minha filha. Eu deveria ter prestado mais atenção às reações de Alison a ele.
- E como sua filha reagia?
Ruth suspirou e olhou para o chão.
- Ela nunca gostou dele. Sempre evitava ficar sozinha com ele, só agora me dou conta disso. Andava tristonha nos últimos tempos, e nunca havia sido assim, embora todos dissessem que era a mesma de sempre, quando estava longe de casa. Na época, pensei que sua tristeza era por saudade do pai e por perceber que ninguém poderia substituí-lo, mas estava apenas enganando a mim mesma. - Ela ergueu os olhos e fitou o juiz, suplicante. - Achei que estava fazendo o melhor, para mim e para ela, ao me casar novamente. Pensei que, com o tempo, tudo se ajeitaria.
- A senhora sabia que seu marido fotografava Alison?
- Ah, sim - disse, com amargura. - Ele sempre pedia-lhe para posar. Mas como é esperto, na maior parte do tempo era tudo muito inocente e sempre em público. Alison junto às vacas ou perto do rio. Assim, jamais questionei os outros momentos em que ele a levava a um dos estábulos, ou quando dizia que faria uma sessão com ela enquanto eu estivesse na cidade, fazendo compras. - Ela pousou uma das mãos na face, como que estarrecida com o que dizia. - Alison tentou contar-me o que estava acontecendo, mas eu só ouvia as palavras, não o que estava por trás. Ela me disse algumas vezes, que odiava as sessões e não gostava de posar para ele. Mas eu lhe dizia para deixar de ser boba, que era o passatempo de seu padrasto, algo que podiam fazer juntos.
Suas palavras caíram como pedras. Durante o depoimento da esposa, Hawkin apenas sacudia a cabeça, como se perplexo e confuso por ouvi-la contar tais coisas a seu respeito.
- Prosseguindo, senhora Cárter. Seu marido possuía uma arma de fogo?
- Sim. Ele me mostrou seu revólver, depois que nos casamos. Disse que era de seu pai, uma lembrança dos tempos de guerra, mas, como não tinha licença, ninguém deveria saber de sua existência.
- Havia alguma característica fora do comum na arma?
- O cabo continha desenhos de linhas cruzadas e havia uma lasca no canto inferior, em um dos lados.
Stanley anotou algo e, depois, continuou:
- Onde a arma era guardada?
- Em seu estúdio, em uma caixa de metal fechada a chave.
- A senhora viu esta caixa recentemente?
- A polícia encontrou-a, durante buscas no estúdio no dia em que o prenderam. Mas estava vazia.
- Será que a senhora Cárter poderia ver a prova... - Stanley remexeu em seus papéis. - A prova número 14?
O auxiliar de tribunal entregou a Webley a Ruth, etiquetada.
- É esta - disse ela. - A lasca do cabo está aqui embaixo, como afirmei.
Hawkin franziu a testa, olhando brevemente para seu advogado, Rupert Highsmith, que sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente.
Stanley avançou para a descoberta da camisa e do revólver no laboratório fotográfico de Hawkin, guiando Ruth na verificação das provas com cortesia e paciência. Finalmente, ele pareceu chegar ao fim de suas perguntas, mas parou quando já se encaminhava para seu assento, como se recordasse subitamente algo.
- Mais uma coisa, senhora Cárter. A senhora pediu, alguma vez, que seu marido lhe comprasse esparadrapo?
Ruth olhou-o como se o advogado tivesse enlouquecido.
- Esparadrapo? Quando precisamos de esparadrapo, compramos da caminhoneta.
- Que caminhoneta?
- A caminhoneta que vai a Scardale uma vez por semana, vendendo miudezas. Nunca pedi que ele comprasse esparadrapo.
- Obrigado. Não tenho mais perguntas, mas a senhora deve aguardar para ver se meu douto colega deseja indagar-lhe algo. - Ele sentou-se.
O relógio da prefeitura dera as doze badaladas do meio-dia muito antes de Stanley terminar com sua inquirição, de modo que Sampson recostou-se em sua cadeira e disse:
- Faremos um recesso agora. Reiniciaremos às catorze horas.
Antes mesmo que a porta se fechasse após a saída do juiz, Hawkin já era retirado do tribunal. Ao lançar um olhar para a esposa sobre o ombro, sua máscara de imperturbabilidade finalmente caiu, revelando um ódio profundo por ela. Highsmith flagrou aquele olhar e suspirou, desejando que houvesse outro modo de exercer suas habilidades plenamente, mas infelizmente não havia nada mais difícil e fascinante que defender alguém que ele sabia ser culpado. Às vezes, perguntavam-lhe como se sentia ajudando homicidas a escaparem da punição. Nessas ocasiões, ele sorria e dizia que era um erro confundir lei com moralidade. Afinal, era tarefa da acusação provar que o réu era culpado - não do advogado de defesa.
Depois do almoço, ele entrou disposto a causar tanto dano quanto pudesse à causa da promotoria. Não chegou sequer a demonstrar amabilidade com Ruth. Com expressão rígida, foi direto ao âmago do caso:
- Já foi casada antes, senhora Hawkin? - A promotoria poderia ter optado por obscurecer seu relacionamento com o réu, mas ele o usaria contra ela, como uma arma.
Ruth franziu a testa.
- Não respondo mais por este nome - disse com frieza, mas sem desafiá-lo.
As sobrancelhas de Highsmith ergueram-se e ele voltou-se para o júri.
- Mas este é seu nome legal, não é? É ou não é esposa de Philip Hawkin?
- Para minha vergonha, sou - respondeu Ruth. - Mas escolhi não ser lembrada disso e agradeceria se o senhor me fizesse a gentileza de me chamar de senhora Cárter.
O advogado assentiu.
- Obrigado por deixar tão clara sua posição, senhora Cárter. Agora, talvez a senhora pudesse responder à minha pergunta. Foi casada antes de prometer amar, honrar e obedecer ao senhor Hawkin?
- Enviuvei quando Alison estava com seis anos.
- Assim, presumo que a senhora sabe a que me refiro quando falo sobre uma vida conjugal plena.
Ruth enviou-lhe um olhar hostil.
- Não sou estúpida. E fui criada em uma fazenda.
- Responda à pergunta, por favor - pediu Highsmith, com voz cortante.
- Sim, sei a que o senhor se refere.
- E a senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com seu primeiro marido?
- Sim.
- E então casou-se com Philip Hawkin. A senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com o senhor Hawkin?
Ruth encarou-o, ruborizada.
- Ele se dispunha a isso, mas não com a frequência com a qual eu estava acostumada - disse, tremendo levemente, com repulsa.
- Assim, havia algo anormal no apetite sexual de seu marido?
- Como eu disse, seu interesse não era muito grande, pelo menos em comparação com meu primeiro marido.
- Que, naturalmente, era muito mais jovem que o senhor Hawkin. Diga-me: a senhora algum dia viu seu marido em alguma posição comprometedora com Alison?
- Não entendi a pergunta.
Highsmith estava impressionado. Ela aguentava muito bem a pressão, melhor que imaginara. A maioria das mulheres de sua classe sentia-se tão intimidada e inferiorizada por sua presença atraente que acabava por ceder bem depressa, dando-lhe o que desejava ouvir quase que imediatamente. Ele balançou a cabeça e lançou-lhe um sorriso condescendente.
- Tenho certeza de que entendeu, senhora Cárter. O senhor Hawkin visitava sua filha no quarto tarde da noite?
- Não que eu soubesse.
- Ele entrava no banheiro quando ela estava lá?
- Claro que não.
- Ele alguma vez a colocou sentada sobre seus joelhos?
- Não, Alison era grande demais para isso.
- Em resumo, portanto, a senhora nunca viu nem ouviu nada que causasse a mínima suspeita sobre o relacionamento de seu marido com sua filha. - O tom era tão definitivamente o de uma afirmação que Ruth sequer pareceu considerar uma resposta às implicações do que o advogado dizia. Highsmith deu uma rápida olhada nos documentos que segurava. Levantou a cabeça e inclinou-a para um lado.
- Agora, vamos à arma. A senhora disse, aqui, que seu marido tinha uma arma de fogo, que mantinha em uma caixa em seu estúdio. A senhora contou a alguém sobre esta arma? A algum parente ou amigo?
- Ele disse que eu deveria manter a arma em segredo. Fiz o que mandou.
- Portanto, temos apenas sua palavra sobre a existência da arma, para começo de conversa. - Ruth abriu a boca para falar, mas ele a atropelou: - E, é claro, foi a senhora quem entregou a arma à polícia, de modo que teve muito tempo para memorizar qualquer característica marcante neste revólver que, de outro modo, poderia ser facilmente confundido com outro. Assim, temos apenas sua palavra para fazermos qualquer conexão entre seu marido e a arma, não é?
- Eu não estuprei minha filha, senhor, e também não a matei - disse Ruth, entredentes. - Assim, não tenho necessidade de mentir.
Highsmith fez uma pausa, permitindo que sua expressão mudasse e se transformasse em clara solidariedade:
- Mas a senhora deseja culpar alguém pelo que aconteceu, não é? Mais que qualquer coisa, deseja acreditar que sabe o que aconteceu com sua filha, e quer colocar a culpa em alguém. Por esta razão, mostra-se tão disposta a colaborar com essa história que a polícia tramou. Sua intenção é ter paz de espírito. Assim, precisa culpar alguém.
Stanley levantou-se, objetando, mas era tarde demais. Highsmith já murmurara "Não tenho mais perguntas" e sentara-se. O mal estava feito. Sampson fitou Highsmith com uma carranca.
- Senhor Highsmith, não permitirei que use a inquirição às testemunhas como desculpa para fazer seus pronunciamentos. O senhor terá sua chance para expressar suas opiniões ao júri. Por favor, limite-se a isto. Agora, senhor Stanley, estou certo ao pensar que sua próxima testemunha é a principal testemunha da polícia, o detetive-inspetor Bennett?
- Sim, meritíssimo.
- Penso que seria melhor começarmos com este testemunho amanhã de manhã. Este tribunal precisa atender a causas civis ainda hoje.
- Como desejar, meritíssimo - disse Stanley, abaixando a cabeça em deferência.
No banco da imprensa, Don Smart traçou uma linha que cruzava a folha, com um floreio. Já tinha muito material para boas manchetes. E amanhã certamente veria George Bennett colocando o laço em torno do pescoço nojento de Hawkin. A porta mal se fechara às costas do juiz quando ele levantou-se e rumou para o telefone mais próximo.
Clough ainda não havia aparecido no fim da tarde, embora um meirinho tivesse lhe trazido uma mensagem telefónica do sargento Lucas, que dizia: "Clough teve questões urgentes a tratar. Diz que o verá amanhã em Derby, antes do reinício do julgamento." George imaginou, por um instante, em que o detetive estaria metido, concluindo que provavelmente era algo a ver com outro caso. Desde a detenção de Philip Hawkin, os dois haviam tido muito trabalho para ocupá-los durante qualquer momento que lhes sobrava, durante a construção do caso de Alison Cárter.
George emergiu da ante-sala quando ouviu o burburinho que lhe disse que os trabalhos estavam encerrados até o dia seguinte. Viu Ruth de relance, cercada por amigos e parentes, mas fez questão de não olhar ninguém nos olhos. Agora que o julgamento começara, era importante que as testemunhas não trocassem qualquer palavra antes de serem convocadas a oferecer seus depoimentos. Assim, ele moveu-se contra o fluxo de pessoas que saíam e entrou no salão do tribunal. Highsmith e seu assistente já haviam saído, mas Stanley e Pritchard ainda estavam em suas mesas, com as cabeças muito próximas, em uma profunda discussão.
- Como foi? - indagou George, sentando-se em uma cadeira perto de pritchard.
- Desmond foi maravilhoso - disse Pritchard, com entusiasmo. - Fez um tremendo discurso de abertura. O júri estava hipnotizado. Highsmith nem mesmo falou conosco na hora do almoço. Você teria ficado impressionado, George.
- Muito bem - disse George. - E como estava a senhora Cárter? Os dois advogados trocaram olhares.
- Um pouco emocional - disse Pritchard. - Ela mostrou-se nervosa algumas vezes, no reservado das testemunhas. - Ele juntou o resto de seus papéis e enfiou-os em uma pasta de papelão.
- Isso é vantajoso para nós - comentou Stanley. - Ainda assim, não sinto prazer nenhum em levar uma mulher às lágrimas.
- Ela tem vivido no inferno - disse George. - Não consigo imaginar a sensação de descobrir estar casada com o homem que estuprou e matou sua filha.
Pritchard concordou:
- Ela está se saindo bem, considerando as circunstâncias. É uma boa testemunha. Não hesita e sua teimosia e firmeza fazem com que Highsmith pareça um provocador malvado, o que não é bem-visto pelos jurados.
- Que tipo de defesa ele planeja? Vocês sabem? - perguntou George, levantando-se para permitir que Pritchard e Stanley pegassem suas pastas e deixassem o tribunal para trocarem de roupa.
- Difícil imaginar o que possa fazer e ainda ter credibilidade, a menos que tente convencer o júri de que a polícia preparou uma armadilha para seu cliente.
Stanley concordou:
- E isto seria um erro grave, acho. O júri britânico, como o público britânico, não gosta de ataques à polícia. - Ele sorriu. - Eles vêem policiais da mesma forma que vêem cães labradores: leais, nobres, bons com as crianças e protetores e amigos dos seres humanos. Apesar de provas em contrário, eles se recusam a admitir que policiais possam ser corruptos, Maliciosos ou falsos, porque se os virem assim, terão de admitir que estamos à beira da anarquia. Assim, ao atacá-lo, Highsmith estaria empregando uma estratégia muito arriscada.
- Se não houver alternativa, é o que fará - comentou Pritchard, secamente. - Ele usará tudo que tem. Pode ser que tenhamos apenas provas circunstanciais mas são tantas que Highsmith precisa de uma teoria contrária muito coerente para nos prejudicar. Não basta apenas oferecer explicações alternativas para cada uma de nossas provas.
George sentiu-se reconfortado pela competência tranquila dos dois advogados.
- Espero que tenham razão.
- Nós o veremos no reservado das testemunhas amanhã - disse Pritchard. - Vá para casa, para sua adorável esposa, e tenha uma boa noite de sono, George.
Viu-os sair por uma porta lateral e, então, seguiu lentamente até a saída do tribunal vazio. A última coisa que desejava era cruzar o verde luxuriante sob a noite de Derbyshire. Gostaria de encontrar um bar silencioso e embriagar-se, mas tinha uma esposa com quase sete meses de gravidez em casa, e ela precisava vê-lo forte, não vacilante. Com um suspiro, George catou as chaves do carro de seu bolso e voltou ao mundo.
O julgamento
Ao entrar na sala de testemunhas, no segundo dia do julgamento de Philip Hawkin, George encontrou Tommy Clough atirado displicentemente em uma cadeira, com uma garrafa de limonada aos seus pés, um cigarro no canto da boca e o Daily News aberto no colo. Ele cumprimentou seu chefe com um aceno e mostrou-lhe o jornal.
- Ruth Cárter parece ter causado boa impressão nesses abutres. Achei que a transformariam em bode expiatório. Você sabe, algo como "A Mulher que se Casou com um Monstro" - disse Clough, em tom dramático.
- Também estou surpreso por livrarem a senhora Cárter de suas maldades - admitiu George. - Esperava que dissessem que ela deveria ter sabido como Hawkin era, ou o que ele fazia com Alison. Como você, eu também achei que a culpariam, mas suponho que viram por si mesmos o estado em que a pobre se encontra. Este não é o tipo de mulher que fecharia os olhos e seria conivente com o que o desgraçado fazia com sua filha.
- Tomei café da manhã com Pritchard no hotel chique em que ele está hospedado - confidenciou Clough. - Ele disse que ela não poderia ter sido melhor testemunha se a tivesse treinado durante meses sobre o que dizer. Hoje você é que terá de se sair bem, George.
- Café da manhã com o advogado? Tommy, você está se misturando com os grã-finos. Por falar nisso, aonde você foi ontem?
Clough endireitou-se na cadeira, fechando o jornal, dobrando-o e jogando-o no chão.
- Achei que nunca iria perguntar. Recebi um telefonema domingo à noite, bem tarde. Lembra-se do sargento Stillman?
- De St. Albans? - George tornou-se subitamente alerta, inclinando-se para a frente como um cão forçando a guia.
- Ele mesmo. Ele ligou para me contar que o senhor e senhora Wells haviam voltado da Austrália. Fazia duas horas que haviam chegado, para ser exato. Assim, entrei no carro e dirigi direto até lá. Às oito da manhã de ontem, eu já estava batendo na porta da frente da casa deles. Não ficaram muito contentes por me verem, mas obviamente sabiam por que eu estava ali.
George assentiu, muito sério, e jogou-se em uma cadeira.
- A mãe de Hawkin.
- Pois é. Como pensávamos, ela devia ter o endereço do casal na Austrália o tempo todo. De qualquer modo, banquei o inocente. Expliquei que a descrição da Webley que fora roubada de sua casa correspondia a uma arma usada em um crime ocorrido em Derbyshire. Cheguei a comentar que estávamos impressionados por sua descrição e de como esta tornava muito provável que a arma do crime fosse a sua.
George sorriu. Podia imaginar a sutil manipulação de Clough, colocando o senhor Wells contra a parede, sem escapatória.
- Assim, é claro que, quando você lhe mostrou a fotografia, ele obrigou-se a identificar sua arma?
Clough deu-lhe um amplo sorriso.
- Isso mesmo. De qualquer modo, tive de falar sobre Hawkin e sobre o julgamento esta semana. Então, Wells saiu pela tangente. Disse que não poderia testemunhar contra um amigo e vizinho, que cometemos um engano com Hawkin, blablablá.
George acendeu um cigarro.
- E o que você fez?
- Eu praticamente virara a noite acordado, de modo que não estava com humor muito gentil. Assim, eu o prendi por obstrução à lei.
- Você o prendeu? - perguntou George, assustado.
- Claro que sim. Ele estava me irritando - disse Clough, com ares de dignidade ferida. - De qualquer modo, antes que eu pudesse acabar meu discurso, ele concordou em testemunhar, em vir a Derby comigo. Portanto, concordamos em esquecer que eu lhe dera voz de prisão. Depois, ele serviu um conhaque à esposa, já que a coitada parecia à beira de um desmaio, pegou seu casaco e chapéu e me acompanhou, que nem um carneirinho.
George sacudiu a cabeça, com um misto de irritação e admiração.
- Um dia, Tommy, um dia... Bem, e onde ele está agora?
- Em um quarto muito confortável no hotel Lamb and Flag. Tomei um depoimento completo ontem, quando chegamos aqui, e o senhor Stanley quer ouvi-lo no tribunal, assim que o julgamento reiniciar. - Clough abriu um largo sorriso.
- Antes de mim?
- Stanley não quer adiar o depoimento de Wells. Não quer correr o risco de a senhora Wells entrar em contato com a mãe de Hawkin e alertála de que o marido servirá como testemunha no julgamento. Ele quer pegar Highsmith desprevenido, se puder.
- Mas a mãe de Hawkin está aqui para presenciar o julgamento do filho.
- Sim, mas eu aposto meu último centavo que a senhora Wells saberá onde perguntar, para descobrir o paradeiro da amiga.
- Highsmith se oporá a uma testemunha de última hora.
- Sei disso, mas Stanley diz que o juiz permitirá, já que Wells estava viajando. - Clough levantou-se e espanou as cinzas de cigarro que caíram em seu terno cinzento de flanela. Ele ajeitou sua gravata e piscou um olho para George.
- Assim, é melhor eu entrar e ver como ele se sairá.
Richard Wells, funcionário público aposentado, já fizera seu juramento quando Clough entrou discretamente no tribunal. Não parecia o tipo que participaria em uma guerra que, como lembrança, lhe deixaria uma Webley, pensou o sargento. Se já houvera alguém feito sob medida para funções burocráticas em tempos de guerra, era Richard Wells. Terno cinza, cabelos grisalhos e gravata cinza, até mesmo seu bigode parecia tímido e sem graça contra o rubor espantoso da pele que não se dera bem com o forte sol australiano.
Hawkin estava inclinado para a frente em seu reservado, com duas linhas verticais de preocupação visíveis entre suas sobrancelhas. Clough sentiu um prazer infantil ao ver tal demonstração óbvia de temor. Stanley iniciou com a parte formal de sua inquirição, indagando os dados pessoais de Wells e, então, disse em tom descontraído:
- Há alguém nesta sala que o senhor já tenha visto antes?
Wells acenou na direção do reservado.
- Philip Hawkin.
- De onde conhece o senhor Hawkin?
- Sua mãe é nossa vizinha.
- Ele conhecia o interior de sua casa?
- Ele acompanhava sua mãe até nossa casa para jogar bridge à noite, antes de se mudar para Scardale. - Os olhos de Wells iam do advogado para o réu. Seu desconforto com a situação era óbvio, apesar dos modos informais de Stanley.
- O senhor possuía uma Webley calibre .38, não?
- Sim.
- Chegou a mostrá-la ao senhor Hawkin algum dia?
Clough acompanhou o olhar angustiado de Wells, que se fixou em um ponto da plateia, onde estava a idosa mãe de Hawkin. Wells respirou fundo e resmungou:
- Talvez eu tenha mostrado.
- Pense bem, senhor Wells - a voz de Stanley era gentil. - O senhor mostrou ou não mostrou a Webley ao senhor Hawkin?
Wells engoliu em seco.
- Sim - afirmou.
- Onde o senhor guardava a arma?
Wells relaxou visivelmente, com os ombros saindo de sua posição rígida e defensiva.
- Em uma gaveta trancada na escrivaninha da sala.
- E foi desta gaveta que o senhor a tirou, ao mostrá-la ao senhor Hawkin?
- Deve ter sido - disse, arrastando cada palavra.
- Então o senhor Hawkin sabia onde a arma era guardada? Wells baixou o olhar.
- Suponho que sim - murmurou. O juiz inclinou-se para a frente.
- O senhor deve falar claramente. Os jurados precisam escutar suas respostas.
Stanley sorriu.
- Obrigado, meritíssimo. Agora, senhor Wells, quer nos contar o que aconteceu com a arma?
Wells apertou muito os lábios por um momento e, então, respondeu em voz baixa:
- Foi roubada. Em um arrombamento. Pouco mais de dois anos atrás.
Estávamos viajando, em férias.
- Deve ter sido bem ruim voltar de férias e descobrir que sua casa foi invadida. Tiveram um prejuízo muito grande? - indagou Stanley, solidário.
Wells negou com a cabeça, dizendo:
- Um relógio de bolso, de prata. Um relógio de pulso de ouro e a arma. Só foram até a sala. O relógio de ouro estava na gaveta com o revólver.
- O senhor ofereceu uma descrição muito boa da arma à polícia. Pode lembrar-se do que a tornava tão diferente, além do número de série?
Wells pigarreou e alisou o bigode. Seus olhos voltaram-se novamente para Hawkin, cuja ruga entre as sobrancelhas aprofundara-se.
- O cabo estava lascado, no canto inferior - disse, com as palavras atropelando-se.
Stanley voltou-se para o auxiliar de tribunal:
- Teria a gentileza de mostrar a prova número 14 ao senhor Wells?
O auxiliar pegou a Webley da mesa onde estavam as provas e atravessou a sala, até onde estava Wells. Ele virou a arma, para que a testemunha pudesse ver os dois lados do cabo trabalhado.
- Não tenha pressa - disse Stanley, suavemente.
Wells olhou novamente para o público. Clough viu a expressão de choque no rosto da mãe do réu ao perceber a verdade.
- É o meu revólver - disse ele, em voz frouxa e sem emoção.
- Tem certeza?
- Sim - disse o homem, com um suspiro. Stanley sorriu.
- Obrigado por vir até aqui hoje, senhor Wells. Agora, por favor, permaneça onde está. Talvez meu nobre colega Highsmith tenha algumas perguntas a lhe fazer.
Isto seria interessante, pensou Clough. Não havia quase mais nada que Highsmith pudesse perguntar que não fosse prejudicar ainda mais seu cliente. Hawkin, que estivera escrevendo desesperadamente nos últimos minutos, passou um bilhete para o advogado ao seu lado, que o examinou rápida mente e então o entregou ao assistente de Highsmith, que o colocou na frente deste.
O advogado da defesa estava de pé agora, com as linhas agudas de seu rosto suavizada por um sorriso. Ele olhou brevemente para o bilhete e, então começou a interrogar Wells ainda mais gentilmente do que Stanley fizera:
- Quando sua casa foi arrombada, o senhor estava de férias, não é?
- Sim - disse Wells, cauteloso.
- O senhor deixou uma chave com algum dos vizinhos? Wells levantou a cabeça, com um brilho de esperança no olhar.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave. Para emergências.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave - repetiu Highsmith, com os olhos varrendo o júri para garantir que todos haviam compreendido o que pretendia. - A polícia tirou digitais em sua casa, após o arrombamento?
- Eles tentaram, mas disseram que o invasor usava luvas.
- Chegaram a dizer se tinham algum suspeito?
- Não.
- Chegaram a dizer-lhe algo que pudesse sugerir que suspeitavam do senhor Hawkin?
Wells ainda dizia "não" quando Stanley levantou-se.
- Meritíssimo - protestou. - Meu douto colega não apenas está conduzindo a testemunha, mas tenta levá-lo pela trilha dos boatos.
Sampson assentiu.
- Membros do júri, queiram desconsiderar a última pergunta e a resposta a ela. Senhor Highsmith?
- Obrigado, meritíssimo. Senhor Wells, chegou a suspeitar, algum dia, que o réu tivesse arrombado sua casa?
Wells negou com a cabeça.
- Nunca. Por que Phil faria algo assim? Éramos seus amigos.
- Obrigado, senhor Wells. Não tenho mais perguntas para lhe fazer.
Então, é para este lado que o vento está soprando, pensou Clough, saindo da sala do tribunal e entrando na das testemunhas à frente do oficial de justiça. George saltou da cadeira, com expressão de interrogação ansiosa.
- A defesa não questionou a prova. Acho que pretendem alegar que Hawkin comprou a arma em um bar, sem saber que havia sido roubada de Wells.
George suspirou.
- E eu a encontrei e usei-a para incriminá-lo. Assim, isso não muda
nada.
- Muda, sim - disse Clough, vibrante. - Liga Hawkin à arma. Pessoas comuns não possuem armas, George, lembra-se?
Antes que George pudesse responder, a porta abriu-se e o oficial de justiça perguntou:
- Detetive-inspetor Bennett? Pode entrar agora.
Foi uma das caminhadas mais longas de sua vida. Ele podia sentir os olhos que o acompanhavam e, ao chegar ao reservado das testemunhas, virou-se deliberadamente e olhou para o rosto impassível de Philip Hawkin. Esperava que Hawkin sentisse que estava olhando para o anjo da vingança.
Stanley esperou, enquanto George prestava juramento. Depois, levantou-se e secou delicadamente os olhos úmidos.
- O senhor pode declarar seu nome e ocupação para nossos registros, inspetor?
- Sou George Bennett, detetive-inspetor do distrito de Derbyshire, em Buxton.
- Eu gostaria de levá-lo ao início deste caso, inspetor. Quando ouviu falar pela primeira vez no desaparecimento de Alison Cárter?
Subitamente, George viu-se de novo na sala do pelotão naquela noite de dezembro, ouvindo o sargento Lucas dizer que uma menina sumira de Scardale. Ele começou seu depoimento com a clareza de um homem que consegue rever os acontecimentos do passado como se tivessem ocorrido recentemente. Stanley quase sorriu, aliviado, por ter uma testemunha da polícia com tamanha competência. Em sua experiência, era sempre uma loteria quando se tratava de agentes da lei. Às vezes, confiava menos neles que nas pessoas mais instáveis que se sentavam no reservado das testemunhas. Contudo, George Bennett era atraente e eficiente. Parecia e soava tão honesto quanto um astro de cinema encenando um policial decente.
Stanley não perdeu tempo e, ao final da manhã, já havia coberto o relato inicial sobre o desaparecimento de Alison, a primeira entrevista de George com a mãe e o padrasto da menina, as buscas preliminares e a descoberta da cadela no matagal.
Depois, por mais uma hora e meia durante a tarde, ele conduziu George meticulosamente pelas descobertas mais importantes da investigação o sangue e os fiapos de roupas no arvoredo; o livro no estúdio de Hawkin, com detalhes da antiga mina dentro do rochedo; as roupas manchadas e as cápsulas na mina de chumbo; a camisa ensanguentada e o revólver; as horríveis fotografias e negativos no cofre.
- Não é nada comum acusar um homem de homicídio quando não há um corpo - disse Stanley, no fim da tarde.
- Sim, senhor. Mas neste caso, achamos que as provas eram tão convincentes que não havia outra conclusão possível.
- E é claro que existem outros casos em que homens foram considerados culpados de homicídio na ausência de um corpo. Inspetor Bennett, dada a gravidade das acusações, o senhor ainda tem alguma dúvida de que agiu certo ao indiciar o senhor Hawkin?
- Qualquer um que tenha visto as provas fotográficas do que ele fez com sua enteada quando estava viva saberia que este homem não se detém frente a nada. Portanto, não, não tenho absolutamente nenhuma dúvida. - Pela primeira vez, George deixava transparecer suas emoções, e Stanley estava contente por ver que os jurados pareciam impressionados com sua ardente declaração.
Ele juntou seus papéis e disse:
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.
George achou que nunca desejara tanto um cigarro na vida, enquanto esperava que Rupert Highsmith terminasse de remexer em seus papéis e iniciasse seu ataque. As perguntas de Stanley haviam sido muito bem formuladas e profundas, mas não havia nada para que não tivesse sido bem preparado. Highsmith tentara sugerir ao juiz que deixassem a inquirição para a manhã do dia seguinte, mas Sampson não estava disposto a esperar.
Highsmith encostou-se negligentemente na grade de separação às suas costas.
- Não se esqueça de que está sob juramento, inspetor. Agora, diga sua idade a este tribunal.
- Tenho vinte e nove anos, senhor.
- E desde quando é policial?
- Quase sete anos.
- Quase sete anos - repetiu Highsmith, com admiração. - E já chegou à incrível e invejada posição de detetive-inspetor. Notável. Assim, presumo que não teve muito tempo para ganhar experiência no trabalho com casos graves e complicados.
- Já tive minha parcela desses casos, senhor.
- Mas o senhor faz parte do programa de promoções aceleradas para aqueles que se formaram em Direito, não é? Suas promoções não vieram por causa de seu desempenho brilhante no campo da investigação, mas simplesmente porque tem diploma universitário e prometeram-lhe promoção rápida, não importando se investigasse homicídios ou pequenos furtos em lojas, não é? - Highsmith franziu a testa, como se o pensamento realmente o surpreendesse.
George inspirou fundo e expirou pelo nariz.
- Realmente, entrei na polícia por ter me formado, mas ficou muito claro que se meu desempenho não atendesse a certas expectativas, eu não teria promoções automáticas.
- É mesmo? - Se Highsmith tivesse usado este tom de voz no clube de críquete, George o teria esmagado.
- É mesmo - ecoou e então se calou.
- É bastante incomum um policial tão jovem chefiar uma investigação desta gravidade, não é? - continuou Highsmith, pressionando-o.
- O detetive-inspetor-chefe da divisão estava incapacitado, porque fraturara o tornozelo. No início, não sabíamos que este caso se tornaria tão grave, de modo que o superintendente Martin pediu-me que assumisse o comando. Depois que a situação revelou-se mais séria, era preciso manter a continuidade, em vez de entregar a investigação a alguém do QG, que teria de recomeçar do zero. Estive, durante o tempo todo, sob a supervisão do detetive e inspetor-chefe Carver e do chefe da divisão, o superintendente Martin.
- Antes disso, chegou a envolver-se em um caso de desaparecimento de criança?
- Não, senhor.
Highsmith levantou o olhar e suspirou.
- Já liderou uma investigação de homicídio?
- Não, senhor.
Highsmith franziu a testa, friccionou a ponta de seu nariz com o indicador e disse:
- Corrija-me se eu estiver errado, inspetor, mas esta é a primeira grande investigação criminal que já comandou em toda a sua vida, não é?
- Que comandei, sim, mas eu...
- Obrigado, inspetor. Responda apenas ao que foi perguntado - Highsmith cortou-o com rispidez.
George lançou-lhe um olhar de frustração. Depois, conseguiu puxar de algum lugar em seu íntimo um pequeno sorriso, ao reconhecer que sabia o que o advogado tentava fazer com seu depoimento.
- O senhor interessou-se bastante por este caso, não é verdade?
- Fiz meu trabalho, senhor.
- Mesmo depois que as buscas iniciais foram canceladas, o senhor ainda visitava Scardale várias vezes por semana, não é?
- Sim, algumas vezes por semana. Eu queria que a senhora Cárter tivesse certeza de que o caso ainda estava aberto e que não nos esqueceríamos de sua filha.
- O senhor quer dizer "senhora Hawkin", não é? - O uso do nome de casada de Ruth por Highsmith dirigia-se claramente aos jurados e servia para lembrá-los do relacionamento da mulher com o réu.
George estava preparado para essas provocações, de modo que sorriu.
- Não é de surpreender que ela prefira ser conhecida pelo nome do primeiro marido. Ficamos felizes em acatar esta preferência.
- O senhor chegou a abandonar sua família, incluindo sua esposa grávida, para ir até Scardale na véspera de Natal.
- Não podia parar de pensar em como o desaparecimento de Alison havia afetado o Natal das pessoas em Scardale. Fui até lá com meu sargento para uma breve visita, apenas para marcarmos presença e mostrar que estávamos solidários.
- Para demonstrar solidariedade. Que nobreza de intenção - disse highsmith, condescendente. - O senhor visitava o solar com frequência,
não?
- Fui até lá algumas vezes, sim.
- Conhecia o estúdio?
- Estive lá.
- Quantas vezes, se é que recorda?
- É difícil lembrar exatamente - falou George, encolhendo os ombros. Antes de executarmos o mandado de busca, talvez quatro ou cinco vezes.
- E o senhor chegou a ficar sozinho naquele cómodo?
A questão chegou a George como uma chicotada. Agora estava claro o que Highsmith planejava.
- Apenas muito brevemente.
- Quantas vezes?
- Duas, acho - respondeu George, com cautela.
- E por quanto tempo? Stanley levantou-se rapidamente.
- Meritíssimo, isto deveria ser uma inquirição, mas parece que meu douto colega está tentando pescar alguma coisa com as perguntas à testemunha.
Sampson assentiu.
- Senhor Highsmith?
- Meritíssimo, a promotoria baseia-se maciçamente em provas circunstanciais, algumas das quais foram encontradas no estúdio de meu cliente. Penso que é razoável conceder-me uma oportunidade para determinar que outras pessoas tiveram oportunidade de deixar as provas lá.
- Muito bem, senhor Highsmith, pode continuar - disse o juiz, de mau humor.
- Por quanto tempo o senhor ficou sozinho no estúdio?
- Em uma ocasião, um ou dois minutos, no máximo. Na segunda vez, devo ter ficado lá por cerca de dez minutos, antes da chegada do senhor Hawkin - disse George, com relutância.
- Tempo suficiente - falou Highsmith, aparentemente para si mesmo, enquanto pegava outro bloco de anotações e folheava uma ou duas folhas.
- Pode contar-nos quais são seus passatempos, inspetor? - perguntou afável.
- Passatempos? - Surpreso, George descobriu-se despreparado para a pergunta.
- O senhor ouviu bem.
George olhou para Stanley em busca de ajuda, mas este apenas encolheu os ombros.
- Jogo críquete. Gosto de caminhar. Não tenho tempo para muitos passatempos - afirmou, parecendo tão confuso quanto realmente se sentia.
- O senhor se esqueceu de um - disse Highsmith, com a voz novamente fria. - Aquele com relevância particular neste caso.
- Desculpe-me, mas não sei do que está falando. Highsmith pegou um punhado de cópias fotostáticas.
- Excelência, gostaria que esses documentos fossem incluídos como provas da defesa, números 1 a 5. A prova número 1 é do anuário da Escola Secundária Cavendish para Meninos, do ano de 1951. É o relatório anual do Clube de Fotografia daquela instituição, escrito pelo secretário, George Bennett. - Ele entregou a folha de cima para o auxiliar de tribunal. - As outras provas são do boletim do Clube de Fotografia da Universidade de Manchester, onde o detetive-inspetor Bennett estudou. Elas contêm artigos sobre fotografia escritos por um certo George Bennett. - Highsmith tornou a estender a mão, liberando também essas folhas para o auxiliar de tribunal.
- Inspetor Bennett, o senhor nega que escreveu estes artigos sobre fotografia?
- Claro que não.
- O senhor diria que é especialista em fotografia?
George franziu a testa, consciente da armadilha que o advogado lhe preparava. Negando, pareceria um mentiroso. Admitindo, fatalmente prejudicaria o caso da promotoria.
- Mesmo que na época eu tivesse conhecimentos sobre fotografia, ja estariam desatualizados - disse, com cuidado. - Exceto por fotos que tiro de minha família, não mexo em uma câmera há cinco ou seis anos.
- Mas saberia onde procurar, se quisesse descobrir como forjar fotografias - disse Highsmith.
George era mais esperto que Ruth Cárter quanto às intenções de advogados, e sabia que não deveria deixar nenhuma pergunta sem resposta.
- Não mais que o senhor.
- Fotografias podem ser forjadas, não podem? - insistiu Highsmith.
- Pela experiência que tenho, nem de longe se pareceriam com essas - afirmou George.
Highsmith aproveitou o deslize, surpreendente em alguém como o inspetor:
- Em sua experiência? Está nos dizendo que tem experiência com fotografias falsas?
George fez que não com a cabeça.
- Não, senhor. Eu me referia às tentativas de falsificação que já vi, não que produzi.
- Mas o senhor sabe como se pode falsificar fotografias? George respirou fundo.
- Como já falei, meus conhecimentos de fotografia estão ultrapassados. Qualquer coisa que eu soubesse sobre qualquer aspecto da fotografia provavelmente já se tornou obsoleta pelas mudanças nas técnicas e tecnologia.
- Inspetor, por favor, responda à pergunta. O senhor sabe ou não sabe como as fotografias podem ser manipuladas? - Highsmith parecia irritado. George sabia que isto serviria para fazê-lo parecer vacilante, mas não podia fazer nada para alterar esta impressão, exceto admitir claramente que era um habilidoso falsificador de imagens.
- Tenho algum conhecimento teórico, mas nunca...
- Obrigado - disse Highsmith, alto, cortando-o. - Uma resposta simples já basta. Agora, quanto a esses negativos mostrados pela promotoria como provas. Que tipo de câmera o senhor precisaria para obtê-los?
Sob a borda da mureta do reservado das testemunhas, onde os jurados não poderiam ver, George fechou as mãos com tanta força que suas unhas deixaram meias-luas nas palmas.
- Seria preciso uma câmera portátil. Uma Leica ou Rolleiflex, algo assim.
- O senhor possui uma câmera deste tipo? •
- Faz no mínimo cinco anos que não uso minha Rolleiflex - disse sabendo que parecia estar fugindo pela tangente mesmo enquanto falava.
Highsmith suspirou.
- A pergunta que fiz é se o senhor possui uma câmera dessas, não quando foi a última vez em que a usou, inspetor. O senhor tem uma dessas câmeras? Pode responder apenas com um sim ou não.
- Sim.
Highsmith fez uma pausa e remexeu em suas anotações. Então, levantou a cabeça e perguntou, incisivo:
- O senhor acredita que meu cliente é culpado, não acredita? George voltou a cabeça na direção do júri.
- O que eu acredito não tem importância.
- Mas o senhor acredita na culpa de meu cliente? - insistiu Highsmith.
- Acredito no que as provas me dizem. Portanto, sim, acredito que Philip Hawkin estuprou e assassinou sua enteada de treze anos - disse George, com a emoção transparecendo na voz, apesar de sua intenção de contê-la.
- São dois crimes terríveis - disse Highsmith. - Qualquer homem sensato se sentiria horrorizado e desejaria condenar quem os cometeu. O problema, inspetor, é que não existem evidências sólidas de que algum desses crimes chegou realmente a ser cometido, não é?
- Se não houvesse nenhuma evidência, os magistrados jamais teriam trazido seu cliente a julgamento e não estaríamos aqui hoje.
- Mas há uma explicação alternativa para cada evidência circunstancial que vimos hoje. E muitas destas explicações nos levam diretamente ao senhor. O que nos trouxe aqui hoje foi sua obsessão por Alison Cárter, não concorda?
Stanley levantou-se novamente.
- Meritíssimo, eu protesto. Meu douto colega parece determinado a fazer discursos, em vez de interrogar a testemunha, a lançar difamações em vez de fazer acusações diretas. Se ele tem algo a indagar ao detetive-inspetor Bennett, muito bem. Mas se sua única intenção é despejar calúnias e insinuações no júri deveria calar-se.
Sampson lançou-lhe um olhar irritado.
- Ele não é o único a fazer belos discursos fora de hora, senhor Stanley.
Ele olhou sobre os óculos para o júri, como uma toupeira míope. - Os senhores devem ter em mente que estão aqui para atentar para as provas, de modo que os aconselho a desconsiderarem quaisquer comentários irrelevantes dos advogados. Senhor Highsmith, prossiga, por favor, mas vá direto ao ponto.
- Muito bem, meritíssimo. Inspetor, lembrando-o de responder com afirmação ou negação: o senhor se julga um homem ambicioso?
Stanley interveio novamente:
- Meritíssimo! - exclamou, indignado. - Isto nada tem a ver com a questão que nos importa aqui.
- Tem a ver com a motivação da testemunha - disse Highsmith, áspero. - A defesa sustenta que grande parte das evidências contra meu cliente foi forjada. Portanto, a motivação do inspetor Bennett torna-se uma preocupação para a defesa.
Sampson pensou por um momento e, então, disse:
- Sou obrigado a permitir a questão. George respirou fundo, antes de responder:
- Minha única ambição é contribuir para que a justiça seja feita. Acredito que o corpo de uma menina que foi monstruosamente abusada antes de ser morta ainda está em algum lugar, escondido. Acredito que o homem que fez isso está sentado no banco dos réus. - Highsmith tentava calá-lo, mas ele continuou, sem lhe dar atenção. - Estou aqui para tentar garantir que ele pagará pelo que fez, não para receber uma promoção.
Highsmith sacudiu a cabeça, demonstrando desagrado.
- Sim ou não, foi o que pedi. - Ele suspirou. - Não tenho mais perguntas para a testemunha - disse, com o rosto voltado para o júri e sem encarar o juiz, demonstrando para aqueles que lhe importavam um desdém que sua voz não transmitia.
George saiu do reservado das testemunhas. Não podia mais escapar da visão que tentara deliberadamente evitar durante todo o tempo em que estivera depondo. No olhar que Hawkin lhe enviou brilhava algo semelhante a triunfo. O sorriso que parecia sempre pendurado em seus lábios estava de Volta, e ele se sentava de um modo casual no banco dos réus, como se estivesse em sua cozinha. Com anseio de matá-lo, George marchou em frente, saindo da sala do tribunal e ouvindo, às suas costas, o juiz anunciar o fechamento dos trabalhos daquele dia. Ele apressou-se pelo corredor, rumo ao banheiro. Mergulhou em um dos cubículos, trancou a porta e curvou-se sobre o vaso sanitário, quase tarde demais. O vómito quente respingou na porcelana e o odor azedo subiu ao seu encontro, fazendo-o vomitar novamente.
Ele deu a descarga e encostou-se contra a parede, sentindo o suor frio na face. Por um momento terrível no tribunal, sentira o horror do que as insinuações de Highsmith poderiam causar-lhe. Era preciso, apenas, haver alguns jurados ingénuos com antipatia pela polícia e não apenas Hawkin sairia livre dali, mas afundaria sua carreira ao fazê-lo. Era uma ideia inconcebível, o tipo de coisa que vem à mente em um pesadelo às três da madrugada e que revira os intestinos. Tinha dado seu pescoço à guilhotina neste julgamento. Agora, pela primeira vez, percebia que podia ter-se tornado o agente de sua própria destruição. Não era de admirar que Carver tivesse sido tão magnânimo em sua insistência para que assumisse o caso sozinho. Na verdade, nem era o caso de lhe terem dado um cálice com veneno. Ele mesmo o tomara para si, com toda gana e empenho.
Mas o que mais poderia ter feito? Mesmo ali, de pé e com a garganta ardendo com o odor de água sanitária que o fazia lacrimejar, George sabia que nunca houvera qualquer escolha naquele caso.
Ao sair dali, Clough o esperava, com o cigarro pendurado, como sempre, em um canto de sua boca.
- Conheço um bar bem legal na estrada para Ashbourne - disse. - Vamos tomar um trago a caminho de casa.
Este era um tenente dos bons, pensou George.
O julgamento
Durante o resto da semana, George sentou-se no fundo da sala do tribunal, sempre se esforçando para chegar alguns minutos após o início de cada sessão e saindo tão logo o juiz dava por encerrados os trabalhos. Sabia que estava sendo ridículo, mas não conseguia escapar da ideia de que todos o olhavam, porque imaginavam se era corrupto ou, pior ainda, porque já haviam decidido que sim. Detestava a ideia de ser tomado por um daqueles policiais que decidiam incriminar alguém, mesmo sem provas. Ainda assim, não conseguia deixar de vir.
No terceiro dia de julgamento, as testemunhas de Scardale começaram a ser ouvidas. Charlie Lomas conseguiu repetir seu desempenho tranquilo, impressionando o júri com seus modos francos e sua infelicidade óbvia pelo desaparecimento da prima.
A seguir, Mamãe Lomas foi ao reservado das testemunhas, vestida para a ocasião com um casaco preto desbotado com um ramo de urze enfiado na gola. Ela admitiu que seu nome era Hester Euphemia Lomas. Estava claro que não sentia nem temor nem deferência pelo ambiente em que estava, respondendo aos dois advogados precisamente como teria feito com George, no conforto de sua própria sala. Ela insistiu em pedir uma cadeira e um copo de água, mas depois ignorou ambos. Stanley tratou-a com cortesia exagerada, que foi recebida com total indiferença.
- E a senhora está absolutamente certa de que era o senhor Hawkin cruzando o campo? - indagou Stanley.
- Uso óculos apenas para ler - disse a velhota. - Ainda consigo distinguir um gavião de um falcão a cem metros de distância.
- Como pode ter tanta certeza de que o dia era quarta-feira?
- Porque foi o dia em que Alison desapareceu - disse ela, parecendo irritada. - Quando algo assim acontece, tudo o mais que aconteceu naquele dia se fixa na memória.
Stanley obviamente não encontrou nada para argumentar, ante esta declaração, limitando-se a repassar o conhecimento da testemunha sobre a mina de chumbo, com base no livro que ela vira no estúdio do Solar Scardale.
- Era hábito do antigo proprietário das terras, o senhor Castleton contar-lhe histórias sobre o vilarejo?
- Ah, sim - disse ela, em tom casual. - Conhecia-o desde que era pequeno. Ele nunca foi arrogante com o povo do vilarejo, não aquele dono do solar. Sentávamos com frequência para conversar, ele e eu. Sempre dizíamos que, quando morrêssemos, metade da história do vale seria enterrada conosco. Ele sempre insistia para que eu escrevesse tudo o que ouvia, mas nunca dei importância a coisas assim.
- Mas foi assim que a senhora descobriu onde poderia encontrar o livro?
- Isso mesmo. Olhamos aquele livro, juntos, várias vezes. Eu já o conhecia de cor e foi fácil encontrá-lo.
- Por que a senhora não mencionou a antiga mina de chumbo à polícia desde o início das investigações? - perguntou Stanley, dando à questão um tom informal.
Ela coçou sua têmpora com um dedo encaroçado pela artrite.
- Não sei muito bem. Às vezes, esqueço que nem todos conhecem o vale como eu. Muitas vezes, durante a noite, tenho imaginado se teria feito diferença para a pobre Alison se eu tivesse mencionado a mina de chumbo para o inspetor Bennett na noite em que ela desapareceu. - Ela suspirou. - A dúvida me tortura.
- Não tenho mais perguntas a fazer, senhora Lomas, mas meu colega, o senhor Highsmith, precisará esclarecer algumas dúvidas. Quer, por favor, aguardar aí mesmo? - Stanley curvou-se levemente em respeito à matriarca, antes de voltar a sentar-se.
Desta vez, Highsmith esperou um pouco antes de se levantar.
- Senhora Lomas - começou. - Deve ser difícil ver o sobrinho de seu velho amigo como réu, hoje.
- Nunca pensei que ficaria contente porque o velho Castleton morreu disse ela, em voz baixa. - Isso teria partido seu coração. Ele amava Alison como se fosse sua própria neta.
- É mesmo? Bem, se não for pedir muito, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Ela levantou a cabeça e George, sentado no fundo da sala, percebeu o brilho travesso em seu olhar. Ele estremeceu, prevendo o que viria.
- Não tenho nada contra perguntas - retrucou a mulher. - Sempre é bom falar a verdade. Não tenho nada a temer com suas perguntas. Pode ir em frente.
Highsmith pareceu momentaneamente surpreso. As respostas dóceis da velhinha a Stanley não o haviam preparado para o humor combativo de Mamãe Lomas.
- Como a senhora pode ter certeza de que era o senhor Hawkin quem cruzava o campo naquela tarde?
- Como posso ter certeza? Porque eu o vi. Porque eu o conheço. Conheço sua aparência, o modo como caminha, as roupas que usa. Não podia confundi-lo com ninguém de Scardale - disse ela, indignada. - Posso ser velha, mas não sou estúpida.
Risos abafados foram ouvidos no banco da imprensa e sorrisos discretos podiam ser vistos no contingente de Scardale. Mamãe Lomas trataria de mostrar o que era bom àquele advogado londrino.
- Isso é óbvio, madame - falou Highsmith.
- Não me venha com essa de madame", rapazinho. Mamãe já basta. Highsmith piscou com força. A ponta de seu lápis quebrou contra o bloco de papel que segurava.
- Voltando ao livro no estúdio do solar. A senhora diz que sabia exatamente onde estava?
- Bem lembrado, rapaz - disse ela, azeda.
- E estava onde deveria estar?
- E onde mais poderia estar? É claro que estava onde deveria. Highsmith atacou:
- Ninguém mexeu nele?
- É claro que não posso saber disso. Como poderia? Não teria sido difícil recolocá-lo no lugar certo. As prateleiras estão cheias. Quando se tira um livro de uma estante assim, fica uma lacuna. Depois a gente coloca no mesmo lugar. É automático - falou, com desdém.
Highsmith sorriu.
- Mas não havia sinal de que alguém fez isso. Obrigado, senhora Lomas.
O juiz inclinou-se para a frente.
- A senhora pode ir.
Ela voltou-se para Hawkin e lançou-lhe um sorriso de puro triunfo. George sentiu-se aliviado porque ela estava de costas para o júri.
- Sei que posso ir - comentou. -Já ele não pode dizer o mesmo, não é? - Ela desfilou pela sala do tribunal como a respeitável e honrada figura que era em sua aldeia e acomodou-se em uma cadeira que foi desocupada especialmente para dar-lhe lugar, no meio de seus parentes.
O dia seguinte foi tomado por uma variedade de especialistas que poderiam dar seu testemunho sobre determinados aspectos do caso. O alfaiate de Hawkin viajara de Londres até ali para confirmar que a camisa manchada encontrada no laboratório fotográfico era uma dentre várias que o réu havia mandado fazer sob medida, menos de um ano antes. Um assistente de uma farmácia revelou que vendera a Philip Hawkin dois rolos de esparadrapo, que correspondiam tanto àquele encontrado no focinho da cadela de Alison quanto ao curto pedaço que fora usado para grudar a chave do cofre sob a gaveta, no estúdio.
Um datiloscopista revelou que as impressões digitais de Philip Hawkin estavam nas fotografias e nos negativos encontrados no cofre. Entretanto, não havia digitais na Webley e fora impossível colher digitais na capa do livro sobre a antiga mina de chumbo.
A última testemunha do dia foi o especialista em armas de fogo. Ele confirmou que um dos projéteis encontrados na caverna havia sido claramente identificado como uma bala calibre .38, disparada do revólver que Ruth Cárter encontrara escondido no laboratório fotográfico do marido.
Durante todo este testemunho, Highsmith perguntou pouco, exceto para tentar demonstrar que talvez houvesse outras explicações para todas as declarações feitas pela promotoria. De acordo com ele, qualquer um poderia ter obtido uma camisa pertencente a Hawkin. Podiam ter roubado uma do varal do solar. Hawkin poderia não ter comprado o esparadrapo para si, mas por pedido de outra pessoa. É claro que suas digitais estavam nas fotos e nos negativos, pois haviam sido jogados na direção de Hawkin sobre a mesa da sala de interrogatório antes de serem colocadas em envelopes plásticos e mesmo antes de seu advogado chegar à delegacia. E a única pessoa que fizera qualquer ligação entre a arma e Hawkin, é claro, havia sido sua esposa, tão desesperada para encontrar uma explicação para o desaparecimento da filha que poderia voltar-se até contra seu marido.
O júri pareceu imperturbável, sem dar indícios de sua reação às explicações do defensor do réu. No fim do terceiro dia, o tribunal entrou em recesso até a manhã seguinte.
Na manhã de sexta-feira, a mente de George viu-se forçada a sair de suas próprias preocupações. Uma matéria publicada no Daily Express angustiou-o:
Cães farejadores unem-se às buscas por menino perdido
Oito policiais com dois cães farejadores vasculharam hoje as cercanias da estrada de ferro, matagais e prédios abandonados, em busca do menino míope Keith Bennett, que desapareceu de sua casa há quase três dias.
Segundo um dos policiais, "Se não o encontrarmos hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu. Não suspeitamos de crime ainda, mas não descobrimos razão para seu desaparecimento".
Keith, de 12 anos, que reside na rua Eston, em Chorlton-on-Medlock, Manchester, desapareceu terça-feira à noite, a caminho da casa da avó.
Sua casa fica em uma área de Manchester na qual vários homicídios já ocorreram e pessoas desaparecidas ainda não foram localizadas.
Menino caseiro
Os óculos de lentes grossas e com uma das lentes rachada, sem os quais o menino tem dificuldade para enxergar, foram deixados em casa.
A mãe de Keith, Winifred Johnson, 30 anos, tem cinco outros filhos e espera o sétimo para daqui a duas semanas. Hoje, ela chorou enquanto falava sobre o filho desaparecido, dizendo: "Ele nunca fez nada parecido antes. É um menino caseiro, e mal pode ver sem seus óculos."
A avó do garoto, Gertrude Bennett, 63 anos, que reside na rua Morton, em Longsight, Manchester, disse: "Não conseguimos comer, dormir ou viver normalmente, preocupados com ele."
A equipe de buscas é formada por um sargento, cinco policiais e dois adestradores de cães. Eles vasculham uma área em um raio de dois quilómetros em torno da casa de Keith.
George ficou olhando para o jornal. O pensamento de outra mãe passando pelo que Ruth Cárter vivia era algo que o torturava. Contudo, em um canto de sua mente, não podia evitar a ideia de que, se tinha de acontecer, não poderia ter sido em um momento mais oportuno. Para qualquer jurado que lesse o jornal, a aflição de Winifred Johnson apenas reforçava a agonia de Ruth Cárter e diminuía qualquer inclinação que alguém tivesse para acreditar em Hawkin.
Uma súbita onda de vergonha envolveu-o. Como podia ser tão cínico? Como podia chegar a pensar em explorar o desaparecimento de outra criança? Enojado consigo mesmo, George amassou o jornal e jogou-o na lata de lixo.
Naquela tarde, enquanto subia as escadas rumo à sala do tribunal, viu uma figura conhecida esperando junto à porta. Impecável em seu uniforme de representação, o superintendente Martin ocupava-se com suas luvas pretas de pelica, mas levantou a cabeça ao perceber que George se aproximava.
- Inspetor - disse, como cumprimento, com expressão impenetrável. - Uma palavrinha, por favor.
George seguiu-o por um corredor lateral até uma pequena sala com cheiro de suor e cigarros. Ele fechou a porta e aguardou.
Martin acendeu um de seus cigarros sem filtro e disse, sem preâmbulos:
- Quero-o de volta ao trabalho semana que vem.
- Mas, senhor... - protestou George. Martin levantou a mão, interrompendo-o.
- Eu sei, eu sei. A promotoria deve terminar hoje, e então será a vez da defesa, semana que vem. E é exatamente por isso que eu o quero em Buxton novamente.
George ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de seu comandante.
- Este caso é meu, senhor.
- Sei disso, mas você sabe tão bem quanto eu o que Highsmith pretende fazer. Ele não tem escolha. E eu não pretendo deixar que um dos meus homens sente-se em um tribunal e assista enquanto seu caráter é aviltado por algum advogado esperto que não se importa com o dano que causa a um homem decente. - O rubor que denunciava emoção subia pelo pescoço de Martin e ele começou a andar de um lado para outro.
- Com todo o respeito, senhor, eu posso suportar tudo o que Highsmith lançar contra mim.
Martin parou de andar e fitou-o.
- Você acha mesmo? Bem, ainda que seja verdade, não pretendo deixálo à mercê da imprensa. Se você não se importa em proteger-se para seu próprio bem, faça isso por sua esposa. Já será bastante ruim, para ela, ler as matérias que o acusam de todo tipo de coisa, sem precisar ver fotografias do marido esquivando-se a todo momento, fugindo da imprensa como se fosse o réu.
George correu a mão pelos cabelos.
- Tenho direito a uma licença.
- E eu me recuso a dá-la - respondeu Martin, rapidamente. - Você ficará longe de Derby até o fim deste julgamento. Isto é uma ordem.
George virou-se de costas e acendeu um cigarro. Era difícil não ver a ordem de seu superior como um castigo dos deuses por sua reação ao desaparecimento de Keith Bennett.
- Deixe-me, pelo menos, comparecer no dia do veredicto - disse em voz baixa e quase incompreensível.
O professor John Patrick Hammond recitou as qualificações que o tornaram um dos peritos mais conhecidos no norte da Inglaterra. Seu nome ia lado a lado com os de Rernard Spilsbury, Sydney Smith e Keith Simpson na imaginação do público, como um dos poucos homens que conseguiam aplicar seus conhecimentos científicos a traços quase imperceptíveis e extrair deles provas incontroversas de culpa. Pritchard, da promotoria pública, insistira em trazer um perito de renome para o caso.
- Quando temos tão pouco com que contar, precisamos usar o talento dos mestres - dissera ele, e o superintendente Martin concordara.
Hammond era um homem miúdo e preciso, cuja cabeça parecia grande demais para o corpo. Ele compensava sua aparência vagamente ridícula com um porte solene e portentoso. Os jurados o adoravam, porque ele conseguia traduzir o jargão científico em linguagem popular compreensível sem jamais parecer que lhes fazia uma concessão. Stanley tivera o bom senso de fazer o mínimo de perguntas, permitindo que Hammond se expandisse à vontade.
Hammond certificou-se de que os jurados entenderiam os pontos principais de suas explicações. O sangue na árvore do arvoredo, nas roupas íntimas rasgadas encontradas na caverna e na camisa manchada vinha de uma mulher com tipo sanguíneo O, que era o de Alison. A quantidade de sangue na camisa era consistente com um ferimento grave. O sémen na camisa fora depositado por alguém com tipo sanguíneo A. O acusado tinha sangue do tipo A.
Ele também explicou que exames de laboratório haviam revelado que pontos chamuscados na camisa eram totalmente consistentes com o disparo de uma arma perto do tecido. Hammond demonstrou isso segurando a camisa contra o próprio corpo. George olhou para Ruth Cárter e viu-a esconder a cabeça entre as mãos. Kathy Lomas passou um braço em torno de seus ombros e puxou-a contra si.
- Como pode ver, meritíssimo - explicou Hammond -, há partes chamuscadas no punho direito e também no lado direito da camisa, na frenteSe alguém usando esta camisa segurasse um revólver próximo ao alvo, isto é exatamente o que esperaríamos encontrar. Não há outra explicação consistente com a apresentação dos resíduos e manchas que encontramos.
Highsmith levantou-se para interrogar a testemunha sentindo-se um pouco frustrado. Até aqui, este caso não estava sendo um dos melhores desempenhos em sua vida. Havia muito pouco em que se agarrar, e mesmo assim tudo era muito frágil. Aqui, pelo menos, havia algo concreto para atacar.
- Professor Hammond, pode dizer-nos que porcentagem da população tem sangue do tipo A?
- Aproximadamente quarenta e dois por cento.
- E que porcentagem da população é formada de homens cujo grupo sanguíneo está presente em suas outras secreções corporais?
- Aproximadamente oitenta por cento.
- Desculpe-me, a matemática nunca foi o meu forte. Que porcentagem da população é formada por secretores do tipo A?
As sobrancelhas de Hammond subiram e baixaram.
- Cerca de trinta e três por cento.
- Assim, tudo o que podemos dizer é que essas manchas de sémen poderiam ter sido deixadas por um terço da população masculina deste país?
- Correto.
- De modo que, em vez de apontar especificamente para meu cliente, o melhor que se pode dizer é que esses testes não o eliminam como suspeito. - Não era uma pergunta, e Hammond não respondeu. - Quanto à camisa manchada. Há algo que possa indicar que o acusado era a pessoa que a usava, quando o tiro foi disparado?
- Em termos forenses, não. - Hammond parecia relutante, como sempre fazia quando forçado a admitir que sua ciência não podia responder a todas as perguntas.
- Assim, qualquer um poderia estar usando a camisa?
- Sim.
- E a pessoa que a usava não precisaria ter sido aquela que depositou o sémen nas outras peças de vestuário?
Hammond fez uma pequena pausa.
- Considero bastante improvável, mas suponho que seja possível.
- A quantidade de sangue nas outras peças de vestuário era significativamente menor. Isto seria consistente com a espécie de sangramento que pode ocorrer quando o hímen é rompido?
- É impossível ter certeza. Algumas mulheres perdem um volume considerável de sangue quando perdem a virgindade. Outras simplesmente não sangram. Contudo, se as manchas de sangue na camisa tivessem esta origem, então a mulher estaria tendo uma hemorragia de proporções potencialmente fatais.
- Ainda assim, não havia sangue na suposta cena do crime. Certamente, se alguém tivesse recebido um tiro fatal naquela caverna, haveria sangue por toda parte? Empoçado no chão, respingado nas paredes ou no teto, não é? Como é possível não haver sangue, exceto o que vemos nas várias peças de roupa?
- Está me pedindo que faça especulações? - perguntou Hammond, vividamente.
- Estou perguntando se, em sua experiência, seria possível alguém receber um tiro fatal em uma caverna sem que o lugar apresentasse manchas de sangue - disse Highsmith, pronunciando as palavras com lentidão e clareza.
Hammond franziu a testa e pensou por um momento, voltando os olhos para cima ao recorrer à memória. Finalmente, respondeu:
- Sim, seria possível.
O rosto de Highsmith fechou-se, mas, antes que pudesse falar, o perito continuou:
- Se, por exemplo, a menina foi mantida perto e a arma estivesse enfiada sob suas costelas. Uma bala que faça uma trajetória para cima destruiria o coração, mas poderia muito bem alojar-se atrás da omoplata. Se não houvesse um ponto de saída do projétil não haveria um esguicho de sangue. E se ela fosse mantida perto do atirador, o esguicho de trás seria absorvido na mancha maior que vimos na camisa.
Highsmith recuperou-se rapidamente:
- Portanto, de todas as situações possíveis para este suposto homicídio, o senhor pode citar apenas uma que explicaria a ausência de sangue no local?
- Sempre supondo que a menina foi morta na caverna? Sim, esta é a única explicação que posso dar.
- Uma possibilidade em dúzias, centenas, talvez. Não é o que se poderia chamar de um cenário provável, então?
- Não sei dizer-lhe - disse Hammond encolhendo os ombros.
- Obrigado, professor. - Highsmith sentou-se. Conseguira mais do que esperava e tinha certeza de que poderia confundir os jurados com os detalhes científicos, de modo que, na dúvida, a absolvição seria a única opção.
- Isto conclui o caso para a promotoria - anunciou Stanley, enquanto o professor Hammond juntava seus papéis e saía do reservado de testemunhas.
- Entraremos em recesso até a semana que vem - anunciou Sampson.
O julgamento
Manchester Guardian, segunda-feira, 22 de junho de 1964
Nova pista no caso do menino desaparecido
Ontem à noite, a polícia mudou o local das buscas por um menino quase cego desaparecido há cinco dias, depois que um de seus colegas de escola afirmou: "Ele contava vantagem, dizendo que tinha um esconderijo supersecreto em algum lugar por aí."
As buscas foram transferidas da periferia da casa de Keith Bennett, de 12 anos, na rua Eston, em Longsight, Manchester, para o matagal próximo.
O porta-voz da polícia disse: "O menino pode estar em algum esconderijo, com um suprimento de comida suficiente para alguns dias. Onde quer que seja, o esconderijo é secreto mesmo."
A Rússia admitiu que seus satélites espaciais poderiam espionar inimigos. Um ataque cardíaco deu fim à liderança de Nehru na índia. O novo líder da Rodésia, Ian Smith, ameaçava a independência unilateral em relação à GrãBretanha. The Searchers e Millie and the Four Pennies chegavam aos primeiros lugares entre os mais vendidos nas lojas de discos. Contudo, ao ler o jornal, George só prestava atenção nas matérias sobre o julgamento de Philip Hawkin. Ele tentara manter os jornais longe de Anne, mas ela ia à banca próxima todos os dias e comprava seus próprios exemplares. Já que precisava conviver com as esposas de outros policiais, ela queria saber o que diziam sobre seu marido, para poder defendê-lo se alguém fosse tolo o bastante para romper com a solidariedade de todos na polícia, sob pressão.
A única testemunha de defesa, além do próprio Hawkin, era seu expatrão, que ofereceu um depoimento neutro e inócuo sobre seu ex-funcionário. Não se podia dizer que tentara defender o réu ardorosamente, mas o homem tivera a boa vontade de ir até ali para dizer que nunca ouvira nada que depusesse contra Hawkin.
Quando Hawkin foi conduzido até o banco dos réus, começou o barulho. As manchetes do dia seguinte diziam: "A POLÍCIA ARMOU PARA MIM", AFIRMA ACUSADO DE HOMICÍDIO. AS PROVAS APRESENTADAS NO JULGAMENTO FORAM FABRICADAS. "MENTIRAS E MAIS MENTIRAS", DIZ O RÉU. "O ASSASSINO DE ALISON AINDA ESTÁ EM LIBERDADE", DISSE ELE AOS JURADOS.
George sentou-se em seu gabinete e olhou com amargura para as manchetes à sua frente. Não importava se amanhã o jornal serviria apenas para embrulhar peixes no mercado. A lama já havia sido lançada e parte dela sujaria sua reputação para sempre. Independentemente de como este caso terminasse, ele pretendia pedir transferência.
Hawkin tivera um desempenho sensacional no banco dos réus, protestando sua inocência a cada oportunidade possível, e Highsmith lhe dera muitas brechas para fazer isso. Para cada prova apresentada pela promotoria ele encontrara uma refutação, algumas mais convincentes que outras. Falara com aparente sinceridade e encarara os jurados o tempo todo, parecendo não ter nada a esconder.
Hawkin chegara a admitir a posse da Webley, mas não que a roubara da casa de Richard Wells. Sua versão era de que a comprara de um ex-colega de trabalho, convenientemente já falecido. Segundo sua confissão sem um pingo de constrangimento, sempre desejara ter uma arma, e o homem já a havia oferecido, mesmo antes de ele tomar conhecimento do roubo na casa do vizinho. Depois, ao perceber que mantinha o produto do roubo consigo, tivera medo de revelar a verdade, porque talvez suspeitassem que ele mesmo invadira a casa de Wells para roubá-la. E, sim, ele mostrara a arma à esposa. Agora, sentia um remorso profundo pelo modo como se comportara. De acordo com os jornais, seu testemunho parecia o de alguém sem culpas. Hawkin afirmara, várias vezes, que embora tivesse sido traído pela polícia, ainda tinha fé na justiça e no bom senso do júri.
- Está fazendo o papel de bom moço - gemeu George, lendo a extensa reportagem escrita por Don Smart no Daily News.
Clough enfiou a cabeça pela fresta da porta.
- Se quer saber, ele está exagerando. Não há nada que os jurados detestem mais que a sensação de estarem sendo bajulados. Podemos adoçálos à vontade, desde que não percebam, mas Hawkin está sufocando a todos com tanta demonstração de boa-fé.
- Bela tentativa, Tommy. - George suspirou. - Gostaria de estar lá hoje para ouvir a inquirição de Stanley.
- Acho que ele se sairá melhor por saber que você não estará lá.
Manchester Evening News, quarta-feira, 24 de junho de 1964
Meninos desaparecidos e duas mães desesperadas
Da Redação
Duas mulheres de olhares tristes, que conhecem a agonia desesperadora de uma mãe que não sabe o paradeiro do filho, encontraram-se hoje em Ashtonunder-Lyne pela primeira vez.
Sheila Kilbride e Winifred Johnson sentaram-se a uma mesa na prefeitura de Ashton e conversaram sobre os garotos desaparecidos.
John Kilbride, que sumiu de casa em novembro do ano passado, estava com 12 anos, assim como Keith Bennett, de Chorlton-on-Medlock, Manchester, cuja mãe é a senhora Johnson. Keith desapareceu sete dias atrás.
Os dois são os primogénitos de grandes famílias. E ambos desapareceram sem deixar pistas.
"UM PESADELO"
As duas mulheres conversaram intimamente, com o ar de quem não podia acreditar no que lhes acontecera.
"Mesmo depois de todo este tempo, ainda é como um pesadelo", disse a mãe de John.
Segundo a senhora Kilbride, à medida que o tempo passava, ela teve de aprender a conviver com falsas esperanças e momentos de intensa ansiedade, sempre que um carro parava na frente de sua casa.
Contudo, as noites insones continuam, assim como os dias de profundo desespero.
Ela disse à mãe de Keith: "É preciso ir em frente. Nossa família também é grande, como a sua, e descobrimos que, nos últimos tempos, nem mencionamos muito o nome de John."
TROTES TELEFÓNICOS
A senhora Kilbride alertou a mãe de Keith quanto a trotes e brincadeiras de mau gosto, que só lhe trazem mais sofrimento.
"Aprendi a suspeitar de todos que me ligam", disse ela.
"Se dizem que são da polícia ou jornalistas, mas eu não os conheço, peço para ver suas credenciais."
A senhora Kilbride, casada com um operário da construção civil, tem sete filhos, incluindo John. A senhora Johnson, cujo marido é marceneiro desempregado, tem seis filhos e espera o próximo para o dia 5 de julho.
BUSCAS
A polícia ainda procura os dois meninos. A descrição de Keith já circulou por todo o país.
Um porta-voz de Manchester disse: "E claro que estamos preocupados com a segurança do garoto.
É um caso incomum, no sentido de que este rapazinho nunca saiu assim de casa antes e deixou seus óculos, sem os quais sua visão é péssima."
"Ele tinha apenas algumas moedas no bolso. Em geral, encontramos garotos assim rapidamente. Não temos pistas, mas estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance."
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; Desmond Stanley, promotor do Ministério Público, oferece seus argumentos finais ao júri, em favor da promotoria.
Senhoras e senhores do júri, eu gostaria de agradecer-lhe por sua paciência durante este difícil julgamento. É sempre doloroso contemplar a profanação da infância, como os senhores precisaram fazer, neste caso. Tentarei ser tão breve quanto possível, mas primeiro devo responder às insinuações feitas por meu douto amigo, durante a condução de sua defesa.
Os senhores viram e ouviram o testemunho ao detetiveinspetor George Bennett. Também viram e ouviram o acusado, Philip Hawkin. Agora, eu conheço o inspetor Bennett e sei que é um policial de integridade inatacável, mas, obviamente, os senhores não o conhecem pessoalmente, de modo que precisam basear-se nos fatos apresentados. A boa reputação do inspetor Bennett chegou a este tribunal antes mesmo de ele comparecer para seu depoimento. Ouvimos a senhora Cárter, esposa do réu, que o elogiou. Depois, escutamos enquanto a senhora Hester Lomas e o senhor Charles Lomas falavam com grande emoção sobre o apoio que o inspetor Bennett ofereceu às pessoas de Scardale que perderam um de seus membros queridos, e sobre seu compromisso incansável com a descoberta do que acontecera com Alison Cárter.
O senhor Hawkin, por outro lado, e de acordo com suas próprias palavras, é um homem que compra uma arma de fogo ilegal e a mantém em uma casa onde vivia uma adolescente.
Esses são os fatos, senhoras e senhores. Não conjecturas, mas fatos Apesar do que meu nobre colega insinuou, existem muitos outros fatos neste caso. É fato que Philip Hawkin possui um revólver Webley calibre 38 que foi disparado dentro de uma caverna isolada, onde foram descobertas roupas identificadas por Ruth Cárter como sendo de sua filha. É fato que Philip Hawkin possui um livro que descreve em detalhes a localização desta caverna cuja existência havia sido esquecida por todos, exceto por uma senhora idosa. É fato que o sémen encontrado nos farrapos das meias escolares de Alison Cárter poderia ser dele.
É fato, também, que a arma de Philip Hawkin estava embrulhada em uma camisa manchada de sangue e escondida em seu laboratório fotográfico, um anexo da casa em que ninguém, exceto o acusado, costumava entrar. É fato que a camisa pertence a ele. É fato que o sangue naquela camisa, a copiosa quantidade de sangue na camisa, poderia ter vindo de Alison Cárter. É fato que existe uma explicação perfeitamente razoável para a ausência de sangue na caverna.
Além disso, é fato que as fotografias obscenas e os negativos a partir dos quais foram impressas têm as impressões digitais de Philip Hawkin por toda parte, não as impressões do inspetor Bennett. É fato que algumas das fotografias foram batidas no quarto de Alison Cárter, não retiradas de alguma revista pornográfica. É fato que Philip Hawkin possuía todo o equipamento fotográfico necessário para tirar aquelas fotos e revelá-las. O inspetor Bennett pode ter uma câmera capaz de tirar aquelas fotos, mas ele não possui um laboratório fotográfico no fundo do quintal. Ele não possui bandejas para revelação, ampliadores, um estoque de papel fotográfico ou quaisquer dos outros utensílios necessários para perpetrar uma fraude tão elaborada. E, pensando bem, ele nem teria tempo para isso.
É fato que as fotos estavam bem escondidas em um cofre, cuja chave também estava escondida no estúdio de Philip Hawkin. É fato que Philip Hawkin instalou aquele cofre quando converteu o anexo em laboratório.
Fatos, senhoras e senhores, não faltam neste caso. Estes fatos são provas, e as provas apontam maciçamente para uma conclusão. Embora não exista um corpo, isto não significa que um crime não foi cometido. Talvez seja útil saberem que não estão sendo chamados a tomar uma decisão sem precedentes. Jurados já condenaram réus de homicídio quando o corpo da vítima ainda não havia sido encontrado. Se os senhores estão convencidos, com base nas provas apresentadas e em seu julgamento sobre os testemunhos prestados, de que os crimes de estupro e homicídio foram cometidos contra Alison Cárter pelo acusado, então é preciso cumprir seu dever e apresentar um veredicto de culpado.
Como eu já lhes disse, há um claro padrão nos acontecimentos deste caso e ele aponta inescapavelmente para uma conclusão. Philip Hawkin chegou a Scardale com poder e riqueza à sua disposição pela primeira vez em sua vida. Pela primeira vez em sua vida, ele conseguiu ver a perspectiva de dar vazão ao seu apetite pervertido por meninas jovens.
Para disfarçar suas reais intenções, ele cortejou Ruth Cárter, uma mulher que enviuvara seis anos antes. Ele não apenas mostrou-se persuasivo e atencioso, mas parecia bastante tranquilo ante a perspectiva de assumir a filha de outro homem. No íntimo, ele não estava tranquilo; estava em êxtase, ao pensar no que poderia ter se pudesse persuadir a mãe de que estava interessado por ela, não por sua garotinha bonita. Ele conseguiu. E foi aí que a infância de Alison Cárter terminou.
Ao tornar-se enteada de Philip Hawkin, ela também tornou-se sua vítima. Vivendo sob o mesmo teto, não havia como fugir. Ele tirou fotos pornográficas da menina. Violou-a. Estuprou-a. Sodomizou a. Forçou-a a realizar sexo oral. Aterrorizou-a. Sabemos disso porque podemos ver com nossos próprios olhos, nas fotografias que não mostram sinais de terem sido forjadas e dão todos os indícios de serem reais. São ultrajantes, odiosas, degradantes e, sem sombra de dúvidas, um registro do que realmente aconteceu com Alison Cárter nas mãos de seu padrasto.
O que deu errado nunca saberemos, já que o acusado recusou a oportunidade de livrar a senhora Cárter de seu sofrimento e de nos contar como se livrou de sua filha e por que fez isso. Talvez Alison já tivesse suportado o bastante e tivesse ameaçado contar tudo à sua mãe ou a um outro adulto. Talvez ele tenha se cansado dela, e quisesse livrar-se do problema. Talvez um jogo sexual doentio tenha saído de seu controle. Seja qual for a razão - e não é difícil imaginar o motivo, em um caso tão bárbaro quanto este -, Philip Hawkin decidiu matar sua enteada. Assim, em uma caverna escura e úmida, ele estuprou-a uma última vez e, depois, puxou o gatilho de seu revólver Webley e assassinou esta pobre colegial de treze anos.
Depois, quando confrontado com sua maldade, teve a audácia de tentar safar-se manchando a reputação de um policial honesto.
Philip Hawkin deveria cuidar de Alison Cárter. Em vez disso, usou sua posição para explorá-la sexualmente e, então, quando algo deu errado matou-a. Depois, livrou-se do corpo, imaginando que, sem um corpo, não haveria julgamento e não poderia ser condenado.
Senhoras e senhores do júri, sejam orientados pelas provas e provem que este homem está errado em sua presunção. Philip Hawkin é culpado, e insisto que lhe dêem o veredicto apropriado neste julgamento.
O julgamento
Trechos da transcrição original do julgamento de Philip Hawkin; Rupert Highsmith advogado de defesa, faz seu pronunciamento final ao júri em favor de seu cliente.
Senhoras e senhores do júri, sua tarefa é a mais importante deste tribunal. Em suas mãos está a vida de um homem acusado do estupro e homicídio de sua enteada. É tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que ele cometeu esses crimes. Minha missão é demonstrar todos os pontos em que a promotoria não provou a culpa de meu cliente. Acredito que, depois de ouvirem o que tenho a dizer, os senhores não poderão condenar Philip Hawkin por absolutamente qualquer crime.
A primeira coisa que a promotoria precisa comprovar é que realmente ocorreu um crime. Observem que este caso apresenta alguns problemas incomuns, desde o início. Não existe um queixoso. Alison Cárter está desaparecida, portanto incapaz de apresentar uma acusação de estupro, incapaz de identificar qualquer agressor - se houve um, já que a promotoria não conseguiu produzir qualquer terceira pessoa à qual Alison tivesse se queixado de um ataque sexual. Ninguém testemunhou o suposto estupro. Philip Hawkin não chegou em casa machucado e sangrando, como ocorreria se tivesse se envolvido em uma briga violenta. As fotografias são as únicas provas de estupro. Voltarei a elas daqui a pouco. Tudo o que direi, neste ponto, é que os senhores precisam ter em mente que câmeras podem mentir.
Os senhores poderiam pensar que a descoberta de roupas íntimas identificadas como pertencentes a Alison e manchadas com sangue e sémen são indicações de estupro. Não necessariamente. A atividade sexual assume muitas formas. Embora os senhores possam considerar repulsiva esta ideia as práticas sexuais incluem o uso de uniforme escolar por mulheres mais velhas, para satisfazer as fantasias masculinas. Elas também incluem a simulação de violência. Assim, por si mesmas, essas provas, na verdade, não provaram nada.
O que nos leva à segunda acusação, de homicídio. Novamente, não temos testemunhas. A promotoria foi incapaz de encontrar uma única pessoa que pudesse dizer que Philip Hawkin é um homem violento. Nem uma única testemunha apresentou-se para dizer que o relacionamento de Hawkin com sua enteada era qualquer coisa além de normal. Não apenas não temos testemunhas, mas também não temos um corpo. Não apenas não temos um corpo, mas também não temos sangue na suposta cena do crime. O primeiro tiro na história da ciência forense que não deixou traços no local em que supostamente aconteceu. Por tudo que sabemos, Alison Cárter pode ser uma fugitiva, sobrevivendo de algum modo à margem da sociedade. Na ausência de sangue, na ausência de um corpo, como podem acusar Philip Hawkin de homicídio? Como ousam acusá-lo de homicídio?
Tudo o que a promotoria tem é uma corrente feita de provas circunstanciais. Sabemos muito bem que a força de uma corrente vai apenas até onde podemos comprovar a força de cada um de seus elos. O que podemos pensar, portanto, de uma corrente que consiste unicamente de elos fracos? Examinemos as provas, uma por uma, e comprovemos sua fragilidade. Estou convencido de que após este exame os senhores considerarão impossível condenar Philip Hawkin por qualquer desses dois crimes horríveis dos quais é acusado.
Os senhores ouviram duas testemunhas que disseram que, na tarde do desaparecimento de Alison, viram Philip Hawkin nos campos, entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo onde, posteriormente, foram encontrados sinais de luta. Não estou sugerindo, por um momento sequer, que uma das testemunhas ou ambas estejam mentindo. Acho que ambas estão convencidas de que estão dizendo a mais pura verdade.
Entretanto, sugiro que, em uma pequena comunidade rural como Scardale, todas as noites de inverno são muito parecidas umas com as outras. Não seria difícil confundir terça-feira com quarta-feira. Tenham em mente que todos, em Scardale, sentiram-se intrigados e abatidos pelo desaparecimento de Alison Cárter. Se alguma autoridade, como um policial, sugerisse vigorosamente que foi cometido um engano, e que a correção deste engano ajudaria a resolver o mistério, será que nos surpreenderíamos se as testemunhas seguissem tal sugestão? Especialmente se isso ajudasse a colocar a culpa sobre alguém estranho à comunidade fechada, em um homem visto por todos como um forasteiro? Que tal o novo proprietário das terras, por quem todos sentiam antipatia, Philip Hawkin? Não podemos esquecer que, se Philip Hawkin for enforcado, Scardale e tudo nela será herdado por sua esposa, estimada por seus parentes residentes na aldeia.
A seguir, chegamos à própria senhora Hawkin. Embora ela deseje o contrário, ainda carrega o sobrenome do marido. Os senhores poderiam pensar que o próprio fato de ela dispor-se a testemunhar contra o marido já diz tudo. Afinal, o que poderia induzir uma esposa com um casamento de menos de dezoito meses a apoiar a condenação do marido, exceto provas muito convincentes? Será que não podemos inferir algo sobre o acusado, a partir do fato de ela ter testemunhado contra ele, quando as provas da promotoria são tão fracas?
Não, senhoras e senhores. O que seu testemunho nos diz é que não há nada mais forte para uma mulher que o vínculo da maternidade.
A filha da senhora Hawkin desaparece na quarta-feira, 11 de dezembro. Ela está completamente desesperada. Perplexa. A única pessoa que parece oferecer-lhe alguma esperança é um jovem detetive-inspetor que mergulha no caso com paixão e muito envolvimento. Ele está sempre lá. É solidário e dedicado. Mas não está chegando a lugar nenhum. No fim, ele forma uma suspeita de que o marido desta mulher pode estar envolvido no desaparecimento de Alison. Assim, mostra-se determinado a estabelecer sua teoria como fato. Imaginem o que isto causa a uma mulher no estado de fragilidade em que se encontra a senhora Hawkin. Claro que ela está suscetível a sugestões, e o que o detetive lhe diz faz muito sentido, porque ela deseja respostas. Ela quer dar um fim à sua incerteza. É melhor culpar seu marido que viver em temor constante pelo que pode ter acontecido com sua filha.
Além disso, os senhores devem tratar as provas apresentadas pela senhora Hawkin com extremo ceticismo.
Quanto às chamadas provas físicas, nenhuma delas, isoladamente, aponta para Philip Hawkin. Algo em torno de seis milhões de homens no país têm o mesmo grupo sanguíneo de Philip Hawkin e daquele que deixou manchas de sémen na mina de chumbo. De que maneira isso apontaria para ele? Existem quatrocentos e vinte e três volumes no estúdio do antigo proprietário de Scardale, Castleton, e nenhum sinal de que o único livro que oferece detalhes sobre a mina de chumbo tenha sido tocado por qualquer mão, incluindo as de Hester Lomas ou do detetive-inspetor Bennett. Como isso pode apontar meu cliente como culpado de algo? O farmacêutico de Buxton vende entre vinte e trinta rolos de esparadrapo todas as semanas, dois dos quais foram vendidos a Philip Hawkin, que mora em uma comunidade rural, na qual cortes e escoriações dificilmente seriam novidade. Como isso poderia apontá-lo como estuprador ou assassino?
A verdade é que nada disso aponta para meu cliente. Contudo, embora sejam frágeis, não podemos negar que, quando colocadas em um lado da balança, as provas pendem para o lado do senhor Hawkin. Assim, se não foi seu comportamento que produziu este efeito, o que o produziu?
Há um aspecto, na profissão de advogado, que todos detestamos. Embora a vasta maioria dos policiais seja honesta e incorruptível, de tempos em tempos algo dá errado. E de tempos em tempos cabe a nós expor as batatas podres. Em minha opinião, pior que o policial que muda para o lado errado da lei por ganância é aquele que toma a lei em suas mãos por zelo excessivo.
O que nos trouxe aqui hoje não foi a maldade de Philip Hawkin, mas o zelo excessivo do detetive-inspetor George Bennett. Seu desejo de solucionar o desaparecimento de Alison Cárter levou-o a perverter o curso da justiça. Não pode haver outra explicação para o que aconteceu. É realmente horrível ver o que um homem faz quando está cego por suas convicções, mesmo se completamente incorretas.
Quando examinamos as provas circunstanciais, torna-se claro que um homem teve motivos, meios e oportunidade para incriminar Philip Hawkin Ele é um policial jovem e inexperiente, frustrado por seu fracasso neste caso. Ele deve ter sentido a pressão de seus superiores e, assim, sua ânsia por encontrar um culpado e condená-lo só aumentou.
George Bennett ficou sozinho no estúdio do senhor Hawkin em mais de uma ocasião, certamente por tempo bastante para encontrar uma arma, examinar um livro, ou mesmo descobrir o esconderijo de uma chave de cofre. George Bennett tinha a confiança da senhora Hawkin e podia andar à vontade pelo Solar Scardale mesmo antes de ter um mandado de busca. Quem estaria em melhor condição para pegar uma das camisas do senhor Hawkin? Ele ganhou a confiança dos moradores da aldeia. Quem estaria em melhor posição para convencer a senhora Lomas e seu neto de que estavam enganados quanto ao dia em que viram o senhor Hawkin andando por suas próprias terras?
E, finalmente, temos as fotografias. George Bennett compartilha um passatempo com Philip Hawkin. Ele não tira apenas fotos de festas e férias com uma câmera qualquer, como a maioria de nós. Ele foi secretário do Clube de Fotografia de sua escola, escreveu artigos sobre aspectos da fotografia quando estava na faculdade e possui uma câmera do tipo que deve ter sido usado para manipular essas fotografias. Ele sabe o que é possível no mundo da fotografia. Ele sabe como forjar imagens. Philip Hawkin tem dúzias de fotografias de Alison em seus arquivos, muitas tiradas espontaneamente. Em algumas delas, a menina está irritada ou abatida. Ele também tem fotografias de si mesmo. Com materiais assim e acesso ao tipo de pornografia confiscada que muitas delegacias guardam, George Bennett poderia ter criado essas fotografias supostamente comprometedoras.
Na pior das hipóteses, nós revelamos uma terrível conspiração, fruto da convicção arrogante de um homem que sabia o que deveria fazer para impor a justiça ao seu modo. Na melhor, estabelecemos que o caso da promotoria certamente não foi provado além de qualquer dúvida razoável. Senhoras e senhores, coloco Philip Hawkin em suas mãos. Acredito, com firmeza e bom senso, que os senhores o absolverão das duas acusações. Muito obrigado.
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; resumo do Exmo. Juiz Fletcher Sampson para o júri.
Senhoras e senhores do júri, é tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que o acusado é culpado, de acordo com as acusações feitas a ele. É tarefa da defesa descobrir se existem fragilidades suficientes nas provas apresentadas pela promotoria que as tornem suscetíveis a dúvidas. Alguns dos senhores podem pensar que eu os ajudarei a decidir e lhes direi se, neste ponto, considero o réu culpado ou inocente. Entretanto, este não é meu papel. Esta é sua responsabilidade e os senhores não devem esquivar-se de sua obrigação. Meu papel é cuidar para que haja um julgamento justo e, para garantir que a justiça seja feita, é meu dever resumir o caso e lhes aconselhar sobre algumas questões legais.
O caso à nossa frente é djfícil, principalmente em virtude da ausência de Alison Cárter, viva ou morta. Se estivesse viva, a segunda acusação, de homicídio, obviamente não existiria, mas ela seria a testemunha mais valiosa quanto à primeira acusação, de estupro. Se seu cadáver tivesse sido descoberto, nossos legistas saberiam extrair a história que teria para contar e nos ofereceriam provas em volume considerável. Contudo, ela não está aqui para nos dar seu testemunho e, portanto, somos forçados a confiar em outras fontes de provas.
Em primeiro lugar, devo dizer-lhes que a promotoria não precisa mostrar um corpo para haver suposição de homicídio. Homens já foram condenados por homicídio em crimes nos quais o cadáver jamais foi encontrado.
Eu lhes darei dois exemplos que, em alguns aspectos, correspondem a este caso.
Uma atriz, Gay Gibson, voltava de navio para casa, vindo da África do Sul para este país, quando outros passageiros perceberam sua ausência. Houve uma busca no navio, e o capitão chegou a ajudar. Contudo, a mulher não foi encontrada. As suspeitas caíram sobre o comissário de bordo, James Camb, porque um colega o vira na porta do camarote da senhora Gibson no meio da noite. Ele foi detido quando o navio aportou e confessou que estivera na cabine, mas a convite da atriz, para manter relações sexuais com ela.
Ele afirmou, ainda, que durante o intercurso ela sofreu um mal súbito e morreu. Durante este ataque, ela teve espasmos musculares e se agarrou a ele, arranhando suas costas e ombros. De acordo com a história contada pelo comissário de bordo, ele entrou em pânico e empurrou o cadáver pela janela, para o mar aberto. A promotoria argumentou que ele a estrangulou durante o estupro e que, se os acontecimentos tivessem ocorrido de acordo com seu relato, não haveria razão para deixar de buscar ajuda médica para a passageira, enquanto ela passava mal.
James Camb foi condenado por homicídio.
Temos, ainda, o caso de Michael Onufrejczyk, polonês condecorado por serviços prestados na Segunda Guerra. Ele se tornou fazendeiro na região de Gales, em sociedade com um outro polonês, Stanislaw Sykut. Uma visita policial de rotina aos imigrantes revelou o desaparecimento do senhor Sykut. Onufrejczyk afirmou que seu sócio havia vendido sua parte na fazenda e voltado ao seu país de origem.
Entretanto, durante as investigações, a polícia descobriu que nenhum dos amigos de Sykut ouvira falar deste plano. Sua conta bancária estava intocada, e o amigo que, segundo Onufrejczyk, lhe emprestara dinheiro para comprar a parte do outro na fazenda, negou que tivesse feito algo parecido. Investigações adicionais revelaram que os homens haviam discutido e ameaçado um ao outro. Manchas de sangue foram encontradas na sede da fazenda, sem uma explicação satisfatória para elas.
No julgamento, a promotoria afirmou que Onufrejczyk dera o corpo do sócio aos porcos, daí a ausência de qualquer traço de um corpo. Em seu julgamento, no apelo contra a condenação o próprio juiz indicou que era possível demonstrar o fato de morte por meios outros que não a presença de um cadáver.
Assim, senhoras e senhores, pela a lei deste país não é necessário que exista um corpo para que um júri chegue à conclusão de que houve um homicídio. Se os senhores foram convencidos pela promotoria de que as provas são suficientes e apontam inexoravelmente para uma conclusão, é seu direito e dever pronunciar o veredicto de culpado. Igualmente, se a defesa conseguiu abalar sua certeza, o veredicto deverá ser de inocente.
Agora, quanto às provas apresentadas neste caso...
O veredicto
George fingia ler um relatório sobre um arrombamento em uma mercearia quando o telefone tocou.
- Os jurados retiraram-se para deliberar - a voz tensa de Clough lhe disse.
- Estou a caminho - respondeu, batendo o telefone e levantando-se rapidamente. Agarrou seu casaco e chapéu e saiu correndo de seu escritório. Parou de correr apenas depois de se jogar atrás do volante de seu carro. Enquanto saía do estacionamento, viu de relance o superintendente Martin na janela de seu escritório e imaginou se ele também recebera o recado.
Ele zuniu pela cidade e pela antiga estrada romana que cortava os campos verdes e paredes de calcário encardidas como uma lâmina atravessando uma colcha de retalhos. Com seu pé firme no acelerador, o ponteiro do velocímetro foi até oitenta, passou pela marca dos cem e estabilizou-se perto dos cento e vinte quilómetros por hora. Sempre que algo aparecia à sua frente, um longo toque de buzina afastava o animal ou pessoa para a margem, dando-lhe passagem livre.
Ele não tinha olhos para a beleza simples da tarde de verão. Seu foco estava na estrada que se desdobrava à frente. Passou pelo cruzamento de Newhaven e foi forçado a reduzir a velocidade quando a estrada romana desapareceu, substituída por uma estradinha rural sinuosa, que o levou sacolejando para cima e para baixo nos montes, por conversões fechadas e através de séries de curvas que desafiavam a velocidade. Tudo em que Podia pensar era nos dez homens e duas mulheres reunidos na sala do júri. Finalmente, ele passou pela pequena cidade de Ashbourne com sua feira livre e a estrada abriu-se à sua frente.
Ele imaginou se os jurados já teriam chegado a uma decisão quando chegasse lá. Achava que não, sem saber por quê. Embora desejasse acreditar que fornecera balas suficientes a Stanley para metralhar Hawkin, sabia que parte delas havia sido desviada pela defesa feita por Highsmith.
Enquanto entrava na ruazinha lateral junto ao prédio da prefeitura que abrigava o tribunal, alguém saiu de uma vaga no estacionamento justamente ao lado da porta lateral, o que ele considerou como um bom presságio resmungando isso para si mesmo ao enfiar-se na vaga. Entrou apressado no prédio, estranhando encontrá-lo quase vazio. As portas da sala do tribunal estavam abertas e não havia ninguém, exceto por um servente que lia o Mirror, sentado em uma das cadeiras.
George foi até lá e perguntou:
- Os jurados ainda estão deliberando?
- Sim, senhor - disse o homem, levantando a cabeça. George correu a mão pelos cabelos.
- Sabe onde posso encontrar a equipe da promotoria? O homem franziu o rosto.
- Provavelmente estão no hotel Lamb and Flag, do outro lado da praça. A cantina está fechada. - Ele enrugou a testa. - Você esteve aqui semana passada - disse, em tom acusador. - É o inspetor Bennett.
- Sim, sou eu - disse George, desanimado.
- Seu colega esteve aqui hoje - continuou o servente. - Aquele que parece um varapau.
- Sabe aonde ele foi?
- Disse que, se eu o visse deveria transmitir o recado para encontrálo no Lamb and Flag. É o único lugar em que se pode ter certeza de saber quando os jurados voltaram, sabe?
- Obrigado - disse George sobre o ombro, já saindo pela porta da frente e cruzando a praça até a antiga taberna. Quase tropeçou nas pernas de Clough enquanto cruzava a entrada principal. O sargento-detetive estava estirado em uma cadeira florida na recepção, com uma dose generosa de uísque em uma das mãos e um cigarro queimando em um cinzeiro de pedestal próximo a ele.
- Espero que você não tenha ficado preso no trânsito - disse Clough, endireitando-se. - Puxe uma cadeira. - Ele fez um gesto na direção de meia dúzia de cadeiras semelhantes à sua que se amontoavam em torno de minúsculas mesas redondas, enchendo a pequenina área na frente do balcão da recepção. O tecido colorido, com suas rosas em tons chocantes, contrastava violentamente com o vermelho e o azul profundos do carpete Wilton tradicional, mas nenhum dos homens percebeu ou se importou com isso. George sentou-se.
- Como você conseguiu isso? - perguntou, apontando para o uísque. Eles só abrem daqui a uma hora, no mínimo.
Clough piscou-lhe um olho.
- Conheci a recepcionista quando trouxe Wells lá de St. Albans Quer um?
- Não poderia recusar.
Clough foi até o balcão de madeira envernizada e debruçou-se sobre o móvel. George ouviu murmúrios e, ao voltar, o sargento lhe disse:
- Ela já vai trazer uma dose.
- Obrigado. E como foi o encerramento lá no tribunal?
- Bastante equilibrado para os dois lados. Nada que vá causar repercussões na Corte de Apelações. O juiz apresentou as provas, com bastante imparcialidade. Ele o fez parecer uma donzela que caiu em tentação, em um minuto e, no minuto seguinte, disse que alguém devia estar mentindo neste caso, e que os jurados precisariam decidir quem. Ele discorreu longamente sobre a diferença entre dúvida extravagante e dúvida razoável. Os jurados pareciam bem preocupados quando saíram.
- Obrigado por vir.
- Foi bem interessante.
- Eu sei, mas é seu dia de folga. Clough encolheu os ombros.
- Sim, mas Martin não me proibiu de vir, proibiu? George abriu um largo sorriso.
- Apenas porque não teve essa ideia. Onde estão todos aqueles repórteres, por falar nisso?
- Estão no andar de cima, no quarto de Don Smart, com uma garrafa de uísque. Um dos jornalistas daqui tirou o palito mais curto quando decidiram quem faria plantão no tribunal e ligaria para os outros tão logo o júri voltasse. Os advogados estão em uma sala reservada. Jonathan Pritchard está andando de um lado para o outro, como um pai que espera o nascimento do filho.
George suspirou.
- Sei como ele se sente.
- E por falar nisso, como está Anne?
George levantou as sobrancelhas, enquanto acendia um cigarro.
- Chateada com o que lê nos jornais. Esses dias quentes também a deixam abatida. Ela diz que se sente como se carregasse um saco de batatas na barriga. - Ele mordeu nervosamente a pele junto à unha de seu polegar. - Entre a gravidez e este caso, acho que não sobrou um nervo inteiro em todo o meu corpo. - Levantou-se de um pulo, indo até a janela mais próxima. Olhando para a praça, perto do tribunal, disse: - O que farei se o absolverem?
- Mesmo se ele se livrar da condenação por homicídio, ainda o pegarão por estupro - disse Clough. - Ninguém acreditará que você falsificou as fotos, não importa o que Highsmith tenha tentado fazer com sua reputação. Acho que o pior que pode acontecer é decidirem que você se empolgou muito ao encontrar as fotos e decidiu enquadrar Hawkin também por homicídio.
- Mas Ruth Cárter encontrou a arma antes de eu descobrir as fotos - protestou George, olhando com indignação para Clough.
- "Isso é o que ele diz", os jurados devem estar pensando. Olhe, não importa o que eles achem, não darão a ele o benefício da dúvida na acusação de estupro. Você estava lá quando eles viram as fotos. Naquele instante, os jurados ficaram contra Hawkin. Acredite, estão morrendo de vontade de descobrir um modo de considerá-lo culpado de ambas as acusações.
Agora venha, pegue sua bebida. Sente-se aqui e pare de se preocupar. Está me deixando nervoso - acrescentou, tentando em vão animá-lo.
George foi até a mesa, pegou sua bebida e voltou para a janela, detendo-se para olhar distraidamente um quadro vitoriano de cores sombrias,
representando uma caçada.
- Há quanto tempo estão reunidos?
- Uma hora e trinta e sete minutos - respondeu Clough, com uma breve olhada para seu relógio. Subitamente, o telefone na recepção tocou. George virou-se e olhou para a jovem atrás do balcão.
- Recepção do Lamb and Flag - disse ela, entediada. Olhou para George. - Sim, é possível. Em nome de quem? - Ela fez uma pausa e examinou o livro de hóspedes. - Senhor e senhora Duncan. A que horas chegarão?
Com um suspiro de frustração, George voltou a olhar para o prédio da prefeitura.
- Nunca entendi por que os jurados demoram tanto - queixou-se. - Deveriam apenas votar e seguir a decisão da maioria. Por que a votação precisa ser unânime? Quantos criminosos saem livres do tribunal porque um jurado teimoso não se deixa ser persuadido? Essas não são as pessoas mais espertas do planeta, não é?
- George, pode ser que isso leve horas. Podem levar a noite inteira e todo o dia de amanhã. Então, por que você não se senta, toma sua bebida e fuma seus cigarros? De outro modo, nós dois terminaremos em algum hospital, com pressão alta - disse Clough.
George suspirou pesadamente e arrastou-se até a cadeira.
- Tem razão. Sei que você está certo, mas estou inquieto demais. Clough puxou um baralho do bolso de sua jaqueta.
- Você joga cribbage?
- Não temos um tabuleiro.
- Não seja por isso. Doreen? - chamou Clough. - Tem como nos arranjar o tabuleiro de cribbage lá do bar?
Doreen lançou os olhos para cima, na expressão universal e irritada de "Homens!", e, então, desapareceu por uma porta no fundo da área da recepção.
- Você a treinou bem - comentou George.
- Faça sempre com que elas desejem mais, é o meu lema. - Clough cortou o baralho e distribuiu as cartas. Doreen voltou e colocou o tabuleiro entre os dois. - Obrigado, amorzinho.
- Veja bem quem você chama de amorzinho! - disse ela, jogando os cabelos para um lado enquanto voltava rebolando para trás do balcão em saltos altos demais.
- Estou vendo - disse Clough, alto o suficiente para que ela ouvisse. Normalmente, aquilo teria divertido George, mas hoje servia apenas para irritá-lo. Ele forçou-se a se concentrar nas cartas em sua mão, mas sempre que o telefone tocava, saltava como um homem picado por uma abelha.
Jogaram em um silêncio tenso, quebrado apenas para anunciarem resultados e pelo som da pedra do isqueiro quando um dos dois acendia um cigarro. Às seis e meia, haviam fumado quase vinte cigarros ao todo e tomado quatro grandes doses de uísque cada um. Quando chegaram ao fim da partida de desempate, George levantou-se.
- Preciso de ar fresco. Vou dar uma volta na praça.
- Eu lhe faço companhia - disse Clough. Deixaram as cartas e os copos sobre a mesa, depois que Clough anunciou a Doreen que pretendiam voltar.
A noite de verão estava agradável, e o centro da cidade estava vazio agora, exceto por algum trabalhador ocasional que fizera serão. Ainda era cedo demais para aqueles que pretendiam pegar uma sessão de cinema, e os dois homens tinham a praça mais ou menos para si. Pararam junto a uma estátua de George II, apoiando-se contra a base, enquanto fumavam mais um cigarro.
- Nunca me senti tão tenso em toda a minha vida.
- Sei como se sente - Clough respondeu.
- Sabe? Você está tranquilo como um bicho-preguiça, Tommy - protestou George.
- É só pose, George. Por dentro, meu estômago também está dando voltas. Sou melhor que você na arte de esconder meu nervosismo, só isso. Sabe o que você disse antes, sobre não saber o que fará se Hawkin sair dessa? Bem, eu sei exatamente o que farei. Vou me demitir e arranjar um emprego que não me dê úlceras. - Ele atirou longe o toco de cigarro e cruzou os braços na frente do peito, a boca formando uma linha fina em seu rosto largo.
- Eu... não fazia ideia.
- O quê? Não sabia que isso me perturbava tanto? Acha que é o único que fica acordado à noite, imaginando o que aconteceu com Alison Cárter? - indagou Clough, em tom azedo.
George esfregou o rosto com as duas mãos, empurrando para trás os cabelos em desalinho.
- Não, acho que não.
- Ela não tem mais ninguém que lute em seu favor - disse Clough, com raiva. - E se ele sair dessa livre hoje à noite, teremos fracassado com a menina.
- Eu sei - murmurou George. - E sabe de outra coisa, Tommy?
- O quê?
George sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado.
- Não acredito que cheguei a pensar nisso, e menos ainda que posso dizer em voz alta, mas...
Clough aguardou. Depois perguntou:
- Chegou a pensar o quê?
- Quanto mais leio nos jornais que sou um policial corrupto que armou tudo para condenar Hawkin, mais fico pensando que talvez devesse ter feito mesmo tudo o que pudesse para deixar a coisa toda bem mais explícita - falou, com amargura. - Vê como tudo isso me abalou?
Antes que Clough pudesse responder, os dois perceberam uma saída em massa do Lamb and Flag, liderada pelos advogados, suas togas flanando à sua volta como asas negras, com a velocidade de seus passos. Atrás deles, os jornalistas precipitavam-se rumo às portas, alguns ainda vestindo seus paletós e enfiando os chapéus. Clough e George olharam-se, respirando fundo.
- É agora - sussurrou George.
- Lá vamos nós, chefe.
Subitamente, a rua fervilhava. Carters, Crowthers e Lomas vinham do oeste, onde o proprietário de um café percebera que podia lucrar um pouco mais se permanecesse aberto enquanto os habitantes de Scardale desejassem um chá ou batatas fritas. A mãe de Hawkin veio do sul, acompanhada do casal Wells, de St. Albans. Todos convergiram para a entrada lateral, onde o afunilamento forçou-os a uma proximidade incómoda. George poderia ter jurado que a senhora Hawkin aproveitara a oportunidade para lhe dar uma forte cotovelada nas costelas, mas já nem se importava com isso. De algum modo, todos passaram e tomaram seus assentos na sala do tribunal. Enquanto se ajeitavam como um bando de pássaros nas árvores da cidade ao pôr-do-sol, Hawkin foi trazido, entre os dois policiais que já haviam se colocado ao seu lado em cada dia do julgamento. Parecia melancólico e mais cansado que na semana anterior, na opinião de George. Hawkin olhou à sua volta e conseguiu dar um pequeno aceno para a mãe, na parte reservada ao público. Desta vez, não sorriu para George, enviando-lhe apenas um olhar frio e indecifrável.
Todos levantaram-se desajeitadamente para receber o juiz, resplandecente em seus trajes suntuosos de púrpura e arminho e o chefe de polícia Finalmente chegara o momento que todos temiam, cada um por suas próprias razões. Os jurados acomodaram-se, tendo o cuidado de não olhar diretamente para ninguém. George tentou engolir, mas sua boca estava seca. As pessoas acreditavam que, quando o júri evitava olhar para o acusado, este seria condenado. Sua própria experiência era que os jurados nunca olhavam para o réu ao voltarem para o veredicto. Qualquer que fosse a decisão, parecia que havia algo vergonhoso em julgar um outro membro qualquer da sociedade.
O representante eleito dos jurados, um homem de meia-idade com rosto estreito, bochechas rosadas e óculos de aro de tartaruga, permaneceu de pé quando os outros sentaram-se, com o olhar fixo no juiz.
- Membros do júri, chegaram a um consenso em seu veredicto? O representante dos jurados assentiu e respondeu:
- Sim.
- E o que decidiram a respeito da primeira acusação?
- Culpado.
Um suspiro coletivo pareceu percorrer o ar no grande salão. George sentiu que o nó em seu estômago começava a se desfazer.
- E da segunda acusação?
O representante dos jurados limpou a garganta, antes de responder:
- Culpado.
Um murmúrio crescente encheu o ar, como o zumbido de abelhas em torno da colmeia à noite. George não sentiu qualquer vergonha do seu prazer ao ver a expressão devastada de Hawkin. A cor desapareceu daqueles traços atraentes, deixando seu rosto tão sem vida quanto um desenho a bico-de-pena. Sua boca abriu-se e fechou-se, como se lutasse para sorver o ar.
George espiou a turma de Scardale, em busca de Ruth Cárter. Naquele momento, ela virou em sua direção e seus olhos encheram-se de lágrimas, com a boca aberta transmitindo seu alívio e dizendo, sem palavras, um "obrigada", antes de se voltar para os braços protetores de seus parentes.
- Silêncio no tribunal! - comandou um funcionário.
O murmúrio cessou e todos se voltaram para o juiz. A expressão de Fletcher Sampson era muito dura e solene.
- Philip Hawkin, tem algo a dizer antes de a sentença ser pronunciada, de acordo com a lei?
Hawkin levantou-se e agarrou-se à borda da pequena mureta à sua frente. A ponta de sua língua apareceu em um e depois no outro canto de sua boca. Então, com intensidade desesperada, ele disse:
- Eu não a matei. Meritíssimo, eu sou inocente.
Pelo efeito de suas palavras sobre o juiz, Hawkin poderia muito bem ter poupado seu fôlego.
- Philip Hawkin, de acordo com o veredicto, os jurados consideraram-no culpado pelo estupro de sua enteada, Alison Cárter, uma menina de treze anos, e consideraram-no culpado por seu homicídio, depois. O fato de ter sido usada uma arma de fogo neste crime concede-me o direito de pronunciar a sentença que a lei permite e a justiça exige. - Em silêncio absoluto, ele pegou o pano preto e o pousou com cuidado sobre a peruca. Hawkin vacilou, mas o policial ao seu lado agarrou seu cotovelo e forçou-o a ficar de pé.
Sampson olhou para o cartão à sua frente, que continha as palavras decisivas. Depois, levantou a cabeça e encontrou o olhar desvairado do assassino de Alison Cárter.
- Philip Hawkin, você será levado ao lugar de onde veio e, deste, para um lugar de execução segundo a lei, onde será pendurado pelo pescoço até a morte. Depois, seu corpo será enterrado em uma vala comum nos limites da prisão na qual esteve confinado por último antes de sua execução; e que o Senhor tenha piedade de sua alma.
Em meio ao silêncio chocado que reinava, uma voz feminina gritou:
- Não!
- Policiais, levem o prisioneiro - ordenou Sampson.
Quase tiveram de carregar Hawkin para fora. O choque parecia ter destruído sua capacidade para caminhar. George entendia a reação. Suas próprias pernas pareciam incapazes de suportar seu peso. De repente, ele descobriu-se no centro de um grupo de pessoas que desejavam cumprimentá-lo. Charlie Lomas, Brian Cárter, até mesmo Mamãe Lomas gritavam-lhe
Início de Nota de Rodapé: Enquanto houve pena de morte na Inglaterra, os juízes colocavam um pano preto sobre a peruca para proferir a sentença capital. Fim de Nota.
parabéns. Toda a reserva que sempre julgara característica dos moradores de Scardale dissipara-se com o julgamento e sentença de Hawkin. O rosto de Pritchard apareceu em seu campo de visão.
- Ligue para sua esposa e diga-lhe que ficará em Derby hoje - gritou ele. - Temos champanhe para comemorar, no hotel.
- Tudo a seu tempo - gritou-lhe Mamãe Lomas. - Ele beberá com o povo de Scardale antes. Venha, George, não pretendemos perdê-lo de vista até beber com cada um de nós. E traga aquele sargento que sempre está ao seu lado.
Com a cabeça girando e o estômago inquieto, George Bennett foi levado para a rua. Contra todas as probabilidades, triunfara. Dera a Alison Cárter a justiça que ela merecia. Desafiara seus chefes, os princípios do sistema legal inglês e os terríveis caluniadores da imprensa. E triunfara.
O lugar da execução
Na noite de quinta-feira, 27 de agosto de 1964, dois homens desceram do trem na estação de Derby, cada um deles levando consigo uma pequena valise. Nenhum de seus companheiros de viagem lhes dera uma segunda olhadela, mas uma viatura policial esperava-os, para transportá-los pelas ruas da cidade até a prisão em que Philip Hawkin estava, vigiado por dois guardas da penitenciária, até o dia de sua morte. Mais tarde, naquela noite, o mais velho dos dois homens deslizou para o lado a tampa da portinhola que lhe permitia olhar para dentro da cela do condenado. Ele viu um homem moderadamente alto, cujo corpo havia se livrado de cada grama de gordura que não fosse absolutamente necessário. Ele andava pela cela com um cigarro queimando entre os dedos. O homem que o espiava não viu nada que contradissesse os cálculos que havia feito com base no pedaço de papel que lhe deram e que dizia: "Um metro e setenta e sete centímetros, sessenta e dois quilos". Uma queda de dois metros e vinte centímetros serviria.
Hawkin havia passado a noite acordado, dedicando parte do tempo a escrever uma carta para sua esposa. De acordo com o sargento-detetive Clough, a quem Ruth Cárter mostrou a carta, ele ainda afirmava inocência.
Embora eu tenha cometido muitos erros, matar sua filha amada não foi um deles. Cometi muitos pecados e crimes em minha vida, mas não o crime de homicídio. Eu não deveria ser enforcado por algo que não fiz, mas meu destino está selado agora, porque outras pessoas mentiram. Meu sangue está na consciência desses mentirosos. Não a culpo por ter acreditado neles. Acredite quando digo que não sei o que aconteceu com Alison. Não tenho mais nada a perder, exceto minha vida, e esta me será roubada pela manhã, de modo que não tenho nenhum motivo para lhe mentir. Sinto muito por não ter sido um marido melhor.
A menos de dez quilómetros dali, no outro lado da cidade, George Bennett também estava acordado, fumando na janela aberta do quarto, na casa que era seu lar desde sua transferência de Buxton, um mês antes. Entretanto, o que atrapalhava seu sono não era o destino de Philip Hawkin. Às sete e cinquenta e três da noite anterior, Anne retesara-se na cadeira e gemera, sentindo uma dor súbita. George correra em seu auxílio, para ajudá-la a colocar-se de pé. Chegara o momento pelo qual ansiavam havia duas semanas, desde que a data prevista para o nascimento do filho passara, sem sinal de trabalho de parto. Todos lhe haviam dito que o primeiro bebé muitas vezes atrasava, mas isso não o havia tranquilizado. Antes de terem chegado à porta da sala, sem qualquer aviso e para surpresa total de George, um líquido claro derramara-se pelas pernas de Anne. Ela descera a escada com dificuldade e garantira-lhe que isso era perfeitamente normal, mas que chegara a hora de ir para o hospital, apontando para a pequena mala no canto da sala, já pronta e à espera daquele momento.
Meio desnorteado pela preocupação, George ajudara a esposa a entrar no carro e correra para buscar a maleta. Depois, dirigira como louco pelas ruas tranquilas, atraindo olhares irritados de senhoras respeitáveis e admirados, de jovens rapazes que se reuniam nas esquinas. Ao chegarem ao hospital, Anne gemia de dor em intervalos de minutos.
Quase antes que pudesse registrar em seu cérebro tudo o que acontecia, Anne foi levada para o estranho mundo da ala da maternidade, um lugar onde nenhum homem que não portasse um estetoscópio seria admitido. Apesar de seus protestos, George foi firmemente encaminhado à recepção, onde soube, por uma enfermeira que bem poderia pertencer ao regimento do superintendente Martin por seus modos austeros, que poderia ir para casa, já que sua presença ali não beneficiaria nem sua esposa nem a equipe médica.
Perplexo e desorientado, ele se descobrira no estacionamento, sem sequer saber como chegara ali. O que deveria fazer agora? Anne havia lido muitos livros, preparando-se para a maternidade, mas ninguém dissera a ele o que deveria fazer. Depois que o bebé nascesse, o ritual era mais fácil. Essa parte ele conhecia. Charutos para os rapazes, depois uns drinques para brindar a chegada do herdeiro. Mas como preencher o tempo até aquele momento? E por falar nisso, quanto tempo levaria?
Com um suspiro, ele entrou no carro e rumou para casa. Ao chegar à pequena casa geminada, idêntica àquela que habitara em Buxton, exceto pela falta do jardim lateral, seu primeiro ato foi agarrar o telefone e ligar para o hospital.
- Nada acontecerá durante algumas horas - disse-lhe uma enfermeira nada amistosa. - Por que não vai dormir cedo e nos liga novamente de manhã?
George pousara o telefone no gancho, frustrado. Nem conhecia suficientemente seus novos colegas do departamento de investigações criminais para ligar e sugerir que se encontrassem para um drinque. Estava prestes a atacar a garrafa de uísque que guardava dentro do aparador da sala quando o telefone tocou, assustando-o a ponto de deixar cair um dos copos de cristal que ganhara de presente de casamento.
- Droga! - exclamou, enquanto atendia o telefone.
- Liguei em má hora, George? - o tom brincalhão de Tommy Clough era tão bem-vindo aos seus ouvidos quanto a confissão de um alcagúete.
- Acabei de deixar Anne na maternidade, mas, fora isso, estou bem. O que posso fazer por você?
- Consegui trocar meu plantão de amanhã com alguém. Achei que seria boa ideia presenciar o enforcamento daquele canalha pela manhã. E, depois, achei que poderíamos beber até cair. Mas parece que você já tem compromisso.
George agarrou o telefone como se este fosse uma bóia salva-vidas, e ele um homem prestes a se afogar.
- Venha até aqui. Estou precisando de companhia. Aquelas enfermeiras agem como se os homens não tivessem nada a ver com bebés.
Tommy riu.
- Há um motivo para isso, mas como você é um homem casado, não vou cansar seus ouvidos. Chego aí em uma hora, mais ou menos.
George preencheu parte do tempo indo até o bar mais próximo e comprando garrafas de cerveja como complemento para o uísque. No final das contas, acabaram bebendo muito pouco, ambos afetados, por motivos diversos, pela magnitude dos eventos que se desdobravam à sua volta.
Em algum momento após a meia-noite - e depois do quarto telefonema de George para a maternidade -, Clough havia ido dormir no quarto de hóspedes. O que manteve George acordado, porém, não foi o ruído suave de seu ronco. Enquanto a noite transformava-se em alvorecer, sua mente insistia em lhe trazer imagens do sofrimento de Alison Cárter mescladas ao sofrimento de sua própria esposa, até não ser mais capaz de distinguir entre ambas. No fim, quando o céu já se iluminara, ele cochilou, encolhido como um feto, em um canto da cama.
O despertador acordou-o às sete e ele abriu os olhos de uma vez, totalmente alerta. Será que já era pai? Ele esticou as pernas e atravessou de um pulo o quarto, quase tropeçando enquanto corria escadas abaixo até o telefone. O tom de voz de quem o atendeu era o mesmo, embora o sotaque fosse diferente. Não havia novidade. Podia perceber o recado que tentavam lhe dar: pare de nos incomodar!
Os cachos desgrenhados e os olhos vermelhos de Clough apareceram no andar superior.
- Alguma novidade?
- Nada ainda.
- É estranho - disse Clough, com um bocejo. - Anne entrar em trabalho de parto logo agora.
- Nem tanto. A data do parto era duas semanas atrás. As vezes, a ansiedade desencadeia o trabalho de parto, de acordo com um dos livros que ela andou lendo. E ela teve mais do que devia, em termos de ansiedade, por causa desse caso - disse George, subindo novamente a escada. Primeiro, teve de suportar minha ausência enquanto eu virava a noite trabalhando na investigação inicial, e depois teve de ler toda aquela porcaria publicada pelos jornais, sobre eu ser tão corrupto a ponto de mandar um inocente para a forca. Depois da apelação, teve de ler tudo isso de novo. ultimamente ficava o tempo todo pensando no fato de alguém ser enforcado porque fiz o meu trabalho. - Ele parou no alto da escada e balançou a cabeça, com sua franja loira e despenteada esvoaçando com o movimento. - É um milagre não ter abortado.
Clough pousou a mão em seu ombro.
- Ah, pare com isso. Vamos nos vestir e sair para tomar café. Há um bom lugar, perto da estrada da penitenciária.
George ficou paralisado.
- Você pretende ir até lá?
- E você não?
George parecia surpreso.
- Vou para a delegacia. Alguém me comunicará quando tudo terminar.
- Não vai comigo à penitenciária? Todos estarão lá, Lomas, Carters e Crowthers. É você que eles querem ver.
- Será? - perguntou George, com um pouco de amargura. - Bem, terão de se contentar com você, Tommy.
Clough sacudiu os ombros.
- Sempre achei que se tive alguma coisa a ver com o enforcamento de um homem, deveria assumir as consequências.
- Desculpe-me, mas não tenho estômago para isso. Vou lhe pagar um café da manhã na cantina da delegacia, mas depois você vai sozinho até lá, se quiser.
- Tudo bem, então.
George virou-se e foi para o banheiro.
- George? - chamou Clough, em voz baixa. - Não há por que se envergonhar. Não há nada pior neste emprego, nem mesmo comunicar a morte de uma criança à sua mãe. Mas você precisa aprender a conviver com essas coisas. Eu já aprendi, e você também acabará aprendendo. Esqueça o café da manhã. Eu o encontro depois. Podemos sair hoje à noite e, aí sim, encher a cara.
Eram oito e cinquenta e nove e George olhava o ponteiro dos segundos em Seu percurso em torno do mostrador. O padre devia estar terminando sua oração com Hawkin agora. Ele imaginou como Hawkin estaria se sentindo. Aterrorizado, com certeza. Talvez tentasse ter um pouco de dignidade.
O ponteiro chegou ao número 12 e o relógio da igreja próxima deu a primeira de nove badaladas. As portas duplas da cela do condenado se abririam e Hawkin andaria os últimos seis metros de sua vida. O carrasco estaria atando seus pulsos com a correia de couro.
A segunda badalada. Agora, o carrasco está caminhando à frente de Hawkin, com seu assistente atrás, mantendo o ritmo tão uniforme quanto possível - os assassinos oficiais tentando agir como se estivessem apenas caminhando na praça.
A terceira badalada. Hawkin está na forca agora, com os pés plantados em cada lado das portas duplas da armadilha que se abrirá e levará sua vida com aquele ato.
Quarta badalada. O carrasco vira-se para encarar o condenado, estendendo as mãos para mantê-lo imóvel, enquanto seu assistente agacha-se e ata juntas as pernas de Hawkin.
Quinta badalada. O saco de linho aparece como se por mágica. O carrasco enfia-o na cabeça de Hawkin, com a facilidade da prática. Agora tudo corre mais rápido, porque ninguém precisa olhar para o homem que estará morto em um minuto. Seus olhos pararam de implorar e de fitá-los com o pânico medonho do animal condenado. O carrasco puxa o saco para baixo e ajeita-o em torno do pescoço, de modo que o pano não se enfie no olho do laço.
Sexta badalada. O carrasco desliza o laço pela cabeça do condenado, verificando se a peça de metal que agora substitui o nó corrediço tradicional está posicionada atrás das orelhas de Hawkin, para velocidade máxima no processo de fratura e deslocamento que torna o enforcamento teoricamente rápido e relativamente indolor.
Sétima badalada. O carrasco dá um passo para trás e sinaliza para seu assistente, que puxa a cavilha que age como medida de segurança no mecanismo da forca. Depois, quase no mesmo instante, o carrasco puxa a alavanca.
Oitava badalada. A armadilha abre-se e Hawkin mergulha para a queda fatal.
Nona badalada. Acabou.
George sabia que suava sobre o lábio. Podia ver sua mão trémula enquanto a estendia para pegar os cigarros. Pequeninos gestos humanos que Hawkin perdera para sempre, como Alison Cárter também já perdera. George percebeu que prendera o fôlego apenas ao soltar o ar. Ele esfregou a face, sentindo a pele áspera com algo parecido com gratidão.
Quando o telefone tocou, ele reagiu com um pulo.
Dentro do mesmo período de cinco minutos, Philip Hawkin deixara o mundo dos vivos e Paul George Bennett uníra-se a eles.
Tommy Clough e George nunca chegaram a se encontrar para aquela rodada de bebidas.
Livro 2
Primeira parte
1 Fevereiro de 1998
Até mesmo o pálido sol de inverno dava contornos dramáticos ao White Peak. O azul frio do céu contrastava com o verde desbotado dos campos, que pareciam ter-se contaminado com uma nuança de cinza das paredes de calcário. Havia mais tons de cinza do que se poderia considerar possível; o branco-sujo dos abismos de calcário, estriados e manchados com um espectro que ia do cinza-claro, passava pelo cinzento dos navios de guerra e chegava ao quase preto; os tons mais escuros dos estábulos e casas que pontuavam a paisagem; o cinza fosco dos telhados de ardósia salpicados com o branco da geada onde o sol não chegava; o cinza sem graça dos carneiros da charneca. Ainda assim, o que dominava a paisagem era o verde e o azul da grama e do céu.
O carro esportivo vermelho que trafegava tranquilamente pela estrada rural estreita destacava-se como um papagaio exótico em uma floresta inglesa. Quando a igreja metodista surgiu à direita, a mulher loira ao volante pisou levemente no freio. O carro diminuiu a velocidade gradualmente e ela trocou de marcha quando avistou uma placa na estrada da qual não se lembrava. Apontando para uma entrada estreita à esquerda, ela dizia: "Scardale 1".
Finalmente, pensou. A placa estranha era um lembrete oportuno de que o mundo havia mudado. Agora, as pessoas que não sabiam aonde estavam indo precisavam ter um modo de encontrar Scardale. Se ela tivesse o sucesso que esperava, muitas outras pessoas desejariam ver a placa. Com um tremor de excitação, ela virou o volante. Embora recordasse vagamente as subidas e descidas súbitas da estrada sinuosa, achou melhor ir devagar. As paredes altas de calcário haviam mantido o sol fraco de fevereiro afastado da estrada de uma pista, que ainda estava coberta pela geada, exceto onde o tráfego anterior expunha o asfalto preto. Não seria um começo auspicioso para o projeto se acabasse derrapando e danificasse sua pintura.
Catherine Heathcote não sentiu surpresa quando as paredes rochosas subitamente deram lugar a abismos profundos de calcário listrado. O que lhe causou surpresa foi a ausência do portão no fim da estrada, que demarcava a propriedade particular. Agora, as únicas indicações de que certa vez Scardale isolara-se deliberadamente da civilização eram os marcos de pedra e os mata-burros, que os pneus largos de seu carro cruzaram com sacolejos suaves.
Catherine percebeu que nada mudara muito por ali. O Rochedo do Escudo e o Rochedo de Scardale ainda dominavam o vale. Os carneiros ainda pastavam em segurança, embora os ditames da moda tivessem imposto um rebanho de carneiros de Jacó entre as ovelhas mais resistentes e comuns àquela região. Os ajuntamentos de árvores estavam mais velhos, era verdade, mas haviam sido bem cuidados, com novas mudas substituindo as árvores que haviam sido cortadas ou morrido por causa do clima inclemente. Contudo, ainda se tinha a sensação de entrar em um universo paralelo, deixando para trás o mundo normal, pensou Catherine. Apesar de todas as mudanças que percebia, ela poderia ter voltado a ser criança, espiando do banco traseiro sobre os ombros de um adulto enquanto entravam neste mundo remoto para descobrirem a fonte misteriosa do rio Scarlaston em uma tarde de domingo durante o verão.
Apenas ao aproximar-se da praça da aldeia ela percebeu uma mudança real - pelo menos aparentemente. Nos anos que se haviam passado desde a execução de Hawkin, Scardale vira tempos de prosperidade. Ela lembrou de tudo que descobrira desde que escrevera sobre o assassinato de Alison Cárter pela primeira vez, uns doze anos antes, em um artigo de jornal suscitado por um novo caso de homicídio "sem corpo". As pesquisas de Catherine nos arquivos do jornal e entre as companheiras de bridge de sua mãe haviam revelado que, ao herdar o vale e a aldeia do marido, Ruth Hawkin decidira afastar-se das recordações. Ela vendera o solar e estabelecera um fundo para administrar a terra e a fazenda inteira. Os inquilinos haviam recebido a opção de comprar as casas em que moravam e, durante os anos seguintes, algumas haviam sido vendidas a pessoas de fora. Não conseguira localizar Ruth Hawkin, que recusara todas as tentativas de Catherine para uma entrevista, através do advogado que administrava sua herança.
Inevitavelmente, o processo desencadeado pelas ações de Ruth levou a uma revitalização da aldeia. As casas receberam pintura nova, jardins apareceram do nada e, mesmo no meio do inverno, açafrões precoces, íris anãs, e campainhas brancas salpicavam de cor a paisagem. E, é claro, os automóveis haviam invadido a praça da aldeia, onde antes havia apenas Land Rovers velhos e o Austin Cambridge do dono das terras. Um quiosque moderno de acrílico havia substituído o antigo telefone público vermelho, mas a pedra em que ele se apoiava ainda estava lá, com sua inclinação familiar. Mesmo com carros modernos e casas mais alegres, em uma tarde fria como esta não era difícil imaginar Scardale como havia sido quando ela fora ali pela primeira vez na infância e, depois, sem o olhar inocente, na adolescência.
Estava com dezesseis anos então. Dois anos e meio haviam passado desde o assassinato de Alison Cárter, e o namorado de Catherine tinha uma lambreta. Ela o persuadira a irem até Scardale em uma tarde de primavera, para poderem ver por si mesmos o lugar onde tudo acontecera. Ela admitia, com um pouco de vergonha, que seu motivo era uma curiosidade macabra. Naquela idade, o objetivo de qualquer coisa que se fizesse era chocar, mas não haviam tido coragem - nem calçados apropriados - para enfrentar o matagal e encontrar a antiga mina. Contudo, as carícias trocadas em meio às árvores atrás do solar pareceram mais excitantes por causa da notoriedade do lugar.
Agora ela percebia que aquilo também servira como um exorcismo ao horror em que se transformara o julgamento de Philip Hawkin. Naturalmente, a maioria dos detalhes havia sido encoberta pelos eufemismos sensacionalistas do jargão jornalístico, mas Catherine e todas as suas amigas sabiam que algo pavoroso havia acontecido com Alison Cárter, o tipo de coisa sobre a qual todos os adultos as alertavam que poderia acontecer se caíssem nas mãos de estranhos. Tudo fora ainda mais assustador porque Alison Cárter sofrera nas mãos de alguém que conhecia e em quem deveria confiar. Para Catherine e suas amigas, todas de famílias de classe média, preservadas das agruras da vida, a ideia de que o lar não era necessariamente um lugar seguro havia sido profundamente perturbadora.
Em um nível mais mundano, o acontecimento havia colocado limitações em suas vidas, impostas pelos pais e por elas mesmas. As garotas agora tinham de estar sempre acompanhadas, exatamente em uma época em que o resto dos adolescentes britânicos descobria a liberdade dos anos 60. O destino de Alison dera à adolescência de Catherine uma escuridão até então desconhecida, e ela nunca mais conseguira esquecer nem o caso nem a vítima. Mais que qualquer outro fator isolado, isto provavelmente influenciara sua própria decisão de sacudir a poeira de Buxton de seus sapatos tão logo pudesse. Universidade em Londres, depois um trabalho de cão em uma agência de notícias e finalmente um emprego como jornalista permitiram-lhe cortar os laços com o passado, enchendo sua vida de rostos novos e novas paixões, sem nenhum apego às recordações da adolescência.
À medida que subia os degraus em sua carreira, Catherine imaginara, muitas vezes, qual teria sido o futuro de Alison. Não que estivesse obcecada por isso, dizia a si mesma. Apenas contagiara-se da curiosidade natural que deveria afligir qualquer jornalista que tivesse crescido à sombra de um caso tão estranho e inquietante.
E agora, milagrosamente, ela seria a responsável por retirar o véu do passado e revelar a história por trás da história. Considerava aquilo bem apropriado. Não poderia haver outro jornalista mais qualificado para contar esta verdade.
Catherine saiu do carro e fechou sua jaqueta, enfiando o lenço que protegia seu pescoço bem para dentro. Cruzou a praça e passou pela escadaria que levava à trilha até o arvoredo em que Shep havia sido encontrada e, mais adiante, à nascente do Scarlaston.
Enquanto ouvia os estalos da grama congelada sob os pés, não pôde evitar a recordação da última vez em que estivera em Scardale, comparando-a com esta. Era uma tarde quente de julho, dez anos antes, e o sol tórrido brilhava em um céu de azul metálico, com as árvores servindo como um alívio abençoado do calor. Catherine e alguns amigos haviam alugado um chalé em Dovedale, que serviria como base para longas caminhadas de férias na região de Peaks. Uma das trilhas seguidas subia o Scarlaston, vindo de Denderdale até Scardale. Suados e esbaforidos após a aventura, eles haviam chamado um táxi do telefone público na praça e então se sentaram num muro, fofocando sobre seus colegas londrinos, enquanto esperavam. Catherine nem mencionara Alison, estranhamente supersticiosa no que dizia respeito a dividir a história com outros jornalistas.
Jamais lhe ocorrera, na época, que conseguiria persuadir George Bennett a romper seu silêncio de trinta e cinco anos e falar sobre o caso. Embora ela nunca tivesse esquecido Alison Cárter, escrever o livro definitivo sobre um dos casos mais interessantes do século sequer estivera em seus planos.
Isto certamente não lhe passara pela cabeça no outono anterior, em Bruxelas. Entretanto, em sua experiência, as melhores histórias nunca eram aquelas que se procuravam muito. Em sua mente, não havia nenhuma dúvida de que esta seria a melhor matéria de sua carreira.
2
Outubro de 1997-fevereiro de 1998
A chuva pesada caía sem parar. Isto seria suportável, se ela estivesse confortável e aconchegada em um bar envidraçado com vista para a GrandPlace, com um café irlandês aquecendo suas mãos enquanto se alegrava com a infelicidade daqueles que corriam com seus guarda-chuvas contra o vento na rua. Mas, ficar de pé em uma tarde chuvosa de quarta-feira, em um prédio de concreto que mais parecia uma caixa, com vista apenas para outros prédios de escritórios, enquanto esperava que uma política sueca lembrasse que haviam marcado hora, não era sua ideia de diversão. Não era absolutamente o que tivera em mente ao planejar sua pequena excursão à Europa.
Embora Catherine fosse a editora de uma revista feminina mensal, jamais perdera seu gosto pelas matérias jornalísticas que haviam construído sua carreira. De tempos em tempos, gostava de fugir da tensão da burocracia quotidiana e da política ridícula do escritório. Sua desculpa era a necessidade de continuar em contato com seu lado criativo e manter-se em dia com as diferentes circunstâncias enfrentadas pelos escritores a quem dava emprego. Assim, periodicamente, ela inventava uma pauta que lhe permitia fazer pesquisas, entrevistas e a própria redação da matéria.
Ela imaginara que seria interessante fazer uma série de entrevistas com mulheres em funções importantes na sede da União Europeia. Não contara com a burocracia interminável e com o mau tempo. Sem mencionar o fato
Início de Nota de Rodapé: La Grand-Place, em Bruxelas, é um conjunto arquitetônico homogéneo, composto de prédios particulares e públicos, construídos principalmente no fim do século XVII. Fim de Nota.
de que reuniões sempre atrasavam e ninguém chegava no horário para as entrevistas. Suspirando, Catherine pegou o telefone na sala de conferências e ligou para o seu contato, um assessor de imprensa britânico chamado Paul Bennett. Esperara que ele fosse frio e arrogante, como a maior parte dos assessores de imprensa do governo, mas tivera uma agradável surpresa. Depois de descobrirem que ambos haviam crescido em Derbyshire, o relacionamento tornara-se ainda mais afável, e Paul conseguira contornar a maior parte das dificuldades até agora.
- Paul? É Catherine Heathcote. Sigrid Hammarqvist não apareceu.
- Ah, mas que droga - disse ele, irritado. - Pode esperar um minutinho?
Uma música clássica berrou em seus ouvidos, com os violinos parecendo um bando de mosquitos irritados. Às vezes, Catherine gostaria de poder distinguir uma música clássica de outra, mas duvidava que isso lhe pudesse ser útil em um momento como este. Ela afastou o aparelho da orelha para evitar a irritação, mas deixou-o próximo o suficiente para ouvir quando Paul voltasse. Alguns minutos depois, ele falou:
- Catherine, acho que tenho más notícias. Ou boas, dependendo de sua opinião quanto à senhora Hammarqvist. Ela teve de ir a uma reunião em Estrasburgo e só voltará amanhã, mas a secretária prometeu marcar você para amanhã às onze. Pode ser?
- Agora é minha vez de dizer "mas que droga!" - disse Catherine, contrariada. - Eu esperava poder voltar à Inglaterra hoje à noite.
- Desculpe - disse Paul. - Os escandinavos têm uma tendência para ver os jornalistas como seres muito no final da cadeia alimentar para merecerem sua consideração.
- Não é sua culpa. De qualquer forma, obrigada por tentar me ajudar. E pelo menos ganhei outra noite na ensolarada Bruxelas - acrescentou, com ironia.
Paul riu.
- Ah, é verdade. Olhe, não gosto de imaginá-la sozinha num lugar estranho. Se você não tiver outros planos, por que não vem tomar alguma coisa no nosso apartamento?
- Ah, não se preocupe - disse Catherine, com despreocupação profissional.
- Não estou convidando apenas por obrigação - insistiu ele. - Eu gostaria que você conhecesse Helen.
Catherine lembrou-se da companheira de Paul, uma tradutora e intérprete da Comissão da União Europeia.
- Tenho certeza de que isso é exatamente o que ela deseja, depois de mais um dia na torre de Babel - falou, com ironia.
- Ela lê sua revista todos os meses, e me matará se eu deixar passar a chance de levá-la para beber uma ou duas taças de vinho conosco. Além disso, ela também é de Derbyshire - acrescentou ele, como se isso decidisse tudo.
De qualquer modo, algo fez com que Catherine tomasse a decisão, pois logo depois das sete da noite ela estava dando beijinhos no ar, em vez de no rosto de Helen Markiewicz. Este não era exatamente o cumprimento típico de Derbyshire, pensou ela com ironia, enquanto avaliava a companheira de Paul. Ela certamente era a imagem do público-alvo da revista de Catherine. Trinta e poucos anos, cabelos escuros e curtos num corte rebelde, caindo para a frente sobre uma testa ampla. Seu rosto tinha formato de coração, com sobrancelhas retas e negras, maçãs do rosto altas e um sorriso amplo. Sua maquiagem era sutil, mas eficiente, exatamente como as páginas da seção de estilo recomendavam para mulheres bem-sucedidas. Helen parecia vagamente familiar, e Catherine imaginou se já passara por ela nos corredores dos prédios da Comissão da União Europeia nos quais estivera nos últimos dias. Alguém tão cheia de estilo e tão bonita teria atraído seu olhar, ainda que inconscientemente. Era compreensível que Paul quisesse mostrá-la.
Enquanto Paul servia taças generosas de vinho tinto, as duas mulheres acomodaram-se em cantos opostos de um sofá fofo e informal.
- Paul me disse que Hammrqvist lhe deu um bolo - disse Helen, com os traços de um sotaque de Yorkshire ainda fortes em sua voz. - Deve ser como se encher de coragem para ir ao dentista e, chegando lá, descobrir que ele saiu mais cedo.
- Ela não é tão ruim - protestou Paul.
- Não se comparada com a mãe do capeta - disse Helen, de modo obscuro.
- Tenho certeza de que Catherine não a deixará escapar.
- Ah, disso eu tenho certeza, amor. - Helen lançou um sorriso luminoso para Catherine. - Ele lhe contou que sou sua fã número um? Falo sério, tenho até assinatura da revista.
- Estou impressionada - disse Catherine. - Mas me diga, como vocês dois se conheceram? É um Euro-romance?
- Olhe só, Helen, ela já está preparando a edição do Dia dos Namorados do ano que vem!
- Nem todo mundo leva trabalho para casa - falou Helen, provocando-o. - Nós nos conhecemos em Bruxelas. Paul foi a primeira pessoa que conheci na comissão com um sotaque do norte da Inglaterra, de modo que nos identificamos imediatamente.
- E eu a persegui como louco, de modo que não lhe dei chance de escapar - acrescentou Paul, olhando para Helen.
- De onde você é, Helen?
- De Sheffield.
- Perto de onde eu cresci, Buxton. Helen concordou com um gesto de cabeça.
- Minha irmã anda por lá nos últimos tempos. Você conhece um lugar chamado Scardale?
Catherine reconheceu o nome, surpresa.
- Claro que conheço Scardale.
- Jan mudou-se para lá alguns anos atrás.
- É mesmo? Mas por que Scardale?
- Uma dessas coisas que acontecem. Minha tia viveu conosco durante anos e, então, herdou uma casa em Scardale de um parente distante de seu falecido marido. Algum primo em segundo grau, algo assim. Quando minha tia faleceu, a casa ficou para nossa mãe. E quando mamãe morreu, três anos atrás, ela deixou-a para nós duas. Sempre esteve alugada, mas Jan achou que seria bom viver no campo, de modo que comunicou aos inquilinos e, depois, retomou a casa. Eu ficaria louca vivendo lá, no meio do nada, mas ela adora. Mas veja, ela viaja muito a trabalho, de modo que, assim, não tem nem tempo de se entediar com o lugar.
- E o que ela faz? - perguntou Catherine.
- Tem uma empresa de consultoria. Trabalha principalmente para grandes multinacionais, executando avaliações psicológicas de executivos e altos funcionários. Está neste ramo há apenas alguns anos, mas tem se saído muito bem. Sabe, não é com qualquer trocadinho que se paga o aquecimento de uma casa como aquela, que mais parece um celeiro.
Havia apenas uma propriedade em Scardale que se ajustava àquela descrição.
- Ela não está morando no Solar Scardale, está?
- Parece que você conhece mesmo o lugar - comentou Helen, rindo.
- É lá mesmo E então, como é que você conhece tão bem um fim de mundo como Scardale?
- Helen - disse Paul, com uma nota de advertência na voz. Catherine deu um sorrisinho torto.
- Houve um homicídio em Scardale quando eu era adolescente. Uma garota foi raptada e morta por seu padrasto. Ela e eu tínhamos a mesma idade.
- Alison Cárter? - perguntou Helen, admirada. - Você conhece o caso Alison Cárter?
- Fico surpresa por você conhecer - comentou Catherine. - Acho que você mal havia nascido quando tudo aquilo aconteceu.
- Ah, mas nós sabemos tudo sobre o caso Alison Cárter, não é, Paul?
- indagou Helen, quase com alegria.
- Não, Helen, não sabemos - disse Paul, parecendo levemente contrariado.
- Está bem, talvez não saibamos muito sobre o caso - disse Hellen, aplacando seu entusiasmo e estendendo a mão para tocar no braço dele. - Mas conhecemos alguém que sabe.
- Esqueça este assunto, Helen. Catherine não está interessada em um homicídio que aconteceu trinta e cinco anos atrás.
- Aí é que você se engana, Paul. Sempre fui fascinada pelo caso. E qual é sua ligação com ele? - Ela fixou o olhar na expressão de desagrado dele. De repente, algo estalou em seu cérebro. Uma vaga semelhança que chamara sua atenção ao se conhecerem, e agora seu nome, ligados ao caso de Alison Cárter. Ela juntou rapidamente as peças do quebra-cabeças. - Espere aí... Você não é o filho de George Bennett, é?
- Ele é - exclamou Helen, triunfante. Paul olhou-a desconfiado.
- Você conhece meu pai? Catherine balançou a cabeça.
- Não, não pessoalmente, mas sei bastante sobre ele, por causa do caso Alison Cárter. Ele fez um trabalho incrível na época.
- Sim, bem, isso foi antes de eu nascer, e papai nunca gostou muito de falar sobre seu trabalho.
- Foi um caso muito importante, sabe? Estudantes de direito ainda precisam estudá-lo, por causa de suas implicações em casos de homicídio sem corpo. E nunca houve nenhum livro sobre o caso. Tudo o que se encontra são artigos de jornal da época e precedentes legais que não nos transmitem a emoção da história. Fico admirada por seu pai não ter escrito suas memórias - disse Catherine.
Paul encolheu os ombros e correu a mão por seus cabelos loiros recém-cortados.
- Não é o tipo de coisa que combina com ele. Lembro-me de que, um dia, um jornalista procurou-o em casa. Eu deveria ter uns dezesseis anos. Este cara disse que cobrira o caso na época e queria que papai cooperasse em um livro contando toda a história, mas papai mandou-o embora sem sequer abrir a porta de todo. Depois, disse à minha mãe que a mãe de Alison já passara por sofrimento suficiente e não merecia que alguém ressuscitasse o caso.
Imediatamente, os instintos jornalísticos de Catherine puseram-se em alerta:
- Mas a mãe de Alison já morreu. Morreu em 95. Não há mais motivo para não falar sobre o caso agora. - Ela inclinou-se para a frente, subitamente animada. - Eu adoraria escrever a história do caso Alison Cárter contada por aqueles que a fizeram. Ela deveria ser contada, Paul. No mínimo porque todos os relatos da época abordaram apenas de leve os abusos sexuais de Philip Hawkin à enteada. Foi um caso muito importante. Não apenas em termos legais, mas em termos de como influenciou a vida de muitas pessoas.
Surpreendentemente, Helen apoiou a ideia:
- Catherine tem razão, Paul. Sabe como alguns jornalistas são inescrupulosos. E você sabe como esses casos históricos vivem reaparecendo. Se seu pai não contar a história, algum espertalhão a publicará na primeira oportunidade depois que ele também morrer e não houver mais ninguém para contradizer uma versão sensacionalista dos acontecimentos. E com nossa Jan morando lá, Catherine poderia penetrar facilmente na aldeia para sentir de perto os eventos.
Paul levantou as mãos, em sinal de derrota. Estava claro que Helen tinha o poder de levá-lo de um estado de espírito quase hostil para a vontade ansiosa de ajudar.
- Tudo bem, meninas. Vocês venceram. Conversarei com meu pai na próxima vez que ligar para casa. Direi que descobri a última jornalista confiável na Europa e que ela quer transformá-lo numa celebridade. Quem sabe eu posso aproveitar um pouquinho a fama dele depois? Agora, quem gostaria de ir ao restaurante do Jacques para comer uns mexilhões?
Uma semana depois, quando já estava em Londres, o telefone de Catherine tocou. O filho conseguira convencer o pai como nenhum estranho seria capaz. George Bennett estaria competindo em um campeonato de golfe para policiais aposentados próximo a Londres na semana seguinte e a encontraria para discutirem a possibilidade de ela escrever um relato sobre o caso de Alison Cárter com base no que ele lhe contasse.
Catherine vestira-se cuidadosamente para o encontro, com seu único conjunto Armani e saltos baixos. Desejava todo apoio que pudesse obter, e concordava com a editora de moda da revista, no sentido de que não havia nada como a soberba moda italiana para fazer com que uma mulher se sentisse no controle de tudo. Levara mais tempo do que sua impaciência exigia, aplicando com cuidado a base hidratante para o rosto, o delineador de olhos e o de lábios e, depois, o batom, até sentir-se satisfeita com sua aparência. A cada ano, gastava mais tempo para atingir aquele nível de satisfação. Algumas de suas colegas já haviam passado por cirurgias plásticas, mas Catherine achava que faziam isso para manterem seus casamentos. Catherine sabia que era muito mais difícil manter alguém ao lado depois que a novidade passava que encontrar alguém disposto a compartilhar alguns momentos de divertida aventura sem pensar no amanhã. Não que tivesse esta espécie de intenção com George Bennett, mas não via problema em fazê-lo sentir-se lisonjeado por dar-se ao trabalho de se esmerar na aparência para encontrá-lo.
Ao vê-lo, Catherine descobriu um homem ainda bastante atraente, o que a deixou ainda mais satisfeita por ter feito aquele esforço. Com cabelos loiros entremeados por fios prateados, sorriso levemente torto e olhos que ainda transmitiam a generosidade de sua alma, apesar de trinta anos na polícia, George Bennett, como Robert Redford, era um homem que já passara de sua fase de glória, mas que transmitia aos outros a sensação vívida de que ainda havia muito brilho e vitalidade em seus anos mais maduros.
E, surpreendentemente, George Bennett parecia disposto a falar. Ela suspeitava de vários motivos para isso. O mencionado por ele era que, agora que Ruth Cárter estava morta, ele se sentia livre para falar sem a preocupação de lhe causar mais dor. Contudo, Catherine imaginou que a aposentadoria não o agradava muito. Depois de se aposentar da polícia como detetive superintendente aos cinquenta e três anos, ele trabalhara como consultor de segurança para várias empresas, mas a crescente incapacidade física da esposa por causa da artrite deformante persuadira-o a abandonar esta atividade um ano atrás. George Bennett não era o tipo de homem que gostava de apreciar a vida de fora, nem parecia ser daqueles que gostavam do anonimato, de ser apenas mais um idoso, irrelevante para o resto da sociedade. Catherine achou que sua sugestão vinha no momento mais oportuno possível.
Quatro meses depois, haviam assinado um contrato para o livro e Catherine negociara uma licença de seis meses de seu emprego. Agora, estava em Scardale, finalmente no palco do drama que moldara sua adolescência.
3
Fevereiro de 1998
George Bennett fitou seu reflexo na janela da cozinha. Os contornos do jardim, do lado de fora, flutuaram por trás dos traços de seu rosto, suavizando alguns dos vincos que os últimos trinta e cinco anos haviam causado. O desaparecimento de Alison Cárter fora o primeiro caso a lhe dar insónia, embora estivesse longe de ser o último. Mas ali estava a garota novamente, roubando-lhe o sono em uma noite gelada de inverno. Cinco e meia da madrugada e nenhuma chance de voltar ao sono abençoado.
A chaleira chiou e ele voltou-se para o brilho claro e frio da cozinha, despejando água fervente sobre o sachê que já colocara na caneca e o remexendo com uma colher até produzir um chá forte. Longos anos de cantinas das delegacias haviam resultado em afinidade pelo sabor amargo do chá de laranja e tanino. Pegou o leite na geladeira e misturou o suficiente dele para esfriar o chá a ponto de poder bebê-lo imediatamente. Depois, sentou-se junto à mesa, puxando seu roupão para junto do corpo, estendeu a mão para o maço de cigarros e acendeu um deles.
Agora que chegara o dia da primeira entrevista real com Catherine para o livro, George arrependia-se de sua decisão. Sempre evitara falar sobre o caso. O nascimento de Paul parecera-lhe um encerramento perfeito, um reinício que lhe permitiria deixar a dor de Ruth Cárter para trás. Obviamente, isso não acontecera com tanta rapidez ou facilidade. O trabalho de rotina na polícia trazia muitos lembretes regulares, impedindo-o de varrer Alison Cárter da área mais acessível de sua memória. Entretanto, ele conseguira manter-se firme em sua decisão de não comentar o caso.
Nenhum de seus colegas entendera a razão para seu silêncio acerca de algo que teriam considerado como um triunfo digno de alarde em qualquer oportunidade. Somente Anne compreendera realmente que, por trás de sua decisão, estava a sensação de fracasso pessoal. Embora tivesse superado problemas tremendos para resolver o desaparecimento misterioso de Alison e tivesse reunido provas suficientes para enforcar o responsável por isso, George ainda era perseguido pela convicção de que fora longe demais em seu trabalho. Ruth Cárter vivera semanas de sofrimento, incerteza e falsas esperanças, agarrando-se à ideia de que a filha ainda poderia estar viva. Não apenas isso, mas Philip Hawkin tivera mais dias de liberdade do que merecera, comendo as refeições preparadas pela esposa, dormindo à noite quando ela permanecia acordada e apavorada, convencido de que seguiria impune pelo assassinato da enteada. George culpava-se por permitir que Hawkin tivesse até mesmo aquele pequeno período de vida tranquila após o que fizera.
Assim, resistira a todas as tentativas de persuadi-lo a falar sobre o caso. Rejeitara ofertas de vários escritores que desejavam rever o caso por meio de suas recordações. Até mesmo aquele escandaloso Don Smart julgara-se no direito de bater em sua porta e exigir seu tempo e seus pensamentos mais íntimos. Não fora difícil rejeitar tal solicitação, pensou George, com um sorriso amargo.
Ironicamente, o amor, que lhe permitira ir em frente, agora o fazia retroceder. Quando Paul contara a ele e a Anne sobre a mudança da irmã de Helen para Scardale, ele soubera que, se o filho tinha intenções tão sérias quanto parecia com esta mulher, mais cedo ou mais tarde sua resolução de jamais voltar ao cenário daquele crime teria de ser revista. Até ali isso não acontecera, mas ele sabia que o divórcio de Helen seria concluído logo e suspeitava que o casal não esperaria muito para se casar. Quando isso acontecesse, fatalmente conheceria a irmã de Helen, sua única parente viva, e não poderia mais evitar Scardale.
Com esta perspectiva pairando sobre sua cabeça, a intercessão de Paul em favor de Catherine Heathcote parecera-lhe um golpe do destino. Era como se os eventos conspirassem para forçá-lo a pensar novamente em Alison Cárter. Ele decidira que não lhe faria mal nenhum apenas encontrarse com a jornalista, para ver se poderia confiar nela. Sua primeira impressão fora a de que era apenas mais uma repórter interesseira, mas, à medida que falavam e ela revelava o impacto do assassinato de Alison Cárter em sua própria vida, ele percebera que jamais encontraria alguém mais apro priado para escrever uma história que, agora, parecia exigir ser contada.
O som familiar de passos que desciam as escadas perturbaram seus pensamentos. Ele ergueu o olhar e viu Anne, que veio ao seu encontro com o rosto inchado de sono.
- Eu a acordei, meu amor? - perguntou ele, virando-se para ligar o fogão novamente.
- Minha bexiga me acordou - disse ela, mal-humorada, movendo-se lentamente até a cadeira no outro lado da mesa. - Além disso, seu lado da cama estava frio, de modo que achei que você poderia desejar companhia.
George levantou-se e serviu a mistura de chocolate maltado e leite que Anne adorava em uma caneca.
- Eu não recusaria - disse, enquanto despejava a água, mexendo, em seguida, com vigor. Ele voltou para sua cadeira e estendeu a caneca para Anne, que a segurou entre seus dedos artríticos, gostando da sensação de calor contra o latejar constante de sua dor reumática.
- Está nervoso pelo encontro de hoje?
- Como seria de esperar - disse George. - Gostaria de não ter concordado.
- Ninguém o culparia por sentir-se nervoso com algo importante assim - disse ela, suavemente. - É inevitável que você queira acertar as coisas e fazer justiça a Alison.
Ele emitiu um pequeno grunhido de menosprezo.
- Meus motivos não são tão nobres, meu amor. Eu desejaria nunca ter concordado com isso porque não quero me expor em um livro como o tolo que fui no caso de Philip Hawkin.
Anne sacudiu a cabeça.
- Você é o único que pensa assim, George. Aos olhos de todo mundo, você foi o herói. Se tivessem uma condecoração em Scardale para coisas assim, já a teriam dado a você no dia em que o júri anunciou o veredicto.
- Talvez. Mas você sabe que nunca medi minhas ações pelo gabarito de outros, apenas por meus próprios critérios, e, de acordo com eles, eu falhei com aquelas pessoas. Eu era parte de um sistema que deixou Alison desamparada, em primeiro lugar, um sistema que não escutou os apelos de uma menina que estava sendo sexualmente abusada. Anne apertou os lábios, com impaciência.
- Agora você está sendo tolo. Na época, ninguém admitia a existência de algo como pedofilia. Certamente não dentro das famílias. Se quer sofrer imaginando que fracassou com Ruth Cárter, o problema é seu, mas eu não vou ficar aqui sentada enquanto você se condena pelos erros da sociedade britânica trinta e cinco anos atrás. Isso é bobagem, George Bennett, e você sabe muito bem.
Ele sorriu, reconhecendo que a esposa tinha razão.
- Talvez. E talvez eu devesse ter falado sobre tudo isso anos atrás. Não é isso o que os psicólogos sempre aconselham? Eles dizem que falar sobre frustrações traz a cura. Mantê-las reprimidas causa todo tipo de psicose.
Anne devolveu o sorriso.
- Como essa sua paranóia de se responsabilizar por todos os males do mundo.
Ele correu a mão pelos cabelos.
- Há outra coisa, também. Terei de exorcizar meus fantasmas pelo bem de Paul e de Helen. Teremos de ir até Scardale um dia desses, para nos encontrarmos com a irmã de Helen, e eu deixei que Scardale se tornasse uma espécie de bicho-papão para mim. Terei de mudar isso ou estragarei tudo para todos. E não quero fazer nada que possa prejudicar a felicidade de Paul. Falar com uma pessoa estranha sobre tudo o que aconteceu talvez me faça bem.
- Acho que você está certo, querido, e não posso negar que estou feliz por você ter finalmente decidido falar sobre Alison. Além de todos os outros motivos, aquilo aconteceu em uma época muito importante em nossas vidas. Muitas vezes, tive de segurar coisas que eu desejava dizer, recordações que queria compartilhar, porque sabia que, se falasse do tempo em que estava grávida, você sempre lembraria que, nesse mesmo período, estava trabalhando no caso de Philip Hawkin. Assim, não lamentarei se o fato de você se abrir para Catherine Heathcote significar que poderei lhe contar sobre algumas das recordações que precisei manter para mim mesma. E Poderei falar não apenas com você, mas também com Paul. Sei que é egoísmo de minha parte, mas adoro esta possibilidade.
Os olhos de George arregalaram-se, em surpresa.
- Eu nem imaginava que você se sentia assim - protestou, sacudindo a cabeça. - Como pude não perceber?
Anne tomou um gole de seu chocolate.
- Porque eu também nunca falei, amor. Mas agora você está aposentado, não faz mais trabalho de segurança e é hora de podermos olhar para nossa vida juntos, sem medo. Ainda temos um futuro, George. Não somos velhos, não pelos padrões de hoje. Esta é nossa chance de nos livrarmos do passado, de uma vez por todas, para que você veja que fez o que era certo e que seus atos fizeram diferença na vida de muitos. - Ela pegou a mão do marido entre suas próprias mãos nodosas. - É hora de perdoar a si mesmo, George.
Ele deu um suspiro profundo e disse:
- Bem, espero que Catherine Heathcote esteja com humor complacente hoje. - Ele bocejou. - Não estarei com muita energia às dez da manhã, a menos que consiga dormir um pouco. - Ele mudou a posição de sua mão, para poder, agora, segurar a da esposa. - Obrigado, meu amor.
- Por quê?
- Por me lembrar que não sou o monstro que imagino ter me tornado, às vezes.
- Você não é um monstro. Bem, exceto quando acorda de ressaca. Tudo dará certo, George. Pelo menos, o passado não nos reserva nenhuma surpresa, não é?
4
Fevereiro/março de 1998
Ao despertar pela primeira vez em sua pequena casa alugada em Longnor, Catherine sentiu um pânico momentâneo por não conseguir recordar onde estava. Deveria estar esparramada em um quarto quente com vidraças altas. Em vez disso, seu nariz estava congelando e ela estava encolhida em posição fetal sob um cobertor estranho, com a única luz vazando pelas bordas de uma fina cortina que cobria uma pequena janela na parede de pedra com mais de trinta centímetros de espessura.
Então, sua memória voltou com um calafrio de excitação que quase eliminou sua irritação contra o sobradinho de pedra gélido pelo qual pagara seis meses adiantados de aluguel. Os proprietários da casa haviam parecido realmente felizes por alugá-la. Pudera! Ninguém em sã consciência alugaria este congelador no inverno, pensou ela, enquanto saltava da cama, tremendo, ao expor as pernas compridas ao frio. Teria de comprar ainda hoje um pijama quentinho e uma bolsa de água quente ou não sobreviveria em Longnor sem uma recaída das frieiras que a torturavam na infância. Ela amaldiçoou os proprietários com adjetivos abundantes e capazes de ser proferidos apenas por um jornalista, e saiu correndo do quarto.
O banheiro era um refúgio bem-vindo. Um aquecedor preso na parede soprou ar quente instantaneamente, e a ducha potente enviou água fumegante. Ela já sabia que a sala-cozinha também se aqueceria rapidamente, graças a uma eficiente estufa a gás. O quarto, porém, era o purgatório. Ao voltar para lá depois do banho, resolveu que, no futuro, se lembraria de se vestir no banheiro.
Enquanto se vestia, lembrou-se de que não dormira em nenhum lugar tão frio desde os tempos da casa de seus pais, em Buxton, antes da instalação do aquecimento central, quando estava com quinze anos. Ela parou de repente, enquanto enfiava o suéter. Se estava tentando recriar a Scardale de 1963, não poderia ter acabado em um lugar melhor. Alison Cárter devia ter crescido acostumada a ter gelo até dentro das janelas de seu quarto, no meio do inverno. E com uma cozinha quente e aconchegante, antes de sua mãe trocar isso pela vida no solar. Catherine não tinha intenção de pesquisar com tanta autenticidade para seu livro, mas já que isto lhe estava sendo dado de bandeja, aceitaria e seria grata pela oportunidade. Além disso, estava a menos de cem metros da casa de Peter Grundy. Tinha certeza de que o policial aposentado de Longnor poderia tornar-se uma fonte preciosa de informações e, além disso, poderia ajudá-la a penetrar com mais profundidade na vida da aldeia. Ela sabia bem como os bares de cidades muito pequenas podiam ser hostis com aqueles vistos como forasteiros, e ela não desejava passar seis meses sem conversar com ninguém à noite. Mesmo se fosse apenas sobre o preço do gado.
Durante seu desjejum de café preto e sanduíche de bacon, ela folheou os recortes xerocados que descobrira depois de muito trabalho no arquivo nacional de jornais em Colindale. Não precisaria muito deles hoje, mas não lhe faria mal dar uma repassada no material para descobrir exatamente a forma que daria à série de entrevistas que faria com George Bennett. Eles haviam concordado que se reuniriam durante duas horas a cada manhã. Isto lhe daria tempo para transcrever as fitas gravadas das entrevistas e não perturbaria demais a vida dos Bennetts. A última coisa que desejava era encher-lhes a paciência com invasões constantes em sua rotina. Nada secaria o poço de lembranças de George com tanta rapidez quanto isso.
