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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM ESTRANHO EM CASA / Patrícia MacDonald
UM ESTRANHO EM CASA / Patrícia MacDonald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Patrícia MacDonald, escritora Norte-Americana, nasceu em 1949 e as suas obras, de uma imaginação obscura, têm sido aclamadas por milhares de leitores em todo o mundo.

Paul, uma criança de 4 anos, é raptada no jardim dos pais, perto de Nova Iorque. Todas as buscas são vãs. Onze anos mais tarde, enquanto apenas a mãe está convencida que o filho se encontra vivo, acontece algo de espantoso: a mãe adoptiva de Paul anuncia antes de morrer, que vai devolver o adolescente aos pais. Quanto ao pai adoptivo, presumível autor do rapto, desaparece... O que se passou exactamente onze anos antes? Um livro alucinante, construído de forma original, uma vez que o enigma do rapto só se põe verdadeiramente depois do regresso da criança raptada.

 

 

 

 

Impelido por uma mão pequena e roliça, o descapotável vermelho subiu com dificuldade o monte de terra, para depois se despenhar, aos trambolhões, na pequena cova que havia do outro lado.

- Mãe, olha! O carro estampou-se. Subiu o monte e depois caiu.

Pousando os pés no chão do alpendre, Anna Lange travou o movimento suave da cadeira de balouço e sorriu ao filho:

- Tu é que o fizeste cair, Paul.

A criança olhou-a, radiante, satisfeita por ela lhe ter estado a dar atenção. Limpou o rosto sujo com o braço igualmente sujo e sacudiu a cabeça com um ar malicioso.

- Não fui nada. Ele é que caiu.

Anna não pôde deixar de rir ao vê-lo sentado na relva, todo contente, com a T-shirt às riscas e os calções azuis já completamente cobertos de terra. Do chapéu de marinheiro que o filho trazia na cabeça, Popeye piscava-lhe o olho e exibia o seu gigantesco músculo. Ela tinha virado a aba para baixo, a fim de proteger do sol o rosto de Paul, o que obrigava a criança a inclinar a cabeça para trás quando olhava para a mãe. Anna reparou que as meias dele tinham descaído e quase desapareciam nos calcanhares dos minúsculos sapatos de ténis.

Imitando com a boca o ruído de um motor, Paul conduziu o automóvel para fora da vala.

- Agora tenho de me despachar e ir para o trabalho disse ele. Avançando de cócoras, a criança manobrou o carro pelo portão de madeira da zona reservada às brincadeiras, em direcção à caixa de areia, onde uma escavadora amarela jazia sobre um dos lados. Paul abandonou o carro junto à caixa de areia, entrou e acomodou-se ao lado do brinquedo maior. Entrou no camião e começou cuidadosamente a rodar a manivela que fazia a pá descer, tarefa na qual concentrava agora toda a sua atenção.

O sol reflectia-se nos caracóis revoltos, cor de âmbar, que se aglomeravam em volta da aba do chapéu de Paul, conforme ele, de cabeça baixa, cumpria a sua missão.

Anna olhou com amor o filho e pensou que novas viaturas esperariam no dia dos seus quatro anos, no mês seguinte. Os seus pais já tinham oferecido ao neto todas as marcas e modelos de veículos disponíveis em Detroit.

Uma brisa flutuou pela tarde quente e Anna ergueu a cabeça, agradecida. Pousou uma mão protectora na barriga ligeiramente dilatada. Setembro era, sem dúvida, uma má altura para suportar uma gravidez. Estava de três meses e tudo parecia afectá-la com maior intensidade. O calor era mais opressivo a humidade mais sufocante do que nos outros Verões, sem contar, claro, com o Verão em que Paul nascera. A recordação fê-la abanar a cabeça. Pelo menos, Tracy tivera o bom-senso de nascer em Junho.

- Tu, Roscoe - disse, afagando a barriga -, parece que vais chegar no Ano Novo. - Thomas e Anna tinham dado ao novo membro da família a alcunha de Roscoe, tal como costumavam chamar Mordmer a Paul e Ciem a Tracy, ao longo dos meses que precederam os respectivos nascimentos.

Paul, que falava e cantarolava baixinho enquanto prosseguia as suas escavações, acrescentou mais uma pazada de areia às muitas que se amontoavam à sua frente, até que a montanha se precipitou no buraco ao lado, como num terramoto.

A Criança gritou de fúria e frustração.

- Então, Paul- repreendeu Anna, - Tracy está doente - Virou a atenção em direcção da casa, onde a porta das traseiras e as janelas estavam abertas. Na véspera, a filha tinha apanhado uma daquelas constipações de Verão e passado a noite com febre. O pediatra garantira que não era nada de grave, mas toda a noite a criança chorara, desconsolada. Conseguiu finalmente adormecer de madrugada, depois de uma série de banhos de hamamélis e de muitos mimos de Anna. Paul fitou a mãe com uns enormes olhos castanhos e inocentes:

- Ela não pode vir brincar agora?

- Hoje não, querido. Ela não se sente bem. Brinca tu. Paul retomou a sua brincadeira e Anna fechou os olhos por uns instantes. Estava cansada, depois de uma noite inteira a sossegar Tracy para Thomas conseguir descansar um pouco. Tinha uma reunião com o director financeiro da empresa às nove horas e ela sabia que uma boa noite de sono era importante para ele. Se o choro de Tracy incomodou Thomas, este não tocou no assunto ao pequeno-almoço. Estava exactamente como nos outros dias: bem-disposto, absorto.

- É espantoso - dissera ela, uma vez. - Às vezes penso que já estás no emprego, mesmo antes de saíres da cama.

Thomas respondera à piada com uma careta, mas o sorriso da mulher tranquilizou-o. Trabalhava mais do que qualquer outro homem que ela conhecia, tudo pelo bem-estar da mulher e dos filhos. O sucesso não constituía para ele um objectivo em si, apenas um meio de sustentá-los, de protegê-los. Era uma verdadeira obsessão, a necessidade que sentia de tomar conta deles. «Sou uma mulher de sorte», pensou Anna.

Abriu os olhos e olhou para o fundo do quintal, para a sombra e o arvoredo que o cercavam e transmitiam uma sensação de privacidade, de isolamento. O único som que rompia o silêncio absoluto era o canto dos pássaros e o rumor de um ou outro carro que circulava, quase imperceptivelmente, pela frondosa Millgate Parkway, uma estrada velha, ladeada por árvores, que seguia orgulhosamente até Stanwich, passando pelas mais belas e ricas mansões da risonha Fairmont.

Tinham ido parar àquela região graças ao trabalho de Thomas. A casa deles era das menos grandiosas. Na verdade, aquela linda moradia antiga fora, em tempos, a habitação do caseiro de uma enorme propriedade. Os vizinhos mais próximos, os Stewart, viviam na casa grande da mesma quinta, vendida separadamente muitos anos atrás. A casa dos Lange parecia pé-
quena ao lado da elegante mansão dos Stewart, mas tinha espaço mais do que suficiente para a jovem família e era magnífica, em comparação com os outros edifícios e apartamentos onde tinham vivido.

Anna sorriu ao recordar o orgulho que Thomas sentia pela casa que lhe oferecera. A infância do marido fora caótica, com um pai ausente e uma mãe alcoólica, que o arrastava do colégio interno para o apartamento junto ao caminho-de-ferro e vice-versa. Teve que trabalhar para pagar os seus próprios estudos na universidade, onde se conheceram e casaram e, ao fim de muito esforço e tempo, tinha chegado a director financeiro adjunto da Phelps Corporation, sediada em Nova Iorque. Pouco depois de a sua promoção lhe ser comunicada, Thomas levara Anna a ver aquela linda casa vitoriAnna nos arredores de Stanwich.

- Deve ser muito cara - protestara ela. - Como é que vamos conseguir pagar uma casa destas?

- Temos de conseguir - respondera tom, provocando-a.

- Precisamos de espaço para a tua tralha toda.

Anna rira com a velha piada. Era verdade. Coleccionava garrafas antigas, secava e guardava todas as flores que ele lhe oferecia e era incapaz de deitar fora uma revista que ensinasse a fazer uma camisola ou uma receita que talvez um dia quisesse experimentar. Não foi preciso muito tempo para a casa nova ficar cheia. Se Thomas se preocupou com o preço, nunca lho deu a entender. Bem, mas ele era óptimo a esconder as suas preocupações. Por vezes, Anna temia que o marido desenvolvesse uma úlcera.

Farto de brincar, Paul abandonou a caixa de areia e decidiu explorar os arredores. A mãe viu-o caminhar pela relva e depois dobrar-se para apanhar um dente-de-leão, que soprou com força.

Anna levantou-se da cadeira do alpendre e foi ao encontro do filho.

- Queres andar de baloiço? - perguntou-lhe. Paul fez que sim com a cabeça, cheio de entusiasmo, e puxou pela mão que ela lhe estendia. Caminharam juntos em direcção ao baloiço, ao fundo do jardim. Quando estavam a chegar, Paul largou a mão da mãe e correu para o baloiço, sentou-se num pulo e esticou os pés, impaciente.

- Lá vai - disse Anna. - Segura-te bem.

Mal ela se aproximou, Paul soltou um grito e desceu. Atravessou o jardim, tão depressa quanto as suas pernas rechonchudas lhe permitiram, a rir e a gritar:

- Olha, um gatinho! Podemos ficar com ele?

- Era só o que me faltava - exclamou Anna, olhando para o céu.

O gato preto e branco que aparecera na orla do bosque ficou uns instantes imóvel, de bigodes eriçados, a ver a criança correr feliz para ele, esbracejando freneticamente. De repente, deu meia volta e fugiu que nem um foguete para a segurança das árvores. Paul seguiu-o obstinado, sem se importar com os ramos e as folhas que lhe arranhavam as pernas.

- Não, nem pensar - disse Anna, agarrando o filho e devolvendo-o ao território civilizado do relvado.

Paul rompeu em lágrimas.

- Quero o gatinho - choramingou.

- Estás a ficar muito pesado - queixou-se Anna. Mais uns dias e já não consigo andar contigo ao colo. O gatinho teve que ir para casa dele.

Paul foi a chorar todo o caminho. Enfiou o dedo na boca e começou a chuchar ruidosamente, enquanto as lágrimas continuavam a correr.

- Mas o que vem a ser isso? - perguntou a mãe, em tom de censura. - Pensava que já te tinhas deixado dessas coisas.

Paul esfregou os olhos com uns punhos pequenos e sujos. Anna ajeitou-o ao colo.

Já perto de casa, ouviu o choro baixo, mas inconfundível, de Tracy. Colocou Paul no chão e estendeu-lhe a mão:

- Anda. Vamos ver como está a Tracy.

- Não - protestou Paul, amuado. - Não quero.

- Está bem - concordou Anna, pegando nele e depositando-o dentro da zona reservada às brincadeiras, rodeada por uma cerca que Thomas construíra. - Então fica aqui a brincar enquanto eu vou lá dentro vê-la. Tem juízo - disse, acenando com o indicador e baixando o trinco da pequena cancela. - Se te portares bem, quando voltar trago-te uma bolacha.

Inconsolável, Paul olhou para ela e voltou a enxugar as lágrimas. Espreitou por cima do ombro, para o bosque onde o gato desaparecera.

- O gatinho?

- O gatinho foi-se embora, Paul. Agora brinca.

Anna subiu a correr os degraus das traseiras e empurrou a porta.

- Já vou, querida - gricou, contornando a bola e o bastão de críquete que estavam no chão do vestíbulo, e correu pelas escadas que iam dar ao quarto da filha.

Quando Anna entrou no quarto cor-de-rosa e amarelo, banhado pelo sol, Tracy estava em pé na cama de grades, a choramingar. Assim que viu a mãe rompeu num choro desesperado. Anna pegou no bebé aflito e começou a falar-lhe num tom suave. O pijama de Verão da filha estava encharcado em suor.

- Oh, coitadinha. É horrível estar doente com este calor, não é? Pobre Tracy. - Anna   voltou a deitar Tracy na cama, mas a criança começou outra -vez a soluçar. Anna continuou a falar numa voz doce, enquam-to escolhia uma nova muda de roupa na gaveta impecavelmente arrumada, depois foi num pulo à casa de banho buscar uma toalha molhada. Olhou para o relógio e viu que estava na hiora de lhe dar mais uma aspirina infantil.

De volta ao quarto de Tracy, Anna tirou a roupa ensopada e passou um pano húmido pelo corpo febril da filha. Mostrou-lhe o pijama seco:

- Olha o Snoopy - disse, apontando para o desenho. O que é que ele está a fazer?

Tracy examinou-o com curiosidade enquanto Anna lhe vestia o novo pijama.

- O Snoopy está doente declarou solenemente a criança.

Anna afastou uma madeixa de cabelo macio da testa quente da filha.

- Isso mesmo. Como a uninha querida - e Anna mostrou-lhe os dois comprimidos cor-de-laranja que tinha na mão.

- Não quero - resmungou a criança, sacudindo a cabeça.

- Tem de ser - disse Anna -, para tu e o Snoopy ficarem bons.

A criança aceitou os comprimidos que Anna lhe estendia. Mastigou-os e bebeu um pouco de água do copo que a mãe lhe encostou à boca, mas que ela segurou com as suas mãozinhas quentes.

mais não - exclamou de repente, empurrando o copo. Um fio de água escorreu-lhe pelo queixo.

- Está bem - respondeu Anna. - Onde está o Fubby? -- Anna. procurou no berço o coelho que Tracy adorava morder. Encontrou o brinquedo entalado entre a cama e a parede e entregou-o à filha, que choramingava. Tracy abraçou o coelho esboçando um ligeiro sorriso.

Queres que te conte uma história? - Anna apontou para uma pilha de livros numa mesa ao lado da cadeirinha da filha.

Não - respondeu Tracy, de mau humor.

E   uma cantiga para adormeceres? Tracy fez que sim com a cabeça:

A dos Winkies - pediu. Anichou-se na cama e Anna começou a cantar. Os soluços da criança foram desaparecendo com os versos da canção. Quando Wynken, Blynken e Nod chegaram ao mar prateado, já as pálpebras de Tracy estavam fechadas. Anna acariciou o pequeno corpo e saiu do quarto em bicos de pés. Tracy dormia profundamente, com o polegar enfiado na boca.

Anna desceu as escadas para ir ter com Paul. Quando chegou ao vestíbulo, o telefone começou a tocar. Correu para o atender antes que tocasse segunda vez.

- Estou?

Olá, Anna, é a íris. Estás com pressa? Pareces ofegante.

Ah, olá, íris. Estava lá em cima com a Tracy. Tem andado adoentada e acabei de adormecê-la. A vizinha desculpou-se imediatamente.

Oh, espero que o telefone não a tenha acordado. Anna escutou.

Silêncio total - respondeu, para tranquilizar a amiga

- Diz lá!

Bem, já era para te ter falado nisto há mais tempo. Tenho de ir a um chá, organizado pela comissão de melhoramentos da aldeia, e queria que viesses comigo. A Lorraine olha pelas crianças. Pode ir para aí, se não quiseres acordar a Tracy. Anna ficou admirada com a insistência dela. íris, uma mulher tímida e pouco comunicativa, tinha uma intensa vida social e ia a muitas festas, sempre contrariada e, na opinião de Anna, por insistência do seu marido. Para Edward, um milionário que subira a pulso, o estatuto social era a coisa mais importante do mundo, ao passo que a mulher, que pertencia a uma das famílias mais nobres de Nova Inglaterra, em vez de adorar a alta sociedade parecia abominá-la. Passava a vida a convidar Anna para a acompanhar a chás e festas de caridade, oferecendo-lhe os serviços da sua criada, Lorraine, para ficar a tomar conta das crianças. De vez em quando, Anna aceitava, pois, ao contrário de íris, apreciava a companhia de outras pessoas e sempre era uma maneira de sair e se distrair um pouco. Mas uma criança doente era um motivo mais do que suficiente para prender uma mãe em casa; no entanto, pensou Anna, talvez íris não compreendesse, visto que não tinha filhos. Anna recusou o convite sem hesitar.

- Hoje não, íris. Não sou capaz de deixar a Tracy doente em casa. Mas agradeço na mesma.

- Oh! - respondeu íris, visivelmente decepcionada. Bem, fica para a próxima.

Anna sentiu alguma pena da amiga, pois sabia como esta ficava pouco à vontade naquele género de reuniões, em especial quando não a tinha a seu lado. Parecia não gostar da vida que levava. Se não fosse Edward, pensou Anna, íris passava o tempo todo em casa, a ler os seus livros e a pintar as suas aguarelas.

- O Paul está lá fora - disse Anna -, tenho de ir ter com ele. Obrigada pelo convite, íris.

As duas mulheres desligaram e Anna dirigiu-se à porta das traseiras. Pelo caminho, lembrou-se da bolacha prometida. Voltou atrás, entrou na despensa e ao fim de algum tempo encontrou as bolachas de manteiga preferidas de Paul. Anna tirou duas para ele, depois, após uns segundos de hesitação, uma para si. Andava sempre esfomeada quando estava grávida. Voltou à porta das traseiras, abriu-a e saiu para o pequeno alpendre.

- Paul - chamou. - Trouxe a tua bolacha. - A criança não respondeu. Não o viu dentro da cerca. «Deve estar na caixa de areia», pensou.

Com a testa ligeiramente franzida, Anna desceu os degraus e correu para a zona reservada às brincadeiras.

- Paul - chamou mais alto. Foi até à cancela e estendeu a mão para o pequeno trinco. - Onde estás? - perguntou. Agarrou-se à cerca e olhou lá para dentro. O filho não estava lá.

Sentiu um nó formar-se-lhe na garganta. Os seus olhos esquadrinharam a zona das brincadeiras, a caixa de areia. A escavadora amarela lá estava, deitada de lado. O carro vermelho, encostado à parede da caixa de areia. Mas não via a criança em lado nenhum.

- Paul - balbuciou Anna a custo. O seu olhar desvairado passou a pente fino a área delimitada pela cerca e de repente fixou-se. Reparou, atónita, que a cancela estava aberta, com um vão de cerca de vinte centímetros.

Anna agarrou-se à cerca, esmagando sem querer as bolachas entre a mão e o trinco. .

- Paul! - gritou. - Paul! - Não conseguia mover-se. Respirava com dificuldade, as pernas pareciam enfiadas em cimento. Olhou para o fundo do quintal, ofegante. Então as palavras saíram, todas ao mesmo tempo:

- Paul, ouves-me? Responde à mãe!

O jardim silencioso e vazio brilhava à luz do sol quente daquela tarde de Julho. Libélulas zumbiam no relvado, entre as sombras recortadas das folhas. Por detrás do baloiço e do abrigo de jardim, ao fundo da propriedade, as árvores rumorejavam no bosque escuro e fresco. Não havia sinais da criança. Não estava ali.

Anna largou a cerca e obrigou-se a caminhar. Como uma vítima de enfarte a ensaiar os primeiros passos, avançou gradualmente em direcção ao fundo do jardim. Os seus olhos viravam-se em todas as direcções, procurando um sinal, ainda que mínimo. Um fragmento da T-shirt às riscas, o branco do chapéu de marinheiro, uma mancha de pele cor-de-rosa entre a folhagem.

- Paul! - gritou.

Como tinha ele conseguido sair? Parou um instante e olhou para o trinco. Um dos parafusos que o prendiam à cancela não estava lá. O trinco pendia, inútil, na porta. «Porque é que eu não verifiquei se isto estava seguro? Provavelmente bastou um puxão», pensou.

Onde se teria ele metido? Lembrou-se imediatamente do gato. Paul tinha ficado fascinado com o gatinho. Foi com certeza procurá-lo no bosque. Não pode estar longe.

Agora a correr, Anna meteu-se entre as árvores, gritando, rouca, pelo filho. Corria desvairada para um lado, depois para outro. Uma sombra castanho-dourada chamou-lhe a atenção.

- Paul - chamou. Um feto seco ondulou diante dos seus olhos repletos de lágrimas. Continuou, tropeçando no solo coberto de musgo e folhas, os olhos a saltar de árvore para árvore. Ao longe, ouvia-se o ronco dos carros que passavam na estrada, enquanto Anna continuava a sua busca. «Por favor, meu Deus» sussurrou, «por favor. Só peço que ele esteja bem.»

- Paul, Paul, a mãe precisa de ti. - Reparou que tinha a voz alterada pelos soluços, enquanto o chamava. As árvores responderam-lhe com o silêncio.

De repente, sentiu um movimento brusco entre a vegetação. Escondido atrás de uma árvore, o gato preto e branco fitava-a, nervoso.

Os lábios e o queixo de Anna começaram a tremer. O medo desceu-lhe pelos braços até se apoderar das duas mãos, dos seus joelhos, dos seus pés. Anna estava alagada em suor. Olhou para o gato, que nem pestanejava, com o rosto lavado em lágrimas.

- Onde está o meu bebé? Paul! - berrou. O seu grito angustiado abafou o bramido intermitente da estrada, o rumorejar das árvores. Ficou como que suspenso no ar denso e sufocante do Verão.

- De manhã cedo - disse o detective Mário «Buddy» Ferraro, endireitando a gravata azul-escura e. abotoando o blusão cinzento. - Estaremos aqui logo de manhãzinha e não descansaremos enquanto não encontrarmos o seu rapaz, Mister Lange. Prometo-lhe. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance. Tudo.   Mas agora é muito tarde. Não se vê nada e esta gente precisa de ir descansar.

Compreendo - respondeu tom, num tom neutro, olhando para os homens e mulheres que andavam de um lado para o outro   no seu quintal, de lanterna em punho e a falar em voz baixa. Eram polícias, vizinhos, pessoas da cidade que tinham ouvido a notícia na estação de rádio local. Até um grupo de adolescentes, membros do clube musical do liceu, se tinha oferecido para participar nas buscas. Não paravam de chegar pessoas desde as três da tarde, hora a que se havia dado início às investigações. Thomas olhou-os sem qualquer expressão no rosto,   ao qual a camisa branca conferia um tom acinzentado. Ainda estava com o fato vestido, amarrotado e sujo depois de ter andado de cócoras pelo bosque, pela beira da estrada. A gravata com o nó meio desfeito pendia-lhe do pescoço como uma corda.

- Eles precisam de descansar e os senhores também - recomendou vivamente o detective moreno e bem-parecido, ajustando nervosamente o nó perfeito da sua gravata. - Sobretudo a sua mulher. O médico não lhe deu nada para dormir?

- Ele esteve aí há umas horas - respondeu Tom. - Receitou-lhe uns comprimidos. Queria dar-lhe uma injecção, mas por causa da gravidez... - a voz de tom fraquejou.

- Veja se a convence a dormir - insistiu o detective. - Estaremos de volta antes de ela acordar. Vamos encontrar o seu rapaz, Mister Lange. Vamos encontrá-lo. - O detective apertou o ombro do pai desesperado e depois soltou-o. - Vou despedir-me da sua mulher, comunicar-lhe que nos vamos embora.

O detective indicou com a cabeça a sala de jantar. Atordoado, tom foi à frente.

Anna estava sentada à mesa, com a cabeça apoiada nos braços esticados, Iris Stewart estava ao lado da amiga, com as mãos juntas no colo. O seu rosto banal, franco, estava distorcido pela expressão aflita e triste com que olhava para Anna. Edward, o marido, no seu impecável fato às riscas, encontrava-se de pé atrás delas, com os ombros rígidos, numa posição quase militar. Havia confusão nos seus olhos cinzentos, cor de chumbo. As suas feições angulosas pareciam estremecer. Ambos os Stewart olharam ansiosos para Thomas e o detective, que acabavam de entrar na sala. Anna continuou com a cabeça apoiada nos braços.

Thomas respondeu à pergunta que leu no olhar de íris com um gesto de cabeça, íris reprimiu as lágrimas e olhou para o marido, que baixara a cabeça.

. Mistress Lange - disse o detective num tom suave.

Anna ergueu lentamente a cabeça. Tinha o rosto inchado, os olh°s vermelhos de tanto chorar. Encostou as mãos trémulas à mesa e olhou para o detective.

Buddy Ferraro sentiu um nó no estômago quando viu a cara dela.

- Mistress Lange, vou ter que terminar as buscas por hoje. Só por hoje. Já passa das duas. Retomamos os trabalhos logo de manhã.

_- É tão tarde - respondeu ela. - Temos de encontrá-lo. . Vamos encontrá-lo, Mistress Lange. Mas agora precisamos de descansar.

A tremer, Anna levantou-se da cadeira. - Eu vou continuar a procurar. Vocês desistiram. . Não, Anna - protestou íris. - Não digas isso - naquele momento também ela parecia uma criança perdida. O detective aclarou a garganta.

- Nós não desistimos - explicou. - Vamos apenas fazer uma pausa e estaremos de volta ao romper do dia.

Uma expressão de dor atravessou o rosto da mãe. Os seus olhos voltaram a encher-se de lágrimas.

- Veja se consegue dormir um pouco - recomendou o detective, sentindo-se inútil - Não é preciso acompanharem-me à porta.

- Deviam ir também para casa - disse tom aos vizinhos-

- Deixa-me passar aqui a noite no sofá - implorou íris.

Edward tossiu impaciente.

- Anda lá, íris. Estamos a estorvar.

- Está tudo bem, íris - tranquilizou-a Tom. - Vai descansar.

íris hesitou, mas depois apertou nas suas as mãos pálidas de Ana.

- Volto logo de manhã - prometeu, enquanto Edward, firme, a empurrava para a saída.

- Obrigado por tudo -- agradeceu Tom. Edward apertou-lhe a mão com força e brusquidão e depois conduziu íris pela porta da sala de jantar.

A casa ficou silenciosa durante uns minutos. Anna soltou um gemido e escondeu a cara nas mãos. Em seguida, sem descobrir o rosto, disse em voz baixa:

- Afastei-me só uns minutos, Tom.

Sentado à frente da mulher, tom fitava a parede.

- Eu sei - disse numa voz sumida. Depois olhou para ela: - Não tiveste culpa, querida. Não te sintas culpada.

Anna não respondeu. Ficaram os dois calados. Minutos depois, tom voltou a falar.

- É melhor irmos para a cama.

Ouviu-se um leve choramingar ao cimo das escadas. Anna sobressaltou-se. Endireitou o corpo, mas depois voltou a deixar-se cair.

- A Tracy acordou - disse Thomas. Esperou que a mulher reagisse, mas ela não se mexeu. - Queres que eu lá vá?

Anna evitou olhar o marido.

- Se não te importas - disse. - vou arrumar isto com um gesto vago indicou as chávenas de café vazias e sujas, espalhadas pela mesa, ali deixadas pelos vários turnos de colaboradores.

- Não te preocupes com isso, querida - disse Tom. Anda lá para cima.

- Não, eu quero. - Anna levantou-se da cadeira e, com as mãos trémulas, começou a recolher as chávenas e os guardanapos de papel amarrotados.

Thomas abriu a boca para protestar, mas desistiu. Levantou-se e atravessou a sala às escuras, em direcção às escadas e aos queixumes de Tracy. De repente, ouviu um estrondo.

- Ai! - exclamou Anna.

Thomas correu para a sala de jantar. Anna estava dobrada, com as mãos na barriga, fragmentos de louça partida sobre a mesa e aos seus pés.

- Que foi, querida? - disse, amparando-a nos seus braços. - Que aconteceu?

A pouca cor que restava no rosto dela desaparecera. Anna respirava com dificuldade, agarrada à sua própria cintura.

- Que aconteceu? Foi o bebé? Queres que eu chame o médico?

Lentamente, Anna abanou a cabeça. Respirou fundo. Começou a endireitar-se.

- Estou melhor agora. Já passou.

- Por favor, vem deitar-te - implorou ele.

- Já vou, assim que acabar isto. - Apercebendo-se da expressão preocupada do marido, Anna virou-se para o outro lado. Tracy chorava agora com maior insistência.

- Anna? - perguntou Tom.

- Já vou - repetiu ela, indicando com um gesto a mesa desarrumada. - É só um minuto.

com relutância, Thomas dirigiu-se novamente às escadas. Na escuridão da sala voltou-se a medo e viu Anna deixar-se cair numa das cadeiras da sala de jantar e olhar, através da janela que reflectia a sua própria imagem, para a escuridão total do jardim.

- Mas que noite - disse Buddy Ferraro com um suspiro, abrindo a porta do automóvel e tomando o seu lugar.

- A que horas amanhã? - perguntou um membro da patrulha, encostado à porta ainda aberta do carro do detective.

- Aí pelas sete - sugeriu o detective. - Eu venho às seis, seis e meia.

- Não creio que meia hora faça muita diferença ao miúdo

- disse o polícia, sacudindo a cabeça.

O detective olhou-o indignado:

- Pode fazer toda a diferença.

- Não me interprete mal - ripostou o jovem. - Estou tão preocupado como o senhor. Eu venho cedo.

Buddy fez um aceno conciliatório ao colega, enquanto punha o motor do carro a trabalhar.

- Até já.

O jovem deu uma palmada no capo do carro, que começou a descer a pequena rampa para automóveis até ao portão dos Lange.

Buddy Ferraro não sabia se ia conseguir pregar olho nessa noite. A visão do rosto de Anna Lange não lhe saía da cabeça. A angústia dela penetrara-o, aumentara a sua raiva, dando às buscas uma intensidade que raramente sentira em catorze anos ,   de serviço policial. Perder um filho. Que pesadelo! O miúdo parecia ter-se evaporado. Pensou em Sandy e nos seus dois rapazinhos, Buddy e Mark. Se lhes acontecesse alguma coisa... Decidiu seguir pela Millgate Parkway. O caminho era mais curto do que pelas estradas secundárias, mesmo àquela hora da noite. Se saísse no segundo desvio ficaria muito perto de casa. Tinha telefonado a Sandy por volta das dez horas, em princípio para informá-la de que chegaria tarde, mas quando o telefone tocou pela terceira vez e sentiu um aperto no peito, percebeu que o verdadeiro propósito da sua chamada era certificar-se de que estavam todos bem.

’’ Seguindo as tabuletas que indicavam Nova Iorque, Buddy atravessou a ponte, virou e seguiu até chegar ao sinal de «stop». Travou automaticamente, embrenhando-se nos seus pensamentos. Não aparecera um único vestígio do rapazinho, nada. Tinham que ter falhado alguma coisa, tinha de haver uma pista qualquer. Mas haviam de encontrá-lo. Estava determinado. De repente, reparou que estava parado sem razão. Àquela hora a auto-estrada não tinha trânsito. Carregou com o pé no acelerador e o carro disparou pela noite fora.

Não muito longe do local onde o detective, de rosto apreensivo, tinha parado em cumprimento da regra da prioridade, um pequeno chapéu branco de marinheiro estava escondido na valeta paralela à estrada. Os ramos baixos de um arbusto ajudavam a mante-lo invisível aos olhos de quem passava. Havia manchas de terra na aba. E outra coisa. Na copa suja, Popeye piscava o olho e exibia a sua lata de espinafres, mas no seu enorme músculo, na sua cara e nas letras do seu nome, as rugas do tecido amarrotado estavam duras, pois o sangue começara a secar.

 

                                   CAPÍTULO 1

- Foste tu que fizeste? - perguntou Anna, passando uma mão pela superfície lustrosa da taça de cerâmica que íris lhe mostrava.

com um tímido aceno de cabeça, íris voltou a colocar a taça na mesa à qual estavam sentadas.

- Estás a trabalhar cada vez melhor - disse Anna com admiração.

Radiante com o elogio, íris olhou o brilho do acabamento da sua obra.

- Ainda bem que gostaste. Sabes que a tua opinião é muito importante para mim.

Anna sorriu. Desde que se tinham conhecido, havia alguns anos, íris sempre a tratara como a irmã mais velha que nunca tivera, embora fossem praticamente da mesma idade.

- É linda - disse Anna, com sinceridade. - Espero que um dia faças uma para mim, nas tuas aulas.

íris sorriu de satisfação.

- Hei-de fazer. Mas ainda não sei o suficiente. Anna bebeu mais um trago do seu chá gelado.

- Há quanto tempo estás nesse curso? íris ergueu os olhos pensativa:

- Faz seis meses na semana que vem.

- E a professora sempre é a do hospital?

- E, sim. Mas tem o seu próprio ateliê. É voluntária; vai lá dar aulas gratuitas de cerâmica aos miúdos internados. Foi assim que a conheci.

- Bem, acho que já dominas a técnica na perfeição elogiou Anna. - Estou impressionada.

- Obrigada. Faço por isso.

Estavam as duas sentadas a um canto do exuberante jardim de Inverno da opulenta mansão dos Stewart. O sol incidia sobre elas, e a brisa que soprava pelas portas abertas fazia ondular as folhas das plantas.

- Gostas deste chá? - perguntou íris.

- É óptimo - respondeu Anna. - Hortelã a sério. É do teu jardim?

íris fez que sim com a cabeça.

- Foi o Henry que a apanhou esta manhã.

Estou sempre a dizer que vou plantá-la no meu jardim, mas depois esqueço-me.

- Eu peço ao Henry que te arranje uns pés de hortelã disse íris com entusiasmo.

- Pedes? Seria excelente.

íris e Anna conversavam, descontraídas, saboreando o sol e a brisa. Na mesa que as separava, a taça azul e ocre reluzia ao sol. Anna inclinou-se e retirou da mesa uma pilha de sobrescritos endereçados com a caligrafia bem desenhada de íris.

- Para que é isto? - perguntou Anna. Uma expressão de dor cruzou o rosto de íris.

- Oh, vamos dar uma festa. Para a Liga dos Hospitais. Vai ser grande, porque é preciso angariar dinheiro para o novo serviço de cardiologia.

Sim, li no jornal. Mas não sabia que a festa ia ser aqui. Bem, o Edward é o presidente da comissão de angariação de fundos.

Anna notou que íris tinha as mãos cruzadas no colo.

- Tu és óptima a organizar coisas - tranquilizou-a. Vai ser um sucesso.

íris soltou um suspiro:

- Assim espero - desabafou. - Um destes convites é para vocês - e apontou para o monte de sobrescritos.

Anna encontrou o que era dirigido aos Lange, leu-o e sorriu:

- A Tracy também?

- Os filhos mais velhos - explicou íris. - A ideia foi

minha. Achei que podiam alegrar a festa.

- Óptima ideia - concordou Anna sentindo, como muitas vezes lhe acontecia, uma ponta de compaixão pela sua amiga. Era um tema sobre o qual nunca conversavam, mas Anna sentia que íris desejava muito ter filhos, embora tivesse dificuldade em imaginar Edward debruçado sobre um berço.

E quando é a festa?

- De amanhã a uma semana. No dia trinta. Espero que possam vir. Os convites estão um bocado atrasados.

- Dia trinta - murmurou Anna, fitando a chávena de chá. - O dia do aniversário de Paul - levantou os olhos para íris. - Faz quinze este ano.

íris ergueu o sobrolho. Ficou uns instantes a observar a amiga.

- Ah, sim? - disse em voz baixa. Os seus olhos azuis pareceram escurecer. - Bem... isso é óptimo. Onde está o Tom?

- com a Tracy. Foram jogar ténis. E o Edward, está em casa?

- Não. Teve um almoço de negócios. Acabou de comprar outra empresa. A Wilcox Company, penso que é assim que se chama. Qualquer coisa ligada a peças para helicópteros.

- E vem tarde? Íris encolheu os ombros.

- Nunca se sabe, com o Edward. Creio que esteja de volta daqui a umas horas.

Anna mexeu o gelo do seu chá e olhou para íris. Quem a visse não diria que o marido era milionário. Edward, cuja companhia fabricava aeronaves particulares, era um modelo de boa apresentação e elegância, enquanto íris se vestia de maneira perfeitamente vulgar e gastava o mínimo de tempo possível com o seu cabelo e a sua maquilhagem. Embora tivesse sido educada nos melhores colégios femininos, faltava-lhe a aparência brilhante e atraente que essa vida confere a muitas mulheres. Ao passo que o marido era educado ao ponto da afectação.

No entanto, pareciam dar-se muito bem, o que Anna atribuía ao velho ditado «os opostos atraem-se». Mas o desânimo que detectou na voz da amiga, quando esta se referiu a Edward, deu-lhe que pensar.

- íris - perguntou, hesitante -, está tudo bem? íris endireitou-se ainda mais na cadeira.

- Claro - respondeu, com uma expressão mais animada.

- Tudo óptimo.

- Ainda bem - comentou Anna, aliviada por não ter aberto nenhuma caixa de Pandora. - Bem, tenho de ir andando. - Colocou o copo vazio sobre a mesa e levantou-se.

- Anna, já me esquecia! E o emprego de Tracy na clínica Veterinária está a correr bem?

Anna franziu a testa, ao lembrar-se da filha.

- Oh, ela adora estar no meio dos bichos. Não lhe pagam nada, mas parece-me que está a gostar da experiência.

- Que bom! Vês? Eu percebi logo que um pouco de trabalho voluntário só lhe ia fazer bem. Não foi o que eu disse?

- Tem ajudado - respondeu Anna distraída, embora sentisse alguma irritação com as soluções simplistas de íris para Os problemas que tinha com Tracy. A sua filha tímida, introvertida, estava a transformar-se numa adolescente caprichosa, difícil, que parecia embirrar cada vez mais com a mãe. Para íris, porém, tudo se resolvia com um passeio a pé, um banho quente ou uma reunião no clube. E provavelmente na vida facilitada, sem filhos, de íris, essas soluções resultavam sempre, pensou Anna.

- E se eu fosse pedir ao Henry os tais pés de hortelã agora mesmo? - sugeriu íris, abrindo a porta de vidro e acenando ao jardineiro que, de chapéu de palha na cabeça, estava ajoelhado diante de um canteiro de flores do outro lado da piscina. Anna reparou que, inconscientemente, não tirava os olhos dele.

- Deixa estar - protestou Anna. - Não o incomodes. , Não incomoda nada - insistiu íris.

Anna sacudiu a cabeça, mas sorriu com a gentileza da amiga. Sentiu-se culpada pelas críticas pouco simpáticas que, de vez em quando, fazia a íris e lembrou-se de como a confiança que a amiga depositava nela fora tantas vezes o seu único consolo. Quando se sentia em baixo, eram as visitas de íris que lhe davam força. Deu um abraço breve e impulsivo à amiga.

- Fica para outra vez. Agora tenho de ir.

- Como quiseres - disse íris, preocupando-se com a porta de vidro, já meio aberta. - Não te esqueças. Marca aquela festa no teu calendário.

- Está descansada - respondeu Anna. Saiu e desceu as escadas, íris seguiu-a.

- Obrigada pela visita, Anna - disse. - Eu telefono-te durante a semana.

- Cumprimentos ao Edward - replicou Anna, com um aceno. Desceu os degraus e quando passou por Henry, o jardineiro, cumprimentou-o. Era comprido e sinuoso o carreiro que ia da casa dos Stewart à sua, mas Anna gostava muito do passeio. Atravessou os jardins, contornou o lago das rãs e meteu pela vinha até chegar às sebes altas e ao pequeno regato que separavam as duas propriedades.

Decidiu que, antes de ir para casa, iria buscar legumes para o jantar. Estava muito orgulhosa da sua horta naquele ano. Seguira alguns conselhos de Henry e plantara uma variedade de vegetais. A produção fora excelente, talvez porque a maior parte da terra não tinha sjido cultivada durante muitos anos. Foi nessa Primavera que descobriu como lhe dava prazer mexer na terra, rodeada de pequenas plantas.

Depois de ir buscar a tesoura de poda e um cesto de vime ao abrigo de jardim, Anna dirigiu-se à horta e olhou-a com admiração. Beringelas lustrosas e escuras pendiam dos caules e tocavam na terra, quase escondidas pela folhagem. No emaranhado de tomateiros, os frutos apetitosos e carnudos pareciam em constante risco de cair ao chão, esborrachando-se. Uma quantidade de feijões escondia-se entre as folhas. com o cuidado de não esborrachar nenhum dos seus belos produtos agrícolas, entrou na horta e ajoelhou-se. Começou a apanhar os legumes, que lhe caíam com facilidade na mão. Arrancou automaticamente algumas ervas daninhas, depois de encher o cesto, mas percebeu que já pouco havia que fazer ali. As plantas tinham frutificado. Agora era só apanhá-las. Trabalhara com afinco em Maio e Junho e ali estava a recompensa. A partir de uma certa altura, tudo segue o seu próprio rumo sem precisar da nossa intervenção.

com um suspiro, Anna caminhou em direcção a casa. Ao passar pelo local onde os filhos costumavam brincar, parou e sentou-se na cadeira do alpendre, velha e ferrugenta, olhando tristemente o quadrado de relva. Estava verde e semeado de flores. «É melhor não mencionar o aniversário de Paul. Só iria irritar Thomas», pensou.

O marido não gostava que se tocasse no assunto. Mas todos os anos, Anna sentia uma vontade incontrolável de falar dele, como se considerasse vital pronunciar o nome do filho em voz alta, atestar o seu nascimento. Todos os anos, Thomas lhe virava as costas com uma expressão pesarosa no rosto. Ela não o fazia para magoá-lo. Só achava que era importante. Mas no ano anterior ele ficara furioso. ”« -Ana, já não posso ouvir-te dizer isso.

- O quê? Que é o dia de anos dele?

- É todos os anos a mesma coisa. «Paul faz hoje onze anos. Paul faz hoje doze anos. Paul faz hoje treze anos.» Porque é que tens de estar sempre a dizer a mesma coisa?

- Porque é o dia de anos do Paul - insistira Anna. Porque quero recordá-lo.

- É quase humor negro. O aniversário do Paul! Como se ele estivesse vivo e fosse entrar por aquela porta a qualquer minuto.

- Mas, Tom, eu acredito que ele está vivo. Tu não? Quero dizer, não há provas em contrário. Não podemos perder a esperança, querido.

Mas Thomas já lhe tinha voltado as costas sem proferir palavra, dando o assunto por encerrado mais uma vez, tal como acontecia todos os anos desde o desaparecimento de Paul. Anna não sabia exactamente quando tinham deixado de conversar sobre o assunto. A perda do filho fora uma espécie de amputação no casamento deles. Ele queria esquecer, esconder, fingir que nada tinha acontecido. Pelo menos era o que Anna pensava, ao passo que ela própria procurava desesperadamente conselho, ajuda, algo que lhe assegurasse que, um dia, iria reaver o que parecia irremediavelmente perdido. Como se tivessem feito um acordo, ambos evitavam o assunto. Era o melhor que tinham a fazer.

Da cadeira do alpendre onde estava sentada, Anna tentou encontrar algum vestígio da cerca onde os filhos costumavam brincar, alguma ténue marca da sua presença. O local estava agora coberto de ervas. Nem sinal dela. Era como se nunca tivesse existido.

Pôs-se de pé, abraçando o cesto de legumes, e entrou na casa fresca e silenciosa. Pousou o cesto ao lado do lava-louça, abriu a torneira e colocou um passador de cobre na bacia de porcelana. O único ruído que se ouvia em toda a casa era o da água a correr. Normalmente, adorava trabalhar na sua confortável cozinha, mas naquele dia sentia-se melancólica. Deixou ficar o pulso debaixo da água corrente, como uma mãe a arrefecer um biberão, e olhou, por cima das plantas alinhadas no parapeito da janela, para a quietude do jardim cheio de sombra.

De repente, ouviu o que lhe pareceu ser uma mão a bater em madeira. Fechou a torneira e voltou a escutar. Estava alguém à porta. Limpou rapidamente as mãos à macia toalha turca, pendurada junto ao lava-louça, atravessou depressa a casa e abriu a porta. De início, não viu ninguém. Quando saiu para o alpendre, a silhueta familiar de um homem, de costas, descia os degraus que levavam à estrada onde um carro estava estacionado. - Buddy - chamou -, entre, eu estou aqui.

O detective Mário Ferraro parou e voltou-se devagar para a mulher que o esperava à soleira da porta. Ficou uns instantes imóvel, a olhar o sorriso de boas-vindas de Anna. Ao fim de tantos anos, já a conhecia bem. Mesmo depois de o caso de Paul ser arquivado, ela, volta e meia, procurava-o para lhe fazer perguntas sobre acontecimentos misteriosos, outras crianças desaparecidas, tudo o que apresentasse uma semelhança mínima com o seu próprio caso. Ele ouvia com paciência e atenção cada esperança desesperada dela e seguia todas as pistas que chegavam ao seu conhecimento. «É aquela pobre senhora outra vez», dissera-lhe um recruta, chamado Parker, da última vez que ela lhe telefonara a contar que uma criança tinha aparecido em Houston. Aquela pobre senhora.

Sabia que era assim que as pessoas a viam, mas ele admirava-lhe a coragem, a perseverança. Depois de perder o filho, e o bebé logo a seguir, ela não só conseguiu recuperar do desgosto, como resolveu dedicar-se de corpo e alma às investigações. Muitas pessoas acharam isso pouco normal, mas Buddy considerou uma reacção lógica. Muitas vezes dissera a si próprio que, na situação dela, teria feito exactamente a mesma coisa. Decidiu ajudá-la. Uma noite, Thomas chamou-o à parte e, na cozinha, pediu desculpa pelas intermináveis perguntas e sugestões de Anna. «Não há nada a fazer, é uma doença», dissera Thomas. De certo modo, o comportamento de Thomas incomodou-o mais do que o de Anna. Mas Buddy não comentou. «Eu não me importo» respondera apenas. «Imagino o quanto ela está a sofrer.»

- Que se passa? - perguntou Anna, olhando-o de lado.

- Parece doente.

Buddy Ferraro fez um sorriso forçado. £   -Ainda bem que a encontro.

- Estava na horta. Nem ouvi o carro. Espero não tê-lo feito esperar muito tempo.

O detective fez que não com a cabeça e subiu rapidamente as escadas. Quando chegou ao alpendre, olhou para Anna e franziu a testa, cerrando os lábios. Anna deu-lhe o braço e os dois entraram em casa.

- A minha horta - disse ela -, está maravilhosa este ano. Tenho aqui umas coisas para a Sandra. Beringelas e tomates. A sua mulher que lhe faça beringelas gratinadas. Não tem desculpa, vou mandar-lhe um saco cheio delas.

-Anna - começou ele.

Tinham atravessado de braço dado o vestíbulo e a grande sala em forma de «L», repleta de flores, cestos com revistas e almofadas em petit-point. Anna largou o braço do detective e indicou uma poltrona junto à lareira, ao fundo da sala.

- Sente-se, por favor. Não o via há tanto tempo! Ainda bem que apareceu. Eu estava a começar a sentir pena de mim própria. - Tirou o saco do tricô da poltrona que fazia par com a dele e sentou-se.

Buddy sentou-se à borda do assento, inclinado para a frente. Anna sorriu:

- Bebe alguma coisa? Uma água mineral, uma cerveja? O polícia abanou a cabeça.

- É bom vê-la - disse em voz baixa.

- Como vão os rapazes? Mark e o pequeno Buddy?

- Estão óptimos. O Mark entra na universidade para o ano. Sandy e eu vamos levá-lo à festa de recepção aos novos alunos.

- Oh, Buddy! - exclamou Anna, espantada. - Já? Será possível? - Os olhos dela vaguearam e Anna mordeu o lábio.

- Que maravilha. Devem estar muito orgulhosos.

- E estamos - disse o detective, cruzando as mãos com força. - Anna - continuou num tom firme -, esta não é uma visita social. Trago novidades.

Anna abriu a boca como se tivesse levado uma bofetada. Há anos que agia como uma amante abandonada, à espera de receber uma carta que nunca mais chegava. com o tempo habituara-se a ver aparecer o carteiro e não a carta. Agora, de um minuto para o outro, o detective mudava tudo. Fitou o polícia, tentando adivinhar que novidades seriam essas.

- O Thomas está em casa? - perguntou ele. - Gostava que estivesse presente.

- Não está... saiu - sussurrou Anna, os olhos pregados no rosto do detective.

Buddy Ferraro franziu a testa.

- Talvez fosse melhor...

- É o Paul - disse ela. Apertou as mãos uma na outra e encostou-as à boca. - Conte-me tudo - murmurou.

Buddy aclarou a garganta.

- Anna - disse. - Não sei como dizer isto. Vai ser um choque para si.

Sem tirar os olhos dele, Anna começou a abanar a cabeça. Buddy hesitou.

- Encontraram o Paul. Está vivo.

Anna mordeu os punhos trémulos e fechou os olhos com força. As palavras do detective ficaram suspensas no ar à espera que ela as absorvesse. Mas um pavor irritante sufocava-a, paralisava-a. Sentia que, se tentasse absorver o que ele lhe dizia, interiorizar, tudo lhe seria imediatamente confiscado. Toda a esperança, tudo aquilo por que tinha rezado, e a que se tinha agarrado ao longo de tantos anos, desapareceria num instante e para sempre.

- Não me minta, Buddy - preveniu-o numa voz quase inaudível.

- Não faria uma coisa dessas, Ana. Sabe bem. É verdade. Pode acreditar. Ele está vivo - cerrou os lábios e sorriu.

Anna ficou imóvel durante uns segundos. Depois, devagar, como num transe, escorregou da poltrona e caiu de joelhos no chão, com os braços à volta do corpo. Baixou a cabeça; fechou os olhos.

Buddy inclinou-se para ampará-la, convencido que ela estava desmaiada. Quando percebeu que não, respirou fundo e reclinou-se na sua poltrona. De cabeça baixa, benzeu-se rapidamente. A sala estava mergulhada num silêncio profundo.

Quando Anna olhou para ele, o seu rosto parecia uma flor a desabrochar, a abrir as suas frágeis pétalas uma a uma.

Buddy estendeu-lhe a mão. Anna apertou-a entre os dedos gelados.

- Conte-me tudo - balbuciou a custo. - Onde está ele? Está bem? Fora de perigo?

- Está óptimo - tranquilizou-a Buddy.

Os dois ficaram uns instantes calados, de mãos dadas. Buddy sentia o corpo dela a tremer. Depois tossiu e meteu a mão no bolso.

- Deixe-me fazer uma coisa - murmurou, tirando um lenço e estendendo-lhe. - Tome.

Anna enxugou os olhos e o detective começou a falar.

- Soubemos esta manhã. Recebemos uma chamada do xerife de Hawley, Virgínia Ocidental. Foi contactado por um sacerdote da cidade que dizia possuir provas de que Paul tinha lá vivido todos estes anos como filho de um casal, Albert e Dorothy Lee Rambo. Parece que a mulher estava a morrer

com um cancro e na semana passada procurou o tal sacerdote, o reverendo Orestes Foster, para lhe entregar uma carta. Disse-lhe para ler a carta só depois de ela morrer, o que aconteceu anteontem. Na carta, confessa que ela e o marido raptaram Paul, a quem criaram como se fosse filho deles, e revela a identidade de Paul, a qual, ao que parece, conheciam perfeitamente.

- Tem a certeza de que é o Paul? Buddy fez que sim com a cabeça.

- É o seu filho sem qualquer dúvida. Ela guardou as roupas que ele tinha vestidas quando o levaram. Fotografias dele. Tudo e mais alguma coisa. Como calcula, a mulher achou que a sua doença terminal era uma espécie de castigo pelo seu crime. Quis deixar tudo em pratos limpos, certificar-se de que o rapaz lhe seria devolvido.

- E o marido dela? Buddy fez uma careta.

- Bem, isso é um problema. Ela deve ter-lhe dito o que tencionava fazer, porque o homem desapareceu antes da morte dela. Abandonou o miúdo e pôs-se a andar. Anda fugido desde então. Receio que o homem seja ligeiramente perturbado. Segundo percebi, já esteve hospitalizado com problemas mentais.

- Não, meu Deus.

-Tanto quanto sabemos, nunca fez mal a... a Paul, de modo algum. Só que não é lá muito bom da cabeça. Ela era enfermeira e cuidava dos dois. De qualquer maneira, a polícia já está no encalço do tipo, o Rambo. E o FBI. Hão-de encontrá-lo.

- E onde está o Paul agora? Falou com ele?

- Não, ainda não. Ainda está a ser interrogado pela polícia de Hawley. Estão a ver o que conseguem descobrir. Completar a história. Tem que compreender, isto para eles é um acontecimento. Conhecem o casal há muitos anos. Devia ter ouvido a voz do xerife ao telefone. Não se percebia nada do que ele dizia, tal era a excitação - brincou Buddy.

- Mas o Paul está em segurança? - teimou Anna. - Está bem?

Buddy apertou-lhe a mão.

- Está a ser muito bem tratado. E tê-lo-á de volta mais depressa do que pensa.

Anna sacudiu a cabeça, em desespero.

- Mas porquê? Como é que o raptaram? E porquê o meu filho?

- Há muita coisa que ainda não se sabe. A criança era demasiado pequena para se lembrar. Mas estamos a recolher o máximo de informações. A seu tempo saber-se à tudo. Pelo menos, está vivo. E encontrámo-lo.

- Tenho que vê-lo.

- E verá. Mais dia menos dia, terá o seu o seu filho de volta.

Anna fitou-o com uns olhos sérios e cheios de lágrimas.      

- Eu nunca desisti, Buddy. Às vezes pensava que ía dar em doida. Sempre acreditei que ele ia regressar a casa

- E tinha razão - disse o detective.

As lágrimas começaram de novo a correr pelo rosto de Anna. Pela primeira vez em onze anos, quando tentou imaginar como estaria o seu filho, o seu coração não se encheu de dor, mas sim de felicidade. Que aspecto teria agora? Como seria ? Iria reconhecê-la e ela a ele? Olhou bruscamente para o detective:

- Tenho de contar ao Thomas. E à Tracy- Tenho que ir ter com eles.

- Sabe onde é que foram? – perguntou Buddy.

- Estão no campo de ténis, no parque. Tenho de ir contar-lhes. - Anna pôs-se de pé e olhou em volta, confusa.

- Preciso das chaves. Onde é que eu pus as chaves ?? Por mais que enxugasse as lágrimas, elas não paravam de cair.

- Não se preocupe - disse Buddy, levantando-se . Eu levo-a lá. Não está em condições de conduzir um automóvel.

- Não se incomode, Buddy.

- É melhor. Não vai conseguir concentrar-se na estrada.

Anna levantou as mãos, rendida.

- Tem razão. Vamos.

Anna e Buddy praticamente não falaram um com o outro pelo caminho. Buddy ia exageradamente atento às regras de trânsito, como se estivesse embriagado e precisasse   de conduzir com especial cuidado. Espreitou-a pelo canto do olho, sentindo uma onda de apreensão ao ver aquele perfil delicado. O sofrimento por que passara era visível nas rugas do seu rosto, sobretudo na testa. O cabelo castanho-claro tinha madeixas brancas. Mas os olhos dela brilhavam, e a pele mostrava cor que há muito não lhe conhecia. Os últimos anos tinham sido duros para Anna, para toda a família. Rezou em silêncio para que a provação terminasse, finalmente. A única coisa que o incomodava era a sensação desagradável que o perseguira todo o dia, sempre que pensava no regresso de Paul

Passaram as colunas de pedra que ladeavam a entrada do parque. Nervosa, Anna indicou-lhe o caminho para o campo de ténis, que ficava a seguir ao de futebol. À medida que o carro se ia aproximando, Anna começou a distinguir, através das trepadeiras e da rede de arame verde que cercavam o campo a saia clara de Tracy, as suas pernas altas e rápidas, e, de costas a figura musculosa de Thomas, vestido de branco.

- Chegámos - disse Anna em voz alta, como se estivesse a preparar-se para o que se seguiria.

- Espero por si?

Anna estremeceu e olhou-o, desorientada. Depois sacudiu a cabeça:

- Não vou para casa com o Tom. Buddy, não sei como agradecer-lhe - inclinou-se e deu-lhe um abraço forte, demorado Depois preparou-se para sair. Quando pôs a mão no fecho da porta, voltou a olhar para Buddy, preocupada

- Que foi?

- Buddy, não consigo deixar de pensar no homem , no raptor...

- Rambo?

- Sim. Disse que ele tem problemas mentais. Não sabemos do que é que ele é capaz de fazer...

Buddy afastou os medos dela com um gesto tranquilizador

- Algo me diz que o senhor Rambo quer ficar o mais longe possível de si e do seu filho. Não se preocupe, Anna. Vamos trazer-lhe o Paul são e salvo. Não há razão para se afligir Vá dar a boa notícia à sua família. Despache-se.        

Anna saiu e bateu com a porta.

- Boa sorte - gritou-lhe Buddy, sem saber exactamente porquê. Viu-a caminhar apressadamente em direcção ao campo, levando consigo a grande novidade. Por instantes, incongruentemente, pensou nas beringelas e nos tomates que ela lhe tinha prometido. Da próxima vez estaria tudo pronto à espera dele. Anna não costumava esquecer-se dessas coisas. Seguiu com o olhar a figura elegante, de costas direitas, que corria para a sua família. Não lhe tinha contado tudo o que Hawley dissera acerca da gravidade da doença mental de Albert Rambo. Nem mencionara a perturbante descrição que o xerife fizera do jovem calado, pouco colaborador, por cujo regresso Anna ansiava com tanta alegria. Para quê preocupá-la? Tudo acabaria bem. Mas Buddy não conseguia afastar a sensação de ansiedade que o consumira o dia inteiro.

- Agora é que estás tramado - exclamou Tracy, enquanto a raquete batia na bola exactamente no ponto crítico, com um zumbido e um assobio. De joelhos dobrados e balouçando o corpo, Thomas seguiu o trajecto da bola com o olhar e saltou para batê-la. Pôs-se em posição, rodou o braço esticado, mas desconcentrou-se assim que viu Anna abrir de rompante o portão do campo e correr na sua direcção. Sorriu e acenou-lhe, mas franziu a testa quando reparou na expressão dela.

- Oh mãe! - ralhou Tracy, exasperada. - Sai já do campo. Não podes estar aqui.

Anna pareceu nem ouvir a filha. Correu para Thomas e parou a poucos centímetros dele. Cruzou as mãos e fitou o rosto espantado do marido.

- Tom. Tenho uma coisa para te dizer.

- Que foi, querida? - perguntou ele, inquieto. - Que aconteceu?   Deu um passo na direcção dela.

- O que é que se passa? - berrou Tracy, do outro lado da rede. Os jogadores do campo adjacente olharam para eles, depois, um para o outro e recomeçaram a jogar.

- Buddy, o Buddy Ferraro esteve lá agora mesmo. Em nossa casa. Thomas, encontraram o Paul. Vivo. A mulher que o raptou morreu e deixou tudo escrito. Tom, ele está vivo! Vai voltar para Casa- O Paul vai voltar para casa. - O rosto de Anna contorceu-se e ela escondeu-o nas mãos.

Thomas olhou para a mulher, estupefacto. Baixou a raqueta, presa e inútil na sua mão.

- O quê? - murmurou.

- É verdade- O que te estou a dizer é verdade. O Paul vai voltar para nós.

O coração de Thomas caiu e voltou a erguer-se dentro do peito, como um balde a subir e a descer um poço. Os seus olhos registaram o céu azul, o verde do dia de Verão, o rosto lavado em lágrimas da mulher e, então, percebeu que era tudo real. Mas o sangue que lhe latejava nos ouvidos não o deixava compreender o que a sua mulher dizia. Havia palavras que ele nunca tinha esperado ouvir. Quando tentou imaginar o rapaz, um vazio formou-se na sua mente, o buraco preto que decidira colocar no lugar da imagem do filho, durante tantos anos.

Anna fitava-o agora, agarrando-lhe as mãos, que ele soltara ao colocar inconscientemente a raquete debaixo do braço. O calor das mãos da mulher e a intensidade do seu olhar fizeram-no renascer. Voltou a sentir, e o primeiro sentimento foi uma enorme ternura pela mulher. Ela continuava, corajosa, à sua frente, como uma jovem árvore que sobrevivera a um implacável vendaval.

Abraçou-a e apertou-a contra o peito, com as mãos abertas nas costas dela.

- Eu tinha a certeza - disse ela, encostando a cabeça à camisola suada do marido. - Eu tinha a certeza que estava vivo. Sabia que ele ia voltar.

Thomas acariciou-lhe o cabelo.

- Paul está vivo - murmurou. -- Sempre disseste isso. Nunca pensei... Não acredito.

Anna afastou a cabeça e olhou o marido nos olhos. Nos dela, as lágrimas voltaram a aparecer.

- Oh, querido - disse em voz baixa.

Thomas apertou-lhe os braços, desejoso de encontrar, também ele, as suas lágrimas, mas parecia que estavam todas presas no nó que tinha no estômago.

- É maravilhoso - disse. - Meu Deus, parece impossível.

- Esquece - gritou Tracy do fundo do campo. Atirou para o chão a raqueta, que caiu com grande estardalhaço. E caminhou para o portão. - Não sei o que se está a passar, mas para a próxima arranja outro parceiro.

- Não, Tracy - gritou Anna, soltando-se dos braços do marido e correndo ao encontro da filha. com as mãos na parte superíor da rede, inclinou-se para o outro lado. - Tracy, espera. Temos uma coisa para te dizer.

Afinal não queria dar a notícia aos berros, em frente dos outros tenistas. Mas Tracy avançou furiosa para o portão e abriu-o com força.

- Tracy, ouve, querida - suplicou Ana. - Encontraram o teu irmão Paul. O Paul vai voltar para casa.

Tracy voltou-se para a mãe, debruçada na direcção dela por cima da rede que as separava. Atrás da mãe estava o pai, imóvel, de braços caídos. Lentamente, a cor desapareceu do rosto queimado e sardento de Tracy. Parecia que tinha criado raízes, que estava pregada ao chão, enquanto os fitava com os olhos abertos, sem expressão. Por instantes, a mão dela pareceu colada ao portão do campo. Depois caiu pesadamente e o portão de rede fechou-se sozinho atrás dela.

 

                                     CAPÍTULO 2

- Muito bem, bela adormecida, toca a acordar.

Anna abriu os olhos com enorme dificuldade, como se estivesse a acordar de uma anestesia, e olhou para cima, meio atordoada. Thomas estava de pé à sua cabeceira, de roupão, segurando um tabuleiro enfeitado com dálias colhidas no jardim e encostadas a um copo de sumo.

Ela cobriu o seios com o lençol e sentou-se com um sorriso sonolento.

- Querido, mas o que é isto? Thomas olhou para o tabuleiro.

- São ovos, torradas, café e Bloody Marys - Depois sorriu-lhe. - Esqueci-me do leite. Espera, segura nisto - disse, colocando-lhe o tabuleiro no colo. - Já volto.

- Que horas são? - perguntou quando ele ia a sair.

- Quase onze. Pensei que precisavas de dormir.

Anna recostou-se nas almofadas e examinou o tabuleiro com um sorriso. Em seguida, olhou de relance o quarto cheio de sol. O edredão estava enrodilhado aos pés da cama, as roupas deles espalhadas pelo chão, denunciando a impaciência dos amantes. .,,,

Na véspera, depois de deixarem o campo de ténis, tinham passado o resto do dia ao telefone, a receber visitas, a conversar com familiares, amigos, repórteres. Por volta das nove horas, Thomas fora buscar comida chinesa. Desculpando-se com dores de estômago, Tracy enfiara-se no quarto de onde não voltou a sair. Por volta da meia-noite, Thomas desligara o telefone e tinha obrigado Anna a ir para a cama onde, com uma urgência que não via nele havia muito tempo, fizera amor com ela como se aquela fosse a última vez. No momento do clímax soltou um grito tão próximo da angústia que Anna ficara assustada. Acarinhou-o até ele adormecer, mas passou a maior parte da noite acordada, a matutar nas notícias milagrosas, com o coração e o espírito tão agitados que não conseguia dormir. Só quando o dia estava quase a nascer se deixara finalmente dominar pela exaustão.

A porta do quarto voltou a abrir-se e Thomas entrou, trazendo um pequeno jarro de leite. Pousou-o no tabuleiro e sentou-se cuidadosamente na cama, ao lado dela.

- Que se lixem as migalhas, vamos comer! Anna estendeu a mão e acariciou-lhe o rosto.

- Que ideia tão querida - disse-lhe. Thomas encolheu os ombros.

- Achei que tínhamos que festejar. Além disso, ontem quase nunca estivemos juntos. Foi uma loucura aqui em casa.

- Onde está a Tracy?

- Saiu cedo, de bicicleta. Deixou um bilhete a dizer que ia a casa da Mary Ellen.

- Tudo isto a transtornou - observou Anna. Thomas mexeu o Bloody Mary e estendeu-o à mulher.

Obediente, Anna bebeu um pouco.

- É uma grande mudança - disse Thomas. - Uma grande mudança para todos nós. Mas ela ficará contente quando perceber como isto vai transformar as nossas vidas.

Anna suspirou e sorriu-lhe.

- Também acho. O nosso filho. De volta a casa, são e salvo.

Thomas provou os ovos.

- Vamos voltar a ter uma vida normal. Como qualquer família.

Anna concordou com a cabeça, mas pareceu apreensiva: -- Temos levado uma vida bastante normal, atendendo às circunstâncias.

- Eu sei - apressou-se a corrigir Tom. - Não era isso que eu queria dizer.

- Só que agora vai ser muito melhor, com o Paul junto de nós - explicou ela.

- Eu estava a dizer, sabes, que aquele horror acabou. Tu a correres o país de lês a lês, cada vez que ouvias falar de uma criança que tinha aparecido num lugar qualquer. Aquelas noitadas ao telefone e as infindáveis buscas, os interrogatórios. Aquela gente a telefonar dia e noite com informações inúteis. Os repórteres, os polícias, as videntes. Nem acredito que nos vamos ver livres dessas pessoas todas.

- Só queriam ajudar - disse Anna.

- Não duvido, mas foi muito duro para ti. Tens de concordar. Agora, Paul vai voltar e podemos deixar de pensar nessas coisas. Podemos voltar a viver como sempre devíamos ter vivido - inclinou-se e apertou-lhe os braços. - Não sabes como eu tinha saudades disso.

Anna olhou-o séria.

- Também eu - respondeu. - Mas que podíamos nós fazer?

Thomas pegou num guardanapo e limpou a boca.

- Tens razão, tens razão - concordou. - Agora come os ovos - ordenou -, antes que fiquem frios e depois talvez me meta outra vez debaixo desses lençóis, ao pé de ti.

Anna riu e devorou uma garfada de ovos.

- Estão óptimos. Acho que vais passar a tratar tu do pequeno-almoço, já que tens tanto jeito.

- Sou muito talentoso -- respondeu Tom. - E modesto.

- O Buddy ainda não telefonou? - perguntou ela. Disse que ia combinar vermos o Paul hoje. Acho estranho ainda não ter dito nada.

Thomas deitou um pouco de natas no seu café.

- Provavelmente não conseguiu. Não voltei a ligar o telefone.

- Tom! - protestou Anna. - O Paul pode estar a tentar contactar connosco.

- Queria que tu dormisses, estavas tão cansada!

Anna empurrou o tabuleiro para o lado e inclinou-se na direcção do telefone que estava ao lado da cama.

- Liga-me já o telefone, está bem, querido? vou já falar ao Buddy.

- Porque não comes primeiro?

- Deixa-me só fazer um telefonema.

Thomas tirou o tabuleiro de cima da cama e colocou-o no chão. Depois, com um pequeno suspiro, ligou o telefone na ficha ao lado da mesa-de-cabeceira.

Anna debruçou-se e beijou-lhe o rosto.

- Obrigada.

Pegou no auscultador e marcou o número.

Sentado no tapete, Thomas encostou a cabeça ao colchão. Anna acabou de marcar o número e pousou uma mão no ombro dele. tom fitou pensativo o tabuleiro a seu lado, onde os ovos começavam a solidificar na borda do prato. Pegou num bocado de torrada e começou a mastigar lentamente. O pão já estava frio e deixou-lhe na boca um sabor a cartão gorduroso.

A semana de combinações, burocracia e espera pareceu interminável a Anna, mas finalmente chegou ao fim. Agora, à luz do sol da manhã que entrava pela janela da cozinha, Anna fazia planos para o jantar de boas-vindas. A bancada de mármore estava literalmente coberta de livros de receitas. As fotografias lustrosas das suas páginas mostravam pratos especiais para todos os tipos de ocasiões festivas e Anna mergulhou nelas, em busca de inspiração. Esfregou os olhos com as costas da mão e bocejou. Mas foi apenas um tique nervoso. Não tinha sono nenhum.

Sentiu a blusa de algodão começar a colar-se às costas. Aquele dia de Agosto começara a aquecer muito cedo. Habitualmente havia sempre uma brisa que mantinha a casa confortável, e num ano eram poucos os dias em que era preciso ligar o ar condicionado. Torcia para que aquele não fosse um desses dias. Queria que tudo estivesse perfeito no primeiro dia que Paul passaria em casa. Queria que ele gostasse de lá estar.

Anna voltou a concentrar-se nos livros de cozinha. O filho não chegaria antes da hora do jantar. Nessa altura, o tempo já devia estar mais fresco. Voltou as páginas devagar, estudando as receitas, a pensar qual a ocasião que corresponderia melhor àquela invulgar celebração. Era difícil saber o que preparar, não conhecia os gostos dele. Havia uma receita de lagosta que parecia óptima. Lagosta era uma comida de festa e fresca. Mas, e se ele fosse alérgico ao marisco? Muitas pessoas são. Reparou que não sabia nada acerca do seu filho.

Apoiou o queixo na mão e olhou lá para fora, por cima da profusão de plantas alinhadas no parapeito da janela da cozinha. O seu espírito voltou a ser invadido pela preocupação que não a tinha deixado em paz na semana anterior. Como estaria ele agora, que aspecto teria? Ao longo dos últimos onze anos vira-o em toda a parte. Em todos os parques infantis, a andar de baloiço, em todas as esquinas que contornava de carro, a caminhar na direcção dela nos corredores da escola de Tracy. Sentia o coração na boca quando o espiava, certa de que se tratava de Paul. com o nome dele quase a sair-lhe da boca, olhava com mais atenção e o rosto do filho era substituído pelo de uma criança estranha, de cabelo cor de mel, mas que ela não conhecia de lado nenhum. Então voltava-se depressa, antes que o miúdo reparasse no horror e no sofrimento no seu olhar. Mas quando abrisse a porta naquela noite ele estaria à sua frente. Naquela mesma noite.

Esforçou-se por sair do seu devaneio e voltou às receitas. Havia um prato de carneiro que parecia apetitoso. Na fotografia estava sobre uma cama de arroz amarelo. A carne sobressaía, castanha e sumarenta, na página. Anna marcou a receita com os dedos. A ideia de acender o forno com aquele calo não era lá muito agradável. Pela porta da cozinha, que estava aberta, reparou na atmosfera abafada do quintal. Sem saber porquê, lembrou-se do guisado de carneiro que, dizia-se, a mãe de Lizzie Borden servira à sua insuportável filha durante vários dias de calor. «Está muito quente para carneiro», decidiu.

De camisola branca e sapatos de ténis, Tracy entrou na cozinha e deixou-se cair numa cadeira, sem cumprimentar a mãe. Anna empurrou os livros de receitas para o lado.

- Dormiste bem? - perguntou Anna.

- Ouvi tanto barulho que acordei.

- Espero que não tenha sido por minha causa, querida. Levantei-me cedo, tenho muito que fazer - explicou Anna, ignorando a expressão entediada de Tracy. - Limpei o pó, dei lustro aos móveis e depois fiz isto - levantou-se, dirigiu-se à caixa dos bolos e abriu-a. Mostrou à filha o bolo que tinha feito, à espera da sua aprovação. Dizia «Bem-vindo a casa, Paul» em letras azuis, ao longo da parte superior da cobertura de açúcar. - É de chocolate. Acho que todas as crianças gostam de chocolate. Então, que dizes?

Tracy fitou espantada as letras azuis e depois olhou para a mãe:

- Foste tu que fizeste?

Anna fez que sim com a cabeça.

- Fui. Claro.

Anna voltou a pôr o bolo na caixa e tapou-a. Limpou as mãos ao avental e voltou-se para Tracy:

- Que queres comer ao pequeno-almoço, querida?

- Nada.

- Devias comer qualquer coisa. Não podes sair de barriga vazia...

- Um sumo.

- Que tal uns cereais? Eu vou buscá-los.

