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Léonie abrandou a corrida e estacou perante a perspetiva da villa que surgia ao fundo da alameda, imponente e silenciosa, envolvida numa neblina flutuante. Vinha ofegante e o ar frio das primeiras horas da manhã transformava o seu hálito em pequenos sopros de vapor. Inclinou-se para a frente e ficou naquela posição para recuperar o fôlego.
Havia muitos anos, desde que tinha dado à luz o quinto filho, que acordava todas as manhãs às sete horas, vestia o fato de treino e ia correr no parque, durante meia hora, com qualquer tempo e em todas as estações do ano.
Quando a respiração retomou o ritmo normal, endireitou-se e secou o suor que lhe molhava o rosto com a toalha que trazia consigo. Depois, dirigiu-se em passo cadenciado para o majestoso edifício de finais do século XIX. A villa, no centro de um jardim circundado por um parque de dois hectares, parecia um gigante domesticado a repousar com elegância. Os primeiros raios de sol dispersavam a neblina e, ao aproximar-se, Léonie viu os arcos do pórtico que corriam ao longo da fachada cor de palha, depois distinguiu os canteiros bordejados de urze violácea, os arbustos de camélias já em botão, as bagas incandescentes do azevinho.
A visão, no seu conjunto, transmitia uma sensação de serenidade e de paz, mas Léonie sabia que aquela residência encobria inquietudes, perturbações e segredos.
Ela própria guardava ciosamente para si os seus segredos, pensou, enquanto transpunha a entrada da casa.
Desceu à cave onde, num espaço imenso, iluminado por uma luz acolhedora, ficava a piscina. Despiu-se, ficando apenas com as cuecas, e atirou-se à água. Fez três
piscinas e, quando saiu, tinha à sua espera a fisioterapeuta, que lhe entregou um roupão, silenciosa e eficiente como sempre.
Léonie seguiu-a até à cabina forrada a madeira de bétula, estendeu-se em cima da pequena cama aquecida e abandonou-se àquelas mãos sapientes que, com hábeis pressões
dos dedos, lhe derretiam a tensão dos músculos. A terapeuta fez-lhe uma massagem tonificante, espalhando-lhe sobre o corpo óleos essenciais perfumados.
Com quarenta e oito anos e depois de cinco gravidezes, Léonie tinha ainda um corpo quase perfeito. A fisioterapeuta asseverava que "a senhora" estaria perfeita mesmo
sem aqueles cuidados diários, mas "a senhora" deixava-a falar e persistia nos seus hábitos.
Terminada a massagem, Léonie vestiu o macio roupão de chenille e dirigiu-se ao elevador para subir até aos seus aposentos. Quando a porta de correr se abriu, surgiu
o sogro, envolvido num roupão negro.
- Bonjour, pai - cumprimentou-o.
- Bom-dia, pequena feiticeira - respondeu o Cavaliere Renzo Cantoni, enquanto se dirigia para a piscina. Léonie sorriu. Aquela troca de cumprimentos repetia-se
todos os dias, sempre igual.
O elevador tinha sido instalado, anos atrás, para facilitar as deslocações de Celina, a sogra, que sofria de uma obesidade devastadora e morrera há bastante tempo
já. Agora toda a gente o utilizava.
Nos seus aposentos, Léonie vestiu-se e, às oito e meia em ponto, entrou no jardim de inverno onde estava a ser servido o pequeno-almoço.
Guido Cantoni, o marido, encontrava-se diante do aparador de madeira lacada, onde estava exposto um rico buffet, a servir-se
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de uma fatia de tarte de maçã acabada de sair do forno e que difundia um aroma delicioso a manteiga e canela.
Naquela casa cozinhavam-se desde sempre iguarias deliciosas mas muito ricas em gorduras, que já tinham contribuído para causar dois enfartes ao patriarca e um ataque
fatal à consorte.
Só Léonie as evitava, para seguir uma dieta mais leve e mais saudável.
O marido viu-a e perguntou:
- Corto também uma fatia para ti?
- Não, obrigada - respondeu Léonie.
Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo na face pálida, encheu uma taça com iogurte feito em casa e juntou-lhe uma colher de salada de fruta fresca. Depois sentou-se
à mesa, em frente daquele cinquentão de olhar melancólico.
Era o dia vinte e dois de dezembro e através dos vidros perfilava-se, para lá do jardim, o parque de azinheiras e carvalhos tendo como fundo um céu onde se adensavam
grandes nuvens brancas.
Um criado idoso, de fraque vermelho escuro, entrou no aposento transportando os jarros do leite e do café, que pousou em cima da mesa.
- Bom-dia, senhora. Bom-dia, senhor - disse num tom baixo. Guido retribuiu o cumprimento e Léonie sorriu-lhe. Tinha
muita afeição pelo velho Nesto, que servia aquela família há muitos anos. Quando ela entrou pela primeira vez naquela grande villa, ele recebera-a com uma atitude
quase paternal, como que para a encorajar a não se deixar intimidar pelo luxo daquele local.
Assim que o empregado se eclipsou, Guido disse à mulher: - Estás muito elegante, esta manhã.
Ela vestia uma velha camisola preta de gola alta e umas calças de flanela cinzenta.
- Obrigada, querido - respondeu.
- E estás particularmente luminosa - prosseguiu ele, com uma nota de desapontamento na voz.
Léonie olhou para ele, desorientada.
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Naquele jardim de inverno de atmosfera aconchegante e temperatura agradável, as palavras de Guido Cantoni ressoaram quase como uma acusação.
No rosto do homem desenhou-se a sombra de um sorriso amargo, ao mesmo tempo que ele acrescentava:
- Diz-se que as mulheres reflorescem na primavera. Tu, pelo contrário, ficas mais bonita quando o Natal se aproxima. Tem sido assim desde sempre.
O que quereria dar-lhe a entender aquele marido habitualmente tão parco em palavras, que apenas quando escrevia se exprimia com uma linguagem rica e cintilante?
- Sentes-te bem? - perguntou-lhe. Teria Guido descoberto alguma coisa? Impossível! Provavelmente, como fazia às vezes, estava a ensaiar falas de um diálogo
para algum novo guião.
Guido deixara de trabalhar na empresa familiar antes de se casarem e, à produção de torneiras, tinha preferido a profissão de escritor. Se a família devia a sua
opulência à Fábrica de Torneiras Cantoni, Guido vivia do rendimento que lhe garantia a sua atividade de guionista.
- Eu sinto. E tu? - perguntou por sua vez, num tom quase agressivo.
Naquele momento, Renzo Cantoni fez a sua entrada envolvido no perfume dos óleos essenciais com que a fisioterapeuta o massajara. Vestia um elegante roupão azul-escuro
e chinelos de veludo da mesma cor.
Guido foi ao encontro dele e afastou a cadeira estofada onde o pai se instalou, ostentando a sua habitual expressão amuada: de manhã estava sempre de mau humor.
Agarrou na sineta de prata pousada ao lado do seu prato e fê-la tilintar até que Nesto apareceu.
- Estou muito bem, querido - prosseguiu Léonie, retomando o diálogo com o marido, e acrescentou: - De resto, tu já o disseste: próximo do Natal refloresço
como se fosse primavera.
- É esse o ponto - disse Guido entre dentes, ao mesmo tempo que se levantava para se dirigir ao aparador e se servir.
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Léonie corou como se tivesse sentido uma onda de calor e não replicou.
Nesto chegou trazendo numa mão uma colher de prata, que continha uma gema de ovo afogada em sumo de limão, e na outra um pratinho para recolher eventuais pingas.
Renzo Cantoni devorou o ovo com evidente satisfação e depois dirigiu à nora um sorriso malicioso. - Este é o meu elixir da longa vida, para o caso de alguém aspirar
à minha poltrona de presidente da fábrica - declarou.
Léonie sorriu e não respondeu à provocação.
Tinha-se tornado oficialmente vice-presidente da empresa familiar havia quatro anos, quando o sogro sofrera um segundo enfarte e os médicos sentenciaram que nunca
mais estaria em condições de conduzir os destinos da empresa.
Levara vários meses a restabelecer-se e, na sua ausência, Léonie dirigira a fábrica com atitude firme e grande profissionalismo. Renzo Cantoni tinha reconhecido
o seu mérito nomeando-a vice-presidente e esclarecendo: - Mas lembra-te de que, enquanto eu estiver capaz de entender e de querer, o patrão sou eu.
Pronunciara aquelas palavras com um tom altivo, mas na realidade tinha dado um suspiro de alívio. Finalmente, tinha um sucessor digno de tomar o seu lugar. Nas mãos
de Léonie, a empresa
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continuaria a prosperar. Aquele homem brusco e cortante nutria pela nora uma estima e uma ternura que não revelava, receando parecer sentimental.
- Quer vir comigo para a fábrica agora de manhã, pai? - perguntou Léonie.
- Para quê? De qualquer maneira já vou ter de lá ir para os votos natalícios. E depois tu vais logo pôr-te a andar. Ou não? replicou com o habitual sorriso
malicioso.
Era um facto mais que conhecido em casa e na empresa: no dia vinte e dois de dezembro, dia do solstício de inverno, Léonie metia-se no carro e ia-se embora. Regressava
a casa de tarde. Ninguém sabia onde passava o dia. Toda a gente, incluindo o marido, aceitara aquela extravagância sem indagar, nem fazer comentários. Mas naquela
manhã, pela primeira vez, Guido tinha atirado uma pedra.
Nesto, impassível, serviu o pequeno-almoço ao patrão e colocou-se atrás dele, pronto para intervir a um gesto seu.
- A Giuditta chega logo à tarde. Quem vai buscá-la ao aeroporto? - perguntou Guido à mulher.
Era a filha mais nova. Estudava num colégio suíço muito seleto e, tal como os outros filhos dispersos pelo mundo, ia passar as festas com os pais.
- Eu não, já sabes - replicou Léonie.
- A questão é que eu hoje tenho de me encontrar com um realizador... mas se não podes mesmo...
Léonie pousou o guardanapo na mesa, fitou o marido nos olhos e com uma extrema calma perguntou: - O que é que estás a tentar dizer-me, Guido?
Ele pareceu retirar-se para dentro da casca, como uma tartaruga. Depois sorriu, pousou uma mão na da mulher e respondeu: - Nada, querida. Está tudo bem.
- Mas ela não devia chegar no dia vinte e quatro, como os outros? - perguntou Léonie.
- Desde quando é que os filhos fazem aquilo que esperamos deles? - resmungou o velho, ao mesmo tempo que lançava a Guido um olhar carregado de alusões.
Ao fim de trinta anos, ainda não tinha conseguido perdoar ao filho único ter deixado a empresa familiar. E acrescentou: - Na véspera de Natal vai levantar-se a cortina
sobre o cenário habitual. Eu tenciono passar o serão no clube. Vamos ser poucos, mas bons.
Referia-se ao Clubino, um conhecido círculo de Milão do qual era conselheiro.
- Já sabemos, pai. Dizes sempre isso e depois acabas por ficar em casa, feliz por te deixares tiranizar pelos teus netos - replicou Guido.
Léonie levantou-se da mesa, aproximou-se do sogro e beijou-o na face. - Um bom dia, pai. E cuide-se - disse, com um sorriso radioso.
- Tu também, pequena feiticeira - murmurou o velho, enternecido.
No dia em que ele regressara à fábrica depois do segundo enfarte, Léonie organizara uma pequena festa: os operários ofereceram-lhe um ramo de flores e brindaram
ao seu retorno. Ele fizera um discurso combinado com a nora. Poucas palavras para dizer que Léonie Cantoni tinha assumido uma tarefa nada leve enquanto ele estava
doente: conduzir a empresa sozinha e num período em que se manifestavam os primeiros sinais de uma recessão. Depois nomeara-a vice-presidente da Fábrica de Torneiras
Cantoni. Uma vez que Léonie conquistara a estima e o respeito de todos, o anúncio do patrão fora aplaudido durante muito tempo. De facto, aquela passagem de testemunho
já se tinha consumado, porque Léonie tomara as rédeas da empresa desde os tempos do primeiro enfarte do sogro e promovera iniciativas frutuosas na programação do
trabalho.
Depois do aplauso, o Cavaliere retomara a palavra e, voltado para a nora, perguntara-lhe: - Era isto que querias?
Nada intimidada, Léonie replicara: - A coisa mais bonita da nossa relação, pai, é que nós os dois queremos as mesmas coisas. Mas o senhor é o presidente e eu sou
apenas a sua vice.
Tinha havido uma nova salva de palmas e surgira também um ramo de flores para "a senhora".
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A gora o velho Cantoni sussurrou-lhe ao ouvido: - Será que antes de eu morrer vou conseguir fazer-te dizer onde vais, todos os anos, no dia vinte e dois de dezembro?
- Se tiver muita paciência, porque ainda vai demorar muitos anos até chegar esse dia - disse ela, divertida.
- Já acabaram de trocar os vossos segredos? - interrompeu Guido.
- Não inventes um ciúme que não tem nada a ver contigo respondeu a mulher com um sorriso. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo repenicado na face. Depois
disse: - Vemo-nos logo à noite. E peçam à Giuditta para explicar por que razão se apresentou com dois dias de antecedência.
Quando chegou ao vestíbulo, veio ao encontro dela uma empregada que lhe entregou um casacão acolchoado, as luvas e a pasta.
Léonie agradeceu e saiu. Alguém providenciara para que o carro se encontrasse à porta de casa. Entrou para o lugar do condutor, apertou o cinto de segurança e arrancou.
Atravessou o parque, percorrendo a longa alameda até chegar ao imponente portão de ferro forjado que se abriu automaticamente.
Nada nem ninguém, nem sequer os filhos, poderiam tirar-lhe aquele dia que, desde que se tinha casado, lhe pertencia só a ela.
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Ao volante do seu carro, Léonie deixou atrás de si Villanova, uma localidade entre Milão e Lecco onde sobressaía a torre da igreja de San Francesco. Apanhou a estrada
nacional, após alguns quilómetros passou uma rotunda, fez um desvio e entrou numa estrada asfaltada ao fundo da qual surgia um edifício industrial em cujo topo se
via um letreiro luminoso de carateres enormes:
fábrica de torneiras cantoni.
Encostada ao edifício principal, à esquerda, encontrava-se uma outra construção mais pequena, do séculoXIX. Era a sede histórica da empresa que, na fachada, em parte
coberta pelas heras, ainda mantinha desbotado o letreiro original fábrica de torneiras crippa. Crippa era o apelido do fundador da empresa que, a dada altura, passara
para os Cantoni.
O núcleo histórico tinha sido inteiramente restruturado e albergava agora os escritórios e o museu da torneira. Este último tivera origem numa ideia genial de Léonie
e remontava aos primeiros anos do seu casamento com Guido, quando descobriu, nas caves do edifício, no meio de ferro-velho e desperdícios de fabrico, torneiras antigas
dos formatos mais estranhos, verdadeiras esculturas, algumas obscenas, outras com cabeças de animais. Algumas torneiras em bronze dourado e em prata remontavam mesmo
ao século XVI. Provavelmente, provinham de residências
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nobres da zona e tinham sido substituídas, ao longo dos séculos, por torneiras mais modernas e funcionais. Havia mais de vinte anos que o museu, que Léonie enriquecera
com outras peças raras recolhidas nas suas viagens por todo o mundo, era visitado por estudantes, colecionadores e curiosos, e era a menina dos olhos da empresa.
Nos escritórios, Léonie encontrou um ar de festa. Ao fundo das escadas erguia-se um pinheiro gigantesco, iluminado por estrelinhas luminosas. Coroas e grinaldas
natalícias ornamentavam as portas. Subiu ao primeiro andar, respondeu aos cumprimentos dos empregados e entrou no seu gabinete. A idosa signorina Mombelli, a secretária,
esperava-a com o correio que acabara de chegar. Sabia que "a senhora" tinha pressa, porque era dia vinte e dois de dezembro, que se ia eclipsar em breve e que só
voltaria no dia seguinte. Era assim todos os anos, mesmo quando era muito jovem, mesmo quando andava vistosamente grávida, mesmo quando tinha algum filho para dar
de mamar. Léonie sentou-se à secretária, começou a ver a correspondência e, de repente, soltou um grito de alegria.
- Mais uma encomenda do Dubai! Mas é fantástico! - exclamou.
A signorina Mombelli esclareceu com orgulho: - Oitocentas peças do modelo aríete em ouro.
- Estamos cheios de sorte por termos o metal no cofre. Com as cotações atuais do ouro vamos conseguir um lucro excelente - constatou. E acrescentou: - Para
a empresa, isto é realmente um belo presente de Natal.
Tinha uma expressão radiosa e a secretária sabia que isso não se devia só à inesperada encomenda de um hotel árabe: "a senhora" estava sempre feliz no dia do solstício
de inverno.
Por isso, naquele momento, quando Léonie ia a sair do gabinete, a signorina Mombelli disse-lhe: - Um bom dia.
- Vai ser - garantiu ela, e dirigiu-se para as escadas. Entrou outra vez no carro, percorreu um troço da estrada
nacional e entrou na autoestrada que levava a Lecco e ao lago.
O trânsito começava a intensificar-se e diminuía o seu andamento, mas Léonie não se enervou. Queria gozar todos os instantes até chegar a Varenna.
A pequena cidade acolheu-a com grinaldas e decorações natalícias que se acenderiam com as primeiras sombras da noite, para alegrar as praças e as ruelas estreitas
e íngremes. Ao descer em direção ao lago viu o promontório de Bellagio. O céu tinha-se coberto de nuvens e uma neblina densa encobria a margem oposta, dominada pela
massa escura das montanhas.
Atravessou muito devagar a praça da igreja, onde resplandecia, pendurado na torre, um cometa prateado; enfiou por uma descida e estacionou numa praceta minúscula.
Agarrou na carteira, saiu do carro e desceu uma escadaria de pedra que terminava numa viela em frente a uma antiga construção que, segundo se dizia, tinha albergado
Teodolinda, a rainha dos Lombardos. Transformara-se, havia algum tempo, num hotel com um reduzido número de quartos deliciosos que davam para o lago.
De repente, a euforia transformou-se numa vaga inquietação. Pensou: este ano não vai cá estar... acontecem tantas coisas num instante, imagine-se em doze meses!
Parou a observar a fachada do pequeno edifício onde se lia hotel du lac. O vento gelado fustigava-lhe o rosto e, através da porta envidraçada da entrada, viu o hall
inundado de luz. Bastavam dois passos para entrar, mas naquele momento não ousava mexer-se, pensando que, provavelmente, tinha chegado cedo de mais. Podia ir dar
uma volta, decidiu.
A ruela estava deserta e mergulhada no silêncio. Avançou, virou à direita no sítio onde ficava o pequeno terraço panorâmico do hotel, com um poço no centro, mesas
de ferro e pequenas colunas de pedra que sustinham um caramanchão despido, e debruçou-se da varanda a pique sobre a água. O vento gelado do lago fustigava-lhe o
rosto e insinuava-se no decote do blusão. Levantou a gola.
Viu um barco que navegava em direção a Bellagio. Um barco-táxi, que tinha escrito giro george, passava a grande velocidade
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em direção à Villa Oleandra. Apesar do frio, havia quem se deixasse atrair pelo desejo de espiar, ainda que de longe, a villa de George Clooney, pelo prazer de poder
dizer: "Vi a casa do ator".
Sobre o terraço panorâmico abriam-se as portas envidraçadas do bar do hotel, onde um empregado alinhava copos e chávenas numa prateleira. Léonie estava ali fora
a tremer e a dizer a si mesma: se calhar deixou uma mensagem na receção; mas, se não entro, não tenho maneira de saber.
Com um gesto decidido baixou o puxador de uma das portas e entrou no bar.
Sentiu-se envolvida pelo calor daquele espaço, e o jovem empregado do bar perguntou-lhe: - Deseja alguma coisa?
- Vou à receção - disse ela, e dirigiu-se ao hall. Atrás do balcão, a proprietária viu-a e reconheceu-a.
- Seja bem-vinda, minha senhora - cumprimentou.
- Prazer em vê-la - disse Léonie, com um sorriso leve.
- Fez boa viagem? O meu marido disse que há muito movimento na estrada - comentou a mulher.
- É o movimento habitual da época de Natal - retorquiu.
- Já viu que ventania? Já ontem foi assim... Por enquanto não deve nevar - disse ainda a proprietária, ao mesmo tempo que lhe entregava a chave da suite.
- Peço ao porteiro que a acompanhe? - acrescentou.
- Obrigada, eu conheço o caminho - respondeu Léonie, sorrindo-lhe.
Começou a subir os degraus que levavam ao primeiro andar.
Parou diante da suite do costume. Meteu a chave, a porta abriu-se e ela entrou no minúsculo vestíbulo. Sentiu no ar um vago perfume de vetiver e o seu coração deu
um salto de alegria. Entrou na sala e ele foi ao encontro dela. Olhou-a com ternura e disse: - Bonjour, Léonie.
- Bonjour, Roger - sussurrou ela. E caíram nos braços um do outro.
- O que é que foi, estás a chorar? - perguntou Roger, segurando o rosto de Léonie entre as mãos.
- São só umas lágrimas... Já viste como esta nossa história é uma coisa louca? Encontramo-nos um único dia por ano e nos restantes trezentos e sessenta e
quatro não sabemos nada um do outro.
- Se soubesses quantas vezes me apeteceu abrir às escondidas a tua carteira para procurar um documento ou uma agenda com a tua direção, ou um número de telefone
onde pudesse contactar-te, para te perguntar como estás, para te dizer que sinto a tua falta - confessou ele.
- Também eu tive a mesma tentação. Não achas que somos dois tolos? - perguntou-lhe.
- Somos duas pessoas responsáveis que uma vez por ano se concedem um sonho lindíssimo - respondeu ele, acariciando-lhe as ancas.
Ela estremeceu ao toque da sua mão quente sobre a pele nua e fechou-lhe os lábios com um beijo. Amaram-se ternamente.
Depois adormeceram por baixo dos cobertores macios daquela cama grande que os acolhia há tantos anos.
Quando Léonie acordou, o quarto estava quase às escuras. Roger dormia enroscado para um lado, a roupa puxada até ao
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queixo. Ela levantou-se, enfiou o roupão de felpo do hotel e encostou-se à porta envidraçada. O lago mal se distinguia e na costa de Bellagio acendiam-se as primeiras
luzes. Foi até à sala e fechou a porta do quarto sem fazer barulho. Acendeu um candeeiro e tirou o relógio da carteira abandonada em cima do sofá. Eram quase três
horas. De uma taça cheia de fruta fresca escolheu um cacho de uvas cor de âmbar. Aninhou-se numa poltrona e começou a saborear aqueles bagos dulcíssimos. Estava
esfomeada.
- Apanhei-te em flagrante - brincou Roger, ao mesmo tempo que abria a porta. Tinha enrolado um cobertor à volta da cintura e foi sentar-se no sofá, em frente
a ela. - Que horas são? - perguntou-lhe.
- Quase três, e ainda não almoçamos.
- Mas fizemos uma coisa muito mais divertida - afirmou ele, com um sorriso. E acrescentou: - Reservei a mesa do costume no restaurante junto ao molhe.
- Então vamos, ainda nos atendem - propôs ela.
Quando se conheceram, ela tinha vinte anos e ele trinta e dois. Ela era uma jovem esposa, ele um excelente ginecologista que trabalhava no Hospital Universitário
de Marselha. Agora era chefe do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia nesse mesmo hospital depois de ter subido, um atrás do outro, todos os degraus da carreira.
Já nessa altura a sua figura imponente e o semblante severo impunham respeito. Mas, quando sorria, o seu rosto iluminava-se.
Não tinha mudado muito ao longo dos anos. Os cabelos castanhos tinham ficado cinzentos sobre as têmporas, as rugas junto à boca tinham-se acentuado, mas conservava
um físico sólido e enxuto.
- Quem toma banho primeiro? - perguntou Roger, preparando-se para se levantar.
- Eu! - gritou Léonie e, com um impulso de recordista dos cem metros, passou-lhe à frente e enfiou-se na casa de banho.
Acabaram por tomar um duche juntos, a rir e a brincar com a água como crianças.
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Em Varenna, como nas outras pequenas localidades do lago, a cozinha dos restaurantes estava sempre aberta para satisfazer os pedidos dos clientes. Quando entraram
no restaurante havia outros clientes a depenicar umas entradas.
Uma empregada propôs a Léonie e Roger o menu do dia à base de peixe do lago, que nenhum deles apreciava, e acabaram por pedir esparguete com molho de tomate e manjericão
e vitela assada com batatas.
- Então, onde é que tínhamos ficado? - perguntou Roger, acariciando a mão de Léonie. Referia-se aos acontecimentos do último ano.
- Os miúdos, como sabes, estão todos fora de casa, até a Giuditta, a mais nova. Chega hoje de Genebra e acho que o meu marido a foi buscar ao aeroporto. O
Giuseppe, o mais velho, casou com a Fiona, aquela americana de nariz empinado, mas isso já sabes. Tiveram uma filha, a Margaret, que tem agora três meses. Chegam
de Nova Iorque daqui a dois dias, assim como o Gioacchino e o Peter, o companheiro dele, que vêm de Londres. A Gioia vem ter connosco de Paris, com o novo namorado
que trabalha no Eliseu, e a Giacinta chega de Roma. Vamos estar todos juntos durante as festas, como sempre. E tu?
- Eu fui avô pela terceira vez. O Alain, o mais velho, teve outro filho em janeiro. A Sophie está neurasténica, diz ela, por culpa dos netos que não lhe dão
tréguas. Estou convencido de que, se eu estivesse de urgência no Natal, ela ia representar alegremente o papel da mulher negligenciada para antecipar a partida para
St. Moritz. Sítio que eu odeio, de resto - explicou.
- Sinto muito - disse Léonie.
- Não te preocupes, vamos festejar o Natal com filhos e netos, como sempre. Para além do mais, eu vou levar no coração a alegria destas nossas horas fantásticas.
Olhou-a com olhos risonhos. Léonie sentiu um nó de comoção apertar-lhe a garganta e os olhos humedecerem-se. Ele afagou-lhe a face. - Não me queres dizer o que se
passa contigo? E a segunda vez que te vejo chorar hoje.
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- Não sei... não sei mesmo. Estou feliz, e, no entanto, choro com muita facilidade.
- Estás bem, a sério?
- Nunca estive melhor, mas o meu médico diz que vou entrar na menopausa e é essa a causa da minha fragilidade emotiva explicou ela.
- Se quiseres, sugiro-te uma terapia hormonal para lhe contrariar os efeitos, mas antes tens de fazer uma série de exames. Fala sobre isso com o teu ginecologista
- aconselhou Roger.
Quando saíram do restaurante, enfrentaram o ar gelado para se dirigirem à praceta onde Léonie tinha estacionado o carro.
- Obrigado por teres estado comigo também este ano. Tu és a minha mais bela prenda de Natal, minha pequena Léonie disse Roger.
- E tu és a minha - replicou ela. E acrescentou: - Durante quanto tempo ainda continuaremos a ser a prenda um do outro?
- Não vamos fazer essa pergunta, vamos contentar-nos com o presente, com aquilo que já tivemos. Lembras-te de quando, há vinte e oito anos, tiveste um furo
no carro e eu te obriguei a mudar o pneu?
- Nessa manhã tinha decidido ir a Morbegno procurar um bitto1 para a minha sogra. Pode dizer-se que foi ela quem me atirou para os teus braços - relembrou
Léonie, divertida.
- Grande mulher, a tua sogra - exclamou Roger. Despediram-se com um longo abraço. Depois Léonie meteu-
-se no carro e arrancou. Durante a viagem de regresso a Villanova, recordou esse primeiro encontro e o que aconteceu a seguir.
VARENNA
1 Queijo lombardo de denominação controlada, que se produz exclusivamente nos meses de verão e nos pastos a grande altitude e cujas características são condicionadas
pela qualidade das ervas consumidas pelas vacas. (N. da T.)
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Um dia, Celina Cantoni disse a Léonie, que se tinha casado com o filho pouco tempo antes: - Quando eu ainda conduzia, de vez em quando ia a Morbegno abastecer-me
de queijo. Vocês, franceses, têm tanto a mania dos vossos queijos que não aguentam a comparação com os que se produzem em Itália. Pois é... agora, por exemplo, nem
sei o que dava por comer uma fatia de bitto.
- O médico proibiu-lhe os queijos, já sabe - replicou a nora.
- Os médicos deviam proibir o peso dos anos e a consequente degradação física e moral - observou ela, tristemente.
Léonie tinha visto algumas fotografias de Celina em jovem: era magríssima e lindíssima. Agora mexia-se com dificuldade por causa da obesidade e na villa fora instalado
um elevador para que ela pudesse deslocar-se de um andar para outro com mais facilidade.
Léonie abraçou-a de repente e disse-lhe: - Maman, um dia destes vou a Morbegno comprar-lhe bitto, mas não diga nada a ninguém!
A sogra esclareceu: - Tens de ir comprá-lo aos irmãos Ciapponi. Vais ver a loja deles, parece que se anda cem anos para trás. Já cá fora sentes o aroma dos enchidos
da montanha, dos biscoitos de baunilha... Eu sei, foram todas essas iguarias que me puseram assim. É mesmo verdade aquilo que dizia a minha mãe: a beleza
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da juventude é um dom, a da velhice és tu que a ofereces a ti própria. Eu não o fiz, e agora é tarde para voltar atrás.
Com o bom senso dos seus poucos anos, a jovem achava que, de vez em quando, um pequeno desvio na dieta imposta pelo médico não ia certamente matar Celina e fá-la-ia
feliz.
Às vezes, às escondidas de toda a gente, cozinhava para ela minúsculas dozes de escargots à provençal, ou uma pequena porção de cogumelos com natas. Celina ficava-lhe
grata por estas pequenas gulodices, que eram um segredo delas, e recompensava-a com uma ternura maternal que Léonie nunca conhecera.
No seu primeiro Natal de casada, Léonie decidiu ir a Morbegno abastecer-se de iguarias, mas sobretudo comprar o bitto para a sogra.
Os Cantoni tinham-lhe oferecido um Lancia, e, numa manhã chuvosa, meteu-se no carro: era o dia vinte e dois de dezembro.
Tomou a estrada nacional e ligou o rádio, que sintonizou num programa de música ligeira. Fizeram-lhe companhia os Beatles e depois a banda sonora de um filme de
Jean-Luc Godard que tinha visto com Guido recentemente, e o seu pensamento voou até àquele marido doce e indecifrável.
Estavam casados havia seis meses, e há três trazia no ventre um filho. Mais uma vez perguntou a si mesma por que razão Guido a tinha escolhido. No momento de a pedir
em casamento não lhe tinha dito: "Amo-te", ou então: "Gosto de ti", mas apenas: "Queres ser minha mulher?"
Ela respondera imediatamente: - Sim.
Para uma rapariguinha da Provença, sozinha no mundo, sem dinheiro e sem perspetivas para além daquela de regressar a Salon e trabalhar nos Correios, o casamento
com Guido fora um verdadeiro golpe de sorte.
Agora não podia dizer que era uma mulher plenamente feliz, mas também não era infeliz. Os Cantoni gostavam dela e isso contava muito, pois nunca tivera, até então,
uma verdadeira família, nem sequer a segurança e a tranquilidade económica que eles lhe garantiam.
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Quando anunciou ao marido que estava grávida e ele a abraçou, ousou perguntar-lhe: - Porque te casaste comigo? - Guido olhou-a espantado e depois respondeu na brincadeira:
- Porque és gira.
Nesse momento esperou que Guido lhe perguntasse: - E tu, porque te casaste comigo?
Não o fez. Talvez porque a resposta estava mesmo ali, debaixo dos olhos de toda a gente. Tinha-se casado com ele porque não possuía nada e ele era rico, bonito,
inteligente e elegante.
Em troca de tudo isto, Léonie não fazia exigências, recebia com gratidão tudo aquilo que lhe ofereciam e sabia tornar-se útil. Nunca tentara sondar o passado daquele
marido indecifrável, com um olhar muitas vezes melancólico.
Logo a seguir ao casamento, apercebeu-se de algumas alusões que eram feitas ao passado de Guido.
Uma noite, Celina sussurrou ao marido: - Queira Deus que o Guido tenha deixado para trás aquela história horrível.
Renzo Cantoni respondeu: - Foi tudo por tua culpa. Sempre o mimaste e encobriste.
- Apenas o amei também por ti que foste demasiado severo com ele, sobretudo quando era criança.
- Devia ter sido ainda mais, uma vez que depois de crescer se recusou a tratar da fábrica. Sabe-se lá que fim vai ter a minha empresa, quando eu já cá não
estiver.
Aquela família escondia segredos que Léonie não sabia e não queria conhecer.
No caminho de regresso a Villanova, a chuva incomodativa que a tinha acompanhado durante a ida transformou-se num aguaceiro. Léonie resignou-se a ter de abrandar
o andamento, entrando numa fila de automóveis e camiões.
Queria parar e telefonar para casa a avisar que ia chegar atrasada por causa do trânsito, mas não tinha guarda-chuva e não queria molhar-se. Estava perto de Bellano
quando, de repente, o carro começou a desviar-se para o lado e ela se apercebeu de
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que tinha um furo. Descobriu um parque de estacionamento e entrou.
Pousou a testa no volante e, a falar sozinha, perguntou aflita' - Mon Dieu! E agora o que é que eu faço?
A chuva batia loucamente na carroçaria e ela continuava sentada dentro do carro. Sabia que tinha de sair para inspecionar o pneu furado, mas hesitava.
- Se ao menos tivesse um guarda-chuva! - repetia, desesperada.
Finalmente, decidiu-se. Desapertou o lenço que trazia ao pescoço, pô-lo na cabeça, deu-lhe um nó e saiu. Debaixo daquele dilúvio, constatou que o pneu da frente
tinha esvaziado e que era impossível continuar. Nunca tinha mudado um pneu, por isso não lhe restava senão pedir boleia. Aproximou-se da berma da estrada, levantou
um braço e abanou-o para fazer parar um carro desportivo que se aproximava. O condutor abrandou e desviou-se em direção ao estacionamento. Baixou o vidro e perguntou
a Léonie, que tinha chegado junto dele: - O que aconteceu? - Era um homem de rosto severo, bonito, e tinha um acentuado sotaque francês.
- Tenho um pneu furado - explicou Léonie em francês.
Indiferente ao facto de ela estar encharcada, o homem continuou dentro do carro e perguntou: - Não tem um pneu sobresselente?
- Não sei, e ainda que tivesse não era capaz de o mudar, foi coisa que nunca fiz - respondeu Léonie, irritada com a indiferença do homem.
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Então ele saiu do carro. Tinha uma figura imponente, estava de fato de esqui e trazia calçadas umas botas confortáveis forradas a pele. Levantou o capuz do blusão
para cobrir a cabeça e disse-lhe com uma voz firme: - Pois bem, chegou o momento de aprender a fazê-lo.
- Olhe, esqueça. Só quero que me dê uma boleia até à povoação mais próxima - pediu ela.
Sem lhe responder, ele pegou-lhe num braço e levou-a até ao Lancia.
- Abra a mala - ordenou. E prosseguiu: - Agora vou dizer-lhe o que tem de fazer e vai mudar o pneu. É importante que aprenda a fazê-lo. Percebe, não percebe?
Incapaz de se rebelar contra aquela autoridade, Léonie abriu a mala.
- Pois olhe, está a ver? Não há nem sombra de pneu sobresselente - disse ao desconhecido.
- Levante o tapete, assim. O pneu está ali. E, se reparar bem, também lá estão as chaves para desbloquear a roda e o macaco para levantar o carro.
- Levantar o carro? - repetiu Léonie, desconcertada.
- É a única maneira de mudar um pneu - explicou ele, com uma calma irritante.
Já resignada, mas terrivelmente irritada, Léonie sibilou: O que mais tenho de fazer?
- Com a chave, desaperte as porcas e solte o pneu sobresselente. Estavam ambos à chuva, mas ele tinha um fato impermeável,
enquanto o casaco de Léonie já estava encharcado.
- O senhor é a pessoa menos simpática que eu alguma vez encontrei - queixou-se, mas, entretanto, ia cumprindo as suas ordens.
- A sério? Os meus amigos não pensam assim, e até me consideram muito simpático. De qualquer maneira, não temos tempo a perder. Agora enfie o macaco debaixo
do carro e rode a manivela.
- E levanta mesmo! Quem diria! - gritou Léonie, muitíssimo espantada.
- Desaperte as porcas e retire o pneu furado - prosseguiu ele, com uma calma imperturbável. Depois acrescentou: - O pior está feito. Agora não lhe falta senão
colocar o sobresselente, voltar a apertar as porcas e baixar o macaco.
Ela executou todos os passos sem fazer comentários, limitando-se a odiar aquele compatriota que não mexia um dedo para a ajudar.
Desde que vivia em Itália, mais do que uma vez lhe acontecera ouvir comentários pouco lisonjeiros sobre os franceses a propósito do seu comportamento arrogante.
Naquele momento teve a certeza de que os italianos tinham razão.
- Foi extraordinária! - exclamou ele, satisfeito, depois de ter verificado se estava tudo em ordem.
- Não é possível... consegui! - disse Léonie, espantada.
Já não queria saber da chuva que lhe tinha encharcado o casaco e os sapatos, nem do frio que a fazia tremer.
- Está a ver? Afinal não era assim tão difícil como pensava comentou ele, e abriu os lábios num sorriso que lhe iluminou o rosto.
Também Léonie lhe sorriu, ao mesmo tempo que dizia: Obrigada, do fundo do coração. Acha que posso continuar a viagem sossegada? Quero dizer... será que a roda que
eu coloquei não vai saltar?
- Fez um trabalho excelente... Ninguém era capaz de fazer melhor. Para onde é que vai?
- Ainda tenho uma hora de caminho. Talvez mais, atendendo ao trânsito.
- Não pode conduzir durante uma hora nestas condições. Está encharcada como um pinto. O meu hotel é muito perto daqui. Entre no carro e siga-me. Tem de se
secar e beber alguma coisa quente.
- Não vale a pena, a sério... - atirou ela, que queria voltar para casa.
- Tem de ser. Sou médico e sei o que digo.
Léonie cedeu. Sentou-se ao volante e seguiu o carro do francês. Ao fim de poucos metros, leu uma placa que indicava a
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entrada em Varenna. Atravessou a aldeia semideserta e continuou em direção ao lago. Estacionou o Lancia ao lado do carro desportivo do desconhecido. Depois, sempre
debaixo de chuva, desceram juntos umas escadas e entraram no átrio de um pequeno hotel que se chamava Hotel du Lac.
Enquanto ela tirava o lenço encharcado, uma jovem mulher loira, de ar saudável, veio recebê-los, dizendo: - Voltou cedo, senhor doutor. - E deu-lhe a chave de um
quarto.
- A neve estava péssima. Fiz duas ou três pistas e dei-me por satisfeito - explicou ele, cortando rapidamente a conversa. Depois acrescentou, indicando Léonie:
- Esta senhora precisa de um quarto e de uma empregada que trate de lhe secar a roupa.
Naquele momento apercebeu-se de que ainda não se tinha apresentado a Léonie.
- Desculpe. Sou Roger Bastiani.
De origem corsa, com sotaque de Marselha, pensou ela, ao mesmo tempo que dizia por sua vez: - Léonie Tardivaux.
A mulher loira verificou o registo e sentenciou: - Sinto muito, mas não tenho um único quarto livre.
- No entanto, nós não queremos que a senhora fique doente, pois não? - perguntou o médico, com o mesmo tom autoritário que Léonie já conhecia.
Naquele momento ela sentiu umas picadas no nariz e deu uma série de espirros.
- Vá imediatamente para o meu quarto - ordenou-lhe. Depois voltou-se para a mulher atrás do balcão. - Por favor, peça a uma empregada que a acompanhe e mande
já para o quarto um chá quente. Eu fico à espera no bar, aqui em baixo - concluiu, entregando a chave a Léonie.
- Não quero incomodá-lo... - disse ela, mas ele não a ouviu porque já tinha avançado ao longo do corredor que dava acesso ao bar.
- É um urso - comentou a mulher loira de ar saudável. - Já o conheço há três anos e sei o que digo - acrescentou.
Léonie entrou na suite onde pairava um ligeiro aroma a vetiver. Descalçou os sapatos e enterrou com prazer os pés na alcatifa espessa e macia. A empregada que a
seguia apanhou-os e ajudou-a a despir o casaco ensopado de água.
- O blazer... como é que está? - perguntou a mulher.
- Parece-me seco - respondeu Léonie, enquanto o desabotoava para verificar. - Está tudo em ordem, obrigada - esclareceu com um sorriso.
- Vou já mandar trazer o chá, tal como o Dr. Bastiani mandou. A casa de banho é aqui - disse a empregada, ao mesmo tempo que abria uma porta do lado esquerdo.
Depois deixou-a só.
Léonie entrou numa sala mobilada com um sofá, duas poltronas, uma mesa e um televisor. Nas paredes estavam penduradas algumas imagens de inspiração lacustre e uma
porta envidraçada dava para um terraço sobre o lago. Olhou em volta. Uma porta entreaberta dava para o quarto. Entreviu uma cama feita, coberta com uma colcha azul.
Instintivamente, fechou a porta, como se não quisesse violar a intimidade do seu salvador. Descortinou em cima da mesa da sala uma pilha de folhetos em que leu:
terceiro congresso internacional de obstetrícia e ginecologia. Portanto, o seu anfitrião era um ginecologista.
- Que homem estranho! - sussurrou.
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Sentou-se numa poltrona, ao lado da mesa onde estava pousado o telefone. Levantou o auscultador, marcou o zero para obter linha e ligou para casa. Nesto atendeu
ao segundo toque.
- Por favor, diga para não me esperarem à hora de almoço. Tive um furo e... - deixou escapar novamente uma série de espirros.
- A senhora constipou-se? - perguntou o velho empregado.
- Receio bem que sim. De qualquer maneira, agora está tudo em ordem e daqui a pouco eu vou - rematou.
Bateram à porta. Era o empregado do bar que lhe vinha trazer o chá com uma bandeja de biscoitos e bolinhos.
Léonie agradeceu-lhe e fechou-se na casa de banho para se despir. Sentiu algum conforto com um duche muito quente. Depois vestiu um roupão de felpo e secou rapidamente
o cabelo com o secador, enquanto observava os objetos de toilette alinhados numa prateleira ao lado do lavatório: máquina de barbear elétrica, pasta de dentes e
escova, fio dental, um boião de creme solar, uma escova para o cabelo, um frasco de perfume Vétiver.
Voltou a vestir-se e regressou à sala. Encostou-se à janela: já não chovia, mas o céu estava cinzento e opaco.
Bebeu uma chávena de chá quente e ignorou os doces.
Bateram outra vez à porta. Era a empregada que lhe vinha trazer os sapatos secos e engraxados.
- O casaco ainda vai precisar de mais algum tempo - comunicou-lhe.
Léonie desceu ao rés do chão, atravessou o hall, que estava deserto, e foi até ao bar.
Estavam dois ou três clientes ao balcão, um casal sentado a uma mesa e Roger Bastiani em pé, de costas voltadas, diante da grande janela que dava para um terraço.
Tinha tirado o blusão, e o camisolão de lã branca entrançada revelava uns ombros largos e robustos. Pequenos caracóis castanhos acariciavam-lhe a nuca. Tinha as
mãos enterradas nos bolsos das calças de esqui. Léonie aproximou-se dele.
- Cá estou eu - disse.
Ele voltou-se e sorriu-lhe.
- Não sei como lhe agradecer. Sinto-me novamente em paz com o mundo - prosseguiu Léonie.
- Sente-se - disse ele, ao mesmo tempo que afastava da mesa uma poltrona. - Pedi para nos prepararem duas torradas e chá bem quente. A hora do almoço já passou
e precisa de comer alguma coisa antes de prosseguir viagem.
Sentou-se em frente a ela, ao mesmo tempo que o empregado estendia em cima da mesa uma toalha branquíssima e bem passada.
- Posso recusar? - perguntou ela. Não tinha pressa de ir embora, agora que tinha tranquilizado a família, mas a hospitalidade um pouco rude daquele homem
causava-lhe um vago embaraço.
- De maneira nenhuma. Não sei dos seus compromissos, mas um quarto de hora para se retemperar não lhe vai alterar a vida.
- Tem uma maneira curiosa de mostrar a sua generosidade.
- Não gosto muito de formalismos, de frases feitas, e de todas as outras idiotices impostas pela etiqueta. E agora coma - concluiu, enquanto o empregado servia
as torradas quentes e o chá fumegante.
- Em cima da mesa, na sala da sua suite, vi uns prospetos de um congresso de Obstetrícia. É ginecologista? - perguntou-lhe.
- Escolhi esta especialidade apesar de, quando eu nasci, o meu pai, que era um génio da Medicina, ter dito à minha mãe: "Se este filho for inteligente vai
ser um internista como eu, ou então um cirurgião como tu, se tiver habilidade de mãos. Se não..." Olharam um para o outro e desataram a rir, ao mesmo tempo que diziam:
"Vai ser ginecologista!" Contaram-me isso a rir quando anunciei que queria especializar-me em Obstetrícia explicou Roger, divertido.
Léonie riu até às lágrimas, e depois disse: - Não pense que acredito nisso, acho que só me contou uma anedota, bem engraçada, devo admitir. Bom, agora é melhor regressar
a casa. Agradeço-lhe do coração a sua infinita gentileza.
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- Eu não fiz nada, para além de pôr em risco a sua saúde. Mas não queria que se rendesse perante uma pequena dificuldade.
- Eu percebi, e não imagina como a sua determinação me ajudou, senhor doutor - replicou Léonie. - Só peço desculpa por o ter feito perder tanto tempo.
- Hoje é um dia de férias para mim. Devia estar em Bellagio com os outros congressistas, mas prefiro estar aqui no hotel, em Varenna, porque do outro lado
do lago há demasiada confusão. O congresso termina daqui a dois dias e a minha comunicação é só amanhã.
Foram interrompidos pela dona do hotel, que trazia na mão o casaco de Léonie.
- Veja, minha senhora, como ficou bem. É um tecido excelente e portou-se lindamente com a água.
- Por favor, diga-me quanto lhe devo por toda esta maçada - perguntou ela.
A mulher loira esquivou-se à pergunta, limitando-se a pousar delicadamente o casaco nas costas de uma cadeira, e afastou-se imediatamente.
- Agora é melhor ir, antes que fique escuro - disse a Roger.
- Pois, hoje é o solstício de inverno, o dia mais curto do ano. A partir de amanhã os dias começam a crescer, ainda que impercetivelmente - comentou o médico.
E acrescentou: - Vou buscar o casaco e acompanho-a ao carro.
Saíram do hotel e começaram a subir as escadas em direção ao carro estacionado na praceta.
- Sou casada e estou à espera de um bebé. Estou no terceiro mês de gravidez - ouviu-se dizer.
- É o primeiro filho? - perguntou ele. Ela assentiu.
- Como se sente? Nenhuma perturbação, náuseas...
- Nunca estive tão bem, mas sinto-me mais suscetível do que habitualmente - admitiu.
Tinham chegado à praceta.
- Tenha cuidado consigo e vai continuar a sentir-se muito bem - disse o médico, ao mesmo tempo que lhe abria a porta do carro. Ela, que já se preparava para
entrar, dirigiu-lhe um sorriso raiado de melancolia.
- Obrigada por tudo, Dr. Roger Bastiani - agradeceu. Imprevisivelmente, ele segurou entre as mãos o rosto de Léonie e pousou-lhe um beijo leve nos lábios.
- Bom Natal, signora Léonie Tardivaux - disse num sopro. Ela sentou-se ao volante e ligou o motor. Ele fechou a porta,
depois inclinou-se e bateu no vidro. Ela baixou-o e ele disse: - No próximo ano, no solstício de inverno, vou estar aqui outra vez. à tua espera.
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I
Guido estava no jardim a discutir com os operários ocupados a enfeitar os arcos do pórtico com grinaldas luminosas. Viu chegar o carro de Léonie, acabou a conversa
e foi ao encontro dela.
- Que história é essa do pneu furado? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que ela saía do carro e se apressava a abrir a mala.
- Aconteceu quando vinha para cá. Chovia e estava muito frio. Ajuda-me a levar os sacos para dentro - disse, metendo-lhe na mão um caixote cheio de iguarias.
- Chamaste o pronto-socorro? - perguntou ele, enquanto avançava à frente dela para dentro de casa.
- Mais ou menos - respondeu ela, que levava apenas o saco do queijo na mão. E prosseguiu: - Pus-me na berma da estrada a pedir boleia. Quando parou um carro,
o condutor ajudou-me a mudar o pneu - explicou, ao mesmo tempo que começava a descer as escadas para a cozinha.
Léonie adorava aquele grande aposento com janelas rasgadas que se abriam sobre o jardim. Gostava das panelas de cobre brilhantes penduradas nas prateleiras, das
bancadas de trabalho onde estavam sempre alinhados, com uma ordem quase maníaca, facas de todos os formatos e dimensões, trinchantes, colheres de pau, batedeiras,
pinças e garfos enormes, a grande chaminé sobre o
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fogão monumental e a série de fornos a gás, elétricos, micro-
- ondas, descongeladores, desidratadores... Tinha sido Celina, cerca de dez anos atrás, a restruturar a cozinha e os aposentos anexos, dotando-os também de
câmaras frigoríficas para as carnes, os queijos, os vinhos. Na cozinha trabalhavam um cozinheiro, um pasteleiro e dois ajudantes, como se tivessem de matar a fome
a uma família de vinte pessoas, apesar de ali serem apenas seis: o patriarca, Amilcare Cantoni, a mulher, Bianca Crippa, o filho, Renzo, com a mulher, Celina Olgiati
e, por fim, Guido e Léonie Tardivaux, a jovem esposa.
Guido pousou o caixote da comida em cima de uma mesa e Léonie arrumou o embrulho dos queijos no frigorífico. Sentia-se culpada, não tanto por o seu salvador a ter
beijado, mas sobretudo pelo prazer que o toque fugidio dos seus lábios lhe tinha provocado. E isso era indigno de uma mulher casada e à espera de um filho. Pensando
novamente no assunto, concluiu que estava a construir um castelo em cima de coisa nenhuma, mas perguntou a si mesma por que razão não sentia o mesmo arrebatamento
em relação ao marido. Gostava muito de Guido, mas ele era sempre tão controlado, tão distante, como se vivesse num mundo só seu do qual ela era excluída. Virou-se
para o marido, que estava diante dela, e perguntou-lhe, olhando-o nos olhos: Porque é que eu te sinto sempre tão longe de mim, como se estivesses noutro lugar?
Guido sorriu-lhe e pousou as mãos nos ombros dela, dizendo:
- É verdade que muitas vezes tenho a mente noutro lugar, mas gosto muito de ti, como sabes, e amo o nosso filho.
No rosto sorridente do marido, Léonie captou uma sombra de melancolia. Não era a primeira vez que olhava para ela assim. Baixou os olhos e não fez mais perguntas.
Não queria aprofundar aquele assunto porque receava sofrer. Mais valia contentar-se com as palavras de Guido, pelo menos naquele momento.
Alguém o chamou do jardim.
- Os operários estão a precisar de ti - disse Léonie, grata por aquela interrupção.
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Enquanto ele ia ter com os homens que estavam a trabalhar, ela, que o tinha seguido, parou a observar de longe as grinaldas luminosas montadas sobre os arcos do
pórtico que brilhavam na escuridão.
De repente sentiu um baque surdo atrás de si. Voltou-se rapidamente e ouviu um lamento débil que provinha dos arbustos de murta. Aproximou-se e viu uma massa escura,
no chão.
- Socorro! - queixou-se Bianca Cantoni com uma voz trémula.
Léonie inclinou-se sobre ela, agarrou-a por um braço e levantou-a como se fosse uma pena.
- Quem és tu? O que queres? - reagiu a velha senhora, ressentida.
- Sou a Léonie, grand-maman - respondeu ela, enquanto perguntava a si mesma como podia a matriarca ter escapado à vigilância das empregadas e do marido. -
Magoou-se? - perguntou-lhe, enquanto a amparava e lhe rodeava a cintura com um braço.
- Agora reconheço-te, deixa-me ir, não preciso da tua ajuda, caçadora de patrimónios - acusou-a com um tom azedo, ao mesmo tempo que procurava libertar-se
do seu braço.
- Não quero que caia outra vez. Deixe-me ajudá-la - insistiu Léonie.
- Tu e os outros todos são um bando de sanguessugas parasitas. Detesto-vos. Deixa-me ir. - Deu um esticão e caiu outra vez.
- Guido - chamou Léonie em voz alta -, anda cá, depressa! Quando o marido chegou ao pé dela, sussurrou-lhe: - Insultou-me e não quer que a ajude. Trata tu
da tua avó. Eu vou para dentro porque estou com frio - disse, e afastou-se com passo decidido.
Aquela velha era insuportável. Não percebia como toda a família conseguia aguentá-la sem reagir, mas isso era um dos muitos aspetos incompreensíveis dos Cantoni.
Entrou na sala onde, um pouco por todo o lado, se viam tapetes, sofás, poltronas e quadros antigos nas paredes que reproduziam cenas de grandes batalhas.
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- Anda cá, minha filha - disse a sogra, que estava enterrada numa poltrona em frente à lareira onde dançavam chamas crepitantes.
- Cá estou eu, maman Celina - respondeu Léonie, enquanto se aproximava dela. Deu-lhe um beijo na face rechonchuda que cheirava a violeta.
- Tudo bem? - perguntou a senhora.
- Nem por isso. Acabei de ter um encontro com a avó Bianca. Estava no jardim, sozinha, e tinha caído. Fui ajudá-la e tratou-me com maus modos. Tenho de lhe
dizer, maman: acho que ela é uma mulher má.
Celina suspirou com um ar resignado.
- É apenas uma mulher infeliz. Sempre foi, pelo menos foi isso que me disseram o meu sogro e o meu marido, porque ela não fala. Não sei que demónio a consome,
mas deu que fazer a toda a gente. Porque é que achas que ela vive afastada e que apenas partilha com a família a refeição da noite?
- Refeições tristíssimas, de resto. Eu quase não ouso respirar quando estamos à mesa.
- Estamos todos atentos para não desencadear a sua agressividade, que pode ser perigosa, como já foi no passado. Só o marido consegue lidar com ela. Mas falemos
de outra coisa, por favor disse Celina.
A sogra tinha na mão uma partitura musical e prosseguiu: Olha, vês, estava a rever uma canção de embalar de Mozart. Acho que vou voltar a tocar piano, porque quando
nascer o teu filho quero tê-lo ao pé de mim e pô-lo a ouvir boa música. O que me dizes?
Léonie acariciou o ventre com um gesto involuntário e reencontrou o sorriso.
- Parece-me uma ideia muito bonita. Obrigada, maman Celina.
- Obrigada eu por me dares um netinho; e gostava que depois desse viessem mais. Esta casa imensa precisa dos gritos e das gargalhadas das crianças. Depois
do Guido, não pude ter mais filhos e tenho muita pena.
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Caiu o silêncio. Celina tinha mergulhado nas memórias e Léonie recordou o toque ligeiro dos lábios de Roger sobre os seus a sua voz que lhe dizia: "No próximo ano,
no solstício de inverno, vou estar aqui outra vez... à tua espera."
- Foste a Morbegno? - perguntou a sogra, afastando-a dos
seus pensamentos.
- E trouxe-lhe o bitto - respondeu Léonie.
- És uma querida. Não disseste a ninguém, pois não?
- Pode estar sossegada.
- De que é que estás à espera para mo dares a provar?
- Vamos fazer um pacto. Eu trago-lhe um pedacinho de bitto e a senhora conta-me alguma coisa da avó Bianca.
- Isso não é um pacto, é chantagem. Mas, uma vez que já antes de mim alguém se vendeu por um prato de lentilhas, mais vale o bitto, é mais saboroso! - disse
Celina a rir. E contou.
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As esperanças do comendador Luigi Crippa de confiar ao primogénito os destinos da empresa, que tinha criado e feito prosperar com tanto esforço, tinham-se estilhaçado
com a morte do filho no Carso, durante a guerra. Sentiu uma dor imensa, da qual nunca mais recuperou. Às vezes, olhava para a segunda filha, Bianca, nascida quando
ele tinha já uma certa idade, e lamentava que fosse uma rapariga, e, como tal, inadequada para lhe suceder na direção da Fábrica de Torneiras Crippa.
A menina sentia a hostilidade do pai e evitava também a mãe, que a considerava uma partida da velhice, uma vez que engravidara quando pensava que já não era fértil.
Entregue aos cuidados das empregadas, Bianca cresceu em beleza e caprichos. Enclausurada no colégio das irmãs Ursulinas, em Milão, saiu dali aos dezasseis anos ainda
mais extravagante do que quando entrou.
A signora Crippa, quando atingia os limites da paciência, convocava o pároco e dizia-lhe: - Por caridade, senhor prior, fale com ela e abençoe-a, porque ela tem
o diabo no corpo.
O homem, um velho abade do campo, sentava-se na sala em frente à rapariga e perguntava-lhe: - Diz-me, Bianca, o que é que te aflige?
- Nada, don Giuseppe - respondia ela.
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- Porque é que fazes enlouquecer a tua pobre mãe e o teu pobre pai?
- Eles odeiam-me. No coração só têm o meu irmão, o herdeiro ao trono que morreu na guerra. No buraco desta terra, nesta casa que para eles é um castelo, eu
estou só. Quero ir-me embora, mas mantêm-me aqui como uma prisioneira.
Havia alguma verdade nas palavras de Bianca e o pároco sabia-o, apesar de fazer de conta que ignorava, um pouco por caridade cristã e um pouco por causa das doações
que o comendador Crippa fazia à paróquia.
- Tens de ter paciência, minha filha. Se esta casa é assim tão estreita para ti, pensa que um dia o Senhor vai pôr no teu caminho um bom rapaz, que se vai
casar contigo, e tu te vais embora com ele - dizia-lhe, para a confortar.
- Está bem, don Giuseppe, há de ser como o senhor diz. Então abençoe-me, meta no bolso o envelope que a mãe lhe vai dar e deixe-me em paz.
Aquela rapariga inteligente e infeliz fazia-lhe pena. O pároco suspirava, abençoava-a e ia-se embora.
O "bom rapaz" auspiciado por don Giuseppe apresentou-se um dia nas vestes do descendente de um construtor civil que tinha fechado um contrato com o comendador Crippa.
No campo dos arredores de Lodi, no meio das propriedades da igreja, havia um antigo convento que fora decidido restaurar para ali construir um colégio de seminaristas.
Luigi Crippa tinha obtido a empreitada do fornecimento hidráulico e decidiu convidar para almoçar, na villa, o engenheiro Castelli, proprietário da empresa que ia
executar os trabalhos, com o filho, Generoso.
O jovem apresentou-se em casa dos Crippa com dois grandes ramos de flores, um para a dona da casa e outro para "a filha dos senhores".
Generoso Castelli chegou ao volante de um Fiat azul e prateado, vestido à última moda pelo seu alfaiate londrino, de cabelo empastado e bigodes perfumados com essência
de baunilha e tabaco.
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Bianca Crippa, que ia fazer dezoito anos, estava muito bonita e recebeu os convidados com uma graça que deixou atordoados os pais, habituados aos seus modos extravagantes.
Bastou uma troca de olhares entre Bianca e Generoso para dizerem um ao outro: "Quero-te."
Depois do almoço, enquanto os Crippa e os Castelli tomavam café na sala de estar, Generoso mostrou a Bianca o seu carro estacionado no largo em frente à villa.
- Imagine, signorina Bianca, que este automóvel anda a 120 quilómetros por hora. Com isto, pode-se partir daqui e chegar a Paris em um dia e uma noite - disse-lhe
o jovem, que tinha vinte e oito anos e muita vontade de se divertir.
- Ah, Paris! Schiaparelli, Chanel, Marthe Régnier... como eu gostava de ver os Champs-Élysées, a Tour Eiffel, o Bois de Boulogne e o Moulin Rouge. Gostava
de ouvir Mistinguett e Joséphine Baker, encontrar Colette e Marcel Proust, beber champanhe num bistrot de Montmartre... Caro signor Castelli - exclamou, com um ar
sonhador de diva do cinema, abrindo muito os grandes olhos escuros.
- Mas qual signor Castelli? Somos jovens e modernos, vamos tratar-nos por tu. Eu vou pôr Paris aos teus pés. Quando partimos? - declarou ele, com a mesma
ênfase.
- Nunca, mon cher ami. Eu só vou sair desta casa com uma aliança no dedo. Foi assim que decidiu o comendador Crippa. É esta a desgraça de nascer mulher num
mundo onde vigora a lei do mais forte, ou seja, a dos homens. A eles tudo é permitido, a nós nada.
- Já não estamos no século XIX e estes velhos têm de perceber isso, quer queiram, quer não. Eu sou um homem e alinho a favor das mulheres, que devem ter os
mesmos privilégios que nós temos - afirmou, convicto.
- É fácil falar quando se trabalha, se recebe salário e se dispõe de dinheiro próprio. Eu dependo do meu pai até para comprar um par de meias, e a minha mãe
censura-me porque ouço demasiada música e leio demasiados livros. Sendo assim, que mais posso fazer senão sonhar? - perguntou Bianca, tristemente,
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enquanto afagava o metal luzidio do automóvel. Depois disse de repente: - Ensina-me a conduzir.
- É para já - replicou Generoso, ao mesmo tempo que abria a porta para deixar Bianca sentar-se ao volante.
Naquele momento, a signora Crippa chegou ao largo e chamou a filha.
- Estás a ver, reparaste no sentido de oportunidade? Assim que me vê falar com um homem, entra em desassossego. Fim da primeira lição - resmungou Bianca,
e foi para casa.
Passou ao lado da mãe sem lhe dirigir um olhar nem uma palavra, subiu ao primeiro andar e fechou-se no quarto. Desfez a cama e arrastou o colchão para a varanda,
pegou numa tesoura, cortou o forro e deixou cair sobre o jardim, como neve, a lã do interior, sem ligar aos apelos dos pais e dos empregados.
- O que é que querias demonstrar? - perguntou-lhe o pai, quando ela se decidiu a abrir a porta.
- Que não quero continuar a dormir nesta casa - respondeu Bianca.
- Não vou ser eu a impedir-te com a força. O mundo é vasto e é todo teu - replicou o pai, ao mesmo tempo que a convidava, com um gesto, a ir-se embora.
Estava exasperado com as provocações daquela filha com quem não conseguia comunicar.
A mãe, atrás do marido, olhava para Bianca, consternada.
- Que rica figura nos obrigaste a fazer com os convidados! Primeiro, estiveste a fazer charme ao Generoso, e depois foste embora sem te despedires - disse,
num tom agastado.
- Eu não sou a filha que vocês queriam ter. Se calhar foste castigada porque eras demasiado velha para ter mais filhos rebateu Bianca com rancor.
A mãe, escandalizada com tanto descaramento, atingiu-a numa face com toda a força que tinha.
- Tu és doida! - gritou.
- Odeio-te! - retorquiu Bianca, e desceu as escadas a correr, enquanto as empregadas, que estavam à escuta, se apressavam a
desaparecer. Foi até ao jardim, pegou na bicicleta, atravessou o parque e saiu pelo portão.
Era uma bela tarde de maio, o sol estava quase a pôr-se e tingia de rosa o céu. O campo estava salpicado de flores de todas as cores, filas de silvas viçosas alinhavam-se
nas bermas da estrada que um ratinho assustado atravessou com a velocidade de uma seta. De repente, uma pedra aguçada desviou a trajetória da bicicleta e Bianca
caiu desamparada.
Viu o céu por cima dela e depois mais nada. Quando voltou a abrir os olhos, estava um rapaz inclinado sobre ela, que lhe repetia: - Ouve-me? Eh, está a ouvir-me?
- Quem é você? - perguntou Bianca, confusa.
- Chamo-me Amilcare Cantoni. Via-a fazer um voo assustador da bicicleta e vim ajudá-la. Consegue levantar-se?
- Não sei... Não tenho a certeza... Vá-se embora, por favor - disse ela, e começou a chorar. Passou uma mão pela face e viu que estava coberta de sangue.
Sentia umas fisgadas dolorosas num tornozelo e no braço esquerdo.
- Signorina Bianca, eu vou-me embora, se quiser. Mas não conte ao seu pai que eu não a quis ajudar - disse ele, irritado.
Pegou na bicicleta que tinha encostado a uma árvore, começou a andar e apeteceu-lhe ignorar o grito lançado pela rapariga no momento em que o viu afastar-se.
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Amilcare Cantoni era filho de camponeses e acabara há pouco a escola primária quando o pai foi com ele falar com o comendador Crippa, dono da empresa homónima que
produzia torneiras.
Os senhores da terra eram desde sempre os Olgiati Tremonti, uma antiga família aristocrática que possuía terras e quintas, para além do palácio nobiliário na praça
da igreja. Mas enquanto eles, dia após dia, viam emagrecer o património e a consideração, o comendador Crippa ampliava a sua esfera de atividade e ganhava prestígio.
- Senhor comendador - começou o pai de Amilcare, segurando nas mãos o chapéu gasto -, este é o meu último filho. Não quer saber do trabalho no campo e gostava de
vir para a fábrica para poder continuar a estudar. Arranje-lhe um emprego, por favor.
O homem estava emocionado e não ousava olhar em volta. Amilcare, pelo contrário, examinava com curiosidade todos os pormenores: a grande secretária de madeira escura
com tampo de couro, as prateleiras cheias de pastas de arquivo, o telefone monumental, as poltronas pretas, o fato elegante que o comendador Crippa vestia e as suas
mãos brancas com as unhas polidas como as do seu professor. Até o colarinho engomado da camisa o
fascinava
- Eu preciso mesmo de um rapaz que varra a limalha e a apanhe - respondeu Crippa. E acrescentou: - Deixa-o aqui. Vou ver se ele tem vontade de trabalhar.
Se não funcionar, mando-to outra vez para casa.
Depois perguntou ao rapaz: - Como te chamas?
- Amilcare Cantoni - respondeu ele, com uma voz clara.
- Sabes quem era Amilcare?
- Era o pai de Aníbal, que atravessou os Alpes com uns elefantes para ir à conquista de Roma - explicou, com um ar conhecedor.
- Respeito pelo senhor patrão - interveio o pai, ao mesmo tempo que lhe dava um cachaço. Depois voltou-se para o comendador Crippa, comentando: - Está a ver,
patrão, como são os filhos hoje em dia? Sem educação.
- Está bem assim, Cantoni. Deixa aqui o teu rapaz - disse, despedindo o camponês.
Ao fim do dia foi à oficina e perguntou ao chefe dos operários: - Que tal se portou o Cantoni?
- Ainda ali está a esfregar os tornos e os berbequins. Não é preciso explicar-lhe as coisas duas vezes.
- O bom dia vê-se logo de manhã. Orienta-o bem - ordenou o patrão, que tinha sentido uma onda de simpatia por aquele rapaz diligente.
Quando o chamaram para cumprir o serviço militar, Amilcare, que já tinha frequentado a escola noturna, conseguiu um diploma de perito mecânico e a qualificação de
chefe de oficina. Ao fim de dois anos deixou o Exército com o grau de cabo e regressou a Villanova para retomar o seu lugar na empresa do comendador Crippa, que
o transferiu para o gabinete técnico.
Naquele domingo de maio, o jovem tinha ido a Milão de bicicleta para se encontrar com um ex-companheiro de armas que estudava Engenharia no Politécnico. Queria perguntar-lhe
se era possível inscrever-se na faculdade sem um diploma liceal.
O amigo convidou-o para almoçar em casa dos pais, que eram ambos professores, e Amilcare tocou com a mão o abismo
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que o separava do mundo da cultura. A sua sede de aprender não bastava para colmatar as lacunas da sua preparação escolar.
- Meu caro rapaz, aqui não há atalhos. Se queres inscrever-te em Engenharia, tens de ter o diploma do curso liceal - explicaram-lhe os pais do seu ex-companheiro
de armas.
- O que é que eu tenho de fazer para o conseguir? - perguntou.
Os pais do amigo sabiam que Amilcare trabalhava numa fábrica e tinha pouco tempo para estudar.
- Uma vez que não podes frequentar o liceu, tens de te propor a exame. Mas olha que é difícil, tens de estudar muitas disciplinas, entre as quais Latim, Filosofia,
Literatura e Ciências. Não há liceus com ensino noturno e precisavas de ter pelo menos dois professores para te prepararem.
- Eu aprendo depressa - respondeu, tentando ganhar coragem.
- São precisas horas e horas de estudo. E os livros custam muito dinheiro. E lembra-te também de que, mesmo que passes nos exames e entres para a faculdade,
vais ter de frequentar as aulas. Como é que vais fazer, uma vez que tens de trabalhar na fábrica?
- Vou pensar nisso - respondeu ele, preocupado com a quantidade de obstáculos que ia ter de enfrentar.
Fez o caminho de volta a pedalar com força, para afogar a raiva e a desilusão. Estava quase a chegar a Villanova quando viu uma rapariga cair desamparada da bicicleta.
Parou para a socorrer e reconheceu-a porque, de vez em quando, o comendador Crippa a levava com ele para o escritório.
De Bianca Crippa, Amilcare apenas sabia aquilo que ouvia contar na fábrica e na aldeia a propósito do seu temperamento difícil.