Meia hora depois, ela emergiu de um túnel de árvores, no centro da aldeia de Cromford. Seguindo as instruções de George, virou à direita no lago do moinho e cruzou a colina, fazendo a curva aguda à esquerda que dava na entrada da casa do detetive aposentado. Ao desligar o carro, a porta da frente já se abria. George estava ali, emoldurado pelo batente e com uma das mãos levantadas em um aceno. Vestindo calças cinza-escuras, um casaco de lã azul-marinho e camisa pólo em tom claro de cinza, ele parecia um modelo para roupas de tricô para homens maduros. Catherine pensou que só o que faltava era um cachimbo preso entre seus dentes para vê-lo como James Stewart em A Felicidade Não se Compra para maiores de sessenta anos.
- Prazer em vê-la, Catherine - disse ele em voz alta.
- Igualmente, George. - Ela tremia ao entrar na sala quente. - Eu havia esquecido como o clima pode ser cruel nesta época do ano por aqui.
- Isso me leva ao passado - disse ele, guiando-a pelo corredor acarpetado, até uma sala que se parecia com um show-room em uma loja de móveis. Tudo era elegante, até moderno, mas curiosamente sem personalidade. Até mesmo os pósteres emoldurados de pinturas de Monet pareciam insignificantes, em vez de indicarem bom gosto. Nem um único jornal largado em algum lugar perturbava a limpeza asséptica da sala, que cheirava a desodorizador floral. Se os Bennetts chegavam a exibir sua individualidade, não era em sua sala de estar.
- Estava frio assim quando Alison Cárter desapareceu - continuou George. - O clima fez com que eu desejasse, desde o início, que a menina tivesse sido raptada. Assim, haveria uma chance de podermos trazê-la de volta. Eu sabia que ela nunca sobreviveria a uma noite ao relento com esse tempo.
George fez um gesto na direção de uma poltrona que parecia firme e confortável.
- Fique à vontade. - Ele foi até a cadeira oposta. Catherine percebeu que ele tomara para si a poltrona que colocava a luz às suas costas e sobre ela, imaginando se era a escolha deliberada de um policial ou se ele apenas escolhera a poltrona em que sempre se sentava. Sem dúvida, ela poderia descobrir a resposta, após algumas sessões. - E então, como você quer fazer?
Antes que pudesse responder, uma mulher idosa entrou na sala, com cabelos grisalhos e curtos emoldurando um rosto envelhecido precocemente pelas rugas que o sofrimento escavara. Ela portava-se com a rigidez de alguém para quem os movimentos haviam se tornado apenas uma necessidade dolorosa. Até mesmo do outro lado da sala Catherine podia perceber os dedos enodoados e retorcidos com os caroços da artrite reumatóide. Contudo, o sorriso naquele rosto ainda era genuíno, dando aos olhos azuis um brilho de animação.
- Você deve ser Catherine! Que prazer conhecê-la. Sou Anne, esposa de George. Não vou atrapalhar suas entrevistas, a não ser para perguntar se você prefere chá ou café.
- O prazer é meu. Obrigada por permitir que eu invada sua casa assim - disse Catherine, calculando as probabilidades de conseguir um café decente em um lar inglês habitado por duas pessoas na casa dos sessenta anos. - Aceito um chá, obrigada. Bem fraco, sem leite nem açúcar - disse, imaginando que deste modo não teria surpresas. Alguns meses de café ruim seriam algo bem pior.
- Chá, então - disse Anne.
- Senhora Bennett, se quiser sentar-se conosco em algumas entrevistas, sinta-se à vontade. Eu ficaria muito grata se pudesse conversar com a senhora de vez em quando, para ter uma imagem completa sobre sua vida como esposa de um policial, quando seu marido investigava um caso tão complexo.
Anne sorriu.
- Claro, podemos conversar. Mas deixarei as entrevistas para você e George. Não quero atrapalhar o estilo dele e, além disso, tenho muito com que me ocupar. Agora, vou preparar seu chá.
Catherine tirou seu gravador da bolsa enquanto Anne saía, colocando-o sobre a mesa, entre os dois.
- Pretendo gravar as entrevistas, para diminuir as chances de cometer erros. Assim, se você quiser falar algo que não possa ser publicado, algo que sirva apenas para minha informação, por favor, deixe isso bem claro enquanto estivermos falando. Além disso, se você tiver dúvida sobre algo, deixe isso claro também. Assim, poderei fazer uma lista de pontos que precisam ser conferidos.
George sorriu.
- Tudo parece bem organizado. - Ele pegou um maço de cigarros do bolso e acendeu um, tirando um cinzeiro de dentro de uma gaveta na mesinha ao seu lado. - Espero que você não se importe por eu fumar. Reduzi bastante desde que me aposentei, mas ainda não consegui parar totalmente.
- Não há problema. Faz mais de doze anos que não fumo, mas ainda me vejo como uma fumante que deu um tempo com os cigarros, em vez de como uma ex-fumante. Sempre fico perto dos fumantes, nas festas. Em geral são as pessoas mais interessantes - disse, sorrindo, com sinceridade. Então, inclinou-se para a frente e apertou o botão para começar a gravar. - Provavelmente não chegaremos ao caso hoje. Gostaria de começar obtendo algumas informações pessoais a seu respeito. A maior parte disso não será publicada, mas acho importante formar uma imagem a seu respeito e de como se tornou esta pessoa, para escrever sobre seu trabalho nesse caso com o tipo de conhecimento e empatia que desejo usar. Além disso, falarmos um pouco sobre você serve para entrarmos gradualmente na história. Talvez você esteja um pouco nervoso por abordar os detalhes do caso depois de tantos anos, e quero que se sinta tão confortável quanto possível. Claro que, como policial, você está muito mais acostumado a fazer perguntas que a respondê-las. E então, podemos começar por você?
- Claro - respondeu George, sorrindo. - Terei prazer em responder a tudo o que você quiser saber. - Ele fez uma pausa, enquanto Anne entrava, movendo-se lentamente com uma bandeja e duas canecas. - Uma coisa eu lhe digo desde já. Foi por causa desta mulher que não terminei em um hospício depois de trinta e tantos anos na polícia de Derbyshire. Anne é meu rochedo, minha força.
Anne fez uma careta, enquanto pousava a bandeja na mesinha de centro.
- Você é um adulador, George Bennett. Na verdade, o que você quer dizer é: Anne é minha cozinheira, secretária e faxineira - falou, com um sorriso para Catherine.
Era óbvio que aquela era uma brincadeira familiar entre o casal. George acrescentou:
- Ela precisou ter artrite para que eu lhe desse uma mãozinha no serviço doméstico.
- Bem, eu precisava mesmo fazer algo - disse Anne, secamente. - Se não, você acharia que a aposentadoria significa que pode parar de fazer absolutamente tudo. Agora, pare com as bobagens e diga a Catherine o que ela precisa saber. Trarei biscoitos e, depois, só os verei quando tiverem terminado.
Assim começou o padrão dos dias que duraram de fevereiro a março. Catherine começava cada dia lendo a seção de seus recortes de jornal que envolvia a parte do caso sobre a qual haviam conversado. Depois do café da manhã, ela dirigia até Cromford, pensando nas perguntas que faria para extrair mais revelações de seu entrevistado.
Então, ela conduzia George gentilmente pelo caso, retrocedendo com paciência para capturar um determinado detalhe sobre o clima, odores ou paisagem, impressionada com o anseio dele para garantir o máximo de fidelidade em cada ponto. Ele demonstrava uma memória quase fotográfica para o caso Alison Cárter, embora afirmasse que não recordava tão bem outras investigações que fizera posteriormente.
- Suponho que me tornei um pouco obcecado por Alison - dissera ele no começo das sessões de entrevista. - Ah, sei que foi o meu primeiro grande caso, e estava determinado a mostrar que era capaz de resolvê-lo, mas havia algo mais. Acho que teve algo a ver com saber sobre a gravidez de Anne logo no começo daquela investigação. Eu estava atormentado pela preocupação, imaginando como me sentiria se aquilo acontecesse com um filho meu, de modo que não queria fracassar.
- Essa, pelo menos, era a minha maior motivação - continuou. - Não sei quanto a Tommy Clough, mas ele demonstrou tanto envolvimento com cada etapa deste caso quanto eu. Ele trabalhou ainda mais que eu, e foi sua persistência com a polícia de Hertfordshire que nos trouxe a prova mais importante, a ligação de Hawkin com a arma usada para matar Alison. Sabe, é esquisito, mas nunca mais conversei direito com ele depois que Hawkin foi enforcado. Tommy ainda estava em Buxton, mas eu já me mudara para Derby. Combinamos encontros algumas vezes, mas o trabalho sempre impediu que se concretizassem. E então, alguns anos depois do assassinato de Alison, ele pediu demissão e se mudou.
- Para onde? - indagou Catherine. Ela já fizera a mesma pergunta a Peter Grundy no bar, certa noite, mas ele lhe dissera que ninguém sabia. Era como se Tommy Clough tivesse desaparecido sem deixar rastros, como Alison.
Mas George sabia.
- Ele está em Northumberland, uma cidadezinha litorânea minúscula. Ele trabalhou durante alguns anos como fiscal da RSPB
, mas agora está aposentado, como eu. Nunca se casou, de modo que não tem alguém como Anne para fazê-lo ir em frente. Trocamos cartões de Natal, e aí se encerra nosso contato. Acho que sou o único da polícia com quem ele ainda mantém contato. Posso lhe dar o endereço. Talvez ele queira falar sobre Alison. Duvido um pouco, mas você me fez falar, não é? - Ele sorriu.
E assim continuaram as entrevistas, com um assunto levando naturalmente a outro, enquanto as manhãs passavam rapidamente. Depois de sair da casa de George, Catherine desenvolveu rapidamente uma rotina. Parava no caminho em um bar na estrada para Ashbourne onde almoçava e chegava em casa às duas horas. A tarde e o começo da noite eram dedicados à transcrição das fitas, uma tarefa que considerava monstruosamente enfadonha, apesar de seu fascínio com o material que juntava gradualmente. De meia em meia hora, ela dava um telefonema breve ou trocava e-mails com alguém, para preservar sua sanidade.
Com o trabalho terminado para aquele dia, ela aquecia uma das refeições prontas que comprava em um supermercado de Buxton. Depois, ficava uma hora junto à estufa, com sua própria revista ou da concorrência, armada com um bloco para anotações. Finalmente, terminava o dia bebendo alguma coisa no bar mais próximo. Isto geralmente envolvia pagar um drinque também para Peter Grundy, mas Catherine não se importava, uma vez que ele já lhe oferecera informações preciosas sobre a vida em Scardale e suas famílias. Além disso, ela gostava de sua companhia.
Ela via este estilo de vida como curiosamente satisfatório. O trabalho era fascinante, levando-a de volta a um mundo ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Quanto mais detalhes descobria sobre o caso, mais crescia seu respeito por George Bennett. Ela não tinha ideia daquilo que ele precisara enfrentar para levar Hawkin à justiça, tanto dentro quanto fora da polícia. Nunca tivera uma opinião particularmente favorável sobre policiais, mas George transformava gradualmente este preconceito.
Ela também se sentira nervosa por estar tão perto de sua casa, quase supersticiosamente temerosa de que, de algum modo, a vidinha tão limitada de cidade do interior, que tanto se esforçara por deixar, pudesse envolvê-la novamente. Em vez disso, descobrira uma estranha paz no ritmo de seus dias e noites. Não que desejasse viver assim para sempre, lembrava a si mesma, com energia. Afinal de contas, tinha uma vida à sua espera, longe dali. Agora, vivia apenas um agradável interlúdio, nada mais.
E o que mais poderia ser?
5
Abril de 1998
Catherine esquecera-se do quanto a primavera demorava a chegar por ali. Para qualquer um que vivesse na região dos picos de Derbyshire, abril trazia alívio, após os rigores do inverno. Bulbos que haviam florescido um mês antes, a algumas dezenas de quilómetros dali, na planície de Cheshire, finalmente irrompiam do solo. Árvores produziam botões tímidos e a grama cortada pelos carneiros lembrava novamente a cor verde.
Em Scardale, as primeiras folhas começavam a surgir em arvoredos e bosques, enquanto Catherine entrava na aldeia. Sentia-se quase triste por ter completado suas entrevistas iniciais com George, e o dia de hoje marcava o início da segunda fase de seu projeto. Catherine nunca pretendera tornar seu livro apenas um registro das recordações de George Bennett. Sempre planejara entrevistar o máximo possível de pessoas ligadas ao caso. Não lhe ocorrera, porém, que muitos relutariam em compartilhar suas recordações. Para sua surpresa, quase todos os Carters, Crowthers e Lomas haviam recusado terminantemente qualquer participação no projeto.
Entretanto, ela conseguira marcar uma entrevista com Kathy Lomas, tia de Alison. Talvez não tivesse muita importância que os outros parentes a tivessem rejeitado, já que, de acordo com George, Kathy sempre fora a pessoa mais íntima de Ruth. Só isso já lhe serviria como motivo para desejar conversar com a mulher. Entretanto, havia uma segunda razão para sua ansiedade hoje.
Apesar de Helen ter preparado o caminho com sua irmã, Catherine ainda não estivera dentro do Solar Scardale. A resposta ao seu pedido viera por uma carta do advogado de Janis Wainwright, que lhe dizia que sua cliente planejava fazer diversas viagens no fim do inverno e começo da primavera, e que, portanto, trabalharia em casa no restante do tempo, quando pretendia não ser perturbada. O advogado sugerira que, uma vez que a senhorita Wainwright não podia dizer nada a Catherine sobre o caso Alison Cárter, a melhor solução, que serviria aos propósitos do livro e não perturbaria a agenda cheia de Janis, era uma visita da escritora por conta própria ao solar, em uma das ocasiões em que a proprietária não estivesse em casa.
Catherine concordou com a sugestão do advogado, já que esta era a única maneira de entrar no solar. Finalmente hoje ela veria o interior da herança de Philip Hawkin. Melhor ainda: teria um guia que poderia revelarlhe onde havia sido o quarto de Alison, o estúdio de Hawkin e, além disso, descreveria a decoração daquela época.
Era impossível não especular sobre a mulher que estava prestes a conhecer. George Bennett pintara-a como uma mulher briguenta e controladora, sem respeito pela polícia, que constantemente o importunava, quando achava que tinha motivos. Peter Grundy descrevera-a como uma mulher que vivia à sombra do que poderia ter sido e não foi.
Com Peter, ela também vislumbrara alguns dos fatos da vida de Kathy Lomas. A tia de Alison vivia sozinha, atualmente. Seu marido, Mike, morrera cinco anos antes em um acidente na fazenda, pisoteado por um touro furioso. Seu filho, Derek, saíra de Scardale para cursar a universidade em Sheffield e tornara-se agrónomo, trabalhando para as Nações Unidas. Kathy, agora na casa dos sessenta anos, criava carneiros em Scardale. Ela transformava a lã em fios e, depois, fazia suéteres caros em uma máquina de tricotar que, de acordo com a esposa de Peter Grundy, tinha mais controles que uma nave espacial.
Kathy e Ruth Cárter eram primas, com diferença de menos de um ano em idade, ligadas pelo sangue dos lados tanto materno quanto paterno. Haviam crescido e se transformado em mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam muito ligadas. Se Catherine não pudesse obter o que pretendia com Kathy Lomas, provavelmente não obteria de mais ninguém. E se a mulher era tão difícil quanto George dizia, precisaria ser abordada com extrema habilidade.
Catherine estacionou junto à Casa da Cotovia, construída no século XVIII, onde Kathy vivia desde seu casamento, dezenove anos antes do desaparecimento de Alison. A mulher que abriu a porta ainda mantinha-se ereta e parecia forte. Tinha os cabelos grisalhos, presos com grampos em um coque no alto da cabeça. Isto, juntamente com as bochechas rosadas, fazia com que se parecesse com uma personagem de filme, algo como uma matrona típica e saudável do interior. Apenas seus olhos desmentiam sua aparência alegre. Eram frios e críticos, fazendo com que Catherine se sentisse examinada e avaliada em todos os sentidos, além do financeiro.
- Então você é a escritora - cumprimentou-a Kathy, virando-se para tirar do gancho junto à porta uma capa surrada. - Acho que você vai querer dar uma olhada no solar primeiro. - Seu tom não dava espaço para nenhuma outra sugestão.
- Seria ótimo, senhora Lomas - disse Catherine, andando ao lado da mulher idosa enquanto cruzavam a praça, rumo ao solar. - Sou muito grata por ceder seu tempo para me ajudar. - Ela amaldiçoou-se por mostrar-se efusiva demais.
- Não estou cedendo meu tempo para você - disse Kathy, sem nenhuma gentileza. - É pela memória de Alison. Penso nela com frequência. Era uma ótima garota. Imagino a vida que teria se tudo tivesse sido diferente. Eu a vejo trabalhando com crianças. Uma professora ou, talvez, pediatra. Algo positivo e útil. E então acordo para a realidade.
Ela fez uma pausa na porta do solar e fixou o olhar duro em Catherine.
- Se eu pudesse voltar no tempo e mudar algo em toda a minha vida, seria aquela noite de quarta-feira - disse, com amargura. - Eu não deixaria Alison sair das minhas vistas. Não adianta nada me dizer para não ficar me culpando. Sei que Ruth Cárter foi para o túmulo imaginando como poderia ter mudado as coisas, e eu irei para meu próprio túmulo pensando o mesmo quando chegar minha hora. Atualmente, minha vida parece conter muitos remorsos. Como é que se diz mesmo? Ah, que não adianta chorar sobre o leite derramado. Bem, já passei muitos anos pensando no que não fiz e não disse. O problema é que o único lugar em que poderei pedir perdão a quem importa é no túmulo. E é por isso que estou disposta a lhe contar como foi, senhora Heathcote.
Ela tirou uma chave de seu bolso e destrancou a porta, levando Catherine até a cozinha. A nova proprietária certamente não economizara ao reformar aquele cómodo. Os armários de pinho e o balcão mostravam a patina que os distinguia como antiguidades, não alguma reprodução moderna. Os tampos dos móveis eram um misto de mármore e madeira tratada. Além de um fogão Aga verde-escuro, havia um refrigerador-freezer com portas duplas e uma lavadora de louças. Catherine viu uma pequena pilha de jornais na ponta da mesa da cozinha. O jornal de cima trazia a data de dois dias atrás. Então Janis Wainwright partira recentemente, pensou ela. Apesar disso, a cozinha tinha o ar vazio de um local desocupado há muito tempo.
- Aposto que não era assim em 1963 - disse, em tom seco. Kathy Lomas sorriu, finalmente.
- Tem razão.
- Pode me contar como era?
- Acho que é melhor fazer um chá primeiro.
- Estou contente porque a senhorita Wainwright permitiu que eu viesse aqui. Você sabe que a irmã dela está noiva do filho de George Bennett?
- Ah, sim. Este mundo é pequeno mesmo. - Ela encheu a chaleira.
- Conheci Helen em Bruxelas - continuou Catherine. - É muito gentil. Que pena sua irmã não estar.
- Ela viaja muito, e duvido que desejasse se envolver em um livro sobre um homicídio - disse Kathy, em tom repressor, tirando duas canecas de um armário e colocando-as bruscamente sobre o balcão.
Catherine cruzou a cozinha até a janela que dava para a praça da aldeia. Ela imaginou as horas vazias que Ruth Cárter devia ter passado, esforçando-se em vão para ouvir o som dos passos da filha chegando em casa.
Como se lesse seus pensamentos, Kathy falou:
- Algo, em meu íntimo, transformou-se em pedra naquela noite, quando vi os policiais chegando à praça da aldeia. Se eu corresse o risco de esquecer, os pesadelos tratariam de me fazer lembrar. Ainda não consigo ver um uniforme de policial na aldeia sem me sentir nauseada.
Ela voltou-se para coar o chá.
- Aquela noite mudou tudo, não? - indagou Catherine, ligando disfarçadamente o gravador dentro do bolso de seu casaco.
- Ah, sim, mudou mesmo. Pelo menos tínhamos um detetive como George Bennett ao nosso lado. Se não fosse por ele, aquele bastardo do Hawkin poderia ter saído impune. Esta é a outra razão pela qual eu desejava falar com você. Já é hora de George Bennett receber o crédito que merece pelo que fez por Alison.
- A senhora é uma das poucas pessoas em Scardale que parece pensar assim. A maioria dos seus parentes não vê as coisas desse modo. Exceto por Janet Cárter e Charlie, que está em Londres, ninguém mais quis falar comigo - observou Catherine, ainda esperando poder recrutar a ajuda de Kathy para soltar a língua dos demais.
- Bem, não posso mandar na vontade dos outros. Eles têm suas razões. Nem posso dizer que os culpo por não desejarem revirar o passado. Nenhum de nós tem boas recordações daquela época. - Ela despejou o chá de uma chaleira de barro em duas canecas do mesmo material. - E então? Você quer saber como era este lugar?
Durante uma hora, as duas percorreram todos os cómodos, enquanto Kathy oferecia descrições detalhadas sobre os móveis e a decoração e Catherine tentava recriá-los em sua imaginação, surpresa por não ter qualquer sensação sinistra enquanto era levada pela casa. Chegara a imaginar que, de algum modo, os eventos que haviam levado à morte de Alison Cárter pudessem ter impregnado as paredes do Solar Scardale, deixando seus fantasmas no ar como partículas de poeira. Contudo, não havia nada parecido ali. Aquela era simplesmente uma casa antiga e que, embora reformada com criatividade e muito dinheiro, jamais seria particularmente notável. Até mesmo o anexo usado por Philip Hawkin como laboratório fotográfico era bastante ordinário. Agora, servia apenas como depósito para ferramentas de jardinagem e móveis velhos, nada mais que isso.
Ainda assim, o tour foi produtivo para Catherine, permitindo-lhe colocar seu conhecimento sobre os eventos contra um fundo concreto. Ela disse isso a Kathy Lomas, enquanto ela trancava novamente a porta da frente e as duas voltavam à Casa da Cotovia para a entrevista formal.
- Ah, sim. Bom, é melhor mesmo não cometer nenhum erro no livro. Agora, o que você queria me perguntar?
No fim, o testemunho de Kathy acrescentou pouco ao que George já lhe contara. Seu valor estava principalmente no conhecimento mais íntimo que a mulher possuía sobre as pessoas envolvidas no caso. Ao cair da tarde, Catherine sentia que finalmente conhecia Ruth Cárter e Philip Hawkin o suficiente para escrever convincentemente sobre eles. Isto já valia a ida até Scardale.
- Depois de mim, você falará com Janet - comentou Kathy, enquanto Catherine anotava os detalhes de identificação na última microfita cassete.
- Isso mesmo. Ela disse que preferia conversar comigo à noite.
- Sim. Janet trabalha o dia inteiro e prefere guardar os fins de semana para ela e Alison. - Kathy levantou-se e juntou as canecas que haviam usado.
- Alison? - perguntou Catherine, erguendo subitamente a cabeça.
- Sua filha. Nossa Janet nunca se casou. Desperdiçou a juventude com um homem casado. Depois, engravidou quando estava com trinta e cinco anos, em uma idade na qual já não deveria fazer asneiras. O pai é algum americano que ela conheceu em um hotel em que estava hospedada por causa de uma conferência. De qualquer forma, ele voltou para Cincinnati antes que Janet descobrisse a gravidez, de modo que ela criou a menina sozinha.
- Deu o nome de Alison à filha?
- Sim. É como eu disse. Alison não foi esquecida em Scardale. Olhe, Janet teve sorte. Ela tinha a mãe para cuidar de sua filha de graça, de modo que conseguiu continuar fazendo de conta que era uma mulher livre e batalhadora. - Havia uma nota surpreendente de crítica na voz de Kathy. Catherine imaginou se ela sentia rancor por ter sido deixada pelos filhos, que moravam longe, e ter negada a chance de cuidar dos netos, ou se apenas condenava Janet por ter feito o que fez.
- E o que ela faz?
- Administra a filial de uma construtora em Leek. - Kathy olhou para fora da janela, na qual as cortinas ainda estavam abertas, apesar da escuridão da noite. As luzes de um carro surgiram no fim da estrada. - Acho que ela chegou. É melhor você ir então.
Catherine levantou-se, ainda sentindo-se confusa com as mudanças imprevisíveis de humor de Kathy Lomas, que passava de confidências à frieza total.
- A senhora me ajudou muito.
Kathy apertou os lábios estreitos por um instante e disse:
- Bom. Tudo isso foi... interessante. É, interessante. Contei-lhe coisas que já havia esquecido que sabia. E então, quando poderemos ler seu livro?
- Infelizmente, não antes de junho - disse Catherine. - Mas assim que a versão final estiver disponível, tratarei de lhe enviar um exemplar.
- Faça isso, garota. Não quero ver algum repórter batendo em minha porta e fazendo perguntas sobre um livro que nunca li. - Ela abriu a porta da frente e deu passagem a Catherine. - Diga a Janet que ela me deve meia dúzia de ovos.
A porta já se fechara quando Catherine chegou ao fim da trilha. Vacilando um pouco no escuro, ela virou à direita e passou pela Casa do Outeiro, onde Charlie Lomas vivera com sua avó, e entrou na trilha curta que levava à Casa do Condado, onde Janet Cárter crescera com seus pais e três irmãos. De acordo com Peter Grundy, os pais haviam vendido a propriedade à filha três anos antes, quando decidiram mudar-se para a Espanha por causa do clima. Catherine nunca imaginaria viver na casa onde havia crescido. Sua infância havia sido feliz, mas não deixara escapar a chance de ter liberdade e oportunidades em Londres.
Fosse qual fosse a razão para Janet Cárter desejar continuar em Scardale, Catherine teve certeza de que não havia sido por sentimentalismo, ao ver o interior da casa. Todo o andar térreo havia sido convertido em um único espaço contínuo, rompido apenas pela lareira. Sendo uma das casas mais novas de Scardale - construída provavelmente no começo da era vitoriana, como explicou Janet -, o pé-direito era mais alto, de modo que a eliminação das paredes criara uma sensação impressionante de espaço. Em uma ponta do salão, havia um espaço reservado à pequena cozinha funcional, com unidades de aço inoxidável que refletiam os múltiplos tons de cinza das paredes expostas de pedra. A extremidade oposta era um espaço social dominado pelas cores ricas de quadros e tapetes indianos. No meio, havia uma grande mesa de pinho, que parecia servir duplamente para refeições e trabalho. Uma adolescente estava sentada ali, olhando para a tela de um computador com grande atenção. Ela olhou apenas de relance quando Catherine entrou.
- Mas isto aqui é maravilhoso - exclamou Catherine, sem conseguir conter-se.
- Incrível, não é? - Os traços de Janet haviam se tornado ainda mais felinos com a idade. Seus olhos amendoados formavam vincos nos cantos enquanto ela sorria, alegre. - Todos ficam surpresos quando vêem a minha casa. É muito mais convencional no piso de cima, mas eu queria que o térreo fosse totalmente diferente.
- Janet, é impressionante. Nunca vi algo assim em casas antigas como a sua. Você me deixaria fazer uma matéria com fotografias de sua casa para minha revista?
Janet lançou-lhe um sorriso afetado.
- Pagariam por isso, não é?
O sorriso que Catherine lhe devolveu em resposta não tinha nada de amável.
- Talvez a revista possa dar um jeito nisso. Desculpe-me se não posso lhe pagar pela entrevista para o livro. Mas, sabe, editores... bem, editores economizam cada centavo que podem. - O que desejaria dizer era que não tinha a mínima intenção de oferecer nada de seu adiantamento generoso para alguém tão obviamente gananciosa, imaginando até onde Janet Cárter espremera os pais para conseguir pagar-lhes o mínimo possível pela casa.
As duas ajeitaram-se em um sofá baixo e Janet serviu vinho tinto em copos pesados de vidro, fazendo um gesto vago na direção da filha.
- Ignore Alison. Ela não ouvirá uma palavra do que dissermos. Ela chega da escola, enfia algo pronto no microondas e, então, perde-se no ciberespaço. Está agora com a mesma idade de Alison e eu em 1963. Quando olho para a minha Alison, tenho as mesmas preocupações que minha própria mãe deve ter tido, embora minha vida seja muito diferente da que ela teve.
- Tudo mudou no dia em que Ali desapareceu - recordou Janet, começando como quem está pronta para uma longa conversa. - Suponho que nunca entendi como aquilo foi horrível para minha tia e meus pais até ter minha própria filha. Eu só sabia que Alison havia desaparecido, mas certamente nunca me passou pela cabeça que deveria preocupar-me por mim também. Os adultos, além de toda a ansiedade sobre Ali, devem ter sentido um imenso temor de que ela pudesse ter sido apenas a primeira vítima, de que nenhum de seus filhos estava em segurança.
- Lembre-se de que, na época, as crianças não participavam de assuntos dos adultos. Não líamos jornais, nem acompanhávamos os noticiários, a menos que houvesse algo sobre cantores ou astros de cinema. Assim, ignorávamos completamente que duas crianças já haviam desaparecido tão perto daqui, em Manchester. A única coisa que sabíamos era que o desaparecimento de Alison limitara nossa liberdade, e esta experiência foi muito estranha para nós em Scardale.
Catherine assentiu, dizendo:
- Sei exatamente o que você quer dizer. Em Buxton, nós sentimos a mesma coisa. De repente, éramos tratados como porcelana frágil. Por onde quer que andássemos, precisávamos ter um adulto ao nosso lado. Minha mãe não me deixava nem levar o cachorro para passear no bosque próximo se não houvesse um adulto para me acompanhar. Isso é irónico quando pensamos que o perigo estava dentro da casa de Alison. Mas deve ter sido mil vezes pior para você, com todo o medo e ansiedade bem ali, na casa de sua tia.
- É verdade - disse Janet, emocionada. - Estávamos acostumados a andar livremente pelo vale. Nunca estávamos dentro de casa no verão, e mesmo no inverno íamos até as colinas ou seguíamos o curso do Scarlaston até Denderdale, ou simplesmente ficávamos pelo matagal, nos divertindo. Como Derek, Alison e eu éramos praticamente da mesma idade, andávamos sempre juntos. E então, de repente, éramos somente Derek e eu, e não podíamos sair de casa. Como prisioneiros. Meu Deus, como aquilo foi difícil para nós.
- As pessoas se esquecem de como era ser um adolescente no começo dos anos 60 - disse Catherine, lembrando-se vividamente do papel enorme que o tédio tivera em sua própria adolescência.
- Especialmente em um lugar como Scardale - disse Janet. - Eu ia à escola e todas as minhas amigas só falavam sobre programas de televisão, sobre idas ao cinema ou com quem haviam dançado no baile da igreja. Nós não tínhamos nada disso. Todos riam de nós, porque aqui em Scardale não tínhamos a menor ideia do que acontecia no resto do mundo. Não era como se marchássemos em um ritmo diferente. Era como se estivéssemos paralisados em relação às outras pessoas. Bem, você sabe disso, se frequentou uma escola em Buxton.
Catherine concordou:
- Eu estava um ano adiante de você, mas lembro que não riam apenas das crianças de Scardale. Qualquer um que morasse em outra cidade também ria de nós, que morávamos em Buxton.
- Posso imaginar. As crianças sabem ser cruéis umas com as outras. E, comparado com o que nos aconteceu depois do desaparecimento de Alison, ser xingado era o menor de nossos pesadelos. Quando recordo as semanas que se seguiram ao desaparecimento de Alison, o que mais me lembro é de Derek e eu, sentados em meu quarto, escutando a rádio Luxemburgo naquele imenso rádio que tínhamos. A recepção era horrível, cheia de estática e ecos. Além de tudo, quase congelávamos por aqui, pois isso tudo aconteceu bem antes de instalarmos aquecimento central em nossas casas. Sentávamos no quarto, com nossos casacos de inverno. Mas mesmo hoje em dia, certas canções me fazem voltar no tempo, como Needles and Pins, do The Searchers, Anyone Who Had a Heart, de Cilla Black, World Without Love, de Peter e Gordon, e
Want To Hold Your Hand, dos Beatles. Sempre que as escuto, vejo-me outra vez em meu quarto, sentada sobre meu cobertor cor-de-rosa, e Derek sentado no chão, de costas para a porta, abraçando os joelhos. E sem Alison.
- Quando se é criança - continuou -, certas coisas parecem imutáveis. Passamos o dia inteiro na companhia de alguém, e jamais pensamos que, um dia, podem não estar mais ali. De certo modo, sinto-me feliz por você escrever este livro. Muitos de nós perderam alguém e não há nada para provar que um dia estiveram aqui, exceto nossas lembranças sobre eles. Pelo menos poderei pegar seu livro e saber que Ali esteve mesmo conosco. Não o bastante, mas ela esteve aqui.

6
Maio de 1998
George Bennett parou para respirar, com as mãos nos quadris, enquanto sorvia o ar morno e úmido. Seu filho esperava-o alguns passos à frente, apreciando a vista espetacular proporcionada pelas Colinas de Abraão, cruzando o desfiladeiro profundo escavado pelo rio Derwent até o perfil dramático do parque Riber Castle, sobre o monte. Haviam tomado o teleférico em Matlock Bath até o pico, e agora caminhavam pela crista arborizada rumo a uma trilha sinuosa que os levaria gradualmente de volta até o rio, lá embaixo.
Paul jamais conseguiria contar o número de caminhadas que já fizera com o pai ao longo dos anos. Assim que se tornara capaz de acompanhar seus passos, George levara-o para caminhar nos vales e picos de Derbyshire. Parte desses passeios estava gravada em sua memória, como a escalada do Mam Tor no dia anterior a seu décimo sétimo aniversário. Outros haviam desaparecido, aparentemente sem deixar rastros, reaparecendo apenas quando ele voltava ao local com Helen, ocasionalmente. Quando vinha sozinho à Inglaterra, como ocorrera neste fim de semana, ainda gostava de subir as colinas com seu pai, embora atualmente George preferisse caminhos menos íngremes e não se dispusesse mais a loucas aventuras ao acaso, como ocorrera quando era mais jovem e capaz.
Paul voltou-se para olhar o pai, que havia recuperado o fôlego, embora seu rosto ainda estivesse rubro pelo esforço do trecho pequeno, mas íngreme, que haviam completado.
- Você está bem? - perguntou.
- Não se preocupe - disse George, endireitando-se e indo até ele. - Só não sou mais tão jovem. Apesar disso, esta vista vale a pena.
- Sinto saudade disso, vivendo em Bruxelas. Fiquei mal-acostumado, tendo crescido perto de lugares como este. Lá, se desejamos fazer trilha em um monte decente, precisamos dirigir por horas. Então, geralmente, não nos damos ao trabalho. E exercitar-se em uma academia não tem graça quando lembro disso aqui - falou, com um gesto amplo na direção do horizonte.
- Pelo menos dentro da academia você não pega chuva - disse George, apontando para as nuvens ao longe, com a sombra de chuva sob elas. - Teremos de enfrentá-la daqui a pouco. - Ele começou a caminhar, sendo acompanhado pelo filho. - Não tenho saído tanto quanto gostaria ultimamente - continuou. - Depois de terminar as entrevistas com Catherine de manhã, cuidar do jardim e fazer todas as outras tarefas domésticas, mal tinha tempo para algo mais que uma partidinha de golfe, de vez em quando.
Paul sorriu-lhe.
- Isso é minha culpa, então?
- Não estou me queixando. De um modo esquisito, estou contente porque você me convenceu. Guardei tudo aquilo por tempo demais, só para mim. Eu achava que enfrentar as recordações seria mais traumático do que realmente foi. - Ele deu uma risada seca. - Durante todos esses anos, aconselhei meus subordinados a enfrentarem seus medos, a levantarem-se depois da queda, e fiz exatamente o oposto.
Paul concordou, com um aceno de cabeça.
- Você sempre me ensinou que é melhor enfrentar o que nos assusta.
- Sim, desde que você escolha onde quer confrontar seus monstros - disse George, em tom sombrio. - De qualquer modo, a verdade é que o caso Alison Cárter não era um monstro tão assustador quanto eu pensava. E Catherine facilitou as coisas. Ela fez muitas pesquisas, tenho de admitir. Assim, durante a maior parte do tempo, nos concentramos em detalhes. Isso me fez perceber que, no fim das contas, fiz um ótimo trabalho, sob as circunstâncias em que me encontrava.
Os dois chegaram a uma curva no caminho. George parou e olhou para o filho, respirando fundo.
- Preciso contar-lhe algo, porque não quero que você leia sobre isso em um livro antes de ouvir de mim. Sua mãe e eu lhe escondemos algo. Quando você era pequeno, não contamos porque achamos que isso o assustaria. Sabe como são as crianças, a imaginação é capaz de aumentar qualquer coisinha. E quando você cresceu, bem... nunca parecia ser a hora certa de lhe contar. Paul sorriu, inseguro.
- Bem, é melhor contar logo, então.
George pegou seus cigarros e lutou contra o vento leve para acender um.
- Philip Hawkin foi enforcado no dia em que você nasceu - disse, finalmente.
O sorriso de Paul transformou-se em perplexidade.
- No dia em que eu nasci?
- Sim... Recebi a notícia de seu nascimento pouco depois do enforcamento de Philip Hawkin.
- Então é por isso que você sempre festejou tanto meu aniversário? Para tentar se esquecer daquele outro aniversário? - perguntou Paul, incapaz de esconder sua mágoa.
George negou, sacudindo a cabeça.
- Não, não. Não foi assim. Seu nascimento foi... não sei bem como dizer... Foi como um sinal dos deuses para que eu deixasse Alison Cárter no passado e seguisse em frente. Em cada aniversário seu, o que me vinha à lembrança não era Philip Hawkin, mas... Olhe, eu pareço estar recitando o texto de algum livro americano de auto-ajuda, mas seu nascimento me trouxe uma sensação de renovação, de recomeço. Como uma promessa.
Os dois homens fitavam-se. A expressão de George era de súplica, para que o filho acreditasse em suas palavras. Após um momento em silêncio, Paul deu um passo à frente e enlaçou o pai em um abraço desajeitado.
- Obrigado por me contar - murmurou, consciente, agora, do quanto amava seu pai, embora os contatos físicos entre ambos sempre fossem raros. Ele separou-se do pai com um sorriso largo. - Agora entendo por que você não queria que eu descobrisse isso somente ao ler o livro de Catherine.
George devolveu-lhe o sorriso.
- A julgar por sua reação, você teria entendido tudo errado.
- Provavelmente - reconheceu Paul. - Mas entendo por que você não me contou quando eu era pequeno. Eu teria tido pesadelos, com certeza.
- Sim. Você sempre teve uma imaginação muito ativa - falou George, virando-se para apagar o cigarro sob o salto de sua bota e olhando Paul sobre os ombros. - Ah, outra coisa. Se você quiser, na próxima vez em que vier com Helen, podemos ir a Scardale para conhecer a irmã dela.
- Helen adoraria a ideia - disse Paul, sorridente. - Gostaria muito. Obrigado, pai. Sua proposta é muito importante. Sei que tudo isso deve ter sido muito difícil para você.
- É. Bem - disse George, um tanto bruscamente -, venha, garoto, vamos sair daqui antes que a chuva venha e nos afogue.
Catherine esperava que seu regresso a Londres fosse um alívio depois da vidinha tranquila e limitada que levara em Longnor, de modo que se sentiu chocada ao descobrir que a cidade na qual havia vivido durante mais de vinte anos lhe parecia estranha: muito barulho, muita sujeira, muito movimento. Até mesmo seu amado apartamento em Notting Hill parecia ridiculamente amplo para uma pessoa, com seus tons frios e suaves e móveis modernos parecendo-lhe insignificantes comparados com as grossas paredes de pedra e móveis avulsos e destoantes da pequena casa em Derbyshire.
A ideia de recomeçar a correria para preencher seus momentos livres com atividades sociais também lhe parecia estranha, mas forçara-se a marcar um jantar com alguns amigos e colegas. Catherine disse a si mesma que de nada adiantaria afastar-se demais do mundo do trabalho. Além disso, depois de mais duas entrevistas, uma reunião com o editor que encomendara seu livro e um encontro para trocar ideias com um produtor de documentários para a televisão que desejava fazer um programa baseado em suas pesquisas, ela achou que merecia algum prazer legítimo.
O primeiro de seus dois entrevistados havia sido Charlie - ou, como ele preferia ser chamado agora, Charles Lomas. Seu nome fora o único que Catherine encontrara, dentre seu elenco de envolvidos no caso - além, é claro, da própria Alison, ao fazer buscas em artigos de jornal. Descobrira algumas reportagens sobre ele, embora nenhuma mencionasse os acontecimentos traumáticos de 1963 e 1964.
A razão para Charles Lomas ter chegado às páginas dos jornais do país inteiro nada tinha a ver com Scardale. Em vez de permanecer no vale, onde esperavam que ele desse continuidade à tradição da família na criação de gado, Charles saíra de Scardale no inverno de 1964. Pegara carona até Londres e, lá, conseguira emprego como contínuo em uma gravadora, no Soho. Sua sorte foi ter chegado em um momento em que todo o país parecia dançar na batida do movimento Mersey. Em uma questão de meses, seu sotaque do norto rendeu-lhe um emprego de meio período, cantando com uma banda. No fim, ele já organizava as turnês do grupo e, em cinco anos lançara-se em um empreendimento lucrativo, agenciando bandas de rock.
Quando Catherine conseguiu localizá-lo, Charles já possuía um império internacional ligado à música e ainda agenciava meia dúzia dos músicos de rock mais bem pagos da Grã-Bretanha. Em resposta ao seu pedido por uma entrevista, ele lhe enviara um fax, afirmando que falaria com ela apenas porque sua família tinha uma dívida de gratidão com George Bennett e não havia outro modo de pagá-la.
Ao ser levada até o escritório no quinto andar, com vista para a praça do Soho, Catherine surpreendeu-se. Com seus cabelos grisalhos aparados com precisão e penteados para trás, testa ampla, mãos manicuradas e rosto liso e reluzente da barba recém-feita, usando jeans e camisa de grife, era difícil imaginar Charles Lomas como o fazendeiro de Scardale que poderia ter sido. Logo, porém, Catherine percebeu que ele herdara o talento lendário de contador de histórias de sua avó. Antes de começar a falar sobre Alison, ele a divertiu durante meia hora com fofocas do mundo da música.
Na terceira vez em que ela lhe perguntou, ele finalmente respondeu a sua pergunta sobre Alison.
- Ah, aquela garota tinha uma cabeça de dar inveja - disse, com admiração. - Se estava irritada com algo, sempre falava na cara. Não havia como se enganar com ela. Janet sempre foi um pouco falsa, agindo como um docinho na sua frente e apunhalando pelas costas. Bom, ela ainda é assim, para falar a verdade. Mas Alison não perdia tempo com baboseiras, por isso nunca acreditei que pudesse ser convencida por um estranho a acompanhá-lo. Ela deve ter sido levada à força, porque não era uma garotinha boba e impressionável.
Início de Nota de Rodapé: O movimento Mersey, cujo nome deriva-se do rio Mersey, junto a Liverpool, também chamado de "o som de Liverpool", formou-se nos anos 60, promovendo a música de mais de seiscentos grupos, dentre os quais os Beatles. Esses grupos tocavam em locais pequenos, como o Cavem, que os Beatles tornaram famoso, e o Jacarandá. Fim de Nota.
- Desde o primeiro momento - continuou - eu quis fazer o possível para ajudar. Juntei-me às equipes de busca e consegui descobrir o lugar em que ela brigou com alguém. Ainda me lembro de meu choque ao me deparar com aquilo. Já havíamos desenvolvido um ritmo para as buscas, especialmente entre nós, os habitantes de Scardale. Conhecíamos o terreno muito bem e qualquer coisa fora do normal saltaria aos nossos olhos, muito mais do que aconteceria com os policiais que trouxeram de todas as cidades vizinhas.
- Quando percebi que a vegetação rasteira estava remexida, foi como se alguém estivesse apertando meu peito, meu coração e pulmões e eu não conseguisse respirar ou fazer com que o sangue circulasse. E quando contei sobre aquilo à minha avó, a primeira coisa que ela disse foi: "Hawkin está sempre perambulando por lá, mais que qualquer um de nós." Eu lhe disse então que tinha visto Hawkin andando pelo matagal próximo ao Scarlaston e pelo arvoredo na mesma tarde do desaparecimento de Alison. Ela pediume que não dissesse nada sobre aquilo, que deveríamos contar à polícia apenas no momento certo, para que nos dessem atenção. De acordo com ela, se falássemos cedo demais, os policiais não dariam atenção, porque todos estavam oferecendo informações ao mesmo tempo, muitas delas sem nenhum proveito.
- Dois dias depois, ela me pediu que contasse aquilo ao inspetor Bennett, assim que o visse. Disse-me que daria uma olhada pelos campos, para ver se podia perceber alguma coisa que pudéssemos ter ignorado. - Ele sorriu, lembrando-se da avó com afeto. - Ela estava sempre jogando para a plateia. Parecia-se com uma bruxa, de modo que conseguiu convencer metade do condado de que tinha poderes mágicos e podia lançar feitiços e falar com os animais. Na verdade, ela era apenas mais esperta que todos nós juntos. Estava sempre afinada com coisas que ninguém mais percebia.
- Hoje em dia, acho que naquela tarde ela só atraiu a atenção para o campo entre o matagal e o arvoredo para que o inspetor Bennett desse mais peso à minha revelação. Acho que erramos ao guardar esta informação, mas é preciso lembrar que tínhamos uma vida muito isolada em Scardale. Não sabíamos quem eram aqueles homens estranhos, se realmente tentariam encontrar Ali ou se apenas pegariam o primeiro otário para culparem pelo crime que bem entendessem. Como o inspetor Bennett provavelmente já lhe disse, eu era o otário da hora, naquele ponto. Dezenove anos, esquálido e cheio de hormônios. Juro que eu não parecia mesmo muito esperto. Assim, é claro que me detiveram para interrogatório.
- George me contou - disse Catherine. - Deve ter sido muito desagradável.
- Sim, foi. Eu estava dividido entre a indignação por não perceberem que estávamos todos do mesmo lado e o pavor de que pudessem me acusar. Só conseguia pensar que precisava encontrar um modo de convencê-los de que jamais tocaria em um fio de cabelo de Alison, sem dizer realmente o que minha avó me pedira para guardar em segredo.
- Há muito tempo eu suspeito que ela revelou as andanças de Hawkin pelos campos no dia do desaparecimento de Alison no momento mais propício para livrar o misterioso tio Peter de qualquer acusação. Claro que eu não tinha qualquer conhecimento disso na época, mesmo porque nem mesmo sabia de sua existência até ler sobre ele no jornal. É incrível como a geração mais velha comandava Scardale como se o lugar fosse algum feudo medieval do qual se podia expulsar os indesejáveis. Ainda assim, tio Peter era parte da família e vovó sempre acreditou na força dos laços de sangue. Assim, usou o ás escondido em sua manga para afastar o inspetor Bennett do homem que, em sua opinião, jamais teria machucado Alison.
- Acho que isso significa que terei de arcar com parte da responsabilidade pelo que aconteceu depois. Tenho de confessar que esta ideia não é nada confortável. - Ele suspirou. - Minha única desculpa é que, até meus dezenove anos de idade, eu jamais pensaria em ir contra minha avó, e aquele não me parecia o melhor momento para começar a fazer isso.
A descoberta da entrada para a antiga mina de chumbo de Scardale era outra recordação vívida de Charles. Embora Catherine tivesse dificuldade para enxergar o jovem ansioso daquela época no empresário bem-sucedido de agora, ao falar sobre sua descoberta ele demonstrou, subitamente, toda a paixão e impulsividade de então.
- Quando minha mãe me disse, naquela manhã, que queriam que eu os ajudasse a encontrar uma mina de chumbo escondida dentro do Rochedo de Scardale, fiquei perplexo. Eu não acreditava que um lugar assim pudesse existir sem que eu sequer tivesse ouvido falar nele. Eu vivia em Scardale desde que nascera e ninguém jamais mencionara a mina. Mas o principal motivo para eu achar que a mina não existia era que eu teria jurado que conhecia cada centímetro de Scardale.
- O fato de vivermos em um lugar não significa que o conhecemos intimamente - continuou ele. - Veja meu primo Brian, por exemplo. Ele provavelmente conhece cada fio de grama de seus pastos. Acho que ele também conhece cada passo da trilha que vai de sua casa até o estábulo, cada pedacinho do caminho até seu ponto de pesca favorito no Scarlaston. Mas isso é tudo que ele conhece, já que nunca teve o instinto de explorador. A diferença é que eu gostava de explorar. Quando era garoto, passava cada hora do dia em que não estava na escola ou fazendo algum trabalho no meio do mato e nos campos. Eu tinha apenas sete anos quando escalei o rochedo pela primeira vez. Costumava subir e descer correndo o Rochedo do Escudo várias vezes por semana, apenas por prazer. Eu adorava cada cantinho de Scardale.
Por um instante, sua expressão fechou-se, enquanto ele era transportado ao passado.
- Sinto saudade - disse, abruptamente, mas logo sua expressão iluminou-se novamente e retomou o fio de suas recordações. - Então, como você vê, eu não entendia como podia haver uma mina de chumbo por lá sem que eu a conhecesse. Ainda assim, todos nós estávamos desesperados naquele estágio. Valia a pena fazer qualquer coisa para encontrar Ali, em nossa opinião. Minha surpresa foi total quando encontrei a entrada. Eu nunca havia ido tão longe junto à base do rochedo antes. No verão, os arbustos eram fechados demais, e no inverno, a passagem parecia intransponível, por causa das rochas no meio do caminho que a escondiam quando olhávamos da direção do rio. Na verdade, não era nada difícil chegar à caverna. Estava bem onde deveria estar, segundo aquele livro.
- O que me intrigou mais ainda era que outra pessoa já entrara naquela caverna secreta de Scardale, quando eu ainda não fizera isso. A percepção de que meu conhecimento do vale não era total foi profundamente inquietante. Perdi a confiança em meu próprio discernimento, e aquilo me abalou. O mais estranho é que, a longo prazo, isso me fez bem, já que nunca me deixo levar por bajulação. Estou sempre preparado para os aduladores. Sei que podemos nos enganar redondamente sobre alguém que vemos todos os dias e que pensamos conhecer. Assim, é loucura achar que podemos conhecer alguém apenas porque já vimos a pessoa algumas vezes. Embora eu não me sentisse assim na época, pelo menos isso eu tirei de bom, do que aconteceu com Ali.
Ele passou a mão pelo queixo, pensativo.
- Vou lhe dizer uma coisa. Eu ainda aceitaria servir de bobo para os outros se isso significasse que Ali ainda estaria conosco.
No que se referia a informações adicionais sobre os envolvidos no drama de Alison Cárter, Charles havia sido muito menos útil que Kathy ou Janet. Ele ofereceu-lhe um sorriso de desculpas, dizendo:
- Sempre vivi num mundinho todo meu. Estava sempre contando histórias para mim mesmo, inventando fantasias sobre maneiras de fugir de Scardale e mudar o mundo. Na maior parte do tempo eu nem sabia direito o que ocorria à minha volta. E quanto a relacionamentos com adultos, eles eram um verdadeiro mistério para mim. Eu sabia, apenas, que não queria o que todo mundo em Scardale parecia desejar.
Ele respirou fundo e fitou Catherine direto nos olhos.
- Tive de vir para Londres, para descobrir quem eu era de verdade. Sou gay, entende? Na minha adolescência, eu não entendia por que era diferente. Só sabia que era. Assim, quero que você entenda que não sou a pessoa mais indicada para lhe responder se havia algo errado no relacionamento entre Ruth e Phil. - Ele sorriu. - Eu achava esquisitos todos os relacionamentos.
7
Maio de 1998
Enquanto Catherine bebericava um gim com tónica na sala do andar superior do hotel Lamb and Flag, em Covent Garden, seu telefone celular tocou.
- Catherine Heathcote. Alô? - disse, torcendo para que não fosseDon Smart, ligando para cancelar a entrevista que haviam marcado.
- Catherine? É Paul Bennett. Meu pai me disse que você esta em Londres.
- Sim, vim por uns dias, para falar com algumas pessoas sobre o to,
- Também estou aqui. Voltarei a Bruxelas amanhã, mas pensei que talvez pudéssemos jantar juntos.
Deliciada, Catherine respondeu:
- Eu adoraria.
Combinaram de se encontrar às sete. Alegre com a perspectiva de pitar com Paul, ela levantou a cabeça e viu um homem de rosto lúgubre, que a olhava hesitante. Ele pagou por uma cerveja e veio em sua direção.
- Você é Catherine Heathcote? - indagou ele.
- Don Smart? - Ela levantou-se parcialmente e estendeu a mão para cumprimentá-lo, enquanto ele confirmava com um gesto de cabeça eacomodava-se na poltrona à sua frente. Catherine não o teria reconhecido pela descrição de George Bennett. Os cabelos ruivos agora eram de um braço encardido, não havia sinal de barba em seu rosto e a pele era seca e froisa, salpicada de manchas escuras da velhice em vez de sardas. Os olhos astutos que George recordara com tanta clareza e comparara aos de uma raposa eram avermelhados, e sua parte branca tinha um matiz amarelado e doentio.
- Smart de nome e esperto por natureza - disse ele, fazendo trocadilho com seu sobrenome, mas Catherine não acreditou que tal descrição fosse verdadeira.
- Obrigada por concordar em conversar comigo - disse apenas. Ele tomou um pequeno gole do grande caneco de cerveja que trazia.
- Estou me odiando por isso. Por direito, eu deveria ter escrito este livro. Cobri a história desde o primeiro dia, até o fim. Mas George Bennett jamais quis falar comigo, depois que tudo acabou. Suponho que sou uma amarga lembrança de seu fracasso.
- Fracasso?
- Ele desejava desesperadamente encontrar Alison Cárter viva. A ideia de que ela já estaria morta muito antes da primeira ligação para a polícia nunca lhe serviu de consolo. Acho que, desde então, ele tem sido assombrado pela morte da garota e, por isso, não quis falar comigo. Ele não conseguiria sentar-se na minha frente sem pensar que fracassou com Ruth Hawkin. - Ele enfiou a mão no bolso e puxou dali um maço de cigarros. - Você fuma?
Ela recusou.
- Nem sei por que ainda ofereço cigarros, atualmente - disse ele, acendendo o seu com um suspiro de prazer. - Todo mundo deixou de fumar. Proíbem cigarros até nas redações dos jornais hoje em dia. E então, Catherine, como está indo com meu livro?
- Está bem interessante, Don - respondeu, sorrindo.
- Aposto que sim - foi o comentário amargo. - Desde o primeiro momento, eu sabia que George Bennett daria boas matérias. O homem era um buldogue. Não desistiria de Alison Cárter de jeito nenhum. Para os outros policiais, era apenas um trabalho como outro qualquer. Claro que lamentavam pela família, e aposto que aqueles que tinham filhos iam para casa e davam um abraço ainda mais carinhoso neles depois de terem passado o dia naqueles brejos, procurando por Alison.
- Com George a coisa era diferente - continuou. - Para ele, era uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Cárter, mas George não se dedicaria mais ao caso nem se fosse sua própria filha. Passei muito tempo acompanhando George Bennett no caso Alison Cárter, mas nunca descobri por que ele se envolveu tanto. Era como se fosse uma questão pessoal. Para mim, foi um presente de Deus. O emprego na filial do News foi meu primeiro em um jornal de circulação nacional, e eu buscava uma história que me levasse a outros grandes jornais. Eu já havia coberto parte dos desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News, e achei que se pudesse fazer com que os policiais os ligassem a Alison Cárter, teria uma manchete incrível.
- E teria mesmo - concordou Catherine.
- George não entrou na minha - disse ele, com amargura. - Ele estava decidido a não entregar Alison Cárter aos detetives que investigavam os desaparecimentos das outras crianças. Não sei se era puro palpite ou teimosia, mas a verdade é que sua decisão revelou-se a mais correta. É claro que ninguém tinha a mínima ideia sobre Ian Brady e Myra Hindley na época, mas George parecia saber, por instinto, que Alison não era uma das crianças atacadas por assassinos em série. Além disso, queria cuidar do caso sozinho.
- Mas foi graças a ele que você finalmente chegou aos grandes jornais, não foi? - perguntou Catherine.
- Sem dúvida. O caso Alison Cárter me rendeu boas matérias. Lembre-se que redigi aqueles artigos com a vidente francesa, que foram meu cartão de visitas para os grandes jornais. Ironicamente, isso fez com que eu nunca escrevesse uma linha sequer sobre as verdadeiras revelações no caso dos assassinatos do pântano.
De repente, Smart começou a discorrer sobre seus tempos gloriosos como repórter de vários jornais, voltando finalmente ao Daily News como editor responsável pelas notícias da noite. Três anos atrás, seu cargo tornara-se desnecessário, mas ele ainda trabalhava três noites por semana no News, supervisionando jornalistas novatos.
- Esses repórteres de hoje não têm a menor ideia sobre jornalismo de verdade. Por isso precisam de alguém com experiência. Mas deixe-me dizer uma coisa: o caso Alison Cárter serviu para muito mais que promover minha carreira - confessou. - Quando Alison desapareceu, logo depois daquelas outras crianças, convenci-me de uma vez por todas que não deveria ter filhos. Infelizmente, minha esposa na época pensava diferente. Assim, acho que poderíamos dizer que meu casamento foi vítima acidental do que aconteceu com Alison Cárter. O que ocorreu naquela aldeia de Derbyshire certa noite de dezembro teve efeitos imprevisíveis em muitas vidas.
"Em muitos casos que envolvem um elemento real de mistério é isso mesmo que acontece. Ninguém sabe o que houve, e a vida de todos é colocada sob o microscópio. Subitamente, todos os segredos são levados a público. Em geral, esta visão não é nada bonita."
- Você tem algum arrependimento sobre o modo como cobriu o caso? - perguntou Catherine.
O sorriso de Don Smart era de pura condescendência.
- Catherine, querida, fui um dos melhores. Ainda sou, aliás. Eu via meu trabalho como tendo duas funções. A primeira delas era oferecer ao meu editor matérias boas e exclusivas, que mantivessem nossos leitores e nos trouxessem outros. A segunda função era provocar aqueles policiais, para que continuassem em frente e não se contentassem com pouco. Se isso me trouxesse alguns problemas com a polícia, eu estava disposto a enfrentá- los. O mais próximo que George e eu chegamos das vias de fato foi quando fiz as matérias com a vidente. Tive a ideia ao ler um artigo em uma revista americana. A imprensa daqui era muito mais moderada naquela época, e uma ou duas publicações americanas levavam vantagem sobre nós.
"Eu usava as matérias dessas publicações o tempo todo, como inspiração. A ideia da vidente foi um exemplo clássico disso. Eu havia lido a matéria sobre um assassinato ocorrido no deserto do Arizona que, supostamente, foi resolvido por uma vidente. Isto ficou no fundo de minha mente quando as buscas por Alison começaram. Troquei ideias com meu editor sobre esta pauta e ele adorou. Eu sabia que a polícia britânica jamais admitiria que havia trabalhado com um sensitivo, de modo que minha única chance de encontrar alguém com boa reputação seria no exterior.
"Liguei para um amigo meu que trabalhava na Reuters e pedi que verificasse os arquivos. Foi assim que cheguei a Madame Charest. Nunca encontrei-me com a mulher, mas se eu a tivesse visto isso não faria a menor diferença, porque ela não falava uma palavra de inglês. Tivemos de conversar por meio de um intérprete. É claro que nunca acreditei em uma só palavra do que ela dizia, mas deu uma excelente matéria, mesmo assim.
"Sei que George considerou-me irresponsável. Creio que, na opinião dele, só o que me interessava era o que viesse em meu proveito, mas não era bem assim. O outro lado dessa história é que eu desejava tanto quanto George que encontrassem a garota, mas matérias de jornal morrem rápidamente, a menos que tenhamos combustível para alimentar as chamas. Para manter o nome e a foto de Alison Cárter no jornal, eu precisava de um novo ângulo. A vidente me deu isso e me permitiu manter Alison Cárter mais alguns dias na primeira página. No caso específico dessa garota, provavelmente não fez diferença, mas poderia ter feito - disse, parecendo convicto da correção de suas atitudes."
- Mas sua Madame Charest estava errada, não?
Don Smart abriu um largo sorriso e, de repente, Catherine viu a raposa descrita por George.
- E daí? A notícia causou sensação. Se você fizer metade do que eu fiz, Catherine, talvez venda alguns exemplares a mais de seu livro do que aqueles que seus amigos e parentes vão comprar.
Don Smart deixara um gosto amargo na boca de Catherine que não passava nem mesmo com uma taça de vinho da Borgonha tomada na companhia de Paul em um bar.
- É um tremendo aproveitador - confidenciou para o filho de George Bennett. - Por causa de tipos como ele os jornais ingleses começaram a publicar lixo, e o homem orgulha-se disso.
- Agora talvez você entenda por que meu pai nunca falava com ele - disse Paul. - Devo dizer que fiquei surpreso quando papai aceitou seu convite, mas agora estou contente porque você e Helen me pediram para convencê-lo disso. Parece que o trabalho neste livro deu a meu pai um novo ânimo. Há muito não o vejo tão alegre. É como se o processo de reviver tudo permitisse que ele finalmente superasse o passado para poder ir em frente.
- Também percebi isso. É estranho, mas antes de iniciar este projeto eu estava muito nervosa. Nunca fiz nada nesta escala antes, e não sabia se poderia manter meu interesse e esforços por muito tempo. Mas contar esta história com o máximo de fidelidade transformou-se em uma missão. E perceber a importância disso para George acrescentou um novo ímpeto para dar o melhor de mim.
- Mal posso esperar para ler o livro - disse Paul. - Mas, para ser honesto, sinto-me um pouco apreensivo por ler sobre meu pai e sobre a vida que teve antes de eu nascer. É quase como espiar alguém quando não sabem que estamos ali. - Ele abaixou um pouco a cabeça, com expressão indecifrável. - A maior parte do material será novidade completa para mim, entende? Meu pai nunca foi um desses policiais que enchem a paciência de todo mundo contando histórias sobre seu trabalho. Acho que ele sequer mencionou Alison Cárter na minha frente, até o dia em que aquele jornalista apareceu em sua porta.
Ele ergueu a cabeça, com a sombra de um sorriso.
- Mas quando estive lá neste fim de semana, percebi sua animação. Papai me contou várias coisas sobre as quais não falava antes, embora sempre tenhamos sido bem íntimos. De um modo estranho, este projeto nos aproximou ainda mais. É como se ele tivesse adquirido um conhecimento maior do trabalho que eu realizo a cada dia, ao trabalhar com você. Ele fez muitas perguntas sobre meu trabalho. Queria saber como me sinto lidando com jornalistas, em que sentido eles diferem uns dos outros, como cumprem suas tarefas. Como se comparasse com o que está fazendo com você.
- E também tem sido bom para mamãe - continuou ele. - Ela sempre pisava em ovos quando eu perguntava como havia sido o início de seu casamento. Tinha de prestar muita atenção no que dizia, para não chatear papai. Só que eu nunca entendia exatamente o porquê disso. - Ele fez uma careta. - Eu pensava que eles não queriam falar sobre suas vidas antes de meu nascimento para que eu não pensasse que eram mais felizes sem mim. Não sei, Catherine, mas isso tudo está sendo tão bom para a minha família que eu quase desejaria ter roubado sua ideia e trabalhado eu mesmo com ele para escrever um livro assim.
Catherine riu.
- Ele jamais teria sido tão franco com você quanto foi comigo. Conhecendo seu pai como conheço agora, ele teria menosprezado seus sucessos o tempo todo, para que você não pensasse que se vangloriava.
- E eu o teria transformado em um herói - disse Paul, com tristeza. - Acontece que ando meio obcecado por essa história. Parece que só sei falar nisso atualmente. Vou acabar matando Helen de tédio se não me cuidar. Ah, isso me lembra que Helen deseja dar à irmã um dos primeiros exemplares. Ela acha que será interessante para Jan ler sobre o que aconteceu em sua casa.
Catherine fez uma careta brincalhona ao dizer:
- Talvez ela não sinta tanto prazer com seu esplêndido isolamento naquele solar depois que ler toda a história. Não será uma leitura muito divertida.
- Ainda assim, é melhor conhecer a história real que ouvir fofocas e boatos, não acha?
- Bem, de mim ela só terá a verdade. Estou absolutamente determinada a isso. - Catherine ergueu sua taça. - À verdade.
- A verdade - ecoou Paul. - Melhor proclamada que mantida em segredo.
8
Maio/junho/julho de 1998
Catherine saiu da auto-estrada A1 e descobriu-se imediatamente em uma estreita estradinha rural que serpenteava entre campos férteis e bosques antigos, com o mar brilhando à frente, mas distante. Por alguma razão que não conseguia precisar, a perspectiva de se encontrar com Tommy Clough dava-lhe mais prazer que entrevistar qualquer dos outros atores coadjuvantes no drama de Alison Cárter. Isso se devia, em parte, ao fato de George e Anne falarem dele com grande afeto, mesmo depois de trinta e cinco anos quase sem nenhum contato. Mas quanto mais ela pensava nisso, mais parecia-lhe que Clough era a figura mais enigmática de todas.
De acordo com George, na superfície o sargento parecia durão, até mesmo brutal às vezes. Bem mais que o próprio George, Clough parecera um policial típico de sua época. Sempre afinado com todos, sempre com o ouvido atento para fofocas e boatos que rondavam cada delegacia, sempre campeão no número de crimes resolvidos e prisões efetuadas, ele dera a impressão de ser o homem certo no lugar certo. Ainda assim, demitira-se da polícia de Derbyshire dois anos após o encerramento do caso Alison Cárter e tornara-se fiscal residente em um santuário de pássaros no condado de Northumberland. Afastara-se bastante de seu passado, trocando seu estilo gregário pelo isolamento.
Com sessenta e oito anos e aposentado, ele ainda vivia no nordeste da Inglaterra. Anne contara-lhe que o visitara uma vez, durante uma hora,
quando levara Paul até a Universidade de Newcastle, durante o período em que ele tentava decidir sobre o melhor lugar para seus estudos académicos.
Segundo ela, Tommy Clough passava seus dias observando e fotografando pássaros, e suas noites desenhando-os. O jazz, que ele amava, servia de fundo para isso e o isolava do mundo externo. De acordo com a descrição de Anne, Clough tinha uma vida solitária e pacífica, estranhamente incongruente com os quinze anos que ele passara levando os criminosos à justiça.
A estrada descia suavemente a colina até o destino de Catherine, um ajuntamento de casas - pequeno demais para ser considerado uma aldeia - alguns quilómetros ao sul de Seahouses. Excitada e ao mesmo tempo apreensiva, ela ergueu a pesada alça de latão na porta da antiga casa de pescadores e deixou-a bater para chamar seu morador.
Catherine teria reconhecido Tommy Clough em qualquer lugar, pelas fotografias que George lhe emprestara. Os cachinhos ainda estavam todos ali, embora agora tivessem tons de prata, em vez do castanho-claro de antes. Seu rosto era curtido pelo clima, mas os olhos ainda eram inteligentes e a boca ainda parecia mais acostumada a sorrir que a franzir-se. Embora vestisse calças largas de veludo cotelê e blusão também largo, era óbvio que seu corpo robusto ainda era musculoso. Diziam que parecia um touro, na juventude. Agora, seus cachos grisalhos faziam-no parecer mais com um carneiro reprodutor, pensou ela, ao sorrir em resposta ao sorriso que recebeu.
- Olá, senhor Clough - disse.
- Senhorita Heathcote? Entre. - Ele deu um passo para trás e deixoua entrar em uma sala simples, mas imaculadamente limpa. As paredes eram forradas com belos desenhos de pássaros, alguns pintados e outros feitos com tinta preta sobre papel branco e brilhante. Tocando ao fundo, ela reconheceu "Romances for Saxophone", de Branford Marsalis.
Ela virou-se para admirar os desenhos mais próximos.
- São maravilhosos - disse com sinceridade, como raramente fazia quando tentava colocar os entrevistados à vontade, elogiando seu gosto por algo.
- Não são ruins - respondeu Clough. - Agora, sente-se e tome alguma coisa. Acho que você merece, depois de dirigir de Derbyshire até aqui.
Ele desapareceu na cozinha, voltando com uma bandeja contendo um bule de chá, uma leiteira, açucareiro e duas canecas da Sociedade Real de Proteção aos Pássaros.
- Não tenho café - disse. - Uma das coisas que prometi a mim mesmo quando deixei a polícia era que nunca mais beberia uma xícara sequer de café instantâneo. E por aqui não há como comprar café moído, de modo que me contento com chá.
- Chá está ótimo - disse Catherine, sorrindo. Sem saber por quê, já confiava neste homem. - Obrigada por concordar em falar comigo.
- Você deve agradecer a George - disse Clough, pegando o bule e agitando-o um pouco, para apressar o processo. - Há muito tempo decidi que ele é quem deveria dizer quando chegasse a hora de falar sobre aquele caso. Sei que trabalhamos lado a lado na investigação, mas minha visão das coisas é diferente da visão de George. Ele é um homem mais voltado para a organização, enquanto eu sempre fui meio rebelde. Assim, minha versão nunca poderia ser tão clara quanto a história contada por ele.
"O caso Alison Cárter foi um momento definitivo para mim, sabe? Entrei na polícia porque acreditava na ideia de fazer justiça. Naquele caso, as coisas saíram de tal maneira que eu não tinha certeza se poderíamos confiar no sistema para punir o culpado. Acho que conseguimos, mas foi por pouco. Tudo poderia ter dado errado, e aí não teríamos nada para mostrar em troca de meses de trabalho e da vida da garota. Cheguei à conclusão de que, se não pudéssemos depender da polícia para a produção do resultado final que é a única justificativa para sua existência, então não faria sentido ser parte dela."
Ele sacudiu a cabeça e deu uma risada divertida, enquanto servia o chá.
- Veja só como estou falando. Pareço um grande pensador e tão fervoroso quanto um pregador. George Bennett não me reconheceria. Eu era um cara como outro qualquer. Gostava de uma cerveja, de fumar, rir e contar piadas. Nada era fingimento, mats esta parte de mim combinava com o trabalho que eu fazia, de modo que, de certo modo, acho que eu a exagerava um pouco. Ao mesmo tempo, sempre fui meio pensador demais. E quando Alison Cárter desapareceu, minha imaginação decolou. Minha mente estava cheia de diferentes possibilidades, uma pior que a outra. Eu conseguia mantê-la sob controle enquanto estava trabalhando, mas, durante minhas folgas, os pesadelos tornavam-se a cada dia piores. Eu também bebia muito, era o único modo de pegar no sono, à noite.
- Muitas vezes agradeci a Deus pela obsessão de George Bennett com o caso, porque assim sempre havia algo a fazer: arquivos para conferir, prováveis testemunhas para entrevistar... Mesmo depois que já deveríamos ter arquivado o caso. Sem que precisássemos formalizar nada, tornei-me seu faz-tudo nesta investigação, porque assim eu me sentia útil. Mas, por Deus, era difícil demais entender aquela gente de Scardale.
- Lembra-se daquele filme dos anos 70, The Wicker Man? Edward Woodward faz o papel de um tira que vai até uma ilha escocesa misteriosa para investigar o desaparecimento de uma menina e é envolvido nos rituais pagãos dos habitantes. É muito assustador e práticas sexuais pervertidas e crenças bizarras permeiam todo o filme. Bem, foi assim que me senti quando cheguei a Scardale em 1963, com a diferença de que voltávamos à normalidade de nossas casas no fim do dia. Além disso, ninguém tentou fazer sacrifícios humanos usando George e eu - acrescentou com um riso constrangido, como se soubesse que um policial com os pés na realidade não devesse acreditar no sobrenatural. - E, é claro, nós resolvemos o mistério, o que é mais do que Edward Woodward conseguiu fazer. - Ele misturou leite a seu chá e tomou um grande gole.
- Anne me disse que nenhum de seus vizinhos daqui sabe que você foi policial - observou Catherine.
- Não é que eu me envergonhe disso - disse ele, com algum constrangimento, levantando-se para trocar o CD. Mais saxofone suave, desconhecido para ela, agora. Catherine manteve-se em silêncio, sabendo que Tommy recomeçaria de onde parara quando estivesse pronto.
Ele sentou-se novamente.
- É só que as pessoas têm certas suposições quando sabem que alguém já foi da polícia. Eu queria evitar isso. Desejava começar de novo, sem sombras do passado. Achei que se pudesse ignorar meu passado Alison Cárter me deixaria em paz. - Sua boca torceu-se em algo que se parecia mais com uma careta que com um sorriso. - Não deu certo. Você está aqui, e cá estou eu também, recordando tudo aquilo. Ontem à noite eu estava pensando nisso, organizando meus pensamentos. Tudo ainda é tão vívido como se eu estivesse passando por essas experiências pela primeira vez. Então, estou pronto. Vamos lá, pergunte o que quiser.
Tommy Clough era o elemento que faltava na história de Catherine. Sua percepção singular preenchera lacunas, transformando um caleidoscópio de pedaços desconexos em um quadro coerente. Ele a fizera entender George Bennett como homem e como policial e lhe permitira compreender coisas que não estavam claras antes. Ela entendia, finalmente, as razões subjacentes do pessoal da aldeia naquilo que às vezes parecera ser uma falta de cooperação completa com o trabalho da polícia. E, agora, Catherine conseguia ver a forma geral de sua história com uma clareza muito maior.
De volta a Longnor, ela deu início à tarefa longa e complexa de organizar seu material. O ruído da impressora era o fundo constante, enquanto ela espalhava pilhas de papel pelo chão da sala. Transcrições de sua longa série de entrevistas com George; uma pilha separada para suas anotações e transcrições de cada uma das outras testemunhas; algumas fotocópias de artigos de jornal; as cópias que obtivera de transcrições do julgamento, graças a um amigo que trabalhava em uma biblioteca de direito, e uma coleção de volumes abordando julgamentos famosos, comprada em um sebo, que lhe ofereceria dicas e informações à medida que avançasse na redação.
As aquarelas sem graça que os locatários haviam pendurado em sua sala foram substituídas por fotografias de Scardale, da época e atuais, incluindo os cartões-postais de Philip Hawkin. Uma das paredes exibia apenas closes das principais personagens, da própria Alison a George, com sua expressão tensa, fotografado por um repórter ao sair de uma coletiva da imprensa com sua capa impermeável e chapéu de feltro. A terceira parede estava tomada por mapas em grande escala daquela área.
Durante quase dois meses, ela mergulhou totalmente em Scardale. Levantava-se às oito e trabalhava até meio-dia e meia. Depois, dirigia dez quilómetros até Buxton, estacionava junto à caverna Poole e atravessava o bosque até a charneca desolada acima, cruzando o terreno até o Templo de Salomão, o pórtico da era vitoriana com vista para toda a cidade. Depois, descia envolvida pelas sombras dos bosques de Grin Low e percorria a Green Lane, passando pela casa em que crescera. Seu pai morrera cinco anos antes e sua mãe vendera a casa e mudara-se para um asilo residencial em Devon, onde o clima era mais favorável para ossos velhos. Catherine não sabia quem habitava a casa agora, mas também não se preocupava muito com isso.
Provavelmente muitos de seus antigos colegas de escola ainda moravam por ali, mas ela se livrara de seu passado como uma cobra que larga a própria pele, ao se mudar para Londres. No que se referia a amigos, só os tivera bem tarde. Como filha única, sempre considerara o território da imaginação muito mais interessante que o mundo real de suas colegas adolescentes. Apenas ao trabalhar com outros com quem tinha afinidades intelectuais é que descobrira pessoas com quem poderia realmente formar vínculos genuínos. Portanto, sua infância não guardava amizades preciosas que desejasse ressuscitar. Esperara encontrar alguns rostos familiares no supermercado onde fazia compras, mas isso não acontecera, e assim era melhor. A única parte de seu passado que lhe importava dizia respeito às recordações que lhe permitiam envolver-se profundamente com a vida e morte de Alison Cárter.
Depois de sua caminhada diária, ela dirigia de volta a Longnor e fazia um lanche que consistia de um sanduíche de queijo e salada, antes de voltar ao trabalho. Às seis da tarde, abria uma garrafa de vinho e assistia ao noticiário. Depois, trabalhava novamente até às nove, quando parava e comia uma pizza ou alguma outra refeição semipronta comprada no supermercado. Durante o resto da noite, respondia a e-mails e lia qualquer livro de bolso que distraísse sua mente. Além disso, conversas ocasionais com seu editor sobre o progresso do livro e com o produtor do documentário sobre o cronograma deste era tudo o que podia suportar.
Pela primeira vez na vida, seus dias não giravam mais em torno de um escritório cheio de gente e uma vida social muito ativa. Ela se admirava por sentir tão pouco a falta de companhia humana e pensava, com humor amargo, que se tornara, em um período de seis meses, o que anteriormente teria classificado como "uma coitada solitária".
Quando o telefone tocou certa tarde e ela ouviu a voz de George Bennett, pareceu-lhe que suas palavras haviam adquirido vida de repente e, por um instante, não conseguiu compreender o que ele dizia.
- Desculpe-me, George, eu estava a quilómetros de distância quando você ligou. Pode repetir o que estava dizendo? - perguntou, hesitante.
- Espero não ter interrompido seu fluxo criativo em um momento crucial.
- Não, não é nada disso. E então, em que lhe posso ser útil? - Catherine readquiriu o controle, voltando imediatamente a ser a profissional de sempre.
- Estou ligando para lhe contar que Paul trará Helen para uma visita de alguns dias, semana que vem. Anne e eu queremos saber se você gostaria de jantar conosco sexta-feira.
- Será um prazer - disse ela. - Devo ter a primeira versão do original no fim desta semana. Levarei comigo, para que você possa dar uma conferida depois que Paul e Helen voltarem a Bruxelas.
- Você tem trabalhado demais - disse George. - Será um enorme prazer para mim. Então estamos combinados: sexta-feira, às sete horas. Até lá, Catherine.
Ela desligou o telefone e olhou para as fotografias na parede. Fizera quase tudo o que podia para fazê-las adquirir vida. Agora, como Philip Hawkin, teria de aguardar o veredicto dos outros.
9
Agosto de 1998
Catherine entregou a George o gordo envelope e disse, em tom de cerimónia:
- Esta é a primeira versão. Não poupe críticas, George. Preciso de sua opinião sincera. - Ela o seguiu até a sala de estar, onde Paul e Helen estavam sentados no sofá.
- Aqui está um motivo para celebração - disse George. - Catherine acabou de me entregar seu livro.
Helen sorriu.
- Parabéns, Catherine. Você não perdeu tempo! Catherine encolheu os ombros.
- Devo voltar ao trabalho em três semanas, então não podia desperdiçar tempo mesmo. Esta é a vantagem de ser jornalista, a escrita expande-se ou se contrai de acordo com o prazo.
Antes que pudessem continuar neste assunto, Anne entrou com taças e uma garrafa de champanhe.
- Olá, Catherine. George disse que tínhamos algo a celebrar, de modo que achamos boa ideia abrir uma dessas.
Paul sorriu, descontraído.
- Para nós não será a primeira esta semana. O divórcio de Helen finalmente saiu e decidimos casar. Assim, estouramos algumas garrafas uns dias atrás para selarmos nosso compromisso.
Catherine cruzou a sala e inclinou-se para cumprimentar Helen beijando-a no rosto.
- Que boas notícias! - exclamou, entusiasmada. Virou-se para Paul e beijou-o também. - Estou muito feliz por vocês dois.
George tomou a bandeja das mãos da esposa e pousou-a sobre a mesinha.
- Também estamos muito contentes. Esta semana será inesquecível.
Ele abriu o champanhe e encheu as taças. - Um brinde - disse, distribuindo-as. - Ao livro.
- E ao casal feliz - acrescentou Catherine.
- Não, ao livro, ao livro! - protestou Paul. - Assim, teremos de abrir outra garrafa para brindar a mim e a Helen. E você terá de vir ao casamento - ele acrescentou. - Afinal, se não fosse por você, meu pai nunca iria a Scardale para conhecer a irmã de Helen.
- Você foi a Scardale? - perguntou Catherine, sem conseguir conter sua surpresa. O único fracasso que lamentava em suas pesquisas era não ter conseguido persuadir George a voltar à aldeia e percorrer os locais importantes em sua companhia.
George pareceu levemente constrangido:
- Ainda não fomos lá, mas almoçaremos com Janis, irmã de Helen, segunda-feira.
Catherine levantou sua taça a Paul.
- Você conseguiu de novo. Só não raptei seu pai, mas fiz tudo que podia para convencê-lo a ir até lá comigo e não consegui.
- Bem, você preparou o terreno - disse Paul, sorridente.
- De qualquer maneira, estou contente porque você vai até lá. Em minha opinião, não resta muito para recordar daquela época no solar, George.
- O que você quer dizer? - indagou ele, inclinando-se para a frente.
- Foi tudo reformado. De acordo com Kathy Lomas, que me levou até lá, não há um único cómodo com a aparência que tinha em 1963. Não foi apenas a decoração que mudou, também foram feitas obras estruturais, abertura de paredes unindo cómodos menores... Um dos quartos virou banheiro... Esse tipo de coisa. Se você fechasse os olhos até chegar lá e então os abrisse dentro do solar, garanto que nada lá dentro lembraria a casa que você conheceu - acrescentou com um sorriso.
- Eu gostaria de acreditar nisso - disse George. - Mas tenho a sensação de que não conseguirei escapar do passado com tanta facilidade.
- Não sei, George - interrompeu-o Helen, alegre. - Sabe o que dizem, que certas casas têm uma aura própria? Que quando entramos em algumas sabemos de imediato que somos bem-vindos? E que em outras, não importa o dinheiro que se gaste em reformas, a casa ainda parece fria e hostil? Bem, o Solar Scardale é um desses lugares em que nos sentimos em casa no momento em que entramos. Foi isso que Jan me disse, quando esteve lá logo depois que o herdamos. Ela me ligou para dizer que, assim que cruzou a porta, soube que este seria seu lar. E entendo exatamente o que ela quis dizer. Sempre que durmo lá tenho o sono pesado e me sinto totalmente em casa. Assim, se havia algum fantasma, ele já se mudou há muito tempo.
- Então você poderá ter uma surpresa agradável, querido - disse Anne, tranquilizando-o.
A dúvida ainda transparecia no rosto de George, que disse, hesitante:
- Espero que sim.
- E nem se preocupe com a possibilidade de ser pego de surpresa por recordações. Se os Carters, Crowthers e Lomas restantes souberem que você está voltando ao vale, provavelmente estenderão um tapete vermelho e decorarão suas casas com bandeirinhas coloridas - disse Catherine. - A única ameaça à sua saúde e bem-estar será o excesso de hospitalidade.
- E, por falar nisso, já é hora de abrirmos a segunda garrafa - disse Paul, levantando-se rapidamente.
- Mas há uma coisinha que preciso saber, George - disse Catherine, sorrindo com o máximo de sedução que podia. - Se você sobreviver a seu retorno a Scardale, será que poderia considerar uma segunda ida até lá, comigo?
- Achei que você havia terminado o livro - disse ele, procurando uma desculpa para recusar.
- Apenas a primeira versão. Ainda há muito tempo para acrescentar algo ao que escrevi.
George suspirou.
- Suponho que lhe devo isso. Tudo bem. Se eu sair vivo de Scardale, voltarei com você. Prometo.
Livro 2
Segunda PARTE
Brookdne, 14 green close, cromford, Drbwshire
10 de agosto de 1998
Prezada Catherine,

Escrevo-lhe devido a um assunto de grande importância para nós dois.
Não é fácil, para mim, escrever esta carta, principalmente porque não posso lhe dar uma explicação para o que preciso lhe pedir. Posso apenas desculpar-me e pedir que continue confiando em mim, como tem feito nos últimos seis meses, enquanto trabalhamos juntos em "Um corpo para o crime".
Catherine, você precisa suspender a publicação deste livro. Não vá em frente. Peço-lhe para fazer o que for possível para impedir que ele seja lançado, agora ou em qualquer momento no futuro. Sei que o original definitivo acabou de ser enviado para a editora, de modo que não pode ter ido muito longe ainda. Entretanto, não importa o quanto isso possa ser inconveniente, faça com que seu editor entenda que este livro jamais deverá ser publicado.
Sei que isso deve lhe parecer ultrajante, especialmente porque lhe peço para cancelar a publicação sem oferecer um motivo. Tudo o que posso dizer é que obtive novas informações que torna imperativo impedir que seu livro se torne o registro definitivo do caso de Alison Carter. Não posso divulgar tais informações porque afetam outras pessoas além de mim. Meu temor é que, se o livro for publicado, o caso atraia muita publicidade, o qe, por sua vez, terá conseqüências terríveis para pessoas inocentes. Peço-lhe que não inflinja tais conseqüências a elas, já que não fizeram nada para merecê-las. A única pessoa que deve pagar por seus erros sou eu mesmo. Sei que o adiantamento que você recebeu da editora poderá ser devolvido, e pretendo reembolsá-la do valor integral. Você merece ser recompensada pelo trabalho que realizou, e não pretendo aumentar seus problemas esperando que você devolva um dinheiro que é seu por direito.
Sei que estou pedindo algo terrível a uma escritora profissional, mas suplico-lhe que esqueça deste livro, esqueça deste caso e dê as costas para sempre à história de Alison Carter e Philip Hukin. Você tem o talento e as ferramentas necessárias para descobrir a verdade, mas, pelo bem da sua sanidade, insisto que você abandone este projeto, embora isso possa ser muito doloroso.
Catherine, sei que você tentará demover-me dessa decisão, mas ela é definitiva. Se você tentar ir em frente com o livro, terei de empregar todas as medidas legais possíbeis para impedi-la. Detestaria ter de fazer isso, porque acho que, ao longo desse trabalho, desenvolvemos laços de amizade que eu lamentaria terminar. Contudo, a minha intenção de dar um fim a este livro é tamanha que eu sacrificaria a nossa amizade para evitar o seu lançamento.
É impossível para mim expressar o quanto lamento por tudo isso.
Acontecimentos recentes viraram a minha vida de pernas para o ar e mal posso pensar lucidamente. A única coisa que eu tenho certeza é que você precisa garantir que seu livro jamais seja publicado.
Com afeto,
George Bennett.
1
Agosto de 1998
Catherine não conseguia parar de olhar para a carta, em descrença total. Inicialmente, pensou que se tratava de uma brincadeira, mas rejeitou a ideia antes mesmo que se formasse de todo. Sabia que George Bennett era cavalheiro demais - e gentil demais - para fazer este tipo de brincadeira de mau gosto. Ela leu a carta novamente e imaginou se ele não estaria passando por um esgotamento nervoso. Talvez a visita a Scardale, logo depois de reviver o caso Alison Cárter, tivesse causado a mesma espécie de exaustão vivida por outras pessoas na época. Mas isso também parecia-lhe improvável. George Bennett era saudável demais e não perderia a razão trinta e cinco anos depois, não importando o quanto as recordações pudessem ser traumáticas. E ele mesmo havia comentado, mais de uma vez, que repassar o caso havia sido menos perturbador do que imaginara.
Esta percepção não lhe deixava nada em que se agarrar. A raiva começou a queimá-la, como se fosse indigestão. A carta lhe chegara quando estava no meio de um café da manhã tardio. Esperava uma carta de seu editor com comentários e solicitações de modificações, não esta catástrofe. Seu primeiro impulso foi o de pegar o telefone, mas antes que apertasse os três primeiros dígitos do número de George, bateu com o fone no gancho. Anos de jornalismo haviam lhe ensinado que era muito fácil insultar alguém pelo telefone. Esta situação exigia um encontro cara a cara.
Largou sobre a mesa metade do café e da torrada. Quarenta minutos depois, virava à direita, junto ao lago do moinho. Durante todo o trajeto, ela fumegara de frustração. Tudo o que conseguia enxergar era a arrogância de George, e não podia entender o que a provocara. Ele nunca dera o menor sinal de ser capaz de um comportamento tão autoritário. Ela pensara que haviam se tornado amigos, mas não entendia como um amigo poderia tratá-la assim.
No íntimo, Catherine sabia que o livro era mais seu que de George, e que ele não tinha o direito de tirá-lo dela. A ameaça de um processo não a amedrontava, pois sabia o que estava escrito no contrato do livro. O que a perturbava era o efeito que a oposição do detetive poderia ter sobre as vendas e sobre sua reputação. Ter o livro repudiado pela única pessoa que conhecia o caso pelo avesso poderia prejudicá-la para sempre. Não aceitaria isso sem lutar. Se George não dava a mínima importância para a amizade que se formara entre ambos, ela trataria de fazer o mesmo, ainda que sofresse demais.
Ela entrou na ruazinha estreita. Os carros do casal estavam na entrada da casa, de modo que ela passou pela residência e parou em uma área reservada para estacionamento no início da colina adiante. Voltou a pé até a casa e seguiu, furiosa, até a porta da frente.
A campainha ecoou lá dentro, como se a casa estivesse vazia. Contudo, mesmo se George tivesse ido à aldeia a pé, Anne estaria em casa. Sua artrite não lhe permitia dispensar o carro para nada. Catherine afastou-se da porta da frente e contornou a lateral da casa, achando que podiam estar no jardim, aproveitando o sol ainda fraco antes que este se tornasse desconfortável. Mas não havia ninguém. Não havia nada para ver, exceto o gramado bem cuidado e canteiros de flores coloridas.
Enquanto voltava até a frente da casa, ocorreu-lhe uma possível solução. Se Paul e Helen tivessem alugado um carro, talvez George e Anne tivessem saído para passar o dia com eles. Esta ideia simplesmente aumentou sua determinação de se ver com George. Se tivesse de esperar até o último minuto do dia para falar com ele, que fosse! Estava parada na entrada da garagem, decidindo se deveria vigiar a casa de dentro de seu carro ou ir até a livraria junto ao lago por uma hora, para passar o tempo, quando alguém chamou seu nome.
A vizinha do lado, parada em sua porta da frente, parecia surpresa.
- Catherine? - repetiu.
- Olá, Sandra - disse Catherine, tirando de seu íntimo um sorriso puramente profissional. - Sabe onde posso encontrar George e Anne?
A mulher abriu a boca, olhando-a com espanto.
- Você não soube? - perguntou finalmente, incapaz de esconder uma nota de alegria na voz por saber algo que Catherine desconhecia.
- Há algo que eu deveria saber? - indagou Catherine, com frieza.
- Achei que já soubesse. Ele teve um ataque cardíaco.
- Um ataque cardíaco? - repetiu, em completa perplexidade.
- Foi levado às pressas para o hospital hoje de manhã cedo - disse Sandra, quase com prazer. - É claro que Anne acompanhou-o na ambulância. Paul e Helen seguiram em outro carro.
Estarrecida, Catherine limpou a garganta.
- E você teve alguma notícia desde então?
- Paul voltou para pegar algumas coisas para George logo cedo e trocamos algumas palavras, é claro. George está na UTI. Paul disse que ele corre risco de morte, mas os médicos disseram que George é um lutador. Todo mundo sabe disso, não é?
Catherine não conseguia entender por que a mulher parecia orgulhar-se do que havia acontecido. Era desagradável pensar que o prazer da outra vinha de saber algo que ela ignorava, mas não havia outra explicação.
- Que hospital? - perguntou.
- Eles o levaram para uma clínica especializada em problemas cardíacos em Derby.
Catherine já estava a caminho, rumo à colina onde deixara seu carro, quando Sandra gritou:
- Não a deixarão entrar. Você não é da família. Não a deixarão vê-lo.
- Veremos - disse Catherine para si mesma. Previsivelmente, seus temores por George manifestavam-se na forma de uma raiva irracional. Como ele ousava privá-la da satisfação de descobrir o que estava acontecendo, fingindo estar à beira da morte?
Apenas quando chegou a Derby sua raiva esfriou o suficiente para perceber como a noite devia ter sido horrível para todos eles - Anne, Paul, Helen e, é claro, para o próprio George, preso dentro de um corpo que se recusava a funcionar como deveria. Ela não podia imaginar nada pior para alguém como George. Mesmo aos sessenta e cinco anos, ele era forte e capaz; sua mente também parecia mais afiada que a da maioria dos policiais que já conhecera. Ele ainda conseguia completar as difíceis palavras cruzadas do Guardian, algo de que Catherine jamais fora capaz. Trabalhar em tamanha proximidade despertara-lhe respeito, mas também afeto. Ela detestava pensar que aquele homem podia ser diminuído pela doença.
Não foi difícil encontrar a UTI. Catherine empurrou uma das portas duplas e se viu em uma recepção vazia. Pressionou uma campainha sobre o balcão e aguardou. Depois de alguns minutos, pressionou de novo. Uma enfermeira de avental branco emergiu de uma das três portas fechadas.
- Posso ajudá-la? - indagou a mulher.
- Queria saber como está George Bennett - disse Catherine, com um meio-sorriso ansioso.
- É da família? - perguntou a enfermeira, automaticamente.
- Trabalho com George. Sou amiga da família.
- Desculpe, mas só permitimos visitas de parentes - disse ela, com voz impessoal.
- Sim, eu sei. - Catherine sorriu novamente. - Mas estava pensando se você poderia dizer a Anne, isto é, à senhora Bennett, que estou aqui. Talvez pudéssemos tomar uma xícara de chá, se ela estivesse disposta...
A enfermeira sorriu pela primeira vez.
- Claro que direi a ela. Como se chama?
- Catherine Heathcote. Onde eu poderia encontrar a senhora Bennett? A enfermeira apontou na direção do bar e virou-se para ir embora.
Catherine perguntou, antes que a mulher desaparecesse de vez:
- E George? Pode dizer-me algo sobre o estado dele? Desta vez, a voz que lhe respondeu era suave:
- Ele está no que chamamos de estado crítico, mas estável. As próximas vinte e quatro horas serão cruciais.
Catherine voltou ao elevador, atordoada. Estar no hospital fazia com que sentisse a catástrofe pessoal de George mais de perto, como as palavras de Sandra não haviam feito. Em algum lugar, atrás dessas portas fechadas, George estava ligado a máquinas e monitores. Além do que acontecia com seu corpo, o que será que se passava em seu cérebro? Será que ele recordava a carta que lhe enviara? Teria contado a Anne? Será que deveria agir como se nada tivesse acontecido? Não apenas por seus próprios interesses, racionalizou, mas também para evitar mais uma preocupação à família?
Catherine encontrou o bar e sentou-se a uma mesinha de canto, com uma água mineral na sua frente. Estava tão preocupada que só viu Paul quando ele estava praticamente colado nela. Hoje, sua semelhança com George era assustadora. Ela passara tanto tempo olhando para a fotografia do pai dele com quase a mesma idade que era como se a imagem na parede tivesse adquirido vida e trocado o impermeável e o chapéu por um par de jeans desbotados e camisa pólo. Ele deixou-se cair em uma cadeira como se suas pernas não o sustentassem mais.
- Sinto muito, Paul.
- Eu sei. - Ele suspirou.
- Como ele está?
- Nada bem. Estão dizendo que teve um ataque cardíaco grave. Não recuperou a consciência ainda, mas acham que isso acontecerá. Ah, meu Deus... - Ele cobriu o rosto com as mãos, obviamente arrasado. Ansiosa, Catherine observou enquanto os ombros dele curvavam-se e ele respirava fundo para recuperar o controle. - Seu coração parou na ambulância, e acho que pensam que pode ter havido algum dano cerebral - disse, recuperando-se o suficiente para continuar falando. - Estão planejando uma tomografia, mas não dão nenhum prognóstico.
Ele olhava fixamente para a mesa. Catherine cobriu a mão dele com a sua, em um gesto simples de apoio.
- O que aconteceu? - perguntou, suavemente. Ele suspirou novamente.
- Não consigo evitar a ideia de que foi minha culpa. Minha e de Helen. Você se importa se sairmos daqui? Esta atmosfera de hospital é tão opressiva! Parece que minha cabeça está cheia de algodão. Talvez seja bom pegar ar fresco.
Desceram em silêncio no elevador. Catherine apontou para uma fileira de bancos no lado mais afastado do estacionamento. Sentaram-se e ficaram olhando, sem ver, os canteiros bem arranjados de roseiras. Paul jogou a cabeça para trás e respirou fundo.
- Por que o ataque cardíaco de seu pai seria sua culpa? - perguntou Catherine, finalmente.
Paul correu a mão pelos cabelos:
- Quando fomos a Scardale, algo aconteceu. Ele ficou muito agitado. Não sei o que foi exatamente... Meu pai não disse nada, mas quando chegamos à casa de Jan ele já não estava bem. Então, quando entramos, achei que ele fosse desmaiar. Ficou pálido, começou a suar, como acontece quando as pessoas têm uma enxaqueca horrível. Ele parecia alheio a tudo. Mal falou com Jan, olhando à sua volta como se esperasse ver fantasmas saindo de dentro dos armários.
- Ele não disse o que o perturbava? Paul friccionou o nariz com o dedo.
- Acho que foi apenas o trauma de voltar a Scardale. O lugar estava vívido em sua mente, é claro, com todo o trabalho que vocês fizeram para o livro. - Seus ombros caíram. - É tudo minha culpa. Eu deveria ter percebido que ele não estava exagerando, quando dizia que não queria ir à aldeia.
- Mas não havia razão para pensar que ele adoeceria por isso - disse Catherine, em tom gentil. - Não se culpe. Ataques cardíacos não acontecem da noite pro dia. As condições para eles são formadas durante a vida inteira. No caso de seu pai, foi muito trabalho em horários irregulares, cigarros demais, refeições gordurosas feitas às pressas. O que aconteceu não foi sua culpa.
A expressão de Paul era amarga.
- O que ativou o ataque cardíaco foi a ida a Scardale.
- Não necessariamente. Você já me disse que nada em especial o perturbou.
- Eu sei. E já repassei mentalmente tudo o que aconteceu várias vezes.
Almoçamos juntos no jardim. Ele mal comeu, o que não é de seu feitio. Ele disse que a culpa era do calor e, para falar a verdade, estava mesmo quente.
Depois do almoço, Jan levou mamãe para dar uma volta por ali. Demoraram, porque ficaram trocando ideias, combinando de trocar dicas de jardinagem, essas coisas. Papai saiu para uma caminhada pela praça da aldeia, mas demorou apenas dez minutos. Depois, sentou-se lá, sob o castanheiro, fitando o espaço. Saímos de lá às três da tarde, mais ou menos, porque mamãe queria passar na feira de artesanato de Buxton, e chegamos em casa às seis.
- E George não disse se algo o estava incomodando? Paul balançou a cabeça.
- Nada. Ele disse que precisava escrever uma carta e subiu para o quarto. Helen e mamãe fizeram uma salada para o jantar e eu cortei a grama. Ele desceu depois de meia hora e disse que iria ao correio em Matlock porque queria ter certeza de que sua carta seria recolhida logo, já que mais tarde não há coleta. Achei um pouco estranho, mas meu pai nunca gostou de adiar as coisas.
Catherine respirou fundo. Não era justo deixar que Paul ficasse especulando sobre aquela carta que havia sido tão importante para seu pai.
- A carta era para mim - disse.
- Para você? Mas sobre o que ele lhe escreveria? - Paul estava perplexo.
- Acho que George não queria conversar pessoalmente comigo. Acho que não estava preparado para a discussão que certamente viria.
- Não entendo - falou Paul, franzindo a testa.
- Seu pai queria que eu cancelasse a publicação do livro. Sem qualquer explicação.
- O quê? Mas isso não faz nenhum sentido!
- Também não fez sentido para mim. Por isso vim até Cromford hoje de manhã. Então a vizinha me contou o que havia acontecido.
Os olhos de Paul arregalaram-se.
- Então você veio para brigar com ele? Mas que falta de sensibilidade, Catherine!
Ela negou com a cabeça.
- Não me entenda mal, Paul. Quando soube o que havia acontecido com George, meu primeiro pensamento foi de solidariedade, de pesar por todos vocês. Queria oferecer minha ajuda e meu apoio. Qualquer coisa.
Paul ficou em silêncio, pensando no que ouvira, mas com dúvida no olhar.
- Apeguei-me muito aos seus pais nos últimos seis meses. Seja qual for o problema com o livro, isto pode esperar. Acredite, Paul, o que mais me preocupa agora é a saúde de seu pai.
Paul começou a tamborilar com os dedos no braço do banco. A ele faltava claramente o talento de George para manter-se impassível.
- Olhe, Catherine, desculpe-me se fui agressivo, mas foi uma noite bem difícil. Não estou pensando direito.
Ela estendeu a mão e tocou o braço dele.
- Eu sei. Se eu puder fazer alguma coisa, diga-me, está bem? Paul deu um suspiro profundo.
- Você pode fazer algo por mim. Quero saber o que causou tudo isso. Quero saber o que aconteceu ontem para provocar o ataque cardíaco. Para ajudá-lo, preciso saber o que está por trás disso. Você sabe mais que qualquer outra pessoa sobre o envolvimento de meu pai com Scardale, então talvez possa imaginar o que aconteceu lá para deixá-lo tão tenso a ponto de ser traído por seu coração.
Catherine sentiu que parte da tensão desaparecia de seus ombros. O apoio de Paul ao que já pretendia fazer de qualquer maneira facilitava tudo.
- Farei o que for possível - disse. - Não aconteceu mais nada ontem à noite que pudesse abalá-lo? Depois de voltar do correio, quero dizer.
- Não. Fomos todos ao bar da cidade. Eles têm um jardim nos fundos, e simplesmente sentamos lá com nossos copos de cerveja e conversamos sobre uma ou outra coisa, mas nada muito importante. - Ele fez uma pausa e franziu o rosto. - Mas papai estava nervoso. Tive de repetir o que dizia algumas vezes, porque ele não estava prestando atenção.
- E Helen? Percebeu algo estranho no comportamento de George?
- Concordou comigo e disse que papai parecia meio aéreo. Achou que ele estava assim desde que chegamos a Scardale. Ela percebeu, mas provavelmente não era óbvio para aqueles que não o conhecem. Se Janis ofendeu-se com o silêncio de papai, certamente não disse nada a Helen....
- George não faria nada que ofendesse Janis, mesmo se estivesse chateado com algo, sendo um homem tão gentil.
Paul pigarreou.
- É verdade... - Olhou para o relógio e observou: - Bem, melhor eu voltar.
- Quando você precisa estar em Bruxelas? - perguntou Catherine, levantando-se.
Ele encolheu os ombros:
- Deveríamos ir para casa depois de amanhã. É claro que não vamos mais. Vou esperar para ver como ele fica.
- Volto com você até o hospital.
Quando se aproximavam da entrada, Paul avistou a namorada e saiu correndo, em pânico. Helen, com uma lata de Coca-Cola a meio caminho de seus lábios, abriu um sorriso ao vê-lo, mas ele sequer percebeu, indagando:
- Aconteceu algo com papai?
- Não, eu só queria respirar um pouco de ar fresco. - Ela passou um braço pela cintura de Paul, puxando-o para si em um gesto de apoio.
- Alguma novidade sobre George? - perguntou Catherine.
- Tudo na mesma. Paul, acho que deveríamos tentar convencer sua mãe a comer algo. - Ela sorriu para Catherine, como se pedisse desculpas. - Você conhece Anne... Não saiu do lado de George desde que o levaram para a UTI. Assim, vai acabar esgotada.
- Fiquem à vontade, não quero prendê-los - disse Catherine. Paul tomou sua mão.
- Descubra o que ele viu. Ou ouviu. Ou lembrou. Por favor?
- Farei o que puder.
Catherine observou-os enquanto entravam no prédio, contente por ter algo para fazer que talvez aliviasse um pouco da culpa que Paul estava sentindo. O fato de isto também servir a seus interesses era secundário, percebeu de repente, com surpresa. George Bennett tornara-se, claramente, mais importante em sua vida do que reconhecera antes. Isto tornava ainda mais importante a publicação de um livro que lhe faria justiça, disse a si mesma, com convicção. E isto ela podia fazer.
2
Agosto de 1998
Catherine tinha certeza de que o que quer que tivesse perturbado George Bennett ocorrera durante sua visita a Scardale. Ele vira alguma coisa, mas o quê? Como uma ida tão breve a um lugar podia produzir uma resposta tão avassaladora? Catherine teria entendido, se George lhe dissesse que seria preciso fazer algumas mudanças no livro, devido a uma descoberta recente, mas o que seria tão extraordinário a ponto de colocar a perder todo o projeto? E se George observara algo tão impressionante, como passara despercebido para o resto da família?
No calor medonho de uma tarde de agosto, Scardale mal podia ser reconhecida como a aldeia tristonha e gélida à qual Catherine havia ido em fevereiro. Como o verão estava sendo bastante úmido, a grama estava verde e crescida e as árvores mostravam mais tons de verde que qualquer pintor poderia retratar. Em sua sombra, até mesmo as casas modestas dos camponeses de Scardale pareciam quase românticas. Não havia nada amedrontador e nenhum traço dos acontecimentos sinistros de trinta e cinco anos atrás.
Catherine estacionou junto ao solar, vendo uma caminhoneta Toyota de cinco anos estacionada junto à entrada. Parecia que Janis Wainwright estava em casa. Ela sentou-se no carro por um momento, pensativa. Não poderia ir até lá e dizer: "O que aconteceu com George Bennett aqui ontem, para fazê-lo cancelar nosso livro? O que, na visita à sua casa, foi tão horrível que provocou um ataque cardíaco quase fatal à noite?" Entretanto, o que mais poderia fazer?
Ela pensou em perguntar a Kathy Lomas se ela vira George no dia anterior. Voltou-se na direção da Casa da Cotovia, mas o carro de Kathy não estava à vista. Exasperada, saiu do carro, pensando que, quando todo o resto falhava, só lhe restava usar a técnica jornalística comprovada de mentir descaradamente. Seguiu pela trilha estreita até a porta da cozinha e levantou a pesada alça de metal. Deixou-a cair e ouviu o eco dentro da casa. Um minuto inteiro passou e, então, a porta se abriu de repente. Ofuscada pela luz do sol, Catherine mal conseguia discernir as formas femininas no interior escuro.
- Pois não?
- Você deve ser Janis Wainwright. Conheço sua irmã, Helen. Meu nome é Catherine Heathcote. Você foi muito gentil permitindo que eu visse o solar, para poder situar-me ao escrever meu livro sobre o caso Alison Cárter. - Ela não podia jurar, mas sentiu que a mulher retraía-se ao ouvi-la.
- Lembro-me disso - disse a figura na porta, sem entonação.
- Será que eu poderia dar mais uma olhada em sua casa?
Com os olhos começando a se ajustar à escuridão da cozinha, Catherine pensou que Janis Wainwright parecia realmente assustada.
- Não é conveniente. Talvez em outro momento. Providenciarei uma data com Kathy - disse rapidamente, com as palavras embolando-se em sua pressa.
- Apenas o térreo. Prometo não perturbá-la.
- Estou ocupada agora - disse a mulher, com firmeza.
A porta começava a fechar-se. Instintivamente, Catherine aproximou-se de Janis, para impedi-la de fechar de todo. Só então viu o que George Bennett havia visto no dia anterior e recuou assustada, quase tropeçando.
- Fale com Kathy - disse Janis Wainwright. Como se a uma grande distância, Catherine ouviu a chave girar na porta e, depois, o ruído das trancas de segurança. Tonta, voltou-se e andou até o carro, trôpega e cega como uma sonâmbula.
Agora ela achava que entendia por que George escrevera aquela carta. Mas se estivesse certa, não era algo que podia ser facilmente explicado a Paul. E não era algo que a fizesse desejar o cancelamento do livro. O que vira fazia com que percebesse que poderia haver uma verdade mais profunda no caso Alison Cárter, que nem ela nem George haviam sequer imaginado. E que a tornava ainda mais determinada a contar a verdade, à qual brindara com tanta alegria com Paul, naquela noite, em Londres.
Catherine permaneceu completamente imóvel dentro de seu carro, sem sequer perceber o calor sufocante. Agora que o primeiro momento de choque já passara, mal podia acreditar no que havia visto. Dizia a si mesma que aquilo não fazia sentido. Havia sido enganada por seus olhos. Mas se este era o caso, então George também se enganara. A semelhança era impressionante, até sobrenatural. Se fosse só isso, poderia interpretar aquilo como uma coincidência bizarra, mas sabia que nenhuma semelhança incluía até cicatrizes.
Durante suas leituras e suas entrevistas para escrever o livro, soubera que Alison Cárter tinha uma marca que a distinguia: uma cicatriz. Era uma fina linha branca com mais ou menos dois centímetros, que atravessava sua sobrancelha direita, estendendo-se para baixo até a cavidade ocular e para cima, na testa. Acontecera no verão seguinte à morte do pai. Alison corria no parquinho da escola com uma garrafa de leite durante o recreio e tropeçara, caindo sobre os cacos de vidro e sofrendo o corte próximo ao olho. A cicatriz, de acordo com sua mãe, sempre era mais perceptível no verão, quando Alison pegava um pouco de sol. Assim como Janis Wainwright também pegara.
Uma dor de cabeça latejante surgiu do nada. Catherine fez o retorno e dirigiu, lenta e cuidadosamente, de volta a Longnor. Parecia haver apenas uma explicação para o que vira, e esta era impossível. Alison Cárter estava morta. Philip Hawkin fora enforcado por seu assassinato. Mas, se Alison Cárter estava morta, quem era Janis Wainwright? Como uma mulher que poderia ser clone de Alison poderia estar vivendo no Solar Scardale e não ter qualquer ligação com o que acontecera ali em 1963? Mas se estivesse ligada ao que acontecera naquela época, como sua própria irmã não saberia disso?
Catherine estacionou e foi a pé até a banca de revistas, onde comprou um maço de cigarros light e uma caixa de fósforos. Já em casa, serviu-se de uma taça de vinho tão frio que seus dentes doeram. Isto, pelo menos, fazia sentido. Depois, acendeu seu primeiro cigarro em doze anos, sentindo a cabeça rodar, o que já era algo. A nicotina chegou à sua corrente sanguínea e pareceu a coisa mais normal do mundo naquele momento.
Ela fumou quase com fervor e, então, sentou-se com papel e lápis à sua frente, para fazer anotações. Depois de uma hora, escrevera duas possibilidades:
Possibilidade 1. Se Alison Cárter não tivesse morrido, teria a aparência exata de Janis Wainwright.
Possibilidade 2. Alison Cárter é Janis Wainwright.
Ela também tinha um plano de ação. Se estivesse certa, precisaria mais que alguns ajustes e adaptações para terminar seu livro. Se Alison Cárter ainda estava viva, Um Corpo para o Crime seria ainda mais excitante do que já era. E, de algum modo, convenceria George a ver seu ponto de vista, depois que ele se recuperasse o bastante para considerar adequadamente todas as implicações.
O primeiro passo era um telefonema para sua assistente editorial em Londres.
- Beverley, aqui é Catherine - disse, injetando em sua voz uma energia que não tinha.
- Oi! Como vai a vida aí no meio do nada?
- Quando o sol está brilhando como hoje, eu não trocaria por Londres.
- Bem, mal posso esperar por sua volta. Está uma loucura aqui. Você nem imagina o que Rupert quer fazer para o número de Natal...
- Agora não, Bev - disse Catherine, com firmeza. - Tenho um assunto urgente para você. Preciso de alguém especializado em envelhecimento de pessoas por computador. De preferência nesta parte do país.
- Parece interessante.
Vinte minutos depois, sua assistente ligara para lhe dar o número de um homem chamado Rob Kershaw, da Universidade de Manchester.
Catherine consultou seu relógio. Eram quase quatro horas. Se Rob Kershaw não estivesse fugindo dos estresses da vida em alguma outra cidade, provavelmente ainda estaria trabalhando. Valia a pena dar-lhe um telefonema.
Alguém atendeu no terceiro toque.
- Gabinete de Rob Kershaw - disse uma voz feminina.
- Rob está?
- Desculpe, ele está de férias. Voltará dia 24. Catherine suspirou.
- Quer deixar recado? - perguntou a mulher.
- Obrigada, mas não adianta.
- Será que não posso ajudá-la? Sou a assistente de pesquisas de Rob Tricia Harris.
Catherine hesitou. Então, lembrou-se de que não tinha nada a perder.
- Você sabe fazer envelhecimento por computador a partir de fotografias?
- Ah, sim, é minha especialidade.
Alguns minutos depois, já haviam combinado tudo. Tricia não tinha nada mais urgente para fazer além de uma noite na frente da TV, e sofria da eterna falta de dinheiro de todos os estudantes. Seduzida pela promessa de ser bem paga por seus serviços, Tricia mostrou-se disposta a ficar lá à espera, enquanto Catherine dirigia até a universidade com suas cópias das fotografias que Philip Hawkin tirara da enteada.
Logo que ela chegou, Tricia digitalizou eficientemente as duas fotografias, fez algumas perguntas e então iniciou seu trabalho com o teclado e o mouse. Catherine deixou-a em paz, sabendo o quanto também detestava que as pessoas espiassem sobre seu ombro quando tentava trabalhar. Foi até a janela aberta no outro canto da sala e acendeu seu quinto cigarro. Amanhã pararia de novo, pensou. Ou quando descobrisse a chave para aquele mistério. O que viesse antes.
Depois de cerca de uma hora e mais três cigarros, Tricia chamou-a, pegando três folhas de papel em formato A4 da impressora e espalhando-as na sua frente.
- A da esquerda é aquilo que eu chamaria de melhor hipótese. Uma vida com estresse mínimo, boa nutrição e bons cuidados, talvez uns quatro quilos acima do peso ideal. A do meio é mais típica, em alguns aspectos: mais tensão, não tanta preocupação com a aparência, peso certo. A terceira é aquela que ninguém quer ser. Ela é a que teve uma vida difícil, dieta pobre, consumo pesado de cigarros, o que é muito ruim para a pele e favorece o aparecimento de rugas, você sabe - acrescentou, com um sorriso esperto para Catherine. - Ela está um pouco abaixo do peso.
Catherine esticou um dedo e puxou a folha do meio em sua direção. Exceto pela cor dos cabelos, poderia ser a fotografia da mulher que atendera a porta no solar. O cabelo de Janis Wainwright era grisalho, com fios loiros entremeados. Alison Cárter, envelhecida pelo computador, ainda tinha cabelos dourados, com apenas alguns fios brancos nas têmporas.
- Incrível - disse, suavemente.
- Era isso que você esperava? - perguntou Tricia. Catherine não lhe dissera quase nada, afirmando que trabalhava em um artigo sobre uma herdeira desaparecida que surgira de repente para reivindicar a posse da herança.
- Isto confirma meus temores - disse Catherine. - Há alguém andando por aí que não é quem diz ser.
- Humm, isso é ruim - disse Tricia, com uma careta.
- Ah, não - disse Catherine, sentindo o peito agitar-se de satisfação. - Não é nada ruim. Na verdade, é exatamente o contrário.
3
Agosto de 1998
Enquanto se afastava da Universidade de Manchester, Catherine sentiu a agitação quente que queimava suas veias sempre que sabia estar à beira de um furo jornalístico. Sua emoção era tanta que, por um momento, esqueceu-se do que dera início a este frenesi. Naquele instante, o fato de um homem estar deitado em um hospital de Derby, ligado a máquinas que o mantinham vivo, era irrelevante. Excitada demais para poder comer, ela dirigiu de volta a Longnor com as possibilidades estonteantes do que estava por vir girando em sua mente.
A primeira coisa que deveria fazer, decidiu, era descobrir quem era Janis Wainwright legalmente. Não duvidava que tinha um registro legal de sua existência. Seria difícil comprar imóveis ou ter uma profissão sem uma identidade. Descobri-la envolveria uma busca pelos cartórios, para a verificação de nascimentos, casamentos e óbitos. Levaria dias para fazer isto sozinha, mas existiam agências que realizavam esta espécie de trabalho rotineiramente, para jornalistas. Ela ligou o laptop e começou a redigir uma solicitação por e-mail à Agência de Buscas Legais, uma empresa especializada na localização de informações ligadas tanto a indivíduos quanto a empresas.
Estava razoavelmente certa de que Janis nunca se casara. Em primeiro lugar, Helen não mencionara um marido. Além disso, uma rápida olhada na carta que havia recebido do advogado de Janis, em resposta a seu pedido de visita ao solar, revelou que ele se referia à cliente como "senhorita Wainwright". E, é claro, a própria Helen havia se casado e divorciado, o que explicava por que seu sobrenome era diferente.
Em algum lugar, portanto, deveria haver detalhes sobre a certidão de nascimento de Janis Wainwright. Para certificar-se de que faria o serviço completo, Catherine decidiu investigar os detalhes da existência legal também de Helen. E uma vez que, como todo bom jornalista, ela sempre mantinha um pé atrás com tudo, solicitou mais uma verificação, para conferir se haveria um atestado de óbito de Janis Wainwright em algum ponto entre seu nascimento e o desaparecimento de Alison em dezembro de 1963. A partir dos detalhes da certidão de nascimento, seria possível localizar a certidão de casamento dos pais de Janis e, a partir desta, suas certidões de nascimento, se fosse preciso. Este poderia ser o ponto de partida para descobrir se havia alguma ligação real entre Janis Wainwright e Alison Cárter.
Catherine enviou o pedido, deixando claro que desejava a opção de envio expresso do material pelo correio e por e-mail. Ainda assim, sabia que teria de esperar no mínimo até a tarde seguinte por uma resposta, e não tinha ideia do que fazer para preencher o tempo.
Então, lembrou-se de George. Sentindo-se culpada por tê-lo varrido da consciência por algumas horas, ligou para o hospital para informar-se sobre seu estado. A enfermeira da UTI disse-lhe que não havia alteração. Com emoções conflitantes, ela desligou. Detestava pensar no que havia acontecido com George, mas o momento de reconhecimento que lhe causara o ataque cardíaco também parecia estar levando à maior matéria de sua vida. Ela se conhecia bem o bastante para entender o que isto significava para sua carreira. Sempre se envolvera mais com seu trabalho que com qualquer ser humano. Sabia que a maior parte das pessoas acharia muito triste tal escolha de estilo de vida, mas para ela triste era apostar tudo em relacionamentos, quando as pessoas invariavelmente se decepcionavam. Pessoas iam e vinham, e se podia extrair muita alegria desses relacionamentos. Ela sabia disso, e extraía sempre todo o prazer e satisfação possíveis. Contudo, nenhum indivíduo, isoladamente, jamais fora tão constante quanto a onda de intensa excitação que vinha de um furo jornalístico bem-feito.
Ela se serviu de mais um drinque, pensando sobre o próximo passo. Quando chegou ao fundo do copo, sabia que só havia um rumo possível.
Três horas depois, Catherine registrava-se em um hotel quatro estrelas na periferia de Newcastle. Ela aprendera que um dos segredos do bom jornalismo era saber quando ir em frente e quando forçar-se a ter paciência. Sua ânsia por descobrir os mistérios desta história era temperada pela sabedoria da experiência. Aparecer sem anúncio na porta de alguém sempre era má ideia, se isso ocorresse tarde da noite. Ela sabia que a visita seria sempre associada com más notícias, mesmo antes de abrir a boca.
Pela manhã, contudo, as pessoas estavam mais otimistas. Muito antes da invenção do carteiro, com sua promessa de boas notícias, todos já sabiam disso. Assim, desde seus tempos como repórter, ela sempre evitava bater na porta de alguém tarde da noite e optava por chegar de manhã cedo.
Catherine finalmente adormeceu, assistindo ao canal de filmes. Já passava das nove quando acordou, contente por ter tido uma boa noite de sono, apesar de tudo o que rondava sua mente.
A primeira coisa que fez foi ligar para o hospital. Lá, disseram que pouco havia mudado, embora agora houvesse razão para otimismo. Ela tentou ligar para a casa dos Bennetts, mas apenas a secretária eletrônica atendeu. Assim, transmitiu seu desejo de rápida recuperação e desligou. Uma hora depois, corria pela auto-estrada Al.
Ela estava a meio caminho pela trilha até a casa quando a porta se abriu.
- Catherine - disse Tommy, com o rosto amplo enrugado em um sorriso. - Que prazer inesperado. Venha sentar-se comigo lá nos fundos.
Ela seguiu-o pela sala e cozinha imaculadamente limpas até o quintal, um paraíso de flores perfumadas e folhagens. Na primeira visita, ele lhe contara que todas as plantas haviam sido escolhidas para atraírem pássaros e borboletas. Hoje, ouvia-se o zumbido suave de abelhas e inúmeras asas multicoloridas chamavam continuamente sua atenção enquanto conversavam. Tommy puxou uma cadeira para ela e, então, sentou-se no banco que dava de frente para o jardim e para o mar, que se estendia mais adiante.
- E então, o que a traz aqui? - perguntou ao sentarem-se. Ela suspirou.
- Nem sei por onde começar, Tommy. Não importa como eu conte, parecerá que eu enlouqueci de vez. - Ela baixou o olhar. - Você já soube de George?
- O que aconteceu? - perguntou ele, alarmado.
Catherine fitou-o.
- Teve um ataque cardíaco. Um dos grandes, segundo me disseram. Está no Derby Royal, na UTI. Está inconsciente desde as primeiras horas de ontem, tanto quanto sei. De acordo com Paul, seu coração parou na ambulância, a caminho do hospital.
- E você veio até aqui para me contar? Catherine, é muita gentileza de sua parte. - Tommy afagou-lhe a mão. - Muito obrigado.
- Desculpe ser portadora de más notícias. - Naquele momento, ela satisfez-se com o papel de amiga preocupada.
Ele encolheu os ombros.
- Na minha idade, é natural receber más notícias. E como Anne está enfrentando a situação? Deve estar arrasada.
- Não saiu do lado de George. Paul está na cidade agora, com sua noiva, e os dois estão dando apoio a Anne.
- Pobrezinha. Dedicou sua vida a George. E com a artrite não poderá fazer muita coisa se ele precisar de cuidados de enfermagem que exijam força física. - Tommy suspirou e sacudiu a cabeça. Seu olhar cruzou o jardim e fixou-se no brilho azulado do Mar do Norte.
Catherine pegou seu maço de cigarros, perguntando:
- Importa-se se eu fumar?
As sobrancelhas dele levantaram-se.
- Achei que você não fumava. Mas fique à vontade. - Ele levantou e foi até o galpão no canto do jardim, voltando com um apoio de vaso de argila. - Use isso como cinzeiro. - Tommy recostou-se, cruzando as pernas na altura dos tornozelos e enfiando as mãos nos bolsos de sua calça larga de veludo cotelê.
- Segunda-feira, George foi a Scardale. E na segunda à noite sofreu o ataque cardíaco - disse ela, sem mais preâmbulos.
- Você o convenceu a ir até a aldeia? - perguntou ele, com os olhos arregalados de surpresa.
- Não fui eu. Eu jamais conseguiria persuadi-lo, mas Paul conseguiu a façanha. Ele veio com Helen, sua noiva. Estão planejando casar-se este ano ainda. De qualquer forma, a irmã de Helen, Janis, mudou-se para o Solar Scardale alguns anos atrás e eles conseguiram convencer George e Anne a almoçarem lá segunda-feira. Eu sabia que a ideia de voltar a Scardale era desagradável para George, mas depois de chegarem lá, de acordo com Paul o comportamento dele tornou-se realmente esquisito.
- Esquisito como?
- Paul disse que seu pai parecia muito tenso. Não tinha apetite. Exceto por uma caminhada solitária pela praça da aldeia, ficou sentado no jardim, sem falar com ninguém. Paul disse que George estava muito distraído e que se fechou pelo resto do dia e da noite. - Catherine fez uma pausa para organizar seus pensamentos. Precisava ter cuidado no modo como se expressava com Tommy, que era perspicaz o bastante para captar nas entrelinhas o que não lhe diziam.
- Antes de adoecer, ele escreveu uma carta para mim, pedindo que cancelasse o livro. Sem nenhum motivo. Disse apenas que tivera novas informações que exigiam este cancelamento para sempre. É claro que contei a Paul sobre a carta, quando o vi no hospital. Eu já estava convencida de que George havia visto alguma coisa em Scardale que talvez tivesse lhe trazido dados novos sobre um determinado aspecto do caso, ou lhe causasse preocupação por algo que incluímos no livro. Paul chegou à mesma conclusão e se sente muito culpado. Acha que é responsável pelo ataque cardíaco do pai, porque o convenceu a voltar a Scardale. Ele me perguntou se posso tentar descobrir o que está por trás da carta que George me mandou. Assim... - Ela sacudiu os ombros. - Preciso encontrar as respostas.
- Você teria sido uma ótima policial - disse ele, seco.
- Vindo de você, não tenho certeza se isto é um elogio. - Ela olhou para o cigarro, incerta, e depois o apagou com firmeza.
- Ah, sinto um respeito imenso por eles, porque fazem um trabalho que, para mim, foi demais - disse, fingindo uma infelicidade que ela sabia que ele não sentia. - E aonde você foi, em busca de suas respostas? Como se eu não soubesse...
- Isso mesmo. Voltei a Scardale. Pensei em pedir à irmã de Helen para dar mais uma olhada no solar para ver se conseguia descobrir o que poderia ter causado tanta emoção em George. - Ela remexeu-se na cadeira para poder também olhar para o mar.
- E descobriu?
Catherine ocupou-se com outro cigarro. Pelo canto do olho, percebia que Tommy a avaliava, com os olhos astutos em seu rosto curtido. Ele sabia que havia algo, mas nem mesmo em suas fantasias mais desvairadas poderia descobrir o que ela estava prestes a dizer.
- Nem cheguei a entrar no solar - disse, exalando a fumaça. - Mas vi o que quase matou George. - Ela abriu sua bolsa e tirou dali a pasta onde guardara a fotografia envelhecida digitalmente de Alison Cárter.
Tommy estendeu a mão. Ela fez um "não" com a cabeça.
- Espere um pouco - disse. - A mulher que abriu a porta, aquela que supostamente é a irmã de Helen... é um clone perfeito de Alison Cárter. Até no detalhe da cicatriz na sobrancelha. - Ela entregou a pasta a Tommy, que a abriu com grande inquietação, como se pudesse explodir em seu rosto. O que ele viu ali era pior que qualquer coisa que pudesse temer. Sua boca abriu-se e assim ficou. - Também não pude acreditar no que via. Levei as fotos que Philip Hawkin tirou de Alison a uma especialista, que as envelheceu com um programa de computador. Esta poderia ser uma foto da mulher que atendeu a porta no Solar Scardale. Mas esta também é a aparência que Alison teria se estivesse viva.
A pasta tremia nas mãos de Tommy.
- Não - murmurou ele. - Não pode ser. Deve ser uma parente.
- A cicatriz é a mesma, Tommy. Ninguém tem cicatriz idêntica à de outra pessoa.
- Você deve ter cometido um erro. Talvez não tenha visto a mulher direito. Deixou-se levar pela imaginação.
- Será? Acho que não, Tommy. Não foi minha imaginação que causou um ataque cardíaco em George. O que eu vi, George viu antes de mim. Por isso vim até aqui. Preciso de sua ajuda. Preciso que você vá até lá, veja Janis Wainwright e diga a mim e a George que ela não é Alison Cárter. Porque, do meu ponto de vista, parece que tropecei no furo jornalístico no século.
Ele cobriu o rosto com a mão livre, esfregando sua pele curtida, fazendo-a parecer o couro enrugado de um animal. A mão voltou ao colo e seu olhar fixou-se em Catherine.
- Se você estiver certa, sabe o que isso significa, não é?
Ela assentiu, lentamente. Não pensara em mais nada na longa viagem até ali, sua mente como uma montanha-russa, na qual o ponto mais alto era o efeito profissional da revelação que faria, e o ponto mais baixo era o que aquilo faria com George Bennett e sua família. Ela sabia que, em algum momento, teria de encontrar um equilíbrio entre essas duas consequências. Mas, primeiro, teria de segurar a verdade em suas mãos. Olhando Tommy diretamente nos olhos, disse:
- Significa que enforcaram Philip Hawkin por um crime que nunca aconteceu.
4
Agosto de 1998
Tommy Clough não era um homem sentimental. Sempre vivera no presente, extraindo sustento daquilo que o cercava. Sua outra grande qualidade era a persistência. Assim, embora nunca tivesse se sentido particularmente enriquecido pelos anos de trabalho na polícia, mantivera-se em seu emprego por causa do desejo duradouro por justiça, que o levara até lá em primeiro lugar. Entretanto, mesmo então ele conseguira manter-se com suas duas paixões, os pássaros e o jazz.
Ao revelar a Catherine que o caso Alison Cárter marcara o início do fim de sua carreira como policial, dissera nada menos que a verdade. Preocupara-se demais com o resultado de um caso que, na melhor das hipóteses, era frágil. A ideia de que o assassino de Alison pudesse sair impune o atormentara dia e noite, até o final do julgamento, e desejara não ter de passar por aquilo novamente. Precisara de alguns anos para entender o que realmente sentira sobre a investigação e seus resultados, mas, depois de tomar uma decisão, sair da polícia de Derbyshire fora uma questão de semanas. E não se arrependera dela um minuto sequer.
A chegada de Catherine Heathcote, alguns meses antes, forçara-o a reexaminar o passado, praticamente pela primeira vez desde que se demitira. Durante dias, antes da entrevista com ela, perambulara pelos rochedos e promontórios próximos à sua casa, revirando o caso de Scardale vezes sem conta em sua mente.
Um de seus pontos fortes, como policial, havia sido sua intuição. Com frequência, ela o fizera ir em frente mesmo quando não existiam evidências concretas, e isto compensara na maior parte das vezes, na forma de detenções e condenações. Ele estivera convencido, desde o início, que Philip Hawkin não valia um centavo. Todos os seus instintos haviam gritado isto desde seu primeiro encontro com o homem. Muito antes de George Bennett sequer verbalizar as primeiras suspeitas sobre Hawkin, Tommy Clough já achava que o dono de Scardale guardava um segredo muito sério.
Tão logo George indicara o desejo de prestar mais atenção em Hawkin, Tommy transformara-se em um cão farejador, em busca de qualquer fio de evidência que pudesse apoiar o caso. Ninguém trabalhara mais que ele, nem mesmo o próprio George, na tentativa de incriminar Philip Hawkin.
Apesar disso, em seu íntimo Tommy jamais se convencera de que Hawkin era um assassino. Não tinha dúvidas que o homem havia sido um predador sexual cruel, e tivera pesadelos com as fotografias que, certamente, não haviam sido forjadas nem por George nem por qualquer outra pessoa. Contudo, embora desprezasse e detestasse Hawkin, nunca se convencera inteiramente de que ele era o assassino que o haviam feito parecer. Talvez tivesse trabalhado tanto para construir um caso tão sólido contra ele exatamente porque aquela dúvida insistia em incomodá-lo no fundo de seu cérebro. Tentara convencer tanto o júri quanto a si mesmo. E a convicção final de que seu instinto falhara prejudicara sua confiança em sua capacidade para executar bem seu trabalho.
E agora, Catherine deixara cair uma bomba. Segundo ela, George Bennett estava deitado em um hospital, ligado a aparelhos que o mantinham vivo, porque percebera, assim como a própria Catherine, que Alison Cárter estava viva e morava em Scardale. De certo modo, não fazia sentido. Entretanto, se Catherine estivesse certa, isto só justificava a inquietação que Tommy Clough sentira anos atrás. Ainda assim, desta vez ele teria dado quase qualquer coisa para que estivesse errado por todos aqueles anos, porque, se Alison Cárter estava viva, então as repercussões seriam assustadoras. Além das consequências legais, quem quer que fosse a noiva de Paul Bennett, ela estava ligada, de algum modo, a um erro terrível no qual seu futuro sogro tivera uma participação crucial.
Tudo isso rolava pela mente de Tommy, sem uma solução, enquanto seguia o carro de Catherine com seu Land Rover pela Al, rumo a Derbyshire. Não havia alternativa, exceto voltar com ela e fazer o possível para proteger George e sua família das consequências do que ela pensava que havia descoberto. Tommy considerava-a determinada e teimosa, uma combinação perigosa com um material tão explosivo. Ela se oferecera para levá-lo de carona, mas ele insistira em manter a liberdade de ir e vir que lhe faltaria se dependesse de Catherine para tudo.
- Quero fazer visitas a George - disse ele. - E pode ser que nem sempre o momento seja conveniente para você.
Além disso, ele queria estar sozinho com seus pensamentos.
A viagem de cinco horas passara num piscar de olhos, e de repente estavam estacionando junto a uma casa na rua principal de Longnor. Catherine anunciou que a primeira coisa que precisavam fazer era encontrar um lugar para Tommy ficar. O bar alugava quartos, mas no meio de agosto já estava lotado, com excursionistas e pescadores. Tommy encolheu os ombros e, então, marchou direto até a porta da frente de Peter Grundy, anunciando que precisaria do quarto extra de Grundy por alguns dias e perguntando se dez libras seriam suficientes para pagar a hospedagem e o café da manhã.
A esposa de Grundy, que nunca gostara dos chefes do marido e se sentia bem contente por poder tirar dinheiro de um deles, quase mordeu sua mão quando ele estendeu as notas, embora Peter tivesse a elegância de parecer encabulado. Quaisquer perguntas que tivessem sobre o motivo da ida de Tommy a Derbyshire foram satisfeitas com a notícia sobre o ataque cardíaco de George.
- Em um momento assim, a gente precisa dos amigos por perto - disse a senhora Grundy, em tom profundo.
- Certamente - foi a resposta séria de Tommy. - E pretendo fazer tudo que puder para ajudar George e Anne. - Ele lançara uma rápida olhada para Catherine, para garantir que ela captara sua mensagem de que talvez seus interesses não fossem os mesmos. Ela inclinou a cabeça, em reconhecimento, e recusou uma xícara do chá industrializado e forte da senhora Grundy.
- Estarei em casa quando você estiver pronto, Tommy - foi tudo o que ela falou.
Catherine não tinha tempo para cogitar exatamente o que Tommy Clough pensava fazer, impaciente para colocar-se na frente de seu laptop. Ela entrou on-line e descobriu que a Agência de Buscas Legais lhe enviara o que pedira. Haviam digitalizado as fotocópias das certidões e atestados e enviado para ela como arquivos de imagens.
Janis Hester Wainwright vinha primeiro. Nascida em 12 de janeiro de 1951, em Consett. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Upington Terrace, 27, Consett.
Nome de solteira da mãe: Cárter. Era coincidência, mas nem tão grande. Cárter era um nome muito comum, disse ela a si mesma, com firmeza. Esta questão era importante demais para agarrar-se em frágeis indícios. O que precisava era de provas concretas.
A seguir, a certidão de Helen. Helen Ruth Wainwright. Nascida em 10 de junho de 1964, em Sheffield. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Lee Bank, 18, Rivelin Valley, Sheffield.
Nome no meio: Ruth. Junto com Cárter, isto começava a ficar interessante, pensou Catherine, sentindo a excitação sob a pele.
Ela rolou até a página seguinte do arquivo eletrônico para ver a certidão de casamento de Samuel e Dorothy Wainwright. A excitação era uma sensação física que rugia em seu estômago. Local do casamento: Igreja de Santo Estêvão, Longnor, distrito de Buxton. Data do casamento: 5 de abril de 1948. Samuel Alfred Wainwright, solteiro, casara-se com Dorothy Margaret Cárter, solteira. Ele estava com vinte e dois anos, e, ela, vinte e um. Ele era metalúrgico, e ela, uma ordenhadora. Na época do casamento, ele residia no número 27 de Upingtoh Terrace, Consett. Ela morava na Casa do Condado, em Scardale, Derbyshire. Seu pai era Albert Cárter, trabalhador rural. As testemunhas foram Roy Cárter e Joshua Wainwright.
Catherine mal podia acreditar nos seus olhos. Ela leu novamente os detalhes. A mãe de Janis Wainwright era Dorothy Cárter, da Casa do Condado, em Scardale. Uma das testemunhas do casamento de Dorothy era Roy Cárter. Ela podia apostar que ele também morava na Casa do Condado, em Scardale. O mesmo Roy Cárter que fora marido de Ruth Crowther e pai de Alison Cárter. Assim, não seria surpreendente descobrir uma forte semelhança entre Janis e Alison. A herança genética podia ser uma coisa estranha, mas, ainda assim, não explicava a cicatriz. Se Janis não era Alison, como podia ter uma cicatriz idêntica?
A única explicação na qual ela conseguiu pensar era que a cicatriz havia sido alguma forma bizarra de mutilação que Janis, adolescente, infligira a si mesma depois do desaparecimento e suposta morte de Alison. Ela podia imaginá-las crescendo juntas, os comentários da família de que poderiam ser gémeas idênticas. E, então, Alison havia morrido e Janis decidira mantê-la viva, fazendo em si uma marca igual, reafirmando a singularidade de Alison. Era uma ideia grotesca, mas Catherine sabia que garotas adolescentes eram capazes dos comportamentos mais fantásticos, incluindo lesões auto-infligidas.
O cursor piscava, chamando sua atenção. A agência de buscas enviara mais que os três documentos. Ela desceu mais uma página na tela do computador e, desta vez, não conseguiu parar de olhar, boquiaberta e atónita. Enviara seu pedido pelos documentos apenas por rotina, para cobrir todas
CÓPIA AUTENTICADA DE UMA CERTIDÃO DE CASAMENTO, DE ACORDO COM A LEI DE CASAMENTOS DE 1836
Distrito do Registro:
Casamento Celebrado em: Igreja de Santo Estêvão, Longnor Em: Debshire
Buxton
Número do Registro: 87
Sobrenome: Wainwright
Data do Casamento: 15 de abril de 1948 Nome: Samuel Alfred
Idade: 22
Estado Civil: Solteiro
Profissão: Metalúrgico
Residência: ypmgton.
Nome e Sobrenome do Pai: Alfred Wainwright
Profissão do Pai: Metalúrgico.
Nome da mãe: Dorothy Margaret
Sobrenome: Cárter
Idade: 21
Estado Civil: Solteira
Profissão: Ordenhadora
Residência: Condado, Scardale Derbyshire.
Nome e Sobrenome do Pai: Albert Carter
Profissão do Pai: Trabalhador rural.
Celebrado por: Paul Westfield.
as possibilidades. Mas a agência encontrara algo que ela mesma não acreditava que deveria procurar.
Janis Hester Wainwright falecera em 11 de maio de 1959.
Catherine olhou para a tela por muito tempo. Apenas uma coisa fazia sentido. Ela acendeu um cigarro e tentou imaginar qualquer outra situação que se encaixasse nos fatos, mas nada lhe ocorreu. Nada se encaixava, a menos que começasse com a suposição de que Alison Cárter não morrera em dezembro de 1963. Quem teria mais condições de assumir uma menina que desejava esconder-se que um ramo fisicamente distante de sua família? Assim, ela havia assumido a identidade de sua prima falecida, Janis, e vivera até a idade adulta em Sheffield.
Um pensamento veio-lhe subitamente e os pêlos em sua nuca eriçaram-se. Tantos anos atrás, Don Smart convencera o Daily News a consultar uma vidente que dissera que Alison estava viva e em segurança, morando em uma rua de uma cidade grande. Ninguém deu crédito à vidente na época. A situação descrita pela mulher era improvável demais. Agora, porém, Catherine achava que, contra todas as probabilidades, a vidente francesa podia estar certa.
Uma batida na porta assustou-a, tirando-a de seus devaneios. Tommy vinha para dizer-lhe que iria até Cromford, para ver se havia alguém em casa. Se não, pretendia ir até Derby.
- Antes de você ir - disse ela -, dê uma olhada nisso aqui.
Ela fez um gesto para que ele se sentasse na frente do laptop e mostroulhe como rolar a tela para baixo. Ele sentou em silêncio, lendo os quatro documentos com grande concentração. Depois, voltou-se para ela, perturbado:
- Diga-me que você tem outra explicação - disse, com voz suplicante. Catherine sacudiu a cabeça.
- Não consigo pensar em outra.
Ele massageou o queixo com dedos ainda fortes e grossos.
- Preciso visitar George e sua família - disse, finalmente, e suspirou. - Precisamos conversar sobre o próximo passo. Você estará acordada quando eu voltar?
- Sim. Vou até Buxton comer alguma coisa, porque, se ficar dentro de casa, acabarei enlouquecendo - disse, fazendo um gesto na direção das fotografias de Scardale espalhadas nas paredes. - Estarei de volta às nove.
ATESTADO DE ÓBITO
Distrito do Registro: Condado de Durham
Subdistrito de: Consett
Nome: Janis Hester Wainwright Sexo: Feminino
Data do Óbito: 11 de maio de 1959 Idade: 8 anos
Causa do Óbito: Tuberculose.
Médico Responsável: Dr. James Inchbald e Dr.Andrew Witherwick
Endereço: Upington Terrace, 27, Consett, Condado de Durham.
Nome e Sobrenome do Pai: Samuel Wainwright
Nome, Sobrenome e Nome de Solteira da Mãe: Dorothy Wainwright, anteriormente Cárter.
Ele acenou com a cabeça.
- Então estarei aqui quando você voltar. Não se preocupe, Catherine. Descobriremos tudo.
- Ah, acho que já descobrimos o mais importante, Tommy. O mais difícil é saber o que faremos com isso.
Tommy sorriu para a enfermeira da UTI.
- Sou parente - falou, com a confiança tranquila que nunca falhava.
- George é meu cunhado.
A enfermeira assentiu.
- O filho e a nora dele foram comer algo, de modo que apenas a esposa lhe faz companhia agora. Pode entrar direto. - Ela abriu a porta para ele.
- Terceiro leito, em frente.
Tommy andou lentamente. Parou a alguns metros da confusão de máquinas e aparelhos que mantinham seu velho amigo vivo. Anne estava sentada de costas para ele, a cabeça baixa, uma das mãos enlaçada na de George e a outra acariciando seu braço, maquinalmente atenta para não tocar no tubo ligado à veia do marido. A pele de George estava pálida, com um leve brilho viscoso. Seus lábios tinham um tom azulado e manchas escuras podiam ser vistas sob seus olhos fechados. Sob o lençol fino, seu corpo parecia estranhamente frágil, apesar dos ombros largos e músculos bem definidos. Vê-lo assim, sem vitalidade, fazia com que Tommy sentisse sua própria mortalidade, como uma lufada de ar frio em sua pele.
Ele deu um passo à frente e pousou a mão no ombro de Anne. Ela ergueu a cabeça, com olhos cansados e resignados. Pareceu confusa por um momento, mas depois o choque do reconhecimento atingiu-a.
- Tommy? - perguntou, incrédula.
- Catherine contou-me o que aconteceu. Eu quis vir.
- Claro que sim - disse ela, como se aquilo fizesse todo o sentido do mundo.
Tommy puxou uma cadeira e sentou-se próximo. A mão que estivera acariciando o braço de George soltou-o e segurou com força o braço do outro homem.
- Como ele está? - perguntou Tommy.
- Dizem que está aguentando firme, o que quer que isso signifique - respondeu com a voz cansada. - Não entendo por que ele ainda está inconsciente. Achei que ataques cardíacos vinham e pronto: a gente sobrevive ou não... Mas ele está assim há dois dias, e ninguém me diz quando recobrará a consciência.
- Acho que é o modo de o corpo curar-se - disse Tommy. - Se bem conheço George, se estivesse consciente teriam de atá-lo à cama para forçá-lo a repousar e recuperar-se direito.
Anne sorriu desanimada.
- Talvez você tenha razão.
Ficaram sentados em silêncio durante alguns minutos, observando enquanto o peito de George subia e descia. Finalmente, Anne falou:
- Estou contente por você ter vindo.
- Desculpe-me se foi preciso uma coisa assim para me forçar a vir. - Tommy acariciou a mão de Anne. - E quanto a você? Como está?
- Estou com medo, Tommy. Nem posso pensar em como seria minha vida sem ele. - Ela fixou o olhar no marido, com os ombros curvados em desamparo.
- Quando foi a última vez que você dormiu? Ou comeu? Anne balançou a cabeça.
- Não consigo dormir. Deitei-me ontem à noite. Eles têm um quarto para parentes aqui, mas não consegui me desligar. Não gosto de sair de perto dele. Quero estar aqui quando George abrir os olhos. Ele vai se assustar, sem saber onde está. Preciso estar aqui. Paul ofereceu-se para me substituir, mas não me sinto bem. Ele já está abatido demais, culpando-se, e tenho medo do que dirá a George se estiverem sozinhos. Não quero que George tenha novos problemas.
- Mas eu estou aqui agora, Anne. Posso ficar com ele, enquanto você ao menos toma um chá e come alguma coisa. Você parece à beira da exaustão.
Ela virou-se, olhando-o com curiosidade.
- E o que ele vai pensar se vir você sentado aí, como um fantasma do passado? - perguntou, com um traço de seu bom humor costumeiro.
- Bem, pelo menos isso o distrairia - respondeu Tommy, com um sorriso. - Você precisa descansar, Anne. Vá tomar alguma coisa e pegar um pouco de ar fresco.
Anne abaixou a cabeça, concordando.
- Talvez seja melhor mesmo. Mas não vou sair. Ficarei uns dez minutos no quarto para parentes. Mas você precisa conversar com ele. Dizem que isso ajuda. E se ele mexer um dedo sequer, chame a enfermeira. Mande alguém me buscar.
- Vá. Ficarei de olho nele.
Com relutância, Anne levantou-se e afastou-se, devagar. Ela andou até a porta, lançando um olhar para trás a cada dois passos. Tommy ocupou a poltrona em que ela estava antes e inclinou-se para a frente, com os cotovelos fincados nos joelhos. Ele começou a falar com George, baixinho, contando-lhe sobre suas últimas experiências de observação de pássaros. Depois de cerca de dez minutos, uma enfermeira veio para verificar os sinais vitais do paciente.
- Não sei como o senhor conseguiu - disse ela -, mas a senhora Bennett está dormindo pela primeira vez desde que trouxeram seu marido para cá. Mesmo se for apenas um cochilo, fará um bem enorme para ela.
- Fico feliz - respondeu Tommy.
Ele esperou até que a mulher se afastasse e recomeçou seu monólogo:
- Talvez você esteja imaginando o que vim fazer aqui. É uma longa história, acho, e talvez eu nem devesse lhe contar. Assim, não se dê ao trabalho de perguntar o que me trouxe aqui. Apenas agradeça, porque minha cara feia foi o bastante para fazer com que Anne se afastasse para dormir um pouquinho.
Enquanto falava, ele percebeu movimentos minúsculos sob as pálpebras de George. Então, os olhos abriram-se de repente. Tommy inclinou-se para o amigo, tomando-lhe a mão.
- Bem-vindo de volta, George - murmurou. Ele sacudiu a mão livre, tentando atrair a atenção da enfermeira. - Não entre em pânico, companheiro. Você ficará cem por cento de novo.
George franziu a testa, confuso.
- Anne já voltará - disse Tommy. - Não se preocupe com nada. - Enquanto falava, a enfermeira chegou junto ao leito. Tommy levantou o olhar. - Ele acordou.
Afastou-se, para permitir que ela se aproximasse mais.
- Vou buscar Anne - prometeu, afastando-se apressadamente, seguindo as placas que indicavam a localização do quarto de descanso para parentes. Anne estava estendida em um sofá, dormindo profundamente. Detestava ter de acordá-la, mas ela nunca o perdoaria se não fizesse isso. Tommy pousou uma mão em seu ombro e sacudiu-a levemente. Os olhos de Anne abriram-se de todo, imediatamente alertas, com o pânico estampado em seu rosto.
- Está tudo bem. Ele está acordando, Anne.
Ela levantou-se com dificuldade, exclamou um "Ah, Tommy!" e atirou os braços em torno de seu pescoço. Ele ficou ali, desajeitadamente preso em seu abraço, sem saber o que fazer com suas mãos.
- Voltarei amanhã - disse quando ela o liberou, pronta para voltar ao quarto de George.
Na porta, Anne olhou-o.
- Obrigada, Tommy. Você é um milagre.
Ficou ali por alguns instantes, acompanhando-a com os olhos.
- Existe mais de um tipo de milagre - disse com tristeza, saindo da UTI.5
Agosto de 1998
Catherine conseguiu prolongar um jantar sem graça durante quase uma hora e meia. Mesmo assim, mal passava das oito e meia da noite quando voltou a Longnor, mas Tommy já estava à sua espera, sentado sobre o muro baixo de calcário na frente de sua casa. Ele parecia acinzentado e pálido, e Catherine sentiu uma pontada de preocupação. Esquecia-se sempre de que Tommy não era jovem, já que parecia tão em forma e cheio de energia. Mas ele dirigira mais da metade do dia e provavelmente ainda não havia jantado.
- Graças a Deus você voltou. - Foi o cumprimento dele. - Precisamos sentar e conversar.
- Como está George? - perguntou Catherine, enquanto entravam. - Quer beber alguma coisa?
- Tem uísque?
- Só irlandês. - Ela apontou para o aparador. - Deixe-me pegar uma taça de vinho.
Ela foi à cozinha e abriu uma garrafa. Ao voltar, Tommy já se servira de cinco centímetros de uísque em um copo plástico.
- E então, como está George? - repetiu, esperando o pior.
- Recuperou a consciência. Eu estava com ele quando abriu os olhos.
- Você estava com ele? Como conseguiu entrar no quarto? Tommy suspirou.
- Como acha que consegui? Mentindo, ora! Obviamente, ele não estava em condições de conversar, mas acho que me reconheceu. Eu disse para Anne que voltarei amanhã de manhã. Talvez até lá eu já possa falar com ele.
- Acho que não é hora de falar sobre Scardale e Alison com George - disse Catherine.
Tommy lançou-lhe um olhar duro. Catherine pensou que ele não perdera seu jeito de policial, mesmo após tantos anos, já que a fazia sentir-se como uma borboleta presa em um alfinete.
- O que você quer dizer é que seria melhor se George não lembrasse do pedido para cancelar o livro.
- Não - protestou ela. - Só acho que, se o que aconteceu em Scardale realmente precipitou o ataque cardíaco, ele não deveria tocar neste assunto.
Tommy deu de ombros.
- E eu diria que esta decisão cabe a ele. Não pretendo pressioná-lo, mas se ele quiser falar sobre este assunto, também não vou impedir. Melhor falar que guardar tudo e talvez ter outro ataque cardíaco - disse, teimoso. - E por falar nisso, vi Paul quando estava saindo. Ele me apresentou à sua noiva. E você e eu precisamos ter uma conversa séria a este respeito - disse em tom grave, tomando um gole que eliminou metade do conteúdo do copo. - Vamos dar mais uma olhada nos documentos que você recebeu.
Catherine ligou o computador, enquanto Tommy andava de um lado para outro na pequena sala de estar. Tão logo a primeira certidão apareceu na tela, ele colocou-se ao seu lado.
- Mostre-me a certidão de nascimento de Helen outra vez. Ela rolou a tela e o documento apareceu.
- Ah, meu Deus - gemeu Clough. Ele virou-se e foi até a lareira. Ali, pousou um braço sobre a cornija e abaixou a cabeça.
Catherine girou em sua cadeira.
- Tommy, quer me contar o que está acontecendo?
Os ombros largos encurvaram-se e ele voltou-se para olhá-la. Se não lhe contasse, Catherine descobriria sozinha. Pelo menos assim, ele poderia ter algum controle sobre o que a jornalista sabia e o que faria com a informação.
- Você conheceu Helen, não? - perguntou, cansado.
- Sim, nós nos conhecemos ano passado, em Bruxelas.
- Ela não lembra alguém?
- Esquisito você perguntar, mas tive a impressão de que já a conhecia. Mas agora que sabemos de sua ligação com os clãs de Scardale, acho que só vi a semelhança genérica de todos os Carters.
Tommy suspirou.
- Sim, em parte é isso. Ela se parece um pouco com sua mãe, mas puxou muito mais ao pai.
Catherine franziu a testa.
- Tommy, não faz sentido. Você chegou a conhecer Samuel e Dorothy Wainwright?
Tommy sentou-se pesadamente em uma poltrona.
- Nunca vi nenhum dos dois em toda a minha vida. Não estou falando dos Wainwrights. Estou falando sobre Philip Hawkin.
- Hawkin? - ecoou Catherine, completamente perdida.
- Ela é a cara de Philip Hawkin. E tem seu tom de pele e cabelos. Acho que você não poderia captar a semelhança pelas fotos, mas está claro como o dia.
- Não pode ser - protestou Catherine. - George não teria percebido a semelhança?
- Não necessariamente. Talvez isso só tenha ocorrido quando a ligação com Scardale estava bem na frente de seu nariz. Além disso, você disse que Paul lhe contou que o pai estava inquieto, mesmo antes de chegarem a Scardale.
- Ainda poderia ser coincidência - disse Catherine, com teimosia. Se queria revelar esta história, precisava destrinchar cada fato, de modo a ter suas defesas já bem estabelecidas antes de precisar persuadir um editor. Ela até poderia tirar vantagem da experiência de Tommy para construir seus argumentos.
- Veja a certidão de nascimento'- disse ele. - O nome é Helen Ruth. Sei que Ruth não chega a ser um nome raro, mas, naquela época, a prática habitual por esses lados era dar o nome de alguém da família como nome do meio, em geral o nome do avô ou avó. Quando você acrescenta o resto dos detalhes que temos aqui, o fato de o nome do meio de Helen ser Ruth tornaria a coincidência grande demais.
Catherine acendeu um cigarro para adiar a pergunta inevitável:
- Então, se Philip Hawkin era pai de Helen... quem era a mãe?
- Bem, certamente não a esposa dele. Ruth Cárter não estava tendo um outro filho em junho de 1964, porque comparecia ao julgamento do marido. Nós a víamos uma vez por semana, durante os procedimentos para o julgamento, e ela não estava grávida.
- Algumas mulheres não aparentam. Elas parecem apenas um pouco mais gordas.
Ele sacudiu a cabeça.
- Catherine, quando conhecemos Ruth ela era uma mulher robusta. Na época do julgamento, tinha-se a impressão de que poderia ser levada por um vento forte, de Scardale até Denderdale. Ela não poderia ter dado à luz uma filha em junho de 1964.
- Então quem foi? - insistiu Catherine. - Presumo que estamos descartando um louco caso de amor ardente por Dorothy Wainwright?
- Suponho que isso seria possível - disse Tommy. - Dorothy estaria com trinta e poucos anos. Mas se Hawkin estivesse dormindo com ela, eu esperaria vê-lo mencionar seu caso extraconjugal no julgamento, como evidência de que era um homem normal, com fraquezas como outro qualquer, não algum pervertido com tara por meninas. Sempre imaginamos que a única razão para ter-se casado com Ruth era que, se alguém algum dia suspeitasse que andava abusando de Alison, ele apontaria para seu casamento, para provar que era um homem como outro qualquer. De qualquer maneira, não existem evidências indicando que ele algum dia tenha conhecido os Wainwrights. Mas se voltarmos à nossa teoria sobre a real identidade da mulher que se identifica como Janis Wainwright, então teremos uma garota em idade fértil na casa dos Wainwrights, que além disso tinha uma ligação comprovada com Hawkin. Uma garota que, como descobrimos pelas provas fotográficas, foi estuprada por Hawkin. - Suas palavras caíram pesadas como pedras.
- Alison Cárter é a mãe de Helen Markiewicz, nascida Wainwright - falou Catherine, colocando as elucubrações de Tommy em termos inequívocos. - E Philip Hawkin é o pai.
Ela olhou para Tommy, que sustentou seu olhar. Nenhuma outra explicação faria sentido, a partir dos fatos sólidos e da lógica que haviam descoberto. Mas esta solução trazia consigo tantas questões que Catherine nem sabia por onde começar.
Ela respirou fundo, verbalizando o que sabia estar na mente de Tommy:
- Então George Bennett está prestes a tornar-se sogro da filha de um homem por cujo enforcamento pelo homicídio da mãe ele foi responsável. Exceto que Helen ainda não havia nascido na época em que seu pai supostamente assassinou sua mãe. - Colocada assim, pensou Catherine, a coisa toda fazia com que Édipo Rei soasse como uma história banal ocorrida entre camponeses.
- Parece que sim. - Tommy esvaziou seu copo e pegou a garrafa de uísque no balcão.
- Sei que parece loucura... mas acho que Ruth e Alison conspiraram para que Philip Hawkin fosse preso.
Tommy serviu-se lentamente de outra dose. Tomou um gole, olhando diretamente para ela, sob as sobrancelhas abundantes. Depois, ele baixou o copo e falou:
- No mínimo, Catherine. No mínimo.
Ela tomou mais vinho, percebendo que sua mão tremia ao pegar o copo. Esta era mais que a melhor matéria na qual já tropeçara. Era uma tragédia com potencial para anular aquele intervalo de trinta e cinco anos e arruinar uma segunda geração de vidas que não tinham ideia de que sua história continha tamanha carga dramática. Sua situação era tanto aterrorizante quanto estimulante. Não se sentia inteiramente confiável com as informações que já tinha; estava quase contente porque Tommy estava ali para agir como freio para seus instintos mais desenfreados.
- E agora?
- Boa pergunta - disse Tommy.
- Ah, tenho um estoque de perguntas assim.
- Acho que temos apenas uma opção real. Acho que temos de nos afastar agora mesmo e esquecer toda essa história. Deixar Alison Cárter, se for ela, em paz. Deixar que Helen e Paul se casem sem uma nuvem no horizonte.
- De jeito nenhum - protestou Catherine. - Não posso ignorar tudo isso. Esses fatos viram do avesso um dos maiores casos legais do pós-guerra. Além disso, ele derruba um precedente legal importante.
- Poupe-me, Catherine - disse Tommy, irritado. - Você não dá a mínima para os precedentes legais. Tudo o que vê é o furo de reportagem de sua vida e o dinheiro que pode ganhar com ele. Não percebe quantas vidas você destruirá se publicar esta história? Você arruinará a reputação de George. Destruirá o futuro de Paul e Helen. Sem mencionar que estragará completamente a vida dela. Como acha que ela poderá se sentir quando descobrir que sua irmã é, na verdade, sua mãe e a mulher que considerava sua mãe conspirou para que seu pai verdadeiro fosse enforcado? E temos também Janis, ou Alison, como quer que ela deseje ser chamada. Ela poderá ser condenada por conspiração para assassinato. Tudo isso para que você possa ter seus quinze minutos de fama? - Agora ele gritava, e sua presença enchia a sala, fazendo com que Catherine prendesse o fôlego. Ela engoliu em seco e disse:
- Então você acha que devo simplesmente anular os últimos seis meses de minha vida? Também tenho algo em jogo, Tommy. Você mesmo me falou sobre a importância da justiça, disse que se demitiu porque achava que a polícia não era capaz de fazer a justiça como deveria. Agora você me diz que devo mandar às favas a justiça e cuspir na verdade para proteger sua reputação e encobrir o fato de que você e seu chefe enforcaram um homem inocente! - Agora Catherine estava tão zangada quanto ele.
Tommy tomou rapidamente um gole de seu uísque e tentou dominar sua raiva:
- Isso não diz respeito a mim, Catherine. Diz respeito a um bom homem e sua família inocente. Nenhum deles merece que sua vida seja destruída por algo que deveria ter sido morto e enterrado trinta e cinco anos atrás. Ouça, você não precisa desperdiçar os últimos seis meses. Publique seu livro como está e esqueça o resto.
- Mas George não queria esquecer o resto. Ele é mais íntegro que você, Tommy. Ele me pediu para cancelar o livro exatamente porque não conta a verdade.
Tommy balançou a cabeça.
- Ele estava agindo por impulso. Quando tiver tempo para pensar melhor, posso apostar que perceberá que faz sentido publicá-lo assim como está.
- Ou seja, quando você conseguir convencê-lo a deixar que o livro seja publicado como está - disse Catherine, descontrolada. - Mas o livro não presta mais, Tommy. Posso eliminar o e-mail com os documentos de meu computador, mas não posso apagar o que sei de meu cérebro. Descobrirei a verdade e você não poderá me impedir.
Houve um longo silêncio. Tommy sentiu suas mãos se fechando e esforçou-se para mantê-las relaxadas. Finalmente, ele respirou fundo e disse:
- Talvez eu não possa impedi-la, mas certamente posso desacreditá-la quando o livro for publicado. Posso dizer à imprensa que você explorou um homem que estava ligado a máquinas em um hospital. Posso dizer que você explorou deliberadamente a incapacidade de George Bennett para denegrir a ele e sua família. Ninguém a considerará uma grande justiceira quando eu terminar. Você será tão digna de pena quanto Philip Hawkin.
Nenhum dos dois se moveu, olhando-se como dois cães raivosos em uma rinha. Finalmente, Catherine disse, forçando-se a parecer calma:
- Nenhum de nós dois tem o direito de tomar uma decisão sem George. Nem temos certeza se estamos certos. Antes de irmos adiante, precisamos falar com Alison Cárter.
Tommy virou-se e fitou as fotografias na parede. Alison Cárter, George Bennett, Ruth Cárter e Philip Hawkin. Em seu íntimo, ele sabia que Catherine tinha razão. Não tinham o direito de tomar uma decisão sozinhos, e nenhuma decisão tão importante deveria ser tomada sem certeza absoluta sobre os fatos. Ele suspirou.
- Está certo, então. Amanhã iremos a Scardale para obtermos algumas respostas.
6
Agosto de 1998
Tommy estava parado junto à porta da frente da casa de Catherine às oito horas da manhã seguinte. Quando a porta abriu, ele teve a impressão de que ela dormira tão pouco quanto ele.
- Você está adiantado - disse ela, dando um passo para trás para deixá-lo entrar. - Alison não ficará muito contente se chegarmos tão cedo.
- Ainda não vamos a Scardale.
- Não?
- Não. Prometi a Anne que voltaria ao hospital hoje de manhã. Quero fazer isso primeiro. E quero que você me leve até lá - disse Tommy, pegando uma torrada do prato de Catherine.
- Sirva-se à vontade, como se estivesse em sua casa - disse ela, surpresa por sentir-se divertida, em vez de irritada. - Já entendi. Você não confia em mim o bastante para acreditar que vou esperar seu retorno. Acha que vou partir zunindo até Scardale sozinha e fazer com que Alison confesse toda a verdade apenas para mim.