- Não - gritou Tracy. - Eu disse um sumo.

Nesse instante, tom entrou na cozinha, a abotoar o último botão da camisa.

- Está muito calor para comer - explicou Tracy, dirigindo-se ao pai. Tinha o rosto bronzeado manchado e o queixo tremia-lhe.

- Está bem - concordou Anna.

- Não é preciso gritar - disse Thomas.

- Ela quer obrigar-me a comer, mas eu não tenho fome

- resmungou Tracy.

Anna colocou um copo de sumo em frente da filha e voltou-se para Thomas.

- Tiveste uma noite muito agitada - disse-lhe. - Espero não te ter acordado quando me estava a vestir de manhã.

- Acordei, mas adormeci logo. Estava escuro como breu lá fora. Que horas eram?

- Oh, deviam ser quatro e meia, um quarto para as cinco.

- Um quarto para as cinco - repetiu Tom, incrédulo.

- Que queres, não conseguia dormir. Estava excitada. Thomas abraçou-a, apertou-a contra si e deu-lhe um beijo na testa.

- Queres comer o quê? - perguntou Anna.

- Estou cheio de pressa. Como qualquer coisa lá no escritório.

- Oh, Tom...

- Mas o que vem a ser isto? - perguntou ao reparar na pilha de livros de receitas.

Estou a ver se descubro o que hei-de fazer para o jantar.

Acho que vou mas é procurar nas minhas revistas.

- Pensava que estavas a guardá-las para uma ocasião especial - comentou ele.

Anna sorriu àquela piada já antiga, mas tão adequada.

- Estou tão nervosa que nem consigo raciocinar como deve ser.

Tracy arrastou a cadeira e levantou-se. Anna tentou cativar a atenção da filha.

- O que é que te apetece para o jantar, Tracy?

- Vou-me embora - declarou Tracy.

- Vais jogar ténis? - perguntou Anna.

- Hum... - murmurou Tracy.

Antes de saíres, filha, queria que fosses lá acima tirar as tuas coisas do quarto de hósp... do Paul, para eu o limpar.

- Eu depois tiro - respondeu Tracy. - Até logo, pai. Thomas sorriu-lhe:

- Boa sorte - respondeu-lhe. Anna tirou o copo da mesa.

- Quero que lá vás agora. Tenho que fazer uma grande limpeza àquele quarto.

Tracy ficou imóvel na soleira da porta.

- Tenho um jogo esta manhã.

Não demora nada - insistiu Anna. - Há uma semana que te pedi para despejares o quarto.

- Já disse que tenho um jogo esta manhã.

E eu já disse - recordou Anna, com firmeza - que

preciso do quarto vazio para prepará-lo para o Paul. Sobe imediatamente. Há coisas mais importantes do que o teu jogo. O teu irmão regressa hoje a casa.

Tracy virou-se para a mãe, de queixo levantado. Os seus olhos cor de avelã estavam gelados de raiva.

“ Quero lá saber - ” disse. - Vou-me embora.

Anna ficou por instantes sem palavras, impressionada pela frieza que vira nos olhos da filha.

- Tracy – ordenou Tom. – Faz o que a tua mãe mandou.

- Merda ! – exclamou Tracy, batendo o pé, e saíndo da cozinha. – Vocês são um nojo.

Anna sacudiu a cabeça e sentou-se.

- Meu Deus, ela está mesmo a reagir mal a isto tudo. Não compreendo. Falaste com ela ? Comigo ela recusa-se.

Thomas suspirou, guardando o jornal na pasta.

- Não – confessou. – Não sei que hei-de dizer-lhe.

- Talvez tenha ciúmes da atenção que estamos a dar ao Paul. Sabes, pode sentir-se ignorada – especulou Anna.

- Bem, de facto, não falámos doutra coisa toda a semana.

- Eu sei – respondeu Anna -, mas é natural. É natural que estejamos excitados.

- Talvez pense que vai ser sempre assim, quando ele cá estiver – disse Thomas.

Anna olhou para o marido, intrigada:

- Que queres dizer com isso ??

- Não sei – escusou-se Thomas. –Estava só a pensar em voz alta. Ela tem andado muito difícil há já algum tempo.

- Acho que qualquer pai ou mãe sentiria o que nós estamos a sentir .

Thomas olhou para o relógio.

- Aquilo já lhe passa. Bem, Anna, tenho mesmo que ir.

Anna concordou com a cabeça, embora desejasse poder continuar aquela conversa. Levantou-se e pegou nas chaves do carro que estavam, como sempre, numa chávena ao lado do lava-louça. O outro carro tinha ido para a oficina, o que significava que ela teria de levar o marido à estação.

Thomas vestiu o casaco e pegou na pasta. Anna reparou que ele a olhava com uma expressão acusadora. Franziu o sobrolho, admirada.

- O avental, Anna – observou ele.

Anna olhou para o avental sujo de chocolate e açúcar. Tirou-o e pendurou-o no cabide atrás da porta.

- Está bem - disse -, esqueci-me. E depois?

Os ramos frondosos dos velhos áceres enchiam de sombra as tranquilas estradas secundárias de Stanwich. As mansões espreitavam ao fundo dos relvados cuidadosamente tratados, separadas umas das outras por pomares e muros de pedra. Eram poucos os carros a perturbar a tranquilidade da manhã.

Anna conduzia e Thomas seguia em silêncio. Tinha a pasta aberta no colo e passava os olhos pelos relatórios que guardara lá dentro. Anna via a rua serpentear e as casas ficar cada vez mais juntas e pequenas à medida que se aproximavam do centro da cidade e da estação de caminho-de-ferro. Olhou-o de relance, pelo canto do olho. Parecia absorto na sua papelada.

- Tom...

- Sim...

- Estás desejoso que a noite chegue depressa? ; Thomas pousou as mãos na pasta e respondeu:

- Estou, é claro que estou.

- Ainda não acredito. É um milagre - continuou Anna, cautelosa. - O nosso filho finalmente connosco. Vamos estar todos juntos outra vez, como dantes.

- Assim espero - respondeu ele. - Espero sinceramente.

- É uma maravilha. Tivemos tanta sorte!

- Pois foi - disse ele. Esticou o braço e acariciou-lhe a coxa.

- Só receio... espero que o Paul esteja... bem. Thomas tirou a mão da perna da mulher e olhou para ela,

desconfiado.

- Mas porque é que não havia de estar bem? - perguntou. Anna torceu os lábios e não respondeu. Percebeu que ele

estava ligeiramente irritado e não tirava os olhos dela.

- Desde que nos deram a notícia que fiquei a pensar começou ela. - Ou melhor, que fiquei preocupada.

- com quê? Anna hesitou.

- Bem, penso que talvez fosse boa ideia pedir protecção... para ele.

Continuava a olhar para a estrada, mas sentia os olhos do marido cravados nela.

- Porquê? Não estou a perceber.

- Bem, não consigo deixar de me preocupar com ele.

- com o Paul?

- com aquele homem - explicou ela encolhendo os ombros.

Fez-se silêncio.

- O Rambo - disse Thomas.

- Anda por aí fugido. Sabemos que é doente mental. Não fazemos ideia do que é capaz de fazer. Pode resolver ir à procura do Paul. Pode estar convencido de que o Paul lhe pertence e vir atrás dele ou coisa do género.

- Acho que não devemos inventar problemas, Anna. Não temos motivos para acreditar que ele vá fazer uma coisa dessas.

Anna voltou-se e olhou-o com firmeza:

- Como podes ter tanta certeza? Ele já nos tirou o nosso filho uma vez, não foi?

- Atenção à estrada, Anna.

O carro guinou ligeiramente quando Anna se desviou, mas depois voltou à sua faixa.

- Escuta - disse Thomas -, a polícia já te disse... até o teu amigo Buddy te disse... que o mais provável é o homem fugir o mais depressa que conseguir e para bem longe de nós. Tem de responder por rapto, se for apanhado. A última coisa que lhe interessa é ser visto por aqui. Nem o Rambo faria uma loucura dessas. Acho que devias esquecer que ele existe.

- Sei muito bem que é procurado por rapto, mas também sei que não estamos a falar de uma pessoa normal, previsível. Ou achas normal ele ter roubado o nosso filho? É impossível imaginar o que uma criatura dessas é capaz de fazer. Sabemos que é louco...

- Está bem - interrompeu-a Thomas -, mas se ele teve a esperteza de fugir quando soube que a mulher ia contar tudo, acho que é óbvio que não se vai entregar à polícia de mão beijada.

Anna agarrou com força o volante.

- Não sei - disse. - Talvez tenhas razão. Mas qualquer coisa me diz que não é bem assim.

- Pelo amor de Deus, Anna - continuou Thomas quando chegaram à estação -, eu pensava que agora, com o rapaz de volta, ias finalmente parar com isso. Quero dizer, dá-te prazer passares a vida preocupada? Porque é que não deixas as coisas como estão?

Anna parou o carro junto à plataforma e pôs o motor em ponto morto.

- Não, não me dá prazer nenhum estar preocupada, e tu sabes isso. Mas não vou esquecer facilmente o que aconteceu. É impossível, depois de tudo o que passámos. E criticares-me não vai ajudar nada.

- Está bem, peço desculpa, peço desculpa - respondeu Thomas. Abriu a porta do carro e saiu. Uma multidão de passageiros bem vestidos e barbeados acotovelava-se de ambos os lados do Volvo. Thomas olhou para o relógio e depois inclinou-se para a janela aberta.

- Vê lá se vens cedo - pediu Anna. - Vai ser uma noite maravilhosa. Vais ver.

- Eu sei - Thomas sorriu, distraído, e afastou-se. Agarrando a pasta com força, subiu os degraus que levavam à plataforma. Anna viu o marido desaparecer entre as filas de homens de fato cinzento que se aglomeravam, ansiosos, na plataforma, aguardando avidamente a chegada do comboio para a capital.

Um misto de cheiro a torradas, a bacon gorduroso e a batatas fritas saía da decrépita ventoinha na parede das traseiras do restaurante e invadia o parque de estacionamento, por trás da pequena fila de estabelecimentos. O homem, que estava escondido nas sombras do princípio da manhã, atrás do estore, inspirava, maravilhado, aquele perfume. Ia passando os dedos nervosos pelo rosto, deixando marcas vermelhas na pele pastosa. Dentro do café, a empregada de mesa e o cozinheiro metiam-se um com o outro por entre o estardalhaço dos pratos. Embora distinguisse as palavras que diziam, o homem não percebia onde estava a graça. Nunca percebia qual era a piada das coisas que as pessoas diziam umas às outras, nem porque é que elas riam.

Nenhuma das outras lojas abrira ainda, e o único carro estacionado, tirando o seu Chevrolet azul, era um Cadillac verde-água com estofos cinzentos vendido por De Rosa Motors, Kingsburgh, Nova Iorque.

O homem das sombras lembrava-se de ter passado por esse stand da Cadillac, quando se dirigia a Kingsburgh, na noite anterior Ficava a poucos quilómetros do pequeno motel onde estava alojado e que procurara, conduzindo devagar, já de noite Tinha acordado de madrugada, cheio de fome, fome que o obrigou a sair, a ir para a rua. Olhou em volta, para ter a certeza de que ninguém o estava a ver. Usava um chapéu cinzento   bem enterrado na cabeça, e óculos escuros. Uma camisola desportiva em poliéster, de mangas curtas, deixava ver os seus braços brancos e esqueléticos, cobertos de pêlos alourados. Fechou os dedos ossudos, agitados, e enfiou-os nos bolsos das calças que lhe ficavam grandes.

Outra vaga de cheiros de pequeno-almoço chegou ate ele, como um gato a roçar-se-lhe nos tornozelos. O seu estômago roncou automaticamente. Olhou para a fila de lojas. Havia uma tabacaria, uma farmácia, um bowling e, a duas portas do restaurante uma mercearia. Atrás da mercearia havia um contentor de lixo quadrado e verde - a razão que o levara ali.

Depois de sair das sombras, tinha corrido pelas traseiras das lojas até ao local onde se encontrava o contentor. Nos últimos dois dias comera apenas chocolates comprados nas máquinas nas estações de serviço. Já estava quase sem dinheiro e tinha dormido sempre no carro, em becos que encontrava nos desvios da auto-estrada. Mas finalmente teve de parar. As vozes estavam a distraí-lo tanto que quase batera na divisória da auto-estrada Decidira então passar umas noites naquele motel barato só que o dinheiro não dava para isso e para comer.

«As mercearias deitam fora muita comida», pensou. De certeza que encontraria alguma coisa para comer no contentor. Olhou em volta, levantou a pesada tampa metálica e segurou-a só com uma mão. O cheiro a alimentos apodrecidos e em decomposição soltou-se lá de dentro, confirmando as suas previsões Enfiou a cabeça debaixo da tampa e olhou para o interior Uma variedade nunca vista de lixo solto repousava em cima de sacos de lixo. Por baixo de um jornal amarrotado, havia uma caixa de ovos aberta com três partidos e dois inteiros e, ao lado, um pacote de bolachas de água e sal aberto e cheio de papéis. com a mão desviou uma embalagem de leite rasgada e espapaçada e pescou a dos ovos. Primeiro, agarrou no jornal e atirou-o para o chão. Conforme este caía, viu na primeira página a fotografia do seu filho, a olhar para ele.

Albert Rambo suspirou, agoniado, e dobrou-se para apanhar o jornal. Encostou a tampa do contentor ao ombro, para mante-lo aberto, e leu as últimas notícias acerca do feliz reencontro de Paul Lange com a sua família, que teria lugar daí a poucas horas. O lábio enrugou-se-lhe enquanto lia a notícia. Nas páginas interiores havia uma fotografia da casa dos Lange, aos seus olhos um palácio monumental, na cidade de Stanwich, Connecticut.

«O lugar ideal para aquele pagão manhoso fazer servicinhos a Satanás», pensou Rambo. Entre os ricos e os ateus lá de Connecticut. «Se soubessem a verdade ele ia parar ao inferno com os outros diabos», pensou. Não reparou que estava a falar sozinho. O seu estômago continuava às voltas, agora com maior insistência. Depois de tantos anos a sacrificar-se por ele, a criá-lo como se fosse do seu sangue. Parecia que ainda estava a ouvir a voz da mulher: «O miúdo está a precisar de uns sapatos. Está a precisar de um casaco. O Billy está a precisar... O Billy está a precisar...»

Rambo examinou a casa na fotografia do jornal, onde o herege, aquele acólito de Belzebu, ia passar a viver.

Paul Lange. Torceu o nariz. É nome de príncipe. Um reizinho. A voz de Dorothy Lee desapareceu e outras vozes começaram a invadi-lo, como um canto de sereia, rodopiando através do buraco no seu estômago, assombrando-o em tons urgentes. As vozes falavam da ira de Deus para com os infiéis, do Seu desejo de que eles fossem castigados, pisados como a lama das ruas. Intimando-o, intimando-o, enchendo-o de convicção.

Um guincho perto do seu cotovelo fez Rambo dar um pulo e as vozes desaparecerem. Uma ratazana obesa desceu a parede do contentor e mergulhou no lixo. O estômago de Rambo voltou a roncar, trazendo-lhe à memória o motivo que o tinha levado até junto do contentor. Voltou a deitar o jornal para o lixo, tirou a tampa de cima do ombro e segurou-a com a mão. Depois, olhou furtivamente em redor, esticou o braço e tirou as bolachas e os ovos.

Stanwich ficava apenas a trinta milhas dali, pensou, enquanto chupava avidamente o ovo pela fenda da casca. Sabia exactamente onde era. A nova casa de Billy. Lembrava-se bem dela. Enfiou o pacote de bolachas debaixo do braço e caminhou até ao carro. Queria sair do parque de estacionamento antes que alguém o visse e antes que o dia nascesse. Queria regressar ao quarto antes que as vozes voltassem, a sugerir-lhe coisas, a dizer-lhe o que devia fazer.

 

                                                     CAPÍTULO 3

As torres cinzentas de Manhattan estavam cobertas por uma nuvem acastanhada de calor e fuligem. Thomas olhou pela janela do escritório com pouca vontade de sair. À hora do almoço, já o ar estava espesso, abafado, e o alcatrão das ruas quase viscoso, tal era o calor. Sabia o que o esperava quando fosse para a estação, ao fim do dia. Pessoas a desviarem-se e a chocar umas com as outras, como carrinhos de feira humanos, joelhos a chocar com pastas, dessincronizados. Adolescentes de patins, calções de cetim e auscultadores, a atravessar de repente grupos de transeuntes apressados. Vendedores a empurrar carrinhos com caixotes de plástico, cheios de frutos secos, impedindo a passagem em pontos estratégicos, obrigando os peões a andar perigosamente à borda do passeio.

Mesmo do vigésimo andar, onde se encontrava, Thomas ouvia o ruído do trânsito lá em baixo, na Madison Avenue. Era o início da hora de ponta, o que significava que muitos autocarros, táxis e automóveis, com matrículas de Jersey, estavam agora imobilizados no meio das transversais, impossibilitando o trânsito em qualquer dos sentidos.

Thomas suspirou, voltou-se e consultou o relógio que tinha em cima da secretária. O seu gabinete estava fresco, com o ar condicionado ligado e as janelas hermeticamente fechadas. Até a decoração era fresca: alcatifa bege, um padrão azul muito discreto no sofá e nas cortinas. Alguns colegas seus tinham tentado tornar o ambiente mais caloroso, pendurando quadros, trazendo plantas. tom achava isso um disparate. O conforto

do lar não podia ser reconstituído com meia dúzia de artigos decorativos. O único ornamento que rompia a neutralidade da sala era a moldura com a fotografia de Anna e Tracy, sobre a secretária. O decorador contratado pela empresa informara-o de que já não se usava ter retratos da família nos escritórios. Thomas ouvira-o com total indiferença. Ao olhar para os rostos sorridentes da mulher e da filha, lembrou-se de que agora tinha de arranjar também uma de Paul. A ideia fê-lo sentir um desagradável aperto no estômago.

Pegou no relatório, que repousava em cima da secretária, com pouco entusiasmo. Tinha de o ler antes de ir para casa. Descrevia o sistema informático que estava a ser instalado e os benefícios que podia trazer ao seu departamento. Eram quase cinco da tarde. Contou as páginas que lhe faltavam e calculou o tempo que lhe iriam tomar. Depois voltou a página de cima e leu o primeiro parágrafo.

Ouviu bater levemente. Voltou-se e a sua expressão preocupada foi substituída por uma de prazer quando viu à porta uma jovem bem vestida, de cabelo negro e ondulado.

- Que achou do meu relatório? - perguntou esta. Thomas mostrou que ainda o tinha nas mãos.

- Ainda não chegou ao fim?

- Estou mesmo a acabar - disse Thomas, sentindo-se apanhado.

A jovem entrou na sala e sentou-se no sofá em frente à secretária de Thomas, depois recostou-se e cruzou as pernas vestidas com meias elegantes.

- Não ligou nenhuma à minha brilhante análise - disse, num tom amuado.

- Acho que tem razão - afirmou Thomas, convicto. Já devíamos ter feito isto há uns dois anos. O relatório está muito bem feito, Gail.

- Se quiser, faço-lhe uma apresentação privada enquanto tomamos um martini - disse. - Assim não tem de ler as partes chatas - continuou, passando, descontraída, uma mão pela coxa.

- Não, não, eu tenciono lê-lo.

- Estava só a provocá-lo.

- Ah - respondeu Thomas, embaraçado, mas lisonjeado. Sentia-a olhar para si, o que lhe punha o couro cabeludo em pele de galinha. Tentou ignorar as pernas dela. - A ver se eu lhe oferecia uma bebida? - perguntou. Gail riu alto com a ingenuidade da pergunta: - Não, eu é que lhe fiz uma oferta. Por instantes, Thomas imaginou-se sentado num bar escuro com ela, a conversar e a rir, enquanto um piano tocava languidamente ao fundo. Ao pensar nisso, lembrou-se do que o esperava em casa e fez que não com a cabeça.

- Gostava muito - disse em voz baixa. - Mas não posso. - Franziu a testa e voltou a olhar para o relatório. Gail reparou no tom melancólico da resposta dele. Como já todas as pessoas do escritório, estava ao corrente do regresso de Paul, embora Thomas não o tivesse mencionado de livre vontade. Apesar de a relação entre ambos ser ainda superficial, ela sempre fizera os possíveis por dar a entender a tom que podia fazer-lhe confidências. Ele fizera-o já uma ou duas vezes. Quando Anna estava fora, à procura do filho, tinham ido beber um copo depois do trabalho e, ao segundo uísque com água, ele exprimira a sua frustração relativamente às infindáveis buscas da mulher. Ao primeiro sinal de solidariedade da parte de Gail, Thomas desistiu imediatamente. Mas Gail viu aí uma oportunidade. Aquele homem, por quem se sentia terrivelmente atraída desde a primeira vez que o vira, não era completamente feliz em casa. E agora encontrava nele o mesmo olhar triste e ausente dessas raras noites em que tinha concordado em tomar uma bebida com ela. Achou interessante a maneira como ele estava a reagir à chegada do rapaz. - Parece um pouco... em baixo - comentou. - Está

preocupado com o que vai acontecer esta noite? - Como? - perguntou Thomas. - Não, preocupado

não. Nem por isso. Bem, tem sido um dia difícil. Toda a gente me felicita ou anda em bicos de pés à minha volta. - Uma pessoa não sabe o que há-de dizer.

- Deve ser isso - suspirou Tom.

Ela mordeu os lábios.

- Mas eu estou preocupada consigo.

- Estou óptimo - insistiu ele, girando a cadeira e olhando pela janela. - Sinto-me muito bem. Feliz.

Calou-se e olhou à distância. Gail levantou-se e mexeu num dos seus brincos.

- Calculo que Anna esteja uma pilha de nervos - disse a medo.

Thomas fez uma careta.

- Tem sido infernal, lá isso é verdade. É que Anna... bem, isto para ela é tão importante...

- Imagino que esteja ocupadíssima a preparar tudo para a chegada de Paul.

- Ah, sim. Não pensa noutra coisa.

- Ela nunca mais ficou normal desde que aquilo aconteceu.

- A Anna!? - exclamou Tom, fitando-a, incrédulo. Ela está normal. Perfeitamente normal. Só que parece...

- Obcecada - terminou Gail. Parecia-lhe que Thomas não queria pronunciar a palavra, mas percebeu logo que tinha ido longe demais. Ele começou a desviar a conversa. Então, tentou pôr água na fervura.

- Vai ser difícil para todos, claro. Têm que dar tempo ao tempo, a adaptação vai ser demorada.

Thomas passou uma mão pelos olhos e fez que sim com a cabeça.

- Estou um pouco cansado, só isso.

com uma lentidão propositada, Gail descruzou as pernas e levantou-se. Atravessou a sala e parou atrás da cadeira dele.

- Precisa - disse num tom de brincadeira, mas firme é de uma massagem para relaxar. - Pousou as mãos na nuca dele e começou a fazer movimentos circulares. Sentiu os músculos tensos começarem a descontrair-se sob as suas mãos.

Thomas soltou uma gargalhada nervosa.

- Que bom - disse e depois soltou um gemido suave, involuntário.

Gail sorriu e continuou, agora com os dedos dobrados.

- Tirei um curso de massagista no Verão - explicou.

- Deve ter passado com vinte - respondeu Tom. Queria conversar num tom descontraído, galanteador; mas parecia que a pressão das mãos de Gail nas suas costas, na sua nuca, estava a libertar algo que se encontrava preso dentro dele; teve de reprimir um soluço que lhe subiu inesperadamente à garganta. Fechou os olhos, sentindo-se culpado por estar a gostar tanto daquela retemperante massagem e, ao fazê-lo, teve um súbito desejo de virar-se e abraçá-la, esconder o rosto no colo dela. Abriu os olhos e afastou-se bruscamente.

- Foi uma grande ajuda - disse, quando Gail parou. A sério - fez questão de olhar para o relógio. - Meu Deus, tenho de me despachar se quiser apanhar o das cinco e quarenta. - Olhou para a secretária. - Acho que vou levar isto comigo.

Gail sacudiu os dedos e dirigiu-se à porta.

- Bem - disse com um ar natural -, se lhe apetecer desabafar no fim-de-semana, telefone-me. Ou passe lá por casa. Tanto a morada como o telefone vêm na lista. Espero que corra tudo bem com o Paul.

- Obrigado. Vai correr.

Thomas viu-a sair do seu gabinete e admirou a elegância com que caminhava, na sua impecável roupa de trabalho. Reparou que não estava com a habitual pressa de ir para casa. Apetecia-lhe muito mais ir sair com ela, beber uns copos, esquecer tudo. Tudo, excepto aqueles dedos na sua nuca. A ideia fez Thomas estremecer. Queria sentir-se feliz ou, pelo menos, esconder a apreensão com que aguardava aquela noite. Talvez nem fosse preciso escondê-la. Anna devia estar demasiado ocupada para dar por isso. Abriu a pasta, guardou lá dentro o relatório de Gail e fechou-a. Depois vestiu o casaco e, dando uma última olhadela ao seu gabinete fresco e arrumado, dirigiu-se à porta, preparando-se para enfrentar o caos lá fora.

Anna retirou o papel prateado e inclinou a cabeça para o lado, com uma careta. Depois, segurando a garrafa pelo gargalo, abraçou a amiga.

- Champanhe! íris, que boa ideia! íris olhou para o rótulo, hesitante.

- Foi o Edward que escolheu. Diz que é excelente. Já está tudo pronto?

Anna olhou de relance a cozinha invulgarmente arrumada.

- Acho que sim. Tenho a impressão de que fiz tudo a dobrar.

íris fez um gesto de aprovação com a cabeça:

Deve estar tudo maravilhoso.

A conversar, as duas mulheres percorreram a casa silenciosa até à porta e saíram para o alpendre.

- Vai ser uma noite fantástica - observou íris. Anna olhou para o céu à procura de nuvens. Não estejas aflita, Anna.

- Agora estou a ficar nervosa - confessou Anna. - Se calhar era melhor ir lavar outra vez o chão.

Nesse instante, um Cadillac preto dobrou a esquina, Abrandou e parou à porta de casa dos Lange. O carro estava todo luzidio e, por cima do radiador, no lugar do habitual emt»lema da Cadillac, via-se uma cintilante águia dourada, de asas completamente abertas e patas esticadas, como a preparar-se para descer em voo picado sobre uma presa.

__Olha quem vem lá. Devem ter apanhado o mesmo comboio.

Thomas saiu do lugar do passageiro e fechou a porta devagar. Foi andando, enquanto Edward desligava o motor e deixava o lugar atrás do volante. Estavam ambos sorridentes, o que muito admirou Anna. Por norma, davam-se bem, mas nunca tinham sido amigos. Thomas considerava Edward demasiado frio e exigente para o seu gosto. «Olha sempre para mim como se eu tivesse a gravata suja de atum» costumava dizer Thomas, e Anna ria com essa descrição do vizinho, enquanto, de sobrolho levantado e nariz ligeiramente franzido, tom sacudia uma migalha imaginária da velha blusa dela, com o indicador bem esticado. Desta vez, porém, Anna sentiu-se reconfortada ao vê-

los atravessar o relvado lado a lado, como dois bons amigos.

Mostrou a garrafa que embalava nos braços:

-- Olha o que a íris e o Edward nos trouxeram - gritou para Thomas.

Edward ajeitou o casaco do seu fato de seda e deu um breve aperto de mão a Thomas. Os dois homens aproximaram-se das mulheres.

- Obrigado, íris - disse Thomas. - Gostámos muito.

- Bem - disse íris, apertando-lhe desajeitadamente a mão -, estamos muito felizes por vocês e vamos pensar nos dois a noite toda.

- Sem dúvida - concordou Edward, seco. Anna olhou-os enternecida, lembrando-se de que tinham ambos estado presentes e dispostos a ajudar naquela outra noite, a noite do desaparecimento de Paul.

- Não querem entrar e tomar qualquer coisa? - perguntou Anna.

Edward acenou com a mão bem cuidada.

- Temos de ir para casa. Tenho imenso que fazer esta noite.

Enquanto Edward falava, uma carrinha azul-turquesa, com o logotipo de uma estação de televisão pintado num dos lados, parou em frente da casa.

- O que é isto agora? - perguntou Thomas.

Um homem de camisola de lã saiu do lugar da frente e ouviu-se bater a porta do outro lado. Uma mulher loura, de saia e casaco e blusa de seda, foi ter com o homem da camisola, que estava a abrir a porta traseira. Acenou aos Lange e começou a subir a rampa na direcção deles, enterrando os saltos altos e finos dos sapatos na relva macia.

Anna resmungou ao reconhecer a jornalista, Camille Mandeville, que a entrevistara várias vezes desde que Paul desaparecera. Anna correu pelo relvado ao encontro dela, enquanto outro homem, também saído da carrinha, ajudava o condutor a descarregar a câmara e o equipamento de som.

- Camille, prometeu-me - disse Anna -, que hoje nos deixava em paz. Queremos dar as boas-vindas ao nosso filho em privado.

- Como está, Mistress Lange? - perguntou a jornalista fazendo um sorriso radioso e estudado. Baixou os olhos e fez uma careta quando viu os seus sapatos de pele de lagarto sujos de terra. - Tem sido uma loucura o dia todo. Queria chegar mais cedo.

- Fui muito clara - continuou Anna. - Os outros foram todos muito compreensivos.

- Acalme-se, acalme-se - disse Camille numa voz tranquilizadora. - Não nos demoramos. Só queremos um apontamento para o noticiário das dez, consigo e o seu marido a dizerem que estão muito emocionados e essas coisas.

Thomas, Edward e íris também se encaminharam para o relvado e colocaram-se em volta de Anna, como forças de segurança.

-- São familiares? - perguntou Camille num tom simpático.

-- São vizinhos, Mister e Mistress Stewart - disse Anna.

Camille dirigiu a íris e Edward um grande sorriso, embora ausente, enquanto lhes apertava as mãos ao mesmo tempo que estudava as condições para filmar ali mesmo.

-- Muito prazer. Como está Mister Lange?

- Camille, isto não me agrada nada. Temos tanto em que pensar neste momento!

Camille, que fazia sinais ao operador de câmara para que fosse ter com ela, voltou-se para Anna e apontou-lhe o indicador.

--Mistress Lange - repreendeu -, as pessoas da região solidarizaram-se consigo e a sua família durante todos estes anos. Não acha que elas merecem partilhar convosco a alegria desta ocasião? Bem vê, muitas rezaram por este dia e esperaram-no ansiosamente, tal como a senhora.

Anna suspirou.

- Tem razão - respondeu. As pessoas tinham sido muito simpáticas. Por vezes, tanta curiosidade chegava a enervá-la, enfurecê-la. Mas houve ocasiões em que o apoio delas lhe fora precioso. Cartas de outras mães, de desconhecidos, a dar-lhe esperança, a tentar contribuir com uma pista. Virou-se para Thomas, que exibia uma expressão de impaciência. Os olhares deles cruzaram-se e ele encolheu os ombros.

- Está bem - disse Anna.

- Porque não se chegam mais a Mistress Lange? - sugeriu Camille e incitou-os a aproximarem-se, agitando os dedos de unhas pintadas em cor de melão. - Não demora nada. Vamos lá.

- Peço imensa desculpa - disse tom aos seus vizinhos desprevenidos.

- Isso mesmo - disse Camille. - Todos em volta dela. Está óptimo. As pessoas vão adorar. Os amigos vão poder partilhar a vossa alegria. Vá, todos com um ar feliz.

Despache-se, Camille - suplicou Anna. - Os nossos vizinhos...

- Não te preocupes, Anna - tranquilizou-a íris. Vais

ver que até é divertido!

Camille levantou os dois braços, para indicar que a rapidez não era problema e pegou no microfone que um homem lhe estendia.

- Agora explicou -, vou fazer as apresentações todas.

Sou capaz de fazer uma pergunta a cada um. Mister Stewart, vou perguntar há quanto tempo conhece os Lange, se se lembra bem de Paul, coisas desse género, está bem?

Camille hesitou, à espera de uma resposta de Edward, cujo rosto parecia uma máscara, os grandes olhos cinzentos muito abertos de susto.

«Pobre Edward», pensou Anna, olhando-o de relance. A televisão não era para ele. Um retrato discreto na página de economia do The New York Times, talvez, mas aparecer no telejornal das dez, entre crimes, incêndios e política caseira, nunca.

Edward molhou os lábios com a língua e concordou com um aceno de cabeça.

- Em seguida - continuou Camille -, faço-lhe o mesmo género de perguntas, Mistress Stewart. E depois pedimos a Mister e Mistress Lange que descrevam o que estão a sentir. Pode ser? Estão prontos? - e sorriu-lhes, cheia de expectativa.

Anna concordou e tentou pensar em todos aqueles que tinham rezado por eles durante os últimos anos.

- Reparem, não há razão para estarem nervosos. Basta sorrirem - aconselhou Camille. - Mister Lange, porque não põe o braço em volta da sua mulher? - Virou-se para o operador de câmara,   levantando o microfone até à altura do queixo.

- De vez em quando, há uma história que tem um final feliz - começou Camille - e aqui, em casa de Mister e Mistress Thomas Lange, um desses raros finais felizes está prestes a tornar-se realidade.

Enquanto ouvia Camille falar, Anna sentiu o braço de Thomas abraçá-la e a mão dele pousar pesadamente sobre o seu ombro.

Anna pegou numa almofada com borlas que estava no canto do sofá e apertou-a contra o peito, enquanto examinava a disposição dos móveis da sala. Atravessou-a, encostou a almofada ao braço de uma poltrona de orelhas e recuou uns passos, para ver se ficava bem. Depois voltou a pegar nela e dirigiu-se à outra poltrona de orelhas, colocada junto à escrivaninha.

Thomas, que vestira uma camisola desportiva lavada, observava-a da porta. Ainda estava muito calor. Sentiu um fio de suor descer-lhe pelo pescoço e meter-se debaixo da gola. Foi sentar-se numa das poltronas e tirou uma revista do cesto metálico que se encontrava ao lado. Voltou a olhar para Anna, que acabava de pousar novamente a almofada, desta vez ao meio do sofá.

- Esse vestido é novo? - perguntou Thomas.

Anna mirou-se de alto a baixo e depois olhou para o marido:

- Desculpa, querido, comprei-o no outro dia e esqueci-me de te dizer. - Pegou outra vez na almofada e ficou com ela nas mãos,

- Não tem importância - disse Thomas, abrindo a revista. - É bonito. Anna, que andas a fazer com essa almofada?

Anna sentou-se na borda do sofá e arrumou a almofada a seu lado. Endireitou a begónia em flor, o cinzeiro, a cigarreira de prata e as bases para copos que estavam na mesinha à sua frente.

- Ia pô-la noutro sítio. ;;

- A que horas disse o Buddy que vinham? Anna olhou para o seu relógio.

- Disse que pensava trazê-lo por volta das nove. A luz da frente está acesa?

Thomas fez que sim com a cabeça e olhou também para o relógio.

- Onde está a Tracy?

Anna apontou para o vestíbulo.

- Lá em cima, ainda.

Thomas folheou a revista. Anna cruzou as mãos no colo e procurou concentrar-se no marido.

- Como foi o teu dia? - perguntou.

Thomas lembrou-se imediatamente das mãos de Gail a massajar-lhe o pescoço. Continuou a fitar a página.

- Foi bom - respondeu.

- Tu e o Edward apanharam o mesmo comboio?

- Apanhámos - respondeu Thomas, sem tirar os olhos da revista. - Encontrei-o na estação.

- Pareciam dois grandes amigos quando chegaram.

- Edward foi muito simpático.   Fez muitas perguntas acerca do Paul.

- Estão ambos muito preocupados com o Paul.

- Pois estão.

Thomas voltou a mergulhar na leitura da revista, enquanto Anna tentava lembrar-se de outro assunto que não o filho. Como é que está a correr aquela... aquela coisa nova dos computadores de que tu falaste?

Thomas olhou-a desconfiado. Sentiu-se culpado pelos pensamentos sobre Gail, mas ao mesmo tempo agradava-lhe ver Anna tão interessada.

- O sistema novo?

- Quando é que começam a utilizá-lo?

- Dentro de pouco tempo, espero.

- O que é que falta fazer? - perguntou ela, rodando a aliança no dedo.

- Bem, estive hoje mesmo a ler um relatório acerca disso. Os computadores já lá estão, mas agora é preciso reorganizar a informação e dar formação ao pessoal.

- Pessoal do teu departamento?

Thomas enrolou a revista num canudo e comprimiu-o entre as mãos.

Bem, quero que as pessoas do meu departamento saibam como ir lá buscar as informações, mas o esforço principal está concentrado...

Das escadas, no vestíbulo, veio uma rápida sucessão de estrondos e em seguida Tracy entrou de rompante na sala, vestindo ainda as roupas de ténis , todas sujas. Os olhos de Anna dispararam na direcção da figura esguia e abriram-se de espanto.

- Tracy - perguntou, furiosa -, porque é que ainda não mudaste de roupa?

Tracy olhou para a mãe e depois para o pai, que se tinha virado para a lareira vazia.

- Que mal é que esta tem?

- Está toda suja - respondeu Anna.

Thomas levantou-se e dirigiu-se ao carrinho das bebidas. - Vou preparar uma bebida. Queres uma, Anna?

Anna tirou a custo os olhos de Tracy e fixou-os em Thomas.

- Tens aí gelo - informou apontando o balde colocado no tabuleiro polido.

- Perguntei-te - disse Thomas com rispidez -, se querias uma bebida.

- Sim, por favor - respondeu Anna, espantada com aquele tom de voz.

- Vou buscar qualquer coisa para comer - interveio Tracy, que passou pelo pai, atravessou a sala de jantar e entrou na cozinha.

- Vais ficar sem fome para o jantar - disse Anna à filha.

Thomas entregou o copo a Anna com brusquidão.

- Comemos assim que ele chegar - continuou Anna.

Thomas sentou-se no seu lugar com o copo na mão e começou a beber .

- Interrompi-te - disse Anna. - Desculpa. Que estavas a dizer?

- Esqueci-me.

- Fiz bifes para o jantar - disse Anna.

- Ah! - foi o comentário de Tom, que fazia chocalhar os cubos de gelo dentro do copo.

Espero que estejam bons - continuou Anna.

- Tenho a certeza de que ele vai gostar – respondeu Thomas.

De repente, Anna levantou-se num pulo:

Tom, ouviste?

Thomas pousou o copo e pôs-se de pé.

- Parece um automóvel - disse, esforçando-se por manter a voz firme.

- Tracy - chamou Anna.

O barulho de alguma coisa a cair na cozinha foi a resposta. Anna atravessou a sala de jantar a correr e abriu a porta da cozinha.

- Que aconteceu? - perguntou.

Tracy enfrentava-a com ar de desafio. Anna olhou para a filha e depois para um monte de bolo de chocolate, de pernas para o ar, com a cobertura colada ao linóleo da cozinha. Todo o chão estava coberto de bocados de bolo. Um grande pedaço equilibrava-se precariamente na borda do lava-louça. A cobertura escorria pela porta do armário que havia por baixo.

- Ia pô-lo noutro lugar, mas ele caiu quando tu berraste. Anna fechou as mãos.

- Limpa isso tudo - disse. - Já.

- Não foi de propósito. Thomas apareceu à porta.

- Chegou o automóvel da polícia. Despachem-se.

- Ela tem que limpar esta porcaria - insistiu Anna, batendo com a porta.

- Depois. Agora venham cá as duas.

Tracy passou por Thomas com um sorriso trocista. Anna olhava, como que hipnotizada, para o bolo desfeito no chão. Ajoelhou-se e começou automaticamente a apanhar os bocados.

- Anna - Thomas inclinou-se e puxou-a pelo cotovelo, com cuidado. - Deixa lá isso.

Lentamente, Anna pôs-se de pé e limpou as mãos na toalha que ele lhe estendeu. Olhou, inconsolável, para o marido.

- Fechamos a porta - disse ele. - Ninguém vai dar por nada.

A campainha tocou e ecoou pela casa. tom e Anna olharam-se, apreensivos.

- Cá está ele, querida. Vamos.

Anna deu-lhe a mão e Thomas conduziu-a até à sala, onde Tracy estava deitada no sofá. Thomas estendeu à filha a outra mão, mas ela sacudiu-a e levantou-se sozinha.

A campainha tocou outra vez.

Quando chegou à porta Anna parou, como se o som a tivesse paralisado.

Thomas abriu a porta. com as mãos trémulas agarradas uma à outra, Anna, de pé atrás do marido, olhou para a rua.

A noite estava escura, mas a lanterna ao lado da porta iluminava os degraus da entrada e a figura que sobre eles se encontrava. Atraída pela claridade, uma nuvem de traças pousou na porta de rede anti-mosquitos, batendo as suas asas poeirentas. Através do mosaico formado pela aglomeração de asas Sobre a rede, Anna viu o rosto pálido e magro de um adolescente. O cabelo castanho estava comprido e despenteado, atravessando-lhe a testa como uma cicatriz escura. Vestia calças de gangas desbotadas, sapatos de ténis pretos, uma T-shirt e um blusão coçado e remendado. Os olhos profundos, cor de âmbar, com olheiras escuras, iam, desconfiados, do casal que estava à porta para o ruidoso esquadrão de insectos nocturnos que aterrara na rede.

Thomas abriu a porta de rede e, com um gesto, convidou o rapaz a entrar.

- Entra - disse-lhe.

Paul passou pela abertura estreita e entrou no vestíbulo. Pendurada ao ombro trazia uma velha mochila. Na mão, uma mala de cartão. Ficaram uns instantes a olhar uns para os outros.

Depois, Anna avançou para ele, de braços abertos. O rapaz levantou a mala de cartão e colocou-a à sua frente. Um gato miou dentro da mala.

-- Esqueci-me de dizer que tinha um gato, quando falámos ao telefone.

As lágrimas encheram os olhos de Anna, impedindo-a de ver o filho com nitidez. Mexeu a cabeça, incapaz de falar.

- Bem-vindo, Paul - disse Thomas, desviando-se para deixar o filho passar.

- Billy - corrigiu o rapaz.

Thomas ficou um instante a olhar para ele, depois sentiu um arrepio ao reparar no nome que estava bordado na algibeira do blusão.

- Prefiro... estou mais habituado a que me chamem Billy

- disse o rapaz, avançando pela casa, abraçando as suas coisas.

 

                                             CAPÍTULO 4

Embora a tabuleta de madeira do Motel La-Z Pines, meio apagada pelo tempo, anunciasse ar condicionado nos quartos, o aparelho instalado na janela de Albert Rambo praticamente não funcionava, de maneira que a película de suor que lhe revestia a pele não havia meio de desaparecer.

Rambo sentou-se na borda de uma cadeira, com os cotovelos apoiados nos joelhos, a fumar um cigarro. O fio de fumo azulado ficou suspenso naquela atmosfera húmida e o cheiro empestou o quarto abafado.

Um misto de fome e calor entonteceu-o, enjoou-o. Do outro lado do quarto, sobre a colcha da cama, encontrava-se o tesouro do dia. Consistia numa caixa às riscas brancas e encarnadas, com a tampa rasgada, que ele encontrara no caixote de lixo do Kentucky Fried Chicken. Lá dentro havia um peito de frango meio comido e uma perna pequena. Além disso, conseguira fanar um maço de cigarros do tabliê de um carro não trancado, num parque de estacionamento. Vendo bem, o dia até não estava a correr mal.

As vozes quase tinham estragado tudo. Enquanto percorria o parque de estacionamento, sempre a ver se alguém estava a observá-lo, a voz começou a falar com ele. Os versos surgiram-lhe nos lábios, e ele desatou a dizer coisas em voz alta. Uma senhora que passou a empurrar um carrinho de bebé olhou-o de forma estranha e disse:

- O que é que está aí a fazer? Saia já daqui.

Foi então que as vozes pararam. Nem sempre acontecia. Mas desta vez pararam.

Rambo limpou o suor do rosto e soltou um suspiro profundo. O cabelo começava a ficar ralo e o couro cabeludo, muito branco, brilhava no quarto escuro. O cheiro do rrango na caixa de cartão fê-lo sentir outra tontura. Além disso, estava cansado. De tanto correr.

Pensar na situação difícil em que se encontrava ainda o enjoava mais. Sempre tivera uma vida mais ou menos estável depois de casar com Dorothy Lee. Quando era mais novo, costumava dar as suas voltas, mas depois assentaram e arranjaram aquela caravana. Só se tinham mudado duas vezes: uma vez, quando trouxeram o Billy e, outra, depois de comprarem a caravana. Sem contar com as vezes em que estivera internado no hospital, claro. Mas essas não contavam. Deixou de gostar de andar de um lado para o outro. Até porque Dorothy Lee fez questão de se fixar num lugar e dar um lar ao rapaz.

A recordação da mulher despertou dentro dele alguma raiva, que em seguida se transformou no habitual desespero passivo. Como tinha ela sido capaz de lhe fazer uma coisa daquelas? Contar tudo ao padre e deixá-lo sozinho na boca do lobo. Ao fim e ao cabo, ele fizera aquilo por ela. Foi o maior erro da sua vida. No fundo, já estava à espera. Depois de roubarem o Billy, ela nunca mais se preocupou com ele, só com aquele filho do diabo. Aquele fedelho e o seu mau-olhado. Dorothy dizia que não, mas ele sabia. E a prova estava à vista. Semicerrou os olhos, cheio de rancor, enquanto observava o seu miserável quarto.

Levantou-se com dificuldade e arrastou-se até ao velho televisor colocado a um canto. Não queria pensar mais no mesmo assunto. Queria ouvir o barulho da televisão, comer o seu frango, continuar ali sentado. No dia seguinte logo veria o que havia de fazer. Ligou o aparelho e voltou para junto da cama. Estava a acabar um filme qualquer. Olhou para a embalagem de cartão às riscas, levantou-lhe a tampa com cuidado, como se fosse uma caixa de jóias, e espreitou esfomeado a carne no seu interior. Depois de desatacar os sapatos, atirou-os para junto da mesa-de-cabeceira e sentou-se, de pernas cruzadas e meias nos pés, em cima da colcha.

O noticiário das dez começou enquanto Rambo, salivando, levava à boca a pequena perna de frango. O apresentador anunciou que iam fazer uma visita a casa dos Lange. Rambo pensou em mudar de canal, mas depois resolveu ficar a ver aquele. A história fascinava-o e punha-o furioso ao mesmo tempo. Só esperava que não voltassem a mostrar a sua fotografia. Por sorte, nunca ninguém tinha mostrado grande interesse em tirar-lhe fotografias. E os poucos retratos que havia dele eram tão pouco nítidos e distorcidos que ele estava irreconhecível, sempre com aquele chapéu a projectar uma grande sombra sobre o seu rosto. Por instantes, pensou que talvez fosse boa ideia arranjar outro chapéu. Mas lembrou-se de que não tinha dinheiro suficiente. Talvez pudesse procurar na loja de artigos em segunda mão. Ou tentar arranjar um à borla, embora a ideia de usar um chapéu usado por outra pessoa o horrorizasse.

O suor voltou a escorrer-lhe pelo corpo quando se recordou de onde estava. Um nó apertou-lhe o estômago e de repente sentiu-se incapaz de comer. Ficou sentado na cama, imóvel, com a perna de frango a pender-lhe dos dedos, assaltado por um miasma de medos. Duas vozes dentro da sua cabeça começaram a entoar qualquer coisa ininteligível sobre a morte. Rambo esforçou-se por compreender. Depois, o seu estômago roncou, impedindo-o de ouvir as palavras, recordando-lhe a sua fome. Levou o frango à boca e deu-lhe uma dentada. A gordura agarrada à pele tornou os seus dedos escorregadios e espalhou-se em volta da boca, deslizando pelas faces encovadas. Após mais umas dentadas, voltou a guardar o frango na caixa. Estava nojento de mais.

No ecrã, a jornalista começou a falar de um final feliz em casa dos Lange, exactamente quando Rambo se levantou e se .irrastou pelo quarto estreito até à casa de banho. Tinha pêlos da alcatifa manchada agarrados às peúgas húmidas. Acendeu a luz do tecto da casa de banho e olhou para a televisão, para a casa dos Lange, que, por sinal, mal se via, atrás da jornalista. Pareceu-lhe uma mansão. Rambo pensou em Billy, o estupor/inho, a viver no meio daquele luxo todo. Uma toalha turca amarela, praticamente no fio, estava pendurada no toalheiro por cima da sanita cor-de-rosa. Rambo deu-lhe um puxão e pô-la debaixo da torneira aberta. Depois torceu-a com tanta força que ficou com as articulações dos dedos brancas. Passou a toalha pelos lábios e pelos cantos da boca, depois enrolou-a e levou-a para o quarto. Voltou a sentar-se na cama e atirou a toalha para o chão, para junto da embalagem de frango. Pegou na perna encetada e recomeçou a comer, de olhos no televisor.

O frango escorregou-lhe da mão e foi cair em cima de uma das pernas das calças, onde deixou uma mancha de gordura, enquanto Rambo olhava embasbacado para a televisão. De boca escancarada e com os seus olhos a piscar de espanto.

Muito depois de terminada a reportagem, Rambo continuava sentado na cama, esquecido do frango, fitando o vazio, de olhos bem abertos, o queixo descaído, atordoado. A sua cabeça, porém, era um turbilhão, tentando furiosamente absorver o que vira, antes que as vozes viessem confundi-lo outra vez, procurando o significado daquilo tudo. De repente percebeu que, embora fosse difícil de acreditar, o que tinha acabado de ver no ecrã era a sua salvação.

com o garfo de lado, Paul tirou do bife que tinha no prato os cogumelos e tentou também raspar o molho. Anna estava sentada à frente dele, com as mãos no colo, a observá-lo. Paul levantou a cabeça e viu que ela o fitava. Baixou rapidamente a cabeça outra vez, para evitar o seu olhar.

- Então, P... - disse Thomas. - Qual é tua disciplina preferida na escola?

Paul pegou na faca e começou a cortar o bife, concentrado. Não sei... - respondeu. Levou um pedaço de carne à boca.

- Não és obrigado a comer o bife - disse Anna. - Posso fazer-te outra coisa.

Depois de estudar o bocado de carne que tinha no garfo, paul levou-o à boca.

A sério - disse Anna, levantando-se. - Não há problema nenhum. Tenho outras coisas no frigorífico. Faço-te um cachorro ou outra coisa qualquer.

- Não, eu como isto.

-     Não sei do que é que tu gostas, mas tenho ali...

- Não - protestou Paul.

- Anna - interveio tom -, ele não quer outra coisa. Lentamente, Anna voltou a sentar-se. A mesa ficou em silêncio.

- Não queria interromper a vossa conversa. Que estavas tu a dizer sobre a escola?

- Nada.

Tracy empurrou o prato para o lado e apoiou o queixo nas mãos, olhando de soslaio o rapaz.

- E o que é que gostas de fazer fora da escola? - perguntou.

Paul encolheu os ombros e reprimiu um suspiro.

- Não praticas nenhum desporto ou coisa do género? insistiu Tracy.

O rapaz deitou-lhe um olhar rápido.

- Gosto de caçar - respondeu. - Ia muitas vezes à caça.

- Mas isso não é um desporto - declarou Tracy. - Isso é um nojo. Matar animais só pelo gozo.

- A Tracy trabalha na clínica veterinária - explicou Anna. - Gosta mais de animais do que de pessoas.

- Não preciso que me defendas, mãe - disse Tracy num tom estridente. - Acho horrível. E é horrível.

- Eu também gosto de animais - disse Paul. - Até tenho um gato.

- Pois - concordou Tracy. - E gostavas que alguém caçasse o teu gato?

- Basta, Tracy - disse Thomas.

Paul empalideceu e Tracy recostou-se na cadeira, os olhos cheios de lágrimas de raiva e duas manchas de cor nas faces. Anna ainda lhe estendeu a mão, mas a filha recusou-a.

- Bem - disse Thomas -, aposto que desta escola vais gostar. Está muito bem equipada. Tem imensas actividades...

- As palavras foram esmorecendo e Thomas estremeceu ao escutar o som da sua própria voz. «Uma pessoa nem sabe de que falar com o próprio filho», pensou.

Anna sorriu-lhe com entusiasmo:

- Estamos muito perto de Nova Iorque. Lá há museus e todo o tipo de espectáculos. Qualquer dia vamos à cidade, se tu quiseres.

- Ouvi dizer que lá há muitos assaltos e crimes - disse o rapaz.

- Bem - respondeu Ana, atónita -, é preciso ter cuidado, claro.

- Gostava de ir -- retorquiu Paul. - A minha mãe estava sempre a dizer que um dia me levava lá...

Um silêncio caiu sobre a mesa. Paul pôs o bocado de carne dentro da boca e começou a mastigar, engolindo com dificuldade.

- Posso levantar-me? - perguntou Tracy, erguendo-se.

- Ainda não acabámos de jantar - respondeu Anna. Tracy deixou-se cair na cadeira.

- Deixa-me ir buscar outra coisa para comeres - disse Anna. - O que é que te apetece?

- Não há ketchup!

Tracy olhou-o fixamente, e Anna lançou à filha um olhar furioso.

- Há, claro. vou buscar.

Anna entrou na cozinha e dirigiu-se ao frigorífico. Abriu a porta e tirou de lá um frasco de ketchup. Depois foi até ao fogão, pôs uma chaleira ao lume e preparou o filtro para o café. Da casa de jantar vinha, de vez em quando, o som de uma palavra dita em voz baixa. Silêncio quase sempre. O quintal das traseiras estava agora completamente escuro. Felizmente, o calor tinha passado e a noite estava apenas morna. Apoiou-se na borda do lava-louça e olhou por cima dos vasos do parapeito para o sítio onde os filhos costumavam brincar.

Em criança, o seu filho fora sempre um bebé gordo, com a pele cheia de pregas. Ria por tudo e por nada. Era espantoso. As pessoas rompiam às gargalhadas, só de vê-lo. Olhou para a porta fechada da sala de jantar. O rapaz, o seu filho, era magro. Tinha os punhos ossudos e dava a impressão que podia partir-se como um tronquinho, se fizesse um esforço. O cabelo era escuro e liso. Ainda não o tinha visto sorrir.

Na caixa ao canto da cozinha o gato miou. A água ferveu e Anna deitou café no filtro. Viu a água atravessá-lo. Olhou para o frasco de ketchup em cima da bancada, sabendo que devia levá-lo lá para dentro, mas sem conseguir mexer-se.

Agora via, chocada, que se convencera de que ia encontrar O mesmo bebé. Caracóis loiros e covinhas no rosto risonho. Durante os anos de mudança, perdera-o. Ele já não existia. Perdera para sempre o seu bebé. Nunca mais voltaria a vê-lo. Anna sentiu uma facada no peito. Nunca mais. Exactamente como as pessoas sempre lhe tinham dito. Um outro rapaz, um desconhecido, ocupava agora o seu lugar.

«Ele é o meu filho», disse para consigo. «E está aqui. Nada mais importa.»

- O meu bebé - murmurou. Decidida, respirou fundo e empurrou a porta da sala de jantar. Estavam os três sentados à mesa. Tracy recostada na cadeira, de olhos fechados. Thomas a descrever Stanwich ao rapaz, como se tivesse à sua frente um membro da Câmara de Comércio. Paul conservava os olhos pregados no prato, conforme ia cortando mais um bocado de bife.

- Temos campos de ténis e há uma praia óptima na cidade. Não faltam coisas para fazer. Aqui, um rapaz da tua idade nunca se aborrece.

Anna sentou-se no seu lugar e estendeu a Paul o frasco de ketchup.

- Aqui tens.

- Obrigado - disse Paul e encharcou o lombo com o xaroposo condimento.

- Tracy - disse Anna -, não durmas à mesa.

- Estou cheia de sono. Preciso de ir tomar um duche.

- Estamos quase a acabar. Depois há gelado.

- Não quero gelado. Já é tão tarde! Porque é que não posso ir lá para cima?

Anna olhou para Thomas em busca de palavras, mas este fitava a mesa à sua frente. Quando os seus olhos passaram por Paul, reparou que tinha o garfo e a faca muito direitos nas mãos e os olhos muito abertos. As veias do pescoço estavam salientes e o corpo inclinado para a frente na cadeira.

- Paul - chamou. Mas o rapaz respondeu com uma espécie de gargarejo. Anna empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Que aconteceu, Paul?

Olharam todos para ele. A pele pálida do rapaz ficou branca como a cal e os lábios azulados. Os olhos pareciam querei sair das órbitas, cada vez mais brancos em volta das pupilas. Fez outro ruído parecido com um gargarejo.

- Estará a sentir-se mal? - perguntou Thomas. Anna olhou para Paul, imóvel, e de repente viu-o apontar para a carne que estava no prato. Percebeu logo o que se passava.

- Engasgou-se - disse.

Thomas levantou-se num pulo e pôs-se a dar palmadas nas costas do rapaz. Paul estava rígido e não conseguia respirar.

- Assim não! - gritou Anna, empurrando Thomas. Arrancou o rapaz da cadeira, agarrou-o pela cintura, de costas, e sacudiu-o para baixo.

- Respira fundo - segredou-lhe, voltando a sacudi-lo na altura do diafragma. Sentia o coração dele bater apressadamente. O rapaz olhava para o chão, hirto, com as mãos fechadas com força.

Anna sentiu o suor escorrer pela sua testa, molhando os seus olhos. Apertou-o com força. No silêncio mortal ouviu-se um gemido de Tracy.

- Por favor - implorou Anna -, respira.

Anna só ouviu um leve apito sair da garganta do rapaz.

- Por favor - suplicou em voz baixa.

De repente, Paul abriu a boca. com um enorme estrondo deitou fora um bocado de carne acinzentada que foi parar ao meio do chão. Respirando com dificuldade, começou a tossir e a vomitar. Deixou-se cair sem forças nos braços de Anna.

- Já passou? - perguntou ela.

Paul fez que sim com a cabeça, de olhos fechados, com o rosto cor de cera encharcado em suor. Anna conduziu o corpo inerte para a cadeira. Paul começou a respirar pesadamente, enquanto a cor lhe voltava às faces.

- Já estou bem - respondeu.

- Meu Deus - balbuciou Tracy.

Anna escondeu o rosto nas mãos, ao mesmo tempo que Thomas segurava desajeitadamente o rapaz pelos ombros.

- Tens a certeza de que estás bem? Não é melhor chamar o médico? - perguntou.

- Não, já estou bem. - Paul endireitou-se e sentou-se de ombros caídos, com as mãos cruzadas no colo. As olheiras tinham-se tornado mais fundas em poucos minutos.

Anna teve vontade de abraçá-lo, mas sabia que ele iria sacudi-la. Pela maneira como estava sentado parecia querer esconder-se deles. Nem olhou para ela.

- Obrigado - sussurrou.

Anna mexeu a cabeça, incapaz de falar.

Thomas encheu um copo de água e entregou-o a Paul.

- Toma, bebe um golinho. Paul bebeu a água.

- De certeza que não é preciso chamar o médico?       perguntou-lhe Anna.

- Não. Não é preciso nada. Só queria deitar-me num sítio qualquer.

- Claro. Claro que queres dormir. Vamos subir. Tracy olhou-o, aflita, como se Paul fosse engasgar-se outra vez.

Thomas levantou-se da mesa.

- Bem - disse, aparentando uma boa disposição que não sentia. - Acho que vou ver o telejornal. Queres vir, Tracy.

Tracy encolheu os ombros. Anna voltou-se para Paul

- Ficas no teu antigo quarto - disse-lhe. O rapaz olhou para ela sem mudar de expressão.

- Deve estar fresco lá em cima - avisou Thomas. Mas, se não estiver, liga a ventoinha da janela.

Anna estendeu a mão e agarrou o braço magro de Paul.

- Pregaste-me cá um susto! Estou muito contente por já te sentires bem.

- Está com outra cara - disse Thomas.

Paul, que tinha estado a olhar ora para um, ora para outro, perguntou:

- O meu gato?

- Está na cozinha - respondeu Anna. - Porque não vais lá ver se ele quer ir à rua?

Paul abriu a porta da cozinha e procurou o gato debaixo dos armários. Pegou no animal às riscas cinzentas e pretas e apertou-o contra o peito. As patas do gato esticaram-se sobre os ombros dele e o rapaz escondeu a cara no pêlo do animal. O gato pareceu preparar-se para saltar, mas deixou-se ficar, tenso, nos braços do dono.

Tracy levantou-se e começou a atravessar a sala.

- vou para a cama - anunciou.

- Boa noite - disse Thomas.

Anna desviou os olhos de Paul para fitar o marido, por cima da mesa por levantar.

- tom! Foi horrível. Assustei-me tanto.

- Agiste depressa - disse, reparando na expressão angustiada da mulher. - Provavelmente, salvaste-lhe a vida.

- Podia ter morrido sufocado.

- Eu sei. Foi uma sorte. - Ficaram os dois calados, de mãos dadas.

Anna mordeu os lábios.

- Está tão magrinho, Tom.

Thomas voltou-se e, pela porta entreaberta da cozinha, espreitou o rapaz. Passou as mãos pela cabeça, automaticamente.

Paul colocou o gato no degrau da porta das traseiras e o animal ficou um instante parado, estudando a escuridão do exterior. Em seguida, desceu as escadas e saiu para o jardim negro sem olhar para trás.

Paul voltou para a sala de jantar.

- Boa noite - disse Tom.

- Anda - pediu Anna. - vou mostrar-te o teu quarto. Paul pegou na mochila, que tinha ficado no vestíbulo, e

seguiu-a pelas escadas até ao quarto que ela lhe preparara. Da porta fechada do quarto de Tracy vinham as palavras de uma canção de Billy Joel. Quando chegaram lá acima, Paul olhou para Anna, à espera de instruções. com um gesto de cabeça, ela indicou-lhe uma porta ao fundo do patamar; Paul foi até lá e abriu-a. Olhou em volta, pousando a mochila numa cadeira ao lado da cómoda. Anna sentiu-se como se estivesse a mostrar a um hóspede um quarto de hotel. Ele parecia não reconhecer nada. Voltou-se e viu que Anna o olhava.

- É grande - disse.

- A casa de banho fica ao fundo do patamar. As tuas toalhas estão aqui - deu uma palmadinha num monte de toalhas dobradas em cima da cómoda. - Tens a certeza de que te sentes bem?

Paul estava de pé junto à cabeceira da cama, de mãos nos bolsos.

- Tenho - respondeu. - Estou óptimo.

- Bem. Então espero que durmas bem - deu uns passos e pôs o braço à volta dos seus ombros, mas ele afastou-se e o beijo que Anna ia dar na testa do filho acertou-lhe na orelha.

- Boa noite - disse, saindo do quarto.

O rapaz percebeu que aquelas palavras pediam uma resposta qualquer, no entanto não olhou para ela.

Depois de Anna sair, Paul ficou uns minutos sem se mexer. A olhar em frente. Um copo de prata cintilava sobre a secretária, dentro do seu campo de visão. Foi até lá e pegou nele. Estava impecavelmente areado e tinha gravado o nome «Paul» em letras elegantes.

Percebeu que era o dono do copo. Era uma estranha sensação. Alguém lho tinha comprado, provavelmente na altura do seu nascimento, anos atrás. Quando morava ali. com aquelas pessoas. Paul olhou em volta do quarto desconhecido.

A mãe dissera-lhe antes de morrer que havia um segredo terrível. Então era aquilo.

Paul olhou para o jardim mergulhado na escuridão, na esperança de entrever Sam, mas a noite tornava o gato invisível.

Voltou-se novamente para o copo. Para quê resistir? Iam chamar-lhe Paul, quer ele quisesse quer não. Atirou ao chão o copo, que rebolou para debaixo de uma cadeira.

Devagar, desapertou os ténis e sacudiu-os dos pés. Levantou a colcha e enfiou-se debaixo dela, completamente vestido. Ainda tinha o blusão de ganga coçado que encontrara no bosque, dois anos antes. Dorothy Lee lavara-o, remendara-o e bordara nele o seu nome.

Apesar dos cobertores, da roupa toda que tinha vestida e da noite quente, Paul começou a tremer de frio. Os dentes batiam uns nos outros, por isso sentou-se, abraçando os joelhos com força contra o peito. Ninguém falara em Dorothy Lee.

Ou no seu pai. Nem uma palavra. Como se tudo aquilo fosse perfeitamente normal. Os lábios de Paul esboçaram um sorriso. Mas nos seus olhos não havia alegria. Sentiu a bexiga cheia, mas não lhe apeteceu sair para o patamar. Não queria dar de caras com nenhum deles. Os dentes batiam agora com mais barulho. Perguntou a si próprio se eles estariam a ouvir.

Anna colocou o ultimo prato na máquina de lavar louça e limpou as mãos. Trancou a porta das traseiras e experimentou-a   para ter a certeza de que estava bem fechada. Depois atravessou em bicos de pés a casa silenciosa e pôs a corrente e o cadeado na porta da frente. Da sala vinha o murmúrio das últimas notícias. Anna examinou as janelas. Desejou poder também trancá-las. Mas estava muito calor. Ainda sufocavam todos, disse para consigo. Mas preocupava-a a ideia de que iam ficar abertas. Estava tudo escuro, não se ouvia um som. “ Ele já deve ter adormecido”, pensou.

Voltou a vê-lo, sentado à mesa, o rosto acinzentado, as veias rígidas no pescoço, as mãos aflitas. Sentiu um aperto no coração, ao recordar o medo que sentira. Sacudindo a cabeça, como para afastar a imagem, dirigiu-se à cave, para fechar por dentro as janelas e a porta da adega. A luz estava acesa na sala de jogos adjacente; Anna abriu a porta e entrou. A sala estava vazia. Num canto, viu os tacos de golfe de Thomas. Foi até ao saco e tirou para fora um taco. Não estava nada descansada com as janelas lá de cima. Ao menos ali podia fechá-las. Ninguém lá ía. Ali o calor não importava.

Anna encostou o taco ao saco e deu uma volta pela divisão, trancando bem as janelas. Depois, voltou a pegar no taco de golfe. O cabo de aço brilhante e a cabeça eram pesados. Anna hesitou, mas depois agarrou-o com força, e subiu as escadas.

Ao chegar ao patamar, distinguiu uma silhueta, na escuridão.

- oh ! – assustou-se.

- Que estás a fazer ? – perguntou Thomas.    

- A fechar as portas – respondeu Anna, continuando a subir na sua direcção. Tom tinha nasd mãos a garrafa de champanhe dos Stewart.

- Lembrei-me de levar isto para o quarto - explicou Tom. - Para festejarmos. Já estás despachada?

- É só um minuto.

Thomas reparou no taco de golfe e franziu a testa.

- Que é isso?

- Um dos teus tacos.

- Isso já eu vi. Que vais fazer com ele?

Anna entrou na cozinha. Thomas seguiu atrás dela.

- Mas que ideia é a tua? - insistiu Thomas.

- Achei melhor trazê-lo para aqui - disse.

- Mas para quê?

- Não sei - respondeu ela evasiva. - Para o caso de...

- Para o caso de quê? Anna, dá cá isso. Deixa-me arrumá-lo lá em baixo.

Anna afastou o taco do alcance dele.

- Não - respondeu. - Não sabemos o que... Pode ser preciso.

Thomas deixou cair os braços ao lado do corpo. O seu rosto endureceu. ..   - Oh, não, outra vez, não.

- Aquele homem anda por aí, Thomas. Thomas desviou os olhos dela.

- Não te compreendo, Anna. Não queres mesmo ser feliz? Nunca estás satisfeita. Agora já tens o teu filho de volta...

- O nosso filho - emendou Anna. Mas apressou-se a acrescentar: - Desculpa, querido.

Thomas fitou-a com dureza. Depois olhou para a garrafa que tinha na mão.

- Pensei que te apetecesse beber um copo comigo e conversar sobre os acontecimentos do dia.

- Já lá vou ter, Tom. Daqui a nada.

Thomas colocou a garrafa em cima da mesa e saiu. Anna aguardou e quando o ouviu subir as escadas entrou na sala. Abriu as cortinas e olhou para a rua. O ténue clarão de um candeeiro de iluminação pública projectava no alcatrão a sombra das folhas que o vento fazia estremecer. Anna apagou todas as luzes da sala e sentou-se junto à janela. Colocou o taco à sua frente, apoiado nos braços da cadeira, apertando-o com força nas mãos. O luar reflectia-se na cabeça metálica do taco.

“Uma pancada com isto deve ser o suficiente», pensou. «com as crianças, os cuidados nunca são de mais. Nunca se sabe.»

Anna olhou para o relógio de parede. com dificuldade, viu que era quase meia-noite. «Mão vou aqui ficar muito tempo», pensou. Só mais um bocado. Decidiu que à uma da manhã ia para a cama, para junto de Thomas. O mais natural era ele estar ainda acordado a ler. Bastava esconder o ferro na sanefa ao lado da cama.

Daí a nada. Daí a nada iria lá para cima. A não ser que ouvisse alguma coisa. Se ouvisse alguma coisa, ficaria ali toda a noite. Se fosse preciso. Anna olhou na direcção do vestíbulo, para o clarão pouco nítido das escadas. Faria o que fosse preciso. Fosse o que fosse. Passou a mão pela cabeça pesada do taco. Perguntou a si própria se seria capaz de enfiar aquele peso na cabeça de alguém.

O olhar dela deambulou até à lareira> sobre a qual a fotografia de um bebé rechonchudo, com caracóis castanho-dourados, sorria para a sala às escuras.

Anna agarrou o taco ainda com mais força. «Sou capaz», disse para consigo. «Quando é preciso Uma pessoa é capaz de tudo.»

Só quando a luz fria e acinzentada do romper da manhã apagou as sombras é que os seus olhos fatigados cederam finalmente ao sono. A cabeça inclinou-se para o ombro, adormecendo levemente, sempre com os dedos em volta do cabo do taco de golfe.


                              CAPÍTULO 5

- Importa-se de apagar o cigarro?

Rambo olhou para a rapariga de rabo-de-cavalo encostada à janela do seu automóvel.

- com certeza, com certeza - disse ele, esmagando a beata no cinzeiro do carro.

- Que deseja?

Rambo examinou a magra carteira e tirou de lá uma nota amarrotada de cinco dólares.

- Meta cinco dólares - respondeu.

A rapariga caminhou até à parte de trás do automóvel. Rambo seguiu-a pelo espelho retrovisor lateral, sem saber porque é que no Norte davam aqueles empregos a mulheres. Não fazia sentido, com tantos homens desempregados. Espreitou pela janela e perguntou:

- Desculpe, não há um telefone?

A rapariga apontou para as traseiras da estação de serviço. Rambo ajeitou os óculos escuros, enterrou o chapéu na cabeça e saiu. Olhou em todas as direcções e caminhou, pouco à vontade, até ao telefone pendurado na parede entre a casa de banho das mulheres e a dos homens. Espreitou em redor; mas era ainda muito cedo e não se via ninguém. Do bolso das calças tirou um bocado de papel e inseriu uma moeda na ranhura do telefone.

Tinha passado toda a noite a pensar se havia de telefonar ou não. Ficou à espera de receber um sinal, uma palavra, mas não veio nada. Leu a Bíblia Gideon1 furiosamente, tomando notas nas margens, preparando-se para a sua missão. De madrugada decidira telefonar. Tinha já marcado o número, que pedira às Informações, e encostado o auscultador ao ouvido. Antes mesmo de começar a tocar, a porta da casa de banho dos homens abriu-se e um jovem de jeans e blusa de caqui, com o nome da estação de serviço bordado a vermelho, cumprimentou-o com um aceno de mão.

- bom dia - disse o jovem.

Rambo pousou rapidamente o auscultador. A moeda tilintou e apareceu no compartimento dos trocos, enquanto Rambo retribuía o cumprimento com um grunhido.

Mais uma vez discou o número, tentando ordenar mentalmente o que ia dizer. Gotas de suor começaram a surgir no sovaco da sua camisa, que já estava colada às costas. Tinha de explicar tudo bem, para o safado perceber que havia contas a ajustar. Que o danado aparecera e tinha de ser castigado. Era essa a vontade do Senhor.

Encostou o auscultador à orelha e aguardou, sem tirar os olhos do pátio da estação de serviço, para se certificar de que ninguém ia aproximar-se. Ouviu um estalido. Depois o toque de impedido.

