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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM ENCONTRO NA CHUVA / L. P. Baçan
UM ENCONTRO NA CHUVA / L. P. Baçan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM ENCONTRO NA CHUVA

 

            A principio foram apenas algumas gotas tamborilando sobre a lona das barracas, farfalhando levemente as folhas das árvores, pontilhando a superfície do lago perto do acampamento, trazendo às narinas um cheiro agreste de terra molhada.

            Depois, num instante, o céu se tornou mais escuro e a chuva caiu generosamente, provocando um corre-corre entre os alunos de diversas escolas da região, em visita a um sitio arqueológico descoberto nas proximidades do Rio Paranapanema, a poucos quilômetros da divisa com o Estado de São Paulo.

            Entre eles, alunas do último ano de uma escola normal se misturavam naquela correria, todos em busca de proteção. Alguns chegaram rápido a suas barracas; outros buscaram abrigo sob a copa fechada do arvoredo que circundava o local; outros simplesmente se deixaram ficar sob a chuva, saboreando a deliciosa sensação de sentir as gotas escorrendo pelo rosto, molhando os cabelos, ensopando o corpo.

            Betina se encontrava perto de sua barraca. Caminhou para ela lentamente, saboreando cada passo, rosto levantado para o céu, sorvendo a chuva.

            Ao chegar à sua barraca, entrou, fechando o zíper da porta. Estava totalmente ensopada e antes de fazer qualquer coisa ficou de braços cruzados, sentindo o frio penetrar em seu corpo. Depois, rapidamente, acendeu seu lampião e sentou-se sobre a pequena cama de campanha, que a recebeu rangendo as molas.

            A barraca estava razoavelmente mobiliada. Dispunha de uma pequena mesa desmontável, uma cadeira, um fogão pequeno e a cama. Poderia abrigar facilmente quatro pessoas de sorte que a garota dispunha de bastante espaço. Seu olhar vagou desconsolado pela barraca.

            Interiormente ela praguejava contra a chuva repentina que punha por terra todos os planos de D. Irene, professora e chefe da excursão. Pretendiam vasculhar todo o local, pois esperavam encontrar elementos valiosos para o museu de sua escola. Prova disso eram os restos de cerâmica e uma pequena machadinha de pedra polida, resultado das escavações dos últimos dias. Sorriu puxando ligeiramente o canto da boca.

            Sentiu fome e já aquecida, resolveu preparar alguma coisa. Antes que o fizesse, porém, o zíper da porta desceu e o rosto severo, mas bondoso de D. Irene surgiu, protegida pelo gorro da capa de chuva.

            - Tudo bem aqui? - indagou ela, vasculhando a barraca com os olhos.

            - Sim, D. Irene. Não quer entrar?

            - Não, estou preparando as outras meninas, vendo se elas estão bem.

            - Não se preocupe comigo. Estou ótima.

            - Vejo que já tirou a roupa molhada...

            - Sim, fiquei com frio. Estava ensopada.

            - Boa menina. Quer que eu mande uma das outras garotas fazer-lhe companhia? Na barraca da Maria são três...

            - Não, obrigada, D. Irene. Estou bem. Prefiro ficar só. Gosto de ler até tarde e não quero incomodar nenhuma companheira dorminhoca. Desculpe-me.

            - Eu entendo, querida. Você tem comida aí?

            - Sim, tenho. Aliás, estava justamente indo preparar alguma coisa.

            - Ótimo. Hoje não será possível um jantar coletivo. É uma pena, pois algumas garotas haviam preparado um pequeno show...

            - Haverá outra oportunidade.

            - Sim, espero que sim. Agora tenho que ir. Tudo bem com você, não é?

            - Sim, não se preocupe. Estarei bem.

            - Até logo, então - despediu-se a professora, fechando de novo o zíper da porta.

            A garota ajeitou o roupão ao redor do corpo e foi até o fogão. Examinou a cesta de mantimentos. Resolveu fritar uns ovos e esquentar um pouco de arroz que sobrara do almoço.

            Assim que aprontou a refeição, sentou-se à mesa e comeu com apetite. Ao final, atirou os pratos de papelão no balde de lixo e estendendo o braço para fora pela porta, lavou os talheres e a frigideira, aproveitando a água da chuva.

            Anoitecera rapidamente. Olhando para fora, podia divisar o contorno das árvores, perceber o ruído das gotas caindo sobre o lago, luzes e música nas outras barracas.

            Voltou para a cama e estendeu-se preguiçosamente, puxando o cobertor sobre as pernas. De sob o travesseiro retirou um livro de contos de Oscar Wilde. Tentou ligar o rádio, mas a estática era demais, prejudicando as transmissões. De longe vinha o barulho incessante dos trovões.

            Mergulhada na leitura, embalada pelo gotejar monótono, mas vigoroso, da chuva sobre a lona da barraca, Betina foi pouco a pouco fechando os olhos, até adormecer. Não soube por quanto tempo permaneceu adormecida, mas despertou repentinamente, sentindo-se observada. Ainda um tanto abobalhada pelo sono, divisou à porta da barraca uma figura toda ensopada e trêmula.

            - Quem é você? - conseguiu balbuciar, assim que readquiriu o domínio de si própria.

            - Eu... Eu... - tentava dizer a figura ainda indefinida, batendo o queixo de frio.

            - Quem é você? - insistiu a garota. - Vamos, fale logo, se não, eu grito.

            - Não, por favor, não precisa gritar - suplicou a figura, aproximando-se dela.

            Instintivamente Betina se encolheu toda, mas, ao ver aquele rosto de rapaz incrivelmente belo, o grito morreu-lhe na boca.

            - Perdoe-me entra aqui - desculpou-se o rapaz, esfregando as mãos sobre o corpo, procurando se aquecer.

            - Quem é você? - perguntou ela de novo, já mais calma, gozando a tranqüilidade que aquele rosto transmitia, inundando-a de calma e calor.

            - Meu nome é Mário. Eu estava pescando rio abaixo, quando a chuva me apanhou e eu me perdi. Escureceu muito rápido. Vi luzes por aqui, mas não consegui encontrar minha barraca. Vi claridade aqui e entrei, em busca de ajuda. Não pretendo incomodar. Gostaria apenas de me aquecer um pouco.

            - Você está todo molhado - disse ela, comovida.

            - Você me empresta uma toalha? - pediu ele.

            A garota deitou-se de lado na camas e colocou o braço debaixo do móvel, puxando a mala que ali se encontrava. Abriu-a e retirou uma toalha grande, atirando-a ao rapaz.

            - Obrigado - agradeceu ele.

            - Mesmo que você se enxugue, se ficar com essa roupa vai dar na mesma - ponderou ela.

            Em resposta ele sorriu constrangido, olhando embaraçado para suas roupas e para a garota.

            - Eu tenho um roupão de banho extra comigo. Se você quiser, poderá tirar essa roupa, torcê-la e deixá-la enxugando.

            O rapaz pareceu mais constrangido ainda.

            - Eu olho para outro lado enquanto você muda a roupa - falou ela, sorrindo marotamente, divertida com o embaraço do rapaz.

            Ele aceitou a oferta e mudou a roupa, enquanto ela cobria a cabeça com o cobertor.

            - Pronto - disse ele, ao terminar.

            Quando Betina se descobriu e olhou-o ele esfregava vigorosamente a toalha nos cabelos, enxugando-os.

            - Acho bom torcer a roupa.

            - Sim, vou fazer isso - concordou o rapaz.

            Lá fora ainda chovia torrencialmente e o barulho dos trovões era maior, quase assustador.

 

            Em Londrina, a alguns quilômetros dali, a chuva caía da mesma maneira. André fumava calmamente, enquanto dirigia seu carro pela Avenida Higienópolis. Pensava em Betina, seu corpo jovem e tentador, sua boca pequena e ávida de beijos, seu sorriso maroto, seu narizinho arrebitado, seus cabelos curtos e loiros, naqueles olhos azuis cheios de mistérios e verdades, naquela saudade que doía dentro dele.

            Após manobrar o carro, entrou por um portão de uma das muitas residências que havia ali. A garagem era ampla e espaçosa. Ele acomodou seu carro sem problemas, estacionando-o ao lado de um luxuoso carro americano importado.

            Antes que descesse, um rosto de criança surgiu à porta, no fundo da garagem, iluminado pelos faróis. Zezé, a pequena e irrequieta irmã de Betina, ao vê-lo, correu ao seu encontro e atirou-se em seus braços, tão logo ele abriu a porta do carro.

            - Casa comigo, André - pediu ela sorrindo, enquanto o beijava com estardalhaço.

            - Calma aí, garota, quantos anos você tem? - perguntou ele sério.

            - Já tenho oito anos - respondeu ela, afastando o rosto para olhá-lo.

            - Tudo isso?

            - Não parece, não é? Estou muito conservada.

            - Você é uma garota muito enxuta, Zezé - comentou beijando-a carinhosamente no rosto e depositando-a de volta ao chão.

            - Já estava com saudade de você - disse a garota, tomando sua mão e caminhando junto dele.

            Passaram por um pequeno corredor que ligava a garagem à varanda da entrada da casa. Um homem de meia-idade os esperava sorridente.

            - Olá, André - ele cumprimentou o rapaz, estendo-lhe a mão.

            - Tudo bem, seu Ernesto?

            - Ótimo, mas vamos entrar. Está um pouco frio aqui.

            - Chuvinha inesperada, não? - comentou o rapaz.

            - Pegou todo mundo de jeito - concordou o homem, passando o braço ao redor do rapaz.

            Entraram numa sala luxuosamente decorada. Uma mulher ainda jovem se levantou e foi ao encontro de ambos, cumprimentando André alegremente.

            - Olá, André. Como tem passado?

            - Tudo muito bem - respondeu ele, retribuindo o aperto de mão.

            - Férias?

            - Estou aproveitando os feriados da Semana da Pátria para descansar um pouco.

            - Como vai nos estudos? - indagou Zezé, intrometendo-se entre eles.

            - Vou muito bem e você?

            - Ah, eu vou bem - respondeu a garotinha, enfiando as mãos no bolso do macacão que vestia e balançando os ombros, cabisbaixa.

            - Verdade mesmo? - insistiu o rapaz.

            - Verdade - confirmou ela, ainda de cabeça baixa.

            - Se você não estudar direitinho, não deixo você ser minha assistente - afirmou ele, abaixando-se e segurando-a pelos ombros.

            - Você vai ser construtor de prédios mesmo? - indagou ela.

            - Mas ou menos isso. Vou ser engenheiro.

            - Não é a mesma coisa?

            - Não, não é - disse o rapaz, levantando-se e olhando para os lados. - E Betina, onde está ela?

            - É uma pena, mas ela saiu em uma excursão - informou a mãe da garota.

            - Excursão? Que excursão?

            - Vamos sentar que eu lhe explico - convidou o dono da casa.

            - Você acha que o Mário vai conseguir? - indagou o rapaz, acendendo o cigarro.

            - Tenho certeza que sim. Aquele é um tremendo cara de pau - respondeu seu colega, aproveitando a chama do fósforo para acender seu cigarro também.

            Toni e Carlos eram amigos de Mário. Os três ocupavam uma barraca um pouco distante de onde se encontravam as das garotas da escola normal.

            - Aquele narizinho arrebitado não me pareceu ser tão ingênua a ponto de se deixar levar por um cara como o Mário.

            - Você conhece o Mário. Tem pinta, conversa bem...

            - Às vezes só isso não basta.

            - No caso dele é mais do que suficiente.

            - Eu duvido. Não dou cinco minutos e ele estará de volta aqui.

            - Quer fazer uma aposta?

            - Aposto minha mochila americana contra sua calça desbotada.

            - Feito.

            Fumaram por mais algum tempo em silêncio. Pela barraca se espalhavam peças de roupa, misturadas a revistas em quadrinhos e algumas pedras de formato interessante.

            - Será que não vai dar outro galho? - perguntou Toni, após uma longa tragada em seu cigarro.

            - Galho por quê?

            - E se a menina põe a boca no mundo quando ele aparecer lá?

            - Até agora não ouvi nenhum grito.

            - A chuva poderia ter encoberto.

            - Não acho - disse o outro levantando-se e caminhando até a porta da barraca.

            Olhou a escuridão lá fora, em busca de algum indicio que mostrasse que algo dera errado.

            - Percebe algum movimento? - indagou Toni aproximando-se também.

            - Não, até agora nada. Ele deve ter conseguido.

            - Aquele sujeito é fora de série mesmo.

            - Não tem problema. Ele vai conseguir fácil, fácil. Amanhã a gente vai ter que aturá-lo contando vantagem.

            - Há outras garotas e outras barracas...

            - Que nada rapaz. Poderíamos ir pedir um pouco de açúcar emprestado, o que há de mal nisso?

            - Acha que dará certo?

            - E por que não? Olha, naquela barraca perto de onde fica a fogueira à noite, do outro lado do lago, dormem duas garotas. A gente podia ir lá, o que acha?

            - E se não der certo?

            - A gente vai dormir molhado e arrependido, só isso.

            - Concordo. Vamos lá. Açúcar emprestado, não é?

            - Vejo que esteve lendo contos de Oscar Wilde. Gosta desse autor? - indagou Mário.

            - Gosto do gênero, independentemente do autor.

            - Se não me engano, nesse livro aí, você vai ler um conto muito bom: "O Príncipe Feliz".

            - Já li.

            - O que achou?

            - Sensacional. Muito bom mesmo.

            - Sabia que você iria gostar - disse ele, sentando-se na cadeira.

            - O que você estuda? - indagou Betina.

            - Estudo cientifico e faço cursinho.

            - Vieram pesquisar o sitio arqueológico também?

            - Sim, mas hoje eu tirei a tarde para pescar. Estava cansado de tudo isso já.

            - Não está com fome? - perguntou ela.

            - Fome? Sim, realmente estou com fome.

            - Posso lhe oferecer alguma coisa para comer?

            - Ficaria muito agradecido.

            - Eu vou preparar - prontificou-se ela.

            Enquanto a garota se ajoelhava perto do fogão. Mário observou-a, sorrindo cinicamente. Tudo estava correndo de acordo com seus planos. Antes que a noite terminasse, Betina estaria caidinha por ele.

            Tomada de repentino entusiasmo, Betina estendeu a toalha sobre a mesa, arrumou um prato e serviu a pequena refeição que o rapaz devorou rapidamente.

            - Tenho refrigerante de sobra. Aceita? - ofereceu a garota.

            - Não, obrigado. Aceitaria um café se você tivesse.

            - Naquela garrafa térmica perto do fogão - apontou ela.

            O rapaz serviu-se e com a xícara à mão apanhou suas roupas e revirou os bolsos, retirando um maço de cigarros totalmente encharcado e amassado.

            - Se você quiser fumar, eu tenho cigarros - ofereceu prontamente a garota.

            Enquanto ela apanhava o cigarro em sua bolsa, Mário sorriu cinicamente mais uma vez. Em nenhum momento o arrependimento passou por sua cabeça. Concebera um plano e dispunha-se a concretizá-lo. Sentia-se senhor absoluto da situação.