Tommy negou com a cabeça.
- Pode ser que você não acredite, mas não é nada disso. Tem mais torrada?
- Farei mais.
Ele a seguiu até a cozinha.
- Não é que não confie em você. É que não sou mais tão jovem. Ontem já dirigi mais do que dirijo normalmente durante um mês inteiro, e nunca dormi bem em camas estranhas. Para resumir, prefiro ser levado que ter de dirigir até Derby e voltar.
Ela colocou duas fatias de pão na torradeira e disse, em tom aprovador:
- Essa foi boa, Tommy. Quase acreditei em você. - Ela abriu um largo sorriso ao perceber que o magoara. - Tudo bem, é claro que eu o levo a Derby. O que quer que Janis Wainwright tenha a dizer, acho que não mudará em uma questão de horas.
Falaram-se pouco durante o trajeto até Derby, ambos envolvidos com seus próprios pensamentos. Catherine ainda se esforçava para encontrar uma estratégia para o encontro que teriam em Scardale. Ela ficara acordada até muito depois da meia-noite, fumando, bebendo e pensando. Sempre acreditara que uma grande parte do sucesso de qualquer entrevista estava na eficiência de sua preparação. Contudo, por mais que ela revirasse mentalmente o que ela e Tommy já sabiam, não conseguira pensar em uma forma de enfocar esta história de modo a produzir apenas a verdade. Janis Wainwright ainda tinha muito a perder.
Sua primeira surpresa do dia veio quando Tommy disse à enfermeira da UTI que estava ali para ver seu cunhado, George Bennett.
- Não está mais conosco - disse a enfermeira, consultando uma prancheta sobre a mesa.
Por um momento, Tommy sentiu o coração apertar-se.
- Não pode ser. Ele recobrou a consciência ontem à noite. Eu vi seus olhos se abrirem.
A enfermeira sorriu.
- Sim, por isso nós o transferimos para outra ala, já que não está mais em risco. - Ela encaminhou-os para a unidade de cuidados cardíacos, onde George estava agora.
- Tato e diplomacia não são muito valorizados por aqui - disse Catherine, secamente.
Seguiram por um outro corredor e encontraram a ala que procuravam. Tommy espiou pela janela que havia na porta. Havia quatro leitos na sala, dois desocupados. Através da janela, viu Anne sentada junto a uma das camas, tapando a visão do ocupante, que parecia estar reclinado, mas não totalmente deitado. Tommy voltou-se para Catherine:
- Acho que você deveria esperar lá fora. Ela concordou, com relutância:
- Há uma cafeteria no sexto andar. Esperarei lá. - Ela tirou seu minigravador do bolso. - Talvez você...
- Não. Isto é entre mim e George. Mas não se preocupe, não vou mentir para você.
Esperou que ela se encaminhasse para o elevador; então, aprumou-se e empurrou a porta. Enquanto se aproximava, viu o rosto de George. Era difícil acreditar que este era o mesmo homem que parecia a um passo do túmulo na noite anterior. Embora ainda parecesse cansado, havia um tom rosado em suas faces e as olheiras não eram mais tão fundas. Ao ver Tommy, seu rosto iluminou-se em um grande sorriso.
- Tommy Clough - disse, com a voz fraca, mas claramente alegre. - E lá estava eu, achando que havia morrido e ido para o inferno quando abri meus olhos e o vi olhando para a minha cara.
Tommy segurou uma das mãos de seu antigo chefe entre as suas.
- Acho que você só acordou por causa do choque de ouvir minha voz.
- Isso mesmo. Eu sabia que não poderia confiar em um mulherengo como você perto de minha Anne e tive de voltar para cuidar dela.
- George - repreendeu-o Anne. - Que coisa horrível para dizer a Tommy quando ele veio de tão longe para vê-lo.
- Não lhe dê atenção, Anne - falou Tommy. - Talvez ainda esteja delirando. Como está se sentindo, George?
- Em frangalhos, se quer a verdade. Nunca me senti tão cansado em toda a vida.
- Você pregou um susto e tanto em todos nós.
- Desculpe. Olhe, se eu soubesse que só assim o tiraria de sua vida de ermitão, teria feito isso anos atrás.
Tommy e Anne trocaram olhares, ambos contentes por verem que, apesar da fraqueza, George não perdera seu senso de humor.
- Ah, bem, não vou sumir tanto, daqui pra frente. Sabe, quem me contou foi Catherine. Ela foi até Northumberland só para me dar a notícia.
George assentiu, com o brilho do olhar desaparecendo.
- Eu deveria ter adivinhado. Anne, meu amor, será que me faria o favor de me deixar sozinho com Tommy? Talvez uns quinze minutos? Temos alguns... assuntos a tratar, querida.
- Disseram que você não deveria se cansar, George - disse Anne, franzindo o rosto.
- Eu sei. Mas ficar aqui me preocupando não me ajudará em nada. Prefiro conversar com Tommy. Acredite, amor, não pretendo mais flertar com a morte. - Ele pegou a mão da esposa e acariciou-a. - Depois lhe explico tudo, prometo. Mas não agora.
Anne apertou os lábios em desaprovação, mas levantou-se.
- Não o canse, Tommy. George, vou ligar para Paul para dizer-lhe que devem vir hoje à tarde.
- Obrigado, querida. - Os olhos de George seguiram-na enquanto ela saía. Depois, com um suspiro, ele pediu que Tommy se sentasse. - Tive medo de que ela não fosse nos deixar a sós. Quanto vocês sabem?
- Não sabemos muito, George, mas acho que já descobrimos mais ou menos toda a história. - Tommy apresentou-lhe um rápido resumo da investigação feita por Catherine. - Isso não deixa muita margem para dúvidas - concluiu.
- É inacreditável, não é? Mas eu soube, assim que meus olhos bateram nela. Eu vivi com aquele rosto durante oito meses e ele me assombrou durante anos. Qualquer que fosse o seu nome, eu sabia que a mulher que vi no Solar Scardale era Alison Cárter. E, então, percebi quem era Helen. - Seus olhos fecharam-se e seu peito subiu e desceu enquanto respirava ofegante. Ele abriu os olhos e encontrou a expressão preocupada do amigo. - Estou bem. Só cansado, nada mais.
- Vá com calma. Não estou com pressa. George conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
- Não, mas aposto que Catherine está. Não acredito que tenhamos alguma chance de pará-la.
Tommy sacudiu os ombros.
- Não sei. Ela é durona. Ontem à noite, fiz com que prometesse que o consultaria antes de tomar quaisquer decisões sobre o que fazer, mas a promessa teve um preço. Tenho de ir a Scardale com ela, para confrontarmos a mulher que todos acreditamos ser Alison. Catherine não arreda pé, dizendo que precisamos de todos os fatos, e não posso negar que tem razão.
- Não me preocupo por mim. Estou pensando em Paul e Helen. Cometemos um erro terrível quando eles nem eram nascidos, mas são eles que pagarão por isso. Não vejo como eles podem continuar se isso tudo vier à tona. E acho que Anne não me perdoaria por causar tanto mal a eles.
- Eu sei. E não se trata apenas deles, George. Também diz respeito a Alison. O que quer que ela tenha feito, já lhe custou mais do que jamais saberemos. Ela ainda pode ser condenada por conspiração, e acho que não merece isto.
- E então, o que devemos fazer, Tommy? Não sirvo para grande coisa deitado aqui.
Tommy sacudiu a cabeça, incapaz de esconder sua frustração.
- Talvez tenhamos uma ideia melhor depois de ouvirmos o que Alison tem a dizer por si mesma.
- Faça o que puder. - A voz de George tornara-se mais fraca. - Estou cansado. É melhor você ir agora.
Tommy levantou-se.
- Farei o melhor que puder.
- Você sempre fez, Tommy. Eu não esperaria nada diferente agora. Sentindo-se vinte anos mais velho que no dia anterior, Tommy saiu do quarto, rumo a um encontro que jamais esperaria deste lado da vida. A última vez em que sentira um peso tão grande sobre seus ombros fora durante a construção do caso contra Philip Hawkin. Desta vez, ele esperava sair-se melhor.
7
Agosto de 1998
O tempo voltara a fechar, mostrando o céu cinzento e chuvas intensas que haviam marcado a maior parte do verão. Enquanto entravam na estrada para Scardale, uma torrente súbita de água derramou-se sobre o carro, transformando o asfalto à frente em um turbilhão de água rasa.
- Belo dia para isso - disse Tommy, lacónico, sentindo uma turbulenta mistura de emoções. Sua curiosidade estava agitada pela perspectiva de descobrir a verdade final, mas estava apreensivo quanto às consequências possíveis dessas revelações. Tinha consciência de sua responsabilidade para com George e sua família, mas não tinha certeza se poderia cumprir esta obrigação. Além disso, sentia uma enorme pena da mulher cujo refúgio em outra identidade estavam prestes a destruir. Desejou, do fundo do coração, que George jamais tivesse concordado em romper seu silêncio. Ou que tivesse escolhido uma jornalista menos inteligente e persistente com a qual trabalhar.
Por seu lado, Catherine recusava-se a sequer considerar qualquer outra coisa além de extrair a verdade de Janis Wainwright. Haveria muito tempo para imaginar o que fazer com as informações depois de obtê-las. Por enquanto, sua missão era garantir que teria todos os fatos exatos, não importando as decisões que tomasse depois. Ela verificou o pequeno gravador e enfiou-o no bolso de seu blazer de linho. Tudo que precisava fazer era pressionar os botões "record" e "play" simultaneamente e teria a gravação perfeita do que Janis Wainwright - ou Alison Cárter - tinha a dizer.
Ao chegarem, Catherine atravessou seu carro na entrada da garagem, de modo que Janis só poderia escapar a pé, se quisesse. Em silêncio, esperaram que a chuva aliviasse, depois correram pela grama até a trilha que levava à porta da cozinha.
Tommy deixou a pesada alça de metal bater na porta, que se abriu quase que no mesmo momento. Sem a visão prejudicada pelo sol, desta vez Catherine conseguiu ver direito a mulher que estava ali e mostrava cautela no olhar. A cicatriz era inegável. Quase além de qualquer dúvida, esta era Alison Cárter. A mulher abriu a boca para falar, mas Tommy levantou a mão e balançou a cabeça.
- Sou Tommy Clough. Ex-detetive-sargento Clough. Gostaríamos de ter uma conversa com a senhora.
Com um gesto de negação com a cabeça, a mulher começou a fechar a porta. Tommy pressionou sua grande mão contra ela, sem empurrar, mas evitando que se fechasse ainda mais, a menos que ela usasse o peso de seu corpo para empurrá-la.
- Não bata a porta em nossas caras, Alison - disse ele, com a voz firme, mas gentil. - Lembre-se, Catherine é jornalista. Ela já sabe o suficiente para escrever uma versão da história. Não existe prescrição para o crime de conspiração para assassinato. E o que Catherine escrever agora pode levá-la a julgamento e a uma condenação.
- Não tenho nada a dizer - explodiu a mulher, com o rosto tenso pelo pânico e a mão que não estava segurando a porta indo pousar automaticamente na face.
Às vezes, Catherine pensou, a brutalidade era o único caminho que restava.
- Muito bem - disse, então. - Terei de descobrir o que Helen tem para me dizer.
Os olhos da mulher cintilaram com fúria, mas depois seus ombros levantaram-se e abaixaram, em uma mostra de resignação. Ela abriu passagem para eles, mantendo a porta aberta como sua mãe devia ter feito centenas de vezes antes.
- É melhor eu corrigir a besteira que vocês acham que sabem, em vez de deixar que incomodem Helen sem razão - disse, com voz fria e ríspida.
Tommy permaneceu de pé junto à porta, quando esta fechou-se atrás deles.
- Você fez algumas mudanças aqui - disse, observando a cozinha de fazenda que poderia ter sido apresentada em uma matéria sobre decoração de época, sem grandes acréscimos para melhor efeito.
- Não fui eu. Quando minha tia era a dona, mandou reformar para agradar seus inquilinos - disse, bruscamente.
- Não estou surpreso - comentou Tommy. Ao seu lado, Catherine pressionou disfarçadamente os botões de seu gravador. - Hawkin gastava apenas com suas fotografias, ou com você, Alison, mas nunca dedicou um centavo para o conforto de sua mãe.
- Por que você insiste em me chamar de Alison? - perguntou a mulher, com as costas para a parede e braços cruzados na altura do peito, o sorriso no rosto tentando demonstrar uma descontração que obviamente não sentia. - Meu nome é Janis Wainwright.
- Tarde demais, Alison. - Catherine puxou ruidosamente uma cadeira e sentou-se junto à mesa de pinho. Se Tommy havia decidido bancar o policial bonzinho hoje, ela estava mais que disposta a ser a policial impiedosa. - Você deveria ter fingido espanto quando Tommy chamou-a de Alison na primeira vez. Você pareceu apenas chocada, mas não confusa. Você não disse "Desculpe, você errou de casa, aqui não mora nenhuma Alison".
O olhar de fúria encontrou o seu. Pela primeira vez, Catherine percebeu a grande semelhança com Ruth Cárter. Nas fotografias que havia visto, Ruth devia ser dez anos mais jovem que Alison era agora, embora parecesse mais velha.
- Você se parece muito com sua mãe - disse Catherine.
- E como você poderia saber, se não a conheceu? - perguntou Alison, desafiadora.
- Eu a vi em fotografias. Estava em todos os jornais, durante o julgamento.
- Lá vem você novamente, falando absurdos. Não tenho ideia do que você tem em mente, mas minha mãe nunca se envolveu em julgamento algum durante sua vida inteira.
Tommy cruzou a cozinha e parou no outro lado, olhando para a mulher e balançando a cabeça, com um meio-sorriso de simpatia.
- É tarde demais, Alison. É inútil manter esta farsa.
- Que farsa? Eu repito: não tenho a menor ideia do que vocês estão falando.
- Ainda afirma ser Janis Wainwright? - perguntou Catherine, em tom gelado.
- O que você quer dizer com "afirmar"? O que é isto? Vou ligar para a polícia - disse, dirigindo-se para o telefone.
Tommy e Catherine não fizeram nem disseram nada. Alison abriu o catálogo e procurou o número. Depois, olhou sobre o ombro para ver o que os dois estavam fazendo. Catherine sorriu-lhe delicadamente e Tommy balançou novamente a cabeça.
- Você sabe que não é boa ideia - disse ele, com tristeza, enquanto a mão da mulher aproximava-se do aparelho.
- Não, Tommy. Deixe-a. Eu quero mesmo saber como ela conseguiu ressuscitar - falou Catherine, com doçura exagerada. Alison imobilizou-se.
- É isso mesmo, Alison. Sei que Janis morreu em 1959. Em 11 de maio, para ser exata. Deve ter sido difícil para tia Dorothy e tio Sam. Difícil para você também, já que vocês duas tinham quase a mesma idade.
Agora, os olhos de Alison mostravam medo. Com uma fisgada de pena, Tommy pensou que ela devia ter tido pesadelos com este momento durante anos. Finalmente, o que mais temia estava acontecendo. Ele podia imaginar o medo que a percorria agora. Dois estranhos em sua cozinha, um com boas razões para querer vingar-se dela por tê-lo feito de idiota trinta e cinco anos atrás, e a outra aparentemente determinada a expor seus segredos mais pavorosos a um mundo com sede de matérias sensacionalistas. E Catherine não lhe facilitava as coisas com sua agressividade. De algum modo, ele precisava acalmar um pouco as coisas e fazer com que Alison sentisse que esta era sua melhor chance de tirar algo de bom desta situação estarrecedora.
- Sente-se, Alison - disse ele, gentilmente. - Não viemos aqui para maltratá-la. Só queremos saber a verdade, só isso. Se planejássemos destruí-la, teríamos ido à polícia assim que Catherine descobriu o atestado de óbito de Janis Wainwright.
Lentamente, com dificuldade, como um animal que prevê perigo, ela andou até a mesa e sentou-se na extremidade oposta à de Catherine.
- O que vocês têm a ver com isso?
- George Bennett está deitado em um hospital de Derby por causa do que viu nesta casa. Tenho certeza de que Helen já lhe contou, por telefone
- disse Catherine.
Ela fez que sim, dizendo:
- Sim. Lamento. Sempre desejei todo o bem para George Bennett.
- Se desejava mesmo, nunca deveria ter permitido que ele viesse até aqui - disse Tommy, incapaz de evitar a raiva e a dor em sua voz. - Você deveria saber que ele a reconheceria.
Ela suspirou.
- E o que mais eu poderia fazer? Como poderia explicar a Helen que não queria conhecer seus futuros sogros? Era melhor acabar logo com aquilo do que fazer com que ele me visse apenas no dia do casamento. Mas vocês ainda não responderam à minha pergunta: o que têm a ver com isso?
Catherine inclinou-se para a frente. Sua voz era tão intensa quanto sua expressão:
- Passei seis meses de minha vida trabalhando com George Bennett para contar uma história. Agora, descubro que fomos manipulados para acreditar em uma mentira. George Bennett pagou um preço enorme por descobrir isso. E eu não serei cúmplice na continuação desta mentira.
- Não importa o que custe para outras pessoas? Mesmo se envergonhar George Bennett? Mesmo se também destruir Paul Bennett e Helen? - explodiu Alison, com sua pose estilhaçando-se com a mesma rapidez que uma lâmpada em um chão de pedra. - E não apenas eles. - Sua mão voou para a boca em um gesto clássico, enquanto seus olhos arregalavam-se, como se percebesse que havia dito mais do que eles sabiam.
- Se você quer que eu mantenha seu segredo, precisará me dar uma razão melhor que o sentimentalismo. É hora de falar, Alison - disse Catherine, sem emoção. - É hora de Contar toda a história.
- Por que eu deveria dizer algo a vocês? Pode ser que estejam blefando. Todo mundo sabe que jornalistas fazem qualquer coisa para ter uma boa matéria. Como posso ter certeza de que você realmente sabe algo a meu respeito? - Esta era uma última tentativa desesperada de se livrar dos dois, e todos ali sabiam disso.
Catherine abriu sua bolsa e retirou dali os quatro documentos impressos.
- É por aqui que começamos - disse, jogando-os sobre a mesa na frente de Alison. As folhas aterrissaram em desordem. Alison leu-os lentamente, usando o tempo para readquirir o controle. Ao levantar a cabeça, seu rosto era novamente impassível, mas Catherine podia ver manchas escuras de suor formando-se sob as mangas de sua blusa verde-clara.
- E daí? - perguntou Alison.
Catherine tirou da bolsa as fotografias envelhecidas digitalmente e empurrou-as na direção de Alison.
- De acordo com os computadores da Universidade de Manchester, é assim que Alison estaria se ainda estivesse viva. Tem se olhado no espelho ultimamente?
Os lábios de Alison abriram-se, revelando dentes apertados, enquanto ela puxava o ar com força. O olhar que dirigiu a Catherine fez com que ela se sentisse contente pela presença de Tommy ali.
- O que sabemos é que você não é Janis Wainwright. Graças à tecnologia maravilhosa do DNA, provavelmente podemos provar que você é Alison Cárter. O que podemos comprovar com certeza é que Helen não é sua irmã, mas sua filha. A filha à qual você deu à luz quando mal tinha quatorze anos, após o abuso sistemático e estupro que sofreu nas mãos de seu padrasto, Philip Hawkin. O homem que enforcaram por seu assassinato. Se fôssemos à polícia com o que temos, eles poderiam exumar os corpos e provar o que dizemos, sem nenhuma dificuldade. - Catherine falava com precisão clínica.
- Sinto muito, mas ela tem razão, Alison - disse Tommy. - Mas estou falando a verdade. Não viemos aqui pensando em lhe causar mal. Pelo bem de todos os envolvidos, precisamos saber o que aconteceu, para podermos decidir juntos a melhor maneira de lidar com isto.
Sem pedir permissão, Catherine pegou seu maço de cigarros e acendeu um. Tommy atravessou a cozinha e trouxe-lhe um pires. A atividade preencheu o longo silêncio, enquanto Alison olhava, muda, sua fotografia envelhecida por computador. Seus olhos brilhavam, cheios de lágrimas não derramadas.
- Temos uma versão para o que aconteceu - disse Tommy, com suavidade, sentando-se perto dela. - Hawkin estava abusando de você e achamos que você não sabia o que fazer. Tinha medo do que aconteceria se contasse à sua mãe. A maioria das crianças sente medo dos pais. Mas sua mãe já havia perdido um marido e seu medo era fazê-la passar por toda aquela dor novamente, se a forçasse a escolher entre Hawkin e você. Então, veio a gravidez e sua mãe percebeu o que havia acontecido.
O movimento de cabeça de Alison era quase imperceptível. Uma lágrima solitária escapou de seu olho direito e deslizou por seu rosto. Ela não tentou enxugá-la.
- Assim, sua mãe a mandou viver com sua tia e seu tio, dizendo-lhe que, a partir de então, você teria de se transformar em Janis - continuou Tommy. - Depois, ela armou tudo para ele. Com as informações que você lhe deu, ela conseguiu fazer com que George Bennett tropeçasse nas pistas que ela plantou. Ruth chegou a descobrir o esconderijo das fotografias. E durante o tempo inteiro você permaneceu em silêncio. Suportou os horrores de uma gravidez indesejada e perdeu qualquer chance que tinha de ser feliz. Você nem mesmo conseguiu criar Helen como sua filha. Durante anos, o sacrifício foi suportável, porque significava que todos teriam algo semelhante a uma vida normal. Agora, por causa de uma terrível coincidência, porque Paul e Helen se conheceram e se apaixonaram, tudo saiu tragicamente errado.
Alison respirou fundo, estremecendo.
- Parece que vocês conseguiram descobrir tudo sem qualquer ajuda de minha parte - disse, abalada.
Tommy pousou uma das mãos em seu braço:
- Estamos certos, não?
- Não, Tommy - interveio Catherine, parecendo indiferente à cena emocional que se desenrolava na sua frente. - Há mais. Antes de chegarmos aqui, pensávamos que esta era história inteira, mas não é! Você mesma se entregou, Alison, quando disse que a verdade arruinaria a vida de mais gente, além de Paul e Helen. Há mais, e queremos ouvir.
Ela enfrentou o olhar de Catherine, com raiva.
- Você está errada. Não há mais nada para contar.
- Ah, eu acho que há, sim. E acho que você vai nos contar. Porque, do jeito como as coisas estão, não vou ficar do seu lado. Você e sua mãe assassinaram Philip Hawkin. Não foi algo feito impulsivamente, sob provocação imediata. O plano levou meses, e as duas mantiveram-se caladas o tempo todo. Tenho certeza de que você cozinhou bem sua vingança. Não vejo nenhum motivo para protegê-la das consequências do que fez. Se seu desejo era evitar o risco de destruir a vida de Helen, deveria ter-lhe contado a verdade anos atrás - disse, injetando raiva em sua voz. Estava determinada a não se deixar levar pela dor de Alison, mesmo sabendo que era verdadeira. - Agora, tudo o que você conseguiu foi pôr em risco a vida de um outro homem, um bom homem, tudo porque sua mãe não teve coragem para enfrentar Philip Hawkin de frente. A cabeça de Alison ergueu-se.
- Você não entende coisa nenhuma - falou, com amargura. - Você não tem ideia do que está dizendo.
- Então ajude-me a entender - desafiou-a Catherine. Alison fitou Catherine com um olhar longo e duro.
- Tenho de pegar uma coisa. Não se preocupem - acrescentou, enquanto Tommy empurrava sua cadeira para trás. - Não vou fugir. Não farei nada estúpido. Mas há algo que preciso lhes mostrar. Então, talvez vocês acreditem quando eu lhes contar o que realmente aconteceu.
Ela saiu da cozinha, deixando Tommy e Catherine a olharem um para o outro, imaginando o que viria a seguir.
- Você está pegando pesado com ela - disse Tommy. - A mulher já esteve no inferno. Não temos o direito de lhe trazer mais sofrimento.
- Ah, Tommy. Ela está escondendo algo. Pergunte-se o que poderia ser pior do que aquilo que já sabemos. Ela admitiu que conspirou com sua mãe para enviar o padrasto para a forca, mas guarda um segredo que considera pior ainda.
O olhar de Tommy beirava o desprezo.
- E você acha que tem direito a esta revelação?
- Acho que todos temos. Ele suspirou.
- Espero que não nos arrependamos disso para o resto da vida, Catherine.
8
Agosto de 1998
Alison voltou, trazendo consigo uma pequena caixa de metal trancada. Ela destrancou-a com uma chave que tirou da gaveta da mesa, abriu a tampa e deu um passo para trás, como se temesse ser atacada por seu conteúdo. Seus ombros encurvaram-se para a frente de modo protetor, enquanto ela cruzava os braços no peito.
- Vou ferver água. Querem café ou chá?
- Café - respondeu Catherine.
- Chá - disse Tommy. - Com leite e uma colher de açúcar.
- Eu já conheço de cor o que há nessa caixa - disse Alison, dando-lhes as costas e indo até o fogão. - Olhem quanto quiserem, e talvez então parem de bisbilhotar meu passado - acrescentou, voltando-se brevemente para lançar um olhar furioso a Catherine.
Tommy e Catherine aproximaram-se com a reverência cautelosa de especialistas em bombas próximos a um artefato suspeito. A caixa continha mais ou menos uma dúzia de envelopes pardos, todos com cerca de 25 x 20 centímetros. Tommy puxou o primeiro. Em letras maiúsculas trémulas e tinta desbotada, estava escrito "Mary Crowther".
Contra o fundo de ruídos domésticos rotineiros de preparação das bebidas quentes, Tommy inseriu seu polegar sob a aba virada para dentro do envelope. Ele virou o envelope e despejou o conteúdo sobre a mesa. Havia uma dúzia de fotografias em preto-e-branco, algumas tiras de negativos e duas folhas de contato. Essas não eram imagens alegres de uma menina inocente de sete anos. Eram paródias obscenas de sexualidade adulta, poses lascivas que reviravam o estômago de Catherine. Em uma delas, Philip Hawkin aparecia, enfiando a mão entre as pernas da criança que chorava.
Havia envelopes para o irmão de Mary, Paul, de nove anos; para Janet, de treze anos; Shirley, oito anos; Pauline, seis anos, e até mesmo para Tom Cárter, de apenas três anos; para Brenda e Sandra Lomas, de sete e cinco anos; e para Amy Lomas, quatro anos de idade. O horror contido naqueles envelopes escapava à compreensão dos dois. Era um tour guiado por um inferno que Catherine preferiria não conhecer. Suas pernas cederam e ela desabou em uma das cadeiras, pálida e abatida.
Tommy virou o rosto e jogou os envelopes de qualquer maneira para dentro da caixa. Agora, ele entendia o anseio primitivo para destruir Philip Hawkin. O que ele fizera a Alison já havia sido ruim o bastante. Mas isto era infinitamente pior em escala e depravação. Se ele tivesse visto essas fotografias trinta e cinco anos atrás, duvidava que tivesse conseguido manter suas mãos longe do pescoço daquele homem.
Alison colocou uma bandeja sobre a mesa.
- Se desejarem algo mais forte, terão de ir ao bar em Longnor. Não tenho nada com álcool em casa. Quando tinha vinte e poucos anos, passei por uma fase em que o mundo parecia melhor visto através de uma garrafa. Depois, percebi que esta era apenas uma outra forma de deixá-lo vencer. Eu não permitiria isso, depois de tudo que passei. - Sua voz era fria e áspera, mas os lábios tremiam enquanto ela falava.
Ela serviu café e chá e sentou-se na ponta oposta da mesa, longe de Catherine, de Tommy e da caixa de Pandora que lhes oferecera.
- Vocês queriam a verdade - disse. - Agora, sentirão o peso dela também. Vejam se é bom viver assim.
Catherine voltou-se para ela com o olhar perdido no vazio, mal começando a perceber o peso da praga que invocara sobre sua própria cabeça. Com aquelas imagens gravadas em sua mente, ela sabia que se condenara a uma vida inteira de pesadelos.
Tommy manteve-se em silêncio, a cabeça baixa e os olhos escondidos sob as sobrancelhas espessas. Ele sabia que ainda estava entorpecido pelo choque e desejou que este estado continuasse para sempre.
- Não sei como lhes contar esta história - disse Alison, em tom de extremo cansaço. - Eu a tenho em minha mente há trinta e cinco anos, mas nunca a contei em voz alta. Depois que tudo terminou, nenhum de nós tocou neste assunto outra vez. Vejo Kathy Lomas sempre que estou em Scardale, mas nunca mencionamos o que aconteceu. Mesmo quando vocês vieram e começaram a desenterrar antigas recordações, não nos sentamos para conversar a este respeito. Fizemos o que achávamos certo, mas não significa que não nos sentimos culpados. E nunca é fácil compartilhar a culpa. Aprendi isso com minha experiência pessoal, muito antes de estudar psicologia.
Ela afastou os cabelos do rosto e olhou diretamente nos olhos de Catherine.
- Nunca pensei que sairíamos impunes disso. Eu sentia medo sempre que alguém batia em minha porta. Lembro-me de minha verdadeira mãe ligando para Dorothy, para atualizá-la sobre o andamento das investigações. Ela ligava todos os dias, e estava com os nervos à flor da pele, porque George Bennett era um policial muito bom e honesto. Minha mãe elogiava a persistência dele e estava convencida de que ele descobriria o que havia realmente acontecido. Mas ele nunca descobriu.
Tommy levantou a cabeça.
- Todos vocês mentiram como os maiores atores do mundo - disse ele, áspero. - Ande, Alison, se chegou até aqui, conte o resto.
Alison suspirou:
- Vocês precisam lembrar como era a vida na década de 1960. O abuso de crianças não existia dentro das famílias ou comunidades. Era algo que algum pervertido ou um estranho poderia fazer. Mas se alguém fosse até o professor, a seu médico ou ao policial mais próximo e dissesse que o dono de Scardale estava estuprando e violando todas as crianças da aldeia, seria preso por insanidade.
- Vocês também precisam lembrar que Philip Hawkin era nosso dono. Possuía tudo por aqui. Ele tinha a posse de nosso sustento e de nossas casas. Quando o velho Castleton era o dono das terras, vivíamos mais ou menos em um sistema feudal. Nem mesmo os adultos questionavam o senhor de tudo. E nós éramos crianças. Não sabíamos que poderíamos denunciar o novo dono do solar. Nenhuma das crianças sabia sobre as outras, não com certeza, pelo menos. Sentíamos um medo grande demais para falarmos sobre o que estava acontecendo, até mesmo uns com os outros.
- Aquele canalha era bem cauteloso. Ele nunca deixou transparecer tendências pedófilas enquanto namorava minha mãe e não tinha muito tempo para mim antes de se casar com ela. Mostrava-se agradável e me dava presentes, mas nunca me incomodou naquele período. Tenho certeza de que a única razão para ele casar com minha mãe foi para ter uma fachada de normalidade. Se algum de nós ousasse denunciá-lo, ele poderia bancar o inocente ultrajado, o homem normal com um casamento feliz. - Ela apontou o dedo para Tommy. - E todos vocês teriam acreditado nele. Tommy suspirou e concordou.
- Acho que sim.
- Eu tenho certeza. De qualquer modo, como eu disse, ele nunca se aproximou de mim antes de se casar com minha mãe, mas assim que isso ocorreu, a coisa toda mudou. Era algo como "as menininhas precisam mostrar gratidão por tudo que seus papais fazem por elas" e todo o tipo de chantagem emocional nociva. Mas eu não era o bastante para ele. Aquele desgraçado abusou de cada uma das crianças daqui. Exceto Derek. Acho que Derek era um pouco velho demais para seu gosto. - Ela envolveu a xícara de chá com as duas mãos e suspirou novamente. - E todos ficamos de boca fechada. Estávamos chocados e aterrorizados demais, mas não sabíamos o que fazer.
- Então - continuou -, um dia, minha mãe perguntou por que eu não estava usando os absorventes higiénicos que havia comprado para mim quando tive minha primeira menstruação. Eu lhe disse que não havia menstruado mais. Ela começou a fazer perguntas e, assim, acabei revelando tudo. O que ele fazia comigo, as fotos que tirava quando abusava de mim. E mamãe percebeu que eu estava grávida.
Alison tomou outro gole de chá para aliviar a tensão de sua voz e se recompor.
- Alguns dias depois, quando ele saiu para voltar apenas à noite, ela vasculhou seu laboratório de cima a baixo. Foi quando encontrou o resto das fotos, naquele cofre. Foi então que descobriu com quem havia se casado. Mamãe convocou uma reunião com todos os adultos e lhes mostrou as fotografias. Imaginem como foi. Todos queriam linchar Hawkin. As mulheres eram a favor de castrá-lo e deixá-lo sangrando até a morte. Os homens falaram em matá-lo e fingir que ele havia morrido em um acidente na fazenda.
"Foi a velha Mamãe Lomas quem os trouxe de volta à razão. Ela disse que, se o matássemos, alguém sofreria as consequências. Mesmo se ele morresse sob as rodas de um trator, o caso não seria considerado apenas como mais um acidente. Seria investigado, porque o desgraçado era importante. Era o dono das terras, não apenas um pobre camponês que não contava para nada. Um pequeno deslize e alguém da aldeia acabaria preso, especialmente depois que minha gravidez se tornasse óbvia. Além disso, Mamãe Lomas achava que uma morte rápida não era castigo suficiente para ele.
"Outra preocupação dos adultos era que, se o abuso sofrido pelas outras crianças se tornasse público, todas seriam enviadas para instituições e separadas de seus pais, que seriam considerados negligentes e, portanto, não poderiam mais ter a guarda dos filhos. Achavam que estranhos não entenderiam a vida no vale, a liberdade que todas as crianças tinham para andar mais ou menos à vontade em um lugar que parecia muito seguro, sem tráfego e sem estranhos, em qualquer época do ano.
"Assim, eles falaram sobre tudo isso naquele dia e, finalmente, alguém lembrou-se de ter lido um artigo no jornal sobre uma menina desaparecida. Não sei de quem foi a ideia, mas então os adultos decidiram que eu deveria desaparecer e eles providenciariam para que pensassem que Hawkin havia me matado. Todos sabiam que ele tinha uma arma de fogo, e por causa das fotos que havia tirado de mim sabiam também que ele seria enforcado, se a encenação fosse convincente. Assim, ninguém de fora precisaria saber sobre as outras crianças e os outros pais não teriam de passar pela dor de contar a história toda para a polícia."
Alison suspirou.
- Este foi o fim da minha vida como eu a vivera até aquele dia. O planejamento foi rápido. Quem elaborou praticamente tudo foram minha mãe, Kathy e Mamãe Lomas, mas elas pensaram em todos os detalhes. Tia Dorothy e tio Sam, de Consett, foram obrigados a entrar no plano. Tia Dorothy havia sido enfermeira, de modo que sabia extrair sangue. Ela veio até Scardale alguns dias antes de eu desaparecer e extraiu um pouco do meu sangue, que foi usado para marcar a árvore no arvoredo e para manchar uma das camisas de Hawkin. Tiveram de adiar a descoberta da camisa e das minhas roupas íntimas, porque precisavam de seu sémen. Mais cedo ou mais tarde, elas conseguiriam também isso, porque ele sempre usava preservativo quando ia com minha mãe. - Ela deu uma risada amarga. - Ele não queria ter filhos seus. De qualquer modo, minha mãe finalmente conseguiu fazer sexo com ele. Teve de suplicar, dizendo que isso a reconfortaria em meio à sua angústia. Assim, as mulheres usaram o esperma do preservativo para sujar minhas roupas. Elas não sabiam o quanto os peritos da polícia poderiam descobrir, a partir do sangue e do sémen, mas queriam ter certeza de que não tropeçariam nos detalhes.
- E, é claro, todos precisavam ter uma versão única da história. Todos tinham um papel, e precisavam executá-lo da melhor maneira possível. Ninguém disse nada às crianças menores, mas Derek e Janet também participaram. Kathy passou horas com eles, certificando-se de que sabiam como era importante não deixar que a verdade viesse à tona. Quanto a mim, eu perambulava por lá, meio em transe, na maior parte do tempo. Continuei levando Shep para a rua e andando por lá com ela, como sempre fazia, tentando memorizar tudo o que nunca mais veria nem teria. Eu sentia uma culpa enorme, o tempo inteiro. Todo aquele tumulto, todos tão tensos, e tudo parecia ser minha culpa. - Ela mordeu o lábio e fechou os olhos por um momento. - Levei muito tempo e foram necessárias muitas sessões de terapia para que eu compreendesse que não havia errado. Naquela época, porém, odiei a mim mesma de um modo impossível de descrever.
Alison hesitou brevemente, com os olhos novamente brilhantes com lágrimas contidas. Ela piscou com força, enxugou os olhos bruscamente, esfregando-os com uma das mãos, e continuou:
- Enquanto tudo isso acontecia no vale, Dorothy e Sam providenciaram a mudança de Consett para Sheffield na mesma semana em que planejávamos o desaparecimento, para que os novos vizinhos não percebessem que eu não era a verdadeira Janis. Em 1963, isso foi razoavelmente fácil. - Alison fez uma pausa, com os olhos parecendo voltar para seu íntimo, como se procurasse o próximo capítulo de sua história trágica.
- Os gloriosos tempos do pleno emprego - murmurou Tommy.
- Sim. Sam era um metalúrgico competente e não foi difícil arranjar um novo emprego. Além disso, naquele tempo os trabalhadores ganhavam residência junto com o novo emprego. No dia combinado, Sam esperou por mim junto à igreja metodista, em seu Land Rover. Ele me levou até Sheffield e passei a morar com eles. Para os vizinhos, eles diziam que eu havia contraído tuberculose e precisava ficar confinada, sem contato com outras pessoas até me recuperar totalmente, para que ninguém descobrisse sobre a gravidez. A medida que o tempo passava, Dorothy colocava mais enchimento em sua barriga, para parecer grávida.
Alison fechou os olhos e um espasmo de dor cruzou seu rosto.
- Foi tão difícil! - disse, erguendo a cabeça e encontrando o olhar de Catherine. A escritora desviou os olhos primeiro. - Perdi tudo. Perdi minha família, meus amigos e meu futuro. Perdi Scardale. Coisas estranhas estavam acontecendo com meu corpo, e eu detestava aquilo. Minha mãe nem podia me visitar, e só fez isso depois do julgamento, porque ninguém na aldeia havia mencionado a existência dos Wainwrights para a polícia e ela não queria ter de explicar aonde ia. Dorothy e Sam foram muito bons para mim, mas isto nunca compensou tudo o que eu havia perdido. Fui convencida de que precisava passar por aquilo pelo bem de todas as outras crianças de Scardale; de que estávamos fazendo aquilo para que Hawkin nunca mais pudesse machucar outra criança como havia feito comigo.
- Fazia certo sentido - disse Catherine, em tom abafado. Alison bebericou seu chá e falou, desafiadora:
- Não me envergonho do que fizemos. Nem Tommy nem Catherine lhe responderam.
Alison afastou os cabelos do rosto novamente e continuou sua história:
- Helen nasceu em meu quarto, em uma tarde de junho, algumas semanas antes do julgamento daquele canalha. Sam registrou-a como sendo sua filha e de Dorothy, e eles a criaram assim, como se eu fosse sua irmã e Dorothy sua mãe. Alguns anos depois, consegui emprego em um escritório. - Um sorriso duro apareceu pela primeira vez em seu rosto naquela manhã. - Era o escritório de um advogado. Dá para acreditar? Eu já deveria ter esgotado minha quota com a lei, não é? De qualquer modo, estudei à noite para recuperar o tempo perdido. Cheguei a conquistar um diploma em uma universidade. Estudei psicologia ocupacional e, no fim, estabelecime profissionalmente. A cada passo que dava, eu me sentia como se cuspisse no olho daquele asqueroso. Mas nunca era o bastante, entendem?
"Minha mãe verdadeira veio morar conosco depois do enforcamento de Hawkin. Fiquei feliz. Eu precisava muito de sua presença ali. Ela não quis voltar para Scardale, de modo que contratou um advogado para administrar as propriedades, mas continuou com esta casa. Ela sabia que, um dia, eu desejaria voltar. Mantivemos Helen totalmente ignorante quanto à ligação com Scardale. Até hoje ela acha que Ruth e seu marido viviam perto de Sheffield. Ruth lhe disse que Roy havia sido cremado, de modo que não havia um túmulo para visitar. Helen jamais questionou nossa história.
"Quando minha mãe morreu, o solar foi herdado por Dorothy, com a promessa de que deveria ficar para mim e para Helen, e quando Dorothy morreu, nós herdamos a casa. Helen acha que sou louca por querer morar tão longe da cidade. Mas é meu lar e fiquei longe daqui por muito tempo, de modo que agora quero aproveitá-lo."
Ela olhou para seu chá.
- Então, essa é toda a história.
Catherine franziu a testa. Sabia que deveria ter muitas perguntas a fazer, mas não conseguia pensar em nenhuma.
- E sempre que você olha para Helen, é a ele que enxerga - disse Tommy.
Os músculos em torno da mandíbula de Alison contraíram-se quando ela apertou os dentes.
- A semelhança não era tão óbvia quando ela era pequena - disse, finalmente. - Quando realmente começou a se parecer com ele, convencime a usar isso em meu favor. Aquele desgraçado destruiu minha infância, privou-me de minha família e amigos. Ele teria me matado se tivesse descoberto minha gravidez. Tenho certeza disso. Era um homem poderoso e eu não era nada. Assim, não quero esquecer nunca que consegui ajudar a virar o jogo. Deixe-me dizer-lhes: assumir o controle de nossas vidas nos dá uma sensação de poder. E foi isso que eu fiz, mas é muito mais fácil perder o controle sobre nossas vidas que conquistá-lo. Por isso eu queria garantir que jamais desistiria e nunca me esqueceria do passado. Assim, aprendi a ser grata porque Helen era um lembrete constante de que havíamos lutado contra o homem que tentou nos tirar tudo que nos tornava o que éramos - disse, em tom fervoroso.
Depois de uma longa pausa, ela falou, como se admirada com seus próprios pensamentos:
- Sabem de uma coisa, Helen não tem nada de Hawkin. Ela herdou toda a força e bondade de minha mãe. Como se tudo o que tornava minha mãe tão especial tivesse saltado uma geração e chegado a ela.
Tommy pigarreou, obviamente comovido pela história de Alison.
- Então, todos na aldeia estavam envolvidos na conspiração?
- Todos os adultos - confirmou Alison. - Mamãe Lomas disse que no início todos deveriam fingir que não confiavam na polícia e deixar que nossa versão dos fatos chegasse a eles apenas aos poucos. Você e George Bennett foram um prémio, para falar a verdade. O pessoal de Scardale não poderia prever que receberiam um par de policiais tão obcecados com o caso a ponto de se empenharem ao máximo, até o fim. Graças a vocês, o povo daqui conseguiu relaxar, sabendo que não teria de perseguir a polícia para fazer com que pegassem os fios de pistas que lhes davam, depois do primeiro impacto e quando tudo parecia sem solução.
Tommy sacudiu a cabeça, confuso com a terrível ironia.
- Fomos vítimas de nossa própria integridade. - Ele deu um meio sorriso. - Não se pode dizer isso com muita frequência, em relação a policiais. Mas, se não estivéssemos tão determinados a ir até o fim no caso, a fazer justiça, vocês nunca conseguiriam tanto sucesso com um plano tão grandioso.
Por um momento, nenhum dos três falou. Alison levantou-se e foi até a janela. Ela olhou para a praça da aldeia, no vale do qual saíra em uma noite de dezembro, trinta e cinco anos atrás, e que nunca deixara de amar. Catherine pensou que, agora, aquela mulher retomara seu lar, mas pagara um preço terrível. Finalmente, Alison virou-se lentamente, endireitou os ombros e perguntou:
- E o que acontecerá agora?
- Essa é uma excelente pergunta -disse Tommy.
9
Agosto de 1998
Catherine e Tommy compraram outra garrafa de uísque irlandês, a caminho da casa da jornalista. Ótimo para um velório, pensou Catherine. Nesta noite, os dois enterrariam de uma vez por todas o fantasma de Alison Cárter. Catherine suspeitava que, amanhã, teriam ressaca, embora esta fosse a menor de suas preocupações. Hoje, porém, ela desejava estar entorpecida pelo álcool quando chegasse a hora de ir para a cama. Qualquer coisa para escapar àquele desfile de horrores e degradação que Philip Hawkin deixara como legado para o mundo.
Ao fechar a porta, Catherine falou pela primeira vez desde que haviam deixado Alison Cárter entregue às suas recordações:
- Bem, acabou. Temos a verdade. - Ela atravessou a sala, foi até o balcão e serviu doses de uísque puro para ambos.
Tommy pegou seu copo, em silêncio, olhando para as fotos nas paredes e enfrentando o amargo reconhecimento de que Mamãe Lomas e seu clã haviam enganado o mundo o suficiente para fazerem com que Philip Hawkin percorresse a tortuosa estrada que levara à condenação por homicídio. Não sentia satisfação por perceber que seu próprio instinto havia sido correto, sobre Hawkin. Afinal, o homem não era mesmo um assassino.
Confrontada com as fotografias com as quais Alison os arrasara, Catherine não pôde resistir à conclusão de que os moradores de Scardale haviam feito o mais certo ao transformarem seu pasmacento vilarejo em um lugar de execução. Eles sabiam que nada, exceto a morte, impediria Hawkin e salvaria as outras crianças que viessem a cair em suas mãos. Nem mesmo mandar seus filhos para longe o impediria de continuar. Ele encontraria outras crianças para destruir, e tinha tanto dinheiro quanto poder para fazer com que as testemunhas fossem desacreditadas, mesmo se ousassem denunciá-lo.
- Em nenhum momento cheguei a pensar que poderia haver outras crianças - disse Catherine, tristemente.
- Nem eu. - Tommy virou as costas para as fotografias acusadoras e afundou-se em uma cadeira.
- Eu não consigo culpá-los pelo que fizeram - disse Catherine.
- No lugar deles, eu não teria hesitado em aderir à conspiração - reconheceu Tommy.
- A terrível ironia é que, comparado ao que Alison passou, o sofrimento de Philip Hawkin foi abençoadamente curto. Ela conviveu com a dor todos os dias de sua vida, desde aquela época. Perdeu tanto e, no fundo de sua mente, deve ter havido sempre o medo de abrir a porta e encontrar alguém como você e eu no outro lado. - Catherine pegou a garrafa de uísque e colocou-a sobre a mesa, entre os dois.
Ficaram sentados em um silêncio atordoado, como os sobreviventes de um acidente terrível que mal conseguem assimilar sua sorte por terem escapado do pior. Ambos permaneceram imersos em seus pensamentos, enquanto fumavam um cigarro atrás do outro.
- George tinha razão - disse Catherine, finalmente. - Não posso ir em frente com o livro. É claro que eu conquistaria todos os louros por revelar que um caso tão famoso foi montado com base em mentiras e engodo. Mas não posso fazer isso com George e Anne. Não se trata apenas da vergonha que isso causaria a George, mas da dor que ele sentiria vendo o romance entre Helen e Paul desintegrar-se. Além disso, todos os moradores sobreviventes de Scardale enfrentariam julgamento por conspiração, não apenas Alison. - Como em uma tragédia grega, pensou ela, as reverberações do que havia acontecido em Scardale trinta e cinco anos antes abalariam outras vidas bem distantes daquela tarde, vidas de inocentes que mereciam proteção de um passado do qual não tinham culpa.
Tommy bebeu até o fim seu uísque e serviu-se de outra dose.
- Beberei a isso - disse. - Acho que ninguém discordaria de você.
- Pode ir e contar tudo a George de manhã - disse Catherine.
- Não quer contar-lhe pessoalmente? Ela abanou a cabeça.
- Já terei muito com que me ocupar tentando cancelar o contrato para o livro sem explicar a razão verdadeira. Não, Tommy. Você conta a ele. É o melhor a fazer. Se não fosse por você, não sei se algum dia teria descoberto que Helen era a filha de Alison com Hawkin. E então eu não teria como convencê-la a contar toda a verdade. Ou qualquer razão para manter-me em silêncio. Portanto, o crédito é seu.
- Crédito? - perguntou ele, com desprezo. - Por revelar essa podridão? Obrigado, mas dispenso, se você não se importa. Mas terei prazer em dizer a George que ninguém pretende arruinar a vida de Paul e Helen. Eu sei o quanto isso é importante para ele, mas o pouparei dos detalhes.
Catherine pegou a garrafa e disse, enquanto servia mais três centímetros de uísque em seu copo:
- Boa ideia. E, depois, sugiro que façamos o possível para esquecer de tudo que vivemos nesses últimos dias.
10
Outubro de 1998
George Bennett olhou através do pára-brisa. O mês de outubro chegava ao fim, e agora que as árvores já estavam nuas, o portão pelo qual entrava lhe dava uma visão clara do vale até Scardale. As conhecidas casas cinzentas pareciam uma parte orgânica da paisagem, a distância, lembrando-o como as peculiaridades da topografia haviam moldado o mundo social da aldeia à qual viera pela primeira vez trinta e cinco anos antes. Ele percorreu com o olhar os campos até o Solar Scardale e pensou na mulher que estava prestes a tornar-se oficialmente a cunhada de seu filho. Alguns poderiam pensar que ela - e os outros que haviam participado daquilo tudo - mereceria ser punida pela conspiração que levara à forca um homem que, apesar de seus outros crimes, não cometera um assassinato. Mas George não se importava com retaliação. Importava-lhe mais o futuro que o passado. Nada como enfrentar a morte para que um homem valorize sua vida.
Por este motivo vinha até ali hoje. Apenas três dias antes, o médico concordara que ele poderia dirigir novamente, desde que não fizesse viagens longas. A jornada de Cromford a Scardale não era longa, em termos de distância - dissera a si mesmo. A distância, aqui, era em termos emocionais e psicológicos, um abismo de trinta e cinco anos e um leque de emoções complexas demais para serem avaliadas. Dali a quatro dias, ocorreria o casamento que resolveria finalmente esta história horrível, e George estava determinado a fazer o que pudesse para garantir que os fantasmas não se levantariam nunca mais. Assim, ele ligara para a mulher que nunca mais poderia chamar por seu nome real depois de hoje e solicitara um encontro.
Trinta e cinco anos antes, ele percorrera pela primeira vez esta estrada estreita. Mesmo então, suas emoções estavam divididas. Ele lembrou-se com ironia amargurada de sua excitação ante a possibilidade de ser o encarregado por seu primeiro grande caso - uma excitação culpada, mesclada à sua preocupação tanto pela garota desaparecida quanto pela família dela. Nem mesmo em suas mais loucas fantasias ele poderia ter previsto como o desaparecimento de Alison Cárter voltaria a ameaçar não apenas sua paz de espírito, mas também a felicidade futura de seu filho amado.
Uma das maiores ironias dos acontecimentos do último ano fora a substituição de uma culpa por outra. Ele sempre estivera convicto de que fracassara com Ruth Cárter, de algum modo, até que o processo de rever o caso com Catherine finalmente lhe permitira compreender que fizera o melhor naquelas circunstâncias. Entretanto, agora que sabia o que realmente acontecera em Scardale naquele inverno tenebroso, uma nova preocupação o abatia. Certamente houvera momentos, durante a investigação, em que ele deveria ter percebido a ocorrência de algo que ia bem além daquilo que via. Será que se tornara tão cego por sua arrogância e sua obsessão em condenar Philip Hawkin que ignorara indicadores que seriam percebidos por um detetive mais experiente? E se tivesse descoberto a verdade, será que esta teria dado a Alison Cárter uma vida melhor que aquela que tivera de suportar?
Tommy Clough garantira-lhe que acreditara tanto na encenação do povo de Scardale quanto o próprio George. Isto, porém, não lhe servia como grande conforto. Ele tinha certeza de que Tommy teria dito o mesmo, de qualquer maneira, para reconfortar um homem doente.
Quaisquer que tivessem sido seus erros no passado, ele precisaria descobrir um modo de aceitá-los para poder ter paz. Talvez seu coração lhe desse mais alguns meses ou anos pela frente, mas fosse qual fosse a duração de sua vida, ele não queria que este tempo fosse contaminado com uma auto-recriminação que só o torturaria. Precisava perdoar a si mesmo, e talvez o primeiro passo nesta jornada tivesse a ver com encontrar Alison Cárter para que pudessem perdoar as dores reais e imaginadas um do outro.
Com um suspiro profundo, George ligou novamente o carro e, lentamente, seguiu a estrada até Scardale. Não importava o que o futuro lhe traria, era hora de dar o primeiro passo na estrada que o levaria a enterrar o passado, desta vez para sempre.

Inverno de 1963: duas crianças desaparecem em Manchester, na Inglaterra. É o começo da trajetória de homicídios praticados por Myra Hindley e Ian Brady. Em um dia gélido de dezembro, Alison Carter, treze anos, desaparece de um vilarejo isolado na região central da Inglaterra. Para o jovem George Bennett, recém-promovido a inspetor, este é o começo de seu caso mais difícil - um assassinato sem corpo e uma investigação cheia de becos sem saída e lábios selados, com conseqüências que repercutirão ao longo de muitos anos.
Após décadas, ele finalmente conta sua história à escritora Catherine Heathcote, mas, quando o livro dela está prestes a ser publicado, Bennett tenta inexplicavelmente fazê-la abandonar seu projeto. Ele possui novas informações, mas se recusa a divulgá-las, já que ameaçam o equilíbrio de sua própria vida. Catherine vê-se forçada a investigar novamente o passado, com resultados surpreendentes.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/UM_CORPO_PARA_O_CRIME.jpg

 

Livro 1
Introdução
Assim como Alison Carter, nasci no condado de Derbyshire, em 1950. Como ela, eu também cresci familiarizada com os vales de pedra calcária da região de White Peak e acostumada com as nevascas que nos isolam regularmente do resto do país. Afinal, foi em Buxton que, certo verão, uma partida de críquete precisou ser cancelada por causa da neve.
Por isso, quando Alison Carter desapareceu, em dezembro de 1963, o choque foi maior para mim e minhas colegas que para a maioria das outras pessoas. Conhecíamos cidadezinhas como aquela em que ela vivia. Sabíamos que tipo de coisas alguém como Alison gostava de fazer, todos os dias. Também mantínhamos as mesmas discussões, durante as aulas e nos banheiros, debatendo qual era nosso Beatle favorito. Achávamos que tínhamos as mesmas esperanças, sonhos e medos e, por causa disso, desde o primeiro momento, imaginamos que algo terrível havia acontecido a Alison Carter, porque também sabíamos que garotas como aquela - como nós - não fugiam de casa. Não em Derbyshire e em um dezembro gelado, pelo menos.
Esta impressão não era apenas das meninas de treze anos. Meu pai estava entre as centenas de homens que vasculharam voluntariamente as charne-cas elevadas e os vales de mata densa nos limites de Scardale, e ainda tenho gravada com clareza em minha memória sua expressão sombria ao voltar para casa após um dia inteiro procurando a garota, sem qualquer pista.
Acompanhávamos as buscas pelos jornais e a cada dia, na escola, durante semanas a fio, alguém fatalmente começava a formular hipóteses para o desaparecimento. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda tinha perguntas a fazer a George Bennett, mas o ex-policial parecia incapaz de respondê-las.
Não baseei minha narrativa apenas nas anotações feitas por ele na época ou em suas recordações atuais. Enquanto realizava pesquisas para este livro, fiz várias visitas a Scardale e à área adjacente, entrevistando muitas das pessoas que participaram da história de Alison Carter, reunindo suas impressões e comparando seus relatos sobre os acontecimentos. Eu não teria conseguido terminar este livro sem a ajuda de Janet Carter, Tommy Clough, Peter Grundy, Charles Lomas, Kathy Lomas e Don Smart. Tomei algumas liberdades artísticas ao atribuir pensamentos, emoções e diálogos às pessoas, mas essas concessões baseiam-se em minhas entrevistas com os protagonistas sobreviventes, que concordaram em me ajudar na tentativa de criar um quadro fiel de uma comunidade e dos indivíduos que nela residiam.
Obviamente, jamais saberemos em detalhes o que aconteceu naquela terrível noite de dezembro de 1963. Ainda assim, para qualquer um que tenha sido afetado direta ou indiretamente pela vida e morte de Alison Carter, a história de George Bennett é uma visão fascinante sobre um dos crimes mais bárbaros dos anos 60.
Por muito tempo, este crime hediondo permaneceu escondido, na sombra dos assassinatos do pântano que chamaram mais a atenção do público. Contudo, o destino de Alison Carter não é menos terrível por ter sido cometido por um assassino que fez uma única vítima. Além disso, a mensagem transmitida por sua morte ainda é relevante. Se a história de Alison Carter nos ensinou algo, é que até o maior dos perigos pode vir com um rosto amistoso.
Nada trará Alison de volta. Entretanto, lembrar ao mundo o que aconteceu com esta menina pode ajudar a evitar que outros tenham a mesma sina. Se tal fim for atingido, George Bennett e eu já sentiremos alguma satisfação.
Catherine Heathcote Longnor, 1998
Referência às cinco crianças e adolescentes comprovadamente assassinados com requintes de crueldade pelo casal Ian Brady e Myra Hindley em locais pantanosos da Inglaterra, na década de 1960. Ambos foram sentenciados à prisão perpétua por seus crimes. (N.T.)

Prólogo
A garota despedia-se de sua vida, e não era fácil dizer adeus.
Como qualquer adolescente, ela sempre encontrara muito de que se queixar, mas agora que estava por perder tudo aquilo, a vida que tivera parecia, subitamente, muito desejável. Começava a perceber, finalmente, por que seus parentes idosos se agarravam com tanta tenacidade a cada pequeno momento, mesmo se este contivesse também muita dor. Não importava o quanto a vida que tinham parecesse ruim, a alternativa era infinitamente pior.
Já começara até a se arrepender de certas coisas. De todas as vezes em que desejara a morte da mãe; de todas as vezes em que desejara descobrir que havia sido trocada na maternidade; da raiva que sentira de outras crianças na escola, que lhe dirigiam palavrões por não ser como elas; de toda a vontade de crescer logo e deixar o sofrimento para trás. Ilido parecia irrelevante agora. A única coisa que importava era a vida incrivelmente preciosa que estava prestes a perder.
Sentia medo e não podia evitá-lo. Medo do que havia depois e também do que estava imediatamente à sua frente. Seus pais haviam falado sobre o paraíso e de seu oposto, o inferno, que mantinham o mundo estável, um com peso igual ao outro. Em sua mente, ela sempre tivera uma idéia muito clara de como seria o paraíso. Mais do que jamais desejara qualquer coisa em sua curta vida, esperava que este fosse seu destino, assustadoramente próximo agora.
Contudo, havia também o medo desesperado de ir para o inferno. Quanto a este, não tinha uma idéia muito clara de como seria. Sabia apenas que, comparado com tudo o que odiava em sua vida, o inferno deveria ser bem pior. E dado o que sabia, isto significava que seria muito, mas muito ruim mesmo.
Ainda assim, não havia outra escolha possível. A menina precisava despedir-se da vida que tivera.
Para sempre.
Primeiro Porte: O Começo de Tudo
Manchester Evening News, terça-feira, 10 de dezembro de 1963, p. 3
Recompensa de
100 nas buscas por garoto
A polícia deu continuidade hoje às buscas por John Kilbride, 12 anos, esperando que uma recompensa de
100 possa produzir alguma nova pista sobre a sua localização.
Um empresário desta cidade ofereceu a quantia a quem der informações que levem diretamente à descoberta de John, que desapareceu de sua casa, na estrada Smallshaw, em Ashton-under-Lyne, 18 dias atrás.
1
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 19h53
- Ajude-me. Por favor, ajude-me - pediu a voz feminina, trêmula e à beira das lágrimas. O policial de plantão que atendera a ligação ouviu um som semelhante a um soluço, como se a mulher tivesse dificuldade para continuar falando.
- É para isso que estamos aqui, senhora - disse o policial Ron Swindells, quase com apatia. Trabalhava em Buxton havia quinze anos e já fizera de tudo. Nos últimos cinco, sentia dificuldade para se livrar da sensação de que apenas revivia os dez primeiros. Parecia-lhe não haver nada de novo sob o sol. Tal visão das coisas seria abalada para sempre pelos acontecimentos que estavam por se desdobrar à sua volta, mas naquele instante bastava-lhe recitar a fórmula que, até então, sempre funcionara:
- Qual é o problema? - indagou, sua sonora voz grave delicadamente impessoal.
- Alison - disse a mulher, ofegante. - Minha Alison não voltou para casa.
- Alison é sua filha? - perguntou Swindells, mantendo a voz deliberadamente suave e tentando tranqüilizar a mulher.
- Ela saiu para passear com o cachorro assim que chegou da escola e não voltou para casa - disse a voz, que se tornava mais aguda e alta, à medida que o nervosismo aumentava.
Swindells olhou automaticamente para o relógio. Faltavam sete minutos para as oito da noite. A preocupação da mulher era legítima. Provavelmente, a menina estava na rua havia mais de quatro horas, o que não era brincadeira naquela época do ano.
- Será que ela, sem pensar, não decidiu visitar algum amigo ou amiga? - perguntou, já sabendo que a mãe seria a primeira a consultar os amigos da filha, antes de ligar para a polícia.
- Bati em cada casa de nosso vilarejo. Ela desapareceu, acredite! Algo aconteceu com minha Alison. - Agora, a mulher começava a desmoronar, e as palavras eram sufocadas nos intervalos entre os soluços. Swindells julgou ouvir outra voz ao fundo.
A mulher mencionara um vilarejo, de modo que ele indagou:
- De onde, exatamente, a senhora está ligando?
Escutou o som de conversas abafadas. Depois, ouviu uma voz masculina e controlada ao telefone, com sotaque sulino e o tom inconfundível de alguém que se sente no comando:
- Aqui é Philip Hawkin, falando do Solar Scardale - disse ele.
- Entendo, senhor - respondeu Swindells, com cautela. Embora a informação não chegasse a acrescentar algo novo, bastava para torná-lo levemente precavido, consciente de que Scardale estava fora de sua jurisdição em muitos sentidos, além do mais óbvio. Scardale não era apenas um mundo diferente da cidade efervescente na qual Swindells crescera e trabalhava, mas também tinha a reputação de cuidar de seus próprios assuntos. Algo bastante incomum devia ter acontecido para chegarem a lhe pedir ajuda.
A voz do homem baixou um pouco, dando a impressão de que falava em particular com Swindells:
- Por favor, desculpe minha esposa. Ela está bastante perturbada. Mulheres são sempre tão emotivas, não concorda? Olhe, tenho certeza de que Alison está bem, mas minha esposa insistiu em ligar para vocês. Estou certo de que nossa filha aparecerá a qualquer momento e a última coisa que pretendo é fazê-lo perder tempo.
- Queira me passar mais detalhes, por favor - pediu o impassível Swindells, puxando para perto de si um bloco de anotações.
O detetive-inspetor George Bennett já deveria estar em casa. Eram oito da noite, bem além do horário em que se espera que detetives de sua posição estejam trabalhando. Por direito adquirido, estejam em sua poltrona preferida, esticando as pernas compridas na frente de uma lareira quentinha, de estômago cheio e assistindo a Coronation Street na televisão à sua frente. Depois, enquanto Anne tirava a mesa e lavava a louça, ele sairia para um gole e uma boa conversa no bar Duke of York ou no Baker's Arms. Não havia modo mais rápido de se familiarizar com um lugar que pelo bate-papo em um bar. Bem que precisava tirar vantagem disso, mais que qualquer de seus colegas, tendo chegado ali menos de seis meses antes. Sabia, pelas fofocas, que ainda não merecia a confiança do povo da cidade, mas, aos poucos, começava a ser tratado com naturalidade, como se os habitantes o perdoassem e esquecessem que seu pai e avô haviam bebido em bares bem distantes dali.
Olhou rapidamente o relógio de pulso. Teria sorte se conseguisse ir ao bar esta noite. Não que sentisse muita falta, já que não era tão chegado à bebida. Se não fosse obrigado a manter a cidade na linha, por suas responsabilidades profissionais, passaria semanas sem entrar em um lugar onde vendiam álcool. Preferiria levar Anne para dançar ao som de novos talentos que tocavam regularmente no Pavilion Gardens, ou ir ao cinema com a esposa. Ou, simplesmente, ficar em casa. Casado havia apenas três meses, George ainda não conseguia acreditar que Anne concordara em passar o resto de sua vida ao seu lado. Este milagre o ajudava a suportar as piores agruras de sua profissão. Até aqui, os piores momentos vinham do tédio, e não da natureza hedionda dos crimes que encontrava. Os eventos dos sete meses seguintes testariam duramente este milagre.
Naquela noite, porém, pensar que Anne estava em casa, tricotando na frente do televisor e esperando por seu retorno, era uma tentação maior que qualquer gole de cerveja. George rasgou metade de uma folha de seu bloco de anotações, colocou-a entre os papéis que estivera lendo para marcar onde parara e fechou com firmeza a pasta, enfiando-a na gaveta de sua mesa. Amassou o cigarro e depois esvaziou o cinzeiro no balde de lixo junto à mesa, sempre seu último ato antes de pegar o sobretudo e, quase sem pensar, seu chapéu de feltro com aba larga que sempre o fazia sentir-se um pouco tolo. Anne adorava o chapéu e lhe dizia que o fazia parecer-se com James Stewart, o que ele mesmo jamais percebera. Nunca seria um astro de cinema apenas porque tinha um rosto comprido e cabelos loiros e finos. Vestiu o casaco, percebendo que estava quase apertado demais, por causa do forro acolchoado que Anne o fizera comprar. Apesar de seus amplos ombros de jogador de críquete parecerem comprimidos, sabia que se sentiria bem tão logo saísse da delegacia e fosse mordido pelo vento terrivelmente gélido que chegava do pântano pelas ruas de Buxton.
Com um último olhar pelo escritório, verificando se não esquecera de algo que a faxineira não deveria ver, fechou a porta às suas costas. Uma rápida olhadela mostrou-lhe que não havia mais ninguém na sala do departamento de investigações criminais, de modo que voltou para desfrutar de um instante de vaidade, lendo as palavras "Detetive-Inspetor G. D. Ben-nett" gravadas com letras brancas em uma pequena placa de plástico preto. Já era algo de que se orgulhar, pensou ele. Ainda nem tinha trinta anos e já era detetive-inspetor. Isto compensava cada minuto de tédio dos três anos de estudos intermináveis para obter o diploma de direito que acelerara sua carreira, sendo um dos primeiros favorecidos pela nova tendência de promoção acelerada na força policial de Derbyshire. Agora, sete anos depois do juramento, era o mais jovem inspetor já promovido pela polícia civil daquela comarca.
Não havia ninguém ali para presenciar seu pequeno lapso de dignidade, de modo que subiu correndo as escadas. Seu impulso levou-o a cruzar as portas de vai-vem e a ingressar na sala do esquadrão fardado ainda acelerado. Três cabeças voltaram-se imediatamente ante sua entrada impetuosa. Por um instante, George não entendeu por que estava tudo tão quieto. Então ele lembrou. Metade da cidade devia estar no memorial para o presidente Kennedy, assassinado recentemente, que consistiria de um culto especial aberto a pessoas de todos os credos. A cidade estimava o líder americano assassinado como se fosse um filho adotado. Afinal, JFK estivera praticamente ali, alguns meses antes, visitando o túmulo de sua irmã a alguns quilômetros de distância, em Edensor, nas cercanias de Chatsworth House.
O fato de uma das enfermeiras que ajudaram os cirurgiões na luta infrutífera pela vida do presidente em um hospital de Dallas também ser filha de Buxton apenas reforçava a ligação, aos olhos do povo local.
Residência do duque e duquesa de Devonshire, Chatsworth House, cuja construção iniciou-se em 1552, localiza-se em Derbyshire, no coração da Inglaterra, e recebe visitantes do mundo inteiro em seus muitos cômodos e vastos jardins. (N.T.)
- Tudo tranqüilo então, sargento? - perguntou ele.
Bob Lucas, o sargento de plantão, franziu a testa e levantou um ombro, em sinal de incerteza. Olhou para a folha de papel em sua mão e respondeu:
- Estava tudo calmo até cinco minutos atrás, senhor. - Ele endireitou-se na cadeira e disse: - Provavelmente não é nada importante. Aposto que tudo já estará resolvido quando chegarmos lá.
- Algo interessante? - perguntou George, em tom leve. A última coisa que desejava era que Bob Lucas o considerasse o tipo de homem que tratava policiais fardados como macacos e via a si mesmo como o adestrador.
- Uma garota desaparecida - disse Lucas, estendendo-lhe a folha. - Swindells atendeu o telefonema. Ligaram diretamente para cá, não pelo serviço de emergência.
- Temos um homem nosso lá, sargento? - indagou, tentando imaginar Scardale em seu mapa mental da área.
- Não é preciso. É uma aldeia minúscula. Dez casas, no máximo. Não, Scardale é coberta por Peter Grundy, de Longnor, a apenas três quilômetros de distância. Entretanto, a mãe parece considerar o caso importante demais para Peter.
- E o que você acha? - indagou George, com cautela.
- Acho que é melhor eu pegar uma viatura e ir até Scardale para trocar umas palavrinhas com a senhora Hawkin, senhor. Apanho Peter no caminho.
Enquanto falava, Lucas pegou seu quepe e o ajeitou sobre os cabelos quase tão negros e brilhantes quanto suas botas. Suas bochechas avermelhadas e cheias davam a impressão de que ele escondia um par de bolas de pingue-pongue dentro da boca. Combinadas com olhos escuros e faiscantes e sobrancelhas também negras e retas, elas lhe davam a aparência de um boneco de ventríloquo. Ainda assim, George já havia descoberto que Bob Lucas seria a última pessoa a permitir que alguém lhe colocasse palavras na boca. Sabia que, se lhe perguntasse algo, obteria uma resposta direta.
- Você se importa se eu for junto? - perguntou George.
Peter Grundy pousou o telefone no gancho devagar e friccionou o polegar no queixo áspero pela barba de um dia inteiro. Estava com trinta e dois anos naquela noite de dezembro de 1963. As fotografias mostram um homem de rosto jovial, com queixo estreito e nariz curto e fino, acentuado por um corte de cabelo quase militar. Até quando sorria, como fazia ao tirar fotografias durante as férias com seus filhos, seus olhos pareciam vigilantes.
Dois telefonemas no espaço de dez minutos haviam quebrado a paz rotineira de uma noite na frente da TV ao lado da esposa, Meg, com as crianças já de banho tomado e na cama. Não que não tivesse levado a sério o primeiro telefonema. Quando a velha Mamãe Lomas, que sabia de tudo o que acontecia em Scardale, dava-se ao trabalho de sujeitar sua artrite ao frio cortante, abandonando o conforto de sua casa para ir até o telefone público na praça da aldeia, era melhor prestar atenção. Achou, entretanto, que poderia esperar até as oito da noite e até o fim do programa, antes de tomar alguma providência. Afinal, a velhinha poderia até afirmar que a razão para seu telefonema era preocupação pelo desaparecimento de uma garota, mas Grundy não duvidaria se isto fosse uma desculpa para complicar um pouco a vida da mãe da menina. Ele ouvira as conversas e sabia que algumas pessoas em Scardale achavam que Ruth Carter pulara rápido demais na cama com Philip Hawkin, mesmo tendo sido ele o primeiro homem a fazê-la sorrir desde a morte de seu esposo, Roy.
Então o telefone tocara novamente, trazendo uma careta ao rosto de sua esposa e tirando-o de sua poltrona confortável para levá-lo ao corredor gélido onde estava o aparelho. Desta vez não conseguiu ignorar a urgência. O sargento Lucas, de Buxton, soubera da menina desaparecida e estava a caminho. Como se não fosse suficientemente ruim ter gente de Buxton invadindo seu território, Lucas trazia consigo o professor. Era a primeira vez que Grundy ou qualquer de seus colegas precisaria trabalhar com alguém que cursara uma universidade, e ele sabia, pelas fofocas em suas visitas ocasionais à subdivisão em Buxton, que nenhum deles gostava muito da idéia. Concordava com a teoria de que a universidade da vida era a melhor escola para um policial. Essa gente com diploma não agüentava o tranco - não se podia enviá-los para a rua em Buxton, em um sábado à noite. Pessoas assim jamais haviam visto uma briga em um bar, e nunca saberiam lidar com uma. Para Grundy, a única coisa boa que se podia dizer sobre o detetive-inspetor Bennett era que tinha talento para o críquete.
E esta não era razão suficiente para alegrar-se por vê-lo chegando a sua área para perturbar seus contatos cuidadosamente cultivados.
Com um suspiro, Grundy abotoou o colarinho de sua camisa, ajeitou a parte de cima do uniforme, endireitou o quepe e pegou o sobretudo. Depois, enfiou a cabeça na porta da sala de estar com um sorriso conciliador, mas nervoso.
- Tenho de ir a Scardale - disse.
- Shhh - repreendeu-o a esposa, com ar aborrecido. - Agora é a melhor parte!
- Alison Carter desapareceu - acrescentou vingativamente, fechando a porta às suas costas e caminhando apressado pelo corredor antes que ela pudesse reagir. Sabia que a reação viria, já que o desaparecimento de uma criança em Scardale era próximo o suficiente para causar arrepios em Longnor.
George Bennett seguiu o sargento Lucas até o estacionamento das viaturas. Teria preferido ir com seu próprio carro, um Ford Corsair preto cheio de estilo, tão novo quanto sua promoção, mas o protocolo exigia que sentasse no banco do passageiro do Rover de serviço e deixasse Lucas dirigir. Enquanto viravam rumo ao sul na estrada principal e passavam pela praça central, George tentou conter a fisgada de excitação que sentira ao ouvir as palavras "garota desaparecida". Muito provavelmente, como Lucas apontara, tudo não passaria de um engano. Mais de 95% dos casos de crianças dadas como desaparecidas terminavam com o retorno do fugitivo antes da hora de dormir ou, na pior das hipóteses, antes do café da manhã.
Às vezes, porém, o caso era diferente. Às vezes, uma criança continuava desaparecida por tempo suficiente para gerar a certeza de que nunca mais voltaria para casa. Ocasionalmente, isso ocorria por opção. Com mais freqüência, a ausência prolongava-se porque a criança estava morta, e a questão para a polícia, então, dizia respeito ao tempo que levariam para encontrar o corpo.
Em outras ocasiões, as crianças não deixavam rastro, como se tivessem sido engolidas pela terra.
Nos últimos seis meses, dois casos assim haviam ocorrido, ambos a menos de cinqüenta quilômetros de Scardale. George sempre dava muita atenção aos boletins que recebia de outros distritos, bem como de outras divisões de Derbyshire, e atentara especialmente para estes dois casos de pessoas desaparecidas, porque haviam ocorrido próximos o bastante para, talvez, topar com uma das crianças. Morta ou viva.
A primeira delas era Pauline Catherine Reade, de dezesseis anos, cabelos escuros e olhos castanhos, que trabalhava como aprendiz de costureira em Gorton, Manchester. Magra e medindo 1,52m, a garota usava vestido rosa e amarelo e casaco azul-claro ao desaparecer. Saíra da casa com alpendre na qual morava com os pais e o irmão mais jovem para ir a uma festa, pouco antes das oito da noite da sexta-feira, 12 de julho. Ninguém mais a vira. Não havia problemas em casa ou no trabalho, nem um namorado com quem pudesse ter fugido. A garota não tinha dinheiro para uma fuga, mesmo se desejasse. A área havia sido extensamente vasculhada e três reservatórios de água haviam sido esvaziados, mas nenhuma pista fora encontrada. A polícia de Manchester examinara cada relato de possíveis testemunhas, mas nenhum levara à menina desaparecida.
A segunda criança parecia não ter nada em comum com Pauline Reade, exceto pela natureza inexplicável e quase mágica de seu desaparecimento. John Kilbride, doze anos de idade, 1,47m de altura e estatura miúda, tinha cabelos castanho-escuros, olhos azuis e pele clara. Usava uma jaqueta esportiva xadrez em tons de cinza, calças compridas de flanela, também cinzentas, camisa branca e sapatos pretos. De acordo com um dos detetives de Lancashire que jogavam críquete com George, o menino não parecia muito esperto, mas era obediente e gentil. John foi ao cinema com alguns amigos no sábado à tarde, um dia após a morte de Kennedy em Dallas. Depois, separou-se do grupinho, dizendo que iria à feira em Ashton-under-Lyne, onde muitas vezes ganhava algumas moedas fazendo chá para os donos das bancas. Na última vez em que foi visto, John estava encostado em um latão de lixo, por volta das cinco e meia da tarde.
A caçada resultante recebera um incentivo desesperado no dia anterior, quando um negociante local oferecera uma recompensa de cem libras por informações sobre o garoto, mas tal providência de nada adiantara. Esse mesmo colega comentara com George, durante um baile da polícia no sábado, que John Kilbride e Pauline Reade teriam deixado mais pistas se tivessem sido abduzidos por homenzinhos verdes tripulando um disco voador.
E agora, uma garota desaparecida. Ele olhou pela janela, para os campos iluminados pelo luar à beira da estrada para Ashbourne, com seu pasto irregular coberto pelo sereno e os muros de pedra que os separavam apresentando-se quase luminosos sob a luz prateada. Uma nuvem fina passou nela frente da lua e, apesar de seu casaco quente, George tremeu ante a idéia de estar sem abrigo em uma noite como esta, em um local tão inóspito.
Vagamente desgostoso consigo mesmo por permitir que sua ansiedade por um caso importante sobrepujasse a preocupação com a garota e sua família, que deveria ser seu único objetivo, George voltou-se abruptamente para Bob Lucas e disse:
- Fale-me sobre Scardale.
Tirou cigarros do bolso e ofereceu um ao sargento, que recusou.
- Não, obrigado, senhor. Estou tentando reduzir. Scardale pode ser vista como um lugar que parou no tempo - disse Lucas. Sob a luz breve do fósforo que George acendeu, sua expressão era grave.
- De que maneira?
- É como se ainda estivessem na Idade Média. Há apenas uma estrada que entra e sai da cidade e dá em um beco sem saída quando se chega ao telefone público, na praça da aldeia. Há uma casa principal, o solar, que é para onde estamos indo. Há cerca de uma dúzia de outras casas pequenas e os galpões usados pelos agricultores. A aldeia não tem bares, lojas ou correio. O senhor Hawkin é o dono das terras. É proprietário de cada casa em Scardale, além da fazenda e de toda a terra em quase dois quilômetros em todas as direções. Todos que vivem lá são seus inquilinos e empregados. É como se fosse dono daquelas pessoas. - O sargento diminuiu a velocidade para dobrar à direita, saindo da estrada principal e entrando em uma estradinha estreita que passava por uma pedreira. - Pelo que sei, existem apenas três sobrenomes naquele lugar. Todos se chamam Lomas, Crowther ou Carter.
George notou que Hawkin não fora citado e arquivou a inconsistência em seu cérebro, para investigá-la depois.
- Mas é claro que as pessoas saem de lá, para casar ou arranjar emprego, não?
- Ah, claro que sim, mas, de qualquer maneira, sempre serão filhos de Scardale. Nunca se afastam demais. E a cada geração uma ou duas pessoas realmente se casam com alguém de outro lugar. É o único modo de evitar o casamento consangüíneo. Ainda assim, com muita freqüência, pessoas de fora que se mudam para Scardale após o casamento acabam se divorciando. O esquisito é que sempre deixam os filhos para trás. - Ele deu uma rápida olhada na direção de George, como se para captar sua reação ao que ouvia. George tragou seu cigarro e se calou por um momento. Já ouvira falar de lugares como esse, mas jamais estivera em um deles. Não podia sequer imaginar como seria viver em um mundo tão contido em si mesmo, tão limitado, onde tudo sobre seu passado, presente e futuro é compartilhado com toda a comunidade.
- É difícil acreditar que exista um lugar assim tão próximo à cidade. Quantos quilômetros são? Dez?
- Doze - disse Lucas. - É um lugar histórico. Olhe a pavimentação dessas estradas. - Ele apontou para a curva acentuada à esquerda que levava à aldeia de Earl Sterndale, na qual as casas construídas pela pedreira para alojar seus empregados amontoavam-se, competindo por espaço no declive. - Antes de existirem carros com motores decentes e estradas asfaltadas, precisava-se de quase um dia inteiro para ir de Scardale a Buxton no inverno. Isso quando a estrada não estava bloqueada pelo acúmulo de neve. As pessoas tinham de contar com seus vizinhos e parentes. Alguns lugares por aqui continuam assim até hoje. Veja essa garota, por exemplo. Mesmo com ônibus escolar, Alison provavelmente leva quase uma hora para ir ou voltar da escola. O distrito tem tentado convencer os pais a matricularem os filhos em regime de semi-internato de segunda a sexta-feira, para poupá-los de uma jornada tão longa. Entretanto, em lugares como Scardale, eles simplesmente se recusam a isso e não percebem que a intenção é ajudá-los. Acham que as autoridades querem tirar-lhes os filhos. Não há como convencê-los do contrário.
O carro passou por uma série de curvas acentuadas e começou a subir uma colina íngreme, com o motor penando, enquanto Lucas trocava as marchas. George abriu um pouquinho a janela e atirou o toco de seu cigarro no acostamento. Uma lufada de ar gélido cheirando a fumaça de uma fogueira de carvão irritou-lhe a garganta, e ele fechou apressadamente a janela.
- E, ainda assim, a senhora Hawkin apressou-se a nos ligar.
- De acordo com Swindells, ela bateu em cada porta de Scardale antes de nos chamar - disse Lucas, em tom seco. - Não me leve a mal. Não é que sejam hostis com a polícia. É só que... não são muito hospitaleiros. Querem que encontremos Alison, de modo que se dispõem a nos suportar.
O carro enfrentou a subida e iniciou a longa descida até a aldeia de Longnor. A luz do luar mostrava o branco sujo dos prédios baixos de calcário, com colunas de fumaça subindo de cada chaminé à vista. No cruzamento existente no centro do lugar, George viu a silhueta inconfundível de um policial fardado que batia os pés no chão para mantê-los aquecidos.
- Esse deve ser Peter Grundy - falou Lucas. - Não precisava esperar na rua...
- Talvez esteja impaciente para descobrir o que está acontecendo. Afinal, é sua jurisdição.
- Ou então deve ter ouvido poucas e boas da mulher por ter de sair à noite - resmungou Lucas.
Ele freou bruscamente e o carro deu um solavanco junto ao meio-fio. Peter Grundy abaixou para ver quem estava no banco do carona e, então, sentou-se atrás.
- Boa-noite, sargento - disse. - Senhor, preciso dizer-lhe algo - acrescentou, inclinando a cabeça na direção de George. - Tenho um pressentimento ruim sobre este caso.
2
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 20h26
Antes que o sargento Lucas pudesse arrancar, George Bennett levantou um dedo, pedindo atenção.
- Scardale fica a apenas três quilômetros, certo? - Lucas assentiu. - Antes de chegarmos, quero saber tanto quanto possível sobre nosso caso. Será que poderíamos dar ao policial Grundy alguns minutos para nos inteirar dos detalhes?
- Acho que um ou dois minutos não farão diferença - disse Lucas, colocando o carro em ponto morto.
Bennett retorceu-se em seu assento para poder enxergar pelo menos os contornos do rosto de Grundy sob a luz fraca.
- Então, policial Grundy, parece que você acha que não encontraremos Alison Hawkin sentada junto ao fogo e levando uma bronca fenomenal da mãe...
- É Carter, senhor. Alison Carter. A garota não é filha do proprietário - informou Grundy, com o ar de vaga impaciência de um homem que percebe que terá uma longa noite de explicações a dar pela frente.
- Obrigado - disse George, gentilmente. - Pelo menos você me poupou de dizer uma asneira quando chegarmos lá. Gostaria que nos desse algumas informações sobre a família, para sabermos com quem lidamos.
Ele mostrou seus cigarros a Grundy, oferecendo-lhe um, com a intenção de aliviar qualquer impressão de que tentava mostrar-se superior.
Com um rápido olhar para Bob Lucas, que assentiu, Grundy tirou um cigarro do maço e remexeu no bolso de seu sobretudo em busca de fósforos.
- Já contei ao inspetor como as coisas funcionam em Scardale - disse Lucas, enquanto Grundy acendia o cigarro. - Eu lhe disse também que Hawkin é dono do vilarejo e de toda a terra.
- Certo - falou Grundy, através de uma nuvem de fumaça. - Bem, até cerca de um ano atrás, o dono de quase tudo em Scardale era o tio de Hawkin, o velho Castleton. Há Castletons no Solar Scardale desde que os nascimentos começaram a ser registrados pela paróquia de lá. O filho único do velho William Castleton morreu na guerra. Ele pilotava bombardeiros, mas teve azar em uma noite ao sobrevoar a Alemanha e sumiu. Provavelmente morreu em combate. Seus pais já tinham uma certa idade quando o jovem William nasceu, e não tiveram outros filhos. Assim, quando o senhor Castleton morreu, Scardale foi herdada pelo filho de sua irmã, este Philip Hawkin, um homem que todos na aldeia só tinham visto quando ainda usava calças curtas.
- O que sabemos sobre ele? - perguntou Lucas.
- Sua mãe, a irmã do dono das terras, cresceu aqui. mas casou-se com o homem errado. O homem era Stan Hawkin. Ele servia na RAF
na época, mas isto não durou muito. Segundo ele, um de seus superiores o perseguia, mas a verdade é que foi expulso por vender ferramentas roubadas do almo-xarifado. De qualquer modo, Castleton quis deixá-lo bem e lhe conseguiu um emprego com um velho conhecido, como vendedor de automóveis no sul do país. De acordo com todos os relatos, ele nunca mais foi pego roubando, mas acho que a raposa nunca perde o hábito, e por isso a família nunca mais veio a Scardale visitar Castleton.
- E quanto ao filho, Philip? - perguntou George, tentando acelerar o relato.
Grundy sacudiu os ombros, fazendo o carro chacoaliar com seu peso.
- É um sujeito de boa aparência, devo admitir. Tem muito charme e sabe agradar. As mulheres gostam dele. Nunca me tratou mal, mas eu não confiaria nele para segurar um cachorro, enquanto eu abro as calças para fazer xixi.
- E esse sujeito casou-se com a mãe de Alison Carter?
- Eu ia chegar lá - disse Grundy, lentamente. - Ruth Carter estava viúva havia seis anos, quando Hawkin chegou do sul para assumir sua herança.
início da Nota: de Rodapé: RAF - Royal Air Force, a força aérea britânica. Fim da Nota de Rodapé.
Segundo ouvi, ele se encantou com Ruth desde o primeiro instante. É uma bonita mulher, é verdade, mas nem todos os homens desejariam assumir uma filha de outro homem. Veja bem, de acordo com o que eu ouvi, isso nunca foi problema para ele. Hawkin nunca afrouxou o cerco a Ruth, que não se fez de rogada. Hawkin devolveu o brilho aos olhos da mulher, sem dúvida. Casaram-se três meses depois da primeira vez que ele apareceu em Scardale. Formam um belo casal.
- Tudo bem rápido, não? - comentou George. Aposto que isto causou mal-estar, mesmo em um lugar de pessoas tão unidas quanto Scardale.
Grundy encolheu os ombros.
- Não ouvi nenhum comentário desse tipo - disse.
George reconhecia uma parede, quando via uma. Percebeu que teria de conquistar a confiança de Grundy para ter acesso ao que ele aprendera sobre o povo do lugar ao longo de anos. Não tinha dúvida de que sabia muito.
- Então, vamos a Scardale para ver de perto essa gente - disse ele. Lucas colocou o carro em movimento e passou pelo vilarejo. Ao avistar uma placa de "estrada sem saída", ele virou o volante abruptamente e saiu da estrada principal. - Bem sinalizado - comentou George, secamente.
- Acho que qualquer pessoa que precise ir a Scardale conhece a estrada - disse Bob Lucas, enquanto dirigia com atenção pela trilha estreita que parecia desdobrar-se em uma série de subidas e descidas. As lâmpadas em suas margens mal conseguiam aliviar a escuridão da estrada, ladeada por barrancos altos e muros antigos de pedras empilhadas que se arqueavam e inclinavam em ângulos aparentemente impossíveis.
- Ao entrar no carro você disse que tinha um mau pressentimento sobre este caso, Grundy - lembrou-se George. - Por quê?
- Essa Alison parece uma garota ajuizada. Eu a conheço, pois freqüentou a escola fundamental em Longnor. Minha sobrinha está na mesma classe que ela agora. Enquanto eu esperava vocês, tive uma breve conversa com Margaret. Ela disse que Alison estava como sempre, hoje. Vieram juntas no ônibus, como sempre. A garota disse que talvez parasse em Buxton depois da escola uma noite dessas, para comprar alguns presentes de Natal. Segundo Margaret, Alison não é o tipo de menina que fugiria de casa, já que quando tem um problema ela o enfrenta sem demora. Assim, parece que, seja lá o que lhe aconteceu, não foi sua opção.
As palavras graves de Grundy caíram como pedra no estômago de George. Como reflexo da sensação de mau agouro, os muros ladeando a estrada desapareceram, sendo substituídos por abismos de calcário. O caminho por onde seguiam passava pelo estreito desfiladeiro, com seu percurso inteiramente ditado pela topografia. Meu Deus, pensou George, é como um cânion em um filme de faroeste. Deveríamos usar chapéus de caubóis e andar montados em mulas, não dentro de um carro.
- Logo depois da próxima curva, sargento - falou Grundy do banco de trás, com o hálito pesado de tabaco.
Lucas diminuiu a velocidade a ponto de quase parar, acompanhando a curva do ponto mais alto de um rochedo. Quase que imediatamente, a estrada à frente deu lugar a um pesado portão fechado. George prendeu o fôlego, assustado. Se estivesse na direção e não soubesse do obstáculo, certamente teria colidido. Enquanto Grundy saía para abrir o portão, George percebeu vários avisos pintados com as mais diversas cores nos muros de pedra em cada lado da estrada.
- Parece que não recebem estranhos de braços abertos por aqui, não é? Lucas deu-lhe um sorriso seco.
- Não é preciso. Passando deste portão, a estrada é particular e o asfalto só chegou de dez anos para cá. Antes, só se subia ou descia a estrada para Scardale com um trator ou Land Rover. - Ele cruzou devagar o portão, esperando um pouco adiante para que Grundy o fechasse e voltasse ao carro.
Puseram-se novamente a caminho. Cerca de cem metros adiante, os abismos de calcário desapareceram, dando lugar a um horizonte amplo em cada um dos lados da estrada, trazendo-os subitamente da escuridão para a luz da lua cheia outra vez. Contra o céu estrelado, parecia a George que era como se saíssem do túnel dos jogadores para um vasto estádio com pelo menos um quilômetro e meio de largura e com montes altos no lugar de arquibancadas. O campo, porém, não se prestava para esportes. Sob a claridade lúgubre da lua, George viu pastagens surgindo suavemente a partir da estrada que dividia em duas partes o solo do vale. Ovelhas aninhavam-se contra os muros, com sua respiração saindo em pequenas lufadas de vapor no ar gélido. Manchas mais escuras revelavam-se extensas áreas de reflorestamento. George jamais vira algo parecido. Era um mundo secreto, escondido e isolado.
Agora ele via luzes, débeis contra o brilho prateado da lua, mas suficientes para delinearem um punhado de construções contra os rochedos pálidos no lado mais longínquo do vale.
- Esta é Scardale - proclamou Grundy, sem necessidade, do banco traseiro.
O amontoado de pedras logo revelou-se como casas separadas, mas arranjadas em torno de um círculo raquítico de capim. Uma única pedra destacava-se perpendicular no meio do verde, como suporte para um telefone público vermelho, a única coisa realmente colorida em Scardale sob o luar. Parecia haver cerca de uma dúzia de casas, nenhuma igual à outra e cada uma separada de suas vizinhas por apenas alguns metros. A maior parte exibia luzes por trás das cortinas, e mais de uma vez George percebeu mãos que as afastavam para permitir uma espiada para a rua, mas não se permitiu olhar diretamente para os inquilinos curiosos.
Bem no fundo do campo havia um ajuntamento de formas arquitetônicas e janelas que deveria ser o Solar Scardale. George não sabia bem o que esperava encontrar, mas certamente não era essa casa de fazenda austera que parecia ter sido construída aos poucos durante vários séculos, por pessoas com mais necessidade que bom gosto. Antes que pudesse dizer algo, a porta da frente abriu-se, e um retângulo de luz amarela espalhou-se para a rua. A silhueta de uma mulher projetou-se contra a luz.
Enquanto o carro parava, a mulher deu alguns passos impulsivos em sua direção. Então, um homem apareceu às suas costas e passou um braço em torno de seus ombros. Juntos, esperaram a aproximação dos policiais. George ficou um pouco atrás para permitir que Bob Lucas mantivesse o primeiro contato. Assim, podia analisar a mãe e o padrasto de Alison Carter, enquanto Lucas fazia as apresentações.
Ruth Hawkin parecia ser pelo menos dez anos mais velha que sua Anne, o que a colocaria na faixa dos trinta e tantos anos. Media em torno de 1,60m, com o físico robusto de uma mulher acostumada ao trabalho árduo. Seus cabelos castanhos estavam puxados para trás em um rabo-de-cavalo, salientando o cansaço dos olhos cinza-azulados que mostravam sinais de choro recente. Sua pele parecia curtida, mas seus lábios apertados mostravam traços de batom entre as dobras. Vestia um conjuntinho de blusa e casaco curto em tons de azul, obviamente tricotado à mão, e uma saia cinza de lã plissada. Suas pernas estavam protegidas por meias de lã e calçava botas meia-canela com zíper frontal. Era difícil conciliar o que ele via com a descrição de Grundy, que lhe falara sobre uma bela mulher. George não a teria olhado uma segunda vez em uma fila de ônibus, exceto por seu óbvio sofrimento, que transparecia na tensão de seu corpo e braços cruzados defensivamente no peito. Talvez isto colaborasse para diminuir tanto sua beleza.
O homem de pé atrás dela parecia bem mais à vontade. A mão que não tocava levemente o ombro da esposa estava enfiada casualmente no bolso de um casaco marrom-escuro com adornos de camurça. Ele vestia calças cinzentas de lã, cujas barras dobradas caíam sobre chinelos de couro já bastante usados. George concluiu que Philip Hawkin não andara batendo nas portas da aldeia com a esposa.
Hawkin era o oposto da esposa, em termos de aparência. Com pouco menos de 1,80m, tinha cabelos lisos e escuros penteados reto para trás, fixados no lugar com brilhantina. Seu rosto lembrava um brasão, com testa ampla e quadrada afinando rumo a um queixo pontudo. Sobrancelhas retas sobre olhos castanho-escuros eram como um adorno heráldico; o nariz fino parecia apontar para lábios que pareciam sempre prestes a sorrir.
George classificou e anotou mentalmente suas observações. Bob Lucas ainda falava:
- Portanto, se pudéssemos entrar para sabermos mais alguns detalhes, teríamos um quadro mais claro do que aconteceu - disse ele, fazendo uma pausa cheia de expectativa, ao final.
Hawkin falou pela primeira vez, com sotaque indubitavelmente estranho à área de Derbyshire.
- Claro, claro. Entrem, senhores. Tenho certeza de que ela aparecerá sã e salva, mas não custa seguir os procedimentos, não é? - A mão baixou para as costas da esposa e a guiou de volta a casa. Ela parecia entorpecida e claramente incapaz de tomar qualquer iniciativa. - Lamento trazê-los até aqui em uma noite tão fria - acrescentou Hawkin suavemente, enquanto cruzava a sala.
George seguiu Lucas e Grundy até a cozinha ampla da casa rural. O piso era de pedra e as paredes, também de pedra, haviam recebido uma camada de cal e cola, descolorida em certos pontos, dependendo de sua proximidade com os fogões a lenha e elétrico. Um aparador e diversos armários de diferentes alturas, em tom verde-hospital, alinhavam-se contra as paredes, e sob as janelas que davam para o fundo do vale havia um par de grandes pias de pedra. Outro par de janelas permitia ver a praça do vilarejo, com seu telefone vermelho sobressaindo na escuridão. Várias panelas e utensílios de cozinha estavam pendurados em vigas pretas que cruzavam o cômodo, afastadas cerca de meio metro umas das outras. O cheiro era de fumaça, repolho e gordura animal.
Sem esperar pelos outros, Hawkin sentou-se imediatamente em uma cadeira entalhada, na cabeceira de uma mesa antiga de madeira.
- Faça um chá para os homens, Ruth - disse ele.
- Muito obrigado, senhor - apressou-se George em dizer, vendo que a mulher já pegava a chaleira sobre o fogão -, mas é melhor irmos direto ao ponto. Quando se trata do desaparecimento de uma criança, é melhor não perder tempo. Senhora Hawkin, por favor, sente-se e conte-nos o que sabe.
Ruth olhou para Hawkin, como se pedisse permissão. As sobrancelhas dele ergueram-se, mas assentiu. Ela puxou uma cadeira e sentou-se pesadamente, cruzando os braços sobre a mesa. George sentou-se na sua frente, com Lucas ao seu lado. Grundy desabotoou o sobretudo e sentou-se na extremidade oposta à de Hawkin. Ele tirou o bloco de anotações do bolso do uniforme e o abriu. Lambendo a ponta do lápis, olhou-os em expectativa.
- Qual é a idade de Alison, senhora Hawkin? - indagou George, em tom gentil.
A mulher pigarreou.
- Quase quatorze. Seu aniversário é em março. - Sua voz falhou, como se algo em seu íntimo estivesse se partindo.
- Houve algum problema entre vocês?
- Calma, inspetor - protestou Hawkin. - O que quer dizer com "problema"? O que está sugerindo?
- Nada, senhor - disse George. - O fato é que Alison está em uma idade difícil, e às vezes adolescentes vêem as coisas de um modo exagerado.
Um pequeno problema pode parecer uma catástrofe para eles. Estou tentando determinar se há motivos para supor que Alison resolveu fugir de casa.
Hawkin recostou-se com a testa franzida e inclinou a cadeira para trás, apoiando-a em apenas dois pés. Pegou um maço de cigarros e um pequeno isqueiro cromado do aparador e acendeu um, sem oferecer a ninguém.
- Claro que ela fugiu - disse ele, com um sorriso suavizando a ruga entre suas sobrancelhas. - Adolescentes fazem isso para preocuparem seus pais e serem perdoados por algum erro imaginário. Vocês sabem o que quero dizer - continuou, com um ar de superioridade que incluía os policiais. - O Natal está chegando. Lembro-me de um ano em que sumi por algumas horas. Achei que minha mãe ficaria tão feliz por me ver de volta em segurança, que concordaria em me dar a bicicleta no Natal. - Seu sorriso tornou-se pesaroso. - A única coisa que ganhei foi um traseiro dolorido de palmadas. Escreva o que lhe digo, inspetor: ela voltará antes do amanhecer, esperando boas-vindas.
- Ela não é assim, Phil - disse Ruth, queixosa. - Estou lhe dizendo, algo aconteceu com ela. Alison não nos deixaria preocupados.
- O que aconteceu esta tarde, senhora Hawkin? - perguntou George, tirando do bolso seus próprios cigarros e oferecendo-os à mulher. Assentin-do com gratidão tensa, ela aceitou um e pegou-o com dedos trêmulos e avermelhados pelo trabalho doméstico. Antes que ele pudesse acendê-lo, Hawkin inclinou-se para fazê-lo. George acendeu seu próprio cigarro e esperou, enquanto a mulher preparava-se para responder.
- O ônibus escolar deixa Alison e duas de suas primas no fim da estrada, por volta das quatro e quinze da tarde. Alguém da aldeia sempre vai até lá pegá-las, de modo que mais ou menos às quatro e meia já está em casa. Ela chegou no horário de sempre. Eu estava aqui na cozinha, descascando uns legumes. Deu-me um beijo e disse que iria sair com o cachorro. Perguntei se não queria uma xícara de chá primeiro, mas ela disse que estivera trancada o dia inteiro e só queria correr com o cachorro. Fazia isso com freqüência. Detestava ficar dentro de algum lugar o dia inteiro. - Emocionada pela recordação, Ruth hesitou e então parou de falar.
- O senhor a viu? - perguntou George a Hawkin, mais para dar algum tempo a Ruth que por importar-se com a resposta.
- Não. Eu estava no meu laboratório fotográfico. Perco a noção do tempo quando estou lá.
- Eu não sabia que era fotógrafo - disse George, percebendo que Grundy remexia-se na cadeira.
- Inspetor, a fotografia é minha grande paixão. Quando eu era um reles empregado, antes de herdar este lugar de meu tio, nunca foi mais que um passatempo. Agora tenho meu próprio laboratório, e no último ano tornei-me quase um profissional. Claro que às vezes fotografo pessoas, mas na maior parte do tempo são paisagens. Alguns de meus cartões-postais estão à venda em Buxton. Derbyshire possui uma luminosidade impressionante. - Desta vez, o sorriso de Hawkin foi de orelha a orelha.
- Entendo - disse George, imaginando que homem conseguiria pensar na qualidade da luz quando sua enteada desaparecera em uma noite gélida de dezembro. - Então não sabia que Alison havia chegado e saído novamente?
- Não, não ouvi nada.
- Senhora Hawkin, Alison tinha o hábito de visitar alguém quando saía com o cachorro? Um vizinho? A senhora disse que ela vai à escola com as primas.
Ruth sacudiu a cabeça.
- Não, só anda pelo campo, vai até o bosque e volta. No verão costuma ir mais longe, atravessa o arvoredo e vai até a nascente do rio. Há um vão entre duas colinas. Mal se percebe até chegar lá, mas é possível atravessá-lo pela ribanceira do rio e chegar a Denderdale. Mesmo assim, Alison nunca vai tão longe no inverno. - Ela suspirou. - Além disso, já andei por toda a aldeia. Ninguém viu nem sombra dela desde que passou pelo campo.
- E quanto ao cão? - perguntou Grundy. - Ele voltou?
Esta era a indagação de alguém criado no campo, pensou George. Ele acabaria fazendo aquela pergunta, mas não com tanta rapidez quanto Grundy.
Ruth fez que não com a cabeça.
- É uma cadela, e não voltou. Se Alison tivesse sofrido um acidente, Shep não a abandonaria. Teria latido, mas não sairia de perto de minha filha.
Em uma noite como a de hoje, seria possível ouvir os latidos de qualquer ponto do vale. Você esteve lá fora. Não ouviu nada?
- Por isso eu perguntei - disse Grundy. - Estranhei o silêncio.
- Pode descrever o que Alison vestia? - perguntou o sempre prático Lucas.
- Estava com uma japona azul-marinho sobre o uniforme da escola.
- Da escola Peak Gilts High? Ruth assentiu.
- Usava uma jaqueta preta, um colete marrom, blusa branca, gravata escolar preta e marrom e saia marrom. Vestia meias de lã pretas e botas pretas de pele de carneiro, com cano médio. Não se foge de casa com uniforme escolar - disse ela com vigor, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas, que enxugou com as costas da mão, zangada. - Por que estamos sentados aqui como se estivéssemos tomando o chá de domingo? Por que vocês não estão lá fora, procurando minha filha?
George abaixou e levantou a cabeça, em sinal de compreensão.
- Faremos isso, senhora, mas precisamos saber de tudo antes, para não desperdiçarmos nossos esforços. Qual é a altura de Alison?
- Já está quase da minha altura. Um metro e cinqüenta e sete ou oito, algo assim. É delgada, está começando a adquirir formas de mulher.
- Há alguma fotografia recente de Alison que possamos mostrar aos nossos policiais? - perguntou George.
Hawkin recolocou a cadeira sobre as quatro pernas, causando um rangido agudo no chão de pedra. Ele abriu a gaveta da mesa da cozinha e retirou dali um punhado de fotografias.
- Tirei-as no verão, uns quatro meses atrás. - Ele inclinou-se e colocou-as na frente de George. O rosto que o olhava nas fotos coloridas de meio-corpo não era daqueles que se esquecem facilmente.
Ninguém o alertara sobre a beleza da menina. Sentiu o ar preso em sua garganta enquanto fitava o rosto na foto. Cabelos até os ombros, cor de mel, emolduravam um rosto oval salpicado de sardas claras. Seus olhos azuis tinham um quê de eslavo, bastante separados em relação ao nariz bem-feito e reto. Sua boca era generosa, com o sorriso mostrando uma covinha única em sua bochecha esquerda. A única imperfeição era uma cicatriz oblíqua que atravessava sua sobrancelha direita, deixando uma fina linha branca entre os pêlos escuros. Em cada uma das fotografias, sua pose variava um pouco, mas o sorriso aberto jamais se alterava.
Ergueu os olhos para Ruth, cujo rosto suavizara-se imperceptivelmente ante a visão da filha. Agora entendia o que os olhos de Hawkin haviam percebido na viúva do fazendeiro. Sem a tensão que tirara a suavidade do rosto de Ruth, sua beleza era tão óbvia quanto a da filha. Com a sombra de um sorriso insinuando-se nos lábios da mulher, era difícil imaginar como pudera considerá-la comum.
- É uma garota adorável - murmurou George, levantando-se e pegando as fotografias. - Eu gostaria de ficar com elas por enquanto. - Hawkin concordou com um aceno de cabeça. - Sargento, será que poderíamos trocar algumas palavras lá fora?
Os dois homens saíram da cozinha quente para o ar noturno congelante. Ao fechar a porta às suas costas, George ouviu Ruth dizer, desanimada:
- Vou fazer o chá.
- O que você acha? - perguntou George. Não precisava da confirmação de Lucas para saber que o caso era grave, mas se tirasse a autoridade do homem fardado neste momento, seria o mesmo que dizer que, em sua opinião, a menina havia sido assassinada ou espancada com violência. Apesar de sua crescente convicção de que este era o caso, tinha um temor supersticioso de que agir de acordo com seus piores palpites levaria à concretização do que temia.
- Acho que deveríamos solicitar o apoio de cães farejadores o quanto antes, senhor. Ela pode ter sofrido uma queda. Pode estar incapacitada de se mover devido aos ferimentos. Se foi atingida por alguma pedra pesada por acidente, talvez a cadela esteja morta. - Ele consultou o relógio. - Temos quatro policiais extras, fardados e de plantão no memorial a Kennedy. Se formos rápidos, poderemos pegá-los antes de terminarem seus turnos e trazê-los até aqui, com todos os outros homens que conseguirmos recrutar. - Lucas passou à sua frente para abrir a porta. - Preciso usar o telefone da casa. É inútil tentar o rádio aqui. Teríamos melhores chances se estivéssemos no fundo de uma mina.
- Está bem, sargento. Organize o que puder para um mutirão de buscas. Ligarei para o detetive-sargento Clough e para o policial Cragg. Eles podem dar início às buscas na aldeia de porta em porta, para sabermos quem a viu por último e onde. - George sentiu um vago mal-estar estomacal, como um nervosismo de principiante. Naturalmente, era exatamente isto. Se seus temores se confirmassem, estava no limiar do primeiro caso importante que já tivera sob seu comando. Pelo resto de sua carreira, seria julgado de acordo com os resultados. Se não descobrisse o que acontecera com Alison Carter, a mancha em sua reputação profissional jamais seria apagada.
3
Quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, 21h07
O bafo do cão retorcia-se e pairava por instantes no ar noturno, como se tivesse vida própria. O pastor sentou-se calmamente sobre as patas traseiras, com orelhas levantadas e os olhos alertas varrendo as pastagens do vilarejo. O policial Dusty Miller, adestrador dos cães, estava ao seu lado, acariciando com uma das mãos, distraidamente, o pêlo curto e malhado de marrom entre as orelhas do animal.
- Príncipe precisa de roupas e sapatos da garota - disse ele ao sargento Lucas. - Quanto mais usados, melhor. Podemos fazer o trabalho sem isso, mas facilitaria tudo para o cachorro.
- Falarei com a senhora Hawkin - disse George rapidamente, antes que Lucas pudesse entregar a tarefa a outro. Não que um policial fardado não pudesse lidar com isto, mas ele queria aproveitar a oportunidade para observar a mãe e o padrasto de Alison novamente.
Entrou na cozinha quente, onde Hawkin ainda estava sentado à mesa e ainda fumando. Agora, ele tinha uma xícara de chá na sua frente, assim como a policial sentada na outra ponta da mesa. Ambos voltaram as cabeças ao vê-lo entrar. Hawkin levantou as sobrancelhas em muda interrogação. George fez um "não" também sem falar, e Hawkin apertou os lábios, passando a mão sobre os olhos. George sentiu um certo alívio ao perceber que o homem finalmente demonstrava sinal de preocupação com o destino de sua enteada. Parecia que só agora seu egocentrismo permitira a aceitação de que Alison poderia estar em perigo.
Ruth Hawkin estava junto à pia, com as mãos enfiadas em água com sabão, mas não lavava nada. Estava imóvel, fitando intensamente a escuridão compacta da noite. O luar mal penetrava a área atrás da casa; neste ponto avançado do vale, os rochedos estavam suficientemente próximos para cortarem a maior parte de sua claridade. Nada havia além da janela, exceto um contorno débil e escuro contra o cinza-claro das rochas. Um galpão, talvez, pensou George, imaginando se já havia sido vasculhado. Limpou a garganta e começou a falar:
- Senhora Hawkin...
Ela voltou-se devagar. Mesmo naquele curto período em que ele estava em Scardale, a mulher parecia ter envelhecido, com a pele esticando-se em sua face e os olhos mais fundos que no momento em que os policiais haviam chegado.
- Sim?
- Precisamos de algumas peças de roupa de Alison, para facilitar o trabalho do cão farejador.
- Vou buscar alguma coisa - disse ela.
- O adestrador sugeriu sapatos e algo que ela use com freqüência. Um pulôver ou casaco, talvez.
Ruth saiu dali com os passos automáticos de uma sonâmbula.
- Será que eu poderia usar seu telefone outra vez? - perguntou ele.
- A vontade - respondeu Hawkin, fazendo um aceno na direção do corredor.
George seguiu Ruth pela porta e chegou à mesa na qual estava o antigo telefone preto de baquelita, próximo a uma fotografia de casamento de Ruth, radiante com seu novo marido. George achou que, se Hawkin não fosse tão inconfundível em sua bela figura, não teria conseguido identificar a noiva.
Tão logo fechou a porta atrás de si, voltou a sentir o frio terrível. Se a menina estivesse acostumada com temperaturas como esta, teria mais chances de sobreviver lá fora. Viu quando Ruth desapareceu na curva das escadas, enquanto tirava o telefone do gancho e começava a discar. Depois de quatro toques, alguém atendeu.
- Buxton 422 - disse a voz familiar, aliviando instantaneamente sua ansiedade.
- Anne, sou eu. Tive de vir a Scardale a serviço. Uma garota desaparecida.
- Ah, pobres pais - disse Anne, imediatamente. - E pobrezinho de você, tendo de enfrentar uma noite como esta.
- Estou preocupado apenas com a menina. Claro que chegarei tarde. Na verdade, dependendo do que acontecer, talvez eu nem volte esta noite.
- Você exige demais de si mesmo, George. Isso lhe faz mal, sabia? Se não chegar até a hora em que eu for para a cama, deixarei sanduíches na geladeira para que ao menos se alimente um pouco. É melhor que tenham sumido, quando eu acordar - acrescentou ela, repreendendo-o com leve ar de brincadeira.
Se Ruth Hawkin não tivesse reaparecido na escada, ele teria dito à esposa o quanto adorava que cuidasse dele, mas disse apenas:
- Obrigado. Entrarei em contato quando puder.
Desligou e deu alguns passos até o pé da escada, onde Ruth aconchegava junto ao peito uma pequena trouxa.
- Estamos fazendo o possível - disse ele, sabendo que sua resposta não a ajudava em nada.
- Eu sei - respondeu a mulher, abrindo os braços e revelando um par de pantufas e um casaquinho amassado de pijama. - Pode entregar isso ao adestrador?
George pegou as roupas, sentindo uma fisgada de emoção intensa ao perceber como as circunstâncias tornavam patéticas as pantufas aveludadas e o casaco cor-de-rosa. Segurando as peças com cuidado para evitar que fossem contaminadas com seu odor, George voltou à cozinha e, de lá, saiu para o ar noturno. Sem dizer uma palavra, entregou os itens para Miller e observou, enquanto o adestrador dizia palavras gentis de comando para Príncipe, colocando as peças de roupa sob seu focinho comprido.
O cachorro levantou a cabeça com delicadeza, como se cheirasse alguma delícia culinária no vento. Depois, começou a cheirar o chão junto à porta da frente, com a cabeça indo para lá e para cá em longos arcos, alguns centímetros acima do solo. Em intervalos de alguns metros, ele bufava alto e olhava para cima, voltando as narinas para as roupas de Alison e seu odor, como se para lembrar a si mesmo o que deveria procurar. Cão e treinador moviam-se à frente quase ao mesmo tempo, cobrindo cada centímetro do caminho a partir da porta da cozinha. Depois, exatamente no fim da trilha de terra que contornava o fundo da praça da aldeia, o pastor enrijeceu-se subitamente. Como se fosse uma criança brincando de estátua, Príncipe ficou imóvel por longos segundos, examinando com vigor o cheiro que vinha do capim raquítico. Depois, em um único movimento fluido e suave, moveu-se rapidamente pelo capim, com seu corpo próximo ao solo e o focinho parecendo puxá-lo à frente em um trote lento.
Miller apressou o passo para poder acompanhá-lo. A um aceno do sargento Lucas, quatro dos homens fardados que haviam chegado minutos depois da equipe do cão colocaram-se atrás deles, espalhando-se para cobrir o chão com os fachos de suas lanternas. George seguiu-os por alguns metros, incerto quanto a unir-se a eles ou esperar pelos dois policiais do departamento de investigações que chamara, mas que ainda não haviam chegado.
A trilha seguida desviou-se da praça da aldeia e, então, passou por uma escadaria pequena entre duas casas, que terminava em um campo muito mais amplo. Enquanto o cão os guiava pelo campo sem qualquer hesitação, George ouviu um carro subindo pela estrada em direção à aldeia. Reconheceu o Ford Zafira do sargento-detetive Tommy Clough, enquanto ele estacionava atrás das viaturas que já estavam lá. Ele deu uma rápida olhada sobre os ombros para a equipe de rastreamento. As lanternas indicavam sua posição. Não seria difícil alcançá-la. Voltou-se então, foi até o enorme carro preto e abriu a porta do motorista. A familiar cara rosada e redonda de seu sargento abriu-lhe um largo sorriso.
- Como vai, senhor? - disse Clough, envolvido pelo odor de cerveja.
- Temos trabalho pela frente - disse George, sem perder tempo. Mesmo tendo tomado uns goles, Clough ainda era melhor no que fazia que a maioria dos outros policiais que não haviam bebido. A porta do passageiro bateu, e o detetive Gary Cragg veio andando sacolejante, contornando o carro pela frente. Na primeira vez em que vira o policial desengonçado, George pensara que ele havia assistido a muitos filmes de faroeste. Cragg ficaria bem com um par de calças de couro com pistolas Colt em cada lado de seus quadris estreitos e um chapéu de vaqueiro puxado para a frente sobre seus olhos cinzentos. Quando usava terno, parecia alguém que não tinha muita certeza de como chegara até ali, mas que desejaria do fundo da alma estar em outro lugar.
- Garota desaparecida, não é? - perguntou ele, com sua fala arrastada. Até mesmo sua voz lenta combinava mais com um saloon, pedindo uma dose de uísque ao garçom. A única coisa que o salvava de ser um legítimo caubói era a ausência total de rebeldia contra a ordem, tanto quanto George soubesse.
- Alison Carter. Treze anos - resumiu George, enquanto Clough desentalava o corpo robusto do assento do motorista. Fez um gesto sobre o ombro com o polegar. - Ela mora no solar e é enteada do proprietário. A menina e sua mãe são de Scardale.
Clough bufou e enfiou um boné de tweed na cabeça de cachos castanhos.
- Então ela não se perdeu, simplesmente. Você sabe como é em Scardale, não? Todos se casam com primos, há muitas gerações. A maioria é tão estúpida, que teria dificuldade para encontrar seu próprio traseiro na hora de limpá-lo.
- Bom, apesar dessas deficiências, parece que Alison conseguiu chegar à escola secundária - comentou George. - O que, pelo que sei, é mais do que se pode dizer a seu respeito, sargento Clough. - Clough olhou para seu superior, três anos mais jovem que ele, mas nada disse. - Alison chegou da escola no horário de sempre. Depois, saiu com o cachorro. Nenhum dos dois foi visto desde então. Isso ocorreu quase cinco horas atrás. Quero que você faça uma busca de porta em porta na aldeia. Quero saber quem a viu pela última vez, onde e quando isso aconteceu.
- Já devia estar escuro quando ela saiu - disse Cragg.
- Mesmo assim, alguém pode tê-la visto. Tentarei alcançar o adestrador, de modo que é onde me encontrarão se precisarem, está bem? - Enquanto se virava, um pensamento enregelante capturou-o. Olhou para as casas agrupadas em forma de ferradura em torno da praça e então voltou-se novamente para Clough e Cragg: - E cada uma das casas. Quero que verifiquem se as crianças estão onde deveriam estar. Não quero que alguma outra mãe tenha um ataque amanhã de manhã ao descobrir que o filho ou filha também sumiu.
Não esperou resposta, colocando-se a caminho da passagem entre as casas. Quase lá, parou de repente e se voltou, vendo que Lucas já orientava os seis outros policiais que conseguira trazer de algum lugar.
- Sargento - disse -, há uma espécie de galpão que se pode ver da janela da cozinha do solar. Não sei se alguém já verificou o lugar, mas não custa dar uma olhada para o caso de ela não ter saído para sua caminhada habitual.
Lucas assentiu e fez um aceno de cabeça para um dos policiais.
- Veja o que consegue, rapaz. - Ele assentiu para George. - Muito obrigado, senhor.
Kathy Lomas colocou-se junto à janela e observou enquanto a escuridão engolia o homem de sobretudo e chapéu de feltro. Iluminado pelos faróis do carro grande que acabava de estacionar perto do telefone público, ele se parecia muito com James Stewart. Isto deveria ser reconfortante, mas, estranhamente, só fazia com que os acontecimentos da noite parecessem ainda mais irreais.
Kathy e Ruth eram primas, com menos de um ano de diferença em idade e ligadas por laços sangüíneos pelos lados tanto materno quanto paterno. Haviam se tornado mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam inextricavelmente interligadas. Assim, ao ser alertada por Derek, Kathy entrara na cozinha de Ruth e encontrara a prima andando ansiosamente, fumando um cigarro atrás do outro e chorando. Sentira a punhalada do medo tão intensa quanto se a criança desaparecida fosse seu próprio filho.
Haviam percorrido a aldeia juntas, convencidas inicialmente de que encontrariam Alison aquecendo-se junto à lareira de alguém sem perceber que já era tarde, cheia de remorso por ter causado preocupação à mãe. Contudo, à medida que passavam de casa em casa e não achavam sinal da menina, a convicção transformara-se em pálida esperança e, depois, em desespero.
Kathy ficou junto à janela escura da minúscula sala de visitas da Casa da Cotovia,
observando a atividade que agitava subitamente a feia noite de dezembro. O detetive à paisana que viera dirigindo o carro, aquele que se parecia
Início de Nota de Rodapé: Em pequenas aldeias rurais inglesas, os camponeses dão nomes às suas casas. Fim da Nota de Rodapé.
com um touro Hereford com seus cachos e cabeça larga, levantou o casaco para coçar o traseiro, disse algo a seu colega e, depois, começou a andar na direção de sua porta da frente, com os olhos parecendo encontrar os seus na escuridão.
Kathy moveu-se para a porta, lançando um olhar para a cozinha, onde o marido tentava concentrar-se em terminar uma obra de marchetaria com tema de barcos de pesca em um ancoradouro.
- A polícia está aqui, Mike - anunciou ela em voz alta.
- Já era hora - ouviu-o resmungar.
Ela abriu a porta exatamente quando o touro Hereford levantava a mão para bater. O olhar assustado do homem transformou-se em um sorriso enquanto absorvia as curvas generosas de Kathy, ainda óbvias mesmo sob seu avental folgado.
- Você deve estar aqui por causa de Alison - disse ela.
- Sim, senhora. Sou o sargento-detetive Clough e este é o detetive Cragg. Será que podemos entrar um minuto?
Kathy deu um passo para o lado para lhes dar passagem, deixando que Clough roçasse em seus seios ao fazer isso, sem reclamar.
- A cozinha é logo à frente. Meu marido está ali - disse ela, com frieza. A mulher seguiu-os e se encostou no fogão, tentando eliminar o medo gelado em seu íntimo, esperando que os homens se apresentassem e se acomodassem. Clough virou-se para ela.
- Vocês viram Alison depois que ela chegou da escola? Kathy respirou fundo.
- Sim. Era minha vez de pegar as crianças quando desceram do ônibus escolar. No inverno, um de nós sempre vai até o fim da estrada para pegá-las.
- Percebeu algo diferente em Alison? - indagou Clough. Kathy pensou por um momento e depois sacudiu a cabeça.
- Nada. - Ela encolheu os ombros. - A mesma coisa de sempre. Apenas... Alison. Ela se despediu e subiu a trilha até sua casa. A última vez em que a vi foi quando entrava e dizia olá para sua mãe.
- Viu alguém estranho pelas redondezas? Na estrada ou lá embaixo?
- Ninguém.
- Suponho que a senhora acompanhou a senhora Hawkin em suas buscas - disse Clough.
- Eu não a deixaria ir sozinha, não é? - disse Kathy, com alguma agressividade.
- Como a senhora soube que Alison havia desaparecido?
- Nosso filho Derek contou. Ele não está indo tão bem quanto deveria na escola, de modo que tenho tentado garantir que está fazendo seus deveres. Em vez de deixá-lo sair com Alison e sua prima Janet quando chegam em casa, eu o mando ficar em casa, estudando.
- Ela o faz sentar à mesa da cozinha e completar todo o trabalho que os professores mandaram, antes de deixá-lo sair com as garotas. Pura perda de tempo, se querem saber. O garoto vai trabalhar no campo, como eu - interrompeu Mike Lomas, em voz baixa.
- Não se eu puder evitar - disse Kathy, inflexível. - Eu lhe digo o que é perda de tempo. É aquele toca-discos que Phil Hawkin comprou para Alison. Derek e Janet estão sempre lá, ouvindo os discos novos. Derek estava louco para ir à casa de Alison hoje à noite. Ela acabou de comprar o novo sucesso dos Beatles, - Want to Hold Your Hand. Mas só o deixei sair depois do chá. Devia faltar pouco para as sete horas. Ele voltou em cinco minutos, dizendo que Alison havia saído com Shep e ainda não estava em casa. É claro que fui direto até lá para conferir.
"Ruth estava uma pilha de nervos. Eu lhe disse que deveria ir a todas as casas da aldeia, para o caso de Alison ter parado para ver alguém e esquecido do tempo. Ela sempre visita Mamãe Lomas, e faz companhia à velhota e escuta suas histórias sobre os velhos tempos, junto com seu primo Charlie. Mamãe Lomas pode falar durante a noite inteira. É uma grande contadora de histórias e nossa Alison adora escutá-la."
Ela ajeitou-se melhor contra o fogão. Clough percebeu a agitação da mulher e decidiu deixá-la falar, para ver aonde sua história os levaria. Ele assentiu.
- Continue, senhora.
- Bem, estávamos quase saindo quando Phil entrou. Ele disse que estava no laboratório, revelando suas fotografias, e que acabara de perceber que já era tarde. Começou a perguntar onde estava seu chá e onde estava Alison. Eu lhe disse que havia coisas mais importantes em que pensar que em sua barriga, mas Ruth serviu-lhe algo que estava cozinhando.
Depois nós o deixamos e fomos bater nas portas dos vizinhos. - Ela parou de repente.
- Então a senhora não tornou a ver Alison depois que ela saiu do carro na volta da escola?
- Land Rover - grunhiu Mike Lomas.
- Perdão?
- Era um Land Rover, não um carro. Ninguém tem carros por aqui - disse ele, com desdém.
- Não a vi desde que entrou pela porta da cozinha em sua casa - falou Kathy. - Mas vocês vão encontrá-la, não? Quer dizer, é seu trabalho. Vão achá-la?
- Faremos todo o possível - disse Cragg, recorrendo à frase batida para aliviar a ansiedade da mulher.
Tommy Clough falou rapidamente, antes que ela pudesse verbalizar a resposta irritada que pressentia.
- E quanto ao seu filho, senhora Lomas? Está onde deveria? A boca abriu-se, em choque.
- Derek? E por que não estaria?
- Talvez pela mesma razão pela qual Alison não está onde deveria.
- Não diga isso! - Mike Lomas saltou da cadeira, com as bochechas rubras e os olhos apertados de raiva.
Clough sorriu, abrindo as mãos em um gesto conciliador.
- Não me levem a mal. O que eu quis dizer é que vocês devem verificar para o caso de algo ter acontecido com ele, só isso.
Quando George cruzou a passagem entre as casas, os fachos das lanternas da equipe de busca não eram mais que débeis manchas trêmulas a distância. Ele achou que os homens haviam entrado em algum matagal, pelo modo como os fachos amarelos pareciam desaparecer e reaparecer intermitentemente. Ligando a lanterna que tomara emprestada do Land Rover da polícia que trouxera policiais de Buxton, cruzou apressadamente o capim irregular com o máximo de rapidez que conseguia.
As árvores apareceram antes do que esperava. Inicialmente, ele viu apenas vegetação rasteira, que não parecia ter sido pisada, mas, ao mover a lanterna em todas as direções, percebeu uma trilha estreita, na qual a terra mostrava-se compactada. George mergulhou entre as árvores, tentando conciliar pressa e cautela. O facho da lanterna enviava sombras loucas que dançavam em todas as direções, forçando-o a concentrar-se mais na trilha do que precisaria se estivesse em campo aberto. Folhas endurecidas pelo frio estalavam sob seus pés, galhos ocasionais roçavam por seu rosto ou ombros e o odor adocicado de decomposição da vegetação o assaltava por todos os lados. A cada vinte metros, ou algo em torno disso, ele desligava a lanterna para conferir sua posição em relação às lanternas mais à frente. A escuridão absoluta o engolia, mas era difícil resistir à sensação de que olhos ocultos o observavam, seguindo todos os seus movimentos. Era um alívio ligar a lanterna outra vez. Alguns minutos depois de entrar na mata, percebeu que as luzes à sua frente haviam parado. Acelerando a ponto de quase cair ao tropeçar na raiz de uma árvore, por pouco não colidiu com um policial que vinha ao seu encontro.
- Encontraram? - perguntou George, sem fôlego.
- Não tivemos esta sorte, senhor, mas encontramos a cadela.
- Viva?
O homem assentiu.
- Sim, mas foi amarrada.
- Em silêncio? - indagou George, incrédulo.
- Alguém fechou sua boca com esparadrapo, senhor. O pobre animal mal conseguia gemer. O policial Miller mandou-me de volta para trazer o sargento Lucas antes de fazermos alguma coisa.
- Assumirei a responsabilidade - falou George, com firmeza. - Mas volte e conte ao sargento Lucas o que aconteceu. Acho que seria bom manter as pessoas afastadas desta parte do matagal até amanhecer. O que quer que tenha acontecido com Alison Carter, podemos estar destruindo provas neste exato momento.
O policial assentiu e partiu pela trilha, correndo.
- Mas que cabritos saltadores eles criam por aqui - murmurou George para si mesmo, enquanto seguia vacilante à frente.
A clareira na qual emergiu era um misto de fachos de lanternas e sombras estranhamente alongadas. Na extremidade mais distante, uma collie preta e branca contorcia-se atada a uma corda presa em uma árvore. Suas íris castanho-claras destacavam-se contra o branco de seus olhos arregalados. O rosa-escuro do esparadrapo que selava sua boca parecia incongruente naquele ambiente campestre. George sentiu os olhares especulativos que os homens uniformizados lhe dirigiam.
- Acho que deveríamos aliviar o sofrimento desta cadela. O que você acha, policial Miller? - perguntou, dirigindo sua questão ao adestrador, que cobria a clareira metodicamente, com Príncipe.
- Acho que ela adoraria, senhor - disse Miller. - Tirarei Príncipe daqui, para que não a perturbe.
Com um puxão na correia do cão e uma palavra de comando, ele dirigiu-se ao outro lado da clareira. George percebeu que seu cachorro ainda cheirava o ar, como fizera perto da casa algum tempo antes.
- Será que perdeu o rastro? - perguntou, subitamente preocupado com coisas mais importantes que o desconforto de um cão.
- Parece que a pista acaba aqui - disse o adestrador. - Já percorri a clareira duas vezes, andei na direção oposta, mas não há nada.
- Isso quer dizer que Alison foi carregada daqui? - perguntou George, com um tremor frio nascendo no estômago e escalando seu corpo.
- Acho que sim - falou Miller, sombrio. - Uma coisa é certa: ela não saiu andando daqui, a menos que tenha dado meia-volta e refeito seu trajeto até a casa. E se fez isso, por que atar e amordaçar a cadela?
- Talvez quisesse assustar a mãe. Ou o padrasto - arriscou um dos policiais.
- A cadela não teria latido para eles, não é? Então não haveria necessidade de amordaçá-la ou deixá-la aqui - falou Miller.
- A menos que ela achasse que um deles poderia estar com alguém estranho - disse George, quase que para si mesmo.
- Aposto que a menina não saiu desta clareira com seus próprios pés - falou Miller, determinado, enquanto levava seu cão pela trilha.
George aproximou-se devagar da cadela. Os gemidos na garganta do animal tornaram-se um queixume suave. Como era mesmo seu nome? Shep. O nome do animal era Shep.
- Ok, Shep - disse ele com gentileza, estendendo a mão para que a cadela pudesse cheirar seus dedos. O queixume parou. George puxou as pernas de suas calças para cima e ajoelhou-se no solo congelado, desigual e desconfortável. Percebeu, automaticamente, que o esparadrapo era do tipo mais grosso e viera de um rolo de cinco centímetros de largura com uma faixa de compressa com um centímetro de largura no meio.
- Calma aí, garota - murmurou, agarrando com uma das mãos os pêlos espessos na nuca da cadela para mantê-la imóvel. Com a outra mão, segurou a ponta do esparadrapo até liberar o suficiente para poder puxá-lo todo. Olhou para cima.
- Um de vocês venha aqui para segurar a cabeça do bicho enquanto arranco essa coisa.
Um dos policiais agachou-se de pernas abertas sobre o animal nervoso e agarrou sua cabeça com firmeza. George segurou a ponta do esparadrapo e o puxou com força, levando quase um minuto para arrancar tudo, enquanto mal conseguia evitar os dentes afiados da collie, que entrara em pânico ao ter seus pêlos arrancados junto com a fita colante. O policial atrás dela saltou para trás, quando a cadela virou-se para tentar abocanhá-lo. Tão logo percebeu que sua boca estava livre, Shep começou a latir furiosamente para os homens.
- O que fazemos agora? - perguntou um dos policiais.
- Vou soltá-la e ver aonde deseja nos levar - disse George, parecendo mais confiante do que se sentia. Ele andou para a frente com cautela, mas Shep não parecia disposta a atacá-lo. Com o canivete, ele cortou a corda, já que era mais fácil que tentar desamarrá-la enquanto a cadela se retorcia de agonia, além da vantagem de preservar o nó, para o caso de haver algo digno de atenção nele. George achou que não, parecia bem comum.
Instantaneamente, Shep saltou para a frente. Pego de surpresa, George cortou o dedo enquanto tentava segurá-la.
- Mas que droga! - exclamou, enquanto a corda corria entre seus dedos, queimando a pele onde tocava. Um dos policiais tentou agarrá-la enquanto Shep fugia, mas não conseguiu. George segurou a mão que sangrava e observou, impotente, enquanto o cão corria pela trilha que Miller e Príncipe haviam tomado a partir da clareira.
Momentos depois, ouviu a algazarra dos cães e o comando rígido e alto de Miller dizendo "Sente-se". Depois, o silêncio, e instantes mais tarde um uivo arrepiante que cortou a noite.
Apalpando seu bolso em busca de um lenço, George seguiu o rumo que Shep havia tomado. Alguns metros à frente, dentro da mata, deparou-se com Miller e os dois cães. Príncipe estava deitado, com o focinho entre as patas. Shep estava sentada, a cabeça erguida para o céu, abrindo e fechando a boca em uma série de uivos de congelar o sangue. Miller segurava a corda, evitando a fuga da collie rebelde.
- Parece que ela quer ir nessa direção - disse Miller, mostrando com a cabeça o caminho que se afastava da clareira.
- Então vamos segui-la - falou George, pegando a corda do adestrador depois de envolver seu polegar com o lenço. - Venha, garota - disse, incentivando a cadela e sacudindo a corda. - Mostre-me.
Imediatamente, Shep pôs-se de pé e partiu pela trilha, abanando a cauda. Andaram entre as árvores por alguns minutos e, então, viram uma trilha que levava à margem de um córrego estreito e rápido. A cadela sentou-se prontamente e voltou a cabeça para olhá-lo, com a língua de fora e os olhos espantados.
- Este deve ser o Scarlaston - disse a voz de Miller, às suas costas. - Eu sabia que nascia por aqui. Rio esquisito. Ouvi dizer que parece brotar do nada, em algum ponto por aqui. Se temos um verão seco, ele às vezes desaparece completamente.
- E aonde nos leva? - perguntou George.
- Não tenho certeza. Acho que desemboca no Derwent ou no Manifold. Não lembro qual deles. Seria preciso conferir no mapa.
George assentiu.
- Então, se Alison foi carregada para fora da clareira, perderíamos seu rastro aqui, de qualquer maneira. - Ele suspirou e voltou-se, dirigindo o foco da lanterna para seu relógio. Eram quase nove e quarenta e cinco. - Não podemos fazer mais nada no escuro. Vamos voltar à aldeia.
Praticamente arrastou Shep para afastá-la da margem do Scarlaston. Enquanto avançavam lentamente de volta a Scardale, George refletia sobre o desaparecimento de Alison Carter. Nada fazia sentido. Se alguém havia sido cruel o bastante para raptar uma menina, certamente não teria piedade da cadela. Especialmente uma tão esperta quanto Shep. Ele não imaginava uma cadela como aquela collie simplesmente submetendo-se enquanto alguém envolvia todo seu focinho com esparadrapo. A menos que Alison tivesse feito isso.
Neste caso, será que agira por iniciativa própria ou alguém a forçara a silenciar sua cadela? E, se tivesse feito aquilo por vontade própria, onde estaria agora? Se a menina pretendia fugir, por que não levaria a cadela para protegê-la, pelo menos até a manhã? Quanto mais pensava naquilo, menos entendia.
George andou penosamente pelo bosque e atravessou o campo, com a cadela relutante em seus calcanhares. O sargento Lucas conversava com o policial Grundy sob a luz de um lampião pendurado na traseira do Land Rover. George resumiu a situação na mata.
- Não adianta nada nos metermos lá na escuridão - disse ele. - Acho que o melhor a fazer é colocar alguns homens de guarda e, logo que amanhecer, examinar aquela área centímetro a centímetro.
Ambos os homens olharam-no como se tivesse enlouquecido.
- Com todo respeito, senhor, se pretende manter o povo longe da mata, não há muito sentido em deixar homens congelando lá - disse Lucas, cansado. - Os habitantes daqui conhecem a mata bem melhor que nós. Se quiserem entrar lá, entrarão e jamais saberemos. Além disso, acho que não existe ninguém que não tenha se oferecido como voluntário para ajudar nas buscas. Se lhes dissermos o que devem fazer, serão os últimos a destruir quaisquer pistas.
- E quanto aos de fora da aldeia? - perguntou George, percebendo que ele tinha razão.
Lucas encolheu os ombros.
- Tudo que precisamos fazer é colocar um guarda no portão da aldeia. Acho que ninguém conseguiria chegar até aqui vindo da outra colina. O caminho pelas margens do Scarlaston já é traiçoeiro com bom tempo, imagine então em uma noite gelada de inverno.
- Estou contente por tê-lo ao meu lado, sargento - disse George. - Acho que foram os seus homens que fizeram buscas nas casas e galpões, não foram?
- Sim. Nenhum sinal da garota - disse Lucas, com seu rosto naturalmente animado agora sombrio. - A construção atrás do solar é o laboratório fotográfico do proprietário. Não há espaço para uma garota se esconder ali.
Antes que George pudesse responder, Clough e Cragg apareceram das sombras na praça da aldeia. Ambos pareciam tão enregelados quanto ele, com as golas de seus pesados casacões levantadas contra o vento cortante que soprava. Cragg folheava seu bloco de anotações.
- Algum progresso? - perguntou George.
- Nada, como você pode ver - queixou-se Clough, oferecendo seus cigarros a todos. Apenas Cragg aceitou um. - Falamos com todo mundo, incluindo os primos com os quais a menina voltou da escola. Era a vez de Kathy Lomas pegá-los no fim da estrada, o que ela fez, como sempre. Na última vez em que viu Alison, a menina estava entrando pela porta da cozinha do solar. Então, a mãe diz a verdade; a garota chegou inteira em casa. A senhora Lomas entrou com seu filho e não tornou a ver Alison. Ninguém viu um traço sequer da garota depois que voltou da escola. É como se tivesse evaporado.
4
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 1h14
George passou os olhos pelo salão da igreja, com ar resignado. Na luz pálida e amarelada, o lugar parecia sombrio e pequeno, com as paredes verde-claras aumentando a sensação de que se estava em um local público. Contudo, precisavam de um local para acomodar a equipe do departamento de investigações criminais, bem como os policiais, e as chances de encontrar tal luxo perto de Scardale eram minguadas. Sob pressão, Peter Grundy conseguira apenas pensar na prefeitura em Longnor e neste anexo deprimente da capela metodista, localizado acanhadamente na avenida principal, logo depois do desvio para Scardale. Tinha a vantagem não apenas de ser mais perto de Scardale, mas também de contar com uma linha telefônica já instalada no que seria, de acordo com a placa na porta, a sacristia.
- Que bom que metodistas não são chegados a paramentos - falou George, parado na soleira da porta e examinando o armário antigo. - Anote aí, Grundy, precisamos de um telefone de campanha também.
Grundy adicionou o telefone a uma lista que já incluía máquinas de escrever, formulários para depoimentos de testemunhas, mapas em diversas escalas, caixas e pastas de arquivos, registro de eleitores e listas telefônicas. Mesas e cadeiras não eram problema, pois o salão já continha o suficiente. George voltou-se para Lucas:
- Precisamos montar um plano de ação para a manhã - disse, decidido. - Vamos juntar algumas cadeiras e ver o que podemos fazer.
Colocaram uma mesa e cadeiras diretamente sob um dos aquecedores elétricos pendurados em vigas do telhado. Eles mal disfarçavam o frio úmido da noite gélida, mas os homens sentiam-se satisfeitos com qualquer alívio. Grundy desapareceu na pequena cozinha e voltou com três xícaras e um pires.
- Para servir de cinzeiro - disse ele, deslizando o pires sobre a mesa, na direção de George. Depois, retirou uma garrafa térmica de dentro de seu sobretudo e a plantou com firmeza sobre a mesa.
- De onde veio isso? - indagou Lucas.
- De Betsy Crowther, da Casa da Campina - disse Grundy, abrindo a garrafa. George olhou com avidez a espiral de vapor que saiu dali. - Prima da mãe de Alison, por parte da mãe.
Revigorados por chá e cigarros, os três homens começaram a planejar:
- Precisaremos de tantos policiais quantos pudermos conseguir - falou George. - Precisamos vasculhar toda a área de Scardale, mas, se não acharmos nada, teremos de ampliar a busca até o curso do rio Scarlaston. Pretendo contatar o Exército, para ver se podem nos ceder pessoal para ajudar nas buscas.
- Se ampliarmos mais as buscas, talvez seja útil pedir ajuda ao Clube de Caça de High Peak - disse Lucas, encurvado sobre seu chá para aproveitar ao máximo o calor. - Seus cães de caça estão acostumados a rastrear, e seus cavaleiros conhecem o terreno.
- Lembrarei isso - disse George, inalando a fumaça de seu cigarro como se esta pudesse aquecer suas entranhas endurecidas de frio. - Grundy, quero que você faça uma lista de todos os fazendeiros locais dentro de um raio de, digamos, dez quilômetros. Primeiro, enviaremos alguns homens para pedir-lhes que verifiquem suas terras para verem se a garota está lá. Se ela fugiu, pode ter sofrido algum acidente, andando por aí no escuro.
Grundy assentiu:
- Farei isso. Senhor, lembrei-me de uma coisa que talvez valha a pena mencionar. - George fez sinal positivo com a cabeça, e ele continuou: - Ontem foi dia da feira Agropecuária e do Show de Natal de Leek. Eles exibem gado de corte e leiteiro, com bons prêmios em dinheiro, essas coisas. Isso significa que houve um tráfego bem maior que o habitual nas estradas por esses lados. Muitos vão para Leek por causa do show, não importando se estão participando da feira ou não. Alguns aproveitam para fazer suas compras de Natal. Alguém poderia estar voltando para casa na hora em que Alison desapareceu. Assim, se a garota estava em uma das estradas, há uma chance bem grande de ter sido vista.
- Bem pensado - disse George, anotando algo. - Talvez seja útil perguntar sobre isso aos fazendeiros, quando falar com eles. Também posso abordar o assunto na coletiva da imprensa.
- Coletiva da imprensa? - perguntou Lucas, desconfiado. Até aquele momento, aprovara totalmente o professor, mas agora parecia que George Bennett planejava usar Alison Carter para se promover. Isso o baixava em seu conceito.
George assentiu.
- Já solicitei ao QG que providencie uma coletiva da imprensa aqui, às dez horas. Precisamos de toda a ajuda possível, e a imprensa pode chegar às pessoas com mais rapidez que nós. Talvez levemos semanas para entrar em contato com todos que estavam na Feira de Leek ontem, e mesmo assim deixaremos algumas pessoas de fora. Com a cobertura pela imprensa, praticamente todo mundo saberá que temos uma garota desaparecida em uma questão de dias. Felizmente, o High Peak Courant sai hoje, de modo que na hora do chá provavelmente a notícia já estará nas ruas. A publicidade é vital em casos assim.
- Não parece ter funcionado tão bem para nossos colegas de Man-chester e Ashton - disse Lucas, com ar de dúvida. - Só serviu para fazer com que os policiais perdessem tempo seguindo pistas falsas.
- Se ela fugiu, será mais difícil continuar escondida. E se foi levada para outro lugar, isto aumenta nossas chances de encontrar uma testemunha - falou George, com firmeza. - Conversei com o superintendente Martin, que concorda comigo. Ele virá para a coletiva da imprensa e já confirmou que, a partir de agora, estou no comando da operação - acrescentou, sentindo-se meio sem graça com seu tom autoritário.
- Faz sentido - disse Lucas. - Afinal, o senhor está aqui desde o começo. - Ele levantou, empurrando a cadeira, e inclinou-se para apagar seu cigarro. - Assim, será que devemos voltar para Buxton agora? Não vejo o que mais podemos fazer aqui. Os homens do turno do dia podem dar continuidade ao trabalho quando vierem, às seis.
Intimamente, George concordou, mas não queria sair dali. Também não queria dar a impressão de que forçava sua autoridade, insistindo que permanecessem sem uma razão lógica, de modo que acompanhou Lucas e Grundy até o carro com alguma relutância. Pouco foi dito no trajeto até Longnor para deixar Grundy em casa e ainda menos nos dez quilômetros até Buxton. Os dois homens estavam cansados e ocupados com seus próprios pensamentos.
De volta à sede da divisão em Buxton, George pediu que o sargento datilografasse uma lista de ordens para o turno do dia e para os homens recrutados de outras partes da comarca. Entrou em seu carro, tremendo ante o sopro de ar frio que veio das aberturas do painel quando ligou o motor. Dez minutos depois, chegava ao lugar que a polícia de Derbyshire considerava apropriado para um homem casado em sua posição - uma casa geminada de três dormitórios, com fachada de pedra e jardim espaçoso, graças à curva acentuada da rua. Das janelas da cozinha e do quarto dos fundos tinha-se uma visão da floresta de Grin Low prolongando-se ao longo do cume até o começo de Axe Edge e pelos quilômetros e mais quilômetros de charneca onde Derbyshire confundia-se com Staffordshire e Cheshire.
George estava na cozinha iluminada apenas pela luz da lua, olhando a paisagem desanimadora. Tirara obedientemente os sanduíches da geladeira e coara chá, mas ainda não dera uma mordida sequer. Não sabia nem de que eram os sanduíches. Havia uma pilha pequena de cartões de Natal sobre a mesa, que Anne deixara ali para que ele desse uma olhada, mas George ignorou-os. Com a xícara aninhada entre suas mãos grandes e quadradas, recordava o rosto arrasado de Ruth Hawkin quando levara a cadela de volta e interrompera a vigília particular da mulher.
Ela estava parada junto à pia da cozinha, olhando para a escuridão atrás da casa pela janela. Agora que pensava nisso, George imaginava por que a mulher não cuidava da frente da casa. Afinal, se Alison voltasse, supunha-se que viria da direção da praça da aldeia e dos campos para onde partira naquele dia. Além disso, quaisquer notícias também viriam daquela direção. George pensou que talvez Ruth Hawkin não pudesse suportar os lugares que conhecia tão bem cheios de policiais e a presença deles a lembrasse dolorosamente da ausência da filha.
Fosse qual fosse a razão, ela olhava pela janela, de costas para o marido e para a policial que ainda estava embaraçosamente sentada à mesa da cozinha, com a intenção de oferecer um apoio que obviamente era indesejado. Ruth não se movera nem quando ele abrira a porta. O que a fez afastar os olhos da janela foi o som das patas da cadela no piso de pedra. Ao voltar-se, a cadela já se abaixara e, gemendo, rastejava em sua direção, arrastando a barriga no piso.
- Encontramos Shep amarrada no meio do mato - dissera George. - Alguém fechou sua boca com esparadrapo.
Os olhos de Ruth arregalaram-se e sua boca retorceu-se em um ricto de dor.
- Não - protestara baixinho. - Não pode ser. - Ela caiu de joelhos ao lado da cadela, que se retorcia em torno de seus tornozelos em uma paródia de desculpas subservientes. Ruth escondera o rosto entre os pêlos da cadela, agarrando o animal contra seu corpo, como se fosse uma criança. Uma língua rosada e longa lambera sua orelha.
George olhou para Hawkin. O homem sacudia a cabeça, parecendo verdadeiramente perplexo.
- Isso não faz sentido - dissera Hawkin. - É a cadela de Alison. O bicho jamais permitiria que tocassem em um fio de cabelo da menina. - Ele deu uma risada curta e seca. - Eu levantei a mão para ela uma vez, e a cadela abocanhou meu braço antes que eu pudesse tocá-la. A única pessoa que poderia ter feito isso seria a própria Alison. Shep nunca deixaria que eu ou Ruth a dominasse, menos ainda um estranho.
- Alison pode não ter tido escolha - disse George, com suavidade. Ruth levantara a cabeça, com o rosto transformado pela percepção de que seus medos anteriores poderiam refletir-se na realidade.
- Não - disse ela, numa súplica rouca. - Não a minha Alison. Por favor, Deus, não a minha Alison.
Hawkin levantara-se e cruzara a cozinha, indo até a esposa. Agachado ao seu lado, passara um braço desajeitadamente por seus ombros.
- Não fique assim, Ruth - dissera ele, lançando um rápido olhar para George. - Isso não ajudará Alison. Temos de ser fortes.
Hawkin parecia embaraçado por ter de demonstrar preocupação com a esposa. George já vira muitos homens que se sentiam desconfortáveis com qualquer exibição de emoção, mas raramente um deles parecia tão consciente deste desconforto.
Sentia muita pena de Ruth Hawkin. Não era a primeira vez que via um casamento entrar em crise sob o peso de uma grande investigação. Ele passara menos de uma hora na companhia do casal, mas sabia, por instinto, que o que via ali não era uma crise, mas um grande abismo. Já era difícil, em qualquer casamento, descobrir que a pessoa com quem se casou é menos que se imagina, mas para Ruth Hawkin, com um casamento tão recente, era duplamente difícil, devido ao peso adicional da ansiedade pelo desaparecimento da filha.
Quase sem pensar, George abaixara-se e cobrira uma das mãos de Ruth com a sua.
- Não podemos fazer muito por enquanto, senhora, mas estamos fazendo tudo o que podemos. Logo que amanhecer, os homens vasculharão por todos os lados. Prometo que não vou desistir de Alison. - Seus olhos haviam se encontrado, e ele sentira a intensidade de uma gama de emoções complicadas demais para serem explicadas.
Enquanto olhava para o pântano pela janela, George percebeu que não conseguiria dormir naquela noite. Embrulhando os sanduíches em papel impermeável, encheu uma garrafa com chá quente e subiu as escadas em silêncio, para pegar seu barbeador elétrico no banheiro.
No alto da escada, parou. A porta de seu quarto estava entreaberta, e não conseguiu resistir a um olhar para Anne. Com as pontas dos dedos, ele empurrou a porta um pouco mais para trás. O rosto da esposa era uma mancha pálida contra o brilho branco da fronha. Ela estava de lado, com uma das mãos fechada sobre o travesseiro ao seu lado. Deus, como era linda! Vê-la dormindo era o bastante para despertar-lhe desejo. Gostaria de poder tirar a roupa e deitar-se ao lado dela, sentindo seu calor junto ao seu corpo. Esta noite, porém, não poderia escapar da recordação dos olhos assustados de Ruth Hawkin.
Com um suspiro baixo, ele voltou-se e saiu dali. Meia hora depois, estava de volta à igreja metodista, olhando para a foto de Alison Carter. Havia pendurado quatro fotos da garota no mural de avisos. Deixara a outra na delegacia, pedindo que fizessem uma fotocópia com urgência, para poder distribuí-la na coletiva da imprensa. O inspetor de plantão não tinha certeza se poderiam fazer a cópia a tempo. George não deixara dúvidas quanto ao que esperava.
Com cuidado, abriu o mapa daquela área e tentou estudá-lo com olhos de alguém que decidira fugir de casa. Ou de alguém que decidira tirar a vida de outra pessoa.
Depois, saiu da igreja e percorreu a estrada estreita até Scardale a pé. Alguns metros adiante, a luz débil e amarelada que se derramava das janelas altas do salão da igreja foi engolida pelo manto da noite. Os únicos pontos de luz vinham das estrelas que conseguiam aparecer em meio às nuvens esparsas. George foi andando, tomando cuidado para não tropeçar nos tufos de capim nas margens da estrada.
Aos poucos, suas pupilas expandiram-se ao máximo, permitindo que sua visão noturna furtasse imagens dos fantasmas e sombras que formavam a paisagem. Entretanto, quando esses vultos já revelavam muros e árvores, ovelhas e beirais de portas, o frio capturou-o por inteiro. Os sapatos de solado fino que serviam na cidade eram inúteis para o chão gelado, e nem mesmo suas luvas forradas de algodão protegiam-no do vento terrivelmente frio que parecia usar a estrada de Scardale como um túnel para concentrar-se. Suas orelhas e nariz haviam perdido toda sensibilidade, exceto à dor. A pouco mais de um quilômetro da igreja, desistiu da caminhada. Se Alison Carter estivesse por ali, deveria ser mais resistente que ele.
Ou isto, ou já nem sentia mais nada.
Manchester Evening News, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 11
Garoto acampado traz novas esperanças às buscas a John
POLÍCIA RESGATA MENINO EM ACAMPAMENTO Da reportagem local
Policiais que investigam o desaparecimento de John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, correram a um descampado na periferia da cidade.
Segundo relatos, havia um menino acampado ali.
As esperanças renasceram quando se descobriu que o menino estava bem, mas tudo não passou de um alarme falso.
O menino encontrado e que havia sido dado como desaparecido era quase da mesma idade que John - mas seu nome era David Marshall, 11 anos, de Gorse View, Alt Estate, Oldham, e seu desaparecimento havia sido comunicado apenas algumas horas antes.
Depois de "meter-se em apuros" em casa, ele juntou seus pertences - e uma barraca - e foi acampar próximo a uma fazenda em Lily Lanes, na fronteira entre Ashton e Oldham.
Este foi outro incidente frustrante nas buscas a John, residente na estrada Smallshaw, em Ashton, que já duram 19 dias.
A polícia disse, hoje: "Achamos que tínhamos uma pista quente, mas pelo menos estamos satisfeitos por devolvermos um menino são e salvo à sua família."
David foi visto em seu acampamento solitário por alguém que visitava a fazenda próxima e que informou o fato imediatamente à polícia.
"Isto nos mostra que o público está realmente disposto a cooperar", disse a polícia.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 7h30
Ao ver Janet Carter, George lembrou-se de uma gata que sua irmã tivera. Seu rosto triangular, com o nariz atrevido, olhos grandes e a pequena boca carnuda e rosada, era tão fechado e cauteloso quanto o de qualquer predador doméstico que ele já vira. Ela chegava a ter algumas espinhas minúsculas em cada um dos lados de seu lábio superior, como se alguém tivesse arrancado seus bigodes. Estavam sentados frente a frente à mesa, na cozinha de teto baixo do chalé dos pais da menina, em Scardale. Janet mordiscava delicadamente um pedaço de torrada com manteiga, consumindo pequeninos pedaços em formato de lua em cada canto do pão. Seus olhos estavam baixos, mas a intervalos ela lançava-lhe um olhar rápido e oblíquo através de seus cílios longos.
Mesmo na juventude, ele jamais se sentira à vontade com garotas adolescentes, um resultado natural de ter uma irmã três anos mais velha cujas amigas consideravam o frangote George primeiro como um brinquedinho conveniente e, depois, como um ótimo campo de provas para a esperteza e charme que planejavam experimentar com alvos mais velhos. Às vezes, naqueles anos, George sentia-se como o equivalente humano a rodinhas extras na primeira bicicleta de uma criança. A única vantagem que conquistara com a experiência era que agora podia dizer quando uma garota estava mentindo, o que era mais que a maioria dos homens poderia alardear.
Contudo, mesmo esta certeza desaparecia frente ao autocontrole de Janet Carter. A prima desaparecera, com todas as suposições que isto envolvia, mas, ainda assim, Janet parecia tão calma como se Alison tivesse simplesmente saído para fazer compras. Sua mãe Maureen, não parecia tão dona de suas emoções, já que sua voz tremia ao falar da sobrinha e tinha lágrimas nos olhos quando retirou as três crianças menores dali, deixando George à vontade para interrogar a garota. E o pai de Janet, Ray, já saíra, colocando seus conhecimentos sobre as cercanias a serviço de uma das equipes que procuravam a filha de seu irmão falecido.
- Você provavelmente conhece Alison melhor que qualquer um - disse George, finalmente, lembrando a si mesmo de usar o tempo presente ao falar, o que lhe parecia cada vez mais inadequado.
Janet assentiu.
- Somos como irmãs. Ela é oito meses e duas semanas mais velha que eu, por isso estamos em séries diferentes na escola. Somos como irmãs de verdade.
- Vocês cresceram juntas aqui em Scardale?
Janet confirmou e outra lua crescente de torrada desapareceu entre seus dentes.
- Nós três, eu, Alison e Derek.
- Então, além de primas, vocês são amigas íntimas?
- Não sou sua melhor amiga na escola, porque estamos em turmas diferentes, mas sou a melhor amiga fora da escola.
- Que tipo de coisas vocês fazem?
A boca de Janet remexeu-se e torceu-se nos cantos enquanto ela pensava.
- Nada especial. Às vezes, Charlie, nosso primo mais velho, nos leva a Buxton para patinarmos. Às vezes, vamos às lojas de Buxton ou Leek, mas na maior parte do tempo simplesmente ficamos aqui. Levamos os cachorros para passear. Às vezes ajudamos na fazenda se há falta de pessoal. Ali ganhou um toca-discos de aniversário, então muitas vezes Derek fica ouvindo os discos com ela, no quarto.
Ele tomou um gole do chá que Maureen Carter lhe servira, surpreso por alguém conseguir fazer um chá mais forte que o da cantina da polícia.
- Sabe se algo a incomodava? - perguntou. - Algum problema em casa ou na escola?
Janet levantou a cabeça para olhá-lo, com as sobrancelhas juntando-se ao franzir a testa.
- Ela não fugiu - disse, com vigor. - Deve ter sido levada por alguém. Ali nunca fugiria. Por que faria isso? Não há nada do que fugir!
Talvez não, pensou George, admirado com a veemência da garota. Mas talvez houvesse algo para o que fugir.
- Alison tem namorado?
Janet respirou pesadamente pelo nariz.
- Nada sério. Ela foi ao cinema com um garoto de Buxton algumas vezes. Alan Milliken. Mas não era um encontro de namorados, na verdade. Eles foram com mais meia dúzia de pessoas. Ele tentou beijá-la, mas Alison não quis. Disse que, se o garoto achava que lhe pagar o ingresso do cinema significava que poderia fazer o que quisesse, estava errado. - Janet olhou-o de modo desafiador, animada por seu ímpeto.
- Então não tem alguém que ela deseje namorar? Talvez alguém mais velho?
Janet sacudiu a cabeça.
- Nós duas gostamos de Dennis Tanner, de Coronation Street, e de Paul McCartney, dos Beatles. Mas nada disso é sério, e não há ninguém real que Alison queira namorar. Ela sempre diz que meninos são chatos. Tudo o que querem é falar sobre futebol, sobre irem ao espaço em um foguete e no tipo de carro que teriam, se pudessem dirigir.
- E quanto a Derek? Onde ele se encaixa? Janet pareceu confusa.
- Bom, Derek é só... Derek. De qualquer maneira, ele tem espinhas. Não dá nem para pensar em namorar Derek.
- E quanto a Charlie, seu primo mais velho? Eu soube que os dois passam muito tempo juntos na casa da avó dele.
Janet sacudiu a cabeça, com um dedo tocando distraidamente uma pequena espinha de cabeça amarelada ao lado de sua boca.
- Ali só vai até lá para ouvir as histórias de Mamãe Lomas. Acontece
que Charlie mora lá. De qualquer maneira, não entendo por que você está perguntando sobre namorados quando deveria estar procurando quem a raptou. Aposto que pensam que tio Phil tem muito dinheiro, só porque mora em uma casa grande e é dono de todas as terras da aldeia. Aposto que tiveram essa idéia por causa do seqüestro do filho de Frank Sinatra semana passada. Deve ter aparecido na televisão, nos jornais e em todos os lugares. Não temos televisão, porque não há recepção, então dependemos do rádio. Mas até aqui em Scardale ouvimos falar do seqüestro. Alguém poderia ter ouvido a notícia e tido a mesma idéia. Aposto que pedirão um resgate enorme por Ali. - Seus lábios brilhavam, besuntados de manteiga enquanto a ponta de sua língua corria apressada por eles, em sua animação.
- Como é o relacionamento de Alison com seu padrasto?
Janet encolheu os ombros, como se a pergunta não pudesse ser menos interessante:
- É normal, acho. Ela gosta de viver no solar, isso posso garantir. - Um brilho de malícia acendeu-se em seus olhos. - Sempre que alguém pergunta onde ela mora, Ali responde imediatamente "no Solar Scardale", como se fosse algo muito especial. Quando éramos pequenas, inventávamos histórias sobre a casa. Histórias de fantasmas e sobre assassinatos. Assim, Alison agora acha que é grande coisa por morar lá.
- E o padrasto? O que ela dizia sobre ele?
- Não dizia muito. Quando ele estava namorando sua mãe, ela o considerava um pouco assustador, porque estava sempre rondando a casa das duas, trazendo presentinhos para tia Ruth. Você sabe, flores, chocolate, meias de náilon, coisas assim. - Ela remexeu-se em sua cadeira e estourou uma espinha entre o polegar e a unha do indicador, tentando inconscientemente disfarçar a ação por trás de sua mão.
- Acho que ela tinha ciúme, porque estava acostumada a ser a queridinha de tia Ruth e não suportava a competição. Mas depois que os dois se casaram e aquela fase de namoro terminou, acho que Ali o aceitou bem. Acho que ele não lhe dava muita importância. Ele não parece interessado em ninguém, a não ser nele mesmo. E em tirar fotos. Está sempre fazendo isso. -Janet voltou à sua torrada, como se o dispensasse.
- Fotos de quê? - disse George, mais para manter a conversa que por real interesse.
- Paisagens. Ele também gosta de ver as pessoas trabalhando. Ele diz que é preciso que pareçam naturais, então só tira as fotos quando acha que não estão olhando. Só que ele é recém-chegado e não conhece Scardale como nós. Assim, na maior parte das vezes em que ele se esgueira tentando não ser percebido, metade da aldeia sabe o que está fazendo. - Ela deu uma risadinha e, depois, lembrando-se do motivo para a presença de George, cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos.
- Então, até onde você sabe, Alison não teria motivos para fugir? Janet abaixou a torrada e franziu os lábios.
- Já disse que ela não fugiu. Ali não fugiria sem mim. E ainda estou aqui. Assim, alguém deve tê-la levado. E você tem de encontrá-los. - Seus olhos desviaram-se e George voltou-se um pouco, vendo Maureen Carter na porta da cozinha.
- Diga-lhe, mãe - falou Janet, com desespero na voz. - Estou dizendo, mas parece que ele não escuta. Diga-lhe que Ali nunca fugiria. Diga!
Maureen assentiu.
- Ela está certa. Quando Alison está com problemas, ela os enfrenta. Se estivesse preocupada com algo, todos saberíamos. O que quer que tenha acontecido não foi por sua escolha. - Ela deu um passo à frente e tirou a xícara da frente da filha. - É hora de você e os pequenos encontrarem Derek. Kathy os levará até o ônibus.
- Posso fazer isso - ofereceu George.
Maureen olhou-o da cabeça aos pés, claramente insatisfeita com o que via:
- É muita gentileza sua, mas já tivemos bastante perturbação por aqui esta manhã. Não precisamos de mais ainda. Vá, Janet, pegue seu casaco.
