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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Um Drama na Malasia / Somerset Maugham
Um Drama na Malasia / Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um Drama na Malasia

 

As personagens de uma ficção apresentam caracteres estranhos. Invadem-nos o cérebro, crescem, adquirem personalidade própria, são cercadas de determinado ambiente. Pensamos nelas a toda hora. Às vezes tornam-se verdadeira obsessão, impedindo-nos que pensemos em outra coisa. Finalmente escrevemos e, para nós, elas cessam de existir. Ê estranho o desaparecimento de um ser que nos ocupara o pensamento, freqüentemente em segundo plano, mas outras tantas vezes no centro de nossas reflexões, que partilhou de dia nossa vida e de noite nossos sonhos. Entretanto já não nos lembramos de seu nome nem de sua aparência. Podemos até esquecer que ele existiu.

Em certas ocasiões, porém, o caso é outro. Uma personagem, a quem não demos importância, recusa, todavia, morrer. Tornamos a pensar nela. Ê exasperante, pois ela nos domina a vontade e já não nos serve para nada. Por que motivo, então, se impõe a nosso pensamento?

Ê o intruso que não convidamos para nossa festa, que come as iguarias e bebe o vinho preparados para outrem. Não temos lugar para ele. Preferimos nos interessar por outros caracteres. Mas que lhe importa? Indiferente ao túmulo que lhe preparamos, ele continua a viver obstinadamente, mantém-se em franca atividade e um belo dia, quando menos esperamos, nos obriga a dar-lhe atenção.

O leitor deste romance encontrará o dr. Saunders esboçado em Num biombo chinês. Mais tarde, ele desempenhou seu papel no conto O estrangeiro. Ali tive ocasião de descrevê-lo em poucas linhas e julgava não tornar a pensar nele. Não havia razão para que ele — como as demais personagens daquele livro — continuasse a viver. Entretanto sobreviveu.

O capitão Nichols já foi apresentado ao leitor em A lua e seis vinténs, e me foi sugerido por um veterano dos mares do sul. Desta vez, porém, ao terminar meu livro, eu tinha certeza de que a personagem não morrera. Continuei a pensar nela e, quando o manuscrito voltou do tipógrafo, para correção, um trecho da conversação de Nichols impressionou-me. Pareceu-me ótimo assunto para outro romance; e, quanto mais pensava nele, mais me agradava. Quando, afinal, as provas me chegaram às mãos, já resolvera escrever outra história e cortei a passagem que me sugerira essa idéia. Era a seguinte:

Quanto aos outros episódios de sua carreira, mostrava-se, felizmente, mais comunicativo. Contrabandeara armas na América do Sul e ópio na China. Envolvera-se num negócio escuso nas ilhas Salomão e ficara-lhe como lembrança, na testa, a cicatriz do ferimento que lhe infligira um negro, incapaz de entender suas intenções filantrópicas. Seu empreendimento principal fora um longo cruzeiro nos mares orientais; citava-o freqüentemente em suas conversas. Segundo parecia, um homem de Sydney tivera a má sorte de cometer um assassinato; querendo livrá-lo de apuros, seus amigos haviam procurado o capitão Nichols, dando-lhe doze horas para comprar uma escuna e reunir a tripulação; na noite seguinte, trouxeram-lhe a bordo o misterioso passageiro.

— Pedi por esse trabalho mil libras, pagas em ouro -— disse o capitão Nichols. — Tivemos uma viagem admirável. Costeamos as Celebes e as ilhas do arquipélago de Bornéu: são maravilhosas, simplesmente, sob todos os pontos de vista. Podia-se caçar à vontade. Naturalmente nos desviamos da rota habitual.

—  Que espécie de homem era seu passageiro? — perguntei eu.

—  Bom rapaz, dos melhores que conheci. Ótimo jogador de cartas. Jogamos todos os dias, durante um ano, ao fim do qual ele ganhara as minhas mil libras. Como também sou bom jogador, fiquei alerta.

—  Ele voltou à Austrália?

— Era sua intenção. Tinha ali alguns amigos, e eles calculavam que, em um ou dois anos, o livrariam de incômodos.

—  Compreendo.

—  E, ao que parecia, pretendiam tornar-me bode expiatório!

O capitão Nichols calou-se um momento, com os olhos — habitualmente tão vivos — embaciados de súbito por uma espécie de véu opaco.

—  Pobre rapaz! Caiu ao mar, uma noite, ao longo da costa de Java. Creio que os tubarões fizeram o resto. Era ótimo jogador de cartas, um dos melhores que conheci.

E Nichols curvou a cabeça, pensativo.

—  Vendi a escuna em Cingapura. Afinal, com o produto dessa venda e as mil libras em ouro, o negócio não foi mau.

Eis o incidente que me sugeriu este romance; entretanto, só o escrevi doze anos depois.

 

Tudo isto aconteceu há muitos anos.

O dr. Saunders bocejou. Eram nove horas da manhã. O dia estava ali a sua frente e ele sem nada que fazer. Já visitara alguns clientes. Não havia outro médico na ilha e, a sua chegada, todos aqueles que julgavam necessitar de uma consulta corriam a procurá-lo. Mas o lugar era saudável e, como as doenças que lhe pediam para curar fossem crônicas e ele não pudesse fazer muito, limitava-se ao recurso dos mais simples medicamentos. Praticara por quinze anos em Fu-chou e, adquirindo entre os  chineses uma grande reputação por sua habilidade em tratar as doenças da vista, foi chamado a operar de catarata um rico negociante chinês que morava em Takana. Era uma ilha no arquipélago malaio tão distante de Fu-chou que ele, a princípio, resolvera não atender ao chamado. Mas o chinês, de nome Kim Ching, era um nativo de Fu-chou e tinha dois filhos que ali viviam. Conhecia bem o dr. Saunders e, numa de suas visitas periódicas à cidade, já o consultara sobre seu mal. Ouvira falar de uma cura milagrosa de cegueira atribuída ao doutor e, ao sentir-se incapaz de distinguir o dia da noite, não se sentiu com coragem de confiar a outro médico uma operação que lhe iria, estava certo, restituir a visão. O doutor, quando os primeiros sintomas apareceram, aconselhou-lhe a vinda a Fu-chou, mas ele adiava sempre a viagem, temendo o bisturi do cirurgião, até que, sem poder diferençar um objeto de outro e sentindo que seu estado de nervos não lhe permitia viajar, pediu aos filhos que convencessem o médico a vir operá-lo em Takana.

Kim Ching começara sua vida como um simples coolie, mas, trabalhando pesada e corajosamente, auxiliado por sua sorte, astúcia e falta de escrúpulos, conseguira juntar uma grande fortuna. Agora, com setenta anos, possuía vastas plantações espalhadas em diversas ilhas. Barcos de sua propriedade entregavam-se à pescaria de pérolas. O chinês negociava intensivamente com todos os produtos do arquipélago. Seus filhos, já homens de idade, foram procurar o dr. Saunders. Eram seus amigos e clientes. Duas ou três vezes por ano costumavam convidá-lo para um grande jantar e serviam-lhe, então, sopa de ninho de andorinha, barbatanas de tubarão, bêche de mer, e muitas outras iguarias.

Jovens cantoras, contratadas por preço elevado, entretinham os convivas com sua arte, e todos terminavam bêbados. Os chineses gostavam do dr. Saunders. Ele falava fluentemente o dialeto de Fu-chou. Não vivia na concessão como outros estrangeiros, mas no coração da cidade chinesa. Lá morava,  um  ano sim,  outro  não,  e  todos  se  haviam habituado, a sua presença. Sabiam que fumava ópio, ainda que moderadamente, e conheciam dele tudo o que era possível conhecer. Parecia-lhes um homem de bom senso. Não lhe importava que os outros estrangeiros o tratassem mal. Só ia ao clube para ler os jornais quando a mala chegava, e nunca recebia convites para jantar. Os estrangeiros tinham seu próprio médico inglês e só chamavam o dr. Saunders quando o outro se ausentava em férias. Mas se algum deles sentia qualquer afecção na vista, punha de lado seus ressentimentos e vinha tratar-se na humilde casinha chinesa sobre o rio, onde o dr. Saunders vivia feliz em meio dos maus cheiros de uma cidade nativa. Olhavam em torno com nojo, sentados no pequeno aposento que era ao mesmo tempo sala de estar e consultório. Os móveis eram chineses, exceto a escrivaninha e um par de cadeiras de balanço já usadas. Nas paredes descoradas, pergaminhos chineses, presenteados pelos pacientes, contrastavam estranhamente com as folhas de papelão em que estavam impressas, em diferentes tamanhos e combinações, as letras do alfabeto. Parecia também aos visitantes estar sempre suspenso sobre a casa o cheiro acre e lânguido do ópio.

Mas isto os filhos de Kim Ching não notavam e, se notassem, não se incomodariam. Depois de cumprimentá-los, o dr. Saunders ofereceu-lhes cigarros e perguntou-lhes o motivo da visita. Seu pai, impossibilitado pela cegueira de fazer a viagem a Fu-chou, desejava que o doutor fosse a Takana fazer a operação que há dois anos lhe fora recomendada. Quais seriam seus honorários? O médico sacudiu a cabeça. Tinha uma grande clientela em Fu-chou e era impossível ausentar-se por tanto tempo da cidade. Não via razão por que Kim Ching não pudesse fazer a viagem, dispondo de tantos barcos de sua propriedade. Além disso ele podia chamar o cirurgião de Macassar, homem perfeitamente em condições de realizar a operação. Mas os filhos de Kim Ching falaram com eloqüência, explicando que seu pai estava convencido de que ninguém era capaz de fazer os milagres do dr. Saunders e afirmara que só a ele se entregaria. Estava disposto a pagar o dobro da quantia que o doutor deixaria de ganhar ausentando-se de Fu-chou. Este continuava a sacudir a cabeça negativamente. Então, os dois irmãos entreolharam-se e o mais velho tirou do bolso uma grande e suja carteira de couro cheia de notas do banco oficial. Foi abrindo-as diante do doutor, mil dólares, dois mil dólares, e ele sorria piscando os olhos agudos e brilhantes. O chinês continuava a abrir as notas, sorrindo também, sem vontade, mas sem tirar os olhos do médico, até notar em seu rosto uma mudança de expressão. Ele, porém, estava imóvel. Seus olhos guardavam o mesmo tom de bom humor, mas os chineses sentiam que seu interesse despertara. O mais velho parou um momento e mirou-o, esperando uma resposta.

—  Não posso deixar meus clientes durante três longos meses — disse ele. — Kim Ching poderá chamar um desses médicos holandeses de Macassar ou de Amboyna. Conheço um em Amboyna que é o homem indicado.

Mas o chinês não respondeu. Foi pondo mais notas sobre a mesa. Eram cédulas de cem dólares arranjadas em pacotes de dez. A carteira aos poucos se esvaziava. E dez montinhos de notas ali estavam dispostos lado a lado.

—  Basta — disse o doutor. — Estou às ordens.

 

Foi uma viagem complicada. De Fu-chou seguiu num navio chinês para Manila, nas Filipinas, e de lá, depois de alguns dias de espera, a bordo de um cargueiro para Macassar. Tomou então passagem em um navio holandês que seguia mensalmente para Merauke, na Nova Guiné, escalando em diversos portos, e assim chegou finalmente a Takana. Levava como criado um rapaz chinês que dava anestésicos em caso de necessidade e preparava-lhe os cachimbos de ópio. Fez em Kim Ching uma operação bem-sucedida e ali ficou à espera de que o navio holandês regressasse de Merauke. A ilha era grande mas isolada, e só de tempos em tempos recebia a visita do governador holandês. O governo era representado por alguns mestiços javaneses que não falavam inglês e por poucos soldados de polícia. A cidade consistia em uma pequena rua comercial. Duas ou três lojas pertenciam a árabes de Bagdá; todas as restantes, a chineses. Havia uma pequena casa de campo, distante dez minutos da cidade, que servia de residência ao governador durante suas visitas. Nela instalou-se o dr. Saunders. O caminho que levava a ela passava entre plantações de cinco quilômetros de extensão e perdia-se depois na floresta virgem.

Quando o navio holandês chegava ao porto, sempre havia uma certa animação. O capitão, um ou dois oficiais e o chefe das máquinas vinham para terra, seguidos às vezes dos passageiros ocasionais, e ali ficavam bebendo cerveja na casa de Kim Ching, nunca por mais de três horas. Depois voltavam ao navio para dormir. Era justamente à porta dessa casa que o dr. Saunders estava sentado. Uma coberta de lona protegia-o do sol que ardia lá fora, na rua. Um cachorro fuçava num monturo, desafiando o mosquedo, em busca de alguma coisa para comer. Duas ou três galinhas ciscavam pela estrada. Do lado oposto à loja, um chinezinho barrigudo deitado no chão fazia um castelo de areia. As moscas voejavam sobre ele, pousavam em seu corpo nu, mas o guri, distraído com o brinquedo, não dava atenção a elas. Um nativo passou, vestindo apenas um sarongue sem cor e levando no ombro, presos a uma vara, dois grandes cestos de açúcar. Dentro da loja um empregado, curvado sobre a mesa, rabiscava com pincel e tinta caracteres chineses num papel. Um coolie sentado no chão enrolava cigarros, que fumava um seguido do outro. Nenhum freguês aparecia para comprar. O dr. Saunders pediu uma garrafa de cerveja. O empregado deixou sua escrita, foi até os fundos da loja e trouxe de lá uma garrafa e um copo. A cerveja estava deliciosamente fresca.

O tempo custava a passar, mas ele não estava descontente. Tinha a capacidade de se divertir com pequenas coisas: o cachorro, as galinhas, o chinezinho barrigudo. Bebeu sua cerveja lentamente.

 

De repente, olhou e deu um grito de surpresa. No meio da estrada poeirenta, dois homens brancos caminhavam devagar em sua direção. De onde teriam vindo, se nenhum navio chegara ao porto? Caminhavam preguiçosamente, olhando à direita e à esquerda, como estrangeiros visitando a ilha pela primeira vez. Suas roupas e chapéus estavam sujos de pó. Chegaram diante da loja e deram com ele ali sentado. Um deles perguntou?

—  É esta a casa de Kim Ching?

—  Sim, senhor.

—  Ele está?

—  Está doente.

—  Que azar! Pode-se beber?

—  Naturalmente.

O homem voltou-se para o companheiro.

—  Entra

Foram entrando.

— Que querem beber? — perguntou o doutor 

—  Uma cerveja para mim.

—  A mesma coisa — disse o outro.

O médico deu uma ordem ao coolie, que trouxe as garrafas de cerveja e cadeiras para os desconhecidos. Um deles era de meia-idade, rosto escuro e enrugado, cabelos e bigodes brancos. De altura mediana, reservado, mostrava, ao falar, uns cacos horríveis de dentes. Seus olhos inquietos e astutos eram pequenos e sem brilho, dando-lhe uma aparência de raposa. Seu todo era desagradável.

—  De onde vêm? — perguntou o doutor.

—  Chegamos agora mesmo num barco a vela. Viemos da ilha Quinta-Feira.

—  Que tal a viagem? Bom tempo?

— Não podíamos desejar melhor. Linda viração e pouco mar. Meu nome é Nichols. Capitão Nichols. Talvez já tenha ouvido falar a meu respeito.

—  Acho que não.

—  Cruzo estes mares há trinta anos. Não existe ilha no arquipélago em que não tenha estado uma vez ou outra. Sou popularíssimo nesta zona. Kim Ching me conhece muito bem. Há vinte anos que me conhece.

—  Eu não sou daqui — disse o doutor.

O capitão Nichols olhou-o, mas, apesar de seu rosto aberto e de sua expressão cordial, havia qualquer coisa de desconfiança em seu jeito.

—  Parece-me que o conheço. Podia mesmo jurar que já o vi em algum lugar.

O dr. Saunders sorriu, mas não arriscou nenhuma informação a seu próprio respeito. O capitão parecia fazer esforços para se lembrar de onde conhecia aquele homem. Examinou-lhe o rosto com atenção. O médico era baixote, fino de corpo, mas com um princípio de obesidade. Suas mãos eram moles e gorduchas, porém pequenas e de dedos atilados, conservando ainda uma elegância bem-educada. Era um homem feio, de nariz arrebitado e boca grande, mostrando, quando ria, uns dentões amarelos e desparelhados. Sob as espessas sobrancelhas grisalhas, seus olhos cinzentos brilhavam alegres e inteligentes. Não estava barbeado com apuro e sua pele meio enrugada tinha uma coloração quase púrpura nas bochechas. Seu aspecto era o de um cardíaco. O cabelo, que outrora devia ter sido negro e forte, estava agora branco e já começava a escassear. Sua feiúra, entretanto, atraía em vez de desgostar. O riso dava a seu rosto uma infinita vivacidade e uma malícia extrema a sua expressão. Alguém o tomaria por um bufão, não fosse a sagacidade penetrante de seus olhos. Sua inteligência era visível. Alegre e vivaz, amando uma boa pilhéria, divertindo-se à custa dos outros e de si mesmo, não perdia nunca o aspecto de homem perfeitamente controlado. Apesar de sua loquacidade e de sua franqueza superficial, seus olhos risonhos estavam sempre atentos, como se pesassem, julgassem e formassem uma opinião. Não era homem que tomasse as coisas por seu valor aparente.

Como ele guardasse silêncio, o capitão Nichols prosseguiu, fazendo um gesto com o polegar na direção de seu companheiro:

—  Fred Blake.

O dr. Saunders sacudiu a cabeça.

Mas o capitão insistiu:

—  Ainda se demora por aqui?

—  Estou apenas à espera do navio holandês.

—  Norte ou sul?

—  Norte.

—  Como disse mesmo que se chamava?

—  Ainda não lhe disse meu nome. Saunders.

—  Tenho viajado muito pelo oceano Indico para fazer perguntas — disse o capitão com riso desagradável. — Não faça perguntas que não ouvirá mentiras. Saunders? Tenho conhecido uma porção de gente com esse nome. Mas, afinal, que é que há com nosso velho Kim Ching? Excelente sujeito. Esperava encontrá-lo aqui para uma conversa.

— Andou com um problema na vista. Uma catarata.

O capitão ergueu-se um pouco e estendeu a mão.

— Dr. Saunders. Eu logo vi que o conhecia. Fu-chou. Andei por lá há sete anos.

O médico apertou-lhe a mão. Nichols voltou-se para o companheiro.

—  Todo mundo conhece o dr. Saunders. È o melhor médico do Oriente. Olhos é o forte dele. Um camarada meu que quase ficou cego foi consultar o homem e hoje enxerga tão bem como qualquer um de nós. Os chins juram por seu nome, dr. Saunders. Mas que surpresa mais agradável! Eu estava certo de que o amigo nunca se ausentava de Fu-chou.

—  Fui obrigado.

—  É uma sorte para mim. O senhor é o homem que eu precisava encontrar.

Fixou os olhos no doutor com uma intensidade quase ameaçadora.

—  Estou sofrendo de uma terrível dispepsia.

—  Meu Deus! — murmurou Fred Blake.

Era a primeira vez que Fred abria a boca e o dr. Saunders voltou-se para ele. Estava estirado na cadeira, roendo os dedos, numa atitude de enfado e mau humor. Era um jovem alto, de corpo esguio e musculoso, cabelos castanhos e crespos, e grandes olhos azuis. Não parecia ter mais de vinte anos. Com seu aspecto sujo e meio selvagem, parecia uma fera de pouca idade. Sua expressão tinha qualquer coisa de desagradável, mas o nariz era reto e a boca bem desenhada.

—  Deixe de roer as unhas, Fred — disse o capitão. — É um hábito que não tolero.

—  Você com sua dispepsia. . . — respondeu o rapaz num risinho.

Seu sorriso mostrava uns dentes esquisitos. Muito brancos, pequenos e de uma forma perfeita, eram uma graça tão inesperada naquela face sombria que qualquer um ficaria surpreendido. Seu sorriso distante tinha uma grande doçura.

—  Você está rindo porque não sabe o que é isto. Eu sou uma vítima desta doença. E ninguém diga que não me cuido. Faço dieta, experimento drogas. Nada tem dado certo. Esta cerveja agora, por exemplo. Pensam que não me fará mal? Tenho certeza que me fará.

—  Vamos, conte tudo ao doutor — disse Blake.

O capitão Nichols não queria outra coisa. Começou a contar a história de sua doença. Descreveu os sintomas com uma minuciosidade científica. Nenhum detalhe, por mais revoltante que fosse, deixou de ser mencionado. Enumerou os médicos que já consultara e os remédios que havia experimentado. O doutor o ouvia em silêncio, com uma expressão de interesse e simpatia e sacudindo a cabeça ocasionalmente.

—_ Se há alguém  que possa fazer alguma coisa  por mim, é o senhor. Não é preciso dizer que o doutor é um homem inteligente. Basta olhá-lo para se saber disso.

—  O diabo é que eu não posso fazer milagres. Não se vai exigir que, num minuto, o médico faça alguma coisa por um doente crônico como o senhor.

—  Não, eu não exijo tanto, doutor. Mas o senhor poderia me receitar algo. Tomarei tudo o que me aconselhar. Agora, o que eu gostaria que o senhor fizesse era um exame completo em mim. Será possível?

—  Quanto tempo ficarão aqui?

—  O tempo que quisermos.

—  Temos intenção de sair assim que conseguirmos o que queremos — interrompeu Blake.

Um rápido olhar cruzou-se entre os dois homens. O dr. Saunders notou-o. Sem saber por quê, teve a impressão de que havia algo de estranho naquele olhar.

—  O que trouxe os senhores aqui?

O rosto de Fred Blake tornou-se de novo sombrio e respondeu com um rápido olhar à pergunta do doutor. Havia nele alguma coisa de suspeita e mesmo de receio. Foi o capitão quem informou:

—  Conheço Kim Ching há um mundo de anos. Estávamos precisando de provisões e  achamos que não havia nenhum mal em reabastecer nossos depósitos.

—  Andam viajando a negócios?

— De uma certa maneira, sim. Se qualquer coisa aparece no caminho, a gente topa. Como todo mundo faz.

— Que mercadoria carregam?

—  Um pouquinho de  tudo.

Deu um sorrizinho afável, mostrando os dentes tortos e amarelos. Seu jeito fez o dr. Saunders pensar que eles talvez contrabandeassem ópio.

—  Vão a Macassar, por acaso?

—  Devemos ir.

—  Que jornal é aquele? — perguntou de repente Fred Blake, apontando para o balcão.

—  Oh! tem três semanas de atraso. Veio no vapor em que viajei.

—  Há algum jornal australiano por aqui?

—  Não.

—  E notícias da Austrália naquele jornal?. . .

—  É um jornal holandês. Eu não conheço a língua. Em todo caso, os senhores terão notícias mais frescas na ilha Quinta-Feira.

Blake franziu levemente  as  sobrancelhas.  O  capitão sorriu com malícia.

—  Nunca recebe jornais ingleses aqui? — perguntou Blake.

— De vez em quando um exemplar de segunda mão do jornal de Hong Kong, ou um velho suplemento do Times.

—  Não há muitas novidades então. . .

—  Só as que o vapor holandês costuma trazer.

—  Nenhum telegrama?

—  Não.

—  Se alguém quisesse escapar da polícia, estaria seguro aqui — disse o capitão Nichols.

—  Por algum tempo, talvez — concordou o médico.

—  Mais uma garrafa de cerveja, doutor?

—  Acho que não tomo, não. Vou indo para casa. Se quiserem vir jantar comigo esta noite, creio que se arranjara qualquer coisa para comer.

Dirigiu-se a Blake, porque julgava que ele recusaria o convite, mas foi o capitão quem respondeu.

— Ótimo. Vamos variar um pouco.

— Não se incomode conosco — disse Blake.

— Não há incômodo algum. Estarei aqui mais ou menos às seis horas. Tomaremos qualquer coisa e iremos jantar. Dizendo isto, levantou-se, cumprimentou-os e partiu.

 

Mas não voltou imediatamente para casa. O convite que fizera cordialmente aos desconhecidos não fora devido a um sentimento súbito de hospitalidade, mas a uma idéia que lhe viera à cabeça enquanto conversava com eles. Agora que estava ausente de Fu-chou e de sua clientela, não tinha pressa em voltar, e imaginava uma viagenzinha a Java, suas primeiras férias em muitos anos, antes de regressar ao trabalho. Pensou que se os homens lhe dessem uma passagem no barco, se não até Macassar, ao menos até uma das ilhas mais freqüentadas, poderia encontrar então um vapor e tomar a direção que desejasse. Já se havia resignado a ficar mais umas três semanas em Takana esperando condução, mas, desde que Kim Ching já não necessitava de seus serviços e lhe ofereciam uma oportunidade, ele aproveitaria.

A idéia de ficar mais tempo naquele lugar tornou-se-lhe, de repente, intolerável.

Desceu pela rua larga, menos de um quilômetro de distância, até chegar ao mar. Não havia cais. Alguns coqueiros estendiam-se até a beira das águas, abrigando cabanas de nativos. Crianças brincavam descuidadas, e magros porcos eram assados em estacas.

Na linha prateada da praia a areia de coral brilhava ao sol, e mesmo de sapatos sentia-se a ardência do calor nas solas dos pés. Caranguejos horríveis se mexiam. Um recife de algumas centenas de metros formava uma lagoa e sua água era clara e profunda. Uma das galeotas de Kim Ching estava ancorada no porto e, não longe dela, o barco dos dois forasteiros. Era uma velha embarcação visivelmente necessitada de uma demão de tinta. Parecia pequena demais para enfrentar o oceano, e o dr. Saunders teve um momento de hesitação. Olhou o céu sem nuvens. Nenhuma brisa mexia as folhas dos coqueiros. Dentro do barco ancorado nem sombra de tripulantes.

Depois de olhar longamente, tomou a direção de casa. Mudou a roupa, ao chegar. Pôs a calça chinesa e a túnica de seda em que, por um longo hábito, se sentia mais à vontade e, apanhando um livro, foi sentar-se à varanda. Árvores frutíferas cercavam a casa, e no lado oposto do caminho havia um lindo grupo de coqueiros. Erguiam-se, altos e retos, em suas linhas regulares, e o sol forte furando as folhas borrifava o chão, fantasticamente, com sua luz amarelada. Atrás dele, na cozinha, o criado preparava a refeição. Nunca fora um grande leitor. Raramente abria um romance. Interessado em caracteres, gostava de livros que pintassem as estranhezas da natureza humana, e já havia lido e relido Pepys e o Johnson, de Boswell, o Montaigne, de Florio, e os ensaios de Hazlitt. Amava os velhos livros de viagem e seguia com prazer, em Hakluyt, a descrição dos países em que nunca estivera.

Tinha em casa uma coleção considerável de livros sobre a China, escritos pelos primitivos missionários. Nunca lia para se instruir nem para cultivar o espírito; procurava apenas nos livros uma oportunidade de sonhar. Lia com um peculiar senso de humor, tirando das narrativas dos missionários conclusões engraçadas que surpreenderiam os autores. Era um homem tranqüilo, de companhia agradável, mas incapaz de impor aos outros uma conversa, podendo gozar sozinho uma frase de espírito sem necessidade de transmiti-la.

Tinha agora na mão um volume das viagens de Père Huc, mas ia lendo sem fixar muito a atenção. Seus pensamentos fugiam para os dois desconhecidos chegados inesperadamente à ilha. Conhecera tantos milhares de pessoas em sua vida no Oriente que não tinha dificuldade em classificar o capitão. Era um mau sujeito, sem dúvida. Pela maneira de falar devia ser inglês, e suas inúmeras viagens pelos mares da China faziam suspeitar de que não procedera muito bem em seu país. A desonestidade estava estampada em seu jeito astucioso. Pelo aspecto do barco, não devia ter prosperado muito,  e o dr. Saunders suspirou ironicamente, pensando como era estranho que o malandro se satisfizesse em receber apenas uma recompensa adequada a seus trabalhos. Era provável, naturalmente, que o capitão Nichols  preferisse um serviço sujo a um limpo. Pertencia a essa espécie de homens que está sempre disposta a deitar a mão em qualquer coisa. Ninguém teria confiança nele. Nem contaria com ele senão para fazer o mal.  Dissera que conhecia Kim  Ching. Era muito provável que ele estivesse mais freqüentemente sem trabalho do que trabalhando, e que aproveitasse a ocasião de trabalhar sob as ordens de um patrão chinês. Pertencia a essa classe de sujeitos de quem alguém se lembraria apenas se tivesse alguma coisa suspeita para fazer. Era quase certo que já fora tripulante de um dos barcos de Kim Ching. O dr. Saunders chegou à conclusão de que não se desgostava totalmente do capitão Nichols. Sentia-se tocado pelo ar de desamparo do marinheiro, pelo agradável sabor que havia em sua velhacaria, pela própria dispepsia, que lhe emprestava uma nota cômica. Sentia-se feliz com a idéia de tornar a vê-lo à noite.

O interesse que os dois despertavam no dr. Saunders não era de ordem científica nem humana. Ele apenas buscava nos dois homens uma momentânea distração. Olhava-os sem paixão e achava nesse passatempo de sondar os segredos do indivíduo o mesmo gosto do matemático que procura encontrar a solução de um problema. Não tirava proveito da experiência obtida. Sua satisfação era puramente estética e, se esta capacidade de conhecer e julgar os homens lhe dava um senso sutil de superioridade, ele não tinha consciência disso. Tinha muito menos preconceitos do que a maioria dos homens. Não sabia mesmo desaprovar.

Muitos são indulgentes para com os vícios que praticam e não toleram os alheios. Alguns, de espírito mais aberto, são capazes de aceitá-los numa tolerância compreensiva, numa tolerância, entretanto, mais teórica do que prática. Poucos, porém, suportam sem desgostos hábitos diferentes dos seus. É raro que um homem se sinta chocado com a idéia de que um outro seduziu a mulher do próximo, e pode ser mesmo que não se perturbe sabendo que alguém fez trapaças no jogo ou falsificou um cheque (naturalmente no caso em que ele próprio não seja a vítima). Mas é difícil que esse mesmo homem considere seu amigo íntimo alguém que pronuncie mal as palavras ou se utilize da faca em vez do garfo. Faltava ao doutor essa sensibilidade. Maneiras desagradáveis à mesa impressionavam-no tão pouco quanto uma úlcera purulenta. O certo e o errado importavam-lhe tanto quanto o bom e o mau tempo. Aceitava-os como viessem. Julgava-os sem condená-los. E ria. . .

Era um homem fácil de tratar e apreciado por todos, mas não tinha um amigo. Companheiro agradável, não procurava nem permitia intimidades. Sua indiferença pelos outros era cordial. Bastava-se a si mesmo, perfeitamente. Sua felicidade dependia dele e não dos outros. Era egoísta, mas, sendo ao mesmo tempo um desinteressado, não prejudicava a ninguém. Pelo fato de nada desejar neste mundo, não invadia o caminho dos outros. O dinheiro significava muito pouco para ele, por isso nunca se preocupara com a possibilidade de que seus clientes não pagassem a consulta. Achavam-no filantrópico. A visita dos doentes o divertia e ele continuava a encontrar distrações na natureza humana. Confundia pessoas e pacientes. Cada um era uma nova página de um livro interminável, e o fato de haver tantas repetições nada acrescentava ao interesse. Era curioso notar como todos estes  tipos,  brancos,  amarelos, pardos,   correspondiam  às situações críticas da humanidade, mas olhava sem que seus nervos e seu coração fossem afetados, mesmo de leve. A morte, afinal de contas, era o grande acontecimento da vida do homem e ele gostava de ver a maneira como cada um a afrontava. Era com uma espécie de emoção que procurava penetrar a consciência de um homem, através dos olhos assustados, olhos de desafio ou de resignação, até chegar à alma, confrontada pela primeira vez com a certeza  de que sua corrida estava finda. Sua sensibilidade, porém, não se excitava. Ele não tinha tristeza nem piedade. Só pensava melancolicamente no pouco que significava para um o que é tão importante para outro. No entanto sua atitude era cheia de simpatia. Sabia exatamente o que dizer para aliviar o terror ou o sofrimento de um instante, e jamais se separava de um doente sem deixá-lo consolado e encorajado. Era um jogo que ele praticava, mas tinha satisfação em jogá-lo bem. Sua bondade era intuitiva, exercia-a naturalmente, sem interesse, Não gostava de matar o próximo, por isso não caçava nem pescava. Ia mesmo tão longe sua crença no direito de vida de cada um que preferia espantar uma mosca ou um mosquito a matá-los com uma pancada. Talvez fosse um homem intensamente lógico. Ninguém poderia negar que a vida dele era bela, pois era caridoso e bom, e punha todas as suas energias em aliviar as dores alheias; mas, se o motivo conta alguma coisa na boa ação, ele não merecia louvores,  pois nunca era influenciado por amor, nem por caridade ou piedade.

 

Quando terminou sua refeição, voltou ao quarto e estendeu-se na cama. O calor, porém, era intenso e ele não conseguiu dormir. Imaginava que ligação poderia existir entre o capitão e Fred Blake.

Apesar do modo de vestir, o jovem não dava a impressão de ser um marinheiro. O médico não sabia bem por quê. Talvez pela ausência de mar nos olhos dele. Era um tipo difícil de classificar. Falava com um vago acento australiano e aparentava ter boa educação. Suas maneiras não eram más. Pertencia, provavelmente, a alguma família de negociantes em Sydney e se acostumara a viver com conforto e decência. Por que razão, no entanto, estaria viajando por estes mares desertos, num barco de pescar pérolas, em companhia de um vagabundo como Nichols? Naturalmente os dois eram sócios, mas a espécie de tráfico a que se dedicavam continuava um mistério. Saunders preferia acreditar que a coisa não devia ser lá muito honesta.

Ainda que o doutor estivesse inteiramente nu, o suor escorria-lhe pelo corpo. Entre suas pernas havia um desses travesseiros muito frescos, usados naquelas regiões, com os quais a gente se acostuma tanto que não os dispensa mesmo em climas temperados. O calor era tão forte que o próprio travesseiro incomodava. O médico atirou-o para um lado e deitou-se de costas. Sobre o coqueiro do jardim, miríades de insetos zuniam e o insistente rumor, geralmente despercebido por ouvidos acostumados, irritava-o agora. Abandonou a idéia de dormir e, envolvendo o corpo num sarongue saiu de novo para a varanda. Estava tão quente e sem ar ali como lá dentro. Sentia-se cansado. Sua mente estava inquieta e os pensamentos agitavam-se em seu cérebro como as centelhas de um carburador defeituoso. Tentou se refrescar com um banho, mas o ardor do espírito permaneceu. A mesma desatenção, o mesmo peso. A varanda estava intolerável e ele voltou a espichar-se sobre a cama. O ar era o mesmo dentro dos mosquiteiros. Não conseguia ler, nem pensar nem descansar. As horas tinham como que pés de chumbo.

Ouviu afinal uma voz na escada e, saindo do quarto, encontrou um mensageiro de Kim Ching, que o mandara chamar. Visitara-o ainda aquela manhã e o encontrara sem novidade. Vestiu-se, porém,  e acompanhou  o mensageiro.

Kim Ching ouvira falar da chegada dos dois homens e estava curioso para saber o que pretendiam. Sabia que o doutor estivera com eles pela manhã. Não dava muita importância à chegada de pessoas desconhecidas à ilha. Mas o capitão pedira licença para visitá-lo e ele respondera que estava muito doente para receber visitas. Não se lembrava do homem apesar de ele se dizer seu conhecido. As informações do médico nada adiantaram à descrição que já lhe haviam feito previamente. A única coisa positiva é que eles pretendiam demorar-se dois ou três dias apenas.

—  Disseram-me que sairão de madrugada — informou o doutor. — Mas talvez tenham mudado de idéia, quando eu lhes disse que não havia telégrafo na ilha.

—  Carregam somente lastro em seu barco — disse Kim Ching —, pedras.

  Nenhuma carga?

  Nada.

  Ópio?

Kim Ching sacudiu á cabeça. O médico sorriu.

Talvez uma viagem de recreio. O homenzinho está doente do estômago. Quer que eu faça alguma coisa por ele.

O chinês soltou uma exclamação. Isto era a chave do enigma, lembrava-se do capitão Nichols. Fora um de seus tripulantes havia oito ou dez anos e, depois de uma briga qualquer que ele não lembrava muito bem, tivera de ser despedido.

É um homem mau — afirmou. — Eu poderia tê-lo metido na prisão.

O médico compreendeu que a transação, qualquer que fosse ela, não devia ter sido muito limpa, e que o capitão, sabendo que Kim Ching não se arriscaria a processá-lo, avançara nos lucros mais do que devia. Notou uma expressão sombria no rosto do chinês. Kim Ching lembrava-se agora perfeitamente do capitão. O homem perdera o registro, andara às voltas com uma companhia de seguros, e desde então fazia questão de trabalhar com patrões que não dessem muita importância a essas coisinhas. Tinha sido um terrível beberrão, até o dia em que o estômago dera o alarme. Ia vivendo como podia. Quase sempre no mar. Era um marinheiro completo e aceitava qualquer trabalho. Não se demorava neles mais tempo porque para ele era impossível se corrigir.

— Diga-lhe que é melhor ir dando o fora o quanto antes — concluiu Kim Ching rispidamente.

 

Era noite quando o dr. Saunders dirigiu-se mais uma vez ao botequim de Kim Ching. Nichols e Blake, sentados a uma mesa, bebiam cerveja. Levou-os à casa de campo. O marinheiro não parava de conversar, mas Fred conservava-se sombrio e silencioso.

O médico estava certo de que o moço vinha contra a vontade. Ao entrar na sala do bangalô, lançou a sua volta um olhar rápido è desconfiado, e sobressaltou-se ouvindo um ruído súbito.

—  É apenas um lagarto — disse o doutor.

—  Fez-me dar um pulo.

O médico chamou seu empregado, Ah Kay, e pediu-lhe que trouxesse uísque e copos.

—  Não sei se beberei — disse o capitão. — O uísque é um veneno para mim. É horrível a gente não poder beber ou comer alguma coisa sem saber se vai sofrer por causa disso.

—  Vejamos o que posso fazer pelo senhor.

Procurou a caixa de remédios e misturou qualquer coisa dentro de um copo, que entregou ao capitão, dizendo-lhe que tomasse.

—  Pode ser que isto o auxilie a comer sem perigo.

Serviu uísque para si mesmo e Fred Blake, e botou a funcionar o gramofone. O jovem escutava atentamente o disco, com uma expressão mais viva no rosto. Quando terminou de rodar o primeiro, pôs outro e continuou ouvindo o ritmo com os olhos sempre inquietos. O capitão Nichols descreveu as reuniões alegres a que comparecera em Fu-chou, Xangai e Hong Kong. Ah Kay serviu o jantar e os três sentaram-se à mesa.

Gosto de comer, mas não sou exigente. Acho que a comida deve ser boa, mas simples. Nunca fui um comilão. Um naco de carne e um pouco de legumes, com um pedacinho de queijo para terminar, e sinto-me satisfeito. Não há refeição mais simples do que esta. Entretanto, vinte minutos depois, tão regular como a marcha de um relógio, vem a agonia. Garanto-lhe que a vida não é digna de ser vivida quando se sofre como eu. Conhecem, por acaso, o velho George Vaughan? Um dos melhores tipos que já existiram. Costumava viajar para Amoy num dos barcos de Jardine. Pois bem, teve uma dispepsia tão forte que acabou se enforcando. Não se surpreendam se eu fizer o mesmo qualquer dia.

Ah Kay não era um mau cozinheiro, e Fred Blake fez justiça a seu jantar.

—  Isto é um bocado melhor do que o que estamos acostumados a comer a bordo.

— É quase tudo conserva, mas o rapaz sabe temperar. Os chineses são cozinheiros natos.

É o melhor jantar que comi nestas últimas semanas.

O médico lembrou-se de que eles lhe haviam dito que vinham da ilha Quinta-Feira. Com bom tempo a viagem não levaria mais de uma semana.

Que espécie de lugar é a ilha Quinta-Feira?

Foi o capitão que respondeu:

—  Um inferno. Só cabras vivem ali. O vento sopra seis meses de uma direção e seis meses de outra.  É de rebentar os nervos.

Falava com um brilho nos olhos como se visse o que estava atrás da simples pergunta do médico.

—  Vive lá? — perguntou este a Fred Blake, com um sorriso sem malícia nos lábios.

—  Não. Brisbane — respondeu o jovem secamente.

—  Fred tem um pequeno capital — informou o capitão — e anda procurando por aqui um modo de empregá-lo. Aliás, é uma idéia minha. Conheço bem estas ilhas e sei que um rapaz nestas condições tem uma porção de oportunidades. Era o que eu faria se tivesse dinheiro, comprar uma plantação nestas regiões.

—  Seguir a pesca de pérolas também — disse Blake.

—  Pode fazer tudo o que quiser. Você tem apenas que se sentar comodamente e deixar que os nativos trabalhem. Vida boa, rapaz. Garanto-lhe que não há outra melhor.

Os olhos espertos do marinheiro fixaram-se no rosto do dr. Saunders, espiando o efeito das palavras. Este compreendeu imediatamente que era uma história arranjada entre os dois, naquela tarde.

Quando o capitão notou que o médico não engolira a pílula, começou a rir gostosamente. Era como se ele sentisse tanto prazer em mentir que considerasse um golpe errado fazer com que alguém acreditasse em suas palavras.

—  É por isso que estamos aqui. Como o velho Kim Ching deve conhecer estas ilhas todas palmo a palmo, achei que podemos fazer negócio. Pedi ao rapaz do botequim que avisasse o velhote de minha presença.

—  Eu sei, ele me contou.

—  Ah! então esteve com ele? Ele disse alguma coisa a meu respeito?

—  Disse. Que o senhor fosse tratando de dar o fora o quanto antes.

—  Oh! mas que é, que ele tem contra mim?

—  Não sei.

É verdade que tivemos uma desavença, mas isso já foi há muitos anos.  É estúpido guardar rancor por tanto tempo a alguém. "Perdoe e esqueça" é meu lema.

 O capitão tinha um modo estranho de pensar. Achava-se n o direito de fazer mal a uma pessoa, mas não admitia que o prejudicado lhe guardasse rancor. O doutor divertiu-se intimamente observando este fato.

_Minha impressão é de que Kim Ching tem uma boa memória.

Conversaram sobre uma coisa e outra.

Sabe? — disse o marinheiro, de repente. — Acho que não vou ter meu ataque de dispepsia esta noite. Que droga foi aquela que o senhor me deu?

_Um  pequeno preparado  que  tem produzido bom resultado, em casos crônicos como o seu.

—  Antes me tivesse dado um pouco mais.

—  Não lhe faria bem da próxima vez, o senhor precisa é de tratamento.

—  Acha que poderá curar-me?

O médico viu nisto sua oportunidade.

—  Não lhe posso dizer ao certo. Se me fosse possível observá-lo por  alguns  dias e experimentar uma ou   duas coisas, acho que seria capaz.

— Tenho pensado  em ficar aqui algum  tempo para isto. Não temos nenhuma pressa.

—  E Kim Ching?

—  O que podemos fazer?

—  Tratar de sair daqui — disse Fred Blake. — Devemos evitar incômodos. A partida é amanhã.

—  Você pode falar, não sofre como eu. Olhe, o melhor é eu procurar o diabo amarelo amanhã e perguntar-lhe o que tem contra mim.

— A partida é amanhã — repetiu o outro.

A partida será quando eu quiser.

Os dois homens entreolharam-se um momento. O capitão sorria com jeito de raposa, mas Fred já estava irritado. O doutor interrompeu a discussão.

—  Eu não creio, capitão,  que o senhor conheça chineses tão bem quanto eu. Essa gente, quando mete a faca não solta mais a vítima.

O marinheiro deu um murro na mesa.

—  Bem! Foi apenas uma questãozinha de cem libras O velho Kim é podre de rico. Que diferença lhe podia fazer esse dinheiro? Não passa de um malandro muito grande.

—  Nunca notou que nada fere mais um malandro do que ser vítima de outro malandro?

O capitão tinha uma expressão sombria. Seus olhinhos cinzentos, quase unidos, pareciam convergir no olhar amargo do médico. Mas, ouvindo a observação do doutor, atirou a cabeça para trás e deu uma risada.

—  Esta é muito boa. Estou gostando do doutor. Ele não pensa o que diz, não é verdade? Que diabo! O mundo é assim mesmo. Quem não aproveita a ocasião é um imbecil. Naturalmente a gente se engana, de vez em quando. Mas ninguém pode adivinhar o que vai acontecer.

—  Se o doutor lhe der um pouco mais daquela droga e lhe disser como deve tomar, a coisa estará feita — disse Blake, então mais calmo.

—  Não. Não farei isto — afirmou o médico — e quero dizer-lhe por quê. Estou farto desta maldita  ilha  e com vontade de sair daqui. Se me derem uma passagem até Timor ou Macassar ou Surabaza, o senhor terá o tratamento que deseja.

—  É uma idéia — disse o capitão.

—  Uma idéia absurda — gritou o outro.

—  Por quê?

—  Não podemos levar passageiros.

—  Põe-se o doutor em qualquer lugar.

—  Mas se não há acomodações?!

—  Acho que o doutor não é exigente.

Nem um pouco. Levarei comida e bebida para mim. Algumas conservas e garrafas de cerveja que Kim Ching me fornecerá.

Nada feito — disse Blake.

Diga uma coisa, moço. Quem dá ordem aqui? Você ou eu?

—  Se você quer ir para esse terreno, sou eu.

 Deixe de tolices, rapaz. Eu sou o patrão, e o que digo se faz.

 De quem e o barco?

Você sabe muito bem de quem é.

O médico observava os dois com curiosidade. Seus olhos vivos e brilhantes não deixavam escapar nada.

O capitão perdera seu ar fagueiro e suas faces estavam coradas. O jovem tinha um aspecto terrível. Seus punhos cerravam-se sobre a mesa e sua cabeça avançou.

—  Não quero ninguém a bordo e pronto!

—  Vamos, vamos — disse o doutor. — Não darei incômodo a vocês. Afinal, é coisa de cinco ou seis dias. Pense um pouco, rapaz. Se vocês não me levarem, ficarei por aqui sabe Deus até quando. . .

—  Eu sei o que faço.

—  Tem alguma coisa contra mim?

—  Isto é comigo.

O médico lançou-lhe um olhar interrogativo. Blake não estava irritado, mas nervoso. Seu belo rosto sombrio empalidecera. Era estranho que o moço não o quisesse a bordo. Os navegantes daqueles mares não costumam fazer caso dessas coisas. Kim Ching afirmara-lhe que os dois não levavam carga, mas era possível que o carregamento fosse daqueles que não tomam muito espaço e são facilmente transportáveis. Morfina e cocaína não ocupam muito espaço, e são mercadorias que dão dinheiro quando sabiamente negociadas.

—  Será um grande favor que vocês me fazem.

—  Sinto muito. Não quero parecer um grosseirão, mas eu e Nichols estamos aqui a negócios e não podemos nos desviar do caminho para desembarcar um passageiro.

—  Conheço o doutor há vinte anos — disse o capitão. — É um homem honesto.

—  Você nunca pôs os olhos nele senão esta manhã.

—  Estou bem informado a seu respeito. E se é verdade o que tenho ouvido, ele não pesará muito sobre nós.

Olhou o médico, sorrindo com aquele mesmo jeito malicioso.

O doutor suportou, com firmeza, o seu olhar. Ninguém poderia dizer se a frase fizera efeito ou se ele não tinha noção do que o marinheiro dissera.

— Não me importo muito com o que os outros pensam.

— Viva e deixe que os outros vivam — disse o rapaz obstinadamente.

—  Oh! você está me irritando. Não há motivo para receios.

—  Quem disse que eu tenho receios?

—  Eu.

—  Não vejo razão para isso.

Lançaram rapidamente as frases um contra o outro. A exasperação ia crescendo. O dr. Saunders imaginava que segredo poderia existir entre os dois homens. Havia evidentemente mais mistério em Fred Blake do que em Nichols. Este não tinha nada de particular em sua consciência. Que mistério havia em tudo aquilo? O médico não dominava seu desejo de embarcar de uma vez, mas sentia um certo prazer na dificuldade de realizá-lo.

—  Escutem, não quero ser a causa de uma briga entre vocês dois. Se Blake não me quer a bordo, acabemos com a discussão.

—  Mas eu quero — insistiu o capitão. — É uma ocasião única para mim. Se há alguém que pode endireitar estômago, é o senhor. Acha que vou perder esta oportunidade?

Você só pensa em seu  estômago — disse Blake. —Se não tivesse o olho maior que a barriga, tudo estaria remediado.

— É mesmo? Então você conhece melhor do que eu meu aparelho digestivo? Já sentiu uma simples torrada pesando no estômago como uma tonelada de chumbo? Acha que é fantasia, com certeza. . .

Acho, não passa disso.

Seu filho da puta.

— Quê?

Estou dizendo que você é um filho da puta.

Oh! acabem com isso — interveio o doutor.

O capitão Nichols arrotou.

— Vejam, é ela de novo. Há três meses que eu consigo jantar calmamente, sem conseqüências. Agora volta a maldita dispepsia. Eu sou um feixe de nervos, sempre fui. Pensei que passaria uma noite agradável. Aí está no que deu.

O médico tomou um ar compadecido.

— O que você precisa é de observação. Educação do estômago, simplesmente. Se eu pudesse acompanhá-los  na viagem, conseguiria isto. Não prometo a cura em cinco ou seis dias, mas posso indicar-lhe um caminho para isso.

—  E quem disse que o senhor não virá conosco?

—  Blake, que, se não me engano, é o patrão.

Pois o senhor está enganado. Quem manda aqui sou eu. Prepare todas as suas coisas e venha amanhã para bordo. Eu o aceito como passageiro.

—  Você não pode fazer isso! — berrou Blake. — Não quero ninguém a bordo.

—  Ah! não quer? E que tal se eu tocar o barco diretamente para Bornéu do Norte? Território britânico, meu caro.

Cuidado com o que lhe poderá acontecer.

— Acha que eu tenho medo de você? Que muito antes de seu nascimento, eu já estava correndo este mundo sem aprender a cuidar de minha pessoa? E quem fará o barco navegar? Você e os quatro negros? Você,  que  não sabe distinguir a proa da popa? Essa é muito boa!

Blake cerrou as mãos novamente. Os dois homens se miraram, mas no olhar do capitão havia uma expressão de zombaria. Ele sabia que no fim das contas ganharia a parada. O outro limitou-se a suspirar.

—  Para onde quer ir? — perguntou ao doutor.

—  Qualquer ilha holandesa onde possa tomar um navio que me leve.

—  Está bem, pode  ir. Em todo o caso será melhor do que suportar sozinho esse sujeito.

Lançou para o capitão um olhar de raiva impotente. Este retribuiu-lhe com uma gargalhada.

—  É verdade,  Fred,  será uma  boa  companhia para você. Sairemos amanhã pelas dez horas. — E, dirigindo-se ao médico: — Acha que é uma hora conveniente?

—  Ótima. Estamos combinados.

 

Os convidados saíram cedo e o dr. Saunders, apanhando um livro, estirou-se na cadeira de junco. Olhou o relógio, passava um pouco das nove. Tinha por hábito fumar uma meia dúzia de cachimbos à noite. Gostava de começar às dez. Ficava esperando o momento, não com qualquer sensação de mal-estar, mas com um agradável tremor de antecipação, sem nunca adiantar a hora daquele pequeno prazer que se concedia indulgentemente.

Chamou Ah Kay e disse-lhe que embarcariam na manhã seguinte. O rapaz curvou-se; ele também sentia-se contente por ir embora. Desde os treze anos que estava a serviço do doutor e agora tinha dezenove. Era um rapaz esbelto e simpático, de grandes olhos negros e uma pele macia de menina. O cabelo pretíssimo e aparado curto cobria a cabeça como um barrete de veludo. O rosto oval tinha cor de marfim velho. Gostava de sorrir, mostrando duas fileiras esquisitas de dentes, pequenos, brancos e regulares. Com sua calça curta de algodão branco e a estreita blusa sem gola, era de uma elegância lânguida que impressionava. Caminhava silenciosamente, e seus gestos tinham a graça intencional de um gato. O médico, às vezes, sentia-se lisonjeado só de pensar Ah Kay o olhava com afeição.

Às dez horas fechou o livro e chamou:

— Ah Kay!

O rapaz entrou e o doutor pôs-se a contemplá-lo calmamente, enquanto ele apanhava de sobre a mesa a pequena bandeja em que estavam a lâmpada de óleo, a agulha cachimbo e a lata redonda de ópio. Ah Kay botou-a no chão, junto do médico, e acendeu a lâmpada. Aproximou a agulha da chama e com a ponta aquecida tirou da lata um pouco de ópio. Depois fez com os dedos uma bola e cozinhou-a delicadamente na chama amarelada. O doutor acompanhava a operação. Ah Kay tirou a bola do fogo, amassou-a com leveza e pôs-se a cozinhá-la novamente. Meteu-a depois no cachimbo e ofereceu-a ao patrão. Este, numa tragada rápida e forte de bom fumador, puxou a fumaça adocicada. Guardou-a um momento nos pulmões e soprou devagar. Restituiu o cachimbo ao rapaz, que repetiu a operação. Fumou duas, três vezes. Ah Kay ergueu-se, foi à cozinha e voltou com um bule de chá de jasmim, que derramou numa chávena chinesa. A doce fragrância por um instante dominou o cheiro acre da droga. O fumador, estendido na cadeira, com a cabeça pousada em uma almofada, olhava o teto, sem falar. Ah Kay acendeu um cigarro e, tomando um estranho instrumento de cordas, um pouco semelhante a um banjo, pôs-se a tocar lentamente. As notas finas demoraram-se no ar, como sons desconexos, e, se de vez em quando se podia escutar o início de uma melodia, era uma coisa incompleta que desapontava o ouvido atento. Música lenta e queixosa, incoerente como perfumes de várias flores, oferecendo apenas uma indicação, uma vaga sugestão de ritmo, para o ouvinte criar na própria alma uma melodia tão sutil que nenhum ouvido podia escutar. Aqui e ali uma aguda dissonância, como um arranhão de giz numa lousa, feria osnervos com seu choque súbito. Dava à alma o mesmo delicioso tremor que assalta o corpo quando, no calor do verão, mergulha na água gelada. O rapaz, sentado no chão, numa atitude de beleza sem artifício, ia ferindo as cordas contemplativamente.

O doutor perguntava a si mesmo de que vagas emoções estaria possuído. Sua face melancólica estava impassível. Parecia procurar, na memória, melodias ouvidas em uma existência anterior.

Depois de consultar o patrão, com um sorriso nos lábios, Ah Kay pôs o instrumento no chão e tornou a acender a lâmpada. Preparou outro cachimbo.

O doutor fumou-o e repetiu duas vezes. Era seu limite. Fumava regularmente, mas com moderação. Ficou depois ali reclinado, entregue a seus pensamentos. Ah Kay preparou alguns cachimbos para si mesmo, fumou-os e apagou a lâmpada. Estendeu-se depois sobre uma esteira e, descansando a cabeça na almofada, adormeceu.

O doutor, numa sensação de bem-estar, refletia sobre o enigma da existência. Seu corpo descansava tão confortavelmente na cadeira que ele quase não o sentia. Parecia que o espírito se libertara. Nesta condição de liberdade a alma podia olhar a carne com a tolerância com que a gente olha um amigo importuno, cujo amor, entretanto, nos lisonjeou. Seu espírito estava extraordinariamente alerta, mas não havia ansiedade nem inquietude em sua atividade. Movia-se com a segurança com que um físico se move entre seus símbolos, e sua lucidez gozava a delícia absoluta da beleza pura. Era um fim em si mesmo. Ele era senhor do espaço e do tempo. Não havia problema que ele não pudesse resolver; tudo era estranhamente simples. Mas lhe parecia insensato resolver os problemas do ser, quando existia um prazer tão delicado como o de saber que temos capacidade para fazer isso no momento em que quisermos.

 

O dr. Saunders era madrugador. Mal nasceu a manhã, ele saiu para a varanda e chamou Ah Kay. O rapaz trouxe o desjejum, as pequenas bananas conhecidas como "dedos de moça", os inevitáveis ovos fritos, torradas e chá. Depois cuidou da bagagem, aliás muito pequena. O minguado guarda-roupa de Ah Kay coube num pacote de papel. O do médico foi posto numa valise chinesa de pele de porco. Guardou os instrumentos profissionais numa lata de tamanho médio. Três ou quatro clientes nativos esperavam ao pé da escada que levava à varanda, para consultá-lo, e ele os atendeu, um por um, enquanto comia. Disse-lhes que partia aquela manhã.

Saiu depois para a casa de Kim Ching, que ficava no meio de uma plantação de coqueiros. Era um bangalô imponente, o mais vasto da ilha, com alguns detalhes arquitetônicos que lhe davam estilo, mas faziam-no contrastar com a sordidez das casas vizinhas. Não tinha jardim. O campoque o cercava, cheio de latas velhas de conserva e de pedaços de caixotes, estava abandonado. Galinhas, patos, cachorros e porcos corriam, revolviam o monturo. A casa era mobiliada em estilo europeu. Pelas paredes, em molduras de ouro maciço, viam-se fotografias ampliadas de Kim Ching e de outra pessoas de sua família.

O chinês era um homem alto e forte, de aspecto majestoso. Sobre a roupa de linho branco destacava-se uma corrente de relógio de ouro puro.   Estava contentíssimo com o resultado da operação. Já podia enxergar melhor do que imaginara. Em todo o caso, gostaria de ter o dr. Saunders por algum tempo como hóspede. 

— Que loucura embarcar com esse sujeito! O senhor está tão bem aqui! Por que não espera? Fique à vontade, como se estivesse em casa. É muito melhor esperar o navio holandês. Nichols é um tipo que não presta.

Você também tem seus defeitos, Kim Ching.

O negociante, mostrando uma fileira de dentes de ouro, deu um sorriso lento e gordo em que não havia desaprovação. Gostava do médico e era grato a ele. Quando viu que não o poderia convencer, deixou de insistir para que ficasse. O doutor deu-lhe alguns conselhos finais e despediu-se. Kim Ching acompanhou-o até a porta.

Saunders desceu à vila e comprou algumas provisões para a viagem: um saco de arroz, um cacho de bananas, conservas, uísque e cerveja. Mandou as coisas para bordo, por um coolie, e voltou à casa de campo.

Ah Kay já estava pronto. Um de seus clientes matinais, contando com uma gorjeta, esperava para levar a bagagem. Quando chegaram à praia, um dos filhos de Kim Ching aguardava-os para despedir-se, trazendo, em nome de seu pai, uma peça de seda chinesa como presente, e um pequeno embrulho em papel branco, com caracteres chineses, cujo conteúdo não era difícil de adivinhar.

— Ópio?

Meu pai diz que é de boa qualidade. Talvez o senhor não tenha o bastante para a viagem.

Não havia sinal de vida na embarcação, nem meio de transporte até ela. O doutor gritou, mas não obteve resposta. Ah Kay e o filho de Kim Ching tentaram, também, em vão, fazer-se ouvir. Afinal, puseram os pacotes e a bagagem na canoa de um nativo. Quando chegaram junto à embarcação, o médico tornou a gritar:

—  Capitão Nichols!

Fred Blake apareceu.

—  Ah! é o senhor? Nichols foi a terra buscar água

—  Não o vi por lá.

Blake não disse mais nada. O médico subiu para bordo seguido por Ah Kay, e o nativo carregou a bagagem e as provisões.

—  Onde coloco minhas coisas?

—  Ali está a cabine — indicou Fred Blake.

Desceram. A cabine era tão baixa que não se podia ficar em pé dentro dela. O espaço era pequeníssimo. O mastro principal atravessava-a. Do teto escurecido pendia uma lâmpada esfumaçada. Havia pequenas vigias com fechos de madeira. Os colchões de Nichols e Blake estavam estendidos, ocupando quase todo o espaço. O doutor voltou para o convés e disse a Ah Kay que levasse para baixo sua valise.

—  Não acha melhor pôr os pacotes no porão? — perguntou Fred.

— Não há lugar para eles; levamos os nossos na cabine.

O médico olhou em torno. Não entendia de embarcações. Aquela, porém, parecia-lhe muito pequena para uma viagem tão longa. Tinha pouco mais de cinqüenta pés de comprimento. Gostaria de perguntar a Blake algumas coisas, mas ele já se afastara. Era evidente que estava insatisfeito com a presença do intruso.

Havia um par de espreguiçadeiras no convés. O doutor sentou-se numa delas.

De repente, um negro apareceu. Era um sujeito forte, de cabelos crespos e grisalhos.

—  O capitão está chegando.

Uma canoa se aproximava, com dois remadores negros e Nichols sentado ao leme. Chegando perto, o capitão chamou:

—  Utan, Tom, dêem uma mão nos barris.

Outro negro surgiu do porão.  A tripulação consistia nesses quatro homens fortes e altos, tipos bonitos de ilhéus. O capitão subiu para bordo e apertou a mão do doutor.

Então, já está instalado? Que me diz do Fenton? Não é um barco excepcional, mas nada fica a dever aos outros. Agüenta qualquer tranco

Olhou a embarcação, satisfeito, com um ar de operário que contempla o instrumento que maneja.

—  Bem, já vamos largando.

Deu suas ordens rispidamente. As velas foram hasteadas, a âncora erguida, e o barco afastou-se do porto. Não havia uma nuvem no céu, e o sol batia sobre o mar brilhante. O vento soprava sem força, enfunando levemente as velas. Gaivotas voavam em largos círculos. De vez em quando um peixe-voador furava a água, flechava como um dardo fino e mergulhava de novo. O doutor lia, fumava cigarros ou, cansado de ler, olhava o mar e as ilhas verdes por onde passavam. Depois de alguns momentos o capitão passou o leme a um tripulante e veio sentar-se junto dele.

—  Fundearemos em Badu esta noite. Fica mais ou menos a 45 milhas. Há um bom ancoradouro lá.

—  Que vem a ser Badu?

—  Oh! uma ilha desabitada. Geralmente pernoitamos ali.

—  Blake não parece estar muito contente com minha companhia.

Tivemos por isso uma pequena  discussão, ontem à noite.

Qual o motivo dessa atitude?

— Oh! Fred não passa de uma criança.

O médico sabia que deveria pagar a passagem e que,  quando um paciente conta  todos os seus sintomas,  toma confiança e fala mais do que é necessário,.

Começou a interrogar o marinheiro a respeito de sua saúde. Não havia nada que este gostasse mais de falar. Levou-o à cabine, deitou-o e examinou-o cuidadosamente. Quando voltaram ao convés, Tom Obu, o cozinheiro negro de cabelos grisalhos, vinha trazendo o almoço.

Sentaram-se. O capitão chamou Fred Blake.

—  Cheira bem — disse Nichols,  quando Tom Obu levantou a tampa do prato. — Alguma novidade, Tom?

—  Creio que meu criado, Ah Kay, deu-lhe uma mão.

—  Acho que posso comer isso — falou o capitão, servindo-se de uma mistura de arroz e carne. — Que acha Fred? Não lhe parece que é um achado a presença do doutor a bordo?

—  Não há dúvida de que é melhor do que a cozinha do Tom.

Comeram com grande apetite. Nichols acendeu o cachimbo.

—  Se eu não  sentir dor depois  disso, direi que o senhor é um assombro.

—  Garanto-lhe que não sentirá.

—  O que me admira é pensar que uma pessoa como o senhor viva num lugar como Fu-chou. Podia fazer uma fortuna em Sydney.

— Estou muito bem em Fu-chou, gosto da China.

— Sim? Estudou na Inglaterra, não é verdade?

— Estudei.

— Ouvi dizer que o senhor era um especialista, que tinha muitos clientes em Londres e não sei o que mais. . .

— Não deve acreditar em tudo o que lhe dizem.

— Pensar que o senhor abandonou tudo para instalar-se numa infecta cidade chinesa. . . Podia estar fazendo um dinheirão em Londres. Não pensa em voltar para a Inglaterra?

—  Não. Por quê? Minha terra é Fu-chou.

—  Não o censuro por isso. A Inglaterra não vale mais nada. Há leis e códigos em demasia, na minha opinião. Por que não deixam um sujeito sossegado? Também está no registro, por acaso?

Fez a pergunta, de repente, como se quisesse atacar o doutor de surpresa. Mas a sua frente estava alguém que não se deixava pegar tão facilmente.

Não diga que não tem confiança em mim, capitão. Deve acreditar em seu médico. Nada posso fazer se não tiver confiança em mim.

— Acreditar no senhor? Ora essa! Se não acreditasse, o senhor não estaria aqui. Sei que não há ninguém entre Bombaim e Sydney que possa concorrer com o senhor. Sei que conhece como ninguém sua profissão. Já ouvi mesmo dizer que teria um título de nobreza se tivesse ficado em Londres.

Só lhe posso dizer que sei mais coisas do que as que me são necessárias — disse o doutor com uma risada. __

É engraçado que seu nome não esteja naquele livro... como se chama mesmo? Catálogo dos médicos.

—  Por que afirma que ele não está?

—  Um sujeito que conheci em Sydney, falando a seu respeito a um médico de lá, disse que o senhor não é a maravilha que todos dizem, e terminou procurando inutilmente seu nome no catálogo.

—  Talvez ele tenha consultado uma edição antiga.

O capitão sorriu maliciosamente.

—  É, pode ser, mas nunca pensei nisso.

Em todo o caso, nunca vi uma cadeia por dentro, capitão.

Nichols teve um sobressalto. Conteve-se a tempo, mas mudou de cor. O médico acertara no alvo. Nichols achou que era melhor sorrir.

— Essa é boa,doutor, mas eu também nunca vi. Acho, porém, que há muitos inocentes na cadeia e gente que estaria lá se não tivesse preferido uma mudança de ares, por exemplo.

Os dois se entreolharam e puseram-se a rir

— De que estão rindo? — perguntou Fred Blake.

 

Pela tardinha, avistaram a ilha que o capitão escolhera para passar a noite, um cone coberto de árvores, como colina num quadro de Piero della Francesca. Contornando-a, chegaram ao ancoradouro. Era uma pequena baía bem protegida, com uma água tão clara que deixava ver no fundo do mar uma floração fantástica de coral. Os peixes nadavam nela como nativos da floresta procurando seu caminho familiar entre as árvores. Com surpresa, eles encontraram um pequeno barco ancorado ali.

—  Que é aquilo? — perguntou Fred.

Seus olhos mostravam espanto. Era de fato bem estranho encontrar aquela embarcação ali ancorada ao anoitecer. Com as velas enroladas, naquela solidão, seu aspecto era vagamente sinistro. O capitão olhou-a com um binóculo.

—  Pesca de pérolas. Port Darwin. Não sei o que está fazendo aqui. Há uma porção de barcos assim, em torno das ilhas Aru.

Distinguiam a tripulação com um homem branco no centro, observando-os também. De repente um bote foi lançado à água.

—  Vêm até aqui! — disse o capitão.

Ancoraram. O bote aproximou-se e Nichols trocou gritos de saudação com o homem branco. Era um australiano. Disse que seu mergulhador japonês estava doente e iam, por isso, rumando em direção a uma das ilhas holandesas onde talvez pudessem encontrar um médico.

—  Temos um a bordo — disse Nichols. — Vem como passageiro.

O australiano perguntou ao doutor se queria ir ver o doente e, depois de tomar uma xícara de chá, conduziu-o para o bote.

— Tem jornais australianos? — indagou Fred.

— Tenho um número do Bulletin de um mês atrás.

— Não faz mal. É novo para nós.

— Mandarei com todo o prazer, pelo doutor.

Não foi preciso muito tempo para que o médico descobrisse que o mergulhador estava sofrendo de um sério ataque de disenteria. Seu estado era um tanto grave. Deu-lhe uma injeção hipodérmica  e  aconselhou repouso completo.

—  Estes malditos japoneses não têm resistência física. Deve, então, ficar algum tempo sem trabalhar?

—  Se não ficar para sempre.

Despediram-se. O doutor desceu de novo para o bote.

—  Espere um pouco, esqueci de lhe dar o jornal.

Foi à cabine e voltou com um Sydney Bulletin. Atirou-o dentro do bote.

O capitão e Fred jogavam cartas quando o doutor voltou ao Fenton. O sol já se punha e o mar calmo brilhava em várias cores, azul, verde, alaranjado, purpurino, como se fosse o tom sutil do próprio silêncio.

—  Já de volta?

—  O homem está muito mal.

—  É este o jornal? — perguntou Fred.

Tomou-o das mãos do doutor e afastou-se.

—  Joga? — perguntou Nichols.

—  Não.

—  Eu e Fred jogamos todas as noites. O rapaz tem uma sorte danada. Nem lhe posso dizer quanto dinheiro ele já ganhou de mim. Mas não pode continuar assim, a coisa vira.

Chamou Fred.

—  Um momento.

O capitão encolheu os ombros.

—  Não quer vir. Louco para ler o jornal.

—  Já tem um mês — informou o doutor. — Há quanto tempo deixaram a ilha Quinta-Feira?

—  Nunca estivemos lá.

—  Ah!

—  Que tal um trago agora? Acha que me faria mal?

—  Absolutamente.

Tom Obu trouxe dois copos e um pouco de água. Nichols foi buscar o uísque. O sol se pôs e a noite foi se estendendo lentamente sobre a água quieta. O único som que quebrava o silêncio era o salto rápido de um peixe, de vez em quando. Tom Obu acendeu a lanterna do convés e desceu para iluminar também a cabine.

—  Imagino o que nosso jovem amigo estará lendo todo este tempo.

—  No escuro?

—  Talvez esteja pensando no que leu.

Quando Fred voltou, afinal, e sentou-se junto deles, pareceu ao médico, na luz incerta, que o moço,estava muito pálido. Não trouxera consigo o jornal. O doutor saiu a procurá-lo. Pediu a Ah-Kay que o ajudasse. Observava da escuridão os jogadores.

—  Oito, nove, dez, valete, dama. Seqüência.

—  Bárbaro! Que sorte você tem!

O capitão não sabia perder. Seus olhos fixavam-se com raiva em cada carta. Mas o outro jogava com um sorriso nos lábios. A luz da lanterna recortava seu admirável perfil. As mechas de cabelo punham-lhe uma leve sombra no rosto. Era, naquele momento, mais do que um rapaz bonito. Tinha uma beleza trágica que impressionava. Ah Kay voltou e disse que não achara o jornal.

—  Onde é que pôs o Bulletint Meu criado não consegue encontrá-lo.

—  Não está lá?

—  Não, já procuramos.

—  Que diabo! Como vou saber? Dois pares de ases.

—  Jogou-o ao mar, Fred? — perguntou o capitão.

—  Por que havia de jogá-lo ao mar?

—  Bem, se não o jogou deve estar em algum lugar — disse o médico.

—  Ganhou de novo — rosnou o capitão. — Nunca vi ninguém com tanta sorte.

 

Já passava de uma hora da manhã. O dr. Saunders estava sentado no tombadilho. O capitão dormia na cabine. Havia em torno uma grande quietude. As estrelas brilhavam tanto que a forma da ilha se recortava contra a noite. A distância é menos uma questão de espaço que de tempo, e, ainda que o barco tivesse feito 45 milhas, parecia ao doutor que Takana estava muito longe. Londres ficava no outro extremo do mundo. Tinha uma rápida visão de Piccadilly Circus, com suas luzes fulgurantes, o tumulto dos ônibus, automóveis e táxis, a multidão que surge quando os teatros se fecham. Havia um lugar que, no seu tempo, eles chamavam o Front, a rua que fica no lado norte, partindo da avenida Shaftesburg até Charing Cross Road, onde das onze às doze uma verdadeira massa humana se cruzava.

Fora antes da guerra. Havia uma sensação de aventura no ar. Olhos que se encontravam e depois. . . O doutor sorriu. Não tinha saudade do passado. Não tinha saudade de nada. Agora, seus pensamentos errantes pousavam sobre a ponte de Fu-chou, que ligava as margens do rio Min, de onde se viam os pescadores, os carrinhos que atravessavam a ponte, os coolies carregando enormes pesos. Os inúmeros chineses que iam e vinham. À margem estava a cidade chinesa, com suas casas amontoadas e seus templos.

Não havia luz no barco do australiano. O doutor apenas o via na escuridão por saber que ele_ estava ali. Silêncio a bordo. Mas no porão, onde as conchas de pérolas se empilhavam, jazia o mergulhador agonizante. Pouco valia a vida humana para Saunders. Quem, como ele, vivera tanto tempo entre os chineses, que tão pouca importância dão à vida, só podia pensar assim. Era japonês o mergulhador, e provavelmente budista. Transmigração? Ele olha o mar: uma onda segue a outra mas já não é a mesma, ainda que seja formada por ela e dela tire forma e movimento.

Assim os seres que caminham pelo mundo não são os mesmos hoje e amanhã, nem serão os mesmos em outra vida, ainda que a forma das existências anteriores determine o caráter das seguintes. Crença razoável mas incrível. Seria, porém, mais incrível do que pensar que uma variedade de acidentes, de acasos milagrosos, se combinaria através do longo correr do tempo, para formar, de algumas moléculas gelatinosas, este homem que os bacilos de Flexner iam aos poucos destruindo? O doutor achava isso estranho mas natural, sem nenhum sentido com certeza, mas havia muito que já se familiarizara com a futilidade das coisas. Naturalmente o espírito era um obstáculo. Cessaria ele de existir quando a matéria, sem instrumento, finalmente se dissolvesse?

Nessa noite bonita seus pensamentos voavam sem rumo, como pássaros, como gaivotas fazendo círculos sobre o mar, subindo e descendo ao sabor do vento, e ele se sentia feliz assim.

Um barulho de passos e Nichols apareceu. A cor berrante de seu pijama sobressaía no escuro.

—  Capitão?

—  Sou eu mesmo. Vim tomar um pouco de ar.

Sentou-se ao lado do doutor.

—  Já fumou?

—  Já.

—  Nunca provei, sabe? Conheço muita gente que o faz. Não me parece que lhes faça mal. Dizem até que compõe o estômago. Mas um sujeito que conheci ficou estragado. Capitão de um dos barcos de Butterfield no Yangtze. Boa posição e tudo o mais. Esteve algum tempo em tratamento mas voltou a fumar ópio. Acabou mendigando nas docas de Xangai.

Ficaram um momento em silêncio. O capitão enchia seu cachimbo de nogueira.

—  Viu Fred, por acaso?

—  Está dormindo no convés.

—  Engraçada a história do Bulletin. Não quis que a gente o lesse.

—  Que teria ele feito com o jornal?

—  Atirou ao mar.

—  Por quê?

O marinheiro riu baixinho.

—  Acredite ou não, mas eu sei tanto quanto o senhor.

—  Vivo há muito tempo no Oriente. Aprendi a não me importar com a vida alheia.

Mas o capitão estava em maré de confidencias. Sua digestão não o incomodara e, depois de três ou quatro horas de bom sono, sentia-se bem-disposto.

—  Há qualquer coisa de estranho em tudo isso, mas eu também sou como o senhor. Só cuido da minha vida. Não faça perguntas que não ouvirá mentiras. É o que eu digo. E, se tiver ocasião de ganhar dinheiro, não a perca. Também não pensa assim?

—  Mais ou menos.

—  Bem, eu estava em Sydney. Havia quase dois anos que não conseguia trabalho. Não por falta de vontade, esteja certo. Má sorte, simplesmente. Marinheiro de primeira ordem, tenho grande experiência do mar. Vapor ou veleiro são para mim indiferentes. Sou um homem casado, sabe? As coisas ficaram tão mal que minha mulher precisou cavar um emprego. Não gostei da idéia, mas acabei concordando. Tinha um teto, três refeições por dia, mas quando precisei pedir ela meio dólar para ir ao cinema e tomar um ou dois tragos, ela disse que não, e ainda por cima me xingou. O senhor já foi casado?

—  Não.

—  Bem. Não o censuro. As mulheres não gostam de repartir seu dinheiro. Há vinte anos que me casei, e todo esse tempo suportei as censuras diárias de minha mulher. Sei que ela é uma criatura superior e é daí que me vêm todos os transtornos. Sempre achou que desceu seu nível social quando casou comigo. Seu pai era um grande comerciante de tecidos em Liverpool, e ela sempre fez questão de que eu não me esquecesse disso. Brigava comigo porque eu não conseguia emprego. Dizia que eu gostava de viver no porto. Preguiçoso, malandro, eram os adjetivos que ela me dava. Repetia que estava cansada de trabalhar para mim, e que se eu não conseguisse trazer-lhe alguma nota, me botaria no olho da rua. Dou-lhe minha palavra, muitas vezes tive de me conter para não lhe rebentar o queixo com um murro, apesar de ela ser uma mulher e de eu saber como procede um cavalheiro. Conhece Sydney?

—  Não. Nunca estive lá.

—  Bem. Uma noite, eu estava num bar perto do porto. Não tinha bebido nada durante o dia e tinha a goela seca. Minha dispepsia me torturava mais do que nunca. Nem um níquel no bolso, eu que comandara tantos navios, e sem poder voltar para casa. Sabia que a mulher me receberia, que me daria um pedaço de carne para comer, mas que começaria também a lengalenga de sempre, com aquele jeito desagradável de superioridade, nunca elevando a voz mas não me dando um minuto de paz. E, se eu perdesse a paciência e a mandasse para o inferno, se levantaria toda digna, dizendo: "Nada de palavrões, capitão, aqui dentro desta casa. Casei-me com um reles marinheiro, mas quero ser tratada como uma senhora". — Nichols baixou a voz e continuou em tom confidencial: — Cá entre nós, isto é uma coisa horrível. A gente nunca sabe como lidar com as mulheres. Nem parecem seres humanos. Acredite no que lhe digo. Fugi dela umas quatro vezes. Qualquer homem compreenderia a razão das fugas, não é mesmo?

—  Talvez. . .

—  Pois ela não. Correu atrás de mim todas as vezes. Na primeira vez sabia onde eu estava e, por isso, foi fácil, mas nas outras sabia tanto quanto um habitante da lua. Era capaz de apostar todo o dinheiro que tivesse como ela não me encontraria. Era o mesmo que procurar uma agulha no palheiro. Pois bem, lá pelas tantas ela me aparecia, com a mesma frieza de sempre, sem um "como vai você" ou "por onde tem andado", mas com uma referência a minha barba crescida ou a minha roupa suja, como se tivesse me visto na véspera. Uma coisa de mexer com os nervos da gente.

Ficou um momento silencioso, varrendo com os olhos o mar vazio. A noite estava tão clara que se via a linha fina do horizonte.

—  Desta vez consegui escapar. Ela não sabe onde estou, mas, palavra de honra, não ficaria surpreendido se, de repente, ela aparecesse no meio do mar, dizendo assim:  "Que fumo infecto é este que você está usando, capitão? Já deve saber muito bem que eu só tolero Player's Navy Cut". E é isso que me dá nos nervos. É isso que causa minha dispepsia, esteja certo. Ainda me lembro de um médico que consultei, em Cingapura. Escreveu umas coisas difíceis num bloco de papel, como todos os doutores fazem, depois traçou uma cruz embaixo da página. Não gostei nada do desenho é perguntei: "Que diabo o senhor quer dizer com essa cruz?' "Oh!  eu sempre boto essa cruz quando desconfio que o sujeito não foi feliz no casamento."  "O  senhor acertou, doutor,  eu  carrego mesmo uma  cruz."  Camarada sabido aquele, mas não fez nada por minha dispepsia.

—  Sócrates também foi infeliz no casamento, e nunca ouvi dizer que sua digestão fosse pior por causa disso.

—  Quem era Sócrates?

—  Um conhecido meu.

—  Mas garanto que não acabou bem.

—  Naturalmente.

—  O senhor deve tomar as coisas como elas são. Nada de perder tempo com palavras.

O dr. Saunders riu gostosamente. Achava engraçadíssimo o terror que uma mulher podia inspirar a um malandro daquela espécie. Era a vitória do espírito sobre a matéria. Imaginava só que cara teria ela.

—  Estava lhe falando de Fred Blake — continuou o capitão, depois de acender o cachimbo. — Como ia dizendo, achava-me num bar aquela noite. Cumprimentei um ou dois sujeitos, eles me disseram boa-noite e olharam para outro lado. Pensaram, naturalmente:  está aí de novo esse vagabundo à procura de um trouxa que lhe pague bebidas. De mim é que não tira nada. Eu me sentia humilhado, desmoralizado. O próprio dono me olhava com desconfiança, como se me convidasse a cair fora. Alguns tipos com quem falei me receberam sem  cordialidade e  nem  deram  atenção  a minhas palavras. Nisto vi entrar um camarada que eu conhecia. Era um australiano grande e forte, chamado Ryan. Diziam que andava metido em política. Estava sempre cheio da nota. Uma ocasião até já me emprestara cinco xelins. Como julguei que ele não quisesse me ver, fingi que não o reconhecia e continuei falando. Mas com o canto do olho o observava. De repente ele deu comigo e veio chegando. "Boa noite, capitão", me disse com um jeito amável, "como tem passado o amigo?" "Como um  cachorro",  respondi. "Ainda à procura de trabalho?" "Como sempre." "Que é que a gente vai tomar?" Pedimos uma cerveja cada um. Ryan não me pagaria uma cerveja só pelo prazer de pagar. É do tipo que lhe bate nas  costas, ri  de suas pilhérias, procura agradar de todos os modos, diz: "Você precisa conhecer minha mulher e ver as crianças" e durante todo o tempo não tira os olhos de você. Mas ninguém me pega facilmente. "Ele quer alguma coisa de mim", eu pensava. Contei-lhe uma ou duas anedotas. Ele morria de rir. "Você é um bicho, capitão. É um dos meus. Acabe a cerveja. Vou mandar vir outra. Era capaz de passar a noite inteira ouvindo o amigo falar." Terminei a cerveja e vi que ele pedia outra. "Escute, Bill", me disse ele (meu nome é Tom, mas fiquei firme). "Escute, Bill, há muita gente aqui e não se pode conversar direito." Chamou o patrão: "George, eu e o meu amigo queremos conversar um bocado e lembrar os velhos tempos. Que tal se conseguisse o reservado?" "Meu escritório? Às ordens. Podem entrar quando quiserem." "Obrigado. E pode trazer mais duas cervejas." Entramos na saleta. O dono trouxe as cervejas, serviu e retirou-se. Ryan, pretextando uma corrente de ar, fechou a porta e foi ver se a janela também estava bem fechada. Achei que era melhor ir diretamente ao assunto e fui dizendo: "Escute aqui, Ryan. Me desculpe aqueles cinco xelins. Nunca me esqueci da dívida, mas você compreende. . ." "Ora essa! Nem me fale nisso. Que são cinco xelins, meu velho? Está tudo certo. De que vale ter dinheiro, se a gente não desaperta de vez em quando um amigo que está sem um níquel?" "Eu faria o mesmo por você, Ryan." Se o senhor nos ouvisse naquele momento, doutor, pensaria que éramos dois irmãos.  

Nichols riu-se com gosto, recordando a cena. Gozava com delícia de artista sua própria canalhice.

— Tomamos a cerveja e ele continuou, enquanto limpava a boca com as costas da mão: "Escute, Bill. Andei me informando a seu respeito. Sei que é um bom marinheiro, não é verdade? Dizem mesmo que não há outro melhor. Pois tenho uma surpresa para você. Quero lhe dar trabalho. Aceita?" "Topo. Não importa o que seja", respondi. "Você é um bicho, capitão. Sabia que podia contar com sua boa vontade." "Bem, mas que trabalho é?" Ele me olhou demoradamente, com um ar de ternura e de seriedade ao mesmo tempo. Vi que não estava gracejando. "Você fica com o bico calado?" "Como um peixe." "Está muito bem", me disse ele. "A única coisa que você tem de fazer é tomar um desses barcos de pescar pérolas, desses muito comuns na ilha Quinta-Feira e em Port Darwin, e cruzar as ilhas por alguns meses." "Ótimo!", respondi. "Pois é esse o trabalho." "Negócio?" "Não, apenas recreio." Quase dei uma risada, ouvindo isto. Mas  a  gente  deve ter cuidado.  Há muitos homens que não têm senso de humor. Fiquei sério como um juiz. Ele me olhou de novo e continuou: "Eu lhe explicarei como é. Um rapaz que eu conheço tem trabalhado muito ultimamente. O pai dele é velho camarada meu e estou fazendo isto para contentá-lo. É um homem de excelente posição. Goza de grande prestígio em toda a parte". Bebeu mais um gole de cerveja, olhando-me fixamente. Não lhe disse uma palavra. Ele prosseguiu:  "O velho  anda  aborrecido. Filho único, compreende? Eu sei bem o que é isso. Tenho dois. Se um deles machucasse um pé, transtornaria meu dia completamente". "Compreendo também estas coisas, porque tenho uma filha." "Filha única?" "É." "Grande coisa os filhos", continuou. "Nada como eles para fazer feliz a vida da gente." "Tem razão." "Pois o tal rapaz sempre foi uma criança delicada. Está agora atacado dos pulmões. Os médicos dizem que o melhor remédio é cruzeiro por mar. O pai não gostou da idéia de vê-lo embarcar num calhambeque qualquer e comprou o pequeno veleiro. Nele você não se sentirá amarrado e poderá ir a qualquer parte. O essencial é que o rapaz passe bem a bordo. Não é preciso ter pressa. Pode escolher o tempo conveniente e parar em qualquer ilha que lhe agrade. Dizem que há muitas ilhas habitáveis entre a Austrália e a China." "Há milhares." "O rapaz precisa é de sossego. Isto é o principal. O pai deseja vê-lo afastado dos lugares muito populosos." "Está certo", respondi, com um ar inocente de recém-nascido. "E por quanto tempo será o cruzeiro?" "Não sei bem. Depende da saúde do rapaz. Dois ou três meses, talvez. Talvez um ano." "Compreendo, mas quanto levo nessa história?" "Duzentas libras, quando seu passageiro chegar a bordo. Outras duzentas quando voltar." Faço tudo por quinhentas", sugeri. Ele me olhou com um jeito feroz, mostrando a queixada ameaçadora. Senti que era melhor mudar de tática. Encolhi os ombros displicentemente e dei uma risada. "Bem, não faço questão de dinheiro", fui dizendo. "O dinheiro não representa nada para mim. Se representasse, eu seria hoje o homem mais rico da Austrália. Aceito o que você me oferece. Sempre é bom obsequiar um amigo." "Bravo, meu caro." "Mas o veleiro, onde está? Gostaria de vê-lo antes de embarcar." "Oh! é um ótimo barco. Um amigo meu trouxe-o da ilha Quinta-Feira para vendê-lo aqui. Está em forma, eu lhe garanto. Ancorou a cinco milhas de Sydney, numa costa." "E a tripulação?" "Negros do estreito de Torres. Foram eles que trouxeram o barco. O único trabalho que você terá é subir a bordo e partir." "Quando quer que eu parta?" "Já." "Já?" "Quero dizer: esta noite. Tenho um automóvel à minha espera. Poderei levá-lo até lá." "Por que essa pressa?", perguntei, com um sorriso de desconfiança. "O pai do rapaz é um homem de negócios. Faz tudo assim, num momento." "Mas eu sou um homem casado. Se partir deste jeito, sem dizer palavra, minha mulher bota a boca no mundo. Há de querer saber onde eu estou e, se não me encontrar, acaba dando queixa à polícia." Ele me olhou de um modo estranho, como se não gostasse da idéia de uma queixa à polícia. "Eu falarei pessoalmente com sua mulher." "Diga a ela que o capitão de um barco sofreu um acidente e que eu fui contratado. Que não tive tempo de ir em casa e que lhe escreverei de Cape Town." Bebemos o resto da cerveja. "Bem. Se você está pronto, podemos partir." Olhou o relógio e continuou: "Você me encontra daqui a meia hora, em Market Street. Passarei de automóvel e você saltará dentro dele. Saia antes de mim. Mas não precisa atravessar o bar. Há uma porta que dá para a rua, no fim do corredor." "Está certo", disse eu, apanhando o chapéu. "Há uma coisa que ainda preciso lhe dizer. Vale para agora e para mais tarde. Se não quiser levar uma faca nas costas, ou um balaço nas tripas, porte-se direito. Compreendeu?" Disse isso com um jeito amável. Mas eu, que não sou tolo, compreendi que era sério. "Não tenha medo", respondi. "Quando me tratam como cavalheiro, eu também me porto como tal. O rapaz já está a bordo?" "Não. Virá mais tarde." Saí e dirigi-me para o lugar que ele indicara. Ficava a uns 180 metros dali. Pensei comigo que se o homem fazia tanta questão que eu esperasse uma meia hora era porque precisava ver alguém antes de tudo. Que diria a polícia se eu avisasse que valia a pena seguir o carro e ver o que estava acontecendo? Sei que sempre é bom cumprir o dever de cidadão e que não é nada mau estar bem com as autoridades, mas, que diabo, uma faca na barriga não é coisa que se deseje. Além disso, ficaria sem as quatrocentas libras. Mas talvez o que me impediu de fazer uma tratantada a Ryan foi ter notado um sujeito que, meio oculto, do outro lado da rua, parecia me observar. Caminhei um pouco em sua direção e ele afastou-se. Dei uma volta e ele voltou para o mesmo lugar. Achava tudo aquilo engraçadíssimo. O que, porém, me espantava mais é que Ryan não tivesse mostrado confiança em minha pessoa. Não compreendia coisa alguma naquele dia. Tudo tinha um jeito tão estranho. . .

O dr. Saunders sorriu. Começava a entender o capitão. Era desses homens que acham a vida cotidiana uma grande massada. Precisava de uma dosezinha de patifaria para agir sobre a pressão que a dispepsia lhe causava. Seu sangue circulava mais depressa, sua saúde melhorava, sua vitalidade crescia, quando o crime estava ao alcance de seus dedos. A atenção que ele precisava dispensar ao perigo que o cercava distraía-o do penoso processo de sua digestão. Se faltava simpatia ao médico, sobrava-lhe tolerância. Achava que seu papel não era condenar nem aprovar. Reconhecia a santidade de um homem e a perversidade de outro, mas continuava a olhar para ambos com o mesmo alheamento frio.

— Não posso deixar de rir — continuou o marinheiro ao me lembrar daquela cena e da minha partida sem uma roupa, uma escova de dentes ou uma navalha. Não é qualquer homem que faz isso.

— Realmente — disse o doutor.

— E pensar na cara de minha mulher, quando Ryan lhe disse que eu partira. . . Estou certo de que seguiu pelo primeiro navio para Cape Town. Nunca mais ela me encontrará. Desta vez fugi de verdade. Quem diria que a ocasião havia de vir no momento em que eu estava pensando na impossibilidade de ficar? Se não foi a Providência Divina, então não sei o que foi. Dizem que seus caminhos são inescrutáveis. Mas, voltando ao assunto, depois de esperar meia hora, o carro apareceu e parou perto de mim. "Salte", disse Ryan, e a corrida continuou. As estradas em redor de Sydney são péssimas, e a gente pulava para cima e para baixo como uma rolha dentro da água. "E os mantimentos?", perguntei a Ryan. "Está tudo a bordo, o suficiente para três meses." Não sabia por onde íamos. A noite estava escuríssima, não se  enxergava  coisa  nenhuma.  "Aqui  estamos",  disse  ele. "Pode saltar." Descemos.  Ele acendeu  uma lâmpada  elétrica. "Siga atrás de mim e veja por onde vai." Caminhamos um pouco. Eu tropeçando de vez em quando e com medo de quebrar a perna. Afinal chegamos, e eu senti a praia sob meus pés. A gente podia ver a água e nada mais. Ryan assobiou. Alguém dentro da água respondeu e ele voltou a luz na direção da voz. Ouvi um barulho de remos e daí a um instante dois negros estavam na nossa frente. Saltamos dentro do bote e nos aproximamos do navio. "Que tal acha o barco?",  perguntou  o australiano  quando  chegamos   a bordo.  "Não posso ver  direito.  Darei  minha  opinião  de manhã." "De manhã você já estará em alto-mar." "E esse pobre rapaz, quando vem?" "Não deve demorar. Desça até a cabine e acenda a luz. Tomaremos uma cerveja. Aqui tem uma caixa de fósforos." "Boa idéia", disse eu. E fui descendo. Não podia enxergar quase nada, mas fui achando o caminho por instinto. Olhei um momento para trás e vi que Ryan fazia sinais, com a lâmpada, para a praia. Depois desceu e serviu cerveja para nós dois. "A lua esta noite veio cedo", disse ele.  "E há um ventinho bom que sopra do mar." "Partimos imediatamente?" "Quanto mais cedo melhor. Logo que o rapaz chegar a bordo." "Escute uma coisa, Ryan. Eu não trouxe nem uma navalha comigo."  "Deixe  crescer a barba, neste caso. As ordens são para não ancorar em parte alguma até chegar à Nova Guiné. Pode aportar em Merauke se quiser." "Holandês?" Ele fez que sim. "Diga uma coisa, Ryan. Você sabe muito bem que eu não nasci ontem. Por que razão não é franco comigo e me explica toda essa embrulhada?" "Velho Bill", disse ele amigavelmente, "beba sua cerveja e não me faça perguntas. Sei que você está curioso, mas acredite no que lhe digo ou juro por Deus que lhe arranco os olhos com estas mãos." "Bem, está tudo certo", disse eu numa risada. "E quanto ao dinheiro?" "Tenho aqui comigo. Darei a você antes de desembarcar." Conversamos sobre uma coisa e outra. Pedi-lhe informações da tripulação e ele me perguntou se eu teria dificuldade em navegar à noite. Disse-lhe que levaria o barco até de olhos fechados. De repente, ouvi alguma coisa. Tenho um ouvido excelente, percebo qualquer rumor. "Vem um bote nesta direção." "Já não é sem tempo. Tenho de voltar para casa esta noite." "Não é melhor subirmos ao convés?" "Acho que não há necessidade." "Está bem", concordei. Ficamos sentados, escutando. O bote se aproximou e bateu contra a embarcação. Depois, alguém subiu para bordo. Vestia um terno azul-marinho, colarinho e gravata, sapatos marrons. Não parecia o mesmo que é agora. "Este é Fred", disse Ryan. "Fred Blake", acrescentou o outro. "Aqui o capitão Nichols. Marinheiro de primeira. Excelente camarada." O rapaz olhou para mim. Não tinha nada de delicado. Ao contrário, cheio de saúde. Pareceu-me, antes, amedrontado. "É pena que o amigo não esteja com saúde", disse eu com meu jeito mais amável, "mas o ar do mar há de fazer-lhe bem. Nada como um pequeno cruzeiro para reconstituir uma pessoa." Nunca vi ninguém ficar tão corado como ele ao ouvir minhas palavras. Ryan olhou-o, depois olhou para mim e deu uma risada. Em seguida, tirou do cinto duzentas moedas de ouro e me pagou. Há quantos anos eu não via ouro. . . Só os bancos é quetêm disso. Pensei comigo que a pessoa interessada na partida do rapaz não deveria ser de poucas posses. "Dê-me o cinto também, Ryan. Não posso deixar uma porção de dinheiro como esta espalhada por aí, em qualquer canto." "Está bem. Tome o cinto. E boa viagem." Antes que eu pudesse dizer uma palavra, saiu da cabine e pulou dentro do bote. Compreendi que ele fazia questão de que eu não visse quem trouxera o rapaz.

— E o que aconteceu depois?

— Pus o dinheiro no cinto e afivelei-o.

— Devia estar pesado, não? 

— Quando chegamos a Merauke comprei duas caixinhas e guardei minha parte. Mas se as coisas continuarem como vão, talvez consiga um grande capital, sem grande remorso.

—  Que quer dizer com isso?

—  Bem, fomos andando costa acima, com um lindo tempo e bom vento. Eu disse ao rapaz: "Que tal um joguinho de cartas?" Era preciso matar o tempo de qualquer jeito, e ele possuía também algum dinheiro. Tenho jogado toda a minha vida, e estava certo de que pelaria Fred. Mas foi o diabo. Desde que deixamos Sydney não consegui ganhar um dia que fosse. Já perdi umas setenta libras. Nunca vi sorte como a desse tipo.

—  Talvez ele jogue melhor do que você pensa.

—  Qual o quê! Ninguém joga melhor do que eu. Garanto-lhe que é pura sorte. Mas se a coisa mudar, a sorte não dura sempre, ainda poderei recuperar o que perdi e tomar conta da parte dele.

—  Fred contou-lhe alguma coisa a seu respeito?

—  Nada. Mas eu acho que já descobri o que existe no fundo desta história.

—  Sim?

— Tenho certeza de que é política. Estávamos em véspera de eleição, e o fato de Ryan andar metido no assunto me fez suspeitar de que seja política. Não ficaria surpreendido se soubesse que Fred é filho de algum figurão importante.

— Há algum ministro chamado Blake?

—_Ele se chama Blake tanto quanto eu. Tenho certeza de que Fred é filho ou sobrinho de algum ministro. Deve haver qualquer escândalo nisso tudo. Qualquer coisa que, se viesse à tona, faria o homem perder sua posição. Daí o rapaz ser obrigado a essa ausência forçada de alguns meses.

— E que acha você que ele fez?

— Matou alguém.

— Mas se é apenas uma criança...

— Tem idade bastante para ser enforcado.

 

— Que é isto? — perguntou o capitão. — Um bote a esta hora?

Seu ouvido devia ser muito aguçado, pois o doutor não escutara nada. O olhar do marujo sondava a escuridão. Pôs a mão no braço do médico e, levantando-se sem ruído, desceu para a cabine. Num instante voltou empunhando um revolver.

—  Sempre é bom ter um pouco de prudência.

Agora o doutor já podia distinguir o barulho dos remos revolvendo a água.

—  É o escaler do australiano — disse ele.

—  Eu sabia. Mas não sei o que querem. Acho que é um pouco tarde para visitas de cortesia.

Os dois esperaram em silêncio, escutando o ruído que se aproximava. Num minuto já não ouviam apenas o barulho da água, mas conseguiam ver a forma do bote, uma pequena massa preta contra o pretume do mar.

—  Quem vem lá? — gritou o capitão Nichols.

—  É você, capitão?

—  Sim, sou eu. Que desejam?

Apertava o revólver na mão. O australiano remou um pouco mais.

—  Espere até que eu chegue a bordo.

— Já é um pouco tarde, não acha?

— Acorde o médico, por favor. Estou impressionado com meu japonês, Acho que o homem está morrendo.

— O doutor está aqui. Pode encostar o bote.

O escaler encostou, e o capitão pôde ver que o australiano estava acompanhado apenas por um negro.

— Quer que eu vá até lá? — perguntou o médico.

— Desculpe incomodá-lo, doutor, mas acho que o sujeito está bem mal.

— Vou, sem dúvida, em seguida. Espere só que eu apanhe minhas coisas.

Desceu e voltou com uma valise contendo os instrumentos de urgência. Pulou a amurada do convés e saltou para o bote. O negro remou de novo, rapidamente.

— O senhor sabe como é a coisa — disse o australiano. — É difícil achar um mergulhador japonês e eles são os únicos que se aproveitam. Não há nenhum sem trabalho por essa zona, e, se eu perco este, estou bem arrumado. Teria de ir até Yokohama e lá perder pelo menos um mês até encontrar outro.

O mergulhador estava deitado no porão dos tripulantes. O ar ali era fétido e o calor, insuportável. Dois negros dormiam no chão e um deles, de costas, roncava profundamente. Um terceiro, sentado junto ao enfermo, fixava nele dois olhos sem expressão. A luz da lanterna era mortiça. O mergulhador tivera um colapso. Não perdera a consciência, mas, quando o médico chegou-se a ele, seus negros olhos de oriental estavam imóveis. Pareciam olhar a eternidade e já incapazes de se distrair com a vista de um objeto em movimento. O médico tomou-lhe o pulso e pôs a mão em sua testa úmida. Deu-lhe uma injeção hipodérmica. Depois ficou olhando o corpo estendido.

—  Vamos um momentinho para cima, tomar um pouco de ar fresco. Diga a este homem que  nos avise se notar alguma mudança.

—  Acha que ele vai mesmo desta vez?

  É o diabo. Estou mesmo sem sorte.

Sentaram-se na coberta. A noite estava quieta como a morte. Na água calma as estrelas distantes contemplavam sua própria luz. Os dois homens ficaram calados. Dizem quese a gente acredita com suficiente força em alguma coisa ela se torna verdadeira.

Para o japonês, deitado lá embaixo, morrendo sem sofrimento, aquilo não era o fim, era apenas uma página que se virava. Sabia que, tão certo como o sol havia de surgir de novo, ele ia apenas passando de uma vida para outra. Carma. Os atos desta vida e de todas as outras que ele vivera anteriormente continuariam de qualquer maneira. E talvez a única emoção que ainda sobrava era curiosidade, ânsia incontida de saber em que condição renasceria. O doutor pôs-se a cochilar. Foi a mão de um negro, pousando no ombro, que veio despertá-lo.

—  Venha depressa.

A manhã ia surgindo. Ainda não era dia, mas a luz das estrelas se apagava e o céu embranquecia. Desceu. O mergulhador estava morrendo. Seus olhos conservavam-se abertos, mas o pulso era imperceptível e o frio da morte envolvia o corpo. De repente houve um estertor, não muito forte, mas suave, conciliatório, como as maneiras de um japonês, e o homem morreu. Os dois negros que dormiam despertaram, e um sentou-se na beira do beliche, com as pernas negras e nuas balançando, enquanto o outro, como se quisesse espantar aquela imagem próxima, ficou sentado no chão, de costas para o corpo imóvel, apertando a cabeça entre as mãos. Quando o doutor voltou ao tombadilho e deu a notícia ao capitão, este encolheu os ombros.

—  Estes japoneses não têm resistência.

A manhã espalhava-se nas águas e os primeiros raios do sol tocavam sua tranqüilidade com frias e delicadas cores.

—  Bem, vou voltando para o Fenton. Sei que o capitão deseja partir antes do dia claro.

— Como alguma coisa antes de ir. Deve estar com fome.

— Bem, aceito uma xícara de chá.

— Tenho aqui alguns ovos que guardava para o japonês. Ele naturalmente não quer mais. Que tal um presunto com ovos? — Gritou pelo cozinheiro: — Arranje um prato de presunto com ovos — disse, esfregando as mãos. — Devem estar fresquinhos ainda.

O cozinheiro trouxe a comida. Serviu também chá e biscoitos.

—_Cheiram bem — comentou o australiano. — É engraçado, não consigo enjoar de presunto com ovos. Quando estou em casa, como todos os dias. Às vezes minha mulher resolve variar o menu, mas não há nada de que eu goste tanto.

Enquanto o negro ia levando o doutor para bordo do Fenton, ele pensava que a morte era uma coisa mais engraçada ainda do que o fato de o australiano gostar de comer presunto com ovos. O mar brilhava como aço polido. Suas cores eram pálidas e delicadas como a pintura no boudoir de uma marquesa do século XVIII. Parecia estranho ao doutor que os homens devessem morrer. Havia qualquer coisa de absurdo na idéia de que esse mergulhador, herdeiro de gerações inumeráveis, resultado de um processo complicado de evolução que durava desde a formação do planeta, devido a uma sucessão de acidentes que confundia a imaginação, fosse arrastado à morte numa região perdida e inabitada.

Quando chegou junto do barco, o capitão Nichols deu-lhe a mão para ajudá-lo a subir.

—  Então, que há de novo?

—  O homem morreu.

—  Logo vi. Estão providenciando o enterro?

—  Não sei. Não perguntei. Acho que vão atirar o corpo ao mar.

O capitão ficou tão agitado que chegou a surpreender o dr. Saunders.

—  Eles não podem fazer isso. Não num barco britânico.  O  homem  deve  ser  sepultado  decentemente,  quero dizer, com serviço religioso etc.

—  Ele era budista ou coisa parecida.

—  Não faz mal. Tenho vivido no mar desde criança e sei que, quando  um sujeito morre a bordo de um barco britânico, deve ter um enterro britânico. A morte nivela todos os homens, doutor, o senhor devia saber disto, sejam eles negros ou japoneses. Vou dar uma chegada até lá. Já estava prevendo isto.

—  Que pretende fazer?

—  Falar com o capitão do barco. Devemos fazer o que é direito. Dar ao japonês um sepultamento como é correio. Em todos os navios que comandei fiz sempre disso um ponto de honra. Causa bom efeito na tripulação. Ficam sabendo o que os espera se lhes acontecer coisa semelhante.

O escaler desceu e afastou-se com o capitão. Fred Blake apareceu. Com o cabelo solto, a pele clara e os olhos muito azuis, fazia lembrar um jovem Baco numa pintura veneziana, O médico, cansado de uma noite de vigília, sentiu, por um momento, inveja daquela insolente mocidade.

—  Como vai o doente, doutor?

—  Morreu.

—  Há sujeitos de sorte, não é mesmo?

O doutor olhou-o sem falar.

De repente, viram o escaler que voltava, sem o capitão. Utan, que vinha remando, falava bem inglês. Disse-lhes que todos deviam ir até lá.

—  Ora essa! Para quê? — perguntou Blake.

—  Vamos — disse o doutor.

Os dois saltaram para o bote, seguidos dos dois membros da tripulação.

—  O capitão disse todos. O chinezinho vai também.

— Venha, Ah Kay! — gritou o médico para o criado, que, sentado no convés, pregava um botão em uma calça.

Ah Kay abandonou o trabalho e, com o amável sorriso nos lábios, pulou agilmente para o bote. Remaram na direção do veleiro. Quando subiram para bordo, Nichols e o australiano os esperavam.

O capitão Atkinson concordou com a idéia de fazer uma coisa direita para esse pobre japonês. Como não tem a experiência que tenho, pediu-me para eu dirigir a cerimônia.

— Isto mesmo — disse o australiano.

— Sei que não competia a mim. Quando morre alguém no mar, é o capitão do barco quem dirige o serviço. Mas acontece que ele não tem livro de orações e entende tanto desse negócio quanto eu de grego. Não é assim, capitão?

O australiano sacudiu a cabeça.

— Mas julguei que você fosse batista — comentou o doutor.

— De fato, sou — respondeu Nichols. — Mas nessa história de funerais etc, sempre usei e usarei um livro de orações. Bem, capitão, logo que sua turma estiver pronta, poderemos meter mãos à obra.

— Que tal um trago enquanto esperamos?

— Ainda não. Beberemos depois. A obrigação antes da devoção.

Um homem aproximou-se;

— Tudo pronto, capitão.

— Ótimo — disse Nichols. — Vamos, minha gente.

Estava bem-disposto.  O corpo teso.  Os olhinhos  de raposa brilhavam numa agradável antecipação. O doutor, divertido, observava seu ar de contentamento. Era visível que o homenzinho gozava a situação. Os outros marcharam atrás dele. As duas tripulações, compostas de negros, faziam alas, todos eles de cachimbo na boca, dois ou três com uma Ponta de cigarro nos lábios grossos. No tombadilho jazia um fardo, que pareceu ao doutor um saco de nozes. Era um volume pequeno. Difícil acreditar que ele continha oque em vida fora um homem.

— Estão todos? — perguntou o capitão, olhando em torno. — É favor não fumar. Mais respeito com o morto.

Os homens guardaram os cachimbos e atiraram fora as pontas de cigarros.

—  Vamos. Façam um círculo. O senhor junto de mim, capitão.  Estou fazendo isso apenas para  servi-lo. Sei que estou tomando o seu lugar. Bem. Estão todos prontos, não é assim?

A idéia que o capitão tinha do ofício de mortos era qualquer coisa de confusa. Começou com uma oração em que sua imaginação colaborava, mas que ele recitou com um ar piedoso. Sua linguagem era florida. Terminou com um amém sonoro.

—  Agora vamos cantar um hino. — Olhou para os negros. — Vocês todos estiveram em escolas de missionários, portanto berrem à vontade.  Vamos  todos. Para a frente, soldados de Cristo, para a grande batalha marchai!

Pôs-se a cantar, com uma voz funda e desentoada, mas cheia de fervor. Os outros cantores custaram a alcançá-lo. Era um clamor de vozes profundas que se esparramava sobre o mar. O hino, familiar a todos, adquiria, com aquela mistura de estranhas entonações, um mistério que lhe tirava a nota cristã original, para torná-lo semelhante à gritaria rítmica de uma multidão de selvagens. Seus fantásticos sons, onde havia o rumor cavo dos tambores e a voz de instrumentos primitivos, sugeria cerimônias noturnas em que sangue humano é sacrificado. Ah Kay, em suas roupas brancas e asseadas, ficara distanciado dos negros, numa atitude de graça negligente, e em seus olhos líquidos e belos havia um brilho de malicioso espanto. Terminaram a primeira estrofe e, sem ordem do capitão, atacaram a segunda. Mas quando iam cantar a terceira, ele bateu as mãos interrompendo.

— Agora basta.  Esta joça afinal  não é  concerto. A gente não vai passar a noite aqui berrando.

Todos pararam no mesmo momento, e o capitão olhou em torno com severidade. Os olhos do médico pousaram no fardo estendido sobre o tombadilho. Sem saber por quê, pôs-se a pensar no garoto que fora o mergulhador um dia, com seu rosto amarelo, os olhos negros, brincando nas ruas de uma cidade japonesa, ou levado pela mãe a ver as cerejeiras floridas e as lindas festas do templo em que se distribuem doces às crianças. Talvez um dia, todo vestido de branco, ele tivesse ido com a família, em peregrinação, ver o nascer do sol, do cume do Fuji-Yama, a montanha sagrada.

—  Agora vou dizer outra oração, e, quando chegar às palavras "que seu corpo descanse no fundo do mar", peguem o cadáver e água com ele. É melhor dois homens para fazer isso, capitão.

—  Venham vocês, Bob e Jo.

Os dois homens adiantaram-se e tentaram erguer o corpo.

—  Ainda não,  seus animais!  —  gritou   Nichols.  — Deixem-me dizer as palavras primeiro.

E, sem uma pausa para respirar, começou a nova oração. Quando não achou mais nada para dizer, levantou um pouco a voz:

—  Como aprouve ao Deus todo-poderoso chamar a si a alma do nosso querido irmão, que seu corpo descanse no fundo do mar. . .

Olhou os dois homens com um ar severo, mas eles continuaram imóveis e de boca aberta.

—  Agora, seus caras de idiotas! Atirem o defunto na água. Com mil diabos!

Num impulso, eles levantaram o corpo e o lançaram pela amurada. Foi um mergulho rápido e quase sem rumor. O capitão Nichols continuou com um sorriso de satisfação no rosto:

—  Para que sofra a corrupção, à espera da ressurreição do corpo, quando o mar restituir sua presa. Agora, meus caros irmãos, vamos dizer a oração do senhor, mas nada de mastigar palavras. Deus quer ouvir e eu também quero. Pai nosso que estais no céu. . .

Toda a tripulação o acompanhou, exceto Ah Kay.

—  Agora, minha gente, quero dizer algumas palavras — continuou ele no mesmo tom piedoso de voz. — Tive o prazer de dirigir esta triste cerimônia, com a maior regularidade. No meio desta vida nós morremos, e os acidentes podem acontecer às melhores  famílias.  Quero que todos saibam que, enquanto estiverem a bordo de um navio britânico e sob a proteção da bandeira britânica, podem estar certos de que terão um funeral decente, digno de um filho fiel de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em outras circunstâncias, eu pediria que déssemos três hurras ao capitão Atkinson, mas como a ocasião é de tristezas e lágrimas, demos os três hurras dentro do coração. E agora, por Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, amém.

Dizendo isso, voltou-se com um ar de quem desce do púlpito e estendeu a mão ao capitão do barco. O australiano apertou-a cordialmente.

—  Fez um serviço de primeira ordem.

—  Prática — respondeu Nichols com modéstia.

—  Que tal um trago agora, rapazes?

—  É uma idéia.

Voltou-se para sua tripulação:

—  Podem voltar para o Fenton. Você, Tom, virá buscar-nos.

Os  quatro homens  sentaram-se  no  convés.  Atkinson trouxe da cabine uma garrafa de uísque e alguns copos.

—  Um pastor não teria feito melhor — disse ele, levantando o copo para Nichols.

—  É apenas uma questão de sentimento: quando estava dirigindo o serviço, não quis saber se se tratava de um japonês imundo. Era como se fosse o senhor, Fred ou o doutor. Isto é que é o cristianismo.

 

O vento soprava violentamente quando deixaram o ancoradouro, e o mar estava agitado. O doutor, inexperiente em matéria de veleiros, achava o espetáculo terrível. As ondas pareciam enormes, e dentro da pequena embarcação o homem se sentia bem próximo das águas. De vez em quando o mar golpeava o barco duramente e as vagas varriam o tombadilho. Diante de cada ilha que passavam ele imaginava se seria capaz de alcançá-la a nado, em caso de perigo. Sentia-se nervoso. Aquilo tudo o exasperava. Sabia que não havia remédio. Dois negros sentados a distância preparavam uma linha de pescar, abstraídos no espetáculo. A água estava lamacenta e havia recifes em torno. O capitão ordenou a um dos homens que se mantivesse de vigia, e foi se deixando guiar pelos sinais que ele fazia com os braços.

O sol brilhava e, no céu de um azul luminoso, algumas nuvens corriam rapidamente. O doutor tentou ler um livro, mas tinha de se afastar constantemente para evitar uma onda mais violenta. De repente, houve um ruído e um solavanco. Haviam batido num recife. O barco elevou-se e deslizou novamente na água profunda.

Nichols gritou um palavrão e recomendou ao vigia mais cuidado. Bateram em outro recife e saltaram de novo sobre ele.

—  É melhor sairmos fora disso.

Alterou a rota e rumou para alto-mar. O barco pulava nas vagas. O dr. Saunders estava encharcadíssimo.

—  Por que não vai para a cabine? — gritou o capitão,

—  Prefiro ficar no tombadilho.

—  Não há perigo nenhum.

—  Acha que vai ficar pior?

—  Não me surpreenderia. Parece que vamos ter vento forte.

O doutor não se sentia bem. Não estava muito tranqüilo. Fred Blake aproximou-se dele.

—  Formidável, não acha? Este ventinho faz bem aos nervos.

O vento desmanchara-lhe o cabelo e seus olhos brilhavam. Tinha um ar satisfeito. O doutor encolheu os ombros, mas não respondeu. Olhava uma vaga enorme que vinha em direção do barco, não como se fosse um inconsciente efeito de forças naturais, mas como se tivesse intenção perversa. Chegou perto, mais perto, crescendo cada vez mais. Como poderia o barquinho suportar aquela monstruosa montanha de água?

—  Cuidado! — gritou o capitão.

O doutor instintivamente agarrou-se ao mastro. A vaga bateu em cheio e quebrou-se sobre eles como uma parede líquida que desmoronasse. O convés ficou alagado.

—  Que colosso! — gritou Fred.

—  Eu estava precisando de um banho — comentou o capitão.

Os dois riram. Mas o doutor se sentia apavorado. Arrependia-se de não ter ficado na ilha de Takana até a chegada do navio. Que estupidez preferir arriscar a vida a suportar duas ou três semanas de aborrecimento! Jurava a si mesmo que, se escapasse desta vez, nunca mais cometeria tal asneira. Nem a leitura o tentava mais. Impossível ver com clareza através dos óculos molhados. O próprio livro estava encharcado. Olhava as ondas que se aproximavam. As ilhas apareciam indistintamente na distância.

— Está gostando, doutor? — gritou o capitão.

O barco dançava como uma rolha de cortiça. O dr. Saunders sorriu sem vontade.

— Estávamos precisando de uma limpezazinha — continuou Nichols.

O doutor nunca o vira assim tão bem-disposto. O homem estava alerta. Parecia saborear sua própria competência profissional. Não seria figura de retórica dizer-se que ele estava em seu próprio elemento. Temor? Ele nada sabia disso, aquele homenzinho vulgar e tagarela. Nada de decente existia nele. Nada sabia das coisas que dão dignidade e beleza ao homem, e bastava conhecê-lo vinte e quatro horas para saber que, entre dois modos de praticar uma ação, um honesto e outro desonesto, ele preferia o segundo. Em seu espírito mesquinho só havia um desejo: tirar, por processos inconfessáveis, o melhor partido do próximo. Não era, porém, uma paixão do mal, em que, afinal de contas, pode existir uma sinistra grandeza, mas a simples malícia que se sente satisfeita pelo fato de fazer mal aos outros. E agora, neste frágil barco perdido num deserto de ondas encolerizadas, sem possibilidade de socorro em caso de catástrofe, ele sentia-se bem, forte em seu conhecimento do mar, orgulhoso, satisfeito e feliz. Parecia gozar seu domínio sobre a pequena embarcação que dirigia. Ela era em suas mãos como um cavalo nas de um cavaleiro que conhece seus hábitos e manhas. Olhava as ondas com um sorriso nos olhos de raposa, sacudindo a cabeça com satisfação a cada novo rugido. Parecia ao doutor que, para Nichols, elas também eram seres vivos, de quem procurava tirar o melhor partido que pudesse.

Cada nova vaga fazia o doutor cambalear e amparar-se com ambas as mãos no mastro. Sentia que seu rosto estava pálido. Pensava na existência da possibilidade de escapar num dos escaleres, no caso de o barco soçobrar. De que valeria isso? Estavam a centenas de milhas de qualquer lugar habitado e fora da linha de navegação. Se alguma coisa acontecesse, o melhor seria deixar-se afogar rapidamente. Não era a morte que importava, mas a sensação de morrer. E ele pensava como devia ser desagradável engolir água e ir perdendo as forças, enquanto a vontade lutava ainda com desespero.

O cozinheiro apareceu no tombadilho para servir o jantar. As águas haviam invadido o porão e ele não pudera acender o fogo. A refeição consistia, por isso, em carne em conserva e batatas fritas.

—  Chame Utan para tomar conta do leme — gritou o capitão.

Quando o negro chegou, os três homens sentaram-se em redor da comida miserável.

—  Estou com fome — disse Nichols jovialmente, ser-vindo-se. — Que tal o apetite, Fred?

—  Como sempre.

O rapaz estava encharcado, mas seu rosto e seus olhos brilhavam. O doutor refletia sobre se aquele ar de indiferença não seria fingido. Assustado e irritado consigo mesmo por isso, olhou o capitão, de cara feia.

—  Se você pode digerir isto, pode digerir um boi.

— Graças a Deus nunca tenho dispepsia quando o vento sopra deste jeito. É como um tônico para mim.

—  Quanto tempo durará este maldito vento?

—  Não está gostando, doutor? Deve durar até o pôr-do-sol, ou talvez um pouquinho mais.

—  Não se poderia buscar abrigo em alguma ilha?

—  Não. É melhor estar no mar. Estes barcos não têm grande resistência. Não quero despedaçar-me em algum recife.

Quando acabaram de comer, o capitão acendeu o cachimbo.

—  Que tal um joguinho agora, Fred?

— Estou às ordens.

— Vocês não vão jogar com um tempo horrível desses! — exclamou o doutor.

O capitão olhou o mar com desprezo.

— Um pouco de água não faz mal a ninguém. Os negros se encarregam de dirigir o barco.

Desceram para a cabine. O doutor ficou no tombadilho olhando com azedume o mar. A tarde alongava-se diante dele. De repente, pensou em Ah Kay e resolveu procurá-lo.

O chinesinho dormia num dos beliches da tripulação. Quando o médico se aproximou, ele acordou com seu sorriso doce nos lábios.

—  Sente-se bem?

—  Sim.

—  Assustado?

Ah Kay, sorrindo de novo, sacudiu a cabeça.

—  Então trate de dormir.

Quando voltou ao tombadilho, um golpe de água fustigou-lhe o rosto. Sentia o coração pequeno. Praguejou, sacudindo o punho para o mar.

  É melhor descer — disse um dos negros. — O senhor ficará pingando.

Disse que não e ali ficou, apoiado a uma corda. Sentia necessidade de companhia humana. Afinal, ele era o único que tinha medo naquele instante. O próprio Ah Kay, também desabituado ao mar, parecia indiferente. Não havia perigo. Estavam tão seguros a bordo como em terra firme, e apesar disso não podia evitar a sensação de terror que o dominava cada vez que uma vaga alcançava o barco e se derramava sobre o deck. Sentia-se apavorado. Parecia-lhe que somente por um esforço de vontade não se refugiava, chorando, a um canto da embarcação. Desejava, instintivamente, apelar para um Deus em que não acreditava, e apertava os dentes para que de seus lábios trêmulos não escapasse uma prece. Era ridículo que ele, um homem inteligente, que se considerava mesmo um filósofo, fosse atingido por esse estranho pavor, tão absurdo que o fazia sorrir amargamente. Era inexplicável que um homem de cérebro ágil, de largos conhecimentos esegura visão da vida, sem nada a perder com a morte tremesse assim de medo enquanto os outros, ignorantes como aquele negro ali a seu lado, sórdidos como o capitão, estúpidos como Fred Blake, ficassem imperturbáveis. Tudo aquilomostrava apenas que pobre coisa era seu espírito. De onde vinha aquele pavor? Da idéia da morte? Mas se ele enfrentara a morte tantas vezes. . . Uma ocasião, até, decidira acabar com a vida, mas sem sofrimento, e precisara de uma estranha mistura de coragem, cinismo e bom senso para suportar uma vida que não lhe oferecia nenhum atrativo. Sentia-se feliz por ter agido assim. Mas sabia também que não estava preso à vida. Muitas vezes, doente, olhara a morte não somente com resignação mas com simpatia. Dor? Ele a aturava perfeitamente. Afinal de contas, quem suporta uma dor de dentes com serenidade pode suportar qualquer coisa. Não, não devia ser isso, e sim algum instinto que ele não podia controlar. E observava curiosamente, como se fosse um espetáculo exterior a si mesmo, aquele terror que secava sua garganta e fazia tremer seus joelhos.

—  É estranho — murmurou, afastando-se lentamente.

Olhou o relógio de pulso. Meu Deus, três horas apenas. Havia qualquer coisa de horrível naquele céu limpo, varrido pelo vento. Seu brilho era frio. Parecia tão indiferente àquele mar tempestuoso, como o mar parecia indiferente ao homem. Eram forças estranhas, inconscientes, que brincavam com ele e o atormentavam, não por maldade mas por um capricho passageiro.

Desceu para a cabine. O capitão e Fred continuavam jogando.

—  Que tal está o tempo, doutor?

—  Está terrível.

—  Tem de ser ruim antes de ser bom, como as mulheres que vão ter filho. O barco é seguro, pode acreditar. É preferível viajar nele do que em qualquer transatlântico.

—  É sua vez — disse Fred.

Estavam jogando sobre o colchão do capitão, e o doutor, despindo a roupa encharcada, estirou-se no outro. Não podia ler, naquela luz mortiça. Ficou deitado, escutando os termos monótonos do jogo. A cabine estalava e sobre sua cabeça o vento soprava furiosamente. Todo o seu corpo foi sacudido.

— Foi uma das grandes — disse Fred.

— Não está sopa, não. Dois ases e dois valetes.

Fred ganhava de novo e o capitão jogava com um acompanhamento de lamentações. O doutor endurecia as pernas, para suportar aquele estado de pavor. As horas passavam terrivelmente vagarosas. Ao cair do sol, o capitão subiu para o deck.

—  Está ventando um bocado — disse ele, quando voltou, — Vou cochilar um pouco. Acho que não dormirei muito esta noite.

— Por que não baixa as velas um pouco? — perguntou Fred.

— Entregar o barco ao vento com um mar desses? Não, senhor. Vai tudo bem, por enquanto.

Deitou-se no colchão e, em cinco minutos apenas, ressonava tranqüilamente. Fred subiu ao tombadilho para tomar um pouco de ar. O doutor amaldiçoava intimamente a si mesmo, por ter feito a loucura de embarcar naquela casca, e amaldiçoava o capitão e Fred por estarem livres do terror que o atormentava. Mas depois de o barquinho ter sido ameaçado cem vezes, e de cada vez ter vencido o mar, foi despertando dentro dele uma admiração gradual pela bravura do pequeno veleiro. Às sete horas, o cozinheiro trouxe o jantar e despertou o capitão Nichols. Conseguira fazer fogo e preparar um ensopado de carne e um chá bem quente. Depois, os três subiram para o deck e o capitão tomou o leme. A noite estava clara, cheia de estrelas brilhantes. O mar continuava agitado e as vagas pareciam enormes.

— Aí vem uma daquelas! — gritou Fred.

Uma alta muralha de água verde desmoronou sobre s> como se fosse destruir o Fenton. Os homens, por um momento, ficaram cegos. Depois a proa levantou-se sobre o mar. O barco sacudiu-se todo, como um cachorro molhado ao pisar na terra firme.

—  A brincadeira já está ficando pesada — disse o capitão.

—  Há ilhas aqui por perto?

—  Há. Se pudermos agüentar algumas horas, alcançaremos uma delas.

— E os recifes?

— Não há sinal. A lua sairá em breve. É melhor que vocês dois desçam para a cabine.

— Prefiro ficar no deck — disse Fred. — A cabine sufoca.

— Como quiser. E o doutor, o que acha?

Ele hesitou. Detestava o aspecto do mar e não queria demonstrar medo. Sentia-se gasto pelas emoções.

— Posso servir para alguma coisa?

— Como um copo de sorvete no inferno.

"Se eu morrer, morri", pensou o doutor. Resolveu por isso libertar o espírito de preocupações e gozar inteiramente aquelas horas que bem podiam ser as últimas de sua existência. Saiu à procura de Ah Kay. O rapaz voltou com ele e desceram ambos para a cabine.

— Experimentemos o ópio de Kim Ching. Nada de moderação esta noite.

O chinesinho retirou a lâmpada e o ópio da valise e, com a displicência habitual, começou a preparar o cachimbo. Nunca a primeira tragada pareceu tão deliciosa. Fumaram alternadamente. Pouco a pouco, a paz desceu sobre a alma do médico. Seus nervos cessaram de vibrar com o movimento do barco. O medo abandonou-o. Depois dos seis cachimbos habituais, Ah Kay recostou-se como se tivesse terminado.

—  Ainda não — disse o doutor suavemente. — Uma vez ao menos hei de abusar dessa droga.

O ruído da embarcação já não era desagradável. Parecia-lhe que, gradualmente, o ritmo se estabelecia. Era apenas a carcaça que se movia de um lado para o outro. O espírito pairava muito acima da tempestade. Caminhava pelo infinito, mas sabia bem, antes de Einstein, que o infinito estava limitado por seu próprio pensamento. Tinha certeza de que sua inteligência poderia solucionar qualquer grande mistério, mas sentia que era preferível o prazer de saber que o mistério ainda esperava solução. Por tanto tempo ele o torturara, que seria indelicado roubar seu segredo no último momento. Era como um homem bem-educado, que não quer expor sua amante à humilhação de saber que conhece suas mentiras. Ah Kay adormecera, junto de seu colchão. Ele pensou em Deus, na eternidade, e sorriu intimamente do absurdo da vida. Trechos vagos de poesia flutuavam em sua memória. Parecia-lhe que já estava morto e que o capitão Nichols era o próprio Caronte, conduzindo-o para um estranho e doce lugar. E finalmente adormeceu.

 

Foi despertado pelo frio da madrugada. Abriu os olhos e viu que o alçapão de entrada estava aberto e que o capitão e Fred Blake dormiam em seus lugares. Haviam descido e deixado a portinhola escancarada devido ao cheiro fortíssimo do ópio. De repente, lhe pareceu que o barquinho estava parado. Levantou-se. Sentia o efeito do abuso da droga e uma grande necessidade de respirar ar puro. Ah Kay dormia tranqüilamente no mesmo lugar em que se deitara., Tocou-lhe de leve no ombro. O rapaz abriu os olhos e sorriu com aquele ar suave que tanta beleza dava a seu rosto. Espreguiçou-se um momento e bocejou.

— Prepare-me um pouco de chá.

Ah Kay pôs-se logo de pé. O doutor subiu com ele. O sol ainda não se levantara e uma pálida estrela sobrava no céu, mas a noite se vestira de um cinzento fantasmagórico, e o barquinho parecia flutuar na superfície de uma nuvens O homem que ia no leme cumprimentou-o com a cabeça, secamente. O mar estava bem calmo. Iam passando entre duas ilhas tão próximas que davam a impressão de um canal. Soprava uma leve brisa. O homem do leme parecia meio adormecido. A aurora deslizava entre as ilhas baixas, gravemente, com a calma deliberada de quem tenta esconder umaapreensão e justificava a imagem feminina com que os homens a personificaram. Tinha, de fato, a timidez e a graça de uma menina, sua serenidade encantadora, todo o seu aspecto indiferente. O céu ostentava a cor de uma estátua antiga. A floresta virgem, de cada lado do barco, guardava ainda a noite. Houve um curto intervalo e o dia nasceu com um sorriso. Viajando entre aquelas ilhas inabitadas, sobre aquele mar tranqüilo, no meio de um silêncio que quase fazia conter a respiração, tinha-se a impressão estranha e excitante do começo do mundo. Nunca um homem passara por ali. Nunca outros olhos haviam visto a mesma coisa. Era uma sensação de frescura primitiva, livre de toda a complicação das gerações. Uma imensa simplicidade, nua e severa como uma linha reta, enchia a alma de beatitude. O doutor conheceu naquele momento o êxtase dos místicos.

Ah Kay trouxe-lhe uma xícara de chá com um doce perfume de jasmim e ele, descendo das alturas espirituais em que flutuara por um momento, recostou-se como numa cadeira cômoda de braços, gozando aquela felicidade material. O ar estava frio mas balsâmico. E ele não pedia nada mais do que flutuar para sempre naquele mesmo barco entre alas de ilhas verdes.

Depois de ficar sentado uma hora naquela tranqüilidade, ouviu passos, e Fred Blake apareceu no tombadilho. Em seu pijama, o cabelo para cima, ele parecia muito jovem, e era natural de sua idade que despertasse tão bem disposto, com as linhas do rosto suavizadas, sem as rugas bem marcadas com que o sono riscara o rosto do médico.

— Madrugando, doutor?

Notou a xícara vazia.

—  Será possível conseguir um pouco de chá?

—  Pergunte a Ah Kay.

—  Está bem. Vou pedir antes a Utan que me jogue dois baldes de água sobre o corpo.

Afastou-se e falou a um dos homens. O doutor viu o negro descer o balde por uma corda até o mar, enquanto Fred Blake despia o pijama e recebia no corpo nu a água apanhada. O balde desceu de novo e Fred deu meia-volta Era alto, de ombros quadrados, cintura fina e ancas estreitas; seus braços e pescoço estavam queimados de sol, mas o resto do corpo era branquíssimo. Enxugou-se e vestiu o pijama novamente. Seus olhos brilhavam e nos lábios havia a linha fresca de um sorriso.

—  Você é um lindo rapaz — disse o doutor.

Fred encolheu os ombros com indiferença e sentou-se na cadeira próxima.

—  Perdemos um bote durante a noite, sabia?

—  Não.

—  Ventou como o diabo.

—  Esteve todo o tempo no tombadilho?

—  Estive. Se naufragássemos, morreria ao ar livre.

—  Não teve medo?

—  Não. Se a coisa tem de acontecer, acontece mesmo. Não há remédio.

—  Eu me assustei.

—  Nichols me disse que o senhor passou um mau bocado durante a tarde. E achou muita graça nisso.

—  É apenas uma questão de idade. Os velhos se assustam mais facilmente do que os moços. Eu mesmo achei engraçado que, tendo muito menos a perder do que você, que tem a vida inteira pela frente,  sentisse mais medo diante do perigo.

—  Como pôde pensar, se estava tão assustado assim?

—  Meu corpo é que estava assustado. Isso não impedia que meu espírito pensasse.

—  O senhor é um homem notável, doutor.

—  Não tenho grande opinião a meu respeito.

—  Peço que desculpe minha frieza, quando pediu passagem no barco. — Hesitou um momento e continuou: — O senhor sabe que andei doente. Fiquei com os nervos bem abalados. Não tenho o costume de ser amável à primeira vista.

—  Oh! não falemos nisso.. .

— Não quero que me considere um grosseirão.

Olhou em torno o cenário tranqüilo. Tinham saído já do estreito braço entre as duas ilhas. Estavam agora cercados por baixas ilhotas cobertas de vegetação, e a água era calma e azul como em um lago da Suíça.

— Mudou bastante, não acha? Custo a compreender como o senhor conseguiu dormir.

— Fumei primeiro.

— Nichols me disse que o senhor ia fumar, quando desceu com o chinês para a cabine. Não quis acreditar. Mas depois, quando desci também, quase caí tonto com o cheiro.

—  Por que não quis acreditar?

— Não posso admitir que um homem como o senhor se degrade fazendo uma coisa dessas.

O doutor riu baixinho.

— A gente deve ser tolerante para com os vícios do próximo.

— Não tenho razão de condenar ninguém.

— Que mais disse Nichols a meu respeito?

— Bem. . . — Fez uma pausa, vendo Ah Kay aproximar-se, encantador em sua roupa branca, para retirar as xícaras vazias. — Não tenho nada com isso. Ele diz que o senhor foi posto fora da lei por alguma coisa.

—  Riscado do registro é a expressão correta — interrompeu calmamente o doutor.

—  E diz também que acredita que o senhor esteve na cadeia. Naturalmente, a gente tem o direito de imaginar essas coisas quando vê um homem com sua inteligência e com a reputação que tem no Ocidente instalado numa infecta cidade chinesa.

—  Por que razão acha que eu sou inteligente?

—  Noto que o senhor é um homem educado. Não quero que pense que sou apenas um vagabundo. Estava estudando para ser contador quando adoeci. Posso lhe garantir que esta não é a vida a que estou acostumado.

O médico sorriu. Ninguém poderia ter um aspecto mais brilhante de saúde do que Fred Blake. Seu peito largo, sua atlética conformação, eram o melhor desmentido a sua história de tuberculose.

—  Posso dizer-lhe uma coisa?

—  Se quiser. . .

—  Oh! não é a meu respeito. Não gosto de falar muito de mim mesmo. Acho que não há mal em que um médico seja um pouco misterioso. Faz com que os pacientes acreditem mais nele. Ia dar-lhe uma opinião baseada na experiência. Quando qualquer incidente perturba a carreira que a gente escolheu, uma loucura, um crime, uma desgraça, não vejo motivo para imaginar que se fracassou completamente, Pode ser uma falta de sorte momentânea, e quando, anos depois, a gente olha para trás, confessa que não trocaria a nova vida, a que o desastre arrastou, pela existência monótona  e  cacete   que  teria levado  se  as  circunstâncias não atrapalhassem tudo.

Fred olhou para o chão.

—  Por que me diz essas, coisas?

—  Achei  que poderia   ser uma informação útil para o senhor.

Fred deu um breve suspiro e continuou:

— A gente nunca sabe nada a respeito dos outros, não é assim? De todos os malandros que tenho encontrado neste mundo, não há nenhum que bata o capitão. Ele prefere andar torto a andar direito. Ninguém pode ter confiança nele. Já temos convivido por algum tempo e não conheço nada a seu respeito. Ele faria mal a um irmão, se fosse preciso. Não ha nada de decente nesse homenzinho. Devia ter visto o jeito dele a noite passada. Calmo, como se não tivesse nervos. Num dos momentos, me disse: "Faça suas orações, Fred. Se não alcançarmos as ilhas antes de a coisa piorar, estaremos alimentando os peixes antes de chegar a manhã". E sua cara feiasorria. Mas, apesar de tudo, não perdeu a cabeça. Muitasvezes andei embarcando pela baía de Sydney e posso garantir que nunca vi um barco tão bem governado como este. Tiro o meu chapéu para ele. Se estamos aqui neste momento, é a ele que devemos. Conservou a calma completamente. Entretanto, se nossa morte pudesse render-lhe vinte libras, acha que ele hesitaria? Como o senhor me explica tudo isso?

— Ah, não sei...

— Mas não acha engraçado que um sujeito que não passa, afinal, de um refinadíssimo patife tenha tanta coragem assim? Confesso que detesto esse sujeito, mas não pude deixar de admirá-lo a noite passada.

O doutor sorriu, mas não respondeu. Divertia-se com a ingênua surpresa do rapaz diante da complexidade da natureza humana.

—  E tem também sua espécie de orgulho. Repare nele quando estivermos jogando. Ganho sempre, mas, apesar disso, ele continua.

—  Contou-me que você tem tido sorte.

—  Feliz no amor, infeliz no jogo. Toda a minha vida joguei cartas. Tenho mesmo uma grande habilidade. É uma das razões por que desejava ser contador. Tenho essa forma de inteligência. Não é sorte, não. Conheço o jogo e sei que quem joga melhor vence sempre. Nichols acha que é esperto. Mas, jogando comigo, não consegue nada.

A conversa esmoreceu e os dois ficaram sentados lado a lado. Depois de alguns minutos o capitão despertou e subiu ao tombadilho. Com o pijama sujo, o rosto por lavar e por barbear, dentes maltratados e um aspecto geral de negligência, era quase repulsivo.

— Estou sentindo a coisa de novo, doutor.

— Que coisa?

— Minha dispepsia. Comi um pouco ontem à noite, antes de ir para a cama. Sabia que não devia comer nada, mas estava com fome. Sinto agora qualquer coisa cruel aqui por dentro.

— Verei o que posso fazer — disse o doutor levantando-se.

— Acho que não poderá fazer nada. Conheço bem meu estômago. Depois de um tempo horrível, como o de ontem tenho sempre dispepsia. É simplesmente insuportável. Seria natural que, depois de estar no leme pôr oito horas, tivesse o direito de comer um pouco de salsicha fria com queijo, sem sofrer. Com mil diabos, um homem precisa alimentar-se.