Agora voltou de má vontade até junto dela que, depois de o ter mandado embora, o chamava novamente para pedir ajuda.
- Consegue levantar-se? - perguntou-lhe.
Bianca tinha um tornozelo inchado e o rosto coberto de sangue. Ergueu-a em peso e olhou à volta para ver se aparecia alguém que lhe desse uma mão. Não viu ninguém.
O sol estava a pôr-se e.
àquela hora, as mulheres estavam na igreja e os homens na taberna.
- Duvido que consiga pôr-se em cima da bicicleta. Se quiser, posso ir à villa pedir a alguém que a venha buscar.
- E tinha coragem de me deixar aqui sozinha? - reagiu ela, esforçando-se por ignorar as dores no pé e no ombro.
- Tem alguma ideia melhor? - perguntou ele.
- Não quero ir para casa. Aliás, ia a fugir - confessou.
- Para ir aonde?
- Não faço ideia. De qualquer maneira, para casa não volto.
- Menina, ouça-me: a menina magoou-se e só há um sítio para onde pode ir: a sua casa. Portanto, vou levá-la agora de volta para a villa - decidiu ele.
Pegou nela ao colo e instalou-a no selim da sua bicicleta. Depois, segurando-a, dirigiu-se a pé para a villa dos Crippa.
Admirou o esforço de Bianca para não se queixar, mas recomendou-lhe: - Por favor, tente não desmaiar outra vez, porque se não vou ter de a levar ao colo e vamos
demorar muito mais tempo a chegar.
Estavam já próximos da villa quando ela lhe perguntou num sopro: - Quer mesmo entregar-me aos meus pais?
Amilcare não respondeu. Não queria ver-se envolvido em assuntos que só tinham a ver com o seu patrão.
Calou-se e, finalmente, chegaram à porta da entrada.
Amilcare voltou a pegar na rapariga ao colo e entregou-a ao comendador.
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Os Crippa levaram Bianca para um hospital de Milão, onde foi medicada, engessada e internada.
Na manhã seguinte, Amilcare foi convocado ao escritório do comendador Crippa, que lhe disse: - A propósito da minha filha, tu não a viste, não a ajudaste e não sabes
de nada.
- É isso mesmo. Não sei de nada - assentiu o jovem.
- Obrigado - murmurou o patrão.
- De quê? - perguntou ele impassível. E regressou ao trabalho. Da sua cama, num quarto particular do hospital de Milão,
Bianca escreveu versos decalcados de uma ode de Foscolo a Generoso Castelli, apelidando-o de "meu generoso Ugo" e assinando "Luigia Pallavicini caída do cavalo".
O rapaz precipitou-se ao seu encontro e encheu-lhe o quarto de flores. Ela contou-lhe a sua fuga, que tinha concluído a poucos metros de casa daquela forma desastrosa,
como ele podia constatar.
Ele cobriu-a de promessas e de sonhos e ela, quando estava prestes a ter alta, escreveu-lhe mais versos, assinando: "Antonietta Fagnani Arese, a amiga recuperada".
Quando os Crippa chegaram ao hospital para a levarem para casa, descobriram que a conta já estava paga e que Bianca se tinha ido embora.
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Não foi preciso muito para apurar que o jovem com quem se tinha afastado num Fiat azul e prateado era Generoso Castelli. Entre os Crippa e os Castelli houve momentos
de grande tensão, durante os quais se acusaram alternadamente de terem educado pessimamente os filhos.
Por fim concluíram que não se podia gerar um escândalo, que era mais conveniente calar e esperar.
No dia seguinte, o engenheiro Castelli recebeu um telegrama do filho, que lhe pedia perdão "em nome do amor". O telegrama vinha de Sanremo.
- Vai ter de se casar com ela - decidiu a signora Crippa, e o marido pensou que há males que vêm por bem. O pai de Generoso declarou-se totalmente de acordo
com os Crippa.
- Se o Generoso não lavar a vossa desonra com o matrimónio, juro que o renego - garantiu.
Ao fim de dois dias, Bianca regressou a Villanova trazida pelo jovem Castelli, que disse: - Comendador, devolvo-lhe a sua filha e não me venha dizer que tenho de
me casar com ela, porque não lhe toquei nem com um dedo. Bastaram-me dois dias para perceber que a signorina Bianca é uma criatura intratável. Por ter tentado fazer-lhe
uma carícia fiquei com os dentes dela aqui espetados - e mostrou, furioso, uma mão enfaixada.
A signora Crippa começou a soluçar e o mesmo teria feito o marido se não temesse perder a sua virilidade.
- Vai ser preciso verificar se é verdade - insinuou a signora Crippa, lavada em lágrimas.
- É a verdade, conforma-te - sussurrou-lhe o marido.
- Eu sou como São Tomé, se não vejo, não creio - decidiu a mulher, e foi com Bianca a Milão, ao seu ginecologista.
A rapariga aguentou o exame médico sem pestanejar.
- É virgem - declarou o ginecologista à signora Crippa. Bianca vestiu-se atrás do biombo e, quando voltou a aparecer, enfrentou a mãe olhando-a com maldade.
- Agora que me impuseste esta humilhação, estás satisfeita? Vês vício por todo o lado, em toda a gente, até em mim. Eu sinto
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desprezo por ti, fico enjoada só de olhar para a tua cara! - gritou à mãe.
- Acompanhe a senhora até à outra sala - disse o ginecologista à enfermeira.
Quando ficou sozinho com Bianca, perguntou-lhe: - Porque odeias tanto a tua mãe?
- Senhor doutor, pergunte antes porque me odeia ela a mim - replicou a rapariga.
O médico conhecia-a bem, porque quando a signora Crippa se dirigia ao seu consultório para a consulta anual de rotina, às vezes trazia a filha com ela. Em algumas
ocasiões, depois de ter examinado a mãe, mandava entrar Bianca para o seu gabinete e, durante alguns minutos, conversava com ela, falando-lhe com ternura paterna.
Inquietava-o o olhar duro e impenetrável daquela criança.
Uma vez dissera à signora Crippa: - A Bianca precisa de amor.
- É minha filha. Acha que não gosto dela? - reagira a senhora, irritada.
Ele limitara-se a replicar: - Demonstre-lho. Agora perguntou à rapariga: - Se é verdade que não a odeias, de onde te vem toda essa agressividade para com ela?
- Ela acha que eu tenho o diabo no corpo. Devo aceitar essa afirmação sem reagir? Também pensa que eu sou uma endemoninhada, senhor doutor?
- Acho que tu és uma boa rapariga, muito infeliz. Não é assim? - perguntou-lhe o médico.
- Só Deus pode desfazer o emaranhado da minha alma, mas talvez seja uma tarefa demasiado difícil mesmo para Ele - respondeu Bianca tristemente.
- Porque deste uma dentada àquele rapaz com quem tinhas fugido? Um homem e uma mulher, quando são jovens e gostam um do outro, querem entregar-se um ao outro.
O que foi que te impediu de... em suma, percebes o que eu quero dizer.
- Gostaria de lhe responder que o que me impediu foi a moral, o temor de cometer um pecado. Mas não é assim. Ele
queria levar-me para a cama e não se questionou nem por um instante se eu também desejava a mesma coisa. Fiquei de tal maneira furiosa que perdi o controlo e o mordi.
Quando me passou a raiva, dei-me conta de que tinha exagerado, mas não tenho pena nenhuma de lhe ter pregado um susto. E agora não me diga para pedir desculpa à
minha mãe.
- Efetivamente, não te digo... Mas confesso-te que estou preocupado contigo e queria sugerir-te uma conversa com um colega meu psiquiatra.
- Também está a pensar que eu sou doida? - perguntou Bianca, num tom agressivo.
- Repito-te que estou convencido de que tu és muito infeliz.
- Mande os meus pais ao psiquiatra. Eles são muito mais infelizes do que eu desde que morreu o filho queridíssimo.
- Minha menina, és demasiado complicada para um velho como eu - disse o médico, resignado. Acompanhou-a à porta e despediram-se.
De regresso a Villanova, Bianca obteve dos pais a permissão para ir passar uns dias com a sua amiga Anna Colombo, em Nervi, onde acabou por ficar o verão inteiro.
Os pais foram ter com ela e naquele período pareceu ter-se reconciliado com eles e com o resto do mundo. Em setembro quis mudar-se para Neuilly, às portas de Paris,
para frequentar uns cursos de pintura, e arranjou como alojamento uma espécie de pensionato para raparigas de boas famílias. Os pais nunca tinham sido tão condescendentes,
mas ela não se admirou com isso. Atribuiu aquela complacência ao alívio de não terem de tratar dela, angustiados como estavam pela possibilidade de ela cometer alguma
nova loucura.
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Regressou de Paris ao fim de dois anos, perto do Natal. Vestia um elegante fato de homem e trazia um chapéu a condizer com o fato castanho-escuro. Fumava longos
cigarros violeta de filtro dourado, conduzia, passava muitas vezes os dias em Milão e, por vezes, também os serões. Frequentava jornalistas e poetas, adorava Tommaso
Marinetti e Alberto Savinio, e ignorava a consternação dos Crippa, que não ousavam contradizê-la e a toleravam a ela e aos amigos quando os convidava para sua casa.
Mas havia dias em que voltava a vestir roupa feminina e se juntava à mãe que, no salão ou no jardim, tomava chá com as amigas e falava de banalidades.
Nessas ocasiões Bianca sorria e apresentava um ar tranquilo, enquanto entre os seus dedos floriam arabescos realizados com a agulha de croché. Às vezes sentava-se
em frente ao cavalete, no jardim, e pintava uma paisagem ou um pôr do sol, utilizando cores improváveis que reproduziam uma realidade que só ela via.
Os Crippa não gostavam daqueles quadros, que lhes transmitiam uma sensação de inquietude, mas guardavam para si estas impressões e diziam-lhe: - Muito bem.
Ela olhava-os com ar de desafio e resmungava: - Vocês nunca dizem a verdade! São uns hipócritas. - Acrescentava também: Gostavam que eu fosse como as filhas dos
vossos amigos: insípidas e obsequiosas. Conformem-se, porque eu não sou assim.
Os Crippa ouviam e calavam. Só uma vez a signora Crippa replicou: - Eu percebo-te. De resto, eu também não consigo ser diferente daquilo que sou.
Não era capaz de comunicar com a filha e nem sequer lhe disse que, havia já bastante tempo, tinha problemas de coração e que recentemente a doença se tinha agravado.
Havia dias em que não saía da cama e Bianca não ia ter com ela para lhe perguntar como estava. Uma noite, enquanto jantava sozinha com o pai, precisou de fazer um
grande esforço para lhe perguntar: - Como está a tua mulher?
- A minha mulher é tua mãe e está mal - respondeu ele.
- Sinto muito - disse Bianca.
- Porque não vais ter com ela?
- Aquele quarto é um mausoléu em memória do vosso queridíssimo filho perdido. Já lá estão todas as imagens dele para a consolar. Eu ia estar a mais - concluiu.
A signora Crippa morreu e Bianca, depois do funeral, vestiu um vestido berrante roxo e vermelho, sentou-se ao volante do seu carro e foi a Milão, onde ficou durante
alguns dias. O pai não sabia o que ela fazia nem com quem estava durante as suas ausências, mas também não ousava interrogá-la. Preferia não saber e esquecia dores
e amarguras concentrando-se na prosperidade da sua empresa.
Era o tempo do fascismo, e o comendador Crippa tinha conseguido identificar algumas figuras facilmente corruptíveis que, mediante lautas compensações, lhe permitiam
obter empreitadas importantes. Ele pagava e desprezava-os. Eles metiam ao bolso e faziam de conta que ignoravam que o industrial não aceitara o cartão do partido
e que, das raras vezes em que recebia pessoas em casa, evitava cuidadosamente convidar os governantes locais.
Bianca nunca participava naqueles jantares e, se estivesse em casa, isolava-se nos seus aposentos.
A partir da morte da mãe adquiriu o hábito de acompanhar o pai à empresa. Subia com ele até ao escritório, sentava-se a um
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canto, por baixo de uma janela, e, armada de papel e lápis, desenhava durante horas, aparentemente alheada de tudo o que se passava à sua volta. Tinha reparado que
no meio dos colaboradores mais assíduos com quem o comendador Crippa se encontrava estava o Amilcare Cantoni que a socorrera depois daquela desastrosa queda de bicicleta.
Reparara também no respeito com que o pai se dirigia a ele e na atenção com que escutava as suas sugestões. O jovem tinha maneiras civilizadas, vestia roupa sóbria,
evitava exprimir-se no dialeto airoso da zona e elaborava frases complexas com a desenvoltura de um homem culto. Bianca sabia que tinha passado brilhantemente os
exames liceais com a ajuda, na sua preparação, do pároco da aldeia, que já não era don Giuseppe, uma vez que este se retirara para um lar de religiosos, mas um jovem
sacerdote culto e saído da alta burguesia. Agora Amilcare Cantoni estava no segundo ano de Engenharia Hidráulica e devia à benevolência do comendador Crippa a possibilidade
de se ausentar frequentemente do trabalho para assistir às aulas.
Quando ele entrava no escritório do pai, Bianca parava de desenhar para o ouvir falar.
Ao contrário de todos os outros empregados, Amilcare não era servil nem com o patrão nem com ela, a quem dirigia um sorridente bom-dia e depois ignorava.
Uma vez ouviu-o propor: - Já pensou, comendador, em pôr alguns anúncios nos jornais?
- Isso faz-se para os xaropes reconstituintes, para os cremes das senhoras, para a graxa dos sapatos, mas para torneiras... o que fariam os meus clientes
com esses anúncios? - objetou o comendador Crippa.
- Para a nova linha destinada às habitações e aos hotéis podia propor-se um produto elegante, para além de funcional. Podíamos começar com uns prospetos sobre
a nossa exposição na Feira de Milão - insistiu Amilcare.
- Querem um café? - perguntou Bianca, de repente, com um gritinho sorridente.
Num pequeno compartimento ao lado do escritório havia um frigorífico para as bebidas frescas e um disco elétrico para o café. Sem esperar uma resposta, a rapariga
abandonou os seus trabalhos em cima de uma mesa e deslizou para dentro do pequeno quarto. Um dos desenhos escorregou para o chão e Amilcare apanhou-o, observou-o
e depois estendeu-o ao patrão, dizendo: - Veja por si, comendador. A signorina Bianca antecipou-se.
O homem observou o esboço com espanto. Bianca tinha desenhado uma figura feminina muito atraente diante de um lava-louça. Uma mão pousada numa torneira em forma
de cálice de flor da qual saía um jato de água e, por baixo, em carateres esvoaçantes, uma legenda: crippa. a torneira elegante e perfeita.
Bianca regressou ao escritório com o tabuleiro do café no momento em que o comendador perguntava a Amilcare: - Isto foi combinado com a minha filha?
- Nunca tive o prazer de trocar uma única palavra com a signorina Bianca.
O homem olhou para a filha que, depois de ter pousado o tabuleiro em cima da secretária, tirou a folha das mãos do pai.
- Desenhei isto há uns dias, quando te vieram trazer as torneiras novas. Mas é um desenho horrível - disse ela, e rasgou-o, atirando os pedaços para o caixote
do lixo.
- Porquê? - perguntou Amilcare, que olhava para ela com um ar perplexo.
- Posso fazer melhor - respondeu ela, e acrescentou: - Que quantidade de açúcar?
Naquela noite, enquanto jantavam os dois, Bianca disse ao pai: - Aquele Cantoni convence-me. Mandei-lhe um bilhete para o convidar para o almoço no domingo. Tenho
a certeza de que isso te vai dar prazer.
O pai guardou para si as suas considerações, mas aquela iniciativa não lhe desagradou. Era a primeira vez que a filha fazia alguma coisa relativamente à qual não
tinha nada a objetar.
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O comendador Crippa não teve nada a objetar nem sequer quando as manobras de Bianca para cativar o jovem Cantoni se tornaram evidentes, e por isso pensou: mais vale
um camponês inteligente e ambicioso do que aqueles rebentos de boas famílias mimados, e seguramente viciosos, com quem durante anos se entreteve.
Depois da morte da mãe, Bianca quase sossegara. Tinha deixado de convidar companhias estranhas para a villa e reduzira as fugas para a cidade.
Agora, enquanto observava a filha e Amilcare a caminharem lado a lado ao longo da alameda do parque, depois do almoço dominical, que se tinha tornado um encontro
fixo, comentou para si mesmo num sussurro: - Sabe-se lá de que é que estão a falar.
Era verão e o comendador descansava numa espreguiçadeira à sombra de uma figueira. Viu os dois jovens a pegar nas bicicletas e a afastar-se. Havia uma tranquilidade
absoluta a toda a volta.
Via-os pedalar no parque e não lhe importava que a gente da aldeia dissesse: - O comendador Crippa não conseguiu arrumar a filha com um "bom partido" e agora tenta
despachá-la para aquele que era operário e que anda a estudar para engenheiro.
Voltou a ver-se a si próprio menino, a caminhar a custo por estradas e caminhos no meio dos campos, pendurado no pai que
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era canalizador e andava de casa em casa a reparar caleiras e a instalar torneiras. Queria ficar a jogar à malha com as outras crianças, mas o pai ordenava-lhe:
- Primeiro a obrigação, depois a devoção. - Também ele, como Amilcare Cantoni, era de origem modesta e tinha feito muitos sacrifícios para construir a sua fortuna.
Naquele momento, Luigi Crippa saboreou aquela tranquilidade e, pela primeira vez ao fim de tantos anos, sentiu-se quase feliz.
Fechou os olhos e, mentalmente, recapitulou os anúncios sofisticados que há um ano surgiam nos jornais a publicitar as suas torneiras em todo o país. Bianca e Amilcare
tinham criado e difundido uma imagem de prestígio da sua empresa. Pensou: precisamos das ideias inovadoras dos jovens para progredir, mas o nosso país está dominado
por uma ditadura que esmaga e escurece as suas mentes, semeando ódio e medo.
Por fim adormeceu e não sentiu os dois jovens que chegaram cheios de calor, deixaram as bicicletas e correram para dentro de casa à procura de uma bebida fresca.
A grande villa dormitava na tarde dominical. As criadas velhas repousavam na penumbra dos seus quartos. Os cães dormiam enroscados sobre as lajes pretas e brancas
da entrada. Os restantes empregados estavam na aldeia a divertir-se. Quase de certeza, também o pároco dormia a preparar-se para a grande procissão da noite.
Bianca pousou em cima da mesa da cozinha dois copos cheios de água fresca que borrifou com xarope de tamarindo. Amilcare pegou no seu copo e bebeu com avidez aquela
bebida doce e áspera. Bianca observou as minúsculas gotas de suor espalhadas pelo pescoço do rapaz. Examinou os traços marcados do rosto e a mão forte que segurava
o copo. Sentiu-se atraída por ele e desejou ser tocada pelas suas carícias.
- Vem comigo - disse, quando ele pousou o copo vazio em cima da mesa.
- Não. Tenho de ir para casa estudar. Tenho de decorar dois livros para os exames de setembro - respondeu ele, decidido.
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- Quero pôr-te a ouvir música jazz. Chegaram-me da América uns discos fantásticos - propôs ela, ao mesmo tempo que lhe dava a mão e o arrastava pelas escadas
acima.
- Não percebo nada de música. Só conheço o Va pensiero e Giovinezza, primavera di bellezza - protestou Amilcare.
Tinham começado a tratar-se por tu recentemente, mas Amilcare mantivera o hábito, quando falava dela com o patrão, de lhe chamar "a signorina Bianca". Com os Crippa,
pai e filha, tinha o cuidado de nunca ultrapassar os limites do território ao qual pertencia. Apesar de eles terem aberto uma passagem ao longo destes limites, ele
arranjava sempre maneira de que fossem os Crippa a fazer incursões no seu território.
Agora Bianca tinha-o arrastado para o primeiro andar da villa e ele tentava libertar-se do aperto da sua mão.
- Tens medo? - perguntou-lhe ela.
- Tenho - respondeu simplesmente.
Não queria dar nenhum passo em falso com aquela estranha rapariga "um bocado maluca e libertina", como dizia toda a gente na aldeia, muito inteligente e dotada de
um aguçado sentido artístico. Para além do mais, a proteção do pai era realmente importante para ele e não podia correr o risco de a perder. Se ela não fosse a filha
do patrão, não teria hesitado em lhe fazer a vontade. Era jovem, forte e gostava muito de raparigas, mas não queria deixar-se seduzir por Bianca Crippa.
As únicas experiências de cama tivera-as durante o serviço militar em casas de passe, com mulheres que tinham satisfeito a sua sexualidade. As jovens camponesas
da aldeia provocavam-no de mil e uma maneiras, mas ele não tinha nem tempo nem vontade para responder àquelas propostas. Na universidade, porém, havia uma rapariga
engraçada que estudava Engenharia como ele. Chamava-se Margherita, era uma loira franzina e determinada, olhada com suspeição pelos outros alunos por ter escolhido
aquela faculdade tipicamente masculina. Era filha de um arquiteto famoso e trazia de casa umas refinadas sanduíches de presunto que algumas vezes repartira com ele
enquanto falavam dos
exames que estavam a preparar. Gostava de Margherita mas, introvertido e desconfiado como era, evitava ser o primeiro a aproximar-se. Um dia ela desapareceu e alguém
disse que tinha emigrado para a América com a família. - Porquê? - perguntou. - São judeus - respondeu um colega. As leis raciais não tinham ainda sido promulgadas
mas a situação tornava-se cada dia mais perigosa para os judeus.
- Bem, eu também tenho algum medo - sussurrou Bianca, olhando-o de frente.
Amilcare observou o grão fino e róseo da sua pele, os reflexos dourados nas íris escuras, a franja luminosa das pestanas, a boca macia, a candura brilhante dos dentes
que se descortinavam entre os lábios abertos. Desejou beijá-la.
Estavam diante da porta entreaberta de um quarto. Bianca pousou delicadamente as mãos nas faces de Amilcare e beijou-o.
- Estou apaixonada por ti - murmurou, e empurrou-o para dentro do seu quarto ao mesmo tempo que lhe desabotoava a camisa, salpicando de pequenos beijos o
seu peito nu. - Não digas nada, por favor, por favor, por favor - sussurrou ela, enquanto o arrastava consigo para cima da cama mergulhada na penumbra.
Amilcare, já incapaz de resistir, abandonou-se nos braços de Bianca até que, assaltado por uma grande aflição, exclamou: Mas tu és virgem!
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- Claro que sou! Julgavas que eu era uma dessas muitas raparigas com quem provavelmente tu andas? - gritou Bianca. Tinham-se levantado da cama e recuperavam
a roupa espalhada pelo chão.
- Eu não julgava nada! Tu é que fizeste tudo - acusou-a Amilcare, aterrorizado com a ideia daquilo que poderia ter acontecido se tivesse seguido o instinto
em vez da razão. E acrescentou, agressivo, enquanto enfiava à pressa as calças e a camisa: - Que outra coisa poderia eu julgar, na tua opinião?
- Mas é claro! Sei muito bem o que dizem de mim na aldeia. Bianca Crippa vai e vem da cidade, não se sabe o que anda a fazer, fuma, conduz um automóvel, olha
para os homens diretamente. Cambada de hipócritas! Pensava que tu eras diferente, mas és como eles, és pior do que eles, porque se eu não fosse virgem tinhas feito
amor comigo. Só isso é que conta para ti. Achas mesmo que eu me ia oferecer se não estivesse apaixonada? És um imbecil e eu odeio-te com todas as minhas forças -
berrou, ao mesmo tempo que se vestia, e depois agarrou numa escova de prata que estava pousada em cima da mesa de cabeceira. Amilcare estava encostado à parede,
perto da saída, paralisado com aquelas acusações que continham muitas verdades.
- Desculpa - balbuciou, sem conseguir mexer-se.
- Tu ofendeste-me, humilhaste-me, e agora achas que eu te posso desculpar? - sibilou, enquanto ia ao encontro dele, segurando no punho a escova pesada.
- Desculpa - repetiu Amilcare, e prosseguiu: - Pensei só em mim, no meu trabalho, na minha faculdade, no facto de poder perder tudo. Gosto de ti desde o dia
em que te apanhei do chão depois da queda da bicicleta. Mas sou apenas um operário, filho de camponeses, e estou habituado desde sempre a respeitar as distâncias.
Patrões e operários podem encontrar-se, conviver, mas ficando cada um no seu próprio território. Não ousava sequer imaginar que te apaixonasses por mim. E ninguém
ia acreditar nisso se entrasse agora neste quarto. Iam antes pensar que eu tinha tentado aproveitar-me de ti. Percebes a situação em que me puseste? disse, severo.
Pousou a mão na maçaneta da porta, rodou-a para a abrir e viu que Bianca estava prestes a atingi-lo na cabeça com a escova de prata. Com um gesto fulminante agarrou-lhe
o pulso, aproximou o rosto do dela e, olhando-a com ferocidade, ameaçou: - Nunca te atrevas a levantar uma mão para mim!
Abriu a porta e desceu as escadas. O comendador Crippa já não estava na espreguiçadeira, por baixo da figueira. Amilcare foi buscar a bicicleta e preparava-se para
partir quando Luigi Crippa o chamou.
O rapaz virou-se e pensou: pronto, ouviu tudo e agora vai despedir-me. O patrão estava em pé diante da porta de entrada da villa: - Lembra-te de que amanhã de manhã,
às sete e meia, temos uma reunião com os do gabinete técnico.
- Pensei que estava despedido - respondeu, a meia-voz.
- Porquê? - perguntou o comendador.
- Por causa da discussão com a signorina Bianca - sussurrou, baixando os olhos para o chão.
- Discutiram? - perguntou Luigi Crippa, com o ar mais inocente do mundo.
- Uma discussão feroz e insanável - esclareceu ele.
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O comendador voltou-se para entrar em casa e disse: - Não sei nada disso e, em qualquer caso, é coisa que não me diz respeito. Até amanhã.
Amilcare não conseguiu estudar naquela tarde. Estava furibundo.
Que raio de jogo urdiam, pai e filha, nas suas costas? Se tivesse tido uma única possibilidade, tinha-se despedido. Caminhou ao longo das veredas pelo meio dos campos
até que o sol se pôs.
No dia seguinte, Bianca não apareceu na empresa e, ao fim de alguns dias, soube que tinha partido para a Ligúria, onde ia passar o verão. Na semana seguinte recebeu
uma carta dela, de Nervi:
É certo e sabido, meu caro Amilcare, que eu sou excêntrica. Há momentos em que perco a luz da razão e me deixo dominar pela cólera, convencida de que o mundo inteiro
está a conjurar contra mim. Nesses momentos sofro imenso e só humilhando, sobretudo as pessoas que amo, consigo ficar melhor. Depois, recupero o controlo. Sinto
muito ter-te agredido e posto numa situação difícil. Amo-te e quero casar-me contigo.
Amilcare leu e releu vezes infinitas aquela mensagem e avaliou com calma a situação. Gostava de Bianca, mas sabia que era uma pessoa difícil, imprevisível. Decidiu
gerir aquela proposta de casamento como uma transação de negócios. Alguns dias depois, bateu à porta do escritório do patrão.
Mostrou-lhe a carta da filha, que ele leu atentamente.
- A Bianca quer ser tua mulher - constatou o comendador Crippa.
- O senhor, pelo contrário, gostaria de um genro mais adequado ao seu estatuto - comentou Amilcare em voz baixa.
- De qualquer maneira, é a ti que ela quer e não a outro, e por mim está bem.
- Então eu caso-me com a signorina Bianca e comprometo-me a querer-lhe bem, mas com uma condição - replicou o rapaz.
- Já sei o que é: amanhã a Fábrica de Torneiras Crippa será tua.
Aquele casamento era uma conquista inesperada para Amilcare Cantoni, quase a história da Gata Borralheira e do príncipe, só que ao contrário. Mas ele tinha ponderado
todas as implicações que esta decisão comportava, porque não seria um ponto de chegada, mas de partida.
O comendador e o seu empregado estavam agora em pé, um de cada lado da secretária, como que a tomar as medidas um do outro, e era precisamente essa reciprocidade
que estava a deixar pouco à vontade o velho progenitor, que estava à espera de um comportamento diferente daquela atitude reflexiva e ligeiramente relutante do jovem
interlocutor. Estava pronto para selar o acordo com um aperto de mão, até porque não tinha dúvidas sobre o facto de Amilcare ser capaz de dirigir condignamente as
sortes da empresa.
Amilcare, pelo contrário, hesitava. Luigi Crippa lembrava-se dele adolescente, de calções curtos; nos olhos escuros daquele rapazinho tinha lido a determinação de
mudar o seu destino. Que mais quereria aquele bendito rapaz, lamentou-se agora, enquanto esperava que Amilcare lhe explicasse as suas reservas?
- Não tenciono casar-me sem antes ter acabado o curso. É uma questão de dignidade, comendador, a partir do momento em que não tenho mais nada para trazer
como dote - começou.
- É um pedido ou uma afirmação? - perguntou o patrão, ao mesmo tempo que se sentava e convidava Amilcare a fazer o mesmo.
- Devo pensar que não está de acordo em relação a uma espera de três anos? - perguntou o rapaz, sentando-se à frente dele.
Foi a vez de Luigi Crippa refletir, e concluiu que a atitude e a condição que Amilcare impunha eram muito apreciáveis, mas perigosas.
- Em três anos pode mudar muita coisa... - disse, pensativo.
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- A signorina Bianca pode mudar de ideias e escolher um homem melhor - replicou Amilcare, que não tencionava representar o papel do marido que se aproveita
da situação económica da mulher.
O comendador pensou em Generoso Castelli, sobre o qual tinha alimentado algumas esperanças quando Bianca fugira com ele para Paris. O tempo demonstrara-lhe que o
jovem Castelli não seria recomendável para nenhuma rapariga de boas famílias, até porque naquele momento tinha como amante uma jovem atriz de variedades.
- Ou podia acontecer que as extravagâncias da Bianca te levassem a ti a tomar decisões diferentes - esclareceu Luigi Crippa.
- Isso não pode acontecer. Quando discutimos dei-lhe a entender de uma vez por todas que não aceito aquelas excentricidades. E, de qualquer maneira, queria
esclarecer que me caso com a Bianca porque gosto dela como ela é e não pelo património que leva como dote - esclareceu, e acrescentou: - Entretanto, espero bem que
a coisa não se saiba, porque detesto bisbilhotices e sabe Deus a quantidade que vai haver, quando chegar a altura.
- Vou transmitir à Bianca a nossa conversa - concluiu o comendador.
- Eu vou escrever-lhe e espero que aquelas férias na Ligúria durem muito tempo, porque, para além do trabalho, também tenho muito que estudar - declarou,
ao mesmo tempo que se levantava da cadeira.
Nesse momento ergueu-se também o patrão e estendeu-lhe a mão. Aquele rapaz que ele tinha visto crescer, trabalhar com empenhamento, sacrificar-se para estudar, era
a única pessoa a quem podia confiar aquela filha um pouco tola mas de quem ele gostava tanto.
Nessa mesma noite, Amilcare escreveu uma longa carta a Bianca, que começava assim: "Eu também te amo e ficarei muito feliz por me casar contigo, logo a seguir à
minha licenciatura."
Bianca tornou-se numa criatura doce e tranquila, sempre pronta para satisfazer os desejos do noivo. Três anos depois, Amilcare formou-se, e, na semana seguinte,
casou-se com Bianca.
O casamento foi celebrado com uma cerimónia privada na igreja de San Francesco. O Padrinho do noivo foi um colega de faculdade; da noiva, extravagante como sempre,
Generoso Castelli que, depois da cerimónia, arranjou maneira de dizer a Amilcare: - Já sabes que de hoje em diante te esperam dias difíceis?
- Agora que me disseste isso, vou tentar não me esquecer respondeu o jovem, com um tom irónico.
Estavam no jardim da villa onde tinha sido servido um copo dagua para alguns convidados: os pais do noivo, alguns colegas do Politécnico, os amigos mais íntimos
de Bianca e do pai e uma representação da fábrica.
Os noivos não tinham querido presentes de casamento, mas uma oferta para a igreja.
Quando os convidados se foram embora, o comendador convocou o noivo ao seu escritório para legalizar, na presença de dois advogados e de um notário, a transferência
da propriedade da Fábrica de Torneiras Crippa para Amilcare Cantoni. Segundo as leis vigentes, Bianca podia ser excluída dessa operação com a plena concordância
do comendador, que confiava muito no genro e pouco na filha. Amilcare, pelo contrário, pretendeu que a fábrica ficasse em nome dele e de Bianca.
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- Com a condição, porém, de que apareça só o teu nome como novo proprietário da empresa - afirmou o sogro, em tom perentório.
Quando os noivos se encontraram finalmente sós, Bianca perguntou ao marido: - Estás feliz?
- Sim, muito. E tu?
- Nunca procurei a felicidade. Foi ela que veio ter comigo. Amilcare olhou para ela com ternura.
- Estás cansada. Vai descansar - disse-lhe.
- E tu? - perguntou ela.
- Eu preciso de me habituar à ideia de viver no meio de todo este luxo e não é fácil...
- O que queres dizer? - perguntou Bianca.
- As nossas vidas não vão mudar, só porque nos casámos. Não é verdade?
- É verdade.
- Desde que me formei, as tuas empregadas tratam-me por engenheiro, como tratam por comendador o teu pai...
- Cantoni, cospe lá o sapo - pediu a mulher em tom de brincadeira.
- Não me sinto à vontade.
- Decidimos os dois viver na villa com o meu pai.
- Eu sei, mas... - Amilcare sorriu-lhe, fez-lhe uma carícia na face e disse: - Dá-me tempo para adquirir todos estes hábitos novos. Sabes o que vamos fazer?
Metemo-nos no carro e vamos até Milão. Há um hotel lindíssimo na via Manzoni.
- O de Milan, eu conheço.
- Pois bem, vamos passar ali a nossa primeira noite.
- Mais valia ir de lua de mel - objetou ela.
- Para isso eu ainda não tenho dinheiro, mas posso dar-me ao luxo de um quarto no Grand Hotel. Quero oferecer uma noite fantástica à minha rainha.
- Obrigada, querido - sussurrou ela, abraçando-o.
Estava linda, serena e feliz. Amilcare recordou-a sempre assim, nos longos anos que se seguiram. Percebera que Bianca apenas queria ser amada, e ele amava-a muito
e iria sempre protegê-la.
VILLANOVA
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- Foi assim que os Cantoni sucederam aos Crippa, e há momentos em que, no meio da sua loucura, Bianca considera que a roubaram. Não é verdade, obviamente.
Quanto ao meu sogro, amou e ainda ama a mulher, pois de outra forma não continuaria a protegê-la, agora que está velho e cansado - disse Celina a Léonie.
Tinha saboreado o seu queijo favorito e um cálice de espumante. Na grande sala de estar, iluminada pela chama da lareira, a história de Bianca tinha cativado Léonie,
que escutava a sogra aninhada numa almofada, aos pés dela, e esperava agora a continuação.
- Acho que ninguém, nem mesmo o Amilcare, conseguiu penetrar jamais nos meandros tortuosos da mente da mulher. Por vezes, a sinceridade dela é desconcertante.
Lembro-me da primeira vez em que entrei nesta casa como noiva do meu marido. Chamou-me à parte e perguntou-me: "Já deste o rebuçadinho ao meu filho? Sabes muito
bem de que é que estou a falar." Fiquei vermelha, escarlate, roxa. Ela abanou a cabeça e resmungou: "Impõem-nos a nós, mulheres, que resistamos a todas as tentações
e, no entanto, definem-nos como o sexo fraco. Mas o sexo fraco é o dos homens."
- E depois que a avó Bianca se casou, o que aconteceu?
- Não te quero contar tudo agora. Porque não fazemos uma Pausa e me contas tu alguma coisa? - propôs Celina.
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- Está bem. O que acha de eu pedir autorização para trabalhar na fábrica? Já que a Bianca ia para o escritório com o pai, deu-me vontade de fazer a mesma
coisa com o meu sogro. Gostava de dar uma vista de olhos por lá, sem incomodar ninguém. O que é que diz?
Celina tinha percebido há algum tempo que a nora se aborrecia.
- Vou falar com o meu marido e tu fala com o teu - respondeu.
Naquele momento, Nesto entrou com o seu passo cauteloso, aproximou-se das duas senhoras e anunciou: - Peço desculpa, mas a signora Bianca não está bem e o Dr. Guido
chamou o médico, que chegou agora.
- Ajuda-me a levantar. Vou ter com ela - disse Celina à nora.
- Eu também vou - propôs Léonie imediatamente. Depois acrescentou: - Se é que posso. - Naquele momento sentiu-se culpada por ter ficado ofendida e não ter
oferecido novamente a sua ajuda a Bianca.
Percorreram toda a ala central da villa, entraram no corredor da ala oeste e cruzaram-se com as duas criadas que tratavam da avó.
- Como está a minha sogra? - perguntou Celina. Abanaram ambas a cabeça. Guido, naquele momento, saiu
do quarto da avó e disse: - O médico está lá dentro... está a vê-la.
- O teu avô? - perguntou Celina.
- Está com eles - respondeu Guido, enquanto entrava à frente da mãe e da mulher numa sala contígua ao quarto.
Léonie sentou-se ao lado do marido e, juntamente com a sogra, ficaram à espera, em silêncio. Relembrou a história que maman Celina lhe tinha contado e recordou as
fotografias de Bianca Crippa, sozinha ou com o marido, que vira no álbum da família Cantoni.
Retratavam uma bela mulher, de uma elegância sofisticada, o rosto emoldurado por uma auréola de cabelos escuros. Usava colares compridos e chapéus de todos os formatos.
Impressionara-a
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o seu olhar impenetrável, ao contrário de Amilcare, que estava sempre sorridente. O engenheiro e a herdeira eram personagens fascinantes. Mas não havia uma única
fotografia de Bianca com os dois filhos: Renzo, o mais velho, marido de Celina, e Gioacchino, presbítero numa paróquia dos arredores de Lecco. Os dois rapazes, pelo
contrário, apareciam muitas vezes com o pai em imagens tiradas na montanha ou na praia. Quase como se os filhos tivessem sido criados por Amilcare. A narrativa de
Celina tinha-se interrompido no dia do casamento.
Que mais esconderia a vida da grandmamari*.
Surpreendeu-se ao sentir a mão terna de Guido sobre a sua.
- Acho que a avó está a morrer - sussurrou-lhe.
- Sinto muito - respondeu Léonie, sabendo que Guido gostava muito dela. E prosseguiu: - A tua mãe esteve muito tempo a falar-me dela. Contou-me a forma como
ela e o teu avô se conheceram.
O médico entrou na sala, seguido por uma empregada que lhe tinha indicado o caminho e lhe disse: - Eu já trago o café.
- Então? - perguntou Guido.
- Está a apagar-se muito mais tranquilamente do que viveu.
- Posso vê-la? - perguntou. O médico assentiu.
- Também vou, se puder - propôs Léonie.
A porta do quarto de Bianca estava entreaberta e viram ambos o velho Amilcare sentado ao lado da cama a falar para a mulher em voz baixa, enquanto lhe afagava os
cabelos muito brancos.
Léonie e Guido trocaram um olhar de entendimento. Não iriam interromper aqueles últimos instantes de intimidade de um longo e difícil amor.
Na sala, Celina chorava baixinho.
- Avisaste o pai? - perguntou a Guido, quando ele entrou com Léonie.
- Tenho de o fazer? - replicou ele, quase hesitante.
- É a mãe dele, tem de ser informado - censurou Celina.
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Léonie, intrigada, dirigiu um olhar interrogativo ao médico de família que, certamente, sabia de tudo. Respondeu-lhe com um gesto que sugeria que ignorasse aquela
conversa. Depois disse- Vou outra vez para junto dela - e saiu da sala.
- Vou avisar também o tio Gioacchino - decidiu Guido.
Bianca Cantoni, Crippa de solteira, apagou-se tranquilamente naquela mesma noite e o funeral realizou-se na véspera de Natal. Foi depositada no jazigo de família,
no cemitério de Villanova. Como muitas vezes acontece, o funeral constitui uma oportunidade para reencontrar parentes e amigos e, à noite, o cozinheiro, o pasteleiro
e o pessoal que trabalhava na cozinha da villa exibiram o seu talento culinário num jantar para muitos convidados.
O patriarca, o engenheiro Amilcare Cantoni, estava sentado à cabeceira da mesa e pronunciou algumas palavras: - Se existe um Além, a minha Bianca está agora nos
braços do Senhor. Foi o único amor da minha vida, a minha alegria e a minha dor por não ter conseguido libertá-la dos fantasmas que muitas vezes a perseguiam. Que
a minha mulher repouse em paz, enquanto eu tentarei viver serenamente os dias que me restam. Todos nós, a família Cantoni, procuraremos não esquecer jamais que esta
é a sua casa e que lhe devemos a ela tudo aquilo que temos.
Entre os convidados estava Generoso Castelli, que naquele momento gostaria de poder confessar que não se casara porque em toda a sua vida apenas tinha amado Bianca.
Amilcare sempre o soubera, assim como sabia que o amigo tinha assumido o papel de cavaleiro setecentista sempre pronto, a uma ordem de Bianca, Para a acompanhar
a um concerto, quando ele tinha outros compromissos, ou a uma exposição de arte, ou a uma estreia de
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teatro, derretendo-se de alegria quando ela lhe sussurrava um "obrigada" ou lhe dedicava um sorriso.
Amilcare, que o tinha mandado sentar à sua direita, disse-lhe naquele momento: - Para de choramingar.
O amigo, com os olhos vermelhos de choro, respondeu: Estamos ambos com os pés para a cova e, no entanto, tu não deixas de me ralhar e eu não deixo de te detestar.
- É isso que é bonito na amizade - replicou Amilcare, com um sorriso.
Léonie, sentada do lado oposto da mesa comprida, perguntou a Guido, que estava a seu lado: - Porque é que o avô está a discutir com o Generoso?
- Se a minha mãe te falou da avó, deve ter-te contado também alguma coisa sobre ele.
- Era o do Fiat azul e prateado? - murmurou, incrédula.
- O próprio - confirmou o marido.
- O avô aceitou que ele se desse com a mulher durante todos estes anos?
- Acho que até lhe deu jeito - respondeu Guido.
- Mas ele não era um libertino? - perguntou ainda Léonie, num sussurro.
- Precisamente. As mulheres eram o seu escape, Bianca o grande amor - explicou Guido. E acrescentou: - Agora para de fazer perguntas.
No fim do jantar, os convivas, quase todos idosos, deixaram a villa. Despediu-se também o tio Gioacchino, que tinha de regressar à sua paróquia para celebrar a missa
da meia-noite. O Natal e os dias que se seguiram passaram rapidamente. Léonie e o marido fizeram umas curtas férias na neve, no Tirol, com alguns amigos. Léonie
passava os dias a dar longos passeios, enquanto Guido se lançava nas pistas cobertas de neve. Depois apanhava sol no terraço do hotel e conversava com outras mulheres
que, como ela, esperavam o regresso dos maridos.
Depois do jantar, ela e Guido jogavam cartas com os amigos até que, vencidos pelo cansaço, se retiravam para o seu quarto.
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Uma noite, estendidos na grande cama de casal, cobertos com um fofo edredão de penas, ela perguntou-lhe: - Porque é que eu nunca vi fotografias da tua avó com os
filhos?
- É assim tão importante saberes? - respondeu ele, a bocejar.
- Gostava de conhecer a família a que vai pertencer o nosso filho.
- Não te chega aquilo que te contam as tuas amigas em Villanova? - respondeu ele, em tom provocatório.
- Não me dizem nada, nem eu faço perguntas. Os assuntos de família abordados por outros são sempre distorcidos - esclareceu Léonie.
- Aquilo que eu sei da avó vem-me das conversas apanhadas na cozinha, entre os empregados. Acho que nem sequer o meu pai sabe exatamente o que se passou,
porque na altura daquela confusão tinha só dois anos. O avô sabe tudo, mas nunca falará com ninguém sobre isso.
- Que confusão? - perguntou Léonie.
- Acho que a avó enlouqueceu depois de ter dado à luz o tio Gioacchino, o segundo filho, e tentou matá-lo.
Sobre esta revelação perturbadora caiu o silêncio.
Depois Guido prosseguiu: - Acho que se tratou de uma depressão pós-parto. Ao que parece, o menino magoou-lhe um mamilo, enquanto lhe dava de mamar. Ela gritou de
dor, ao mesmo tempo que o sangue fluía com o leite do seio e, logo a seguir, pôs o bebé no berço e cobriu-lhe a cara com uma almofada. Uma empregada, alertada pelo
grito de dor da avó, entrou a correr no quarto, a tempo de salvar o menino.
- Meu Deus! - exclamou Léonie.
já tinha ouvido histórias semelhantes e perguntou a si mesma que tremendos fantasmas teriam perturbado assim a mente de Bianca. - E depois, o que aconteceu? - perguntou.
- Foi internada em Genebra, numa famosa clínica psiquiátrica. Ficou lá muitos anos. O avô ia visitá-la todos os meses, e parece que ela nunca lhe pedia notícias
dos filhos. Tinha-os
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apagado da mente. Quando o avô a trouxe de volta a casa, os meninos estavam no colégio. Regressavam a Villanova para as festas e andavam sempre vigiados, até porque
Bianca ficava agitada quando se aproximavam dela, como se tivesse medo deles. O pai e o tio Gioacchino cresceram sem uma mãe, com todas as consequências que podes
imaginar. Depois, ao longo dos anos, parece que a avó foi recuperando um certo equilíbrio, até ao momento em que o avô descobriu que, às escondidas, tinha posto
a villa à venda.
- Porquê? - perguntou Léonie.
- Não queria continuar em Villanova, que considerava uma terra medonha. O meu pai, que nessa altura era estudante de Engenharia, entrou uma vez em casa mesmo
a meio de uma discussão entre os pais e sentiu-se no dever de intervir. "O que é que tu tens a ver com isto?", perguntou a mãe, agressiva. "Esta casa também é minha
e do meu pai e do Gioacchino, para o caso de te teres esquecido", rebateu. Ela, então, gritou: "Eu devia ter parido um coelho, em vez de um insolente como tu." A
villa não foi vendida, mas os dois não trocaram uma palavra durante muito tempo. E é este o fim da história que ouvi várias vezes quando era pequeno.
- É uma história atroz - comentou Léonie.
- Há aqui com que marcar uma vida, não há? Durante anos receei ter herdado da avó a semente da loucura, já que tinha poupado o meu pai e o tio Gioacchino.
E agora vamos dormir - concluiu Guido.
Léonie entrou na Fábrica de Torneiras Cantoni em bicos de pés. Renzo Cantoni, áspero como sempre, não deu a entender o quanto apreciava a presença dela e, aos empregados,
comunicou: - A minha nora vem cá dar uma vista de olhos. Arranjem-lhe alguma coisa para fazer.
Puseram-na no armazém, onde aprendeu a conhecer os modelos das torneiras e as respetivas referências, a dar andamento às encomendas e a verificar a expedição das
mesmas. Sorria a toda a gente, pedia desculpa quando cometia um erro e sentia um grande orgulho quando recebia uma aprovação. Ganhou prática nos complexos mecanismos
daquele setor, memorizando os nomes dos fornecedores e dos clientes. Ao fim de dois meses pediu para ser transferida para a oficina. Entusiasmou-se com todas as
fases do fabrico. Tornos, berbequins, fresadoras e banhos galvânicos tornaram-se na sua paixão.
- Gostava de aprender a trabalhar no torno - disse a Renzo Cantoni.
- Nem pensar. Estás no oitavo mês de gravidez e fazias melhor se parasses - decidiu o sogro, que disse a Celina: - A Léonie é mesmo fantástica. Está a fazer
tudo aquilo que devia ter feito o Guido que, desde aquela vez, anda afastado da fábrica como se tivesse medo dela.
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Léonie tinha captado aquelas palavras. O que poderia dizer daquela vez"? Mistérios, mais mistérios, pensou.
Uma vez que, longe da empresa, Léonie se aborrecia, Guido propôs-lhe ir com ele a Roma. Naquele período estava a trabalhar no guião de uma série televisiva, e enquanto
ele se encontrava com produtores e realizadores, ela andava por igrejas e museus. Mas, ao fim de dois dias, já não se aguentava em pé.
Despediu-se de Guido e regressou a Villanova, decidida a esperar com paciência pelo momento do parto.
Pediu à sogra que lhe ensinasse a ler música.
O primogénito nasceu numa clínica de Milão. Era um bebé saudável e forte, que o tio-avô, monsenhor Gioacchino, quis balizar com o nome do santo protetor da sua paróquia:
Giuseppe.
Quando Léonie regressou à villa com o menino, houve uma grande festa. Foi mais uma ocasião para a apresentar a parentes e amigos que ainda a não conheciam.
A alguns deles, Renzo Cantoni confiou: - Esta minha nora francesa é o filho que eu gostava de ter tido. - Com estas palavras, o industrial sublinhou o afeto que
o ligava a Léonie e a estima pelo empenho com que ela se dedicava à empresa familiar.
A certa altura, farta de comida e de conversa, Léonie abandonou a festa e subiu ao quarto do bebé que, nos braços de uma velha empregada, começava a dar sinais de
insatisfação. Era a hora da mamada. Mandou a empregada embora, instalou-se numa poltrona e começou a dar-lhe de mamar.
Sentia um prazer quase físico em dar de mamar ao menino, como se, com o leite, transmitisse ao filho a melhor parte de si.
Naquele dia, ao fim de tantos meses, o seu pensamento regressou a Roger Bastiani. Não sabia nada dele: onde morava, onde trabalhava, se tinha mulher, se tinha filhos,
se a sua família era feliz. E, no entanto, achava que sabia o necessário: era um homem solitário, maduro, bonito, que trazia em si a fragnância da Provença. Parecia
insolente e severo, mas era terno e simpático.
Tinha-lhe marcado um encontro em Varenna para o próximo solstício de inverno, mas num ano acontecem imensas coisas, pensou Léonie.
Ela própria não tinha a certeza de querer voltar a vê-lo. Agora tinha um filho em quem pensar. Naquele momento, Guido entrou no quarto, aproximou-se da mulher e
beijou-a na testa. Ficou a olhar para ela enquanto ela dava de mamar ao filho, sentada na sua poltrona de pele cor de marfim, o seio túrgido e alvo que emergia da
camisa branca, o cabelo negro e curto que exaltava a curva perfeita da nuca.
- És tão bonita! - sussurrou.
Léonie ergueu os olhos para o marido e sorriu-lhe. A mão minúscula de Giuseppe, que agarrava o seio materno, soltou-se e deslizou devagar para baixo.
- Adormeceu - disse ela.
Guido sorriu-lhe, com os olhos velados pela sua habitual expressão melancólica. Mais uma vez Léonie perguntou a si mesma que segredo esconderia. Sabia que não era
louco de amor por ela, mas a sua doçura, a generosidade e o afeto sincero tinham-na levado a casar-se com ele. Pensou que, na aparência, eram um casal invejável
e, provavelmente, eram-no na realidade, apesar de não os unir uma paixão autêntica e profunda.
É melhor assim, pensou, e desejou que aquele casamento durasse para sempre, sem imprevistos nem tormentos, mas com muita serenidade a marcar o compasso dos seus
dias. Levantou-se da poltrona, ergueu o menino que dormia e encostou-o ao ombro. Guido e ela estremeceram no instante em que o bebé emitiu um arroto poderoso. Riram-se
os dois, e depois ela deitou Giuseppe no berço.
Então, Guido foi até junto dela e entregou-lhe um pequeno estojo de veludo. - É para ti, para te agradecer por me teres dado um filho - disse.
Léonie abriu-o e ficou sem fôlego: continha um anel de ouro em forma de flor que exibia no centro um extraordinário diamante cor de palha.
Olhou para Guido e objetou: - O filho dei-o aos dois, não foi só a ti.
- Claro que sim - respondeu ele -, mas foste tu que o carregaste no ventre!
o?
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- Percebo - sussurrou ela. No entanto, voltou a fechar o estojo e entregou-lhe, dizendo: - Não quero um prémio por ter posto no mundo um filho. O prémio é
ele, o nosso menino.
- Não te queria ofender - replicou Guido, sem pegar no anel
- Não me ofendeste, querido. Só quero esclarecer o meu ponto de vista.
- Já esclareceste. Agora, aceita este anel que eu te ofereço só pelo prazer de te dar um presente.
Enterneceu-a o olhar meigo do marido, que merecia uma explicação melhor. Por isso esclareceu: - A tua generosidade e a dos teus familiares deixa-me sempre atrapalhada.
Foi uma grande felicidade para mim passar a fazer parte da vossa família, e tu sabes isso. De ti e dos teus tenho muito mais do que alguma vez poderia desejar. Acho
que devia ser eu a dar presentes a ti e à tua família para vos mostrar o meu reconhecimento.
Pousou o estojo em cima da mesa, aproximou-se do marido, fez-lhe uma carícia na face e disse baixinho: - Tenho a certeza de que me entendes.
- Consegues sempre surpreender-me - disse ele, abraçando-a num impulso.
Em dezembro, Giuseppe tinha seis meses e estava na fase do desmame. Léonie tinha reduzido a duas as mamadas diárias, a primeira de manhã e a última à noite. Durante
o dia era alimentado com purés de carne, legumes e frutas e confiado aos cuidados das empregadas, enquanto ela retomava lentamente o trabalho.
O solstício de inverno aproximava-se e Léonie andava inquieta. Bastava uma coisa de nada para a fazer estremecer. A recordação do encontro com Roger Bastiani e a
promessa de se encontrarem no dia vinte e dois não lhe davam tréguas. Numa tarde de sol, Guido regressou de Roma e foi procurá-la.
- A senhora está no parque com o menino - comunicou Nesto.
Léonie estava sentada num banco, envolvida num casaco de peles, e abanava o carrinho dentro do qual o bebé dormia. Guido aproximou-se e notou o olhar da mulher,
perdido no vazio.
- Sou eu, o teu marido - brincou, ao mesmo tempo que se inclinava sobre ela para lhe beijar a testa.
- Olá, não estava à tua espera - replicou Léonie.
Guido olhou para o filho no carrinho e sorriu: um raio de sol Ungia de rosa o rosto rechonchudo do menino.
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II
- Ontem à noite acabei o guião e hoje de manhã entreguei-o ao diretor do programa. Parti imediatamente e considero-me oficialmente em férias até ao próximo
ano - explicou, enquanto se sentava ao lado dela.
- Ah... fantástico. O menino está a dormir. Vês? - replicou ela, com uma voz monocórdica.
- Não está frio de mais, aqui fora? - perguntou ele.
De longe chegava o som metálico de um ancinho com que um jardineiro limpava as alamedas invadidas pelas folhas caídas. Uma família de melros, que tinha feito ninho
entre os ramos de um cedro do Líbano, bicava a terra nua e gelada.
Eram três horas da tarde. Dali a pouco caía a noite.
- Tens razão. São horas de regressar a casa - concordou ela, ao mesmo tempo que se levantava do banco.
Avançaram devagar em direção à villa. Guido empurrava o carrinho e ela tinha enfiado uma mão debaixo do braço do marido. Ao longo do pórtico, os empregados instalavam
as luzes de Natal.
- Tenho a impressão de que estás com saudades da fábrica observou Guido, enquanto tiravam os casacos e uma empregada tomava conta do bebé, deixando os pais
livres.
- Tens razão. Depois das festas regresso à fábrica - disse ela. Esta decisão libertou-a de uma sensação de torpor que, desde
essa manhã, envolvia os seus pensamentos numa neblina densa, na qual se desenhava apenas, límpida, a figura de Roger que dizia: "No próximo ano, no solstício de
inverno, vou estar aqui outra vez... à tua espera."
O dia seguinte era vinte e dois de dezembro. Ainda não sabia se se ia meter ao caminho para ir a Varenna. Pensou que naquela fase podia tranquilamente entregar Giuseppe
ao pessoal doméstico, depois da mamada da manhã. Em breves segundos concentrou-se na sua chegada ao pequeno hotel sobre o lago. Imaginou-se no hall a perguntar:
"O Dr. Bastiani está?"
A proprietária responderia: "Foi fazer esqui a Bormio." Ou então: "Este ano não apareceu."
Mas também existia outra possibilidade: que Roger ali estivesse e lhe perguntasse: "Conhecemo-nos?"
"Claro que nos conhecemos. Foi você que me pediu para nos encontrarmos no solstício de inverno", responder-lhe-ia.
Ficou horrorizada ao imaginar que ele diria: "Ah, sim, agora me lembro. Você é aquela atarantada que não sabia mudar o pneu do automóvel. A sério que combinámos
um encontro? Sabe... dizem-se tantas coisas... Francamente, a sua visita surpreende-me."
Enquanto, ao lado do marido, se dirigia à sala onde Nesto ia servir o chá, sussurrou quase impercetivelmente: - Mais me valia cavar um buraco e enfiar-me lá dentro.
- Como dizes? - perguntou Guido, que não percebera aquelas palavras.
Ela corou, virou a cara para o outro lado, para que ele não a visse corar, e respondeu, mentindo: - Foi só uma ideia que tive e já fugiu.
Na sala de estar, com Celina, estava o avô Amilcare que, desde que a mulher morrera, passava o tempo na companhia dos familiares.
O patriarca gostava de elaborar projetos de renovação da villa ou de organizar velhos postais e fotografias, e ficava encantado diante do berço do pequeno bisneto,
observando-o com uns olhos cheios de ternura que exprimiam a sua alegria por aquela criança que tinha pela frente sabe-se lá que aventuras extraordinárias para viver.
Amilcare Cantoni sorriu quando viu entrar na sala o neto com a sua mulher francesa.
- Onde está o nosso rebento? - perguntou.
- Está a dormir - respondeu Léonie, sentando-se ao lado dele, ao mesmo tempo que Guido pousava um beijo na testa do avô.
- Vieste mais cedo do que o previsto - disse Celina ao filho.
Nesto entrou com um carrinho onde trazia o bule, as chávenas e um prato de bolos feitos em casa, cheios de açúcar e de gordura, que Celina olhou com gulodice.
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Guido falou de uma atriz que ia ser a protagonista de uma ficção criada por ele, descrevendo-a como bonita e inepta para a declamação, mas obstinadamente protegida
pelo produtor. Léonie recomeçara a fantasiar sobre Roger. Agora tinha a certeza de que ele estava em Varenna à espera dela e, portanto, o que a separava dele era
um par de horas. Mas perguntava a si mesma: por que razão haveria eu de correr ao encontro de um desconhecido, só porque há um ano me marcou um encontro? De que
é que eu ando à procura? Será que não sou feliz com o meu marido? Se calhar não o sou plenamente, mas tenho tudo aquilo que uma mulher pode desejar. Esta é a casa
com que sonhava, a família acolhedora que nunca tive. O meu marido é um pouco misterioso, mas bastará isso para pôr em jogo a minha serenidade? Não, mil vezes não.
Porque haveria de me precipitar para um encontro tão extravagante? É um facto que o Roger me transmitiu uma sensação de confiança que eu não sabia que tinha e, por
isso, devia pelo menos agradecer-lhe. Vou a Varenna e, se o encontrar, digo-lhe obrigada. Até faço mais: mostro-lhe a fotografia do bebé. Isto não significa trair
o Guido, não tenho nenhuma razão para o fazer. No fundo, não tenho nenhum motivo nem sequer para me deslocar a Varenna. É mesmo isso. Não vou.
Na manhã seguinte deu de mamar ao filho e a seguir anunciou a Guido: - Vou a Morbegno.
- Queres que vá contigo? - perguntou ele.
- Agradeço-te, mas posso muito bem ir sozinha - respondeu, esperando que Guido insistisse para a acompanhar pois, nesse caso, não iria ter com Roger.
- Então vai sozinha - decidiu ele.
- Não esperes por mim para o almoço. Como uma sanduíche em qualquer lado.
Entrou no carro e meteu-se na estrada para o lago.
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A proprietária do Hotel du Lac estava a explicar a um casal de turistas ingleses que o hotel não tinha restaurante mas que, mesmo assim, era possível, desde que
se avisasse a tempo, arranjar um "prato único", tanto ao almoço como ao jantar.
- Normalmente, os nossos clientes vão aos restaurantes aqui à volta, e há alguns realmente ótimos na margem do lago.
Naquele momento, a porta do minúsculo hall abriu-se e entrou uma jovem mulher com um casaco de vison de corte desportivo e calças de ganga justas enfiadas dentro
de umas botas macias de salto raso. Habituada a avaliar as pessoas à primeira vista, a proprietária definiu-a como uma rapariga bonita e com muita classe. Sorriu-lhe
e disse-lhe: - Vou já atendê-la.
Os dois ingleses agradeceram as informações e saíram, ao mesmo tempo que Léonie se aproximava do balcão da receção.
- Bom-dia - disse a proprietária. - Posso ajudá-la? - Olhava para ela com curiosidade, porque tinha a certeza de que já a tinha visto.
- Bom-dia - respondeu Léonie. - Por acaso, o Dr. Bastiani...
- começou, imediatamente interrompida pela proprietária.
- Mas é a senhora que trazia o casaco encharcado! Agora me lembro. O Dr. Bastiani está no bar e disse-me que o avisasse se alguém perguntasse por ele. Espere,
por favor, vou já procurá-lo
- replicou, mas Léonie deteve-a com um gesto.
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- Obrigada, não se incomode. Eu vou ter com ele - disse. Chegou à sala do bar e viu Roger, sentado a uma mesa, a ler o
jornal.
- Bom-dia - começou, hesitante.
Ele ergueu os olhos e levantou-se imediatamente, com o rosto iluminado por um sorriso.
- Léonie - disse, e prosseguiu: - Duvidava que viesses, e, no entanto, estava à espera disso. Como estás? - Sem esperar pela resposta, acrescentou: - Vamos
sair.
Roger vestiu o sobretudo, que tinha deixado no hall, e saíram juntos do hotel.
- Espero que possas ficar algum tempo, porque reservei uma mesa no restaurante da praceta.
- Posso almoçar, mas tenho de me ir embora logo a seguir esclareceu ela.
Roger pegou-lhe numa mão e enfiou-a no seu braço, enquanto dizia: - Não imaginas quantas vezes pensei no nosso encontro durante todo este ano.
- Também eu - respondeu ela.
- Como estás? - repetiu ele, e continuou: - A tua gravidez concluiu-se lindamente e és mãe de um rapaz ou de uma rapariga?...
- De um rapaz que se chama Giuseppe. É saudável, lindo e já tem quase seis meses.
Havia pouca gente ao longo da pequena rua de empedrado irregular. Um barco, que se afastava do molhe, encrespava a água que batia contra a margem. O lago cintilava,
iluminado pelo sol daquele lindo dia de dezembro.
- Estou feliz por estares aqui - exclamou Roger, e acrescentou: - Tinha quase a certeza de que nunca mais te ia ver.
- Hesitei durante muito tempo antes de me decidir a vir confessou Léonie.
Tinham chegado à praceta, e Roger indicou-lhe um bar.
- Queres parar para tomar um aperitivo ou preferes ir já para o restaurante? - perguntou-lhe.
- Vamos já almoçar. Cá fora está um gelo.
O empregado acompanhou-os até uma mesa afastada, junto a uma grande lareira que dava à sala um ambiente quase caseiro, tal como a lasanha, excelente, que comeram.
Recordaram, a rir, o episódio do pneu furado e o orgulho de Léonie por ter conseguido, sob a orientação de Roger, substituí-lo pelo pneu sobresselente.
Estavam a saborear o café quando Roger, olhando-a com ternura, lhe disse: - És doce e fascinante, minha pequena Léonie. Conquistaste-me.
- Sou casada, Roger, e gosto muito do meu marido e do nosso filho - revelou, corando.
- Eu também sou casado. Amo a minha mulher e os nossos dois fantásticos filhos, mas aconteceu qualquer coisa de importante entre nós, não achas?
- Se calhar - respondeu ela, hesitante.
Roger pegou na mão de Léonie e apertou-a entre as suas: - Vamos reservar um pequeno espaço nas nossas vidas só para nós dois e deixemos que o tempo decida por nós
- propôs ele.
- Como é que podemos fazer isso, sem prejudicar as pessoas que nos são queridas e que devemos respeitar? - perguntou Léonie.
- Vamos encontrar-nos um único dia por ano, o dia vinte e dois de dezembro, aqui em Varenna, enquanto ambos quisermos. Será o nosso sonho secreto - explicou
Roger, sorrindo-lhe.
Léonie hesitou, depois anuiu com um pequeno gesto de cabeça e disse: - Agora vamos, tenho de regressar a casa.
Saíram do restaurante e começaram a andar de mãos dadas.
Léonie falou de Guido, da família Cantoni, de Villanova, e Roger do seu casamento, dos filhos, do hospital, da universidade.
Um rio imparável de palavras fluía entre eles como se estivessem ligados por uma confiança e uma intimidade de velha data.
Chegaram à praça onde Léonie estacionara o carro.
- Trouxe umas fotografias do meu filho para te mostrar disse-lhe ela.
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- Mostras-mas para o ano - propôs Roger, e abriu-lhe a porta para a deixar sentar-se ao volante.
Depois abraçou-a num impulso e manteve-a apertada contra si enquanto lhe sussurrava: - Bom Natal, minha pequena Léonie tem cuidado contigo.
- Bom Natal, Roger - respondeu ela, ao mesmo tempo que se afastava dos seus braços, e acrescentou a sorrir: - Vemo-nos no próximo ano, no dia vinte e dois
de dezembro.
- Estarei aqui à tua espera - garantiu ele.
- E se acontecer alguma coisa... - disse Léonie.
- Não há nada que nos possa separar - garantiu Roger, que ficou a olhar enquanto ela entrava no carro e, depois de ligar a ignição, se afastava da pequena
praça para retomar o caminho de casa.
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No dia de Natal a villa foi invadida pelos parentes e amigos de Renzo Cantoni e do avô Amilcare, incluindo Generoso Castelli, e pelos de Guido e Léonie.
Ela ficou a saber, uma vez que o marido lhe disse, que Generoso tinha feito um testamento no qual deixava a Guido uma parte considerável dos seus bens.
- Porquê? Que sentido tem? - perguntou-lhe.
- Sempre se considerou parte da nossa família. Gostava de escrever um guião cinematográfico inspirado na história do Generoso. Estimula-me a ideia de explorar
a vida de um homem que amou a avó Bianca por interposta pessoa, porque entre ele e a avó sempre esteve Amilcare Cantoni. Às vezes, pergunto a mim mesmo se a avó
não terá amado o Generoso da mesma forma, através do avô. Pergunto-me também como terá o avô vivido esta história, para lá da desenvoltura com que definia o Generoso
Castelli como o pajem da minha avó. A avó Bianca foi amada por dois homens inteligentes e honestos. Não te parece um enredo singular? - perguntou-lhe o marido.
Era noite, estavam sós na salinha vermelha. Guido saboreava um conhaque, aquecendo o cálice de cristal finíssimo com a Palma da mão. Léonie segurava a chávena escaldante
da tisana de menta enquanto esperava que arrefecesse.
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- Se calhar não é assim tão singular - sussurrou, perturbada, a pensar em Roger. E perguntou: - Mas quem é que te garante que a avó Bianca nunca fez amor
com o Generoso Castelli?
- Amava o marido, e, para além do mais, estava tudo perfeito assim como estava. É precisamente sobre esta ideia que eu quero trabalhar para um guião cinematográfico.
Ela, atormentada pelas sombras da loucura, intelectualmente atraída pelo Generoso mas apaixonada pelo avô, que tratava ternamente por "o meu Cantoni". Na minha infância,
bastante solitária, lembro-me de algumas tardes de verão em que toda a gente recolhia aos seus quartos para descansar. Assim que a villa mergulhava no silêncio,
eu tornava-me no explorador de um reino que me parecia infinito, porque esta casa é muito grande e cheia de tesouros e de segredos. Nessa altura, o avô era ainda
o chefe da família e da empresa, mas já se tinha retirado com a avó para a ala oeste, a parte que eu frequentava menos. A minha mãe pensava que eu estava na cama
a dormir, mas eu aventurava-me à socapa pelos quartos que ainda não conhecia. Fascinava-me a sequência das salas, os enormes quadros pendurados nas paredes, o estalar
das madeiras, as gavetas dos grandes armários a abarrotar de documentos, velhas fotografias, caixinhas de osso, de marfim, de pele, que escondiam uma flor seca,
uns dados, um rosário... tinha um gato que me seguia por todo o lado e, no meu imaginário, era o meu escudeiro fiel, pronto para me assinalar a presença de um perigo,
representado por alguém da casa que me tivesse descoberto a bisbilhotar. Quando passava em frente do quarto dos avós, encostava o ouvido à porta. Ouvia-os falar,
rir. Aqueles dois foram muito felizes. Às vezes ouvia uns lamentos estranhos. Então assustava-me e fugia. Só ao fim de alguns anos percebi que estavam a fazer amor.
E pensar eu que considerava a avó uma velha. Mas só tinha cinquenta anos e, obviamente, tinha ainda com o avô uma vida afetiva muito animada. Não achas mesmo que
esta história é singular?