George levantou as mãos.
- Antes de ir, só mais uma pergunta. Alison costumava freqüentar algum lugar especial no vale? Um esconderijo, uma cabana onde a turma se reúne, algo assim?
A menina lançou um olhar rápido e desesperado para sua mãe.
- Não - disse ela, mas a voz revelava o oposto do que dizia. Janet enfiou o resto da torrada na boca e correu para fora, acenando apressadamente para George.
Maureen pegou o prato sujo e virou a cabeça para o lado, pensativa.
- Se Alison pretendesse fugir, não agiria assim. Ela adora a mãe. Sempre foram muito próximas, por viverem só as duas durante tanto tempo. Alison jamais faria sua mãe passar por isto.
5
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 9h50
O salão da igreja metodista sofrera uma transformação. Oito mesas de armar haviam sido montadas e cada uma era o centro de alguma atividade. Em uma delas, um policial com um telefone de campanha estabelecia contato com o QG. Em outras três, havia mapas abertos, com grossas linhas vermelhas desenhadas para separar as áreas de buscas. Em uma quinta mesa, um sargento estava cercado por fichas de arquivo, formulários para depoimentos e caixas para arquivamento, confrontando as informações à medida que lhe chegavam. Nas mesas restantes, os policiais martelavam em máquinas de escrever. Em Buxton, investigadores interrogavam colegas de Alison Carter, enquanto o vale que cercava o vilarejo de Scardale e com este dividia seu nome era vasculhado por trinta policiais e pelo mesmo número de voluntários locais.
No fim do salão e próximo à porta, um semicírculo de cadeiras fora armado em torno de uma mesa de carvalho. Atrás desta, havia duas cadeiras. Na frente da mesa, George prestava informações ao superintendente Jack Martin. Nos três meses desde que chegara a Buxton, ele jamais tivera de trabalhar pessoalmente com o oficial fardado encarregado da divisão. Sabia que seus relatórios passavam pela mesa de Martin, mas jamais haviam se comunicado pessoalmente sobre um caso. Tudo o que sabia sobre o homem havia sido filtrado pelos outros.
Martin servira como tenente em um regimento de infantaria na guerra, aparentemente sem distinção ou desonra. Ainda assim, seus anos no Exército lhe deram um gosto pelas minúcias da vida militar. Ele insistia na observação da hierarquia, repreendendo policiais que abordavam seus iguais ou em posição inferior pelo nome, em vez de pelo posto. Um nome de batismo ouvido por acaso na sala do pelotão podia elevar sua pressão sangüínea em vários pontos, de acordo com o sargento Clough. Martin conduzia inspeções regulares de seus policiais fardados, com freqüência berrando com aqueles cujas botas não refletiam seus rostos ou cujos botões do uniforme não reluziam. Ele tinha o perfil aquilino e olhos de águia. Marchava acelerado por onde quer que andasse, e se dizia que detestava o que via como a aparência desleixada dos investigadores sob seu comando.
Por trás do rigoroso militar, porém, George suspeitava que havia um policial astuto e eficiente. Agora, estava prestes a descobrir. Martin escutara atentamente seu relato sobre os acontecimentos, com as sobrancelhas grisalhas juntando-se em uma careta de concentração. Com o indicador e o polegar de sua mão direita, ele esfregava o bigode bem cuidado na direção inversa à dos pêlos e, depois, alisava-o novamente.
- Você fuma? - perguntou ele finalmente, oferecendo a George seu maço de cigarros sem filtro. George balançou a cabeça, preferindo seu Gold Leaf com filtro e mais suave. Contudo, considerou a oferta como permissão e imediatamente acendeu um cigarro.
- Não estou gostando nada do que ouvi - disse Martin. - Foi tudo planejado com cuidado, não acha?
- Acho que sim, senhor - disse George, impressionado porque Martin também se apegara ao detalhe crucial do esparadrapo. Ninguém saía para uma caminhada casual carregando consigo um rolo desse esparadrapo, nem mesmo o escoteiro mais consciente quanto à segurança. O tratamento dado à cadela anunciava premeditação a George, embora nenhum de seus colegas parecesse dar grande peso a este detalhe.
- Acho que a pessoa que a pegou conhecia bem seus hábitos. Deve ter observado a garota por algum tempo, esperando pela oportunidade certa.
- Então você acha que é alguém da aldeia? - perguntou Martin. George correu a mão por seus cabelos claros.
- Parece que sim - falou, hesitante.
- Acho que é melhor deixarmos esta possibilidade em aberto. O trajeto de Denderdale até a nascente do Scarlaston é bem popular. Dúzias de andarilhos devem percorrer a trilha no verão. Qualquer um deles poderia ter visto a menina, sozinha ou com seus amigos, e resolvido voltar para pegá-la. - Martin assentiu, concordando consigo mesmo, dando um piparote num fragmento de cinzas de cigarro que caíra no punho de seu uniforme impecavelmente passado.
- É possível - concordou George, embora não conseguisse imaginar que alguém se tornasse instantaneamente obcecado pela garota e esperasse meses pela oportunidade certa. Entretanto, a razão principal para sua incerteza era bem diferente. - Acho que não consigo imaginar ninguém desta comunidade praticando algo tão terrível. Essas pessoas são incrivelmente ligadas, senhor. Elas estão acostumadas a contar umas com as outras há gerações. Seria contra tudo em que acreditam, ter um de seus filhos raptado por alguém de Scardale. Além disso, é difícil imaginar como alguém daqui poderia raptar uma criança sem que todos os outros habitantes soubessem. Ainda assim, aparentemente, é muito provável que tenha sido alguém do vilarejo. - George suspirou, surpreso com seus próprios argumentos.
- A menos que todos estejam errados sobre a direção que a menina seguiu - observou Martin. - Ela pode ter fugido ao hábito e tomado o rumo da estrada principal. Ontem foi dia da Feira Agropecuária de Leek e certamente houve mais tráfego que o habitual na estrada para Longnor. Ela poderia ter entrado em algum carro, para oferecer informações a alguém que usou isso como pretexto para levá-la.
- Mas e quanto à cadela? - apontou George.
Martin fez um gesto impaciente com a mão que segurava o cigarro.
- Quem a levou poderia ter vindo até perto do vale e deixado a cadela no meio do mato.
- Seria muito arriscado, e ele teria de conhecer o terreno. Martin suspirou.
- Acho que sim. Também reluto em ver o vilão como alguém daqui. Temos essa visão romântica sobre pequenas comunidades rurais, mas infelizmente nos enganamos, com muita freqüência. - Ele olhou para o relógio no salão, apagou o cigarro, ajeitou os punhos do uniforme e se empertigou. - Vamos lá. Está na hora de enfrentarmos a imprensa.
Ele voltou-se para as mesas de armar.
- Parkinson, vá dizer a Morris que os jornalistas podem entrar.
O policial fardado levantou-se imediatamente, balbuciando um "sim senhor".
- Seu quepe, Parkinson - vociferou Martin. Parkinson parou de súbito e correu de volta à cadeira. Enfiou o quepe e quase correu até a porta. Já ia saindo quando Martin acrescentou:
- Corte os cabelos, Parkinson.
A boca do superintendente retorceu-se no que poderia ter sido um sorriso, enquanto ia até as cadeiras atrás da mesa.
A porta abriu e meia dúzia de homens entrou, enquanto uma espécie de bruma parecia formar-se à sua volta, quando seus corpos frios chocaram-se com o calor abafado do salão. O grupo espalhou-se pela sala, e os homens sentaram-se ruidosamente nas cadeiras dobráveis. Suas idades variavam de vinte e poucos a cinqüenta e poucos anos, na opinião de George, embora não fosse fácil dizer, com chapéus de abas largas e bonés puxados bem à frente para protegerem os rostos, golas de casacos viradas para cima contra o vento gélido e cachecóis envolvendo os pescoços. Ele reconheceu Colin Loftus, do High Peak Courant, mas os outros lhe eram estranhos. Imaginou para quem trabalhariam.
- Bom-dia, cavalheiros - começou Martin. - Sou o superintendente Jack Martin, da polícia de Buxton, e este é meu colega, detetive-inspetor George Bennett. Como vocês já sabem, uma garota desapareceu de Scardale. Alison Carter, de treze anos, foi vista pela última vez mais ou menos às quatro e vinte da tarde de ontem. Ela saiu da casa de sua família, o Solar Scardale, com a intenção de levar sua cadela para passear. Ao perceberem a demora, a mãe, senhora Ruth Hawkin, e o padrasto, senhor Philip Hawkin, entraram em contato com a polícia de Buxton. Respondemos ao chamado e demos início às buscas nas redondezas de Scardale, usando cães farejadores da polícia. A cadela de Alison foi encontrada no meio do mato, perto de sua casa, mas não encontramos nenhum sinal da menina.
Ele pigarreou.
- Teremos cópias de uma fotografia recente de Alison disponíveis na delegacia de Buxton ao meio-dia.
Enquanto Martin dava uma descrição detalhada da aparência e das roupas da garota, George estudou os jornalistas. Suas cabeças estavam abaixadas e os lápis voavam pelas folhas de seus blocos de anotações. Pelo menos pareciam interessados o suficiente para tentar obter todos os detalhes da história. Ele imaginou quanto disso tinha a ver com os desaparecimentos de Manchester. Achava que não teriam comparecido normalmente em número tão grande apenas porque uma garota estava desaparecida havia dezesseis horas de uma pequena aldeia em Derbyshire. Martin continuava, falando rapidamente:
- Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Não sabemos o que aconteceu com ela e estamos todos muito preocupados, ainda mais com a temperatura extremamente baixa que estamos enfrentando no momento. Agora, se tiverem alguma pergunta, eu ou o detetive-inspetor Bennett teremos prazer em responder.
Uma cabeça levantou-se.
- Brian Bond, do Manchester Evening Chronicle. Vocês suspeitam de crime?
Martin respirou fundo.
- Neste ponto não descartamos nada. Não encontramos um motivo para o desaparecimento da menina, já que não tinha problemas em casa ou na escola. Entretanto, também não encontramos até agora nada que sugira que foi levada com violência.
Colin Loftus ergueu a mão, com um dedo levantado.
- Há alguma indicação de que Alison possa ter sofrido um acidente?
- Até agora não - respondeu George. - Como o superintendente Martin lhes disse, neste momento há uma equipe de buscas vasculhando a área do vale. Também pedimos que todos os agricultores locais verifiquem suas terras com muito cuidado, para o caso de Alison ter-se ferido em uma queda e não ter conseguido voltar para casa.
O homem na extremidade da fileira de cadeiras recostou-se e soprou um anel perfeito de fumaça.
- Parece haver algumas características comuns entre o desaparecimento de Alison Carter e o das duas crianças da área de Manchester: Pauline Reade, de Gorton, e John Kilbride, de Ashton. Vocês entraram em contato com os detetives de Manchester e Lancashire acerca de uma possível conexão entre os casos?
- E você, quem é? - perguntou Martin, em tom de comando.
- Don Smart, do Daily News, sucursal norte. - Ele abriu um sorriso, que pareceu a George o esgar predatório de uma raposa. Smart tinha até mesmo as cores do animal: cabelos avermelhados que se mostravam sob Seu boné de tweed, face corada e olhos castanhos que se apertavam contra a fumaça de seu charuto.
- É cedo demais para fazermos suposições como esta - disse George rapidamente, desejando ele mesmo fazer esta pergunta que ecoava suas próprias dúvidas. - É claro que ouvi falar sobre os casos mencionados, mas até agora não encontramos razões para nos comunicarmos com nossos colegas de outros distritos acerca de qualquer outra coisa além de providências para as buscas a Alison. A polícia de Staffordshire já indicou que nos dará toda assistência necessária se precisarmos ampliar a área de buscas.
Smart, porém, não desistia tão facilmente:
- Se eu fosse a mãe de Alison Carter, acho que não gostaria de saber que a polícia menospreza indicações tão fortes de ligação com o desaparecimento de outras crianças.
Martin levantou a cabeça repentinamente, abrindo a boca para responder ao jornalista, mas George chegou antes.
- Para cada similaridade há uma diferença - disse bruscamente. - Scardale é uma comunidade isolada, não uma área urbana e movimentada; Pauline e John desapareceram em um fim de semana, mas Alison sumiu em um dia de semana; estranhos seriam uma visão comum para as outras duas crianças, mas um estranho que aparecesse na hora do chá em dezembro, em Scardale, colocaria Alison em alerta. Além disso, e talvez o mais importante, a menina não estava sozinha, mas levava o cachorro para passear. Scardale fica a uns bons trinta ou quarenta quilômetros dos outros dois locais em que as crianças desapareceram. Qualquer um que quisesse raptar uma criança teria de passar por muitas até chegar a Alison Carter. Centenas de pessoas desaparecem, todos os anos. Estranho seria se não houvesse semelhanças entre os casos.
Don Smart lançou-lhe um frio olhar de desafio e disse apenas:
- Obrigado, detetive-inspetor Bennett. Seria Bennett com dois "t"?
- Sim - disse George. - Mais alguma pergunta?
- Vocês pretendem drenar os reservatórios nos pântanos? - perguntou novamente Colin Loftus.
- Comunicaremos as providências que decidirmos tomar quando for o momento certo - disse Martin, cortante. - Agora, a menos que alguém tenha mais alguma dúvida, a coletiva está encerrada. - Ele levantou-se.
Don Smart inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Quando será a próxima coletiva?
George viu o pescoço de Martin tornar-se vermelho como a papada de um peru. Estranhamente, a cor não se difundiu para seu rosto.
- Comunicaremos à imprensa quando encontrarmos a garota.
- E se não a encontrarem?
- Estarei aqui amanhã de manhã, à mesma hora - disse George. - E estarei aqui todas as manhãs, até encontrarmos Alison.
As sobrancelhas de Don Smart levantaram-se.
- Vou esperar ansiosamente - disse ele, ajeitando as dobras de seu pesado sobretudo em torno do corpo esguio e levantando seu 1,70m. Os outros jornalistas já se dirigiam para a porta, comparando anotações e decidindo sobre as chamadas para a matéria.
- Atrevido esse Smart - comentou Martin, depois que ficaram a sós.
- Suponho que está apenas fazendo seu trabalho - suspirou George. Passaria bem sem alguém tão teimoso e desagradável quanto Don Smart em seu cangote, mas não podia fazer muito a esse respeito, exceto evitar que o homem o provocasse demais.
Martin torceu o nariz.
- É um encrenqueiro. Os outros conseguiram fazer seu trabalho sem insinuar que não sabemos fazer o nosso. É melhor ficar de olho nele, Bennett.
George assentiu.
- Preciso lhe fazer uma pergunta, senhor. Quer que eu assuma o comando das operações aqui?
Martin franziu a testa.
- O inspetor Thomas será responsável pelos policiais fardados, mas acho que você deve assumir o comando geral. O detetive e inspetor-chefe Carver não pode ir a lugar algum com aquele gesso no tornozelo. Ele se ofereceu para comandar o departamento de investigações criminais em Buxton, mas preciso de um homem aqui. Posso confiar-lhe esta missão, inspetor?
- Darei o melhor de mim, senhor - disse George. - Tenho certeza de que encontraremos esta menina.
Manchester Evening Chronicle, quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, p. 1
POLÍCIA FAZ BUSCAS EM VALE ISOLADO Cães auxiliam na procura por menina desaparecida Da reportagem local
Policiais com cães farejadores realizaram hoje buscas a uma menina de 13 anos que desapareceu de sua casa, no vilarejo remoto de Scardale, em Derbyshire, ontem à tarde.
A menina, Alison Carter, desapareceu da casa onde vive com a mãe e o padrasto, depois de dizer que levaria sua collie, Shep, para passear.
Alison deveria atravessar os campos e ir até um bosque próximo, no vale de pedra calcária onde mora. Desde então não foi mais vista.
Buscas foram realizadas após um telefonema de sua mãe à polícia. A cadela foi encontrada sem ferimentos, mas não havia sinal de Alison.
Depoimentos de seus vizinhos e amigos da Peak Girls
High School não revelaram um motivo para a fuga da bonita garota.
Hoje, sua mãe, a senhora Ruth Hawkin, 34 anos, esperava ansiosamente por notícias, enquanto continuavam as buscas no vale. Seu marido, o senhor Philip Hawkin, 37 anos, uniu-se aos vizinhos e fazendeiros que ajudaram a polícia a vasculhar o vale ermo.
Um policial veterano nos disse: "Não encontramos motivos para o desaparecimento de Alison. A menina não tinha problemas na escola ou em casa, mas também não descobrimos nada que sugira um crime, até o momento."
As buscas continuarão amanhã, se Alison não for encontrada até a noite de hoje.
Don Smart jogou para o lado a primeira edição do Chronicle. Pelo menos não haviam roubado sua linha de questionamento. Havia sempre esse risco quando se tentava algo um pouco diferente em uma coletiva da imprensa. De agora em diante, ele tentaria se afastar daquela cambada e cavar suas próprias reportagens. Tinha a sensação de que George Bennett lhe daria ótimas matérias e estava determinado a tirar o possível do jovem e atraente detetive.
Estava certo de que aquele homem era um buldogue e que não largaria o caso de Alison Carter de jeito nenhum. Smart sabia, por experiência própria, que, para a maioria dos policiais, o desaparecimento de Alison Carter era apenas mais um trabalho. Claro que lamentavam pela família. Também podia apostar que aqueles que tinham filhas iam para casa e lhes davam um abraço mais apertado que o habitual a cada noite que passavam procurando por Alison naquela região de pântanos.
Contudo, George parecia-lhe diferente. Para ele, o caso representava uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Carter, mas George não demonstraria maior paixão pela causa se fosse o pai da garota. Smart percebia que ele simplesmente não toleraria o fracasso.
Para Smart, isto era um presente dos deuses. Seu emprego na sucursal norte do Daily News era o primeiro em um jornal de circulação nacional, e estivera buscando uma reportagem que o levaria ao topo. Já cobrira parcialmente os desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News e estava determinado a persuadir George Bennett ou alguém de sua equipe a ligar os dois casos ao de Alison Carter. Daria manchetes incríveis.
O que quer que acontecesse, Scardale seria um excelente cenário para uma história dramática e misteriosa. Em uma comunidade tão fechada quanto aquela, as vidas de todos seriam colocadas sob o microscópio. Subitamente, toda espécie de segredos viria à tona, e coisas feias seriam vistas, com certeza. Don Smart estava resolvido a testemunhar tudo.
De volta ao salão da igreja metodista, George Bennett também largou o jornal. Não tinha dúvidas de que a manhã traria uma matéria bem menos agradável nas páginas do sensacionalista Daily News. Martin teria um ataque se houvesse qualquer sugestão de incompetência da polícia. Ele marchou para fora do salão e cruzou a estrada até seu carro.
Dirigir até Scardale à luz do dia era apenas um pouco menos assustador que chegar lá à noite ou de madrugada. Pelo menos, o negrume obscurecia as rochas ao lado da estrada que, em sua imaginação, poderiam facilmente partir-se e esmagar seu carro como uma lata de alumínio sob um rolo compressor. Hoje, porém, havia uma diferença crucial: o portão no meio da estrada estava totalmente aberto, permitindo livre acesso aos veículos. Um policial fardado que estava no portão espiou para dentro do carro de George e bateu continência ao reconhecer o ocupante. Pobre infeliz, pensou George. Seus próprios dias de vigília no frio felizmente haviam durado pouco. Imaginou como aqueles que, diferente dele, não estudavam para galgar os degraus mais rapidamente, podiam suportar, semana após semana, a perspectiva de fazer a ronda das ruas, preservar locais de crimes e, como hoje, vagar de modo infrutífero pelos arredores mais inóspitos.
A aldeia, assim como a estrada, não parecia melhor à luz do dia. Não havia nada de charmoso nos pequenos chalés sombrios de Scardale. Os prédios de pedra cinzenta pareciam agachar-se na direção do chão, mais como cães acovardados que animais prestes a saltar. Os telhados de um ou dois deles pareciam prestes a desabar e a maior parte da madeira poderia beneficiar-se de uma camada de tinta. Galinhas andavam por ali à vontade, e cada carro que entrava no vilarejo provocava uma cacofonia de latidos de uma variedade de cães usados para conduzir ovelhas e vacas. O que não havia mudado eram os olhos que observavam os passos de qualquer recém-chegado. A medida que se aproximava, George ia percebendo estes olhos. Sabia um pouco mais sobre eles que na noite anterior. Para começo de conversa, sabia que todos os olhos eram femininos. Cada homem de Scardale em condições de ajudar participava das buscas, acrescentando tanto determinação quanto conhecimento do local à tarefa.
George encontrou uma vaga para seu carro no lado mais distante da Praça da aldeia, ao lado do muro do Solar Scardale. Hora de ter outra conversa com a senhora Hawkin, decidiu. A caminho da casa, parou por um momento junto ao trailer que chegara de manhã, do quartel-general. Estavam usando o veículo como um ponto de ligação para as equipes de busca, em vez de como centro de operações, e um par de policiais femininas ocupava-se com a tarefa incessante de coar chá e café. George abriu a porta e congratulou-se em silêncio por ganhar sua aposta consigo mesmo de que o inspetor Alan Thomas estaria acomodado confortavelmente no cantinho mais quente do trailer, com uma chávena em um lado, próxima de uma de suas mãos grandes, e o cinzeiro contendo seu cachimbo de roseira-brava perto da outra.
- George - disse Thomas, animado. - Venha e sente aqui, garoto. Está gelado lá fora, não é? Estou contente porque não preciso sair e vasculhar a mata.
- Alguma novidade? - perguntou George, assentindo quando a policial lhe ofereceu uma xícara de chá. Ele derramou o açúcar de um saquinho e encostou-se na parede do trailer.
- Nadinha, garoto. Ninguém marcou pontos ainda, por assim dizer. Acharam pedaços de tecido, mas era coisa velha, nada que nos levasse à garota - disse Thomas, com seu sotaque galês parecendo tornar as notícias deprimentes um pouco mais leves. - Sirva-se - acrescentou, fazendo sinal com a mão para um prato de bolinhos. - A mãe da menina os trouxe. Disse que não suportaria ficar apenas sentada à espera de notícias.
- Irei vê-la daqui a pouco. - George pegou um bolinho. Muito bom, decidiu ele. Definitivamente melhor que os que Anne fazia. A esposa era ótima cozinheira, mas em matéria de bolos não era grande coisa. Sempre mentia para ela, dizendo que nem gostava tanto assim de bolos. Se não mentisse, sabia que terminaria elogiando, porque não saberia criticá-la. E não queria condenar-se a cinqüenta anos de esponjas pesadas, massa semi-crua e bolos semelhantes a pedras que pareciam ter vindo diretamente da pedreira mais próxima.
De repente, a porta se abriu com um estrondo. Um homem de rosto corado, usando uma pesada jaqueta de couro sobre várias camadas de camisas e coletes de malha entrou, sem fôlego e suando muito.
- Você é Thomas? - perguntou, olhando para George.
- Sou eu, garoto - disse Thomas, levantando-se e deixando cair uma chuva de migalhas. - O que aconteceu? Encontraram a menina?
O homem sacudiu a cabeça, com as mãos nos joelhos enquanto lutava para recuperar o fôlego.
- No arvoredo abaixo do Rochedo do Escudo - disse ele, com a voz entrecortada. - Parece que houve luta por ali. Galhos quebrados. - Ele endireitou o corpo. - Pediram-me que os levasse lá.
George largou o chá e o bolinho e seguiu o homem até a rua, com Thomas arrastando-se atrás. Apresentou-se e perguntou:
- Você é de Scardale?
- Sim, sou Ray Carter, tio de Alison. E pai de Janet, lembrou George.
- Isso fica a que distância do lugar onde encontramos a cadela? - perguntou, forçando suas pernas a acompanharem os passos largos do fazendeiro, que conseguia se mover muito mais depressa que seu corpo atarracado fazia supor.
- A uns quatrocentos metros, no máximo.
- Levamos muito tempo para cobrir uma distância tão pequena - disse George, baixinho.
- Não se pode ver o lugar da trilha. Por isso vocês o ignoraram na primeira vez - disse Carter. - Além disso, não é um lugar óbvio. - Ele parou por um momento, voltando-se para apontar para a casa de Alison. - Olhe, lá está o Solar Scardale. - Ele virou novamente. - Ali está o campo que leva ao matagal em que vocês encontraram a cadela e o Scarlaston. - O homem virou-se de novo. - Ali está o caminho que sai do vale. E é para lá - concluiu, indicando uma área de árvores entre a casa de Alison e o bosque em que Shep fora amarrada - que estamos indo. A caminho de lugar nenhum - acrescentou em tom amargo, envolvendo os altos rochedos de calcário e o céu cinzento com um aceno final de mão.
George franziu a testa. O homem estava certo. Se Alison estava no arvoredo quando foi atacada, por que a cadela foi amarrada em uma clareira do bosque, a quase meio quilômetro de distância? Mas, se tivesse sido capturada sem luta na clareira, e a luta tivesse ocorrido quando ela viu uma chance de se livrar de seu raptor, o que estavam fazendo naquele ponto sem saída do vale? Era outra inconsistência a ser lembrada, pensou ele, seguindo Ray Carter rumo ao cinturão estreito de árvores.
O arvoredo era um misto de faias, freixos, plátanos e olmos, com plantas mais jovens que aquelas entre as quais haviam estado na noite anterior. As árvores eram menores, com troncos mais delgados. Pareciam estar demasiadamente próximas umas das outras, com seus ramos formando uma tela grossa, por entre a qual quase nada podia ser visto. A vegetação rasteira era densa entre as árvores jovens, espessa demais para permitir passagem fácil.
- Por aqui - disse Carter, voltando-se para uma abertura quase invisível entre as samambaias marrons e a folhagem vermelha e verde dos arbustos. Tão logo entraram no arvoredo, a maior parte da luz da tarde desapareceu. Sentindo-se meio cego, George entendeu por que a primeira leva de homens ignorara o lugar. Ele não percebera antes a dificuldade dessa área e a facilidade com que se poderia ignorar algo tão grande como, Deus que o perdoasse, um corpo. À medida que seus olhos habituavam-se à penumbra, começou a distinguir alguns arbustos entre as árvores. Sob seus pés, a trilha era escorregadia, com folhas mortas e pisoteadas.
- Há meses venho dizendo a Hawkin que este lugar deveria ser desmatado - queixou-se Carter, empurrando para o lado os ramos flexíveis de um sabugueiro baixo. - A gente poderia perder metade dos animais do Clube de Caça aqui dentro, e ninguém ia descobrir.
Depararam-se subitamente com o resto da equipe de busca. Três policiais e um rapazinho estavam parados junto a uma curva da trilha. O rapaz não parecia ter mais de dezoito anos e vestia-se como Carter, com jaqueta de couro e pesadas calças de veludo cotelê.
- Muito bem - disse George. - Quem vai nos mostrar o que está acontecendo aqui?
Um dos policiais limpou a garganta e respondeu-lhe:
- É bem ali na frente, senhor. Outra equipe já havia passado por aqui de manhã, mas o senhor Carter sugeriu que deveríamos olhar de novo, porque o mato rasteiro é denso demais. - Ele fez sinal para que George e o inspetor Thomas seguissem em frente e os outros deram um passo desajeitado para trás, permitindo-lhes a passagem. O policial apontou para um espaço quase imperceptível no mato, no lado sul da trilha. - O garoto foi quem viu primeiro. Charlie Lomas. Há uma trilha muito sutil de galhos quebrados e plantas pisoteadas. Parece que houve luta alguns metros à frente.
George abaixou-se e espiou a trilha. O homem tinha razão. Não havia muito para ver. Era um milagre alguém ter conseguido perceber algo. Ele supôs que os habitantes de Scardale conheciam tão bem seu território que o que lhe parecia oculto saltaria aos olhos deles.
- Quantos de vocês já andaram por ali com seus grandes sapatos? -
perguntou Thomas.
- Só eu e o garoto Lomas, senhor. Tivemos todo o cuidado possível. Tentamos não danificar o local das buscas.
- Darei uma olhada - disse George. - Senhor Thomas, será que um de seus rapazes poderia ligar para o centro móvel de operações para enviarem um fotógrafo para cá? Depois que o fotógrafo terminar, também varreremos com pente-fino o lugar. - Sem esperar resposta, George afastou os ramos que encobriam a trilha quase invisível e se moveu à frente, tentando manter-se alguns centímetros à esquerda da trilha original. Aqui era ainda mais escuro e ele parou um pouco para permitir que seus olhos se acostumassem à escuridão.
A descrição do policial havia sido admirável, em termos de exatidão. Após alguns passos apertados, George encontrou o que procurava. Ramos quebrados e samambaias esmagadas marcavam uma área de cerca de um metro e cinqüenta por dois metros. Ele não era um homem do campo, mas mesmo assim sabia que o dano era recente. Parecia que os galhos e as samambaias haviam sido destruídos fazia pouco. Um arbusto que havia sido parcialmente pisoteado estava apenas murcho, mas não totalmente morto. Se isto não estivesse ligado ao desaparecimento de Alison Carter, seria uma coincidência muito estranha.
George inclinou-se para a frente, com uma das mãos agarrando-se a um galho de árvore para obter apoio. Talvez houvesse alguma prova importante ali e não queria andar naquele terreno e causar ainda mais danos do que a equipe de buscas já causara. Enquanto o pensamento cruzava sua mente, seu exame atento revelou uma bola de material escuro, presa na ponta aguda de um galho quebrado. Meias pretas de lã, dissera Ruth Hawkin. O estômago de George contraiu-se. "Ela esteve aqui", disse baixinho para si mesmo.
Moveu-se para a esquerda, contornando a área remexida, parando de vez em quando para examinar o que via. Estava quase na diagonal oposta ao ponto em que deixara a trilha quando viu. Bem à sua frente, à direita, havia uma mancha escura na casca muito clara de uma bétula. Irresistivelmente atraído, ele se aproximou da árvore.
O sangue secara, mas preso a ele, sem chances de engano, havia algumas mechas de fios de cabelos loiros. E no chão, perto da árvore, um botão de osso com fiapos de tecido ainda presos a ele.
6
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 17h05
George respirou fundo e levantou a mão para bater na porta. Antes que o fizesse, a porta se abriu. Ruth Hawkin estava na sua frente, com o rosto tenso e cinzento à luz da noite. Ela deu um passo para o lado, inclinando-se no batente para obter apoio.
- Vocês encontraram alguma coisa - disse ela, sem entonação. George cruzou o batente e fechou a porta às suas costas, determinado a não dar aos bisbilhoteiros mais espetáculo do que seria inevitável. Seus olhos varreram automaticamente o cômodo.
- Onde está a policial? - perguntou ele, voltando-se para Ruth.
- Mandei-a embora - disse ela. - Não preciso que cuidem de mim como se eu fosse uma criança. Além disso, acho que ela poderia fazer algo mais útil pela minha Alison que ficar sentada bebendo chá o dia inteiro.
Havia uma nota ácida em sua voz que não estava ali antes. George considerou a reação saudável. Esta mulher não era do tipo que desmaiaria a cada notícia ruim. Sentiu alívio com isso, porque achava que seu papel seria, definitivamente, de portador de más notícias.
- Será que podemos sentar? - perguntou ele. Sua boca torceu-se em uma careta amarga.
- É tão ruim assim? - Mas afastou-se da parede e desabou em uma das cadeiras da cozinha. George sentou-se no outro lado, percebendo que ela ainda vestia as mesmas roupas que na noite anterior. Então nem chegara a se deitar e certamente não dormira. Provavelmente nem sequer tentara.
- Seu marido está ajudando nas buscas? - indagou ele.
Ela assentiu.
- Acho que não estava muito entusiasmado. Meu Phil se dá bem com tempo bom. Gosta quando o sol está brilhando e o dia se parece com um de seus cartões-postais. Mas em dias como hoje, frio e úmido, com um toque de névoa gelada no ar, ele sempre se senta junto ao fogão de lenha ou se tranca em seu estúdio com aquecedores a parafina, mas tenho de admitir que hoje fez uma exceção, felizmente.
- Se quiser, posso esperar que ele volte - falou George.
- Isto não mudará o que você tem para me dizer, não é? - perguntou, com voz cansada.
- Não, infelizmente não. - George abriu seu sobretudo e removeu dois sacos plásticos do bolso interno. Um deles continha a bola macia e fofa que estivera presa no galho quebrado; o outro, o botão polido e serri-lhado em suas bordas, com sua cor natural de osso parecendo estranha contra o plástico nada natural. Preso a ele por linha azul-marinho resistente, havia um fragmento de tecido azul-marinho semelhante a feltro. - Preciso perguntar-lhe: reconhece algum desses objetos?
O rosto à sua frente empalideceu, enquanto ela pegava os sacos e os olhava por um longo tempo.
- O que é isto? - perguntou ela, tocando o material sob o plástico com o indicador.
- Achamos que é lã - respondeu George. - Talvez das meias que Alison usava.
- Isto poderia ser qualquer coisa - disse ela, defensivamente. - Pode ser que estivesse lá há dias ou semanas.
- Teremos de ver o que nosso laboratório descobre então. - Não havia sentido em forçá-la a aceitar o que a mente não queria admitir. - E quanto ao botão? Reconhece?
Ela pegou o saco e correu o dedo sobre o pedaço esculpido de osso; então, encarou-o com súplica nos olhos.
- Isso é tudo o que descobriram dela? Só tem isso para me mostrar?
- Descobrimos sinais de luta no arvoredo. - George apontou para o que julgava ser a direção certa. - Entre a casa e o matagal onde encontramos Shep, lá para o fim do vale. Está escuro agora, de modo que não podemos conseguir muito, mas a primeira coisa que faremos pela manhã é realizar uma busca com pente-fino em todo o arvoredo, para tentarmos descobrir mais algum sinal de Alison.
- Mas foi só isso que encontraram? - Agora havia ansiedade em seu rosto.
Ele detestava acabar com suas esperanças, mas não poderia mentir.
- Também encontramos fios de cabelo e um pouco de sangue. Como se ela tivesse batido a cabeça em uma árvore. - Ruth tapou a boca com a mão, contendo um grito. - Mas era muito pouco sangue, senhora Hawkin. Eu garanto, nada que indique qualquer coisa além de um pequeno ferimento.
Os olhos arregalados o fitaram e os dedos da mulher enterraram-se em sua própria face, como se manter fisicamente sua boca fechada pudesse conter sua resposta, de algum modo. Ele não sabia o que fazer ou dizer. Tinha muito pouca experiência com respostas a crises e tragédias. Sempre pedia que os policiais mais velhos ou colegas com mais experiência amortecessem a dor aguda de outras pessoas. Agora estava sozinho e sabia que seu conceito de si mesmo seria medido, para sempre, de acordo com a forma como lidasse com esta mulher abalada.
George inclinou-se sobre a mesa e cobriu a mão livre de Ruth Hawkin com a sua.
- Eu estaria mentindo se dissesse que não há motivo para se preocupar - disse ele -, mas nada indica que Alison tenha sofrido algo grave, muito pelo contrário. Podemos ter certeza de uma coisa pelo menos. Alison não fugiu por conta própria. Sei que isso não parece um grande consolo neste momento, mas significa que não esgotaremos nossos recursos em coisas que não levariam a nada. Sabemos que Alison não fugiu e não pegou um ônibus ou trem, de modo que não faremos com que nossos policiais verifiquem estações de trem ou a rodoviária. Usaremos cada homem disponível em linhas de investigação que realmente nos levem a algum lugar.
A mão de Ruth Hawkin afastou-se da boca.
- Ela está morta, não é? George apertou-lhe a mão.
- Não há razão para pensar nisso.
- Tem um cigarro? Os meus acabaram. - Ela deu uma risada curta e amarga. - Eu deveria ter enviado sua policial até Longnor para me comprar cigarros. Isso teria sido algo útil.
Quando os dois já estavam fumando, ele guardou os sacos plásticos e empurrou o maço de cigarros sobre a mesa.
- Fique com estes. Tenho mais no carro.
- Obrigada. - A tensão pareceu desaparecer por um instante e George viu pela primeira vez o mesmo sorriso que tornava a fotografia de Alison inesquecível.
Ele deixou que a nicotina fizesse algum efeito e, então, disse:
- Preciso de ajuda, senhora Hawkin. Ontem à noite tivemos de trabalhar contra o relógio para encontrar pistas de Alison. E hoje fizemos buscas. São coisas mecânicas e rotineiras que muitas vezes têm sucesso e que precisamos fazer, mas ainda não tive uma chance de sentar com a senhora e conversar sobre o tipo de menina que Alison era. Se alguém a levou... e não vou mentir, já que isso parece cada vez mais provável, preciso saber tudo o que puder sobre ela, para poder estabelecer um ponto de contato entre Alison e esta pessoa. Assim, preciso que me conte sobre sua filha.
Ruth suspirou.
- É uma menina adorável e sempre foi muito esperta. Seus professores dizem que se estudar direitinho poderá cursar uma faculdade. - Ela inclinou a cabeça para o lado. - Você cursou uma faculdade. - Era uma afirmação, não uma pergunta.
- Sim, estudei Direito na Universidade de Manchester. Ela assentiu.
- Então você sabe como é isso de estudar. Nunca precisei mandá-la fazer as lições, sabe, não como Derek e Janet. Acho que ela até gosta dos deveres, embora provavelmente Alison preferisse cortar sua própria língua a admitir uma coisa dessas. Só Deus sabe de quem ela herdou isso. Nem eu nem seu pai estudamos muito. Mal podíamos esperar para abandonar os livros. Mas é bom frisar que ela não chega a ser fanática pelos estudos. Gosta de se divertir e brincar, a nossa Alison.
- O que ela faz para se divertir? - indagou George, com suavidade.
- Os três são loucos por música popular, ela, Janet e Derek. Beatles, Gerry and the Pacemakers, Freddie and the Dreamers, coisas assim. Charlie também, embora não tenha tempo para sentar-se todas as noites para escutar os discos, mas ele vai aos bailes no Pavilion Gardens, e sempre recomenda discos a Alison. Estou sempre dizendo que ela tem mais discos que a própria loja. Uma pessoa precisaria ter mais de duas orelhas para ouvir todos eles. Phil compra-os para ela. Ele vai a Buxton todas as semanas e escolhe os últimos sucessos, além daqueles que Charlie recomenda... - Sua voz sumiu.
- E o que mais ela faz?
- Às vezes, Charlie os leva a Buxton para patinar nas noites de quarta-feira. - Sua respiração ficou presa na garganta. - Ah, meu Deus, eu gostaria que ele a tivesse levado ontem à noite. - Gemeu, com a súbita percepção. Ela abaixou a cabeça e tragou o cigarro com tanta vontade que George chegou a ouvir estalidos. Ao levantar novamente a cabeça, seus olhos estavam cheios de lágrimas e tinham um apelo que atravessava suas defesas profissionais, chegando direto a seu coração. - Encontre-a, por favor - disse, em um gemido.
Ele apertou os lábios e assentiu.
- Acredite, senhora Hawkin, pretendo encontrá-la.
- Mesmo que seja apenas para eu poder enterrá-la.
- Espero que não cheguemos a isso - disse ele.
- Sim. Você e eu. - Ela exalou um fluxo fino de fumaça. - Você e eu. Ele esperou um pouco e, depois, perguntou:
- E quanto a amigos? Com quem ela mantinha alguma intimidade? Ruth suspirou.
- É difícil fazer amigos fora de Scardale. Eles nunca conseguem fazer nada com sua turma depois da escola. Se forem convidados para festas ou algo assim, provavelmente não poderão voltar para casa depois. O mais Próximo que podem ir de ônibus é a Longnor. Assim, simplesmente não fazem muita coisa. Além disso, as pessoas de Buxton têm preconceito contra as de Scardale. Acham que somos todos idiotas de nascença, cruzando com primos o tempo todo - disse, em tom sarcástico. - As crianças sofrem provocações, de modo que ficam perto dos seus quase o tempo todo. Nossa Alison é boa companhia, e ouvi dizer, por seus professores, que é bem popular na escola, mas ela nunca teve o que se chama normalmente de "melhor amiga", exceto por seus primos. Outro beco sem saída.
- Há uma outra coisa - disse George. - Eu gostaria de olhar o quarto de Alison, se não houver problema. Apenas para senti-la mais de perto. - Ele não acrescentou, "e para tirar um pouco dos cabelos de sua escova, para que o pessoal do laboratório possa compará-los com os que encontramos grudados no sangue, na árvore".
Ela se levantou, com movimentos que mais pareciam de uma idosa.
- Liguei o aquecedor lá. Para o caso... - A frase não foi concluída. George seguiu-a pelo corredor, que parecia tão frio quanto na noite anterior. A transição quase cortou-lhe o fôlego. Ruth levou-o por uma escadaria ampla com corrimãos de carvalho quase pretos, devido a anos de polimento.
- Outra coisa - disse ele, enquanto subiam -, presumo que seu atual marido não adotou Alison formalmente, já que seu sobrenome ainda é Carter.
A tensão dos músculos no pescoço e costas da mulher era tão clara, que George quase acreditou que estava sendo levado pela imaginação.
- Phil queria adotá-la. Era a favor disso, mas Alison tinha apenas seis anos quando seu pai... morreu. Tinha idade suficiente para recordar o quanto o amava, mas era jovem demais para ver que ele era um ser humano com defeitos também. Ela acha que, se Phil adotá-la, estará traindo a memória do pai. Acho que com o tempo isso passa, mas minha filha é teimosa e não faz nada que não queira. - Estavam no alto da escada agora, e Ruth voltou-se para ele, com expressão indecifrável e composta. - Eu persuadi Phil a esquecer este assunto, por enquanto.
Ruth apontou além de George, para um corredor que se dobrava em um ângulo estranhamente agudo onde o prédio fora aumentado, em algum período indeterminado.
- O quarto de Alison é o último à direita. Desculpe-me por não lhe fazer companhia - disse, determinada, e George descobriu-se admirando o modo como esta mulher ainda conseguia dominar-se, mesmo sob tão grande pressão.
- Obrigado, senhora Hawkin. Não demorarei.
Ele caminhou pelo corredor, consciente de que ela o olhava, mas mesmo este conhecimento desconfortável não era distração suficiente para evitar que notasse o ambiente. O carpete era gasto, mas obviamente do tipo mais caro. Algumas das pinturas e aquarelas que forravam as paredes estavam manchadas pela idade, mas ainda retinham seu charme. George reconheceu diversas paisagens da parte sul da comarca onde crescera, bem como as casas históricas e conhecidas de Chatsworth Haddon e Hardwick. Ele percebeu que o piso era desigual na curva do corredor, como se os construtores fossem incompetentes em todas as três dimensões. Na última porta à direita, ele fez uma pausa e respirou fundo. Talvez nunca mais estivesse tão perto de Alison Cárter.
O calor que o recebeu como um cobertor parecia curiosamente apropriado para o que era, apesar de seu tamanho, um quarto bem confortável. Uma vez que se localizava em um canto da casa, o quarto de Alison tinha duas janelas, aumentando a sensação de espaço. Elas eram compridas e divididas em quatro por profundas vergas de pedra que revelavam a espessura de quarenta e cinco centímetros das paredes. Ele fechou a porta e se dirigiu para o meio do cómodo.
Lembrou a si mesmo sobre a importância das primeiras impressões. Aquecido: havia uma lareira elétrica, além de um radiador elétrico a óleo. Confortável: a cama espaçosa tinha um cobertor grosso, coberto por cetim verde-escuro e as duas poltronas de vime em forma de cesto continham almofadas volumosas. Moderno: o carpete era felpudo, marrom com espirais verde-oliva e mostarda espalhadas em toda sua extensão, e as paredes eram decoradas com fotografias de astros da música, a maioria recortada de revistas, pela aparência de suas bordas tortas. Caro: havia um guarda-roupa de madeira e uma penteadeira que lhe fazia conjunto, com um espelho comprido e baixo e um banquinho em sua frente, tudo tão impecável que tinham de ser relativamente novos. George vira quartos assim quando ele e Anne estavam escolhendo seus próprios móveis, e tinha uma boa ideia do quanto custavam. Nada barato, isso era certo. Em uma mesa sob a janela, viu um toca-discos Dansette de plástico vermelho-escuro com botões bege-claros. Havia uma pilha grande e desalinhada de discos sob a mesa. Philip Hawkin estava claramente determinado a causar boa impressão em sua enteada, concluiu ele. Talvez pensasse que conseguiria chegar ao coração da menina se lhe desse os bens materiais que ela não tivera na infância, como filha de uma viúva em uma comunidade pobre como Scardale.
George foi até a penteadeira e sentou-se desajeitadamente no banquinho. Olhou seus olhos no espelho. A última vez em que tivera um olhar tão ansioso fora na época em que estudava para seus exames finais. Deixara um pedaço de barba por fazer sob sua orelha direita, um resultado direto da falta de vaidade da fé metodista. A ausência de um espelho na sacristia o forçara a barbear-se na frente do espelho retrovisor. Nenhuma agência respeitável de publicidade o contrataria para promover qualquer coisa, exceto soníferos. Fez uma careta para si mesmo e voltou ao trabalho. A escova de cabelos de Alison estava com as cerdas para cima na penteadeira, de modo que George removeu rapidamente o máximo de fios de cabelos que conseguiu. Felizmente, ela não era excessivamente caprichosa e ele conseguiu reunir algumas dúzias deles, que transferiu para um saco plástico vazio.
Então, com um suspiro, iniciou a busca desagradável nos pertences pessoais de Alison. Meia hora depois, não encontrara nada de inesperado. Chegara a folhear cada um dos livros na pequena estante junto à cama. Nancy Drew, The Famous Five, Chalet School, Georgette Heyer, O Morro dos Ventos Uivantes ejane Eyre não continham nem segredos nem surpresas. Uma edição bastante manuseada de Golden Treasury, de Palgrave, continha apenas poesia. A penteadeira revelou apenas roupas íntimas de uma adolescente, alguns sutiãs bastante pudicos, meia dúzia de sabonetes perfumados, meio pacote de absorventes higiênicos, uma caixinha de jóias que continha alguns brincos baratos e um bracelete de prata para bebês, no qual estava gravado "Alison Margaret Carter". A única coisa que ele esperava encontrar, mas não achou, era uma Bíblia. Por outro lado, Scardale era tão isolada do resto do mundo que ainda poderiam estar adorando uma deusa da colheita. Talvez os missionários nunca tivessem chegado a este lugar.
Uma pequena caixa de madeira sobre a penteadeira ofereceu-lhe itens mais interessantes. Ela continha meia dúzia de fotografias em preto-e-branco, a maior parte enrolando-se para dentro e amarelando nas bordas. Ele reconheceu uma Ruth Hawkin jovem, com a cabeça jogada para trás em uma risada, olhando para um homem de cabelos escuros cuja cabeça abaixava-se em timidez desajeitada. Havia duas outras fotografias do casal, de braços dados e expressões despreocupadas, todas obviamente tiradas na Golden Mile
em Blackpool. Lua-de-mel?, cogitou George. Sob elas, havia duas fotos do mesmo homem, com seus cabelos escuros caídos na testa. Vestia roupas de trabalho, um cinto largo segurando as calças que pareciam ter sido feitas para um homem com torso muito mais longo. Em uma, estava de pé sobre um arado preso a um trator. Na outra, estava agachado ao lado de uma criança loira, que sorria feliz para a câmera. Alison, sem dúvida. A fotografia final era mais recente, a julgar por suas margens brancas, e mostrava Charlie Lomas e uma mulher idosa, encostados em uma parede de pedra, com rochedos turvos de calcário ao fundo. O rosto da mulher era obscurecido por um chapéu de palha cuja aba ampla era forçada para baixo sobre suas orelhas por um lenço, amarrado sob o queixo. Tudo o que se podia ver era a linha reta de sua boca e o queixo protuberante, mas estava claro, pelo corpo encurvado e desajeitado, que a mulher era velha demais para ser a mãe de Charlie Lomas. Como se tivessem sido capturados por um fotógrafo da era vitoriana, mantidos imóveis por alertas contra movimentos durante a exposição, Charlie, o rosto sem expressão, olhava diretamente para a câmera. Seus braços estavam cruzados no peito e ele parecia tão rude e desafiador quanto qualquer rapazote que George já vira alegando inocência em uma delegacia.
- Fascinante - murmurou.
As fotografias do pai da menina eram previsíveis, embora ele tivesse esperado vê-las em uma moldura e em exibição no quarto. Contudo, o fato de a única outra imagem guardada com carinho por Alison incluir o primo que fizera a conveniente descoberta no matagal era, no mínimo, algo muito interessante para uma mente treinada em suspeitas como a de George. Com cuidado, ele recolocou as fotos na caixa. Depois, pensando melhor, tirou aquela de Charlie e da velhinha e enfiou-a em seu bolso.
George encontrou as primeiras amostras da caligrafia de Alison no meio dos discos. Em tiras de papel rasgadas de cadernos escolares, encontrou fragmentos de letras de músicas que, obviamente, tinham algum significado para a menina. Frases de Devil in Disguise, de Elvis Presley, Ws My
Início da Nota de Rodapé: Nome de um espaço com aproximadamente uma milha (1,6km), famoso por casas de Jogos eletrônicos e locais de diversão em Blackpool, Inglaterra. Fim da Nota de Rodapé.
Party (And Vil Cry if - Want To), de Lesley Gore, It's Ali in the Game, de Cliff Richard e - (Who Have Nothing), de Shirley Bassey, pintavam um quadro inquietante de infelicidade, que não combinava com a imagem da garota que todos haviam projetado. As letras falavam de amor e traição, perda e solidão. George sabia que não havia nada de estranho na experiência dessas sensações por adolescentes, que muitas vezes acreditavam ser os únicos que as tinham. Contudo, se estas eram as emoções de Alison Carter, a menina fora muito eficiente no sentido de mantê-las em segredo.
Isto era uma pequena incongruência, mas a única encontrada por ele, que enfiou as tiras de papel em outro saco plástico. Não havia razão real para imaginar que pudessem servir como provas, mas era melhor prevenir. Nunca se perdoaria caso um único detalhe menosprezado se revelasse crucial. Isso não apenas prejudicaria sua carreira, mas, bem mais importante, deixaria o assassino de Alison à solta. Ele parou no meio do caminho, quando já ia abrir a porta.
Era a primeira vez que admitia a si mesmo o que sua lógica profissional mostrava como sendo a verdade. Não estava mais procurando por Alison Carter. Estava procurando seu corpo. E seu assassino.
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 18h23
George caminhou pesadamente pela estradinha na frente do solar. Pretendia conferir as novidades no centro de operações na igreja metodista e, depois, deixar as amostras de cabelos no QG da divisão em Buxton. Finalmente, iria para casa tomar um banho quente, fazer uma refeição quente e dormir algumas horas, ou seja, tudo o que se parecia com uma vida normal em uma investigação como esta. Mas, primeiro, queria trocar algumas palavras com o jovem Charlie Lomas.
Mal havia chegado à praça do vilarejo quando uma figura saiu das sombras, na sua frente. Assustado, parou e arregalou os olhos, esforçando-se para acreditar no que estava vendo. Seu cansaço fez com que um riso nervoso lhe subisse à garganta, mas conseguiu sufocá-la antes que se derramasse no ar nevoento da noite. A forma definira-se em algo que um artista teria adorado. A mulher encurvada que o espiava era o arquétipo da bruxa encarquilhada, desde o nariz de águia que quase se encontrava com o queixo até a verruga com pêlos nascentes e xale preto cobrindo a cabeça e os ombros. Tinha de ser a velhota da fotografia em seu bolso. A estranha e súbita coincidência provocou um tapinha involuntário no bolso que continha a imagem da criatura à sua frente.
- Então você é o chefe - disse ela, em uma voz que soava como um portão que rangesse estridente.
- Sou o detetive-inspetor Bennett, se é o que quer dizer, senhora - respondeu ele.
A pele da mulher enrugou-se em uma expressão de desdém.
- Títulos pomposos - disse. - Perda de tempo em Scardale, rapazinho. Olhe, todos vocês estão perdendo tempo. Ninguém tem imaginação suficiente para entender o que está acontecendo aqui. Scardale não é como Buxton, sabe? Alison Carter não está onde deveria estar, e a resposta está na cabeça de alguém de Scardale, não na floresta, esperando ser descoberta como uma raposa em uma armadilha.
- Talvez então eu pudesse contar com sua ajuda, senhora...?
- E por que eu o ajudaria, senhor? Sempre resolvemos nossos assuntos sozinhos. Não sei o que deu em Ruth para chamar estranhos ao vale. - Quando ela ia passá-lo na trilha, George deu um passo para o lado e a impediu de seguir em frente.
- Uma menina desapareceu - falou, com suavidade. - Isto é algo que Scardale não pode resolver por si mesma. Quer a senhora goste ou não, ainda vive no mundo real. Mas precisamos de sua ajuda, tanto quanto precisam da nossa.
A mulher subitamente pigarreou alto e cuspiu no chão, aos pés de George.
- Até que vocês me mostrem algum sinal de que sabem o que deveriam estar procurando, esta é toda a ajuda que terão de mim, senhor.
Num rompante, ela deu meia-volta e enveredou pela praça, com pés surpreendentemente rápidos para uma mulher que, em sua opinião, devia ter, no mínimo, oitenta anos de idade. George continuou olhando até que a bruma a engoliu, como um homem que se descobre vítima de uma dobra do tempo.
- Já conheceu Mamãe Lomas então? - perguntou o detetive-sargento Clough com um grande sorriso, aparecendo do nada.
- Quem é Mamãe Lomas? - perguntou George, confuso.
- A questão não deveria ser "Quem é Mamãe Lomas", mas "O que ela é?" - disse Clough, em tom solene. - Mamãe é a matriarca de Scardale. É a habitante mais velha, a única que sobrou de sua geração. Diz que celebrou seus vinte e um anos no Jubileu do Diamante da rainha Vitória,
mas não tenho certeza.
- Parece idosa o suficiente para isso.
- Sim, mas me diga quem, em Scardale, chegou mesmo a saber que Vitória estava no trono e, mais ainda, por quanto tempo permaneceu nele? Hein? - Clough finalizou, com um sorriso zombeteiro.
- Então, onde é que ela se encaixa? Qual é seu parentesco com Alison? Clough encolheu os ombros.
- Quem sabe? Bisavó, prima em segundo grau, tia, sobrinha? Todas as opções acima? Teria de ser muito esperto para entender todas as ligações entre este pessoal, senhor. Tudo o que sei é que, de acordo com o policial Grundy, ela serve de olhos e ouvidos do mundo por aqui. Nem um rato emite um pum em Scardale sem que Mamãe Lomas saiba.
- E ainda assim não parece disposta a nos ajudar a encontrar uma menina desaparecida. Uma menina que é sua parente. O que acha disso?
Clough tornou a sacudir os ombros.
- São todos iguais. Não gostam de estranhos em nenhuma circunstância.
- Foi este o tipo de atitude que você e Cragg encontraram ontem à noite quando perguntaram às pessoas se haviam visto Alison Carter?
- Na maioria das vezes. Eles respondem às perguntas, mas nunca dizem espontaneamente uma única coisa além do que lhes perguntamos.
- Você acha que todos diziam a verdade, isto é, não viram mesmo Alison? - indagou George, tateando seus bolsos em busca dos cigarros.
Clough estendeu-lhe seu próprio maço, enquanto George lembrava que dera o seu a Ruth Hawkin.
Início da Nota de Rodapé: Descoberto em 1895 e denominado primeiramente Reitz, em homenagem ao sr. F. W. Reitz, presidente do Estado libero de Orange, este diamante foi chamado de Jubileu em 1897 por ser uma lembrança à rainha Vitória da Inglaterra no jubileu do 16º aniversário de seu reinado. Fim da Nota de Rodapé.
- Aí está - disse Clough. - Acho que não estavam mentindo. Mas todos poderiam muito bem estar retendo informações relevantes. Especialmente se não sabíamos quais seriam as perguntas certas.
- Teremos de falar com todos novamente, não acha? - disse George, suspirando.
- Acho que sim, senhor.
- Mas isto terá de esperar até amanhã. Exceto pelo jovem Charlie Lomas. Por acaso você sabe onde ele está?
- Um dos nabos o levou ao salão da igreja metodista para prestar depoimento. Talvez meia hora atrás - disse Clough, sem dar grande importância ao fato.
- Não quero mais ouvir este tipo de coisa, sargento - disse George, com o cansaço transformando-se em irritação.
- O quê? - perguntou Clough, parecendo confuso.
- Nabo é um vegetal que se dá a ovelhas. Já conheci muitos agentes do departamento de investigações criminais que se qualificariam bem mais como vegetais que a maior parte dos policiais fardados. Precisamos da cooperação dos policiais fardados neste caso, e não quero que você estrague tudo com essa forma desrespeitosa de tratamento. Está claro, sargento?
Clough coçou o queixo.
- Bem claro, mas como não terminei nem o segundo grau na escola, não sei se conseguirei lembrar.
George sabia que este era um momento decisivo.
- Vou lhe dizer uma coisa, sargento. No fim deste caso, lhe darei um maço de cigarros por conta de cada dia que você conseguir lembrar-se disso.
Clough abriu um amplo sorriso.
- Ah, isso é o que chamo de incentivo!
- Vou falar com Charlie Lomas. Quer vir comigo?
- Será um prazer, senhor.
George começou a andar na direção de seu carro, mas parou de repente olhando para o sargento com uma ruga na testa.
- Mas o que você está fazendo aqui, por falar nisso? Achei que ainda estaria no turno da noite até o fim de semana!
Clough parecia embaraçado.
- Ainda estou no turno da noite, mas decidi vir esta tarde. Queria dar uma mãozinha. - Ele deu um sorriso maroto. - Está tudo bem, senhor. Não pretendo cobrar hora extra.
George tentou esconder sua surpresa.
- É muita gentileza sua - disse.
Enquanto encaminhavam-se para a estrada de Scardale, George pensou na capacidade do sargento para confundi-lo. Considerava-se bom juiz de caráter; porém, quanto mais conhecia Tommy Clough, mais contradições descobria nele.
Clough parecia rude e vulgar, sempre o primeiro a pagar uma rodada de bebida, sempre o mais ruidoso e com as piadas mais sujas. Contudo, seu histórico de detenções feitas falava de alguém diferente, de um investigador sutil e sensato, que preferia descobrir os pontos fracos dos suspeitos e pressioná-los até vê-los ceder e lhe dizer o que desejava ouvir. Ele era sempre o primeiro a grudar os olhos em uma mulher atraente, mas vivia sozinho em um apartamento de solteiro com vista para o lago em Pavilion Gardens. Fora até lá uma vez buscá-lo para o comparecimento imprevisto em um tribunal. Achava que o encontraria em um pardieiro, mas o apartamento era limpo, maravilhosamente decorado e cheio de álbuns de jazz, com as paredes decoradas com desenhos a bico-de-pena de pássaros britânicos. Clough parecera desconcertado por encontrá-lo em sua porta, esperando para entrar, e se aprontara para sair em tempo recorde.
Agora, o homem que era sempre o primeiro a cobrar por qualquer minuto a mais trabalhado cedera seu tempo livre para percorrer a zona rural de Derbyshire em busca de uma menina de cuja existência ele não tivera conhecimento sequer vinte e quatro horas antes. George sacudiu a cabeça. Imaginou se Tommy Clough não o consideraria esquisito também. Por alguma razão, duvidava disso.
Deixou suas reflexões de lado e apresentou sua suspeita sobre Charlie Lomas a seu sargento.
- Não é muito, eu sei, mas não temos mais nada no momento - concluiu.
- Se ele tem algo a esconder, não fará mal nenhum perceber que levamos o caso muito a sério - disse Clough, sombrio. - E se tem um segredo, não conseguirá mantê-lo por muito tempo.
O salão da igreja tinha um clima curiosamente quieto. Alguns policiais uniformizados estavam processando relatórios e outros documentos burocráticos. Peter Grundy e um sargento que George não conhecia examinavam mapas detalhados da área próxima, eliminando as já percorridas com quadrados grossos feitos a lápis. No fundo da sala, a figura desengonçada de Charlie Lomas estava sentada em uma cadeira de madeira dobrável, com as pernas enroladas uma na outra e os braços abraçando o próprio peito. Um policial estava sentado à sua frente, separado por uma mesa de jogo sobre a qual ele redigia atentamente um depoimento.
George foi até Grundy e levou-o para um canto.
- Pretendo trocar uma palavrinha com Charlie Lomas. O que você pode me dizer sobre o garoto?
Imediatamente, o rosto do policial de Longnor tornou-se impassível.
- Em que sentido, senhor? - perguntou, em tom formal. - Não se sabe nada sobre o garoto.
- Sei que não tem ficha policial - falou George. - Mas esta é sua área. Você tem parentes em Scardale...
- Minha esposa tem - interrompeu-o Grundy.
- Que seja, tanto faz. Você deve ter alguma impressão sobre ele. Do que é capaz.
Suas palavras ficaram suspensas no ar. No rosto de Grundy, formou-se lentamente uma expressão de hostilidade indignada.
- Você não pode estar pensando que Charlie tem algo a ver com o desaparecimento de Alison! - Seu tom era de absoluta incredulidade.
- Quero esclarecer algumas coisas, e seria útil se eu tivesse alguma idéia do tipo de garoto com quem falarei - disse George, cansado. - É só isso. E então, como ele é, Grundy?
Grundy olhou à sua direita e, depois, à esquerda, depois para a frente outra vez, como uma criança esperando para atravessar corretamente uma estrada. Contudo, não havia como fugir dos olhos de George. Assim, coçou a pele macia atrás de sua orelha e respondeu:
- Charlie é um bom rapaz, mas está em uma idade difícil. Todos os garotos desta idade vão à cidade e tomam umas e outras para tentar sair-se bem com as meninas, mas por aqui isso não é tão fácil. Outra coisa sobre Charlie é que é muito esperto. O suficiente para saber que poderia ser qualquer coisa na vida, se pudesse sair de Scardale, só que não tem coragem para fazer isso, por enquanto. Assim, ele se mostra um pouco atrevido de vez em quando, demonstrando sua insatisfação sem meias-palavras e com bastante grosseria. Mas seu coração está onde deveria estar. Ele mora em um chalé com Mamãe Lomas, porque ela não consegue fazer tudo sozinha e a família gosta de saber que há alguém por perto para trazer carvão e fazer coisas para a velhota. Esta vida não é grande coisa para um garoto de sua idade, mas é a única coisa da qual ele nunca se queixa.
- Ele tinha intimidade com Alison?
George percebeu que Grundy pesava até onde poderia responder. Esta era uma das partes mais difíceis de seu emprego, ter de permanecer firme no comando e demonstrar sua autoridade com seus colegas.
- Todos são íntimos uns dos outros por aqui - disse Grundy finalmente. - Não há qualquer problema entre ele e Alison, pelo menos até onde eu saiba.
Entretanto, não era em problemas que George estava interessado, no que se referia aos dois primos de Scardale.
Percebendo que já extraíra tudo que podia de Grundy, agradeceu e rumou para o fundo do salão, rezando para não parecer tão exausto quanto se sentia. Provavelmente, teria de esperar até a manhã para interrogar Charlie Lomas, mas preferia fazer isto agora, quando o garoto já estava com a guarda levantada. Além disso, sempre havia uma chance em um milhão de que Alison ainda estivesse viva, e Charlie Lomas poderia saber de algo que esclareceria o paradeiro da menina. Ainda que a chance fosse muito pequena, não podia ser desperdiçada.
Enquanto se aproximava, George pegou uma cadeira e a largou casualmente no terceiro lado da mesa, em ângulo reto com Charlie e o policial fardado. Sem que precisassem mandá-lo, Grundy fez o mesmo, ocupando o quarto lado da pequena mesa e cercando Charlie. Os olhos deste foram de um para outro, enquanto se remexia em seu assento.
- Você sabe quem eu sou, não é, Charlie? - perguntou George. O jovem assentiu.
- Fale quando lhe dirigirem a palavra - comandou Clough, áspero. - Aposto que isso é o que sua avó sempre lhe diz. Ela é sua avó, não é? Quer dizer, não é sua tia, sobrinha ou prima, não é? É difícil saber dessas coisas,
por aqui.
Charlie retorceu a boca para um lado e balançou a cabeça.
- Não há necessidade disso - protestou. - Estou ajudando no que posso.
- E somos muito gratos por você ter vindo prestar seu depoimento voluntariamente - disse George, incorporando sem esforço o papel de Policial Bonzinho, enquanto Clough parecia ser o Policial Malvado. - Já que estamos aqui, queria fazer-lhe uma ou duas perguntas, está bem?
Charlie respirou ruidosamente pelo nariz.
- Tá. Vá em frente.
- Ficamos impressionados por você encontrar aquele ponto remexido no meio do arvoredo - disse George. - Uma equipe inteira já havia passado por ali antes, e ninguém viu um traço sequer do lugar.
Charlie conseguiu encolher os ombros sem realmente soltar qualquer de seus membros do abraço que dava em si mesmo.
- Conheço o vale como a palma da minha mão. Quando se conhece bem um lugar, a mínima mudança salta aos olhos, só isso.
- Mas você não foi o único de Scardale a andar por ali, apesar de ser o primeiro a perceber.
- Ah, bem, acontece que meus olhos são melhores que os dos velhotes daqui - disse ele, tentando impressionar, mas sem fazer muito esforço.
- Olhe, estou interessado, porque notamos que às vezes pessoas que se envolveram em um crime tentam incluir a si mesmas na investigação - disse George, baixinho.
O corpo de Charlie liberou-se como se galvanizado. Seus pés bateram no chão e seus antebraços golpearam a mesa. Os policiais que estavam mais à frente no salão voltaram-se, assustados.
- Você é um doente - disse ele.
- Não sou doente, mas acho que alguém daqui é. Minha tarefa é descobrir quem. Agora, se alguém queria raptar ou fazer mal a Alison, seria muito mais fácil se fosse alguém conhecido, ou em quem ela confiasse. Obviamente, você a conhece. Ela é sua prima, cresceram juntos. Você indica discos e o padastro os compra para ela. Você senta perto do fogo com ela em sua casa, enquanto sua avó desfia suas histórias sobre o passado na ensolarada Scardale. Você a leva ao rinque de patinação em Buxton às quartas-feiras. - George encolheu os ombros. - Você não teria problema para persuadi-la a ir a algum lugar em sua companhia.
Charlie afastou-se violentamente da mesa e enfiou as mãos trêmulas nos bolsos das calças.
- E daí?
George mostrou-lhe a fotografia que encontrara no quarto da menina.
- Alison guardava uma foto sua no quarto - foi tudo o que disse. O rosto do garoto contorceu-se e ele cruzou as pernas.
- Deve ter feito isso por causa de Mamãe Lomas - disse, insistente.
- Alison adora Mamãe, e a velha bruxa detesta que tirem sua foto. Acho que essa aí é a única foto que já conseguiram bater dela.
- Será, Charlie? - interveio Clough. - Meu chefe e eu achamos que Alison gostava de você de um jeito especial. Uma garota bonita como aquela ao seu lado, adorando o chão em que você pisa... não conheço muitos garotos que diriam não a isto, você conhece? Especialmente uma garota adorável como Alison. Uma fruta madura, pronta para ser colhida, pronta para cair bem na sua mão. Tem certeza de que não era isso, Charlie?
O garoto remexeu-se, sacudindo a cabeça.
- O senhor entendeu tudo errado.
- Será? - perguntou George, gentil. - Então nos conte como era, Charlie. Será que era embaraçoso andar ao lado da garota quando você saía para patinar? Será que Alison estragava seus planos com as meninas mais velhas? Será que era este o problema? Você se encontrou com ela no vale ontem, na hora do chá? Será que perdeu a paciência com sua prima?
Charlie abaixou a cabeça e respirou fundo. Depois, ergueu-a e voltou-se para fitar George.
- Eu não entendo. Por que estão me tratando assim? Fiz o que podia para ajudar. Ela é minha prima. É parte de minha família. Nós cuidamos uns dos outros aqui em Scardale. Não é como em Buxton, onde ninguém dá a mínima para os outros. - Ele apontou para cada um dos policiais. - Vocês deveriam estar lá fora, procurando por ela, não aqui me insultando.
- Levantou-se em um pulo. - Sou obrigado a ficar aqui?
George levantou-se, e fez um gesto na direção da porta.
- Pode ir se quiser, senhor Lomas, mas precisaremos conversar novamente.
Clough levantou-se e se colocou do lado de George, enquanto Charlie saía com seus ossos desengonçados e sua imensa raiva.
- Ele não tem nada a ver com isso - disse.
- Parece que não - concordou George. Os dois homens seguiram no rastro de Charlie, fazendo uma pausa junto à porta, enquanto o jovem afastava-se pela estrada de Scardale. George olhou-o, pensativo. Depois, pigarreou. - Vou para casa agora. Volto antes de amanhecer. Você está no comando, pelo menos do departamento de investigações, até meu retorno.
Clough riu e sua risada pareceu morrer em uma lufada de hálito branco no ar opressivo da noite.
- Eu e Cragg, é? Isso dará o que falar aos patifes. Você desejava seguir alguma linha específica de investigação lá dentro?
- Quem quer que tenha levado Alison, deve tê-la tirado do vale, de algum modo - disse George, quase que pensando em voz alta. - Ele não poderia tê-la levado durante muito tempo, não uma adolescente com desenvolvimento normal de treze anos. Se ele a levou pelo vale de Scardale até Denderdale, teria de andar cerca de seis quilômetros antes de chegar a uma estrada. Mas se a trouxe até aqui pela estrada de Longnor, provavelmente a distância é de cerca de dois quilômetros. Por que você e Cragg não vão de porta em porta em Longnor, hoje à noite, para ver se alguém percebeu um veículo estacionado no acostamento, próximo à entrada para Scardale?
- Tem razão, senhor. Encontrarei o detetive Cragg e partiremos imediatamente.
George voltou à central móvel de operações e providenciou para que os cães farejadores trabalhassem em Denderdale na manhã seguinte, passou meia hora na delegacia de Buxton preenchendo formulários de requisição para que o laboratório examinasse o material colhido no arvoredo e na escova de cabelos de Alison e, então, finalmente se pôs a caminho de casa.
Os habitantes de Scardale teriam de esperar até o dia seguinte.
7
Quinta-feira, 12 de dezembro de 1963, 20h06
George não se lembrava da última vez em que fechara sua porta da frente com tamanha sensação de alívio. Antes de sequer tirar o chapéu, a porta que dava para a sala abriu-se e Anne estava ali, dando três pequenos passos e se aninhando entre seus braços.
- É ótimo estar em casa - disse ele num suspiro, inalando o aroma almiscarado dos cabelos da esposa, consciente também de que não se lavara desde a noite anterior.
- Você trabalha demais - ela o repreendeu, suavemente. - Ninguém lucrará se você morrer de cansaço. Venha, a lareira está acesa e não levarei cinco minutos para aquecer sua comida. - Ela afastou-se um pouco do abraço e olhou-o criticamente. - Você parece exausto. Recomendo um banho quente e cama tão logo termine de comer e tomar seu chá.
- Prefiro tomar o banho antes, se a água está quente.
- Tudo bem, a banheira está cheia. Eu ia tomar meu banho, mas é melhor você aproveitar a água. Tire a roupa, e eu vou ajudá-lo. - Ela empurrou-o gentilmente para as escadas.
Meia hora depois, ele estava de roupão à mesa da cozinha, devorando uma porção generosa de cozido de carne com cenoura, acompanhado por um prato com pão e manteiga.
- Desculpe, não temos batata - disse Anne. - Achei que pão com manteiga seria mais rápido e sabia que você precisaria comer alguma coisa logo que chegasse, já que nunca come direito quando está trabalhando.
- Humm - concordou ele, com a boca cheia.
- Encontraram a menina, então? A que desapareceu? Foi por isso que voltou para casa?
A comida em sua boca pareceu congelar-se em um bolo indigerível. George forçou-a garganta abaixo. Sentia-se como se engolisse uma bola de pêlos do tamanho de uma bola de golfe.
- Não - respondeu, olhando para seu prato. - E acho que não a encontraremos viva, se chegarmos a encontrá-la.
O rosto de Anne empalideceu.
- Mas isso é horrível, George. Como pode ter certeza? Ele sacudiu a cabeça e suspirou.
- Não tenho certeza, mas sabemos que ela não foi embora espontaneamente. Não me pergunte como, mas sabemos. O tipo de família no qual foi criada não atrairia seqüestradores. Além disso, pessoas que roubam crianças não as mantêm vivas por muito tempo. Assim, meu palpite é de que já está morta e, se não estiver, estará quando e se a encontrarmos, porque não temos absolutamente nenhuma pista. O pessoal do vilarejo age como se fôssemos o inimigo, não pessoas que querem ajudá-los, e é tão difícil fazer buscas naquela área que parece que até isso conspira contra nós. - Ele empurrou o prato e pegou os cigarros de Anne.
- Que horror. Como a mãe consegue lidar com o que está acontecendo?
- Ruth Hawkin é uma mulher forte. Acho que se alguém cresce em um lugar onde a vida é tão difícil quanto em Scardale, aprende a curvar-se em vez de quebrar. Mas não sei como está suportando. Ela perdeu o primeiro marido em um acidente na fazenda, sete anos atrás, e agora isto. O novo marido também não é muito útil. Um daqueles coitados egoístas que vêem tudo em termos de como os afetará.
- O quê? Ah, sim, um homem normal - brincou ela.
- Engraçadinha. Não sou assim. Não espero que meu chá esteja servido quando entro pela porta, entende? Você não precisa me servir o tempo todo.
- Você logo enjoaria de mim se eu não o servisse.
George deixou passar, com um encolher de ombros e um sorriso.
Acho que tem razão. Nós, homens, nos acostumamos a ser cuidados por vocês, mulheres. Mas, se tivéssemos um filho e ele sumisse, acho que não "caria exigindo meu chá antes de minha mulher sair à procura dele.
- O marido fez isso?
- Sim, de acordo com uma testemunha. - Ele sacudiu a cabeça. - Eu não deveria lhe contar essas coisas.
- E a quem eu contaria? As únicas pessoas que conheço aqui são as esposas dos outros policiais e elas não são exatamente minhas amigas do peito. As da minha idade são esposas de policiais inferiores na hierarquia, de modo que não confiam em mim, especialmente porque sou professora e nenhuma delas jamais fez algo mais difícil que trabalhar em uma lojinha ou em um escritório. E as esposas dos mais graduados são todas mais velhas que eu e me tratam como se eu fosse uma boba. Assim, pode ter certeza de que não sairei contando fofocas sobre seu caso, George - disse Anne, com um quê de irritação.
- Desculpe. Sei que não está sendo fácil fazer novas amigas aqui. - Ele tomou a mão da esposa na sua.
- Não sei como eu reagiria se perdesse um filho. - Quase que inconscientemente, a mão deslizou para o ventre.
Os olhos de George estreitaram-se.
- Está me escondendo alguma coisa? - perguntou, olhando-a com atenção.
A pele clara de Anne ruborizou-se.
- Não sei, George. É só que... bem, minhas regras estão atrasadas. Uma semana de atraso. Então... Desculpe, meu amor, eu não queria dizer nada até ter certeza, bem no meio de sua investigação sobre uma criança desaparecida. Mas, sim, acho que posso estar grávida.
Um sorriso vagaroso espalhou-se pelo rosto de George, enquanto assimilava as palavras:
- Mesmo? Vou ser papai?
- Pode ser alarme falso, mas nunca atrasei antes - falou Anne, parecendo quase apreensiva.
George levantou-se rapidamente e a tirou de sua cadeira, girando com a esposa em um abraço de alegria.
- É maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso. Pararam, e ele a beijou com paixão, murmurando:
- Eu a amo, senhora Bennett.
- Eu o amo também, senhor Bennett.
George puxou-a para junto de seu corpo, enterrando o rosto entre seus cabelos. Um filho. Seu filho. Tudo o que tinha de fazer agora era descobrir como lidar com o problema enfrentado por todos os pais desde Adão: como proteger seu filho.
Até este ponto, Alison Carter havia sido um caso importante para o detetive-inspetor George Bennett. Agora, tinha importância simbólica. Transformara-se em uma cruzada.
Em Scardale, o humor era tão soturno quanto os penhascos de calcário que cercavam o vale. A experiência de Charlie Lomas nas mãos da polícia correra o vilarejo com a mesma rapidez que as notícias sobre o desaparecimento de Alison. Enquanto as mulheres conferiam ansiosa e regularmente se os filhos estavam dormindo em suas camas, os homens se reuniam na cozinha do chalé em que Ruth e a filha haviam morado até o casamento com Hawkin.
Terry Lomas, pai de Charlie, mascava a ponta de seu cachimbo e se queixava da polícia:
- Eles não têm o direito de tratar nosso Charlie como criminoso - disse.
O irmão mais velho de Charlie, John, disse, com uma expressão severa:
- Eles não têm idéia do que aconteceu com nossa Alison. Usaram Charlie apenas como exemplo, para parecer que estão fazendo algo.
- Mas não vão deixar as coisas assim, vão? - perguntou Robert, tio de Charlie. - Interrogarão cada um de nós, um por um, se não conseguirem nada de Charlie. Aquele Bennett está com idéia fixa no caso de Alison, qualquer um percebe.
- Mas isso é bom, não é? - Ray Carter questionou. - Significa que está fazendo seu trabalho direitinho. Não sossegará até obter uma resposta.
- Tudo bem, se for a resposta certa - falou Terry.
- É - disse Robert, pensativo. - Mas como podemos garantir que ele não se desviará do que deveria estar fazendo porque está ocupado demais Perseguindo pessoas como o pobre Charlie? O menino não é muito durão, todos nós sabemos. Logo começarão a colocar palavras em sua boca. A gente sabe que, se não pegarem o homem certo, decidirão pegar Charlie de qualquer modo, e que se dane o resto.
- Temos duas opções - disse Jack Lomas. - Podemos fechar a boca. Não lhes diremos nada, exceto o que precisamos dizer para proteger Charlie. Logo perceberão que precisam encontrar outro bode expiatório. Ou podemos retroceder e ajudá-los. Talvez assim percebam que perseguir as pessoas que cuidaram de nossa Alison não ajudará em nada, no sentido de encontrarem quem a pegou, quem quer que seja.
Houve um grande silêncio na cozinha, pontuado pelo ruído de Terry chupando seu cachimbo. Finalmente, o velho Robert Lomas falou:
- Acontece que podemos fazer as duas coisas.
Sem George, o trabalho prosseguiu. As equipes de busca haviam encerrado os trabalhos por aquele dia, mas, no centro de operações, policiais fardados faziam planos para o dia seguinte. Já haviam aceitado ofertas dos voluntários do Exército Territorial
local e dos cadetes da RAF, que deveriam juntar-se às buscas no fim de semana. Ninguém verbalizava seus pensamentos, mas o pessimismo era geral. O que não significava que não cobririam cada centímetro de Derbyshire, se precisassem.
Em Longnor, Clough e Cragg estavam fartos de chá, mas famintos por pistas. Uma vez que todos dormiam mais cedo em comunidades rurais que em Buxton, eles haviam decidido encerrar os trabalhos às nove e meia da noite. Pouco antes desse horário, Clough teve sorte. Um casal idoso voltava das compras de Natal em Leek e havia percebido um Land Rover estacionado na grama, ao lado da capela metodista.
- Faltava pouco para as cinco da tarde - disse o marido, confiante.
- O que o fez notar o veículo? - perguntou Clough.
- Sempre vamos à capela - disse ele. - Em geral, apenas o pastor estaciona ali. Os fiéis deixam seus carros na beira da estrada. Todos sabem que deve ser assim.
- Você acha que o motorista estacionou fora da estrada para evitar ser notado?
.- Suponho que sim. Ele não sabia que, sendo um estacionamento exclusivo, isso chamaria mais ainda a atenção, entende?
Clough fez que sim e perguntou:
- Vocês viram o motorista? Os dois sacudiram a cabeça.
- Estava escuro - comentou a esposa. - Não havia qualquer luz acesa no carro e logo passamos por ele.
- Havia algo diferente no Land Rover? Era um veículo comprido ou menor? De que cor? Tinha capota fixa ou era conversível? Memorizaram alguma letra ou número da placa? - indagou Clough.
Novamente, os dois sacudiram as cabeças, em dúvida.
- Não estávamos prestando muita atenção, para ser honesto - falou o marido. - Conversávamos sobre a feira agropecuária. Um camarada de Longnor conquistou um dos primeiros prêmios e fomos convidados por ele para bebermos algo em Leek. Acho que metade da aldeia estaria lá, mas decidimos vir para casa. Minha esposa queria decorar a árvore de Natal.
Clough olhou à sua volta e viu as correntes de papel feitas em casa e a árvore de Natal artificial, cheia de cordões patéticos com luzes coloridas e uma guirlanda de ouropel que parecia ter sido mastigada desde o Natal anterior por um cachorro.
- Estou vendo - disse ele, com o rosto sério.
- Gosto de ter tudo pronto no dia da feira - disse a mulher, com orgulho. - Só então sentimos que o Natal está próximo, não é, pai?
- É isso mesmo, Dóris, bem assim. Como pode ver, sargento, nossas mentes não estavam ligadas no Land Rover.
Clough levantou-se e sorriu.
- Não se preocupem - falou ele. - Pelo menos vocês perceberam o carro. Isso é mais que qualquer outra pessoa na aldeia conseguiu lembrar.
- Estão todos ocupados demais celebrando a novilha de Alec Grundy comentou o homem, com ar de sábio.
Clough agradeceu-lhes novamente e partiu, encontrando-se com Cragg no bar mais próximo. Nunca achou que a regra sobre não beber durante o serviço devia ser aplicada com rigidez especialmente no turno da noite.
Como óleo de alta qualidade em uma máquina, alguns drinques sempre azeitavam sua mente. Consumindo uma cerveja Marston's Pedigree, ele contou o que ouvira a Cragg.
- Isso é ótimo - exclamou Cragg, entusiasmado. - O professor gostará da novidade.
Clough fez uma careta.
- Até certo ponto. Ele gostará de saber que temos duas testemunhas que viram um Land Rover estacionado onde o povo daqui não costuma estacionar. Ele gostará de saber que isto aconteceu por volta do mesmo horário em que Alison desapareceu. - Então Clough lhe disse o que, em sua opinião, desagradaria George.
- Que merda! - disse Cragg.
- É. - Clough baixou o conteúdo de seu copo em cinco centímetros, em um único gole. - Que merda.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 5h35
George entrou na delegacia de Buxton pela porta da frente e encontrou um policial fixando sininhos natalinos de papel sanfonado na parede com percevejos.
- Muito festivo - resmungou. - O sargento Lucas está?
- Creio que o senhor pode alcançá-lo. Lucas disse que iria à cantina buscar um sanduíche de bacon. Foi seu primeiro intervalo durante a noite inteira!
- O sino vermelho está mais alto que o verde - disse George, já saindo. O policial olhou com raiva enquanto a porta fechava.
George encontrou Bob Lucas mastigando ruidosamente o sanduíche de bacon e fitando aborrecido os jornais da manhã.
- Já viu isto, senhor? - perguntou ele à guisa de cumprimento, empurrando o Daily News para o outro lado da mesa. George pegou-o e começou a ler.
Daily News, sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, p. 5
MENINA SUMIDA: EXISTE UMA LIGAÇÃO?
Cães na busca por Alison
Do repórter do Daily News
Ontem, a polícia recusou-se a descartar uma ligação entre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, e outros dois casos semelhantes, a menos de cinqüenta quilômetros de distância, nos últimos seis meses.
Há similaridades óbvias entre os três casos, e os detetives debateram, em particular, sobre a necessidade de considerarem o estabelecimento de uma força-tarefa comum entre as três forças policiais que investigam os casos.
As buscas mais recentes concentram-se em Alison Carter, que desapareceu do vilarejo remoto de Scardale, Derbyshire, quarta-feira passada. A menina havia levado sua collie, Shep, para uma caminhada após chegar da escola, mas como não voltou para casa, a mãe, senhora Ruth Hawkin, alertou a polícia local em Buxton.
As buscas realizadas com cães farejadores não revelaram qualquer vestígio da menina, embora sua cadela tenha sido encontrada sem ferimentos, em um matagal próximo.
O misterioso desaparecimento ocorre menos de três semanas depois que John Kilbride, de 12 anos, também desapareceu em Ashton-under-Lyne. O menino foi visto pela última vez no mercado da cidade, à tardinha. A polícia de Lancashire ainda não conseguiu localizar uma única pista de seu paradeiro.
Pauline Reade, 16 anos, iria a um baile quando saiu da casa de sua família em Gorton, Manchester, no mês de julho. A garota não voltou para casa e, como nos casos de John e Alison, a polícia não tem idéia do que lhe aconteceu.
Um policial veterano de Derbyshire disse: "Neste ponto, não descartamos nenhuma possibilidade.
Não descobrimos uma razão para o desaparecimento de Alison. Ela não tinha problemas nem em casa nem na escola."
"Se não encontrarmos Alison hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu e estamos muito preocupados, até mesmo em virtude do mau tempo que estamos enfrentando."
Um investigador da polícia de Manchester disse ao Daily News: "É claro que esperamos que Alison seja encontrada rapidamente. Contudo, dividiríamos os frutos de nossas investigações de bom grado com a polícia de Derbyshire, se este caso se prolongar."
- Malditos jornalistas - queixou-se George. - Distorcem tudo que dizemos. Onde está aquilo que eu disse, de que existem mais diferenças que semelhanças entre os casos? Eu bem poderia ter ficado de boca fechada. Este Don Smart só escreve o que quer, sem a mínima consideração pela verdade.
- O mesmo acontece em toda a imprensa de Londres - disse Lucas, amargo. - Os rapazes daqui mantêm-se fiéis à verdade, porque precisam recorrer a nós semana após semana para suas matérias, mas essa turma da cidade grande não dá a mínima se nos perturbam ou não. - Ele suspirou. - Estava à minha procura, senhor?
- Só queria lhe pedir para transmitir algo à equipe do turno do dia. Acho que é hora de localizarmos quaisquer pessoas envolvidas com crimes sexuais na área e interrogá-las.
- Em toda a divisão, senhor? - Lucas parecia chateado.
Às vezes, pensou George, dava para entender exatamente por que alguns policiais permaneciam presos dentro de suas fardas até se aposentarem.
- Acho que nos concentraremos na área imediata em torno de Scardale. Talvez num raio de oito quilômetros, estendendo-se um pouco mais do lado norte, para incluir Buxton.
- Vagabundos vêm de todos os lados - disse Lucas. - Não há garantia de que nosso homem não tenha vindo de Manchester ou Sheffield, ou até mesmo de Stoke.
- Eu sei, sargento, mas temos de começar por algum lugar. - George afastou sua cadeira da mesa e levantou-se. - Vou a Scardale. Acho que ficarei lá o dia inteiro.
- O senhor já soube do Land Rover? - perguntou Lucas, em tom neutro e expressão convencida.
- Land Rover?
- Seus homens conseguiram duas testemunhas em Longnor ontem à noite. Eles viram um Land Rover estacionado perto da entrada para Scardale mais ou menos na hora em que a jovem Alison saiu de casa.
O rosto de George iluminou-se.
- Mas esta notícia é fantástica!
- Não de todo. Estava escuro e as testemunhas não puderam dar nenhuma descrição, exceto de que o veículo era um Land Rover.
- Mas conseguiremos marcas dos pneus. Já é um começo - disse George, esquecendo-se de sua irritação com Lucas e com o Daily News em sua animação.
Lucas balançou a cabeça.
- Infelizmente não, senhor. O lugar onde o Land Rover esteve no dia do desaparecimento é o mesmo em que estacionamos nossas viaturas durante todo o dia e a noite de ontem. Ao lado da capela metodista.
- Que merda - disse George.
Tommy Clough bebericava uma caneca de chá e fumava devagar quando George chegou ao centro de operações.
- Bom-dia, senhor - disse ele, sem se dar ao trabalho de se levantar.
- Ainda aqui? - perguntou George. - Pode ir embora agora, se quiser. Deve estar exausto.
- Não estou pior do que o senhor estava ontem. Se for possível, eu gostaria de ficar. É meu último dia no turno da noite, de modo que gostaria de me acostumar a ir para a cama no horário certo. Eu poderia ajudar, se for preciso interrogar os moradores daqui. Já vi a maior parte deles e já recolhi uma boa parte de suas histórias.
George pensou por um momento. O rosto normalmente avermelhado de Clough estava mais pálido que o habitual, a pele em torno de seus olhos parecia inchada, mas os olhos permaneciam alertas e o homem possuía um conhecimento sobre o local que lhe faltava. Além disso, já era hora de estabelecer uma parceria de trabalho um pouco mais profunda com um de seus três sargentos.
- Tudo bem, mas se você começar a bocejar quando alguma velhinha decidir lhe contar a história de sua vida, irá direto para casa.
- Ótimo, senhor. Por onde quer começar?
George foi até uma das mesas e puxou um bloco de papel, dizendo:
- Um mapa. Quem mora onde e quem é quem. É por onde quero começar.
George coçou a cabeça.
- Suponho que você não conhece os laços de parentesco entre todos? - perguntou, fitando o mapa que Tommy Clough desenhara.
- Não - confessou. - Além do óbvio, como o fato de Charlie ser o caçula de Terry e Diane. Mike Lomas é o filho mais velho de Robert e Christine. Temos também Jack, que mora com eles, e o casal tem duas filhas: Denise, casada com Brian Carter, e Angela, casada com um chacareiro lá para os lados de Three Shires Head.
- Já chega - gemeu George, levantando a mão. - Uma vez que você demonstra um talento natural para isto, está encarregado da genealogia de Scardale. Lembre-me sempre da casa em que moram e quem são, quando eu precisar. Neste momento, tudo o que quero saber é onde Alison se encaixa aí.
Tommy lançou os olhos para cima, como se tentasse imaginar a árvore da família.
- Muito bem, esqueça os primos em primeiro, segundo ou terceiro graus. É melhor ficarmos apenas com o parentesco mais imediato. De algum modo, Mamãe Lomas é bisavó da menina. O pai, Roy Carter, era irmão de David e de Ray. Pelo lado da mãe, ela era uma Crowther. Ruth é irmã de Daniel e também da esposa de Terry Lomas, Diane. - Clough apontou para as casas relevantes no mapa. - Mas todos estão unidos por algum laço de parentesco.
- Mas de vez em quando deve haver sangue novo! - protestou George. - De outro modo, todos seriam idiotas e retardados!
- Realmente, temos um ou dois "estrangeiros" para diluir essa mistura. Cathleen Lomas, esposa de Jack, veio de Longnor. E John Lomas casou-se com uma mulher lá dos lados de Bakewell. Durou o suficiente para que ela tivesse Amy, antes de se mandar para algum lugar onde pudesse assistir a Coronation Street e sair para um drinque sem precisar de todo um planejamento logístico para isso. E, é claro, temos Philip Hawkin.
- Sim, não devemos esquecer o senhor das terras - disse George, pensativo. Suspirou e levantou-se. - Talvez fosse útil descobrir um pouco mais sobre ele. Ele veio de St. Albans, não é? - Pegou seu bloco de anotações e escreveu um lembrete. - Não me deixe esquecer de investigar isto. venha, Tommy. Vamos dar mais uma espiada em Scardale.
nan Carter limpou as tetas da próxima vaca na fila e, com surpreendente Sentileza, fixou a máquina de ordenha em seu úbere. Ainda faltavam algumas horas para raiar o dia quando ele deixou a cama quente que dividia com sua nova esposa, Denise, na Casa da Ribanceira, a construção de dois quartos, onde Alison Carter nascera em uma noite chuvosa de 1950. Marchando pela aldeia silenciosa com seu pai, não pudera evitar o pensamento amargo de que o desaparecimento de sua prima já mudara seu mundo.
Sua vida sempre havia sido simples e descomplicada. Em Scardale, eram todos muito unidos e contavam apenas uns com os outros. Habituara-se a ser xingado na escola e, mais tarde, nos bares, quando os freqüentadores já haviam enchido a cara. Conhecia todas as velhas e cansativas piadas sobre casamentos com parentes e rituais secretos de magia negra, mas aprendera a ignorá-las e a seguir com sua vida.
Durante o dia, trabalhava-se na terra em Scardale, e, quando não havia mais luz, ainda estavam ocupados. As mulheres fiavam lã, tricotavam ceroulas, faziam xales de crochê, cobertores e roupinhas de bebês, conservas e molhos picantes, coisas que poderiam vender no mercado da Cooperativa das Mulheres, em Buxton.
Os homens faziam reparos dentro e fora dos prédios. Também trabalhavam com madeira. Terry Lomas fazia belas tigelas de madeira torneada, elegantes e lustrosas, com espessura escolhida de acordo com a complexidade dos padrões. Ele as enviava para um centro de artesanato em Londres, onde eram vendidas por somas que pareciam absurdas para todos os outros moradores da aldeia. O pai de Brian, David, confeccionava brinquedos de madeira para uma loja de Leek. Não teriam tempo para loucos rituais pagãos sobre os quais os beberrões ingênuos especulavam nos bares de Buxton, mesmo supondo que qualquer um se interessasse por tais atividades. A verdade era que, em Scardale, todos trabalhavam demais para ter tempo para qualquer coisa exceto comer e dormir.
Havia pouca necessidade de contato com o mundo externo, em termos do dia-a-dia. A maior parte do que consumiam era produzida ali mesmo - carne, batatas, leite, algumas frutas e alguns vegetais. Mamãe Lomas fazia vinho de flor e bagas de sabugueiro, de urtiga, dentes-de-leão, de seiva de vidoeiro, ruibarbo, groselha e tojo. Se algo crescia, ela fermentava. Todos bebiam, e até as crianças recebiam uma taça de vez em quando, para fins medicinais. Às terças-feiras, aparecia sempre uma caminhoneta trazendo neixes e verduras. Outra caminhoneta vinha de Leek às quintas-feiras, vendendo alimentos em geral. Qualquer outra coisa necessária era comprada no mercado de Leek ou em Buxton, por qualquer um que fosse até lá vender seus produtos ou animais.
Tivera dificuldade com a transição enfrentada ao deixar de ir à escola, quando saía do vale cinco dias por semana, e se tornar um adulto, trabalhando na terra e às vezes permanecendo em Scardale um mês inteiro. Não havia sequer televisão para perturbar o ritmo da vida. Ele se lembrou de quando o velho senhor Castleton voltou de Buxton com um aparelho de TV que havia comprado para a Coroação. Seu pai e seu tio Roy montaram a antena e toda a aldeia se reunira na sala do dono do solar. Com um floreio, o velho ligara o aparelho e todos haviam assistido, abestalhados, a uma tempestade de chuviscos. Por mais que David e Roy mexessem na antena, tudo o que aquela coisa fazia era chiar como gordura jogada ao fogo, e tudo o que viam era interferência. O único tipo de interferência que qualquer um em Scardale já conseguira suportar.
Tudo mudara. Alison desaparecera e, de repente, suas vidas pareciam pertencer a todos. A polícia, os jornais, todos queriam respostas para suas perguntas, fossem ou não de sua conta. E Brian sentia-se como se não tivesse defesas naturais contra tal invasão. Sentia vontade de agredir alguém, mas não havia ninguém à mão.
Ainda estava escuro quando George e Clough chegaram aos limites da aldeia. A primeira luz que viram vinha de uma porta de estábulo entreaberta.
- Podemos começar por aqui - disse George, estacionando na beira da estrada. - Quem será que encontraremos? - perguntou, enquanto percorriam os poucos metros de concreto enlameado até a porta.
- Provavelmente Brian e David Carter - disse Clough. - Os dois criam gado.
Os dois homens no estábulo não puderam ouvir sua aproximação, em Virtude do ruído pesado da máquina de ordenhar. George esperou que eles se voltassem, assimilando os odores estranhamente doces de estérco, animais suados e leite, observando enquanto os homens lavavam as tetas de cada vaca antes de fixarem a ordenhadeira a seus úberes. Finalmente, o mais velho voltou-se. A primeira impressão de George foi de que os olhos vigilantes de Ruth Hawkin haviam sido transplantados para uma estátua da Ilha de Páscoa. O rosto do homem era cheio de planos e ângulos, com bochechas como lajes e órbitas como entalhes em cera rosada.
- Alguma novidade? - perguntou ele em voz alta, para ser ouvido sobre o ruído da máquina.
George negou com a cabeça.
- Vim para me apresentar. Sou o detetive-inspetor George Bennett. Estou no comando da investigação.
Enquanto caminhava na direção do homem mais velho, o mais jovem parou o que estava fazendo e encostou-se nas ancas volumosas de uma das vacas holandesas com braços cruzados junto ao peito.
- Sou David Carter - disse o homem mais velho. - Tio de Alison. E este é meu filho Brian. - Brian Carter balançou a cabeça num cumprimento curto. Tinha o rosto do pai, mas seus olhos eram estreitos e claros, como cacos de topázio. Não teria muito mais que vinte anos, mas a boca voltada para baixo parecia ter sido talhada em pedra.
- Eu queria dizer que estamos empenhados em descobrir o que aconteceu com Alison - falou George.
- Mas ainda não a encontraram, não é? - perguntou Brian, em tom tão duro quanto sua expressão.
- Não. Tão logo amanheça, recomeçaremos as buscas, e se vocês quiserem colaborar conosco serão bem-vindos. Entretanto, não é por isto que estou aqui. Não posso evitar o pensamento de que a resposta para o que aconteceu com Alison está em algum lugar de sua vida. Não acredito que a pessoa que fez isso agiu irrefletidamente. Foi planejado, e isto significa que alguém deixou alguma pista. Quer vocês saibam ou não, alguém nesta aldeia viu algo, ou ouviu algo, que nos dará um rumo. Vou conversar com o povo da aldeia hoje e direi o mesmo a todos que encontrar. Preciso que tentem recordar qualquer coisa fora do comum, como, por exemplo, se viram algum estranho por aqui.
Brian fungou, parecendo-se surpreendentemente com uma de suas vacas.
- Se vocês procuram por algum estranho, não precisam ir muito longe.
- Em quem você está pensando? - perguntou George.
- Brian - alertou o pai.
Brian fez uma carranca e remexeu no bolso do macacão em busca de cigarros.
- Pai, ele não é daqui. Nunca será.
- De quem estamos falando? - insistiu George.
- De Philip Hawkin, ora! - resmungou Brian, com a boca cheia de fumaça. Levantou a cabeça e olhou desafiador para a parte posterior da cabeça do pai.
- Você não está sugerindo que o padrasto de Alison teve algo a ver com o desaparecimento, está? - perguntou Clough, com uma ponta de desafio em sua voz que, na opinião de George, Brian Carter consideraria irresistível.
- Você não perguntou isso. Perguntou sobre forasteiros. Bem, ele não é daqui. Desde que apareceu só tem se intrometido em tudo, tentando dizer-nos como cuidar de nossa terra, como se ele fizesse isso há gerações. Ele acha que é especialista, só porque leu algum livro ou panfleto. E o modo como cortejou minha tia Ruth. Não a deixava em paz. O jeito foi casar com ele para acabar com a perseguição - desabafou Brian.
- Achei que não se importava - disse o pai, sarcástico. - Se Ruth e Alison não tivessem saído da Casa da Ribanceira, você e Denise teriam de começar suas vidas de casados em seu quarto de solteiro. Não sei quanto a você, mas estou contente por não ouvir a cabeceira batendo na parede quase a noite inteira.
Brian ruborizou-se e olhou furioso para o pai.
- Deixe Denise fora disso. Estávamos falando sobre Hawkin. E você sabe tão bem quanto eu que o lugar dele não é aqui. Não aja como se não Passasse metade de cada dia resmungando sobre o inútil que ele é e como desejaria que o antigo proprietário tivesse mais juízo e não deixasse a terra Para um forasteiro como Hawkin.
- Isso não significa que o homem teve algo a ver com o sumiço de Alison - falou David Carter, esfregando o queixo em um gesto claramente
familiar de exasperação.
- Seu pai tem razão - disse George, com suavidade.
8
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 12h45
Quatro horas depois, George achava que havia visto todas as evidências de hereditariedade que precisaria durante toda sua vida. Os sobrenomes podiam variar, de acordo com linhas genealógicas rígidas, mas as características físicas pareciam espalhadas aleatoriamente. A face de laje de David Carter, o nariz aquilino de Mamãe Lomas, os olhos felinos de Janet Carter repetiam-se em várias combinações, juntamente com outros traços igualmente distintivos. George sentia-se como uma criança brincando com um daqueles livros nos quais as páginas são divididas horizontalmente e o leitor mistura e combina olhos, narizes e bocas.
O que o povo de Scardale também tinha em comum era sua confusão completa acerca do desaparecimento de Alison. Como Clough já previra, poucos se dispunham a oferecer até mesmo o pouco que Brian Carter lhes dera. A maior parte das conversas era um esforço inútil. George apresentava-se e proferia seu pequeno discurso. Os moradores pareciam pensativos e então sacudiam as cabeças. Não, nada de incomum acontecera. Não, não haviam visto nenhum estranho. Achavam que ninguém do vilarejo tocaria em um fio de cabelo de Alison. E por falar nisso, Charlie Lomas era um menino bom como nenhum outro e não merecia ser tratado como um criminoso.
O único ponto de interesse era que ninguém apontara o dedo para o Proprietário das terras. Nem uma palavra de queixa foi dita sobre o homem, nenhuma voz levantou-se contra ele. A verdade é que ninguém o elogiava, mas, no fim da manhã, seria tentador pensar que Brian Carter era a única pessoa em Scardale que encontrava motivos para criticar Philip Hawkin.
Finalmente, George e Clough voltaram de mãos vazias para o trailer, onde só encontraram uma policial que saltou para preparar-lhes chá tão logo entraram.
- Você estava errado.
- Perdão? - Clough abriu seu maço de cigarros e retirou um para George sem se dar ao trabalho de perguntar se ele queria.
- Você disse que ouviríamos muitas reclamações contra Hawkin, mas ninguém o criticou, a não ser Brian Carter, aquele jovem esquentado.
Clough pensou por um momento, com uma ruga franzindo sua testa ampla como a superfície de um pudim de caramelo.
- Talvez por isso mesmo. Ele é jovem o bastante para pensar que, em um caso como esse, o fato de Hawkin ser um forasteiro é importante. Os outros têm juízo suficiente para compreender que há muita diferença entre não gostar de alguém porque ele quer lhe ensinar como cuidar da terra e suspeitar que raptou uma criança.
George tomou um gole de seu chá, com cuidado. Não tão quente a ponto de escaldá-lo. Bebeu metade da xícara para aliviar a garganta seca; independentemente de qualquer outra característica, o povo de Scardale não era generoso com suas bebidas quentes. Haviam chegado à cozinha de Diane Lomas enquanto ela saboreava um bule de chá, sentada à mesa, e em nenhum momento a mulher lhes ofereceu uma xícara.
- Talvez, mas não quero me esquecer de que esta é uma comunidade bastante unida. O tipo de lugar em que pensam que linchamento é o melhor modo de lidar com suas dificuldades. Pode ser que achem que Hawkin está por trás disso e somos estúpidos demais para o pegarmos. Acontece que podem achar que o melhor modo de lidar com ele é esperar até desistirmos de Alison e irmos embora. Então acontece um acidente horrível na fazenda e adeus, senhor Hawkin. Isto me traz dois problemas. O primeiro é que não há razão, exceto pelo preconceito, para suspeitarmos que Philip Hawkin teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. O segundo é que não quero o sangue dele em minhas mãos, esteja ou não envolvido.
Clough parecia respeitosamente cético:
- Se o senhor não fosse meu chefe, eu diria que está assistindo a muita televisão, mas conhecendo-o um pouco, eu diria que esta idéia é interessante.
George lançou-lhe um olhar duro.
- É uma idéia que manteremos em mente, sargento - foi tudo o que disse. Levantou sua caneca para mostrá-la à policial. - Tem mais um pouco?
Antes que ela pudesse servi-lo novamente, a porta se abriu e Peter Grundy entrou. O policial de Longnor balançou a cabeça, satisfeito, ao dizer:
- Achei que estaria aqui. Há uma mensagem do inspetor-chefe Carver. Poderia ligar para ele em Buxton, com a máxima urgência?
George levantou-se, pegando o chá. Engoliu a maior parte dele em segundos e fez um sinal para Clough.
- Podemos ir até o centro de operações - disse, rumando para seu carro.
De repente, a porta de um Ford Anglia abriu-se em seu caminho e a cabeça ruiva de Don Smart projetou-se.
- Bom-dia, inspetor - disse, animado. - Ainda nada? Algo a relatar? Eu esperava vê-lo na coletiva das dez da manhã, como você disse ontem, mas é claro que teve coisa melhor a fazer.
- Isso mesmo - disse George, desviando-se da porta do carro. - Os policiais com quem você falou em Buxton esta manhã estavam plenamente atualizados sobre a situação.
- Leu nossa matéria?
- Estou no meio de uma grande investigação, senhor Smart. Se deseja algum comentário da polícia de Derbyshire, terá de seguir os canais apropriados. Agora, se me der licença...
O sorriso de predador de Smart apareceu.
- Se não deseja considerar com seriedade minha sugestão sobre a ligação com os outros casos... Já pensou em contratar um vidente?
George franziu a testa.
- Vidente?
- Um vidente poderia apontar-lhe a direção certa. Concentrá-lo em um rumo, em vez de terem de espalhar tanto suas buscas.
George sacudiu a cabeça, perplexo.
Eu lido com fatos, senhor Smart, não com manchetes de jornal. - We deu alguns passos rápidos, afastando-se do jornalista, e então se voltou para ele outra vez. - Se realmente deseja fazer algo por Alison Carter, em vez de por sua própria carreira, por que não imprime uma fotografia dela?
- Devo entender que não descobriram nada de novo? - perguntou Smart a Clough, enquanto George seguia para seu carro.
- Por que não some daqui e volta para Manchester? - sugeriu Clough, em voz baixa, mas firme, o rosto franco e sorridente. Sem esperar para ver o efeito de suas palavras, ele seguiu George.
- Só porque se chama Smart,
ele pensa que é esperto - disse George, amargamente, enquanto o carro seguia pelo vale. - Isso me enoja, porque não é uma oportunidade para subir na carreira. O que está em risco aqui é a vida de uma menina.
- Ele nem mesmo pensa nisso. Se pensasse, nunca conseguiria escrever a matéria - observou Clough.
- Seria melhor para todos - disse George. Ainda estava tenso de irritação quando entrou no salão da igreja metodista e seguiu direto para a mesa mais próxima com um telefone. Inclinou-se sobre o policial que o usava, batendo a ponta de um Gold Leaf apagado contra o maço. O policial deu-lhe uma rápida olhada e o branco de seus olhos traiu seu nervosismo.
- Isso é tudo, senhora, muito obrigado - balbuciou ele, levando a mão ao gancho para cortar a chamada mesmo antes de terminar de falar. - Aqui está, senhor - acrescentou, estendendo o telefone para George com apreensão.
- Aqui é o detetive-inspetor Bennett para o inspetor-chefe Carver - disse George, rapidamente.
Houve uma pausa e, então, ouviu o sotaque anasalado e interiorano de seu chefe:
- Bennett? É você?
- Sim, sou eu. Recebi o recado de que o senhor queria falar comigo.
- Demoraram para chamá-lo - reclamou Carver. George já havia descoberto que, após quase trinta anos como policial civil, Carver elevara a queixa a uma forma de arte. George passara seu primeiro mês em Buxton pedindo desculpas e seu segundo mês apaziguando. Depois, percebera
Início de Nota de Rodapé: Smart, em inglês, significa "esperto". Fim da Nota de Rodapé.
como todos lidavam com as queixas de Carver e também aprendeu a ignorá-las.
- Houve algo novo, senhor?
- Você deixou instruções para a turma do dia com o sargento Lucas -
acusou-o Carver.
- Sim, deixei.
- Cercar os suspeitos habituais geralmente é perda de tempo para todos os envolvidos.
George aguardou, calado. A raiva de seu encontro com Smart estava represada por trás de uma parede de imperturbabilidade profissional, mas, graças às reclamações de Carver, o peso de sua fúria chegava a um ponto crítico. A última coisa que precisava em sua carreira era que sua raiva explodisse sobre a cabeça de Carver, por isso respirou fundo, liberando lentamente o ar pelo nariz.
- Desta vez, porém, talvez tenhamos conseguido alguma coisa - continuou Carver. As palavras mal-humoradas vieram com lentidão enervante. Parecia que seu chefe teria preferido um fracasso, pensou George, com amargura incrédula.
- É mesmo, senhor?
- Acontece que temos um suspeito. Exposição indecente para jovens garotas. Roubo de roupas íntimas de varais. Nada muito terrível e nada muito recente - acrescentou Carver, em um parêntese insatisfeito. - Contudo, o interessante sobre este idiota em particular é que é tio de Alison Carter.
A boca de George abriu-se.
- Tio? - conseguiu dizer, após um momento.
- Peter Crowther.
George engoliu com força. Nem mesmo sabia que existia um Peter Crowther.
- Posso comparecer ao interrogatório, senhor?
- E por que acha que liguei? Estou sofrendo como um cão com este tornozelo. Além disso, não creio que vá causar grande impressão em Crowther se entrar como um saci-pererê. Faça o favor de vir imediatamente.
- Sim, senhor.
- Outra coisa, Bennett.
- Sim?
- Traga-me peixe e batatas fritas, sim? Não agüento mais a comida da cantina. Dá uma bruta indigestão.
George desligou, sacudindo a cabeça. Acendeu um cigarro, olhando com o canto dos olhos a sala quase às suas costas. Clough estava encostado negligentemente em uma mesa, examinando um dos mapas fixados na parede. Grundy hesitava perto da porta, incerto quanto a ir ou ficar. Então, chamou-os, através da fumaça em sua boca:
- Clough, Grundy. Pro carro, agora. Vamos a Buxton.
As portas mal haviam se fechado quando George voltou-se em seu banco, olhou fixamente para Grundy e disse:
- Peter Crowther.
- Peter Crowther, senhor? - Grundy tentava fingir inocência, mas os olhos nervosos o traíam.
- Sim, Grundy. O tio de Alison, aquele com passagem pela polícia por atentado ao pudor. Esse Peter Crowther - falou George, com sarcasmo, pisando fundo no acelerador e os empurrando contra os assentos com o impulso, enquanto corria pela estrada, rumo a Longnor.
- O que tem ele, senhor?
- Como é que só ouço falar sobre o homem quando meu chefe o menciona? Como é que com todo seu conhecimento sobre o povo daqui você não me falou dele? - o sarcasmo fora abandonado e a voz de George tinha a gentileza aduladora de um professor sádico que tranqüiliza seus alunos incautos com uma falsa segurança, antes de lhes cortar os joelhos.
- Achei que não era relevante. Quer dizer, ele mora em Buxton, acho que há mais de vinte anos. Nem me passou pela cabeça - falou Grundy, com as orelhas vermelhas.
- Por isso você ainda é um simples policial, Grundy - disse Clough, virando-se em seu assento e dando ao homem o olhar insolente e duro que já levara um número perturbador de prisioneiros à violência, mais que duplicando as sentenças por seus crimes originais. - Você não pensa.
- Isso é verdade, Clough, mas não é preciso ter um cérebro para ficar marcando tempo no meio de uma rua na cidade de Derby durante anos - disse George, com o tom mais angelical que encontrou. - Policiaizinhos de aldeias, porém, deveriam ser capazes de pensar sozinhos. Grundy, a menos que você realmente deseje ser designado para um outro trabalho, sugiro que use os quilômetros que faltam até Buxton para nos contar tudo que sabe sobre Peter Crowther.
Grundy esfregou uma sobrancelha com a junta do dedo indicador.
- Peter Crowther é irmão de Ruth Hawkin - disse, como um homem que precisa pensar em um difícil problema de aritmética. - Diane é a mais velha, e se casou com Terry Lomas. Depois vem Peter, depois Daniel e, finalmente, Ruth. Peter deve ser uns dez anos mais velho que Ruth. Acho que anda pelos quarenta e cinco anos. Nunca o conheci realmente, já que saiu de Scardale bem antes de eu me tornar o policial encarregado da aldeia em Longnor, mas já ouvi falar dele. Parece que não é boa coisa. Seu irmão Daniel o mantinha na linha quando Peter ainda morava em Scardale, mas algo aconteceu... Não sei o quê, ninguém fora de Scardale sabe, e eles decidiram que não o queriam mais na aldeia. Assim, o despacharam para Buxton. Ele mora em um hotel para solteiros perto do campo de golfe, em Waterswallows, e trabalha naquela oficina para deficientes atrás do pátio da estrada de ferro, aquela que faz abajures e cestos para papel. Eu sabia que ele já havia sido preso por espiar mocinhas, mas achei que isso era passado.
George suspirou pesadamente.
- Você sabia tudo isto sobre Peter Crowther e nunca lhe passou pela cabeça mencionar?
Grundy mudou seu peso de uma nádega para a outra.
- Vocês entenderão quando o virem. O sujeito tem medo da própria sombra. Acho que não seria capaz de abordar ninguém, menos ainda raptar uma menina.
- Mas ele não teria de levá-la à força, não é? - interveio Clough, com sarcasmo cortante e gelo nos olhos azuis. - Ele era tio de Alison. Ela não teria medo. Se ele dissesse "Ei, querida, tenho um par de patins que lhe servem, quer vir experimentá-los?", ela não teria pensado duas vezes antes de acompanhá-lo. Tio Peter podia ser um pouquinho estranho, mas não era um desconhecido, não é, policial Grundy? - ele conseguiu fazer com que o Posto do outro soasse como um insulto.
- Crowther não teria coragem - teimou Grundy. - Além disso, quando eu disse que não o queriam no vale, falei sério. Tanto quanto eu saiba, Peter Crowther não voltou a Scardale nesses últimos vinte anos. E ninguém de Scardale o visita. Duvido que pudesse reconhecer Alison se passasse por ela na rua.
- Veremos - resmungou Clough, com expressão tão tensa quanto os olhos, estreitados pela fumaça de seu cigarro.
Janet Carter pediu e suplicou para não ir à escola logo após o desaparecimento de Alison. Seria melhor ter poupado seu fôlego. Em 1963, não se permitia que crianças tivessem vontades. Os adultos lhes contavam todo tipo de histórias, pensando que assim as protegeriam. O pior crime, na mente adulta, era a perturbação da rotina, já que nada serviria como um sinal melhor para a geração mais jovem de que algo estava muito errado. Assim, o mundo podia estar prestes a terminar no vale, mas Janet e seus primos ainda teriam de ser levados até o fim da estrada e mandados à escola, como se fosse um dia como outro qualquer.
Contudo, ao chegar à escola na manhã seguinte ao desaparecimento de Alison, as coisas revelaram-se inesperadamente excitantes. Para começo de conversa, Janet tornou-se o centro das atenções. Todos sabiam que sua prima havia desaparecido. Policiais entrevistavam colegas e professores de Alison. Havia apenas um assunto nas conversas durante o intervalo, e Janet vivera de perto os acontecimentos. De certo modo, portanto, tornara-se uma celebridade. Isto foi o bastante para fazê-la esquecer-se do terror que a mantivera acordada metade da noite, imaginando onde Alison estaria e o que lhe havia acontecido.
Havia uma espécie deliciosa de medo no ar, a sensação de que algo proibido acontecera, algo cuja importância nenhuma das crianças poderia compreender. Mesmo aquelas que viviam em fazendas. Elas sabiam o que os animais faziam, mas pareciam ainda não ter extrapolado aquilo para a espécie humana. Naturalmente, já tinham ouvido falar que alguém "mexera" com uma menina, mas ninguém sabia o que isto significava exatamente, exceto que tinha algo a ver com "lá embaixo" e com o tipo de coisa que acontecia se uma garota deixasse o menino "ir longe demais". Apesar disso, ninguém ali tinha a mínima idéia do quanto seria "longe demais".
Portanto, a atmosfera na escola Peak Girls
High tornou-se altamente carregada quando Alison Carter desapareceu. Embora a maioria de suas colegas também estivesse assustada, ansiosa e quase tão abalada quanto a própria Janet, algo nelas agitava-se de um modo agradável, ainda que soubessem que não deveriam sentir-se assim. Com todas essas emoções, quinta e sexta-feira haviam sido dias extremamente cansativos na escola. Quando a campainha anunciou o fim das aulas, tudo em que Janet podia pensar era em chegar em casa e deixar que a mãe a mimasse com uma xícara de chá.
Assim, ela tinha pouca reserva de energia para o choque recebido ao entrar no ônibus escolar. O motorista estava contando que o tio de Alison estava na delegacia, sendo interrogado. A reação de Janet foi imediata. De repente, pareceu encerrar-se em si mesma. Estava sentada no primeiro banco, onde sempre sentara-se com Alison, tão perto do motorista quanto se podia estar.
- Que tio? - perguntou Derek.
O motorista tentou fazer o tipo de piada costumeira sobre o parentesco de todos em Scardale, mas percebeu que Janet não estava no clima para aquilo. Disse apenas:
- Peter Crowther. Janet franziu a testa.
- Deve ser algum outro Crowther, não alguém de Scardale. Alison não tem um tio chamado Peter.
- Bom, isso é o que vocês pensam - disse ele, piscando um olho. - Peter Crowther é o irmão maluco da mãe de Alison. Aquele que foi expulso de Scardale.
Janet olhou para Derek. que encolheu os ombros, tão perplexo e confuso quanto ela. Nunca havia escutado uma palavra sequer sobre um segundo irmão Crowther. Seu nor.e nunca fora mencionado.
Durante todo o trajeto até o começo da estrada para Scardale, o motorista continuou falando sobre Peter Crowther, contando que o homem vivia em um albergue e trabalhava em uma oficina para pessoas que não estavam ainda suficientemente loucas para serem trancadas em um hospício. Disse-lhes que ele parecia ter algum segredo horrível em seu passado e que, agora, a polícia achava que dera um fim a Alison. Janet concentrou-se na parte de trás do pescoço grosso e vermelho do motorista, desejando que ele morresse.
Porém, mais que isso, desejava saber a verdade. Seu pai esperava-os no começo da estrada havia dez minutos. Ninguém mais em Scardale estava disposto a dar chances ao azar. A primeira coisa que Janet disse quando a porta do ônibus fechou-se às suas costas foi:
- Pai, quem é Peter Crowther? E o que ele fez?
Ray Carter, sendo um homem honesto, contou-lhe. E então a menina desejou que não tivesse contado.
Pelo menos sobre uma coisa Grundy estava certo, pensou George, encostado na parede da sala de interrogatório. Peter Crowther tinha medo da própria sombra. E da sombra de qualquer outra pessoa. A primeira coisa a surpreendê-lo quando o homem entrou na sala abafada foi o odor pungente de seu medo, um cheiro bastante diferente do fedor azedo de seu corpo magro e imundo.
- Vamos fumar um cigarro atrás do outro - havia murmurado Clough, com o nariz franzido ao enfrentar a emanação fétida de Peter Crowther.
- O quê? - resmungara George em resposta, enquanto permaneciam na soleira da porta, medindo deliberadamente o homem com seus olhares, para meter-lhe ainda mais medo.
- Precisamos fumar um cigarro atrás do outro. Se não, acabaremos vomitando - esclareceu Clough.
George assentiu.
- Comece - disse ele, movendo-se para colocar-se contra a parede e permitir que Clough se ajeitasse na cadeira de frente para Crowther. George fez um sinal de cabeça para a porta e o policial fardado que estivera de guarda saiu, com um olhar de alívio.
- Tudo bem, Peter? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente e apoiando-se nos cotovelos.
Peter Crowther pareceu encolher-se ainda mais para dentro de si mesmo. Sua cabeça tinha a cor e o formato de uma cunha de queijo pairylea - decidiu George. Queijo Dairylea com agrião germinando em cima. Estranhou que o homem parecesse tão oleosamente pálido e fedesse tanto. Não parecia realmente sujo. Seu queixo pontudo e bem barbeado estava quase enfiado em seu tórax e seus olhos de gato voltavam-se para Clough. O homem poderia ter servido como a definição ilustrada de "submissão". Não respondeu nada à pergunta de Clough, embora seus lábios se movessem, formando palavras silenciosas.
- Mais cedo ou mais tarde você terá de falar comigo, Peter - disse Clough, confiante, levando a mão ao bolso e tirando seus cigarros dali. Acendeu um e, de modo casual, soprou a fumaça na direção de Peter Crowther, que franziu o nariz e inalou profundamente, enquanto ele continuava: - Melhor que seja mais cedo. Portanto, conte-nos: o que o levou a voltar a Scardale quarta-feira?
Crowther enrugou a testa, parecendo verdadeiramente confuso. Qualquer que fosse o motivo para sentir-se culpado, não parecia envolver Scardale.
- Peter nunca - disse ele, com a entonação ascendente indicando dúvida, em vez da bazófia do verdadeiro culpado. - Peter mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17. Peter não mora mais em Scardale.
- Sabemos disso, Peter. Mas você voltou a Scardale quarta-feira à noite. Não há por que negar, já que sabemos que esteve lá.
Crowther tremeu.
- Peter nunca. - Desta vez, a voz soou firme. - Peter não pode voltar a Scardale. Não deixam. Ele mora em Buxton. Albergue Waterswallows, número 17.
- Quem disse que não deixam?
- Nosso Dan. Ele diz que corta as mãos de Peter se Peter colocar os pés em Scardale outra vez. Então Peter não vai lá, entende? Será que Peter Poderia fumar?
- Em um minuto - disse Clough, soprando negligentemente mais fumaça em sua direção. - E quanto a Alison? Quando foi a última vez que a viu?
Crowther levantou os olhos, com expressão perturbada e confusa.
- Alison? Peter não conhece nenhuma Alison. Há uma Ângela que trabalha ao lado dele e coloca as franjas nos abajures. É Ângela que o senhor quer dizer? Peter gosta dela. Angela tem uma jaqueta de couro. Ela a tirou de seu irmão. Ele trabalha no curtume em Whaley Bridge. O irmão de Angela, quero dizer. Peter trabalha com Angela. Peter faz as armações dos abajures.
- Alison. Sua sobrinha Alison. Filha de sua irmã Ruth - disse Clough, com firmeza.
Ao som do nome da irmã, Crowther pareceu ter um espasmo. Seus joelhos ergueram-se na direção de seu peito e ele abraçou com força as pernas.
- Peter nunca. - Soluçou. - Peter nunca!
George moveu-se para a frente e encostou os punhos fechados na mesa.
- Você não sabia que Ruth tem uma filha? - perguntou, com gentileza.
- Peter nunca - repetiu Crowther, como um mantra.
George sinalizou discretamente para Clough, pedindo-lhe que fosse com calma. O sargento encostou-se na cadeira e dirigiu a fumaça para o teto. George tirou seus próprios cigarros do bolso, acendeu um e o estendeu para Crowther, que agora tremia inteiro e continuava a murmurar "Peter nunca. Peter nunca", levando alguns segundos para perceber a oferta. Então olhou com suspeita para o cigarro e, depois, para George. Com uma das mãos pegou o cigarro com a rapidez de uma serpente. Ele manteve o cigarro protegido dentro de sua mão, com a ponta presa entre o polegar e o indicador, como se esperasse que o roubassem. Inalou-o em rápidas baforadas, enquanto os olhos iam para lá e para cá, entre George, Clough e o cigarro.
- Quando foi a última vez que você falou com alguém de Scardale, Peter? - indagou George baixinho, sentando-se perto de Clough.
Crowther sacudiu os ombros, tenso.
- Não sei. Às vezes, Peter vê um parente no mercado, aos sábados, mas os parentes não falam com Peter. Uma vez, no verão, Peter estava na papelaria, comprando cigarros, e nossa Diane entrou. Ela cumprimentou com a cabeça, mas não disse nada. Acho que queria, mas sabia que, se fizesse isso, nosso Dan machucaria Peter. Dan sempre assusta Peter. Por isso Peter nunca volta a Scardale.
- E você não sabia mesmo que Ruth tinha uma filha? - perguntou Clough, o cético.
O rosto de Crowther contraiu-se em torno do cigarro, como se em um espasmo intenso.
- Peter nunca - gemeu. Inclinou-se para a frente sobre os joelhos e
começou a balançar-se. - Peter nunca.
George olhou para Clough e sacudiu a cabeça. Levantou-se e foi em direção à porta.
- Pediremos que alguém lhe traga uma xícara de chá, Peter - falou,
sendo seguido por Clough até o corredor. - Ele está escondendo algo - disse George, confiante.
- Talvez, mas acho que não tem nada a ver com Alison.
- Não estou tão certo. Não ousarei dizer nada até saber por que sua família o expulsou de Scardale. Seja qual for a razão, deve ter sido bem ruim, já que mesmo depois de vinte anos a irmã ainda não fala com ele, nem de passagem.
- Quer que fique detido, então? - perguntou Clough, incapaz de esconder a dúvida em sua voz.
- Ah, certamente. É o lugar mais seguro para ele, não acha? - disse George, voltando um pouco a cabeça, enquanto seguia para o escritório do departamento de investigações. - O inspetor-chefe Carver está convencido de que este é o nosso culpado, e apenas a minha opinião não o fará mudar de idéia. Além disso, uma delegacia nunca consegue manter segredos. Antes do fim do dia, metade da cidade saberá que Peter Crowther está sendo interrogado sobre o desaparecimento de Alison. Acho que o albergue Water-swallows número 17 não é o melhor lugar para ele nessas circunstâncias.
Ele empurrou a porta e contemplou o inspetor-chefe, que tinha a perna engessada apoiada em um cesto de papéis e o jornal à sua frente. Toda a sala ainda retinha o aroma inconfundível de peixe e batatas fritas encharcados com vinagre e embrulhados em jornal.
- Já conseguiram fazer com que dissesse onde a menina está? - perguntou Carver, autoritário.
- Acho que ele não sabe, senhor - disse George, esperando que sua voz não denunciasse seu abatimento.
Carver emitiu um ronco de desagrado.
- É isso que uma formação universitária faz por você? Inacreditável, - dou-lhes até amanhã de manhã para que façam aquele infeliz recitar tudinho o que desejamos. - Ele se controlou e indagou: - Ele ainda está na Cadeia, não está? Não o liberaram, por acaso...
- O senhor Crowther ainda está sob custódia.
- Bom. Vou para casa agora, está tudo em suas mãos. Se não extraírem a verdade do sujeito até de manhã, eu assumirei com pé engessado e tudo Ele acabará cuspindo uma confissão, acreditem. Cuspirá para mim.
- Tenho certeza que sim, senhor. Agora, se me dá licença, preciso voltar a Scardale. - George retirou-se antes que Carver pudesse oferecer algum outro insulto à sua capacidade profissional.
- Vamos mesmo? - perguntou Clough, seguindo George até o carro. - Voltar a Scardale?
- Preciso saber o que Peter Crowther fez - disse George. - Ele não nos contará, de modo que precisaremos perguntar a outros. Estou cansado dessa gente de Scardale que não nos diz o que precisamos saber.
9
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 16h05
George começava a pensar que sonharia com a estrada para Scardale pelo resto de sua vida. O carro mergulhou no desfiladeiro estreito ao entardecer de um dia lúgubre de inverno. Se o sol tinha aparecido através das nuvens e brumas do dia, ele certamente ignorara, pensou, diminuindo a velocidade enquanto aproximavam-se da praça da aldeia. Os homens estavam reunidos em torno do trailer policial, com o vapor de suas xícaras de chá unindo-se à névoa que envolvia o vale. As buscas infrutíferas do dia haviam terminado com o morrer da luz.
Ignorando-os, George cruzou a praça até a Casa do Outeiro. Já era hora de Mamãe Lomas parar de se comportar como uma personagem de um melodrama vitoriano e começar a assumir responsabilidade pelo que poderia acontecer com Alison se a matriarca e sua família continuassem de bico fechado - disse a si mesmo, resoluto. Enquanto contornava a pilha de lenha que quase bloqueava o caminho até a porta da frente, seu pé prendeu-se em algo e ele tropeçou. Apenas os reflexos rápidos de Clough, que agarrou seu braço, evitaram uma queda humilhante.
- Mas que diabos...? - exclamou George, readquirindo a compostura. Voltou-se e espiou através da escuridão crescente, vendo Charlie Lomas estirado de costas e gemendo em meio a toras de lenha espalhadas.
- Acho que você quebrou meu tornozelo! - queixou-se Charlie.
- Pelo amor de Deus, o que você estava fazendo aí? - cobrou-lhe George, friccionando com desagrado o ponto de seu braço onde os dedos
fortes de Clough haviam se enterrado nos músculos.
- Eu estava apenas sentado aqui, cuidando da minha vida, tentando ter cinco minutos de paz. Não é crime, é? - Charlie conseguiu sentar-se e esfregou o dorso de sua mão com força em seu rosto. Sob a luz que vinha da janela da casa, George percebeu que os olhos do jovem brilhavam com lágrimas presas. Não parecia capaz de raptar um gatinho, menos ainda uma adolescente.
- Pensando em Alison? - perguntou George, em tom gentil.
- É um pouco tarde para começar a me tratar como ser humano, senhor - disse Charlie, com os ombros encurvados em desafio. - Qual é o problema com vocês? Ela era minha prima. Minha família. Vocês não têm alguém com quem se preocupar, para considerarem tão estranho nosso abatimento?
As palavras de Charlie atiçaram a recordação de George. Ele aprendera desde cedo, em sua vida de policial, que não poderia fazer bem seu trabalho, a menos que suas preocupações pessoais fossem mantidas sob firme controle, protegidas da dor bruta e da feiúra de grande parte do que fazia. Na maior parte do tempo, ele conseguia manter seus muros intactos. Ocasionalmente, como agora, as duas realidades colidiam. Subitamente, George lembrou que ganhara, da noite para o dia, alguém novo com quem se preocupar.
Um sorriso aflorou a seus lábios, inevitavelmente. Podia ver o rancor nos olhos de Charlie Lomas e a surpresa nos de Clough. Contudo, a súbita recordação da criança que Anne carregava em seu ventre era irresistível.
- Qual é a graça? - perguntou Charlie, irritado.
- Não foi nada - respondeu George, áspero, forçando-se a voltar ao estado de ânimo apropriado. - Eu estava pensando em minha família. Você tem razão. Eu me sentiria terrivelmente mal se algo lhes acontecesse. Desculpe-me se o ofendi.
Charlie levantou-se, batendo o pó da roupa com as mãos.
- Como eu disse, é um pouco tarde para isso agora. - Ele voltou um pouco a cabeça, de modo que os olhos ficassem nas sombras. - Estavam procurando por mim ou por minha vó?
- Sua avó. Ela está?
- Ainda não voltou - disse ele, balançando a cabeça.
- Não voltou de onde?
- Eu a vi quando estávamos voltando da busca por Alison. Ela estava caminhando pelos campos, lá perto de onde vocês encontraram Shep e onde estivemos hoje, quando vocês descobriram aquela... coisa. - Charlie franziu o rosto, como se recordasse algo semi-enterrado. - Era como se ela estivesse fazendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez, quando saiu para caminhar na hora do chá, quarta-feira.
Existem momentos em que uma determinada combinação de palavras coloca o mundo em câmera lenta. A medida que assimilava a importância das palavras do garoto, George teve a estranha e vertiginosa sensação de um homem cujos sentidos aceleram-se em uma fração de segundo, fazendo com que o mundo exterior arraste-se em um ritmo desagradavelmente lento. Ele piscou com força, limpou a garganta e depois perguntou, com cautela:
- O que você acabou de dizer, Charlie?
- Eu disse que minha vó estava caminhando pelos campos. Como se estivesse indo ao solar, mas por trás - acrescentou ele. Aparentemente, ele decidira que, apesar do mau tratamento recebido, era melhor, para Alison, se fosse prestativo com este policial esquisito que não se comportava como nenhum outro que já havia visto em carne e osso ou nos filmes, em Buxton.
George esforçou-se para manter o autocontrole. Sua vontade era agarrar o garoto pela garganta e gritar com ele, mas tudo o que disse foi:
- Você disse que ela estava percorrendo o mesmo trajeto que o dono das terras fez quarta-feira, na hora do chá.
Charlie retorceu o rosto.
- E daí? Por que o homem não poderia caminhar por seus próprios campos?
- Quarta-feira, na hora do chá, foi o que ouvi.
- Isso mesmo. Lembro-me bem, por causa de toda a agitação que ocorreu depois que percebemos que Alison havia desaparecido.
George trocou um olhar com Clough. Sua incredulidade encontrou a raiva do colega.
- Nós lhe perguntamos se havia visto alguém nos campos ou no matagal, na quarta-feira - lembrou-lhe Clough, com irritação.
- Não perguntaram - disse Charlie, na defensiva.
- Eu mesmo perguntei - disse Clough, com os lábios esticados sobre os dentes, cuspindo as palavras.
- Não mesmo - insistiu Charlie. - O senhor me perguntou se havíamos visto estranhos. Perguntou se eu havia visto algo fora do comum. E não vi. Só vi a mesma coisa que já vi mil vezes: o dono das terras andando pela sua propriedade. De qualquer modo, não pode ter nada a ver com o desaparecimento de Alison, porque ainda estava claro e eu pude vê-lo claramente. De acordo com o que vocês disseram, já estava escuro quando Alison saiu de casa. Assim, não há motivo para usar este tom de voz comigo - acrescentou, endireitando os ombros e tentando aparentar maturidade além de seus talentos. - Além disso, vocês estavam ocupados demais tentando fazer com que parecesse que eu tinha algo a ver com isso, para ouvirem qualquer coisa que eu tivesse a dizer.
George deu-lhe as costas, abalado, fechando os olhos por um instante.
- Precisamos de um depoimento seu a esse respeito - disse, animado pelas possibilidades abertas por esta informação e superando a frustração pelo tempo perdido porque as mentes simplórias de Scardale não conseguiam ver além do óbvio, quando ouviam uma pergunta. - Vá até o salão da igreja metodista e diga a um dos policiais que eu o mandei. Dê-lhe todos os detalhes. A hora, a direção que o senhor Hawkin tomou ao caminhar, se levava algo consigo, o que estava vestindo. Vá agora, por favor, senhor Lomas, antes que eu ceda à tentação de prendê-lo por obstruir o trabalho da polícia.
Ele olhou sobre os ombros, a tempo de ver os olhos de Charlie, esbuga-lhados de pânico.
- Nunca obstruí nada - disse ele, parecendo ter metade de sua idade. - Ele nunca me perguntou sobre Hawkin.
- Também não lhe perguntei sobre o duque de Edimburgo, mas se ele estivesse caminhando pelo campo, esperaria que você me contasse - vociferou Clough. - Agora, não perca mais tempo. Ponha-se a caminho, antes que eu decida ajudá-lo com minha bota no seu traseiro!
Charlie passou por eles zunindo e partiu em uma corrida louca, atravessando a praça para um dos Land Rovers enlameados estacionados no lado oposto.
- Dá para acreditar nessa gente? Meu Deus, estou começando a duvidar que desejam encontrar Alison Carter. - George suspirou. - Precisaremos falar com Hawkin sobre isso. Ele mentiu para nós e quero saber Dor quê. - Olhou para o relógio de pulso. - Mas também quero descobrir sobre Peter Crowther.
- Dependendo do que Hawkin tiver a dizer, Peter Crowther poderá tornar-se irrelevante.
George franziu a testa.
- Você não acha que... Hawkin? Clough encolheu os ombros.
- Se acho que ele é capaz? Não tenho idéia, mal falei com o homem. Por outro lado, ele mentiu para nós. - Ele enumerou as possibilidades, com dedos fortes. - Ou ele tem algo para esconder ou está acobertando outra pessoa. Se não, é irresponsavelmente distraído.
Antes que George pudesse responder, a questão foi resolvida pelo aparecimento de Mamãe Lomas, embrulhada em um casaco pesado e usando um lenço na cabeça. Ela virou a cabeça para um lado e disse:
- Vocês estão no meu caminho.
Os dois homens deram um passo para o lado. Ela seguiu até a porta, sem cumprimentá-los.
- Precisamos falar com a senhora - anunciou George.
- Eu não preciso falar com vocês - respondeu ela, esforçando-se para enfiar uma grande chave na fechadura de sua porta. - Nunca precisamos trancar nossas portas antes de Ruth Carter trazer estranhos para o vale. - A fechadura abriu-se com um ranger agudo de metal batendo em metal.
- Não se importa com o que acontece com alguém de sua própria família?
- Você não sabe de nada - disse ela, encarando-o com olhos estreitos e abrindo a porta.
- Iremos falar com o dono das terras depois de falarmos com a senhora - disse Clough, quando ela estava prestes a entrar. Ela parou, imóvel como um rato ao ver uma águia. - Sabemos que ele andou caminhando pelo campo de onde a senhora acabou de voltar. Senhora Lomas, precisamos eliminar Peter Crowther de nossas investigações, se ele é inocente.
Ela pensou por um momento, permitindo que as frases aparentemente desconexas fizessem sentido. Depois, assentiu, inclinando a cabeça e fixando um olhar de avaliação em Clough.
- É melhor entrarem, então - disse, finalmente. - Sequem os pés. E nada de cigarros lá dentro. Fazem mal aos meus pulmões.
Os dois a seguiram para uma saleta que não tinha mais que três metros quadrados. Era um cômodo lúgubre, com apenas uma pequena janela, e cheirava vagamente a cânfora e eucalipto. O piso de pedra estava coberto com vários tapetes desbotados e em frangalhos. Havia uma poltrona em cada lado de uma lareira flanqueada por dois fogões pretos de ferro, cada um do tamanho de um engradado de cerveja. Havia uma chaleira sobre um dos fogões, com um fio de vapor desaparecendo pela chaminé, e um aparador no lado oposto, coberto com animais entalhados em madeira e pedaços semipolidos de calcário contendo fósseis. Perto da pequena janela de venezianas, três cadeiras altas de carvalho escuro com encostos de sisal projetavam-se acima de uma pequena mesa de jantar, como se ameaçassem espancá-la.
Os únicos adornos eram dúzias de cartões-postais extravagantes, que retratavam desde praias da Espanha até prédios barrocos de algum lugar na Escandinávia. Ao perceber o olhar confuso de George, Mamãe Lomas disse:
- São de Charlie. É como trocar cartas, só que ele troca cartões-postais com pessoas de longe. É um sonhador. O que me faz rir é que há centenas de pessoas no mundo inteiro olhando os postais que o senhor Hawkin fez de Scardale e pensando que a vida nesta aldeia de Derbyshire é feita de ovelhas brancas como leite em um campo ensolarado. - Dirigiu-se penosamente até a poltrona que ficava de frente para a porta e deixou-se cair nela, remexendo os ombros até sentir-se confortável.
- Posso sentar? - pediu George.
- Você não gostará da poltrona - disse-lhe ela, fazendo um aceno de cabeça para uma das cadeiras. - É melhor para suas costas, pelo menos.
Os dois viraram duas cadeiras de frente para a mulher. Esperaram enquanto ela se inclinava, reacendendo os carvões em brasa.
- Peter Crowther está sob custódia em Buxton - disse George, quando percebeu que ela estava confortável.
- Já me disseram.
- A senhora acha que devemos mantê-lo na cadeia?
- Você é o policial, não eu. Sou apenas uma velha que nunca viveu fora do vale de Derbyshire.
- Talvez estejamos perdendo um tempo enorme tentando ligar Peter a rowther a Alison - continuou George, recusando-se a desviar-se do assunto. - Poderíamos aproveitar melhor este tempo procurando a menina.
- já lhe disse, o problema com você e seus detetives é que não entendem nada sobre este lugar - falou a mulher, irritada.
- Estou tentando compreender, mas as pessoas daqui parecem mais
interessadas em atrapalhar que em me ajudar. Acabei de descobrir que seu neto omitiu algo que poderia servir como prova crucial.
- Isto não chega a ser surpresa, considerando o modo como vocês o trataram. Como é que alguém pode pensar que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison? Isto não é possível! Quando ela desapareceu, Charlie estava aqui em casa, comigo. Isto é o que chamam de álibi, não é? - perguntou ela, com desdém.
- Tem certeza? - indagou George, em dúvida.
- Posso ser velha, mas ainda não perdi a memória. Charlie entrou pouco antes das quatro e meia e começou a descascar batatas. Não consigo fazer certas coisas por causa de minha artrite, de modo que ele faz para mim. Todas as noites é a mesma rotina. Ele não estava com Alison. Estava aqui, cuidando de mim.
George respirou fundo.
- Teríamos poupado muito tempo se a senhora ou mesmo Charlie tivesse nos contado isso. Senhora Lomas, em casos envolvendo o desaparecimento de crianças, as primeiras quarenta e oito horas são cruciais. Este período já está quase no fim e não temos pistas para encontrar uma menina que também é de sua família. - A frustração aumentava o volume de sua voz. - Senhora Lomas, juro que encontrarei Alison Carter. Mais cedo ou mais tarde, saberei o que aconteceu aqui dois dias atrás. Se isto significar que terei de vasculhar cada casa nesta aldeia do telhado às fundações é o que farei. Se tiver de cavar cada campo e jardim do vale, farei isso e não darei a mínima para suas plantações e gado. Se tiver de prender todos vocês e acusá-los de obstruir a lei, mesmo que indiretamente, também prenderei. - Ele parou de repente e inclinou-se para a frente. Assim, diga-me. Acha que Peter Crowther teve algo a ver com o desaparecimento de Alison?
Ela sacudiu a cabeça, impaciente.
- Tanto quanto eu saiba, e sei da maior parte das coisas que acontecem em Scardale, Peter não colocou os pés no vale desde o fim da guerra Acho que nem sabe que Alison existe. E eu colocaria minha mão sobre a Bíblia e juraria que a menina nunca ouviu seu nome. - Seus lábios apertaram-se, fazendo com que o nariz e o queixo se aproximassem, como as pontas de um compasso.
- Não podemos ter certeza disso. A escola da menina é em Buxton. Ela se parece com a mãe. Não se esqueça, a senhora Hawkin teria mais ou menos a idade de Alison na última vez em que o irmão conviveu com ela. Para alguém com um parafuso a menos, ver Alison na rua poderia ter ativado toda espécie de recordação.
Mamãe Lomas cruzou os braços no peito e balançou a cabeça com vigor, enquanto George falava. Depois, disse:
- Não acredito nisso, não acredito.
- Então, será que deveríamos estar interrogando Peter Crowther, senhora Lomas? - perguntou ele, em tom novamente gentil em resposta ao visível sofrimento dela.
- Se ele tivesse pisado no vale, todos saberiam. Além disso, acho que estava trabalhando naquele horário - acrescentou ela, em desespero.
- Às quartas-feiras à tarde não há expediente. Ele poderia ter vindo até aqui. Senhora Lomas, o que Peter Crowther fez para ser mandado embora?
- Isso não é da conta de ninguém agora - foi a resposta enfática. Os olhos estavam apertados, como se a lareira fosse o sol do meio-dia.
- Preciso saber.
- Não.
Tommy Clough inclinou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e o bloco de anotações caído entre suas pernas. George invejava sua capacidade para parecer relaxado mesmo em uma ocasião tão tensa quanto esta havia se tornado.
- Acho que Peter Crowther não machucaria uma mosca - disse Clough. - Infelizmente, não sou eu quem toma as decisões. Talvez fique detido por um bom tempo. Alguém como a senhora, que nunca viveu fora deste vale, não sabe o que os prisioneiros fazem com homens suspeitos de maltratar crianças. Homens saudáveis ficam loucos. Eles se enforcam, pendurando cordas nas barras de suas janelas. Engolem água sanitária. Cortam os pulsos com facas de manteiga, se alguém levar-lhes uma. Seu Peter será usado e abusado pior que uma prostituta de rua em uma zona de guerra. Acho que nem a senhora nem qualquer um em Scardale desejam isso. Se desejassem, teriam castigado Peter dessa forma vinte anos atrás, mas apenas o expulsaram daqui. Vocês o deixaram construir sua vida longe do vale. Qual é a lógica em se omitir e deixá-lo sofrer por nada agora? Era um discurso persuasivo, mas não teve efeito.
- Não posso lhe dizer - disse a mulher, decidida, com a cabeça movendo-se quase que imperceptivelmente de um lado para outro.
George empurrou sua cadeira para o lugar ruidosamente, com as pernas arranhando o chão de pedras.
- Não posso perder meu tempo aqui. Se a senhora não se preocupa com Peter Crowther ou não quer encontrar Alison, procurarei quem esteja disposto. Tenho certeza de que a senhora Hawkin nos dirá o que queremos saber. Afinal, trata-se de seu irmão.
A cabeça de Mamãe Lomas levantou-se, como se alguém a tivesse puxado pelos cabelos. Os olhos arregalaram-se.
- Não Ruth. Por favor, não. Ruth não.
- E por quê? - quis saber George, dando vazão a parte de sua raiva. - Ela quer que encontremos Alison e não deseja que percamos tempo com pistas falsas. Ela nos dirá qualquer coisa que quisermos saber, acredite.
Os olhos arregalados fixaram-se nos seus e o rosto parecia o de uma bruxa má.
- Sente-se - sibilou a mulher. Era um comando, não um convite. George voltou à sua cadeira. Mamãe Lomas levantou-se e foi, vacilante, até o aparador. Ela abriu a porta e retirou dali uma garrafa cujo rótulo anunciava uísque. Entretanto, o conteúdo era tão incolor quanto gim. Ela encheu um pequeno copo e bebeu-o de uma só vez. Tossiu alto duas vezes, encurvando os ombros, e depois se voltou para os homens, com os olhos lacrimejantes.
- Peter sempre foi um problema - disse lentamente, voltando à sua cadeira. - Sempre teve a mente suja. Era nojento, asqueroso. Costumávamos encontrá-lo nos campos, observando os animais que acasalavam. Quanto mais velho se tornava, pior ficava. Seguia todos que estavam namorando, até seus parentes, desesperado para ver o que fariam. Sabíamos que um carneiro cruzava com uma ovelha quando entrávamos na mata e encontrávamos Peter de pé, com seu... - ela fez uma pausa, apertou os lábios e depois, continuou: - Sua coisa na mão, com os olhos arregalados, bisbilho-tando enquanto os bichos faziam o que a natureza mandava. Mesmo que apanhasse, ouvisse berros ou fosse chutado, nada fazia diferença. Depois de algum tempo, as pessoas nem se importavam mais com isso. Em um lugar como Scardale, precisamos suportar aquilo que não conseguimos curar. Ela olhou para a lareira, suspirou e disse:
- Então, a pequena Ruth ficou mocinha. Peter estava obcecado. Ele a seguia como um cachorro segue uma cadela no cio. Dan pegou-o algumas vezes no alto de uma escada, junto à janela do quarto da menina, olhando-a através de uma abertura estreita na cortina. Todos tentaram enfiar algum juízo em sua cabeça, ela era sua própria irmã, aquilo não podia continuar. Mas Peter nunca mudou. No fim, Dan o fez sair de casa e ele passou a dormir aqui, comigo.
Mamãe Lomas fez uma pausa breve para friccionar suas pálpebras fechadas. George e Clough não moveram um músculo, determinados a não perturbar o andamento do relato.
- Então, uma noite, Dan voltou de Longnor. Havia bebido um pouco. Isto foi durante a guerra e precisávamos manter todas as luzes apagadas. Tão logo entrou no vale, viu um facho de luz brilhando na aldeia. Veio o mais rápido que podia, na intenção de avisar quem quer que fosse para apagar a luz, já que um policial poderia vê-la e dar uma multa. Ele estava a quase um quilômetro de distância quando percebeu que estava vindo de sua própria casa. Veio mais rápido ainda e, logo, reconheceu aquela janela... era o quarto de Ruth. Ele sabia que Diane estava sozinha com Ruth, e achou que algo terrível havia acontecido a uma ou outra.
Ela voltou o rosto para sua platéia emudecida.
- Bem, a verdade é que algo terrível havia acontecido mesmo. Veio zunindo como um furacão para casa e subiu voando as escadas, quase caindo. Abriu depressa a porta do quarto de Ruth e lá estava Peter, de pé junto à cama da menina, com as calças arriadas e a lanterna lançando uma sombra no teto que fazia seu pinto parecer com um cabo de vassoura. A menina estava dormindo, mas acordou com aquela entrada louca de Dan. Deve ter pensado que estava tendo um pesadelo. - A mulher sacudiu a cabeça. - Eu a ouvia gritando, do outro lado da praça.
"Depois, Peter começou a gritar. Foram necessários três homens para tirar Dan de cima dele. Achei que estava morto, coberto de sangue como um bezerro que passou por um parto ruim. Nós o trancamos em um curral, até suas feridas começarem a sarar. Depois, o senhor Castleton deu um jeito de mandá-lo para o albergue em Buxton. Dan lhe disse que se voltasse a se aproximar de Ruth ou de Scardale o mataria com suas próprias mãos. Peter acreditou na época, e ainda acredita. Sei que vocês acham que o que lhes contei significa que ele poderia ter visto Ruth em Alison e feito algo horrível a ela, mas não é isso. E bem o contrário. Se querem fazer com que Peter Crowther rasteje pelo chão pedindo perdão, digam-lhe que Ruth e Dan estão à sua procura. O último lugar aonde viria seria Scardale. A última pessoa com quem faria contato seria alguém de Scardale. Podem acreditar."
Ela recostou na poltrona, terminando sua narrativa. A tradição oral jamais morreria enquanto Mamãe Lomas estivesse viva, pensou George. Ela representava a anciã da aldeia, que conservava as histórias da tribo, protegendo a integridade de tais relatos apenas por meio de suas habilidades pessoais. Ele jamais esperaria encontrar alguém assim em 1963, em Derbyshire.
- Obrigado por nos contar, senhora Lomas - disse, em tom formal. - A senhora nos foi muito útil. Apenas mais uma coisa, antes de a deixarmos em paz. Charlie disse que viu o senhor Hawkin no campo, entre a floresta e o arvoredo, quarta-feira à tarde. Ele nos disse que a viu refazendo este trajeto ainda há pouco. A senhora também viu o dono das terras na quarta-feira?
Ela o examinou, com os olhos tão brilhantes quanto os de um papagaio.
- Não depois que Alison desapareceu.
- Mas viu antes?
- Sim. Eu estava tomando uma xícara de chá com nossa Diane. Quando saí, Kathy acabava de entrar no Land Rover para pegar Alison, Janet e Eerek no fim da estrada após as aulas. Vi David e Brian perto do local de ordenha, levando as vacas para dentro. E vi Hawkin cruzando o campo.
- Por que não nos contou antes? - indagou George, exasperado.
- E por que deveria? Não havia nada de anormal nisso. São suas terras, por que ele não poderia andar por elas? Sempre está perambulando por todos os lados, tirando fotos com sua câmera quando menos se espera. Além disso, como já falei, Alison ainda nem havia chegado da escola. Ele teria de caminhar muito, mas muito devagar mesmo, para ainda estar no campo quando ela saiu com Shep. E com este tempo ninguém caminha devagar em Scardale - acrescentou ela em tom decisivo, como se desse fim a uma discussão.
George fechou os olhos e respirou profundamente pelo nariz. Ao abri-los novamente, poderia ter jurado que vira um sorrisinho nos cantos da boca da velha senhora.
- Mandarei datilografar seu depoimento - disse ele. - Espero que a senhora assine.
- Se foi fiel ao que falei, não haverá problema. Peter poderá ser solto agora?
George levantou-se e devolveu sua cadeira ao lugar, sob a mesa.
- Levaremos o que ouvimos aqui em consideração quando tomarmos nossa decisão.
- Ele não é um homem violento, inspetor - disse ela. - Mesmo supondo que tenha visto Alison, mesmo supondo que a menina o lembrou de Ruth, tudo o que ela teria de fazer seria empurrá-lo e ele a deixaria em paz. É um covarde. Não perca seu tempo com Peter e não deixe que o culpado continue solto.
- Parece que a senhora está convencida de que o que quer que tenha acontecido a Alison foi ato deliberado de alguém - falou Clough, levantando-se, mas fazendo questão de manter seu bloco de anotações aberto.
O rosto da mulher fechou-se - seus olhos estreitaram-se, enquanto apertava os lábios e enrugava o nariz.
- O que eu acho e o que vocês sabem são duas coisas muito diferentes. Vejam se conseguem aproximar um pouco mais minha opinião e seus conhecimentos, sargento Clough. Então, talvez possamos saber o que aconteceu com nossa menina. - Ela olhou para o relógio. - Achei que tinha ouvido dizerem que iriam falar com o senhor Hawkin?
- Sim, pretendemos ir até lá.
- Então é melhor se apressarem. Ele gosta que lhe sirvam o chá às seis em ponto, e tenho certeza de que não mudará seus hábitos por sua causa, já na rua, George indagou:
- O que você achou disso tudo, Tommy?
- Ela nos contou a verdade segundo sua interpretação, senhor.
- E o álibi para Charlie?
Clough sacudiu os ombros.
- Pode ser que esteja mentindo para favorecê-lo. Acho que não temos dúvida de que ela mentiria por ele. Mas até que alguém nos diga algo diferente ou encontremos algo mais sólido para ligá-lo ao desaparecimento de Alison, não temos razão para duvidar dela. E concordo com ela sobre Crowther.
- Eu também. - George passou a mão pelo rosto. A pele parecia mais sensível que o normal, pelo cansaço, e os próprios ossos pareciam mais próximos da superfície. Suspirou.
- Deveríamos liberá-lo - disse Clough, tirando os cigarros do bolso e oferecendo a George. - Ele não fugiria. Não tem para onde ir. Eu poderia ligar do telefone público para a delegacia e ordenar que o soltassem. Podem impor certos limites, como não se aproximar a menos que dez quilômetros de Scardale, permanecer no albergue, prestar contas de seus movimentos todos os dias... Mas certamente não há por que mantê-lo preso.
- Não acha que podemos expô-lo a um linchamento?
- Quanto mais o mantivermos preso, pior parecerá para ele. Podemos fazer com que o policial de plantão diga aos jornalistas que Crowther nunca foi suspeito, apenas um parente vulnerável que mantivemos detido para podermos questioná-lo sem a pressão do mundo externo. Alguma baboseira desse tipo. E eu poderia mencionar a necessidade para espalhar a mesma história pelos bares. - Havia determinação no rosto de Clough. Ele estava certo, e George estava cansado demais para apresentar argumentos, quando não se sentia inclinado a nenhum dos lados.
- Tudo bem, Tommy. Ligue e diga que eu dei as ordens. Apenas garanta que alguém informará ao departamento de investigações criminais. O chefe não gostará disso, mas terá de engolir. Vejo-o no trailer. Se eu não tomar algo quente, cairei duro de sono antes que possa extrair alguma coisa de Hawkin.
George nem mesmo esperou resposta e cruzou direto a praça até o trailer da polícia. Nada, em sua intuição, lhe dizia para impedir que Clough desse a ordem de liberar Crowther. Afinal, Clough estava convencido de que fazia a coisa certa. Nem mesmo os instintos de Mamãe Lomas clamavam contra a liberação de Peter Crowther.
Teriam de dividir igualmente o peso desta decisão.
10
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 17h52
Ruth Hawkin enxugava as mãos no avental ao abrir a porta da cozinha do Solar Scardale. Uma breve esperança brilhou em seus olhos, mas não encontrou nada nos rostos dos dois homens para alimentar aquela fagulha. Quando a esperança abandonou-a, o medo não perdeu tempo e ocupou seu lugar. A julgar pelas olheiras e pela aparência extenuada de sua pele clara, a ansiedade estivera presente durante todos os momentos daqueles dois últimos dias. Vendo seu sofrimento, George apressou-se a dizer:
- Não temos novidades, senhora Hawkin. Desculpe-me. Podemos entrar por um minuto?
Ruth fez que sim e, em silêncio, deu um passo para o lado, ainda esfregando as mãos no tecido floral de algodão de seu avental. Os ombros estavam encurvados, os movimentos eram lentos e distraídos. George e Clough passaram por ela e ficaram de pé, desajeitados, no meio da cozinha. O aroma inconfundível de cozido de carne e rim bovino flutuava no ar, fazendo com que os dois salivassem de fome. George imaginou, brevemente, o que Anne teria deixado para ele, se algum dia conseguisse chegar em casa. De uma coisa tinha certeza: quando finalmente fosse para casa, qualquer comida já teria estragado, do jeito como as coisas iam.
- Seu marido está em casa? - perguntou. - Na verdade, era com ele que desejávamos conversar.
- Estava nas buscas com seus homens - disse ela, rapidamente. - Chegou exausto, de modo que foi tomar banho. Posso ajudá-los?
- Não se preocupe. Só queríamos trocar uma palavra com ele.
Ela lançou um olhar para o despertador envernizado e velho que havia em uma prateleira perto do fogão.
- Ele descerá para o chá em dez minutos. - Ela mordeu o canto direito do lábio inferior, em uma demonstração inconsciente de ansiedade. - Seria melhor voltarem depois. Depois que ele tiver comido. Talvez às seis e meia? Avisarei sobre sua vinda - completou, com um sorriso nervoso.
- Se não se importa em esperar um pouquinho para servir o chá, senhora Hawkin, falaremos com seu marido quando ele descer - disse George, em tom gentil. - Não queremos perder tempo.
A pele em torno dos olhos e da boca da mulher retesou-se.
- Acham que não entendo? Sei disso, mas ele precisa tomar seu chá depois de andar pelo vale a tarde inteira.
- Sabemos disso, e seremos breves.
- Serão breves em quê, inspetor?
George virou-se. Não ouvira Hawkin abrir a porta às suas costas. O dono do solar usava um roupão bege felpudo sobre um pijama listrado. Sua pele rosada brilhava e os cabelos estavam ainda mais rentes ao crânio e puxados para trás que antes. Uma das mãos estava enfiada no bolso e a outra segurava um cigarro, em uma pose que teria passado por descontraída em uma peça teatral, mas parecia ridícula em uma cozinha de fazenda de Derbyshire. George inclinou a cabeça para a frente, à guisa de cumprimento.
- Precisamos de alguns minutos de seu tempo, senhor Hawkin.
- Está em meu horário de comer, inspetor - disse ele, com petulância. - Acho que minha esposa já lhe disse isso. Quem sabe os senhores voltam depois?
Interessante, pensou George. Hawkin nem mesmo perguntara se o motivo da visita era alguma novidade sobre Alison. Nenhuma menção à menina, nem indicação de que estava preocupado com qualquer coisa além de encher a barriga.
- Temo não ser possível. Como já indiquei, em investigações desta natureza é crucial pouparmos tempo. Assim, se a senhora Hawkin não se importa em manter seu jantar aquecido, gostaríamos de lhe falar.
O suspiro de Hawkin foi alto e teatral.
- Ruth, você ouviu o inspetor. - Ele foi até a mesa, tirando a mão do bolso e puxando uma cadeira.
- Seria melhor em outro lugar, senhor - interveio George.
As sobrancelhas de Hawkin ergueram-se.
- Como?
- Preferimos entrevistar testemunhas isoladamente umas das outras. E
uma vez que sua esposa está ocupada aqui, parece razoável irmos a outro lugar. A sala, talvez? - George era inexoravelmente educado, mas irresistivelmente firme.
- Não vou à sala. Está gelado lá e não pretendo contrair pneumonia por sua culpa. - Ele tentou suavizar suas palavras com um sorriso curto, que não conseguiu convencer George. - Meu estúdio é mais quente - acrescentou Hawkin, voltando-se para a porta.
Seguiram-no pelo corredor gélido até um cômodo que se parecia com um clube de cavalheiros em miniatura. Um par de poltronas de couro ladeava um aquecedor a parafina. Hawkin foi direto a uma delas, junto à janela. Uma escrivaninha branca com um tampo de couro já bastante gasto ocupava a ponta oposta do estúdio, com sua superfície coberta por pesos de papel decorativos. As paredes eram revestidas por estantes de mogno, cheias de volumes de tamanho variado encadernados em couro. O piso de parquê, desgastado por anos de uso, era parcialmente coberto por um tapete persa frágil e desbotado. Junto à porta havia um armário esmaltado contendo um par de espingardas iguais. George não entendia de armas, mas ainda assim reconhecia que essas não eram do tipo usado por fazendeiros para espantar gralhas.
- Belo aposento, senhor - disse ele, indo até a poltrona oposta à de Hawkin.
- Acho que meu tio não mudou nada, desde a época de seu avô - comentou o dono da casa. - Eu gostaria de fazer algumas mudanças. Livrar-me dessa escrivaninha velha e eliminar alguns desses livros, para abrir espaço para algo mais moderno. Preciso de um lugar para guardar meus álbuns fotográficos e meus negativos.
George mordeu a língua, contendo-se. Teria adorado um escritório como este, que lhe parecia unir passado e presente, um cômodo que pudesse deixar de herança para um filho. Se tivesse sorte o bastante para ter um.
Achou dolorosa a idéia do que Hawkin pretendia fazer com a decoração - embora reconhecesse que não era de sua conta. Entretanto, isso só o fazia antipatizar ainda mais com o homem. Deu uma olhada para Clough, que sentara na cadeira junto à escrivaninha e já estava preparado, com bloco e lápis à mão. O sargento assentiu. George limpou a garganta, desejando possuir o tipo de autoridade que alguns anos a mais lhe trariam automaticamente.
- Antes de abordar a principal razão para virmos até aqui, eu gostaria de saber se vocês receberam algum pedido de resgate por Alison.
- Ninguém imaginaria que tenho dinheiro para pagar resgate, inspetor - disse Hawkin, com a testa franzida. - Só porque tenho algumas terras?
- As pessoas às vezes têm as idéias mais malucas, senhor. Além disso, com as notícias sobre o seqüestro do filho de Frank Sinatra, é razoável pensar nesta possibilidade.
Hawkin meneou a cabeça, com pesar.
- Não recebemos nada. Nem carta, nem telefonema. Recebemos várias cartas hoje, de pessoas de Buxton que ouviram falar do desaparecimento de Alison, mas todas ofereciam solidariedade e nenhuma pedia dinheiro. Pode examiná-las, se quiser. Estão todas sobre o aparador da cozinha.