 

O dr. Saunders deveria deixá-los em Kanda-Meira, ilhas gêmeas no mar de Kanda, por onde passavam regularmente os navios da Real Companhia Holandesa de Navegação. A borrasca afastara o barco de sua rota, e só no sexto dia, bem cedo, com vento apenas suficiente para encher as velas, avistaram o vulcão de Meira. A cidade ficava no Kanda. Às nove horas, alcançaram a entrada do porto, sendo advertidos da dificuldade para a navegação. Meira era uma alta colina cônica coberta de mato quase até o cume, e uma pluma densa de fumaça subia de sua cratera. O canal entre as duas ilhas era estreito e diziam que uma corrente de marés corria através dele com grande força. Num certo ponto tinha a largura de meio cabo, e cardumes de peixes transpareciam na água. Mas o capitão Nichols era um marinheiro de primeira e sabia disso muito bem. Gostava dessas oportunidades de mostrar o que valia. Com uma surpreendente arrogância, dentro de seu pijama riscado, um boné na cabeça e barba branca de uma semana, manobrou o Fenton com estilo, na direção do porto.

—  Não parece má — murmurou, quando a pequena cidade apareceu.

Havia armazéns à beira da água  e  casinhas nativas cobertas de palha. Crianças nuas brincavam na água clara.

Um chinês, de chapéu de abas largas, pescava junto a um cano de esgotos. Havia poucas embarcações no porto. Além da cidade, uma colina encimada por um mastro onde abandeira holandesa tremulava.

— Será que há um hotel por aqui? — murmurou odoutor.

Ele e Fred Blake ladeavam o capitão Nichols, que iaao leme.

—  Deve ter. Isto era um lugar importante antigamente, Centro do comércio de especiarias. Nunca andei por aqui, mas me disseram que há palácios de mármore e não sei mais o quê.

Havia dois trapiches. Um, limpo e bem conservado. O outro, de madeira, muito velho e necessitado de uma pintura. Era menor que o primeiro.

—  O maior deve pertencer à Companhia Holandesa. Vamos para o outro.

Aproximaram-se dele. A vela principal foi baixada e amarrada.

—  Bem,  doutor, estamos chegando.  A  bagagem está pronta?

—  Vocês também desembarcam, não é verdade?

—  Que você acha, Fred?

—  Boa idéia. Já estou enjoado de ficar a bordo deste barco. Precisamos mesmo conseguir um novo escaler.

—  Eu me encarrego disso. Depois encontrarei vocês.

O capitão desceu para a cabine. Sua toalete não lhe tomava muito tempo, pois consistia em trocar o pijama por uma calça cáqui, vestir um casaco da mesma cor e calçar um par de tênis. Desceram ao trapiche deserto. Alcançaram o cais e, depois de hesitar um momento, seguiram pelo que lhes parecia ser a rua principal. Estava vazia e silenciosa. Caminharam até o meio, olhando em torno. Era uma sensação agradável poder espichar as pernas depois todos aqueles dias de prisão, e um alívio sentir sob os T a terra sólida. Os bangalôs, de cada lado da rua, tinham telhados de palha, altos e pontudos, suportados por colunas dóricas e coríntias, de modo a formar largas varandas. Havia neles um ar de antiga opulência, mas notava-se na fachada e nos pequenos jardins que os defrontavam um aspecto de abandono. Chegaram diante das lojas e todas pareciam vender as mesmas coisas, algodões, roupas feitas e alimentos em conservas. Não havia nenhuma animação. Algumas delas não tinham empregados no balcão, como se não esperassem freguesia. As poucas pessoas que passavam, malaios ou chineses, caminhavam rapidamente, como se tivessem medo de fazer eco. O doutor fez parar um dos chineses e perguntou onde ficava o hotel. O homem disse-lhes que fossem sempre em frente. Caminharam mais um pouco e o descobriram. Como não havia ninguém, sentaram-se a uma mesa na varanda e bateram com as mãos chamando. Uma mulher nativa apareceu, olhou para eles, mas sumiu quando o médico lhe dirigiu a palavra. Surgiu então um mestiço, abotoando a túnica, e o doutor perguntou-lhe se podia conseguir um quarto. O homem não compreendeu e a pergunta foi repetida em chinês. Respondeu alguma coisa em holandês e, como o doutor sacudisse a cabeça, ele sorriu e fez-lhe sinal que esperasse. Desceu correndo a escada e atravessou a rua.

—  Foi buscar alguém — disse o capitão.

— É extraordinário que não saibam falar inglês. Julguei que fosse um lugar civilizado.

O mestiço voltou dentro de alguns minutos com um homem branco, que os olhou com curiosidade e tirou o chapéu polidamente.

— Bom dia, cavalheiros. Posso ser útil por acaso? Van Ryk não compreende o que os senhores desejam.

Falava corretamente inglês, mas com acento estrangeiro. Era um jovem de mais ou menos vinte anos, muito alto, de dois metros de altura quase, ombros largos e um corpo forte mas malfeito. Suas roupas eram limpas e bem cuidadas. Uma caneta-tinteiro aparecia no bolsinho de sua túnica abotoada.

—  Acabamos de chegar — disse o doutor. — Desejava saber se posso conseguir um quarto até a chegada do próximonavio.

—  Certamente. O hotel não está tão cheio assim.

Voltou-se para o mestiço e explicou-lhe fluentemente o que o doutor desejava. Depois de uma breve conversa voltou a falar em inglês:

—  Sim, ele pode conseguir-lhe um bom quarto. O gerente está em Batávia, mas Van Ryk está cuidando da casa e providenciará para que o senhor se sinta bem.

—  Que tal uma bebida agora? — disse o capitão. — Peça cerveja para nós.

— Quer dar-nos o prazer de sua companhia? — perguntou o doutor, polidamente.

—  Muito obrigado. Aceito.

O jovem sentou-se e tirou o chapéu da cabeça. Tinha um rosto largo, um nariz grosso, ossos salientes e pequenos olhos negros. Sua pele era macia e as faces pálidas. O cabelo, cortado curto, era negro como carvão. Não era um rapaz bonito, mas sua expressão amável cativava. Havia bondade em seu olhar.

—  Holandês? — perguntou o capitão.

— Não. Sou dinamarquês. Erik Christessen. Represento uma companhia dinamarquesa.

—  Há muito tempo que está aqui?

—  Quatro anos.

—  Meu Deus! — exclamou Fred Blake.

Erik Christessen deu uma risada, infantil em sua simplicidade, e seus olhos traduziam contentamento.

— É um  lindo lugar.  O pedaço mais romântico do Oriente. Quiseram tirar-me daqui, mas eu pedi que me deixassem ficar.

Um empregado trouxe as garrafas de cerveja e o dinamarquês, antes de beber,  ergueu o copo.

—  A sua saúde, cavalheiros.

O dr. Saunders não sabia explicar a atração que sentia pelo estrangeiro. Não era apenas a cordialidade, coisa comum Oriente. Havia algo que agradava em sua personalidade.

— Não me parece que haja muitos negócios por aqui — disse o capitão.

—_O lugar é morto. Vivemos apenas de lembranças. É o que dá caráter à ilha. Antigamente, havia tanto tráfico que, às vezes, o porto ficava cheio e os navios que chegavam tinham de esperar lugar para atracar. Espero que fiquem algum tempo, para que lhes mostre os arredores. A paisagem é encantadora. Uma ilha imprevista em mares remotos.

O doutor reconheceu a frase como uma citação, mas não se lembrava de quem.

—  De onde é isso?

—  Isso? Oh! Pippa Passes, de Browning.

—  Onde o leu?

—  Leio muito. Tenho muito tempo para isto. Prefiro a poesia inglesa a qualquer outra. Ah! Shakespeare.

Olhou para Fred, com um sorriso na boca larga, e começou a recitar:

 

... de alguém cuja mão

como a do índio vil, lançou fora uma pérola

mais rica do que sua tribo,

cujos olhos estranhos à ternura,

verteram lágrimas rápidas, como as árvores da Arábia

vertem sua benéfica resina.

 

O acento estrangeiro dava aos versos um som estranho e gutural, mas o que causava mais estranheza é que um jovem comerciante dinamarquês estivesse ali citando Shakespeare para o capitão Nichols e Fred Blake. O dr. Saunders encarava a situação com humorismo. O capitão fez-lhe um sinal, como querendo  dizer:  "Que sujeito gozado". Fred baixara a cabeça com um ar tímido. O dinamarquês, achando natural sua expansão, continuou com o mesmo entusiasmo:

— Os velhos mercadores holandeses enriqueceram tanto aqui, nos dias gloriosos do comércio de especiarias, que nãosabiam o que fazer com seu dinheiro. Como não havia carga para cá, os navios traziam mármore, que era usado na construção de casas. Se os senhores não estão com pressa, vou mostrar-lhes a minha. Às vezes, no inverno, os navios vinham carregados, sabem de quê? De gelo. Engraçado, não acham? Era o luxo maior que eles se podiam oferecer. Imaginem os senhores, trazer gelo  da  Holanda.  A  viagem  levava seis meses. E todos eles possuíam seu carro, e se davam ao hábito requintado de passear todas as tardes ao longo do porto e ao redor da praça. Alguém deveria escrever um livro sobre isso. Seria as mil e uma noites holandesas. Viram o forte português quando entraram no porto? Vou levá-los até lá esta tarde. Se há alguma coisa que eu possa fazer pelos senhores, vão dizendo. Terei o máximo prazer.

—  Tenho de buscar minha bagagem — disse o doutor, — Estes cavalheiros tiveram a bondade de me trazer até aqui. Não quero incomodá-los mais.

Erik Christessen sorriu amavelmente para os outros dois:

—  É isto que eu admiro aqui no Oriente. Todos são tão gentis! Nada parece causar incômodo. Não pode imaginar com quanta bondade fui tratado por pessoas perfeitamente estranhas.

Os quatro levantaram-se e o dinamarquês disse ao gerente que o doutor voltaria dentro em pouco com o criado e a bagagem.

—  Deviam ter comido aqui. Há reistafel hoje, e eles preparam muito bem. Almoçarei aqui.

— Vocês dois deviam almoçar comigo — disse o doutor.

— Reistafel me faz um mal terrível — respondeu o capitão. — Entretanto, não faço caso de me sentar aqui ever os outros comerem.

Erik Christessen, gravemente, apertou a mão dos três homens.

— Tive um grande prazer em conhecê-los.  É  muito raro encontrar forasteiros nesta ilha. E é sempre um prazer a gente encontrar cavalheiros ingleses,

Inclinou a cabeça e separou-se deles. __

— Sujeito inteligente — comentou Nichols, depois de caminharem um pouco. — Notou imediatamente que estava tratando com cavalheiros.

O doutor olhou para ele. Mas não havia traço de ironia em sua expressão.

 

Algumas horas depois o médico se instalara e sentara com os convidados do Fenton na varanda do hotel, bebendo um copo de schnapps antes de almoçar.

—  O Oriente já não é o mesmo — disse o capitão, sacudindo a cabeça. — Quando  eu era rapaz,  os hotéis holandeses tinham garrafas de schnapps em todas as mesas, no almoço e no jantar, e a gente podia servir-se à vontade. Absolutamente de graça. E, quando se terminava uma garrafa, mandava-se o empregado trazer outra.

—  Deve ter ficado mais caro.

—  Não, o engraçado é que não ficou. Todo homem procede bem quando é bem tratado pelos outros. Acredito e sempre acreditei na natureza humana.

Erik Christessen subiu a escada, tirou o chapéu para eles e ia se encaminhando para dentro do hotel.

— Beba qualquer coisa com a gente — convidou Fred.

— Com todo o prazer. Vou primeiro lavar as mãos.

Foi para dentro.

—  Que é isso? — disse o capitão, escutando o convite — Pensei que você não gostasse de pessoas estranhas.

—  Depende. Este me parece um bom sujeito. Nem sequer perguntou quem nós somos e o que estamos fazendo aqui. Geralmente as pessoas são muito curiosas.

— Vê-se que ele tem boa educação — comentou o doutor.

— Que quer tomar? — perguntou Fred, quando o dinamarquês voltou.

— O mesmo que vocês.

Puxou a cadeira e sentou-se. Começaram a conversar. Não disse nada de interessante ou inteligente, mas sua conversação era tão espontânea que agradava. Seu todo inspirava confiança. Irradiava bem-estar. O doutor não gostava de julgar apressadamente e desconfiava de seus instintos, mas atribuía o encanto do moço a sua cativante sinceridade. Era claro o interesse de Fred Blake pelo dinamarquês. O doutor nunca o ouvira falar com tanta facilidade.

—  Escute, já está na hora de o senhor saber nossos nomes — disse depois de alguns minutos. — Meu nome é Blake, Fred Blake, o do doutor é Saunders, e este aqui é o capitão Nichols.

Erik Christessen, inesperadamente, levantou-se e apertou a mão de cada um.

—  Tenho muito prazer  em  conhecê-los.  Espero  que demorem alguns dias por aqui.

—  Seguem amanhã? — perguntou o doutor.

—  Não há motivo para ficar. Já compramos o escaler.

Passaram para a sala de jantar. Era um aposento fresco e sombrio. Havia uma mesa comprida e, em uma das extremidades, estava sentado um holandês com sua esposa mestiça, uma mulher forte, metida num vestido folgado, e outro holandês de pele suficientemente morena para demonstrar que também devia ter sangue nativo. Erik Christessen cumprimentou-os polidamente. Eles olharam sem curiosidade os recém-chegados.

Serviram o reistafel.  Encheram os pratos de arroz e curry, ovos fritos, bananas e uma dúzia de misturas estranhas que os empregados iam trazendo. Quando se serviram de tudo, cada um tinha diante de si uma montanha de comida. O capitão olhava para aquilo com ar de repugnância.

— Isto será minha morte — disse ele solenemente

— Então não coma — aconselhou Fred.

—Tenho de conservar minha energia. Onde estaria vocês agora se não fosse minha energia quando tivemos de enfrentar a tempestade? Não é por mim que preciso comer é pelos outros. Nunca tento uma coisa quando sei que não posso fazê-la. Meu pior inimigo não me poderá negar esta qualidade.

Gradualmente, as montanhas de comida foram diminuindo e o capitão Nichols esvaziou o prato.

— Há muito tempo que não comíamos tão bem —. disse Fred.

Comia com voracidade, com um apetite de menino, e saboreando o prato. Beberam cerveja.

—  Se eu não sofrer por causa disso, será um milagre —  suspirou o capitão.

Tomaram café na varanda.

—  É melhor dormir um pouco agora — disse Erik. —  Quando estiver mais fresco, virei buscá-los para mostrar-lhes a paisagem. É pena que não demorem um pouco mais. O passeio ao vulcão é uma beleza. Vêem-se o mar e todas as ilhas.

—  Não vejo por que a gente não possa ficar aqui até a partida do doutor — disse Fred.

—  De acordo — falou o capitão. — Afinal de contas, a dureza da vida a bordo exige um descanso destes. Não sei se um trago de conhaque não faria assentar melhor este reistafel.

—  Suponho que estão a negócios — disse Erik.

—  Procurando novos leitos de ostras por aí — retrucou Nichols. — Tenho sorte, pode-se fazer uma fortuna.

—  Tem algum jornal, por acaso? — perguntou Blake. —  Jornal inglês, naturalmente.

—  Não de Londres. Mas Frith recebe um da Austrália.

—  Frith. Quem é Frith?

— Um inglês. Recebe um maço do Sydney Bulletin em cada correio.

Fred empalideceu, mas ninguém poderia dizer que estranha emoção o dominara.

—  Acha que poderei dar uma olhada neles?

— Naturalmente. Pedirei emprestado e os trarei aqui.

— Que data tem o último?

— Creio que não é muito antigo. A mala chegou há quatro dias.

Mais tarde, quando o calor do dia já passara, Erik procurou-os, depois de terminar seu trabalho.

O doutor e Fred estavam sentados sozinhos, porque Nichols, sofrendo de uma violenta indigestão, dissera que não queria ver ninguém e se recolhera ao barco. Foram dar uma volta pela cidade. Havia mais gente do que de manhã. De vez em quando, Erik tirava o chapéu para um holandês queimado de sol que passeava com a mulher. Viam-se poucos chineses, sinal de que o comércio era pequeno, mas um grande número de árabes, de tez escura e olhos brilhantes, com todo o aspecto semita dos mercadores de Tiro. Alguns mestiços malaios e papuas. Havia em tudo um estranho silêncio. O ar estava pesado de cansaço. As grandes casas residenciais tinham o aspecto envergonhado de cidadãos respeitáveis que não podem pagar suas dívidas. Chegaram junto a uma grande parede branca, quase em ruínas, outrora um convento português, depois avistaram os vestígiosde um forte invadido por um matagal de árvores e de arbustos em flor. Havia um largo espaço diante dele, defrontando o mar, e velhas árvores, plantadas pelos portugueses, casuarinas, figueiras-bravas, sob as quais os habitantes gostavam de passear depois do calor dos dias longos.

Respirando com dificuldade, o doutor subiu com os companheiros a colina onde se erguia a cidadela, nua e cinzenta, que comandara o porto. Era cercada por um fosso profundo, e eles tiveram de estender uma prancha por cima para atingir a entrada. Dentro dos grandes muros quadrados havia aposentos largos e bem proporcionados, com janelas e portas que lembravam o estilo do fim da Renascença. Ali se alojavam a oficialidade e a guarnição. Das torres mais altas descortinava-se uma vista ampla e maravilhosa.

—  Parece o castelo de Tristão — disse o doutor.

O dia morria docemente e o mar, de uma cor de vinho escuro, lembrava aquele em que Ulisses navegara. As ilhas cercadas pela água lisa e brilhante tinham o verde suntuoso que há nas alfaias das catedrais espanholas. Era uma cor tão bizarra e requintada que parecia pertencer mais à arte do que à natureza.

—  Como um verde pensamento numa penumbra verde —  murmurou o dinamarquês.

—  Aquelas ilhas são bonitas a distância — disse Fred. —  Mas quando a gente chega lá, é um horror. A princípio, sempre desejei desembarcar. Eram lindas, vistas do mar. Pensava que deveria ser bom viver ali, pelo resto da vida, longe de todos, passando os dias a pescar e a criar galinhas e porcos. Nichols dava boas risadas, dizia que elas eram inabitáveis, mas eu insistia em meu ponto de vista, e só depois de visitar meia dúzia delas é que me convenci do contrário. Quando a gente desembarca, só vê árvores, caranguejos e mosquitos. Parece que os bichos passam entre os dedos da gente.

Erik olhou para ele e seu sorriso era doce e compreensivo.

— Sei o que quer dizer. É sempre perigoso experimentar as coisas. Mais ou menos como o quarto fechado no castelo do Barba Azul. A gente só é feliz enquanto se conserva afastado. Para sentir o primeiro choque, basta voltar a chave e entrar.

O dr. Saunders escutava a conversa dos dois jovens Era um cínico, indiferente à maior parte das desgraças que afetam a humanidade, mas sentia uma atração peculiar pela juventude, talvez pelo muito que ela promete e pelo pouco que dura, e parecia-lhe haver na amargura que os moços experimentam, quando a realidade desfaz as suas ilusões, alguma coisa de mais patético do que na mais grave das doenças. Apesar da rudeza da expressão, ele compreendeu o que Fred queria dizer e deu à emoção do rapaz o tributo simpático de um sorriso. Ali sentado, à luz branda da hora, com os cabelos crespos descobertos, sua beleza era surpreendente. Havia nela uma atração tão grande que o doutor, apesar da opinião que fazia do rapaz, sentiu-se inclinado para ele. Ou pela graça de seu aspecto ou pela companhia de Erik Christessen, ele sentia que havia em Fred a força de alguma coisa de que ele nunca suspeitara. Talvez o primeiro movimento, indeciso e tateante, de uma alma. Este pensamento provocou-lhe o pequeno choque de surpresa que a gente sente quando aquilo que parecia um broto sobre um galho abre de repente as asas e levanta vôo.

— Venho aqui quase todas as tardes para ver o pôr-do-sol — disse Erik. — Para mim todo o Oriente está aqui. Não o Oriente das histórias, o de palácios, templos e conquistadores com hordas de guerreiros, mas o Oriente do começo do mundo, do jardim do Éden, quando os homens eram pouco numerosos, simples, humildes e ignorantes, e o mundo, como um jardim vazio, esperava por seu ausente jardineiro.

O rapaz tinha um modo tão lírico de falar que seria desconcertante, se não se sentisse que era absolutamente natural. Sua grandiloqüência parecia um tanto absurda, nos fazia sorrir sem malícia. Era estranhamente imaginoso. O lugar, porém, era tão lindo, aquele forte em ruínas tão romântico, que sua linguagem florida não ficava mal. Com sua mão grande e pesada acariciou um dos grandes blocos de pedra.

— Que terão presenciado estas pedras? Elas têm sobre aquelas ilhas uma grande vantagem: ninguém pode descobrir seus segredos. Pode-se apenas imaginar, e imaginar muito pouco. Ninguém aqui as conhece. Quando eu voltar para a Europa, hei de ir a Lisboa para ver se descubro alguma coisa.

Havia romance nelas, naturalmente. Mas era tudo tão vago que podia-se apenas reconstituir formas tão vagas como as de uma película mal revelada. A essas torres haviam subido os capitães portugueses, para esperar os navios que lhes traziam notícias de Lisboa, ou os barcos holandeses que vinham atacá-los. Era possível ver, na imaginação, esses homens bravos e queimados de sol, vestidos de couraça e cota de malha, levando nas próprias mãos sua existência aventurosa. Mas eram apenas sombras sem vida, a que a imaginação dava substância. Ali estavam as ruínas da capela onde a hóstia era consagrada cada dia, e onde o padre, durante os combates, administrava a extrema-unção aos soldados agonizantes. Corria no espírito, como um tremor, uma impressão indistinta de aventura e crueldade, coragem impávida e sacrifício.

—  Nunca sente saudade da pátria? — perguntou Fred, de repente.

—  Não. Às vezes penso na pequena vila em que nasci, cheia de campos verdes, e penso também em Copenhague. As casas de Copenhague, com suas janelas largas, parecem mulheres de grandes olhos míopes, e os palácios e igrejas dão impressão de que saíram de um conto de fadas. Mas eu as vejo como a cena de uma peça, muito interessante, muito clara, sem sentir, porém, vontade de subir para o Palco. Prefiro ficar sentado a um canto escuro da galeria e assistir ao espetáculo de longe.

—  Afinal de contas, a gente só tem uma vida.

— É o que eu penso também. Mas a vida é como a gente a faz. Eu poderia ter sido um funcionário de escritório então a coisa seria mais difícil, mas aqui, com o mar e a floresta, todas as lembranças do passado a me fazerem companhia, e essa gente, malaios, papuas, chineses, holandeses, com meus livros e meus ócios de milionário, que outra coisa poderá a imaginação de um homem desejar?

Fred Blake olhou-o por um momento e o esforço de reflexão o fez enrugar a testa. Quando compreendeu o queo dinamarquês queria dizer, a surpresa em sua voz foi evidente.

— Mas isto não é vida!

— É a única realidade que existe.

— Não sei o que quer dizer com isso. Realidade é fazer as coisas, não sonhar com elas. A gente é moço uma vez, deve ter entusiasmo e lutar por alguma coisa. Uns desejam ter dinheiro, outros uma boa posição e assim por diante.

— Oh, não. Por que motivo a gente age? Naturalmente é preciso trabalhar um pouco para ganhar a vida, mas, depois disso, viver unicamente para satisfazer a imaginação. Diga-me, quando viu aquelas ilhas do mar e seu coração se encheu de prazer, e quando desembarcou diante do matagal medonho, qual era a verdadeira ilha? Qual a que lhe deu melhor impressão, qual a que guardará como um tesouro em sua memória?

Fred sorriu para ele.

—  Isto é absurdo, rapaz. A gente deve olhar o mundo como ele é, e não pintá-lo de cor-de-rosa. Aceitar os fatos como eles são. Onde espera chegar, encarando as coisas dessa maneira?

—  Ao reino dos céus — disse Erik sorrindo.

—  E onde é isso?

—  Em meu espírito.

—  Não quero interromper esta conversação filosófica — disse o doutor. — Mas desejo dizer-lhes que estou sofrendo os martírios da sede.

Erik deu uma risada e levantou-se do muro em queestava sentado.

— O sol não demora a se pôr. Vamos descendo e eu lhes darei de beber em minha casa.

Apontou para o vulcão que aparecia contra o poente, um cone bem marcado com esquisita precisão no céu que escurecia. E perguntou a Fred:

—  Quer fazer uma escalada amanhã? Há uma linda vista lá de cima.

—  Podemos ir.

—  Devemos sair de manhã cedo, por causa do calor. Posso procurá-lo a bordo, antes do amanhecer, e então partiremos.

—  Está combinado.

Desceram a colina e, dentro de alguns minutos, estavam de novo na cidade.

A casa de Erik era uma daquelas que eles haviam visto de manhã depois de desembarcar. Mercadores holandeses haviam vivido nela, e fora comprada depois pela firma em que ele trabalhava. Ficava dentro de um alto muro branco, cujo reboco caía aos poucos. Num pequeno jardim, de aparência selvagem, cresciam em desordem roseiras e árvores frutíferas. À luz do poente, tinha um aspecto de desolação e de mistério. Insetos voavam em torno das árvores.

— Está muito abandonada — disse Erik. — Às vezes, penso em contratar dois coolies para fazer uma limpeza, mas acho que é preferível assim como está. Gosto de imaginar o holandês que costumava sentar-se aqui nas horas de folga, fumando seu cachimbo chinês e gozando a brisa do anoitecer.

Entraram num longo aposento com uma janela em cada extremidade, cobertas de pesadas cortinas. Um empregado apareceu e, subindo numa cadeira, acendeu a lâmpada de óleo. O_chão era de mármore, e, nas paredes, havia pinturas que não se podiam ver direito. No centro, uma grande mesa redonda, cercada de cadeiras estofadas de veludo verde. Uma grande  peça, mal arejada e sem conforto, mas com o encanto de uma tela holandesa do século XIX. Um sóbrio mercador devia ter desengradado com orgulho aquela mobília que viera de Amsterdã e sentido um grande prazer em arrumá-la. O empregado trouxe cerveja. Erik dirigiu-se a uma pequena mesa e pôs um disco no gramofone. Apanhou um maço de jornais.

— Aqui estão os jornais que me pediu. Mandei buscá-los.

Fred levantou-se, pegou os jornais e foi sentar-se à mesa redonda sob a lâmpada. Devido ao comentário do doutor quando estavam no forte, Erik pôs o prelúdio do último ato de Tristão e Isolda. A memória acrescentava àquela música uma estranha pungência. A melodiazinha sutil que o pastor tocava em seu instrumento, enquanto olhava o mar largo sem descobrir a sombra de uma vela, era um misto de melancolia e de esperança. Mas havia outra dor no coração do médico. Lembrava-se do Covent Garden nos velhos dias, e ele, em traje de noite, sentado numa das alas. Nos camarotes, mulheres de diademas e colares de pérolas. O rei, obeso, com os olhos empapuçados. O barão e a baronesa de Meyer sentados juntos no camarote sobre a orquestra. Havia em tudo um ar de opulência e segurança. Richter regia. Como a música era apaixonada, cheia de esplendor melódico, e enrolando-se sonoramente sobre os sentidos! Mas nunca havia notado esse detalhe áspero e um pouco vulgar, espécie de efeito bufo, que o desconcertava naquele momento. Era magnífico sim, mas um pouco brutal. Seu ouvido acostumara-se, na China, a complicações mais esquisitas e harmonias menos suaves. Habituara-se a uma música cheia de sugestões, ilusiva e nervosa, e a evidência forte dos fatos chocou um pouco seu gosto. Quando Erik levantou-se para virar o disco, o doutor olhou para Fred, procurando descobrir que efeito a música tinha sobre ele. A música e surpreendente. Seu poder é tão grande que mesmo urna pessoa comum pode ter, diante dela, uma extrema e delicada receptividade. E começava a imaginar que Fred Blake não era tão vulgar como a princípio supusera. Havia nele algumacoisa, ainda mal desperta e desconhecida para ele mesmo, como uma  pequena  flor que  desabrocha  entre  as pedras de um muro, procurando o sol. Mas Fred não ouvira uma nota. Estava sentado, inconsciente de tudo, olhando pela janela aberta. Algumas estrelas brilhavam já no céu, mas ele não parecia olhar para elas e sim para um negro abismo de pensamentos. A luz da lâmpada punha sombras em sua face, transformando-a em uma máscara difícil de reconhecer. Seu corpo jazia abandonado na cadeira, e seus músculos estavam frouxos. Sentiu o olhar frio do médico e forçou os lábios num sorriso, em que havia alguma coisa de patético. Seu copo de cerveja estava intato.

—  Alguma coisa nos jornais?

Fred corou ouvindo a pergunta.

—  Não. Nada. Apenas as eleições.

—  Onde?

—  Nova Gales do Sul. Os trabalhistas venceram.

—  Você é trabalhista?

Fred hesitou um pouco e em seus olhos apareceu uma expressão de desconfiança, que o doutor já notara uma ou duas vezes antes.

—  Não me interesso por política. Não entendo nada do assunto.

—  Posso dar uma olhada no jornal?

Fred tirou um exemplar do maço e estendeu-o ao doutor.

—  Este é o último?

— Não, o último é este — respondeu Fred, pondo a mão sobre o que terminara de ler.

— Se já o terminou, prefiro vê-lo. Não me interesso por notícias velhas.

Fred hesitou um momento. O doutor olhou-o sorrindo, mas com insistência. O rapaz não pôde achar um modo plausível de recusar. Entregou-lhe o jornal e o médico aproximou-se da luz para lê-lo. Fred não apanhou nenhum dos outros exemplares, apesar de haver alguns que ainda não lera, e ficou olhando disfarçadamente para a mesa, mas sem descuidar-se do doutor. Não havia dúvida de que alguma notícia o afetara profundamente.

O doutor foi virando as páginas. Muitas reportagens sobre as eleições. Uma carta de Londres, e despachos telegráficos da Europa e da América. Grande número de informações locais. Procurou o noticiário policial. A eleição provocara algumas desordens, dando trabalho aos tribunais. Um roubo em Newcastle. Uma sentença passada por fraudes em seguros. Um conflito entre dois nativos de Tonga. O capitão Nichols suspeitava de que o desaparecimento de Fred fora arranjado em conseqüência de um assassinato, e havia ali duas colunas sobre um que tivera lugar nas montanhas Azuis, mas era um caso entre dois irmãos, que se apresentaram, em seguida, à polícia, alegando legítima defesa. Além disso, acontecera depois que Fred e Nichols haviam saído de Sydney.

Havia também um inquérito sobre uma mulher que se enforcara. Por um momento o doutor imaginou se não haveria alguma coisa naquilo. Parecia que a mulher estivera sob suspeita de ter assassinado o marido, algumas semanas antes, mas a evidência contra ela não bastava para justificar uma ação das autoridades. Tinha sido interrogada repetidamente pela polícia, e isto, aumentado ainda pelo mexerico dos vizinhos, abalara seu espírito. O júri decidiu que ela se suicidara, durante uma loucura temporária. O noticiarista, comentando o caso, acentuava que, com sua morte, desaparecia a última esperança de resolver o mistério do assassinato de Patrick Hudson.

O doutor leu a reportagem de novo. Era interessante, mas muito breve para pô-lo ao corrente do fato. A mulher tinha 42 anos. Não era possível que um rapaz da idade de Fred tivesse alguma coisa a ver com ela. E, afinal de contas, o que o capitão Nichols havia dito não passava de suposição. O rapaz era contador. Podia muito bem ter se apossado de dinheiro que não lhe pertencia ou, forçado pelas circunstâncias, ter falsificado um cheque. No caso de ser aparentado com alguma pessoa politicamente importante, teria sido aconselhável afastá-lo durante algum tempo. O doutor, dobrando o jornal, viu os olhos de Fred postos nele. Sorriu-lhe com um ar tranqüilizador. Sua curiosidade era perfeitamente desinteressada.

—  Quer jantar no hotel, Fred?

—  Eu os convidaria para comer aqui — disse o dinamarquês. — Mas tenho de jantar com Frith.

—  Bem, vamos andando, então.

Caminharam os dois um momento, em silêncio, pela rua escura.

—  Não quero jantar — disse o rapaz, de repente. — Não poderei ver a cara de Nichols esta noite. Vou dar um giro.

Antes que o outro pudesse responder, ele deu meia-volta e afastou-se rapidamente. O doutor encolheu os ombros e continuou sua marcha despreocupada.

 

Estava bebendo um gim antes do jantar, na varanda do hotel, quando o capitão Nichols apareceu. Vinha limpo e barbeado. Sua roupa caqui e seu chapéu davam-lhe um aspecto pitoresco de pirata.

—  Sinto-me melhor esta noite — foi dizendo. — Para lhe falar a verdade, estou mesmo com fome. Acho que uma asa de galinha não me faria mal. Onde está Fred?

—  Não sei. Deve andar por aí. . .

—  Procurando mulher? Não censuro o rapaz. O difícil é encontrar alguma num lugar como este.

O doutor pediu mais um gim.

—  Tinha uma bruta sorte com mulheres quando era moço. Todo o meu erro foi casar. Ah, se eu pudesse viver de novo aquele tempo!  Nunca lhe falei  de minha velha, doutor?

—  O suficiente.

—  Não é possível. Nem que eu lhe falasse sem parar até amanhã de manhã. Se existe um demônio em figura de gente, é minha mulher. Acha que é bonito tratar um homem desse jeito? Ela é diretamente responsável por minhas indigestões. Estou tão certo disso como de estar aqui falando com o senhor.  Posso garantir-lhe que é humilhante. Fico espantado mesmo de ainda não a ter matado. O diabo é que se eu tentasse isto e ela me dissesse: "Bote essa faca na bainha, capitão", eu botaria. Acha que isso é natural? E começaria logo a me xingar. E, se eu me dirigisse para a porta, ela berraria: "Não saia, não. Fique aqui até eu dizer-lhe tudo o que tenho para dizer. Quando acabar, pode ir embora".

Jantaram juntos e o doutor ouviu com simpatia o relatório das infelicidades domésticas do capitão. Sentaram-se depois na varanda, fumando cigarros holandeses e bebendo schnapps com o café. O álcool adoçou o marinheiro e ele caiu nas reminiscências. Contou ao doutor histórias dos dias passados na costa da Nova Guiné. Era um tremendo falador, com uma veia irônica de humour, e sua conversa divertia, pois nunca recorria à falsa modéstia quando falava de si mesmo. Não admitia que alguém pudesse hesitar em prejudicar o próximo, se tivesse oportunidade para isto, e sentia a mesma satisfação de um jogador contando a trapaça com que vencera. Era um patife, mas um patife de coragem. O doutor achou um sabor especial na conversa, quando relembrou a esplêndida confiança com que ele soubera vencer a tempestade. Qualquer pessoa ficaria impressionada com sua frieza, maestria e domínio da situação.

De repente, o médico encontrou uma oportunidade de fazer a pergunta desejada:

—  Conheceu  por acaso um sujeito chamado Patrick Hudson?

—  Patrick Hudson?

— Residia na Nova Guiné. Morreu há muitos anos já.

— É uma coincidência engraçada. Não, não. conheci. Havia um sujeito com esse nome em Sydney. Teve um fim bem trágico.

—  Sim?

—  Pouco antes  de sairmos  de lá.  Os  jornais  só  se ocupavam dele.

— Deve ter sido aparentado com o homem de quem lhe falei.

—  Era o que costumam chamar de um diamante bruto. Dizem que foi ferroviário e se fez sozinho na vida. Meteu-se na política. Foi deputado não sei por que região. Trabalhista naturalmente.

—  Que aconteceu com ele?

—  Baleado. Com a própria arma, se não me engano

—  Suicídio?

—  Não. Dizem que ele não poderia ter se suicidado Mas eu não sei mais do que o senhor, devido a minha saída de Sydney. Só sei que foi uma grande sensação.

—  Era casado?

—  Era. Muita gente chegou a supor que a mulher fosse a  culpada. Não puderam provar coisa  alguma.  Ela tinha estado no cinema e, quando voltou para casa, encontrou-o estendido no chão. Tinha havido luta. A mobília estava toda desarranjada. Nunca acreditei que tivesse sido ela. Sei, por experiência, que elas não largam um homem tão facilmente. Preferem conservá-lo vivo o mais que podem. Não hão de querer perder sua distração, libertando da vida o desgraçado.

—  Entretanto,  muitas  mulheres  assassinaram  os maridos.

—  Puro acidente. Nós sabemos que os acidentes podem acontecer nas melhores famílias. Às vezes, elas perdem o cuidado e exageram um pouco. O desgraçado morre. Mas não foi por querer.

 

Apesar de seus muitos hábitos deploráveis, que em algumas partes do mundo seriam considerados vícios (vérité au delà des Alpes, erreur ici), o dr. Saunders tinha a sorte de acordar muito bem-disposto pela manhã. Raramente espreguiçava-se na cama, tomando sua xícara cheirosa de chá e fumando o primeiro cigarro delicioso, sem olhar com o mais perfeito otimismo o dia que começava. A refeição da manhã é servida muito cedo nos pequenos hotéis das ilhas das índias holandesas. Não varia nunca. Papaia, ovos estrelados, carne fria e queijo Edam. Por mais pontualmente que a pessoa desça para comer, os ovos estão frios, olhando-a com dois grandes olhos amarelos numa fina superfície branca, como se tivessem sido arrancados de um monstro obsceno dos abismos. O café é uma essência a que se adiciona leite em pó Nestlé misturado em água quente. A torrada, seca e queimada. Foi esta a refeição servida na sala de jantar do hotel de Kanda e comida apressadamente pelos silenciosos holandeses antes de partir para o trabalho.

Mas o doutor acordou tarde aquela manhã e Ah Kay serviu-o ali mesmo, na varanda. Comeu com prazer a papaia, os ovos recém-saídos da frigideira e bebeu o chá perfumado, gole a gole. Achava a vida naquele instante uma obrigação bem agradável. Não desejava nada. Não invejava ninguém. Não tinha remorsos nem saudade. A manhã ainda estavafresca e, na luz pálida e limpa, o contorno das coisas aparecia bem marcado. Uma grande bananeira, bem embaixo do terraço, sacudia sua esplêndida folhagem, com um desdém complacente, sob o calor do sol. O doutor sentia-se tentado a filosofar: refletiu que o valor da vida não está nos momentos de excitação mas nos intervalos serenos, em que oespírito humano, livre de preocupações, contempla o corpo com a mesma superioridade com que Buda contemplava seu umbigo.

Estava pensando nisso, quando Fred Blake e Erik Christessen surgiram lá embaixo na rua. Subiram correndo a escada e, sentando-se à mesa do doutor, gritaram pelo criado. Haviam saído antes do amanhecer para o passeio ao vulcão e estavam famintos. Comeram com grande apetite a refeição que o rapaz serviu. Pareciam muito bem-dispostos. O entusiasmo da mocidade amadurecera em amizade as simples relações do dia anterior, e os dois já se chamavam mutuamente de Fred e Erik. O exercício violento os excitara. Falavam em coisas absurdas e riam sem motivo. Pareciam duas crianças.

O doutor nunca vira Fred tão contente. Sentia-se a atração que Erik exercia sobre ele. E a companhia de alguém um pouco mais velho fazia-o florescer em uma nova adolescência, e parecer tão moço que o tom profundo de sua voz tornava-se quase cômico.

—  Sabe que esse sujeito é forte como um boi? — disse ele, olhando com admiração para Erik. — íamos tentando a escalada, quando um galho quebrou e eu escorreguei. Podia ter levado um tombo muito sério, quebrado uma perna ou qualquer coisa.  Erik segurou-me com um braço, não sei como, levantou-me e me pôs de pé. E note-se que eu pesoquase setenta quilos.

—  Sempre fui forte — disse Erik, sorrindo.

—  Ponha o braço na mesa.

Fred apoiou o cotovelo e Erik fez o mesmo. Juntaram as mãos e o rapaz fez força para derrubar o braço do dinamarquês. Deu tudo o que podia. Não conseguiu movê-lo. Então, com um ar satisfeito, Erik fez um esforço e deitou o braço do outro gradualmente sobre a mesa.

—  Sou uma criança perto de você. Sim, senhor, com um soco seu ninguém escapa. Já lutou alguma vez?

—  Não. Nunca tive motivo para isso.

Terminou de comer e acendeu um charuto.

—  Vou indo para  o escritório.  Frith me pediu  que perguntasse se querem ir esta tarde à casa dele. Quer que jantemos lá.

—  Com todo o prazer — disse o doutor.

— E o capitão também. Virei buscá-los pelas quatro horas.

Fred seguiu-o com os olhos.

—  Um ótimo sujeito. Só um pouco difícil de ser compreendido.

—  Por que diz isto?

—  Sua maneira de falar.

—  Que disse ele?

—  Oh,  não  sei  bem.  Maluco.  Perguntou  o  que  eu pensava de Shakespeare. Conheço um bocado de Shakespeare. Disse-lhe que costumava ler Henrique V quando estava na escola (era matéria de um dos cursos), e ele começou a berrar uma das passagens. Depois se pôs a falar de Hamlet, Otelo e não sei mais o quê. Conhece léguas de Shakespeare de cor. Não me lembro da metade do que ele disse. Nunca tinha ouvido ninguém falar daquele jeito. E o melhor é que, apesar de sua tagarelice, não senti nenhuma vontade de mandá-lo calar a boca. — Um sorriso passou em seus doces olhos azuis, mas seu rosto conservou-se sério. — Já esteve em Sydney alguma vez?

—  Nunca.

— Havia lá um círculo literário e artístico. Apesar de não ser muito do meu feitio, costumava às vezes freqüentá-lo. Havia, principalmente, muitas mulheres. Falavam, falavam sobre livros, e terminavam convidando a gente para dormir com elas. No fim das contas, aborreciam. Agora com Eric, não sei por quê, a coisa é bem diferente. Não fala parase mostrar nem para causar impressão sobre mim. Fala porque não pode ficar calado. Não quer saber se me aborrece ou não. Interessa-se tanto pelo assunto que não pode admitir que eu não me interesse do mesmo modo. Não compreendi a metade do que ele me disse, mas achei a conversa tão boa como uma peça de teatro.

Fred ia fazendo suas observações como alguém que arranca pedras de um jardim, preparando o lugar para a plantação, e as amontoa uma depois da outra.

O doutor acompanhava de olhos atentos a narração. O rapaz tinha a língua presa, e era divertido descobrir em suas observações confusas a emoção que ele tentava exprimir em palavras. Os críticos dividem os escritores entre os que têm alguma coisa para dizer e não sabem como, e os que sabem como, mas não têm nada para dizer. Geralmente, acontece o mesmo com os homens, principalmente com os anglo-saxões que têm dificuldade de expressão. Quase sempre um homem é fluente porque repetiu tanto a mesma coisa que ela acabou perdendo o sentido, e sua conversa é mais significativa quando ele precisa modelar laboriosamente pensamentos ainda um tanto indistintos.

O rapaz sorriu maliciosamente para o doutor.

—  Ele vai me emprestar o Otelo, sabe? Eu mesmo disse que gostaria de ler. O senhor já leu, naturalmente.

—  Há trinta anos.

— Posso estar enganado, mas deve ser interessante, pelo que Erik me disse. Não sei por quê, quando a gente esta com um camarada assim, tudo parece diferente. Acho queErik é maluco, mas desejava encontrar mais alguns tiposcomo ele.

—  Você está gostando do rapaz, não está?

— Bem, é difícil evitar — respondeu Fred com um súbito ataque de timidez. — Ele é um tipo direito. Seria capaz de confiar-lhe todo o dinheiro que tivesse. Tenho certeza de que ele nunca fará mal a ninguém. O mais engraçado é que, apesar do tamanho e da força que tem, a gente sente vontade de cuidar dele; de estar sempre a seu lado, para que não lhe aconteça nenhum mal.

O doutor, com sua cínica indiferença, ia traduzindo mentalmente as frases que Fred lhe dizia. Sentia-se surpreendido e um pouco chocado pela emoção que procurava exprimir no meio daquelas palavras indecisas. O que emergia de tudo aquilo era a admiração do rapaz diante de alguma coisa que o impressionara. Era a revelação de uma beleza espiritual que ele nunca havia imaginado. Qualquer coisa que o tocara profundamente, que aumentara sua timidez, abalara a confiança que ele tinha em si mesmo e o deixara humilhado.

"Quem havia de pensar que isso fosse possível?", refletiu o doutor.

Seus sentimentos para com Erik Christessen eram, de um modo bastante natural, mais desligados. Interessava-se pelo rapaz porque ele era um pouco fora do comum. Para começar, não deixava de ser divertido, numa ilha do arquipélago malaio, a gente dar com um negociante que sabia passagens inteiras de Shakespeare de cor. Isto, porém, não provocava entusiasmo no doutor. Não apreciava muito os idealistas; para eles era difícil neste mundo prosaico conciliar suas profissões com as exigências da vida. E desconcertava ver quantas vezes esses mesmos idealistas conseguiam combinar suas crenças exaltadas com um olho agudo para as oportunidades práticas. Era justamente isto que o doutor achava divertido. Os idealistas costumam baixar os olhos com ar superior para os que se acham ocupados com assuntos práticos, mas não se mostram avessos a tirar proveito da engenhosidade destes últimos. Como os lírios do campo, eles não trabalham nem fiam, mas aceitam como lei que os outros devem desempenhar para eles os ofícios subalternos.

—  Quem é esse tal Frith que vamos visitar hoje à tarde? — perguntou o doutor.

—  É um viúvo que tem uma plantação. Mora com afilha.

 

A casa de Frith ficava a cinco quilômetros, distância que eles venceram num velho Ford. De cada lado da estrada, erguiam-se árvores altas, um grande número de fetos e trepadeiras. A floresta começava logo nos limites da cidade. Aqui e ali, apareciam choupanas miseráveis. Malaios esfarrapados deitavam-se à sombra das varandas e as crianças brincavam no meio dos porcos. A atmosfera era úmida e abafada. A casa era uma velha propriedade, com um pesado portão na frente. Sobre a arcada lia-se o nome do antigo proprietário e a data da construção. Precisaram atravessar regos, buracos, vários acidentes do terreno, até chegar ao bangalô. Era um grande edifício quadrado, circundado por um jardim em desordem. O motorista malaio fez soar com força a buzina, e um homem apareceu à porta acenando para eles, Era Frith. Esperou-os no alto da escada que conduzia à varanda e, ao ouvir os nomes que Erik ia dizendo, apertava as mãos dos recém-chegados.

— Muito prazer em vê-los. Há um ano que não encontro ingleses. Façam o favor de entrar e tomar alguma coisa.

Era um homem alto e gordo, de cabelo grisalho e pequeno bigode. Uma calva um pouco acentuada dava a sua fronte um aspecto imponente. O rosto vermelho, molhado de suor, era redondo, como um rosto de menino. Um dente longo e amarelo pendia frouxo do meio da boca, dando a impressão de que qualquer puxãozinho o arrancaria. Vestia calção cáqui e uma camiseta aberta no pescoço. Caminhava coxeando um pouco. Levou-os a uma sala muito grande, que servia ao mesmo tempo de salão de jantar e de visitas, e cujas paredes eram enfeitadas de setas malaias e de chifres de veado. No chão, peles de tigre já um pouco comidas pelas traças.

Quando entraram no aposento, um velhote baixinho levantou-se da cadeira e, sem dar um passo na direção deles, ficou olhando com curiosidade. Tinha a cara cheia de rugas e o corpo encurvado. Parecia muito idoso.

—  Apresento-lhes Mr. Swan — disse Frith —, meu futuro sogro.

O homenzinho tinha olhos azuis, com pálpebras vincadas e sem cílios, mas seu olhar era malicioso como o de um macaco. Apertou a mão dos três homens sem falar, depois, abrindo a boca sem dentes, disse a Erik algumas palavras que os outros não compreenderam.

O velhote olhou-os, um por um, e havia em sua expressão um misto de suspeita e zombaria.

—  Mr. Swan é sueco — explicou o dinamarquês.

—  Cheguei aqui há cinqüenta anos. Era marinheiro de um barco a vela. Nunca mais voltei. Talvez no próximo ano.

— Também sou marinheiro — disse o capitão Nichols.

Mas Mr.  Swan não pareceu interessar-se muito pela notícia.

—  Fui muitas coisas na vida — continuou. — Atécapitão de um navio negreiro.

—  Caçador de negros — interrompeu Nichols. — Ganhava-se um mundo de dinheiro naquele negócio.

—  Fui ferreiro. Fui negociante. Fui plantador. É mais fácil dizer as coisas que não fui. Escapei da morte várias vezes. Fui ferido no peito durante um conflito com nativos das ilhas Salomão. Deixaram-me aparentemente morto.  Ganhei um dinheirão nos meus tempos, não é verdade, George?

— Foi o que sempre ouvi dizer.

— O grande furacão arruinou-me.  Perdi minha loja. Perdi tudo. Não dei muita importância. A única coisa que me resta é essa plantação. Não faz mal. Dá o bastante para a gente viver. Tive quatro mulheres e mais filhos do que é possível contar.

Falava em voz alta e com um sotaque sueco muito carregado, de modo que era preciso prestar muita atenção a suas palavras para se conseguir compreendê-lo. Falava rapidamente, como se recitasse uma lição, e terminava as frases com uma risadinha senil. Parecia dizer que experimentara todas as coisas e que tudo eram ninharias e tolices. Olhava a humanidade e suas atividades de uma grande distância, mas não de alturas olímpicas. De trás de uma árvore, timidamente, pulando num pé e outro, com prazer.

Um malaio trouxe uma garrafa de uísque e um sifão, e Frith começou a encher os copos.

— Um golezinho, Swan? — convidou ele.

— Por que me pergunta isso, George? Sabe muito bem que eu não tolero essa bebida.  Sirva-me rum  com  água. 0 uísque foi a ruína do Pacífico. Quando cheguei da Suécia, todo o mundo bebia rum. Se tivessem continuado a beber rum e a cuidar de navegação, as coisas não estariam como estão hoje.

—  Apanhamos um tempo terrível na viagem — disse o capitão Nichols, tentando estabelecer camaradagem com o colega.

—  Mau tempo? Hoje em dia já não existe mau tempo. Devia ter visto os temporais que apanhei quando era rapaz. Lembro-me de uma vez em que tomei carga em Samoa, e um furacão me surpreendeu no caminho. Lutei por três dias com o mar, sem pregar olho. Perdi as velas, o mastro principal, os escaleres. Tempo terrível? Não me fale em tempo terrível, seu moço.

—  Não quis ofendê-lo — disse Nichols, mostrando os dentes estragados.

—  Não me ofendeu. Dê-lhe um copo de rum, George Se ele é marinheiro de verdade, não beberá esse horrível uísque de vocês.

De repente, Erik insinuou que os visitantes talvez gostassem de dar um passeio pela propriedade.

—  Nunca viram uma plantação de noz-moscada.

—  Acompanhe-os, George. Vinte e sete acres. O melhor terreno desta ilha. Comprei-o há trinta anos por um pacote de pérolas.

Levantaram-se, deixando o velhote como um pássaro calvo, empoleirado junto ao rum com água, e dirigiram-se para o jardim. No fundo dele começava a plantação. O ar estava límpido, na frescura da tarde. As árvores à sombra das quais cresciam as nozes-moscadas eram altíssimas. Elevavam-se como as colunas de uma mesquita das mil e uma noites. No chão estendia-se um tapete de folhas caídas. Ouvia-se o arrulho dos grandes pombos, que voavam em torno com um ruído pesado de asas. Papagaios verdes pousavam nas pequenas nogueiras, como jóias vivas.

O dr. Saunders sentia um admirável bem-estar. Tinha a sensação de ser um espírito sem corpo e deixava sua imaginação passear de imagem em imagem. Caminhava com Frith e o capitão. Frith explicava os detalhes do comércio de noz-moscada, mas ele não prestava atenção à conversa. Erik e Fred seguiam um pouco atrás. O sol em declínio escorria através dos galhos das árvores e punha um brilho denso nas folhagens mais altas.

Marcharam um pouco mais, pelo caminho estreito, e viram uma figura de moça que caminhava na direção deles. Vinha de olhos baixos, como se algum pensamento a absorvesse, mas levantou o olhar ao ouvir as vozes, e parou.

— Minha filha — disse Frith.

A princípio, podia-se supor que ela parará embaraçada pela presença dos estranhos, mas ficou quieta no mesmo lugar, olhando os homens que se aproximavam. Vestia um sarongue javanês, apertado à cintura, que lhe descia até os joelhos. Estava descalça. Além do sorriso breve que passou em seus lábios, o único sinal de que notara a presença dos forasteiros foi um rápido movimento da cabeça para desprender o cabelo e um gesto rápido da mão para ajeitá-lo. Se não fosse o brilho da cabeleira, pareceria branca de tão loura. O sarongue bem justo mostrava as formas de seu corpo. Era fina, tinha ancas estreitas de rapaz e parecia alta. O sol dera a sua pele uma cor de mel. O doutor, em geral, não se deixava cativar pela beleza feminina. Olhava a mulher menos sob o ponto de vista estético do que fisiológico. Como uma mesa deve ser sólida, espaçosa e de altura conveniente, a mulher para ele devia ser robusta e cheia de corpo. Em ambos os casos, a beleza é apenas um acessório da utilidade. Pode-se dizer que uma mesa sólida, espaçosa e de altura conveniente é bela, mas o doutor preferia dizer que ela era sólida, espaçosa e de uma altura conveniente. A moça, ali parada diante dele, numa atitude de beleza indolente, lembrava a estátua de uma deusa arrumando o peplo que ele vira num museu. Tinha a mesma esbelteza ambígua das pequenas raparigas chinesas com quem, nos barcos floridos de Cantão, ele passara momentos inesquecíveis nos dias de sua juventude. Tinha a mesma graça de flor, aumentada agora pela beleza daquele cenário tropical.

—  São amigos de Christessen — disse o pai, quando os homens chegaram junto dela.

Não estendeu a mão, mas inclinou graciosamente a cabeça ao doutor e ao capitão Nichols, os dois primeiros que lhe foram apresentados. Olhou-os com um ar frio e observador. O médico notou suas mãos longas e finas. Seus olhos azuis. Seus traços finos e regulares. Era uma criatura extremamente linda.

—  Acabo de tomar um banho na piscina — disse ela.

Olhou, com um sorriso amável, para Erik.

—  Este aqui é Fred Blake.

Ela voltou a cabeça para olhá-lo, e demorou os olhos no rapaz. O sorriso desapareceu de seus lábios.

—  Prazer em conhecê-la — disse Fred, estendendo mão.

A moça continuou a olhá-lo, como se estivesse um poucosurpreendida. Dava a impressão de que já o havia encontrado antes, e que procurava lembrar-se onde fora. Mas tudo isso demorou menos de um minuto, de modo que ninguém percebeu aquela pausa.

—  Vou até lá dentro mudar de roupa.

—  Eu acompanho você — disse Erik.

Agora que o dinamarquês estava a seu lado, notava-se que ela não era muito alta. Seu corpo esbelto e empertigado é que dava a impressão de uma altura maior.

Afastaram-se na direção da casa.

—  Que faz aquele rapaz? — perguntou ela.

—  Não sei bem. Uma espécie de sócio do outro magro e grisalho. Acho que andam procurando pérolas.

—  É um tipo bonito.

—  Creio que gostará dele. É um excelente sujeito. Os outros continuaram o passeio interrompido.

 

Quando voltaram para dentro, encontraram Erik sentado em companhia de Swan. O velhote contava-lhe uma história interminável, numa estranha mistura de inglês e sueco, a propósito de uma aventura que tivera na Nova Guiné.

—  Onde está Louise?— perguntou Frith.

—  Estive ajudando-a a pôr a mesa. Ficou um momento pela cozinha e agora foi mudar de roupa.

Sentaram-se e foram servidos de bebida novamente. A conversa tomou esse tom versátil que existe entre pessoas que ainda não se conhecem. O velho Swan estava cansado e emudeceu vendo os visitantes, mas continuou a acompanhá-los com os olhos, como se estivesse desconfiado. O capitão Nichols contava a Frith os martírios que passava com sua dispepsia.

—  Nunca tive uma dor de estômago em minha vida. Meu mal é o reumatismo.

—  Tenho conhecido muita gente que sofre da mesma doença. Um amigo meu, um dos melhores pilotos que encontrei neste mundo, teve um  ataque  violento de reumatismo. Precisava de muletas para andar.

—  Cada homem tem sua doença.

—  Mas pode crer que  não há nada pior do que adispepsia. Se não fosse ela, eu hoje seria um homem rico.

—  O dinheiro não é tudo neste mundo.

—  Não estou dizendo que é. Digo que seria hoje um homem rico, se não fosse minha dispepsia.

—  O dinheiro nunca significou muita coisa para mim. Enquanto eu tiver um teto sobre a cabeça e três refeições por dia, estou contente. O  importante é a gente não ter contrariedades.

O dr. Saunders prestava atenção à conversa. Ainda não conseguira classificar Frith. O homem falava como uma pessoa bem-educada. Ainda que gordo e pesadão, vestido negligentemente e com a barba por fazer, dava a impressão de ter sempre convivido com gente decente. Certamente, não pertencia à mesma classe do velho Swan e de Nichols. Suas maneiras eram naturais. Recebera-os com cortesia e os tratava, não com a falsa polidez de que se valem as pessoas mal-educadas quando recebem visitas, mas com naturalidade, como se conhecesse os preceitos mundanos. Para o médico, ele era um tipo que, na Inglaterra de sua mocidade, seria chamado de gentleman. Imaginava por que motivo ele se teria refugiado naquela ilha distante.

Levantou-se da cadeira e pôs-se a caminhar pela sala. Havia diversas fotografias enquadradas na parede sobre uma longa estante de livros. Viu com surpresa grupos de remadores de Cambridge, entre os quais, pelo nome, G. P. Frith, escrito embaixo, reconheceu o dono da casa. As outras fotografias mostravam rapazes nativos de Perak, nos Estados malaios, e de Sarawak, com Frith, muito mais moço do que agora, sentado ao centro. Devia ter vindo para o Oriente como mestre-escola, depois de deixar Cambridge. Os livros amontoavam-se desordenadamente na estante, manchados debolor e com vestígios de traças. O doutor, aqui e ali, apanhava um deles e o examinava. Alguns eram prêmios decolégio, encadernados em couro, mostrando que Frith havia freqüentado escolas públicas e que havia sido um aluno aplicado e brilhante. Também ali estavam os livros usados em Cambridge, um número regular de bons romances, e alguns livros de poesia que davam a impressão de terem sido lidos e relidos havia muitos anos atrás. Via-se a marca dos dedos e muitas passagens estavam sublinhadas, mas o cheiro de mofo mostrava que de há muito eles não eram abertos. O que, porém, mais o surpreendeu foi ver duas prateleiras cheias de livros religiosos e filosóficos da Índia. Havia traduções do Rig-Veda e de alguns dos Upanishads, e alguns livros publicados em Calcutá e Bombaim, com estranhos nomes de autores e títulos cheios de misticismo. Era curioso encontrar ima coleção daquelas em casa de um plantador do Oriente, e o doutor, enquanto examinava os volumes, perguntava-se intimamente que espécie de homem seria aquele. Estava fo­lheando um livro intitulado Resumo da filosofia hindu, por um tal Srinivasa Iyengar, quando Frith aproximou-se dele.

— Dando uma olhadela em minha biblioteca?

— É verdade.

Olhou o volume que o doutor tinha nas mãos.

—  Interessante. Esses hindus são maravilhosos, têm o instinto natural da filosofia. Os do Ocidente são filósofos baratos comparados com eles. A sutileza desses homens é surpreendente. Plotinus é o único que deles  se aproxima.

Pôs o livro na estante.

—  O bramanismo é, afinal, a única religião que um homem sensato poderá aceitar.

O doutor olhou-o com curiosidade. Com aquele rosto redondo e vermelho, o dentão amarelo pendendo frouxo da gengiva, a cabeça calva, não parecia um homem de tendências espirituais. Sua maneira de falar era absolutamente inesperada.

—  Quando considero  o universo,  com  seus  mundos inumeráveis e as vastas distâncias  do espaço interestelar, não posso admitir um criador, e, se o admitisse, teria forçosamente de perguntar quem havia  criado esse criador.  O Vedanta ensina que no princípio havia o existente. Como poderia o existente ter nascido do não-existente? O existente era Atman, o espírito supremo, do qual emanou maya, a  ilusão do mundo fenomenal. Se o senhor perguntar a um desses homens sábios do Oriente por que motivo o Supremo Espírito encenou essa fantasmagoria, ele lhe dirá que foi unicamente por diversão. Sendo completo e perfeito, não podia agir por motivo ou finalidade. Motivo e finalidade implicam desejo, e o ser completo não necessita de mudança ou de adição. Portanto a atividade do espírito eterno não tem objetivo, é espontânea e exultante como o ócio dos príncipes ou a brincadeira das crianças. Diverte-se com o mundo e com a alma dos homens.

—  É uma explicação das coisas que não me desagrada inteiramente — murmurou o médico, sorrindo. — Há nela uma futilidade bem grata ao senso da ironia.

Olhava, porém, com um ar de desconfiança. Tinha certeza de que daria mais importância às palavras de Frith se ele tivesse uma aparência ascética e se seu rosto, em vez de estar brilhante de suor, brilhasse com a luz interior do pensamento. Mas, por acaso, a aparência do homem representará sua personalidade? A face de um filósofo ou de um santo pode muito bem mascarar uma alma vulgaríssima. Sócrates, com seu nariz achatado e seus olhos fora das órbitas, seus lábios grossos e seu ventre saliente, dava a impressão de Silenus, e era um modelo de temperança e de sabedoria.

Frith deu um suspiro e continuou:

— Durante algum tempo interessei-me pela ioga, mas compreendi que ela é apenas um ramo cismático do sankhya e seu materialismo é absurdo. A mortificação dos sentidos não adianta.  Meu objetivo é  o perfeito conhecimento da natureza da alma. A apatia, a abstração, a rigidez dos músculos, poderão unicamente habilitar os homens a ritos e cerimônias. Tomei várias notas sobre o assunto. Quando tiver tempo, tratarei de pôr em ordem meu material  e, então, escreverei um livro. Há vinte anos que esta obra está em gestação em meu espírito.

—  Julguei que tivesse tempo de sobra por aqui — disse o médico secamente.

—  É pouco para tudo o que eu tenho vontade de fazer. Nestes últimos quatro anos tenho trabalhado numa tradução métrica de Os Lusíadas, de Camões, como sabe. Gostaria de ler um ou dois cantos para o senhor. Por aqui não existe ninguém que tenha senso crítico. Christessen é dinamarquês e não tenho bastante confiança em seu ouvido.

—  Mas, se não me engano, já existe uma tradução de Os Lusíadas.

—  Mais de uma. Entre elas, uma de Burton. Mas o pobre Burton não era poeta.  Sua tradução  é intolerável. Cada geração devia retraduzir as grandes obras humanas. Meu desejo não é apenas reproduzir o sentido, mas preservar o ritmo, a música e a qualidade lírica do original.

—  Por que teve a idéia de traduzi-lo?

—  Porque ele é o último dos grandes épicos. Afinal de contas, meu livro sobre o Vedanta poderá destinar-se apenas a um público especial e resumido. Devo a minha filha a idéia de tentar uma obra de caráter mais popular. Não possuo nada de meu. Esta propriedade pertence ao velho Swan. Minha tradução de Os Lusíadas será o patrimônio dela. Dar-lhe-ei todo o dinheiro que a publicação do livro me render. Mas isso não é tudo. O dinheiro não tem grande importância. Quero que ela se orgulhe de mim. Acho que meu nome não será esquecido facilmente. Minha fama será também seu patrimônio.

O doutor conservou-se em silêncio. Parecia-lhe fantástico que aquele homem esperasse ganhar dinheiro e fama com a tradução de um poema português, que dificilmente interessaria a cem pessoas. Encolheu os ombros com um ar de tolerância.

É estranho como as coisas acontecem — continuou Frith com a mesma seriedade. — Foi apenas por um acidente que comecei esta obra. Sabe, naturalmente,  que  Camões, aventureiro além de poeta, esteve nesta ilha, e muitas vezes olhou o mar do alto daquele forte. Por que motivo cheguei aqui? Eu era um mestre-escola. Quando deixei Cambridge tive uma oportunidade de vir para o Oriente e não hesitei. Sonhava com o Oriente desde criança. Mas a rotina do trabalho escolar era demasiada para mim. Não podia suportar a gente com a qual tinha obrigação de conviver. Estava nos Estados malaios e julguei que devia experi-mentar Bornéu. Foi a mesma coisa. No fim, já não podia parar em parte alguma. Abandonei a profissão. Por algum tempo, trabalhei num escritório em Calcutá. Depois, abri uma pequena livraria em Cingapura. Mas não pude pagá-la. Abri um hotel em Bali, mas não deu certo. Afinal, vim parar aqui. O mais interessante é que minha mulher chamava-se Catherine, o nome da única mulher que Camões amou. Foi para ela que ele escreveu seus melhores poemas líricos. Se há alguma coisa em que eu acredito piamente é na doutrina da transmigração que os hindus chamam de samsara. Muitas vezes, tenho perguntado a mim mesmo se a centelha que saiu do fogo e formou o espírito de Camões não será a mesma que formou meu espírito. Freqüentemente, quando estou lendo Os Lusíadas, encontro uma passagem que me parece familiar há muito tempo. Bem sabe que Pedro de Alcaçova disse do poema de Camões, que só tinha um defeito. Não era bastante curto para se saber decorado, nem bastante longo para ser infinito. — Deu o sorriso embaraçado de um homem a quem é dirigido um elogio fora de propósito. — Aí vem Louise! — exclamou. — Sinal de que o jantar deve estar quase pronto.

O médico voltou-se para olhá-la. Vinha vestida com um sarongue de seda verde, com bordados a fio de ouro. Era uma vestimenta javanesa, igual à que as mulheres do harém do sultão de Djokjakarta vestem nos dias de recepção. Assentava em seu corpo esguio como uma bainha, ajustando-se bem a seus pequenos seios e a suas ancas estreitas. Suas pernas e seu colo estavam nus. Calçava sapatos verdes de salto alto, que acrescentavam uma nova graça a sua figura. O cabelo, arranjado com simplicidade, ficava mais louro em contraste com o verde-dourado do sarongue. Sua beleza era deslumbrante. Uma essência desconhecida evolava-se de sua roupa.  Perfume lânguido, esquisito,  talvez   feito  de  uma receita secreta no palácio de um rajá.

— Que quer dizer essa fantasia? — perguntou Frith, sorrindo.

—  Erik me deu este sarongue há alguns dias. Achei que era uma boa oportunidade para estreá-lo.

—  É uma peça antiga — disse Frith a Erik. — Deve ter-lhe custado uma pequena fortuna. Você ainda estraga esta criança com seus mimos.

—  Recebi-o em pagamento de uma velha dívida. Não pude resistir. Sei que Louise adora a cor verde.

Um criado malaio entrou com uma grande sopeira e colocou-a sobre a mesa.

—  Ponha o dr.  Saunders a sua  direita e  o capitão Nichols à esquerda — disse Frith, com um ar protocolar, à filha.

—  Por  que  fazer  a  menina  sentar  entre esses   dois velhos? — resmungou Swan. — Deixe-a ficar entre Erik e o outro rapaz.

— Não vejo razão para desobedecer às regras da boa sociedade — respondeu o outro com uma atitude digna. — Em todo o caso, quer sentar-se a meu lado, doutor? E o senhor capitão, dá-me o prazer de sentar-se a minha esquerda?

O velho Swan foi sentar-se no lugar que devia ser habitualmente o seu. Frith tirou a tampa da sopeira.

—  Onde é que você encontrou esses malandros? — perguntou o velhote a Erik.

—  Deixe de inconveniências — aconselhou Frith, passando-lhe um prato de sopa.

—  Não quis ofender ninguém.

—  Não tem importância — respondeu o capitão amavelmente. — Já tantas pessoas me disseram o mesmo antes do senhor. Acho que o próprio doutor foi uma delas. Que é que um sujeito quer dizer quando chama a outro de malandro? Que ele é um tipo inteligente, não é verdade?

—  Conheço um malandro à primeira vista — afirmou o velho Swan. — Tenho encontrado muitos em minha vida. Eu mesmo fui um pouquinho, em meu tempo.

—  Quem não é malandro? — perguntou o capitão, limpando a boca. — Sempre digo que a gente deve aceitar o mundo como ele é. Fazer arranjos com os outros é queé o essencial. O próprio Império Britânico nasceu de uma série de arranjos.

Com um movimento do lábio inferior, Frith limpou o bigodinho grisalho.

—  É uma questão de temperamento. Eu, por exemplo, nunca me senti atraído por arranjos. Vivi minha vida de outra maneira.

—  O  que você é, é um preguiçoso — interrompeu Swan, com uma risadinha. — Teve uma porção de profissões e não se conservou em nenhuma delas.

Frith sorriu indulgentemente para o doutor. Parecia dizer que era absurdo afirmar isso de alguém que gastara vinte anos estudando a metafísica dos hindus, e em quem habitava, provavelmente, o espírito de um grande poeta português.

—  Minha vida tem sido uma viagem em busca da verdade, e com a verdade, meus amigos, não há arranjo possível. Os europeus perguntam qual é a significação dessa palavra, mas os pensadores da Índia sabem que ela não é um sentido e sim uma finalidade. A verdade é o objetivo da vida. Há alguns anos, eu costumava ainda ter saudade do mundo que deixara atrás de mim. Ia ao clube holandês para ver revistas ilustradas e, quando enxergava fotografias de Londres, sentia um peso no coração. Só agora compreendo que o homem  solitário é que pode sentir inteiramente a civilização das cidades. Aprendi que só nós, os exilados, podemos tirar da vida seu maior valor. O único caminho é o do conhecimento e este passa por todas as portas.

Neste momento, três galinhas, dessas pálidas e insípidas galinhas do Oriente, foram colocadas diante dele. Levantou-se da cadeira e apanhou a faca de trinchar.

— Ah! os deveres e cerimônias da hospitalidade! —exclamou alegremente.

O velho Swan, que se conservara em silêncio, empoleirdo na cadeira como um gnomo, terminou vorazmente seu prato de sopa e começou a falar:

— Passei sete anos na Nova Guiné. Falo todas as línguas usadas no lugar. Podem ir a Port Moresby e perguntar por Jack Swan. Todo mundo se lembra de mim. Fui o primeiro branco que atravessou a ilha. Moreton fez o mesmo depois, desarmado, levando na mão apenas uma bengala, mas ele tinha sua polícia para guardá-lo. Eu fiz a coisa sozinho. Todos pensaram que eu tivesse morrido e, quando voltei à cidade, julgaram-me um fantasma. Eu e meu companheiro, um nativo da Nova Zelândia, que tinha sido gerente de banco e se metera em um negócio duvidoso, estivemos caçando aves-do-paraíso ao longo da costa, desde Merauke, num pequeno barco de nossa propriedade. Caçamos uma porção de aves, que valiam muito dinheiro naquela época. Tínhamos boas relações com os nativos, a quem presenteávamos, de vez em quando, com uma bebida ou um pouco de fumo. Um dia, em que eu saíra sozinho para caçar e vinha voltando para o barco, ia dar um grito pelo meu companheiro, para que me viesse buscar no escaler, quando vi alguns nativos a bordo. Como eles não tinham licença para isso, imaginei que alguma coisa acontecera. Fiquei espiando, desconfiado. De repente, vi o escaler boiando perto da praia. Julguei que meu companheiro tivesse desembarcado e os nativos se aproveitado de sua ausência para irem a bordo. No mesmo instante, tive um sobressalto. Meu Deus! sabem o que era? O corpo de meu companheiro, cheio de feridas pelas costas e com a cabeça decepada. Não quis ver nada mais. Sabia que eu teria o mesmo fim, se eles me apanhassem. Estavam a minha espera, a bordo do barco. Fugi o mais depressa que pude. Oh, quantas coisas me aconteceram naquele tempo! Podia, com elas, escrever um livro. Um velho, chefe de uma grande povoação, simpatizou comigo e propôs adotar-me como filho, dar-me algumas mulheres por esposas e me fazer chefe depois dele. Eu era moço, topavaqualquer coisa. Fiquei três meses ali. Se não fosse um rapaz estúpido, teria ficado para sempre. O velhote era um chefe poderoso. Hoje eu seria rei das ilhas Canibais.

Disse isso e ficou em silêncio, um estranho silêncio, em que parecia ao mesmo tempo estar atento às coisas em torno e mergulhado em cismas. O dr. Saunders ficara espantado com aquela súbita explosão de reminiscências, que não tinha nenhuma ligação com o assunto das conversas anteriores. Achava estranho que aqueles dois homens, Swan e Frith, o homem de ação e o homem especulativo, tivessem acabado ali juntos, naquela ilha solitária. Todos os caminhos, afinal, conduziam ao mesmo termo. O fim das correrias do aventureiro como o das meditações do filósofo era apenas uma respeitabilidade confortável.

Frith, depois de servir os outros, serviu seu prato e sentou-se.

—  Sempre me senti atraído pela idéia dos brâmanes de que um homem deve dedicar sua mocidade ao estudo, a idade madura aos deveres da hospitalidade e a velhice à meditação do absoluto.

Lançou um olhar a Louise e outro ao velho Swan, que cortava laboriosamente seu pedaço de carne.

—  Não demora muito e estarei liberto das obrigações da idade madura. Dedicarei então meu tempo à procura da sabedoria, que ultrapassa toda a compreensão.

Os olhos do doutor pousaram um momento em Louise. Estava sentada na ponta da mesa, entre os dois rapazes. Fred, geralmente taciturno, conversava com desembaraço. Perdera sua gravidade habitual, e tinha um ar juvenil ebem-disposto. O jogo das palavras coloria-lhe o rosto e dava um brilho suave aos olhos, bonitos. Não era tímido diante das mulheres. Sabia a maneira de distraí-las, e bastava olhar a alegria e animação da moça, para ver que ela estava contente e interessada. O doutor apanhou trechos de sua conversa. Falava sobre os habitantes de Randwick banhando-se a baía de Manley, o cinema e as outras diversões de Sydney. Todas as coisas, afinal, que os moços gostam de falar. Erik, com sua grande cabeça quadrada, um sorriso enfeitando a fealdade simpática de seu rosto, olhava tranqüilamente para Fred. Via-se que ele devia estar contente com o sucesso de seu convidado. O encanto natural do rapaz enchia-o de satisfação.

Quando o jantar terminou, Louise dirigiu-se ao velho Swan e pôs-lhe a mão sobre o ombro.

—  Agora vá para a cama, vovô.

—  Primeiro beberei meu rum, Louise.

—  Está bem. Mas beba depressa.

Pôs a bebida no copo e juntou, em seguida, um pouco de água.

—  Ponha um disco no gramofone, Erik.

O rapaz obedeceu imediatamente.

—  Você dança, Fred — perguntou ele.

—  E você?

—  Não.

Fred levantou-se e convidou Louise com um gesto. Ela sorriu. Tomou-lhe a mão e pôs o braço em torno da cintura dela. Começaram a dançar. Formavam um par encantador. O médico, ao lado de Erik, junto do gramofone, ia notando com surpresa que Fred era um ótimo dançarino. O rapaz tinha uma graça inimaginável. Fazia seu par dançar quase tão bem quanto ele. Tinha o dom de absorver nos movimentos os movimentos dela, e fazer, do foxtrote que dançavam, uma coisa de delicada beleza.

—  Você é um dançarino admirável, rapaz — disse-lhe o doutor quando a música terminou.

— É a única coisa que sei fazer — respondeu Fred, sorrindo.

Estava tão convencido de sua habilidade que recebeu o elogio com indiferença. Louise olhava para o chão, com seriedade. De repente, pareceu voltar a si mesma.

—  Vou pôr o vovô na cama.

Dirigiu-se ao velhote, que bebia seu copo calmamente acariciou-lhe a cabeça com ternura, convidando-o a acompanhá-la. Ele segurou-a pelo braço e os dois saíram juntos da sala.

—  Que tal um pouco de bridge? — disse Frith. — Os cavalheiros jogam?

—  Eu jogo — respondeu o capitão. — Não sei se o doutor e Fred. . .

—  Eu completo os quatro — falou o doutor.

—  Christessen joga muito bem.

—  Eu não jogo — respondeu Fred.

—  Está certo. Podemos jogar sem você.

Erik trouxe a mesa de bridge e Frith tirou da gaveta dois velhos baralhos. Pegaram as cadeiras e cortaram as cartas para escolher os parceiros. Fred ficou de pé, junto ao gramofone, como se esperasse, ansiosamente, alguma coisa. Quando Louise voltou à sala, ele não se moveu, mas não pôde esconder um sorriso de alegria. Tinha um ar de familiaridade sem audácia, que dava à moça a impressão de que o conhecera toda a vida.

—  Quer que ponha  outro  disco no gramofone? — perguntou a ela.

—  Não. Atrapalharia os jogadores.

—  Quero dançar de novo com você.

—  Papai e Erik levam o bridge muito a sério.

Pôs-se a caminhar em torno da mesa e Fred acompanhou-a. O rapaz parou um momento atrás do capitão. Nichols olhou-o de cara feia e, dando uma jogada má, voltou-se para ele com raiva.

—  Não posso jogar direito com alguém olhando minhascartas. Nada me irrita tanto como isso.

— Desculpe.

— Vamos sair um pouco — convidou Louise.

A sala abria para uma varanda e os dois caminharam para ela. Atrás do pequeno jardim, viam-se, à luz das estrelas, as árvores grandes e, debaixo delas, a verdura maciça das nozes-moscadas. Junto da escada, havia um arbusto todo iluminado de pirilampos. A noite tinha a tranqüilidade luminosa de uma alma sem pecado. Ficaram ali, lado a lado, em contemplação. Depois, ele tomou-lhe a mão e desceram a escada. Seguiram até a plantação, e ela deixou que sua mão descansasse na dele.

—  Não joga bridge? — perguntou a moça.

—  Naturalmente que sim.

—  Por que não está jogando, então?

—  Não tive vontade.

Estava muito escuro sob as árvores. Os pombos brancos dormiam pousados nos galhos, e o único rumor que quebrava o silêncio, de vez em quando, era o de uma asa que se movia. Não havia a mais leve brisa no ar perfumado. Os vaga-lumes voejavam sobre as alamedas, com movimentos incertos de homens bêbados cambaleando em ruas desertas. Caminharam um pouco, sem dizer palavra. De repente, ele parou, tomou-a nos braços com ternura e beijou-a na boca. Ela não fez um gesto para detê-lo. Não mostrou surpresa nem acanhamento. Aceitou o beijo, como se ele fosse uma coisa prevista. Abandonava-se em seus braços, mas sem fraqueza, dona de si. Já estavam acostumados à escuridão e ele viu que os olhos dela tinham perdido seu tom azul. Estavam escuros e insondáveis. Prendia-lhe a cintura com a mão e, com o outro braço, cercava-lhe o pescoço. Ela descansava a cabeça contra ele.

—  Você é linda.

—  Você também.

Beijou-a de novo. Beijou-lhe as pálpebras devagarinho.

—  Beije-me — pediu ele.

Ela deu um sorriso. Tomou o rosto dele em suas mãos e beijou-lhe os lábios com força. Ele pôs as duas mãos sobre seus seios pequeninos. A moça suspirou.

—  Devemos voltar para dentro.

Tomou a mão do rapaz e caminharam na direção da casa.

—  Eu te amo — murmurou ele.

Ela não respondeu, mas apertou-lhe docemente a mão, Quando entraram na sala, a luz feriu-lhes os olhos. Erik levantou a cabeça e sorriu para ela.

—  Foram até a piscina?

—  Não, estava muito escuro.

Ela sentou-se e, apanhando uma revista holandesa, começou a olhar as figuras. Depois, pondo-a de lado, descansou o olhar em Fred. Contemplava-o com um ar pensativo, sem nenhuma expressão no rosto, como se ele não fosse um homem mas um objeto inanimado. De vez em quando, Erik olhava para ela e, quando seus olhos se encontravam, Louise sorria. De repente, ela levantou-se.

—  Vou para a cama.

Deu boa-noite para todos. Fred sentou-se atrás do doutor, olhando o jogo. Terminou, afinal, a partida. O velho automóvel veio buscá-los. Quando chegaram à cidade, o malaio deixou Erik Christessen e o doutor em casa, e tocou para o porto com os dois outros.

 

—  Está dormindo? — perguntou Erik.

—  Não, ainda é cedo — respondeu o doutor.

—  Venha, então, tomar alguma coisa em minha casa.

—  Com todo o prazer.

Há duas noites que o doutor não fumava ópio. Pretendia fazê-lo, mas não lhe importava esperar um pouco. Adiar o prazer era aumentá-lo. Acompanhou Erik pela rua deserta. A gente de Kanda costuma deitar cedo. Não havia ninguém nas ruas. O médico caminhava ligeiro, dando dois passos enquanto Erik dava um. Com suas pernas curtas e a barriga um tanto saliente, compunha uma figura cômica ao lado do gigante. Não havia mais do que uns 180 metros até a casa do dinamarquês, mas ele já ofegava um pouco quando chegaram. A porta estava aberta, pois não havia receio de ladrões na ilha, e Erik entrou na frente para acender a lâmpada. O doutor atirou-se na mais confortável das cadeiras e esperou, enquanto Erik ia buscar copos, gelo, uísque e soda. Na luz incerta da lâmpada de parafina, com seu cabelo curto e grisalho, seu nariz arrebitado e as maçãs do rosto muito coradas, lembrava um velho chimpanzé, e seus olhos pequenos e brilhantes eram agudos e vivos como os do macaco. Qualquer pessoa arguta, porém, descobriria nele sinceridade. Apesar da sombra de malícia que pairava sempre em seu sorriso, sentia-se que era capaz de retribuir com simpatia, ainda que um tanto irônica, qualquer confidencia que se lhe fizesse.

Erik serviu o convidado e encheu também seu copo.

—  A sra. Frith já morreu?

—  No ano passado. Morreu do coração. Era uma excelente senhora. Apesar de sua origem, dava a impressão de ser sueca. Era um autêntico tipo escandinavo, alta, forte, bonita, como uma das deusas de Rheingold. O velho Swan costuma dizer que ela, quando jovem, foi mais linda do que Louise.

—  Deve ter sido belíssima, então.

— Foi uma mãe para mim. Não pode imaginar como era boa. Costumava passar em sua casa todo o meu tempo disponível e, quando ficava alguns dias sem ir, com receio de abusar de sua hospitalidade,  ela vinha  buscar-me em minha casa. Sabe que nós, dinamarqueses, achamos os holandeses uma gente pesadona e retraída, e foi um presente dos deuses encontrar esta casa para freqüentar. O velho Swan gosta de falar sueco comigo. Já esqueceu muito da língua. Fala meio sueco, meio inglês, misturando palavras malaias e japonesas. A princípio, eu custava bastante a compreendê-lo. É engraçado como uma pessoa pode esquecer sua língua materna. Sempre gostei de inglês. Fiquei contente por poder conversar longamente com Frith. É uma surpresa encontrar um homem com sua educação num lugar como este.

— Não posso imaginar por que motivo ele teria vindo para cá.

—  Parece que leu alguma coisa num velho livro de viagens. Disse-me que, desde menino, sentiu desejos de vir. É engraçado, mas ele meteu na cabeça que este era o único lugar do mundo em que gostaria de viver. O mais estranho é que ele esqueceu o nome do livro. Sabia apenas da existência de uma ilha isolada, num pequeno grupo,  situada vagamente entre Celebes e a Nova Guiné, onde havia árvores perfumadas e grandes palácios de mármore.

— Isto parece mais o gênero de As mil e uma noites do que dos livros de viagem.

—  Mas é isto que a maior parte das pessoas espera encontrar no Oriente.

—  E às vezes encontra — murmurou o doutor.

Pensava na linda ponte que atravessa o rio em Fu-chou, na agitação matinal do Min e nos grandes barcos com olhos pintados na proa, olhando o caminho por onde seguem. No meio da corrente, homens seminus pescando com corvos marinhos. O pescador atira o pássaro na água. Este mergulha, apanha o peixe e, quando volta à tona, o homem puxa-o por um cordão amarrado a sua perna. O pássaro se debate mas o pescador aperta-lhe a garganta e obriga-o a vomitar sua presa.

O dinamarquês continuou:

— Frith chegou ao Oriente quando tinha 24 anos. E levou mais doze até chegar aqui. Perguntava a toda gente que encontrava se sabia alguma coisa desta ilha, mas nos Estados malaios e em Bornéu ninguém sabe muito a esse respeito.  Foi,  durante  sua mocidade,  uma  pedra rolando de lugar em lugar. O senhor ouviu o que o velho Swan disse a ele? Acho que é a pura verdade. Nunca parou muito tempo num emprego. Afinal, chegou aqui.  O capitão de um navio holandês ensinou-lhe o caminho da ilha. O nome não lhe pareceu ser o do lugar que procurava, mas era a única ilha do arquipélago que correspondia a sua descrição e ele resolveu vir e vê-la de perto. Quando desembarcou, não trazia mais do que seus livros e a roupa do corpo. A princípio, não pôde acreditar que o lugar fosse o mesmo. O senhor já viu os palácios de mármore, está num deles neste momento. — Erik olhou em torno e deu uma risada. — Ele os tinha imaginado, durante todos  aqueles anos, iguais aos palácios do Grande Canal. Em todo o caso, se não era este o lugar que ele procurava, era pelo menos o único que ele conseguira achar. Mudou seu ponto de vista e forçou uma acomodação entre sua fantasia e a realidade. Chegou à conclusão de que tudo estava certo. E passou a enxergar palácios de mármore onde havia apenas chãos de mármore e colunas de estuque.

—  Pelo que você diz, ele é mais sábio do que eu pensava.

—  Arranjou um emprego por aqui. Havia, então, mais negócios do que agora. Depois, apaixonou-se pela filha de Swan e casou-se com ela.

—  Foram felizes no casamento?

—  Foram. Swan não gostava muito dele. Era um homem ativo naquele tempo e estava sempre planejando uma coisa e outra. Mas não podia contar com o auxílio de Frith. A mulher, porém, o adorava. Achava-o um homem admirável. Quando Swan ficou mais velho, ela adquiriu a propriedade e encarregou-se de sua direção. Há muitas mulheres assim. Sentia uma enorme satisfação em imaginar Frith,  sentado à escrivaninha, lendo seus livros ou tomando notas. Achava-o um gênio. Tudo o que fizesse por ele seria apenas seu dever. Era uma mulher perfeita.

O doutor refletia sobre o que Erik ia contando. Passava em sua imaginação a imagem daquela vida estranha. O bangalô perdido no meio da plantação de noz-moscada e das árvores altas. O velho pirata sueco e sua vida positiva e sem piedade. O mestre-escola sonhador, atraído pela miragem do Oriente. E a grande mulher loura, como uma deusa dos vikings, com sua eficiência, seu amor, sua honestidade de espírito, e talvez seu piedoso senso de humor, dirigindo, guiando, protegendo aqueles dois homens incompatíveis.

— Quando ela sentiu que ia morrer, pediu a Louise que prometesse que olharia por eles. A plantação pertence a Swan. Mesmo atualmente dá muito trabalho. Tinha medo de que, depois de sua morte, o velho mandasse Frith embora. E me fez prometer também que eu olharia por Louise. A pobre moça tem tido muitos aborrecimentos. Swan é una macaco velho, sempre pronto a uma perfidiazinha. Seu cérebro não perdeu a atividade. É capaz de mentir, conspirar. intrigar, apenas para pregar uma peça a alguém. Louise é sua herdeira. É a única pessoa que tem alguma autoridade sobre ele. Uma vez, por simples brincadeira, ele rasgou alguns manuscritos de Frith em pedacinhos. Quando o encontraram, estava cercado por uma verdadeira montanha de fragmentos de papel.

— Acho que o mundo não perdeu muito — disse o doutor sorrindo. — Em todo o caso, deve ter sido terrível para o autor.

—  Não acredita no valor de Frith?

—  Ainda não tenho opinião formada a seu respeito.

— Tenho aprendido muito com ele. Por isso, hei de ser-lhe sempre grato. Eu era um menino quando cheguei aqui.  Freqüentara  a  universidade  em  Copenhague   e  em minha casa sempre houvera interesse pela cultura. Meu pai era amigo de George Brandes, e Holger Drachmann, o poeta, costumava  vir a nossa casa freqüentemente.  Foi  Brandes quem primeiro me fez ler Shakespeare, mas eu era então um menino ignorante e acanhado. Frith me fez compreender a magia do Oriente. Há muita gente que chega a esta ilha e não vê coisa alguma. "Isto é tudo?", perguntam. E tornam a embarcar. Aquele forte, por exemplo, que visitamos ontem, algumas velhas muralhas cinzentas cobertas de hera. Nunca me esquecerei da primeira vez que ele me levou  até lá. Suas palavras reconstruíram os muros em ruína e edificaram novamente as antigas dependências. Ele me falou do governador, passando semanas e semanas de dolorosa ansiedade e esperando, cheio de aflição, o navio que lhe traria notícias, pois os nativos, com esse estranho poder que têm no Oriente de saber das coisas antes que elas possam ser conhecidas, falavam em voz baixa de um desastre que teria acontecido aos portugueses. E o navio chegou afinal, e, quando ele leu a carta que lhe contava a sorte do rei Sebastião, aniquilado com seu esplêndido séquito de nobres e cortesãos na batalha de Alcácer-Quibir, as lágrimas correram por seu rosto, não somente porque seu rei morrera de um modo cruel mas porque previa que a derrota custaria a seu país a liberdade Sabia que o mundo opulento que eles haviam descoberto econquistado passaria para o domínio de estrangeiros. Podecrer que, ouvindo aquilo tudo, senti um nó na garganta e os olhos marejados de lágrimas. Depois ele me falou de Goa a grande capital do Oriente, da costa Malabar, de Macau de Ormuz e de Bassora. Suas palavras tornavam tão visível aquilo tudo que eu nunca mais pude ver o Oriente sem sentir a presença viva do passado. Considero mesmo um privilégio que eu, um pobre camponesinho da Dinamarca, tenha podido ver todas essas maravilhas com meus olhos. Orgulho-me de ser homem, quando penso nesses soldados, de um país que não é maior do que o meu, dominando metade do mundo por sua força, sua bravura, sua ardente imaginação. Tudo agora passou, dizem que Goa, a dourada, não é mais do que uma vila miserável. Mas, se é verdade que a única realidade é a do espírito, aquele sonho de império, aquela força, aquela bravura, continuam a viver de qualquer maneira.

—  É um vinho forte demais para a cabeça de um moço o que nosso Mr. Frith lhe deu para beber.

—  Fiquei embriagado — disse Erik, sorrindo. — Mas essa embriaguez não dá dor de cabeça pela manhã.

O doutor não respondeu. Mas pensava que os efeitos dela, justamente por serem mais duradouros, deveriam ser mais perniciosos. Erik tomou um gole de uísque.

—  Tive uma educação luterana, mas quando entrei para a universidade me tornei ateu. Era moda naquele tempo, e eu era muito moço. A primeira vez que Frith me falou de Brama, encolhi os ombros com indiferença. Passávamos horas e heras sentados à varanda, Frith, sua mulher e  eu. Ele falava. Ela quase que não abria a boca, mas escutava, olhando-o com um ar de adoração. O que ele dizia era vago e difícil, mas sua palavra era persuasiva e as coisas em que ele acreditava revestiam-se  de beleza, pareciam adaptar-se ao cenário tropical, às noites enluaradas, às estrelas distantes e ao murmúrio do mar. Às vezes, porém, eu ficava impaciente e achava que o homenzinho não passava de um saco cheio de vento. Irritava-me o fato de vê-lo beber demais, comer com tanto prazer e ter sempre uma desculpa quando lhe aparecia algum trabalho. Mas Catherine acreditava nele. Não era uma mulher estúpida. Se ele fosse um sujeito sem valor, ela não poderia ter vivido vinte anos na sua companhia sem descobrir aquilo. Curioso que ele fosse ao mesmo tempo tão grosseiro e capaz de pensamentos tão elevados. Ouvi-o dizendo coisas que nunca em minha vida esquecerei. Às vezes, mesmo, tem atitudes surpreendentes. O  dia em que o velho Swan rasgou seu manuscrito, dois cantos inteiros de Os Lusíadas,  que representavam um ano de trabalho, Catherine  teve  uma   explosão  de cólera,  mas  ele  apenas suspirou e saiu para dar uma volta. Quando voltou, trouxe para o velhote, que estava contente com sua maldade mas um pouco receoso ao mesmo tempo, uma garrafa de rum. É verdade que a comprara com o dinheiro de Swan, mas isso  não  importa.  "Não faz  mal, meu  velho",  disse  ele, "você rasgou  apenas umas poucas folhas de papel. Eram uma simples ilusão, e seria loucura minha dar-lhes mais importância. Mas a realidade fica, porque a realidade é indestrutível." No dia seguinte, recomeçou o trabalho interrompido.

—  Ele disse que me daria algumas passagens para ler. Mas creio que esqueceu.

—  Não se assuste, que ele se lembrará — disse Erik, sorrindo.

O dr. Saunders gostava do dinamarquês. Era um tipo correto em todos os pontos de vista. Idealista, naturalmente, mas de um idealismo temperado de humor. Dava a impressão de que sua força de caráter era maior ainda do que a força seu corpo poderoso. Talvez não fosse muito inteligente, mas merecia inteira confiança, e o encanto de sua natureza simples e honesta completava agradavelmente o encanto de sua desajeitada pessoa. Pareceu ao médico que uma mulher poderia muito bem apaixonar-se pelo rapaz.

—  E a moça que estava lá? É a única filha que eles tiveram?

—  Catherine era viúva quando se casou com Frith. Tinha um filho do primeiro marido e teve outro do segundo mas os dois morreram quando Louise era criança.

—  E é ela quem toma conta de tudo, depois da morte da mãe?

—  É.

—  Deve ser muito moça.

—  Tem dezoito anos. Era uma criança quando cheguei a esta ilha. Mandaram-na para a escola dos missionários, mas sua mãe preferiu que ela fosse para Auckland. A menina, porém, adoeceu e voltou para casa. É curiosa a mudança que um ano apenas opera em uma moça. Quando partiu, era uma menina que costumava sentar-se nos meus joelhos. Voltou uma mulher feita. — Sorriu com um jeito confidencial: — Digo-lhe aqui muito em segredo que estamos noivos.

—  Sim?

— Não oficialmente, por isso é que lhe peço que guarde segredo. O velho Swan não se opõe, mas o pai acha que ela é ainda muito moça. Estou de acordo com isso, mas desconfio que a razão não é esta. O homem não me considera digno de me casar com a filha. Tem esperança de que, um dia destes, aparecerá por aqui algum lord inglês, em seu iate, e ficará loucamente apaixonado por ela. O que até agora mais se aproximou disso foi o jovem Fred, em seu barco de pescar pérolas. — Deu uma risadinha irônica. — Não me importo de esperar. Sei que ela é de fato muito moça. Por isso, não lhe pedi antes que se casasse comigo. Sabe que levei algum tempo para me convencer de que ela já não era uma menina. Quando a gente ama alguém, como eu amo Louise, alguns meses, um ano ou dois, não querem- dizer nada. Temos toda a vida diante de nós. Sei que a coisa há de mudar quando nos casarmos. A felicidade será tão perfeita que não aspiraremos a nada mais. Trataremos apenas de não perder o que conseguimos. Acha que esta idéia é estúpida?

—  Não.

—  O senhor, naturalmente, apenas a viu. Não a conhece ainda. É bonita, não acha?

—  Muito.

—  Pois bem, a beleza é a menor de suas qualidades. É uma moça inteligente e com o mesmo espírito prático da mãe. Às vezes, chego a achar graça, vendo aquela linda criança (porque, no fim das contas, ela não passa disso) dirigindo a propriedade com tanto bom senso. Os malaios sabem que não adianta nada tentar enganá-la. Tendo vivido praticamente toda a sua vida aqui, ela sabe o terreno em que pisa. É surpreendente o tato que ela demonstra ter em relação àqueles homens, e também em relação a seu avô e Frith. Conhece-os  de dentro para fora. Sabe de todos os seus defeitos, mas sem dar importância a eles. Gosta imensamente de todos. Nunca vi nela um gesto de impaciência. E o senhor sabe que é preciso ter paciência, para ouvir o velho Swan contar uma história que já contou cinqüenta vezes.

—  Suponho que é ela quem faz tudo andar bem.

— Tem razão. Mas o que o senhor não supõe é que sua beleza, sua inteligência e sua bondade de coração são completadas por um espírito da mais sutil e esquisita delicadeza. É bela, é bondosa, é inteligente, mas acho que esse seu espírito só se revelou a sua mãe e a mim. Não sei como explicar isso. É como a chama essencial de sua pessoa, de que todas as outras qualidades são simples emanações.

O doutor franziu as sobrancelhas. Parecia-lhe que Erik Christessen estava exagerando um pouco. Escutava-o, às vezes com desprazer. O rapaz devia estar apaixonado, e o cinismo do doutor não lhe permitia muita tolerância para com exemplares dessa espécie.

—  Já leu a Pequena sereia, de Andersen? — perguntou Erik.

— Há uns cem anos.

 — Aquela chama espiritual que eu senti em Louise, não com os olhos mas com a alma, é como a pequena sereia. Ela nunca está bem entre os homens. Sente sempre uma vaga nostalgia do mar. Não é absolutamente humana. É doce gentil e terna, mas existe nela qualquer coisa de divino que conserva a gente a distância. É para mim um dom raro e belo que eu aceito sem ciúme. Não temo esse dom. Olho-o como um bem tão precioso e amo tanto sua dona que chego a lamentar que ela um dia tenha de perdê-lo. Sei que ela o perderá quando se tornar esposa e mãe, e que qualquer beleza espiritual que ela tiver então será diferente. É alguma coisa à parte e independente dela.  É o ser que é apenas uma partícula do ser universal. Uma chama que talvez exista em todas as criaturas, mas que nela é tão sensível que os próprios olhos da gente podem ver. Sinto-me sinceramente envergonhado ao pensar que não poderei ir a ela tão puro como ela virá a mim.

—  Tolice — sorriu o doutor.

—  Não diga isso. Quando se ama alguém como Louise, é terrível pensar nos corpos estranhos que a gente amou, nas bocas pintadas que beijou. Sinto-me indigno  de seu amor. Devia ao menos trazer-lhe um corpo limpo e decente.

—  Ó, meu caro!

O dr. Saunders sentiu que o rapaz estava dizendo absurdos, mas preferiu não discutir com ele. Estava ficando tarde e ele precisava voltar ao hotel. Terminou seu uísque

—  Nunca tive nenhuma simpatia pela atitude ascética O homem sábio é aquele que combina os prazeres dos sentidos e os prazeres do espírito, de modo a aumentar a satisfação que  cada um deles lhe proporciona. A coisa mais valiosa que a vida me ensinou  foi olhar para o passado sem remorsos. A vida é curta, a natureza hostil, o homem ridículo. Mas a maior parte das desventuras tem suas compensações. Com um certo humor e uma boa quantidade de bom senso qualquer homem poderá valorizar o bocadinho de vida que lhe toca.

               Dizendo isso, levantou-se e saiu

 

Na manhã seguinte, sentado confortavelmente na varanda do hotel, o dr. Saunders estava lendo um livro. Pouco antes soubera na agência de navegação da chegada de um navio dali a dois dias. Tocaria em Bali, dando-lhe a oportunidade de conhecer a tão falada ilha, e de lá seguiria para Surabaya. Seriam mais alguns dias de férias. Nem se lembrava mais como é agradável a sensação de não ter nada que fazer.

—  Um homem ocioso — murmurou satisfeito. — Podia muito bem passar por um gentleman.

Neste momento, Fred Blake apareceu.

—  Não recebeu um telegrama? — perguntou o rapaz.

—  Não. Nem espero recebê-lo.

—  Estive no correio há alguns minutos.   O homem perguntou se meu nome era Saunders.

—  É curioso. Ninguém sabe que eu estou aqui. Acho mesmo que ninguém no mundo precisaria comunicar-se comigo com tanta urgência, a ponto de gastar dinheiro em telegrama.

Mas a surpresa lhe estava reservada. Uma hora depois, chegou um rapaz de bicicleta, trazendo o despacho anunciado.

—  Que coisa extraordinária! O velho Kim Ching é o único homem que pode suspeitar que eu esteja aqui.

Quando, porém, abriu o telegrama, a surpresa aumentou.

—  Mas que coisa idiota! Um telegrama cifrado. Quem poderia ter feito uma estupidez dessas? De que maneira conseguirei encontrar a chave desta embrulhada?

—  Posso dar uma olhada? — perguntou Fred. — Se é algum dos códigos conhecidos, poderei decifrá-lo para o senhor. É fácil obter aqui os livros de código mais em uso.

O médico entregou-lhe o pedaço de papel. Era uma cifra numeral. As palavras ou frases estavam representadas por grupos de números, e a terminação de cada grupo claramente indicada por um zero.

—  Os  códigos comerciais usam  geralmente palavras convencionadas — disse Fred.

—  Isso eu também sei.

—  Fiz um estudo sério de códigos. Claro que apenas por passatempo. Permite que eu tente decifrá-lo?

—  Como quiser.

—  Dizem os entendidos que achar o segredo de qualquer código é só uma questão de tempo. Há um sujeito, no serviço britânico, que pode decifrar em 24 horas o código mais complicado que uma pessoa possa inventar.

—  Veja, então, se consegue.

—  Vou lá dentro um momento. Preciso de  pena e papel.

De repente, uma idéia ocorreu ao médico.

—  Deixe-me ver de novo esse telegrama.

Fred entregou-lhe o despacho, e ele olhou o lugar de procedência. Melbourne. Conservou consigo o papel.

— Por acaso, é destinado a você?

Fred hesitou um instante. Depois sorriu. E respondeu  um ar meio embaraçado:

—  Devo confessar que sim.

— Por que meu nome no endereço?

—  Bem. Achei que o fato de eu viver a bordo do Fenton poderia dificultar a entrega. Exigiriam carteira de identidade, e tudo o mais. Pensei que a coisa se tornaria mais fácil se o telegrama fosse dirigido ao senhor.

—  Tudo isso sem consultar-me.

—  Sabia que o senhor era camarada.

—  E aquele detalhezinho realístico de lhe perguntarem no correio se seu nome era Saunders?

—  Pura invenção, meu velho.

O dr. Saunders fechou a cara.

—  E que teria feito se eu, não conseguindo decifrá-lo, o rasgasse em pedacinhos?

— Sabia que ele só chegaria hoje. O remetente só ontem obteve o endereço.

—  Que remetente?

—  O do telegrama — respondeu o rapaz sorrindo.

— Então, não foi apenas pelo prazer de minha companhia que você veio visitar-me esta manhã?

—  Claro que não foi só por isso.

O doutor devolveu-lhe o papel.

—  Você é o diabo. Tome aí. Suponho que tenha a chave no bolso.

—  No bolso, não. Na cabeça.

Entrou no hotel. O médico recomeçou a leitura. Mas lia agora com a atenção dividida. Não podia tirar da lembrança aquele pequeno incidente. Não achava graça nenhuma. Imaginava apenas, de novo, em que mistério estaria envolvido o rapaz. Mas não conseguia adivinhar. Encolheu os ombros. Afinal de contas, não tinha nada a ver com aquilo tudo. Procurou dissipar sua curiosidade, tentando convencer a si mesmo de que não se importava com a história, e fez um grande esforço para prestar atenção ao que estava lendo. Depois de um breve intervalo, Fred voltou à varanda.

—  Bebe alguma coisa, doutor?

Seus olhos brilhavam, o rosto estava corado, mas, ao mesmo tempo, seu aspecto exprimia confusão. Parecia excitado. Sentia vontade de rir mas, como não havia motivo, fazia esforços para controlar-se.

—  Boas notícias?

O rapaz não pôde mais conter-se. Explodiu numa gargalhada.

—  Tão boas assim?

—  Não sei se são boas ou más. Mas são engraçadíssimas. Desejava poder contar-lhe tudo. É curioso. Sinto uma coisa estranha aqui por dentro. Não sei o que fazer. Preciso de algum tempo para acostumar-me. Nem sei mesmo se estou de pé ou de pernas para o ar.

O médico olhou-o pensativamente. O rapaz parecia ter adquirido uma vitalidade nova. Seu rosto estava mais franco e mais aberto. Devia ter retirado um peso enorme dos ombros. O criado serviu a bebida.

—  Quero que beba à memória de um falecido amigo meu — disse, levantando o copo.

—  O nome dele?

—  Smith.

Esvaziou o copo num gole.

—  Vou convidar Erik para dar um passeio esta tarde. Acho que um pouco de exercício me faria bem.

—  Quando partem?

—  Ainda não sei. Estou gostando disto aqui. Não me importo de ficar algum tempo. Queria que o senhor visse a paisagem do alto do vulcão que visitamos ontem. Admirável. Este mundo, afinal de contas, não é um lugar tão mau como dizem.

Uma charrete, puxada por um cavalo mal arreado, desceu a rua, levantando uma nuvem de pó, e veio parar defronte ao hotel. Louise guiava, e o pai, que vinha sentado ao seu lado, desceu do carrinho e subiu a escada. Trazia na mão um pacote em papel pardo.

—  Esqueci-me a noite passada de dar-lhe os manuscritos que havia prometido, por isso resolvi trazê-los aqui.

—  É muita bondade sua.

Frith desamarrou o embrulho e apareceu uma pequena pilha de folhas datilografadas.

—  Quero, naturalmente, uma opinião bem franca. Se não está muito ocupado agora, poderei ler-lhe algumas páginas. Sempre achei que a poesia deve ser lida em voz alta e que só o autor é capaz de fazê-lo bem.

O doutor suspirou. Estava desarmado. Não podia encontrar uma desculpa que fizesse Frith mudar de idéia.

—  Acha que sua filha poderá esperar debaixo do sol? —  arriscou ele.

—  Ela tem algumas compras para fazer. Virá buscar-me depois aqui no hotel.

—  Permite que eu a acompanhe, Mr. Frith? — perguntou Fred Blake. — Não tenho nada que fazer.

—  Acho que ela ficará contente com a companhia.

O rapaz desceu e dirigiu-se a Louise. O médico viu que a moça escutava atentamente o que ele dizia. Depois sorriu e falou qualquer coisa. Usava um vestido branco de algodão e um grande chapéu de palha. Sobre o rosto descia uma sombra fresca e dourada. Fred saltou para o carrinho e ela tocou o cavalo.

—  Gostaria de ler-lhe o canto terceiro — disse Frith. — Tem uma qualidade lírica que eu aprecio particularmente. Acho que é a melhor coisa que fiz. Conhece português?

—  Não.

—  É uma pena. Esta é quase uma tradução, palavra por palavra. Seria interessante se o senhor pudesse notar como eu reproduzo fielmente o ritmo, a música, o sentimento, todas as qualidades, enfim, que fazem de Os Lusíadas um grande poema. Exijo, naturalmente, que o senhor não hesite em dar sua opinião. Ouvirei com respeito qualquer reparo que fizer, apesar de estar convencido de que esta é a tradução definitiva. Não posso crer mesmo que ela um dia seja ultrapassada por outra.

Começou a ler. Sua voz tinha um tom agradável. O poema era em oitava rima e Frith punha nos versos umaênfase que aumentava seu efeito. O doutor escutava com atenção. A versão parecia fácil e fluente, mas ele não sabia se essa impressão era devida à declamação ou aos próprios versos. O recitativo de Frith era dramático, mas ele punha mais drama no som do que no sentido do poema, fazendo com que este passasse despercebido. Acentuava as rimas, dando a impressão de um trem desconjuntado, sacudindo o ouvinte cada vez que o esperado som se reproduzia com intervalos regulares. A atenção do médico se dispersou. A voz rica e monótona martelava sobre ele, e sua cabeça pendeu um pouco. Fez questão de olhar o leitor, mas os olhos fecharam-se involuntariamente. Abriu-os de novo com esforço. Tentou fixá-los no homenzinho, mas a cabeça pendeu novamente, e ele sentiu que cochilava um pouco. Frith falava em façanhas heróicas e nos grandes homens que haviam feito de Portugal um império. Sua voz alteava-se nas descrições dos feitos bravos e tremia, baixando de tom, quando falava na morte ou nos fados adversos. De repente, o doutor teve consciência do silêncio. Abriu os olhos. Frith não estava mais ali. Fred Blake, sentado diante dele, tinha um sorriso no rosto.

—  Dormiu bem?

—  Não estava dormindo.

—  Como não? Se até ressonava.

—  Onde está Frith?

—  Foi embora. Voltamos no carro e eles foram para casa. Pediu que não o incomodasse.

—  Agora eu compreendo o que está errado no caso dele. Tinha um sonho e conseguiu realizá-lo. O que dá beleza a um ideal é o fato de ele ser inatingível. Os deuses riem-se dos homens que alcançam o que desejam.

— Não sei o que o senhor quer dizer com isso. Acho que ainda não está bem acordado.

—  Vamos tomar um copo de cerveja. Isso ao menos é, indiscutivelmente, real.

 

Às dez horas da noite, mais ou menos, o doutor e o capitão Nichols estavam jogando baralho no salão do hotel. Insetos, atraídos pela luz da lâmpada, haviam espantado os dois da varanda. Erik Christessen apareceu.

—  Por onde andou durante o dia? — perguntou-lhe o médico.

—  Precisei visitar uma plantação que adquirimos no outro lado da ilha. Julguei que pudesse voltar mais cedo, mas a mulher do gerente teve um filho e houve uma festa por causa disso. Foi o que me fez demorar.

—  Fred esteve aqui a sua procura. Queria convidá-lo para um passeio.

—  Se soubesse disso, eu o teria levado comigo.

Sentou-se e pediu cerveja.

—  Gosta de jogar chouette? — perguntou Nichols.

—  Não. Estou cansado. Onde está Fred?

—  Deve andar atrás de mulheres, com certeza — disse o capitão.

—  Não há muitas possibilidades  por aqui.

—  Isto depende, meu caro. Um rapaz bonito como ele sempre encontra alguém.  Em Merauke tive um trabalhão para afastar as mulheres dele.  Cá entre nós, acho  que a noite passada ele já fez sua conquistazinha.

—  Conquista de quem?

— Da moça do bangalô.

—  Louise?

Erik sorriu. A idéia era perfeitamente absurda para ele.

— Bem, não posso garantir. Estiveram juntos olhando o barco esta manhã. E acho que ele fez algum plano para a noite. Barbeou-se. Mudou de roupa. Quando lhe perguntei o que havia, respondeu que eu fosse cuidar da minha vida.

—  Frith esteve aqui esta manhã — disse o doutor. — Talvez tenha convidado Fred para jantar de novo em sua casa.

—  Ele jantou no Fenton — informou o capitão.

Embaralhou as cartas. Continuaram o jogo. Erik, fumando um grande charuto holandês, olhava o movimento das cartas e bebia sua cerveja. De vez em quando, Nichols lançava-lhe um daqueles seus olhares desagradáveis que davam arrepios na espinha. Seus olhinhos quase fechados tinham um brilho malicioso de satisfação. Depois de um breve intervalo, Erik olhou o relógio.

—  Acho que vou dar um pulo até o Fenton. Talvez Fred queira pescar comigo amanhã de manhã.

—  Ele não deve estar lá — disse o marinheiro.

—  Por que não? Não iria ficar na casa de Swan até esta hora.

—  Tem certeza?

—  Eles costumam ir para a cama às dez, e já passam das onze agora.

—  Talvez ele tenha ido para a cama também.

—  Como?

—  Bem, se quer saber, acho que aquela mocinha não é tão inocente como parece. Não me espantaria se me dissessem que os dois estão deitadinhos juntos neste momento. Bem faz ele. Só sinto não estar em seu lugar.

Erik levantou-se. Sua figura enorme dominava os dois homens sentados à mesa. Estava pálido e de punhos fechados. Por um momento, pareceu que ele amassaria o capitão. Deu um pequeno grito de raiva. Nichols olhou-o sem se perturbar O médico notou que o homenzinho não se assustara. Um soco daquele punho o aniquilaria certamente. Mas o rapaz fez um tremendo esforço e conseguiu dominar-se.

—  Qualquer um pode julgar os outros por si — disse ele com voz trêmula —, mas não quando se é um patife e um covardão da pior espécie.

— Disse alguma coisa que o ofendesse? Não sabia que a moça era sua amiga.

Erik olhou-o um momento. Seu rosto mostrava a repugnância que aquele homem lhe causava. Deu-lhe as costas, depois, e saiu do hotel.

—  Está com vontade de se suicidar, capitão? — perguntou-lhe o médico secamente.

—  Conheço uma porção desses atletas. No fundo, são todos sentimentais. Nunca batem num tipo menor do que eles. Seu cérebro não funciona rapidamente. São um bocado estúpidos, em geral.

— O fato é que você se arriscou. Se o rapaz não se controlasse, teria amassado você com um soco.

— Mas por que se zangou daquele jeito? Será que ele gosta da moça?

O doutor achou desnecessário dizer que Erik estava noivo de Louise Frith.

—  Há homens que não gostam de ouvir falar de seus amigos assim.

— Vamos, doutor, não queira me fazer de bobo. Quando uma pequena faz das suas, qualquer rapaz gosta de saber. Se outro já aproveitou, ele também poderá tirar sua casqui­nha. Ê uma coisa lógica, afinal de contas.

—  Sabe que você é um dos tipos mais reles que eu já encontrei? — disse o doutor, com seu jeito displicente.

—  Isso é um elogio que me faz. O melhor é que não gosta menos de mim por causa disso. Prova também queo senhor não é lá o santo que parece. Aliás, já tenho ouvido algumas coisinhas a seu respeito.

Os olhos do médico brilharam.

— Acho que sua digestão não está muito boa esta noite.

— De fato, não me sinto lá muito bem. Não quer dizer que esteja sofrendo, mas o caso é que não me sinto muito bem.

— Isto demora. Não há de querer digerir uma barra de chumbo depois de uma semana de tratamento.

— Não quero digerir uma barra de chumbo, doutor, nem estou me queixando. Não digo que seu tratamento não me tenha adiantado. O diabo é que ainda preciso suportar muito tempo este martírio.

— Bem, já lhe aconselhei mandar arrancar os dentes. Não lhe adiantam nada e acho que também não ajuntam grande coisa a sua beleza.

— Dou-lhe minha palavra de honra que os mandarei arrancar. Se formos até Cingapura, consultarei um bom dentista americano que existe lá. Mas o rapaz agora quer ir à Batávia.

— Por quê?

— Não sei. Recebeu um telegrama esta manhã. Quer ficar um pouco por aqui e depois seguir para a Batávia.

— Como sabe que ele recebeu um telegrama?

— Achei no bolso da calça dele. Mudou de roupa e deixou-a caída no chão. Mostra que não é marinheiro.  O marinheiro é sempre cuidadoso. Tem de ser. Mas a coisa era grego para mim. Quero dizer, o telegrama. Estava cifrado.

— Suponho que não notou que era dirigido a mim.

— Ao senhor? Não notei.

— Pois olhe-o de novo e verá. Entreguei-o a Fred para que o decifrasse.

O doutor divertia-se com a idéia de pôr o capitão fora do rastro.

— Então, qual é o motivo daquela mudança brusca?  Ele sempre procurou evitar os grandes centros. Pensei naturalmente que fosse por causa da polícia. De qualquer maneira, pretendo ir a Cingapura ou rebentar o barco na viagem.

Levantou o rosto e olhou com funda emoção dentro dos olhos do médico.

— Não sei se compreende o que significa passar dez anos sem comer bem. Eu trocaria a mulher mais bonita do mundo por um bolo de rins e carne à moda inglesa. Esta é minha idéia do paraíso. Poder comer à vontade, sem me impressionar com a digestão.

 

Erik, com seu passo firme que parecia medir o mundo, ia descendo para o porto. Sentia-se tranqüilo. Conseguira afastar de seu espírito a torpe insinuação do marinheiro. As palavras lhe haviam deixado um mau gosto na boca, como se tivesse bebido qualquer coisa repugnante. Seu bom senso, porém, fazia com que ele desprezasse aquele absurdo. Fred era quase uma criança. Nenhuma mulher o olharia mais de uma vez, e ele conhecia muito bem Louise para saber que nem mesmo um pensamento ela daria ao rapaz.

O porto estava deserto. Todos dormiam. Caminhou ao longo do cais e gritou para o Fentort. O barco estava ancorado a uns cem metros de distância. Sua luz brilhava como uma pupila de fogo na superfície da água. Gritou de novo. Não obteve resposta. Mas ouviu perto dele, vinda de baixo, uma voz rouca e sonolenta. Era o remador preto do escaler que esperava o capitão Nichols. Erik desceu a escadinha do cais e encontrou o homem estendido. Ainda estava meio dormindo. Escancarou a boca num bocejo e espreguiçou-se.

—  Este é o bote do Fenton?

—  É. Que deseja?

—  Pode levar-me a bordo? Preciso ver Fred Blake.

—  Ele não está.

— Tem certeza?

—  Se é que não foi a nado.

—  Está bem. Boa noite.

O homem fez uma cara feia e deitou-se de novo. Erik voltou pela estrada silenciosa. Pensou que Fred poderia ter ido ao bangalô e ficado a conversar com Frith. Sorriu, imaginando a cara do rapaz diante dos discursos místicos do inglês. Gostava de Fred Blake. Era uma natureza simples e agradável, disfarçada pela futilidade aparente de suas opiniões. Sentia também que o rapaz retribuía seus sentimentos, que o admirava mesmo. Culto do herói. Mas não havia nenhum mal naquilo. Fred era boa pessoa. Podia-se fazer dele alguma coisa, se houvesse oportunidade. Era um prazer falar-lhe e notar que ele se esforçava para compreender todas as coisas. Podia ser que, lançando uma semente naquele terreno hostil, uma linda planta florescesse. Erik apressou-se, na esperança de encontrar Fred. Voltariam juntos e poderiam ir até a casa dele comer alguns biscoitos com queijo e tomar uma garrafa de cerveja. Não sentia sono nenhum. Havia tão pouca gente naquela ilha com quem ele pudesse conversar. Com Frith e Swan seu papel era mais de ouvinte. E é tão bom falar dentro da noite. . .

—  Cansou o sol com sua conversa — citou para si mesmo —, e fê-lo sumir-se do céu.

Erik era reticente em seus assuntos íntimos, mas resolveu contar a Fred seu noivado com Louise. Gostaria que o outro soubesse. Sentia um grande desejo de falar aquela noite sobre ela. Às vezes, o amor o dominava de tal modo que ele acreditava que seu coração rebentaria, se não contasse a alguém seu segredo. O doutor era velho e não poderia compreender. Para Fred ele era capaz de dizer coisas que não diria a um homem de idade.

A distância era de cinco quilômetros até a plantação, mas seus pensamentos o absorviam de tal modo que ele não sentia a caminhada. Ficou mesmo surpreendido quando chegou. Era curioso que não houvesse encontrado Fred. Talvez o  rapaz  tivesse  chegado  ao  hotel,   enquanto  ele fora ao porto. Que estupidez não ter pensado nisso! Mas agora que estava ali, o melhor era sentar-se um pouco. Naturalmente, estariam todos dormindo, mas ele não incomodaria ninguém. Muitas vezes fizera a mesma coisa, caminhar até o bangalô e sentar-se em frente, cismando. Havia uma cadeira no jardim, sob a varanda, na qual o velho Swan gostava de sentar-se, ao anoitecer. Ficava defronte ao quarto de Louise e era repousante estar ali sentado, olhando sua janela e pensando em seu sono tranqüilo, sob os mosquiteiros. Seu lindo cabelo louro derramava-se no travesseiro, e seu seio virgem se levantava e baixava docemente, com a respiração. A emoção que enchia o coração de Erik era pura como uma prece. Chegava a sentir-se, às vezes, um pouco triste ao pensar que aquela graça virginal pereceria e aquele belo corpo esguio ficaria inanimado pela morte. Era terrível que uma criatura tão linda tivesse de morrer. Ficava ali, muitas vezes, até que a frescura do ar e o rumor dos pombos entre os galhos anunciavam que o dia vinha chegando. Eram horas de paz e de encantadora serenidade. Uma ocasião, vira Louise abrir a janela e sair do quarto. Talvez o calor a oprimisse ou um sonho a tivesse acordado. Caminhara descalça pela varanda e, pousando as mãos na amurada, ficara olhando a noite cheia de estrelas. Vestia um sarongue em torno da cintura, mas a parte superior do corpo estava nua. Levantou as mãos e sacudiu o cabelo sobre os ombros. Seu corpo desenhava uma silhueta de prata contra a escuridão da casa. Não parecia uma mulher de carne e de sangue. Era uma virgem tutelar que Erik Christessen, com a cabeça cheia de velhas lendas dinamarquesas, esperava que se transformasse, de repente, num lindo pássaro branco e voasse para as regiões fabulosas do sol nascente. Ficara sentado, em silêncio. A escuridão da noite o protegia. Tudo em torno estava tão calado que ele chegava a ouvir seus suspiros como se ela estivesse nos seus braços. Depois a moça entrara para o quarto, fechando a janela sobre o jardim.

Erik seguiu pela pequena estrada que conduzia à casa e sentou-se na cadeira que defrontava o quarto de Louise A casa estava às escuras. O silêncio que a envolvia era tão profundo como o silêncio dos cemitérios. Mas não chegava a assustar. Dava uma sensação esquisita de paz. Confortava o espírito em seu seio.

O rapaz suspirou olhando a casa. Uma tristeza doce sem angústia, derramou-se dentro dele, pensando em Catherine Frith e em sua ausência irremediável. Esperava nunca esquecer a bondade com que ela o recebera, quando de sua chegada àquela ilha. Tivera por ela um verdadeiro culto. Era, então, uma mulher de 45 anos, e seu físico poderoso suportava o esforço de qualquer trabalho. Alta e cheia de corpo, cabelos de um louro magnífico, sua aparência era majestosa. Qualquer um, vendo-a, imaginava que ela viveria cem anos. Ocupou junto dele o lugar de sua mãe, também uma mulher corajosa e forte que ele deixara numa casa de campo na Dinamarca. Catherine amou em Erik os filhos que tivera havia anos e que a morte lhe roubara. Ele sentia que a relação entre os dois era mais íntima do que se fossem mesmo mãe e filho. Nunca poderiam ter falado tão abertamente, nem ele experimentaria aquela tranqüila satisfação de se sentir acompanhado. Amava a senhora, admirava-a, e considerava-se  feliz sabendo que ela também o amava. Tinha a certeza de que o amor que qualquer moça um dia lhe despertasse não lhe poderia dar aquela sensação de repouso e conforto que lhe dava a afeição pura de Catherine Frith. Apesar de não ser uma mulher de muita leitura, ela possuía um cabedal de conhecimento, como uma jazida inexplorada, adquirido através de inúmeras gerações. Era uma dessas pessoas que fazem um homem sentir que está dizendo coisas admiráveis, de que não se julgava capaz. Tinha um espírito prático e uma grande doçura de julgamento, e sua bondade tocava qualquer coração que se aproximasse do seu. Erik sentia-se contente, imaginando que sua vida fora tão feliz como ela merecera. Seu  casamento  com  George Frith tinha sido um idílio. Catherine era viúva quando o inglês chegou àquela ilha distante. Seu primeiro marido fora um capitão de navio, nascido na Nova Zelândia, que morrera em alto-mar, durante o grande furacão em que seu pai perdera a fortuna. Swan, a quem o ferimento no peito impedia de fazer qualquer trabalho pesado, sentiu o abalo daquele acidente que lhe roubava todas as economias de sua vida. Ele e a filha recolheram-se à plantação, que, com seu senso prático de escandinavo, conservava como refúgio para um dia de adversidade. O filho que Catherine tivera do capitão do navio havia morrido de difteria, quando era ainda pequenino. Mas a mulher não conhecera ninguém igual a George Frith. Nunca ouvira outra pessoa falar como ele falava. Era um homem de 36 anos, de olhar romântico e cabelos pretos. A natureza prática da mulher encontrou sua compensação naquela criatura errante que falava com tanto ardor nas coisas do espírito. Amou-o, não como havia amado seu rude marinheiro, mas com uma ternura feliz de quem quer proteger e consolar. Considerava-o muito superior a ela. Respeitava a sua sutil inteligência cheia de aspirações. Nunca deixou de acreditar em sua bondade e em seu gênio. E a amizade de Erik por Frith vinha daquele culto que ela lhe dedicara e da felicidade que, por tantos anos, ele tinha sabido dar à mulher.

Foi Catherine quem lhe disse pela primeira vez que gostaria de vê-lo casado com Louise. A filha era, então, uma criança.

—  Ela nunca será igual à senhora.

— Será muito superior. Você não pode afirmar isso, mas eu posso. Será parecida comigo mas ao mesmo tempo diferente. E há de ser muito mais bonita do que eu.

—  Só casarei com Louise se ela for exatamente igual à senhora. Não quero que ela seja diferente.

— Espere até que ela cresça e ficará satisfeito. Que idéia, querer que a pobre menina seja igual a uma velhota gorda!

Lembrava agora com prazer aquela conversa. A escuridão da casa dissipava-se levemente e ele teve um sobressalto, pensando que era o dia que ia nascendo. Olhou em torno e viu a lua flutuando sobre as folhas das árvores e derramando sua luz sobre o bangalô adormecido. Sorriu amigavelmente, para ela.

Quando aquela mulher forte e musculosa foi atacada por uma doença de coração, e os violentos espasmos da dor advertiram-na de que seu fim podia estar próximo, falou novamente a Erik de seu desejo. Louise fora avisada em sua escola em Auckland, mas só poderia chegar em casa depois de um mês de viagem.

—  Ela fará dezessete anos daqui a alguns dias. Acho que é uma menina ajuizada, mas ainda muito nova para tomar conta de tudo por aqui.

—  Por que motivo julga que ela vai querer casar-se comigo?

—  Ela o adorava, quando era criança. Costumava acompanhar você como um cachorrinho.

— Ora, aquilo era apenas um pequeno capricho infantil.

—  Você é praticamente o único homem que ela conheceu.

—  Mas não vai querer que eu me case com ela, se não a amar.

Catherine sorriu com doçura.

—  Não posso deixar de pensar que você amará minha filha.

Ficou um momento em silêncio. Depois, disse alguma coisa que ele não compreendeu muito bem.

—  Acho que estou assim tão contente porque tenho certeza de que não estarei mais aqui.

—  Não diga isso. Por quê?

Ela não respondeu. Apertou a mão dele e riu baixinho.

Sentia uma triste emoção ao pensar como ela acertara e atribuía isso ao estranho pressentimento dos moribundos. Ficou maravilhado quando tornou a ver Louise,  em seu regresso. Estava transformada numa linda moça. Perdera o culto infantil por ele, mas perdera também a timidez. Falava-lhe sem constrangimento. Tinha certeza de que a moça gostava dele. Era tão doce, tão amiga, parecia tão afeiçoada... Mas tinha também a impressão de que, se ela não o criticava, apreciava-o, no entanto, friamente. Isso não o embaraçou, tornou-o mais consciente de si mesmo. Aquele olhar um pouco malicioso de Catherine, que ia direto ao coração, por estar embebido de ternura, desconcertava o rapaz, aos olhos de Louise. Parecia mesmo que ela o achava um bocadinho ridículo. Erik descobriu que precisava recomeçar com ela desde o princípio, pois seu espírito mudara juntamente com o corpo. Era a mesma camarada de sempre, bem-disposta, pronta para todos os passeios, para nadar com ele ou pescar. Falavam e riam com a mesma franqueza de quando ele tinha 22 anos e ela apenas catorze, mas ele sentia vagamente que a moça se tornara um pouco distante. Sua alma fora transparente como vidro. Era agora velada misteriosamente, como se escondesse no fundo alguma coisa que ele não sabia.

Catherine morreu de repente. Teve um ataque de angina, e, quando o médico mestiço chegou ao bangalô, já não pode fazer nada. Louise ficou inconsolável. Sentiu-se de novo uma criança que não sabe o que fazer com sua dor. Chorou longas horas nos braços de Erik, como uma criança que não quer ser consolada porque não compreende que aquela tristeza há de passar. O golpe era rude demais para sua fraqueza e as palavras do rapaz não conseguiam confortá-la. Frith ficou como louco, sem atender a ninguém. Passava todo o seu tempo bebendo uísque e chorando. O velho Swan falava de seus filhos que haviam morrido um depois do outro. Queixava-se de todos. Que não ficara nenhum para cuidar do pobre velho. Um havia saído de casa, outro o havia roubado, outro casado não sabia com quem, e o resto morrera. Um ao menos poderia ter ficado para olhar pelo pai na velhice.

Erik fez tudo o que podia fazer.

— Você é um anjo — disse-lhe Louise.

Viu a luz do amor nos olhos dela, mas limitou-se a apertar-lhe a mão e dizer que ela exagerava. Não quis aproveitar-se de sua emoção, de sua triste sensação de desamparo para pedir-lhe que se casasse com ele. Louise era ainda uma moça. . . Não seria bonito de sua parte fazer-lhe aquela proposta. Amava-a loucamente. Preferia dizer: sensatamente. Porque a amava com toda a energia de sua sólida inteligência, com todo o poder de seus músculos, com todo o vigor de seu caráter. Não a amava apenas pela beleza de seu corpo de virgem, mas por sua personalidade em formação e pela pureza de sua alma. Seu amor aumentava-lhe o senso de sua própria força. Sentia que não havia nada que ele não pudesse conseguir. Entretanto, quando pensava na perfeição da moça, em seu espírito sadio, em seu corpo sadio, na alma sensível e sutil que correspondia tão bem às formas belas, ele se sentia humilhado, quase abjeto.

E agora tudo estava assentado. As hesitações de Frith não eram sérias, qualquer esforço de persuasão o convenceria. Mas Swan estava muito velho. Deviam esperar que ele morresse para realizar o casamento. Erik era trabalhador. A companhia não o deixaria indefinidamente naquela ilha. Cedo ou tarde, seria transferido para Rangoon, Bangkok ou Calcutá. Talvez precisassem dele em Copenhague. Nunca sentiria, como Frith, satisfação em passar toda a sua vida ali, vendendo couve e noz-moscada. Faltava a Louise aquela placidez de temperamento, que permitira a sua mãe transformar num lindo idílio a existência naquela ilha. O que ele mais admirara em Catherine fora aquela aceitação da ronda comum de todo o dia, de seus encargos de família, de tudo o que ela transformara num modelo de esquisita beleza. A atividade de Louise era diferente. Apesar de aceitar as circunstâncias com serenidade, sua imaginação gostava de vagar. Às vezes, quando os dois estavam sentados nas ruínas do forte olhando o mar, ele sentia que havia na alma da moça uma energia escondida que pedia exercício.

Muitas vezes haviam falado sobre o casamento. Queriam chegar à Dinamarca na primavera, quando as árvores ressurgem na alegria verde da folhagem. A cor dos campos do norte tem uma frescura que os trópicos não conhecem. Os prados, com seu gado preto-e-branco, as granjas alvejando entre as árvores têm uma doce beleza que não espanta o forasteiro, mas dá-lhe a sensação de estar em casa. Depois Copenhague, com suas ruas largas e movimentadas, as casas sombrias e nobres, cheias de janelas, as igrejas, e os palácios vermelhos construídos pelo rei Cristiano e que dão a impressão de pertencer a um conto de fadas. Desejaria levá-la a Elsinor. Dentro de suas muralhas, o fantasma paterno aparecera ao príncipe dinamarquês. Era belo no verão. O mar tranqüilo tinha um tom cinzento ou azul leitoso. A vida ali era agradável, entre música e risadas. Iriam também à Inglaterra, Londres, o Museu Britânico, a Galeria Nacional. Nenhum dos dois estivera na Inglaterra. Visitariam Stratford-on-Avon e o túmulo de Shakespeare. E Paris, naturalmente. O centro da civilização. Ela iria fazer compras no Louvre e passeariam no Bois de Boulogne. Caminhariam de mãos dadas pela floresta de Fontainebleau. Itália e o Grande Canal, ao luar, numa gôndola. Por causa de Frith, dariam um pulo a Lisboa. Seria maravilhoso ver o país de onde saíram os velhos portugueses para fundar um império, do qual nada restava além de alguns fortes em ruínas, uma epopéia imortal e um imperecível renome. Ver todos esses lugares belos, em companhia da pessoa que exprime toda a beleza do mundo, é a alegria mais perfeita que a vida pode oferecer. Nesse momento Erik compreendia o sentido das palavras de Frith, quando ele dizia que o Espírito Primeiro, a quem alguns chamam Deus, não está afastado do mundo, mas dentro dele. O grande espírito que está na pedra da montanha, no Animal do campo, no homem e no trovão que rola do fundo do céu.

A lua agora inundava a casa com sua luz muito branca. Suas linhas apareciam distintamente e sua massa substancial tinha uma frágil e encantadora irrealidade. De repente, a janela do quarto de Louise abriu-se devagarinho. Erik conteve a respiração. Nada podia desejar mais naquele momento do que ver a figura da moça. Ela saiu para a varanda. Vestia apenas o sarongue de dormir.

Tinha, à luz do luar, qualquer coisa de fantasmal. A noite parecia ter parado, e o silêncio era como uma criatura viva que escutasse. Deu um passo ou dois e olhou para cima e para baixo da varanda, como se quisesse certificar-se de que não havia ninguém. Erik esperava que ela se encostasse à amurada, e ali ficasse um momento como da outra vez. Podia quase distinguir a cor de seus olhos na claridade da luz. Depois, ela voltou-se para a janela do quarto e fez um sinal. Um homem apareceu. Parou um momento, como se quisesse tomar-lhe a mão, mas ela sacudiu a cabeça e apontou para a amurada. O homem galgou-a rapidamente, olhou a distância de dois metros que o separava do terreno e pulou com agilidade. Louise voltou para o quarto e fechou a janela.

Por um momento, Erik ficou tão espantado que não conseguia compreender. Não acreditava em seus olhos. Ficou sentado onde estava, na cadeira do velho Swan, sem poder fazer nada, de olhos escancarados. O homem caiu de pé e sentou-se na grama. Parecia calçar os sapatos. Mas, de repente, Erik recuperou o domínio sobre si mesmo. Saltou da cadeira, correu para o homem que uma distância de poucos metros separava dele, agarrou-o pela gola do casaco e deitou-o a seus pés. O homem abriu a boca para gritar, mas Erik fechou-a com sua mão pesada. Começou então a apertar-lhe a garganta, vagarosamente. O outro não se movia para lutar, os olhos muito abertos, dominado. Então Erik olhou para ele. Era Fred Blake.

 

Uma hora depois, o médico estava estendido na cama, ainda acordado, quando ouviu passos no corredor e uma leve batida na porta. Não respondeu e alguém experimentou o trinco. A porta estava fechada.

—  Quem é?

A resposta veio pronta, numa voz rápida e agitada.

—  Doutor, sou eu, Fred. Preciso vê-lo imediatamente.

O médico fumara meia dúzia de cachimbos depois da saída do capitão. Nessas ocasiões não gostava de ser perturbado. Pensamentos tão claros como desenhos geométricos no caderno de uma criança, quadrados, oblongos, círculos, triângulos, desfilavam por seu cérebro numa procissão bem ordenada. O prazer que sentia na sua lucidez de pensamento era parte do prazer indolente de seu corpo. Levantou o mosquiteiro e dirigiu-se para a porta. Quando abriu, viu o vigia noturno enrolado num cobertor, sustentando uma lanterna, e, atrás dele, Fred Blake.

—  Posso entrar, doutor?  É  um assunto importantíssimo.

—  Espere que eu acenda a lâmpada.

À luz da lanterna do vigia, ele encontrou os fósforos e acendeu a lâmpada. Ah Kay, que dormia sobre um colchão na varanda próxima, acordou com o barulho e, sentando-se sobre o leito, esfregou os olhos. Fred deu uma gorjeta ao vigia e o homem afastou-se.

—  Durma, Ah Kay — disse o doutor. — Não há motivo para levantar-se.

— Escute, o senhor deve ir à casa de Erik imediatamente. Aconteceu um desastre.

—  Que está dizendo?

Olhou para Fred e viu que o rapaz estava branco como um lençol. Seu corpo inteiro tremia.

—  Erik suicidou-se.

—  Meu Deus do céu! Como sabe?

—  Venho de lá, neste instante. Ele está morto.

Às primeiras palavras de Fred, o médico começara a vestir-se. Ouvindo isso, parou subitamente.

—  Tem certeza?

—  Completa.

—  Mas se ele está morto, que vou fazer eu lá?

—  O caso é que não pode ficar assim. Vá vê-lo, por favor. Oh, meu Deus!

O rapaz tinha uma voz de choro.

—  Talvez possa fazer alguma coisa.

—  Quem está lá com ele?

—  Ninguém. Está sozinho. Nem posso pensar naquilo. O senhor deve fazer alguma coisa. Pelo amor de Deus.

—  Que tem você na mão?

Fred olhou. Sua mão estava manchada de sangue. Fez um gesto instintivo para enxugá-la na calça.

—  Não faça isso — gritou o médico, segurando seu pulso. — Venha lavar a mão.

Conduziu-o pelo braço até o banheiro. Era uma peça escura, quadrada, com um chão de concreto. Havia a um canto uma tina grande onde costumava banhar-se tirando a água com uma pequena vasilha de lata e derramando sobre o corpo. O doutor entregou a Fred um pouco de água e sabão e disse-lhe que se lavasse.

—  Está com a roupa manchada?

Levantou a lâmpada para examinar.

—  Acho que não.

O médico soltou a água suja e voltaram para o quarto de dormir. A vista do sangue excitara Fred e ele procurava controlar sua agitação histérica. Estava mais branco do que nunca e, apesar de apertar as mãos, não conseguia dominar seu violento tremor.

—  É melhor beber alguma coisa. Ah Kay, sirva um pouco de uísque ao cavalheiro. Sem água.

Ah Kay levantou-se e serviu a bebida. Fred lançou-a longe. O doutor olhava-o fixamente.

—  Escute, rapaz, nós estamos num país estranho. Nada de complicações com as autoridades holandesas. Acho que elas não terão muita tolerância com a gente.

—  Não podemos deixar o corpo abandonado numa poça de sangue.

—  Não  é  verdade  que  aconteceu  alguma  coisa  em Sydney que fez você fugir apressadamente? A polícia daqui, naturalmente, há de fazer-lhe uma porção de perguntas. Quer que ela telegrafe para Sydney?

—  Não me importo. Estou com raiva de tudo.

—  Não seja tolo. Se ele morreu, nenhum de nós poderá fazer coisa alguma. Ê melhor conservarmo-nos afastados. A única coisa que você tem a fazer é deixar esta ilha o quanto antes. Alguém o viu lá?

—  Onde?

—  Na casa dele, é claro.

—  Não. Demorei apenas um minuto. Corri diretamente para cá.

—  E os empregados?

—  Acho  que estavam dormindo.  Moram nos fundos da casa.

—  Quer dizer que o vigia noturno foi a única pessoa que o viu. Por que razão o acordou?

—  Não podia entrar. A porta estava fechada. Precisava ver o senhor imediatamente.

—  Está  bem.  Não  faz mal.  Pode-se  encontrar facilmente uma razão para você acordar-me no meio da noite Por que motivo foi à casa de Erik?

—  Precisava ir. Tinha alguma coisa urgente para dizer a ele.

—  Prefiro acreditar que ele tenha se suicidado mesmo. Que você não o tenha matado.

—  Eu!? — o rapaz exclamou com horror e surpresa. — Mas se ele. . .  Eu não tocaria num fio de sua cabeça. Não quereria mais bem a Erik se ele fosse meu irmão. O melhor sujeito que já encontrei neste mundo.

O doutor não gostava da linguagem de Fred, mas sentia em suas palavras que ele tinha afeição pelo dinamarquês e que estava falando a verdade.

—  Então, que significa tudo isso?

— Oh, meu Deus, como posso saber? Acho que ele enlouqueceu. Como iria adivinhar que ele era capaz de fazer uma coisa dessas?

— É melhor dizer tudo de uma vez. Não precisa ter medo porque serei discreto.

— Foi aquela moça da casa de Swan. Louise.

O médico aguçou o olhar mas não o interrompeu.

—  Tive uma aventurazinha com ela,  esta noite.

—  Você? Mas se a viu ontem pela primeira vez. . .

— É verdade. Mas que havia de fazer? Ela engraçou-se comigo desde o momento em que me viu. Percebi a coisa. Eu também gostei dela imediatamente. Não tinha encontrado uma oportunidade desde que saí de Sydney. Não posso suportar essas mestiças. Quando dançamos a noite passada, vi que a coisa marchava bem. Se quisesse teria sido ontem mesmo. Saímos para o jardim, enquanto jogavam bridge. Dei-lhe um beijo. Ela estava doida por um beijo. Quando uma pequena faz isso a gente não deve deixar que ela se arrependa. Eu estava louco por ela. Quando veio aqui com o velho, esta manhã, perguntei-lhe  se podíamos  ter um encontro. Disse que não. Insisti se não era possível a gente se encontrar depois que os outros fossem para a cama, e tomar um banho juntos na piscina. Disse que não de novo, mas não me quis dizer por quê. Contei-lhe que estava louco por ela. E estava mesmo. A pequena é um caso sério. Levei-a para bordo, para mostrar-lhe o barco. Beijei-a de novo, mas aquele infecto Nichols não nos deixou a sós mais do que um minuto. Disse-lhe que iria até a plantação, esta noite. Respondeu que não apareceria. Mas eu sabia que sim, porque, no fundo, ela me desejava tanto como eu a desejava. Quando cheguei lá, ela estava a minha espera. Uma noite linda que fazia, mas havia mosquitos em quantidade. "E se a gente fosse para o quarto?", eu perguntei. Ela me disse que tinha medo. Falei que não havia perigo. Disse, afinal, que sim.

Fred fez uma pausa. O doutor olhava-o por baixo das pestanas pesadas. Suas pupilas estavam dilatadas pelo ópio. Escutava o rapaz com atenção.

— No fim, ela me disse que eu fosse embora. Enfiei a roupa, mas fiquei sem sapatos para não fazer barulho na varanda. Louise saiu primeiro, para ver se não havia alguém. Às vezes, quando não consegue dormir, o velho Swan costuma passear pelo jardim, como se andasse no tombadilho de um navio. Depois, eu saí também e saltei da varanda. Sentei-me na grama para calçar os sapatos e, antes que pudesse compreender qualquer coisa, alguém pulou sobre mim e derrubou-me. Era Erik. Tinha uma força de touro. Levantou-me como se eu fosse uma criança e botou a mão sobre a minha boca. Inútil, porque eu não poderia gritar mesmo que quisesse. Depois, apertou-me a garganta e senti que ia morrer. Estava completamente paralisado. Não podia lutar. Nem podia ver o rosto dele. Ouvi sua respiração forte, pensei que era meu último instante de vida, quando, de repente, ele me largou. Deu-me uma pancada forte do lado da cabeça com as costas da mão, e eu focinhei no chão como um cachorro. Parou um momento diante de mim. Não me mexi. Pensei que, se fizesse um movimento, ele poderia matar-me. De repente, deu as costas e afastou-se rapidamente. Levantei-me do chão e olhei para a casa. Louise não ouvira nada. Pensei que talvez fosse bom contar-lhe tudo, mas não tive coragem. Tive medo de que alguém me ouvisse bater è janela. Não queria assustá-la. Não sabia o que fazer. Comecei a caminhar e notei que não havia calçado os sapatos. Voltei para procurá-los. Fiquei assustado, porque não consegui achá-los a princípio. Respirei fortemente quando cheguei de novo à estrada. Imaginava que Erik poderia estar a minha espera. Não é brincadeira andar por um caminho escuro, sem vivalma nas proximidades, sabendo que um brutamontes pode aparecer a qualquer momento e dar uma surra na gente. Ele poderia torcer meu pescoço como se eu fosse uma galinha e eu não seria capaz de fazer nada. Caminhei não muito ligeiro e com os olhos bem abertos. Decidira sair correndo se o enxergasse primeiro. Que diabo! Não adianta nada afrontar um sujeito, quando a gente sabe de antemão que não pode com ele. Depois de caminhar quase dois quilômetros, já não sentia mais medo. Decidi, então, ir vê-lo de qualquer maneira. Se fosse outra pessoa, eu não faria caso, mas não queria que Erik Christessen me julgasse um canalha. Talvez o senhor não compreenda, mas eu nunca havia encontrado um camarada como ele. Há muita gente neste mundo que não é melhor do que nós, mas ele era diferente. Seria preciso ser um imbecil para não ver imediatamente que ele era um homem em mil. Sabe o que eu quero dizer?

O doutor sorriu com um ar irônico.

—  Vamos. Continue.

—  Bem, achei que devia procurá-lo. Queria contar-lhe tudo direitinho. Estava disposto a casar com a moça. Não tinha podido resistir, compreende? Afinal de contas, a gente é humano. O senhor é um velho, não sabe o que significa isso. Está tudo muito bem, quando o sujeito tem cinqüenta anos. Sabia que não poderia ter um momento de descanso enquanto não me acertasse com ele. Quando cheguei diante da casa, parei algum tempo, enchendo-me de coragem para entrar. Imaginava que, se ele não me matara naquele momento, poderia matar-me agora. Sabia que ele não costumava fechar a porta. Meu coração batia como louco, quando entrei no corredor. Estava escuro, quando fechei a porta. Chamei pelo seu nome mas ele não respondeu. Como sabia onde era seu quarto, dirigi-me para lá e bati. De qualquer maneira, não acreditava que ele estivesse dormindo. Bati de novo e gritei: "Erik, Erik". Minha garganta estava seca e a voz rouca como a de um corvo. Não podia compreender por que razão ele não respondia. Supus que estivesse a minha espera, escutando. Senti um medo terrível. Quase saí correndo, mas me dominei. Experimentei o trinco, a porta não estava fechada. Não podia ver coisa alguma. Chamei de novo: "Erik! pelo amor de Deus, me responda". Risquei, então, um fósforo e quase caí de espanto. Estava deitado no chão, junto de mim. Se eu tivesse dado mais um passo, tropeçaria nele. Deixei cair o fósforo. Aproximei-me do corpo. Talvez ele estivesse desmaiado, ou bêbado, ou qualquer outra coisa. Tentei riscar um fósforo mas não consegui. Acendi outro e vi, então, que uma metade de seu crânio estava rebentada. O fósforo apagou-se e risquei mais um. Vi a lâmpada ali perto, acendi-a. Ajoelhei-me, tomei sua mão e senti que ainda estava quente. Tinha um revólver apertado na outra. Toquei seu rosto para ver se ele ainda estava vivo. O sangue cobria-o todo. Meu Deus, nunca vi uma ferida igual àquela. Corri então para cá, a toda pressa. Nunca esquecerei aquela cena, por mais tempo que eu viva.

Apertou a cabeça nas mãos e balançou-a, desoladamente, de um lado para o outro. Depois um soluço subiu de seu peito e, atirando-se na cadeira, voltou o rosto e chorou. O dr. Saunders deixou-o chorar. Tirou um cigarro do bolso, acendeu-o e tragou a fumaça com força.

— Deixou a lâmpada acesa? — perguntou, finalmente.

— Que importa a lâmpada? — gritou Fred. E soltou um palavrão.

— É. Não faz mal. Ele tanto poderia ter-se matado com luz como no escuro. Curioso é que nenhum dos empregados ouvisse o barulho.

—  Mas por que razão ele teria feito aquilo?

—  Porque era noivo de Louise.

O efeito da frase do doutor foi imediato. Fred ergueu-se num ímpeto e empalideceu. Seus olhos quase saltaram das órbitas, cheios de horror.

—  Erik? Mas ele nunca me disse nada.

—  Talvez achasse que não era de sua conta.

—  Ela também não me disse nada. Podia ter me contado. Meu Deus, se eu soubesse disso não a tocaria nem com a ponta do dedo mínimo. Acho que não é verdade. Não pode ser verdade.

—  Foi ele mesmo que me disse.

—  Disse-lhe que gostava muito dela?

—  Muitíssimo.

—  Então, por que não matou a mim ou a ela, em vez de suicidar-se?

O médico deu uma risada.

—  É curioso, não acha?

— Pelo amor de Deus, não ria. Estou desesperado. Acho que nada pior poderia me acontecer do que isso. Afinal. . . Ela não me interessava até esse ponto. Se eu soubesse, não teria cometido essa loucura. Erik foi o melhor camarada que já encontrei neste mundo. Não seria capaz de feri-lo. Que idéia terá ele feito de mim? Tratou-me sempre com tanta generosidade. . .

As lágrimas caíam-lhe dos olhos e rolavam pelo seu rosto. O rapaz chorava amargamente.

—  É um horror. A gente faz uma coisa sem pensar e acontece uma tragédia dessas. Acho que há uma maldição pesando sobre mim.

Olhou para o doutor. Sua boca tremia e seus belos olhos estavam pesados de lágrimas. O médico examinava seus próprios sentimentos. Não podia aprovar aquela quase satisfação que a mágoa do rapaz lhe provocava. Sentia que o sofrimento dele era merecido. Mas, ao mesmo tempo, o fato de vê-lo triste entristecia-o também. Seu aspecto tão moço e tão acabrunhado não podia deixar de ser tocante.

—  Isso tudo passará. Não há tristeza que dure sempre.

—  Antes eu tivesse morrido. Meu velho sempre disse que eu não prestava para nada e vejo que ele tinha razão. Levo a desgraça comigo para toda parte. Mas juro que não é culpa minha. Aquela cadela! Por que não me deixou em paz? Que se pode pensar de uma mulher que, sendo noiva de um homem como Erik, vai para a cama com o primeiro tipo que encontra? Ainda há uma coisa boa em tudo isso: é que ele se viu livre dela.

—  Está dizendo bobagens.

— Procedi muito mal, eu sei, mas ela procedeu pior. Julguei que houvesse encontrado uma nova oportunidade, e agora vejo que não há remédio. — Hesitou um momento. — Lembra-se do telegrama que eu recebi esta manhã? Trouxe uma notícia que eu não sabia. Foi tudo tão inesperado que eu, a princípio, não me podia dominar. Há uma carta para mim na Batávia. Minha situação está agora arranjada. Levei um choque logo que li. Não sabia se devia rir ou não. O telegrama diz que eu morri de escarlatina no hospital de Sydney. Compreendi o sentido imediatamente. Meu pai é um homem importante em Nova Gales do Sul. Houve lá uma terrível epidemia. Levaram um doente para o hospital, dizendo que era eu. Precisavam explicar a minha ausência do escritório, e agora que o outro morreu eu também morri. Sei que meu velho deve estar contentíssimo por se ver livre de mim. Bem, já há alguém para dormir confortavelmente no jazigo da família. Meu pai é um organizador admirável. E por causa do prestígio dele que seu partido se tem conservado no poder por tanto tempo. Não se arriscaria a perdê-lo, e acho que, enquanto eu estivesse "vivo", não poderia ter tranqüilidade. Venceu novamente nas últimas eleições. Por uma esmagadora maioria. Vejo-o daqui, tomando posse, com uma fita negra de crepe no braço.

Riu baixinho. O médico arriscou uma pergunta, diretamente:

—  Que é que você fez?

Fred distanciou o olhar. E respondeu numa voz quase sumida:

—  Matei um homem.

—  Eu não o diria a ninguém, se fosse você.

— O senhor conservou-se tão calmo. Já matou alguém?

—  Apenas profissionalmente.

Fred olhou-o com um sorriso nos lábios torturados.

—  O senhor é um homem estranho, doutor. Nada consegue perturbá-lo. Não há alguma coisa que lhe importe um pouco? Não acredita em nada?

—  Por que o matou? Por brincadeira?

—  Brincadeira? Se soubesse o que eu passei. Por que me meti naquilo? Não sei como meus cabelos não ficaram brancos. Quanto eu pensei naquilo, sem poder esquecer um momento que fosse!  Mesmo nas horas mais agradáveis a lembrança voltava. Às vezes, tinha medo de ir para a cama. Costumava sonhar com a prisão e com a forca. Outras vezes, estive a ponto de me lançar ao mar, e sair nadando até que me afogasse ou fosse devorado por um tubarão. Se soubesse que consolo eu tive ao receber aquele telegrama e compreender o que ele significava. Foi um peso que saiu da minha cabeça. Estava salvo. Nunca me senti muito seguro a bordo e sempre temi que, ao desembarcar em algum porto, encontrasse a polícia a minha espera. A primeira vez que o vi, imaginei que fosse um detetive. Sabe agora qual foi a primeira coisa que eu pensei esta manhã? "De hoje em diante poderei dormir sossegado." E me acontece uma coisa dessas. Há uma maldição sobre mim.

— Não diga tolices.

— Que farei agora? Para onde irei?  Esta noite, enquanto estava deitado ao lado dela, pensei que poderíamos casar e que eu ficaria vivendo aqui. O barco serviria para negócios. Nichols voltaria pelo mesmo navio em que o senhor vai. Poderiam mandar-me da Batávia a carta que existe lá para mim. Creio que há dinheiro dentro dela. Minha mãe deve ter obrigado o velho a me mandar alguma coisa. Pensei mesmo em propor a Erik uma pequena sociedade.

— Não pode mais fazer isso, mas ainda poderá casar com Louise.

—  Eu? — gritou Fred. — Depois do que aconteceu? Não poderei mais vê-la. Nunca hei de perdoar o que ela fez. Nunca. Nunca.

—  Que pretende fazer, então?

—  Deus é que sabe. Não posso voltar para casa. Estou morto e sepultado no jazigo da família. Gostaria de ver Sydney de novo, George Street, a baía de Manley. Já não tenho mais nada neste mundo. Sou um bom contador. Não me seria difícil encontrar um emprego de guarda-livros. Mas não sei para onde ir. Sou como um cachorro sem dono.

—  Se eu fosse você, a primeira coisa que faria era voltar para o Fenton e procurar dormir um pouco. Está muito excitado. Pensará melhor de manhã.

— Não posso voltar para bordo. Odeio aquele barco. Se soubesse quantas vezes acordei suando frio, com o coração batendo no peito, porque sentia os homens abrirem a porta da minha cela e dizerem que a forca me esperava. E agora, sabendo que Erik está estendido no chão, com a cabeça rebentada por uma bala. Meu Deus, como poderei dormir?

— Bem.  Recoste-se naquela  cadeira.  Eu vou para a cama.

— Obrigado. Vá. Acha que o incomodarei se fumar um pouco?

— Espere. Eu lhe darei alguma coisa. Não há razão para ficar acordado.

Apanhou uma agulha hipodérmica e aplicou no rapaz uma injeção de morfina. Depois apagou a luz e deitou-se sob o mosquiteiro.

 

Acordou quando Ah Kay lhe trouxe uma xícara de chá. O chinesinho levantou o mosquiteiro e abriu a janela para o dia. O quarto dava para o jardim abandonado, com suas palmeiras, suas bananeiras, suas esplêndidas acácias, que a luz fresca da manhã iluminava. O doutor fumou um cigarro. Fred dormia ainda sobre a cadeira, e seu rosto tão calmo de menino tinha um ar inocente que o fazia ainda mais bonito.

—  Devo acordá-lo? — perguntou Ah Kay.

—  Ainda não.

Enquanto dormia, ele estava tranqüilo. Despertaria para a tristeza. Era um rapaz estranho. Quem poderia supor que fosse tão suscetível à bondade? Porque, apesar de ele mesmo não saber nem poder exprimir em suas estúpidas palavras, o que o atraíra no dinamarquês, o que excitara sua admiração embaraçada fora aquela bondade simples e honesta que irradiava do outro. Poder-se-ia achar Erik um pouquinho ridículo, mas não havia dúvida de que era um homem fundamentalmente bom. Sua bondade era específica. Absoluta. Era o traço mais forte de sua personalidade.

"Afinal, não lhe valeu de nada", pensou o médico, sorrindo e levantando-se da cama.

Parou diante do espelho e começou a contemplar-se. Viu seu cabelo grisalho, desarranjado pelo sono, e apalpou a barba crescida. Abriu a boca e olhou os longos dentes amarelos. Seus olhos estavam empapuçados. As faces avermelhadas. Teve uma expressão de desgosto. Pensou por que motivo o homem é, de todas as criaturas, o único que a idade tão hediondamente desfigura. Era horrível imaginar que Ah Kay, com sua esguia beleza de marfim, seria um dia um pequeno chinês encarquilhado, e que Fred Blake, com seu corpo fino e seus ombros largos, se transformaria num homem vermelho, barrigudo e careca. Fez a barba e tomou banho. Depois acordou Fred.

—  Vamos, rapaz. Ah Kay está preparando nosso café da manhã.

Fred abriu os olhos, imediatamente alertas, olhos de moço prontos a saudar um novo dia, mas depois, examinando o quarto, lembrou-se de onde estava e por que viera parar ali. Seu rosto ficou sombrio.

—  Oh, levante-se de uma vez — disse o médico com impaciência. — Vá se lavar.

Dez minutos depois, estavam sentados à mesa e o doutor notou, sem surpresa, que Fred comia com muito apetite. Ficou satisfeito por ver que o rapaz não falava. O incidente da noite não o deixara de muito bom humor.

Quando estavam terminando, o gerente apareceu e pôs-se a dizer alguma coisa em holandês. Sabia que o doutor não entendia, mas continuava a falar, apesar de tudo, e seus gestos eram expressivos demais para que não fossem compreendidos. O médico, porém, encolheu os ombros. Fingiu que não tinha noção alguma do que o mestiço estava dizendo, até que o homenzinho exasperado retirou-se do aposento.

—  Descobriram a coisa — disse o doutor.

—  Como?

— Não sei. Talvez o criado, quando lhe foi levar o chá.

— Não há algum intérprete por aqui?

— Saberemos tudo daqui a pouco. Não se esqueça de que nenhum de nós sabe qualquer coisa a esse respeito.

Ficaram em silêncio. Alguns minutos depois, o gerente voltou com um oficial holandês metido num uniforme branco de botões dourados. O militar cumprimentou, batendo os calcanhares e pronunciando um nome incompreensível. Falava inglês com um sotaque bem carregado.

—  Tenho o pesar de comunicar-lhe que um dinamarquês chamado Christessen suicidou-se esta noite.

—  Christessen? — gritou o médico. — Aquele rapaz alto?

Observava Fred com o canto dos olhos.

— Foi encontrado pelos criados há uma hora. Estou encarregado do inquérito. Não há dúvida de que se trata de um caso de suicídio. Mr. Van Ryk — apontou para o gerente — informou-me que ele esteve aqui em visita a noite passada.

—  É verdade.

—  Quanto tempo ficou aqui?

—  Dez minutos ou um quarto de hora.

—  Não tinha bebido?

—  Não.

—  De fato, nunca o vi embriagado. Disse, por acaso, alguma coisa que mostrasse a intenção de suicidar-se?

—  Não. Estava bem-disposto. Sabe que eu não o conhecia muito bem. Cheguei apenas há três dias e estou esperando o Princesa Juliana.

—  Sim, eu sei. Quer dizer que não pode explicar a tragédia?

—  Sinto muito.

—  Era tudo o que eu desejava saber. Se precisar de algum novo esclarecimento, comunicarei ao senhor. Talvez queira dar-se o incômodo de ir até meu gabinete.

Olhou para Fred Blake.

—  E  este  cavalheiro  não nos   poderá   dizer  alguma coisa?

—  Nada. Ele não estava aqui. Eu jogava cartas com o capitão do veleiro que está no porto quando o dinamarquês chegou.

—  É  uma lástima.  Ninguém podia deixar de  querer bem a ele. Nunca incomodou a ninguém. Era um rapaz de hábitos tranqüilos. Acho que é a velha história. É um erro viver sozinho num lugar como este. A saudade da pátria, o calor de matar, e um dia o tipo não resiste mais e mete uma bala nos miolos. Já vi isso mais de uma vez. Sempre é melhor ter uma mulherzinha para fazer companhia à gente. Bem, cavalheiros, agradeço-lhes muitíssimo. Não quero importuná-los mais. Ainda não estiveram no Gesellschaft? Teremos muito prazer. Lá encontrarão a melhor gente da ilha, entre sete e nove horas da noite. É um lindo lugar.  Um perfeito centro social. Bem, muito bom dia, cavalheiros.

Bateu os calcanhares, apertou a mão de ambos e retirou-se apressadamente.

 

Em países quentes como aquele, não é permitido grande intervalo entre a morte de uma pessoa e seu sepultamento. No caso do dinamarquês, porém, o exame devia ser feito. Por isso o funeral só se realizou às últimas horas da tarde.

Poucas pessoas assistiram ao ato. Alguns amigos dinamarqueses de Erik, Frith, o dr. Saunders, Fred Blake e o capitão. Este último, apesar de tudo, devia estar encantado com a cerimônia. Conseguira alugar um terno preto, cuja calça e mangas precisou dobrar, e, no meio dos outros, produzia um sensível efeito de respeitabilidade. O serviço foi rezado em língua holandesa, o que desconcertou um pouco o capitão Nichols, que não pôde acompanhá-lo. Seguiu, entretanto, cheio de unção a cerimônia, e no final apertou a mão do pastor luterano e de dois ou três oficiais holandeses, como se eles lhe tivessem prestado um serviço pessoal. Os homens, naturalmente, imaginaram que ele era parente do morto. Fred Blake chorava.

Frith e os três forasteiros saíram juntos. Caminharam até o porto.

— Se os cavalheiros me dão o prazer de vir a bordo do Fenton — convidou o capitão —, abrirei uma garrafa de vinho do Porto que encontrei esta manhã entre as provisões. Sempre achei que este vinho é o que convém melhor depois de um funeral. É uma bebida mais séria do que cerveja ou uísque.

—  Nunca havia pensado nisso — disse Frith —, mas compreendo perfeitamente o que quer dizer.

—  Eu não vou — murmurou Fred. — Estou abatido. Posso acompanhá-lo, doutor?

—  Se quiser.

—  Todos nós estamos abatidos — afirmou o capitão. — É por isso que devemos beber um pouco de vinho do Porto.  Não pretendo curar ninguém, mas, que  diabo,  se vierem comigo, poderão saborear um copo ou dois e isso sempre valerá alguma coisa.

—  Vá para o inferno! — berrou Fred.

—  Está bem. Venha então você, Frith. Se é de fato o homem que eu imagino, poderemos beber sozinhos uma garrafa de vinho do Porto sem que aconteça nada de mal.

—  Vivemos   numa   época   degenerada   —  comentou Frith. — Onde estão os homens que bebiam duas ou três garrafas?

—  Você é dos meus.

—  Se dois homens adultos não forem capazes de beber uma garrafa  de vinho do Porto,  eu  desprezarei  a  raça humana. Babilônia caiu.

— Exatamente.

Os dois entraram no escaler e um negro pôs-se a remar. O doutor e Fred afastaram-se vagarosamente. Dirigiram-se para o hotel.

—  Vamos até seu quarto — disse o rapaz.

O doutor serviu uísque e soda para ambos.

—  O Fenton partirá pela manhã.

—  Ah, sim? Esteve com Louise?

—  Não.

—  Nem pretende procurá-la?

—  Não.

O médico encolheu os ombros. Afinal, não era de sua conta. Ficaram um momento bebendo e fumando em silêncio.

—  Já lhe contei muita coisa — disse por fim o rapaz. — Acho que devo contar-lhe o resto.

—  Não sou curioso.

—  Tenho  sentido necessidade de contar a alguém. Muitas vezes, precisei fazer esforços para não dizer a Ni-chols. Graças a Deus, não fiz essa loucura. Seria uma ótima oportunidade para ele fazer uma chantagem.

—  De fato, ele não é o homem  que  eu escolheria para confiar um segredo.

Fred deu uma risadinha maliciosa.

—  Não foi culpa minha, eu lhe garanto. Foi apenas má sorte. É horrível que a vida de um homem seja arruinada por um  acidente como aquele.  Minha  família  tem uma excelente posição. Eu trabalhava numa das melhores firmas de Sydney. Meu pai até pretendia, oportunamente, fornecer o capital para que eu entrasse como sócio. É um homem de muita influência e minha situação estava, por isso, garantida. Eu poderia fazer muito dinheiro e, mais cedo ou mais tarde, seria um homem casado e estabelecido. Esperava mesmo entrar na política como o velho. Se houve alguém que teve oportunidade na vida, fui eu. E olhe agora; minha  situação.  Sem casa,   sem nome,  sem  perspectivas, duas  centenas  de libras no bolso e qualquer outra coisa que o velho tenha mandado para a Batávia. E nenhum amigo neste mundo.

—  Você  é  moço.  Tem  alguma  educação.  Tem boa aparência.

—  É isso justamente que me faz rir. Se eu fosse corcunda ou caolho,  estaria  tudo certo. Não teria saído de Sydney. O senhor não é um homem bonito, doutor.

—  Tenho consciência disso e já estou resignado.

—  Resignado?  Agradeça  a  sua  boa  estrela  por  ser assim.

O médico sorriu.

—  Isso também já seria exagero.

Mas o rapaz continuou com a maior seriedade deste mundo:

—  Não quero que me ache  pretensioso. Deus   sabe que não tenho motivo para isso. Mas o caso é que sempre consegui as pequenas que desejei. Desde  pequeno quase. Afinal de contas, a gente só é moço uma vez. Não sei por que motivo deixaria de aproveitar as ocasiões. Acha que fiz mal?

— Absolutamente não. Só aqueles que não tiveram as oportunidades que você teve é que poderiam censurá-lo.

—  Nunca fiz força para conquistar uma mulher. Mas quando elas praticamente me convidavam, bem, eu  seria um estúpido se não aproveitasse. Achava graça, às vezes, vendo uma pequena doida por mim. Chegava mesmo a fingir que não notava. Ficavam furiosas comigo. As pequenas são engraçadas. Nada as deixa mais loucas do que a indiferença de um homem. Naturalmente essas brincadeiras nunca prejudicaram meu trabalho. Não sou nenhum maluco, e tinha um desejo forte de vencer.

—  É filho único?

  Não. Tenho um irmão casado que trabalha com meu pai. E uma irmã casada também. Pois bem — continuou —, um domingo, no ano passado, um conhecido nosso trouxe a mulher para passar um dia em nossa casa. Chamava-se Hudson. Era católico romano e gozava de grande prestígio no meio dos irlandeses e italianos. Como sua opinião poderia pesar nas eleições, o velho recomendou a minha mãe que os tratasse muito bem. Chegaram à hora do jantar. O primeiro-ministro e a mulher compareceram também. Minha mãe serviu-lhes comida suficiente para alimentar um batalhão. Depois do jantar, meu velho levou os dois homens ao seu gabinete para conversarem sobre negócios e nós fomos sentar-nos no jardim. Eu estava com vontade de ir pescar, mas meu pai achou que eu devia ficar para ser amável com as visitas. Minha mãe e Mrs. Darnes tinham estado juntas na escola.

—  Quem era Mrs. Darnes?

—  É a senhora do primeiro-ministro. Mr. Darnes é o homem mais poderoso da Austrália.

—  Desculpe. Não sabia.

— Começaram a conversar. Todos procuravam ser gentis com Mrs. Hudson, mas notei imediatamente que ela não gostava muito da companhia. Afinal, minha mãe pediu-me que acompanhasse a senhora em um passeio pelo jardim. Caminhamos um pouco e a primeira coisa que ela me disse foi:  "Pelo amor de Deus, dê-me  um  cigarro".  Olhou-me de um modo especial quando lhe dei fogo e murmurou: "Você é um lindo rapaz". "Acha?", perguntei. "Naturalmente já lhe disseram isso muitas vezes." "A única pessoa foi minha mãe", respondi, "que é suspeita para dizer isso." Perguntou-me se eu gostava de dançar e, quando lhe disse que sim, convidou-me para um chá que daria no dia seguinte. Eu iria depois de deixar o escritório e dançaríamos um pouco. Como a coisa não me interessasse, disse-lhe que não podia  ir. "E que tal na terça  ou na quarta-feira?" Não podia dizer-lhe que estaria ocupado os dois dias, de modo que marquei o encontro para terça. Quando saíram, contei o fato a meu pai e a minha mãe. A velha não gostou da idéia, mas meu  pai achou-a ótima. "Não gostei nada da maneira como ela olhava para Fred." Mas o velho achou que a mulher era bastante idosa para ser minha mãe, pois já devia ter passado dos quarenta anos. Não era uma mulher que se pudesse desejar. Magra e alta, tinha um pescoço fino e um rosto anguloso. A pele era um pouco escura e o cabelo, arranjado sem cuidado. Com seus enormes olhos negros e a cabeleira da mesma cor, dava a impressão de uma cigana. Não parecia britânica. Lembrava uma húngara, ou qualquer coisa do mesmo gênero. Em resumo, não era o que se pode chamar de uma mulher atraente. Fui à casa dela na terça-feira. Não se poderá negar que dançava admiravelmente. E o senhor já sabe que eu sou um entendido no assunto. Falou quase sem parar. A reunião não seria de todo má, se não fosse a presença de alguns camaradas meus. Sabia que eles estariam estranhando que eu dançasse toda a tarde com uma velhota sirigaita. Há maneira e maneiras de dançar. A dela era especialíssima. Não pude deixar de rir. Mas pensei comigo: "Se lhe posso dar algum prazer, por que motivo hei de recusar?" Convidou-me a acompanhá-la ao cinema, uma noite qualquer em que o marido tivesse alguma reunião. Disse-lhe que não havia obstáculo e combinamos a data. No cinema, tive a mão dela na minha durante todo o tempo. Aquilo lhe dava prazer e não me fazia mal nenhum. Depois, convidou-me para um passeio. Já éramos, então, dois bons amigos. Fazia perguntas sobre meu trabalho e minha vida em família. Conversamos sobre corridas. Disse-lhe que meu maior desejo era montar um bom cavalo, numa grande corrida qualquer. No escuro ela não era tão má, e eu dei-lhe um beijo. Bem, para encurtar a coisa, levei-a a um lugar que eu conhecia e lá passamos algumas horas. Fiz isso mais para ser gentil do que por outra coisa. Pensei que tudo estava acabado. Mas, qual nada, a mulher ficou louca por mim. Confessou que me amara desde o primeiro dia. Digo-lhe, cá entre nós, que fiquei um pouco lisonjeado. A mulher tinha qualquer coisa. Seus grandes olhos de cigana eram tão fora do comum que me davam a impressão de que eu não estava mais em Sydney, mas vivendo uma história de niilistas e grão-duques. Apesar de achá-la, às vezes, desagradável, confesso que ela me prendeu. Costumava dizer que qualquer homem, depois de fazer amor com ela, acharia as outras mulheres absolutamente insípidas. Para lhe falar com franqueza, não deixei de gostar da história, apesar de não me sentir muito tranqüilo. Ninguém tolera uma mulher absolutamente sem-vergonha como aquela. Não havia nada que a satisfizesse. Obrigava-me a vê-la todos os dias, telefonava para minha casa e para o escritório. Pedi-lhe, pelo amor de Deus, que tivesse cuidado. Afinal de contas, ela devia pensar no marido, e eu em meu pai e minha mãe. Disse-lhe que o velho era capaz de deportar-me por um ano, se suspeitasse de alguma coisa, mas ela respondeu que não se importava. Que iria junto comigo se eu fosse obrigado a embarcar. Não parecia recear coisa alguma. Por ela, toda a cidade de Sydney saberia de nossa aventura. Telefonava para minha mãe, convidando-me para jantar em sua casa ou jogar bridge, e me namorava escandalosamente nas barbas do marido. Quando me via assustado, quase morria de rir. Meus receios a excitavam. O marido dela, por sua vez, tratava-me como a uma criança. Às vezes, nem parecia reparar em minha presença. Apesar de seu jeito rude, não desgostava dele completamente. Era um homem ambicioso. Minha assiduidade em sua casa o lisonjeava, pelo fato de eu ser filho de quem era. Afinal, comecei a ficar enjoado daquilo tudo. Não era mais dono de mim mesmo. A mulherzinha era ciumenta como uma fera. Se eu olhava para uma pequena, punha-se logo a me fazer perguntas: quem era, por que motivo eu estava olhando, se já dormira com ela. . . Se eu respondia que não, dizia que eu era um mentiroso. Procurei evitá-la. Inventava desculpas. Que estava muito ocupado no escritório, ou que devia ficar em casa. Disse-lhe que minha mãe já começara a suspeitar e que, portanto, devíamos ter cuidado. Mas não acreditava em coisa alguma. Fazia cenas terríveis. Para falar-lhe com franqueza, eu já andava assustado com aquilo. Nunca vira uma criatura daquele jeito. As outras pequenas que eu encontrara olhavam o amor como uma brincadeira que terminava naturalmente, sem barulho. Julguei que seu orgulho a afastaria de mim, quando ela imaginasse que eu estava começando a ficar cansado. Mas nada disso. Ao contrário. Chegava a propor que fugíssemos para a América, onde poderíamos casar. Creio que nunca se lembrou de que era vinte anos mais velha do que eu. Ouvindo aquela proposta ridícula, disse-lhe que era impossível, por causa da eleição e da falta de meios que nos impediria de viver na América. Respondeu que não tinha nada com a eleição e que encontraria um meio de vida. Que voltaria ao teatro, por exemplo. Parecia considerar-se uma menina. Perguntava se eu casaria com ela, se não fosse o marido, e eu tinha de dizer que sim. Suas cenas punham-me nervoso. Amaldiçoava o dia em que a vira pela primeira vez. Não sabia o que havia de fazer. Às vezes, sentia vontade de contar tudo a minha mãe, mas preferia poupar-lhe aquele desgosto. A mulher não me deixava só, um minuto que fosse. Uma vez, chegou a ir até o escritório. Tive de ser amável com ela, temendo que fizesse alguma cena diante de todos. Depois, disse-lhe que acabaria com tudo se ela repetisse aquela visita. Começou, então, a esperar-me na rua. Sentia vontade de torcer-lhe o pescoço. Meu pai costumava voltar de carro para casa, e eu ia encontrá-lo em seu escritório, à hora da saída. Pois a mulherzinha insistia em acompanhar-me. Afinal, as coisas ficaram de tal jeito que não pude suportar mais. Sem me preocupar com as conseqüências, disse-lhe que estava cansado e aborrecido de tudo aquilo e, por isso, resolvera terminar. Decidi falar desse jeito e falei mesmo. Meu Deus, a coisa foi terrível. Saí do escritório no meio da tarde e me dirigi à casa dela. Pôs-se a chorar e a gritar como uma doida. Disse que me amava, que não podia viver sem mim, uma porção de coisas como essas. Que faria tudo que eu quisesse e que não me incomodaria mais no futuro. Fez uma quantidade de promessas. Depois, teve uma crise de raiva. Insultou-me, disse nomes feios. Avançou contra mim, obrigando-me a segurar-lhe as mãos para que não me arrancasse os olhos fora. Parecia uma doida furiosa. Disse depois que se suicidaria e ameaçou atirar-se pela janela. Agarrei-a com força pelos braços. Lutou comigo, deu pontapés. E, finalmente, caiu de joelhos, procurando beijar-me as mãos. Empurrei-a e ela rolou no chão, soluçando como uma criança. Aproveitei a ocasião para cair fora. Mal cheguei em casa, ela telefonou. Desliguei, e tornou a chamar uma porção de vezes. Felizmente, minha mãe não estava em casa. O telefone tocou inutilmente. Na manhã seguinte, havia uma carta de dez páginas a minha espera, no escritório. Joguei-a fora sem ler. Quando saí, à uma hora, para o almoço, ela me esperava junto da porta, mas eu consegui passar rapidamente e perder-me no meio do povo. Imaginei que ela ainda estaria lá quando eu entrasse, por isso voltei com um dos companheiros. Estava mesmo, mas eu fingi que não a via, e ela teve medo de falar. Saí de tarde com outro  camarada.  Continuava no mesmo lugar, como se tivesse passado o dia ali. Dessa vez, teve coragem e se aproximou de mim. Falou num tom amável, de sociedade: "Como tem passado, Fred? Que sorte encontrá-lo aqui!   Tenho um recado importante para seu pai". Meu companheiro afastou-se, antes que eu pudesse detê-lo. "Que você quer?", perguntei irritado. "Oh, meu Deus! Não me fale desse jeito. Tenha pena de mim. Sou tão infeliz." "Sinto muito. Não posso fazer nada." Começou a chorar, ali no meio da rua, apesar da gente que passava. Tive vontade de matá-la.  "Fred, não pode  ser. Você não deve me abandonar. Você é tudo o que eu tenho neste mundo." "Não diga tolices", respondi. "Você é uma velha, eu sou quase uma criança. Devia ter vergonha disso." "Que importa a idade? Eu te amo de todo o coração." "Pois bem, eu não amo você. Nem posso suportar sua presença. Já lhe disse que está tudo acabado. Pelo amor de Deus, deixe-me em paz." "Não há nada que eu possa fazer para que você me ame?", perguntou, soluçando. "Nada. Estou farto de você." "Nesse caso, me matarei." "Isso não é da minha conta", respondi. E me afastei rapidamente. Apesar de tudo, não me sentia muito tranqüilo. Dizem que quem ameaça suicidar-se nunca se mata, mas aquela mulher era diferente dos outros. Era completamente louca.  Capaz de fazer qualquer coisa. Capaz de vir a nossa casa e se matar no jardim. Capaz de tomar veneno e deixar uma carta comprometedora. Poderia acusar-me de qualquer coisa. Eu não pensava apenas em mim, mas em meu pai também. Qualquer embrulhada em que eu me  metesse prejudicaria o nome dele. Nunca na vida me perdoaria. Não  consegui dormir aquela noite. Ficaria furioso se a encontrasse de manhã diante de meu escritório, mas ao mesmo tempo sentiria uma impressão de alívio. Não estava lá. Nem havia carta para mim. Comecei a ficar impressionado e fiz esforços para não telefonar perguntando notícias dela. Esperei com ansiedade o jornal da tarde. Pat Hudson era um homem importante, e qualquer coisa que houvesse sucedido provocaria um grande barulho. O jornal não trazia nada. Naquele dia e nos dias seguintes, não tive notícias dela. Nem cartas, nem telefonemas. Cheguei a pensar que tudo estava arranjado, que eu enfim me livrara dela. Agradecia a Deus aquela lição. Teria mais cuidado no futuro. Nada de mulheres de meia-idade. Foi um grande alívio para mim. Não faço  grande idéia a meu respeito, mas  tenho um certo senso de decência. Aquela mulher ia além do limite.. . Parece tolice, mas, às  vezes, ela chegava a horrorizar-me. Gosto de ter minhas aventuras, mas, que diabo!, não tenho nenhuma vontade de me bestializar completamente.

O dr. Saunders compreendia bem o que o rapaz queria dizer. Jovem, ardente, sem cuidados, gozava o prazer que se lhe oferecia. Mas a juventude é modesta. Seu instinto sentia-se ultrajado pela paixão sem freios daquela mulher cheia de experiência.

— Uns dez dias depois, recebi uma carta dela. Se o envelope não fosse escrito a máquina, eu não o teria aberto. Começava assim: Caro Fred. Dizia que sentia imensamente todas aquelas cenas que fizera, que fora uma crise de lou­cura, mas que agora, já calma, não queria ser motivo de incômodos para mim. O erro tinha sido dela, que levara tudo aquilo muito a sério. Mas que não me queria mal por isso. Que eu também não podia querer-lhe mal, pois a culpa em parte era minha. Por que motivo eu era tão bonito? Contava que partia, no dia seguinte, para Nova Zelândia, e que ficaria três meses ausente. O médico lhe havia aconselhado uma completa mudança de ares. Dizia que Pat iria a Newcastle aquela noite, e me pedia para ir alguns minutos a sua casa, para dizer-lhe adeus. Dava sua palavra de honra como não me importunaria. O que desejava era combinar comigo alguma coisa para dizer a Pat, pois o homem andava ultimamente desconfiado e poderia vir pedir-me explicações. Esperava que eu fosse, pois, apesar de eu estar a salvo de qualquer coisa, ela poderia correr perigo, e sabia que eu não deixaria de ajudá-la. Eu ouvira meu pai falar, à hora do almoço, sobre a ida de Hudson a Newcastle. A carta dela era absolutamente normal. Por seu talho de letra firme, podia-se ver que estava bem calma. Fiquei um pouco impressionado com o que contava a respeito de Pat. Apesar de todos os meus conselhos, ela sempre se arriscara a afrontar todos os perigos. Se ele de fato sabia de alguma coisa, era melhor mesmo que nós lhe contássemos a mesma mentira. Telefonei, portanto, para ela e  disse-lhe  que,  pelas  seis horas,  daria um pulo até sua  casa. Atendeu  com tanta frieza o telefone que cheguei a pensar que ela não fazia muita questão de minha ida. Quando cheguei, apertou-me a mão como se fôssemos apenas dois amigos. Convidou-me para tomar chá e eu recusei, dizendo-lhe que tomara pouco antes. Disse que não me prenderia muito, pois estava aprontando-se para ir ao cinema.  Perguntei-lhe o que havia a respeito de Pat. Respondeu que nada de sério: ele apenas soubera de nossa ida ao cinema e não havia gostado muito. Ela explicara que fora uma simples casualidade. De uma vez, eu a vira sentada sozinha e ocupara a cadeira do lado. Da outra, eu a encontrara no vestíbulo, pagara a sua entrada e lhe fizera companhia. A opinião dela era que Pat não mencionaria o fato para mim. Em todo o caso, era bom que estivéssemos prevenidos. Disse-me quais eram as duas vezes a que o marido se referira, depois começou a falar sobre a viagem. Conhecia bem a Nova Zelândia e pôs-se a falar sobre ela. Eu nunca estivera lá. Pareceu-me "ser um belo lugar. Falou depois sobre alguns amigos que a acompanhariam e seus comentários me fizeram rir. Era uma mulher agradável, quando queria ser. Sua conversa não me deixava sentir que o tempo ia passando. Estava amável e bem-disposta como no primeiro dia em que eu a vira. Afinal, levantou-se e me disse que devia sair. Creio que passei ali meia hora ou três quartos de hora. Estendeu a mão e me olhou com um ar meio risonho. "Não ficaria zangado se eu pedisse um beijo de despedida?", perguntou. "Zangado por quê?", respondi sorrindo. Curvei-me e beijei-a na boca. Ou, melhor, ela me beijou. Pôs os braços em torno de meu pescoço e não permitiu que eu me  afastasse. Disse que partiria no dia seguinte e pediu que eu ficasse com ela mais uma vez. Lembrei que ela me prometera controlar-se, mas ela respondeu que não podia resistir e que só uma vez mais não faria mal. Isso tudo enquanto me beijava e me acariciava o rosto. Repetiu que não tinha queixa de mim, que era apenas uma mulher louca e que eu não fosse mau assim para ela. Como estava calma e parecesse aceitar a situação, achei que não devia ser um bruto. Como ela ia viajar no dia seguinte, não havia mal nenhum em que eu a fizesse partir feliz. "Está bem. Vamos lá para cima", eu disse. Era uma casa de dois andares e o quarto de dormir ficava no primeiro. "Não. Está tudo desarrumado. Fiquemos aqui mesmo." Empurrou-me para um sofá. Era um daqueles velhos chesterfields, com bastante lugar para duas pessoas se deitarem. "Eu te amo, eu te amo", repetia ela. De repente, a porta abriu-se. Dei um pulo e vi Pat Hudson. Por um momento, ele ficou tão espantado quanto eu. Depois, gritou alguma coisa e precipitou-se para mim. Quis dar-me um soco mas eu me defendi. Tenho uma grande agilidade e boxeio razoavelmente. Trocamos alguns golpes. Ele era um sujeito grande, musculoso, mais alto do que eu, mas, que diabo, não me considero um homem fraco. Agarrou-se a mim e procurou deitar-me ao chão, mas eu resisti como pude. Lutamos em todos os cantos da sala. Ele me esmurrava, quando podia, mas eu não ficava muito atrás. De uma vez, consegui livrar-me dele, mas o homem voltou como um touro bravo e me fez cambalear. Derrubamos mesas e cadeiras. Lutávamos desesperadamente. Tentei de novo livrar-me dele, mas não pude. Queria derrubar-me. Já notara que, se ele era bem mais forte, eu era mais ativo. Além disso, ele estava de casaco, e eu só com a roupa de baixo. Afinal, conseguiu levar-me ao chão. Não sei se escorreguei ou se ele me obrigou, o caso é que começamos a rolar pelo chão como dois loucos. Montou em cima de mim e pôs-se a esmurrar meu rosto. Não podia fazer nada, a não ser proteger-me com o braço. Senti que ele ia me matar. Tive medo. Fiz um esforço desesperado, consegui sair debaixo, mas ele pulou novamente, como um raio, sobre mim. Senti que as forças me abandonavam.  Ele pusera o joelho sobre meu peito, impedindo-me quase de respirar. Quis gritar, mas não pude. Afastei o braço direito e, de repente, senti um revólver na minha mão. Juro que não sabia o que estava fazendo, foi tudo questão  de   um segundo;   aproximei  o braço e atirei. O homem deu um grito e saltou para trás. Atirei novamente. Ele caiu. Arrastei-me um pouco e consegui levantar-me. Tremia como uma vara verde.

Fred jogou-se na cadeira e fechou os olhos. O dr. Saunders pensou que ele fosse desmaiar. Estava pálido e molhado de suor. Respirava fortemente.

— Sentia-me  completamente  transtornado.  Vi  Florrie ajoelhar-se e, ainda que o senhor não acredite, notei que ela tomava todo o cuidado para não se sujar de sangue. Tomou o pulso do marido e examinou-lhe os olhos. Depois, levantou-se. "Acho que tudo está bem. Ele morreu." "Pensei que ele estivesse em Newcastle", disse eu,  estupidamente. "Não. Não chegou a ir. Recebeu um recado pelo telefone." "Que recado?" Não podia compreender as palavras dela. "Quem mandou o recado?" Pois acredita que ela riu? "Eu mesma", respondeu. "Por quê?" De repente, compreendi: "Quer dizer que foi uma coisa preparada?" "Não seja tolo. O melhor que tem a fazer agora é dominar-se. Volte para casa e jante tranqüilamente com a família. Eu vou ao cinema, como pretendia." "Você está louca?" "Não, não estou. Sei bem o que estou fazendo. Tudo se arranjará, se você fizer o que eu digo. Proceda como se nada houvesse acontecido, e deixe o resto por minha conta. Não se esqueça de que será enforcado se descobrirem alguma coisa." Disse tudo isso com um ar risonho, que me aterrorizou. Sua frieza diante da morte me espantava; "Não precisa ter medo", continuou ela. "Não permitirei que toquem num fio de seu cabelo. Você agora é minha propriedade, e eu sei cuidar do que me pertence. Amo você, desejo você. Quando tudo estiver arranjado, nos casaremos. Que loucura acreditar que eu o abandonaria tão facilmente." Juro que senti o sangue gelar-me nas veias. Caíra numa armadilha e não conseguiria sair dela. Fiquei olhando para a mulher, sem poder dizer uma palavra. Nunca esquecerei a expressão de seu olhar. De repente, ela pareceu reparar em minha camiseta. "Veja como está." Notei que estava manchada de sangue. Ia encostar a mão, mas, não sei por quê, ela me impediu num gesto brusco. "Não faça isso. Espere um momento. Baixe a cabeça um pouco, eu lhe tiro a camiseta." "Terá alguma outra mancha?", perguntou, depois de me despir. "Que sorte que tivesse tirado a calça." Vesti-me o mais depressa que pude. "Queimarei a camiseta no fogão da cozinha", disse ela. Olhei para Hudson. Á vista do cadáver, senti-me mal. Havia uma poça de sangue no tapete. "Você está pronto?" Disse que sim. Foi comigo até o corredor e, antes de abrir a porta, pôs os braços em volta de meu pescoço, e me beijou na boca furiosamente. "Meu amor", murmurava. "Meu amor." Abriu depois a porta e eu saí para fora. A noite estava escuríssima. Tinha a impressão de que caminhava num sonho. Afinal de contas, tinha todo o interesse em não correr. Puxara o chapéu sobre os olhos e voltara a gola para cima, de modo que ninguém me pudesse reconhecer. Segui o conselho dela. Caminhei um longo trecho e afinal apanhei o bonde na esquina da avenida Chester. Cheguei em casa à hora do jantar. Lavei as mãos, olhei-me no espelho, e vi com espanto que meu rosto não mudara. Mas, quando me sentei à mesa e ouvi a voz de minha mãe dizendo: "Você está tão pálido, Fred. É de cansaço?", fiquei vermelho como um peru. Comi muito pouco. Felizmente, não precisei falar. Nunca conversamos muito, quando estamos sozinhos. Depois do jantar, meu pai pôs-se a ler alguns relatórios e minha mãe a olhar o jornal da tarde. Eu me sentia terrivelmente mal.

—  Um momento — disse o dr.  Saunders. —  Você contou que, de repente, sentiu um revólver na mão. Não compreendo muito bem.

—  Florrie é que me pôs a arma na mão.

—  Como a conseguiu?

—  Não sei. Tirou-a do bolso de Pat, quando ele montou sobre mim, ou guardava-a em algum lugar. Matei em legítima defesa.

—  Continue.

—  De  repente,  minha  mãe perguntou:   "Que é  que você tem, meu filho?" A pergunta foi tão inesperada e a sua voz era tão doce que eu não pude mais. Comecei a chorar. "Que é isso?", perguntou meu pai. Mamãe pôs os braços em torno de mim e aconchegou meu corpo, como se eu fosse uma criança. Continuou perguntando o que eu tinha, e eu respondi,  a princípio, que não podia  dizer. Afinal, tive de contar. Abri-me todo para eles. Não esqueci um único detalhe. Mamãe começou a chorar, quis fazer uma pequena censura, mas o velho ordenou que ela se calasse, porque aquilo não adiantaria nada. O rosto dele estava terrível. Se com uma palavra pudesse fazer a terra abrir-se e me engolir, ele não hesitaria. Contei tudo, porque meu pai sempre dizia que o criminoso deve ser franco com seu defensor, e que este  não pode fazer nada sem  conhecer todos os pormenores. Terminei. Minha mãe e eu olhávamos para o velho. Enquanto eu falava, seus olhos estavam fixos em mim, mas agora ele mirava o chão. Via-se que estava refletindo. Meu pai, em algumas coisas, é um homem extraordinário. Tem muita cultura. Interessa-se pelas artes. É um dos zeladores da galeria de arte e pertence à comissão organizadora de concertos sinfônicos. É um homem distintíssimo  e de vida muito metódica. Sempre  foi  amável  e polido. Chega a dar a impressão de que é incapaz de matar uma mosca. Seu escritório de advocacia é o mais importante de Sydney. É um homem estimado e respeitadíssimo. Meteu-se na política e venceu. O velho Darnes nunca faz nada sem ouvir primeiro sua opinião. Poderia ser primeiro-ministro, se quisesse, mas prefere ser um simples membro do governo e manejar as coisas dos bastidores. "O rapaz, afinal,  não tem muita  culpa",  disse  mamãe. Ele  fez um movimento  de impaciência com a  mão.  Parecia que não estava pensando em mim. Senti um frio correr-me na espinha. Finalmente, ele falou. "Isso tudo me dá a impressão de  uma chantagem arranjada  entre  os dois.  Hudson não andava bem de negócios ultimamente. Podia ter combinado a coisa com a mulher." "E Fred, que fará?",  perguntou minha mãe. Ele olhou para mim. Tinha o mesmo aspecto tranqüilo  de  sempre  e  o mesmo tom  agradável  na  voz. "Se ele for preso, será enforcado." Minha mãe estremeceu, e ele franziu ligeiramente as sobrancelhas. "Oh, não tenha receio!   Não permitirei que vá para  a  forca.  Ele mesmo poderia  escapar  disso,  se  desse  um  tiro  na  cabeça,  por exemplo." "Jim, você quer me matar?", exclamou  minha mãe. "Infelizmente, isso não nos adiantaria muito", continuou ele. "O que precisamos fazer é evitar um escândalo. Vamos ter uma luta muito séria nas eleições e isso seria minha  ruína."  "Papai,  se  soubesse  como estou   sentido." "Não duvido. Os loucos e os criminosos sempre ficam sentidos  quando precisam suportar as conseqüências de seus atos." Depois de um intervalo de silêncio, eu disse: "Não sei se não seria mesmo melhor que eu me matasse". "Não seja tolo", respondeu meu pai. "Isso ainda complicaria mais as coisas. Acha que os jornais são tão estúpidos que não ligariam imediatamente um fato ao outro? Não diga mais nada, por favor. Deixe-me pensar." Ficamos sentados, sem falar. Mamãe segurava minha mão. "O pior é a mulher", disse meu pai. "Já estamos em suas garras. Era só o que faltava: a gente aceitá-la na família como nora." Minha mãe não disse uma palavra. O velho recostou-se na cadeira e cruzou as pernas. Um leve sorriso passou por seus olhos. "Felizmente, nós vivemos no mais democrático dos países. Ninguém está livre da corrupção." Gostava de dizer isso. Olhou-nos um minuto ou dois. Tinha o costume de estender o maxilar inferior, quando se decidia a fazer alguma coisa. Minha mãe e eu esperávamos em silêncio. "Acho que amanhã os jornais tratarão do caso", disse ele, afinal. "O melhor é eu procurar Mrs. Hudson. Creio que já sei, mais ou menos, o que ela pretende dizer. Se quiser sustentar sua história, ninguém poderá provar coisa alguma. Suponho que ela já tenha preparado sua versão do assassinato. A polícia a interrogará, mas eu estarei presente aos interrogatórios." "E a respeito de Fred?", perguntou minha mãe. Ele sorriu tranqüilamente. "Fred irá para a cama e ficará muito quieto. Por uma piedosa intervenção da Providência, há atualmente na cidade uma epidemia de escarlatina. Amanhã ou depois, ele será recolhido ao hospital." Minha mãe protestou: "Mas, por quê? Que poderá adiantar isso?" "Minha velha", respondeu ele, "é a melhor maneira que eu conheço de conservar alguém em segurança durante algumas semanas." "Mas se ele apanhar a doença?" "Agirá, então, com mais naturalidade." Na manhã seguinte, meu pai telefonou para o escritório, avisando que eu acordara com febre e que não estava passando bem. Disse que me prenderia na cama e que já havia chamado o médico. Este, de fato, não demorou. Era meu tio materno, e me tratara desde criança. Disse que não tinha certeza, que parecia mesmo escarlatina e que só me mandaria para o hospital depois de os sintomas se terem manifestado. Mamãe aconselhou à cozinheira e à copeira que não se aproximassem de meu quarto, pois ela mesma se encarregaria de tratar de mim. O jornal da tarde estava cheio do assassinato. Mrs. Hudson fora sozinha ao cinema, e, ao voltar a casa, encontrou na sala de estar o cadáver do marido. Não tinham empregada. A casa era uma pequena vila, num quarteirão que ainda está sendo edificado. Ficava no meio de um terreno, e afastada da casa próxima por uns vinte ou trinta metros. Florrie não conhecia os vizinhos, mas correu até lá e bateu à porta. A família já estava dormindo. Contou que seu marido fora assassinado e pediu-lhes que a ajudassem. Vieram todos correndo e encontraram o morto estendido no chão. O vizinho achou melhor avisar a polícia. Mrs.  Hudson teve uma crise histérica.  Atirou-se sobre o corpo do marido, gritando e chorando, e precisaram arrancá-la dali à força. Seguiam-se todos os detalhes conseguidos pelos repórteres. O médico legista achava  que o homem devia estar morto havia umas duas ou três horas. Apesar de ter sido alvejado com seu próprio revólver, a hipótese de suicídio fora imediatamente afastada. Depois de acalmar-se um pouco, Mrs. Hudson contou à polícia que estivera no cinema. Tinha ainda na bolsa o canhoto da entrada, e falara com algumas pessoas conhecidas. Disse que decidira ir ao cinema porque o marido pretendia viajar para Newcastle. Voltara a casa um pouco antes das seis e dissera-lhe que havia desistido da viagem. Ela resolvera, então, ficar para preparar-lhe  a comida,  mas Pat achara melhor que ela fosse ao cinema. Alguém deveria vir visitá-lo para tratar de negócios, e ele preferia ficar sozinho. Fora a última vez que lhe falara. Havia na sala sinais de uma luta violenta. Hudson devia ter defendido sua vida desesperadamente. Como não haviam roubado coisa alguma, a polícia e os jornalistas atribuíam o crime a motivos políticos. As paixões partidárias andavam acesas em Sydney, e Pat Hudson costumava conviver com maus elementos. Tinha uma porção de inimigos. A polícia continuava seus inquéritos e pedia ao público que informasse sobre um homem suspeito, possivelmente italiano, que fora visto nas proximidades da casa, ou num bonde, mostrando sinais evidentes de luta. Algumas noites após, uma ambulância veio a nossa casa e eu fui levado para o hospital. Guardaram-me três ou quatro dias. Depois fui tirado de lá, secretamente, e conduzido para bordo do Fenton.

—  E  aquele telegrama? — perguntou  o  doutor.  — Como conseguiram arranjar o certificado de óbito?

—  Sei tanto quanto o senhor. Tenho procurado decifrar a coisa. Dei entrada no hospital com o nome suposto de Blake. Naturalmente, alguém tomou meu lugar. Os jornais faziam o possível para esconder a epidemia, mas o hospital estava cheio de doentes. As enfermeiras não tinham descanso e a confusão era tremenda. É claro que alguém morreu e foi sepultado em meu lugar. Meu pai é um homem inteligente e teria feito a coisa muito bem.

—  Creio que gostaria de encontrar seu pai — disse o doutor.

—  Imagino que o público deve ter suspeitado de alguma coisa. Afinal de contas, alguém nos teria visto juntos e poderia levantar a lebre. A polícia, naturalmente, não desprezaria essa nova pista. Daí meu pai ter preferido que eu morresse. Deve ter recebido muitos pêsames.

— E foi com certeza por isso que ela se enforcou. . .

Fred olhou com surpresa para o médico.

— Como sabe que ela se enforcou?

— Li no jornal que Erik Christessen trouxe a noite passada.

— Sabia que eu estava envolvido naquilo?

— Não, até que você começou a me contar. Lembrei-me, então, do nome.

—  Fiquei impressionado quando li a notícia.

—  Por que acha que ela se matou?

—  Diz o jornal que foi devido às conversas maliciosas. Acho que meu pai ficou satisfeito com essa solução. Tenho certeza de que o que o contrariou mais foi sua idéia de entrar para nossa família. Deve ter sentido um grande prazer em participar a ela minha morte. Era uma mulher horrível, eu a odiava, mas isso não impede que ela tenha gostado imensamente de mim. Meu pai conhecia toda a história. É possível que tenha dito a ela que eu confessara tudo antes de morrer, e que a polícia, naturalmente, ia prendê-la.

O dr. Saunders baixou a cabeça. Parecia-lhe uma boa interpretação. Apenas se admirava de a mulher ter escolhido um modo tão desagradável de morrer. Com certeza, tinha pressa de acabar com a vida. A suposição de Fred era, afinal de contas, bem plausível.

—  De qualquer maneira, ela está livre de tudo. E eu ainda preciso continuar.

—  Não lamenta a sorte dela, então?

—  Absolutamente. Foi ela que arruinou minha vida. O pior é que tudo aconteceu por um terrível acaso. Nunca me interessei por aquela mulher. Teria me afastado dela no princípio, se soubesse que ia levar a sério aquele caso. Se meu pai tivesse permitido que eu fosse pescar aquele domingo, nunca a teria encontrado. Não sei mais o que hei de fazer. Se não fosse aquilo, não teria vindo para esta ilha maldita. Levo a desgraça comigo para toda a parte.

—  Devia derramar um pouco de vitríolo em sua cara bonita. Você é um perigo público, rapaz.

—  Não zombe de mim, pelo amor de Deus. Se soubesse como sou infeliz. . . Nunca pude gostar de um camarada como gostei de Erik. Nunca perdoarei a mim mesmo sua morte.

— Não creio que foi por sua causa que ele se matou. Você quase que não tem nada a ver com isso. Se não me engano muito, ele se suicidou por ter descoberto que a pessoa em quem ele via todas as qualidades e virtudes não passava de uma criatura humana. Foi loucura da parte dele. Esse é o grande mal dos idealistas: nunca aceitam os outros como eles são. Não foi Cristo quem disse: "Perdoai-os, porque eles não sabem o que fazem"?

Fred olhou-o com um ar de espanto.

— Sempre supus que o senhor não fosse religioso. . .

— Os homens de sensibilidade são todos  da mesma religião. Por que se espanta? Os homens de sensibilidade não precisam exprimir seus sentimentos.

— Meu pai acha o contrário. Diz que os homens de sensibilidade nunca se afastam do bom caminho. Acha que é uma obrigação freqüentar a igreja e respeitar o preconceito dos vizinhos.  Nichols e  eu temos  conversado sobre esse assunto. O senhor pode achar incrível, mas gostamos de falar sobre religião. É engraçado. Nunca encontrei um patife igual a ele, um homem com menos idéia de decência, pois, apesar de tudo, ele acredita em Deus. E acredita no inferno, também, apesar de não admitir que possa acabar lá. Os outros terão de sofrer para pagar seus pecados. Ele, porém, é um homem forte, que procede sempre direito, e sabe que Deus não o culpará, porque qualquer um faria o mesmo que ele, se estivesse nas mesmas circunstâncias. A princípio, julguei que ele fosse um hipócrita. Mas não é. Esse é, para mim, o seu aspecto mais estranho.

—  Não deve preocupar-se. O contraste entre as palavras de um homem e suas ações é um dos espetáculos mais divertidos que a vida oferece.

—  O senhor olha de fora e pode rir. Mas eu olho de dentro, e me sinto como um navio que perdeu toda a sua carga. Que significa tudo isso? Por que estamos aqui? Para onde vamos? Que poderemos fazer?

— Meu rapaz, acho que você não espera que eu vá responder a tudo isso. Desde que os homens conseguiram uma centelha de inteligência, no meio das florestas primitivas, vivem a repetir essas perguntas.

—  Em que acredita, então?

— Quer mesmo saber? Não acredito em nada, a não ser em mim mesmo e em minha experiência. O mundo consiste em mim, em meus pensamentos e em minhas sensações. Tudo o mais é pura fantasia. A vida é um sonho no qual eu crio os objetos que aparecem diante de mim. Tudo o que faz parte do conhecimento, e que é objeto da experiência, é uma idéia no meu espírito e não pode existir sem ele. Não há possibilidade nem necessidade de afirmar alguma coisa fora de mim. O sonho e a realidade são uma coisa só. A vida é um sonho continuado e consistente. E, quando eu deixar de sonhar, o mundo, com sua beleza, suas dores e tristezas,  sua  variedade  inimaginável,  cessará de existir.

—  Mas isso é incrível! — exclamou Fred.

—  O fato de ser incrível não é uma razão para que eu deixe de acreditar.

—  Bem, apesar de tudo, se a vida não me pode dar o que exijo dela, não vejo motivo para suportá-la. Não passa de uma comédia estúpida e chata, a que a gente perde tempo em assistir.

Os olhos do médico brilharam, e um sorriso enfeitou seu rosto feio.

—  Oh, meu rapaz, que loucura está dizendo. Mocidade, mocidade! Você ainda é um principiante neste mundo. Como um homem perdido numa ilha deserta, terá de aprender a viver sem aquilo que não pode conseguir, e a aproveitar o mais possível aquilo que obtiver. Um pouco de bom senso, um pouco de tolerância, um pouco de bom humor, e verá como pode tornar agradável a vida neste planeta.

—  Renunciando, como o senhor, a todas as coisas que dão valor à vida? Absolutamente. Eu quero que a vida seja bela, que seja corajosa e honesta. Quero que os homens sejam decentes e que todas as coisas terminem bem. E acho que não exijo muito.

—  Creio que pede mais do que aquilo que a vida lhe pode dar.

  Isso o incomoda?

—  Não muito.

— Prefere chafurdar na sarjeta?

— Divirto-me com a figura grotesca das outras criaturas.

Fred sacudiu os ombros e suspirou.

— O senhor não acredita em nada. Não respeita ninguém. É um paralítico preso a uma cadeira, achando absurdo os outros quererem correr ou caminhar.

— Sinto que você esteja em desacordo comigo — disse o doutor tranqüilamente.

— O senhor perdeu o coração, a esperança, a fé e o temor de Deus. Que lhe resta no mundo?

— Resignação.

O rapaz exaltou-se:

— Resignação? Esse é o refúgio dos vencidos. Guarde sua resignação, que eu não a quero para mim. Não estou disposto a aceitar o mal, a fealdade e a injustiça. Não estou disposto a ficar firme, enquanto os bons são punidos e os maus continuam a viver em paz. Se a vida quer dizer que a virtude e a beleza são desprezadas, então que a vida vá para o inferno.

—  Você deve aceitar a vida como ela é.

—  Estou saturado da vida como ela é. Só a aceitarei se puder impor a ela minhas condições.

Quixotada. O rapaz estava nervoso e excitadíssimo. Sua expansão era natural. O doutor esperava que, dentro de um ou dois dias, ele estivesse mais razoável. Sua resposta foi uma tentativa para conter aquela extravagância.

—  Nunca ouviu dizer que o riso é o único presente dos deuses que os homens não precisaram dividir com os animais?

—  Que quer dizer com isso?

—  Que eu consegui a resignação por meio desse infalível senso do ridículo.

—  Ria então. Ria até rebentar.

—  Os deuses poderão destruir-me, mas eu continuarei invencível.

Quixotada? Talvez.

A conversa continuaria indefinidamente, se alguém não batesse à porta naquele momento.

—  Quem será? — gritou Fred, com um jeito irritado.

Um criado, que falava um pouco de inglês, veio avisar que alguém procurava Fred Blake.

—  Homem ou mulher?

—  Mulher.

—  É Louise. Diga que estou doente e que não posso recebê-la.

O criado retirou-se.

—  Achava melhor que a recebesse — aconselhou o doutor.

—  Nunca. Erik valia por dez pessoas como ela. Era tudo no mundo para mim. Não quero mais saber dessa criatura. Meu único desejo é ir embora. Quero esquecer. Como pôde ela fazer tanto mal ao pobre rapaz?

O médico franziu as sobrancelhas. Uma linguagem daquelas esfriava toda a sua simpatia.

—  Talvez ela também se sinta infeliz.

—  Julguei que o senhor fosse um cínico. Estou vendo que é um sentimental.

—  Só agora descobriu isso?

A porta abriu-se vagarosamente e Louise apareceu. Não deu um passo para eles. Não falou. Olhava Fred com um tímido sorriso de censura nos lábios. Via-se que devia estar nervosa. Todo o seu corpo parecia exprimir uma incerteza. Mas tinha, como seu rosto, um ar de apelo. Fred olhava para ela, sem se mover. Não a mandou entrar. Sua face estava sombria e havia um ódio frio em seus olhos. O sorriso fugiu dos lábios da moça. Ali ficou, por um momento, e nenhum dos dois moveu uma pálpebra. Seus olhos continuaram presos um no outro, naquele olhar insistente. Depois, vagarosamente e em silêncio como aparecera, fechou a porta atrás dê si. Os dois homens ficaram novamente sozinhos. Para o doutor, aquela cena breve fora horrivelmente patética.

 

O Fenton saiu de madrugada. O navio, que devia levar o dr. Saunders para Bali, devia chegar à tarde. Ficaria apenas o tempo suficiente para receber uma carga. Pelas onze horas, o médico, num cabriolé, dirigiu-se à casa de Swan. Achou que seria descortês partir sem se despedir da família.

Quando chegou, encontrou o velhote sentado no jardim. Era a mesma cadeira em que estivera Erik Christessen, na noite da visita de Fred ao quarto de Louise. O velho Swan não se lembrava do médico. Pôs-se a fazer-lhe uma série de perguntas sem dar atenção às respostas, até que a moça desceu a escada da casa. Aproximou-se e apertou a mão do doutor. Não parecia haver atravessado uma crise emocional. Recebeu-o com o mesmo sorriso confiante que mostrava no dia do primeiro encontro.

—  Não quer entrar e sentar-se um pouco? — perguntou. — Papai está trabalhando. Não há de demorar muito.

Entraram para a sala de estar. As persianas estavam cerradas e a meia-luz do aposento era agradável. Um apanhado de canas amarelas dentro de um vaso, lembrando um feixe de raios de sol, dava ao ambiente uma distinção peculiar e exótica.

—  Não contamos ao vovô o que aconteceu com Erik. Os dois eram escandinavos e sempre foram muito amigos. Tivemos medo de que ele levasse um choque muito grande. Às vezes, no entanto, tenho a impressão de que ele já sabe. Daqui a algumas semanas talvez deixe escapar um comentário, e veremos então que ele já sabia de tudo.

Falava descansadamente, como se tratasse de coisas sem importância.

—  A velhice é bem estranha. Distancia as pessoas da gente. Mas, às vezes, tem-se a impressão de que, apesar de seu aspecto quase inumano, os velhos adquirem um novo sentido pelo qual conhecem todas as coisas.

—  Seu avô estava alegre a noite passada. Espero que, na sua idade, eu esteja tão lúcido quanto ele.

—  Estava apenas excitado. Gosta de ter gente nova para conversar. Mas é como um fonógrafo que vai girando, girando sempre.

Ficaram um momento em silêncio. O aposento tinha um ar estranho. Parecia esperar alguma coisa.

—  O Fenton saiu esta manhã — disse o médico.

—  Eu sei.

Ele olhou-a pensativamente. A moça retribuiu o olhar com tranqüilidade.

—  Imagino que a morte de Christessen tenha lhe causado um grande choque.

—  Gostava muitíssimo dele.

—  Falou longamente  a  seu  respeito,  na  véspera  da morte. Contou que a amava e que pretendiam casar-se brevemente.

—  É verdade. — Olhou-o um momento e perguntou: — Por que teria ele se matado?

—  Porque viu o rapaz sair de seu quarto.

Ela baixou a cabeça e corou ligeiramente.

—  É impossível.

—  Fred contou-me tudo.  Erik estava lá,  quando ele pulou da varanda.

—  Quem disse a Fred que eu era noiva de Erik?

—  Fui eu.

—  Imaginei isso quando não o vi chegar ontem de tarde. Quando fui procurá-lo e notei seu olhar, vi que ele estava desencantado.

Havia em sua atitude uma aceitação do inevitável.

—  Quer dizer, então, que não o amava?

Ela pousou o rosto na mão, como se examinasse seus sentimentos.

—  É um pouco complicado — respondeu.

—  De qualquer maneira, é indiscrição minha.

— Oh, não tenho medo de contar-lhe tudo. Não me importo com o que possa pensar de mim.

— Não tenho motivo para pensar mal.

— Fred era um lindo rapaz. Lembra-se daquela tarde em que nos encontramos na plantação? Não pude tirar os olhos dele. E foi assim também durante o jantar, e depois, quando dançamos juntos. Acho que o senhor chamará a isso amor à primeira vista.

— Espero que não.

— Oh!

Olhou para ele com um ar de surpresa, como se notasse pela primeira vez sua presença.

— Sei que ele também se interessou por mim. Senti alguma coisa que nunca havia sentido antes. Desejei-o violentamente. Meu sono, em geral, é profundo. Pois bem, aquela noite não consegui dormir. Meu pai falou que queria trazer sua tradução e eu ofereci-me para acompanhá-lo. Sabia que Fred só ficaria aqui um dia ou dois. Talvez, se ele tivesse vindo por um mês, aquilo tudo não tivesse acontecido. Eu teria pensado, naturalmente, que havia tempo de sobra, veria o rapaz todos os dias e me desinteressaria dele dentro de uma semana. Em todo caso, não estou arrependida do que fiz. Fiz por prazer e por minha vontade. Quando ele saiu aquela noite, ainda fiquei acordada na cama, sentindo-me perfeitamente feliz. Entretanto, confesso que não fazia questão de tornar a vê-lo. Preferia ficar assim, sozinha. Não sei se sabe o que quero dizer, mas senti que minha alma estava aliviada.

—  Não tem medo das conseqüências?

—  Conseqüências?

Deu um sorriso de quem compreende.

—  Oh, doutor! Tenho passado quase toda a minha vida nesta ilha. Quando era menina, costumava brincar com as outras crianças. Minha maior amiga, que era da mesma idade que eu, está casada há quatro anos e já tem três filhos. Não creio que o sexo tenha muitos segredos para as crianças malaias. Desde os sete anos que ouço falar em todas as coisas que se relacionam com ele.

—  Por que veio ontem ao hotel?

—  Não me sentia bem. Gostava imensamente de Erik. Não podia acreditar que ele tivesse se suicidado. Receava que a culpa fosse minha.  Queria saber se ele descobrira alguma coisa.

—  Você teve culpa, sim.

—  Sinto muito que ele tenha morrido. Devia muito a Erik. Quando era criança, tinha por ele um verdadeiro culto. Lembrava um dos velhos vikings de meu avô. Sempre gostei imensamente dele. Mas não tive culpa.

—  Por que diz isso?

— Porque não era a mim que ele amava, e sim a minha mãe. Ela compreendeu isso, no fim da vida, e creio que também o amou. É engraçado, não acha?, ele podia ser filho dela. O mais curioso é que nunca soube que o que amava em mim era minha mãe.

—  E você? Não o amou também?

— Muitíssimo. Com minha alma e não com o coração, ou talvez com o coração e não com os nervos. Era um ótimo rapaz, digno de confiança, incapaz de qualquer maldade. Era um homem perfeito. Havia qualquer coisa de santo nele.

Tirou um lenço e limpou os olhos. A lembrança do morto provocara-lhe lágrimas.

—  Se você não o amava, por que ficou noiva dele, então?

—  Prometi a minha mãe, antes de ela morrer. Creio que desejava que meu amor por Erik retribuísse o que o rapaz sentira por ela, E eu me sentia atraída pela pessoa dele. Conhecia-o tão bem. . . Sentia-me feliz a seu lado. Acho que se ele, então, quisesse casar-se comigo, eu o poderia ter amado. Mas achou que eu era muito moça. Não quis se aproveitar do meu estado de espírito.

—  E depois?

—  Papai não tinha grande vontade que eu me casasse com ele. Sempre esperou o príncipe da lenda, que havia de chegar e me levar para o palácio encantado. O senhor está convencido de que meu pai não tem nenhum senso prático. Eu, naturalmente, nunca acreditei no príncipe da lenda, mas sempre há alguma coisa oculta nas opiniões de meu pai. Ele tem um certo instinto das coisas. Vive nas nuvens, se o senhor compreende o que quero dizer, mas muitas vezes essas nuvens brilham com a luz do céu. Acho que, se tudo isso não tivesse acontecido, nós nos casaríamos, afinal, e seríamos felizes. Ninguém poderia deixar de ser feliz na companhia de Erik. Seria admirável poder ver todos aqueles lugares de que ele falava. Gostaria tanto de ir à Suécia, que é a terra de meu avô, e depois ver Veneza.

— É uma desgraça que tenhamos vindo parar aqui. Foi um simples acaso. Poderíamos ter seguido para Amboyna.

—  Creio que não seguiriam para Amboyna. Estava escrito que viriam para aqui.

—  Acha que nosso destino seja mesmo tão importante que esteja marcado pelos fados?

A moça não respondeu. Os dois ficaram por um momento em silêncio.

—  Sinto-me tão infeliz. . . — disse ela, finalmente.

—  Não deve se atormentar tanto assim...

—  Oh, eu não me atormento.

Disse isso com tanta decisão que o médico a olhou com surpresa.

—  O senhor acha que eu tenho culpa. Qualquer um acharia. Eu, porém, não me sinto culpada. Erik suicidou-se porque caí do ideal em que ele me transformara.

O doutor compreendeu que o instinto da moça chegara à mesma conclusão que o raciocínio dele.

—  Se ele tivesse me amado, realmente, teria me matado ou me perdoado. Não acha estúpida a importância que os homens, os homens brancos pelo menos, dão ao ato carnal? Quando estava na escola, em Auckland, tive uma crise religiosa (quase todas as moças têm a mesma coisa naquela idade) e fiz uma promessa, durante a quaresma, de que não comeria nada que levasse açúcar. Depois de quinze dias, era uma verdadeira tortura para mim pensar em alguma coisa açucarada. Um dia, passando por uma confeitaria, vi alguns bombons na vitrina, e meu desejo não resistiu. Entrei, comprei trezentos gramas deles, e comi-os na rua um por um, até esvaziar o pacotinho. Nunca me esqueço do alívio que senti. Voltei depois para a escola e continuei a cumprir minha promessa até o fim da quaresma. Contei esta história a Erik e ele achou graça. Disse que era muito natural. Era tão tolerante! Acredita que se ele me amasse, realmente, teria sido tão tolerante para com Fred, também?

—  Os homens são tão peculiares nesse ponto...

—  Mas não Erik. Posso garantir-lhe que ele não me amava. O que ele amava era seu ideal. A beleza e as qualidades de minha mãe em mim, e também as suas heroínas shakespearianas e as princesas dos contos de fadas de Hans Andersen. Que direito tem um homem de criar uma imagem à semelhança de seu coração, querer adaptá-la a uma mulher, e revoltar-se porque não consegue? Ele queria aprisionar-me em seu ideal. Não fazia caso do que eu era. Não me queria assim como eu sou. Desejava possuir minha alma, e, sentindo que havia qualquer coisa dentro de mim que escapava a ele, tentou substituir a pequena centelha que é meu eu por um fantasma de sua própria fantasia. Sinto-me infeliz, já lhe disse, mas não me atormento. Com Fred deu-se o mesmo, de outra maneira. Quando estava deitado junto de mim, aquela noite, disse que gostaria de ficar para sempre nesta ilha, casar comigo, cuidar da plantação, e uma porção de outras coisas. Fez um quadro de sua vida, mas queria, também, adaptar-me a ela. Ele, como o outro, desejava aprisionar-me dentro de seu sonho. Era um sonho diferente, mas era o sonho dele. Entretanto, eu também sou eu. Não quero sonhar o sonho de ninguém. Quero sonhar o meu próprio. Tudo o que aconteceu é terrível, sinto o coração pesado, mas no fundo do meu espírito estou certa de que consegui com isso a libertação.

Não falava com emoção, mas vagarosamente, em palavras medidas, com aquele seu ar de recolhimento que o doutor sempre achara tão singular. Ele escutava atentamente as palavras da moça. No íntimo, porém, estremecia, pois o espetáculo de uma alma nua o enchia de horror. Via naquilo esse instinto primário que obrigou as criaturas informes, desde o princípio dos séculos, a forçarem seu caminho através da cega hostilidade da sorte. Imaginava só o que seria daquela mulher.

—  Tem algum plano para o futuro?

Ela sacudiu a cabeça.

—  Sou moça. Posso esperar. Quando meu avô morrer, a propriedade será minha. Talvez eu a venda. Papai deseja ir para a Índia. O mundo é tão grande. . .

—  Bem, vou indo — disse o doutor. — Posso ver seu pai, para dizer-lhe adeus?

—  Vamos até o escritório.

Levou-o por um corredor até um pequeno quarto lateral. Frith estava sentado diante de uma mesa coberta de livros e manuscritos. Batia numa máquina de escrever e o suor, escorrendo de seu rosto gordo e vermelho, fazia os óculos escorregarem do nariz.

—  Estou terminando de copiar o nono canto. O senhor vai embora, não é verdade? Lamento não ter tempo para ir a bordo.

Esquecera que o dr. Saunders havia pegado no sono durante a leitura da tradução, ou, se ainda se lembrava, não dava muita importância ao fato.

—  Estou chegando ao fim. Foi um trabalho difícil e sinto que, se não fossem as palavras de animação de minha filha, não teria chegado a uma conclusão satisfatória. É mais do que justo que lhe caibam os resultados materiais de meu esforço.

—  Não deve trabalhar demasiadamente, papai.

—  Tempus fugit — murmurou ele. — Ars longa, vita brevis.

A moça, carinhosamente, pôs a mão no ombro dele, e olhou sorrindo para a folha de papel. Mais uma vez, o médico se sentiu tocado pela ternura com que Louise tratava o pai. Sua argúcia, naturalmente, já avaliara, de uma forma justa, a futilidade daquele trabalho.

—  Não queremos interrompê-lo, papai. O dr. Saunders veio apenas dizer-lhe adeus.

—  Ah,  sim,  naturalmente.  — Levantou-se  da  mesa. — Bem, tive um grande prazer em conhecê-lo. As visitas são tão raras neste nosso desterro. . . Foi uma grande bondade sua ter assistido ao enterro de Christessen. Nós, cidadãos britânicos, temos obrigação de unir-nos nessas ocasiões. Impressiona bem os holandeses. Não que Erik fosse cidadão britânico. Mas tivemos tanto contato com ele, e, além disso, era compatriota da rainha Alexandra. Um copo de vinho antes de partir?

—  Não, obrigado. Preciso voltar imediatamente.

—  Fiquei muito sentido quando soube  da  coisa. O inspetor-geral disse-me que não tem dúvida de que a causa do suicídio foi o calor. O rapaz queria casar com Louise. Felicito-me por não ter dado o consentimento. Era um sujeito sem controle. Os ingleses são o único povo capaz de se transportar para outras terras sem perder o equilíbrio. Foi uma grande perda para nós. Era, naturalmente, um estrangeiro, mas, em todo o caso, foi um choque. Senti muitíssimo, pode crer.

Era evidente que o homem julgava muito menos séria a morte de um dinamarquês do que a de um inglês. Frith insistiu em acompanhá-lo até a porta. O doutor, voltando-se para dar adeus, viu-o enlaçando com o braço a cintura da filha. Um raio de sol, abrindo caminho através da folhagem de uma árvore, cobria de ouro os cabelos da moça.

 

Um mês depois, o dr. Saunders estava sentado no terraço empoeirado do hotel Van Dike, em Cingapura. Era de tardezinha. De seu lugar, podia ver a rua. Havia um tumulto de automóveis, de cabs, de carrinhos puxados por homens descalços. Árvores marginavam a rua, derramando sua sombra. Chinesas, vestindo calças de homem, com grampos de ouro nos cabelos, cruzavam a rua como marionetes atravessando o palco. De vez em quando, um jovem plantador queimado de sol, de chapéu de cortiça e calção caqui, ia pela calçada a passos largos. Dois soldados morenos, vestindo uniformes muito limpos, caminhavam garbosamente. O calor do dia já abrandara. A luz do sol estava dourada e o ar cheio de preguiça. Uma carroça de água passou, molhando a rua coberta de poeira.

O doutor demorara quinze dias em Java. Esperava agora o primeiro navio para Hong Kong. De lá tomaria um vapor costeiro até Fu-chou. Estava satisfeito com a viagem que fizera. Saíra um pouco da rotina em que havia vivido durante tanto tempo. Libertara-se de alguns hábitos sem proveito e, livre das amarras terrenas, gozava o prazer celeste de sua independência espiritual. Sentia que ninguém no mundo poderia ser essencial para sua paz de espírito. Alcançara, ainda que por um caminho diferente, aquela completa imunidade que é o objetivo do asceta. Enquanto estava imerso nesta satisfação de si mesmo, como Buda contemplando o umbigo, sentiu que alguém tocava em seu ombro. Era o capitão Nichols.

—  Ia passando quando vi o senhor. Não pude deixar de vir falar-lhe.

—  Sente-se e tome alguma coisa.

—  Como não!

Vestia a roupa de andar em terra. Tinha uma barba de dois dias e suas unhas estavam negras.

—  Estou tratando dos dentes.  O senhor tinha razão. O dentista me disse que preciso arrancar todos eles. Diz que não se admira que eu sofra de dispepsia. E que é um milagre que eu tenha agüentado tanto tempo.

O médico notou que os  dentes superiores  já tinham sido extraídos. Seu sorriso ficara mais sinistro do que nunca.

—  Onde está Fred Blake?

O sorriso fugiu dos lábios do marinheiro, mas continuou sardonicamente em seus olhos.

— Teve um fim bem triste, o coitado.

— Que quer dizer com isso?

— Caiu ao mar, uma noite, ou atirou-se. Ninguém sabe.

— Durante alguma tempestade?

— Não. O mar estava tranqüilo. O rapaz parecia muito abatido depois que saímos de Kanda. Fomos até a Batávia. Acho que ele esperava receber uma carta lá. Não sei se recebeu ou não.

—  Mas como conseguiu atirar-se ao mar sem que ninguém visse? E o homem do leme?

— Tínhamos bebido muito aquela noite. Aconselhei o rapaz a botar fora aquela tristeza. Disse que eu fosse cuidar da minha vida. "Está bem", respondi, "faça, então, o que quiser."

—  Quando foi isso?

—  Há duas semanas.

O doutor recostou-se na cadeira. Sentia-se emocionado. Fazia tão pouco tempo que se sentara ao lado do rapaz e falara com ele. . . Descobrira que havia em sua pessoa qualquer coisa de ingênuo e de ambicioso que era seu maior encanto. Não podia imaginá-lo agora, desfigurado, arrastado à mercê das ondas. Era apenas uma criança. Apesar de sua filosofia, a morte de uma criatura moça sempre o afetara profundamente.

— Nunca procedeu muito bem comigo — continuou o capitão. — Ganhou quase todo o meu dinheiro no jogo. Depois que saímos de Kanda, ainda jogamos algumas vezes. O rapaz tinha uma sorte cachorra. Sei que jogo melhor do que ele. Pois ganhava sempre de mim. Cheguei a pensar que tivesse parte com o diabo. Mas era apenas sorte. Quando chegamos à Batávia, eu estava completamente pelado. Pois bem, depois do desastre arrombei a caixa em que ele guardava o dinheiro. Queria saber se havia dentro dela algum endereço com que eu pudesse comunicar a morte dele aos parentes. Não havia um shilling na caixa. Estava vazia como a palma da minha mão. O malandro pusera todo o dinheiro no cinto, antes de atirar-se ao mar.

— Deve ter sido um logro para você.

— Nunca suportei aquela cara, desde o princípio. Vi logo que era um patife. Imagine o senhor que a maior parte do dinheiro ele furtara de mim. Ninguém poderia ganhar daquele jeito, jogando honestamente. Estaria agora sem um níquel, se não tivesse vendido o barco para um chinês, em Penang.

O doutor escutava em silêncio. Era uma história estranha aquela. Perguntava a si mesmo se haveria alguma verdade nela. Nichols provocava-lhe repulsa.

—  Suponho que você não o tenha atirado ao mar, enquanto estava bêbado. . .

—  Que está dizendo?

—  Você não sabia que o dinheiro estava no cinto. Devia ser uma quantia apreciável. Acho que não faria nenhuma injustiça se atribuísse a você essa sujeira.

O capitão Nichols ficou verde. Abriu a boca e seus olhos tornaram-se vitrificados. O doutor riu baixinho. Suas palavras haviam atingido o alvo. Que canalha! Mas, de repente, notou que o marinheiro não estava olhando para ele, mas para alguma coisa atrás dele. Voltou-se e viu uma mulher que subia vagarosamente a escada do terraço. Era uma mulherzinha baixa e forte, de cara larga e olhos saltados. Usava um vestido preto, muito apertado para seu corpo, e na cabeça um chapéu de palha de formato masculino. Não se podia dizer que aquela era uma roupa tropical. Parecia estar de muito mau humor.

—  Meu Deus! — murmurou o capitão quase sem fôlego. — Minha mulher.

Ela aproximou-se da mesa tranqüilamente. Olhava o desgraçado com repulsa. Ele esperava como se estivesse fascinado.

—  Que fez de seus dentes da frente, capitão?

Nichols sorriu sem vontade.

—  Quando ia imaginar que encontraria você por aqui? É a mais agradável das surpresas.

—  Venha tomar uma xícara de chá comigo, capitão.

—  Como quiser, querida.

Levantou-se. Desceu a escada atrás dela. O rosto da mulher tinha uma expressão muito séria. O doutor pensou que agora seria impossível saber a verdade a respeito do pobre Fred Blake. Sorriu, vendo o capitão, que descia a rua, em silêncio, ao lado da mulher.

Uma brisa leve mexeu as folhas das árvores e um raio de sol, furando a folhagem, veio dançar, por um momento, ao lado dele. Pensou em Louise e em seu cabelo tão louro. Era como a fada de uma velha lenda, a quem os homens amam até a destruição. Sua figura enigmática, cheia de serenidade, parecia esperar por alguma coisa. Ele pôs-se a imaginar o que seria. Suspirou um momento, pensando que, mesmo se o sonho mais rico da imaginação se realizasse, no fim só a ilusão permaneceria.

 

                                                                                            Somerset Maugham

 

 

                      

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