- Se te referes a uma mulher que ama o amante falhado através do marido, parece-me em sintonia com a loucura da Bianca - declarou, sentindo um certo embaraço,
porque não podia
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deixar de comparar com o seu o comportamento de Bianca Crippa. Depois ficou apreensiva com a suspeita de que Guido soubesse do seu encontro com Roger e estivesse
à procura de uma via sinuosa para a obrigar a falar.
- É uma bela história, acredita - afirmou o marido. Léonie levantou os olhos para ele. No seu olhar límpido não
havia sequer a sombra de uma suspeita, e isso confortou-a.
- Se calhar tens razão, mas é demasiado complicada. Não achas? - perguntou-lhe.
- Se não fosse, eu não estaria aqui a falar sobre isso contigo. Estás a fazer de caixa de ressonância dos meus pensamentos e isso ajuda-me a explorar o assunto.
- Nunca me tinhas falado desse projeto - observou Léonie.
- Há sempre uma primeira vez para todas as coisas - declarou Guido, saboreando o último gole de conhaque. Pousou o copo em cima da mesa, ao lado da chávena
já vazia da mulher, e acrescentou: - Já passa da meia-noite. E se fôssemos para a cama?
Naquela noite fizeram amor e depois, já quase a adormecer, ela pensou em Roger e disse: - Se a tua avó Bianca fosse menos estranha, tinha-se entregado ao Castelli
e, provavelmente, tinha acabado tudo entre eles.
- E se, ao fazê-lo, tivesse descoberto que o preferia ao marido? - perguntou Guido.
- Nesta vida é preciso correr riscos. Se assim não for, ficamos doidos - sentenciou, e naquela altura decidiu que iria ao próximo encontro com Roger.
Nesse momento adormeceu.
Quando acabaram as férias do Natal, regressou ao trabalho na empresa e concentrou-se a estudar inglês. Inscreveu-se no British Council de Milão e dividiu os seus
dias entre o pequeno Giuseppe, o trabalho e o estudo.
O sogro adquiriu o hábito de a levar consigo quando ia ter com os clientes por toda a Itália, e se ela recusava o convite, para ficar junto do filho, ele sentia
a sua falta, porque Léonie se tornara numa presença importante.
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Léonie descobriu também o afeto do avô Amilcare por ela Sempre que podia fazia-lhe companhia, e por ele, que como todos os velhos tinha uma memória intacta do passado,
veio a saber uma outra história extraordinária daquela família: a de Celina, cujo nome de solteira era Olgiati Tremonti.
CELINA
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À hora de almoço, as mesas do restaurante Savini, na Galeria Vittorio Emanuele, em Milão, estavam todas ocupadas por empresários, comerciantes ricos, jornalistas,
corretores da Bolsa, diretores de bancos, estrangeiros ricos, alguns intelectuais, alguns expoentes da antiga nobreza de Milão, alguns políticos e respetivos lambe-botas.
Não havia uma única mulher. Mais do que um restaurante, o Savini parecia o templo do machismo imperante.
Quando o conde Alberto Olgiati Tremonti fez a sua entrada no famoso restaurante, o chefe de sala foi ao encontro dele com a deferência devida apenas ao nome que
possuía, porque aquele homem nobre, e isso era coisa conhecida, encontrava-se à beira da ruína. Ao longo de um século, o património considerável dos Olgiati Tremonti
tinha-se reduzido a pouco e pouco, e as propriedades que o conde ainda conservava estavam hipotecadas, com a exceção do palacete do corso Venezia onde vivia com
a mulher, Marinella, a princesa Torrani di Gallese em solteira, o filho Jacopo, que organizava safaris em África, e a filha Celina, noiva do jovem marquês Filippo
Aldovrandi.
- O seu convidado, senhor conde, já chegou e está à sua espera no bar - disse o chefe de sala, enquanto o acompanhava até ao interior do restaurante. Amilcare Cantoni,
ao balcão do bar, saboreava um aperitivo e depenicava amendoins.
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- Meu caro engenheiro! - disse o conde, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Senhor conde - respondeu Amilcare, enquanto lha apertava.
- Venha comigo, Cantoni - continuou o conde. Precedidos pelo chefe de sala, sentaram-se a uma mesa ao
lado da janela que dava para a Galeria.
Um empregado tomou nota do pedido e o escanção abriu uma garrafa de tinto do Oltrepò.
- Então, meu caro, como é que vai? - perguntou o conde Olgiati quando ficaram sós.
- Não me queixo. A empresa floresce, o meu filho Renzo é melhor do que eu, e, quanto ao Gioacchino, é padre, que é a mais bela profissão do mundo.
- Também estou convencido disso. Na minha família houve alguns bispos e cardeais. Viveram todos até uma idade avançada, sem as nossas atribulações. Se voltar
a nascer, juro que também vou para padre - afirmou o conde, em tom de brincadeira. Não era segredo que a sua paixão pelas mulheres contribuíra para diminuir ainda
mais o património já exíguo dos seus antepassados. Depois prosseguiu: - Mas, passando do sagrado ao profano, quis encontrar-me consigo para lhe falar do palácio
de Villanova.
- Sou todo ouvidos - disse Amilcare.
- Está quase em ruínas e quero desfazer-me dele. Como sabe, está hipotecado; mas o que não sabe é que não estou com vontade nenhuma de o dar aos bancos. Vou
diretamente ao assunto e pergunto-lhe se quer resgatar a hipoteca. Prefiro saber que é dos Cantoni do que vê-lo transformado em alojamento de famílias que não teriam
nenhum respeito pela sua história nem pelas coisas bonitas que ainda contém.
Amilcare recordou quando, em criança, se enfiava no parque da villa com os companheiros para apanhar dióspiros, no outono, e fruta saborosa, no verão. Às vezes aproximavam-se
da estufa e, através dos arabescos das janelas em ferro forjado, espreitavam os limoeiros em vasos de barro, ou trepavam aos parapeitos das grandes janelas do andar
térreo para poderem admirar, através
dos vidros poeirentos, as paredes forradas de damasco, os divãs rococó, os móveis marchetados, os tetos pintados.
- Continua a ser um grande palácio - observou Amilcare.
- É a última das muitas residências de campo da minha família. Então, o que me diz?
- Vou ter de pensar nisso. Graças ao meu sogro, tenho uma casa. E depois nunca ficaria com o seu palácio para o habitar. Os meus conterrâneos iam rir-se de
mim, e com razão. Os Cantoni são uma raça camponesa emprestada à indústria. O Palácio Olgiati tem uma aura de nobreza que não nos pertence. Olhe que não me estou
a armar em difícil, só estou a pensar em voz alta. Dê-me uns dias para decidir.
- Com certeza. Mas não se esqueça de que, para o mês que vem, a minha filha Celina vai casar-se, e eu preciso de dinheiro na mão. Felizmente, vai juntar-se
com uma família que ainda tem propriedades, e o meu futuro genro tem um lugar de responsabilidade num banco americano. Depois do casamento, a minha Celina vai viver
para Nova Iorque.
- Parabéns à condessa - disse Amilcare.
Naquela mesma tarde, na empresa, abordou com o filho Renzo o assunto do Palácio Olgiati, que ficava na praça da igreja.
Amilcare ocupava o escritório que tinha sido do sogro, aquele em que aprendera a apreciar Bianca. Às vezes, quando entrava naquele espaço e se sentava no lugar que
tinha pertencido ao comendador Crippa, imaginava vê-la ainda sentada com o seu álbum a desenhar ideias sugestivas para as torneiras, ou a fazer retratos dos colaboradores
do pai. Bianca era a sua dor de cabeça e a sua alegria. Tinha-lhe dado dois filhos saudáveis de corpo e de espírito, ainda que um pouco ásperos e teimosos. O mais
difícil de controlar tinha sido Gioacchino, mas escolhera o sacerdócio e era um padre honesto, ainda que um pouco colérico, que os paroquianos estimavam. Renzo,
reflexivo e determinado, parecia-se mais com o pai. Sempre fora um estudante modelo, tinha-se licenciado em Engenharia e agora estava ao seu lado, no trabalho, com
humildade e inteligência.
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Renzo estava sentado à sua frente enquanto ele lhe contava o encontro com o conde.
- E verdade que a Celina se vai casar? - perguntou ao pai.
- Com um banqueiro, tanto quanto percebi.
- Cruzamo-nos muitas vezes, sobretudo no verão, em Saint-Tropez. Também a encontrei duas ou três vezes em Estaad, quando vou fazer esqui. Devo dizer-te que
entre as raparigas do meio dela, todas muito desenvoltas em relação aos rapazes, ela é bastante reservada - explicou Renzo, recordando muitas jovens senhoras que
tinha visto nas praias da Côte d'Azur a tomar um aperitivo em biquini empoleiradas nos bancos do bar. Conhecia Celina desde que eram crianças, até porque, algumas
vezes, o conde Olgiati e a princesa tinham almoçado em casa deles levando os filhos consigo.
Os convites de Amilcare Cantoni tinham sempre como objetivo transações económicas. No momento do café, os dois homens fechavam-se na biblioteca e o conde propunha
ao industrial a aquisição de quadros e peças de decoração. Várias telas preciosas que enriqueciam os aposentos da villa Cantoni provinham dos palácios dos Olgiati.
Uma vez, Amilcare revelou ao conde: - Até me dói o coração ao pensar que o senhor tem de se privar de tantos quadros fantásticos.
- Meu caro Cantoni, sabe qual é a diferença entre nós os dois? É que você pode dar-se ao luxo de adquirir as minhas telas mas, ainda que as aprecie, não é
um especialista em arte. Eu, pelo contrário, percebo bastante, e o pouco dinheiro de que ainda disponho invisto-o em obras de artistas que agora custam pouco, mas
que daqui a cinquenta anos vão valer imenso. Você compra as figuras, eu as ideias. Qualquer pessoa, desde que tenha dinheiro, pode ter em casa um Renoir, um Cézanne,
um Chagall, um Van Gogh, e por aí adiante. A habilidade de um colecionador é a de perceber que a arte é evolução e que um Capogrossi, um Fontana, um Miró, um dia
vão valer muitíssimo. Não quero ofendê-lo, mas apenas explicar-lhe...
- Percebi perfeitamente, senhor conde, mas é um facto que eu gosto das figuras e das paisagens, das cores, das luzes e das
sombras, porque me suscitam emoções. Também gosto das molduras, quando são bonitas. E, acredite, sei distinguir a pincelada de um mestre da de um pintor de meia-tigela.
Mas a arte moderna, as mais das vezes, irrita-me. Um quadro pode perturbar-me, mas não tem de me irritar. Bastam-me as irritações que não posso evitar no quotidiano.
Por isso, deixo para os especialistas as vanguardas e agarro a beleza, porque a arte, para mim, deve ser sobretudo isso - respondeu Amilcare Cantoni.
Renzo e Celina, que estavam a assistir à conversa, olharam-se a sorrir e Celina sussurrou-lhe: - Dois a um para o teu pai.
Nessa altura, Renzo era um adolescente e Celina uma menina de oito anos, muito inteligente e cheia de vida.
Agora, enquanto falava com o pai, Renzo recordou aquele episódio já longínquo, os olhares cúmplices de Celina e a simpatia que sempre sentira por aquela miúda expedita
e reservada. Pertenciam a mundos diferentes, e quando o acaso os fazia encontrarem-se nos mesmos lugares, Renzo olhava para ela com admiração e uma sombra de respeito.
O pai, referindo-se ao casamento de Celina, estava a dizer: - De qualquer maneira, isso é uma coisa que não tem nada a ver connosco. A questão é que o conde me propõe
a aquisição do palacete na aldeia. O que é que tu achas?
- Vai ser preciso gastar uma fortuna para o restaurar - observou Renzo.
- Tive uma ideia. Lembras-te quando o meu pai ficou doente e tivemos de o meter num lar, em Palazzolo? Porque não fazemos nós, aqui na aldeia, um lar para
os nossos velhos? O palacete vai ficar lindíssimo depois de restaurado, o jardim é grande e os idosos gostam do verde. Podia fazer-se uma espécie de hotel confortável.
Mas os hóspedes não devem ter de pagar nada. É a nossa gente, Renzo. São os pais e os avós dos nossos operários. Com um contributo da Segurança Social, os Cantoni
podiam assumir o alojamento e o tratamento destas pessoas que foram exploradas durante séculos, não certamente pelo conde Alberto, mas pelos seus antepassados.
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- Vamos fazer os cálculos para ver quanto podemos gastar para realizar este projeto - propôs Renzo.
- Telefona ao conde e diz que compramos o palacete - concluiu Amilcare.
Renzo ligou-lhe e foi Celina quem atendeu. Quando ouviu a voz dela, sentiu um aperto no coração.
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-o meu pai vai estar fora da cidade durante uns dias, mas eu sei como ele está preocupado em desfazer- se do palacete de Villanova. Eu tenho as chaves e, se quiseres,
posso ir lá ter contigo já hoje para to mostrar - propôs Celina.
- Diz-me a que horas e eu estarei na praça à tua espera - respondeu Renzo.
Nessa tarde, a condessa abriu o pesado portão de madeira e os dois jovens entraram no imponente edifício desabitado havia já muito tempo.
Enquanto passavam de uma sala para a outra, subiam e desciam escadas, percorriam vastos corredores à luz das primeiras horas daquela tarde de maio, Renzo sentia-se
envolvido pelo aroma a lírio-dos-vales da rapariga. As suas vozes ribombavam naqueles aposentos em que apenas tinham ficado alguns divãs rococo com o estofo furado,
umas mesas e bonitas faianças antigas onde as aranhas faziam ninho. Por todo o lado o bolor recobria as paredes e destruía os frescos.
- Anda, vou mostrar-te o quarto de Napoleão e a casa de banho onde se diz que se esqueceu de um objeto muito pessoal - disse Celina, com um ar divertido.
- A julgar por todos os quartos da villa em que o imperador dormiu, dir-se-ia que a campanha de Itália se desenrolou nas
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camas, mais do que nos campos de batalha - observou Renzo, que já tinha visitado outros locais semelhantes nas residências nobres da zona.
- Mas em casa dos Olgiati esteve mesmo - replicou ela, divertida com a observação de Renzo, enquanto abria uma porta que dava para um pequeno aposento quadrado
com apenas uma tina de zinco e um suporte de madeira, baixo, de tampo alongado e estreito, em cujo centro se abria uma cavidade.
- Ali dentro havia uma bacia oval em prata maciça que foi vendida com o resto das pratas, e quem sabe que uso lhe dará agora o legítimo proprietário. Não
adivinhas o que era? - perguntou-lhe, com um ar malicioso.
- Um bidé? - sugeriu Renzo.
- Exato! O bidé de Napoleão! - exclamou ela. E prosseguiu: - A seguir, uma condessa Olgiati qualquer achou que aquilo era uma coisa indecente e a bacia foi
transformada em floreira. Há duzentos anos, nem nobres nem camponeses tinham em grande consideração a higiene pessoal.
Acabaram de dar a volta ao palácio com a visita às cozinhas, que davam para o jardim. Celina tirou de uma cristaleira dois belíssimos copos de cristal facetado,
abriu uma torneira e deixou correr a água.
- Estou cheia de sede. Também queres? - disse, ao mesmo tempo que estendia um a Renzo.
O jovem observou a torneira, que parecia uma escultura. Era um cano de cobre que culminava com a cabeça de um carneiro de cuja boca jorrava a água. Estava oxidada
por causa da humidade mas era muito bonita.
- Pode beber-se esta água sem problema? - perguntou Renzo.
- O meu pai diz que é a melhor de toda a aldeia, mais pura do que a mineral - garantiu Celina. Sentaram-se a uma mesa a beber a água, devagar, como se fosse
uma bebida.
- Então, o teu pai quer mesmo comprar este palácio arruinado? - perguntou a rapariga.
- Parece que sim - respondeu ele.
- Vens para aqui viver quando te casares?
- Estás a ver um Cantoni a instalar-se no Palácio Olgiati Tremonti?
- Porque não?
- Nem pensar. E, em qualquer caso, o casamento não está nos meus planos, por enquanto - esclareceu.
Celina observava-o com uma intensidade que o fazia sentir-se pouco à vontade.
- Em certos meios, fala-se dos teus flirts.
- Imagina! - minimizou, ao pensar nas suas aventuras com algumas atrizes mais dotadas de atributos físicos do que de qualidade.
- Eu vou casar-me daqui a menos de um mês - anunciou ela.
- Porquê? - perguntou Renzo.
- Porquê o quê? - perguntou Celina.
- Porque é que me dizes isso?
- Porque... não sei, não devia? Disse assim por dizer...
- Eu já sabia. Tens vinte e cinco anos e é normal que te cases, sobretudo se encontraste o homem dos teus sonhos, bonito, de uma família nobre como a tua,
com uma carreira brilhante. Felicidades - disse Renzo com uma voz monótona, e levantou-se de repente para se ir embora.
- Fiz alguma coisa que te aborreceu? Estamos juntos há duas horas a falar tranquilamente e, de repente, ficas irritado e vais-te embora a correr - disse ela,
espantada, ao mesmo tempo que ia atrás dele para fora da cozinha e da villa.
- Desculpa, Celina. Lembrei-me de que tenho um compromisso e não me tinha apercebido de que era tão tarde - replicou ele quando já estavam na praça. - Tenho
mesmo de ir - despediu-se, deixando-a sem palavras. Meteu-se no carro e arrancou com uma chiadeira de pneus. Só quando saiu da aldeia e estava já próximo da fábrica
se apercebeu de que se tinha comportado pessimamente e perguntou a si mesmo porque o fizera. Teve de admitir que aquilo fora um feroz ataque de ciúmes. Pensando
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melhor, já quando o pai lhe anunciara que Celina se ia casar ele se tinha irritado.
Estacionou o carro à entrada da fábrica e murmurou, apreensivo: - Estou apaixonado pela Celina e ainda não me tinha dado conta.
Em vez de subir até ao escritório, onde o pai o esperava, pôs novamente o carro a trabalhar e foi a Milão. Entrou numa florista, no centro da cidade, escolheu um
grande ramo de lilases brancos e perfumados e juntou um cartão onde escreveu:
Querida Celina, peço-te desculpa pela minha fuga precipitada. Foste simpática em me mostrares o palacete de Villanova. Estou contente com o teu casamento e desejo
que sejas feliz.
No envelope indicou o nome de Celina e o endereço de Milão. Entregou-o à empregada e pediu-lhe que o fizesse chegar, juntamente com as flores, o mais rapidamente
possível. Depois serenou e regressou a Villanova.
Quando se encontrou com o pai já estava perfeitamente calmo e disse-lhe: - Fui visitar o Palácio Olgiati. O abandono está a destruí-lo e é uma pena, porque é magnífico.
- Achas que poderemos conseguir ali uma estrutura confortável para os idosos da aldeia sem o alterar completamente? perguntou Amilcare.
- Tenho a certeza. É realmente admirável que queiras oferecer a Villanova uma casa de repouso que tenha o teu nome observou Renzo.
- Estás enganado. Os Cantoni nunca se exibem. Vai ter o nome que lhe pertence, o dos Olgiati Tremonti - decidiu o pai.
Alguns dias depois, enquanto tomavam o pequeno-almoço e folheavam os jornais, leram uma notícia que os impressionou: "Luto no mundo da finança. Num tremendo acidente
de viação perdeu a vida Filippo Aldovrandi, jovem e promissor administrador de uma importante instituição bancária americana.
O ilustre financeiro ia casar-se dentro em breve com a jovem condessa Celina Olgiati Tremonti."
Amilcare Cantoni disse: - O conde Alberto já não precisa de dinheiro para o casamento da filha e vai decidir não vender o palácio.
Renzo pensou que ia deixar passar alguns dias e que depois iria ter com Celina.
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Naquela noite, ao jantar, comentando a morte imprevista do noivo de Celina, Amilcare perguntou à mulher: - O que é que se faz nestes casos? Telefona-se, manda-se
um telegrama de pêsames ou quê?
- Nós não conhecíamos o Filippo Aldovrandi, e ainda não se tinha casado com a filha do conde, portanto não se faz nada. Daqui a uns dias escrevo duas linhas
aos Olgiati a dizer que soubemos e que lamentamos muito - respondeu Bianca.
- Eu não lamento - deixou escapar Renzo.
- Porquê? - perguntou-lhe o pai.
Renzo baixou a cabeça sobre o prato e murmurou qualquer coisa incompreensível.
- Porque tem um fraquinho pela Celina - disparou a mãe.
- A sério? - perguntou o pai, espantado.
Apesar dos seus trinta anos, Renzo corou como uma criança surpreendida mesmo a meio de uma travessura. Mas recuperou rapidamente e, fulminando a mãe com um olhar,
replicou: - Mas o que é que tu tens a ver com isso?
- Eu só digo aquilo que penso. De qualquer maneira, ela nunca te ia prestar atenção nenhuma porque tu não és um aristocrata - esclareceu Bianca.
- Olhem que vocês os dois têm uma rica maneira de comentar a morte de um jovem e a dor de uma noiva - interveio Amilcare, indignado.
- Já não vos aguento. Nem a ti, com a tua bondade, nem a ti, com o teu cinismo - resmungou Renzo, ao mesmo tempo que apontava um dedo acusador, primeiro contra
o pai, e depois contra a mãe. Atirou com o guardanapo para cima da mesa e foi-se embora, deixando o jantar a meio.
Meteu-se no seu Porsche e foi a Milão, onde tinha a certeza de encontrar companhia mais alegre num restaurante que frequentava habitualmente.
Mas também ali, naquele grupo de amigos provincianos e bisbilhoteiros, o tema dominante era a morte do jovem Aldovrandi e a quase viuvez de Celina Olgiati Tremonti.
Quem tinha conhecido o jovem financeiro contava anedotas nem sempre exaltantes sobre a sua vida de estudante e de banqueiro em ascensão. E nem sequer poupavam Celina
e a sua família.
- Se alguém aspirasse toda a água benta em que ela nada, só ficava um calhau. Vi-a fazer cenas furibundas ao pai e ao irmão só porque se tinham atrevido a
criticá-la - disse uma jovem.
- Agora, as esperanças dos Olgiati em arrumarem rapidamente a jovem condessa desvaneceram-se - observou mais alguém.
E uma vez que Renzo dava sinais de impaciência, uma amiga perguntou-lhe: - Tu não dizes nada?
- Não são assuntos que me digam respeito e detesto banalidades - declarou, esperando pôr fim àquela bisbilhotice estúpida.
Depois daquela noite, deixou passar uns dias e telefonou então para casa dos Olgiati. Foi Celina quem atendeu.
- Não te cheguei a agradecer os lilases lindíssimos que me mandaste - começou ela, salvando-o do embaraço de começar a conversa.
- Como estás? - perguntou-lhe.
- Queres vir ter comigo? - sugeriu ela.
- Estou no corso Venezia. Se te apetece... Ela não o deixou acabar a frase.
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- Então anda. Estamos à tua espera - disse.
Foi recebido por um criado irrepreensível que o conduziu ao escritório onde o esperava o dono da casa, jovial como sempre. O conde sentou-se atrás de uma secretária
estilo Regência e convidou Renzo a instalar-se na sua frente.
- Falei há pouco com a sua filha a dizer que sinto muito... começou o rapaz.
- Sim, eu sei. Mas falemos de outra coisa enquanto estamos sós. Então, já soube que a Celina te mostrou o palácio. O que diz o teu pai?
- Que está bem, se o senhor ainda estiver disposto a vender.
- Ouve, Renzo, diz ao teu pai que trate ele da avaliação e de todo o processo relativo à venda. Temos um notário em comum, portanto não vai haver problema,
porque ele já tem a relação de bens e acho que a passagem da propriedade não nos vai reservar surpresas. Quanto mais depressa se fizer isto, melhor. Não achas?
- disse o conde, com um ar despachado. Levantou-se da secretária e acrescentou: - Agora vais desculpar-me, mas tenho o meu bridge no clube e preciso de me
ir embora. A Celina vem daqui a um instante. Tu põe-te à vontade e espera, porque os instantes das mulheres, normalmente, são horas.
Mas Celina entrou no escritório no momento em que o pai ia a sair. Renzo recordou alguns versos de Petrarca que tinha estudado no liceu: "Pálida não, mais alva do
que a neve que sem vento em gracioso campo se vê cair."
Celina estava pálida, e os seus lindíssimos olhos azuis denunciavam uma ânsia incontida. No entanto, sorria.
Trazia um vestido de lã fina cor de caramelo, apertado na cintura com um cinto de couro. Calçava uns sapatos rasos e tinha na mão um lenço amarfanhado.
- Tenho alergias e de vez em quando foge-me um espirro desculpou-se, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Devias ir até à praia - disse ele. E num impulso propôs-lhe:
- Se quiseres, levo-te a Santa Margherita no fim de semana. Temos lá uma casa onde nunca vai ninguém.
- É um convite? - perguntou-lhe ela. Renzo anuiu.
- Obrigada, mas não - respondeu, e acrescentou: - Não é conveniente, o Filippo morreu só há alguns dias.
Estavam ambos em pé, um em frente ao outro, a balançar em cima das pernas como se não soubessem muito bem o que fazer nem o que dizer.
- Se eu te puder ser útil... - balbuciou Renzo.
- Já alguma vez viste o nosso jardim? - perguntou Celina.
- Não me parece - respondeu ele.
Ela avançou à frente dele até ao rés do chão e dirigiu-se ao átrio de mármore e estuque, fechado com um grande portão de arabescos. Abriu-o e entraram num jardim
florido.
- Os velhos palácios de Milão guardam ciosamente a beleza dos jardins interiores escondendo-os dos olhares de estranhos explicou, enquanto o conduzia a um
caramanchão recoberto de jasmim em flor.
No interior havia uma mesa e dois cadeirões de ferro forjado nos quais, um em frente ao outro, se sentaram Celina e Renzo, envolvidos pelo aroma penetrante das flores.
- Convidei-te para aqui porque em casa há sempre demasiados ouvidos à escuta, apesar de não parecer. Gostava que me explicasses por que razão, quando te mostrei
o palácio de Villanova, a certa altura te foste embora a correr e irritado - perguntou ela.
- Posso fumar? - perguntou Renzo, ao mesmo tempo que remexia no bolso do casaco à procura do maço de cigarros.
- Podes fazer aquilo que quiseres, até me podes responder insistiu Celina.
Ele olhava para aquela rapariga lindíssima de gestos simples e graciosos e num impulso confessou: - Estou apaixonado por ti.
- Só isso? - perguntou ela, com uma candura desarmante.
- Achas pouco? - disse ele, ressentido.
Ela sorriu-lhe e disse: - Agora vou contar-te uma história. Tu tinhas doze, treze anos, eu oito. Acho que te preparavas para ir de
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férias com o teu irmão e o teu pai, porque tinham acabado de chegar do colégio e era princípio de julho. Eu tinha ido almoçar a vossa casa com o meu irmão e os meus
pais e, quando acabámos de comer, fomos os quatro dar um passeio no jardim. Eu caminhava ao teu lado e olhava para ti. Tinhas uma espécie de penugem castanha sobre
o lábio superior, um primeiro assomo de barba, que me intrigava muito, e apetecia-me passar-lhe as pontas dos dedos para a acariciar. "O que é que tu queres?", perguntaste-me
tu, de repente, sentindo-te observado. Eu corei e sussurrei: "Nada", e fiquei com os olhos cheios de lágrimas. Então tu colheste uma margarida pequenina, amarela,
ofereceste-ma e disseste: "Olha que linda! Tem um botão escuro como as tuas sandálias e as pétalas de ouro como os teus cabelos." Ainda guardo aquela margarida no
meio das páginas do missal que me tinham dado na primeira comunhão.
- Já não me lembrava desse episódio - disse Renzo, olhando-a com ternura.
Celina prosseguiu: - Ainda não acabou. No dia seguinte era domingo e eu fui à igreja com a minha família. Estávamos sentados no primeiro banco, reservado aos Olgiati,
em frente do altar. Tu estavas sentado atrás de mim. Passei todo o tempo da missa virada para ti. A tua mãe não estava, o teu irmão rezava, absorto, o teu pai estava
ajoelhado com os olhos fechados e tu agitavas-te com impaciência. Percebia-se que não vias a hora de a missa acabar. Não olhaste para mim uma única vez. Porém, quando
saímos da igreja, lançaste-me um sorriso. Parecias-me um arcanjo com aquela grande cabeça de cabelos negros um pouco despenteados. Eu achei que o casaco escondia
as tuas asas. Apertava o missal onde tinha enfiado a tua margarida e esperava que tirasses o casaco para abrires as asas. Então voarias para mim. Pergunto a mim
mesma por que razão, entre tantos rapazinhos que conhecia, te escolhi precisamente a ti, que eras tão diferente de nós concluiu Celina.
- Talvez porque te inspirava ternura. Não era um rapaz feliz, tinha crescido sem mãe, com um pai que se esforçava por desempenhar também o papel de mãe. Tu,
pelo contrário, eras tão
serena, loira, evanescente, sempre elegante. Eu achava que se te tocasse, ainda que levemente, tu te desfazias em pedaços. Depois vocês deixaram de vir a Villanova.
Eu, quando acabei o colégio, inscrevi-me na universidade, terminei o curso e comecei a trabalhar na empresa com o meu pai. Ia muitas vezes a Milão onde, com os meus
ex-colegas de faculdade, frequentava os locais certos para as pessoas certas. Depressa me apercebi de que o chamado jet-set é composto essencialmente por gente idiota,
que tem conversas idiotas e vive de maneira idiota. Salva-se pouca gente nesse meio onde as pessoas se embebedam, andam de um sítio para outro, de uma cidade para
outra, levando atrás de si uma assustadora mediocridade e um vazio imenso. Por mais do que uma vez fui àquelas "festas exclusivas", com rios de champanhe e uma miséria
moral que me aterroriza. Às vezes cruzava-me contigo e tu eras tão diferente daquela gente! Trocávamos duas palavras e depois eu ia-me embora. Quando soube que te
ias casar, o meu coração deu um salto. E quando li no jornal que o teu noivo tinha morrido, devo confessar-te que isso não me desagradou.
- Uma confissão como deve ser, sem a mínima tentativa de ficares bem na fotografia - observou Celina, deixando escapar um sorriso.
Renzo levantou-se de repente e olhou-a com ternura. Espero não te ter estragado a tarde. Agora vou-me embora - disse-lhe.
- Disseste que me amavas; o que esperas de mim? - perguntou-lhe ela, ainda sentada no cadeirão.
Ele pegou-lhe numa mão e beijou-a.
- Nada, absolutamente nada. Tenho pena que sofras.
- Estou muito triste por o Filippo ter morrido, mas sofro por uma razão muito mais grave - confessou a rapariga, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Renzo voltou a sentar-se em frente dela e olhou-a com curiosidade, pronto para a escutar.
- O Filippo fazia parte daquele círculo restrito de "pessoas certas", como tu dizes, mas garanto-te que era um homem honesto
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e determinado em abrir caminho na vida. O mundo dele era o da finança e da política. Os seus livros preferidos eram os tratados de economia, a música e a literatura
aborreciam-no. Era muito rico e isso agradava ao meu pai que, com a sua morte, viu esfumar-se o sonho da minha estabilidade económica. Mas, ao ir-Se embora, o Filippo
deixou-me uma herança importante.
- A sério? Ele fez isso? - disse Renzo, espantado.
- Deixou-me um filho. Estou grávida de dois meses.
Renzo ficou sem fôlego.
Após alguns instantes, Celina levantou-se.
- Agora já nos podemos despedir - disse.
- Não, não, não, espera um instante - balbuciou ele.
- Espero que não comentes com ninguém aquilo que te revelei - pediu ela.
- Não vou abrir a boca, já me conheces - garantiu ele.
Foi até junto dela e afagou-lhe a face. Ela começou a chorar. Ele tirou do bolso um lenço imaculado e estendeu-lho.
Pensou que os pais de Celina a iam obrigar a interromper a gravidez. Faziam-se muitos abortos nas famílias importantes, enquanto nas pobres, onde não havia um nome
para salvar, se deixava nascer os filhos.
Celina limpou as lágrimas e conseguiu esboçar um sorriso. Ouviram passos na alameda coberta de saibro, a rapariga recompôs-se e foi até à entrada do caramanchão.
Uma criada avançava em direção a eles.
- A senhora condessa manda perguntar se querem que lhes sirva um chá - anunciou a mulher.
- Não, obrigada. O senhor já se vai embora - respondeu Celina.
- Eu realmente tomava um chá de bom grado, não estou com pressa - interveio Renzo.
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- Então eu vou já mandar servi-lo - respondeu a criada, e afastou-se.
- Não estás com vontade de fugir para longe, agora que conheces o meu segredo? - perguntou Celina, quando ficaram novamente sós.
Ele rodeou-lhe os ombros com um braço e disse: - Não podes aguentar esse peso sozinha. Não pensaste em falar sobre o assunto com os pais do teu noivo?
- Refleti durante muito tempo e decidi que não o posso fazer. Era uma coisa entre mim e o Filippo. Ele tinha ficado calado e eu vou fazer a mesma coisa.
- Amava-lo? - decidiu-se a perguntar-lhe.
- Sim, não, não sei... Era uma união fortemente desejada pelas nossas famílias, mais do que por nós. De nós os dois, o mais apaixonado era ele. Eu estava
contente por casar com ele porque era muito boa pessoa. Fomos para a cama quando já tínhamos fixado a data do casamento. Para mim era a primeira vez... e agora vê
lá a confusão que o destino me armou.
Veio um empregado servir o chá com uma fragrante tarte de maçã à qual Celina se atirou como se, engolindo o bolo, pudesse sufocar a sua infelicidade.
Renzo observava aquele rosto lindíssimo, a expressão sombria dos olhos, e sofreu com ela, por ela.
- Tu precisas de resolver o problema rapidamente, porque é inútil continuares a atormentar-te. Não percebo muito desses assuntos, mas acho que uma mulher
grávida tem de viver com serenidade a sua condição - comentou Renzo.
Já prestes a ir-se embora, enquanto lhe beijava a mão, conseguiu acrescentar: - Chama-me a qualquer momento, se achares que te posso ser útil. Levo-te no coração,
e não estás só.
Naquele mesmo dia, quando encontrou o pai, Renzo disse: Falei com o conde. Para a compra do palácio temos de ir ter com o notário, que já tem toda a documentação
para a mudança de propriedade. Então, avançamos?
Amilcare Cantoni olhou para o filho com um ar desconfiado.
- Estiveste hoje com ele? Não sabia de nada - exclamou.
- Levei os nossos clientes de Mântua a almoçar ao Girarrosto e, quando saí do restaurante, cruzámo-nos em frente da casa dele - mentiu e, enquanto contava
ao pai aquela estúpida mentira, perguntou a si mesmo porque estaria a fazê-lo.
Amilcare, que conhecia o filho muito melhor do que Renzo pensava, apercebeu-se de que ele não tinha sido sincero, mas não disse nada.
Naquela noite, depois do jantar, quando pai e filho passaram à sala amarela para ler os jornais e discutir a situação da fábrica, Renzo disse: - Vou dormir.
- Deixas-me sozinho? - perguntou Amilcare, que sentia no filho uma inquietação insólita.
- Pai, não me faças sentir culpado se, por uma vez, eu me retiro. Sabes muito bem que a mãe vai chegar daqui a pouco e que também aí vem o Generoso Castelli.
Eu aborreço-me a ouvir as vossas conversas.
Bianca saíra com Generoso Castelli, que se oferecera para a acompanhar à inauguração de uma exposição no Palazzo Reale.
- Não vão lá para admirar os quadros... mas para ver como é que a Candiani está vestida, que despropósitos vão sair da boca do Baldassarri, para escutar mexericos
sobre o amante da Innocenti
- resmungou Almilcare, quando Renzo tinha acabado de sair.
Efetivamente, dali a pouco, Bianca entrou na sala com Generoso, e entre os dois decorria uma polémica estéril sobre os livros que tinham lido em crianças. Bianca
defendia que Coração era um livro deseducativo porque destilava um espírito de sacrifício e uma bondade absolutamente impraticáveis, enquanto Pinóquio, a eterna
história da marioneta que se torna criança, era um hino ao amor.
- É o amor que transforma a marioneta de madeira num menino de carne e osso - dizia Bianca. - Não é assim, Amilcare?
- perguntou a mulher, ao mesmo tempo que tirava o casaco comprido de veludo de seda azul e o entregava ao criado.
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- Tu tens sempre razão, querida. Mas não sei de que é que estão a falar - respondeu o marido.
- Dos livros da nossa infância. É melhor o Coração ou o Pinóquio?. - perguntou Generoso.
- Exatamente. Dos dois, qual preferias? - questionou a mulher.
- Preferia o Giamburrasca, porque era uma boa denúncia da hipocrisia dos adultos, e também porque os outros dois nunca os li - respondeu Amilcare, que naquela
noite não estava com vontade de fazer conversa com Bianca e Generoso. E prosseguiu, ao mesmo tempo que se levantava: - Continuem as vossas discussões. Eu estou cansado
e vou dormir.
Na realidade, estava preocupado com o filho, que lhe estava a esconder alguma coisa.
Subiu ao primeiro andar e, ao passar em frente da porta do quarto de Renzo, ouviu-o a falar em voz alta. Parou a ouvir, mas só apanhava uma palavra em cinco, e por
isso esperou que regressasse o silêncio para bater discretamente à porta.
Renzo abriu imediatamente, de rosto sorridente.
- Pai, não tenhas um ataque, por favor. Resolvi casar-me com a Celina - anunciou-lhe.
- A Celina... quê? - perguntou Amilcare, esforçando-se por manter a calma.
- Olgiati Tremonti - respondeu Renzo.
Viu o telefone pousado na almofada da cama e deduziu que pouco antes Renzo estivera a falar com a rapariga.
- Mas acabou de lhe morrer o noivo!
- A papelada dela já está pronta. Eu arranjo a minha num instante. Vamos casar-nos imediatamente e espero bem que isso não te incomode, porque eu não volto
atrás na minha decisão.
Amilcare e Bianca tinham os quartos separados por uma pequena sala, onde se refugiavam quando o sono tardava a chegar.
Naquela noite, depois de se ter despedido de Generoso Castelli, Bianca entrou na sala. Vestia um pijama de colegial em flanela fina com florinhas cor-de-rosa e verdes.
Pareceu admirada por ver o marido, ainda de casaco e gravata, a folhear distraidamente uma revista técnica.
- Porque é que não estás na cama? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que se aninhava no sofá ao lado dele.
- O Renzo vai casar-se - disse Amilcare, simplesmente. Houve alguns instantes de silêncio e depois ela perguntou:
- Contra quem?
- Para com esse teu sarcasmo estéril.
- É mais forte do que eu. Ela... conhecemo-la?
- Sim, é a filha do conde.
- Oh lá lá! Vamos ter uma aristocrata na família.
Mais alguns longos instantes de silêncio, e depois Bianca disse: - Julgava que estava de luto por causa da morte do noivo.
- Também eu julgava.
- Como é que explicas isso?
- Não explico.
- Temos a certeza de que os Olgiati vão aceitar este parentesco assim tão... proletário?
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- A pergunta é outra. A Celina devia casar-se com um banqueiro daqui por uns dias. Ele morre e, logo a seguir ao funeral, fica noiva do nosso filho. O que
é que está por detrás disto?
- Um amor repentino? - perguntou Bianca, com uma voz hesitante.
- Foi ao ar o casamento, foi ao ar a perspetiva de um futuro seguro, supõe-se que exista o sofrimento de um amor destruído, e a Celina fica outra vez noiva
a correr. Será maluca?
- Se fosse, um maluco a mais ou a menos na nossa família, o que é que muda?
- Não brinques, por favor.
- Porque é que não falas com o Renzo? - sugeriu Bianca.
- Está mais fechado do que um sobretudo em pleno inverno.
- E se parássemos de meter o nariz nos assuntos dele e tratássemos mais dos nossos? - perguntou-lhe a mulher, ao mesmo tempo que lhe aliviava o nó da gravata
e lhe desapertava o primeiro botão da camisa, sorrindo-lhe com ternura.
Amilcare conhecia aquele olhar, que tinha a faculdade de diluir as suas tensões. Abraçou a mulher e puxou-a para si com doçura.
- Menino, despe-te - disse ainda Bianca, com uma voz aflautada. - Na tua cama ou na minha? - perguntou.
- Onde tu quiseres - respondeu ele, ao mesmo tempo que ia espalhando a roupa pelo chão da sala.
Estavam casados há mais de trinta anos, tinha havido entre eles longos e cansativos períodos de separação, mas quando Bianca o tentava com meiguice, Amilcare reencontrava
a mulher sensual e terna que o tinha conquistado.
Renzo, depois de ter rapidamente despachado o pai, não conseguia conciliar o sono. Dava voltas na cama, dizendo para si mesmo que não é todos os dias que uma rapariga
que se admirou durante tanto tempo sem se ousar uma aproximação diz: casa-te comigo. Mas era precisamente isso que tinha acontecido. Quando se retirou para o seu
quarto, o criado passou-lhe uma chamada de Celina.
- Refleti, e só tenho uma saída que me permita salvar a honra da família e o meu filho: o casamento. Queres casar-te comigo?
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Renzo respondeu que sim, sem hesitação. Não lhe interessava que ela estivesse à espera do filho de outro. Teriam mais filhos. O que lhe importava era que Celina
fosse sua para toda a vida. Achou que lhe tinha caído em cima uma sorte inesperada e imerecida, porque ela estava desde sempre nos seus sonhos. Amava-a porque era
bela, porque o tinha enfeitiçado com os seus modos calmos e serenos, com o seu comportamento reservado. O facto de se ter entregado ao homem com quem ia casar não
fazia dela uma mulher imoral. Celina era uma boa rapariga e seria uma boa esposa. Ele seria um bom marido e um bom pai para a criança. Sentia que aquele casamento
ia ser equilibrado e sereno, precisamente o contrário do casamento dos seus pais.
Recordava com mágoa as cenas loucas da mãe, os súbitos abandonos quando era internada nas clínicas psiquiátricas e o sofrimento do pai por causa daquelas separações.
Com Celina, tudo seria fantástico porque ele a amava, ela tinha-lhe contado da sua paixão infantil por ele e tinha-lhe confessado que o casamento com Filippo tinha
sido programado pelas respetivas famílias. Pensou em tudo isso num instante, enquanto ela lhe perguntava: - Queres casar-te comigo?
Celina esclareceu, logo a seguir: - És o único homem com quem eu me quero casar.
Agora Renzo sentia a necessidade de se confrontar com o pai, que há pouco tinha despachado com meia dúzia de palavras, porque precisava de refletir.
Estava prestes a bater à porta quando chegaram até ele, distintamente, uns suspiros que o fizeram regressar ao seu quarto. Teve um gesto de desapontamento. O que
teria de tão cativante aquela mãe problemática, capaz de ligar indissoluvelmente a si um homem calmo e sólido como o seu pai? Quantas vezes, em rapaz, tinha esperado
que ele se libertasse da fúria desgovernada que era aquela mulher?
Por mais do que uma vez, ele e Gioacchino tinham perguntado um ao outro: - Porque é que ele não pede a anulação do casamento?
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O irmão, menos impulsivo do que ele, tinha dito: - Está
apaixonado pela mãe. Gosta dela tal como ela é. Não casou com ela por ser rica, mas porque a ama, e tenho a certeza de que também ela o ama. Achas que o pai, naqueles
longos anos de separação teve outras mulheres? - Se isso tinha acontecido, nem ele nem Gioacchino tinham dado conta. Aliás, ambos tinham claramente ouvido uma confissão
do pai, em conversa com um amigo de Milão: - Sem a minha mulher, sou um homem perdido.
A paixão entre os dois não se tinha apagado, nem mesmo agora que já não eram jovens.
Renzo regressou ao quarto, recordando todas as vezes que o pai, depois de um telefonema da mulher, largava precipitadamente o trabalho na empresa para ir a correr
ter com ela, acabada de chegar de viagem.
Depois Amilcare regressava ao escritório, feliz como uma criança que acabou de esvaziar um frasco de compota.
Aquela união louca era absolutamente perfeita. E a sua com Celina, como seria?
Estava tão agitado que dormiu pouco e mal. De manhã, como sempre, tomou o pequeno-almoço com o pai no jardim de inverno de grandes janelas abertas sobre o parque.
Amilcare, que estava já sentado à mesa, cumprimentou o filho e viu que este tinha o rosto cansado.
- Dormiste mal? - perguntou-lhe.
- Bastante, obrigado. Tu, pelo contrário, dormiste otimamente, vê-se - provocou-o.
O pai não se perturbou.
- Não me queixo - respondeu simplesmente. Depois perguntou: - Queres dizer-me alguma coisa a propósito da Celina Olgiati?
- Hoje de manhã não vou ao escritório. Vou falar com o pai dela.
- Mas aconteceu tudo assim... tão de repente? - perguntou Amilcare.
Renzo esteve quase a contar-lhe a verdade, mas não quis faltar à promessa que tinha feito a Celina de não revelar o seu segredo.
- Não tão de repente como tu pensas. De qualquer modo, eu. . .
" a Celina não te desagrada. Só espero que o conde não sei quê não
levante obstáculos.
- Mesmo que assim fosse, tu continuarias a seguir em frente no teu caminho. Felicidades, filho - rematou Amilcare que, provavelmente, tinha intuído alguma coisa,
mas preferia não saber.
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II
Guido tapou os ouvidos, assustado. As vozes alteradas, provenientes do quarto dos pais, tinham-no acordado.
Era uma tarde de julho, o sol penetrava através das gelosias encostadas e ouvia-se o rumor monótono das ondas que se quebravam contra o contraforte rochoso do promontório
sobre o qual se situava a villa dos Cantoni, nas proximidades de Santa Margherita.
Guido tinha quatro anos. Como todos os verões, passava longos períodos na praia com a mãe. Aos fins de semana, o pai e o avô Amilcare iam ter com eles e, muito raramente,
também a avó Bianca. Uma vez também tinha ido o tio Jacopo, o irmão de Celina, com duas crianças cor de café com leite: eram os filhos que tinha tido da mulher africana
com a qual vivia numa casa colonial num sítio impreciso do Quénia. Os dois priminhos chamavam-se Désirée e Joseph, falavam francês, mas também sabiam um pouco de
italiano, eram mergulhadores fantásticos e tinham-no ensinado a atirar-se da prancha para a piscina.
Guido estava literalmente encantado com os dois priminhos de pele cor de âmbar. Com eles aprendera algumas palavras em francês, que continuava a repetir mesmo depois
de eles terem regressado a África. Era também um entusiasta do tio Jacopo, que contava histórias aventureiras de elefantes, leões, gazelas e
serpentes, de grandes pássaros que comera os cadáveres dos animais mortos, dos hipopótamos que, apesar do aspeto pacífico, são ferocíssimos, de um velho chefe tribal
que vivia numa grande casa de madeira no coração da selva.
Guido seria uma criança feliz se houvesse harmonia e serenidade entre os pais que, pelo contrário, discutiam muitas vezes. Naquele momento conservou as mãos apertadas
contra os ouvidos para não escutar aqueles gritos.
A certa altura, a discussão parou e ele ouviu um bater de portas e os passos do pai que se afastavam. Então deslizou para fora da cama, encostou-se à porta que punha
em comunicação o seu quarto com o dos pais e ficou ali alguns instantes, à escuta. Silêncio. Baixou o puxador, em bicos de pés, abriu a porta e ficou ofuscado com
a luz forte da tarde que invadia o quarto, onde a porta envidraçada estava totalmente aberta.
Viu a mãe sentada no cadeirão. Tinha os olhos fechados, os joelhos erguidos até ao queixo, os braços à volta das pernas e os longos cabelos loiros soltos sobre os
ombros. Celina estremeceu quando ele lhe tocou num braço com a mão. Sorriu ao filho com os olhos inchados de chorar e afagou-lhe a cabeleira castanha.
- Porque é que o pai grita tanto? - perguntou Guido. Celina ergueu o filho, sentou-o no colo e, abraçando-o com
ternura, disse-lhe: - Não aconteceu nada de grave, pequenino. Olha, já não estou a chorar.
- Porque é que o pai estava a gritar? - insistiu Guido.
- Vou tentar explicar-te. Gostavas de ter um irmãozinho ou uma irmãzinha?
- Não sei.
- O pai queria dar-te um irmãozinho, mas o irmãozinho não vem.
- Porquê?
- Não sei, mas o pai queria ter muitos meninos tão lindos e fantásticos como tu.
- Se ele gritar e tu chorares, eles vêm?
- Talvez... quem sabe? - sorriu Celina.
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- Eu gostava de ter a Désirée e o Joseph. Podiam fazer de conta que são meus irmãos. Os outros não os conheço e não sei se os quero - decidiu o menino.
Naquele momento, Renzo entrou no quarto e apertou num mesmo abraço o filho e a mãe, dizendo: - Sou um idiota. Gosto tanto de vocês e faço-vos sofrer tanto. Vá lá,
arranjem-se, vamos para a piscina brincar os três na água.
O motivo de tantas discussões era sempre o mesmo: a incapacidade de Celina dar um filho ao marido.
Quando Renzo começou a preocupar-se porque a mulher não engravidava, Celina decidira fazer uma série de exames clínicos e o resultado tinha sido que ela era uma
mulher saudável, fértil, capaz de dar à luz um regimento de filhos.
- É altamente provável que seja o seu marido a ter um problema - concluiu o ginecologista, e acrescentou: - Devia ir consultar um especialista.
Algum tempo depois, a conversar com Bianca que, com ela, era particularmente afetuosa, Celina confiou-lhe a sugestão do médico, seguida de uma frase que nunca deveria
ter pronunciado: - Com que coragem digo ao Renzo que se não conseguimos ter filhos a culpa é dele? - E calou-se imediatamente, aterrorizada. O pequeno Guido nascera
sete meses depois do casamento, mas uma vez que o seu peso não atingia os três quilos, todos acharam que era um bebé prematuro.
- Quem é o pai da criança? - perguntou Bianca, rompendo o silêncio. E acrescentou: - O Renzo sabe que o Guido não é filho dele?
Celina corou e respondeu: - Decidiu casar-se comigo depois de eu lhe ter confessado que estava à espera de um filho do Filippo Aldovrandi. Foi a única pessoa a quem
disse.
- Agora tudo se explica... o casamento repentino celebrado a pressa... O pai do Guido é o noivo prematuramente e inoportunamente morto - murmurou Bianca.
Depois aproximou-se de Celina e deu-lhe um beijo na testa.
- Às vezes, a natureza é generosa. A minha doença poupou os meus filhos, mas podia manifestar-se nos meus netos. O Gioacchino
tentregou-se à castidade do sacerdócio, e é uma sorte em que o Renzo acredita. Ele ama ternamente o Guido, como se fosse seu filho, e é-o de corpo e de espírito.
Fala sobre isso com o teu marido e acabarão por reencontrar a serenidade. Vocês amam-se e vão resolver o vosso problema. Celina, comovida, abraçou-a.
- Fica sossegada, eu já me esqueci do vosso segredo - disse Bianca, apertando-a nos seus braços.
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VARENNA
Léonie chegou a Varenna debaixo de um céu de nuvens baixas e ameaçadoras. Partira cedo para estar com Roger o máximo de tempo possível, no caso de ele aparecer.
Guido estava na Sicília a acompanhar a rodagem de um filme e tinha-lhe mandado dizer que só regressaria a casa na noite da antevéspera de Natal.
Quando a proprietária do Hotel du Lac a viu entrar no hall, reconheceu-a imediatamente e disse-lhe que o Dr. Bastiani tinha chegado no dia anterior. - Provavelmente
ainda está a dormir, porque não ligou a pedir o pequeno-almoço - explicou a Léonie.
- Eu gostaria de ir ter com ele - respondeu ela.
- Vou dar-lhe uma segunda chave, assim não precisa de o acordar - propôs a senhora. E acrescentou: - A suite é no primeiro andar...
- Obrigada, eu lembro-me, porque já lá estive - interrompeu Léonie, ao mesmo tempo que se apoderava da chave.
Subiu as escadas com o coração a bater descompassadamente, parou hesitante em frente da porta da suite e depois, com um gesto decidido, abriu-a. Assim que entrou
na sala, ouviu o ruído do chuveiro na casa de banho e sentiu no ar o perfume de Roger. Nesse momento estacou, porque se apercebeu de que estava a invadir a intimidade
de um desconhecido.
Mas o que é que eu estou a fazer?, disse para si mesma e, sobressaltada, preparava-se para se ir embora quando Roger,
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envolvido num roupão de felpo, entrou na sala. Sorriu-lhe, feliz, e foi ter com ela para a abraçar.
- Também este ano vieste ter comigo - sussurrou-lhe. Léonie afastou-se dos seus braços e disse, embaraçada: - Não
devia ter subido sem me fazer anunciar. Não sei o que foi que me deu. Fui de um atrevimento vergonhoso. Desculpa, vou descer e espero por ti lá em baixo.
Roger não respondeu e abriu o fecho-éclair do blusão de Léonie: - Tira esta coisa ou rebentas de calor.
Ajudou-a a tirar o blusão, por baixo do qual ela trazia um casaco de veludo azul-escuro, uma blusa de cetim brilhante verde salva e uma saia da mesma cor. Aquelas
cores realçavam o tom de âmbar do seu rosto.
- Mon petit amour - disse ele, apertando-a contra si. Depois inclinou o rosto sobre o de Léonie e os lábios de ambos encontraram-se com doçura.
- Por um instante, assim que te vi, acreditei que fosses um produto da minha imaginação, porque há dias que penso em ti na esperança de te voltar a ver -
confessou.
- Também eu - disse ela. Bateram à porta.
- Eu abro - disse Roger. - Acabei de pedir o pequeno-almoço.
Léonie ouviu-o conversar com a empregada, e depois regressou à sala com um tabuleiro de onde provinha um aroma de café e de brioches quentes. Pousou-o em cima da
mesa, disse a Léonie para se instalar numa poltrona e sentou-se diante dela. Tinha o ar de uma criança feliz.
- O que foi que estiveste a combinar com a empregada? perguntou Léonie, curiosa.
- Agradeci-lhe porque, como sabia que tinhas chegado, me informou de que tinham preparado o pequeno-almoço para duas pessoas, em vez de ser só para mim. São
muito perspicazes neste hotel - brincou ele.
- É mesmo! - respondeu Léonie, a sorrir. Observou o rosto bonito e sereno de Roger e notou que nas têmporas havia alguns
cabelos brancos que no ano anterior não tinha visto. As duas leves rugas verticais entre as sobrancelhas tinham ficado um pouco mais profundas.
Tomaram o pequeno-almoço falando ininterruptamente, a contar aquilo que tinha acontecido nas suas vidas durante os últimos doze meses. Depois Roger pegou ternamente
na mão de Léonie.
- Não mexeria um dedo para te levar a fazer amor comigo, mas seria um mentiroso se não te dissesse que estou apaixonado por ti e que te desejo com todo o
meu ser - declarou, olhando-a nos olhos.
- Sabes que dentro de poucas horas vamos ter de nos despedir. .. - hesitou Léonie, perturbada.
- Mas guardaríamos no coração uma grande alegria - continuou ele, apertando-lhe a mão com mais força.
Mais tarde, quando estavam estendidos na grande cama de casal, aconchegada nos braços de Roger, ela disse: - Gostava que a nossa relação não perturbasse o equilíbrio
das nossas vidas.
- É aquilo que eu também quero - garantiu-lhe Roger, e acrescentou: - Somos um homem e uma mulher que se encontraram e inventaram um mundo fantástico para
viverem um único dia cada ano. Concedemo-nos algumas horas de felicidade e depois regressamos ao mundo real, sabendo que a nossa fábula nos espera novamente ao fim
de doze meses.
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Nevava quando saíram do hotel para ir almoçar. No empedrado das ruelas formava-se uma camada fina de neve que tornava o caminho escorregadio. Roger segurava com
força o braço de Léonie enquanto a conduzia ao restaurante.
- Não seria fantástico se nos pudéssemos encontrar uma vez... - começou ele.
- Em pleno verão? - disse Leonie, terminando a frase. Olharam-se nos olhos e, ao mesmo tempo, abanaram a
cabeça.
- A nossa história é esta, e não devemos pedir mais nada afirmou Léonie.
- Estou de acordo contigo - respondeu ele.
- Mas quanto a... um toquezinho... - sussurrou Léonie, a sorrir.
- Querias, a sério? - perguntou Roger.
Ela pareceu refletir durante alguns instantes e depois voltou a abanar a cabeça.
- Não, está tudo perfeito assim como está - decretou.
Os raros transeuntes voltavam-se para observar aquele belo casal de turistas elegantes que caminhavam debaixo da neve.
No restaurante, enquanto apreciavam umas entradas enquanto esperavam um creme de legumes, Roger disse: - Corri o risco de
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não poder vir porque a minha mulher teve um acidente de carro tremendo e esteve Dez horas no bloco operatório para a coserem. Receei o pior e, enquanto estava preocupado
com ela, não parava de perguntar a mim mesmo se ia conseguir vir ter contigo. Por sorte, há três dias saiu da reanimação e eu pude partir, feliz por ela estar fora
de perigo e feliz porque tinha a esperança de te encontrar.
- Sinto muito pela tua mulher - disse Léonie.
- Talvez devêssemos trocar os nossos números de telefone para o caso de acontecer alguma coisa de grave - sugeriu ele.
- Se eu tivesse o teu número, não sei como ia conseguir resistir à tentação de te procurar - confessou ela.
- Ia passar-se o mesmo comigo - concordou ele.
- Acabávamos por estragar tudo e esta nossa história tão singular, tão única, podia naufragar - afirmou Léonie.
- Tens razão, seria um erro - concordou ele, e levou aos lábios, com delicadeza, uma mão dela murmurando: - Tu fazes-me feliz, pequena Léonie.
Quando saíram do restaurante tinha parado de nevar, mas o frio tornara-se ainda mais cortante.
- Tens de ir a Morbegno? - perguntou Roger.
- Devia, mas é tarde e prefiro regressar já a Villanova. Daqui a duas horas em nossa casa vão confluir mães e crianças para a festa de Natal do meu filho.
- Refugiaram-se no bar do hotel a tomar um café, sentados em frente às janelas que davam para o lago.
- Vou mostrar-te as últimas fotografias do meu filho - disse Léonie orgulhosa, ao mesmo tempo que tirava da carteira algumas fotografias a cores.
- Não achas que é parecido comigo? - perguntou, mostrando-lhas.
- Talvez, mas na idade dele os traços ainda não estão bem definidos. Mas parece-me um menino saudável e com dois olhinhos muito vivos - comentou Roger.
- É muito irrequieto, corre e salta como um cavalinho, fala de rajada e quer que toda a gente entenda aquela baralhação de
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palavras. Sabes, eu falo com ele em francês, os outros todos em italiano, e ele está a fazer alguma confusão - explicou com entusiasmo. Depois viu as horas no relógio
de pulso e anunciou: - Vou ter de voltar para casa.
- Tenho uma coisa para ti - disse ele, apanhando-a de surpresa, ao mesmo tempo que extraía do bolso das calças um embrulho minúsculo.
- É um presente de Natal? - perguntou ela.
- Vi-o numa montra da Tiffany na primavera passada, quando estive em Nova Iorque, e lembrei-me de ti, que usas sempre uma pulseira com berloques.
Era um pingente em forma de maçã, de ouro amarelo, salpicado de minúsculos rubis e com duas pequenas folhas de esmeralda.
Ela ficou comovida. - É lindíssimo, obrigada - disse, enquanto o prendia na pulseira. - Porquê uma maçã? - perguntou Léonie.
- É o fruto proibido, aquele que estamos a trincar os dois brincou Roger.
- E é doce e apetitoso - acrescentou ela.
Na pequena praça, Roger abraçou-a uma última vez antes de ela entrar no carro.
- Desejo-te um ano maravilhoso - disse-lhe.
- Au revoir, Roger, cuida-te - replicou ela.
Quando regressou a casa, sentia-se mal. Saiu do carro a bater os dentes de frio. Viu algumas mães com os filhos a entrar na villa.
Inesperadamente, Guido estava na entrada a receber os convidados.
- Onde é que estiveste? - começou, mas depois olhou para ela com apreensão: - Mas tu não estás nada bem!
- Vou a correr para a cama - balbuciou ela, e dirigiu-se para o elevador.
Despiu-se rapidamente e enfiou-se na cama. Tinha muita febre e, antes de mergulhar num sono agitado, pensou que aquela
mentira ou
doença, fosse ela qual fosse, a tinha exonerado de contar ao marido.
O médico, convocado por Guido, depois de a ter observado, fez algumas perguntas e depois sentenciou: - Varicela. Obviamente, não a teve em criança e o seu filho,
que acabou de a ter, contagiou-a.
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Léonie passou o Natal e os dias seguintes na cama, e à medida que a febre diminuía aumentava o incómodo da comichão provocada pelas pequenas pústulas que lhe cobriam
o corpo e o rosto. Guido adquiriu o hábito de passar algumas horas à cabeceira da cama dela, a ler em voz alta os artigos mais interessantes dos jornais. Muitas
vezes ela caía lentamente no sono, embalada pela sua voz e pela lembrança do dia passado com Roger.
As vezes, à noite, Giuseppe adormecia na cama de casal entre ela e Guido. Eram momentos de grande ternura em que Léonie se sentia uma mulher satisfeita. Mas todas
as noites, antes de adormecer, o último pensamento era para Roger.
Janeiro estava a chegar ao fim e os dias começavam a crescer. Léonie e Guido estavam na sala adjacente ao quarto. Ela falava-lhe dos seus projetos de trabalho, a
tentar perceber, sem grande sucesso, as razões do afastamento do marido da empresa familiar. O facto de ter escolhido escrever, seguindo uma inclinação natural,
não justificava a sua aversão à fábrica.
- Sempre que te manifesto o meu entusiasmo pelo trabalho, tenho a impressão de que quase te desagrada - decidiu-se a dizer-lhe.
- Não é verdade. É bom que tu estejas a aprender a conhecer as engrenagens da empresa, mas não podes pretender que eu
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sinta o mesmo entusiasmo em relação a uma atividade que não faz o meu género - explicou ele, com doçura.
Ela acariciou-lhe o rosto e perguntou: - Às vezes, parece-me que estás triste.
Ele sorriu-lhe: - Enganas-te mais uma vez. Tenho tudo aquilo que desejo para ser feliz. Sossega, Léonie. Está tudo bem.
Olhou para ele desconfiada, perguntando a si mesma se Guido estava a dizer a verdade ou se lhe estava a mentir a ela e a si próprio. A diferença entre o marido,
de quem gostava muito, e Roger era precisamente essa: Roger era transparente, Guido era impenetrável. O seu olhar azul tinha apenas a aparência da limpidez e ela
nunca sabia o que ele realmente pensava. Perguntava a si mesma se Guido saberia que não era filho de Renzo Cantoni e se isso seria motivo de infelicidade para ele.
Os Cantoni cobriam os seus segredos com um manto pesado e, se alguém tentava erguê-lo, despontavam espinhos prontos a ferir a mão indiscreta.
Guido ignorou o olhar perplexo da mulher e estendeu-lhe um estojo de veludo, dizendo, em ar de brincadeira: - É para comemorar a cura, por isso não podes recusar.
Léonie abriu a preciosa caixinha que continha um pingente, uma maçã de rubis em tudo idêntica à que Roger lhe tinha oferecido, mas maior.
- Vi na mesa de cabeceira a tua pulseira com os berloques e chamou-me a atenção aquela minúscula maçã da Tiffany. É lindíssima. Por isso pensei oferecer-te
uma idêntica, mas maior, para pores ao pescoço - explicou. O pingente estava enfiado num fio de ouro amarelo, intervalado de bolinhas de esmeraldas e rubis.
- Obrigada, querido. É um presente de muito valor e gosto imenso dele - disse Léonie, ao mesmo tempo que o marido lho pendurava ao pescoço.
Naquele momento ficou à espera que Guido lhe perguntasse quem lhe tinha oferecido aquele que estava preso à pulseira. Não o fez por discrição ou porque não lhe interessava
saber? Estava a enviar-lhe uma mensagem silenciosa ou a escolha daquele objeto
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era apenas ditada pelo desejo de lhe dar prazer? Estas perguntas passaram numa fração de segundo pela mente de Léonie que, por alguns instantes, esperou uma pergunta
que não veio. Agradeceu do coração o estilo do silêncio típico da família Cantoni que agora não a obrigava a mentir. Beijou levemente os lábios de Guido sussurrando:
- A tua ternura comove-me.
Então Guido segurou-a pela cintura e disse: - Tenho de te dizer que, por causa da varicela, há muito tempo que não fazemos amor.
- Devo pensar que o teu presente foi por interesse? - provocou ela.
- Pensa o que tu quiseres, mas anda comigo - replicou, ao mesmo tempo que lhe dava a mão e se dirigia ao quarto com ela.
Em fevereiro, Léonie retomou o seu lugar na empresa. Tinha começado a organizar, limpar e catalogar as torneiras antigas encontradas na cave e a dar uma volta pelos
adeleiros, que abundavam nas aldeias das redondezas, para procurar mais. Entretanto, espalhara-se aquela informação e os sucateiros, quando encontravam velhas válvulas
para a água, informavam-na imediatamente, sabendo que Léonie pagava bem. A ideia do museu da torneira ia a pouco e pouco ganhando forma. O sogro percebera imediatamente,
quase melhor do que ela, a intuição genial da nora e no Natal ofereceu-lhe de presente alguns livros preciosos de hidráulica impressos nos séculos XVI e XVII, ornamentados
com desenhos de válvulas e torneiras.
No verão estava outra vez grávida. O segundo filho, concebido em maio, nasceria no fim de janeiro seguinte. No oitavo mês, no dia vinte e dois de dezembro, partiu
para Varenna.
Conduzia devagar, com cuidado, e, entretanto, tentava imaginar a reação de Roger ao vê-la com aquela barriga enorme. Se de facto estivesse em Varenna à espera dela.
Apercebeu-se naquele momento de que a incerteza daqueles encontros era muito estimulante, fazia parte do jogo e contribuía para manter viva a relação.
Quando a proprietária a viu entrar no hall do hotel, olhou eStupefacta para o ventre enorme de Léonie e, com a cortesia e o profissionalismo habituais, perguntou:
- Se é que posso... para quando é o feliz acontecimento?
- Dentro de um mês, apesar de me apetecer que fosse já, porque estou enorme - respondeu Léonie, com um sorriso.
- Muitos parabéns, minha senhora. Está aqui a chave. O senhor doutor disse para lhes mandar o pequeno-almoço ao quarto assim que a senhora chegasse.
Léonie subiu as escadas e, quando abriu a porta do pequeno apartamento, viu Roger sentado numa poltrona, a folhear o jornal.
Ergueu os olhos para ela, o rosto iluminou-se-lhe e soltou uma gargalhada clamorosa.
- Oh, mon Dieul Não queres dar à luz aqui mesmo, espero exclamou, ao mesmo tempo que se dirigia a ela para a abraçar.
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- Menino ou menina? - perguntou Roger.
- O meu marido e o resto da família já sabem, mas eu prefiro ter a surpresa quando nascer. De qualquer maneira, eu e ele, ou ela, estamos ótimos. Não imaginas
como me sinto bem quando trago um filho no ventre - respondeu, enquanto se sentava na poltrona em frente à mesa onde estava pousado o tabuleiro do pequeno-almoço.
- A tua beleza corta-me a respiração - disse ele, admirado, sentando-se diante dela. Tinha os olhos brilhantes.
- Uma vez que me dizes isso, acredito. Porque eu sinto-me uma baleia e, como um cetáceo, só estou bem na água.
- É uma ótima ginástica para as mulheres grávidas. Consegues nadar todos os dias?
- Temos uma piscina na cave. O Giuseppe também vai para lá chapinhar. Havias de ver, aprendeu a nadar antes de andar.
Acabaram o pequeno-almoço e Roger disse: - Estende-te na cama. Quero observar-te para ver se está tudo em ordem.
Estava um lindo dia e o sol, através das cortinas da porta envidraçada, iluminava o quarto.
Léonie despiu-se, enfiou-se debaixo dos lençóis e cobriu-se até ao pescoço. Roger tirou o casaco e sentou-se ao lado dela, na beira da cama.
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- Quero perceber se estás realmente tão bem como afirmas - disse, acariciando-lhe os cabelos, e depois as suas mãos desceram pelo rosto para observar o interior
das pálpebras, as mandíbulas, o pescoço. Afastou o lençol para apalpar delicadamente o seio, as axilas, o ventre.
A parte inferior do ventre começou a erguer-se ritmicamente.
- Estás a fazer cócegas ao meu bebé e ele está aos pontapés como um louco - disse Léonie, a rir.
Roger sorria-lhe, mas estava silencioso e concentrado. Inclinou a cabeça e pousou o ouvido na barriga dela, dizendo: - Não tenho estetoscópio, mas, se estiveres
calada, consigo ouvir o batimento cardíaco do teu filho.
Era agradável e tranquilizador sentir sobre a pele esticada da barriga o rosto quente de Roger.
- Este coraçãozinho galopa com um ritmo de campeão observou o médico.
Depois afastou o lençol, desceu as mãos ao longo das coxas e das pernas de Léonie, como se estivesse a fazer-lhe uma longa carícia, e parou nos tornozelos, que apertou
com as pontas dos dedos.
- Tens bebido muita água? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que voltava a tapá-la com o lençol.
- O necessário - respondeu ela.