- Se receberem pedido de resgate, por favor comuniquem. Mesmo se os avisarem para não comunicarem à polícia, pelo bem de Alison, façam isso. Precisamos de sua cooperação.
- Inspetor - disse Hawkin, com uma risadinha nervosa -, acredite, se alguém pensa que colocará a mão em meu dinheiro e em minha enteada é melhor pensar duas vezes. Pode crer que irei direto a vocês se alguém for tolo o bastante para pensar que pagaremos resgate. Agora, o que os trouxe até aqui? Fiquei fora de casa a tarde inteira e estou faminto.
- Descobrimos uma pequena discrepância nos depoimentos do pessoal daqui e queremos esclarecer as coisas. Encontrar Alison é nossa maior prioridade, de modo que qualquer mal-entendido precisa ser esclarecido com a maior rapidez possível.
- Claro que sim - disse Hawkin, virando-se para amassar o cigarro no cinzeiro empoleirado sobre uma pilha de jornais, próximo à sua poltrona.
- O senhor declarou que estava no laboratório na tarde em que Alison desapareceu.
Hawkin inclinou a cabeça para o lado.
- Sim - disse com voz arrastada e um olhar de cautela.
- A tarde inteira?
- Mas que importância tem o horário em que fui para o laboratório? Não entendo o que minhas atividades da tarde têm a ver com Alison.
- Se o senhor me permitir, podemos resolver este problema rapidamente. Pode nos dizer quando foi para o laboratório?
Hawkin esfregou a lateral de seu nariz estreito com o indicador.
- Almoçamos meio-dia e meia, como sempre. Depois, vim até aqui para ler o jornal. Um dos problemas da vida rural é que a correspondência e o jornal da manhã raramente chegam antes do almoço. Assim, faço meu pequeno ritual depois do almoço, retirando-me para cá para cuidar da correspondência e ler o Express. Quarta-feira passada tinha que responder a algumas cartas, de modo que fui para o laboratório por volta das duas e meia da tarde. É naquele prédio pequeno nos fundos, que já tinha instalações hidráulicas. Eu o converti em câmara escura. O senhor se interessa por fotografia, inspetor? Duvido que haja um laboratório tão bem equipado e montado quanto o meu. - O sorriso de Hawkin era a coisa mais próxima de espontaneidade sincera que George já vira em seu rosto.
- Gostaria de dar uma olhada depois, se puder.
- Será bem-vindo. Seus homens estiveram lá, na noite em que Alison desapareceu, apenas conferindo se ela não estaria escondida ali, mas expliquei que geralmente mantenho o lugar trancado. Por causa do equipamento caro. Por favor, veja com seus próprios olhos. E se precisar de fotografias profissionais... - Hawkin fez um sinal para a aliança que brilhava no dedo de George. - Talvez uma foto do casal?
A ideia de ter o encanto adulador de Hawkin concentrado em Anne, mesmo que mediado pela lente de uma câmera, era imensamente repugnante. Disfarçando seu mal-estar, George disse, apenas:
- É uma oferta muito gentil, senhor. Agora, quanto à tarde de quartafeira. O senhor nos disse que foi para seu laboratório por volta das duas e meia da tarde. Por quanto tempo ficou lá?
Hawkin franziu a testa e pegou os cigarros:
- Ampliei muitas fotos... São para um concurso, de modo que é importante obter o máximo de perfeição. Voltei para casa pouco antes da hora de Jantar. Encontrei minha esposa e Kathy Lomas na cozinha, muito nervosas Por causa de Alison. Isto responde à sua pergunta, inspetor?
- Responde sim, mas não resolve meu problema. Entenda, nos disseram que o senhor estava caminhando pelo matagal onde encontramos Shep e foi até o arvoredo onde descobrimos traços que julgamos ser de uma luta física envolvendo Alison. Disseram-nos que eram mais ou menos quatro da tarde de quarta-feira. Será que pode explicar por que alguém o veria no mato, se não esteve lá?
As orelhas de Hawkin ficaram vermelhas primeiro e, depois, o rubor espalhou-se por sua mandíbula e subiu para o rosto inteiro.
- Porque são camponeses estúpidos, talvez.
George endireitou-se na poltrona, atônito pela hostilidade da resposta.
- Como?
- Essa gente cruza entre si há séculos, inspetor. Uma aldeia com apenas três sobrenomes? Não são exatamente gênios, certo? Alguns deles mal sabem em que ano estamos, para não dizer o dia do ano. Apenas porque um desses idiotas confundiu terça com quarta-feira... bem, não é algo para ser levado a sério, é? Olhe, meu tio administrou esta aldeia como se fosse seu passatempo pessoal por uma boa razão. Ele sabia que, sem a proteção de alguém, o povo daqui jamais sobreviveria. Não estão equipados para o mundo moderno. - De repente, Hawkin pareceu esgotar seu repertório de veneno. Correu a mão pelos cabelos e conseguiu dar um de seus fabulosos sorrisos. - Acredite, inspetor, não saí de meu laboratório na tarde de quarta-feira. Se alguém lhe disse o contrário, enganou-se.
Antes que George pudesse responder, Clough interveio, com a sincronia perfeita que transforma duplas de comediantes em astros. Folheando dramaticamente as folhas de seu bloco de anotações, ele disse, em tom de pedido de desculpas:
- Senhor, foram dois depoimentos dizendo a mesma coisa. Dois indivíduos afirmam que o viram no mesmo lugar, por volta das quatro da tarde de quarta-feira. Se fosse apenas um... Bem, francamente, já vimos o suficiente, nos últimos dias, para compreendermos exatamente seu ponto de vista sobre as pessoas daqui. Contudo, as coisas ficam meio... esquisitas, quando duas pessoas afirmam a mesma coisa.
Desta vez, o sorriso de Hawkin parecia verdadeiro. Pela primeira vez, George teve um vislumbre do que atraíra uma viúva de Scardale, como Ruth Tarter. Ao sorrir, Hawkin parecia tão malicioso quanto o jovem David
. Jovem. E tão inocente quanto este, George acrescentou mentalmente, quanto Hawkin oferecia cigarros aos dois policiais com um gesto amplo.
- Felizmente, há uma explicação perfeitamente razoável - disse, com esforço visível para manter um tom leve.
- E qual seria? - indagou George, inclinando-se para a frente para que o homem acendesse seu cigarro, mas sem permitir que seus olhos se afastassem dos de Hawkin.
- Costumo caminhar pelo vale. Tiro fotografias. Ando por minhas terras para garantir que está tudo bem. E preciso mantê-los com pulso firme ou os muros desabam. Quanto aos portões... - Ele apertou os lábios e balançou a cabeça de um lado para outro. - De qualquer modo, estive nos locais que o senhor mencionou, mas na terça-feira. Obviamente, alguns dos moradores da aldeia me viram andando por lá. Depois que Alison desapareceu, acho que começaram a questionar-se quanto ao dia em que me viram andando pelo campo. Agora, se eu fosse um Carter, Crowther ou Lomas, poderia me dar o benefício da dúvida e todos concordariam que me viram terça-feira. Acontece que sou um forasteiro, de modo que tendem a pensar sempre o pior de mim. Não se esqueçam de que são como crianças, um diz algo e todos concordam. Assim, se havia alguma dúvida no que teoricamente seriam as mentes do pessoal daqui, eles escolheram automaticamente a versão que os faria parecer importantes e me condenaria. - Hawkin recostou-se, cruzando uma perna sobre a outra e revelando um tornozelo ossudo, além de alguns centímetros de pele branca e peluda entre o pijama e o chinelo.
- Tem certeza de que não era quarta-feira? - insistiu George.
- Absoluta.
- E está disposto a assinar um depoimento? - perguntou novamente.
Nada do que Hawkin dissera o convencera de que Mamãe Lomas e Charlie estavam enganados, mas ainda era a palavra dos dois camponeses contra a o dono do solar e das terras. George sabia quem seria a testemunha mais convincente.
Alguns minutos depois, estavam de volta à cozinha. Ruth Hawkin estava sentada, e um cigarro esquecido no cinzeiro próximo transformara-se em oito centímetros de cinzas. Sua mão cobria a boca e os olhos estavam fixos na primeira página de um jornal sobre a mesa, à sua frente.
- Qual é o problema? - perguntou Hawkin, com a voz mostrando mais preocupação pela esposa do que jamais antes, desde que George o conhecia.
Em silêncio, ela empurrou o jornal na direção dos três homens. Era o High Peak Courant semanal, impresso naquela mesma tarde. George olhou para as manchetes, quase sem acreditar no que lia.
PARENTE DETIDO NO CASO DE MENINA DESAPARECIDA
Um homem está sendo interrogado pela polícia de Buxton, no seguimento das investigações do desaparecimento da menina Alison Carter, de Scardale.
O homem é, supostamente, um parente da garota desaparecida de 13 anos, que não é vista desde a tarde de quarta-feira.
Alison levou sua cadela collie, Shep, para uma caminhada pela floresta próxima, junto ao rio Scarlaston, como fazia com freqüência ao voltar da escola.
Policiais com cães farejadores realizaram buscas intensivas durante dois dias naquele vale isolado. Fazendeiros locais vasculharam os anexos de suas propriedades e a Equipe de Resgate de High Peak examinou córregos e valetas mais afastadas, onde Alison poderia ter caído.
Buscas adicionais ocorrerão no fim de semana. A polícia pede que os voluntários apresentem-se no salão da igreja metodista, na estrada ao sul de Longnor, às oito e meia da manhã de sábado.
Segundo informações, o homem detido é parente próximo de Alison Carter e está familiarizado com a área de Scardale, embora não resida no vale há vinte anos.
O homem mora em um albergue para homens solteiros, na periferia de Buxton, e trabalha em uma oficina para deficientes na cidade, onde foi procurado pela polícia ao chegar para trabalhar esta manhã.
Um porta-voz da polícia recusou-se a confirmar ou negar a matéria do Courant, dizendo apenas que as investigações deste caso são bastante amplas.
Entre os interrogados estão os colegas de sala de Alison no Peak Girls
High...
George mal podia acreditar no que lia. O detetive e inspetor-chefe Carver, caçador da fama, não perdera tempo em vazar a história para a imprensa local. Provavelmente, ligara para os repórteres antes mesmo de Peter Crowther chegar à delegacia. George ficou decepcionado. Achava que ele e Clough haviam protegido Crowther ao providenciarem para que se espalhasse a notícia de que o homem detido não tinha ligação com o desaparecimento da sobrinha. Seus cálculos não haviam incluído as fofocas de Buxton e a manchete oportunista do semanário Courant. Este jornal estava nas ruas de Buxton. E graças a ele, Peter Crowther também estava.
Então, viu o rosto sofrido de Ruth Hawkin e lembrou a si mesmo que sua raiva teria de esperar.
- Desculpe-me - disse. - Não há razão para supor que ele teve algo a ver com o desaparecimento de Alison. Já foi liberado. Esta matéria nem deveria ter sido publicada.
- Sobre o que vocês estão falando? - indagou Hawkin em tom exigente, parecendo realmente confuso. Ele puxou o jornal e leu novamente os primeiros parágrafos. - Não entendo. Quem é este parente detido pela polícia? Por que não fomos informados? E por que o senhor veio me perturbar com essas perguntas inúteis, quando já tinham um suspeito?
- Muitas perguntas de uma só vez - disse George. - Vamos lá, uma a uma. O homem do artigo no jornal é o irmão de sua esposa, Peter Crowther.
- Não pode ser. O irmão de Ruth chama-se Daniel - protestou Hawkin.
- O nome do outro irmão da senhora Hawkin é Peter - insistiu George. Hawkin lançou um olhar penetrante para a esposa.
- Que outro irmão, Ruth? - Sua voz estava tão tensa quanto uma linha de pesca puxando um salmão.
A mulher, emudecida, conseguiu apenas sacudir a cabeça. George veio em seu auxílio:
- Peter Crowther não se ajustava a Scardale, de modo que a família providenciou para que vivesse e trabalhasse em Buxton. Ele não vem a Scardale há vinte anos, e não há razão para supor que tenha estado aqui quarta-feira.
- Mas vocês o prenderam! - objetou Hawkin.
- O jornal não diz isso - falou George, consciente de sua mentira. - O artigo baseia-se em insinuações e em alguns poucos fatos que levam a esta suposição. Peter Crowther foi levado à delegacia para ser questionado porque meu chefe achou que seria melhor interrogá-lo lá que em seu local de trabalho ou no quarto que divide com outro residente do albergue. Ele foi interrogado e já foi liberado. - Voltou-se novamente para Ruth, puxando uma cadeira e sentando-se. - Sinto muito por isso, senhora Hawkin. Conhecemos as circunstâncias e a última coisa que desejávamos era causar-lhe mais transtornos. Gostaria que um de nós explicasse a seu marido ou prefere conversar com ele a sós?
Ela balançou a cabeça. Tirou a mão da boca e estendeu-a para pegar o cigarro apagado, parecendo surpresa por encontrar apenas o filtro e centímetros de cinzas. Clough colocou um cigarro aceso em sua mão, antes que ela conseguisse encontrar os seus.
- Pergunte a Mamãe - disse ela, exausta, dando a Hawkin um olhar suplicante. - Ela contará. Por favor. Eu não posso.
Hawkin levantou-se.
- Malditos camponeses - resmungou ele. Afastando-se da mesa abruptamente, ele saiu da cozinha, batendo a porta às suas costas.
Ruth suspirou e disse:
- Peter estava assustado?
- Temo que sim - respondeu George.
- Bom. - Ela olhou especulativamente para seu cigarro. - Muito bom mesmo.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 21h47
George fora para casa quando seus olhos já não conseguiam mais manter o foco nos depoimentos das testemunhas. Havia comparecido a uma reunião de planejamento entre os policiais fardados e o departamento de investigações criminais para organizarem as buscas dos voluntários pela manhã. Um representante do departamento de águas e esgotos estivera presente para discutirem a drenagem dos dois reservatórios em um raio de seis quilômetros de Scardale, um nas regiões montanhosas mais desoladas e o outro nos montes mais verdes, entre Scardale e Longnor. George considerara sua ânsia por essas buscas quase vampiresca.
Após o término dos arranjos para a manhã, convidara Tommy Clough para um drinque. Haviam dirigido até o minúsculo Baker's Arms e se acomodado no canto mais escuro, cada um com um caneco de cerveja.
- Liguei para o albergue - dissera Clough. - Crowther foi direto para lá depois que o liberamos. Tomou seu chá e saiu uma hora depois. Não disse aonde ia, mas não há nada de anormal nisso. O porteiro acha que ele saiu para tomar alguma coisa. Entretanto, ninguém o procurou, de modo que parece que ele poderia ter evitado a possibilidade de lhe apontarem o dedo.
- Espero que sim. Já tenho muito em que pensar, sem ter de me sentir responsável pelo que acontece a Peter Crowther.
- Não é sua culpa. Se algo acontecer, será culpa do departamento de investigações criminais e de Colin Loftus, o nojento do Courant. Se alguém mereceria ter sido afogado ao nascer, é Loftus.
- Mas eu ordenei a liberação de Crowther.
- E com razão, senhor. Não tínhamos motivos para mantê-lo. O coitado não tem nada a ver com o crime.
- Presumindo que haja um crime - dissera George, devagar.
- Nós dois sabemos que há. Quarenta e oito horas já se passaram e não temos nem rastro da menina, exceto por sinais de uma briga e um pouco de sangue. Está morta, não há dúvida.
- Não necessariamente. Ela pode estar sendo mantida em cativeiro. Clough olhara-o com ceticismo.
- Como o bebê Lindbergh.
- Eu a encontrarei, Tommy - dissera George, com o olhar fixo na cerveja em seu caneco. - Idealmente, viva. Mas, de qualquer modo, encontrarei Alison Carter. Custe o que custar, a senhora Hawkin saberá o que aconteceu com sua filha. - Ele engolira o resto da cerveja com um gole e se levantara. - Vou voltar para ler alguns depoimentos. Você precisa dormir um pouco. Isso é uma ordem.
Tivera de abandonar os depoimentos, quando a fome e a exaustão conspiraram contra sua disposição. Em casa, Anne estava à sua espera, sentada placidamente em sua poltrona, tricotando e assistindo à TV. Alguns minutos depois de seu cansado retorno, ela já colocara uma tigela de sopa na sua frente. Ele sentou-se à mesa da cozinha, quase incapaz de realizar o simples movimento monótono de levar a colher do prato à boca. Às suas costas, Anne fritava bacon picado, cebolas, batatas e ovos.
- Como se sente? - conseguiu perguntar, entre o término de sua sopa e o começo do prato principal.
- Estou bem - disse Anne, sentando-se no outro lado da mesa com uma xícara de chá. - Estou grávida, não doente. Não se preocupe. Não tenho nenhum problema de saúde. Estou mais preocupada com você, que não descansa nem come o suficiente.
George olhou para sua comida, mastigando automaticamente.
- Não posso evitar. Alison Carter tem mãe. Não posso deixá-la sem saber o que aconteceu com sua filha. Fico pensando em como eu me sentiria se meu filho ou filha sumisse, sem que ninguém soubesse o que lhe aconteceu ou onde está, e sem que ninguém pudesse fazer algo para me ajudar.
- Pelo amor de Deus, George, você está assumindo uma carga grande demais! Você não é o único policial responsável pelo que está acontecendo lá. Você se cobra demais - disse Anne, com uma ponta de irritação na voz.
- É fácil dizer isso, mas não consigo me livrar da idéia de que estamos correndo contra o tempo. Talvez ela ainda esteja viva. Enquanto ainda houver esta possibilidade, preciso dar tudo o que puder de mim.
- Mas achei que vocês haviam detido alguém. Certamente você pode descansar um pouco agora! - Ela inclinou-se para encher-lhe a xícara de chá novamente.
George torceu o nariz, e falou em tom pesaroso, embora quisesse brincar:
- Você continua acreditando no que lê no jornal, não é?
- Bem, o Courant não deixou muita margem para dúvidas.
- A matéria do Courant é uma mistura de insinuações e incorreções. Sim, pegamos o tio de Alison Carter. E sim, ele já foi condenado por atentado ao pudor. Aí termina a semelhança entre a verdade e o que foi publicado pelo jornal. O sujeito tem medo da própria sombra. Definitivamente não bate bem. Tudo o que já fez de errado foi expor seus genitais, e isso foi muitos anos atrás. Porém, quando o chefe de polícia Carver descobriu sobre o infeliz, ficou todo excitado e partiu com a mesma rapidez do Sputnik.
- Bem, nem se pode culpá-lo, George. Você está todo agitado com este caso. Não me surpreenderia se alguém perdesse o senso de proporção. O tio deve ter parecido um suspeito óbvio. Pobre homem - disse Anne. - Deve ter ficado apavorado. Este caso parece cheio de dor - falou ela, balançando a cabeça.
- E parece que isso não vai terminar tão cedo. - Ele afastou o prato vazio. - Na maioria dos casos, podemos ver alguma saída e sempre está claro quem fez o quê, ou, na pior das hipóteses, para onde deveríamos estar olhando. Neste, as coisas são diferentes. Topamos com becos sem saída e cantos escuros a todo momento. Eles vasculharam todo o vale e não encontraram nada que nos leve a Alison Carter. Alguém deve saber o que aconteceu à menina. - Ele suspirou, exasperado. - Ah, como eu queria descobrir quem!
- Você descobrirá, querido - disse Anne, reabastecendo-o de chá. - Se alguém é capaz disso, é você. Agora, tente relaxar. Amanhã você verá tudo com novos olhos.
- Espero que sim - exclamou George, com fervor. Estendeu a mão Para pegar seus cigarros, mas, antes que pudesse tirar um do maço, o telefone tocou. - Ah, meu Deus. Lá vamos nós novamente.
Sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, 22h26
George inclinou-se para a frente, no banco do passageiro do Zafira de Tommy Clough, olhando intensamente através do pára-brisa. Lá fora, os feixes de luz que vinham dos postes iluminavam porções oblíquas de granizo e neve que giravam no vento como cortinas de renda apanhadas por uma corrente de ar. Entretanto, não era no clima que George estava interessado. O que o interessava era o conflito feroz que ocorria no lado de fora do albergue para solteiros, em Waterswallows, e que se mostrava apenas intermitentemente, sob os fachos de luz.
- Quase não dá para acreditar - disse, sacudindo a cabeça. - Eu acharia que, em uma noite como esta, qualquer um adoraria sair do bar e ir direto para casa. Você não preferiria estar na frente de sua lareira, em vez de se arriscar a uma pneumonia dupla e a umas porretadas de um policial mais exaltado?
- Depois de algumas cervejas, nem se percebe o frio - disse Clough, cinicamente. Ele mesmo estava no bar, quando ouviu falar que um grupo de linchadores estava a caminho do albergue em Waterswallows. Parando apenas para ligar para a delegacia, ele fora direto até a casa de George, sabendo que o chefe já teria sido avisado. Agora, observavam enquanto uma equipe de doze policiais fardados dispersava o grupo de cerca de trinta bêbados irados com um grau de selvageria tão coreografado quanto um balé. George sentiu uma gratidão profunda por aquilo acontecer em um clima que impossibilitava fotos. A última coisa de que precisava era de um punhado de defensores de direitos civis afirmando que os policiais agiam com truculência, quando apenas tratavam de garantir que um bando de justiceiros embriagados não teria a oportunidade de liquidar com um homem inocente.
Subitamente, três dos homens que brigavam apareceram na frente do carro - dois policiais fardados e um homem com ombros imensos e o rosto pingando sangue. Um cassetete subiu e desceu nos ombros do sujeito e ele caiu inconsciente, atravessado sobre o capô do Zafira.
- Ah, mas que bom. Agora podemos acusá-lo também de dano intencional - afirmou Clough, com ironia, enquanto um policial algemava o homem, puxando seus braços para as costas, e o deixava escorregar lentamente até o chão. No capô, restou uma trilha de sangue e baba.
- Suponho que é melhor darmos uma mãozinha - falou George, com todo o entusiasmo de um homem que enfrenta um tratamento dentário sem anestesia.
- É o senhor quem manda, mas talvez só aumentemos a confusão, já que estamos à paisana.
- Tem razão. É melhor ficarmos aqui até que a coisa esfrie.
Eles observaram em silêncio, por mais dez minutos. A essa altura, uma dúzia de homens em estados variados de consciência se amontoava, no fundo de um camburão. Dois policiais seguravam lenços contra o nariz, enquanto outro procurava o quepe que perdera no tumulto. Bob Lucas apareceu, com a gola de sua capa de chuva levantada. Abriu a porta de trás e mergulhou dentro do carro.
- Mas que noite! - disse, com voz azeda. - Vocês sabem de quem é a culpa disso, não?
- Do Courant? - indagou Clough, com inocência na voz.
- Pode apostar - disse Lucas. - Melhor ainda, a culpa é de quem achou que o Courant deveria saber sobre Peter Crowther. Eu o esfolaria vivo se achasse que foi um de meus homens.
- Bem - disse Clough, com um suspiro -, sabemos que não foi um de seus homens, Bob. Nenhum dos policiais fardados teria coragem de oferecer informações sigilosas à imprensa. - Ele suavizou o insulto velado com um sorriso torto. - Você os treinou bem demais para isso.
- Crowther está seguro? - indagou George, virando-se no assento e estendendo a mão para oferecer um cigarro ao sargento.
- Ele não está aqui - disse Lucas, pegando um cigarro. - Depois que o soltamos, ele voltou, tomou chá e saiu novamente. Todos devem estar no albergue às nove da noite, quando fecham as portas. O diretor do albergue diz que Crowther não apareceu. Deu quinze minutos de tolerância, por compreender que o coitado tivera um dia difícil, mas depois trancou tudo como sempre. Diz que ninguém tocou a campainha ou bateu na porta antes de este bando aparecer por aqui. Felizmente, teve o juízo de não atendê-los e eles não conseguiram invadir, antes de aparecermos.
- Então, onde ele está? - perguntou Clough, abrindo uma fresta do vidro para que o vento pudesse levar a fumaça.
- Não temos idéia - admitiu Lucas. - Em geral, Crowther vai ao Wagon tomar uns goles, de modo que pensei em passar lá no caminho para a delegacia e ver o que eles têm a dizer.
- Faremos isso agora - disse George, contente porque a ação o distraía da preocupação constante com a investigação.
- Ainda preciso acertar alguns pontos aqui - protestou Lucas.
- Muito bem. Faça isto. Nós veremos o dono do Wagon.
George falara em tom definitivo. Lucas lançou-lhe um olhar rancoroso, tragou fundo o cigarro e saiu do carro sem dizer mais nada. Se lhe perguntassem, diria que a porta da viatura só batera por causa do vento.
- Conhece o dono do Wagon? - perguntou George, enquanto Clough guiava com cautela pela pista escorregadia.
- Ferguson, o Punho? Conheço.
- Punho?
- É. Foi boxeador profissional. Dizem que aceitou suborno para perder uma luta, foi pego e perdeu sua licença. Depois, sobreviveu por algum tempo no circuito ilegal de luta livre e ganhou o suficiente para comprar o bar.
- É incrível como qualquer um consegue um alvará para ter um bar - comentou George, ao estacionarem junto ao meio-fio na frente do nada convidativo Wagon Wheel. Não havia luzes acesas por trás das portas fechadas e cortinas das janelas.
- O bar está em nome da mulher dele.
Saíram depressa do carro, foram até a lateral do prédio e tiveram de se espremer entre uma pilha de engradados para protegerem-se da chuva-Clough golpeou a porta.
- Eu não me incomodaria de fazer buscas neste lugar amanhã com reforços, se as coisas continuarem como estão - disse, levantando a cabeça para enxergar as janelas no piso superior. Bateu com força na porta outra vez.
Um quadrado amarelo pálido apareceu acima de suas cabeças. Um homem careca espiou para fora, obscurecendo a maior parte da luz.
- Abra, Punho, é Tommy Clough.
Ouviram passos que soavam como trovões descendo as escadas. Ferrolhos foram destrancados e então a porta se abriu, revelando um homem que preenchia quase todo o espaço disponível no corredor estreito. Ele usava um conjunto de blusão e casaco de lã que um dia já havia sido branco, mas agora tinha a cor de ranho seco.
- Mas que raios vocês querem a esta hora da noite? Se estão atrás de bebida, podem desistir. - Ele coçou os testículos lentamente, sem o menor pudor.
- Bom vê-lo também, Punho - disse Clough. - Tem um minuto? Ferguson deu um passo para trás, com relutância. Entraram, com George na retaguarda.
- E quem é este? - indagou Ferguson, apontando para ele com um dedo gordo.
- Meu chefe. Diga olá para o detetive-inspetor Bennett.
Ferguson fez um estranho ruído gutural que George tomou como risada.
- Parece jovem o bastante para ser seu filho. Qual é o problema? Deve ser algo bem mais sério que uma saideira para trazer o chefe, Tommy.
- Peter Crowther costuma beber aqui - disse Clough.
- Depois desta noite não bebe não - disse Ferguson, com as mãos fechando-se inconscientemente em punhos. - Não vou deixar que alguém que se mete com mocinhas freqüente meu bar.
- O que aconteceu esta noite? - indagou George.
- Crowther apareceu na mesma hora de sempre. Achei-o bem corajoso - mas a verdade é que o infeliz pensava que ninguém sabia que ele havia Passado o dia todo no xadrez. Esfreguei o jornal em seu nariz e ele praticamente explodiu em lágrimas. Eu lhe disse que se quisesse beber em Buxton hoje era melhor encontrar um bar cheio de analfabetos. Depois, proibi sua entrada aqui pelo resto da vida. - Ferguson inflou o peito e jogou os ombros para trás.
- Teve muita coragem - disse George, em tom seco. - Então o senhor Crowther foi embora?
- Claro que sim - disse Ferguson, indignado.
- Sabe para onde ele foi? - perguntou Clough.
- Não sei e não dou a mínima - disse Ferguson, desinteressado.
- Só para sua informação, senhor Ferguson - disse George. - o senhor Crowther não teve nada a ver com o desaparecimento de sua sobrinha. A matéria publicada no Courant não passa de invencionice. Eu agradeceria se cancelasse a proibição ao ingresso de Crowther aqui antes da renovação de seu alvará de funcionamento. - Ele girou nos calcanhares e saiu novamente para a rua, com a impressão de que o clima lá fora parecia mais hospitaleiro que o dono do bar.
- Acho melhor dar ouvidos ao senhor Bennett - disse Clough, seguindo o chefe. - Ele ficará por aqui por um bom tempo.
Ferguson olhou furioso para as costas de George, mas não disse nada. Os dois sentaram no carro e olharam desanimados para a chuva com neve.
- É melhor voltarmos à delegacia e requisitar uma procura por Crowther pelas ruas. - George suspirou. - Você acha que amanhã será um pouquinho melhor que hoje?
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 7h18
Não havia muito com que pudesse contribuir nos planos de buscas que os policiais mais experientes faziam para o dia, de modo que George voltou a seu escritório e retomou a cansativa tarefa de examinar os depoimentos de testemunhas, em busca de algo que pudesse produzir uma pista. Estava lendo uma entrevista com a professora de inglês de Alison quando Tommy Clough enfiou a cabeça na porta para perguntar-lhe:
- Já leu o Daily News desta manhã?
- Não. A banca de jornais ainda estava fechada quando passei por lá. Clough entrou e fechou a porta.
- O trem acabou de chegar de Manchester. O maquinista me deu este.
- Acho que você não gostará da novidade. - Ele largou o jornal na frente do chefe, dobrado e aberto na página 3.
Vidente une-se às buscas por Alison Da Redação
Uma conhecida vidente francesa revelou com exclusividade ao Daily News que Alison Carter ainda está viva. A mulher ofereceu seus serviços nas buscas à menina de 13 anos, cujo desaparecimento desafia a polícia.
Os poderes de Madame Colette Charest já impressionaram a polícia de seu país e ela acredita que pode ajudar a encontrar a menina, que desapareceu de casa quarta-feira passada.
Com a permissão dos pais de Alison, um membro de nossa equipe de jornalismo telefonou para Madame Charest e lhe deu detalhes sobre os movimentos de Alison depois que a menina voltou da escola à aldeia de Scardale, em Derbyshire, onde morava com a mãe e o padrasto.
Viva e em segurança.
Madame Charest disse estar convencida de que a menina ainda está viva.
"Alison está em segurança", disse ela ao nosso repórter. "Foi embora de carro, com alguém que conhecia. Está em uma casa pequena, uma entre muitas semelhantes. Acho que é em uma cidade grande, mas a muitos quilômetros de sua aldeia. Já esteve em perigo, mas creio que está em segurança, por enquanto."
Madame Charest explicou que não podia oferecer informações mais detalhadas sem uma fotografia de Alison e um mapa da área. O material foi enviado a Lyon, na França, por correio aéreo especial, e um relatório completo das conclusões de Madame Charest será publicado na edição de segunda-feira do News.
Esforços da polícia
Um porta-voz da polícia disse: "Não temos planos de consultar videntes, embora não possamos desmerecer os comentários de Madame Charest. Já vimos as coisas mais estranhas acontecerem."
Sobre Madame Charest, policiais franceses disseram que seus poderes são "misteriosos", depois que obtiveram seu auxílio em casos nos quais a polícia não tinha pistas.
Se o clima permitir, membros da comunidade se juntarão hoje à polícia de Derbyshire em novas buscas nos pântanos e vales no entorno de Scardale.
George amassou o jornal, transformando-o em uma bola, e o jogou no outro lado da sala.
- Maldito Don Smart - praguejou, com as faces vermelhas sob as olheiras fundas. - Dá para acreditar nisso? Viva e em segurança?
- Suponho que é possível. - Clough encostou-se em um arquivo de metal e acendeu um cigarro.
- Claro que é possível - explodiu George. - É possível que Martin Bormann
esteja vivo, saudável e vivendo em Chesterfield, mas não é nem um pouco provável, ora! O que isso fará com Ruth Hawkin? Não posso acreditar que um jornal possa ser tão irresponsável! E quem fez aquele comentário idiota sobre não desmerecer a vidente?
- Ninguém. Provavelmente Smart inventou a declaração.
- Ah, meu Deus - suspirou George. - O que mais nos espera, Tommy - Ele tirou um cigarro do maço que já estava aberto sobre a mesa
inalou profundamente. - Vou lhe comprar outro jornal - disse, como um pedido de desculpas. - Qualquer coisa que você quiser, exceto o Daily Neivs. Deus, esse indivíduo estará na coletiva da imprensa, todo sorridente e faceiro.
- Você poderia pedir que o superintendente proibisse a entrada de Smart.
- Não vou lhe dar esse prazer. - George empurrou sua cadeira para trás e se levantou. - Vamos a Scardale. Estou enjoado de olhar para essas paredes.
Smart já estava lá quando chegaram. Ao estacionarem na praça da aldeia, eles o viram empurrando um jornal para dentro da caixa de correspondência da Casa do Rochedo. Enquanto observavam, Smart seguiu até a Casa da Campina e entregou ali outro exemplar.
- Vou dar um jeito nele - disse George, abrindo a porta do carro e atravessando a praça a passos largos para confrontar o jornalista.
Com um suspiro, Clough saiu e o seguiu.
- Parabéns - rosnou George, enquanto ainda estava a alguns passos de Smart.
- Boa matéria, não? - disse Smart, com sua cara de raposa agradavelmente surpresa. - Juro que pensei que um homem letrado como você não a apreciaria.
- Ah, eu não estava dando parabéns pela matéria - disse George, agora muito próximo. - Estava dando parabéns por seu prêmio.
- Prêmio?
Clough não acreditava que Smart mordera a isca. Ele mordeu o lábio, Para esconder seu sorriso.
- Sim, seu prêmio - continuou George, com gentileza obviamente falsa. - o Prêmio da Polícia para o Jornalista Irresponsável do Ano.
- Ah, inspetor, não lhe ensinaram na universidade que o sarcasmo é a demonstração mais desprezível de esperteza? - Smart encostou-se na parede da Casa da Campina e cruzou os braços no peito.
- Ninguém ganhará o título de nada mais desprezível enquanto você estiver vivo, Smart. Será que chegou a considerar, por um minuto, a cruel dade de aumentar as esperanças da senhora Hawkin com sua matéria?
- Está dizendo que ela deveria abandonar as esperanças? Este é o ponto de vista da polícia? - Smart inclinou-se para a frente, com olhos alertas, coçando a barba.
- Claro que não. Mas o que ofereceu aquele lixo que você escreveu foram falsas esperanças. Agarrou-se à manchete chamativa, sem pensar nas conseqüências. - George sacudiu a cabeça, desgostoso. - Esta Madame Charest existe? Ou você a inventou, assim como fez com a declaração do policial?
Agora foi a vez de Smart tornar-se rubro de raiva. Sua pele tinha a aparência de carne enlatada, manchada de pontos de rubor e pedaços mais pálidos.
- Eu não invento nada. Tenho a mente aberta. Seria muito bom se você fizesse o mesmo, inspetor. E se Madame Charest estiver certa? E se Alison estiver a quilômetros daqui, trancada em uma casa em Manchester, Sheffield ou Derby? Por acaso pensaram nesta possibilidade?
George puxou o ar com força, incrédulo.
- Está dizendo que deveríamos bater de porta em porta em cada cidade da Inglaterra, para talvez confirmar que uma charlatã francesa teria dado sorte com suas previsões fantasiosas? Você é ainda mais estúpido do que eu pensava.
- Claro que não é isso que estou dizendo. Mas você poderia fazer um apelo na imprensa. Seria algo como "Você viu esta garota? Acredita-se que Alison Carter possa estar com algum conhecido. Se alguém em sua vizinhança recebeu uma adolescente nos últimos dias, ou se você conhece alguém que tenha ligação com alguém de Scardale ou Buxton cujo comportamento lhe pareça estranho ultimamente, entre em contato com a polícia de Derbyshire". Isto é o que pretendo sugerir ao seu chefe na coletiva da imprensa, mais tarde. - Smart endireitou o corpo, com expressão de triunfo. - Sim, pretendo fazer esta sugestão. Quero ver sua cara de bobo, sentado ao lado dele, quando o chefe disser que a idéia é ótima.
- Sabe de uma coisa, Smart? Você é um doente. - Foi apenas o que George conseguiu dizer, sabendo que sua resposta era tola mesmo enquanto falava.
- Você mesmo disse que faria o que fosse preciso para descobrir o que aconteceu com Alison Carter. Acreditei em suas palavras. Achei que era um homem especial, George. No fim das contas, me enganei e você é tão tacanho quanto os outros policiais. Bem, que Deus tenha piedade de Alison Carter, se você é tudo o que lhe resta.
Smart deu um passo para o lado, tentando passar por George, mas este plantou a mão em seu peito. Não chegou a empurrá-lo, mas o manteve com firmeza onde estava.
- Vou descobrir o que aconteceu com Alison - disse, com a voz rouca de emoção. - E quando eu descobrir, você será o último a saber. - Deu um passo para trás e liberou o jornalista, que ficou parado a olhá-lo.
Então, Smart sorriu, mas a linha tensa e fina que formava o sorriso não chegava a disfarçar o brilho duro em seus olhos.
- Ah, eu duvido muito - falou. - Pode ser que você não goste da idéia, George, mas você e eu somos muito parecidos. Não nos importamos com quem magoamos, desde que façamos nosso trabalho da melhor maneira possível. Você pode não concordar comigo agora, mas quando for para casa e conversar com sua adorável esposa, saberá que tenho razão.
George inspirou com tanta força que seu peito inflou-se sob o casaco. Clough deu um passo à frente depressa e pousou a mão no braço do chefe.
- Acho melhor ir andando, senhor Smart - disse, bastando um olhar para seu rosto para que o jornalista passasse pelos dois e se encaminhasse rapidamente para seu carro.
- Que pena eu pegaria se eliminasse o sorriso da cara dele com um cassetete? - perguntou George, através de seus lábios esticados de raiva.
- Depende de o juiz conhecer Smart ou não. Aceita um chá?
Foram juntos até o trailer onde, mesmo tão cedo, as policiais já coavam chá. George fixou o olhar em uma xícara e falou baixinho:
- Suponho que você já trabalhou em casos assim antes, Tommy. Cheio de becos sem saída e frustrações...
É, um ou outro - admitiu Clough, mexendo três colheres de açúcar em seu chá. - Acontece que precisamos ir em frente. Pode parecer que estamos batendo com a cabeça em uma parede de tijolos, mas, com muita freqüência, parte da parede é de papelão pintado como tijolo. Mais cedo ou mais tarde aparece uma saída. E ainda é cedo, embora não pareça.
- E se a saída não aparecer? E se nunca descobrirmos o que aconteceu com Alison Carter? O que acontecerá? - George olhou para cima, com os olhos cheios de apreensão acerca do significado de um fracasso, em termos tanto pessoais quanto profissionais.
Clough respirou fundo e, depois, expirou lentamente.
- Se isso acontecer, o senhor pegará seu próximo caso. Levará sua esposa para dançar, irá ao bar tomar umas cervejas e tentará não ter insônia preocupando-se com o que não pode ser mudado.
- E esta receita dá certo? - perguntou George, sombrio.
- Não sei, senhor, eu não tenho esposa.
O sorriso apertado de Clough não disfarçava o que ambos sabiam. Se não descobrissem o destino de Alison Carter, ambos guardariam as marcas do fracasso para sempre.
- A minha está grávida - disse George, quase sem perceber que falava.
- Parabéns - a voz de Clough saiu curiosamente sem entonação. - Não é o melhor dos momentos para receber este tipo de notícia. Como está a senhora Bennett?
- Até aqui, sem problemas. Ainda não está sentindo enjôos. Só espero... bem, só espero que tudo dê certo, porque não posso ignorar esta investigação, não importa o tempo que demore. - George olhou pelas janelas embaçadas do trailer, sem perceber que o céu se iluminava gradualmente, sinalizando o começo de outro dia de buscas.
- Não seguiremos neste ritmo por muito tempo, sabe? - disse Clough, lembrando a George o que ele sabia em teoria, mas não por experiência própria. - Se não a encontrarmos depois de dez dias, ou, digamos, até o próximo fim de semana, cessaremos as buscas. Fecharemos a central de operações e voltaremos para Buxton. Ainda seguiremos todas as pistas, mas, se não avançarmos depois de um mês, o caso ficará em segundo plano. Você e eu já estaremos envolvidos com outros casos, mas não fecharemos este. Permanecerá em aberto e examinaremos a situação de três em três meses, mais ou menos, mas não trabalharemos tanto quanto agora.
- Eu sei, mas há algo neste caso. Quando eu era detetive em Derby, trabalhei em um caso de assassinato não resolvido, mas não me envolvi tanto quanto estou envolvido com este. Talvez porque a vítima estivesse na casa dos cinqüenta anos. Pelo menos já vivera um bom bocado. Agora, parece-me, a cada dia mais, que não encontraremos Alison com vida, e isto me enche de raiva, porque ela mal havia começado a viver. Mesmo se o destino da menina fosse ficar em Scardale, ter filhos e tricotar casacos, isto lhe foi negado e quero que a lei faça o mesmo com quem lhe tirou o futuro. Só lamento não enforcarmos mais esses imundos.
- Então ainda defende o enforcamento? - perguntou Clough, inclinando-se para a frente em sua cadeira.
- Sim, em casos de assassinato a sangue-frio. É diferente com assassinatos por impulso. Eu colocaria esses em prisão perpétua, dando-lhes tempo suficiente para arrependerem-se do que fizeram. Mas o tipo de monstro que rapta crianças, ou os animais que matam um inocente porque estava no caminho durante um assalto, sim, eu os enforcaria. Você não faria o mesmo?
Clough demorou para responder.
- Eu achava que sim, mas alguns anos atrás li um livro sobre o caso de Timothy Evans, Ten Rillington Place. Todos acreditavam que ele havia matado a esposa e a filha pequena. A polícia tinha até uma confissão. Depois descobriram que o senhorio de Evans assassinou pelo menos quatro outras mulheres, de modo que provavelmente foi ele que assassinou Beryl Evans. Agora é tarde demais para irem até Timothy Evans dizendo: "Desculpe aí, camarada, fizemos uma tremenda confusão."
George deu-lhe um meio-sorriso de concordância.
- Talvez. Mas não posso assumir responsabilidade pelos erros e imperícia de outros. Acho que nunca faria com que um homem inocente confessasse e estou disposto a arcar com meus atos. Se Alison Carter foi assassinada,
Início de Nota de Rodapé: Timothy Evans foi enforcado em 1950, na Inglaterra. Seu senhorio, John Christie, oferecera-se para ajudar a esposa de Evans na realização de um aborto, ilegal na época, mas a mulher morreu durante o procedimento. Christie ofereceu-se para livrar-se do corpo e disse a Evans que, se este cooperasse, cuidaria de seu bebê. Evans viajou por imposição de Christie, mas, duas semanas depois, foi à polícia e confessou o assassinato da esposa. Ao chegarem à residência, os policiais descobriram os corpos da filha e da esposa de Evans, que, sem conseguir provar sua inocência e incriminado pelo senhorio, foi condenado à morte. Posteriormente, Christie assassinou a própria esposa e também morreu enforcado. Fim da Nota de Rodapé.
como achamos que provavelmente foi, então eu adoraria ver o canalha pendurado e balançando na forca.
- Se esse monstro usou arma de fogo, talvez ainda seja possível enforcá-lo. Não se esqueça de que ainda há enforcamento para isso.
George não teve tempo de responder. A porta abriu-se de repente e Peter Grundy parou, emoldurado pelo batente, com o rosto cinzento como os rochedos de Scardale.
- Encontraram um corpo - falou.
12
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 8h47
O corpo de Peter Crowther jazia protegido do vento por uma parede de calcário, a uma distância de, no máximo, cinco quilômetros ao norte de Scardale. Estava encolhido em posição fetal, com os joelhos junto ao queixo e os braços envolvendo os tornozelos. A geada da noite, que tornava as estradas traiçoeiras, lhe dera uma cobertura branca semelhante a açúcar cristal, tornando-o quase belo à primeira vista. Entretanto, a morte era indubitável.
Ela estava lá, na pele azulada, olhos arregalados e baba congelada no queixo. George Bennett olhou para a casca de um ser humano, com o reconhecimento congelando-o mais que a temperatura cruel. Ele olhou para o céu miraculosamente azul, estranhamente surpreso porque o sol de inverno brilhava como se houvesse algo a celebrar. Ele certamente nada tinha para comemorar. Sentia-se nauseado, tanto física quanto espiritualmente. O gosto da responsabilidade azedava-lhe a boca. Não fizera direito seu trabalho e, agora, havia um homem morto.
Abaixou a cabeça e virou-se, deixando Tommy Clough agachado junto ao corpo, em um exame rápido. Cruzou o portão para o campo, onde dois Policiais estavam dentro de uma viatura para proteger o local até a chegada da perícia.
- Quem encontrou o corpo?
- Um camponês, Dennis Dearden. Bem, em termos técnicos, seu cão Pastor foi quem encontrou o corpo. O senhor Dearden saiu de casa assim que o sol nasceu para verificar o gado, como sempre faz. O cão alertou-o sobre a presença do cadáver - disse o policial mais velho.
- E onde está Dearden agora?
- Em sua casa, mais adiante na estrada. - O policial apontou para um chalé, a algumas centenas de metros dali.
- Estarei lá, se alguém precisar de mim.
George caminhou pela estrada com os passos tão pesados quanto seu coração. Na entrada para a pequena casa, parou para recompor-se. Antes que pudesse bater, a porta abriu-se e um rosto semelhante a uma maçã murcha apareceu na sua frente, com olhos pequenos e castanhos fazendo as vezes de sementes em cada lado de um nariz tão disforme quanto uma bolota de creme.
- Então, você deve ser o chefe - disse o homem.
- Senhor Dearden?
- Sim, rapaz, estou sozinho em casa. Minha patroa foi visitar a irmã em Bakewell. Sempre vai para lá durante alguns dias em dezembro, compra todos os presentes de Natal na feira. Entre, você deve estar congelando aí fora.
Dearden deu um passo para trás e levou George a uma cozinha ensolarada. Tudo brilhava: o esmalte do fogão, a madeira da mesa, as cadeiras e prateleiras, o cromo da chaleira, os copos em um armário de canto, até mesmo o aquecedor a gás.
- Sente-se junto ao fogo, aqui. - Dearden acrescentou hospitaleiro, empurrando uma cadeira na direção de George. O homem sentou-se, rígido, e sorriu. - Está melhor, não é? Aqueça um pouco seus ossos. Mas que coisa, sua aparência está pior que a de Peter Crowther.
- O senhor o conhecia?
- Para falar a verdade, não. Mas sabia quem era. Tenho feito alguns negócios com Terry Lomas, ao longo dos anos. Conheço todo mundo em Scardale. Vou lhe dizer, por um minuto terrível, lá fora, achei que fosse a menina. Acho que, como todos por aqui, não consigo tirá-la da cabeça. - Ele puxou um cachimbo de urze do bolso de seu colete e começou a limpá-lo com um canivete. - Que coisa horrível. A pobre mãe deve estar morta de preocupação. Nós todos estamos atentos para garantir que a menina não esteja ferida em alguma valeta ou escondida em alguma estrebaria ou estábulo. Assim, é claro que quando vi... bem, minha conclusão natural foi a de que devia ser a jovem Alison. - Ele fez uma pequena pausa para encher o cachimbo, dando a George a primeira oportunidade para manifestar-se.
- O que aconteceu, exatamente? - indagou, aliviado, porque, finalmente, deparava-se com uma testemunha aparentemente ansiosa para oferecer informações. Depois de apenas três dias em Scardale, ele já começava a tomar gosto pela tagarelice.
- Assim que abri o portão, Sherpa saiu correndo junto ao paredão do rochedo. Eu soube logo que havia algo estranho ali. Ela não é o tipo de cadela que saia correndo assim, sem mais nem menos. Então, no meio do campo, ela se atirou de barriga, como se tivesse caído. Com a cabeça baixa e entre as patas da frente. Eu podia ouvi-la ganindo de longe. Como se tivesse topado com uma ovelha morta, mas eu sabia que não era uma ovelha, porque o campo está vazio nesta época. Abri o portão porque é um atalho para aquele lugar. - Dearden acendeu um fósforo e chupou seu cachimbo. O tabaco encheu o ar de aroma de cereja e cravo-da-índia. - Sirva-se se quiser, rapaz - disse ele, empurrando um saquinho de fumo oleado até George. - A mistura de fumos é criação minha.
- Não, obrigado. - George pegou um de seus cigarros e fez uma expressão de quem pede desculpas.
- Ah, sim, você não tem tempo para nada mais complicado que um cigarro em seu trabalho. Ainda assim, deveria pensar em fumar cachimbo. Faz maravilhas para a concentração. Se me colocarem em algum lugar onde não permitam fumar, mal poderei completar as palavras cruzadas mais simples. - Ele fez um gesto com o polegar na direção do Daily Telegraph do dia anterior. George tentou não mostrar que estava impressionado. Todos sabiam que as palavras cruzadas do Telegraph eram mais fáceis que as do The Times, mas não era pouca coisa completá-las regularmente. Obviamente, por trás da língua solta de Dennis Dearden, havia um cérebro afiado.
- Assim, quando vi o comportamento da cadela, meu coração saltou. A única pessoa desaparecida, pelo que eu sabia, era Alison. Não suportei a ideia de ver seu cadáver a alguns minutos de minha porta da frente. Assim, corri pelo campo que nem louco, o que não significa que seja muito rápido, atualmente. Detesto dizer, mas me senti um pouco aliviado quando vi que era Peter.
- O senhor chegou a tocar no corpo?
- Nem precisei chegar tão perto. Eu pude ver que Peter não se levantaria mais, antes de chegar até ele. - O homem sacudiu a cabeça, pesaroso. - Coitado daquele maluco. Tinha de escolher a pior das noites para vir até Scardale a pé. Ficou longe daqui por tempo demais e esqueceu o que temperaturas como as de ontem à noite podem fazer com seres humanos. Aquela chuvinha com neve atravessa a pele. Depois, quando o céu fica limpo e a geada começa a cair, não se tem mais resistência. Só se continua em frente, mas o frio penetra até os ossos. Então, tudo o que se deseja fazer é deitar e dormir para sempre. Acho que isso foi o que Peter fez ontem à noite. - Ele chupou o cachimbo, deixando escapar de sua boca um fio gordo de fumaça. - Ele deveria ter parado em Buxton. Sabia como manter-se em segurança na cidade.
George apertou a boca contra o cigarro, pensando que não, Peter Crowther não sabia mais como manter-se em segurança. Suas opções haviam se esgotado. O terror de perder apenas o segundo lugar em que se sentira seguro o trouxera de volta, apesar do medo, ao lugar que o rejeitara. George temera exatamente isto. Apesar de suas preocupações, porém, permitira que Tommy Clough o persuadisse a liberar Crowther, porque era o modo mais conveniente de lidarem com o problema. E graças a um chefe fofoqueiro e a um jornal sensacionalista, agora Peter Crowther estava duro e congelado em um pasto de ovelhas de Derbyshire.
- Sua fazenda é um pouco afastada do caminho que alguém faria, vindo de Buxton a Scardale, não é? - indagou. Apenas isso lhe dava motivo para duvidar da teoria de Dearden sobre a forma como Crowther morrera.
- Você está pensando como um motorista, rapaz - disse Dearden, rindo baixinho. - Peter Crowther pensava como alguém que cresceu andando por esses vales. Volte e dê uma olhada em um mapa. Se traçar uma linha de Scardale a Buxton, evitando o pior das subidas e descidas, terá de passar direto por este campo. Antigamente, antes dos Land Rovers, eu via alguém de Scardale cruzar minhas terras pelo menos uma vez por dia. Não está marcado como uma trilha no mapa, é claro. Não é um caminho público, mas qualquer um por aqui respeita o gado dos outros, de modo que nunca me aborreci, nem meu pai antes de mim, e deixo que o pessoal de Scardale use minhas pastagens como atalho. - Ele sacudiu a cabeça. - Nunca pensei que um deles encontraria a morte neste trajeto.
George levantou-se.
- Obrigado pela ajuda, senhor Dearden. E por permitir que eu me esquentasse um pouco. Voltaremos para tomar um depoimento formal, pedirei que alguém lhe avise quando removerem o corpo.
- Muito obrigado. - Dearden seguiu-o até a porta da frente e espiou para fora, além de George, para o Jaguar marrom estacionado com duas rodas sobre o canteiro. - Deve ser o legista.
Quando George voltou pela mesma estrada e chegou ao campo, o legista da polícia levantava-se e corria as mãos por seu casacão bege de ombros largos para espaná-lo. Ele espiou George com curiosidade através dos óculos quadrados com armação preta e pesada.
- E você é?... - indagou.
- Este é o detetive-inspetor Bennett - interveio Clough. - Senhor, este é o doutor Blake, legista. Ele acabou de realizar um exame preliminar.
O médico concordou, com um breve aceno de cabeça, dizendo:
- Bem, obviamente está morto. Pela temperatura retal, eu diria que o óbito ocorreu entre cinco e oito horas atrás. Nenhum sinal de violência ou ferimento. Pelo modo como está vestido, sem sobretudo, sem roupa impermeável, eu diria que a causa mais provável foi exposição ao frio. É claro que só saberemos com certeza após a necropsia, mas eu diria que as causas foram naturais. A menos que se encontre um modo de responsabilizar o clima de Derbyshire por assassinato - acrescentou, retorcendo a boca com ironia.
- Obrigado, doutor - disse George. - Sendo assim, a que horas ocorreu a morte? Entre uma e quatro da madrugada?
- Humm, então não é apenas mais um detetive inspetor de carinha bonita? Ah, sim, você deve ser aquele com estudos universitários sobre o qual temos ouvido falar - disse o médico, com um sorriso condescendente. - Sim, inspetor, é isso mesmo. Depois de sabermos quem é, poderemos até imaginar o que fazia, perambulando pelos pântanos de Derbyshire no meio da noite com um par de sapatos gastos que mal suportariam a temperatura na cidade e não adiantariam nada aqui. - Blake enfiou um par de Pesadas luvas de couro.
Sabemos quem é ele e o que estava fazendo aqui - disse George, em tom brando. Já fora tratado com condescendência por especialistas, e não estava disposto a deixar-se irritar por um pomposo qualquer que não poderia ser mais de cinco anos mais velho que ele. As sobrancelhas do médico levantaram-se.
- Meu Deus! Aí está, sargento, o exemplo perfeito de como a educação aos nossos policiais melhorará a luta contra o crime. Bem, eu os deixarei agora. Terão meu relatório no início da semana que vem. - Ele desviou de George com um aceno sem muita disposição e rumou para o portão.
- Na verdade, senhor, eu gostaria de vê-lo amanhã. Blake parou e virou-se.
- É fim de semana, inspetor, e não pode haver urgência, já que vocês já têm a identidade de seu cadáver e uma razão para encontrá-lo aqui.
- Sim, mas esta morte está ligada a uma investigação mais ampla e preciso do relatório para amanhã. Desculpe-me se isto interfere em seus planos, mas é por isso que este distrito lhe paga tão bem, caro doutor. - O sorriso de George era agradável, mas seus olhos enfrentavam os de Blake sem piscar.
- Muito bem - disse o médico, impaciente. - Mas aqui não é Derby, inspetor. Somos uma comunidade pequena. A maioria tenta manter isto em mente o tempo todo - finalizou, afastando-se depressa.
- Obviamente esta é a minha semana de fazer novos amigos - comentou George, enquanto se voltava para Clough.
- É um tremendo preguiçoso, esse médico - disse Clough, despreocupado. - Já era hora de alguém lembrar-lhe quem paga por seu Jaguar e seu clube de golfe. Seria de pensar que ele sentiria curiosidade para conhecer a identidade de um corpo com o qual lidou com tanta intimidade, não é mesmo? Aposto que fará uma ligação hoje à tarde exigindo o nome para escrever em seu relatório.
- Temos de dar a notícia à senhora Hawkin - lembrou George. - E rápido. Os tambores da aldeia já devem estar transmitindo as notícias. Ela saberá que há um corpo e pensará o pior. - Ele sacudiu a cabeça. - Deve ser um dia bem ruim, quando saber que seu irmão está morto é uma boa notícia.
Kathy Lomas alimentava os porcos, enchendo seus cochos com uma mistura de pontas murchas de nabos, restos de vegetais e sobras de refeições da aldeia. O ruído alto de pés apressados sobre o solo congelado chamou sua atenção e ela se voltou, vendo Charlie Lomas, que corria pelo campo como cães danados o perseguissem. Ele teria passado direto se ela não o tivesse agarrado em meio à sua agitação.
A velocidade com que o garoto vinha fez com que girasse e batesse com toda força na parede do chiqueiro, onde teria caído bem dentro da pocilga, se a tia não segurasse com força sua jaqueta grossa de couro.
- O que houve, Charlie?
Sem ar, ele curvou-se com as mãos nos joelhos e o peito arfando para poder respirar. Finalmente, gaguejou:
- A cadela do velho Dennis Dearden encontrou um corpo no campo. A mão de Kathy voou para o peito, enquanto exclamava:
- Não pode ser, Charlie. Não acredito nisso.
Charlie conseguiu colocar-se semi-ereto, ofegante e ainda encostado na parede.
- Eu estava andando pelas margens do Scarlaston. Coloquei umas armadilhas ilegais lá e queria tirá-las antes da chegada da equipe de buscas. Cortei caminho pela propriedade de Carter e ouvi alguns policiais conversando. É isso mesmo, tia Kathy, encontraram um cadáver nas terras de Dennis Dearden.
Kathy estendeu a mão convulsivamente na direção de seu sobrinho e agarrou-se a ele. Permaneceram no abraço desajeitado até a respiração de Charlie voltar ao normal.
- Precisamos contar a Ruth - disse ela, finalmente.
- Não posso - disse o garoto, balançando a cabeça. - Eu não posso. Eu estava indo contar a Mamãe Lomas.
- Irei com você - disse Kathy, com firmeza, agarrando-lhe o braço acima do cotovelo e marchando com ele pelos campos até o solar. - Esses Malditos - resmungou com raiva, enquanto caminhavam. - Como ousam falar sobre isso antes de contarem a Ruth? Bem, não ficarei esperando decidirem contar-lhe.
Kathy arrastou Charlie até a cozinha do solar, sem bater. Ruth e Philip estavam sentados à mesa da cozinha, tendo à sua frente os restos do desjejum. Do desjejum dele, Kathy percebeu. Achava que Ruth não comera nada além de chá e cigarros desde o desaparecimento da filha.
- Charlie tem algo para contar - disse, sem preâmbulos. Sabia que era inútil tentar adoçar más notícias.
Charlie repetiu sua história com palavras trêmulas, fitando Ruth com ansiedade. Se ela já não estivesse sentada, teria caído. A pouca cor que restava em seu rosto desapareceu, deixando-a com a aparência de um modelo de cera. Depois, começou a tremer como se tivesse febre. Seus dentes batiam e todo o corpo sacudia. Kathy cruzou a cozinha em meia dúzia de passos largos e abraçou-a, embalando-a como fazia com seus filhos.
Philip Hawkin parecia alheio a tudo à sua volta. Como Ruth, empalide-ceu ao ouvir a notícia, mas este foi o único ponto em comum da resposta de ambos. Ele empurrou sua cadeira, levantou-se e saiu da cozinha, como um sonâmbulo. Kathy estava ocupada demais com Ruth para dar atenção ao fato, mas Charlie ficou olhando para o homem, boquiaberto, incapaz de acreditar no que acabara de presenciar.
George notou que Ruth trocara de roupa. Um vestido de jérsei marrom sob um casaco de malha de lã rústica indicava que ela provavelmente fora para a cama e tentara dormir pela primeira vez desde o desaparecimento da filha. As olheiras escuras de insônia denunciavam seu fracasso. Ela sentou-se encolhida à mesa da cozinha, segurando um cigarro entre os dedos trêmulos. Kathy Lomas estava encostada no fogão, com os braços cruzados e a testa franzida.
- Não entendo - disse Kathy. - Por que Peter pensaria em voltar a Scardale agora, com tudo o que está acontecendo?
- Ele não deve ter pensado nisso, Kathy - disse Ruth, com um suspiro. - Nada penetra em sua mente, exceto o que o afeta diretamente. Devia estar chateado por ter sido detido pela polícia. Depois, quando saiu para beber e pensou que estava seguro, sentiu-se aterrorizado pelo dono do lugar. Ele conhece apenas dois lugares, Buxton e Scardale. Por Deus, deve ter sentido o maior medo de sua vida se pensou que voltar a Scardale era a melhor opção. - Ela amassou o cigarro e esfregou o rosto, como se o lavasse. - Não suporto isso.
- Não foi culpa sua - disse Kathy, com amargura. - Sabemos de quem é a culpa - completou, apertando os lábios e lançando um olhar raivoso para George e Clough.
- Não estou falando de Peter. Isso posse suportar. Não sinto pesar por que não suporto é pensar em Alison. Quando Charlie veio voando para contar que havia um corpo na fazenda de Dearden, eu mal pude respirar Era como se me tivessem golpeado no peito. Tudo em mim parou de funcionar.
Mas ela ainda não estava plenamente recuperada quando ele chegara ali pensou George. Ruth estava sentada à mesa, com as mãos sobre a cabeça como se não quisesse ouvir nem ver nada. Kathy fazia-lhe companhia sentada ao seu lado, com um braço passado sobre seus ombros e acarician-do-lhe os cabelos com a outra mão. George não vira sinal de Philip. Ao indagar sobre ele, Kathy dissera, amarga, que o dono do solar empalidecera ao ouvir a notícia sobre o corpo e, depois, saíra de casa.
- Não deve ter ido longe - dissera a mulher. - É provável que esteja trancado em seu laboratório. É para lá que sempre vai quando não quer participar de algo.
George decidira que o direito de Ruth Hawkin, de ouvir as novidades tão rapidamente quanto possível, suplantava o direito do marido de dividir com a esposa este momento. Assim, transmitira-lhe os fatos de um fôlego só:
- O corpo que encontramos é de um homem.
Ruth levantara a cabeça como se impulsionada por uma mola. A expressão de alegria intensa teria superado o brilho das luzinhas de Natal nas ruas da cidade.
- Não é ela? - indagara Kathy.
- Não é Alison - confirmara George. Respirou fundo e continuou: - Infelizmente, parece que as notícias não são tão boas. Fizemos uma identificação preliminar do corpo. Algum membro da família precisará confirmar, mas acreditamos que o cadáver é de Peter Crowther.
Houve um silêncio longo e perplexo. Ruth simplesmente o fitara, como se tivesse assimilado tudo o que podia com a notícia de que o corpo encontrado não era o da filha. Kathy parecera chocada. Depois, levantara-se com expressão de asco. Dera alguns passos nervosos e, então, encostara-se no fogão, onde ainda estava, com uma carranca. Ah, sim, pensou George, ela sabe a quem culpar.
- Agora, tudo em que posso pensar é: graças a Deus não é minha Alison - continuou Ruth. - Não é terrível? Peter também era um ser humano, mas duvido que alguém queira velá-lo.
- Não precisamos velar ninguém - disse Kathy com sua voz ardendo em George como um buquê de urtiga. - Quando Mamãe Lomas começou sua ladainha sobre as tragédias que veríamos por trazermos estranhos - aldeia, achei que estava apenas fazendo seu discurso enjoado, como sempre. Mas havia alguma verdade no que ela disse. Vocês não conseguiram encontrar Alison, e agora um dos nossos está morto.
- Talvez se vocês o tivessem tratado como um dos seus quando estava vivo, ele não tivesse morrido - disse uma voz atrás deles. George virou-se e viu Philip Hawkin. Não tinha idéia do tempo em que ele estivera parado junto à porta semi-aberta, mas estava claro que ouvira boa parte da conversa. - O pessoal daqui o expulsou e, então, a Gestapo o trouxe de volta - continuou. - Meu Deus, a ignorância das pessoas. O coitado era inofensivo. Nunca havia sido violento. Nunca chegou a encostar a mão em uma mulher, pelo que sei. Sinto pena do infeliz.
- Deveria sentir alívio por não ser o corpo de Alison - disse Clough, ignorando o sentimentalismo de Hawkin.
- Claro que sim. Quem não sentiria? Apesar disso, preciso dizer que estou desapontado com você e seus homens, inspetor. Dois dias e meio e nenhuma notícia de Alison. Vocês estão vendo o sofrimento de minha esposa. Seu fracasso a atormenta. Não podem fazer mais nada? Usar sua imaginação? Fazer buscas mais completas? E quanto à vidente mencionada no jornal? Será que não poderiam dar ouvidos ao que ela tem a dizer? - Ele apoiou os punhos fechados sobre a mesa, com as faces vermelhas. - Estamos sob uma tensão terrível, inspetor. Não esperamos milagres, só queremos que façam seu trabalho e descubram o que aconteceu com nossa garotinha.
George tentou disfarçar sua frustração por trás da máscara de profissionalismo.
- Estamos fazendo o possível, senhor. Ampliamos o número de equipes de buscas. Temos centenas de voluntários de Buxton, Stoke, Sheffield e Ashbourne, bem como daqui mesmo. Se ela está em algum lugar onde possa ser encontrada, nós a encontraremos. Prometo.
- Sei que sim - sussurrou Ruth. - Phil sabe que vocês estão fazendo o possível. É que... o fato de não sabermos é uma tortura lenta.
George balançou a cabeça, demonstrando compreensão.
- Nós os manteremos informados sobre qualquer progresso.
Na rua, o ar impiedoso do inverno açoitou seus pulmões enquanto cruzava rapidamente a praça, respirando fundo. Quase trotando para alcançá-lo, Tommy Clough disse:
- Há algo em Philip Hawkin que me deixa com uma pulga atrás da orelha.
- Suas respostas parecem artificiais - disse George. - Como quando se aprende um idioma em um curso ruim. Pode-se saber a gramática e a pronúncia, mas nunca passamos por falante nativo, porque eles não precisam pensar no que estão dizendo o tempo todo. - Ele se jogou no banco do carona. - Entretanto, apenas o fato de ele parecer estranho não o torna um assassino ou alguém que rapta mocinhas.
- Ainda assim... - Clough ligou o carro.
- Ainda assim, é melhor nos colocarmos a caminho para enfrentar a coletiva da imprensa. O superintendente deve estar querendo a cabeça de alguém, e tenho certeza absoluta de que Carver foi o primeiro a receber sua raiva. - George recostou-se e acendeu um cigarro. Fechou os olhos e imaginou por que optara por ser policial. Poderia ter apresentado seu diploma de Direito em um escritório de advocacia em Derby e iniciado uma carreira. Já poderia estar a caminho da sociedade na firma, especializando-se em algo calmo, como um tabelionato ou direito sucessório. Na maior parte do tempo, repudiava esta idéia. Esta manhã, porém, curiosamente ela parecia interessante.
Abriu os olhos e se deparou com longas filas de homens movendo-se Pelo vale, a uma distância menor que um braço um do outro.
- Não encontrarão nada aqui, exceto o que as equipes anteriores deixaram cair - falou, amargurado.
- Estão usando os menos aptos aqui no vale - ouviu Clough dizer, com segurança. - Os melhores homens farão buscas nos rochedos e partes mais distantes do vale. Em terrenos como este, sempre há pontos que ignoramos porque não os conhecemos como a palma de nossas mãos.
- Acha que encontrarão algo? Clough torceu a boca.
- Depende do que há para encontrarem. Se acho que encontrarão o corpo? Não.
- E por quê?
- Se não encontramos até agora é porque está bem escondido. Isto significa que foi colocado onde está por alguém que conhece melhor essas redondezas que qualquer das pessoas envolvida nas buscas. De modo que em minha opinião, não acharão o corpo. Penso que já descobrimos tudo que podíamos.
George balançou a cabeça.
- Não posso pensar assim, Tommy. Seria como dizer que não apenas não encontraremos Alison, mas também não encontraremos quem a levou e provavelmente matou.
- Sei que é difícil, senhor, mas é com isso que nossos colegas de Cheshire e Manchester têm lidado. Sei que o senhor gostaria de não se lembrar do que Don Smart escreveu, mas talvez aprendamos com a experiência dos policiais daquelas cidades, mesmo se for apenas para sabermos como lidar com o fato de não chegarmos a lugar nenhum. - Clough freou de repente. Não havia onde estacionar na estrada principal, tanto quanto pudessem ver. Automóveis, caminhonetas e Land Rovers amontoavam-se nos meios-fios. Onde parecia haver espaço, este era ocupado por motos e lambretas. - Que bela maçaroca. E agora, o que eu faço?
Havia apenas uma solução sensata. George desceu e, na frente da igreja metodista, viu quando Clough manobrou o grande carro, retornando rumo à estrada para Scardale. Ele endireitou os ombros, deu uma tragada final em seu cigarro e o jogou no meio da rua. Não tinha nenhuma vontade de participar do que o aguardava no salão da igreja, mas também não podia adiar este compromisso.
Sábado, 14 de dezembro de 1963, 10h24
O purgatório da coletiva da imprensa terminou antes do que George temia, graças ao prático enfoque militar do superintendente Martin, que lidou com a morte de Peter Crowther com uma expressão lacônica de condolência. Quando um dos repórteres perguntara-lhe sobre vazamentos oficiosos para o Courant, Martin voltara sua artilharia para o homem:
- A especulação irresponsável do Courant foi pura invencionice - disse, em tom de comando que, obviamente, não admitia contestação. - Se eles tivessem verificado o boato, teriam ouvido exatamente o mesmo que os outros repórteres, isto é, que um homem estava detido na delegacia para interrogatório, para sua própria proteção, e fora liberado por ser inocente. Não admitirei que meus policiais sofram pressão por causa da irresponsabilidade da imprensa. Agora, temos uma menina desaparecida e precisamos encontrá-la. Responderei a perguntas ligadas a esta investigação.
Alguns repórteres fizeram perguntas rotineiras e, então, inevitavelmente, a cara de raposa de Don Smart fez-se visível, quando ele desviou o olhar de seu bloco de anotações e levantou a cabeça.
- O senhor chegou a ler a matéria desta manhã no News?
A risada de Martin, semelhante a um latido, era tão dura quanto suas Palavras.
- Até conhecê-lo, senhor, eu só havia visto meretrizes do sexo femini-no) em tempos de paz. Ainda assim, talvez eu não esteja muito longe da verdade, apesar de suas suíças, porque seu trabalho, senhor, só presta para encher as colunas das revistas femininas mais sensacionalistas. Não valorizarei suas tentativas débeis de causar tumulto com um comentário, exceto para dizer que sua matéria é lixo da espécie mais fedorenta. Senti-me tentado a proibir sua presença aqui, mas fui persuadido relutantemente por meus colegas, frente ao argumento de que isso só o faria ganhar a própria notoriedade pela qual anseia. Assim, o senhor pode permanecer, mas não se esqueça de que a finalidade de nossa reunião aqui é encontrar uma garota jovem e vulnerável que sumiu de casa, e não vender mais exemplares de seu lixo desprezível.
Ao fim de seu pequeno discurso, o pescoço de Martin tinha o tom avermelhado da crista de um galo. Don Smart apenas encolheu os ombros e voltou a olhar para suas anotações.
- Considerarei isto como "sem comentários", então - disse, baixinho. Martin terminara com a coletiva logo depois. Enquanto os repórteres saíam, murmurando entre si e comparando anotações, George pôs-se em guarda. Agora que o superintendente já se aquecera com Smart, esperava ser feito em pedacinhos por seu chefe. Martin correu um dedo pelos fios curtos e grisalhos de seu bigode e fitou-o. Sem desviar o olhar, tirou seus cigarros do bolso e acendeu um.
- Bem? - disse apenas.
- Perdão? - indagou George.
- Quero sua versão dos acontecimentos de ontem.
George apresentou uma versão resumida de seu envolvimento pessoal com Crowther.
- ... De modo que instruí o sargento Clough a pedir que o policial de Buxton soltasse Crowther. Concordamos em pedir que este policial espalhasse para a imprensa e para os curiosos que Crowther não era suspeito de nada.
- Você não leu o artigo do Courant? - perguntou Martin, áspero.
- Não, senhor. Estivemos em Scardale o dia inteiro. O jornal só chega lá no sábado e não tivemos oportunidade de ler a edição matinal.
- E o policial de plantão não disse nada sobre a matéria ao sargento Clough?
- Certamente não, porque, se tivesse dito, Clough teria vindo a mim, antes de autorizar a liberação do homem.
- Tem certeza?
- Eu teria de verificar com Clough, senhor, mas, pelo que conheço de sua personalidade, creio que ele teria considerado uma matéria assim como uma mudança nas circunstâncias, que poderia afetar a decisão que tomei. George percebeu a testa enrugada de Martin e se preparou para o massacre, mas este não veio. Martin simplesmente assentiu.
- Achei mesmo que havia sido um erro de comunicação. Bem, já temos
dois pontos contra nós. Primeiro, um de nossos homens contou algo que a imprensa nunca deveria saber. Segundo, o policial de plantão não deu aos policiais em campo as informações relevantes para que tomassem decisões importantes. Devemos ser gratos porque a família de Crowther está preocupada demais com a outra perda para ficar pensando em nosso papel em sua morte. Quais são seus planos para hoje?
George fez um sinal com o polegar na direção de uma pilha baixa de caixas de papelão junto a uma das mesas dobráveis.
- Tomei providências para que os depoimentos do pessoal de Buxton fossem trazidos para cá, a fim de que eu possa examiná-los e, ainda assim, estar próximo se as buscas produzirem algum resultado.
- As buscas terminam às quatro, não?
- É, mais ou menos nesse horário - disse George, intrigado pela pergunta.
- Se não houver novidade, quero que você esteja em casa às cinco.
- Como?
- Sei que você e Clough têm trabalhado muito neste caso, e não vejo razão para matarem-se assim. Os dois estão de folga hoje à noite, e isto é uma ordem. Amanhã será um dia importante, por isso quero que você descanse.
- O que tem amanhã, senhor? Martin estalou a língua, impaciente.
- Ninguém lhe contou? Meu Deus, precisamos melhorar a comunicação nesta divisão. Amanhã, Bennett, teremos o prazer de receber dois policiais de outras forças, um de Manchester e outro de Cheshire. Como você certamente já sabia, mesmo antes de o senhor Smart, do Daily News, chamar sua atenção para o assunto, as duas forças tiveram casos recentes de desaparecimentos misteriosos de adolescentes. Esses policiais querem reunir-se conosco para discutirmos possíveis ligações entre nossos casos.
George sentiu-se decepcionado. Perder seu tempo com diplomacia para com outras forças não iria ajudá-lo a descobrir o que acontecera com Alison Carter. A polícia da cidade de Manchester tivera mais de cinco meses para tentar encontrar Pauline Reade, e a de Cheshire já procurava John Kilbri havia três semanas, sem qualquer resultado. Os detetives que trabalhavam nesses casos estavam simplesmente desesperados, mais preocupados em parecer que faziam algo em prol de seus casos sem solução que em ajudar nas investigações em Scardale. Se fosse dado a jogos, apostaria que a reu-nião já era tema de um release para a imprensa, feito pelas outras forças.
- Não seria melhor se Carver se encarregasse da reunião? Afinal, ele é o chefe das investigações - disse, desesperado.
Martin olhou para seu cigarro com ar de repulsa.
- Seu conhecimento sobre os detalhes do caso é superior ao dele - disse apenas. Ele virou-se e começou a encaminhar-se para a porta. - Às onze horas, no quartel-general da divisão - ordenou, sem voltar-se e sem levantar a voz.
George ficou olhando para a porta por um longo tempo, após a saída de Martin. Sentia um misto de raiva e desilusão. As pessoas já começavam a considerar o desaparecimento de Alison como um caso insolúvel. Quer estivesse ligado aos outros casos ou não, estava claro que seus superiores não esperavam mais que ele a encontrasse e, menos ainda, com vida. Apertando as mandíbulas, ele puxou uma cadeira para junto das caixas de papelão e deu início à tarefa de ler os depoimentos restantes das testemunhas. Sabia que, provavelmente, isto era inútil, mas havia uma pequena chance de descobrir algo importante. E parecia-lhe que só poderia contar com pequenas chances.
Domingo, 15 de dezembro de 1963, 10h30
Pelo menos uma vez, um dos jornais havia acertado. Cada exemplar do Sunday Standard continha um pôster de 30 x 50cm. Exemplares adicionais haviam sido distribuídos a cada banca de jornais no país, e cada uma pela qual George passava a caminho da delegacia o exibia em local bem visível-Sob a manchete em grandes letras pretas, que dizia:
VOCÊ VIU ESTA MENINA?
jornal reproduzira um dos excelentes retratos de Alison feitos por Philip. O texto sob a manchete dizia:
Alison Carter está desaparecida de sua casa, na aldeia de Scardale, Derbyshire, desde às quatro e meia da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro.
Descrição: 13 anos, 1,52m, magra, cabelos loiros, olhos azuis, pele clara, com uma pequena cicatriz que atravessa sua sobrancelha direita; usava japona azul-marinho sobre uniforme escolar que consistia de jaqueta preta, colete marrom, saia marrom, blusa branca, gravata preta e marrom, meias pretas de lã e botas pretas de pele de carneiro.
Qualquer informação pode ser dada à polícia do condado de Derbyshire, em Buxton, ou a qualquer policial.
É assim que os jornalistas ajudam a polícia, pensou George. Ele esperava que Don Smart tivesse se engasgado com o café da manhã ao ver o pôster escorregando de dentro das páginas do Sunday Standard. Imaginou, também, quantas casas naquela área estariam exibindo o pôster ao anoitecer, achando que veria mais fotos de Alison Carter coladas nas janelas de High Peak que árvores de Natal através delas.
Era um bom começo de dia, pensou George, animado. Já começara bem. Uma vez que não precisara sair correndo antes da primeira luz do dia, tivera a chance de despertar naturalmente e ficar deitado, conversando com Anne no conforto da cama. Ele trouxera o chá para cima e haviam desfrutado de uma rara hora de intimidade, que selara a noite que haviam passado juntos. Se lhe tivessem perguntado antes, George teria negado com veemência a possibilidade de tirar Alison Carter de sua mente por mais de um ou dois minutos. Entretanto, a companhia de Anne, sempre tão descomplicada, permitira-lhe desligar-se das frustrações de sua investigação. aviam jantado à luz de velas e, depois, ouvido rádio, aconchegados no sofá, dando uma forma vaga a seus sonhos com relação ao filho ainda não nascido. Fora um descanso muito curto, mas que servira para repousá-lo um pouco, restaurando sua confiança, apesar do sono agitado.
George prendeu o pôster no quadro de avisos do departamento de investigações criminais com percevejos que tirou de alguns comunicados que ali estavam. Isto serviria como um lembrete muito claro de que o caso ainda estava vivo, para os detetives visitantes.
- Ficou bem, aí - disse Tommy Clough, com a voz ecoando pela sala enquanto a porta batia às suas costas. Ele retirou o sobretudo e lançou-o no cabide.
- Eu não sabia que estavam planejando isto - disse George, batendo com a ponta do dedo no pôster.
- Combinaram tudo ontem de manhã - disse Clough, despreocupado, fechando o botão do colarinho de sua camisa e apertando a gravata enquanto cruzava a sala.
George sacudiu a cabeça.
- Gostaria de saber de tudo o que você sabe, Tommy. Nada acontece aqui sem seu conhecimento.
Clough deu-lhe um sorriso ao dizer:
- Quando você estiver aqui há tanto tempo quanto eu, terá esquecido mais do que eu jamais saberei. Descobri sobre os pôsteres apenas porque estava passando pelo escritório da frente quando o mensageiro entrou para pegar a foto. Eu ia lhe contar, mas acabei esquecendo. Desculpe, senhor.
- Se trabalhamos juntos neste caso, é melhor me chamar apenas de "George" quando estamos sozinhos - disse ele, oferecendo cigarros a Clough, que pegou um.
- Como quiser, George - respondeu.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, a porta abriu-se novamente e o superintendente Martin entrou, em seu passo de marcha, seguido por dois homens que usavam ternos azul-marinhos quase idênticos, chapéus de feltro e capas impermeáveis. Apesar das roupas semelhantes, não havia como confundi-los. Um tinha ombros largos, tronco volumoso e pernas quase que comicamente curtas, que mal lhe permitiam atingir a altura de 1,72m exigida pela polícia. O outro devia medir dez centímetros mais que o primeiro, mas dava a impressão de que desapareceria se ficasse atrás um poste. Martin apresentou-os. O corpulento era o detetive e inspetor-hefe Gordon Parrott, da polícia de Manchester; o outro era o detetive inspetor-chefe Terry Quirke, da força policial de Cheshire.
Martin deixou-os, prometendo que mandaria chá para todos. Inicialmente, os quatro homens pareciam cautelosos como cães desconhecidos, apresentando seu melhor comportamento em um ambiente estranho. Aos poucos, porém, à medida que ofereciam detalhes de suas próprias operações sem que ninguém os criticasse, começaram a relaxar. Algumas horas depois, os quatro haviam concordado que havia tanta razão para suporem que as três crianças desaparecidas haviam sido raptadas pelo mesmo indivíduo quanto para pensarem que eram três desaparecimentos perpetrados por pessoas diferentes.
- Isto é, não podemos afirmar nada, nem num sentido nem no outro - disse Parrott, taciturno.
- Exceto que não é muito comum termos casos nos quais não há sequer um indício apontando para o que aconteceu - disse George. - Isso é o que vocês têm. Eu, pelo menos, encontrei uma cadela atada em uma árvore e sinais de luta em outro ponto do matagal. Este é o elemento crucial que separa o desaparecimento de Alison Carter dos casos de Pauline Reade e John Kilbride.
Ouviram-se sons de concordância entre todos.
- Vou lhes dizer uma coisa - acrescentou Clough. - Eu apostaria que Pauline e John foram levados por alguém de carro. Talvez até por duas pessoas diferentes. Uma que serviu de motorista e outra que dominou as crianças. Se o raptor estivesse a pé, teríamos testemunhas, mas entrar em um carro é uma questão de segundos. Contudo, apesar daquele casal que viu um Land Rover estacionado perto da igreja, não vejo como isso possa ter acontecido a Alison. Um raptor não teria levado a menina da floresta de "Cardale até a igreja metodista, a menos que fosse Tarzan. Além disso, ninguém viu veículos estranhos na aldeia naquela tarde.
- E um veículo estranho certamente seria notado - confirmou George. Se um rato espirrasse em Scardale, receberia a oferta de meia dúzia de remédios caseiros contra resfriado antes de poder limpar o nariz.
Perdemos nosso tempo - disse Parrott, com um suspiro. George negou com a cabeça.
- Por incrível que pareça, não foi tempo perdido. Nossa reunião clareou minhas idéias. Agora sei que posso eliminar uma opção. Quanto mais eu falava e ouvia, durante esta manhã, mais me convencia de que não estamos lidando com um rapto por um estranho. O que quer que tenha acontecido com Alison, ela sabia com quem estava lidando.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 7h40
A boa disposição que ajudara George a superar mais um dia de buscas infrutíferas desapareceu ao ver a edição matinal do Daily News. Desta vez, a vidente de Don Smart conseguira dar-lhe a primeira página do jornal.
GAROTA DESAPARECIDA: VIDENTE FRANCESA OFERECE PISTA DRAMÁTICA
Exclusivo da equipe de reportagem
As investigações sobre o desaparecimento de Alison Carter, 13 anos, assumiram um curso dramático hoje, quando uma clarividente deu novas pistas cruciais à polícia sobre o paradeiro da menina.
Madame Colette Charest forneceu detalhes sobre os supostos movimentos de Alison ao desaparecer, cinco dias atrás, da pequena aldeia de Scardale, em Derbyshire.
Falando de sua casa em Lyon, na França, Madame Charest relatou seus achados com base em um mapa do distrito, uma fotografia da bonita menina loira e recortes do Daily News.
Impressionante
Os detalhes foram passados, ontem à noite, ao detetive e inspetor-chefe M.C. Carver, que chefia a equipe de detetives encarregada de investigar o misterioso desaparecimento. Segundo Carver, "Não podemos nos permitir ignorar coisa alguma. O relatório dela parece impressionante".
Madame Charest já surpreendeu a polícia francesa com seus poderes, auxiliando em buscas anteriores.
A viúva francesa de 47 anos disse que "viu" Alison andando entre as árvores com um homem conhecido. Este teria entre 35 e 45 anos de idade e cabelos escuros.
Ela disse que Alison estava esperando o homem perto da água, e que seu estado de espírito era de tristeza e medo.
Ainda viva
O que impressiona é que Madame Charest insiste em sua convicção de que Alison ainda está viva e em segurança. "Ela está vivendo em uma cidade. Está em uma casa dentre outras semelhantes, de tijolos aparentes, sobre uma colina."
"Ela chegou lá em algo como uma pequena caminhoneta. Era noite e, desde que chegou a casa, a menina não saiu à rua. Não tem permissão para sair, mas não sente nenhuma espécie de dor."
"Há um pátio de escola próximo da casa. Ela pode ouvir as crianças brincando e isto a deixa triste."
Enquanto isso, equipes de voluntários trabalharam incansavelmente com os policiais e equipes de resgate de montanhistas que vasculham os vales e pântanos em torno de Scardale.
Cães e ganchos foram usados para a verificação de uma grande área de pântanos que compreende vários lagos e poços.
O chefe de polícia Carver disse: "Estamos ampliando as buscas por uma extensão tão abrangente quanto possível. O público tem cooperado imensamente, mas ainda precisamos de informações positivas sobre os movimentos de Alison depois que saiu de casa com sua cadela, na tarde de quarta-feira."
"Talvez esta nova informação possa acender a memória de alguém. Não importa quão insignificante possa parecer, queremos ouvir os populares que possam saber de algo."
- Mas o que Carver pensa que está fazendo? - reclamou George voltando-se para Anne. - A última coisa que desejamos é incentivar este tipo de coisa. Seremos engolfados por todas as cartomantes lunáticas do país.
- Provavelmente distorceram o que ele falou. - Anne disse, passando calmamente a manteiga no pão.
- E você provavelmente está certa - reconheceu ele, dobrando o jornal e empurrando-o sobre a mesa na direção da esposa, enquanto se levantava. - Estou indo. Não tenho hora para voltar.
- Tente chegar em casa em um horário decente, George. Não quero que você adquira o hábito de chegar nos horários mais malucos. Não quero que nosso filho cresça sem conhecer o pai direito. Já ouvi outras esposas falando sobre seus maridos. É quase como se falassem sobre parentes distantes dos quais elas não gostam muito. Parece que esses homens tratam suas casas como um último recurso, um lugar aonde vão quando bares e clubes fecham. As mulheres dizem que até as férias são tensas, porque saem da cidade com um estranho que passa o tempo todo preocupado e mal-humorado. Ou, então, bebendo e jogando.
George sacudiu a cabeça.
- Você sabe que não sou este tipo de homem.
- Acho que a maior parte delas também não achava que acabaria assim, logo que se casaram - disse Anne, seca. - Seu trabalho não é como os outros. Você não o deixa para trás quando acaba o expediente. Só quero garantir que você se lembrará de que há mais, na vida, que prender criminosos.
- Como eu poderia esquecer, quando tenho você me esperando em casa? - Ele curvou-se para beijá-la. Ela exalava um aroma doce, como o de biscoitos quentes. Agora ele sabia que aquela era a fragrância matinal natural de sua esposa. Ela lhe dissera que o cheiro dele era vagamente almiscarado, Como o pêlo de um gato limpo. Fora então que ele descobrira que todo mundo tinha seu próprio odor característico. Imaginou se a lembrança da assinatura aromática da filha seria outra das torturas pelas quais Ruth
rrawkin passava. Contendo um suspiro, ele abraçou Anne rapidamente e correu para seu carro, antes que as emoções saíssem de seu controle.
Parando na sede de sua divisão para pegar Tommy Clough, decidiu faltar à coletiva da imprensa. O superintendente Martin lidava com Don Smart muito melhor do que ele jamais conseguiria, e a última coisa de que precisava era ser levado a uma confrontação pública, que pressentia ser quase inevitável, devido à raiva que sentia.
- Vamos falar com os Hawkins - disse a seu sargento. - Acho que, lá no fundo, eles sabem que a esperança está morrendo. Não querem admitir, nem para si nem para os outros. Temos o dever de ser honestos com eles sobre a situação.
O limpador de pára-brisas varria a chuva com monotonia aborrecida enquanto cruzavam os pântanos até Scardale. Finalmente, Clough disse, com desânimo:
- Ela não poderia estar viva, exposta a este clima.
- Ela não poderia estar viva em nenhum lugar. Não é como raptar uma criancinha que se pode intimidar e manter trancada em um sótão. Manter uma adolescente cativa é algo totalmente diferente. Além disso, assassinos sexuais não esperam para obter o que desejam. Querem fazer tudo imediatamente. Se ela tivesse sido raptada por alguém idiota o bastante para pensar que Hawkin tem dinheiro para pagar pela libertação de Alison, já teríamos um pedido de resgate a esta hora. - George suspirou, enquanto levantava a mão para cumprimentar o policial encharcado que ainda montava guarda no portão de acesso a Scardale. - A questão nem diz respeito ao - e os Hawkins pensam. Nós é que precisamos enfrentar o fato de que, agora, estamos buscando apenas um corpo.
O silêncio foi quebrado apenas pelo limpador de pára-brisas, até chegarem à praça da aldeia e estacionarem ao lado do trailer da polícia. Os dois homens correram pela chuva e encolheram-se sob a pequena varanda, esperando que Ruth Hawkin respondesse às batidas na porta. Para sua surpresa quem a abriu foi Kathy Lomas. Ela deu um passo para trás, para permitir-lhes a passagem.
- É melhor entrarem - disse, com rispidez.
Seguiram em fila até a cozinha. Ruth estava sentada à mesa, encolhida em um roupão de náilon acolchoado cor-de-rosa, com olhos avermelhados cabelos soltos e desgrenhados. Do outro lado estava sentada Mama Lomas, usando camadas de casaquinhos de lã encimados por um xalp xadrez preso por um alfinete de segurança. George reconheceu a quarta mulher no cômodo como sendo Diane, irmã de Ruth e mãe de Charlie Lomas. As três mulheres mais jovens fumavam, mas Mamãe Lomas parecia confortável em meio à fumaça.
- O que houve? - perguntou Mamãe Lomas, antes que George pudesse dizer algo.
- Não temos novidades - admitiu ele.
- Bem diferente dos jornais, então - disse Diane Lomas, amarga.
- É, eles sempre encontram o que dizer - acrescentou Kathy. - Mesmo que seja pura besteira, como Alison estar presa em alguma casa sobre uma colina, em alguma cidade. Não se pode esconder alguém em uma cidade, exceto se a pessoa deseja permanecer escondida. Essas casas têm paredes finas como papelão. Não podem impedir que publiquem esse lixo?
- Vivemos em um país livre, senhora Lomas. Também não gostei do que li no jornal esta manhã, mas não podemos fazer nada a respeito.
- Olhe para o estado dela - disse Diane, apontando Ruth com a cabeça. - Eles não pensam no efeito que as notícias terão sobre ela. Isso não é certo.
Os lábios de George apertaram-se, formando uma linha fina. Finalmente, ele disse:
- É por isso, em parte, que estamos aqui, senhora Hawkin. - Ele puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Ruth e sua irmã. - Seu marido está?
- Foi a Stockport - respondeu Mamãe Lomas, com azedume. - Ele precisava comprar produtos químicos para suas fotografias. É claro que pode ir e vir como bem entende, o que não é verdade para todos os que nascem e crescem em Scardale. - Suas palavras permaneceram no ar, como um desafio.
George recusou-se a ser atingido pela ironia. Sua própria consciência ja o entristecia o suficiente por seu papel na morte de Peter Crowther; não precisava que a língua afiada de Mamãe Lomas o machucasse ainda mais. Simplesmente balançou a cabeça, em reconhecimento, e continuou falando:
- Queria dizer-lhes que continuamos procurando por Alison. Contudo,
eStaria mentindo se não lhes comunicasse que acho que as chances de encontrá-la viva estão a cada dia mais escassas.
Ruth levantou a cabeça, com o rosto transformado em uma máscara de resignação.
- Acha que isso é novidade para mim? - disse, cansada. - Não espero nada além disso, desde o minuto em que percebi que minha filha havia desaparecido. Suporto isso apenas porque preciso. O que não suporto é ignorar o que lhe aconteceu. É tudo que peço, que vocês descubram o que aconteceu com ela.
George respirou fundo.
- Acredite, senhora Hawkin, estou determinado a isso. A senhora tem minha palavra de que não desistirei de Alison.
- Belas palavras, rapazinho, mas o que significam? - indagou a voz irônica de Mamãe Lomas, cortando o clima de profunda emoção.
- Significa que continuaremos procurando. Que continuaremos interrogando pessoas. Já vasculhamos o vale de uma ponta a outra, já procuramos nas adjacências. Dragamos reservatórios e os mergulhadores da polícia verificaram o fundo do rio Scarlaston. Não encontramos nada além do que já havíamos achado nas primeiras vinte e quatro horas, mas não desistiremos.
Mamãe Lomas fez um esgar de desprezo, com o nariz e o queixo quase se encontrando ao retorcer todo o rosto.
- Como pode sentar aí e encarar Ruth, dizendo que vasculharam todo o vale? Vocês não chegaram nem perto da antiga mina de chumbo.
14
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 9h06
Perplexo, George viu sua surpresa espelhada nos rostos à sua frente. Ruth franziu as sobrancelhas, como se não tivesse certeza de que ouvira direito. Diane parecia atônita.
- Que antiga mina de chumbo, Mamãe? - indagou.
- Você sabe, dentro do Rochedo de Scardale.
- Nunca ouvi falar nisso - disse Kathy, parecendo levemente afrontada.
- Espere aí - interrompeu George. - Sobre o que estamos falando? A que mina de chumbo a senhora se refere?
Mamãe emitiu um suspiro exasperado.
- Como posso ser ainda mais direta? Dentro do Rochedo de Scardale há uma antiga mina de chumbo. Túneis, câmaras, essas coisas. Não é muito visível, mas está lá.
- E quanto tempo faz que fechou? - perguntou Clough.
- Como eu poderia saber? - protestou a velha. - Desde que me entendo por gente ela está fechada. Que eu saiba, existe desde que os romanos chegaram à Inglaterra. Eles extraíram chumbo e prata por esses lados.
- Nunca ouvi falar de uma mina de chumbo dentro do rochedo - insistiu Diane. - E vivo aqui desde que nasci.
Com dificuldade, George resistiu ao impulso de gritar com as mulheres, indagando apenas:
- Onde, exatamente, é esta mina?
Clough estava contente porque não era a ele que se dirigia esta voz cortante como uma lâmina. Ele não sabia que George era capaz de ser tão assertivo, mas isto só lhe confirmava que fizera bem em unir-se a ele.
Mamãe Lomas encolheu os ombros.
- Como posso saber? Como eu disse, desde que me entendo por gente a mina está fechada. Tudo o que sei é que a entrada é em algum ponto lá trás do arvoredo. Havia um riacho por perto, mas secou anos atrás, quando eu era mocinha.
- Assim, provavelmente ninguém sequer sabe sobre a existência da mina - disse George, curvando os ombros em desânimo. O que parecera conduzir a algo digno de ser investigado desmanchava-se em suas mãos.
- Bem, eu sei sobre ela - disse Mamãe, com energia. - O dono das terras me mostrou. Em um livro. O antigo dono das terras, quero dizer. Não Philip Hawkin.
- Que livro? - indagou Ruth, mostrando o primeiro sinal de ânimo desde a chegada dos dois homens.
- Não sei como se chamava, mas acho que poderia reconhecê-lo - disse a velha senhora, empurrando sua cadeira para longe da mesa. - Será que aquele seu marido jogou fora os livros do antigo dono desta casa? - Ruth negou. - Então vamos dar uma olhada.
Na ausência de Philip Hawkin, o estúdio era tão frio quanto um corredor gélido. Ruth estremeceu e apertou o roupão ainda mais contra seu corpo. Diane jogou-se em uma poltrona e pegou seu maço de cigarros, acendendo um sem oferecer aos outros. Depois, encolheu-se como um gato vira-latas gorducho com um rato entre as patas. Kathy ficou mexendo com um par de prismas sobre a escrivaninha, segurando-os contra a luz e virando-os de um lado para outro. Enquanto isso, Mamãe examinava as estantes e George prendia o fôlego.
Mais ou menos na metade da prateleira do meio, ela esticou um dedo ossudo:
- Ali - disse, satisfeita. - Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vole do Scarlaston.
George estendeu um braço e puxou o volume para baixo. Certamente já era um livro atraente, mas estava quase destruído pelo tempo e manuseio.
Encadernado originalmente em marroquim vermelho, media 25 x 20cm e tinha aproximadamente dois centímetros de espessura. Ele o deitou sobre a escrivaninha e abriu-o.
-Uma Cacofonia de Curiosidades sobre o Vale do Scarlaston, no Condado de Derbyshire, Incluindo a Caverna do Gigante e a Misteriosa Fonte do Próprio Rio. De acordo com os relatos do Reverendo Onesiphorus Jones. Publicado pelos senhores King, Bailey & Prosser, de Derby, MDCCCXXII - leu George. - 1822 - disse. - E então, onde está o trecho sobre a mina, senhora Lomas?
Os dedos artríticos da mulher passaram pela folha-de-rosto do livro e percorreram o sumário.
- Lembro que era perto do meio - disse, em voz baixa.
George curvou-se sobre o ombro de Mamãe Lomas e examinou rapidamente o sumário.
- Será aqui? - indagou, apontando para Capítulo XIV- Os Mistérios Secretos do Rochedo de Scardale; Homens Antigos no Vale; Ouro-de-Tolo e o Metal do Alquimista.
- Acho que sim. - Ela deu um passo para trás. - Foi há muito tempo. O antigo proprietário gostava de me contar a história do vale. Sua esposa era uma forasteira, entende?
George ouvia, mas com atenção dividida, folheando páginas grossas e amareladas, manchadas de mofo aqui e ali, até chegar à seção que buscava. Ali, ao lado de desenhos a bico-de-pena competentes, mas artificiais, estava a história da mina de chumbo em Scardale. Os veios de chumbo e pintas de ferro haviam sido descobertos no final da Idade Média, mas apenas no século XVIII começaram a ser explorados plenamente, quando quatro galerias principais e algumas cavernas foram escavadas. Entretanto, os filões eram menos produtivos do que pareciam inicialmente e, em algum ponto durante a década de 1790, a mina deixara de operar comercialmente. À época em que o livro fora escrito, ela já havia sido fechada com uma paliçada de madeira.
George apontou para a descrição.
- Será que essas instruções bastam para encontrarmos a mina?
- Você nunca a encontraria - disse Diane. Ela viera por trás e espiava sobre seu braço. - Mas posso dizer-lhe quem poderia achá-la.
- Quem? - perguntou George. Não poderia ter sido mais difícil tirar chumbo do chão que extrair informações dos nativos de Scardale, pensou ele, cansado.
Aposto que nosso Charlie os levaria até lá - disse Diane, ignorando a exasperação do detetive. - Ele conhece o vale melhor que qualquer um por aqui, e está em boa forma. Se for preciso escalar ou penetrar entre as rochas, ele será capaz. É o que vocês precisam, senhor Bennett. De nosso Charlie. Isto é, se ele estiver disposto a ajudá-los, depois do modo como foi tratado.
Segunda-feira, 16 de dezembro de 1963, 11H33
Charlie Lomas era tão ágil quanto um cachorrinho puxando a guia ao sentir o cheiro de coelho em suas narinas. Como George, ele se dispôs a correr até o lugar em que o rio encontrava o rochedo assim que soube o que estava acontecendo. Contudo, diferentemente de George, que aprendera a virtude da paciência, ele não via vantagem em esperar a chegada de espeleólogos. Para Charlie, ter crescido em Scardale era suficiente, no que se referia a investigar os mistérios do Rochedo de Scardale. Assim, pusera-se a andar de um lado para outro junto ao trailer da polícia, fumando sem parar e bebericando nervosamente uma xícara de chá, muito depois que este provavelmente já estava prestes a transformar-se em uma pedra de gelo.
George olhava furiosamente através da janela do trailer para a aldeia.
- Não que não estejamos acostumados a ter informações sonegadas, mas geralmente há uma razão bem clara para isso. A maioria das pessoas está protegendo a si mesma ou a outra pessoa. Ou, então, são uns sabotadores que sentem prazer quando nos frustram. Mas qual é o caso aqui? É como querer tirar leite de pedra.
Clough suspirou:
- Não creio que façam isso por mal. Eles nem mesmo percebem o que estão fazendo na maior parte do tempo. É um hábito adquirido ao longo dos séculos, e acho que não vão mudar de repente. É como se achassem que seus assuntos não são da conta de ninguém.
- Vai além disso, Tommy. Eles vivem na companhia uns dos outros há tanto tempo que sabem tudo o que há para saber sobre Scardale e sobre os habitantes daqui. Eles simplesmente não percebem que as pessoas de fora não têm esse mesmo conhecimento.
- Entendo o que você quer dizer. Sempre que descobrimos algo que deveriam ter nos contado, é como se estivessem perplexos por ainda não sabermos o que já sabiam.
George concordou com a cabeça.
- Este é o exemplo perfeito. Mamãe Lomas não disse, em nenhum momento: "Ah, vocês sabiam que há uma antiga mina de chumbo dentro do Rochedo de Scardale? Talvez seja bom procurar por lá." Não. Como todos os outros, ela presumiu que saberíamos sobre a mina e sua única intenção, ao mencioná-la, foi provocar-me, porque acha que temos sido incompetentes.
Clough levantou-se e pôs-se a caminhar pelo espaço apertado do trailer.
- É de enlouquecer, mas não podemos fazer nada a esse respeito, porque nunca sabemos o que não sabemos, até descobrirmos que não sabíamos...
George esfregou os olhos, cansado.
- Não consigo parar de pensar que se pelo menos eu tivesse conseguido fazer com que essas pessoas me contassem o que sabem, poderíamos ter salvado Alison.
Clough parou de caminhar e fitou o chão.
- Acho que não. Provavelmente, quando o primeiro telefonema foi dado para a delegacia de Buxton, já era tarde demais para Alison Cárter. - Ele levantou a cabeça e seu olhar encontrou o de George. Incapaz de suportar o que via ali, ele acrescentou: - Mas talvez toda essa minha confiança seja só porque não suporto a alternativa.
George voltou a ler o texto no livro do século XIX, tentando combinar sua descrição com o mapa em escala ampliada daquela área. Tommy Clough, reconhecendo suas Incitações, sentou-se novamente junto à janela e observou enquanto um casal de melros ciscava na terra sob o abrigo fechado da copa de um teixo muito antigo. Logo haveria algo a fazer; por enquanto, contentava-se em ficar ali sentado pensando.
Os espeleólogos chegaram em uma caminhoneta Commer com fileiras de assentos fixados com rebites ao piso. Resgate em Cavernas de Peak Park estava pintado de forma amadora na lataria. Meia dúzia de homens espalhou-se pela praça, aparentemente ignorando a chuva e retirando muitos equipamentos da traseira do veículo. Um dos homens afastou-se do grupo e foi até o trailer. Charlie parou de andar e olhou-o com ansiedade, como um cão perdigueiro pronto para cumprir seu dever. Detendo-se na porta, o homem perguntou:
- Quem é o chefe por aqui?
George levantou-se, curvando-se por causa do teto baixo.
- Detetive-inspetor George Bennett - disse, estendendo a mão.
- Você se parece com Jimmy Stewart, já lhe disseram? - perguntou o homem, sacudindo a mão de George brevemente.
George franziu a testa, enquanto percebia o sorriso largo de Clough.
- É, já me disseram. Obrigado por vir.
- O prazer é nosso. Há tempos não fazemos um resgate verdadeiro. Estamos ansiosos por algo que saia um pouquinho do comum. Como faremos? - Ele sentou-se em um dos bancos, com a borracha de seu traje de mergulho enrugando-se sobre a barriga plana.
- Temos uma vaga idéia de onde é o ponto de entrada para a mina - disse George, apresentando um resumo de suas conclusões a partir da leitura do livro e do exame do mapa. - Charlie é morador de Scardale e conhece o vale, de modo que provavelmente poderá nos dar algumas dicas no caminho. Se encontrarmos a caverna, quero estar com vocês, quando entrarem.
O homem olhou-o, em dúvida.
- Já explorou cavernas? Tem experiência com alpinismo ou escaladas?
- Não, mas estou em boa forma e sou forte.
- Não importa o que diga, você não está preparado. Somos uma equipe e estamos acostumados a trabalhar juntos e a cuidar uns dos outros. Você quebrará nosso ritmo. Não quero entrar em um sistema de cavernas inexploradas com alguém que não tem a mínima idéia do que está fazendo.
Ele friccionou a bochecha com as juntas, em um gesto nervoso. - Pessoas morrem em cavernas - acrescentou. - Por isso estamos aqui.
- Tem razão - disse George. - Pessoas morrem em cavernas. Exatamente por isso é que preciso estar lá com vocês. É possível que se deparem com a cena de um crime, e não estou disposto a comprometer possíveis Provas. Vocês são especialistas em uma área, não nego isso. Mas também sou, em minha área. Sendo assim, vocês não entrarão lá sem mim. E então?
- Pretende providenciar equipamento extra ou terei de fazer com que um de seus homens tire a roupa e me dê seu traje emborrachado?
O espeleólogo parecia prestes a iniciar uma guerra.
- Não colocarei minha equipe em risco por causa de sua inexperiência.
- Não estou pedindo isso. Ficarei atrás, deixarei que façam seu trabalho e verifiquem se há perigo. Seguirei suas ordens, mas preciso estar lá - disse, implacável.
- Também quero ir junto e tudo mais - falou Charlie, incapaz de se manter em silêncio por mais um minuto. -Já estive em cavernas, já explorei algumas e fiz escaladas. Tenho experiência. Conheço o terreno. Precisam me levar junto.
Tommy pousou a mão em seu braço.
- Não é uma boa idéia, Charlie. Se Alison está lá, acho que não será uma visão agradável. Você ficaria abalado e poderia destruir provas, sem querer. Em meu primeiro caso de assassinato, achei que seria a próxima vítima. Vomitei na cena do crime e o investigador-chefe olhou para mim como se fosse me matar. Acredite, é melhor se apenas nos ajudar a encontrar o caminho.
O jovem fez uma careta, empurrando os cabelos para tirá-los da testa.
- É minha prima, senhor Clough. Alguém da família tem que estar lá.
- Confie no detetive Bennett. Ele fará o que é melhor - disse Tommy. - Ele também quer encontrá-la tanto quanto você.
Charlie virou-se, com os ombros caídos.
- Então, o que é que estão esperando agora? - perguntou, tentando ser ríspido, mas sendo traído pelo tremor em sua voz.
- Preciso me trocar - falou George. - Não sei seu nome - acrescentou para o espeleólogo.
- Sou Barry. - Ele suspirou. - Tudo bem, temos um traje extra que deverá servir, mas as botas são por sua conta.
- Tenho botas de cano alto no carro. Será que servem?
- Terão de servir - disse Barry, de mau humor.
Vinte minutos depois, eles formavam uma estranha procissão descendo o vale, encaminhando-se para o matagal em que Charlie descobrira o local em que Alison brigara com alguém. O rapaz ia na frente, seguido de perto por George e Clough. Atrás, vinham os espeleólogos, rindo, conversando e fumando, animados como se não fossem enfrentar nada mais difícil que a exploração dominical costumeira de um sistema fascinante de cavernas.
Ao chegarem à base do rochedo, os espeleólogos agacharam-se sob as árvores mais próximas e esperaram orientações. Charlie moveu-se lentamente ao longo da borda do calcário, empurrando arbustos e, ocasionalmente, escalando com dificuldade rochas tombadas para verificar se obscureciam o que restaria de uma paliçada de cento e cinqüenta anos. George acompanhava-o sempre que podia, mas deixava a maior parte do esforço de busca para Charlie, comparando constantemente a topografia com a descrição do livro.
Charlie forçou caminho entre árvores pequenas que se entrelaçavam, então avançou por cima de um conjunto de rochas soltas e desapareceu do outro lado. Não podiam vê-lo, mas sua voz chegava claramente até os homens que aguardavam.
- Há uma brecha no rochedo, aqui. Parece... Parece que havia uma barricada, mas já está podre.
- Espere aí, Charlie - ordenou George. - Sargento, venha comigo. Precisamos ver se há algum sinal de desordem além do rastro deixado pela passagem de Charlie.
Eles atravessaram com dificuldade o ajuntamento de rochas, tentando evitar o açoite de ramos finos suspensos e tropeços nos arbustos espinhosos que estavam por toda parte, misturados à vegetação rasteira.
- É impossível dizer se alguém esteve aqui - disse Clough, com óbvia frustração. - Pode-se chegar a este lugar cruzando a floresta ou vindo pelo outro lado do vale. Como cenário de um crime, não poderia ser mais inútil.
Eles subiram penosamente sobre as rochas e encontraram Charlie dançando impacientemente, saltitando de um para outro pé.
- Olhem - exclamou o garoto, tão logo os viu. - Tem de ser aqui, não é, senhor Bennett?
Era difícil conciliar o que podiam ver com a representação da entrada da mina que George estivera estudando a manhã inteira. Pedaços de pedra haviam caído da boca do túnel, transformando totalmente seu formato. O arco que ferramentas rústicas haviam escavado no calcário macio agora Parecia-se mais com uma fenda triangular estreita, pelo menos duas vezes mais alta que havia sido originalmente. Samambaias chegavam à altura dos quadris, enquanto um sabugueiro camuflava a parte mais alta do que parecia ser a entrada.
- Vejam - exclamou Charlie, orgulhoso. - Dá para ver os restos de rebites que usaram para prender a barricada de madeira. - Ele apontou para algumas protuberâncias escuras que se projetavam da rocha em um dos lados. - E aqui... - ele puxou uma samambaia para um lado, revelando os restos apodrecidos de madeira grossa. - Achei que conhecia cada centímetro deste vale, mas nunca vim até aqui.
George olhou à sua volta, desanimado. Charlie pisoteara o terreno como um jovem elefante. Se Alison passara por ali, sozinha ou com alguém, a essa altura não havia nenhum traço que denunciasse isso. Respirou fundo e chamou:
- Barry, traga seus homens até aqui. - Virou-se para Clough. - Sargento, quero que você e o senhor Lomas voltem ao trailer. Precisarei de alguns policiais aqui, para isolarem a área. E nem uma palavra para a imprensa, por enquanto.
- Certo, senhor. - Clough segurou o ombro de Charlie com força. - É hora de deixarmos os especialistas fazerem seu trabalho.
- Eu tenho que entrar - disse Charlie, afastando-se com agilidade e disparando rumo à entrada da caverna, mas George estendeu uma perna e lhe deu uma rasteira. Charlie desabou no chão, olhando-o com raiva e mágoa.
- Agora estamos quites - disse George. - Por favor, Charlie, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Prometo que você será o primeiro a saber, se encontrarmos algo.
Charlie levantou-se e arrancou pedaços de samambaia de seus cabelos.
- Vou voltar para contar à minha avó o que descobri - resmungou, em desafio.
Mas a atenção de George já estava com os espeleólogos, que passavam sobre as rochas caídas como se fossem apenas ondulações em uma trilha. Agora que havia trabalho a ser feito, mostravam-se calados e metódicos. Cada um dos homens verificou seu equipamento com cuidado. Barry estendeu um capacete de mineiro com uma lanterna frontal a George.
Olhe, faremos a coisa da seguinte maneira: você fica sempre atrás.
Não sabemos como será lá dentro. A julgar pelo estado da entrada, não parece muito promissor. Ou seguro. Assim, nós entramos e você nos segue quando eu disser, nunca antes. Entendido?
George concordou, ajustando a correia do capacete, dizendo:
- Mas se encontrarmos algo que pareça recente, vocês não deverão mexer em nada. E se a menina estiver lá dentro... bem, teremos de sair imediatamente.
Barry virou a cabeça para um de seus colegas.
- Trevor tem uma câmera especial, para tirar fotografias em cavernas. Nós a trouxemos, para o caso de precisarmos. - Ele olhou em torno. - Muito bem, então. Des, você vai na frente. Estarei atrás, para garantir que George, aqui, fará o que deve fazer. Vocês ouviram, rapazes: não mexam em nada que encontrarem. Ah, George, nada de fumar lá dentro. Nunca se sabe que tipo de gás a terra pode estar expelindo.
Era como entrar em um mundo subterrâneo. A fenda na colina engoliu-os, privando-os de luz tão logo passaram pelo portal. Débeis cones de luz amarela batiam nas paredes com filetes brancos de calcário do período Carbonífero. Aqui e ali pedaços de quartzo brilhavam; um chuvisco úmido de depósitos de carbonato de cálcio brilhou momentaneamente; minerais riscavam e pontilhavam a rocha com suas cores particulares. George lembrou-se de um passeio que fizera com Anne a uma das cavernas abertas ao público perto de Castleton, mas não conseguiu recordar a correspondência entre essas estranhas marcas na pedra e suas origens. Levou algum tempo para perceber que estava em um corredor estreito, com não mais que 1,20m de largura por 1,70 de altura. Tinha de caminhar flexionando um pouco os joelhos para evitar bater com o capacete contra as exóticas excrescências que brotavam do teto.
O ar estava úmido, mas estranhamente fresco, como se fosse continuamente renovado. Em intervalos irregulares, mas contínuos, ouvia o ruído de água respingando, à medida que gotas das estalactites tornavam-se pesadas demais e a tensão em sua superfície tornava-se excessiva. O solo sob seus Pes era desigual e escorregadio, e George teve de mirar o facho de luz de Sua lanterna de mão para baixo, para não tropeçar em uma das muitas estalagmites que pontuavam o chão naquele ponto.
- Impressionante, não é? - indagou Barry, voltando-se levemente e cegando George por instantes com a luz de sua lanterna.
- Realmente.
- Deixe-a fechada por cento e cinqüenta anos e estará a caminho de se tornar uma daquelas cavernas às quais os turistas gostam de ir. Eu lhe digo que, se não encontrarmos nada aqui hoje, voltaremos no fim de semana para explorarmos melhor. Sabe, o rio Scarlaston parece brotar de repente do chão, e isto significa que deve haver um sistema de cavernas subterrâneas em algum ponto por aqui. Esta mina pode ser o caminho até ele. - O tom animado de Barry fez com que George se sentisse ligeiramente nauseado. Estava longe de sofrer de claustrofobia, mas o desejo indisfarçável do outro homem de passar horas sob essas toneladas de rochas hostis parecia-lhe totalmente estranho. Gostava demais do sol e do vento em sua pele para sentir-se atraído por este mundo exótico.
Antes que pudesse responder, ouviu um chamado distorcido por ecos e impossível de decifrar, que vinha dos homens mais à frente. Ele começou a se mover, mas o braço de Barry barrou-lhe o caminho.
- Espere - ordenou-lhe o homem. - Vou ver o que há e já volto.
George ficou ali, ansioso, tentando entender o que as vozes à sua frente diziam. Teve a impressão de que uma eternidade se passara, mas alguns minutos depois Barry estava na sua frente.
- O que é?
- Não é um corpo - disse Barry, rapidamente. - Parece que são roupas. Mais adiante. É melhor você dar uma olhada.
Os exploradores espremeram-se contra a parede para lhe dar passagem. Alguns metros à frente, o corredor ampliava-se e se tornava uma junção de quatro passagens. As outras saídas haviam sido bloqueadas com pedras e entulho, deixando apenas uma pequena caverna com cerca de três metros de largura por dois de altura. No lado mais longínquo, fracamente visível sob as luzes das lanternas, era possível avistar o que pareciam ser peças de roupa.
- Alguém tem uma lanterna mais potente? - indagou George.
Mãos lhe lançaram uma pesada lanterna. Ele apontou seu facho poderoso para as roupas. Algo escuro estava amontoado contra as pedras. O que à primeira vista pareciam ser duas tiras escuras revelou-se um par de meias cortadas. George percebeu, com uma fisgada de dor e repulsa, que o tecido preto perto delas era uma calcinha rasgada.
Forçou-se a respirar fundo.
- Sairemos todos agora. O último homem da fila, lá atrás, simplesmente vire-se e saia da caverna. Todos devem segui-lo. Eu estarei atrás de vocês. Por um momento, ninguém se moveu. - Eu disse agora - gritou, liberando um pouco da tensão acumulada que parecia tornar seus nervos mais esticados que uma corda de violino.
Ficou ali, olhando irritado para todos. Finalmente, eles se viraram e começaram a voltar, com seus passos firmes parecendo-lhe um insulto a seus esforços vacilantes no piso traiçoeiro. Ao emergirem na luz do sol, ele sentia-se como se tivessem permanecido lá dentro por horas, mas uma rápida olhada no relógio de pulso revelou que haviam passado menos de quinze minutos. Agora, dois policiais fardados emergiam do meio do matagal para isolar o local e evitar que bisbilhoteiros e pés destrutivos invadissem a mina.
George pigarreou e disse:
- Barry, eu gostaria que seu colega Trevor ficasse aqui e tirasse algumas fotos. Quanto aos outros, eu agradeceria se esperassem até isolarmos a área. Se voltarem à aldeia agora, todos saberão que encontramos algo e este lugar virará um inferno.
Os exploradores murmuraram em concordância. Barry puxou um maço de cigarros de uma bolsa impermeável pendurada por um cordão em seu pescoço.
- Você está com cara de quem precisa de um destes - disse.
- Obrigado. - George virou-se para os dois policiais fardados. - Um de vocês volte ao trailer e diga ao sargento Clough que encontramos roupas e precisamos de uma equipe inteira aqui para isolarmos um possível local de crime. E, pelo amor de Deus, seja discreto. Se alguém perguntar, trate de garantir que não encontramos um corpo. Não quero uma repetição da matéria de jornal de sexta passada.
Um dos policiais concordou, agitado, e girou nos calcanhares, correndo de volta à trilha, rumo ao coração da aldeia.
- Sua tarefa é garantir que ninguém que não seja um policial se aproxime a menos de vinte metros da entrada da mina - disse George ao outro policial, antes de se dirigir a Barry. - Aquela área central lá dentro, há alguma possibilidade de acesso às outras passagens por lá?
Barry encolheu os ombros com vigor.
- Não me parece provável, mas não posso ter certeza sem verificar direito. Talvez exista uma saída e alguém tenha fechado a passagem atrás dela para fazer com que parecesse impenetrável. Mas isto aqui é uma mina, não um sistema de cavernas. Ainda assim, acho que há apenas uma entrada e uma saída. Qualquer um que se metesse naquela caverna ainda estaria ali, mas provavelmente já estaria morto. Acho que a menina não está lá. - Ele pousou a mão no braço de George e, depois, virou-se para agachar-se sobre as pedras com seus colegas.
Uma busca completa na caverna consumiu sete horas. Trevor levou sua câmera de volta à mina e fotografou com cuidado cada centímetro das paredes e do chão. Nenhuma das passagens bloqueadas mostrava qualquer sinal de interferência recente. Não havia indicação de que um corpo houvesse sido abandonado lá dentro. George não sabia se deveria sentir-se deprimido ou animado com esta última afirmação.
No meio da tarde, uma japona sem um dos botões, uma meia-calça rasgada com tanta brutalidade que as pernas estavam totalmente separadas, e uma calcinha azul-marinho estavam a caminho do laboratório da polícia do distrito, cuidadosamente embaladas para preservação de quaisquer elementos que pudessem ser identificados pelo laboratório. Contudo, George não precisava que um especialista lhe dissesse que as manchas nos panos úmidos tinham origem humana.
Ele já estava na polícia tempo suficiente para reconhecer sangue e sêmen, quando os via.
Duas descobertas adicionais eram ainda mais perturbadoras. Encravado nas paredes da caverna, um policial encontrara um pedaço deformado de metal que já fora uma bala de arma de fogo. Tal descoberta levara a um exame mais detalhado do calcário cheio de fissuras. Escondido em uma rachadura, havia um segundo pedaço de metal.
Desta vez não havia como negar. Era, sem dúvida, uma bala de revólver.
Segunda Parte: A Longa Espera
Daily News, sexta-feira, 20 de dezembro de 1963, p. 5
Natal de lágrimas para mãe de menina desaparecida
Por Donald Smart
Ruth Hawkin não comprará presentes de Natal para a filha Alison este ano. Mas Philip, o padrasto da menina desaparecida, encheu o quarto da enteada de pacotes alegremente decorados contendo discos, livros, roupas e maquiagem.
A senhora Hawkin, 34 anos, não tem ânimo para comprar presentes para a filha. Nove dias atrás, ela acenou para a garota de 13 anos, que saiu de casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para passear com sua cadela de estimação e, desde então, não foi mais vista.
Um parente disse: "Se Alison não for encontrada, será um Natal muito triste para todos em Scardale. Somos uma comunidade muito unida e todos estão perplexos com o desaparecimento de Alison. Ela é adorável, e ninguém consegue imaginar por que fugiria de casa."
A polícia já ouviu milhares de pessoas, vasculhou vales e pântanos remotos e dragou rios e reservatórios em vão, nas buscas pela linda estudante loira.
Duas outras famílias também terão lugares vagos em suas mesas na ceia de Natal. Um mês atrás, John Kilbride, 12 anos, de Ashton-under-Lyne, desapareceu. Ele foi visto pela última vez na feira livre daquela cidade. Cinco meses atrás, Pauline Reade, de 17 anos, saiu de sua casa na rua Wiles, em Gorton, Manchester, para ir a um baile. Nenhum deles foi visto novamente.
Este não era o Natal que George Bennett desejara, alguns meses atrás. Ele ansiara por seu primeiro Natal em sua própria casa, a sós com a esposa, mas não contara com as pressões da família. Anne era filha única, de modo que não havia disputa de irmãos pela presença de seus pais e, sendo recém- casados, os dois haviam se tornado automaticamente o foco da atenção dos pais de George. Percebendo que seria sua primeira e última chance de celebrarem sozinhos, Anne fizera o possível para persuadir as duas famílias de que uma reunião de todos no dia 26 seria o mais conveniente para todos, mas fracassara. Na verdade, pouco faltou para que, além de seus pais, tivessem de receber também a irmã de George, seu cunhado e os três filhos pequenos.
De qualquer maneira, fora um almoço maravilhoso. Anne planejara e trabalhara durante semanas para que tudo desse certo. Nem mesmo o desaparecimento de Alison Cárter conseguiu deter sua determinação de que o primeiro Natal em sua própria casa fosse perfeito. E fora mesmo. Depois da distribuição de presentes e de fazer as caras e bocas adequadas de prazer pelas meias, camisas, suéteres e cigarros que ganhara, George tivera pouco a fazer, exceto garantir que as taças das mulheres continuassem cheias de sherry e champanhe doce e que não faltasse cerveja nos copos dos homens.
De acordo com o que haviam combinado de antemão, revelaram a gravidez de Anne depois do discurso da rainha. As mães competiam uma com a outra em sua alegria e, usando a hora de lavar a louça como desculpa, logo desapareceram na cozinha para oferecer conselhos à futura mamãe. O Pai de Anne cumprimentou George de um modo desajeitado e sentou-se Para celebrar com uma taça de conhaque e um charuto, enquanto assistia a TV. George e seu pai, Arthur, continuaram sentados à mesa de jantar e, como sempre, não se sentiam totalmente à vontade um com o outro, mas a notícia sobre o bebê preenchera parte do abismo que um diploma universitário colocara entre o advogado e o maquinista de trem.
- Você parece cansado, garoto - disse Arthur.
- As últimas semanas têm sido difíceis.
- É aquela menina desaparecida, não é?
George concordou.
- Alison Cárter. Temos feito de tudo, mas não nos distanciamos muito do ponto em que estávamos na noite em que ela sumiu.
- Mas li em algum lugar que haviam encontrado algumas roupas - falou Arthur, lançando um perfeito anel de fumaça para o alto.
- Sim, isso mesmo. Em uma mina abandonada. Mas tudo o que isso realmente nos diz é que ela não fugiu de casa. A descoberta das roupas não nos levou nem um pouco mais perto de descobrirmos o que lhe aconteceu ou onde está agora. Exceto que também encontramos algumas balas de pistola encravadas no calcário - acrescentou. - Uma estava tão deformada que não pudemos identificar a arma, mas tivemos mais sorte com a outra. Ela foi parar em uma fenda na parede de pedra, de modo que o pessoal da perícia conseguiu retirá-la mais ou menos intacta. Se chegarmos a encontrar a arma da qual foi disparada, poderemos fazer uma identificação positiva.
Seu pai tomou um pequeno gole do conhaque e balançou a cabeça, pesaroso.
- Pobre garota. Imagino que não a encontrarão com vida. Estou certo?
George suspirou, ao responder:
- Eu não apostaria nada nesta possibilidade. Este caso está me dando insónia. Especialmente agora, com a gravidez de Anne, que muda tudo, não é? Eu nunca havia pensado muito nesta questão antes. Sabe como é, voce acha que encontrará a garota certa, se casará e terá uma família. E assim que acontece, quando temos sorte. Mas eu nunca cheguei a pensar no significado de ser pai. Mas sabendo que irá acontecer, e estando no meio de uma investigação como esta... Bem, não posso evitar o pensamento de como me sentiria se fosse o meu filho.
- Entendo. - Seu pai respirou ruidosamente pelas narinas. - Você tem razão, George. Ter um filho faz com que nos lembremos a todo instante dos perigos do mundo, mas não conseguimos viver direito se nos preocupamos demais. Precisamos dizer a nós mesmos que nada de ruim acontecerá com nossos filhos. - Ele deu um sorriso oblíquo. - Você até que conseguiu chegar inteiro à idade adulta.
Isto era uma dica para a troca de histórias sobre os acidentes de George na infância. Contudo, parte dele estava imune à mudança de assunto. Alison Cárter estava entalada em seu íntimo como uma sujeirinha no cano de um cachimbo. Depois de alguns minutos, George apagou seu charuto e se levantou.
- Se você me permite, pai, vou dar uma saída. Meu sargento ofereceu-se para fazer plantão hoje, e eu gostaria de dar uma chegada na delegacia para lhe desejar feliz Natal.
- Ah, vá em frente, garoto. Vou me sentar perto do pai de Anne e fingir que estou assistindo à televisão. - Ele piscou um olho.- Vamos tentar não roncar alto demais.
George guardou no bolso uma caixa com cinqüenta cigarros que ganhara de uma tia e cruzou a cidade até a delegacia, encontrando a mesa de Tommy Clough vazia, exceto pelo relatório do exame de balística sobre as balas encontradas na caverna. A jaqueta de Clough estava sobre o encosto da cadeira, de modo que ele não deveria ter ido longe. George pegou o relatório já bem conhecido e folheou-o outra vez. Uma das balas estava totalmente irreconhecível, mas a outra, encontrada na fenda da pedra, revelara alguns detalhes para o especialista em armas:
O objeto é um projétil de chumbo, cilindro cónico, com cápsula totalmente revestida de metal, leu George. O calibre é .38. O projétil apresenta sete cheios e sete sulcos, com cheios estreitos e sulcos largos. Estes revelam um giro Para a direita. Esses padrões de raias são consistentes com um projétil disparado por um revólver Webley.
A porta se abriu e Tommy Clough entrou, com as sobrancelhas enrugadas enquanto lia um telex.
Feliz Natal, Tommy - disse George, jogando a caixa de cigarros até o outro lado da sala.
O mesmo para você, George - disse Clough, parecendo surpreso. - O que o traz aqui? A família entrou em guerra? - Ele cruzou a sala e Sentou-se, enfiando o telex na pasta de arquivo.
- Eu estava lá sentado, com meu chapéu de papelão, estourando fogos comendo peru e imaginando como estaria sendo o Natal no Solar Scardale.
Clough rasgou o celofane do maço de cigarros. Endireitando-se em sua cadeira, empurrou a pasta de arquivo para um lado e ofereceu a caixa aberta a George.
- Eu diria que depende do humor de Ruth Hawkin - falou. - E de mostrarmos ou não este telex a ela.
- O que você quer dizer?
Clough acendeu seu cigarro e somente depois respondeu:
- Uma vez que não chegamos a lugar nenhum pelos canais oficiais que liguem Hawkin a uma arma Webley, decidi tentar outras vias. Assim, enviei uma solicitação por informações sobre quaisquer comunicados de roubo de Webleys. Entre um monte de coisas inúteis havia algo interessante. De St. Albans. Dois anos atrás, um certo Richard Wells relatou uma invasão era sua casa. Entre os itens roubados havia um revólver Webley calibre .38.
Por seu ar de expectativa, George sabia que havia mais novidades.
- E daí? - perguntou.
- O senhor Wells mora a duas casas da residência da mãe de Philip Hawkin. As famílias costumavam jogar bridge juntas uma vez por semana. O senhor Wells mantinha sua Webley como lembrança de guerra, e se vangloriava dela com freqüência, de acordo com o oficial de plantão no departamento de investigações criminais. Ninguém foi preso pela invasão. A família estava de férias, de modo que pode ter acontecido em qualquer dia ou horário naquela semana. - Clough sorriu-lhe de uma orelha à outra. - Feliz Natal, George.
- Este presente é melhor que uma caixa de cigarros.
- Quer dar uma chegada até lá? Para sondar o ambiente?
- E por que não?
Mantiveram-se em silêncio durante a maior parte do percurso. Enquanto entravam na estrada que levava a Scardale, George disse:
- Se importaria de me falar mais sobre aquilo que disse antes, que o Natal dependia do humor da senhora Hawkin?
- Não é nada que já não tenhamos comentado uma dúzia de vezes nos últimos dias - disse Clough. - Em primeiro lugar, temos o conflito entre e Hawkin nos contou sobre seus movimentos na tarde em que Alison desapareceu e o ""vimos de Mamãe Lomas e de Charlie. Em segundo lugar, temos a mina de chumbo. Além de Mamãe Lomas, todos em Scardale negam já terem ouvido falar da antiga mina, e obviamente todos negam conhecer sua localização. Acontece que o livro que explica detalhadamente a localização da entrada estava bem na estante da biblioteca de Philip Hawkin.
E não esqueçamos os resultados do laboratório - disse George,
quase num sussurro. A conclusão inescapável do que haviam descoberto na mina de chumbo era que Alison Cárter havia sido estuprada e quase certamente assassinada. O sangue que manchava as roupas era do grupo O, que batia com os registros médicos de Alison. O indivíduo que sujara as calcinhas de Alison Cárter com sêmen era um secretor. Graças a isso, agora a polícia sabia que o homem pertencia ao grupo sangüíneo A. Isto era algo que Philip Hawkin tinha em comum com quarenta e dois por cento da população, assim como três outros homens do vale - dois dos tios de Alison e seu primo Brian. O que os separava de Philip Hawkin era o fato de todos terem álibis para o momento do desaparecimento da menina. Um dos tios estava em um bar em Leek, depois de visitar a feira de gado, e Brian estava ordenhando as vacas na companhia do pai. Se Alison tivesse sido atacada por alguém de dentro do vale, começava a parecer que existia apenas um candidato.
- Poderia ter sido alguém que subiu o vale do Scarlaston vindo de Denderdale. Alguém que a conhecia de Buxton. Um professor ou colega de escola. Ou simplesmente algum pervertido que a observava na escola - disse Clough, quando voltou ao carro após fechar o portão que separava a aldeia da estrada.
- Não poderia ter chegado lá a tempo. A caminhada da estrada em Denderdale até a margem do rio leva uma hora e meia, mais ou menos. E ele não voltou aqui no escuro com Alison, viva ou morta. Teria parado em definitivo perto do rio - disse George, em tom seguro. - Concordo com você. Todas as evidências circunstanciais apontam para um homem, mas não temos um corpo nem provas diretas. Sem isso, não podemos justificar um interrogatório, menos ainda um indiciamento.
- E então, o que fazemos?
- Não faço idéia. - George suspirou. O carro parou ao lado da trilha marrom de capim que marcava o ponto em que o trailer da polícia havia estado. Sob as ordens do superintendente Martin, o veículo fora levado de volta a Buxton na sexta-feira. As buscas haviam terminado no mesmo dia já que não havia mais onde procurar.
George saiu para o ar gelado da noite. A aldeia parecia curiosamente inalterada, apesar do que acontecera. Não havia sinal de que algo mudara além do pôster do jornal colado na parte de trás do telefone público. Em torno da praça, as casas ainda pareciam aconchegar-se umas às outras. Luzes estavam acesas por trás das cortinas e o latido ocasional de um cão cortava o silêncio. Era preciso admitir que não se podiam ver árvores de Natal por trás das janelas e as portas não exibiam guirlandas festivas. Contudo, George não estava convencido de que as coisas seriam diferentes em qualquer outro Natal em Scardale.
Ele e Clough encostaram-se no capô do carro, fumando em silêncio. Pouco depois, uma cunha de luz amarela saiu da porta da Casa do Outeiro. A silhueta inconfundível de Mamãe Lomas apareceu, realçada contra o interior iluminado. Depois, a luz desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. A velha mulher estava junto deles antes que George pudesse dar-se conta de que ela não tornara a entrar em casa.
- Vocês não têm uma casa para onde ir? - indagou ela.
- Ele está de plantão - disse George.
- E qual é a sua desculpa?
- Natal é para crianças, não é o que dizem? Bem, não consegui tirar uma garota de meus pensamentos.
- Mas que incrível, um tira com sentimentos - riu-se ela, com ironia, abrindo seu casaco volumoso e tirando uma garrafa com o líquido transparente que bebera durante a conversa que mantivera com os dois no início da investigação. De outro bolso, tirou três copos.
- Achei que vocês poderiam gostar de beber algo para afastar o frio.
- Isto seria um verdadeiro ato de caridade cristã - disse Clough.
Eles a viram colocar os copos sobre o capô e servir três doses generosas. Cerimoniosamente, deu um copo a cada um e, depois, ergueu o seu num brinde.
- a que estamos bebendo? - perguntou George.
Ao fato de terem descoberto evidências suficientes - falou ela, em uma voz mais fria que o ar noturno.
- Eu preferiria beber à descoberta de Alison - disse ele.
A mulher sacudiu a cabeça.
Se fosse para encontrá-la, isso já teria acontecido. Onde quer que a tenham colocado, só poderá ser descoberta por acaso. Tudo o que nos resta, agora, é a esperança de que vocês o façam pagar.
- A senhora está pensando em alguém específico? - indagou Clough.
- Assim como vocês, não devo especular - disse, gélida, virando-se para olhar o solar e levantando seu copo. - Às provas.
George tomou um pequeno gole e quase sufocou.
- É puro álcool! - exclamou, quando conseguiu falar novamente. - Mas, por Deus, o que há nessa garrafa? Combustível de foguete?
Ela riu baixinho.
- Nossa Terry chama isso de Fogo do Inferno. É destilado de flor de sabugueiro e vinho de groselha espinhosa.
- Não encontramos nenhum alambique quando fizemos buscas na aldeia - comentou Clough.
- Bem, e por que deveriam? - Ela esvaziou seu copo. - E então, o que pretendem fazer? Como conseguirão pegá-lo?
George forçou-se a engolir o resto daquele fogo líquido. Ao recuperar a capacidade da fala, respondeu:
- Não sei se podemos fazer isso, mas não vou desistir.
- É melhor mesmo - falou ela, em tom duro. Estendeu a mão para os copos vazios, deu-lhes as costas e voltou para sua casa.
- Bem feito para nós - disse Clough.
- É um maldito feliz Natal para você também.
Era a primeira segunda-feira de fevereiro e George estava em sua mesa de trabalho já às oito horas. Tommy Clough bateu na porta alguns minutos depois, segurando duas xícaras de chá.
- Como estava o clima? - perguntou.
- Melhor do que se poderia esperar - respondeu George. - Estava frio, mas todos os dias foram ensolarados. Ninguém se importa com o frio desde que o tempo esteja seco, e Norfolk é tão plana que Anne conseguiu caminhar por quilômetros.
Clough ajeitou-se na cadeira oposta à de George e acendeu um cigarro.
- Você está com ótima aparência. Parece até que passou quinze dias na Costa Brava, em vez de uma semana em uma praia próxima.
George sorriu-lhe, alegre.
- Então Martin estava certo.
Ele resistira furiosamente quando o superintendente Martin insistira que tirasse alguns dias de folga, para compensar as horas intermináveis que passara no caso de Alison Cárter. Finalmente, quando Jack Martin transformara a sugestão em ordem, George desistira, mal-humorado, e permitira que Anne fizesse reservas em uma pousada na cidade litorânea de Norfolk. Depois, descobriram que eram os únicos hóspedes, e foram mimados por uma proprietária que acreditava que todos deveriam fazer pelo menos três refeições generosas por dia. Uma semana de alimentação regular, ar puro e a atenção exclusiva de sua esposa o haviam enchido de energia e determinação.
- Ele tem insistido para que eu também tire férias - admitiu Clough. - Talvez eu saia, agora que você voltou.
- Alguma novidade? - perguntou George, soprando seu chá.
- Bem, levei aquela nova policial de Chapel-en-le-Frith para ver Acker Bilk e sua Paramount Jazz Band no Pavilion Gardens, sexta à noite, e foi muito agradável. Acho que vou perguntar se ela quer assistir comigo àquele novo filme com Albert Finney na Opera House. O nome é Tom Jones. Parece um filme apropriado para colocar uma senhorita no clima certo - falou Clough, com um sorriso brincalhão e inocente.
- Eu perguntei se há novidades sobre o caso, não em sua patética vida amorosa - respondeu George, com bom humor.
- Por incrível que pareça, há uma novidade. Recebemos um telefonema de Philip Hawkin, domingo passado. Ele disse que estava vendo uma fotografia do Spot the Ball no jornal e podia jurar que uma das pessoas na multidão,
Início da Nota de Rodapé: Competição popular até hoje, em que a bola é eliminada da fotografia de uma partida de futebol e o leitor deve tentar descobrir onde estava originalmente, marcando-a na grade sobreposta à fotografia. Fim da Nota de Rodapé.
ao lado do gol, era Alison. - Ele apertou os olhos para enxergar George através da fumaça. - O que você acha disso? George sentiu um mal-estar estranho no estômago.
Conte-me tudo, Tommy, sou todo ouvidos. - Esquecendo-se do chá,
ele inclinou-se para a frente e fitou intensamente o sargento.
Fui direto até lá para ver o que estava acontecendo. Era o Sunday
Sentinel e mostrava a partida do Nottingham Forest. Tão logo vi a foto, entendi o motivo do telefonema. Admito que a imagem era pequena, mas parecia-se realmente com Alison. Assim, entrei em contato com o jornal e eles ampliaram o original. Enviaram para mim pelo trem e chegou aqui segunda-feira à tardinha. - Ele não precisava continuar, seu rosto contava o resto da história. Um exame mais atento provara que a menina na multidão era bem diferente de Alison.
George respirou fundo e fechou os olhos.
- Obrigado - sussurrou. Olhou para Clough e sorriu. - Você por acaso sabe se Philip Hawkin tem assinatura do Manchester Evening News?
- Por acaso sei. Kathy Lomas falou sobre isso quando nos relatou a rotina dos adolescentes de Scardale. Uma vez que o jornal diário só chega a Scardale na hora do almoço e Hawkin gosta de ler o jornal no café da manhã, o jornaleiro de Longnor deixa um exemplar do Evening News na caixa do correio no fim da estrada todas as manhãs, e a pessoa encarregada de deixar as crianças no ônibus o pega e entrega no solar logo depois.
O sorriso de George ampliou-se.
- Achei que era isso mesmo. - Ele levantou-se rapidamente e abriu com energia a gaveta de seu arquivo. Remexeu ali dentro e, então, retirou Um grande envelope pardo, acenando com ele para Clough e dizendo em tom triunfante: - Isso é o que chamo de dar um novo impulso ao caso.
Clough pegou o arquivo que veio voando em sua direção. As palavras escritas no envelope eram "Pauline Catherine Reade". Ele abriu o envelope e um punhado de recortes de jornais caiu sobre a mesa. Ele franziu a testa ao ver as datas anotadas em vermelho na borda dos recortes.
- Você está acompanhando este caso desde o início, em julho. Isso aconteceu quatro meses antes do desaparecimento de Alison - disse, num tom de voz que indicava o quanto achava aquilo estranho.
George afastou os cabelos loiros da testa.
- Sempre me interesso por casos que podem acabar caindo nas minhas mãos - falou, simplesmente.
- E o que eu deveria ver aqui? - perguntou Clough, manuseando os recortes.
- Você saberá, quando vir. - George encostou-se no armário com os braços cruzados e um sorriso de satisfação.
De repente, Clough pareceu paralisado. Bateu levemente com a ponta do indicador em um único recorte, como se este pudesse atacá-lo.
- Macacos me mordam... - sussurrou.
Manchester Evening News, segunda-feira, 2 de novembro de 1963, p. 3
FOTOGRAFIA ACABA COM ESPERANÇAS DE MÃE
Por breves momentos, a senhora Joan Reade sentiu renascer a esperança de voltar a ver a filha desaparecida de 16 anos, diante da foto de uma multidão, publicada no Manchester Evening News & Chronicle Football Pink.
Contudo, a esperança desapareceu quando a senhora Reade viu uma cópia ampliada da fotografia. Em sua casa na rua Wiles, em Gorton, a mãe de Pauline comentou"com tristeza, hoje: "Está claro que esta não é minha filha."
Pauline está desaparecida desde 12 de julho, quando saiu para um baile e não voltou.
O filho caçula da senhora Reade, Paul, de 15 anos, viu alguém que julgou ser Pauline em meio à multidão, na foto tirada durante a final da Copa da Liga de Rúgbi de Lancashire e publicada pelo Football Pink de sábado.
Clough ergueu o olhar.
- Ele acha que somos burros.
- Tem certeza de que foi Hawkin, e não sua esposa, quem percebeu a semelhança?
Foi ele quem ligou e assumiu ter visto a menina. Quando perguntei à senhora Hawkin o que achava da semelhança, ela disse que a achou mais parecida com Alison na primeira vez em que viu a foto, mas depois não estava mais tão certa. Ele pareceu um pouco irritado com isso, como se a esposa devesse apoiá-lo sempre e não estivesse se comportando como deveria.
George pegou seus cigarros e começou a andar pela sala, enquanto falava:
- Então nós o pegamos tentando salvar sua pele. Por que fez isso agora? - Clough esperou, sabendo que o chefe responderia à própria pergunta. - Por quê? Porque esperava que desistíssemos de Alison muito tempo atrás e pegássemos um novo caso. Está desconcertado porque você e eu ainda vamos a Scardale duas ou três vezes por semana, conversamos com as pessoas, andamos por suas terras e não esmorecemos. Ele não é estúpido; deve perceber que estamos de olho nele pelo que quer que tenha acontecido com Alison. Sem falar no fato de que Mamãe Lomas o julga culpado e não posso imaginar que ela seja menos franca em sua presença do que é conosco.
- Exceto que todos naquela aldeia devem a Hawkin o teto sobre suas cabeças e o pão de cada dia - lembrou-o Clough. - Até mesmo Mamãe Lomas talvez tenha pudores em lhe dizer que o considera responsável pelo estupro e assassinato de Alison Cárter.
George concordou com a cabeça.
- Muito bem, digamos que você tem razão. Contudo, devemos ter em mente que os moradores de Scardale suspeitam que ele fez algo terrível com Alison, no mínimo porque é um forasteiro. Assim, quando Hawkin percebe que tudo isso não será engavetado e esquecido, ele decide que já é hora de fazer algo para melhorar sua imagem. Então, ele lembra o artigo que leu no Manchester Evening News sobre Pauline Reade. - George parou de caminhar e apoiou-se na mesa. - O que acha, Tommy? Será que temos o bastante para interrogá-lo?
Clough apertou os lábios.
- Não sei. O que perguntaríamos a ele?
- Se costuma ler o Evening News. Como era seu relacionamento com Alison. Essas coisas. Tudo o que possa colocá-lo sob pressão. Será que a menina sentia rancor por ver outro homem no lugar de seu pai? Será que Hawkin a considerava atraente? Meu Deus, Tommy, podemos até perguntar qual é a cor favorita dele. Só quero que ele fique ali, sob pressão, para vermos o que acontece. Pegamos leve com ele até agora porque não tínhamos razões suficientes para tratá-lo de outro modo que não como um padrasto preocupado. Bem, acho que agora temos.
Clough coçou a cabeça.
- Sabe o que eu acho?
- O quê?
- Que não nos pagam para tomarmos decisões tão importantes. É para isso que Carver e Martin ganham tão bem. Se eu fosse você, falaria com eles e contaria toda essa história, para saber o que acham.
George deixou-se cair pesadamente em sua cadeira, como um saco de batatas, uma expressão desanimada no rosto.
- Ah, Tommy, não me diga que estou falando bobagem!
- Não, acho que você está certo. Na minha opinião, Hawkin é o homem que sabe o que aconteceu com Alison, mas não sei se este é o momento certo para pressioná-lo e não quero perdê-lo porque fomos com muita sede ao pote. George, estamos envolvidos demais com este caso. Temos respirado, dormido e sonhado com ele, noite após noite, há sete semanas. Não somos imparciais. Vá falar com Martin. Depois, se tudo der errado, não poderão nos usar como bodes expiatórios.
- Acha mesmo isso? - George deu uma risada amarga. - Tommy, se tudo der errado, voltaremos a orientar o trânsito em Derby pelo resto de nossas carreiras.
Clough sacudiu os ombros.
- Então é melhor fazermos o que é certo.
Clough conduziu Hawkin até a sala de interrogatório, onde George já os esperava, lendo com grande atenção o conteúdo de uma pasta de arquivo. George sequer levantou a cabeça para olhá-lo. Simplesmente prosseguiu na leitura com expressão de concentração intensa. Este era o primeiro movimento em um processo cuidadosamente orquestrado. Em silêncio, Clough indicou uma cadeira na frente de George, e Hawkin, com os lábios apertados e olhos indecifráveis, obedeceu. Clough girou uma cadeira, de modo a colocá-la entre Hawkin e a porta. Suas pernas robustas ajeitaram-se uma de cada lado e ele se apoiou no encosto, com o bloco de anotações virado para baixo. Hawkin respirou pesadamente pelo nariz, mas nada disse.
Finalmente, George fechou a pasta, ajeitou-a à sua frente na mesa e fitou Hawkin, percebendo o sobretudo caro que o homem trazia atravessado sobre um dos braços, a jaqueta esportiva de lã feita sob medida sobre o suéter de malha fina com gola pólo e as pernas cruzadas nas calças bege claras de sarja. Apostaria um mês de seu salário que Hawkin gastara um bom bocado de sua herança na tarefa de comprar sua aparência de fazendeiro em Austin Reed. Tal aparência parecia completamente inadequada para alguém que combinava mais com um terno azul-marinho barato.
- Foi muita gentileza sua vir até aqui, senhor Hawkin - disse George, com a voz isenta de qualquer inflexão calorosa.
- Eu já planejava vir a Buxton hoje, de modo que não foi nenhum incômodo - falou Hawkin, em voz arrastada. Ele mostrava-se à vontade, sua Pequena boca triangular parecendo prestes a sorrir.
- Ainda assim, sempre somos gratos quando o público reconhece seu dever de ajudar a polícia - disse George, generosamente, pegando seus cigarros. - O senhor fuma, não?
- Obrigado, inspetor, mas tenho meus próprios cigarros - agradeceu Hawkin, rejeitando com leve desprezo o maço que George lhe oferecia Isso vai demorar?
- Depende do senhor - respondeu Clough, sem nenhuma gentileza por trás do ombro direito de Hawkin.
- Acho que não gosto do tom de voz de seu sargento - disse Hawkin petulante.
George olhou-o, sem responder. Quando o homem remexeu-se na cadeira, George então lhe disse, com formalidade:
- Preciso fazer-lhe algumas perguntas ligadas ao desaparecimento de sua enteada, Alison Cárter, no dia 11 de dezembro do ano passado.
- É claro. Por que mais eu estaria aqui? É muito improvável que eu esteja envolvido em algum crime, não é? - O sorriso de Hawkin era de satisfação íntima, como se tivesse um segredo que outros jamais poderiam desvendar.
- Enquanto eu estava fora, semana passada, o senhor entrou em contato conosco porque julgou ver Alison em uma fotografia de jornal.
Hawkin concordou com a cabeça, completando:
- Infelizmente, eu estava enganado. Poderia jurar que era ela.
- E é claro que o senhor tem um olho de fotógrafo para essas coisas. Não deveria enganar-se - continuou George.
- Tem razão, inspetor. - Hawkin deu-lhe um pequeno sorriso de condescendência e pegou seus cigarros. Começava a relaxar, como George queria.
- Assim, não foi sua esposa quem percebeu a semelhança...
Agora, Hawkin vangloriava-se:
- Minha esposa tem qualidades ótimas, inspetor, mas em nossa casa sou eu quem percebe as coisas. - Depois, como se lembrasse de repente da razão para estar ali, assumiu um ar solene. - Além disso, o senhor deve ter em mente que, desde que Alison saiu de nossas vidas, minha esposa deixou de prestar atenção ao mundo externo. É seu modo de manter alguma aparência de normalidade em nossa vida doméstica. Eu insisto nisso, obviamente. É melhor, para ela, concentrar-se em questões rotineiras, como cozinhar e limpar a casa.
- Muito sensível de sua parte - falou George. - Esta fotografia estava no Sunday Sentinel, não é?
- Correto, inspetor.
Que jornais o senhor costuma ler com alguma regularidade? - perguntou George, com um leve franzir de testa.
- Sempre tivemos assinatura do Express e do Evening News. Ah, e também do Sentinel aos domingos. É claro que, com toda a cobertura sobre o desaparecimento de Alison pela imprensa, comprei todos os jornais enquanto o senhor ainda conduzia suas coletivas diárias com os jornalistas. Bem, alguém precisa garantir que não darão a versão incorreta das coisas, não é? Eu não queria que escrevessem mentiras sobre nós. Além disso, queria me precaver, porque não desejava que Ruth fosse perturbada por algum insensível que lhe contaria o que andam dizendo nos jornais, sem qualquer aviso prévio. Assim, tratei de me manter informado. - Ele bateu a cinza no cinzeiro e sorriu. - Esses repórteres são medonhos. Não sei como vocês conseguem lidar com eles.
- Precisamos lidar com todo tipo de gente em nosso trabalho - disse Clough, insolente.
Hawkin apertou os lábios, mas nada disse. George inclinou-se um pouco para a frente.
- Então o senhor lê o Evening News?
- Já lhe falei isso - disse Hawkin, impaciente. - É claro que só o recebemos na manhã seguinte à publicação, mas é o único jornal que conseguem entregar a tempo para o café da manhã, de modo que preciso me contentar com esta visão provinciana do mundo.
George abriu sua pasta de arquivo e dela retirou um plástico transparente. Dentro havia um recorte de jornal. Empurrou-o sobre a mesa até o outro homem.
- Então o senhor se lembrará desta reportagem.
Hawkin não pegou o recorte. Apenas seus olhos moveram-se, percorrendo as linhas impressas. A cinza em seu cigarro esquecido cresceu e curvou-se levemente para baixo por seu peso. Finalmente, ele ergueu os olhos para George e falou, lenta e deliberadamente:
- É a primeira vez que leio esta matéria.
- É uma coincidência estranha, não acha? Uma garota desaparecida, um familiar que detecta a semelhança na foto dos espectadores de uma partida de futebol, mas suas esperanças terminam quando descobrem que a semelhança era apenas um erro trágico. E esta matéria foi publicada em um jornal enviado seis dias por semana para sua casa.
- Eu já disse que nunca vi esta matéria!
- Seria difícil ignorá-la. Estava na página 3.
- Ninguém lê o Evening News do início ao fim. Devo ter ignorado esta reportagem por que teria algum interesse para mim?
- O senhor é padrasto de uma adolescente - lembrou George, em voz baixa. - Achei que matérias sobre adolescentes chamariam sua atenção Afinal, esta experiência lhe é relativamente nova. Em seu lugar, eu provavelmente pensaria que tenho muito a aprender.
Hawkin esmagou seu cigarro.
- Alison era assunto de Ruth. É tarefa das mães cuidar dos filhos.
- Ainda assim, está claro que o senhor gostava da menina. Não se esqueça de que estive no quarto dela. Belos móveis, carpete novo. Pelo que vi, não poupou esforços nem dinheiro para agradá-la.
Hawkin franziu o rosto antes de responder, irritado:
- A menina ficou sem pai durante anos. Ela não teve a maior parte das coisas que outras crianças consideram normais. Eu era bom para ela porque isso fazia Ruth feliz.
- Tem certeza de que esta era a única razão? - indagou Clough. - O senhor comprou um toca-discos para Alison e lhe dava discos novos todas as semanas. O que estivesse nas paradas de sucesso, o senhor comprava para ela. O senhor comprava tudo o que Charlie Lomas recomendava à prima. Se me perguntassem, eu diria que isso é mais do que generosidade para agradar a mãe da garota.
- Obrigado, sargento - interrompeu George, em tom de reprimenda.
- Senhor Hawkin, qual era o grau de intimidade entre o senhor e Alison?
- indagou.
- O que o senhor quer dizer? - Ele pegou outro cigarro e precisou de várias tentativas para acender o isqueiro. Depois de uma longa tragada, repetiu a pergunta que não fora respondida: - O que o senhor quer dizer? Quanto ao grau de intimidade, é como lhe disse, quem cuidava de Alison era Ruth.
- O senhor gostava da menina?
Os olhos de Hawkin estreitaram-se.
Que tipo de pergunta capciosa é esta? Se eu disser que não, o senhor dirá que eu desejava me livrar dela. Se responder que sim, implicará que havia algo condenável em meus sentimentos. Quer a verdade? Eu me sentia indiferente a Alison. Olhe... - Ele inclinou-se para a frente e deu um sorrisinho cúmplice. - Casei com Ruth por três razões. A primeira é que eu a considerava razoavelmente bonita. Em segundo lugar, precisava de alguém que cuidasse de mim e da casa e sabia que nenhuma empregada que prestasse aceitaria viver naquele fim de mundo que é Scardale. E, em terceiro lugar, eu queria que os camponeses parassem de me tratar como um ser de outro mundo. Não casei com ela por estar de olho em sua filha. Esta idéia é repugnante. - Ele recostou em sua cadeira, como se desafiasse George a prosseguir.
George olhou-o com curiosidade, dizendo:
- Eu nunca sugeri algo neste sentido. Entretanto, é interessante que sua mente siga este rumo por conta própria. Também acho interessante que, ao falar sobre Alison, o senhor sempre use o tempo verbal no pretérito.
Suas palavras permaneceram no ar, tão palpáveis quanto a fumaça do cigarro. O rosto de Hawkin tingiu-se de carmim, mas ele conseguiu manter-se em silêncio.
- Como se falasse sobre alguém que já morreu - continuou George, impiedoso. - Qual a razão para isso, em sua opinião?
- Apenas um modo de falar - retrucou Hawkin. - Alison sumiu há tanto tempo. Meu modo de falar não significa nada. Todo mundo fala assim ultimamente.
- Na verdade, não. Percebi, durante minhas idas a Scardale, que as pessoas ainda falam sobre Alison no presente. Como se ela tivesse saído para voltar logo. Não é apenas sua esposa que se refere à menina assim, mas simplesmente todos na aldeia. Todos, exceto o senhor. - George acendeu um cigarro, tentando demonstrar uma segurança que não sentia. Ao ensaiar este interrogatório com Clough, nenhum dos dois sabia ao certo como Hawkin reagiria. Era bom vê-lo vacilar, mas ainda estavam muito longe de qualquer confissão útil.
- O senhor só pode estar enganado - disse Hawkin, abruptamente. - Agora, se os senhores já terminaram... - Ele empurrou a cadeira para trás.
- Eu mal comecei, senhor Hawkin - disse George, com a expressão imperturbável acentuando sua semelhança com James Stewart. - Eu gostaria que voltássemos à tarde em que Alison desapareceu. Sei que já o interrogamos antes, mas gostaria de repassar os fatos.
- Ah, pelo amor de Deus! - explodiu Hawkin.
Uma batida na porta não permitiu que dissesse mais nada. O rosto sonolento do detetive Cragg apareceu e ele desculpou-se:
- Perdão, sei que não deveria interromper, mas há um telefonema urgente para o senhor.
George tentou não demonstrar a raiva e o desapontamento que o invadiram. O ritmo do interrogatório estava seguindo como planejado, mas a interrupção podia perturbar sua continuidade.
- Será que não pode esperar, Cragg? - indagou, irritado.
- Acho que não. Achei que o senhor gostaria de atender.
- Quem é?
Cragg lançou um olhar preocupado para Hawkin.
- Eu... Humm... Não posso dizer.
George levantou-se depressa, arrastando os pés da cadeira.
- Sargento, fique aqui com o senhor Hawkin. Voltarei assim que puder. - Ele marchou para fora da sala, exercitando sua última gota de controle ao fechar a porta devagar, em vez de batê-la com força, como gostaria.
- Mas que inferno! O que está acontecendo? - perguntou, enquanto dirigia-se a passos largos para seu escritório. - Eu disse claramente que não queria ser interrompido. Será que você entende a nossa língua, Cragg?
O jovem detetive tentava acompanhar seus passos rápidos, esperando uma brecha para poder falar-lhe.
- É a senhora Hawkin, senhor - conseguiu dizer, finalmente.
George parou de repente, fazendo com que Cragg colidisse com ele.
- O quê? - perguntou, incrédulo, virando-se.
- É a senhora Hawkin. Está muito nervosa, pedindo para falar com o senhor.
- Disse por quê? - George virou-se novamente e praticamente correu até seu telefone.
- Não, apenas que precisava falar imediatamente com o senhor.
- Jesus - murmurou George, agarrando o telefone mesmo antes de sentar-se. - Alô, aqui é o detetive-inspetor Bennett.
Senhor Bennett? - A voz parecia sufocada em meio às lágrimas.
É a senhora Hawkin?
Sim, sou eu. Ah, senhor Bennett... - Seus soluços aumentavam de volume.
O que aconteceu? - indagou ele, imaginando desesperadamente se havia uma policial de plantão.
Poderia vir até aqui, senhor Bennett? Será que poderia vir agora? -
perguntou ela, com as palavras saindo entre a respiração entrecortada.
- Estamos com seu marido aqui. Quer que o levemos para casa?
- Não! - disse Ruth, quase gritando. - Só o senhor. Por favor!
- Vou já para Scardale. Tente se acalmar. Peça que alguém da família lhe faça companhia. Logo estarei aí. - Ele bateu o telefone e ficou imóvel por um momento, surpreso com a intensidade da mulher ao telefone. Não tinha idéia do motivo para o chamado, mas tinha certeza de que era algo traumático. Ela não poderia ter descoberto o corpo... Ele afastou a idéia antes que esta pudesse formar-se claramente.
- Cragg! - berrou, ao sair do escritório. - Renda o sargento Clough. Fique lá com Hawkin até meu retorno. Não o deixe sair. Explique educadamente que saímos em uma emergência e ele deve esperar nosso retorno. Se insistir em ir embora, vá com ele. Não deixe que ele o intimide.
Cragg parecia perplexo. Este não era o ritmo habitual na polícia de Buxton.
- E se ele entrar em seu carro?
- O carro dele não está aqui. Hawkin veio com o sargento Clough. Mexa-se, Cragg!
George agarrou o sobretudo de Clough e seu próprio impermeável, enfiando o chapéu apressadamente. Tão logo Clough emergiu da sala de interrogatório, parecendo confuso, George segurou-lhe o braço e levou-o escada abaixo.
- É Ruth Hawkin - disse, antes que Clough pudesse perguntar-lhe algo. - Parecia desesperada ao telefone. Quer que eu vá a Scardale imediatamente.
- Por quê? - perguntou Clough, enquanto quase corriam até o estacionamento.
- Não sei. Estava abalada demais para dizer algo que fizesse sentido. Tudo o que sei é que pareceu totalmente apavorada quando perguntei se queria que eu levasse Hawkin de volta comigo. Seja o que for, é importante.
- Melhor ir de uma vez, então - disse Clough, dando partida no carro.
George não sabia que o trajeto até Scardale podia ser feito em tão pouco tempo. Clough violou todos os limites de velocidade e a maior parte das proibições ao fazer conversões com o carro. Falaram pouco durante o percurso, ambos tensos demais pela perspectiva de que algo poderia reavivar o caso Alison Cárter. Ao aproximarem-se da praça da aldeia, George falou:
- Já é hora de termos alguma sorte, Tommy. Já conseguimos algo com Hawkin, mas, se Ruth tiver algo para nós, talvez agora seja a nossa hora.
Os dois correram pela trilha até o solar, mas antes que pudessem bater na porta, esta abriu-se e Mamãe Lomas cumprimentou-os.
- Estamos fazendo o trabalho de vocês novamente - disse ela.
Ruth Hawkin estava sentada à cabeceira da mesa, com o rosto manchado de lágrimas e maquiagem. Tinha os olhos avermelhados e inchados. Kathy estava ao seu lado. As mãos de ambas, calejadas pelo trabalho doméstico, estavam entrelaçadas com tanta força que as juntas pareciam brancas. Na frente de ambas, sobre a mesa, os dois homens viram algo como tecido xadrez embolado. Estava sujo de terra e, mais sinistro ainda, o material apresentava grandes manchas de um vermelho-ferrugem que se parecia demais com sangue sèco.
- A senhora encontrou alguma coisa - disse George, cruzando a cozinha e sentando-se na frente de Kathy.
Ruth estremeceu e fez que sim, dizendo:
- É uma camisa. E um... E um... - a voz falhou e ela desistiu de continuar.