 

            Revirando sua bolsa em busca de seu maço de cigarros, Betina sentia-se deliciosamente excitada pela inusitada situação em que se vira envolvida. Sozinha, num acampamento, chovendo torrencialmente lá fora e ela a sós com um jovem, voou de repente para a figura de André, seu antigo namorado, fazendo-a decompor-se, apagando-lhe o sorriso no canto dos lábios.

            - Aqui está. Tome - disse ela, passando o maço de cigarros para o rapaz.

            - Obrigado - agradeceu ele.

            Seus dedos se roçaram. A mão dele estava fria.

            - Como estava o café? - indagou ela, voltando a sentar-se na cama.

            - Frio, para ser sincero.

            - Frio? Então vou fazer outro, espere um pouco - pediu ela, enquanto derramava água de seu cantil em um pequeno bule e o punha ao fogo. - Num instante vai ficar pronto. Sente-se, por favor.

            - Você é muito gentil.

            Lá fora a chuva perdera o ímpeto inicial, tamborilando monotonamente sobre a barraca. Um vento frio balançava as folhas das árvores e encrespava as águas do lago. Betina acendeu um cigarro e jogou a fumaça para o alto, observando-a pensativa.

            - Que tal está achando a idéia desta excursão? - indagou ela.

           - Gosto muito dessas coisas. Apenas acho que deveríamos ter feito isso de modo mais organizado, com técnica apropriadas.

            - Concordo com você. Se localizarmos um cemitério por aqui, aí então teremos que tomar todas as precauções senão todo o trabalho será perdido. Os indígenas levavam muita coisa em conta ao escolherem um local para cemitério.

            Seus olhos percorreram gulosamente as pernas de Betina à mostra, após ela ter cruzado as pernas.

            - Você é muito bonita - comentou ele, após realizar um exame com os olhos.

            O coração da garota disparou, sua mão tremeu ligeiramente e um sorriso sem graça brotou-lhe nos lábios. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, advertindo-a do perigo.

            - Como é mesmo o seu nome? - perguntou ele, sorrindo da insegurança demonstrada pela garota.

            - Betina Monteiro - respondeu ela, tentando imprimir segurança a sua voz, que tremeu, no entanto.

            - Lindo nome, Betina. Você é de onde?

            - Sou de Londrina, e você?

            - Sou de Assis.

            - São Paulo? pensei que apenas escolas do Paraná estivessem nesse empreendimento.

            - Enganou-se. Nossa escola também resolveu participar. Quando souberam da existência de um sitio arqueológico, nossos professores ficaram interessantíssimos.

            Betina sentiu-se angustiada. Revirou a cabeça em busca de um outro assunto que pudesse distraí-la, mas nada acudiu-a. A sensação deliciosa que tivera no inicio era substituída gradativamente por um estado de alerta.

            Agira inconseqüentemente permitindo que ele ficasse. Poderia tê-lo mandado à barraca de alguns dos outros rapazes da excursão, mas não o fizera. Não conseguia encontrar o motivo por que não fizera isso. Talvez aquele rosto a tivesse cativado demais, havendo mesmo algo de falso e mentiroso naquelas faces coradas.

            Mário, por seu lado, repreendia-se interiormente por haver se precipitado. A ocasião não fora propícia e a reação de Betina mostrara-lhe que deveria ter um pouco mais de tato. Suas roupas demorariam para secar, encontrava-se à vontade, não precisava se preocupar. A rede estava armada, Betina não fugiria. Sorriu descontraído.

            - Desculpe-me se fui ousado - falou ele, dando um acento de timidez à voz.

            Betina não soube o que responder, mas encarou-o.

            - Sabe, sinto-me constrangido com tudo isso. A amolação que estou lhe causando, não sei como agradecer.

            - Não se preocupe - respondeu ela, sentindo aliviar um pouco a tensão - Essas coisas acontecem.

            - Mas a verdade persiste - disse ele, enigmático.

            - Que verdade?

            - Você é bonita, muito bonita mesmo! - exclamou ele, levantando-se.

            - Obrigada! - agradeceu ela, titubeante.

            - A água está fervendo - advertiu ele.

            - Vou preparar o café - disse ela nervosamente, levantando-se.

            Não lhe agradava a maneira como ele se aproximava. Ao tentar passar para dirigir-se ao fogão, ele segurou-a pelo braço.

            - Você é realmente linda - sussurrou ele.

            - Por favor! - pediu ela em voz baixa, olhando para a mão que lhe prendia o braço.

            - Deixe-me agradecê-la por tudo - pediu ele, colocando suas mãos nos ombros dela.

            - O que pretende fazer?

            - Beijá-la, posso?

            - Solte-me...

            - Só um beijo...

            - Solte-me, se não, eu vou gritar - intimou ela.

            Ele não respondeu nem a soltou. Aproximou seu rosto cada vez mais. Betina colocou as duas mãos em seu peito e empurrou-o. De repente o inesperado. O desequilíbrio, um tropeção na cadeira, o fogão, a água fervendo...

            Horrorizada, Betina contemplou a cena vendo-o contorcer-se no chão, com as mãos cobrindo o rosto. Seu primeiro pensamento foi para a beleza daquele rosto, provavelmente danificada pela água quente.

 

            - Quer dizer que se trata então de uma excursão cultural? - indagou André ao pai de Betina.

            - Sim, isso mesmo. Betina gostou muito da idéia. Você sabe como ela adora novidades.

            - É uma pena - comentou o rapaz, visivelmente desiludido e deixando transparecer nisso em seu semblante.

            Estivera fora quase dois meses. Estudava em São Paulo, por isso não continha sua ansiedade em conseguir uma pequena pausa em seus estudos para voltar à sua cidade e rever a namorada.

            Betina era um amor de infância, amadurecido, pronto para a colheita, agora que ele se encontrava quase formado. Já estava no último ano e havia realizado importantes estágios. Já havia recebido boas ofertas de trabalho. Tinha seu futuro praticamente definido.

            Naquela noite pretendia propor um rápido noivado e um casamento para após sua formatura. A ausência da garota, no entanto destruía todos os seus planos. Breve teria que retornar para São Paulo e o fato de não definir aquela situação frustrava-o.

            Apalpou no bolso, a caixinha de veludo onde trazia o par de alianças. Vinha economizando há meses a mesada que o pai lhe mandava, além do que recebia pelos seus estágios, para comprar o que de melhor pudesse encontrar.

            - Talvez com essa chuva eles suspendam a excursão - falou D. Jacira, mãe de Betina, tentando consolá-lo.

            - É uma esperança - respondeu ele, suspirando fundo e apalpando novamente a caixinha com as alianças.

            Pensou que talvez devesse antecipar os acontecimentos e expor suas intenções aos pais da garota, mas desistiu da idéia. Precisava, antes de mais nada, ver a namorada, tratarem dos detalhes.

            - Você vai ficar muito tempo, André? - perguntou Zezé, levantando os olhos do televisor.

            - Até sábado - respondeu ele, sorrindo para ela.

            - Já que a Tatá não está aí, se você quiser eu posso ser sua namorada - propôs a garotinha, séria.

            - Zezé, não seja boba! - repreendeu-a a mãe.

            - Deixe, D. Jacira. Zezé é um amor de garota. Faz isso para me agradar.

            - E então, você topa? - insistiu a garota.

            - Topo. O que você gostaria de fazer nos próximos dias? - indagou-lhe o rapaz, segurando-a pelas mãos.

            - Poderíamos ir ao clube, ao cinema, ao circo. Sabia que há um circo na cidade? Tem leão, elefante, urso, uma porção de coisas.

            - Eu a levo.

            - Está legal - concordou ela. - você vai ficar para o desfile do dia sete? Até lá a tatá deverá chegar. Acho que ela vai desfilar também.

            - Isso mesmo, André. Se você ficar até dia sete, poderá vê-la - lembrou-lhe seu Ernesto.

            André concordou imediatamente, apesar de ter que quebrar um compromisso assumido. Programara sua volta um pouco mais cedo, no sábado, mas não se importava em adiar tudo. A vontade de rever Betina era maior que suas forças.

            A conversa tomou, posteriormente, outros rumos. A chuva persistia levemente, sem o estardalhaço inicial. Já era bem tarde, quando o rapaz decidiu retirar-se. Antes que o fizesse, porém, o telefone soou e, para espanto de todos, Zezé que atendera, falou:

            - É a Tatá, papai.

            - Betina? - retrucou o homem, surpreso.

            - Aconteceu alguma coisa? - indagou D. Jacira, levando as mãos de encontro ao peito.

            - Pai - falou Betina, assim que ele atendeu. - Aconteceu um acidente quando estávamos na excursão...

            - Você está bem? - interrompeu-a ele, angustiado.

            - Não foi comigo, não se preocupe.

            - O que aconteceu então?

            - É uma estória muito complicada. Preciso que o senhor venha até o hospital me apanhar...

            - Onde você está?

            - Estou aqui mesmo em Londrina.

            - Mas... Por quê? Não estou entendendo realmente.

            - Não se assuste, pai. Venha até aqui.

            - Está bem, vou já. André está aqui, vou levá-lo também...

            - Não! - pediu ela, num grito abafado.

            - Por quê?

            - Eu... Eu... Está bem, pai. Pode trazê-lo, mas venha logo.

            - Estarei aí em poucos instantes. Aguarde-me na portaria.

            - Estarei esperando. Tchau!

            Assim que desligou o telefone, seu Ernesto olhou para a família, ansiosa por respostas.

            - O que houve, Ernesto? - indagou-lhe a esposa.

            - Está tudo bem, Jacira. Aconteceu um acidente com algum elemento da excursão. Betina está bem, vou apanhá-la no hospital.

            - Então a excursão foi cancelada? - indagou André, feliz com a noticia, sem se preocupar com outros detalhes.

            A idéia de rever imediatamente a namorada enchia-o de alegria. A figura de Betina - seu rosto claro, seus lábios quentes, seu maravilhoso narizinho arrebitado, sua voz doce e repousante - delineou-se em sua mente, enchendo-o de prazer.

            - Vamos então André?

            - Sim, seu Ernesto. Imediatamente.

            - Puxa vida! Perdi o namorado - choramingou Zezé, vendo-os sair.

 

            Betina sentiu um indescritível mal-estar revolucionar-lhe o estômago. Não esperava ter que avistar com André naquela situação. Estava ainda com o mesmo roupão de banho e D. Irene, carrancuda ao seu lado, lançava-lhe a todo instantes olhares de reprovação.

            A aventura que vivera e os momentos que passara eram difíceis de serem narrados e de serem aceitos. D. Irene acreditava naquilo que vira. Sua aluna, de roupão e roupas intimas, praticamente, a sós, numa barraca, isolados de todos. Por mais sinceras que pudessem ser as explicações da aluna, repetidas diversas vezes durante a viagem até Londrina, as evidências eram comprometedoras.

            Betina abaixou a cabeça, pensando em André, maldizendo-se interiormente por ter se deixado levar por aquela aventura, fosse o que fosse que a motivou aquilo. Deveria realmente ter orientado o rapaz e encaminhado para onde estavam alojados os outros rapazes, quando o viu em sua barraca, totalmente ensopado. Mas não fizera isso. Talvez o fascínio daquele rosto, o insólito do acontecimento, o gosto por aventuras inesperadas, não sabia ao certo o que a havia levado a agir daquela forma. E seu pai, como reagiria? E André, será que entenderia?

            Virou-se para D. Irene e indagou-lhe, temerosa e envergonhada.

            - A senhora pretende contar tudo ao meu pai?

            Seu tom de voz era submisso.

            - Ponha-se em meu lugar, Betina. Os pais confiaram em mim, entregando seus filhos aos meus cuidados. É uma responsabilidade muito grande, não acha? - falou ele, num tom de voz impessoal e autoritário.

            Seu rosto era severo e seus gestos, nervosos.

            - Eu explicarei tudo a ele...

            - Sinto muito, mas isso é meu dever. Fatos desagradáveis como esse não deveriam nunca acontecer. Vocês jovens, a cada dia que passa, vão perdendo mais e mais o senso de moral, de pudor, de valorização do próprio corpo. Agem impensadamente, não medem as conseqüências...

            - Ouvindo-a falar assim, é como se eu tivesse mesmo cometido uma falta muito grave, um pecado mortal, um ultraje contra a sociedade...

            - E não cometeu? - retrucou a professora, como se deferisse uma bofetada no rosto da aluna.

            - Não! - protestou a garota, veemente sentindo o sangue subir-lhe às faces.

            Lágrimas vieram a seus olhos claros, avermelhando-os levemente.

            - Que pode acreditar? Se nada aconteceu, aconteceria mais cedo ou mais tarde...

            - A senhora não pode falar assim. Já me conhece há muito tempo para saber que tipo de garota eu sou.

            - Quem conhece realmente as pessoas, Betina? Quantos lobos não se escondem na pele de inocentes carneiros?

            - A senhora está enganada, D. Irene. Muito enganada.

            - Espero que esteja, Betina. Para seu próprio bem - afirmou a professora.

            - Vai contar mesmo ao meu pai?

            - Vou! - confirmou ela.

            - Então só conte o que viu. Poupe-o de suas falsas conclusões. Deixe que eu darei a ele os detalhes.

            - Está bem. E você acha que ele vai acreditar em você?

            - Vai sim. Meu pai tem muita confiança em mim.

            - Esse é o mal dos pais de hoje em dia. Confiam demais em seus filhos, dão-lhes liberdade demais e depois é isso que acontecesse.

            - D. Irene! - murmurou a garota, entredentes. - A senhora não tem o direito de criticar a educação que recebo de meus pais. Proíbo-a de fazer isso.

            A velha professora não respondeu, limitando-se a encolher os ombros e a franzir a testa.

            Estavam na sala de espera do hospital, nas proximidades da portaria. A enfermeira encarregada dirigiu-se a Betina e indagou-lhe:

            - É parente do rapaz que foi internado?

            - Não, não sou.

            - Saberia fornecer-me alguns dados para o preenchimento da ficha de internação?

            - Que dados?

            - Nome, residência...

            - Não sei de nada sobre ele - respondeu a garota, nervosamente.

            - Mas a senhorita se responsabilizou por ele quando da internação...

            - Sim, mas nada sei sobre ele. Há algum mal nisso? - indagou, com irritação.

            - Há um outro problema ainda - disse a enfermeira, antes de afastar-se.

            - Que problema?

            - Um depósito de garantia a ser feito.

            - Depósito? Mais essa agora! - exclamou Betina. - E de quanto é esse depósito?

            - Dois mil cruzeiros.

            - Meu pai chegará logo e providenciará isso - disse ela afastando-se e indo sentar-se em um dos sofás que havia por ali.

            O corpo cansado aceitou o repouso como uma benção.

            - Que tolice, meu Deus! Que tolice! - exclamou ela em voz baixa, estirando o corpo e descansando a cabeça no encosto do móvel.

            Passou as mãos pela cabeça, num gesto desesperado e olhou para D. Irene. Esta ainda a fitava cheia de censura, Betina fechou os olhos e julgou que dormiria, para sempre até, se preciso fosse.

 

            - E então, filha, o que aconteceu? - indagou-lhe o pai, assim que chegou ao hospital.