- Fazes bem as digestões?
- Bem, ele ou ela comprime-me o estômago e custa-me bastante. Também foi assim com o meu primeiro filho. Estás a tentar assustar-me?
- Estás muito bem, aliás, estão muito bem. Quando é que está previsto o fim do tempo?
- Daqui a um mês e alguns dias, mas eu queria que fosse agora, porque estas últimas semanas são realmente muito cansativas.
Roger levantou-se e perguntou-lhe: - Posso ir para o pé de ti?
- E ainda perguntas?
Poucos minutos depois estava estendido ao lado dela. Abraçou-a.
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Começaram a contar as coisas que tinham acontecido durante aquele ano. Roger disse-lhe que a mulher não se tinha ainda restabelecido completamente depois do acidente
e que, por isso, os dois filhos tinham sido confiados aos cuidados dos avós maternos, mas que esperava tê-los em casa antes do verão, porque a mãe, em fevereiro,
deveria ser submetida a uma última intervenção ortopédica para endireitar um tornozelo. Disse-lhe também que tinha ganho o concurso para professor catedrático de
Ginecologia e concluiu: - Verificou-se ainda um facto singular: parece que fiquei mais suave. Quem o diz são os meus colegas, os meus amigos e até a minha família.
Há uns dias, o meu pai perguntou-me: "Quem é ela?" Eu estava a tomar o café e até me engasguei. E ele, sem me dar tréguas, prosseguiu: "Mudaste, Roger. Para melhor,
obviamente." Não lhe podia mentir, nunca o fiz. Por isso respondi: "Tenho um pensamento que me dá muita alegria", e sabes o que ele me disse? "Então agarra-o com
força, porque te está a fazer muito bem."
Léonie encostou-se mais a ele e disse: - Fazes-me sentir importante.
- Não te posso esconder que tenho ciúmes do teu marido confessou Roger.
- Também eu tenho da tua mulher. Mas é um ciúme salutar.
- Daqui a pouco temos de nos despedir. Proponho-te que excluamos do nosso mundo fantástico os respetivos cônjuges disse ele a rir, e apertou Léonie nos braços
com mais força. Ficaram abraçados com muita ternura até que tiveram de se levantar. Despediram-se na pequena praça do costume e depois cada um entrou no seu carro
e afastou-se.
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Gioacchino nasceu em fins de janeiro. Léonie tinha estado toda a manhã no escritório com o sogro. Durante o almoço sentiu uma ligeira pontada no ventre que passou
imediatamente, de tal maneira que, quando Guido telefonou de Roma para saber se havia novidades, ela o tranquilizou: - Ainda falta uma semana, já sabes. Trabalha
sossegado.
Havia meses que o marido estava empenhado num projeto que o entusiasmava muito: uma história passada no século XIX, que se desenrolava entre Milão e o lago de Como.
As negociações com a administração da RAI andavam devagar porque, mais uma vez, mudara a direção e era preciso recomeçar do princípio. Guido conhecia-os a todos,
mas era realmente difícil concluir um acordo naquele mundo fortemente influenciado pelos partidos políticos.
Quando regressava a Villanova queixava-se disso, e uma noite, depois de ter contado a enésima tentativa falhada para definir um contrato, concluíra: - Não é só cansativo,
é também humilhante e dá-me vontade de mandar tudo e todos para o diabo.
- Ora aí está, muito bem, regressa ao teu lugar - comentou o pai, na esperança de que Guido voltasse a trabalhar na empresa.
Sabia que estava a gastar o seu latim, porque o filho nunca mais regressaria à Fábrica de Torneiras Cantoni depois daquela história terrível de que toda a gente
já se esquecera.
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Agora estava a falar ao telefone com Léonie e disse: - Tens a certeza de que se eu for na quinta-feira chego a tempo de ver o bebé nascer?
- Absoluta.
A meio da tarde foi ter com o avô Amilcare, que já não saía dos seus aposentos há algumas semanas por não ter forças para aguentar o percurso entre o quarto e a
sala de estar. Encontrou-o no sofá. Estava a dormitar enquanto uma empregada, sentada à frente dele, fazia malha e assistia a um concurso na televisão.
- Vou preparar uma tisana - disse a mulher, assim que viu Léonie entrar.
Léonie desligou o televisor, sentou-se num cadeirão ao lado do velho, acariciou-lhe uma mão e sussurrou-lhe: - Vim fazer-lhe companhia.
O velho abriu os olhos, olhou para ela, sorriu-lhe e disse: - És uma rapariga muito querida. Que horas são?
Perguntava as horas a toda a gente, havia já algum tempo, como se tivesse um encontro e receasse chegar atrasado.
- São cinco.
- Estava a sonhar - disse o velho Amilcare.
- Um sonho bonito?
- Era jovem e vigoroso. Estava sentado na relva, no jardim, a jogar dados com a Bianca. Estava também o Generoso Castelli, aquele alcoviteiro insuportável.
- E acrescentou: - Na minha idade posso, finalmente, dar-me ao luxo de dizer a verdade: sempre antipatizei com ele, apesar de o apreciar por ser um homem sincero
e infeliz.
- Mas agora está morto - observou Léonie.
- Paz à sua alma. Não é bonito dividir o amor por uma mulher com outro, mesmo quando se sabe que aquela mulher só gosta de nós.
Léonie sentiu mais uma leve pontada na barriga, pensou na criança que estava prestes a nascer, no marido e em Roger. Ao contrário de Bianca, que reservava para o
seu legítimo consorte toda a sua carga erótica e estava ligada a Generoso apenas por
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um sentimento de amizade, ela nutria por Guido um afeto autêntico e profundo que coabitava nela com a atração por Roger para quem, no entanto, reservava apenas um
pequeníssimo espaço na sua vida.
Emergiu dos seus pensamentos e sorriu a Amilcare Cantoni.
- São águas passadas, avô - disse-lhe.
- É verdade. Para além do mais, tive uma vida fantástica. Os meus filhos seguiram as suas inclinações com resultados excelentes. O meu neto casou-se contigo,
que pareces ter nascido para ter filhos e dirigir a empresa familiar. Todos carregamos dentro de nós as nossas angústias, até porque gostamos de mostrar uma aparência
perfeita. Quando envelhecemos, porém, temos de acertar as contas com o que ficou por resolver. Espero que os meus bisnetos, ou seja, os teus filhos, não se preocupem
tanto com a aparência mas mais com a essência.
A empregada entrou com duas tisanas.
- Também preparei uma para si, minha senhora - disse, oferecendo-lhe uma chávena.
- Pouse-a na mesa, por favor - pediu Léonie, que começava a sentir uma ligeira náusea, ao mesmo tempo que uma fisgada mais aguda lhe trespassava os rins.
Levantou-se com dificuldade da poltrona e sussurrou: Acho que tenho de ir já para a cama.
Quando se pôs de pé, sentiu escorrer pelas coxas um líquido quente.
- Romperam-se as águas - exclamou, preocupada.
- Oh, valha-me Deus, minha senhora! Eu vou já levá-la para a cama - disse a empregada, alarmada.
- Mas qual cama, chama mas é uma ambulância, ela tem de ir já para a clínica - interveio o velho Amilcare, que se tinha erguido de um salto, com uma agilidade
imprevisível.
Depois as coisas precipitaram-se. Léonie tinha agora contrações dolorosas, cada vez mais próximas, não encontravam o ginecologista, chamaram inutilmente uma ambulância.
O médico da aldeia chegou mesmo a tempo de ajudar a nascer o segundo
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filho varão da casa Cantoni. Guido ficou pregado ao telefone a falar com o pai, que estava do lado de fora do quarto de Léonie com Celina e com o avô. Seguiu as
fases do brevíssimo trabalho de parto e quando conseguiu falar com ela, disse: - Obrigado querida, és fantástica! Parto imediatamente e chego logo à noite' - Depois
acrescentou: - O que é que achas de lhe chamarmos Gioacchino?
- Como o tio? - perguntou ela.
- Para continuar com a letra G de Giuseppe.
- Çava- concluiu ela.
Mais tarde, o avô Amilcare voltou junto dela para verificar se estava bem.
- Pai, a Léonie precisa de descansar agora - disse Renzo Cantoni, que estava ao lado da cama da nora.
- Esta menina precisa de mim - decidiu o patriarca, afastando-o com um gesto imperioso.
O recém-nascido tinha sido entregue aos cuidados de duas empregadas e instalado no quarto ao lado. Giuseppe dormia um sono abençoado e ainda não sabia que iria agora
desempenhar o papel de irmão mais velho. Léonie, recostada nas almofadas, pensava no marido, que corria na autoestrada para vir ter com ela, e em Roger, a quem gostaria
de poder mostrar o seu fantástico menino. O velho estava sentado numa cadeira aos pés da cama e observava-a.
Então ela disse: - Avô, posso fazer-lhe uma pergunta?
- Com certeza - respondeu Amilcare.
- O Guido teve um filho de outra mulher, antes de se casar comigo?
Era uma pergunta que fazia a si mesma desde o dia em que> ao arrumar as gavetas do escritório do marido, encontrara uma espécie de carta, enrolada e presa com uma
minúscula pulseira de bolinhas de vidro coloridas. Numa folha ligeiramente amarelecida, estava escrito: coisas a fazer antes de nascer a criança" enumeradas em seguida,
uma atrás da outra, e identificadas com um número crescente.
Leu a lista até ao fim, depois voltou a dobrar a folha e colocou-a na gaveta juntamente com a pulseira.
- Não - respondeu Amilcare. E acrescentou: - Se o tivesse tido, tu não serias mulher dele.
- Não sei nada do passado do Guido - disse ela.
-É um vício de família, cada um guardar a sua mágoa.
- Sofreu muito? - perguntou ela ao avô.
- Sofremos todos. Mas acho que neste momento tu deves saber, e já que o meu neto nunca vai falar, falo eu.
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Guido era muito parecido com a mãe, mas havia sempre alguém que também reconhecia, em algumas das suas expressões, uma parecença com o pai. Nunca ninguém poria em
causa o facto de Renzo ser seu pai. Quando, ao crescer, assumia expressões ou comportamentos típicos dos Cantoni, dizia-se: - Lá está ele, é tal e qual o pai. -
E Renzo sentia orgulho nisso, porque sempre o considerara e amara como se fosse verdadeiramente seu filho.
Por seu lado, Guido sentia por ele um respeito reverencial e, quando era criança, escrevia-lhe pequenas cartas afetuosas. Para a mãe, que o mimava de mil e uma maneiras,
reservava toda a sua ternura.
Com a avó Bianca tinha uma relação conflituosa, porque ela, por vezes, punha-se ao nível dele e pregava-lhe pequenas partidas que ele retribuía. Acabavam por se
pegar e ela ficava amuada. Então Guido refugiava-se junto do avô, que o mantinha junto dele e o ensinava a tratar das plantas do jardim, a pescar no rio e a construir
carrinhos com pequenas tábuas de madeira enquanto lhe contava velhas histórias da aldeia. O avô conhecia todas as famílias da zona e a vida de toda a gente, e contava
essas histórias a Guido enriquecendo-as com pormenores. Ele escutava-o sem nunca se cansar. De vez em quando aparecia na villa o tio Gioachimo, que lhe oferecia
imagens de santos. Com mais frequência vinha Generoso Castelli, que Guido tratava por tio, e trazia-lhe
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presentes bons: uma bicicleta, uma enciclopédia para jovens, um telescópio para ver as estrelas. Depois o tio Generoso isolava-se na sala de estar com a avó e Guido
surpreendia-os em discussões acesas sobre assuntos incompreensíveis para ele.
Às vezes o avô levava-o à aldeia, à villa Olgiati, para conversar com os idosos que ali moravam.
A casa de repouso era, depois da empresa familiar, o passatempo de Amilcare. Tratava dela ativamente e, quando era o caso, intervinha com todo o peso da sua autoridade
para propor a admissão de um médico em vez de outro, escutava o pessoal e os doentes, discutia com as cozinheiras que preparavam as refeições, queria provar a comida
e dava-a a provar também a Guido.
- Vê lá este escalope e diz-me se gostas - pedia-lhe. Ou então: - Prova este doce e aquele também e diz-me de qual gostas mais.
Guido sentia-se importante quando era colocado perante uma escolha, apesar de saber que, em qualquer caso, seria o avô a decidir, ainda que tendo em conta os gostos
do neto. Depois Amilcare convocava ao seu escritório o responsável do economato e discutia longamente com ele sobre os custos, sobre as falhas de certos serviços,
sobre as vantagens de um método terapêutico em relação a outro.
Um vez o avô levou Guido a Roma. Amilcare marcara um encontro com alguém no Ministério da Saúde e Guido ficou junto dele enquanto ele expunha o seu pedido a um secretário
do ministro, que o ouvia com atenção.
Quando saíram, o avô disse-lhe: - Aquele fulano é um cretino. Não percebe nada. Tenho de falar diretamente com o ministro se quiser obter alguma coisa. Porque, estás
a ver, Guido, a villa Olgiati tem de se autofinanciar, só assim é que os nossos velhos ficam em segurança e ninguém os pode mandar embora.
Guido não percebia bem aqueles raciocínios, mas em qualquer caso eram estimulantes.
A relação com os outros avós, os condes Olgiati Tremonti, era muito menos envolvente. O avô conde gostava de gozar a vida e considerava o dinheiro como um mal necessário.
Renzo dizia:
- Entre o meu sogro e o dinheiro nunca houve sintonia. - A avó princesa, pelo contrário, parecia não querer saber de nada nem de ninguém e olhava para as coisas
do mundo com distanciamento. Às vezes afirmava que queria deixar Milão e ir viver com o filho para África. - Se não fosse por serem todos tão negros por lá, a minha
nora incluída, já tinha ido há muito tempo. Santo Deus, até a criadagem, com aquelas mãos negras... que preparam a comida, fazem as camas... enfim! Será que se pode
confiar? - E, com estas interrogações, nunca se decidia a partir.
Guido era a única criança num mundo de adultos. Celina nunca tinha querido mandá-lo para o infantário, mas Renzo quis que o menino frequentasse a escola primária
oficial, e nessa altura a villa encheu-se de crianças, porque Celina não perdia uma oportunidade para oferecer lanches a todos e tratava-os como se fossem seus filhos.
Ensinou muitos a nadar na piscina da villa e olhava para eles com ternura, suspirando: - Como eu gostava de poder ter dado ao meu filho uma quantidade de irmãozinhos
e irmãzinhas. - E a Guido dizia: - Um dia, quando fores grande e te casares, tens de ter muitos filhos, porque as crianças são uma bênção.
De entre os companheiros da escola primária, Guido tinha uma predileção por Amaranta Casile, filha de imigrantes calabreses que tinham vindo para o Norte empurrados
pela fome. Toda a gente lhe chamava Mara, mas ele gostava daquele nome doce e áspero que se adequava a ela, porque Amaranta tinha uma pele morena, os cabelos da
cor do trigo maduro e os olhos verdes como os dos gatos. Era magra como um prego e vestia roupas muito usadas, mas era tão forte como os rapazes, com os quais muitas
vezes se pegava por uma coisa de nada. E nunca chorava, nem mesmo quando saía das bulhas cheia de nódoas negras, nem mesmo quando a professora lhe ralhava por um
erro qualquer. Falava pouco, mas os seus olhos vivos exprimiam todo aquele orgulho que fascinava Guido, tal como a sua voz rouca.
Uma vez, ele meteu-lhe na pasta um bilhetinho que dizia: "Amaranta, tu fazes-me lembrar o sol. No outro dia toquei-te na
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mão e quase me queimei, de tão quente que ela estava. Às vezes, nem sequer consigo olhar para ti porque a tua luz me ofusca. Amo-te."
No dia seguinte, ela disse-lhe: - És maluco. - Ele envergonhou-se daquelas palavras estúpidas, escritas num impulso. Depois, Amaranta explicou-lhe: - Estou sempre
com febre, é por isso que a minha pele é quente. Mas somos pobres, não temos dinheiro para consultar um especialista e o médico da Caixa não sabe o que há de fazer
para me curar. De qualquer maneira, estou bem assim. Mas esquece lá a luz ofuscante e o sol. Por amor de Deus! O que sabes tu, que és um filho de boas famílias,
de como correm as coisas para os pobres? A minha mãe tem mais cinco filhos para criar e trabalha nos campos, o meu pai é pedreiro e ganha pouco dinheiro.
Guido acabara por confessar aquela história ao avô, dizendo-lhe: - Não os podemos ajudar?
- Ser rico não significa ser omnipotente. Se ajudássemos toda a gente, ao fim não podíamos ajudar mais ninguém. E depois também os pobres têm a sua dignidade.
Gostavas de dar dinheiro aos Casali, e depois? Quando acabasse o dinheiro, voltavam ao princípio.
- Então não há esperança nenhuma para eles?
- Esperança em quê? Na justiça social? Deixemo-la para os políticos, que a usam como slogan quando há eleições. Nunca houve nem nunca haverá justiça social.
Depois da escola primária, Guido foi mandado para um colégio, de acordo com a tradição familiar, e esqueceu Amaranta até ao dia em que, terminado o curso, entrou
na empresa para ficar ao lado do pai.
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Naqueles anos, a empresa familiar prosperara. Os Cantoni tinham restaurado e destinado unicamente a escritórios o velho edifício, sede histórica da Fábrica de Torneiras;
ao lado, tinham mandado construir um complexo moderno que dispunha de uma cantina para os operários e de um posto médico onde estavam sempre presentes uma enfermeira
e um médico. O número de empregados aumentara muito, de tal maneira que a quase totalidade da força de trabalho de Villanova estava ao serviço dos Cantoni.
A agricultura, que durante séculos tinha sido a única atividade daquela zona, dera lugar à indústria, e as áreas cultivadas foram destinadas à construção. A zona
periférica do antigo burgo era uma espécie de estaleiro onde se erguiam prédios para albergar as famílias dos trabalhadores que vinham em grande parte do Sul da
Itália. Os próprios Cantoni eram proprietários de uma dezena de edifícios cujos apartamentos eram alugados, a um preço moderado, aos operários da fábrica. Eram os
anos da contestação juvenil, das greves sem fim. Todos os operários estavam sindicalizados, exceto os da Fábrica de Torneiras Cantoni. Quando os representantes dos
sindicados iam à fábrica para tentar convencer o pessoal, ouviam responder: - Na verdade nós ganhamos o que é justo e fazemos os contratos diretamente com os patrões.
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Estavam conscientes do facto de que, ao fazer isso, não ajudavam os companheiros menos afortunados, mas sabiam também que todos os privilégios de que gozavam derivavam
da relação diária com Amilcare, o patrão, que tinha sido primeiro camponês e depois operário como eles, e falava a mesma língua. Os trabalhadores davam-lhe a conhecer
as suas dificuldades e Amilcare envolvia-os na vida e nos problemas da empresa. Se havia desentendimentos, juntos conseguiam encontrar uma solução satisfatória para
todos.
Amilcare explicara a Guido, desde que ele era um rapazinho: - A fábrica é a nossa família. Se dermos boas camas e boa comida aos empregados, eles gozam de boa saúde
e trabalham bem. Da mesma forma, se os nossos operários forem remunerados de forma adequada, se forem respeitados e se sentirem parte da empresa, trabalham melhor.
Lembra-te disso, porque um dia a Fábrica de Torneiras Cantoni vai ser tua.
Guido tinha já o futuro traçado. Mas preferia a leitura às torneiras, ou então a investigação no âmbito universitário, no entanto, não ousava confiar essa inclinação
a ninguém. Para além disso, conhecia bem a fábrica em toda a sua complexidade, tendo desde criança assistido às discussões e às reflexões entre o pai e o avô.
Depois de acabar a licenciatura inscreveu-se num curso de especialização numa universidade americana e passou um ano nos Estados Unidos. Naquele período entreteceu
algumas aventuras sentimentais, apaixonou-se por uma repórter da NBC e foi viver para casa dela em Nova Iorque. O problema foi que, após uma breve deslocação a Boston,
a encontrou na cama com outro. Ficou mais aborrecido pelo facto de ter de procurar sozinho um novo alojamento do que pela traição da rapariga. Quando regressou,
começou a trabalhar na empresa.
O médico da fábrica referiu-lhe que várias operárias sofriam de perturbações nervosas, de ansiedade, de transtornos psicológicos devidos à acumulação do trabalho
com as responsabilidades e as incumbências familiares. Guido falou sobre isso com o pai e propôs-lhe contratar uma assistente social. O projeto foi
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logo aprovado e posto em prática. Guido teve também a ideia de publicar um jornal no qual pudessem escrever os empregados da fábrica para exprimirem opiniões sobre
o trabalho, a empresa, a concorrência. Esse jornal deveria sair por ocasião do centenário da fábrica e, com grande sobriedade, Guido batizou-o como Notiziario. Chamou
para o dirigir um amigo que trabalhava num jornal diário de Milão. A iniciativa foi acolhida com entusiasmo pelos funcionários e na sua secretária choveram páginas
e páginas, quase todas manuscritas, muitas vezes com grafia e gramática claudicantes, muito interessantes. Guido apaixonou-se de tal maneira pelo Notiziario que
Renzo Cantoni, uma noite, disse à mulher: - O Guido veio trazer uma lufada de ar fresco para rejuvenescer a fábrica. Mas um dia vai ter de a governar, espero eu
pelo menos com o mesmo empenho com que trata do jornal.
Era o mês de julho e Guido trabalhara durante várias semanas na realização do número zero. Antes de o mandar imprimir, passou o dia a revê-lo com atenção, tendo
ao seu lado o diretor, que fora ter com ele à fábrica depois do almoço. Já tarde, quando operários e funcionários tinham ido embora e entrado de serviço os dois
guardas-noturnos, Guido e o jornalista despediram-se e cada um entrou no seu carro estacionado no parque. Guido ligou o motor, meteu a marcha-atrás e bateu contra
qualquer coisa que emitiu um grito agudo. Parou imediatamente, saiu e encontrou uma mulher no chão, com a bicicleta virada ao contrário. Foi ao encontro deles um
guarda-noturno a correr e a gritar: - A mulher vinha a pedalar como uma doida e o senhor não podia tê-la visto chegar, senhor doutor - explicou, não só para esclarecer
como acontecera o acidente, mas também para se pôr imediatamente do lado do patrão.
Guido nem sequer o ouviu, enquanto se debruçava consternado sobre a desgraçada.
Reconheceu-a imediatamente: era Amaranta Casile.
- Onde é que te dói? - perguntou-lhe, preocupado, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para a ajudar a levantar-se.
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- De lado - respondeu, quando estava já em pé, amparada por ele. Os cabelos desciam-lhe sobre os ombros magros.
- Estás inteira? - perguntou o guarda, aproximando-se deles
- Eu estou, mas a minha bicicleta... - protestou ela.
O guarda levantou a bicicleta e, enquanto endireitava o guiador entortado, continuou a resmungar: - Esta rapariga sai sempre tarde e arranca como um raio sem ver
por onde vai.
- Desculpa, Amaranta - disse Guido.
- E de quê, senhor doutor? A culpa é toda minha - replicou ela, fulminando-o com um olhar, ao mesmo tempo que pegava na bicicleta.
- Tratas-me por você?
- Não gosto de dar confiança aos patrões - respondeu, com um ar de desafio.
- Mas nós conhecemo-nos desde crianças... - disse ele, embaraçado.
A rapariga não respondeu, sentou-se no selim, ensaiou duas pedaladas incertas e depois partiu a toda a velocidade.
- Está tudo em ordem, senhor doutor - garantiu-lhe o guarda.
- Trabalha connosco, aquela rapariga? - perguntou Guido.
- No armazém - respondeu o guarda.
Guido entrou no carro e apercebeu-se de que lhe tremiam as mãos.
Na manhã seguinte, Guido foi para o escritório e pediu para consultar o organograma. Entre os nomes dos funcionários do armazém constava o de Amaranta Casile, de
vinte e quatro anos. Habilitações académicas: primeiro ciclo do liceu; experiência profissional anterior: empregada de bar; notas pessoais fornecidas pelo médico
da fábrica: febres persistentes de provável origem nervosa, temperamento difícil, trabalhadora meticulosa.
Poucas palavras para descrever uma pessoa que desempenhava conscienciosamente o seu trabalho. Na noite anterior, ao socorrer Amaranta, tinham-lhe aflorado todas
as emoções que sentira quando eram colegas de escola. Recordou a sua paixão infantil e apercebeu-se de que aquela rapariga continuava a atraí-lo como um íman.
A pele morena, os cabelos cor de trigo, os grandes olhos verdes, muito vivos e penetrantes, tornavam-na irresistível. E a sua voz rouca tinha qualquer coisa de cativante.
As raparigas com quem Guido se relacionava pertenciam a um mundo muito diferente do de Amaranta e nenhuma delas suscitara nunca nele um mteresse nem de longe comparável
ao que sentia por ela.
Foi ele mesmo levar de volta a documentação ao gabinete do Pessoal e perguntou a uma funcionária se Amaranta Casile se aPresentara ao trabalho.
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A mulher percorreu rapidamente os cartões das presenças e disse: - Picou o ponto, como todos os dias, com dez minutos de antecedência. Chega sempre cedo e vai-se
embora depois da hora de fecho.
- Obrigado - respondeu Guido, e saiu do gabinete. Naquela manhã não conseguiu concentrar-se no trabalho.
Estava irritado com ele próprio, porque o encontro com Amaranta o tinha perturbado muito e tudo isso lhe parecia ridículo e irracional. Então ligou a um amigo de
Villanova que, tal como Amaranta, fora colega dele na escola primária e, em seguida, frequentara o ISEE Agora era professor de ténis e de vez em quando jogava com
ele no clube de ténis local.
- Tens uma hora para mim? - perguntou-lhe.
Saiu do escritório e foi jogar. Depois almoçou com ele no restaurante do clube.
Enquanto comiam uma salada, Guido perguntou-lhe: - Ainda manténs contacto com algum dos nossos colegas da primária?
- Sim, com a Giovanna Zappa e com o Fausto Baroni. Lembras-te dele? Parecia o atrasado mental da sala. Pois bem, é professor de Música e segundo violino na
orquestra do Scala. Agora anda em digressão pela América do Sul. Dá-me sempre bilhetes para os concertos. Se quiseres, peço-lhe para ti também. Também vejo a Francesca,
a filha dos Ratti...
- Com essa também me encontro, de vez em quando, em alguma festa.
- Licenciou-se em Química e faz investigação na universidade. É uma rapariga lindíssima! Namora com um advogado de Milão. E também...
- Lembras-te da Amaranta Casile? - disse Guido, como que por acaso.
- A Mara? Sim, lembro-me, chamávamos-lhe lagartixa porque tinha uma cor de pele estranha, um corpinho muito seco e fugia assim que alguém se aproximava dela.
Não, nunca mais a vi. Vivia numa casinha mal-amanhada com um rancho de irmãos. Gente paupérrima...
Guido regressou ao escritório e decidiu que nessa noite, depois do jantar, ia pedir notícias de Amaranta ao pai, que conhecia todos os funcionários e, certamente,
saberia também alguma coisa sobre ela. Mas teve vergonha daquele interesse excessivo pela rapariga, não falou com o pai e telefonou a Bona Visconti a convidá-la
para ir ao cinema em Milão.
De entre as pessoas da sua idade com quem se dava destacava-se precisamente Bona, uma rapariga que não lhe era indiferente. Trabalhava num gabinete de arquitetura
como decoradora de interiores e também ela, em mais do que uma ocasião, lhe dera a entender que apreciava a sua companhia. Naquela noite, depois do cinema, foram
parar ao corso Vittorio Emanuele.
- O que é que vamos fazer? - perguntou Guido.
- Amanhã de manhã tenho uma inspeção num edifício no corso Magenta. Eu vou para casa - respondeu Bona.
- Vou levar-te - propôs Guido.
Bona era desenvolta e espirituosa e riram juntos de alguns disparates até chegarem à porta de casa dela, onde trocaram novidades sobre as férias que se aproximavam.
- Tenho um amigo americano que vai ficar hospedado em nossa casa daqui por uns dias. Programámos uma viagem à Irlanda e depois queremos passar alguns dias
nas ilhas Aran. Alugámos um barco e vamos à pesca da lagosta - contou Guido.
- Eu vou estar em Cap Ferrat com os meus pais. A casa é grande e podemos receber também o teu amigo.
- Obrigado. Depois eu digo-te alguma coisa - respondeu ele, à espera que Bona abrisse o portão.
- Boa-noite - disse ela, ao mesmo tempo que levantava o rosto à espera de ser beijada.
E Guido beijou-a. Na face. Regressou a Villanova de péssimo humor. Era meia-noite, e o pai e a mãe estavam no jardim com os avós e Generoso Castelli.
- Resolveram oferecer-se como refeição aos mosquitos? perguntou Guido.
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- Há orchata fresca - disse Celina ao filho, indicando-lhe um carrinho de chá onde o gelo ia derretendo no balde de prata.
Guido sentou-se com eles e perguntou: - Aconteceu alguma coisa para estarem ainda acordados a esta hora?
- O Generoso apareceu às dez horas da noite para nos contar que comprou um barco a um comerciante de cerveja alemão. Diz que fez um grande negócio, porque
tem comandante, três marinheiros e dois empregados. Todos alemães. Imaginas um barco pilotado por alguém de Munique? Insiste em que devemos ir todos fazer um cruzeiro
pelas ilhas gregas - explicou Renzo ao filho.
- Isso mesmo - intrometeu-se Generoso -, pode ser muito divertido, não achas?
À luz trémula das velas antimosquito, Guido observou o avô, ligeiramente irritado com aquele programa que não o entusiasmava, a avó, já numa excitação com o novo
projeto, o pai, certamente preocupado por deixar a empresa em outras mãos durante a sua ausência, a mãe, conciliadora e disponível como sempre, e o amigo da família,
constantemente desejoso de se sentir aceite. Aquele plácido cenário noturno era como a água opaca de um lago que esconde no fundo um pulular de vida inquieta.
- Parece-me uma ideia fantástica, o cruzeiro na Grécia observou Guido.
- Seria, se houvesse connosco alguma juventude - disse Celina.
Era evidente o desejo de o envolverem, uma vez que ninguém ousava recusar o convite de Generoso.
- Mas os jovens não se iam sentir bem neste lar de terceira idade - rematou o avô.
Guido pensou em Amaranta e imaginou-a estendida ao sol, no convés do iate, e viu-se a si mesmo debruçado sobre ela a mirar-se nos seus olhos de gata.
Guido, que nunca queria desagradar ao pai, acabou por se sacrificar e aceitar aquelas férias com a família, para as quais convidou também o seu hóspede americano,
dois amigos de Milão, que tinham sido abandonados pelas namoradas, e Bona Visconti. Esta última aceitou o convite porque esperava que Guido quisesse apresentá-la
à família.
Provavelmente, não se enganava de todo, porque ele gostava de Bona. A sua beleza discreta, a elegância dos gestos, o temperamento calmo faziam-lhe lembrar a mãe
mas, ao contrário de Celina, Bona era combativa. Depois de acabar o curso de Arquitetura, começou a trabalhar para ajudar a sua família de inúteis, criados na abundância.
Guido, porém, não tinha nenhuma intenção de se casar. Quando Celina lhe dizia: - Casa-te e dá-me muitos netinhos -, ele respondia: - Eu caso-me, mas o mais tarde
possível.
Apesar de o convívio num barco não ser sempre fácil, as férias correram bem para toda a gente. O clã dos mais velhos não era invasivo. A noite, os jovens iam a terra
para se divertirem nos bares enquanto os Cantoni jantavam a bordo e se deitavam cedo.
Quando o barco atracou ao largo da ilha de ítaca, onde a avó Bianca já estivera alguns anos atrás, foram todos a terra. Bianca queria mostrar aos jovens os locais
onde ficava, segundo a lenda,
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o reino de Ulisses. Depois, aterrorizada com uma cobra que surgiu do meio de umas pedras ao longo do caminho, regressou imediatamente a bordo.
Uma semana depois, os jovens começaram a ir embora. Guido e Bona continuaram o cruzeiro e foram até às Espórades. Tomaram um último banho ao largo da pequena praia
de Mandraki, em Skiathos. À noite, subiu a bordo uma pequena orquestra local e dançaram o sirtaki no convés do iate. Inesperadamente, a avó Bianca também quis dançar
e tentou arrastar Amilcare, que não lhe ligou. Acabaram por discutir em frente aos músicos, que se riam da situação e sublinhavam aquela troca de palavras com acordes
de violino apropriados. De repente, a avó agarrou num cinzeiro de cristal pesado para agredir Amilcare e ele, com a agilidade de um atleta, com uma mão bloqueou-lhe
o pulso magro e com a outra agarrou-a pela cintura e arrastou-a para o interior do barco.
Tudo aquilo durou apenas uns instantes. Os músicos não pararam de tocar, Renzo, Celina e Generoso continuaram a conversar e o empregado serviu champanhe gelado.
Bona sussurrou ao ouvido de Guido: - Explicas-me o que aconteceu?
- Nada, absolutamente nada - respondeu ele, tranquilo.
- Mas como? Ela ia agredir o teu avô. Achas que isso não é nada? - insistiu Bona.
- A avó é doida, sempre foi. É possível que nestes dias se tenha esquecido de tomar os comprimidos que a mantêm calma - explicou-lhe.
- Mas isso é horrível - murmurou a rapariga.
- Não, para nós é completamente normal - replicou Guido. Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, a avó, envolvida
num robe de voile de seda azul e numa nuvem de perfume Givenchy, chilreava como um pássaro, enquanto Amilcare e Generoso se riam de qualquer coisa que ela acabara
de contar. Bona sentou-se à mesa com eles e, enquanto Guido devorava café e tarte de damascos, ela observava, perplexa, o rosto radiante de Bianca.
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O barco velejava em direção a Atenas, onde os dois jovens iam desembarcar para regressar a Itália.
Guido, notando o seu silêncio, perguntou a Bona: - Sentes-te bem?
- Dormi pessimamente e estou cansada - respondeu a rapariga.
Tinha passado a noite a tentar convencer-se de que a loucura daquela avó não tinha nada a ver com o rapaz dos seus sonhos. Mas não conseguiu. Sabia que a loucura
é um mal hereditário, e por isso, provavelmente, Renzo Cantoni e o seu filho Guido também eram doidos. Seria boa ideia ligar-se a ele?
Quando regressaram a Milão, não repetiu o convite para Cap Ferrat e Guido, que intuíra as suas razões, não lho lembrou.
As férias na Grécia tinham sido uma espécie de prova dos nove. Guido sentira-se bem com Bona, mas não tinha deixado, nem um só dia, de pensar em Amaranta, apesar
de ter consciência de que também aquela ideia fixa era uma forma de loucura.
Regressou à villa, onde estava só um casal de criados idosos com um neto de poucos anos. O menino olhava com curiosidade para "o doutor" e andava atrás dele por
todo o lado, quase à socapa, como se Guido fosse um extraterrestre. Ele gostava de ter o miúdo à volta dele e, quando resolveu ir à fábrica, meteu-o no carro e levou-o
também. A empresa estava fechada para férias mas estava lá o guarda, com quem Guido conversou, de mão dada com o rapazinho.
Levou-o ao escritório, onde leu os telexes que tinham chegado durante a sua ausência, e abriu a correspondência, enquanto deixava o miúdo brincar com os clipes e
os carimbos. Tomou algumas notas para falar com o pai, quando ele ligasse da Grécia, e para algumas encomendas que não tinham sido concluídas. Depois saiu com o
menino do edifício dos escritórios e chamou o guarda para lhe abrir o armazém.
Queria ver o lugar onde Amaranta trabalhava. O miúdo agarrava a mão dele com força, com a mesma confiança de um náufrago ao agarrar-se a um destroço.
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À entrada do armazém, que era um enorme labirinto de estantes altíssimas, atulhadas de mercadoria, abria-se à esquerda uma grande janela de vidro que o separava
dos escritórios. O guarda abriu-lhe a porta e entraram num grande aposento com cinco secretárias. Guido identificou imediatamente a de Amaranta, sobre a qual estavam
pousados alguns pequenos animais em cerâmica e uns vasos minúsculos com flores artificiais.
Aproximou-se da secretária e mandou o miúdo sentar-se na cadeira.
- Diz-me tudo o que vês - disse-lhe Guido.
- Dois patinhos, um pinguim, um copo com lápis e canetas, uma Nossa Senhora com um colar colorido... - Guido interrompeu-o e perguntou-lhe: - Na tua opinião,
quem é que está sentado nesta secretária?
- Eu - respondeu prontamente.
Guido riu-se, divertido. O "colar" que enfeitava a pequena estátua de Nossa Senhora era a pulseira de bolinhas de vidro que Guido tinha oferecido a Amaranta quando
eram colegas de escola. Reconheceu-a imediatamente.
Disse ao menino para se levantar da cadeira. Com um gesto impercetível, tirou a pulseira e meteu-a no bolso.
Na manhã seguinte, partiu para a Irlanda com o amigo americano.
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No fim das férias Guido voltou a trabalhar na fábrica e estava todos os dias à espera de encontrar Amaranta.
Um fim de tarde, da janela do escritório, viu-a a afastar-se de bicicleta. Então, antes que o guarda fechasse a porta, entrou no armazém e enfiou no pescoço da estátua
de Nossa Senhora uma pulseira de ouro amarelo feita com muitos coraçõezinhos ligados entre si de modo a formar uma corrente. Comprara-a em Dublin, no regresso das
férias.
Tinha plena consciência de que se estava a comportar como um idiota, mas não conseguia tirar Amaranta da cabeça.
Aquela rapariga inconstante, de certa forma, fazia-lhe lembrar a avó Bianca. Ele, que herdara da mãe um carácter equilibrado e um comportamento comedido, ficava
fascinado com aquela avó imprevisível que parecia não se importar com as conveniências, só ouvia as suas pulsões e não fazia nada para ser do agrado de ninguém.
Pensou que talvez o avô Amilcare tivesse sido atraído por Bianca Crippa, tal como ele o era agora pela arisca Amaranta Casile, por ser tão diferente.
Depois de lhe ter deixado a pulseira de ouro, esperou que Passassem alguns dias e então decidiu abordá-la. Uma noite, saiu
do escritório, entrou no carro e, em vez de se dirigir à villa, meteu
Pela estrada que ia dar à aldeia.
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Estacionou o carro junto à berma coberta de erva que ladeava um pequeno fosso de água gorgolejante e esperou. Quando viu chegar Amaranta na sua bicicleta, pôs-se
no meio da estrada e a rapariga parou. Pôs um pé no asfalto e olhou para ele sem lhe dirigir uma palavra.
Também Guido não conseguiu falar. Tinha a boca seca e, entretanto, perguntava a si mesmo o que estava ali a fazer, naquela situação humilhante. Abanou a cabeça,
desanimado, virou-se e dirigiu-se ao carro. Pôs a mão no fecho da porta e, então, ela perguntou-lhe: - Porque me roubaste a pulseira?
- Substituí-a por uma mais digna - respondeu, voltando-se.
- Mais digna de quem? De quê? Se calhar eu gostava mais da outra.
- Quando ta ofereci, não me pareceu que a tivesses apreciado muito. Mas depois encontrei-a na tua secretária e, agora, vejo que tens a pulseira nova enfiada
no pulso.
- É de ouro. Ainda alguém pegava nela.
- Não consegues dizer que gostaste?
- Não - respondeu. E acrescentou: - De qualquer modo, obrigada. Apesar de não saber porque foi que ma ofereceste.
- Sabes perfeitamente. Tanto é assim que voltaste a tratar-me por tu, não me atropelaste com a bicicleta, como receei por um instante, e me detiveste quando
eu estava para me ir embora porque não sabia o que havia de te dizer. - Guido meteu uma mão no bolso das calças, tirou de lá a pequena pulseira de perolazinhas coloridas
e prosseguiu: - Passaram catorze anos desde que fizemos o último ano da primária. Conservaste-a durante todo este tempo.
- Foste o primeiro menino que me deu um presente. Eu não estava habituada a essas coisas. E vamos ficar por aqui - concluiu ela, ao mesmo tempo que se afastava,
pedalando com energia.
Trazia um vestido modesto de chita e, nos pés, sapatos de corda e pano preto.
Guido entrou no carro e regressou a casa.
No largo em frente da casa estavam estacionados alguns carros azuis e os motoristas seguiam uma empregada que os ia conduzindo à sala de jantar dos funcionários.
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- Tinha-me esquecido! - exclamou Guido, e enfiou-se, atravessando do terraço, numa passagem de serviço para chegar ao quarto e mudar de roupa.
Naquela noite o pai convidara para jantar "os açougueiros". Era assim que chamavam à família Panigada, proprietária da maior cadeia de distribuição alimentar recentemente
cotada na Bolsa, e que há pouco tinha adquirido a quota maioritária de uma importante cadeia hoteleira. Os trabalhos de remodelação dos hotéis tinham sido entregues
à empresa de Generoso Castelli e, para a parte hidráulica, tinha sido assinado um contrato com os Cantoni.
Guido fora chamado para participar nas negociações, que se tinham concluído com sucesso alguns dias antes, e o convite para a villa representava a coroação daquele
negócio notável. O cozinheiro e o pasteleiro estavam a trabalhar na cozinha há alguns dias e também tinha sido necessária a participação da avó Bianca, que era insuperável
na escolha dos menus.
Os Panigada tinham duas filhas gémeas, de vinte e dois anos e muito bonitas. Uma era campeã de offshore, a outra tinha concluído um mestrado em Gestão Empresarial.
A desportista estava noiva de um conhecido gestor da televisão, a outra estava apenas ligada ao seu trabalho.
Renzo Cantoni e a mulher tinham convidado também as raparigas e pedido a Guido que participasse no jantar. Mas ele tinha outra coisa na cabeça e quase se esquecera
daquele compromisso, marcado há muito tempo.
No entanto, durante o jantar, foi amável com os convidados e em particular com a signora Panigada, que elogiava, a cada nova travessa, os pratos "do chefe" da casa
Cantoni e discorria com desenvoltura sobre os cortes das carnes, estendendo-se em minuciosas descrições sobre o ato de desossar as várias peças dos animais e criando
um certo embaraço às filhas e aos outros comensais.
A campeã de offshore, a certa altura, reagiu: - Mãe, para com isso. Essas conversas horripilantes incomodam toda a gente.
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A mãe zangou-se. - Para tu com isso. Eu não me envergonho de dizer que as jóias que uso foram compradas com o dinheiro que ganhei a vender quartos de boi, enquanto
tu até tens a coragem de te declarares vegetariana. Se toda a gente se tornasse vegetariana, bem podias esquecer os teus barcos a motor.
A avó Bianca ria-se, a esconder os lábios atrás do guardanapo, e sussurrou ao ouvido do neto: - É bem melhor a açougueira do que a filha. Não achas?
Guido sorriu-lhe com um ar cúmplice. Observava as duas gémeas milionárias e pensava em Amaranta, nos seus sapatos de pano, na sua vida difícil de rapariga pobre.
Quando a avó anunciou que se queria retirar porque estava cansada, ele foi com ela para se esquivar à conversa com a família Panigada. Assim que entrou na antecâmara
dos seus aposentos, Bianca começou a queixar-se de Renzo e Celina, dizendo a Guido que tinham aquela estúpida mania de se quererem ligar a uma família rica.
- Eu não quero saber, avó. Não te zangues por causa disso disse o neto.
- Estás a ver no que se tornou aquela pobre açougueira? Um fantoche de quem as filhas se envergonham. E a condessa, tua mãe, que até teve uma educação perfeita,
ainda carrega nos ombros o medo da miséria e era capaz de fechar um olho, ou se calhar os dois, se tu te casasses com uma das duas gémeas milionárias.
- Mas a mãe estava apaixonada pelo pai - sublinhou o neto.
- Não sei... talvez... mas não tenho a certeza de que tenha sido uma mulher feliz. Eu fui, com o teu avô, que não tinha nada. O dinheiro é a farinha do diabo
- sentenciou.
- Concordo contigo. De facto, eu gosto de uma rapariga que não tem nada, e nem sequer é muito bonita - deixou escapar.
- Olha, olha! E quem é ela? Conta-me tudo. Já sabes que eu gosto de histórias de amor.
Guido contou-lhe o pouco que tinha a dizer a propósito de Amaranta.
- Tem cuidado para não estragares a tua vida porque, pela maneira como falas, isso é só uma paixão irracional que, assim como veio, também vai embora. Aquela
desgraçada que faz os registos das descargas de mercadoria... sabes, a paixão entre dois jovens, quando é limitada à epiderme, esgota-se.
- Porque é que vais tão depressa? Eu nem sequer sei se algum dia vou conseguir convidá-la para almoçar - disse Guido.
- É melhor assim. Nunca a convides. Mas não vale a pena dar-te conselhos porque, em qualquer caso, não os vais ouvir.
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Efetivamente, Guido não os ouviu. De dia trabalhava e, à noite, quando os funcionários saíam para regressar a casa, ficava à janela do escritório para ver Amaranta
afastar-se na sua bicicleta.
Aquilo que o impedia de a procurar era o medo das bisbilhotices. Não queria que Amaranta fosse motivo de conversa de toda a gente, nem queria isso para ele próprio.
Esperava, sem grande convicção, que aquela paixão por ela enfraquecesse. E, entretanto, saía muitas vezes com os amigos de Milão e procurava distração na companhia
de outras raparigas.
De vez em quando saía em trabalho e, quando regressava, ao fim do dia, não conseguia deixar de espiar Amaranta da janela do escritório. Era já outono e ela andava
embrulhada num casaco de lã grossa e trazia os cabelos loiros escondidos debaixo de um gorro preto. Quando chovia, via-a partir em grande velocidade na bicicleta,
com uma capa de plástico amarela a protegê-la. Quanta ternura lhe inspirava aquela rapariga só, de quem não sabia nada e de quem ninguém falava porque pouca gente
a conhecia e, em qualquer caso, não havia nada a dizer dela.
Chegou o inverno e Guido tinha programado um fim de semana em Sestriere. Na manhã da partida, entrou no jardim de inverno para tomar o pequeno-almoço. O pai já estava
à mesa a comer um doce napolitano que um cliente de Salerno lhe mandava todos os anos pelo Natal.
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- O que é que estás a fazer a pé a esta hora? - perguntou-lhe, sentando-se diante dele.
Ainda não eram sete horas e Guido queria dar um salto ao escritório para ver o correio, antes de partir.
- Foi don Tranquillo que me acordou. Guido, faz-me um favor, há um mês que anda atrás de mim e eu esqueço-me sistematicamente de passar por lá. Quer mudar
as torneiras da casa de banho do centro paroquial - explicou.
- E então? Qual é o problema? Já sabes que somos nós que nos encarregamos das despesas da paróquia.
- Mas quer que eu verifique o estado de deterioração das torneiras para que não se pense que ele se quer aproveitar. Vai lá tu, por favor.
- Quando?
- Agora. Sai o dente, passa a dor. Vê o que é preciso fazer e na segunda-feira mandas-lhe um canalizador.
Guido não ousava nunca negar um favor ao pai e prometeu ir ter com don Tranquillo, apesar de aquela visita atrasar a sua partida para a montanha.
Entrou no centro paroquial. Ernestina, a velha criada, estava a cortar fatias de pão na bancada da cozinha.
- Don Tranquillo está a rezar a missa - explicou ao jovem Cantoni.
Guido estava com pressa.
- Tenho de ver as casas de banho do centro. Posso fazer isso sozinho - respondeu.
Conhecia bem o lugar, que frequentara quando era criança.
- Não, ele quer falar consigo - rematou a mulher.
Guido foi à igreja e aproximou-se do altar. Don Tranquillo lia o Evangelho do dia para uma única paroquiana, sentada no banco da primeira fila, a da família Cantoni,
com o rosto inclinado e as mãos postas. Era Amaranta. Guido estacou, com o coração num tumulto. Depois, em bicos de pés, foi sentar-se junto dela.
- Olá - sussurrou.
O padre estava a acabar a leitura e, quando o viu, fez-lhe um gesto de saudação.
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- Olá - disse ela, olhando-o de soslaio.
Estava enfiada num casco de carneira e calçava umas botas de borracha para aguentar a neve que cobria as estradas.
- O que é que estás a fazer na igreja, a esta hora? - perguntou Guido.
- Estou a rezar - respondeu.
Levantou-se para receber a comunhão, depois regressou ao seu lugar e isolou-se na oração. Don Tranquillo acabou de celebrar a missa e abençoou os dois jovens.
Depois desceu do altar, aproximou-se de Guido e disse-lhe: - Vai ter comigo à sacristia.
Guido respondeu com um gesto de assentimento e seguiu Amaranta até ao exterior da igreja.
- Ao sábado, quando podias dormir, acordas de madrugada para vir à missa? - perguntou-lhe.
Ela enterrou o gorro de lã na cabeça e respondeu: - Venho aqui todas as manhãs, mesmo quando, como hoje, don Tranquillo diz a missa só para mim.
- Porquê? - insistiu ele.
- Rezar faz-me sentir bem - respondeu, e enfiou as luvas de lã, ao mesmo tempo que atravessava o adro em passo rápido.
A respiração de ambos formava pequenas nuvens de vapor no ar gelado do início da manhã.
- Tens assim tantos pecados a perdoar? - brincou Guido.
- Como toda a gente, acho eu. De qualquer modo, rezo para que o Senhor me indique o caminho a seguir.
- Não te percebo.
- Percebo eu e chega.
- Não queres parar um segundo? Estou a falar contigo! Então ela estacou e, olhando-o bem de frente com os seus
olhos de gata, replicou: - Estou a ouvir.
Naquele momento, Guido ignorou a partida para a montanha, onde se ia divertir com os amigos, e perguntou: - Queres vir hoje almoçar comigo?
- Está bem - respondeu ela, deixando-o paralisado, porque não estava à espera que aceitasse.
- Posso ir buscar-te à uma hora? Vou levar-te a Milão, a um restaurantezinho engraçado...
- Não. Conheces a pizzaria da Rita? É aquela ao fundo da praça. Espero-te lá à uma. E agora vai ter com o padre que está à tua espera.
Guido achava que não havia necessidade de criar mexericos na aldeia por aparecer com ela. Ia levantar uma objeção, mas ela já tinha montado na bicicleta e afastara-se.
Don Tranquillo estava à espera dele na sacristia.
- Porque é que foste atrás da Mara? - perguntou imediatamente, em tom severo.
- Porque gosto dela - surpreendeu-se Guido a responder.
- É muito boa rapariga, mas não serve para ti. Deixa-a em
paz.
- Éramos colegas de escola na primária e ela ia a nossa casa quando a minha mãe oferecia o lanche às crianças da aldeia.
- Mas agora já não são colegas de escola e ela é uma operária tua. Respeita-a - afirmou don Tranquillo, olhando-o com um ar ameaçador.
- Acha que eu sou do género de importunar as operárias? perguntou Guido. E prosseguiu: - O facto é que ela me evita como se eu fosse contagioso.
- Não quero saber nada disso, só te digo que fiques longe dela. E agora vamos lá ver as torneiras - rematou o padre.
- Diga-me alguma coisa da Mara - insistiu Guido.
- Não me faças perder tempo porque eu tenho de ir ter com os doentes e, mais tarde, ainda vou ter de discutir com o homem que me arranja o carvão - resmungou.
Guido constatou o mau estado das torneiras, tomou nota do trabalho que era preciso fazer e preparava-se para se despedir de don Tranquillo quando o padre lhe disse,
perentório: - Dedica-te às meninas do teu nível e deixa em paz a Mara, que já tem os seus problemas.
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A pizzaria da Rita era um sítio acanhado e sombrio com meia dúzia de mesas, um forno a lenha que fazia muito calor e um balcão onde era vendida a pizza para levar
para casa. O espaço estava impregnado de um cheiro denso a óleo queimado e mozzarella derretida. Atrás do balcão, uma mulher ainda jovem com uma touca branca dobrava
folhas de cartão para formar com elas umas caixas planas para meter as pizzas, enquanto um rapaz enfezado alinhava bolas de massa já levedada. O forno à vista, para
além de aquecer o espaço, também o iluminava.
Amaranta estava sentada a uma mesa e sorriu a Guido assim que o viu entrar.
- Já pedi duas Margaritas. Em cima do balcão estão duas Coca-Colas para nós. Podes ir buscá-las?
Ele obedeceu. Depois tirou o sobretudo e pendurou-o num cabide, ao lado do casaco comprido de Amaranta. Por fim, sentou-se à frente dela. Ficou a contemplá-la durante
uns longuíssimos segundos e mais uma vez não lhe saíram as palavras.
- Então? - espicaçou-o Amaranta, com uma voz tranquila.
- Don Tranquillo, hoje de manhã, disse-me, aliás, ordenou-me, que te deixasse em paz.
- Viu-me crescer e é muito protetor. O que queres de mim? - perguntou. Pousou os cotovelos na mesa e entrelaçou as mãos.
Através da manga esbambeada da camisola via-se a minúscula pulseira de ouro com coraçõezinhos que ela trazia no pulso.
- Já te disse que te tornaste numa espécie de obsessão? Não consigo deixar de pensar em ti. Passamos os dias no mesmo sítio e eu tenho de me refrear de ir
à tua procura.
- Não estamos no mesmo sítio: tu estás no palacete dos escritórios, eu estou no armazém. A distância é mínima, mas separa-nos um universo. Já percebi que
querias andar comigo, mas não é possível... ainda não - disse ela, hesitante.
- Porquê? - perguntou Guido.
- Não sei se, no esquema que Deus tem em mente para mim, também entras tu - respondeu, deixando Guido estupefacto. E prosseguiu: - Há muito tempo que Lhe
peço para me indicar o caminho, só que Ele continua calado. Mas não sabe com quem se está a meter: sou uma calabresa teimosa e, ao fim, saberei qual é a minha estrada.
Peço a Deus para me indicar o caminho e vou segui-lo com confiança. Fui clara?
- Se eu fosse a ti, deixava Deus sossegado, tem mais que fazer. E, de qualquer modo, se me disseres que não sentes nada por mim, eu vou-me embora e nunca
mais te procuro - disse ele, impaciente.
Entraram na pizzaria dois clientes que se sentaram a uma mesa ao lado deles, fazendo um gesto de saudação a Amaranta. Ela sorriu-lhes e depois sussurrou a Guido:
- Tu és a minha ideia fixa desde sempre.
- Aqui estão as vossas pizzas - anunciou a dona atrás do balcão. Levantaram-se os dois para irem buscar os pratos.
As pizzas, altas e crocantes, estavam deliciosas. Devoraram-nas em silêncio, enquanto Guido recordava, feliz, as palavras de Amaranta.
- Vim a pé. Por isso, se quiseres, podes levar-me a casa - propôs ela.
- Tens a certeza? - perguntou ele, sabendo que toda a aldeia ia vê-los juntos e que isso ia dar origem a mexericos.
- Não tenho nada a esconder.
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Guido aproximou-se do balcão para pagar a conta.
- Já está - disse Rita. E acrescentou: - Com a Mara não há contas a pagar, mas se gostou da pizza, faça-me publicidade, Dr. Cantoni.
Amaranta sorriu e explicou: - Quando tenho tempo, à noite, venho aqui ajudar a Rita. Assim, como se costuma dizer, uma mão lava a outra.
Atravessaram a aldeia e Guido parou o carro em frente à antiga herdade Pompea, um complexo agrícola abandonado e transformado em minúsculas habitações para as famílias
operárias. Amaranta contou a Guido que vivia ali com uma mulher idosa a quem chamava tia, mas que era apenas uma prima da mãe. Tinha sido ela a mandar vir os pais
da Calábria para Villanova.
- Quando tu já estavas no colégio, eu andava aqui no liceu. Esperava que chegasse o verão para te voltar a ver, perguntando a mim mesma se ainda virias ter
comigo. Mas, afinal, tu tinhas-me esquecido, enquanto eu ia até ao limite do parque, de bicicleta, e te espiava de longe quando estavas no jardim com os teus amigos.
Eram todos tão bonitos, elegantes, desenvoltos. Eu ouvia as vossas vozes límpidas. Observava-vos e derretia-me contigo. Depois morreu o meu avô paterno e regressei
à Calábria com a minha família - contou ela.
- Quanto tempo ficaste no Sul? - perguntou Guido.
- Dois anos. Quando regressei a Villanova, fui trabalhar naquela pizzaria grande na estrada nacional. Fazia turnos pesadíssimos e ainda tinha de me defender
dos clientes bêbedos. Depois soube que havia um lugar livre na fábrica de torneiras, apresentei-me e contrataram-me. Tu andavas na universidade e eu sentia-me feliz
por trabalhar na tua empresa, era uma maneira de estar perto de ti. Não imaginas as minhas fantasias de rapariga. Tu eras um príncipe encantado que se ajoelhava
aos meus pés e me dizia: "Queres casar-te comigo e tornar-te minha princesa?" Depois as fantasias acabaram e, no entanto, eu continuei a pensar em ti. Alguns rapazes
fizeram-me a corte, mas para mim só existias tu. Então comecei a interrogar-me sobre o absurdo deste
sentimento, que é como uma fixação. A oração sempre me ajudou e decidi rezar com mais intensidade e pedir a Deus que me indicasse o meu caminho. Estou à espera da
resposta - concluiu Amaranta.
- Eu estou aqui contigo. Não é esta a resposta que procuravas? - perguntou ele, comovido com aquela longa confissão.
- Não sei. O Senhor ainda não falou comigo - respondeu. E acrescentou: - Se calhar está a dizer-me que se ficássemos juntos tu te ias cansar depressa de uma
pessoa como eu, porque sou rude e ignorante e não quero ser um capricho de ninguém, nem mesmo teu.
Guido acariciou-lhe o rosto com delicadeza e contemplou os lindíssimos olhos verdes de Amaranta que o fitavam com uma tal intensidade que o deixavam perturbado.
- Apetecia-me tanto beijar-te - disse ele.
- A mim também me apetecia, mas não o faças, por favor. Falei-te com sinceridade, já sabes o que eu penso e, portanto, não tornes as coisas mais difíceis
para mim. Não me quero tornar tua amante e não me posso casar contigo
- Claro que podias.
- Não diga disparates, Dr. Cantoni - respondeu ela, com amargura.
Abriu a porta para sair, mas ele deteve-a, segurando-lhe um braço, e tentou beijá-la.
Amaranta encostou-lhe as mãos ao peito e, com força, afastou-o de si.
- Nunca mais faças isso! - disse, furibunda.
- Não estás a falar a sério - balbuciou Guido, incrédulo. Amaranta saiu do carro, bateu com a porta e dirigiu-se a casa
com um passo decidido.
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Apesar de a sorte ter feito dele o patriarca de uma nova dinastia de industriais, Amilcare Cantoni sempre estivera ligado à terra. Filho de camponeses, a primeira
coisa que aprendera a fazer na infância fora desfazer os torrões.
Agora que deixara de trabalhar na empresa, limitando-se, quando era interpelado, a dar alguma sugestão, tratava do jardim e do parque da villa.
Logo em fevereiro, com o primeiro sol, quando a terra começava a despertar do longo sono invernal, dava assistência aos jardineiros que podavam as árvores, transplantavam
arbustos, plantavam rebentos e preparavam o terreno da horta.
Quando a família se reunia para o almoço, queixava-se: - Já não sou um homem. Bastam duas horas de trabalho no jardim para ficar sem pernas.
No entanto, ao passo que os outros continuavam à mesa, ele escapulia-se de novo para o parque, dizendo: - Enquanto ainda há sol, vou ajudar os homens, porque queremos
transplantar as camélias. - Ou então: - Quero semear as abóboras trepadeiras e os homens têm de montar uma pérgula para as fixar e fazê-las crescer bem direitas.
Uma tarde de fevereiro, enquanto ajudava um jardineiro a arrancar uma planta de kiwi, Guido foi ter com ele ao pomar.
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- Há algum problema? - perguntou o avô que, há algumas semanas, se tinha apercebido de que o queridíssimo neto não estava no seu humor habitual.
- Porque é que queres arrancar os kiwis? - perguntou Guido, sem lhe responder.
- é uma planta estúpida e cheira mal. A tua avó insistiu imenso para a ter e, como sempre, eu fiz-lhe a vontade. No entanto, no outono passado, também ela
se apercebeu do mau cheiro destas plantas que, no meu tempo, nem sequer sabíamos que existiam... - explicou-lhe. Depois despediu-se do jardineiro, afastou-se com
o neto e foi sentar-se no murete de pedra que rodeava uma velha amoreira.
- Tu nunca contradizes a avó? - perguntou Guido.
- Nunca! Já a conheces. Quando está de mau humor, vira-se contra qualquer pessoa como uma víbora.
Guido estava sentado ao lado dele.
- Porque é que não confessas que gostas das birras dela e que gostas de lhe fazer frente - disse.
- Nem sempre.
- Quando exagera, mete-la na linha.
- Para o bem dela.
- Não é cansativo viver com uma mulher assim? Não terias preferido uma mulher mais doce, uma mulher como a minha mãe, por exemplo?
- Estás a brincar? Tinha-me aborrecido de morte. A tua mãe é uma santa mulher, por amor de Deus... grande senhora, grande classe, não há uma palavra nem um
gesto fora do sítio... mas estás a ver como ela se pôs? Come e come... para sufocar sabe-se lá o quê... e o teu pai faz como ela. Engolem a comida para calar os
monstros do inconsciente.
Amilcare falava e olhava o neto nos olhos, a tentar perceber o que se escondia por detrás daquelas perguntas.
- Para dizer a verdade, na nossa família calam-se todos, até os empregados, até tu. Tu só falas com a avó.
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- É verdade, até certo ponto. Também há coisas caladas entre mim e ela. Mas tu tens alguma coisa para me dizer? - rematou, ao mesmo tempo que se punha em pé.
Apercebia-se de que o neto estava prestes a perguntar-lhe alguma coisa, mas não se decidia a fazê-lo.
Quando Guido era pequeno e ainda não sabia ler nem escrever, Amilcare ensinou-o a andar de bicicleta e depois levava-o com ele a passear no campo. Mostrava-lhe os
girinos nos charcos de água clara, indicava-lhe as plantas que cresciam nas margens e explicava-lhe para que serviam: o agrião-da-ribeira para temperar as batatas,
as flores de funcho para as saladas, as folhas da malva para fazer tisanas refrescantes. Levantava os olhos ao céu e, a partir de um pequeno indício, uma nuvenzinha
ou um voo de andorinhas, dizia-lhe como ia estar o tempo no dia seguinte. Contava-lhe coisas do mundo maravilhoso das formigas, da inteligência dos ratos do campo,
e dizia-lhe: - Olha como está viçosa esta planta, e a quantidade de rebentos que deu. Os mais robustos são os que crescem junto da mãe. Com as crianças é a mesma
coisa: os mais sãos são os que estão junto da mãe.
E Guido dizia: - A minha mãe nunca me larga. Por isso vou crescer são e robusto.
Agora decidiu-se a dizer: - A avó Bianca sempre me fascinou, apesar de a temer um pouco. E eu sinto-me atraído por uma rapariga que se parece com ela: caprichosa
e imprevisível como um poldro selvagem.
Amilcare voltou a sentar-se no murete.
- Já não era sem tempo! Estava com medo que quisesses ficar solteiro toda a vida - exclamou, satisfeito.
- Mas a cada passo que dou cometo mais um erro.
- A coisa não me parece novidade - sorriu Amilcare. E acrescentou: - Onde a conheceste?
- Na escola. Fizemos juntos os últimos anos da primária. Está apaixonada por mim. Já me disse. Mas foge como uma enguia. Tentei beijá-la e repeliu-me.
- Quem é? - perguntou o avô.
- Trabalha connosco, no armazém.
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Amilcare não fez comentários.
- Desagrada-te o facto de não ser uma pessoa do nosso meio? - acrescentou Guido.
- O que é que tu achas? - perguntou o avô.
- Tu também não pertencias ao meio da avó. Amilcare ficou calado.
- Então? Não fazes comentários? - pediu Guido.
- Tu já disseste tudo, a minha opinião não é precisa.
- É, sim. Não deves estar a pensar que eu queira falar sobre isto com o teu filho. Ele não conhece os matizes. Uma coisa, para ele, ou é branca ou é preta.
E, de qualquer maneira, ainda não sei como é que esta história vai evoluir, até porque ela vai à missa todas as manhãs, como as mulheres mais piedosas da aldeia,
e afirma que está à espera de uma resposta de Deus. É doida, já te disse. Esperava que tu me ajudasses a percebê-la - explicou, empolgado. E acrescentou: - Obviamente,
enganei-me.
O avô olhou para Guido nos olhos e exclamou: - O casamento com a tua avó foi um feliz acordo de negócio. Mas eu estava profundamente apaixonado por ela e adorava
o meu trabalho na empresa Crippa: estava preparado para fazer qualquer sacrifício desde que fosse para benefício da fábrica e da minha mulher. Tu estás na empresa
mais para fazer a vontade ao teu pai do que por ti mesmo. Um dia, a empresa será tua e vais precisar de uma mulher sólida ao teu lado e, provavelmente, que trabalhe
contigo. A rapariga doida do armazém que está à espera de um sinal do Pai Eterno não funciona e não funcionaria sequer como mãe, se tivessem filhos. E não é uma
questão de património, mas de cultura e de solidez de caráter. Portanto, agradece aos Céus se ela te tratar mal enquanto espera uma resposta de Deus. Aliás, reza
tu também para que o Senhor lhe indique um caminho muito distante do teu.
- Muito obrigado. Deste-me uma grande ajuda! - replicou Guido, desiludido.
- De nada e, como se diz nas cartas comerciais, levamos ao conhecimento de V. Ex.a os necessários esclarecimentos - respondeu o avô, sem se perturbar.
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Poucos dias depois da dececionante conversa com Amilcare, quando estava no hipódromo de San Siro com o tio Generoso, Guido referiu-se ao seu problema com Amaranta.
O velho amigo da família ouviu-o distraidamente, porque estava empenhado a torcer por um puro-sangue no qual tinha apostado uma grande quantia. E uma vez que Guido
reclamava uma opinião, respondeu: - Desculpa lá, falamos depois porque agora tenho de seguir a corrida.
O jovem resignou-se a ter de esperar pelo fim da competição em que ele próprio tinha feito uma aposta num cavalo principiante e ficou mais surpreendido do que satisfeito
com a vitória do seu cavalo.
- É a sorte habitual dos inexperientes - disse Generoso, irritado. E prosseguiu: - Agora vai-te embora porque me dás azar...
- Vou buscar o dinheiro que ganhei e volto para casa - disse Guido.
Nesse momento, Generoso enterneceu-se.
- Que se lixem as corridas. Vou contigo para Villanova - decidiu.
Entrou no carro com ele e, quando saíram da cidade, retomou as confidências de Guido.
- Levaste-a para a cama? - começou, evitando preliminares inúteis.
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- Estás a brincar! Nem lhe toquei.
- Então estás destinado a ter o mesmo fim que eu. Refiro-me à tua avó, obviamente. Quando éramos novos e decidimos fugir os dois, eu estava determinado a
colher a flor da sua pureza e tentei beijá-la. Por pouco não me arrancou uma mão com uma dentada. Mas eram outros tempos e um cavalheiro nunca forçaria a situação
com uma rapariga. Mas se eu tivesse insistido, quem sabe...
- Estás a dizer que...? - perguntou Guido.
- Eu não digo nada. Só te estou a contar como correu a minha história com ela, que ainda hoje me tem preso pela trela.
- Isso quer dizer que eu devia... - repetiu Guido. Estava a agarrar-se às palavras de Generoso.
- Com as éguas selvagens é preciso um bastão e uma cenoura. No entanto, no teu caso, acho que não devias subestimar as palavras do teu avô: a diferença de
educação e de cultura. Já para não dizer que aquele seu misticismo maníaco não me agrada nem um bocadinho - observou o velho.
- A culpa é minha. Não consegui transmitir-te a complexidade daquela rapariga - tentou defendê-la.
- Mas eu percebi perfeitamente aquilo que me contaste dela e também aquilo que calaste sobre ti: estás à procura de uma aprovação que não tiveste do Amilcare
e que também não vais ter de mim. Isto vai fornecer-te um pretexto a mais para fortalecer uma paixão incompreendida e vais acabar por bater com o focinho numa parede.
Vais magoar-te, vais magoar-te muito, e mesmo quando tiveres uma relação com outra mulher, nunca mais vais ser feliz - concluiu Generoso Castelli.
- Não achas que estás a ser um bocado catastrofista? - tentou brincar Guido.
- Na minha idade posso-me dar ao luxo de dizer a verdade. E vê lá como conduzes, porque fizeste agora uma ultrapassagem digna de um enfarte.
Entraram no portão do parque e, atrás deles, ouviram a buzina de um automóvel que os seguia. Era Celina, que vinha da aldeia. Pararam diante da villa e Guido ajudou-a
a sair do carro.
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Como todos os domingos à tarde, a mãe tinha ido fazer a sua visita aos idosos, os que estavam no Palácio Olgiati e outros indicados por don Tranquillo, que viviam
nas suas casas, para auscultar as suas necessidades e intervir onde fosse possível.
- Vou cumprimentar os avós - anunciou Generoso, quando entraram em casa. E deixou a mãe e o filho, dirigindo-se aos aposentos de Amilcare e da mulher.
- O tio fica para jantar - anunciou Guido a Nesto, que os tinha vindo receber.