George retirou uma caneta do bolso e, usando-a como uma vareta, separou as dobras do tecido. Era realmente uma camisa, feita de sarja fina. O nome da confecção estava bordado na etiqueta. Ele já vira Philip Hawkin usando camisas semelhantes na maior parte das vezes em que haviam se encontrado. No meio do tecido havia um revólver. George não sabia muito sobre armas de fogo, mas teria apostado seu salário de um ano de que esta era uma Webley calibre .38.
- Onde encontrou isso, senhora Hawkin?
Kathy lançou-lhe um olhar penetrante.
Phil Hawkin ainda está na delegacia?
O senhor Hawkin ainda está nos ajudando em nossa investigação -
disse Clough, com firmeza, sentado na outra ponta da mesa com seu bloco de anotações aberto. - Ele não pode sair sem nossa permissão.
Kathy apertou ainda mais as mãos de Ruth.
- Está tudo bem, Ruth. Conte para ele.
- Eu geralmente limpo o laboratório de Philip só depois que ele sai, todos os dias. Ele detesta me ver fazendo faxina, de modo que sempre espero até ter certeza de que demorará algumas horas para voltar. Não sei o que deu em mim para descobrir isso... Achei que desta vez eu poderia limpar o lugar de alto a baixo. Estava ficando louca, sem nada para me manter ocupada...
George esperou, pacientemente. Ruth soltou suas mãos das de Kathy e cobriu o rosto.
- Ah, meu Deus, preciso fumar - disse, de modo quase incompreensível.
George ofereceu-lhe um cigarro e conseguiu acendê-lo, apesar do tremor nos dedos da mulher. Sentiu vontade de reconfortá-la, mas sabia que seria inútil dizer-lhe que tudo estava bem. Nada jamais estaria bem para esta mulher. Tudo o que ele podia fazer era ficar sentado em silêncio e olhar, enquanto ela tragava fundo e se acalmava o suficiente para recomeçar sua narrativa. Desta vez, parecia que falava em meio a um sonho:
- A bancada na qual ele trabalha é uma mesa antiga, com gavetas. Eu a afastei da parede. Foi um tremendo esforço, porque é muito pesada, mas eu queria limpar atrás. Vi este tecido saindo do buraco onde ficava uma das gavetas, há muito tempo. Fiquei curiosa para saber o que era. Então, tirei-o dali.
- Ela estava gritando como um porco com a garganta cortada - comentou Mamãe Lomas. - Dava para ouvir seus berros por toda a aldeia.
George respirou fundo.
- Pode haver uma explicação inocente para isto, senhora Hawkin.
- Ah, é? - disse Mamãe Lomas, irônica. - Vamos ouvi-la, então Leve essa coisa e teste o sangue, rapazinho. Olhe onde está, seu tolo. Está todo na frente, bem onde se espera que esteja. E a arma? Até que ponto um revólver pode ser inocente? Examine-o. Aposto que a bala que vocês encontraram foi disparada daí. - Ela balançou a cabeça, inconformada. - Achei que vocês tinham feito buscas no laboratório.
- Lembro-me que o senhor Hawkin foi muito reservado com relação ao seu laboratório - disse George.
- Mais uma razão para que o examinassem de cabo a rabo! - exclamou Kathy, sombria. - E agora, pretendem prendê-lo?
- Tem um saco de papel no qual eu possa colocar a camisa e a arma? - indagou George.
Ruth lançou um olhar de mudo apelo a Kathy. Esta levantou-se de um pulo e procurou no armário sob a pia, trazendo-lhe um grande saco marrom. George pegou a camisa com a ponta da caneta e a deixou cair no saco, sem tocá-la. O revólver foi embrulhado cuidadosamente em um lenço limpo que ele tirou do bolso e colocado sobre a camisa.
- Tenho de voltar a Buxton - disse. - O sargento Clough ficará aqui para garantir que ninguém entrará no laboratório de seu marido. - Suspirou. - Mandarei uma equipe de policiais para uma busca completa tão logo consiga o mandado.
- Mas vocês vão prendê-lo? - insistiu Kathy.
- Nós as manteremos informadas de tudo o que acontecer - disse George.
As mulheres entreolharam-se e Mamãe Lomas falou:
- Se não o prenderem, será melhor mantê-lo longe daqui. Para o bem dele.
George fitou-a demoradamente, sem piscar.
- Vou fingir que não ouvi a ameaça, senhora Lomas.
Ele dirigiu o carro de Tommy Clough até Buxton, com um misto estranho de pesar e alegria a agitar-lhe o peito. Estacionou com cuidado e subiu as escadas até a sala de interrogatório, com um ar de tranqüila determinação.
Sabia que deveria falar com o detetive e inspetor-chefe Carver ou com o superintendente Martin antes de agir, mas este era seu caso. Assim, empurrou a porta e fitou Hawkin, cuja queixa petulante morreu nos lábios ao ver a expressão do inspetor.
George respirou fundo e disse:
- Philip Hawkin, você está preso por suspeita de homicídio.
George não perdeu tempo. Hawkin foi levado para a cela, lamuriando-se sobre mentiras forjadas e exigindo um advogado. George não lhe deu ouvidos. Haveria muito tempo para lidar com Hawkin depois. Se estivesse certo, ninguém questionaria suas ações. Se estivesse errado, ninguém o culparia. Ninguém, exceto, talvez, o detetive e inspetor-chefe Carver, que via tudo o que ele fazia como censurável e se regozijaria com o fracasso e embaraço de seu jovem detetive. Contudo, continuar na lista de amiguinhos de Carver era a última das considerações em sua mente naquele momento.
Após trancar a porta da cela de Hawkin, que ainda protestava, George levou Cragg para um canto.
- Quero que você ligue para o departamento de investigações criminais da divisão em St. Albans, de onde Hawkin veio. Sabemos que ele tem ficha limpa, porque o sargento Clough já havia verificado. O que desejo saber é se alguém de lá já ouviu algum boato ou fofoca. Quaisquer alegações para as quais não havia evidências suficientes para uma acusação formal.
- O que você tem em mente? Crimes de natureza sexual?
- Qualquer coisa, Cragg. Apenas fale com o pessoal de lá e veja se descobre algo. - Ele percebeu que ainda segurava o saco de papel contendo a camisa suja e o revólver cuidadosamente embrulhado. Em sua pressa, esquecera-se da necessidade de identificá-los e enviá-los ao laboratório. Olhou para o relógio em seu pulso. Quase meio-dia. Se corresse, pegaria um dos juízes no tribunal de High Peak. Estava certo de que não teria dificuldade para fazer com que alguém assinasse um mandado de busca. Todos queriam esclarecer o desaparecimento de Alison Cárter, e Hawkin ainda não tivera tempo para fazer qualquer amizade importante em uma cidade na qual pessoas a dez quilômetros de distância ainda eram vistas como forasteiras. Assim, preencheu rapidamente o formulário e saiu correndo da delegacia. Ignorando seu carro, correu pelas ruas do bairro de Silverlands e cortou caminho pela feira livre rumo ao tribunal. Dez minutos depois, saiu do prédio com um mandado de busca assinado para o Solar Scardale e seus anexos. Assim que pisou na rua, o sol surgiu, iluminando-o com um breve raio de luz pálida e invernal. Era difícil não interpretá-lo como um bom presságio.
De volta à divisão, ainda levando consigo o saco de papel, sentiu-se aliviado por encontrar o sargento Bob Lucas de plantão. Pareceu-lhe uma coincidência providencial que o policial que o levara pela primeira vez a Scardale estivesse disponível para ajudar na procura do que, talvez, desse um rumo novo para o caso. George fez um resumo dos acontecimentos e finalmente cuidou da documentação necessária para enviar a camisa e a arma ao laboratório. Nesse meio-tempo, Lucas formou uma pequena equipe de buscas com dois policiais e um cadete, tudo o que conseguiu retirar do movimentado turno do dia.
A viatura seguiu o carro de George, saindo da cidade e percorrendo a paisagem desolada de fevereiro até Scardale. A notícia sobre a descoberta de Ruth já se espalhara tão rapidamente quanto ocorrera com o desaparecimento de Alison. Mulheres os espiavam nas portas de suas casas e os homens observavam encostados nas paredes, sem nenhum pudor, enquanto os policiais contornavam o solar até o anexo onde Philip Hawkin mantinha seu laboratório fotográfico. O que mais impressionava não eram os olhares, mas o silêncio do povo local.
George encontrou Clough de pé, do lado de fora da porta do pequeno prédio de pedra, com braços cruzados e um cigarro pendurado no canto da boca.
- Algum problema? - indagou.
- A parte mais difícil foi ficar aqui fora - disse Clough, depois de fazer um "não" com a cabeça.
George abriu a porta do anexo e viu pela primeira vez o laboratório de Hawkin. Era óbvio que seis policiais teriam dificuldade para permanecer ali dentro, e mais ainda para fazer uma busca minuciosa.
- Muito bem - disse. - O sargento Clough e eu examinaremos o laboratório. Sargento Lucas, eu gostaria que seus homens vasculhassem a casa.
Como todos sabem, já fizemos buscas lá, mas nossa preocupação, na época era verificar se Alison não deixara algum recado escondido ou se não havia sinais de arrombamento ou assassinato no local. Agora, procuramos qualquer coisa que lance luz sobre o relacionamento de Philip Hawkin com sua enteada. Ou qualquer coisa que nos dê uma idéia sobre esse homem. Sem um corpo, precisamos de todas as provas circunstanciais que pudermos encontrar para pressionarmos Hawkin. Podem começar pelo estúdio.
- Certo, senhor - disse Lucas, muito sério. - Venham, rapazes Vamos revistar esse lugar até o último tijolo.
Os quatro homens fardados rumaram para a porta dos fundos. George percebeu que Kathy Lomas os espiava através da janela da cozinha. Ao perceber que ele a vira, a mulher afastou-se.
- Muito bem, Tommy, vamos lá. - George cruzou o limiar e acendeu uma lâmpada. A luz avermelhada encheu o cômodo. - Ótimo - murmurou. Olhou para a parede e viu uma segunda chave de luz. Ao pressioná-la, uma luz elétrica comum acendeu-se, substituindo a estranha luz vermelha.
George olhou à sua volta, determinando o que precisava ser examinado. Além da mesa pesada junto à parede, tudo estava incrivelmente limpo e arrumado. Duas pesadas pias de pedra que pareciam estar ali desde a Idade Média estavam apoiadas numa das paredes, as torneiras novas brilhando, assim como o equipamento fotográfico.
Em um canto, viu arquivos de metal contra a parede e foi até eles, mas descobriu que as gavetas estavam trancadas.
- Que bela porcaria - murmurou.
- Sem problema - disse Clough, afastando o chefe para o lado. Ele segurou com força o arquivo mais próximo, puxou-o em sua direção e, então, quando o móvel estava a alguns centímetros da parede, inclinou para trás. - Pode mantê-lo assim para mim? - perguntou.
George apoiou-se contra o arquivo, mantendo-o inclinado. Clough agachou-se e mexeu por baixo do móvel por mais ou menos um minuto. George ouviu estalos enquanto a tranca existente ali era destravada e, depois, um grunhido de satisfação de Clough.
- Aí está, George. Que descuidado esse Hawkin, saindo e deixando seus arquivos destrancados...
- Começarei por este. Verifique a mesa e as prateleiras. - Ele puxou a gaveta superior e olhou para as dúzias de pastas contidas ali. Em cada uma havia negativos, folhas de contato e fotos reveladas. Ele verificou rapidamente as outras gavetas, encontrando praticamente a mesma espécie de material em todas elas.
Isso levará uma eternidade - gemeu.
Clough aproximou-se.
- Temos milhares de fotos aqui.
- Eu sei. Mas teremos de verificar todas. Se Hawkin chegou a tirar fotos pornográficas, pode tê-las escondido no meio de outras, nessas gavetas. - Ele suspirou.
- Será que não deveríamos dar uma olhada no outro arquivo, para termos uma idéia mais clara do tamanho de nosso problema? - sugeriu Clough.
- Boa idéia. Do mesmo jeito que antes?
Desta vez ele mesmo afastou o arquivo da parede, enquanto Clough abaixava-se para destrancá-lo.
- Espere um minuto - disse Clough, remexendo por baixo da base de metal. - Prendi minha manga em alguma coisa. - Enfiou a outra mão no bolso da jaqueta e pegou seu isqueiro, usando a chama deste para iluminar a área sob o móvel. - Deus do céu... - sussurrou, levantando o olhar. - Eis algo que você vai adorar. Há um buraco no chão, com um cofre dentro.
George, surpreso, quase deixou o arquivo cair sobre Clough.
- Um cofre?
- Isso mesmo. - Clough afastou-se do arquivo e levantou-se. - Vamos afastá-lo para que você veja direito.
Os dois lutaram para arrastar o pesado móvel de aço até o outro lado do cômodo, deixando espaço suficiente para estudarem o cofre. George abaixou-se e olhou-o. A frente de metal verde tinha cerca de um metro quadrado, com fechadura de bronze e um trinco que se projetava cerca de dois centímetros acima da porta do cofre, e poderia acomodar-se na cavidade existente na base do arquivo. Ele suspirou.
- Precisamos de peritos para tirar as impressões digitais de Hawkin desse trinco. Não quero que ele diga, depois, que não tem nada a ver com o conteúdo do cofre e alegue que outra pessoa plantou provas aí dentro.
- Tem certeza? - indagou Clough, incerto. - Teremos sorte de conseguir uma impressão parcial em um trinco assim. O que nos interessa é o que está aí dentro. Certamente, Hawkin não usou luvas e suas digitais estarão por toda parte no que há dentro do cofre.
George agachou-se, ponderando:
- Acho que você tem razão. E então, onde está a chave?
- Se eu fosse ele, levaria sempre comigo.
George negou com um movimento de cabeça.
- Cragg revistou-o quando o prendemos. As únicas chaves eram as de seu carro. - Ele pensou por um momento. - Vá perguntar ao sargento Lucas se já encontraram alguma chave que se pareça com a de um cofre. Darei uma olhada por aqui.
George sentou-se junto à mesa e se pôs a examinar o conteúdo das gavetas. Uma continha uma coleção meticulosa de acessórios úteis - tesouras, estiletes, pinças, pincéis macios e minúsculos e canetas-nanquim. A outra era uma típica "gaveta da bagunça", com pedaços de cordão, alfinetes, uma lixa de unhas quebrada, alguns rolos parcialmente usados de fita adesiva, tocos de velas, lâmpadas, caixas de fósforos e parafusos de diversos tamanhos. Nenhuma das gavetas continha uma chave. George acendeu um cigarro e o fumou furiosamente. Sentia-se como um relógio no qual alguém dera corda até o limite de sua mola.
Ao longo de toda a investigação, forçara-se a manter a mente aberta, sabendo como seria fácil desenvolver uma idéia fixa e forçar cada informação subseqüente a se encaixar nela. Contudo, a verdade é que em nenhum momento fora totalmente imparcial com relação a Philip Hawkin. Quanto mais aumentava a probabilidade de Alison estar morta, mais provável tornava-se a culpa de seu padrasto. Isso era o que as estatísticas sugeriam, e sua antipatia pelo homem apenas as corroboravam. Ele tentara bloquear sua resposta instintiva a Philip, sabendo que o preconceito seria seu inimigo na construção de um caso sólido, mas Hawkin enfiara-se em sua consciência vezes sem conta como o principal suspeito, se um homicídio viesse a ser a conclusão inevitável das investigações.
Agora, esta possibilidade acenava-lhe de forma irresistível. A certeza acomodara-se em sua mente como a lingüeta em uma fechadura bem lubrificada.- A única questão dizia respeito à sua capacidade para juntar as provas que a transformariam em condenação.
George saiu do laboratório, encontrando o ar frio do entardecer. As luzes da casa derramavam um amarelo pálido em seu interior e ele podia ver silhuetas movendo-se por trás das janelas. Vislumbrou Ruth Hawkin cruzando a cozinha e percebeu que temia o momento em que talvez tivesse de confirmar-lhe aquilo em que todos já acreditavam. Não importava o quanto ela pudesse considerar-se conformada com a perda de sua filha, no instante em que ele lhe dissesse que o caso agora estava sendo tratado formalmente como um assassinato, a mulher teria seu coração dilacerado pela dor.
Ele acendeu outro cigarro e andou em círculos pequenos no lado de fora do laboratório. Por que Clough demorava? Não poderia sair de perto do anexo, agora que as buscas haviam começado, por temer que, posteriormente, a defesa argumentasse que provas incriminadoras haviam sido plantadas durante seu afastamento. Também não queria continuar procurando, percebendo que, com uma gama tão circunstancial de evidências, cada achado crucial deveria ter testemunhas. Forçou-se a respirar fundo, girando os ombros dentro de seu casaco na tentativa de liberar parte da tensão que endurecia seu pescoço.
Clough emergiu da casa com um amplo sorriso, quando os últimos sinais do dia desapareciam no fim do vale.
- Desculpe a demora - disse. - Tive de examinar todas as gavetas da escrivaninha. Não encontramos chaves. Então eu percebi que uma das gavetas não estava fechando direito. Assim, eu a tirei do lugar e bingo! Lá estava a chave do cofre, grudada no fundo da gaveta com esparadrapo. - Ele sacudiu a chave na frente de George. - O mesmo tipo de esparadrapo usado para amordaçar a cadela, por falar nisso.
- Belo trabalho, Tommy. - Ele tomou a chave e voltou ao laboratório. Agachou-se sobre o cofre e olhou sobre o ombro para seu sargento. - Quase sinto medo de abrir isto aqui.
- Porque podem haver provas de que ela está morta?
George fez um "não" com a cabeça.
- Porque pode não haver prova de nada. Agora estou convencido, Tommy. As pequenas coincidências são numerosas demais. Hawkin matou Alison e quero que balance na forca por isto. - Voltou à sua tarefa e enfiou a chave na fechadura, que girou com suavidade. Ele fechou os olhos por alguns segundos. Cinco minutos antes, teria chamado a si mesmo de agnóstico. Agora, era um fanático.
Virou lentamente o trinco e abriu a pesada porta de aço. Nada havia ali dentro, exceto uma pequena pilha de envelopes pardos. George retirou-os quase com reverência. Contou o total de envelopes em voz alta para Clough que já mantinha seu lápis preparado para escrever no bloco de anotações aberto.
- Seis envelopes pardos - disse, levantando-se e colocando-os sobre a bancada. Sentou-se, com a sensação de que precisaria do apoio. Retirou suas luvas de pelica e se pôs a trabalhar.
As abas de todos os envelopes haviam sido enfiadas para dentro. George inseriu o polegar e abriu o primeiro deles, descobrindo ali fotografias 20 x 25. Ele as removeu empurrando os lados do envelope para dentro e deixando que as fotos caíssem sobre a mesa, para evitar deixar suas digitais no envelope ou nas fotos. Havia meia dúzia delas, que espalhou usando sua caneta.
Alison Cárter estava nua em todas. O encanto natural de seu rosto não se mostrava, subjugado pelo medo. Seu corpo expressava a relutância em adotar poses que teriam sido lascivas em uma mulher, mas que em uma criança eram revoltantemente trágicas. A menos, é claro, que aquele que as visse fosse o pedófilo que as produzira. Nesse caso, tudo pareceria erótico.
Clough olhou sobre seu ombro.
- Ah, meu Deus - disse com a voz rouca de asco.
George não encontrou nada para dizer. Juntou as fotografias e enfiou-as de volta no envelope, separando-o dos outros. O segundo envelope continha tiras de negativos em formato grande. Com o auxílio da caixa de luz sobre a mesa, conseguiram estabelecer que estes eram os negativos das fotos que haviam acabado de ver. Havia dezesseis deles. Hawkin deixara de revelar dez, nos quais Alison parecia estar chorando.
O terceiro envelope era pior, com poses ainda mais explícitas. Desta vez, porém, a cabeça de Alison parecia pender e seu olhar era distante.
- Ela está bêbada ou drogada - disse Clough.
George ainda não conseguia falar. Recolocou metodicamente as fotos novelope edepois, comprovou que os negativos no quarto envelope correspondiam às últimas fotos vistas. o quinto envelope ia além de tudo o que George teria imaginado. Desta vez todos os dezesseis negativos haviam sido revelados e, agora, Hawkin estava nas fotos, com sua enteada. O ambiente era, indubitavelmente, o quarto de Alison, contrastando em sua inocência com o contraponto obsceno dos atos cometidos ali. O aposento servia de cenário para experiências às quais nenhuma criança de treze anos deveria submeter-se. Em uma série de terríveis imagens monocromáticas, o pênis ereto de Hawkin penetrava na vagina, no ânus e na boca de Alison. Seus dedos enfiavam-se no corpo da menina com eficiência cruel e repelente. Em todas as fotos, ele olhava diretamente para a lente da câmera, exultante com seu poder.
- Desgraçado! - gemeu Clough.
George afastou-se de repente da mesa, derrubando ruidosamente a cadeira. Passou pelo sargento e cruzou a porta, varrido por uma onda de náusea que não conseguia conter. Com as mãos nos joelhos, vomitou até sentir espasmos de dor no estômago vazio e, então, apoiou-se quase caindo contra a parede, suando. Lágrimas escorriam por seu rosto, enquanto ignorava o gélido vento noturno e a chuva de granizo e neve que varria o vale.
Teria preferido descobrir o cadáver da menina a ter de suportar aquelas imagens de seu corpo violado. Não havia como negar que havia motivos suficientes para fugir de casa. Mas a motivação era maior ainda para o homem que a estuprara, se ela tivesse finalmente se rebelado e ameaçado revelar a perversão doentia. George correu a mão trêmula pelo rosto molhado e esforçou-se para endireitar o corpo.
Clough, de pé logo atrás na entrada, estendeu-lhe um cigarro já aceso. Seu rosto largo estava tão pálido quanto as nuvens que passavam pelo céu escuro. George tragou fundo e tossiu quando a fumaça passou por sua garganta irritada pelo vômito.
- Ainda acha que a pena de morte é injusta? - indagou, arfante.
- Eu poderia matar o canalha com minhas próprias mãos - rosnou Clough, com voz grave.
- Deixe-o para o carrasco, Tommy. Faremos tudo como manda o figurino. Ele não sofrerá um acidente fatal, nem será colocado convenientemente em uma cela com um bêbado que detesta depravados. Nós o levaremos ao tribunal inteirinho - disse George, roufenho.
- Não será fácil. Nesse meio-tempo, o que diremos à mãe da garota? A... a esposa daquele animal? Como se diz a uma mulher "E por falar nisso querida, esse homem com quem você casou, ele estuprou e abusou de todas as formas de sua filha. Provavelmente também a matou"?
- Ah, meu Deus. Precisamos de uma policial aqui. E um médico.
- Ela não quer uma policial, George. Confia em você e tem o apoio da família. Eles cuidarão melhor dela do que qualquer médico poderia fazer. Só precisamos entrar ali e descobrir um modo de lhe contar.
- É melhor contarmos aos outros policiais também, para prestarem uma atenção especial em fotografias e negativos, enquanto vasculham a casa. - Ele teve um calafrio, enquanto inspirava profundamente. - Vamos ensacar e rotular os envelopes com as fotos. A perícia precisará deles.
Os dois forçaram-se a voltar para o laboratório e a juntar os envelopes com seu conteúdo terrível.
- Leve esses para o sargento Lucas - pediu ele a Clough. - Não quero ter de segurá-los enquanto falo com Ruth Hawkin. Darei uma última olhada por aqui para ver se há mais alguma coisa óbvia. Precisaremos de uma equipe para examinar cada um desses negativos, mas não hoje.
Clough desapareceu na noite. George verificou o cômodo, mas não encontrou nada mais que merecesse atenção e saiu de novo para o clima inclemente, fechando a porta do laboratório e fixando nela o lacre da polícia, para que ninguém pudesse mexer nas provas. Teria de colocar um guarda ali durante a noite para proteger o anexo. Amanhã, organizaria uma equipe para varrer com pente-fino o lugar e iniciar a penosa tarefa de examinar a coleção fotográfica de Hawkin. Não teria escassez de voluntários.
- Já entreguei o material ao sargento Lucas - disse Clough, correndo em sua direção.
- Obrigado. Agora, façamos o seguinte: você fala com os parentes e eu conto a Ruth sozinha. Apenas diga a eles que descobrimos evidências que sugerem que Hawkin pode estar envolvido no desaparecimento de Alison e que o indiciaremos no mínimo por um crime grave esta noite. Ruth decidirá o que mais deve contar a eles, depois.
Todos vão querer saber tintim por tintim. Especialmente Mamãe lomas - alertou-o Clough.
Que compareçam ao tribunal, então. Estou preocupado é com Ruth Hawkin. Ela é minha principal testemunha, neste momento, e tem o direito de decidir até onde sua família pode saber das novidades - disse George, decidido. - Conte-lhes o mínimo que puder. - Ele aprumou-se e jogou o toco de cigarro longe. Depois, correu a mão por seus cabelos molhados, respingando minúsculas gotas de água em Clough. - Muito bem. - Respirou fundo. - Vamos lá.
Cruzaram a porta dos fundos e atravessaram o corredor, entrando no calor aconchegante da cozinha enfumaçada. Diane, irmã de Ruth, e a mãe de Janet, Maureen, agora se juntavam a Mamãe Lomas e Kathy na equipe de apoio a Ruth. Os cinco rostos femininos denunciaram medo ao ver as expressões sombrias dos dois homens.
- Temos algo a lhe dizer, senhora Hawkin - disse George, pesadamente. - Eu gostaria de lhe falar a sós, se for possível. Se as outras senhoras fizerem o favor de acompanhar o sargento Clough, ele explicará o que está acontecendo.
Kathy abriu a boca para argumentar, mas um segundo olhar para George abortou seu protesto.
- Iremos para a sala - disse a mulher, mansamente.
Ruth nada disse, enquanto as outras saíam com Clough. Seu rosto era como uma porta trancada, cuidadosamente contido, com os músculos da mandíbula acentuados pelo esforço do silêncio. Seu olhar não se desviou de George, que se sentara no outro lado da mesa, à sua frente. Ele esperou até ouvir a porta fechar-se e, então, disse:
- Perdoe-me, mas não há um modo de suavizar o que tenho para lhe dizer. Descobrimos provas de que Philip Hawkin cometeu graves abusos sexuais contra sua filha. Não há dúvidas disso, e ele será indiciado antes do fim do dia.
Um som estrangulado de lamúria saiu dos lábios da mulher, mas seu olhar continuou fixo nele. George remexeu-se na cadeira e pegou automaticamente o maço de cigarros. Ela sacudiu a cabeça em recusa, quando ele lhe ofereceu um, de modo que George deixou o maço entre os dois sobre a mesa.
- Somando nossos achados à camisa manchada e à arma que a senhora encontrou no anexo, é difícil resistir à conclusão de que, muito provávelmente, ele também a matou. Sinto muito, muitíssimo mesmo, senhora Hawkin.
- Não me chame assim - disse ela, com a voz transformada em uma série de soluços. - Não me chame pelo nome dele.
- Não chamarei mais. E farei o possível para que nenhum outro policial a chame assim também.
- Você tem certeza, não é? - perguntou ela entre os lábios duros. - Em seu íntimo, você tem certeza de que ela está morta, não tem?
George desejou estar em qualquer outro lugar, menos na cozinha de Ruth Cárter, preso à verdade por aqueles olhos que não o abandonavam.
- Sim, tenho certeza - disse. - Não consigo encontrar razão para pensar diferente, e um conjunto significativo de provas circunstanciais me leva a esta conclusão. Só Deus sabe como eu gostaria de não acreditar nisso, mas não posso fechar os olhos.
Ruth começou a balançar-se para a frente e para trás na cadeira, com os braços enlaçando o próprio corpo e as mãos transformadas em garras sob as axilas. Sua cabeça levantou-se e ela emitiu um urro de agonia, o berro de um animal ferido mortalmente. Impotente, George permaneceu sentado como um bloco de madeira. De algum modo, ele sabia que o pior que poderia fazer seria tocá-la.
O ruído cessou e a cabeça da mulher tombou para a frente, com a boca frouxa e o rosto ruborizado. Seus olhos brilhavam com lágrimas presas.
- Enforque-o - disse, em voz dura e clara.
George assentiu, acendendo um cigarro.
- Farei o possível.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não quero que faça o possível. Enforque-o, George Bennett, porque se não o matar, alguém fará isso e o transformará em algo muito mais feio do que ficará depois de enforcado. - Sua veemência parecia ter-lhe esgotado a última reserva de energia. Ela virou-se e disse, em um sopro de voz: - Agora vá.
George levantou-se devagar.
- Voltarei amanhã para tomar um depoimento formal. Se precisar de algo, qualquer coisa, ligue-me. Estarei na delegacia. - Ele puxou um bloquinho do bolso de seu paletó e escreveu o número do telefone de sua casa numa folha. - Se eu não estiver lá, ligue para minha casa. A qualquer momento. Lamento por tudo.
Saiu e, ao fechar a porta, encostou-se na parede do corredor, com a fumaça do cigarro subindo por seu braço em uma espiral fragmentada. O som de vozes mais adiante levou-o ao cômodo em que as outras mulheres de Scardale cercavam Tommy Clough.
Para o inferno com o intermediário. Vamos direto à fonte - disse Maureen Cárter, ao avistar George. - Diga-nos. Vocês vão enforcar esse bastardo do Hawkin?
- Não sou eu quem toma esse tipo de decisão, senhora Cárter - respondeu ele, tentando não demonstrar o quanto se sentia cansado. - Será que posso sugerir que é melhor gastarem seu tempo e energia com Ruth? Ela precisa de apoio. Logo iremos embora, mas um guarda ficará do lado de fora do anexo a noite inteira. Eu agradeceria se todas vocês se unissem a Ruth agora e espremessem seus cérebros para nos oferecer quaisquer detalhes que possam ser úteis.
- Ele tem razão, vamos deixá-lo em paz - disse Mamãe Lomas, inesperadamente. - Ele é apenas um rapazinho e já suportou muita coisa hoje. Venham, meninas. É melhor cuidarmos de Ruth. - Ela empurrou-as gentilmente para a porta e, depois, voltou-se para proferir sua inevitável ironia final: - Não pense que o deixaremos fazer o que bem entender, mocinho. É hora de agir como homem. - Ela sacudiu a cabeça. - A culpa é do antigo proprietário das terras. Deveria ter tido mais juízo. Meia hora com Philip Hawkin é suficiente para saber-se de uma coisa, com certeza: não se perderia nada se o tivessem afogado ao nascer. - A porta fechou-se às costas dela com um ruído seco.
Como se coreografados, George e Clough atiraram-se em cadeiras, frente a frente, com expressões tão exaustas quanto desanimadas.
- Espero nunca mais ter de fazer isso. - George suspirou ao expelir a fumaça. Olhou em volta, procurando um cinzeiro, mas nenhum dos enfeites serviria para este fim. Assim, apagou a brasa do cigarro com os dedos, atirando o toco na lareira vazia.
- Acho que você enfrentará mais situações como esta antes de se aposentar - disse Clough.
O telefone tocou e, no sexto ou sétimo toque, alguém pegou a extensão. Os dois homens ouviram murmúrios de interrogação e, depois, passos aproximaram-se da porta. Diane Lomas espiou-os e disse:
- É para o inspetor. Alguém chamado Carver.
George levantou-se, desanimado, e atravessou a sala para atender a ligação.
- Bennett.
- Diga-me, Bennett, que idiotice é essa que você está fazendo? Alfie Naden está aqui fazendo um discurso, dizendo que jogamos seu cliente na cadeia sem qualquer justificativa e o deixamos lá, mofando, enquanto você saía para passear por Derbyshire em outra caçada inútil.
E por falar nisso, cogitou George, como o advogado mais caro da cidade descobriu que Philip Hawkin estava sob custódia? Cragg era um inútil, mas não teria ligado para o homem sem autorização. Parecia que Carver não aprendera nada com a morte de Peter Crowther e se comportava novamente como se tivesse direito a tudo e fosse a própria lei. George conseguiu conter um comentário irritado e falou, apenas:
- Eu já estava de saída. Pretendo voltar à delegacia para indiciar o senhor Hawkin.
- Indiciar? Naden disse que você prendeu Hawkin por suspeita de homicídio. Mas não há um homicídio para podermos indiciá-lo! - O pesado sotaque interiorano de Carver sempre tornava-se mais pronunciado sob tensão. George reconhecia os sintomas de alguém que estava por um fio para perder a cabeça. Se era assim, podia-se dizer o mesmo a seu respeito.
Esforçando-se para controlar sua raiva, respondeu com a voz mais calma que conseguiu encontrar:
- Eu o indiciarei por estupro, senhor. Para começar. Isto nos dará o suficiente para perguntarmos ao diretor do Ministério Público se é possível indiciarmos por homicídio sem um cadáver.
Do outro lado da linha, um silêncio de perplexidade.
- Estupro? - perguntou Carver, com a incredulidade alongando a palavra.
- Temos provas fotográficas. Acredite, é para valer. Agora, se me der licença Preciso ir. Chego aí em meia hora e mostro-lhe o que encontramos. George pousou o telefone no gancho devagar e virou-se, vendo Bob Lucas na porta que dava para o estúdio. - Carver quer que voltemos a Buxton - Preciso levar aqueles envelopes comigo. Será que posso incumbi-lo de colocar um guarda para vigiar a porta do laboratório fotográfico durante a noite?
Pode deixar comigo, senhor. Apenas para constar: folheamos cada um dos livros no estúdio e não encontramos nenhuma fotografia, mas continuaremos procurando. Boa sorte com Hawkin. - Balançou a cabeça num aceno de apoio. - Esperemos que ele facilite as coisas para a senhora Hawkin e decida contar tudo.
- Não sei por quê, mas duvido muito disso - disse Clough, parado na soleira. - O nojento se acha esperto demais.
- Ah, antes que eu me esqueça. Ela não quer mais ser chamada pelo sobrenome do marido. Suponho que devemos chamá-la de "senhora Cárter". - George suspirou. - Diga aos outros. - Ele passou a mão por seus cabelos ainda úmidos. - Vamos lá então. Quero que o desgraçado sofra um pouco.
Carver silenciou ao ver as fotografias. George imaginou que veria o mesmo efeito outras vezes. Carver fixou o olhar nas fotos como se, olhando-as assim, pudesse apagar as imagens e substituí-las pelas paisagens de cartão-postal de Scardale que Hawkin vendia no comércio local. Depois, virou-se abruptamente, apontando para uma folha de papel.
- É o número de Naden. Ele quer estar presente quando você interrogar o prisioneiro. - Ele levantou-se e agarrou seu casaco do gancho na parede, atrás de sua mesa.
- E o senhor? Não estará presente? - perguntou George, sem esconder o desapontamento.
- Este é seu caso, desde o início. Vá até o fim - disse Carver, com frieza. - Você e Clough, façam isso - concluiu, enfiando o casaco.
- Mas, senhor - começou George e então parou. Desejava dizer que jamais tivera um caso tão grave, que jamais conduzira um interrogatório no qual tivesse tão pouco em qye se basear, que era tarefa de Carver, como chefe, assumir esta situação. As palavras morreram em sua boca ao perceber que Carver achava que esse trem descarrilaria em algum ponto, ao longo do caminho, e não queria estar a bordo quando isso ocorresse.
- Mas o quê?
- Nada, senhor.
- E então, o que está esperando? Não posso fechar minha sala se você está parado no meio do caminho como um poste, não é?
- Desculpe-me. - George pegou a folha de papel da mesa de Carver, virou-se e saiu da sala. - Sargento! - chamou, ao avistar Clough. - Pegue seu casaco. Estamos de saída.
Surpreso, Clough fez o que George mandava. Carver franziu a testa:
- Aonde vão? Você precisa indiciar e interrogar um prisioneiro.
- Vou ligar para Naden e pedir-lhe para estar aqui em uma hora. Depois levar o sargento Clough comigo, para comermos algo em minha casa Só tomamos o café da manhã e um interrogatório demorado exige mais do que apenas café e nicotina, senhor - disse George com firmeza.
Carver torceu o nariz:
É isso o que ensinam na universidade?
Não, senhor, é algo que aprendi com o superintendente Martin, para falar a verdade. Ele diz que nunca devemos enviar soldados para combater de estômago vazio. - George sorriu. - Agora, se nos der licença, precisamos ir.
Virou-se e pegou o telefone. Podia sentir os olhos de Carver queimando-lhe as costas, enquanto discava.
- Alô? Senhor Naden? Aqui é o detetive-inspetor Bennett, do departamento de investigações criminais de Buxton. Pretendo interrogar seu cliente, por suspeita de homicídio e estupro, daqui a uma hora. Eu apreciaria se pudesse tê-lo aqui nesse horário... Muito bem, eu o espero então. Obrigado. - Ele terminou a ligação pressionando o gancho e discou novamente. - Anne? Sou eu. - Virou-se e fixou um olhar intenso em Carver, que bufou e marchou rumo às escadas.
Exatamente uma hora depois, Alfie Naden foi levado à sala de interrogatório. Ele parecia o exemplo perfeito do advogado interiorano bem-sucedido, com sua barriga modesta escondida em um terno de três peças impecável, de lã penteada. Usava óculos em meia-lua, com armação dourada, empoleirados em um nariz batatudo flanqueado por bochechas coradas. Sua cabeça calva brilhava sob as luzes, e seu queixo era tão liso como se ele tivesse feito a barba antes de sair para este compromisso. Teria sido fácil confundi-lo com um matuto se não fossem seus olhos pequenos e escuros, brilhavam como os olhos de vidro de um ursinho de pelúcia antigo. Raramente parados, exceto quando sondavam uma testemunha, eles não ignoravam detalhe algum. Era um adversário astuto e George desejou que Hawkin não conhecesse o suficiente sobre as pessoas da cidade para contratar o homem.
Clough trouxe Hawkin e pronunciou as palavras formais e decoradas sempre. O acusado nada disse, com os lábios franzidos levemente em desgosto, parecendo tão tranqüilo e confiante quanto parecera às dez da manhã.
George fez-lhe as advertências de praxe e, depois, disse:
- Após sua detenção esta manhã, por suspeita de homicídio, obtive um mandado de busca dos magistrados de High Peak. - Ele estendeu o mandado para exame de Naden, que o olhou e acenou em assentimento. -
e meus homens executamos o mandado esta tarde, no Solar Scardale Durante as buscas, descobrimos um cofre em um esconderijo no chão do anexo que o senhor converteu em laboratório fotográfico. Ao abrirmos o cofre com uma chave que encontramos escondida em seu estúdio dentro do solar, descobrimos seis envelopes pardos.
- Seis? - indagou Hawkin.
- Seis envelopes que continham certas fotografias e negativos cujo conteúdo me leva a acusá-lo agora, Philip Hawkin, de estupro.
Durante o pronunciamento formal de George, a expressão de Hawkin não se alterara. Então ele acha que pode se safar, pensou George. Acha que se livrou da acusação de assassinato e, assim, pode assumir um crime menor, como estupro.
- Podemos ver as provas? - perguntou Naden, calmamente.
George fitou Hawkin.
- O senhor realmente deseja que seu advogado veja as fotografias? Quero dizer, o senhor Naden é o melhor profissional que há por aqui. Se eu estivesse em seu lugar, não me arriscaria a perdê-lo.
- Senhor Bennett - advertiu-o Naden.
- Ele não poderá me defender se não souber o que vocês forjaram contra mim, seus desgraçados - disse Hawkin. Seu linguajar descera vários degraus na escala social, depois da superioridade que demonstrara pela manhã.
George abriu um envelope na frente do homem. Enquanto jantava com Clough, Cragg inserira cada uma das fotos e tiras de negativos em seu próprio saco plástico individual. O policial de plantão etiquetara cada uma enquanto era enfiada pelas bordas para dentro do saco. Amanhã, os peritos fariam seu trabalho. Finalmente, os fotógrafos da polícia fariam cópias dos negativos. Mas esta noite George precisava manter as provas consigo.
Em silêncio, ele pôs a primeira fotografia de Alison na frente de Hawkin e de Naden. Hawkin cruzou as pernas e perguntou:
Você me trouxe cigarros?
Naden afastou o olhar horrorizado da fotografia e olhou para Hawkin como se este fosse uma criatura de outro universo.
- O quê? - indagou, em voz débil.
- Cigarros. Os meus terminaram - disse Hawkin.
Naden piscou uma dúzia de vezes em rápida sucessão e, depois, abriu sua pasta. Tirou dali um maço de Benson & Hedges fechado e o jogou na direção de Hawkin, que fez questão de não olhar para as outras fotografias que George colocava metodicamente na frente de Naden. O advogado parecia hipnotizado pelas mostras de depravação que se acumulavam ante seus olhos. Quando a última foto foi exibida, ele pigarreou.
- São forjadas - disse Hawkin. - Qualquer um sabe que se pode manipular fotografias. Minha enteada desapareceu, eles não conseguiram encontrá-la e, agora, estão me enquadrando para mostrar serviço.
- Também temos os negativos - disse George, sem se alterar.
- Pode-se forjar negativos também - disse Hawkin, com desdém. - Primeiro, manipula-se a foto e, depois, ela é fotografada. Aí, obtém-se um negativo para fazer novas fotos.
- Está negando que estuprou Alison Cárter? - perguntou George, cético.
- Sim - respondeu Philip, tranqüilo.
- Também apreendemos uma camisa manchada de sangue, idêntica em cada detalhe às camisas que o senhor manda fazer em um alfaiate de Londres. Estava escondida em seu laboratório.
Enfim, Hawkin mostrava-se assustado.
- O quê?
- A camisa apresentava muitas manchas de sangue na frente, na parte inferior das mangas e nos punhos. Provavelmente será do tipo sangüíneo encontrado nas roupas íntimas de Alison quando for testado.
- Que camisa? Não havia camisa nenhuma em meu laboratório exclamou Hawkin, inclinando-se para a frente e fazendo um movimento agudo com o cigarro, como se esfaqueasse o ar para salientar o que dizia.
- Foi onde a encontramos. Com o revólver.
Hawkin arregalou os olhos.
- Que revólver?
- Uma arma Webley calibre .38. Idêntica àquela que roubaram do vizinho de sua mãe, o senhor Wells, alguns anos atrás.
- Não tenho revólver - disse Hawkin, rapidamente. - Você está cometendo um erro enorme, Bennett. Talvez ache que pode se dar bem me enquadrando, mas não é tão esperto quanto pensa!
O sorriso de George era tão gelado quanto o vento que soprava lá fora.
- Acho que devo informá-lo que pretendo apresentar esta informação ao Ministério Público, na convicção de que ele nos autorizará a acusá-lo de homicídio - continuou, implacável.
- Isso é absurdo! - explodiu Hawkin, remexendo-se na cadeira e voltando sua agressividade para o advogado. - Diga-lhes que não podem fazer isso! Tudo o que têm são algumas fotos falsificadas! Diga-lhes!
Naden dava a impressão de que desejaria ter ficado em casa.
- Devo aconselhá-lo a calar-se a partir de agora. - Hawkin abriu a boca para protestar, mas foi calado. - Não diga nada - repetiu Naden, com a irritação na voz que contradizia sua aparência afável. - Senhor Bennett, meu cliente não fará nenhuma declaração adicional, por enquanto, nem responderá a suas perguntas. Agora, solicito uma reunião em particular com meu cliente. Nós o veremos amanhã de manhã, perante os juízes.
George sentou-se, olhando para a máquina de escrever. Precisava preparar um relatório sobre a acusação de estupro para o inspetor que lidava com o Juizado Especial Criminal. Tal relatório era uma solicitação clara de pedido de prisão preventiva, mas com Alfie Naden defendendo o proprietário de Scardale perante um tribunal com os mais importantes nomes daquela região, George não queria correr qualquer risco. O fato de sua cabeça latejar com uma dor tão poderosa que ele precisava resistir ao impulso de fec'har um olho para aliviá-la, não o ajudava nada.
Ele suspirou e acendeu outro cigarro.
Razões para opor-se à fiança - resmungou para si mesmo.
Ouviu uma batida firme na porta. A esta hora da noite, provavelmente seria um dos policiais de plantão, trazendo-lhe uma xícara de chá em sinal de solidariedade.
Entre!
O superintendente Martin abriu a porta e entrou, vestindo um smoking impecável, em vez do uniforme.
- Não estou incomodando?
- Sua presença aqui é uma agradável interrupção, senhor - disse George, com sinceridade.
Martin acomodou-se na cadeira à frente de George e retirou um frasco prateado de seu bolso traseiro.
- Tem algo em que beber? - perguntou.
- Nem uma xícara suja. Desculpe.
- Não importa. Faremos como no campo de batalha - disse Martin, tomando um gole do frasco e o estendendo para George, após limpar a boca da garrafinha. - Vá em frente. Aposto que lhe fará bem.
Agradecido, George tomou um gole generoso do conhaque. Fechou os olhos e saboreou a ardência, enquanto a bebida descia por sua garganta e aquecia seu peito.
- Não havia percebido suas qualificações médicas, senhor. Isso era exatamente o que o médico receitou.
- Estava em um jantar da maçonaria. Encontrei o detetive e inspetor-chefe Carver lá, e ele me contou o que estava acontecendo. - Martin olhou-o fixamente. - Gostaria de ouvir sua versão da história.
- As coisas... andaram depressa hoje. Eu me sentia muito desconfortável com aquela história da fotografia no jornal, semana passada. Achei que seria bom investigar esta questão um pouco mais, mas não planejava nada além de interrogar Hawkin para ver se poderia deixá-lo inquieto e, talvez, fazê-lo soltar a língua. Depois, quando recebi o telefonema de Ruth Hawkin... Eu pensei em procurá-lo antes de fazer buscas no solar, mas se eu tivesse feito isso, não teria conseguido o mandado, e o senhor sabe como alguns juízes relutam em assinar mandados quando acham que estamos invadindo seus horários livres. Assim, eu simplesmente... fui em frente.
- E então, o que estamos enfrentando, exatamente?
- Eu o acusei de estupro. Ele comparecerá perante os juízes de manhã para pedirmos a prisão temporária. Estou preenchendo a papelada. Alfie Naden o defende, e já está preparando a alegação de que forjamos as fotografias para que não parecesse que fracassamos totalmente no caso de Alison Cárter.
Martin torceu o nariz, em menosprezo.
- Isso não cola. Duvido que tenhamos um fotógrafo ou equipamento necessário para fazermos algo tão complicado. Ainda assim, essa alegação pode causar confusão suficiente para fazê-lo escapar de fininho no meio do barulho. Nunca se sabe com os jurados, e este canalha tem boa aparência.
- Ele retirou um estojo com charutos do bolso interno do smoking. Afrouxou sua gravata-borboleta e abriu o botão superior da camisa branca.
- Assim está melhor. Quer um charuto?
- Fico com os meus cigarros, obrigado. Martin exalou um gordo fio de fumaça azul.
- O que temos para acusá-lo de assassinato? Dê-me uma visão geral das coisas.
- Número um - disse George, recostando-se na cadeira -, agora sabemos que ele abusava da menina e tirava fotografias pornográficas dela. Número dois, na tarde em que ela desapareceu, Hawkin afirma que estava sozinho em seu laboratório, mas duas testemunhas o viram cruzando o campo entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo em que descobrimos sinais de luta envolvendo a garota.
- Bem sugestivo - comentou Martin.
- Número três, a cadela vivia na casa. A pessoa que amarrou seu focinho com esparadrapo sem ser mordida deveria conhecer bem o animal. Teremos de investigar nas lojas próximas para sabermos se alguém se lembra de ter vendido um rolo deste esparadrapo a Hawkin. Número quatro, ninguém na aldeia, além de Mamãe Lomas, admite conhecer a mina de chumbo abandonada, mas encontramos um livro com detalhes sobre uma estante no estúdio de Hawkin. Sugestivo, mas circunstancial. George assentiu.
. Tudo é circunstancial, mas com que freqüência temos uma testemunha que corrobore um assassinato?
. É verdade. Deixe-me ouvir o resto, então. George fez uma pausa para organizar seus pensamentos.
- Ok. Número cinco, Hawkin é do mesmo grupo sangüíneo que a pessoa que deixou sêmen nas roupas íntimas de Alison. Naquelas roupas e no arvoredo também havia sangue do mesmo grupo que o da menina. Sabemos disso porque a presença de corpúsculos de Barr indica que o sangue era feminino. Assim, é razoável presumir que Alison foi, no mínimo, ferida, se não morta, nas mãos de um criminoso sexual. E sabemos, pelas fotografias que encontramos, que Hawkin se encaixa nesta categoria. Número seis, a suposta identificação de Alison em uma foto de jornal. Esta história é exatamente igual a uma matéria de jornal sobre a menina desaparecida de Manchester, Pauline Reade. Acredito que Hawkin usou esta matéria para parecer um padrasto carinhoso e preocupado, algo que não havia sido até aquele ponto, pelo menos em minha opinião.
- Número sete - continuou -, encontramos duas balas de revólver na mina abandonada. Uma estava suficientemente inteira para ser identificada como tendo sido disparada de uma Webley calibre .38. Uma arma semelhante foi roubada de uma casa que Hawkin visitava regularmente, alguns anos atrás. Um revólver semelhante foi encontrado em seu laboratório. Estava escondido e tinha o número de série raspado. Ainda não sabemos se o homem cuja arma foi roubada identificará este revólver como sendo o seu. E ainda não sabemos se esta é a arma que disparou as balas encontradas na mina. Mas saberemos. Finalmente, a camisa manchada de sangue. É idêntica às que Hawkin faz sob medida em Londres, inclusive na etiqueta do alfaiate, no colarinho. Ela estava ensopada de sangue. Se este sangue corresponder àquele que já identificamos circunstancialmente como sendo de Alison, poderemos ligar Hawkin ao ataque a ela. - George levantou as sobrancelhas. - O que o senhor acha?
- Se tivéssemos um corpo, eu diria que deveríamos indiciá-lo mas não temos. Não temos provas diretas de que Alison Cárter não está viva. A promotoria não aceitará um indiciamento por homicídio sem um corpo.
- Há precedentes - protestou George. - Haigh, o assassino da banheira com ácido. Não havia corpo naquele caso.
- Mas estava claro que um corpo havia sido colocado na banheira e traços laboratoriais apontaram para sua vítima, se estou bem lembrado.
- Há outro precedente, com menos provas ainda, de 1955. Um ex- soldado polonês, que foi condenado por assassinato de seu sócio nos negócios. A acusação sustentou que ele dera o corpo aos porcos de sua fazenda Tudo que a acusação tinha eram amigos e vizinhos que afirmavam que os dois homens haviam discutido. Havia algumas manchas de sangue na cozinha da sede da fazenda e o sócio desaparecera por completo, deixando para trás sua conta de poupança. Nós temos bem mais que isso. Ninguém confirma ter visto Alison Cárter desde seu desaparecimento. Temos evidências de que ela foi atacada sexualmente e que teve uma perda sangüínea considerável. Não acha improvável que ainda esteja viva?
Martin reclinou-se na cadeira e soprou a fumaça de seu charuto para o ar.
- Há uma grande diferença entre "improvável" e "além de qualquer dúvida razoável". Mesmo com a arma. Se ele a matou à queima-roupa, por que encontramos duas balas na parede?
- Talvez ela tenha resistido, no início, e ele atirou para assustá-la.
Talvez a menina estivesse lutando e ele a tenha ameaçado com os outros
dois tiros. Para fazê-la ceder, Martin pensou por algum tempo. Depois, disse:
- É possível, mas a defesa usará essas duas balas para confundir os jurados. E se ele matou a garota na mina, por que remover o corpo dali?
George afastou os cabelos de sua testa.
- Não sei. Talvez conhecesse um lugar ainda melhor para esconder o corpo. Deve ser isso, não acha? De outro modo, já o teríamos descoberto.
- Se ele conhecia um lugar melhor para livrar-se do corpo, por que deixar pistas do ataque sexual na mina?
George suspirou. Embora se sentisse frustrado com as perguntas de Martin, sabia que os advogados de defesa questionariam muito mais.
- Não sei. Talvez não tenha tido oportunidade. Precisava aparentar inocência pouco depois. Não poderia atrasar-se, logo naquela noite. Quando terminou de jantar, a notícia sobre o desaparecimento já se espalhara e não conseguiu voltar à mina.
- É muito pouco, George. - Martin sentou-se ereto e fitou seu detetive - Não basta. Você terá de encontrar o corpo.
Terceira Parte: Julgamentos e Aflições
Prisão preventiva
Tudo terminou em poucos minutos. Olhando à sua volta no tribunal, George surpreendeu-se com a perplexidade nos rostos dos moradores de Scardale, que haviam comparecido em peso. Estavam ali para satisfazerem algum impulso primitivo e verem aquele que consideravam como um vilão no banco dos réus. Precisavam de uma solenidade para amenizar o impulso, mas ali, em um tribunal moderno, que se parecia mais com o auditório de uma escola que com o antigo prédio do tribunal criminal de Londres, nada havia que pudesse satisfazer esta necessidade.
Todas as variações faciais de Scardale estavam ali, nos sete homens e oito mulheres presentes, desde o nariz adunco de Mamãe Lomas até os traços achatados de Brian Cárter. A ausência notável era da própria Ruth Cárter.
Naturalmente, havia repórteres, embora não tantos quanto haveria no julgamento. Tinham tão pouco para contar aos leitores, neste estágio, que quase não valia a pena estarem ali. Em virtude das leis que governavam a presunção de inocência, agora que Hawkin era acusado de algo, os editores precisariam ter grande cautela com suas palavras. Qualquer sugestão de que Hawkin poderia enfrentar uma acusação adicional por homicídio era tabu.
O detento foi trazido ao tribunal, onde três juízes de paz, dois homens e uma mulher, estavam sentados atrás da banca. Alfie Naden estava ali, preparado e à espera, assim como o inspetor do tribunal. Hawkin parecia mais confortável que qualquer um deles, com o rosto recém-barbeado parecendo o retrato da inocência e pureza e seus cabelos escuros brilhando sob as uzes. O murmúrio baixo proveniente dos assentos nos quais os habitantes e Scardale estavam foi silenciado por uma palavra ríspida do oficial de Justiça.
O auxiliar de tribunal levantou-se e leu a acusação contra Hawkin. Quase antes de terminar, Naden já estava de pé.
- Excelências, tenho um pedido a fazer. Como Vossas Excelências sabem, é dever do tribunal, sob a seção 39 da Lei de Proteção à Infância e à Juventude, proteger a identidade de menores vítimas de crimes sexuais. Com isto em mente, o procedimento normal dos tribunais é proibir que a imprensa mencione o nome do acusado, já que isto seria um modo indireto de identificar a vítima, quando há um relacionamento estreito entre ambos, como vemos nessas alegações. Portanto, peço que Vossas Excelências façam a mesma determinação neste caso.
Enquanto Naden sentava-se, o inspetor levantou-se outra vez. Ele já havia discutido isto com George e com o superintendente Martin.
- Eu me oporia a esta determinação - disse, em tom grave. - Em primeiro lugar, por causa da extrema gravidade das circunstâncias neste caso. Acreditamos que não é a primeira vez que o réu cometeu atos sexuais com crianças. Publicar seu nome pode levar ao reconhecimento e denúncia por outras vítimas. - Esta parte do argumento era pouco mais que uma esperança; as tentativas de Cragg para fazer com que os policiais de St. Albans levassem adiante as fofocas já sinalizavam o fracasso de tal intenção. George planejava enviar Clough às ruas para uma segunda tentativa, mas, por enquanto, só podiam cogitar que Hawkin cometera crimes semelhantes anteriormente.
- Em segundo lugar - continuou o inspetor -, a opinião da promotoria é que a vítima desta agressão não está mais viva e, portanto, não precisa da proteção do tribunal.
Bocas abriram-se em espanto. Uma das mulheres de Scardale deu um pequeno gemido. Repórteres olharam-se, desconcertados. Será que poderiam publicar esta declaração, por ter sido feita em um tribunal aberto ao público? Será que, ainda assim, seria proibido? Será que dependeria da determinação dos magistrados?
Naden levantou-se.
- Excelências - protestou ele, a própria imagem da indignação -, tal sugestão é escandalosa. É verdade que a suposta vítima desta suposta agressão está desaparecida atualmente, mas a sugestão da polícia de que a garota está morta é premeditada para gerar calúnia contra meu cliente.
Devo insistir para que Vossas Excelências determinem que nada será citado pela imprensa, exceto o fato de que um homem foi acusado do crime de estupro.
Os magistrados conferenciaram com o auxiliar do tribunal. George tamborilava impacientemente sobre um dos joelhos. Para ele, tanto fazia se a imprensa citasse Hawkin ou não. Tudo o que desejava era terminar esta investigação.
Finalmente, o presidente da banca limpou a garganta.
- Concordamos que, para fins de uma audiência de pedido de prisão preventiva, a imprensa está proibida de mencionar o nome do acusado. Entretanto, esta decisão não precisará ser acatada por qualquer dos juízes em qualquer audiência subsequente.
Naden fez sinal de que concordava e agradeceu. Quando a audiência preliminar foi marcada para dali a quatro semanas, Naden protestou novamente:
- Excelências, solicito a consideração de fiança. Meu cliente é um membro respeitado desta comunidade, sem antecedentes ou máculas em seu caráter. Ele administra uma grande propriedade e, sem dúvida, sua ausência será prejudicial a todos aqueles que trabalham em suas terras.
- Besteira! - gritou alguém do fundo da sala. George reconheceu Brian Cárter, com o rosto rubro de raiva. - Estamos melhor sem ele.
O presidente da banca parecia perplexo.
- Retirem esse homem imediatamente - disse, indignado por tal demonstração de desrespeito.
- Eu ia embora, de qualquer maneira - gritou Brian, colocando-se de pé antes que qualquer um pudesse alcançá-lo. Saiu quase correndo, batendo a porta às suas costas e deixando atrás de si um silêncio chocado.
O presidente da banca respirou fundo.
- Se eu ouvir mais uma intervenção do público, evacuarei este tribunal - disse, rígido. - Por favor, prossiga, senhor Naden.
- Obrigado. Como eu ia dizendo, a presença do senhor Hawkin é vital Para os trabalhos em suas terras. Como Vossas Excelências já devem ter uvido falar, sua enteada desapareceu de casa e ele acha que seu lugar é ao lado da esposa, para oferecer-lhe conforto e ajuda. Não estamos tratando com um criminoso que não tem paradeiro. Ele não tem intenção de sair desta jurisdição. Insisto pela fiança nessas circunstâncias excepcionais. O inspetor levantou-se, lentamente.
- Excelências, a polícia opõe-se à fiança, sob a alegação de que o acusado possui fundos suficientes à sua disposição para apresentar risco de fuga. Ele não tem raízes firmes nesta área e apenas mudou-se para cá quando da morte de seu tio, pouco mais de um ano atrás. Também estamos preocupados com sua possível interferência junto às testemunhas. Muitas testemunhas potenciais da acusação não apenas são seus inquilinos, mas também seus empregados, e há um risco muito grande de intimidação. Além disso, na opinião da polícia este homem é acusado de um crime muito grave e tende a enfrentar acusações adicionais, no futuro próximo.
George sentiu-se aliviado por ver que a juíza acenava com firmeza a cada argumento do inspetor. Se os outros ainda estivessem indecisos, ele achava que a convicção dela seria suficiente para convencê-los. Quando os juízes retiraram-se, ouviu-se um murmúrio indistinto de vozes no banco da imprensa. O contingente de Scardale permaneceu em silêncio, com os olhos perfurando o pescoço de Philip Hawkin, que parecia muito concentrado em uma conversa com seu advogado.
George gostaria de acender um cigarro.
Alguns minutos depois, os magistrados retomaram seus assentos.
- Não haverá fiança - disse o presidente, com determinação. - Levem o prisioneiro.
Ao passar por George, Hawkin lançou-lhe um olhar de puro ódio. O olhar de George passou direto por ele, sem se fixar. Prudência e distanciamento eram sua melhor atitude às reações daqueles que prendia.
Daily News, quinta-feira, 6 de fevereiro de 1964, p. 2
Determinada prisão de suspeito
Um homem acusado de estupro teve sua prisão temporária decretada pelos magistrados de High Peak em Buxton, ontem. O homem, que não pode ter seu nome revelado por razões legais, vive na aldeia de Scardale, em Derbyshire.
A acusação de homicídio
Era estranho, pensou George, que todos os escritórios públicos fossem tão parecidos. De algum modo, ele esperara que o do Ministério Público fosse tão grandioso quanto o nome sugeria. Embora o prédio no estilo da Regência na rua Queen Anne's Gate não pudesse ser menos semelhante ao moderno edifício retangular de alvenaria que abrigava a subdivisão de Buxton, seu interior era como o de qualquer outro órgão público. O advogado com quem ele e Tommy Clough haviam marcado horário quatro dias após a audiência de prisão preventiva trabalhava em um espaço tão parecido com seu próprio escritório que George sentiu-se quase desorientado. Pastas estavam empilhadas sobre arquivos de ferro, alguns livros de direito ocupavam uma prateleira sob a janela e o cinzeiro precisava ser esvaziado. O chão estava coberto com um linóleo idêntico e as paredes tinham o mesmo tom de branco-sujo.
Jonathan Pritchard também contrariou suas expectativas. Na casa dos trinta anos, Pritchard tinha uma cabeleira indomável, cor de cenoura, que se levantava em tufos e ângulos em toda sua cabeça, até erguer-se em uma espécie de crista, em um canto de sua testa. Suas feições eram igualmente rebeldes. Os olhos, no azul-acinzentado aquoso dos galeses, eram redondos e muito separados, com longos cílios dourados. Seu nariz longo e ossudo dava uma guinada súbita para a esquerda na ponta, e sua boca torcia-se em um ângulo seco para baixo. As únicas coisas ordenadas nele eram seu terno cinza-escuro em risca-de-giz imaculado, sua camisa incrivelmente branca e uma gravata com nó perfeito.
- Então - o advogado cumprimentara-os, levantando-se rapidamente - vocês são os camaradas sem um corpo. Entrem, sentem-se. Espero que tenham se abastecido de antemão, porque aqui não há qualquer chance de uma xícara de café que preste. - Ele permaneceu de pé, educadamente, até ver que George e Clough haviam sentado, e então tornou a sentar-se em sua velha cadeira giratória de madeira. Abriu uma gaveta, pegou outro cinzeiro e empurrou-o para os dois. - Este é o máximo de nossa hospitalidade - disse, pesaroso. - E agora, quem é quem?
Eles apresentaram-se. Pritchard anotou algo no bloco à sua frente.
- Perdoem-me - disse. - Mas é um pouco incomum ver um caso de tal magnitude ser coordenado por um detetive-inspetor. Principalmente um que está no cargo há apenas cinco meses.
George conteve um suspiro e encolheu os ombros.
- O detetive e inspetor-chefe estava com o tornozelo engessado quando a garota desapareceu, de modo que fiquei no controle da operação, reportando-me ao superintendente Martin. Ele é o policial mais experiente na subdivisão de Buxton. De qualquer modo, à medida que o caso avançava, o QG pensou em ceder um policial mais experiente do departamento de investigações criminais, mas o superintendente resistiu à ideia. Queria que seus próprios homens lidassem com o caso.
- Muito elogiável, mas talvez os oficiais de seu quartel-general não tenham gostado muito... - comentou Pritchard.
- Não sei dizer, senhor. Clough inclinou-se para a frente.
- O superintendente serviu no Exército com o chefe de polícia, de modo que tem credibilidade.
Pritchard assentiu.
- Eu mesmo fui advogado no Exército. Sei como são essas coisas. - Ele tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. George imaginou a impressão que Pritchard causaria no tribunal se acabasse apresentando o caso para a acusação na audiência de aprisionamento. Graças a Deus os juízes não estariam lá também. - Li a papelada referente ao caso e examinei as fotografias. São realmente as mais repugnantes que já vi. Não tenho dúvida de que conseguiremos uma condenação por estupro com base apenas nas fotos. O que precisamos discutir, agora, é se temos provas suficientes para avançar para uma acusação de homicídio. Naturalmente, o principal obstáculo é a ausência de um corpo.
George abriu a boca, mas Pritchard levantou um dedo de alerta para garantir o silêncio.
- Agora, devemos considerar o corpo de delito. Não como a maioria das pessoas pensa, o corpo da vítima, mas o corpo do crime. Quer dizer, os elementos essenciais de um crime e as circunstâncias nas quais foi cometido. No caso de homicídio, é necessário que a acusação estabeleça a ocorrência da morte, que a pessoa morta é aquela que supostamente foi assassinada e que a morte resultou de violência criminosa. O modo mais fácil de demonstrar isto é pela presença de um corpo, ou cadáver, não é?
- Mas existem precedentes para condenações por homicídio na ausência de um corpo - disse George. - Haigh, o homicida da banheira com ácido, e James Camb. Além disso, temos Michael Onufrejczyk, o criador de porcos. É o caso em que o presidente do tribunal disse que o fato da morte poderia ser estabelecido por provas circunstanciais. Creio que temos o suficiente para levarmos este caso avante.
Pritchard sorriu.
- Vejo que você estudou os principais precedentes. Devo dizer, inspetor Bennett, que me sinto muito intrigado pelas circunstâncias deste caso. Não há dúvida de que apresenta alguns problemas aparentemente incontornáveis. Entretanto, como você aponta, existe uma quantidade substancial de provas circunstanciais. Agora, se pudermos rever essas provas...
Durante duas horas, os três repassaram todos os detalhes que apontavam para o assassinato de Alison Cárter por Philip Hawkin. Pritchard questionou-os, com inteligência e atenção, sondando-os na tentativa de extrair deficiências na cadeia lógica. O advogado não ofereceu praticamente nada em termos de sua opinião pessoal sobre as explicações que ouvia, mas estava claramente fascinado.
- Há mais uma coisa, algo que não estava em seus papéis - concluiu Clough. - Só tivemos o relatório no fim da tarde de ontem. O sangue na camisa é do mesmo grupo que o de Alison, e vem de uma mulher, igual ao outro sangue. Mas a camisa está um pouco chamuscada e apresenta resquícios de pólvora, como seria de esperar se um revólver tivesse sido disparado muito próximo dela. E não há dúvida de que a roupa pertence a Hawkin.
- Tudo é material útil, sargento. Mesmo sem esta última prova, tenho quase certeza de que Hawkin matou a menina. Contudo, ainda resta a dúvida de podermos montar um caso que satisfaça um júri. - Pritchard correu a mão por seus cabelos, tornando-os ainda mais caóticos. George entendeu por que o homem optara por ser advogado: sob uma peruca de crina de cavalo, ele pareceria quase normal. E embora não houvesse como negar que viera de família de posses, sua voz não era tão arrogante a ponto de causar antipatia nos jurados.
- Onde quer que o corpo esteja, ele fez um bom trabalho ao escondêlo. Não iremos encontrá-lo, a menos que alguém tropece nele por acidente. Acho que não teremos muito mais do que já conseguimos - disse George, tentando não parecer tão desanimado quanto sempre se sentia, quando o sono inquieto de Anne o acordava e fazia-o permanecer desperto e preocupado durante a madrugada.
Pritchard girou da esquerda para a direita em sua cadeira.
- Ainda assim, é um desafio fascinante, não acham? Não me lembro da última vez em que li relatórios sobre um caso que me fizeram vibrar tanto. Que batalha de mentes em um tribunal! Não consigo evitar o pensamento de que seria muito divertido irmos ao tribunal.
- Então você atuaria na acusação? - indagou Clough.
- Uma vez que certamente será um julgamento controvertido, teríamos um promotor de renome atuando, mas eu certamente o auxiliaria e seria responsável pela preparação do caso. Sinto-me na obrigação de dizer que sou a favor de irmos a julgamento. - Ele levantou novamente um dedo, em tom de advertência. - Mas isso não significa que vocês podem ir em frente e acusá-lo. Terei de falar com o diretor e convencê-lo de que não nos exporemos ao ridículo se formos em frente. Tenho certeza de que vocês sabem como nossos superiores detestam ser motivo de chacotas - acrescentou, com um sorriso irónico.
- E então, quando teremos uma resposta? - perguntou George.
- No fim da semana - disse Pritchard, decidido. - Ele provavelmente desejará estudar seus relatórios por algumas semanas, mas o tempo é crucial aqui, eu acho. Ligarei para vocês sexta-feira, o mais tardar. - Pritchard levantou-se e estendeu a mão. - Inspetor. Sargento - cumprimentou-os. - Foi um prazer conhecê-los. Vamos cruzar os dedos, está bem?
Daily News, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso da menina desaparecida: Suspeito acusado de homicídio
Da Redação
Ontem à noite, a polícia acusou Philip Hawkin, do homicídio de sua enteada, Alison Cárter, que desapareceu em dezembro, em uma reviravolta surpreendente neste caso.
O que torna esta acusação incomum é que o corpo de Alison ainda não foi descoberto. A bonita garota de 13 anos não é vista desde que saiu de sua casa, na pequenina aldeia de Scardale, em Derbyshire, para caminhar com sua cadela após a escola, em 11 de dezembro do ano passado.
Hawkin comparecerá no Juizado Especial Criminal de Buxton amanhã, para o pedido de detenção até o julgamento.
Antecedentes
Esta não é a primeira vez em que alguém é acusado de homicídio sem a descoberta do corpo. No caso de John George Haigh, o famoso assassino da banheira com ácido, foram encontrados apenas uma pedra renal, alguns ossos e a dentadura de sua vítima.
Contudo, estes poucos elementos foram suficientes para demonstrar que a banheira contivera o corpo da vítima e Haigh foi enforcado por homicídio.
James Camb, camareiro em um navio de luxo que realizava um cruzeiro entre a África do Sul e a Inglaterra, foi acusado de assassinar uma passageira, a atriz Gay Gibson.
Camb afirmou que Gibson havia morrido de ataque cardíaco enquanto estavam sozinhos na cabine dela. Em pânico, e achando que seria acusado de matá-la, ele empurrou o corpo através de uma portinhola.
Os jurados não acreditaram em sua história e ele foi condenado.
Outro caso ocorreu em uma fazenda distante no País de Gales, onde um herói de guerra polonês foi condenado por matar seu sócio e dar o corpo aos porcos na propriedade de ambos.
A espera do julgamento.
George despertou às seis horas na segunda-feira, 24 de fevereiro, e escorregou para fora da cama, tentando não perturbar Anne. Desceu em silêncio, com seu roupão e chinelos. Fez um bule de chá e levou-o até a sala. Afastando as cortinas para observar a alvorada, surpreendeu-se ao ver o carro de Tommy Clough estacionado ali. O brilho da brasa de um cigarro revelou que o sargento estava tão acordado quanto ele.
Minutos depois, Clough estava sentado à sua frente, com uma xícara de porcelana fumegante em uma de suas grandes mãos.
- Achei que você acordaria antes da hora. Espero que Hawkin tenha perdido o sono, como nós - comentou, amargo.
- Não consigo me lembrar da última vez em que dormi oito horas seguidas, com o sono agitado de Anne e minha preocupação com esta audiência nos últimos tempos - concordou George.
- Como ela está?
George encolheu os ombros.
- Cansa-se facilmente. Fomos assistir a Fugindo do Inferno no Opera House sexta à noite, e ela cochilou no meio. Anne também se preocupa demais. - Ele suspirou. - Acho que o fato de nunca saber quando estarei em casa não ajuda em nada.
- Tudo ficará mais fácil após o julgamento - disse Clough, consolando-o.
- Suponho que sim. Ainda assim, fico sempre imaginando que ele pode safar-se desta. Quer dizer, temos de fazer o possível para que os juízes concordem em mandá-lo para julgamento. Então, ele terá pelo menos alguns meses para construir uma defesa, sabendo exatamente o que temos para pegá-lo. Não é como Perry Mason, onde um elemento-surpresa sempre aparece no último minuto.
- Os advogados não iriam em frente se não achassem que têm uma boa chance de vencer - lembrou Clough. - Fizemos nossa parte. Tudo o que nos resta é deixar que façam a deles - acrescentou, filosoficamente.
George fez pouco caso, torcendo o nariz.
- Eu deveria me sentir melhor com isso? Tommy, detesto este estágio, em qualquer investigação. Tudo está fora do meu controle e não posso influenciar os acontecimentos. Sinto-me tão impotente! E se Hawkin não for condenado... bem, não sei quanto aos advogados, mas eu me sentirei um fracassado. - Ele recostou em sua cadeira e acendeu um cigarro. - Não suportaria isso, por todas as razões possíveis, principalmente porque um assassino sairia livre. Mas sou suficientemente humano para ver as coisas pelo meu lado pessoal. Dá para imaginar como Carver se sentiria feliz? Será que você consegue imaginar as manchetes que aquele rato de esgoto, Don Smart criaria para seu jornal?
- Ah, George, espere aí, todos sabem como você se esforçou neste caso. Se Carver estivesse no comando, nunca teríamos a prova para a acusação de estupro. E nossas provas são conclusivas. Não é possível que ele possa se livrar dessa acusação, não importa o que aconteça com a acusação por homicídio. E pode apostar seu último dólar que qualquer juiz que atentar para as provas e ouvir um júri estúpido pronunciar "inocente" para a acusação de homicídio usará a condenação por estupro para dar a Hawkin a maior sentença possível. Ele não voltará tão cedo a Scardale.
George suspirou.
- Você tem razão. Só gostaria de ter conseguido fazer uma ligação mais estreita entre Hawkin e o revólver. Quer dizer, será que ainda podemos ter mais azar? Apenas um homem poderia identificar a arma que temos como sendo a Webley roubada de St. Albans O dono anterior, o vizinho da mãe de Hawkin, senhor Wells. E onde ele está? Viajou para a Austrália, para passar alguns meses com a filha que emigrou para lá. E nenhum de seus amigos ou vizinhos tem um endereço para onde possamos escrever-lhe. Nem conseguem lembrar direito quando ele voltará. É claro que suspeitamos que a mãe de Hawkin tem todos esses detalhes, sendo a melhor amiga do casal Wells, mas certamente não contará a esses policiais nojentos que estão acusando seu filhinho querido de coisas tão horríveis - acrescentou,
com sarcasmo.
Ele se levantou.
" - Vou tomar uma chuveirada e me barbear. Quer fazer mais chá? Levarei uma xícara para Anne, quando me vestir. Depois, lhe pago um café da manhã compk to no bar mais próximo.
- Parece ótimo. Precisamos nos prevenir mesmo, porque o dia será longo.
O relógio da prefeitura bateu dez horas, com sua nota grave penetrando no tribunal, no outro lado da rua. Jonathan Pritchard levantou a cabeça da pilha de papéis na sua frente e ergueu as sobrancelhas, em expectativa. Próximo dele, ainda absorto em suas anotações, estava a figura corpulenta de Desmond Stanley, promotor do Ministério Público. Ex-jogador de rúgbi de Oxford, Stanley conseguia evitar o acúmulo de gordura, aos quarenta e poucos anos, com um regime rígido de exercícios que insistia em praticar onde quer que trabalhasse. Além da peruca habitual, toga e faixas de advogado, a sacola de Stanley sempre continha seus halteres. Ele já se curvara e alongara, realizara flexões e agachamentos por todo o país antes de entrar no tribunal e acusar ou defender os piores criminosos que o sistema legal podia lançar-lhe nas mãos.
O mais estranho era que ele nunca parecia saudável. Sua pele tinha um tom amarelado e doentio, seus lábios eram pálidos e seus olhos castanhoescuros lacrimejavam constantemente. Stanley sempre levava escondido na manga um lenço de seda de cors vivas, para poder enxugar seus olhos regularmente. Na primeira vez que o encontrara, George imaginara se Stanley viveria o bastante para comparecer àquele julgamento. Depois, Pritchard o tranquilizara:
- Ele sobreviverá a muitos de nós - confidenciara. - Sinta-se feliz por ele estar do nosso lado, não contra nós, porque Desmond Stanley é um monstro de competência. Pode acreditar.
Pritchard sentiu-se ainda mais grato por ter Stanley do seu lado ao ver quem era o advogado de defesa. Rupert Highsmith conquistara sua formidável reputação como um inquiridor implacável e de precisão cirúrgica em uma série de casos famosos no começo dos anos 50, quando ainda iniciava sua carreira. Outros dez anos nos tribunais não haviam embotado suas habilidades; ao contrário, haviam lhe ensinado uma série de novos truques que causavam aflição em seus oponentes, tanto que os menos talentosos relutavam em extrair materiais dúbios de suas testemunhas, por temerem o que Highsmith poderia fazer com elas em seu favor quando chegasse sua vez.
Agora, Highsmith estava reclinado em sua cadeira, em atitude confiante, olhando atentamente para os bancos lotados de repórteres e para o público, com seu perfil tão geométrico que parecia ter sido construído com blocos de madeira em uma brincadeira de criança. Os colegas mais maldosos comentavam, às escondidas, que ele fizera cirurgia plástica para manter seus contornos tão precisos. Ele gostava de conferir sua plateia, para avaliar o impacto que seu caso poderia ter. Havia bastante público hoje, pensou. Uma boa vitrine para seus talentos.
Ele era um dos poucos advogados de defesa que brilhavam nessas audiências preliminares. Uma vez que a única finalidade de tais audiências era decidir se a promotoria tinha um caso claro contra o acusado, geralmente apenas o promotor falava para os magistrados. A única oportunidade que Highsmith teria para demonstrar suas habilidades seria durante o interrogatório das testemunhas. E isso era o que fazia melhor.
A porta lateral abriu-se e Hawkin entrou, ladeado por dois policiais. Por instrução de George, suas mãos estavam sem algemas. O detetive estava determinado a não fazer coisa alguma que pudesse causar a mais leve simpatia por Hawkin. Além disso, ele sabia que a primeira ação da defesa seria exigir a remoção das algemas, e que os magistrados provavelmente concordariam, no mínimo porque seria difícil não verem Hawkin como alguém de seu próprio nível. Pritchard também salientara a importância de não permitir que a defesa levasse vantagem primeiro.
Dezoito noites atrás das grades haviam causado pouco impacto sobre a aparência de Philip Hawkin. Seus cabelos escuros estavam mais curtos, uma vez que os prisioneiros não tinham como escolher barbeiro e precisavam aceitar o corte que recebiam, mas ainda estavam sedosos e brilhantes, Penteados para trás e deixando visível sua testa ampla e quadrada. Seus olhos castanho-escuros percorreram rapidamente o tribunal antes de se fixarem em seu advogado. O sorriso que parecia sempre brincar em seus lábios ampliou-se em reconhecimento ao aceno curto de Highsmith. Hawkin entrou sem pressa em seu reservado, ajustando cuidadosamente as pernas das calças de seu traje escuro e sóbrio, enquanto se acomodava no assento. A porta atrás dos assentos dos juízes abriu-se e o oficial de justiça levantou-se, comandando em voz alta:
- Todos de pé!
Cadeiras arrastaram-se no chão de ladrilhos, enquanto os três juízes entravam. Hawkin estava entre os primeiros a se levantarem, demonstrando um respeito que Pritchard percebeu e anotou mentalmente, para poder usar mais tarde, se fosse o caso. Ou Hawkin era bom ator, ou realmente acreditava que esses juízes poderiam usar o poder que detinham em seu favor.
Os três homens que julgariam o caso acomodaram-se, seguidos em uma desordem ruidosa por todos os outros, exceto o oficial de justiça. Ele lembrou-lhes que o tribunal estava em sessão e que deveriam considerar o processo para enviar a julgamento Philip Hawkin, do Solar Scardale, em Scardale, no condado de Derbyshire.
Desmond Stanley ergueu-se.
- Excelências, eu represento o diretor do Ministério Público nesta questão. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele é acusado ainda de, em uma outra ocasião ou na data exata ou próxima de 11 de dezembro de 1963, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
A única pessoa a sorrir no tribunal era Don Smart, curvado sobre seu pequeno bloco de anotações. O animador do circo estava de pé. O espetáculo já começara.
Depois de apresentar suas provas e sofrer os golpes da inquirição astuta de Highsmith, George saiu do banco das testemunhas e voltou para o meio da plateia, tonto e com duas manchas rosadas queimando-lhe as faces. Amanhã, voltaria para sentar-se no meio do público e escutar o resto, mas agora queria um cigarro e paz, por uma hora. Estava prestes a descer correndo as escadas quando ouviu Clough chamando seu nome e voltou-se.
- Agora não, Tommy. Encontre-me no Baker's, quando abrir. Usando o pilar do corrimão como apoio, desceu as escadas depressa,
saindo do prédio.
Quarenta minutos depois, estava no topo redondo do Rochedo Mam Tor, bem sobre o cume, onde o calcário encontra-se com pedregulhos, com as áreas de White Peak, de calcário branco, à sua direita, e Dark Peak, com seus pântanos e paisagem desolada, à esquerda. O vento chicoteava seu rosto e a temperatura caía ainda mais rapidamente que o sol. George levantou a cabeça e berrou sua frustração reprimida até aquele momento para as nuvens que se moviam rapidamente e para as ovelhas indiferentes.
Virou-se para avistar o platô de Kinder Scout com seus campos e charnecas estéreis bloqueando qualquer visão mais ao norte. Virou-se noventa graus e seu olhar passou pelo cume, vendo Hollins Cross, o Monte Lose Hill Pike e a projeção distante que era o Monte Win Hill, com Stanage Edge e Sheffield invisíveis, mais além. Depois, virando-se mais noventa graus, avistou a cicatriz branca da garganta de Winnats Pass e as elevações e depressões dos vales de calcário além. Finalmente, voltou-se para o leste, vasculhando o cimo crespo de Rushup Edge e o suave declive de Chapel-enle-Frith. Em algum lugar, naquela imensidão, estava deitada Alison Cárter, com seu corpo exposto à natureza, roubada de sua vida.
Ele havia feito o que podia. Agora estava nas mãos de outros. Ele tinha que aprender a esquecer.
Mais tarde, encontrou-se com Clough, que bebericava o resto de uma cerveja em uma mesa de canto do Baker's Arms. Os frequentadores sabiam que era melhor deixá-los em paz, e o proprietário já se recusara a atender três jornalistas, incluindo Don Smart, que ameaçara apresentar queixa contra ele na próxima sessão dos magistrados que forneciam a licença de funcionamento do bar. O dono apenas dera uma risadinha e dissera:
- Eles me dariam uma medalha. Saia daqui agora mesmo, não temos tempo para palhaçadas.
George foi até Clough, levando duas cervejas.
- Eu precisava de ar puro - disse ao sentar-se. - Se ficasse por aqui, acabaria preso por assassinar um advogado do Ministério Público.
- Que merda - disse Clough, fingindo cuspir no chão.
- Suponho que ele diria que está apenas fazendo seu trabalho.
George tomou um grande gole de sua bebida. - Ah, assim está melhor. Fui até Mam Tor para dar uma arejada. Bem, pelo menos agora podemos ver qual é a linha da defesa. É tudo uma conspiração, de minha parte, para condenar Philip Hawkin e garantir minhas futuras promoções.
- Os magistrados não acreditarão nessa asneira.
- Mas os jurados podem acreditar - disse George, com amargura.
- E por que deveriam? Você é o mocinho. Basta olhar para Hawkin e todos os alarmes começam imediatamente a soar. Ele tem aquela aparência que as mulheres consideram irresistível e os homens odeiam à primeira vista. A menos que Highsmith consiga formar um júri só de mulheres, a defesa não tem como livrá-lo.
- Espero que você esteja certo. De qualquer modo, tente me alegrar. Diga-me o que perdi ao sair de lá.
Clough deu-lhe um grande sorriso.
- Você perdeu Charlie Lomas. Ele se saiu bem, devo admitir. Conseguiu usar um terno sem parecer estar em uma camisa-de-força. Estava nervoso como um gato em um canil, mas conseguiu manter-se firme. Stanley fez um bom trabalho, revertendo as tentativas de Highsmith de desmerecêlo. Ele conseguiu fazer com que Charlie falasse sobre a mina de chumbo e afirmasse que ninguém de fora de Scardale poderia chegar até lá, mesmo com o livro. Ele também conseguiu fazer com que Charlie explicasse que, embora Hawkin seja relativamente novo no vale, já havia explorado bastante o lugar, tirando fotografias para cartões-postais.
George deu um suspiro de alívio.
- E como ele se saiu com Highsmith?
- Manteve sua história. Não permitiu que o distraíssem ou fizessem vacilar. Afirmou que tinha certeza de ter visto Hawkin andando pelos campos na quarta-feira. Disse que não era terça. Também não era segunda. Foi firme como uma rocha o nosso Charlie. Garanto-lhe que causou boa impressão nos magistrados.
- Graças a Deus alguém causou.
- Pare de se sentir uma vítima, George. Você foi bem. Highsmith tentou fazê-lo vacilar, mas não conseguiu. Considerando a escassez de provas sólidas, eu diria que estamos indo muito bem. Agora, quer as boas notícias?
A cabeça de George levantou-se como se puxada por um cordão.
- E há alguma boa notícia? Clough sorriu.
- Ah, acho que sim. - Ele retirou os cigarros do bolso e acendeu um. - Troquei mais uma palavrinha com o sargento, lá em St. Albans.
- Wells apareceu? - George mal podia conter-se.
- Ainda não.
George afundou na cadeira, suspirando.
- São essas as boas notícias que estou esperando - admitiu.
- Bem, mas a que eu tenho também é. A verdade é que nosso sargento conhece Hawkin. Ele não queria dizer nada até falar com uma ou duas pessoas para obter permissão e me contar. Clough secou seu caneco. - Quer outra?
George concordou, em frustração divertida:
- Vá em frente, sei que você está gostando de me ver aqui, ansioso para saber mais. Então pague por seu prazer.
Quando Clough voltou, ele já havia fumado meio cigarro com a concentração nervosa de alguém prestes a entrar em um compartimento de nãofumantes em um trem, rumo a uma longa jornada.
- Conte-me agora - insistiu, inclinando-se para a frente e puxando a cerveja para si. - Vamos lá.
- A esposa do sargento Stillman é chefe de um grupo de bandeirantes. Hawkin apareceu um dia, oferecendo-se para ser o fotógrafo oficial do grupo. Ele tiraria fotos em desfiles, acampamentos, esse tipo de coisa, e venderia as fotos para as bandeirantes e suas famílias a um precinho muito camarada. Em troca, ele desejava tirar retratos das meninas, para seu próprio portfólio. Tudo parecia muito correto. Afinal, Hawkin não era um estranho. Ele e sua mãe eram membros da igreja à qual as bandeirantes estavam vinculadas, e sempre aceitava alegremente a presença das mães quando tirava fotos das garotas. - Clough fez uma pausa, com as sobrancelhas levantadas.
- E o que deu errado? - indagou George, sentindo que o amigo esperava a pergunta.
- O tempo passou. Hawkin fez amizade com algumas das meninas mais velhas e começou a marcar sessões sem a presença das mães. Então ocorreram alguns... incidentes. Na primeira vez, ele negou tudo, disse que a menina estava mentindo para chamar a atenção. Na segunda vez, a mesma coisa, só que então ele disse que a menina estava se vingando por que ele não a queria mais como modelo. De acordo com ele, a garota sabia da confusão envolvendo a acusação da primeira menina e ameaçara dizer as mesmas coisas se não recebesse dinheiro para comprar doces e não continuasse com as fotos. Bem, ninguém queria problemas e não tinham provas de modo que o sargento Stillman trocou umas palavrinhas com Hawkin sugerindo-lhe que se afastasse de adolescentes para evitar qualquer possibilidade de mal-entendidos.
George assoviou baixinho.
- Bem, bem, bem... Achei que deveria haver algo, em algum lugar. Pedófilos não começam de repente, na idade de Hawkin. Muito bem, Tommy. Pelo menos, sabemos que não nos deixamos levar por alguma ideia esdrúxula. Hawkin é exatamente o que achamos que é.
Clough concordou, mas ressaltou:
- Só que não podemos usar nada disso no tribunal. O que Stillman me disse são apenas rumores que ouviu de outros.
- E quanto às garotas?
- Stillman nem mesmo me disse seus nomes - Clough bufou. - A principal razão para não ter havido qualquer acusação formal antes é que as mães não queriam ver suas filhas em um tribunal. Se não querem saber disso quando o assunto tem a ver com suas meninas, não há nenhuma chance de persuadi-las por causa de um homicídio que está nas manchetes dos jornais.
George assentiu em concordância. Não poderia argumentar com pessoas que desejavam proteger seus filhos, mesmo quando o dano já estava feito. Agora que também se tornaria pai, entretanto, sentia pela primeira vez em sua vida o impulso de agir como vigilante. Não conseguia entender por que Hawkin ainda estava livre. Como policial, Stillman tivera muitos recursos disponíveis para prejudicar aquele homem, física e socialmente, mas não fizera nada. Chegara a relutar em contar a verdade a Clough.
- Está claro que agem diferente de nós em St. Albans - disse, preocupado. - Se eu soubesse, como policial, que algum pervertido havia molestado um filho de um amigo meu, não o deixaria escapar. Descobriria um modo de fazê-lo pagar. Pela lei ou...
- Achei que você não acreditava nos corredores escuros da justiça - comentou Clough, com ironia.
- É diferente quando crianças estão envolvidas, não acha?
Esta era a grande pergunta sem resposta. Ambos pensaram nisso em silêncio, enquanto terminavam suas bebidas. Quando George voltou com a terceira rodada, parecia um pouco mais alegre:
- Ainda temos muita coisa em nosso favor, mesmo sem essa parte de St. Albans.
- Acho que Stillman sente-se culpado por não ter agido - disse Clough.
- Pois deveria mesmo. Talvez ele nos avise quando o senhor e a senhora Wells voltarem.
- Espero que sim, George. Mesmo se conseguirmos nosso indiciamento, ainda estaremos longe de garantir uma condenação.
Daily News, Sexta-feira, 28 de fevereiro de 1964, p. 1
Caso Alison: padrasto será julgado por homicídio.
O padrasto da adolescente desaparecida Alison Cárter irá a julgamento por seu homicídio, embora o corpo da garota de 13 anos ainda não tenha sido descoberto.
Em uma decisão dramática ontem, os magistrados de Buxton indiciaram Philip Hawkin por homicídio e estupro, encaminhando-o a julgamento pelo tribunal de Derby.
Alison não é vista desde seu desaparecimento da remota aldeia de Scardale, em Derbyshire, em 11 de dezembro do ano passado.
Durante a audiência preliminar, que durou quatro dias, sua mãe, que se casou com Hawkin pouco mais de um ano atrás, prestou depoimento para a acusação. Foi a senhora Cárter (como ela prefere ser chamada atualmente) quem descobriu a arma que o advogado do Ministério Público, senhor Desmond Stanley, afirma ter sido usada para assassinar a garota.
Ontem, o tribunal ouviu o professor John Hammond, que afirmou que a ausência de sangue na suposta cena do crime não significava, necessariamente, a inexistência do crime.
Ele também declarou que o sangue encontrado em uma camisa bastante manchada e identificada como pertencendo a Hawkin poderia ter vindo de Alison. (Continua na p. 2.)
O julgamento
High Peak Courant, sextafeira, 12 de junho de 1964
Julgamento por homicídio em Derby semana que vem.
O julgamento de Philip Hawkin, proprietário de terras de Scardale, começa segunda-feira, no tribunal superior de Derby.
Hawkin é acusado de estupro e homicídio de sua enteada, Alison Cárter. Ao comparecer perante os juízes de Buxton em fevereiro, Hawkin viu a esposa entre as testemunhas de acusação.
Alison não é vista desde a tarde de 11 de dezembro do ano passado, quando desapareceu depois de levar a cadela collie Shep para uma caminhada no vale, após a escola.
O juiz Fletcher Sampson presidirá o julgamento.
A fanfarra de trombetas parecia suspensa no ar como a luz pálida de um arco-íris. Vestido em toda a sua glória, em escarlate e arminho, o juiz Fletcher Sampson chegara ao prédio do salão de paredes de carvalho com sua escolta da polícia montada. George Bennett estava sentado na antevia, fumando um cigarro junto a uma janela aberta. Ele imaginou o teatral cortejo do juiz até o tribunal para tomar seu lugar na tribuna, sob o brasão real. Ao seu lado, neste primeiro dia de julgamento, estaria o Alto Xerife je Derbyshire, em seu uniforme cerimonial.
Neste momento, pensou George, eles estariam no tribunal, olhando de cima os advogados, dispostos à sua frente com suas perucas grisalhas e becas negras, faixas brancas e colarinhos que os faziam parecer estranhos híbridos de corvos e gralhas. Por trás dos advogados, sua equipe de consultores e estagiários. Por trás deles, o reservado ornamentado, mas sólido em que Hawkin ficaria, flanqueado por um par de policiais, contido por madeira de lei e mantido com firmeza em seu lugar por uma fileira de cavilhas de ferro encravadas na madeira. Atrás de Hawkin, os bancos da imprensa, com sua diversidade de jovens ansiosos por sucesso e velhos jornalistas sem entusiasmo que precisavam achar que já haviam visto e ouvido de tudo. Os cabelos vermelhos de Don Smart destacavam-se entre os demais como uma labareda. Acima e por trás dos jornalistas via-se a galeria para o público, lotada dos rostos preocupados dos habitantes de Scardale e de olhos curiosos das outras pessoas.
E em uma das laterais do grande salão, pouco além do banco das testemunhas, logo se sentariam as pessoas mais importantes naquele lugar. Os jurados. Doze homens e mulheres teriam o destino de Philip Hawkin em suas mãos. George tentara não pensar na possibilidade de rejeitarem o caso que se esforçara tanto para elaborar, com a ajuda dos advogados, mas não conseguia evitar o temor que se infiltrava em seu íntimo à noite, quando tentava dormir e, como muitas vezes lhe ocorria agora, fracassava. Ele suspirou e jogou o toco de cigarro na rua. Imaginou onde estaria Tommy Clough. Deveriam encontrar-se na delegacia às oito horas, mas, quando chegara lá, Bob Lucas lhe dissera que Clough deixara uma mensagem de que o encontraria no tribunal.
- Provavelmente está atrás de algum rabo-de-saia em Derby - disse Lucas, piscando-lhe um olho. - Tentando distrair-se um pouco.
George acendeu outro cigarro e apoiou-se no parapeito. Agora, o escrevente convocaria aqueles que tinham causas a resolver no Supremo Tribunal de Sua Majestade, a Rainha, para se aproximar e prestar atenção. E Deus Salve a Rainha. George lembrava-se de, em seus primeiros tempos de paixão pelo Direito, ter estudado a fundo os termos pomposos usados em julgamentos. No caso, empregavam-se palavras rebuscadas que literalmente significavam apenas ouvir e determinar. Em 1964 esta abertura tornara-se arcaica, com a delegação de autoridade concedida aos juízes de tribunais itinerantes para que realizassem seus julgamentos. As autoridades carcerárias eram então obrigadas a entregar ao juiz todas as pessoas que aguardavam julgamento e cujos nomes estivessem relacionados na agenda do tribunal.
Na prática, hoje isto se aplicaria apenas a Philip Hawkin. Sendo o único julgamento por homicídio marcado para este tribunal, o caso seria ouvido primeiro.
Dois dias antes, George fizera uma última tentativa para persuadir Hawkin a confessar, conversando com ele cercado pelas paredes altas e sombrias da prisão. Haviam se encontrado frente a frente, em uma pequena sala de entrevistas que não parecia mais acolhedora que as celas. George percebera, contente, que Hawkin estava mais magro. O princípio de que um homem deveria ser considerado inocente até prova em contrário nunca valia muito em uma prisão. Hawkin já recebera uma dose amarga de seu próprio remédio atrás das grades. Os carcereiros nunca intervinham com rapidez quando um estuprador virava vítima de estupro, e sempre garantiam que os outros prisioneiros soubessem exatamente quem eram os pedófilos. Embora sua parte mais civilizada protestasse, o futuro pai em George mostrava total simpatia pelo comportamento brutal dentro da prisão.
Sentados em lados opostos da mesa estreita, haviam fitado um ao outro.
- Você trouxe cigarros? - indagara Hawkin, rudemente.
Em silêncio, George colocara um maço aberto entre os dois. Hawkin agarrara um ansiosamente e George o acendera, vendo-o tragar fundo enquanto o corpo relaxava. Hawkin correu a mão pelos cabelos e disse:
- Sairei daqui em alguns dias. Você sabe disso, não é? Minha missão, então, será contar ao mundo que a polícia distorceu tudo para me incriminar. Você sabe que nunca matei Alison, e vou fazê-lo engolir cada uma de suas palavras.
George sacudiu a cabeça, quase admirando a confiança do homem.
- Você está sendo otimista demais - disse, com condescendência deliberada. - Não importa o quanto se esforce para que o mundo acredite em sua história, sou um daqueles tiras honestos, sabe? Nós dois sabemos que ninguém o incriminou falsamente. Não era preciso, porque você matou Alison e nós o pegamos.
- Nunca matei minha enteada - disse, com a voz tão intensa quanto seu olhar. - Vocês me trancaram aqui e o criminoso que levou Alison está à solta, rindo de sua cara.
George balançou a cabeça.
- Não vai funcionar, Hawkin Você é bom ator, mas todas as evidências o incriminam. - Ele tirou um cigarro do maço e acendeu-o, descontraído. - Lembre-se de que ainda lhe resta uma opção.
Hawkin permaneceu em silêncio, mas inclinou a cabeça para um lado, formando uma linha fina e grave com os lábios.
- Você pode optar pela prisão perpétua, com uma chance de ver o mundo fora da prisão novamente, daqui a uns vinte anos. Ou pode ser enforcado. A decisão é sua. Ainda dá tempo de confessar. Declare-se culpado e viverá. Dê trabalho para nós e será enforcado. Pendurado pelo pescoço até terem certeza de que morreu mesmo.
Hawkin torceu o nariz.
- Não vão me enforcar. Mesmo se me considerarem culpado, nenhum juiz nesse mundo teria coragem de me mandar para a forca. Não com as provas que você tem.
George reclinou-se em sua cadeira, levantando as sobrancelhas.
- Acha que não? Se você merece a condenação, também merece a forca. Especialmente se o juiz for um cara durão como Fletcher Sampson. Ele não tem medo dos liberais sensíveis que são contra a pena de morte. - Ele saltou para a frente subitamente, apoiando os braços na mesa e prendendo seu olhar no de Hawkin. - Faça um favor a si mesmo. Diga-nos onde podemos encontrar Alison. Dê este descanso a Ruth. Isso pegará bem em seu julgamento. Talvez você consiga sair da prisão em dez anos.
Hawkin sacudiu a cabeça, frustrado.
Início de Nota de Rodapé: Não existe uma pena mínima para homicídio na Inglaterra. Todos os casos de condenação por este crime recebem como pena a prisão perpétua, o que não significa aprisionamento até o fim da vida. Dependendo de certos requisitos, o condenado terá direito à liberdade. Desde 1964 ninguém é executado naquele país. Fim de Nota de Rodapé.
- Você não está ouvindo, George - disse, transformando o nome do detetive em um insulto, pelo tom de desprezo. - Eu não sei onde ela está.
George levantou-se, guardando rapidamente o maço de cigarros em seu bolso.
- Faça como quiser, Hawkin. Para mim, tanto faz. Serei promovido, de qualquer maneira, porque conseguiremos condená-lo.
Agora, enquanto olhava os pedestres na rua, todos vivendo suas vidas e ignorantes do drama que se desdobrava ali, desejou sentir-se tão confiante quanto parecera. Afastou-se da janela e desabou em uma cadeira. As acusações já deveriam ter sido lidas a esta hora e Hawkin certamente já teria respondido "inocente" duas vezes, uma para cada um dos crimes.
Stanley esperaria que os jurados se acomodassem e, então, faria a declaração de abertura para a acusação. George achava que este era o momento mais crucial em qualquer julgamento e acreditava que as pessoas se impressionavam mais com o que ouviam no início, quando ainda estavam descansadas e mais receptivas à persuasão. Se o advogado da acusação fizesse seu discurso inicial cheio de convicção e declarasse o que pretenderia provar como se já fosse fato demonstravelmente incontroverso, a defesa teria pela frente uma longa e penosa jornada. George tinha plena confiança na capacidade de Stanley para fazer isso. Esperava ter de apresentar suas provas apenas no segundo dia do julgamento, mas não conseguia ficar longe do tribunal.
Só desejava que Clough aparecesse logo. Então, pelo menos teria alguém com quem dividir sua inquietação.
- Meritíssimo - disse Desmond Stanley, levantando-se. - Venho a este tribunal em nome do diretor do Ministério Público. Philip Hawkin é acusado do estupro de Alison Cárter, de treze anos. Ele ainda é acusado de, em 11 de dezembro de 1963 ou próximo dessa data, ter assassinado a mencionada Alison Cárter.
Stanley fez uma pausa, para permitir que se assimilasse a gravidade das acusações. O tribunal estava em silêncio; era como se todos tivessem parado de respirar, para ouvir melhor a voz sonora do advogado.
"Senhoras e senhores do júri, Philip Hawkin mudou-se para Scardale no verão de 1962, após a morte de seu tio. Ele herdou um patrimônio substancial: todo o vale, consistindo de terras férteis, muitas cabeças de ovelhas e gado, o próprio Solar Scardale e as oito casas que formam a aldeia de Scardale. Todos que vivem e trabalham em Scardale o fazem unicamente sob sua bênção, o que os senhores deverão ter em mente quando ouvirem os testemunhos de seus inquilinos e empregados. É preciso coragem e desprendimento para alguém nessas condições vir depor como testemunha da acusação.
"Pouco tempo depois de chegar a Scardale, Philip Hawkin começou a demonstrar interesse por uma das mulheres da aldeia, Ruth Cárter. A senhora Cárter enviuvara seis anos antes e tinha uma filha, Alison, desse casamento. Alison estava com doze anos na época. Os senhores deverão considerar, enquanto ouvirem nossas testemunhas e verificarem nossas provas, se o interesse principal de Hawkin era pela mãe ou pela filha. Pode ser que ele tenha tentado afastar suspeitas de seu interesse pervertido por Alison, casando-se com a mãe da menina. Quem teria acreditado se a filha da nova esposa do proprietário de Scardale tivesse acusado seu atormentador? Seja qual for o motivo, o acusado assediou intensamente a senhora Cárter, até convencê-la a desposá-lo.
"Nós afirmamos que, em algum ponto após as bodas, Hawkin começou a molestar sua enteada sexualmente. Os senhores verão provas fotográficas de natureza sórdida, que não apenas demonstram a corrupção da garota, mas também provam, além de qualquer dúvida, que Philip Hawkin é culpado do estupro de Alison Cárter, do modo mais calculado e revoltante.
"A Coroa pretende mostrar que Alison foi vítima de crueldades adicionais por um homem que tinha o dever de cuidar dela como um pai. Talvez nunca venhamos a conhecer o motivo de Hawkin para silenciá-la para sempre. Talvez ela ameaçasse revelar aquelas práticas bestiais para a mãe ou para alguma autoridade; a garota pode ter-se recusado a continuar cooperando com suas exigências terríveis ou, ainda, Hawkin pode ter simples' mente perdido o interesse e desejado livrar-se dela, para poder abusar de outra criança. Como eu disse, talvez nunca venhamos a saber. Mas o que pretendemos provar é que, seja qual for o motivo, Philip Hawkin raptou Alison Cárter sob ameaça de arma de fogo, abusou sexualmente da menina pela última vez e, então, a matou.
"Na tarde de 11 de dezembro do ano passado, Alison Cárter saiu da casa de sua família para dar uma caminhada com sua cadela, Shep, ao voltar da escola. Estamos convictos de que Philip Hawkin seguiu-a até o matagal próximo, forçando-a a acompanhá-lo. A cadela foi encontrada mais tarde, amarrada em uma árvore e com o focinho fechado com esparadrapo, idêntico àquele comprado por Hawkin na semana anterior, em uma farmácia próxima.
"Depois, Hawkin levou-a para um local isolado, uma caverna em uma mina desativada, cuja existência era desconhecida de todos os outros habitantes no vale, exceto por um deles. A caminho, enquanto passava por outra parte do matagal, Alison conseguiu livrar-se e ocorreu uma luta física. Ela bateu a cabeça contra uma árvore durante a briga e, então, Hawkin conseguiu transportá-la até a caverna. Apresentaremos provas laboratoriais que confirmarão nossas asserções. Após levá-la para este local isolado, a salvo de olhos e ouvidos bisbilhoteiros, ele a estuprou com brutalidade mais uma vez. Depois, matou-a, escondendo o corpo em outro lugar, posteriormente. Embora ainda não tenhamos encontrado o corpo de Alison, isso não é de todo surpreendente, já que o calcário nas adjacências de Scardale encontra-se repleto de sistemas de cavernas subterrâneas e caldeirões. Entretanto, Hawkin não teve tempo de voltar e eliminar o resto dos indícios de sua presença na mina, já que ao chegar em casa na hora do chá, a caçada por sua enteada já havia começado.
"Sabemos, com certeza, que foram feitos disparos naquela caverna, por uma arma que depois foi encontrada na propriedade de Philip Hawkin, em um anexo trancado que ele usava como laboratório para suas fotografias. Sabemos que uma camisa pertencente a Philip Hawkin estava muito manchada de sangue, que não era de seu tipo. Os exames da perícia não contradizem a conclusão convincente de que Hawkin assassinou Alison Cárter.
"Temos provas abundantes sustentando nossas alegações, que pretendemos demonstrar neste tribunal. Com a permissão de Vossa Excelência, gostaria de chamar minha primeira testemunha."
Sampson concordou, dizendo:
- Por favor, prossiga, senhor Stanley.
- Obrigado. Chamo a senhora Ruth Cárter.
O silêncio que havia na plateia foi rompido por uma onda de murmúrios. A única ilha de silêncio era entre o contingente de rostos impenetráveis dos habitantes de Scardale. Todos os adultos que não haviam sido requisitados como testemunhas estavam ali, sentindo-se desconfortáveis em suas roupas de domingo, determinados a terem justiça para a morte de Alison.
Ruth Cárter atravessou o tribunal olhando fixamente à frente. Nem por uma vez ela cedeu à tentação de olhar para seu marido. Vestia um conjuntinho de duas peças, com a gola branca da blusa sendo o único alívio na escuridão de seus trajes, e carregava uma bolsinha preta de mão, que agarrava apertada entre os dedos enluvados. Ao chegar ao reservado das testemunhas, posicionou-se com cuidado, de modo a não vislumbrar Hawkin sequer por acaso, e prestou o juramento sem vacilar, em voz baixa e clara. Stanley enxugou os olhos. Fitou-a, muito sério, fazendo-lhe perguntas rotineiras sobre identidade e relacionamento com o réu e, depois, foi ao ponto:
- A senhora se lembra da tarde de quarta-feira, 11 de dezembro do ano passado?
- Nunca esquecerei aquele dia - disse simplesmente.
- Pode contar aos magistrados o que aconteceu naquela data?
- Minha filha Alison chegou da escola e entrou na cozinha, onde eu preparava o chá da tarde, mas logo a seguir saiu para passear com sua cadela. Ela fazia isso sempre, a menos que o tempo estivesse ruim demais. Alison gostava de ficar na rua um pouco, já que passava quase o dia inteiro dentro da sala de aula. As últimas palavras que a ouvi dizer foram: "Nos vemos daqui a pouco, mamãe." Não a vi mais. Ela não voltou. - Ruth olhou para os juízes. - Tenho vivido no inferno desde então.
Com gentileza, Stanley guiou-a na narrativa dos acontecimentos daquela tarde - sua busca desesperada de porta em porta na aldeia, seu apelo angustiado à polícia e a chegada das autoridades ao solar.
- Qual foi a reação de seu marido à ausência de Alison? Ruth apertou os lábios antes de responder:
- Ele não levou a sério. Ficou dizendo que Alison estava fazendo aquilo de propósito para nos assustar, para que nos sentíssemos tão contentes ao vê-la chegar a ponto de permitirmos que fizesse o que bem entendesse.
- Ele concordou em chamar a polícia?
- Não, mostrou-se contrário à ideia. Disse que não havia necessidade e que nada de ruim poderia acontecer à minha filha em Scardale, já que Alison conhecia cada pedaço de terra e todos os que moram lá. - Sua voz tremeu e ela pegou um lencinho branco de dentro da bolsa preta. Stanley esperou, enquanto Ruth enxugava os olhos e assoava o nariz.
- Seu marido demonstrava algum ressentimento por sua dedicação à sua filha? - indagou Stanley. - Quero dizer, de um modo geral.
- Sempre achei que não. Pensava que ele, sim, mimava-a demais, dando-lhe de presente um toca-discos caro e indo a Buxton todas as semanas para comprar-lhe os últimos lançamentos de músicas. Ele gastou uma fortuna decorando o quarto dela... mais que na decoração de nosso quarto. Sua explicação era que tentava compensá-la pelo que não recebera até nos casarmos, e eu fui estúpida o bastante para acreditar nisso.
Stanley deixou que as palavras da testemunha fossem assimiladas.
- E agora, o que a senhora acha?
- Acho que ele estava comprando o silêncio de minha filha. Eu deveria ter prestado mais atenção às reações de Alison a ele.
- E como sua filha reagia?
Ruth suspirou e olhou para o chão.
- Ela nunca gostou dele. Sempre evitava ficar sozinha com ele, só agora me dou conta disso. Andava tristonha nos últimos tempos, e nunca havia sido assim, embora todos dissessem que era a mesma de sempre, quando estava longe de casa. Na época, pensei que sua tristeza era por saudade do pai e por perceber que ninguém poderia substituí-lo, mas estava apenas enganando a mim mesma. - Ela ergueu os olhos e fitou o juiz, suplicante. - Achei que estava fazendo o melhor, para mim e para ela, ao me casar novamente. Pensei que, com o tempo, tudo se ajeitaria.
- A senhora sabia que seu marido fotografava Alison?
- Ah, sim - disse, com amargura. - Ele sempre pedia-lhe para posar. Mas como é esperto, na maior parte do tempo era tudo muito inocente e sempre em público. Alison junto às vacas ou perto do rio. Assim, jamais questionei os outros momentos em que ele a levava a um dos estábulos, ou quando dizia que faria uma sessão com ela enquanto eu estivesse na cidade, fazendo compras. - Ela pousou uma das mãos na face, como que estarrecida com o que dizia. - Alison tentou contar-me o que estava acontecendo, mas eu só ouvia as palavras, não o que estava por trás. Ela me disse algumas vezes, que odiava as sessões e não gostava de posar para ele. Mas eu lhe dizia para deixar de ser boba, que era o passatempo de seu padrasto, algo que podiam fazer juntos.
Suas palavras caíram como pedras. Durante o depoimento da esposa, Hawkin apenas sacudia a cabeça, como se perplexo e confuso por ouvi-la contar tais coisas a seu respeito.
- Prosseguindo, senhora Cárter. Seu marido possuía uma arma de fogo?
- Sim. Ele me mostrou seu revólver, depois que nos casamos. Disse que era de seu pai, uma lembrança dos tempos de guerra, mas, como não tinha licença, ninguém deveria saber de sua existência.
- Havia alguma característica fora do comum na arma?
- O cabo continha desenhos de linhas cruzadas e havia uma lasca no canto inferior, em um dos lados.
Stanley anotou algo e, depois, continuou:
- Onde a arma era guardada?
- Em seu estúdio, em uma caixa de metal fechada a chave.
- A senhora viu esta caixa recentemente?
- A polícia encontrou-a, durante buscas no estúdio no dia em que o prenderam. Mas estava vazia.
- Será que a senhora Cárter poderia ver a prova... - Stanley remexeu em seus papéis. - A prova número 14?
O auxiliar de tribunal entregou a Webley a Ruth, etiquetada.
- É esta - disse ela. - A lasca do cabo está aqui embaixo, como afirmei.
Hawkin franziu a testa, olhando brevemente para seu advogado, Rupert Highsmith, que sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente.
Stanley avançou para a descoberta da camisa e do revólver no laboratório fotográfico de Hawkin, guiando Ruth na verificação das provas com cortesia e paciência. Finalmente, ele pareceu chegar ao fim de suas perguntas, mas parou quando já se encaminhava para seu assento, como se recordasse subitamente algo.
- Mais uma coisa, senhora Cárter. A senhora pediu, alguma vez, que seu marido lhe comprasse esparadrapo?
Ruth olhou-o como se o advogado tivesse enlouquecido.
- Esparadrapo? Quando precisamos de esparadrapo, compramos da caminhoneta.
- Que caminhoneta?
- A caminhoneta que vai a Scardale uma vez por semana, vendendo miudezas. Nunca pedi que ele comprasse esparadrapo.
- Obrigado. Não tenho mais perguntas, mas a senhora deve aguardar para ver se meu douto colega deseja indagar-lhe algo. - Ele sentou-se.
O relógio da prefeitura dera as doze badaladas do meio-dia muito antes de Stanley terminar com sua inquirição, de modo que Sampson recostou-se em sua cadeira e disse:
- Faremos um recesso agora. Reiniciaremos às catorze horas.
Antes mesmo que a porta se fechasse após a saída do juiz, Hawkin já era retirado do tribunal. Ao lançar um olhar para a esposa sobre o ombro, sua máscara de imperturbabilidade finalmente caiu, revelando um ódio profundo por ela. Highsmith flagrou aquele olhar e suspirou, desejando que houvesse outro modo de exercer suas habilidades plenamente, mas infelizmente não havia nada mais difícil e fascinante que defender alguém que ele sabia ser culpado. Às vezes, perguntavam-lhe como se sentia ajudando homicidas a escaparem da punição. Nessas ocasiões, ele sorria e dizia que era um erro confundir lei com moralidade. Afinal, era tarefa da acusação provar que o réu era culpado - não do advogado de defesa.
Depois do almoço, ele entrou disposto a causar tanto dano quanto pudesse à causa da promotoria. Não chegou sequer a demonstrar amabilidade com Ruth. Com expressão rígida, foi direto ao âmago do caso:
- Já foi casada antes, senhora Hawkin? - A promotoria poderia ter optado por obscurecer seu relacionamento com o réu, mas ele o usaria contra ela, como uma arma.
Ruth franziu a testa.
- Não respondo mais por este nome - disse com frieza, mas sem desafiá-lo.
As sobrancelhas de Highsmith ergueram-se e ele voltou-se para o júri.
- Mas este é seu nome legal, não é? É ou não é esposa de Philip Hawkin?
- Para minha vergonha, sou - respondeu Ruth. - Mas escolhi não ser lembrada disso e agradeceria se o senhor me fizesse a gentileza de me chamar de senhora Cárter.
O advogado assentiu.
- Obrigado por deixar tão clara sua posição, senhora Cárter. Agora, talvez a senhora pudesse responder à minha pergunta. Foi casada antes de prometer amar, honrar e obedecer ao senhor Hawkin?
- Enviuvei quando Alison estava com seis anos.
- Assim, presumo que a senhora sabe a que me refiro quando falo sobre uma vida conjugal plena.
Ruth enviou-lhe um olhar hostil.
- Não sou estúpida. E fui criada em uma fazenda.
- Responda à pergunta, por favor - pediu Highsmith, com voz cortante.
- Sim, sei a que o senhor se refere.
- E a senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com seu primeiro marido?
- Sim.
- E então casou-se com Philip Hawkin. A senhora desfrutava de uma vida conjugal plena com o senhor Hawkin?
Ruth encarou-o, ruborizada.
- Ele se dispunha a isso, mas não com a frequência com a qual eu estava acostumada - disse, tremendo levemente, com repulsa.
- Assim, havia algo anormal no apetite sexual de seu marido?
- Como eu disse, seu interesse não era muito grande, pelo menos em comparação com meu primeiro marido.
- Que, naturalmente, era muito mais jovem que o senhor Hawkin. Diga-me: a senhora algum dia viu seu marido em alguma posição comprometedora com Alison?
- Não entendi a pergunta.
Highsmith estava impressionado. Ela aguentava muito bem a pressão, melhor que imaginara. A maioria das mulheres de sua classe sentia-se tão intimidada e inferiorizada por sua presença atraente que acabava por ceder bem depressa, dando-lhe o que desejava ouvir quase que imediatamente. Ele balançou a cabeça e lançou-lhe um sorriso condescendente.
- Tenho certeza de que entendeu, senhora Cárter. O senhor Hawkin visitava sua filha no quarto tarde da noite?
- Não que eu soubesse.
- Ele entrava no banheiro quando ela estava lá?
- Claro que não.
- Ele alguma vez a colocou sentada sobre seus joelhos?
- Não, Alison era grande demais para isso.
- Em resumo, portanto, a senhora nunca viu nem ouviu nada que causasse a mínima suspeita sobre o relacionamento de seu marido com sua filha. - O tom era tão definitivamente o de uma afirmação que Ruth sequer pareceu considerar uma resposta às implicações do que o advogado dizia. Highsmith deu uma rápida olhada nos documentos que segurava. Levantou a cabeça e inclinou-a para um lado.
- Agora, vamos à arma. A senhora disse, aqui, que seu marido tinha uma arma de fogo, que mantinha em uma caixa em seu estúdio. A senhora contou a alguém sobre esta arma? A algum parente ou amigo?
- Ele disse que eu deveria manter a arma em segredo. Fiz o que mandou.
- Portanto, temos apenas sua palavra sobre a existência da arma, para começo de conversa. - Ruth abriu a boca para falar, mas ele a atropelou: - E, é claro, foi a senhora quem entregou a arma à polícia, de modo que teve muito tempo para memorizar qualquer característica marcante neste revólver que, de outro modo, poderia ser facilmente confundido com outro. Assim, temos apenas sua palavra para fazermos qualquer conexão entre seu marido e a arma, não é?
- Eu não estuprei minha filha, senhor, e também não a matei - disse Ruth, entredentes. - Assim, não tenho necessidade de mentir.
Highsmith fez uma pausa, permitindo que sua expressão mudasse e se transformasse em clara solidariedade:
- Mas a senhora deseja culpar alguém pelo que aconteceu, não é? Mais que qualquer coisa, deseja acreditar que sabe o que aconteceu com sua filha, e quer colocar a culpa em alguém. Por esta razão, mostra-se tão disposta a colaborar com essa história que a polícia tramou. Sua intenção é ter paz de espírito. Assim, precisa culpar alguém.
Stanley levantou-se, objetando, mas era tarde demais. Highsmith já murmurara "Não tenho mais perguntas" e sentara-se. O mal estava feito. Sampson fitou Highsmith com uma carranca.
- Senhor Highsmith, não permitirei que use a inquirição às testemunhas como desculpa para fazer seus pronunciamentos. O senhor terá sua chance para expressar suas opiniões ao júri. Por favor, limite-se a isto. Agora, senhor Stanley, estou certo ao pensar que sua próxima testemunha é a principal testemunha da polícia, o detetive-inspetor Bennett?
- Sim, meritíssimo.
- Penso que seria melhor começarmos com este testemunho amanhã de manhã. Este tribunal precisa atender a causas civis ainda hoje.
- Como desejar, meritíssimo - disse Stanley, abaixando a cabeça em deferência.
No banco da imprensa, Don Smart traçou uma linha que cruzava a folha, com um floreio. Já tinha muito material para boas manchetes. E amanhã certamente veria George Bennett colocando o laço em torno do pescoço nojento de Hawkin. A porta mal se fechara às costas do juiz quando ele levantou-se e rumou para o telefone mais próximo.
Clough ainda não havia aparecido no fim da tarde, embora um meirinho tivesse lhe trazido uma mensagem telefónica do sargento Lucas, que dizia: "Clough teve questões urgentes a tratar. Diz que o verá amanhã em Derby, antes do reinício do julgamento." George imaginou, por um instante, em que o detetive estaria metido, concluindo que provavelmente era algo a ver com outro caso. Desde a detenção de Philip Hawkin, os dois haviam tido muito trabalho para ocupá-los durante qualquer momento que lhes sobrava, durante a construção do caso de Alison Cárter.
George emergiu da ante-sala quando ouviu o burburinho que lhe disse que os trabalhos estavam encerrados até o dia seguinte. Viu Ruth de relance, cercada por amigos e parentes, mas fez questão de não olhar ninguém nos olhos. Agora que o julgamento começara, era importante que as testemunhas não trocassem qualquer palavra antes de serem convocadas a oferecer seus depoimentos. Assim, ele moveu-se contra o fluxo de pessoas que saíam e entrou no salão do tribunal. Highsmith e seu assistente já haviam saído, mas Stanley e Pritchard ainda estavam em suas mesas, com as cabeças muito próximas, em uma profunda discussão.
- Como foi? - indagou George, sentando-se em uma cadeira perto de pritchard.
- Desmond foi maravilhoso - disse Pritchard, com entusiasmo. - Fez um tremendo discurso de abertura. O júri estava hipnotizado. Highsmith nem mesmo falou conosco na hora do almoço. Você teria ficado impressionado, George.
- Muito bem - disse George. - E como estava a senhora Cárter? Os dois advogados trocaram olhares.
- Um pouco emocional - disse Pritchard. - Ela mostrou-se nervosa algumas vezes, no reservado das testemunhas. - Ele juntou o resto de seus papéis e enfiou-os em uma pasta de papelão.
- Isso é vantajoso para nós - comentou Stanley. - Ainda assim, não sinto prazer nenhum em levar uma mulher às lágrimas.
- Ela tem vivido no inferno - disse George. - Não consigo imaginar a sensação de descobrir estar casada com o homem que estuprou e matou sua filha.
Pritchard concordou:
- Ela está se saindo bem, considerando as circunstâncias. É uma boa testemunha. Não hesita e sua teimosia e firmeza fazem com que Highsmith pareça um provocador malvado, o que não é bem-visto pelos jurados.
- Que tipo de defesa ele planeja? Vocês sabem? - perguntou George, levantando-se para permitir que Pritchard e Stanley pegassem suas pastas e deixassem o tribunal para trocarem de roupa.
- Difícil imaginar o que possa fazer e ainda ter credibilidade, a menos que tente convencer o júri de que a polícia preparou uma armadilha para seu cliente.
Stanley concordou:
- E isto seria um erro grave, acho. O júri britânico, como o público britânico, não gosta de ataques à polícia. - Ele sorriu. - Eles vêem policiais da mesma forma que vêem cães labradores: leais, nobres, bons com as crianças e protetores e amigos dos seres humanos. Apesar de provas em contrário, eles se recusam a admitir que policiais possam ser corruptos, Maliciosos ou falsos, porque se os virem assim, terão de admitir que estamos à beira da anarquia. Assim, ao atacá-lo, Highsmith estaria empregando uma estratégia muito arriscada.
- Se não houver alternativa, é o que fará - comentou Pritchard, secamente. - Ele usará tudo que tem. Pode ser que tenhamos apenas provas circunstanciais mas são tantas que Highsmith precisa de uma teoria contrária muito coerente para nos prejudicar. Não basta apenas oferecer explicações alternativas para cada uma de nossas provas.
George sentiu-se reconfortado pela competência tranquila dos dois advogados.
- Espero que tenham razão.
- Nós o veremos no reservado das testemunhas amanhã - disse Pritchard. - Vá para casa, para sua adorável esposa, e tenha uma boa noite de sono, George.
Viu-os sair por uma porta lateral e, então, seguiu lentamente até a saída do tribunal vazio. A última coisa que desejava era cruzar o verde luxuriante sob a noite de Derbyshire. Gostaria de encontrar um bar silencioso e embriagar-se, mas tinha uma esposa com quase sete meses de gravidez em casa, e ela precisava vê-lo forte, não vacilante. Com um suspiro, George catou as chaves do carro de seu bolso e voltou ao mundo.
O julgamento
Ao entrar na sala de testemunhas, no segundo dia do julgamento de Philip Hawkin, George encontrou Tommy Clough atirado displicentemente em uma cadeira, com uma garrafa de limonada aos seus pés, um cigarro no canto da boca e o Daily News aberto no colo. Ele cumprimentou seu chefe com um aceno e mostrou-lhe o jornal.
- Ruth Cárter parece ter causado boa impressão nesses abutres. Achei que a transformariam em bode expiatório. Você sabe, algo como "A Mulher que se Casou com um Monstro" - disse Clough, em tom dramático.
- Também estou surpreso por livrarem a senhora Cárter de suas maldades - admitiu George. - Esperava que dissessem que ela deveria ter sabido como Hawkin era, ou o que ele fazia com Alison. Como você, eu também achei que a culpariam, mas suponho que viram por si mesmos o estado em que a pobre se encontra. Este não é o tipo de mulher que fecharia os olhos e seria conivente com o que o desgraçado fazia com sua filha.
- Tomei café da manhã com Pritchard no hotel chique em que ele está hospedado - confidenciou Clough. - Ele disse que ela não poderia ter sido melhor testemunha se a tivesse treinado durante meses sobre o que dizer. Hoje você é que terá de se sair bem, George.
- Café da manhã com o advogado? Tommy, você está se misturando com os grã-finos. Por falar nisso, aonde você foi ontem?
Clough endireitou-se na cadeira, fechando o jornal, dobrando-o e jogando-o no chão.
- Achei que nunca iria perguntar. Recebi um telefonema domingo à noite, bem tarde. Lembra-se do sargento Stillman?
- De St. Albans? - George tornou-se subitamente alerta, inclinando-se para a frente como um cão forçando a guia.
- Ele mesmo. Ele ligou para me contar que o senhor e senhora Wells haviam voltado da Austrália. Fazia duas horas que haviam chegado, para ser exato. Assim, entrei no carro e dirigi direto até lá. Às oito da manhã de ontem, eu já estava batendo na porta da frente da casa deles. Não ficaram muito contentes por me verem, mas obviamente sabiam por que eu estava ali.
George assentiu, muito sério, e jogou-se em uma cadeira.
- A mãe de Hawkin.
- Pois é. Como pensávamos, ela devia ter o endereço do casal na Austrália o tempo todo. De qualquer modo, banquei o inocente. Expliquei que a descrição da Webley que fora roubada de sua casa correspondia a uma arma usada em um crime ocorrido em Derbyshire. Cheguei a comentar que estávamos impressionados por sua descrição e de como esta tornava muito provável que a arma do crime fosse a sua.
George sorriu. Podia imaginar a sutil manipulação de Clough, colocando o senhor Wells contra a parede, sem escapatória.
- Assim, é claro que, quando você lhe mostrou a fotografia, ele obrigou-se a identificar sua arma?
Clough deu-lhe um amplo sorriso.
- Isso mesmo. De qualquer modo, tive de falar sobre Hawkin e sobre o julgamento esta semana. Então, Wells saiu pela tangente. Disse que não poderia testemunhar contra um amigo e vizinho, que cometemos um engano com Hawkin, blablablá.
George acendeu um cigarro.
- E o que você fez?
- Eu praticamente virara a noite acordado, de modo que não estava com humor muito gentil. Assim, eu o prendi por obstrução à lei.
- Você o prendeu? - perguntou George, assustado.
- Claro que sim. Ele estava me irritando - disse Clough, com ares de dignidade ferida. - De qualquer modo, antes que eu pudesse acabar meu discurso, ele concordou em testemunhar, em vir a Derby comigo. Portanto, concordamos em esquecer que eu lhe dera voz de prisão. Depois, ele serviu um conhaque à esposa, já que a coitada parecia à beira de um desmaio, pegou seu casaco e chapéu e me acompanhou, que nem um carneirinho.
George sacudiu a cabeça, com um misto de irritação e admiração.
- Um dia, Tommy, um dia... Bem, e onde ele está agora?
- Em um quarto muito confortável no hotel Lamb and Flag. Tomei um depoimento completo ontem, quando chegamos aqui, e o senhor Stanley quer ouvi-lo no tribunal, assim que o julgamento reiniciar. - Clough abriu um largo sorriso.
- Antes de mim?
- Stanley não quer adiar o depoimento de Wells. Não quer correr o risco de a senhora Wells entrar em contato com a mãe de Hawkin e alertála de que o marido servirá como testemunha no julgamento. Ele quer pegar Highsmith desprevenido, se puder.
- Mas a mãe de Hawkin está aqui para presenciar o julgamento do filho.
- Sim, mas eu aposto meu último centavo que a senhora Wells saberá onde perguntar, para descobrir o paradeiro da amiga.
- Highsmith se oporá a uma testemunha de última hora.
- Sei disso, mas Stanley diz que o juiz permitirá, já que Wells estava viajando. - Clough levantou-se e espanou as cinzas de cigarro que caíram em seu terno cinzento de flanela. Ele ajeitou sua gravata e piscou um olho para George.
- Assim, é melhor eu entrar e ver como ele se sairá.
Richard Wells, funcionário público aposentado, já fizera seu juramento quando Clough entrou discretamente no tribunal. Não parecia o tipo que participaria em uma guerra que, como lembrança, lhe deixaria uma Webley, pensou o sargento. Se já houvera alguém feito sob medida para funções burocráticas em tempos de guerra, era Richard Wells. Terno cinza, cabelos grisalhos e gravata cinza, até mesmo seu bigode parecia tímido e sem graça contra o rubor espantoso da pele que não se dera bem com o forte sol australiano.
Hawkin estava inclinado para a frente em seu reservado, com duas linhas verticais de preocupação visíveis entre suas sobrancelhas. Clough sentiu um prazer infantil ao ver tal demonstração óbvia de temor. Stanley iniciou com a parte formal de sua inquirição, indagando os dados pessoais de Wells e, então, disse em tom descontraído:
- Há alguém nesta sala que o senhor já tenha visto antes?
Wells acenou na direção do reservado.
- Philip Hawkin.
- De onde conhece o senhor Hawkin?
- Sua mãe é nossa vizinha.
- Ele conhecia o interior de sua casa?
- Ele acompanhava sua mãe até nossa casa para jogar bridge à noite, antes de se mudar para Scardale. - Os olhos de Wells iam do advogado para o réu. Seu desconforto com a situação era óbvio, apesar dos modos informais de Stanley.
- O senhor possuía uma Webley calibre .38, não?
- Sim.
- Chegou a mostrá-la ao senhor Hawkin algum dia?
Clough acompanhou o olhar angustiado de Wells, que se fixou em um ponto da plateia, onde estava a idosa mãe de Hawkin. Wells respirou fundo e resmungou:
- Talvez eu tenha mostrado.
- Pense bem, senhor Wells - a voz de Stanley era gentil. - O senhor mostrou ou não mostrou a Webley ao senhor Hawkin?
Wells engoliu em seco.
- Sim - afirmou.
- Onde o senhor guardava a arma?
Wells relaxou visivelmente, com os ombros saindo de sua posição rígida e defensiva.
- Em uma gaveta trancada na escrivaninha da sala.
- E foi desta gaveta que o senhor a tirou, ao mostrá-la ao senhor Hawkin?
- Deve ter sido - disse, arrastando cada palavra.
- Então o senhor Hawkin sabia onde a arma era guardada? Wells baixou o olhar.
- Suponho que sim - murmurou. O juiz inclinou-se para a frente.
- O senhor deve falar claramente. Os jurados precisam escutar suas respostas.
Stanley sorriu.
- Obrigado, meritíssimo. Agora, senhor Wells, quer nos contar o que aconteceu com a arma?
Wells apertou muito os lábios por um momento e, então, respondeu em voz baixa:
- Foi roubada. Em um arrombamento. Pouco mais de dois anos atrás.
Estávamos viajando, em férias.
- Deve ter sido bem ruim voltar de férias e descobrir que sua casa foi invadida. Tiveram um prejuízo muito grande? - indagou Stanley, solidário.
Wells negou com a cabeça, dizendo:
- Um relógio de bolso, de prata. Um relógio de pulso de ouro e a arma. Só foram até a sala. O relógio de ouro estava na gaveta com o revólver.
- O senhor ofereceu uma descrição muito boa da arma à polícia. Pode lembrar-se do que a tornava tão diferente, além do número de série?
Wells pigarreou e alisou o bigode. Seus olhos voltaram-se novamente para Hawkin, cuja ruga entre as sobrancelhas aprofundara-se.
- O cabo estava lascado, no canto inferior - disse, com as palavras atropelando-se.
Stanley voltou-se para o auxiliar de tribunal:
- Teria a gentileza de mostrar a prova número 14 ao senhor Wells?
O auxiliar pegou a Webley da mesa onde estavam as provas e atravessou a sala, até onde estava Wells. Ele virou a arma, para que a testemunha pudesse ver os dois lados do cabo trabalhado.
- Não tenha pressa - disse Stanley, suavemente.
Wells olhou novamente para o público. Clough viu a expressão de choque no rosto da mãe do réu ao perceber a verdade.
- É o meu revólver - disse ele, em voz frouxa e sem emoção.
- Tem certeza?
- Sim - disse o homem, com um suspiro. Stanley sorriu.
- Obrigado por vir até aqui hoje, senhor Wells. Agora, por favor, permaneça onde está. Talvez meu nobre colega Highsmith tenha algumas perguntas a lhe fazer.
Isto seria interessante, pensou Clough. Não havia quase mais nada que Highsmith pudesse perguntar que não fosse prejudicar ainda mais seu cliente. Hawkin, que estivera escrevendo desesperadamente nos últimos minutos, passou um bilhete para o advogado ao seu lado, que o examinou rápida mente e então o entregou ao assistente de Highsmith, que o colocou na frente deste.
O advogado da defesa estava de pé agora, com as linhas agudas de seu rosto suavizada por um sorriso. Ele olhou brevemente para o bilhete e, então começou a interrogar Wells ainda mais gentilmente do que Stanley fizera:
- Quando sua casa foi arrombada, o senhor estava de férias, não é?
- Sim - disse Wells, cauteloso.
- O senhor deixou uma chave com algum dos vizinhos? Wells levantou a cabeça, com um brilho de esperança no olhar.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave. Para emergências.
- A senhora Hawkin sempre fica com uma chave - repetiu Highsmith, com os olhos varrendo o júri para garantir que todos haviam compreendido o que pretendia. - A polícia tirou digitais em sua casa, após o arrombamento?
- Eles tentaram, mas disseram que o invasor usava luvas.
- Chegaram a dizer se tinham algum suspeito?
- Não.
- Chegaram a dizer-lhe algo que pudesse sugerir que suspeitavam do senhor Hawkin?
Wells ainda dizia "não" quando Stanley levantou-se.
- Meritíssimo - protestou. - Meu douto colega não apenas está conduzindo a testemunha, mas tenta levá-lo pela trilha dos boatos.
Sampson assentiu.
- Membros do júri, queiram desconsiderar a última pergunta e a resposta a ela. Senhor Highsmith?
- Obrigado, meritíssimo. Senhor Wells, chegou a suspeitar, algum dia, que o réu tivesse arrombado sua casa?
Wells negou com a cabeça.
- Nunca. Por que Phil faria algo assim? Éramos seus amigos.
- Obrigado, senhor Wells. Não tenho mais perguntas para lhe fazer.
Então, é para este lado que o vento está soprando, pensou Clough, saindo da sala do tribunal e entrando na das testemunhas à frente do oficial de justiça. George saltou da cadeira, com expressão de interrogação ansiosa.
- A defesa não questionou a prova. Acho que pretendem alegar que Hawkin comprou a arma em um bar, sem saber que havia sido roubada de Wells.
George suspirou.
- E eu a encontrei e usei-a para incriminá-lo. Assim, isso não muda
nada.
- Muda, sim - disse Clough, vibrante. - Liga Hawkin à arma. Pessoas comuns não possuem armas, George, lembra-se?
Antes que George pudesse responder, a porta abriu-se e o oficial de justiça perguntou:
- Detetive-inspetor Bennett? Pode entrar agora.
Foi uma das caminhadas mais longas de sua vida. Ele podia sentir os olhos que o acompanhavam e, ao chegar ao reservado das testemunhas, virou-se deliberadamente e olhou para o rosto impassível de Philip Hawkin. Esperava que Hawkin sentisse que estava olhando para o anjo da vingança.
Stanley esperou, enquanto George prestava juramento. Depois, levantou-se e secou delicadamente os olhos úmidos.
- O senhor pode declarar seu nome e ocupação para nossos registros, inspetor?
- Sou George Bennett, detetive-inspetor do distrito de Derbyshire, em Buxton.
- Eu gostaria de levá-lo ao início deste caso, inspetor. Quando ouviu falar pela primeira vez no desaparecimento de Alison Cárter?
Subitamente, George viu-se de novo na sala do pelotão naquela noite de dezembro, ouvindo o sargento Lucas dizer que uma menina sumira de Scardale. Ele começou seu depoimento com a clareza de um homem que consegue rever os acontecimentos do passado como se tivessem ocorrido recentemente. Stanley quase sorriu, aliviado, por ter uma testemunha da polícia com tamanha competência. Em sua experiência, era sempre uma loteria quando se tratava de agentes da lei. Às vezes, confiava menos neles que nas pessoas mais instáveis que se sentavam no reservado das testemunhas. Contudo, George Bennett era atraente e eficiente. Parecia e soava tão honesto quanto um astro de cinema encenando um policial decente.
Stanley não perdeu tempo e, ao final da manhã, já havia coberto o relato inicial sobre o desaparecimento de Alison, a primeira entrevista de George com a mãe e o padrasto da menina, as buscas preliminares e a descoberta da cadela no matagal.
Depois, por mais uma hora e meia durante a tarde, ele conduziu George meticulosamente pelas descobertas mais importantes da investigação o sangue e os fiapos de roupas no arvoredo; o livro no estúdio de Hawkin, com detalhes da antiga mina dentro do rochedo; as roupas manchadas e as cápsulas na mina de chumbo; a camisa ensanguentada e o revólver; as horríveis fotografias e negativos no cofre.
- Não é nada comum acusar um homem de homicídio quando não há um corpo - disse Stanley, no fim da tarde.
- Sim, senhor. Mas neste caso, achamos que as provas eram tão convincentes que não havia outra conclusão possível.
- E é claro que existem outros casos em que homens foram considerados culpados de homicídio na ausência de um corpo. Inspetor Bennett, dada a gravidade das acusações, o senhor ainda tem alguma dúvida de que agiu certo ao indiciar o senhor Hawkin?
- Qualquer um que tenha visto as provas fotográficas do que ele fez com sua enteada quando estava viva saberia que este homem não se detém frente a nada. Portanto, não, não tenho absolutamente nenhuma dúvida. - Pela primeira vez, George deixava transparecer suas emoções, e Stanley estava contente por ver que os jurados pareciam impressionados com sua ardente declaração.
Ele juntou seus papéis e disse:
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.
George achou que nunca desejara tanto um cigarro na vida, enquanto esperava que Rupert Highsmith terminasse de remexer em seus papéis e iniciasse seu ataque. As perguntas de Stanley haviam sido muito bem formuladas e profundas, mas não havia nada para que não tivesse sido bem preparado. Highsmith tentara sugerir ao juiz que deixassem a inquirição para a manhã do dia seguinte, mas Sampson não estava disposto a esperar.
Highsmith encostou-se negligentemente na grade de separação às suas costas.
- Não se esqueça de que está sob juramento, inspetor. Agora, diga sua idade a este tribunal.
- Tenho vinte e nove anos, senhor.
- E desde quando é policial?
- Quase sete anos.
- Quase sete anos - repetiu Highsmith, com admiração. - E já chegou à incrível e invejada posição de detetive-inspetor. Notável. Assim, presumo que não teve muito tempo para ganhar experiência no trabalho com casos graves e complicados.
- Já tive minha parcela desses casos, senhor.
- Mas o senhor faz parte do programa de promoções aceleradas para aqueles que se formaram em Direito, não é? Suas promoções não vieram por causa de seu desempenho brilhante no campo da investigação, mas simplesmente porque tem diploma universitário e prometeram-lhe promoção rápida, não importando se investigasse homicídios ou pequenos furtos em lojas, não é? - Highsmith franziu a testa, como se o pensamento realmente o surpreendesse.
George inspirou fundo e expirou pelo nariz.
- Realmente, entrei na polícia por ter me formado, mas ficou muito claro que se meu desempenho não atendesse a certas expectativas, eu não teria promoções automáticas.
- É mesmo? - Se Highsmith tivesse usado este tom de voz no clube de críquete, George o teria esmagado.
- É mesmo - ecoou e então se calou.
- É bastante incomum um policial tão jovem chefiar uma investigação desta gravidade, não é? - continuou Highsmith, pressionando-o.
- O detetive-inspetor-chefe da divisão estava incapacitado, porque fraturara o tornozelo. No início, não sabíamos que este caso se tornaria tão grave, de modo que o superintendente Martin pediu-me que assumisse o comando. Depois que a situação revelou-se mais séria, era preciso manter a continuidade, em vez de entregar a investigação a alguém do QG, que teria de recomeçar do zero. Estive, durante o tempo todo, sob a supervisão do detetive e inspetor-chefe Carver e do chefe da divisão, o superintendente Martin.
- Antes disso, chegou a envolver-se em um caso de desaparecimento de criança?
- Não, senhor.
Highsmith levantou o olhar e suspirou.
- Já liderou uma investigação de homicídio?
- Não, senhor.
Highsmith franziu a testa, friccionou a ponta de seu nariz com o indicador e disse:
- Corrija-me se eu estiver errado, inspetor, mas esta é a primeira grande investigação criminal que já comandou em toda a sua vida, não é?
- Que comandei, sim, mas eu...
- Obrigado, inspetor. Responda apenas ao que foi perguntado - Highsmith cortou-o com rispidez.
George lançou-lhe um olhar de frustração. Depois, conseguiu puxar de algum lugar em seu íntimo um pequeno sorriso, ao reconhecer que sabia o que o advogado tentava fazer com seu depoimento.
- O senhor interessou-se bastante por este caso, não é verdade?
- Fiz meu trabalho, senhor.
- Mesmo depois que as buscas iniciais foram canceladas, o senhor ainda visitava Scardale várias vezes por semana, não é?
- Sim, algumas vezes por semana. Eu queria que a senhora Cárter tivesse certeza de que o caso ainda estava aberto e que não nos esqueceríamos de sua filha.
- O senhor quer dizer "senhora Hawkin", não é? - O uso do nome de casada de Ruth por Highsmith dirigia-se claramente aos jurados e servia para lembrá-los do relacionamento da mulher com o réu.
George estava preparado para essas provocações, de modo que sorriu.
- Não é de surpreender que ela prefira ser conhecida pelo nome do primeiro marido. Ficamos felizes em acatar esta preferência.
- O senhor chegou a abandonar sua família, incluindo sua esposa grávida, para ir até Scardale na véspera de Natal.
- Não podia parar de pensar em como o desaparecimento de Alison havia afetado o Natal das pessoas em Scardale. Fui até lá com meu sargento para uma breve visita, apenas para marcarmos presença e mostrar que estávamos solidários.
- Para demonstrar solidariedade. Que nobreza de intenção - disse highsmith, condescendente. - O senhor visitava o solar com frequência,
não?
- Fui até lá algumas vezes, sim.
- Conhecia o estúdio?
- Estive lá.
- Quantas vezes, se é que recorda?
- É difícil lembrar exatamente - falou George, encolhendo os ombros. Antes de executarmos o mandado de busca, talvez quatro ou cinco vezes.
- E o senhor chegou a ficar sozinho naquele cómodo?
A questão chegou a George como uma chicotada. Agora estava claro o que Highsmith planejava.
- Apenas muito brevemente.
- Quantas vezes?
- Duas, acho - respondeu George, com cautela.
- E por quanto tempo? Stanley levantou-se rapidamente.
- Meritíssimo, isto deveria ser uma inquirição, mas parece que meu douto colega está tentando pescar alguma coisa com as perguntas à testemunha.
Sampson assentiu.
- Senhor Highsmith?
- Meritíssimo, a promotoria baseia-se maciçamente em provas circunstanciais, algumas das quais foram encontradas no estúdio de meu cliente. Penso que é razoável conceder-me uma oportunidade para determinar que outras pessoas tiveram oportunidade de deixar as provas lá.
- Muito bem, senhor Highsmith, pode continuar - disse o juiz, de mau humor.
- Por quanto tempo o senhor ficou sozinho no estúdio?
- Em uma ocasião, um ou dois minutos, no máximo. Na segunda vez, devo ter ficado lá por cerca de dez minutos, antes da chegada do senhor Hawkin - disse George, com relutância.
- Tempo suficiente - falou Highsmith, aparentemente para si mesmo, enquanto pegava outro bloco de anotações e folheava uma ou duas folhas.
- Pode contar-nos quais são seus passatempos, inspetor? - perguntou afável.
- Passatempos? - Surpreso, George descobriu-se despreparado para a pergunta.
- O senhor ouviu bem.
George olhou para Stanley em busca de ajuda, mas este apenas encolheu os ombros.
- Jogo críquete. Gosto de caminhar. Não tenho tempo para muitos passatempos - afirmou, parecendo tão confuso quanto realmente se sentia.
- O senhor se esqueceu de um - disse Highsmith, com a voz novamente fria. - Aquele com relevância particular neste caso.
- Desculpe-me, mas não sei do que está falando. Highsmith pegou um punhado de cópias fotostáticas.
- Excelência, gostaria que esses documentos fossem incluídos como provas da defesa, números 1 a 5. A prova número 1 é do anuário da Escola Secundária Cavendish para Meninos, do ano de 1951. É o relatório anual do Clube de Fotografia daquela instituição, escrito pelo secretário, George Bennett. - Ele entregou a folha de cima para o auxiliar de tribunal. - As outras provas são do boletim do Clube de Fotografia da Universidade de Manchester, onde o detetive-inspetor Bennett estudou. Elas contêm artigos sobre fotografia escritos por um certo George Bennett. - Highsmith tornou a estender a mão, liberando também essas folhas para o auxiliar de tribunal.
- Inspetor Bennett, o senhor nega que escreveu estes artigos sobre fotografia?
- Claro que não.
- O senhor diria que é especialista em fotografia?
George franziu a testa, consciente da armadilha que o advogado lhe preparava. Negando, pareceria um mentiroso. Admitindo, fatalmente prejudicaria o caso da promotoria.
- Mesmo que na época eu tivesse conhecimentos sobre fotografia, ja estariam desatualizados - disse, com cuidado. - Exceto por fotos que tiro de minha família, não mexo em uma câmera há cinco ou seis anos.
- Mas saberia onde procurar, se quisesse descobrir como forjar fotografias - disse Highsmith.
George era mais esperto que Ruth Cárter quanto às intenções de advogados, e sabia que não deveria deixar nenhuma pergunta sem resposta.
- Não mais que o senhor.
- Fotografias podem ser forjadas, não podem? - insistiu Highsmith.
- Pela experiência que tenho, nem de longe se pareceriam com essas - afirmou George.
Highsmith aproveitou o deslize, surpreendente em alguém como o inspetor:
- Em sua experiência? Está nos dizendo que tem experiência com fotografias falsas?
George fez que não com a cabeça.
- Não, senhor. Eu me referia às tentativas de falsificação que já vi, não que produzi.
- Mas o senhor sabe como se pode falsificar fotografias? George respirou fundo.
- Como já falei, meus conhecimentos de fotografia estão ultrapassados. Qualquer coisa que eu soubesse sobre qualquer aspecto da fotografia provavelmente já se tornou obsoleta pelas mudanças nas técnicas e tecnologia.
- Inspetor, por favor, responda à pergunta. O senhor sabe ou não sabe como as fotografias podem ser manipuladas? - Highsmith parecia irritado. George sabia que isto serviria para fazê-lo parecer vacilante, mas não podia fazer nada para alterar esta impressão, exceto admitir claramente que era um habilidoso falsificador de imagens.
- Tenho algum conhecimento teórico, mas nunca...
- Obrigado - disse Highsmith, alto, cortando-o. - Uma resposta simples já basta. Agora, quanto a esses negativos mostrados pela promotoria como provas. Que tipo de câmera o senhor precisaria para obtê-los?
Sob a borda da mureta do reservado das testemunhas, onde os jurados não poderiam ver, George fechou as mãos com tanta força que suas unhas deixaram meias-luas nas palmas.
- Seria preciso uma câmera portátil. Uma Leica ou Rolleiflex, algo assim.
- O senhor possui uma câmera deste tipo? •
- Faz no mínimo cinco anos que não uso minha Rolleiflex - disse sabendo que parecia estar fugindo pela tangente mesmo enquanto falava.
Highsmith suspirou.
- A pergunta que fiz é se o senhor possui uma câmera dessas, não quando foi a última vez em que a usou, inspetor. O senhor tem uma dessas câmeras? Pode responder apenas com um sim ou não.
- Sim.
Highsmith fez uma pausa e remexeu em suas anotações. Então, levantou a cabeça e perguntou, incisivo:
- O senhor acredita que meu cliente é culpado, não acredita? George voltou a cabeça na direção do júri.
- O que eu acredito não tem importância.
- Mas o senhor acredita na culpa de meu cliente? - insistiu Highsmith.
- Acredito no que as provas me dizem. Portanto, sim, acredito que Philip Hawkin estuprou e assassinou sua enteada de treze anos - disse George, com a emoção transparecendo na voz, apesar de sua intenção de contê-la.
- São dois crimes terríveis - disse Highsmith. - Qualquer homem sensato se sentiria horrorizado e desejaria condenar quem os cometeu. O problema, inspetor, é que não existem evidências sólidas de que algum desses crimes chegou realmente a ser cometido, não é?
- Se não houvesse nenhuma evidência, os magistrados jamais teriam trazido seu cliente a julgamento e não estaríamos aqui hoje.
- Mas há uma explicação alternativa para cada evidência circunstancial que vimos hoje. E muitas destas explicações nos levam diretamente ao senhor. O que nos trouxe aqui hoje foi sua obsessão por Alison Cárter, não concorda?
Stanley levantou-se novamente.
- Meritíssimo, eu protesto. Meu douto colega parece determinado a fazer discursos, em vez de interrogar a testemunha, a lançar difamações em vez de fazer acusações diretas. Se ele tem algo a indagar ao detetive-inspetor Bennett, muito bem. Mas se sua única intenção é despejar calúnias e insinuações no júri deveria calar-se.
Sampson lançou-lhe um olhar irritado.
- Ele não é o único a fazer belos discursos fora de hora, senhor Stanley.
Ele olhou sobre os óculos para o júri, como uma toupeira míope. - Os senhores devem ter em mente que estão aqui para atentar para as provas, de modo que os aconselho a desconsiderarem quaisquer comentários irrelevantes dos advogados. Senhor Highsmith, prossiga, por favor, mas vá direto ao ponto.
- Muito bem, meritíssimo. Inspetor, lembrando-o de responder com afirmação ou negação: o senhor se julga um homem ambicioso?
Stanley interveio novamente:
- Meritíssimo! - exclamou, indignado. - Isto nada tem a ver com a questão que nos importa aqui.
- Tem a ver com a motivação da testemunha - disse Highsmith, áspero. - A defesa sustenta que grande parte das evidências contra meu cliente foi forjada. Portanto, a motivação do inspetor Bennett torna-se uma preocupação para a defesa.
Sampson pensou por um momento e, então, disse:
- Sou obrigado a permitir a questão. George respirou fundo, antes de responder:
- Minha única ambição é contribuir para que a justiça seja feita. Acredito que o corpo de uma menina que foi monstruosamente abusada antes de ser morta ainda está em algum lugar, escondido. Acredito que o homem que fez isso está sentado no banco dos réus. - Highsmith tentava calá-lo, mas ele continuou, sem lhe dar atenção. - Estou aqui para tentar garantir que ele pagará pelo que fez, não para receber uma promoção.
Highsmith sacudiu a cabeça, demonstrando desagrado.
- Sim ou não, foi o que pedi. - Ele suspirou. - Não tenho mais perguntas para a testemunha - disse, com o rosto voltado para o júri e sem encarar o juiz, demonstrando para aqueles que lhe importavam um desdém que sua voz não transmitia.
George saiu do reservado das testemunhas. Não podia mais escapar da visão que tentara deliberadamente evitar durante todo o tempo em que estivera depondo. No olhar que Hawkin lhe enviou brilhava algo semelhante a triunfo. O sorriso que parecia sempre pendurado em seus lábios estava de Volta, e ele se sentava de um modo casual no banco dos réus, como se estivesse em sua cozinha. Com anseio de matá-lo, George marchou em frente, saindo da sala do tribunal e ouvindo, às suas costas, o juiz anunciar o fechamento dos trabalhos daquele dia. Ele apressou-se pelo corredor, rumo ao banheiro. Mergulhou em um dos cubículos, trancou a porta e curvou-se sobre o vaso sanitário, quase tarde demais. O vómito quente respingou na porcelana e o odor azedo subiu ao seu encontro, fazendo-o vomitar novamente.
Ele deu a descarga e encostou-se contra a parede, sentindo o suor frio na face. Por um momento terrível no tribunal, sentira o horror do que as insinuações de Highsmith poderiam causar-lhe. Era preciso, apenas, haver alguns jurados ingénuos com antipatia pela polícia e não apenas Hawkin sairia livre dali, mas afundaria sua carreira ao fazê-lo. Era uma ideia inconcebível, o tipo de coisa que vem à mente em um pesadelo às três da madrugada e que revira os intestinos. Tinha dado seu pescoço à guilhotina neste julgamento. Agora, pela primeira vez, percebia que podia ter-se tornado o agente de sua própria destruição. Não era de admirar que Carver tivesse sido tão magnânimo em sua insistência para que assumisse o caso sozinho. Na verdade, nem era o caso de lhe terem dado um cálice com veneno. Ele mesmo o tomara para si, com toda gana e empenho.
Mas o que mais poderia ter feito? Mesmo ali, de pé e com a garganta ardendo com o odor de água sanitária que o fazia lacrimejar, George sabia que nunca houvera qualquer escolha naquele caso.
Ao sair dali, Clough o esperava, com o cigarro pendurado, como sempre, em um canto de sua boca.
- Conheço um bar bem legal na estrada para Ashbourne - disse. - Vamos tomar um trago a caminho de casa.
Este era um tenente dos bons, pensou George.
O julgamento
Durante o resto da semana, George sentou-se no fundo da sala do tribunal, sempre se esforçando para chegar alguns minutos após o início de cada sessão e saindo tão logo o juiz dava por encerrados os trabalhos. Sabia que estava sendo ridículo, mas não conseguia escapar da ideia de que todos o olhavam, porque imaginavam se era corrupto ou, pior ainda, porque já haviam decidido que sim. Detestava a ideia de ser tomado por um daqueles policiais que decidiam incriminar alguém, mesmo sem provas. Ainda assim, não conseguia deixar de vir.
No terceiro dia de julgamento, as testemunhas de Scardale começaram a ser ouvidas. Charlie Lomas conseguiu repetir seu desempenho tranquilo, impressionando o júri com seus modos francos e sua infelicidade óbvia pelo desaparecimento da prima.
A seguir, Mamãe Lomas foi ao reservado das testemunhas, vestida para a ocasião com um casaco preto desbotado com um ramo de urze enfiado na gola. Ela admitiu que seu nome era Hester Euphemia Lomas. Estava claro que não sentia nem temor nem deferência pelo ambiente em que estava, respondendo aos dois advogados precisamente como teria feito com George, no conforto de sua própria sala. Ela insistiu em pedir uma cadeira e um copo de água, mas depois ignorou ambos. Stanley tratou-a com cortesia exagerada, que foi recebida com total indiferença.
- E a senhora está absolutamente certa de que era o senhor Hawkin cruzando o campo? - indagou Stanley.
- Uso óculos apenas para ler - disse a velhota. - Ainda consigo distinguir um gavião de um falcão a cem metros de distância.
- Como pode ter tanta certeza de que o dia era quarta-feira?
- Porque foi o dia em que Alison desapareceu - disse ela, parecendo irritada. - Quando algo assim acontece, tudo o mais que aconteceu naquele dia se fixa na memória.
Stanley obviamente não encontrou nada para argumentar, ante esta declaração, limitando-se a repassar o conhecimento da testemunha sobre a mina de chumbo, com base no livro que ela vira no estúdio do Solar Scardale.
- Era hábito do antigo proprietário das terras, o senhor Castleton contar-lhe histórias sobre o vilarejo?
- Ah, sim - disse ela, em tom casual. - Conhecia-o desde que era pequeno. Ele nunca foi arrogante com o povo do vilarejo, não aquele dono do solar. Sentávamos com frequência para conversar, ele e eu. Sempre dizíamos que, quando morrêssemos, metade da história do vale seria enterrada conosco. Ele sempre insistia para que eu escrevesse tudo o que ouvia, mas nunca dei importância a coisas assim.
- Mas foi assim que a senhora descobriu onde poderia encontrar o livro?
- Isso mesmo. Olhamos aquele livro, juntos, várias vezes. Eu já o conhecia de cor e foi fácil encontrá-lo.
- Por que a senhora não mencionou a antiga mina de chumbo à polícia desde o início das investigações? - perguntou Stanley, dando à questão um tom informal.
Ela coçou sua têmpora com um dedo encaroçado pela artrite.
- Não sei muito bem. Às vezes, esqueço que nem todos conhecem o vale como eu. Muitas vezes, durante a noite, tenho imaginado se teria feito diferença para a pobre Alison se eu tivesse mencionado a mina de chumbo para o inspetor Bennett na noite em que ela desapareceu. - Ela suspirou. - A dúvida me tortura.
- Não tenho mais perguntas a fazer, senhora Lomas, mas meu colega, o senhor Highsmith, precisará esclarecer algumas dúvidas. Quer, por favor, aguardar aí mesmo? - Stanley curvou-se levemente em respeito à matriarca, antes de voltar a sentar-se.
Desta vez, Highsmith esperou um pouco antes de se levantar.
- Senhora Lomas - começou. - Deve ser difícil ver o sobrinho de seu velho amigo como réu, hoje.
- Nunca pensei que ficaria contente porque o velho Castleton morreu disse ela, em voz baixa. - Isso teria partido seu coração. Ele amava Alison como se fosse sua própria neta.
- É mesmo? Bem, se não for pedir muito, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Ela levantou a cabeça e George, sentado no fundo da sala, percebeu o brilho travesso em seu olhar. Ele estremeceu, prevendo o que viria.
- Não tenho nada contra perguntas - retrucou a mulher. - Sempre é bom falar a verdade. Não tenho nada a temer com suas perguntas. Pode ir em frente.
Highsmith pareceu momentaneamente surpreso. As respostas dóceis da velhinha a Stanley não o haviam preparado para o humor combativo de Mamãe Lomas.
- Como a senhora pode ter certeza de que era o senhor Hawkin quem cruzava o campo naquela tarde?
- Como posso ter certeza? Porque eu o vi. Porque eu o conheço. Conheço sua aparência, o modo como caminha, as roupas que usa. Não podia confundi-lo com ninguém de Scardale - disse ela, indignada. - Posso ser velha, mas não sou estúpida.
Risos abafados foram ouvidos no banco da imprensa e sorrisos discretos podiam ser vistos no contingente de Scardale. Mamãe Lomas trataria de mostrar o que era bom àquele advogado londrino.
- Isso é óbvio, madame - falou Highsmith.
- Não me venha com essa de madame", rapazinho. Mamãe já basta. Highsmith piscou com força. A ponta de seu lápis quebrou contra o bloco de papel que segurava.
- Voltando ao livro no estúdio do solar. A senhora diz que sabia exatamente onde estava?
- Bem lembrado, rapaz - disse ela, azeda.
- E estava onde deveria estar?
- E onde mais poderia estar? É claro que estava onde deveria. Highsmith atacou:
- Ninguém mexeu nele?
- É claro que não posso saber disso. Como poderia? Não teria sido difícil recolocá-lo no lugar certo. As prateleiras estão cheias. Quando se tira um livro de uma estante assim, fica uma lacuna. Depois a gente coloca no mesmo lugar. É automático - falou, com desdém.
Highsmith sorriu.
- Mas não havia sinal de que alguém fez isso. Obrigado, senhora Lomas.
O juiz inclinou-se para a frente.
- A senhora pode ir.
Ela voltou-se para Hawkin e lançou-lhe um sorriso de puro triunfo. George sentiu-se aliviado porque ela estava de costas para o júri.
- Sei que posso ir - comentou. -Já ele não pode dizer o mesmo, não é? - Ela desfilou pela sala do tribunal como a respeitável e honrada figura que era em sua aldeia e acomodou-se em uma cadeira que foi desocupada especialmente para dar-lhe lugar, no meio de seus parentes.
O dia seguinte foi tomado por uma variedade de especialistas que poderiam dar seu testemunho sobre determinados aspectos do caso. O alfaiate de Hawkin viajara de Londres até ali para confirmar que a camisa manchada encontrada no laboratório fotográfico era uma dentre várias que o réu havia mandado fazer sob medida, menos de um ano antes. Um assistente de uma farmácia revelou que vendera a Philip Hawkin dois rolos de esparadrapo, que correspondiam tanto àquele encontrado no focinho da cadela de Alison quanto ao curto pedaço que fora usado para grudar a chave do cofre sob a gaveta, no estúdio.
Um datiloscopista revelou que as impressões digitais de Philip Hawkin estavam nas fotografias e nos negativos encontrados no cofre. Entretanto, não havia digitais na Webley e fora impossível colher digitais na capa do livro sobre a antiga mina de chumbo.
A última testemunha do dia foi o especialista em armas de fogo. Ele confirmou que um dos projéteis encontrados na caverna havia sido claramente identificado como uma bala calibre .38, disparada do revólver que Ruth Cárter encontrara escondido no laboratório fotográfico do marido.
Durante todo este testemunho, Highsmith perguntou pouco, exceto para tentar demonstrar que talvez houvesse outras explicações para todas as declarações feitas pela promotoria. De acordo com ele, qualquer um poderia ter obtido uma camisa pertencente a Hawkin. Podiam ter roubado uma do varal do solar. Hawkin poderia não ter comprado o esparadrapo para si, mas por pedido de outra pessoa. É claro que suas digitais estavam nas fotos e nos negativos, pois haviam sido jogados na direção de Hawkin sobre a mesa da sala de interrogatório antes de serem colocadas em envelopes plásticos e mesmo antes de seu advogado chegar à delegacia. E a única pessoa que fizera qualquer ligação entre a arma e Hawkin, é claro, havia sido sua esposa, tão desesperada para encontrar uma explicação para o desaparecimento da filha que poderia voltar-se até contra seu marido.
O júri pareceu imperturbável, sem dar indícios de sua reação às explicações do defensor do réu. No fim do terceiro dia, o tribunal entrou em recesso até a manhã seguinte.