- Raios - exclamou em voz alta e bateu com o auscultador no repouso.

A rapariga de fato-macaco já estava junto à parte da frente do seu carro a fazer-lhe sinal de que o automóvel podia seguir.

Rambo meteu as mãos nos bolsos e olhou furioso para o telefone. De repente, percebeu o que tinha acontecido. Aquilo era o sinal, o sinal que aguardava. Significava que devia ir e atacar sem pré-aviso. Não havia tempo a perder.

com um suspiro de alívio, Rambo recuperou a moeda e correu para o carro.

Era meia hora de automóvel até à Millgate Parkway, contudo Rambo não tirou o pé do acelerador, todo o caminho a

 

1 Bíblia colocada nos quartos de hotéis, etc., americanos pelos membros de uma organização cristã com o mesmo nome, fundada em 1899 nos EUA. (N. da T.)

 

olhar, freneticamente, ora para o conta-quilómetros, ora para a berma da estrada. Estava morto por chegar, mas não queria chamar a atenção da polícia, que podia estar escondida num carro à sua espera.

A coisa boa da Millgate Parkway, do seu ponto de vista, era que ninguém a utilizava desde que a Connecticut Turnpike tinha sido construída. Meteu pela auto-estrada com uma sensação de alívio, embora o piso estivesse todo esburacado, o que a tornava perigosa, mesmo para o carro mais seguro do mundo. O Chevrolet azul de Rambo, que tinha papel de jornal a tapar os buracos que a ferrugem abrira na parte inferior do chassi e quatro pneus quase carecas, assinalava cada cratera com um salto. No assento do lado a Bíblia, que trouxera do quarto do motel, chocalhava e batia-lhe na anca. Rambo agarrou com força o volante e olhou para a estrada, murmurando versos em voz baixa enquanto conduzia.

Embora já estivesse à espera dela, foi com alguma emoção que viu a tabuleta a indicar o desvio para Stanwich. Estudou a zona e abrandou a velocidade quando chegou aos quilómetros finais.

Parecia tudo na mesma. Já lá iam mais de dez anos e aquele desvio anónimo continuava gravado na sua memória até ao pormenor mais ínfimo. Tinham entrado pelo outro lado, claro, naquele dia longínquo, pois vinham do Sul, do funeral de um dos primos de Dorothy Lee, lá no estado de Nova Iorque. Por isso é que tudo correra tão bem. Nunca ninguém duvidou que Paul era filho do familiar morto, que o deixara sozinho no mundo.

Os olhos de Rambo faiscaram. Tinha sido ali mesmo, sim senhor. Iam encostar à berma, para ele urinar. Foi então que viu. Primeiro, não percebeu bem o quê. Mas depois, no último momento, percebeu.

Havia mais de dez anos que se tinha enfiado por aqueles arbustos, primeiro testemunha e depois cúmplice. É desde então nunca mais parara de sofrer, embora não tanto como agora. Mas aguentara-se. E finalmente ia vingar-se.

As vozes chegaram aos ouvidos de Rambo como um dobre a finados. «Malditos aqueles que impedem a justiça de chegar aos necessitados e privam dos seus direitos os pobres do neu reino.»

A seta indicava que o desvio para Stanwich era à direita. A sua hora estava próxima. Rambo virou o volante e, devagar, entrou nas tranquilas estradas secundárias que conduziam às residências dos privilegiados.

- Buddy, desculpe maçá-lo. Sei que é muito cedo. Mas precisava de falar consigo. Não preguei olho toda a noite a pensar no homem, o Rambo.

Paul parou a meio das escadas. A voz ansiosa de Anna ao telefone cortava o silêncio da casa. Ficou à espera, a escutar.

- Ficava muito mais sossegada se Paul pudesse ter protecção policial. Só até o homem ser apanhado. Por favor, não me chame paranóica. Não ia suportar ouvir essa palavra outra vez.

O lábio de Paul retorceu-se quando pensou no pai. Devia estar numa esquina qualquer a delirar sobre o Senhor. A recor dação do olhar louco de Rambo, das suas acusações, dos seu.s discursos desvairados, fez a bílis subir ao estômago de Paul. A fome que o despertara continuava. Anna continuava a falar na cozinha, ainda com o polícia.

- Buddy, nada nos garante que ele não seja perigoso. O facto de nunca ter feito mal ao rapaz não quer dizer que não vá tentar qualquer coisa. Enquanto ele andar à solta não sinto que o meu filho esteja seguro.

Paul desceu os degraus que faltavam e, sem fazer barulho, abriu a porta da frente. Saiu para o alpendre e fechou a porta atrás de si. O jardim coberto de orvalho parecia uma daquelas fotografias dos calendários. O estômago de Paul roncou, en quanto ele observava a cena tranquila e sentia que o seu lugar não era ali.

- Sam - chamou baixinho, ansioso por ver a figura fa’miliar do seu gato. Os pássaros chilreavam nas copas das árvores, o que significava que Sam não devia andar por ali. Paul desceu as escadas e deu a volta à casa.

- Sam - chamou.

Olhou o quintal das traseiras que se estendia na sua frente, a cadeira de balouço no alpendre, a horta grande e verdejante.

Perto da orla do bosque havia um pequeno barracão de madeira. Atravessou o relvado e espreitou lá para dentro. com a pouca luz que havia, só distinguiu uns ancinhos e umas pás.

Fechou a porta e voltou-se para o arvoredo que crescia no limite do relvado. A luz chegava filtrada pela folhagem e só souvia o ronco distante dos raros carros que passavam na estrada, mas não se viam do jardim. Gritou por Sam, mas nada se mexeu entre as árvores.

Depois de caminhar paralelamente ao bosque, saltou por cima de um ribeiro que serpenteava do outro lado da propriedade. Uma longa sebe de lilases acompanhava a margem. Na extremidade da sebe, mesmo por cima dela, viu a parte supe-

rior de um edifício enorme, com paredes de estuque, janelas com molduras escuras e uma série de espigões e torreões, como um telhado de um castelo. Ficou ali algum tempo, impressionado, porque nunca na sua vida tinha visto uma casa tão grande. Depois, pôs-se de cócoras e começou a investigar ao longo da sebe, tentando ver algum movimento nos ramos mais baixos dos lilases, e foi avançando, devagar, em direcção à casa.

Quando chegou perto da mansão, os seus olhos esqueceram o gato, atraídos por uma mancha azul-turquesa atrás da sebe. Espreitou por entre os ramos e viu uma grande piscina rectangular a cintilar ao sol. Um modelo de barco à vela, com um casco de madeira brilhante, navegava pela tranquila superfície turquesa. No pátio em redor da piscina viam-se uma mesa e várias cadeiras brancas em ferro forjado.

À borda da piscina, apoiado sobre um dos joelhos, estava um homem bem vestido, com roupas desportivas de marcas caras. Dirigia o barco por meio de um pequeno aparelho que tinha na mão e observava os elegantes movimentos da embarcação com evidente prazer. O barco atravessava na diagonal a superfície da piscina, ajudado pela brisa que soprava nas suas velas brancas.

Ao lado dele, junto à piscina, estava um homem mais velho, de cabelo grisalho e óculos de aros grossos, que parecia desconfortável no seu fato completo, camisa branca e gravata escura. O homem mais velho olhou ansiosamente para o do barco, depois aclarou a garganta.

- Compreendo que seja um grande incómodo para si receber-me em casa assim, num sábado, mas o assunto que me traz aqui é da maior urgência.

- Não há qualquer problema - respondeu o homem do barco, embora a sua atenção continuasse presa pelo veleiro.

O homem mais velho esperou que o outro se levantasse e se virasse para si, mas, ao fim de uns minutos, percebeu que isso não iria acontecer. Mexendo nervosamente nos punhos da camisa, o velho começou a falar para as costas do seu anfitrião.

- Mister Stewart, quando concordei em vender-lhe a Wilcox Company fizemos um acordo verbal, no qual o senhor comprometeu-se a manter o presidente e todos os outros trabalhadores. Ora ontem à tarde todos eles receberam uma carta de despedimento, tendo-lhes sido dito que seriam contratados novos funcionários. A única explicação que encontro é que se trata de um mal-entendido, um erro, por isso o procurei imediatamente.

- Não, não houve um erro - murmurou o homem que estava à beira da piscina. Fez o barco sair da água, exactamente no ponto onde ele se encontrava ajoelhado e, com paixão, ajustou os cabos das velas. Depois voltou a pôr o barco, com cuidado, na piscina, sem nunca tirar os olhos dele.

O rosto do homem mais velho ficou vermelho e a voz tremeu-lhe quando voltou a falar:

- Mister Stewart, a Wilcox Company é uma empresa familiar. Foi fundada pelo meu pai, como sabe, e sempre tratámos os empregados como membros da família. Em troca, muitas dessas pessoas dedicaram vinte anos ou mais das suas vidas à nossa empresa. Para eles é um segundo lar. Expliquei-lhe tudo antes da venda. Só a vendi porque a minha saúde não me permite continuar a dirigi-la. Mas o senhor assegurou-me que a situação deles estava garantida.

Edward Stewart virou-se finalmente para o homem indignado.

- Mister Wilcox, a sua empresa não é nada rendível. Faço negócios para ganhar dinheiro. Tarefa em que o senhor e os seus empregados não mostraram muita eficiência. Ora eu tenciono mudar as coisas.

- Mas o senhor deu-me a sua palavra - exclamou o velho. - Prometeu-me.

- Mister Wilcox - respondeu Edward Stewart num tom paciente -, pensei melhor e mudei de ideias. É uma prerrogativa minha. Agora, o dono da Wilcox Company sou eu.

O velho sacudiu a cabeça e cerrou os punhos.

- Se eu soubesse que eram essas as suas intenções, nunca feríamos feito negócio. Isso vai contra tudo aquilo que sempre defendi e por que trabalhei toda a vida. Acreditei que o senhor era um homem de palavra, mas afinal mentiu-me.

Já de pé, Edward Stewart contornou a piscina, sem tirar os olhos enternecidos do veleiro. Comandado por ele, o barco navegou pela superfície brilhante da água até ao fundo da piscina e voltou. Momentos depois, Edward voltou a acocorar-se à borda da piscina sacudindo a cabeça, cheio de admiração.

- Não é uma beleza? - perguntou. - Acho que este é um dos barcos mais bonitos que alguma vez construí.

Wilcox fitou o homem que estava à borda da piscina, com os olhos a arder por detrás das lentes espessas dos seus óculos.

- Não vim cá ver os seus barcos. Exijo que me responda. Edward levantou os olhos do barco e disse com frieza:

- Wilcox, estes barcos são o meu passatempo. É a construí-los e a fazê-los navegar que me descontraio. Dão-me uma enorme satisfação. Poucas coisas me dão tanto prazer como observar um dos meus barcos na água, reagindo cada vez que eu carrego num botão.

O velho encrespou-se, como se estivesse a pensar em agressão física. Depois baixou os ombros e voltou as costas ao olhar impassível de Edward. Controlou os seus músculos trémulos com esforço.

- O senhor também devia arranjar um passatempo aconselhou Edward, com um vago sorriso. - Agora tem tempo de sobra. Acabaram-se as preocupações com a empresa. Recomendo vivamente o modelismo.

- vou levá-lo a tribunal - declarou Wilcox, fitando Edward com rancor.

Edward encolheu os ombros.

- Vai ter muita dificuldade em fundamentar o seu caso.

Um passatempo, Mister Wilcox. Um passatempo é que lhe fazia bem aos nervos.

; Os olhos do velho estavam cheios de raiva, mas todos os seus músculos pareciam vacilar. Virou as costas e atravessou o pátio em direcção à casa.

- A criada acompanha-o à saída - gritou-lhe Edward, mas o velho já tinha desaparecido.

Edward abanou a cabeça, depois voltou a ajoelhar-se à borda da piscina. Trouxe o barco para terra e quando este chegou à berma, segurou-os nas mãos e começou a examinar o casco.

Paul tremia dos pés à cabeça, obrigando-se a respirar fundo para acalmar. E depois? Ralhou a si próprio. «Foi só uma discussão sobre empresas. Não tem nada a ver contigo. Porque é que estás nessa aflição?» No entanto, apesar do sermão que estava a dar a si próprio, Paul sentia-se inexplicavelmente abalado com a cena a que acabava de assistir. A fúria e a impotência do velho encheram-no de piedade, e sentiu-se revoltado contra o homem do barco pela maneira como tinha tratado o velhote. «Não tens nada a ver com o assunto», disse a si próprio. Mas sabia que, depois do que presenciara, a última coisa que lhe apetecia era ir perguntar ao homem se tinha visto o seu gato. Ao fim de uns minutos, quando já se sentia melhor, Paul decidiu voltar para casa. Tinha dado poucos passos quando um gato às riscas cinzentas e pretas saiu do meio dos arbustos e atravessou-se no seu caminho.

- Sam! - exclamou, esquecendo-se de onde estava. Edward Stewart endireitou a cabeça e o barco escorregou-lhe das mãos, caindo à piscina com grande estardalhaço.

- Quem está aí? - perguntou.

Sam disparou em direcção ao ribeiro, assim que ouviu a voz de Edward. Paul hesitou, pensou em desatar a correr mas depois, levantando as mãos como quem se rende, afastou-se dos arbustos.

- Desculpe incomodar - disse. - Estava à procura do meu gato e vi-o ali naquele arbusto.

O homem empalideceu ao ver o rapaz e fitou-o sem proferir palavra. Nos seus olhos cinzentos, Paul viu uma ansiedade próxima do medo, até que o olho esquerdo começou a tremer e a expressão tornou-se ainda mais fria.

- Eu ia a passar, à procura do meu gato - tornou Paul, inutilmente. - Desculpe se o assustei.

Enquanto Paul falava, o homem pareceu acalmar. Descontraiu as mãos, aclarou a garganta, mas ficou completamente mudo.

- Desculpe - repetiu Paul.

- A próxima vez que vieres cá, Paul - disse finalmente Edward -, entra pela porta.

Ao ouvir o seu nome, Paul ficou embasbacado. Depois perguntou:

-- Conhece-me?

O homem fez um sorriso amarelo:

- A minha mulher e eu somos vizinhos da tua família há alguns anos - Edward olhou-o com atenção. - Desde que eras bebé, de facto. Não te lembras de mim?

Paul apoiou-se na outra perna e olhou para o chão.

- Sabe, eu era muito pequeno nessa altura, quando... quando aquilo aconteceu.

- Tens razão - disse Edward. - Claro.

O homem voltou a fitá-lo e Paul sentiu que aqueles olhos o estudavam como se ele fosse um criminoso em fuga. Procurou desesperadamente alguma coisa para dizer. Reparou no barco que estava na piscina.

- O barco é seu? - perguntou.

Edward tirou um lenço da algibeira e enxugou a testa.

- E - respondeu, distraído. - Fui eu que o construí. Já fiz modelos de muitos dos maiores barcos do mundo. Tenho uma oficina ali, naquele moinho - apontou para longe e ficou a olhar para Paul como se esperasse uma resposta.

- Que sorte - disse Paul, acenando com a cabeça tristemente.

O som de uma voz estridente e exaltada trouxe a Paul uma inesperada sensação de alívio. Olharam ambos para a casa e viram Tracy aparecer no pátio.

Tracy ficou embasbacada a olhar para o irmão.

- A mãe anda à tua procura por todo o lado.

- vou já. Fui só à procura do meu gato.

- Passei agora mesmo por ele - disse Tracy.

-- Olá, Tracy - cumprimentou Edward.

- Olá, Mister Stewart. Se fosse a ti, ía já para casa. Sem mais palavra, virou as costas e desapareceu.

Paul encolheu os ombros e preparou-se para regressar.

- Bem, prazer em vê-lo – despediu-se

- Até logo - respondeu Edward.

Paul dirigiu a Edward um sorriso amarelo.

- Até logo - recuou mais uns passos, depois voltou-se e mergulhou na sebe de lilases, regressando por onde viera.

Edward viu-o partir, com os olhos frios e cinzentos colados à figura que desaparecia entre a folhagem. Atrás dele, o pequeno barco colidiu com a parede da piscina, voltou-se e o casco cheio de água começou a afundar-se. As velas diáfanas ficaram a boiar, ensopadas, à superfície.

Tracy subiu a correr as escadas do alpendre e passou pela mãe que agarrava com força o corrimão e mordia o lábio inferior.

_ Estava em casa dos Stewart. Já ^ vem - disse Tracy, batendo com a porta de rede e entrando em casa.

Anna fechou um instante os olhos e o seu rosto tenso relaxou.

- Obrigada, Trace - agradeceu.

Thomas apareceu à porta, arrastando o saco de golfe. Encostou-o ao corrimão e começou a examinar os tacos sem olhar para Anna.

Anna virou-se para ele e disse: - Voltei a pôr aí o taco.

_ Já percebi - respondeu tom num tom seco. _ Encontraste o Paul?

- Estava em casa dos vizinhos. A Tracy encontrou-o.

- Ah - fez Tom. Abriu o fecho de correr do saco, vasculhou lá dentro e tirou umas bolas de golfe. E o que foi ele

lá a fazer?

- Não sei - respondeu Anna, encostando-se ao corrimão, estudando-o. - Quando é que o Edward te convidou para ires jogar golfe?

- Ontem. Quando vínhamos da estação. Esqueci-me de te contar.

- Que esquisito. Não achas? ;   Thomas olhou para a mulher.        

- Esquisito porquê?

- Bem, sabes como ele é. - Anna encolheu os ombros.

- Vocês não são propriamente amigos íntimos.

Thomas sorriu.

- Isso é verdade. Mas interessou-se muito pelo Paul. E quis convidar-nos para ir ao clube dele. Deve ter sido ideia da íris.

- Talvez - concordou Anna, embora não conseguisse imaginar Edward a aceitar qualquer das sugestões de íris. Bem, é capaz de ser divertido.

Thomas concordou com a cabeça:

- Pensei que o rapaz talvez gostasse.

Anna procurou não mostrar como lhe agradava vê-lo incluir Paul nos seus projectos.

- E eu pensei que podíamos ir todos à praia.

Thomas contou os tees que tinha na mão e voltou a arrumá-los no saco.

- Vamos esta tarde - sugeriu -, quando voltarmos. Anna pôs os braços em volta da cintura do marido.

- Acho óptimo - disse. - Vocês os dois vão divertir-se imenso.

Tom suspirou:

- Assim espero.

- Querido, desculpa o que se passou ontem à noite, mas eu estava tão estafada que adormeci na cadeira.

- Não faz mal.

- Hoje começamos tudo do princípio. - Anna deu-lhe um abraço, que ele devolveu, apertando-a uns minutos contra o peito.

- Bem, vou lá para dentro preparar o pequeno-almoço para vocês, homens, poderem ir à vossa vida.

Abriu a porta e ia a entrar quando viu Paul chegar ao jardim. Ficou a vê-lo dirigir-se devagar para casa, a conversar com o gato.

De repente, quando chegou à parte do relvado onde, dantes, costumava brincar, Paul parou. Anna viu que a expressão confusa do seu rosto se transformara numa careta. De repente, largou o gato, que caiu de barriga para baixo ao lado dele. Paul bateu com a mão na testa e esfregou um olho, enquanto no seu rosto franzido surgia uma expressão de dor.

- Tom - murmurou Anna -, passa-se alguma coisa com ele. - Largou a porta, que bateu com força. Hesitou e depois desceu a correr os degraus do alpendre. Cerrou os lábios primeiro, depois perguntou:

- Que foi? Sentes-te bem?

O gato olhou para ela, mas Paul não.

- Sinto - respondeu ele, baixando a mão e avançando, mas sem levantar a cabeça. Passou por ela e entrou em casa. Não havia qualquer cor na pele dele. Anna viu-o entrar na cozinha e cumprimentar Tracy que estava sentada à mesa. Ouviu Tracy murmurar uma resposta qualquer.

Anna cerrou os punhos e voltou a olhar para o sítio que fora a zona das brincadeiras. O gato farejava a relva, estudando-a com atenção. Escolheu com cuidado o caminho a seguir para atravessar o território desconhecido, desconfiando de cada pedra, de cada erva.

 

                                    CAPÍTULO 6

Os ramos secos arranhavam-lhe os braços nus e os insectos rodopiavam em torno da aba do seu chapéu, mas Rambo continuava a avançar pelo emaranhado de árvores e arbustos a que os jogadores de golfe costumam chamar rough.

Não tinha sido difícil encontrar Hidden Brook Lane, depois de sair da auto-estrada nessa manhã. Em seguida, estacionou o automóvel num pequeno troço ainda inacabado de um entroncamento e aguardou. Viu o homem do Cadillac ir buscar o rapaz e o pai e levá-los ao campo de golfe. Saltou uma cerca para se esconder entre os ramos da vegetação que crescia, espontânea, ao longo do fairway. Já tinha passado por seis buracos ao avançar pelo matagal, acompanhando o desenvolvimento da partida. Dera-lhe vontade de rir a maneira como o rapaz se deixava ficar para trás, sem qualquer interesse no jogo, a suar em bica ao sol, com aquele blusão velho que nunca largava. Percebeu que Lange se esforçava por ser paciente para o fedelho, mas o rapaz não ligava nenhuma às suas explicações, arrastando-se atrás dele sem um sorriso, de ombros caídos. Perguntou a si próprio se, agora, o homem ainda seria capaz de dizer que estava muito contente por ter o monstrinho de volta. As vozes começaram de novo a falar, especulando sobre a gratidão do miúdo e o seu retorno à terra da abundância, onde chamavam Bem ao Mal. Os seus próprios lábios mo iam-se de acordo com as palavras que ouvia, por isso tentou controlar o murmúrio que lhe nascia na garganta, ameaçando denunciar o seu esconderijo.

Thomas pegou num taco e deu uma pancada tão forte que a bola foi parar perto do sétimo green.

- Boa - aplaudiu Edward.

Thomas pôs as mãos em pala sobre a testa e viu a sua bola parar.

- Nada má - concordou -, tendo em conta que estou em baixo de forma.    

Edward fez-lhe um sinal.

- Talvez lhe tenha valido uma tacada a menos. Thomas virou-se e entregou a Paul um dos tacos que trazia no saco. Durante os primeiros seis buracos, tinham jogado à vez. Thomas, primeiro, mostrava ao rapaz como se preparava uma tacada e se balançava o corpo, sempre a fazer os possíveis por ignorar a expressão entediada do rapaz e estimulá-lo.

- Talvez seja melhor usares este taco agora. Pode levar-nos directamente ao green.

Paul fitou o ferro uns instantes e depois afastou-o.

- Estou cansado - disse. - Posso voltar para trás?

- Ele pode esperar por nós no clube, Edward?

- Claro - respondeu Edward Stewart. - Sabes o caminho?

- Sei.

- Estamos quase a acabar - disse Thomas. - Depois deste, são só mais dois buracos. Tens a certeza de que não queres vir connosco?

- Tenho.

- Então está bem. - Thomas ficou a ver Paul regressar ao clube.

Rambo achou que o rapaz tinha toda a razão. Parecia-lhe um jogo muito chato. Enxotou uma mosca que zumbia em volta da sua cabeça e esperou, impaciente, que Edward jogasse.

Edward concentrou-se na bola à sua frente, virou os pés de lado e depois tomou balanço. Quando Rambo se agachou para ver melhor, os arbustos estalaram. Edward exagerou um pouco no swing, a bola rodopiou encosta abaixo e foi parar num bunker. Ligeiramente corado, Edward aclarou a garganta:

- Não ouviu um restolhar naquelas moitas? - perguntou. - Assim é impossível uma pessoa concentrar-se.

Olhou para os arbustos como se quisesse arrancá-los. Depois subiu a colina e lançou um olhar de reprovação à bola, como se ela fosse uma criança malcomportada. - Acho que vou ter de batê-la com um movimento curto do pulso - disse. - É a sua vez.

Thomas rolou os olhos por trás dos óculos escuros e depois olhou para o distante fairway, onde a sua bola era um ponto minúsculo.

- Está bem - concordou. - Encontramo-nos lá. Thomas começou a subir o fairway.

Ao vê-lo passar, Rambo sentiu um formigueiro de excitação. Ali estava a sua oportunidade. Humedeceu os lábios nervosamente e espreitou por entre as folhas.

Quando Thomas se encontrava a meio caminho do fairway, Rambo encaminhou-se para o bunker. Edward atravessava cuidadosamente a superfície movediça, fazendo uma careta de desagrado cada vez que alguns grãos de areia escorregavam para dentro dos seus sapatos. Rambo afastou os arbustos e correu até à borda da depressão arenosa. Depois de olhar em todas as direcções, aclarou a garganta:

- Mister Stewart.

Edward endireitou-se e levantou o queixo, sentindo-se humilhado por alguém o ter visto falhar. Olhou em volta com frieza, disposto a intimidar com um olhar quem quer que se atrevesse a criticá-lo. Franziu a testa, assim que viu o homem pálido e nervoso que apareceu à sua frente. O homem usava uma camisola desportiva barata, um chapéu escuro e óculos de sol. Podia muito bem ser um caddie já velhote, se não fossem os sapatos brilhantes, de plástico, que tinha nos pés.

- Sim?

- Chegue aqui - pediu Rambo, escrutinando as colinas verdes do campo. - Preciso de falar consigo.

Pouco habituado a receber ordens, Edward observou o homem, replicando com uma formalidade gélida, imperiosa:

- Se tem uma mensagem para mim - disse, pensando que o homem era um funcionário do clube, - dê-ma e depois e desapareça imediatamente. Está a interromper o meu jogo.

Rambo fitou-o, espantado com a reacção de Edward. De dedo esticado, arengou:

- A palavra do Senhor é a minha mensagem. A justiça do Senhor é a minha missão!

Edward encolheu os ombros, suspirou e sacudiu a cabeça. O homem de óculos escuros parecia velho de mais para ser um Moonie’.Testemunha de Jeová, talvez, ou outra seita qualquer. O facto de qualquer pessoa poder passear-se pelo campo de golfe enfurecia Edward. com os preços que levava, aquele clube devia, ao menos, garantir a privacidade dos seus membros. Jurou a si próprio queixar-se veementemente ao director.

- Se tem amor à sua pele - disse Edward -, vá chatear outra freguesia e saia deste campo imediatamente. - Virou as costas a Rambo e começou a alinhar o taco com a bola meio enterrada.

- O Senhor falou comigo. O Senhor enviou-me um sinal, não uma única vez, mas duas, pedindo-me que faça a Sua justiça descer sobre a sua pessoa.

- Eu avisei-o - ameaçou Edward.

- Você é o Mal, os seus actos são demoníacos. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um homem rico...

- Chega! - exclamou Edward, enterrando o ferro na areia e virando-se para Rambo: - vou pedir que o expulsem daqui.

Rambo recuou um passo.

- Eu vi - sussurrou-lhe. - Naquele dia, na estrada. Há onze anos. Vi o que você fez.

Edward imobilizou-se. O seu rosto estava cinzento, debaixo da pala do boné de golfe. As articulações das mãos ficaram brancas, quando agarrou com força o cabo do taco, procurando apoiar-se.

- Não sei do que está a falar - afirmou em voz baixa.

- Do rapaz, do filho do seu amigo - disse Rambo, gesticulando e apontando para trás, na direcção que Paul tomara.

- Eu estava escondido nos arbustos. Vi tudo.

Edward fitou o homem, o corpo a vibrar como as cordas

 

1 Nome dado aos membros da Unification Church (Igreja da Unificação) e que deriva do nome do seu fundador, Sun Myung Moon. (N. da T.)

 

de um violino. De repente, percebeu por que razão aquele homem lhe era curiosamente familiar. As fotografias, nos jornais, do homem magro e seco, quase sempre de chapéu. ... - Rambo... - balbuciou.

- Exactamente - disse Rambo, triunfante. - Albert Rambo. Representante do Senhor na Terra.

Uma náusea insuportável invadiu o estômago de Edward, enquanto tentava recuperar do choque causado pelas palavras de Rambo. Ocorreu-lhe, conforme os seus pensamentos corriam velozmente, que Rambo estava com certeza louco, por ousar aparecer ali, tão perto de Thomas, do miúdo. «É doido», pensou Edward.

Mas percebeu tudo.

Edward humedeceu os lábios várias vezes, procurando raciocinar. Porém, o seu cérebro parecia não registar senão clarões, faíscas, denunciando-o em vez de lhe oferecer refúgio.

- O que é que quer? - murmurou, sem tirar os olhos de Rambo.

- O Senhor encarregou-me de uma missão - gritou Rambo. - Tenho uma tarefa a desempenhar. Posso completar » obra d’Ele com o auxílio do seu dinheiro. E você poderá salvar-se, se me der esse dinheiro.

«Chantagem», pensou Edward. Ele quer é dinheiro. De alguma maneira, aquela resposta tranquilizou-o. De início, com o choque, sentira que um anjo vingativo descera sobre si, ameaçando destruir tudo o que tinha construído. O pavoroso dia, que secretamente sempre temera, tinha chegado. A referí-ncia ao dinheiro fê-lo voltar a si, como uma estalada. Olhou para o homem à sua frente, que obviamente não tinha dinheiro. Falou numa voz monocórdica:

- O que é que quer? - repetiu, com maior determinação.

Rambo estudou o homem do bunker. A pergunta pareceu urrancá-lo ao seu delírio.

- Dinheiro - respondeu Rambo. - O suficiente para

me ir embora.

- E se eu não lho der? - perguntou Edward com frieza.

- vou contar à polícia o que o senhor fez.

O som da poderosa ameaça do homem fez o corpo de Ed ward vacilar. com a mão trémula, enxugou a testa, por baixo da pala do boné. O estômago ardia-lhe e o calor começava invadi-lo; mas mesmo atormentado, o seu espírito registou um dado importante: se Rambo fosse à polícia, era imediatamente preso.

- Mais alguém sabe disto? - perguntou Edward.

- Não se preocupe. Só eu. A minha mulher sabia. Estava comigo na altura. Mas já partiu. E o rapaz deve saber, aposto.

- Contou-lhe o que se passou?

- Claro que não! - exclamou Rambo. - Mas ele estava presente, não é assim? Deve lembrar-se, não sei. De resto, mais ninguém.

- Porque esperou tanto tempo? - murmurou Edward.

- Porquê agora?

Rambo sorriu manhosamente.

- Não sabia quem o senhor era. Só soube ontem, quando o vi na televisão. Reconheci-o. E ao seu carrão, com aquela águia. Conduzir não é o seu forte, pois não?

- Na televisão? - Edward ficou confuso. Depois, lembrou-se da entrevista em casa dos Lange, do seu Cadillac esta cionado à porta de casa deles. Abafou um gemido, lembrando-se de como fora quase obrigado a aparecer na reportagem. «Calma», disse para consigo. «Usa a cabeça agora.» Ficou uns instantes calado a olhar para Rambo. «O homem é doido», pensou. «Não possui quaisquer provas do que aconteceu.» Edward sentia o seu coração bater ruidosamente e surgir um rugido na cabeça; mas falou serenamente.

- Portanto - disse Edward, apanhando do chão a bola de golfe e fazendo-a girar na palma da mão -, se eu não lhe pagar esse dinheiro que me quer... extorquir, vai contar a sua história à polícia. Correcto?

Rambo parecia exausto, menos nervoso ao responder:

- É isso mesmo.

- O senhor - disse Edward calmamente, - que pode levar prisão perpétua se for apanhado, vai entrar na primeira esquadra de polícia que lhe aparecer à frente e contar a sua história.

- Bem - ripostou Rambo, hipócrita -, talvez não lhes conte a eles directamente.

Edward fitou o seu algoz e, pela primeira vez, sentiu novamente que detinha o poder, o controlo da situação. Rambo era um miserável patético. Uma criatura nojenta, fraca. Recordou a si próprio que era infinitamente superior àquele zé-ninguém que ousava ameaçá-lo.

- E como é que lhes vai contar? - quis saber Edward.

- Vai enviar-lhes um telegrama? Uma carta anónima? - ao pronunciar o «ma» cuspiu espuma.

- Sei uma maneira - insistiu Rambo num tom de desafio. Agarrou uma mão ossuda com a outra.

Edward continuou com os seus olhos de aço fixos em Rambo, que começou a mexer-se, nervoso. Parecia desnorteado, assustado, como se fosse o único a encontrar-se entre a espada e a parede. Impelido para aquela confrontação pela informação que a televisão lhe oferecera e pelas suas ilusões, não se dera ao trabalho de traçar um plano. Uma satisfação fria começava a suplantar o temor de Edward, que via o homem cada vez mais inquieto. «Um verme», pensou. Podia esmagá-lo com a biqueira do sapato. Sentiu o seu próprio medo cada vez mais longe.

- Quer-me parecer que não sabe - disse Edward com frieza. - Quer-me parecer que não.

O rosto de Rambo pendeu enquanto levantava a voz:

- Dê-me o dinheiro - gritou -, ou vai ver o que lhe acontece.

Procurou na algibeira da camisa e tirou lá de dentro um cigarro e fósforos. Acendeu o cigarro com avidez, como se fosse uma fonte de oxigénio e não o contrário.

- Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Mister Rambo - disse Edward numa voz gélida. - Pertenço à melhor sociedade da região. Tenho dinheiro e poder, para falar bem e depressa. Julga que alguém ia acreditar na sua palavra contra a minha?

Um sopro espiritual pareceu fazer Rambo renascer, após as palavras de Edward.

- Que será de si no dia do Juízo Final? A quem pedirá ajuda, para que servirá a sua fortuna?

Edward endireitou-se e vociferou, abafando a cantilena de Rambo:

- Você não passa de um criminoso a monte. Um fugitivo. Um homem procurado pela polícia.

Rambo baixou os ombros, como se esta última explosão tivesse sido o seu fim.

Edward sentiu que a batalha estava ganha.

- Pense bem - disse, devagar -, e verá que a sua ideia era completamente absurda.

Rambo fitou, impotente, a sua suposta mina:

- Preciso do dinheiro - lamuriou-se.

- Acredito - respondeu Edward, com desprezo. - Mas não vou ser eu a dar-lho. Não tenho medo nenhum de si. Ponha-se já daqui para fora, antes que eu chame a polícia.

Rambo hesitou, tentando articular uma resposta: - O Juízo Final será... - balbuciou

- Fora daqui! - ordenou Edward.

Rambo começou a recuar. Quando chegou aos arbustos, desapareceu entre a vegetação. Edward ouviu-o pisar os ramos como um coelho a fugir de uma matilha de perdigueiros.

Embora tivesse encarado Rambo com frieza, Edward sentia O coração aos pulos. Tinha conseguido calá-lo e com muita eficiência. Revertera a situação a seu favor e vira-se livre do homem, recordou a si próprio. Mas era incontestável que os nervos lhe tinham posto o estômago às voltas. Edward olhou para a bola de golfe que estava na sua mão. Levantou o braço e atirou-a para longe, o mais perto do fainvay possível. Depois saiu do bunker.

Thomas estava de pé junto ao green, examinando o campo. Colocando um sorriso no rosto, Edward fez um gesto com a mão, informando que ia deixar o bunker e jogar a sua próxima tacada. Thomas respondeu com outro aceno.

Edward foi até ao seu carrinho e seleccionou um dos seus tacos. «Calaste-o», disse para consigo, tentando tranquilizar-se. «Estás safo. Ele não volta a chatear.»

Quando ia colocar-se na posição correcta para executar a jogada seguinte, reparou num pequeno quadrado branco no ponto onde terminava o relvado e começava o bunker. Caminhou até lá, baixou-se com cuidado e apanhou-o. O objecto que tinha na mão era uma carteira de fósforos onde estava escrito «Motel La-Z Pines, Kinsburgh, Nova Iorque» em letras constituídas por troncos em miniatura. «Propriedade de Gus deBlakey.»

Edward humedeu os lábios e depois olhou para os arbustos onde Rambo desaparecera. «Ele viu tudo», pensou, voltando a estremecer. «Viu-me. Sabe o que eu fiz.»

Decidido, enfiou a carteira de fósforos no bolso. Depois voltou à sua bola e preparou a tacada. com cuidado, ajustou o seu peso e tocou na bola com a cabeça do taco, para ter a certeza de que a pancada seria seca, directa. com o máximo de concentração possível, levantou o taco, baixou-o, voltou a levantá-lo e acertou na bola com toda a sua força. O barulho produzido pelo contacto da bola com o taco repercutiu-se pela sua estrutura óssea. Antes mesmo de olhar para cima, já a bola estava fora de vista, navegando em direcção ao green. «Perfeito» pensou. «Nunca falhas. Não podes falhar nunca.» Ainda tinha o coração aos pulos quando subiu o fairway.

- Gostas de ir à praia, Paul? - perguntou Anna, enquanto Tracy e Paul saíam do carro e Tracy se dirigia para o carreiro que ia dar à estrutura de madeira que protegia as dunas.

- Nunca fui - respondeu o rapaz, colocando ao ombro a cadeira de alumínio.

«Parece um cão vadio», pensou Anna. Estava de pé junto ao carro, de sapatilhas sem meias, calções de caqui e, apesar do calor, o inseparável blusão de ganga.

Anna retirou a mala térmica da carrinha.

De hoje em diante vens à praia sempre que quiseres. Vamos comprar-te um passe e um fato de banho. Está bem, tom?

Thomas fechou a porta do lado do condutor e ajustou os óculos de sol.

- O quê?

Anna entregou a mala térmica a Thomas, enquanto Paul ia ter com Tracy.

- Estás muito calado - disse-lhe.

- Estava a pensar - respondeu Thomas, enquanto seguiam atrás dos jovens.

- Não contaste como foi o jogo da manhã - observou Anna. - Paul gostou?

Thomas examinou o rapaz que desaparecia atrás da rampa que conduzia à praia.

- Não sei. Penso que sim.

Quando chegaram às dunas, viram as águas tranquilas de Long Island Sound estendendo-se até ao horizonte. Anna pôs-se ao lado de Paul.

- Então, que dizes? - perguntou-lhe.

O rapaz olhou para a bela paisagem de Verão e fez que sim com a cabeça.

- Gosto - respondeu.

A resposta dele encheu Anna de felicidade. Virou-se para Thomas, que armava as cadeiras no areal, para ver se tinha ouvido a resposta do rapaz, mas Thomas nem olhou para ela.

- Bem, estende a toalha - subtilmente, Anna ia dando instruções a Paul.

Tracy foi ter com um grupo de amigas que, cobertas de creme e às risadinhas, tomavam banhos de sol junto do posto do salva-vidas. Evitou olhar para a sua família.

- É melhor pores protector solar - disse Anna, reparando na pele branca de Paul, ao vê-lo despir o blusão.

- vou dar uma volta - anunciou ele.

Pelo canto do olho, Anna viu que Tracy e as amigas estavam aos segredinhos. Uma delas apontou para as sapatilhas de Paul e abafou um risinho. Paul pareceu não dar por nada, mas Anna ficou incomodada e a pensar no que estariam elas a tramar.

Anna viu o seu filho estudar a praia, escolhendo o percurso que seguiria. Fez uma careta ao ver uma criança de calções turcos a amontoar pazadas de areia não muito longe da sua toalha. A jovem mãe, que tomava conta do seu bebé, sorriu a Paul e, quando este se afastou, olhou para Anna.

- É seu filho? - perguntou.

Anna viu o rapaz caminhar em direcção à água. Levava o blusão num dos braços e a sua pele branca, doentia, contrastava com os corpos bronzeados deitados ao sol. Desviou os olhos do filho e sorriu à jovem:

- É - respondeu.

- Belo rapazinho - retorquiu a mulher.

- Faz amanhã quinze anos - disse Ana, devagar. (Quantos anos tem o seu?

A mulher desatou a rir:

- Tem só dois anos e quer mexer em tudo. - Como se quisesse dar razão à mãe, o miúdo gatinhou pela areia e tentou arrancar o balde a uma menina que brincava perto de uma poça, entre as rochas.

- Jeremy - chamou a jovem correndo a separá-los. – Dá o balde à menina.

A criança sentou-se ao pé da nova amiga e a mulher voltou para a sua toalha. Anna sorriu-lhe.

- Está cheia de sorte - disse a mulher. - Já não precisa de tomar conta dele. Estou desejosa que o Jeremy cresça para que não tenha de estar sempre a olhar por ele.

- Crescem tão depressa! - comentou Anna, virando-se de novo para a água, à procura de Paul. Durante uns instantes não o viu em lado nenhum. O seu coração começou a bater muito depressa. Examinou ansiosamente a borda de água. Até que o descobriu. Caminhava à beira da água, olhando o oceano. Suspirou e olhou para Thomas que, sentado numa cadeira, espreitava por cima do jornal.

- Queres que te ponha protector nas costas? - perguntou Tom.

Anna passou-lhe a bisnaga. Ele espremeu-a e com a mão suja de creme começou a massajar-lhe as costas nuas.

- Que bom - disse Anna, esticando a cabeça para trás, sem tirar os olhos de Paul, que já tinha água pelo tornozelo.

- Acho que vou ficar aqui deitada a ler o meu livro.

- Estás com um ar cansado - disse Tom. - Porque é

que não passas pelas brasas?

- Não sei - respondeu Anna. - Acho melhor ir olhando por ele.

- Para quê? - exclamou Tom, atirando com a loção para cima da toalha. - Já não é um bebé, Anna.

- Esqueci-me de lhe perguntar se sabia nadar. Thomas cerrou os lábios e fitou o rapaz que patinhava à borda de água.

- Está descansada que o mar não o engole - resmungou. Anna notou a irritação na voz do marido e tentou desanuviar o ambiente.      

- Acho que estou mesmo cansada - disse -, tens razão.

- Deitou-se na toalha e abriu o livro, mas levantava sub-repticiamente os olhos de duas em duas frases.

O sol estava quente e era agradável senti-lo no corpo. Começou mesmo a ter um efeito soporífero. Depois de pousar o livro aberto na toalha, apoiou o queixo nas mãos e ficou a olhar a areia escaldante. Mal dormira naquela noite e a fadi ga venceu-a. O sussurro das vozes e dos rádios fundiam-se, funcionando como uma canção de embalar, e as suas pálpebras começaram a fechar-se. Sonhou com um rapazinho numa poça de água e luz.

De repente, um horrível grito agudo fez-se ouvir no seu sonho, assustando a criança, que desapareceu enquanto Anna acordava sobressaltada. O ruído estridente continuou enquanto ela, tonta e desorientada, tentava descobrir de onde vinha aquele ruído. Era o gemido de uma criança. Olhou em redor e viu uma gaivota, empoleirada no rebordo de um caixote de lixo, com um fragmento de comida no bico.

- Eu vou buscar-te outra bolacha - disse a mãe de Jeremy, enquanto a criança protestava contra o audacioso crime de furto perpetrado pelo animal.

- Xô - dizia o miúdo, agitando as mãos diante da ave que o espreitava, impassível, do poleiro.

com um suspiro, Anna voltou a deitar-se na toalha. De repente, lembrou-se de Paul. Sentou-se imediatamente e vascu lhou a praia com os olhos. Não o viu em lado nenhum. Então percebeu porquê.

Paul não tinha saído do mesmo sítio, mas agora havia um homem de camisa folgada, óculos escuros e chapéu de abas largas, mesmo atrás dele. Tanto Paul como o homem estavam de costas voltadas para ela. O homem tinha as mãos sobre os ombros magros de Paul.

- Tom! - exclamou Anna. - Olha!

- Que foi? - perguntou Thomas, baixando um canto do jornal.

-Aquele homem - disse Anna, levantando-se, com o coração a latejar.

- Onde vais? - perguntou ele, ao ver Anna desatar a correr praia abaixo, como num transe, de olhos fixos no filho e no homem que estava atrás dele. Quanto mais se aproximava, mais depressa as suas pernas corriam e o seu coração batia. Ao chegar perto do homem e do rapaz, falou tão alto que ambos deram um pulo.

- O que é que o senhor está a fazer? - perguntou.

Paul e o homem do chapéu viraram-se e ficaram especados a olhar para Anna. Paul baixou o binóculo que o homem lhe tinha emprestado e afastou-se dela. O homem, que decidira apenas servir de guia ao rapaz, parecia assombrado.

- Estava a mostrar-lhe... - disse o homem.

Anna tentou puxar pelo braço do filho, mas Paul resistiu. O olhar do rapaz passou de confuso a furioso.

- Que mal é que tem? Ele deixa-me usá-lo.

Anna voltou-se para o homem, pasmado perante aquela confrontação inesperada.

- Que quer do meu filho? - perguntou, desconfiada.

- Nada - protestou o homem.

- Estava a mostrar-me aqueles peixes - gritou Paul.

Em volta, as pessoas olhavam. Toda a actividade cessara, todos os banhistas assistiam ao espectáculo.

- vou chamar a polícia - ameaçou Anna, conduzindo o filho dali para fora.

- Deixe-me em paz - gritou Paul, tentando soltar-se. Largue-me!

Anna baixou os braços e olhou, impotente, para os dois. O homem de chapéu recompôs-se e respirou fundo. - Ouça - disse, com rispidez. - Não fiz nada de errado. Deixei o seu filho ver o mar com o meu binóculo. Acho que me deve uma explicação. Humilhou-me em frente destas pessoas.

Anna sentiu-se encolher, enquanto o susto e a ira se afastavam. Passou a mão pelos olhos. Baixou os ombros.

- Peço desculpa - murmurou.

- Eu é que devia chamar a polícia - disse o homem, agora mais seguro de si, voltando a pôr a correia do binóculo ao pescoço.

- Desculpe - insistiu Anna. - Eu não estou bem. Tive medo... -- Baixou as mãos e olhou para uma bolha de ar na areia molhada, debaixo da qual, provavelmente, alguma amêijoa escavava, e desejou poder também enterrar-se na areia molhada, fresca.

- Acho bem - respondeu o homem, endireitando a camisa. - O mínimo que pode fazer é pedir-me desculpa.

Anna voltou-se, de cabeça baixa, enquanto Paul subia a correr a praia, com o rosto a arder. Thomas foi ao encontro dela. Tinha estado a observar a cena toda sem acreditar no que via.

Anna sacudiu a cabeça, como a pedir-lhe que não lhe exigisse explicações.

- Vamos embora - disse ele.

Começaram a subir o areal em silêncio e passaram por Tracy que tapava o rosto com as mãos, fugindo aos olhares atónitos dos amigos.

- Queres boleia, Tracy? - perguntou Thomas. Tracy não tirou as mãos dos olhos.

- Não.

- Telefona-me que eu venho buscar-te quando quiseres.

Anna caminhou até junto das suas toalhas. Paul desaparecera atrás das dunas. Provavelmente já se tinha metido no carro, para fugir à humilhação por que ela o tinha feito passar. Os lábios tremeram-lhe quando se inclinou para pegar na mala térmica, ainda com o peso do almoço em que ninguém tocara.

 

                                 CAPÍTULO 7

Gus deBlakey, proprietário do Motel La-Z-Pines, estava a varrer a recepção quando Albert Rambo entrou de automóvel no pátio cheio de sombra e se dirigiu ao seu recatado quarto de paredes brancas, com caixilhos verdes na porta e na janela. Gus interrompeu a sua tarefa e encostou-se à vassoura quando Rambo passou no seu Chevrolet decrépito. Perguntou a si próprio quanto tempo iria aquele tipo ficar. Mas foi realmente só nisso que pensou. Não desperdiçava a sua pouca imaginação com os hóspedes que passavam pelo motel. com a sua filha mais velha prestes a dar à luz o seu primeiro neto, Gus tinha mais em que pensar.

No entanto, não deixou de se interrogar sobre quanto tempo ficaria aquele hóspede. Só Deus sabia como ele precisava de ter a casa sempre cheia. A mulher tinha falado em comprar ao neto um daqueles pratos com vários compartimentos, para os diferentes alimentos dos bebés, e que, além disso, mantinham a comida quente. Pareceu-lhe uma ideia excelente. Ao fim e ao cabo, ele próprio não gostava de comer tudo frio; não havia razão para o seu neto gostar. Endireitou-se e voltou a pegar na vassoura.

Rambo atirou com a porta do seu Chevrolet, meteu a chave na fechadura da porta do quarto e bateu também com ela. Não se deu ao trabalho de acender a luz, mas ligou o pouco potente .ir condicionado da janela. Depois, deixou-se cair na cama encovada e ficou a olhar para as persianas corridas. Tirou um cigarro do bolso e pô-lo na boca. Os fósforos não estavam no bolso. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, pegou na carteira de fósforos que tinha lá visto na véspera, e acendeu o cigarro.

A imagem de Edward Stewart a fitá-lo não lhe saía da cabeça. Estremeceu, só de pensar naquele olhar gelado. Uma sinistra sensação de fracasso invadiu-o, quando recordou a conversa no campo de golfe. Apercebeu-se de que decidira desafiar Edward sem ter estabelecido um plano prévio. A verdade é que não podia provar que o homem tinha feito fosse o que fosse. Pensara que o tipo ia ficar tão admirado e assustado, que lhe daria tudo o que ele pedisse. Além disso, recebera o sinal de que devia fazê-lo. Fora-lhe enviado esse sinal.

Rambo esticou-se, pegou na Bíblia e começou a devorar o capítulo marcado, à luz ténue do quarto do motel. Mas os seus olhos recusavam-se a concentrar-se nas palavras. Ao fim de uns segundos, fechou a Bíblia e pô-la de lado. Devagar, puxou pela carteira e abriu-a. Examinou o seu magro conteúdo durante muito tempo, sem se mexer. O quarto estava em silêncio. Nenhuma voz divina falou com ele, sugerindo-lhe o que devia ou não fazer. A verdade nua e crua é que o seu dinheiro só dava para mais um dia ou dois.

Fechou a carteira, para voltar a colocá-la no bolso. De um daqueles compartimentos que não têm fecho, caiu uma fotografia. Tentou voltar a enfiá-la lá dentro. Mas depois resolveu olhar para ela.

Lá estava Dorothy Lee, de uniforme de enfermeira, a sorrir-lhe. Era uma fotografia antiga, de quando ela ganhou a sua touca. Tinha ficado muito orgulhosa.

Segurou na fotografia com cuidado, pelos cantos já gastos, e pensou na sua mulher. Tinha feito tudo por ela. Roubado o rapaz. Ela queria tão desesperadamente ter um bebé e ele não podia dar-lho! com as pessoas das adopções nem valia a pena insistir, por causa das vezes que ele tinha estado no hospital. Internado. Portanto, roubou o miúdo. «Agora vê o que é que ganhaste com isso», disse a si próprio.

Dorothy sempre insistira para que ele andasse com uma fotografia do rapaz na carteira, mas nunca lhe fez a vontade. Nem pensar em andar por aí com uma fotografia daquele miúdo demoníaco. Já bastava ter que ver a cara dele todos os dias.

Rambo ficava fora de si só de pensar no rapaz e em como este lhe tinha estragado a vida.

Depois da chegada do miúdo, ela nunca mais pensou no marido. Nunca mais quis saber dele, vivia para aquele fedelho. Parecia que estava a vê-la, sentada no divã, na caravana às escuras, a ver televisão com o miúdo enroscado no seu colo. Acariciava-o, brincava com os caracóis do seu cabelo, sem prestar atenção a mais nada. Rambo voltou a olhar para a fotografia da mulher e sentiu-se tentado a rasgá-la. Mas depois voltou a arrumá-la e a fechar a carteira.

«Não sabes o que é ser mãe», costumava ela dizer-lhe. «Albert, uma mãe faz o que for preciso pelo seu filho.» E quando ele lhe recordava que Billy não era bem filho dela, era como se não tivesse dito nada. «Sou a mãe dele», dizia ela, «eu é que sei.»

Uma voz rompeu de repente o silêncio do quarto. Não a voz do Senhor, a sua. «É isso mesmo», disse Rambo. «A mãe. Há-de pagar-mas. A mãe.»

Ficou muito tempo quieto e calado, a matutar na sua ideia. Depois cruzou as pernas e pousou a Bíblia no joelho ossudo. Resmungou em voz alta enquanto passava furiosamente as páginas, à procura de um capítulo, um versículo, que servisse para pedir ao Senhor que o ajudasse só mais esta vez, a última.

- Edward - chamou timidamente íris.

Edward fechou a revista dos antigos alunos de Princeton que tinha nas mãos e pousou-a ao lado do prato, com um suspiro. Estavam os dois sentados à mesa, na casa de jantar enorme e lúgubre da sua mansão.

- Desculpa?

- Perguntei se o Paul tinha gostado do golfe.

- Gostou bastante, creio eu.

íris esticou o braço para um cesto de pãezinhos e tirou um. Partiu um bocado e ficou com ele na mão.

- Como é que ele é? - perguntou.

Edward deitou um olhar de censura ao pão que a mullher tinha entre os dedos, pegou no garfo para levá-lo à boca, mas parou a meio, com o garfo suspenso por cima da salada de marisco que tinha no prato.

- Não sei - respondeu. - Parece-me um rapaz igual aos outros.

íris pôs o bocado de pão na boca e mastigou-o devagar. Depois inclinou-se para a frente e olhou, ansiosa, para o marido:

- Estou morta por conhecê-lo. Achas que está a adaptar-se bem?

Os olhos de Edward viajaram do rosto ansioso da mulher até ao seu vestido, onde uma das costuras estava descosida acima da cintura. Pegou no garfo pelos dentes e apontou-o para ela.

íris olhou-o, confusa, depois estremeceu ao sentir a ponta fria do cabo tocar-lhe na pele, por baixo do buraco do vestido.

Edward franziu o nariz, desagradado, enquanto fazia força no garfo.

- íris, tens a roupa a rebentar pelas costuras.

íris encolheu-se na cadeira, corada, e cruzou os braços na esperança de tapar a costura descosida.

- Não reparei, quando me vesti.

- Não te fazia mal nenhum seres mais cuidadosa com a tua aparência - disse Edward, pegando agora no garfo como devia ser.

- Tens razão, desculpa.

Edward terminou a salada de marisco sem dizer mais nada, enquanto íris brincava com o garfo no prato.

- Está tudo em ordem para a festa? - perguntou Edward, sem olhar para a mulher.

íris mordeu os lábios e mexeu a cabeça.

- Então? - insistiu Edward, impaciente.

- Está! - gritou íris. Edward suspirou.

- Não é preciso gritar, íris.

- Eu... eu falei hoje com a florista e a empresa de restauração e ficou tudo combinado.

- A propósito, podes riscar os Wilcox da tua lista - ordenou Edward. - Eles não vêm.

- O pobre parecia tão em baixo quando saiu daqui, no outro dia. Aconteceu alguma coisa? - perguntou íris.

- Negócios, íris. Coisas que não te dizem respeito. Riscaos da lista.

A criada veio buscar os pratos, íris entregou-lhe o dela e reparou que Edward não tirava os olhos do buraco do seu vestido. Pôs imediatamente os braços aos lados do corpo.

Edward voltou a pegar na sua revista e começou a folheá-la. Depressa percebeu que não conseguia concentrar-se na leitura, que os acontecimentos do dia não lhe saíam da cabeça. No entanto, era preferível fingir que estava a ler do que olhar para a mulher e para aquele irritante buraco do seu vestido. Roupa era coisa que não lhe faltava, embora ultimamente tivesse dificuldade em caber lá dentro. Que estaria ela a pensar usar na festa? Não queria que o envergonhasse diante das pessoas mais importantes da cidade.

- íris - disse -, espero que tenhas um vestido decente para usares na festa.

- E tenho - respondeu ela.

A criada entrou, de novo, na sala de jantar e colocou uma taça com gelado em frente de cada um.

íris agradeceu à empregada com um sorriso e pegou na sua colher.

- vou pôr aquele vestido azul - disse -, que levei ao bailado, àquele espectáculo de beneficência.

com repugnância, Edward viu-a levar à boca uma grande colherada de gelado. Ficou sentado a olhá-la, depois enrolou a revista num canudo e levantou-se. De punho cerrado, enterrou o rolo de papel na taça de gelado de íris. íris deixou escapar um grito, enquanto o creme derretido se espalhava pelo seu vestido e as páginas da revista se encaracolavam dentro da taça.

Olhou incredulamente para o marido, que mantinha a revista na taça.

- íris - perguntou ele numa voz calma -, por que razão, se já nem cabes dentro da tua roupa, estás a comer essa taça de gelado?

íris sacudiu a cabeça e os lábios tremeram-lhe.

- Não é preciso comeres tanto - informou Edward. Gorda já tu estás.

íris olhou para a taça, enquanto Edward pegava na revista e a atirava para o tabuleiro que estava em cima da mesa.

- E agora - continuou ele -, que tal ires lá acima mudar de vestido?

Depois de limpar a boca e a parte da frente do vestido com o guardanapo, íris levantou-se a tremer. Edward pegou na colher e começou a comer o seu gelado, assim que a mulher deixou a mesa. À porta da sala de jantar, íris parou e ficou uns instantes a observar o marido, cheia de raiva. Depois foi-se embora.

Edward olhou para a revista ensopada que estava no tabuleiro. Tocou a campainha, com impaciência, para a criada vir levantar a mesa. Que vergonha, de facto, ser preciso estragar uma revista para dar uma lição a íris. Ainda por cima uma revista como aquela, que lhe dava sempre um enorme prazer, pois cada número confirmava a sua suspeita de que poucos dos seus colegas estavam tão bem na vida como ele, embora muitos tivessem, à partida, vantagens com que ele nunca pudera contar.

Não tinha sido fácil. Enquanto os outros rapazes perdiam o seu tempo em jogos de futebol e nos restaurantes dos clubes chiques, ele ia trabalhar no café local, porque a sua magra bolsa não chegava para pagar os estudos, sendo obrigado a viver longe da faculdade, em casa de uma velha que estava a criar o neto e precisava de dinheiro.

Pelo menos, lá tinha sossego e boas condições para estudar. Nunca prestara atenção à velha e ao neto até àquele dia. Deixara o trabalho que andava a escrever em cima da mesa de cozinha, durante uns minutos, e quando voltou, a criança tinha deixado cair, sem querer, um copo de leite com chocolate em cima dele. Por causa disso, Edward, que teve de dactilografá-lo todo outra vez, entregou-o com um dia de atraso.

Jurou vingar-se. Um dia, quando a velha e o rapaz saíram para fazer umas compras, foi à garagem e desapertou as rodas da bicicleta do miúdo, de modo que, da vez seguinte que o garoto fora dar um passeio, as rodas soltaram-se e a criança bateu com a cabeça no passeio. Levou doze pontos e ficou com um olho negro, o que deixou Edward radiante. A velha nunca lhe fez qualquer acusação, só lhe pediu que se fosse embora no dia seguinte. Foi aborrecido ter de procurar outro quarto, mas valeu a pena.

Edward sacudiu a cabeça e olhou de novo para a revista que a criada levava dentro do tabuleiro. Não havia dúvida de que tinha chegado longe. Pensou em redigir uma pequena notícia para enviar à revista sobre a sua recente aquisição da Wilcox Company. Quando tirou do bolso o seu caderno com capa de couro, veio juntamente a carteira de fósforos do Motel i   La-Z Pines. Imediatamente o seu espírito voltou a ser assaltado pelos acontecimentos do dia. De início, pensou que tinha resolvido tudo muito bem. Boa ideia aquela de pregar a Rambo .; um susto de morte! Ver o candidato a chantagista encolher-se como uma minhoca assustada tinha-o enchido de vaidade e renovado a sua confiança no seu próprio poder. Mas, ao fim do dia, já não estava tão seguro de si.

O homem podia ser doido, mas andava à solta e de posse de um terrível segredo que lhe dizia respeito. Pagar-lhe o que ele queria não era solução, porque nada garantia que isso lhe calasse a boca, se a polícia o apanhasse. Claro, Rambo não podia provar o que aconteceu. A polícia não teria provas contra si. Mas Edward lembrou-se de que existiam outros perigos para além da ameaça legal. Tinha de pensar na sua posição social. Muito provavelmente, a notícia escandalosa seria divulgada. Havia tanta gente com inveja dele! Pensou, por instantes, na revista da faculdade, e estremeceu com a ideia de que poderia incluir um artigo a seu respeito, pormenorizando as acusações erríveis que surgiriam contra si.

Estava de tal maneira absorto que nem viu íris regressar à sala de jantar. Ela esgueirou-se pela porta e colocou-se atrás da

cadeira de Edward, usando outro vestido. Edward lançou-lhe um olhar aborrecido.

- Estive a pensar - disse íris, - que podia ir fazer uma cura de emagrecimento para as termas, na semana que vem. Já uido a pensar nisso há algum tempo e talvez conseguisse ficar, pelo menos, um pouco menos gorda.

Edward pegou na chávena de café que a criada lhe trouxera.

- É uma pena não te teres lembrado disso antes da festa, íris encolheu os ombros.

- Podia ir na terça-feira.

- Por mim, está bem - concordou Edward, distraído.

- Então fica para terça-feira - disse íris. Passou por trás dele a caminho da porta.

Edward abriu a mão e olhou para a carteira de fósforos. Só havia uma maneira, pensou, de a história de Rambo nunca chegar aos ouvidos errados. Não tinha outra hipótese. Enquanto Rambo vivesse, não estaria seguro.

- Tens a certeza de que não te importas, Edward? - perguntou íris da porta.

- Já disse que não, íris.

Sabia agora o que tinha a fazer; estava decidido. Nunca hesitara em proceder de acordo com o que as circunstâncias impunham. Albert Rambo havia de lamentar o dia em que teve a triste ideia de chantageá-lo. O seu erro ia sair-lhe bastante caro.

Thomas deu corda ao seu relógio de pulso e colocou-o em cima da secretária. Depois foi até à cama, puxou o lençol para trás, deitou-se e pegou no livro que estava na mesa-de-cabeceira. Acendeu o candeeiro a seu lado e abriu o livro.

Anna despiu a saia com cuidado e depois o resto da roupa. Tirou o roupão de Verão do cabide onde estava pendurado e encostou-o ao peito. Virou-se para o marido, mas este não olhou para ela; parecia concentrado no livro que tinha nas mãos. Vestiu o roupão com um suspiro e foi ao toucador buscar a escova de cabelo. As costas e o cabo eram em prata, com as suas iniciais gravadas, um presente de Thomas quando fizeram um ano de casados. Ao lado estava o pente que completava o conjunto.

Thomas baixou o livro e viu-a escovar o cabelo, que lhe caía, macio, sobre os ombros. Sacudiu a cabeça e voltou a levantar o livro.

- Vejo que hoje estás a pensar dormir aqui - disse num tom irónico.

Anna enterrou a escova no cabelo com força, até as cerdas lhe magoarem o couro cabeludo.

- Já tranquei as portas. Acho que está tudo bem.

Por cima do livro, tom fitou os pés da cama. Depois, voltou a concentrar-se nas palavras.

- Não percebo se ele gosta de estar aqui... connosco disse Anna. - Penso que tudo lhe faz ainda muita confusão

- rodou o banco do toucador e virou-se para Thomas. O que é que tu achas?

- Não sei - respondeu Thomas, sem tirar os olhos da página.

Anna aproximou-se da cama e passou uma mão pela perna do marido, por cima do lençol.

- Tom, desculpa o que aconteceu hoje na praia. Desculpa ter-te envergonhado. A ti e aos pequenos.

Sem tirar os olhos do livro, Thomas respondeu numa voz firme.

- Não me envergonhaste - disse.

- Deve ter sido do cansaço. - Anna entrou na cama e puxou o lençol para cima. - Espero que amanhã o dia corra bem, seja calmo, apesar de termos de ir àquela festa, à noite.

- Amanhã tenho de ir ao mecânico buscar o Volvo - disse ele. - E preciso de ir comprar aquele produto para a relva.

- Quando voltares, podíamos ir a qualquer lado todos juntos - sugeriu Anna.

- Eu disse à Tracy para levar o Paul ao Abrigo de Animais, amanhã.

- Oh, não, Tom! Porquê?

- Porque não? Eles têm que se conhecer melhor.

- Mas irem lá só os dois, sozinhos? Pode acontecer alguma coisa.

Thomas olhou-a espantado.

- Sempre deixaste a Tracy ir sozinha. Não sei se sabes, mas vivemos numa terra muito segura.

- Segura é, mas... sabes... e se aquele homem aparece? Anna estremeceu só de pensar em Rambo.

Thomas retirou as mãos de baixo do lençol e cerrou os punhos.

- Anna, quando é que vais parar com isso? Era nele que estavas a pensar hoje na praia, não era?

Anna mordeu a boca por dentro e não respondeu.

- Não estás a fazer bem nenhum ao rapaz com isso continuou Thomas. - Não podes tê-lo debaixo de olho todos os minutos, todos os dias. Porque é que não o deixas viver a vida dele? Deixa-o em paz.

- Preocupo-me com a sua segurança. Acho estranho que isso não te preocupe.

A expressão de Thomas endureceu. Apagou a luz e tapou-se com o lençol, de costas para Anna.

Ela escondeu o rosto nas mãos, estendeu o braço e acariciou-lhe o ombro.

- Desculpa. Não quis dizer aquilo. Thomas olhou para a escuridão que o rodeava.

- Não tem importância.

- Tens com certeza razão. Mas é mais forte do que eu. Tinhas razão quanto à Tracy. Estavas sempre a avisar-me, a lembrar-me que não estava certo eu sufocá-la por causa do que tinha acontecido ao... Paul. E tinhas razão - disse suavemente, recordando todas as discussões a propósito de Tracy. Tinha-lhe custado tanto fazer o que ele dizia e deixar a filha viver normalmente! Susteve a respiração, ao recordar o seu pavor constante. A cabeça dizia-lhe para dar ouvidos ao marido, mas tudo dentro dela lutava contra esses conselhos.   Uma vez, quando Tracy fizera uma viagem de dois dias a Washington com a turma do quarto ano, Anna passara a noite na casa de banho, agoniada de tanto medo.

- Tens toda a razão - repetiu Anna -, mas é tão difícil! Não posso apagar tudo duma só vez, tantos anos de sofrimento, de medo.

- Eu sei - disse Tom.

- Seria uma grande ajuda poder contar com a tua compreensão. Preciso de ti. Preciso de dividir isto contigo.

- Abraçou-o a pouco e pouco e agarrou-lhe o pulso, que ele encostara ao peito. - Sempre partilhámos tudo. Se pudéssemos... estar os dois juntos nisto.

Thomas fechou os olhos com força, enquanto ela passava os dedos pelo seu braço.

- Não sei como, Anna. Talvez por se tratar de uma situação nova. Ainda não me habituei à ideia de que o rapaz voltou.

-- Não é fácil, querido - respondeu ela com meiguice -, eu sei. Mas assim que apanharem o Rambo, juro que nunca mais me preocupo. Só queria que aceitasses melhor isto tudo... ;,«!

Thomas acenou com a cabeça, tentando reflectir sobre o que ela lhe propunha. Mas, ao mesmo tempo, sentiu os seios dela contra as suas costas e essa pressão suave era como uma mola a apertar-lhe o peito, fazendo o ar sair. A contusão de sentimentos fazia-lhe arder a garganta. Queria voltar-se, enterrar o rosto no peito macio dela e apertá-la contra si com toda a força.

De repente, Anna soltou-se e sentou-se na cama. As costas de Thomas ficaram frias no ponto onde ela estivera encostada.

- Não ouviste nada?

- Onde? - perguntou Thomas.

- Lá em baixo. Tenho a certeza de que ouvi um barulho. Thomas enterrou o rosto na almofada.

- Não ouves? - perguntou Anna em voz baixa. - Anda alguém lá em baixo.

- Não ouço nada - respondeu Thomas, puxando o lençol até às orelhas.

Anna saiu da cama, enfiou o roupão e apertou o cinto com força, à escuta dos sons abafados que vinham do andar inferior.

- Deve ser um dos miúdos - disse com pouca convicção, mas Thomas nem olhou para ela.

Continuou deitado sem se mexer, escondido pelo lençol, mas disse num tom ríspido:

- Já é mania.

Anna foi até à porta e espreitou para o corredor. As portas dos quartos de Tracy e Paul estavam fechadas e a casa completamente às escuras. Sabia que o marido ia ficar irritado, mas não resistiu.

- vou ver o que se passa - disse. - Thomas nem respondeu. Anna esgueirou-se para o corredor e acendeu a luz das escadas. Desceu-as devagar, com uma mão encostada à parede, como a procurar apoio.

O andar de baixo estava silencioso e escuro. Ao fundo das escadas, pensou que Thomas tinha provavelmente razão. Era imaginação dela. Entrou na sala às escuras, dirigindo-se instintivamente a um candeeiro. De repente, ouviu um ruído na cozinha.

- Quem está aí? - perguntou, carregando no interruptor. Não houve resposta. Olhou em volta, como se quisesse certificar-se de que estava sozinha, depois virou-se para a sala de jantar. Os pesados castiçais de bronze da sala de jantar atraíram a sua atenção.

Susteve a respiração, correu até à mesa e pegou num castiçal. Sentir aquele peso na mão tranquilizou-a.

- Quem está aí? - perguntou outra vez. - Tracy? Agarrando com força o castiçal na mão suada, Anna abriu

de rompante a porta da cozinha e acendeu a luz. Estava vazia.

Depois de olhar em redor, foi até à porta das traseiras e experimentou-a. Estava bem trancada. A caminho da sala, notou -que a porta da despensa estava ligeiramente entreaberta. Foi ver.

Levantando o braço que empunhava o castiçal, como a tomar balanço, deu um pontapé na porta, que se abriu. Anna olhou e deixou escapar um grito:

- Paul! - exclamou, baixando o braço. - Que estás tu aqui a fazer?

A luz da cozinha iluminava mal a despensa escura. De cócoras, o rapaz olhou para ela. Os olhos abertos de um animal acossado destacavam-se no seu rosto lívido, doentio. Agarrava com as mãos a prateleira inferior, para se sentir apoiado. Olhava com desconfiança para o rosto dela e para o candelabro.

- Porque é que não respondeste? - perguntou Anna, com a voz embargada de alívio.

O rapaz encolheu os ombros, mas o seu corpo estava hirto. Anna avançou para o filho e examinou, preocupada, o seu rosto pálido. Quando se aproximou, reparou que todo ele tremia.

Paul pôs-se de pé antes que ela avançasse mais e esgueirou-se para a cozinha, de costas para as prateleiras.

Anna seguiu-o, colocando o candelabro em cima da bancada. Estendeu-lhe uma mão, mas o rapaz recuou e encostou-se ao frigorífico.

- Não conseguia adormecer - disse. - Tinha fome.

- Paul, não precisas de fazer nada às escondidas. Esta é a tua casa. - O rapaz desviou o olhar. - E encontraste alguma coisa para comer?

Paul fez que sim com a cabeça.

Anna olhou-o, preocupada, mas decidiu não o pressionar.

- Que se passa contigo, Paul? Sentes-te bem? Paul fitou-a e respirou fundo.

- Tive um pesadelo e acordei.

- Não queres contar como foi? Às vezes, ajuda. O rapaz sacudiu a cabeça.

- Não. vou para a cama.

- Está bem - disse Anna.

- Até amanhã.

Depois de ele subir, Anna apagou as luzes e seguiu-o. A imagem do rapaz agachado a um canto da despensa, às escuras, gelou-a e Anna tentou apagá-la da sua memória. Mas não conseguia deixar de perguntar a si própria que pesadelo seria aquele que o tinha feito esconder-se dela.

Sem fazer barulho, voltou ao quarto. Abriu a porta. À luz da lua, viu que o corpo de Thomas estava anichado de costas para ela.

- Era o Paul - disse. - Teve um pesadelo.

Da cama não veio qualquer resposta. Só se ouvia a respiração pesada, ruidosa, de Thomas. Sabia que ele fingia que estava a dormir. Anna despiu o roupão e enfiou-se na cama, ao lado do marido. Na casa silenciosa e escura, aquele barulho parecia o rumorejar das árvores num cemitério. Sentou-se encostada à cabeceira, desejando acalmar-se. Ao fim de algum tempo, o corpo de Thomas descontraiu-se; percebeu então que ele estava mesmo a dormir.


                                           CAPITULO 8

O mecânico limpou as mãos sujas de óleo num trapo e esfregou o nariz com o punho.

- Dê-me um minuto, que eu já faço a conta.

- Não tenho pressa - disse Thomas, apoiando uma mão no capo do Volvo.- Precisou de um grande arranjo?

- Nem por isso - respondeu o mecânico. - Foi mais ou menos o que eu lhe disse ao telefone.

Thomas encolheu os ombros.

- Fiquei admirado ao saber que trabalhava ao domingo.

- Domingo, segunda, sempre - disse o homem. - Volto já.

Thomas afastou-se do carro e olhou de relance a oficina, que cheirava intensamente a óleo. Num velho quadro, estavam pregados um calendário com mulheres nuas e uma imensidão de papéis com apontamentos sobre automóveis numa caligrafia ilegível. Montes de pneus empilhavam-se nas prateleiras do fundo, e no chão de cimento havia enormes manchas pretas. Uma bolsa em plástico, contendo alguns mapas e esferográficas com o nome da oficina gravado, repousava sobre um balcão.

Aquele ambiente agradava a Thomas. Era um daqueles sítios por onde os homens gostam de passar, para beber uma cerveja e ouvir uma anedota, enquanto devoram uma sanduíche tripla. Daqueles lugares onde um homem vai com o filho, mostrar-lhe como um motor funciona por dentro. Se ele tivesse um filho. Tentou imaginar-se ali com Paul, mas não conseguiu.

Dormira mal toda a noite e praticamente não tinha trocado uma palavra com Anna no caminho para a oficina. Sentiuse culpado ao recordar a expressão dos olhos dela, quando o deixou ali. Preparava-se para pedir mais uma vez desculpa por se ter levantado a meio da noite para ir dar a volta à casa, mas rle voltara-lhe as costas, negando-lhe essa possibilidade.

Pensou bem no assunto e achou que ela não tinha nada que pedir desculpa. Afinal, Albert Rambo continuava a monte , e, de facto, tratava-se de um criminoso, raptara-lhes o filho. Era mais do que natural que Anna estivesse preocupada. O que não parecia natural era o facto de ele se estar nas tintas para Albert Rambo. Mas estava. Para Rambo e para o rapaz.

Thomas fechou os olhos, horrorizado com os seus próprios pensamentos. Não estava certo. Não estava certo sentir o que sentia. O rapaz não tinha culpa que o seu próprio pai apenas sentisse por ele uma espécie de ressentimento. Thomas deu um pontapé no pneu do seu carro com quanta força tinha.

- Os pneus estão óptimos - disse o mecânico, regressando com a conta na mão. - Verifiquei-os todos.

- Ah, ainda bem.

- Aqui tem a factura.

Thomas estudou a conta e preencheu o cheque em cima do capo do automóvel.

- Muito obrigado - disse.

- Ora essa. - O mecânico retirou-se para o escritório e Thomas entrou no carro.

Fez, de cabeça, a lista do que precisava de comprar na drogaria. Um herbicida e grampos novos para as trepadeiras.

Ao sair da oficina, lembrou-se que havia uma loja de vestuário masculino mesmo ao lado da drogaria. Decidiu dar uma espreitadela e, se estivesse aberta, comprar umas coisas para Paul. Tinha de fazer um esforço. Não havia razão para não fazer um esforço.

Aquilo também não estava certo, pensou. Comprar presentes para aliviar a consciência. Dar coisas ao filho, porque não se é capaz de lhe dar afecto. Desejou sentir qualquer coisa, alguma ternura pelo rapaz. Antes de o miúdo voltar, pelo menos, tinha uma mulher. Agora, nem uma coisa nem outra.

- Não mexas nos animais - avisou Tracy. - Podes olhar à vontade, mas não lhes toques. - Vestiu um avental sujo e entrou numa pequena divisão adjacente às instalações dos animais.

Paul viu-a desaparecer e foi ver as jaulas, parando para conversar com os cães e os gatos. O cheiro era forte e todos uivavam de infelicidade por não se encontrarem em liberdade. Paul certificou-se de que Tracy ainda não tinha voltado e enfiou a mão na jaula de um pequeno terrier que estava encostado à parede do seu cubículo. Acariciou o pêlo áspero do animal. O cão ganiu e pareceu encolher-se ao ser tocado. Paul passou a mão pelo focinho do animal e achou-o quente. Franziu a testa e voltou a tocá-lo. O cão encolheu-se ainda mais.

- Há aqui um que está doente - disse em voz alta. Tracy apareceu no corredor arrastando uma saca de ração

para cães:

- O quê?

- Este aqui tem o focinho quente. Tracy atirou a saca para o chão.

- Eu disse para não mexeres neles. Paul olhou-a com frieza.

-- Qual? - perguntou ela. Paul apontou para o terrier.

- Não te preocupes com esse - disse Tracy, mas Paul reparou que ela tinha uma expressão inquieta. - Porque é que não vais lá para fora? Aqui estás a estorvar.

Paul esticou a mão e fez outra festa ao terrier. Depois saiu para o pátio soalheiro. Num canto havia uma árvore grande e frondosa. Paul deixou-se cair no chão, encostado ao tronco. Estava a suar, mas não lhe apetecia tirar o blusão. Deixou-se estar ali sentado à sombra, onde corria uma brisa leve, fresca. Ao fim de algum tempo, Tracy foi ter com ele.

Paul fechou os olhos, fingindo estar a saborear a brisa, para não ter que olhar para ela. Ouviu-a sentar-se na relva a seu lado. Abriu os olhos e viu-a de pernas cruzadas a poucos centí metros de distância. À sua frente estava um pequeno saco de plástico cheio do que parecia ser ervas secas. Tracy dobrou uma mortalha e pôs no meio um pouco de marijuana. Depois, enrolou o cigarro com os dedos. Paul observava pelo canto do olho.

Tracy mostrou-lhe o charro.

- Fumas? - perguntou.

- Claro - mentiu ele.

Tracy rodou o charro na boca e mordeu-lhe a ponta. Depois tirou uma carteira de fósforos da mochila e acendeu-o. Ele já fizera algumas experiências com cigarros e uísque, mas nunca tinha provado erva.

Tracy estendeu-lhe o cigarro, que ele segurou entre os dedos. Tinha ouvido dizer que aquilo era caro e perguntou a si próprio onde teria ela arranjado o dinheiro.

- Este emprego é pago? - perguntou, apontando para o canil.

- Que importância tem isso? Gosto deste trabalho.

- Nenhuma importância. - Levou o charro à boca e inalou, olhando primeiro em volta, certificando-se de que não havia ninguém por perto. Sam, o seu gato, andava por ali a fare-

jar, de resto só se ouvia o rumorejar das árvores. Paul devolveu o charro a Tracy e desatou a tossir.

Tracy olhou-o com desdém:

- Gostaste?

com dificuldade, Paul recuperou o fôlego. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Foi pelo canal errado -> explicou.

- Tira mais uma passa.

Paul respirou fundo e tirou outra fumaça. Sentiu um estranho formigueiro nos pés, nos tornozelos, e a boca desagradavelmente seca. De repente, reparou que o céu estava de um azul i.idioso. Ficou algum tempo a admirá-lo, encantado com a leveza das nuvens que passavam. Depois, olhou para Tracy, que se tinha deitado de costas na relva a observá-lo, perplexa. De repente, voltou-se. Paul suspirou e pôs os braços à volta dos loelhos. Passou-lhe o cigarro, que ela aceitou sem proferir palavra.

- Que festa é que há esta noite? - perguntou Paul, como quem não quer a coisa.

Tracy expeliu o fumo com uma careta.

- Uma chatice qualquer de caridade em casa dos Stewart. Mister Stewart é o principal promotor de obras de caridade na região.

- É?

- Sim.

Paul franziu a testa e fechou os olhos. Não conseguia imaginar Mr. Stewart a dedicar-se a boas causas. Lembrava-se bem de como ele tinha sido cruel para aquele homem, no dia anterior. A cena não lhe saía da cabeça e apeteceu-lhe contar a alguém. No campo de golfe esteve o tempo todo a olhar para aquele sujeito, a achar que ele estava só a fingir que era simpático. Decidiu contar a Tracy o que tinha visto. Pensou contar a história de uma maneira que a fizesse rir e depois ver qual seria a reacção dela. Mas depois pensou que, só para embirrar consigo, ela era capaz de não achar graça nenhuma. Tracy parecia um porco-espinho. Tentou ignorar a presença dela. Sam, que tinha estado a explorar o pátio, foi ter com Paul e trepou para o colo dele. Paul começou a acariciar-lhe o pêlo, quente do sol. O gato deixou-se estar ali deitado, a ronronar.

- Parece que chegou alguém - disse Tracy. com relutância, Paul abriu os olhos.

- Ouvi um carro - continuou ela. - É melhor eu esconder isto e ir ver o que é que querem.

- Eu cá não ouvi nada - disse Paul. Sentia as pernas presas, e as pálpebras pesaram-lhe quando olhou para Tracy.

- Que horas são? - perguntou.

- Como é que eu hei-de saber? - respondeu Tracy, levantando-se e sacudindo a roupa. Pegou na mochila e escondeu o saco de marijuAnna numa bolsa lateral. - Já venho.

- Está bem - disse Paul. Viu-a entrar no edifício. O gato, que acordara com os súbitos movimentos de Tracy, saltou do colo de Paul e seguiu-a. Paul sentiu falta do calor do pêlo dele nas suas pernas.

Fechou outra vez os olhos e entregou-se aos seus devaneios. Prismas de luz apareciam e desapareciam na face interior das pálpebras. A brisa soprava o suficiente para mantê-lo confortável. Sentia o corpo leve, em paz. Procurou não pensar em nada, saborear apenas cada sensação. Uma impressão estranha assaltou-o, quando deixou o seu espírito vaguear entre recordações e sonhos. Aquela sensação invadira-o várias vezes desde que regressara a casa dos Lange. Não tinha a ver com a memória, pensou, porque não se lembrava de nada daquilo. Nem das caras, nem das casas, nada. Mas, de vez em quando, havia coisas que lhe pareciam familiares. Paul pensou que, talvez, ajudado pela marijuana, conseguisse fazer um esforço e compreender. Esforçou-se por pensar só em Tracy e ordenou à sua memória que recuasse, que o ajudasse a imaginá-la ainda criança.

Concentrou-se nos olhos castanho-claros dela, desconfiados, salpicados de verde, e procurou vê-los num rosto de criança. Em pensamento, percorreu a casa, tentando imaginar-se lá a brincar com uma irmã mais nova. De repente, a imagem de uma cancela de madeira acendeu-se no seu espírito como uma lâmpada, deixando-o com a certeza desagradável de que se recordava dela, embora não tivesse visto nada parecido em casa.

Quando tentou recordar onde poderia estar a cancela, viu à sua frente o pesadelo da noite anterior.

A ansiedade percorreu-o como uma onda, logo que o pesadelo voltou a surgir diante dos seus olhos. Estava deitado no chão, queria desesperadamente mexer-se, sem o conseguir.

O chão era duro, frio. Enquanto estava ali deitado, impotente, uma grande massa escura, de qualquer coisa que não era capaz de identificar, avançava na sua direcção. Uma enorme águia dourada apareceu batendo as asas ameaçadoramente, mesmo por cima dele. E depois um homem, uma silhueta familiar mas pouco nítida, inclinou-se para ele, que ficou apavorado.

Paul abriu subitamente os olhos e perscrutou o pátio silencioso por trás do canil. Quase esquecera onde estava. Esfregou as mãos uma na outra, como se o sonho aterrorizador as tivesse gelado. Sentia uma dor incomodativa atrás do olho esquerdo. Não sabia dizer há quanto tempo ali se encontrava. Franziu a testa e olhou para o canil. Parecia-lhe que Tracy já devia ter voltado. De repente, teve a certeza disso.

Levantou-se tropegamente e correu pelo pátio até à porta das traseiras do canil.

- Tracy! - chamou.

Nas suas jaulas, os animais desataram a uivar e a ganir com um vigor cada vez maior. Paul caminhou depressa até às escadas que conduziam à sala de espera e ao gabinete do veterinário.

As salas de observação estavam silenciosas, as marquesas vazias. Os armários dos remédios tinham as portas de vidro fechadas e trancadas. Na mesa da recepcionista via-se a agenda das marcações, aberta na segunda-feira. Não havia ninguém na sala de espera. De Tracy nem sinal.

Por instantes, receou que lhe tivesse acontecido alguma coisa. E se o ocupante do carro tivesse assaltado aquele lugar? Sentiu um nó na garganta só de pensar nisso; ela podia ter surpreendido alguém e esse alguém decidido raptá-la. Correu para a porta da frente e abriu-a de rompante, com o coração a bater aceleradamente.

Não viu carro nenhum. Depois voltou a olhar. Apenas uma bicicleta estacionada no pátio lateral - a sua. Ela tinha-o deixado ali sozinho.

Paul ficou furioso. Gritou por Sam, mas também não houve sinais do gato. Tracy tinha pura e simplesmente decidido ir-se embora e deixá-lo ali. Lembrou-se, então, que não sabia o caminho de volta. No caminho até ao canil, tinha pedalado atrás de Tracy, orientando-se pela mochila vermelha que ela levava às costas.

Pensou telefonar para casa, mas também não sabia o número. Sabia o nome da rua - Hidden Brook Lane. Podia pedir a morada às Informações. Mas não queria admitir sequer que estava perdido. O ódio que sentia por Tracy encheu-o de força. Ela devia ter achado muito divertido pregar-lhe uma partida. Não podia dar-lhe a entender que estava com medo. Havia de encontrar o caminho.

Paul desceu a correr os degraus do edifício e montou na sua bicicleta. Lembrou-se de que tinham virado num sinal que havia ao fundo da subida do canil, à esquerda. Ia começar por aí.

O suor escorria-lhe pelo corpo enquanto procurava o sinal, mas, de certo modo, procurá-lo dava-lhe um certo alívio. Olhou para trás, para o canil, com a sensação de que, ao deixá-lo, deixava também o terrível pesadelo no pátio onde o revivera. Dele restava apenas uma dor de cabeça que não desaparecia nem por nada. Devagar, conduziu a bicicleta pela descida íngreme e virou à direita.

A caixa de cartão continha uma pilha enorme de pacotes de plástico com guardanapos de papel. «Embalagem familiar» lia-se no cartaz, escrito a marcador. «Só 99 c. Para os seus piqueniques.»

Anna encostou o carrinho ao lado da caixa e observou a pilha de guardanapos. Ao olhar para a sucessão de riscas de papel colorido, lembrou-se da sua família, da infância que passara no Michigan. Os passeios em conjunto nos fins-de-semana prolongados, os bolos e os frangos assados. Toda a gente a jogar à malha e a divertir-se, nos longos dias quentes de Verão.

A primeira vez que levou tom ao piquenique anual do Quatro de Julho, ele tinha ficado maravilhado, como um homem sequioso num oásis.

- É isto que eu quero para nós - dissera ele. - Uma família. Uma família como esta.

Anna tremeu de frio na loja quase deserta e com o ar condicionado ligado. Ninguém fazia compras ao domingo, só quando faltava alguma coisa à última hora. Mas Anna resolvera aproveitar o tempo. Tracy e Paul tinham ido ao Abrigo de Animais, os dois juntos, graças a uma feliz ideia de Thomas. tom informara-a de que tinha muito que fazer, quando o deixara no mecânico. Portanto, Anna decidiu aproveitar para despachar as compras.

- Estão a um preço óptimo - disse a mulher gorda de cabelo escuro, sentada atrás da caixa registadora. Tinha estado a observar Anna, que parecia não conseguir tirar os olhos do monte de guardanapos, e presumira que a cliente estava com dificuldade em decidir-se. Anna sorriu-lhe e colocou uma embalagem no seu carrinho, mas percebeu que, no fundo, queria que a mulher achasse que ela tinha uma casa cheia de gente.

Anna empurrou o carrinho e começou a esvaziá-lo para a mulher fazer a conta. A mulher registou os artigos um a um, começando a guardá-los em sacos de papel pardo. Anna olhou através das enormes montras do supermercado, por entre os cartazes a anunciar promoções, para o parque de estacionamento. Quando chegasse a casa, os filhos já lá deviam estar. Ou Tom. À noite tinham a festa dos Stewart. «Vai ser giro», dissipara consigo. Mas no fundo não acreditava muito nisso. com um suspiro, Anna arrumou os sacos de papel no carrinho, atravessou as portas com detectores eléctricos e saiu da loja.

- Não quer comprar uma rifa? - gritou-lhe uma voz à sua esquerda, ao sair da loja. Voltou-se e viu um homem de fboné e camisa azuis, sentado a uma mesa dobrável, acenando com um braço em cuja extremidade havia um gancho, em vez de uma mão. Anna olhou para a garra curva de aço, na qual o sol se reflectia, sempre que o homem a apontava para a pilha de bilhetes brancos que repousava sobre a mesa. - Sorteio a favor dos Veteranos de Guerra. Pode ganhar um automóvel familiar.

O homem ergueu para ela o gancho cintilante, mas Anna olhou para o outro lado.

- Não, obrigada - murmurou, empurrando o carrinho com mais força, para chegar depressa ao carro estacionado junto à rotunda central, a meio da superfície quase vazia.

Encostou o carrinho ao pára-choques traseiro e procurou as chaves na mala de mão. Quando reparou que as suas mãos tremiam, percebeu que o homem do gancho a tinha assustado. Inseriu a chave na fechadura da bagageira e rodou-a.

Mais abaixo, um homem dentro de um carro azul observava-a. Quando Anna levantou a tampa da bagageira, o homem saiu e caminhou na direcção dela. Usava chapéu cinzento e óculos escuros e olhava nervosamente em volta.

Anna tirou o primeiro saco castanho do carrinho e colocou-o na bagageira aberta. Entretanto, o homem já estava ao lado dela, parado.

- Mistress Lange - disse.

Anna endireitou-se e olhou para o homem cadavérico a seu lado. Percebeu logo quem ele era. Abriu a boca, deixando cair o saco que tinha na mão. Quatro laranjas rolaram para a baga geira e uma caixa de cereais caiu de pernas para o ar em cima delas.

- Não grite - disse ele.

Anna olhou para o homem. Ali estava a causa de todos os seus medos: uma figura cadavérica, pálida, de rosto encovado, chapéu de palha cinzento e sapatos polidos. Sabia que não ia gritar. Parecia-lhe que toda a vida esperara aquele encontro. Os seus olhos cravaram-se no rosto do homem que lhe roubara o seu filho.

Rambo acendeu um cigarro e cuspiu um pouco de tabaco que lhe ficara colado à boca. Começou a falar depressa, num tom nervoso.

- Livre-se de desatar aos berros ou coisa do género. Não vou fazer-lhe mal. Nem tenho uma Anna nem nada que se pareça. Só quero falar consigo.

- Sabia que havia de aparecer - disse Anna. Não reconheceu a sua própria voz. Era monocórdica, fria. - Desta vez, não vai levá-lo. Porque eu mato-o primeiro.

Rambo juntou as mãos e ergueu-as no ar.

- Não o quero para nada. Não, nem pensar. Não é por isso que estou aqui. Nada disso. O Senhor encarregou-me de uma missão...

Como se estivesse a despertar de um transe, Anna bateu com a porta da bagageira e começou a caminhar em direcção ao supermercado.

- vou chamar a polícia - disse.

- Não faça uma coisa dessas - gritou Rambo, aproximando-se dela e puxando-a por um braço.

- Largue-me o braço, seu... porco. - Anna tentou libertar-se, enquanto cuspia as palavras, de dentes cerrados, e lhe batia no braço.

Os olhos de Rambo deram a volta ao parque de estacionamento deserto.

- Não, ouça-me. Tenho uma coisa para lhe contar acerca do rapaz - continuava a agarrá-la com dedos que pareciam garras. - Olhe que ainda aparece alguém. Esteja quieta.

Furiosa, Anna voltou-se e olhou Rambo com desprezo. Há anos que aquele homem a torturava à distância. O facto de ele ter um ar fraco e pouco ameaçador ainda a enfurecia mais.

- Não... não... não pense que se vai safar desta vez. com um movimento brusco, Anna deu-lhe um soco no peito e soltou o braço. Afastando-se tropegamente, olhou para todos os lados, procurando desesperadamente um polícia ou um carro-patrulha. O parque de estacionamento estava praticamente deserto e não passava nenhum automóvel.

- Socorro - gritou Anna. - Polícia!

Rambo apanhou-a e voltou a agarrar-lhe o braço.

- Ouça - gritou Rambo. - Esteja calada.

- Solte-me - rosnou Anna. - Socorro! - Os seus olhos vasculharam as imediações.

Agora cambaleavam os dois, unidos pela força do punho de Rambo.

- Ouça o que eu lhe vou dizer - sussurrou o homem, desesperado. - Aquele miúdo corre perigo de vida. Não quer saber porquê?

Anna lançou-lhe um olhar vingativo.

- Nunca vai conseguir aproximar-se dele. Vão acabar por prendê-lo - soltou-se outra vez e voltou a pedir ajuda.

- Não é por minha causa - gritou-lhe Rambo. - Acho que devia ouvir-me. É uma questão de vida ou de morte! Era a sua última tentativa. Sabia que daí a um segundo teria que fugir, da maneira como ela estava a berrar.

Quando se preparava para gritar mais uma vez, Anna reparou nas palavras do homem. Por mais que lhe custasse, cedeu. Hesitou e olhou para ele:

- O que é que quer dizer com isso? - perguntou. A pergunta fê-la sentir-se sem forças, exausta.

- Escute - murmurou ele num tom urgente. - vou contar-lhe tudo. Tenho informações sobre o rapaz de que a senhora precisa de tomar conhecimento. Juro-lhe. Mas preciso de dinheiro. Cinco mil dólares chegam. Depois conto-lhe o que precisa de saber. Agora é consigo.

Anna tremia, esforçando-se por controlar o desejo de cuspir-lhe em cima, mas sem tirar os olhos dele.

- Você é um patife - disse.

- Não estou a mentir, minha senhora. É uma questão de vida ou de morte.

- O que se passa aqui? - Uma voz flutuou na direcção deles, e tanto Anna como Rambo viraram-se, quando o ex combatente do gancho, que estava a vender rifas, avançou na direcção deles, empertigando o corpo numa pose militar.

Rambo percebeu que era tarde de mais para fugir, embora o pânico que crescia dentro de si quase o fizesse urinar pelas pernas abaixo. Olhou para Anna e viu que estava indecisa. O homem aproximava-se cada vez mais. Rambo pegou nas chaves do seu carro, esperando que o velho Chevrolet pegasse à primeira, se fosse preciso.

Anna viu o ex-militar, vermelho de indignação, aproximarse devagar, como se estivesse a caminhar em câmara lenta. Bastava uma palavra sua e Rambo seria detido. Mas no seu íntimo, o instinto venceu a razão e disse-lhe qualquer coisa de alarmante, pavoroso. Rambo não estava a mentir. Falava verdade. E era o único, a única pessoa viva, que acompanhara Paul nos últimos anos e que podia contar-lhe o que se passava.

Imagens do filho desfilaram na sua cabeça: a pele pálida, as dores de cabeça que o faziam gemer, a figura agachada na despensa, Paul trémulo, aflito, atacado de insónia. Talvez estivesse doente. Talvez corresse perigo. Os últimos onze anos, perdidos, encerravam segredos que ela não tinha outra maneira de conhecer.

O ex-combatente estava agora à sua frente, a bufar, furioso.

- Qual é o problema, minha senhora? Este homem está a incomodá-la?

Anna olhou um segundo para o seu salvador. Depois, com uma náusea no estômago, fez que não com a cabeça.

- Não foi nada - respondeu. - Uma pequena discusvão. Não devia ter-me exaltado daquela maneira.

O ex-combatente olhou com superioridade para Rambo, que fitava o alcatrão, com o rosto escondido pela aba do chapéu.

- Se ela voltar a gritar - ameaçou, brandindo o seu gancho - chamo a polícia. Conheço todos os xuis da esquadra. Por isso, toma cuidado.

- Obrigada - disse Anna. - Agradeço-lhe muito ter vindo em meu auxílio.

O ex-combatente grunhiu qualquer coisa, fez uma saudação antes de voltar as costas e regressou ao seu posto, na mesa das rifas.

Anna viu-o afastar-se; depois olhou para Rambo. O negócio ficara fechado entre eles. Rambo tremia.

- Conte-me tudo - ordenou-lhe. - Agora tem que me contar tudo.

Rambo sacudiu a cabeça.

- Quando me der o dinheiro - estendeu-lhe um pedaço de papel. - A morada é esta - disse. - Venha amanhã de manhã e traga o dinheiro. Sem polícias. Só a senhora. A porta estará aberta. Depois de eu me certificar que a senhora está sozinha, apareço e conto-lhe tudo em troca do dinheiro.

- Não posso - disse Anna, com pouca convicção.

- Deixe-se de brincadeiras. A vida do rapaz pode depender disso.

Anna olhou o rosto pálido, manhoso, de Albert Rambo. Aquele traste tinha criado o seu filho como se fosse dele. Era àquele homem que Paul chamava pai. Tentou usar isso a seu favor:

- Ouça - suplicou -, se o Paul corre perigo, seja ele qual for, conte-me o que se passa para eu poder ajudá-lo.

- Vou contar. Basta levar-me o dinheiro.

- Criou-o como um filho. Não se importa com o que pode acontecer-lhe?

- Claro que me importo - respondeu Rambo, afastando-se. Olhou em volta e depois novamente para ela. - Por isso é que vou contar-lhe tudo.

Mas Anna percebeu, enquanto ele se dirigia rapidamente para o seu carro, que isso era completamente mentira.


                             CAPÍTULO 9

Anna limpou as mãos ao pano da loiça e deu uma olhadela ao relógio. Eram quase cinco horas e Thomas ainda não estava em casa. Por um lado, isso punha-a furiosa, por outro, era um alívio. Perguntou a si própria como é que ia esconder o turbilhão que sentia, quando ele chegasse. Quanto menos tempo tivessem que esperar pela festa, melhor.

com o pano que tinha na mão, Anna começou a enxugar o tampo que acabara de lavar. Normalmente, adorava estar na sua cozinha, o seu porto seguro, o centro da casa. Mas, agora, quanto mais olhava em volta mais assustada ficava. Parecia tudo arrumado, cada coisa no seu lugar, contudo, a sua vida estava num caos.

«Não tenhas pena de ti própria», ralhou consigo própria. «Tens que fàzê-lo. De que serve discutires mais o assunto contigo própria?» Thomas tinha-lhe dito, um dia, que não havia nada que ela pudesse fazer para ter Paul de volta. Agora tinha-o de volta e queria protegê-lo. «Quero lá saber do que o Thomas vai dizer quando descobrir», pensou, embora a reacção dele já lhe estivesse a causar alguma apreensão. Podia não lhe contar nada. Podia não arriscar.

Anna ouviu a porta da entrada abrir-se. Foi até à casa de jantar e viu o marido no vestíbulo. Trazia uma grande caixa branca debaixo do braço.

- Desculpa lá o atraso - disse. - O Paul?

- Está lá em cima no quarto - respondeu Anna. «Vai falando», recomendou a si própria. - Está um bocado aborrecido. Pensava que o gato tinha ficado com a Tracy, mas parece que ela também não sabe dele. O gato ainda não voltou. Sabes, ele parece tão ligado ao animal! - Anna endireitou uma pilha de revistas enquanto falava e depois arrancou umas folhas secas de uma planta. - Então e o carro?

- Oh, ficou óptimo - respondeu Tom. - Fui dar umas voltas depois de ir buscá-lo. E fiz umas compras. Comprei-lhe um presente de anos.

- Compraste? Ao Paul?

- Sempre é o dia do aniversário dele...

- Bem...

Thomas olhou-a espantado.

- «Bem» o quê?

Anna mexeu nervosamente as mãos.

- Dei-lhe os parabéns hoje de manhã, mas ele disse que só fazia anos em Outubro.

- O quê?

- Eles inventaram-lhe um dia de anos - respondeu Anna em voz baixa.

Thomas ficou horrorizado.

- Ele não tem culpa.

- Eu sei.

- O que é que compraste? Mostra lá.

Thomas largou o pacote com um gesto de desânimo.

- Um casaco. Achei que dava jeito para a festa dos Stewart logo à noite.

Anna fez um sorriso nervoso.

- Vai lá acima dar-lho. Tenho a certeza de que ele vai adorar.

- Talvez - respondeu Thomas. Observou-a um instante.

- Que tens? Desculpa ter-me atrasado.

- Não tenho nada - disse Anna. - Estava só com medo que te tivesses esquecido da festa. ...

- Queres ver o casaco?

- Quero vê-lo, mas no corpo dele - respondeu. Logo que Thomas começou a subir as escadas, Anna virou

a cara para esconder os seus olhos cheios de lágrimas. Ele tinha-se lembrado do aniversário de Paul, tinha-lhe comprado um presente. Talvez fosse tudo correr bem, afinal. Parecia menos zangado do que nos outros dias. Talvez, depois de tudo passado...

Anna decidiu preparar uma bebida para Thomas, uma bebida de boas-vindas. Foi até ao bar e pegou numa garrafa de gim. Talvez fosse melhor falar-lhe de Rambo, contar-lhe o que tencionava fazer. Encheu um copo com gelo. Pô-lo ao corrente de tudo. Pensativa, acrescentou o gim, sempre a falar consigo própria. Depois abanou a cabeça. Thomas ia querer avisar logo a polícia. Ela não podia correr esse risco. Depois de tudo resolvido, nessa altura contar-lhe-ia tudo.

Anna estava a mexer a bebida, quando ouviu vozes cada vez mais exaltadas e o rock and roll do quarto de Tracy ecoarem pelas escadas abaixo. Depois, uma porta bateu e Thomas desceu furioso. Tinha uma expressão sombria, fechada.

- Não quer - disse Thomas.

- Porquê?

- Quer ir com aquela porcaria de ganga que leva para toda a parte.

- Oh, Tom, lamento.

- Disse-lhe que ou ia de casaco ou não ia. Não o levo a lado nenhum vestido como um pedinte.

- Não lhe disseste isso!...

- Disse. Foi exactamente o que lhe disse. E não estava a brincar.

- Ele tem tanta afeição por aquele blusão! Anda, vem sentar-te e tomar uma bebida.

- vou tomar um duche.

- Não queres isto?

- Não - respondeu e saiu da sala.

Anna voltou a colocar o copo no bar. O gelo começava a derreter e a bebida a ficar aguada. Limpou as mãos à saia, dirigiu-se ao vestíbulo e foi ver se amansava o desconhecido que vivia lá em cima.

A lua cheia parecia uma bolacha de açúcar no céu violeta, grande parte do relvado e do pátio da mansão dos Stewart estava enfeitada com grinaldas de lanternas de papel colorido.

Um trio de homens de smoking tocava jazz no pátio, junto às janelas altas, embora nenhum convidado estivesse a dançar. Grupos de pessoas, elegantemente vestidas, conversavam e riam à luz fraca do anoitecer. Alguns adolescentes, que tinham vindo com os pais, aglomeravam-se junto à piscina, os rapazes a ver se chamavam a atenção das raparigas, que guinchavam quando as Coca-Colas salpicavam os seus vestidos frescos de algodão.

Anna rodava a pulseira que tinha no pulso e olhava para Paul, que, muito tenso dentro do seu casaco novo, estava encostado à porta que conduzia ao pátio. Tracy tinha passado por eles numa correria, cumprimentando os Stewart pelo caminho, para ir ter com o pequeno grupo junto à piscina. Thomas apertava a mão a Edward.

- Não é bonito? - perguntou Anna ao rapaz. Paul examinou o pátio iluminado.

- Devem ser podres de ricos.

Anna sacudiu a cabeça e perguntou-lhe:

- Como te sentes?

- Óptimo - respondeu ele apenas.

Anna viu-o observar, nervoso, as mesas com as suas toalhas brancas, as criadas a passar, a banda a tocar. Percebeu que a vontade dele era voltar para trás, desistir. Anna sentiu um nó no estômago. Não conseguia estar suficientemente descontraída para ajudá-lo. Viu-o endireitar os ombros estreitos, meter as mãos nos bolsos. Não queria empurrá-lo para o meio da multidão. Queria apenas que ele continuasse ali, em segurança, quieto, no meio da multidão.

Anna desviou por um momento os olhos do rapaz e reparou que Thomas os observava, indignado.

- Vamos cumprimentar as pessoas? -- perguntou. Paul deu um pulo e encolheu-se. Nesse instante, íris viu-os. Estava a conversar com uma mulher de feições marcadas e cabelo castanho, curto e ondulado, com um cafetã indiano e uns brincos enormes, compridos, sempre a chocalhar, íris avançou e a mulher do cafetã seguiu-a até ao local onde Paul e Anna se encontravam. Pelas faces coradas e pelos gestos descontrolados de íris, Anna percebeu que ela estava uma pilha de nervos por causa da festa. Teve pena dela, mas, desta vez, sentia-se igualmente nervosa.

- Deves ser o Paul! - exclamou íris, estendendo a mão ao rapaz. - Estou tão feliz por teres vindo! Sou Mistress Stewart.

- Obrigado - disse Paul.

- E quero apresentar aos dois a Angélica Harris. É a minha professora de cerâmica e uma das voluntárias mais preciosas do hospital.

Anna sorriu-lhe e ambas apertaram as mãos com firmeza.

- É uma excelente professora, íris mostrou-me algumas das peças lindíssimas que fez.

A professora sorriu, mostrando uns dentes da frente muito separados.

- Bem, é a minha aluna mais talentosa.

íris corou e sorriu. Nesse momento, Edward apareceu e aclarou a garganta. Olhou, horrorizado, para o vestido extravagante da professora de cerâmica e virou-se, muito direito, para a mulher:

- íris - disse com um sorriso amarelo, - espero que não descures os outros convidados.

íris empalideceu e olhou para os seus punhos cerrados.

- Desculpem-me - interveio Angélica, compreendendo onde Edward queria chegar. - vou dar uma volta.

Só Edward sorriu depois de ela partir.

- Obrigada pelo convite - disse Anna -, e por ter levado tom e Paul ao golfe, ontem.

Edward baixou a cabeça, parecendo ligeiramente incomodado.

- O prazer foi todo meu. Paul, não queres ir ter com os outros jovens que estão naquela mesa? Parecem muito divertidos - sugeriu Edward, apertando as mãos atrás das costas.

- Pode ser - concordou Paul com pouco entusiasmo, fitando, ansioso, os adolescentes que riam junto à piscina. Anna pôs-lhe uma mão no ombro, mas tirou-a logo que ele a sacudiu. Queria interceder por ele, mas sabia que não podia dizer o que lhe ia na cabeça: «Ele tem que ficar ao pé de mim. Tenho de vigiá-lo permanentemente. Pode correr perigo.» Pela centésima vez perguntou a si própria que quereria Rambo dizer com aquelas palavras. Estaria Paul doente? Lembrou-se outra vez das dores de cabeça dele, da sua sonolência, naquele dia. Talvez fosse melhor levá-lo ao médico e esclarecer o assunto de uma vez por todas. E se as informações importantes de Rambo fossem sobre a saúde de Paul? Por outro lado, podiam não ser. Talvez fossem sobre uma vingança. De um amigo de Rambo ou da mulher. Já tinha considerado todas as hipóteses, agora só lhe restava esperar. Pela manhã seguinte. Olhou para a nuca de Paul à sua frente. Apeteceu-lhe acariciar o seu cabelo. Não acreditava que alguém quisesse fazer-lhe mal. Ao pé dela, estava seguro. Sentiu o peso do olhar de Thomas e tentou manter-se calada.

Paul enterrou ainda mais as mãos nos bolsos. Estava em pânico, mas esforçou-se por disfarçar.

- Se não me engano - disse íris -, Paul ainda não conhece a nossa casa. Queres que eu ta mostre, Paul?

Paul avaliou a proposta, que lhe permitia evitar ir ter com Tracy e os seus amigos, e decidiu-se a favor dela. - Pode ser - concordou.

- íris - disse Edward -, mal trocaste uma palavra com os nossos convidados. Não achas que está na altura de tratares disso em vez de te meteres dentro de casa?

- Ah, ninguém vai dar pela minha falta. Quero dizer, prometi ao Paul que ia...

Edward estudou o rapaz nervoso com um olhar crítico.

- Vai andando. Eu mostro a casa ao Paul.

Paul estremeceu ao perceber quem seria afinal o seu guia, mas agora não havia nada a fazer. Espreitando Anna pelo canto do olho, seguiu Edward, que começara a caminhar em direcção à casa.

Um convidado passou e dirigiu a palavra a íris, que se voltou com um sorriso forçado. Thomas juntou-se a Anna, que via o filho desaparecer na companhia de Edward. Pôs-lhe uma mão no ombro, assustando-a.

- Estás muito assustadiça hoje - disse.

- Estou preocupada com Paul. Acho que se sente deslocado - apressou-se a explicar Anna.

- Pelos vistos, Edward levou-o numa visita guiada à mansão. Uma tarefa pouco digna do senhor do castelo, não achas?

- Talvez goste do rapaz - respondeu Anna, defendendo-o. - Quis ser simpático.

Thomas levantou as mãos.

- Desculpa lá se ofendi.

- Tens razão. Não queria embirrar contigo.

- Hum...

- Achas que ele se importa? - perguntou Anna.      

- De quê?

- O Edward. De ter que ir mostrar a casa ao Paul. Thomas fez que não com a cabeça.

- Não sei. Provavelmente adora. Um ouvinte submisso a quem se pode gabar de tudo o que possui. Deve ter pena é que o miúdo não imagine a fortuna que ali está. Mas, pensando melhor, o Edward é pessoa para dizer quanto cada coisa custou, com muita subtileza, claro.

- Thomas Lange, estás a ser antipático - repreendeu Anna com um sorriso.

- Mas é a verdade.

íris chegou nesse instante e estendeu a Anna o copo de martini que trazia na mão.

- Achei que querias um. Anna agradeceu-lhe a bebida.

-Anna - disse íris -, ele é um miúdo encantador.

- Foi tom que lhe comprou o casaco que ele tem vestido

- disse Anna, virando-se para o marido.

- Fica-lhe muito bem. Aposto que adorou.

- Bem.... - disse Anna.

- Dão-me licença? - perguntou Tom. - vou buscar outra bebida.

íris olhou para a amiga de sobrolho levantado.

- E tu como estás? Isto está a ser difícil para ti. Pareces enervada.

- Estou cansada - respondeu Anna -, é só isso. E tens razão. É difícil.

- Não soubeste mais nada daquele homem, o Rambo? Anna sobressaltou-se e quase entornou a bebida.

- Não, não. Ainda não.

- Hão-de apanhá-lo - afirmou íris num tom persuasivo.

- Não vale a pena preocupares-te.

- Eu sei - respondeu Anna, fitando o copo que estremecia na sua mão.

- Pobre Paul - disse íris, olhando para a casa. - Espero que não esteja muito aborrecido a ouvir a história toda da casa.

- Edward tem sido muito simpático com ele - respondeu Anna automaticamente. Lembrou-se outra vez do que a esperava na manhã seguinte. Aquela noite parecia-lhe interminável.

- Este é o meu quarto - disse Edward, indicando uma porta fechada no vestíbulo do primeiro andar. Abriu a porta e Paul espreitou o quarto escuro, com pesados cortinados, mobílias antigas e uma poltrona de couro a um canto.

Edward, que não tinha tirado a mão da maçaneta, voltou a fechar a porta.

- E este é o de Mistress Stewart - explicou, quando passaram por um quarto com paredes pintadas a casca de ovo e estofos de chintz às flores. A cama tinha um dossel.

Paul nunca tinha ouvido falar em pessoas casadas com quartos separados, mas concluiu que era um costume dos ricos.

- Esta cama tem um telhado - observou. - Dá jeito quando chove.

Edward fitou o rapaz sem sorrir e Paul lamentou imediatamente ter arriscado uma piada. Das janelas abertas chegavam gargalhadas e música; a estranha festa, de repente, pareceu-lhe infinitamente preferível àquele passeio pela casa dos Stewart. Edward, porém, não reparou no ar enfastiado de Paul.

- Naquele corredor ficam os quartos e as casas de banho de hóspedes - disse Edward. - Agora anda cá, para veres aquilo de que mais me orgulho.

Obediente, Paul entrou atrás de Edward na casa de banho e espreitou pela janela. Olhou para onde Edward estava a apontar, mas só viu escuridão e silhuetas de árvores.

- O meu moinho de vento - declarou Edward radiante. Reparou na expressão perplexa do rosto de Paul. - Se calhar não consegues vê-lo, assim às escuras. Mesmo de dia mal se vê. Fica um pouco longe e as árvores encobrem-no. O melhor é eu levar-te lá.

Paul olhou para trás quando começaram a descer as escadas.

- A casa é muito bonita - disse.

- Obrigado, Paul - agradeceu Edward que seguia atrás dele, rodando a aliança no dedo. - Vinhas cá muitas vezes quando eras pequeno. Não te lembras?

Paul fez que não com a cabeça.

- Não me lembro de alguma vez ter entrado numa casa tão grande como esta. Aliás, não me lembro de nada desse tempo.

- É normal - disse Edward num tom apaziguador, conduzindo Paul pelos longos corredores do rés-do-chão -, foi há bastante tempo. Agora, cuidado com esse degrau, vem atrás de mim.

Os dois saíram para a escuridão da noite e contornaram a festa.

Paul seguiu Edward por uns socalcos junto à parede lateral da casa e, depois, subiram uma rampa de relva. Lamentou não ter uma lanterna para ver o caminho, mas Edward parecia conhecê-lo de cor e seguia sem tropeçar, sem se enganar. Paul manteve-se o mais perto dele possível, embora uma ou duas vezes tivesse enfiado o pé por baixo de uma pedra ou ficado com o pescoço preso num ramo baixo. Olhou para trás, para a pequena ilha de luz e som onde a festa se desenrolava, e hesitou.

Edward voltou-se e olhou para ele.

- Anda - disse.

Paul continuou a segui-lo, vendo com atenção onde punha os pés, até que Edward estendeu um braço para lhe indicar que parasse.

- Chegámos - avisou Edward.

Atrás das árvores, erguia-se uma estrutura forte, em forma de obelisco, com a silhueta das enormes pás sublinhada pela luz ténue do quarto crescente. As paredes exteriores do edifício estavam cobertas de tábuas escuras e irregulares. As minúsculas janelas eram buracos abertos aos lados.

Edward caminhou até à porta, abriu-a de rompante e car•iregou num interruptor. Uma pálida luz amarelada aqueceu a entrada e coloriu as vidraças das janelas.

- Bem-vindo à minha oficina - disse, convidando Paul a entrar.

Paul passou por Edward, que permaneceu à soleira da porta. Estava silencioso lá dentro e Paul piscou os olhos para se habituar à pouca claridade. Esfregou as pálpebras com a mão e olhou em redor da sala sextavada que constituía a base do moinho. Fazia mais frio no interior do que no exterior. Edward caminhou até à bancada, que ocupava uma das seis paredes, e acendeu um candeeiro que havia por cima. A bancada era uma catacumba de gavetas e compartimentos, cada um com um sortido completo de porcas, parafusos, pregos. O pouco espaço livre no chão estava impecavelmente limpo, e uma pilha ordenada de pranchas de contraplacado ocupava um canto. Livros, ferramentas, lixas e pequenas peças de barcos estavam cuidadosamente organizadas em áreas separadas, nas prateleiras que forravam as paredes. Uma quantidade de modelos de barcos, em vários estados de adiantamento, perfilavam-se orgulhosamente no topo de uma estante construída numa das paredes do moinho. Paul olhou para cima e viu que o soalho de madeira do piso superior fazia de tecto daquele. A escada que conduzia a essa espécie de galeria estava encostada a um dos lados e cercada, na parte superior, por revistas sobre barcos e latas de tinta. Edward olhou com ternura a oficina bem arrumada.

- É aqui que estou a criar a minha frota - disse. Paul sentiu um medo repentino perante a impassibilidade

de Edward, o seu olhar penetrante. Afastou-se dele e aproximou-se da porta.

- Bem, muito obrigado por me mostrar isto - agradeceu.

Edward olhou-o com uma expressão estranha. Depois, avançou até meio da sala. - Dá uma vista de olhos - disse. - Não tenhas pressa.

Ao fim de um segundo de hesitação, Paul começou a caminhar por entre a tralha espalhada pelo chão. Edward fechou a porta do moinho. Olhou para o rapaz, quando este parou a admirar os barcos.

- Tem uma data de barcos.

- Senta-te - disse Edward, indicando uma cadeira. Paul sentou-se, olhando em redor. Parecia arrumado de mais para local de trabalho, pensou, mas via-se que Mr. Stewart gostava de ter tudo no lugar. Estremeceu sem querer.

- Tens frio? - perguntou Edward, encostado à bancada.

- Isto é gelado - disse Paul.

- É do chão de pedra - explicou Edward. - Tenho que trazer para aqui uns tapetes.

Paul sentiu-se cercado, sentado na cadeira com Edward a ocupar praticamente todo o restante espaço disponível. Como era possível ele gostar daquele moinho tão atravancado!

Do tampo da bancada das ferramentas, Edward tirou um bocado de seda de um monte bem dobrado de retalhos brilhantes e coloridos. Desdobrou-o e mostrou-o a Paul.

- Isto - disse Edward -, é um estai para aquele veleiro que está ali. - Apontou para um modelo grande e delicado, com um convés de madeira dourada e um casco branco e luzidio. - Cosi as bainhas naquela máquina. - Paul olhou para a velha máquina de costura Singer quase escondida a um canto.

- Sabe coser? - perguntou Paul, rindo nervosamente ao imaginar Edward sentado à máquina.

- Claro que sei - respondeu Edward. - Olha esta. Sete cores diferentes numa só vela.

Paul estendeu o braço para a vela que Edward segurava na mão. O tecido escorregadio enganou-o e a vela foi parar ao chão. Edward dobrou-se para apanhá-la.

- Eu apanho - ofereceu-se Paul, levantando-se da cadeira e ajoelhando-se para pegar na vela, que caíra aos pés de Edward. Pôs a mão em cima da vela, debruçado sobre a biqueira dos sapatos de Edward. Edward continuava de pé e a silhueta alta tapava a luz por cima da bancada, projectando uma sombra sobre o corpo acocorado do rapaz.

Paul tentou endireitar-se, mas sentiu uma tontura. Dobrou o corpo para a frente. Um clarão surgiu na sua cabeça e o fragmento de uma imagem formou-se nas suas pálpebras. Uma águia dourada levantou voo de uma nuvem escura e esvoaçou na sua direcção, de garras esticadas em frente e olhos gélidos, cruéis. Paul tapou o olho direito com a mão trémula. Ficou branco como a cal.

Edward tinha os olhos cravados na cabeça inclinada do rapaz. Perguntou, com uma nota de preocupação na voz:

- Que se passa? Sentes-te mal? Paul sacudiu a cabeça:

- Não sei.

Edward inclinou-se e estendeu a mão para o rapaz se apoiar.

- Não - gritou Paul, fugindo dele. Na sua pressa, deu um encontrão na mesa onde estava o veleiro branco. O modelo oscilou e acabou por tombar. O delicado cordame desfez-se, mal o barco atingiu o chão de pedra.

Paul conseguiu equilibrar-se, respirando com dificuldade. Olhou para o barco, mas, por momentos, parecia não estar a vê-lo, nem a perceber o que tinha acontecido.

Edward continuava no mesmo lugar, imóvel, com a pálpebra esquerda a tremer, dissecando o rapaz com o olhar.

- Que pena - murmurou, por fim.

As palavras pareceram despertar Paul, que olhou, apavorado, para o veleiro destruído.

- Desculpe - disse. - Desculpe.

Edward passou a língua pelos lábios, sem tirar os olhos do barco todo partido aos seus pés.

- Era um modelo único - disse em voz baixa. - Tinha sido feito por encomenda, para mim.

- Desculpe - tornou o rapaz, virando para Edward os seus olhos assustados. - Foi sem querer.

Os olhos cinzentos de Edward não tinham expressão, pareciam pregos.

- Foi falta de cuidado da tua parte - disse, fitando o rapaz. - Não tens desculpa.

- Eu sei, desculpe - repetiu Paul, desesperado. - Já me posso ir embora?

Edward avançou até à porta, abriu-a e fitou a escuridão.

- Se quiser, eu pago o arranjo - propôs o rapaz, aflito. Edward virou-se e olhou-o um instante. Paul sentiu outra dificuldade em respirar.

- Podes esquecer o que aconteceu - disse Edward com voz de quem não tinha esquecido nada.

- Obrigado - balbuciou o rapaz, avançando para a porta correndo em direcção ao clarão de luz por detrás do pátio.

- Já lá vou ter - disse Edward. Viu o rapaz desaparecer, depois voltou a olhar para o seu barco desfeito, caído no meio do chão. Pôs-se de cócoras e começou a recolher cuidadosamente cada estilhaço.

Em vez de pânico e confusão, o que Paul sentia agora era a cabeça a latejar. Cada vez que pousava um pé, a intensidade da dor aumentava. O estômago ardia-lhe, mais quando a dor de cabeça era maior, e teve de suster a respiração para evitar o vómito. Chegou ao local da festa e hesitou, sem vontade de se juntar à multidão de desconhecidos. A luz das lanternas queimava-lhe os olhos.

Ao fundo do pátio, íris espreitou para a escuridão e viu o rapaz de pé.

- Paul - chamou. - Ah, estás aí. - Foi ter com ele a sorrir. - Edward mostrou-te a casa?

Paul fez que sim com a cabeça. Os seus olhos procuraram Anna. Só queria vê-la, ir ter com ela, pedir-lhe que o levasse para casa. Pensou perguntar por ela a íris, mas não sabia que nome utilizar. Não havia meio de conseguir tratá-la por «mãe».

íris apontou para a festa.

- Porque é que não vais sentar-te ao pé dos outros e comer alguma coisa?

com relutância, Paul deixou-se conduzir a uma mesa toda ela ocupada por adolescentes. Sentiu o cheiro da marijuAnna assim que se aproximaram, mas íris pareceu não dar por nada. Indicou-lhe uma cadeira na qual ele se sentou.

- Vou pedir a uma criada que te traga o jantar - disse. Paul sorriu mecanicamente a íris. Pelo canto do olho viu que Tracy o observava.

- Diverte-te - aconselhou íris; depois deu-lhe uma palmadinha no ombro e desapareceu. Paul acenou com a cabeça, mas esta latejava com dores.

Tracy inclinou-se sobre a mesa e olhou-o com um ar intrigado:

- Onde é que estiveste?

- Dentro de casa. com Mister Stewart.

Tracy disse qualquer coisa em voz baixa aos amigos, que desataram a rir às gargalhadas. Paul tentou ignorá-los. Uma criada colocou um prato de comida sobre a mesa, em frente de Paul.

Paul olhou para o bocado de peixe cor-de-rosa.

- Que é isto?

- Salmão - respondeu Tracy. - Nunca comeste? Paul abanou a cabeça.

- Não tenho fome. - Tentou não olhar para o peixe, mas bastou o cheiro para se sentir ainda mais tonto.

- Prova isto - disse Tracy, tirando uma reluzente fatia da carne assada que estava escondida por baixo do tampo da mesa -, deves estar com fome.

Uma rapariga bonita, de cabelo castanho e vestido às riscas cor-de-rosa e branco, que estava sentada ao lado de Tracy, rompeu às gargalhadas e tapou a boca com as mãos.

- Não quero - repetiu Paul, empurrando o prato de salmão para o lado, colocando-o fora do seu campo de visão.

- A Mary Ellen quer perguntar-te uma coisa - declarou Tracy com ar manhoso.

Paul encrespou-se e fitou as duas raparigas. A das riscas cor-de-rosa começou a rir e Tracy beliscou-lhe o cotovelo.

- Vá lá - ordenou Tracy, - pergunta-lhe. Ondas de dor percorriam-no agora e sentia os olhos a arder. Mal conseguiu distinguir o rosto da rapariga.

- Tu já... - Mary Ellen desatou a rir até ficar lavada em lágrimas. j

- Grande estúpida, Mary Ellen - disse Tracy, dando uma cotovelada na amiga. Paul sentiu-se embaraçado, mas tinhã decidido mostrar-se impassível diante de tudo o que pudesse vir a suceder.

- Tu já... - gritou ela, mas teve novo ataque de riso.

- Oh, cala a boca - disse Tracy -, e deixa o Paul comer o salmão. - Deu um empurrão ao prato, que foi embater no braço de Paul, projectando o peixe para cima do casaco novo. As duas raparigas desataram a rir descontroladamente, mas a Paul o som das gargalhadas parecia muito distante, tal era a dor que martelava na sua cabeça. Paul pegou no peixe, que achou gelado e escorregadio. Antes de mais nada, precisava de ver-se livre daquele cheiro pestilento. Atirou-o para longe e pôs-se em pé num pulo. De repente, sentiu uma estranha leveza nos membros e começou a ver tudo manchado de preto. Percebeu que tanto Tracy como a amiga não tiravam os olhos dele, mas pareciam cada vez mais longe e a escuridão formava uma nuvem que descia, subia, depois não o deixava ver nada. Caiu ao chão, arrastando consigo uma cadeira.

Tracy gritou e toda a gente que estava perto abriu a boca de espanto. O zumbido das conversas foi substituído pelo murmúrio ansioso das pessoas que se aglomeraram em torno do rapaz desmaiado. Paul recobrou os sentidos no meio da multidão preocupada, sentindo-se sem forças, exausto. Tentou arrastar-se para a cadeira sem olhar para os rostos que o rodeavam. Sentia-se cercado por todos aqueles corpos quentes, sufocado. Estava preso, sem perceber o que lhe tinha acontecido.

De repente, Anna apareceu a seu lado e agarrou-lhe com força os ombros.

- Paul - chamou.

- Desmaiei - respondeu o rapaz, erguendo os olhos para Anna.

Galvanizada por aquela expressão aflita, Anna não perguntou mais nada.

- Já passou - disse num tom firme às pessoas que estavam em volta. - Está tudo bem. Vamos embora - decidida, ajudou-o a pôr-se de pé. - Deixem-nos a sós. - Paul cambaleou a seu lado. Thomas deu um passo na direcção deles, depois parou. Anna estava muito longe dele e a situação parecia controlada.

- Vamos embora - disse Ana. Voltou-se para íris, que sacudia a cabeça, preocupada. - Lamento muito, íris. Eu depois telefono.

Abriu caminho entre os convidados e Paul seguiu-a, às cegas, com o seu rosto jovem desfigurado, terrivelmente pálido.

 

                                     CAPÍTULO 10

Edward passeava-se pelo relvado da sua propriedade. As lanternas japonesas já tinham sido apagadas e os empregados arrumavam o que restava da festa, iluminados apenas pelos focos do terraço e da piscina.

Edward vislumbrou íris, fora do alcance dos focos. De quimono às flores e chinelas, comia um bolo recheado de creme, retirado de uma travessa que ainda se encontrava sobre uma das mesas do bufete.

Quando viu Edward aproximar-se, parou e voltou a arrumar o bolo no local de onde o tinha tirado. Edward lançou-lhe um olhar furioso e descarregou a sua raiva sobre uma das mulheres que levantavam a mesa.

- Levem essa comida para dentro imediatamente - ordenou. - Não sabem trabalhar mais depressa?

Surpreendida, a mulher correu a buscar a travessa. Edward voltou-se então para íris:

- Bem - disse -, espero que estejas satisfeita. - com quê? - perguntou íris, espantada.

- A festa foi um verdadeiro desastre.

- Não concordo. Achei que estavam todos muito divertidos.

- A cena que aquela criança fez estragou tudo. Foram-se todos embora.

- Coitado do miúdo. Senti pena dele. Ficou tão embaraçado.

Edward resfolegou:

- Eu é que fiquei embaraçado. Fui humilhado diante dos meus convidados.

- Tenho a certeza que todos compreenderam - sugeriu timidamente íris.

- Não percebo porque é que convidaste aquela gente.

- Qual gente?

- Os Lange, íris. Não são do nosso nível. Estavam completamente deslocados. E conseguiram estragar a festa.

- Edward, não tens razão. São nossos amigos. Edward afastou-se, exasperado, íris ficou indecisa, brincando com o cinto do quimono.

- Acho que vou para a cama - anunciou.

- E quem era - perguntou Edward, às voltas -, aquela mulher de cafetã? Que raio estava ela aqui a fazer?

Incomodada, íris baixou os olhos:

- Convidei alguns voluntários do hospital. Ela é a minha professora de cerâmica. Trabalha no hospital, a ajudar as crianças.

- Aquele seu traje era um verdadeiro pavor. Parecia uma mulher do circo.

íris suspirou:

- Estou muito cansada,-Edward. Boa noite.

- Não voltas a convidá-los. Nenhum deles.

- Boa noite, Edward.

- vou até ao moinho, trabalhar um bocado. Para relaxar - anunciou Edward.

- Ah! - disse íris, supreendida por ele lhe ter comunicado a sua decisão -, boa ideia.

Edward viu-a entrar em casa, com o roupão a abanar como uma peça de roupa estendida na corda. Não podia ser menos graciosa, pensou. Tinha sido sempre assim, mesmo quando era mais nova.

Recordou o dia em que a conheceu, numa festa muito parecida com aquela. Uma festa dada por um advogado muito rico, de uma das melhores famílias de Nova Inglaterra, uma homenagem a todas as pessoas que tinham trabalhado na sua vitoriosa campanha para as eleições primárias do Senado. Ecl ward colaborara na campanha, na mira de conhecer pessoas importantes que pudessem ser de alguma utilidade na sua carreira. A sua ideia viria, porém, a revelar-se um fracasso. Passou o tempo todo a fazer de moço de recados e, no dia da festa, ainda não tinha conseguido um único bom contacto.

Estava irritado, nessa noite, sentia-se frustrado ao ver que, tal como sucedera em Princeton, aqueles nobres não o consideravam um deles. Só reparou em íris porque esta estava atrás da taça de ponche, vestida de escuro, sem gosto. Pensando que fosse uma criada, pôs-se na fila e foi ficando cada vez mais enervado com a forma lenta e desajeitada como ela servia a bebida. Quando chegou a sua vez, ela estendeu-lhe, sem reparar, um copo rachado. Edward ia perdendo a cabeça. Convenceu-se de que aquela criada pindérica lhe tinha destinado, de propósito, o copo em pior estado. Pegou nele, preparando-se para despejar o líquido vermelho em cima dela e atirar o copo para cima da mesa, quando o convidado que se encontrava atrás de si perguntou a íris se achava que o pai teria hipóteses de vencer a corrida para o Senado. A pergunta salvou-o de um gesto desastroso e, aos seus olhos perspicazes, íris passou imediatamente de sapo a herdeira.

No cômputo geral, casar com ela tinha sido um passo acertado, pensou. Passava a vida a embaraçá-lo, mas o seu apelido tinha muito peso na sociedade e a fortuna do sogro ajudara-o a pôr em marcha os seus negócios. O resto era mérito dele.

Agora tinha tudo, tudo aquilo com que sonhara e que lhe faltara na infância. Era um homem importante, rico, poderoso. Tudo conseguido com o seu sacrifício.

Uma das criadas veio tirar a toalha que estava na mesa do bufete.

- Já não era sem tempo - murmurou Edward. - E levem a comida toda que sobrou. - Pelo menos, íris não teria com que se empanturrar antes de ir lá para as termas.

Respirou fundo. Era um desperdício de energia pensar em íris quando tinha tantas coisas mais importantes na cabeça. A noite ainda lhe reservava uma tarefa difícil; pensou nela com uma certa ansiedade, mas com uma enorme dose de entusiasmo.

Os empregados começavam a sair do pátio. Estava quase na altura, pensou, de ir ao moinho buscar o equipamento de que necessitava para essa noite.

Tinha passado a tarde frente ao Motel La-Z Pines, contudo fora recompensado quando, às quatro e meia, viu Rambo chegar ao volante de um Chevrolet azul, a cair aos bocados. Anotou o número do quarto e depois voltou para o seu automóvel, que escondera ao cimo da rua. Agora, era só pegar no material necessário, esgueirar-se dali para fora e dirigir-se ao motel. Naquela noite, ia acabar de uma vez por todas com o problema chamado Albert Rambo.

Thomas espreitou pela janela das traseiras e viu a silhueta do rapaz sentado na cadeira de balouço, de ombros caídos, às escuras.

- Continua ali sentado.

com um suspiro, Anna espreitou também. - Não sei o que hei-de fazer.

- Se calhar, o melhor é não fazermos nada - disse Thomas.

Tracy entrou na cozinha e tirou uma pêra do frigorífico. Esfregou-a no roupão e deu uma dentada. Anna sacudiu a cabeça.

- Ele está muito transtornado. Se lhe tentássemos falar...

- Acho que devíamos deixá-lo em paz. Faz-lhe bem apanhar ar, e é possível que não lhe apeteça falar agora. Se calhar apetece-lhe estar sozinho.

Anna pareceu nem ouvir a sugestão. Virou-se para Tracy, que estava sentada à mesa da cozinha a comer a sua pêra e a olhar para o vazio.

- Tracy - perguntou -, o que é que aconteceu na festa?

- Nada. Porquê? Estávamos todos na brincadeira e, de repente, ele levantou-se e desmaiou.

- «Na brincadeira» como?

- Nada - gritou Tracy. - No gozo. Anna mordeu o lábio:

- Importas-te de ir falar com ele?

- Eu? Porquê eu?

- Talvez o ajude.

Tracy fez que não com a cabeça.

- Não me parece.

- Tracy, fazes-me esse favor? Peço-te. Por mim! Tracy encolheu os ombros.

- Está bem, mas não sei...

- Obrigada, querida.

Tracy abriu a porta das traseiras e saiu para a escuridão. Aguardou um instante, até os seus olhos se habituarem ao escuro. Depois dirigiu-se a Paul. Parou a uns metros dele, à espera que ele desse pela sua presença. Mas o rapaz não reagiu.

Não sabia o que fazer para chamar a sua atenção. Nos filmes, as pessoas tossem sempre quando querem que alguém repare nelas. Decidiu experimentar. Tossiu. Paul continuou a ignorá-la. Só lhe restava abordá-lo directamente.

- Não achas melhor ires para dentro? Já é tarde.

- Não - respondeu Paul num tom gelado, olhando a paisagem nocturna.

- A mãe está preocupada contigo. Porque é que não vais para casa?

Paul nem respondeu.

- Olha, estávamos só a brincar, lá na festa. Não sabíamos que estavas doente. Devias ter dito qualquer coisa.

Tracy olhou para trás, para a casa. Viu a sombra de Anna à janela da cozinha, a observá-los. Suspirou e fez nova tentativa.

- Sabes, calculo que, com o desaparecimento do teu gato e essas coisas todas, deves estar muito em baixo. Mas porque é que não vais para a cama agora? Se quiseres, amanhã ajudo-te a procurá-lo.

Lentamente, Paul levantou-se e olhou para Tracy. Esta começou por sentir-se feliz, vendo que tinha cumprido com êxito a sua tarefa. Depois, reparou na expressão furiosa dele.

- O que é que tu lhe fizeste?

Tracy franziu a testa e recuou um passo, apertando com força o cinto do roupão.

- O quê?

- Que é que fizeste com o Saml Onde está ele? Tracy sacudiu a cabeça.

- Fizeste-lhe alguma coisa. Eu sei.

- Que mentira mais estúpida - respondeu Tracy, de dentes cerrados.

Paul deu um passo em frente, ameaçador. -Tu e os teus amigos devem ter rido às gargalhadas. Tracy empertigou-se:

- És mesmo um parvalhão. Eu não me rio dessas coisas.

- Sou um parvalhão, é? - Paul virou-lhe as costas e voltou para a cadeira. - Então vai-te embora. Deixa-me em paz.

Tracy hesitou, espantada com as acusações dele. Depois, aproximou-se da cadeira, retendo as lágrimas que sentia prestes a romperem.

- Estás a ser mesmo um bebé. A deitar as culpas para cima de mim. Não tenho nada a ver com a fuga do teu gato.

Paul continuava de costas para ela, fitando a distância.

- Cala a boca - disse. - Vai-te embora.

O rosto de Tracy ficou vermelho e, investindo na direcção dele, deu-lhe um soco no ombro com tanta força que a cadeira desatou a balouçar.

- Não tenho culpa nenhuma! - gritou.

Paul saltou da cadeira, agarrou-lhe um pulso e olhou-a de frente:

- Não me toques - avisou.

- Não fiz nada - gritou Tracy, de olhos cada vez mais abertos, enquanto ele a ameaçava com a mão livre. - Larga-me.

Paul sacudiu-a e largou-lhe o pulso. Inesperadamente, soltou um gemido. Agarrou a cabeça com as mãos, caindo de joelhos. Abriu a boca, tentando respirar e, para surpresa de Tracy, caiu ao chão. A porta das traseiras bateu e Anna apareceu a correr.

- Mas o que é que se passa? - perguntou, aos berros. Porque é que estão os dois à bulha?

Tracy olhou desvairada para a mãe, enquanto Paul se inclinava para a frente e para trás, agarrando a cabeça com as mãos.

- Só lhe dei um murro. Ele estava a magoar-me o braço.

- Vai já para dentro - disse Anna a Tracy, inclinando-se para Paul.

- Ele disse que me fartei de rir com a perda do gato - gritou Tracy, fitando o rapaz que se contorcia no chão.        

- Que foi? - perguntou Anna ao filho. - Conta-me o que aconteceu.

- A minha cabeça - gemeu o rapaz.

- Mas eu nem lhe toquei na cabeça - insistiu Tracy.

- Vai lá para dentro, Tracy - ordenou Anna. Tracy afastou-se assustada.

- Deixa-me ajudar-te - implorou Anna. Pôs um braço por baixo dos braços dele e levantou-se, puxando Paul para cima.

- Anda. Vamos ao hospital.

- Não - gritou o rapaz. - Hospitais, não. - Tentou libertar-se dela.

- Está bem - disse Anna, enquanto pensava no que poderia fazer por ele. Encostou a mão fria à testa de Paul, que avançava, coxeando, encostado a ela.

- Quero ir para a cama.

- Está bem - anuiu ela. - Está bem. Vamos para casa. Atravessaram a relva macia e chegaram à porta. O ar estava

cheio do canto dos grilos e de outros barulhos suaves, típicos das noites de Verão. Anna sentia o filho estremecer nos seus braços.

- Eu ajudo-te - disse.

- Já estou melhor - declarou Paul e ambos subiram devagar os degraus que conduziam à porta.

Adormeceu assim que pousou a cabeça no travesseiro. Anna sentou-se aos pés da cama, vendo-o adormecer, sem qualquer cor no rosto magro, por causa da dor de cabeça. A boca continuava aberta, como se ele lutasse por respirar, e o luar enchia-lhe o rosto de sombras e covas. Tinha as mãos destapadas, abertas, fracas, desesperadas. Uma película de transpiração cobria-lhe a testa e os lábios.

«Está doente», pensou Anna. Tem algum problema grave. Era a isso que Rambo se referia. Por mais que tentasse, não conseguia deixar de pensar no pior. Um tumor cerebral. Um cancro qualquer. Não havia outra explicação.

Pensou que talvez fosse melhor, no dia seguinte, pegar no miúdo, levá-lo ao médico e não perder mais tempo com Rambo. Agora, parecia-lhe claramente óbvio que Rambo estava ao corrente da sua doença, que era disso que lhe queria falar. Um médico faria provavelmente um diagnóstico num minuto. Mas a ideia de que Rambo podia ter informações vitais não a largava. Afinal, o rapaz crescera em casa dele. Talvez tivesse sofrido uma lesão, tomado drogas, qualquer coisa. Tinha de descobrir o que é que Rambo sabia. Se lhe perdesse o rasto, ficaria toda a vida na dúvida. Os pensamentos corriam em volta do espírito de Anna como um cão atrás da própria cauda. Não queria perder um tempo precioso com Rambo, quando o filho podia estar doente, precisar de ser hospitalizado. Mas era a única hipótese que tinha de saber o que se passava. Tentou controlar-se. «Faz o que tinhas planeado», disse para consigo. «Coragem. Amanhã ficas a saber.»

Apetecia-lhe contar tudo a Thomas. Mas se o fizesse, ele não a deixaria ir. Não, faria tudo sozinha. Anna levantou-se com cuidado da cama de Paul. Finalmente, o ritmo da sua respiração era normal. Abriu a porta e saiu. Voltou a fechá-la sem fazer barulho e desceu as escadas.

Quando passou pelo quarto de Tracy, reparou numa nesga de luz por baixo da porta. «Ainda está acordada, a estas horas», pensou. Ouviu um barulho, o ruído de alguém que respirava com dificuldade. Anna hesitou. Depois, pôs a mão na maçaneta e rodou-a devagar. Abriu a porta e espreitou.

O minúsculo candeeiro de leitura projectava um círculo de luz no chão do quarto às escuras. Tracy estava sentada na área do círculo. De cabeça baixa, abraçava uma boneca vestida de branco. Anna olhou atentamente e o seu coração deu um pulo, quando viu que a boneca estava vestida com o fato de baptizado de Paul, a touca, as botinhas de cetim. Os ombros de Tracy estremeciam, enquanto ela embalava a boneca que tinha ao colo.

- Tracy - sussurrou Anna.

Tracy pulou, deu meia volta e escondeu a boneca atrás das costas, olhando para a mãe com uma expressão de desafio. Anna percebeu que a filha tinha os olhos vermelhos e viu que pelo seu rosto sardento ainda deslizavam algumas lágrimas.

- Vai-te embora - ordenou Tracy.

Anna entrou no quarto.

- Que se passa, Tracy? Diz-me, que aconteceu?

- Sai daqui - chorou a adolescente.

- Por favor, Trace. Fala comigo.

- Não quero - gritou Tracy.

Anna mordeu os lábios, tentando acariciar o rosto transtornado, desfigurado, da filha.

- Amo-te, Trace - segredou-lhe.

Tracy repeliu-a e voltou-se de costas para a mãe, escondendo a boneca nos braços. Anna suspirou e pôs a mão na maçaneta da porta.

com uma voz quase inaudível, magoada, Tracy, enrolada sobre si mesma, desabafou:

-- Estou farta de ser acusada de tudo.

De testa franzida, Anna olhou para a filha.

- Acusada de quê, Tracy? - perguntou numa voz meiga.

- Do que lhe aconteceu - balbuciou Tracy.

-- Oh, Tracy, nunca te culpei pelo que aconteceu - garantiu Anna, contente com aquela oportunidade. - Desculpa

o gritei contigo, querida. Ando muito preocupada com Paul.

quelas suas dores de cabeça. Receio que seja qualquer coisa grave...

- Não é só disso - interrompeu Tracy, furiosa. - Do que aconteceu naquele dia, quando o levaram.

- Quando o levaram? - Anna olhou atónita para a filha.

- Que...

- Sempre me acusaste - disse Tracy num tom acusador.

- Sempre achaste que a culpa era minha.

Anna ficou estupefacta. Tracy agarrava a boneca debaixo do braço. Tinha os olhos cheios de lágrimas, mas parecia não rolar por elas.

- É claro que não foi culpa tua, Tracy. Ninguém nunca pensou que a culpa era tua - protestou Anna, amargurada com a infelicidade da filha.

- Pensaste, sim - teimou Tracy, azeda.

- Nunca pensei uma coisa dessas. -- Pensaste sempre - insistiu Tracy.

- Tracy - bradou Anna -, tu eras um bebé. Aquilo foi feito por adultos. Não teve nada a ver contigo. - Estendeu a mão à filha.

Tracy afastou-se, protegendo inconscientemente a boneca.

- Porque é que dizes isso? - perguntou Anna.

- Foste tu que disseste.

- Não disse nada!

- Eu estava doente - vociferou Tracy. Espantada, Anna olhou para a filha.

- Eu estava doente.

Anna sacudia a cabeça, sem compreender.

- Sempre que contavas o que tinha acontecido era isso que dizias. Que eu estava doente. E vieste cá dentro tratar de mim. Por isso é que ele desapareceu. Foi sempre isso que disseste. Que tiveste que vir cá dentro porque me ouviste chorar. Porque eu estava doente...

Tracy olhou para a boneca debaixo do seu braço, como se acabasse de reparar que ela estava ali.

- Eu estava doente - balbuciou. - Por isso eles vieram e levaram o meu irmão.

Anna sentiu os seus olhos arderem, cheios de lágrimas.

- Não queria que o levassem - disse Tracy. - Ele era meu irmão.

A culpa apoderou-se de Anna que fitava os olhos implacáveis da filha.

- Nunca pensei... - murmurou.

- Deixa-me em paz - disse Tracy, arrasada.

Por instantes, Anna teve vontade de lhe suplicar que a perdoasse. Mas sentiu que precisava de tempo para analisar o crime que cometera e repetira vezes sem fim, durante anos, sem saber. Sentiu-se atordoada, como alguém que tivesse acabado de saber que o seu cigarro mal apagado deitara fogo à casa.

- Desculpa - murmurou, desesperada.

- vou dormir - disse Tracy.

Anna preparou-se para sair do quarto, olhando para a filha que subia para a cama e que colocava a boneca ao lado da al mofada.

- Desculpa - repetiu. Tracy apagou o candeeiro da mesa-de-cabeceira.

Anna ficou parada, às escuras, a pensar em como poderia resolver o problema. Olhou para a filha, aninhada na cama, imóvel. «vou reparar o mal que te fiz», jurou em silêncio. Mas não fazia a mínima ideia de como deveria proceder.

Albert Rambo deu uma forte sacudidela à cabeça, inclinada sobre o lavatório vazio, e um chuvisco de gotículas cor de café caiu sobre as paredes em volta. Rambo endireitou-se e alisou os seus já raros cabelos, distribuindo-os o melhor possível pelo crânio branco e manchado de vermelho. Deu um passo atrás, examinando-se no espelho triplo da casa de banho. O seu cabelo alourado, sujo e grisalho, exibia agora um uniforme tom castanho-avelã. Estava óptimo, pensou. Decidiu deixar crescer o bigode e pintá-lo, também, da mesma cor. Ainda havia muito produto no frasco. Não lhe agradava nada o facto de a Lange tê-lo reconhecido com tanta facilidade. No dia seguinte, depois de receber o dinheiro, compraria também um chapéu novo, antes de se ir embora. Então, estaria tudo em ordem.

Pegou numa toalha turca e com ela secou a cabeça. Penteou cuidadosamente o cabelo, e admirou o resultado no espelho. Tinha gasto os últimos tostões no conjunto completo para pintar o cabelo em casa. Mas valera a pena. As lâmpadas fluorescentes davam à sua pele um tom verde-acinzentado e transformavam as olheiras profundas em sombras debaixo dos olhos. Mas o cabelo estava óptimo.

com a toalha enrolada à volta do pescoço, Rambo atarrachou a cápsula do frasco de vidro que continha a tinta, e voltou a pôr a tampa de plástico no frasco do líquido estabilizador. Lavou o frágil tabuleiro de plástico, que fazia parte do conjunto, e colocou em cima dele as duas embalagens. Dobrou as luvas de plástico fino e arrumou tudo dentro da caixa. Deu mais uma olhadela ao espelho e, satisfeito com o que viu, enfiou a camisa e abotoou-a. Levou o conjunto de coloração para o quarto, escondendo-o num canto da mala de viagem. Passou, distraído, um dedo pelo lábio superior, a pensar quanto tempo levaria o bigode a crescer. Não se podia dizer que fosse muito peludo. Quando o bigode aparecesse, em princípio já estaria muito longe dali.

«Se tivesse algum dinheiro», pensou «podia ir ate ao bar, festejar.» Mas isso estava fora de questão. Ainda por cima, a Bíblia estava aberta sobre a cama, e algo lhe dizia ser melhoi retomar as suas leituras, antes que as vozes viessem novamente assombrá-lo. Obediente, Rambo pegou no Livro Sagrado e acomodou-se na cadeira junto à mesa.

Exactamente nesse instante ouviu uma série de pancadas secas na porta do quarto. Rambo ficou pregado ao chão, fitando a porta, o coração a latejar de pavor, «É a polícia», pensou imediatamente. «Ela foi contar à polícia.»

Mas porque havia a polícia de ir bater-lhe à porta? Devia ser engano. Se ficasse muito quieto, quem quer que fosse percebia que tinha batido à porta errada e ia-se embora. As páginas finas estremeciam entre os seus dedos.

À segunda série de pancadas na porta, Rambo saltou da cadeira e ficou de pé, pernas afastadas, punhos cerrados, olhos cravados na porta. Até que uma voz baixa se fez ouvir:

- Desculpe incomodar. É o gerente, Mister de Blakey. O gerente. Primeiro, respirou fundo, aliviado, mas logo a seguir sentiu uma forte irritação.

- Que deseja? - vociferou Rambo.

- É o seu automóvel. Desculpe, mas estacionou-o em frente de uma porta e agora o outro hóspede está a reclamar. Sei que já é tarde, mas importa-se de mudá-lo para junto do seu quarto?

Rambo sacudiu a cabeça, aborrecido.

- Sim, sim, já vou - respondeu com voz de poucos amigos. Fechou a Bíblia e voltou a arrumá-la na gaveta, depois pegou nas chaves que estavam em cima da mesa. «O melhor é fazê-lo já», pensou.

- Agradeço muito, Mister Rambo.

- Acho bem que agradeça - murmurou Rambo em surdina, enquanto calçava os sapatos e destrancava a porta.

Foi a caminho da porta que reparou. Na ficha do motel tinha assinado Smith. Mr. Willard Smith.

Uma força vinda do exterior empurrou a porta e imobilizou-o no meio do quarto. Rambo ficou apavorado, sentindo a a garganta a sufocar. Nem sequer foi capaz de gritar. O homem à sua frente aproximou-se e Rambo fitou um par de olhos cinzentos, brilhantes, num rosto duro, sem vida. No segundo em que reconheceu Edward Stewart, recuperou a acção e desatou a lutar, atingindo o outro de forma absolutamente ineficaz.

Os seus golpes pareciam não ter qualquer efeito sobre Edward, que continuava impassível. Agarrou na cabeça de Rambo e tapou-lhe a cara com um pano que trazia na mão enluvada. Rambo abriu a boca e tentou desviar o rosto do cheiro sufocante que lhe entrou pela garganta, pelas narinas. Recuou, mas Edward continuou a agarrá-lo enfiando o trapo na boca aberta. Mudo de terror, Rambo olhou o seu atacante nos olhos. Exibiam a mesma expressão impiedosa, determinada, que vira neles certo dia, numa auto-estrada, anos atrás. Rambo começou a ouvir as vozes gritar-lhe baixinho ao ouvido, em seguida deixou de ver os olhos cinzentos e fez-se um silêncio total.


                                     CAPÍTULO 11

Enquanto conduzia, Anna ia olhando para um e outro lado da estrada, ansiosa, à procura da tabuleta do Motel La-Z Pines. Não queria enganar-se no caminho, o que a faria perder tempo. Já passava do meio-dia. Foi preciso ir a três bancos diferentes para conseguir levantar o dinheiro e teve que parar duas vezes na cidade de Kingsburgh, até encontrar alguém que lhe indicasse o caminho para o Motel La-Z Pines.

Quando a tabuleta surgiu de repente do lado direito, Anna fez uma curva apertada e entrou no caminho particular que conduzia ao pátio de gravilha. Seguiu devagar, prestando atenção às portas, à procura do número 17. Um homem alto e grisalho, de fato-macaco e com um balde e uma esfregona na mão, parou a vê-la chegar. Depois entrou no edifício da frente, onde se lia «Recepção».

Anna esperou que o homem desaparecesse, estacionou o carro e desligou a ignição. As paredes brancas dos pequenos apartamentos estavam acinzentadas, mas as molduras das janelas e portas tinham sido pintadas havia pouco tempo, de verde, a cor das árvores circundantes. Sentada no carro, Anna sentiu a saia e as costas da blusa coladas ao assento. No banco ao lado, dentro de um saco de papel pardo, estava o dinheiro. Cinco mil dólares. «Irónico», pensou. Tempos atrás, daria tudo para receber um pedido de resgate, um sinal qualquer de que a pessoa que roubara o seu filho o fizera por dinheiro, de que talvez fosse possível recuperá-lo.

Agora, preparava-se para pagar resgate por uma informação - provavelmente inútil. Mas estava decidida. Mesmo que não ganhasse nada com isso, que ele não tivesse nada de especial para lhe contar, não tencionava discutir o preço com o homem. Ia dar-lhe o que tinha pedido, mesmo havendo a possibilidade de estar a gastar dinheiro em vão. Depois chamaria a polícia e esperaria que eles o recuperassem. Se tal não acontecesse, havia de repô-lo de alguma maneira. Arranjava um emprego. Logo se via. Era um risco. O homem podia não ter nada para lhe dizer. Mas, apesar de pôr essa hipótese, Anna tinha a certeza, tal como no parque de estacionamento, de que Rambo sabia qualquer coisa importante acerca do garoto. Quando lembrava dos ataques de Paul na noite anterior, mais convencida ficava de que ia fazer o que estava certo, tentar obter essa informação.

Anna olhou para o espelho retrovisor, à procura de Rambo. Tinha-lhe dito que deixaria a porta aberta e esperaria por ela lá dentro. Anna viu apenas alguns carros estacionados, persianas corridas e a mansa folhagem das árvores.

«Bem», pensou, «lá vai.»

Saiu do carro, puxou pela saia que ficara entalada no assento e pegou no saco de papel, que enfiou debaixo do braço. Fechou a porta do carro sem fazer barulho, olhou em volta e correu até à porta número 17, que tinha só um degrau. Anna subiu-o e bateu duas vezes. Olhou em volta, para se certificar de que ninguém a observava.

com um movimento rápido, rodou a maçaneta e empurrou com força. A porta ficou na mesma. A maçaneta não dava a volta completa, nem para um lado, nem para o outro. Anna concentrou-se e depois abanou-a com quanta força tinha. A porta nem estremeceu.

Sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto, enquanto tentava abrir a porta trancada. Depois deu um passo atrás, olhando em volta, para os quartos adjacentes e para as árvores, não fosse estar alguém a assistir, a divertir-se com a sua aflição. Nada bulia no pátio silencioso. Encostou a cabeça à porta e chamou:

- Rambo, Rambo, abra.

Ninguém respondeu.

Ficou uns instantes a observar o pátio, sem saber o que fazer. Ouviu o ruído de uma porta a abrir-se à sua esquerda. Olhou na direcção do barulho e viu um homem forte, acompanhado de uma mulher ruiva, vestindo equipamentos de bowling, sair de uma porta mais adiante e mirá-la de alto a baixo. Entraram num grande Chrysler e começaram a fazer a manobra para sair. Olhando para o espelho lateral, a mulher retocou o penteado com o cabo do pente. O homem deitou um olho cobiçoso a Anna, quando o carro passou devagar por ela.

Apertando contra si o saco de papel, Anna voltou para o seu automóvel. Sentou-se no banco da frente e bateu com a porta. Os seus olhos não largavam a porta número 17, enquanto pensava em Rambo, aquele homem asqueroso, de novo a dominar a sua vida.

Sentiu-se tentada a considerar tudo aquilo um logro e ir-se embora. Esquecer tudo. Mas sabia que não podia deixar as coisas como estavam. Se, ao menos, conseguisse entrar no quarto de Rambo! Mesmo que ele tivesse perdido a coragem e fugido, podia ter deixado alguma coisa esquecida, uma pista que talvez a ajudasse. Não podia desistir.

Decidida, saiu novamente do carro. Hesitou em levar o saco do dinheiro. Depois achou melhor não o deixar ali sozinho. Dirigiu-se à porta do edifício onde se lia «Recepção».

A recepção do Motel La-Z Pines consistia em duas cadeiras com assento de plástico, um balcão alto com tampo de fórmica e um escaparate de madeira pendurado na parede, exibindo alguns folhetos turísticos sobre a região de Kingsburgh. O chão estava forrado com um linóleo já estalado, castanho e preto. Por detrás do balcão sentava-se Gus deBlakey, embrenhado na sua telenovela preferida, Jovens e Rebeldes. Não perdia um episódio desde a estreia, na semana anterior. Sentiu uma leve irritação quando viu a mulher do Volvo entrar. Tinha a impressão de que ela não ia fazer uma pergunta à qual pudesse responder apenas sim ou não. Quando a viu chegar, pensou que se tinha enganado no caminho. Não se parecia em nada com os seus clientes habituais. «Perdeu-se, com certeza», pensou.

Arrancou os olhos do ecrã e olhou para a mulher que estava do outro lado do balcão.

- Deseja alguma coisa? - perguntou, espreitando o homem de smoking que fazia uma apaixonada declaração de amor à rapariga que estava deitada na cama de hospital.

- Procuro uma pessoa - disse Ana. - Um... amigo meu. Está no quarto 17.

Gus ergueu o sobrolho e voltou a olhar para ela. Aquela mulher não tinha nada a ver com o tipo do 17. Aquele tipo desleixado do Chevrolet azul.

- Bateu à porta? - perguntou, voltando a olhar para o pequeno ecrã.

- Não responde.

- Então é porque saiu. O carro dele está aí? Anna hesitou.

- Que carro é que ele trouxe? - perguntou.

- Um Chevrolet azul - respondeu Gus. - Ora vá lá ver.

Anna saiu e passeou os olhos pela fila de carros. Não muito afastado da porta 17 estava um velho carro azul, sujo e com uma grande amolgadela no pára-choques da frente.

Voltando-se para o homem sentado atrás do balcão perguntou:

- Aquele carro azul muito sujo é um Chevrolett?

- O quê? - interrogou Gus, sem querer perder a cena do beijo na cama do hospital.

Anna entrou e aproximou-se.

- Importa-se de baixar isso um minuto? É muito importante para mim.

Perante a expressão preocupada dela, Gus, com um suspiro, desligou a televisão.

- Qual? - perguntou, levantando-se.

Deu a volta ao balcão e seguiu Anna até à porta. Esta ipontou para o pára-choques amolgado, a única parte do carro visível daquele ponto.

- É aquele, sim - declarou Gus.

- Mas ele não abre a porta - queixou-se Anna. Gus encolheu os ombros.

- Vivemos num país livre. Talvez tenha mudado de ideias.

- Mas depois, vendo o olhar aflito de Anna, acrescentou, num

tom mais simpático: - Pode ter ido dar um passeio a pé.

- Ele estava à minha espera - disse Anna. - De certeza que não saiu. O carro dele está ali.

- Isso já não sei - respondeu Gus.

- Por favor, não pode abrir a porta? Tenho medo que ele tenha adoecido ou coisa do género. Se não estiver no quarto, vou-me embora e deixo-lhe um bilhete.

Gus fez que não com a cabeça.

- Oh, por favor - suplicou Anna. - É só uma espreitadela.

Gus franziu a testa. Sabia que não devia fazê-lo, mas qualquer coisa naquela mulher comoveu-o. Não sabia o que queria do tipo, mas percebia-se que era da máxima importância para ela. Realmente, a conta só estava paga até ao meio-dia. E, afi nal, ele era o proprietário do motel.

- Está bem - disse.

- Oh, muito obrigada - exclamou Anna. - Não sei como agradecer-lhe.

Acompanhou, a correr, as longas passadas do homem atra vês do pátio até à porta 17. Enquanto caminhava, ele foi mexendo nas chaves presas à longa corrente que tinha à cintura, até encontrar a que lhe interessava.

- Aqui está ela - disse, parando diante da porta 17. Ba teu à porta e perguntou: - Mister Smith, posso entrar? Depois voltou-se para Anna: - Só espero que ele não esteja com uma grande bebedeira e não arme um grande escândalo.

«Deve ser isso», pensou Anna. De repente, aquela explicação fazia todo o sentido. Além disso, se Rambo a visse entrar com o gerente, não abriria a boca. Ficava tudo estragado. Anna viu o gerente meter a chave na fechadura, sem saber se devia ou não contar-lhe tudo. |

- Bem - disse Gus. - Só espero é que sejam mesmo muito amigos.

Empurrou a porta e entrou no quarto escuro. Anna ia atrás dele, a espreitar para todos os lados. Os estores estavam fechados e as luzes apagadas. A cama de casal estava amarrotada, mas não desfeita. Os poucos pertences de Rambo amontoavam-se numa mala aberta, pousada no chão, ao lado da cómoda. Em cima da cómoda, viam-se as chaves do carro e alguns trocos. «Bem», pensou Anna, «pelo menos não saiu da cidade.»

- Onde é o interruptor? - perguntou Anna.

- Há um candeeiro ao lado da cama - informou Gus, indicando o local com um gesto.

Anna baixou-se e acendeu-o. A lâmpada fraca iluminou apenas um canto do quarto.

- Deve ter saído para comprar cigarros - disse Gus, apontando para os maços amachucados e as beatas no cinzeiro da mesa-de-cabeceira. - Há uma loja aí a um quilómetro de distância. De certeza que foi até lá a pé - Gus dirigiu-se à janela e abriu uma fresta. - Uff! Cheira mal que se farta.

Anna tentou examinar o quarto o melhor que pôde, certa de que daí a nada o gerente ia mandá-la sair. Reparou que a porta da casa de banho estava entreaberta, mas não vinha de lá qualquer luz.

- Um quilómetro para cima ou para baixo? - perguntou Anna. - Acho estranho não ter passado por ele quando cheguei - disse, dirigindo-se à casa de banho e abrindo completamente a porta.

- É melhor irmos andando - pediu Gus, impaciente. Terá que voltar noutra altura. Ele deve ter feito confusão. Aguardou um pouco, mas da casa de banho não veio qualquer resposta.

- Vá lá, minha senhora - insistiu, mas continuou a não obter resposta.

Gus dirigiu-se para a porta e parou atrás de Anna, que estancara.

- Santo Deus! - exclamou.

Um par de sapatos pretos brilhantes balouçava a poucos centímetros do rosto de Anna. As pernas pendiam, inânimes, .das calças molhadas nas virilhas. As mãos estavam abertas e rijas, as unhas azuis. Uma corda, atada ao casquilho do tecto, rasgava o pescoço partido de Rambo, cuja língua se projectava para fora, inchada, cinzenta. Os olhos cegos sobressaíam da pele manchada e arroxeada do rosto. Algumas madeixas de cabelo cor de avelã destacavam-se, despenteadas, na pele pálida da cabeça.

Anna estava branca como a cal. Tinha os olhos, sem expressão, cravados na sinistra visão à sua frente.

Gus empurrou-a para o lado e quase tropeçou na cadeira do quarto, caída no chão por baixo dele, de lado.

- Deus Todo-Poderoso - balbuciou, endireitando a cadeira com mãos trémulas.

- Não, meu Deus - murmurou a mulher a seu lado. Não.

- Lamento muito, Mister Stewart - disse o proprietário da loja de modelismo. - Nunca nos causaram problemas.

Edward olhou para o empregado, careca e com bigode, abanando as páginas impressas a letra miúda que tinha na mão.

- Estava quase a terminar o casco quando reparei nas instruções todas erradas. Felizmente, tenho muita experiência e consegui perceber isso a tempo, antes de ficar com o barco es tragado.

- Compreendo, deve ter sido muito desagradável - mui murou o empregado, evitando o olhar de Edward.

- Será preciso recordar-lhe - disse Edward -, que sou um dos vossos melhores clientes? Quando vos encomendo um modelo, espero que seja perfeito em tudo. Não se admitem erros num trabalho minucioso como este.

O empregado baixou a cabeça.

- Bem sei. Tem toda a razão.

- Eu construo aviões, Mister Martin. Gostava que a mi nhã companhia fosse igualmente descuidada em relação aos produtos que fabricamos? Gostava de ir com a sua mulher de férias a Miami ou outro sítio qualquer num avião construído com peças defeituosas?

- De maneira nenhuma. Tem toda a razão.

- Podia ser a sua última viagem de avião - gritou Edward.

Desviou os olhos do rosto pálido do empregado e viu um jovem a espreitar ao fiindo do estabelecimento. O rapaz virou imediatamente as costas, quando Edward deu pela sua presença.

O vendedor tirou nervosamente os óculos da caixa enfiada na algibeira da sua camisa e colocou-os no nariz.

- Importa-se que eu dê uma vista de olhos? - pergun tou, estendendo as mãos para as instruções.

Quando os dedos do homem tocaram nas folhas, Edward fechou a mão e amarrotou-as. Deitou a bola de papel para cima do balcão, diante dos olhos espantados do proprietário.

- Importo-me, sim - disse Edward. - Está a fazer-me perder tempo.

- Deixe-me só ir lá atrás ver se temos outro modelo com as instruções correctas. Volto já.

Edward baixou a cabeça e o homem entrou no escritório. À excepção desta questão desagradável», pensou, «hoje estou muito bem-disposto.» Sentiu uma onda de orgulho ao evocar a eficiência com que eliminara Albert Rambo. Estava salvo das insinuações daquele louco patético. Um sorriso começou a formar-se nos seus lábios, quando recordou o olhar de Rambo na noite anterior, assim que o reconheceu. Bastou um segundo para Rambo sucumbir aos vapores do trapo. Ele próprio estava apreensivo quando chegou ao quarto de Rambo, mas agora sentia uma satisfação inesperada.

- Lamento muito - disse o comerciante, reaparecendo atrás do balcão -, mas não temos esse modelo em Armazém. Vou ter que lhe dar um vale que poderá utilizar na próxima compra.

Edward lançou-lhe um olhar gelado:

- Pague-me em dinheiro - retorquiu. - De agora em diante, passo a comprar noutro sítio.

O vendedor parecia disposto a discutir; mas depois baixou os ombros, abriu a caixa e reembolsou Edward.

Edward arrancou o dinheiro da mão do homem e saiu da loja, batendo com a porta. Era a incompetência que o punha furioso, a falta de atenção aos pequenos pormenores importantes. Nunca mais voltaria a pôr os pés naquela loja. As pessoas tinham de servi-lo como deve ser, se quisessem negociar consigo. Que ninguém se convencesse que podia brincar com ele. Voltou a pensar em Rambo, a querer chantageá-lo no campo de golfe. Ora bem, fora castigado precisamente por essa impertinência.

O toque da buzina de um táxi e o grito do motorista surpreenderam Edward, que saltou para o passeio e tremeu, quando o homem lhe gritou uma obscenidade e mostrou o punho fechado.

Ao menos o homem estava com atenção. Por instantes, Edward voltou a ver, como tantas vezes sucedera ao longo dos anos, o acidente que dera origem àquilo tudo. Vinha de uma reunião de negócios em New Haven e saíra da auto-estrada para ir a casa mudar de roupa. Tinha feito um brilhante negócio na reunião e o seu pensamento entretinha-se a recordar a estratégia que o fizera ganhar o dia. Só reparou na criança que se dirigia para a estrada quando era já tarde de mais. Não a reconheceu logo. Todas as crianças se parecem umas com as outras. Mas ainda se lembrava do boné à marinheiro que o miú do trazia na cabeça e nos olhos abertos de espanto que fitaram os seus através do pára-brisas, imediatamente antes de o carro o atingir e lançar para as ervas da beira do caminho. O ruído do embate reverberou pelo corpo de Edward, e ainda reverbe rava, sempre que pensava no assunto.

Bem, nunca teria conseguido travar a tempo, ainda que o tivesse visto. A criança é que não devia estar ali. A mãe devia estar a tomar conta dele. Tão simples como isso.

Edward olhou para um lado e para o outro antes de descer do passeio para a rua, de regresso ao escritório. «Se ao menos o rapaz tivesse morrido nesse dia», pensou. Não teria precisado de matar Rambo.

Bem, estava feito. Especular não servia de nada. Estava feito e ele salvo. Depois, outra preocupação invadiu-o. Pensou, por momentos, se o rapaz não se recordaria do que se tinha passado. Na altura, era apenas um bebé e, agora, não parecia lembrar-se de nada. No entanto, Edward duvidava que alguém, mesmo uma criança, esquecesse uma coisa daquelas. Nesse caso, era preciso estar alerta. Edward sacudiu a cabeça e respirou fundo. Não valia a pena preocupar-se, pensou. Agora estava tudo resolvido. Ele encarregara-se disso. A sua reputação estava garantida. Era uma sensação maravilhosa.

Buddy Ferraro levantou os olhos do papel que tinha na mão e virou-os para o rosto fatigado de Anna.

- Foi isso que ele disse? Mais nada?

Estavam sentados à mesa da cozinha de Anna. Um copo de chá gelado, que não fora tocado, formava um anel molhado junto do cotovelo de Buddy. tom estava de costas para o lava-louça, de braços cruzados no peito. A noite de Verão caíra suavemente, e os grilos cantavam do lado de fora da porta de rede da cozinha.

Anna anuiu com a cabeça. Reparou que os cabelos das têmporas de Buddy estavam a ficar grisalhos. Perguntou a si própria quando isso teria começado a acontecer. Buddy dobrou o papel e guardou-o no bolso do casaco.

- Que acha disto tudo?

- Acho que o homem estava desesperado - respondeu Buddy.

- Não compreendo porque se matou antes de eu lá chegar. Eu ia dar-lhe o dinheiro.

Buddy olhou-a com um ar de repreensão.

- Ainda não consigo acreditar, Anna. Nem parece seu. Imagina quantos vigaristas já nos vieram oferecer informações por dinheiro?

- Mas este era o Rambo. E acredito que sabia mesmo qualquer coisa. - Anna passou a mão pelos olhos. - Mas agora está morto. Podia ter-nos contado tanta coisa!

- Bem, garanto-lhe que também há muitas perguntas que eu gostaria de ter feito a Albert Rambo.

- Buddy, porque terá ele feito o que fez? Dizer aquelas coisas acerca do Paul, se não eram verdade?

- Por dinheiro - respondeu Buddy sem hesitar. - Anna, o homem estava entre a espada e a parede.

- Eu sei.

- Ouça. Primeiro, o homem não regulava bem da cabeça. Isso sabemos nós. Era procurado por rapto. Estava, literalmente, sem um tostão. O cerco estava a fechar-se sobre ele. E a Anna chegou ligeiramente atrasada. Deve ter receado que o esquema não desse certo. E de certeza que não tinha outras opções.

- Compreendo o suicídio, claro - disse Anna. - Mas estou convencida de que ele tinha mesmo qualquer coisa para me contar. Não estava a mentir. Tenho a certeza. vou dizer-lhe o que penso. Acho que Paul tem um problema qualquer de saúde. E que a informação tinha a ver com isso. Receio que esteja doente.

Thomas afastou-se do lava-louça e saiu da cozinha, sem dirigir palavra a nenhum deles. Buddy viu-o desaparecer. De pois, voltou-se para Anna que estava de testa enrugada, absorta nos seus pensamentos, dizendo:

- Bem, nesse caso sugiro que o leve a um médico. E já que lá vai, peça para ser também observada.

- Ah, já marquei uma consulta para ele - tranquilizou-o Anna. - Amanhã, logo pela manha.

Buddy levantou-se.

- E como é que o miúdo reagiu à notícia? - perguntou. Anna suspirou.

- Não sei bem. Ouvi Tracy fazer-lhe umas perguntas e ele responder que não sentia nada. Está fechado no quarto há horas.

- O rapaz não tem tido uma vida fácil. Bem, vou andando. Amanhã vai ser um dia em cheio. Sandy e eu vamos levar Mark à universidade.

Amanhã? - perguntou Anna. - Que bom! É uma

viagem muito longa?

- Umas horas - respondeu ele. - Vamos aproveitar para passar lá uns dias. Há uma pequena estalagem. Temos que ir a chás, festas e sei lá mais o quê.

Vão divertir-se imenso - disse Anna, radiante.

Espero bem que sim, para a fortuna que o ano lectivo me vai custar - comentou Buddy, fingindo-se exasperado. Anna ia a levantar-se, mas Buddy deteve-a com um gesto:

- Eu sei o caminho. Anna suspirou.

- Tenho de confessar que estou feliz por isto ter chegado ao fim. Agora, já não preciso de ver o Rambo a espreitar em todas as esquinas.

Buddy olhou-a pensativo.

- Tenha juízo enquanto eu estiver fora.

- vou ter - respondeu ela, sorrindo.

Buddy afastou-se de testa franzida. Tinha as suas dúvidas acerca daquele suicídio, mas decidira não a apoquentar com elas. Sabia que ia ficar preocupada e preocupações já Anna tinhã de sobra. Quando chegou à porta, acenou-lhe com a mão.

- Obrigada - gritou ela.

Anna ouviu-o atravessar a casa, fechar a porta. Deixou-se estar sentada na cadeira, com as mãos caídas no colo. Estava exausta, mas não queria fechar os olhos. Tinha medo que a imagem voltasse: Rambo ali pendurado, a terrível cor da morte, a língua e os olhos saídos.

- Hui! - enojada, Anna levantou-se. Não queria ficar ali sozinha, a pensar. Sentiu uma necessidade súbita, urgente, de falar com Thomas. Ainda não tinham tido oportunidade de conversar. Toda a tarde precisaram de atender a polícia, os repórteres, o hospital, Paul. Thomas parecia-lhe mais calado do que o habitual, era difícil adivinhar o que lhe ia na cabeça.

Embora se sentisse esgotada, Anna achou que devia explicar-lhe tudo quanto antes, fazê-lo compreender.

Atravessou a casa e subiu devagar as escadas. Pela porta aberta do quarto, a luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira projectava-se no corredor. A casa estava silenciosa. Tracy tinha até desligado a aparelhagem, silenciada pelos terríveis acontecimentos do dia. Anna entrou discretamente no seu quarto.

Thomas encontrava-se de pé junto ao toucador, de ombros caídos, passando os dedos pelas costas da escova de prata. Ao vê-lo, Anna sentiu um nó na garganta e avançou, decidida a pôr os braços à volta dele e a encostar o rosto nas suas costas largas. Mas ao atravessar o quarto reparou numa mala de viagem, fechada, aos pés da cama.

Thomas voltou-se e pousou a escova no tampo do toucador.

- Que é isto? - perguntou ela, incrédula.

Thomas não respondeu, mas a sua expressão tornou-se rígida.

- Querido, que estás tu a fazer?

Thomas foi buscar o livro que estava em cima da mesa-de-cabeceira. Abriu o fecho de correr do bolso da frente da mala e enfiou-lo lá dentro.

- Estou a fazer as malas - respondeu.

Anna caiu sentada na borda da cama, sem dizer nada. Depois, as palavras vieram num tumulto.

- Tom, compreendo que estejas furioso comigo. Mas precisamos de conversar. Sei que devia ter-te contado o que ia fazer. Acredita, foi uma agonia para mim. Queria dizer-te, mas ele ameaçou-me, e eu nunca chegaria a saber a verdade se te levasse comigo, ou a polícia, ou fosse quem fosse. Não queria correr esse risco.

- Já ouvi essa história - comentou Thomas, ríspido. Todo o santo dia.

- Não é uma história, Tom. É a verdade.

- Muito bem, então é a verdade. Anna encostou-se a ele:

- Acredita, querido, lamento muito o que aconteceu. Não me podes perdoar o facto de não te ter contado?

- Não precisas de explicar - disse Thomas. - compreendo porque o fizeste.

Anna esticou as mãos.

- Então para quê isto tudo? A mala?

Thomas ficou uns momentos calado e depois virou-se para Anna com uns olhos cheios de dor.

- Porque isto não vai acabar nunca, Anna. E eu não aguento.

- O que é que não vai acabar? Que queres dizer com isso?

- Tu. Nunca vais deixar de te preocupar com Paul. Enquanto ele esteve desaparecido foram as buscas, os telefonemas, as notícias dos jornais. Senti sempre que só tinha metade de ti e nunca me queixei. Quando soube que o rapaz ia voltar, pensei que o inferno ia acabar. Que ias finalmente deixar de viver... obcecada. Só que afinal as coisas ainda pioraram.

A acusação indignou Anna:

- Como és capaz de dizer uma coisa dessas? Obcecada! Eu tinha de procurar o meu filho. Não podia dizer «olha, desapareceu» e pôr uma pedra no assunto. Não conseguiria viver sossegada. Era isso que esperavas que eu fizesse?

Thomas nem respondeu nem olhou para ela.

- E quando o Rambo me veio dizer que tinha uma informação importante a dar-me, que era um caso de vida ou de morte, que dizia respeito a Paul, sim, senti que tinha de descobrir o que se passava.

- Pelo Paul - observou Tom, numa voz soturna.

- Sim - respondeu Anna. - Precisamente. Tinha de protegê-lo.

- E a Tracy? E eu? E se te acontecesse alguma coisa?

- Bem, eu teria o máximo cuidado. Pareceu-me que não corria perigo algum. Ele só queria o dinheiro.

- Um criminoso a monte. Um tarado...

- Tom, eu estava desesperada. Tinha de saber o que homem me estava a esconder. Disse que o nosso filho corria perigo e eu tinha de saber porquê.

- É isso mesmo, Anna - gritou Tom. - Ouviste o que acabaste de dizer? Pelo Paul todos os sacrifícios valem a pena. Primeiro, as buscas. Depois, Rambo. Agora, meteste na cabeça que o rapaz está doente e vai ser uma correria de médico em médico. E a seguir? Quando é que isto acaba, Anna?

Anna fitou-o, preparada para responder, mas limitou-se a abanar a cabeça:

- Não acaba nunca - respondeu numa voz calma. Nunca vou deixar de me preocupar com o nosso filho, tal como nunca vou deixar de me preocupar contigo nem com a Tracy...

Thomas olhou-a com ironia:

- Precupação? É isso que lhe chamas? - Caminhou até ao armário, abriu as portas e examinou o seu conteúdo.

Anna levantou-se, incrédula.

- Ouve, nunca puseste a hipótese de seres tu quem está errado? Desde que soubemos que Paul ia regressar que andas de mau humor. Nem falas dele. Nunca mostraste o mínimo sinal de satisfação. Este deveria ser o período mais feliz das nossas vidas. O regresso do nosso filho. Porquê essa indiferença?

Thomas olhou-a com uma expressão fatigada, desanimada.

- Ele é um estranho, Anna. Um desconhecido. Anna abriu os olhos:

- Como te atreves? - perguntou em voz baixa. - Aquele rapaz é o teu filho.

Thomas bateu com a porta do armário.

- Para mim é um estranho. Não me peças que finja que o amo muito. Não sinto nada por ele.

Estupefacta com aquelas palavras, Anna emudeceu. Lentamente, recuperou a voz:

- Então talvez seja melhor ires embora.

Thomas dirigiu-se à sua mala e fechou o bolso da frente. Depois procurou a pega.

- Não posso fazer nada. É o que eu sinto.

- Então, vai. Vai - disse Anna. Abriu a porta do quarto

- Este não é o teu lugar.

Thomas vacilou, mas depois, pegou na mala e saiu. Anna ouviu-o descer as escadas.

- Como foste capaz de fazer uma coisa destas? - perguntou em voz baixa, fitando a porta aberta.

O som de vozes exaltadas ecoou pelo patamar até à porta do seu quarto, mas Paul não distinguia o que diziam. Estava sentado na cadeira da sua secretária, com os braços em volta dos joelhos, encostados ao peito magro. A única luz que havia no quarto era a do luar, que vinha da janela e projectava as sombras monstruosas dos objectos.

Um dia, quando era mais pequeno, ele e outro rapaz tinham tropeçado num cadáver, no meio do bosque. O cadáver era de um vagabundo. Encontraram-no não muito longe dos vestígios de uma fogueira. Era Inverno, e os andrajos do homem não tinham sido suficientes para protegê-lo do frio que vinha das montanhas. Paul nunca esqueceu a visão daquele corpo rígido, enrolado sobre si próprio, as roupas rotas a ondular sobre os membros azulados do homem, de olhos e boca abertos, com uma expressão de pavor e resignação. Sempre que tentava imaginar o seu pai pendurado no quarto do motel, vinha-lhe à cabeça o morto do bosque. Via o pai de boca aberta, como o outro, a verborreia religiosa para sempre silenciada. Aquele olhar inquieto, furioso, fixo para todo o sempre. Paul duvidou que, apesar de tanto pregar, Albert Rambo fosse para o Céu. Se era mesmo verdade que havia um céu, o seu pai só lá conseguiria entrar se a sua mãe intercedesse por ele.

Mas não, eram ambos raptores, iam ser castigados. E agora estavam os dois mortos. Tentou perceber se era o culpado da morte deles. A ideia fê-lo sentir-se tonto, sem forças. Estavam mortas as duas pessoas que tinham sido os seus pais. Sam também. A terra engolira todos os vestígios da sua vida passada.

Embora achasse que devia, não se sentia triste com a perda do pai. Nada que se parecesse com o que sentira com a morte da mãe. Estava era assustado. Pois, até Albert Rambo morrer, havia alguém que sabia quem ele era. Agora, com o desaparecimento do pai, ficara verdadeiramente sozinho. Sozinho com aquela gente, os Lange. Passara a ser o Paul. O filho deles. Era como se toda a sua vida fosse uma enorme mentira e agora se visse obrigado a viver essa mentira, até ao fim dos seus dias.

Mas, apesar de essa terrível perspectiva lhe dar vontade de chorar, lembrou-se de que Anna, a mãe, fora ao encontro de Rambo, disposta a dar-lhe dinheiro, só para saber mais coisas acerca dele. De certo modo, parecia uma estupidez. Porém, Paul sentiu um pingo de calor quando pensou nisso. Por um segundo, a profunda solidão desapareceu; depois voltou, de novo.

 

                                     CAPÍTULO 12

Thomas tamborilava com os dedos no tampo da mesa das bebidas de Gail Kelleher.

- Obrigado pelo convite - disse. - Precisava mesmo de ver um rosto amigo.

Gail sentou-se sobre as pernas dobradas e encostou-se à almofada do seu moderno sofá de felpa. Bebeu um trago de vinho e olhou-o por cima do rebordo do copo.

- Não tem de quê - disse ela. - Ainda bem que telefonou.

- Não sabia se ia encontrá-la em casa. Resolvi arriscar. ;Achei que uma mulher como você devia estar... não sei... ocupada...

Gail sorriu, pesarosa.

- A dançar até às tantas e a beber champanhe servido num sapato de salto alto.

Thomas encolheu os ombros:

- Sim, qualquer coisa desse género.

- Ora vejamos - disse ela, inclinando a cabeça para trás como se estivesse a ler o que estava escrito no tecto.   No fim-de-semana passado fui tomar um copo com um tipo que conhecia da faculdade. Ele engoliu três bebidas de enfiada e tentou agredir-me no táxi, a caminho de casa. Acabei na cama, com um bom livro policial por companhia. No dia seguinte, lavei a roupa e fui com uma amiga almoçar um hambúrguer ao fundo da rua. Ontem, fiquei a ver o futebol na televisão. Emocionante, não? - sorriu a Tom, de sobrolho levantado.

- Fico admirado - comentou ele. - Imaginava uma coisa completamente diferente. Uma mulher tão bonita. E solteira.

- Oh, farto-me de sair com homens. Mas não há muitos que me agradem. Parecem demasiado procupados com os seus investimentos e os seus sistemas de alta fidelidade. É raro conhecer alguém interessante. com quem se possa conversar...

Thomas olhou para ela e sentiu um formigueiro diante da intensidade do seu olhar. Virou-se e examinou o apartamento moderno, decorado com elegância.

- Gosto da sua casa - disse, embora aquele estilo despojado não tivesse muito a ver consigo. Voltou a olhar para Gail, que estava descalça, com um vestido de Verão, de decote em bico, o qual parecia estar fechado apenas por um botão na cintura.

- Já não era sem tempo que vinha fazer-me uma visita respondeu ela com leveza.- Quer um copo de vinho?

- Sim, quero - respondeu tom com algum nervosismo. Viu-a caminhar até ao balde do gelo que estava no bar, pegar num copo de vinho e enchê-lo.

- Ainda não me contou porque está aqui. Ao telefone disse apenas que ia passar a noite na cidade.

Gail voltou para o sofá e entregou-lhe o copo.

- Eu... eu saí de casa - respondeu e, ao fazê-lo, sentiu-se como um rapazinho fugido que quer mostrar-se valente.

- Que aconteceu? - perguntou ela, observando-o com atenção.

- Bem, deve ter sabido que Anna se foi encontrar com o raptor no motel e isso tudo...

- Vi no telejornal - explicou Gail. Thomas suspirou.

- Não sei o que aconteceu. Senti que não aguentava mais.

- Mas porque é que ela lá foi? Achei uma loucura! Thomas sentiu-se encolher diante daquela opinião impiedosa. Sentiu um desejo instintivo de defender a mulher.

-- Ela anda sob uma enorme tensão emocional. Não pensa noutra coisa a não ser no rapaz.

- Acho doentio. Nem sei como aguentou tanto tempo.

Thomas suspirou e fitou as suas mãos, que estavam cruzadas. Não queria falar daquele assunto, pois sabia que Gail estava apenas a tomar o partido dele; mas não conseguia explicar os seus sentimentos. Não lhe parecia correcto estarem a criticar Anna. Sentia apenas uma ténue necessidade de consolo. Queria passar a mão pela pele dos braços de Gail, que era tão macia, com um perfume tão exótico.

Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Gail pôs uma mão no braço dele e Thomas fitou-a. Por várias vezes, começou a falar, mas parava sempre.

- Na sexta-feira, quando Paul chegou... - disse. Depois sacudiu a cabeça, fez uma careta. - Está completamente diferente de quando era pequeno. - Thomas sentia um nó na garganta que não conseguia de modo algum desapertar. Nem sei bem o que é que eu próprio esperava. Mas sinto-me tão longe dele...

Gail inclinou a cabeça para o lado. - Tem sido muito duro, não é? Thomas permaneceu uns minutos calado. Depois fez que não com a cabeça:

- Estou a ser uma péssima companhia - disse. Pousou o copo na mesa. - É melhor ir andando para o hotel.

Gail colocou o copo junto ao dele e avançou. Quando chegou perto de Tom, este viu os seis nus dela através do decote profundo do vestido.

- Não precisa de ficar num hotel - disse ela. Thomas olhou-a nos olhos, escuros, expressivos, solidários.

- Ainda bem que vieste ter comigo - disse ela numa voz suave.

Thomas fechou os olhos e engoliu em seco. Apesar de a sala ter ar condicionado, sentiu um calor sufocante. Os dedos dela ardiam-lhe nos braços. com um gemido, abraçou-a.

Estendida na cama toda amarrotada, Anna estendeu o braço à procura da forma familiar do corpo de Thomas e acordou, agarrando na mão a ponta do cobertor. Sem levantar a cabeça, olhou para o lugar vazio a seu lado. Os raios de lua que vinham da janela fizeram-na fechar os olhos, que ainda lhe doíam das lágrimas da noite anterior. Pelo menos, aquela noite terrível terminara, pensou.

Ficou deitada de costas, a olhar o tecto. Ainda não esquecera as palavras de Thomas, a veemência com que ele repudiara o filho. Mas depois de umas horas de sono, à luz da manhã, sentia mais incredulidade do que indignação.

Sabia que o marido nunca acreditara no regresso de Paul. Bem, não acreditar era uma coisa. Mas parecia mesmo que ele nunca desejara esse regresso. Nem um bocadinho. O que a fazia pensar que existia um lado dele que ela não conhecia. Tentou concentrar-se no passado, descobrir em que momento tinha perdido de vista os verdadeiros sentimentos do marido.

Durante um ou dois anos depois de Paul ter desaparecido e ela ter perdido o bebé, Anna acordava muitas vezes a meio da noite, desperta do seu sono agitado por uma sensação de pavor sufocante, com o corpo coberto de transpiração. Claro que Thomas acabava por acordar e virar-se para ela, abraçar o seu corpo tenso, vigilante, como se mesmo a dormir adivinhasse os anseios dela. O seu abraço destinava-se a confortá-la, mas Anna sentia sempre que o seu sofrimento o assustava, e aqueles braços eram um peso morto em cima dela. Uma manhã falou-lhe nisso. Daí em diante, ele continuou a acordar, mas apenas para lhe estender a mão, e, a pouco e pouco, deixou de lhe tocar, limitando-se a ficar deitado ao lado dela, fitando a escuridão, incapaz de dormir, incapaz de ajudar. Ao fim de algum tempo, foi ao médico e começou a tomar comprimidos para dormir. A partir daí, Anna deixou de ter a companhia dele nos seus despertares nocturnos. Para ela foi um alívio, claro, estar sozinha com os seus pensamentos, não ter que responder à ansiedade que tom sentia e não sabia verbalizar. Olhava com indiferença para ele, deitado a seu lado, a dormir profundamente, como um guerreiro em repouso, os olhos rodeados de sombras, a boca aberta. Quando tinha ele desistido de Paul? Teria sido nessa altura, quando começou a dormir bem?

Quanto a ela, permanecera alerta, sem consolo, durante muito tempo ainda. Quando, finalmente, foi capaz de voltar a dormir sem interrupção, de voltar a fazer amor, de retomar a sua vida com o marido, nunca mais falaram dessas noites.

Nunca mais falaram de muitas coisas, temas demasiado delicados para lhes tocarem. Agora, achava que nunca mais falariam. Sentiu uma dor apertar-lhe a garganta, como se esse doloroso pensamento estivesse a estrangulá-la.

«Uma coisa de cada vez», disse para consigo. Tinha de ir arranjar-se para levar Paul ao médico. Não duvidava um segundo de que o garoto estava doente e, apesar de recear muito o veredicto, estava ansiosa por ouvi-lo. De certo modo, agradeceu ter uma missão urgente a tratar. Obrigava-a a sair da cama.

Arrastou-se para fora da cama e despiu as roupas amarrotadas que tinha vestidas. Enfiou o roupão, entrou na casa de banho e abriu a torneira da água quente do chuveiro. Era agradável sentir a água a cair em cima do seu corpo. Reparou, encantada, que os pequenos prazeres chegam para dar força a uma pessoa. Recordou o período a seguir ao desaparecimento de Paul, à perda do bebé. Costumava encontrar o estímulo de que precisava na beleza das pequenas coisas - a curva de uma concha encontrada na praia, o toque dos lençóis lavados nas suas pernas, o sol reflectido num pingente de gelo, suspenso no telhado do alpendre. Essas pequenas sensações faziam-na rejubilar, por vezes enchiam-lhe os olhos de lágrimas, mas recordavam-lhe sempre que estava viva. O desgosto deixara-a atordoada, mas não morta. Enquanto se vestia devagar, lembrou-se de ter pensado, no dia do regresso de Paul, que esses dias tinham terminado. Sacudiu a cabeça. Como estava enganada!

Saiu do quarto e reparou que as portas de Tracy e Paul ainda estavam fechadas. Desceu as escadas sem fazer barulho, ainda era cedo para acordá-los. Parecia-lhe que Paul estava cheio de medo da consulta, embora ele não tivesse tocado no assunto. Quanto a Tracy, a última coisa que lhe apetecia era contar-lhe que Thomas tinha saído de casa. O marido sempre se dera muito melhor com Tracy do que ela. Era preferível deixá-los dormir mais um bocado, até ela própria se sentir melhor.

Anna entrou na cozinha e começou a preparar o pequeno-almoço. Parou de repente, mais uma vez a pensar em Thomas, imaginando se estaria também a comer. Nunca tinha sabido cuidar de si próprio. Provavelmente, estava sentado à secretária a comer um donut e a beber cafés uns atrás dos outros, até ficar todo a tremer. Uma coisa era verdade: não achava que tivesse obrigação de tratar dele, ao contrário de muitos maridos que ela conhecia. Anna suspirou, encheu um jarro de leite e levou-o para a mesa.

- Mãe?

Anna voltou-se e viu Tracy, com uma T-shirt dos Fleetwood Mac e calções de desporto, de pé à porta da cozinha. Não tinham falado uma com a outra desde domingo à noite, quando Anna se retirou para o seu quarto; contudo a torrente de acusações lançadas por Tracy parecia ter-lhe feito bem, como quando um furacão rebenta e depois começa a secar. Anna sabia que a notícia da partida de Thomas ia criar uma nova onda de ressentimentos. Colocou o jarro sobre a mesa e pôs-se a rodar o botão da torradeira.

- Olá, querida. Acordaste há muito tempo? Não te ouvi.

- Agora mesmo. Onde está o pai?

«Não perdeu tempo», pensou Anna. Suspirou e disse.

- Não está cá.

Tracy foi buscar uma laranja ao cesto da fruta e começou a descascá-la.

- Teve que sair mais cedo? - perguntou com naturalidade. Arrancou um gomo e meteu-o na boca. Começou a mastigá-lo sem tirar os olhos da mãe.

Anna reparou na atitude tensa da filha. Percebeu que Tracy sabia muito bem que se passava alguma coisa. Como era possível aquela criança ser tão sensível, pensou, mas logo a seguir lembrou-se, com tristeza, que Tracy crescera lado a lado com a calamidade. Aprendera a pressenti-la, por experiência própria. Não valia a pena tentar esconder-lhe a verdade. Anna sentou-se numa das cadeiras da cozinha e pousou as mãos no tampo da mesa. Não sabia por onde começar.

Tracy resolveu-lhe o assunto.

- Que aconteceu? - perguntou, com o ar mais natural do mundo, mas Anna percebeu que a voz lhe tremia.

- Tracy, o teu pai e eu discutimos ontem à noite e ele decidiu afastar-se por uns tempos.

- O que é que isso quer dizer? - perguntou Tracy, incrédula. - Saiu de casa?

Anna preparava-se para dizer que não. Mas depois encolheu os ombros e baixou a cabeça, tentando suavizar a notícia:

- Durante algum tempo.

- Algum, quanto? Quando é que ele volta? Ao fim de uns segundos, Anna respondeu:

- Não sei.

Tracy cuspiu para a mão um caroço de laranja.

- Isso quer dizer nunca - disse.

- Não, quer dizer que não sei.

- Saiu assim, sem mais nem menos? Sem sequer se despedir de mim?

- Estavas a dormir. Ele não quis acordar-te. Vais vê-lo muitas vezes, Tracy. O teu pai adora-te. Não é contigo que está zangado.

- O que é que tu fizeste? - perguntou Tracy num tom acusador. Depois acrescentou: - Não acredito. - Ficou com os olhos cheios de lágrimas, que se apressou a enxugar.

Triste, Anna olhou para a filha, que tentava reagir com coragem à sua mais recente perda. A cena no quarto de Tracy voltou a formar-se no seu espírito, de onde praticamente nunca tinha saído. Perguntou a si própria como era possível ter-lhe feito tanto mal.

- Lamento, Tracy. Sei que vais achar que a culpa é minha

e sei que gostas muito dele; mas eu fiz o que tinha a fazer, e voltaria a agir da mesma maneira se fosse caso disso. É o que quero que o teu pai acabe por compreender, mas... bem, não sei...

- Fizeste o quê? Fizeste o quê para ele se ir embora?

Anna ainda pensou em explicar que se tratava de um assunto privado. Estava demasiado cansada para enfrentar a reacção da filha, cuja convicção de que a mãe era a culpada da sua infelicidade acabara, decerto, de ser reforçada. Mas talvez já tivessem ficado muitas coisas por dizer. Anna respirou fundo.

- Ontem, o teu pai ficou muito zangado comigo.

- Porquê? Por teres descoberto aquele homem?

- Não o descobri. Fui ter com ele. Encontrei-me com ele sem dizer nada ao pai. Ouviste a história toda ontem.

-- Pois ouvi. Ele ia contar-te uma coisa importante acerca do Paul.

- Sim - respondeu Anna com cuidado. - Pediu dinheiro pela informação e eu decidi pagar-lhe. Tudo sem falar com o teu pai.

- E o pai zangou-se por causa do dinheiro?

- Não, querida. Zangou-se porque acha que eu procedi mal. Não perguntei a opinião dele, nem a tua. Decidi tudo sozinha, sem me ralar com vocês dois. O que não é verdade, mas ele não acreditou em mim.

Tracy levou mais um gomo à boca e chupou-o, pensativa.

- Não estou a perceber - disse. Anna olhou-a de frente.

- Acha que devíamos ter ido contigo? Como?

- Não, ele acha que, se me tivesse acontecido alguma coisa, se o Rambo estivesse a mentir e me fizesse mal... acha que eu me arrisquei demasiado... pelo Paul.

Tracy abanou a cabeça e cuspiu para a mão mais um caroço. Colocou-o num cinzeiro de cerâmica que estava sobre a mesa. Depois limpou a mão à camisola:

- Está bem, mas tu precisavas de descobrir o que é que e-le sabia acerca do Paul - disse apenas.

Anna ficou pasmada com aquele inesperado apoio. Olhou para a filha, de boca aberta. Depois mordeu o lábio.

- Sim. Foi o que eu pensei. - Ia continuar mas parou, receando destruir aquela aliança tão frágil com uma série de explicações.

Tracy deixou-se cair na cadeira ao lado da mãe e deitou a cabeça no seu colo.

- Oh, é o fim - resmungou.

Hesitando, Anna pousou uma mão nas costas de Tracy i- começou a fazer-lhe festas. Tracy deixou.

- Vai correr tudo bem. Ele vai acabar por compreender. Não te preocupes - prometeu Anna, cada vez mais determinada. - Vais ver.

Apanhar o comboio da manhã era como entrar no inferno, Edward abriu a boca e recuou um passo quando a onda de calor o atingiu. Atrás dele, uma fila de homens de pasta na mão murmurava e protestava em voz baixa. Um guarda de uniforme azul desceu a coxia da carruagem.

- Entrem, entrem. Há muitos lugares lá atrás. Atenção à porta.

Edward estava de pé, fitando o condutor, quando um grupo de homens passou por ele, a resmungar e a encostar-se aos bancos. O guarda olhou para ele e antecipou as suas queixas:

- A quem o diz, amigo. Mas não se pode fazer nada. O comboio está todo na mesma, parece um banho turco.

Edward irritou-se com a atitude conformada do homem em relação à avaria do ar condicionado, mas era óbvio que o guarda se estava nas tintas.

Furioso, Edward avançou pela coxia, ocupou um lugar junto à janela e começou a despir o casaco. Praguejou contra o seu motorista, que resolvera ir de férias com aquele calor. «De hoje em diante», pensou, «nenhum dos meus criados poderá ter férias no Verão.

Instintivamente, Edward ajeitou o casaco do seu fato, para que não fosse amarrotado pelo homem que se sentou pesadamente a seu lado. Alisou-o cuidadosamente, enquanto deitava o olho ao homem, ficando espantado quando o reconheceu ^ Era Harold Stern, sócio do seu clube em Stanwich. Harold dedicara-se ao negócio dos grandes Armazéns, com o qual ganhou dinheiro, mas Edward não achava que ele merecesse ; ser sócio do seu clube. Edward desviou o olhar e fingiu que não o tinha visto.

- Olá, Edward - cumprimentou Harold, indiferente ao desprezo do outro. - Está um calor insuportável aqui dentro, não está?

Edward fez-lhe um sorriso cortês e ambos ficaram calados durante algum tempo.

- Realmente - disse Harold, quando Edward abriu seu exemplar do The Wall Street Journal-, isso que se passou com a família do Tom Lange é incrível. Dá-se muito com eles, não é assim?

Edward olhou para Harold com superioridade.

- Somos vizinhos há algum tempo, sim. Está a falar do regresso do rapaz, creio eu.

- E aquela história da mulher dele ter encontrado o rambo ontem. Dizem que ele se matou, santo Deus.

- Anna encontrou... o homem?

- A minha mulher ouviu tudo na rádio, ontem à noite. Gotas de suor formaram-se na testa de Edward e começaram a escorrer-lhe pelo rosto.

- Não compreendo. Por que raio Anna...?

- Não conheço os pormenores. Mas o jornal de hoje deve trazer qualquer coisa sobre o assunto. Eles adoram tudo o que seja tragédia, em especial a gente dos subúrbios. - Harold abriu a pasta e tirou um exemplar do Daily News. - A minha mulher pediu-me que levasse o jornal para casa logo, a fim de ler a notícia. Comprei-o na estação.

Edward observava, horrorizado, enquanto o seu companheiro de viagem procurava entre as notícias escandalosas inundadas na primeira página.

- Aqui está ela - disse Harold. - Página três.

- Deixe-me ver - pediu Edward com urgência.

- Espere um segundo - respondeu Harold, franzindo a testa enquanto lia.

- Deixe-me ver - insistiu Edward, numa voz estridente. Harold olhou-o surpreendido.

- É que somos amigos. Vizinhos. Fico muito chocado explicou Edward, arrancando o jornal das mãos de Harold.

Harold largou o jornal e Edward leu a descrição, os porim-nores suficientemente terríveis para ameaçarem o seu pról>iio futuro. O rosto de Edward tornou-se cada vez mais pálido, e as palavras pareciam dançar à sua frente. Por instantes imaginou uma falange de polícias à sua espera, quando saísse da carruagem na Grande Estação Central. Tinha o coração aos pulos e o estômago às voltas.

Harold Stern reparou na forma como Edward devorava o jornal.

- Meu Deus! Está com muito mau parecer. Sente-se bem? Edward agarrou o jornal com tanta força que a tinta deixou pretos os seus dedos húmidos.

- Estou óptimo. A notícia é que é terrível.

- Bem, podia ser pior. Pelo menos, ninguém sofreu. Só o irado.

- É do calor - disse Edward, devolvendo-lhe o jornal e virando-se para a janela. Como tinha Anna conseguido encon trar Rambo? com certeza falara com ele. E o que é que Rambo lhe contara? Tinha que voltar a Connecticut e procurar saber. Para começar, não ia sair na Grande Estação Central. Dava meia volta e apanhava o comboio seguinte. Se é que a polícia não estava já à sua espera, disse para consigo.

- Malditos comboios - protestou Harold, irritado. Ainda nos deviam pagar por andarmos neles.

- Quase não se consegue respirar - disse Edward, escondendo o punho trémulo sob a outra mão.


                         CAPÍTULO 13

Um telefone tocou e Anna viu a enfermeira, que estava sentada à secretária, atendê-lo e falar em voz baixa. O olhar inquieto de Anna vagueou pela sala de espera. A um canto, duas meninas muito bem vestidas disputavam aguerridamente um jogo. Numa cadeira perto delas, um homem de cabelo ruivo, com calças de caqui e camisola Lacoste, olhava ora para a porta, ora para o seu relógio de pulso.

Numa cadeira perto da janela, uma mulher forte, de vestido às flores, folheava a Ladies’ Home Journal, erguendo de vez em quando os olhos.

Anna suspirou e olhou para o relógio. Já tinham passado quase quarenta minutos desde que Paul entrara para ser observado pelo médico de família. Porque estaria o Dr. Derwent a demorar tanto?

- Mistress Lange - chamou a enfermeira num tom de voz agradável, pousando o auscultador do telefone. - O doutor Derwent quer falar consigo no gabinete. - com a mão, indicou uma porta fechada. Anna sorriu e levantou-se do sofá, sentindo um peso nas pernas. Uma das crianças começou a chorar.

Anna entrou no gabinete, forrado de diplomas e estantes com livros, onde o médico dava as suas consultas. Sentou-se, nervosa, numa cadeira de couro negro ao lado da secretária e aguardou. Daí a pouco tempo, a porta abriu-se e o médico entrou, com o seu rosto sério e os seus óculos. Apertou um ombro de Anna antes de se sentar no seu cadeirão.

- O Paul já aí vem, Anna - disse. - Está a vestir-se, Anna tentou, em vão, adivinhar o que escondia aquele

rosto familiar, mas inexpressivo.

- Como está ele, doutor? - perguntou, receando a resposta.

O Dr. Derwent recostou-se no seu cadeirão.

- Bem, fiz-lhe uma série de exames, mas só teremos o resultado daqui a uns dias, claro.

Anna encolhia e esticava os dedos, de cabeça baixa.

- Compreendo.

- No entanto, pelo que pude observar esta manhã, posso dizer-lhe que não tem nada a recear, Anna.

Anna levantou a cabeça de repente, com os olhos muito abertos, incrédula.

- Ele está bem? - perguntou em voz baixa. - O médico levantou uma mão.

- Não sou da especialidade, como sabe. Mas a presença de um tumor no cérebro é algo que pode ser detectado por um exame aos olhos do doente. Ora, eu recolhi sangue para análise, tirei algumas radiografias e testei os reflexos dele. Ainda gostava de ver outros exames, que têm de ser feitos no hospital, como uma ressonância, por exemplo. Mas até agora parece-me tudo normal. Sei que não devia dizer-lhe isto antes de ver o resultado dos exames, contudo conheço-a há muito tempo e quero descansá-la.

- Mas então não percebo - disse Anna. - As dores de cabeça, os desmaios. As náuseas...

- Há muitas razões, que não físicas, para uma pessoa ter dores de cabeça, Anna. O rapaz tem vivido debaixo de grande tensão. É evidente que está exausto. Precisa de repouso.

- Tem imensos pesadelos - disse Anna.

- Posso dar-lhe qualquer coisa para dormir. E vá ter comigo amanhã à tarde ao hospital para se fazerem os outros exames.

Anna olhou-o intrigada.

- Não sei que pensar.

- Anna, esteja à vontade para o levar a um especialista se isso a deixar mais descansada. Mas acho que é uma maçada para o rapaz, além de que a Anna vai ter de pagar uma fortuna para ouvir o mesmo que eu lhe estou a dizer.

Anna sacudiu a cabeça e olhou-o com um sorriso, pouco comvencida.

- Não sei como agradecer, doutor. São óptimas notícias. O médico deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Fico contente por só ter boas notícias a dar-lhe. Anna levantou-se ainda trémula.

- Amanhã ele vai fazer os tais exames.

-- Anna - disse o médico, erguendo-se -, era boa ideia levá-lo a um psicólogo. Tudo isso pode ter uma origem emocional. E olhe que o caso não é para menos.

- Falei nisso ao Tom, antes mesmo de Paul voltar para casa - disse Anna. - Ele disse logo que era contra. Achou melhor que tudo voltasse ao normal sem a interferência de terceiros.

-- Pois volte a falar-lhe nisso - aconselhou o médico. Pode dizer que fui eu que sugeri.

Anna fez que sim com a cabeça, sem querer explicar que tom saíra de casa. Abandonou o gabinete e voltou à sala de espera, meio atordoada.

Óptimo. Ele está óptimo. Anna esperou que o inesperado diagnóstico entrasse na sua cabeça, mas sentia-se dormente. Erguera um muro defensivo em volta do seu coração, para ser capaz de ouvir tudo o que o médico tivesse a dizer sem se ir abaixo. Sobrevivera a todos aqueles anos, não podia sucumbir agora.

«Ele está bem», repetia para consigo. «Não tem um tumor no cérebro. Estavas tão preparada para o pior que agora nem és capaz de meter na cabeça as boas notícias.» Anna levantou a cabeça e reparou que as pessoas que estavam na sala de espera a olhavam com curiosidade.

Tentou sorrir, como para dizer-lhes que tinha recebido boas notícias. «Eu estou contente», recordou. «Ele está bem. Já passou. Não há mais nada a temer.» Por momentos, pensou que tom tinha afinal toda a razão nas acusações que lhe fazia. Ela é que só sabia viver com ansiedade. A preocupação talvez fosse um fim em si mesma, um modo de vida, o seu. Devia dar pulos de alegria. Quando pensou nisso, um fio de felicidade e alívio finalmente atravessou-a.

«É apenas uma reacção que tarda em chegar», disse para consigo. «Quando chegares a casa, vais senti-la. vou com ele ao cinema», pensou, «ou onde ele quiser.»

- Olá - disse uma voz calma.

Anna sobressaltou-se e olhou para o rosto magro do seu filho.

- Paul! Como te sentes?

- Bem - respondeu ele. - Já podemos ir para casa?

Thomas olhou o monte de gravatas de seda que estavam em cima do balcão da secção de acessórios para homem. Pegou numa e observou-a distraidamente. Depois voltou a pousá-la junto das outras e afastou-se.

De pé entre duas vitrinas de vidro, Thomas parecia um tronco caído no meio de*um ribeiro rápido, cercado por clientes que iam e vinham com os seus sacos de compras na mão. O seu olhar deteve-se no relógio de moldura dourada, por cima dos elevadores, e calculou quanto tempo lhe restava da hora do almoço. Mas os algarismos do mostrador não lhe disseram nada, sentia-se atordoado. Uma jovem com aspecto decidido, de calças e camisola verde-escuras, passou por ele e disse «com licença» num tom irritado. Deixou um rasto de perfume atrás de si que Thomas reconheceu de imediato. Era o mesmo perfume que escolhera para Anna, no aniversário do casamento deles, uns anos atrás, e que ela nunca mais deixara de usar. «Desculpe» murmurou Thomas, mas a mulher de verde já tinha desaparecido.

- Acho que esta fica bem - disse Gail, aparecendo ao lado dele com uma gravata de seda às riscas castanhas na mão. Ao ver a expressão aflita de Thomas, sorriu:

- Que foi? Pareces que vens da guerra.

- Isto está cheio de gente.

- É sempre assim à hora do almoço - respondeu ela, com indiferença.

- Vamos sair daqui.

- E a gravata? Precisas duma para pôr com o fato cinzento. Tu é que o disseste. Mas ainda não compraste nenhuma.

Thomas encolheu os ombros:

- Acho que devia estar na lua quando fiz as malas. Gail sentiu um ligeiro aperto no estômago ao ver o olhar distante dele. Passou os olhos pela gravata que tinha na mão e perguntou:

- Que achas desta? Ficava lindamente. Thomas olhou para a gravata sem entusiasmo:

- Sim, essa é óptima. Vamos pagá-la e sair daqui - pôs a mão no bolso para tirar a carteira, mas Gail não deixou.

- Fica por minha conta - disse, animada. - É um presente.

Thomas sorriu-lhe.

- Espera por mim lá fora - disse, enxotando-o.

- Obrigado. Vai ter comigo à Saint Pat’s.

Viu-a ir para a fila junto ao balcão onde uma senhora, de aspecto impecável e óculos presos numa corrente à volta do pescoço, falava calmamente ao telefone. Thomas abriu caminho entre as hordas de clientes apressados, empurrou a porta giratória e saiu para a Quinta Avenida.

No passeio, as pessoas acotovelavam-se como lá dentro, mas ao menos ali estava ao ar livre. Inspirou o ar húmido do Verão, que cheirava a cachorros-quentes e tubos de escape.

Thomas atravessou a rua em direcção à Catedral de St. Patrick e sentou-se nos degraus da entrada, sem se preocupar com o seu fato bem passado a ferro. No canto oposto, um negro de camisola vermelha realizava o truque dos três montes de cartas diante de uma multidão de crédulos transeuntes. Atrás dele, uma família porto-riquenha posava orgulhosamente para uma fotografia com o pórtico da catedral em fundo. Thomas observou o pai, de camisola desportiva amarela, bigode fino e óculos de aros pretos, a dizer aos filhos onde deviam colocar-se para a fotografia de família. A mãe pôs um braço protector nos ombros dos seus rapazinhos, enquanto com o outro segurava ao colo um bebé. O pai, depois de muitos gestos impacientes com as mãos, indicou, com um sorriso largo e um aceno de cabeça, que aquela era a disposição que desejava captar com a sua objectiva. Carregou no botão e ouviu-se um estalido. Os fotografados descontraíram-se e romperam às gargalhadas.

Meia dúzia de pombos levantou voo, batendo ruidosamente as asas.

Thomas virou as costas à família e olhou para o outro lado da rua, para a cabina telefónica ocupada. «Já devem ter saído do médico a estas horas», pensou. Tinha passado toda a manhã a interrogar-se, com uma insistência inesperada, sobre qual seria o problema de Paul. Não lhe agradava nada que Anna recebesse sozinha más notícias, se é que as havia. Apercebeu-se, com uma dolorosa sensação de culpa, de que a sua súbita partida na véspera devia tê-la feito passar a noite em branco. Agora estaria com certeza exausta. Conseguiu imaginar o seu olhar fatigado. «Quiseste castigá-la», disse para consigo. E de facto na noite anterior foi o que pensou que ela merecia. Mas a manhã trouxera-lhe o desejo de estar perto dela.

O paquete que estava na cabina telefónica, do outro lado da rua, pousou o auscultador e, transferindo os envelopes para a outra mão, dirigiu-se para a paragem do autocarro. Chocalhou as moedas que tinha no bolso, distraído. Pelo canto do olho, Thomas viu que Gail subia as escadas para ir ter consigo. Trazia um embrulho achatado debaixo do braço e vinha a partir uma bolacha ao meio. Estendeu-lhe a outra metade, mas Thomas recusou-a.

- Aquela empregada ia-me fazendo perder a cabeça disse Gail. - Estava a ver que nunca mais largava o telefone.

- Não há nada como a persistência, estou a ver - respondeu Thomas, voltando a olhar para a cabina telefónica.

Gail entregou-lhe a caixa e ele bateu-a contra a anca.

- Acho que está na hora de regressarmos - disse Thomas.

Gail concordou e os dois começaram a descer os degraus. Thomas sentia que a jovem o observava, à espera de um sinal de que ele tinha gostado de saírem juntos. Não queria magoá-la, mas não conseguia afugentar a melancolia que se apoderara de si. «Não é bem esta a cena quando um homem vai dar uma volta com a sua nova amante», pensou. Estava tão pensativo que não conseguia concentrar-se nela.

- Há um restaurante mexicano óptimo no meu bairro disse Gail, alegre. - E se fôssemos lá jantar?

- Acho boa ideia - respondeu Thomas, com um entusiasmo forçado.

Ouviam-se os saltos altos de Gail bater na pedra enquanto desciam as escadas. A meio do caminho, ela viu um cesto de papéis a um metro de distância. com um gesto certeiro, atirou lá para dentro o resto da bolacha.

Thomas apertou-lhe o braço e sorriu.

- Equipa de netball da faculdade - confessou ela com um ar divertido.

Thomas sacudiu a cabeça:

- És uma maravilha. Há alguma coisa que não saibas fazer?

Gail não respondeu, mas com um sorriso franco e sincero deu-lhe o braço e agarrou com força a mão dele.

- Cucu, cucu, bebé, olá - dizia o avô babado, enquanto o seu bafo formava uma nuvem em frente da vidraça da janela. Gus deBlakey acenava vigorosamente ao recém-nascido, embrulhado num cobertor macio, que a enfermeira de máscara na cara levantava nos braços. A janela abafava o choro dos outros bebés, que agitavam os seus pequenos punhos e pés vermelhos. O neto de Gus piscou os olhos, bocejou, mas não chorou enquanto a enfermeira o mostrava ao avô.

- Mas que bebé lindo. És, sim, pois és - Gus exultava, com o rosto distorcido por um sorriso de orelha a orelha, enchendo a pele de pregas que escondiam os olhos. - És um .mjinho, um autêntico anjinho.

- Perdão, é Mister deBlakey?

Gus desviou com relutância os olhos da janela e virou-se para o homem simpático e bem vestido que estava a seu lado.

- Sim, o próprio - respondeu. - Algum destes é seu? Buddy Ferraro fez que não com a cabeça e Gus lançou um

último olhar ao bebé que a enfermeira estava prestes a devolver ao berço. A criança desatou a chorar em coro com os seus colegas, assim que se viu em cima do lençol.

- Faça-me companhia - disse Gus, tirando do bolso da camisa um charuto. - O pai dele está na estrada, com o camião, portanto tem que ser o avô a fazer as honras da casa entregou o charuto a Buddy, que o enfiou no bolso do casaco.

- Desculpe incomodá-lo, Mister deBlakey, mas preciso de falar consigo.

Gus olhou desconfiado para Buddy, com os lábios cerrados.

- Mais um chui - disse com resignação.

- Passei pelo motel e uma criada disse-me que o encontrava aqui.

- Não me diga - continuou Gus, mordendo a ponta do charuto e cuspindo-a para a palma da mão -, que é outra vez por causa do Rambo. Mas que sarilho ele me foi arranjar!

- Infelizmente tem razão.

Gus olhou uma última vez para os bebés, que se retorciam e gorgolejavam no seu sono ligeiro de recém-nascidos. Demo rou algum tempo a localizar o menino dos seus olhos.

- Não é uma beleza? - perguntou.

-: Um belo rapaz - concordou Buddy.

- Ora bem - murmurou Gus. - Vamos até lá fora. Aqui não se pode fumar - acenando com o seu charuto, Gus desceu o corredor e entrou na sala de espera. - Pensava que já vos tinha contado tudo o que havia para contar - resmungou Gus, e Buddy detectou a sensação de importância que ser testemunha de um crime confere a muitas pessoas.

- Não sou de Kingsburgh - esclareceu Buddy. - Sou de Stanwich, onde vivem os Lange.

- Ah - disse Gus.. - Isso é uma novidade. Bem, que deseja saber?

Agora, que tinha conseguido prender a atenção’ do homem, Buddy não sabia ao certo o que queria dele. Não acreditava que a morte de Rambo fosse suicídio, por duas razões. Uma era a impressão que tinha na barriga, que lhe dava um certo mal-estar. A outra, mais específica, era a conclusão do médico-legal, segundo o qual Albert Rambo pintara o cabelo justamente nesse dia. Apesar de todas as provas apontarem para suicídio, esse facto não jogava certo. Não compreendia por que motivo um homem, mesmo um louco como Rambo, havia de pintar o cabelo antes de pôr termo à vida. Isso e a sensação que tinha na barriga estavam a tirar-lhe o sono. Naquele instante devia estar a caminho da universidade de Mark, mas pedira à família para esperar, enquanto ele ia espicaçar a memória do proprietário do motel.

- Estou a tentar descobrir se, por algum acaso, Rambo recebeu outras visitas, se alguma coisa suspeita aconteceu enquanto ele esteve alojado no seu motel.

- Não - respondeu Gus. - A única pessoa que o visitou foi essa Lange. Que eu saiba.

- Não viu nenhum carro desconhecido na zona, nem nada parecido?

- Meu amigo, aquilo é um motel. Há sempre carros desconhecidos.

- E quando arrumaram o quarto?

- Nada - respondeu Gus. - Aliás, a polícia fez uma lista das coisas que ele lá deixou. Levaram toda a tralha dele. Provavelmente deixam-no vê-la.

- Já vi - suspirou Buddy.

- Bem - disse Gus, encolhendo os ombros. - Gostava de lhe ser útil.

- Eu sei - respondeu Buddy -, eu sei. Escute, eu tenho de ir para fora uns dias, levar o meu filho à universidade, mas vou deixar-lhe o meu cartão. Está lá o meu nome e o número de telefone da polícia em Stanwich. - Buddy tirou da carteira um cartão e estendeu-o a Gus que imediatamente pegou nele. Depois enfiou-o no bolso.

- Caso se lembre de alguma coisa, mesmo que lhe pareça um disparate ou sem importância, dá-me uma apitadela?

- Esteja descansado - respondeu Gus -, só não percebo é porque é que está tão preocupado com este tipo, depois do que ele fez ao miúdo. Cá para mim foi um alívio.

Buddy fez uma careta.

- Sabe, andei tanto tempo atrás dele que não vou desistir com facilidade.

- Como queira - disse Gus. Tirou o relógio de pulso da algibeira e consultou-o. - Está quase na hora de levarem os bebés às mães.

- Eu tenho de ir embora, não o demoro mais. A minha mulher e o meu filho estão à minha espera.

Gus apagou com cuidado o charuto no cinzeiro e voltou a guardá-lo no bolso.

- Se me lembrar de alguma coisa, eu digo-lhe.

Obrigado - disse Buddy. Carregou no botão e viu Gus passar pela porta giratória em direcção à maternidade. Um jovem macilento, com a barba por fazer e um blusão dês portivo amarrotado, passou por Gus e deixou-se cair numa das poltronas do átrio, escondendo o rosto com as mãos. Buddy fitou o algarismo luminoso por cima da porta do elevador para evitar olhar para o homem sentado na cadeira. Quando a campainha tocou, a anunciar o andar em que estavam, Buddy ouviu atrás de si o som arrepiante dos soluços abafados do jovem.

 

                                     CAPÍTULO 14

Uma sanduíche de atum meio comida repousava no prato, ao lado de algumas batatas fritas. Anna pegou no prato e colocou-o na bancada, ao lado do lava-louça. Quando tinham chegado do hospital, Paul dissera que não tinha fome, mas assim que ela lhe pôs a sanduíche à frente, o rapaz comeu-a quase toda. Depois fora para o quarto descansar.

«vou engordar-te», pensou Anna. «É o meu projecto prioritário, agora que sei que não tens nenhum problema de saúde.» Nenhum. Sentiu um frémito de felicidade ao recordar o veredicto do médico, que finalmente começava a entrar na sua cabeça. Ele ia ficar óptimo. Forte, saudável. E com a morte de Rambo nada mais havia a recear. Anna encostou-se ao lava-louça, a agradecer as suas bênçãos. O seu filho estava são e salvo. Nunca mais ia preocupar-se, apesar das previsões contrárias de Tom. Deixar de se preocupar, concentrar-se em organizar a sua vida.

Um ruído em frente da casa chamou a sua atenção. Atravessou a casa de jantar e a sala em bicos de pés e, junto às escadas, parou, agarrando-se ao corrimão. Aguçou os ouvidos, mas lá em cima reinava o maior dos silêncios. «Ele está óptimo», repetiu para consigo. E ainda vai ficar melhor. Pensou qual seria a reacção de Thomas, quando soubesse. Sentiu-se desanimada, apetecia-lhe partilhar a novidade com o marido.

Deteve-se junto ao telefone, no vestíbulo, com a mão suspensa sobre o auscultador. Seria uma maneira de reatar o contacto com ele, de lhe dar a entender que continuava a querer partilhar a vida com Tom. Mas lembrou-se do que lhe dissera acerca de Paul: que era um estranho.

Abanando a cabeça, Anna dirigiu-se, cheia de determinação, à cozinha. Foi até ao lava-louça e com um garfo empurrou o resto da sanduíche para o triturador do lixo, seguindo-se as batatas. Não gostava nada de usar o triturador. Detestava pensar que havia uma espécie de dentadura dentro do seu lava-louça, tão poderosa que era capaz de desfazer com a mesma facilidade uma peça de prata ou uma tira de barro. Mas Thomas insistira nisso, anos atrás, quando reformaram a cozinha, para lhe facilitar a vida. Anna suspirou e raspou os restos para dentro do tubo de borracha. Depois abriu a torneira e carregou no botão.

, O triturador começou a funcionar, com um alarido estri dente que fez Anna estremecer, como sempre. Reparou que um naco de pão continuava no lava-louça. Empurrou-o para a entrada do tubo, sabendo que tinha de retirar a mão, assim que aquele desaparecesse. Já tinha visto garfos ficarem feitos num oito por aquela coisa. Nem queria pensar no que faria a um dedo humano. De repente, sentiu uma mão no ombro, pressionando-a para a frente. Deu um grito e, agarrando-se ao lava-louça, virou a cabeça de repente.

Edward Stewart levantou as mãos, pedindo desculpa e tentando falar, apesar da barulheira. Recomposta do susto, Anna desligou a máquina com as mãos a tremer.

- Edward! - exclamou, encostando uma mão ao peito, como para desacelerar o coração. - Não o ouvi entrar.

- A porta da frente estava aberta.

- Ah! - disse ela, respirando fundo. - Estava a sonhar acordada. Mas sente-se, sente-se - tirou uma pilha de panos da louça lavados e engomados de cima de uma das cadeiras da cozinha. Deu uma olhadela à sua visita, que estava de fato e gravata. Por cima do colarinho branco, um rosto igualmente pálido. Vê-lo ali sentado enervou-a. Era a primeira vez, desde que se conheciam, que Edward vinha a sua casa sozinho.

-- Hoje não vai trabalhar? - perguntou Anna. -• Não havia muita coisa que exigisse a minha atenção, portanto vim cedo para casa.

Anna concordou com a cabeça, embora estivesse espantada. Sabia muito bem que Edward era um empresário exigente, que passava o máximo de tempo possível no escritório. Ela e Tom, às vezes, achavam que Edward e íris nunca se viam.

- Anna, vim cá para saber se estava tudo bem. Li aquela notícia incrível, no jornal desta manhã, acerca do que lhe .iconteceu ontem.

«Então é isso», pensou Anna, ao mesmo tempo admirada e sensibilizada pela atenção dele. Até o inabalável Edward ficara chocado com aquele súbito desenlace. Talvez fosse humano, afinal.

- Foi angustiante - admitiu ela. - Foi muito amável passar por cá.

- Eu... nós não fazíamos ideia de que tinha sido contactada por aquele homem horroroso. Que lhe disse ele?

Anna esfregou os olhos com as mãos.

- Ah... um horror. Falou comigo no parque de estacionamento no outro dia. No domingo, creio eu.

- Domingo - murmurou Edward, fazendo as contas mentalmente -, no dia da nossa festa.

- Disse que tinha uma coisa para me contar acerca de Paul, que Paul corria perigo. E pediu-me dinheiro por essa informação.

- Que grande susto - comentou Edward.

- A quem o diz! Tem a certeza de que não quer tomar nada? Uma cerveja, uma água, qualquer coisa?

- Não, nada - respondeu Edward, com pressa. - Foi só isso que ele lhe contou?

- Supliquei-lhe que me dissesse mais, mas não consegui nada.

Edward teve vontade de rir de alívio, mas manteve uma expressão séria.

- Mas porque foi ter com ele? Porque é que não chamou a polícia?

- Bem, para ser franca, eu também suspeitava que houvesse um problema qualquer.

Edward agitou-se na cadeira. Começou a massajar rapidamente as costas da mão esquerda com a direita.

- Não estou a perceber.

- Relacionado com o Paul. Ele não tem estado... quero dizer, ele não anda bem de saúde, como sabe. Aquele incidente na festa não foi o único. Tem dores de cabeça terríveis, pesadelos. Desde que... voltou para casa. Pensei logo... no pior. Como calcula...

Que coisa horrível. Bem, mas quando lá chegou o homem estava morto. Não chegou a contar-lhe nada.

- Pois não. Foi um grande choque. Mas levei Paul ao médico esta manhã e o doutor Derwent fez-lhe uma quantidade de exames. Ainda não tem os resultados todos, mas na opinião dele, Paul está óptimo, não há razão para me preocupar.

- Deve ter sentido um grande alívio.

Senti - respondeu Anna. - Senti. Um alívio enorme.

- Bem - disse Edward -, o melhor que tem a fazer é esquecer tudo o que se passou. Deixar que a vida retome o seu curso normal - e levantou-se da cadeira.

- Tem razão - concordou Anna.

Por favor, diga ao seu filho que vim cá saber dele.

- Digo, claro - garantiu Anna. Achava aquele interesse por Paul curioso, mas ao mesmo tempo enternecedor, pois revelava uma faceta da personalidade de Edward que Anna desconhecia. Sempre partira do princípio de que os Stewart não tinham filhos por opção. Agora já não tinha tanta certeza. Edward dirigiu-se para a porta da entrada e Anna foi atrás dele.

- E não se esqueça - disse ele -, se precisar de alguma coisa, pode contar connosco. A íris e eu estamos sempre...

Um grito aflitivo interrompeu a conversa. Anna correu para as escadas.

- É o Paul - disse.

- Que aconteceu? - perguntou Edward.

Anna subiu os degraus a dois e dois. Edward seguiu-a, sustendo a respiração. Anna atravessou o corredor e abriu de rom pante a porta do quarto do filho. Paul estava deitado, completamente vestido, em cima da colcha de xadrez, gesticulando e soltanto gemidos intermitentes. Anna sentou-se à cabeceira da cama e pegou numa das suas mãos suadas. com a mão livre, afastou-lhe o cabelo molhado da testa. Os olhos do rapaz estavam abertos, mas baços, não a viam. Anna começou a falar-lhe em voz baixa.

Em bicos de pés, Edward aproximou-se.

- Está acordado? - segredou. Ao ouvir a voz de Edward, Paul virou a cabeça na direcção dele, como um invisual.

- Que foi - murmurou Anna -, tiveste um pesadelo? O olhar vago de Paul pousou uns instantes no rosto de Edward. De repente, começou a ganir como um animal preso numa armadilha, enquanto tentava libertar-se das mãos de Anna, rastejando pela cama para longe dela.

- Socorro! - gritou. - Socorro! - A palavra era quase indecifrável naquela voz desesperada.

- Está tudo bem - disse Anna. - Já passou.

O rapaz agarrou-se à cabeceira da cama, com os olhos assustados cravados em Edward e a gritar:

- Socorro, não me deixe aqui sozinho.

- Paul - disse Anna levantando a voz, agarrando-o pelos pulsos e sacudindo-o -, acorda. Pára com isso. - Concentrada no filho, Anna não reparou que o seu vizinho continuava de pé atrás dela, pregado ao chão, com o rosto cinzento coberto de gotas de suor e os olhos esbugalhados. Como um homem diante de uma cascavel, Edward começou a recuar, com os olhos fixos na fera à sua frente.

- Por favor, Paul - suplicou Anna.

O rapaz inclinou a cabeça para trás e desfaleceu nos braços da mãe. A pouco e pouco despertou. Piscou os olhos, olhou para Anna e encostou-se à cabeceira da cama.

- Que aconteceu? - perguntou. Anna largou-lhe os pulsos.

- Tiveste um pesadelo... outra vez.

- Ah! - gemeu Paul. Saiu sozinho da cama. - Ah, sim. Pois foi. Já me lembro.

- Que sonhos são esses que te assustam tanto?

Paul foi até à secretária e olhou para o espelho. Começou a alisar os cabelos desgrenhados com as mãos e quando encostou as palmas à testa, o seu rosto contorceu-se numa careta.

- É sempre o mesmo - disse.

- Lembras-te dele?

- Lembro-me de umas partes. Sei que estou deitado no chão e um grande pássaro vem a voar por cima de mim e mer gulha na minha direcção. com as garras esticadas, percebe? Mete muito medo.

- Só isso?

- Não. Há mais coisas. Um homem avança para mim. Inclina-se para mim. Às vezes parece mesmo que é verdade! exclamou Paul, surpreendido com as suas próprias palavras.

- E o que é que o homem faz?

- Não sei. Mas sei que vai fazer-me mal. Tenho a certeza. E quase consigo ver a cara dele, só que não se vê toda.

Paul estremeceu e abanou a cabeça.

- Sempre que estou quase a adormecer...

- Deve ser horrível - observou Anna -, acordar com esse pesadelo constantemente.

Paul encolheu os ombros. .„,

,     - Nós assustámo-nos a valer - disse Anna. Paul olhou para ela.- «Nós» quem?

- Mister Stewart e eu... -- respondeu Anna, olhando em volta. Parou ao ver que Edward já não se encontrava no quarto. - Deve ter ido para casa. Viu como estavas aflito e não quis intrometer-se. Ele tem sido muito atencioso contigo, Paul.

- Sim - concordou o rapaz.

No corredor, Edward ouvia perfeitamente as vozes deles, mas não conseguia mexer-se. Parecia que o suor lhe colava os braços ao corpo; o coração batia descompassadamente, tão depressa que quase o impedia de respirar. Sentiu vontade de urinar e uma fraqueza no estômago como se fosse desmaiar.

Ao ouvir Anna conversar com o rapaz, pensou que tinha descurado um pormenor importante. De tão preocupado que andava com Rambo, nunca mais pensara no rapaz. O miúdo parecia não se lembrar dele, mas isso podia mudar um dia. E se tudo lhe viesse à memória e resolvesse despejar o saco... Edward sentiu um nó no peito só de pensar nisso. Anna era fanática em relação àquele rapaz. Toda a gente sabia. Se ele fosse acusado por aquele fedelho, ela não lhe daria descanso.

Havia de perseguir a verdade até às últimas consequências e só ficaria satisfeita quando o visse de rastos.

O tipo de história que faria as delícias da imprensa. Um homem com a sua posição, destruído pelas acusações de uma criança. A coisa não teria fim. Todos os que o invejavam rejubilariam ao vê-lo arruinado. Agora tudo lhe parecia óbvio. A eliminação de Rambo não o protegia completamente.

Edward sentiu-se quase a desfalecer, só queria apanhar ar, sentar-se, sair dali. Não podia deixar que o vissem naquele estado. Colocando automaticamente um pé à frente do outro, dirigiu-se silenciosamente para as escadas. Tinha sido uma sorte, pensou, estar ali, ouvir o que ouviu. Aquilo fizera-o finalmente ver as coisas como deve ser, e já não era sem tempo.

Enquanto descia as escadas o mais silenciosamente que lhe era possível, pensou que, bem lá no fundo, sempre soubera. No minuto em que ouviu dizer que o rapaz ia voltar para casa, pôs a hipótese de vir a ser preciso silenciá-lo. Agora tinha a certeza. Não havia alternativa.

Um fluxo contínuo de pessoas passava diante das portas de vidro da cabina telefónica do átrio do arranha-céus. Dactilógrafas, com os lábios pintados de vermelho-vivo, batiam os seus saltos altos e riam a caminho do metropolitano. Homens discretos, todos iguais, e algumas mulheres de saia e casaco e pasta na mão, bem como os empregados do edifício, fardados de verde-bandeira, passavam ignorando as cabinas escurecidas.

Thomas sentou-se na do meio, protegido do barulho pelas portas de vidro. Estava abafado lá dentro e sabia que tinha de se decidir depressa. Gail devia estar a sair e com ela por perto nunca conseguiria fazer aquela chamada. Quando chegassem a casa dela, já seria demasiado tarde.

Voltou a lamentar ter ficado lá a dormir. Quando acordou naquela manhã, não teve dúvidas de que Gail interpretara mal o facto de ele ter aceite o convite. Decidiu mudar-se para um quarto de hotel.

Gail não seria capaz de pressioná-lo, o que, aliás, era o que mais lhe agradava nela. No entanto, não ia gostar de ouvi-lo telefonar a Anna.

Só queria falar com ela. Mais nada. Saber como tinha sido a consulta de Paul. E como estava Tracy. Tinha partido sem sequer se despedir da filha. Pegou no auscultador e vasculhou a pasta à procura do número do cartão de crédito.

Discou o número de sua casa e esperou que a operadora dissesse alguma coisa. Talvez Anna não quisesse falar consigo. Podia muito bem acontecer. Thomas sentiu uma dor no estômago, só de pensar nisso. Nunca suportara ver Anna zangada consigo. Uma das razões pelas quais se tinha apaixonado por ela era o facto de estar sempre de bom-humor e ser tão fácil fazê-la rir. Nas raras ocasiões em que Anna se zangava, ele voltava a ser uma criança, impotente diante das fúrias constantes da sua mãe.

A operadora interrompeu-lhe os pensamentos, afastou os seus demónios. Thomas ditou-lhe o número e aguardou pelo toque do telefone. «Um homem tem o direito de saber como estão os seus filhos», pensou. «Eles são meus filhos.»

O telefone tocou algumas vezes e uma sensação estranha, desagradável, invadiu-o. Ainda bem que estava sentado, não confiava muito na firmeza das suas pernas. Tão depressa desejava que ela não atendesse, como entrava em pânico com a perspectiva de não conseguir falar-lhe.

- Está lá.

Thomas sobressaltou-se e pensou em desligar. Aclarou a garganta.

- Anna?

- És tu - disse ela pouco entusiasmada. - Olá.

Na sua voz havia prudência, mas não rancor. Thomas respirou fundo e continuou.

- Interrompi alguma coisa?

- Não, estava só a arranjar uns legumes.

Parecia que estava a vê-la na cozinha, a olhar para o jardim, por cima do parapeito da janela.

- Que queres? - perguntou Anna num tom neutro.

- Bem, eu... eu tenho estado todo o dia a pensar no mesmo. Sempre foste com o Paul ao médico?

- com o Paul? - Agora o tom dela pareceu a tom de desconfiança. - Sim, fui com ele ao médico.

- Fiquei curioso. O que é que ele disse?

- Disse... levei-o ao doutor Derwent e na opinião dele o Paul está de excelente saúde. Amanhã vai fazer-lhe mais exames, mas afirmou que não tem um tumor nem nada do género.

- Mas isso são óptimas notícias. - Ficou espantado com o tom genuinamente aliviado das palavras dela.

Anna hesitou.

- Sim, óptimas notícias, só que esta tarde voltou a ter um daqueles pesadelos. Acordou a gritar e a suar em bica. Bem continuou ela com frieza -, creio que isso já não te interessa.

Thomas quis protestar, dizer que, claro, lhe interessava, mas a frieza da voz dela demoveu-o. Fez-se silêncio na linha durante uns segundos.

- Como está a Tracy? - perguntou ele por fim.

- Está bem. Expliquei-lhe que tu e eu tínhamos discutido e compreendeu.

- Posso falar com ela?

- Ela não está. Foi jantar a casa da Mary Ellen e depois vai directamente para o Abrigo de Animais.

- Já me esquecia, ela trabalha hoje à noite.

- E tu como estás? - perguntou Anna após uma pausa.

- Óptimo.

- Ainda bem - disse Anna. Não era nada hábito dela não lhe fazer mais perguntas. Thomas sentiu, um pouco assustado, que a conversa estava a chegar ao fim.

- Anna - disse atabalhoadamente. - Acho que devíamos conversar.

Ela hesitou e o silêncio fê-lo estremecer. Depois respondeu pausadamente:

- Eu também.

Uma onda de alívio percorreu-o e teve vontade de beijar o auscultador.

- Muito bem. Quando?

- Não me apetece discutir esses assuntos ao telefone disse Anna.

- Não, ao telefone não - apressou-se ele a concordar. Podíamos encontrar-nos.

- Está bem.

Thomas sentiu que na voz dela também havia algum alívio.

- Que tal esta noite? Apanhavas o comboio e vinhas até à cidade. Eu marco uma mesa naquele restaurante italiano de que gostamos tanto, no West Side.

- Esta noite?

- Sim. Jantávamos e conversávamos.

- Esta noite não sei.

- Mas porquê? - tom calou-se magoado com a relutância dela.

Do lado de lá da linha, Anna pensou em Paul, exausto após um dia de exames e pesadelos. Não lhe agradava deixá-lo sozinho em casa. Sentia-se dividida, mas não podia usar Paul como desculpa. Isso ainda iria separá-los mais. Tinha de fazer um esforço.

- Está bem, então - disse. - vou ter contigo ao tal restaurante. Na Rua Setenta e Quatro, não é? Posso lá estar às dezanove e trinta.

- Óptimo - respondeu ele. Seguiu-se uma desconfortável pausa.

Até logo.

- Até logo. - tom desligou e atirou-se contra a parede da cabina. Tinha a camisa encharcada debaixo dos braços, mas a sensação de náusea que sentira todo o dia fora substituída por uma de excitação, ansiedade. Pelas portas de vidro da cabina viu Gail, encostada à parede do outro lado do corredor, a ler The Wall Street Journal. Gail levantou a cabeça e os seus olhares cruzaram-se. Thomas tentou sorrir-lhe, mas ela fitou-o com um ar sério. Tinha os cantos da boca encurvados para baixo e um rubor invulgar no rosto. Depois voltou a concentrar-se na leitura.

Thomas viu-a endireitar os ombros, como se estivesse a preparar-se para ouvir o que ele tinha para lhe dizer. O alívio que a conversa telefónica lhe fizera sentir ficou manchado de culpa quando se levantou e abriu a porta da cabina. Não ia ser fácil dizer-lhe, pensou, que tinha combinado ir jantar com a mulher, um dia depois de a relação deles ter começado.

 

                                         CAPÍTULO 15

- Por favor, põe na mala tudo o que está nesta lista pediu íris à criada, entregando-lhe uma folha de bloco de cor creme. A criada começou a ler a lista. - Depois podes ir embora - continuou íris. - Só voltamos a precisar de ti quando eu voltar. Mister Stewart tenciona comer fora e ficar algumas noites na cidade.

íris enfiou na cabeça a touca de borracha, ajustou as alças do seu fato de banho modesto e mergulhou na piscina. Edward, ainda de fato e gravata, estava sentado numa cadeira à beira da piscina e ficou a vê-la nadar diligentemente.

«Por uma vez na vida», pensou, «está a ser-me útil. vou ter tempo e oportunidade de resolver o problema do rapaz sem tropeçar nela, sempre a oferecer-se para ajudar Anna. Quando voltar das termas tudo estará terminado.» A constatação tranquilizou-o um pouco. Viu íris atravessar a piscina com braçadas precisas, determinadas. Parecia sólida como um barco a remos, impulsionando-se a si própria pela água.

Pelo menos, não ia perguntar-lhe como tinha ocupado o tempo durante a sua ausência. Era costume ele nunca lhe contar nada sobre as suas actividades, facto que íris sempre aceitara sem levantar problemas. «Era a única coisa que o fazia tolerar viver com ela», pensou, observando-a como quem avalia um animal desajeitado, mas capaz de fazer uma habilidade notável. Ofegante, íris saiu da piscina mesmo à frente dele e começou a tirar a touca.

- Se esticasses um pouco mais as pernas, não ias ter tanta dificuldade em nadar uma distância tão curta.

íris suspirou e fitou a superfície da água.

Lorraine apareceu à porta e Edward olhou para ela.

- Está aqui Mistress Lange - anunciou a criada, impassível.

Anna seguiu atrás dela até ao terraço e Edward estremeceu quando a viu.

- Boa tarde aos dois - cumprimentou Anna, contornando a cadeira de Edward.

- Por favor, sente-se - disse Edward, levantando-se.

- Olá, Anna - exclamou íris, alegre com a companhia inesperada da amiga.

- Não me demoro. Vim só perguntar se podiam fazer-me um favor.

- Claro que sim, Anna. Que é?

Edward apontou com insistência para a cadeira e Anna sentou-se à borda do assento.

- tom telefonou-me e quer que eu vá jantar com ele à cidade.

- Que romântico - disse íris, pegando numa toalha e enxugando-se.

- Nem por isso - respondeu Anna com uma careta. Tivemos uma grande discussão ontem à noite.

- E já fizeram as pazes? - perguntou íris.

Anna mudou de posição, nervosa. Estava habituada a fazer confidências a íris, mas não se sentia confortável a falar dos seus problemas conjugais diante de Edward, apesar de partir do princípio de que íris não tinha segredos para o marido.

- Bem - disse ela -, a noite passada ficou na cidade.

- Oh, não, Anna - exclamou íris.

- Por isso é importante - continuou Anna, apressadamente -, que eu vá falar com ele. Precisamos mesmo de esclarecer umas coisas.

- Claro que precisam - disse íris. - Mas em que podemos ser úteis?

- É o Paul. Levei-o hoje ao médico.

- Oh, não - disse íris. - Ele está bem?

- Parece que sim - respondeu Anna. - Edward não te contou?

íris olhou-o surpreendida.

- Ainda não tive oportunidade - apressou-se Edward a explicar.

- Seja como for - prosseguiu Anna -, ele ficou muito em baixo com aqueles exames todos e tenho medo de deixá-lo sozinho.

íris mordeu os lábios e fez uma careta.

- Esta noite vou para as termas, fazer a minha cura de emagrecimento. Mas talvez possa adiar para amanhã.

- Não, não faças isso - disse Anna. - Só queria saber se a Lorraine ou alguém ficava em casa. Para o caso de ele precisar de alguma coisa.

- Bem, julgo que o Edward passa cá a noite - atreveu-se íris a dizer, olhando, insegura, para o marido.

Edward, muito direito na sua cadeira, perguntou:

- E a sua filha?

- Trabalha no Abrigo de Animais até às dez - explicou Anna.

- Bem, eu realmente vou ficar em casa. O Paul que me telefone se precisar de alguma coisa.

- Muito, muito obrigada - agradeceu Anna. - Não queria dizer ao tom que não podia ir por causa de Paul. Isso só ia piorar as coisas.

Os olhos de íris estavam tristes, inquietos.

- Anna, não sabia que vocês estavam com problemas. Lamento muito.

Anna sossegou a amiga com um gesto da mão.

- Quando voltas das termas?

- No domingo - respondeu íris, esticando a touca que tinha nas mãos.

- com que então vais passar uns dias a iogurtes e massagens? - brincou Anna.

íris parecia levemente incomodada.

- Não é bem assim.

- Estava a meter-me contigo. Sei que não são nada leves esses tratamentos. Mas espero que gostes. Claro, vamos sentir muito a tua falta - disse Anna, olhando para Edward, à espera da sua confirmação.

Edward concordou com um sorriso amarelo.

- Bem, estou muito mais descansada - afirmou Anna.

- vou arranjar-me. - Inclinou-se e deu uma palmadinha nas costas de íris. - Telefona-me assim que voltares - disse. Endireitou-se e sorriu a Edward. - Obrigada por tudo. Peço desculpa pelo que aconteceu esta tarde. Ele tem andado tão nervoso, tão inquieto! Nem me despedi de si como deve ser.

Edward respondeu com um gesto.

- Não teve qualquer importância.

Anna sorriu a ambos e depois saiu pelo jardim.

- Espera - gritou-lhe íris -, eu acompanho-te e entro pelo solário. Quero tomar um duche.

Edward pestanejou ao ver as duas mulheres seguirem lado a lado. O rapaz ia ficar em casa sozinho naquela noite. Era mais do que podia alguma vez desejar e fora-lhe entregue de bandeja. Tinha de agir depressa e sem hesitações. A pálpebra de Edward começou a estremecer à medida que ia elaborando um plano, simples e eficaz, para a noite que estava prestes a cair.

Pontos de luz dançavam na superfície lapidada dos topázios, quando Anna virou a cara, estudando a sua imagem no espelho. Aqueles eram os seus brincos preferidos - um presente de Thomas no dia em que fizeram três anos de casados. Quando ela protestara contra aquela extravagância, Thomas rira-se, aconselhando-a a não se afeiçoar demasiado aos brincos, não fossem um dia precisar de pô-los no prego.

Tinha hesitado em usá-los naquela noite. De certo modo, eram uma relíquia de dias mais felizes. Mas agora que já os tinha postos, pareceu-lhe bem. «Um pouco de optimismo», disse para consigo. Talvez melhores tempos estivessem para chegar. Ia virar as costas ao espelho quando se lembrou do perfume. Escolhido por ele para si. com a deliberação de uma cortesã, aplicou-o nos pulsos. Depois, endireitou o vestido e dirigiu-se às escadas.

Ouviu a televisão ligada na sala quando chegou ao vestíbulo. Seguiu o som. Paul estava anichado no sofá a olhar para o televisor, com a cabeça apoiada numa mão.

- vou sair então, Paul - disse ela. - Tens a certeza de que ficas bem?

O rapaz respondeu que sim com a cabeça, sem tirar os olhos do pequeno ecrã.

- A Tracy chega por volta das dez - continuou Anna.

- Se precisares de alguma coisa, Mister Stewart está em casa. Basta telefonares-lhe. O número dele está colado ao telefone.

O rapaz continuou a olhar as imagens que piscavam à sua frente.

- Está bem - respondeu distraído. Depois voltou-se para Anna. - Está bonita - disse.

O rosto ansioso de Anna abriu-se num sorriso radioso ao ouvir o inesperado piropo.

- Obrigada - agradeceu. - Fiz o que pude.

-- Foi por minha causa, não foi? - perguntou o rapaz. -- O quê? - perguntou Anna, admirada.

- Que ele foi embora.

- Não - disse Anna depressa. - Foi um problema nosso. Paul voltou a olhar para a televisão.

- Ele odeia-me - murmurou, apenas.

Anna ficou um instante chocada. Depois desligou o aparelho.

- Não é verdade. Ele não te odeia. Paul acenou a cabeça.

- Ele preferia que eu nunca tivesse voltado - disse bruscamente. - Por isso é que saiu de casa. - Olhou-a de nariz empertigado, como a desafiá-la que o contradissesse.

Anna olhou-o sem saber o que dizer, a matutar nas palavras trocadas sobre Paul e sem querer que a sua expressão revelasse os seus pensamentos.

O rapaz ia fazendo que sim com a cabeça, como se o silêncio dela fosse para ele uma resposta suficiente.

- Espera aí, Paul - disse, por fim. - O teu pai... Tu não sabes o que ele passou. Todos nós. Tantos anos de angústia, de dúvidas... depois de desapareceres.

O rosto do rapaz estava frio como a pedra.

- Foi horrível. Uma agonia. Nunca sabíamos como ia ser o dia seguinte.

- O que ele deve ter pensado foi que se tinha visto livre de mim - afirmou Paul, com um ar natural.

- Livre de ti? - vociferou Anna. - Como podes pensar uma coisa dessas do teu pai? Paul não olhou para ela. Anna abanou a cabeça.

- Desculpa. A verdade é que não o conheces. Ele nunca diz o que está a sentir. Mas tu... tu eras tudo para ele. Quando tu nasceste... se tu visses... parecia estar no sétimo céu - disse Anna, agarrando-se a uma imagem que ainda estava muito nítida na sua memória. - Nunca vi uma pessoa tão feliz.

- Mas agora não está feliz - retorquiu Paul. - Não parece nada contente por eu ter voltado.

- Não - contrariou Anna. - Não é nada disso... Olhou de relance os livros alinhados nas estantes por cima do sofá, tentando encontrar as palavras que descrevessem com exactidão os sentimentos do marido. O rapaz estava calado, mas aguardava a resposta dela com o corpo tenso. - Sabes, eu sempre acreditei que havias de voltar para nós. Mas ele... tentou encontrar a palavra certa. A palavra justa -, ele não.

Paul olhou-a com curiosidade.

- Lembro-me - continuou Anna. - Não me recordo exactamente quando. Ele começou a pensar... dizia-me que devia preparar-me para o pior. Mas eu sempre disse que havias de voltar. Ele não compreendia como eu era capaz de ter tanta certeza - os olhos de Anna fitaram a distância. - Um dia, discutimos por causa do teu quarto. Queria que eu tirasse de lá as tuas coisas, mas eu não. Dizia que era doentio mantê-lo como estava, que podíamos dar-lhe uma utilidade qualquer. Anna mordeu os lábios e ficou algum tempo calada, com os olhos cheios de tristeza. - Meu Deus, fiquei tão furiosa com ele! Nessa altura, era raro falarmos de ti. Mas eu sabia muito bem o que ele sentia, embora nunca tocássemos no assunto. Até que chegou esse dia, foi logo a seguir a um dos teus aniversários, e meteu-se-lhe na cabeça que devíamos esvaziar o quarto. Eu apanhei uma fúria. Fiquei danada, odiei-o. Lembro-me muito bem como foi. Subiu as escadas e começou a vasculhar o quarto, a meter coisas em caixas, e eu na sala, como se fosse uma estátua de pedra. Levou as caixas para a cave e ouvia-o pôr as caixas nos caixotes do lixo, na garagem. Fiquei ali sentada, a assistir a tudo e a pensar que nunca lhe perdoaria. - Virou-se para Paul, que a olhava atentamente.

- Ele continuava para cima e para baixo, sem dizer nada, até que desceu com uma caixa debaixo de um braço e um elefante na mão. Era um elefante de pelúcia azul que tinha comprado para ti, quando tu nasceste. Apareceu com ele lá no hospital. Nem esperou que viesses para casa. Agora, lá vinha ele escadas abaixo, com o elefante na mão. A chorar. com a cara coberta de lágrimas. - Os olhos de Anna estavam molhados com a recordação. - Não me disse nada, e eu estava demasiado furiosa para ligar. Lembro-me de ter pensado: «Bem feita. Não mereces que o teu filho volte.»

Paul estudou o rosto de Anna, enquanto esta revivia aquele episódio. Nos olhos dela havia uma expressão que parecia um sinal que alguém lhe tentava fazer, de muito longe. Ela abanava tristemente a cabeça.

- Então, porque é que ele saiu de casa agora?

Anna franziu a testa e olhou em frente. Hesitou um minuto, depois respondeu:

- Julgo que está com medo.

- De quê?

Anna olhou intrigada para o rapaz:

- Não sei. Penso que nunca lhe passou pela cabeça que mdo podia acabar bem.

Paul e Anna fitaram-se, sérios. Depois, Paul desviou o olhar.

- Bem - disse Anna. - Tenho mesmo de ir - dirigiu-se para a porta, mas depois voltou atrás e ligou de novo o televisor.

- Boa sorte - disse Paul.

Anna teve vontade de abraçar o filho com força. Mas o olhar desconfiado dele demoveu-a. Em vez disso, deu-lhe apenas um beijo rápido na cabeça. Depois, com um aceno e um •orriso, saiu.

- Cada vez escurece mais cedo - disse íris olhando, tristonha, pela janela da biblioteca. - Detesto o fim do Verão.

Edward olhou para o relógio.

- Não está na hora de partires? - Pegou num corta -papel e começou a bater com este na mesa, impaciente.

- Assim que a Lorraine puser as minhas malas no carro.

- íris franziu a testa e olhou para o marido.

Edward pareceu embaraçado com o olhar insistente dela.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou com frieza.

- Eu só... - íris hesitou mas depois disse bruscamente:

- Espero que tudo corra bem durante a minha ausência. Edward fez um esforço para não desatar a rir na cara dela.

- Vai correr tudo bem. Só tens que te preocupar em vê res-te livre disso - apontou com o corta-papel para a barriga de íris.

íris suspirou:

- Está bem. Que vais fazer hoje à noite?

- Sou capaz de ir trabalhar nos meus barcos - respondeu ele de imediato. /;,,

- Tudo pronto, minha senhora - anunciou Lorraine, entrando na biblioteca.

- Obrigada, Lorraine - agradeceu íris e, voltando-se para o marido: - Bem, vou andando. Até domingo.

Edward fez que sim com a cabeça e sorriu-lhe.

- Não te esqueças do Paul.

- Como? - perguntou ele sobressaltado.

- Eu disse à Anna que ele podia telefonar-te se precisasse de alguma coisa. Lembras-te?

- Sim, claro. Eu não me esqueço. Não fiques preocupada, íris hesitou, parecendo que queria dizer mais alguma coisa,

mas depois saiu da biblioteca. Edward esperou até ouvir a porta bater e o carro descer a ladeira. Depois olhou pela janela na direcção do moinho. Dali não se via, mas imaginou-o. Batendo com o corta-papel na mão, enumerou todas as ferramentas que lá tinha, tentando decidir qual usar. A ideia era escolher uma normalmente utilizada por ladrões. Assaltaria a casa, trataria do rapaz e depois revolveria aquilo tudo. Deixaria tudo de pernas para o ar e traria uma ou outra coisa de valor, para parecer que a causa da morte do rapaz era roubo. Era fácil e fazia sentido. Aquelas casas eram isoladas e nitidamente habitadas por gente com dinheiro. Havia sempre o perigo de serem assaltadas. Um pé-de-cabra não era má ideia, se bem que um pouco pesado. Não possuía uma arma. Tinha-se lembrado de usar um formão, só que não fazia parte do equipamento de um vulgar gatuno. A melhor opção era talvez uma faca. No moinho tinha um conjunto de facas de mato que às vezes usava para esculpir madeira. Servia perfeitamente, decidiu. Podia levá-la na respectiva bainha, debaixo do casaco. Não seria um trabalho muito limpo, mas paciência. Tinha sempre uma muda de roupa lavada no moinho, felizmente. Era só esperar mais um pouco e depois...

Absorto nos seus pensamentos, não ouviu Lorraine entrar e só deu por ela quando a viu a seu lado, como um fantasma. Deu um pulo, ao ouvi-la pronunciar o seu nome.

- Que é? - perguntou.

- O meu irmão já chegou, veio buscar-me - informou a criada, num tom humilde.

- Óptimo - disse Edward. - Então até para a semana. Acompanhou-a à porta, depois da rapariga pegar na mala

que deixara no corredor. Aguardou quase às escuras que as luzes traseiras do automóvel do irmão de Lorraine desaparecessem. Estava sozinho na casa silenciosa, com o suor a escorrer-lhe pelos braços. Dava conta de cada minuto que passava. À excepção do zumbido do sangue a latejar-lhe nos ouvidos, a casa estava um túmulo. Sem acender qualquer luz, foi até à porta das traseiras, abriu a porta que dava para o pátio e saiu para a escuridão da noite.

 

                                     CAPÍTULO 16

Paul pôs-se a ler a TV Guia, enquanto ouvia o carro de Anna afastar-se. Levantou-se e ficou uns instantes junto ao painel de botões, fitando as imagens do ecrã. Depois desligou o aparelho. Não havia nada que lhe interessasse. Passeou pela casa e entrou na sala, onde se deixou cair num sofá a ver uma revista que tirou do cesto de metal que estava ao lado. Virou as páginas sem grande interesse e depois voltou a colocá-la no porta-revistas, levantando-se outra vez.

Anna tinha-lhe servido o jantar antes de sair, mas Paul ain da estava com fome. Foi à cozinha e abriu o frigorífico. «Tira o que quiseres», era o que ela estava sempre a dizer. O frigorí fico da sua mãe estava sempre vazio, comparado com aquele, à excepção do congelador, cheio de refeições congeladas dentro de embalagens azul-turquesa com fotografias de comida à frente. Dorothy Lee fazia o turno das quinze às onze; ele escolhia uma, aquecia-a e comia o mais depressa possível, antes que o pai chegasse. Paul olhou para uma prateleira e viu um bocado de tarte de natas dentro de uma tarteira. Podia comer aquilo tudo, mas achou que não devia. Foi buscar uma faca e um prato e cortou um terço da tarte, o que dava uma fatia aí com dois centímetros e meio na parte mais larga, e comeu-a. Desapareceu num instante; pensou em tirar mais um bocado, mas, em vez disso, fechou a porta.

Depois de colocar o prato e o talher no lava-louça, lavou-os, secou-os e voltou a arrumá-los no seu lugar. Deu uma vis ta de olhos pela cozinha, depois pendurou o pano da loiça, satisfeito por não deixar vestígios de que tinha comido fosse o que fosse.

Achou a casa muito silenciosa, muito esquisita e, por instantes, desejou, mais do que qualquer outra coisa, ter alguém com quem falar. Lembrou-se de Sam, mas decidiu que o melhor era nunca mais pensar no gato desaparecido.

Pôs-se a andar de quarto em quarto, observando a mobília, os quadros. Era tudo como nas revistas, pensou, ou na televisão. Provavelmente, se alguém de Hawley o visse naquela casa, achava que ele era a pessoa com mais sorte do mundo, a viver numa casa assim.

Paul foi até à janela da sala e puxou as cortinas para o lado. Olhou lá para fora, para o escuro. Todos os dias pensava em fugir. Não havia um único dia em que não pusesse essa hipótese. Bastava enfiar as suas coisas, que eram poucas, na mochila e sair. Ninguém sentiria a sua falta. Bem, a mãe talvez sentisse.

Suspirou, ao verificar que não teria para onde ir. Como também não tinha dinheiro, não iria muito longe. Havia, com certeza, dinheiro naquela casa, mas não queria roubá-los. E, por mais que lhe custasse admiti-lo, tinha medo de fugir. No entanto, horrorizava-o a ideia de ficar ali para sempre. «Não tenho nada a ver com isto», pensou.

com um gesto de impaciência, largou a cortina e voltou para a sala, tentando descobrir alguma coisa para fazer.

Comprimido contra a janela, o rosto do rapaz parecia estar a derreter-se junto à vidraça. Os olhos frios de Edward concentraram-se na cara tristonha, enquanto se agachava no alpendre, a olhar para cima. Estava a dar a volta à casa, à procura do melhor sítio por onde entrar, quando a cara do rapaz apareceu na janela. Por instantes, temeu que o miúdo o tivesse ouvido no jardim, mas quando olhou, para sossegar o seu coração que batia como louco, percebeu que o rapaz não estava a revistar o jardim, mas apenas a olhar para o vazio e a pensar noutra coisa qualquer.

Estava de cócoras havia tanto tempo que os joelhos já lhe doíam, as pregas das calças magoavam-lhe as pernas. A indignidade da posição punha-o furioso, impaciente. Só queria que o miúdo se despachasse, se afastasse depressa da janela. Não lhe apetecia ficar mais tempo escondido na relva húmida. To­mara já estar despachado e de volta à segurança da sua oficina!

Quando a cortina caiu, Edward respirou fundo e pôs-se de pé. O problema da entrada na casa estava resolvido. À altura do seu joelho havia uma série de janelas que davam para a ca­ve. Já as tinha visto por dentro e sabia que estavam fechadas apenas com um trinco de correr. Era fácil abrir uma delas e es­gueirar-se para o interior. Com a ajuda da sua lanterna de bol­so, tinha visto uma cadeira resistente por baixo de uma delas. Escolheria essa janela. Enquanto caminhava em volta da casa, à procura da janela, foi repetindo para consigo o plano que ela­borara. A cave dava para uma sala de jogos. Saindo pela porta dessa sala encontraria as escadas que conduziam ao primeiro piso. Edward chegou à janela desejada e dobrou-se. Enfiou a lâmina da faca entre a parede e o caixilho e tanto fez que aca­bou por dar com o trinco. Com cuidado, fixou nele a ponta da faca. Momentos depois, o trinco abriu-se.

 

Paul abriu a porta que dava para a sala de jogos, na cave, e lembrou-se de ter lá visto um sistema de alta fidelidade. O si­lêncio da casa vazia oprimia-o, por isso pensou que seria bom ouvir um pouco de música. Abriu a porta e começou a descer. Quando um ruído estranho chegou aos seus ouvidos, Paul pa­rou a meio das escadas, à escuta. Silêncio total. «Estou a imagi­nar coisas!» pensou. «Criança!»

Enquanto descia, perguntou a si próprio como estaria a correr o grande encontro. Aquela história que ela lhe tinha contado, acerca do pai e do elefante, pôs-lhe a nuca em pele de galinha. Lembrava-se muito vagamente de um elefante azul. Talvez o pai não fosse tão mau como isso. A mãe era simpática e gostava dele.

Sabe-se lá o que faz as pessoas gostarem umas das outras! Ele nunca tinha compreendido os seus pais... os Rambos. O pai sempre lhe parecera esquisito e doido, embora Dorothy Lee fosse incapaz de dizer mal dele. Mesmo assim, passara um mau bocado, na escola e noutros sítios. A verdade é que sentiu um enorme alívio quando soube que o Rambo não era o seu pai verdadeiro. Paul foi invadido por uma onda de piedade, rapidamente seguida de horror, ao imaginar o seu pai a enfor­car-se sozinho num quarto de motel. Mas que maneira de morrer!

De ouvido à escuta, Paul leu os títulos escritos nas lomba­das das capas dos discos. Os melhores eram quase todos de Tracy e estavam no quarto dela. Lá não queria ele ir. Mas ha­via alguns bons na sala de jogos. Paul pegou num velho álbum dos Beatles e observou-o. Não se lembrava da banda; mas ti­nha ouvido falar e conhecia muitas canções deles. Depois de pôr o disco no prato, agarrou nos auscultadores, decidido a pô-los nos ouvidos e a deitar-se no tapete, a ouvir. Foi então que viu, na prateleira por cima do armário dos discos, dois li­vros muito grossos, com capa de couro e fotografias a sair por todos os lados. Cheio de curiosidade, pegou no que estava por cima, ainda com os auscultadores na mão, onde a letra do «Norwegian Wood» começara a fazer-se ouvir. Quando abriu o pesado volume, um envelope com fotografias caiu ao chão. O álbum estava cheio de fotografias coladas e legendadas. Sen­tou-se de pernas cruzadas, pôs o álbum no colo, abriu-o e co­locou os auscultadores nas orelhas. Absorto nas fotografias, não ouviu a porta atrás de si abrir-se, milímetro a milímetro.

Os rostos alegres das pessoas das fotografias sorriam, des­preocupados, amarelecidos pelo tempo. Pareciam pessoas a acenar no convés de um navio que estava a afundar-se ruidosa­mente no oceano. Paul foi virando as páginas devagar, enquan­to batia com o pé no chão ao compasso da música, de olhos pregados nas fotografias. Havia retratos de Thomas e Anna de copo na mão no dia do casamento, ou sorrindo timidamente, de ombros encostados e bronzeados, durante a lua-de-mel na Florida. Anna estava sempre a sorrir para a câmara e Thomas estava sempre a olhar para ela.

Na página seguinte aparecia um bebé e Paul percebeu, so­bressaltado, que era ele. Reparou no contorno da cabeça, que o bebé tentava a todo o custo levantar. Havia fotografias suas em todas as poses possíveis e imagináveis, ao colo da mãe ou do pai. Riu a bom rir com uma cuja legenda dizia «Segundo ani­versário de Paul», onde ele, já mais crescidinho, se empoleirava ao lado de um bolo de velas, de chapéu de papel brilhante à banda. Atrás dele, um miúdo mais velho, de cabelo escuro, soprava uma corneta mesmo rente ao seu rosto irrequieto, franzido numa careta. A música martelava nos seus ouvidos e os Beatles diziam que tinham visto um rosto do qual nunca mais se esqueceriam.

Uma sombra projectou-se, como uma lâmina, sobre a página, apagando num segundo os rostos alegres e rechonchudos. Paul endireitou a cabeça, percebendo que não estava sozinho. Atirou os auscultadores para o chão e virou-se para a figura que pairava por cima da sua cabeça. Por instantes ficou imóvel, fora de si. Depois conseguiu falar.

- Que estás aqui a fazer? - perguntou.

Tracy inclinou a cabeça e olhou para o livro que ele tinha na mão.

- Trouxe-te uma coisa - disse.

Confuso, Paul viu-a tirar a mochila das costas e abri-la com cuidado. Pôs a mão lá dentro e tirou um renitente gato às riscas cinzentas e pretas.

- Sam - exclamou Paul. - Onde é que o encontraste?

- Arrancou o animal das mãos dela e abraçou-o com quanta força tinha. O gato protestou e fugiu.

- Apareceu hoje à noite lá no Abrigo de Animais. - Tracy deu a notícia com um sorriso de satisfação. - O veterinário deixou-me sair mais cedo, para to entregar.

Paul não tirava os olhos do gato, que se escondera debaixo do sofá.

- Obrigado - disse em voz baixa, com medo de se comover.

- Não tens de quê. - Tracy deixou-se cair no divã. Estás a ver fotografias antigas?

Paul fez que sim com a cabeça.

Atrás deles, a porta começou a fechar-se, muito devagar, imperceptivelmente.

- Queres dar uma volta a pé? - perguntou Thomas, guardando a carteira no bolso, enquanto saíam do restaurante.

- Quero, porque não?

- Comi muito - disse Tom.- A comida aqui é sempre óptima.

Anna concordou, embora tivesse reparado que ele mal tocara no jantar.

Começaram a descer a Avenida Columbus, juntando-se aos outros peões que aproveitavam a noite para passear pela avenida mais elegante do West Side. Embora estivesse quente, não havia humidade e viam-se algumas estrelas no céu.

Ao jantar, a conversa fora difícil mas não correra mal. Anna sentiu, ao vê-lo sentado à sua frente, que finalmente compreendia o significado da palavra «afastado». Agora, porém, enquanto desciam lado a lado a avenida, pareciam mais próximos, caminhavam ao mesmo compasso, dobravam automaticamente as mesmas esquinas, embora não tivessem destino certo. Ambos paravam, obedientes, quando os bonecos dos semáforos ficavam vermelhos, enquanto os nova-iorquinos, à sua volta, avançavam, desprezando-os.

Anna deu uma olhadela ao perfil do marido, enquanto aguardavam numa esquina. As suas feições eram vulgares, grosseiras até, à excepção dos olhos, francos e expressivos. Naquele momento estavam ansiosos e um pouco tristes. Anna sentiu vontade de lhe dar o braço, mas conteve-se.

- E se fossemos ao Lincoln Centre? - perguntou ele. São só mais uns quarteirões.

Anna concordou.

- Gostava de ver a fonte.

Caminharam num desconfortável silêncio, olhando de vez em quando um para o outro.

- Essa gravata é nova? - perguntou Anna. Thomas ajeitou o nó junto à garganta.

- Sim - segurou-a pelo cotovelo. - Está verde, já podemos ir.

Anna notou uma leve sombra de culpa no olhar dele, enquanto, impulsionada pela pressão da mão dele, atravessava a rua.

- Fiz a mala a correr - disse, quando chegaram ao passeio em frente. - Amanhã tenho de ir a Boston no avião das dez da manhã e precisava de roupa para a viagem.

- E vais por muito tempo?

- Não, volto no dia seguinte.

Anna lutou contra o impulso de lhe dizer que podia ter-lhe pedido para trazer mais roupa. «Ele deixou-te», recordou a si própria. «Saiu de casa, não te esqueças.» Mas não conseguia sentir raiva contra ele. Achou-o muito vulnerável. A mão dele ardia no seu braço.

- Onde vais ficar?

- Em Boston?

- Não, aqui.

A pergunta deixou Thomas nitidamente embaraçado.

- No East Side. É perto do trabalho.

Anna abanou a cabeça, fingindo indiferença. Atravessaram a rua e subiram as escadas que iam dar ao largo em frente do Lincoln Centre. Anna ficou sem respiração, como sempre, diante daquela visão. Os murais da ópera eram uma estonteante explosão de cor, os candelabros brilhavam por trás dos gigantescos painéis de vidro. No centro da praça, rodeada de salas de espectáculo, uma fonte redonda lançava jactos de água e luz. Thomas e Anna dirigiram-se devagar à inesgotável fonte.

Um jovem casal, sentado na larga borda de granito da fonte, trocava beijos, e dois homens, de bigode e cabelo curto, um com um elegante fato em caqui, o outro com um de algodão preto, fitavam as plumas da água enquanto falavam, um deles com a mão discretamente pousada no braço do outro.

Thomas dirigiu a Anna um sorriso tenso, magoado, e ofereceu-lhe um lugar sentado no rebordo da fonte.

- Obrigada - agradeceu ela.

Um silêncio desceu sobre os dois. Anna sentiu que o tempo passava sem que tivessem feito quaisquer progressos. Procurou uma maneira de falar com ele sem desatarem a discutir.

Mas foi tom quem falou:

- Foi um alívio saber que Paul está bem.

Anna olhou-o surpreendida. Era a primeira vez naquela noite que falavam do filho. Pensou que o melhor era limitar-se a concordar, mas decidiu aproveitar a deixa.

- Estivemos a falar a teu respeito, antes de eu vir para cá.

- Tu e o Paul?

- Sim. Ele está convencido de que o odeias. Thomas fechou os olhos e Anna viu o sofrimento nas ru-

gas que se formaram em volta da boca do marido. tom engoliu em seco, como se estivesse a tomar um remédio amargo.

- Eu disse-lhe que isso não era verdade. Thomas olhou para ela, admirado:

- Disseste?

- Tentei fazê-lo compreender. Falei-lhe de ti. De como ficaste feliz quando ele nasceu, de quanto o adoravas. Essas coisas.

Thomas fitou a praça vazia com um olhar angustiado, perdido.

- Não o odeio. Pobre miúdo! - Ficou calado durante algum tempo. Anna observava-o sem saber que fazer, desejosa que ele olhasse para si. Por fim, desabafou: - Odeio-me a inim mesmo.

- Tom, não digas isso.

Não sabes como me sinto - disse Tom. – Contigo é diferente.

- Diferente como?

- Oh, bem sabes. Tiveste sempre a certeza que ele ia voltar. Sempre acreditaste que estava vivo. Nunca desististe. A mínima coisa enchia-te de esperança. - Pela primeira vez, olhou-a de frente. - Mas eu nunca tive esperança, Anna. Nunca pensei voltar a vê-lo.

- Mas ninguém podia adivinhar o que ia acontecer. Ninguém.

- Virei-lhe as costas, Anna. Ao meu próprio filho. Thomas suspirou e dobrou o corpo para a frente. Olhou para o outro lado e pôs os braços à volta da cintura, como se fosse vomitar. - Quando o vejo, sinto-me tão mal! Não sei explicar. Sinto-me culpado...

- Culpado?! Tom! Não tens qualquer razão para te sentires culpado.

- Eu adorava-o. Não penses que não.

- Eu sei -- disse Anna. - E ele também sabe. Tenho a certeza. Ou há-de saber. Só é preciso algum tempo.

- Não suportava ver-te sempre à procura de um sinal, de alguma coisa a que te pudesses agarrar.

- Eu sei. Era importante para mim.

- Às vezes, tinha vontade de gritar contigo por causa disso. Mas como? Tu eras a valente, a que se recusava a desistir.

- Nunca me disseste. Nunca falámos do assunto.

- Eu sei.

Anna esforçou-se por encontrar as palavras certas para lho explicar.

- Nada do que fiz foi para parecer valente. Precisava de não perder a esperança, para continuar a viver.

Thomas esticou o braço e pôs uma mão em cima das dela. Permaneceram em silêncio, sentados na borda da fonte. Tocar os dedos dela foi como completar um circuito. A sensação de conforto, de aliança, provocada pelas suas mãos unidas, fez Anna desejá-lo subitamente, ferozmente - o seu marido, o seu homem. Imaginou-se encostada a ele, com a cabeça escondida na curva do seu pescoço. Sentindo as suas mãos em cima dela. Procurou uma forma de lhe dizer: «Vem para casa.» E então percebeu que bastava essas três palavras. «Vem para casa.» Achou que não seria capaz de pronunciá-las em voz alta. Decidiu dizê-las num murmúrio.

De repente, Thomas soltou a mão dela.

- Não é só por isso que me sinto culpado - disse, devagar.

O tom grave da sua voz foi como um balde de água fria para Anna. Endireitou-se e perguntou:

- Que queres dizer com isso?

Os namorados que estavam sentados do outro lado da fonte levantaram-se e, abraçados, começaram a passear pela praça. Thomas viu-os afastarem-se. -Tom?

- Não sei como dizer-te. Mas sinto que devo. Não quero este segredo entre nós. Passaria o resto da vida com medo que viesses a saber tudo de outra maneira. - Molhou os lábios nervosamente. - Eu... Houve outra mulher - disse.

O corpo de Anna inclinou-se para trás, como se tivesse levado uma bofetada. Passava a vida a preocupar-se com ele, com os filhos, mas a possibilidade de tom ter outra mulher nunca lhe passara pela cabeça.

- Não sei como aconteceu. Sentia-me sozinho, estava furioso contigo. Não conseguia falar contigo. São tudo desculpas esfarrapadas, eu sei.

- Quem é ela? - perguntou Anna num tom neutro.

- Não interessa - respondeu Thomas. - Não a conheces.

- Compreendo - disse Anna. O jovem casal ia a meio da praça quando o homem recuou um passo, enrolou um braço em volta da cintura da rapariga e levantou o outro. A rapariga, apanhada de surpresa, rompeu às gargalhadas. Começaram os dois a dançar a valsa, ao som de uma música que tocava na imaginação deles.

- Então foi por isso que nos deixaste? - perguntou Anna, pondo a mala de mão debaixo do braço e levantando-se.

Thomas esfregou a cara com as mãos e olhou para ela, surpreendido. Anna olhou-o com frieza e uma veia do seu pescoço começou a latejar.

- Não.

- Nunca esperei uma coisa dessas de ti, Tom. Mas não vou ser um obstáculo. Podes fugir para onde quiseres com a tua amante, é-me indiferente.

- Espera - protestou Tom. - O que é que vais fazer?

- vou para casa. Ter com os meus filhos.

Tom pôs-se em frente dela, barrando-lhe o caminho, tentando obrigá-la a olhar para ele.

- Anna, não percebeste. Aconteceu. Sim. Mas não quero que continue. Achei que devia ser sincero contigo. Mas já te disse que acabou. Quero voltar para casa, para junto de ti, dos miúdos.

Anna empurrou-o, indignada.

- Não quero falar desse assunto - murmurou. Ignorou os braços abertos do marido e começou a atravessar a praça, passando pelos namorados que nem deram pela sua presença. Desceu as escadas e levantou o braço para chamar um táxi. Através da cortina de lágrimas viu um táxi vazio aproximar-se dela.

Thomas estava já ao seu lado.

- Não me dás outra oportunidade? Ao fim destes anos todos? Peço-te que me desculpes. Afinal, era melhor não te ter contado nada.

Anna olhou para ele, de queixo teimosamente levantado.

- Só quis ser honesto contigo. Julguei que eras capaz de perdoar-me.

Anna fechou os olhos uns instantes, depois olhou-o.

- Neste instante, não quero ouvir mais nada.

- Mas precisamos de conversar, Anna. Amanhã tenho de ir a Boston. Não vou conseguir fazer nada de jeito, com isto tudo na cabeça.

- Lamento, mas não posso ajudar-te - disse Anna. Eu própria preciso de pensar. - Entrou no táxi e bateu com a porta. Quando o táxi se afastou do passeio, Thomas esticou o braço, como se quisesse agarrar-se a ele, mas depois desapareceu no emaranhado de carros e peões.

 

                                      CAPÍTULO 17

com movimentos nervosos e rápidos, Edward fechou a janela da cave e rastejou pela relva até à sua propriedade, praguejando em voz baixa contra a claridade da noite estrelada. O súbito estrondo do sistema de alta fidelidade dentro de casa assustou-o. Parou um instante, encharcado em suor, e esperou. Depois prosseguiu, agarrando firmemente com a mão o cabo da faca escondida sob a camisa.

Chegou a pensar, quando estava escondido atrás da porta, matá-los a ambos. Pôs essa hipótese, mas acabou por mudar de ideias. Era muito complicado, muito perigoso. O ódio que sentiu, ao ver a rapariga chegar com o gato, quase o tinha empurrado contra a porta e em seguida contra os dois, num ataque desvairado. Planeara tudo ao milímetro, até aquela idiota resolver estragar-lhe o esquema.

Apesar de ter conseguido conter-se, a raiva que sentira ao ver os seus planos frustrados ainda o queimava por dentro. Ele estava preparado. Preparado para pôr um ponto final naquilo tudo. Agora, restava-lhe suportar a sua ira, a sua frustração. Edward contornou a casa e dirigiu-se ao moinho. A pá, negra, projectava-se contra a escuridão do céu, tentadora. Ainda tinha tempo. Havia de arranjar uma maneira de levar o seu plano a bom termo no dia seguinte. Tentou manter-se concentrado enquanto caminhava, de queixo esticado, punhos cerrados. Chegou à porta do moinho e abriu-a. Tinha passado o dia a estudar o momento em que iria ali esconder a Ana, mudar de roupa, com o assunto já resolvido. «Que pena», pensou. Que pena não estar ainda despachado.

Penetrou no ambiente frio do moinho, tirou a faca de dentro da camisa e atirou-a para uma bancada, onde aquela aterrou com grande alarido. Depois voltou atrás para fechar a porta.

- Edward.

Edward rodopiou, fechou a porta com mais força, o rosto sem pinga de sangue. De pé, nas sombras que existiam sob o chão da galeria, esfregando as mãos trémulas uma na outra e sorrindo-lhe, estava íris.

- íris, que estás tu aqui a fazer? - gritou-lhe. Todo o seu corpo tremia, os olhos quase lhe saíram das órbitas quando a viu ali.

- Eu... desculpa - disse íris, intimidada pela fúria dele.

- Não queria assustar-te.

Enquanto Edward olhava para ela, os pensamentos sucediam-se a um ritmo alucinante na sua cabeça. A ideia de que podia ter entrado no moinho todo sujo de sangue encheu-o de um pavor tal que ficou sem palavras. Não aconteceu, recordou a si próprio. Ela não viu nada disso. Tentou acalmar o seu coração, que pulava, mas continuava incapaz de falar, os olhos cravados no rosto intrigado de íris.

- Desculpa, mas quando voltei para trás calculei que te encontrava aqui. Como ainda não tinhas chegado, fiquei à espera.

Edward abanou a cabeça, querendo dizer que não entendia nada, sem confiar ainda na sua voz.

- Onde foste? - perguntou ela. - Para que era aquela faca?

O que lhe apeteceu foi gritar com ela, correr com a mulher dali para fora, ameaçá-la com o punho fechado. Mas tudo isso só ia torná-lo ainda mais suspeito aos seus olhos. Precisava de acalmar, de inventar uma desculpa. Precisava de tempo para pensar. A casa dos Lange não lhe saía da cabeça, o miúdo na sala de jogos, e como estivera tão perto de cumprir o seu objectivo.

- Que andavas tu a fazer lá fora de faca na mão? - perguntou íris. - Ouviste algum barulho?

Edward olhou para a mulher, subitamente aliviado. Era isso. Ela própria lhe oferecera a desculpa de que tanto precisava.

- Ouvi - disse ele. - Julguei ouvir. Julguei ouvir um ladrão. Peguei numa faca e fui ver o que se passava. Por isso... por isso é que me assustei tanto quando te vi surgir de repente. Pensei que ele se tinha escondido aqui dentro. - O suor escorria-lhe da testa, mas Edward sabia que estava salvo. O olhar dela era de ansiedade, simpatia.

- Mas viste alguém lá fora?

- Não, não - respondeu Edward, encostando-se finalmente à bancada. - Nada. Deve ter sido o vento. Ou a minha imaginação.

- Não sei, Edward. Talvez fosse melhor avisar a polícia.

- Não vale a pena - disse. - Agora tenho a certeza que não foi nada.

Mas íris lembrou-se de outra coisa.

- Paul! - exclamou. - Ficou em casa completamente sozinho.

Já te disse. Não estava ninguém lá fora.

- Acho melhor irmos ver se ele está bem.

- íris - perguntou Edward -, o que estás tu aqui a fazer? Não ias para as termas?

Foi a vez de íris se sentir, primeiro, assustada e depois embaraçada.

- Bem, eu fui - respondeu. - Mas a meio do caminho decidi voltar para trás. Há muito tempo que ando para falar contigo, por isso decidi voltar.

- Mas porque é que não me telefonaste? - perguntou ele, como se fosse a solução óbvia, da qual só um pobre de espírito nunca se lembraria. Agora interessava-lhe apenas recompor-se e depressa. O que só se tornava difícil quando se imaginava coberto de sangue, surpreendido por íris. Mas afastava logo essa imagem. «Estás salvo», recordava a si próprio.

íris mordia nervosamente os lábios.

- Achei melhor falarmos pessoalmente, Edward, nos últimos tempos tenho pensado muito em nós... no nosso casamento.

Edward tentou disfarçar o enfado que aquelas palavras provocavam nele. «Agora quer falar do nosso casamento!» Sabia muito bem a razão daquela crise. Anna andava com problemas no seu casamento e, naturalmente, íris tinha de ir a reboque da amiga. Uma autêntica macaca de imitação. «Por vezes», pensou, «é mesmo estúpida.» Fingindo-se desgostoso, fitou-a:

- íris, que conversa é essa?

-- Não é fácil falar destas coisas - continuou íris, com dificuldade, quase com medo. -- Acho que já não te faço feliz. Se é que alguma vez fiz. Há já algum tempo que o sinto. Mereces uma mulher que corresponda ao que procuras numa mulher.

Edward não acreditava no que ouvia. O absurdo daquelas palavras quase lhe dava vontade de rir, mas conseguiu manter-se sério. O seu corpo deixou de estremecer e Edward até teve dificuldade em concentrar-se nas palavras dela, tal o alívio que o dominava por ter escapado por pouco. Agora, só queria ver-se livre da mulher, empurrá-la outra vez para a estrada, para as termas, e poder planear a sua próxima táctica.

- íris, achas que isto é o lugar e a altura ideais para falar dessas coisas? Não podem esperar até tu voltares?

-- Creio que sim - concordou íris, infeliz. - Eu só...

- Estou cansado - disse Edward. - E pensava eu que ia ter uma noite tranquila, a trabalhar no meu moinho!

-- Às vezes penso que serias mais feliz sem mim - deixou escapar íris.

Edward olhou para ela espantado, como se estivesse a assistir a uma demonstração de falta de maneiras.

- Nunca me queixei do nosso casamento - disse numa voz fria. - Mas por que raio havias de falar nisso agora? Queres que eu passe a vida a assegurar-te que o teu lugar, como minha mulher, está garantido? Acho uma lamentável prova de falta de confiança em ti mesma, íris. Estou plenamente satisfeito com o nosso casamento. Não vejo razão para o pores em causa.

íris suspirou e baixou os ombros.

- Tens razão - concordou, de novo.

- Que tal meteres-te a caminho, para não chegares lá muito tarde? Não é boa ideia conduzires a meio da noite. Vai lá e deixa-te de preocupações. No que me diz respeito, as coisas entre nós estão como sempre estiveram.

íris voltou a suspirar, sacudiu a cabeça e dirigiu-se para a porta do moinho.

- Queres que te acompanhe ao carro? - perguntou Edward.

- Não é preciso - disse íris.

- Mas eu acho melhor - retorquiu Edward num tom suave. - Ainda não estou descansado, embora aqueles barulhos não fossem nada.

- Está bem - disse íris.

Edward olhou para trás antes de fechar a porta do moinho. A faca de mato continuava sobre a bancada, exactamente no ponto onde tinha caído. Ainda nessa noite, quando ela já estivesse longe, ia traçar um plano para se livrar do rapaz. Não podia perder mais tempo. Tinha de agir sem demora, antes que íris achasse que já estava elegantíssima e voltasse para casa mais cedo, a contar com uma segunda lua-de-mel. Só a ideia fê-lo estremecer, ao recordar como a primeira fora aborrecida. Mas não ia ter dificuldade em fazê-la mudar de ideias, recordou-se. Entretanto, tinha coisas mais importantes em que pensar.

- Cuidado com a escuridão - gritou-lhe, enquanto fechava a porta do moinho e seguia atrás dela.

As harmonias melancólicas dos Bee Gees saudaram Anna, quando abriu a porta e entrou em casa. Viu o blusão de Tracy atirado para cima de uma cadeira na sala de jantar. «Veio cedo», pensou Anna. Não tinha visto luzes no andar de cima, quando o carro se estava a aproximar de casa. Dirigiu-se à porta da cozinha que conduzia à sala de jogos.

- Cheguei! - gritou.

- Olá - as vozes dos garotos esvoaçaram escadas acima. Anna levantou o sobrolho, admirada, e depois sorriu. Foi até ao frigorífico e abriu a porta. Havia uma água mineral aberta na prateleira. Pegou na garrafa e serviu-se de um copo.

Enquanto bebia, pensou na conversa que tivera com Tom. Tinha vindo todo o caminho a matutar nela, no comboio. Ele dormiu com outra mulher. Se calhar, tinha havido sinais em que ela podia ter reparado, se não andasse tão obcecada com Paul. Se prestasse mais atenção ao marido.

A parte pior era imaginá-lo na cama, nos braços de outra pessoa. Provavelmente, alguém sem rugas nem cabelos brancos. com um corpo firme, em forma, e vontade de fazer amor. A ideia fez Anna sentir-se enjoada e vagamente envergonhada.

Quando um objecto macio e peludo, como um espanador, afagou os seus tornozelos, Anna deu um pulo e gritou. Olhou para baixo e viu o gato de Paul a esfregar-se contra as suas pernas. Dobrou-se e pegou nele.

- Sam - exclamou. - De onde vieste? - Anna correu para as escadas para chamar os filhos. Mas o volume da música desencorajou-a. Resolveu descer, segurando com cuidado o gato ao colo.

Ao fundo das escadas parou, surpreendida com o espectáculo à sua frente. Tracy e Paul estavam estendidos em cima do tapete redondo de palha entrançada, cada um com algumas cartas na mão.

- Dez - disse o rapaz, exibindo um valete.

- com dez são vinte - anunciou Tracy, satisfeita com a sua jogada, colocando o seu valete ao lado do dele.

- Ei - chamou Anna -, vejam só o que eu encontrei - e levantou os braços para lhes mostrar o gato.

- Foi a Tracy que o trouxe - disse Paul. - Ele voltou para o abrigo.

Anna sorriu para o pêlo felpudo do animal.

- Bem-vindo a casa, Sam.

- O que é que o pai disse? - perguntou timidamente Tracy.

- Bem, mandou saudades - respondeu Anna. Para os dois - acrescentou, acentuando a última palavra.

Paul estendeu os braços para o gato e Anna entregou-lho. O rapaz começou a acariciá-lo.

- Anda jogar - chamou Tracy. - É a tua vez. Ainda com o gato debaixo do braço, Paul escolheu uma

carta e jogou-a.

-. Vinte e seis - disse.

Tracy olhava ora para o tapete, ora para as cartas que tinha numa das mãos, agitando a outra por cima do leque que elas formavam.

Anna ficou a vê-los jogar. Sentou-se no divã, para estar mais perto deles.

- Correu tudo bem por aqui? - perguntou. - Correu - respondeu Paul.

- Que mais disse o pai? -- perguntou Tracy, jogando outra carta e murmurando a pontuação. - Vai voltar para casa?

- Não sei - disse Anna. Encostou a cabeça às costas do sofá e olhou para o fundo do quarto. «Quem me dera poder responder que sim», pensou. - Espero bem - acrescentou, constatando, admirada, que era verdade. Virou a cabeça para um e outro lado, tentando aliviar a tensão que lhe fazia doer a nuca. Ao mexer o pescoço, reparou que a porta da cave não estava completamente fechada.   Levantou-se para ir trancá-la.

- Quem deixou esta porta aberta? - perguntou.

- Não sei - respondeu Tracy. - Faz seis - disse, apontando para as cartas de Paul, corrigindo-o.

- Foste tu, Paul?

O rapaz levantou os olhos. - Eu não.

Anna hesitou um instante, mas depois empurrou a porta e entrou devagar na cave escura. Contornando os caixotes e as mobílias velhas, avançou e acendeu a lâmpada pendurada no tecto. Apesar da luz, os cantos continuavam às escuras e tudo o que se via estava em grande desalinho. «Se calhar fui eu que não a fechei bem», pensou Anna. Olhou em volta, para as pilhas de objectos esquecidos e negligenciados que se acumulavam naquela divisão húmida. «Um dia destes tenho que arrumar isto», disse para consigo, pouco entusiasmada. Esticou o braço para apagar a luz e, ao fazê-lo, os seus olhos focaram a janela.

Uma das cortinas curtas, que ela própria fizera, estava parcialmente presa entre a janela fechada e o caixilho. O pano retorcido formava um estranho balão. Os seus dedos seguiram então para o trinco, que estava aberto.

O coração de Anna começou a bater cada vez mais depressa, enquanto olhava da cortina presa para o trinco aberto. Gritou:

-- Quem abriu esta janela?

- Não percebi - respondeu Tracy, por cima do barulho da música.

Anna afastou-se da janela, os olhos fixos na cortina estranhamente presa. A meio da cave, deu meia volta e correu para a sala de jogos iluminada.

Paul olhou para ela, segurando na carta que se preparava para jogar.

- Que foi? - perguntou. Tracy, que estava com a cabeça apoiada num joelho dobrado, virou-se e olhou para a mãe.

Junto à porta, Anna continuava imóvel, fitando os seus filhos: - Algum de vocês abriu a janela da cave?

Ambos abanaram a cabeça em uníssono.

- Porquê? - perguntou Tracy.

- Porque está aberta.

Tracy e Paul olharam-na estupefactos.

- Ouviram alguém lá fora? Algum de vocês ouviu?

- Não - respondeu Tracy, impaciente.

Paul franziu a testa e depois encolheu os ombros.

- E tu, Paul? - perguntou Anna.

- Não.

Sem tirar os olhos de Paul, Anna tentou recordar-se da última vez que fechara aquela janela, certa de que a tinha trancado no dia em que o rapaz regressara; depois disso não voltara a tocar-lhe.

- Talvez tivesse sido o pai - disse Tracy.

Anna olhou para a filha e considerou a possibilidade.

- Talvez - concordou.

- Provavelmente foi o que aconteceu.

- Provavelmente - repetiu Anna, querendo tranquilizá-los, convencê-los de que estavam em segurança, de que não havia nada a temer. Quando os viu retomar o jogo de cartas, percebeu que não estavam com medo. Não estavam preocupados com o que podia ter acontecido.

Mas Anna estremeceu, ao pensar na janela aberta. Podia ter sido Tom. Provavelmente tinha sido Tom. Mas mesmo assim sentiu-se vulnerável. Nunca se é cuidadoso de mais. Sobretudo no que diz respeito aos nossos filhos. «Disso», pensou, «tenho eu a certeza absoluta.»

íris bateu timidamente à porta, onde a palavra «Fechado» estava escrita numa tabuleta por detrás do vidro. Daí a poucos minutos ouviu barulho lá dentro e, finalmente, apareceu uma mulher de cabelo curto e castanho, que usava calças de ganga cobertas de pó e uma sweatshirt com as mangas cortadas junto às cavas. Uns brincos compridos, de prata com pedras turquesa, chocalhavam sob o cabelo encaracolado. A expressão determinada dos olhos escuros da mulher suavizou-se quando viu íris, a quem sorriu, mostrando uns dentes da frente muito afastados.

- Estás a trabalhar? - perguntou timidamente íris.

- Só a terminar umas peças. Entra. - A mulher recuou um passo e íris entrou no ateliê. Bolas de barro e potes que pareciam de giz ocupavam todas as bancadas. Uma roda de oleiro sobressaía no meio da sala, e dois fornos pretos ocupavam quase toda a parede do fundo. A sala parecia ter sido toda polvilhada com um pó cinzento-claro.

- Então e as malas? - perguntou a mulher.

- Já as pus no quarto - disse íris, virando-se de frente para ela. - Desculpa o atraso, Angélica.

A mulher pousou as suas mãos fortes, cobertas de barro, nos ombros de íris.

- Não estava preocupada. Ainda não estava - puxou íris para perto de si e as duas mulheres beijaram-se suavemente na boca. íris suspirou e soltou-se do abraço demorado.

Angélica dirigiu-se a um canto do ateliê onde havia um pequeno lava-loiça e um fogão. Deitou água a ferver numa caneca de cerâmica e entregou-a a íris, que se sentou num banco, poisando a caneca numa bancada.

- Chá de ervas - disse Angélica. - É do que estás a precisar.

íris suspirou outra vez e Angélica inclinou a cabeça, a sorrir.

- Que se passa?

íris encolheu os ombros, como uma criança abatida.

- Não falaste com ele, pois não? - perguntou Angélica, íris olhou para a outra mulher com uma expressão suplicante:

- Tentei. Estive todo o dia para falar com ele. Mas não tive oportunidade. E agora, à noite, voltei atrás, quando já vinha a caminho, disse a mim mesma que tinha de ser. Que eu tinha o direito de ser feliz, que estava na altura de me assumir e lhe contar a verdade. Ainda comecei... mas não consegui. Angélica acendeu um cigarro, que segurou entre os dentes enquanto deitava fora o fósforo. Deu uma fumaça e bebeu um pouco de chá.

- Talvez, no fundo, não queiras pôr fim ao teu casamento, íris olhou enternecida para a outra mulher e abanou a cabeça devagar:

- Oh, não - disse. - vou contar-lhe tudo, prometo.

- Não me prometas nada - respondeu Angélica arqueando as sobrancelhas. - Quero dizer, não o faças por mim. Se achas que não aguentas a pressão, o escândalo, bem, eu compreendo. Serei a tua amante.

íris estendeu a mão e pousou-a no braço de Angélica, apertando-o contra si e tomando a mão empoeirada na sua.

- Não - afirmou. - Não quero que seja assim. É a primeira vez em toda a minha vida que sou verdadeiramente feliz. Parece que só acordei quando te conheci. Agora sei o que faltava na minha vida e quero viver contigo. Não me importo com o que as pessoas possam dizer.

A outra mulher olhou-a de soslaio e fumou mais um trago do seu cigarro.

- Não vai ser agradável. Ele vai fazer-te a vida negra.

- Vai ficar muito transtornado quando souber. Hoje à noite, disse-me que estava satisfeito com o nosso casamento.

- Satisfeito - repetiu Angélica. - Sinceramente, íris, não sei como conseguiste suportar aquele homem tanto tempo. É um incrível snobe e a forma como te trata é inaceitável. Não sei porque te preocupas com o que ele vai sentir.

- Não consigo evitar - explicou íris. - Sinto-me culpada. Receio nunca ter gostado realmente dele. Não tenho sido lá muito boa esposa, sabes. Sei que ele tem mau feitio, mas é tão exigente com ele próprio como com os outros. E o escân dalo vai-lhe ser muito doloroso.

- Não precisas de fazer uma comunicação ao país, nem vais ser condenada a trabalhos forçados, sabes. Hoje em dia, há muitas pessoas que resolvem divorciar-se. O mundo não precisa de saber porquê.

íris olhou para a amiga com um brilho nos olhos.

- Mas eu quero que todo o mundo saiba. Pela primeira vez na vida estou apaixonada e apetece-me gritá-lo bem alto.

- És um amor, íris - disse Angélica com ternura. Um pouco ingénua, mas é por isso que gosto de ti-

íris corou e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Apressou-se a limpá-las.

- vou contar-lhe - afirmou. - Dentro de dias. Talvez lhe telefone a dizer que não volto no domingo. Não quero estragar estes dias que vamos ter só para nós.

- Está bem - concordou Angélica. - Faz o que entenderes que é melhor para ti - apagou o cigarro e sorriu. vou espreitar os fornos. Não saias daí.

íris abanou a cabeça e seguiu-a avidamente com o olhar.

O telefone tocou quando Gus deBlakey estava mesmo a acabar o porco agridoce que comera directamente da embalagem de cartão, com um garfo de plástico.

- La-Z Pines - disse, fechando a tampa da embalagem.

Ficou ao mesmo tempo contente e apreensivo quando ouviu a voz da mulher do outro lado da linha. Perguntou imediatamente como estava o bebé e, para seu alívio, soube que mãe e filho se encontravam bem. A sua mulher só queria perguntar quando é que ele ia para casa, porque devia estar exausto com a emoção dos últimos dias, o nascimento do bebé, o suicídio do hóspede, no motel. Recordou-lhe, embora soubesse que o marido ia detestar ouvir, que ele já não tinha vinte anos.

com o auscultador encostado ao ouvido, Gus olhou pela janela do escritório, por entre as letras do seu modesto anúncio em néon. O parque de estacionamento estava em silêncio, mas ele ainda esperava alguns clientes para essa noite.

- Há uma convenção dos Metodistas na cidade - explicou. - Alguns ficaram aqui, os que não arranjaram quarto no Holiday Inn. Passei por lá esta tarde. Aproveitei, quando vinha do hospital e trouxe porco agridoce daquele restaurante chinês que abriu lá no hotel. É bem bom.

A mulher recordou-lhe que porco agridoce lhe fazia gases, mas Gus calou-a logo:

- Nunca me senti tão bem - tranquilizou-a. - Sabes que mais, Millie? Sábado é a última noite da convenção. Acaba no domingo, depois da missa, e adivinha quem vai actuar no sábado à noite no Salão Havana? A Champagne Lady, de Lawrence Welk. Pensei que podíamos ir. Tu adoras ouvi-la.

Millie concordou que adorava a Champagne Lady e que ia pensar nisso. Fez uma última recomendação ao marido, que conduzisse com cuidado, e desligou.

Gus levantou-se e voltou a olhar para o parque de estacionamento. Aqueles metodistas tinham o hábito de se deitar cedo. Provavelmente, não iam precisar mais dele naquela noite. E, por mais que lhe custasse admiti-lo, estava cansado. com um suspiro de fadiga, mas também de satisfação, começou a fechar os estores da recepção. Pensou em pedir o «Danny Boy», se a Champagne Lady aceitasse pedidos. Ele adorava aquela canção, o «Danny Boy».

Enquanto o estore da frente se desenrolava, viu algo que lhe desagradou. Um casal de metodistas, marido e mulher, vi nhã a caminho da recepção com aquela expressão que di/: «A sanita entupiu-se e pagámos um bom preço por este quarto.» Gus olhou para eles, pensativo. Reconheceu-os imediata mente. Eram os do 17. Por sinal, o mais limpo de todos. Tinha sido bem esfregado depois de encontrarem lá aquele tipo pendurado.

Gus achou que sabia qual era o problema. Deviam ter ouvido dizer que um tipo aparecera enforcado naquele quarto e agora, não o queriam nem por nada. Só esperava que o boato não se espalhasse, ou ficava para ali com um bem imóvel com pletamente inútil.

A porta abriu-se retinindo e o casal de meia-idade entrou.

- Boa noite - cumprimentou Gus com um sorriso forçado. - Desejam alguma coisa?

O marido, que usava óculos com aros metálicos da mesma cor do cabelo, aclarou a garganta. A seu lado, a mulher continuou calada, furiosa.

- Bem - disse o marido -, a minha mulher e eu estamos hospedados num dos seus quartos.

- No dezassete - frisou a mulher.

- Exactamente.   Somos membros da Igreja Metodista. Viemos participar numa convenção - empunhou uma Bíblia Gideon em jeito de explicação.

- É um prazer receber-vos em minha casa - disse Gus.

- Estão satisfeitos com o quarto?

- com o quarto, sim - disse o homem -, com isto é que não - o homem agarrou a Bíblia com ambas as mãos e agitou-a com força.

Gus olhou para o volume de testa franzida, concluindo que os Metodistas utilizavam na sua religião outra versão do Livro Sagrado. Não sabia muito acerca das actividades deles, a não ser que iam contar com a presença da Champagne Lady. , - Lamentável - disse a mulher, farejando o livro.

- Todos os quartos têm uma - explicou Gus. - É um costume antigo. Para o consolo do viajante.

- Eu sei e é um muito bom costume. Mas esta que estava no nosso quarto foi adulterada.

- Adulterada? - repetiu Gus.

- Esta noite, a minha mulher quis ler umas passagens, mas o que encontrou foi isto. - O homem abriu o livro e mostrou-o a Gus. Este inclinou-se para ver melhor. As margens da página indicada estavam cobertas de palavras manuscritas, que se sobrepunham ao texto impresso. Gus percebeu logo que algumas eram obscenas. Arrancou imediatamente a Bíblia das mãos do homem e escondeu-a debaixo do balcão.

- Peço as maiores desculpas - disse, abrindo uma gaveta e retirando outro exemplar, que ofereceu ao cliente insatisfeito.

- É triste, mas há gente que não respeita a palavra do Senhor. Lamento imenso.

A mulher abriu a nova Bíbilia e examinou-a.

- Esta parece em condições - anunciou.

- É tudo? - perguntou Gus, temendo que houvesse mais algum problema.

- E - respondeu o homem, pousando a mão no ombro da mulher. Ao chegar à porta, acrescentou: - Se fosse a si não deixava essa à vista. Pode ir parar às mãos de uma criança.

- Deixe o assunto por minha conta - tranquilizou-o Gus.

Assim que o casal partiu, Gus pegou na Bíblia que estava / por baixo do balcão e abriu-a, cheio de curiosidade. Voltou as páginas até chegar à parte ofensiva e virou o livro de pernas para o ar, tentando perceber o que estava escrito. As palavras não faziam muito sentido; pelo menos para Gus, que desistiu de compreendê-las. A única coisa que percebeu foi, escrito com grande nitidez ao canto de uma página, o nome Edward Stewart e, logo abaixo, um número de telefone. Gus ponderou uns instantes a pensar se aquele nome, ou aquela história louca, poderiam ser úteis ao detective simpático que o tinha procurado no hospital. Talvez não devesse intrometer-se, mas não era como aquela gente de Nova Iorque que nunca se dava ao trabalho de chamar a polícia, mesmo que ouvisse os vizinhos do lado gritar «assassino». Gus meteu a mão no bolso da camisa e tirou o cartão com o telefone do detective. «Não custava nada dar-lhe uma apitadela», pensou.

Pegou no auscultador, marcou o número da polícia de Stanwich e aguardou. Enquanto o telefone tocava, olhou para o relógio. Uma voz masculina e rouca atendeu, dizendo que falava da esquadra de Stanwich. Gus olhou para o cartão e perguntou pelo detective Mário Ferraro.

- De momento não está - disse o polícia. - Posso ser-lhe útil?

- Ele está de folga? Quando posso encontrá-lo?

- Está mais ou menos de folga - respondeu o polícia. Foi passar uns dias fora. Quem fala, por favor?

Então, Gus lembrou-se. O detective tinha falado em ir levar o filho à universidade.

- E quando é que ele volta? - perguntou Gus, sem vontade de contar a história toda a outra pessoa.

- Daqui a uns dias. Na sexta já cá deve estar.

- Compreendo - disse Gus, olhando para o que estava escrito na Bíblia. Estava morto por saber o que o detective ia pensar daquilo.

- Deseja falar com outra pessoa?

- Não, não vale a pena. Eu volto a telefonar depois. Sexta-feira, foi o que disse?

- Não quer deixar uma mensagem?

Gus hesitou.

Não - disse, por fim. - Eu aguardo. Telefono quando ele voltar. - Pousou o auscultador e voltou a arrumar a Bíblia debaixo do balcão. Depois pegou nas chaves e desligou a luz da recepção, deixando apenas o número de emergência aceso, em frente da porta. Decidiu não contar nada a Millie. Iria dizer que ele não tinha nada que meter o nariz onde não era chamado. Contudo, Gus fechou a porta e entrou no seu carro de consciência tranquila, por ter cumprido o seu dever de cidadão.

 

                                   CAPÍTULO 18

O sol da manhã projectava-se sobre o ombro de Anna que estava de cócoras diante da máquina de secar roupa, a tirar a roupa morna e arrumá-la, cuidadosamente dobrada, num cesto de plástico. Ouviu os passos suaves de Tracy na cozinha e chamou-a, a avisar onde se encontrava. Tracy apareceu à porta e foi ter com Anna. Inclinou-se e deu um beijo à mãe.

Anna ficou surpreendida e feliz com aquele beijo, a primeira manifestação de afecto da filha em muitas semanas. Dobrou um par de meias a preceito e disse, num tom alegre:

- Acordaste cedo.

- Mary Ellen convidou-me para ir fazer vela no barco deles, com o irmão mais velho e a namorada.

- Esplêndido!

- Puseste perfume?

Anna levantou-se e colocou o cesto da roupa em cima da máquina.

- Batom e tudo! - exclamou Tracy. - Onde vais? Anna respirou fundo.

- Ao aeroporto.

- Ao aeroporto?

- O teu pai vai a Boston esta manhã. Resolvi ir despedir -me dele ao aeroporto.

- Ah! - disse Tracy, fingindo que estava a perceber.

- Precisamos de conversar - continuou Anna. - Levas isto para o teu quarto, querida?

Tracy pegou na pilha de roupa dobrada que a mãe lhe estendia.

- Lembrei-me de levar o Paul connosco - disse a rapariga, falando depressa.

- Era uma óptima ideia - retorquiu Anna, séria. Tracy encolheu os ombros.

- Mas ele tem de ir ao hospital, à tarde. Fazer mais exames. Devemos voltar do aeroporto ao meio-dia.

- Ele vai contigo ao aeroporto? - perguntou a rapariga, com alguma petulância.

- Não quero deixá-lo sozinho em casa - respondeu Anna. - Terá que vir comigo. - Mãe e filha ficaram algum tempo caladas.

- Bem - disse Tracy. - vou arranjar-me. Deixas-me em casa da Mary Ellen?

- Claro. Acorda o Paul, fazes-me esse favor? Temos de sair daqui a pouco tempo.

- Está bem - concordou Tracy. Olhou para o monte de peúgas e calções que estava em cima da máquina. - Isso é dele? Eu levo para cima.

Anna fez uma festa nas costas da filha. Tracy fingiu não reparar. Equilibrando nos braços as duas pilhas de roupa lavada, atravessou a casa.

Anna entrou na cozinha e sentou-se à mesa, junto ao telefone. Tinha passado a maior parte da noite acordada, mas não sentia sono. Pelo contrário, todo o seu sistema parecia acelerado e estava ansiosa por se meter ao caminho.

Depois de ter descoberto aquela janela aberta, tinha verificado a casa toda e telefonado à polícia. O agente com quem falou só a muito custo conseguiu disfarçar a sua impaciência. Explicou-lhe que, em regra, não costumavam investigar janelas que tinham sido abertas. Aconselhou-a a não se preocupar, acabando por dizer que, se ela insistisse muito, mandariam lá alguém. Anna pensou melhor e resolveu insistir. Apareceu um agente que fez uma ronda superficial à casa e lhe garantiu que podia ficar descansada. Anna ignorou os modos indulgentes do agente e, depois de este sair, tentou não pensar mais na janela aberta e concentrar-se no outro problema.

A longa noite sozinha na cama dera-lhe tempo para pensar nas palavras de Thomas. Tinha ido para a cama com outra mulher e agora queria que lhe perdoasse, que fizessem as pazes. Ann^ passou a noite a lutar contra os seus sentimentos, sem saber o que devia fazer. Adormeceu por volta das 4.30, mas quando acordou já sabia.

Agora que a decisão estava tomada, só queria levá-la a cabo, fechou os olhos e imaginou a cara dele quando a visse na porta de embarque. Sentiu uma onda de expectativa ao pensar nele. Era a decisão certa. Não se volta as costas a uma vida a dois por causa de um erro Ela também errara. Roída de remorsos, pensou em Tracy, que sofrera tanto durante todos aqueles anos por causa da sua obsessão. Mesmo assim, Tracy tinha-lhe perdoado. Era a vez de Anna perdoar.

Abriu os olhos e consultou o relógio da cozinha. Só lhe faltava fazer um telefonema antes de partirem. Em princípio, àquela hora, Edward ainda devia estar em casa. Anna marcou o número dos Stewart e deixou o telefone tocar várias vezes.

Um homem de pequena estatura, quase careca, com uma farda azul-turquesa, abriu as portas de vidro da entrada do prédio de apartamentos.

- bom dia - disse o porteiro, educado. - Está um dia maravilhoso, não é verdade?

- Não há dúvida - murmurou Thomas, avançando pelo elegante átrio de entrada de lustres acesos, tentando não ficar com a mala nem a pasta presas na porta.

- Para onde deseja ir? - perguntou o porteiro.

Thomas reparou que o porteiro era o mesmo que estava de serviço na manhã anterior, quando saíra com Gail. Perguntou a si próprio se o homem o teria reconhecido e estava só a ser discreto. Sentiu o ouro da sua aliança arder sob a luz do lustre.

- Para casa de Miss Kelleher, por favor. Vigésimo andar.

- Quem devo anunciar?

- Mister Lange.

Com um aceno de cabeça, o porteiro dirigiu-se ao telefone interino que estava sobre a mesa da recepção. Thomas sentou-se num dos cadeirões de veludo e pousou as suas malas no chão. Tinha de estar no aeroporto daí a hora e meia, mas não queria ir sem falar primeiro com Gail, por mais que isso lhe custasse. Na véspera, depois de se despedir de Anna, tinha ido para um hotel onde passara a noite, quase toda acordado, acompanhado pelos seus pensamentos e uma garrafa de bourbon. Acordou exausto, com dores de cabeça; mas ao menos não se sentia tão culpado como na manhã anterior.

- Faça o favor de subir - disse o porteiro.

- Obrigado - agradeceu Thomas. Levantou-se, pegou nas malas e caminhou até ao elevador. Entrou e carregou no botão do vigésimo andar.

Calculava que Gail não ia ficar surpreendida com o que ele tinha para lhe dizer. Praticamente não falavam um com o outro, desde que ele anunciara que ia jantar com Anna. Quando fora buscar a mala a casa dela dissera-lhe que ia passar a noite num hotel, porque precisava de estar sozinho, pensar na sua vida. Ela respondera-lhe com monossílabos, esforçando-se por não revelar o que sentia.

Chegou a pensar em nem sequer falar com ela. No emprego, não teria qualquer dificuldade em evitá-la e ela havia de perceber, porque era uma mulher sensível e tinha o seu orgulho. com certeza, não ia insistir. Ia deixá-lo seguir a sua vida, sem pedir explicações. E a última coisa que queria naquela manhã era uma cena com Gail.

Mas essa seria uma saída muito cobarde. Não queria continuar aquela relação, ansiava por voltar para casa, mas devia-lhe uma explicação. Fossem quais fossem as expectativas dela em relação àquele caso, tinha-lhe oferecido a sua amizade numa hora difícil, e a culpa e a relutância que cresciam dentro de si, à medida que o elevador subia e se aproximava da porta dela, diziam-lhe que ia ter de pagar a oferta dela.

Caminhou devagar pelo corredor alcatifado que conduzia à porta de Gail e tocou à campainha. Ao fim de uns segundos, a porta abriu-se e ela surgiu à sua frente, de saia e casaco, pronta para mais um dia de trabalho.

Mirou-o de alto a baixo e perguntou, com uma gargalhada:

- Vens viver para aqui? Thomas não sorriu.

- vou agora a Boston - respondeu.

- Eu sei - respondeu Gail, recuando um passo para deixá-lo entrar.

Não a olhou quando entrou para a sala comprida. Sentiu que ela o observava, estudando-o, tentando adivinhar o que ele »a dizer.

- Lamento o que sucedeu ontem à noite - disse. - Devia ter-te telefonado quando cheguei ao hotel, mas não me senti capaz.

- Não estava à espera de ter notícias tuas - respondeu ela. Aproximou-se dele, que estava à janela, a ver a manhã descer sobre a cidade coberta de nevoeiro.

- Como correu o teu encontro com Anna?

Pensou contar-lhe, mas não sabia por onde começar. Como se explica uma coisa que nem nós próprios percebemos? Olhou-a nos olhos e disse:

- Confundi tudo, Gail. Não usei a cabeça. Agora vou ter de magoar-te, coisa que nunca quis fazer.

Gail fez que sim com a cabeça, mas havia uma expressão distante no seu olhar, como se estivesse a ouvi-lo a quilómetros de distância. Naquele instante, Thomas percebeu que ela tinha passado a noite a preparar-se para aquele momento.

- Pois não - disse apenas. - Sei que nunca o quiseste fazer.

Edward pousou o auscultador e voltou a sentar-se na sala de jantar. «Mas que sorte», pensou. Que sorte incrível.

Anna acabara de telefonar-lhe a perguntar se ele tinha visto ou ouvido algum barulho na noite anterior. A princípio, entrou em pânico, ao ouvi-la descrever a janela aberta, mas conseguiu tranquilizá-la e, tal como a polícia, convencê-la de que não havia absolutamente nenhuma razão para se preocupar.

Foi então que Anna falou do aeroporto. Que ia ao aeroporto e levava o filho consigo. Que melhor lugar para um miúdo desaparecer do que um aeroporto enorme, anónimo? Era fácil inventar uma história para afastar o rapaz sem nenhum dos pais dar por isso. Assim que conseguisse ter o miúdo consigo, era só escondê-lo em casa e esperar que a noite chegasse, para se ver livre do corpo. Fácil. Tão fácil! Só lamen tava não ter sabido disso na véspera, porque evitaria ter passado a noite em branco.

Edward sacudiu as migalhas de croissant dos seus dedos para o tabuleiro. Não suportava ver pratos amontoados na cozinha.

Bem, mas estava na hora de se pôr em acção. Consultou o seu relógio de pulso. Deviam estar quase a partir. Decidiu despachar-se porque queria seguir mesmo atrás deles, guardando a devida distância, claro. «Logo à noite tudo terá já passado», disse para consigo. Sentiu um alívio enorme. Depois iria jantar ao seu clube, em paz, sabendo que o seu potencial delator estava morto e enterrado, num lugar suficientemente remoto, e, com ele, todas as suas preocupações.

 

                                     CAPÍTULO 19

Anna arrumou o carro na fila, na rotunda, diante da porta do terminal Leste. Deu uma olhadela a Paul que parecia hipnotizado pela azáfama do aeroporto.

-Ainda bem que vieste comigo - disse Anna. - Não percebo como querem que uma pessoa conduza e ao mesmo tempo consiga ler aqueles sinais todos. Ainda acabava no meio da pista, santo Deus.

Paul encolheu os ombros. Tinha vindo todo o caminho amuado por ela ter insistido em levá-lo, em vez de o deixar sozinho em casa.

- Havia de encontrar o caminho.

- Talvez. Mas um co-piloto dá muito jeito. - Não queria que ele se sentisse sufocado, superprotegido. Mas aquela janela aberta na cave não lhe saía da cabeça. Embora tivesse dificuldade em admiti-lo, só pensava nas insinuações ameaçadoras de Rambo. «Ele está são e salvo», pensou, repreendendo-se a si própria. Perfeitamente seguro. Mas na noite anterior, aquela janela recordara-lhe que o seguro morreu de velho.

Anna pensou então que Thomas nunca iria aprovar aquela precaução. Mas a presença do filho transmitia-lhe a confiança de que ela precisava. Quando tom voltasse para casa...

Meteu a mão na mala e tirou o batom. Aplicou-o com cuidado, olhando para o espelho retrovisor. Depois pôs a tampa e pediu ao filho:

- Vens comigo?

O rapaz abanou a cabeça.

Anna olhou para a entrada do terminal: um mar de gente. Havia polícias a dirigir o trânsito e empregados das linhas aéreas de farda, a sair e a entrar pelas portas automáticas.

- Acho que podes ficar aqui - concordou. - Mas tranca as portas.

- Para quê?

- Estamos em Nova Iorque, querido. Há muita criminalidade por estas bandas. É preciso ter muito cuidado. De certeza que não queres ver o terminal? Vais aborrecer-te aqui dentro à espera.

- Não - disse o rapaz, desanimado. Anna olhou-o e franziu a testa:

- Sentes-te bem?

- Sim - respondeu ele, já impaciente.

- Então está bem. Eu não demoro. - Anna saiu e trancou a porta do seu lado. Depois acenou a Paul, olhou para um lado, para o outro, atravessou a rua e entrou no terminal.

Paul inclinou-se para a frente e ligou o rádio. O locutor anunciava qualquer coisa indispensável para o regresso às aulas e Paul ouviu-o com tristeza. Não lhe apetecia nada que a escola começasse. Iam ficar todos a olhar para ele. Não tinha amigos naquela terra, o que não constituía problema durante as aulas, mas era terrível na hora do almoço, nos intervalos e coisas do género. Tinha a leve e pálida esperança que Tracy o levasse a dar umas voltas. Convidara-o para ir andar de barco à vela. Não era o ideal, andar por aí com a maninha, mas sempre era melhor do que nada.

Quando uma mão bateu ao de leve na janela, deu um pulo e olhou, à espera de ver Anna, ou um tipo sinistro de Anna apontada à sua cabeça. «Estamos em Nova Iorque», foi o que ela disse. «Criminalidade.» Paul esticou a cabeça e viu o rosto preocupado de Edward Stewart a espreitar lá para dentro.

Paul olhou-o desnorteado e Edward pediu-lhe, por gestos, que abrisse a janela. Paul desligou o rádio e baixou-se para chegar ao manipulo.

- Paul - começou Edward, num tom aflito. - Onde está a tua mãe?

Paul indicou com a cabeça o terminal da linha aérea.

- Foi ali - respondeu -, despedir-se do meu pai. O que é que quer?

- Oh, não - gemeu Edward, éndireitando-se e contorcendo o rosto, olhando para o terminal.

- Que foi? - perguntou o rapaz. -• Meu Deus!

- Mas o que foi?

Edward inclinou-se novamente:

- Paul, o teu pai não está ali. Houve... Bem, ele sofreu um acidente esta manhã em Nova Iorque. Levou uma facada de um assaltante. Está no hospital.

- Uh!

- Como ninguém atendia em tua casa, telefonaram para a minha. Oh, ela deve andar desvairada à sua procura.

- Se quiser, vou procurá-la - ofereceu-se Paul. Edward pareceu aceitar a sugestão, mas depois mudou de ideias.

- Deixa estar, eu procuro-a. Vim buscar-vos para vos levar ao hospital. Para o verem. O meu carro está na garagem, do outro lado - indicou um edifício bastante afastado do terminal. - No espaço H-treze. És capaz de fixar?

- Claro.

- Então espera lá por mim. Eu vou lá dentro buscar a tua mãe.

- E o nosso carro? - perguntou Paul, saindo do Volvo e fechando a porta.

- Não te preocupes, eu explico ao polícia.

- Está bem - concordou o rapaz.

- Entra no meu carro e espera por mim - disse Edward.

- Deixei a porta aberta.

- H-treze?

- Exactamente.

Paul atravessou a rua e percorreu a estrada até finalmente chegar à garagem. Lá dentro estava escuro, apesar da luz do dia, e silencioso. Duas pessoas saíram quando ele ia a entrar, mas de resto não se via mais ninguém na garagem, parecia um cemitério de automóveis.

Reparou que no primeiro piso, que ficava no rés-do-chão, as letras que marcavam os espaços eram das primeiras, o que significava que teria de subir. Procurou a rampa para o segundo piso, cujas letras só chegavam ao F. com um suspiro, continuou a subir até ao terceiro piso, onde havia menos carros e um silêncio de morte. Pelo caminho pensou em Thomas, a esvair-se em sangue à borda do passeio, enquanto o gatuno fugia com a sua carteira. A ideia fê-lo sentir-se enjoado e um pouco apreensivo. A atmosfera da garagem pareceu-lhe de repente muito hostil e desejou encontrar depressa o carro para entrar, quanto antes, lá para dentro. Depois trancava as portas e ficava à espera de Mr. Stewart. Começou a passar em revista as letras e os números, caminhando pelos espaços entre os carros. Passou pelo elevador. A luz por cima da porta indicava que este vinha a subir.

O espaço a seguir ao elevador era o H-7. Faltava pouco. Contou os espaços enquanto caminhava e reparou que estava quase a chegar a um carro preto. Quando se aproximou mais, viu que era um Cadillac, comprido, reluzente. Avançou e pôs a mão no fecho da porta. Depois parou e ficou a olhar para ele, apavorado. O longo capo do carro encurvava para baixo, como um espelho negro e brilhante, até ao radiador. Empoleirado em cima deste estava um emblema que ele nunca tinha visto antes. Era dourado, do feitio de uma águia de asas expandidas, garras esticadas, bico aberto, olhos semicerrados como duas fendas oblíquas.

Paul sentiu uma dor estalar na sua cabeça e vacilou. Continuava com a mão no fecho da porta; mas todos os músculos do seu corpo tinham perdido as forças, e as náuseas começavam a dominá-lo. De olhos cravados na águia, decidiu afastar-se do carro.

De repente sentiu uma pancada seca nas costas e um braço abriu com força a porta do automóvel. Paul foi empurrado para o interior do carro e caiu no banco da frente, batendo com o queixo no volante. Ficou algum tempo atordoado, mas depois virou-se para trás e soltou um grito quando deu de caras com o seu agressor.

Os olhos gélidos de Edward Stewart flutuavam por cima dele, na obscuridade do carro preto, estacionado na garagem vazia. Paul ergueu um punho, mas Edward agarrou-o e empurrou-o com força para baixo, imobilizando-o com o joelho dobrado. Quando Paul desatou a gritar, um trapo húmido cobriu-lhe o rosto e um cheio enjoativo dominou-o.

Nos poucos segundos que demorou a perder os sentidos, Paul foi outra vez um bebé, deitado, imóvel, na berma verdejante da estrada, incapaz de se mexer, com aqueles olhos gelados fixos nele. Gritou por socorro, mas quando aquelas mãos enormes se estenderam na sua direcção, percebeu, tal como nessa outra ocasião, que elas levá-lo-iam para perigos ainda maiores.

Anna examinou a fila de passageiros que aguardavam a verificação da bagagem para poderem embarcar. O que chamou a sua atenção foi a curva daqueles ombros caídos - igual, apercebeu-se, à de Paul quando se encostara, nessa manhã, à porta da cozinha. Num simples olhar identificou mais um traço comum ao pai e ao filho, que os unia de forma incontestável. Thomas deu uns passos em frente, sem ter ainda reparado nela.

Anna receou não ter coragem para prosseguir o seu plano. A certeza que a impelira de casa ao aeroporto vacilou, quando o viu dirigir-se à passadeira rolante. Talvez tivesse interpretado mal as intenções dele. Talvez quisesse ficar com a outra mulher, afinal. Thomas estava cada vez mais perto do local onde deixaria a mala. Mais uns minutos e entraria no avião.

«Trata-se do Thomas», disse para consigo. Não um estranho qualquer. Mesmo que não compreendesse o que ele tinha feito, conhecia-o. Não estava enganada quanto aos sentimentos dele. «Estás com medo», disse a si própria. «Apenas medo. Luta por ele. É o que tens a fazer.»

Obrigando-se a caminhar em frente, Anna chamou-o. Thomas olhou para trás, curioso. Quando a viu, a sua expressão intrigada foi substituída por um sorriso.

- Anna! - exclamou.

Deixou a fila e correu para ela. «Vai correr tudo bem», pensou Anna.

O calor do sorriso do marido encheu-a de timidez, de incerteza quanto ao que queria dizer-lhe.

- Eu... quis despedir-me de ti.

Thomas olhou para ela, cauteloso, mas cheio de esperança. Pousou a bagagem no chão e esfregou as mãos nas calças.

Anna percebeu que ele não sabia o que havia de dizer. Ela sempre o ajudara nas situações difíceis. Era o que precisava que ela fizesse agora.

- Mal dormi a noite passada, a pensar em tudo o que disseste. Para mim foi um grande choque.

- Eu sei.

- Mas não queria que te fosses embora hoje com este mal-entendido a pairar sobre nós.

Thomas sacudiu a cabeça, triste.

- Sei que agora somos capazes de conversar sobre o assunto. Quanto mais penso nele, mais me convenço de que houve culpa dos dois lados. Eu estava tão obcecada com Paul que nem me lembrei que tu também estavas a sofrer. Seja como for, pediste-me que te perdoasse e quero que saibas que estás desculpado. É o mínimo que eu posso fazer.

Ficaram ali de pé, em frente um do outro, atrapalhados. Thomas pegou-lhe na mão direita. Colocou-a entre as suas, acariciou-a e depois de hesitar um pouco apertou-a. Anna olhou-o e percebeu, pela força com que ele cerrava os lábios, que estava a tentar reprimir as lágrimas.

Anna também. Mas sentia-se tranquila, sabia que tinha feito bem em ir ali. O que fosse preciso esclarecer podia muito bem esperar. Estavam juntos de novo, pensou, fitando as mãos entrelaçadas.

Uma voz amplificada atravessou o ar:

- Os passageiros para o voo das dez horas para Boston podem preparar-se para embarcar.

Thomas suspirou:

- Sou eu - disse. - Telefono-te logo à noite - acrescentou num tom interrogativo.

- Em que hotel ficas?

- No Copley Plaza.

- Está bem. Telefona. Vai ser bom falar contigo. Thomas pegou na mala e na pasta.

- Como vão todos lá em casa? Está tudo bem?

Anna pensou na janela aberta na cave e hesitou. Mas ele estava prestes a partir, precisava de tranquilidade. Além disso, tudo estaria resolvido quando regressasse. Sorriu-lhe:

- Tudo bem.

- Os miúdos?

- A Tracy foi passear de barco com a Mary Ellen. O Paul está à minha espera no carro.

Anna viu uma sombra atravessar o rosto de Thomas e percebeu que ele estava triste por o rapaz não ter ido dizer-lhe adeus.

- Ele queria vir - explicou -, mas eu pedi-lhe para ficar a tomar conta do carro. Estacionei mesmo em frente ao terminal.

Thomas estudou a fila ondulante de passageiros frente ao balcão do check-in. Na sala de espera, as pessoas preparavam-se para entrar no avião.

- Não te atrases - disse Anna.

- Dá-lhes saudades minhas, está bem? Anna sorriu.

Num impulso, Thomas voltou a largar a mala e abraçou-a. Anna correspondeu e apertaram-se um ao outro com força, enquanto ele escondia o rosto no cabelo dela. Anna percebeu que Thomas estava a tremer. Ela própria sentia os joelhos sem forças.

- Que bom estar contigo - disse ele.

Anna sorriu e deu-lhe uma palmada no traseiro.

- É melhor ires andando.

Thomas beijou-a na boca e largou-a com relutância. Depois partiu, passou pelo tapete rolante, onde depositou a bagagem, acenou-lhe e saiu pela porta eléctrica.

Anna acenou-lhe com vigor, ao mesmo tempo pesarosa e feliz. Ele só ia passar uma noite fora, recordou-se. No dia seguinte estaria de volta. De volta à casa deles, para recomeçar tudo. Esperou e quando o viu desaparecer, deu meia volta e dirigiu-se à saída.

Homens de fato completo corriam a apanhar os seus aviões. Nos balcões de venda de bilhetes, pessoas vestidas das mais diversas maneiras esperavam, olhavam em redor. Um jovem de óculos escuros e sapatos de ténis, bonito, aguardava despreocupado. Uma senhora, com um elegante conjunto de Verão, procurava alguma coisa na mala, e um casal descontraidamente vestido examinava os bilhetes e arrumava a sua bagagem num carrinho.

Tanta gente a viajar. Férias, escapadelas, importantes viagens de negócios. Mas Anna não sentiu inveja. Estava radiante por ir para casa preparar tudo para o regresso do marido, ansiosa por estar com os filhos. Pensou na casa de Hidden Brook Lane com uma saudade que não sentia por nenhum outro lugar. No dia seguinte estariam todos juntos, em segurança, debaixo do mesmo tecto. Mais uma vez, os seus pensamentos correram para a janela aberta da cave, mas Anna afastou-os. Thomas estaria lá em breve, ia correr tudo bem.

Anna atravessou a moderna nave do átrio, cruzando-se com inúmeros funcionários vestidos de azul e passageiros apressados. As portas de correr abriram-se com o peso dos seus passos e Anna trocou o zumbido do ar condicionado do terminal pelo calor e pela algazarra da rua em frente. O carro lá estava, arrumado junto à rotunda onde o deixara e, com alívio, não viu por ali nenhum polícia a questionar a legitimidade do seu estacionamento.

Contornando os empregados e os táxis que circulavam em frente do terminal, Anna atravessou a rua, de pescoço esticado à procura da cabeça de Paul, que afinal não estava visível dentro do carro.

«Deve ter adormecido», pensou. Adolescentes. Para comer e dormir estão sempre prontos! Aproximou-se da porta do carro, disposta a meter-se com ele acerca da sua competência como sentinela, mas percebeu, assim que chegou ao veículo, que o seu filho não se encontrava lá dentro.

Ficou uns instantes em pé no passeio, a olhar para o carro. Depois abriu a porta e sentou-se no lugar da frente.

Não havia sinais dele. Olhou pelo pára-brisas, à espera de vê-lo surgir dentro do seu campo de visão, mas nada. «Deve ter ido à minha procura», pensou. Ou comprar um chocolate, ou coisa assim. Trancou as portas e voltou a entrar no terminal. Olhou em todas as direcções, à procura do blusão de ganga azul e dos sapatos de ténis pretos, mas não o viu. As mesmas pessoas continuavam no terminal, mas desta vez nenhuma a intrigou, como os convidados no fim de uma festa, passada a fase de novidade. Correu para o balcão da tabacaria e finalmente lá conseguiu captar a atenção do empregado, ocupado a receber o dinheiro para pagar uns livros de bolso e jornais.

- Desculpe - interrompeu-o.

O homem olhou-a através das lentes espessas dos seus óculos redondos.

- Não esteve aqui um adolescente a comprar alguma coisa? com um blusão de ganga, cabelo castanho?

- Não - disse o homem, voltando-se para o cliente seguinte.

- Um rapazinho magro, mais ou menos desta altura.

- Não, minha senhora - disse o homem, voltando-lhe as costas.

Anna deu meia volta e examinou o terminal. Talvez ele tenha decidido ir despedir-se, afinal. Consultou o quadro electrónico para recordar o número da porta, depois percorreu os corredores alcatifados em direcção à sala de espera. «Provavelmente vou cruzar-me com ele», pensou.

A zona dos voos domésticos estava vazia, à excepção de uns empregados que riam e conversavam, aproveitando um intervalo entre voos. A mulher que revistara a bagagem de Thomas olhou-a com desconfiança. Anna repetiu as perguntas sobre Paul, mas a mulher, depois de consultar os seus colegas pouco solícitos, garantiu a Anna que ou não o tinham visto, ou não se lembravam.

«Miúdo terrível», pensou Anna enquanto voltava para trás. «Para que é que ele foi sair do carro? Eu pedi-lhe que ficasse a tomar conta dele.» Tentou ignorar o outro sentimento que nascia dentro de si, como um espectro a despertar do estado de dormência. Regressou à sala de espera e olhou em redor. A casa de banho dos homens ficava na parede do fundo, ao lado das cabinas telefónicas. Correu até lá, mas percebeu logo que Paul não estava ali. Um homem de fato cinzento saiu da casa de banho dos homens.

Anna hesitou mas depois abordou-o, tentando fazê-lo com o ar mais natural do mundo.

- Desculpe - disse -, mas estou à procura do meu filho. Temos que apanhar o avião. Talvez o tenha visto ali dentro - acenou a mão na direcção da casa de banho. - Um adolescente, mais ou menos deste tamanho. com um blusão de ganga.

O rosto do homem passou por diversas fases, de surpreendido a incomodado. Abanou a cabeça.

- Não, não vi - respondeu e afastou-se.

Anna virou as costas ao homem e voltou a percorrer, devagar, o terminal. Percebeu que estava a tremer, apesar de repetir para consigo que era ridículo. «Já deve ter voltado para o carro. Espero bem que sim. Vai ter que me ouvir!»

Atravessou o terminal a olhar para todos os lados, tentando que não ficasse um só centímetro por investigar. Saiu pela porta de correr, devagar, para lhe dar tempo. Pelo caminho, ia torcendo as chaves que levava na mão.

A rua estava apinhada de automóveis e Anna serpenteou entre eles, procurando não olhar para o seu. Quando finalmente chegou à porta, já sabia o que a esperava. Paul não estava lá. Anna fitou o assento vazio. Abriu a porta do lado do condutor e sentou-se ao volante. «vou ficar aqui à espera dele», pensou. «Não deve demorar.»

Ficou uns minutos sentada no carro silencioso, olhando em frente, a cabeça dormente e vazia, como se estivesse envolta num manto de neve.

Uma mão a bater na janela assustou-a. Anna olhou e viu uma mulher de bloco e caneta na mão.

- Vai ter que sair daí, minha senhora. Aqui só se pode estacionar durante quinze minutos. Circule, por favor.

Anna ergueu os olhos e abriu a boca.

O rosto da outra mulher mudou de expressão, franziu-se.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou a fiscal dos parquímetros, abandonando a sua pose oficial e distante ao ver o rosto cadavérico que a fitava. - A senhora está bem?

- Ajude-me - murmurou Anna. - O meu filho. Desapareceu. Outra vez. Desapareceu.

 

                                       CAPÍTULO 20

Edward gatinhou pelo chão da galeria, desviando do caminho pilhas de jornais e caixas de cartão meio vazias. Era um espaço pequeno, mas bem construído. Tinha pensado arrumar ali as suas obras depois de acabadas, mas o que acabou por ir lá parar foi uma série de peças de barcos partidos, lixo de toda a ordem. Edward observou o poste que sustentava a galeria. Servia bem. Sentou-se sobre os calcanhares e dobrou os braços, baixando a cabeça para evitar uma viga mestra. Não havia tecto por cima dele. Nada por onde trepar, só a torre escura e sem janelas. Pareceu-lhe bem. Movimentou-se como pôde para chegar à escada, fazendo um dos caixotes escorregar e ir parar ao chão de pedra lá em baixo.

Edward espreitou do andar de cima e viu, em volta do caixote caído, tubos de tinta vazios, pincéis e uma lata de terebentina a escorrer para o chão. A terebentina foi-se espalhando até ser detida, e depois absorvida, pela ganga coçada do blusão do rapaz deitado sobre a pedra.

O corpo inerte de Paul não reagiu a essa perturbação. Jazia de boca aberta, e os olhos semi-cerrados brilhavam na escuridão do espaço pequeno e atravancado.

Edward suspirou ao olhar para aquele corpo frágil. Não lhe agradava muito a ideia de carregá-lo escada acima. Nem pensar. Mas, de facto, na galeria o corpo estaria mais seguro, não fosse alguém aparecer de repente antes de a noite cair. O que era improvável, mas não impossível. Lembrou-se, horrorizado, da surpresa que íris lhe fizera na noite anterior. Continuou a empurrar caixotes para o lado, a fazer espaço para o rapaz. Quando a noite chegasse, então podia levá-lo para outro sítio, para fora de casa. Uma lixeira ou talvez o aterro sanitário, em Kingsburgh. Só dariam com ele daí a muitos meses.

Um leve gemido veio do corpo estendido no chão do moinho. Edward espreitou e viu as pálpebras do rapaz estremecer, o braço a mexer-se imperceptivelmente. Agarrou num trapo e numa corda, desceu a correr pela escada e aproximou-se da silhueta deitada.

- Socorro - disse o rapaz.

Edward inclinou-se e, em resposta, enfiou um trapo na boca do rapaz. Paul abriu mais os olhos, a pensar que já vira aquela cara antes. Edward atou as mãos e os pés do rapaz e rolou-o até ficar de costas. O rapaz sacudia a cabeça para um lado e para o outro, com uma expressão apavorada.

Edward não olhou para Paul. Pôs-de de pé e avançou, por entre a tralha, até às janelas de forma bizarra abertas em cada uma das seis paredes do moinho. A tarde estava enevoada, desagradável, e a propriedade Stewart em perfeito silêncio, sem vestígios de alguém que pudesse perturbar aquela paz. Satisfeito, Edward esgueirou-se por trás da máquina de costura e regressou para junto do corpo atirado ao chão. Voltou a olhar para a galeria. Só faltava levá-lo lá para cima.

Respirou fundo, pois ia ter que fazer um esforço a que não estava habituado. «Logo à noite tudo estará já despachado», pensou, enquanto se punha de gatas e enfiava os braços por baixo das omoplatas finas como lâminas e dos joelhos dobrados de Paul.

Edward levantou o rapaz e, a cambalear, pôs-se de pé. Precisou de uns segundos para recuperar o equilíbrio, depois caminhou até à escada, o que não foi fácil devido ao peso do rapaz.

Ao fazê-lo, lembrou-se da última vez que carregara o rapaz ao colo. Nessa altura, Paul era muito mais leve. Praticamente um bebé. Estava deitado na erva à beira da estrada, logo depois de ter sido atropelado. Edward pôs um pé na escada, recordando a expressão assustada e suplicante da criança quando ele se inclinou e reconheceu, naquele pequeno corpo ferido, ensanguentado, o filho dos vizinhos. Era muito mais leve. Sem com paração. O que foi bom, porque precisou de agir depressa. Tomou a sua decisão num segundo. Depois foi só levá-la a cabo.

Edward suspirou. O plano era bastante ousado, mas teria resultado, se o Rambo não estivesse a assistir. Mesmo assim, tinha vivido em paz durante muito tempo. Se fosse hoje, teria feito exactamente o mesmo.

Edward olhou para o alto da escada e agarrou bem o rapaz. Começou a subir lentamente, descansando um instante em cada degrau. O rapaz estava hirto, não esbracejava. A cabeça caíra para trás, a boca ia tapada com o trapo. Edward contou os degraus e prosseguiu a sua escalada.

Anna fechou os olhos e encostou a nuca às costas da cadeira. A pele ardia-lhe em volta dos olhos; levantou as mãos para friccioná-la, como se alguma vez a aflição passasse assim, mas o ardor não desapareceu.

Pestanejou e olhou em redor. A actividade não era muita, o que dava origem a um zumbido constante, causado pelas idas e vindas dos polícias de fardas azuis e papéis na mão, e as armas, enfiadas no coldre junto às ancas, adquiriam um ar incongruente dentro da esquadra.

Anna virou-se para a mulher de blusa azul e grande gravata preta que estava sentada à secretária, a seu lado. Tinha um cartão ao peito onde se lia «M. Hammerfelt».

- Posso fazer um telefonema? - perguntou. A mulher respondeu num tom simpático:

- Claro que sim.

- É uma chamada interurbAnna - explicou Anna. - Mas eu mando cobrar na minha conta.

- Marque primeiro o nove - preveniu a mulher. Anna pediu a chamada para Boston e olhou em volta, à

procura do jovem agente encarregado do seu caso. Ao fim de uma hora na segurança do aeroporto em La Guardiã, tinham-na levado de carro para Stanwich e aconselhado a dormir um pouco, a não se preocupar. A seu pedido, deixaram-na na esquadra de Stanwich, onde se encontrava havia meia hora.

- Copley Plaza.

A voz da operadora interrompeu os pensamentos de Anna. Pediu para falar com Thomas, mas ninguém atendeu do seu quarto.

- Quer deixar mensagem? - perguntou a operadora, depois de explicar, desnecessariamente, que ninguém respondera do quarto de Thomas.

- Sim - disse Anna. Pensou na melhor maneira de lhe dar a notícia.   Diga-lhe, por favor, que telefonou a mulher dele. Diga-lhe que volte imediatamente para casa. O Paul desapareceu.

A operadora leu o que tinha escrito e prometeu que o recado lhe seria entregue. Depois Anna desligou. A mulher-polícia da secretária ao lado fingiu não ter ouvido a conversa. Anna recostou-se e voltou a fechar os olhos.

Tinha hesitado em telefonar-lhe. A reconciliação deles estava ainda tão frágil! Mal começara. Odiava atribuir a Paul a responsabilidade de mais uma crise. Mas precisava de Tom. Alguma coisa terrível acontecera a Paul. Sentia-o em cada centímetro da sua pessoa, pensasse a polícia o que pensasse.

- Mistress Lange?

Anna abriu os olhos, levantou-se e viu à sua frente o jovem polícia, vindo de um escritório atrás de uma porta de vidro fosco.

- Sim - respondeu, ansiosa.

- Julgo que temos todas as informações necessárias.

- E que vão fazer agora?

com um sorriso paciente, o jovem guardou o bloco no bolso de trás das calças.

- Bem, para já não podemos fazer muito. Vamos ter que aguardar uns dias a ver se ele aparece.

Anna fitou-o, incrédula:

- Como? Não vão começar a procurá-lo? O jovem encolheu os ombros.

- Bem vê, nem sequer sabemos se fugiu ou não. Não deixou um bilhete nem nada do género. Nada nos diz que ele não decidiu dar uma voltinha. É vulgar entre os adolescentes.

Anna sentiu a fúria crescer dentre» de si, o seu rosto tornar-se vermelho.

- Não se trata de um fugitivo, agente Parker. Estou a dizer que aconteceu alguma coisa ao meu filho. Não podemos ficar à espera para ver!

O jovem cruzou os braços e mudou de posição, balouçan do ligeiramente o corpo de um para outro pé.

- Mistress Lange, tecnicamente, eu nem devia ter preenchido um relatório. Oficialmente ainda não se pode considerar que o rapaz desapareceu. E não temos provas de que lhe tenha acontecido alguma coisa.

- Mas ele estava ali, no carro, e quando voltei... - Anna ouviu a sua voz subir de tom e esforçou-se por baixá-lo.

- Eu já sei isso tudo - disse o polícia, agora num tom mais simpático. - Mas, de momento, nada podemos fazer.

Anna fitou o jovem como se estivesse em transe. Finalmente, disse:

- Senhor agente. Julgo que está ao corrente do que eu tenho passado com o meu filho.

- Sim, minha senhora, sei.

- Tenho razões para acreditar - continuou Anna, escolhendo com cuidado as palavras e estremecendo ao pronunciá-las -, que ele foi novamente raptado.

O polícia sorriu, solidário.

- É muito natural que pense assim, minha senhora. Mas o meu conselho é que vá para casa, procure descansar. Coisas deste género acontecem com enorme frequência. Tenho a certeza de que o rapaz vai aparecer. Talvez até já esteja em casa.

Anna ficou algum tempo a olhar para o sorriso impenetrável do homem. Depois, virou-se para a mulher-polícia que largara a papelada com que estava ocupada para observá-los, mas esta baixou logo os olhos.

Anna abanou a cabeça, incrédula. Porém, o agente não pareceu corresponder ao seu desespero.

- Muito bem - disse Anna. - Então eu vou contratar alguém para procurá-lo.

O jovem endireitou-se, irritado com aquelas palavras. Mas depois voltou a sorrir:

- Não se aflija, Mistress Lange. Se ele não aparecer dentro de quarenta e oito horas, iremos à procura dele.

Sem voltar a olhar para o polícia, Anna pegou na mala de mão e dirigiu-se para a porta da esquadra. O seu rosto estava cansado, desfeito, e o olhar distante; mas havia nela uma determinação que não passou despercebida ao agente Parker.

Viu-a sair quase com admiração. Há anos que ela era uma espécie de lenda na esquadra, com a sua obstinada perseguição do rapaz raptado. Todos os polícias sabiam a história, embora ele próprio nunca a tivesse conhecido pessoalmente. Bem, a verdade é que afinal ela é que estava certa. Tinha de o admitir. Contudo, agora, tudo aquilo era de mais para aquela mulher.

O agente Parker frequentara um curso nocturno de psicologia e elaborara a sua teoria sobre Anna. Na véspera, ela tinha telefonado para a esquadra por causa de uma janela aberta, e agora aquilo. Confirmava as suas suspeitas: Anna ficara tão obcecada com o desaparecimento do filho que, quando o recuperou, não conseguiu aceitar a ideia. Precisava de continuar a preocupar-se, de uma maneira ou doutra. Um caso triste, na verdade.

No entanto, foi uma sorte estar de serviço quando ela entrou. Agora tinha uma história interessante para contar à irmã e aos pais. Adoravam ouvi-lo contar as situações estranhas a que assistia. Mesmo numa cidade agradável e pacata como aquela, surgiam sempre casos invulgares.

- Fiquei com pena dela - disse a mulher-polícia sentada à secretária.

- Sim, eu também - concordou o jovem. - Bem, vamos trabalhar.

Voltou para o seu gabinete, já a ensaiar a descrição do seu encontro com a famosa Mrs. Lange.

Marian Hammerfelt recostou-se na cadeira e bateu com o lápis no tampo da sua secretária, matutando na conversa entre a pobre mulher e Parker. O jovem não tinha conseguido disfarçar a sua convicção de que Mrs. Lange tinha um parafuso a menos. Mas Marian não era dessa opinião. Discutira muitas vezes o caso Lange com Buddy Ferraro, ao pequeno-almoço. Lembrava-se de este lhe ter dito que respeitava muito o instinto maternal, e Marian concordava com o ponto de vista dele.

Empurrou a cadeira para trás, abriu a gaveta da secretária e tirou a pasta com todas as informações sobre os dias de serviço de cada agente. Estava lá o nome da estalagem onde Buddy se tinha hospedado, juntamente com um número de telefone para alguma emergência. Hesitou uns minutos, mas depois pegou no telefone. Afinal, o caso era dele. Sempre fora. E ele ia gostar de saber.

«É tal e qual como dantes», pensou Anna, sentando-se na poltrona de orelhas, olhando a sala. Para onde quer que se virasse só via trabalho para fazer. As plantas precisavam de ser regadas, o pó de ser limpo, e no frigorífico não havia nada para o jantar. Mas Anna não conseguia reagir.

Fora assim durante meses, depois do desaparecimento de Paul e da perda do bebé. A casa parecia-lhe uma prisão: as tarefas domésticas, mesmo as mais simples, eram um pesadelo. Esperar consumia-lhe todas as energias. Esperar que o telefone tocasse ou, quando tal não acontecia, que o dia chegasse ao fim. Esperar num estado de torpor e pavor tais que até a gravidade parecia uma força impossível de suportar. Era exactamente como dantes, só que desta vez Anna não sabia se ia aguentar.

«O Senhor só nos dá o fardo que conseguimos suportar», costumava dizer-lhe a mãe. Anna olhou para o retrato de Paul em bebé, que estava em cima da cornija da lareira. Não podia telefonar aos seus pais, no Michigan, a dar a notícia. Pelo menos por enquanto. Eles estavam tão entusiasmados a planear uma visita ao neto que tinham reavido! Já estavam velhos. A notícia podia provocar outro acidente vascular cerebral ao pai. «Enganaste-te, mãe. Eu não aguento mais.»

Mas embora se sentisse cada vez mais extenuada, havia dentro dela uma vontade de ferro que não parava de lhe ordenar que se levantasse, fizesse alguma coisa, qualquer coisa, para recuperar o seu filho.

Havia aquele xerife de Virgínia Ocidental. Podia telefonar-lhe, tentar descobrir se ele sabia alguma coisa. Ou pedir-lhe que procurasse o rapaz. Se Paul tivesse mesmo fugido, era natural que estivesse num sítio que conhecesse bem, apesar de, no seu íntimo, Anna acreditar que ele não tinha desaparecido por sua livre vontade.

Lembrou-se de uma vidente, uma mulher simpática, uma dona de casa de Nova Jérsia, que lhe afirmara, anos atrás, ter visto Paul vivo, num clima mais quente. «Nisso tinha ela acertado», pensou Anna, ao recordar a previsão. Podia saber alguma coisa.

A recordação forneceu-lhe a energia necessária para se levantar da cadeira. «Tenho o número dela nos meus arquivos», pensou. Guardara volumosos arquivos durante os anos em que Paul estivera ausente, contendo todas as informações que talvez pudessem vir a ser úteis. «vou buscá-los e procurar o número.»

A ideia de voltar a mexer nos arquivos mergulhou-a num desespero que quase a atirou novamente para a imobilidade, mas Anna convocou todas as suas forças e atravessou a sala, onde a papelada estava guardada numa gaveta da secretária.

Ao ouvir o toque súbito do telefone deu um pulo, como se tivesse apanhado um choque eléctrico. Correu para o aparelho e agarrou o auscultador antes de aquele tocar segunda vez.

- Sim, estou - gritou.

- Anna, sou eu, íris.

Anna fechou os olhos e encostou-se à parede.

- Oh, íris. Olá.

íris hesitou um pouco antes de voltar a falar.

- Interrompi alguma coisa? Podes falar?

Anna deixou correr as lágrimas que retivera durante todo o dia, assim que ouviu a voz da amiga. -Desculpa, íris. Estou péssima.

- Que foi? - perguntou íris, esquecendo os seus próprios problemas, na sua ânsia de ajudar. - Que aconteceu? É o Tom?

- Não, nada disso - disse Anna, falando e chorando ao mesmo tempo. - É o Paul. Desapareceu outra vez.

- Desapareceu? Desapareceu como?

- Oh, meu Deus, um verdadeiro pesadelo, íris. Levei-o comigo ao aeroporto esta manhã, quando fui despedir-me do tom que foi a Boston, e quando voltei para o carro ele não estava lá. Tinha desaparecido. Assim, sem mais nem menos.

- Chamaste a polícia?

- Sim, já lá estive. Não serviu de muito, infelizmente. Quando ouvi o telefone tocar, pensei que fossem eles, a dar-me qualquer notícia.

- Desculpa - disse íris, sentindo-se culpada por estar a ocupar o telefone. - Eu não demoro. Sei como te deves estar a sentir.

- Não faz mal - retorquiu Anna, numa voz cansada. É tão bom falar contigo! O mais certo é eles não me ligarem mais. Acham que eu sou uma histérica. Ainda ontem à noite lhes pedi que viessem cá, porque me convenci de que a casa tinha sido arrombada. E agora isto. Quanto a mim, não deve ser coincidência.

- Arrombaram a casa? - perguntou íris.

- Não tenho a certeza. Mas receei que sim.

- Querem ver que o Edward tinha razão?

- Razão em relação a quê?

- A ontem à noite - disse íris. - Pareceu-lhe ouvir um ladrão; mas foi à procura e não viu ninguém.

- O quê? - perguntou Anna, agarrando com mais força o auscultador.

- Disse-me que tinha ouvido barulhos lá fora, mas parece que estava enganado.

- Telefonei-lhe hoje de manhã a perguntar precisamente isso e ele não me contou nada.

A voz de íris mudou de Tom.

- Não deve ter percebido a tua pergunta, Anna.

com o coração a bater descompassadamente, Anna levantou a voz:

- Fui bastante explícita. Ele não podia deixar de perceber.

- Lamento, Anna. Não vejo outra razão para o Edward ter dado essa resposta.

- Sim, claro. Não tens culpa nenhuma. Eu... vou perguntar-lhe outra vez, é isso.

- Queres que te vá fazer companhia? - perguntou íris. -- Não, não é preciso. Eu estou bem -, mas a sua cabeça

não parava, procurando uma razão de ser para a história do ladrão. Por que motivo teria ele negado? Porque não havia dúvida de que tinha negado.

Deve ter sido para não ficares preocupada - sugeriu

Anna agarrou-se, agradecida, àquela explicação.

- Claro. Deve ter sido isso. - Mas ficou com pele de galinha dada a certeza que agora sentia. Alguém arrombara a janela. Edward podia confirmar a sua história à polícia.

- De certeza que não precisas de mim?

- Não - respondeu Anna. Mas a pergunta intrigou-a.

- Onde estás, íris? Pensei que já estavas nas termas, íris não teve coragem. Não era altura de falar da sua própria situação.

- E estou. Mas apeteceu-me conversar contigo.

- Ah! - Anna ficou de novo absorta nos seus pensamentos. com alguma raiva, pensou que, se alguém tinha estado a rondar a casa, isso podia estar relacionado com o desaparecimento de Paul. Como era Edward capaz de sonegar essa informação, mesmo que as suas intenções fossem as melhores?

- Bem - disse íris. - Não quero ocupar-te o telefone. Volto a ligar amanhã, para saber notícias.

- Obrigada pelo telefonema, íris.

- Não te aflijas, Anna. Ele está bem. Vais ver.      

- Obrigada. Adeus.

- Adeus.

Antes mesmo de pousar o auscultador, já Anna decidira o que ia fazer. Ia a casa dos Stewart, ver se Edward lá estava. Se estivesse, confrontava-o com o que íris acabara de lhe dizer. Se o convencesse a contar a história do ladrão à polícia, talvez eles iniciassem imediatamente as investigações. Teriam um ponto de partida, algo mais substancial do que a previsão de uma vidente. Pelo menos isso ela podia fazer. Era melhor do que ficar para ali sentada, à espera, sem saber se alguma vez voltaria a ver o filho.

íris pousou o auscultador do telefone do escritório e abriu a porta que dava para o ateliê. Angélica estava sentada junto à roda de oleiro, de cigarro pendurado na boca, a ajudar pacientemente uma aluna a corrigir a forma da taça que estava a moldar, íris suspirou e olhou na direcção do telefone.

Começou a mexer distraidamente na sua aliança de casamento, coberta de barro. Tinha pensado falar com Anna, explicar-lhe o que se passava, talvez mesmo pedir-lhe conselho sobre a melhor forma de contar tudo a Edward. Recordou-se de como sempre achara fascinante o modo como Anna tratava da casa, a felicidade com que se dedicava à sua família. «É isto que uma pessoa sente», disse para consigo, como um explorador que descobre finalmente onde nasce o rio, «quando quer dedicar-se a outra.»

Ao pegar no telefone, achou que ia conseguir fazer Anna compreender a sua relação com Angélica. Esperava contar tudo de uma forma que não causasse repulsa a Anna, que não fizesse a amiga julgá-la doente ou coisa do género. Mas quando o momento chegou, a coragem faltou-lhe.

«Não pude evitá-lo», pensou. O desaparecimento de Paul era muito mais importante. Mas lá no fundo sabia que fora um alívio, pois ainda não sabia como pôr em palavras o que sentia.

Angélica levantou os olhos da roda de oleiro, tirou o cigarro da boca e sorriu para íris. O sorriso deu a íris forças novas. Angélica tinha razão. Ia ser um escândalo. Mas valia a pena.

 

                                 CAPÍTULO 21

Ao fundo do caminho particular, quase tão comprido como uma estrada pública, a mansão dos Stewart recortava-se, negra, contra o céu da tarde. Anna subiu devagar, fitando a casa. Sempre achou que seria incapaz de viver numa casa assim, por mais magnífica que fosse. Pensava muitas vezes que íris, uma pessoa tão simples, se devia sentir deslocada naquele autêntico palacete. A escolha daquela casa tinha sido, com certeza, coisa de Edward.

Ao pensar em Edward, voltou a sentir-se indignada. Ficou uns instantes parada, a observar a casa. Não sabia se iria encontrá-lo. Era raro ele estar em casa num dia útil. Mas na véspera viera cedo do escritório. Lamentou que íris não estivesse lá, para interceder a seu favor. Nunca se tinha sentido muito confortável na presença de Edward, com os seus modos cerimoniosos. Era pequena a diferença de idades entre eles, mas havia qualquer coisa que a fazia sentir-se muito mais nova do que ele.

Decidiu continuar e espreitar pelas janelas da garagem, para ver se o carro dele estava lá dentro. Á gravilha rangia sob os seus pés, enquanto se dirigia à porta corrediça da garagem, construída no mesmo estilo da casa. Anna comprimiu o rosto contra a janela e olhou lá para dentro. Foi preciso algum tempo para que os seus olhos se habituassem à escuridão. Sabia que o carro de Edward era preto, portanto não ia conseguir vê-lo à primeira. Daí a segundos, distinguiu as linhas alongadas do Cadillac. Era a marca que Edward conduzia sempre, embora trocasse de modelo com frequência.

Ao reconhecer o carro, reparou também na águia dourada que ele mandava sempre colocar no capo e que passava de carro para carro. Ela e Thomas muitas vezes se tinham rido dessa mania de Edward, visto que o gosto dele pela ostentação pouco tinha em comum com o porte majestoso da ave. No entanto, desta vez algo nela a incomodou. Fitou-a através da janela, intrigada com os seus próprios sentimentos, e depois voltou-lhe as costas. Esse problema tinha de ficar para outro dia. Edward estava em casa. Isso agora é que interessava.

Anna caminhou, decidida, até à porta principal e tocou à campainha. Ouviu as notas retinirem pela casa, mas ninguém veio responder. Ficou parada algum tempo, impaciente. Pôs-se em bicos de pés para espreitar pelos vitrais que ladeavam a porta. Porém, os pesados cortinados forrados de seda estavam corridos; para ver alguma coisa tinha que atravessar a sebe de rododendros. «Pode ter ido dormir uma sesta», pensou. Ou pode estar no moinho. Segundo íris, era lá que passava a maior parte do seu tempo livre. Anna olhou de alto a baixo a gigantesca estrutura Tudor. «Talvez nem ele goste da casa. Nunca se sabe.»

Percorreu o carreiro empedrado que dava a volta à casa até às traseiras. Chegou ao pátio, onde a mobília de ferro forjado branco continuava voltada para a piscina turquesa e vazia. Ao longe via-se, com dificuldade, o topo do moinho. Ele devia estar lá. Contornando a mobília completa, Anna atravessou o terraço. Hesitou uns momentos; Edward podia não gostar da intromissão. Mas depois continuou. A missão que a levara ali era importante, não queria aborrecer Edward e estragar tudo. Sobretudo, sabendo ele algo que podia conduzir ao paradeiro de Paul.

Atrás dela, as portas de vidro deslizaram na calha. O barulho fez Anna dar um pulo, rodopiar e bater com o tornozelo nas pernas da mesa.

Edward Stewart empurrou as portas, até elas se fecharem com um estalido, e atravessou o pátio com os olhos frios fixos no rosto sobressaltado de Anna.

- Onde vai? - perguntou.

- Edward - exclamou Anna. - Pensei que não estivesse em casa. Fartei-me de tocar.

- A criada não está - disse Edward, como se isso fosse razão para a porta não ter sido aberta. Anna ignorou a explicação. Se calhar não queria visitas.

- Espero não tê-lo acordado, nem interrompido alguma coisa.

- Não. Faça favor de entrar - apontou para as portas de vidro. Anna entrou e esperou que ele as fechasse e a conduzisse à biblioteca.

- Ia agora mesmo ver se o encontrava no moinho. Anna reparou que Edward se encrespou ao ouvi-la falar na sua oficina. «De facto, é muito possessivo em relação àquele lugar», pensou.

- Entre - convidou Edward, indicando uma poltrona de couro castanho.

Anna sentou-se à beira do assento e Edward à frente dela.

- Não quero demorar. Sei que está sempre muito ocupado. Vim só fazer-lhe uma pergunta.

- Sim? E qual? Anna respirou fundo.

- A íris telefonou-me há pouco.

- íris?

- Sim.

- Para quê? Pelo que me disseram, lá no sítio para onde ela foi não há telefones.

- Isso não sei - respondeu Anna e ao falar deu-se conta de que não tinha chegado a saber a verdadeira razão do telefonema de íris. Estava tão preocupada com os seus problemas que nem se lembrou de perguntar. Bem, mas não podia ralar-se com isso agora. Mais cedo ou mais tarde, descobriria a razão. Olhou para Edward, convencida de que a causa da expressão indignada de Edward era o facto de íris se ter dado ao trabalho de telefonar a Anna, mas não a ele.

- Que queria ela? - perguntou, de olhos semicerrados.

- Infelizmente nem lhe dei hipótese de me dizer - respondeu Anna, culpada.

No entanto, Edward achou que sabia. Devia ser o mesmo da noite anterior, aquela conversa de que não o fazia feliz. Estava-se mesmo a ver que ia desabafar com Anna. As duas a comparar os seus problemas conjugais. Quase desatou a rir ao pensar nisso, contudo a presença de Anna estava a enervá-lo.

- Contei-lhe o que aconteceu com Paul. Bem, creio que ainda não sabe o que se passou.

Edward sacudiu a cabeça, com uma expressão inocente e intrigada.

- Levei-o comigo ao aeroporto esta manhã, como lhe disse pelo telefone. Fui despedir-me do Tom, e quando regressei ao carro, Paul não estava lá. Nunca mais o vi nem tive notícias.

- Desapareceu? É inacreditável.

- Não desapareceu - corrigiu Anna. - Alguma coisa lhe aconteceu.

Edward ficou uns instantes calado. Depois aclarou a garganta.

- Bem, em que posso ser útil?

- É por isso que estou aqui - disse Anna. - Lembra-se de esta manhã, ao telefone, eu ter dito que alguém tentou arrombar a minha casa durante a noite?

Edward olhou-a impassível.   Depois, fingiu recordar-se:

- Ah, sim, a janela. A da cave, não foi? - Percebeu imediatamente qual era a informação que íris lhe tinha dado, a qual a fizera correr até ali. Manteve o ar intrigado enquanto procurava inventar uma mentira.

- Isso mesmo. Edward, porque é que não me disse que tinha ouvido um ladrão ontem à noite?

- O quê? - perguntou Edward com um ar confuso, para ganhar tempo.

- Esta manhã, quando lhe falei em chamar a polícia e na janela aberta, não me contou nada. Mas a íris disse-me que ouviu um ladrão ontem à noite.

Edward esfregou as mãos uma na outra e olhou-a com uma expressão amável:

- Não achei importante. Quero dizer, não quis alarmá-la sem necessidade. Ao fim e ao cabo, não vi ninguém.

A fúria que Anna se esforçara por conter rebentou:

- Por amor de Deus, Edward. Já não sou uma criança a precisar de protecção. Porque não mo contou? Teria sido uma grande ajuda, para fazer a polícia acreditar no que aconteceu.

- Não vale a pena gritar - disse Edward e o tom gélido daquela voz fez Anna cair em si. - Fiz o que julguei melhor.

Anna respirou fundo:

- Tem razão. Foi justamente o que íris me disse.

- O quê?

- Que, com certeza, não tocou no assunto para eu não ficar preocupada.

Edward abafou um risinho. Ainda se admirava por a sua vida com íris ser tão fácil! Ela nunca se impusera. Ele conseguia levar sempre a sua avante.

- Preciso de saber. Que foi que viu ou ouviu ontem à noite?

Edward pegou no isqueiro Dunhill, que se encontrava num dos cinzeiros de barro de íris, e começou a mexer nele.

- Eu estava na minha oficina quando me pareceu ouvir alguém lá fora. Fui ver. Mas afinal não era nada. Estava tudo calmo.

- Importa-se de contar isso à polícia? - perguntou Anna.

- Para quê? - exclamou Edward, voltando a arrumar o isqueiro na taça de barro. - Não sei que diferença isso pode fazer.

- Faz toda a diferença - insistiu Anna. - A polícia não me levou a sério. Trataram-me como se eu estivesse louca e fosse tudo invenção minha. Se contar o que ouviu, talvez resolvam fazer alguma coisa.

Edward dirigiu a Anna um sorriso firme, frio, enquanto o seu espírito trabalhava freneticamente. Se dissesse que não, ela podia desconfiar dele, além de que dava a impressão de que não queria colaborar. A última coisa que desejava era envolver-se com a polícia em aspectos relacionados com o rapaz; mas se não se oferecesse para lhes contar o que sucedera, Anna iria, ela própria, fazê-lo e, de qualquer modo, seria obrigado a responder a um interrogatório. com relutância, e o estômago às voltas, percebeu que não tinha escolha. - com todo o prazer, se pensa que isso pode ajudar nalguma coisa.

- Oh, Edward, obrigada - disse Anna, respirando fundo e encostando a cabeça nas costas da cadeira.

- Se quiser, telefono agora mesmo - contemporizou ele. Levantou-se devagar, tentando não mostrar o nervosismo que sentia, e dirigiu-se ao telefone. Enquanto pegava no auscultador e marcava o número, aproveitou para ensaiar mentalmente a melhor forma de apresentar a sua história. O telefone tocou várias vezes e Edward percebeu que aquele gesto iria reverter a seu favor. Um pouco de simpatia pelos vizinhos, de solidariedade para com a aflição de uma mãe, vinha mesmo a calhar. E Anna ficaria encantada por ele se ter prestado a ajudá-la.

Anna fechou os olhos, de ouvido atento ao telefonema de Edward. Este relatou o incidente de uma forma perfeitamente natural, sem de modo algum reflectir a urgência que ela sentia. Mas Edward era assim. E, pelo menos, concordara em telefonar. Olhou de relance a biblioteca, enquanto aguardava, pensando como aquela sala era bonita, se bem que constrangedora. As poltronas de couro pareciam novas em folha, como se nunca ninguém se tivesse sentado nelas. As mobílias antigas brilhavam de tão frequentemente polidas. Vários modelos construídos por Edward adornavam mesas e estantes. Tinha de admitir que tinha jeito para aquilo. Embarcações elegantes, perfeitas ao pormenor. À frente dela, penduradas na parede com lambril de madeira, algumas gravuras representando aves de rapina. Corujas, águias, falcões e outras que não sabia identificar. Anna achou um tema de decoração invulgar. Em geral, as pessoas com que os Stewart se relacionavam tinham gravuras com patos em lagos ou elegantes puros-sangues. Reparou que os olhos de algumas aves lembravam os de Edward. «Se calhar», pensou, «foi por isso que ele as escolheu.»

De repente, uma sensação estranha invadiu Anna, ainda com os olhos fixos numa das gravuras da colecção. Era a de uma águia-real, muito parecida com a que Edward tinha no automóvel, e Anna lembrou-se então onde tinha ultimamente ouvido falar de águias.

- Já está - disse Edward, aparecendo à frente dela. - Já alertei a polícia.

- Obrigada - murmurou Anna, desviando a custo os olhos da gravura.

- Agora vá para casa e procure não se preocupar. O rapaz vai aparecer mais cedo do que pensa. Provavelmente, não passou de uma brincadeira de adolescente. Anna levantou-se devagar, evitando o olhar dele.

- Espero que tenha razão. É isso que a polícia pensa.

- Bem, temos de confiar nos homens que arriscam a vida por nós.

- Eu sei - respondeu e depois tentou rir-se, apesar de soar a falso. - Mas não consigo deixar de me preocupar.

- Estou certo de que eles sentiriam o mesmo, se estivessem no seu lugar - disse Edward, reparando, aliviado, que o polícia que o atendera não tinha falado em ir lá investigar.

Anna respirou fundo e caminhou em direcção à porta. Voltou-se para o vizinho com um sorriso terno.

- Agradeço muito ter telefonado. E desculpe este incómodo todo.

- Não foi incómodo nenhum - respondeu Edward, satisfeito por vê-la partir. - Tive muito gosto em ajudar. Só espero que encontre depressa o seu rapaz.

Acompanhou-a à porta e viu-a dirigir-se para o caminho particular. Antes de descer, Anna acenou-lhe. Edward sorriu, retribuiu o aceno, depois entrou e fechou a porta.

Pelo caminho, Anna recordou a estranha descoberta que fizera na biblioteca. Uma águia a aproximar-se sobre um fundo negro era a parte que Paul recordava do seu pesadelo. A associação tinha-a sobressaltado por uns instantes. Mas, claro, que havia mais águias no mundo. O sonho não tinha nada a ver com a que se encontrava no automóvel de Edward.

Chegou à entrada para os automóveis e parou. Sabia que devia seguir para casa, mas alguma coisa a imobilizou; fixou os seus olhos na garagem. Estava a fitá-la com tal intensidade que quase conseguia ver o seu interior através das portas. Teve a impressão louca, irracional, de que, se conseguisse colocar-se em frente daquela águia e tocá-la com a mão seria capaz de encontrar Paul, de recordar um pormenor vital para a sua busca. Sentiu-se compelida a aproximar-se da ave, a examiná-la e procurar raciocinar. Como num transe, dirigiu-se à porta da garagem, abriu-a e entrou lá para dentro.

Devia ter perguntado a Edward se podia dar uma olhadela ao carro, descrever-lhe o pesadelo. Mas quando estava na biblioteca, assim que fez a associação, soube imediatamente que não ia contar-lhe nada. Tratava-se de uma intuição, quase animal, em que confiava. Chegou a censurar-se por isso, mas depois lembrou-se de que já tivera razão uma vez. Era a mãe de Paul, e há coisas que só uma mãe sente. Se isso era ser louca, paciência.

O interior da garagem estava escuro e vazio, à excepção do Cadillac. Um belo carro, em perfeito estado de conservação. Anna colocou a mão na chapa fria, luzidia, como para apoiar-se, e caminhou até à parte da frente do carro. A águia estava representada em pleno voo, de asas abertas, os olhos furiosos pousados no chão, exactamente como o rapaz a vira em sonhos.

«Talvez ele tenha visto o carro e ficado impressionado com o emblema», pensou. Mas isso não explicava o medo que sentia nem o pesadelo que o perseguia. Anna sentiu-se cada vez mais ofegante, enquanto fitava a ave. Achou melhor sair da garagem antes que Edward desse com ela. Odiaria ter de encará-lo outra vez. Precisava de ir para casa e pensar em tudo o que se atropelava na sua cabeça.

Dirigiu-se à porta, encostada ao carro, admirando, por mais que lhe custasse, o seu brilho. Quando passou pelo pára-brisas, reparou num papel enfiado num dos limpa-vidros. As letras «LaG» sobressaíam no escuro e captaram a sua atenção. com todo o cuidado, esticou o braço e puxou pelo pedaço de papel.

Tratava-se de um recibo, com o número de um espaço no parque de estacionamento do aeroporto de La Guardiã. A data e a hora indicavam aquela manhã.

Anna vacilou e caiu de joelhos. Tentou levantar-se, recuperar da sensação de desmaio que se apoderara dela, assim que amarrotou o papel na mão.

Daí a instantes, julgou que já era capaz de caminhar. Enfiou o bilhete no bolso e correu para a porta lateral da garagem, que ela própria tinha fechado depois de entrar. Vinha luz da vidraça da porta e Anna fixou nela os olhos enquanto cambaleava pela garagem.

Chegada à porta, rodou a maçaneta e abriu-a. Uma força empurrou a porta do outro lado, fazendo-a tombar. Levantou a cabeça e viu os olhos impávidos de Edward Stewart.

Ficou um momento a fitar o rosto branco, de ossos finos, retorcido de raiva. Depois começou a gaguejar:

- Estava à procura de uma coisa...

Edward esticou o braço e agarrou-a pelos maxilares. Anna sentiu os dentes estalarem e ouviu um ruído que parecia vir do seu crânio. A mão poderosa dele levantou-a do chão de cimento e depois atirou-a para dentro da garagem. Anna caiu de gatas, deslizou pelo cimento e embateu no Cadillac. Sentiu a pele das mãos e dos joelhos romper-se. Um pé desceu sobre as suas costas. Anna ergueu a cabeça e gritou.

Por cima dela, Edward rosnava com um animal; depois, um objecto duro e aguçado atingiu-lhe a cabeça e Anna desmaiou.

 

                               CAPÍTULO 22

Buddy Ferraro, depois de beber um pouco do ponche cor-de-rosa contido no copo de plástico e enfeitado com um pedaço meio desfeito de toranja, deu uma cotovelada na mulher:

- Olha para o «rei da popularidade» - disse, referindo-se ao filho, a conversar com um grupo de rapazes na sala de convívio, cheia de novos alunos e pais de novos alunos.

Sandy olhou, pensativa, para o seu filho mais velho e suspirou:

- Parece que está a gostar disto.

- O melhor que tem a fazer é gostar disto - resmungou Buddy. - com o que eles cobram!

Sandy sorriu e deu o braço ao marido.

- vou sentir tanto a falta dele!

- Eu também - disse Buddy. - vou sentir a falta dele a barbear-se com a minha lâmina, a deixar as meias sujas pelo chão da casa de banho, das namoradas sempre a telefonar e a acordarem-me a meio da noite.

Sandy cerrou os lábios trémulos num sorriso comovido.

- Vai parecer um século daqui até ao Natal.

Buddy olhou em redor e beijou-a na testa. Sandy apertou a mão do marido.

- Anda - disse. - Vamos para o hotel descansar um pouco antes do jantar. Ele não precisa de nós.

Sandy ergueu o sobrolho, mas não resistiu ao marido que a arrastou em direcção ao grupo de estudantes do qual o filho fazia parte.

- Filho - disse Buddy -, a tua mãe e eu vamos para o hotel.

Mark desviou os olhos de uma rapariga loira, que se tinha juntado ao grupo, e que abanava a sua cabeleira.

- Está bem, pai.

- Encontramo-nos no dormitório, às seis e meia para irmos jantar.

- Óptimo. Até logo - e retomou a conversa com os seus colegas, enquanto Buddy conduzia Sandy à porta, sorrindo aos vários membros do corpo docente e casais de pais nervosos, vestidos a rigor.

- Aquele miúdo está morto por se ver livre de nós - disse Buddy, ao deixarem as instalações da associação e atravessarem o pátio da universidade, em direcção ao hotel, na rua em frente.

- Eu sei - concordou Sandy, triste. Depois de uma pausa, sorriu: - Mas creio que isso é bom sinal, não é?

Buddy fez que sim com a cabeça. Caminharam em silêncio pelo carreiro empedrado que ia dar ao átrio do hotel.

- Mister Ferraro - chamou o empregado da recepção assim que os viu.

Buddy olhou, surpreendido. O homem mostrou uma folha de papel.

- Tem aqui uma mensagem.

Buddy pediu à mulher que esperasse e foi até à secretária. Sandy pôs-se a folhear um desdobrável azul que se encontrava sobre uma das mesas. Na capa via-se uma fotografia do colégio no Outono, com estudantes a passear num chão coberto de folhas caídas, em frente de um belo edifício.

Quando levantou os olhos, viu Buddy junto à secretária com uma expressão carregada.

- Que foi? - perguntou. Buddy sacudiu a cabeça.

- A Marian, lá da esquadra, telefonou a dizer que foi participado o desaparecimento de Paul Lange. Achou que eu gostaria de saber.

- Oh, não - disse Sandy. - Mas como é possível?

- Escuta, querida -- interrompeu ele. - Vamos ter de voltar imediatamente. Lamento muito.

- Mas o que é que aconteceu?

- Não sei. Mas sempre pensei que havia alguma coisa que não batia certo - amarrotou o papel. - Acho que aquele rapaz corre perigo, Sandy - puxou pelo braço da mulher, dizendo: - Anda, vamos embora.

Quando recuperou os sentidos, Anna estava às escuras, com o coração a bater descompassadamente, cheia de dores nas pernas rígidas. Quis esfregar os olhos mas apercebeu-se, atordoada, de que tinha as mãos amarradas atrás das costas e os tornozelos também atados. A cabeça, deitada sobre um frio pavimento de pedra, doía-lhe. A língua pareceu-lhe um peso morto dentro da boca, quando a tentou passar pelos lábios. Por instantes, desejou voltar ao estado inconsciente, livre de dores. Ideias dispersas entravam e saíam da sua mente, mas só lhe apetecia dormir para não sentir as dores.

Obrigou-se a manter os olhos abertos e passeou-os pela sua prisão. O chão frio e a escuridão pareciam indicar que se encontrava na garagem, por isso ainda ficou mais confusa quando percebeu que não estava lá. Os montes de madeiras e peças de barcos ainda a confundiram mais. Precisou de muita concentração para esquadrinhar o sítio e chegar à conclusão de que se encontrava no moinho.

A constatação de que aquilo era a oficina de Edward trouxe de volta, com toda a nitidez, o confronto com ele na garagem. O pânico apertava-lhe a garganta. Cerrou os dentes e esperou que este passasse. Fora Edward que a pusera naquele estado. Todo o seu mundo tinha sido virado de pernas para o ar. Ainda tentou convencer-se de que aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Mas lembrou-se do bilhete de estacionamento no pára-brisas e teve a certeza de que Edward não estava a brincar.

Um gemido vindo da galeria sobressaltou-a e despertou todos os seus sentidos. Recordou imediatamente o motivo pelo qual ali estava.

- Paul - sussurrou. Mesmo que conseguisse falar alto, nunca o faria, temendo que o raptor estivesse perto. - Paul, estás aí?

- Estou aqui em cima - respondeu ele quase sem voz. Anna ouviu o rapaz mexer-se, derrubando uma caixa de cartão e duas placas de contraplacado, que foram cair em baixo, no chão de pedra.

- Não faças isso - pediu Anna, aterrorizada. - Fica quieto. Não te chegues à borda, podes cair.

O silêncio voltou. Em seguida, Anna ouviu um gemido que lhe causou uma dor mais profunda do que todas as que sentira até então.

- Ele fez-te mal?

O rapaz voltou a gemer, numa voz baixa mas firme.

- Não. Estou bem.

- Graças a Deus - disse ela.

- Ele pôs uma coisa na minha boca, mas eu consegui tirá-la com o ombro. - Anna percebeu que o rapaz estava orgulhoso do seu feito.

- Óptimo, ainda bem.

- Estou todo amarrado. Quase não consigo mexer-me.

- Eu sei.

- E se gritássemos? - sugeriu Paul. - Talvez aparecesse alguém.

- Receio que o único a aparecer fosse ele. Não há mais ninguém nas imediações. Paul, como é que ele te trouxe para aqui?

- Seguiu-nos até ao aeroporto - respondeu o rapaz. Convenceu-me a entrar no carro dele. Disse... disse... disse que o meu pai estava no hospital. Depois, trouxe-me para aqui.

Uma ideia aterrorizadora fez Anna estremecer.

- Ele não fez nada... percebes... não te molestou? - perguntou num murmúrio.

- Não - respondeu o rapaz, calmo. - Só tinha medo que eu me lembrasse. E finalmente lembrei-me - tentou rir, mas um soluço impediu-o. - Tarde de mais, penso eu.

Anna mexeu o corpo dorido e espreitou pelos intervalos entre as tábuas que formavam o chão da galeria.

- Que te lembrasses? - A confusão voltou a dominá-la, na forma de manchas escuras em frente dos olhos.

- Sim, daquele dia. Há muito tempo.

Que dia, querido? Não estou a perceber.

Finalmente hoje lembrei-me de tudo, quando vi o carro, mesmo antes de ele me pôr inconsciente. Sonho com isso desde que voltei. Mas hoje compreendi tudo.

- Tudo o quê?

Fui atropelado por um automóvel. Eu devia estar a brincar à beira da estrada, quando veio um carro, um carro preto com uma águia.

A águia - repetiu Anna, percebendo que não se tinha enganado.

E depois apareceu ele, inclinou-se para mim.

- O Edward?

Sim. Só que eu era muito pequenino. Acho que fiquei com dores. Não me lembro. Estava deitado à beira da estrada, sem me conseguir mexer. Cheio de medo. Disso lembro-me bem. E estiquei os braços para ele. Conhecia-o e julguei que vinha ajudar-me. Estiquei-me, acho que estava a chorar. Então ele pegou em mim e levou-me.

- Paul, tens a certeza? Tu nunca foste atropelado, nunca. Se fosses, eu saberia. Ele levou-te para casa? Estás a dizer que o Edward ia no carro dele e atropelou-te? É impossível, Paul!

Foi. Atropelou-me, depois saiu do carro e foi-me buscar.

- Mas é impossível eu não ter sabido! Se estivesses ferido, eu via logo. E nunca ias brincar para a beira da estrada. Eras praticamente um bebé.

Ele pegou em mim, levou-me um bocado ao colo, depois voltou a pôr-me no chão. - Paul falava num tom calmo, natural. - Deixou-me no meio da estrada. Depois, foi-se embora. Hoje lembrei-me de tudo.

Anna, hirta no meio do chão, tentava imaginar a cena descrita pelo filho. Ficou algum tempo sem conseguir falar. Até que repetiu, num murmúrio.

Deixou-te... no meio da estrada. Alguém apareceu e tirou-me dali. Uma pessoa que eu não conhecia. Acho que foi o meu... sabe, ele... o Rambo. O meu pai. Só que nessa altura era um estranho. Pegou em mim e tirou-me da estrada.

Durante um momento, no moinho silencioso só se ouvia o barulho da respiração deles. O rapaz estava calmo, liberto da sua história.

Anna levou alguns minutos a compreender o que tinha ouvido, a descobrir a verdade. De repente, começou a estremecer com tanta violência que teve a impressão de que o chão tremia com ela.

- Deixou-te na estrada - disse. De repente, tudo fazia sentido.

Aquele homem, o seu vizinho, atropelara acidentalmente o seu filho e deixara a criança na estrada, a morrer. Mudou-o de lugar, para que a sua morte não fosse deixada ao acaso. Por alguns instantes, Anna compreendeu o que era o desejo de matar. com uma clareza assustadora, percebeu que seria capaz de enfiar uma faca no coração de Edward Stewart sem sentir qualquer remorso. Fechou os olhos, enquanto a fúria assassina se apossava do seu corpo indefeso, e começou de novo a respirar à medida que aquela se foi afastando a pouco e pouco. Quando a fúria a deixou, como um anjo da morte, sentiu apenas uma intensa piedade que lhe encheu os olhos de lágrimas, ao imaginar o seu pobre filho, indefeso no meio da estrada. Por momentos, agradeceu a Albert Rambo, do fundo do seu coração, por ter salvo o seu filho de uma morte planeada.

Anna respirou fundo, tentando acalmar-se. Tinha de descobrir uma maneira de sair dali. Tinha de sobreviver e salvar o seu filho. Só isso interessava. Não podia desperdiçar energias a odiar. Precisava de toda a sua coragem para conseguir fugir. Depois..., depois havia de ver Edward Stewart ser castigado pelo que tinha feito.

Tentou concentrar-se noutra coisa e varrer da sua mente a imagem do filho na estrada, ali deixado para morrer por um «amigo». Mas o seu espírito recusava-se a deixar partir a imagem. Ouviu de novo Paul gemer na galeria por cima dela. Lembrou-se então de como ele devia estar assustado. Finalmente, recuperou a voz.

- Não tenhas medo, querido. Vamos sair daqui. Não vou deixar que ele alguma vez volte a fazer-te mal.

Paul ficou uns segundos calado.

- Está bem - respondeu, por fim. - O que é que poderemos fazer agora?

Na sua voz havia a inocente confiança do filho que sabe que a mãe vai encontrar uma solução. E, embora Anna não soubesse responder-lhe, a confiança dele deu-lhe força, a certeza de que descobriria uma maneira.

^- Vamos sair daqui - disse.

Ainda a sua promessa temerária pairava no ar, quando a porta se abriu e Edward Stewart apareceu à soleira. Trazia uma mala de viagem enorme. Anna ergueu os olhos e fitou-o, destilando ódio por todos os poros. Sem proferir palavra, Edward acendeu um pequeno candeeiro de parede e pousou a mala no chão. Começou a procurar qualquer coisa nos armários embutidos na parede. Numa das prateleiras, encontrou um pequeno fogareiro eléctrico, com um queimador. Pegou nele, fechou a porta do armário e colocou-o sobre a bancada de trabalho. A visão do rosto de Edward fez o estômago de Anna torcer-se de repulsa, mas a situação em que se encontrava não lhe permitia fazer nada.

- Edward, desamarre estas cordas e deixe-nos sair. Já foi longe de mais.

- Por favor não fale comigo, Anna.

- Seja razoável - insistiu Anna com frieza -, e pare com isto antes que seja tarde de mais. Mais cedo do que pensa, as pessoas vão começar a procurar-nos. E o primeiro sítio de que se vão lembrar é da sua casa.

Sem lhe responder, Edward começou a abrir gavetas e a fsdespejá-las para o chão, que ficou coberto de papéis e peças de barcos. Depois, pegou num molho de trapos, que tirou de um saco pousado em cima da bancada. Estavam rijos, manchados de verniz e terebentina. Examinou-os uns instantes, depois empilhou-os num monte.

- Quando os encontrarem, já não tem importância.

- Assim que o tom ou a Tracy chegarem a casa e não nos virem, vêm logo aqui à nossa procura. Que pensa fazer? Vai levar-nos para onde?

- Não - respondeu Edward. - Não vou levar-vos para lado nenhum. - Abriu a mala que tinha trazido e colocou-a no chão, entre o lixo. Começou a seleccionar os modelos de barcos terminados, ou quase terminados, e arrumou-os dentro da mala. Só couberam uns três. com um suspiro, fechou a mala.

Anna viu-o experimentar o peso da mala. Julgou compreender e sentiu um alívio momentâneo. Ele estava a preparar-se para fugir. Decidiu atormentá-lo:

- Não vale a pena fugir. Vão acabar por apanhá-lo.

Pela primeira vez, Edward olhou para ela com uma expressão incrédula. Depois soltou uma gargalhada. Uma gargalhada oca, que terminou tão depressa como começou.

- Não diga disparates. Não vou fugir para lado nenhum. vou jantar ao meu clube. Não vou fugir. Só vim ver se salvava alguns barcos. Do fogo.

Os olhares de Anna e Edward cruzaram-se durante um segundo. De início, Anna não percebeu o que ele estava a dizer. Mas depois reconheceu, no seu olhar de aço, a calma determinação de alguém que tinha tomado uma decisão irrevogável.

- Fogo - repetiu Anna.

Edward acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que reunia alguns papéis amarrotados.

- Tencionava ir largar o rapaz num lado qualquer. Mas a sua presença veio complicar as coisas. De maneira que pensei melhor e achei que a solução era um acidente trágico ocorrer aqui, numa altura em que eu não me encontrasse em casa, claro.

- Não é capaz - disse Anna.

- Não está ninguém nas redondezas para chamar os bombeiros. Quando chegarem, já será tarde de mais. Creio que tem razão, o seu marido ou a sua filha hão-de aparecer aqui à sua procura e vão descobrir... os vossos restos mortais. Se me perdoa a expressão.

Edward foi até à bancada buscar o fogareiro. Voltou-se e olhou para Anna, segurando-o desajeitadamente debaixo do braço.

- Não devia ter interferido nos meus planos, Anna. Colocou o fogareiro num banco baixo e ligou-o a uma ficha na parede. Depois pegou nos trapos que tinha amontoado.

Espalhou os trapos e jornais em volta, introduzindo uma ponta de pano no anel do queimador.

- Aí está. Assim, quando aquecer, pega facilmente.

O coração de Anna pulava de medo, mas de repente a raiva que pusera de lado, na esperança de conseguir falar com ele, começou a ferver dentro dela, afastando qualquer outro sentimento.

- Monstruoso, cruel - disse, de dentes semicerrados -, porco nojento...

- Não fale assim comigo, Anna.

- Não lhe bastou ter deixado o meu filho a morrer no meio da estrada? Cobarde, patife.

- Grite o que quiser. Ninguém vai ouvi-la.

Edward deu meia volta e pegou na mala. Depois, olhou para o rapaz, preso lá em cima.

- Adeus - disse, apenas. Paul cuspiu-lhe para o braço da camisa. Edward limpou a manga com uma toalha de papel, que deitou também para perto do fogareiro. Sem mais uma palavra saiu do moinho e fechou a porta.

Deitada de lado, Anna não tirava os olhos do fogareiro. O queimador começava agora a estar vermelho. A ponta do trapo repousava sobre o queimador aceso. Anna viu surgir nela uma borda castanha.

A voz de Paul ouviu-se lá em cima:

- Ele magoou-a? - perguntou numa voz meiga. Respirar fundo e responder provocou a Anna uma forte dor no peito. Mas falou com uma voz firme:

- Estou bem.

Devagar, e apesar das dores, Anna começou a rastejar, centímetro a centímetro, na direcção do ameaçador fogão. A ponta do pano estava já negra e uma pequena labareda teimava em formar-se na sua orla.

- Não tenhas medo - gritou Anna a Paul. - Não tenhas medo.

 

                                   CAPÍTULO 23

Thomas tirou a mala e a pasta do assento traseiro do táxi e debruçou-se para pagar ao motorista.

- Obrigado, amigo - disse o condutor. - Boa noite. Thomas viu o condutor descer de marcha atrás o caminho particular. Depois virou-se e observou a casa. Estava à espera de ver Anna aparecer no alpendre, correr ao seu encontro; mas todas as luzes da casa estavam apagadas e não havia sinal da presença dela, à excepção do Volvo, estacionado à porta. Espreitou pela janela da garagem e viu o seu carro lá dentro. Caminhou devagar até à porta da frente e entrou.

Ficou uns instantes parado no vestíbulo silencioso. Olhou em redor. Aquela não era a recepção que imaginara, mas, pensou, provavelmente era a que ele merecia.

- Anna - chamou, mas dos quartos vazios não veio qualquer resposta.

Entrou na sala e acendeu um candeeiro. A tarde estava a chegar ao fim, àquela hora em que nem está escuro nem claro. Deixou a bagagem numa cadeira e atravessou a casa.

Foi uma sorte ter decidido ir ao hotel, depois do almoço, buscar uns papéis. Porque nessa altura é que lhe entregaram o bilhete com o recado de Anna acerca de Paul. A primeira coisa que sentiu ao lê-lo foi pavor. Houve depois um momento em que o desânimo o dominou. Mas ela precisava dele, pedia-lhe que voltasse a casa. Não precisou de muito tempo para tomar uma decisão. Fez alguns telefonemas a cancelar as reuniões que estavam marcadas e preparou-se para a viagem de, regresso.

Entrou, então, na cozinha e foi direito à bancada onde Anna deixava sempre os recados que queria que ele lesse. Nada. Nenhuma indicação sobre o paradeiro dela.

Thomas suspirou e deu um murro na bancada.

- Tracy - chamou, mas sabia que não haveria resposta. Por instantes, pensou que estava a ter aquele pesadelo que todas as crianças têm, que é voltarem da escola e verificarem que a família já não mora ali. Afastou essa ideia.   Lembrou-se que Tracy tinha ido passear de barco com Mary Ellen. Foi até ao telefone, marcou o número de casa desta e aguardou. A mãe da rapariga atendeu e disse-lhe que o barco ainda não tinha regressado. Thomas pediu para Tracy lhe telefonar quando chegasse, a fim de a ir buscar. A mãe de Ellen disse que lhe daria o recado e Thomas desligou.

Desapertou o nó da gravata e foi ao frigorífico buscar uma cerveja. Anna estava com certeza na esquadra. Se Paul tinha desaparecido, a primeira coisa que ela faria era procurar Buddy. Deviam andar os dois à procura de Paul. Thomas bebeu um pouco de cerveja e saboreou-a antes de engolir. Não conseguia deixar de pensar, como já fizera no avião para Nova Iorque, que, se calhar, o rapaz tinha decidido fugir. E com essa dúvida veio o sentimento de culpa, de que o seu próprio comportamento egoísta podia ser a causa dessa fuga. Só pedia que a mulher e o filho entrassem pela casa dentro antes de terminar a sua cerveja, mas, enquanto rezava em silêncio para que isso acontecesse, pegou no telefone e marcou o número da polícia de Stanwich.

O telefone tocou cinco vezes até alguém responder; Thomas achou um exagero. Quando a recepcionista por fim atendeu, Thomas pediu, furioso, para falar com Buddy Ferraro.

A voz feminina do outro lado da linha explicou que Buddy não estava.

- Bem, fala Thomas Lange - disse. - O meu filho desapareceu e imagino que a minha mulher tenha ido à procura dele com o detective Ferraro. Cheguei agora mesmo de Boston.

A mulher ficou calada algum tempo.

- Boa tarde, Mister Lange - disse, por fim. - Lamento muito o que aconteceu.

- Será que pode explicar-me o que se passa?

- Fala Marian Hammerfelt. Fui eu que recebi a sua mulher. O seu filho desapareceu hoje de manhã, no aeroporto.

- E o que estão a fazer a esse respeito? Já informaram Buddy Ferraro?

- O detective Ferraro estava fora da cidade quando tudo aconteceu. Mas acabou de chegar, justamente por causa disso. Telefonou-me de casa há minutos e, neste momento, encontra-se a caminho da esquadra. Mas a sua mulher não está com ele. Não a vemos desde esta manhã.

Thomas fitou o telefone como se o aparelho estivesse a confundi-lo de propósito.

- O detective Ferraro deve chegar dentro de vinte minutos. Quer que eu lhe telefone quando ele chegar? Ou que lhe diga que vá a sua casa?

Thomas suspirou e pensou qual seria a melhor opção.

- Não - disse. - Talvez tenha de ir buscar a minha filha e ainda é longe. Não quero que ele venha e não me encontre em casa. Peça-lhe que me telefone. Seria óptimo.

Thomas pousou o auscultador e deitou a garrafa de cerveja vazia para o caixote do lixo. As suas roupas estavam amarrotadas, sentia-se desconfortável. Decidiu mudar de roupa enquanto esperava. Voltou à sala, pegou na mala e subiu as escadas. Abriu a porta do quarto do casal e olhou lá para dentro. O quarto estava, como sempre, arrumado e acolhedor, a colcha de casamento bem esticada sobre a cama, uma jarra com flores na mesa de cabeceira. Foi até ao toucador, pegou na escova de prata e passou os dedos pela superfície macia. Depois, pousou-a e começou a despir-se.

Não deixar uma mensagem não era coisa de Anna. Talvez pensasse que ele não ia voltar, não ia responder ao seu pedido de ajuda. Mais uma vez, encarou o mal que tinha feito ao seu casamento; além de culpa, sentia uma necessidade imperiosa de compensar Anna por isso. E queria fazê-lo quanto antes, mas a quietude da casa transmitia-lhe uma impressão de impotência, frustração.

Enquanto atacava os sapatos de ténis, lembrou-se de onde ela poderia estar. Não se teria dado ao trabalho de escrever uma mensagem se tivesse apenas ido falar com íris, ali ao lado. O que queria dizer que podia voltar a qualquer momento. Era isso. Uma sensação de alívio percorreu-o de alto a baixo. De certeza que Anna tinha ido até lá, a pé. Inclinou-se por cima da cama para chegar ao telefone do quarto. O número dos Stewart estava escrito num papel colado ao telefone, juntamente com o da polícia e o dos bombeiros, para alguma emergência. Marcou o número com avidez, desejoso de ouvir a voz de íris, para poder dizer a Anna que já tinha chegado. O telefone começou a tocar, mas nunca mais parou e Thomas percebeu, apavorado, que afinal não estava ninguém em casa.

Não atenderam. Afinal, ela não tinha ido lá. Thomas voltou a marcar o número, só para ter a certeza, mas não obteve resposta. Atirou com o auscultador e sentou-se, desanimado, aos pés da cama.

Não se lembrava de outro sítio onde ela pudesse estar. «Talvez tenha saído com íris», pensou. Era possível. Talvez tenham ido as duas procurar o rapaz. Esfregou os olhos e fitou o telefone. Ou, se calhar, foram passear pela propriedade. Podia ser. Decidiu ir verificar. Talvez as encontrasse sentadas à beira da piscina. Mas pela janela viu que o dia estava a escurecer. E a arrefecer, também. O ar já cheirava a Outono. Foi até à janela do quarto, que estava entreaberta, e fechou-a. Depois sacudiu a cabeça. Anna ia lá sentar-se à beira da piscina depois de Paul ter desaparecido! Pensou ir a casa dos vizinhos. Se íris estivesse lá, saberia dizer-lhe alguma coisa. Depois lembrou-se de Edward. Não lhe agradava a ideia de encontrá-lo. Edward sempre o tratara como se ele tivesse hepatite.

Thomas deitou-se de costas em cima da cama. Tracy podia telefonar a qualquer momento e ele tinha prometido ir buscá-la. E depois havia Buddy. Também devia estar quase a ligar. «Vê se descansas», disse para consigo. «Não podes fazer nada, só te resta esperar. Passa pelas brasas e, quando acordares, talvez ela já esteja em casa.» Fechou os olhos e procurou descontrair-se, embora uma veia tivesse começado a latejar na sua testa. «Calma», disse para consigo. «Só mais uns minutos, o telefone tem de acabar por tocar.» Começou a friccionar o nó que se formara na base do seu pescoço, enquanto tapava os olhos com a outra mão.

Avançando aos solavancos, de mãos e pés atados, Anna rebolou pelo chão de pedra em direcção ao fogareiro. O caminho estava semeado dos resíduos inflamáveis que Edward espalhara. Quando rastejou por cima deles, esmagou um casco meio acabado, cujas lascas se enfiaram nas suas roupas, e ficou com os membros enredados nos trapos. Os papéis escorregavam quando o seu corpo embatia neles, e a cabeça fria de um martelo esquecido no meio do chão feriu-a. Ao rodar os pés, bateu na perna de uma cadeira que tombou, juntamente com a caixa de cartão pousada em cima dela e que estava cheia de pequenas velas de seda. Triângulos de tecido colorido esvoaçaram e foram aterrar no queimador vermelho. Incendiaram-se e lançaram chamas brilhantes durante uns segundos, projectando um grande clarão antes de se transformarem em cinza.

A ponta do trapo que Edward encostara ao bico estava agora a arder, pequenas labaredas dançavam nos cantos escurecidos e avançavam para o centro do pano. Anna hesitou, com vontade de ir extinguir o pano, mas estava mais próxima do fio eléctrico do fogareiro. Olhou para a tomada onde a ficha estava ligada. Se levantasse um pouco a cabeça, pensou, seria capaz de agarrar o fio com os dentes e arrancá-lo da parede. A ideia de colocar aquele fio nos dentes era assustadora; mas o trapo ardia vigorosamente, era preciso apagar o fogareiro ameaçador.

- Que está a fazer? - perguntou Paul lá de cima.

- Espera, querido. vou desligar o fogareiro.

- Cuidado.

Anna olhou, decidida, para o fio. Depois, deslocando-se com o corpo apoiado num cotovelo, prendeu-o entre os dentes. Inclinou a cabeça para um lado e conseguiu segurar uma argola de fio entre o queixo e o ombro. «Agora», pensou. «Não me resistas.»

Anna fechou os olhos e atirou-se com força para longe da parede. A ficha acabou por sair da tomada. O impacte violento fez tombar o fogareiro, que caiu de pernas para o ar, a poucos Centímetros do pedal da máquina de costura.

Rápidamente, Anna largou o fio que tinha na boca.

- Resultou - disse. - Desliguei-o.

- Boa, mãe!

Ao ouvi-lo chamar-lhe mãe, Anna sentiu uma felicidade enorme, mas ficou imediatamente calma .

- Agora vou encostar as cordas das minhas mãos ao Fogareiro, que ainda está suficientemente quente para queimá-las.

- Cuidado.

- Mas, primeiro, tenho de apagar as labaredas daquele trapo.

As pontas do trapo estavam em chamas e Anna sentiu-se apavorada com a tarefa que a esperava. Contudo, não havia outra hipótese. Desprender-se podia demorar muito tempo, e não estariam seguros enquanto o trapo continuasse a arder. Depois, concentrar- se-ia nas cordas que lhe atavam as mãos. O queimador ainda ficaria quente durante algum tempo. Primeiro, tinha de apagar as labaredas do pano e só havia uma forma de consegui-lo Começou a rastejar na direcção deste, decidida a esmagá-lo como um cilindro e assim impedir que as chamas alastrassem.

Anna preparou-se para rebolar. Com um pouco de sorte, cairia com força em cima do fogo, para extingui-lo de uma só vez. Rezou em voz baixa e rolou para trás, a tomar balanço.

As pequenas labaredas que avançavam para o centro do trapo, atingiram de repente uma zona acastanhada, manchada. No mesmo instante o trapo explodiu, lançando línguas de fogo por toda a parte.

Anna soltou um grito. O rosto enfarruscado pelo calor súbito, intenso- Recuou enquanto Paul perguntava:

- Que aconteceu?

O trapo - balbuciou Anna - explodiu.

Fragmentos do pano em chamas caíram em vários pontos do pequeno espaço. Alguns assobiavam quando atingiam o pavimento frio e morriam. Outros desciam sobre caixas e outras pilhas de Trapos e papéis. Um deles aterrou numa vassoura que estava encostada à parede. Impotente, Anna viu as chamas devorarem as

cerdas com sofreguidão. Havia agora vários pequenos focos de incêndio em volta dela e o fumo começava a ocupar o moinho.

Exceptuando os dedos que me tremiam enquanto apertava o nó da gravata, Edward estava perfeitamente calmo. O toque do telefone minutos antes tinha-o enervado, mas decidira ignorá-lo. Era indiferente. Quem quer que fosse, queria com certeza certificar-se de que ele não estava em casa. Vestiu o casaco e olhou-se ao espelho para verificar se estava correctamente vestido. Que prazer, ir ao clube sem íris. Maltrapilha como ela costumava andar, sentia-se sempre embaraçado ao atravessar a sala de jantar ao lado da mulher, mesmo que ele próprio estivesse muito bem vestido. Mas naquela noite seria perfeito. Tratava-se de um local que lhe daria grande visibilidade. Passaria a noite a comer, beber, conversar e, quando voltasse a casa, todos os seus problemas estariam reduzidos a cinzas. O moinho seria um inferno, uma cápsula de fumo. Lá dentro, os polícias encontrariam os restos mortais da mãe e do filho, vítimas de um acidente trágico, pois o incêndio destruiria as cordas que os amarravam.

Não deixava de ser uma ousadia simular o acidente precisamente ali, na sua propriedade, mas realmente era a ideia mais acertada. Tinha ficado furioso ao ver Anna interferir no seu plano perfeito e havia posto a hipótese de se livrar de dois cadáveres em vez de um, como no seu plano inicial. Mas quanto mais pensou nisso, mais sensato lhe pareceu eliminá-los ali mesmo. Além de toda a gente achar que ele não tinha qualquer motivo para matá-los, ninguém ia acreditar que tivesse deitado fogo à sua própria propriedade. Todos sabiam como ele adorava aquele moinho. De facto, só era pena ter que sacrificá-lo para se ver livre do rapaz e da intrometida da mãe. Ainda por cima, os Lange passavam a vida a invadir a sua propriedade, era frequente atravessarem-na, passarem pelo moinho. Era um dos hábitos de classe baixa que conservavam, o de aparecerem num sítio sem terem sido convidados, íris poderia confirmá-lo. Ele contaria à polícia que tinha dito ao rapaz para ir ao moinho quando lhe apetecesse. Pareceria tudo, menos culpado. A vítima, até, da falta de cuidado deles.

Mas estava na hora de ir para a estrada. Edward pegou nas chaves do Cadillac que estavam em cima do toucador e depois abriu a gaveta. Continha o seu alfinete de gravata de ouro e uma carteira de pele cheia de dinheiro. Tirou algumas notas, o alfinete, e meteu tudo no bolso. Depois apagou a luz, saiu, atravessou o corredor e começou a descer. Ia já a meio das escadas quando ouviu bater à porta da frente.

Edward ficou petrificado, a fitar a porta. Decidiu que era melhor não abrir, fosse quem fosse havia de ir-se embora. Mas depois pensou que o importuno podia dar a volta e entrar pelas traseiras, risco que ele não podia correr. Parecia-lhe muito cedo para haver já sinais de incêndio, mas nunca se sabia. Não havia outro remédio se não ir abrir e despachar quem encontrasse à porta. Recordou a si próprio que estava com pressa, ia jantar ao clube. Devia ser alguém a pedir para qualquer coisa. Edward apressou-se a descer as escadas que faltavam. Olhou por uma das janelas da frente, mas não viu nenhum carro. Caminhou sem fazer barulho até à porta, afastou um centímetro os cortinados que tapavam os vitrais e espreitou.

Thomas Lange aguardava lá fora.

Edward sentiu um aperto no coração e o suor escorreu-lhe ela testa. «O que é que ele veio aqui fazer? Estava em Boston. Calma ”, ordenou a si próprio. «Deve ter sido Anna que lhe pediu Para voltar para casa- Age com naturalidade. Ele anda à procura de Anna e não a vês desde esta tarde.» Edward respirou fundo e sacudiu um pêlo que tinha no fato. Em seguida, abriu a porta.

Thomas - disse, num tom simpático -, em que posso ser-lhe útil? Ia sair agora mesmo.

- Posso entrar só um minuto? Que bom encontrá-lo em casa.

Edward olhou para o seu relógio, mas Thomas estava demasiado nervoso para reparar.

- Bem - continuou, numa voz hesitante -, se é só um minuto, com certeza.

Tom passou por Edward e entrou na sala, certificando-se de que os seus pés sujos de terra não estavam a sujar a alcatifa creme.

- Tom - disse Edward, seguindo-o, - julguei que estivesse fora. Quando a Anna veio cá esta manhã contou-me que tinha ido despedir-se de si ao aeroporto.

Thomas sacudiu a cabeça, desconsolado.

- Tive de ir a Boston, mas no hotel deram-me um recado da Anna a dizer que o Paul tinha desaparecido outra vez. Voltei logo para casa. Só que não encontro a Anna em lado nenhum.

- Oh, tenho a certeza de que não está longe - disse Edward, sério.

- Decidi dormir um bocado e ficar à espera deles, mas estava quase a perder a cabeça. Resolvi vir cá, perguntar se sabe, ou se a íris sabe, o que aconteceu, onde está a Anna.

- Bem a íris não está, só volta dentro de uns dias. A Anna esteve aqui ao princípio da tarde, mas desde então não voltei a vê-la, lamento muito.

- Que queria ela? - perguntou Thomas.

- Saber se eu tinha visto o rapaz - respondeu Edward.

- Meu Deus, mas que mau bocado estão vocês a passar.

Thomas franziu a testa.

- Algum problema? - perguntou Edward. Thomas olhou-o atentamente.

- Já tinha tocado à sua porta antes. Ninguém respondeu.

- Passei a tarde a entrar e a sair - explicou Edward, olhando para o relógio.

- Estou a fazê-lo perder tempo, desculpe - disse Thomas. - Acho que vou voltar para casa.

- Não, não faça isso - disse Edward, lembrando-se que Thomas ficaria mais perto do que era desejável, embora a casa dele ainda ficasse longe. Mesmo assim, o cheiro do fumo ia lá chegar. - Tive uma ideia. Eu levo-o no meu carro e vamos à cidade ver se encontramos a Anna. Acho que não está em condições de conduzir.

- Nem pensar nisso - recusou Thomas, surpreendido com o convite. - Seria um abuso. Nem saberíamos por onde começar.

- Não é abuso nenhum - garantiu Edward. - Gostava de ajudar. Que me diz?

- Não posso. Tenho de ir buscar a Tracy daqui a pouco.

- Vamos buscá-la de caminho. Depois, passamos pela esquadra a ver se têm notícias.

Thomas hesitou e de repente ficou com um ar extremamente fatigado.

Tem razão - respondeu. - Não consigo ficar em casa, sentado ao lado do telefone, sem fazer nada. Isto está a dar comigo em doido.

- Pois claro - concordou Edward, conduzindo Thomas com a mão no cotovelo dele.

Thomas deixou que Edward o guiasse até à porta da frente, em seguida dirigiram-se à garagem.

- Detesto estragar-lhe os planos para esta noite - disse Thomas.

- Eu ia só jantar ao clube - explicou Edward e, pelo canto do olho, espreitou o moinho. Nada que pudesse denunciá-lo. Ainda não se via fumo. - Não se preocupe, posso lá jantar sempre que quiser. Mas não é todos os dias que se ajuda um amigo.

Entraram os dois na garagem e Edward abriu a porta do Cadillac. Thomas fitou-o, incrédulo, depois encolheu os ombros e entrou. «Frio como sempre», pensou Thomas. «Mas ao menos está a tentar ser agradável.»

Um sentimento de orgulho e conforto invadiu Edward enquanto se sentava no seu banco, atrás do volante. Tentou exibir uma expressão séria ao ligar a ignição e deitou um olhar solidário ao vizinho. «Esta gente é mesmo ingénua», pensou. «Parecem cordeirinhos.»

O carro, que estava voltado para a frente, saiu silenciosamente da garagem e desceu o caminho.

O calor emanado pelos vários incêndios juntos intensificava-se, fazendo o interior do moinho parecer um forno. com uma imprudência provocada pelo desespero, Anna rebolou na direcção do queimador em brasa, abafando as labaredas à sua passagem.

Agarrada à perna da máquina de costura, esticou a mão para trás e tacteou em busca do fogareiro. Queimou os dedos, mas reparou, com indiferença, que a dor que sentia lhe era indiferente.

--Por favor - murmurou ao ver um trapo em chamas incendiar o assento de uma cadeira perto da bancada. Por favor.

com os dedos esticados na direcção do fogareiro, tentou alargar as cordas que a amarravam. Tornava-se cada vez mais difícil respirar à medida que o fumo aumentava. Sentindo uma dor aguda nos olhos, fechou-os.

- Mãe - gritou Paul da galeria. - Socorro. - Anna ouviu-o começar a tossir.

A vassoura em chamas tombou, pegando fogo a uma pilha de cadernos. Anna tentou soltar as mãos, mas o fogareiro tinha já arrefecido, cumprida a sua missão.

- Mãe - chamou novamente o rapaz.

«Não desistas», disse a si própria. «Ele precisa de ti. Não desistas.» Mas a cena diante dos seus olhos cheios de lágrimas era uma visão do Inferno. Anna respirou fundo.

- Tapa o nariz e a boca - disse, tentando fazer-se ouvir apesar do crepitar do fogo. - Não respires este fumo. - Sentia gotas de água evaporar-se no seu rosto. Tinha agora os olhos encharcados, mas não sabia se era do fumo, se das lágrimas.

- Consegues ouvir-me? - gritou. - Paul! - Mas não veio nenhuma resposta lá de cima.

 

                                     CAPÍTULO 24

Estou certo de que há uma explicação muito simples -

disse Edward num tom suave, começando a descer o longo caminho particular -, mas é horrível ter de passar por isto tudo.

Thomas, sentado ao lado dele, parecia não ouvir.

- Se bem conheço a Anna - prosseguiu Edward -, também não é pessoa para ficar de braços cruzados. Deve andar por aí, à procura...

- Espere aí - disse Thomas. - Pare o carro. Edward voltou a cabeça bruscamente e fitou o seu passageiro.

- Para quê? - perguntou. Thomas endireitou-se.

- O telefone está a tocar em sua casa - disse Thomas.

- Pare o carro.

- Está a ouvir coisas - disse Edward, travando sem convicção.

- Estou a dizer-lhe que está ^ tocar - insistiu Thomas.

- Oh, devem ser os Adison, por causa do jantar. Não faz mal nenhum eu não atender. Seja quem for, telefona depois.

- Mas pode ser a Anna - disse Thomas, nervoso. - Se calhar, ligou para a nossa casa e como eu não atendi resolveu experimentar a sua. Tem de atender.

Antes que Edward tivesse tempo para fazer qualquer coisa, Thomas saltou do carro e correu em direcção à casa. Edward puxou o travão de mão e seguiu-o.

Chegou à porta segundos depois de Thomas e encostou-se a ela, ofegante. Thomas não tirava o ouvido da porta.

- Ainda está a tocar. Tenho a certeza de que é a Anna. Abra.

Edward olhou para Thomas, enquanto tentava recuperar o fôlego. Espreitou na direcção do moinho de onde estava a sair ”um leve fio de fumo.

- Não seja ridículo - disse.

Pode precisar de mim. Pode ter sofrido um acidente.

Não sei. Abra lá a porta.

- Está a dramatizar um pouco, não acha?

Thomas voltou-se para o vizinho com um olhar determinado.

- Disse-me que queria ajudar - disse Thomas numa voz mais fria do que a de Edward. - Se quer realmente ajudar-me, abra o raio da porta ou eu arrombo uma janela e entro.

Os dois homens olharam-se por uns momentos. Edward esforçou-se por controlar a sua raiva e não dar um murro no rosto insolente de Thomas. Se Thomas partisse um vidro, os alarmes da esquadra seriam accionados e num instante aquilo ficaria cheio de carros da polícia. O telefone continuava a tocar com insistência. Se fizesse a vontade a Thomas, talvez conseguisse tirá-lo dali a tempo. «No fim, ele vai pagá-las», recordou-se Edward. Virou-se, pálido, e meteu a chave na fechadura.

- Está a agir de forma irracional, Thomas - resmungou, rodando a maçaneta e abrindo a porta.

Tom entrou primeiro e correu para o telefone, seguido por Edward. Pegou no auscultador e, depois de hesitar, passou-o a Edward. Edward encostou o auscultador ao ouvido sem olhar para ele.

- Está?

- Mister Stewart - disse Tracy. - Desculpe o incómodo, mas sabe onde estão os meus pais? Ninguém responde lá de casa.

- Um momento - interrompeu-a Edward. - É para si

- disse a Thomas.

Thomas arrancou-lhe o telefone das mãos e gritou:

- Sim? - enquanto Edward voltava para o vestíbulo. Não havia tempo a perder. Nenhum tempo. Tinha de tirar Thomas dali, antes que o moinho pegasse fogo. Edward olhou mais uma vez para o relógio.

- Era a Tracy - informou Thomas, já no vestíbulo. Edward voltou-se para ele, obrigando-se a sorrir.

- Eu sei, deve querer a tal boleia. Vamos buscá-la primeiro. Thomas não respondeu e saiu à frente de Edward. Esperou

por ele junto ao carro. Edward procurou as chaves no bolso e voltou a fechar a porta. Depois avançou para o carro.

- Ouça, Edward, obrigado pela oferta, mas acho que já estou capaz de conduzir. vou buscar a Tracy e ela ajuda-me a procurar Anna.

Edward ia protestar, mas depois pensou melhor. O principal objectivo era que Thomas saísse dali depressa, com ele ou sem ele.

- Tem a certeza? Olhe que eu não me importo nada. Thomas abanou a cabeça.

- Obrigado na mesma.

- Então, deixe-me pelo menos levá-lo a casa - disse Edward, abrindo a porta do carro.

- Prefiro ir a pé - contrapôs Thomas com delicadeza.

- Já lhe dei muita maçada.

- Que disparate. Eu levo-o. Não custa nada. Thomas levantou a mão em sinal de protesto.

- Já se atrasou muito por minha causa. Não quero empatá-lo mais. vou muito bem a pé.

Edward sentiu o seu rosto tornar-se vermelho, mas conseguiu manter a calma.

- Ainda é uma longa caminhada. Porque é que não entra no carro?

- Não é tão longe como isso - disse Tom. - vou por trás, a corta-mato.

O coração de Edward deu um pulo. Tinha de convencê-lo a entrar no carro. Não podia deixá-lo ir a pé, pelo atalho. De maneira nenhuma. O fumo já era visível.

- Não - insistiu Edward. - Eu levo-o. Thomas suspirou, cansado.

- Ouça, eu prefiro ir a pé. Acho que já abusei da sua generosidade - e meteu-se a caminho.

Edward cerrou os dentes e depois gritou:

- Como se atreve?

Thomas parou e olhou para ele.

- Como se atreve a atravessar a minha propriedade sempre que lhe apetece? Você e a sua família tratam esta propriedade como se fosse um espaço público, e eu estou farto.

Thomas ficou um instante calado, a ver se descobria as palavras certas, que fizessem Edward arrepender-se do que acabara de dizer. «Arrogante, convencido», pensou. «Não penses que podes falar assim comigo. A boa vizinhança que vá para o raio que a parta. Agora sei o que realmente sentes por nós e eu sempre tive razão.»

As ideias fervilhavam na sua cabeça, mas Thomas não conseguia traduzi-las por palavras, não queria parecer ofendido, petulante como uma criança. Edward tremia da cabeça aos pés, mas não tirava o seu olhar imperioso do rosto de Tom.

De repente, Thomas descobriu que só havia uma maneira de responder a Edward: falar com calma e desprezo.

- Tenho muita pena, vizinho, mas apetece-me ir pelo atalho.

E começou a dar a volta à casa num passo propositadamente rápido.

Edward correu atrás dele.

- Pare imediatamente - gritou. ’’’” Os dois homens olharam-se. Então Thomas disse:

- Vem fumo do seu moinho. Parece que ele está a arder. O rosto de Edward contraiu-se e no seu olhar espelhou-se a ansiedade.

- Que absurdo. Saia já da minha propriedade. Edward virou as costas, enquanto Thomas observava, incrédulo.

- Você está louco.

- Não estou, não. Porque é que não queria que eu visse?

Edward atirou-se para cima dele, agarrando-o pelo colarinho da camisa. Thomas quase se desequilibrou e Edward desatou aos murros, com um olhar desvairado.

com toda a força do seu braço direito, Thomas atingiu Edward na cabeça, deitando-o ao chão. Quando Edward conseguiu pôr-se de pé outra vez, já Thomas dera a volta à casa e alcançara o pátio. Agora, viam-se bem os rolos de fumo, cinzentos, contra o céu escuro. Desatou a correr.

com os ouvidos e o coração a latejar, correu tão depressa quanto pôde, deixando no relvado bem cuidado as marcas dos seus sapatos. Saltou por cima do muro de pedra, cambaleou durante uns metros e voltou a correr.

O moinho via-se mal, atrás da pequena mata, mas quando se aproximou das árvores, atrás delas havia um clarão nada natural Atravessou o arvoredo e depois parou, incrédulo.

Sam, o gato de Paul, miava junto à porta ao moinho, mas calor era tal que o animal não conseguia avançar mais. O gato ouviu Thomas chegar e virou para ele os seus olhos enormes.

Thomas olhava, ora para o gato, ora para a construção em chamas. Línguas de fogo lambiam os caixilhos das minúsculas janelas, por onde o fumo jorrava. A’zona em volta da porta já estava quase negra. E no interior ouvia-se um crepitar contínno e um som familiar, que lhe gelou o coração. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas Thomas nem deu por isso. O seu peit° subia e baixava a um ritmo alucinante.

Anna - disse, correndo para a porta.

Encostou os dedos à maçaneta mas tirou-os logo a seguir, queimados pelo calor nela concentrado. Despiu o blusão, enrolou-o em volta da maçaneta e abriu a porta.

Da porta aberta saíu um jacto de calor e fumo que lhe deixou o rosto e a camisa negros. Lá dentro, as labaredas devoravam pilhas de tralha e trepavam pelas paredes. O fumo pesado tornava o ambiente opaco, à excepção dos pontos onde as chamas o penetravam.

.Anna! - gritou -, Anna!

por entre o rugido do fogo, distinguiu um gemido. Avançou, derrubando pilhas de objectos a arder e afastando os trapos em chamas que tentavam cair em cima dele.

.Anna! Onde estás?

Quando os seus olhos se habituaram ao clarão infernal, viu um volume escuro por detrás da máquina de costura. Cambaleou para ele, cobrindo a boca com a fralda da camisa, e quando se inclinou viu a sua mulher, amarrada, agachada a um canto com uma das mangas já a arder. Olhou para ele e rolou os olhos. Depois de apagar o fogo da roupa dela com as mãos, Thomas baixou-se, esticou os braços para a levantar. Ao apertá-la contra si, viu uma fila de chamas no outro braço. Puxou os dois braços para cima e tentou desapertar os nós que lhe atavam as mãos. Ao ver o seu estado, a fúria e a raiva cresceram dentro dele. Mas as labaredas multiplicavam-se e Thomas desatou a tossir, com os pulmões cheios de fumo.

Olhou para a porta e percebeu que para lá chegar teria de passar por uma série de línguas de fogo. Apertando Anna contra o seu peito, Thomas pôs-se de pé, vacilando. Falou baixinho com ela, enquanto traçava um plano para ultrapassar as chamas. Agora as labaredas cercavam-no, incendiando os montes de lixo e tornando a temperatura no interior do moinho insuportável à medida que avançavam, ávidas, para o combustível espalhado pelo chão.

Como quem atravessa um poço de víboras, Thomas serpenteou por entre as labaredas, com a sua mulher ao colo Uma lasca de madeira a arder caiu da galeria, quase atingindo as pernas de Anna. Thomas desviou-se do projéctil em chamas e conseguiu alcançar a porta, indiferente às chicotadas que o fogo infligia na sua pele, deixando marcas negras.

Quando chegaram à porta, o casco em chamas de uma das embarcações de Edward caiu-lhe aos pés. Thomas deu um pulo para trás, mas depois saltou por cima dele e conseguiu chegar ao relvado. Após alguns passos, ajoelhou-se e colocou cuidadosamente Anna sobre a relva bem tratada. Anna gemeu deitada de lado, ainda com os pés e as mãos atadas Thomas repousou um segundo e depois encostou a cabeça dela ao seu peito. Anna tossia, respirava com dificuldade. Thomas começou a desamarrá-la.

Anna estremeceu enquanto as cordas eram desatadas e tombou. Olhou para o rosto chamuscado do marido, que lhe sorria.

- Estás bem? - perguntou ele, também a tossir Anna levantou a mão e Thomas pegou nela e encostou-a

ao rosto. Depois de se sentar com grande esforço, Anna olhou em volta.

- Paul - balbuciou ela, numa voz enrouquecida pelo fumo.

Thomas fitou-a, atónito.

A confusão que havia nos olhos de Anna foi substituída por uma expressão de pavor.

- Tom, ele ficou no moinho - sussurrou, num tom de voz normal, de súbito quebrado entre a rouquidão e a angústia.

Thomas sacudiu a cabeça.

- Não o vi.

Ela puxou-lhe pela camisa:

- Na galeria - gritou.

Sem mais palavra, Thomas pôs-se de pé num pulo e voltou a correr para a porta do moinho. Anna viu as labaredas saltar pelas janelas que ladeavam a porta à medida que o fumo avançava pelo ar.

Tapou a boca com as mãos cruzadas, sacudindo devagar a cabeça, como se tivesse acabado de ver o marido mergulhar no abismo. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, deixando as suas marcas no rosto enfarruscado.

Só alguns minutos depois de Thomas lhe ter escapado é que Edward se apercebeu de que estava condenado. Thomas ia descobrir a mulher e o filho presos no moinho. Não era possível matá-los a todos. Naquele momento.

Limpando a cara à manga, Edward recuou em direcção a casa. Estava tudo perdido, pensou, desnorteado. Não se conformava. O seu plano perfeito gorara-se e não tinha tempo para pensar noutro. com essa constatação, Edward apercebeu-se outra vez de que estava em apuros. Fugir era a sua única esperança. Irrompeu pela casa, sem saber ao certo o que ir buscar primeiro. Lembrou-se do dinheiro na gaveta do toucador. Galgou as escadas, abriu bruscamente a gaveta e enfiou o dinheiro nas algibeiras das calças. A seguir pensou nos barcos. Pegou na mala de viagem onde os tinha arrumado e arrastou-a pela escadaria abaixo, agarrando-a como se fosse um salva-vidas. No vestíbulo, ao fundo das escadas, olhou em redor, para todas as coisas valiosas que possuía. Por instantes, pensou que não ia ser capaz de abandoná-las. Mas fez um esforço e continuou.

Ora correndo, ora caminhando, chegou ao carro estacionado na rua. Ofegante, pôs a mão no fecho da porta e entrou. Atirou a mala dos barcos para o banco traseiro. com mãos trémulas, ligou a ignição e pôs o pé no acelerador. Espreitou um segundo pelo canto do olho e viu o fumo surgir por detrás da mansão. Olhou em frente e segurou o volante com força. Não lhe restava muito tempo.

Carregou no acelerador com quanta força tinha. O carro arrancou de repente e desceu o caminho a toda a velocidade. Passou pelos terrenos bem cuidados que haviam sido o seu refúgio durante tanto tempo. Edward prestou atenção ao caminho, tentando resolver para onde ir. Decidiu tomar a Millgate Parkway e seguir para norte. Não conseguiu ter uma ideia melhor.

Quando o carro chegou ao fim do caminho particular, Edward virou o volante e travou, fazendo os pneus guinchar enquanto curvavam. Olhou para a esquerda. Não se via ninguém, como era de esperar. O carro, que seguia a uma velocidade considerável, fez uma curva larga e foi parar à faixa oposta. Enquanto o Cadillac disparava pela estrada, Edward olhou para a direita e viu o carro da polícia, a poucos metros, avançar velozmente na sua direcção.

Girou o volante desvairado, tentanto voltar à sua faixa, mas o automóvel, descontrolado, girou e começou a derrapar. O carro da polícia tentou desviar-se, mas não conseguiu evitar o Cadillac. Os dois carros colidiram e, com o impulso, pararam.

Edward ficou algum tempo sentado, desorientado. Quando viu a porta do carro de patrulha abrir-se, recuperou a acção. Pôs o carro em marcha atrás, pisou o acelerador e o Cadillac saltou para trás, soltando-se do pára-choques amolgado do carro da polícia. Respirando com dificuldade, voltou a pôr a primeira e rodou o volante, para contornar o veículo que acabara de atingir.

Pelo canto do olhou viu a expressão perplexa do rosto do polícia que emergiu do carro. Era Buddy Ferraro, o detective que não largava a casa dos Lange. Edward forçou o motor e o automóvel lançou-se em frente, evitando o carro da polícia, mas quase atropelando o detective, que estava agora no meio da estrada, de mão erguida.

- Alto - gritou, mas Edward ignorou-o. O Cadillac acelerou e começou a descer a estrada. Ouviu-se o disparo de uma pistola, mas Edward não quis saber. Continuava concentrado na berma da estrada. Já não faltava muito. Se conseguisse chegar à Parkway...

Sentia o medo crescer dentro de si, roer as suas entranhas. A sua respiração era ofegante, o peito doía-lhe devido aos batiinentos loucos do seu coração.

«Perdeste tudo», pensou, engolindo o nó que sentia na garganta. De repente, ao carregar no acelerador, pareceu-lhe ver uma criança no meio da estrada, fitando-o com uns olhos inocentes, muito abertos. Uma náusea revolveu-lhe o estômago, mas não deixou de acelerar. Agora não podia parar. Estava quase na esquina. Era demasiado tarde para parar. Sempre fora.

Voltou a ouvir a Anna e nesse mesmo instante a imagem da criança desapareceu. Sentiu um alívio momentâneo e seguiu em frente. Então, para sua enorme aflição, um pneu traseiro rebentou. O carro guinou e atravessou-se na estrada, deixando Edward desvairado, sem saber o que fazer. Bastou apenas um segundo, embora parecesse que tudo estava a acontecer em câmara lenta, para a enorme e poderosa máquina descontrolar-se e começar a rodopiar.

«vou depressa de mais», pensou. Tentou travar, mas só conseguiu projectar o carro para fora da estrada.

Um ulmeiro enorme e frondoso apareceu à sua frente, mesmo ao lado do desvio para Hidden Brook Lane. Edward viu a águia dourada voar a uma velocidade incrível. O barulho do metal amachucado chegou-lhe aos ouvidos, enquanto a águia aterrava na árvore e depois caía. Saltou para cima do capo e do pára-brisas estilhaçado, que se desfizeram como um copo de papel com o impacte.

A última coisa em que Edward pensou quando viu a árvore avançar na sua direcção foi que podia ir rumo à costa e pagar a uns velejadores para o levarem no barco deles. Uma vez longe do porto, controlaria a situação. Ninguém sabia tanto de barcos como ele. Seria o maior velejador do mundo. O oceano seria seu.

- Meu - gritou, no mesmo instante em que o impulso o lançou para a frente e a coluna do volante lhe rasgou o peito.

«Não devia tê-lo deixado voltar lá para dentro», pensou ela. «Não pode sair dali vivo. vou ficar sem os dois. Tenho de ir buscá-los.»

Anna tentou pôr-se de pé, mas em vão. Mal conseguia levantar as mãos e as pernas. A cabeça parecia uma bala de canhão em cima do seu pescoço. Sempre que tentava gatinhar em direcção ao moinho em chamas, tombava. «Tom», pensou. «Paul.» Tinha de ir atrás deles.

Então lembrou-se de Tracy. Ainda havia a sua filha, que precisava dela. Talvez Deus a tivesse deixado viver por causa de Tracy. «Salva-os, por favor», segredou.

Anna viu com horror outra janela desfazer-se em chamas. Os braços tremiam-lhe, os pulsos doíam tanto que pareciam partidos. Fez um esforço e voltou a sentar-se sobre os calcanhares, com os joelhos doridos encostados ao chão. Ele já tinha entrado havia muito tempo. E não se ouvia qualquer som humano.

O desejo de entrar voltou a crescer dentro dela. Por um lado, queria mergulhar no moinho e lançar-se às chamas como uma viúva sobre a pira funerária. A ideia parecia-lhe quase tentadora. Seria uma forma de acabar com o horror. - tom - gemeu. Mas voltou a pensar em Tracy e soube que não seria capaz.

Lá longe, as sirenes dos carros dos bombeiros começaram a entoar o seu queixume. Anna ouviu-as, mas não reparou que vinham na sua direcção. Só quando elas se aproximaram e o som tornou-se mais alto é que Anna percebeu.

De repente, à porta do moinho surgiu uma figura negra, encurvada, transportando outra. Anna deixou escapar um grito de alívio ao ver o marido, sujo, ofegante.

- tom - gritou, levantando-se. - Meu querido. Depois olhou para o fardo nos braços dele. O rapaz estava

completamente imóvel, à excepção da cabeça, que abanava, inerte, à medida que tom se afastava do incêndio.

Anna olhou para um e para outro e depois levantou as mãos, como para se defender de uma pancada. Desatou a gritar.

Thomas deitou com cuidado o filho no chão e olhou para ela.

- Não, Anna - murmurou, tossindo e tapando a boca com a mão. - Ele está vivo. Acredita. Está vivo. Acredita em mim.

Anna tapou a boca com as mãos e caiu de joelhos, enquanto Thomas se dobrava sobre o corpo de Paul e começava os exercícios de reanimação. Ela viu, transfigurada, tom pousar a boca sobre a do filho, expirar para dentro dele, inclinar a cabeça para ouvir a reacção após cada golfada de ar. À décima vez, o peito do rapaz mexeu-se e Thomas olhou-a nos olhos.

- Vês?

Anna abanou a cabeça e fechou os olhos. Pousou uma mão no braço do filho e a outra no do marido. Thomas voltou a dobrar-se para Paul e inspirou profundamente, preparando-se para repetir a respiração boca-a-boca.

- Consegues? - perguntou Anna. - Não estás cansado de mais?

Thomas respondeu com um gesto de cabeça, para não desperdiçar oxigénio. Voltou a pousar a boca sobre a de Paul, a expirar para dentro da boca do rapaz, e Anna viu o peito deste mexer-se e o rosto adquirir um vestígio de cor. Ao longe, a agitação era grande, enquanto os carros de bombeiros e a ambulância que Buddy chamara convergiam no pátio dos Stewart.

- Tom, olha - disse Anna, quando Paul abriu os olhos e os virou para ela. Thomas endireitou-se. Ambos olharam para O filho e sorriram.

- Estás bem? - perguntou Anna num tom suave.

O rapaz fez que sim com a cabeça e começou a tossir como se estivesse a sufocar. - tom - disse Anna, apertando-lhe o braço. - Ele está a sufocar.

Thomas apertou a mão de Paul, enquanto este tossia, até que o espasmo acabou.

- Vai ficar bem. És teimoso, não és? És um lutador. Paul esforçou-se por sorrir e agarrou com força a mão do pai. tom sorriu para Anna.

- Na coragem, sai à mãe. - tom inclinou-se e disse ao ouvido do rapaz: - Vamos levar-te já para o hospital, não te preocupes. - Enquanto falava, os carros de bombeiros e a ambulância começaram a atravessar a propriedade bem cuidada dos Stewarts.

Paul abanou a cabeça e fechou os olhos, vermelhos e inchados das lágrimas e do fumo.

- Em que é que ele sairá ao pai? - perguntou Tom, com um suspiro de desânimo, observando o rosto pálido do filho.

Anna pôs o braço em volta dele, enquanto via o filho respirar regularmente.

Em tudo - disse, enternecida. - Em tudo. 

 

                                                                                Patrícia MacDonald 

 

 

                      

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