- Estávamos à tua espera para o almoço e não apareceste disse Renzo ao filho, quando este foi ter com ele à sala vermelha.
Oficialmente, Guido vivia em Milão, num apartamento no último andar de um edifício na via Mozart. Tinha-lho oferecido o pai nos tempos da faculdade. Agora só o utilizava
quando ia à cidade e fazia alguma noitada.
- Desculpa, esqueci-me de avisar que ia almoçar com os avós Olgiati - disse.
- Como é que eles estão? - perguntou Celina, ao mesmo tempo que se instalava numa poltrona.
- Continuam a viver alegremente sem se preocuparem com as finanças já muito frágeis - contou Guido.
O avô materno tinha também posto à venda o palácio do corso Venezia e decidido mudar-se para Mombaça, no Quénia, com a mulher. Propusera também a aquisição aos Cantoni,
que tinham recusado, mas Guido apresentara-lhes um industrial do setor alimentar aparentemente muito interessado em instalar-se ali com a família. As negociações
arrastaram-se durante meses e, entretanto, de cada vez que Guido ia visitá-los, ofereciam-lhe uma tela ou um móvel que contribuíam para enriquecer o seu apartamento
de solteiro.
- Comeste bem? - perguntou Celina.
- E ainda perguntas?
- O que é que comeste? - quis saber o pai, curioso.
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Guido não se lembrava. Enquanto almoçava, só tinha Amaranta no pensamento. Inventou um menu que aguçou o apetite dos pais.
- E tu encontraste na aldeia mais algum caso piedoso para tomares conta? - perguntou a Celina.
- Bem podes dizê-lo. Don Tranquillo tinha-me indicado uma idosa que vive com uma sobrinha na Pompea. A pobrezinha teve uma série de ataques e agora anda numa
cadeira de rodas. O Dr. Beretta disse mais do que uma vez à sobrinha para fazer um pedido de internamento na nossa casa de repouso, mas a rapariga não quer saber.
Garante que a tia está bem assim, assistida por ela e pelas vizinhas, quando ela está na fábrica. A propósito, a rapariga é nossa funcionária - explicou Celina.
- Eu conheço-a - disse Guido, em voz baixa.
- Quem é? - perguntou Renzo.
- Amaranta Casile.
- Aquela que trabalha no armazém?
- Essa. Fomos colegas nos últimos anos da escola primária. Veio aqui muitas vezes, quando a mãe oferecia o lanche às crianças todas. Não te disse isso? -
perguntou à mãe.
- Ela fala pouco e recebeu-me como se eu fosse uma abelhuda. Parecia que estava ali para a irritar. Tenho de admitir que a tia está muito bem tratada, a sobrinha
lava-a, veste-a, perfuma-a, dá-lhe injeções... mas que raio de feitio!
- É uma calabresa orgulhosa - afirmou Guido, quase com vaidade.
- Mas o que eu acho é que uma rapariga tão nova não pode renunciar à vida para acompanhar uma velha, por muito que goste dela - observou Celina.
- Eu falo com o Dr. Beretta, que com certeza a conhece e saberá convencê-la - disse Guido, entusiasmado, porque naquela solução tinha descortinado uma maneira
de se aproximar de Amaranta.
Duas semanas mais tarde, a tia de Amaranta Casile foi acolhida na casa de repouso dos Cantoni, e Guido, que não voltara a
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ver a rapariga desde o dia do convite para a pizzaria, esperou uma tarde quando ela saiu da fábrica, de bicicleta.
Estava plenamente consciente de que se ia envolver numa história difícil mas, ao contrário daquilo que afirmavam o avô e o tio Generoso, estava convencido de que
Amaranta era a mulher da sua vida, que a ia modelar e fazer dela uma criatura excecional e que, finalmente, os factos lhe iam dar razão.
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Preciso de falar contigo - disse Guido, parando à frente de Amaranta.
Não tenho tempo. Preciso de ir ver a minha tia antes que feche o hospício - replicou ela.
- O hospício, como tu lhe chamas, é quase um hotel de luxo e a tua tia está mais bem tratada ali do que em casa. Desce da bicicleta - retorquiu, com voz firme.
- Fora da fábrica não aceito ordens dos patrões - replicou ela.
- Ainda estás na minha propriedade - afirmou ele, e agarrou no guiador com as duas mãos, fazendo inclinar a bicicleta para um lado.
Amaranta foi obrigada a descer. Ele pousou a bicicleta no chão e, arrastando a rapariga por um braço, obrigou-a a entrar no carro, enquanto ela o ameaçava: - Posso
denunciar-te por sequestro.
- Fazes isso depois. Agora vens comigo e não bufas. Não quero ouvir nem uma palavra.
Saíram do parque de estacionamento da fábrica e arrancaram a grande velocidade em direção a Milão.
Por mais do que uma vez Amaranta tentou falar, mas ele
deteve-a com um perentório: - Cala-te! Incrivelmente, ela calou-se.
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Era já noite quando Guido estacionou o carro na via Mozart e entrou com Amaranta no átrio do edifício onde vivia.
O porteiro viu-o, cumprimentou-o e disse: - A minha mulher está em sua casa, senhor doutor.
- Obrigado - respondeu Guido, ao mesmo tempo que empurrava a rapariga para dentro do elevador. Parou no quinto andar.
A porta do apartamento estava aberta e Gina, a mulher do porteiro, estava à porta para o receber.
Reparou em Amaranta e não conseguiu esconder um trejeito de surpresa.
Quando o Dr. Cantoni lhe pedira que preparasse um jantar para dois, deduzira que a convidada seria uma mulher bonita e sofisticada; mas afinal era aquela estranha
criatura com roupa modesta, um rosto bonito e mal-encarado, olhos verdes de felino e cabelos despenteados e presos com uma mola de plástico. Sorriu aos dois jovens
e deixou-os a sós, enquanto Guido mandava entrar Amaranta no apartamento e a conduzia à grande sala de estar de portas envidraçadas que se abriam sobre os telhados
da cidade. Havia alguns móveis antigos, muito bonitos, que provinham do Palácio Olgiati, assim como as telas de pintores do século XIX, inspiradas nas vistas mais
sugestivas de Milão, estantes de madeira que chegavam ao teto, sofás imaculados, tapetes modernos e uma lareira acesa que sublinhava a atmosfera acolhedora da sala.
Amaranta olhou em volta e Guido leu o espanto no seu olhar.
- Isto é a minha casa - disse-lhe. E acrescentou: - Desde que comecei a trabalhar na empresa vivo aqui raramente, porque estou mais confortável em Villanova.
Aproximou-se de um móvel-bar e deitou num copo um dedo de whisky. A ela, que se tinha aproximado de uma das portas envidraçadas e observava os telhados e o jardim
em baixo, não ofereceu nada.
Gina apareceu à porta e anunciou: - Na cozinha está tudo pronto. Ponho na mesa?
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- Obrigado. Nós tratamos disso - respondeu Guido.
- Então vou descer. Arrumo tudo amanhã de manhã - disse a mulher, e foi-se embora.
Estavam sós. Ele sentou-se num sofá, cruzou as pernas e começou a bebericar o whisky. Depois disse a Amaranta: - Agora podes falar.
Ela virou-se para ele, foi aninhar-se no tapete em frente à lareira e sussurrou: - Oh, muito obrigada.
Agarrou num abre-cartas de prata que estava pousado numa mesinha baixa e começou a picar a superfície macia do tapete, que reproduzia uma pintura de Miró. Guido,
com um gesto fulminante, inclinou-se sobre ela e tirou-lho da mão.
- Para o caso de não saberes, esse tapete é uma obra de arte e podes danificá-lo com a ponta do abre-cartas - explicou.
- O que queres de mim? Quero saber a razão pela qual fui raptada, porque é de rapto que se trata. Fica a saber que se tencionas usar de violência comigo,
eu mato-te primeiro e depois é que te denuncio - disse, agressiva.
- Não te vou obrigar a nada, como tu bem sabes. E para de te armares em supermulher, porque não o és - replicou, irritado.
Ela baixou os olhos e disse: - Tenho uma necessidade desesperada de serenidade e só consigo encontrá-la, ainda que de uma forma fugaz, quando vou à igreja rezar.
Só Deus sabe porque carrego dentro de mim uma raiva que me devora. Gostaria de ser uma torrente de felicidade, de alegria de viver, como tantas raparigas que conheço.
Elas não questionam nada, trabalham quando é altura de trabalhar e divertem-se quando é altura de se divertirem. Têm namorado, projetam um futuro, vão dançar, passam
tempo juntas a rir e a conversar sem parar. O que terão elas para contar umas às outras? Eu, pelo contrário, prefiro calar e refletir. Os pensamentos amontoam-se
dentro da minha cabeça e atormentam-me. Então ponho-me a rezar e reencontro a paz e a serenidade. Eu nunca tive nenhum namorado, sabias? Se algum rapaz andar atrás
de mim, em vez de me sentir lisonjeada, zango-me porque penso que está a gozar comigo. Então ponho as unhas de
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fora e arranho. Quando era pequena, via a minha mãe pôr um fio de azeite nas fatias de pão que cortava para o meu pai, para mim e para os meus irmãos. Ela apanhava
as migalhas da mesa, metia -as na boca e dizia: "Eu não tenho fome." Enchiam-se-me os olhos de lágrimas e a raiva devorava-me porque ela estava a mentir. Tu não
sabes a miséria que existe nos campos da Calábria e o cinismo dos capatazes que tratam os trabalhadores como animais. Foi a fome que nos empurrou para o Norte. E
lembrar-me eu de que o meu avô, o pai do meu pai, tinha dinheiro e terras! Mas não para nós, que tínhamos sido escorraçados. Em Villanova, finalmente, nunca mais
passámos fome. Quanto ao resto... quem nos vestia era a paróquia, e a tua família oferecia-nos o lanche na vossa villa. E lá estavas tu... tão perfeito que nem parecias
verdadeiro. Por tudo e por nada voltavas-te para a tua mãe: "Mãe, posso?", "Mãe, deixas?" E eras tão bonito, doce, elegante... e eu estava apaixonada por ti. Quando
falavas comigo, ficava capaz de chorar de alegria e detestava-te por esta minha fraqueza. Percebes? Ando confusa e atormentada desde essa altura. Pergunto a mim
mesma se o sentido da minha vida está todo nesta grande confusão. Agora tu provocas-me de mil e uma maneiras e fazes-me sentir pior ainda. Nós não temos nada em
comum. Ergueu os olhos para ele e sorriu tristemente.
- Para já, vamos partilhar o jantar - disse Guido, que tinha bebido as palavras dela.
No forno, desligado há pouco, encontraram uns gnocchi de gorgonzola e um rolo de vitela com batatas assadas.
Jantaram na mesa de mármore da cozinha, sentados um em frente ao outro e trocando poucas palavras.
Depois, ela quis levantar a mesa.
Guido seguiu os seus gestos rápidos e precisos.
Quando acabou de arrumar a cozinha, Amaranta sorriu-lhe e disse: - Agora gostava de voltar para casa.
Guido percebeu que ela tinha o seu ritmo e ele ia respeitá-lo. Estava apaixonado por ela e não a queria diferente daquilo que era-
- Vou levar-te.
Quando chegaram em frente da fábrica, Guido ligou ao arda-noturno para lhe abrir o portão. Precisavam de ir buscar a bicicleta de Amaranta ao parque de estacionamento.
Meteram-na na mala do carro e arrancaram em direção à pompea, herdade onde a rapariga vivia agora sozinha.
Guido devolveu-lhe a bicicleta e disse: - Obrigado por me teres contado alguma coisa sobre ti.
- Houve algumas coisas que não contei - esclareceu ela.
- Por exemplo? - perguntou Guido, curioso.
-Tive um filho - revelou, e afastou-se, deixando-o sem
fôlego.
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O dono do quiosque da aldeia, que morava na herdade Pompea, levantou-se às quatro da manhã para ir ao estabelecimento receber os jornais e as revistas. Ao sair do
terreiro viu um carro parado em frente ao portão e dentro dele, no lugar do condutor, via-se o vulto escuro de um homem com a cabeça inclinada sobre o volante.
Estará vivo ou estará morto?, perguntou a si mesmo, e bateu no vidro. O homem levantou a cabeça e olhou para ele com um ar aflito. O homem dos jornais reconheceu-o:
era o jovem Cantoni.
- Tudo bem, senhor doutor? - perguntou.
Guido baixou o vidro da janela e respondeu: - Acho que sim -, apesar de não saber muito bem onde se encontrava.
- Precisa de ajuda? - insistiu o homem, que o conhecia desde pequeno e lhe comprava livros de banda desenhada e cromos de jogadores.
Nesse momento Guido lembrou-se de tudo e perguntou: - Que horas são?
- Quatro e meia.
- Obrigado por me ter acordado. Acho que me deu um ataque de sono - justificou-se.
- Antes isso. Então vou-me embora - disse o homem e, montado na sua motorizada ruidosa, dirigiu-se ao centro da aldeia.
O lampião da rua iluminava o perfil maciço daquela construção rural e o limite dos campos do outro lado da rua. Guido contemplou a silhueta esguia de algumas gruas
que se erguiam à distância, no sítio onde estavam a nascer novas habitações. A seguir, ouviu de novo a voz rouca de Amaranta que dizia: "Tive um filho."
Depois de ela se ter afastado, voltou a entrar no carro e ficou ali, com a testa apoiada no volante, a pensar. Sabia que não tinha qualquer direito sobre ela, mas
não parava de perguntar a si mesmo onde estaria aquele filho e quem seria o pai.
Para além do mais, Amaranta tinha-lhe dito: "Nunca tive nenhum namorado." E ainda: "Se algum rapaz andar atrás de mim, zango-me e ponho as unhas de fora." Então
murmurou com raiva: - Porque me mentiu? O misticismo, a necessidade de se voltar para Deus para que lhe indique o caminho a seguir, é tudo mentira. O avô e o tio
Generoso têm razão, aquela rapariga é para esquecer. É uma bruxa - concluiu de dentes cerrados. E logo a seguir começou a interrogar-se sobre o absurdo daquilo que
sentia por ela, sobre a sua incapacidade de ver claro dentro de si, de perceber o que queria da vida. Acabou por adormecer. Depois ligou o carro e partiu.
Em vez de ir para casa, regressou à fábrica.
O guarda, que o tinha visto com Amaranta na noite anterior e agora o via chegar sozinho às quatro e meia da madrugada, tirou conclusões muito pessoais que em qualquer
caso guardaria para si.
- Vou ao escritório - disse Guido.
Entrou no antigo palacete com o guarda, que lhe foi acender as luzes.
- Quer um café, senhor doutor? - perguntou-lhe, antes de o deixar.
- Não preciso de nada, obrigado - rematou Guido.
Entre o seu escritório e o do pai havia uma sala onde ficava o armário da roupa, que continha também algumas peças de vestir tanto dele como do pai, e uma pequena
cozinha. Guido foi à casa
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de banho, tomou um duche, enfiou um roupão de felpo e preparou um café. Bebeu-o de um trago, voltou a vestir-se, depois regressou ao escritório, sentou-se à secretária
e acendeu o candeeiro de mesa. Deixou cair a nuca contra as costas da poltrona e fechou os olhos, na esperança de adormecer.
Recordou que, quando era criança, ao domingo de manhã depois da missa, o pai o levava para o escritório, onde havia um pequeno frigorífico que continha bombons,
salgadinhos, bebidas e espumante. Dizia-lhe: - Tira o que quiseres.
Guido despejava uma Coca-Cola no copo e tirava um punhado de amendoins salgados da lata. O pai sentava-se à secretária e começava a trabalhar. Entretanto, Guido
passava em revista uma série infinita de torneiras alinhadas numa estante que cobria inteiramente uma parede. Cada torneira tinha uma etiqueta que indicava o nome
e o número do modelo. Naquele tempo aprendeu-os todos de cor: virava as pequenas etiquetas ao contrário e dizia ao pai: - Queres que te diga o que está aqui escrito?
Renzo anuía, ouvia-o e sorria.
- Daqui por quinze anos, isto vai ser o teu reino, e então vais perceber que não basta saber os nomes de cor para levar a empresa para a frente. E depois
cada torneira tem a sua história. Por exemplo, este modelo Fénix foi um falhanço total. Centenas de horas de trabalho desperdiçadas. O público não gostou, apesar
de eu e o avô termos apostado muito nesta forma quadrada... - contava-lhe.
Uma vez, Guido perguntou-lhe: - Pai, eu tenho de ser engenheiro como tu e o avô?
- Tu vais escolher a faculdade que quiseres, mas isto é que vai ser o teu trabalho - respondeu Renzo.
Guido teve alguns instantes de medo, como quando brincava aos índios com os amiguinhos e era amarrado a um pau para ser queimado vivo. Sabia que era a fingir e que
não se ia acender nenhuma fogueira, mas naquele momento ficava aterrorizado. As palavras do pai sobre o futuro que tinha traçado para ele causaram-lhe o mesmo efeito.
Foi apenas um instante, e depois propôs- Vamos para casa?
Recordou aquele episódio porque nunca como naquele momento se sentira prisioneiro de um trabalho que não sentia como seu e de um amor que em vez de lhe dar alegria
lhe causava dor. Ouviu um estalido no silêncio. Abriu os olhos e olhou em volta. Estava sozinho. O estalido repetiu-se contra o vidro da janela. Levantou-se e afastou
a cortina. Lá fora havia luz e, no terreiro em frente, viu Amaranta com uma mão cheia de pedrinhas a olhar na direção dele. O guarda estava ao lado dela. Guido abriu
a janela e ela disse: - Anda cá abaixo. - Sobe tu - respondeu ele.
Pouco depois, Guido sentiu os passos dela a aproximarem-se da porta do escritório.
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Amaranta tinha o rosto marcado por uma noite em branco. O cabelo estava mais despenteado do que o habitual. Devia ter-se vestido à pressa, porque trazia a mesma
camisola da noite anterior, mas do avesso. Sentou-se em frente a Guido e, com um fio de voz, disse: - Porque é que eu te estou a tratar assim?
Guido, que se tinha levantado para a receber, retomou o seu lugar à secretária e limitou-se a olhá-la nos olhos, sem replicar.
- Não gosto de fazer confidências a ninguém, nem mesmo a ti. Só consigo dizer tudo ao Senhor, porque Ele não me julga começou. Guido continuou calado, irritado,
a pensar que Amaranta se preparava para lhe contar mais mentiras.
- Escuta-me, porque se não falar agora nunca mais falo. Não é que eu precise de me justificar perante ti, mas aconteceu quando regressámos à nossa terra,
na Calábria, porque o meu avô tinha morrido, deixando ao meu pai tudo o que possuía. Enquanto viveu, sempre se recusou a dividir aquilo que tinha com o filho porque
detestava a minha mãe, e quando o meu pai se casou com ela, contra a sua vontade, pô-lo fora de casa e deserdou-o. Depois da morte do avô, portanto, herdámos uma
belíssima quinta, vários hectares de olival e muito dinheiro. Eu tinha então quinze anos - explicou Amaranta, e contou a Guido que, quando regressaram à Calábria,
tiveram imediatamente de aguentar com as
reivindicações de dois irmãos do pai a quem tinha tocado só a herança legítima, enquanto pensavam que iam herdar todo o património, uma vez que o pai sempre tinha
ignorado aquele filho emigrado no Norte.
- Julgas que vens aqui dizer-nos que é tudo teu, só porque está escrito num papel? - gritaram os dois irmãos, perante toda a família reunida na grande cozinha
da quinta.
- Perdeste todos os teus direitos quando te casaste com aquela! - sibilou uma cunhada, apontando um dedo na direção da mãe de Amaranta.
- Esta é a minha mulher e tu tens de a respeitar. Pede-lhe já desculpa - ordenou Antonio Casile, furibundo.
Então a mulher pôs-se de costas e, arrebitando o traseiro, a rir, declarou: - Peço-te desculpa, minha cunhada.
O pé de António moveu-se fulminante e atingiu-a no rabo, fazendo-a rebolar no chão.
Raffaele, o marido, tirou a navalha de ponta e mola, logo imitado pelo irmão mais novo, Michele. António, ao fim de tantos anos a viver no Norte, esquecera o hábito
de trazer a navalha no bolso e levantou então um banco para se defender. As mulheres, que deveriam ter chamado os homens à razão, incitavam-nos com malvadez. Eram
mais ferozes do que eles. Amaranta, que estava no grupo das crianças, sabia que os Casile desprezavam a mãe porque António se casara com ela quando estava no sexto
mês de gravidez. Trazia-a a ela no ventre. Segundo a família Casile, uma vez que a mulher se deixara seduzir pelo filho, este deveria abandoná-la, em vez de se casar
com ela. Aterrorizada com aquilo que estava a acontecer, a rapariga correu dali para fora e pegou na bicicleta para ir à aldeia pedir ajuda aos guardas. Não precisou
de percorrer uma grande distância. Encontrou-os a uma centena de metros de casa.
Raffaele e Michele, que tinham ferido António, foram algemados e levados. Raffaele, quando passou ao lado dela, sorriu-lhe e sussurrou: - Estás com a idade certa
para receber a justa recompensa.
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Fosse qual fosse o significado daquela frase sibilina, Amaranta só o descobriu algumas semanas mais tarde, quando o tio saiu da cadeia e regressou à aldeia.
Violou-a numa tarde de outubro, no campo, durante a apanha da azeitona. E depois, enquanto apertava as calças e ela chorava, cuspiu-lhe na cara.
Amaranta regressou a casa tarde, naquela noite, e não disse nada a ninguém. Continuou calada mesmo quando a sua situação de rapariga grávida se tornou evidente.
Se tivesse falado, o pai tinha matado o irmão e acabaria na cadeia. Os pais bateram-lhe e atormentaram-na durante muito tempo para a obrigarem a dizer quem a seduzira.
Uma vez que Amaranta continuava obstinadamente calada, entregaram-na a uma instituição religiosa onde o filho que trazia no ventre nasceu de apenas seis meses e
morreu imediatamente.
- Na instituição religiosa descobri o conforto da oração. Se não tivesse aprendido a dialogar com o Senhor, tinha enlouquecido - disse agora a Guido.
Guido estava horrorizado com a história de Amaranta e olhava para ela com uma pena infinita.
- Agora percebes porque é que a oração é tão importante para mim - acrescentou Amaranta, e prosseguiu: - Por favor, nunca faças nada que me obrigue a sofrer.
Se me queres por um capricho, esquece-me, porque eu gosto muito de ti e nunca te diria que não.
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- Toda a gente me critica e eu já não sei onde hei de estar queixou-se Amaranta.
Estava com Guido no terraço do apartamento de Milão a saborear o sol do meio-dia, na tranquilidade dominical, enquanto no ar ressoava o toque da igreja de San Babila.
- Já não posso ir para a fábrica, porque os meus colegas me olham com ar de reprovação. A tua família não me quer ver. Os meus pais morreram e há anos que
não sei nada, nem quero saber, dos meus familiares que estão na Calábria.
- Mas tens-me a mim - interrompeu Guido, e prosseguiu: Percebo que não querias continuar em Villanova, onde toda a gente olha para ti com curiosidade, mas
aqui na cidade cada qual trata da sua vida.
- Até porque tu me manténs longe dos teus amigos, e eu aprecio muito isso: ia sentir-me pessimamente com eles e eles comigo. Mas pergunto a mim mesma até
quando é que tu vais aguentar este nosso isolamento. Já não te dás com ninguém e eu nem sequer sei se isso é correto.
- É apenas uma etapa, a primeira, da nossa relação. Não forcemos as coisas, e deixemos que aconteçam. Devo confessar-te que foi muito agradável não ter de
me mostrar entusiasmado
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para animar os encontros mundanos. Relaxa-me ouvir-te falar da diferença entre a farinha tipo 55 e a fécula de batata, do supermercado da Porta Venezia que tem produtos
que não encontras na salsicharia de Montenapoleone, do padre surdo de San Babila que obriga os penitentes a gritar a confissão, daquele pequeno vício da Gina que
prova a comida enquanto cozinha e nunca passa a colher por água. Tu não sabes quanta mais vida há nas tuas palavras do que nas conversas de certas pessoas que começam
a discorrer sobre a teoria quântica e acabam a falar do último modelo do Maserati ou do Jaeger le Coultre com as fases da Lua - disse ele, afagando-lhe ternamente
um braço.
Os Cantoni tinham-se recusado, "pelo menos por enquanto", a receber Amaranta em casa deles, absolutamente convencidos de que Guido estava a dar um passo errado e
não querendo tornar-se cúmplices do seu erro. Ele não se tinha zangado por isso e, quando estava com a família, evitava cuidadosamente falar em Amaranta, apesar
de estar intimamente persuadido de que ela era a mulher da sua vida.
- É meio-dia. Vamos? - perguntou ela.
Guido anuiu.
Saíram de casa e meteram-se no carro. Seguiram em direção a Villanova. Ela ia ter com a tia à casa de repouso. Ia almoçar com ela e fazer-lhe companhia até que Guido
lá passasse para a ir buscar, depois de ter almoçado com a família.
Andavam juntos há um mês e ainda não tinham ido para a cama. Depois da violência a que fora submetida, a ideia de fazer amor com um homem, por muito adorado e desejado
que fosse, ainda a aterrorizava. Guido entendia e decidira não apressar as coisas. Ele, antes de mais, queria que tudo acontecesse o mais tranquilamente possível.
Quando passava a noite na via Mozart, onde ela agora morava, dormia no sofá da sala e sentia-se feliz assim. Havia muito mais intimidade entre eles do que alguma
vez houvera com as mulheres que conhecera em sentido bíblico.
Dia após dia, aprofundavam aquela relação, que se estava a tornar cada vez mais importante para ambos.
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Para a manter ocupada enquanto estava no escritório, Guido adquirira o hábito de a mandar ler os artigos que eram publicados no jornal da empresa. Amaranta estava
incumbida da tarefa de lhe dizer quais as peças que lhe tinham agradado e quais a tinham aborrecido, quais eram os temas que lhe interessavam, e tinha de sublinhar
todas as palavras ou as frases que não conseguia perceber imediatamente.
Amaranta era muito inteligente e, seguindo as suas observações, Guido apercebia-se de como o papel dela era importante para poder oferecer aos seus funcionários
um jornal que fosse lido de bom grado por toda a gente.
Naquele mês tinha ido para fora com o pai por duas vezes, deixando-a só durante alguns dias, e ela tinha escrito um artigo sobre os problemas das operárias na fábrica
que foi publicado, com sucesso, no Notiziario.
- A minha tia teve mais um ataque e já não fala - contou a Guido, quando foi buscá-la à casa de repouso ao fim do dia.
- Mas estão a tratar dela? - perguntou ele.
- Dão-lhe medicamentos à base de cortisona. Mais do que isso não podem fazer. Falei com o médico e ele disse-me que agora ela tem os dias contados.
- E tu gostavas de os passar com ela.
- Sim. Está num quartinho sozinha e há uma poltrona confortável. Disseram-me que posso lá ficar. Importas-te?
- Lamento que a tua tia esteja mal - disse ele, acariciando-lhe a mão.
A tia de Amaranta morreu três dias depois.
- Agora estou completamente só - constatou ela, depois do funeral, quando regressou com Guido ao apartamento da via Mozart, em Milão.
- Mas tens-me a mim - sossegou-a.
- Preciso de um apoio forte a que me agarrar.
- Muito obrigado! E se tentasses aguentar-te nas tuas pernas? - replicou ele, zangado.
- Foi o que sempre fiz, apesar de nunca deixar de me sentir à beira de um precipício. Aquela tia era a minha família, o trabalho
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na fábrica dava-me dignidade, a oração dava-me força. Agora a minha tia já cá não está e eu já não vou trabalhar. A fé, só por si, não me chega. Tu não podes entender
como eu me sinto, porque sempre tiveste a proteção da tua família.
- Tu e eu podemos ser uma família. Caso-me contigo quando quiseres.
- Para casar não basta estar apaixonado, é preciso amar completamente, e eu não tenho a certeza da força dos meus sentimentos por ti. E tu tens a certeza?
E se fizéssemos amor e descobríssemos que apenas há paixão entre nós e não amor verdadeiro, aquele que dura para sempre?
Guido não conseguia perceber o que ela tinha em mente e olhava-a consternado.
Tinha-a levado para o apartamento da via Mozart depois do funeral, com a intenção de a mimar, de a consolar, de lhe apresentar um futuro em que viveriam juntos,
e agora ela dizia-lhe que, provavelmente, o que existia entre eles não era uma história de amor.
- Tu és doida e queres que eu fique doido também - reagiu, aborrecido.
Ela arregalou para ele os seus lindíssimos olhos verdes e, contendo um soluço, balbuciou: - Metes-me medo!
Estava linda, assustada, frágil, confusa, e ele adorava-a apesar de estar cansado das suas elucubrações, da necessidade incessante de se complicar e de lhe complicar
a vida enquanto tudo era tão simples... e, finalmente, decidiu-se. Sorriu-lhe, pegou nela ao colo de repente e dirigiu-se com ela para o quarto, ao mesmo tempo que
lhe sussurrava: - Amo-te muito e só quero fazer-te feliz.
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Na penumbra da igreja, no meio do cheiro antigo das velas, do bálsamo sagrado do incenso e do perfume intenso das flores, Amaranta confessava-se a don Tranquillo,
que escutava, impassível, o seu murmúrio cheio de interrogações que revelavam a sua fatigante procura interior.
Quando se calou, o sacerdote disse: - Mara, tu não podes pôr em causa o pensamento da Igreja. Tu estás a cometer um pecado.
- Então explique-me por que razão, no mais fundo do meu coração, eu sinto que não é assim - objetou ela.
- Tu estás a atenazar-me há meia hora porque queres que eu te diga que não estás errada. Far-te-ia a vontade de bom grado se as tuas premissas fossem diferentes,
mas tu és a primeira a duvidar do teu amor pelo Guido, és tu a primeira a perguntar a ti mesma se pode ser realmente ele o homem da tua vida ou se, pelo contrário,
não existirá neste vasto mundo um homem mais adequado para ti. Então, se tu duvidas, eu não posso afirmar que fazes bem em entregares-te a ele. Consegues compreender?
- Eu consigo. O senhor é que não me compreende a mim. Eu duvido de tudo, padre. Duvido que amanhã o sol volte a nascer, que os filhos sejam uma bênção para
os pais, que esta noite vá comer um minestrone, que Deus me veja e me ouça, duvido até que Deus exista, apesar de precisar tanto dele. Então porque não
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havia de duvidar do amor do Guido por mim e do meu por ele? Eu disse amor e não sei se é a palavra certa. A nossa paixão é uma coisa que nos une desde que éramos
crianças. E quando fazemos amor, eu sinto-me feliz.
- Não venhas contar essas coisas a um velho padre! - resmungou don Tranquillo.
- Pois é, está a ver? Se não for consigo, com quem poderei eu falar da minha angústia? Porque é que a Igreja está tão distante das pessoas, sobretudo daquelas
que, como eu, procuram respostas?
- Não blasfemes. A Igreja sabe o que está bem e o que está mal e tu não tens nada que a criticar. É claro, os tempos da Igreja não são os nossos. Antigamente
era impensável que penitente e confessor falassem de sexualidade, a não ser como admissão de uma culpa sujeita a penitências ferozes. Hoje não é assim, e eu até
te posso absolver. Mas porque sou velho e tenho muita experiência, digo-te que a paixão que te liga ao jovem Cantoni está destinada a acabar. Se com ele não constróis
nada mais do que dúvidas, de que é que se vai alimentar a vossa união? Pensa nisso, Mara. Agora, como penitência, vais rezar três mistérios do rosário; e sai-me
daqui, que eu tenho mais que fazer - concluiu rapidamente o sacerdote, que estava exausto com a confissão de Amaranta.
Ela ficou ainda um bom pedaço na igreja a rezar e a refletir.
Quanto mais refletia, mais se sentia prisioneira de uma situação na qual não se reconhecia. Quando fazia amor com Guido, parecia-lhe que tocava as fronteiras do
êxtase. Eram momentos sublimes em que deixava de pensar para se tornar numa esponja que absorvia o prazer até à última gota. As horas que passava com ele eram uma
festa. Os seus olhos, celestes como o manto de Nossa Senhora, diziam-lhe muito mais do que as suas palavras. O corpo dele, perfeito, ágil, sólido, que se enroscava
no dela, magro e seco, dava-lhe muita alegria. Mas depois ele saía de casa, ia trabalhar, encontrava-se com os amigos, falava uma língua que sublinhava a diferença
de classes, de educação e de cultura que havia entre eles, fazendo-a sentir inútil, só, perdida.
Algum tempo atrás, tinha perguntado a don Tranquillo: Onde é que eu vou encontrar todas as respostas que me afligem?
- Nos livros. Lê as vidas dos santos - respondeu-lhe, e depois meteu-lhe na mão alguns livrinhos que contavam a vida de Santa Rita de Cássia, de Santa Catarina
de Siena, de Santa Teresa de Ávila. Ela leu-os e achou-os aborrecidos, piegas e estúpidos.
- Divertia-me mais a ler sobre a vida das formigas - confessou-lhe quando lhos devolveu.
- Porque és uma ignorante. Mas não te atormentes com isso. Continua a rezar e as respostas virão por si - disse-lhe.
Saiu da igreja e regressou a casa obcecada com as palavras do confessor: "A paixão entre ti e o Guido está destinada a acabar." Ela ainda estava na fase do "vou
amar-te para sempre". O amor entre eles estava, mais do que nunca, vivo e alimentado pelo desejo recíproco.
Quando entrou em casa, o telefone estava a tocar. Foi a correr atender. Era Guido.
- Esta noite não te posso levar a Milão. Durmo em casa dos meus pais, porque amanhã de manhã, às sete, vou apanhar um voo para Roma. Eu e o meu pai temos
de nos encontrar com um cliente às nove horas. Consegues esperar por mim até amanhã à noite? - perguntou-lhe.
- Para além de ti, tenho tudo aquilo de que preciso. Até amanhã - respondeu ela.
Pousou o auscultador e foi à cozinha. Abriu o frigorífico. Encontrou no congelador uns fritos de curgete de que Guido gostava muito e uma sopa de peixe. Bastava-lhe
aquecer ambas as coisas no forno e jantava num instante.
O telefone tocou outra vez. Era ainda Guido.
- Estás zangada? - perguntou-lhe.
- Estou sozinha - respondeu.
- Não podes estar, porque os meus pensamentos estão contigo e são para ti.
- Também os meus, mas mesmo assim estou sozinha.
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Sentia-se como aquelas mulheres que têm um amante e sabem que ele vai passar o serão, a noite e o dia seguinte com a mulher.
- Vou buscar-te e levo-te a Roma comigo e com o meu pai.
- Não virias, e sabes isso muito bem. Estou a portar-me como uma estúpida... desculpa.
Haveria outras viagens, outras ausências, e ela tinha de aprender a ter uma vida autónoma. - Ainda estou em fase de adaptação. Dá-me tempo para perceber como posso
empregar o meu tempo. Fico à tua espera a contar os minutos e as horas que nos separam - disse.
Voltou à cozinha. Não tinha fome. Estava ali, de pé, a perguntar a si mesma como poderia dar um sentido à sua vida.
- Vou fazer um zabaione - decidiu, a falar sozinha.
Pôs em cima da mesa dois ovos, o açúcar, uma garrafa de Marsala, uma taça e uma batedeira manual, a pensar na tia que, quando ela era pequena, lhe dizia: - Se estás
deprimida, faz um zabaione. Até dá vida a um morto.
Eliminou as claras e deitou as gemas na tigela, acrescentou duas colheres de açúcar e uma minúscula pitada de sal e bateu tudo até obter uma espuma esbranquiçada
e macia que diluiu com um copo de Marsala. Deitou o preparado num tacho e levou-o ao lume com a chama no mínimo. Depois mexeu lentamente o líquido que se tornava
cada vez mais consistente. De vez em quando levantava a colher para verificar a densidade.
Apagou a chama, deitou o zabaione num taça, esperou que arrefecesse um pouco, depois foi à janela, observou o céu de junho que começava a escurecer, levou a taça
aos lábios, bebeu um pouco daquela ambrósia e teve uma sensação que reconheceu por já a ter tido muitos anos atrás. Pousou a taça na mesa e sussurrou: - Estou grávida.
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Não falou da gravidez até metade de julho, quando Guido lhe propôs: - Vou levar-te a Santa Margherita. Temos lá uma casa grande. Vão lá estar os meus avós os meus
pais e outros amigos íntimos que vais conhecer.
- Não - disse ela.
- Porque não, minha lagartixa? - perguntou ele, atribuindo a recusa ao medo de se confrontar com uma família que a ia observar, julgar, avaliar.
Tinham saído para jantar e Guido levara-a a um restaurante às portas da cidade conhecido pelas suas especialidades de peixe. Havia poucas mesas, uma clientela selecionada
e os preços eram de causar vertigens.
Amaranta ia responder, quando uma voz feminina gritou atrás deles: - Guido! Finalmente, voltas a aparecer.
Amaranta virou-se e viu uma rapariga loira, bronzeada, sem maquilhagem e elegante apesar de usar um vestido simples.
Pensou imediatamente que eram precisas muitas gerações de senhoras cultas e refinadas para produzir aquele tipo de mulher. Ela nunca seria assim e, francamente,
não se importava nada com isso. Mas, confrontada com ela, sentia-se uma nulidade.
Perguntou a si mesma por que razão Guido, que pertencia ao mesmo mundo daquela rapariga, a escolhera a ela.
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Ele levantou-se, apertou a mão que a mulher lhe estendeu inclinou a cabeça para lhe dar um beijo na face, ao mesmo tempo que dizia: - Olá, Bona. Como estás?
- Já estás a ver. Gostava de estar em férias e, afinal como tu, não estou. de resto, ainda estou a trabalhar.
- Conheces a Amaranta? - perguntou ele, indicando a companheira que olhava para um e para outro com ar desconfiado.
- Não, e, no entanto, fala-se muito dela - revelou, sorrindo -lhe, e acrescentou: - Como estás?
- Bem, obrigada - respondeu, quase sem mexer os lábios.
- Queres sentar-te connosco? - disse ainda Guido.
- Não imaginas como me apetecia, mas estou com os Carminati, sabes?
- Caldeiras, certo? - perguntou Guido, que conhecia de nome aqueles pequenos industriais de Brianza que tinham feito muito dinheiro no pós-guerra e ansiavam
por entrar no mundo mágico dos senhores.
- Esses! Estou a decorar-lhes a casa de Pallanza. Uma canseira! Não distinguem uma tapeçaria Fortuny de uma dessas lojas a metro e estão sempre a esmifrar
as contas com medo de serem levados. Estão a observar-me da mesa lá do fundo e não quero que caiam em cima de mim com o pretexto de serem apresentados. Uma destas
noites temos de nos encontrar porque ando com muita vontade de dois dedos de conversa saudável.
Ao despedir-se, dirigiu a Amaranta um sorriso afetuoso, enquanto lhe sussurrava: - Tens de me dizer como foi que conseguiste apanhar este homem inacessível.
- Devo confessar-te que foi ele que me apanhou a mim - respondeu Amaranta, com ar de cumplicidade.
Bona olhou-a por um instante com curiosidade. Não sabia como situar aquela estranha criatura e, depois, sorriu-lhe porque tinha percebido: Guido escolhera uma mulher
absolutamente perfeita para ele. Nos belíssimos olhos verdes de Amaranta captara uma veia de excentricidade semelhante à da avó Bianca Cantoni, que conhecera durante
o cruzeiro à Grécia. Naquele mesmo instante pensou que se arrependia de ter renunciado a ele, já que o Apreciava tanto, mas deixara-se guiar pelo bom senso.
Beijou Guido numa face e foi ter com os seus convidados.
- Estavas a perguntar-me porque não quero enfrentar a tua família. A resposta já a tiveste ao ver-me junto da Bona. Por muito que a tua família possa fazer
boa cara, eu sou e serei sempre diferente. E tu sabes disso - disse Amaranta a Guido.
- Mas um dia vamos casar-nos - afirmou ele.
-É um pedido oficial de casamento? - perguntou, em tom de brincadeira.
- Não é a primeira vez que te peço para seres minha mulher. Quero uma resposta - esclareceu ele, sério.
Ela pensou na criança que lhe crescia no ventre. Como era diferente esta gravidez daquela que vivera quando era pouco mais do que adolescente! Recordou a dor, a
humilhação pela violência sofrida e aquele pequeno ser inocente que trouxera inutilmente no ventre durante seis meses, morto assim que veio ao mundo.
Agora estava feliz por esperar um filho de Guido. Sorriu-lhe e sussurrou: - Primeiro vamos deixar nascer o nosso bebé.
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Amaranta estava estendida no convés a apanhar sol. Guido, debruçado sobre ela, acariciava-lhe o ventre. Estavam no barco de Generoso a passar umas férias nas ilhas
gregas.
- Fazes-me cócegas - disse ela, a rir.
- O que é que tu tens a ver com isso? Eu estou a fazer festas ao nosso filho - replicou Guido.
A embarcação oscilava ligeiramente sobre a água, na calheta abrigada onde tinham parado para tomar banho. Amaranta ergueu os braços, apertou-os em volta do pescoço
de Guido e puxou-o para si.
- Sou demasiado pesado para fazer força em cima do nosso bebé - disse ele, retraindo-se.
Ela estava no quinto mês de gravidez e o corpo assumia contornos mais suaves.
- O nosso filho está protegido dentro da bolsa amniótica. Para de me tratar como se eu fosse um objeto frágil - reagiu ela.
- És a minha mulher e és muito preciosa - respondeu, abraçando-a.
Andavam a navegar há alguns dias, desde que Guido entendera que a sua companheira precisava de serenidade e de não sofrer pressões de nenhum tipo. A bordo daquele
barco grande, que Generoso emprestara a Guido, eram felizes os dois.
- Diz-se que dez dias no mesmo barco são a prova decisiva para um casal: nove em cada dez vezes os dois acabam por discutir ferozmente e por se separar -
declarou Guido.
- Já discutimos a seu tempo, a minha raiva esgotou-se e quero gozar estas férias contigo. É incrível a facilidade com que a gente se habitua à boa vida.
Desde que ficara grávida, Amaranta estava muito mais doce e Guido começava a descobrir a sua essência mais íntima, que se nutria de uma gentileza inata e de uma
sensibilidade aguda.
Quando a tripulação regressou a bordo, decidiram descer a terra e visitar Kos. Entraram nas vielas brancas da vila e cruzaram-se com velhos habitantes da ilha que
sorriam aos dois apaixonados e os cumprimentavam com um sorriso e um kalispera. Sentaram-se à mesa de um bar para tomar uma bebida, depois compraram garrafas e copos
de vidro colorido "made in Murano" e bijutaria de prata "mude in índia" que eram vendidos como produtos locais. Ao pôr do sol jantaram debaixo do alpendre de um
restaurante, saboreando um peixe grelhado e bolinhas de arroz embrulhadas em folhas de videira, planearam um passeio ao monte Athos e outro à Macedónia para ver
as cegonhas que ainda ali faziam ninhos.
Apesar de já não sentir necessidade, naquele longo mês de férias Guido adquiriu a certeza absoluta de que Amaranta era a mulher da sua vida, a única pessoa capaz
de lhe infundir segurança, a única com quem poderia olhar para o futuro com serenidade, porque sabia ouvi-lo com amor e inteligência.
- Estou convencida de que tu te estás a desperdiçar na empresa. Tens uma sensibilidade extraordinária que grita por se libertar do jugo das torneiras. A devoção
que nutres pelo teu pai e a necessidade de lhe fazeres a vontade ofuscaram as tuas capacidades de decidir livremente o teu futuro. Observo-te quando lês e anotas
nas páginas dos livros, quando tomas freneticamente apontamentos sobre um poema ou um conto, e a conclusão que tiro é que tu és um artista que tem necessidade de
se exprimir com as palavras - disse-lhe uma noite, enquanto o barco navegava ao longo da costa do Peloponeso e eles estavam no convés a ver as estrelas.
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Guido refletiu longamente sobre aquelas palavras. Quanto mais pensava nisso, mais se convencia não só da inteligência de Amaranta como também da profundidade daquela
relação. Não tinham segredos um para o outro e conseguiam até dizer coisas incómodas, sabendo que não existiam barreiras intransponíveis.
Quando regressaram a Milão, Guido decidiu que lhe ia dar a ler uma série de contos escritos nos últimos dois anos e que mantinha ciosamente fechados numa gaveta.
Chegaram à cidade com alguns dias de antecedência relativamente ao previsto, porque Amaranta tinha uma consulta de rotina no ginecologista e Guido não queria que
a adiasse.
Fez questão de a acompanhar ao médico, que tinha sido seu colega de liceu e agora era assistente do médico-chefe da clínica Mangiagalli.
O especialista submeteu-a a uma observação cuidadosa e concluiu que a gravidez decorria com normalidade. Amaranta disse-lhe que há mais de um mês tinham desaparecido
as suas febres misteriosas.
- É o poder da maternidade - respondeu o médico, que lhe marcou nova consulta para o fim do sétimo mês.
Passaram o serão em casa. Amaranta preparou um jantar frugal.
Quando se sentaram à mesa da cozinha diante de um prato de sopa com aveia, ela estendeu-lhe uma folha de papel escrita com a sua caligrafia esmerada. Guido leu:
"Coisas a fazer antes de nascer a criança." Levantou os olhos do papel.
- Tenho de ler isto já? - perguntou.
- Sim, por favor. Assim vamos conversando enquanto comemos - respondeu ela.
Ele começou a ler em voz alta: - Primeiro: O nosso filho só vai ter um quartinho quando começar a ir para a escola. Até lá vai dormir ao lado da mãe, sem a presença
de uma ama.
- Não quero que a criança cresça a pensar que pertence a uma classe privilegiada - explicou Amaranta.
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- Isso é pura hipocrisia, porque ele já pertence ao mundo dos privilégios. Tem uma mãe que acaba de chegar de um mês de férias num barco fantástico. As mães
proletárias só vivem estas coisas em sonhos.
- Ou quando encontram um homem como tu. Mas tu podes já cá não estar amanhã. O ponto de apoio do nosso filho sou eu, e eu sou uma mulher do povo.
- Estás a pensar que eu podia... morrer? - perguntou Guido, preocupado.
- Isso nunca, meu amor. Mas acho que te podes cansar de mim.
- Estou autorizado a pensar a mesma coisa de ti.
- Só que eu sou a mãe dele e nunca o deixaria.
- Portanto, estás a dizer-me que podes ser tu a cansar-te de mim? - perguntou ele, irritado.
- Estás a pôr o meu filho nervoso - replicou ela, ao mesmo tempo que pousava as mãos na barriga.
- Se as outras coisas que queres fazer são do mesmo tipo, não leio mais nada, e não tentes fazer chantagem comigo dizendo que te estou a enervar a ti e ao
nosso filho.
- Eu estava à procura de uma conversa racional, mas vejo que contigo é impossível abordar um assunto sério! - disse Amaranta, acalorada, ao mesmo tempo que
lhe arrancava o papel da mão.
Ele olhou para ela, desolado.
- Amaranta, estamos a discutir? - perguntou.
- Parece que sim - respondeu, e logo a seguir levou uma mão aos rins, contendo um grito: - Tive uma contração... sinto-me pessimamente. Chama o médico, por
favor.
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Era já madrugada quando tudo acabou. Amaranta jazia atordoada pelo efeito dos sedativos, na cama da clínica onde tinha sido internada de urgência. Guido estava sentado
ao lado dela e acariciava-lhe uma mão. Estava desorientado e triste, porque o bebé já não existia.
Eram seis horas da manhã e ouviam-se as badaladas dos sinos de uma igreja.
Amaranta emitiu um lamento débil. A porta do quarto abriu-se e entraram a enfermeira e o obstetra.
A enfermeira debruçou-se sobre ela para lhe medir a tensão e o médico sussurrou a Guido: - Vamos sair um instante.
Quando chegaram ao corredor, explicou: - Como já te disse quando saí do bloco operatório, fiz tudo aquilo que podia pela tua companheira e pelo vosso filho. Se tivesse
acontecido daqui a um mês, talvez tivéssemos tido alguma possibilidade de o salvar, mas assim... Sinto muito, Guido. Quando a observei, ontem à tarde, não havia
sinais de preocupação.
- O que foi que aconteceu, exatamente? - perguntou Guido.
- Não sei. Os resultados dos exames estavam perfeitos, o útero impecável, ela nunca teve perdas de sangue, nada deixava adivinhar esta conclusão dramática
para além do facto de, quando era mais nova, não ter conseguido levar a cabo uma primeira gravidez. Há mulheres sujeitas a abortos espontâneos, mas isso não significa
que não possam vir a ter mais filhos. Da próxima vez, porém, vai passar a gravidez na cama e tudo vai correr pelo melhor - concluiu o amigo.
- Sinto-me culpado. Sabes, nós nunca deixámos de fazer amor e se calhar não devíamos - balbuciou Guido.
- Não foi por isso que abortou. Acredita na minha palavra. A Amaranta é uma mulher forte e vocês vão ter todos os filhos que quiserem. Agora ela vai ficar
bastante deprimida, por isso apaga essa cara triste e anima-a - ordenou o médico.
- Claro. Vou fazer isso - disse Guido, regressando ao quarto, enquanto a enfermeira inseria uma ampola de analgésico na solução de soro.
Quando ficaram sós, aproximou-se de Amaranta, passou-lhe uma mão pelos cabelos e sorriu-lhe.
- Como estás? - perguntou-lhe ela, com um fio de foz.
- Eu é que te pergunto a ti como estás - respondeu ele, a sorrir.
- Sinto-me em pedaços e não consigo pensar - queixou-se.
- Eu ajudo-te, querida - disse ele, e prosseguiu: - Pensa que somos um homem e uma mulher com muita sorte, porque tu tens-me a mim e eu tenho-te a ti e amamo-nos
muito.
- Até ontem à noite também tínhamos uma criança - murmurou ela.
- O Senhor, a quem tu te diriges sempre, quase como se fosse um parente próximo, decidiu que aquela criança não devia nascer.
Ela anuiu e disse: - Estás cansado. Por favor, vai para casa. Guido não queria deixá-la sozinha e disse-lho.
- Mas eu preciso mesmo de solidão - insistiu ela.
Ele regressou à via Mozart e deixou-se cair na cama sem se despir. Cobriu o rosto com a almofada e soluçou durante muito tempo, sem conseguir parar. Estava tomado
por uma tristeza dilacerante, não só pelo filho que não nascera, mas porque temia que aquela extraordinária história de amor com Amaranta chegasse ao fim. Quando
as lágrimas estancaram, caiu num sono profundo e sem sonhos.
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Foi acordado pela mulher do porteiro, que entrou em casa para a limpeza diária.
Então levantou-se e saiu do quarto.
A mulher olhou para ele como se fosse um fantasma.
- Senhor doutor! Está doente?
- Faça-me um café, por favor. Eu vou tomar um duche disse, sem lhe dar mais explicações, e só quando entrou na cozinha, com o roupão vestido, explicou: -
A Amaranta está pior do que eu. Esta noite perdeu o bebé.
A mulher entregou-lhe uma chávena de café já com açúcar e disse: - Sinto muito. Se calhar venho limpar mais tarde, quando sair. - Depois desapareceu.
Ele voltou ao quarto e vestiu-se. Enquanto pegava nas suas coisas em cima da mesa de cabeceira, viu o papel com os apontamentos escritos por Amaranta que tinha começado
a ler na noite anterior. Continuou a leitura.
"Segundo: Inscrever-me num curso de leitura e compreensão da Bíblia. Terceiro: Levar à lavandaria vestidos e camisolas escondidos há meses no quarto de arrumos.
Quarto: Ter um diário da minha vida a dois. Quinto: Substituir o pneu furado da minha bicicleta. Sexto: Confessar ao Guido que li os contos dele às escondidas e
que os achei lindíssimos. Sétimo: Deixar de mentir ao Guido sobre o uso do alho, que ele detesta e eu digo que não uso. Oitavo: Não continuar a atormentar o Senhor
com as minhas pretensões absurdas. Nono: Lembrar-me sempre de que cai a noite mesmo no dia mais luminoso. Décimo: Já me esqueci. Obviamente não era importante."
Dobrou o papel em quatro e enfiou-o no bolso do casaco.
Pouco depois saiu de casa. Estava decidido a fazer tudo o que pudesse para não perder aquela mulher. Passou pela florista, pediu um ramo de rosas brancas e regressou
à clínica.
Encontrou Amaranta sentada na cama. Estava a bebericar uma chávena de chá e recebeu-o com um sorriso. Ele encostou a cadeira à cama e sentou-se ao lado dela.
- Obrigada por estas rosas lindíssimas - disse, ao mesmo tempo que as entregava a uma enfermeira para as pôr numa jarra.
- Ainda tens dores? - perguntou Guido.
- Só uma sensação de peso no baixo-ventre. O médico diz que amanhã isto vai estar bastante melhor e daqui a dois dias posso sair da clínica.
- Esta noite queria dormir aqui contigo e... - hesitou antes de prosseguir.
- E? - perguntou Amaranta.
- Acho que devíamos legalizar a nossa união. Fomos feitos um para o outro, meu amor, e eu não posso viver sem ti.
- Tenho de fazer o meu luto - disse ela, depois de um longo silêncio.
- Esta dor não é só tua, Amaranta - observou Guido. Ela anuiu e fez-lhe uma festa na cara.
- No céu há amores já escritos que só estão à espera de serem vividos. Será o nosso um deles? - perguntou, olhando-o nos olhos.
- Tens alguma dúvida?
- Eu amo-te profundamente e amar-te-ei sempre - murmurou ela, e prosseguiu, tristemente: - Mas não sei se a nossa história está escrita no céu porque, se
estivesse, não nos causava tanto sofrimento.
- A noite também cai sobre o dia mais luminoso. Isto foste tu que escreveste, esquecendo o que se segue: depois o sol volta a brilhar - disse Guido, a tentar
tranquilizá-la.
- Leste a minha lista - admirou-se Amaranta e, baixando os olhos, disse: - Podes destruí-la, já não é precisa.
Nos dois dias que se seguiram, Guido raramente se ausentou e Amaranta parecia mais serena. O médico sossegou-os aos dois sobre o facto de ela poder enfrentar alegremente
outras gravidezes e, no terceiro dia, Guido desceu à secretaria para pagar a conta da clínica, enquanto Amaranta se vestia para ir com ele para casa. Quando voltou
a subir só encontrou uma enfermeira no quarto.
- A senhora já foi embora. Deixou isto para si - disse-lhe a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe estendia um papel dobrado em quatro.
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Guido leu: "O Céu não quer que eu tenha filhos nem um companheiro. Não posso ir contra a vontade do Senhor. Sei que me vais entender. Amo-te muito, Guido, mas não
posso ser tua mulher."
A ESCALADA DE LÉONIE
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- Depois, felizmente, chegaste tu, e nós acolhemos-te como uma dádiva do Céu - disse o velho Amilcare.
Léonie estava cansada e o avô também. No entanto, ela queria saber mais.
- Para onde tinha ido a Amaranta?
- Foi ter com don Tranquillo. Ele entregou-a às monjas beneditinas de Lecco, que a receberam como postulante. Agora é madre abadessa num convento. Sei pelo
Guido que é uma freira feliz - concluiu Amilcare.
- Isso quer dizer que continuou em contacto com ele?
No quarto ao lado, o pequeno Gioacchino começou a chorar. A velha empregada que já tinha tratado de Giuseppe entrou no quarto com o recém-nascido ao colo.
- Tem fome, o meu pequenino - disse Léonie a sorrir, ao mesmo tempo que o recebia nos seus braços.
- Ajuda-me a regressar aos meus aposentos - disse o velho Amilcare à empregada.
Pouco depois chegou Celina, que se sentou na poltrona que o sogro deixara livre e ali ficou a olhar para a nora enquanto esta dava de mamar ao seu segundo neto.
Quando o menino, já saciado, voltou a adormecer, Léonie disse: - Estou cansada, maman. O Guido não tarda a chegar e eu
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gostava de dormir um bocadinho. - Entregou a criança à empregada. Celina beijou-a na testa e deixou-a só. Léonie adormeceu, e, quando acordou com a primeira luz
de uma manhã de inverno, viu o marido, de jeans e camisola, a dormir ao seu lado.
E também o primogénito, Giuseppe, estava a dormir abraçado ao pai.
Naquela grande cama, na agradável tranquilidade da madrugada, estava a sua família, sólida e reconfortante, tal como sempre a imaginara e desejara. Podia realmente
considerar-se uma mulher com sorte.
A porta do quarto abriu-se e apareceu uma empregada que trazia o bebé ao colo para a mamada. Léonie aproximou o indicador dos lábios para lhe recomendar silêncio
e deslizou para fora da cama. Tomou o menino nos braços, saiu do quarto com a empregada e entrou no quarto ao lado, que se destinava ao recém-nascido. Deu de mamar
ao filho e depois entregou-o à empregada.
- Está alguém na cozinha? - perguntou-lhe.
- Com certeza, minha senhora.
Léonie meteu-se no elevador e desceu. A cozinha estava iluminada como se fosse dia. Foi acolhida por um delicioso aroma de café. Da copa chegavam as vozes dos jardineiros,
do motorista e das empregadas da limpeza que tomavam o pequeno-almoço. Em cima de uma mesa estavam alinhados os bolos acabados de sair do forno, o pão estaladiço,
a fruta cortada. Uma empregada espremia laranjas.
- Bom-dia, Evelina - disse Léonie, enquanto se aproximava dela.
- Minha senhora! - exclamou Evelina, limpando rapidamente as mãos a um pano. - Parabéns - acrescentou, a sorrir.
- Obrigada. Tenho fome - anunciou Léonie, ao mesmo tempo que aproximava um banco da mesa de mármore.
- Eu sirvo-lhe o pequeno-almoço no jardim de inverno respondeu Evelina, atenciosa.
- Não, quero voltar para a cama. Mas um sumo, uma fatia de tarte e um café seriam uma bênção - replicou ela.
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Evelina apressou-se a fazer-lhe a vontade e, enquanto Léonie bebia o sumo de laranja, entraram Guido e Giuseppe, que a encheram de beijos e abraços.
Ela estava feliz e satisfeita com tudo aquilo que a vida lhe oferecia com tanta generosidade.
- A que horas chegaste? - perguntou a Guido.
- Às três, mas tu dormias profundamente. Eu também devia estar cansado, porque depois de ter pegado no Gioacchino ao colo fui buscar o Giuseppe ao quarto
dele e adormecemos ao pé de ti. Obrigado pelo nosso segundo filho, tão lindo - disse-lhe, comovido, e deu-lhe um beijo na face.
- Não é verdade que ele é lindo. É feio, feio - corrigiu Giuseppe, enquanto se agarrava ao pescoço da mãe.
- Tens razão, realmente - concordou Léonie, com ternura. o Gioacchino é muito feiozinho, mas eu estou feliz porque te tenho a ti, que és lindíssimo - acrescentou,
para acalmar os ciúmes do mais velho.
- Mas o Gioacchino gosta de ti, porque quando nasceu trouxe-te um presente - anunciou Guido ao filho.
- A sério? - perguntou o menino, incrédulo.
Ela olhou para o marido, que lhe fez um sinal de entendimento e explicou ao filho: - Quando voltares para o teu quarto vais ver que bela surpresa te fez o teu irmãozinho.
- Vou já - decidiu Giuseppe, ao mesmo tempo que deslizava dos joelhos da mãe.
Evelina foi ter com ele para o levar ao primeiro andar e Guido revelou à mulher: - Antes de partir para Roma comprei-lhe uma bicicleta. Ele queria muito ter uma.
Deixei-lha ao lado da cama, mas ainda não a viu.
- Estás cansado? - perguntou ela.
- De nós os dois, quem fez um grande esforço foste tu - respondeu o marido. Segurou uma mão da mulher entre as dele, levou-a aos lábios e sussurrou: - Obrigado.
Léonie observou Guido com ternura, como se estivesse a vê-lo pela primeira vez; e era efetivamente assim, porque a história do
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avô Amilcare sobre a paixão de Guido por Amaranta lançava uma nova luz sobre a sua personalidade complexa e, agora, menos misteriosa. Esteve quase a perguntar-lhe:
"Ainda te encontras com ela?", porque um grande amor como aquele não podia ter-se esgotado com a fuga de Amaranta para um convento. E se ele tivesse respondido:
"Sim, ainda a amo", como reagiria?
Interrogou-se se não seria apenas uma substituta, uma figura secundária relativamente a Amaranta. No entanto, não tinha nada a censurar a Guido, que era um marido
perfeito. Guardou para si a sua curiosidade e não lhe perguntou nada.
Não queria saber se cultivava ainda em silêncio o segredo da paixão pela freira, porque também ela tinha outro homem no coração. Pensou que, com toda a certeza,
os Cantoni eram uma família de pessoas sensatas, que guardavam os segredos e não permitiam que lhes estragassem a vida. Pensou que ela era uma mulher serena e incrivelmente
feliz, que tinha posto no mundo mais um filho que contribuía para reforçar o afeto que aquela família generosa tinha por ela.
Na mão que Guido beijara, resplandecia agora um anel com um diamante azul.
- Tu és completamente doido - exclamou, admirando a magnífica pedra de grande valor.
- Espera até veres o que te vou oferecer pelo terceiro filho disse Guido a rir.
- Eu achava que dois chegavam - protestou ela, sem grande convicção.
- Não gostavas de ter uma menina, linda e determinada como tu?
- Vou ter de pensar nisso - respondeu. Mas já sabia que os meses fantásticos da gravidez e depois o prazer de dar de mamar a outro filho eram uma alegria
que gostaria de renovar até ao infinito.
No amplo corredor do primeiro andar da villa, inundado de luz pelas grandes janelas que davam para o parque, Léonie estava sentada num divã a dar de mamar a Gioacchino,
enquanto Giuseppe percorria de um lado para o outro o enorme espaço na sua bicicleta munida de rodinhas laterais para o manterem em equilíbrio.
- Olha, mãe, como eu ando depressa - gritou o filho mais velho, que não perdia uma oportunidade para concentrar em si as atenções da mãe em detrimento do
irmão mais pequeno.
- Vais ser um verdadeiro campeão - afirmou ela.
- Mas o meu irmãozinho não. Não é verdade, mãe?
- Ele não, não é um campeão como tu, mas tu vais ser generoso e vais ensiná-lo a andar de bicicleta quando ele for do teu tamanho.
Giuseppe desmontou, abandonou a bicicleta e foi ter com Léonie, a saltitar. Pousou os cotovelos numa coxa da mãe, levou as mãos ao rosto e ficou ali um pouco a ver
o recém-nascido a mamar. Depois disse: - Porque é que só dás leite a ele?
- Quando eras pequenino como o Gioacchino, também te dei a ti.
- Eu não me lembro.
- Também ele, quando for grande como tu, não se vai lembrar.
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- Porque é que agora já não me dás?
- Porque tu agora comes à mesa connosco.
- Eu também quero mamar - afirmou.
- Então mama - respondeu Léonie a sorrir.
Giuseppe destapou o outro seio da mãe e chupou. Afastou-Se imediatamente, com um ar enjoado.
- Que nojo! - exclamou.
- Agora percebes por que razão eu já não te dou o meu leite
- disse Léonie a rir.
Giuseppe esfregava os lábios com as costas da mão e repetia-
- Que nojo, que nojo!
Celina saiu do elevador e foi ter com eles no seu passo incerto Encostou o rosto ao ouvido da nora e sussurrou-lhe qualquer coisa.
- Quero um rebuçado - reclamou Giuseppe.
Ela pegou-lhe na mão e levou-o com ela, dizendo-lhe: - Anda, eu deixo-te escolher um da cor que tu gostas.
- Aquele vermelho! - gritou o menino, enquanto Léonie se apressava a entregar o bebé a uma empregada. Depois dirigiu-se à ala este da villa, onde ficavam
os aposentos de Amilcare Cantoni, que já não via há alguns dias, desde a noite em que o filho nascera e ele lhe contara a história de Guido e Amaranta.
A porta do quarto do patriarca estava entreaberta. Ela entrou, à espera de o encontrar deitado. Mas estava sentado com o neto, com o filho e o médico à mesa oval
aos pés da cama. Os quatro tinham nas mãos as cartas de jogar e estavam mergulhados num silêncio absorto, imóveis.
Léonie sabia que Amilcare era um extraordinário jogador de escopa e que durante toda a vida frequentara a taberna da aldeia, a mais antiga, a que ficava na praça
da igreja, onde era muito requerido como parceiro de jogo. Tinha transmitido à mulher, ao filho Renzo, ao neto Guido e, mais recentemente, também a ela, a paixão
por aquele jogo.
Aproximou-se deles e inclinou-se sobre o marido para lhe perguntar em voz baixa: - Como está a correr?
- O avô estava à tua espera - respondeu Guido, e acrescentou: - Pediu a mãe que te chamasse-
Amilcare, enterrado na poltrona, apoiado em algumas almofadas, sorriu-lhe e disse com um fio de voz: - Agora que a Léonie está aqui, quero que ocupe o meu lugar.
Então Léonie encostou um banco à poltrona do avô, sentou-se e pegou nas cartas que Amilcare lhe estendia, dizendo: - Estamos na última rodada.
Depois sussurrou-lhe ao ouvido: - Aquele incompetente do doutor tem na mão o sete de espadas, o teu marido tem o rei de ouros, tu vais buscar o sete com o teu de
paus e o meu filho vai ter de entregar o rei com... - calou-se e inclinou a cabeça.
Levantaram-se todos, ao mesmo tempo que o médico pegava no estetoscópio. Pousou-o no peito de Amilcare e abanou a cabeça.
- Acabou - murmurou, comovido.
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Amilcare sentia há já gum tempo que o fim da sua existência se estava a aproximar. A velhice, com tudo aquilo que comportava, perturbava o seu sentido estético.
Lembrava-se da mãe, camponesa rude mas inteligente que às portas da morte lhe sussurrara: "Mais do que velhos não podemos ficar." Exprimira assim a inevitabilidade
de um acontecimento a que ninguém pode escapar. E, no entanto, Amilcare não conseguia aceitar a morte que assinalava a desintegração de uma pessoa palpitante de
força, de beleza e de inteligência.
O patriarca pensava muitas vezes nas pessoas que tinham sido suas companheiras de caminho e que já não existiam. Não acreditava na vida eterna e estava convencido
de que o Inferno e o Paraíso estavam estreitamente ligados à vida terrena. Ele tinha tido sorte, porque atravessara muitos infernos de sofrimento, mas também muitos
paraísos de alegria.
E, no entanto, escapava-lhe o significado último da morte, o exato oposto da vida que ele sempre amara, tanto nos momentos mais exaltantes como nos mais dolorosos.
Procurava há algum tempo uma explicação nas palavras de muitos filósofos e escritores que tinha lido e amado. "Lembra-te que tens de morrer", diziam os monges trapistas,
e ele imaginava-os enquanto repetiam, satisfeitos, quase com prazer, aquela
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ameaça que não explicava nada e que atingia o humilde e o poderoso, o bom e o mau. Como afirmava um dramaturgo francês: "A morte é um mistério inexplicável." Petrarca
escrevera: "Bela era a morte no seu belo rosto." E Svevo definia a morte como "um grande delito". Cometido por quem?, perguntava Amilcare. Por Deus? Não, Deus não
existe. Pela vida? Talvez. A vida é como uma bela mulher, generosa na aparência e sádica na essência. Primeiro, dá-nos tudo e, depois, diverte-se a tirá-lo.
Ele aproximava-se do seu fim e com ele morreria a criança tenaz e rica de sonhos que ele fora, o rapaz que agarrara a vida com força, o jovem apaixonado por uma
rapariga rica e inquieta, o homem que suportara o insuportável de uma mulher difícil, o pai aterrorizado pela ideia de que a loucura de Bianca pudesse contagiar
os filhos, o patriarca que a sorte favorecera permitindo-lhe perpetuar o nome dos Cantoni através de um neto que não tinha uma única gota do sangue tresloucado de
Bianca Crippa.
Sofrera ao ver Guido doente de amor por Amaranta, mas tinha a certeza de que a mulher, aquela pequena francesa da Provença, o ia curar. Agora havia dois bisnetos,
outros viriam ainda e a estirpe dos Cantoni ia continuar, mesmo sem uma única gota do seu sangue. Mas não é o sangue que conta, pensava, é a família, e aquela era
a sua família.
Sentia que tinha feito um bom trabalho na sua vida. Tinha muitos remorsos, mas nada de que se arrepender.
A morte, "o grande delito", pesava sobre ele. Por isso sentira a necessidade de contar a Léonie a história de Guido, porque sabia que ele ia continuar calado e estava
convencido de que os segredos não faziam bem ao equilíbrio de um casal.
No dia da sua morte, Amilcare sentiu-se mal. O médico de família, imediatamente convocado, observou-o escrupulosamente e sentenciou: - Meu amigo, tu estás mais são
do que eu, mas estás velho.
- Olha quem fala... - brincou Amilcare.
- Tenho vinte anos menos do que tu, ainda sou um rapaz.
- Então respeita-me.
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- É o que estou a fazer, meu amigo. Por isso não te obrigo a comer, se não te apetecer, mas obrigo-te a beber.
Amilcare obedeceu e quando o médico voltou, de tard disse-lhe: - Não quero que a morte me apanhe na cama. Ajuda' -me a sentar na poltrona.
O amigo fez-lhe a vontade e depois tirou da mala o estetos cópio para lhe auscultar o batimento cardíaco.
- Deixa-te lá dessas palermices - protestou Amilcare e acrescentou: - Quero jogar uma última partida de escopa. Chama o meu Renzo, o filho, e junta-te a nós.
Não te pediria isso se o meu outro filho estivesse aqui. Mas não tarda a chegar, porque já o devem ter avisado. Monsenhor Cantoni participou nos batizados, nos casamentos
e nos funerais desta família. Chega sempre nos momentos solenes.
- Amilcare, eu não acho que... - tentou protestar o médico.
- Tu não tens nada que achar, mas que obedecer.
Pouco depois, os quatro homens estavam sentados à mesa de jogo.
O patriarca segurava as cartas com força e jogava aquelas de que precisava o parceiro, que era o filho, para uma vaza segura. Sempre fora imbatível naquele jogo
e, na última rodada, com base num cálculo matemático, sabia o que estava nas mãos dos adversários. Ele e o filho estavam a ganhar, mas Amilcare sentia-se cansado
e, apesar de sempre ter declarado que não acreditava em Deus, agora pedia-Lhe silenciosamente que lhe concedesse uma passagem rápida na linha da fronteira.
- Chamem a minha neta. Ela vem tomar o meu lugar - disse, com um fio de voz.
Quando Léonie chegou junto dele, por um instante saboreou o perfume da vida e depois o seu coração repousou finalmente.
Monsenhor Cantoni chegou quando o corpo do pai estava ja arranjado na cama. Foi ele, com don Ivano, o novo pároco da aldeia, que oficiou a cerimónia fúnebre e foi
ele, no dia seguinte, que batizou o novo bebé da casa Cantoni, o pequeno Gioacchino, ao qual foi dado, como segundo nome, o de Amilcare. Monsenhor
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Gioacchino ficou com a família duas semanas, durante as quais ele e o irmão se fecharam muitas vezes nos aposentos dos pais. Guido e Léonie deduziram que havia questões
de herança a esclarecer, mas afinal descobriram que tinham passado horas a organizar cartas e fotografias para satisfazer a necessidade de reviver os anos longínquos
da infância e de recordar os pais.
Quando o sacerdote partiu, Renzo Cantoni lembrou-se de que era o chefe da sua empresa e regressou ao trabalho.
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- Temos um problema com a Edilcapitale - começou Renzo Cantoni, à hora de jantar, depois de ter voltado do escritório.
Era uma empresa de construção de Roma, propriedade de um construtor, Ennio Tommasini, que edificava cidades-satélite nos arredores da capital e que os seus detratores
definiam como "porco especulador".
Aos Cantoni não interessavam os juízos pouco lisonjeiros sobre Tommasini, consideravam-no apenas um cliente como muitos outros, aliás, o melhor, atendendo ao número
de encomendas que choviam na empresa para uma faturação de muitos milhões.
Léonie reparou no olhar preocupado do sogro, pensou que muito raramente ele exteriorizava à mesa os problemas da empresa e deduziu que a explicação devia ser grave.
Pousou o garfo e esperou a continuação.
- Não quer faturas e diz que paga em numerário através de uma conta que tem no Luxemburgo - explicou Renzo.
- Então sempre é verdade aquilo que se diz dele em Roma comentou Guido.
- Também se diz em Milão. Há pouco tempo contaram-me que até anda a tentar entrar no nosso território, de tal maneira que já comprou um palacete na Porta
Vittoria e lá instalou uns escritórios - revelou Celina que, em Milão, tinha o seu círculo
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de amigas cujos maridos estavam bem inseridos no mundo dos negócios.
- Pai, ajude-me a perceber - pediu Léonie.
- Minha querida, acorda. Chama-se evasão fiscal, e é crime - interveio Guido.
- A nossa empresa tem as suas regras que são iniludíveis, mesmo quando comportam um agravamento fiscal. É claro que podíamos ser muito mais ricos do que somos
se não respeitássemos as regras mas, se déssemos a volta à lei, ficávamos manchados com um crime. Mesmo que não fôssemos descobertos, onde é que o nosso país ia
parar se a evasão se tornasse sistema? Todos íamos ser prejudicados. Por fim, teria de fazer um pacto com a minha consciência, e esse é um exercício que eu não sei
praticar. Portanto, no que diz respeito ao pedido do Tommasini, só temos um caminho: recusar a proposta dele e, como consequência, perder um grande cliente. Fui
claro? - explicou Renzo.
Continuaram a jantar em silêncio. Só quando foi servida a salada de frutas, Léonie disse: - Pai, gostava de falar com esse Tommasini, olhos nos olhos.
- Como és ingénua. Nunca vais conseguir falar com ele. Tem um exército de gorilas a fazer de para-vento e, ainda que aceitasse encontrar-se contigo, podia
responder-te que já tinha feito um acordo com o pai nesse sentido, porque dizem que também é mentiroso - interveio Guido.
- Mesmo assim gostava de fazer uma tentativa, agindo à minha maneira - replicou Léonie, que já estava a elaborar um plano de ataque.
- Esquece, estás a dar de mamar ao teu pequenino e não precisas de levar com este problema. Mas é inútil tentar convencer-te, já sei que vais telefonar ao
Tommasini - concluiu o sogro, com um meio sorriso.
Era fim de fevereiro, a neblina começava a diminuir e a ferradela do gelo era menos apertada. Guido andava por casa, sem se decidir a retomar o trabalho, e Celina
enchia-se de comida e arrastava o seu peso entre a sala de estar e os quartos dos netos.
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Léonie apresentou-se na fábrica depois de amamentar o filho a meio da manhã. Pediu para examinar os contratos com a Edilcapitale e telefonou para os escritórios
de Milão a pedir uma reunião com o Dr. Ennio Tommasini. Teve de esperar bastante tempo em linha, mas depois a voz aflautada de uma secretária disse-lhe que o doutor
a receberia às duas horas da tarde daquele mesmo dia.
- Vou meter-me na toca do lobo - anunciou Léonie quando entrou no escritório do sogro e lhe contou da reunião.
- Eu vou contigo - decidiu Renzo Cantoni.
- Por favor, deixe-me fazer as coisas à minha maneira. Eu levo o Gioacchino comigo.
- Vais fazer uma palhaçada! Envolver o pequenino... - protestou Renzo Cantoni. Mas ela não o deixou acabar.
-Ala guerre comme à la guerre! Eu tenho as minhas armas e estou decidida a usá-las. Se perder, pedir-lhe-ei desculpa pela minha presunção - afirmou ela, e o sogro
percebeu que não ia conseguir detê-la. Ela regressou à villa e disse a Floriana, a empregada que tratava do recém-nascido: - Vamos a Milão. Arranja-te e veste o
Gioacchino, porque vamos todos juntos.
Os escritórios do construtor em Milão ficavam num palacete do século XIX, para lá de um imponente portão que se abria sobre um pequeno jardim murado. No portão e
na porta de entrada estavam instaladas as câmaras de vigilância que assinalaram a chegada de Léonie, com Gioacchino ao colo, e da empregada.
A porta de entrada abriu-se automaticamente e o singular trio entrou num vestíbulo luminoso, com as paredes cor de marfim em estuque veneziano. Veio recebê-la uma
hostess de formas exuberantes enfaixada num saia-casaco cor de malva dois tamanhos abaixo.
- Sou Léonie Cantoni e tenho uma reunião com o Dr. Tommasini - apresentou-se Léonie. E, uma vez que a rapariga continuava a oferecer-lhe um sorriso hesitante
que denunciava alguma perplexidade, acrescentou: - Há algum problema, querida? Nunca viu um recém-nascido?
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- Claro, o senhor doutor está à sua espera, mas eu não sabia... quero dizer, pensava... - balbuciou a rapariga.
- Não pense, querida. Limite-se a anunciar-me - interrompeu-a Léonie, com um sorriso muito doce.
Tinha-se maquilhado com cuidado, vestido um saia-casaco e inundado de perfume, decidida a levar a melhor sobre aquele construtor arrogante que impunha a sua lei
em vez de respeitar a do Estado.
Foi escoltada, com Floriana, em direção a um elevador que as engoliu e num instante as depositou no primeiro andar. Ali foram recebidas por uma espécie de bailarina
de revista vestida de secretária que disse: - O senhor doutor vai recebê-la imediatamente. Não sei se será o caso...
Gioacchino dormia sossegado e, ao mesmo tempo que o passava delicadamente a Floriana, Léonie disse: - Sim, é caso de oferecer um lugar confortável, ainda que por
pouco tempo, à ama e ao meu filho. Sabe, ele ainda não tem idade para presenciar uma reunião de trabalho.
Completamente desorientada, a secretária apressou-se a indicar uma salinha onde a ama se refugiou com o bebé, enquanto Léonie fazia as últimas recomendações: - Se
vires que começa a ficar agitado, mete-lhe a chupeta na boca.
Depois, com um ar altivo, esperou que a secretária lhe abrisse a porta do gabinete de Tommasini, anunciando-a.
Léonie entrou num aposento sumptuoso, decorado com tapetes macios, espelhos antigos e plantas viçosas, que exaltava, em vez de anular, a insignificância de um cinquentão
calvo e gordo, sentado ao fundo da sala numa espécie de trono, atrás de uma secretária translúcida; ao seu lado, em sentido, um indivíduo esguio de cabeleira fulva,
que abandonou o posto para avançar na sua direção, enquanto o construtor descia do trono para se aproximar dela, oferecendo-lhe um amplo sorriso. Léonie teve o cuidado
de não deixar transparecer qualquer tipo de reação.
- Signora Tardivaux, é ainda mais bonita do que me disseram - começou Tommasini, ao mesmo tempo que levava aos lábios a
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mão que Léonie lhe estendia. E prosseguiu: - Eu sou o tal construtor de Roma que aqui no Norte detestam, mas acabarão por apreciar. Apresento-lhe o contabilista
Lucetti, o irresponsável do meu assistente. Colaborador precioso, com certeza, mas demasiado cuidadoso a ver se as contas batem certo. Por favor, fique à vontade
- disse depois, indicando-lhe com um gesto teatral uma poltrona em frente à secretária.
Ela apertou a mão a Lucetti e sentou-se, enquanto Tommasini voltava a instalar-se no trono.
- O contabilista Lucetti é tão zeloso que, às vezes, exagera. Receio que esta seja uma dessas vezes.
O contabilista maltratado não se alterou e ficou outra vez em sentido, ao lado do patrão.
- Pedi este encontro, que o senhor generosamente me concedeu, para lhe demonstrar como estamos empenhados em poder contar consigo entre os nossos clientes.
Neste caso, temo que a culpa seja toda nossa. Fui ler o contrato de fornecimento e vi que as modalidades de pagamento não constavam, mas que havia uma anotação que
previa um acordo posterior que não chegou a ser formalizado.
Enquanto ela falava, o contabilista Lucetti ia entregando alguns papéis ao chefe, que os ignorou com um gesto de irritação.
- Eu sei, eu sei - respondeu Tommasini, sem deixar de sorrir. - Deixe-me explicar-lhe. A senhora, que tem a sorte de ser francesa, não imagina até que ponto
é subtil a legislação italiana nesta matéria. Não sabe até que ponto chega a avidez do nosso Fisco. Concentra-se em gente como eu, que constrói cidades para oferecer
a toda a gente um alojamento condigno, e tortura-nos, espreme-nos até à medula. Os meus colaboradores, para salvar a pele, às vezes incorrem num pecado venial, como
neste caso.
- Neste caso, os pecados veniais seriam dois, o seu e o nosso. Eu não sei nada de questões fiscais, mas acho que a soma de dois pecados veniais não produz
uma absolvição - replicou prontamente Léonie.
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Tommasini ficou uns instantes em silêncio e depois disse: - Sabe que estou tentado a pedir-lhe que trabalhe para mim? A senhora junta a inteligência à beleza e ao
charme e, acredite em mim, não estou a exagerar nada.
- Agradeço-lhe o cumprimento, que considero imerecido, mas pergunto-lhe: quer mesmo que a minha empresa cometa também esse pecado? Sabe, nós somos industriais
da província, gente simples, gostamos de ter clientes importantes como o senhor, mas também gostamos de dormir um sono tranquilo. Agora, sabendo que não podemos
aceitar pagamentos no estrangeiro, acha que ainda pode contar connosco entre os seus fornecedores? - perguntou, com um amplo sorriso.
- A senhora está a encostar-me à parede, mas fá-lo com uma tal graça que... como é que eu lhe posso dizer que não? - gemeu o homenzinho, abrindo os braços
como se estivesse prestes a deixar-se crucificar.
Léonie levantou-se de repente e estendeu-lhe a mão, enquanto olhava para ele quase com adoração e dizia: - Obrigada, senhor doutor. Obrigada do fundo do coração.
Eu tinha a certeza de que nos íamos entender. Imagine que eu quis vir aqui pessoalmente, apesar dos meus compromissos como mãe, e até trouxe comigo o meu filho que
tem apenas um mês e que daqui a pouco vai reclamar e querer mamar.
Moveu-se com graça, consciente do facto de que cada movimento espalhava no ar ondas irresistíveis de perfume.
- Eu entendo a pressa. Informaram-me de que o seu filho está ali fora com a ama. Mas é uma pena! Vou regressar a Roma no meu avião e gostava de lhe propor
que me acompanhasse, porque, está a ver, estou tão sobrecarregado de compromissos de trabalho que aproveito estas deslocações para falar com as pessoas interessantes.
- Pois, é uma pena! - admitiu Léonie, assumindo um ar resignado que não tinha nada a ver com ela. E concluiu: - Mas já conversámos o necessário.
Acompanhou-a até à porta, seguido do contabilista mudo, enquanto exclamava: - Está enganada, signora Tardivaux. Fiz-lhe
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uma proposta de trabalho muito séria, sobre a qual a convido refletir. Imagine o salto que seria passar da empresa do seu sogro para a Edilcapitale, da pequena empresa
de família para o grande negócio. Não imagina a carreira que podia fazer se trabalhasse para mim. Eu adoro trabalhar com mulheres, quando são inteligentes e, obviamente,
bonitas como a senhora.
- E vou fazê-lo, doutor - prometeu ela, reconhecida, e apressou-se a acrescentar: - Entretanto, fico a aguardar que as nossas faturas sejam emitidas de forma correta.
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Gioacchino, nos braços de Floriana, começava a dar sinais de impaciência. Léonie enfiou-se com eles no elevador e apressou-se a deixar o palacete, como se estivesse
a ser seguida por uma matilha de cães.
Passou o bebé para o seu colo e deu à empregada as chaves do carro.
- Conduzes tu. Eu sento-me atrás - disse, dando um longo suspiro de alívio.
Quando o carro iniciou a marcha, Léonie deu o peito ao filho, enquanto contava a Floriana: - Este encontro foi um pesadelo, mas ganhei a partida.
O Dr. Tommasini transmitira-lhe ondas negativas, e perguntou a si mesma se não seria o caso, uma vez saldadas as contas, de o retirar da lista de clientes.
- Isso nunca - sentenciou o sogro, quando foi ter com ele ao escritório. E continuou: - Os clientes são o nosso património e sem eles fechávamos a fábrica.
- Sim, mas um homem como aquele... - protestou ela.
- Devias estar contente por teres levado a melhor, pequena feiticeira - replicou Renzo Cantoni.
- Ainda não lhe disse... mas ofereceu-me emprego na empresa dele.
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- Não me espanta, tendo em conta o personagem. Será preciso que te explique com base em que critérios escolhe as mulheres?
- Pode poupar-me a essa parte, porque eu percebi muito bem. Por muito manhoso que seja, lepetit bonhomme não consegue camuflar a sua natureza.
- Obrigado por tudo, minha filha. Agora vai ter com os teus meninos e esquece o trabalho até ao verão.
- Sabe muito bem, pai, que não vai ser assim. Mas hoje estou realmente cansada e acho que vou demorar algum tempo a regressar à empresa.
Como conclusão daquela tarde desagradável, Léonie precisava de estar com os filhos.
Encontrou o marido no quarto de Giuseppe que, com a sua ajuda, construía uma casinha com cubos de plástico colorido. O filho correu ao encontro dela. Léonie levantou-o
do chão e pegou nele ao colo, enquanto observava o rosto carrancudo do marido.
- Portei-me bem enquanto estiveste fora. Agora lês-me a história do cozinheiro do rei de Berlim? - pediu Giuseppe.
- Aquele que faz um bolo com açúcar e um creme bom? perguntou-lhe ela.
- E depois o urso Giovanni come-o todo. Essa, mamã.
- Vai buscar o livro para lermos juntos - respondeu ela, ao mesmo tempo que se sentava no tapete ao lado do marido.
Enquanto Giuseppe procurava na pequena estante dos seus livros, Guido sibilou: - Era mesmo preciso ires homenagear o lobo na toca dele?
Obviamente, tinha sabido da sua visita ao Dr. Tommasini.
- Pareceu-me boa ideia e foi mesmo, atendendo ao resultado que obtive. Estava à espera de um acolhimento mais afetuoso da tua parte - respondeu.
- Se tivesses falado comigo, tinha-te poupado à viagem.
- E tínhamos perdido um cliente.
- Com certeza, mas podia ir eu medir forças com ele. Léonie dirigiu-lhe um olhar interrogativo.
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- Porque é que tu pensas que eu estou aqui, em Villanova, há mais de um mês? Esse industrial ambicioso, que goza de uma importante proteção política, cismou
que quer produzir filmes. Não que o cinema lhe interesse, mas interessam-lhe as mulheres que gravitam à volta dele. Conseguiu arranjar subsídios estatais e parece
que vai ser ele a gerir a minha próxima produção. Está a monopolizar realizadores, argumentistas e encenadores para lhes impor as intérpretes que são mais simpáticas
com ele - concluiu.
- Imagina, que grande novidade! - exclamou Léonie.
- Lê - ordenou Giuseppe, ao mesmo tempo que lhe metia o livro na mão.
- Espera, a mãe e eu estamos a conversar - disse Guido.
- A mãe disse que ia ler para mim - protestou o menino.
- É verdade. A mãe e o pai conversam noutra altura - decidiu Léonie, enquanto Guido, irritado, saía do quarto.
Naquela noite, enquanto Giuseppe dormia no seu quarto, Léonie estava com o marido na antecâmara do quarto a dar a última mamada a Gioacchino. Uma empregada tinha
acendido a lareira. Guido estava sentado ao lado dela, no sofá, a ler um livro em que ia sublinhando, como era seu hábito, os excertos que mais tarde iria reler
para os saborear melhor ainda. Léonie secava as gotas de leite que o menino deixava escorrer dos lábios. De vez em quando levantava os olhos do filho para observar
aquele homem de porte aristocrático, testa ampla, emoldurada por alguns caracóis negros e expressão absorta e impenetrável.
- Lês como se te quisesses alhear de ti próprio e da vida - observou.
Ele ergueu os olhos para ela e dedicou-lhe um sorriso afetuoso.
- Não imaginas quanta verdade há nas tuas palavras. A propósito, peço-te desculpa pelo meu ataque de fúria, hoje à tarde. Foi realmente despropositado - disse-lhe.
- Pensei que estavas com ciúmes.
- E estou, não do Tommasini mas do teu trabalho. Se calhar tenho ciúmes da graça, da inteligência e do prazer que dedicas
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aos negócios da família. Mas, a bem dizer, nem sequer é ciúme... é mais surpresa. Revelaste-te uma mulher diferente daquela com quem casei. Achava que eras uma alma
linear, tranquila, satisfeita com o facto de teres construído uma família, e estava convencido de que ias absorver os hábitos das donas de casa ricas que passam
o tempo no cabeleireiro, nas compras, a jogar bridge, a pertencer a alguma associação inventada para lhes ocupar o tempo, a fazer beneficência, a programar as férias.
Enganei-me redondamente. Não te preocupaste em inserir-te no nosso mundo, tomaste conta de um trabalho como se tivesses nascido para empresária, e não para senhora
da boa burguesia. Estou a tentar dizer-te, de uma forma um pouco confusa mas com sinceridade, que te estimo e te admiro.
- É a primeira vez que me falas de ti - constatou Léonie, satisfeita. E prosseguiu: - Devo dizer-te que nas minhas escolhas não houve nenhuma premeditação,
tudo aconteceu quase por acaso.
- A coisa mais surpreendente é que consegues conjugar perfeitamente as tuas gravidezes e o trabalho - afirmou Guido, com um sorriso.
- Gosto de ter filhos. Nem sequer imaginava isso, mas de facto é assim - afirmou ela.
- Se estiveres de acordo, podemos ter já outro - disse ele, rodeando-lhe os ombros com um braço.
- Posso acabar primeiro de dar de mamar ao nosso filho? perguntou Léonie, com um sorriso malicioso.
Gioia, a terceira filha, nasceu em fins de novembro. Era a primeira rapariga de uma família só de homens e os Cantoni fizeram uma festa. Giuseppe, que tinha completado
quatro anos, estava a habituar-se ao seu papel de irmão mais velho e acolheu com benevolência a nova intrusa. Gioacchino era demasiado pequeno para ter ciúmes. Guido
ofereceu à mulher uma mansarda num palácio romano, no Trastevere, dizendo-lhe: - Quando sentires vontade de te afastar deste infantário, podes ir ter comigo a Roma
e arranjamos mais umas horas só para nós.
Escolhera Roma porque era lá a base do seu trabalho e todas as semanas passava lá cinco dias em cada sete.
Quase um mês após o nascimento de Gioia, no dia vinte e dois de dezembro, Léonie meteu-se no carro sozinha para ir a Varenna.
Conseguiu encher dois biberões com o leite suficiente para uma ausência de algumas horas, e partiu.
Varenna acolheu-a com um sol triunfal. Era já meio-dia e, do hall do hotel, através dos vidros do terraço, viu alguns hóspedes a tomar um aperitivo sentados nas
mesas, na varanda.
- O Dr. Bastiani está lá fora - disse a proprietária, indicando-lhe um homem de costas, debruçado no parapeito sobre o lago.
Roger virou-se de repente ao ouvir o som de passos e, ao vê-la, o seu rosto iluminou-se de alegria. Ela estendeu-lhe a mão que ele levou aos lábios, sussurrando:
- Te voilà enfin, mon amour.
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- Bonjour, mon ami - disse ela, a sorrir.
- Como estás? - perguntaram um ao outro ao mesmo tempo, e depois riram-se. Então Roger abraçou-a num impulso.
- Este ano não vou poder estar muito tempo contigo - disse
ela.
- Quanto tempo? - perguntou ele.
- Só duas horas - esclareceu Léonie, soltando-se dos seus braços.
Roger anuiu, sem indagar.
- Tens fome? - perguntou.
Os poucos hóspedes tinham entrado e dirigiam-se ao bar, tirando os casacos.
- Só uma sanduíche - respondeu ela, ao mesmo tempo que se sentava com Roger a uma mesa, e depois acrescentou: - E uma cerveja, que me ajuda para o leite.
- Para quê? - perguntou ele, curioso.
- Em meados de janeiro nasceu o Gioacchino e, em fins de novembro, tive a Gioia, a minha primeira menina - anunciou ela, feliz.
Ele deu uma gargalhada sonora.
- Dois filhos em apenas um ano, tu és formidável! E deixaste a pequenina sozinha para vires ter comigo?
- A casa está bem defendida por mulheres, que ficam muito contentes por tratar dela, e no frigorífico há uma boa ração do meu leite. Mas... sim, deixei-a
para vir ter contigo.
- Podias ter-me ligado para o hotel e falávamos pelo telefone - observou Roger.
- E era a mesma coisa?
- Não - confessou ele.
- Lembras-te do nosso pacto? Aconteça o que acontecer, faremos sempre os possíveis por nos encontrarmos aqui. Eu fiz isso. Etu?
Um empregado foi ter com eles ao terraço e estendeu uma toalha na mesa.
- Os senhores têm mesmo a certeza de que querem ficar aqui fora? - Eles anuíram e pediram as sanduíches e as cervejas.
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- Cheguei esta noite de Veneza. Mudaram o congresso para lá e eu fiz a minha comunicação ontem à tarde. Depois meti-me no carro para vir para aqui - explicou
Roger.
Léonie esticou uma mão para lhe acariciar a face, enquanto dizia: - És tão bonito.
- Mon amour, não me dês ideias estranhas, porque desta vez não é mesmo caso disso - protestou ele.
Chegou o empregado com o pedido deles. Um grupo de patos surgiu do nada à superfície da água, em frente do terraço.
- O que fizeste durante estes longos doze meses? - perguntou Léonie.
- Apanhei a escarlatina dos meus dois filhos e foi uma experiência muito embaraçosa, para além de incomodativa. Estive seis meses nos Estados Unidos, em Cincinatti,
a fazer um curso de atualização, fiz uma cesariana a uma rapariga com doze anos, de cor, que concebeu um filho com um colega de escola de catorze anos, superei um
momento de crise com a minha mulher, que não aceita as sequelas daquele acidente tenebroso...
- Que sequelas?
- Coxeia impercetivelmente. Em vez de agradecer a sorte por não se notar praticamente nada, agiganta aquele pequeno defeito e por isso caiu numa depressão
profunda. Os filhos sofrem e eu também me ressinto. Quanto ao resto, à noite olho para as estrelas, as mesmas que iluminam também as tuas noites, e penso em ti.
Léonie bebeu um gole de cerveja, fechou os olhos e deixou-se embalar pelo som daquelas palavras.
- Considero-me um homem com muita sorte por esta nossa história única, intensa, maravilhosa... Amo-te muito, minha pequena Léonie.
Um sopro de vento gelado fê-la estremecer.
- Não deves apanhar frio. Vamos para dentro - decidiu Roger. Depois olhou para o relógio.
- Acho que devias regressar à tua Gioia - acrescentou.
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- Mas eu cheguei agora mesmo! - protestou ela.
- Agora mesmo foi há duas horas. Não tornes as coisas mais difíceis para mim, querida.
O pequeno hall estava deserto, saíram para a via del Prestino e começaram a subir lentamente, de mãos dadas, as escadas que levavam ao parque de estacionamento.
Léonie meteu-se no carro e ligou o motor. Roger sentou-se ao lado dela.
Abraçaram-se e ele limpou-lhe uma lágrima.
- Não é caso para ficares assim. Só falta um ano para o nosso próximo encontro - tentou brincar.
- E se nos encontrássemos, sei lá... - sussurrou ela.
- Na primavera? - propôs ele.
- Não cumpríamos o nosso pacto - observou ela tristemente. Ele assentiu.
- Bom Natal e bom ano, minha pequena Léonie - sussurrou Roger.
- Amo-te - disse ela.
- Cuida de ti e dos teus filhos - recomendou ele e, quando já estava a sair do carro, dirigiu-lhe um sorriso malicioso, acrescentando: - Por favor, não dês
à luz o quarto filho perto do nosso próximo encontro.
- Vou fazer o que puder, mas sabes como é: os filhos chegam quando lhes apetece - replicou ela.
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Apesar de o dia vinte e dois de dezembro ser o mais curto do ano, quando Léonie chegou a Villanova o sol ainda não tinha descido até ao horizonte. Foi recebida pelas
notas de um tema natalício tocado ao piano pela sogra e cantado por Giuseppe, pelos gemidos de Gioia e pela lengalenga de Gioacchino, que queria imitar o irmão mais
velho, mas também estava com sono e, de vez em quando, adormecia.
Deu um beijo aos dois rapazes e pegou na menina ao colo.
- Bebeu o leite todo? - perguntou à empregada que tinha tratado dela.
- Não deixou nem uma gota - respondeu ela que, naquela casa, divertia toda a gente com a sua linguagem bizarra para quem as persianas das janelas eram as
prussianas e os camarões eram camaleões.
Gioia continuava a gemer com muito empenho, Giuseppe tinha acabado de cantar e, para induzir a avó a continuar a tocar, encostara-se ao piano e martelava as teclas
com raiva.
- Prepare um chá de camomila. Quero dar umas colherzinhas à pequenina - pediu Léonie à empregada, ao mesmo tempo que se sentava no sofá onde estava estendido
Gioacchino, que adormecera.
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Léonie gostava de estar com os filhos e com a sogra, que envelhecia serenamente entre uma sonata de Mozart e um bolo de manteiga recheado com fruta cristalizada.
- Giuseppe, para de bater nas teclas e anda à mãe, que te quer abraçar - disse.
- Quero cantar - reclamou o menino.
- Então senta-te aqui, ao pé de mim, assim cantamos juntos propôs Celina, enquanto, devido ao volume do corpo, tentava inutilmente arranjar-lhe espaço no
banquinho em frente ao piano.
A empregada trouxe uma chávena de camomila tépida, adoçada com mel, e Léonie deu umas colherzinhas a Gioia, que a apreciou e sossegou imediatamente.
- Não vejo o Guido - disse Léonie.
- Foi à vila com o eletricista procurar luzinhas para os enfeites. As do ano passado fundiram-se todas. Deve ter sido por causa dos aguaceiros do verão passado.
Havia uma infiltração no telhado da arrecadação - explicou a sogra.
Pouco depois chegou Guido. O sol já se tinha posto. Beijou a mulher na testa e perguntou-lhe: - Onde almoçaste?
- Almocei com uma amiga que não conheces, uma colega do meu curso de ioga - mentiu Léonie, com uma tranquilidade surpreendente.
Tinha sido precisamente o marido que a convencera a seguir um curso de ginástica quando estava no início da terceira gravidez. Ela fez-lhe a vontade, sem muita convicção,
e, ao fim de alguns meses, deu-se conta dos benefícios obtidos.
- Apetece-te sair hoje à noite? Descobri um realizador excelente e convidei-o para ir ao Vecchio Mulino e levar a mulher.
- Com este frio, podias convidá-los para nossa casa - intrometeu-se Celina.
Léonie apoiou-a.
- Por favor, convida-os para virem cá. Tenho de dar de mamar à menina.
Guido, resignado, afastou-se a resmungar, enquanto Giuseppe, a precisar de atenção, tirou espaço a Gioia e conseguiu sentar-se
no colo da mãe. Entretanto, Gioacchino acordou e começou a chorar. Nora e sogra olharam uma para a outra e Léonie disse, a rir: - Acabou a paz!
O casal de Roma apresentou-se com uma garrafa de champanhe e um bolo, ignorando que os Cantoni tinham em casa um cozinheiro e um pasteleiro. E como é que podiam
saber? Em Roma, Guido nunca falava de si, nem da sua família; mas agora, depois de se sentarem à mesa, começou a tecer elogios à mulher, que definiu como uma pessoa
fantástica e uma empresária cheia de surpresas.
- A verdade é que estão pouco tempo juntos os dois - observou a mulher do realizador, que era figurinista de cinema. E prosseguiu: - Não a preocupam todas
as mulheres que giram em volta do mundo do cinema e adulam seja quem for para obter um papel? Estão dispostas a qualquer coisa para chegar ao sucesso. Um guionista
bonito como o seu marido é uma tentação para muitas delas.
Léonie sufocou uma resposta torta, limitou-se a sorrir e replicou com um ar doce: - De onde lhe vem toda essa falta de estima pelos homens e pelas mulheres? Se tem
um motivo concreto, não quero saber.
A figurinista percebeu que se tinha aventurado num terreno perigoso e tentou defender-se.
- Obviamente, estava a brincar - confessou.
- Nunca perdes uma oportunidade de dizer uma piada de mau gosto - censurou o marido realizador, embaraçado.
Léonie deduziu que o homem, quase de certeza, a enganava.
Guido desviou a conversa para aligeirar a atmosfera, mas quando se foram embora os dois e ele ficou sozinho com a mulher, disse: - Ele é um realizador excelente,
mas tem uma mulher ordinária e cretina que o domina.
Aquele juízo impiedoso correspondia exatamente ao de Léonie, e ficou satisfeita por constatar que ela e Guido pensavam da mesma forma.
- Concordo - respondeu simplesmente.
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- Fiz bem em meter-te neste jantar. Se aqui não estivesses eu não teria percebido que, ao trabalhar com ele, tinha de levar mulher dele também. Acho que vou
esquecer a proposta Obrigada por seres sempre tão valiosa - afirmou ele.
Na primavera, Léonie, recuperada a sua forma radiosa, voltou para o lado do sogro, na empresa, a tempo inteiro. Guido renunciou ao projeto de criar a sua própria
produtora, uma vez que não poderia nunca competir com as mais importantes, como a Cineriz, a Titanus ou a De Laurentiis. Não lhe faltavam meios mas não estava com
vontade de se dedicar à rotina stressante que carateriza a vida dos produtores. Ao fim e ao cabo, era um criador de histórias, que gostava de inventar personagens
para levar ao ecrã, e divertia-se a imaginar situações sempre intrigantes e a escrever diálogos fascinantes.
No fim do ano, no dia vinte e dois de dezembro, Léonie entregou às mulheres da casa os três filhos para ir a Varenna.
Partiu com o coração leve, já que não precisava de improvisar um pretexto para a sua ausência, uma vez que Guido tinha partido dois dias antes para uma série de
pesquisas com um realizador e um fotógrafo.
- Vou à procura de um lugar sugestivo para situar o meu argumento - tinha-lhe dito. E garantira: - Regresso para a noite de Consoada.
Ela, em Varenna, encontrou-se com Roger. Tinham muitas coisas para contar um ao outro, confessando as suas fraquezas, alegrias, receios, desapontamentos e aquilo
de que tinham mais orgulho. Passaram algumas horas juntos, amando-se com ternura, esquecendo o mundo em volta deles, rindo de bagatelas, comovendo-se com aquele
sentimento que, à distância de anos, não se extinguia.
Ao fim da tarde, antes de se separarem, deram um passeio pelo velho burgo.
- Achas que vamos estar aqui outra vez, no próximo inverno- perguntou Léonie.
- Porque me perguntas isso?
- Porque todas as coisas bonitas acabam.
- A nossa, mon amour, não é bonita, é superlativa, portanto
não pode acabar.
Pararam a ver as montras das lojas que vendiam lembranças e decorações de Natal. E foi ali, do interior de uma dessas lojas, que Guido viu a mulher abraçada a um
homem bonito e elegante: olhavam-se nos olhos e falavam um para o outro a rir-se, divertidos.
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',
;!
Guido fora parar a Varenna por acaso, depois de ter decidido, com o realizador e um fotógrafo, inspecionar a zona de Lecco à procura de cenários que conservassem
um ar antigo. Tinham passado a manhã em Bellano, onde almoçaram, e de tarde foram a Varenna.
Percorreram ruelas pelo meio de casinhas medievais e alpendres a pique sobre o lago, a fotografar tabernas, tanoarias e fornos antigos e a visitar lojas escavadas
na montanha.
Em Varenna foram atraídos por uma pequena loja de recordações que vendia reproduções em madeira da famosa barca com a qual Lucia de Manzoni tinha deixado o cais
de Pescarenico. Entraram e, enquanto o fotógrafo disparava sobre o velho teto abobadado, Guido bisbilhotava por entre as prateleiras. Pela montra viu Léonie abraçada
a um homem. Pareceu-lhe que lhe parava o coração. Sentiu-se gelar. Um instante depois, tinham desaparecido os dois. Então espreitou à porta da loja e viu-os entrar
num pequeno restaurante. Foi atrás deles, e, pelas janelas tapadas por cortinas de renda branca, apanhou-os no momento em que se sentavam a uma mesa ao lado de uma
grande lareira de tijolo.
Encostou-se à parede exterior do restaurante para recuperar o fôlego. Viu o fotógrafo sair da loja de recordações e olhar para a esquerda e para a direita à procura
dele. Não o descobriu e, enquanto
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continuava a olhar em volta, o realizador juntou-se a ele. Conversaram os dois uns instantes e seguiram por uma rua que ia dar à praça da igreja, em direção ao Hotel
Royai, onde tinham reservado os quartos para passar a noite.
Guido não estava com vontade de ir ter com eles, nem queria ficar ali, sob o gelo da tarde, pelo prazer masoquista de seguir a mulher quando saísse com o homem que,
obviamente, era seu amante. No entanto, a necessidade de saber foi mais forte e conformou-se em esperar que Léonie e o companheiro misterioso saíssem do restaurante.
E depois seguiu-os até que entraram no Hotel du Lac.
Então foi até ao carro e dirigiu-se a casa. Mais tarde ligaria aos dois colegas para o hotel a informá-los de que estava cansado e tinha regressado a Villanova.
Enquanto conduzia, lembrou-se de que, há alguns anos, precisamente desde o primeiro Natal em que estavam casados, Léonie se ausentava de casa no dia vinte e dois
de dezembro.
Quem era aquele homem? Seria realmente um amante? Como o tinha conhecido? Quando e onde se encontravam? Seria possível que uma mãe atenta, uma trabalhadora incansável,
uma esposa dedicada e terna, pudesse ter uma vida dupla?
Porque não tinha ele suspeitado nunca? Recuando nos anos, apercebeu-se de que nunca prestara grande atenção às deslocações da mulher, nem mesmo quando se ausentava
de casa durante um dia inteiro ou por períodos mais longos. De resto, quando estava fora e precisava de falar com ela, sabia sempre onde a encontrar, porque contactava
com ela pelo telefone na empresa, no ginásio, em casa de amigos comuns ou no hotel quando se deslocava em trabalho e, nesses casos, estava quase sempre acompanhada
pelo seu pai.
No entanto, passando em revista os anos de casamento, lembrou-se de a ter procurado algumas vezes sem a encontrar.
Quando chegou à villa, os filhos estavam a dormir e o pai já se deitara. A mãe estava sentada na sala de estar, em frente à lareira, a enfeitar com fitas e bilhetinhos
os presentes de Natal,
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enquanto assistia a uma série da autoria de Guido que estava a ser transmitida na televisão.
- Meu filho, estás com um ar cansado e cheio de frio - disse Celina.
- E estou, mas não o suficiente para ignorar a tua jogada com os bombons. Escondeste-os debaixo do sofá e eu vi-te - acusou-a o filho.
- Tem paciência. Na minha idade dou por mim a fazer as mesmas malandrices que as crianças.
- Estas malandrices, mamã, são veneno, e tu sabes disso.
- Deixa-me gozar em santa paz estes poucos vícios que me confortam - pediu a mãe.
Guido não replicou e pediu-lhe notícias de Léonie.
- Saiu de manhã e disse que voltava a seguir ao jantar - respondeu Celina com tranquilidade.
- Sabes onde a posso encontrar?
A mãe pareceu refletir durante alguns instantes e depois admitiu: - Não faço ideia. Se me disse onde ia, já me esqueci. Precisavas de falar com ela?
- É minha mulher e só queria saber onde está.
- Fica sossegado. Eu e o teu pai estamos bem, as crianças estão ótimas, a Léonie está a chegar. E tu jantaste?
- Não, e não tenho fome.
- A fome vem quando se começa a comer. Chama o Nesto e diz-lhe para te preparar qualquer coisa.
- Esquece, mãe. Vou dormir.
Sentia-se aflito como uma criança. Foi para o escritório e deixou-se cair numa poltrona. A mulher tinha um amante e aproveitara a sua ausência para o ver e passar
o dia com ele.
Pensou que, há anos, andava a contar histórias de amores e de traições e conseguia muitas vezes dar alguma nobreza a estas últimas ao descobrir na vida das personagens
uma justificação legítima. Às vezes, elaborava equívocos para depois os desfazer e deixar emergir a inocência do presumível culpado. Nestes casos divertia-se a realçar
ódios, ciúmes, espírito de vingança, lágrimas
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e perdões. Para descrever estes sentimentos fortes e dilacerantes, chegava também à recordação da sua infeliz história de amor com Amaranta, ainda presente e viva
dentro dele.
Agora perguntou a si mesmo por que razão lhe teria acontecido precisamente a ele amar duas mulheres que o tinham traído. A primeira, a sua grande paixão, refugiara-se
nos braços da Igreja. A segunda, sua mulher, abandonava-se nos braços de um fascinante desconhecido. Porquê? O que teria ele que induzisse as mulheres a traírem-no?
Atormentou-se durante muito tempo até que, exausto, adormeceu.
Quando acordou, era quase meio-dia. Do corredor em frente ao escritório chegava o ruído dos passos das empregadas, atarefadas nas limpezas.
Foi até ao seu quarto, despiu-se, tomou um duche e vestiu-se outra vez. Regressou ao escritório e tocou a campainha da cozinha. Pouco depois apareceu Nesto.
- Queria um café cheio e dois biscoitos.
Quando Nesto o serviu entregou-lhe também o correio daquele dia.
- Novidades? - perguntou Guido.
- Nenhuma. A senhora está no jardim com os meninos e estamos à espera dos eletricistas que vêm montar as luzes. O senhor seu pai avisou que não vem almoçar,
a senhora sua mãe está com o senhor doutor, que lhe está a medir a pressão, e a Tina está na cama com febre. Amigdalite, disse o médico. Um jardineiro encontrou
um gato morto que alguém atirou da rua por cima do nosso muro. O cozinheiro irritou-se com a Clotilde, que pôs sal de mais no recheio dos ravioli. Não há mais nada,
senhor doutor.
- Eu também vou lá fora ver como é que vai o trabalho dos eletricistas - anunciou Guido.
De todas as informações que Nesto lhe fornecera, a única que lhe interessava relacionava-se com a mulher.
Léonie tinha Gioia ao colo, segurava Gioacchino pela mão e seguia atentamente Giuseppe que estava a ajudar os operários a
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segurar uma pesada fita de luzes. Viu-o e foi ao encontro dele com a cara esticada para receber um beijo na face.
- Quando voltaste? - perguntou-lhe.
- Ontem à noite, mas estive a trabalhar até tarde e adormeci no escritório - respondeu, e acrescentou: - E tu, como estás? contendo-se para não a submeter
a um interrogatório cerrado
- Pai, olha, estou a trabalhar - gritou Giuseppe.
- Fantástico - disse Guido, que continuava a fitar a mulher
- Estou ótima. Não se vê? - Tinha um ar feliz.
- Onde estiveste ontem?
- Fiz uma pausa de doze horas - respondeu ela, com tranquilidade.
Dividido entre a vontade de a levar para casa e a acusar e o medo de ouvir uma resposta desagradável, escolheu uma terceira via.
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Guido dirigiu-se a uma agência de detetives privados muito conhecida em Milão por dois aspetos: a seriedade profissional e os honorários estratosféricos. A proprietária,
Antonella Ponzani, era uma mulher de uma correção exemplar que herdara a agência do pai e alargara a esfera de ação ao domínio das empresas, para comprovar as potencialidades
reais de uma marca industrial ou de um grupo financeiro, com vista a empréstimos bancários, fusões e transações. As suas investigações patrimoniais eram muito mais
fiáveis do que as elaboradas pelo Fisco, até porque os colaboradores da agência eram antigos inspetores das Finanças.
De forma mais discreta, quase às escondidas, Antonella Ponzani também tratava de problemas familiares: traições conjugais, adolescentes transgressores, dependência
de jogos de azar.
Guido Cantoni sabia, como toda a gente, da existência desta agência de investigação, só que nunca imaginara que um dia ia recorrer aos seus serviços. Mas fê-lo,
com alguma vergonha. A necessidade de saber era mais forte do que o pudor em relação aos seus sentimentos.
Guido tinha ciúmes da mulher.
Léonie Tardivaux, a rapariga da Provença, graciosa e inteligente, levara-o ao desespero depois do abandono de Amaranta.
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Se a dor de ter sido rejeitado por Amaranta não o tivesse precipitado no poço profundo da humilhação, provavelmente teria voltado a sua atenção para um outro tipo
de mulher, mais semelhante a ele nos gostos, na cultura e na educação. No entanto, no meio de uma depressão nascida da falta de confiança em si mesmo, descobrira
em Léonie uma pessoa fiável, que talvez pudesse trazê-lo de novo à superfície. E assim foi. Ela não lhe criava complicações, fazia-lhe a vontade em tudo e ele recomeçou
a viver. Depois, com a passagem do tempo, a mulher foi revelando qualidades insuspeitadas, até se tornar num membro fundamental da família.
Sem se dar conta, dia após dia, Guido acabou por se apaixonar por ela, e a lembrança de Amaranta tornou-se cada vez menos ardente. Ainda ia ter com ela, de vez em
quando, como sempre fizera. Mas havia já alguns anos que a visitava com serenidade e, uma vez, conseguiu até dizer-lhe: - Correu-nos bem aos dois. Tu abraçaste a
tua vocação e eu apercebi-me de que tu tinhas razão: se nos tivéssemos casado, íamos acabar por nos detestar, minha amiga.
Agora disse a Antonella Ponzani: - Surpreendi a minha mulher em Varenna com um homem e entraram num pequeno hotel sobre o lago.
Se ela tivesse respondido com uma banal frase de consolação, Guido tinha-se despedido e ido embora. Porque não estava absolutamente nada orgulhoso daquilo que ia
fazer: só apreciava a figura do detetive privado nos policiais de Mickey Spillane ou de Raymond Chandler, porque antes de humilhar a mulher, ao mandá-la seguir,
se humilhava a si mesmo ao dirigir-se a uma agência de investigação. Mas Antonella Ponzani disse: - Percebo. Mas tem a certeza de que quer saber se a sua mulher
o engana? Tentou falar com ela?
Antonella Ponzani tinha o aspeto de uma senhora de classe, à volta dos quarenta anos, de cabelo apanhado na nuca, um rosto cheio, lábios grandes e nariz carnudo.
Não era bonita, mas tinha um olhar agudo e doce e cheirava a lírio-do-vale. O seu escritório oscilava entre um gabinete profissional e uma sala feminina, com
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quadros de flores nas paredes, cortinas de renda e poltronas forradas de damasco em tons pastel.
- Francamente, não - respondeu Guido, titubeante. - O facto é que, com três filhos para criar, o trabalho e a vida social, não sei como conseguirá arranjar
tempo para cultivar uma relação. Para além do mais, Léonie é uma mãe atenta, uma trabalhadora eficiente e uma excelente dona de casa. Devo dizer-lhe ainda que é
uma mulher meiguíssima, que ama os meus pais assim como amava os meus avós, enfim, eu diria que é uma mulher perfeita - concluiu.
- Mais uma razão para lhe perguntar novamente se tem a certeza de querer saber a verdade através de nós, que, como profissionais, espreitamos pelo buraco
da fechadura, em vez de ser através da pessoa diretamente interessada, que talvez tenha uma explicação plausível - insistiu a senhora.
- Não sou capaz - admitiu Guido.
- Também percebo isso - replicou Antonella Ponzani. Depois dirigiu-lhe um sorriso de encorajamento e prosseguiu: - Os meus homens vão seguir a sua mulher
durante algumas semanas. Daqui a um mês digo-lhe o que descobrimos.
Ao fim de um mês, Antonella Ponzani convocou Guido à sua agência e comunicou-lhe: - A senhora passou efetivamente uma parte do dia vinte e dois de dezembro passado
no Hotel du Lac de Varenna com um senhor de Marselha, portanto com um compatriota. .. Mas, depois dessa altura, os dois não voltaram a encontrar-se, e nas suas poucas
deslocações não há nem sombra de traição. Chego a duvidar que o francês possa ser um amante. Talvez seja um parente. Quer que investiguemos este Roger Bastiani?
- perguntou a proprietária da agência de detetives.
- Quero que continue a seguir a minha mulher.
- Uma mulher com uma relação clandestina não se comporta como a sua esposa, acredite em mim. Falo por experiência.
- Não tente dissuadir-me e continue. Contacte-me apenas quando tiver descoberto alguma coisa - disse Guido. Depois de ter assinado um cheque avultado, concluiu:
- Porque há alguma coisa para descobrir.
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Naquele dia, pela primeira vez, discutiu com Léonie.
O ciúme tinha desencadeado um desejo irrefreável de possuir a mulher que, com o passar dos dias, dava sinais de intolerância.
Uma noite, depois de um novo assalto, ela perguntou-lhe: - O que é que estás a tentar demonstrar?
Guido, apanhado de surpresa por aquela pergunta pronunciada em tom severo, respondeu: - Que te desejo.
- Há demasiada raiva na tua maneira de me quereres.
- Não poderá ter a ver com o facto de tu não me desejares com a mesma intensidade? - perguntou por sua vez, com ar de desafio.
- Podes crer. Se estes assaltos continuarem, acho que vou acabar por ir dormir com as crianças. E, para além do mais, isso não é desejo, mas vontade de dominar,
como se tivesses de competir com o universo masculino para me demonstrares que és o mais viril de todos. Este tipo de comportamento não me agrada, não agrada a mulher
nenhuma - declarou com aspereza, ao mesmo tempo que abandonava o leito e se refugiava na sala contígua ao quarto.
Era quase meia-noite, ela estava cansada, mas o sono tinha passado e não lhe apetecia ver televisão, nem folhear uma revista, nem ler um livro. Pensou em descer
à cozinha e preparar uma infusão de camomila mas, no momento em que ia a sair da sala, Guido foi ao encontro dela com ar de cão escorraçado.
- Desculpa, Léonie - murmurou.
Enquanto pronunciava estas duas palavras, foi perturbado pela visão da mulher na companhia do desconhecido. - Acho que temos de conversar - acrescentou.
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Foi atrás dela até à cozinha e Léonie pôs a chaleira ao lume; a seguir, num bule de porcelana munido de um filtro, deitou flores de camomila do jardim, algumas folhas
de citronela, sementes de funcho e dois cravinhos. Guido, sentado à mesa de mármore, observava-a, captando a graça dos seus gestos tranquilos.
Gostaria de começar com uma pergunta: "Quem era o homem com quem passaste o dia vinte e dois de dezembro em Varenna?" Não conseguiu. Léonie era uma mulher irrepreensível,
por quem descobrira que estava apaixonado, e o medo de a perder impedia-o de a interrogar.
Ela pôs em cima da mesa duas chávenas fumegantes que continham uma tisana cor de âmbar.
- Queres mel para adoçar? - perguntou-lhe.
- Sim, por favor - respondeu Guido. E acrescentou: - Tu não pões?
- Faz-me engordar. Tu enches-te de doces e mesmo assim tens uma figura invejável. Eu ficava um barril se não fizesse dieta constantemente.
- Eu não me importava que tu engordasses.
- Mas importava-me eu! - exclamou Léonie.
- A comida é uma forma de compensação por outras carências. É evidente que nós, os Cantoni, temos muitos dissabores, sobretudo afetivos.
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- Era disso que querias falar? - perguntou ela, depois de ter tomado um pequeno gole da tisana.
- Queria dizer-te que tenho consciência das minhas frustrações e tentei estupidamente desforrar-me em ti - respondeu. Depois, em voz baixa, prosseguiu: -
Apercebo-me de que fui insuportável. Tu tinhas toda a razão se me denunciasses por abuso sexual ou crueldade mental ou outra coisa qualquer. Peço-te desculpa, a
sério.
- Ça suffit, monpauvre ami - disse Léonie, enquanto lhe acariciava uma face. - Já te desculpei, até porque sei que não voltarás a fazê-lo. De resto, nunca
o tinhas feito. Será demasiado perguntar-te o que é que se passa?
- Não sei - mentiu ele. - Ou se calhar até sei. Nós, homens, somos mesquinhos, inseguros e desprezíveis, às vezes. Eu sinto-me assim, neste momento - confessou
Guido.
Léonie olhou para aquele grande senhor que era o seu marido, o rosto pálido de traços aristocráticos, o olhar doce e dolente, e convenceu-se de que provavelmente
tinha acontecido alguma coisa que lhe trouxera de volta à memória a antiga paixão por Amaranta e a recordação do seu final dilacerante. Não suspeitou, nem de longe,
que Guido pudesse ter descoberto a sua relação com Roger.
Esticou um braço para o outro lado da mesa e afagou o rosto do marido.
- Sabes, Guido, eu estou muito grata a ti e à tua família pelo afeto que têm por mim. Quando me conheceste, eu sentia-me realmente perdida, e hoje sou uma
mulher serena e feliz. Sinto muito por este teu momento de inquietação, mas tenho a certeza de que o vais superar. Somos uma bela família, não achas?
Desde que se tinha casado e vivia naquela enorme villa dos Cantoni, às vezes ia até ao pequeno lago ao fundo do parque e parava a observar o espelho quieto da água.
Sentada num banco de pedra, abandonava-se completamente à paz daquele lugar que representava a família Cantoni. Tinha a certeza de que nas profundezas sombrias do
pequeno lago havia tumulto e obscuras
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sinuosidades inquietantes, mas não se viam. O que estava à vista era tranquilo e isso bastava-lhe.
- Somos uma bela família - concordou ele, sorrindo-lhe.
Na tepidez envolvente daquela grande cozinha, Léonie pensou que talvez ela e Guido não fossem um casal perfeito, mas estavam bem juntos porque os unia o afeto, o
amor pelos filhos, a estima recíproca e os projetos para o futuro.
- Vamos ver as crianças? - perguntou ela docemente. Meteram-se no elevador, subiram ao primeiro andar e entraram
no quarto de Giuseppe, que era o mais velho e dormia sozinho.
Um candeeiro pousado no chão, a um canto do quarto, emanava uma claridade quase impercetível.
Aproximaram-se juntos do menino, que dormia profundamente, abraçado ao ursinho de peluche. Tinha uma cabeça de cabelos negros e encaracolados como os do pai, a pele
rosada de todas as crianças saudáveis e aquele delicioso perfume de infância que enternecia o coração dos pais.
Guido pousou uma mão leve na cabeça do filho, como que a abençoá-lo. Léonie aconchegou-lhe o edredão de penas, de cores vivas. Saíram silenciosamente do quarto,
deixando a porta entreaberta e, de mãos dadas, entraram no pequeno quarto onde Gioacchino e Gioia dormiam juntos, cada um na sua cama.
Gioacchino estava enroscado sobre si mesmo porque, depois de ter empurrado o cobertor para o fundo da cama, tinha frio. Tinha o polegar enfiado na boca e, de vez
em quanto, chupava. Léonie puxou o cobertor e tapou-o. Gioia, por sua vez, tinha a chupeta na boca e os olhos arregalados para eles. Sorriu ao vê-los, e a chupeta
escorregou para a almofada.
Léonie levou o indicador aos lábios para lhe pedir silêncio, enquanto Guido sussurrava: - É muito tarde. Dorme.
Gioia enfiou novamente a chupeta na boca, virou-se, fechou os olhos e adormeceu.
- São tão lindos - disse Guido, enquanto regressava ao quarto com a mulher.
- São serenos - constatou ela.
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- Achas que vão conseguir exteriorizar os seus dramas, pequenos ou grandes que sejam, quando crescerem? - perguntou ele
- Pela serenidade deles, temos de arranjar maneira de não respirarem durante demasiado tempo o ar da casa - replicou ela
- O ar da casa é contagioso. Até tu o absorveste - deixou escapar Guido.
Léonie não captou a alusão, e disse: - Gostava de ter outro filho.
- Também eu - concordou Guido.
- Mas com ternura - sublinhou ela.
Naquela noite conceberam Giacinta. Guido ficou abraçado à mulher e, antes de adormecer, pensou: amanhã telefono à espia e digo-lhe para parar. Não quero saber os
segredos da Léonie, assim como ela não sabe os meus.
Léonie, por sua vez, ficou sossegada ao lado dele, dizendo para si mesma que era uma mulher cheia de sorte. Nem por um instante quereria voltar atrás no tempo, à
vida difícil e infeliz que tinha tido antes de se casar com Guido.
LEONIE
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- Léonie, o que é que estás aqui a fazer a esta hora?
A menina, que baloiçava em cima de um banco na alameda de plátanos, estremeceu e arregalou os olhos para a velha Thérèse que estava ali, diante dela, com Ninette,
a sua amiga inseparável.
- Mas tu diz-me se uma criança tão pequena deve andar fora de casa a estas horas da noite - deplorou Ninette.
As duas idosas sentaram-se ao lado dela como anjos da guarda. Léonie olhou para elas, de roupas escuras, com os rostos brilhantes de suor, porque era julho e, apesar
de ser noite, o ar ainda não tinha refrescado. Sabia que as duas amigas regressavam da sua volta pelos estabelecimentos do centro onde vendiam alfazema, a fresca
em raminhos e a seca em saquinhos.
- Estás à espera da tua mãe? - perguntou Thérèse. A menina assentiu.
Nadine Tardivaux tinha de passar por ali para ir para casa, Léonie ia vê-la chegar, corria ao encontro dela e a mãe, provavelmente, abraçava-a.
Thérèse e Ninette sabiam que a menina tinha medo de ficar sozinha em casa, à noite, e também o sabia a mãe que, todas as noites antes de sair, a obrigava a beber
uma tisana de camomila, esperando que adormecesse com mais facilidade. Mas Léonie, como todas as crianças inseguras, tinha o sono leve e bastava
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uma coisa de nada para que acordasse; então, se não encontrava a mãe, dominada pelo medo do escuro e pela solidão, vestia-se e saía para esperar por ela.
- Quantas vezes já te disse que não podes andar por aí de noite? Se algum polícia te vê, leva-te para a esquadra, sabias? ralhou Thérèse.
- Em qualquer caso, mais vale um polícia do que algum turista mal-intencionado - interveio Ninette.
- Anda connosco, pequenina. Vamos para casa - disse Thérèse.
Léonie não precisou que lho dissessem duas vezes. As duas amigas e as Tardivaux viviam na mesma casa ao pé do Château de l'Empéri, que em tempos fora a residência
dos bispos de Aries e, depois disso, albergara muitos reis de França.
A menina sabia que Thérèse a ia deixar dormir na sua cama, um catafalco monumental para o qual ela trepava com uma cadeira. Uma vez deitada, envolvida pelo perfume
das flores de alfazema fechadas em saquinhos de gaze que ornamentavam a cabeceira, e a ouvir o ronrom do gato que se enroscava ao fundo da cama, cairia num sono
abençoado. Sabia também que Nadine, ao regressar a casa, não ia ficar preocupada se não a encontrasse, porque acontecia muitas vezes a filha dormir com a vizinha,
que a tinha visto nascer e tratava dela como uma avó prestável de cada vez que aquela destrambelhada da mãe a deixava só.
Thérèse abriu a janela do quarto, que tinha ficado fechada todo o dia, para deixar entrar o ar da noite que, finalmente, começava a refrescar. De longe chegavam
as vozes dos turistas em férias, o som da pequena orquestra do Café de l'Empéri, os passos dos transeuntes, a miadela de um gato com cio, as gargalhadas dos jovens.
O relógio da cozinha bateu a meia-noite. Léonie fechou os olhos e ouviu o roçagar da roupa que Thérèse despia para vestir a camisa de noite.
Depois Thérèse deitou-se ao lado dela e Léonie adormeceu.
Foi o perfume penetrante do café au lait que a acordou. As portadas das janelas tinham sido encostadas para tapar a
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claridade do primeiro sol. Léonie escorregou para fora da cama, de cuecas e uma camisola interior azul bastante coçada. Foi até à cozinha a saltitar descalça no
chão.
Sentou-se diante da mesa rústica, coberta com uma toalha plastificada vermelha e branca.
- Bonjour, ma petite - disse Thérèse.
- 'jour - respondeu Léonie, com os olhos ainda inchados de sono, e sorriu quando viu a tigela da qual o café com leite difundia o seu aroma juntamente com
a baguete ainda quente.
Enquanto partia o pão para dentro do líquido fumegante, a velha senhora disse: - A tua mãe já foi trabalhar. Deixou-te em casa o dinheiro para o almoço e disse que
logo à noite, quando voltar, quer encontrar a cozinha arrumada.
- Sou sempre eu que tenho de lavar também a louça dela queixou-se a menina, enquanto devorava o pequeno-almoço.
- Eu vou ajudar-te mais tarde. Agora lava-te, veste-te e ajuda-me a fazer os raminhos de alfazema para logo à noite - pediu Thérèse, que tinha já prontos
no terraço dois cestos cheios de flores.
Da rua chegou até elas a voz de Ninette, que chamava pela amiga. - Logo à noite não vou dar a volta contigo - disse, com um sorriso de orelha a orelha. E explicou:
- O meu filho Pierrot vem buscar-me para me levar a Aix. Vou estar com a minha família durante toda a semana.
Léonie, que se chegara à varanda, perguntou: - Posso ir contigo, Ninette?
Para a menina qualquer ocasião era boa para não ter de dormir sozinha. Vivia no terror da solidão, de noite, desde que era pequena.
- Mon petit lapin, já te falei da minha nora. Já é muito ter-me convidado a mim. E, para dizer tudo, eu própria não tenho a certeza de resistir uma semana
com madame la baronne - lamentou-se Ninette.
- Então, diverte-te - desejou Thérèse.
- Estás a ver, toda a gente vai de férias menos eu - disse Léonie, enquanto levantava a mesa e lavava a sua tigela.
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- Não te queixes, ma petite. O bom Deus vê e providencia Entretanto, fez-te nascer sã e inteligente, e já não é pouco. Se um dia mereceres ser premiada, vais
sê-lo - animou-a a velha amiga
- Sim, espera e tem esperança - replicou Léonie, que tinha apenas oito anos mas já se exprimia como uma adulta.
A rua começava a animar-se, as pequenas boutiques abriam as portas, os turistas madrugadores passeavam pelas ruas armados de máquinas fotográficas.
De tarde, quando Salon ficou silenciosa, as ruas se despovoaram, os estabelecimentos fecharam as portas e até os sinos das igrejas se calaram, Thérèse refugiou-se
na sombra do seu quarto Então, Léonie foi sentar-se ao pé da fonte de musgo, um enorme cogumelo verdejante, e começou a ler Les histoires du petit Nicolas, um livro
que requisitara na biblioteca escolar e no qual se reconhecia porque nele encontrava as incongruências do mundo dos adultos quando se relacionam com as crianças.
Sentiu sede e deu-se ao luxo de tomar uma Coca-Cola ao balcão do Café du Midi. Depois decidiu ir ter com a mãe ao cabeleireiro onde esta trabalhava como esteticista.
O cabeleireiro chamava-se Chez Jules et Lorette. Ficava na praça central e tinha duas entradas, uma para os homens e outra para as senhoras. Estava fechado àquela
hora, mas Léonie sabia que encontrava a mãe, com outras funcionárias, no pequeno pátio interior onde descansavam antes da reabertura da tarde.
Monsieur Jules e madame Lorette jogavam as cartas com Stanis e Linda. De Nadine, nem sombra.
- A tua mãe voltou para casa. Estava cansada e precisava de dormir uma sesta - disse-lhe madame Lorette.
Léonie voou em direção a casa, porque precisava de ver a mãe.
A porta estava fechada por dentro e então ela bateu. Como ninguém respondia, começou a martelar a porta com os punhos, ao mesmo tempo que chamava por Nadine aos
berros.
A velha Thérèse abriu a porta da sua casa, do lado oposto do patamar, e disse: - É preciso fazer esse barulho todo? Estava a dormir e acordaste-me.
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- Mas não acordei a minha mãe - replicou a menina, que continuava a bater.
- Vá lá, ma petite, deixa-te de fitas e anda para minha casa disse Thérèse.
- Não, para tua casa não vou. Quero a minha mãe - gritou Léonie, quase a chorar.
Naquele momento, a porta de casa entreabriu-se e na fresta perfilou-se uma mulher jovem, suada e descomposta, muito bonita e muito zangada. Estava em combinação.
- Fizeste um chinfrim inadmissível. Vai imediatamente para casa da Thérèse. Depois eu vou lá chamar-te.
Fechou-lhe a porta na cara, mas Léonie ainda teve tempo de ver um homem quase nu atrás da mãe.
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A menina, desconsolada, deu um pontapé na porta e gritou: - És má!
Thérèse chamou-a, mas Léonie berrou: - E tu também és
má.
Saiu para a rua e não parou de correr até chegar à mercearia, que estava a abrir.
Dirigiu-se ao homem que a atendia habitualmente e aceitava fiado, quando ela não tinha dinheiro, porque sabia que a mãe trataria de pagar a conta.
- Quero um pain depices, uma tablete de chocolate doce e um pacote de rebuçados de mel. A minha mãe paga.
O merceeiro, que a conhecia desde sempre, perguntou: Tens a certeza de que a tua mãe te deixa comprar isto tudo?
- Tenho a certeza - disse Léonie.
Com aquele carregamento de guloseimas chegou à praça, sentou-se num banco à sombra de um plátano, em frente ao cabeleireiro onde a mãe trabalhava, e começou a comer
os doces, com o coração trespassado de solidão e uma sensação de abandono.
Dali a pouco viu a mãe, que caminhava a passos largos para chegar ao salão de Jules e Lorette. Observou o seu andar altivo, o movimento das ancas que fazia flutuar
a saia salpicada de grandes papoilas vermelhas em fundo branco e os seios volumosos
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que irrompiam da blusa,justa com mangas de balão. Os cabelos escuros e ondulados desciam-lhe pelos ombros como uma massa de pequenas cobras irrequietas e os lábios
escarlates entreabriam -se sobre a candura ofuscante de uns dentes perfeitos. Nadine era lindíssima. Não foi por acaso que, aos dezoito anos, tinha sido eleita Miss
Provence, e teria sido Miss France se, entretanto, não tivesse ficado grávida.
Uma vez dissera-lhe: - Sabes, há sempre uma maneira para a gente se desembaraçar de um filho incómodo. Eu não o fiz. Decidi que te queria e tive-te. O que queres
de mim?
Léonie achava que tinha uma mãe emprestada e queria uma família. Compensava a sua frustração e a sua necessidade de afeto mentindo a quem quer que fosse e aborrecendo
sobretudo a mãe.
A mãe viu-a e, em vez de continuar em direção ao estabelecimento onde trabalhava, parou diante dela e olhou-a com severidade.
Repetiu-lhe a pergunta do costume: - O que queres de mim?
Agora, pela primeira vez, Léonie disse: - Tu levas estranhos para a tua cama. Nunca me levas a mim.
Nadine tinha vinte e seis anos, vivia aterrorizada com a perseguição do tempo e queria arranjar um marido, se possível rico, que lhe garantisse segurança económica
e posição social. Mas dos muitos homens com quem se entretinha, não havia um único que tivesse intenções de casar com ela.
A mãe lançou um olhar ao estabelecimento deserto: por enquanto não havia clientes. Então, sentou-se no banco, abriu a bolsa de ráfia vermelha, tirou um lenço de
papel e limpou o rosto de Léonie, empastado de chocolate. Amarrotou o lenço e atirou-o para o caixote do lixo. Voltou a enfiar uma mão na bolsa e tirou de lá uma
mão-cheia de dinheiro, que mostrou à filha.
- Talvez nunca consiga dar-te um pai, mas o dinheiro para te manter está garantido - disse, e prosseguiu: - Achas mesmo que aquilo que eu ganho com o meu trabalho
chega para pagar a renda, a água e a luz, a comida, a roupa para ti e para mim e o hospital da tua avó?
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Léonie não respondeu. Observou o jogo de luz e sombra que os ramos do plátano criavam no rosto da mãe.
- Já és suficientemente crescida para saber como funcionam as coisas. A tua avó cresceu num orfanato, em Lyon, e com dezoito anos foi trabalhar para casa de uma
família rica. Mas o patrão, primeiro, engravidou-a e, depois, pô-la na rua. Com vergonha, deixou Lyon e mudou-se para Aries. Trabalhou no campo, a apanhar violetas,
alfazema e azeitonas, até que eu nasci. Tinha sofrido muito por nunca ter conhecido os pais e decidiu que eu teria pelo menos uma mãe. Manteve-me com ela, esfalfando-se
a trabalhar. Depois começou a beber. Mas, entretanto, eu tinha crescido e podia cuidar de mim. Depressa percebi que a beleza é um produto que dá dinheiro, e eu era
bonita. Quando me elegeram Miss Provence, disse para mim mesma: o mundo é meu. Tinha dinheiro, vestidos, jóias. Os homens andavam atrás de mim e enchiam-me de presentes
para me levarem para a cama. Eu já me via a desfilar nas passereles de Dior ou de Chanel ou a entrar em filmes como a Brigitte Bardot ou a Catherine Deneuve. Mas
todos os sonhos se desvaneceram quando fiquei grávida. O resto já sabes. Gosto de ti da única maneira que sei: dar-te uma casa e comida. Não consigo ser diferente
do que sou. Queres odiar-me por isso? Tenho uma vontade desesperada de viver, ainda estou à espera de um grande amor e tu estás aí a olhar para mim com olhos de
gelo e a julgar-me. As tuas colegas de escola estão agora na praia e tu não. Elas têm um pai também, provavelmente uma casa de férias, com certeza dinheiro para
pagar o hotel. Tu tens de te contentar comigo, que gostava de estar na praia com um marido jovem, rico e bonito, mas estou aqui a trabalhar. Posso mudar isto tudo?
Por enquanto só te posso permitir que comas essas porcarias que trouxeste fiado, e isto é tudo. No domingo tenho de ir a Aries ver a minha mãe, com quem não consigo
sequer falar, e tenho de pagar o hospital. Para chegar ao fim do mês, tenho de arranjar algum homem generoso que me dê dinheiro. Portanto, deixa de me julgar, pega
naquilo que te posso dar e não queiras mais nada. Fui clara?
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Léonie não tinha percebido inteiramente as palavras de Nadine, mas uma coisa era evidente: a mãe tentava viver a vida dela, a sonhar com um futuro esplendoroso,
e ela era apenas um entrave à realização daqueles sonhos.
- Quem é o meu pai? - perguntou. Era a primeira vez que fazia aquela pergunta à mãe.
- Quem sabe?
- Não sabes mesmo ou não me queres dizer?
Nadine lembrou-se de quando era uma rapariga de dezassete anos que, para participar no concurso de beleza, falsificara os documentos, declarando ter dezoito. Nessa
altura trabalhava numa empresa que exportava flores e estava cansada de regressar a casa e encontrar uma mãe alcoolizada que se afogava no seu próprio vómito. Nos
raros momentos de lucidez, a mãe dizia-lhe: - Tu devias ter uma vida melhor do que a minha. Leva-me para o hospital e liberta-te de mim. Pelo bem que me queres,
suplico-te que me escutes. - Mas eram relâmpagos na escuridão de uma mente já incapaz de raciocinar. Uma noite, ao regressar do trabalho, Nadine pensou que a mãe
estava morta, mas, afinal, entrara em coma. No hospital diagnosticaram-lhe Alzheimer. O álcool não tinha nada a ver com aquilo. Nadine tinha de escolher entre levá-la
de volta para casa e ficar ao lado dela dia e noite, ou interná-la numa clínica psiquiátrica e arcar com os custos que não eram cobertos pela Segurança Social. A
segunda solução era a única praticável e uma boa parte do seu salário acabava na mensalidade da clínica. Precisava de dinheiro, e o concurso de beleza, se o ganhasse,
ia render-lhe uma bela quantia. Venceu e pagou adiantado à clínica a conta de um ano inteiro. Recebia convites para jantares, almoços, festas importantes em palacetes
na costa e em castelos no campo. Parecia que a riqueza estava ali, ao alcance da mão. Tudo aquilo que lhe era pedido era que fosse atenciosa com os donos das casas.
Quando se apercebeu de que esperava um filho, os homens que acompanhava desapareceram sem deixar rasto. E ela não fazia ideia de quem poderia ser o pai. Um ano depois
da vitória do título de Miss Provence, deu à luz
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Léonie. Abandonou Aries e instalou-se em Salon, onde ninguém a conhecia. Vendeu as jóias e pagou adiantado o aluguer numa casa antiga onde moravam duas velhotas
afetuosas: Ninette Thérèse. Elas ajudaram-na a arranjar trabalho no Chez Jules et Lorette e tratavam da menina quando ela estava no cabeleireiro
- Léonie, juro-te que não sei quem é o teu pai. E mais vale assim, porque, seja quem for, é um patife - respondeu-lhe então
A filha acreditou.
- Mas mais dia, menos dia, vou conseguir dar-te um pai O homem que viste hoje tem um hotel em Toulon, é bonito e tem muito dinheiro. Não me compliques a vida
e dá-me tempo para o trabalhar.
Léonie calou-se. Tinha percebido que a mãe continuava a viver de sonhos.
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Ninette nunca mais regressou das suas férias em Aix. Um enfarte fulminante levou-a poucas horas depois da sua chegada à bonita casa do filho.
Thérèse estava inconsolável.
- É como se me faltasse um braço - disse a Léonie.
As duas velhas senhoras eram amigas desde crianças. Tinham andado juntas na escola, e juntas tinham ido trabalhar para o campo. Ninette casara-se, enviuvara cinco
anos depois do casamento e tivera dois filhos: um emigrara para a Austrália e o outro, Pierre, arranjara emprego em Paris, num concessionário de automóveis, onde
conheceu a filha do patrão, pretensiosa e sem graça.
Pierre tinha dito à mãe: - Se me casar com ela, perco a minha liberdade. Mas é uma mulher leal.
- E o amor? Onde está o amor nesse casamento? - perguntou Ninette.
- O amor vem e vai, o dinheiro fica, se for bem administrado - replicou ele. Ninette nunca aceitou um cêntimo daquele filho que enriquecera através do casamento.
Tal como Thérèse, subsistia com a pensão e, no verão, ganhava mais alguma coisa a vender alfazema.
As duas amigas tinham feito companhia uma à outra durante toda a vida e, agora que Ninette já ali não estava, Thérèse pensou que em breve também ela partiria.
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- Sabes, a Ninette deixou-me todos os seus haveres - confiou ela a Léonie, ao mesmo tempo que avançava à frente da menina até ao primeiro andar, ao apartamento
em que a amiga vivera.
O filho, Pierre, tinha-lhe telefonado para lhe dizer que, em finais de julho, ia esvaziar a casa e entregar as chaves ao proprietário.
- A Ninette tinha lençóis de linho bordados à mão e também umas toalhas muito bonitas. Tinha um fraquinho pela roupa branca. Agora são meus e eu vou dar-tos
a ti. Fico eu com as chavenazinhas de Limoges e a estola de coelho que me vai dar jeito no inverno. Entretanto, se vires alguma coisa que te agrade, podes ficar
com ela. Aqui dentro é tudo meu, porque ela assim o decidiu, percebes? Foi o filho que me disse - acrescentou Thérèse, enquanto abria a porta da casa da amiga.
Agora que a sua inquilina já lá não estava, Léonie quase tinha medo de transpor a porta do minúsculo apartamento que, no entanto, conhecia muito bem. A morte, para
ela, era algo de misterioso e terrível.
- Não quero os lençóis de uma morta - disse, sem se decidir a entrar nos aposentos.
Thérèse não insistiu.
- Então desce e espera por mim em minha casa - ordenou. Quando Thérèse voltou a descer, já o sol se tinha posto,
encontrou a mesa pronta e a sopa de cebola ao lume.
- Ma petite, fizeste isto tudo sozinha? - perguntou.
- Sabes, agora que a Ninette já cá não está, não te vais sentir só, porque eu decidi vir viver contigo - anunciou a menina.
- Mas tu já vives comigo, sobretudo agora que estás de férias e não vais à escola - observou Thérèse.
- Senta-te, eu vou servir-te a sopa. Deixa-me ficar contigo. A minha mãe é uma tonta, cheia de sonhos que não se vão realizar nunca e não quer que eu a atrapalhe.
As palavras de Léonie tocaram Thérèse. A miúda gostava muito dela, como se fosse mesmo sua avó. Aquela criança estava a crescer demasiado depressa e de uma forma
demasiado dolorosa, pensou.
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- Seria uma grande responsabilidade para mim ficares a viver comigo - explicou-lhe.
- Deixa-me ao menos ajudar-te. Agora que a Ninette já cá não está, posso ir contigo à noite vender alfazema, e juntas podemos fazer muito negócio.
- Vou pensar nisso - prometeu Thérèse.
Começaram as duas a comer a sopa de cebola, que não estava perfeita mas, em qualquer caso, era comestível.
Foi assim que, aos oito anos, Léonie se tornou numa excelente vendedora de alfazema. A graça com que vendia os raminhos aos turistas de todas as nacionalidades que
enchiam os locais públicos proporcionou-lhe os seus primeiros ganhos. Léonie tinha o aspeto de uma bonequinha de porcelana vestida de festa, com a saia provençal
de cores berrantes. O sorriso aberto dava-lhe o ar de uma menina feliz. E, naquele verão, Léonie foi realmente feliz.
Às vezes, os clientes dos cafés e dos restaurantes ao ar livre davam-lhe algumas moedas a mais pelos seus raminhos de flores, alguns olhavam para ela com mais simpatia
do que outros, algumas senhoras pensavam que Thérèse era sua avó e davam-lhe os parabéns pela netinha tão bonita.
Uma noite teve um encontro que acabaria por originar uma reviravolta na sua vida. Aproximou-se de uma mesa de italianos, composta por adultos e crianças, a oferecer
saquinhos de alfazema. Uma das senhoras, que se exprimiu num francês aproximativo, disse-lhe que os queria todos, e ainda o cesto de vime entrançado que continha
os saquinhos perfumados.
Léonie olhou para ela, perplexa, receando não ter percebido o pedido, enquanto a jovem senhora continuava a perguntar: Combien, combien7.
- O cesto não é para vender - insistia Léonie. A senhora não percebia. Pediu-lhe para lhe falar em inglês, mas a menina falava apenas um francês incorreto,
habituada como estava a exprimir-se em dialeto provençal. Nesse momento, interveio Thérèse.
- Trinta saquinhos de alfazema mais o custo do cesto faz duzentos francos - disse rapidamente.
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Foi um homem, provavelmente o marido da senhora, que meteu o dinheiro na mão de Thérèse, ao mesmo tempo que uma menina perguntava à pequena florista: - Comment t'appelles
tut
- Léonie - respondeu com prontidão, e acrescentou: - Et toi, comment tu t'appelles ?
- Daniela.
- Danielle?
- Não, Daniela - insistiu a pequena italiana.
- Olá, Danielà - cumprimentou Léonie.
- Queres gelado de morango? - perguntou Daniela, indicando-lhe o que estava a comer.
- Glace à lafraise - disse Léonie, e acrescentou: - Non, merci - porque não era de uma profissional sentar-se à mesa dos turistas ricos.
Entretanto, os outros miúdos do grupo observavam a amiga e a pequena vendedora de alfazema com curiosidade, enquanto Thérèse sussurrava: - Ma petite, agradece e
vamo-nos embora.
Mas a mãe de Daniela insistiu, no seu francês aproximativo, porque Léonie lhe inspirava ternura.
- Deixe-a aqui a comer um gelado com as crianças.
- Está a ficar tarde, são horas de regressar a casa - replicou Thérèse.
- Grand-maman, je ten prie - suplicou Léonie, tratando-a por avó, de repente.
A mãe de Daniela prometeu que levava a menina a casa se ela tivesse autorização para ficar algum tempo com a filha e com as outras crianças.
Léonie contou que era órfã de pai e mãe, que vivia com a avó, que no verão vendia flores para comprar os livros escolares e outras fantasias inocentes sobre a sua
vida. Thérèse estava à porta de casa à espera dela quando a comitiva de italianos a foi levar. As duas meninas tinham trocado os respetivos endereços e tinham prometido
solenemente escrever uma à outra, uma em francês e a outra em italiano, porque assim podiam aprender as respetivas línguas. E foi assim que Daniela Pallavicini se
tornou amiga de Léonie Tardivaux.
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As férias acabaram e chegou a altura de regressar à escola. Thérèse ensinara Léonie a preparar e cozinhar a tarte aux champignons e, uma noite, a menina pôs em cima
da mesa, para ela e para a mãe, aquela iguaria acabada de sair do forno, preparada com cogumelos que ela apanhara nesse mesmo dia, o último de férias, nos campos
onde cresciam em abundância depois dos temporais do fim do verão. Ao lado do prato tinha empilhado também o dinheiro que ganhara com a venda da alfazema.
Nadine comia sem apetite.
- A massa está um bocadinho esturricada - observou, e prosseguiu: - Nunca consegues fazer nada direito. O que é este dinheiro? - perguntou.
Léonie ficou triste porque estava à espera de receber um elogio. Por isso não lhe respondeu.
Nadine contou o dinheiro e insistiu: - Que dinheiro é este?
- Uma ajuda para as minhas despesas. Ganhei-o a vender alfazema com a Thérèse - disse.
- Este ano vais precisar de sapatos novos, um casaco comprido e umas camisolas para o inverno. Continuas a crescer e a roupa está a ficar pequena.
Léonie esperara que, pelo menos em relação àquele contributo em dinheiro, a mãe lhe dissesse que tinha sido fantástica, mas, afinal, destruiu-a em poucas palavras.
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- Se ao menos a tua avó se decidisse a morrer... - acrescentou Nadine, em voz baixa.
A menina sabia que, quando recebia o salário, a mãe corria até Aries para pagar a mensalidade da avó. Percebeu que era a falta de dinheiro que a tornava tão áspera.
Com efeito, a mãe acrescentou: - O senhorio aumentou-me o aluguer.
Mais uma vez, Léonie sentiu a falta de um pai que pudesse tornar menos penosa aquela situação.
- Monsieur Clément disse-me que, se eu lhe levar o cão a passear duas vezes ao dia, me dá umas gorjetas - contou a filha.
- Mas será que tu não percebes que as tuas gorjetas não servem para nada? - gritou a mãe.
- O que é que se passa? Aquele que anda contigo já não te dá dinheiro? Desapareceu como os outros todos? - gritou ela também, já quase a chorar.
Levou um estalo tão forte como uma chicotada.
- Exijo que me tenhas respeito - sibilou Nadine.
Como única resposta, a menina deitou a tarte e o dinheiro no balde do lixo, saiu da cozinha batendo com a porta e foi para o seu quarto. Atirou-se para cima da cama,
cobriu a cabeça com a almofada e chorou. Sentia que era um peso para a mãe que, sem ela, podia poupar muito, mas tinha uma filha para sustentar e andava sempre atrás
de dinheiro. Tinha sido melhor se Nadine não a tivesse deixado nascer, uma vez que a culpabilizava de tudo aquilo que lhe corria mal. Então ela só podia fazer uma
coisa: morrer. Ia-se deixar morrer à fome.
Com este propósito, adormeceu.
Quando acordou já era manhã: a manhã do seu primeiro dia de escola. A casa estava vazia. Em cima da mesa, na cozinha, encontrou uma malga de leite com cereais e
um croissant ainda quente.
Léonie sorriu ao pensar que a mãe, apesar daquele péssimo feitio, gostava dela.
Reencontrou as colegas de escola. Tinham crescido todas e a professora pô-las imediatamente a trabalhar.
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- Vão fazer uma composição a contar como passaram as férias - disse, depois de ter feito a chamada e de ter constatado que não faltava ninguém.
Léonie começou a chupar a caneta, sentindo que não tinha nada para escrever. As amigas iam contar as suas estadias na praia, na montanha, talvez em Paris ou no estrangeiro.
Ela tinha ficado em casa a sofrer o calor e a chorar de solidão. Não podia, obviamente, contar que a mãe a deixava fora de casa quando recebia um homem, que a velha
Ninette tinha morrido, que Thérèse fazia as vezes de sua avó, que andara a vender flores e que a mãe nem sequer lhe agradecera quando lhe entregou o dinheiro que
ganhara.
A professora reparou no olhar triste da sua melhor aluna. Chamou-a à secretária e perguntou-lhe em voz baixa: - Porque não escreves?
Léonie encolheu os ombros.
- Aconteceu-te alguma coisa má?
A menina abanou a cabeça. A professora tinha percebido muitas coisas sobre ela através das composições que tinha feito no ano anterior. Então disse-lhe: - Anda comigo.
Levou-a para fora da sala, recomendando às alunas: - Continuem a vossa composição e estejam caladas.
Quando chegaram ao recreio, bordejado de canteiros floridos, convidou a aluna a sentar-se num banco ao lado dela e perguntou: - Não fazes a composição porque achas
que não tens nada para dizer?
Léonie assentiu.
- Pois eu tenho a certeza de que tens coisas muito mais interessantes do que as tuas colegas para contar. O facto de não teres ido de férias talvez te faça
sentir inferior a elas. Mas tu, quanto a inteligência, capacidade de aprendizagem e sensibilidade, ganhas-lhes a todas. Para viver uma grande aventura não é preciso
andar pelo mundo. Aliás, sabes o que eu acho? As aventuras mais interessantes são aquelas que tu viveste, porque com certeza leste algum livro, com certeza ouviste
histórias daquelas duas velhinhas que moram ao teu lado...
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- Uma delas, a Ninette, morreu - disse timidamente Léonie.
- Ora aí está, já tens um tema para tratar.
- Conheci uma menina italiana. Chama-se Danielà. É muito simpática e já me escreveu de uma cidade italiana que se chama Milão. A carta era em italiano e eu,
com a ajuda da Thérèse, que sabe algumas palavras, li-a e percebi-a. Depois respondi-lhe em francês, porque foi essa a promessa que fizemos uma à outra.
- Vamos voltar para a sala e começa imediatamente a escrever a tua composição.
Léonie começou a escrever e encheu quatro páginas do caderno. No dia seguinte, a professora anunciou à turma que a melhor composição era a de Léonie.
Naquela noite, Léonie contou tudo à mãe, que a ouviu distraidamente e depois lhe disse: - Não é com os elogios da tua professora que vamos poder enfrentar o inverno.
O homem de quem tu não gostavas já cá não vem e, por isso, à sexta e ao sábado à noite vou ter de trabalhar na cervejaria, e tu dormes em casa da Thérèse porque
eu venho tarde.
De repente, a menina ficou sem nada em que ter orgulho. Voltou a sentir-se um peso para a mãe e chorou todas as suas lágrimas nos braços da velha Thérèse.
Depois, alguma coisa aconteceu. Um domingo, quando regressou da visita mensal à mãe, Nadine disse-lhe: - Conheci um senhor rico. Desta vez quero ser mais esperta
e jogar bem os meus trunfos.
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Chamava-se Jean-Marie Perrin, era um vinicultor da zona, possuía vários hectares de vinha, já passara os quarenta anos, era viúvo e tinha dois filhos rapazes que
estudavam em Paris e, segundo Léonie, era feio como o pecado e muito antipático.
Nadine conhecera-o em Aries, no hospital onde se dirigia todas as semanas para visitar a mãe.
Tinham-se encontrado no jardim da clínica, onde ambos empurravam as cadeiras de rodas das respetivas mães ao longo de uma alameda que ia dar a uma fonte.
A mãe de Jean-Marie, que sofria de uma demência senil, era muito mais tranquila do que a mãe de Nadine, que só serenava sob o efeito de sedativos.
A princípio apenas se tinham cumprimentado, dirigindo um ao outro palavras de circunstância, mas, no início do verão, começaram a trocar informações recíprocas.
O vinicultor era uma pessoa que adorava falar e raramente escutava o interlocutor. Nadine percebeu que era um egocêntrico, egoísta e machista, com um fraco pela
mãe.
- Está nestas condições há já cinco anos. Durante quatro anos mantive-a em casa com duas enfermeiras que se revezavam dia e noite. Mas ela é muito esperta. Basta
um instante de distração e atira-se. No ano passado foi salva por milagre, quando já estava a transpor o parapeito da varanda. Eu ando muitas vezes
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em viagem e preciso de estar sossegado enquanto estou a trabalhar. Por isso decidi metê-la nesta clínica, onde há barras nas janelas. Pesa-me saber que ela está
aqui em vez de estar em nossa casa, mas ela entende-me - contou-lhe. Nadine pensou que aquele "ela entende-me" era só uma maneira de dizer, porque de facto ao homem
não importava que o entendessem ou não, só queria alguém que o escutasse. Parecia que não se tinha sequer apercebido de que ela era jovem e bonita, nem lhe interessava
saber de que doença sofria a mãe. Uma vez, no entanto, observou: - Eu venho todos os domingos, mas a senhora não.
Uma enfermeira contara a Nadine que monsieur Perrin era um homem muito rico, que produzia o melhor vinho de toda a Camargue e que a sua empresa tinha cem anos. Então
respondeu-lhe: - Sou sozinha, tenho um trabalho modesto, uma filha para criar e dou saltos mortais para conseguir pagar a mensalidade do hospital. Quatro viagens
por mês desde Salon são de mais para as minhas possibilidades. Felizmente, a minha mãe não se apercebe da realidade, e eu estar aqui ou não estar para ela não faz
diferença. Mas a mim custa-me muito não a ver todas as semanas, porque gosto muito dela.
Pela primeira vez, Jean-Marie olhou-a com curiosidade e depois disse-lhe: - Se quiser, posso ir buscá-la ao domingo a Salon e depois posso levá-la a casa.
- Parece-me demasiado... não saberia como retribuir... hesitou Nadine.
- Por amor de Deus! Isso não é nada. Até porque nunca tenho ninguém que me ouça, nem os meus filhos, das raras vezes em que regressam a casa. A minha mulher
sim, ouvia-me, mas partiu há dois anos. Uma doença devastadora. Faz-me muita falta, a minha Régine.
Domingo após domingo, enquanto a pequena Léonie ficava entregue aos cuidados de Thérèse, Nadine foi-se tornando numa presença indispensável para o rico vinhateiro.
No Natal ofereceu-lhe um cesto que continha vinho, azeite e outros produtos do campo, dizendo-lhe: - Com os desejos de que
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possa, minha cara Nadine, ter uma ceia abundante. Gostava de a convidar para passar o Natal em minha casa, mas estão lá os meus filhos e sabe-se lá o que eles iam
pensar. Venho buscá-la na manhã de Ano Novo. Muitas felicidades.
Nadine ficou com os olhos cheios de lágrimas e o homem pensou que tivesse ficado comovida com o presente recebido. Ela, porém, sentia vontade de lhe atirar à cara
aquele cesto que não a ajudava a resolver o seus problemas de dinheiro.
Quem resolveu esses problemas foi a velha mãe, que morreu a seguir ao Natal. Quando, no dia um de janeiro, o homem lhe apareceu à porta para a levar a Aries, Nadine
disse-lhe: - Muito obrigada, monsieur Perrin, mas não vou consigo. A minha mãe está no cemitério.
Então, leu o desapontamento no rosto daquele homem egoísta e egocêntrico, que lhe perguntou: - Está a dizer-me que vou ter de ir a Aries sozinho?
O belo rosto de Nadine ficou sombrio, e ela replicou com um ar severo: - Pensei que, por uma vez, conseguisse pensar em mim e dar-me os seus sentimentos.
Jean-Marie Perrin olhou para ela, incrédulo, e depois balbuciou: - Desculpe. Sinto muito, claro... bem, bom domingo. - Deu meia-volta, entrou no carro e afastou-se.
Léonie, que estava atrás da mãe e assistira à cena, perguntou-lhe: - É este o teu namorado que te ofereceu aquelas iguarias de Natal?
- É ele, e é muito rico. Mas, pronto, não faz mal. A partir de janeiro espero que o meu salário chegue para nós as duas. Mas tu tens de te despachar a crescer e
arranjar trabalho.
Durante quatro meses, tinha fantasiado acerca do rico Perrin, que era mais pesado do que um pedregulho mas que tinha uma robusta estabilidade económica. Imaginava
que ia conseguir abrir uma brecha, ainda que não fosse no seu coração, pelo menos na vontade que teria de refazer a sua vida com uma mulher bonita e jovem. Mais
uma vez, enganara-se. Ele nem sequer se apercebera de como ela era desejável. Nunca tinha dito uma palavra ou
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feito um gesto que exprimissem um vago interesse por ela Só queria a sua companhia para ir visitar a mãe. Por todas as horas que tinha desperdiçado cada domingo,
recebera um cabaz de Natal como recompensa.
- Imagina que eu tinha criado a ilusão de poder vir a ser segunda madame Perrin. Fiz tudo o que podia, acredita - disse à filha. - Comportei-me como uma colegial
e fui de uma sinceridade tremenda. Imagina, Léonie, que lhe contei tudo sobre mim porque queria começar uma nova vida. Agora sei que ele nunca me ouviu sequer. Miserável!
Como todos os ricos, de resto.
Léonie gostava de lhe dizer: "Tu também não me ouves", mas calou-se. Em qualquer caso, estava satisfeita com o desaparecimento daquele homem que apenas vislumbrara
mas de quem não gostava. Agora que a avó morrera e que não havia mensalidade do hospital para pagar, podiam viver as duas sem a angústia de não chegar ao fim do
mês. E depois, quem sabe, talvez no próximo verão pudessem ir juntas até à praia, pelo menos durante alguns dias. Assim teria alguma coisa para contar à sua amiga
Daniela.
Léonie tinha-lhe confessado que não era completamente órfã. Não sabia quem era o pai, mas tinha uma mãe, e Thérèse era apenas uma vizinha que, no entanto, gostava
mais dela do que a mãe. E uma vez que, no Natal, Daniela lhe mandara de Milão um panetone, retribuiu o presente com um cestinho de flores de alfazema. Tinha percebido
perfeitamente que a família da amiga italiana era rica, e por isso não concordou com a mãe relativamente ao juízo negativo que expressara a propósito das pessoas
que têm muito dinheiro.
Estava a formular estes pensamentos quando bateram à porta. - Quem será, agora? - perguntou a mãe, enquanto ia ver quem era. Monsieur Jean-Marie Perrin surgiu à
porta, muito direito.
- Bom-dia - balbuciou Nadine, surpreendida.
- Posso entrar? - perguntou ele.
Ela afastou-se e ele entrou na cozinha onde estava Léonie, sentada à mesa.
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O homem olhou para ela de fugida e dirigiu toda a sua atenção à mãe.
Já ia a caminho de Aries, como sabe, mas depois mudei de direção - começou.
- Estou a ouvir - disse Nadine.
- Pois... queria que soubesse que sinto muito... - murmurou.
- Que a minha mãe tenha morrido?
- Também - respondeu ele. E acrescentou: - Mas sobretudo tenho muita pena de já não poder vir buscá-la e passar algumas horas consigo todos os domingos.
- Eu também tenho alguma pena - disse Nadine.
- Estava a pensar se poderia convidá-la para almoçar. Aqui em Salon há um bom restaurante que eu forneço de vinhos. Portanto, se aceitar o convite, eu venho
todos os domingos, desde que isso não interfira com os seus compromissos.
Nadine voltou-se para a filha: - O que é que tu dizes?
- Acho muito bem - respondeu a filha, de má vontade.
- Tu podes almoçar com a Thérèse - acrescentou prontamente a mãe, que voltara a ter esperança.
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- Pela maneira como falas, acho que monsieur Perrin se apaixonou pela tua mãe. Vais ver que desta vez vai dar certo e que ela se arranja - comentou Thérèse.
- Ele é feio e antipático - objetou Léonie.
- Mas é conhecido por toda a gente como um homem respeitável.
- Um bom dia vê-se logo pela manhã - afirmou Léonie, imitando uma frase feita de Thérèse.
- Ou seja?
- É uma pessoa que não sabe o que quer, e, de qualquer maneira, nunca vai querer uma mulher que não esteja à altura dele - rematou a menina.
Thérèse não disse nada, mas olhou para a sua pequena amiga com uma espécie de admiração. Para os seus nove anos, era realmente muito perspicaz. Mas se Nadine conseguisse
jogar os seus trunfos, quem sabe...
O produtor de vinhos, durante um ano, renovou um convite dominical atrás do outro, continuando a tratá-la por você e a falar continuamente, enquanto Nadine anuía
sem nunca o interromper e aborrecendo-se de morte. E como era jovem e destilava vontade de viver, sentiu-se quase lesada com a assiduidade daquele homem que a reduzia
ao papel de uma grande orelha.
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Agora que Léonie estava a crescer, Nadine tinha-a tornado sua confidente. Um dia disse-lhe: - Achas justo que eu ande a perder o meu tempo com um homem de quase
cinquenta anos que é rico e avarento? No domingo passado disse-lhe que fazia anos e ele sorriu e respondeu: "Muitos parabéns." Eu quero um homem que me faça gozar
a vida, que me leve a dançar, de vez em quando. Que me leve a Paris, que me dê um presente. Sabes o que te digo? No próximo domingo dou-lhe com a porta na cara,
quando me vier buscar.
- Nunca te pergunta como é que eu estou? - perguntou Léonie.
- Imagina! Quase nem me pergunta a mim! Sem contar que detesta crianças, diz que o incomodam.
- Eu já sabia: monsieur Perrin é antipático.
- Tu detestas todos os homens que andam atrás de mim. E pensar eu que se me conseguisse casar ficava sossegada para o resto da vida.
- Casavas-te mesmo com ele, se ele te pedisse?
Nadine pensou durante algum tempo e depois respondeu em voz baixa: - Finalmente, ficaria a salvo. Tu não podes entender isto, mas tenho terror do dia em que, ao
olhar-me no espelho, vir que a minha beleza começa a murchar. Este corpo e esta cara são os meus únicos dotes. Durante quanto tempo mais poderei ter esperança de
os trocar por alguma solidez económica? O meu tempo, agora, é precioso e tenho de o passar com alguém que seja menos egoísta do que Perrin.
- Se calhar já começaste a fazer isso - insinuou a filha. Havia já algumas semanas que, quando ela ia dormir, ouvia a
mãe a falar ao telefone em voz baixa, durante muito tempo. Tinha visto na casa de banho um perfume caro da Dior e, na gaveta da roupa interior, encontrou uma preciosa
combinação de seda negra ainda embrulhada.
Então, a mãe respondeu: - É verdade que a ti não te escapa nada. É só um representante da LOréal. Conheci-o no cabeleireiro. Quanto mais não seja, é um rapaz bonito
e é muito divertido.
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Tem muitos projetos, quer abrir um salão de beleza em Avignon... mas, não sei. Propôs-me uma festa de fim de ano em Marselha.
- E eu com quem passo o fim de ano?
- Ora, estás a ver como tu és? Só pensas em ti, em mim nunca pensas.
Léonie teve piedade daquela mãe tão infantil. Por isso apressou-se a tranquilizá-la. - Vai, então. Eu fico com a Thérèse e uma parente dela que vem de Nantes.
O último dia do ano era domingo e Nadine partiu de manhã cedo com o jovem representante da LOréal. À hora de almoço, apareceu monsieur Perrin.
- A minha mãe não está - disse Léonie, quase com alegria.
- Não é possível, hoje é domingo! - replicou o homem, com um ar desconcertado.
Vestia um sobretudo cor de camelo com gola de pele, trazia luvas e um chapéu preto, e ela sentiu o perfume do aftershave.
- Mas também é dia de fim de ano. A minha mãe foi convidada para um réveillon em Marselha - esclareceu ela.
- Mas não deixa de ser domingo! - protestou ele, ofendido. Léonie exultou de prazer ao ver a desilusão estampada no
rosto daquele homem rico.
- Podia ao menos ter avisado - comentou, e foi-se embora sem se despedir.
Léonie teve a sua festa de fim de ano com crepes Suzette e um dedo de champanhe retirado do cabaz de Natal oferecido por Perrin. Ouviu as conversas infinitas entre
Thérèse e a cunhada e, quando caiu de sono, as duas idosas meteram-na na cama, no meio delas. Quando acordou, a cunhada vinda de Nantes ainda dormia.
Thérèse já se tinha arranjado muito bem e estava na cozinha a preparar o pequeno-almoço.
Então, Léonie contou-lhe da visita de monsieur Perrin e riram-se ambas.
- Sabes o que te digo? Aquele homem deve ter um temperamento de tal maneira impossível que está sozinho como um cão, e a tua mãe fez muito bem em fazer-se
difícil - comentou a velha
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senhora, e prosseguiu: - Talvez hoje o Perrin tenha percebido que se quer continuar a asfixiar a Nadine com as suas palavras, deverá decidir-se a pedir-lhe que se
case com ele.
- Espero bem que não o faça.
- Eu também espero, porque ela era capaz de lhe dizer que
sim.
- Nunca mais vai aparecer. Só tenho pena por causa do cabaz de Natal. No próximo ano não o vamos ter - observou Léonie.
Jean-Marie Perrin desapareceu de circulação durante algumas semanas.
Na primavera, Léonie viu o produtor de vinho semiescondido pela banca de flores na praça. Estava a olhar para o cabeleireiro Chez Jules et Lorette, com as mãos enterradas
nos bolsos do sobretudo. Imaginou que estivesse a espiar a mãe. Então, passou ao lado dele e, em voz alta, cumprimentou-o.
- Bom-dia, monsieur Perrin.
Ele respondeu distraidamente: - Tu quem és?
- Sou a filha de mademoiselle Nadine. Lembra-se? - disse, com um ar malicioso.
- Ah, sim, sim. Estou com pressa, tenho de me ir embora replicou, e afastou-se.
À noite, Léonie contou à mãe: - Monsieur Perrin anda a espiar-te.
- Eu sei. Tal como as andorinhas, agora que é primavera, anda a esvoaçar à volta do salão. É tão palerma que pensa que ninguém repara nele. E eu deixo-o cozinhar
em lume brando respondeu a mãe.
Nadine tinha recomeçado a sair, à noite, com o rapaz bonito que era representante da LOréal. Não tinha muito dinheiro, apenas sonhos; e ela, que estava a deixar
de sonhar, hesitava em deixar-se envolver em projetos nebulosos.
- Pensava que nunca mais ia aparecer - observou a filha.
- De facto, limita-se a espiar-me e viu-me sair com o Philippe. Deve estar a roer-se por dentro, porque outra palerma como eu, disposta a ficar a ouvi-lo
em troca de nada, nunca mais arranja.
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Uma noite, no princípio do verão, monsieur Perrin telefon0u
- Passa-me a tua mãe - pediu a Léonie.
- Mãe, monsieur Perrin ao telefone. Estás ou não? - perguntou a menina, sabendo que o homem a estava a ouvir.
- Diz-lhe que não estou - gritou Nadine, de maneira que ele ouvisse.
- A minha mãe não está - informou Léonie, e desligou a chamada.
A mãe riu-se, divertida, enquanto dizia à filha: - Acho que deve estar suficientemente desesperado para dar o passo decisivo. Mas desta vez vou ser eu a ditar as
regras.
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Nadine encontrou monsieur Perrin à sua frente na noite seguinte, quando regressava a casa do trabalho.
- Não quero importuná-la, mademoiselle Nadine, mas precisava muito de falar um bocadinho consigo, até para lhe dizer que a minha pobre mãe faleceu.
Toda a gente na zona sabia que a velha, a terrível madame Geneviève Perrin, tinha ido desta para melhor, atirando-se da varanda da clínica. Nunca ninguém chegou
a saber de que maneira conseguira driblar a segurança dos enfermeiros.
- Monsieur Perrin, sinto muito pela sua pobre mãe, mas para ser completamente sincera, eu perdi a minha antes de si e o senhor limitou-se a uma banal frase
de condolências - disse ela. E concluiu: - Andei a ouvi-lo durante dois anos. Escutei as proezas da sua defunta consorte, os problemas com os seus operários, as
descrições minuciosas sobre as fases da produção do vinho. Sei tudo sobre a diferença entre uma rolha de cortiça e uma de plástico, sobre a forma como se faz a rotulagem
das garrafas, a limpeza dos tonéis, a diferença das uvas se a estação foi de sol ou de chuva. Durante dois anos falou dos seus lucros e das suas perdas, de quanto
valem as suas poltronas Luís XV e os seus tapetes
Aubusson. Tenha paciência, mas eu tenho problemas mais : sérios. Até qualquer dia, monsieur Perrin.
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O homem ficou ali, imóvel, no centro da praça, com um ar esgazeado, boquiaberto, incapaz de perceber o que teria feito de tão inconveniente que levasse Nadine a
recusar os seus convites para almoçar, a recusar-se a atender o telefone e agora a tratá-lo tão mal. Ao fim e ao cabo, àquela jovem mulher ele tinha dado a honra
de a tratar como amiga e de a convidar para restaurantes excelentes, todos os domingos. Era aquela a recompensa? Não, a verdade é que Nadine era um pouco libertina
e já não lhe bastava ter tido uma filha sem ser casada, nem sequer saber quem era o pai da filha, como ainda andava sempre com muitos homens que a recompensavam
com presentes e dinheiro. Agora andava com um pelintra, caixeiro-viajante, que nunca poderia oferecer-lhe um futuro sólido. Enquanto ele, ele sim, ele poderia...
Aquele pensamento foi como um relâmpago e rasgou o véu que lhe ofuscava a mente. Naquele momento ficou a saber que, apesar de tudo, estava até disposto a casar-se
com ela. Esta tomada de consciência encheu-o de horror.
Poderia realmente um Jean-Marie Perrin baixar-se até pedir em casamento uma rapariga ignorante, de reputação duvidosa, de origens obscuras, com uma filha para criar?
Pois bem, sim. Podia, mas não queria. Ele tinha-lhe demonstrado como um homem de classe pode respeitar uma mulher e ela não tinha percebido. Por muito que isso lhe
desagradasse, ia deixá-la com o seu destino. Ao fim e ao cabo, ele era monsieur Perrin e ela uma pobre coitada que arranjava os pés às pessoas. Ao menos que fosse
uma podologista. Mas era uma simples pedicura. Não me posso casar com ela, disse para os seus botões, enquanto se metia no carro para regressar a casa. Nadine não
tinha percebido que com a sua logorreia, como ela mesma a definiu, ele só lhe queria mostrar a visão de um mundo diferente, estimulante, da alta burguesia. Mas tinha
sido como oferecer uma ostra do Atlântico a um gato vadio.
- Pior para ela - concluiu a meia-voz, enquanto abandonava a praça de Salon.
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Agora sobre quem poderia ele despejar a enchente da sua amargura? Se a sua pobre mãe ainda ali estivesse! Ela sim, ela sabia escutá-lo. Ou aquela santa mulher que
era a sua esposa! A pobre Régine escutava-o durante horas e sabia confortá-lo. Agora estava desesperadamente só. Havia os dois filhos, mas apareciam raramente. E
pensar que um dia a empresa ia passar para eles.
Quando no horizonte se perfilou, por entre as vinhas, a silhueta escura da sua villa, ele tinha o olhar enevoado de lágrimas.
Nadine, pelo contrário, ria-se daquilo. Mais uma vez, conseguira deixar furibundo aquele egoísta, presumido e palavroso que, na sua sobranceria, se recusava a admitir
a necessidade que tinha dela.
Contou o sucedido à filha, que não achou aquela história nada divertida. Efetivamente, comentou: - Não vejo nenhum motivo para rir.
- Ora, vês como tu és? Quem seria o homem que te transmitiu um feitio tão pestilento?
- O meu pai, seja ele quem for, e eu gostava muito de o conhecer, mas isso não vai acontecer nunca, porque tu não levas nada a sério, nem mesmo as histórias
com os homens, nem mesmo a mim, que sou tua filha. Estou cansada de te ouvir sempre falar de homens. Quando é que falas um pouco de mim? retorquiu, com amargura.
- Que mais é que eu tenho de fazer, para além de te sustentar? - perguntou.
- Eu quero uma mãe e nunca a tive - gritou.
Léonie comparava a mãe com as mães das colegas de escola que, de vez em quando, a convidavam para casa delas porque tinha sucesso nos estudos e as ajudava a fazer
os trabalhos de casa. As mães delas não eram nem tão jovens nem tão bonitas como a dela, mas eram mães a sério, enquanto a dela era uma espécie de irmã mais velha,
frívola e egoísta. Léonie não queria saber nada daquelas histórias com os homens. Por isso prosseguiu: - Sabes o que te digo? Quando for grande, vou correr a pontapé
qualquer homem que se aproxime de mim. E tu, se fosses inteligente, fazias a mesma coisa.
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- Não percebes nada. Devia dar-te um par de estalos, mas não o faço porque estou cansada. O que é que fizeste para o jantar? - perguntou-lhe.
Estava realmente cansada, depois de um dia de trabalho, e amargurada, porque agora que Léonie estava a crescer, esperava encontrar nela uma amiga, não uma inimiga.
Ao fim e ao cabo, ela tão-pouco tivera um pai, mas não se lembrava de ter sido tão pérfida com a mãe. Quando muito, fora protetora em relação àquela pobre mulher
e tratara dela até morrer.
- A propósito - disse -, para o ano fazes catorze anos e acabas a escola. É altura de olhares em volta, porque vais ter de arranjar emprego.
Léonie sentia ainda a humilhação escaldante daquela noite distante em que lhe tinha oferecido o pouco dinheiro que ganhara a vender alfazema.
- Nem vejo a hora, assim vou poder finalmente sustentar-me sozinha - respondeu.
Entretanto, pôs na mesa uma sopa de cevada e um prato de queijos frescos.
Tocou o telefone e Nadine foi atender. Era o representante da L'Oréal a pedir para passar a noite com ela, uma vez que no dia seguinte tinha de ir a Marselha.
Nadine pensou na filha. Começava a sentir vergonha por ter de lhe pedir que fosse para casa de Thérèse. E, nesse preciso momento, bateram à porta de casa.
Léonie foi abrir e encontrou à frente um grande ramo de rosas seguro pela mão trémula de monsieur Perrin.
Nadine viu a cena e disse ao amigo caixeiro-viajante: - Esta noite é mesmo impossível. Tenho um problema com a minha filha.
Desligou a chamada e foi ter com Léonie e com o vinicultor.
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- São para mim, monsieur Perrin?- perguntou Nadine, com uma voz aflautada.
- Mademoiselle Nadine, vim perguntar-lhe se quer ser minha mulher, após um período de noivado conveniente - disse o vinicultor, de um só fôlego, ao mesmo
tempo que ficava vermelho primeiro e depois violáceo.
- Léonie, pega nas flores - ordenou Nadine.
- Pega tu - replicou a filha. E acrescentou: - Eu vou para casa da Thérèse.
Esgueirou-se para fora de casa e entrou no apartamento da sua velha amiga que, ultimamente, andava um pouco adoentada e já estava na cama.
- Bingo! - anunciou-lhe, enquanto Thérèse pousava o livro e os óculos.
- O que foi que aconteceu? - perguntou a senhora.
- O viúvo Perrin pediu a minha mãe em casamento, apresentou-se agora com um grande ramo de rosas vermelhas e eu deixei a sopa a meio. Vou à cozinha ver se
ficou alguma coisa para eu comer - disse, e saiu do quarto.
- Quero saber tudo - resmungou a senhora, que saiu da cama, enfiou as pantufas e foi ter com Léonie à cozinha. A rapariga preparava-se para barrar uma robusta
fatia de pão com foie-gras.
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- Contei-te aquilo que sei. Vim-me embora depois de ele ter pronunciado a declaração fatal - explicou.
Thérèse sentou-se diante dela e começou a esfarelar um pedacinho de pão.
- É preciso dizer que a Nadine foi esperta, desta vez. Cozinhou o Perrin mesmo no ponto - comentou.
- A mãe não gosta dele, só gosta do dinheiro que ele tem. E depois não é certo que se casem. Ele falou de um período de noivado conveniente. Sabes quantas
vezes é que a mãe já namorou? Só que os namorados fogem sempre e eu espero bem que este também fuja, até porque atualmente ela já tem outro namorado.
- Que é um bonito rapaz, enquanto o Perrin...
- É feio, velho e antipático - concluiu Léonie.
- Mas, se as coisas chegarem a bom porto, tu até podias continuar a estudar. Gostas da escola e, em vez de te limitares ao certificai detude, podias ir para
o college e depois para o liceu, e eu sei que isso te faria feliz.
Léonie acabou de comer, limpou as migalhas da mesa, arrumou a tábua do pão e lavou a faca. Depois perguntou: - Thérèse, achas que quando eu for grande vou ser como
a minha mãe?
- Acho que o teu pai, fosse quem fosse, devia ter uma boa cabeça, porque tu és mais inteligente do que a Nadine e por isso não vais cometer os erros que ela
cometeu, sendo que o primeiro de todos foi ter uma filha sem ter um marido.
- Também a minha avó teve a minha mãe sem ter um marido.
- Mas tu vais encontrar um dia o teu príncipe encantado. Ele vai casar-se contigo e vão ter muitos filhos.
- Eu já sou crescida e não acredito nos contos de fadas. Nem nos homens. Por isso vou ficar solteira.
Théirèse sorriu: - Dá tempo ao tempo, minha menina.
Ouviram fechar uma porta e, pela janela, viram monsieur Perrin entrar no carro. Olharam para ele enquanto se afastava e, nesse momento, Nadine entrou na cozinha
de Thérèse. Tinha um sorriso de triunfo nos lábios, enquanto anunciava: - Caíram as portas da Bastilha. Olhem para aqui.
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Mostrou a mão esquerda, onde sobressaía um anel com um brilhante. E prosseguiu: - Imaginem, pela primeira vez tratei-o por Jean-Marie e ele tratou-me por Nadine.
Beijou-me na face e convidou-me para ir no domingo almoçar a casa dele. Não é fantástico?
- Quando é que se casam? - indagou Thérèse.
- De hoje a um ano - respondeu ela, radiante. E acrescentou: - Custa-me muito ter de deixar o Philippe. É muito bom rapaz e eu gosto dele, mas seria louca
se o escolhesse a ele, em vez do Perrin, até porque o Perrin vai casar-se comigo, enquanto o Philippe...
- E eu com quem é que almoço no domingo, quando tu fores almoçar à grande villa do teu noivo rico? - provocou Léonie.
- Tem paciência, uma coisa de cada vez. Ele ainda não falou de mim aos filhos e espera que eu faça a mesma coisa contigo. Eu sei que não gostas dele.
- E tu também não gostas - sublinhou Léonie.
- Mas gosto do dinheiro dele - afirmou.
- Tanto quanto se diz por aí, ele era sovina, muito sovina, com a primeira mulher - interveio Thérèse em voz baixa.
- Diz-se tanta coisa... Eu só sei que vou passar a ser a respeitável madame Perrin, servida e reverenciada como uma grande dama, e tu, Thérèse, vais almoçar
à villa e tu, Léonie, vais ter muitos vestidos lindíssimos. Eu vou ter um casaco de vison.
Naquela noite, Léonie escreveu a Daniela, a sua amiga italiana, para lhe contar o grande acontecimento, e concluiu dizendo-lhe: "Parece, portanto, que daqui a um
ano vou ter um padrasto rico, mas como é um senhor muito antipático e eu não gosto dele, não estou nada contente. Entretanto gostava muito de te voltar a ver. A
julgar pela fotografia que me mandaste, estás muito bonita. Quando regressas a Salon?"
Daniela respondeu-lhe ao fim de alguns dias, convidando-a para ir a Itália passar o verão. Escreveu: "Temos uma casa em Castiglioncello e, uma vez que vou repetir
duas disciplinas, vou ter de ficar lá a estudar. Se tu vieres, ainda podemos dar algumas gargalhadas loucas na tristeza das minhas férias de castigo."
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Os dias foram passando e Nadine retomou os seus almoços dominicais com Jean-Marie, já não em restaurantes, mas na villa no coração das suas vinhas.
As empregadas de monsieur Perrin olhavam-na com altivez enquanto o dono da casa a extenuava com intermináveis caminhadas, quer pelas salas da rica mansão, quer pelas
vinhas. Nas primeiras, elogiava a preciosidade dos móveis e dos objetos, das tapeçarias nas paredes e dos tapetes, atribuindo a cada peça o seu valor de mercado;
nas segundas, mostrava-lhe as folhas, falava-lhe do míldio, do granizo, das influências climáticas. Ela anuía e bocejava. Ao fim do dia, antes de a levar a casa,
oferecia-lhe um vinho especial, um azeite de primeira prensa, um cestinho de morangos silvestres ou de cogumelos do campo, um frasco de conserva ou de compota de
fruta. Ela agradecia.
- Agora que acabou a escola e a minha Léonie obteve o certificai detudes, gostava que a convidasses. Depois vai passar dois meses a Itália - disse ao noivo.
- Temos tempo para esses atos oficiais. Talvez pudéssemos fazer isso mais perto do casamento, no outono - propôs ele.
Um domingo, apresentou-lhe os dois filhos, que tinham vindo de Paris. Eram indivíduos fechados e altivos e Nadine percebeu que a consideravam menos do que nada.
Não reagiu, prometendo a si mesma pagar-lhes na mesma moeda quando se tornasse madame Perrin.
O noivo não sabia como se desculpar pela má educação "desta juventude", e ela aproveitou a oportunidade para lhe pedir uma ajuda económica para a filha.
- Não queria que a Léonie fizesse má figura com aquela família italiana que a vai acolher tão generosamente - explicou.
Após um instante de confusão por causa daquele pedido inesperado, monsieur Perrin abriu a carteira e meteu-lhe dinheiro na mão, dizendo: - Mas não quero que isto
se torne num hábito.
- Mas vai ter de se tornar. Já me obrigaste a deixar o emprego, garantindo-me o mesmo ordenado. Agora estou prestes a tornar-me tua mulher e já era altura
de o aumentares, não achas?
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- Estás a dizer-me que eu devia arcar com as despesas da tua filha?
- Sim. É mesmo isso que te estou a dizer - ronronou ela. E acrescentou: - A Léonie é muito boa nos estudos. Se não fosses tu ela ia ser obrigada a trabalhar.
Assim, acho que será para ti um agradável dever como padrasto mantê-la a estudar.
Ele levou algum tempo a refletir e depois disse: - De acordo, mas tu vais fazer-me o favor de arranjar maneira de eu não andar a tropeçar nela. Detesto ver crianças
a zumbir à minha volta. Como vês, até os meus filhos me incomodam.
Quando foi levar Léonie à estação, para apanhar o comboio que a levaria até Itália, Nadine deu-lhe o dinheiro de Perrin e disse-lhe: - Fica lá o máximo de tempo
que puderes. Eu estou numa encruzilhada: ou te deixo a ti para me casar com ele, ou o deixo a ele para ficar contigo.
- É melhor a primeira - declarou a filha e, da janela da carruagem, despediu-se dela a acenar com o braço.
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Léonie tinha quinze anos quando Nadine Tardivaux se casou com monsieur Perrin e foi viver na villa no meio das vinhas. Ficou grata à filha por não ter imposto ao
marido rico a sua presença e não se sentiu culpada por a ter deixado a viver nas duas assoalhadas da velha casa de Salon, convencendo-se de que aquele era o desejo
de Léonie.
De vez em quando ia ter com ela e oferecia-lhe roupa e perfumes, que a filha aceitava para não lhe desagradar e logo a seguir fechava no armário.
As vezes, a meio da noite, Léonie chorava deitada na cama onde a mãe tinha dormido e sentia-se desesperadamente só no mundo. Agora que estava a ficar uma mulher,
conseguia ser menos severa com Nadine e entendia que ela não podia ter sido diferente daquilo que era, que o seu maior gesto de amor tinha sido decidir dar-lhe vida
e mantê-la consigo. Quanto a educá-la, isso já era uma tarefa demasiado difícil para ela e não foi por acaso que quase a delegou nas duas senhoras de idade que eram
suas vizinhas. Sem se dar conta, Nadine ensinara-lhe que uma vida equilibrada não depende dos homens que se encontram, mas do ritmo que se consegue imprimir à existência.
Nadine não tinha o sentido do ritmo. Léonie possuía-o porque o assimilara durante aquelas férias passadas em Itália com a família Pallavicini. Nessa altura, para
além de tudo, absorvera como uma esponja
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alguns elementos fundamentais para o seu futuro: aprendeu a comportar-se em sociedade e a controlar a sua agressividade. Apercebeu-se das subtis mas intransponíveis
diferenças que separam os ricos dos verdadeiros senhores. Mas sobretudo conheceu uma verdadeira família, à qual gostaria imenso de pertencer. Jurou a si mesma que,
um dia, havia de ter uma assim. Quando regressou a casa, foi à procura de emprego. O chefe da estação dos Correios, que a conhecia desde sempre e era um bom homem,
ajudou-a a preencher uma série de impressos para ser admitida nos serviços. Enquanto esperava uma resposta, a dona do restaurante Le Château ofereceu-lhe um emprego
na cozinha. Uma vez que Nadine estava prestes a casar-se e ela tencionava manter-se sozinha, enfiou a touca e o avental e empenhou-se com toda a alma nos trabalhos
mais humildes que aquele pequeno templo da restauração provençal exigia. Lavava panelas, descascava maçãs e batatas, lavava hortaliça, acompanhava o chefe ao mercado
e transportava os sacos cheios de compras, esfregava os soalhos e as superfícies de trabalho e, à noite, caía na cama vencida pelo cansaço.
Recebeu o seu primeiro ordenado na véspera do casamento da mãe e quis oferecer-lhe o ramo de noiva.
Quando monsieur Perrin foi buscar Nadine para irem à Câmara, onde o presidente os ia casar, Léonie desejou à mãe: - Espero bem que consigas ser feliz. - Disse-lhe
isso porque, intimamente, duvidava que ela o fosse.
Monsieur Perrin quis que os filhos assistissem à cerimónia e Léonie encontrou-os pela primeira vez. Não gostou deles, tal como eles não gostaram dela, mas não ficou
nada preocupada com isso.
No fim do copo dagua, na villa, o padrasto entregou-lhe um envelope com dinheiro.
- É para compor o teu salário - explicou.
Ela agradeceu-lhe e restituiu-lho, apelando às boas maneiras adquiridas em Itália: - Fico-lhe muito grata, mas estou a tentar viver apenas com os meus recursos.
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Disse-lho com o coração leve, até porque a quantia que lhe fora entregue de má vontade era exígua e, de qualquer modo, o seu orgulho impedia-a de aceitar uma ajuda
económica daquele avarento rico.
Algum tempo depois, quando a mãe foi ter com ela, o inverno estava a chegar. Nadine trazia um casaco de vison que pertencera à primeira mulher de Perrin.
- Não posso demorar muito tempo, porque o Jean-Marie quer a minha companhia ao almoço e ao jantar. Entretanto, toma lá estas coisas boas - exclamou, ao mesmo
tempo que punha em cima da mesa da cozinha um caixote cheio de comida. E prosseguiu: - A respeitabilidade tem um preço muito elevado. Tenho de dar uns saltos mortais
para lhe sacar uns trocos, para o convencer de vez em quando a levar-me a Paris ou a ouvir música, à noite, porque gostava de me ter ali no sofá, a fazer tricô,
como fazia a pobre da primeira mulher.
- Se não lhe fizesses companhia ao almoço a ao jantar, o que é que acontecia? - perguntou Léonie.
- Não sei, nem quero saber. Faço-lhe as vontades e, quando estou prestes a explodir, tomo um calmante. Todas as noites adormeço à espera de que o dia seguinte
seja melhor.
Naquele inverno, a velha Thérèse entregou a alma a Deus de repente, quando Léonie se preparava para passar o Natal com ela.
Na primavera recebeu uma carta dos Correios em que lhe era comunicada a contratação para o posto local.
Não deixou o trabalho no restaurante. De dia estava no guichet do posto dos Correios e à noite ajudava o cozinheiro na cozinha do Château.
Mantinha à distância os rapazes de Salon que a convidavam para sair. Às vezes, dizia para si mesma: - Em qualquer parte, neste vasto mundo, está o homem com quem
me vou casar. Como é ele? É louro ou moreno? É bonito ou feio? Como é a sua voz, quais os seus pensamentos? Onde vive neste momento? Estuda ou trabalha? Gosta de
ir ao cinema ou prefere ler? É rico ou pobre como eu? Saberei amá-lo? E ele saberá amar-me?
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Quando algum rapaz chamava a sua atenção pelo aspeto ou pela forma como se exprimia, ela questionava-se: será ele? Mas, ao fim de pouco tempo, o instinto dizia-lhe
que não era aquele o homem que a sorte tinha escolhido para ela.
Um dia, quando estava a trabalhar no guichet dos Correios, monsieur Perrin telefonou-lhe.
- A tua mãe teve um acidente de carro em Avignon. Morreu - anunciou-lhe. E uma vez que ela tinha ficado num silêncio atónito, acrescentou: - Estão a levá-la
agora para a casa mortuária do hospital, no caso de a quereres ver.
O padastro desligou o telefone, mas Léonie continuava a segurar no auscultador, paralisada com uma notícia dada com tanta brutalidade.
Dois dias depois, no fim dos ritos fúnebres, monsieur Perrin, duas vezes viúvo, levou-a à sua villa.
Pelo caminho, disse-lhe: - A Nadine insistiu muito para ter um carro só dela. Eu já a tinha avisado de que era demasiado distraída para se sentar ao volante. Mas
ela não quis saber. E depois, qual era a necessidade de ir a Avignon às compras? Salon não era digna dela? Aquela rapariga estava a ficar muito esquisita, cheia
de pretensões absurdas. Recentemente, andava a insistir para passar o Natal na montanha, porque queria aprender a esquiar. A verdade é que me pregou uma rica partida!
Estou outra vez sozinho e a culpa é dela.
- Não desconfiou nem um bocadinho de que a minha mãe pode ter preferido morrer do que continuar a suportar um marido como o senhor? - perguntou Léonie com
uma voz áspera.
- Se fosses minha filha, dava-te uma bofetada - disse ele, ao mesmo tempo que travava diante da entrada da villa.
- Mas, felizmente para mim, não sou - replicou ela, e saiu do carro.
Aceitara ir até à villa porque o padrasto lhe sugerira que levasse os objetos pessoais da mãe.
Foi com ela até dentro de casa e esclareceu: - Não cries ideias erradas, no caso de estares a pensar que te toca alguma herança.
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A tua mãe não era sequer dona da roupa que usava. De qualquer maneira, podes ficar com ela, e também podes ficar com a roupa interior, cheia de rendas e folhos.
Ela não retrucou e seguiu-o em silêncio até ao quarto sumptuoso e pesado em que Nadine tinha dormido até há dois dias.
Monsieur Perrin deixou-a sozinha e ela olhou em volta. Fitou os perfumes e os cremes de beleza em cima da mesa de toilette, observou a fileira de vestidos pendurados
no armário, sorriu à vista da coleção de bonequinhas em trajes regionais que ocupava o tampo da cómoda, remexeu nas gavetas atulhadas de roupa interior de seda e
descobriu, no fundo de uma destas, um raminho de flores de alfazema e rosinhas brancas secas. Era o seu presente de casamento e Nadine conservara-o com uma pequena
fotografia a preto e branco que a retratava em criança ao lado da mãe.
Uma fotografia de infância com a mãe alcoólica e um raminho de flores eram a ligação de Nadine ao passado, ciosamente escondido numa gaveta, e representavam o seu
mundo afetivo. Léonie pegou na fotografia e nas flores e desceu até ao átrio da villa, onde monsieur Perrin a esperava.
- Estes são os objetos pessoais da minha mãe que levo comigo - comunicou-lhe.
- E o resto todo? - perguntou ele.
- Refere-se às jóias que já pôs a salvo? Ou refere-se ao casaco de vison que foi arranjado e que era da sua primeira mulher? Agradecia-lhe que mandasse alguém
levar-me a casa, porque a camioneta para Salon só passa daqui a duas horas e eu não tenciono ficar aqui mais tempo.
Foi o caseiro que a levou. Quando chegou a casa, Léonie pôs-se a cortar cebolas. Preparou uma sopa saborosa onde afogou algumas fatias de pão torrado e devorou-a.
Aquela foi a sua maneira de dizer adeus à mãe.
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Ainda que muito irresponsável e ausente, Nadine fora, em qualquer caso, um ponto de referência. Pensando bem, Ninette e Thérèse tinham sido amarras mais sólidas,
mas o desaparecimento da mãe fê-la precipitar-se na solidão.
Acabara de completar dezoito anos e não tinha família. Falou com o chefe dos Correios.
- Preciso de uma autorização para me ausentar do trabalho
- disse-lhe.
- Eu entendo. Precisas de te recompor, a mãe é sempre a mãe
- respondeu ele, com uma compreensão paternal. E acrescentou:
- Tira um mês só para ti e eu vou arranjar maneira de receberes na mesma o teu salário.
Na noite anterior, dominada por um grande desânimo, telefonara à sua amiga Daniela para lhe contar os acontecimentos recentes, incluindo o mesquinho comportamento
do marido da mãe. Daniela disse-lhe: - Apanha um comboio e vem para Milão. Ficas connosco algum tempo. - Léonie aceitou imediatamente o convite.
Por isso, respondeu ao chefe dos Correios: - Agradeço-lhe muito. Queria ir a Itália passar duas semanas. - Levantou da sua conta todo o dinheiro que Thérèse lhe
deixara. Não era uma grande quantia, mas bastar-lhe-ia para viver alguns meses.
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Depois foi ao cemitério. A mãe estava sepultada na capela dos Perrin. Na lápide provisória, uma inscrição a carvão referia o nome de Nadine Tardivaux Perrin. Depositou
o bouquet de flores secas que lhe tinha oferecido para o casamento. Rezou uma oração e regressou a casa.
Preparou a bagagem e deixou Salon na manhã seguinte. No comboio, chorou durante muito tempo pela morte da mãe e porque se sentia só e perdida.
Quando chegou à estação de Milão, caíam sobre a grande cidade as primeiras sombras da noite. Daniela estava à espera dela, abraçou-a e mostrou-lhe com orgulho o
seu carro novo.
- Acabei de tirar a carta de condução e garanto-te que sou um ás do volante - disse-lhe, ao mesmo tempo que punha a mala de Léonie no assento traseiro, porque
o porta-bagagens era demasiado pequeno para o tamanho da mala.
- Enchi-a com todos os meus haveres - explicou Léonie. E prosseguiu: - Não penses que quero assentar arraiais em tua casa, mas preciso de ter a minha casa
comigo.
- Léonie, ouve-me, tens de acreditar firmemente que em qualquer caso te espera um futuro melhor, comparado com a vida que tiveste até agora. A minha família
está feliz por te ter aqui e vamos arranjar maneira de te fazer encontrar alguma serenidade - disse para a sossegar, enquanto ziguezagueava pelo meio do trânsito
em direção à via Boccaccio, onde ficava o palacete dos Pallavicini. Depois pô-la a par das novidades.
Contou-lhe que tinha um quase noivo que se formara em Medicina e que estava a fazer a especialização em Oftalmologia.
- Chama-se Damiano. Está a trabalhar com o meu pai. Não vejo chegar a hora de to apresentar. É lindíssimo e muito meigo e eu estou perdidamente apaixonada.
Quanto a mim, e contra a tradição familiar, decidi que vou seguir Arqueologia. Adoro História Antiga e entusiasma-me a ideia de escavar o passado. Mas agora tenho
de me empenhar a fundo para passar o exame de aptidão.
- Então vim só para te fazer perder tempo - concluiu Léonie, desolada.
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- Vieste dar-me uma mão. Ouve, já programei tudo. De dia tenho a escola e, a seguir, o estudo, mas à noite não perco um bom filme ou um dos últimos espetáculos
de teatro. Ao fim de semana esqueço os deveres escolares e divirto-me. Por isso, durante o dia ficas com a minha mãe e depois passamos a noite juntas. Precisas de
aprender melhor o italiano e este mergulho completo em Milão vai dar-te jeito.
Todos a receberam com afeto e Léonie teve a sensação de ter encontrado uma família.
Daniela dividiu com ela o seu quarto e, à noite, antes de adormecerem, as duas raparigas entrelaçavam conversas e teciam sonhos. Não tinham nada em comum, a não
ser o afeto que as unia desde a infância, mas os sonhos de ambas eram idênticos: aspiravam à felicidade, imaginando um futuro rico de aventuras e de amor. Léonie
estava já há duas semanas em Milão quando Daniela lhe anunciou: - Amanhã à tarde, vamos a uma festa numa aldeia dos arredores. Um amigo do Damiano, que se chama
Guido Cantoni, dá uma espécie de receção no parque da sua villa para festejar o primeiro contrato que assinou com a RAI. Escreveu uma novela e vão fazer uma série
para a televisão.
- É algum escritor de sucesso? - perguntou Léonie.
- Francamente, não sei. Sei que pertence a uma família de industriais e conhece o meu namorado dos tempos de liceu. Parece que têm uma casa e um parque fantásticos.
Vamos divertir-nos - garantiu Daniela.
Naquele dia, Guido e Léonie conheceram-se e ela nunca mais voltou a França.
Léonie vestia uma saia rodada de um bonito azul-escuro intenso e uma blusa verde-esmeralda que lhe realçava o rosto dourado e os cabelos escuros e curtos. Mais do
que com a silhueta franzina, a cintura fina, os seios quase impercetíveis, Guido ficou impressionado com os traços do seu rosto, que eram doces e decididos ao mesmo
tempo, e com o seu olhar vivo e inteligente.
- Então és tu a rapariga da Provença de quem o Damiano me falou.
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- Mais do que da Provença, eu diria que da província, porque é isso mesmo que eu sou, e em todos os sentidos - confessou Léonie, ao mesmo tempo que as suas
faces se coloriam de um rubor delicioso.
- Nunca percas essa ingenuidade tão autêntica.
- Ainda que isso acontecesse, tu não chegarias a sabê-lo, por que regresso a Salon daqui a poucos dias - replicou.
- Salon? Onde fica?
- Na rica, fértil e encantadora Provença.
- Que eu conheço por a ter visitado várias vezes quando estudava a história dos papas e dos reis de França. Mas não me lembro de nenhuma Salon.
- E como é que podias? Os de Avignon desprezam Salon, o sítio mais feio da Provença - respondeu ela.
- E tu queres deixar a Itália para regressar a esse lugar?
- Não quero, mas devo.
- Porque tens a família à tua espera - deduziu ele.
- Não tenho família, mas apenas um emprego.
- Encontramo-nos uma destas noites - propôs Guido, sem indagar mais nada.
Léonie observava com curiosidade as amigas e os amigos de Daniela e media a distância que a separava deles. Vestiam-se e tinham uma maneira de estar muito diferente
da dela. Algumas raparigas olhavam-na de soslaio, como que para a avaliar, fazendo-a sentir ainda mais embaraçada. Só o jovem anfitrião, com a postura de um verdadeiro
senhor, se tinha aproximado dela com verdadeiro interesse. Enquanto se dirigiam a Villanova, o namorado de Daniela informara-a sobre os Cantoni e, ao referir-se
a Guido, dissera: - Há um ano saiu de uma relação devastadora, e ainda está a lamber as feridas.
Agora observava-o enquanto ele dialogava com um casal de jovens muito desenvoltos.
- Se me dá licença, devo dizer que a menina é a mais graciosa das convidadas - disse uma voz atrás dela.
Virou-se de repente e viu um empregado que lhe estendia um tabuleiro com copos de bebidas frescas.
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- É muito simpático, monsieur - respondeu Léonie, corando.
- Sou o Nesto e estou ao serviço desta família desde sempre, peço desculpa por me ter atrevido a fazer-lhe um cumprimento. E agora sugiro-lhe esta bebida,
feita com os morangos do nosso jardim - disse o homem.
Daniela foi ter com ela e deu-lhe o braço.
- Impressionaste o Guido - sussurrou-lhe com um ar malicioso.
- A sério? - perguntou Léonie, fingindo indiferença.
- Está a falar de ti com o meu namorado. Poucos meses depois, Guido e Léonie casaram-se.
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A ecografia revelou que o quarto filho de Léonie era uma rapariga.
- Gostava de lhe chamar Daniela - disse ao marido. Algum tempo atrás, uma doença incurável matara a sua
amiga. Agora parecia-lhe que dar o seu nome à filha era uma maneira de recordar uma pessoa que estivera perto dela nos anos difíceis e que provocara uma viragem
decisiva na sua vida.
- Tinha pensado chamar-lhe Giacinta, porque tu gostas de jacintos e são muito delicados e perfumados. Daniela podia ser o segundo nome. O que achas?
Léonie não estava com vontade de discutir, até porque, durante aqueles dias, andava bastante irritável. Até o sogro se apercebera do seu nervosismo e lhe conhecia
a causa.
Léonie discutira com ele durante muito tempo no sentido de fazer da Fábrica de Torneiras Cantoni uma marca moderna de excelência.
Por isso tinha falado com um arquiteto famoso para que projetasse uma linha de torneiras inovadoras. Dali saíra um protótipo em aço escurecido e acrílico, à prova
de calcário, muito original e extremamente funcional. Nascera também a ideia de substituir as bichas dos chuveiros, demasiado sujeitas ao desgaste,
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por cânulas transparentes como vidro. Testaram-nas com algumas empresas produtoras de artigos sanitários ultramodernos, que acolheram o protótipo com entusiasmo.
Faltava apenas fazer uma sondagem de mercado para perceber o nível de satisfação dos distribuidores. E foi então que o Dr. Panizza, o diretor da área comercial,
disse: - Não vale a pena deitar dinheiro fora numa sondagem. Estas coisas de designer só podem ter nichos de mercado e duvido que consigamos cobrir as despesas.
Léonie ouvia sempre com muita atenção o parecer de toda a gente e não pôs em causa a experiência de um técnico como Panizza. O seu ponto de referência, em qualquer
caso, era o sogro, ao qual apresentou as dúvidas do diretor comercial, um homem já entrado nos anos e próximo da reforma.
- Tu acreditas nesta nova linha? - perguntou-lhe Renzo Cantoni.
- Imenso.
- Porquê?
- Porque gosto dela. Se tivesse uma casa nova, decorada de uma determinada maneira, também queria umas torneiras como estas - explicou ela.
- O Panizza também se pôs com coisas quando passámos das duas válvulas, a da água quente e a da água fria, ao misturador. Se fosse por ele, só produzíamos
os modelos Old England.
- De facto, eu queria chamar New Generation a esta linha. Mas, se bem entendo, o senhor também não está muito entusiasmado.
- Pediste-me carta branca e eu fiz-te a vontade - disse ele, com o ar de um avô que concede um copo de Nutella ao netinho.
- Assim, se correr mal, a culpa é só minha. Mas se correr bem, o mérito é de toda a gente - rebateu Léonie, em tom agressivo. E, quase como se quisesse acusá-lo,
perguntou: - Porque é que não se assume? Primeiro, sublinha que o diretor comercial está ancorado na tradição e, logo a seguir, vai apalpar terreno porque a minha
ideia poderia ser um fracasso. Esta empresa é sua. Porque é que não me dá a sua opinião?
- Desde quando te tornaste desconfiada?
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- Desde que o senhor não apoiou esta minha ideia, que eu me recuso a avançar sem uma sondagem de mercado, caramba!
- Estás com a cabeça quente e isso não é um bom método de trabalho. Discutiste com o meu filho?
- Não, mas não me admirava nada se agora o senhor viesse com a história dos humores uterinos das mulheres. Pois bem, não vou cair na sua armadilha.
Estava furibunda, e quando saiu do escritório teve de se controlar para não bater com a porta.
Quantas vezes, ao longo do tempo, tinha assumido as suas responsabilidades sem pestanejar? Nunca tivera qualquer discussão com o sogro. O que é que lhe estava a
acontecer? Em vez de regressar ao escritório, saiu da empresa, meteu-se no carro e voltou para casa, a tempo de resolver uma discussão entre Giuseppe e Gioacchino
que disputavam um brinquedo, enquanto a pequena Gioia estava lavada em lágrimas porque os dois irmãos, no meio da discussão, tinham partido a sua boneca preferida.
Quando Léonie entrou no quarto dos brinquedos, foi só um lamento de "mamã, ele é mau", "maman, tens de o mandar para a cama sem jantar", "Léonie, regarde ma pauvre
poupée!"
Gioia tratava-a por Léonie, assim como tratava o pai por Guido, e não havia maneira de a corrigir. Também se obstinava a falar francês, afirmando não entender o
italiano.
Ersilia, a decana das empregadas, estava pacificamente sentada na poltrona a fazer malha e observou: - O melhor é deixar as crianças brincarem, porque assim à noite
tombam de cansaço.
- Então, logo à noite não há creme de caramelo para os dois meninos por terem partido a boneca da Gioia, e nem para ti, pestinha, porque insistes em não falar
italiano - decretou Léonie, e foi-se embora, ignorando os protestos dos filhos.
Subiu até ao quarto, despiu-se e vestiu o fato de banho e o roupão. Depois desceu à cave. Atirou-se à piscina e começou a nadar.
Fez umas dez piscinas até se sentir mais relaxada. Então, imprimiu um ritmo lento às braçadas e, finalmente, içou-se para
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a beira da piscina. Quando regressou ao quarto, acariciou com ternura o ventre que ia aumentando e murmurou: - Fica sossegada, minha menina. Agora a tua mãe já sabe
exatamente o que vai fazer, se por acaso te der na cabeça nascer depois da primeira metade de dezembro.
Era aquela a inquietação secreta que surgira no momento em que tomou consciência de que, se desse à luz nas proximidades do seu encontro com Roger, não poderia ir
ter com ele e ele ia elaborar sabe-se lá que pensamentos aterradores. Partindo do princípio de que Roger ia comparecer ao encontro, como sempre. Passou os meses
que a separavam do parto a trabalhar na empresa e a tratar dos filhos. Guido, que tinha retomado o seu trabalho criativo a tempo inteiro, regressava de Roma para
os fins de semana e, quando não podia fazê-lo, Léonie ia ter com ele e levava as crianças, que já se tinham habituado às deslocações de avião e tiranizavam as hospedeiras
com pedidos contínuos de jogos e rebuçados.
Também Guido reencontrara a serenidade e se tornara mais afetuoso. Envolvia-a no seu trabalho, como nunca antes tinha acontecido, e a sua nova casa de produção de
filmes e séries televisivas estava a compensá-lo dos investimentos iniciais.
- Gosto de pensar que os nossos filhos, quando crescerem, vão poder escolher entre as torneiras e o cinema - disse um dia a Léonie.
- Se saírem a mim, vão adorar as torneiras - decidiu ela.
- Mas também podem querer fazer uma coisa totalmente diferente.
- E nós vamos fazer-lhes a vontade, como o teu pai fez contigo.
- O meu pai substituiu-me na empresa por uma rapariga francesa com muita garra. Uma sorte assim não se vai repetir duas vezes.
- Isso quer dizer que tu vais acabar com o cinema, eu vou acabar com a empresa e, juntos, vamos dar a volta ao mundo projetou Léonie.
- Vai ser uma volta compridíssima. Vamos fazê-la durar vários anos, com longas paragens nos sítios que mais nos agradarem - disse Guido.
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- Mas os meninos vão dar-nos netos. Não achas que também devíamos assumir o papel de avós? - objetou Léonie.
- Eu já estou a fazer a minha parte como pai. Nos nossos netos, que pensem os pais deles.
Léonie deu uma gargalhada franca.
- Nós ainda não acabámos de fazer filhos e já estamos a preocupar-nos com os filhos dos nossos filhos.
- Gosto de fantasiar à volta destes monstrinhos que amamos tanto, a quem damos tudo porque, no seu infinito egoísmo, querem tudo. E gosto que me roubem tempo,
amor e pensamentos - disse Guido.
Léonie adorava aqueles momentos tranquilos que passava com o marido.
A pequena Giacinta escolheu o primeiro dia do solstício de inverno para nascer. Léonie tinha entrado na clínica na noite do dia vinte e um de dezembro, já cheia
de dores.
- Ainda não fez a dilatação - constatou o obstetra. E esclareceu: - Acho que até amanhã de manhã não vai acontecer nada.
Apesar das dores e da náusea, Léonie insistiu com o marido e com o sogro, que tinham ido com ela, para que regressassem a casa.
- Eu ligo-vos antes de entrar em trabalho de parto. Agora quero descansar - disse.
Não dormiu em toda a noite. De manhã, o médico foi vê-la outra vez e decidiu: - Vou pôr-lhe soro para acelerar a dilatação.
Quando a enfermeira entrou no quarto para lhe administrar a solução prescrita, Léonie pediu-lhe para esperar uns minutos e telefonou para Varenna, para o Hotel du
Lac.
- O Dr. Bastiani ainda cá não está - respondeu a proprietária do hotel.
- Quando ele chegar, diga-lhe por favor que estou na clínica Mangiagalli e que vou dar à luz o meu quarto filho.
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Era a noite de vinte e dois de dezembro. Apesar de exausta, Léonie estava feliz por ter à sua volta toda a família. A pequena Gioia tinha adormecido em cima da cama
ao lado dela. Giuseppe e Gioacchino jogavam às escondidas e, de vez em quando, aproximavam-se do berço de Giacinta para perscrutar com desconfiança a nova irmã que,
na opinião deles, era tão feia "que mais feia não pode haver".
Com os gritos deles já a tinham acordado duas vezes, e não adiantava que Guido os ameaçasse com castigos muito severos. Ao fim de alguns instantes de silêncio, a
exuberância dos rapazes acabava por vencer.
- Eu vou para casa e levo embora estes dois desgraçados decidiu o avô Cantoni, dando como certo que Guido ia ficar na clínica mais algum tempo e se encarregaria
de Gioia, que continuava a dormir.
Também a pequena Giacinta tinha adormecido, e, assim, Guido e a mulher saborearam, finalmente, o silêncio, apesar de saberem que não ia durar muito tempo.
- Sabes que só me vão tirar os pontos no dia 26? - disse Léonie.
- Falei com o médico e já sei tudo. Não te importas de passar o Natal aqui? - perguntou o marido.
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- Será um Natal diferente do costume. Promete-me que não vais ter nenhuma ideia estranha.
- Tipo montar aqui a mesa de Natal?
- Leste-me o pensamento.
- Não vais sentir a falta da família no dia de Natal?
- Não, não te preocupes, deixo-te a ti o privilégio de gerir, por uma vez, crianças e parentes. Em casa já deixei preparados os presentes para todos. Só tens
de os pôr debaixo da árvore e ler os bilhetes. Peço-te por favor, porque preciso mesmo de descansar. Vão ser as minhas primeiras férias desde agosto - afirmou ela.
- Sabes que nos vais fazer imensa falta.
- Não tenho a certeza de poder dizer a mesma coisa de vós - replicou Léonie, em ar de brincadeira.
- Nem sequer vais sentir a minha falta? - perguntou Guido, desconfiado.
- Espero que possas cá vir, já sabes. Mas só tu. Desta vez estou mesmo cansada. É como se tivesse escalado uma montanha.
- Vi-te sofrer muito enquanto este quarto monstrinho nascia, e acho que chegou o momento de parar. Quatro filhos devem chegar.
- Também disseste a mesma coisa quando nasceu a Gioia. Mas depois...
Quase como se tivesse ouvido que falavam dela, a menina arregalou os olhos de repente, olhou em volta e depois sorriu, dizendo: - Bonsoir, maman, bonsoir, papa.
Onyva? - e sentou-se na cama.
Naquele mesmo instante, Giacinta agitou-se no berço, exibiu-se numa série de caretas assustadoras e depois começou a chorar.
- Fim da pausa de relaxamento - constatou Guido, ao mesmo tempo que pegava em Gioia ao colo. Uma enfermeira surgiu à porta do quarto e disse: - Esta chorona
tem um relógio incorporado. São mesmo horas da mamada.
Empurrou para dentro do quarto o carrinho com toda a parafernália de fraldas, toalhitas e cremes para mudar a recém-nascida.
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- Mas porque é que tu estás a gritar? Queres fazer concorrência à Callas? - brincou a enfermeira, enquanto cuidava de Giacinta com a destreza de um prestidigitador.
- Ah, quelle est agaçante - queixou-se Gioia, a olhar para ela.
- Vemo-nos amanhã de manhã - anunciou Guido, ao mesmo tempo que se inclinava para a mulher. Deu-lhe um beijo nos lábios e foi-se embora com a filha.
- Finalmente sós - disse Léonie, satisfeita, enquanto oferecia o seio à recém-nascida, que cheirava a pó de talco.
A presença dos outros, mesmo a dos filhos, impedia-a de usufruir plenamente de todo o prazer que lhe vinha da comunhão com a filha que acabara de nascer, e era por
esta razão que esquecia imediatamente as dores lancinantes do parto. Uma beatitude semelhante acompanhava-a durante todos os meses do aleitamento, e só quando iniciasse
o desmame é que esta necessidade de intimidade se diluiria num tranquilo amor maternal.
Desta vez, o parto coincidira com o encontro em Varenna, e a felicidade de ter nos braços a sua pequenina impedira-a de sofrer por esse encontro falhado com Roger.
Sorriu ao recordar as suas palavras: "Por favor, não dês à luz o quarto filho perto do nosso próximo encontro." Ia haver um ano inteiro de espera até ao dezembro
seguinte, mas tinha valido a pena saltar aquele encontro, porque a conceção de Giacinta coincidira com o primeiro momento de verdadeiro diálogo entre ela e Guido.
Aquele marido sereno e misterioso tinha-lhe finalmente falado de si e era disso que ela estava à espera desde o primeiro dia do casamento.
Quando a pequenina se afastou do seio, Léonie instalou-a no berço, voltou para a cama e adormeceu com um sorriso nos lábios.
Pouco depois, Roger surgiu à porta do quarto.
Tivera um dia bastante movimentado. Ao chegar a Varenna, a dona do hotel transmitiu-lhe a mensagem de Léonie.
- Oh, não, outra vez! - exclamou a sorrir, e pensou que em todo o mundo não havia mulher mais imprevisível e divertida do que Léonie.
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Naquele momento decidiu que ia aproveitar o dia livre para esquiar, alugando uns esquis, porque não tinha levado os dele. Mas depois sentiu a urgência de a ver,
de saber se o parto tinha corrido bem.
Meteu-se no carro e seguiu a estrada para Milão. Parou para almoçar num pequeno restaurante com boa comida caseira que lhe fora sugerido por um colega de Milão.
Antes de se sentar à mesa, consultou a lista telefónica da cidade, encontrou o número da clínica e ligou para a central.
- Preciso de enviar umas flores à signora Tardivaux. Pode dizer-me o número do quarto?
Depois do almoço, com a ajuda de um mapa, chegou às proximidades da clínica, estacionou o carro e deu uma grande volta a pé pelas ruas do centro, tomadas pelo trânsito
natalício. Por fim regressou à clínica, subiu ao terceiro andar e sentou-se numa salinha de espera que ficava exatamente em frente ao quarto de Léonie.
Daquela posição privilegiada, observou as pessoas que entravam e saíam do quarto.
Assistiu à procissão de ramos de flores que eram entregues pelos funcionários e, pouco depois, eram trazidos novamente para fora pelas enfermeiras.
Viu um homem de ar aristocrático que saiu do quarto com uma menina e deduziu que fosse o marido de Léonie com a terceira filha.
Era já tarde quando as entradas e saídas do quarto cessaram. Então, com o coração aos saltos de emoção, entreabriu a porta e viu Léonie e a recém-nascida no berço.
Dormiam as duas profundamente. Gostaria de lhe acariciar o rosto, de a beijar na testa, mas teve medo de a acordar. Estava bem, e isso era quanto lhe importava saber.
Então, em bicos de pés, saiu do quarto, da clínica, da cidade, do mundo de Léonie e procurou um hotel para dormir. Regressaria a Marselha no dia seguinte.
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Era um daqueles dias de fevereiro que anunciam a chegada da primavera, apesar de o vento norte se cravar no rosto com as suas agulhas de gelo. A natureza estava
prestes a despertar do longo período de hibernação.
O velho Nesto já tinha chamado um especialista e subira com ele ao telhado da villa para verificar os danos causados pelos abundantes nevões de janeiro. Mandaram
vir um serralheiro, um canalizador e um eletricista. O decorador recebeu o encargo de fazer um orçamento para a substituição de alguns papéis de parede e a renovação
das cortinas. O carpinteiro verificou a necessidade de remoção de alguns tacos dos soalhos mais antigos e o marceneiro decidiu restaurar um teto de madeira.
- Chegou o momento de mandar embora o inverno - dizia Nesto que, no meio daquela confusão, se movia com a agilidade de um rapazinho.
Léonie retomara gradualmente o trabalho na empresa, e Guido recomeçara o vaivém entre Villanova e Roma.
Giuseppe, que já andava na primeira classe, regressou da escola lavado em lágrimas porque os colegas lhe tinham dito que era um "abastado".
- Como é que foi isso? - indagou Guido.
- Disseram à professora - contou o menino.
- E ela?
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- Respondeu que há quem nasça abastado e quem não nasça, e que ser abastado não é mal nenhum.
- Sabes o que significa essa palavra?
- É assim como ser atrasado? - perguntou Giuseppe.
Foi precisa toda a paciência de Guido para lhe explicar que abastado não era um insulto, que os colegas da escola apenas estavam a tomar consciência da realidade
e das diferenças que havia entre eles. Daí constatarem que ele era rico, ou seja, abastado, outros eram menos do que ele, e outros ainda eram pobres. Guido acrescentou
que aquela disparidade era injusta, e que, por isso, quem possuía mais tinha o dever de ajudar quem era menos afortunado. Concluiu a explicação contando a Giuseppe
que os Cantoni, por tradição, ajudavam as famílias com dificuldades, os idosos indigentes e as crianças pobres, oferecendo trabalho, acolhendo os velhos na casa
de repouso e as crianças na creche que Léonie decidira criar. Giuseppe sossegou. Também Gioacchino tinha os seus problemas. Gostava de brincar com as bonecas da
irmã e, apesar de se engalfinhar com o irmão mais velho, fugia das brigas com os colegas e acabava sempre por sucumbir perante a prepotência dos amigos.
Gioia continuava a ser um mistério. Era muito teimosa, insistia em não falar italiano e, às vezes, fingia até que não o entendia. Não havia castigo nem adulação
que conseguissem demovê-la da sua posição e Léonie começava a pensar que talvez fosse caso para a confiar a um psicoterapeuta infantil, enfrentando a oposição de
Guido e do sogro, firmemente convencidos de que não era preciso recorrer a um médico por causa de um capricho que acabaria por desaparecer com o tempo.
- Eu tive uma mãe com problemas sérios e posso garantir-vos que a Gioia é perfeitamente equilibrada. De resto, pobre criança, com aquele nome tão exigente
que lhe puseram, que mais poderia ela fazer senão causar preocupações, só para vos contrariar? - sentenciou o avô, dando o assunto por encerrado.
1 A palavra Gioia significa alegria. (N. da T.)
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Um dia, enquanto dava de mamar a Giacinta, Léonie disse a Guido: - Sabes que o teu pai anda um bocado estranho há algum tempo?
- Em que sentido? - perguntou ele.
- Renovou o guarda-roupa e, francamente, não acho que tivesse necessidade. Mudou a marca da eau de toilette... usa uma inglesa. Tu estás em Roma cinco dias
por semana e não te podes aperceber, mas acontece que à noite, depois de sair do escritório, em vez de regressar a casa, vai jantar fora e não é em trabalho, porque
se fosse eu sabia. E depois há outros sinais que uma mulher percebe logo - revelou Léonie, divertida.
- Terá uma amante? - perguntou Guido, quase com relutância.
- E se tivesse, querias saber?
- Eu não. E tu?
- Também não. São assuntos dele, e, para além do mais, é viúvo e tem todo o direito de ter uma companheira. No entanto... se andasse aí com uma mulherzinha
interessada no dinheiro dele... - insinuou ela.
- Disseste bem: o dinheiro dele, não o nosso. No entanto... o dinheiro não é exclusivamente dele. Há uma empresa que é de todos nós. Mas também, digo eu,
o pai sempre foi um homem muito ponderado e realista, se calhar estamos a imaginar coisas, apenas por pequenos indícios que só tu captaste - comentou Guido e, logo
a seguir, acrescentou: - Será que falas por experiência?
Léonie não se descompôs. Dirigiu-lhe um olhar plácido e disse: - Espero que o comentário seja uma brincadeira, ainda que de péssimo gosto.
Tanta tranquilidade vinha-lhe da convicção de que a sua história com Roger não interferia de maneira nenhuma na sua vida conjugal, não só porque se encontrava com
ele uma única vez por ano, e até faltara ao último encontro, mas porque o sentimento que experimentava por ele nada tinha a ver com o afeto profundo que a ligava
ao marido.
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Guido, por sua vez, depois das informações tranquilizadoras da detetive de Milão, decidira não fazer perguntas a Léonie, que como mulher e como mãe era de facto
irrepreensível. Por isso, respondeu: - Para alguém que escreve diálogos, o comentário é verdadeiramente péssimo. Tens razão. Para me penitenciar, esta noite convido-te
para ir ao teatro. Temos o Pavarotti no Scala. Tu gostas da ópera: é La Bohème, uma obra-prima.
Foi assim que, naquela noite, se sentaram na plateia ao lado de Renzo Cantoni, que era acompanhado por uma bonita senhora entre os quarenta e os cinquenta anos,
que Renzo, com algum embaraço, apresentou ao filho e à nora.
Chamava-se Violetta Bianchi Clementi e era dona de uma loja de antiguidades na via Bagutta.
- Acertaste na mouche - sussurrou Guido ao ouvido da mulher.
- Parece-me muito comme ilfaut - constatou Léonie.
- Quanto mais não seja, não é uma menina de vinte anos comentou o marido.
Pior, pensou ela. Era uma senhora com muita graça, com um porte elegante e um trato refinado. Era, em suma, uma mulher capaz de fazer perder a cabeça a um viúvo
solitário.
Mais tarde, quando se encontraram no foyer do teatro, durante o intervalo do primeiro ato, Renzo sentiu-se na obrigação de explicar ao filho: - É apenas uma amiga.
Foi o meu irmão que ma apresentou, quando decidiu comprar um retábulo para a igreja e quis que eu o ajudasse no negócio. Eu não estava com vontade de falar desta
amizade, que é muito gratificante para mim.
- Porque não a convidas para nossa casa? - perguntou Guido.
- Porque não quero complicar uma coisa que, pelo contrário, é muito simples - rematou o pai, e considerou o assunto encerrado.
Alguns meses depois, a meio da noite, a signora Violetta Bianchi Clementi telefonou para a villa para dizer que Renzo Cantoni ia ser transportado para o Serviço
de Urgência do Hospital Policlínico porque se tinha sentido mal.
Aquele foi o primeiro enfarte do miocárdio que obrigou Renzo a um longo internamento e o privou da relação que ele tentara fazer passar por uma simples amizade.
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- Não quero visitas de funcionários, mas espero que me mantenhas informado sobre tudo - disse Renzo Cantoni à nora, que andava num vaivém entre a empresa e o hospital.
Guido passava o seu tempo à cabeceira do pai e só voltava para casa à noite.
Agora que Renzo saíra dos Cuidados Intensivos, insistia em regressar à fábrica, mas os médicos tinham sido categóricos: se queria que as coisas corressem bem, tinha
de se conformar com um internamento bastante longo. Na fábrica toda a gente dava por certa a presença de Léonie em substituição do patrão e dirigiam-se tranquilamente
a ela para apresentar os problemas que se afastavam da rotina. Ela ouvia e replicava: - Vou expor a situação ao meu sogro e depois digo alguma coisa.
Na realidade, não lhe falava de tudo. Muitas vezes refletia sobre a melhor solução e decidia sozinha.
Observando o seu dinamismo, Guido perguntava-lhe por vezes onde encontrava tanta energia para acompanhar ao mesmo tempo a pequena Giacinta, os outros três filhos
e o andamento da empresa. Ela sorria e respondia: - Sou uma mulher. É só esse o segredo. Otimizo o meu tempo e tento fazer tudo com satisfação.
Acabada de chegar a casa ao fim de duas horas passadas no escritório, enfiou-se no quarto de Giacinta, que chorava a reclamar
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de fome. Deu imediatamente o peito à menina e, enquanto ela sugava o leite com avidez, Nesto apareceu à porta do quarto.
- A signorina Mombelli pede para lhe falar - anunciou, ao mesmo tempo que lhe estendia um telefone portátil maciço e pesado, uma novidade da tecnologia telefónica.
- Se a empresa não estiver a arder, falamos mais tarde - disse Léonie, antes que a secretária do sogro conseguisse falar com ela.
- Tomei a liberdade de a incomodar porque há uma certa agitação no gabinete do pessoal - explicou a signorina Mombelli.
Por aqueles dias, o chefe do pessoal estava em Turim a fazer um curso de atualização, e se a signorina Mombelli tinha telefonado isso significava que havia um problema
urgente a resolver.
- Então vamos deixar acalmar os ânimos. Eu vou aí à tarde - respondeu, e desligou a chamada.
Imaginou que estivesse em curso uma discussão entre funcionárias que a signorina Mombelli não sabia como gerir. Enquanto continuava tranquilamente a dar de mamar
à filha, Léonie recapitulou a situação daquele gabinete, dirigido por um homem jovem, o Dr. Luigi Stucchi, que era bastante atraente e casado. As empregadas, seis
ao todo, competiam para receber dele um sorriso ou um cumprimento que ele de vez em quando distribuía, totalmente desconhecedor das expectativas que elas cultivavam:
jovens, bonitas e apaixonadas pelo chefe.
O trabalho de diretor do pessoal era tudo menos simples. O Dr. Stucchi, licenciado numa das melhores universidades de Milão e com dois mestrados realizados, um em
Itália e outro no estrangeiro, afirmava: - É mais simples gerir trezentos operários do que três funcionários.
Léonie aprendera a conhecer bem uns e outros e estava de acordo com Stucchi.
No entanto, talvez por ser mulher, talvez porque conseguia perceber as frustrações daquelas funcionárias que levavam uma vida muitas vezes difícil, há muito tempo
lhe tinha sido reconhecido o papel da autoridade maternal e era chamada para resolver controvérsias e encontrar soluções adequadas.
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Assim, depois da pequena Giacinta ter acabado de mamar, pegou nela ao colo enquanto lia uma história a Gioia, que a interrompia a cada linha com uma série infinita
de "porquês": porque é que o dragão mau mantém prisioneira a princesa bonita? Porque é que o jovem cavaleiro não usa a pistola em vez da espada para matar o dragão?
Porque é que o dragão não tem uma namorada?
Quando Giacinta adormeceu, entregou-a à empregada e desceu para almoçar com Gioia. Giuseppe comia na escola e Gioacchino no infantário. Depois meteu a terceira filha
na cama para a sesta da tarde e regressou à empresa.
- A Rovani e a Isgrò pegaram-se e o contabilista Picchi, ao tentar separá-las, levou com um agrafador no nariz, que começou a sangrar; agora está com um nariz
que parece um tomate contou-lhe a signorina Mombelli, assim que Léonie pôs o pé no escritório.
Ela conhecia as duas adversárias, ambas bonitas e com muita vontade de brilhar. A Rovani trabalhava na empresa há cinco anos e considerava-se a rainha de beleza
do gabinete do pessoal. A Isgrò fora contratada há poucos meses e como, para além de bonita, era também agressiva, tinha decidido usurpar à outra o papel de prima-dona.
Detestaram-se imediatamente, encetando uma luta feita de ofensas mesquinhas. Estavam ambas apaixonadas pelo Dr. Stucchi.
- A Rovani chamou puta, desculpe a palavra, à Isgrò, que a tinha definido como uma solteirona frustrada que só sabia fazer de espia com o chefe de gabinete.
Depois do ferimento do contabilista Picchi, chamei o segurança para as separar. A história é grave, minha senhora - disse a secretária.
Léonie perguntou a si mesma se haveria razões suficientes para a apresentação de uma queixa por parte do contabilista Picchi e chamou-o ao seu gabinete.
O nariz parecia realmente um tomate; no entanto, uma vez que trabalhava para os Cantoni há trinta e cinco anos, o homem minimizou o sucedido.
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- Eu estava mesmo a pedi-las. A gente nunca se deve meter entre duas mulheres que se detestam. O problema é que tinham chegado a vias de facto - explicou
o velho funcionário.
- Portanto, não quer apresentar queixa? - perguntou Léonie.
- O bom nome da empresa ia ficar envolvido - respondeu
ele.
- O que sugere? - perguntou ela, sabendo que havia matéria para o despedimento imediato das duas.
- Vou tentar não perder duas ótimas funcionárias. Mas é preciso separá-las, pô-las em dois gabinetes diferentes - aconselhou Picchi.
Léonie agradeceu-lhe e, depois de ele ter saído, mandou chamar as duas funcionárias.
Ficaram em pé à frente dela, que estava sentada à secretária e não as convidou a sentarem-se. Olhou-as nos olhos, com um rosto de pedra, sem proferir uma palavra.
Foi a Isgrò quem cedeu primeiro. - Estou despedida? - murmurou. Era uma calabresa rude e muito direta, que sabia bem o que significa ficar sem trabalho.
Léonie não lhe respondeu.
- Sinto muito. Não queria ferir o contabilista Picchi - desculpou-se a Rovani.
Léonie continuava calada, enquanto as duas permaneciam imóveis diante dela.
Quando as duas estavam já quase a chorar, Léonie disse: - É mesmo lamentável que duas raparigas tão bonitas e tão boas funcionárias tenham tão pouca confiança em
si mesmas a ponto de se pegarem à pancada, transformando-se em dois seres irracionais. Ninguém vos ensinou como é importante a solidariedade entre mulheres? Até
no trabalho conseguiríamos ser melhores do que os homens, se soubéssemos apreciar-nos mutuamente. Depois daquilo que fizeram, podíamos despedir-vos ou transferir-vos
para outras secções, mas eu vejo uma terceira possibilidade: vão continuar as duas a trabalhar no mesmo sítio, pondo
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de lado as hostilidades. Daqui a um mês vou saber que decisão tomar em relação ao vosso futuro.
Olhou para o relógio. Tinha de regressar a casa para dar o leite à menina e depois ir a correr buscar os filhos à escola. Levantou-se e saiu do gabinete sem se despedir.
No dia seguinte, a situação estava tranquila e entre o pessoal circulava a opinião de que "a senhora" era uma pessoa imparcial, quase melhor do que o patrão.
O nariz do contabilista Picchi já estava a desinchar e Renzo Cantoni ficou às escuras relativamente a um episódio que o teria inquietado.
VARENNA
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Léonie partiu de Villanova debaixo da neve que começara a cair na noite anterior, cobrindo com o seu manto branco o campo e a estrada por onde seguia.
À medida que se aproximava do lago, a neve tornava-se mais pesada e molhada. Em Varenna chovia e os pneus de neve do carro faziam ruído sobre o asfalto.
Conseguiu controlar a ansiedade quando a proprietária do hotel a recebeu com um sorriso.
- O doutor Bastiani ainda não chegou, mas o vosso quarto está pronto. Quer subir? - perguntou.
Não via Roger há dois anos e estava à espera de que ele já ali estivesse há horas.
- Prefiro ficar no bar, se me arranjar um chá bem quente disse, sufocando a desilusão. Foi sentar-se diante da grande janela
)batida pela chuva, perguntando a si mesma por que razão ele não estaria ainda ali.
Desapertou o blusão sem o tirar porque sentia frio e porque aquele lugar, sem Roger, já não lhe parecia tão acolhedor. Ainda não chegou nem sequer telefonou. Porquê?,
perguntou a si mesma.
E se estivesse doente? Mas afastou rapidamente aquela hipótese, porque em qualquer caso ele teria arranjado maneira de a avisar, tal como ela fizera no ano anterior,
quando estava na clínica a ter a filha.
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Talvez tivesse morrido... Roger tinha morrido há um ano e ela não sabia de nada. A fantasia, que começara a correr sobre o plano inclinado da tragédia, deu-lhe uma
sensação de sufoco e nem se apercebeu de que o empregado tinha pousado a chávena e o bule em cima da mesa. Acalmou-se e só recuperou o sorriso quando uma mão lhe
afagou os cabelos com ternura e uma voz conhecida disse: - Bonjour, Léonie.
Ela levou as mãos ao rosto e deixou escapar um soluço.
Roger, em pé atrás dela, abraçou-a ao mesmo tempo que se debruçava sobre ela para lhe murmurar: - Ssssst, estou aqui, meu amor.
- Deixa-me ver-te - disse Léonie.
Roger contornou a mesa e pôs-se à frente dela.
- Estás bem? - perguntou-lhe.
Ele sorriu e respondeu: - Ótimo. Venho de Veneza e, por alturas de Brescia, o meu carro avariou. Deixei-o a um mecânico e tive sorte porque me arranjaram logo um
carro com motorista. Esperava chegar, como sempre, antes de ti, mas com esta neve as estradas estão impraticáveis. Cheguei escandalosamente atrasado. Desculpa.
- Estou feliz por estares aqui.
- Bebe o teu chá, antes que arrefeça.
Encheu-lhe a chávena, depois ajudou-a a tirar o blusão e, finalmente, sentou-se à frente dela, a observá-la.
- Estás outra vez grávida? - perguntou, enquanto Léonie ia tomando a bebida quente, cor de âmbar.
- Não, mas só vamos poder estar juntos pouco tempo, porque é o aniversário da minha pequenina - anunciou Léonie.
- Eu sei - anuiu Roger.
Naquela manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço com o marido e os três filhos mais velhos, Guido tinha olhado para ela com curiosidade.
- Passa-se alguma coisa? - decidiu perguntar-lhe.
- Estava a pensar o que é que organizaste para o aniversário da Giacinta - disse ele.
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- Só um bolo com uma velinha, muito sumo de laranja e um tapetinho de borracha que tem desenhadas as teclas de um piano. Quando se anda em cima dele, toca
- respondeu.
Os três filhos mais velhos, que nunca perdiam uma palavra quando os pais falavam um com o outro, intervieram para manifestar o seu entusiasmo. Queriam os três ver
o tapete musical.
- Nem pensar nisso! Quando voltarem da escola, vamos festejar todos juntos o aniversário da mana - decidiu Léonie.
- Mas não é justo! Para aquela trombuda compraste o tapetinho que toca e, para mim, nada - protestou Gioia, que tinha começado a falar italiano há algum tempo.
- Já não sabem mais o que hão de inventar para pôr as crianças tolas - resmungou o avô Cantoni. Ele, como fazia em todos os aniversários dos netos, ia oferecer
uma libra de ouro.
- Pensava que hoje tinhas o teu compromisso do costume fora de casa - esclareceu o marido.
Ela não quis responder à provocação e replicou, resoluta: Volto de tarde, quando os meus diabinhos regressarem a casa, a tempo de festejar com a Giacinta.
Guido saiu para levar os dois rapazes à escola e ao infantário, Gioia e Giacinta foram entregues aos cuidados das empregadas e ela partiu para Varenna.
- Não tenho ânimo para te deixar, mas tenho de ir ter com a minha filha - anunciou agora a Roger.
- Vai já ter com ela - concordou ele, e sorriu-lhe, como que para lhe dizer que os filhos são mais importantes do que tudo o mais. E acrescentou: - Anda,
vou contigo até ao parque de estacionamento. Tem cuidado, porque na autoestrada continua a nevar.
Foi ele o primeiro a levantar-se, a ajudá-la a vestir o blusão e a levá-la pelas escadas que do vicolo del Prestino davam acesso ao parque de estacionamento.
Quando ela ia entrar no carro, ele abraçou-a com força e disse-lhe: - Vemo-nos no ano que vem, meu amor. Doze meses passam depressa, acredita. Entretanto, não vou
deixar de pensar em ti e de te desejar.
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Ela sentou-se ao volante e baixou o vidro.
- O que é que vais fazer hoje? - perguntou-lhe.
- Vou enfiar-me no nosso quarto e pensar em ti. Conduz com prudência e, se realmente quiseres fazer-me feliz, telefona para o hotel para me dizeres que chegaste
a casa sã e salva. Pensando melhor, não faças nada.
- Até ao próximo ano - exclamou Léonie.
VARENNA
Seis anos depois
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- Quem diria que é quase Natal? - perguntou Léonie.
- Está um dia fantástico, quente, que parece de primavera respondeu Roger.
Estavam em roupão na varanda da suite, no Hotel du Lac.
- Ainda não me contaste nada de ti, como correu este último ano - disse ela.
- E porventura tivemos tempo? - perguntou ele, a sorrir.
- Parece que não, atendendo ao teu acolhimento caloroso brincou ela, com um ar malicioso.
- Não me atribuas a mim as culpas todas. Tu estavas a fazer faísca.
- Tínhamos mesmo de recuperar o tempo perdido - comentou ela, referindo-se ao último encontro, em que estava de novo grávida após uma trégua de seis anos.
Depois prosseguiu: - Para dizer a verdade, a Giuditta foi um acidente de percurso. Nem eu nem o meu marido tínhamos nenhuma intenção de ter um quinto filho.
- Porque não, uma vez que a coisa até te agrada?
- Porque estes últimos anos sem gravidez foram fantásticos. Consegui trabalhar bem e, acho eu, desempenhar igualmente bem a minha tarefa de mãe. Agora não
vai haver mais filhos, nem por engano.
Calaram-se, a escutar o murmúrio da água que batia contra a margem.
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- Não me disseste nada de ti - continuou Léonie, pouco depois.
- Vamos almoçar? - propôs Roger, ao mesmo tempo que se levantava.
Léonie imitou-o e insistiu.
- Então?
- A minha mulher quis vir a Itália comigo. Desta vez, o nosso congresso é em Milão. Deixei-a no hotel, hoje de manhã, com as mulheres dos outros colegas.
Espero que faça compras e se distraia - decidiu-se a confessar.
- Sinto-me uma intrusa... isso incomoda-me. Como foi que te justificaste?
- Disse-lhe a verdade.
- Estás a brincar?
Tinham entrado na sala da suite.
- Falei muito a sério. Disse-lhe que só regressava ao fim da tarde e, uma vez que ela queria vir comigo, expliquei-lhe que não podia ser porque tinha de me
encontrar com a minha amante.
- Oh, meu Deus, Roger! Isso não estava nos nossos planos. Tínhamos prometido um ao outro não magoar nem o meu marido, nem a tua mulher.
- De facto, não a magoei. Naquele momento, olhou para mim com um ar de espanto, mas logo a seguir começou a rir, ao mesmo tempo que me perguntava quando é
que eu me vou decidir a falar a sério. Garanto-te, não há melhor maneira de fazer com que não acreditem em nós do que dizer a verdade. Está convencida de que me
concedeu um dia nas pistas de esqui. Em qualquer caso, se tivesse suspeitas, evitaria cuidadosamente exteriorizá-las, visto que eu sou um marido irrepreensível durante
trezentos e sessenta e quatro dias por ano.
Saíram do hotel e dirigiram-se ao restaurante do costume.
- Também o meu marido se deve questionar sobre aquilo que eu faço durante os meus misteriosos desaparecimentos pré-natalícios. Mas também ele, tal como a
tua mulher, prefere não abordar o assunto - comentou Léonie.
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- Há muitos anos que eu e tu desaparecemos nas proximidades do Natal. Seria um insulto para a inteligência do teu marido e para a da minha mulher se pensássemos
que nunca se questionaram sobre o facto de na tua vida e na minha haver um parêntesis secreto.
- E assim deve continuar - afirmou Léonie, com um tom decidido.
No entanto, quando chegaram à mesa, em frente a uma lareira antiga onde a lenha crepitava, Roger retomou o discurso.
- A nossa relação continuará secreta. Até o teu marido ou a minha mulher se decidirem a fazer perguntas - disse ele.
- Roger, temos um único dia no ano só para nós. Vamos falar de outra coisa? - propôs ela.
- Não podemos fazer como eles e enfiar a cabeça na areia.
- Então falemos sobre isso - cedeu Léonie.
- Se o teu marido te descobrisse comigo, o que é que tu fazias? - perguntou ele.
- Tinha de lhe confessar a nossa relação e era obrigada a escolher: ou ele ou tu - respondeu ela.
- Tinhas de te confrontar com os teus sentimentos em relação a mim.
- Também tu tinhas de fazer a mesma coisa, se a tua mulher te descobrisse comigo.
- Eu escolhia-te a ti, mas não sou uma mãe de cinco filhos, o último dos quais com poucos meses apenas.
- E estou muito ligada ao meu marido e à família dele, para além dos meus filhos. Devo muito ao Guido, como tu sabes. Era uma rapariga só e infeliz, antes
de o encontrar, e ele deu-me tudo aquilo que eu desejava: uma casa, uma família, uma estabilidade económica, um afeto sincero. Mas a paixão que, como tu dizes, me
põe a fazer faísca, até hoje só a senti contigo - declarou com franqueza.
- Mas se tivesses de escolher?
- Roger, ça suffitl Se alguma vez isso acontecer, eu digo-te. E tu farás o mesmo comigo. Para mim, basta pensar que hoje ainda tenho algumas horas para estar
contigo. E agora vamos pedir a comida - concluiu ela.
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Quando voltaram a entrar no hotel, a sala ao lado do hall estava de pernas para o ar, e dois músicos, com guitarra e acordeão, afinavam os instrumentos.
- Peço desculpa, mas a minha filha acabou o curso na semana passada e quer festejar com os amigos. Espero que não se importem se houver algum barulho - desculpou-se
a proprietária do hotel, ao mesmo tempo que ia ao encontro deles.
- Eu até gosto de música - revelou Léonie.
- Mas a vossa suite fica mesmo por cima desta sala e eu tive de escolher entre garantir o silêncio para os meus hóspedes ou fazer a vontade à minha filha:
achei que os filhos estão primeiro que os clientes - afirmou a mulher a sorrir.
- Estou plenamente de acordo consigo - garantiu Léonie.
- Tu nem sabes de que é que os filhos são capazes. Eu sim. Espera que os teus cresçam também e vais ver o que vai ser - avisou Roger, enquanto subiam as escadas
para o quarto.
- Já te esqueceste de como eras quando tinhas vinte anos? perguntou Léonie.
- Tens razão. Sou um velho rezingão.
O tema dos respetivos cônjuges não foi retomado, mas pesava sobre eles como uma pedra.
Amaram-se como se nunca mais se fossem encontrar. No fim, Léonie chorava e ele, abraçando-a com ternura, murmurou: - Vamos continuar a encontrar-nos como sempre.
Eu não te quero perder, e tu também não queres.
Secou-lhe as lágrimas e embalou-a como se fosse uma criança.
Saíram da suite quando era já quase noite e, ao descer as escadas, viram os jovens que entravam na sala para participarem na festa. Os músicos tocavam uma mazurca
e Roger perguntou a Léonie: - E se dançássemos também?
- Ia mesmo propor-te isso - respondeu Léonie.
Foram assim parar ao meio de uma festa onde toda a gente, incluindo os músicos, se estava a divertir a sério. Dançaram e voltaram a dançar os dois, a tentar esquecer
que aquele fantástico sonho secreto se estava a desvanecer, perseguido pela realidade.
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VILLANOVA
Hoje
Mais uma vez as festas tinham sido o pretexto para encher a casa de amigos e parentes, pondo duramente à prova a resistência de Guido e Léonie. Mas, como de costume,
depois do Ano Novo, partiram os dois para a montanha com os filhos, e, quando regressaram a Villanova, só encontraram Renzo e monsenhor Cantoni que, atendendo à
idade, tinham ficado em casa a descansar. Os dois irmãos usufruíam da companhia um do outro, coisa que, desde que eram crianças, não tinham podido cultivar, e gostavam
de recordar episódios, factos e acontecimentos de quando eram jovens, conseguindo muitas vezes rir de vários momentos difíceis das suas vidas.
Agora, sentados à mesa para o jantar, que começava pontualmente às sete e neia da tarde, ocupando cada um uma cabeceira, observavam Guido e Léonie que estavam sentados
de lado com os filhos.
O industrial e o religioso consideravam a família de Guido uma espécie de obra-prima, diante da qual não deixavam de perguntar a si mesmos de onde teria saído tanta
perfeição, desejando que nada a pudesse jamais perturbar.
Enquanto saboreavam um risotto de gorgonzola e um Wiener Schnitzel numa crosta dourada com cogumelos porcini, os adultos falavam de trabalho, de economia e de política,
e as crianças, educadas por Léonie, estavam caladas e ouviam.
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Teciam-se críticas ao novo governo, que prometia a lua e só ia distribuir figos secos. Deploravam a difusa indulgência relativamente à evasão fiscal e a outras ilegalidades
que se estavam a transformar em vícios comuns, comparando-os com a correção dos comportamentos de outros tempos que ainda sobreviviam em alguns países europeus,
e prognosticavam graves problemas para o futuro da Itália.
- As regras, meninos, são a base da harmonia do mundo e da vida civilizada - comentava o tio monsenhor, dirigindo-se aos sobrinhos.
- Sem regras não se vai longe - reforçava Renzo Cantoni. Perante a enésima repetição destes conceitos, Gioacchino
perguntou: - Existe alguma regra para saber se é melhor bolo de chocolate ou tarte com creme de limão?
Léonie fulminou o filho com um: - Tais-toi, s'il te plait.
- Porquê? Não é uma pergunta assim tão descabida - interveio Guido.
A pergunta de Gioacchino nascia de um momento de intimidade com a mãe.
No dia anterior, aproveitando o facto de Guido se ter levantado cedo, Gioacchino enfiara-se na cama da mãe à procura de mimos que ela não poupava a nenhum dos filhos.
Enquanto estavam naquele calor, debaixo do cobertor, abraçados um ao outro, ela murmurou: - Que nunca chegue um tempo em que eu seja obrigada a escolher.
Sem se dar conta, tinha dado voz aos pensamentos que a atormentavam desde o último encontro com Roger.
- Se tivesses de escolher? - perguntou Gioacchino, que tinha apanhado a frase sussurrada pela mãe.
- O quê? - perguntou ela, sentindo-se apanhada desprevenida.
- Tu é que sabes. Porque não me dizes?
- Estava a pensar que entre as coisas de que mais gosto estão o bolo de chocolate e a tarte com creme de limão, e não sei dizer qual das duas prefiro - disse
ela, imaginando que era obrigada a escolher entre Guido e Roger.
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- Escolher, porquê? Eu como as duas coisas - replicou o menino.
- Concordo contigo - declarou Léonie, a rir. Pouco depois, o filho adormeceu, abraçado a ela.
Agora, Guido dizia ao filho: - A única maneira de saberes qual preferes é provar os dois.
- Mas a mãe provou e diz que gosta dos dois - insistiu Gioacchino, em vez de se calar, como Léonie lhe ensinara.
- A sério? Não te imaginava tão gulosa - disse Guido à mulher.
- A questão não é essa. Como é que se escolhe entre duas coisas de que gostamos, sabendo que temos de escolher uma só? - interveio Giuseppe, dirigindo-se
ao avô, a quem reconhecia uma autoridade superior ao resto da família.
- Arranjas uma terceira coisa de que gostes mais do que das outras duas e assim tiras isso da cabeça - intrometeu-se Gioia, que era muito pragmática e detestava
a introspeção.
- Há coisas para as quais não existem regras, mas apenas compromissos. Para voltar aos dois bolos de que a vossa mãe tanto gosta - respondeu o avô, dirigindo-se
à nora -, bastará reduzir a porção de um e de outro e saborear os dois.
Então Guido dirigiu um sorriso à mulher e concluiu: - De vez em quando, uma saudável barrigada de bolo de chocolate só faz bem ao humor.
Por um instante, Léonie perguntou a si mesma o que se esconderia nas palavras do marido, mas o seu rosto sorridente e sereno tranquilizou-a.
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Havia noites em que, em frente à lareira da sala vermelha, Léonie e o sogro se encontravam os dois sozinhos, depois de jantar, a conversar. Com as crianças na cama
e Guido em Roma, se não havia visitas, o patriarca da casa Cantoni deixava fluir as palavras, sabendo que a nora o escutava com atenção.
Léonie era inteligente, sensata e dotada de uma extraordinária capacidade empresarial. Renzo nutria por ela um afeto paternal mas, como tinha um temperamento muito
duro, em vez de lhe dizer: "Gosto muito de ti", ou de lhe dar os parabéns por um negócio bem concluído ou por uma iniciativa interessante promovida por ela, dizia-lhe:
- Ainda consegues fazer melhor.
A nora, que o conhecia bem, há muito tempo que lhe retribuía com um sorriso afetuoso e não respondia à provocação.
Uma noite de abril, enquanto lá fora rebentava um temporal e o velho bebericava a tisana de papoila-da-califórnia preparada por Nesto, ela disse: - Lembrei-me de
que se podia abrir uma creche para os filhos das funcionárias. Isso permitiria às jovens mães que tiveram filhos recentemente regressar ao trabalho sem terem de
recorrer a uma licença sem vencimento por não saberem onde deixar os filhos na fase do desmame. No Japão, e em outros países, as creches dão bons resultados no que
diz respeito à produtividade no trabalho.
- Já não te chega o Museu da Torneira e a cantina transformada em restaurante com menu à escolha? Agora vens com essa maluqueira - exclamou Renzo, com o seu
habitual tom áspero.
- Se na fábrica tivesse havido uma creche para os meus filhos, teria poupado muito tempo precioso e trabalhado mais e melhor - insistiu ela, nada desencorajada
com o comportamento do sogro.
- Tu quanto mais fazes, mais queres fazer! Tens alguma ideia de quanto poderia custar esse projeto, os problemas que haveria a ultrapassar, normas a cumprir
sob pena de multas por não se respeitar regras e controlos de sanidade e tudo o resto? E depois onde é que a construirias? - perguntou, já curioso.
- Entre as oficinas e os escritórios há uma área onde se pode construir uma estrutura linear e fazer um jardim para jogos ao ar livre. Já tenho a planta,
uma estimativa de custos, o pedido de autorização e o resultado de um inquérito às mulheres da empresa. Ficariam felizes se pudessem levar os filhos para o trabalho,
tendo a possibilidade de estar com eles durante a hora das refeições e os intervalos. Já sem contar que a creche na vila é muito cara, enquanto nós poderíamos pedir
uma quantia simbólica, arcando com as despesas de gestão que iríamos recuperar através de uma maior produtividade - explicou Léonie, expondo assim um longo trabalho
já realizado, na esperança de que o sogro desse o seu consentimento.
- A verdade é que tu és mesmo uma pequena feiticeira! Já conquistaste a estima e o afeto dos funcionários, mas ainda não te chega. Queres que te adorem -
exclamou Renzo, divertido.
- Eu só quero aquilo que o senhor quiser, pai. Em qualquer caso, expus-lhe a minha ideia. Agora cabe-lhe a si decidir.
Renzo Cantoni admirava a inteligência e os dotes empresariais da nora e considerava-se muito afortunado porque ela garantiria a continuidade da empresa familiar.
Houvera anos em que receara ter de vender a fábrica na falta de um sucessor, uma vez que Guido, o seu único filho, não tinha nenhuma propensão para a área empresarial.
No entanto, e isso tinha sido um verdadeiro
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milagre, surgira no horizonte aquela rapariga da Provença que se apaixonara pela fábrica e, tendo dado à luz cinco filhos maravilhosos, assegurara a continuidade
da família e da empresa Cantoni. E não só, já que estava a renovar o cunho um pouco obsoleto da fábrica de torneiras para a transformar numa marca moderna, quase
vanguardista.
Todas as revistas do setor, incluindo as mais prestigiadas, dedicavam páginas de artigos e fotografias aos modelos da produção Cantoni, que se tornava cada vez mais
elegante e inovadora. As suas torneiras encontravam-se nas casas de banho das residências mais importantes e dos hotéis mais seletos do mundo. O golpe de génio de
Léonie tinha sido o de conseguir o contrato de fornecimento para o Eliseu e para o Kremlin. Os russos, em particular, tinham querido apenas torneiras em ouro maciço,
como as que eram produzidas para os países árabes.
Agora Léonie estava a fazer ao sogro uma proposta perfeitamente consentânea com as escolhas sociais pretendidas pela família, que mantinha uma casa para idosos e
um infantário com educadores profissionais.
Renzo Cantoni gostava de repetir, tal como o seu pai: - Temos de nos fazer perdoar pelos nossos privilégios, ajudando quem precisa.
Ao longo dos últimos anos, Renzo ouvira em diversas ocasiões empresários que se gabavam dos expedientes implementados para favorecer os seus negócios em detrimento
dos operários, sobretudo das mulheres, a quem mandavam assinar uma carta de demissão ao mesmo tempo que assinavam o contrato de trabalho. Assim, se engravidassem,
eram obrigadas a despedir-se. Muitos deles tinham uma dupla contabilidade, a legal e a outra, e apenas metade dos operários eram contratados de forma regular: um
sistema perverso que prejudicava os empresários honestos e acabaria por causar complicações a todos.
Quando Renzo criticava estes empresários, alguns respondiam-lhe: - Tu és mais esperto do que nós. Tens a tua gente na mão e ninguém se atreve a bufar.
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Era verdade, mas obtinha este resultado porque respeitava as leis e responsabilizava os funcionários. Estes princípios tinham-lhe sido transmitidos pelo pai, Amilcare
Cantoni, e nunca os traíra.
Agora, após um silêncio sublinhado pelos trovões do temporal, Renzo disse a Léonie: - Quero analisar o orçamento desse projeto. - Levantou-se do sofá e acrescentou:
- Agora vou dormir.
- Eu também vou subir - concluiu ela, e foi atrás dele.
Quando passou ao lado do piano que tinha sido da mulher, Renzo acariciou as teclas com uma mão ligeira e disse em voz baixa: - Tenho saudades da condessa. Não percebo
porque é que tu e o teu marido estão tão pouco tempo juntos. E tudo porque ele resolveu inventar aquele trabalho disparatado que o obriga a ficar em Roma. Eh...
sabe-se lá porquê. Merecia que tu arranjasses um amante - resmungou, enquanto saía do elevador que os tinha levado ao primeiro andar.
Léonie sorriu-lhe e perguntou com um ar divertido: - É uma
sugestão?
- Pelo contrário, é um receio - murmurou ele, olhando-a nos olhos.
- Fique sossegado, pai - respondeu Léonie, e deu-lhe um beijo na face.
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A família estava toda reunida à volta da mesa posta para a festa. Lá fora a neve caía, lenta e silenciosa.
Renzo Cantoni e o tio Gioacchino, cada vez mais velhos e petulantes, estavam sentados, como era seu hábito, às cabeceiras da mesa, enquanto Léonie e Guido se sentavam
frente a frente, tendo ao lado os filhos e respetivos companheiros.
A primeira neta, Margaret, filha de Giuseppe e de Fiona, a mulher, tinha três meses e estava no seu quarto, entregue aos cuidados de uma empregada.
Era a noite de Consoada e, de acordo com a tradição, depois de terem consumido uma refeição frugal, foram para a sala amarela onde, por baixo de um pinheiro monumental,
os esperava uma montanha de presentes para abrir. Renzo Cantoni resmungou: - Aproveitem esta bênção, porque para o ano que vem podemos estar reduzidos à disputa
de uma sopa e a aquecer-nos com o nosso bafo.
Aquela atitude pretendia ser uma espécie de esconjuro, mas em qualquer caso dava voz ao receio de uma crise que estava a atacar o mundo e que em Itália era agravada
pela pouca confiança das pessoas na classe política, incapaz de conduzir o país a um porto seguro.
A empresa familiar não demonstrava ainda nenhuma quebra graças à intuição de Renzo Cantoni e de Léonie, que os tinha
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levado a investir na excelência da produção e a procurar novos clientes nos países árabes e na China.
Quando Léonie analisava os conjuntos de torneiras destinados aos bosses chineses e aos sultões árabes, suspirava: - Acho isto um insulto à miséria.
Eram objetos revestidos com folha de ouro, ou então em prata ou ouro maciço, de formas futuristas, destinados às casas dos milionários. Cada peça era uma joia caríssima
que levava impresso o nome de quem a tinha montado e acabado. Uma série destas peças estava exposta no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Ao especializar-se no mercado internacional de luxo, os Cantoni tinham garantido à empresa e aos operários um trabalho qualificado e um ordenado adequado. Mas em
Villanova também havia operários de outras pequenas e médias empresas que ficavam em casa com o rendimento mínimo, quando não perdiam mesmo o emprego.
A falta de confiança no futuro envenenava a disposição de toda a gente.
Gioacchino, que trabalhava em Londres, na City, e estava em contacto direto, todos os dias, com os mercados financeiros, tinha feito uma descrição sumária e impiedosa
da economia dos anos vindouros.
Giuseppe, que trabalhava num escritório de advogados em Nova Iorque, declarara: - É uma questão de ter paciência durante mais dois anos e depois haverá uma recuperação.
- Pelo menos no Natal podemos deixar de falar da crise para gozar os nossos presentes? - protestou Guido, que tinha aberto a prenda da filha Gioia e do namorado,
Bertrand.
Eram uns botões de punho em ouro com as suas iniciais gravadas. Naquele momento começou uma série interminável de exclamações de alegria, de trocas de abraços, de
piadinhas pérfidas entre os irmãos.
Léonie observava com orgulho aqueles filhos lindos e ricos de sonhos e perguntava a si mesma qual de entre eles assumiria
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um dia a herança da fábrica. Giuseppe não tinha a mínima intenção de voltar a viver em Itália, a não ser que se apercebesse de como era intratável aquela mulher,
a loira Fiona, que o tinha seguro pela trela e lhe impunha as suas opções. Gioia vivia em Paris e, seguindo as passadas do pai, dedicara-se ao jornalismo. Estava
a fazer um estágio na revista Elie e o namorado trabalhava no Eliseu.
Léonie depositava algumas esperanças fundadas em Gioacchino e Giacinta.
Gioacchino, lindo como um arcanjo e com um físico atlético de estátua grega, assim que regressava a Villanova, ia a correr para a empresa e instalava-se no escritório
da mãe, bombardeando-a com perguntas sobre a produção, a gestão comercial, a planificação e os investimentos. Giacinta, que tinha frequentado uma escola de artes
e se especializara, em Roma, em restauro de antiguidades, estudava com curiosidade os esboços e os desenhos dos modelos em fase de produção. Em mais do que uma ocasião
tinha-lhe dito: - Adoro o restauro, mas deprime-me a miséria dos meios de que dispomos. Desconfio que, mais dia menos dia, perco a paciência e venho trabalhar contigo.
Léonie não pressionava nenhum dos filhos e esperava o dia em que iriam bater-lhe à porta do escritório.
Gioacchino tinha há anos uma relação com Peter, que escrevia para o Sunday Mirror. Era um homem simpático e um jornalista brilhante, mas terrivelmente possessivo,
e Gioacchino começava a dar sinais de impaciência. Mas tinha sido graças a ele que conseguira assumir abertamente a sua homossexualidade. A família Cantoni aceitou-o
a ele e ao companheiro sem fazer nenhum drama, mas Léonie tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Gioacchino iria terminar a sua relação com Peter e regressar
a Villanova.
Giuditta continuava a ser um mistério. Tinha dezasseis anos, estudava num colégio na Suíça, odiava a atividade física e passava o tempo a ler romances de amor. Ao
contrário das irmãs que, mesmo quando andavam de cabeça no ar, mantinham os pés no
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chão, ela vagueava como um pequeno balão empurrado pelo vento e parecia não desejar nenhum ancoradouro. Estava a crescer mais devagar do que os outros quatro filhos,
pensava agora Léonie.
Pouco antes da meia-noite, saíram todos juntos para ir à missa.
O tio Gioacchino tinha ido à frente, porque ia celebrar a cerimónia com o pároco.
Na manhã seguinte, como em todos os Natais, Guido, o pai e Léonie visitaram os idosos da casa de repouso e distribuíram presentes, recebidos pelos sorrisos felizes
dos velhinhos e dos seus familiares. Quando regressaram, a família reuniu-se à volta da mesa sob a vigilância do velho Nesto, que dirigia os empregados com a habilidade
de um chefe de orquestra.
Como era tradição, Renzo Cantoni levantou-se e fez o seu discurso, que iniciou com a frase ritual: - Mais uma vez, na comemoração do nascimento de Nosso Senhor,
tenho a alegria de vos ter a todos aqui à minha volta. - Recordou o pai, Amilcare, a mãe, Bianca Crippa, e a sua amada Celina, cujo espírito, tinha a certeza, velava
por eles. Como sempre, comoveu-se ao dizer: - Não sei quantos mais Natais me concederá ainda o bom Deus, porque já sou um velho cansado e em mau estado. Mas agradeço-Lhe
porque ainda aqui estou com o meu irmão, com quem partilhei uma infância difícil, o meu filho, que infelizmente não seguiu as minhas passadas mas está sempre a tempo
de voltar atrás, a minha nora que, com aquele aspeto de eterna menina, tem a força de um Meão e é agora a trave mestra da nossa empresa, os meus netos que, graças
ao Céu, são todos saudáveis e lindos e nos quais, pelo menos em alguns, deposito a esperança de transmitir o amor pela nossa empresa... - interrompeu para limpar
uma lágrima e concluiu: - Bom Natal para todos!
Sentou-se. Monsenhor Gioacchino fez o sinal da cruz, imitado pelos outros, abençoou os comensais e, finalmente, a refeição começou.
Só ao fim da tarde Guido e a mulher conseguiram isolar-se na sala dos seus aposentos. Deixaram-se cair, exaustos, em cima do sofá, ao mesmo tempo que uma empregada
saía da divisão
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depois de ter pousado em cima de uma mesa as chávenas e um bule com uma tisana de ervas.
- Que tal correu? - perguntou Guido, enquanto enchia as chávenas com a bebida aromática.
- Bem, como sempre. Não achas? - perguntou Léonie.
- Muito bem. Esperemos que os nossos filhos sejam realmente como parecem, serenos e equilibrados.
- Também eu espero que não nos escondam dissabores ou inquietações graves.
- Se algum deles te dissesse que tem um problema tremendo de que sofre há anos... em segredo.
- Já absorvi tão bem os comportamentos dos Cantoni que o meu conselho seria: fecha-o à chave no fundo do coração e faz de conta que não existe - interrompeu-o
Léonie. Depois acrescentou, olhando-o nos olhos: - Será que queres dizer-me alguma coisa?
O silêncio instalou-se entre eles. Guido terminou a tisana e, finalmente, disse: - Também este ano foste a Varenna, para te encontrares com aquele homem.
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Léonie apertou com ambas as mãos a chávena que ia levar aos lábios e não proferiu uma palavra.
- Já passou muito tempo desde a primeira vez que vos vi juntos - continuou Guido.
Seguiu-se mais um longo silêncio. Do jardim chegavam até eles as vozes e as gargalhadas dos filhos que andavam a brincar com bolas de neve.
- Da primeira vez, a descoberta foi completamente casual. Estava a fazer uma prospeção para encontrar um cenário para uma série televisiva. Vi-vos e abriu-se-me
um precipício debaixo dos pés. O homem com quem estavas era uma bonita figura e tinham ar de-se sentirem muito bem juntos.
Guido falava com calma, com o olhar fixo na janela através da qual se via cair a neve. - Quando chegaste a casa, eu estava a dormir no meu escritório, mas, no dia
seguinte, vi-te radiosa prosseguiu, e continuou: - Pela primeira vez, desde que me tinha casado contigo, dei-me conta de que estava perdidamente apaixonado por ti.
Não sabia o que fazer e, por fim, dirigi-me a uma agência de detetives privados, que te seguiu durante meses, sem descobrir um único aspeto menos claro a teu respeito,
apenas que te encontravas com aquele homem durante poucas horas uma única vez por ano, no dia vinte e dois de dezembro. Tentei
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fazer-te sair do teu silêncio, mas depois não tive coragem de insistir porque tinha medo de te perder. Durante estes anos, mais do que uma vez, quando ias a Varenna,
apeteceu-me seguir-te. Mas ficava em casa e rezava para que voltasses para mim. Depois de cada encontro, tentava convencer-me de que seria o último, que o tempo
acabaria por dar um fim àquela história. No entanto, a tua relação com o homem de Marselha não dá sinais de querer acabar. Portanto, estou pronto para me pôr de
lado, se decidires deixar-me, mas quero que saibas que te amo profundamente, que és a mulher da minha vida.
Com as mãos trémulas, Léonie pousou em cima da mesa a chávena da tisana.
Lágrimas silenciosas sulcavam-lhe as faces enquanto replicava: - Porque esperaste tanto tempo para me dizeres tudo isto?
- Porque sou um Cantoni, e os Cantoni, como tu sabes, ficam calados - respondeu Guido.
Ela limpou os olhos e disse: - Sempre achei que ainda estavas apaixonado pela Amaranta, que no teu coração não havia espaço para outro amor, e eu tinha uma necessidade
desesperada de me sentir amada.
- Então... soubeste... e por quem? - perguntou ele, num sussurro.
- Pelo avô Amilcare.
- E nunca me falaste nisso - constatou tristemente.
- Adaptei-me ao estilo da família - replicou ela, com amargura.
- Que já causou tantos sofrimentos inúteis - precisou Guido, e prosseguiu, ao mesmo tempo que segurava uma mão dela entre as suas. - A Amaranta foi durante
muito tempo o fantasma de uma paixão juvenil, absurda e delirante. Mas há já muitos anos que estou apaixonado por ti. Amo-te, desejo-te e não quero dividir-te com
nenhum outro homem, nem que seja por um único dia no ano.
Pronto, chegou o momento da verdade, pensou Léonie. E, de repente, sentiu-se dominada pela cólera e pela fúria. Levantou-se
de um salto e, fazendo frente ao marido, disse com um tom agressivo: - Tu casaste-te comigo e continuaste a nutrir, durante anos, uma paixão por outra mulher, e
agora, sem mais nem menos, dizes que sempre me amaste, que tens ciúmes, que te fiz sofrer, que não toleras que haja outro homem na minha vida e, uma vez que és muito
generoso, ofereces-me a possibilidade de escolher. Mas como é que tens coragem? Lembras-te da nossa primeira noite de casados? Eu era virgem e estava muito assustada.
Perante o meu medo, apenas foste capaz de dizer: "Está bem, tentamos para outra vez." Viraste-te para o outro lado e adormeceste. Claro, sempre foste de uma correção
exemplar, encheste-me de presentes e de ternuras, mas o teu pensamento estava sempre noutro lugar. Quando me viste com um homem, nesse momento, e só nesse momento,
descobriste que tinhas ciúmes e que estavas loucamente apaixonado por mim. E o que foi que fizeste? Ficaste calado! Que raça de homem és tu, Guido Cantoni? Se queres
mesmo saber a verdade, o homem com quem me encontro em Varenna e a quem dediquei uma ínfima parte de atenção, uma única vez no ano e durante poucas horas, contribuiu
para manter de pé o nosso casamento, à espera que tu, ao fim de quase trinta anos, te decidisses a dizer-me que é a mim que amas, não a Amaranta. Agora és tu quem
tem de escolher, não eu. Podes decidir continuar a viver comigo, mas sem segredos nem mistérios, ou podes regressar a Roma onde, de resto, passaste grande parte
do teu tempo, deixando-me sozinha a tratar dos nossos filhos, com a ajuda dos teus avós e dos teus pais que, ao contrário de ti, me amaram desde o dia em que nos
casámos. Agora vou ter com os nossos filhos e, se virem que estou perturbada, porque estou, não vou mentir a dizer que está tudo bem, mas vou declarar que estou
furiosa contigo.
Pronunciou as últimas palavras ao mesmo tempo que batia com a porta da sala.
Os filhos, porém, não lhe perguntaram nada. Giuseppe e Fiona tinham ido a Milão, levando a pequena Margaret com eles. Gioacchino e Peter disputavam uma partida de
xadrez, Gioia e
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Giacinta folheavam algumas revistas de moda e Giuditta estava estendida no tapete, em frente à lareira e, para não variar, lia o enésimo romance de amor.
Mal levantaram os olhos, quando a viram entrar na sala amarela, e depois ignoraram-na. Ela foi então até à sala vermelha, onde o tio Gioacchino ressonava, estendido
num sofá, e o sogro, enterrado numa poltrona, via televisão.
- Parece que algum bicho te mordeu - observou Renzo, quando a viu entrar.
- Tive uma discussão com o seu filho - explicou Léonie, com um ar decidido.
- As festas são sempre o melhor momento para as pessoas discutirem - replicou ele, com um ar plácido.
- É possível que eu e o Guido tenhamos de nos separar confessou ela.
- Não achas que já são um bocadinho crescidos para esses disparates?
- Mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Aconteceu agora - respondeu Léonie.
Naquele momento, entrou Guido. Sem dizer uma palavra, agarrou-a por um braço e levou-a dali, enquanto Renzo Cantoni sorria, divertido, e o irmão monsenhor continuava
a ressonar. Léonie não ofereceu resistência, até porque o marido tinha a força de um lutador, e seguiu-o até ao primeiro andar, à antecâmara do quarto.
- Senta-te - ordenou, com um tom que a desorientou.
Ela obedeceu e ele pôs-se diante dela. Nesse momento, o rosto de Guido ficou mais doce, enquanto lhe dizia: - Sou um estúpido. Durante demasiados anos comportei-me
como um perfeito idiota. Não adianta pedir-te desculpa. Mas pergunto-te se, apesar de tudo, queres continuar a partilhar comigo o resto da tua vida. Por favor, aceita,
porque te amo perdidamente.
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Léonie nunca tinha visto o marido tão comovido e desesperado. Cedeu à ternura e estendeu-lhe uma mão, que ele segurou entre as suas.
- Então? - perguntou-lhe ansioso, enquanto se sentava ao lado dela.
- Isto é de doidos - murmurou Léonie, mais para si mesma do que para ele.
- O quê?
- O facto de tu teres esperado tantos anos para me dizeres que me amas.
- Não me parecia necessário, uma vez que to demonstrava todos os dias e de todas as maneiras.
- E como? Oferecendo-me presentes? Passando a semana inteira em Roma e fingindo que a nossa união era perfeita?
- Cada palavra tua é uma fisgada na esperança de recomeçar uma nova vida - lamentou-se Guido.
- E tu tens ideia de como me mortificou o teu amor tépido, desprovido de paixão, e a tua história com a Amaranta, que sempre me escondeste, como se eu fosse
uma estranha? Eu contei-te tudo sobre a minha vida. Tu nunca me disseste nada de ti - desabafou Léonie.
- Porque não me deixaste para ires viver com o homem de Marselha? - perguntou Guido, apanhando-a de surpresa.
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Léonie não respondeu. Fitou aquele marido lindíssimo que a olhava bem nos olhos e sentiu-se confusa por um instante.
- Porque te amava a ti? - disse.
- Não é a mim que o deves perguntar, mas a ti própria insistiu Guido, ao mesmo tempo que lhe apertava as mãos.
- Oh, meu Deus! Eu... fiquei porque... estou apaixonada por ti - confessou ela.
Desfez-se em lágrimas e chorou durante muito tempo nos braços do marido, que a mantinha apertada contra ele.
Quando se acalmou, Guido disse-lhe: - Comportámo-nos como dois idiotas.
- Vê lá os anos que nós perdemos - observou Léonie, enquanto limpava os olhos.
- Na realidade não perdemos nada, porque ainda aqui estamos os dois, juntos - garantiu Guido, a sorrir.
- Preciso de ficar um bocado sozinha para recuperar de todas estas emoções. Trata tu das crianças, por favor.
- Está bem - respondeu ele. Beijou-a na testa e saiu da sala. Léonie foi ao quarto ao lado, estendeu-se em cima da cama e, pouco depois, adormeceu.
Quando acordou, Guido estava ao lado dela. Léonie aconchegou-se nos seus braços e disse: - Não gostavas de ter outro filho para inaugurar a nossa nova vida juntos?
- Com a nossa idade? - perguntou Guido, a rir.
- Precisamente, seria uma lufada de juventude - respondeu ela.
- Então, vamos lá tentar - decidiu Guido.
Depois das festas, antes de os filhos partirem de Villanova, Guido e Léonie pediram ao tio Gioacchino para celebrar uma missa na igreja da terra para todos eles,
para a família reunida.
Três meses mais tarde, Guido telefonou a cada um dos filhos para comunicar que a mãe estava grávida.
O sexto filho nasceu no princípio de outubro e chamaram-lhe Giovanni.
No início de dezembro, Léonie foi a Varenna e entregou à proprietária do Hotel du Lac um envelope para o professor
Bastiani, se e quando ele chegasse ao hotel. Continha uma folha onde ela havia escrito: "Meu amigo, fui feliz contigo em cada instante que passámos juntos. Mas,
ao fim de muitos anos, encontrei, finalmente, o meu marido, aquele que durante muito tempo procurei em ti, na nossa belíssima história. És um homem maravilhoso.
Adieu, mon cher ami. Léonie."
Sveva Casati Modignani
O melhor da literatura para todos os gostos e idades