Na manhã de sexta-feira, a mente de George viu-se forçada a sair de suas próprias preocupações. Uma matéria publicada no Daily Express angustiou-o:
Cães farejadores unem-se às buscas por menino perdido
Oito policiais com dois cães farejadores vasculharam hoje as cercanias da estrada de ferro, matagais e prédios abandonados, em busca do menino míope Keith Bennett, que desapareceu de sua casa há quase três dias.
Segundo um dos policiais, "Se não o encontrarmos hoje, as buscas serão intensificadas. Simplesmente não sabemos o que lhe aconteceu. Não suspeitamos de crime ainda, mas não descobrimos razão para seu desaparecimento".
Keith, de 12 anos, que reside na rua Eston, em Chorlton-on-Medlock, Manchester, desapareceu terça-feira à noite, a caminho da casa da avó.
Sua casa fica em uma área de Manchester na qual vários homicídios já ocorreram e pessoas desaparecidas ainda não foram localizadas.
Menino caseiro
Os óculos de lentes grossas e com uma das lentes rachada, sem os quais o menino tem dificuldade para enxergar, foram deixados em casa.
A mãe de Keith, Winifred Johnson, 30 anos, tem cinco outros filhos e espera o sétimo para daqui a duas semanas. Hoje, ela chorou enquanto falava sobre o filho desaparecido, dizendo: "Ele nunca fez nada parecido antes. É um menino caseiro, e mal pode ver sem seus óculos."
A avó do garoto, Gertrude Bennett, 63 anos, que reside na rua Morton, em Longsight, Manchester, disse: "Não conseguimos comer, dormir ou viver normalmente, preocupados com ele."
A equipe de buscas é formada por um sargento, cinco policiais e dois adestradores de cães. Eles vasculham uma área em um raio de dois quilómetros em torno da casa de Keith.
George ficou olhando para o jornal. O pensamento de outra mãe passando pelo que Ruth Cárter vivia era algo que o torturava. Contudo, em um canto de sua mente, não podia evitar a ideia de que, se tinha de acontecer, não poderia ter sido em um momento mais oportuno. Para qualquer jurado que lesse o jornal, a aflição de Winifred Johnson apenas reforçava a agonia de Ruth Cárter e diminuía qualquer inclinação que alguém tivesse para acreditar em Hawkin.
Uma súbita onda de vergonha envolveu-o. Como podia ser tão cínico? Como podia chegar a pensar em explorar o desaparecimento de outra criança? Enojado consigo mesmo, George amassou o jornal e jogou-o na lata de lixo.
Naquela tarde, enquanto subia as escadas rumo à sala do tribunal, viu uma figura conhecida esperando junto à porta. Impecável em seu uniforme de representação, o superintendente Martin ocupava-se com suas luvas pretas de pelica, mas levantou a cabeça ao perceber que George se aproximava.
- Inspetor - disse, como cumprimento, com expressão impenetrável. - Uma palavrinha, por favor.
George seguiu-o por um corredor lateral até uma pequena sala com cheiro de suor e cigarros. Ele fechou a porta e aguardou.
Martin acendeu um de seus cigarros sem filtro e disse, sem preâmbulos:
- Quero-o de volta ao trabalho semana que vem.
- Mas, senhor... - protestou George. Martin levantou a mão, interrompendo-o.
- Eu sei, eu sei. A promotoria deve terminar hoje, e então será a vez da defesa, semana que vem. E é exatamente por isso que eu o quero em Buxton novamente.
George ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de seu comandante.
- Este caso é meu, senhor.
- Sei disso, mas você sabe tão bem quanto eu o que Highsmith pretende fazer. Ele não tem escolha. E eu não pretendo deixar que um dos meus homens sente-se em um tribunal e assista enquanto seu caráter é aviltado por algum advogado esperto que não se importa com o dano que causa a um homem decente. - O rubor que denunciava emoção subia pelo pescoço de Martin e ele começou a andar de um lado para outro.
- Com todo o respeito, senhor, eu posso suportar tudo o que Highsmith lançar contra mim.
Martin parou de andar e fitou-o.
- Você acha mesmo? Bem, ainda que seja verdade, não pretendo deixálo à mercê da imprensa. Se você não se importa em proteger-se para seu próprio bem, faça isso por sua esposa. Já será bastante ruim, para ela, ler as matérias que o acusam de todo tipo de coisa, sem precisar ver fotografias do marido esquivando-se a todo momento, fugindo da imprensa como se fosse o réu.
George correu a mão pelos cabelos.
- Tenho direito a uma licença.
- E eu me recuso a dá-la - respondeu Martin, rapidamente. - Você ficará longe de Derby até o fim deste julgamento. Isto é uma ordem.
George virou-se de costas e acendeu um cigarro. Era difícil não ver a ordem de seu superior como um castigo dos deuses por sua reação ao desaparecimento de Keith Bennett.
- Deixe-me, pelo menos, comparecer no dia do veredicto - disse em voz baixa e quase incompreensível.
O professor John Patrick Hammond recitou as qualificações que o tornaram um dos peritos mais conhecidos no norte da Inglaterra. Seu nome ia lado a lado com os de Rernard Spilsbury, Sydney Smith e Keith Simpson na imaginação do público, como um dos poucos homens que conseguiam aplicar seus conhecimentos científicos a traços quase imperceptíveis e extrair deles provas incontroversas de culpa. Pritchard, da promotoria pública, insistira em trazer um perito de renome para o caso.
- Quando temos tão pouco com que contar, precisamos usar o talento dos mestres - dissera ele, e o superintendente Martin concordara.
Hammond era um homem miúdo e preciso, cuja cabeça parecia grande demais para o corpo. Ele compensava sua aparência vagamente ridícula com um porte solene e portentoso. Os jurados o adoravam, porque ele conseguia traduzir o jargão científico em linguagem popular compreensível sem jamais parecer que lhes fazia uma concessão. Stanley tivera o bom senso de fazer o mínimo de perguntas, permitindo que Hammond se expandisse à vontade.
Hammond certificou-se de que os jurados entenderiam os pontos principais de suas explicações. O sangue na árvore do arvoredo, nas roupas íntimas rasgadas encontradas na caverna e na camisa manchada vinha de uma mulher com tipo sanguíneo O, que era o de Alison. A quantidade de sangue na camisa era consistente com um ferimento grave. O sémen na camisa fora depositado por alguém com tipo sanguíneo A. O acusado tinha sangue do tipo A.
Ele também explicou que exames de laboratório haviam revelado que pontos chamuscados na camisa eram totalmente consistentes com o disparo de uma arma perto do tecido. Hammond demonstrou isso segurando a camisa contra o próprio corpo. George olhou para Ruth Cárter e viu-a esconder a cabeça entre as mãos. Kathy Lomas passou um braço em torno de seus ombros e puxou-a contra si.
- Como pode ver, meritíssimo - explicou Hammond -, há partes chamuscadas no punho direito e também no lado direito da camisa, na frenteSe alguém usando esta camisa segurasse um revólver próximo ao alvo, isto é exatamente o que esperaríamos encontrar. Não há outra explicação consistente com a apresentação dos resíduos e manchas que encontramos.
Highsmith levantou-se para interrogar a testemunha sentindo-se um pouco frustrado. Até aqui, este caso não estava sendo um dos melhores desempenhos em sua vida. Havia muito pouco em que se agarrar, e mesmo assim tudo era muito frágil. Aqui, pelo menos, havia algo concreto para atacar.
- Professor Hammond, pode dizer-nos que porcentagem da população tem sangue do tipo A?
- Aproximadamente quarenta e dois por cento.
- E que porcentagem da população é formada de homens cujo grupo sanguíneo está presente em suas outras secreções corporais?
- Aproximadamente oitenta por cento.
- Desculpe-me, a matemática nunca foi o meu forte. Que porcentagem da população é formada por secretores do tipo A?
As sobrancelhas de Hammond subiram e baixaram.
- Cerca de trinta e três por cento.
- Assim, tudo o que podemos dizer é que essas manchas de sémen poderiam ter sido deixadas por um terço da população masculina deste país?
- Correto.
- De modo que, em vez de apontar especificamente para meu cliente, o melhor que se pode dizer é que esses testes não o eliminam como suspeito. - Não era uma pergunta, e Hammond não respondeu. - Quanto à camisa manchada. Há algo que possa indicar que o acusado era a pessoa que a usava, quando o tiro foi disparado?
- Em termos forenses, não. - Hammond parecia relutante, como sempre fazia quando forçado a admitir que sua ciência não podia responder a todas as perguntas.
- Assim, qualquer um poderia estar usando a camisa?
- Sim.
- E a pessoa que a usava não precisaria ter sido aquela que depositou o sémen nas outras peças de vestuário?
Hammond fez uma pequena pausa.
- Considero bastante improvável, mas suponho que seja possível.
- A quantidade de sangue nas outras peças de vestuário era significativamente menor. Isto seria consistente com a espécie de sangramento que pode ocorrer quando o hímen é rompido?
- É impossível ter certeza. Algumas mulheres perdem um volume considerável de sangue quando perdem a virgindade. Outras simplesmente não sangram. Contudo, se as manchas de sangue na camisa tivessem esta origem, então a mulher estaria tendo uma hemorragia de proporções potencialmente fatais.
- Ainda assim, não havia sangue na suposta cena do crime. Certamente, se alguém tivesse recebido um tiro fatal naquela caverna, haveria sangue por toda parte? Empoçado no chão, respingado nas paredes ou no teto, não é? Como é possível não haver sangue, exceto o que vemos nas várias peças de roupa?
- Está me pedindo que faça especulações? - perguntou Hammond, vividamente.
- Estou perguntando se, em sua experiência, seria possível alguém receber um tiro fatal em uma caverna sem que o lugar apresentasse manchas de sangue - disse Highsmith, pronunciando as palavras com lentidão e clareza.
Hammond franziu a testa e pensou por um momento, voltando os olhos para cima ao recorrer à memória. Finalmente, respondeu:
- Sim, seria possível.
O rosto de Highsmith fechou-se, mas, antes que pudesse falar, o perito continuou:
- Se, por exemplo, a menina foi mantida perto e a arma estivesse enfiada sob suas costelas. Uma bala que faça uma trajetória para cima destruiria o coração, mas poderia muito bem alojar-se atrás da omoplata. Se não houvesse um ponto de saída do projétil não haveria um esguicho de sangue. E se ela fosse mantida perto do atirador, o esguicho de trás seria absorvido na mancha maior que vimos na camisa.
Highsmith recuperou-se rapidamente:
- Portanto, de todas as situações possíveis para este suposto homicídio, o senhor pode citar apenas uma que explicaria a ausência de sangue no local?
- Sempre supondo que a menina foi morta na caverna? Sim, esta é a única explicação que posso dar.
- Uma possibilidade em dúzias, centenas, talvez. Não é o que se poderia chamar de um cenário provável, então?
- Não sei dizer-lhe - disse Hammond encolhendo os ombros.
- Obrigado, professor. - Highsmith sentou-se. Conseguira mais do que esperava e tinha certeza de que poderia confundir os jurados com os detalhes científicos, de modo que, na dúvida, a absolvição seria a única opção.
- Isto conclui o caso para a promotoria - anunciou Stanley, enquanto o professor Hammond juntava seus papéis e saía do reservado de testemunhas.
- Entraremos em recesso até a semana que vem - anunciou Sampson.
O julgamento
Manchester Guardian, segunda-feira, 22 de junho de 1964
Nova pista no caso do menino desaparecido
Ontem à noite, a polícia mudou o local das buscas por um menino quase cego desaparecido há cinco dias, depois que um de seus colegas de escola afirmou: "Ele contava vantagem, dizendo que tinha um esconderijo supersecreto em algum lugar por aí."
As buscas foram transferidas da periferia da casa de Keith Bennett, de 12 anos, na rua Eston, em Longsight, Manchester, para o matagal próximo.
O porta-voz da polícia disse: "O menino pode estar em algum esconderijo, com um suprimento de comida suficiente para alguns dias. Onde quer que seja, o esconderijo é secreto mesmo."
A Rússia admitiu que seus satélites espaciais poderiam espionar inimigos. Um ataque cardíaco deu fim à liderança de Nehru na índia. O novo líder da Rodésia, Ian Smith, ameaçava a independência unilateral em relação à GrãBretanha. The Searchers e Millie and the Four Pennies chegavam aos primeiros lugares entre os mais vendidos nas lojas de discos. Contudo, ao ler o jornal, George só prestava atenção nas matérias sobre o julgamento de Philip Hawkin. Ele tentara manter os jornais longe de Anne, mas ela ia à banca próxima todos os dias e comprava seus próprios exemplares. Já que precisava conviver com as esposas de outros policiais, ela queria saber o que diziam sobre seu marido, para poder defendê-lo se alguém fosse tolo o bastante para romper com a solidariedade de todos na polícia, sob pressão.
A única testemunha de defesa, além do próprio Hawkin, era seu expatrão, que ofereceu um depoimento neutro e inócuo sobre seu ex-funcionário. Não se podia dizer que tentara defender o réu ardorosamente, mas o homem tivera a boa vontade de ir até ali para dizer que nunca ouvira nada que depusesse contra Hawkin.
Quando Hawkin foi conduzido até o banco dos réus, começou o barulho. As manchetes do dia seguinte diziam: "A POLÍCIA ARMOU PARA MIM", AFIRMA ACUSADO DE HOMICÍDIO. AS PROVAS APRESENTADAS NO JULGAMENTO FORAM FABRICADAS. "MENTIRAS E MAIS MENTIRAS", DIZ O RÉU. "O ASSASSINO DE ALISON AINDA ESTÁ EM LIBERDADE", DISSE ELE AOS JURADOS.
George sentou-se em seu gabinete e olhou com amargura para as manchetes à sua frente. Não importava se amanhã o jornal serviria apenas para embrulhar peixes no mercado. A lama já havia sido lançada e parte dela sujaria sua reputação para sempre. Independentemente de como este caso terminasse, ele pretendia pedir transferência.
Hawkin tivera um desempenho sensacional no banco dos réus, protestando sua inocência a cada oportunidade possível, e Highsmith lhe dera muitas brechas para fazer isso. Para cada prova apresentada pela promotoria ele encontrara uma refutação, algumas mais convincentes que outras. Falara com aparente sinceridade e encarara os jurados o tempo todo, parecendo não ter nada a esconder.
Hawkin chegara a admitir a posse da Webley, mas não que a roubara da casa de Richard Wells. Sua versão era de que a comprara de um ex-colega de trabalho, convenientemente já falecido. Segundo sua confissão sem um pingo de constrangimento, sempre desejara ter uma arma, e o homem já a havia oferecido, mesmo antes de ele tomar conhecimento do roubo na casa do vizinho. Depois, ao perceber que mantinha o produto do roubo consigo, tivera medo de revelar a verdade, porque talvez suspeitassem que ele mesmo invadira a casa de Wells para roubá-la. E, sim, ele mostrara a arma à esposa. Agora, sentia um remorso profundo pelo modo como se comportara. De acordo com os jornais, seu testemunho parecia o de alguém sem culpas. Hawkin afirmara, várias vezes, que embora tivesse sido traído pela polícia, ainda tinha fé na justiça e no bom senso do júri.
- Está fazendo o papel de bom moço - gemeu George, lendo a extensa reportagem escrita por Don Smart no Daily News.
Clough enfiou a cabeça pela fresta da porta.
- Se quer saber, ele está exagerando. Não há nada que os jurados detestem mais que a sensação de estarem sendo bajulados. Podemos adoçálos à vontade, desde que não percebam, mas Hawkin está sufocando a todos com tanta demonstração de boa-fé.
- Bela tentativa, Tommy. - George suspirou. - Gostaria de estar lá hoje para ouvir a inquirição de Stanley.
- Acho que ele se sairá melhor por saber que você não estará lá.
Manchester Evening News, quarta-feira, 24 de junho de 1964
Meninos desaparecidos e duas mães desesperadas
Da Redação
Duas mulheres de olhares tristes, que conhecem a agonia desesperadora de uma mãe que não sabe o paradeiro do filho, encontraram-se hoje em Ashtonunder-Lyne pela primeira vez.
Sheila Kilbride e Winifred Johnson sentaram-se a uma mesa na prefeitura de Ashton e conversaram sobre os garotos desaparecidos.
John Kilbride, que sumiu de casa em novembro do ano passado, estava com 12 anos, assim como Keith Bennett, de Chorlton-on-Medlock, Manchester, cuja mãe é a senhora Johnson. Keith desapareceu sete dias atrás.
Os dois são os primogénitos de grandes famílias. E ambos desapareceram sem deixar pistas.
"UM PESADELO"
As duas mulheres conversaram intimamente, com o ar de quem não podia acreditar no que lhes acontecera.
"Mesmo depois de todo este tempo, ainda é como um pesadelo", disse a mãe de John.
Segundo a senhora Kilbride, à medida que o tempo passava, ela teve de aprender a conviver com falsas esperanças e momentos de intensa ansiedade, sempre que um carro parava na frente de sua casa.
Contudo, as noites insones continuam, assim como os dias de profundo desespero.
Ela disse à mãe de Keith: "É preciso ir em frente. Nossa família também é grande, como a sua, e descobrimos que, nos últimos tempos, nem mencionamos muito o nome de John."
TROTES TELEFÓNICOS
A senhora Kilbride alertou a mãe de Keith quanto a trotes e brincadeiras de mau gosto, que só lhe trazem mais sofrimento.
"Aprendi a suspeitar de todos que me ligam", disse ela.
"Se dizem que são da polícia ou jornalistas, mas eu não os conheço, peço para ver suas credenciais."
A senhora Kilbride, casada com um operário da construção civil, tem sete filhos, incluindo John. A senhora Johnson, cujo marido é marceneiro desempregado, tem seis filhos e espera o próximo para o dia 5 de julho.
BUSCAS
A polícia ainda procura os dois meninos. A descrição de Keith já circulou por todo o país.
Um porta-voz de Manchester disse: "E claro que estamos preocupados com a segurança do garoto.
É um caso incomum, no sentido de que este rapazinho nunca saiu assim de casa antes e deixou seus óculos, sem os quais sua visão é péssima."
"Ele tinha apenas algumas moedas no bolso. Em geral, encontramos garotos assim rapidamente. Não temos pistas, mas estamos fazendo tudo que está ao nosso alcance."
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; Desmond Stanley, promotor do Ministério Público, oferece seus argumentos finais ao júri, em favor da promotoria.
Senhoras e senhores do júri, eu gostaria de agradecer-lhe por sua paciência durante este difícil julgamento. É sempre doloroso contemplar a profanação da infância, como os senhores precisaram fazer, neste caso. Tentarei ser tão breve quanto possível, mas primeiro devo responder às insinuações feitas por meu douto amigo, durante a condução de sua defesa.
Os senhores viram e ouviram o testemunho ao detetiveinspetor George Bennett. Também viram e ouviram o acusado, Philip Hawkin. Agora, eu conheço o inspetor Bennett e sei que é um policial de integridade inatacável, mas, obviamente, os senhores não o conhecem pessoalmente, de modo que precisam basear-se nos fatos apresentados. A boa reputação do inspetor Bennett chegou a este tribunal antes mesmo de ele comparecer para seu depoimento. Ouvimos a senhora Cárter, esposa do réu, que o elogiou. Depois, escutamos enquanto a senhora Hester Lomas e o senhor Charles Lomas falavam com grande emoção sobre o apoio que o inspetor Bennett ofereceu às pessoas de Scardale que perderam um de seus membros queridos, e sobre seu compromisso incansável com a descoberta do que acontecera com Alison Cárter.
O senhor Hawkin, por outro lado, e de acordo com suas próprias palavras, é um homem que compra uma arma de fogo ilegal e a mantém em uma casa onde vivia uma adolescente.
Esses são os fatos, senhoras e senhores. Não conjecturas, mas fatos Apesar do que meu nobre colega insinuou, existem muitos outros fatos neste caso. É fato que Philip Hawkin possui um revólver Webley calibre 38 que foi disparado dentro de uma caverna isolada, onde foram descobertas roupas identificadas por Ruth Cárter como sendo de sua filha. É fato que Philip Hawkin possui um livro que descreve em detalhes a localização desta caverna cuja existência havia sido esquecida por todos, exceto por uma senhora idosa. É fato que o sémen encontrado nos farrapos das meias escolares de Alison Cárter poderia ser dele.
É fato, também, que a arma de Philip Hawkin estava embrulhada em uma camisa manchada de sangue e escondida em seu laboratório fotográfico, um anexo da casa em que ninguém, exceto o acusado, costumava entrar. É fato que a camisa pertence a ele. É fato que o sangue naquela camisa, a copiosa quantidade de sangue na camisa, poderia ter vindo de Alison Cárter. É fato que existe uma explicação perfeitamente razoável para a ausência de sangue na caverna.
Além disso, é fato que as fotografias obscenas e os negativos a partir dos quais foram impressas têm as impressões digitais de Philip Hawkin por toda parte, não as impressões do inspetor Bennett. É fato que algumas das fotografias foram batidas no quarto de Alison Cárter, não retiradas de alguma revista pornográfica. É fato que Philip Hawkin possuía todo o equipamento fotográfico necessário para tirar aquelas fotos e revelá-las. O inspetor Bennett pode ter uma câmera capaz de tirar aquelas fotos, mas ele não possui um laboratório fotográfico no fundo do quintal. Ele não possui bandejas para revelação, ampliadores, um estoque de papel fotográfico ou quaisquer dos outros utensílios necessários para perpetrar uma fraude tão elaborada. E, pensando bem, ele nem teria tempo para isso.
É fato que as fotos estavam bem escondidas em um cofre, cuja chave também estava escondida no estúdio de Philip Hawkin. É fato que Philip Hawkin instalou aquele cofre quando converteu o anexo em laboratório.
Fatos, senhoras e senhores, não faltam neste caso. Estes fatos são provas, e as provas apontam maciçamente para uma conclusão. Embora não exista um corpo, isto não significa que um crime não foi cometido. Talvez seja útil saberem que não estão sendo chamados a tomar uma decisão sem precedentes. Jurados já condenaram réus de homicídio quando o corpo da vítima ainda não havia sido encontrado. Se os senhores estão convencidos, com base nas provas apresentadas e em seu julgamento sobre os testemunhos prestados, de que os crimes de estupro e homicídio foram cometidos contra Alison Cárter pelo acusado, então é preciso cumprir seu dever e apresentar um veredicto de culpado.
Como eu já lhes disse, há um claro padrão nos acontecimentos deste caso e ele aponta inescapavelmente para uma conclusão. Philip Hawkin chegou a Scardale com poder e riqueza à sua disposição pela primeira vez em sua vida. Pela primeira vez em sua vida, ele conseguiu ver a perspectiva de dar vazão ao seu apetite pervertido por meninas jovens.
Para disfarçar suas reais intenções, ele cortejou Ruth Cárter, uma mulher que enviuvara seis anos antes. Ele não apenas mostrou-se persuasivo e atencioso, mas parecia bastante tranquilo ante a perspectiva de assumir a filha de outro homem. No íntimo, ele não estava tranquilo; estava em êxtase, ao pensar no que poderia ter se pudesse persuadir a mãe de que estava interessado por ela, não por sua garotinha bonita. Ele conseguiu. E foi aí que a infância de Alison Cárter terminou.
Ao tornar-se enteada de Philip Hawkin, ela também tornou-se sua vítima. Vivendo sob o mesmo teto, não havia como fugir. Ele tirou fotos pornográficas da menina. Violou-a. Estuprou-a. Sodomizou a. Forçou-a a realizar sexo oral. Aterrorizou-a. Sabemos disso porque podemos ver com nossos próprios olhos, nas fotografias que não mostram sinais de terem sido forjadas e dão todos os indícios de serem reais. São ultrajantes, odiosas, degradantes e, sem sombra de dúvidas, um registro do que realmente aconteceu com Alison Cárter nas mãos de seu padrasto.
O que deu errado nunca saberemos, já que o acusado recusou a oportunidade de livrar a senhora Cárter de seu sofrimento e de nos contar como se livrou de sua filha e por que fez isso. Talvez Alison já tivesse suportado o bastante e tivesse ameaçado contar tudo à sua mãe ou a um outro adulto. Talvez ele tenha se cansado dela, e quisesse livrar-se do problema. Talvez um jogo sexual doentio tenha saído de seu controle. Seja qual for a razão - e não é difícil imaginar o motivo, em um caso tão bárbaro quanto este -, Philip Hawkin decidiu matar sua enteada. Assim, em uma caverna escura e úmida, ele estuprou-a uma última vez e, depois, puxou o gatilho de seu revólver Webley e assassinou esta pobre colegial de treze anos.
Depois, quando confrontado com sua maldade, teve a audácia de tentar safar-se manchando a reputação de um policial honesto.
Philip Hawkin deveria cuidar de Alison Cárter. Em vez disso, usou sua posição para explorá-la sexualmente e, então, quando algo deu errado matou-a. Depois, livrou-se do corpo, imaginando que, sem um corpo, não haveria julgamento e não poderia ser condenado.
Senhoras e senhores do júri, sejam orientados pelas provas e provem que este homem está errado em sua presunção. Philip Hawkin é culpado, e insisto que lhe dêem o veredicto apropriado neste julgamento.
O julgamento
Trechos da transcrição original do julgamento de Philip Hawkin; Rupert Highsmith advogado de defesa, faz seu pronunciamento final ao júri em favor de seu cliente.
Senhoras e senhores do júri, sua tarefa é a mais importante deste tribunal. Em suas mãos está a vida de um homem acusado do estupro e homicídio de sua enteada. É tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que ele cometeu esses crimes. Minha missão é demonstrar todos os pontos em que a promotoria não provou a culpa de meu cliente. Acredito que, depois de ouvirem o que tenho a dizer, os senhores não poderão condenar Philip Hawkin por absolutamente qualquer crime.
A primeira coisa que a promotoria precisa comprovar é que realmente ocorreu um crime. Observem que este caso apresenta alguns problemas incomuns, desde o início. Não existe um queixoso. Alison Cárter está desaparecida, portanto incapaz de apresentar uma acusação de estupro, incapaz de identificar qualquer agressor - se houve um, já que a promotoria não conseguiu produzir qualquer terceira pessoa à qual Alison tivesse se queixado de um ataque sexual. Ninguém testemunhou o suposto estupro. Philip Hawkin não chegou em casa machucado e sangrando, como ocorreria se tivesse se envolvido em uma briga violenta. As fotografias são as únicas provas de estupro. Voltarei a elas daqui a pouco. Tudo o que direi, neste ponto, é que os senhores precisam ter em mente que câmeras podem mentir.
Os senhores poderiam pensar que a descoberta de roupas íntimas identificadas como pertencentes a Alison e manchadas com sangue e sémen são indicações de estupro. Não necessariamente. A atividade sexual assume muitas formas. Embora os senhores possam considerar repulsiva esta ideia as práticas sexuais incluem o uso de uniforme escolar por mulheres mais velhas, para satisfazer as fantasias masculinas. Elas também incluem a simulação de violência. Assim, por si mesmas, essas provas, na verdade, não provaram nada.
O que nos leva à segunda acusação, de homicídio. Novamente, não temos testemunhas. A promotoria foi incapaz de encontrar uma única pessoa que pudesse dizer que Philip Hawkin é um homem violento. Nem uma única testemunha apresentou-se para dizer que o relacionamento de Hawkin com sua enteada era qualquer coisa além de normal. Não apenas não temos testemunhas, mas também não temos um corpo. Não apenas não temos um corpo, mas também não temos sangue na suposta cena do crime. O primeiro tiro na história da ciência forense que não deixou traços no local em que supostamente aconteceu. Por tudo que sabemos, Alison Cárter pode ser uma fugitiva, sobrevivendo de algum modo à margem da sociedade. Na ausência de sangue, na ausência de um corpo, como podem acusar Philip Hawkin de homicídio? Como ousam acusá-lo de homicídio?
Tudo o que a promotoria tem é uma corrente feita de provas circunstanciais. Sabemos muito bem que a força de uma corrente vai apenas até onde podemos comprovar a força de cada um de seus elos. O que podemos pensar, portanto, de uma corrente que consiste unicamente de elos fracos? Examinemos as provas, uma por uma, e comprovemos sua fragilidade. Estou convencido de que após este exame os senhores considerarão impossível condenar Philip Hawkin por qualquer desses dois crimes horríveis dos quais é acusado.
Os senhores ouviram duas testemunhas que disseram que, na tarde do desaparecimento de Alison, viram Philip Hawkin nos campos, entre o matagal em que a cadela de Alison foi encontrada e o arvoredo onde, posteriormente, foram encontrados sinais de luta. Não estou sugerindo, por um momento sequer, que uma das testemunhas ou ambas estejam mentindo. Acho que ambas estão convencidas de que estão dizendo a mais pura verdade.
Entretanto, sugiro que, em uma pequena comunidade rural como Scardale, todas as noites de inverno são muito parecidas umas com as outras. Não seria difícil confundir terça-feira com quarta-feira. Tenham em mente que todos, em Scardale, sentiram-se intrigados e abatidos pelo desaparecimento de Alison Cárter. Se alguma autoridade, como um policial, sugerisse vigorosamente que foi cometido um engano, e que a correção deste engano ajudaria a resolver o mistério, será que nos surpreenderíamos se as testemunhas seguissem tal sugestão? Especialmente se isso ajudasse a colocar a culpa sobre alguém estranho à comunidade fechada, em um homem visto por todos como um forasteiro? Que tal o novo proprietário das terras, por quem todos sentiam antipatia, Philip Hawkin? Não podemos esquecer que, se Philip Hawkin for enforcado, Scardale e tudo nela será herdado por sua esposa, estimada por seus parentes residentes na aldeia.
A seguir, chegamos à própria senhora Hawkin. Embora ela deseje o contrário, ainda carrega o sobrenome do marido. Os senhores poderiam pensar que o próprio fato de ela dispor-se a testemunhar contra o marido já diz tudo. Afinal, o que poderia induzir uma esposa com um casamento de menos de dezoito meses a apoiar a condenação do marido, exceto provas muito convincentes? Será que não podemos inferir algo sobre o acusado, a partir do fato de ela ter testemunhado contra ele, quando as provas da promotoria são tão fracas?
Não, senhoras e senhores. O que seu testemunho nos diz é que não há nada mais forte para uma mulher que o vínculo da maternidade.
A filha da senhora Hawkin desaparece na quarta-feira, 11 de dezembro. Ela está completamente desesperada. Perplexa. A única pessoa que parece oferecer-lhe alguma esperança é um jovem detetive-inspetor que mergulha no caso com paixão e muito envolvimento. Ele está sempre lá. É solidário e dedicado. Mas não está chegando a lugar nenhum. No fim, ele forma uma suspeita de que o marido desta mulher pode estar envolvido no desaparecimento de Alison. Assim, mostra-se determinado a estabelecer sua teoria como fato. Imaginem o que isto causa a uma mulher no estado de fragilidade em que se encontra a senhora Hawkin. Claro que ela está suscetível a sugestões, e o que o detetive lhe diz faz muito sentido, porque ela deseja respostas. Ela quer dar um fim à sua incerteza. É melhor culpar seu marido que viver em temor constante pelo que pode ter acontecido com sua filha.
Além disso, os senhores devem tratar as provas apresentadas pela senhora Hawkin com extremo ceticismo.
Quanto às chamadas provas físicas, nenhuma delas, isoladamente, aponta para Philip Hawkin. Algo em torno de seis milhões de homens no país têm o mesmo grupo sanguíneo de Philip Hawkin e daquele que deixou manchas de sémen na mina de chumbo. De que maneira isso apontaria para ele? Existem quatrocentos e vinte e três volumes no estúdio do antigo proprietário de Scardale, Castleton, e nenhum sinal de que o único livro que oferece detalhes sobre a mina de chumbo tenha sido tocado por qualquer mão, incluindo as de Hester Lomas ou do detetive-inspetor Bennett. Como isso pode apontar meu cliente como culpado de algo? O farmacêutico de Buxton vende entre vinte e trinta rolos de esparadrapo todas as semanas, dois dos quais foram vendidos a Philip Hawkin, que mora em uma comunidade rural, na qual cortes e escoriações dificilmente seriam novidade. Como isso poderia apontá-lo como estuprador ou assassino?
A verdade é que nada disso aponta para meu cliente. Contudo, embora sejam frágeis, não podemos negar que, quando colocadas em um lado da balança, as provas pendem para o lado do senhor Hawkin. Assim, se não foi seu comportamento que produziu este efeito, o que o produziu?
Há um aspecto, na profissão de advogado, que todos detestamos. Embora a vasta maioria dos policiais seja honesta e incorruptível, de tempos em tempos algo dá errado. E de tempos em tempos cabe a nós expor as batatas podres. Em minha opinião, pior que o policial que muda para o lado errado da lei por ganância é aquele que toma a lei em suas mãos por zelo excessivo.
O que nos trouxe aqui hoje não foi a maldade de Philip Hawkin, mas o zelo excessivo do detetive-inspetor George Bennett. Seu desejo de solucionar o desaparecimento de Alison Cárter levou-o a perverter o curso da justiça. Não pode haver outra explicação para o que aconteceu. É realmente horrível ver o que um homem faz quando está cego por suas convicções, mesmo se completamente incorretas.
Quando examinamos as provas circunstanciais, torna-se claro que um homem teve motivos, meios e oportunidade para incriminar Philip Hawkin Ele é um policial jovem e inexperiente, frustrado por seu fracasso neste caso. Ele deve ter sentido a pressão de seus superiores e, assim, sua ânsia por encontrar um culpado e condená-lo só aumentou.
George Bennett ficou sozinho no estúdio do senhor Hawkin em mais de uma ocasião, certamente por tempo bastante para encontrar uma arma, examinar um livro, ou mesmo descobrir o esconderijo de uma chave de cofre. George Bennett tinha a confiança da senhora Hawkin e podia andar à vontade pelo Solar Scardale mesmo antes de ter um mandado de busca. Quem estaria em melhor condição para pegar uma das camisas do senhor Hawkin? Ele ganhou a confiança dos moradores da aldeia. Quem estaria em melhor posição para convencer a senhora Lomas e seu neto de que estavam enganados quanto ao dia em que viram o senhor Hawkin andando por suas próprias terras?
E, finalmente, temos as fotografias. George Bennett compartilha um passatempo com Philip Hawkin. Ele não tira apenas fotos de festas e férias com uma câmera qualquer, como a maioria de nós. Ele foi secretário do Clube de Fotografia de sua escola, escreveu artigos sobre aspectos da fotografia quando estava na faculdade e possui uma câmera do tipo que deve ter sido usado para manipular essas fotografias. Ele sabe o que é possível no mundo da fotografia. Ele sabe como forjar imagens. Philip Hawkin tem dúzias de fotografias de Alison em seus arquivos, muitas tiradas espontaneamente. Em algumas delas, a menina está irritada ou abatida. Ele também tem fotografias de si mesmo. Com materiais assim e acesso ao tipo de pornografia confiscada que muitas delegacias guardam, George Bennett poderia ter criado essas fotografias supostamente comprometedoras.
Na pior das hipóteses, nós revelamos uma terrível conspiração, fruto da convicção arrogante de um homem que sabia o que deveria fazer para impor a justiça ao seu modo. Na melhor, estabelecemos que o caso da promotoria certamente não foi provado além de qualquer dúvida razoável. Senhoras e senhores, coloco Philip Hawkin em suas mãos. Acredito, com firmeza e bom senso, que os senhores o absolverão das duas acusações. Muito obrigado.
O julgamento
Trechos da transcrição oficial do julgamento de Philip Hawkin; resumo do Exmo. Juiz Fletcher Sampson para o júri.
Senhoras e senhores do júri, é tarefa da promotoria provar, além de qualquer dúvida razoável, que o acusado é culpado, de acordo com as acusações feitas a ele. É tarefa da defesa descobrir se existem fragilidades suficientes nas provas apresentadas pela promotoria que as tornem suscetíveis a dúvidas. Alguns dos senhores podem pensar que eu os ajudarei a decidir e lhes direi se, neste ponto, considero o réu culpado ou inocente. Entretanto, este não é meu papel. Esta é sua responsabilidade e os senhores não devem esquivar-se de sua obrigação. Meu papel é cuidar para que haja um julgamento justo e, para garantir que a justiça seja feita, é meu dever resumir o caso e lhes aconselhar sobre algumas questões legais.
O caso à nossa frente é djfícil, principalmente em virtude da ausência de Alison Cárter, viva ou morta. Se estivesse viva, a segunda acusação, de homicídio, obviamente não existiria, mas ela seria a testemunha mais valiosa quanto à primeira acusação, de estupro. Se seu cadáver tivesse sido descoberto, nossos legistas saberiam extrair a história que teria para contar e nos ofereceriam provas em volume considerável. Contudo, ela não está aqui para nos dar seu testemunho e, portanto, somos forçados a confiar em outras fontes de provas.
Em primeiro lugar, devo dizer-lhes que a promotoria não precisa mostrar um corpo para haver suposição de homicídio. Homens já foram condenados por homicídio em crimes nos quais o cadáver jamais foi encontrado.
Eu lhes darei dois exemplos que, em alguns aspectos, correspondem a este caso.
Uma atriz, Gay Gibson, voltava de navio para casa, vindo da África do Sul para este país, quando outros passageiros perceberam sua ausência. Houve uma busca no navio, e o capitão chegou a ajudar. Contudo, a mulher não foi encontrada. As suspeitas caíram sobre o comissário de bordo, James Camb, porque um colega o vira na porta do camarote da senhora Gibson no meio da noite. Ele foi detido quando o navio aportou e confessou que estivera na cabine, mas a convite da atriz, para manter relações sexuais com ela.
Ele afirmou, ainda, que durante o intercurso ela sofreu um mal súbito e morreu. Durante este ataque, ela teve espasmos musculares e se agarrou a ele, arranhando suas costas e ombros. De acordo com a história contada pelo comissário de bordo, ele entrou em pânico e empurrou o cadáver pela janela, para o mar aberto. A promotoria argumentou que ele a estrangulou durante o estupro e que, se os acontecimentos tivessem ocorrido de acordo com seu relato, não haveria razão para deixar de buscar ajuda médica para a passageira, enquanto ela passava mal.
James Camb foi condenado por homicídio.
Temos, ainda, o caso de Michael Onufrejczyk, polonês condecorado por serviços prestados na Segunda Guerra. Ele se tornou fazendeiro na região de Gales, em sociedade com um outro polonês, Stanislaw Sykut. Uma visita policial de rotina aos imigrantes revelou o desaparecimento do senhor Sykut. Onufrejczyk afirmou que seu sócio havia vendido sua parte na fazenda e voltado ao seu país de origem.
Entretanto, durante as investigações, a polícia descobriu que nenhum dos amigos de Sykut ouvira falar deste plano. Sua conta bancária estava intocada, e o amigo que, segundo Onufrejczyk, lhe emprestara dinheiro para comprar a parte do outro na fazenda, negou que tivesse feito algo parecido. Investigações adicionais revelaram que os homens haviam discutido e ameaçado um ao outro. Manchas de sangue foram encontradas na sede da fazenda, sem uma explicação satisfatória para elas.
No julgamento, a promotoria afirmou que Onufrejczyk dera o corpo do sócio aos porcos, daí a ausência de qualquer traço de um corpo. Em seu julgamento, no apelo contra a condenação o próprio juiz indicou que era possível demonstrar o fato de morte por meios outros que não a presença de um cadáver.
Assim, senhoras e senhores, pela a lei deste país não é necessário que exista um corpo para que um júri chegue à conclusão de que houve um homicídio. Se os senhores foram convencidos pela promotoria de que as provas são suficientes e apontam inexoravelmente para uma conclusão, é seu direito e dever pronunciar o veredicto de culpado. Igualmente, se a defesa conseguiu abalar sua certeza, o veredicto deverá ser de inocente.
Agora, quanto às provas apresentadas neste caso...
O veredicto
George fingia ler um relatório sobre um arrombamento em uma mercearia quando o telefone tocou.
- Os jurados retiraram-se para deliberar - a voz tensa de Clough lhe disse.
- Estou a caminho - respondeu, batendo o telefone e levantando-se rapidamente. Agarrou seu casaco e chapéu e saiu correndo de seu escritório. Parou de correr apenas depois de se jogar atrás do volante de seu carro. Enquanto saía do estacionamento, viu de relance o superintendente Martin na janela de seu escritório e imaginou se ele também recebera o recado.
Ele zuniu pela cidade e pela antiga estrada romana que cortava os campos verdes e paredes de calcário encardidas como uma lâmina atravessando uma colcha de retalhos. Com seu pé firme no acelerador, o ponteiro do velocímetro foi até oitenta, passou pela marca dos cem e estabilizou-se perto dos cento e vinte quilómetros por hora. Sempre que algo aparecia à sua frente, um longo toque de buzina afastava o animal ou pessoa para a margem, dando-lhe passagem livre.
Ele não tinha olhos para a beleza simples da tarde de verão. Seu foco estava na estrada que se desdobrava à frente. Passou pelo cruzamento de Newhaven e foi forçado a reduzir a velocidade quando a estrada romana desapareceu, substituída por uma estradinha rural sinuosa, que o levou sacolejando para cima e para baixo nos montes, por conversões fechadas e através de séries de curvas que desafiavam a velocidade. Tudo em que Podia pensar era nos dez homens e duas mulheres reunidos na sala do júri. Finalmente, ele passou pela pequena cidade de Ashbourne com sua feira livre e a estrada abriu-se à sua frente.
Ele imaginou se os jurados já teriam chegado a uma decisão quando chegasse lá. Achava que não, sem saber por quê. Embora desejasse acreditar que fornecera balas suficientes a Stanley para metralhar Hawkin, sabia que parte delas havia sido desviada pela defesa feita por Highsmith.
Enquanto entrava na ruazinha lateral junto ao prédio da prefeitura que abrigava o tribunal, alguém saiu de uma vaga no estacionamento justamente ao lado da porta lateral, o que ele considerou como um bom presságio resmungando isso para si mesmo ao enfiar-se na vaga. Entrou apressado no prédio, estranhando encontrá-lo quase vazio. As portas da sala do tribunal estavam abertas e não havia ninguém, exceto por um servente que lia o Mirror, sentado em uma das cadeiras.
George foi até lá e perguntou:
- Os jurados ainda estão deliberando?
- Sim, senhor - disse o homem, levantando a cabeça. George correu a mão pelos cabelos.
- Sabe onde posso encontrar a equipe da promotoria? O homem franziu o rosto.
- Provavelmente estão no hotel Lamb and Flag, do outro lado da praça. A cantina está fechada. - Ele enrugou a testa. - Você esteve aqui semana passada - disse, em tom acusador. - É o inspetor Bennett.
- Sim, sou eu - disse George, desanimado.
- Seu colega esteve aqui hoje - continuou o servente. - Aquele que parece um varapau.
- Sabe aonde ele foi?
- Disse que, se eu o visse deveria transmitir o recado para encontrálo no Lamb and Flag. É o único lugar em que se pode ter certeza de saber quando os jurados voltaram, sabe?
- Obrigado - disse George sobre o ombro, já saindo pela porta da frente e cruzando a praça até a antiga taberna. Quase tropeçou nas pernas de Clough enquanto cruzava a entrada principal. O sargento-detetive estava estirado em uma cadeira florida na recepção, com uma dose generosa de uísque em uma das mãos e um cigarro queimando em um cinzeiro de pedestal próximo a ele.
- Espero que você não tenha ficado preso no trânsito - disse Clough, endireitando-se. - Puxe uma cadeira. - Ele fez um gesto na direção de meia dúzia de cadeiras semelhantes à sua que se amontoavam em torno de minúsculas mesas redondas, enchendo a pequenina área na frente do balcão da recepção. O tecido colorido, com suas rosas em tons chocantes, contrastava violentamente com o vermelho e o azul profundos do carpete Wilton tradicional, mas nenhum dos homens percebeu ou se importou com isso. George sentou-se.
- Como você conseguiu isso? - perguntou, apontando para o uísque. Eles só abrem daqui a uma hora, no mínimo.
Clough piscou-lhe um olho.
- Conheci a recepcionista quando trouxe Wells lá de St. Albans Quer um?
- Não poderia recusar.
Clough foi até o balcão de madeira envernizada e debruçou-se sobre o móvel. George ouviu murmúrios e, ao voltar, o sargento lhe disse:
- Ela já vai trazer uma dose.
- Obrigado. E como foi o encerramento lá no tribunal?
- Bastante equilibrado para os dois lados. Nada que vá causar repercussões na Corte de Apelações. O juiz apresentou as provas, com bastante imparcialidade. Ele o fez parecer uma donzela que caiu em tentação, em um minuto e, no minuto seguinte, disse que alguém devia estar mentindo neste caso, e que os jurados precisariam decidir quem. Ele discorreu longamente sobre a diferença entre dúvida extravagante e dúvida razoável. Os jurados pareciam bem preocupados quando saíram.
- Obrigado por vir.
- Foi bem interessante.
- Eu sei, mas é seu dia de folga. Clough encolheu os ombros.
- Sim, mas Martin não me proibiu de vir, proibiu? George abriu um largo sorriso.
- Apenas porque não teve essa ideia. Onde estão todos aqueles repórteres, por falar nisso?
- Estão no andar de cima, no quarto de Don Smart, com uma garrafa de uísque. Um dos jornalistas daqui tirou o palito mais curto quando decidiram quem faria plantão no tribunal e ligaria para os outros tão logo o júri voltasse. Os advogados estão em uma sala reservada. Jonathan Pritchard está andando de um lado para o outro, como um pai que espera o nascimento do filho.
George suspirou.
- Sei como ele se sente.
- E por falar nisso, como está Anne?
George levantou as sobrancelhas, enquanto acendia um cigarro.
- Chateada com o que lê nos jornais. Esses dias quentes também a deixam abatida. Ela diz que se sente como se carregasse um saco de batatas na barriga. - Ele mordeu nervosamente a pele junto à unha de seu polegar. - Entre a gravidez e este caso, acho que não sobrou um nervo inteiro em todo o meu corpo. - Levantou-se de um pulo, indo até a janela mais próxima. Olhando para a praça, perto do tribunal, disse: - O que farei se o absolverem?
- Mesmo se ele se livrar da condenação por homicídio, ainda o pegarão por estupro - disse Clough. - Ninguém acreditará que você falsificou as fotos, não importa o que Highsmith tenha tentado fazer com sua reputação. Acho que o pior que pode acontecer é decidirem que você se empolgou muito ao encontrar as fotos e decidiu enquadrar Hawkin também por homicídio.
- Mas Ruth Cárter encontrou a arma antes de eu descobrir as fotos - protestou George, olhando com indignação para Clough.
- "Isso é o que ele diz", os jurados devem estar pensando. Olhe, não importa o que eles achem, não darão a ele o benefício da dúvida na acusação de estupro. Você estava lá quando eles viram as fotos. Naquele instante, os jurados ficaram contra Hawkin. Acredite, estão morrendo de vontade de descobrir um modo de considerá-lo culpado de ambas as acusações.
Agora venha, pegue sua bebida. Sente-se aqui e pare de se preocupar. Está me deixando nervoso - acrescentou, tentando em vão animá-lo.
George foi até a mesa, pegou sua bebida e voltou para a janela, detendo-se para olhar distraidamente um quadro vitoriano de cores sombrias,
representando uma caçada.
- Há quanto tempo estão reunidos?
- Uma hora e trinta e sete minutos - respondeu Clough, com uma breve olhada para seu relógio. Subitamente, o telefone na recepção tocou. George virou-se e olhou para a jovem atrás do balcão.
- Recepção do Lamb and Flag - disse ela, entediada. Olhou para George. - Sim, é possível. Em nome de quem? - Ela fez uma pausa e examinou o livro de hóspedes. - Senhor e senhora Duncan. A que horas chegarão?
Com um suspiro de frustração, George voltou a olhar para o prédio da prefeitura.
- Nunca entendi por que os jurados demoram tanto - queixou-se. - Deveriam apenas votar e seguir a decisão da maioria. Por que a votação precisa ser unânime? Quantos criminosos saem livres do tribunal porque um jurado teimoso não se deixa ser persuadido? Essas não são as pessoas mais espertas do planeta, não é?
- George, pode ser que isso leve horas. Podem levar a noite inteira e todo o dia de amanhã. Então, por que você não se senta, toma sua bebida e fuma seus cigarros? De outro modo, nós dois terminaremos em algum hospital, com pressão alta - disse Clough.
George suspirou pesadamente e arrastou-se até a cadeira.
- Tem razão. Sei que você está certo, mas estou inquieto demais. Clough puxou um baralho do bolso de sua jaqueta.
- Você joga cribbage?
- Não temos um tabuleiro.
- Não seja por isso. Doreen? - chamou Clough. - Tem como nos arranjar o tabuleiro de cribbage lá do bar?
Doreen lançou os olhos para cima, na expressão universal e irritada de "Homens!", e, então, desapareceu por uma porta no fundo da área da recepção.
- Você a treinou bem - comentou George.
- Faça sempre com que elas desejem mais, é o meu lema. - Clough cortou o baralho e distribuiu as cartas. Doreen voltou e colocou o tabuleiro entre os dois. - Obrigado, amorzinho.
- Veja bem quem você chama de amorzinho! - disse ela, jogando os cabelos para um lado enquanto voltava rebolando para trás do balcão em saltos altos demais.
- Estou vendo - disse Clough, alto o suficiente para que ela ouvisse. Normalmente, aquilo teria divertido George, mas hoje servia apenas para irritá-lo. Ele forçou-se a se concentrar nas cartas em sua mão, mas sempre que o telefone tocava, saltava como um homem picado por uma abelha.
Jogaram em um silêncio tenso, quebrado apenas para anunciarem resultados e pelo som da pedra do isqueiro quando um dos dois acendia um cigarro. Às seis e meia, haviam fumado quase vinte cigarros ao todo e tomado quatro grandes doses de uísque cada um. Quando chegaram ao fim da partida de desempate, George levantou-se.
- Preciso de ar fresco. Vou dar uma volta na praça.
- Eu lhe faço companhia - disse Clough. Deixaram as cartas e os copos sobre a mesa, depois que Clough anunciou a Doreen que pretendiam voltar.
A noite de verão estava agradável, e o centro da cidade estava vazio agora, exceto por algum trabalhador ocasional que fizera serão. Ainda era cedo demais para aqueles que pretendiam pegar uma sessão de cinema, e os dois homens tinham a praça mais ou menos para si. Pararam junto a uma estátua de George II, apoiando-se contra a base, enquanto fumavam mais um cigarro.
- Nunca me senti tão tenso em toda a minha vida.
- Sei como se sente - Clough respondeu.
- Sabe? Você está tranquilo como um bicho-preguiça, Tommy - protestou George.
- É só pose, George. Por dentro, meu estômago também está dando voltas. Sou melhor que você na arte de esconder meu nervosismo, só isso. Sabe o que você disse antes, sobre não saber o que fará se Hawkin sair dessa? Bem, eu sei exatamente o que farei. Vou me demitir e arranjar um emprego que não me dê úlceras. - Ele atirou longe o toco de cigarro e cruzou os braços na frente do peito, a boca formando uma linha fina em seu rosto largo.
- Eu... não fazia ideia.
- O quê? Não sabia que isso me perturbava tanto? Acha que é o único que fica acordado à noite, imaginando o que aconteceu com Alison Cárter? - indagou Clough, em tom azedo.
George esfregou o rosto com as duas mãos, empurrando para trás os cabelos em desalinho.
- Não, acho que não.
- Ela não tem mais ninguém que lute em seu favor - disse Clough, com raiva. - E se ele sair dessa livre hoje à noite, teremos fracassado com a menina.
- Eu sei - murmurou George. - E sabe de outra coisa, Tommy?
- O quê?
George sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado.
- Não acredito que cheguei a pensar nisso, e menos ainda que posso dizer em voz alta, mas...
Clough aguardou. Depois perguntou:
- Chegou a pensar o quê?
- Quanto mais leio nos jornais que sou um policial corrupto que armou tudo para condenar Hawkin, mais fico pensando que talvez devesse ter feito mesmo tudo o que pudesse para deixar a coisa toda bem mais explícita - falou, com amargura. - Vê como tudo isso me abalou?
Antes que Clough pudesse responder, os dois perceberam uma saída em massa do Lamb and Flag, liderada pelos advogados, suas togas flanando à sua volta como asas negras, com a velocidade de seus passos. Atrás deles, os jornalistas precipitavam-se rumo às portas, alguns ainda vestindo seus paletós e enfiando os chapéus. Clough e George olharam-se, respirando fundo.
- É agora - sussurrou George.
- Lá vamos nós, chefe.
Subitamente, a rua fervilhava. Carters, Crowthers e Lomas vinham do oeste, onde o proprietário de um café percebera que podia lucrar um pouco mais se permanecesse aberto enquanto os habitantes de Scardale desejassem um chá ou batatas fritas. A mãe de Hawkin veio do sul, acompanhada do casal Wells, de St. Albans. Todos convergiram para a entrada lateral, onde o afunilamento forçou-os a uma proximidade incómoda. George poderia ter jurado que a senhora Hawkin aproveitara a oportunidade para lhe dar uma forte cotovelada nas costelas, mas já nem se importava com isso. De algum modo, todos passaram e tomaram seus assentos na sala do tribunal. Enquanto se ajeitavam como um bando de pássaros nas árvores da cidade ao pôr-do-sol, Hawkin foi trazido, entre os dois policiais que já haviam se colocado ao seu lado em cada dia do julgamento. Parecia melancólico e mais cansado que na semana anterior, na opinião de George. Hawkin olhou à sua volta e conseguiu dar um pequeno aceno para a mãe, na parte reservada ao público. Desta vez, não sorriu para George, enviando-lhe apenas um olhar frio e indecifrável.
Todos levantaram-se desajeitadamente para receber o juiz, resplandecente em seus trajes suntuosos de púrpura e arminho e o chefe de polícia Finalmente chegara o momento que todos temiam, cada um por suas próprias razões. Os jurados acomodaram-se, tendo o cuidado de não olhar diretamente para ninguém. George tentou engolir, mas sua boca estava seca. As pessoas acreditavam que, quando o júri evitava olhar para o acusado, este seria condenado. Sua própria experiência era que os jurados nunca olhavam para o réu ao voltarem para o veredicto. Qualquer que fosse a decisão, parecia que havia algo vergonhoso em julgar um outro membro qualquer da sociedade.
O representante eleito dos jurados, um homem de meia-idade com rosto estreito, bochechas rosadas e óculos de aro de tartaruga, permaneceu de pé quando os outros sentaram-se, com o olhar fixo no juiz.
- Membros do júri, chegaram a um consenso em seu veredicto? O representante dos jurados assentiu e respondeu:
- Sim.
- E o que decidiram a respeito da primeira acusação?
- Culpado.
Um suspiro coletivo pareceu percorrer o ar no grande salão. George sentiu que o nó em seu estômago começava a se desfazer.
- E da segunda acusação?
O representante dos jurados limpou a garganta, antes de responder:
- Culpado.
Um murmúrio crescente encheu o ar, como o zumbido de abelhas em torno da colmeia à noite. George não sentiu qualquer vergonha do seu prazer ao ver a expressão devastada de Hawkin. A cor desapareceu daqueles traços atraentes, deixando seu rosto tão sem vida quanto um desenho a bico-de-pena. Sua boca abriu-se e fechou-se, como se lutasse para sorver o ar.
George espiou a turma de Scardale, em busca de Ruth Cárter. Naquele momento, ela virou em sua direção e seus olhos encheram-se de lágrimas, com a boca aberta transmitindo seu alívio e dizendo, sem palavras, um "obrigada", antes de se voltar para os braços protetores de seus parentes.
- Silêncio no tribunal! - comandou um funcionário.
O murmúrio cessou e todos se voltaram para o juiz. A expressão de Fletcher Sampson era muito dura e solene.
- Philip Hawkin, tem algo a dizer antes de a sentença ser pronunciada, de acordo com a lei?
Hawkin levantou-se e agarrou-se à borda da pequena mureta à sua frente. A ponta de sua língua apareceu em um e depois no outro canto de sua boca. Então, com intensidade desesperada, ele disse:
- Eu não a matei. Meritíssimo, eu sou inocente.
Pelo efeito de suas palavras sobre o juiz, Hawkin poderia muito bem ter poupado seu fôlego.
- Philip Hawkin, de acordo com o veredicto, os jurados consideraram-no culpado pelo estupro de sua enteada, Alison Cárter, uma menina de treze anos, e consideraram-no culpado por seu homicídio, depois. O fato de ter sido usada uma arma de fogo neste crime concede-me o direito de pronunciar a sentença que a lei permite e a justiça exige. - Em silêncio absoluto, ele pegou o pano preto e o pousou com cuidado sobre a peruca. Hawkin vacilou, mas o policial ao seu lado agarrou seu cotovelo e forçou-o a ficar de pé.
Sampson olhou para o cartão à sua frente, que continha as palavras decisivas. Depois, levantou a cabeça e encontrou o olhar desvairado do assassino de Alison Cárter.
- Philip Hawkin, você será levado ao lugar de onde veio e, deste, para um lugar de execução segundo a lei, onde será pendurado pelo pescoço até a morte. Depois, seu corpo será enterrado em uma vala comum nos limites da prisão na qual esteve confinado por último antes de sua execução; e que o Senhor tenha piedade de sua alma.
Em meio ao silêncio chocado que reinava, uma voz feminina gritou:
- Não!
- Policiais, levem o prisioneiro - ordenou Sampson.
Quase tiveram de carregar Hawkin para fora. O choque parecia ter destruído sua capacidade para caminhar. George entendia a reação. Suas próprias pernas pareciam incapazes de suportar seu peso. De repente, ele descobriu-se no centro de um grupo de pessoas que desejavam cumprimentá-lo. Charlie Lomas, Brian Cárter, até mesmo Mamãe Lomas gritavam-lhe
Início de Nota de Rodapé: Enquanto houve pena de morte na Inglaterra, os juízes colocavam um pano preto sobre a peruca para proferir a sentença capital. Fim de Nota.
parabéns. Toda a reserva que sempre julgara característica dos moradores de Scardale dissipara-se com o julgamento e sentença de Hawkin. O rosto de Pritchard apareceu em seu campo de visão.
- Ligue para sua esposa e diga-lhe que ficará em Derby hoje - gritou ele. - Temos champanhe para comemorar, no hotel.
- Tudo a seu tempo - gritou-lhe Mamãe Lomas. - Ele beberá com o povo de Scardale antes. Venha, George, não pretendemos perdê-lo de vista até beber com cada um de nós. E traga aquele sargento que sempre está ao seu lado.
Com a cabeça girando e o estômago inquieto, George Bennett foi levado para a rua. Contra todas as probabilidades, triunfara. Dera a Alison Cárter a justiça que ela merecia. Desafiara seus chefes, os princípios do sistema legal inglês e os terríveis caluniadores da imprensa. E triunfara.
O lugar da execução
Na noite de quinta-feira, 27 de agosto de 1964, dois homens desceram do trem na estação de Derby, cada um deles levando consigo uma pequena valise. Nenhum de seus companheiros de viagem lhes dera uma segunda olhadela, mas uma viatura policial esperava-os, para transportá-los pelas ruas da cidade até a prisão em que Philip Hawkin estava, vigiado por dois guardas da penitenciária, até o dia de sua morte. Mais tarde, naquela noite, o mais velho dos dois homens deslizou para o lado a tampa da portinhola que lhe permitia olhar para dentro da cela do condenado. Ele viu um homem moderadamente alto, cujo corpo havia se livrado de cada grama de gordura que não fosse absolutamente necessário. Ele andava pela cela com um cigarro queimando entre os dedos. O homem que o espiava não viu nada que contradissesse os cálculos que havia feito com base no pedaço de papel que lhe deram e que dizia: "Um metro e setenta e sete centímetros, sessenta e dois quilos". Uma queda de dois metros e vinte centímetros serviria.
Hawkin havia passado a noite acordado, dedicando parte do tempo a escrever uma carta para sua esposa. De acordo com o sargento-detetive Clough, a quem Ruth Cárter mostrou a carta, ele ainda afirmava inocência.
Embora eu tenha cometido muitos erros, matar sua filha amada não foi um deles. Cometi muitos pecados e crimes em minha vida, mas não o crime de homicídio. Eu não deveria ser enforcado por algo que não fiz, mas meu destino está selado agora, porque outras pessoas mentiram. Meu sangue está na consciência desses mentirosos. Não a culpo por ter acreditado neles. Acredite quando digo que não sei o que aconteceu com Alison. Não tenho mais nada a perder, exceto minha vida, e esta me será roubada pela manhã, de modo que não tenho nenhum motivo para lhe mentir. Sinto muito por não ter sido um marido melhor.
A menos de dez quilómetros dali, no outro lado da cidade, George Bennett também estava acordado, fumando na janela aberta do quarto, na casa que era seu lar desde sua transferência de Buxton, um mês antes. Entretanto, o que atrapalhava seu sono não era o destino de Philip Hawkin. Às sete e cinquenta e três da noite anterior, Anne retesara-se na cadeira e gemera, sentindo uma dor súbita. George correra em seu auxílio, para ajudá-la a colocar-se de pé. Chegara o momento pelo qual ansiavam havia duas semanas, desde que a data prevista para o nascimento do filho passara, sem sinal de trabalho de parto. Todos lhe haviam dito que o primeiro bebé muitas vezes atrasava, mas isso não o havia tranquilizado. Antes de terem chegado à porta da sala, sem qualquer aviso e para surpresa total de George, um líquido claro derramara-se pelas pernas de Anne. Ela descera a escada com dificuldade e garantira-lhe que isso era perfeitamente normal, mas que chegara a hora de ir para o hospital, apontando para a pequena mala no canto da sala, já pronta e à espera daquele momento.
Meio desnorteado pela preocupação, George ajudara a esposa a entrar no carro e correra para buscar a maleta. Depois, dirigira como louco pelas ruas tranquilas, atraindo olhares irritados de senhoras respeitáveis e admirados, de jovens rapazes que se reuniam nas esquinas. Ao chegarem ao hospital, Anne gemia de dor em intervalos de minutos.
Quase antes que pudesse registrar em seu cérebro tudo o que acontecia, Anne foi levada para o estranho mundo da ala da maternidade, um lugar onde nenhum homem que não portasse um estetoscópio seria admitido. Apesar de seus protestos, George foi firmemente encaminhado à recepção, onde soube, por uma enfermeira que bem poderia pertencer ao regimento do superintendente Martin por seus modos austeros, que poderia ir para casa, já que sua presença ali não beneficiaria nem sua esposa nem a equipe médica.
Perplexo e desorientado, ele se descobrira no estacionamento, sem sequer saber como chegara ali. O que deveria fazer agora? Anne havia lido muitos livros, preparando-se para a maternidade, mas ninguém dissera a ele o que deveria fazer. Depois que o bebé nascesse, o ritual era mais fácil. Essa parte ele conhecia. Charutos para os rapazes, depois uns drinques para brindar a chegada do herdeiro. Mas como preencher o tempo até aquele momento? E por falar nisso, quanto tempo levaria?
Com um suspiro, ele entrou no carro e rumou para casa. Ao chegar à pequena casa geminada, idêntica àquela que habitara em Buxton, exceto pela falta do jardim lateral, seu primeiro ato foi agarrar o telefone e ligar para o hospital.
- Nada acontecerá durante algumas horas - disse-lhe uma enfermeira nada amistosa. - Por que não vai dormir cedo e nos liga novamente de manhã?
George pousara o telefone no gancho, frustrado. Nem conhecia suficientemente seus novos colegas do departamento de investigações criminais para ligar e sugerir que se encontrassem para um drinque. Estava prestes a atacar a garrafa de uísque que guardava dentro do aparador da sala quando o telefone tocou, assustando-o a ponto de deixar cair um dos copos de cristal que ganhara de presente de casamento.
- Droga! - exclamou, enquanto atendia o telefone.
- Liguei em má hora, George? - o tom brincalhão de Tommy Clough era tão bem-vindo aos seus ouvidos quanto a confissão de um alcagúete.
- Acabei de deixar Anne na maternidade, mas, fora isso, estou bem. O que posso fazer por você?
- Consegui trocar meu plantão de amanhã com alguém. Achei que seria boa ideia presenciar o enforcamento daquele canalha pela manhã. E, depois, achei que poderíamos beber até cair. Mas parece que você já tem compromisso.
George agarrou o telefone como se este fosse uma bóia salva-vidas, e ele um homem prestes a se afogar.
- Venha até aqui. Estou precisando de companhia. Aquelas enfermeiras agem como se os homens não tivessem nada a ver com bebés.
Tommy riu.
- Há um motivo para isso, mas como você é um homem casado, não vou cansar seus ouvidos. Chego aí em uma hora, mais ou menos.
George preencheu parte do tempo indo até o bar mais próximo e comprando garrafas de cerveja como complemento para o uísque. No final das contas, acabaram bebendo muito pouco, ambos afetados, por motivos diversos, pela magnitude dos eventos que se desdobravam à sua volta.
Em algum momento após a meia-noite - e depois do quarto telefonema de George para a maternidade -, Clough havia ido dormir no quarto de hóspedes. O que manteve George acordado, porém, não foi o ruído suave de seu ronco. Enquanto a noite transformava-se em alvorecer, sua mente insistia em lhe trazer imagens do sofrimento de Alison Cárter mescladas ao sofrimento de sua própria esposa, até não ser mais capaz de distinguir entre ambas. No fim, quando o céu já se iluminara, ele cochilou, encolhido como um feto, em um canto da cama.
O despertador acordou-o às sete e ele abriu os olhos de uma vez, totalmente alerta. Será que já era pai? Ele esticou as pernas e atravessou de um pulo o quarto, quase tropeçando enquanto corria escadas abaixo até o telefone. O tom de voz de quem o atendeu era o mesmo, embora o sotaque fosse diferente. Não havia novidade. Podia perceber o recado que tentavam lhe dar: pare de nos incomodar!
Os cachos desgrenhados e os olhos vermelhos de Clough apareceram no andar superior.
- Alguma novidade?
- Nada ainda.
- É estranho - disse Clough, com um bocejo. - Anne entrar em trabalho de parto logo agora.
- Nem tanto. A data do parto era duas semanas atrás. As vezes, a ansiedade desencadeia o trabalho de parto, de acordo com um dos livros que ela andou lendo. E ela teve mais do que devia, em termos de ansiedade, por causa desse caso - disse George, subindo novamente a escada. Primeiro, teve de suportar minha ausência enquanto eu virava a noite trabalhando na investigação inicial, e depois teve de ler toda aquela porcaria publicada pelos jornais, sobre eu ser tão corrupto a ponto de mandar um inocente para a forca. Depois da apelação, teve de ler tudo isso de novo. ultimamente ficava o tempo todo pensando no fato de alguém ser enforcado porque fiz o meu trabalho. - Ele parou no alto da escada e balançou a cabeça, com sua franja loira e despenteada esvoaçando com o movimento. - É um milagre não ter abortado.
Clough pousou a mão em seu ombro.
- Ah, pare com isso. Vamos nos vestir e sair para tomar café. Há um bom lugar, perto da estrada da penitenciária.
George ficou paralisado.
- Você pretende ir até lá?
- E você não?
George parecia surpreso.
- Vou para a delegacia. Alguém me comunicará quando tudo terminar.
- Não vai comigo à penitenciária? Todos estarão lá, Lomas, Carters e Crowthers. É você que eles querem ver.
- Será? - perguntou George, com um pouco de amargura. - Bem, terão de se contentar com você, Tommy.
Clough sacudiu os ombros.
- Sempre achei que se tive alguma coisa a ver com o enforcamento de um homem, deveria assumir as consequências.
- Desculpe-me, mas não tenho estômago para isso. Vou lhe pagar um café da manhã na cantina da delegacia, mas depois você vai sozinho até lá, se quiser.
- Tudo bem, então.
George virou-se e foi para o banheiro.
- George? - chamou Clough, em voz baixa. - Não há por que se envergonhar. Não há nada pior neste emprego, nem mesmo comunicar a morte de uma criança à sua mãe. Mas você precisa aprender a conviver com essas coisas. Eu já aprendi, e você também acabará aprendendo. Esqueça o café da manhã. Eu o encontro depois. Podemos sair hoje à noite e, aí sim, encher a cara.
Eram oito e cinquenta e nove e George olhava o ponteiro dos segundos em Seu percurso em torno do mostrador. O padre devia estar terminando sua oração com Hawkin agora. Ele imaginou como Hawkin estaria se sentindo. Aterrorizado, com certeza. Talvez tentasse ter um pouco de dignidade.
O ponteiro chegou ao número 12 e o relógio da igreja próxima deu a primeira de nove badaladas. As portas duplas da cela do condenado se abririam e Hawkin andaria os últimos seis metros de sua vida. O carrasco estaria atando seus pulsos com a correia de couro.
A segunda badalada. Agora, o carrasco está caminhando à frente de Hawkin, com seu assistente atrás, mantendo o ritmo tão uniforme quanto possível - os assassinos oficiais tentando agir como se estivessem apenas caminhando na praça.
A terceira badalada. Hawkin está na forca agora, com os pés plantados em cada lado das portas duplas da armadilha que se abrirá e levará sua vida com aquele ato.
Quarta badalada. O carrasco vira-se para encarar o condenado, estendendo as mãos para mantê-lo imóvel, enquanto seu assistente agacha-se e ata juntas as pernas de Hawkin.
Quinta badalada. O saco de linho aparece como se por mágica. O carrasco enfia-o na cabeça de Hawkin, com a facilidade da prática. Agora tudo corre mais rápido, porque ninguém precisa olhar para o homem que estará morto em um minuto. Seus olhos pararam de implorar e de fitá-los com o pânico medonho do animal condenado. O carrasco puxa o saco para baixo e ajeita-o em torno do pescoço, de modo que o pano não se enfie no olho do laço.
Sexta badalada. O carrasco desliza o laço pela cabeça do condenado, verificando se a peça de metal que agora substitui o nó corrediço tradicional está posicionada atrás das orelhas de Hawkin, para velocidade máxima no processo de fratura e deslocamento que torna o enforcamento teoricamente rápido e relativamente indolor.
Sétima badalada. O carrasco dá um passo para trás e sinaliza para seu assistente, que puxa a cavilha que age como medida de segurança no mecanismo da forca. Depois, quase no mesmo instante, o carrasco puxa a alavanca.
Oitava badalada. A armadilha abre-se e Hawkin mergulha para a queda fatal.
Nona badalada. Acabou.
George sabia que suava sobre o lábio. Podia ver sua mão trémula enquanto a estendia para pegar os cigarros. Pequeninos gestos humanos que Hawkin perdera para sempre, como Alison Cárter também já perdera. George percebeu que prendera o fôlego apenas ao soltar o ar. Ele esfregou a face, sentindo a pele áspera com algo parecido com gratidão.
Quando o telefone tocou, ele reagiu com um pulo.
Dentro do mesmo período de cinco minutos, Philip Hawkin deixara o mundo dos vivos e Paul George Bennett uníra-se a eles.
Tommy Clough e George nunca chegaram a se encontrar para aquela rodada de bebidas.
Livro 2
Primeira parte
1 Fevereiro de 1998
Até mesmo o pálido sol de inverno dava contornos dramáticos ao White Peak. O azul frio do céu contrastava com o verde desbotado dos campos, que pareciam ter-se contaminado com uma nuança de cinza das paredes de calcário. Havia mais tons de cinza do que se poderia considerar possível; o branco-sujo dos abismos de calcário, estriados e manchados com um espectro que ia do cinza-claro, passava pelo cinzento dos navios de guerra e chegava ao quase preto; os tons mais escuros dos estábulos e casas que pontuavam a paisagem; o cinza fosco dos telhados de ardósia salpicados com o branco da geada onde o sol não chegava; o cinza sem graça dos carneiros da charneca. Ainda assim, o que dominava a paisagem era o verde e o azul da grama e do céu.
O carro esportivo vermelho que trafegava tranquilamente pela estrada rural estreita destacava-se como um papagaio exótico em uma floresta inglesa. Quando a igreja metodista surgiu à direita, a mulher loira ao volante pisou levemente no freio. O carro diminuiu a velocidade gradualmente e ela trocou de marcha quando avistou uma placa na estrada da qual não se lembrava. Apontando para uma entrada estreita à esquerda, ela dizia: "Scardale 1".
Finalmente, pensou. A placa estranha era um lembrete oportuno de que o mundo havia mudado. Agora, as pessoas que não sabiam aonde estavam indo precisavam ter um modo de encontrar Scardale. Se ela tivesse o sucesso que esperava, muitas outras pessoas desejariam ver a placa. Com um tremor de excitação, ela virou o volante. Embora recordasse vagamente as subidas e descidas súbitas da estrada sinuosa, achou melhor ir devagar. As paredes altas de calcário haviam mantido o sol fraco de fevereiro afastado da estrada de uma pista, que ainda estava coberta pela geada, exceto onde o tráfego anterior expunha o asfalto preto. Não seria um começo auspicioso para o projeto se acabasse derrapando e danificasse sua pintura.
Catherine Heathcote não sentiu surpresa quando as paredes rochosas subitamente deram lugar a abismos profundos de calcário listrado. O que lhe causou surpresa foi a ausência do portão no fim da estrada, que demarcava a propriedade particular. Agora, as únicas indicações de que certa vez Scardale isolara-se deliberadamente da civilização eram os marcos de pedra e os mata-burros, que os pneus largos de seu carro cruzaram com sacolejos suaves.
Catherine percebeu que nada mudara muito por ali. O Rochedo do Escudo e o Rochedo de Scardale ainda dominavam o vale. Os carneiros ainda pastavam em segurança, embora os ditames da moda tivessem imposto um rebanho de carneiros de Jacó entre as ovelhas mais resistentes e comuns àquela região. Os ajuntamentos de árvores estavam mais velhos, era verdade, mas haviam sido bem cuidados, com novas mudas substituindo as árvores que haviam sido cortadas ou morrido por causa do clima inclemente. Contudo, ainda se tinha a sensação de entrar em um universo paralelo, deixando para trás o mundo normal, pensou Catherine. Apesar de todas as mudanças que percebia, ela poderia ter voltado a ser criança, espiando do banco traseiro sobre os ombros de um adulto enquanto entravam neste mundo remoto para descobrirem a fonte misteriosa do rio Scarlaston em uma tarde de domingo durante o verão.
Apenas ao aproximar-se da praça da aldeia ela percebeu uma mudança real - pelo menos aparentemente. Nos anos que se haviam passado desde a execução de Hawkin, Scardale vira tempos de prosperidade. Ela lembrou de tudo que descobrira desde que escrevera sobre o assassinato de Alison Cárter pela primeira vez, uns doze anos antes, em um artigo de jornal suscitado por um novo caso de homicídio "sem corpo". As pesquisas de Catherine nos arquivos do jornal e entre as companheiras de bridge de sua mãe haviam revelado que, ao herdar o vale e a aldeia do marido, Ruth Hawkin decidira afastar-se das recordações. Ela vendera o solar e estabelecera um fundo para administrar a terra e a fazenda inteira. Os inquilinos haviam recebido a opção de comprar as casas em que moravam e, durante os anos seguintes, algumas haviam sido vendidas a pessoas de fora. Não conseguira localizar Ruth Hawkin, que recusara todas as tentativas de Catherine para uma entrevista, através do advogado que administrava sua herança.
Inevitavelmente, o processo desencadeado pelas ações de Ruth levou a uma revitalização da aldeia. As casas receberam pintura nova, jardins apareceram do nada e, mesmo no meio do inverno, açafrões precoces, íris anãs, e campainhas brancas salpicavam de cor a paisagem. E, é claro, os automóveis haviam invadido a praça da aldeia, onde antes havia apenas Land Rovers velhos e o Austin Cambridge do dono das terras. Um quiosque moderno de acrílico havia substituído o antigo telefone público vermelho, mas a pedra em que ele se apoiava ainda estava lá, com sua inclinação familiar. Mesmo com carros modernos e casas mais alegres, em uma tarde fria como esta não era difícil imaginar Scardale como havia sido quando ela fora ali pela primeira vez na infância e, depois, sem o olhar inocente, na adolescência.
Estava com dezesseis anos então. Dois anos e meio haviam passado desde o assassinato de Alison Cárter, e o namorado de Catherine tinha uma lambreta. Ela o persuadira a irem até Scardale em uma tarde de primavera, para poderem ver por si mesmos o lugar onde tudo acontecera. Ela admitia, com um pouco de vergonha, que seu motivo era uma curiosidade macabra. Naquela idade, o objetivo de qualquer coisa que se fizesse era chocar, mas não haviam tido coragem - nem calçados apropriados - para enfrentar o matagal e encontrar a antiga mina. Contudo, as carícias trocadas em meio às árvores atrás do solar pareceram mais excitantes por causa da notoriedade do lugar.
Agora ela percebia que aquilo também servira como um exorcismo ao horror em que se transformara o julgamento de Philip Hawkin. Naturalmente, a maioria dos detalhes havia sido encoberta pelos eufemismos sensacionalistas do jargão jornalístico, mas Catherine e todas as suas amigas sabiam que algo pavoroso havia acontecido com Alison Cárter, o tipo de coisa sobre a qual todos os adultos as alertavam que poderia acontecer se caíssem nas mãos de estranhos. Tudo fora ainda mais assustador porque Alison Cárter sofrera nas mãos de alguém que conhecia e em quem deveria confiar. Para Catherine e suas amigas, todas de famílias de classe média, preservadas das agruras da vida, a ideia de que o lar não era necessariamente um lugar seguro havia sido profundamente perturbadora.
Em um nível mais mundano, o acontecimento havia colocado limitações em suas vidas, impostas pelos pais e por elas mesmas. As garotas agora tinham de estar sempre acompanhadas, exatamente em uma época em que o resto dos adolescentes britânicos descobria a liberdade dos anos 60. O destino de Alison dera à adolescência de Catherine uma escuridão até então desconhecida, e ela nunca mais conseguira esquecer nem o caso nem a vítima. Mais que qualquer outro fator isolado, isto provavelmente influenciara sua própria decisão de sacudir a poeira de Buxton de seus sapatos tão logo pudesse. Universidade em Londres, depois um trabalho de cão em uma agência de notícias e finalmente um emprego como jornalista permitiram-lhe cortar os laços com o passado, enchendo sua vida de rostos novos e novas paixões, sem nenhum apego às recordações da adolescência.
À medida que subia os degraus em sua carreira, Catherine imaginara, muitas vezes, qual teria sido o futuro de Alison. Não que estivesse obcecada por isso, dizia a si mesma. Apenas contagiara-se da curiosidade natural que deveria afligir qualquer jornalista que tivesse crescido à sombra de um caso tão estranho e inquietante.
E agora, milagrosamente, ela seria a responsável por retirar o véu do passado e revelar a história por trás da história. Considerava aquilo bem apropriado. Não poderia haver outro jornalista mais qualificado para contar esta verdade.
Catherine saiu do carro e fechou sua jaqueta, enfiando o lenço que protegia seu pescoço bem para dentro. Cruzou a praça e passou pela escadaria que levava à trilha até o arvoredo em que Shep havia sido encontrada e, mais adiante, à nascente do Scarlaston.
Enquanto ouvia os estalos da grama congelada sob os pés, não pôde evitar a recordação da última vez em que estivera em Scardale, comparando-a com esta. Era uma tarde quente de julho, dez anos antes, e o sol tórrido brilhava em um céu de azul metálico, com as árvores servindo como um alívio abençoado do calor. Catherine e alguns amigos haviam alugado um chalé em Dovedale, que serviria como base para longas caminhadas de férias na região de Peaks. Uma das trilhas seguidas subia o Scarlaston, vindo de Denderdale até Scardale. Suados e esbaforidos após a aventura, eles haviam chamado um táxi do telefone público na praça e então se sentaram num muro, fofocando sobre seus colegas londrinos, enquanto esperavam. Catherine nem mencionara Alison, estranhamente supersticiosa no que dizia respeito a dividir a história com outros jornalistas.
Jamais lhe ocorrera, na época, que conseguiria persuadir George Bennett a romper seu silêncio de trinta e cinco anos e falar sobre o caso. Embora ela nunca tivesse esquecido Alison Cárter, escrever o livro definitivo sobre um dos casos mais interessantes do século sequer estivera em seus planos.
Isto certamente não lhe passara pela cabeça no outono anterior, em Bruxelas. Entretanto, em sua experiência, as melhores histórias nunca eram aquelas que se procuravam muito. Em sua mente, não havia nenhuma dúvida de que esta seria a melhor matéria de sua carreira.
2
Outubro de 1997-fevereiro de 1998
A chuva pesada caía sem parar. Isto seria suportável, se ela estivesse confortável e aconchegada em um bar envidraçado com vista para a GrandPlace, com um café irlandês aquecendo suas mãos enquanto se alegrava com a infelicidade daqueles que corriam com seus guarda-chuvas contra o vento na rua. Mas, ficar de pé em uma tarde chuvosa de quarta-feira, em um prédio de concreto que mais parecia uma caixa, com vista apenas para outros prédios de escritórios, enquanto esperava que uma política sueca lembrasse que haviam marcado hora, não era sua ideia de diversão. Não era absolutamente o que tivera em mente ao planejar sua pequena excursão à Europa.
Embora Catherine fosse a editora de uma revista feminina mensal, jamais perdera seu gosto pelas matérias jornalísticas que haviam construído sua carreira. De tempos em tempos, gostava de fugir da tensão da burocracia quotidiana e da política ridícula do escritório. Sua desculpa era a necessidade de continuar em contato com seu lado criativo e manter-se em dia com as diferentes circunstâncias enfrentadas pelos escritores a quem dava emprego. Assim, periodicamente, ela inventava uma pauta que lhe permitia fazer pesquisas, entrevistas e a própria redação da matéria.
Ela imaginara que seria interessante fazer uma série de entrevistas com mulheres em funções importantes na sede da União Europeia. Não contara com a burocracia interminável e com o mau tempo. Sem mencionar o fato
Início de Nota de Rodapé: La Grand-Place, em Bruxelas, é um conjunto arquitetônico homogéneo, composto de prédios particulares e públicos, construídos principalmente no fim do século XVII. Fim de Nota.
de que reuniões sempre atrasavam e ninguém chegava no horário para as entrevistas. Suspirando, Catherine pegou o telefone na sala de conferências e ligou para o seu contato, um assessor de imprensa britânico chamado Paul Bennett. Esperara que ele fosse frio e arrogante, como a maior parte dos assessores de imprensa do governo, mas tivera uma agradável surpresa. Depois de descobrirem que ambos haviam crescido em Derbyshire, o relacionamento tornara-se ainda mais afável, e Paul conseguira contornar a maior parte das dificuldades até agora.
- Paul? É Catherine Heathcote. Sigrid Hammarqvist não apareceu.
- Ah, mas que droga - disse ele, irritado. - Pode esperar um minutinho?
Uma música clássica berrou em seus ouvidos, com os violinos parecendo um bando de mosquitos irritados. Às vezes, Catherine gostaria de poder distinguir uma música clássica de outra, mas duvidava que isso lhe pudesse ser útil em um momento como este. Ela afastou o aparelho da orelha para evitar a irritação, mas deixou-o próximo o suficiente para ouvir quando Paul voltasse. Alguns minutos depois, ele falou:
- Catherine, acho que tenho más notícias. Ou boas, dependendo de sua opinião quanto à senhora Hammarqvist. Ela teve de ir a uma reunião em Estrasburgo e só voltará amanhã, mas a secretária prometeu marcar você para amanhã às onze. Pode ser?
- Agora é minha vez de dizer "mas que droga!" - disse Catherine, contrariada. - Eu esperava poder voltar à Inglaterra hoje à noite.
- Desculpe - disse Paul. - Os escandinavos têm uma tendência para ver os jornalistas como seres muito no final da cadeia alimentar para merecerem sua consideração.
- Não é sua culpa. De qualquer forma, obrigada por tentar me ajudar. E pelo menos ganhei outra noite na ensolarada Bruxelas - acrescentou, com ironia.
Paul riu.
- Ah, é verdade. Olhe, não gosto de imaginá-la sozinha num lugar estranho. Se você não tiver outros planos, por que não vem tomar alguma coisa no nosso apartamento?
- Ah, não se preocupe - disse Catherine, com despreocupação profissional.
- Não estou convidando apenas por obrigação - insistiu ele. - Eu gostaria que você conhecesse Helen.
Catherine lembrou-se da companheira de Paul, uma tradutora e intérprete da Comissão da União Europeia.
- Tenho certeza de que isso é exatamente o que ela deseja, depois de mais um dia na torre de Babel - falou, com ironia.
- Ela lê sua revista todos os meses, e me matará se eu deixar passar a chance de levá-la para beber uma ou duas taças de vinho conosco. Além disso, ela também é de Derbyshire - acrescentou ele, como se isso decidisse tudo.
De qualquer modo, algo fez com que Catherine tomasse a decisão, pois logo depois das sete da noite ela estava dando beijinhos no ar, em vez de no rosto de Helen Markiewicz. Este não era exatamente o cumprimento típico de Derbyshire, pensou ela com ironia, enquanto avaliava a companheira de Paul. Ela certamente era a imagem do público-alvo da revista de Catherine. Trinta e poucos anos, cabelos escuros e curtos num corte rebelde, caindo para a frente sobre uma testa ampla. Seu rosto tinha formato de coração, com sobrancelhas retas e negras, maçãs do rosto altas e um sorriso amplo. Sua maquiagem era sutil, mas eficiente, exatamente como as páginas da seção de estilo recomendavam para mulheres bem-sucedidas. Helen parecia vagamente familiar, e Catherine imaginou se já passara por ela nos corredores dos prédios da Comissão da União Europeia nos quais estivera nos últimos dias. Alguém tão cheia de estilo e tão bonita teria atraído seu olhar, ainda que inconscientemente. Era compreensível que Paul quisesse mostrá-la.
Enquanto Paul servia taças generosas de vinho tinto, as duas mulheres acomodaram-se em cantos opostos de um sofá fofo e informal.
- Paul me disse que Hammrqvist lhe deu um bolo - disse Helen, com os traços de um sotaque de Yorkshire ainda fortes em sua voz. - Deve ser como se encher de coragem para ir ao dentista e, chegando lá, descobrir que ele saiu mais cedo.
- Ela não é tão ruim - protestou Paul.
- Não se comparada com a mãe do capeta - disse Helen, de modo obscuro.
- Tenho certeza de que Catherine não a deixará escapar.
- Ah, disso eu tenho certeza, amor. - Helen lançou um sorriso luminoso para Catherine. - Ele lhe contou que sou sua fã número um? Falo sério, tenho até assinatura da revista.
- Estou impressionada - disse Catherine. - Mas me diga, como vocês dois se conheceram? É um Euro-romance?
- Olhe só, Helen, ela já está preparando a edição do Dia dos Namorados do ano que vem!
- Nem todo mundo leva trabalho para casa - falou Helen, provocando-o. - Nós nos conhecemos em Bruxelas. Paul foi a primeira pessoa que conheci na comissão com um sotaque do norte da Inglaterra, de modo que nos identificamos imediatamente.
- E eu a persegui como louco, de modo que não lhe dei chance de escapar - acrescentou Paul, olhando para Helen.
- De onde você é, Helen?
- De Sheffield.
- Perto de onde eu cresci, Buxton. Helen concordou com um gesto de cabeça.
- Minha irmã anda por lá nos últimos tempos. Você conhece um lugar chamado Scardale?
Catherine reconheceu o nome, surpresa.
- Claro que conheço Scardale.
- Jan mudou-se para lá alguns anos atrás.
- É mesmo? Mas por que Scardale?
- Uma dessas coisas que acontecem. Minha tia viveu conosco durante anos e, então, herdou uma casa em Scardale de um parente distante de seu falecido marido. Algum primo em segundo grau, algo assim. Quando minha tia faleceu, a casa ficou para nossa mãe. E quando mamãe morreu, três anos atrás, ela deixou-a para nós duas. Sempre esteve alugada, mas Jan achou que seria bom viver no campo, de modo que comunicou aos inquilinos e, depois, retomou a casa. Eu ficaria louca vivendo lá, no meio do nada, mas ela adora. Mas veja, ela viaja muito a trabalho, de modo que, assim, não tem nem tempo de se entediar com o lugar.
- E o que ela faz? - perguntou Catherine.
- Tem uma empresa de consultoria. Trabalha principalmente para grandes multinacionais, executando avaliações psicológicas de executivos e altos funcionários. Está neste ramo há apenas alguns anos, mas tem se saído muito bem. Sabe, não é com qualquer trocadinho que se paga o aquecimento de uma casa como aquela, que mais parece um celeiro.
Havia apenas uma propriedade em Scardale que se ajustava àquela descrição.
- Ela não está morando no Solar Scardale, está?
- Parece que você conhece mesmo o lugar - comentou Helen, rindo.
- É lá mesmo E então, como é que você conhece tão bem um fim de mundo como Scardale?
- Helen - disse Paul, com uma nota de advertência na voz. Catherine deu um sorrisinho torto.
- Houve um homicídio em Scardale quando eu era adolescente. Uma garota foi raptada e morta por seu padrasto. Ela e eu tínhamos a mesma idade.
- Alison Cárter? - perguntou Helen, admirada. - Você conhece o caso Alison Cárter?
- Fico surpresa por você conhecer - comentou Catherine. - Acho que você mal havia nascido quando tudo aquilo aconteceu.
- Ah, mas nós sabemos tudo sobre o caso Alison Cárter, não é, Paul?
- indagou Helen, quase com alegria.
- Não, Helen, não sabemos - disse Paul, parecendo levemente contrariado.
- Está bem, talvez não saibamos muito sobre o caso - disse Hellen, aplacando seu entusiasmo e estendendo a mão para tocar no braço dele. - Mas conhecemos alguém que sabe.
- Esqueça este assunto, Helen. Catherine não está interessada em um homicídio que aconteceu trinta e cinco anos atrás.
- Aí é que você se engana, Paul. Sempre fui fascinada pelo caso. E qual é sua ligação com ele? - Ela fixou o olhar na expressão de desagrado dele. De repente, algo estalou em seu cérebro. Uma vaga semelhança que chamara sua atenção ao se conhecerem, e agora seu nome, ligados ao caso de Alison Cárter. Ela juntou rapidamente as peças do quebra-cabeças. - Espere aí... Você não é o filho de George Bennett, é?
- Ele é - exclamou Helen, triunfante. Paul olhou-a desconfiado.
- Você conhece meu pai? Catherine balançou a cabeça.
- Não, não pessoalmente, mas sei bastante sobre ele, por causa do caso Alison Cárter. Ele fez um trabalho incrível na época.
- Sim, bem, isso foi antes de eu nascer, e papai nunca gostou muito de falar sobre seu trabalho.
- Foi um caso muito importante, sabe? Estudantes de direito ainda precisam estudá-lo, por causa de suas implicações em casos de homicídio sem corpo. E nunca houve nenhum livro sobre o caso. Tudo o que se encontra são artigos de jornal da época e precedentes legais que não nos transmitem a emoção da história. Fico admirada por seu pai não ter escrito suas memórias - disse Catherine.
Paul encolheu os ombros e correu a mão por seus cabelos loiros recém-cortados.
- Não é o tipo de coisa que combina com ele. Lembro-me de que, um dia, um jornalista procurou-o em casa. Eu deveria ter uns dezesseis anos. Este cara disse que cobrira o caso na época e queria que papai cooperasse em um livro contando toda a história, mas papai mandou-o embora sem sequer abrir a porta de todo. Depois, disse à minha mãe que a mãe de Alison já passara por sofrimento suficiente e não merecia que alguém ressuscitasse o caso.
Imediatamente, os instintos jornalísticos de Catherine puseram-se em alerta:
- Mas a mãe de Alison já morreu. Morreu em 95. Não há mais motivo para não falar sobre o caso agora. - Ela inclinou-se para a frente, subitamente animada. - Eu adoraria escrever a história do caso Alison Cárter contada por aqueles que a fizeram. Ela deveria ser contada, Paul. No mínimo porque todos os relatos da época abordaram apenas de leve os abusos sexuais de Philip Hawkin à enteada. Foi um caso muito importante. Não apenas em termos legais, mas em termos de como influenciou a vida de muitas pessoas.
Surpreendentemente, Helen apoiou a ideia:
- Catherine tem razão, Paul. Sabe como alguns jornalistas são inescrupulosos. E você sabe como esses casos históricos vivem reaparecendo. Se seu pai não contar a história, algum espertalhão a publicará na primeira oportunidade depois que ele também morrer e não houver mais ninguém para contradizer uma versão sensacionalista dos acontecimentos. E com nossa Jan morando lá, Catherine poderia penetrar facilmente na aldeia para sentir de perto os eventos.
Paul levantou as mãos, em sinal de derrota. Estava claro que Helen tinha o poder de levá-lo de um estado de espírito quase hostil para a vontade ansiosa de ajudar.
- Tudo bem, meninas. Vocês venceram. Conversarei com meu pai na próxima vez que ligar para casa. Direi que descobri a última jornalista confiável na Europa e que ela quer transformá-lo numa celebridade. Quem sabe eu posso aproveitar um pouquinho a fama dele depois? Agora, quem gostaria de ir ao restaurante do Jacques para comer uns mexilhões?
Uma semana depois, quando já estava em Londres, o telefone de Catherine tocou. O filho conseguira convencer o pai como nenhum estranho seria capaz. George Bennett estaria competindo em um campeonato de golfe para policiais aposentados próximo a Londres na semana seguinte e a encontraria para discutirem a possibilidade de ela escrever um relato sobre o caso de Alison Cárter com base no que ele lhe contasse.
Catherine vestira-se cuidadosamente para o encontro, com seu único conjunto Armani e saltos baixos. Desejava todo apoio que pudesse obter, e concordava com a editora de moda da revista, no sentido de que não havia nada como a soberba moda italiana para fazer com que uma mulher se sentisse no controle de tudo. Levara mais tempo do que sua impaciência exigia, aplicando com cuidado a base hidratante para o rosto, o delineador de olhos e o de lábios e, depois, o batom, até sentir-se satisfeita com sua aparência. A cada ano, gastava mais tempo para atingir aquele nível de satisfação. Algumas de suas colegas já haviam passado por cirurgias plásticas, mas Catherine achava que faziam isso para manterem seus casamentos. Catherine sabia que era muito mais difícil manter alguém ao lado depois que a novidade passava que encontrar alguém disposto a compartilhar alguns momentos de divertida aventura sem pensar no amanhã. Não que tivesse esta espécie de intenção com George Bennett, mas não via problema em fazê-lo sentir-se lisonjeado por dar-se ao trabalho de se esmerar na aparência para encontrá-lo.
Ao vê-lo, Catherine descobriu um homem ainda bastante atraente, o que a deixou ainda mais satisfeita por ter feito aquele esforço. Com cabelos loiros entremeados por fios prateados, sorriso levemente torto e olhos que ainda transmitiam a generosidade de sua alma, apesar de trinta anos na polícia, George Bennett, como Robert Redford, era um homem que já passara de sua fase de glória, mas que transmitia aos outros a sensação vívida de que ainda havia muito brilho e vitalidade em seus anos mais maduros.
E, surpreendentemente, George Bennett parecia disposto a falar. Ela suspeitava de vários motivos para isso. O mencionado por ele era que, agora que Ruth Cárter estava morta, ele se sentia livre para falar sem a preocupação de lhe causar mais dor. Contudo, Catherine imaginou que a aposentadoria não o agradava muito. Depois de se aposentar da polícia como detetive superintendente aos cinquenta e três anos, ele trabalhara como consultor de segurança para várias empresas, mas a crescente incapacidade física da esposa por causa da artrite deformante persuadira-o a abandonar esta atividade um ano atrás. George Bennett não era o tipo de homem que gostava de apreciar a vida de fora, nem parecia ser daqueles que gostavam do anonimato, de ser apenas mais um idoso, irrelevante para o resto da sociedade. Catherine achou que sua sugestão vinha no momento mais oportuno possível.
Quatro meses depois, haviam assinado um contrato para o livro e Catherine negociara uma licença de seis meses de seu emprego. Agora, estava em Scardale, finalmente no palco do drama que moldara sua adolescência.
3
Fevereiro de 1998
George Bennett fitou seu reflexo na janela da cozinha. Os contornos do jardim, do lado de fora, flutuaram por trás dos traços de seu rosto, suavizando alguns dos vincos que os últimos trinta e cinco anos haviam causado. O desaparecimento de Alison Cárter fora o primeiro caso a lhe dar insónia, embora estivesse longe de ser o último. Mas ali estava a garota novamente, roubando-lhe o sono em uma noite gelada de inverno. Cinco e meia da madrugada e nenhuma chance de voltar ao sono abençoado.
A chaleira chiou e ele voltou-se para o brilho claro e frio da cozinha, despejando água fervente sobre o sachê que já colocara na caneca e o remexendo com uma colher até produzir um chá forte. Longos anos de cantinas das delegacias haviam resultado em afinidade pelo sabor amargo do chá de laranja e tanino. Pegou o leite na geladeira e misturou o suficiente dele para esfriar o chá a ponto de poder bebê-lo imediatamente. Depois, sentou-se junto à mesa, puxando seu roupão para junto do corpo, estendeu a mão para o maço de cigarros e acendeu um deles.
Agora que chegara o dia da primeira entrevista real com Catherine para o livro, George arrependia-se de sua decisão. Sempre evitara falar sobre o caso. O nascimento de Paul parecera-lhe um encerramento perfeito, um reinício que lhe permitiria deixar a dor de Ruth Cárter para trás. Obviamente, isso não acontecera com tanta rapidez ou facilidade. O trabalho de rotina na polícia trazia muitos lembretes regulares, impedindo-o de varrer Alison Cárter da área mais acessível de sua memória. Entretanto, ele conseguira manter-se firme em sua decisão de não comentar o caso.
Nenhum de seus colegas entendera a razão para seu silêncio acerca de algo que teriam considerado como um triunfo digno de alarde em qualquer oportunidade. Somente Anne compreendera realmente que, por trás de sua decisão, estava a sensação de fracasso pessoal. Embora tivesse superado problemas tremendos para resolver o desaparecimento misterioso de Alison e tivesse reunido provas suficientes para enforcar o responsável por isso, George ainda era perseguido pela convicção de que fora longe demais em seu trabalho. Ruth Cárter vivera semanas de sofrimento, incerteza e falsas esperanças, agarrando-se à ideia de que a filha ainda poderia estar viva. Não apenas isso, mas Philip Hawkin tivera mais dias de liberdade do que merecera, comendo as refeições preparadas pela esposa, dormindo à noite quando ela permanecia acordada e apavorada, convencido de que seguiria impune pelo assassinato da enteada. George culpava-se por permitir que Hawkin tivesse até mesmo aquele pequeno período de vida tranquila após o que fizera.
Assim, resistira a todas as tentativas de persuadi-lo a falar sobre o caso. Rejeitara ofertas de vários escritores que desejavam rever o caso por meio de suas recordações. Até mesmo aquele escandaloso Don Smart julgara-se no direito de bater em sua porta e exigir seu tempo e seus pensamentos mais íntimos. Não fora difícil rejeitar tal solicitação, pensou George, com um sorriso amargo.
Ironicamente, o amor, que lhe permitira ir em frente, agora o fazia retroceder. Quando Paul contara a ele e a Anne sobre a mudança da irmã de Helen para Scardale, ele soubera que, se o filho tinha intenções tão sérias quanto parecia com esta mulher, mais cedo ou mais tarde sua resolução de jamais voltar ao cenário daquele crime teria de ser revista. Até ali isso não acontecera, mas ele sabia que o divórcio de Helen seria concluído logo e suspeitava que o casal não esperaria muito para se casar. Quando isso acontecesse, fatalmente conheceria a irmã de Helen, sua única parente viva, e não poderia mais evitar Scardale.
Com esta perspectiva pairando sobre sua cabeça, a intercessão de Paul em favor de Catherine Heathcote parecera-lhe um golpe do destino. Era como se os eventos conspirassem para forçá-lo a pensar novamente em Alison Cárter. Ele decidira que não lhe faria mal nenhum apenas encontrarse com a jornalista, para ver se poderia confiar nela. Sua primeira impressão fora a de que era apenas mais uma repórter interesseira, mas, à medida que falavam e ela revelava o impacto do assassinato de Alison Cárter em sua própria vida, ele percebera que jamais encontraria alguém mais apro priado para escrever uma história que, agora, parecia exigir ser contada.
O som familiar de passos que desciam as escadas perturbaram seus pensamentos. Ele ergueu o olhar e viu Anne, que veio ao seu encontro com o rosto inchado de sono.
- Eu a acordei, meu amor? - perguntou ele, virando-se para ligar o fogão novamente.
- Minha bexiga me acordou - disse ela, mal-humorada, movendo-se lentamente até a cadeira no outro lado da mesa. - Além disso, seu lado da cama estava frio, de modo que achei que você poderia desejar companhia.
George levantou-se e serviu a mistura de chocolate maltado e leite que Anne adorava em uma caneca.
- Eu não recusaria - disse, enquanto despejava a água, mexendo, em seguida, com vigor. Ele voltou para sua cadeira e estendeu a caneca para Anne, que a segurou entre seus dedos artríticos, gostando da sensação de calor contra o latejar constante de sua dor reumática.
- Está nervoso pelo encontro de hoje?
- Como seria de esperar - disse George. - Gostaria de não ter concordado.
- Ninguém o culparia por sentir-se nervoso com algo importante assim - disse ela, suavemente. - É inevitável que você queira acertar as coisas e fazer justiça a Alison.
Ele emitiu um pequeno grunhido de menosprezo.
- Meus motivos não são tão nobres, meu amor. Eu desejaria nunca ter concordado com isso porque não quero me expor em um livro como o tolo que fui no caso de Philip Hawkin.
Anne sacudiu a cabeça.
- Você é o único que pensa assim, George. Aos olhos de todo mundo, você foi o herói. Se tivessem uma condecoração em Scardale para coisas assim, já a teriam dado a você no dia em que o júri anunciou o veredicto.
- Talvez. Mas você sabe que nunca medi minhas ações pelo gabarito de outros, apenas por meus próprios critérios, e, de acordo com eles, eu falhei com aquelas pessoas. Eu era parte de um sistema que deixou Alison desamparada, em primeiro lugar, um sistema que não escutou os apelos de uma menina que estava sendo sexualmente abusada. Anne apertou os lábios, com impaciência.
- Agora você está sendo tolo. Na época, ninguém admitia a existência de algo como pedofilia. Certamente não dentro das famílias. Se quer sofrer imaginando que fracassou com Ruth Cárter, o problema é seu, mas eu não vou ficar aqui sentada enquanto você se condena pelos erros da sociedade britânica trinta e cinco anos atrás. Isso é bobagem, George Bennett, e você sabe muito bem.
Ele sorriu, reconhecendo que a esposa tinha razão.
- Talvez. E talvez eu devesse ter falado sobre tudo isso anos atrás. Não é isso o que os psicólogos sempre aconselham? Eles dizem que falar sobre frustrações traz a cura. Mantê-las reprimidas causa todo tipo de psicose.
Anne devolveu o sorriso.
- Como essa sua paranóia de se responsabilizar por todos os males do mundo.
Ele correu a mão pelos cabelos.
- Há outra coisa, também. Terei de exorcizar meus fantasmas pelo bem de Paul e de Helen. Teremos de ir até Scardale um dia desses, para nos encontrarmos com a irmã de Helen, e eu deixei que Scardale se tornasse uma espécie de bicho-papão para mim. Terei de mudar isso ou estragarei tudo para todos. E não quero fazer nada que possa prejudicar a felicidade de Paul. Falar com uma pessoa estranha sobre tudo o que aconteceu talvez me faça bem.
- Acho que você está certo, querido, e não posso negar que estou feliz por você ter finalmente decidido falar sobre Alison. Além de todos os outros motivos, aquilo aconteceu em uma época muito importante em nossas vidas. Muitas vezes, tive de segurar coisas que eu desejava dizer, recordações que queria compartilhar, porque sabia que, se falasse do tempo em que estava grávida, você sempre lembraria que, nesse mesmo período, estava trabalhando no caso de Philip Hawkin. Assim, não lamentarei se o fato de você se abrir para Catherine Heathcote significar que poderei lhe contar sobre algumas das recordações que precisei manter para mim mesma. E Poderei falar não apenas com você, mas também com Paul. Sei que é egoísmo de minha parte, mas adoro esta possibilidade.
Os olhos de George arregalaram-se, em surpresa.
- Eu nem imaginava que você se sentia assim - protestou, sacudindo a cabeça. - Como pude não perceber?
Anne tomou um gole de seu chocolate.
- Porque eu também nunca falei, amor. Mas agora você está aposentado, não faz mais trabalho de segurança e é hora de podermos olhar para nossa vida juntos, sem medo. Ainda temos um futuro, George. Não somos velhos, não pelos padrões de hoje. Esta é nossa chance de nos livrarmos do passado, de uma vez por todas, para que você veja que fez o que era certo e que seus atos fizeram diferença na vida de muitos. - Ela pegou a mão do marido entre suas próprias mãos nodosas. - É hora de perdoar a si mesmo, George.
Ele deu um suspiro profundo e disse:
- Bem, espero que Catherine Heathcote esteja com humor complacente hoje. - Ele bocejou. - Não estarei com muita energia às dez da manhã, a menos que consiga dormir um pouco. - Ele mudou a posição de sua mão, para poder, agora, segurar a da esposa. - Obrigado, meu amor.
- Por quê?
- Por me lembrar que não sou o monstro que imagino ter me tornado, às vezes.
- Você não é um monstro. Bem, exceto quando acorda de ressaca. Tudo dará certo, George. Pelo menos, o passado não nos reserva nenhuma surpresa, não é?
4
Fevereiro/março de 1998
Ao despertar pela primeira vez em sua pequena casa alugada em Longnor, Catherine sentiu um pânico momentâneo por não conseguir recordar onde estava. Deveria estar esparramada em um quarto quente com vidraças altas. Em vez disso, seu nariz estava congelando e ela estava encolhida em posição fetal sob um cobertor estranho, com a única luz vazando pelas bordas de uma fina cortina que cobria uma pequena janela na parede de pedra com mais de trinta centímetros de espessura.
Então, sua memória voltou com um calafrio de excitação que quase eliminou sua irritação contra o sobradinho de pedra gélido pelo qual pagara seis meses adiantados de aluguel. Os proprietários da casa haviam parecido realmente felizes por alugá-la. Pudera! Ninguém em sã consciência alugaria este congelador no inverno, pensou ela, enquanto saltava da cama, tremendo, ao expor as pernas compridas ao frio. Teria de comprar ainda hoje um pijama quentinho e uma bolsa de água quente ou não sobreviveria em Longnor sem uma recaída das frieiras que a torturavam na infância. Ela amaldiçoou os proprietários com adjetivos abundantes e capazes de ser proferidos apenas por um jornalista, e saiu correndo do quarto.
O banheiro era um refúgio bem-vindo. Um aquecedor preso na parede soprou ar quente instantaneamente, e a ducha potente enviou água fumegante. Ela já sabia que a sala-cozinha também se aqueceria rapidamente, graças a uma eficiente estufa a gás. O quarto, porém, era o purgatório. Ao voltar para lá depois do banho, resolveu que, no futuro, se lembraria de se vestir no banheiro.
Enquanto se vestia, lembrou-se de que não dormira em nenhum lugar tão frio desde os tempos da casa de seus pais, em Buxton, antes da instalação do aquecimento central, quando estava com quinze anos. Ela parou de repente, enquanto enfiava o suéter. Se estava tentando recriar a Scardale de 1963, não poderia ter acabado em um lugar melhor. Alison Cárter devia ter crescido acostumada a ter gelo até dentro das janelas de seu quarto, no meio do inverno. E com uma cozinha quente e aconchegante, antes de sua mãe trocar isso pela vida no solar. Catherine não tinha intenção de pesquisar com tanta autenticidade para seu livro, mas já que isto lhe estava sendo dado de bandeja, aceitaria e seria grata pela oportunidade. Além disso, estava a menos de cem metros da casa de Peter Grundy. Tinha certeza de que o policial aposentado de Longnor poderia tornar-se uma fonte preciosa de informações e, além disso, poderia ajudá-la a penetrar com mais profundidade na vida da aldeia. Ela sabia bem como os bares de cidades muito pequenas podiam ser hostis com aqueles vistos como forasteiros, e ela não desejava passar seis meses sem conversar com ninguém à noite. Mesmo se fosse apenas sobre o preço do gado.
Durante seu desjejum de café preto e sanduíche de bacon, ela folheou os recortes xerocados que descobrira depois de muito trabalho no arquivo nacional de jornais em Colindale. Não precisaria muito deles hoje, mas não lhe faria mal dar uma repassada no material para descobrir exatamente a forma que daria à série de entrevistas que faria com George Bennett. Eles haviam concordado que se reuniriam durante duas horas a cada manhã. Isto lhe daria tempo para transcrever as fitas gravadas das entrevistas e não perturbaria demais a vida dos Bennetts. A última coisa que desejava era encher-lhes a paciência com invasões constantes em sua rotina. Nada secaria o poço de lembranças de George com tanta rapidez quanto isso.
Meia hora depois, ela emergiu de um túnel de árvores, no centro da aldeia de Cromford. Seguindo as instruções de George, virou à direita no lago do moinho e cruzou a colina, fazendo a curva aguda à esquerda que dava na entrada da casa do detetive aposentado. Ao desligar o carro, a porta da frente já se abria. George estava ali, emoldurado pelo batente e com uma das mãos levantadas em um aceno. Vestindo calças cinza-escuras, um casaco de lã azul-marinho e camisa pólo em tom claro de cinza, ele parecia um modelo para roupas de tricô para homens maduros. Catherine pensou que só o que faltava era um cachimbo preso entre seus dentes para vê-lo como James Stewart em A Felicidade Não se Compra para maiores de sessenta anos.
- Prazer em vê-la, Catherine - disse ele em voz alta.
- Igualmente, George. - Ela tremia ao entrar na sala quente. - Eu havia esquecido como o clima pode ser cruel nesta época do ano por aqui.
- Isso me leva ao passado - disse ele, guiando-a pelo corredor acarpetado, até uma sala que se parecia com um show-room em uma loja de móveis. Tudo era elegante, até moderno, mas curiosamente sem personalidade. Até mesmo os pósteres emoldurados de pinturas de Monet pareciam insignificantes, em vez de indicarem bom gosto. Nem um único jornal largado em algum lugar perturbava a limpeza asséptica da sala, que cheirava a desodorizador floral. Se os Bennetts chegavam a exibir sua individualidade, não era em sua sala de estar.
- Estava frio assim quando Alison Cárter desapareceu - continuou George. - O clima fez com que eu desejasse, desde o início, que a menina tivesse sido raptada. Assim, haveria uma chance de podermos trazê-la de volta. Eu sabia que ela nunca sobreviveria a uma noite ao relento com esse tempo.
George fez um gesto na direção de uma poltrona que parecia firme e confortável.
- Fique à vontade. - Ele foi até a cadeira oposta. Catherine percebeu que ele tomara para si a poltrona que colocava a luz às suas costas e sobre ela, imaginando se era a escolha deliberada de um policial ou se ele apenas escolhera a poltrona em que sempre se sentava. Sem dúvida, ela poderia descobrir a resposta, após algumas sessões. - E então, como você quer fazer?
Antes que pudesse responder, uma mulher idosa entrou na sala, com cabelos grisalhos e curtos emoldurando um rosto envelhecido precocemente pelas rugas que o sofrimento escavara. Ela portava-se com a rigidez de alguém para quem os movimentos haviam se tornado apenas uma necessidade dolorosa. Até mesmo do outro lado da sala Catherine podia perceber os dedos enodoados e retorcidos com os caroços da artrite reumatóide. Contudo, o sorriso naquele rosto ainda era genuíno, dando aos olhos azuis um brilho de animação.
- Você deve ser Catherine! Que prazer conhecê-la. Sou Anne, esposa de George. Não vou atrapalhar suas entrevistas, a não ser para perguntar se você prefere chá ou café.
- O prazer é meu. Obrigada por permitir que eu invada sua casa assim - disse Catherine, calculando as probabilidades de conseguir um café decente em um lar inglês habitado por duas pessoas na casa dos sessenta anos. - Aceito um chá, obrigada. Bem fraco, sem leite nem açúcar - disse, imaginando que deste modo não teria surpresas. Alguns meses de café ruim seriam algo bem pior.
- Chá, então - disse Anne.
- Senhora Bennett, se quiser sentar-se conosco em algumas entrevistas, sinta-se à vontade. Eu ficaria muito grata se pudesse conversar com a senhora de vez em quando, para ter uma imagem completa sobre sua vida como esposa de um policial, quando seu marido investigava um caso tão complexo.
Anne sorriu.
- Claro, podemos conversar. Mas deixarei as entrevistas para você e George. Não quero atrapalhar o estilo dele e, além disso, tenho muito com que me ocupar. Agora, vou preparar seu chá.
Catherine tirou seu gravador da bolsa enquanto Anne saía, colocando-o sobre a mesa, entre os dois.
- Pretendo gravar as entrevistas, para diminuir as chances de cometer erros. Assim, se você quiser falar algo que não possa ser publicado, algo que sirva apenas para minha informação, por favor, deixe isso bem claro enquanto estivermos falando. Além disso, se você tiver dúvida sobre algo, deixe isso claro também. Assim, poderei fazer uma lista de pontos que precisam ser conferidos.
George sorriu.
- Tudo parece bem organizado. - Ele pegou um maço de cigarros do bolso e acendeu um, tirando um cinzeiro de dentro de uma gaveta na mesinha ao seu lado. - Espero que você não se importe por eu fumar. Reduzi bastante desde que me aposentei, mas ainda não consegui parar totalmente.
- Não há problema. Faz mais de doze anos que não fumo, mas ainda me vejo como uma fumante que deu um tempo com os cigarros, em vez de como uma ex-fumante. Sempre fico perto dos fumantes, nas festas. Em geral são as pessoas mais interessantes - disse, sorrindo, com sinceridade. Então, inclinou-se para a frente e apertou o botão para começar a gravar. - Provavelmente não chegaremos ao caso hoje. Gostaria de começar obtendo algumas informações pessoais a seu respeito. A maior parte disso não será publicada, mas acho importante formar uma imagem a seu respeito e de como se tornou esta pessoa, para escrever sobre seu trabalho nesse caso com o tipo de conhecimento e empatia que desejo usar. Além disso, falarmos um pouco sobre você serve para entrarmos gradualmente na história. Talvez você esteja um pouco nervoso por abordar os detalhes do caso depois de tantos anos, e quero que se sinta tão confortável quanto possível. Claro que, como policial, você está muito mais acostumado a fazer perguntas que a respondê-las. E então, podemos começar por você?
- Claro - respondeu George, sorrindo. - Terei prazer em responder a tudo o que você quiser saber. - Ele fez uma pausa, enquanto Anne entrava, movendo-se lentamente com uma bandeja e duas canecas. - Uma coisa eu lhe digo desde já. Foi por causa desta mulher que não terminei em um hospício depois de trinta e tantos anos na polícia de Derbyshire. Anne é meu rochedo, minha força.
Anne fez uma careta, enquanto pousava a bandeja na mesinha de centro.
- Você é um adulador, George Bennett. Na verdade, o que você quer dizer é: Anne é minha cozinheira, secretária e faxineira - falou, com um sorriso para Catherine.
Era óbvio que aquela era uma brincadeira familiar entre o casal. George acrescentou:
- Ela precisou ter artrite para que eu lhe desse uma mãozinha no serviço doméstico.
- Bem, eu precisava mesmo fazer algo - disse Anne, secamente. - Se não, você acharia que a aposentadoria significa que pode parar de fazer absolutamente tudo. Agora, pare com as bobagens e diga a Catherine o que ela precisa saber. Trarei biscoitos e, depois, só os verei quando tiverem terminado.
Assim começou o padrão dos dias que duraram de fevereiro a março. Catherine começava cada dia lendo a seção de seus recortes de jornal que envolvia a parte do caso sobre a qual haviam conversado. Depois do café da manhã, ela dirigia até Cromford, pensando nas perguntas que faria para extrair mais revelações de seu entrevistado.
Então, ela conduzia George gentilmente pelo caso, retrocedendo com paciência para capturar um determinado detalhe sobre o clima, odores ou paisagem, impressionada com o anseio dele para garantir o máximo de fidelidade em cada ponto. Ele demonstrava uma memória quase fotográfica para o caso Alison Cárter, embora afirmasse que não recordava tão bem outras investigações que fizera posteriormente.
- Suponho que me tornei um pouco obcecado por Alison - dissera ele no começo das sessões de entrevista. - Ah, sei que foi o meu primeiro grande caso, e estava determinado a mostrar que era capaz de resolvê-lo, mas havia algo mais. Acho que teve algo a ver com saber sobre a gravidez de Anne logo no começo daquela investigação. Eu estava atormentado pela preocupação, imaginando como me sentiria se aquilo acontecesse com um filho meu, de modo que não queria fracassar.
- Essa, pelo menos, era a minha maior motivação - continuou. - Não sei quanto a Tommy Clough, mas ele demonstrou tanto envolvimento com cada etapa deste caso quanto eu. Ele trabalhou ainda mais que eu, e foi sua persistência com a polícia de Hertfordshire que nos trouxe a prova mais importante, a ligação de Hawkin com a arma usada para matar Alison. Sabe, é esquisito, mas nunca mais conversei direito com ele depois que Hawkin foi enforcado. Tommy ainda estava em Buxton, mas eu já me mudara para Derby. Combinamos encontros algumas vezes, mas o trabalho sempre impediu que se concretizassem. E então, alguns anos depois do assassinato de Alison, ele pediu demissão e se mudou.
- Para onde? - indagou Catherine. Ela já fizera a mesma pergunta a Peter Grundy no bar, certa noite, mas ele lhe dissera que ninguém sabia. Era como se Tommy Clough tivesse desaparecido sem deixar rastros, como Alison.
Mas George sabia.
- Ele está em Northumberland, uma cidadezinha litorânea minúscula. Ele trabalhou durante alguns anos como fiscal da RSPB
, mas agora está aposentado, como eu. Nunca se casou, de modo que não tem alguém como Anne para fazê-lo ir em frente. Trocamos cartões de Natal, e aí se encerra nosso contato. Acho que sou o único da polícia com quem ele ainda mantém contato. Posso lhe dar o endereço. Talvez ele queira falar sobre Alison. Duvido um pouco, mas você me fez falar, não é? - Ele sorriu.
E assim continuaram as entrevistas, com um assunto levando naturalmente a outro, enquanto as manhãs passavam rapidamente. Depois de sair da casa de George, Catherine desenvolveu rapidamente uma rotina. Parava no caminho em um bar na estrada para Ashbourne onde almoçava e chegava em casa às duas horas. A tarde e o começo da noite eram dedicados à transcrição das fitas, uma tarefa que considerava monstruosamente enfadonha, apesar de seu fascínio com o material que juntava gradualmente. De meia em meia hora, ela dava um telefonema breve ou trocava e-mails com alguém, para preservar sua sanidade.
Com o trabalho terminado para aquele dia, ela aquecia uma das refeições prontas que comprava em um supermercado de Buxton. Depois, ficava uma hora junto à estufa, com sua própria revista ou da concorrência, armada com um bloco para anotações. Finalmente, terminava o dia bebendo alguma coisa no bar mais próximo. Isto geralmente envolvia pagar um drinque também para Peter Grundy, mas Catherine não se importava, uma vez que ele já lhe oferecera informações preciosas sobre a vida em Scardale e suas famílias. Além disso, ela gostava de sua companhia.
Ela via este estilo de vida como curiosamente satisfatório. O trabalho era fascinante, levando-a de volta a um mundo ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Quanto mais detalhes descobria sobre o caso, mais crescia seu respeito por George Bennett. Ela não tinha ideia daquilo que ele precisara enfrentar para levar Hawkin à justiça, tanto dentro quanto fora da polícia. Nunca tivera uma opinião particularmente favorável sobre policiais, mas George transformava gradualmente este preconceito.
Ela também se sentira nervosa por estar tão perto de sua casa, quase supersticiosamente temerosa de que, de algum modo, a vidinha tão limitada de cidade do interior, que tanto se esforçara por deixar, pudesse envolvê-la novamente. Em vez disso, descobrira uma estranha paz no ritmo de seus dias e noites. Não que desejasse viver assim para sempre, lembrava a si mesma, com energia. Afinal de contas, tinha uma vida à sua espera, longe dali. Agora, vivia apenas um agradável interlúdio, nada mais.
E o que mais poderia ser?
5
Abril de 1998
Catherine esquecera-se do quanto a primavera demorava a chegar por ali. Para qualquer um que vivesse na região dos picos de Derbyshire, abril trazia alívio, após os rigores do inverno. Bulbos que haviam florescido um mês antes, a algumas dezenas de quilómetros dali, na planície de Cheshire, finalmente irrompiam do solo. Árvores produziam botões tímidos e a grama cortada pelos carneiros lembrava novamente a cor verde.
Em Scardale, as primeiras folhas começavam a surgir em arvoredos e bosques, enquanto Catherine entrava na aldeia. Sentia-se quase triste por ter completado suas entrevistas iniciais com George, e o dia de hoje marcava o início da segunda fase de seu projeto. Catherine nunca pretendera tornar seu livro apenas um registro das recordações de George Bennett. Sempre planejara entrevistar o máximo possível de pessoas ligadas ao caso. Não lhe ocorrera, porém, que muitos relutariam em compartilhar suas recordações. Para sua surpresa, quase todos os Carters, Crowthers e Lomas haviam recusado terminantemente qualquer participação no projeto.
Entretanto, ela conseguira marcar uma entrevista com Kathy Lomas, tia de Alison. Talvez não tivesse muita importância que os outros parentes a tivessem rejeitado, já que, de acordo com George, Kathy sempre fora a pessoa mais íntima de Ruth. Só isso já lhe serviria como motivo para desejar conversar com a mulher. Entretanto, havia uma segunda razão para sua ansiedade hoje.
Apesar de Helen ter preparado o caminho com sua irmã, Catherine ainda não estivera dentro do Solar Scardale. A resposta ao seu pedido viera por uma carta do advogado de Janis Wainwright, que lhe dizia que sua cliente planejava fazer diversas viagens no fim do inverno e começo da primavera, e que, portanto, trabalharia em casa no restante do tempo, quando pretendia não ser perturbada. O advogado sugerira que, uma vez que a senhorita Wainwright não podia dizer nada a Catherine sobre o caso Alison Cárter, a melhor solução, que serviria aos propósitos do livro e não perturbaria a agenda cheia de Janis, era uma visita da escritora por conta própria ao solar, em uma das ocasiões em que a proprietária não estivesse em casa.
Catherine concordou com a sugestão do advogado, já que esta era a única maneira de entrar no solar. Finalmente hoje ela veria o interior da herança de Philip Hawkin. Melhor ainda: teria um guia que poderia revelarlhe onde havia sido o quarto de Alison, o estúdio de Hawkin e, além disso, descreveria a decoração daquela época.
Era impossível não especular sobre a mulher que estava prestes a conhecer. George Bennett pintara-a como uma mulher briguenta e controladora, sem respeito pela polícia, que constantemente o importunava, quando achava que tinha motivos. Peter Grundy descrevera-a como uma mulher que vivia à sombra do que poderia ter sido e não foi.
Com Peter, ela também vislumbrara alguns dos fatos da vida de Kathy Lomas. A tia de Alison vivia sozinha, atualmente. Seu marido, Mike, morrera cinco anos antes em um acidente na fazenda, pisoteado por um touro furioso. Seu filho, Derek, saíra de Scardale para cursar a universidade em Sheffield e tornara-se agrónomo, trabalhando para as Nações Unidas. Kathy, agora na casa dos sessenta anos, criava carneiros em Scardale. Ela transformava a lã em fios e, depois, fazia suéteres caros em uma máquina de tricotar que, de acordo com a esposa de Peter Grundy, tinha mais controles que uma nave espacial.
Kathy e Ruth Cárter eram primas, com diferença de menos de um ano em idade, ligadas pelo sangue dos lados tanto materno quanto paterno. Haviam crescido e se transformado em mulheres e mães lado a lado. O filho de Kathy, Derek, nascera apenas três semanas depois de Alison. As histórias das famílias estavam muito ligadas. Se Catherine não pudesse obter o que pretendia com Kathy Lomas, provavelmente não obteria de mais ninguém. E se a mulher era tão difícil quanto George dizia, precisaria ser abordada com extrema habilidade.
Catherine estacionou junto à Casa da Cotovia, construída no século XVIII, onde Kathy vivia desde seu casamento, dezenove anos antes do desaparecimento de Alison. A mulher que abriu a porta ainda mantinha-se ereta e parecia forte. Tinha os cabelos grisalhos, presos com grampos em um coque no alto da cabeça. Isto, juntamente com as bochechas rosadas, fazia com que se parecesse com uma personagem de filme, algo como uma matrona típica e saudável do interior. Apenas seus olhos desmentiam sua aparência alegre. Eram frios e críticos, fazendo com que Catherine se sentisse examinada e avaliada em todos os sentidos, além do financeiro.
- Então você é a escritora - cumprimentou-a Kathy, virando-se para tirar do gancho junto à porta uma capa surrada. - Acho que você vai querer dar uma olhada no solar primeiro. - Seu tom não dava espaço para nenhuma outra sugestão.
- Seria ótimo, senhora Lomas - disse Catherine, andando ao lado da mulher idosa enquanto cruzavam a praça, rumo ao solar. - Sou muito grata por ceder seu tempo para me ajudar. - Ela amaldiçoou-se por mostrar-se efusiva demais.
- Não estou cedendo meu tempo para você - disse Kathy, sem nenhuma gentileza. - É pela memória de Alison. Penso nela com frequência. Era uma ótima garota. Imagino a vida que teria se tudo tivesse sido diferente. Eu a vejo trabalhando com crianças. Uma professora ou, talvez, pediatra. Algo positivo e útil. E então acordo para a realidade.
Ela fez uma pausa na porta do solar e fixou o olhar duro em Catherine.
- Se eu pudesse voltar no tempo e mudar algo em toda a minha vida, seria aquela noite de quarta-feira - disse, com amargura. - Eu não deixaria Alison sair das minhas vistas. Não adianta nada me dizer para não ficar me culpando. Sei que Ruth Cárter foi para o túmulo imaginando como poderia ter mudado as coisas, e eu irei para meu próprio túmulo pensando o mesmo quando chegar minha hora. Atualmente, minha vida parece conter muitos remorsos. Como é que se diz mesmo? Ah, que não adianta chorar sobre o leite derramado. Bem, já passei muitos anos pensando no que não fiz e não disse. O problema é que o único lugar em que poderei pedir perdão a quem importa é no túmulo. E é por isso que estou disposta a lhe contar como foi, senhora Heathcote.
Ela tirou uma chave de seu bolso e destrancou a porta, levando Catherine até a cozinha. A nova proprietária certamente não economizara ao reformar aquele cómodo. Os armários de pinho e o balcão mostravam a patina que os distinguia como antiguidades, não alguma reprodução moderna. Os tampos dos móveis eram um misto de mármore e madeira tratada. Além de um fogão Aga verde-escuro, havia um refrigerador-freezer com portas duplas e uma lavadora de louças. Catherine viu uma pequena pilha de jornais na ponta da mesa da cozinha. O jornal de cima trazia a data de dois dias atrás. Então Janis Wainwright partira recentemente, pensou ela. Apesar disso, a cozinha tinha o ar vazio de um local desocupado há muito tempo.
- Aposto que não era assim em 1963 - disse, em tom seco. Kathy Lomas sorriu, finalmente.
- Tem razão.
- Pode me contar como era?
- Acho que é melhor fazer um chá primeiro.
- Estou contente porque a senhorita Wainwright permitiu que eu viesse aqui. Você sabe que a irmã dela está noiva do filho de George Bennett?
- Ah, sim. Este mundo é pequeno mesmo. - Ela encheu a chaleira.
- Conheci Helen em Bruxelas - continuou Catherine. - É muito gentil. Que pena sua irmã não estar.
- Ela viaja muito, e duvido que desejasse se envolver em um livro sobre um homicídio - disse Kathy, em tom repressor, tirando duas canecas de um armário e colocando-as bruscamente sobre o balcão.
Catherine cruzou a cozinha até a janela que dava para a praça da aldeia. Ela imaginou as horas vazias que Ruth Cárter devia ter passado, esforçando-se em vão para ouvir o som dos passos da filha chegando em casa.
Como se lesse seus pensamentos, Kathy falou:
- Algo, em meu íntimo, transformou-se em pedra naquela noite, quando vi os policiais chegando à praça da aldeia. Se eu corresse o risco de esquecer, os pesadelos tratariam de me fazer lembrar. Ainda não consigo ver um uniforme de policial na aldeia sem me sentir nauseada.
Ela voltou-se para coar o chá.
- Aquela noite mudou tudo, não? - indagou Catherine, ligando disfarçadamente o gravador dentro do bolso de seu casaco.
- Ah, sim, mudou mesmo. Pelo menos tínhamos um detetive como George Bennett ao nosso lado. Se não fosse por ele, aquele bastardo do Hawkin poderia ter saído impune. Esta é a outra razão pela qual eu desejava falar com você. Já é hora de George Bennett receber o crédito que merece pelo que fez por Alison.
- A senhora é uma das poucas pessoas em Scardale que parece pensar assim. A maioria dos seus parentes não vê as coisas desse modo. Exceto por Janet Cárter e Charlie, que está em Londres, ninguém mais quis falar comigo - observou Catherine, ainda esperando poder recrutar a ajuda de Kathy para soltar a língua dos demais.
- Bem, não posso mandar na vontade dos outros. Eles têm suas razões. Nem posso dizer que os culpo por não desejarem revirar o passado. Nenhum de nós tem boas recordações daquela época. - Ela despejou o chá de uma chaleira de barro em duas canecas do mesmo material. - E então? Você quer saber como era este lugar?
Durante uma hora, as duas percorreram todos os cómodos, enquanto Kathy oferecia descrições detalhadas sobre os móveis e a decoração e Catherine tentava recriá-los em sua imaginação, surpresa por não ter qualquer sensação sinistra enquanto era levada pela casa. Chegara a imaginar que, de algum modo, os eventos que haviam levado à morte de Alison Cárter pudessem ter impregnado as paredes do Solar Scardale, deixando seus fantasmas no ar como partículas de poeira. Contudo, não havia nada parecido ali. Aquela era simplesmente uma casa antiga e que, embora reformada com criatividade e muito dinheiro, jamais seria particularmente notável. Até mesmo o anexo usado por Philip Hawkin como laboratório fotográfico era bastante ordinário. Agora, servia apenas como depósito para ferramentas de jardinagem e móveis velhos, nada mais que isso.
Ainda assim, o tour foi produtivo para Catherine, permitindo-lhe colocar seu conhecimento sobre os eventos contra um fundo concreto. Ela disse isso a Kathy Lomas, enquanto ela trancava novamente a porta da frente e as duas voltavam à Casa da Cotovia para a entrevista formal.
- Ah, sim. Bom, é melhor mesmo não cometer nenhum erro no livro. Agora, o que você queria me perguntar?
No fim, o testemunho de Kathy acrescentou pouco ao que George já lhe contara. Seu valor estava principalmente no conhecimento mais íntimo que a mulher possuía sobre as pessoas envolvidas no caso. Ao cair da tarde, Catherine sentia que finalmente conhecia Ruth Cárter e Philip Hawkin o suficiente para escrever convincentemente sobre eles. Isto já valia a ida até Scardale.
- Depois de mim, você falará com Janet - comentou Kathy, enquanto Catherine anotava os detalhes de identificação na última microfita cassete.
- Isso mesmo. Ela disse que preferia conversar comigo à noite.
- Sim. Janet trabalha o dia inteiro e prefere guardar os fins de semana para ela e Alison. - Kathy levantou-se e juntou as canecas que haviam usado.
- Alison? - perguntou Catherine, erguendo subitamente a cabeça.
- Sua filha. Nossa Janet nunca se casou. Desperdiçou a juventude com um homem casado. Depois, engravidou quando estava com trinta e cinco anos, em uma idade na qual já não deveria fazer asneiras. O pai é algum americano que ela conheceu em um hotel em que estava hospedada por causa de uma conferência. De qualquer forma, ele voltou para Cincinnati antes que Janet descobrisse a gravidez, de modo que ela criou a menina sozinha.
- Deu o nome de Alison à filha?
- Sim. É como eu disse. Alison não foi esquecida em Scardale. Olhe, Janet teve sorte. Ela tinha a mãe para cuidar de sua filha de graça, de modo que conseguiu continuar fazendo de conta que era uma mulher livre e batalhadora. - Havia uma nota surpreendente de crítica na voz de Kathy. Catherine imaginou se ela sentia rancor por ter sido deixada pelos filhos, que moravam longe, e ter negada a chance de cuidar dos netos, ou se apenas condenava Janet por ter feito o que fez.
- E o que ela faz?
- Administra a filial de uma construtora em Leek. - Kathy olhou para fora da janela, na qual as cortinas ainda estavam abertas, apesar da escuridão da noite. As luzes de um carro surgiram no fim da estrada. - Acho que ela chegou. É melhor você ir então.
Catherine levantou-se, ainda sentindo-se confusa com as mudanças imprevisíveis de humor de Kathy Lomas, que passava de confidências à frieza total.
- A senhora me ajudou muito.
Kathy apertou os lábios estreitos por um instante e disse:
- Bom. Tudo isso foi... interessante. É, interessante. Contei-lhe coisas que já havia esquecido que sabia. E então, quando poderemos ler seu livro?
- Infelizmente, não antes de junho - disse Catherine. - Mas assim que a versão final estiver disponível, tratarei de lhe enviar um exemplar.
- Faça isso, garota. Não quero ver algum repórter batendo em minha porta e fazendo perguntas sobre um livro que nunca li. - Ela abriu a porta da frente e deu passagem a Catherine. - Diga a Janet que ela me deve meia dúzia de ovos.
A porta já se fechara quando Catherine chegou ao fim da trilha. Vacilando um pouco no escuro, ela virou à direita e passou pela Casa do Outeiro, onde Charlie Lomas vivera com sua avó, e entrou na trilha curta que levava à Casa do Condado, onde Janet Cárter crescera com seus pais e três irmãos. De acordo com Peter Grundy, os pais haviam vendido a propriedade à filha três anos antes, quando decidiram mudar-se para a Espanha por causa do clima. Catherine nunca imaginaria viver na casa onde havia crescido. Sua infância havia sido feliz, mas não deixara escapar a chance de ter liberdade e oportunidades em Londres.
Fosse qual fosse a razão para Janet Cárter desejar continuar em Scardale, Catherine teve certeza de que não havia sido por sentimentalismo, ao ver o interior da casa. Todo o andar térreo havia sido convertido em um único espaço contínuo, rompido apenas pela lareira. Sendo uma das casas mais novas de Scardale - construída provavelmente no começo da era vitoriana, como explicou Janet -, o pé-direito era mais alto, de modo que a eliminação das paredes criara uma sensação impressionante de espaço. Em uma ponta do salão, havia um espaço reservado à pequena cozinha funcional, com unidades de aço inoxidável que refletiam os múltiplos tons de cinza das paredes expostas de pedra. A extremidade oposta era um espaço social dominado pelas cores ricas de quadros e tapetes indianos. No meio, havia uma grande mesa de pinho, que parecia servir duplamente para refeições e trabalho. Uma adolescente estava sentada ali, olhando para a tela de um computador com grande atenção. Ela olhou apenas de relance quando Catherine entrou.
- Mas isto aqui é maravilhoso - exclamou Catherine, sem conseguir conter-se.
- Incrível, não é? - Os traços de Janet haviam se tornado ainda mais felinos com a idade. Seus olhos amendoados formavam vincos nos cantos enquanto ela sorria, alegre. - Todos ficam surpresos quando vêem a minha casa. É muito mais convencional no piso de cima, mas eu queria que o térreo fosse totalmente diferente.
- Janet, é impressionante. Nunca vi algo assim em casas antigas como a sua. Você me deixaria fazer uma matéria com fotografias de sua casa para minha revista?
Janet lançou-lhe um sorriso afetado.
- Pagariam por isso, não é?
O sorriso que Catherine lhe devolveu em resposta não tinha nada de amável.
- Talvez a revista possa dar um jeito nisso. Desculpe-me se não posso lhe pagar pela entrevista para o livro. Mas, sabe, editores... bem, editores economizam cada centavo que podem. - O que desejaria dizer era que não tinha a mínima intenção de oferecer nada de seu adiantamento generoso para alguém tão obviamente gananciosa, imaginando até onde Janet Cárter espremera os pais para conseguir pagar-lhes o mínimo possível pela casa.
As duas ajeitaram-se em um sofá baixo e Janet serviu vinho tinto em copos pesados de vidro, fazendo um gesto vago na direção da filha.
- Ignore Alison. Ela não ouvirá uma palavra do que dissermos. Ela chega da escola, enfia algo pronto no microondas e, então, perde-se no ciberespaço. Está agora com a mesma idade de Alison e eu em 1963. Quando olho para a minha Alison, tenho as mesmas preocupações que minha própria mãe deve ter tido, embora minha vida seja muito diferente da que ela teve.
- Tudo mudou no dia em que Ali desapareceu - recordou Janet, começando como quem está pronta para uma longa conversa. - Suponho que nunca entendi como aquilo foi horrível para minha tia e meus pais até ter minha própria filha. Eu só sabia que Alison havia desaparecido, mas certamente nunca me passou pela cabeça que deveria preocupar-me por mim também. Os adultos, além de toda a ansiedade sobre Ali, devem ter sentido um imenso temor de que ela pudesse ter sido apenas a primeira vítima, de que nenhum de seus filhos estava em segurança.
- Lembre-se de que, na época, as crianças não participavam de assuntos dos adultos. Não líamos jornais, nem acompanhávamos os noticiários, a menos que houvesse algo sobre cantores ou astros de cinema. Assim, ignorávamos completamente que duas crianças já haviam desaparecido tão perto daqui, em Manchester. A única coisa que sabíamos era que o desaparecimento de Alison limitara nossa liberdade, e esta experiência foi muito estranha para nós em Scardale.
Catherine assentiu, dizendo:
- Sei exatamente o que você quer dizer. Em Buxton, nós sentimos a mesma coisa. De repente, éramos tratados como porcelana frágil. Por onde quer que andássemos, precisávamos ter um adulto ao nosso lado. Minha mãe não me deixava nem levar o cachorro para passear no bosque próximo se não houvesse um adulto para me acompanhar. Isso é irónico quando pensamos que o perigo estava dentro da casa de Alison. Mas deve ter sido mil vezes pior para você, com todo o medo e ansiedade bem ali, na casa de sua tia.
- É verdade - disse Janet, emocionada. - Estávamos acostumados a andar livremente pelo vale. Nunca estávamos dentro de casa no verão, e mesmo no inverno íamos até as colinas ou seguíamos o curso do Scarlaston até Denderdale, ou simplesmente ficávamos pelo matagal, nos divertindo. Como Derek, Alison e eu éramos praticamente da mesma idade, andávamos sempre juntos. E então, de repente, éramos somente Derek e eu, e não podíamos sair de casa. Como prisioneiros. Meu Deus, como aquilo foi difícil para nós.
- As pessoas se esquecem de como era ser um adolescente no começo dos anos 60 - disse Catherine, lembrando-se vividamente do papel enorme que o tédio tivera em sua própria adolescência.
- Especialmente em um lugar como Scardale - disse Janet. - Eu ia à escola e todas as minhas amigas só falavam sobre programas de televisão, sobre idas ao cinema ou com quem haviam dançado no baile da igreja. Nós não tínhamos nada disso. Todos riam de nós, porque aqui em Scardale não tínhamos a menor ideia do que acontecia no resto do mundo. Não era como se marchássemos em um ritmo diferente. Era como se estivéssemos paralisados em relação às outras pessoas. Bem, você sabe disso, se frequentou uma escola em Buxton.
Catherine concordou:
- Eu estava um ano adiante de você, mas lembro que não riam apenas das crianças de Scardale. Qualquer um que morasse em outra cidade também ria de nós, que morávamos em Buxton.
- Posso imaginar. As crianças sabem ser cruéis umas com as outras. E, comparado com o que nos aconteceu depois do desaparecimento de Alison, ser xingado era o menor de nossos pesadelos. Quando recordo as semanas que se seguiram ao desaparecimento de Alison, o que mais me lembro é de Derek e eu, sentados em meu quarto, escutando a rádio Luxemburgo naquele imenso rádio que tínhamos. A recepção era horrível, cheia de estática e ecos. Além de tudo, quase congelávamos por aqui, pois isso tudo aconteceu bem antes de instalarmos aquecimento central em nossas casas. Sentávamos no quarto, com nossos casacos de inverno. Mas mesmo hoje em dia, certas canções me fazem voltar no tempo, como Needles and Pins, do The Searchers, Anyone Who Had a Heart, de Cilla Black, World Without Love, de Peter e Gordon, e
Want To Hold Your Hand, dos Beatles. Sempre que as escuto, vejo-me outra vez em meu quarto, sentada sobre meu cobertor cor-de-rosa, e Derek sentado no chão, de costas para a porta, abraçando os joelhos. E sem Alison.
- Quando se é criança - continuou -, certas coisas parecem imutáveis. Passamos o dia inteiro na companhia de alguém, e jamais pensamos que, um dia, podem não estar mais ali. De certo modo, sinto-me feliz por você escrever este livro. Muitos de nós perderam alguém e não há nada para provar que um dia estiveram aqui, exceto nossas lembranças sobre eles. Pelo menos poderei pegar seu livro e saber que Ali esteve mesmo conosco. Não o bastante, mas ela esteve aqui.

6
Maio de 1998
George Bennett parou para respirar, com as mãos nos quadris, enquanto sorvia o ar morno e úmido. Seu filho esperava-o alguns passos à frente, apreciando a vista espetacular proporcionada pelas Colinas de Abraão, cruzando o desfiladeiro profundo escavado pelo rio Derwent até o perfil dramático do parque Riber Castle, sobre o monte. Haviam tomado o teleférico em Matlock Bath até o pico, e agora caminhavam pela crista arborizada rumo a uma trilha sinuosa que os levaria gradualmente de volta até o rio, lá embaixo.
Paul jamais conseguiria contar o número de caminhadas que já fizera com o pai ao longo dos anos. Assim que se tornara capaz de acompanhar seus passos, George levara-o para caminhar nos vales e picos de Derbyshire. Parte desses passeios estava gravada em sua memória, como a escalada do Mam Tor no dia anterior a seu décimo sétimo aniversário. Outros haviam desaparecido, aparentemente sem deixar rastros, reaparecendo apenas quando ele voltava ao local com Helen, ocasionalmente. Quando vinha sozinho à Inglaterra, como ocorrera neste fim de semana, ainda gostava de subir as colinas com seu pai, embora atualmente George preferisse caminhos menos íngremes e não se dispusesse mais a loucas aventuras ao acaso, como ocorrera quando era mais jovem e capaz.
Paul voltou-se para olhar o pai, que havia recuperado o fôlego, embora seu rosto ainda estivesse rubro pelo esforço do trecho pequeno, mas íngreme, que haviam completado.
- Você está bem? - perguntou.
- Não se preocupe - disse George, endireitando-se e indo até ele. - Só não sou mais tão jovem. Apesar disso, esta vista vale a pena.
- Sinto saudade disso, vivendo em Bruxelas. Fiquei mal-acostumado, tendo crescido perto de lugares como este. Lá, se desejamos fazer trilha em um monte decente, precisamos dirigir por horas. Então, geralmente, não nos damos ao trabalho. E exercitar-se em uma academia não tem graça quando lembro disso aqui - falou, com um gesto amplo na direção do horizonte.
- Pelo menos dentro da academia você não pega chuva - disse George, apontando para as nuvens ao longe, com a sombra de chuva sob elas. - Teremos de enfrentá-la daqui a pouco. - Ele começou a caminhar, sendo acompanhado pelo filho. - Não tenho saído tanto quanto gostaria ultimamente - continuou. - Depois de terminar as entrevistas com Catherine de manhã, cuidar do jardim e fazer todas as outras tarefas domésticas, mal tinha tempo para algo mais que uma partidinha de golfe, de vez em quando.
Paul sorriu-lhe.
- Isso é minha culpa, então?
- Não estou me queixando. De um modo esquisito, estou contente porque você me convenceu. Guardei tudo aquilo por tempo demais, só para mim. Eu achava que enfrentar as recordações seria mais traumático do que realmente foi. - Ele deu uma risada seca. - Durante todos esses anos, aconselhei meus subordinados a enfrentarem seus medos, a levantarem-se depois da queda, e fiz exatamente o oposto.
Paul concordou, com um aceno de cabeça.
- Você sempre me ensinou que é melhor enfrentar o que nos assusta.
- Sim, desde que você escolha onde quer confrontar seus monstros - disse George, em tom sombrio. - De qualquer modo, a verdade é que o caso Alison Cárter não era um monstro tão assustador quanto eu pensava. E Catherine facilitou as coisas. Ela fez muitas pesquisas, tenho de admitir. Assim, durante a maior parte do tempo, nos concentramos em detalhes. Isso me fez perceber que, no fim das contas, fiz um ótimo trabalho, sob as circunstâncias em que me encontrava.
Os dois chegaram a uma curva no caminho. George parou e olhou para o filho, respirando fundo.
- Preciso contar-lhe algo, porque não quero que você leia sobre isso em um livro antes de ouvir de mim. Sua mãe e eu lhe escondemos algo. Quando você era pequeno, não contamos porque achamos que isso o assustaria. Sabe como são as crianças, a imaginação é capaz de aumentar qualquer coisinha. E quando você cresceu, bem... nunca parecia ser a hora certa de lhe contar. Paul sorriu, inseguro.
- Bem, é melhor contar logo, então.
George pegou seus cigarros e lutou contra o vento leve para acender um.
- Philip Hawkin foi enforcado no dia em que você nasceu - disse, finalmente.
O sorriso de Paul transformou-se em perplexidade.
- No dia em que eu nasci?
- Sim... Recebi a notícia de seu nascimento pouco depois do enforcamento de Philip Hawkin.
- Então é por isso que você sempre festejou tanto meu aniversário? Para tentar se esquecer daquele outro aniversário? - perguntou Paul, incapaz de esconder sua mágoa.
George negou, sacudindo a cabeça.
- Não, não. Não foi assim. Seu nascimento foi... não sei bem como dizer... Foi como um sinal dos deuses para que eu deixasse Alison Cárter no passado e seguisse em frente. Em cada aniversário seu, o que me vinha à lembrança não era Philip Hawkin, mas... Olhe, eu pareço estar recitando o texto de algum livro americano de auto-ajuda, mas seu nascimento me trouxe uma sensação de renovação, de recomeço. Como uma promessa.
Os dois homens fitavam-se. A expressão de George era de súplica, para que o filho acreditasse em suas palavras. Após um momento em silêncio, Paul deu um passo à frente e enlaçou o pai em um abraço desajeitado.
- Obrigado por me contar - murmurou, consciente, agora, do quanto amava seu pai, embora os contatos físicos entre ambos sempre fossem raros. Ele separou-se do pai com um sorriso largo. - Agora entendo por que você não queria que eu descobrisse isso somente ao ler o livro de Catherine.
George devolveu-lhe o sorriso.
- A julgar por sua reação, você teria entendido tudo errado.
- Provavelmente - reconheceu Paul. - Mas entendo por que você não me contou quando eu era pequeno. Eu teria tido pesadelos, com certeza.
- Sim. Você sempre teve uma imaginação muito ativa - falou George, virando-se para apagar o cigarro sob o salto de sua bota e olhando Paul sobre os ombros. - Ah, outra coisa. Se você quiser, na próxima vez em que vier com Helen, podemos ir a Scardale para conhecer a irmã dela.
- Helen adoraria a ideia - disse Paul, sorridente. - Gostaria muito. Obrigado, pai. Sua proposta é muito importante. Sei que tudo isso deve ter sido muito difícil para você.
- É. Bem - disse George, um tanto bruscamente -, venha, garoto, vamos sair daqui antes que a chuva venha e nos afogue.
Catherine esperava que seu regresso a Londres fosse um alívio depois da vidinha tranquila e limitada que levara em Longnor, de modo que se sentiu chocada ao descobrir que a cidade na qual havia vivido durante mais de vinte anos lhe parecia estranha: muito barulho, muita sujeira, muito movimento. Até mesmo seu amado apartamento em Notting Hill parecia ridiculamente amplo para uma pessoa, com seus tons frios e suaves e móveis modernos parecendo-lhe insignificantes comparados com as grossas paredes de pedra e móveis avulsos e destoantes da pequena casa em Derbyshire.
A ideia de recomeçar a correria para preencher seus momentos livres com atividades sociais também lhe parecia estranha, mas forçara-se a marcar um jantar com alguns amigos e colegas. Catherine disse a si mesma que de nada adiantaria afastar-se demais do mundo do trabalho. Além disso, depois de mais duas entrevistas, uma reunião com o editor que encomendara seu livro e um encontro para trocar ideias com um produtor de documentários para a televisão que desejava fazer um programa baseado em suas pesquisas, ela achou que merecia algum prazer legítimo.
O primeiro de seus dois entrevistados havia sido Charlie - ou, como ele preferia ser chamado agora, Charles Lomas. Seu nome fora o único que Catherine encontrara, dentre seu elenco de envolvidos no caso - além, é claro, da própria Alison, ao fazer buscas em artigos de jornal. Descobrira algumas reportagens sobre ele, embora nenhuma mencionasse os acontecimentos traumáticos de 1963 e 1964.
A razão para Charles Lomas ter chegado às páginas dos jornais do país inteiro nada tinha a ver com Scardale. Em vez de permanecer no vale, onde esperavam que ele desse continuidade à tradição da família na criação de gado, Charles saíra de Scardale no inverno de 1964. Pegara carona até Londres e, lá, conseguira emprego como contínuo em uma gravadora, no Soho. Sua sorte foi ter chegado em um momento em que todo o país parecia dançar na batida do movimento Mersey. Em uma questão de meses, seu sotaque do norto rendeu-lhe um emprego de meio período, cantando com uma banda. No fim, ele já organizava as turnês do grupo e, em cinco anos lançara-se em um empreendimento lucrativo, agenciando bandas de rock.
Quando Catherine conseguiu localizá-lo, Charles já possuía um império internacional ligado à música e ainda agenciava meia dúzia dos músicos de rock mais bem pagos da Grã-Bretanha. Em resposta ao seu pedido por uma entrevista, ele lhe enviara um fax, afirmando que falaria com ela apenas porque sua família tinha uma dívida de gratidão com George Bennett e não havia outro modo de pagá-la.
Ao ser levada até o escritório no quinto andar, com vista para a praça do Soho, Catherine surpreendeu-se. Com seus cabelos grisalhos aparados com precisão e penteados para trás, testa ampla, mãos manicuradas e rosto liso e reluzente da barba recém-feita, usando jeans e camisa de grife, era difícil imaginar Charles Lomas como o fazendeiro de Scardale que poderia ter sido. Logo, porém, Catherine percebeu que ele herdara o talento lendário de contador de histórias de sua avó. Antes de começar a falar sobre Alison, ele a divertiu durante meia hora com fofocas do mundo da música.
Na terceira vez em que ela lhe perguntou, ele finalmente respondeu a sua pergunta sobre Alison.
- Ah, aquela garota tinha uma cabeça de dar inveja - disse, com admiração. - Se estava irritada com algo, sempre falava na cara. Não havia como se enganar com ela. Janet sempre foi um pouco falsa, agindo como um docinho na sua frente e apunhalando pelas costas. Bom, ela ainda é assim, para falar a verdade. Mas Alison não perdia tempo com baboseiras, por isso nunca acreditei que pudesse ser convencida por um estranho a acompanhá-lo. Ela deve ter sido levada à força, porque não era uma garotinha boba e impressionável.
Início de Nota de Rodapé: O movimento Mersey, cujo nome deriva-se do rio Mersey, junto a Liverpool, também chamado de "o som de Liverpool", formou-se nos anos 60, promovendo a música de mais de seiscentos grupos, dentre os quais os Beatles. Esses grupos tocavam em locais pequenos, como o Cavem, que os Beatles tornaram famoso, e o Jacarandá. Fim de Nota.
- Desde o primeiro momento - continuou - eu quis fazer o possível para ajudar. Juntei-me às equipes de busca e consegui descobrir o lugar em que ela brigou com alguém. Ainda me lembro de meu choque ao me deparar com aquilo. Já havíamos desenvolvido um ritmo para as buscas, especialmente entre nós, os habitantes de Scardale. Conhecíamos o terreno muito bem e qualquer coisa fora do normal saltaria aos nossos olhos, muito mais do que aconteceria com os policiais que trouxeram de todas as cidades vizinhas.
- Quando percebi que a vegetação rasteira estava remexida, foi como se alguém estivesse apertando meu peito, meu coração e pulmões e eu não conseguisse respirar ou fazer com que o sangue circulasse. E quando contei sobre aquilo à minha avó, a primeira coisa que ela disse foi: "Hawkin está sempre perambulando por lá, mais que qualquer um de nós." Eu lhe disse então que tinha visto Hawkin andando pelo matagal próximo ao Scarlaston e pelo arvoredo na mesma tarde do desaparecimento de Alison. Ela pediume que não dissesse nada sobre aquilo, que deveríamos contar à polícia apenas no momento certo, para que nos dessem atenção. De acordo com ela, se falássemos cedo demais, os policiais não dariam atenção, porque todos estavam oferecendo informações ao mesmo tempo, muitas delas sem nenhum proveito.
- Dois dias depois, ela me pediu que contasse aquilo ao inspetor Bennett, assim que o visse. Disse-me que daria uma olhada pelos campos, para ver se podia perceber alguma coisa que pudéssemos ter ignorado. - Ele sorriu, lembrando-se da avó com afeto. - Ela estava sempre jogando para a plateia. Parecia-se com uma bruxa, de modo que conseguiu convencer metade do condado de que tinha poderes mágicos e podia lançar feitiços e falar com os animais. Na verdade, ela era apenas mais esperta que todos nós juntos. Estava sempre afinada com coisas que ninguém mais percebia.
- Hoje em dia, acho que naquela tarde ela só atraiu a atenção para o campo entre o matagal e o arvoredo para que o inspetor Bennett desse mais peso à minha revelação. Acho que erramos ao guardar esta informação, mas é preciso lembrar que tínhamos uma vida muito isolada em Scardale. Não sabíamos quem eram aqueles homens estranhos, se realmente tentariam encontrar Ali ou se apenas pegariam o primeiro otário para culparem pelo crime que bem entendessem. Como o inspetor Bennett provavelmente já lhe disse, eu era o otário da hora, naquele ponto. Dezenove anos, esquálido e cheio de hormônios. Juro que eu não parecia mesmo muito esperto. Assim, é claro que me detiveram para interrogatório.
- George me contou - disse Catherine. - Deve ter sido muito desagradável.
- Sim, foi. Eu estava dividido entre a indignação por não perceberem que estávamos todos do mesmo lado e o pavor de que pudessem me acusar. Só conseguia pensar que precisava encontrar um modo de convencê-los de que jamais tocaria em um fio de cabelo de Alison, sem dizer realmente o que minha avó me pedira para guardar em segredo.
- Há muito tempo eu suspeito que ela revelou as andanças de Hawkin pelos campos no dia do desaparecimento de Alison no momento mais propício para livrar o misterioso tio Peter de qualquer acusação. Claro que eu não tinha qualquer conhecimento disso na época, mesmo porque nem mesmo sabia de sua existência até ler sobre ele no jornal. É incrível como a geração mais velha comandava Scardale como se o lugar fosse algum feudo medieval do qual se podia expulsar os indesejáveis. Ainda assim, tio Peter era parte da família e vovó sempre acreditou na força dos laços de sangue. Assim, usou o ás escondido em sua manga para afastar o inspetor Bennett do homem que, em sua opinião, jamais teria machucado Alison.
- Acho que isso significa que terei de arcar com parte da responsabilidade pelo que aconteceu depois. Tenho de confessar que esta ideia não é nada confortável. - Ele suspirou. - Minha única desculpa é que, até meus dezenove anos de idade, eu jamais pensaria em ir contra minha avó, e aquele não me parecia o melhor momento para começar a fazer isso.
A descoberta da entrada para a antiga mina de chumbo de Scardale era outra recordação vívida de Charles. Embora Catherine tivesse dificuldade para enxergar o jovem ansioso daquela época no empresário bem-sucedido de agora, ao falar sobre sua descoberta ele demonstrou, subitamente, toda a paixão e impulsividade de então.
- Quando minha mãe me disse, naquela manhã, que queriam que eu os ajudasse a encontrar uma mina de chumbo escondida dentro do Rochedo de Scardale, fiquei perplexo. Eu não acreditava que um lugar assim pudesse existir sem que eu sequer tivesse ouvido falar nele. Eu vivia em Scardale desde que nascera e ninguém jamais mencionara a mina. Mas o principal motivo para eu achar que a mina não existia era que eu teria jurado que conhecia cada centímetro de Scardale.
- O fato de vivermos em um lugar não significa que o conhecemos intimamente - continuou ele. - Veja meu primo Brian, por exemplo. Ele provavelmente conhece cada fio de grama de seus pastos. Acho que ele também conhece cada passo da trilha que vai de sua casa até o estábulo, cada pedacinho do caminho até seu ponto de pesca favorito no Scarlaston. Mas isso é tudo que ele conhece, já que nunca teve o instinto de explorador. A diferença é que eu gostava de explorar. Quando era garoto, passava cada hora do dia em que não estava na escola ou fazendo algum trabalho no meio do mato e nos campos. Eu tinha apenas sete anos quando escalei o rochedo pela primeira vez. Costumava subir e descer correndo o Rochedo do Escudo várias vezes por semana, apenas por prazer. Eu adorava cada cantinho de Scardale.
Por um instante, sua expressão fechou-se, enquanto ele era transportado ao passado.
- Sinto saudade - disse, abruptamente, mas logo sua expressão iluminou-se novamente e retomou o fio de suas recordações. - Então, como você vê, eu não entendia como podia haver uma mina de chumbo por lá sem que eu a conhecesse. Ainda assim, todos nós estávamos desesperados naquele estágio. Valia a pena fazer qualquer coisa para encontrar Ali, em nossa opinião. Minha surpresa foi total quando encontrei a entrada. Eu nunca havia ido tão longe junto à base do rochedo antes. No verão, os arbustos eram fechados demais, e no inverno, a passagem parecia intransponível, por causa das rochas no meio do caminho que a escondiam quando olhávamos da direção do rio. Na verdade, não era nada difícil chegar à caverna. Estava bem onde deveria estar, segundo aquele livro.
- O que me intrigou mais ainda era que outra pessoa já entrara naquela caverna secreta de Scardale, quando eu ainda não fizera isso. A percepção de que meu conhecimento do vale não era total foi profundamente inquietante. Perdi a confiança em meu próprio discernimento, e aquilo me abalou. O mais estranho é que, a longo prazo, isso me fez bem, já que nunca me deixo levar por bajulação. Estou sempre preparado para os aduladores. Sei que podemos nos enganar redondamente sobre alguém que vemos todos os dias e que pensamos conhecer. Assim, é loucura achar que podemos conhecer alguém apenas porque já vimos a pessoa algumas vezes. Embora eu não me sentisse assim na época, pelo menos isso eu tirei de bom, do que aconteceu com Ali.
Ele passou a mão pelo queixo, pensativo.
- Vou lhe dizer uma coisa. Eu ainda aceitaria servir de bobo para os outros se isso significasse que Ali ainda estaria conosco.
No que se referia a informações adicionais sobre os envolvidos no drama de Alison Cárter, Charles havia sido muito menos útil que Kathy ou Janet. Ele ofereceu-lhe um sorriso de desculpas, dizendo:
- Sempre vivi num mundinho todo meu. Estava sempre contando histórias para mim mesmo, inventando fantasias sobre maneiras de fugir de Scardale e mudar o mundo. Na maior parte do tempo eu nem sabia direito o que ocorria à minha volta. E quanto a relacionamentos com adultos, eles eram um verdadeiro mistério para mim. Eu sabia, apenas, que não queria o que todo mundo em Scardale parecia desejar.
Ele respirou fundo e fitou Catherine direto nos olhos.
- Tive de vir para Londres, para descobrir quem eu era de verdade. Sou gay, entende? Na minha adolescência, eu não entendia por que era diferente. Só sabia que era. Assim, quero que você entenda que não sou a pessoa mais indicada para lhe responder se havia algo errado no relacionamento entre Ruth e Phil. - Ele sorriu. - Eu achava esquisitos todos os relacionamentos.
7
Maio de 1998
Enquanto Catherine bebericava um gim com tónica na sala do andar superior do hotel Lamb and Flag, em Covent Garden, seu telefone celular tocou.
- Catherine Heathcote. Alô? - disse, torcendo para que não fosseDon Smart, ligando para cancelar a entrevista que haviam marcado.
- Catherine? É Paul Bennett. Meu pai me disse que você esta em Londres.
- Sim, vim por uns dias, para falar com algumas pessoas sobre o to,
- Também estou aqui. Voltarei a Bruxelas amanhã, mas pensei que talvez pudéssemos jantar juntos.
Deliciada, Catherine respondeu:
- Eu adoraria.
Combinaram de se encontrar às sete. Alegre com a perspectiva de pitar com Paul, ela levantou a cabeça e viu um homem de rosto lúgubre, que a olhava hesitante. Ele pagou por uma cerveja e veio em sua direção.
- Você é Catherine Heathcote? - indagou ele.
- Don Smart? - Ela levantou-se parcialmente e estendeu a mão para cumprimentá-lo, enquanto ele confirmava com um gesto de cabeça eacomodava-se na poltrona à sua frente. Catherine não o teria reconhecido pela descrição de George Bennett. Os cabelos ruivos agora eram de um braço encardido, não havia sinal de barba em seu rosto e a pele era seca e froisa, salpicada de manchas escuras da velhice em vez de sardas. Os olhos astutos que George recordara com tanta clareza e comparara aos de uma raposa eram avermelhados, e sua parte branca tinha um matiz amarelado e doentio.