            Com ele chegou André. Betina olhou-o, sentindo o sempre igual arrepio percorrer-lhe a espinha e a sensação sempre renovada de que o amava cada vez mais, doer dentro de si.

            Os lábios da garota tremeram momentaneamente, quando reprimiu o impulso de recorrer e abraçá-lo. Ao invés disso, porém, seus olhos voltaram-se suplicantes para a velha professora. Seu pai e André se aproximaram.

            - Tudo bem, filha? - indagou o homem, abraçando-a.

            - Está, pai. Não se preocupe mais.

            - Olá, Betina - cumprimentou-a André, percebendo a aparente frieza com que ela o recebera.

            Alguma coisa devia ter acontecido, pensou ele, analisando o rosto da namorada. Havia nele, além daquela beleza, irrequieta que sempre o atraíra, medo e sofrimento.        

  1. Irene se aproximou e dirigiu-se ao pai de Betina.

            - Senhor Ernesto, há algumas coisas que precisamos esclarecer, antes que o assunto ganhe uma repercussão maior que possa comprometer minha atuação, junto ao diretor da escola.

            - Sim, D. Irene. O que foi? - indagou seu Ernesto.

            - Não sei se deveríamos conversar aqui...

            - E por que não? Está tudo bem. Vamos nos sentar - disse ele, apontando as poltronas da sala de espera.

            Instalaram-se. André sentou-se ao lado de Betina, sobre o braço da poltrona ocupada pela jovem.

            - Foi um fato muito lamentável - começou D. Irene a falar.

            - Conte logo, D. Irene - apressou-se Betina, irritada e disposta a terminar logo com o assunto.

            André olhou para ela novamente e sentiu-a a mesma garota determinada de sempre. Sorriu. Ela torceu o canto dos lábios, sem jeito, esboçando um sorriso que não chegou a se definir, momentaneamente transformado numa careta. O rapaz tirou seu casaco e cobriu carinhosamente o colo da namorada.

            - Foi no inicio daquela chuvarada - continuou finalmente D. Irene - Eu estava passando pelo acampamento todo, verificando se as garotas estavam bem, pois a chuva nos apanhou quando ainda estávamos trabalhando em escavações. Como todos estavam bem, haviam conseguido se abrigar, inclusive sua filha, voltei para minha barraca. Um pouco mais tarde, ouvi barulho e gritos vindos da barraca de sua filha. Assustei-me porque sabia que ela estava só. Corri para lá, juntamente com outros alunos e encontramos o rapaz...

            - Rapaz? Que rapaz? - interrompeu-a o pai da garota, olhando para a filha.

            - Sim, que rapaz? - ajuntou André, olhando surpreso para a namorada.

            - Ainda não sei bem. Parece-me pertencer a um outro grupo de alunos de um outro colégio - explicou a professora. - Sua filha lhe dará maiores detalhes posteriormente. Esse não é, entretanto, o ponto principal da questão, senhor Ernesto.

            - Mas o que aconteceu com o rapaz? - insistiu o homem.

            - Queimou-se - disse Betina, num fio de voz.

            - Queimou-se como?

            - É uma estória complicada, pai. Eu conto depois, a caminho de casa. Deixe D. Irene terminar de contar a parte dela na estória.

            - Sim senhor Ernesto. Acontece que Betina estava em trajes íntimos e o rapaz se encontrava praticamente nu - falou a velha professora, num fôlego só, como se tivesse um espinho atravessado em sua garganta e precisasse arrancá-lo o mais depressa possível. sua voz soou, acima do tom autoritário e impessoal, envergonhada.

            O pai e o namorado da garota ficaram pasmados. Seu Ernesto olhava para o rosto carrancudo e envergonhado da professora, para o rosto surpreso e cheio de ciúmes de André e para as faces límpidas da filha, sem nada conseguir dizer.

            André, porém, sentiu aquilo como uma chicotada que lhe atingisse a face, avermelhando-a. O ciúme fez seu sangue gelar e as mãos tremerem. Sua primeira reação foi esbofetear a garota, cego pelo amor próprio ferido. Depois julgou que a melhor solução seria afastar-se correndo e sumir da vida dela, cheio de vergonha e rancor. Mas não fez nada disso. Com os cabelos escorridos caindo sobre o rosto, olhos um tanto avermelhados, mas firmes e serenos, sumida por trás do casaco que ele lhe colocara em cima, Betina era a própria imagem de fragilidade e da inocência, coisa que desarmou todos os impulsos precipitados do rapaz.

            Ficou a olhar para ela, com olhos suplicantes, e pedir uma explicação, uma certeza de que naquilo tudo havia uma lógica, que as suposições iniciais eram precipitadas e falsas, que nada havia ocorrido, que tudo fora um tremendo e lamentável engano. Ela sempre fora sincera, era ponderada o bastante, apesar de um pouco irrequieta, para não se meter em aventuras inconseqüentes. O que poderia ter acontecido? Mil idéias passavam por sua cabeça, sem que ele se detivesse em nenhuma, olhos fixos na garota, à espera de um desmentido.

            - É verdade, filha - indagou-lhe o pai, assim que recuperou o controle.

            - É, pai - respondeu a garota, aumentando ainda mais o clima de tensão que pairava sobre o grupo, desde o inicio da conversa.

            André tentou dizer alguma coisa, indagar detalhes. Seus lábios se abriram, mas não emitiram nenhum som.

            - Deixe-me terminar primeiro, senhor Ernesto - pediu a professora.

            - Oh, desculpe-me D. Irene. É tudo tão embaraçoso... - desculpou-se o homem.

            - Sim, realmente é, senhor Ernesto. Muito embaraçosa.

            - Sim, sim. Mas o que aconteceu depois?

            - Quando cheguei, juntamente com os alunos, Betina lá estava, em pé, vestida como está agora, e o rapaz no chão, se contorcendo todo, com as mãos no rosto...

            - No rosto? - interrompeu-a André, conseguindo articular alguma coisa novamente, após o choque inicial que fora aquela revelação.

            - Sim, no rosto. Parece-me que ele tropeçou na cadeira e caiu sobre o fogão, entornando a água quente.

            - Queimou-se muito? - indagou o pai da garota.

            - Ainda não sabemos, senhor Ernesto. Nós o trouxemos imediatamente para cá e o médico ainda o está atendendo.

            - Filha... Mas... Por favor, conte o que houve realmente - pediu-lhe o pai.

            - No caminho para casa eu lhe explicarei tudo, pai. Vamos embora, por favor.

            - Venha também, D. Irene. Nós a deixaremos em sua casa - convidou seu Ernesto.

            - Muito obrigada, mas estou com o carro e alguns alunos aí fora. Vou voltar para dar ordens de levantar acampamento. Não creio que seja prudente continuarmos após tudo o que aconteceu.

            - Se a senhora quer assim.          

            - Obrigada mais uma vez - disse a professora, despedindo-se e afastando-se.

            Antes de cruzar a porta de saída, porém, olhou para a aluna. Betina olhou-a também, mas não havia nenhuma espécie de ressentimento em seu olhar. Ela estava, apesar de tudo grata à professora.

            - D. Irene - chamou ela.

            - Sim, Betina - respondeu a mulher.

            - Posso pedir-lhe um favor?

            - Pois não.

            - Peça para desmontarem minha barraca e guardarem minhas coisas. Depois eu as apanharei.

            - Só isso?

            - Sim, obrigada.

            - Vamos então, filha? - convidou-a o pai, abraçando-a carinhosamente.

            - Sim, pai. Vamos - concordou ela, submissa.

            - André, o que há? indagou o homem ao rapaz, vendo que este não se movia e parecia mergulhado em seus pensamentos, totalmente aéreo.

            - Ah, sim! Vamos, desculpe-me - disse o rapaz.

            - Pai, tem um negócio que precisa ser resolvido - disse Betina, antes que saíssem.

            - Sim, o que é?

            - Na hora da internação do rapaz, eu me responsabilizei por ele. É preciso fazer um deposito...

            - Deposito? Sei... De quanto?

            - Dois mil cruzeiros!

            - Está bem, vou providenciar isso. Aguardem-me no carro está bem?

            - Sim - concordou ela temerosa, vendo o pai se afastar.

            Ficar a sós com André, naquele momento, era tremendamente difícil para ela. Sabia que teria que explicar-lhe tudo, mas não se sentia disposta àquilo. Seu corpo começava a dar mostras de cansaço. Estava, além disso, faminta e com frio.

            Resignada permitiu que André a abraçasse afetuosamente, caminhando juntos para o carro. Esperava a todo momento que ele começasse a falar e iniciasse uma discussão.

            Não foi, no entanto, o que ele fez. Caminhou ao seu lado em silêncio, até o carro, abriu a porta para que ela entrasse, deu a volta e entrou pelo outro lado.

            Lá dentro Betina se sentiu mais protegida, menos friorenta. André olhou para ela, abriu os braços e recebeu-a, frágil e adorável, num longo abraço.

            - Oh, Betina! - murmurou ele, enquanto seus lábios ávidos procuravam os dela.

            O beijo que se seguiu foi longo e ardente, com um sabor violento de saudade. Sentindo-a em seus braços, André não se importava com mais nada. Ela era tudo, nada mais havia a ser levado em conta. Amava-a. Mais do que isso: adorava-a.

            - Que saudade, meu amor - murmurou ela, numa pausa.

            - Betina, como senti sua falta...

            - Se eu soubesse que viria, não teria ido a essa maldita excursão.

            As palavras de D. Irene ecoaram na cabeça do rapaz. Ele a soltou, quase que rudemente, recostando-se no estofamento e acendeu um cigarro.

            Betina entendeu a situação e, percebeu que ele, de um modo ou de outro, esperava uma explicação por parte dela. O encanto se quebrara, a saudade estava morta. O presente era uma preocupação.

            - Você quer que eu explique, não é?

            - Sim, acho que tenho o direito, concorda? - retrucou ele, sem olhar para ela.

            Ela não respondeu e abaixou a cabeça.

            - Quem era o rapaz? - perguntou ele.

            - Não o conhecia direito.

            - Não o conhecia? então como você estava lá com ele?

            - Não poderíamos deixar este assunto para amanhã? Estou tão cansada...

            - Não queira se esquivar, Betina. Estamos juntos há muito tempo para não sermos sinceros um com o outro.

            - Eu sei, eu sei, mas entenda, por favor! Acha que é fácil para mim? Sabe do que tenho medo?

            - De quê?

            - Tenho medo, André, muito medo. Medo de que você não seja bastante compreensivo para aceitar minhas explicações, medo de ver você sair por essa porta e nunca mais voltar para mim, medo de perdê-lo, André. - desabafou ela, atirando-se novamente nos braços dele e oferecendo seus lábios quentes e salgados pelas lágrimas que escorriam-lhe pela face.

            André abraçou-a forte e deixou-a desabafar. percebeu que o momento não era adequado realmente para uma discussão. Esperou que ela se acalmasse, secando-lhe as lágrimas com seus beijos, conversando sempre, em tom carinhoso.

            - Você se lembra, Betina, quando brincávamos em criança?

            - Sim - respondeu ela, balançando a cabeça e puxando os cantos dos lábios, tentando sorrir.

            - Lembra-se de nossa promessa?

            - Qual delas?

            - A de que nos casaríamos quando crescêssemos?

            - Sim, foi naquele dia de chuva, quando ficamos presos na garagem de sua casa.

            - Sim, isso mesmo. Que mais você lembra?

            - Lembrou-me que foi a primeira vez em que você me beijou.

            - Sim, isso mesmo. Que mais?

            - Você me fez uma aliança de cobre com um pedaço de fio velho e colocou-a em meu dedo. Nós prometemos nunca nos separarmos.

            - Juramos nunca nos separarmos, lembra-se bem?

            - Sim. Você queria fazer um juramento de sangue, igual ao que vimos num filme de ciganos, mas não teve coragem para cortar minha mão nem a sua.

            - Era tudo tão bom, não era?

            - Sim, André. Espero que continue sempre assim.

            - Será? - duvidou ele, mas afogando imediatamente sua dúvida num beijo sôfrego, quase desesperado.

            Instantes depois o pai da garota chegava ao carro. A chuva cessara, mas o céu continuava encoberto, prenunciando mais chuva. Um vento fino e frio assobiava nos fios e agitava as árvores que margeavam as ruas derrubando folhas e arrastando-as pelo asfalto molhado e brilhante.

            - Vamos já para casa, filha - disse-lhe o pai, assim que entrou. - Enquanto isso, é justo que eu lhe peça uma explicação.

            - Foi tudo tão... tão... tão inesperado, pai.

            - Quem era o rapaz? Você o conhecia?

            - Não, eu nem o conhecia.

            - Então como ele foi parar em sua barraca, naquelas condições - indagou o homem, pondo o carro em movimento.

            - Quando começou a chover, eu corri para minha barraca. Estava toda molhada e então tirei a roupa e coloquei o roupão. Não me preocupei em vestir outra coisa, pois logo iria dormir mesmo...

            - E o rapaz, já estava lá? - interrompeu o pai.

            - Não, pai. Ele não estava lá. Eu já havia me deitado, comecei a ler e adormeci. Ele apareceu lá depois, todo molhado, dizendo que havia se perdido, por isso entrara na primeira barraca que lhe apareceu pela frente.

            - E por que você não o mandou para uma barraca onde tivesse algum rapaz? - indagou André.

            - Não sei, creio que fiquei com pena - afirmou ela, lembrando-se momentaneamente daquele rosto fascinante, daquela beleza indescritível, como a de um deus grego de seus livros de História Geral.

            - Pena? - retrucou o rapaz, num tom de voz irônico.

            - Sim, pena. Dei-lhe um outro roupão para que ele tirasse suas roupas molhadas...

            - E ele ficou nu? - interrompeu-a novamente André, cada vez mais enciumado.

            - Sei lá, não estava olhando. Ele colocou o roupão... Precisava secar as roupas dele.

            - Secar como? - insistiu o rapaz.

            - Secar, ora! - exclamou a garota, lembrando-se do detalhe. Secar como?

            - Acalme-se, André - pediu-lhe seu Ernesto, ao vê-lo exaltado.

            Compreendia a atitude do rapaz, mas ele precisava ser ponderado. Tudo se esclareceria.

            - Está bem. Ele ficou de roupão enquanto as roupas secavam. E daí? - perguntou o rapaz.

            - Daí ofereci-lhe o que comer e fui preparar um café. Conversamos um pouco ele parecia muito simpático e gentil, até que me abraçou e tentou beijar-me.

            - Tentou beijá-la? - exclamou André, cada vez mais nervoso e irritado.

            - Sim, tentou beijar-me.

            - E o que você fez, filha? - indagou o pai.

            - Empurrei-o. Ele tropeçou na cadeira e caiu sobre o bule de água quente que estava sobre o fogão.

            - Só isso? - perguntou André, assim que ela terminou o relato e calou-se.

            - Só isso! O que mais você queria? - retrucou ela, nervosa com as interrogações ciumentas do rapaz.

            - Não sei. Esperava que...

            - O que você esperava? Que eu lhe dissesse que as coisas não foram assim, que eu me comportei levianamente, que o recebi em minha barraca livremente, como se eu fosse uma aventureira qualquer?

            - Acalmem-se vocês dois - ordenou seu Ernesto. - Exaltarem-se de nada vai adiantar. Tudo me parece muito simples.

            - E para você, André? - indagou-lhe a moça, olhando-o ansiosa.

            A resposta foi um olhar enigmático, desconfiado, duro, descrente, que a feriu profundamente, André tinha que acreditar nela.

           

            Assim que repetiu as explicações para a sua mãe, despediu-se de André e comeu alguma, Betina dirigiu-se para seu quarto. Abriu a porta vagarosamente, pois dividia o aposento com sua irmãzinha e não tencionava acordá-la. Zezé, no entanto, ainda estava acordada e ficou observando a irmã caminhar lentamente até a cama e estender-se sobre ela, como se estivesse profundamente cansada.

            - Tudo legal, Tatá? - sussurrou ela.

            Não obtendo resposta, levantou-se e foi até a cama da irmã.

            - Por que você está chorando, Tatá?

            - Nada, não foi nada - respondeu Betina, com a voz embargada, enxugando as lágrimas com a manga do roupão, virando-se na cama para fitar a irmã.

            - Credo, que cara, Tatá!

            - Não foi nada, Zezé. Está tudo legal, vá deitar-se.

           - O que aconteceu? Conta pra mim.

            - Amanhã eu conto.

            - André já foi embora?

            - Sim, já foi.

            - Você estragou todos meus planos - disse a garotinha em tom de censura.

            - Eu? Por quê?

            - Se você não aparecesse, André seria meu namorado até sábado.

            Betina sorriu levemente.

            - Vá deitar-se, criança. Amanhã a gente conversa.

            - Tá legal! - concordou ela.

            Betina seguiu com os olhos a irmã, até que esta se acomodou em sua cama. Depois voltou a estirar o corpo em sua cama. Olhou para seus pés. Estavam enlameados. Passou a mão pelo rosto e pelos cabelos. Sentiu-se horrivelmente feia. Levantou-se preguiçosamente e olhou-se no espelho. Estava com um péssimo aspecto. Revirou as gavetas da cômoda até encontrar um maço de cigarros. Acendeu um e sentou-se na beirada da cama enquanto fumava.

            Terminado o cigarro, dispôs-se a tomar um banho. Retirou algumas peças do guarda-roupa, apanhou seu gravador e foi para o banheiro. Regulou o volume do aparelho bem baixinho, enquanto enchia a banheira com água quente. Mergulhou, depois, seu corpo cansado, sentindo-se repousada em contato com a água quente. Longo tempo permaneceu ali.

            Antes que adormecesse, porém, levantou-se, enxugou-se lentamente, apanhou o gravador e voltou para o quarto. Vestiu apenas a camisola e enfiou-se na cama, disposta a adormecer prontamente.

            Os últimos acontecimentos, no entanto, desfilaram por sua mente, desde quando o rapaz aparecera ensopado em sua barraca, até a discussão com André no carro. Seus pensamentos se fixaram na cena em que o rapaz caiu sobre a água quente. Um misto de horror e angustia causou-lhe um nó na garganta. Fora tudo tão repentino...

            Virou-se na cama procurando afastar aqueles pensamentos, mas, de repente, assaltou-a uma dúvida cruel: e se o rosto do rapaz ficasse deformado? E se aquela beleza imaculada se visse desonrada por cicatrizes e marcas?

            Tais indagações ecoaram em sua mente, parecendo enlouquecê-la. Um pesado sentimento de culpa oprimiu-lhe o peito. Tudo por sua culpa. Se não tivesse permitido que ele ficasse, aquilo tudo não teria acontecido. Se não tivesse tido a maldita idéia de ser agradável ao fazer um novo café, aquilo não teria acontecido. Se não tivesse resistido à idéia de ser beijada por ele, aquilo não teria acontecido.

            Mas, pensava ela, não poderia ter-se deixado beijar. Não que a idéia a desagradasse de todo. Ele era um rapaz bonito, um tanto ousado, mas simpático. E depois, estivera tanto tempo afastada de André... Sentia saudades de suas caricias, de seus beijos. Mas, nem por isso, poderia ter agido levianamente. E se as intenções do rapaz fosse realmente sinceras? E se ele apenas quisesse expressar seu agradecimento, nada mais?

            Era-lhe difícil coordenar seus pensamentos. Apesar do cansaço, teve certeza de que rolaria horas e horas em sua cama, até que conseguisse adormecer, atormentada pelas circunstâncias em que se vira envolvida.

 

            Assim que se despediu da família da namorada, André apanhou seu carro, mas não sentia vontade nenhuma de voltar para casa. Embora recusasse admitir, estava terrivelmente magoado com os acontecimentos. A todo instantes apalpava a caixinha de alianças em seu bolso, sem saber ao certo se elas seriam ou não usadas.

            Sentiu fome. Parou em uma lanchonete e enquanto fazia um rápido lanche, recordava-se dos beijos que haviam trocado no interior do carro. Havia sinceridade, ansiedade, paixão neles e nisso ele acreditava. Não aceitava, porém, o envolvimento de Betina com aquele outro rapaz. As explicações não o convenceram totalmente. O amor que sentia por ela o forçava a crer, mas o machismo ferido, a idéia de que poderia ter sido passado para trás, inconscientemente o forçava a desacreditar de tudo. Era-lhe amargo e difícil esse dilema.

            Terminado o lanche, voltou ao carro. Ficou sem saber que rumo tomar. Era madrugada. Apenas alguns raros carros passavam pelas ruas. Bêbados voltavam para casa. A chuva cessara e uma névoa finíssima dava ao colorido da cidade uma aparência de tristeza e inutilidade. A solidão pesou em seu peito.

            Lembrou-se do rapaz no hospital. Sentiu vontade de conhecê-lo, comparar-se com ele. Ligou o carro e dirigiu-se para lá.

            O médico de plantão era um velho conhecido seu.

            - Olá, André, como tem passado, meu caro - indagou o médico, assim que o viu.

            - Tudo bem, doutor Marcos.

            - Algum problema?

            - Não, estava sem sono...

            - Vamos tomar um café? - convidou o doutor, servindo-se de uma garrafa térmica sobre a mesa da sala de plantões.

            - Você me parece preocupado. O que houve afinal de contas? Essa de vir aqui por que estava sem sono não me convence.

            - Não é nada, não. Um conhecido meu que foi hospitalizado agora à noite - mentiu ele. - Aquele que queimou o rosto.

            - Ah, sei. Eu o atendi. Nada de grave.

            - Há perigo de uma deformação?

            - Creio que não. Temos que esperar. Queimaduras são imprevisíveis...

            - Posso vê-lo?

            - Ele está dormindo, mas se quiser, eu o levo até lá.

            Percorreram alguns corredores, até uma porta.

            - Se ele estiver acordado, evite falar - recomendou o médico, entrando junto com o rapaz.

            Assim que entrou, iluminado por uma pequena lâmpada na parede, André divisou um vulto estendido no leito. O rosto estava coberto de medicamentos, dando-lhe uma aparência grotesca, assustadora. apesar disso, pelos traços pode adivinhar que se tratava de um rosto belo, fazendo-o odiar aquele rosto grotesco, mas que já fora visto e talvez admirado em toda sua beleza pelos olhos de Betina.

            Agradeceu ao médico e saiu apressadamente. Sentia-se como fera enjaulada, como bomba prestes a explodir. Ligou o carro e saiu a toda, rumando para uma boate, onde pretendia desabafar tudo aquilo que ameaçava estourar dentro dele, enlouquecendo-o.

            Um sol pálido e esmaecido penetrou no quarto, assim que Zezé abriu as cortinas, fazendo Betina virar-se na cama e proteger os olhos com os braços.

            - Que horas são? - indagou ela.

            - Já é meio-dia. Você não foi à escola hoje? - indagou a irmãzinha. - Papai já está ai para almoçar e mandou acordar você - ajuntou, sem esperar resposta.

            - Está bem, está bem. Já vou me levantar - respondeu ela, espreguiçando-se, antes de atirar as cobertas para o lado.

           A lembrança dos acontecimentos da noite anterior desfilaram novamente por sua mente, distantes, longínquos, como se tudo não passasse de um pesadelo do qual acordara. O roupão amassado a um canto do quarto e os chinelos enlameados perto da cama, no entanto, vieram dar-lhe a certeza de que tudo fora irremediavelmente real.

            - Vá buscar uma xícara de café para mim - pediu à irmã, enquanto acendia um cigarro.

            - Você não vai almoçar?

            - Vou sim, só quero tomar um pouquinho de café.

            Enquanto a irmã atendia a seu pedido, levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Lavou o rosto e escovou os dentes, sempre olhando para si mesma no espelho. Penteou os cabelos curtos e lisos e voltou para o quarto. Vestiu uma calça comprida, camiseta sem mangas e uma jaqueta jeans. Calçou um tênis e deu uma última tragada no cigarro que esquecera aceso no cinzeiro, apagado-o depois.

            Zezé chegou com a xícara de café. Betina tomou alguns goles e, antes de descer, voltou ao espelho e olhou-se novamente. Tentou imaginar como ficaria seu rosto se lhe derramassem água fervente em cima. Inventou cicatrizes, distribuiu marcas e o resultado foi um estômago embrulhado que quase a fez vomitar.

            Sua mãe entrou no quarto e se aproximou dela. Abraçou-a e falou:

            - São tantas as armadilhas que o mundo coloca em nossos caminhos que às vezes é difícil reconhecer o certo do errado, o bem do mal, não acha, filha?

            - Está tudo bem, mãe.

            - Preocupo-me por você. E por André, também. É um bom rapaz e pareceu-me muito magoado ontem.

            - Depois de tanto tempo, mãe, pensei que ele tivesse mais confiança em mim.

            - Não se trata disso, filha. Os homens são melindrosos. Nós mulheres, temos que tratá-los com muito cuidado. Consegue-se tudo deles, desde que não os desagrademos.

            - André é inteligente, entenderá, mãe. Espero.

            - Mesmo assim, preocupo-me. Gostaria tanto que tudo desse certo entre vocês...

            - Eu também, mãe - completou Betina, sentindo queimar em seus lábios os beijos ávidos e cheios de saudade que recebera na noite anterior.

 

            Mário despertou, abrindo dolorosamente os olhos. Sua visão era turva e tudo que viu foi uma névoa esbranquiçada cobrindo contornos indefinidos. Um vulto se aproximou dele e uma voz feminina indagou-lhe:

            - Como se sente?

            - Bem, acho - falou ele, sentindo a boca pastosa e a língua um tanto desgovernada, efeito dos medicamentos que recebera.

            Abrir os olhos, falar ou fazer qualquer movimento com a cabeça eram atos difíceis e dolorosos, a principio. Todo o seu rosto se achava tomado por uma dormência incômoda que não chegava, porém, a minorar as dores que sentia.

            - Onde estou? - perguntou ele.

            - Hospital São Paulo - respondeu a enfermeira.

            - Que cidade?

            - Londrina.

            - Como vim parar aqui? - perguntou ele, tentando levantar a cabeça, mas arrependendo-se do movimento.

            - Trouxeram-no ontem à noite.

            - O que aconteceu comigo?

            - Queimou-se um pouco.

            - No rosto?

            - Sim.

            - Como está?

            - É o que vamos verificar agora.

            - O que vai fazer? - perguntou amedrontado, já conseguindo articular bem as palavras e perceber nitidamente o rosto bondoso de enfermeira que se aproximava dele com uma bandeja de medicamentos à mão.

            - Vou remover o curativo - informou ela.

            - Vai doer? - indagou ele, infantilmente.

            - Um pouco. Feche bem os olhos e a boca. Talvez arda um pouco, mas logo vai passar. Procure não se movimentar.

            O rapaz crispou seus dedos no lençol da cama, enquanto a enfermeira realizava seu trabalho.

            - Não foi tão grave - comentou a mulher.

            - Vou ficar deformado? - perguntou ele, num fio de voz.

            - Creio que não - respondeu ela calmamente.

            - Tem certeza?

            - Vou chamar o médico de plantão para examiná-lo. Ele poderá informá-lo melhor.

            - Está doendo - gemeu ele.

            - Não se agite nem passe a mão sobre o rosto. Enquanto isso, há dois rapazes ai fora que desejam falar com você.

            - Toni e Carlos?

            - Sim, foram esses os nomes que deram. Posso deixá-los entrar?

            - Claro, por favor.

            A enfermeira saiu e pouco depois entraram os amigos do rapaz. Ambos se aproximaram vagarosamente, examinando detidamente o rosto do amigo, com um misto de curiosidade e pena estampado em suas faces. A visão não era, realmente, agradável.

            - Como está meu rosto? - perguntou Mário, notando a expressão dos amigos.

            - Está mais ou menos - informou Toni.

            - Não queimou tanto - ajuntou Carlos.

            - Acham que vou ficar deformado?

            - Vê lá, rapaz - consolou-o Toni, sorrindo sem graça.

            - O que é isso, cara? - completou Carlos - Que bobagem!

            - Algum de vocês tem um espelho aí?

            - Não, não temos - responderam ambos.

            - Aqui no quarto tem algum? - insistiu.

            - Só se tiver no banheiro - informou um dos amigos, indo ao banheiro verificar.

            - Vocês me levam até lá? - pediu Mário, tentando se levantar.

            - Para quê? - indagou Carlos, surpreso.

            - Quero ver como ficou.

            - Não acho que seja prudente. Você pode ficar traumatizado - observou Toni, arrependendo-se imediatamente do que havia dito.

            - Traumatizado por quê?

            - É sempre uma visão desagradável - comentou Toni.

            - Vocês são umas bestas - esbravejou Mário - Já que não querem me ajudar, eu vou sozinho.

            Dispunha-se a realizar realmente o prometido, mas foi impedido pela chegada do médico, que o obrigou a voltar ao leito, realizando após, um exame minucioso e demorado no rosto de Mário.

            - Vou ficar deformado, doutor? - indagou o paciente, como se já estivesse obcecado pela idéia.

            Mário sempre tivera muito orgulho de seu rosto e estava consciente daquela beleza invulgar que tanto fascinava as garotas.

            - Não creio que você deva se preocupar com alguma coisa. Talvez fiquem leves marcas, manchas apenas, mas nada com que deva realmente se preocupar.

            - Então vou ficar marcado - soluçou ele com a voz embargada, fechando os olhos firmemente.

            - Não serão marcas visíveis - consolou-o o doutor.

            - Maldita garota! - murmurou ele entre dentes, com um misto de ódio e tristeza na voz, arrependido do momento em que tivera a idéia de se aproximar dela.

            - A enfermeira virá fazer um novo curativo - informou o médico, retirando-se.

            Mário ficou alguns instantes em silêncio. Seu cérebro se agitava. Reviveu os acontecimentos, sentindo a raiva crescer dentro de si. Betina teria que pagar por aquilo. A idéia de uma vingança falou alto dentro dele.

            - Como é que vieram parar aqui? - indagou aos amigos.

            - Viemos com a turma da excursão - informou Carlos.

            - Levantaram acampamento?

            - Sim.

            - Onde vocês vão ficar?

            - Por enquanto estamos na casa de uns amigos que arrumamos na volta, mas não vamos poder ficar lá por muito tempo. Estamos sem dinheiro, sabe?

            - Sei. Avisem lá em casa. Você telefona para lá. Carlos, avisando meu pai. Diga a ele para me mandar dinheiro.

            - Falo do acidente?

            - Pode falar, mas diga que foi coisa leve, sem gravidade alguma. Vou aproveitar o feriado escolar e passar alguns dias aqui. Não quero que ele venha, não por enquanto.

            - Certo. Quer mais alguma coisa?

            - Sim, quero que tomem algumas informações sobre aquela garota. Vejam se a família dela é rica, onde mora, coisas assim, entenderam?

            - Faremos isso - concordou Carlos.

            - Conte conosco - ajuntou Toni.

            - Apareçam aqui, mais tarde - pediu ele, assim que a enfermeira entrou para fazer-lhe um novo curativo.

            Quando ficou a sós, continuou a pensar em uma maneira de fazer Betina pagar por aquele incidente. Precisava humilhá-la, magoá-la para se sentir satisfeito. Precisava fazê-la sua e depois desprezá-la, como já havia feito com tantas outras garotas. Se conhecesse o suficiente sobre a natureza feminina, Betina viria visitá-lo brevemente. As mulheres são frágeis quando se explora seus pontos fracos. Se tudo que pensava desse certo, breve ela se arrependeria daquele maldito gesto que lhe custara tantos aborrecimentos.

 

            A cabeça doía-lhe terrivelmente e o estômago recusava-se a aceitar o café quente que em vão André tentava engolir. A noitada fora uma fuga total e o arrependimento vinha em forma de ressaca.

            Dirigiu-se ao banheiro e, no armário de parede, apanhou um comprimido antiácido. Examinou-se ao espelho, espantando-se com a pele de aparência macilenta e pálida, parcialmente coberta pelos fios da barba por fazer. Examinou os olhos avermelhados e a língua. Colocou o comprimido num copo e encheu-o de água, tomando-o em goles pequenos e acompanhados de caretas.

            - Veio tarde hoje, filho - observou o pai que chegava naquele momento para o almoço.

            - É, encontrei uns amigos...

            - Conversa vai, conversa vem, aquela velha estória, não é mesmo?

            André riu em resposta à observação do pai.

            - Cadê a mamãe? - indagou.

            - Deve ter ido ao cabeleireiro, ou a qualquer outra coisa semelhante. Vamos almoçar?

            - Acabei de tomar um café agora - apressou-se em dizer. - Estou sem estômago para engolir alguma coisa.

            - Viu a namorada ontem? - indagou-lhe o pai, enquanto se dirigiam à sala de refeições.

            - Vi, vi sim - respondeu o jovem, sem vontade de falar sobre o assunto, lembrando-se da garota e da noite anterior.

            - Como está ela?

            - Ótima, muito bem mesmo. E os negócios? - perguntou ele, procurando mudar o rumo da conversa.

            - Tudo correndo às mil maravilhas. Mas venha, faça-me companhia enquanto almoço - insistiu o homem.

            - Não vai esperar mamãe?

            - Tenho que voltar ao trabalho. E depois, seria uma tolice muito grande.

            - Tolice? Por quê?

            - Sua mãe, assim como eu, está envelhecendo. E as mulheres são vaidosas por natureza não admitem perder a beleza e a elasticidade. Estão sempre procurando evitar a ação do tempo.

            - Sim, e daí?

            - Vive atrás de salões de beleza, cabeleireiros, regimes mágicos, cremes fantásticos, ginásticas especiais, essas coisas todas. Procura a todo custo recuperar o que vai perdendo dia após dia.

            - Você disse isso num tom de voz irritado - observou o rapaz.

            - Se você soubesse o quanto ela gasta por mês em tudo isso, compreenderia a razão da minha irritação.

            - Imagino! - concordou o rapaz, tentando visualizar o que seria do corpo atualmente jovem, elástico e cheio de beleza de Betina, dentro de vinte anos. E o que seria dele, próprio? Um próspero engenheiro, barrigudo como o pai?

            - A mesada que lhe mando tem sido suficiente? - indagou-lhe o pai, já à mesa, servindo-se.

            André sentou-se também, mas não comeu nada. Ficou bebericando um copo de água gelada, sentindo enjôo a cada vez que olhava para os pratos servidos.

            - Tem, tem sim - respondeu ele. - Tenho até economizado um pouco...

            - Economizando? e economizando para quê? Pretende comprar outro carro? apartamento? O que, afinal?

            - Espere aqui, vou lhe mostrar - disse o rapaz, levantando-se e dirigindo-se até seu quarto.

            Ao apanhar a caixinha com as alianças, seu coração pesou, oprimido por uma desagradável sensação. Abriu a pequena tampa e ficou imaginando o faiscar das jóias contra a claridade, imaginando se iria realmente colocar aquilo um dia na mão de Betina. Seria ela digna de usá-la?

            Voltou lentamente para a sala exibindo a caixinha ao pai, todo orgulhoso, mas com um sorriso melancólico pairando no canto dos lábios.

            - De que se trata?

            - Abra e veja.

            - Um par de alianças? Quer dizer que pretende ficar noivo?

            - Sim, acho que sim.

            - E por que não me avisou antes? Eu teria providenciado algo menos discreto...

            - Foi justamente por isso que preferi fazer assim. Quis escolher eu mesmo.

            - Não era necessário isso, filho.

            - Eu quis assim, pai.

            - Bom rapaz, orgulho-me de você - disse o homem, levantando-se para abraçar o filho.

            - Posso saber o motivo dessa confraternização? - perguntou a mãe do rapaz, chegando naquele momento.

            - Nosso filho pretende entrar para o rol dos homens sérios.

            - Verdade, André? Quem é ela?

            - Betina, não é, mãe? Quem poderia ser?

            - Betina? - retrucou a mulher, fazendo morrer o sorriso de alegria que ostentava nos lábios desde que chegara, franzindo a testa preocupada.

            - O que houve, mulher? Não gosto da noticia? - repreendeu-a o esposo.

            - Betina? - indagou ela novamente. - Mas meu filho, logo ela?

            - O que há, mãe?

            - Betina é o nome que circula na manchete do dia dos escândalos sociais, conhecidos em todos os cabeleireiros e casas de moda chiques - explicou ela.

            - Por quê? - interpelou-a o marido.

            - Você já sabe de alguma coisa, André? - perguntou-lhe a mãe.

            - Sim, já fiquei sabendo - respondeu ele com tristeza.

            - E pretende ser noivo dela apesar de tudo?

            - Alguém quer me explicar o que está acontecendo? Vocês estão aí a trocar palavras e eu não entendendo nada - reclamou o pai do rapaz.

            - Acho bom você nem ficar sabendo - alertou-o a esposa.

            - Não, mãe. Acho melhor contar - contrariou-a o filho.

            - O que houve afinal de contas?

            Em rápidas palavras, mas não sem dar um pouco de suspense em tudo que dizia, a mulher explicou ao marido todos os acontecimentos ocorridos na noite anterior, envolvendo Betina e o rapaz desconhecido. E finalizou afirmando:

            - Se houve ou não alguma coisa naquela barraca, é coisa que André deve verificar muito bem e se assegurar de que escolheu a mulher certa. Não concorda comigo?

            O pai de André ficou assustado, olhando para o filho, sem saber o que dizer.

            - E então, pai. O que me aconselha fazer? - suplicou o jovem, tristemente.

            - Eu não sei, uma situação como essa é muito delicada. Quem diria?

            - E você, mãe. O que tem a me dizer?

            - É um problema que você mesmo terá que resolver. O simples fato de tudo isso ter acontecido, porém, é um alerta que você deve examinar com muito cuidado antes de tomar qualquer decisão. Não vou aconselhá-lo a precipitar-se e desmanchar o namoro, afastando-se dela. Não posso, também, aconselhá-lo a agir como se nada disso tivesse acontecido. É... É... Não sei mais o que dizer...

            - Está bem, mãe. Obrigado a vocês dois. Vou pensar muito bem no assunto. Prometo que resolverei tudo da melhor maneira - disse ele, fechando a caixinha de alianças e colocando-a no bolso.

            Será que a retiraria dali um dia para colocar uma das alianças na mão de Betina, a quem adorava e de quem desejava nunca ter que se afastar?

 

            Assim que Mário se viu novamente só, assaltou-o o desejo de olhar-se num espelho, mas, como havia recebido alguns sedativos, foi tomado de uma sonolência que em poucos instantes o fez adormecer. Seu sono foi agitado, talvez pelas dores que sentia, mas já não com a intensidade dos primeiros momentos.

            Quando acordou, foi com espanto que percebeu um vulto de mulher debruçado sobre ele. A principio não a reconheceu. Após dissipar-se os efeitos dos medicamentos, pode visualizar o rosto de Betina, olhando penalizada para ele. Ela esboçou um leve sorriso que ele tentou retribuir.

            Betina passara um longo tempo em sua casa, procurando ver se decidia ou não visitar o rapaz, tomar conhecimento de sua real situação. Como era véspera do dia sete, os alunos haviam sido dispensados das aulas para ultimarem os preparativos para o desfile que aconteceria no dia seguinte. Por esta razão ela não precisaria comparecer à escola, onde freqüentava o período vespertino.

            Chegar ao hospital fora fácil. O difícil para ela fora tentar encontrar o que dizer ao rapaz para se desculpar. O silencio seria embaraçoso demais para que pudesse suportar.

            Ao vê-lo adormecido, quando se decidiu finalmente a entrar, com uma máscara de medicamentos cobrindo-lhe o rosto, o sentimento de culpa que nutria dentro de si fez acelerar-lhe o coração e lágrimas brotarem furtivas, expressando seu desespero. A lembrança do quanto era belo aquela rosto a fez sentir-se a mais miserável das mulheres. Se conhecesse, porém, quais foram os motivos que levaram o rapaz a sua barraca na noite anterior, talvez não se sentisse daquela forma. O que sabia, no entanto, era que ele apenas tentara roubar-lhe um beijo e, por isso, ela havia imposto a ele, embora involuntariamente, um castigo maior que a culpa.

            Não pensara em André e nem o participara de sua decisão. A cena de ciúme da noite anterior dava-lhe a entender que de modo algum o rapaz permitiria aquela visita. Sabia que estaria magoando-o profundamente, mas precisava desculpar-se, livrar sua consciência de um fardo pesado demais para sua sensibilidade.

            Quando Mário abriu os olhos e finalmente percebeu a presença da garota, sentiu-se satisfeito. Entendeu que não se enganara: Betina era uma garota sentimental e sensível.

            Imaginava que ela se julgaria culpada pelo acidente. O importante era fazer dos sentimentos da garota uma arma a ser utilizada contra ela própria.

            Dissimulando todo seu ressentimento, cumprimentou-a cordialmente, esforçando-se em parecer sincero e convincente.

            - Olá! Que bom que você veio.

            - Olá! - respondeu ela, timidamente.

            - Não está assustada com a minha aparência?

            - Não, não estou. Você me parece ótimo.

            - Bondade sua. Quero agradecer-lhe - disse ele, após uma pausa, quando então procurou demonstrar que sentia dores horríveis. Tentava impressioná-la mais do que já estava.

            - Agradecer-me? Agradecer-me por quê? - indagou ela, surpresa.

            - Por ter tido tantos cuidados comigo, após tudo que lhe fiz.

            - Você não me fez nada.

            - Estava abusando de sua generosidade. Deixei-me levar pelas aparências, fazendo um péssimo julgamento de você.

            - Falsas aparências? Péssimo julgamento? Como assim?

            - Desculpe minha sinceridade, mas achei que, pelo fato de você haver permitido que eu ficasse em sua barraca, você fosse uma garota fácil, está entendendo.

            - Sim, estou sim. Perdoe-me por tê-lo decepcionado.

            - Não, não me decepcionou. Pelo contrario, fez-me acreditar novamente na existência da generosidade, do verdadeiro espirito de fraternidade.

            - Fiz o que qualquer outra pessoa faria - falou ela, recordando-se do impacto causado pela visão daquele rosto lindo e todo molhado naquela noite.

            - Não, você está só sendo gentil. Fosse outra garota, teria gritado, me mandado embora, sei lá. O fato é que percebi tarde demais que você era apenas uma boa moça, desinteressada e generosa.

            Mário falava observando o efeito de suas palavras na garota. De um estado de visível tensão, ela se tornava cada vez mais descontraída, crendo realmente na sinceridade do que lhe era dito.

            - Você faz tudo parecer culpa sua - observou ela.

            - Não, por favor - disse ele, colocando a mão sobre as dela, num gesto premeditado, mas que passou por espontâneo e involuntário.

            O contato daquela mão quente sobre as suas fez Betina estremecer. A figura de André, seus beijos, sua saudade, seu ciúme, tudo desfilou em sua mente, como coisas a que quisesse se apegar para não se deixar levar por um perigo ainda inconsciente.

            Mário percebeu sua reação e ficou mais satisfeito ainda. Betina estava muito abalada com os acontecimentos. Não seria difícil para ele vencê-la, subjugá-la.

            - Perdoe-me - apressou-se ele em dizer, assim que Betina teve consciência daquele gesto.

            - Oh, não foi nada - respondeu ela, mas sua voz tremia.

            - Você é sempre tão gentil assim? - comentou ele.    

           

A garota sorriu simpaticamente em resposta. Agradava-lhe os modos do rapaz, sua maneira de encarar o desagradável incidente que os aproximara.

            - Falando sério agora - continuou ele, voltando a segurar uma das mãos de Betina, que não esboçou nenhum gesto para impedí-lo. - Quero realmente que você me perdoe, sinceramente, de todo coração.

            - Perdoá-lo? Por quê?

            - Por tudo que lhe fiz, por pensar mal de você, por abusar de sua hospitalidade...

            - Quem deve se desculpar sou eu...

            - Não, você não.    

            - Eu sim - falou ela, veemente. - Fui precipitada, não medi as conseqüências de meus atos. E depois...

            Não terminou de falar, abaixando a cabeça envergonhada e corada.

            - O que foi? - indagou ele.

            - Nada, uma bobagem.

            - Vamos, diga. Parece-me importante.

            - Na verdade, ontem naquele momento não me desagradava a idéia de beijá-lo também. Mas você... Você foi tão precipitado - falou ela, tentando ser agradável para com o rapaz, certa de que, no fundo, não estava mentindo, apensar de que, analisando friamente, no fundo aquilo lhe parecesse um absurdo.

            Mário praguejou em pensamentos, amaldiçoando sua falta de tato. Tanta coisas teria sido evitada, tanta coisa poderia ter sido usufruída.

            Betina, já mais calma, meditando no que havia dito, tentou consertar:

            - Não vá me julgar mal por ter-lhe dito isso - pediu ela, voltando a encará-lo.

            - Não se preocupe. Acho-a cada vez mais maravilhosa.

            - E sua família, já foi avisada? Esqueci-me desse detalhe ontem à noite.

            - Não se preocupe com isso. Uns amigos meus já providenciaram isso.

           - O que o médico falou sobre seu rosto? - indagou ela, como que se livrando de algo desagradável.

            - Não foi assim tão grave. Em pouco tempo estarei bom novamente. Pena que terei que sair do hospital, mas o médico me disse que não poderei viajar. Não sei o que farei - comentou ele, apelando para a bondade da garota sutilmente.

           - O que acha de convalescer em minha casa? - indagou ela, tentando ser mais uma vez agradável, sem refletir nas conseqüências que poderiam advir daquele convite.

            - Em sua casa? - retrucou ele, tentando parecer surpreso, pois já esperava que ela imediatamente o convidasse...

            - Sim, em minha casa - insistiu ela.

            - Não sei se devo...

            - Deve sim. Afinal de contas, sinto-me culpada por tudo que lhe aconteceu. Deixe-me ajudá-lo, por favor.

            - E seus pais? O que dirão eles?

            - Não se preocupe com isso. Eles concordarão.

            Na verdade, o principal problema da garota não era aquele. Difícil seria explicar tudo aquilo a André. Tremeu só de pensar nisso.

 

            André, naquele momento, conversava com o médico, seu amigo, sem saber que Betina se encontrava no hospital. Falavam a respeito de Mário.

            - Após o exame inicial, não se podia ter realmente uma boa perspectiva do caso - explica o médico. - No exame realizado hoje, porém, contatei que não houve gravidade. O máximo que poderá acontecer são pequenas marcas, na testa, principalmente, mas quase imperceptíveis.

            - Não haverá, então, perigo de uma deformação?

            - Não de modo algum.

            - E quando ele poderá deixar o hospital? - indagou o rapaz, ansioso por se ver livre do outro.

            No fundo, o pressentimento de que Mário representava uma ameaça, tornava-se cada vez mais consistente. Perder Betina era coisa que André não desejava e tudo faria para evitá-lo.

            - Talvez amanhã. Não houve gravidade mesmo, assim, só haverá necessidade de um pouco de repouso e curativos periódicos que ele mesmo poderá fazer, pois são só aplicações de uma pomada apropriada.

            - Alguma coisa sobre a família dele?

            - Não, ninguém veio visitá-lo. apenas dois outros rapazes, creio que amigos dele.

            - E sobre ele, algum informação?

            - Seus amigos trouxeram seus documentos para o preenchimento da ficha de internação. Vinte anos, estudante ainda, reside em Assis...

            - Ele poderá viajar assim que sair do hospital?

            - Sim, não ha inconveniente algum, desde que ele proteja as regiões mais afetadas.

            - E as despesas do hospital?

            - O senhor Monteiro, pai de Betina, se prontificou em pagá-las. Não sei qual o envolvimento dele no caso...

            - O rapaz é um amigo de Betina - mentiu ele. - E sobre aqueles dois amigos dele, sabe onde poderei encontrá-los?

            - Não, não sei, mas me parece que voltarão aqui ainda hoje.

            André pensou no assunto. Precisava descobrir mais alguma coisa sobre o rapaz, antes de tomar qualquer atitude. Sabia, no entanto, que precisava afastá-lo de Betina, pois do contrário estaria ameaçado de perdê-la. O ciúme dominava seus pensamentos e ele não conseguia raciocinar de outra forma.

            Resolveu, portanto, ficar nas imediações do quarto do ferido, até descobrir dos dois amigos que lhe poderiam ser úteis.

 

            Betina já havia retornado a sua casa. Encontrava-se em seu quarto. Havia tomado um rápido banho e estava tentando encontrar as palavras certas para contar a seus pais sobre o convite que fizera a Mário.

            A primeira reação deles, sabia ela, seria contrária àquilo. confiava, porém, na bondade dos pais e esperava convencê-los a aceitar o fato. Outro problema, porém mais grave, seria enfrentar André, Betina não conseguia encontrar um argumento que pudesse convencer o namorado.

            Encontrava-se, na verdade, um tanto desorientada, talvez reflexos emocionais da situação que se vira obrigada a enfrentar. Seus nervos, estavam a flor da pele, seu raciocínio era lento e desconexo, às vezes. O que ela precisava era de um bom descanso.

            - Você não vai desfilar amanhã? - indagou Zezé, entrando no quarto, vestida de baiana.

            - Eu ainda não sei. E você, vai a algum baile de fantasia?

            - Não, isso faz parte da apresentação que vamos fazer durante o desfile.

            - Que apresentação?

            - Vamos representar todos os estados e territórios do Brasil, entre...entre...

            - Integrados - ajudou-a Betina.

            - Isso mesmo, integrados pela comunidade, entendeu?

            - Acho que sim. Papai e Mamãe estão aí?

            - Mamãe está, papai ainda não chegou, mas já está quase na hora dele vir. Por quê?

            Betina não respondeu. Terminou de vestir-se e foi para a sala, onde encontrou sua mãe.

            - E então, filha. Vai desfilar amanhã?

            - Não me sinto realmente bem, mamãe - disse ela, sentando-se ao lado da mãe no sofá.

            - O que houve? - indagou-lhe a mãe, percebendo seu nervosismo.

            - Não sei, acho que estou um pouco abalada ainda...

            - Posso imaginar.

            - Mãe - disse ela, enquanto estalava os dedos das mãos - Eu convidei aquele rapaz para ficar aqui em casa por uns dias, até melhorar...

            - Aqui em casa? Você está ficando doida?

            - Eu acho que devo isso a ele.

            - De modo algum, filha. Depois daquilo que ele fez, você não deve nada a ele. Já basta a despesa do hospital que seu pai vai pagar.

            - Mesmo assim, mãe. Ele não tem para onde ir...

            - Nós nem conhecemos o rapaz ainda - protestou a mãe.

            - Nem por isso. Ele me pareceu muito agradável, educado, atencioso e gentil.

            - Pois sim! O que André pensa acerca do assunto?

            - André? Depois eu explicarei isso a ele.

            - E você acha que ele vai concordar?

            - Ele vai me entender.

            - E se não entender?

            - Se não entender? Não sei, não pensei nisso ainda.

            - Pois devia pensar. Essa atitude vai desagradá-lo muito. Acho-o muito bom, não creio que mereça isso. Fiquei sabendo pelo seu pai a cena de ciúme de ontem à noite?

            - Não se repetirá.

            - E se ele ameaçar terminar o namoro?

            - Ele não fará isso, mãe - disse a garota, mas sem muita convicção.

            As palavras da mãe a fizeram refletir melhor sobre o assunto. Talvez não tivesse sido uma boa medida haver convidado Mário para ficar em sua casa. Os pensamentos se embaralharam em sua cabeça.

            Seu pai chegou naquele momento e sua mãe o pôs a par da decisão tomada pela jovem.

            - Não creio que seja ponderado fazer isso, filha.

            - Mas eu já convidei o rapaz, pai.

            - Pode cancelar o convite.

            - Vai ficar chato se eu voltar atrás.

            - Posso dizer que você não está sendo coerente, filha? E depois, creio que André merece mais consideração, isso vai ser uma grande desfeita para ele.

            - Eu me entenderei com André, pai.

            - Vai ser desagradável, tanto para mim como para sua mãe, conviver com aquele rapaz. Minha vontade a todo instante vai ser esmurrá-lo e você tem que me dar razão. Não espere que eu seja gentil para com ele.

            - Quer dizer que concorda?

            - Pode se dizer que sim, mas que ele se comporte direito e que, assim que estiver melhor, parta desta casa. Terei o prazer de enxotá-lo daqui se ele me der chance - disse o homem, severamente.

            Faltava convencer André. Isso deixava a garota realmente preocupada. Amava-o e sabia que isso iria feri-lo profundamente.

            Desejou ser coerente e voltar atrás com aquele convite.

 

            - E então, o que descobriram? - indagou Mário a Toni e Carlos.

            - O pai daquela garota é rico à beça.

            - É? E o que ele é?

            - Industrial, investidor, advogado e economista. Mora no melhor bairro da cidade e tem uma casa com piscina e tudo - informou Toni.

            - Então está tudo bem - disse Mário apoiando-se nos cotovelos para se levantar.

            - O que você está tramando? - perguntou Carlos.

            - Um negócio aqui comigo. Aquela menina vai me pagar por essas férias forçadas.

            - Você não vai se meter em outra fria, vai? - indagou Toni.

            - Que nada. Ela está ajudando um bocado. Imaginem vocês o que aquela garota fez?

            - Se você vai dizer que ela se prontificou a pagar a despesa do hospital, já sabemos - falou Carlos.

            - Não é nada disso.

            - O que é então?

            - Ela me convidou para passar uns dias em casa dela.

            - Essa garota está maluca - comentou Toni.

            - Doida varrida - ajuntou Carlos.

            - Ela está se sentindo culpada e quer me compensar.

            - E você vai aproveitar a situação?

            - É claro que sim. Vou dobrá-la direitinho, vocês vão ver. E lá em casa, você avisou, Carlos?

            - Sim, eu falei com seu pai.

            - E o que o velho disse?

            - Deu aquela bronca de sempre. Queria vir até aqui buscá-lo, mas convenci-o a não o fazer.

            - E o dinheiro?

            - Ele disse que mandaria mil cruzeiros por ordem bancária telefônica para este banco - disse Carlos, entregando-lhe um papel.

            - O que é isso?

            - Um formulário para você assinar. Já passamos pelo banco e tomamos as providencias. Assim que você assinar o papel nós o levaremos até lá junto com sua carteira de identidade.

            - Sai hoje o dinheiro?

            - Agora mesmo. Assine o papel que nos iremos buscá-lo imediatamente, antes que o banco feche.

            - Está legal, arranje-me uma caneta.

            Mário assinou o formulário e entregou-o ao amigo. Carlos e Toni saíram para ir ao banco. André que se encontrava ali perto viu-os sair e aproveitou a ocasião para falar com eles.

            Chamou-lhes a atenção e com o intuito de obter algumas informações, mentiu-lhes:

            - Sou um conhecido do pai do rapaz que vocês acabaram de visitar. Fiquei sabendo que ele estava hospitalizado e, como vou para Assis agora, gostaria de levar algumas informações para o pai dele. Como está ele?

            - Está ótimo - informou Carlos.

            - Não está precisando de nada?

            - De modo algum. Ele está muito bem colocado agora - disse Toni.

            - Bem colocado? Por quê? - perguntou André, interessado.

            - Arranjou uma garota aí e parece que ela vai dar-lhe toda assistência, sabe como é? - disse Carlos.

            - Não, não entendi.

            - A estória é meio complicada, sabe? A garota foi a causadora do acidente que o trouxe ao hospital e agora pretende compensá-lo pelo sofrimento causado.

            - O que ela vai fazer?

            - Vai levá-lo para a casa dela e tratar dele, sabe como são as mulheres, não é?

            - Ela deve estar caidinha por ele - disse Toni.

            - Deve ser isso. Mário sempre foi boa pinta. As garotas não resistem a ele - ajuntou Carlos.

            - Então... Então está tudo bem com ele, não é?

            - Pode dizer ao pai dele para ficar tranqüilo. Ele não poderia estar melhor - disse Carlos, afastando-se com o amigo.

            André ficou parado, cheio de dúvidas. Seus pensamentos rodopiavam e o ciúme cegou-o mais uma vez. Betina o estava passando para trás por um menino bonito simplesmente. Precisava fazer alguma coisa.

 

            Naquela noite, em casa de Betina, a atmosfera estava cheia de tensão. André foi recebido pelos pais da garota que demonstravam claramente o mal-estar que sentiam pela situação em que a filha os pusera. Não falaram nada, entretanto, a André, preferindo deixar que Betina lhe expusesse o assunto, sem saber que ele já tinha conhecimento do fato. Betina apresentou-se calada, cheia de reservas. A única que não perdera a espontaneidade foi Zezé, alegre e brincalhona como sempre:

            - Vai me levar ao circo hoje, André?

            - Hoje não, Zezé. Vou sair com Betina.

            - Onde vão?

            - Talvez ao cinema, não decidimos ainda.

            - Não se esqueça que você me prometeu levar-me ao circo.

            - Não me esquecerei - prometeu o rapaz.

            Pouco depois, já no carro, percorrendo as ruas movimentadas e coloridas, Betina, que então nada dissera, perguntou-lhe:

            - Onde vamos?

            - Que tal irmos até minha casa?

            - Fazer o que lá?

            - Ouvir uns discos novos que eu trouxe.

            - Não tem graça...

            - Por que não? Sempre fazemos isso quando eu volto de São Paulo.

            - Não estou com vontade hoje.

            - Vamos até lá. Se você não gostar dos discos, nós iremos ao cinema ou onde você quiser.

            - Está bem - concordou ele, finalmente.

            Precisava contar-lhe, mas ali, ao lado dele, vendo sua silhueta delinear-se contra o colorido das lojas, tudo aquilo perdia o sentido. Amava-o. O fato de haver feito aquele convite a Mário era uma grande tolice que ela não conseguia explicar.

            André sabia que Betina tinha algo a lhe contar e que contaria. apesar do ciúme que o dominava, precisava manter a calma. Os amigos do outro rapaz poderiam ter dito uma mentira. Olhando Betina, no entanto, seu silencio, a maneira como ela se portava, cada vez se convencia mais de que ela havia realmente feito aquele convite.

            Pouco depois chegaram à casa de André. O rapaz estacionou o carro na garagem, desligou as luzes e virou-se para a namorada. Olhou-a longamente, admirando-lhe os contornos, a suavidade das linhas de seu rosto, aquele narizinho arrebitado, os cabelos curtos e sedosos.

            Betina olhava-o também, cheia de ternura. Tudo ficou distante, quando ele se aproximou dela e enlaçou-a.

            - Eu amo você, Betina. Amo demais.

            - Eu também o amo, André - sussurrou ela, entregando seus lábios aos dele.

            Abraçaram-se e beijaram-se fortemente, esquecendo-se dos problemas, da cidade que fervilhava lá fora, dos acontecimentos passados, concentrando-se no presente que se resumia na união de seus lábios apaixonados.

            - Ele a beijou assim? - disse o rapaz numa pausa, ofegante.

            - O que você está dizendo, André? - indagou ela.

            - Estou falando dele, daquele palhaço que você convidou para ir até sua casa, que ficou com você naquela maldita barraca, sabe qual é?

            - André, você está fora de si.

            - Sim, estou sim. Como você acha que devo ficar, sabendo que a mulher que amo aceita qualquer um em sua companhia?

            - Você está sendo injusto.

            - Acha que poderá me dar explicações convincentes?

            - Eu... Eu... - gaguejou a garota, sem encontrar realmente uma boa explicação.

            - Eu não disse? E eu que pretendia ficar noivo de você - disse ele, acendendo a luz interior do carro e exibindo para ela a caixinha de alianças.

            Betina apanhou-a com as mãos tremendo e abriu-as. Seus olhos se encheram de lágrimas felizes quando viu as alianças.

            - Oh, André? - exclamou ela, abraçando-o e beijando-o.

            O rapaz permaneceu indiferente, como pedra.

            - O que houve? - indagou ela.

            - Betina, pelo amor de Deus, ajude-me a compreendê-la.

            - Compreender-me? Compreender-me por quê?

            - Você está fazendo coisas que eu não consigo entender. Aquele rapaz...

            - Aquele rapaz? O fato é que você não crê em mim. Não acreditou em uma palavra do que eu disse. Acha que me comportei como uma... como uma...

            - Sim, isso mesmo - explodiu ele, incapaz de controlar por mais tempo suas emoções.

            - Se você acha assim, vai ouvir o que deseja ouvir - gritou ela em seus ouvidos. - Aconteceu tudo como você está pensando. Ele apareceu em minha barraca, eu o deixei entrar como teria deixado qualquer outro. Nos divertimos bastante, até que aconteceu um lamentável acidente que interrompeu nossa noitada. Está satisfeito agora? - concluiu ela, exaltada.

            - Não, ainda não. Falta uma coisa.

            - O quê?

            - Isto - disse ele fora de si, abraçando-a e beijando-a com violência, ao mesmo tempo que procurava despi-la.

            Betina percebeu o estado em que se encontrava o rapaz e, por isso, esbofeteou-o fortemente. após a bofetada, André imobilizou-se, abobalhado, como se recobrasse a razão. Depois debruçou a cabeça sobre o volante do carro e chorou, não sabendo se de raiva ou de dor, ódio ou amor.

            Betina arrumou a roupa que ele desarrumara e ficou contemplando-o, enternecida. Aconchegou-se a ele e acariciou-lhe os cabelos, até que ele se acalmou.

            - Perdoe-me - disse ele, envergonhado. - Vou levá-la para casa. Creio que é o fim para nós dois, não é?

            - Não - protestou ela. - Eu amo você, André.

            - Mas Betina, tudo que está acontecendo...

            - Você precisa pensar melhor, André. Tudo é tão confuso para mim às vezes.

            - Você tem razão. Deixei-me levar pelos sentimentos...

            - Adoro-o por isso. Eu deveria ter sido mais calmo...

            - Não brinque. Eu deveria ter sido mais calmo...

            - Para ser sincera a você, André, eu estou arrependida de haver feito o convite. Na verdade, nem sei ao certo por que o fiz.

            - Então cancele-o. Diga a ele que desista, que suma de sua vida. Já bastam os problemas que ele causou.

            - Vou fazer isso.

            - Hoje mesmo?

            - Amanhã cedo eu irei ao hospital e direi a ele que tudo foi um engano. Agora vamos entrar e ouvir aqueles discos?

 

            No dia seguinte, porém, antes que Betina fosse ao hospital, Mário recebeu alta e, juntamente com os dois amigos, tomou um táxi e dirigiu-se para a casa da jovem.

            - É uma bela casa realmente - comentou Mário, assim que chegaram - Eu os vejo depois - disse ele, preparando-se para cruzar o portão.

            - Espere um pouco aí, Mário - interrompeu-o Carlos. - eu e Toni precisamos acertar umas coisas com você.

            - O que vocês querem?

            - Sabe como é, você é rico, boa pinta, mas nós não somos nada. Estamos na pior. Você quer a garota, nós queremos e precisamos de outra coisa. O pai dela é rico, deve ter alguma coisa de valor. Não será difícil você afanar umas coisinhas e passar para nós. Ninguém vai suspeitar de você, já que não serão encontradas com você.

            - Espere aí, eu já paguei o trabalho de vocês. Dei-lhes quinhentos cruzeiros, metade do meu dinheiro.

            - Isso não é nada, Mário - falou Carlos - E depois se o seu dinheiro acabar, basta você ligar para seu pai que ele lhe manda mais. Nós não podemos fazer isso.

            - E se eles descobrirem?

            - Não descobrirão. Você é muito esperto e já fez isso antes para nós.

            - Está bem, eu faço isso.

            - Está legal. mais tarde nós passaremos por aqui. Olhe, deixe o que conseguir na lata de lixo que nós apanharemos. Quanto tempo você pretende ficar?

            - Ainda não sei. Tudo vai depender de como eles me aceitarem. Se eu precisar de vocês, onde poderei encontrá-los?

            - Nós nos mudamos para uma pensão perto da rodoviária.

            - Tem telefone lá?

            - Tem sim. Mais tarde nós ligaremos para cá e lhe daremos o número - finalizou Carlos.

            - Feito. Até mais tarde, então - despediu-se Mário, entrando portão a dentro.

Apertou a campainha e esperou. Ainda era cedo, mas a cidade se movimentava. Colegiais passavam vestidos a rigor para o desfile. Um e outro alegórico, cheio de estudantes, buzinava rua acima, rumo ao ponto de concentração. os ônibus percorriam as ruas, carregando alunos barulhentos.

            Zezé, vestindo seu traje de baiana, apareceu à porta.

            - Por favor, é aqui que mora a Betina?

            - É minha irmã - respondeu a garota, olhando com curiosidade para o rosto do rapaz, coberto por curativos nos pontos onde as queimaduras precisavam ser protegidas.

            - Posso falar com ela?

            - Espere um pouco que eu vou chamar. Ela deve estar dormindo ainda.

            - Está bem, eu espero.

            Zezé dirigiu-se ao quarto da irmã, toda garbosa em seu traje.

            Betina dormia ainda. Havia dialogado longamente com André na noite anterior, ouvindo os discos que ela trouxera. Reafirmaram o amor que os unia e concordaram em ficar noivos no dia que amanhecia naquele momento. André iria à hora do almoço até sua casa e juntos comunicariam a decisão aos pais da garota. Ela estava feliz. Mário fora um pesadelo que passaria, ou pelo menos era o que pensava. A conversa com André servira para clarear-lhe a mente. Os beijos que trocaram foram promessas de felicidade.

            - Acorde, Tatá - disse Zezé, empurrando-a na cama.

            Betina espreguiçou-se languidamente e, ainda sonolenta, olhou para a irmã.

            - Bom dia, Zezé. Você está bonita hoje.

            - Obrigada. E você não vai desfilar?

            - Não, não vou.

            - E a diretora não ficar brava com você depois?

            - Não, nós fomos dispensados por causa da excursão.

            - Tem um moço aí fora querendo falar com você.

            - Não é André?

            - Não, não é. Não conheço ele.

            - Como ele é?

            - Não sei, está com o rosto todo machucado.

           Betina sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, amolecendo seu corpo. Mário se antecipara a ela, vindo logo cedo para sua casa. Ficou sem saber o que fazer, olhando espantada para a irmã.

            Depois, resoluta, apanhou o telefone e ligou para André.

 

            Quando André chegou, Betina fumava nervosamente na grande sala de visitas de sua casa. Seu pai havia saído para levar Zezé ao colégio, para o desfile. sua mãe não se encontrava na sala, por isso ela se sentiu aliviada com a presença do rapaz.

            Até então estivera trocando palavras com Mário, sem dar um rumo definido à conversa. Sentia-se embaraçada e nervosa com a presença dele.

            André cumprimentou a garota, ao mesmo tempo em que olhava desconfiado e ameaçador para Mário.

            - Este é Mário - disse-lhe Betina.

            - Já o conhecia - respondeu o rapaz secamente.

            - Não tive o prazer ainda - falou Mário, levantando-se.

            - Eu já o vi ontem no hospital. Você estava dormindo. Gostaria de falar a sós com você.

            - Não vejo motivos para isso. Afinal, quem é você?

            - Sou namorado... Noivo de Betina.

            - Noivo, é? - retrucou Mário cinicamente.

            - Podemos falar?

            - Se você quiser...

            - Podemos usar a biblioteca, Betina? - pediu André.

            A garota os conduziu até lá, deixando-os sozinhos. André acendeu um cigarro e encarou o outro rapaz.

            - É uma bela casa, não é? - comentou Mário.

            - Quais são suas intenções? - indagou André, sem responder ao comentário, num tom seco.

            - Que intenções? Não entendo você.

            - Por que você veio aqui?

            - Betina me convidou, ora.

            - Não era essa a intenção dela.

            - Não foi isso o que ela me disse ontem no hospital.

            - Você não é desejado nesta casa. Depois de tudo que fez ainda tem coragem de aparecer aqui?

            - Calma lá, rapaz. Você está engrossando.

            - Sim, e vou piorar se você não se explicar.

            - Não há que explicar. Fui convidado.

            - Você não presta mesmo - falou André, irritado pelo cinismo do outro.

            Mário não respondeu. Olhou André, enquanto apanhava um grande cinzeiro sobre uma escrivaninha.

            - O melhor que você tem a fazer é dar o fora daqui - intimou-o André.

            - Está bem, então segure isso - disse Mário, atirando o cinzeiro para André, ao mesmo tempo em que retirava um dos curativos do rosto e se jogava sobre uma cadeira, caindo com grande estardalhaço.

            - Você está louco? - indagou André, agarrando o cinzeiro.

            Em resposta a isso, Mário pôs-se a gritar por socorro. Betina, sua mãe e seu pai, que acabava de chegar, irromperam porta a dentro, deparando com André, estupefato, segurando o cinzeiro, enquanto que Mário se contorcia no chão, como se estivesse ferido.

            - O que está havendo aqui? - indagou seu Ernesto.

            - Ele quer me matar - berrou Mário.

            - É mentira - defendeu-se André.

            - Ele me atingiu com o cinzeiro - disse Mário, mostrando o rosto onde havia arrancado o curativo.

            - Ele é louco - disse André, ainda chocado com a farsa desempenhada por Mário.

            - Ajudem-me aqui - pediu Mário.

            André olhou para Betina.

            - Você tem que me acreditar, Betina. Eu não fiz nada, ele se jogou ao chão...

            - Não esperava isso de você, André. Que falta de respeito. Afinal de contas, o rapaz é nosso hospede - disse seu Ernesto, amparando Mário.

            - Mas seu Ernesto, eu não fiz nada - defendeu-se o rapaz.

            - E esse cinzeiro aí, para que era? - indagou Mário.

            - Miserável! - exclamou André, avançando para o outro, no que foi contido pelo dono da casa.

            - É melhor você se acalmar, André. Você está muito nervoso - aconselhou D. Jacira.

            - André, por você fez isso? - recriminou ela.

            - Eu não fiz nada, Betina. Esse sujeito é um farsante - disse com a voz tremula, apontando Mário, confortavelmente instalado em uma poltrona.

            - Venha, vamos conversar lá fora - pediu ela.

            André deixou-se levar por ela que o conduziu de volta à sala, onde ele narrou o que realmente acontecera na biblioteca.

            - O problema agora - disse ela - é que papai vai se sentir muito magoado com isso. Se ao menos você pudesse ter evitado essa briga.

            - Foi tudo muito rápido. Ele me apanhou de surpresa, simulou tudo perfeitamente.

            - O que faremos agora?

            - Depois disso acho que seu pai vai se sentir obrigado a proteger o rapaz, não é?

            - Temos que lhe explicar.

            - Esse sujeito é mais inteligente do que eu pensava. Que cinismo, que frieza ele tem. Acho até que ele deve ser um pouco louco para fazer o que fez.

            - Papai vem vindo aí. Vejamos o que ele tem a dizer.

            Seu Ernesto entrou no aposento, seguido pela esposa e por Mário. Seus rostos eram sombrios.

            - Sinto muito, André, mas sou obrigado a pedir-lhe que deixe esta casa - disse o homem, procurando ser cortês.

            - O quê? Mas...

            - Sinto muito, André. Sempre o recebemos bem e o tratamos com muito carinho. Não merecíamos isso de você - acusou-o o homem.

            - Mas esse incidente...

            - Não se trata disso - interrompeu-o seu Ernesto, severamente.

            - De que se trata então? - indagou o rapaz.

            - Foram as palavras que você disse a este rapaz - disse ele, apontando Mário.

            - E o que foi que eu disse?

            - Que minha filha... bem, você sabe o que disse - interrompeu-se o homem como se o que tivesse a dizer fosse realmente muito grave.

            - Mas seu Ernesto...

            - Por favor, André. Retire-se.

            - Betina, você vai permitir isso? - indagou o rapaz, olhando suplicante para a namorada.

            - Pai, o que ele disse?

            - Prefiro não repetir, filha.

            - Mas o senhor vai acreditar nele, seu Ernesto?

            - Você está fora de si, André. Perdeu a cabeça e acabou dizendo o que não devia.

            Sem outra solução, André se viu obrigado a deixar a casa, furioso com a trama elaborada por Mário.

            Enquanto isso, em outra parte da cidade, num quarto de pensão, Toni e Carlos conversavam.

            - E se o Mário nos colocar numa situação difícil? - indagou Toni ao amigo.

            - Não se preocupe com isso. Conheço bem aquele tipo. Apesar de ter tudo na vida, gosta mesmo é de malandragem.

            - Sei lá. Você vai ligar para ele agora?

            - Sim, vamos até o corredor. Tenho o número do nosso telefone para dar a ele.

            Carlos consultou a lista e discou o aparelho. pouco depois falava com Mário.

            - Anotou o número?

            - Sim, já anotei.

            - Como é que está o ambiente aí?

            - Sob controle total - disse Mário.

            Estava sozinho na biblioteca, atendendo ao telefone.

            - Houve alguma bronca?

            - O namorado da garota apareceu aqui, mas eu liquidei com ele. - Foi um negócio incrível, rapaz. Nunca estive tão inspirado.

            - E o que você notou de interessante para nós por aqui?

            - Por aqui? Deixe-me ver - disse Mário, examinando o aposento em que se encontrava - Tem um gravador aqui, serve?

            - Muito grande?

            - Portátil, coisa fácil de carregar.

            - Está legal. Embrulhe-o e deixe na lata de lixo.

            - Nós vamos sair agora para ver o desfile. Vou deixá-lo na lata para vocês. Será fácil, não ficará ninguém na casa.

            - Ótimo, assim dá gosto trabalhar.

            - Mas vai ser só isso. Não quero me comprometer demais. Já conquistei o velho na conversa. Ele disse até conhecer meu pai lá em Assis.

            - Então você está bem arrumado.

            - Tranqüilamente. Se tudo der certo, ficarei muito bem aqui.

            - E a garota?

            - Está meio arisca, mas eu a dobro.

            - Até mais tarde, então.

            Mário desligou o telefone e ficou pensando. Talvez não devesse se precipitar. Breve teria que retornar a cidade, não poderia ficar ali indefinidamente. Agora que tinha tudo nas mãos, o simples fato de já haver conseguido comprometer a situação do namorado de Betina, já era uma vitória importante. O doce sabor da vingança já começava a ser saboreado. precisava conquistar Betina e submetê-la a seus propósitos. Já sabia que André retornaria naquela noite para São Paulo. Assim, não precisava ter pressa. O importante era ficar bem com a família. Além disso, seu rosto não era ainda aquela arma fulminante de que podia dispor. Teria que esperar até que ele se curasse, mas isso não o preocupava. Com André afastado, tudo poderia ser feito com calma, sem a pressa que graves conseqüências lhe trouxera naquela noite, na barraca.

            Apanhou o gravador, escondeu-o debaixo da camisa. Dirigiu-se ao quarto que lhe fora destinado na casa. Apanhou a camisa que usara na noite do acidente embrulhou nela o aparelho furtado. Calmamente saiu até o portão e atirou o pacote na lata de lixo.

            Quando retornava, encontrou-se com seu Ernesto que o observava à porta.

            - O que houve? - indagou o homem.

            - Minhas roupas, estavam muito sujas e manchadas. Joguei-as fora. Estavam irrecuperáveis - disse ele, calmamente.

            - Já está pronto para irmos ao desfile?

            - Sim, já estou - disse o rapaz, abaixando a cabeça, simulando estar muito constrangido.

            - Você parece preocupado, o que há?

            - É algo que preciso explicar-lhe. Creio que o senhor tem direito a isso.

            - De que se trata?

            - Sobre o acidente, seu filha se comportou decentemente, seu Ernesto. Houve apenas um mal entendido. Nós jovens temos, cada um, sua maneira própria de expressar agradecimentos. Eu sou expansivo, Betina não me entendeu, mas não a reprovo. Demonstra ter um bom caráter, fazendo valer a educação que recebeu.

            - Vamos esquecer o caso - pediu o homem, totalmente convencido dos bons propósitos de Mário - Vamos ao desfile?

 

            André conversava com seu pai, a quem expusera todo o acontecimento, quando o telefone soou.

            - É para você, filho - avisou-o sua mãe, passando-lhe o aparelho.

            - Sabe quem é?

            - Acho que é Betina.

            - André sou eu, Betina.

            - O que houve, amor? Algum problema? - indagou o rapaz, ansioso.

            - Não, não houve nada. Estou aqui em casa. Papai, mamãe e Mário foram ao desfile. Eu não quis ir porque não suportaria a companhia daquele miserável.

            - Quer que eu vá apanhá-la?

            - Sim, poderíamos ir juntos.

            - Eu vou para aí imediatamente. Você já está pronta para sair?

            - Vou mudar de roupa enquanto espero você. Estarei pronta quando você chegar.

            - Não demoro. Um beijo.

            André desligou o telefone satisfeito. Apesar de tudo, Betina ainda estava ao seu lado. Mas ele tinha, no entanto, medo do que Mário pudesse realizar. Já mostrara ser um tipo muito esperto e não hesitar ante qualquer obstáculo. Precisava agir com cautela contra ele.

            - E então, pai. O que me sugere? - indagou André ao pai, antes de sair.

            - É realmente inacreditável isso tudo que você acaba de me contar.

            - Aquele tipo é traiçoeiro e premeditado.

            - Creio que o melhor que você tem a fazer é tentar recuperar a confiança do Ernesto. Se ele o mandou embora de sua casa deve ter sido levado por alguma invenção muito convincente daquele rapaz.

            - Sim, ele deve ter me caluniado. Felizmente Betina ainda crê em mim e me ama. Vou agora apanhá-la para vermos o desfile.

            André tomou seu carro e rumou para a casa da jovem. Quando se aproximava, no entanto, de lá, notou os amigos de Mário nas proximidades da casa de Betina. Diminuiu a marcha e ficou observando os dois rapazes.

            Quando os viu abrirem a lata de lixo e retirarem um pacote de roupas, ficou intrigado. Ao vê-los desvencilharem-se da roupa, porém, e manusearem o gravador enquanto se afastavam, tudo se aclarou. Acelerou o carro e alcançou-os.

            Toni, ao vê-lo, correu imediatamente. Carlos, embevecido em examinar o aparelho, só deu pela presença de André quando este o agarrou fortemente pelo braço, prendendo-o.

 

            - Muito bem, rapaz. Agora você vai nos explicar essa estória todo - intimou André, sentando-se ao lado de Betina, na sala da casa da jovem.

            Carlos, à frente deles, cabisbaixo, torcia as mãos nervosamente.

            - O que você vai fazer comigo? Vou ser preso? - choramingou o rapaz.

            - Se você explicar tudo isso de modo convincente, eu o deixarei ir - propôs André.

            - O culpado de tudo é o Mário - confessou o rapaz, prontamente.

            - Imagino que sim, mas qual o interesse dele em tudo isso? Ele não é rico? - indagou Betina, chocada com o acontecimento.

            - É, ele é rico, mas vive aprontando das suas.

            - Como assim? - indagou André.

            - Vive cercado de processos, é um maníaco sexual - falou Carlos.

            - Um maníaco? você deve estar brincando - exclamou Betina, horrorizada.

            - Não estou brincando, não. Por que você acha que ele foi parar na sua barraca naquela noite?

            - Estava perdido, creio eu...

            - Você é ingênua mesmo. Era tudo premeditado. Nós ocupávamos a mesma barraca. Na hora da chuva ele viu você correr para lá e sabia que estaria sozinha. Esperou um pouco e depois saiu andando calmamente na chuva, para se molhar bastante e impressioná-la. Ele é um sujeito muito esperto, isso é.

            - Não posso acreditar? - exclamou a garota.

            - Ele já aprontou tantas lá onde moramos que nenhum pai o deixe se aproximar de suas filhas.

            - E o gravador? - indagou André.

            - Já que ele vinha para cá aproveitar a chance de se aproximar da garota, nós achamos que também poderíamos tirar proveito da situação. Eu e Toni o acompanhamos há algum tempo, sabemos do que ele é capaz.

            - Então muito bem. Você vai nos ajudar a desmascará-lo - disse André.

            - Você não vai me deixar ficar junto com ele vai? Quando ele souber o que eu fiz, vai querer me matar - protestou Carlos.

           - Não vai, não. Nós daremos um jeito nele. Vamos preparar tudo para isso. Meu plano é o seguinte, Betina...

 

            Um pouco mais tarde, após o desfile, a família retornou. Mário vinha confiante em si, pois conversara bastante com os pais de Betina, além de já haver feito amizade com Zezé, que os acompanhou na volta. Era, realmente, dotado de uma facilidade incrível para cativar as pessoas.

            Quando chegaram, ao entrar, deram com Betina e André, conversando na sala.

            - O que você está fazendo aqui? - indagou seu Ernesto ao vê-los juntos.

            - Eu já estava de saída, seu Ernesto. Vim apenas me despedir de Betina. Vou voltar para São Paulo esta noite mesmo.

            - Espero que seja breve, então.

            - O que o André fez, papai - indagou Zezé.

            - Depois nós explicaremos. Agora ele tem que ir intimou o homem.

            - Eu já estou saindo. Vim apenas deixar esta fita para Betina ouvir - disse ele, entregando à garota a fita gravada - Quer experimentá-la já?

            - Sim, vou buscar o gravador - disse Betina, levantando-se e dirigindo-se à biblioteca.

            Mário ficou na defensiva. Não esperava que a falta do aparelho fosse notada assim tão cedo. Mesmo assim, não se desesperou. Ninguém poderia acusá-lo de alguma coisa, já que estava na casa havia pouco tempo. Se fosse necessária uma revista em sua bagagem, nada seria constado, já que aquela hora Toni e Carlos deveriam tê-lo apanhado na lata de lixo.

            Foi com espanto, porém, que viu Betina voltar com o aparelho, colocá-lo sobre a mesa de centro e ligá-lo. Mais espanto ainda foi quando ouviu a voz de Carlos, através da fita, acusando-o.

            - O que é isso? - protestou.

            - Vamos ouvir até o final. Não está gostando? - ironizou André.

            - De se trata afinal? - perguntou o dono da casa, olhando surpreso os presentes.

            - Ouça bem a gravação primeiro, seu Ernesto. Ela explica muita coisa - disse André, aumentando propositadamente o volume.

            - Isso é uma calúnia - protestou Mário - Não sei de nada do que estão ouvindo. É alguma trapaça para me incriminar. Ele que se vingar de mim.

            - Isso é o que veremos, meu caro. - falou André, tranqüilamente.

            - Desligue isso aí, vamos - ordenou Mário, cada vez mais nervoso.

            - Não, vamos ver primeiro quem quer se vingar de quem - continuou André.

            - Seu Ernesto, o senhor não vai acreditar nisso aí. Ele forjou tudo isso - falou Mário, tentando convencer o dono da casa.

            - Confesso que estou estarrecido - respondeu-lhe o homem.

            - Mais estarrecido ainda vai ficar, quando ouvir o resto, seu Ernesto - falou André.

            - Não vão ouvir mais nada - disse Mário, avançando para o gravador e arrancando a fita. - Você não pode provar nada.

            - Não posso? Tem certeza? - indagou-lhe André, sorrindo enigmaticamente.

            - Você pode provar isso, André - indagou o dono da casa.

            - Sim, tenho uma testemunha para provar tudo. Aliás, foi ele mesmo quem gravou a fita.

            - Onde está aquele miserável - indagou Mário.

            - Bem atrás de você, Mário -disse Carlos, que até então estivera oculto na biblioteca.

            - Miserável, você me entregou.

            - O que você queria que eu fizesse? Se eu for preso, ninguém vai aparecer para me soltar. Para você tudo é mais fácil. Seu pai tem dinheiro, é influente, você não ficaria muito tempo na cadeia. Não vou me condenar por culpa sua, isso nunca.

            - Foram vocês que me obrigaram a fazer isso.

            - Você já fez isso antes, rapaz. E foi por puro prazer - continuou Carlos.

            - É mentira - protestou Carlos, já quase fora de si.

            - A idéia de tudo partiu de você. Se não pretendesse vingar-se da garota, nada disso teria acontecido. Vamos, agora não adianta fingir mais.

            - Quero meu pai, chamem meu pai - gritou Mário, atirando-se a uma poltrona e enterrando a cabeça entre as mãos.

            Seu Ernesto, D. Jacira, Zezé e a própria Betina estavam emudecidos após toda a cena.

            - Eu gostaria de tê-los poupado tudo isso - disse André, dirigindo-se ao futuro sogro.

            - É inacreditável. Como podemos nos enganar assim com as pessoas - exclamou o homem - Creio que lhe devemos desculpas pela injustiça que cometemos.

            - Não há o que desculpar, seu Ernesto. Esse indivíduo é muito esperto, pena que não seja correto. Poderia ter aproveitado de outra maneira seu potencial dramático.

            - O que faremos com eles?

            - E se o senhor quiser, posso levá-los para a Delegacia - propôs André.

            - Deixe-me ir embora e nunca mais voltarei aqui.

            - Acha que podemos acreditar nele, André?

            - Talvez. Não sabemos até que ponto ele pode ser sincero.

            - Eu juro, não voltarei a incomodá-los novamente. Não quero que meu pai fique sabendo, ele me expulsaria de casa.

            - Pois sim! - exclamou Carlos.

            - Cale a boca você, seu traidor - berrou Mário.

            - Eu conheço você, Mário.

            - Se eu aparecer aqui de novo, podem contar para meu pai - propôs o rapaz, agindo como se fosse uma pobre criança desprotegida.

            André sorriu amargamente e disse ao dono da casa.

            - Acho que podemos acreditar nele. Vamos deixá-los ir embora.

            - Os dois?

            - Sim, não há motivos para nos envolvermos com a policia. Poderia ser muito embaraçoso, não acha?

            - Creio que você tem razão. E depois graças a Deus nada aconteceu. Mas sinto realmente não poder dar uma lição nesse moleque. Ele deve andar precisando de um pulso firme para colocá-lo no bom caminho.

            - Eu vou me emendar - disse Mário suplicante.

            - Está bem, podem ir, Jacira apanhe a bagagem dele lá no quarto - ordenou seu Ernesto.

            Pouco depois, cabisbaixo, totalmente derrotado, Mário e Carlos deixaram a casa. Um pouco mais afastado, Toni os esperava ansioso.

            - Ei, turma, o que houve? - indagou ele.

            Mário olhou para Carlos, a principio cheio de rancor. Depois seu rosto se abriu num sorriso velhaco, até que ele explodiu numa gargalhada, ao mesmo tempo em que abraçava o amigo.

            - Você não presta mesmo, Mário - disse o outro, em tom de brincadeira.

            - Nada como um dia depois do outro, amigo velho - comentou o líder do grupo.

            - Vamos partir para outra? - propôs Toni.

            - Tranqüilamente. Vamos voltar para ver como estão as menininhas de nossa cidade, vamos?

            - Só se for agora - disse Carlos.

            - Neste minuto - falou Mário, apressando o passo, seguido por Carlos.

            - Enquanto isso, alguém poderia me contar o que aconteceu naquela casa? Fiquei com um medo danado, rapaz - disse Toni, acompanhando o passo dos amigos.

            - Você precisava ver como o Mário chorou - começou Carlos. - Foi como naquele vez em que...

 

            Naquela noite, antes de partir de volta para São Paulo, André levou seus pais à casa de Betina e numa cerimônia simples ficaram noivos.

            - Fico muito satisfeito e feliz por tê-lo como meu futuro genro - disse Seu Ernesto. - Além disso, quero me desculpar mais uma vez pelo mal juízo que fiz de você. Deixei-me levar pelas palavras daquele rapaz.

            - Já lhe disse uma vez e volto a repetir. Aquele indivíduo enganou a todos, não foi?

            - Não foi, não. Ele não enganou você, André - disse Zezé, segurando a mão do rapaz.

            - Mas confesso que, em alguns momentos, cheguei a duvidar de mim mesmo, tal a comédia desempenhada por ele.

            - E o circo, quando você vai me levar?

            - Prometo-lhe que, no fim do ano, quando eu voltar definitivamente, vou levá-la sempre ao circo.,

            - Pretende se estabelecer aqui mesmo em Londrina? - indagou seu Ernesto.

            - Sim, papai já me encaminhou a um amigo que pretende montar uma firma especializada em construções e precisa de um engenheiro como sócio. Assim ficaremos todos juntos, não é mesmo, querida? - indagou à noiva, abraçando-a.

            - Sim, querido - concordou ela, radiante.

            - Vamos dar uma volta? - convidou ele.

            - Claro, onde iremos?

            - Ao cinema. Meus pais aguardarão nossa volta, não é mesmo?

            - Sim, nós o esperamos - respondeu-lhe o pai.

            - Ótimo - disse ele baixinho.

            - A que horas você pretende partir? - perguntou-lhe a mãe.

            - De madrugada - respondeu ele.

            - Então, não podemos demorar muito - advertiu Betina.

            - Não demoraremos. Até logo pessoal.

            Despediram-se e saíram alegremente. A cidade movimentada e colorida os envolveu logo em seguida, enquanto rodavam pelas ruas.

            - Ei, espere aí. Para onde você está me levando?

            - Para minha casa - disse ele sorrindo.

            - Não íamos ao cinema?

            - Todos os acontecimentos nos fizeram perder um tempo precioso. Quase não tivemos tempo para conversar direito. Estou com os nervos à flor da pele. Ainda nem a beijei como eu gosto, querida.

            - Mas em sua casa? Não tem ninguém lá. Seus pais estão em minha casa.

            - Nós estaremos lá sozinhos, o que acha? - disse ele estendendo o braço direito para abraça-la.

            - Acho delicioso - murmurou ela, aconchegando-se carinhosamente a ele.

 

                                                                                 L. P. Baçan  

 

                      

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