- Smart de nome e esperto por natureza - disse ele, fazendo trocadilho com seu sobrenome, mas Catherine não acreditou que tal descrição fosse verdadeira.
- Obrigada por concordar em conversar comigo - disse apenas. Ele tomou um pequeno gole do grande caneco de cerveja que trazia.
- Estou me odiando por isso. Por direito, eu deveria ter escrito este livro. Cobri a história desde o primeiro dia, até o fim. Mas George Bennett jamais quis falar comigo, depois que tudo acabou. Suponho que sou uma amarga lembrança de seu fracasso.
- Fracasso?
- Ele desejava desesperadamente encontrar Alison Cárter viva. A ideia de que ela já estaria morta muito antes da primeira ligação para a polícia nunca lhe serviu de consolo. Acho que, desde então, ele tem sido assombrado pela morte da garota e, por isso, não quis falar comigo. Ele não conseguiria sentar-se na minha frente sem pensar que fracassou com Ruth Hawkin. - Ele enfiou a mão no bolso e puxou dali um maço de cigarros. - Você fuma?
Ela recusou.
- Nem sei por que ainda ofereço cigarros, atualmente - disse ele, acendendo o seu com um suspiro de prazer. - Todo mundo deixou de fumar. Proíbem cigarros até nas redações dos jornais hoje em dia. E então, Catherine, como está indo com meu livro?
- Está bem interessante, Don - respondeu, sorrindo.
- Aposto que sim - foi o comentário amargo. - Desde o primeiro momento, eu sabia que George Bennett daria boas matérias. O homem era um buldogue. Não desistiria de Alison Cárter de jeito nenhum. Para os outros policiais, era apenas um trabalho como outro qualquer. Claro que lamentavam pela família, e aposto que aqueles que tinham filhos iam para casa e davam um abraço ainda mais carinhoso neles depois de terem passado o dia naqueles brejos, procurando por Alison.
- Com George a coisa era diferente - continuou. - Para ele, era uma missão. O resto do mundo poderia ter desistido de Alison Cárter, mas George não se dedicaria mais ao caso nem se fosse sua própria filha. Passei muito tempo acompanhando George Bennett no caso Alison Cárter, mas nunca descobri por que ele se envolveu tanto. Era como se fosse uma questão pessoal. Para mim, foi um presente de Deus. O emprego na filial do News foi meu primeiro em um jornal de circulação nacional, e eu buscava uma história que me levasse a outros grandes jornais. Eu já havia coberto parte dos desaparecimentos de Pauline Reade e John Kilbride para o News, e achei que se pudesse fazer com que os policiais os ligassem a Alison Cárter, teria uma manchete incrível.
- E teria mesmo - concordou Catherine.
- George não entrou na minha - disse ele, com amargura. - Ele estava decidido a não entregar Alison Cárter aos detetives que investigavam os desaparecimentos das outras crianças. Não sei se era puro palpite ou teimosia, mas a verdade é que sua decisão revelou-se a mais correta. É claro que ninguém tinha a mínima ideia sobre Ian Brady e Myra Hindley na época, mas George parecia saber, por instinto, que Alison não era uma das crianças atacadas por assassinos em série. Além disso, queria cuidar do caso sozinho.
- Mas foi graças a ele que você finalmente chegou aos grandes jornais, não foi? - perguntou Catherine.
- Sem dúvida. O caso Alison Cárter me rendeu boas matérias. Lembre-se que redigi aqueles artigos com a vidente francesa, que foram meu cartão de visitas para os grandes jornais. Ironicamente, isso fez com que eu nunca escrevesse uma linha sequer sobre as verdadeiras revelações no caso dos assassinatos do pântano.
De repente, Smart começou a discorrer sobre seus tempos gloriosos como repórter de vários jornais, voltando finalmente ao Daily News como editor responsável pelas notícias da noite. Três anos atrás, seu cargo tornara-se desnecessário, mas ele ainda trabalhava três noites por semana no News, supervisionando jornalistas novatos.
- Esses repórteres de hoje não têm a menor ideia sobre jornalismo de verdade. Por isso precisam de alguém com experiência. Mas deixe-me dizer uma coisa: o caso Alison Cárter serviu para muito mais que promover minha carreira - confessou. - Quando Alison desapareceu, logo depois daquelas outras crianças, convenci-me de uma vez por todas que não deveria ter filhos. Infelizmente, minha esposa na época pensava diferente. Assim, acho que poderíamos dizer que meu casamento foi vítima acidental do que aconteceu com Alison Cárter. O que ocorreu naquela aldeia de Derbyshire certa noite de dezembro teve efeitos imprevisíveis em muitas vidas.
"Em muitos casos que envolvem um elemento real de mistério é isso mesmo que acontece. Ninguém sabe o que houve, e a vida de todos é colocada sob o microscópio. Subitamente, todos os segredos são levados a público. Em geral, esta visão não é nada bonita."
- Você tem algum arrependimento sobre o modo como cobriu o caso? - perguntou Catherine.
O sorriso de Don Smart era de pura condescendência.
- Catherine, querida, fui um dos melhores. Ainda sou, aliás. Eu via meu trabalho como tendo duas funções. A primeira delas era oferecer ao meu editor matérias boas e exclusivas, que mantivessem nossos leitores e nos trouxessem outros. A segunda função era provocar aqueles policiais, para que continuassem em frente e não se contentassem com pouco. Se isso me trouxesse alguns problemas com a polícia, eu estava disposto a enfrentá- los. O mais próximo que George e eu chegamos das vias de fato foi quando fiz as matérias com a vidente. Tive a ideia ao ler um artigo em uma revista americana. A imprensa daqui era muito mais moderada naquela época, e uma ou duas publicações americanas levavam vantagem sobre nós.
"Eu usava as matérias dessas publicações o tempo todo, como inspiração. A ideia da vidente foi um exemplo clássico disso. Eu havia lido a matéria sobre um assassinato ocorrido no deserto do Arizona que, supostamente, foi resolvido por uma vidente. Isto ficou no fundo de minha mente quando as buscas por Alison começaram. Troquei ideias com meu editor sobre esta pauta e ele adorou. Eu sabia que a polícia britânica jamais admitiria que havia trabalhado com um sensitivo, de modo que minha única chance de encontrar alguém com boa reputação seria no exterior.
"Liguei para um amigo meu que trabalhava na Reuters e pedi que verificasse os arquivos. Foi assim que cheguei a Madame Charest. Nunca encontrei-me com a mulher, mas se eu a tivesse visto isso não faria a menor diferença, porque ela não falava uma palavra de inglês. Tivemos de conversar por meio de um intérprete. É claro que nunca acreditei em uma só palavra do que ela dizia, mas deu uma excelente matéria, mesmo assim.
"Sei que George considerou-me irresponsável. Creio que, na opinião dele, só o que me interessava era o que viesse em meu proveito, mas não era bem assim. O outro lado dessa história é que eu desejava tanto quanto George que encontrassem a garota, mas matérias de jornal morrem rápidamente, a menos que tenhamos combustível para alimentar as chamas. Para manter o nome e a foto de Alison Cárter no jornal, eu precisava de um novo ângulo. A vidente me deu isso e me permitiu manter Alison Cárter mais alguns dias na primeira página. No caso específico dessa garota, provavelmente não fez diferença, mas poderia ter feito - disse, parecendo convicto da correção de suas atitudes."
- Mas sua Madame Charest estava errada, não?
Don Smart abriu um largo sorriso e, de repente, Catherine viu a raposa descrita por George.
- E daí? A notícia causou sensação. Se você fizer metade do que eu fiz, Catherine, talvez venda alguns exemplares a mais de seu livro do que aqueles que seus amigos e parentes vão comprar.
Don Smart deixara um gosto amargo na boca de Catherine que não passava nem mesmo com uma taça de vinho da Borgonha tomada na companhia de Paul em um bar.
- É um tremendo aproveitador - confidenciou para o filho de George Bennett. - Por causa de tipos como ele os jornais ingleses começaram a publicar lixo, e o homem orgulha-se disso.
- Agora talvez você entenda por que meu pai nunca falava com ele - disse Paul. - Devo dizer que fiquei surpreso quando papai aceitou seu convite, mas agora estou contente porque você e Helen me pediram para convencê-lo disso. Parece que o trabalho neste livro deu a meu pai um novo ânimo. Há muito não o vejo tão alegre. É como se o processo de reviver tudo permitisse que ele finalmente superasse o passado para poder ir em frente.
- Também percebi isso. É estranho, mas antes de iniciar este projeto eu estava muito nervosa. Nunca fiz nada nesta escala antes, e não sabia se poderia manter meu interesse e esforços por muito tempo. Mas contar esta história com o máximo de fidelidade transformou-se em uma missão. E perceber a importância disso para George acrescentou um novo ímpeto para dar o melhor de mim.
- Mal posso esperar para ler o livro - disse Paul. - Mas, para ser honesto, sinto-me um pouco apreensivo por ler sobre meu pai e sobre a vida que teve antes de eu nascer. É quase como espiar alguém quando não sabem que estamos ali. - Ele abaixou um pouco a cabeça, com expressão indecifrável. - A maior parte do material será novidade completa para mim, entende? Meu pai nunca foi um desses policiais que enchem a paciência de todo mundo contando histórias sobre seu trabalho. Acho que ele sequer mencionou Alison Cárter na minha frente, até o dia em que aquele jornalista apareceu em sua porta.
Ele ergueu a cabeça, com a sombra de um sorriso.
- Mas quando estive lá neste fim de semana, percebi sua animação. Papai me contou várias coisas sobre as quais não falava antes, embora sempre tenhamos sido bem íntimos. De um modo estranho, este projeto nos aproximou ainda mais. É como se ele tivesse adquirido um conhecimento maior do trabalho que eu realizo a cada dia, ao trabalhar com você. Ele fez muitas perguntas sobre meu trabalho. Queria saber como me sinto lidando com jornalistas, em que sentido eles diferem uns dos outros, como cumprem suas tarefas. Como se comparasse com o que está fazendo com você.
- E também tem sido bom para mamãe - continuou ele. - Ela sempre pisava em ovos quando eu perguntava como havia sido o início de seu casamento. Tinha de prestar muita atenção no que dizia, para não chatear papai. Só que eu nunca entendia exatamente o porquê disso. - Ele fez uma careta. - Eu pensava que eles não queriam falar sobre suas vidas antes de meu nascimento para que eu não pensasse que eram mais felizes sem mim. Não sei, Catherine, mas isso tudo está sendo tão bom para a minha família que eu quase desejaria ter roubado sua ideia e trabalhado eu mesmo com ele para escrever um livro assim.
Catherine riu.
- Ele jamais teria sido tão franco com você quanto foi comigo. Conhecendo seu pai como conheço agora, ele teria menosprezado seus sucessos o tempo todo, para que você não pensasse que se vangloriava.
- E eu o teria transformado em um herói - disse Paul, com tristeza. - Acontece que ando meio obcecado por essa história. Parece que só sei falar nisso atualmente. Vou acabar matando Helen de tédio se não me cuidar. Ah, isso me lembra que Helen deseja dar à irmã um dos primeiros exemplares. Ela acha que será interessante para Jan ler sobre o que aconteceu em sua casa.
Catherine fez uma careta brincalhona ao dizer:
- Talvez ela não sinta tanto prazer com seu esplêndido isolamento naquele solar depois que ler toda a história. Não será uma leitura muito divertida.
- Ainda assim, é melhor conhecer a história real que ouvir fofocas e boatos, não acha?
- Bem, de mim ela só terá a verdade. Estou absolutamente determinada a isso. - Catherine ergueu sua taça. - À verdade.
- A verdade - ecoou Paul. - Melhor proclamada que mantida em segredo.
8
Maio/junho/julho de 1998
Catherine saiu da auto-estrada A1 e descobriu-se imediatamente em uma estreita estradinha rural que serpenteava entre campos férteis e bosques antigos, com o mar brilhando à frente, mas distante. Por alguma razão que não conseguia precisar, a perspectiva de se encontrar com Tommy Clough dava-lhe mais prazer que entrevistar qualquer dos outros atores coadjuvantes no drama de Alison Cárter. Isso se devia, em parte, ao fato de George e Anne falarem dele com grande afeto, mesmo depois de trinta e cinco anos quase sem nenhum contato. Mas quanto mais ela pensava nisso, mais parecia-lhe que Clough era a figura mais enigmática de todas.
De acordo com George, na superfície o sargento parecia durão, até mesmo brutal às vezes. Bem mais que o próprio George, Clough parecera um policial típico de sua época. Sempre afinado com todos, sempre com o ouvido atento para fofocas e boatos que rondavam cada delegacia, sempre campeão no número de crimes resolvidos e prisões efetuadas, ele dera a impressão de ser o homem certo no lugar certo. Ainda assim, demitira-se da polícia de Derbyshire dois anos após o encerramento do caso Alison Cárter e tornara-se fiscal residente em um santuário de pássaros no condado de Northumberland. Afastara-se bastante de seu passado, trocando seu estilo gregário pelo isolamento.
Com sessenta e oito anos e aposentado, ele ainda vivia no nordeste da Inglaterra. Anne contara-lhe que o visitara uma vez, durante uma hora,
quando levara Paul até a Universidade de Newcastle, durante o período em que ele tentava decidir sobre o melhor lugar para seus estudos académicos.
Segundo ela, Tommy Clough passava seus dias observando e fotografando pássaros, e suas noites desenhando-os. O jazz, que ele amava, servia de fundo para isso e o isolava do mundo externo. De acordo com a descrição de Anne, Clough tinha uma vida solitária e pacífica, estranhamente incongruente com os quinze anos que ele passara levando os criminosos à justiça.
A estrada descia suavemente a colina até o destino de Catherine, um ajuntamento de casas - pequeno demais para ser considerado uma aldeia - alguns quilómetros ao sul de Seahouses. Excitada e ao mesmo tempo apreensiva, ela ergueu a pesada alça de latão na porta da antiga casa de pescadores e deixou-a bater para chamar seu morador.
Catherine teria reconhecido Tommy Clough em qualquer lugar, pelas fotografias que George lhe emprestara. Os cachinhos ainda estavam todos ali, embora agora tivessem tons de prata, em vez do castanho-claro de antes. Seu rosto era curtido pelo clima, mas os olhos ainda eram inteligentes e a boca ainda parecia mais acostumada a sorrir que a franzir-se. Embora vestisse calças largas de veludo cotelê e blusão também largo, era óbvio que seu corpo robusto ainda era musculoso. Diziam que parecia um touro, na juventude. Agora, seus cachos grisalhos faziam-no parecer mais com um carneiro reprodutor, pensou ela, ao sorrir em resposta ao sorriso que recebeu.
- Olá, senhor Clough - disse.
- Senhorita Heathcote? Entre. - Ele deu um passo para trás e deixoua entrar em uma sala simples, mas imaculadamente limpa. As paredes eram forradas com belos desenhos de pássaros, alguns pintados e outros feitos com tinta preta sobre papel branco e brilhante. Tocando ao fundo, ela reconheceu "Romances for Saxophone", de Branford Marsalis.
Ela virou-se para admirar os desenhos mais próximos.
- São maravilhosos - disse com sinceridade, como raramente fazia quando tentava colocar os entrevistados à vontade, elogiando seu gosto por algo.
- Não são ruins - respondeu Clough. - Agora, sente-se e tome alguma coisa. Acho que você merece, depois de dirigir de Derbyshire até aqui.
Ele desapareceu na cozinha, voltando com uma bandeja contendo um bule de chá, uma leiteira, açucareiro e duas canecas da Sociedade Real de Proteção aos Pássaros.
- Não tenho café - disse. - Uma das coisas que prometi a mim mesmo quando deixei a polícia era que nunca mais beberia uma xícara sequer de café instantâneo. E por aqui não há como comprar café moído, de modo que me contento com chá.
- Chá está ótimo - disse Catherine, sorrindo. Sem saber por quê, já confiava neste homem. - Obrigada por concordar em falar comigo.
- Você deve agradecer a George - disse Clough, pegando o bule e agitando-o um pouco, para apressar o processo. - Há muito tempo decidi que ele é quem deveria dizer quando chegasse a hora de falar sobre aquele caso. Sei que trabalhamos lado a lado na investigação, mas minha visão das coisas é diferente da visão de George. Ele é um homem mais voltado para a organização, enquanto eu sempre fui meio rebelde. Assim, minha versão nunca poderia ser tão clara quanto a história contada por ele.
"O caso Alison Cárter foi um momento definitivo para mim, sabe? Entrei na polícia porque acreditava na ideia de fazer justiça. Naquele caso, as coisas saíram de tal maneira que eu não tinha certeza se poderíamos confiar no sistema para punir o culpado. Acho que conseguimos, mas foi por pouco. Tudo poderia ter dado errado, e aí não teríamos nada para mostrar em troca de meses de trabalho e da vida da garota. Cheguei à conclusão de que, se não pudéssemos depender da polícia para a produção do resultado final que é a única justificativa para sua existência, então não faria sentido ser parte dela."
Ele sacudiu a cabeça e deu uma risada divertida, enquanto servia o chá.
- Veja só como estou falando. Pareço um grande pensador e tão fervoroso quanto um pregador. George Bennett não me reconheceria. Eu era um cara como outro qualquer. Gostava de uma cerveja, de fumar, rir e contar piadas. Nada era fingimento, mats esta parte de mim combinava com o trabalho que eu fazia, de modo que, de certo modo, acho que eu a exagerava um pouco. Ao mesmo tempo, sempre fui meio pensador demais. E quando Alison Cárter desapareceu, minha imaginação decolou. Minha mente estava cheia de diferentes possibilidades, uma pior que a outra. Eu conseguia mantê-la sob controle enquanto estava trabalhando, mas, durante minhas folgas, os pesadelos tornavam-se a cada dia piores. Eu também bebia muito, era o único modo de pegar no sono, à noite.
- Muitas vezes agradeci a Deus pela obsessão de George Bennett com o caso, porque assim sempre havia algo a fazer: arquivos para conferir, prováveis testemunhas para entrevistar... Mesmo depois que já deveríamos ter arquivado o caso. Sem que precisássemos formalizar nada, tornei-me seu faz-tudo nesta investigação, porque assim eu me sentia útil. Mas, por Deus, era difícil demais entender aquela gente de Scardale.
- Lembra-se daquele filme dos anos 70, The Wicker Man? Edward Woodward faz o papel de um tira que vai até uma ilha escocesa misteriosa para investigar o desaparecimento de uma menina e é envolvido nos rituais pagãos dos habitantes. É muito assustador e práticas sexuais pervertidas e crenças bizarras permeiam todo o filme. Bem, foi assim que me senti quando cheguei a Scardale em 1963, com a diferença de que voltávamos à normalidade de nossas casas no fim do dia. Além disso, ninguém tentou fazer sacrifícios humanos usando George e eu - acrescentou com um riso constrangido, como se soubesse que um policial com os pés na realidade não devesse acreditar no sobrenatural. - E, é claro, nós resolvemos o mistério, o que é mais do que Edward Woodward conseguiu fazer. - Ele misturou leite a seu chá e tomou um grande gole.
- Anne me disse que nenhum de seus vizinhos daqui sabe que você foi policial - observou Catherine.
- Não é que eu me envergonhe disso - disse ele, com algum constrangimento, levantando-se para trocar o CD. Mais saxofone suave, desconhecido para ela, agora. Catherine manteve-se em silêncio, sabendo que Tommy recomeçaria de onde parara quando estivesse pronto.
Ele sentou-se novamente.
- É só que as pessoas têm certas suposições quando sabem que alguém já foi da polícia. Eu queria evitar isso. Desejava começar de novo, sem sombras do passado. Achei que se pudesse ignorar meu passado Alison Cárter me deixaria em paz. - Sua boca torceu-se em algo que se parecia mais com uma careta que com um sorriso. - Não deu certo. Você está aqui, e cá estou eu também, recordando tudo aquilo. Ontem à noite eu estava pensando nisso, organizando meus pensamentos. Tudo ainda é tão vívido como se eu estivesse passando por essas experiências pela primeira vez. Então, estou pronto. Vamos lá, pergunte o que quiser.
Tommy Clough era o elemento que faltava na história de Catherine. Sua percepção singular preenchera lacunas, transformando um caleidoscópio de pedaços desconexos em um quadro coerente. Ele a fizera entender George Bennett como homem e como policial e lhe permitira compreender coisas que não estavam claras antes. Ela entendia, finalmente, as razões subjacentes do pessoal da aldeia naquilo que às vezes parecera ser uma falta de cooperação completa com o trabalho da polícia. E, agora, Catherine conseguia ver a forma geral de sua história com uma clareza muito maior.
De volta a Longnor, ela deu início à tarefa longa e complexa de organizar seu material. O ruído da impressora era o fundo constante, enquanto ela espalhava pilhas de papel pelo chão da sala. Transcrições de sua longa série de entrevistas com George; uma pilha separada para suas anotações e transcrições de cada uma das outras testemunhas; algumas fotocópias de artigos de jornal; as cópias que obtivera de transcrições do julgamento, graças a um amigo que trabalhava em uma biblioteca de direito, e uma coleção de volumes abordando julgamentos famosos, comprada em um sebo, que lhe ofereceria dicas e informações à medida que avançasse na redação.
As aquarelas sem graça que os locatários haviam pendurado em sua sala foram substituídas por fotografias de Scardale, da época e atuais, incluindo os cartões-postais de Philip Hawkin. Uma das paredes exibia apenas closes das principais personagens, da própria Alison a George, com sua expressão tensa, fotografado por um repórter ao sair de uma coletiva da imprensa com sua capa impermeável e chapéu de feltro. A terceira parede estava tomada por mapas em grande escala daquela área.
Durante quase dois meses, ela mergulhou totalmente em Scardale. Levantava-se às oito e trabalhava até meio-dia e meia. Depois, dirigia dez quilómetros até Buxton, estacionava junto à caverna Poole e atravessava o bosque até a charneca desolada acima, cruzando o terreno até o Templo de Salomão, o pórtico da era vitoriana com vista para toda a cidade. Depois, descia envolvida pelas sombras dos bosques de Grin Low e percorria a Green Lane, passando pela casa em que crescera. Seu pai morrera cinco anos antes e sua mãe vendera a casa e mudara-se para um asilo residencial em Devon, onde o clima era mais favorável para ossos velhos. Catherine não sabia quem habitava a casa agora, mas também não se preocupava muito com isso.
Provavelmente muitos de seus antigos colegas de escola ainda moravam por ali, mas ela se livrara de seu passado como uma cobra que larga a própria pele, ao se mudar para Londres. No que se referia a amigos, só os tivera bem tarde. Como filha única, sempre considerara o território da imaginação muito mais interessante que o mundo real de suas colegas adolescentes. Apenas ao trabalhar com outros com quem tinha afinidades intelectuais é que descobrira pessoas com quem poderia realmente formar vínculos genuínos. Portanto, sua infância não guardava amizades preciosas que desejasse ressuscitar. Esperara encontrar alguns rostos familiares no supermercado onde fazia compras, mas isso não acontecera, e assim era melhor. A única parte de seu passado que lhe importava dizia respeito às recordações que lhe permitiam envolver-se profundamente com a vida e morte de Alison Cárter.
Depois de sua caminhada diária, ela dirigia de volta a Longnor e fazia um lanche que consistia de um sanduíche de queijo e salada, antes de voltar ao trabalho. Às seis da tarde, abria uma garrafa de vinho e assistia ao noticiário. Depois, trabalhava novamente até às nove, quando parava e comia uma pizza ou alguma outra refeição semipronta comprada no supermercado. Durante o resto da noite, respondia a e-mails e lia qualquer livro de bolso que distraísse sua mente. Além disso, conversas ocasionais com seu editor sobre o progresso do livro e com o produtor do documentário sobre o cronograma deste era tudo o que podia suportar.
Pela primeira vez na vida, seus dias não giravam mais em torno de um escritório cheio de gente e uma vida social muito ativa. Ela se admirava por sentir tão pouco a falta de companhia humana e pensava, com humor amargo, que se tornara, em um período de seis meses, o que anteriormente teria classificado como "uma coitada solitária".
Quando o telefone tocou certa tarde e ela ouviu a voz de George Bennett, pareceu-lhe que suas palavras haviam adquirido vida de repente e, por um instante, não conseguiu compreender o que ele dizia.
- Desculpe-me, George, eu estava a quilómetros de distância quando você ligou. Pode repetir o que estava dizendo? - perguntou, hesitante.
- Espero não ter interrompido seu fluxo criativo em um momento crucial.
- Não, não é nada disso. E então, em que lhe posso ser útil? - Catherine readquiriu o controle, voltando imediatamente a ser a profissional de sempre.
- Estou ligando para lhe contar que Paul trará Helen para uma visita de alguns dias, semana que vem. Anne e eu queremos saber se você gostaria de jantar conosco sexta-feira.
- Será um prazer - disse ela. - Devo ter a primeira versão do original no fim desta semana. Levarei comigo, para que você possa dar uma conferida depois que Paul e Helen voltarem a Bruxelas.
- Você tem trabalhado demais - disse George. - Será um enorme prazer para mim. Então estamos combinados: sexta-feira, às sete horas. Até lá, Catherine.
Ela desligou o telefone e olhou para as fotografias na parede. Fizera quase tudo o que podia para fazê-las adquirir vida. Agora, como Philip Hawkin, teria de aguardar o veredicto dos outros.
9
Agosto de 1998
Catherine entregou a George o gordo envelope e disse, em tom de cerimónia:
- Esta é a primeira versão. Não poupe críticas, George. Preciso de sua opinião sincera. - Ela o seguiu até a sala de estar, onde Paul e Helen estavam sentados no sofá.
- Aqui está um motivo para celebração - disse George. - Catherine acabou de me entregar seu livro.
Helen sorriu.
- Parabéns, Catherine. Você não perdeu tempo! Catherine encolheu os ombros.
- Devo voltar ao trabalho em três semanas, então não podia desperdiçar tempo mesmo. Esta é a vantagem de ser jornalista, a escrita expande-se ou se contrai de acordo com o prazo.
Antes que pudessem continuar neste assunto, Anne entrou com taças e uma garrafa de champanhe.
- Olá, Catherine. George disse que tínhamos algo a celebrar, de modo que achamos boa ideia abrir uma dessas.
Paul sorriu, descontraído.
- Para nós não será a primeira esta semana. O divórcio de Helen finalmente saiu e decidimos casar. Assim, estouramos algumas garrafas uns dias atrás para selarmos nosso compromisso.
Catherine cruzou a sala e inclinou-se para cumprimentar Helen beijando-a no rosto.
- Que boas notícias! - exclamou, entusiasmada. Virou-se para Paul e beijou-o também. - Estou muito feliz por vocês dois.
George tomou a bandeja das mãos da esposa e pousou-a sobre a mesinha.
- Também estamos muito contentes. Esta semana será inesquecível.
Ele abriu o champanhe e encheu as taças. - Um brinde - disse, distribuindo-as. - Ao livro.
- E ao casal feliz - acrescentou Catherine.
- Não, ao livro, ao livro! - protestou Paul. - Assim, teremos de abrir outra garrafa para brindar a mim e a Helen. E você terá de vir ao casamento - ele acrescentou. - Afinal, se não fosse por você, meu pai nunca iria a Scardale para conhecer a irmã de Helen.
- Você foi a Scardale? - perguntou Catherine, sem conseguir conter sua surpresa. O único fracasso que lamentava em suas pesquisas era não ter conseguido persuadir George a voltar à aldeia e percorrer os locais importantes em sua companhia.
George pareceu levemente constrangido:
- Ainda não fomos lá, mas almoçaremos com Janis, irmã de Helen, segunda-feira.
Catherine levantou sua taça a Paul.
- Você conseguiu de novo. Só não raptei seu pai, mas fiz tudo que podia para convencê-lo a ir até lá comigo e não consegui.
- Bem, você preparou o terreno - disse Paul, sorridente.
- De qualquer maneira, estou contente porque você vai até lá. Em minha opinião, não resta muito para recordar daquela época no solar, George.
- O que você quer dizer? - indagou ele, inclinando-se para a frente.
- Foi tudo reformado. De acordo com Kathy Lomas, que me levou até lá, não há um único cómodo com a aparência que tinha em 1963. Não foi apenas a decoração que mudou, também foram feitas obras estruturais, abertura de paredes unindo cómodos menores... Um dos quartos virou banheiro... Esse tipo de coisa. Se você fechasse os olhos até chegar lá e então os abrisse dentro do solar, garanto que nada lá dentro lembraria a casa que você conheceu - acrescentou com um sorriso.
- Eu gostaria de acreditar nisso - disse George. - Mas tenho a sensação de que não conseguirei escapar do passado com tanta facilidade.
- Não sei, George - interrompeu-o Helen, alegre. - Sabe o que dizem, que certas casas têm uma aura própria? Que quando entramos em algumas sabemos de imediato que somos bem-vindos? E que em outras, não importa o dinheiro que se gaste em reformas, a casa ainda parece fria e hostil? Bem, o Solar Scardale é um desses lugares em que nos sentimos em casa no momento em que entramos. Foi isso que Jan me disse, quando esteve lá logo depois que o herdamos. Ela me ligou para dizer que, assim que cruzou a porta, soube que este seria seu lar. E entendo exatamente o que ela quis dizer. Sempre que durmo lá tenho o sono pesado e me sinto totalmente em casa. Assim, se havia algum fantasma, ele já se mudou há muito tempo.
- Então você poderá ter uma surpresa agradável, querido - disse Anne, tranquilizando-o.
A dúvida ainda transparecia no rosto de George, que disse, hesitante:
- Espero que sim.
- E nem se preocupe com a possibilidade de ser pego de surpresa por recordações. Se os Carters, Crowthers e Lomas restantes souberem que você está voltando ao vale, provavelmente estenderão um tapete vermelho e decorarão suas casas com bandeirinhas coloridas - disse Catherine. - A única ameaça à sua saúde e bem-estar será o excesso de hospitalidade.
- E, por falar nisso, já é hora de abrirmos a segunda garrafa - disse Paul, levantando-se rapidamente.
- Mas há uma coisinha que preciso saber, George - disse Catherine, sorrindo com o máximo de sedução que podia. - Se você sobreviver a seu retorno a Scardale, será que poderia considerar uma segunda ida até lá, comigo?
- Achei que você havia terminado o livro - disse ele, procurando uma desculpa para recusar.
- Apenas a primeira versão. Ainda há muito tempo para acrescentar algo ao que escrevi.
George suspirou.
- Suponho que lhe devo isso. Tudo bem. Se eu sair vivo de Scardale, voltarei com você. Prometo.
Livro 2
Segunda PARTE
Brookdne, 14 green close, cromford, Drbwshire
10 de agosto de 1998
Prezada Catherine,

Escrevo-lhe devido a um assunto de grande importância para nós dois.
Não é fácil, para mim, escrever esta carta, principalmente porque não posso lhe dar uma explicação para o que preciso lhe pedir. Posso apenas desculpar-me e pedir que continue confiando em mim, como tem feito nos últimos seis meses, enquanto trabalhamos juntos em "Um corpo para o crime".
Catherine, você precisa suspender a publicação deste livro. Não vá em frente. Peço-lhe para fazer o que for possível para impedir que ele seja lançado, agora ou em qualquer momento no futuro. Sei que o original definitivo acabou de ser enviado para a editora, de modo que não pode ter ido muito longe ainda. Entretanto, não importa o quanto isso possa ser inconveniente, faça com que seu editor entenda que este livro jamais deverá ser publicado.
Sei que isso deve lhe parecer ultrajante, especialmente porque lhe peço para cancelar a publicação sem oferecer um motivo. Tudo o que posso dizer é que obtive novas informações que torna imperativo impedir que seu livro se torne o registro definitivo do caso de Alison Carter. Não posso divulgar tais informações porque afetam outras pessoas além de mim. Meu temor é que, se o livro for publicado, o caso atraia muita publicidade, o qe, por sua vez, terá conseqüências terríveis para pessoas inocentes. Peço-lhe que não inflinja tais conseqüências a elas, já que não fizeram nada para merecê-las. A única pessoa que deve pagar por seus erros sou eu mesmo. Sei que o adiantamento que você recebeu da editora poderá ser devolvido, e pretendo reembolsá-la do valor integral. Você merece ser recompensada pelo trabalho que realizou, e não pretendo aumentar seus problemas esperando que você devolva um dinheiro que é seu por direito.
Sei que estou pedindo algo terrível a uma escritora profissional, mas suplico-lhe que esqueça deste livro, esqueça deste caso e dê as costas para sempre à história de Alison Carter e Philip Hukin. Você tem o talento e as ferramentas necessárias para descobrir a verdade, mas, pelo bem da sua sanidade, insisto que você abandone este projeto, embora isso possa ser muito doloroso.
Catherine, sei que você tentará demover-me dessa decisão, mas ela é definitiva. Se você tentar ir em frente com o livro, terei de empregar todas as medidas legais possíbeis para impedi-la. Detestaria ter de fazer isso, porque acho que, ao longo desse trabalho, desenvolvemos laços de amizade que eu lamentaria terminar. Contudo, a minha intenção de dar um fim a este livro é tamanha que eu sacrificaria a nossa amizade para evitar o seu lançamento.
É impossível para mim expressar o quanto lamento por tudo isso.
Acontecimentos recentes viraram a minha vida de pernas para o ar e mal posso pensar lucidamente. A única coisa que eu tenho certeza é que você precisa garantir que seu livro jamais seja publicado.
Com afeto,
George Bennett.
1
Agosto de 1998
Catherine não conseguia parar de olhar para a carta, em descrença total. Inicialmente, pensou que se tratava de uma brincadeira, mas rejeitou a ideia antes mesmo que se formasse de todo. Sabia que George Bennett era cavalheiro demais - e gentil demais - para fazer este tipo de brincadeira de mau gosto. Ela leu a carta novamente e imaginou se ele não estaria passando por um esgotamento nervoso. Talvez a visita a Scardale, logo depois de reviver o caso Alison Cárter, tivesse causado a mesma espécie de exaustão vivida por outras pessoas na época. Mas isso também parecia-lhe improvável. George Bennett era saudável demais e não perderia a razão trinta e cinco anos depois, não importando o quanto as recordações pudessem ser traumáticas. E ele mesmo havia comentado, mais de uma vez, que repassar o caso havia sido menos perturbador do que imaginara.
Esta percepção não lhe deixava nada em que se agarrar. A raiva começou a queimá-la, como se fosse indigestão. A carta lhe chegara quando estava no meio de um café da manhã tardio. Esperava uma carta de seu editor com comentários e solicitações de modificações, não esta catástrofe. Seu primeiro impulso foi o de pegar o telefone, mas antes que apertasse os três primeiros dígitos do número de George, bateu com o fone no gancho. Anos de jornalismo haviam lhe ensinado que era muito fácil insultar alguém pelo telefone. Esta situação exigia um encontro cara a cara.
Largou sobre a mesa metade do café e da torrada. Quarenta minutos depois, virava à direita, junto ao lago do moinho. Durante todo o trajeto, ela fumegara de frustração. Tudo o que conseguia enxergar era a arrogância de George, e não podia entender o que a provocara. Ele nunca dera o menor sinal de ser capaz de um comportamento tão autoritário. Ela pensara que haviam se tornado amigos, mas não entendia como um amigo poderia tratá-la assim.
No íntimo, Catherine sabia que o livro era mais seu que de George, e que ele não tinha o direito de tirá-lo dela. A ameaça de um processo não a amedrontava, pois sabia o que estava escrito no contrato do livro. O que a perturbava era o efeito que a oposição do detetive poderia ter sobre as vendas e sobre sua reputação. Ter o livro repudiado pela única pessoa que conhecia o caso pelo avesso poderia prejudicá-la para sempre. Não aceitaria isso sem lutar. Se George não dava a mínima importância para a amizade que se formara entre ambos, ela trataria de fazer o mesmo, ainda que sofresse demais.
Ela entrou na ruazinha estreita. Os carros do casal estavam na entrada da casa, de modo que ela passou pela residência e parou em uma área reservada para estacionamento no início da colina adiante. Voltou a pé até a casa e seguiu, furiosa, até a porta da frente.
A campainha ecoou lá dentro, como se a casa estivesse vazia. Contudo, mesmo se George tivesse ido à aldeia a pé, Anne estaria em casa. Sua artrite não lhe permitia dispensar o carro para nada. Catherine afastou-se da porta da frente e contornou a lateral da casa, achando que podiam estar no jardim, aproveitando o sol ainda fraco antes que este se tornasse desconfortável. Mas não havia ninguém. Não havia nada para ver, exceto o gramado bem cuidado e canteiros de flores coloridas.
Enquanto voltava até a frente da casa, ocorreu-lhe uma possível solução. Se Paul e Helen tivessem alugado um carro, talvez George e Anne tivessem saído para passar o dia com eles. Esta ideia simplesmente aumentou sua determinação de se ver com George. Se tivesse de esperar até o último minuto do dia para falar com ele, que fosse! Estava parada na entrada da garagem, decidindo se deveria vigiar a casa de dentro de seu carro ou ir até a livraria junto ao lago por uma hora, para passar o tempo, quando alguém chamou seu nome.
A vizinha do lado, parada em sua porta da frente, parecia surpresa.
- Catherine? - repetiu.
- Olá, Sandra - disse Catherine, tirando de seu íntimo um sorriso puramente profissional. - Sabe onde posso encontrar George e Anne?
A mulher abriu a boca, olhando-a com espanto.
- Você não soube? - perguntou finalmente, incapaz de esconder uma nota de alegria na voz por saber algo que Catherine desconhecia.
- Há algo que eu deveria saber? - indagou Catherine, com frieza.
- Achei que já soubesse. Ele teve um ataque cardíaco.
- Um ataque cardíaco? - repetiu, em completa perplexidade.
- Foi levado às pressas para o hospital hoje de manhã cedo - disse Sandra, quase com prazer. - É claro que Anne acompanhou-o na ambulância. Paul e Helen seguiram em outro carro.
Estarrecida, Catherine limpou a garganta.
- E você teve alguma notícia desde então?
- Paul voltou para pegar algumas coisas para George logo cedo e trocamos algumas palavras, é claro. George está na UTI. Paul disse que ele corre risco de morte, mas os médicos disseram que George é um lutador. Todo mundo sabe disso, não é?
Catherine não conseguia entender por que a mulher parecia orgulhar-se do que havia acontecido. Era desagradável pensar que o prazer da outra vinha de saber algo que ela ignorava, mas não havia outra explicação.
- Que hospital? - perguntou.
- Eles o levaram para uma clínica especializada em problemas cardíacos em Derby.
Catherine já estava a caminho, rumo à colina onde deixara seu carro, quando Sandra gritou:
- Não a deixarão entrar. Você não é da família. Não a deixarão vê-lo.
- Veremos - disse Catherine para si mesma. Previsivelmente, seus temores por George manifestavam-se na forma de uma raiva irracional. Como ele ousava privá-la da satisfação de descobrir o que estava acontecendo, fingindo estar à beira da morte?
Apenas quando chegou a Derby sua raiva esfriou o suficiente para perceber como a noite devia ter sido horrível para todos eles - Anne, Paul, Helen e, é claro, para o próprio George, preso dentro de um corpo que se recusava a funcionar como deveria. Ela não podia imaginar nada pior para alguém como George. Mesmo aos sessenta e cinco anos, ele era forte e capaz; sua mente também parecia mais afiada que a da maioria dos policiais que já conhecera. Ele ainda conseguia completar as difíceis palavras cruzadas do Guardian, algo de que Catherine jamais fora capaz. Trabalhar em tamanha proximidade despertara-lhe respeito, mas também afeto. Ela detestava pensar que aquele homem podia ser diminuído pela doença.
Não foi difícil encontrar a UTI. Catherine empurrou uma das portas duplas e se viu em uma recepção vazia. Pressionou uma campainha sobre o balcão e aguardou. Depois de alguns minutos, pressionou de novo. Uma enfermeira de avental branco emergiu de uma das três portas fechadas.
- Posso ajudá-la? - indagou a mulher.
- Queria saber como está George Bennett - disse Catherine, com um meio-sorriso ansioso.
- É da família? - perguntou a enfermeira, automaticamente.
- Trabalho com George. Sou amiga da família.
- Desculpe, mas só permitimos visitas de parentes - disse ela, com voz impessoal.
- Sim, eu sei. - Catherine sorriu novamente. - Mas estava pensando se você poderia dizer a Anne, isto é, à senhora Bennett, que estou aqui. Talvez pudéssemos tomar uma xícara de chá, se ela estivesse disposta...
A enfermeira sorriu pela primeira vez.
- Claro que direi a ela. Como se chama?
- Catherine Heathcote. Onde eu poderia encontrar a senhora Bennett? A enfermeira apontou na direção do bar e virou-se para ir embora.
Catherine perguntou, antes que a mulher desaparecesse de vez:
- E George? Pode dizer-me algo sobre o estado dele? Desta vez, a voz que lhe respondeu era suave:
- Ele está no que chamamos de estado crítico, mas estável. As próximas vinte e quatro horas serão cruciais.
Catherine voltou ao elevador, atordoada. Estar no hospital fazia com que sentisse a catástrofe pessoal de George mais de perto, como as palavras de Sandra não haviam feito. Em algum lugar, atrás dessas portas fechadas, George estava ligado a máquinas e monitores. Além do que acontecia com seu corpo, o que será que se passava em seu cérebro? Será que ele recordava a carta que lhe enviara? Teria contado a Anne? Será que deveria agir como se nada tivesse acontecido? Não apenas por seus próprios interesses, racionalizou, mas também para evitar mais uma preocupação à família?
Catherine encontrou o bar e sentou-se a uma mesinha de canto, com uma água mineral na sua frente. Estava tão preocupada que só viu Paul quando ele estava praticamente colado nela. Hoje, sua semelhança com George era assustadora. Ela passara tanto tempo olhando para a fotografia do pai dele com quase a mesma idade que era como se a imagem na parede tivesse adquirido vida e trocado o impermeável e o chapéu por um par de jeans desbotados e camisa pólo. Ele deixou-se cair em uma cadeira como se suas pernas não o sustentassem mais.
- Sinto muito, Paul.
- Eu sei. - Ele suspirou.
- Como ele está?
- Nada bem. Estão dizendo que teve um ataque cardíaco grave. Não recuperou a consciência ainda, mas acham que isso acontecerá. Ah, meu Deus... - Ele cobriu o rosto com as mãos, obviamente arrasado. Ansiosa, Catherine observou enquanto os ombros dele curvavam-se e ele respirava fundo para recuperar o controle. - Seu coração parou na ambulância, e acho que pensam que pode ter havido algum dano cerebral - disse, recuperando-se o suficiente para continuar falando. - Estão planejando uma tomografia, mas não dão nenhum prognóstico.
Ele olhava fixamente para a mesa. Catherine cobriu a mão dele com a sua, em um gesto simples de apoio.
- O que aconteceu? - perguntou, suavemente. Ele suspirou novamente.
- Não consigo evitar a ideia de que foi minha culpa. Minha e de Helen. Você se importa se sairmos daqui? Esta atmosfera de hospital é tão opressiva! Parece que minha cabeça está cheia de algodão. Talvez seja bom pegar ar fresco.
Desceram em silêncio no elevador. Catherine apontou para uma fileira de bancos no lado mais afastado do estacionamento. Sentaram-se e ficaram olhando, sem ver, os canteiros bem arranjados de roseiras. Paul jogou a cabeça para trás e respirou fundo.
- Por que o ataque cardíaco de seu pai seria sua culpa? - perguntou Catherine, finalmente.
Paul correu a mão pelos cabelos:
- Quando fomos a Scardale, algo aconteceu. Ele ficou muito agitado. Não sei o que foi exatamente... Meu pai não disse nada, mas quando chegamos à casa de Jan ele já não estava bem. Então, quando entramos, achei que ele fosse desmaiar. Ficou pálido, começou a suar, como acontece quando as pessoas têm uma enxaqueca horrível. Ele parecia alheio a tudo. Mal falou com Jan, olhando à sua volta como se esperasse ver fantasmas saindo de dentro dos armários.
- Ele não disse o que o perturbava? Paul friccionou o nariz com o dedo.
- Acho que foi apenas o trauma de voltar a Scardale. O lugar estava vívido em sua mente, é claro, com todo o trabalho que vocês fizeram para o livro. - Seus ombros caíram. - É tudo minha culpa. Eu deveria ter percebido que ele não estava exagerando, quando dizia que não queria ir à aldeia.
- Mas não havia razão para pensar que ele adoeceria por isso - disse Catherine, em tom gentil. - Não se culpe. Ataques cardíacos não acontecem da noite pro dia. As condições para eles são formadas durante a vida inteira. No caso de seu pai, foi muito trabalho em horários irregulares, cigarros demais, refeições gordurosas feitas às pressas. O que aconteceu não foi sua culpa.
A expressão de Paul era amarga.
- O que ativou o ataque cardíaco foi a ida a Scardale.
- Não necessariamente. Você já me disse que nada em especial o perturbou.
- Eu sei. E já repassei mentalmente tudo o que aconteceu várias vezes.
Almoçamos juntos no jardim. Ele mal comeu, o que não é de seu feitio. Ele disse que a culpa era do calor e, para falar a verdade, estava mesmo quente.
Depois do almoço, Jan levou mamãe para dar uma volta por ali. Demoraram, porque ficaram trocando ideias, combinando de trocar dicas de jardinagem, essas coisas. Papai saiu para uma caminhada pela praça da aldeia, mas demorou apenas dez minutos. Depois, sentou-se lá, sob o castanheiro, fitando o espaço. Saímos de lá às três da tarde, mais ou menos, porque mamãe queria passar na feira de artesanato de Buxton, e chegamos em casa às seis.
- E George não disse se algo o estava incomodando? Paul balançou a cabeça.
- Nada. Ele disse que precisava escrever uma carta e subiu para o quarto. Helen e mamãe fizeram uma salada para o jantar e eu cortei a grama. Ele desceu depois de meia hora e disse que iria ao correio em Matlock porque queria ter certeza de que sua carta seria recolhida logo, já que mais tarde não há coleta. Achei um pouco estranho, mas meu pai nunca gostou de adiar as coisas.
Catherine respirou fundo. Não era justo deixar que Paul ficasse especulando sobre aquela carta que havia sido tão importante para seu pai.
- A carta era para mim - disse.
- Para você? Mas sobre o que ele lhe escreveria? - Paul estava perplexo.
- Acho que George não queria conversar pessoalmente comigo. Acho que não estava preparado para a discussão que certamente viria.
- Não entendo - falou Paul, franzindo a testa.
- Seu pai queria que eu cancelasse a publicação do livro. Sem qualquer explicação.
- O quê? Mas isso não faz nenhum sentido!
- Também não fez sentido para mim. Por isso vim até Cromford hoje de manhã. Então a vizinha me contou o que havia acontecido.
Os olhos de Paul arregalaram-se.
- Então você veio para brigar com ele? Mas que falta de sensibilidade, Catherine!
Ela negou com a cabeça.
- Não me entenda mal, Paul. Quando soube o que havia acontecido com George, meu primeiro pensamento foi de solidariedade, de pesar por todos vocês. Queria oferecer minha ajuda e meu apoio. Qualquer coisa.
Paul ficou em silêncio, pensando no que ouvira, mas com dúvida no olhar.
- Apeguei-me muito aos seus pais nos últimos seis meses. Seja qual for o problema com o livro, isto pode esperar. Acredite, Paul, o que mais me preocupa agora é a saúde de seu pai.
Paul começou a tamborilar com os dedos no braço do banco. A ele faltava claramente o talento de George para manter-se impassível.
- Olhe, Catherine, desculpe-me se fui agressivo, mas foi uma noite bem difícil. Não estou pensando direito.
Ela estendeu a mão e tocou o braço dele.
- Eu sei. Se eu puder fazer alguma coisa, diga-me, está bem? Paul deu um suspiro profundo.
- Você pode fazer algo por mim. Quero saber o que causou tudo isso. Quero saber o que aconteceu ontem para provocar o ataque cardíaco. Para ajudá-lo, preciso saber o que está por trás disso. Você sabe mais que qualquer outra pessoa sobre o envolvimento de meu pai com Scardale, então talvez possa imaginar o que aconteceu lá para deixá-lo tão tenso a ponto de ser traído por seu coração.
Catherine sentiu que parte da tensão desaparecia de seus ombros. O apoio de Paul ao que já pretendia fazer de qualquer maneira facilitava tudo.
- Farei o que for possível - disse. - Não aconteceu mais nada ontem à noite que pudesse abalá-lo? Depois de voltar do correio, quero dizer.
- Não. Fomos todos ao bar da cidade. Eles têm um jardim nos fundos, e simplesmente sentamos lá com nossos copos de cerveja e conversamos sobre uma ou outra coisa, mas nada muito importante. - Ele fez uma pausa e franziu o rosto. - Mas papai estava nervoso. Tive de repetir o que dizia algumas vezes, porque ele não estava prestando atenção.
- E Helen? Percebeu algo estranho no comportamento de George?
- Concordou comigo e disse que papai parecia meio aéreo. Achou que ele estava assim desde que chegamos a Scardale. Ela percebeu, mas provavelmente não era óbvio para aqueles que não o conhecem. Se Janis ofendeu-se com o silêncio de papai, certamente não disse nada a Helen....
- George não faria nada que ofendesse Janis, mesmo se estivesse chateado com algo, sendo um homem tão gentil.
Paul pigarreou.
- É verdade... - Olhou para o relógio e observou: - Bem, melhor eu voltar.
- Quando você precisa estar em Bruxelas? - perguntou Catherine, levantando-se.
Ele encolheu os ombros:
- Deveríamos ir para casa depois de amanhã. É claro que não vamos mais. Vou esperar para ver como ele fica.
- Volto com você até o hospital.
Quando se aproximavam da entrada, Paul avistou a namorada e saiu correndo, em pânico. Helen, com uma lata de Coca-Cola a meio caminho de seus lábios, abriu um sorriso ao vê-lo, mas ele sequer percebeu, indagando:
- Aconteceu algo com papai?
- Não, eu só queria respirar um pouco de ar fresco. - Ela passou um braço pela cintura de Paul, puxando-o para si em um gesto de apoio.
- Alguma novidade sobre George? - perguntou Catherine.
- Tudo na mesma. Paul, acho que deveríamos tentar convencer sua mãe a comer algo. - Ela sorriu para Catherine, como se pedisse desculpas. - Você conhece Anne... Não saiu do lado de George desde que o levaram para a UTI. Assim, vai acabar esgotada.
- Fiquem à vontade, não quero prendê-los - disse Catherine. Paul tomou sua mão.
- Descubra o que ele viu. Ou ouviu. Ou lembrou. Por favor?
- Farei o que puder.
Catherine observou-os enquanto entravam no prédio, contente por ter algo para fazer que talvez aliviasse um pouco da culpa que Paul estava sentindo. O fato de isto também servir a seus interesses era secundário, percebeu de repente, com surpresa. George Bennett tornara-se, claramente, mais importante em sua vida do que reconhecera antes. Isto tornava ainda mais importante a publicação de um livro que lhe faria justiça, disse a si mesma, com convicção. E isto ela podia fazer.
2
Agosto de 1998
Catherine tinha certeza de que o que quer que tivesse perturbado George Bennett ocorrera durante sua visita a Scardale. Ele vira alguma coisa, mas o quê? Como uma ida tão breve a um lugar podia produzir uma resposta tão avassaladora? Catherine teria entendido, se George lhe dissesse que seria preciso fazer algumas mudanças no livro, devido a uma descoberta recente, mas o que seria tão extraordinário a ponto de colocar a perder todo o projeto? E se George observara algo tão impressionante, como passara despercebido para o resto da família?
No calor medonho de uma tarde de agosto, Scardale mal podia ser reconhecida como a aldeia tristonha e gélida à qual Catherine havia ido em fevereiro. Como o verão estava sendo bastante úmido, a grama estava verde e crescida e as árvores mostravam mais tons de verde que qualquer pintor poderia retratar. Em sua sombra, até mesmo as casas modestas dos camponeses de Scardale pareciam quase românticas. Não havia nada amedrontador e nenhum traço dos acontecimentos sinistros de trinta e cinco anos atrás.
Catherine estacionou junto ao solar, vendo uma caminhoneta Toyota de cinco anos estacionada junto à entrada. Parecia que Janis Wainwright estava em casa. Ela sentou-se no carro por um momento, pensativa. Não poderia ir até lá e dizer: "O que aconteceu com George Bennett aqui ontem, para fazê-lo cancelar nosso livro? O que, na visita à sua casa, foi tão horrível que provocou um ataque cardíaco quase fatal à noite?" Entretanto, o que mais poderia fazer?
Ela pensou em perguntar a Kathy Lomas se ela vira George no dia anterior. Voltou-se na direção da Casa da Cotovia, mas o carro de Kathy não estava à vista. Exasperada, saiu do carro, pensando que, quando todo o resto falhava, só lhe restava usar a técnica jornalística comprovada de mentir descaradamente. Seguiu pela trilha estreita até a porta da cozinha e levantou a pesada alça de metal. Deixou-a cair e ouviu o eco dentro da casa. Um minuto inteiro passou e, então, a porta se abriu de repente. Ofuscada pela luz do sol, Catherine mal conseguia discernir as formas femininas no interior escuro.
- Pois não?
- Você deve ser Janis Wainwright. Conheço sua irmã, Helen. Meu nome é Catherine Heathcote. Você foi muito gentil permitindo que eu visse o solar, para poder situar-me ao escrever meu livro sobre o caso Alison Cárter. - Ela não podia jurar, mas sentiu que a mulher retraía-se ao ouvi-la.
- Lembro-me disso - disse a figura na porta, sem entonação.
- Será que eu poderia dar mais uma olhada em sua casa?
Com os olhos começando a se ajustar à escuridão da cozinha, Catherine pensou que Janis Wainwright parecia realmente assustada.
- Não é conveniente. Talvez em outro momento. Providenciarei uma data com Kathy - disse rapidamente, com as palavras embolando-se em sua pressa.
- Apenas o térreo. Prometo não perturbá-la.
- Estou ocupada agora - disse a mulher, com firmeza.
A porta começava a fechar-se. Instintivamente, Catherine aproximou-se de Janis, para impedi-la de fechar de todo. Só então viu o que George Bennett havia visto no dia anterior e recuou assustada, quase tropeçando.
- Fale com Kathy - disse Janis Wainwright. Como se a uma grande distância, Catherine ouviu a chave girar na porta e, depois, o ruído das trancas de segurança. Tonta, voltou-se e andou até o carro, trôpega e cega como uma sonâmbula.
Agora ela achava que entendia por que George escrevera aquela carta. Mas se estivesse certa, não era algo que podia ser facilmente explicado a Paul. E não era algo que a fizesse desejar o cancelamento do livro. O que vira fazia com que percebesse que poderia haver uma verdade mais profunda no caso Alison Cárter, que nem ela nem George haviam sequer imaginado. E que a tornava ainda mais determinada a contar a verdade, à qual brindara com tanta alegria com Paul, naquela noite, em Londres.
Catherine permaneceu completamente imóvel dentro de seu carro, sem sequer perceber o calor sufocante. Agora que o primeiro momento de choque já passara, mal podia acreditar no que havia visto. Dizia a si mesma que aquilo não fazia sentido. Havia sido enganada por seus olhos. Mas se este era o caso, então George também se enganara. A semelhança era impressionante, até sobrenatural. Se fosse só isso, poderia interpretar aquilo como uma coincidência bizarra, mas sabia que nenhuma semelhança incluía até cicatrizes.
Durante suas leituras e suas entrevistas para escrever o livro, soubera que Alison Cárter tinha uma marca que a distinguia: uma cicatriz. Era uma fina linha branca com mais ou menos dois centímetros, que atravessava sua sobrancelha direita, estendendo-se para baixo até a cavidade ocular e para cima, na testa. Acontecera no verão seguinte à morte do pai. Alison corria no parquinho da escola com uma garrafa de leite durante o recreio e tropeçara, caindo sobre os cacos de vidro e sofrendo o corte próximo ao olho. A cicatriz, de acordo com sua mãe, sempre era mais perceptível no verão, quando Alison pegava um pouco de sol. Assim como Janis Wainwright também pegara.
Uma dor de cabeça latejante surgiu do nada. Catherine fez o retorno e dirigiu, lenta e cuidadosamente, de volta a Longnor. Parecia haver apenas uma explicação para o que vira, e esta era impossível. Alison Cárter estava morta. Philip Hawkin fora enforcado por seu assassinato. Mas, se Alison Cárter estava morta, quem era Janis Wainwright? Como uma mulher que poderia ser clone de Alison poderia estar vivendo no Solar Scardale e não ter qualquer ligação com o que acontecera ali em 1963? Mas se estivesse ligada ao que acontecera naquela época, como sua própria irmã não saberia disso?
Catherine estacionou e foi a pé até a banca de revistas, onde comprou um maço de cigarros light e uma caixa de fósforos. Já em casa, serviu-se de uma taça de vinho tão frio que seus dentes doeram. Isto, pelo menos, fazia sentido. Depois, acendeu seu primeiro cigarro em doze anos, sentindo a cabeça rodar, o que já era algo. A nicotina chegou à sua corrente sanguínea e pareceu a coisa mais normal do mundo naquele momento.
Ela fumou quase com fervor e, então, sentou-se com papel e lápis à sua frente, para fazer anotações. Depois de uma hora, escrevera duas possibilidades:
Possibilidade 1. Se Alison Cárter não tivesse morrido, teria a aparência exata de Janis Wainwright.
Possibilidade 2. Alison Cárter é Janis Wainwright.
Ela também tinha um plano de ação. Se estivesse certa, precisaria mais que alguns ajustes e adaptações para terminar seu livro. Se Alison Cárter ainda estava viva, Um Corpo para o Crime seria ainda mais excitante do que já era. E, de algum modo, convenceria George a ver seu ponto de vista, depois que ele se recuperasse o bastante para considerar adequadamente todas as implicações.
O primeiro passo era um telefonema para sua assistente editorial em Londres.
- Beverley, aqui é Catherine - disse, injetando em sua voz uma energia que não tinha.
- Oi! Como vai a vida aí no meio do nada?
- Quando o sol está brilhando como hoje, eu não trocaria por Londres.
- Bem, mal posso esperar por sua volta. Está uma loucura aqui. Você nem imagina o que Rupert quer fazer para o número de Natal...
- Agora não, Bev - disse Catherine, com firmeza. - Tenho um assunto urgente para você. Preciso de alguém especializado em envelhecimento de pessoas por computador. De preferência nesta parte do país.
- Parece interessante.
Vinte minutos depois, sua assistente ligara para lhe dar o número de um homem chamado Rob Kershaw, da Universidade de Manchester.
Catherine consultou seu relógio. Eram quase quatro horas. Se Rob Kershaw não estivesse fugindo dos estresses da vida em alguma outra cidade, provavelmente ainda estaria trabalhando. Valia a pena dar-lhe um telefonema.
Alguém atendeu no terceiro toque.
- Gabinete de Rob Kershaw - disse uma voz feminina.
- Rob está?
- Desculpe, ele está de férias. Voltará dia 24. Catherine suspirou.
- Quer deixar recado? - perguntou a mulher.
- Obrigada, mas não adianta.
- Será que não posso ajudá-la? Sou a assistente de pesquisas de Rob Tricia Harris.
Catherine hesitou. Então, lembrou-se de que não tinha nada a perder.
- Você sabe fazer envelhecimento por computador a partir de fotografias?
- Ah, sim, é minha especialidade.
Alguns minutos depois, já haviam combinado tudo. Tricia não tinha nada mais urgente para fazer além de uma noite na frente da TV, e sofria da eterna falta de dinheiro de todos os estudantes. Seduzida pela promessa de ser bem paga por seus serviços, Tricia mostrou-se disposta a ficar lá à espera, enquanto Catherine dirigia até a universidade com suas cópias das fotografias que Philip Hawkin tirara da enteada.
Logo que ela chegou, Tricia digitalizou eficientemente as duas fotografias, fez algumas perguntas e então iniciou seu trabalho com o teclado e o mouse. Catherine deixou-a em paz, sabendo o quanto também detestava que as pessoas espiassem sobre seu ombro quando tentava trabalhar. Foi até a janela aberta no outro canto da sala e acendeu seu quinto cigarro. Amanhã pararia de novo, pensou. Ou quando descobrisse a chave para aquele mistério. O que viesse antes.
Depois de cerca de uma hora e mais três cigarros, Tricia chamou-a, pegando três folhas de papel em formato A4 da impressora e espalhando-as na sua frente.
- A da esquerda é aquilo que eu chamaria de melhor hipótese. Uma vida com estresse mínimo, boa nutrição e bons cuidados, talvez uns quatro quilos acima do peso ideal. A do meio é mais típica, em alguns aspectos: mais tensão, não tanta preocupação com a aparência, peso certo. A terceira é aquela que ninguém quer ser. Ela é a que teve uma vida difícil, dieta pobre, consumo pesado de cigarros, o que é muito ruim para a pele e favorece o aparecimento de rugas, você sabe - acrescentou, com um sorriso esperto para Catherine. - Ela está um pouco abaixo do peso.
Catherine esticou um dedo e puxou a folha do meio em sua direção. Exceto pela cor dos cabelos, poderia ser a fotografia da mulher que atendera a porta no solar. O cabelo de Janis Wainwright era grisalho, com fios loiros entremeados. Alison Cárter, envelhecida pelo computador, ainda tinha cabelos dourados, com apenas alguns fios brancos nas têmporas.
- Incrível - disse, suavemente.
- Era isso que você esperava? - perguntou Tricia. Catherine não lhe dissera quase nada, afirmando que trabalhava em um artigo sobre uma herdeira desaparecida que surgira de repente para reivindicar a posse da herança.
- Isto confirma meus temores - disse Catherine. - Há alguém andando por aí que não é quem diz ser.
- Humm, isso é ruim - disse Tricia, com uma careta.
- Ah, não - disse Catherine, sentindo o peito agitar-se de satisfação. - Não é nada ruim. Na verdade, é exatamente o contrário.
3
Agosto de 1998
Enquanto se afastava da Universidade de Manchester, Catherine sentiu a agitação quente que queimava suas veias sempre que sabia estar à beira de um furo jornalístico. Sua emoção era tanta que, por um momento, esqueceu-se do que dera início a este frenesi. Naquele instante, o fato de um homem estar deitado em um hospital de Derby, ligado a máquinas que o mantinham vivo, era irrelevante. Excitada demais para poder comer, ela dirigiu de volta a Longnor com as possibilidades estonteantes do que estava por vir girando em sua mente.
A primeira coisa que deveria fazer, decidiu, era descobrir quem era Janis Wainwright legalmente. Não duvidava que tinha um registro legal de sua existência. Seria difícil comprar imóveis ou ter uma profissão sem uma identidade. Descobri-la envolveria uma busca pelos cartórios, para a verificação de nascimentos, casamentos e óbitos. Levaria dias para fazer isto sozinha, mas existiam agências que realizavam esta espécie de trabalho rotineiramente, para jornalistas. Ela ligou o laptop e começou a redigir uma solicitação por e-mail à Agência de Buscas Legais, uma empresa especializada na localização de informações ligadas tanto a indivíduos quanto a empresas.
Estava razoavelmente certa de que Janis nunca se casara. Em primeiro lugar, Helen não mencionara um marido. Além disso, uma rápida olhada na carta que havia recebido do advogado de Janis, em resposta a seu pedido de visita ao solar, revelou que ele se referia à cliente como "senhorita Wainwright". E, é claro, a própria Helen havia se casado e divorciado, o que explicava por que seu sobrenome era diferente.
Em algum lugar, portanto, deveria haver detalhes sobre a certidão de nascimento de Janis Wainwright. Para certificar-se de que faria o serviço completo, Catherine decidiu investigar os detalhes da existência legal também de Helen. E uma vez que, como todo bom jornalista, ela sempre mantinha um pé atrás com tudo, solicitou mais uma verificação, para conferir se haveria um atestado de óbito de Janis Wainwright em algum ponto entre seu nascimento e o desaparecimento de Alison em dezembro de 1963. A partir dos detalhes da certidão de nascimento, seria possível localizar a certidão de casamento dos pais de Janis e, a partir desta, suas certidões de nascimento, se fosse preciso. Este poderia ser o ponto de partida para descobrir se havia alguma ligação real entre Janis Wainwright e Alison Cárter.
Catherine enviou o pedido, deixando claro que desejava a opção de envio expresso do material pelo correio e por e-mail. Ainda assim, sabia que teria de esperar no mínimo até a tarde seguinte por uma resposta, e não tinha ideia do que fazer para preencher o tempo.
Então, lembrou-se de George. Sentindo-se culpada por tê-lo varrido da consciência por algumas horas, ligou para o hospital para informar-se sobre seu estado. A enfermeira da UTI disse-lhe que não havia alteração. Com emoções conflitantes, ela desligou. Detestava pensar no que havia acontecido com George, mas o momento de reconhecimento que lhe causara o ataque cardíaco também parecia estar levando à maior matéria de sua vida. Ela se conhecia bem o bastante para entender o que isto significava para sua carreira. Sempre se envolvera mais com seu trabalho que com qualquer ser humano. Sabia que a maior parte das pessoas acharia muito triste tal escolha de estilo de vida, mas para ela triste era apostar tudo em relacionamentos, quando as pessoas invariavelmente se decepcionavam. Pessoas iam e vinham, e se podia extrair muita alegria desses relacionamentos. Ela sabia disso, e extraía sempre todo o prazer e satisfação possíveis. Contudo, nenhum indivíduo, isoladamente, jamais fora tão constante quanto a onda de intensa excitação que vinha de um furo jornalístico bem-feito.
Ela se serviu de mais um drinque, pensando sobre o próximo passo. Quando chegou ao fundo do copo, sabia que só havia um rumo possível.
Três horas depois, Catherine registrava-se em um hotel quatro estrelas na periferia de Newcastle. Ela aprendera que um dos segredos do bom jornalismo era saber quando ir em frente e quando forçar-se a ter paciência. Sua ânsia por descobrir os mistérios desta história era temperada pela sabedoria da experiência. Aparecer sem anúncio na porta de alguém sempre era má ideia, se isso ocorresse tarde da noite. Ela sabia que a visita seria sempre associada com más notícias, mesmo antes de abrir a boca.
Pela manhã, contudo, as pessoas estavam mais otimistas. Muito antes da invenção do carteiro, com sua promessa de boas notícias, todos já sabiam disso. Assim, desde seus tempos como repórter, ela sempre evitava bater na porta de alguém tarde da noite e optava por chegar de manhã cedo.
Catherine finalmente adormeceu, assistindo ao canal de filmes. Já passava das nove quando acordou, contente por ter tido uma boa noite de sono, apesar de tudo o que rondava sua mente.
A primeira coisa que fez foi ligar para o hospital. Lá, disseram que pouco havia mudado, embora agora houvesse razão para otimismo. Ela tentou ligar para a casa dos Bennetts, mas apenas a secretária eletrônica atendeu. Assim, transmitiu seu desejo de rápida recuperação e desligou. Uma hora depois, corria pela auto-estrada Al.
Ela estava a meio caminho pela trilha até a casa quando a porta se abriu.
- Catherine - disse Tommy, com o rosto amplo enrugado em um sorriso. - Que prazer inesperado. Venha sentar-se comigo lá nos fundos.
Ela seguiu-o pela sala e cozinha imaculadamente limpas até o quintal, um paraíso de flores perfumadas e folhagens. Na primeira visita, ele lhe contara que todas as plantas haviam sido escolhidas para atraírem pássaros e borboletas. Hoje, ouvia-se o zumbido suave de abelhas e inúmeras asas multicoloridas chamavam continuamente sua atenção enquanto conversavam. Tommy puxou uma cadeira para ela e, então, sentou-se no banco que dava de frente para o jardim e para o mar, que se estendia mais adiante.
- E então, o que a traz aqui? - perguntou ao sentarem-se. Ela suspirou.
- Nem sei por onde começar, Tommy. Não importa como eu conte, parecerá que eu enlouqueci de vez. - Ela baixou o olhar. - Você já soube de George?
- O que aconteceu? - perguntou ele, alarmado.
Catherine fitou-o.
- Teve um ataque cardíaco. Um dos grandes, segundo me disseram. Está no Derby Royal, na UTI. Está inconsciente desde as primeiras horas de ontem, tanto quanto sei. De acordo com Paul, seu coração parou na ambulância, a caminho do hospital.
- E você veio até aqui para me contar? Catherine, é muita gentileza de sua parte. - Tommy afagou-lhe a mão. - Muito obrigado.
- Desculpe ser portadora de más notícias. - Naquele momento, ela satisfez-se com o papel de amiga preocupada.
Ele encolheu os ombros.
- Na minha idade, é natural receber más notícias. E como Anne está enfrentando a situação? Deve estar arrasada.
- Não saiu do lado de George. Paul está na cidade agora, com sua noiva, e os dois estão dando apoio a Anne.
- Pobrezinha. Dedicou sua vida a George. E com a artrite não poderá fazer muita coisa se ele precisar de cuidados de enfermagem que exijam força física. - Tommy suspirou e sacudiu a cabeça. Seu olhar cruzou o jardim e fixou-se no brilho azulado do Mar do Norte.
Catherine pegou seu maço de cigarros, perguntando:
- Importa-se se eu fumar?
As sobrancelhas dele levantaram-se.
- Achei que você não fumava. Mas fique à vontade. - Ele levantou e foi até o galpão no canto do jardim, voltando com um apoio de vaso de argila. - Use isso como cinzeiro. - Tommy recostou-se, cruzando as pernas na altura dos tornozelos e enfiando as mãos nos bolsos de sua calça larga de veludo cotelê.
- Segunda-feira, George foi a Scardale. E na segunda à noite sofreu o ataque cardíaco - disse ela, sem mais preâmbulos.
- Você o convenceu a ir até a aldeia? - perguntou ele, com os olhos arregalados de surpresa.
- Não fui eu. Eu jamais conseguiria persuadi-lo, mas Paul conseguiu a façanha. Ele veio com Helen, sua noiva. Estão planejando casar-se este ano ainda. De qualquer forma, a irmã de Helen, Janis, mudou-se para o Solar Scardale alguns anos atrás e eles conseguiram convencer George e Anne a almoçarem lá segunda-feira. Eu sabia que a ideia de voltar a Scardale era desagradável para George, mas depois de chegarem lá, de acordo com Paul o comportamento dele tornou-se realmente esquisito.
- Esquisito como?
- Paul disse que seu pai parecia muito tenso. Não tinha apetite. Exceto por uma caminhada solitária pela praça da aldeia, ficou sentado no jardim, sem falar com ninguém. Paul disse que George estava muito distraído e que se fechou pelo resto do dia e da noite. - Catherine fez uma pausa para organizar seus pensamentos. Precisava ter cuidado no modo como se expressava com Tommy, que era perspicaz o bastante para captar nas entrelinhas o que não lhe diziam.
- Antes de adoecer, ele escreveu uma carta para mim, pedindo que cancelasse o livro. Sem nenhum motivo. Disse apenas que tivera novas informações que exigiam este cancelamento para sempre. É claro que contei a Paul sobre a carta, quando o vi no hospital. Eu já estava convencida de que George havia visto alguma coisa em Scardale que talvez tivesse lhe trazido dados novos sobre um determinado aspecto do caso, ou lhe causasse preocupação por algo que incluímos no livro. Paul chegou à mesma conclusão e se sente muito culpado. Acha que é responsável pelo ataque cardíaco do pai, porque o convenceu a voltar a Scardale. Ele me perguntou se posso tentar descobrir o que está por trás da carta que George me mandou. Assim... - Ela sacudiu os ombros. - Preciso encontrar as respostas.
- Você teria sido uma ótima policial - disse ele, seco.
- Vindo de você, não tenho certeza se isto é um elogio. - Ela olhou para o cigarro, incerta, e depois o apagou com firmeza.
- Ah, sinto um respeito imenso por eles, porque fazem um trabalho que, para mim, foi demais - disse, fingindo uma infelicidade que ela sabia que ele não sentia. - E aonde você foi, em busca de suas respostas? Como se eu não soubesse...
- Isso mesmo. Voltei a Scardale. Pensei em pedir à irmã de Helen para dar mais uma olhada no solar para ver se conseguia descobrir o que poderia ter causado tanta emoção em George. - Ela remexeu-se na cadeira para poder também olhar para o mar.
- E descobriu?
Catherine ocupou-se com outro cigarro. Pelo canto do olho, percebia que Tommy a avaliava, com os olhos astutos em seu rosto curtido. Ele sabia que havia algo, mas nem mesmo em suas fantasias mais desvairadas poderia descobrir o que ela estava prestes a dizer.
- Nem cheguei a entrar no solar - disse, exalando a fumaça. - Mas vi o que quase matou George. - Ela abriu sua bolsa e tirou dali a pasta onde guardara a fotografia envelhecida digitalmente de Alison Cárter.
Tommy estendeu a mão. Ela fez um "não" com a cabeça.
- Espere um pouco - disse. - A mulher que abriu a porta, aquela que supostamente é a irmã de Helen... é um clone perfeito de Alison Cárter. Até no detalhe da cicatriz na sobrancelha. - Ela entregou a pasta a Tommy, que a abriu com grande inquietação, como se pudesse explodir em seu rosto. O que ele viu ali era pior que qualquer coisa que pudesse temer. Sua boca abriu-se e assim ficou. - Também não pude acreditar no que via. Levei as fotos que Philip Hawkin tirou de Alison a uma especialista, que as envelheceu com um programa de computador. Esta poderia ser uma foto da mulher que atendeu a porta no Solar Scardale. Mas esta também é a aparência que Alison teria se estivesse viva.
A pasta tremia nas mãos de Tommy.
- Não - murmurou ele. - Não pode ser. Deve ser uma parente.
- A cicatriz é a mesma, Tommy. Ninguém tem cicatriz idêntica à de outra pessoa.
- Você deve ter cometido um erro. Talvez não tenha visto a mulher direito. Deixou-se levar pela imaginação.
- Será? Acho que não, Tommy. Não foi minha imaginação que causou um ataque cardíaco em George. O que eu vi, George viu antes de mim. Por isso vim até aqui. Preciso de sua ajuda. Preciso que você vá até lá, veja Janis Wainwright e diga a mim e a George que ela não é Alison Cárter. Porque, do meu ponto de vista, parece que tropecei no furo jornalístico no século.
Ele cobriu o rosto com a mão livre, esfregando sua pele curtida, fazendo-a parecer o couro enrugado de um animal. A mão voltou ao colo e seu olhar fixou-se em Catherine.
- Se você estiver certa, sabe o que isso significa, não é?
Ela assentiu, lentamente. Não pensara em mais nada na longa viagem até ali, sua mente como uma montanha-russa, na qual o ponto mais alto era o efeito profissional da revelação que faria, e o ponto mais baixo era o que aquilo faria com George Bennett e sua família. Ela sabia que, em algum momento, teria de encontrar um equilíbrio entre essas duas consequências. Mas, primeiro, teria de segurar a verdade em suas mãos. Olhando Tommy diretamente nos olhos, disse:
- Significa que enforcaram Philip Hawkin por um crime que nunca aconteceu.
4
Agosto de 1998
Tommy Clough não era um homem sentimental. Sempre vivera no presente, extraindo sustento daquilo que o cercava. Sua outra grande qualidade era a persistência. Assim, embora nunca tivesse se sentido particularmente enriquecido pelos anos de trabalho na polícia, mantivera-se em seu emprego por causa do desejo duradouro por justiça, que o levara até lá em primeiro lugar. Entretanto, mesmo então ele conseguira manter-se com suas duas paixões, os pássaros e o jazz.
Ao revelar a Catherine que o caso Alison Cárter marcara o início do fim de sua carreira como policial, dissera nada menos que a verdade. Preocupara-se demais com o resultado de um caso que, na melhor das hipóteses, era frágil. A ideia de que o assassino de Alison pudesse sair impune o atormentara dia e noite, até o final do julgamento, e desejara não ter de passar por aquilo novamente. Precisara de alguns anos para entender o que realmente sentira sobre a investigação e seus resultados, mas, depois de tomar uma decisão, sair da polícia de Derbyshire fora uma questão de semanas. E não se arrependera dela um minuto sequer.
A chegada de Catherine Heathcote, alguns meses antes, forçara-o a reexaminar o passado, praticamente pela primeira vez desde que se demitira. Durante dias, antes da entrevista com ela, perambulara pelos rochedos e promontórios próximos à sua casa, revirando o caso de Scardale vezes sem conta em sua mente.
Um de seus pontos fortes, como policial, havia sido sua intuição. Com frequência, ela o fizera ir em frente mesmo quando não existiam evidências concretas, e isto compensara na maior parte das vezes, na forma de detenções e condenações. Ele estivera convencido, desde o início, que Philip Hawkin não valia um centavo. Todos os seus instintos haviam gritado isto desde seu primeiro encontro com o homem. Muito antes de George Bennett sequer verbalizar as primeiras suspeitas sobre Hawkin, Tommy Clough já achava que o dono de Scardale guardava um segredo muito sério.
Tão logo George indicara o desejo de prestar mais atenção em Hawkin, Tommy transformara-se em um cão farejador, em busca de qualquer fio de evidência que pudesse apoiar o caso. Ninguém trabalhara mais que ele, nem mesmo o próprio George, na tentativa de incriminar Philip Hawkin.
Apesar disso, em seu íntimo Tommy jamais se convencera de que Hawkin era um assassino. Não tinha dúvidas que o homem havia sido um predador sexual cruel, e tivera pesadelos com as fotografias que, certamente, não haviam sido forjadas nem por George nem por qualquer outra pessoa. Contudo, embora desprezasse e detestasse Hawkin, nunca se convencera inteiramente de que ele era o assassino que o haviam feito parecer. Talvez tivesse trabalhado tanto para construir um caso tão sólido contra ele exatamente porque aquela dúvida insistia em incomodá-lo no fundo de seu cérebro. Tentara convencer tanto o júri quanto a si mesmo. E a convicção final de que seu instinto falhara prejudicara sua confiança em sua capacidade para executar bem seu trabalho.
E agora, Catherine deixara cair uma bomba. Segundo ela, George Bennett estava deitado em um hospital, ligado a aparelhos que o mantinham vivo, porque percebera, assim como a própria Catherine, que Alison Cárter estava viva e morava em Scardale. De certo modo, não fazia sentido. Entretanto, se Catherine estivesse certa, isto só justificava a inquietação que Tommy Clough sentira anos atrás. Ainda assim, desta vez ele teria dado quase qualquer coisa para que estivesse errado por todos aqueles anos, porque, se Alison Cárter estava viva, então as repercussões seriam assustadoras. Além das consequências legais, quem quer que fosse a noiva de Paul Bennett, ela estava ligada, de algum modo, a um erro terrível no qual seu futuro sogro tivera uma participação crucial.
Tudo isso rolava pela mente de Tommy, sem uma solução, enquanto seguia o carro de Catherine com seu Land Rover pela Al, rumo a Derbyshire. Não havia alternativa, exceto voltar com ela e fazer o possível para proteger George e sua família das consequências do que ela pensava que havia descoberto. Tommy considerava-a determinada e teimosa, uma combinação perigosa com um material tão explosivo. Ela se oferecera para levá-lo de carona, mas ele insistira em manter a liberdade de ir e vir que lhe faltaria se dependesse de Catherine para tudo.
- Quero fazer visitas a George - disse ele. - E pode ser que nem sempre o momento seja conveniente para você.
Além disso, ele queria estar sozinho com seus pensamentos.
A viagem de cinco horas passara num piscar de olhos, e de repente estavam estacionando junto a uma casa na rua principal de Longnor. Catherine anunciou que a primeira coisa que precisavam fazer era encontrar um lugar para Tommy ficar. O bar alugava quartos, mas no meio de agosto já estava lotado, com excursionistas e pescadores. Tommy encolheu os ombros e, então, marchou direto até a porta da frente de Peter Grundy, anunciando que precisaria do quarto extra de Grundy por alguns dias e perguntando se dez libras seriam suficientes para pagar a hospedagem e o café da manhã.
A esposa de Grundy, que nunca gostara dos chefes do marido e se sentia bem contente por poder tirar dinheiro de um deles, quase mordeu sua mão quando ele estendeu as notas, embora Peter tivesse a elegância de parecer encabulado. Quaisquer perguntas que tivessem sobre o motivo da ida de Tommy a Derbyshire foram satisfeitas com a notícia sobre o ataque cardíaco de George.
- Em um momento assim, a gente precisa dos amigos por perto - disse a senhora Grundy, em tom profundo.
- Certamente - foi a resposta séria de Tommy. - E pretendo fazer tudo que puder para ajudar George e Anne. - Ele lançara uma rápida olhada para Catherine, para garantir que ela captara sua mensagem de que talvez seus interesses não fossem os mesmos. Ela inclinou a cabeça, em reconhecimento, e recusou uma xícara do chá industrializado e forte da senhora Grundy.
- Estarei em casa quando você estiver pronto, Tommy - foi tudo o que ela falou.
Catherine não tinha tempo para cogitar exatamente o que Tommy Clough pensava fazer, impaciente para colocar-se na frente de seu laptop. Ela entrou on-line e descobriu que a Agência de Buscas Legais lhe enviara o que pedira. Haviam digitalizado as fotocópias das certidões e atestados e enviado para ela como arquivos de imagens.
Janis Hester Wainwright vinha primeiro. Nascida em 12 de janeiro de 1951, em Consett. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Upington Terrace, 27, Consett.
Nome de solteira da mãe: Cárter. Era coincidência, mas nem tão grande. Cárter era um nome muito comum, disse ela a si mesma, com firmeza. Esta questão era importante demais para agarrar-se em frágeis indícios. O que precisava era de provas concretas.
A seguir, a certidão de Helen. Helen Ruth Wainwright. Nascida em 10 de junho de 1964, em Sheffield. Sexo feminino, filha de Samuel Wainwright e Dorothy Wainwright, Cárter quando solteira. Profissão do pai: metalúrgico. Endereço: Lee Bank, 18, Rivelin Valley, Sheffield.
Nome no meio: Ruth. Junto com Cárter, isto começava a ficar interessante, pensou Catherine, sentindo a excitação sob a pele.
Ela rolou até a página seguinte do arquivo eletrônico para ver a certidão de casamento de Samuel e Dorothy Wainwright. A excitação era uma sensação física que rugia em seu estômago. Local do casamento: Igreja de Santo Estêvão, Longnor, distrito de Buxton. Data do casamento: 5 de abril de 1948. Samuel Alfred Wainwright, solteiro, casara-se com Dorothy Margaret Cárter, solteira. Ele estava com vinte e dois anos, e, ela, vinte e um. Ele era metalúrgico, e ela, uma ordenhadora. Na época do casamento, ele residia no número 27 de Upingtoh Terrace, Consett. Ela morava na Casa do Condado, em Scardale, Derbyshire. Seu pai era Albert Cárter, trabalhador rural. As testemunhas foram Roy Cárter e Joshua Wainwright.
Catherine mal podia acreditar nos seus olhos. Ela leu novamente os detalhes. A mãe de Janis Wainwright era Dorothy Cárter, da Casa do Condado, em Scardale. Uma das testemunhas do casamento de Dorothy era Roy Cárter. Ela podia apostar que ele também morava na Casa do Condado, em Scardale. O mesmo Roy Cárter que fora marido de Ruth Crowther e pai de Alison Cárter. Assim, não seria surpreendente descobrir uma forte semelhança entre Janis e Alison. A herança genética podia ser uma coisa estranha, mas, ainda assim, não explicava a cicatriz. Se Janis não era Alison, como podia ter uma cicatriz idêntica?
A única explicação na qual ela conseguiu pensar era que a cicatriz havia sido alguma forma bizarra de mutilação que Janis, adolescente, infligira a si mesma depois do desaparecimento e suposta morte de Alison. Ela podia imaginá-las crescendo juntas, os comentários da família de que poderiam ser gémeas idênticas. E, então, Alison havia morrido e Janis decidira mantê-la viva, fazendo em si uma marca igual, reafirmando a singularidade de Alison. Era uma ideia grotesca, mas Catherine sabia que garotas adolescentes eram capazes dos comportamentos mais fantásticos, incluindo lesões auto-infligidas.
O cursor piscava, chamando sua atenção. A agência de buscas enviara mais que os três documentos. Ela desceu mais uma página na tela do computador e, desta vez, não conseguiu parar de olhar, boquiaberta e atónita. Enviara seu pedido pelos documentos apenas por rotina, para cobrir todas
CÓPIA AUTENTICADA DE UMA CERTIDÃO DE CASAMENTO, DE ACORDO COM A LEI DE CASAMENTOS DE 1836
Distrito do Registro:
Casamento Celebrado em: Igreja de Santo Estêvão, Longnor Em: Debshire
Buxton
Número do Registro: 87
Sobrenome: Wainwright
Data do Casamento: 15 de abril de 1948 Nome: Samuel Alfred
Idade: 22
Estado Civil: Solteiro
Profissão: Metalúrgico
Residência: ypmgton.
Nome e Sobrenome do Pai: Alfred Wainwright
Profissão do Pai: Metalúrgico.
Nome da mãe: Dorothy Margaret
Sobrenome: Cárter
Idade: 21
Estado Civil: Solteira
Profissão: Ordenhadora
Residência: Condado, Scardale Derbyshire.
Nome e Sobrenome do Pai: Albert Carter
Profissão do Pai: Trabalhador rural.
Celebrado por: Paul Westfield.
as possibilidades. Mas a agência encontrara algo que ela mesma não acreditava que deveria procurar.
Janis Hester Wainwright falecera em 11 de maio de 1959.
Catherine olhou para a tela por muito tempo. Apenas uma coisa fazia sentido. Ela acendeu um cigarro e tentou imaginar qualquer outra situação que se encaixasse nos fatos, mas nada lhe ocorreu. Nada se encaixava, a menos que começasse com a suposição de que Alison Cárter não morrera em dezembro de 1963. Quem teria mais condições de assumir uma menina que desejava esconder-se que um ramo fisicamente distante de sua família? Assim, ela havia assumido a identidade de sua prima falecida, Janis, e vivera até a idade adulta em Sheffield.
Um pensamento veio-lhe subitamente e os pêlos em sua nuca eriçaram-se. Tantos anos atrás, Don Smart convencera o Daily News a consultar uma vidente que dissera que Alison estava viva e em segurança, morando em uma rua de uma cidade grande. Ninguém deu crédito à vidente na época. A situação descrita pela mulher era improvável demais. Agora, porém, Catherine achava que, contra todas as probabilidades, a vidente francesa podia estar certa.
Uma batida na porta assustou-a, tirando-a de seus devaneios. Tommy vinha para dizer-lhe que iria até Cromford, para ver se havia alguém em casa. Se não, pretendia ir até Derby.
- Antes de você ir - disse ela -, dê uma olhada nisso aqui.
Ela fez um gesto para que ele se sentasse na frente do laptop e mostroulhe como rolar a tela para baixo. Ele sentou em silêncio, lendo os quatro documentos com grande concentração. Depois, voltou-se para ela, perturbado:
- Diga-me que você tem outra explicação - disse, com voz suplicante. Catherine sacudiu a cabeça.
- Não consigo pensar em outra.
Ele massageou o queixo com dedos ainda fortes e grossos.
- Preciso visitar George e sua família - disse, finalmente, e suspirou. - Precisamos conversar sobre o próximo passo. Você estará acordada quando eu voltar?
- Sim. Vou até Buxton comer alguma coisa, porque, se ficar dentro de casa, acabarei enlouquecendo - disse, fazendo um gesto na direção das fotografias de Scardale espalhadas nas paredes. - Estarei de volta às nove.
ATESTADO DE ÓBITO
Distrito do Registro: Condado de Durham
Subdistrito de: Consett
Nome: Janis Hester Wainwright Sexo: Feminino
Data do Óbito: 11 de maio de 1959 Idade: 8 anos
Causa do Óbito: Tuberculose.
Médico Responsável: Dr. James Inchbald e Dr.Andrew Witherwick
Endereço: Upington Terrace, 27, Consett, Condado de Durham.
Nome e Sobrenome do Pai: Samuel Wainwright
Nome, Sobrenome e Nome de Solteira da Mãe: Dorothy Wainwright, anteriormente Cárter.
Ele acenou com a cabeça.
- Então estarei aqui quando você voltar. Não se preocupe, Catherine. Descobriremos tudo.
- Ah, acho que já descobrimos o mais importante, Tommy. O mais difícil é saber o que faremos com isso.
Tommy sorriu para a enfermeira da UTI.
- Sou parente - falou, com a confiança tranquila que nunca falhava.
- George é meu cunhado.
A enfermeira assentiu.
- O filho e a nora dele foram comer algo, de modo que apenas a esposa lhe faz companhia agora. Pode entrar direto. - Ela abriu a porta para ele.
- Terceiro leito, em frente.
Tommy andou lentamente. Parou a alguns metros da confusão de máquinas e aparelhos que mantinham seu velho amigo vivo. Anne estava sentada de costas para ele, a cabeça baixa, uma das mãos enlaçada na de George e a outra acariciando seu braço, maquinalmente atenta para não tocar no tubo ligado à veia do marido. A pele de George estava pálida, com um leve brilho viscoso. Seus lábios tinham um tom azulado e manchas escuras podiam ser vistas sob seus olhos fechados. Sob o lençol fino, seu corpo parecia estranhamente frágil, apesar dos ombros largos e músculos bem definidos. Vê-lo assim, sem vitalidade, fazia com que Tommy sentisse sua própria mortalidade, como uma lufada de ar frio em sua pele.
Ele deu um passo à frente e pousou a mão no ombro de Anne. Ela ergueu a cabeça, com olhos cansados e resignados. Pareceu confusa por um momento, mas depois o choque do reconhecimento atingiu-a.
- Tommy? - perguntou, incrédula.
- Catherine contou-me o que aconteceu. Eu quis vir.
- Claro que sim - disse ela, como se aquilo fizesse todo o sentido do mundo.
Tommy puxou uma cadeira e sentou-se próximo. A mão que estivera acariciando o braço de George soltou-o e segurou com força o braço do outro homem.
- Como ele está? - perguntou Tommy.
- Dizem que está aguentando firme, o que quer que isso signifique - respondeu com a voz cansada. - Não entendo por que ele ainda está inconsciente. Achei que ataques cardíacos vinham e pronto: a gente sobrevive ou não... Mas ele está assim há dois dias, e ninguém me diz quando recobrará a consciência.
- Acho que é o modo de o corpo curar-se - disse Tommy. - Se bem conheço George, se estivesse consciente teriam de atá-lo à cama para forçá-lo a repousar e recuperar-se direito.
Anne sorriu desanimada.
- Talvez você tenha razão.
Ficaram sentados em silêncio durante alguns minutos, observando enquanto o peito de George subia e descia. Finalmente, Anne falou:
- Estou contente por você ter vindo.
- Desculpe-me se foi preciso uma coisa assim para me forçar a vir. - Tommy acariciou a mão de Anne. - E quanto a você? Como está?
- Estou com medo, Tommy. Nem posso pensar em como seria minha vida sem ele. - Ela fixou o olhar no marido, com os ombros curvados em desamparo.
- Quando foi a última vez que você dormiu? Ou comeu? Anne balançou a cabeça.
- Não consigo dormir. Deitei-me ontem à noite. Eles têm um quarto para parentes aqui, mas não consegui me desligar. Não gosto de sair de perto dele. Quero estar aqui quando George abrir os olhos. Ele vai se assustar, sem saber onde está. Preciso estar aqui. Paul ofereceu-se para me substituir, mas não me sinto bem. Ele já está abatido demais, culpando-se, e tenho medo do que dirá a George se estiverem sozinhos. Não quero que George tenha novos problemas.
- Mas eu estou aqui agora, Anne. Posso ficar com ele, enquanto você ao menos toma um chá e come alguma coisa. Você parece à beira da exaustão.
Ela virou-se, olhando-o com curiosidade.
- E o que ele vai pensar se vir você sentado aí, como um fantasma do passado? - perguntou, com um traço de seu bom humor costumeiro.
- Bem, pelo menos isso o distrairia - respondeu Tommy, com um sorriso. - Você precisa descansar, Anne. Vá tomar alguma coisa e pegar um pouco de ar fresco.
Anne abaixou a cabeça, concordando.
- Talvez seja melhor mesmo. Mas não vou sair. Ficarei uns dez minutos no quarto para parentes. Mas você precisa conversar com ele. Dizem que isso ajuda. E se ele mexer um dedo sequer, chame a enfermeira. Mande alguém me buscar.
- Vá. Ficarei de olho nele.
Com relutância, Anne levantou-se e afastou-se, devagar. Ela andou até a porta, lançando um olhar para trás a cada dois passos. Tommy ocupou a poltrona em que ela estava antes e inclinou-se para a frente, com os cotovelos fincados nos joelhos. Ele começou a falar com George, baixinho, contando-lhe sobre suas últimas experiências de observação de pássaros. Depois de cerca de dez minutos, uma enfermeira veio para verificar os sinais vitais do paciente.
- Não sei como o senhor conseguiu - disse ela -, mas a senhora Bennett está dormindo pela primeira vez desde que trouxeram seu marido para cá. Mesmo se for apenas um cochilo, fará um bem enorme para ela.
- Fico feliz - respondeu Tommy.
Ele esperou até que a mulher se afastasse e recomeçou seu monólogo:
- Talvez você esteja imaginando o que vim fazer aqui. É uma longa história, acho, e talvez eu nem devesse lhe contar. Assim, não se dê ao trabalho de perguntar o que me trouxe aqui. Apenas agradeça, porque minha cara feia foi o bastante para fazer com que Anne se afastasse para dormir um pouquinho.
Enquanto falava, ele percebeu movimentos minúsculos sob as pálpebras de George. Então, os olhos abriram-se de repente. Tommy inclinou-se para o amigo, tomando-lhe a mão.
- Bem-vindo de volta, George - murmurou. Ele sacudiu a mão livre, tentando atrair a atenção da enfermeira. - Não entre em pânico, companheiro. Você ficará cem por cento de novo.
George franziu a testa, confuso.
- Anne já voltará - disse Tommy. - Não se preocupe com nada. - Enquanto falava, a enfermeira chegou junto ao leito. Tommy levantou o olhar. - Ele acordou.
Afastou-se, para permitir que ela se aproximasse mais.
- Vou buscar Anne - prometeu, afastando-se apressadamente, seguindo as placas que indicavam a localização do quarto de descanso para parentes. Anne estava estendida em um sofá, dormindo profundamente. Detestava ter de acordá-la, mas ela nunca o perdoaria se não fizesse isso. Tommy pousou uma mão em seu ombro e sacudiu-a levemente. Os olhos de Anne abriram-se de todo, imediatamente alertas, com o pânico estampado em seu rosto.
- Está tudo bem. Ele está acordando, Anne.
Ela levantou-se com dificuldade, exclamou um "Ah, Tommy!" e atirou os braços em torno de seu pescoço. Ele ficou ali, desajeitadamente preso em seu abraço, sem saber o que fazer com suas mãos.
- Voltarei amanhã - disse quando ela o liberou, pronta para voltar ao quarto de George.
Na porta, Anne olhou-o.
- Obrigada, Tommy. Você é um milagre.
Ficou ali por alguns instantes, acompanhando-a com os olhos.
- Existe mais de um tipo de milagre - disse com tristeza, saindo da UTI.5
Agosto de 1998
Catherine conseguiu prolongar um jantar sem graça durante quase uma hora e meia. Mesmo assim, mal passava das oito e meia da noite quando voltou a Longnor, mas Tommy já estava à sua espera, sentado sobre o muro baixo de calcário na frente de sua casa. Ele parecia acinzentado e pálido, e Catherine sentiu uma pontada de preocupação. Esquecia-se sempre de que Tommy não era jovem, já que parecia tão em forma e cheio de energia. Mas ele dirigira mais da metade do dia e provavelmente ainda não havia jantado.
- Graças a Deus você voltou. - Foi o cumprimento dele. - Precisamos sentar e conversar.
- Como está George? - perguntou Catherine, enquanto entravam. - Quer beber alguma coisa?
- Tem uísque?
- Só irlandês. - Ela apontou para o aparador. - Deixe-me pegar uma taça de vinho.
Ela foi à cozinha e abriu uma garrafa. Ao voltar, Tommy já se servira de cinco centímetros de uísque em um copo plástico.
- E então, como está George? - repetiu, esperando o pior.
- Recuperou a consciência. Eu estava com ele quando abriu os olhos.
- Você estava com ele? Como conseguiu entrar no quarto? Tommy suspirou.
- Como acha que consegui? Mentindo, ora! Obviamente, ele não estava em condições de conversar, mas acho que me reconheceu. Eu disse para Anne que voltarei amanhã de manhã. Talvez até lá eu já possa falar com ele.
- Acho que não é hora de falar sobre Scardale e Alison com George - disse Catherine.
Tommy lançou-lhe um olhar duro. Catherine pensou que ele não perdera seu jeito de policial, mesmo após tantos anos, já que a fazia sentir-se como uma borboleta presa em um alfinete.
- O que você quer dizer é que seria melhor se George não lembrasse do pedido para cancelar o livro.
- Não - protestou ela. - Só acho que, se o que aconteceu em Scardale realmente precipitou o ataque cardíaco, ele não deveria tocar neste assunto.
Tommy deu de ombros.
- E eu diria que esta decisão cabe a ele. Não pretendo pressioná-lo, mas se ele quiser falar sobre este assunto, também não vou impedir. Melhor falar que guardar tudo e talvez ter outro ataque cardíaco - disse, teimoso. - E por falar nisso, vi Paul quando estava saindo. Ele me apresentou à sua noiva. E você e eu precisamos ter uma conversa séria a este respeito - disse em tom grave, tomando um gole que eliminou metade do conteúdo do copo. - Vamos dar mais uma olhada nos documentos que você recebeu.
Catherine ligou o computador, enquanto Tommy andava de um lado para outro na pequena sala de estar. Tão logo a primeira certidão apareceu na tela, ele colocou-se ao seu lado.
- Mostre-me a certidão de nascimento de Helen outra vez. Ela rolou a tela e o documento apareceu.
- Ah, meu Deus - gemeu Clough. Ele virou-se e foi até a lareira. Ali, pousou um braço sobre a cornija e abaixou a cabeça.
Catherine girou em sua cadeira.
- Tommy, quer me contar o que está acontecendo?
Os ombros largos encurvaram-se e ele voltou-se para olhá-la. Se não lhe contasse, Catherine descobriria sozinha. Pelo menos assim, ele poderia ter algum controle sobre o que a jornalista sabia e o que faria com a informação.
- Você conheceu Helen, não? - perguntou, cansado.
- Sim, nós nos conhecemos ano passado, em Bruxelas.
- Ela não lembra alguém?
- Esquisito você perguntar, mas tive a impressão de que já a conhecia. Mas agora que sabemos de sua ligação com os clãs de Scardale, acho que só vi a semelhança genérica de todos os Carters.
Tommy suspirou.
- Sim, em parte é isso. Ela se parece um pouco com sua mãe, mas puxou muito mais ao pai.
Catherine franziu a testa.
- Tommy, não faz sentido. Você chegou a conhecer Samuel e Dorothy Wainwright?
Tommy sentou-se pesadamente em uma poltrona.
- Nunca vi nenhum dos dois em toda a minha vida. Não estou falando dos Wainwrights. Estou falando sobre Philip Hawkin.
- Hawkin? - ecoou Catherine, completamente perdida.
- Ela é a cara de Philip Hawkin. E tem seu tom de pele e cabelos. Acho que você não poderia captar a semelhança pelas fotos, mas está claro como o dia.
- Não pode ser - protestou Catherine. - George não teria percebido a semelhança?
- Não necessariamente. Talvez isso só tenha ocorrido quando a ligação com Scardale estava bem na frente de seu nariz. Além disso, você disse que Paul lhe contou que o pai estava inquieto, mesmo antes de chegarem a Scardale.
- Ainda poderia ser coincidência - disse Catherine, com teimosia. Se queria revelar esta história, precisava destrinchar cada fato, de modo a ter suas defesas já bem estabelecidas antes de precisar persuadir um editor. Ela até poderia tirar vantagem da experiência de Tommy para construir seus argumentos.
- Veja a certidão de nascimento'- disse ele. - O nome é Helen Ruth. Sei que Ruth não chega a ser um nome raro, mas, naquela época, a prática habitual por esses lados era dar o nome de alguém da família como nome do meio, em geral o nome do avô ou avó. Quando você acrescenta o resto dos detalhes que temos aqui, o fato de o nome do meio de Helen ser Ruth tornaria a coincidência grande demais.
Catherine acendeu um cigarro para adiar a pergunta inevitável:
- Então, se Philip Hawkin era pai de Helen... quem era a mãe?
- Bem, certamente não a esposa dele. Ruth Cárter não estava tendo um outro filho em junho de 1964, porque comparecia ao julgamento do marido. Nós a víamos uma vez por semana, durante os procedimentos para o julgamento, e ela não estava grávida.
- Algumas mulheres não aparentam. Elas parecem apenas um pouco mais gordas.
Ele sacudiu a cabeça.
- Catherine, quando conhecemos Ruth ela era uma mulher robusta. Na época do julgamento, tinha-se a impressão de que poderia ser levada por um vento forte, de Scardale até Denderdale. Ela não poderia ter dado à luz uma filha em junho de 1964.
- Então quem foi? - insistiu Catherine. - Presumo que estamos descartando um louco caso de amor ardente por Dorothy Wainwright?
- Suponho que isso seria possível - disse Tommy. - Dorothy estaria com trinta e poucos anos. Mas se Hawkin estivesse dormindo com ela, eu esperaria vê-lo mencionar seu caso extraconjugal no julgamento, como evidência de que era um homem normal, com fraquezas como outro qualquer, não algum pervertido com tara por meninas. Sempre imaginamos que a única razão para ter-se casado com Ruth era que, se alguém algum dia suspeitasse que andava abusando de Alison, ele apontaria para seu casamento, para provar que era um homem como outro qualquer. De qualquer maneira, não existem evidências indicando que ele algum dia tenha conhecido os Wainwrights. Mas se voltarmos à nossa teoria sobre a real identidade da mulher que se identifica como Janis Wainwright, então teremos uma garota em idade fértil na casa dos Wainwrights, que além disso tinha uma ligação comprovada com Hawkin. Uma garota que, como descobrimos pelas provas fotográficas, foi estuprada por Hawkin. - Suas palavras caíram pesadas como pedras.
- Alison Cárter é a mãe de Helen Markiewicz, nascida Wainwright - falou Catherine, colocando as elucubrações de Tommy em termos inequívocos. - E Philip Hawkin é o pai.
Ela olhou para Tommy, que sustentou seu olhar. Nenhuma outra explicação faria sentido, a partir dos fatos sólidos e da lógica que haviam descoberto. Mas esta solução trazia consigo tantas questões que Catherine nem sabia por onde começar.
Ela respirou fundo, verbalizando o que sabia estar na mente de Tommy:
- Então George Bennett está prestes a tornar-se sogro da filha de um homem por cujo enforcamento pelo homicídio da mãe ele foi responsável. Exceto que Helen ainda não havia nascido na época em que seu pai supostamente assassinou sua mãe. - Colocada assim, pensou Catherine, a coisa toda fazia com que Édipo Rei soasse como uma história banal ocorrida entre camponeses.
- Parece que sim. - Tommy esvaziou seu copo e pegou a garrafa de uísque no balcão.
- Sei que parece loucura... mas acho que Ruth e Alison conspiraram para que Philip Hawkin fosse preso.
Tommy serviu-se lentamente de outra dose. Tomou um gole, olhando diretamente para ela, sob as sobrancelhas abundantes. Depois, ele baixou o copo e falou:
- No mínimo, Catherine. No mínimo.
Ela tomou mais vinho, percebendo que sua mão tremia ao pegar o copo. Esta era mais que a melhor matéria na qual já tropeçara. Era uma tragédia com potencial para anular aquele intervalo de trinta e cinco anos e arruinar uma segunda geração de vidas que não tinham ideia de que sua história continha tamanha carga dramática. Sua situação era tanto aterrorizante quanto estimulante. Não se sentia inteiramente confiável com as informações que já tinha; estava quase contente porque Tommy estava ali para agir como freio para seus instintos mais desenfreados.
- E agora?
- Boa pergunta - disse Tommy.
- Ah, tenho um estoque de perguntas assim.
- Acho que temos apenas uma opção real. Acho que temos de nos afastar agora mesmo e esquecer toda essa história. Deixar Alison Cárter, se for ela, em paz. Deixar que Helen e Paul se casem sem uma nuvem no horizonte.
- De jeito nenhum - protestou Catherine. - Não posso ignorar tudo isso. Esses fatos viram do avesso um dos maiores casos legais do pós-guerra. Além disso, ele derruba um precedente legal importante.
- Poupe-me, Catherine - disse Tommy, irritado. - Você não dá a mínima para os precedentes legais. Tudo o que vê é o furo de reportagem de sua vida e o dinheiro que pode ganhar com ele. Não percebe quantas vidas você destruirá se publicar esta história? Você arruinará a reputação de George. Destruirá o futuro de Paul e Helen. Sem mencionar que estragará completamente a vida dela. Como acha que ela poderá se sentir quando descobrir que sua irmã é, na verdade, sua mãe e a mulher que considerava sua mãe conspirou para que seu pai verdadeiro fosse enforcado? E temos também Janis, ou Alison, como quer que ela deseje ser chamada. Ela poderá ser condenada por conspiração para assassinato. Tudo isso para que você possa ter seus quinze minutos de fama? - Agora ele gritava, e sua presença enchia a sala, fazendo com que Catherine prendesse o fôlego. Ela engoliu em seco e disse:
- Então você acha que devo simplesmente anular os últimos seis meses de minha vida? Também tenho algo em jogo, Tommy. Você mesmo me falou sobre a importância da justiça, disse que se demitiu porque achava que a polícia não era capaz de fazer a justiça como deveria. Agora você me diz que devo mandar às favas a justiça e cuspir na verdade para proteger sua reputação e encobrir o fato de que você e seu chefe enforcaram um homem inocente! - Agora Catherine estava tão zangada quanto ele.
Tommy tomou rapidamente um gole de seu uísque e tentou dominar sua raiva:
- Isso não diz respeito a mim, Catherine. Diz respeito a um bom homem e sua família inocente. Nenhum deles merece que sua vida seja destruída por algo que deveria ter sido morto e enterrado trinta e cinco anos atrás. Ouça, você não precisa desperdiçar os últimos seis meses. Publique seu livro como está e esqueça o resto.
- Mas George não queria esquecer o resto. Ele é mais íntegro que você, Tommy. Ele me pediu para cancelar o livro exatamente porque não conta a verdade.
Tommy balançou a cabeça.
- Ele estava agindo por impulso. Quando tiver tempo para pensar melhor, posso apostar que perceberá que faz sentido publicá-lo assim como está.
- Ou seja, quando você conseguir convencê-lo a deixar que o livro seja publicado como está - disse Catherine, descontrolada. - Mas o livro não presta mais, Tommy. Posso eliminar o e-mail com os documentos de meu computador, mas não posso apagar o que sei de meu cérebro. Descobrirei a verdade e você não poderá me impedir.
Houve um longo silêncio. Tommy sentiu suas mãos se fechando e esforçou-se para mantê-las relaxadas. Finalmente, ele respirou fundo e disse:
- Talvez eu não possa impedi-la, mas certamente posso desacreditá-la quando o livro for publicado. Posso dizer à imprensa que você explorou um homem que estava ligado a máquinas em um hospital. Posso dizer que você explorou deliberadamente a incapacidade de George Bennett para denegrir a ele e sua família. Ninguém a considerará uma grande justiceira quando eu terminar. Você será tão digna de pena quanto Philip Hawkin.
Nenhum dos dois se moveu, olhando-se como dois cães raivosos em uma rinha. Finalmente, Catherine disse, forçando-se a parecer calma:
- Nenhum de nós dois tem o direito de tomar uma decisão sem George. Nem temos certeza se estamos certos. Antes de irmos adiante, precisamos falar com Alison Cárter.
Tommy virou-se e fitou as fotografias na parede. Alison Cárter, George Bennett, Ruth Cárter e Philip Hawkin. Em seu íntimo, ele sabia que Catherine tinha razão. Não tinham o direito de tomar uma decisão sozinhos, e nenhuma decisão tão importante deveria ser tomada sem certeza absoluta sobre os fatos. Ele suspirou.
- Está certo, então. Amanhã iremos a Scardale para obtermos algumas respostas.
6
Agosto de 1998
Tommy estava parado junto à porta da frente da casa de Catherine às oito horas da manhã seguinte. Quando a porta abriu, ele teve a impressão de que ela dormira tão pouco quanto ele.
- Você está adiantado - disse ela, dando um passo para trás para deixá-lo entrar. - Alison não ficará muito contente se chegarmos tão cedo.
- Ainda não vamos a Scardale.
- Não?
- Não. Prometi a Anne que voltaria ao hospital hoje de manhã. Quero fazer isso primeiro. E quero que você me leve até lá - disse Tommy, pegando uma torrada do prato de Catherine.
- Sirva-se à vontade, como se estivesse em sua casa - disse ela, surpresa por sentir-se divertida, em vez de irritada. - Já entendi. Você não confia em mim o bastante para acreditar que vou esperar seu retorno. Acha que vou partir zunindo até Scardale sozinha e fazer com que Alison confesse toda a verdade apenas para mim.
Tommy negou com a cabeça.
- Pode ser que você não acredite, mas não é nada disso. Tem mais torrada?
- Farei mais.
Ele a seguiu até a cozinha.
- Não é que não confie em você. É que não sou mais tão jovem. Ontem já dirigi mais do que dirijo normalmente durante um mês inteiro, e nunca dormi bem em camas estranhas. Para resumir, prefiro ser levado que ter de dirigir até Derby e voltar.
Ela colocou duas fatias de pão na torradeira e disse, em tom aprovador:
- Essa foi boa, Tommy. Quase acreditei em você. - Ela abriu um largo sorriso ao perceber que o magoara. - Tudo bem, é claro que eu o levo a Derby. O que quer que Janis Wainwright tenha a dizer, acho que não mudará em uma questão de horas.
Falaram-se pouco durante o trajeto até Derby, ambos envolvidos com seus próprios pensamentos. Catherine ainda se esforçava para encontrar uma estratégia para o encontro que teriam em Scardale. Ela ficara acordada até muito depois da meia-noite, fumando, bebendo e pensando. Sempre acreditara que uma grande parte do sucesso de qualquer entrevista estava na eficiência de sua preparação. Contudo, por mais que ela revirasse mentalmente o que ela e Tommy já sabiam, não conseguira pensar em uma forma de enfocar esta história de modo a produzir apenas a verdade. Janis Wainwright ainda tinha muito a perder.
Sua primeira surpresa do dia veio quando Tommy disse à enfermeira da UTI que estava ali para ver seu cunhado, George Bennett.
- Não está mais conosco - disse a enfermeira, consultando uma prancheta sobre a mesa.
Por um momento, Tommy sentiu o coração apertar-se.
- Não pode ser. Ele recobrou a consciência ontem à noite. Eu vi seus olhos se abrirem.
A enfermeira sorriu.
- Sim, por isso nós o transferimos para outra ala, já que não está mais em risco. - Ela encaminhou-os para a unidade de cuidados cardíacos, onde George estava agora.
- Tato e diplomacia não são muito valorizados por aqui - disse Catherine, secamente.
Seguiram por um outro corredor e encontraram a ala que procuravam. Tommy espiou pela janela que havia na porta. Havia quatro leitos na sala, dois desocupados. Através da janela, viu Anne sentada junto a uma das camas, tapando a visão do ocupante, que parecia estar reclinado, mas não totalmente deitado. Tommy voltou-se para Catherine:
- Acho que você deveria esperar lá fora. Ela concordou, com relutância:
- Há uma cafeteria no sexto andar. Esperarei lá. - Ela tirou seu minigravador do bolso. - Talvez você...
- Não. Isto é entre mim e George. Mas não se preocupe, não vou mentir para você.
Esperou que ela se encaminhasse para o elevador; então, aprumou-se e empurrou a porta. Enquanto se aproximava, viu o rosto de George. Era difícil acreditar que este era o mesmo homem que parecia a um passo do túmulo na noite anterior. Embora ainda parecesse cansado, havia um tom rosado em suas faces e as olheiras não eram mais tão fundas. Ao ver Tommy, seu rosto iluminou-se em um grande sorriso.
- Tommy Clough - disse, com a voz fraca, mas claramente alegre. - E lá estava eu, achando que havia morrido e ido para o inferno quando abri meus olhos e o vi olhando para a minha cara.
Tommy segurou uma das mãos de seu antigo chefe entre as suas.
- Acho que você só acordou por causa do choque de ouvir minha voz.
- Isso mesmo. Eu sabia que não poderia confiar em um mulherengo como você perto de minha Anne e tive de voltar para cuidar dela.
- George - repreendeu-o Anne. - Que coisa horrível para dizer a Tommy quando ele veio de tão longe para vê-lo.
- Não lhe dê atenção, Anne - falou Tommy. - Talvez ainda esteja delirando. Como está se sentindo, George?
- Em frangalhos, se quer a verdade. Nunca me senti tão cansado em toda a vida.
- Você pregou um susto e tanto em todos nós.
- Desculpe. Olhe, se eu soubesse que só assim o tiraria de sua vida de ermitão, teria feito isso anos atrás.
Tommy e Anne trocaram olhares, ambos contentes por verem que, apesar da fraqueza, George não perdera seu senso de humor.
- Ah, bem, não vou sumir tanto, daqui pra frente. Sabe, quem me contou foi Catherine. Ela foi até Northumberland só para me dar a notícia.
George assentiu, com o brilho do olhar desaparecendo.
- Eu deveria ter adivinhado. Anne, meu amor, será que me faria o favor de me deixar sozinho com Tommy? Talvez uns quinze minutos? Temos alguns... assuntos a tratar, querida.
- Disseram que você não deveria se cansar, George - disse Anne, franzindo o rosto.
- Eu sei. Mas ficar aqui me preocupando não me ajudará em nada. Prefiro conversar com Tommy. Acredite, amor, não pretendo mais flertar com a morte. - Ele pegou a mão da esposa e acariciou-a. - Depois lhe explico tudo, prometo. Mas não agora.
Anne apertou os lábios em desaprovação, mas levantou-se.
- Não o canse, Tommy. George, vou ligar para Paul para dizer-lhe que devem vir hoje à tarde.
- Obrigado, querida. - Os olhos de George seguiram-na enquanto ela saía. Depois, com um suspiro, ele pediu que Tommy se sentasse. - Tive medo de que ela não fosse nos deixar a sós. Quanto vocês sabem?
- Não sabemos muito, George, mas acho que já descobrimos mais ou menos toda a história. - Tommy apresentou-lhe um rápido resumo da investigação feita por Catherine. - Isso não deixa muita margem para dúvidas - concluiu.
- É inacreditável, não é? Mas eu soube, assim que meus olhos bateram nela. Eu vivi com aquele rosto durante oito meses e ele me assombrou durante anos. Qualquer que fosse o seu nome, eu sabia que a mulher que vi no Solar Scardale era Alison Cárter. E, então, percebi quem era Helen. - Seus olhos fecharam-se e seu peito subiu e desceu enquanto respirava ofegante. Ele abriu os olhos e encontrou a expressão preocupada do amigo. - Estou bem. Só cansado, nada mais.
- Vá com calma. Não estou com pressa. George conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
- Não, mas aposto que Catherine está. Não acredito que tenhamos alguma chance de pará-la.
Tommy sacudiu os ombros.
- Não sei. Ela é durona. Ontem à noite, fiz com que prometesse que o consultaria antes de tomar quaisquer decisões sobre o que fazer, mas a promessa teve um preço. Tenho de ir a Scardale com ela, para confrontarmos a mulher que todos acreditamos ser Alison. Catherine não arreda pé, dizendo que precisamos de todos os fatos, e não posso negar que tem razão.
- Não me preocupo por mim. Estou pensando em Paul e Helen. Cometemos um erro terrível quando eles nem eram nascidos, mas são eles que pagarão por isso. Não vejo como eles podem continuar se isso tudo vier à tona. E acho que Anne não me perdoaria por causar tanto mal a eles.
- Eu sei. E não se trata apenas deles, George. Também diz respeito a Alison. O que quer que ela tenha feito, já lhe custou mais do que jamais saberemos. Ela ainda pode ser condenada por conspiração, e acho que não merece isto.
- E então, o que devemos fazer, Tommy? Não sirvo para grande coisa deitado aqui.
Tommy sacudiu a cabeça, incapaz de esconder sua frustração.
- Talvez tenhamos uma ideia melhor depois de ouvirmos o que Alison tem a dizer por si mesma.
- Faça o que puder. - A voz de George tornara-se mais fraca. - Estou cansado. É melhor você ir agora.
Tommy levantou-se.
- Farei o melhor que puder.
- Você sempre fez, Tommy. Eu não esperaria nada diferente agora. Sentindo-se vinte anos mais velho que no dia anterior, Tommy saiu do quarto, rumo a um encontro que jamais esperaria deste lado da vida. A última vez em que sentira um peso tão grande sobre seus ombros fora durante a construção do caso contra Philip Hawkin. Desta vez, ele esperava sair-se melhor.
7
Agosto de 1998
O tempo voltara a fechar, mostrando o céu cinzento e chuvas intensas que haviam marcado a maior parte do verão. Enquanto entravam na estrada para Scardale, uma torrente súbita de água derramou-se sobre o carro, transformando o asfalto à frente em um turbilhão de água rasa.
- Belo dia para isso - disse Tommy, lacónico, sentindo uma turbulenta mistura de emoções. Sua curiosidade estava agitada pela perspectiva de descobrir a verdade final, mas estava apreensivo quanto às consequências possíveis dessas revelações. Tinha consciência de sua responsabilidade para com George e sua família, mas não tinha certeza se poderia cumprir esta obrigação. Além disso, sentia uma enorme pena da mulher cujo refúgio em outra identidade estavam prestes a destruir. Desejou, do fundo do coração, que George jamais tivesse concordado em romper seu silêncio. Ou que tivesse escolhido uma jornalista menos inteligente e persistente com a qual trabalhar.
Por seu lado, Catherine recusava-se a sequer considerar qualquer outra coisa além de extrair a verdade de Janis Wainwright. Haveria muito tempo para imaginar o que fazer com as informações depois de obtê-las. Por enquanto, sua missão era garantir que teria todos os fatos exatos, não importando as decisões que tomasse depois. Ela verificou o pequeno gravador e enfiou-o no bolso de seu blazer de linho. Tudo que precisava fazer era pressionar os botões "record" e "play" simultaneamente e teria a gravação perfeita do que Janis Wainwright - ou Alison Cárter - tinha a dizer.
Ao chegarem, Catherine atravessou seu carro na entrada da garagem, de modo que Janis só poderia escapar a pé, se quisesse. Em silêncio, esperaram que a chuva aliviasse, depois correram pela grama até a trilha que levava à porta da cozinha.
Tommy deixou a pesada alça de metal bater na porta, que se abriu quase que no mesmo momento. Sem a visão prejudicada pelo sol, desta vez Catherine conseguiu ver direito a mulher que estava ali e mostrava cautela no olhar. A cicatriz era inegável. Quase além de qualquer dúvida, esta era Alison Cárter. A mulher abriu a boca para falar, mas Tommy levantou a mão e balançou a cabeça.
- Sou Tommy Clough. Ex-detetive-sargento Clough. Gostaríamos de ter uma conversa com a senhora.
Com um gesto de negação com a cabeça, a mulher começou a fechar a porta. Tommy pressionou sua grande mão contra ela, sem empurrar, mas evitando que se fechasse ainda mais, a menos que ela usasse o peso de seu corpo para empurrá-la.
- Não bata a porta em nossas caras, Alison - disse ele, com a voz firme, mas gentil. - Lembre-se, Catherine é jornalista. Ela já sabe o suficiente para escrever uma versão da história. Não existe prescrição para o crime de conspiração para assassinato. E o que Catherine escrever agora pode levá-la a julgamento e a uma condenação.
- Não tenho nada a dizer - explodiu a mulher, com o rosto tenso pelo pânico e a mão que não estava segurando a porta indo pousar automaticamente na face.
Às vezes, Catherine pensou, a brutalidade era o único caminho que restava.
- Muito bem - disse, então. - Terei de descobrir o que Helen tem para me dizer.
Os olhos da mulher cintilaram com fúria, mas depois seus ombros levantaram-se e abaixaram, em uma mostra de resignação. Ela abriu passagem para eles, mantendo a porta aberta como sua mãe devia ter feito centenas de vezes antes.
- É melhor eu corrigir a besteira que vocês acham que sabem, em vez de deixar que incomodem Helen sem razão - disse, com voz fria e ríspida.
Tommy permaneceu de pé junto à porta, quando esta fechou-se atrás deles.
- Você fez algumas mudanças aqui - disse, observando a cozinha de fazenda que poderia ter sido apresentada em uma matéria sobre decoração de época, sem grandes acréscimos para melhor efeito.
- Não fui eu. Quando minha tia era a dona, mandou reformar para agradar seus inquilinos - disse, bruscamente.
- Não estou surpreso - comentou Tommy. Ao seu lado, Catherine pressionou disfarçadamente os botões de seu gravador. - Hawkin gastava apenas com suas fotografias, ou com você, Alison, mas nunca dedicou um centavo para o conforto de sua mãe.
- Por que você insiste em me chamar de Alison? - perguntou a mulher, com as costas para a parede e braços cruzados na altura do peito, o sorriso no rosto tentando demonstrar uma descontração que obviamente não sentia. - Meu nome é Janis Wainwright.
- Tarde demais, Alison. - Catherine puxou ruidosamente uma cadeira e sentou-se junto à mesa de pinho. Se Tommy havia decidido bancar o policial bonzinho hoje, ela estava mais que disposta a ser a policial impiedosa. - Você deveria ter fingido espanto quando Tommy chamou-a de Alison na primeira vez. Você pareceu apenas chocada, mas não confusa. Você não disse "Desculpe, você errou de casa, aqui não mora nenhuma Alison".
O olhar de fúria encontrou o seu. Pela primeira vez, Catherine percebeu a grande semelhança com Ruth Cárter. Nas fotografias que havia visto, Ruth devia ser dez anos mais jovem que Alison era agora, embora parecesse mais velha.
- Você se parece muito com sua mãe - disse Catherine.
- E como você poderia saber, se não a conheceu? - perguntou Alison, desafiadora.
- Eu a vi em fotografias. Estava em todos os jornais, durante o julgamento.
- Lá vem você novamente, falando absurdos. Não tenho ideia do que você tem em mente, mas minha mãe nunca se envolveu em julgamento algum durante sua vida inteira.
Tommy cruzou a cozinha e parou no outro lado, olhando para a mulher e balançando a cabeça, com um meio-sorriso de simpatia.
- É tarde demais, Alison. É inútil manter esta farsa.
- Que farsa? Eu repito: não tenho a menor ideia do que vocês estão falando.
- Ainda afirma ser Janis Wainwright? - perguntou Catherine, em tom gelado.
- O que você quer dizer com "afirmar"? O que é isto? Vou ligar para a polícia - disse, dirigindo-se para o telefone.
Tommy e Catherine não fizeram nem disseram nada. Alison abriu o catálogo e procurou o número. Depois, olhou sobre o ombro para ver o que os dois estavam fazendo. Catherine sorriu-lhe delicadamente e Tommy balançou novamente a cabeça.
- Você sabe que não é boa ideia - disse ele, com tristeza, enquanto a mão da mulher aproximava-se do aparelho.
- Não, Tommy. Deixe-a. Eu quero mesmo saber como ela conseguiu ressuscitar - falou Catherine, com doçura exagerada. Alison imobilizou-se.
- É isso mesmo, Alison. Sei que Janis morreu em 1959. Em 11 de maio, para ser exata. Deve ter sido difícil para tia Dorothy e tio Sam. Difícil para você também, já que vocês duas tinham quase a mesma idade.
Agora, os olhos de Alison mostravam medo. Com uma fisgada de pena, Tommy pensou que ela devia ter tido pesadelos com este momento durante anos. Finalmente, o que mais temia estava acontecendo. Ele podia imaginar o medo que a percorria agora. Dois estranhos em sua cozinha, um com boas razões para querer vingar-se dela por tê-lo feito de idiota trinta e cinco anos atrás, e a outra aparentemente determinada a expor seus segredos mais pavorosos a um mundo com sede de matérias sensacionalistas. E Catherine não lhe facilitava as coisas com sua agressividade. De algum modo, ele precisava acalmar um pouco as coisas e fazer com que Alison sentisse que esta era sua melhor chance de tirar algo de bom desta situação estarrecedora.
- Sente-se, Alison - disse ele, gentilmente. - Não viemos aqui para maltratá-la. Só queremos saber a verdade, só isso. Se planejássemos destruí-la, teríamos ido à polícia assim que Catherine descobriu o atestado de óbito de Janis Wainwright.
Lentamente, com dificuldade, como um animal que prevê perigo, ela andou até a mesa e sentou-se na extremidade oposta à de Catherine.
- O que vocês têm a ver com isso?
- George Bennett está deitado em um hospital de Derby por causa do que viu nesta casa. Tenho certeza de que Helen já lhe contou, por telefone
- disse Catherine.
Ela fez que sim, dizendo:
- Sim. Lamento. Sempre desejei todo o bem para George Bennett.
- Se desejava mesmo, nunca deveria ter permitido que ele viesse até aqui - disse Tommy, incapaz de evitar a raiva e a dor em sua voz. - Você deveria saber que ele a reconheceria.
Ela suspirou.
- E o que mais eu poderia fazer? Como poderia explicar a Helen que não queria conhecer seus futuros sogros? Era melhor acabar logo com aquilo do que fazer com que ele me visse apenas no dia do casamento. Mas vocês ainda não responderam à minha pergunta: o que têm a ver com isso?
Catherine inclinou-se para a frente. Sua voz era tão intensa quanto sua expressão:
- Passei seis meses de minha vida trabalhando com George Bennett para contar uma história. Agora, descubro que fomos manipulados para acreditar em uma mentira. George Bennett pagou um preço enorme por descobrir isso. E eu não serei cúmplice na continuação desta mentira.
- Não importa o que custe para outras pessoas? Mesmo se envergonhar George Bennett? Mesmo se também destruir Paul Bennett e Helen? - explodiu Alison, com sua pose estilhaçando-se com a mesma rapidez que uma lâmpada em um chão de pedra. - E não apenas eles. - Sua mão voou para a boca em um gesto clássico, enquanto seus olhos arregalavam-se, como se percebesse que havia dito mais do que eles sabiam.
- Se você quer que eu mantenha seu segredo, precisará me dar uma razão melhor que o sentimentalismo. É hora de falar, Alison - disse Catherine, sem emoção. - É hora de Contar toda a história.
- Por que eu deveria dizer algo a vocês? Pode ser que estejam blefando. Todo mundo sabe que jornalistas fazem qualquer coisa para ter uma boa matéria. Como posso ter certeza de que você realmente sabe algo a meu respeito? - Esta era uma última tentativa desesperada de se livrar dos dois, e todos ali sabiam disso.
Catherine abriu sua bolsa e retirou dali os quatro documentos impressos.
- É por aqui que começamos - disse, jogando-os sobre a mesa na frente de Alison. As folhas aterrissaram em desordem. Alison leu-os lentamente, usando o tempo para readquirir o controle. Ao levantar a cabeça, seu rosto era novamente impassível, mas Catherine podia ver manchas escuras de suor formando-se sob as mangas de sua blusa verde-clara.
- E daí? - perguntou Alison.
Catherine tirou da bolsa as fotografias envelhecidas digitalmente e empurrou-as na direção de Alison.
- De acordo com os computadores da Universidade de Manchester, é assim que Alison estaria se ainda estivesse viva. Tem se olhado no espelho ultimamente?
Os lábios de Alison abriram-se, revelando dentes apertados, enquanto ela puxava o ar com força. O olhar que dirigiu a Catherine fez com que ela se sentisse contente pela presença de Tommy ali.
- O que sabemos é que você não é Janis Wainwright. Graças à tecnologia maravilhosa do DNA, provavelmente podemos provar que você é Alison Cárter. O que podemos comprovar com certeza é que Helen não é sua irmã, mas sua filha. A filha à qual você deu à luz quando mal tinha quatorze anos, após o abuso sistemático e estupro que sofreu nas mãos de seu padrasto, Philip Hawkin. O homem que enforcaram por seu assassinato. Se fôssemos à polícia com o que temos, eles poderiam exumar os corpos e provar o que dizemos, sem nenhuma dificuldade. - Catherine falava com precisão clínica.
- Sinto muito, mas ela tem razão, Alison - disse Tommy. - Mas estou falando a verdade. Não viemos aqui pensando em lhe causar mal. Pelo bem de todos os envolvidos, precisamos saber o que aconteceu, para podermos decidir juntos a melhor maneira de lidar com isto.
Sem pedir permissão, Catherine pegou seu maço de cigarros e acendeu um. Tommy atravessou a cozinha e trouxe-lhe um pires. A atividade preencheu o longo silêncio, enquanto Alison olhava, muda, sua fotografia envelhecida por computador. Seus olhos brilhavam, cheios de lágrimas não derramadas.
- Temos uma versão para o que aconteceu - disse Tommy, com suavidade, sentando-se perto dela. - Hawkin estava abusando de você e achamos que você não sabia o que fazer. Tinha medo do que aconteceria se contasse à sua mãe. A maioria das crianças sente medo dos pais. Mas sua mãe já havia perdido um marido e seu medo era fazê-la passar por toda aquela dor novamente, se a forçasse a escolher entre Hawkin e você. Então, veio a gravidez e sua mãe percebeu o que havia acontecido.
O movimento de cabeça de Alison era quase imperceptível. Uma lágrima solitária escapou de seu olho direito e deslizou por seu rosto. Ela não tentou enxugá-la.
- Assim, sua mãe a mandou viver com sua tia e seu tio, dizendo-lhe que, a partir de então, você teria de se transformar em Janis - continuou Tommy. - Depois, ela armou tudo para ele. Com as informações que você lhe deu, ela conseguiu fazer com que George Bennett tropeçasse nas pistas que ela plantou. Ruth chegou a descobrir o esconderijo das fotografias. E durante o tempo inteiro você permaneceu em silêncio. Suportou os horrores de uma gravidez indesejada e perdeu qualquer chance que tinha de ser feliz. Você nem mesmo conseguiu criar Helen como sua filha. Durante anos, o sacrifício foi suportável, porque significava que todos teriam algo semelhante a uma vida normal. Agora, por causa de uma terrível coincidência, porque Paul e Helen se conheceram e se apaixonaram, tudo saiu tragicamente errado.
Alison respirou fundo, estremecendo.
- Parece que vocês conseguiram descobrir tudo sem qualquer ajuda de minha parte - disse, abalada.
Tommy pousou uma das mãos em seu braço:
- Estamos certos, não?
- Não, Tommy - interveio Catherine, parecendo indiferente à cena emocional que se desenrolava na sua frente. - Há mais. Antes de chegarmos aqui, pensávamos que esta era história inteira, mas não é! Você mesma se entregou, Alison, quando disse que a verdade arruinaria a vida de mais gente, além de Paul e Helen. Há mais, e queremos ouvir.
Ela enfrentou o olhar de Catherine, com raiva.
- Você está errada. Não há mais nada para contar.
- Ah, eu acho que há, sim. E acho que você vai nos contar. Porque, do jeito como as coisas estão, não vou ficar do seu lado. Você e sua mãe assassinaram Philip Hawkin. Não foi algo feito impulsivamente, sob provocação imediata. O plano levou meses, e as duas mantiveram-se caladas o tempo todo. Tenho certeza de que você cozinhou bem sua vingança. Não vejo nenhum motivo para protegê-la das consequências do que fez. Se seu desejo era evitar o risco de destruir a vida de Helen, deveria ter-lhe contado a verdade anos atrás - disse, injetando raiva em sua voz. Estava determinada a não se deixar levar pela dor de Alison, mesmo sabendo que era verdadeira. - Agora, tudo o que você conseguiu foi pôr em risco a vida de um outro homem, um bom homem, tudo porque sua mãe não teve coragem para enfrentar Philip Hawkin de frente. A cabeça de Alison ergueu-se.
- Você não entende coisa nenhuma - falou, com amargura. - Você não tem ideia do que está dizendo.
- Então ajude-me a entender - desafiou-a Catherine. Alison fitou Catherine com um olhar longo e duro.
- Tenho de pegar uma coisa. Não se preocupem - acrescentou, enquanto Tommy empurrava sua cadeira para trás. - Não vou fugir. Não farei nada estúpido. Mas há algo que preciso lhes mostrar. Então, talvez vocês acreditem quando eu lhes contar o que realmente aconteceu.
Ela saiu da cozinha, deixando Tommy e Catherine a olharem um para o outro, imaginando o que viria a seguir.
- Você está pegando pesado com ela - disse Tommy. - A mulher já esteve no inferno. Não temos o direito de lhe trazer mais sofrimento.
- Ah, Tommy. Ela está escondendo algo. Pergunte-se o que poderia ser pior do que aquilo que já sabemos. Ela admitiu que conspirou com sua mãe para enviar o padrasto para a forca, mas guarda um segredo que considera pior ainda.
O olhar de Tommy beirava o desprezo.
- E você acha que tem direito a esta revelação?
- Acho que todos temos. Ele suspirou.
- Espero que não nos arrependamos disso para o resto da vida, Catherine.
8
Agosto de 1998
Alison voltou, trazendo consigo uma pequena caixa de metal trancada. Ela destrancou-a com uma chave que tirou da gaveta da mesa, abriu a tampa e deu um passo para trás, como se temesse ser atacada por seu conteúdo. Seus ombros encurvaram-se para a frente de modo protetor, enquanto ela cruzava os braços no peito.
- Vou ferver água. Querem café ou chá?
- Café - respondeu Catherine.
- Chá - disse Tommy. - Com leite e uma colher de açúcar.
- Eu já conheço de cor o que há nessa caixa - disse Alison, dando-lhes as costas e indo até o fogão. - Olhem quanto quiserem, e talvez então parem de bisbilhotar meu passado - acrescentou, voltando-se brevemente para lançar um olhar furioso a Catherine.
Tommy e Catherine aproximaram-se com a reverência cautelosa de especialistas em bombas próximos a um artefato suspeito. A caixa continha mais ou menos uma dúzia de envelopes pardos, todos com cerca de 25 x 20 centímetros. Tommy puxou o primeiro. Em letras maiúsculas trémulas e tinta desbotada, estava escrito "Mary Crowther".
Contra o fundo de ruídos domésticos rotineiros de preparação das bebidas quentes, Tommy inseriu seu polegar sob a aba virada para dentro do envelope. Ele virou o envelope e despejou o conteúdo sobre a mesa. Havia uma dúzia de fotografias em preto-e-branco, algumas tiras de negativos e duas folhas de contato. Essas não eram imagens alegres de uma menina inocente de sete anos. Eram paródias obscenas de sexualidade adulta, poses lascivas que reviravam o estômago de Catherine. Em uma delas, Philip Hawkin aparecia, enfiando a mão entre as pernas da criança que chorava.
Havia envelopes para o irmão de Mary, Paul, de nove anos; para Janet, de treze anos; Shirley, oito anos; Pauline, seis anos, e até mesmo para Tom Cárter, de apenas três anos; para Brenda e Sandra Lomas, de sete e cinco anos; e para Amy Lomas, quatro anos de idade. O horror contido naqueles envelopes escapava à compreensão dos dois. Era um tour guiado por um inferno que Catherine preferiria não conhecer. Suas pernas cederam e ela desabou em uma das cadeiras, pálida e abatida.
Tommy virou o rosto e jogou os envelopes de qualquer maneira para dentro da caixa. Agora, ele entendia o anseio primitivo para destruir Philip Hawkin. O que ele fizera a Alison já havia sido ruim o bastante. Mas isto era infinitamente pior em escala e depravação. Se ele tivesse visto essas fotografias trinta e cinco anos atrás, duvidava que tivesse conseguido manter suas mãos longe do pescoço daquele homem.
Alison colocou uma bandeja sobre a mesa.
- Se desejarem algo mais forte, terão de ir ao bar em Longnor. Não tenho nada com álcool em casa. Quando tinha vinte e poucos anos, passei por uma fase em que o mundo parecia melhor visto através de uma garrafa. Depois, percebi que esta era apenas uma outra forma de deixá-lo vencer. Eu não permitiria isso, depois de tudo que passei. - Sua voz era fria e áspera, mas os lábios tremiam enquanto ela falava.
Ela serviu café e chá e sentou-se na ponta oposta da mesa, longe de Catherine, de Tommy e da caixa de Pandora que lhes oferecera.
- Vocês queriam a verdade - disse. - Agora, sentirão o peso dela também. Vejam se é bom viver assim.
Catherine voltou-se para ela com o olhar perdido no vazio, mal começando a perceber o peso da praga que invocara sobre sua própria cabeça. Com aquelas imagens gravadas em sua mente, ela sabia que se condenara a uma vida inteira de pesadelos.
Tommy manteve-se em silêncio, a cabeça baixa e os olhos escondidos sob as sobrancelhas espessas. Ele sabia que ainda estava entorpecido pelo choque e desejou que este estado continuasse para sempre.
- Não sei como lhes contar esta história - disse Alison, em tom de extremo cansaço. - Eu a tenho em minha mente há trinta e cinco anos, mas nunca a contei em voz alta. Depois que tudo terminou, nenhum de nós tocou neste assunto outra vez. Vejo Kathy Lomas sempre que estou em Scardale, mas nunca mencionamos o que aconteceu. Mesmo quando vocês vieram e começaram a desenterrar antigas recordações, não nos sentamos para conversar a este respeito. Fizemos o que achávamos certo, mas não significa que não nos sentimos culpados. E nunca é fácil compartilhar a culpa. Aprendi isso com minha experiência pessoal, muito antes de estudar psicologia.
Ela afastou os cabelos do rosto e olhou diretamente nos olhos de Catherine.
- Nunca pensei que sairíamos impunes disso. Eu sentia medo sempre que alguém batia em minha porta. Lembro-me de minha verdadeira mãe ligando para Dorothy, para atualizá-la sobre o andamento das investigações. Ela ligava todos os dias, e estava com os nervos à flor da pele, porque George Bennett era um policial muito bom e honesto. Minha mãe elogiava a persistência dele e estava convencida de que ele descobriria o que havia realmente acontecido. Mas ele nunca descobriu.
Tommy levantou a cabeça.
- Todos vocês mentiram como os maiores atores do mundo - disse ele, áspero. - Ande, Alison, se chegou até aqui, conte o resto.
Alison suspirou:
- Vocês precisam lembrar como era a vida na década de 1960. O abuso de crianças não existia dentro das famílias ou comunidades. Era algo que algum pervertido ou um estranho poderia fazer. Mas se alguém fosse até o professor, a seu médico ou ao policial mais próximo e dissesse que o dono de Scardale estava estuprando e violando todas as crianças da aldeia, seria preso por insanidade.
- Vocês também precisam lembrar que Philip Hawkin era nosso dono. Possuía tudo por aqui. Ele tinha a posse de nosso sustento e de nossas casas. Quando o velho Castleton era o dono das terras, vivíamos mais ou menos em um sistema feudal. Nem mesmo os adultos questionavam o senhor de tudo. E nós éramos crianças. Não sabíamos que poderíamos denunciar o novo dono do solar. Nenhuma das crianças sabia sobre as outras, não com certeza, pelo menos. Sentíamos um medo grande demais para falarmos sobre o que estava acontecendo, até mesmo uns com os outros.
- Aquele canalha era bem cauteloso. Ele nunca deixou transparecer tendências pedófilas enquanto namorava minha mãe e não tinha muito tempo para mim antes de se casar com ela. Mostrava-se agradável e me dava presentes, mas nunca me incomodou naquele período. Tenho certeza de que a única razão para ele casar com minha mãe foi para ter uma fachada de normalidade. Se algum de nós ousasse denunciá-lo, ele poderia bancar o inocente ultrajado, o homem normal com um casamento feliz. - Ela apontou o dedo para Tommy. - E todos vocês teriam acreditado nele. Tommy suspirou e concordou.
- Acho que sim.
- Eu tenho certeza. De qualquer modo, como eu disse, ele nunca se aproximou de mim antes de se casar com minha mãe, mas assim que isso ocorreu, a coisa toda mudou. Era algo como "as menininhas precisam mostrar gratidão por tudo que seus papais fazem por elas" e todo o tipo de chantagem emocional nociva. Mas eu não era o bastante para ele. Aquele desgraçado abusou de cada uma das crianças daqui. Exceto Derek. Acho que Derek era um pouco velho demais para seu gosto. - Ela envolveu a xícara de chá com as duas mãos e suspirou novamente. - E todos ficamos de boca fechada. Estávamos chocados e aterrorizados demais, mas não sabíamos o que fazer.
- Então - continuou -, um dia, minha mãe perguntou por que eu não estava usando os absorventes higiénicos que havia comprado para mim quando tive minha primeira menstruação. Eu lhe disse que não havia menstruado mais. Ela começou a fazer perguntas e, assim, acabei revelando tudo. O que ele fazia comigo, as fotos que tirava quando abusava de mim. E mamãe percebeu que eu estava grávida.
Alison tomou outro gole de chá para aliviar a tensão de sua voz e se recompor.
- Alguns dias depois, quando ele saiu para voltar apenas à noite, ela vasculhou seu laboratório de cima a baixo. Foi quando encontrou o resto das fotos, naquele cofre. Foi então que descobriu com quem havia se casado. Mamãe convocou uma reunião com todos os adultos e lhes mostrou as fotografias. Imaginem como foi. Todos queriam linchar Hawkin. As mulheres eram a favor de castrá-lo e deixá-lo sangrando até a morte. Os homens falaram em matá-lo e fingir que ele havia morrido em um acidente na fazenda.
"Foi a velha Mamãe Lomas quem os trouxe de volta à razão. Ela disse que, se o matássemos, alguém sofreria as consequências. Mesmo se ele morresse sob as rodas de um trator, o caso não seria considerado apenas como mais um acidente. Seria investigado, porque o desgraçado era importante. Era o dono das terras, não apenas um pobre camponês que não contava para nada. Um pequeno deslize e alguém da aldeia acabaria preso, especialmente depois que minha gravidez se tornasse óbvia. Além disso, Mamãe Lomas achava que uma morte rápida não era castigo suficiente para ele.
"Outra preocupação dos adultos era que, se o abuso sofrido pelas outras crianças se tornasse público, todas seriam enviadas para instituições e separadas de seus pais, que seriam considerados negligentes e, portanto, não poderiam mais ter a guarda dos filhos. Achavam que estranhos não entenderiam a vida no vale, a liberdade que todas as crianças tinham para andar mais ou menos à vontade em um lugar que parecia muito seguro, sem tráfego e sem estranhos, em qualquer época do ano.
"Assim, eles falaram sobre tudo isso naquele dia e, finalmente, alguém lembrou-se de ter lido um artigo no jornal sobre uma menina desaparecida. Não sei de quem foi a ideia, mas então os adultos decidiram que eu deveria desaparecer e eles providenciariam para que pensassem que Hawkin havia me matado. Todos sabiam que ele tinha uma arma de fogo, e por causa das fotos que havia tirado de mim sabiam também que ele seria enforcado, se a encenação fosse convincente. Assim, ninguém de fora precisaria saber sobre as outras crianças e os outros pais não teriam de passar pela dor de contar a história toda para a polícia."
Alison suspirou.
- Este foi o fim da minha vida como eu a vivera até aquele dia. O planejamento foi rápido. Quem elaborou praticamente tudo foram minha mãe, Kathy e Mamãe Lomas, mas elas pensaram em todos os detalhes. Tia Dorothy e tio Sam, de Consett, foram obrigados a entrar no plano. Tia Dorothy havia sido enfermeira, de modo que sabia extrair sangue. Ela veio até Scardale alguns dias antes de eu desaparecer e extraiu um pouco do meu sangue, que foi usado para marcar a árvore no arvoredo e para manchar uma das camisas de Hawkin. Tiveram de adiar a descoberta da camisa e das minhas roupas íntimas, porque precisavam de seu sémen. Mais cedo ou mais tarde, elas conseguiriam também isso, porque ele sempre usava preservativo quando ia com minha mãe. - Ela deu uma risada amarga. - Ele não queria ter filhos seus. De qualquer modo, minha mãe finalmente conseguiu fazer sexo com ele. Teve de suplicar, dizendo que isso a reconfortaria em meio à sua angústia. Assim, as mulheres usaram o esperma do preservativo para sujar minhas roupas. Elas não sabiam o quanto os peritos da polícia poderiam descobrir, a partir do sangue e do sémen, mas queriam ter certeza de que não tropeçariam nos detalhes.
- E, é claro, todos precisavam ter uma versão única da história. Todos tinham um papel, e precisavam executá-lo da melhor maneira possível. Ninguém disse nada às crianças menores, mas Derek e Janet também participaram. Kathy passou horas com eles, certificando-se de que sabiam como era importante não deixar que a verdade viesse à tona. Quanto a mim, eu perambulava por lá, meio em transe, na maior parte do tempo. Continuei levando Shep para a rua e andando por lá com ela, como sempre fazia, tentando memorizar tudo o que nunca mais veria nem teria. Eu sentia uma culpa enorme, o tempo inteiro. Todo aquele tumulto, todos tão tensos, e tudo parecia ser minha culpa. - Ela mordeu o lábio e fechou os olhos por um momento. - Levei muito tempo e foram necessárias muitas sessões de terapia para que eu compreendesse que não havia errado. Naquela época, porém, odiei a mim mesma de um modo impossível de descrever.
Alison hesitou brevemente, com os olhos novamente brilhantes com lágrimas contidas. Ela piscou com força, enxugou os olhos bruscamente, esfregando-os com uma das mãos, e continuou:
- Enquanto tudo isso acontecia no vale, Dorothy e Sam providenciaram a mudança de Consett para Sheffield na mesma semana em que planejávamos o desaparecimento, para que os novos vizinhos não percebessem que eu não era a verdadeira Janis. Em 1963, isso foi razoavelmente fácil. - Alison fez uma pausa, com os olhos parecendo voltar para seu íntimo, como se procurasse o próximo capítulo de sua história trágica.
- Os gloriosos tempos do pleno emprego - murmurou Tommy.
- Sim. Sam era um metalúrgico competente e não foi difícil arranjar um novo emprego. Além disso, naquele tempo os trabalhadores ganhavam residência junto com o novo emprego. No dia combinado, Sam esperou por mim junto à igreja metodista, em seu Land Rover. Ele me levou até Sheffield e passei a morar com eles. Para os vizinhos, eles diziam que eu havia contraído tuberculose e precisava ficar confinada, sem contato com outras pessoas até me recuperar totalmente, para que ninguém descobrisse sobre a gravidez. A medida que o tempo passava, Dorothy colocava mais enchimento em sua barriga, para parecer grávida.
Alison fechou os olhos e um espasmo de dor cruzou seu rosto.
- Foi tão difícil! - disse, erguendo a cabeça e encontrando o olhar de Catherine. A escritora desviou os olhos primeiro. - Perdi tudo. Perdi minha família, meus amigos e meu futuro. Perdi Scardale. Coisas estranhas estavam acontecendo com meu corpo, e eu detestava aquilo. Minha mãe nem podia me visitar, e só fez isso depois do julgamento, porque ninguém na aldeia havia mencionado a existência dos Wainwrights para a polícia e ela não queria ter de explicar aonde ia. Dorothy e Sam foram muito bons para mim, mas isto nunca compensou tudo o que eu havia perdido. Fui convencida de que precisava passar por aquilo pelo bem de todas as outras crianças de Scardale; de que estávamos fazendo aquilo para que Hawkin nunca mais pudesse machucar outra criança como havia feito comigo.
- Fazia certo sentido - disse Catherine, em tom abafado. Alison bebericou seu chá e falou, desafiadora:
- Não me envergonho do que fizemos. Nem Tommy nem Catherine lhe responderam.
Alison afastou os cabelos do rosto novamente e continuou sua história:
- Helen nasceu em meu quarto, em uma tarde de junho, algumas semanas antes do julgamento daquele canalha. Sam registrou-a como sendo sua filha e de Dorothy, e eles a criaram assim, como se eu fosse sua irmã e Dorothy sua mãe. Alguns anos depois, consegui emprego em um escritório. - Um sorriso duro apareceu pela primeira vez em seu rosto naquela manhã. - Era o escritório de um advogado. Dá para acreditar? Eu já deveria ter esgotado minha quota com a lei, não é? De qualquer modo, estudei à noite para recuperar o tempo perdido. Cheguei a conquistar um diploma em uma universidade. Estudei psicologia ocupacional e, no fim, estabelecime profissionalmente. A cada passo que dava, eu me sentia como se cuspisse no olho daquele asqueroso. Mas nunca era o bastante, entendem?
"Minha mãe verdadeira veio morar conosco depois do enforcamento de Hawkin. Fiquei feliz. Eu precisava muito de sua presença ali. Ela não quis voltar para Scardale, de modo que contratou um advogado para administrar as propriedades, mas continuou com esta casa. Ela sabia que, um dia, eu desejaria voltar. Mantivemos Helen totalmente ignorante quanto à ligação com Scardale. Até hoje ela acha que Ruth e seu marido viviam perto de Sheffield. Ruth lhe disse que Roy havia sido cremado, de modo que não havia um túmulo para visitar. Helen jamais questionou nossa história.
"Quando minha mãe morreu, o solar foi herdado por Dorothy, com a promessa de que deveria ficar para mim e para Helen, e quando Dorothy morreu, nós herdamos a casa. Helen acha que sou louca por querer morar tão longe da cidade. Mas é meu lar e fiquei longe daqui por muito tempo, de modo que agora quero aproveitá-lo."
Ela olhou para seu chá.
- Então, essa é toda a história.
Catherine franziu a testa. Sabia que deveria ter muitas perguntas a fazer, mas não conseguia pensar em nenhuma.
- E sempre que você olha para Helen, é a ele que enxerga - disse Tommy.
Os músculos em torno da mandíbula de Alison contraíram-se quando ela apertou os dentes.
- A semelhança não era tão óbvia quando ela era pequena - disse, finalmente. - Quando realmente começou a se parecer com ele, convencime a usar isso em meu favor. Aquele desgraçado destruiu minha infância, privou-me de minha família e amigos. Ele teria me matado se tivesse descoberto minha gravidez. Tenho certeza disso. Era um homem poderoso e eu não era nada. Assim, não quero esquecer nunca que consegui ajudar a virar o jogo. Deixe-me dizer-lhes: assumir o controle de nossas vidas nos dá uma sensação de poder. E foi isso que eu fiz, mas é muito mais fácil perder o controle sobre nossas vidas que conquistá-lo. Por isso eu queria garantir que jamais desistiria e nunca me esqueceria do passado. Assim, aprendi a ser grata porque Helen era um lembrete constante de que havíamos lutado contra o homem que tentou nos tirar tudo que nos tornava o que éramos - disse, em tom fervoroso.
Depois de uma longa pausa, ela falou, como se admirada com seus próprios pensamentos:
- Sabem de uma coisa, Helen não tem nada de Hawkin. Ela herdou toda a força e bondade de minha mãe. Como se tudo o que tornava minha mãe tão especial tivesse saltado uma geração e chegado a ela.
Tommy pigarreou, obviamente comovido pela história de Alison.
- Então, todos na aldeia estavam envolvidos na conspiração?
- Todos os adultos - confirmou Alison. - Mamãe Lomas disse que no início todos deveriam fingir que não confiavam na polícia e deixar que nossa versão dos fatos chegasse a eles apenas aos poucos. Você e George Bennett foram um prémio, para falar a verdade. O pessoal de Scardale não poderia prever que receberiam um par de policiais tão obcecados com o caso a ponto de se empenharem ao máximo, até o fim. Graças a vocês, o povo daqui conseguiu relaxar, sabendo que não teria de perseguir a polícia para fazer com que pegassem os fios de pistas que lhes davam, depois do primeiro impacto e quando tudo parecia sem solução.
Tommy sacudiu a cabeça, confuso com a terrível ironia.
- Fomos vítimas de nossa própria integridade. - Ele deu um meio sorriso. - Não se pode dizer isso com muita frequência, em relação a policiais. Mas, se não estivéssemos tão determinados a ir até o fim no caso, a fazer justiça, vocês nunca conseguiriam tanto sucesso com um plano tão grandioso.
Por um momento, nenhum dos três falou. Alison levantou-se e foi até a janela. Ela olhou para a praça da aldeia, no vale do qual saíra em uma noite de dezembro, trinta e cinco anos atrás, e que nunca deixara de amar. Catherine pensou que, agora, aquela mulher retomara seu lar, mas pagara um preço terrível. Finalmente, Alison virou-se lentamente, endireitou os ombros e perguntou:
- E o que acontecerá agora?
- Essa é uma excelente pergunta -disse Tommy.
9
Agosto de 1998
Catherine e Tommy compraram outra garrafa de uísque irlandês, a caminho da casa da jornalista. Ótimo para um velório, pensou Catherine. Nesta noite, os dois enterrariam de uma vez por todas o fantasma de Alison Cárter. Catherine suspeitava que, amanhã, teriam ressaca, embora esta fosse a menor de suas preocupações. Hoje, porém, ela desejava estar entorpecida pelo álcool quando chegasse a hora de ir para a cama. Qualquer coisa para escapar àquele desfile de horrores e degradação que Philip Hawkin deixara como legado para o mundo.
Ao fechar a porta, Catherine falou pela primeira vez desde que haviam deixado Alison Cárter entregue às suas recordações:
- Bem, acabou. Temos a verdade. - Ela atravessou a sala, foi até o balcão e serviu doses de uísque puro para ambos.
Tommy pegou seu copo, em silêncio, olhando para as fotos nas paredes e enfrentando o amargo reconhecimento de que Mamãe Lomas e seu clã haviam enganado o mundo o suficiente para fazerem com que Philip Hawkin percorresse a tortuosa estrada que levara à condenação por homicídio. Não sentia satisfação por perceber que seu próprio instinto havia sido correto, sobre Hawkin. Afinal, o homem não era mesmo um assassino.
Confrontada com as fotografias com as quais Alison os arrasara, Catherine não pôde resistir à conclusão de que os moradores de Scardale haviam feito o mais certo ao transformarem seu pasmacento vilarejo em um lugar de execução. Eles sabiam que nada, exceto a morte, impediria Hawkin e salvaria as outras crianças que viessem a cair em suas mãos. Nem mesmo mandar seus filhos para longe o impediria de continuar. Ele encontraria outras crianças para destruir, e tinha tanto dinheiro quanto poder para fazer com que as testemunhas fossem desacreditadas, mesmo se ousassem denunciá-lo.
- Em nenhum momento cheguei a pensar que poderia haver outras crianças - disse Catherine, tristemente.
- Nem eu. - Tommy virou as costas para as fotografias acusadoras e afundou-se em uma cadeira.
- Eu não consigo culpá-los pelo que fizeram - disse Catherine.
- No lugar deles, eu não teria hesitado em aderir à conspiração - reconheceu Tommy.
- A terrível ironia é que, comparado ao que Alison passou, o sofrimento de Philip Hawkin foi abençoadamente curto. Ela conviveu com a dor todos os dias de sua vida, desde aquela época. Perdeu tanto e, no fundo de sua mente, deve ter havido sempre o medo de abrir a porta e encontrar alguém como você e eu no outro lado. - Catherine pegou a garrafa de uísque e colocou-a sobre a mesa, entre os dois.
Ficaram sentados em um silêncio atordoado, como os sobreviventes de um acidente terrível que mal conseguem assimilar sua sorte por terem escapado do pior. Ambos permaneceram imersos em seus pensamentos, enquanto fumavam um cigarro atrás do outro.
- George tinha razão - disse Catherine, finalmente. - Não posso ir em frente com o livro. É claro que eu conquistaria todos os louros por revelar que um caso tão famoso foi montado com base em mentiras e engodo. Mas não posso fazer isso com George e Anne. Não se trata apenas da vergonha que isso causaria a George, mas da dor que ele sentiria vendo o romance entre Helen e Paul desintegrar-se. Além disso, todos os moradores sobreviventes de Scardale enfrentariam julgamento por conspiração, não apenas Alison. - Como em uma tragédia grega, pensou ela, as reverberações do que havia acontecido em Scardale trinta e cinco anos antes abalariam outras vidas bem distantes daquela tarde, vidas de inocentes que mereciam proteção de um passado do qual não tinham culpa.
Tommy bebeu até o fim seu uísque e serviu-se de outra dose.
- Beberei a isso - disse. - Acho que ninguém discordaria de você.
- Pode ir e contar tudo a George de manhã - disse Catherine.
- Não quer contar-lhe pessoalmente? Ela abanou a cabeça.
- Já terei muito com que me ocupar tentando cancelar o contrato para o livro sem explicar a razão verdadeira. Não, Tommy. Você conta a ele. É o melhor a fazer. Se não fosse por você, não sei se algum dia teria descoberto que Helen era a filha de Alison com Hawkin. E então eu não teria como convencê-la a contar toda a verdade. Ou qualquer razão para manter-me em silêncio. Portanto, o crédito é seu.
- Crédito? - perguntou ele, com desprezo. - Por revelar essa podridão? Obrigado, mas dispenso, se você não se importa. Mas terei prazer em dizer a George que ninguém pretende arruinar a vida de Paul e Helen. Eu sei o quanto isso é importante para ele, mas o pouparei dos detalhes.
Catherine pegou a garrafa e disse, enquanto servia mais três centímetros de uísque em seu copo:
- Boa ideia. E, depois, sugiro que façamos o possível para esquecer de tudo que vivemos nesses últimos dias.
10
Outubro de 1998
George Bennett olhou através do pára-brisa. O mês de outubro chegava ao fim, e agora que as árvores já estavam nuas, o portão pelo qual entrava lhe dava uma visão clara do vale até Scardale. As conhecidas casas cinzentas pareciam uma parte orgânica da paisagem, a distância, lembrando-o como as peculiaridades da topografia haviam moldado o mundo social da aldeia à qual viera pela primeira vez trinta e cinco anos antes. Ele percorreu com o olhar os campos até o Solar Scardale e pensou na mulher que estava prestes a tornar-se oficialmente a cunhada de seu filho. Alguns poderiam pensar que ela - e os outros que haviam participado daquilo tudo - mereceria ser punida pela conspiração que levara à forca um homem que, apesar de seus outros crimes, não cometera um assassinato. Mas George não se importava com retaliação. Importava-lhe mais o futuro que o passado. Nada como enfrentar a morte para que um homem valorize sua vida.
Por este motivo vinha até ali hoje. Apenas três dias antes, o médico concordara que ele poderia dirigir novamente, desde que não fizesse viagens longas. A jornada de Cromford a Scardale não era longa, em termos de distância - dissera a si mesmo. A distância, aqui, era em termos emocionais e psicológicos, um abismo de trinta e cinco anos e um leque de emoções complexas demais para serem avaliadas. Dali a quatro dias, ocorreria o casamento que resolveria finalmente esta história horrível, e George estava determinado a fazer o que pudesse para garantir que os fantasmas não se levantariam nunca mais. Assim, ele ligara para a mulher que nunca mais poderia chamar por seu nome real depois de hoje e solicitara um encontro.
Trinta e cinco anos antes, ele percorrera pela primeira vez esta estrada estreita. Mesmo então, suas emoções estavam divididas. Ele lembrou-se com ironia amargurada de sua excitação ante a possibilidade de ser o encarregado por seu primeiro grande caso - uma excitação culpada, mesclada à sua preocupação tanto pela garota desaparecida quanto pela família dela. Nem mesmo em suas mais loucas fantasias ele poderia ter previsto como o desaparecimento de Alison Cárter voltaria a ameaçar não apenas sua paz de espírito, mas também a felicidade futura de seu filho amado.
Uma das maiores ironias dos acontecimentos do último ano fora a substituição de uma culpa por outra. Ele sempre estivera convicto de que fracassara com Ruth Cárter, de algum modo, até que o processo de rever o caso com Catherine finalmente lhe permitira compreender que fizera o melhor naquelas circunstâncias. Entretanto, agora que sabia o que realmente acontecera em Scardale naquele inverno tenebroso, uma nova preocupação o abatia. Certamente houvera momentos, durante a investigação, em que ele deveria ter percebido a ocorrência de algo que ia bem além daquilo que via. Será que se tornara tão cego por sua arrogância e sua obsessão em condenar Philip Hawkin que ignorara indicadores que seriam percebidos por um detetive mais experiente? E se tivesse descoberto a verdade, será que esta teria dado a Alison Cárter uma vida melhor que aquela que tivera de suportar?
Tommy Clough garantira-lhe que acreditara tanto na encenação do povo de Scardale quanto o próprio George. Isto, porém, não lhe servia como grande conforto. Ele tinha certeza de que Tommy teria dito o mesmo, de qualquer maneira, para reconfortar um homem doente.
Quaisquer que tivessem sido seus erros no passado, ele precisaria descobrir um modo de aceitá-los para poder ter paz. Talvez seu coração lhe desse mais alguns meses ou anos pela frente, mas fosse qual fosse a duração de sua vida, ele não queria que este tempo fosse contaminado com uma auto-recriminação que só o torturaria. Precisava perdoar a si mesmo, e talvez o primeiro passo nesta jornada tivesse a ver com encontrar Alison Cárter para que pudessem perdoar as dores reais e imaginadas um do outro.
Com um suspiro profundo, George ligou novamente o carro e, lentamente, seguiu a estrada até Scardale. Não importava o que o futuro lhe traria, era hora de dar o primeiro passo na estrada que o levaria a enterrar o passado, desta vez para sempre.

 

                                                                  Val McDermid

 

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades