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— Lady Hawksworth, o seu marido não está morto.
Lara encarou James Young sem pestanejar. Talvez não tivesse ouvido corretamente o agente imobiliário ou talvez ele tivesse estado a beber, apesar de nunca o ter conhecido como apreciador de bebidas. Era também possível que tivesse desenvolvido uma ligeira loucura por trabalhar ao serviço dos atuais Lorde e Lady Hawksworth. Isto porque, se lhes dessem tempo, estes dois poderiam levar qualquer um à loucura.
— Eu sei que é um grande choque para todos - prosseguiu Young com sinceridade. Por detrás dos óculos, olhava para Lara com uma expressão de preocupação. — Especialmente para si, minha senhora.
Se as notícias tivessem vindo de uma fonte menos segura, Lara teria as rejeitado imediatamente. Porém, James Young era um homem cauteloso e fiável, que tinha servido à família Hawksworth pelo menos durante uma década. Desde a morte do seu marido, ele tinha feito um excelente trabalho na gestão dos fundos resultantes das suas propriedades. apesar de o dinheiro a administrar ser muito pouco.
Arthur, Lorde Hawksworth, e a sua mulher Janet, olhavam Young como se também eles duvidassem da sua sanidade mental. Formavam um par ideal, ambos loiros, altos e distintos. Embora tivessem dois filhos, as crianças tinham sido enviadas para Eton e muito raramente as viam ou se referiam a elas. À primeira vista, Arthur e Janet pareciam preocupar-se unicamente em desfrutar da sua riqueza e posição social, só recentemente adquiridas, e tão ostensivamente quanto possível.
— Absurdo! — Exclamou Arthur. — Como se atreve a apresentar-se diante de mim com tal tolice? Explique-se imediatamente.
Muito bem, senhor — respondeu Young. — Ontem recebi a informação de que uma fragata chegou recentemente a Londres com um insólito passageiro. Parece que ele tem uma inexplicável semelhança com o falecido conde - olhou respeitosamente para Lara antes de prosseguir. — Ele afirma ser Lorde Hawksworth.
Arthur explodiu com desprezo, totalmente cético. O seu rosto magro, marcado com rugas profundas de cinismo, tornou-se intensamente vermelho. A ponta do seu longo nariz contraiu-se com fúria.
— Isso é um ultraje! Que tipo de brincadeira é esta? Hawksworth morreu há mais de um ano. É impossível que ele possa ter sobrevivido ao naufrágio do barco que o trazia de Madrasta{1}. Meu Deus, o barco partiu-se literalmente ao meio! Todos os que estavam a bordo desapareceram. Está a dizer-me que o meu sobrinho poderá de alguma forma ter sobrevivido? Esse homem deve ser um lunático para pensar que qualquer um de nós acreditaria nele.
Os lábios magros de Janet contraíram-se.
— Rapidamente se demonstrará que ele não é mais do que um impostor — disse com rispidez, enquanto alisava as pontas da faixa Vandyke que adornava o corpete e a cintura do vestido de seda verde-esmeralda.
Indiferente à furiosa manifestação dos Crossland, Young aproximou-se da viúva. Larissa estava perto da janela, sentada numa cadeira de braços de madeira com relevos decorativos, e o seu olhar fixava-se no tapete que cobria o chão. Como tudo o mais que existia em Hawksworth Hall, o tapete persa era de uma suntuosidade que roçava o mau gosto, bordado com um desenho espetacular de flores surrealistas a cair de uma jarra de estilo chinês. A ponta gasta de um sapato de couro negro apareceu por debaixo da bainha do vestido enlutado de Larissa à medida que, distraída, seguia a borda de uma flor escarlate com o pé. Parecia perdida em recordações, não notando a aproximação de Young até ele se chegar junto dela. Endireitou-se bruscamente, como uma aluna surpreendida numa situação reprovável e ergueu o olhar para ele.
Até mesmo no seu vestido de bombazina escura, tão fechado e modesto como o hábito de uma freira, Larissa Crossland possuía uma beleza delicada e elegante. Com o cabelo escuro e espesso, sugerindo sempre que o penteado se iria desmanchar, e de olhos verdes-pálidos e sedutores, ela era de uma beleza invulgar e até um pouco perturbadora. No entanto, a sua aparência despertava pouca paixão. Era admirada frequentemente mas nunca era perseguida... nunca era cortejada ou desejada. Talvez se devesse ao modo como usava a boa disposição como arma, se tal fosse de todo possível, o que mantinha todas as pessoas à distância.
Para muitos dos habitantes da cidade de Market Hill, Lara era uma figura quase sagrada. Uma mulher com o seu aspecto e posição social poderia ter conseguido agarrar um segundo marido, contudo ela tinha preferido ficar ali e dedicar-se a obras de beneficência. Ela era infalivelmente gentil e compassiva, e estendia a sua generosidade ao nobre e ao mendigo da mesma forma. Young nunca tinha ouvido Lady Hawksworth proferir uma só palavra indelicada sobre alguém, nem sobre o seu marido que a tinha praticamente abandonado ou sobre os seus parentes que a tratavam com uma mesquinhez vergonhosa.
Mas apesar da sua aparente serenidade, havia algo perturbador nos seus olhos verdes translúcidos. Uma certa inquietação silenciosa que sugeria emoções e pensamentos que ela jamais se atreveu a manifestar. Na opinião de Young, Larissa tinha-se dado por satisfeita ao viver indiretamente através da vida das pessoas que a rodeavam. Dizia-se com frequência que o que ela precisava era de um homem seu, porém ninguém parecia capaz de pensar num cavalheiro que lhe fosse adequado. Isso era sem dúvida positivo, se acabasse por demonstrar que o falecido conde estava realmente vivo.
— Minha senhora — murmurou Young em tom de desculpa, — não a queria perturbar. Mas eu senti que quereria ser imediatamente informada sobre qualquer assunto relacionado com o falecido conde.
— Existe alguma possibilidade de que seja verdade? — sussurrou Lara, com o seu rosto turvado de preocupação.
— Eu não sei - foi à resposta cuidadosa de Young. — Como nunca se encontrou o corpo do conde, suponho que existe a possibilidade de ele...
— É claro que não é verdade! — Exclamou Arthur. — Os dois perderam o juízo? — Passou rapidamente à frente de Young e, assumindo uma expressão protetora, apoiou a mão no ombro estreito de Lara. — Como ousa este salafrário fazer a senhora Hawksworth passar por tal tormento! — protestou com toda a falsa piedade que conseguiu mostrar.
— Eu estou bem - interrompeu Lara, que se pôs rígida quando ele a tocou. A tez suave enrugou-se com o franzir de sobrancelha. Libertou-se da mão dele e afastou-se para a janela, ansiando escapar daquele salão demasiado enfeitado. As paredes estavam cobertas com uma seda rosa-brilhante e mostravam adornos pesados e dourados, e os cantos tinham vasos de palmeiras exóticas. Dava a impressão de que cada centímetro livre estava preenchido por uma coleção do que Janet chamava vidrinhos, composições de pássaros e árvores de vidro protegidas por cúpulas transparentes.
— Cuidado! — Exclamou Janet abruptamente, quando as saias pesadas de Lara roçaram num aquário de vidro colocado numa base de mogno, fazendo-o balançar.
Lara olhou para baixo para o par solitário de peixes dourados a nadar n0 aquário, e olhou para trás, para o estreito rosto alterado de Janet.
— Eles não deveriam estar tão próximos da janela — murmurou Lara para si, — nem sequer gostam de muita luz.
Janet soltou uma gargalhada de desprezo.
— Deve saber mais do que eu, com certeza — disse ela com sarcasmo, e Lara entendeu que ela iria fazer questão em manter os peixes exatamente onde eles estavam.
Suspirando, Lara desviou o seu olhar para os campos que rodeavam Hawksworth Hall. A terra que se estendia da antiga muralha normanda estava salpicada de arvoredo, de castanheiros e carvalhos, sendo atravessada por um rio largo, com alguma corrente. O mesmo ri0 proporcionava um fluxo para um moinho de água e para um canal de navegação da cidade mais próxima, Market Hill, um porto próspero e movimentado.
Um bando de patos selvagens pousou sobre o lago artificial que existia à frente da mansão, interrompendo o majestoso percurso de um par de cisnes. Para além do lago existia uma estrada que conduzia à cidade, e uma ponte de pedra antiga conhecida pelos habitantes como a ponte dos malditos. A lenda dizia que o próprio diabo tinha colocado lá a ponte com a intenção expressa de colher a alma do primeiro homem que a atravessasse. Segundo essa lenda, o único homem que ousou pôr o pé na ponte foi um antepassado dos Crossland, que tinha desafiado o diabo e se tinha recusado a entregar a alma. O diabo lançou então uma maldição a todos os seus descendentes, para que eles tivessem sempre dificuldade em gerar filhos varões que continuassem a linhagem.
Lara quase acreditava na lenda. Em cada geração de Crossland tinham nascido muito poucos filhos e, na sua maior parte, os varões tinham morrido relativamente jovens. Incluindo Hunter.
Com um triste sorriso no rosto, Lara obrigou-se a regressar ao presente e virou-se para o senhor Young. Ele era um homem baixo e magro, e os seus rostos encontravam-se quase à mesma altura.
— Se este estranho for realmente o meu marido — perguntou ela calmamente - porque é que ele não regressou antes?
De acordo com a história dele, esteve à deriva em alto mar durante dois dias depois do naufrágio, até que foi finalmente recolhido por um barco de pesca que se dirigia para a Cidade do Cabo. Ele ficou ferido no desastre e não se recordava de quem era, nem sequer sabia o seu nome. Poucos meses depois, recuperou a memória e embarcou rumo a Inglaterra.
Arthur resmungou com desprezo.
Não se lembrava da sua própria identidade? Nunca ouvi algo semelhante.
— Aparentemente, é possível — respondeu o agente. — Eu tenho discutido o assunto com o doutor Slade, o médico da família, e ele confirmou-me que, embora raros, existem mais casos como este.
— Como é interessante — disse Arthur sarcasticamente. — Não me diga que dá algum tipo de credibilidade a esta fraude, Young?
— Nenhum de nós pode determinar qual é a verdade até que este estranho seja interrogado pelas pessoas que conheceram bem Hawksworth.
— Senhor Young — disse Lara, dissimulando bem a inquietação que a perturbava, — o senhor estava familiarizado com o meu marido desde há muitos anos. Eu apreciaria muito que fosse a Londres e conhecesse esse homem. Mesmo que não se trate do falecido conde, ele poderá ter problemas e talvez precise de ajuda. Alguma coisa deverá ser feita por ele.
— Que atitude tão sua, Lady Hawksworth - observou Young. — Ouso até dizer que a maior parte das pessoas não pensaria sequer em ajudar um estranho que os está a tentar enganar. É realmente muito bondosa.
— Sim — Concordou Arthur secamente, — a viúva do meu sobrinho é a padroeira dos mendigos, órfãos e cães abandonados. Não resiste a dar tudo o que tem a outros.
— Por isso é que nós não achamos apropriado dar a anuidade prevista a Lara — Adiantou Janet. — O dinheiro extra só fugiria dos seus dedos, já que até a mais pequena criança seria capaz de se aproveitar dela. Ela deu tudo o que possuía àquele orfanato esfarrapado.
Lara sentiu que lhe ardia o rosto, ao ouvir aqueles comentários maldosos.
— Os órfãos necessitam de dinheiro muito mais do que eu — disse ela. — Precisam de muitas coisas que outros lhes podem facultar com toda a facilidade.
— Eu assumi a tarefa de preservar a fortuna familiar para as gerações futuras — murmurou Arthur. — Não para a esbanjar em crianças sem pais.
Muito bem - interveio Young de imediato, interrompendo a discussão acesa. — Se todos concordarem, partirei para Londres com o doutor Slade que conhece o falecido conde desde o seu nascimento. Lá, veremos se há de fato alguma verdade nos argumentos deste homem — Dirigiu a Lara um sorriso tranquilizador e adiantou. — Não se aflija, minha senhora. Eu estou certo de que tudo correrá pelo melhor.
Aliviada por escapar à presença dos Hawksworth, Lara seguiu para a velha casa do couteiro, que se encontrava a uma certa distância da muralha junto à margem do rio ladeada por salgueiros. O estilo da casa já se distanciava muito da construção original isabelina{2}, revestida a madeira, tendo sido outrora alojamento para hóspedes e familiares que estivessem de visita. Infelizmente, o interior tinha sido destruído por um fogo no ano anterior, quando um visitante descuidado derrubou um candeeiro a óleo e incendiou tudo.
Nem Arthur nem Janet viram algum motivo para restaurar a casa e decidiram que uma casa assim desocupada seria suficiente para as necessidades de Lara. Ela poderia ter-se posto à mercê da generosidade de outros familiares, que lhe poderiam oferecer alojamentos bem mais confortáveis, ou até mesmo aceitar o convite da sogra para a acompanhar nas suas viagens, mas Lara valorizava muitíssimo a sua privacidade. Era melhor permanecer próximo dos ambientes que lhe eram mais familiares e amigos, apesar do desconforto da casa.
A casa de pedra era escura e úmida, e estava impregnada de um forte cheiro a mofo que nem limpando a fundo se poderia eliminar. A luz solar raramente entrava pela única janela de batente. Lara tinha-se esforçado por tornar o lugar mais habitável cobrindo uma parede com uma colcha de patchwork{3}, e encheu o espaço com alguma mobília que já não era necessária em Hawksworth Hall. A cadeira que estava junto ao fogão-de-sala estava tapada com uma manta encarnada tricotada por uma das meninas mais velhas do orfanato. Uma figura de uma salamandra esculpida em madeira foi colocada perto do forno, um presente de um idoso da cidade, que tinha assegurado que a iria proteger de qualquer mal.
Refugiando-se um pouco na solidão, Lara acendeu uma vela de sebo, ficando de pé junto à luz que flamejava e esfumava. De repente, sentiu um violento calafrio percorrer o seu corpo.
Hunter... vivo. Não podia ser verdade, claro, mas só de pensar na ideia a deixava desassossegada. Foi para a sua estreita cama, ajoelhou- se no chão e procurou debaixo das cordas que apoiavam o colchão. Tirou um pacote embrulhado em pano e desembrulhou-o, revelando um retrato emoldurado do seu falecido marido.
Arthur e Janet tinham-lhe oferecido o quadro numa encenação de generosidade, mas Lara sabia que eles estavam ansiosos por se libertarem de tudo o que os fizesse lembrar o homem que tinha ostentado o título de conde antes deles. Ela também não queria o retrato, mas aceitou-o de qualquer modo, pois intimamente reconhecia que Hunter fazia parte do seu passado. Ele tinha mudado o rumo da sua vida. Talvez um dia quando o tempo amaciasse as suas recordações, ela pendurasse o retrato à vista de todos.
A pintura representava um homem de estrutura óssea larga e encorpado na companhia dos seus cães, uma mão enorme agarrava descontraidamente a sua arma favorita. Hunter tinha sido bem-parecido, elegante, com um cabelo grosso castanho-dourado, intensos olhos castanhos e tinha uma expressão arrogante permanente.
Havia já três anos que Hunter tinha embarcado para a índia numa missão sem diplomática. Como acionista secundário na Companhia das índias Orientais e possuidor de algumas influências políticas, tinha sido designado assessor dos administradores da Companhia.
Na realidade, Hunter foi um dos muitos oportunistas ansiosos por se unir à multidão de ociosos e libertinos em Calcutá. Eles viveram lá como reis, divertindo-se em orgias e em festas intermináveis. Dizia-se que cada casa possuía, no mínimo, cem criados que cuidavam de todos os pormenores necessários ao conforto dos seus amos. Para, além disso, a Índia era o paraíso de um desportista, abundando já os jogos exóticos, algo irresistível para um homem como Hunter.
Ao recordar-se do entusiasmo do seu marido antes da partida, Lara sorriu com tristeza. Hunter estava muitíssimo ansioso por a deixar. Tinha começado a cansar-se da Inglaterra, e também do seu casamento. Não havia qualquer dúvida de que ele e Lara não formavam o par ideal.
Uma esposa, disse-lhe Hunter uma vez, era um incomodo necessário, útil apenas para poder ter crianças. Ao ver que Lara não conseguia conceber, sentiu-se profundamente ofendido. Para um homem que se orgulhava da sua força e virilidade, a ausência de crianças era algo difícil de suportar.
O olhar de Lara pousou sobre a cama, e sentiu formar-se um nó no estômago ao recordar-se das visitas noturnas de Hunter, o seu corpo pesado a esmagar o dela, a invasão dolorosa que parecia nunca terminar. Quase pareceu um ato de clemência quando Hunter começou a evitar a sua cama e a visitar outras mulheres para satisfazer as suas necessidades. Lara nunca tinha conhecido algo com tanta força física e tanta vitalidade. Poderia quase acreditar que ele tinha resistido àquele violento naufrágio ao qual mais ninguém tinha conseguido sobreviver.
Hunter dominava de tal forma todos os que o rodeavam que, durante os dois anos que viveram juntos, Lara sentia que o seu espírito murchava sob a sua sombra. Quando ele partiu para a índia, ela sentiu-se agradecida. Abandonada à sua própria sorte, Lara logo se dedicou ao orfanato local, oferecendo todo o seu tempo e atenção a melhorar a vida das crianças que lá viviam. A sensação de ser útil era tão gratificante que de imediato encontrou outros projetos com que se ocupar, como visitar os doentes e os idosos, organizar festas de caridade e até fazer um pouco de casamenteira. Ao saber da morte de Hunter, entristeceu-se, mas não sentiu a sua falta.
E nem sequer, pensou ela com alguma culpa, queria que ele regressasse.
Nos três dias que se seguiram, não soube nada do senhor Young nem dos Hawksworth. Lara esforçou-se em prosseguir com as suas atividades do costume, mas as notícias já tinham percorrido toda a cidade de Market Hill, espalhadas pelo mexerico entusiasta dos criados de Hawksworth Hall.
A irmã, Rachel, Lady Lonsdale, foi a primeira a visitá-la. A carruagem lacada a preto parou a meio da estrada que seguia para a mansão e dela saiu a figura delgada de Rachel, que avançou sozinha pelo caminho até à casa do couteiro. Rachel era a irmã mais nova de Lara mas dava a impressão de ser a mais velha, pois era mais alta e possuía uma doce serenidade que lhe infundia um certo ar de maturidade.
Elas tinham sido consideradas como as irmãs mais atraentes de Lincolnshire, mas Lara sabia que a beleza de Rachel eclipsava a sua. A irmã possuía feições perfeitamente clássicas: olhos grandes, uma boca pequena e fina, e nariz ligeiramente arrebitado. Em contraste, o rosto de Lara era redondo em vez de oval, a boca era muito grande, o cabelo escuro e liso, mostrando muita resistência a ser ondulado pelos rolos, estando sempre a deslizar para fora dos ganchos.
Lara saiu para receber a irmã, acolhendo-a com grande entusiasmo. A sua irmã Rachel estava luxuosamente vestida, os cabelos castanhos penteados para trás, deixando a descoberto o seu delicado bico-de-viúva{4}. Uma doce fragrância a violetas envolvia a sua pele e o seu cabelo.
— Querida Larissa — disse Rachel, enquanto percorria o olhar pela casa, — pela milésima vez, porque não vem viver comigo e com o Terrell? Há uma dúzia de quartos vazios, e lá estaria muito mais confortável.
— Obrigada, Rachel — Lara abraçou a irmã, — mas eu nunca poderia ficar debaixo do mesmo teto que o seu marido. Não posso fingir que tolero um homem que não a trata com correção. E tenho a certeza de que Lorde Lonsdale sente por mim o mesmo desafeto.
— Ele não é assim tão mau...
— É um marido abominável, por mais que me tente dar a entender o contrário. Nada importa a Lorde Lonsdale a não ser ele mesmo, nem nunca importará.
Rachel franziu a sobrancelha e sentou-se junto ao fogão de sala.
— Por vezes penso que a única pessoa, homem ou mulher, de que Terrell alguma vez gostou verdadeiramente foi de Lorde Hawksworth.
Eles são peça do mesmo pano — Concordou Lara exceto no fato de, pelo menos, Hunter nunca me ter levantado a mão.
— Foi só uma vez — protestou Rachel. — Eu nunca lhe deveria ter contado isso.
— Não seria necessário que me dissesse. A contusão no seu rosto era bastante evidente.
Ambas se mantiveram em silêncio, recordando o episódio ocorrido dois meses antes, quando Lorde Lonsdale bateu em Rachel durante uma discussão. As marcas na face e no olho de Rachel demoraram várias semanas a desaparecer, obrigando-a a fechar-se em casa até que pudesse sair sem levantar suspeitas. Agora Rachel afirmava que Lorde Lonsdale lamentava profundamente ter perdido o controle. Ela tinha-o perdoado, disse, e desejava que Lara fizesse o mesmo.
Mas Lara não poderia perdoar alguém que tivesse magoado a irmã, e suspeitava que este triste episódio iria voltar a acontecer. Aquilo quase a fez desejar que Hunter estivesse realmente vivo. Apesar das suas falhas, jamais teria aprovado que se batesse numa mulher. Hunter tornaria claro a Lorde Lonsdale que tal comportamento era inaceitável. E Lonsdale levaria em consideração a sua opinião já que Hunter era uma das poucas pessoas na terra que ele respeitava.
— Eu não vim aqui para falar sobre isso, Larissa — Rachel olhava para a irmã com carinho e preocupação enquanto esta se sentava num banco forrado. — Inteirei-me das notícias sobre Lorde Hawksworth. Diga-me... ele está realmente de regresso?
Lara negou com a cabeça.
— Não, claro que não. Trata-se de algum doido, em Londres, que diz ser meu marido. O senhor Young e o doutor Slade foram vê-lo, e eu tenho a certeza de que o confinarão imediatamente ao manicômio de Bedlam ou à prisão de Newgate, tratando-se ele de um louco ou de um criminoso.
— Então não há nenhuma possibilidade de que Lorde Hawksworth esteja vivo? - lendo a resposta no rosto de Lara, Rachel suspirou. — Lamento dizê-lo, mas sinto-me aliviada. Eu sei que o seu casamento não era bom. O que mais desejo é que seja feliz.
— Eu desejo o mesmo para si — disse Lara com sinceridade. — E está em circunstâncias bem piores que as que eu jamais suportei, Rachel. Hunter estava longe de ser o marido ideal, mas ele e eu demo-nos bem bastante, excetuando - parou e corou subitamente.
Não lhe era fácil falar de assuntos íntimos. Rachel e Lara receberam uma educação puritana de uns pais afetuosos, mas distantes. A ambas coube a tarefa de aprender sobre as relações físicas nas suas respectivas noites de núpcias. Para Lara, a descoberta tinha sido desagradável.
Rachel parecia ler os pensamentos dela, como sempre.
— Oh, Lara — murmurou ela, enquanto corava também, — parece-me que Lorde Hawksworth não deve ter sido tão cuidadoso com você como deveria — Baixou a voz e continuou. — Na verdade, fazer amor não é algo assim tão terrível. Houve ocasiões com Terrell, no início do nosso casamento, em que eu de fato achei bastante agradável. Ultimamente, claro, não é o mesmo. Mas eu ainda me lembro como era outrora.
— Agradável? — Lara encarou-a estupefata. — Pela primeira vez, consegue impressionar-me. Não compreendo como poderá ter gostado de algo assim tão humilhante e doloroso, a menos que esteja a tentar pregar-me uma partida de mau gosto.
— Não houve ocasiões em que Lorde Hawksworth a beijou, a abraçou com firmeza e se sentiu quente e... bem, feminina?
Lara, perplexa, permaneceu em silêncio. Ela não conseguia compreender como fazer amor, um termo irônico para algo tão repulsivo, poderia não ser doloroso.
— Não — respondeu, pensativamente. — Não me recordo de me ter alguma vez sentido assim. Hunter não era muito dado a beijos e abraços. E quando tudo acabava, eu ficava bem contente.
O rosto de Rachel suavizou-se com compaixão.
— Ele alguma vez disse que a amava?
Com esta pergunta, Lara não conseguiu deixar de soltar uma gargalhada seca.
— Meu Deus, não, Hunter nunca admitiria tal coisa - um sorriso triste franziu os seus lábios. — Ele não me amava. Devia ter-se casado com outra mulher e não comigo. Creio que ele lamentava frequentemente o seu erro.
— Nunca me contou isso — Exclamou Rachel. — Quem é ela?
— Lady Carlysle - resmungou, vagamente surpreendida ao verificar que com todo este tempo, o nome ainda lhe causava um gosto amargo na boca.
— Como é que ela é? Já a conheceu?
— Sim, já a vi em algumas situações. Hunter e ela eram discretos, mas era óbvio que os dois tinham um prazer enorme na companhia um do outro. Eles gostavam das mesmas coisas — Cavalos, montar, caçar... Eu não tenho dúvidas de que ele a visitava frequentemente em privado, mesmo depois de nós nos termos casado.
— Porque é que Lorde Hawksworth não se casou antes com Lady Carlysle?
Lara abraçou os joelhos e baixou o queixo, adotando inconscientemente a forma de um ovo.
— Eu era muito mais nova, e ela já teria passado a idade ideal para engravidar. Hunter queria um herdeiro... e suponho que ele pensou que me poderia moldar ao seu gosto. Eu tentei agradar-lhe. Mas, infelizmente, não fui capaz de lhe dar a única coisa que ele pretendia de mim.
— Uma criança — murmurou Rachel. Pela sua expressão, Lara sabia que Rachel estava a pensar no seu próprio aborto ocorrido poucos meses antes. — Nenhuma de nós teve muito sucesso nesse aspecto, não é verdade?
O rosto de Lara corou fortemente à medida que continuava.
P — elo menos conseguiu demonstrar que pode conceber. Com a ajuda de Deus, algum dia terá um filho. Eu, pelo contrário, tentei de tudo: bebi tônicos, consultei cartas astrais e submeti-me a vários esforços ridículos e humilhantes. Nada deu resultado. Quando Hunter finalmente partiu em viagem para a índia, alegrei-me por ele se ter ido embora. Era uma bênção dormir sozinha e não ter de questionar todas as noites, se ouviria os seus passos a chegar à minha porta — Lara estremeceu com as recordações que assombravam a sua mente. — Não gosto de dormir com um homem. Não quero voltar a fazê-lo nunca mais.
— Pobre Larissa — murmurou Rachel. — Deveria ter-me contado isso antes. Mostra-se sempre tão ávida por resolver os problemas dos outros, e tão relutante em discutir os seus.
— Mesmo que lhe tivesse contado, nada mudaria — disse Lara, fazendo um esforço para sorrir.
— Se dependesse de mim, teria escolhido alguém muito mais adequado para si do que Lorde Hawksworth. Penso que a Mamãe e o Papai ficaram tão deslumbrados com a sua posição social e com a sua riqueza que negligenciaram o fato de que os dois poderiam não combinar.
— Não foi culpa deles — disse Lara, — a culpa foi minha... Eu realmente não sirvo para ser mulher de ninguém. Nunca deveria ter me casado, sou muito mais feliz vivendo sozinha.
— Nenhuma de nós encontrou o par que esperava, não acha? — Rachel refletiu com triste ironia. — O Terrell com os seus humores, e o palerma do seu marido... Não são precisamente príncipes de um conto de fadas.
— Pelo menos nós vivemos perto uma da outra — Comentou Lara, tentando dispersar a nuvem de arrependimento que se abatia sobre as duas. — Isso torna tudo mais suportável, pelo menos para mim.
— Para mim também — Rachel levantou-se da cadeira para abraçar a irmã com força.
— Eu vou rezar para que, de hoje em diante, só lhe aconteçam coisas boas, minha querida. E que Lorde Hawksworth descanse em paz, para que depressa possa encontrar um homem que a ame como merece ser amada.
— Não reze por isso - pediu Lara, com um alarme meio fingido, meio real. — Eu não quero um homem. Peça antes pelas crianças do orfanato, e pela pobre senhora Lumley que está a ficar cega, e pelo reumatismo do senhor Peacham, e...
— Lá está a sua interminável lista de desgraçados! — Exclamou Rachel sorrindo ternamente para ela. — Muito bem, eu também rezarei por eles.
Quando se aventurou a ir até à cidade, Lara foi completamente inundada por perguntas, já que toda a gente exigia saber pormenores sobre o regresso do seu marido do além. Por mais que ela insistisse que a aparição de Lorde Hawksworth em Londres era provavelmente uma brincadeira, os cidadãos de Market Hill queriam apenas acreditar no contrário.
— Olha, se não é a mulher mais sortuda de Market Hill! — disse o vendedor de queijo assim que Lara entrou na loja, uma das muitas lojas da avenida principal da cidade de Maingate. Lá dentro, o ar estava impregnado de um cheiro forte e agradável a leite, um cheiro que flutuava das fatias e rodas de queijos empilhadas nas mesas de madeira.
Sorrindo sem entusiasmo, Lara pôs o seu cesto de salgueiro numa mesa comprida e esperou que ele preparasse o queijo inteiro que ela vinha buscar todas as semanas para o orfanato.
— Eu sou afortunada por muitas razões, senhor Wilkins — respondeu, — mas se o senhor se está a referir ao rumor sobre o meu falecido marido...
— Que maravilha, voltar a recuperar o seu lar - interrompeu entusiasmado o vendedor com o rosto jovial, com um grande nariz, e muito bem-humorado. — Novamente, a senhora da mansão.
Ele colocou o enorme queijo dentro do cesto. O seu coalho macio tinha sido salgado, apertado, embrulhado em musselina e mergulhado em cera para assegurar um sabor leve e fresco.
— Obrigada, senhor Wilkins — respondeu Lara com um tom de voz neutro, — mas devo dizer-lhe que tenho a certeza de que a história é falsa. Lorde Hawksworth não vai voltar.
As senhoras Wither, duas irmãs solteironas, entraram na loja e riram com prazer ao verem Lara. Os gorros que cobriam as suas pequenas cabeças grisalhas eram iguais e decorados com flores, e moviam-se num corrupio e numa troca de mexericos acelerada. Uma delas aproximou-se de Lara e apoiou a mão frágil e cheia de veias na sua manga.
— Minha querida, soubemos das notícias esta manhã. Estamos as duas tão felizes por si, realmente felizes...
— Obrigada, mas a história não é verdadeira - insistiu Lara. — O homem que reivindica ser meu marido é sem dúvida nenhuma um impostor. Seria um milagre se o conde tivesse conseguido sobreviver ao naufrágio.
— Penso que não deve perder as esperanças a não ser que lhe digam o contrário — disse o senhor Wilkins quando a sua robusta esposa Glenda apareceu vinda das traseiras da loja. Correu rapidamente para o lado de fora do balcão e colocou um molho de margaridas num dos lados do cesto de Lara.
— Se há alguém que merece um milagre, minha senhora — disse Glenda com alegria, — é a senhora.
Todos julgavam que Lara estava muito esperançada com as notícias e que desejava o regresso de Hunter. Corada e incomodada, Lara aceitou com uma certa culpa os bons votos deles e saiu da loja apressadamente.
Começou por fazer uma rápida caminhada ao longo da margem sinuosa do rio, passou pelo pequeno largo da igreja e por toda a sucessão de casas de paredes caiadas.
O seu destino era o orfanato, um solar em estado deteriorado situado no lado oriental da cidade, recuado atrás de uma vedação de pinho e carvalho. Era um edifício imponente construído em pedra, azulejos azuis e telhas esmaltadas de azul. O método utilizado para fabricar estas telhas especiais resistentes ao gelo, era apenas conhecido pelo oleiro da aldeia, que um dia descobriu a receita acidentalmente e jurou que a levaria com ele para o túmulo.
Quando entrou no edifício, Lara já arfava com o esforço de caminhar aquela longa distância com o cesto no braço. Antigamente, este era um solar magnífico, mas depois da morte do último ocupante, o local foi abandonado até se arruinar quase por completo. Com várias doações de particulares, vindas dos habitantes da cidade, reparou-se a estrutura até que se pudesse considerá-lo habitável para albergar duas dúzias de crianças. Os donativos que se seguiram proporcionaram o pagamento dos salários anuais de uns quantos professores.
Lara sofria ao lembrar-se da fortuna que já tivera à sua disposição. Tanto que ela poderia agora fazer com aquele dinheiro! Pensava na quantidade de melhoramentos que queria fazer no orfanato. Chegou inclusivamente a engolir o seu orgulho e perguntar a Arthur e Janet se eles estavam dispostos fazendo uma doação para as crianças, mas foi secamente repelida. O novo conde e a nova condessa de Hawksworth tinham a firme convicção de que os órfãos deviam aprender que o mundo era um lugar cruel, e que deveriam abrir caminho pelos seus próprios meios.
Suspirando, Lara entrou no edifício e pousou o cesto junto à porta de entrada. Tremia-lhe o braço de o ter carregado. Pelo canto do olho, viu uma cabeça com caracóis castanhos de alguém que se escondia agachado num canto. Só podia ser Charles, pensou ela, um menino rebelde de onze anos de idade que procurava constantemente novas formas de causar problemas.
— Eu gostava que alguém me ajudasse a levar este cesto para a cozinha — disse ela em voz alta e Charles apareceu imediatamente.
— Trouxe-o desde tão longe até aqui — respondeu ele insolentemente.
Lara sorriu e olhou para o seu pequeno rosto sardento, de olhos azuis.
— Não sejas refilão, Charles. Ajuda-me com o cesto, e a caminho da cozinha podes contar-me porque é que não estás na aula, esta manhã.
A professora Thornton mandou-me sair da aula — respondeu ele enquanto levantava um dos lados do cesto e olhava fixamente para o queijo que estava lá dentro. Levaram-no juntos pelo corredor onde os seus passos eram abafados pelo tapete gasto. — Eu estava fazendo muito barulho e não prestava atenção à professora.
— E porquê, Charles?
— Acabei os meus exercícios de matemática antes de todos os outros. Porque é que tenho de ficar sentado e quieto sem fazer nada se sou mais esperto que os outros?
— Estou a entender — respondeu Lara, enquanto refletia e admitia que aquilo era provavelmente verdade.
Charles era uma criança inteligente que precisava de mais acompanhamento do que aquele que a escola poderia oferecer.
— Eu vou falar com a professora Thornton. Até que isso aconteça, tens de tentar portar-te bem.
Chegaram à cozinha onde a cozinheira, a senhora Davies, a cumprimentou com um sorriso. A cara redonda da senhora Davies estava encarnada do calor do fogão, onde uma panela grande de sopa estava a ser aquecida. Os seus olhos castanhos brilharam com curiosidade.
— Lady Hawksworth, ouvimos na cidade o rumor mais surpreendente...
— Não é verdade - interrompeu Lara com uma expressão sombria. — É simplesmente algum estranho perturbado que está convencido, ou que nos tenta convencer, que é o falecido conde. Se o meu marido tivesse sobrevivido, já teria regressado a casa muito mais cedo.
— Suponho que sim - reconheceu a senhora Davies com algum desapontamento. — Mas seria uma história muito romântica. Se não se incomodar com a minha opinião, minha senhora, eu acho que a senhora é ainda muito nova e bonita para ser viúva.
Lara sacudiu a cabeça e sorriu.
— Eu estou bastante satisfeita com minha situação atual, senhora Davies.
— Pois eu quero que ele continue morto — disse Charles fazendo com que a senhora Davies se engasgasse de horror.
— Oh, miúdo, que diabinho que você és! — Exclamou a cozinheira.
Lara baixou-se até à altura da criança, olhou-o nos olhos e acariciou lhe o cabelo despenteado.
— Porque é que dizes isso, Charles?
— Se ele for o conde, a senhora não virá mais aqui. Ele vai obrigá-la a ficar em casa para fazer tudo o que ele mandar.
— Charles, isso não é verdade — respondeu Lara, séria. — Mas não há nenhuma razão para discutirmos isso. O conde morreu... E as pessoas não regressam da morte.
O pó da estrada cobria as saias de Lara quando ela regressou a Hawksworth Hall, passando por quintas arrendadas e delimitadas com paliçadas feitas de ramos e barro. O Sol brilhava na água que corria por debaixo da ponte dos malditos. Quando Lara se aproximava da sua humilde casa de pedra, ouviu alguém a chamar o seu nome. Ao ver a sua antiga criada de quarto, Naomi, a correr vinda da mansão e a levantar as saias para não tropeçar, parou surpreendida.
— Naomi, não deveria correr assim — Exclamou Lara. — Ainda pode cair e magoar-se.
A criada rechonchuda ofegava devido ao esforço e à excitação febril que a dominava.
— Lady Hawksworth — Exclamou ela, enquanto tentava retomar o fôlego. — Oh, minha senhora... O senhor Young pediu-me que lhe viesse dizer... ele está aqui... no castelo... eles estão todos aqui, e... deve vir imediatamente.
Confusa, Lara piscou os olhos.
— Quem é que está aqui? O senhor Young mandou-me chamar?
— Sim, eles trouxeram-no de Londres.
— Ele? — perguntou Lara com a voz alterada.
— Sim, minha senhora. O conde regressou a casa.
Capítulo 2
As palavras pareciam rodopiar e zumbir à volta de Lara como mosquitos. O conde regressou a casa, regressou a casa...
— Mas, não pode ser — sussurrou.
— Porque é que o senhor Young teria trazido o estranho para cá? Ela umedeceu os lábios ressequidos. Sentia a boca seca como pergaminho. Quando ela falou, a voz não parecia ser a sua.
— V... viste-o?
Perdendo a fala, a criada assentiu com a cabeça.
Lara olhou para o chão fixamente e, com grande esforço, tentou pronunciar algumas palavras que fossem coerentes.
— Você conheceu o meu marido, Naomi. Diz-me... o homem que está em Hawksworth Hall... — Elevando um olhar implorante à criada, foi incapaz de terminar a pergunta.
— Eu julgo que sim, minha senhora. Aliás, tenho certeza disso.
— Mas... o conde morreu — disse Lara entorpecida. — Ele afogou-se.
— Deixe-me acompanhá-la até ao castelo — disse Naomi, tomando-a pelo braço. — Está com mau aspecto e muito pálida. Nem admira, né todos os dias que um marido morto regressa pra mulher.
Lara soltou-se com alguma brusquidão.
— Por favor... Preciso ficar sozinha por alguns minutos. Quando eu estiver pronta, caminharei sozinha até à mansão.
— Sim, minha senhora. Irei então pedir-lhes para a aguardarem — Naomi olhou-a de relance com um ar preocupado e agitado, e retirou-se apressadamente pelo caminho que conduzia à mansão.
Lara entrou em casa, cambaleando. Foi até ao lavatório e deitou água morna na bacia de barro lascada. Lavou-se do pó e da transpiração da cara com gestos metódicos, a sua mente era um turbilhão de pensamentos. Nunca tinha estado numa situação tão insólita como esta. Ela sempre fora uma mulher prática. Não acreditava em milagres, nem sequer tinha alguma vez pedido um. E muito menos este.
Mas aquilo não era um milagre, lembrou-se Lara enquanto soltava o seu cabelo despenteado e o voltava a pentear e a enrolar atrás com os ganchos. As mãos tremiam e não obedeciam quando tentava pegar nos ganchos e no pente, até que pôr fim tudo caiu no chão.
O homem que a esperava em Hawksworth Hall não era Hunter. Era um desconhecido, e muito astuto, pois parecia que tinha conseguido convencer o senhor Young e o doutor Slade de que a sua reivindicação era verdadeira. Lara só tinha de manter a compostura, avaliá-lo por si mesma e assegurar perante os outros, que este homem não era com toda a certeza o seu marido. Assim o assunto dava-se por terminado. Para a ajudar a restabelecer, respirou fundo diversas vezes e continuou a colocar os ganchos desordenadamente no seu cabelo.
Ao contemplar-se ao espelho, um espelho quadrado do estilo Rainha Ana, que estava pendurado por cima da cômoda do seu quarto, parecia que a atmosfera tinha mudado, que o ar se tinha tornado mais pesado e sufocante. Dentro de casa reinava um silêncio tal que se poderia ouvir até o bater apressado do seu coração. Subitamente, pareceu-lhe ver algo no espelho, um movimento deliberado que a paralisou. Alguém entrou em casa.
Sentindo formigueiros na pele, Lara deixou-se ficar quieta num silêncio glacial, e viu aparecer no espelho uma nova imagem. O rosto bronzeado de um homem... cabelo castanho, curto, clareado pelo sol... olhos castanhos escuros... a boca dura e larga de que ela tão bem se recordava. Alto... peito e ombros largos... com tanto domínio e presença física que parecia que o quarto se encolhia à volta dele.
Lara deixou de respirar. Desejava fugir, gritar, desmaiar, mas parecia que se tinha transformado em pedra. Ele estava por detrás dela, e a sua cabeça e ombros sobressaíam quando comparados com a altura de Lara. Os seus olhares encontraram-se no espelho... Os olhos eram da mesma cor, mas contudo... Ele nunca tinha olhado para ela assim, com aquela intensidade, que queimava cada centímetro da sua pele. Era o olhar ávido de um predador.
Ela estremeceu de medo quando ele levantou suavemente as mãos e tocou no seu cabelo. Foi soltando, um a um, os ganchos daquele chumaço brilhante de cabelo escuro, e colocou-os na cômoda que tinha ao seu lado. Lara observava-o, tremendo a cada puxar leve do seu cabelo.
— Não é verdade — sussurrou.
— Não sou um fantasma, Lara — disse com a voz de Hunter, profunda e ligeiramente rouca.
Ela desviou o seu olhar do espelho e, tropeçando, voltou-se encarando-o.
Estava muito mais magro, esguio, quase pele e osso, fazendo com que se destacasse a notável proeminência dos seus músculos. Tinha a pele bronzeada, com um tom cobre brilhante que o tornava demasiado exótico para um inglês. A cor do seu cabelo tinha clareado, agora com uma mistura de tons castanhos e dourados.
— Eu não acreditei... — Lara ouviu a sua própria voz como se viesse de muito longe. Sentia uma grande pressão sobre o peito e o coração já não conseguia aguentar o seu ritmo acelerado. Embora ela respirasse profundamente, parecia que lhe faltava o ar. Uma densa névoa abateu-se sobre ela, cobrindo-a com sons e luzes, e Lara afundou-se rapidamente no abismo escuro que se abriu por baixo dela.
Hunter segurou-a enquanto ela caía. Sentia o corpo de Lara leve e viçoso nos seus braços, adaptando-se facilmente a eles. Levou-a até à estreita cama e sentou-se no colchão, acomodando-a no seu colo. A cabeça de Lara caiu para trás e revelou o seu pescoço de marfim, rodeado pelo tecido preto do vestido de luto. Ele admirava-a, cativado pela delicadeza do seu rosto. Já se tinha esquecido de como a pele de uma mulher poderia ser tão clara e fresca.
A boca em repouso mostrava-se macia e um pouco triste, como a expressão vulnerável de uma criança. Como era estranho olhar para uma viúva assim tão exposta... Ela possuía uma beleza tão delicada que o atraía enormemente. Desejava esta pequena e pura criatura, de mãos delicadas e boca abandonada. Com a fria premeditação que sempre o caracterizou, decidiu que a tomaria para si aceitando tudo o que essa decisão pudesse acarretar.
Lara abriu os olhos e encarou-o com uma expressão carregada, assombrada. Ele respondeu a este olhar de um modo inexpressivo, não permitindo que ela visse o seu íntimo e dirigiu-lhe um sorriso tranquilizador.
Ela porém, parecia não notar o sorriso e continuou a observá-lo sem pestanejar. E então uma suavidade estranha aflorou naqueles dois poços de um verde-translúcido, uma ternura curiosa, compassiva... Como se ele fosse uma alma perdida à procura de salvação. Ela aproximou-se do pescoço dele e tocou na extremidade de uma cicatriz grossa que desaparecia na raiz do seu cabelo. O roçar dos dedos de Lara incendiou um fogo dentro dele. A respiração acelerou e deixou-se ficar quieto. Como era possível que ela o olhasse daquela forma? Para ela, ele era apenas um desconhecido ou então o marido que detestava.
Perplexo e excitado pela compaixão que estava refletiva no rosto de Lara, lutou contra a louca tentação de mergulhar a cara no seu peito. Tirou-a apressadamente do seu colo colocou-se a uma distância segura e necessária entre ambos.
Pela primeira vez na sua vida, ele teve medo dos seus próprios sentimentos... Ele, que sempre se orgulhara do controle de aço que exercia sobre si mesmo.
— Quem é o senhor? — perguntou ela suavemente.
— Sabe muito bem quem sou — murmurou ele.
Lara negou com a cabeça, claramente aturdida, e afastou o olhar. Caminhou até um armário onde guardava alguns pratos e uma chaleira pequena. Refugiando-se num ritual comum, pegou num pacote de folhas de chá e retirou da estante um pequeno bule de porcelana.
— V...Vou fazer um pouco de chá — disse Lara com um tom apagado. — Nós podemos conversar. Talvez eu o possa ajudar.
Mas as mãos tremiam muitíssimo, e os pires e as chávenas tilintavam quando ela os agarrou.
Lara acreditava que ele seria um pobre tonto desesperado ou um vagabundo que necessitava da sua ajuda. Um sorriso irônico curvou os lábios do suposto Hunter, que se aproximou dela e tomou as suas frias mãos entre as dele, muito quentes. Sentiu, uma vez mais, a doce e inesperada impressão ao tocá-la. Sentia a delicadeza dos seus ossos, a suavidade da sua pele. Ele quis mostrar-lhe a sua própria bondade. Algo nela parecia fazer sobressair os últimos e amargos vestígios de humanidade que lhe restavam. Lara conseguia que ele quisesse ser o tipo de homem, gentil e bondoso, de que ela necessitava.
— Eu sou o seu marido — disse-lhe. — Voltei para casa.
Ela olhou-o, em silêncio, com os membros rígidos e os joelhos a tremer.
— Eu sou Hunter - insistiu suavizando a voz. — Não tenha medo.
Lara ouviu o seu próprio riso incrédulo e sufocado à medida que observava novamente a aparência do homem, aquela mistura avassaladora entre o familiar e o desconhecido. Ele parecia-se excessivamente com Hunter para ela o expulsar de imediato, mas havia algo de muito estranho nele que ela não podia aceitar.
— O meu marido está morto — disse ela com firmeza.
Um músculo pequeno contraiu-se no maxilar dele.
— Eu farei com que acredite em mim - foi rapidamente até ela, agarrou suavemente toda a parte de trás da cabeça com as duas mãos e aproximou a boca dela à dele. Ignorando o grito alarmado de Lara, beijou-a como nunca a havia beijado. As mãos de Lara agarraram os seus pulsos musculosos, tentando em vão que ele a soltasse. Mas a sensação da boca dele, incendiária, deliciosa, deixou-a aturdida. Ele usou os seus dentes, lábios e língua, seduzindo-a numa chama de sensualidade. Uma vez mais tentou libertar-se, inutilmente, até que ele lhe soltou a cabeça e a apertou contra a dura superfície do seu corpo. Lara sentiu-se amparada e segura no abraço dele, completamente possuída... profundamente desejada. As narinas impregnaram-se com o odor que emanava dele: uma mistura de terra e ar, e um agradável toque a sândalo.
Os lábios dele deslizaram mais para baixo, até à zona mais sensível do seu pescoço. Suspirou profunda e sensualmente sobre a sua pele, e por fim apertou o seu rosto junto ao dela até Lara sentir o roçar das suas pestanas na face. Nunca, ninguém a abraçou assim, tocando-a, saboreando-a como se ela fosse algum tempero exótico.
— Oh, por favor - ofegava Lara, curvando-se ao toque da língua dele no seu peito agitado.
— Diga o meu nome — sussurrou.
— Não...
— Diga.
Ele cobriu um dos seios dela com toda a mão e os seus largos dedos moldaram-se ao sensível montículo. Lara sentiu que o mamilo endurecia com o aconchego morno da palma dele, procurando ainda mais estimulação. Num movimento brusco, Lara retorceu-se até se libertar dos seus braços e, cambaleando, recuou uns passos até deixar um espaço seguro entre os dois.
Segurando o peito dorido com uma mão, Lara encarou-o, atónita. Ele mostrava-se inexpressivo, mas o som irregular da sua respiração revelava que, tal como ela, lutava por recuperar a compostura.
— Como se atreve? — Exclamou Lara, ofegando.
— É a minha mulher.
— Hunter nunca gostou de beijar.
— Eu mudei — respondeu ele, categoricamente.
— O senhor não é Hunter! — Exclamou, enquanto corria para a porta.
— Lara — disse-lhe, mas ela não fez caso. — Lara, olhe para mim.
Algo no tom da sua voz a fez parar. Com relutância, deteve-se no limiar da porta e olhou para ele. Ele segurava qualquer coisa na mão.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Venha cá e veja.
Avançou cautelosamente até ele, com algum desagrado, cativada pelo objeto que ele tinha na mão. Ele apertou o pequeno fecho lateral com o polegar, e a caixinha esmaltada plana abriu-se num estalido, revelando um pequeno retrato de Lara.
— Eu contemplei-o todos os dias, durante meses — murmurou. — Mesmo não me lembrando de si nos dias a seguir ao naufrágio, eu sabia que me pertencia - fechou a caixa e guardou-a dentro do bolso do casaco.
Lara, incrédula, ergueu o seu olhar até ao dele. Ela tinha a sensação de estar a sonhar.
— Onde arranjou isso? — perguntou num sussurro.
— Foi a Lara quem me deu — respondeu ele. — No dia em que eu parti para a índia. Lembra-se?
— Sim, ela lembrava-se. Hunter estava com tanta pressa para partir que se mostrou muito impaciente na despedida. Mas Lara conseguiu chamá-lo à parte, e a sós ofereceu-lhe a caixa com o seu retrato em miniatura. Era habitual que uma esposa ou uma noiva oferecessem uma recordação ao seu homem se este fosse para o estrangeiro, especialmente para um lugar tão perigoso como a Índia, onde existia a forte possibilidade de ser morto em caçadas ou nas mãos de rebeldes sanguinários, ou até morrer por causa de alguma febre.
Porém, os riscos não fizeram mais do que incitar Hunter, que sempre se achou invencível. Hunter mostrou-se genuinamente comovido pelo presente de Lara, o suficiente para lhe dar um beijo descuidado na testa.
— Encantador — murmurou nessa altura. — Obrigado, Larissa.
Naquela altura, a atmosfera ficou tensa com as recordações do casamento infeliz de dois anos, das amarguras e decepções mútuas de duas pessoas que não tinham encontrado interesses comuns para sustentarem sequer uma amizade. Mesmo assim, Lara preocupou-se com ele.
— Rezarei pela sua segurança — disse-lhe ela, e ele começou a rir-se da preocupação que estava refletida no rosto dela.
— Não desperdice as suas orações comigo — disse.
O homem que agora estava diante dela parecia ler os seus pensamentos.
— Afinal de contas, deve ter-me dedicado uma oração ou duas — murmurou. — Foi a única coisa que pôde trazer-me de volta à casa.
Lara sentia que o sangue se esvaía, e perdeu o equilíbrio devido ao peso daquela súbita constatação. Só o seu marido poderia saber quais as palavras de despedida um do outro.
—-Hunter? — perguntou, num sussurro.
Ele segurou-a pelos cotovelos e ajudou-a a manter-se de pé. Então, baixou a cabeça para olhá-la com os seus olhos escuros, que brilhavam com gozo.
— Não vai desmaiar outra vez, pois não?
Lara sentia-se demasiado incomodada para responder. Permitiu que ele a levasse até uma cadeira, onde se sentou, desmoronando-se abruptamente. Ele pôs-se de cócoras junto a ela, para que os dois ficassem com o rosto à mesma altura. Retirou uma madeixa do cabelo de Lara detrás da orelha e as pontas dos seus dedos encrespados acariciaram o seu frágil lóbulo.
— Começa a acreditar em mim? — perguntou ele.
— Diga-me primeiro qualquer outra coisa que só o meu marido saberia.
— Meus Deus, já passei por isso com Young e Slade.
Ele deixou-se ficar calado contemplando as roupas de viúva que cobriam o corpo de Lara; ela sobressaltou-se com a intimidade daquele olhar.
— Tem um pequeno sinal encarnado na parte interior da sua perna esquerda — disse ele suavemente. — E uma sarda escura no seu peito direito. Uma cicatriz no calcanhar, quando cortou o pé numa pedra, num Verão, quando era ainda uma criança — Ele sorriu perante a expressão pasmada dela. — Ou quer que eu continue? Eu posso descrever a cor do seu...
— Isso já é suficiente — disse Lara rapidamente, corando.
Pela primeira vez, ela permitiu-se olhar realmente para ele e viu os grãos escuros da cara barbeada, o queixo sobressaído, as covas que outrora eram as bochechas, redondas e cheias.
— A forma do seu rosto mudou — disse, tocando timidamente no osso das maçãs do rosto. — Talvez eu o reconhecesse não tivesse perdido tanto peso.
Ele surpreendeu-a pousando a boca na palma da sua mão. Quando Lara sentiu o calor dos seus lábios na pele macia, retirou a mão num ato reflexo.
— E as suas roupas são diferentes — Continuou, olhando para as calças cinzentas, muito apertadas nas coxas, a camisa branca desgastada e a gravata muito estreita já fora de moda que usava à volta do pescoço. Sempre viu Hunter envergando as vestimentas mais elegantes, casacos de tecido muito refinados, peças bordadas, calças de pele ou de pura lã. A sua indumentária para os serões era igualmente esplêndida, casacas pretas muito bem cortadas, calças compridas com a dobra sempre impecável, camisas de linho branco, colarinhos rigidamente engomados, laços e sapatos polidos com champanhe.
Hunter sorriu com uma certa ironia com o escrutínio minucioso dela.
— Eu quis mudar de roupa na mansão — disse, - mas parece-me que a mudaram de lugar.
— O Arthur e a Janet desfizeram-se de tudo.
— Incluindo a minha mulher, pelo que vejo — Ele olhou à volta, para a casa do couteiro e os seus olhos castanhos tornaram-se frios. — O meu tio irá pagar por a ter posto num lugar como este. Esperava algo melhor da parte dele, sabe lá Deus porquê.
— Tem sido bastante cômodo...
— Se não é adequado para uma lavadeira, muito menos será para a minha mulher — A voz de Hunter era cortante como um chicote, o que fez com que Lara saltasse. Ao dar-se conta da reação involuntária dela, ele suavizou a sua expressão. — Não se preocupe. De agora em diante, estará protegida.
— Eu não quero... — As palavras saíram-lhe da boca sem que ela conseguisse travá-las. Chocada, apertou os lábios e baixou os olhos até ao peito, numa tristeza silenciosa. Aquilo era incrível, pior do que um pesadelo. Hunter estava em casa, e ele iria tomar conta da sua vida como dantes, esmagando a sua independência como se tratasse de uma flor debaixo da bota.
— O que foi, meu amor? — perguntou ele tranquilo.
Surpreendida, Lara olhou para o seu rosto sério.
— Nunca me chamou assim.
Hunter deslizou a mão pela fina curva do seu pescoço, acariciando com o polegar a linha do maxilar. Ele ignorou a forma como ela se retraiu com o seu toque.
— Eu tive muito tempo para pensar, Lara. Passei muitos meses a convalescer na Cidade do Cabo e depois iniciei uma longa viagem de barco para chegar até aqui. Quanto mais pensava em si e no nosso casamento, mais eu me apercebia do canalha e egoísta que fui. Prometi a mim mesmo que, assim que regressasse, começaríamos tudo de novo.
— Eu creio que isso não seja possível.
— Por quê?
— Aconteceram muitas coisas, e eu... — Lara interrompeu, engoliu em seco e os olhos encheram-se de lágrimas. Ela tentou não chorar, mas a culpa e a infelicidade transbordavam dentro de si. Porque é que Hunter teve de voltar?
Num só golpe do destino ela foi uma vez mais condenada à vida que tinha odiado. Sentia-se como uma prisioneira que tinha sido libertada apenas para a colocarem de novo atrás das grades.
— Eu entendo — Hunter deixou cair à mão. Curiosamente, ele olhava-a como se na realidade a entendesse, apesar de ele ter sido sempre vagamente perceptivo.
— Nada será como antes — disse Hunter.
— Não pode evitar ser quem é — respondeu Lara, enquanto uma lágrima descia pelo seu rosto. Ouviu a respiração rápida de Hunter, e sentiu os seus dedos a enxugarem a sua lágrima salgada. Lara recuou, mas Hunter inclinou-se para ela, encurtando a distância entre os dois. Estava presa com a cabeça e o pescoço apertados nas costas da cadeira.
— Lara — sussurrou, — Eu jamais lhe faria mal.
— Eu não tenho medo de você — disse ela e acrescentou num tom desafiador: — O que se passa é que eu não quero voltar a ser sua mulher.
O antigo Hunter teria ficado aborrecido com este sinal de rebeldia e ter-lhe-ia dito algumas palavras duras. Ao invés, ele olhou para ela com uma serenidade que a deixou extremamente nervosa.
— Eu vou tentar alterar isso. Tudo o que lhe peço é que me dê uma oportunidade.
Lara agarrou os braços da cadeira com muita força.
— Eu preferiria que seguíssemos vidas separadas, tal como fazíamos antes de ter ido para a índia.
— Não posso obrigá-la, minha querida — A sua resposta foi amável, mas ele percebeu um certo tom definitivo. — É a minha mulher. Eu tenho a intenção de retomar o meu lugar na sua vida... e na sua cama.
Com esta afirmação, Lara empalideceu.
— Porque não vai ter com a Lady Carlysle? — disse ela desesperada. — Com certeza que ela ficará muito feliz com o seu regresso. É a ela que quer, não a mim.
A expressão de Hunter tornou-se cautelosa.
— Ela já não significa nada para mim.
— Vocês amavam-se - insistiu Lara, desejando que ele se afastasse dela.
— Aquilo não era amor.
— Mas era uma imitação verdadeiramente convincente!
— Querer ir para a cama com uma mulher não é o mesmo que amá-la.
— Eu sei disso — respondeu ela, fazendo um esforço por olhá-lo diretamente. — Deixou-me isso muito claro por diversas vezes.
Hunter acatou a revelação dela sem fazer comentários e pôs-se de pé num movimento ligeiro. Assim que ela se sentiu liberta, saltou da cadeira e foi para o outro lado do quarto, distanciando-se dele o mais possível.
Lara jurou a si mesma, com toda a convicção, que nunca o receberia no seu leito.
— Eu tentarei acolhê-lo em tudo o que for possível, exceto numa coisa, não vejo nenhuma razão para que voltemos a partilhar a nossa intimidade. Eu não só fracassei nas minhas tentativas em dar-lhe prazer, como também sou estéril. Seria melhor para os dois que encontrasse outra mulher para satisfazer as suas necessidades.
— Eu não quero outra mulher.
— Então, terá de tomar-me pela força — Declarou ela. Ela empalideceu ao reparar que ele se aproximava. Era impossível interpretar aquela expressão. Estaria zangado? Condescendente, ou apenas estaria a divertir-se? As mãos dele agarraram os ombros dela, num aperto suave, mas firme. Lara olhou para o seu rosto implacável e sentiu que toda a sua velha e sufocante infelicidade a invadia novamente.
— Não — respondeu suavemente. — Eu não irei ter com você até que Lara esteja preparada.
— Isso levará muito tempo... Nunca sucederá.
— Talvez — Hunter deixou-se ficar em silêncio e contemplou-a, pensativo. — Esteve com outro homem durante a minha ausência?
— Não — respondeu com um riso sufocado, espantada por ele pensar que essa era a razão dela para não o querer de novo. — Meu Deus, depois de partir, eu não quis ter mais nada a ver com nenhum outro homem!
Ele sorriu ironicamente com este comentário tão pouco simpático.
— Bom. Eu não a poderia culpar se quisesse aproximar-se de outro homem... Mas eu não conseguiria suportar a ideia de que outro homem lhe tivesse tocado — Ele esfregou a nuca num gesto cansado, e Lara reparou novamente na linha descolorada que revelava uma ferida recentemente cicatrizada.
— A sua cabeça... — murmurou ela.
— O naufrágio — Explicou ele num tom cansado. — Estava um violento vendaval. Nós fomos sacudidos sem cessar até que o navio embateu contra um recife. A minha cabeça bateu em alguma coisa, mas, maldita seja! não me recordo contra quê. Nem sequer consegui recordar-me do raio do meu nome durante várias semanas — Deixou-se ficar quieto ao ver que ela se aproximava.
Contra a sua vontade, Lara sentiu que a inundava uma onda de compaixão por ele. Ela não conseguia evitar... Odiava pensar que ele tivesse sofrido assim.
— Tenho muita pena — disse ela.
Ele sorriu.
— Deve ter pena que a ferida não tenha sido mortal, imagino.
Lara ignorou o seu comentário sarcástico e não conseguiu resistir a tocar na profunda cicatriz. Os dedos dela deslizaram no cabelo espesso de Hunter, explorando o seu couro cabeludo. A cicatriz era grande. O golpe que a provocou poderia quase ter fraturado o crânio. À medida que ela lhe tocava na cabeça, sentiu que a respiração de Hunter se agitava.
— Dói-lhe? — perguntou ela, retirando a mão imediatamente.
Ele negou com a cabeça, soltando uma gargalhada curta.
— Receio que me esteja a provocar outro tipo de dor.
Lara fixou os olhos dele, perplexa e depois baixou o olhar para o colo de Hunter. Mortificada, notou que a sua carícia inocente o tinha excitado, provocando-lhe uma enorme e inequívoca ereção, que lhe avolumava as calças. Lara corou e saltou para trás.
Hunter manteve um leve sorriso.
— Perdoe-me, meu amor. Um ano de celibato acabou com o domínio que eu possuía sobre mim mesmo — Ele devolveu-lhe um olhar que a fez sentir um nó no estômago, e estendeu-lhe a mão. — Agora venha comigo, Lara. Quero ir para casa.
Capítulo 3
Lara teria preferido trocar o seu vestido por um limpo, mas não fazia tenções de se despir diante do marido, já que estava certa que ele tinha dito a verdade. Então, penteou-se o melhor que pôde, consciente que ele a olhava intensamente durante todo o tempo. Quando Lara terminou, ele atravessou o quarto e deu-lhe o braço.
— Vamos? — perguntou erguendo a grossa sobrancelha. — Estão todos à nossa espera, com muita ansiedade para ver se vem comigo ou não.
— E por acaso tenho alguma escolha? — disse ela.
Ele dirigiu-lhe um olhar sarcástico.
Não tenho a intenção arrastá-la até lá aos gritos e pontapés — disse-lhe.
Lara recuou, recusando o seu braço, pois sentia que se o fizesse e se saísse com ele, estaria a comprometer-se a um determinado comportamento do qual já não poderia sair.
Abandonando a sua postura elegante, Hunter pegou-lhe na mão e entrelaçou os seus dedos nos dela.
— Venha — disse, e começaram a caminhar em direção a Hawksworth Hall.
— Vai demorar algum tempo para o conde e a condessa retirarem os pertences deles — Comentou Lara.
— Eles não são o conde e a condessa — respondeu ele rapidamente. A Lara e eu é que somos. E verá que esta noite eu já os terei expulsado da mansão.
— Hoje à noite? — Lara estava atordoada. — Mas não os pode mandar embora tão cedo.
— Não posso? - o rosto dele endureceu subitamente e assemelhou- se ao homem com quem ela tinha casado há cinco anos. — Eu não vou permitir que o Arthur e a Janet desonrem a minha casa nem sequer por mais uma noite. Nós ficaremos nos quartos principais da casa.
— E o Arthur e a sua mulher ocuparão os quartos de hóspedes?
— Não — respondeu, num tom inflexível. — Eles podem ficar na casa do couteiro, ou então que vão procurar alojamento em outro lugar.
Só de imaginar isso, Lara soltou uma gargalhada horrorizada.
— Isso seria demasiado. Devíamos oferecer-lhes os quartos de hóspedes.
— Se esta velha casa do couteiro era boa para si, maldita seja se não é também muito boa para eles.
— De qualquer forma, não conseguirá pô-los na rua tão facilmente disse Lara. — Farão tudo o que estiver ao seu alcance para provarem que é um impostor.
— Eu vou pô-los fora daqui — disse com rispidez e obrigou-a a olhá-lo nos olhos. — Diga-me uma coisa antes de chegarmos à mansão, ainda lhe restam dúvidas?
— Algumas — Lara acabou por reconhecer, subjugada por aquele olhar escuro e intenso.
— E pretende revelá-las aos outros?
O rosto de Hunter não revelava a mais pequena expressão. Lara hesitou.
— Não — sussurrou por fim.
— E porque não?
— Porque eu... — Ela mordeu o lábio, tentando encontrar uma forma de explicar que interiormente sentia a convicção de que seria errado duvidar dele à frente dos outros. O mais sensato parecia ser aguardar e ver como tudo corria. Se ele não fosse realmente quem dizia ser, mais cedo ou mais tarde cometeria algum erro. — Porque se não for o meu marido – continuou —, eu descobrirei rapidamente.
Ele sorriu, mas desta vez sem grande simpatia. — Claro que sim — Afirmou, percorrendo o resto do caminho em silêncio.
— Estou deveras impressionado com o que eles fizeram deste lugar — Apontou Hunter com brusquidão à medida que entravam em Hawksworth Hall.
As antigas tapeçarias flamengas e as mesas de apoio com vasos de porcelana francesa tinham sido substituídas por estátuas de mármore e tapeçarias de seda com reflexos cor de pêssego e púrpura. A lareira medieval, que era grande o suficiente para albergar uma dúzia de homens no seu interior, tinha sido despojada da sua traça original flamenga. Em sua substituição, colocaram um espelho pesado, com anjos dourados com trombetas na moldura. Com uma expressão de desagrado, Hunter parou para contemplar o efeito que tudo aquilo produzia.
— Nem todas as pessoas conseguiriam pegar numa casa elegante como a nossa e decorá-la como um bordel, em tão pouco tempo.
— Eu não poderia saber — respondeu Lara. — Não estou tão familiarizada com bordéis como o senhor.
Ele sorriu com aquela resposta mordaz.
— Se bem me lembro, ficava bem mais satisfeita que eu passasse as minhas noites em bordéis em vez de as passar com você.
Incomodada, Lara voltou a dar atenção à decoração vulgar.
— Infelizmente, nada disto poderá agora ser mudado.
— E porque não?
— Seria um gasto exagerado de dinheiro.
— Nós podemos bem suportar a despesa.
— Eu acharia melhor, antes de fazer conjeturas, que examinasse os livros da propriedade — Aconselhou Lara num tom de voz baixo. — Suspeito de que as nossas contas tenham sido dizimadas durante a sua ausência. O seu tio tem hábitos extravagantes.
Num gesto rígido, Hunter acenou com a cabeça e conduziu Lara através do vestíbulo, segurando-a pelo cotovelo. Ele apresentava um ar de autoridade serena e parecia totalmente confortável no seu ambiente. Um impostor, certamente, teria deixado escapar algum sinal de insegurança, mas ele não mostrou nenhum.
Lara nunca imaginou que voltariam a estar juntos naquela casa. Ela tinha arrumado para sempre as recordações da sua vida passada com ele. Mas agora, Hunter regressara inesperadamente, o que a deixou atordoada. Era impossível acreditar que ele realmente estava ali, mesmo sentindo aquela mão enorme sobre o seu braço e ainda aquele sabor que permanecia nos seus lábios.
Na área que rodeava as duplas escadarias havia pelo menos cinquenta criados: criadas de quarto, ajudantes do mordomo, criados, pessoal de cozinha, serventes e outros trabalhadores para outras tarefas. Os criados saudaram-nos com manifestações de alegria, pois percebiam que a presença de Lara junto a Lorde Hawksworth confirmava a sua identidade de uma forma inequívoca.
Não havia qualquer dúvida de que eles estavam muito entusiasmados com a perspectiva de se libertarem de Arthur e de Janet, uns amos exigentes e impossíveis de agradar. A governanta, uma mulher de meia-idade, deu um passo em frente, com um sorriso no rosto.
— Lorde Hawksworth — disse, com o olhar resplandecente de emoção. — Suspeito que todos nós teremos necessidade de o olhar uma segunda e terceira vez para nos assegurarmos de que é, realmente, o senhor. Acho que é quase impossível acreditar nos meus próprios olhos. Seja bem-vindo a casa, senhor.
Os outros empregados apressaram-se fazendo eco daqueles sentimentos e Hunter sorriu.
— Obrigado, senhora Gorst. Depois de passar tanto tempo no estrangeiro, duvido que queira voltar a deixar Inglaterra — Ele olhou para as pessoas ali reunidas com uma expressão curiosa.
— Onde está o senhor Townley? — perguntou, referindo-se a um mordomo que esteve ao serviço dos Hawksworth durante mais de doze anos.
— Infelizmente, foi trabalhar para outra casa, senhor — respondeu a governanta com cautela. — Ele não quis permanecer ao serviço do atual conde.
Hunter fez uma cara dura e manteve-se calado. Então a senhora Gorst acrescentou:
— Espero que não se aborreça muito com Townley, meu senhor. Ele estava muito transtornado com a sua morte... quero dizer...
— Eu não culpo Townley — Assegurou Hunter, e conduziu Lara para a sala. — Venha, querida. Está na hora de eu pôr a minha casa em ordem.
— Lá está ele! — Exclamou uma voz ao entrarem no salão de recepções do piso de cima. Ouviu-se então um coro de gritos entusiasmados. Estavam lá Arthur e Janet, e também o senhor Young, o doutor Slade e alguns familiares da família Crossland que queriam ver o recém-chegado com os seus próprios olhos. Arthur adiantou-se aos outros, olhando para Hunter com desprezo.
— Parece-me que conseguiu que Lara o apoiasse — Ele virou a atenção para ela com desdém. — Um grande erro, minha querida. Surpreende-me que seja tão fácil de convencer e que aceite ajudar este canalha na sua farsa. Revela assim uma fraqueza de caráter que eu não suspeitava até hoje.
Lara devolveu-lhe o olhar sem pestanejar.
— Não é nenhuma farsa, senhor - intercedeu o senhor Young calmamente. — Asseguro-lhe, Lorde Arthur, que, na minha opinião, este homem é realmente Hunter Cameron Crossland, Lorde Hawksworth.
— Não tenho dúvidas de que ele lhe está a pagar por este apoio — Explodiu Arthur. — Bem, eu tenho a intenção levar este assunto aos tribunais. Não permitirei que um impostor apareça e se autoproclame como sendo o conde de Hawksworth. Devo até dizer que, para começar, ele só mostra uma ligeira semelhança com Hawksworth, que seria mais gordo em pelo menos mais quinze quilos!
O homem que estava ao lado de Lara sorriu.
— Não é nenhum crime que um homem emagreça, Arthur.
Arthur olhou-o com desprezo.
— Deve ter sido muito conveniente para si lembrar-se subitamente de que era o herdeiro de uma grande fortuna.
— Todas as evidências confirmam a identidade deste homem, Lorde Arthur - intercedeu novamente o senhor Young com uma atitude serena. — Nós testamos a memória dele que achamos ser exata. Identificamos também marcas particulares no seu corpo, inclusive a cicatriz que tem no ombro, resultante de um acidente de caça que aconteceu quando ele era ainda um rapaz. Examinamos até amostras da sua escrita e parece-se muitíssimo com a de Lorde Hawksworth. A sua aparência, apesar de se ter alterado, é ainda muito semelhante à do último conde. Tudo isto, combinado com a reação de reconhecimento de todos os que o viram até agora, demonstra que este senhor é Hawksworth.
— Eu não o reconheço como sendo quem diz — Afirmou Arthur encolerizado. — Nem a minha mulher.
— É evidente que o senhor tem muito a perder se ele for realmente o conde — Assinalou o doutor Slade, com um sorriso cínico a revelar-se no seu rosto severo. — Para além disso, a sua própria mulher aceita-o e uma senhora tão respeitável como a condessa jamais aceitaria um desconhecido como seu marido.
— A menos que ela tenha algo a ganhar com isto — Gozou Janet, apontando para Lara com o seu dedo esquelético. — Ela iria para a cama com o primeiro homem disponível se isso implicasse recuperar a fortuna dos Hawksworth.
— Eu não mereço uma acusação como esta... — Exclamou Lara ofegante, reagindo à ofensa.
— Uma viúva jovem e bonita, ávida por ter a atenção de um homem - prosseguiu Janet com aspereza. — Enganou muitas pessoas com o seu caráter nobre apoiando o orfanato, mas eu sei como Lara é na realidade...
— Chega! - interrompeu Hunter. O seu olhar ameaçador intimidou todos os presentes. Encarou Arthur com um olhar tão vingativo que fez o homem transpirar à vista de todos. — Saia da minha vista! – prosseguiu Hunter. — Os seus pertences ser-lhes-ão enviados, exceto se ousarem pousar um pé na propriedade. Se isso acontecer, eles serão todos queimados. Agora, vão-se embora... e considerem-se com sorte por eu não vos obrigar a pagar como deveriam por tudo o que fizeram à minha mulher.
— Nós fomos mais do que generosos para a Lara! — Explodiu Janet. — Que mentiras ela lhe contou?!
— Fora! — Hunter deu um passo até Janet, estendendo as mãos como se a quisesse estrangular.
Janet correu para a porta, com os olhos esbugalhados de medo.
— Os seus modos são os de um animal! — protestou ela em fúria. — E nem pense que enganará a todos com a sua artimanha... É tão conde de Hawksworth como seria qualquer cão vadio no canil! — Arthur precipitou-se para a porta e eles foram-se embora, deixando para trás uma onda de sussurros excitados entre a audiência.
Hunter baixou a cabeça e aproximou a boca do ouvido de Lara.
— Nunca tive a intenção de deixá-la à mercê deles. Perdoe-me.
Lara virou-se para ele, maravilhada. Hunter nunca lhe pedira desculpas por absolutamente nada... Nunca tinha sido capaz.
— Há momentos em que eu quase concordo com Janet — sussurrou. — Não se parece absolutamente nada com o homem com quem me casei.
— Preferiria que eu voltasse a ser como era antes? — perguntou ele, em voz baixa para que os outros não percebessem.
Lara pestanejou confusa.
— Não sei. — Então, ela recuou ao ver que todos os presentes se aglomeravam à volta dele, entusiasmados com o milagre do seu regresso.
Os criados estavam numa confusão, esforçando-se por obedecer a dois amos, empacotando alguns pertences de Arthur e de Janet. Hunter não tinha recuado na sua decisão de que os Crossland deveriam sair da sua propriedade imediatamente, uma humilhação que Lara sabia que eles jamais perdoariam. Janet andava de um lado para o outro em Hawksworth Hall numa fúria explosiva, gritando ordens e insultos a todos os que se cruzavam com ela.
Lara sentia-se um pouco perdida e incomodada, e vagueou pela casa. Alguns dos quartos da casa, os menos importantes, foram conservados no seu estado original, serenos e com bom gosto, as janelas cobertas com cortinas de seda e veludo claras e mobília francesa clara e elegante.
— Está fazendo o inventário, é? - uma voz sedosa surgiu da entrada da sala de leitura das senhoras, e Lara voltou-se, encontrando Janet de frente para ela.
Com a sua postura delgada e muito rígida, ela parecia tão firme e afiada como a lâmina de uma faca. Lara sentiu uma ligeira compaixão por Janet, consciente de que a perda do título e da propriedade seriam supostamente um golpe devastador. Para uma mulher com uma ambição tão desmedida, voltar à vida modesta que levara outrora, iria ser difícil de suportar.
— Tenho muita pena, Lady Crossland — disse Lara com sinceridade. — Eu entendo que esta situação possa ser muito injusta...
— Poupe-me a sua falsa piedade! Pensa que ganhou, não é? Pois saiba que, de uma forma ou de outra, nós recuperaremos o título. Arthur continua a ser o herdeiro presuntivo, e nós temos dois filhos... E, como todos sabem, Lara é estéril. Já contou isso ao impostor que reivindica ser seu marido?
O rosto de Lara empalideceu.
— Não tem vergonha?
— Aparentemente, não mais do que a sua. Que disposta, que ansiosa se mostra para se meter entre os lençóis com um perfeito desconhecido! — O rosto de Janet transformou-se numa expressão de desprezo. — Durante meses, representou o papel da mártir, com a sua cara angelical e gestos refinados de uma dama, quando na realidade não era mais do que uma gata assanhada...
Este último ataque ficou suspenso por um furioso e ruidoso som e as duas mulheres paralisaram com surpresa quando uma figura masculina magra entrou no quarto com a cautela e a velocidade de uma cobra. Hunter agarrou Janet e sacudiu-a, com uma expressão implacável e irada.
— Dê graças a Deus por ser uma mulher — Advertiu-a — De contrário a mataria pelo que acabou de dizer.
— Solte-me! — Guinchou Janet.
— Por favor — suplicou Lara, correndo para eles. — Hunter, não.
Ao ouvir Lara dizer o seu nome, as costas de Hunter tornaram-se rígidas.
— Não há motivos para fazer uma cena - prosseguiu Lara, aproximando-se. — Não aconteceu nada de grave. Solte-a. Faça-o por mim.
De repente, ele libertou Janet resmungando com repugnância e a mulher fugiu do quarto a correr. Lara pestanejou, assustada, quando o seu marido se voltou para ela. Parecia que todo o seu corpo estava ávido de sangue. Ela nunca tinha visto uma expressão tão selvagem no rosto de Hunter. Até mesmo quando o via mais furioso, ele nunca perdia o controle e o requinte claramente inatos nele. Mas parecia que em algum momento, entre a sua partida para a Índia e agora, a sua aparência civilizada tinha rachado... e começava a emergir um homem muito diferente.
— Janet é uma cabra vingativa — murmurou.
— Ela falava levada pela raiva e pela dor — disse Lara. — Não significou nada para mim. — Ela irrompeu num soluço nervoso quando notou que Hunter avançava para ela a passos largos. Apoiou uma das mãos enormes na cintura dela, enquanto a outra agarrou o seu queixo e inclinou a cabeça para trás. Então percorreu o rosto dela com um olhar inquiridor. Lara umedeceu os lábios ressequidos com a ponta da língua. Tinha uma inquietante sensação de prazer no estômago. A respiração tornou-se agitada e fixou os olhos no peito largo que tinha à sua frente, recordando-se da sensação de solidez que o corpo dele contra o seu lhe provocara e da forma excitante como ele a beijou. As acusações de Janet tinham sido certeiras. Lara não poderia negar que se sentia atraída por este homem, e ela nunca se tinha sentido assim com o seu marido. Seria porque os dois mudaram... ou isto era a prova de que este homem não era Hunter?
Estava tudo a acontecer demasiado depressa. Ela precisava ficar sozinha para organizar os seus pensamentos.
— Não me toque — sussurrou. — Não posso tolerar isso.
Hunter libertou-a, e ela recuou um passo. Os olhos dele eram de uma cor surpreendente, de um tom castanho que pareciam pretos com certas luzes. Eram os olhos de Hunter, sem dúvida nenhuma... mas estavam com uma intensidade que Lara nunca tinha visto antes.
— Como é possível que seja o meu marido? — perguntou, insegura. — Mas como é possível que não seja? Não sei o que pensar, não sei o que sentir.
Hunter não vacilou diante daquele olhar de dúvida.
— Se não me aceita Lara, vá dizer aos outros — disse. — Tudo depende de você. Sem o seu apoio, eu não tenho a mínima possibilidade de convencer alguém de que sou quem sou.
Lara passou uma mão pela testa úmida. Não desejava tomar tal decisão sozinha, nem assumir a responsabilidade de um engano... se realmente fosse um engano.
— Poderíamos esperar que a sua mãe regressasse de viagem — disse ela. — Assim que ela se inteirar desta situação, virá imediatamente. Eu aceitarei tudo o que ela decida. Uma mãe, certamente, conhece o seu próprio filho...
— Não - o rosto de Hunter parecia de pedra. — Decida, agora. Eu sou o seu marido, Lara?
— Suponho que o senhor Young tem razão, que todas as evidências apontam...
— Para o inferno com as evidências. Sou ou não o seu marido?
— Não posso estar absolutamente certa - insistiu, recusando obstinadamente a dar-lhe o sim ou o não que ele esperava. — Eu nunca o conheci muito bem. Nós não tínhamos muita intimidade em nenhuma situação, exceto no plano físico, e mesmo nesse... — Ela hesitou, e o seu rosto ardeu.
— Foi sempre algo muito impessoal - reconheceu ele com franqueza. — Na altura, eu não tinha a mais remota ideia de como tratar uma mulher na cama... Deveria tê-la tratado como uma amante. Devia tê-la seduzido. A verdade é que eu era um egoísta e um tolo.
Lara baixou o olhar.
— Não era eu a pessoa que você desejava.
— Isso não era por sua culpa.
— Casou-se para ter filhos e eu não pude dá-los.
— Isso não tem nada a ver - interrompeu. — Lara, olhe para mim. Ao ver que ela se negava a fazê-lo, ele enredou os seus dedos no cabelo dela, por detrás da cabeça e soltou uma maldição.
— Para mim é completamente indiferente que possa conceber ou não disse-lhe. — Para mim, isso já não é importante.
— Claro que é.
— Lara, eu mudei. Dê-me a oportunidade para lhe provar como as coisas podem resultar entre nós os dois.
Houve um momento de silêncio que quase parecia interminável. O olhar de Lara pousou na boca larga e firme de Hunter questionando, dominada pelo pânico, se ele a voltaria a beijar.
Subitamente, pareceu que ele tinha tomado uma decisão e deslizou a mão pelo peito dela, numa carícia tão rápida e leve que Lara nem teve tempo de reagir. Sentiu um formigueiro nos seios com aquele roçar fugaz da sua palma da mão. Hunter baixou a boca até ao pescoço dela, respirando ardente e suavemente. Quando ele tocou com a língua no seu pescoço, Lara soltou um gemido sufocado.
— Tem a pele de um bebê — sussurrou. — Quero despi-la aqui mesmo..., senti-la nua nos meus braços... Amá-la como já o deveria ter feito há tanto tempo atrás.
O rosto de Lara incendiou-se e tentou libertar-se dele, mas percebeu que estava encurralada no seu abraço firme. Ele pôs a cabeça de lado, encontrou o ponto sensível de união entre o pescoço e o ombro dela e mordiscou suavemente o tecido do seu vestido. Lara estremeceu com o choque erótico que aquela carícia lhe provocou, arqueando todo o corpo.
— Oh...
— Os indianos creem que a vida de uma mulher não tem valor nem sentido sem um marido — murmurou ele enquanto lhe dava uma série de beijos no pescoço e na pequena concavidade por debaixo da orelha. O tom da sua voz acusou um certo gozo e prosseguiu. — Eles iriam considerá-la uma mulher muito afortunada por eu ter regressado dos mortos.
— Eu aguentei-me perfeitamente sem você — respondeu Lara, cravando os seus dedos nos ombros dele, duros como rochas, enquanto os seus joelhos tremiam.
Ela sentiu que ele sorria contra a sua orelha.
— Na Índia, seria queimada viva na minha pira de cremação, para que a poupassem da miséria de viver sem mim. Chamam a isso sati.
— Isso é uma selvajaria! — Ela fechou os olhos à medida que as mãos dele encontravam, através das pregas das saias, as curvas tensas das suas nádegas. —— Por favor, não quero...
— Deixe-me só tocá-la. Há já tanto tempo que eu não abraço uma mulher.
— Há quanto tempo? — Ela não resistiu fazendo a pergunta.
— Há mais de um ano.
Ela sentiu que a mão percorria a sua coluna vertebral numa carícia lenta, saborosa.
— E se uma viúva não quiser ser queimada? — perguntou ela, já sem fôlego.
— Ela não tem alternativa.
— Bom, eu lamentei quando soube de sua morte, mas não me sentiria de maneira nenhuma motivada para o suicídio.
Hunter começou a rir.
— Provavelmente até se sentiu muito melhor ao saber do naufrágio do meu navio.
— Claro que não — disse ela logo, mas para seu horror, sentiu um rubor de culpa a estender-se pelo rosto.
Hunter afastou-se para olhar para ela e esboçou um sorriso irônico.
— Mentirosa — disse, antes de a beijar ao de leve e rapidamente.
— Eu realmente não... — Começou Lara a dizer, incomodada, mas ele mudou de assunto com tal rapidez que a confundiu.
— Quero que mande fazer alguns vestidos para si. Não gosto que a minha mulher use trapos.
Lara olhou para o seu vestido de bombazina preto, agarrando numa dobra solta do pano.
— Mas a despesa... — disse em voz baixa, pensando ao mesmo tempo como seria agradável ter algumas roupas novas. Ela já estava farta de usar preto e cinzento.
A — despesa não importa. Eu quero que se desfaça de todos os vestidos de luto que possui. Pode até queimá-los, se preferir — Ele tocou no tecido do decote dela. — E já agora, encomende algumas camisolas.
Em toda a sua vida, ela nunca tinha usado nada para além de camisas de noite de algodão.
— Eu não preciso de um camisolas — Exclamou.
— Se não mandar fazer um para si, eu próprio me encarregarei de lhe trazer.
Nervosa, Lara afastou-se para longe dele e ajustou a roupa, puxando as mangas, a cintura e as saias.
— Eu não vou usar peças de vestuário destinadas à sedução. Tenho pena que isso não lhe agrade, mas... Tem de entender que eu nunca voltarei para si por minha própria vontade. Sei que é difícil para um homem estar sem... E sei que deve ter necessidade de... — Lara corava até lhe arderem as orelhas. — Eu preferiria que fosse... quero dizer, eu espero que...
Ela reuniu toda a dignidade que lhe restava e disse:
— Por favor, não hesite em ir ter com outra mulher para satisfazer as suas necessidades masculinas. Eu renuncio a todo o direito sobre si, exatamente como o fiz antes de se ir embora.
Hunter olhou-a com uma expressão estranha, como se sentisse de uma só vez insultado, divertido e incomodado.
— Não terá tanta sorte desta vez, meu amor. As minhas necessidades masculinas vão ser satisfeitas por uma única mulher... E até se entregar a mim, não as aliviarei.
Lara ergueu o queixo com determinação.
— Não irei vacilar neste ponto.
— Nem eu.
O ambiente que os rodeava aqueceu com o desafio. O coração de Lara começou numa corrida louca sentindo o seu palpitar pelo corpo todo. A sua compostura alterou-se quando Hunter lhe esboçou um sorriso comovedor, troçando de si próprio.
Até agora, Lara nunca se preocupara em admirar a beleza de Hunter. Não se importara minimamente se ele era bonito ou não; era o homem que os seus pais escolheram para ela e ela acatou essa decisão. Mais tarde, a infelicidade do seu casamento eclipsou qualquer réstia de consideração sobre o seu aspecto. Mas, pela primeira vez, ela agora percebia que ele era bonito, excepcionalmente bonito, com um charme subtil que a deixava mesmo desconcertada.
— Então veremos quanto tempo cada um de nós aguenta — disse ele, em tom de desafio.
A expressão de Lara deve ter traído os seus pensamentos, já que Hunter começou de repente a rir e lançou lhe um olhar provocador, ao mesmo tempo que saía do quarto.
Capítulo 4
Mais tarde, nessa noite, Hunter tentou concentrar-se num só objetivo, encontrar os seus diários, mas os seus pensamentos continuavam a distraí-lo impedindo-o de iniciar essa tarefa. Ele procurou metodicamente em todas as arcas que tinham sido trazidas do armazém e deixadas no seu quarto. Até aí, só tinha ainda descoberto alguns objetos pessoais e alguma roupa, que agora lhe ficava enorme na sua estatura magra.
Deu um pequeno suspiro e o seu olhar explorou o pesado padrão dourado e encarnado que forrava as paredes. Depois dos quartos simples e quase primitivos que tinha ocupado no último ano, inclusive a espartana cabina parcamente mobilhada que lhe foi destinada na interminável viagem para casa, aquela suíte sobrecarregada ofendia os seus sentidos.
Despiu-se e pôs um roupão francês de seda bordada que descobriu numa das arcas. Tinha sido feito para um homem mais corpulento, mas ele dobrou bem para trás as lapelas largas e atou-o bem justo à cintura. Apesar de ainda largar um cheiro a mofo, por ter estado guardado durante tanto tempo, o tecido de seda era suave e delicado, em tons castanho e creme com riscas douradas.
A sua atenção voltou-se outra vez para o conteúdo remexido das arcas. Impaciente, franziu a sobrancelha, perguntando-se onde estariam os seus diários. Possivelmente, alguém os teria descoberto depois da sua morte, teriam sido destruídos ou até guardados em outro lugar. Esfregou o maxilar pensativo, coçando a barba que já tinha crescido desde aquela manhã. Desejava saber se por acaso Lara sabia dos diários.
Não voltou a ver Lara desde o jantar. Ela tinha jantado pouco e retirou-se cedo, fugindo dele como um coelho assustado. Os criados estavam a comportar-se de modo bastante discreto, provavelmente seguindo as instruções da governanta, a senhora Gorst. Certamente, entendiam que Hunter estaria a desfrutar do seu tão esperado regresso a casa.
Infelizmente, aquela seria a primeira de muitas noites que passaria sozinho. Ele nunca forçaria uma mulher que estivesse pouco disposta, independentemente do desejo que sentisse por ela. Levaria muito tempo e paciência para ganhar um lugar no leito de Lara. Mas Deus sabia que ela valia o esforço. A reação de Lara ao beijo que ele lhe deu naquela tarde foi a garantia que ele procurava. Ela tinha sido decididamente relutante, mas não fria. Por um momento, ela respondeu-lhe com uma doçura e um ardor impressionantes. Ao recordar aquele momento, Hunter arrepiou-se e voltou a sentir-se novamente excitado.
Um sorriso proibitivo torceu-lhe a boca enquanto lutava por recuperar o domínio de si mesmo. Uma coisa era clara para ele, não iria permanecer casto por muito mais tempo. Naquela altura, qualquer mulher serviria para satisfazer as suas necessidades, mas ele estava decidido viver como um monge, enquanto a sua mulher lindíssima dormia a poucos metros do seu quarto.
Colocou a miniatura da imagem de Lara sobre uma mesa semicircular, apoiada contra a parede, e passou o dedo pela borda gasta da armação esmaltada. Com um toque desembaraçado, abriu a armação revelando o delicado retrato que continha. A visão familiar do rosto de Lara acalmou-o e aliviou-o, como de costume.
O retratista que o tinha pintado não tinha conseguido catar toda a sensualidade da sua boca, a doçura singular da sua expressão, a cor dos seus olhos, que se assemelhavam à névoa que colma um prado verde. Um mero pincel sobre uma tela nunca poderia refletir tais pormenores.
Lara era uma mulher excepcional, com uma capacidade invulgar para se preocupar com os outros. Generosa e sempre disponível para acorrer às súplicas dos outros, ela parecia ter um talento especial para aceitá-los com todos os seus defeitos. Seria muito fácil para alguém aproveitar-se dela — Ela precisava da proteção e do apoio de um homem. Ela precisava de muitas outras coisas e ele estava totalmente disposto a fornecê-las.
Sentiu uma súbita necessidade de voltar a vê-la, para se assegurar de que ela estava ali, junto a ele, e saiu do seu quarto e foi até ao quarto dela, que estava separado do seu por três quartos.
— Lara — murmurou, batendo à porta com suavidade, atento aos sons e movimentos que pudessem vir lá de dentro. Nada, apenas um silêncio completo. Repetiu o seu nome, testou a maçaneta e percebeu que a porta estava trancada.
Ele entendeu a necessidade de Lara de pôr algum tipo de barreira entre ambos, mas uma espécie de revolta masculina primitiva incendiou-se dentro dele. Ela pertencia-lhe, e não se lhe poderia negar o acesso a ela.
— Abra a porta — disse, enquanto voltava a rodar a maçaneta advertindo-a. — Agora, Lara.
Então a resposta dela chegou, pronunciada num tom de voz mais agudo que o normal.
— Eu... eu não quero vê-lo esta noite.
— Deixe-me entrar.
— Prometeu-me — lembrou ela num tom tenso. — Disse-me que não me tomaria pela força!
Hunter empurrou a porta com o ombro e abriu-a com estrondo, descobrindo que a pequena fechadura metálica era mais ornamental que útil.
— Não haverá mais nenhuma porta fechada entre nós dois — advertiu com aspereza.
Lara deixou-se ficar de pé, junto à cama, com o rosto pálido e com os braços magros a cobrirem firmemente o seu corpo. Com a postura rígida dela, era evidente que estava a usar toda a sua capacidade de autodomínio para não sair dali imediatamente. Ela parecia um anjo, o seu corpo coberto por camadas de musselina branca, o cabelo penteado num escuro e brilhante cacho caído sobre o ombro. Ao recordar-se da ternura firme dos seus seios e das suas ancas nas suas mãos, e a doçura da sua boca contra a sua, Hunter sentiu um calor abrasador a subir por entre as pernas. Não se conseguia lembrar do que era desejar tanto uma mulher, ansiando tocá-la, cheirá-la e saboreá-la com todas as forças do seu corpo.
— Por favor, deixe-me — suplicou ela, vacilante.
— Eu não vou violá-la, Lara — respondeu com brusquidão. — Se essa fosse a minha intenção, eu já estaria em cima de si.
A crueza daquelas palavras fizeram-na vacilar.
— Então porque é que está aqui?
— Pensei que poderia dizer-me onde está o resto das minhas coisas.
Lara pensou na pergunta por uns instantes.
— O Arthur vendeu ou destruiu muitas das suas coisas quando se mudou para esta casa — respondeu. — E eu não estava em posição de me opor.
Hunter fez uma expressão de desagrado, condenando Arthur em silêncio. Só esperava que o canalha não tivesse encontrado os diários, nem tivesse descoberto os segredos que eles continham... Era preferível que ele se tivesse desfeito deles.
— Pedi aos criados que levassem para o seu quarto tudo o que encontrassem — murmurou Lara. — Mas estava à procura de quê, especificamente?
Ele encolheu os ombros e permaneceu calado. Possivelmente os diários poderiam estar escondidos num canto qualquer da casa. Nesse caso, ele preferiria que Lara não soubesse da sua existência.
Ao passear-se pelo quarto, notou o modo como Lara retrocedia, mantendo a distância entre os dois. Ela mostrava-se adorável e cautelosa, com o seu pequeno queixo erguido num ato de desafio. O olhar dela pousou sobre o roupão que ele usava, e olhava para ele com um incômodo tão evidente que Hunter percebeu que despertava nela uma recordação desagradável.
— O que se passa? — perguntou ele bruscamente.
Lara franziu ao de leve a sobrancelha.
— Não se lembra?
— Não — respondeu Hunter, inclinando ligeiramente a cabeça. — Diga-me.
— Hunter tinha esse roupão vestido na última vez que nós... A última vez que me visitou - pela sua expressão, era evidente que a experiência não tinha sido particularmente agradável.
Hunter ouviu-se a si mesmo a murmurar qualquer desculpa. Depois ficaram os dois toldados por um incômodo silêncio, enquanto encarava a sua mulher com uma mistura de irritação e arrependimento e se questionava como eliminar a apreensão nos olhos dela.
— Já lhe disse que não voltará a ser assim.
— Sim, meu senhor — murmurou ela, sendo óbvio que não acreditava nele.
Remoendo palavras de desagrado em voz baixa, ele atravessou o tapete oriental. Sabia que seria um enorme alívio para ela se ele saísse do quarto agora, mas ele ainda não o queria fazer. Tinha passado muito tempo sem desfrutar de verdadeira companhia. Ele sentia-se sozinho e estar na presença dela era o único conforto que tinha, apesar de Lara não sentir muito afeto por ele.
O quarto estava decorado com o mesmo estilo floreado do seu, mas ainda pior. A cama era quase um monumento, de colunas esculpidas com remates dourados, tão grossas como troncos de árvore, e sanefas pesadas trabalhadas com contas douradas e sobrepostas. O teto estava completamente preenchido com formas em relevo, formando uma imagem de conchas douradas e golfinhos... Isto não esquecendo um enorme espelho oval que estava colocado por cima da cama, emoldurado com figuras de sereias com o peito nu.
Ao ver onde a atenção de Hunter se dirigia, Lara tentou então quebrar a tensão com uma conversa trivial.
— Janet devia estar fascinada pelo seu próprio reflexo. Porque é que ela gostaria tanto de se ver ao espelho enquanto adormecia?
A sua inocência comoveu Hunter.
— Eu não creio que o ato de dormir fosse o que o espelho estava destinado a refletir — disse secamente.
— Está dizendo que ela queria ver-se durante... — Claramente confundida com a ideia, Lara corou. — Mas porquê?
— A algumas pessoas, provoca-lhes muito prazer verem-se a si próprias durante o ato.
— Mas Janet não parece ser o tipo de mulher que...
— Não se surpreenda com o que as pessoas possam fazer na privacidade dos seus quartos — Aconselhou, aproximando-se dela.
Ele esperava que ela se afastasse, mas manteve-se no mesmo sítio a olhá-lo com os seus olhos verdes translúcidos. Hunter apercebeu-se da curiosidade e das suspeitas que afloravam na mente dela.
— E você já alguma vez... — Começou Lara a perguntar, interrompendo-se subitamente.
— Não, nunca por debaixo de um espelho — Contestou ele, num tom impessoal, apesar de a ideia o entusiasmar tremendamente. Imaginou-se a empurrar Lara para cima da cama, a levantar-lhe a camisa de noite e a enterrar a cabeça entre as suas belas coxas, enquanto os seus corpos entrelaçados se refletiam no espelho do teto.
— Penso que é uma ideia muito tola — disse Lara.
— O meu lema é que não nós devemos nos opor a nada até o termos experimentado.
Uma gargalhada curta, quase relutante, escapou de Lara.
— Pois esse lema pode levá-lo a uma série de problemas.
— E já me levou — Admitiu, com algum pesar.
Algo na sua expressão disse a Lara que ele se estaria a recordar das suas experiências na Índia, e algumas delas não teriam sido particularmente agradáveis.
— Encontrou o que procurava nas suas viagens? — perguntou vacilante. — A excitação e a aventura que tanto ansiava?
— Descobri que aquela excitação e aventura estão valorizadas em excesso — respondeu. — O que recolhi das minhas viagens foi um novo sentimento de apreciação pela nossa terra, pela nossa casa. Por pertencer a algum lugar — Ele fez uma pausa e fixou os olhos de Lara. — Por você.
— Mas quanto tempo vai isso durar? — perguntou ela com suavidade. — Vai aborrecer-se deste sítio, desta gente e de mim, como já aconteceu antes.
— Eu, vou querê-la para sempre — Hunter com disse uma voz interior perturbada e ansiosa, surpreendendo a sua insistência. Ele queria aquilo.
Ele queria-a a ela. Ocuparia o lugar que ali lhe pertencia e lutaria por ele até lhe faltarem as forças.
— Acredite em mim — disse num tom grave — Eu poderia passar dez mil noites nos seus braços sem nunca me aborrecer.
Ela dirigiu-lhe um olhar meio incomodado, meio cético e sorriu.
— Depois de um ano de castidade, senhor, parece-me que qualquer mulher o fascinaria.
Então, Lara dirigiu-se até ao toucador e começou a entrançar o cabelo, deslizando os seus dedos magros por aquele suave rio de seda. Era um sinal subtil para que Hunter se retirasse, mas ele decidiu ignorá-lo. Foi atrás dela e encostou-se à parede, admirando-a.
— A castidade é uma virtude admirada entre os hindus - observou ele.
— Ah, sim? — respondeu ela com uma frieza deliberada.
— Demonstra o domínio de um homem sobre si mesmo e sobre o ambiente que o rodeia, e permite aproximá-lo da verdadeira consciência espiritual. Os hindus praticam o autocontrolo decorando os seus templos com arte erótica. Visitar esses templos é uma prova de fé e de disciplina, e só os mais devotos conseguem olhar para as pinturas sem ficarem excitados.
Lara concentrou-se em entrançar o cabelo com um cuidado escrupuloso.
— E já visitou esses lugares?
— Sem dúvida. E, lamentavelmente, não me pude incluir entre os mais devotos.
— Que surpreendente — disse Lara num tom suavemente sarcástico que o fez sorrir.
— Os meus companheiros disseram-me que tive uma reação típica de todos os ingleses. Os hindus são muito superiores na arte de dominar os limites do prazer e da dor, e chegam até a alcançar o controle supremo das suas mentes e dos seus corpos.
— Que pagãos — Comentou Lara, terminando a trança.
— Oh, sim, claro. Eles adoram muitos deuses, incluindo Shiva, Senhor das Bestas e Deus da Fertilidade. Disseram-me que ele inventou milhões de posições sexuais, apesar de só ter transmitido uns milhares delas aos seus seguidores.
— Milhões de... — Lara ficou tão impressionada que se virou para ele. — Mas há só uma... — Ela olhou para ele genuinamente perplexa.
O prazer que Hunter sentia em provocá-la desvaneceu-se e ficou, de repente, sem palavras, olhando para ela com uma expressão que se igualava à sua. Então foi assim que deve ter sido para ela, um ato rotineiro e sem alegria. Não era de estranhar que ela o tivesse recebido com tanta relutância.
— Lara — disse com doçura, — há coisas que eu nunca lhe ensinei... Coisas que devia ter feito...
— Não há problema - interrompeu ela, incomodada. — Por favor, não quero falar sobre o nosso passado, especialmente sobre esses pormenores. Agora, eu gostava de ir dormir. Estou muito cansada — Dobrou a coberta e os lençóis de linho para trás, e com as suas pequenas mãos alisou o tecido bordado.
Hunter sabia que deveria sair imediatamente, mas algo o impeliu a aproximar-se dela e a pegar numa das suas mãos frágeis. Levou a mão até aos lábios e apertou-a contra a boca e o queixo, obrigando-a a aceitar o beijo ardente que, então, lhe dava na palma da mão. Lara estremeceu... Hunter conseguiu sentir a vibração que se estendia ao longo do braço dela, mas ela não tentou retirá-lo.
— Um dia, a Lara aceitará que eu fique a seu lado — murmurou ele, passando o seu olhar dos olhos verdes e penetrantes de Lara, para o lado vazio da cama. Ele soltou-a devagar e ela esfregou a mão, como se estivesse dorida.
— A machuquei? — perguntou com preocupação.
— Não, é que... Não.
Ela deixou cair as mãos para o lado, encarando-o com uma expressão estranha.
Ao compreendê-la, Hunter sentiu uma dor aguda dentro de si. Sacudiu a cabeça, esboçou um sorriso triste e saiu do quarto imediatamente, consciente de que, se ficasse mais um minuto sequer, não se poderia conter e tomaria. Antes de fechar a porta atrás dele, olhou por um instante para Lara, que permanecia sem se mover, com o rosto sereno e adorável.
Capítulo 5
Para consternação de Lara, a multidão de visitantes que eles receberam no dia anterior não era nada comparada com a torrente de gente que agora inundava Hawksworth Hall. Parecia que cada uma das setenta e quatro divisões da mansão estava tão cheia que quase transbordava. Tinham vindo figuras políticas locais, representantes da burguesia e habitantes da cidade, movidos pela curiosidade e excitação em torno de Hawksworth.
Várias carruagens, equipadas com quatro e seis cavalos estavam alinhadas ao longo do caminho principal, e a entrada de serviço estava repleta de lacaios e postilhões com várias tonalidades de librés.
— Quer que os mande embora? — perguntou Lara a Hunter naquela manhã, quando a enchente de convidados começava a chegar. — A senhora Gorst pode dizer que se esta se sentindo indisposto.
— Mande-os entrar — Hunter recostou-se na poltrona da biblioteca com uma postura que revelava uma certa expectativa. — Eu gostaria de rever algumas caras familiares do passado.
— Mas o doutor Slade recomendou descanso e recolhimento durante os próximos dias, até que se adapte ao regresso e à casa...
— Eu tive meses de descanso e de recolhimento.
Lara encarou-o, confusa. Hunter estava sempre disposto a preservar a dignidade familiar, e sabia que o mais conveniente era que se mantivessem afastados durante alguns dias e que deveria organizar a sua reentrada na sociedade de um modo mais cuidado.
— Vai ser um circo — respondeu de imediato. — Não os pode deixar entrar a todos de uma vez.
Hunter exibiu um sorriso cordial, mas o seu tom era inflexível.
— Mas eu insisto.
Hunter deu as boas-vindas a todos e a cada convidado individualmente com uma boa disposição tão sincera que surpreendeu Lara. Apesar de Hunter ter sido sempre um ótimo anfitrião, nunca pareceu que ele tivesse algum prazer nisso, especialmente quando se tratava de receber a pequena burguesia ou os conterrâneos mais humildes. Simplórios, era assim que ele os chamava com desprezo. Naquele dia, no entanto, ele deu-se ao trabalho de receber com grande entusiasmo cada um deles, tratando-os de igual modo. Com um charme encantador, entreteve-os com histórias sobre as suas viagens pela Índia, conseguindo acompanhar duas ou três conversas simultaneamente, passeando pelos jardins ou pela galeria de arte com um ou dois dos seus amigos mais chegados. Quando o meio-dia chegou, abriu garrafas do mais fino conhaque e caixas de charutos de aroma intenso, e todos os cavalheiros se reuniram ao seu redor. Nas traseiras da casa, a cozinha era uma algazarra, com os esforços do pessoal a preparar refrescos para toda a multidão. Chegaram bandejas de delicadas sanduíches, travessas de limas e figos secos e pratos de bolos, que foram devorados avidamente. Lara cumpriu o seu dever entretendo os convidados, servindo dúzias de xícaras de chá e ouvindo as perguntas que saíam por entre o grasnar das mulheres excitadas.
— O que pensou quando o viu pela primeira vez? — perguntou uma mulher, enquanto outra exigia saber:
— Quais foram as primeiras palavras dele para si?
— Bem — respondeu Lara, um pouco incomodada, — de fato, foi uma grande surpresa...
— Você começou a chorar?
— Desmaiou?
— Ele tomou-a nos braços...
Já cansada pela investida de perguntas, Lara baixou o olhar para a sua xícara de chá. Nesse momento, ouviu a voz áspera e divertida da irmã à entrada da sala.
— Parece-me que nenhum desses assuntos vos diz respeito, minhas senhoras.
Lara ergueu o olhar e sentiu que estava à beira de começar a chorar ao ver o rosto compreensivo de Rachel. Rachel compreendia, mais do que qualquer pessoa, o que significava para ela o regresso de Hunter. Esforçando para esconder o seu alívio, Lara retirou-se do círculo de bisbilhotices e puxou Rachel para fora da sala. Pararam numa esquina sossegada que existia por debaixo das escadarias, Rachel segurou nas mãos de Lara e apertou-as solidária.
— Sei que tem muitas visitas — disse Rachel. — Eu ia esperar até mais tarde, mas não consegui aguentar.
— Nada me parece real — murmurou Lara para evitar ser ouvida. — As coisas mudaram tão depressa que eu nem sequer tive tempo para respirar. De repente, o Arthur e a Janet já não estão mais aqui, e eu estou de volta aqui com Hunter... e ele é um estranho.
— Diz estranho num sentido figurado ou literal? — perguntou Rachel com gravidade.
Lara dirigiu-lhe um olhar sobressaltado.
— Sabe bem que eu não o aceitaria a menos que estivesse convencida de que ele é o meu marido.
— Claro, minha querida, mas... ele não é exatamente o mesmo, não acha? — Não era uma pergunta, era uma afirmação.
— Então, já esteve com ele? — murmurou Lara.
— Cruzamos por acaso quando ele se dirigia com o senhor Cobbett e o Lorde Grimston para a sala de fumo. Ele reconheceu-me assim que me viu, e parou para me cumprimentar com grande afeto fraterno. Afastamos um pouco e falamos brevemente, e ele expressou a sua preocupação por tudo o que você sofreu durante a ausência dele. Me perguntou ainda pelo meu marido, e pareceu genuinamente satisfeito quando soube que Terrell viria amanhã - o rosto de Rachel transformou-se numa expressão de espanto. — Ele pareceu comportar-se como o Lorde Hawksworth até certo ponto, mas...
— Eu sei — disse Lara com seriedade. — Ele não é o mesmo. Suponho que tenha mudado devido às suas experiências, no entanto, há certas coisas que não com você entender ou explicar.
— Como a tem tratado até agora?
— Muito bem, na realidade — respondeu Lara, encolhendo os ombros. — Ele esta tentando ser agradável, e... há um certo charme e sensibilidade nele e eu não me recordo que ele os tivesse antes.
— Que estranho, não acha? — Comentou Rachel pensativa. — Eu também notei o mesmo... Ele está realmente bastante atraente. O tipo de cavalheiro por quem as mulheres suspiram. E antes ele não era assim.
— Não — Concordou Lara. — Ele não está igual ao homem que eu conheci.
— Estou curiosa por ver como reagirá com Terrell — disse Rachel. — Eles eram amigos tão íntimos. Se este homem é um impostor...
— Não pode ser — disse Lara de imediato. A sua mente recusou-se a aceitar a terrível possibilidade de poder estar vivendo com um hábil mentiroso, um ator como nunca tinha conhecido.
— Larissa, se houver a mais pequena hipótese de ele ser um impostor, você poderá estar em perigo. Não conhece o passado dele, ou do que ele pode ser capaz...
— Ele é o meu marido - insistiu Lara com determinação, apesar de se sentir empalidecer. — Estou convencida.
— Esta noite... ele tentou...
— Não.
— Eu suponho que quando ele a segurar nos braços, você saberá se ele é o homem com quem se casou ou não.
Quando Lara tentou responder, lembrou-se da névoa ardente da respiração de Hunter sobre a sua pele, a textura do seu cabelo contra os seus dedos, a fragrância de sândalo nas narinas. Ela sentiu uma certa harmonia, estranha e elementar entre os dois.
— Eu não sei quem ele é — disse num sussurro inquieto. — Mas eu tenho de acreditar que ele é o meu marido, porque é isso que faz mais sentido. Nenhum estranho poderia saber as coisas que ele sabe.
A noite aproximou-se e os convidados demoravam a retirar-se, apesar das recomendações do doutor Slade.
— Ele já fez demasiados esforços por um dia — disse o velho doutor a Lara. Olharam os dois para Hunter que se mantinha de pé junto a um aparador, no lado mais distante da sala.
— Está na hora de ele descansar, Lady Hawksworth.
Lara observou o seu marido enquanto ele servia um cálice de conhaque e se ria de alguma piada de um dos seus amigos, parecendo bastante à vontade... até que foi visível uma tensão ao redor dos seus olhos e pregas profundas nos dois lados da boca.
Tinha sido tudo uma atuação, percebeu Lara. Um desempenho habilmente executado, planeado para ganhar o apoio de toda a cidade... e teve êxito. Nesse dia, ele foi o perfeito senhor da mansão: confiante, hospitaleiro, e cortês. Se, de início, os seus convidados ainda tivessem alguma dúvida sobre a sua identidade, muito poucos duvidavam dele agora.
Lara sentiu uma ponta de compaixão por ele. Apesar de todas as pessoas que o rodeavam, ele parecia muito só.
— Ele parece esgotado — disse ela ao doutor Slade. — Talvez o senhor possa utilizar a sua influência para o obrigar a retirar-se.
— Eu já tentei — disse o velho doutor suspirando, esfregando uma das suas longas costeletas grisalhas.
— Ele é tão teimoso como uma mula. Suponho que desempenhará o papel de anfitrião até cair de cansaço.
Lara olhou para o marido.
— Ele nunca prestou atenção aos conselhos dos outros — Concordou, tranquilizada por isso, pelo menos, ser uma coisa que não tinha mudado em Hunter. — Mas mesmo assim, vou fazer uma tentativa para alterar esta situação.
Com um sorriso cordial, aproximou-se de Hunter e os três homens levantaram-se com ele. Começou pelo que estava mais próximo de si, Sir Ralph Woodfield, um cavalheiro muito rico e com uma paixão pela caça.
— Sir Ralph — Exclamou deliciada, — é um grande prazer encontrá-lo!
— Mas, muito obrigado, Lady Hawksworth — respondeu ele cordialmente. — Permita-me felicitá-la pela sua boa sorte? Todos nós sentíamos muita falta deste nosso bom amigo. Mas eu não tenho nenhuma dúvida de que será a senhora aquela que se sente mais feliz pelo seu regresso - uma piscadela maliciosa pontuou esta afirmação.
Lara corou com aquele atrevimento. Não era o primeiro comentário deste tipo que recebia naquele dia, como se toda a cidade de Market Hill achasse que ela era uma viúva ávida por amor. Disfarçando o seu aborrecimento, sorriu para ele.
— Realmente, sinto-me abençoada, senhor. E também assim se sentirão outros. Permita-me que lhe fale sobre a ideia que tive recentemente, estou certa que irá achá-la maravilhosa.
— Ah, sim? — Sir Ralph levantou a cabeça, já que as palavras de Lara pareciam penetrar na névoa agradável produzida pelo conhaque.
— Eu estava a pensar na sua coleção de animais de raça pura, e no excelente cuidado que o senhor lhes dá, e então ocorreu-me... porque não desenvolve o Sir Ralph uma casa para cavalos velhos e doentes, aqui mesmo, em Market Hill?
O queixo dele caiu.
— Um... uma casa para...
— Um lugar para onde possam ir quando já estiverem muito débeis, doentes ou incapazes de executar as suas obrigações. Tenho a certeza de que se incomoda ao saber que tantos cavalos leais são desnecessariamente sacrificados depois de tantos anos de serviço.
— Sim, mas...
— Eu sabia que o senhor se entusiasmaria com a ideia de poder salvar a vida desses pobres animais — disse Lara. — O senhor é um homem maravilhoso, Sir Ralph. Discutiremos este assunto em breve e definiremos, então, um plano de ação.
Claramente transtornado, Sir Ralph murmurou algo sobre ter de ir para casa para estar com a sua mulher, despediu-se deles e esquivou-se até desaparecer do salão.
Lara voltou-se para o cavalheiro seguinte, um solteiro assumido de quarenta e cinco anos.
— No que diz respeito ao senhor Parker, eu tenho dedicado muito tempo a pensar na sua situação.
— Na minha situação? - repetiu ele, erguendo as sobrancelhas até estas formarem uma linha reta na testa.
— Saiba o senhor que tenho andado muito preocupada pelo fato de o senhor estar privado da companhia e de todo o cuidado e conforto que só uma esposa pode oferecer... Bem, eu encontrei a mulher certa para o senhor.
— Deixe-me dizer, Lady Hawksworth, que não é realmente necessário....
— Ela é perfeita - insistiu Lara. — Chama-se Mary Falconer. Os dois são notavelmente parecidos em caráter: independentes, práticos, e com opiniões claras... Formam o par ideal. A intenção apresentá-los sem demora.
— Eu já conheço a senhorita Falconer — disse Parker, rangendo os dentes. — Uma solteirona já com uma certa idade e de mau caráter, dificilmente a consideraria como o par ideal.
— Já com uma certa idade? De mau caráter? Deixe-me dizer-lhe, senhor, que a menina Falconer é um anjo. Insisto em que trate de a conhecer melhor, e verá como está enganado.
Resmungando em voz baixa, Parker saiu precipitadamente, não sem antes dirigir um olhar sério a Hunter, em tom de recomendação para que este controlasse melhor a sua mulher. Hunter limitou-se a sorrir e a encolher os ombros.
Assim que Lara dedicou a sua benevolente atenção aos outros convidados, todos eles, de repente encontraram motivos para partirem de imediato, recolhendo a toda a pressa os chapéus e as luvas, e apressando-se para as suas carruagens.
Com a saída da última visita, Hunter juntou-se a Lara no vestíbulo da entrada.
— Tem um grande talento para esvaziar um quarto, meu amor.
Sem saber se aquilo era um elogio ou uma reclamação, ela respondeu cautelosamente.
— Alguém tinha de se livrar deles, ou então ficariam aqui toda a noite.
— Muito bem, já que expulsou as nossas visitas, agora tem-me todo para si. Tenho interesse em conhecer os seus planos para o resto do serão.
Desconcertada pelo brilho malandro que via nos seus olhos, Lara entrelaçou os dedos num nó.
— Faça o favor de se retirar para o seu quarto, eu farei com que lhe levem uma bandeja com a ceia.
— Está sugerindo que eu vá para a cama tão cedo e sozinho? - o seu rápido sorriso divertia-se e namoriscava com dela. — Eu esperava uma oferta melhor que essa. Penso que irei para a biblioteca e escreverei algumas cartas.
— Peço, então, que lhe levem a ceia para lá?
Hunter negou com a cabeça.
— Não tenho fome.
— Mas deveria comer qualquer coisa — protestou Lara.
Ele olhou-a com uma expressão que lhe causou uma doce e estranha sensação no estômago.
— Parece-me que está decidida em alimentar-me. Muito bem, cearemos na sala de estar familiar lá de cima.
Ao pensar naquele lugar confortável, situado demasiado próximo do quarto de Hunter, Lara hesitou e negou imediatamente com a cabeça.
— Eu preferiria a sala de jantar aqui em baixo.
Hunter franziu a sobrancelha.
— Eu perderia o meu apetite. Já tive oportunidade de ver o que Janet fez com a sala.
Lara sorriu pesarosamente.
— Os motivos egípcios são a última moda, ouvi dizer.
— Esfinges e crocodilos — murmurou ele. — Serpentes esculpidas nas pernas da mesa. Eu pensava que a entrada principal já era bastante má. Quero que tudo volte a ficar como estava antes da minha partida. É realmente estranho regressar a casa e não reconhecer metade dos quartos. Panos turcos, dragões chineses, esfinges... É um pesadelo.
Lara não conseguiu evitar uma gargalhada com aquele comentário duro.
— Eu também acho — Confessou. — Quando vi o que eles estavam fazendo à casa, não sabia se havia de rir ou de chorar... Oh, e a sua mãe teve um verdadeiro ataque de nervos! Ela recusou-se a pôr um pé aqui novamente.
— Pois parece-me que esse é um ótimo argumento para conservar tudo tal como está — respondeu ele, secamente.
Lara tapou a boca com os dedos, mas o riso escapou-se mesmo assim e ecoou contra as paredes de mármore. Hunter sorriu e segurou na mão dela antes que ela tivesse tempo para reagir. Apertando-a ligeiramente, esfregou o seu polegar na palma dela.
— Suba e ceie comigo — disse.
— Eu não tenho fome.
Hunter apertou a mão entre as suas.
— Lara necessita de comer mais do que eu. Já me esquecia como é pequena.
— Eu não sou pequena — protestou ela, puxando a mão numa tentativa vã de se soltar.
— Poderia pô-la no meu bolso — Ele puxou-a para junto dele, sorrindo com a sua frustração. — Venha comigo lá para cima. Não tem medo ficar sozinha comigo, pois não?
— Claro que não.
— Acha que irei beijá-la novamente. Será isso?
Lara percorreu o olhar por todo o vestíbulo, receosa de que algum criado pudesse ouvi-los.
— Não tenho a intenção falar sobre...
— Eu não a beijarei - prometeu ele, muito sério. — Não lhe vou tocar. Agora diga que sim.
— Hunter...
— Diga.
Lara deixou escapar um riso arreliado.
— Muito bem, se para você é tão terrivelmente importante que nós compartilhemos uma refeição...
— Terrivelmente — disse ele suavemente, e os seus dentes resplandeceram num sorriso triunfal.
Apesar das mudanças que Lorde Arthur e Lady Janet tinham feito por todo o lado, eles conservaram a cozinheira, algo pelo qual Lara estava agradecida. A cozinheira, a senhora Rouillé estava ao serviço dos Hawksworth há mais de uma década. Especializada em receitas francesas e italianas, preparava pratos com uma subtileza que rivalizava com os melhores chefes de cozinha em Londres.
Lara já tinha habituado às refeições simples que tomava na sua pequena casa, ou aos guisados que eram trazidos por alguma ajudante de cozinha que ocasionalmente vinha da aldeia. Era um prazer sentar-se outra vez à mesa para comer uma refeição preparada na mansão. Em honra do regresso de Hunter, a senhora Rouillé tinha preparado o prato favorito dele, perdiz assada guarnecida com limão, acompanhada por creme de berinjelas, alcachofras cozidas, e um pudim de massa cozinhado ao vapor coberto com manteiga e queijo ralado.
— Oh, como eu tinha saudades disto! — Lara não pôde deixar de exclamar quando chegou o primeiro prato à mesa do salão privado. Respirou o aroma embriagador daquela amostra de arte culinária e suspirou. — Devo confessar que o maior sofrimento foi ter de viver sem os cozinhados da senhora Rouillé.
Hunter sorriu, com o rosto iluminado pela luz dourada das velas. Aquela luz parecia suavizar o seu semblante, mas nenhum truque de luz ou sombra poderiam esconder o perfil marcado e elegante das suas maçãs do rosto ou do seu maxilar bem saliente. Desconcertou-a ver o rosto do seu marido assim, tão familiar e tão alterado também.
Lara questionou-se já alguma vez o tinha observado com tanta atenção e durante tanto tempo. Ela não conseguia evitar o seu olhar, que a observava incansavelmente, e com tanta intensidade como que a tentar ler os seus pensamentos mais íntimos.
— Eu deveria ter-lhe trazido algum dos pratos que eram servidos a bordo durante a minha viagem de regresso — Comentou Hunter. — Carne seca salgada, ervilhas secas, e grogue. Isto para não falar do queijo duro e da cerveja azeda, e uma ração adicional de gorgulhos.
— Gorgulhos! — Exclamou Lara, horrorizada.
— Eles infestaram as bolachas de água e sal — Ele riu-se da expressão dela. — Depois de algum tempo, aprendemos a estar-lhes agradecidos... perfuravam as bolachas, tornando as mais fáceis de partir.
Lara fez uma careta.
— Não quero ouvir falar dos gorgulhos. Vão estragar a minha refeição.
— Peço desculpa — Ele tentou dar ar de arrependido, lembrando a Lara os meninos endiabrados do orfanato. — Mudemos de assunto, então - o olhar dele caiu sobre a mão esquerda da sua mulher, enquanto ela pegava num pedaço de pão e o partia. — Diga-me, porque não está a usar o anel que eu lhe ofereci?
Lara encarou-o inexpressivamente, mas em seguida compreendeu e sentiu um choque.
— Oh, eu... - interrompeu as palavras, protelando durante algum tempo, enquanto as suas faces ficavam totalmente coradas.
— Onde está? - insistiu suavemente.
— Não me lembro com exatidão...
— Eu acho que se lembra.
Lara quase sufocou com o sentimento de culpa. O anel, uma banda de ouro trabalhada, devia ser a única joia que ele alguma vez lhe tinha dado.
— Sei que não o devia ter feito, mas o vendi — disse ela à pressa. — Era o meu único objeto de valor e precisava do dinheiro. Eu não podia suspeitar que pudesse alguma vez vir a saber disto, ou...
— E precisava do dinheiro para quê? Para comida? Roupa?
— Não era para mim, era... — Ela suspirou fundo e soltou o ar devagar. — As crianças, do orfanato. São quase quarenta, com idades muito diferentes, e necessitam de tantas coisas. Eles não tinham mantas suficientes, e quando eu pensava naquelas pobres crianças a tremerem nas suas camas à noite... Eu não pude suportá-lo. Fui ter com o Arthur e a Janet, mas eles disseram... bem, isso não importa. O fato era que eu tinha de fazer alguma coisa e o anel era inútil para mim. — Ela olhou para ele, como que a pedir desculpas. — Eu não sabia que iria voltar.
— Quando começou o seu envolvimento com o orfanato?
— Há poucos meses atrás, quando o Arthur e a Janet se mudaram para cá. Eles pediram-me que fosse viver na casa do couteiro, e eu...
— O título esteve nas mãos deles apenas dois meses.
Lara encolheu os ombros.
— Se eu tivesse insistido para ficar só resultaria em adiar o que era, a meu ver, inevitável. E eu achei que seria bom para eu ir viver naquela casinha. Estaria protegida e sossegada durante o resto da minha vida. Quando me vi forçada a deixar a mansão e a ir viver em circunstâncias mais humildes, abri os meus olhos às necessidades das pessoas que me rodeavam. Os órfãos, os idosos e os doentes, os que estão sozinhos...
— Hoje, mais do que uma pessoa comentou que você se tornou a casamenteira da cidade.
Lara corou, com modéstia.
— Eu só ajudei em duas ocasiões. Isso não é o suficiente para me qualificarem como casamenteira.
— Também a descreveram como uma intrometida.
— Intrometida? — Exclamou, indignada. — Garanto-lhe que jamais me meti onde não era chamada.
— Doce Lara - havia um brilho divertido nos seus olhos. — Até a sua irmã admitiu que você não consegue resistir a tentar solucionar os problemas de outras pessoas. Uma tarde por semana passa horas a ler para uma senhora de idade, cega... uma tal senhora Lumley, creio. Passa dois dias inteiros no orfanato, outro fazendo recados para um casal de velhotes, e o resto do tempo planejando e arranjando casamentos e pressionando as pessoas mais relutantes para que pratiquem boas ações.
Lara estava deveras surpreendida por Rachel lhe ter contado tantas coisas.
— Eu não sabia que era um crime ajudar alguém em necessidade — disse ela, com toda a dignidade que conseguiu reunir.
— E as suas necessidades?
A pergunta era tão íntima e inquietante, e simultaneamente tão pouco específica, que Lara só conseguia olhar para Hunter com os olhos muitos abertos, confusa.
— Penso que não entendo bem o que quer dizer. Eu considero-me, em todos os aspectos, muito satisfeita. Os meus dias estão preenchidos com amigos e atividades interessantes.
— Nunca deseja algo mais?
— Se está a referir-se, se alguma vez desejei voltar a casar, a resposta é não. Eu descobri que é possível levar uma vida agradável e produtiva sem ter de ser a mulher de alguém - um impulso interior incitou-a ainda a acrescentar, — não gostei, nem gosto, de ter um marido.
O rosto de Hunter ficou sereno e muito sério. Lara pensou que ele estava aborrecido com ela, até que ele disse, num tom cheio de remorsos:
— A culpa é minha — Aquele repente de amargura incomodou-a.
— A culpa não é de ninguém — disse ela. — A verdade é que nós não nos conhecíamos. Não partilhávamos os mesmos interesses, contrariamente ao que lhe sucedia com Lady Carlysle. Na realidade, senhor, penso que deveria ir ter com ela...
— Eu não quero a Lady Carlysle - interrompeu, bruscamente.
Lara pegou no garfo e começou a entreter-se com um bocado de perdiz, mas o seu anterior prazer na comida tinha desaparecido.
— Lamento a questão do anel — disse.
Ele renunciou às palavras com um gesto impaciente.
— Eu pedirei que lhe façam outro.
— Não há necessidade. Eu não quero outro — Lara dirigiu-lhe um olhar discreto, mas firme, com todo o seu corpo fervilhando de rebelião. Agora ele tomaria o comando e a submeteria aos seus desejos. Mas ele limitou-se a fixá-la e a encostar-se para atrás na cadeira, contemplando-a como se a achasse um fascinante quebra-cabeças.
— Então, eu terei de a convencer.
— Eu não tenho nenhum interesse em joias, senhor.
— Depois veremos isso.
— Se o que deseja é desperdiçar dinheiro, apesar de eu duvidar que ainda haja muito para gastar, me agradaria muito mais que fizesse obras de melhoramento no orfanato.
Ele olhou para a mão esquerda de Lara, cujos dedos seguravam o garfo de prata como se fosse uma arma.
— Os órfãos são afortunados por terem uma benfeitora tão dedicada. Muito bem, faça uma lista do que necessita, e discutiremos isso.
Lara acenou com a cabeça e removeu o guardanapo de linho do seu colo.
— Obrigada, senhor. Agora, se me der licença, gostaria de me retirar.
— Antes da sobremesa? — Hunter dirigiu-lhe um olhar de reprovação e sorriu. — Não me diga que já não é gulosa.
Lara não pôde deixar de devolver-lhe o sorriso.
— Ainda sou — Admitiu ela. Pedi à senhora Rouillé que nos fizesse uma tarte de pêra.
Hunter levantou-se e foi para junto da cadeira dela, colocando as mãos nos ombros de Lara como se a quisesse manter lá à força. Baixou-se até ao seu ouvido e murmurou:
— Fique para provar só um pouco.
O som aveludado da sua voz a fez estremecer. Ele deve ter sentido aquele movimento minúsculo, pois apertou os seus dedos nos ombros dela. Algo naquele toque perturbou profundamente Lara, uma força suave, uma sensação de posse que ela deveria contrariar. Ela fez um gesto automático para o afastar, mas quando sentiu o roçar das suas mãos quentes, salpicadas de pêlos, parou. Sentia o forte desejo de explorar a forma das mãos de Hunter, os ângulos bem marcados dos pulsos dele. Ele dobrou os dedos, como um gato a recolher as patas, e ela passou as mãos pelas dele num roçar indeciso. O momento prolongou-se durante um silêncio cada vez mais profundo, até que o único som que sobressaía era o pequeno estalar das chamas das velas. De algum lugar sobre a sua cabeça, ela ouviu o riso vibrante de Hunter, e ele recuou afastando-se dela como se tivesse queimado.
— Peço desculpa — disse Lara, com suavidade, com o rosto vermelho pela surpresa que lhe causaram os seus próprios atos. — Eu não sei porque fiz isso.
— Não peça desculpa. Na realidade... — Ele ajoelhou-se aos pés de Lara, e olhou-a nos olhos. A voz dele era baixa e um pouco instável. — Gostaria que voltasse a fazê-lo.
Ao ouvi-lo, ela ficou hipnotizada pela profundidade que se incendiava no olhar de Hunter. Ele deixou-se ficar muito quieto, como encorajando-a a que ela o tocasse, e ela cerrou o punho no seu colo para não fazê-lo.
— Hunter? — perguntou, num sussurro.
A expressão dele mudou e a ilusão de uma serenidade perfeita quebrou-se num sorriso retorcido.
— Diz sempre o meu nome como se questionasse sobre quem eu sou na realidade.
— Talvez assim seja.
— Quem mais poderia eu ser, então?
— Eu não sei — respondeu ela muito séria respondendo ao seu tom de gozo. — Há muito tempo atrás, eu sonhava... a voz desvaneceu-se rapidamente ao dar-se conta do que estava prestes a revelar. Hunter tinha um tal poder sobre ela, fazendo com que ela quisesse contar-lhe todos os seus segredos e se tornasse vulnerável.
— Sonhou com o quê, Lara?
Ela tinha sonhado com um homem como aquele que ele parecia agora ser... Sonhava ser cortejada, seduzida, acariciada... coisas que ela nunca tinha ousado confessar, nem sequer a Rachel. Mas essas fantasias tinham-se dissipado ao casar com Hunter e ao conhecer a realidade do matrimonio. Obrigações, responsabilidades, decepções, dor... perda. Ela não percebeu que as suas emoções estavam espelhadas no seu rosto até Hunter dizer, num tom irônico:
— Não lhe restam mais sonhos, estou a ver.
— Já não sou uma jovem noiva — respondeu.
Hunter soltou uma gargalhada curta.
— Pois não, é uma velha matrona de vinte e quatro anos, que sabe administrar a vida dos outros, mas não a sua.
Lara recuou, empurrando a mesa, saiu da cadeira e encarou-o olhos nos olhos quando ele se levantou.
— Até hoje, tenho tratado bastante bem dos meus negócios, obrigada!
— É o que vejo — Comentou Hunter, já sem gozo. — E desta vez, a intenção fazer melhor as coisas. Vou fazer um acordo financeiro a seu favor, de modo a que, se alguma coisa me acontecer outra vez, não lhe falte nada. Não quero mais cabanas, vestidos deploráveis e sapatos esburacados pelo uso.
Pelo visto, ele reparou nas solas dos sapatos. Haveria alguma coisa que tivesse escapado à sua atenção? Ela dirigiu-se para a porta, abriu-a e deteve-se um instante antes de sair para olhar para ele.
— Não ficarei para a sobremesa. Não com você comer nem mais um pedaço. Boa noite, senhor
Para seu alívio, ele não a seguiu.
— Bons sonhos — murmurou.
A boca de Lara torceu-se num sorriso forçado.
— E para você também.
Ela saiu em silêncio, fechando a porta atrás de si.
Só nessa altura Hunter se moveu. Foi lentamente para a porta e segurou com a sua mão larga a maçaneta de metal oval que ela tinha tocado há pouco, procurando qualquer réstia de calor que a sua pele poderia ter deixado. Apoiou a cara no painel fresco, brilhante, e fechou os olhos. Ele desejava intensamente o corpo dela, a sua doçura, aquelas mãos sobre o seu corpo, as suas pernas abertas para ele, a sua garganta apertada com exclamações de prazer que ele lhe provocava... Afastou aqueles pensamentos, mas já era tarde, estava com uma ereção dolorosa que teimava em não diminuir.
Quanto tempo levaria até ela o aceitar? Que diabo teria ele de fazer? Seria mais fácil se ela lhe ordenasse que ele fizesse alguma tarefa hercúlea para ele realizar e assim provar as suas aptidões. Diga-me o que devo fazer, pensou ele, soltando um leve gemido, e por Deus, eu o farei multiplicado por dez.
Angustiado com a sua agonia sentimental, Hunter afastou-se da porta e dirigiu-se ao aparador em mogno Chippendale{5}, adornado com delicadas grinaldas e folhas douradas talhadas na madeira. Sobre ele havia uma bandeja de prata com garrafas e cálices de cristal. Serviu-se de uma boa quantidade de conhaque e bebeu-o de uma só vez.
Inclinando a cabeça, Hunter esperou que o fogo suave percorresse a garganta e se espalhasse pelo peito. Apoiou as mãos no aparador de mogno e os seus dedos ferraram-se às bordas... e então ele sentiu-a. Uma minúscula, quase imperceptível dobradiça por debaixo dos dedos. A curiosidade pô-lo nervoso. Retirou a bandeja de prata e os cristais pousando-os todos no chão, e começou a tatear por debaixo do topo do aparador, à procura de dobradiças ou de trancas. Ao encontrar uma irregularidade na madeira, pressionou-a, sentiu-a ceder e ouviu um trinco. O topo do aparador soltou-se, e Hunter conseguiu levantá-lo.
Um compartimento secreto... e o que ele continha fê-lo suspirar de alívio imediato.
Nesse preciso momento, um criado entrou na sala para recolher os pratos e trazer a sobremesa.
— Agora, não! — Gritou Hunter. — Quero estar sozinho.
O criado saiu e fechou a porta, desfazendo-se em desculpas. Hunter deixou escapar uma respiração ruidosa e retirou do compartimento falso uma pilha de diários estreitos, encadernados em couro. Levou-os para uma cadeira junto à lareira e ordenou-os pela ordem correta.
Começou a ler, estudando as páginas rapidamente. À medida que absorvia as linhas graciosamente escritas, arrancava as folhas, rasgava-as em duas ou três partes e atirava-as para o fogo da lareira. As chamas dançavam e crepitavam de antecipação, flamejando com cada novo pedaço de papel. De vez em quando Hunter parava e contemplava o fogo pensativamente, meditando nas palavras que ardiam e se consumiam até se transformarem em cinzas.
Capítulo 6
Lara entrou na sala de pequenos-almoços e sentiu um pouco de medo quando viu que Hunter estava lá. Ele bebia uma xícara de café, como sempre costumava beber, e lia o jornal Times, que se apressou a pôr de lado quando a viu. O criado serviu a Lara uma xícara de chocolate quente e um prato de morangos, e retirou-se para a cozinha enquanto Hunter a ajudou a sentar-se.
— Bom dia — murmurou ele, enquanto percorria o rosto dela com o seu olhar, não lhe escapando as sombras instaladas por debaixo dos seus olhos. — Não dormiu bem?
Lara abanou a cabeça.
— Estive muitas horas acordada.
— Deveria ter vindo ter comigo — disse ele com um ar quase inocente, não fosse o brilho malicioso que brilhava nos seus olhos castanhos. — Eu poderia tê-la ajudado a relaxar.
— Não, obrigada — respondeu Lara rapidamente. Pegou num morango e levou-o à boca, mas antes de o provar, um riso repentino quase a sufocou, e voltou a colocar o garfo no prato.
— O que foi? — perguntou Hunter, curioso.
Ela apertou os lábios, mas isso só piorou o seu riso contido.
— Você — Gozou. — Tenho a impressão de que necessita desesperadamente de um alfaiate.
Hunter tinha vestido algumas das suas velhas roupas e parecia afundado em pregas de tecido que sobrava. A jaqueta e o colete estavam pendurados e soltos, as calças folgadas não lhe caíam só por milagre. Em resposta ao gozo de Lara, Hunter sorriu e disse, num tom desconsolado:
— Gosto de a ouvir rir, minha querida. Mesmo quando sou eu o motivo da graça.
— Desculpe, eu... - sem conseguir evitar, Lara começou outra vez a rir. Levantou-se da cadeira e foi até ele para tentar perceber melhor aquele fenômeno. Puxou o excesso de roupa para os lados. — Não podemos permitir que ande por aí com este aspecto... Talvez alguns pontos aqui e ali ajudem...
— Tudo o que sugerir — Hunter reclinou-se na cadeira e sorriu ao vê-la à volta dele num frenesim.
— Parece mesmo um vagabundo! — Exclamou.
— Na realidade, eu fui um vagabundo — respondeu ele. — Até que regressei para si.
Os olhos de Lara encontraram os seus. Os olhos escuros dele brilharam de gozo. Lara susteve a respiração quando, sem querer, tocou na superfície dura da barriga de Hunter e sentiu o calor que vinha através da fina camisa de linho. Retirou a mão imediatamente.
— Desculpe, eu...
— Não — Ele pegou no pulso dela rapidamente, apertando-o com suavidade.
Deixaram-se ficar a olhar um para o outro, suspensos, como se fizessem parte de um cenário. Hunter fazia só uma ligeira pressão no pulso dela. Teria sido muito fácil puxá-la até ele e fazê-la cair no seu colo, mas ele preferiu ficar quieto. Parecia que Hunter estava à espera de algo, com uma expressão deslumbrada, enquanto o movimento do seu peito ao respirar atingia um ritmo muito mais rápido do que o normal. Lara sentia que se ela avançasse só um pouco até ele, ele a puxaria para os seus braços... Tremeu de excitação, alarmada com essa possibilidade. Ela olhou para a boca de Hunter e recordou-se do calor e do gosto dele... Sim, ela queria que ele a beijasse... Mas antes que ela conseguisse mexer os pés, que pareciam de chumbo, Hunter soltou-a, exibindo um sorriso retorcido. Lara esperava sentir-se aliviada, mas, pelo contrário, ficou muito decepcionada. Confundida com as suas inexplicáveis reações face a Hunter, Lara voltou para a sua cadeira e inclinou a cabeça sobre o prato de morangos.
— Partirei para Londres amanhã de manhã - ouviu Hunter dizer, despreocupadamente.
Surpreendida, ergueu o seu olhar até ele.
— Tão cedo? Mas se só chegou agora!
— Tenho de tratar de alguns assuntos, e tenho também uma reunião com o senhor Young, com os nossos banqueiros e com os nossos advogados.
Ao ver a expressão de dúvida dela, acrescentou:
— Tenho de pedir uns empréstimos.
— Estamos endividados, então — disse Lara, sombria, sem se surpreender com aquelas notícias.
Hunter acenou com a cabeça, torcendo a boca.
— Graças à má gestão de Arthur.
— Mas vamos contrair mais dívidas? — perguntou, hesitante. — Será que isso não irá comprometer a propriedade mais do que seria necessário?
Hunter dirigiu-lhe um sorriso curto e tranquilizador.
— É a única forma de ultrapassar isto. Não se preocupe, minha senhora, não tenho intenções de fracassar perante você.
Lara continuava com a testa franzida, mas quando voltou a falar, pegou num assunto completamente diferente.
— Essa é a única razão por que vai a Londres? Julgo que queira ver também alguns velhos amigos — Calou-se por um instante e deu um golo no seu chocolate quente, para mostrar despreocupação. — Lady Carlysle, por exemplo.
— Não para de mencionar o seu nome - queixou-se. — Não é muito lisonjeador este seu desejo de me empurrar para os braços de outra mulher.
— Eu só estava a perguntar — Lara não compreendia o que a tinha de novo levado a trazer ao de cima este assunto. Forçou–se a comer outro morango enquanto aguardava.
— Eu já lhe disse que ela não me interessa — disse ele frontalmente.
Lara lutou para que não se notasse a inexplicável sensação de alegria que a invadiu. A sua mente repetia que era melhor que Hunter retomasse o seu romance com Lady Carlysle, poupando-a assim àquelas atenções não desejadas.
— Mas seria de esperar que lhe fizesse uma visita, depois de ter estado tanto tempo longe — disse ela. — Outrora, vocês eram muito chegados.
Hunter fez uma cara de desagrado e levantou-se da mesa.
— Se este é o rumo da sua conversa esta manhã, acho que vou entreter-me para outro lado.
À medida que ele se levantava, ouviu-se um bater respeitoso na porta, e em seguida apareceu o rosto sereno do mordomo.
— Lorde Hawksworth, tem uma visita - reagindo ao aceno de Hunter, o criado levou-lhe um cartão numa salva de prata.
Hunter leu o cartão com uma expressão imperturbável.
— Mande-o entrar — disse. — Irei recebê-lo aqui.
— Sim, senhor.
— Quem é? — perguntou Lara, quando o criado saiu.
— Lonsdale.
O marido de Rachel. Lara olhou para Hunter com curiosidade, perguntando-se por que razão a sua reação era tão desinteressada, apática até. Durante anos Terrell, Lorde Lonsdale, tinha sido um dos melhores amigos de Hunter, mas a expressão dele mostrava um homem confrontado com uma obrigação indesejada. Hunter ficou a olhar para a porta e quando ouviu o som de passos a aproximarem-se, apareceu um sorriso nos seus lábios... mas não era natural. Era a expressão de um ator que se prepara para uma atuação.
Lorde Lonsdale entrou na sala com o rosto resplandecente de emoção e felicidade, algo raro em Lonsdale, já que era conhecido pelo seu mau humor. Não havia dúvida sobre a sua autêntica alegria ao voltar a ver Hunter.
— Hawksworth! — Exclamou, aproximando-se dele para lhe dar um curto e forte abraço.
Os dois homens riram-se e afastaram-se para olharem melhor um para o outro. Apesar de Lorde Lonsdale ser forte, ele não se igualava à imponente estatura de Hunter. Mesmo assim, era um homem robusto e musculado, e tinha uma paixão por cavalos e pelos desportos que rivalizava com a de Hunter.
Moreno, de pele clara e olhos profundamente azuis, herdados de uma avó irlandesa, Lonsdale era um homem bonito e atraente... quando queria. Por diversas vezes, deixava-se levar pelo seu já conhecido mal temperamento, ficando fora de controle, frequentemente com graves consequências. Posteriormente, pedia sempre desculpa, com um charme e uma sinceridade que levavam a que todos o perdoassem. Lara teria gostado muito mais dele se ele não se tivesse casado com a sua irmã.
— Meu Deus, homem, está com metade do tamanho! — Exclamou Lonsdale, a rir. — E moreno como um selvagem.
— E o Terrell está o mesmo — respondeu Hunter com um sorriso. — Exatamente o mesmo.
— Eu deveria saber que enganaria o diabo. — Lonsdale olhou para ele com um fascínio evidente. — Está tão diferente! Eu não o teria reconhecido, não fosse a Rachel avisar-me sobre o que esperar.
— É bom vê-lo, velho amigo.
Lonsdale respondeu com um sorriso, mas o seu penetrante olhar não se afastava do rosto de Hunter. O ânimo de Lonsdale ensombrou-se de repente e Lara sabia porquê. Lonsdale não era nenhum tonto e viu-se confrontado com o mesmo dilema que todos os outros enfrentaram. Se este homem realmente fosse Hunter, ele estava mesmo muito diferente... e se ele fosse um estranho, trataria de uma réplica incrivelmente convincente.
— Velho amigo - repetiu Lonsdale com uma certa cautela.
Percebendo a ansiedade de Lonsdale por receber provas da sua identidade, Hunter soltou uma ruidosa gargalhada que fez com que Lara tremesse.
— Vamos beber qualquer coisa — disse ele à Lonsdale. — Pouco me importa a hora. Pergunto-me se ainda restará alguma garrafa de Martell 97, ou se o ladrão do maldito do meu tio terá acabado com ele até a última gota.
Lonsdale tranquilizou-se imediatamente.
— Sim, Martell! — disse ele, com uma expressão de alívio. Vejo que se recorda da minha predileção por essa bebida.
— Recordo-me daquela noite, no Running Footman, em que esta sua predileção quase nos levou a que nos dessem uma valente sova!
Lonsdale quase chorava de riso.
— Eu estava bêbado que nem um cacho! E completamente caidinho por aquela prostituta de vestido encarnado...
Hunter interrompeu-o, tossindo ligeiramente para o advertir da presença de Lara.
— Vamos deixar estas recordações para uma altura em que a minha mulher não esteja presente.
Notando só nessa altura a presença de Lara, Lonsdale pediu rapidamente desculpa.
— Perdoe-me, Larissa... Eu estava tão impressionado por ver Hawksworth que não me dei conta de que pudesse estar aqui.
— Isso é compreensível — disse Lara, numa tentativa falhada de esboçar um sorriso. Ver os dois homens juntos, trouxe-lhe uma série de más recordações. Parecia que cada um estimulava as piores características da personalidade do outro, egoísmo e uma atitude de superioridade masculina que ela achava insuportável. Dirigiu a Hunter um olhar incomodado. Se ele não fosse o seu marido, então possuía a habilidade de um camaleão, transformando-se em tudo o que os outros esperavam dele.
Lonsdale olhou para Lara e dirigiu-lhe um falso sorriso.
— Minha querida cunhada, diga-me... Como se sente por ter de volta o seu falecido amor? - havia um ligeiro ar de gozo nos seus olhos azuis. Naturalmente, ele estava a par de todos os pormenores do seu casamento infeliz e, com toda a certeza, deve ter encorajado Hunter nas suas infidelidades.
Lara respondeu sem olhar para qualquer um deles.
— Estou muito contente, é claro.
— Claro que sim - repetiu Lonsdale em tom de troça.
Hunter riu-se com ele e aquela diversão deixou Lara ressentida.
Porém, reparou como Hunter olhava para Lonsdale enquanto este estava distraído. Parecia que ele não tinha qualquer afeto por aquele homem. Meu Deus, o que é que se estava a passar?
Perturbada, Lara deixou-se ficar sentada à mesa, brincando com os restos de comida enquanto os homens saíam da sala. Hunter ia levá-la à loucura, certamente. Deveria ela confiar na evidência que tinha à frente dos seus olhos, ou em sentimentos sempre tão inconstantes? Era tudo muito contraditório. Aproximou-se do lugar onde Hunter estivera sentado e pegou na sua xícara, tocando onde as mãos dele tinham tocado, dobrou os dedos à volta da delicada porcelana.
Quem é ele? pensou, com grande frustração.
Tal como tinha dito, Hunter partiu no dia seguinte muito cedo. Foi ao quarto de Lara quando ela começava a despertar, já a luz da manhã começava a aparecer por entre as cortinas fechadas e avançava para a sua almofada. Ao notar que não estava sozinha no quarto, sobressaltou-se e puxou a roupa de cama até ao queixo.
— Hunter — disse ela, com voz ensonada. Afundou-se ainda mais na almofada à medida que ele se sentava na borda da cama.
Um sorriso iluminou ainda mais o rosto moreno de Hunter.
— Não poderia partir sem a ver uma última vez.
— Vai estar fora quanto tempo? - pestanejou, incomodada, sem se atrever fazendo um movimento enquanto Hunter estendia a mão até à sua trança escura.
— Não mais de uma semana, espero eu — Acomodou a trança na palma da mão, sentiu a sua textura e voltou a colocá-la com cuidado sobre a almofada. — Parece tão confortável e quente — murmurou. — Quem me dera estar aí com você.
Só de imaginar que Hunter se pudesse meter por entre os lençóis, junto dela, fez com que o seu coração se sobressaltasse.
— Desejo-lhe uma boa viagem — disse ela, sem fôlego. — Adeus.
Hunter sorriu com a ansiedade evidente de Lara para que ele se fosse embora.
— Não me vai dar um beijo de despedida? - inclinou-se sobre ela, sorrindo da sua expressão assustada, e esperou uma reação. Ao ver que ela permanecia em silêncio, riu suavemente e um aroma a café deslizou pelo seu rosto acima. — Muito bem. Vamos pôr isto na conta. Adeus, minha querida.
Lara sentiu o peso de Hunter sair de cima da cama, e continuou a segurar firmemente as mantas até ao queixo, até que ouviu a porta fechar-se atrás dele. Uns instantes depois, saltou da cama e apressou-se até à janela. A carruagem de Hawksworth, com os seus quatro cavalos perfeitamente emparelhados e a distinta cabina verde e dourada, rolaram pela estrada coberta de árvores.
Dentro dela fervilhava uma estranha mistura de sentimentos: alívio pela sua partida mas também uma certa tristeza. Na última vez que Hunter partira, ela sentiu que não o voltaria a ver. Como era possível que ele tivesse conseguido regressar a casa?
Capítulo 7
Perto da baixa comercial de Strand, havia uma série de ruelas e passagens que conduziam aos bairros mais mal frequentados de Londres. Eram densamente povoados por uma classe de pessoas sem abrigo, sem meios de subsistência, sem família ou qualquer coisa que se assemelhasse a moralidade. As ruas estavam imundas, cobertas de esterco e lixo, e estavam infestadas com ratos, cujas formas escuras deslizavam dentro e fora das casas, com imenso à vontade.
Anoitecia rapidamente e os últimos raios tênues do Sol desapareciam por detrás das estruturas periclitantes. Muito sério, Hunter abriu caminho por entre prostitutas, ladrões, e mendigos, enquanto a rua sinuosa o conduzia ao mercado. Era um lugar de grande alvoroço, onde se comercializavam carcaças de carne de vaca roubadas e outras mercadorias também roubadas. Os vendedores ambulantes apregoavam fruta e legumes ressequidos, expostos em carrinhos de mão ou tendas velhas.
Uma memória fugaz assaltou-o: viu-se a si mesmo a vaguear por um mercado indiano igualmente sórdido, exceto que ali os aromas eram diferentes. Abundavam os aromas picantes dos grãos e dos temperos, o perfume das mangas a apodrecer, a doce fragrância das papoilas e do ópio, tudo velado pela estranha pujança que caracterizada o Oriente. Ele não sentia falta de Calcutá, mas sim do interior rural da Índia, as largas estradas de terra batida enfileiradas entre matagais, as florestas emaranhadas e os templos serenos, a sensação de lânguida fluidez que impregnava todos os aspectos da vida.
Os indianos achavam que os ingleses eram uma raça suja, que comiam carne de vaca, bebiam cerveja, cheios de luxúria e muito materialistas. Olhando de relance para o cenário em seu redor, Hunter não pôde deixar de sorrir. Os indianos tinham razão.
Uma velha bruxa bêbeda agarrou-se à manga de Hunter, mendigando por uma moeda. Libertou-se dela impacientemente, consciente de que se por acaso demonstrasse a mais pequena benevolência, todos os mendigos dos arredores se lançariam a ele. Não mencionando os carreiristas, que formavam vários grupos e que o observavam como chacais.
O mercado operava, protegido pela penumbra da noite pois nenhum polícia tinha sido suficientemente doido para se aventurar a lá entrar. A área estava iluminada com lamparinas a gás e candeeiros de banha fumegantes, que tornavam o ar denso e pungente. Hunter cerrou ligeiramente os olhos para evitar que eles ficassem irritados com aquela neblina e deteve-se perto de um homem vestido de um modo estranho, que estava sentado num banco torto. O homem, de pele muito escura, aparentemente de origem polinésia, estava vestido com um sobretudo de veludo azul com botões de osso esculpidos. Da sua face destacava-se um estranho desenho, um pássaro exótico em pleno voo.
Os olhares deles encontraram-se e Hunter apontou para a marca na cara do homem.
— O senhor consegue fazer isso? — E o homem acenou com a cabeça.
— Chama-se tatouage — respondeu com evidente pronúncia francesa.
Hunter pôs a mão no bolso do seu casaco e tirou um pedaço de papel... o único que restava dos diários que destruiu.
— É capaz de copiar isto? — perguntou com brusquidão.
O francês pegou no desenho e examinou-o de perto.
— Bien sur... é um desenho simples. Não demorará muito tempo.
Pegou no banco onde estava sentado, começou a andar e com um gesto indicou a Hunter que o seguisse. Caminharam pelo mercado até chegarem a um porão virado para a rua, iluminado por velas de má qualidade que lhe conferiam um brilho alaranjado. Dois pares copulavam sobre as suas camas de madeira desengonçadas. Umas quantas prostitutas, de diferentes idades, passeavam-se à frente da porta de entrada, tentando atrair potenciais clientes.
— Fora daqui! — disse o francês. — Tenho um cliente.
As prostitutas cacarejavam e gralhavam, enquanto se afastavam da porta. O francês dirigiu a Hunter um vago olhar de desculpas enquanto os casais que ainda estavam lá dentro terminavam os seus assuntos.
— Este é o meu quarto — Explicou. — Eu permito que eles o usem em troca de uma parte dos lucros.
— Artista e proxeneta — Comentou Hunter. — O senhor é um homem de muitos talentos.
O francês deteve-se por um instante, decidindo claramente se sentia divertido ou ofendido, e finalmente começou a rir-se. Conduziu Hunter até à parte do fundo do porão e dirigiu-se a uma mesa colocada num canto, onde começou a dispor uma série de instrumentos e a verter tinta nuns quantos pratos.
— Onde gostaria que eu fizesse o desenho?
— Aqui — Hunter apontou a parte interna e superior do braço.
O homem arqueou as sobrancelhas ao ver o sítio escolhido, mas acabou por acenar com a cabeça, numa atitude profissional.
— Tire a camisa, s'il vous plait.
Um grupo de quatro ou cinco prostitutas deixava-se ficar no porão, ignorando a ordem seca do homem para que elas se fossem embora.
— Que homem! — disse uma miúda de cabelos vermelhos vistosos, enquanto lhe mostrava um sorriso carregado de dentes cariados. — Queres dar uma volta, depois do Froggie terminar?
— Não, obrigado — respondeu Hunter com amabilidade, apesar de interiormente se sentir enojado. — Eu sou um homem casado.
Aquela declaração valeu-lhe um coro de exclamações de prazer e de admiração.
— Oh, ele é um amor!
— Eu faço-o de graça - ofereceu uma mulher loira de peito opulento, entre gargalhadas.
Para desconforto de Hunter, as prostitutas deixaram-se ficar ali, apreciando enquanto ele tirava o casaco, o colete e a camisa. Logo que despiu a camisa de linho folgada, todas elas irromperam em gritos de excitação.
— Aqui está um belo bife, minhas queridas! — Gritou uma delas, aventurando-se a tocar no braço nu dele. — Jesus, oh pra estes músculos. Parece um touro, amigas!
— Mas que barriga tão bonita, tão firme — disse outra, apontando o estômago plano, com a mão.
— O que é isto? — A ruiva tinha encontrado a cicatriz do ombro dele, a do peito e também a que tinha forma de estrela na parte de baixo das costas. Ela fez um som sussurrado e examinou as marcas, com curiosidade. — Já viste um bocado d'ação, n'é? — Comentou, presenteando-o com um sorriso de apreço.
Apesar de Hunter se ter conseguido manter impassível, sentiu que uma mancha de rubor lhe subia pela cara. Encantadas pelo seu evidente desconforto, as prostitutas continuaram a rir e a gozar, até o artista de tatouage ter terminado as suas preparações e as mandar embora.
— Eu não posso trabalhar com este barulho - reclamou o francês, — Fora miúdas e não voltem até que eu acabe este trabalho.
— Mas, onde é que eu vou atender os meus clientes? - reclamou uma delas.
— Junto ao muro da ruela - foi a resposta determinada, e as prostitutas foram-se embora.
O artista de tatouage olhou para Hunter, pensativamente.
— Penso que se sentirá mais confortável se deitar na cama enquanto eu trabalho, monsieur.
Hunter deu uma olhadela sobre o colchão manchado de sêmen e negou com a cabeça, enojado. Sentou-se no banco, levantou o braço e apoiou os ombros contra a parede.
— D'acord — Aceitou o francês. — Mas aviso-o de que, se mexer, o desenho sairá torto.
— Eu não me vou mexer.
O homem aproximou-se levando dois instrumentos de marfim, um deles tinha uma minúscula agulha. Depois de estudar o desenho que Hunter lhe tinha dado, o francês mergulhou a agulha num prato de tinta preta, apoiou-a contra a pele do seu cliente e deu umas ligeiras batidelas com o outro instrumento.
Hunter retesou, reagindo ao ardor intenso da picada. O artista molhou novamente a agulha e golpeou a sua pele, desta vez com uma longa série de alfinetadas. Era aquela repetição que se provou ser mais excruciante. Uma picada só por si não era nada, mas séries intermináveis delas, acompanhadas pelo repicar enlouquecedor dos instrumentos de marfim, fazia com que os seus nervos se retesassem em protesto. Sentiu o suor a brotar da testa, da barriga e até dos tornozelos. Pouco depois, sentiu como se o seu braço estivesse em chamas. Concentrou-se respirando profundamente, inalando e exalando o ar de forma regular, e obrigou-se a aceitar aquele ardor em vez de lutar contra ele.
O francês fez uma pausa, dando-lhe um momento de repouso.
— A dor faz a maior parte dos homens chorar, por mais que tente evitá-lo — Comentou ele. — Eu nunca vi ninguém que suportasse isto tão bem.
— O senhor limite-se a continuar — murmurou Hunter.
O francês encolheu os ombros e voltou a pegar nos instrumentos.
— Le scorpion não é um desenho que, normalmente, as pessoas escolham — disse ele, retomando o delicado repicar da agulha. — Que significado tem para si?
— Tudo — respondeu Hunter, com os dentes tão apertados que até lhe doíam os maxilares.
O francês parou quando a agulha acertou num nervo mais sensível e Hunter estremeceu.
— Por favor, monsieur, fique quieto.
Hunter obedeceu e permaneceu quieto, sem deixar escapar sequer uma lágrima. Ele pensou no futuro que se abria diante dele, pensou em Lara e, assim, o contato da agulha foi realmente bem-vindo. Para o que ele ambicionava, aquele era um preço irrisório a pagar.
Capítulo 8
Seguindo as instruções de Hunter, Lara contratou os serviços de um decorador, o senhor Smith, para que mudasse a decoração de Hawksworth Hall. Acompanhada pelo senhor Young, o administrador da propriedade, Lara guiou Smith através das divisões da casa.
— Como poderá ver, senhor Smith — disse ela com um sorriso desconsolado, — não exagero quando digo que este será o maior desafio da sua carreira.
Smith, um homem corpulento, com uma longa cabeleira prateada, murmurou algo pouco comprometedor e rabiscou num caderno pequeno com páginas de bordas douradas. Embora o seu verdadeiro nome fosse Hugh Smith, ele era conhecido como Possibilidade Smith, e adquiriu esta alcunha devido ao seu já famoso hábito de dizer: Este lugar tem muitas possibilidades. Até aquele momento, Lara esperava em vão que ele pronunciasse a frase mágica.
Ela levou-o a estudar a sala de jantar egípcia, com os louceiros em forma de sarcófagos, o hall de entrada barroco, as salas de estar chinesas, cobertas com falso bambu, e o salão de baile marroquino, rodeado por figuras em mármore de mouros negros, vestidos com togas rosa. A expressão de Possibilidade Smith tornava-se cada vez mais sombria e o seu silêncio ia-se aprofundando, há medida que visitavam cada sala.
— Acha que valerá a pena conservar alguma coisa? — perguntou Lara, numa fraca tentativa de parecer condescendente. — Ou será melhor que queimemos tudo e comecemos de novo?
Smith voltou a sua cabeça prateada para ela.
— Só se for como amostra do mais puro mau gosto, sem rival em qualquer residência que eu já tive a infelicidade de visitar.
— Deixe-me assegurar-lhe, senhor, que Lady Hawksworth possui um gosto requintadíssimo, e que não teve nenhuma intervenção nesta decoração - intercedeu o senhor Young, delicadamente.
— Esperemos bem que não — murmurou Smith, e suspirou. — Eu preciso de voltar a ver o salão de baile. Depois iremos visitar o piso de cima. — Afastou-se lentamente, abanando a cabeça numa desaprovação altiva.
Lara tapou a boca com a mão, abafando o riso, ao imaginar qual seria a expressão do decorador quando entrasse no seu quarto revestido com espelhos. Oh, ela deveria ter mandado os criados retirar o espelho do teto antes que ele o pudesse ver!
Ao ver o rosto envergonhado de Lara, o senhor Young dirigiu-lhe um sorriso simpático e disse:
— Vê-se bem que Lorde e Lady Arthur deixaram aqui a sua marca bem vincada, não acha?
Lara concordou com a cabeça e piscou os olhos, incomodada.
— Temo que não estejamos em condições de assumir a despesa de toda a mudança... Mas, como é possível que alguém possa viver num horror destes?
— Eu não me preocuparia tanto com a despesa - tranquilizou-a o senhor Young. — O conde inteirou-me de alguns dos seus planos e fiquei deveras impressionado. Reorganizando um pouco as suas propriedades, com um empréstimo muito necessário e alguns investimentos de baixo risco, creio que a propriedade será mais próspera que nunca.
O bom humor de Lara desvaneceu-se, olhou-o com curiosidade e perguntou:
— Então, parece-lhe que o conde está como sempre foi?
— Sim... e não. Na minha humilde opinião, ele melhorou. Parece-me que Hawksworth tem mais sentido de responsabilidade e mais perspicácia financeira do que antes. Ele nunca se interessou muito pela gestão dos seus negócios, como sabe. Pelo menos, não tanto como pela caça à raposa ou pelos tiros aos gansos...
— Eu sei — disse Lara, revirando os olhos. — A que se deve, esta mudança de caráter? O senhor acha que ele se manterá assim?
— Parece-me natural, depois de tudo pelo que ele passou - prosseguiu o senhor Young. — Confrontar-se de um modo tão violento com a sua mortalidade, ver o que aconteceu com a sua família e com a sua propriedade na sua ausência, é de fato um grande ensinamento. Sim, eu acredito que a mudança é permanente. Agora, o conde percebe o quanto todos nós precisamos dele.
Em vez de contrapor que ela não precisava da presença de Hunter na vida dela, Lara acenou rapidamente com a cabeça.
— Senhor Young... ainda lhe resta alguma dúvida sobre a sua identidade?
— Não, nem a mais pequena dúvida - pareceu assustado com a ideia. — Não me diga que a senhora ainda duvida?
Antes que ela pudesse responder, Possibilidade Smith entrou no grande vestíbulo e reuniu-se a eles.
— Bem — disse com um grande suspiro, — prossigamos.
— Senhor Smith — Comentou Lara, sarcasticamente, — o senhor parece-me bastante espantado.
— Há uma hora atrás eu estava espantado. Agora estou horrorizado. - o homem ofereceu-lhe o braço. — Vamos?
O senhor Smith e dois assistentes permaneceram na casa até ao final da semana, fazendo esboços, tirando medidas, cobrindo o chão com livros e amostras de tecido. No meio daquele tumulto, Lara conseguiu arranjar tempo para visitar os seus amigos de Market Hill e, ainda mais importante, para ir ao orfanato. Todos os seus problemas e preocupações passaram para segundo plano quando entrou numa aula de botânica assistida por seis crianças, que desenhavam as plantas do jardim sob a supervisão da professora, a senhora Chapman. Lara sentia que um sorriso aflorava no seu rosto, à medida que caminhava até eles, sem se importar com as ervas ou com a lama que manchavam a sua saia cinzenta.
As crianças correram imediatamente até ela, deixando os lápis e os cadernos de esboços e chamando pelo seu nome. Rindo, Lara pôs-se de cócoras e abraçou-os.
— Tom, Meggie, Maisie, Paddy, Rob... - interrompeu e apagou o cabelo deste último. — E você, Charlie... Tens-te portado bem?
— Tenho — respondeu ele, baixando a cabeça com um sorriso malandro.
— Ele tem feito um grande esforço, Lady Hawksworth — disse a professora. — Não foi exatamente um anjo, mas quase.
Lara voltou a sorrir e abraçou Charlie, apesar dos protestos da criança, que se contorcia. Depois de inspecionar os desenhos que estavam fazendo, ela afastou-se com a senhora Chapman para conversar um pouco. A professora, uma mulher pequena, de cabelos claros e com a sua idade, aproximadamente, olhou-a com amizade com os seus olhos azuis.
— Obrigado pelo material para as aulas de arte, Lady Hawksworth. Como pode ver, estamos fazendo bom uso dele.
— Fico muito contente — respondeu Lara, mas abanou a cabeça, com pena. — Fiquei na dúvida se deveria comprar tintas, papel e livros uma vez que roupas e comida são sempre tão necessárias.
— Os livros são tão necessários como a comida, julgo eu — A senhora Chapman levantou a cabeça e olhou-a, curiosa. — Já conhece o novo menino, Lady Hawksworth?
— Um novo menino - repetiu Lara, assustada. — Eu não estava ao corrente... Como e quando...?
— Chegou a noite passada, o pobrezinho.
— Quem o enviou?
— Eu julgo que foi o médico da Prisão de Holbeach. Ele mandou o menino para cá depois de o pai dele ter sido enforcado. Não sabemos bem o que fazer com ele. Não temos nenhuma cama disponível.
— O pai dele foi enforcado? — A testa de Lara enrugou-se. Por que crime?
— Não fui informada dos pormenores — A senhora Chapman baixou a voz. — O menino estava vivendo com ele na prisão. Naturalmente, não havia mais nenhum outro lugar onde se pudesse deixar o rapaz. Nem sequer o reformatório local o quis aceitar.
Um sentimento estranho, doentio apoderou-se de Lara ao apreender aquilo. Uma criança inocente vivendo entre prisioneiros perigosos. Quem poderia permitir isto?
— Quantos anos tem o menino? — perguntou ela.
— Ele parece ter quatro ou cinco, apesar de as crianças a viverem nessas condições serem mais pequenas do que o normal para a sua idade.
— Tenho de o ver.
A senhora Chapman fez-lhe um sorriso encorajador.
— Talvez tenha mais sorte que nós. Até agora, ele não pronunciou uma só palavra. E reage violentamente quando tentamos dar-lhe banho.
— Oh, meu Deus.
Aflita, Lara abandonou a aula de botânica e dirigiu-se até ao solar antigo. Lá dentro estava relativamente sossegado, as crianças estavam ocupadas nas diversas aulas e atividades. A cozinheira, a senhora Davies, estava entretida a cortar raízes de vegetais, pondo-os de seguida dentro de uma panela de guisado de carne. Ninguém sabia por onde andava o menino.
— É uma criatura estranha — Comentou a diretora, a senhora Thornton, saindo de uma sala de aula assim que se apercebeu da presença de Lara. — Encontrá-lo é uma tarefa impossível. Tudo o que sei, é que ele prefere estar aqui dentro. Parece ter medo de ir lá para fora, algo muito pouco natural numa criança.
— Não há mesmo nenhum quarto disponível para ele? — perguntou Lara, preocupada.
A senhora Thornton negou com um movimento decidido da cabeça.
— Ele teve de passar a noite num estrado provisório numa das salas de aula e duvido que tivesse conseguido dormir um minuto sequer. Imaginando o lugar onde ele viveu, não fico muito surpreendida – soltou um suspiro. — Teremos de mandá-lo para outro sítio. A questão é: quem poderá ficar com ele?
— Não sei — respondeu Lara, preocupada. — Terei de pensar no assunto. Entretanto, importa-se que eu própria o procure?
A senhora Thornton ficou a olhar para ela com uma expressão de dúvida.
— Não gostaria que eu a ajudasse, Lady Hawksworth?
— Não, por favor, siga com os seus assuntos. Penso que conseguirei encontrá-lo sozinha.
— Muito bem, Lady Hawksworth — disse a diretora, claramente aliviada.
Metodicamente, Lara procurou por toda a casa, quarto por quarto, adivinhando que o menino escolheria algum canto sossegado para se esconder, longe da companhia das crianças barulhentas.
Finalmente, ela encontrou-o num canto de uma sala de estar que tinha sido convertida em sala de aula, agachado por debaixo de uma escrivaninha, como se aquele espaço desconfortável lhe oferecesse algum tipo de segurança. Lara reparou que ele se enrolava ainda mais à medida que ela entrava na sala. A criança abraçou os joelhos esquálidos e observou-a. Não passava de um pequeno pacote de trapos, com uma longa mata de cabelos pretos sujos.
— Aqui esta você — disse Lara suavemente, enquanto se ajoelhava junto dele. — Parece um pouco perdido, meu querido. Quer sentar comigo?
Ele recuou ainda mais, sem deixar de olhar para ela e Lara reparou nos seus olhos intensamente azuis, com olheiras escuras de cansaço.
— Pode me dizer o teu nome? — Lara sentou-se e sorriu para ele, enquanto ele continuava paralisado diante dela. Ela nunca imaginou que os olhos de uma criança se pudessem mostrar tão feridos e desconfiados.
Ao notar que escondia uma das suas mãozinhas no bolso esfarrapado e agarrava alguma coisa num gesto protetor, Lara sorriu para ele.
— O que tem aí? — perguntou, supondo que seria um brinquedo pequeno, uma meada de fio ou outro objeto qualquer que os rapazes tanto gostam.
Lentamente, ele tirou do bolso um minúsculo corpo de pêlos cinzentos, um rato vivo, que ela viu na ponta dos dedos do menino, com olhos pequenos e brilhantes.
Lara reprimiu um grito de sobressalto.
— Oh — Exclamou, debilmente. — É muito... interessante. Encontraste-o aqui?
O menino negou com a cabeça.
— Veio comigo — Com um dedo encardido, ele acariciou-o suavemente por entre as orelhas. — Ele gosta quando eu lhe faço festinhas assim.
Ao reparar que Lara lhe dava atenção, ganhou mais coragem e prosseguiu, mais animado.
— Nós fazemos tudo juntos, o Mousie e eu.
— Mousie? É esse o nome dele?
Parecia, então, que para o menino este roedor era uma espécie de mascote... um amigo. Lara sentiu um nó na garganta, numa mistura de dó e divertimento.
— Quer fazer festinhas a ele? — perguntou o menino, estendendo a criatura irrequieta até ela.
Lara não se atrevia a tocar naquela coisa.
— Não, mas muito obrigada.
— Está bem — E voltou a meter o rato no bolso, dando-lhe umas palmadinhas para o confortar.
Havia uma tensão estranha e agradável no peito de Lara ao observar aquela cena. A pobre criança não tinha nada, nem família, nem amigos, nem futuro, mas, à sua maneira, estava a cuidar de alguém... de algo. Apesar de ser só um rato da prisão.
— É bonita — disse o menino, com generosidade e, de repente, trepou para o colo de Lara. Surpreendida, ela gaguejou antes de responder àquele gesto e a abraçá-lo. Ele era esquelético e leve, escanzelado como um gato. Do seu corpo e das suas roupas emanava um cheiro azedo, e, com algum terror, lembrou-se de que ele provavelmente estava repleto de bichos, do gênero daquele rato de estimação. Mas então, ele deitou a cabeça no braço dela e levantou a cabeça para olhá-la, e Lara viu-se a acariciar um emaranhado de cabelo. Ela questionou-se há quanto tempo não recebia aquele menino um abraço maternal. Era tão pequeno e estava... completamente sozinho!
— Como se chama? — perguntou ela. Ele não respondeu, tinha os olhos semicerrados e parecia estar mais relaxado, com exceção do aperto dos seus dedos encardidos na manga do vestido dela. — Meu Deus, necessitas de um banho - prosseguiu Lara, sem deixar de acariciar o cabelo dele. — Deve haver um menino muito bonito por debaixo de toda esta porcaria.
Lara continuou a dar-lhe colo e a murmurar suavemente até sentir que ele cabeceava contra o ombro dela. Ele estava completamente esgotado, não demoraria muito até adormecer. Soltando-o devagarinho, ela pôs-se de pé e pediu-lhe que ele a seguisse.
— Agora vou levar-te à senhora Thornton — disse ela. — Ela é uma senhora muito amável e deve prometer-me que lhe irás prestar atenção. Iremos encontrar uma casa para ti, meu querido, eu prometo.
O menino obedeceu e acompanhou-a até ao escritório da senhora Thornton, agarrado à saia de Lara. Chegaram ao pequeno escritório e encontraram a senhora Thornton à escrivaninha. A diretora sorriu ao vê-los.
— Tem muito jeito para as crianças, Lady Hawksworth. Eu deveria saber que a senhora o encontraria — Aproximou-se do pequenito e pegou-lhe na mão. — Vem comigo, meu menino. Já incomodaste a senhora o suficiente.
O menino refugiou-se ainda mais em Lara, e mostrou os dentes à senhora Thornton como se tratasse de um animal selvagem.
— Não! — Gritou.
A diretora olhou para ele, surpreendida.
— Bom, afinal de contas, parece que ele sabe falar — Ela voltou a esforçar-se por separá-lo de Lara. — Não há necessidade de te comportar assim, rapaz. Ninguém te vai machucar.
— Não, não... - o rapaz começou a chorar e agarrou-se às pernas e às ancas de Lara.
Aflita, Lara agachou-se para acariciar as estreitas costas dele.
— Oh, meu doce menino, eu volto amanhã, mas você tem que de ficar aqui.
Enquanto o menino continuava a uivar e a apertá-la, a senhora Thornton saiu do quarto e reapareceu com outra professora.
— A senhora é notável, Lady Hawksworth — Comentou, tentando com a ajuda da outra mulher, arrancá-lo dali. — Só a senhora poderia chamar doce a uma criança como esta. Até se vê que está a ser sincera.
— Ele não é um mau menino — disse Lara, esforçando-se em vão por silenciar o choro da criança.
Finalmente, as professoras conseguiram soltá-lo e ele começou a gritar com raiva e desespero. Lara, visivelmente transtornada, ficou a olhar para o menino a chorar que rosnava e se retorcia como uma cria selvagem.
— Não se preocupe com ele — disse a senhora Thornton. — Já lhe disse, ele é estranho e pouco natural. Deus a abençoe, senhora, já tem preocupações suficientes para ainda ter de suportar uma cena desagradável como esta.
— Não faz mal. Eu... — Lara ficou sem voz pela ansiedade que a invadiu ao ver que arrastavam o menino para fora da sala. Uma das professoras repreendeu-o com suavidade, enquanto lhe agarrava o braço para o impedir de escapar.
— Nós cuidaremos dele — disse a senhora Thornton a Lara. — Ele ficará perfeitamente bem.
— Nãããooo! - voltou a criança a gritar.
No meio da luta, o rato escapuliu-se do bolso do menino e caiu no chão. Ao verem o roedor no chão de madeira encerado, as duas mulheres gritaram em uníssono e soltaram o menino.
— Mousie! — Chorou ele, gatinhando atrás do roedor que fugia. — Mousie vem pra cá!
O rato encontrou uma forma de se escapar por um orifício que existia na madeira da parede: meneando o corpo, entrou por ali e desapareceu. Estupefato, o menino espreitou pelo minúsculo buraco e começou a chorar desconsoladamente.
Ao ver o pequeno desfeito em lágrimas, as professoras em pânico e o rosto tenso da senhora Thornton, ela ouviu-se a dizer:
— Deixem-me cuidar do menino. E-eu quero ficar com ele.
— Lady Hawksworth? - perguntava cautelosamente a senhora Thornton, como se receasse que Lara tivesse perdido o juízo.
— Para já, vou levá-lo comigo - prosseguiu rapidamente. — Vou encontrar um lugar para ele ficar.
— Mas, penso que não está a dizer...
— Sim, estou.
O menino regressou para a segurança das saias de Lara, arquejando por toda aquela agitação.
— Quero o Mousie — Choramingou.
Lara pousou a sua mão nas costas dele.
— O Mousie terá de ficar aqui — disse-lhe em voz baixa. — Ele vai ficar bem, eu prometo. E você? Também quer ficar aqui, ou prefere vir comigo?
Ele agarrou-lhe a mão em resposta e apertou-a com força. Lara olhou para diretora, com um sorriso de algum modo forçado.
— Eu vou cuidar bem dele, senhora Thornton.
— Oh, não tenho a mais pequena dúvida disso — respondeu a diretora. — Só espero que ele não lhe cause muitos problemas, senhora — Ela baixou-se e olhou muito séria para o rosto vermelho do menino. — Espero que compreenda a sorte que teve, jovem Cannon. Eu, no seu lugar, esforçaria muito, muito, para agradar a Lady Hawksworth.
— Cannon? - repetiu Lara. — É assim que ele se chama?
— É o seu apelido, mas não nos quer dizer o nome próprio.
A pequena mão libertou-se da de Lara e um par de olhos azuis brilhantes, cheios de lágrimas, fixaram-se nos dela.
— Johnny — disse o menino, com toda a clareza.
— Johnny - repetiu Lara, apertando-lhe suavemente os dedos.
— Lady Hawksworth - preveniu a diretora, — segundo a minha experiência, é melhor não fazer muito por uma criança nesta situação, ou então, ele irá acostumar-se a esperar isso como algo natural. Sei que parece cruel, mas o mundo não é benévolo com os órfãos que não têm um tostão... É importante que reconheça desde o início o seu lugar.
— Entendo — respondeu Lara, enquanto o seu sorriso se desvanecia. — Obrigado, senhora Thornton.
Os criados de Hawksworth Hall ficaram manifestamente estupefatos ao verem o pequeno e desgrenhado convidado de Lara, que nunca se soltava das suas saias. Ele parecia não reparar na grandeza do ambiente que o rodeava, pois toda a sua atenção se concentrava em Lara.
— O Johnny é bastante tímido — murmurou Lara à sua criada de quarto, Naomi, que tinha sido repelida após a sua primeira tentativa de se aproximar da criança. — Vai demorar um pouco até se acostumar a todos nós.
A face rechonchuda de Naomi observou o menino, com ar pensativo.
— Parece que o encontraram na floresta, minha senhora.
Em silêncio, Lara pensava que a floresta seria um lugar bem mais saudável, quando comparado com o ambiente doentio e perigoso em que Johnny tinha vivido. Deslizou os dedos pelo cabelo emaranhado do menino.
— Naomi, quero que me ajude a dar-lhe banho.
— Sim, minha senhora — murmurou a empregada, apesar de parecer perturbada com a ideia.
Enquanto uma horda de criadas levava baldes escada acima e escada abaixo enchendo cuidadosamente a banheira de Lara, ela pediu um prato de biscoitos de gengibre e um copo de leite. A criança devorou tudo até à última migalha e até à última gota, como se não comesse há dias. Quando o seu apetite ficou saciado, Lara e Naomi levaram-no até ao seu quarto de vestir e despiram-lhe as roupas esfarrapadas.
O mais difícil foi convencer Johnny a entrar na água, que ele olhava com muita desconfiança. Nu, junto à banheira, ele mostrava um corpinho extremamente frágil e delicado.
— Não quero - insistia ele, obstinadamente.
— Mas tem de ser — disse Lara, tentando aguentar o riso. — Você esta muito sujo.
— O meu papai diz que o banho pode matar com febre.
— Pois o teu pai estava enganado — respondeu Lara. — Eu tomo banho muitas vezes e é uma ótima sensação sentirmos limpos. Entra na água enquanto ela está quente, Johnny.
— Não - persistiu ele.
— Você tens de tomar banho - insistiu Lara. — Todas as pessoas que vivem em Hawksworth Hall têm de tomar banho regularmente. Não é verdade, Naomi?
A empregada concordou com a cabeça, energicamente.
Depois de muito insistirem, lá conseguiram metê-lo na banheira. A criança sentou-se, rígida, com todas as vértebras da coluna salientes. Lara murmurou uma canção para o entreter, enquanto o lavavam dos pés à cabeça e a água ia ficando escura, à medida que o iam enxaguando repetidamente.
— Olhe só para este ninho de ratos — Comentou Naomi, tocando nos bocados grossos de cabelo molhado, desesperadamente revoltos. Teremos de lhe cortar o cabelo.
— Como ele é branquinho... — Comentou Lara, maravilhada com a aparência dele. — É branco como a neve, Johnny.
Ele olhou com interesse para os seus braços e peito magros.
— Caiu muita pele - observou ele.
— Não era pele — disse Lara a rir. — Só porcaria.
Obedecendo às suas instruções, levantou-se e deixou que Lara o tirasse da banheira. Ela envolveu-o numa toalha grossa e secou toda a água que lhe escorria pelas pernas. Enquanto o secava, Johnny aproximou-se ainda mais dela apoiando a cabeça no seu ombro, ensopando o vestido. Lara abraçou-o firmemente.
— Portaste-te muito bem, Johnny — disse ela. — Foste um bom menino durante o banho.
— O que fazemos com tudo isto, senhora? - quis saber Naomi, apontando para a roupa imunda amontoada no chão. — Tenho receio de que se desfaça quando eu a tentar lavar...
— Queime-a - mandou Lara, cruzando um olhar com a criada, e as duas concordaram com a cabeça. Ela pegou numa camisa lavada e num par de calças de algodão que pediram emprestadas ao rapaz dos estábulos. Aquelas roupas foram as únicas que conseguiram arranjar em tão pouco tempo e eram grandes demais para ele.
— Estas terão de servir por agora — Comentou Lara, enquanto ajustava a coleira de um cão à cintura para evitar que as calças deslizassem pelas pernas abaixo. Inclinou-se e brincou com um dos dedos dos pés do menino, que se surpreendeu e desatou a rir, saltando para trás. — Nós vamos mandar fazer uns sapatos e roupa adequada. Na verdade... — Ela franziu a testa ao lembrar-se, de repente, de que tinha combinado para a costureira a visitar naquela mesma semana. — Meu Deus, não era hoje, pois não?
— Bem, consegue sempre surpreender-me - ouviu a voz da irmã na porta, interrompendo os seus pensamentos.
Lara olhou para cima e sorriu ao ver Rachel.
— Oh, querida. Esqueci-me de que a tinha convidado para me ajudar a escolher os modelos dos vestidos. Não a fiz esperar, pois não?
Rachel negou com a cabeça.
— Nem um pouco. Não se preocupe, eu cheguei mais cedo. A costureira é que ainda não chegou.
— Graças a Deus — Lara deitou para trás uma madeixa solta do seu cabelo úmido. — Não costumo ser tão distraída, mas estive muito ocupada.
— Vejo que sim — Rachel entrou no quarto, sorrindo para o menino com o cabelo todo despenteado. Johnny reagiu ao exame de Rachel com um silencioso receio.
Lara duvidava que a criança alguma vez tivesse visto uma mulher como Rachel, pelo menos não àquela distância. Hoje, Rachel estava particularmente elegante, o seu cabelo escuro encaracolado formando canudos brilhantes, puxado para cima, revelava o comprimento do seu pescoço de cisne. Ela usava um vestido de musselina creme todo bordado com botões de rosa minúsculos e folhas verdes, e um chapéu de palha bordado com uma faixa de seda cor-de-rosa. Sorrindo de orgulho, Lara questionou-se haveria outra mulher em Inglaterra que se pudesse igualar à beleza delicada da irmã.
— Larissa, está um susto! — Exclamou Rachel, rindo. — Estou a ver que tem estado entretida com as crianças do orfanato. Como é possível que a menina seja a mesma que se preocupava tanto com a sua aparência?
Desgostosa, Lara olhou para o seu vestido, sujo e ensopado, e fez um esforço inútil para domar o seu cabelo demasiado liso prendendo as pontas soltas com os ganchos.
— As crianças não se preocupam com o meu aspecto — respondeu com um sorriso. — Isso é a única coisa que me interessa - sentou o pequeno num banco e pôs uma toalha sobre os ombros. — Senta-te sossegado, Johnny, enquanto te corto o cabelo.
— Não.
— Sim — disse Lara com firmeza. — E, se te portares bem, vou pedir que te façam um boné forrado, com botões de metal na frente. Não achas que seria bom?
— Está bem. — Resignada, a criança sentou-se à frente dela. Lara começou a cortar o cabelo do rapaz, dando tesouradas cuidadosas por entre a mata incontrolável. Avançava devagar, já que tinha de parar muitas vezes para sossegar Johnny que tremia a cada corte da tesoura.
— Deixe-me fazer isso — disse Rachel depois de alguns minutos. Eu sempre fui melhor que a Lara para fazer isso. Lembra-se? O papai sempre me deixou cortar o cabelo, antes de o ter perdido por completo.
Lara soltou uma gargalhada e entregou a criança às mãos experientes de Rachel. Levantou-se e recuou para ver os caracóis emaranhados a caírem no chão.
— Que cabelo tão bonito — murmurou Rachel, enquanto dava forma ao corte do menino. — Negro como tinta, levemente ondulado. Ele é um rapaz bonito, não acha? Fica quieto, meu menino... Vou acabar num instante.
A sua irmã tinha razão, percebeu Lara surpreendida. Johnny era bonito, com uma fisionomia forte, nariz arrebitado, cabelo preto brilhante e olhos profundamente azuis. Ele tentou retribuir o sorriso de Lara enquanto se sentava bem direito no banco, mas a boca dele não conseguiu reprimir um bocejo, e balançou ligeiramente.
— Malandro! — Exclamou Rachel. — Não te podes mexer. Eu quase cortava a ponta da tua orelha!
— Está cansado — disse Lara ao aproximar-se para lhe tirar a toalha e tirá-lo do banco. — É suficiente por agora, Rachel. — Levou Johnny até um sofá de mogno de linhas leves e estofado com um veludo macio. — Naomi, obrigada pela ajuda. Pode ir agora.
— Sim, minha senhora — disse a criada, ao fazer uma vênia rápida, e saindo do quarto.
A criança enroscou-se em Lara. Sentia estranhamente natural ter o seu peso leve a descansar sobre ela, o balançar da cabeça dele no seu ombro.
— Dorme, Johnny. — Ela acariciou a cabeça dele e sentiu o cabelo macio e sedoso nas pontas dos seus dedos. — Eu vou estar aqui quando acordar.
— Promete?
— Oh, claro que sim. — Aquela segurança parecia ser a confiança de que ele precisava. Acomodou-se, apertando-se ainda mais contra ela e depois ficou totalmente relaxado, com a respiração mais profunda e regular.
Rachel sentou-se numa cadeira e cravou um olhar curioso em Lara.
— Quem é ele, Larissa? Porque o trouxe para cá?
— Vê um órfão — respondeu Lara, apoiando a mão sobre as costas da criança. — Não tem nenhum quarto disponível em nenhuma parte. Enviaram da Prisão de Holbeach onde o pai dele foi enforcado.
— Ele é filho de um criminoso condenado? — Exclamou Rachel, e o menino revolveu-se enquanto dormia.
— Ssshh, Rachel — disse Lara com uma expressão de desaprovação.
— Ele não tem culpa — Ela debruçou-se, numa atitude protetora sobre a criança, massageou as suas costas até que ele voltou a relaxar.
Rachel abanou a cabeça, perplexa.
— Mesmo considerando o modo como a Lara trata normalmente as crianças, nunca esperaria isto. Trazê-lo para a sua própria casa... O que dirá Lorde Hunter?
— Não sei. Tenho a certeza de que ele não vai concordar, mas este menino tem alguma coisa que me leva a protegê-lo.
— Você sente o mesmo por todas as crianças que encontra.
— Sim, mas este é especial — Lara sentiu-se um pouco entorpecida e desorientada, enquanto tentava encontrar uma explicação racional. Quando o vi pela primeira vez, tinha um rato no bolso. Tinha-o trazido da prisão.
— Um rato! - repetiu Rachel, arrepiando-se logo. — Morto ou vivo?
— Bem vivo — disse Lara, muito séria. — Johnny estava cuidando dele. Não acha isto notável? Preso numa prisão, assistindo a horrores que nenhuma de nós pode sequer imaginar... E encontrou uma pequena criatura para amar e proteger.
Rachel abanou a cabeça e contemplou Lara com um sorriso.
— É aí que surge a atração, vocês dois compartilham o hábito de colecionar casos perdidos. São almas gêmeas.
Invadida pela ternura, Lara admirou o menino a dormir. Ele confiava plenamente nela e ela preferia morrer a fracassar.
— Eu sei que não posso salvar todas as crianças do mundo – disse. — Mas posso salvar algumas. Posso salvar esta.
— O que pensa fazer com ele?
— Ainda não pensei num plano.
— Não estará considerando ficar com ele?
O silêncio de Lara, na defensiva, era resposta suficiente. Rachel sentou-se ao lado dela e falou-lhe, muito séria.
— Minha querida, eu não conheço Hunter muito bem, e ainda menos agora do que antes, mas recordo-me do mal que ele lhe causou quando soube que você não conseguia engravidar. Ele quer um filho dele, um herdeiro, e não uma criança criada na sarjeta e vinda de uma prisão.
— Rachel... — murmurou Lara, surpreendida.
Rachel parecia envergonhada mas resoluta.
— Pode não gostar da minha escolha de palavras, mas tenho de ser franca. Você acostumou-se a tomar decisões sem a interferência de um marido. Agora Hunter regressou e as coisas são diferentes. Uma esposa deve submeter-se às decisões do seu marido.
Obstinadamente, Lara apertou os maxilares.
— Eu não estou tentando oferecer este menino como um substituto para os filhos que não posso ter.
— Mas de que outra forma irá Hunter encarar isto?
— Como eu: compreendendo que este pequenito necessita da nossa ajuda.
— Minha querida Lara... — A boca delicada de Rachel torceu-se num triste sorriso. — Não quero que fique desapontada. Não me parece acertado procurar problemas entre você e Hunter, especialmente quando faz ainda tão pouco tempo desde o seu regresso. Um casamento tranquilo é a maior bênção que se pode ter.
Lara percebeu a tristeza que a expressão da sua irmã revelava. Observou-a cuidadosamente e então reparou nas rugas de tensão ao redor dos olhos e da testa, e a tensão da sua postura.
— Rachel, o que se passa? Mais problemas entre você e Lorde Lonsdale? — A sua irmã, incomodada, negou com a cabeça.
— Não..., é só porquê... ultimamente, Terrell ofende-se com tanta facilidade. Ele sente-se aborrecido e infeliz, e quando bebe exageradamente, fica tão nervoso...
— Nervoso — perguntou Lara em voz baixa, — ou violento?
Rachel ficou em silêncio, com o olhar abatido. Parecia que estava prestes a tomar alguma decisão desagradável. Depois de uma pausa prolongada, puxou o laço branco da blusa que cobria o decote do seu vestido, afastando-o.
Lara contemplou a garganta e o peito descoberto da sua irmã, onde duas grandes contusões e a marca de quatro dedos se destacavam na pele translúcida. Lorde Lonsdale tinha feito aquilo a Rachel... mas porquê? Rachel era a mais doce e a mais suave de todas as criaturas, sempre atenta às suas obrigações, totalmente dedicada ao conforto do seu marido e ao de todos que a rodeavam.
Lara sentiu que começava a tremer de fúria e que irrompiam lágrimas dos seus olhos.
— Ele é um monstro! — Exclamou.
Rachel apressou-se a pôr novamente a blusa.
— Larissa, não, não... Eu não lhe mostrei para que você o odiasse. Não sei porque que lhe mostrei. A culpa é minha. Queixei-me do seu hábito de jogo e pressionei-o até ele não aguentar mais. Eu tenho de tentar ser uma esposa melhor. Mas ele precisa de algo que eu não posso oferecer. Se eu pudesse entendê-lo melhor...
— Quando Hunter regressar, vou fazer com que fale com Lorde Lonsdale — disse Lara, ignorando os protestos da sua irmã.
— Não! Não o faça, a não ser que queira que volte a acontecer isto... ou algo pior.
Lara deixou-se ficar num silêncio miserável, lutando contra as lágrimas. Rachel e ela foram criadas na convicção de que os homens eram os seus protetores e que um marido era o elemento superior e mais inteligente do casal. Naquela inocência protegida, não imaginavam que um homem fosse capaz de bater na sua mulher, nem de a magoar fosse de que forma fosse. Porque é que, entre todas as pessoas, isto tinha de acontecer com Rachel, a mulher mais doce e mais bondosa que ela já conheceu? E como podia Rachel dizer que isto aconteceu por sua culpa?
— Rachel — Conseguiu ela dizer, num tom inseguro, — não fez nada para merecer isto. E Lorde Lonsdale provou que não é um homem de palavra. Ele irá continuar a submetê-la à sua violência, até que alguém intervenha.
— Você não pode contar a Lorde Hawksworth — suplicou Rachel. Eu iria ser humilhada. Para além disso, se o seu marido tratasse deste assunto, eu apostaria que Terrell negaria tudo e encontraria outra forma de me castigar. Por favor, deve manter isto em segredo.
— Então eu insisto que diga ao papai e à mamãe.
Rachel sacudiu a cabeça, em desespero.
— E o que acha que eles fariam? A mamãe iria começar a chorar e a implorar que eu me esforçasse mais para agradar Terrell. O papai limitaria a fechar-se no seu escritório, preocupado. Você sabe como eles são.
— Então, eu não posso fazer nada? — perguntou Lara angustiada.
Rachel apoiou a mão na de Lara com suavidade.
— Eu amo-o — disse Rachel em voz baixa. — Eu quero ficar com ele. A maior parte do tempo ele é muito amável para mim. Só muito de quando em quando é que ele parece não conseguir controlar o seu temperamento, e as coisas tornam-se... difíceis. Mas essas alturas passam sempre muito depressa.
— Como pode querer ficar com alguém que a machuca? Lorde Lonsdale é um homem egoísta, cruel...
— Não — Rachel retirou a sua mão e o seu belo rosto adquiriu uma expressão gelada. — Não quero ouvir mais uma palavra contra Terrell, Larissa. Eu estou arrependida, não à deveria ter incomodado com isto.
Apareceu uma criada para anunciar a chegada da costureira, e as duas prepararam-se para a receber na sala de estar do piso de baixo. Rachel saiu primeiro do quarto, enquanto Lara se deixou ficar a observar o menino a dormir. Tapou-o com uma grande manta bordada, aconchegando-a até ao pescoço e acariciou o cabelo macio, acabado de cortar.
— Descansa aqui, por agora — sussurrou, ajoelhada à beira do sofá, contemplando o rosto pequeno e calmo de Johnny. Parecia completamente indefeso, abandonado à mercê de um mundo grande, despreocupado, descuidado e indiferente. Ao pensar na delicada situação de Johnny, na de Rachel, e nos vários problemas de todos os seus amigos de Market Hill, Lara fechou os olhos por um instante.
— Querido Pai do Céu — murmurou, — há tantos que precisam da Tua misericórdia e da Tua proteção. Ajuda-me a saber o que devo fazer por eles. Amem.
Capítulo 9
Era o dia da lavagem da roupa, uma tarefa colossal que se levava a cabo uma vez por semana e que ocupava mais de metade dos criados da casa. Como já era hábito desde o início do seu casamento, Lara supervisionava o trabalho e participava nele, lavando, dobrando e remendando as roupas. Numa casa tão grande como Hawksworth Hall, era necessário coser etiquetas de pano em todas as fronhas, lençóis de baixo e de cima, e mantas para indicar a que quarto correspondia cada peça. Os artigos que estivessem demasiado gastos ou estragados para se voltarem a usar, eram guardados num saco de retalhos que se vendia a um comerciante de trapos, e o dinheiro que daí adviesse era dividido entre os criados.
— Deus a abençoe, minha senhora — disse uma das criadas enquanto dobrava os linhos da cama acabados de chegar da lavanderia. — Temos estado sem este dinheiro extra que ganhávamos do homem dos trapos. Lady Janet guardava todos os tostões para ela.
— Bom, agora voltou tudo ao que era antes — respondeu Lara.
— Graças a Deus! — Exclamou a criada, visivelmente satisfeita, e logo foi buscar outra cesta de roupa.
Lara franziu a sobrancelha e voltou a atar as fitas soltas do seu avental branco. O ar na lavanderia era úmido e o vapor subia das enormes cubas de ferro que estavam cheias de linhos de molho. Lara julgava que iria ficar feliz por retomar as suas responsabilidades como dona de casa, já que sempre sentira grande satisfação em manter a mansão muito bem organizada e eficazmente administrada. No entanto, agora parecia que o seu prazer nos trabalhos domésticos e na administração da propriedade tinha começado a esmorecer.
Antes da sua viuvez, Lara estava sempre demasiado ocupada como senhora da casa, e não reparava em outros assuntos que se passassem para além dos limites da propriedade. Agora, pelo contrário, o tempo que passava no orfanato parecia ser muito mais importante que qualquer outra tarefa que pudesse realizar ali.
As fitas do avental deslizaram dos dedos de Lara, e ela tentou encontrá-las. Alguém se aproximou por detrás. Antes de ela conseguir virar, sentiu uns dedos masculinos mornos a enroscarem-se rapidamente nos seus. Deixou-se ficar imóvel e sentia que o seu peito ressoava com o intenso bater do seu coração. Até morrer, ela reconheceria o toque daquelas mãos.
Hawksworth amarrou o avental ao redor da cintura dela com um cuidado extremo. Lara conseguia sentir o leve e quente arfar da respiração dele que soprava no seu cabelo. E, embora ele não a puxasse até ele, Lara sentia também a altura e a força daquele corpo atrás do seu.
— O que está fazendo aqui? — perguntou ela numa voz fraca.
— Eu vivo aqui — disse ele, e a sua voz parecia uma carícia de veludo a percorrer a espinha.
— Sabe bem que eu me referia à lavanderia. Até hoje, nunca tinha posto os pés aqui.
— Não pude esperar mais para a ver.
Pelo canto do olho, Lara viu que duas criadas estavam paradas à porta, hesitantes, ao repararem que o senhor da casa estava ali.
— Podem entrar — disse ela em voz alta, acenando-lhes para que elas voltassem às suas tarefas, mas elas soltaram umas risadas e desapareceram, decidindo, evidentemente, que Lara necessitava ficar sozinha com Lorde Hawksworth.
— Deveria ter-me dado tempo para eu me preparar — protestou Lara quando o seu marido a obrigou a dar a volta e a ficarem cara a cara.
Estava desarranjada e corada, o cabelo agarrado às faces úmidas, o seu corpo embrulhado num enorme avental. — Eu teria, pelo menos, mudado o vestido e teria escovado o meu... — A sua voz desvaneceu-se quando ela o encarou.
Hawksworth estava incrivelmente bonito, os seus olhos escuros refletiam tons de canela e o seu cabelo castanho, clareado pelo sol, estava bem penteado para trás. Usava roupas impecavelmente costuradas que destacavam, ou melhor, exibiam, a força do seu corpo. As calças justas de cor bege marcavam cada músculo das pernas e ressaltavam os seus atributos masculinos de uma tal forma que ruborizaram as faces de Lara de um vermelho-vivo. A camisa e a gravata de um branco ofuscante, um colete com um padrão muito elegante e um casaco azul-escuro completavam o conjunto. O bronzeado exótico da sua pele só o tornava ainda mais atraente. Lara não tinha nenhuma dúvida de que apenas a mera visão daquele homem faria qualquer mulher desfalecer.
Na realidade, o seu próprio interior retorcia-se de agitação. Definitivamente, isso tinha a ver também com a forma como ele a olhava: não era um olhar amável, respeitoso, mas um olhar do gênero, supunha Lara, do que um homem dirigiria às prostitutas. Como era possível que ele a fizesse sentir-se nua junto dele, se estava coberta por várias camadas de roupa e por um avental do tamanho de uma barraca?
— Teve uma boa estadia em Londres? — perguntou ela, tentando arrumar as ideias.
— Não especialmente — As mãos dele apertaram-lhe a cintura quando ela se tentou afastar. — Mas, no entanto, foi produtiva.
— O meu tempo aqui também foi produtivo. Há alguns assuntos que terei de discutir com você.
— Diga-me agora — Hawksworth deslizou um braço à sua volta e começou a puxá-la para fora da lavandaria.
— Eu tenho de ajudar na lavagem...
— Deixe que os criados tratem disso — Desceu os dois degraus que conduziam ao atalho que ligava este edifício à casa principal.
— Eu preferiria falar com você durante o jantar — disse Lara e deteve-se no topo das escadas, de forma que os seus rostos ficaram ao mesmo nível. — Depois de você ter bebido algumas taças de vinho.
Hawksworth soltou uma gargalhada e aproximou-se dela. Ergueu-a no ar e pousou-a com facilidade no chão, deixando-a ofegante.
— Más notícias, não são?
— Não, não são más — respondeu ela, incapaz desviar o olhar da boca larga e expressiva dele. — Gostaria de fazer aqui algumas mudanças mais ou menos relevantes, e poderá ser que não as aprove.
— Mudanças? — Os seus dentes brancos brilharam quando sorriu com ironia. — Bem, eu estou sempre aberto a negociações.
— Não há nada para negociar.
Hawksworth parou antes de chegarem a casa, e puxou-a para um recanto nas cercas de vegetação que delimitavam o jardim da cozinha. O ar era perfumado com a fragrância de ervas e flores aquecidas pelo sol.
— Minha doce esposa, eu poria o mundo a seus pés.
Percebendo as suas intenções, Lara tentou libertar-se do seu abraço, mas ele manteve-a apertada contra si. O seu tronco era duro como aço e notavam-se os seus músculos através das camadas de roupa que os separavam. E mais abaixo, apertada contra o abdómen dela, a ardente pressão da sua masculinidade, instantaneamente despertada pela proximidade de Lara.
— Senhor - ofegou Lara. — Hunter, não se atreva...
— Não está tão chocada como quer aparentar. Afinal de contas é uma mulher casada.
— Não fui durante muito tempo — Empurrou o peito dele, em vão. — Liberte-me imediatamente!
Ele sorriu, e abraçou-a ainda com mais força.
— Primeiro, beije-me.
— Porque é que o haveria de fazer? — perguntou ela, friamente.
— Em Londres, eu não toquei numa única mulher. Só conseguia pensar em si.
— E está à espera de uma recompensa por isso? Eu insisti o mais que pude para o encorajar a arranjar uma amante.
Ele pressionou as suas ancas contra as dela, como se Lara não tivesse ainda reparado na sua proeminente excitação.
— Mas eu só a quero a você.
— Nunca lhe disseram que não se pode ter tudo o que se deseja?
Ele fez um sorriso rápido.
— Que eu me lembre, não.
Apesar da sua força bruta, Hunter parecia um rapaz travesso, e Lara percebeu que não era o medo que fazia o seu coração bater de um modo tão selvagem. Ela estava mergulhada numa chuva de excitação, ao descobrir pela primeira vez, o poder de manter à distância um homem sexualmente excitado. Deliberadamente, ela manteve-se como ele queria, com os braços presos nos seus e com a cara voltada para o lado.
— O que ganharei se o beijar? - ouviu-se a si mesma perguntar. Aquele tom baixo e provocante não parecia dela.
A pergunta acabou com o já pouco autocontrolo que Hunter conseguia manter, o bastante para ele conseguir demonstrar como a desejava loucamente, apesar do seu comportamento brincalhão. Os seus braços ficaram ainda mais tensos e o seu corpo tornou-se ainda mais rígido contra o dela.
— Diga-me qual é o seu preço — murmurou. — Dentro do razoável.
— Tenho quase a certeza de que não considerará razoável o que quero.
Hawksworth afundou os dedos no cabelo desordenado de Lara e deitou-lhe a cabeça para atrás.
— Primeiro, beije-me. Depois falaremos do razoável.
— Um beijo? — perguntou ela com cautela.
Ele assentiu e susteve a respiração quando Lara se aproximou. Os dedos dela deslizaram pela sua nuca e baixaram-lhe a cabeça, e Lara suavizou os seus lábios com a expectativa...
— Lara! Lara! - uma pequena figura correu apressada até eles. Lara libertou-se rapidamente do abraço de Hunter para se pôr de frente para Johnny. Com alguma ansiedade, ele afundou a cabeça nela e agarrou as saias com as suas mãozinhas.
— O que foi? — perguntou ela, ajoelhando-se ao lado dele, e acariciando as costas.
Depois de uns momentos de consolo, Johnny levantou a cabeça escura e encarou Hawksworth numa mistura de suspeita e desagrado.
— Ele estava a machuca-la!
Lara apertou os lábios para evitar que eles tremessem com a vontade de rir.
— Não, meu querido. Este é Lorde Hawksworth. Eu só estava dando-lhe as boas-vindas a casa. Está tudo bem.
Pouco convencida, a criança continuou a olhar para o intruso, com um ar desconfiado.
Hawksworth não dirigiu ao menino um olhar sequer, deixou-se ficar a olhar para Lara com o mau humor de um tigre faminto privado da sua presa.
— Deduzo que esta é uma das mudanças que mencionou — disse ele.
— É verdade — Consciente de que seria um erro mostrar algum sinal de dúvida, Lara levantou-se e respondeu com a maior firmeza possível. — Eu gostava de ter tido a oportunidade para lhe explicar antes que Hunter o visse... Mas eu pretendo que Johnny viva conosco de agora em diante.
A paixão e o calor desapareceram dos olhos de Hawksworth, a sua expressão tornou-se repentinamente impenetrável.
— Um pirralho de orfanato?
Lara sentiu que a pequena mão de Johnny deslizava, e ela apertou-a para o tranquilizar. Manteve o seu olhar fixo em Hawksworth.
— Mais tarde eu explico-lhe, em privado.
— Sim, deve fazê-lo — Anuiu ele num tom de voz que lhe provocou calafrios.
Lara deixou Johnny ao cuidado do velho jardineiro, o senhor Moody, que estava na estufa a cortar flores e a colocá-las em floreiras e jarras para os diversos quartos de Hawksworth Hall. Lara sorriu ao ver como a criança escolhia o seu próprio ramo de flores e o colocava num pequeno vaso lascado.
— Muito bem, meu rapaz — Elogiou-o o jardineiro, enquanto tirava cuidadosamente os espinhos de uma rosa pequena e lhe deu. — Tem bons olhos para as cores. Eu vou ensiná-lo fazendo um bonito ramo de flores para Lady Hawksworth, e depois vamos pô-lo numa pequena jarra de cristal, para manter as flores frescas.
Ao ver a rosa branca, Johnny abanou a cabeça.
— Essa não — disse ele timidamente. — Ela gosta mais de flores cor-de-rosa.
Lara deteve-se na entrada, surpreendida e satisfeita. Até então, o senhor Moody era a única pessoa, além dela, com quem o Johnny tinha falado.
— Ah, sim? — A cara enrugada do senhor Moody suavizou-se com um sorriso. Então, ele indicou o pavilhão das rosas ali perto. — Se assim é, vamos procurar o melhor ramo de botões, rapaz, e eu vou cortá-lo para você.
Lara estava admiradíssima com a intensidade dos sentimentos que ela nutria pelo menino, como se tratasse de uma poderosa corrente de emoções que tivessem sido retidas durante anos, e que agora de repente lhe tivesse sido permitido fluir com liberdade. No seu ressentimento e na sua vergonha por não ter podido dar a Hawksworth um herdeiro, ela nunca se tinha apercebido da sua enorme vontade de ter um filho. Alguém que aceitasse e correspondesse ao seu amor sem limites nem condições, alguém que precisasse dela. Esperava que Hawksworth não a proibisse de conservar Johnny com ela. Estava disposta a desafiá-lo, a ele e a qualquer pessoa que a tentasse separar da criança.
Empapada em suor, no seu vestido de musselina cinzenta de gola alta, Lara subiu até aos seus aposentos e fechou a porta. Precisava de mudar o vestido para outro mais fresco e leve, e tirar aquelas meias de lã que tanto a picavam. Desatou o avental, deixou-o cair no chão e sentou-se para desatar os cordões dos sapatos de trabalho de couro. Deixou escapar um suspiro, ao libertar os seus pés daquele pesado estorvo.
Em seguida, começou a desabotoar os botões dos punhos e da nuca. Infelizmente, o vestido também se abotoava pelas costas e não conseguia desapertá-lo sem ajuda. Abanando o rosto suado, foi até ao puxador da campainha decorado com borlas, que estava ao pé da cama, com a intenção de chamar Naomi.
— Não faça isso — A voz tranquila de Hawksworth sobressaltou-a. — Eu vou ajudá-la.
O coração de Lara bateu descompassadamente, ela virou-se no sentido do canto de onde vinha a voz. Hunter estava estendido num cadeirão Hepplewhite com um espaldar em forma de escudo.
— Meu Deus! — Exclamou Lara ofegante. — Porque é que não me disse que estava aqui?
— Acabei de dizer — Ele tinha tirado o casaco e o colete, e a sua delicada camisa de linho branco caía-lhe suavemente pelos ombros largos e peito magro. Quando ele se levantou e se aproximou, ela apercebeu-se do cheiro da sua pele, uma mistura de aromas: a sua transpiração salgada, o rum intenso e o cheiro fraco, mas agradável, a cavalos.
Lara tentou ignorar a forte atração que sentia por ele, cruzou os braços sobre o peito e olhou-o com extrema dignidade.
— Agradecia que saísse, vou mudar agora de roupa.
— Eu estou a oferecer os meus serviços em vez de os da sua criada.
Ela negou com a cabeça.
— Obrigada, mas eu preferiria Naomi.
— Está com medo que eu a viole se a vir despida? — Brincou ele. — Eu vou tentar controlar-me. Vire-se.
Lara pôs-se rígida quando ele a obrigou a dar a volta.
Ele começou pela parte de trás do vestido, desapertando os minúsculos ganchos com uma lentidão de enlouquecer. O ar acariciou a pele quente de Lara e a fez arrepiar-se. O vestido pesado foi caindo pouco a pouco, até que ela o apertou contra o corpo para evitar que ele deixasse o peito descoberto.
— Obrigado — disse ela, — foi muito útil. Agora, eu com você fazer o resto sozinha.
Hawksworth ignorou a ordem e enfiou a mão dentro do vestido, desapertando as barbas de baleia que suportavam o corpete. Lara perdeu o equilíbrio e fechou os olhos.
— É suficiente — disse ela vacilante, mas ele continuou. Puxou o vestido das mãos dela e o fez deslizar por sobre as ancas, até cair no chão, formando um monte úmido. Prosseguiu, tirando o corpete e Lara ficou apenas com a camisa, a roupa interior e as meias. As mãos de Hunter pairaram em cima dos ombros dela, não a tocando totalmente, e aquele roçar a fez arrepiar e deixou-a com pele de galinha. Os dedos dos seus pés retorceram-se no tapete.
Não se sentia assim desde a sua noite de núpcias, quando era simplesmente uma jovem menina, que não sabia o que era esperado dela, nem o que ele tencionava fazer.
Ainda atrás dela, Hawksworth procurou os pulsos de Lara para desabotoar os botões de madrepérola da camisa. Para um homem que ela considerava ser muito desajeitado, ele soltou os minúsculos botões com uma destreza surpreendente. A camisa cedeu às investidas dele e o ar fresco flutuou pelo busto descoberto de Lara. A delicada cambraia ficou presa na ponta dos seus mamilos, cobrindo-os apenas.
— Quer que eu pare? — perguntou ele.
Sim, quis ela dizer, mas a sua boca desobedeceu e não emitiu som algum. Ficou paralisada pela expectativa quando ele lhe soltou o cabelo e lhe puxou para trás os caracóis que estavam presos na sua face úmida. Os dedos dele deslizaram por debaixo da seda escura do cabelo de Lara massajando ligeiramente o couro cabeludo, numa carícia tão relaxante e agradável que ela sentiu que pela sua garganta subia um gemido, como resposta. As suas costas arquearam, e lutou contra a tentação de se apertar contra ele e incitá-lo a continuar.
Hunter acariciou lhe a nuca, massajando os músculos tensos, que lhe doíam depois das duras tarefas da manhã, e aquilo aliviou-a e deu-lhe, ao mesmo tempo, um extremo prazer. Ele aproximou-se para lhe falar ao ouvido, fazendo-a estremecer.
— Confia em mim, Lara?
Ela negou com a cabeça, ainda incapaz de falar. Ele riu suavemente.
— Eu também não confio em mim. Você é demasiado bonita e eu quero-a muitíssimo.
Ele mantinha-se muito próximo, mas a única parte do corpo de Lara em que tocava era no pescoço, com os dedos fazendo pressão sobre os músculos doridos com uma delicadeza esmerada. Sem o sentir realmente, ela pressentiu que ele estava novamente excitado. Só esse pensamento poderia ter provocado uma reação em Lara, mas por alguma razão permaneceu imóvel, subjugada ao cuidado dele. Ela sentia-se ébria, sem equilíbrio, com pensamentos loucos que lhe revolviam a mente. Se ele a voltasse a beijar do modo como a beijou antes, aquela boca tão firme e deliciosa...
Um doce ardor deslizou pelos seus seios, concentrando-se nos mamilos. Lara mordeu o lábio tentando dominar-se para não agarrar nos dedos mornos dele e os puxar para o seu corpo. Envergonhada, manteve-se quieta e rogou para que ele não se apercebesse do que estava a pensar. Não reparou que susteve novamente a respiração até que os seus lábios libertaram um curto suspiro.
— Lara – ouviu-o a murmurar, e o seu coração quase parou quando ele levantou a camisa dela desde os joelhos, até à cintura. Ela começou a tremer, e as pernas enfraqueceram tanto, que foi forçada a apoiar-se nele, para não cair. O peito dele parecia uma parede de pedra.
O sexo estava enorme e duro quando se aconchegou na curva flexível das suas nádegas. Hunter tirou a faixa que segurava as cuecas, e estas deslizaram até aos tornozelos de Lara.
Ela ouviu que o ritmo da respiração dele mudava e sentiu o tremor da sua mão quando ele, por um momento vertiginoso, a apoiou na sua anca desnuda. Então ele deixou descair a camisa, permitindo que a cobrisse uma vez mais.
Levantou-a nos seus braços com uma facilidade quase ridícula, e ela ficou subjugada à sua força. Lara manteve o pescoço tenso, negando-se a apoiar a cabeça no seu ombro, permanecendo num silêncio obstinado quando ele a levou pelo quarto. Um vislumbre de pânico passou-lhe pela cabeça: será que ele ia fazer amor com ela? Deixe-o, pensou ela de imediato. Deixe-o fazer exatamente o mesmo que lhe fez tantas vezes. Deixe-o provar que era tão horrível como se recorda... e então, estaria livre dele. Iria olhá-lo com a sua já usual indiferença e ele já não teria mais nenhum poder sobre ela.
Para sua surpresa, ele não a levou para cama, mas para a cadeira do toucador. Colocou-a na cadeira e ajoelhou-se aos pés dela, com as suas poderosas coxas abertas para manter o equilíbrio. Tonta, Lara olhou para aquele belo rosto junto ao seu. Alguns ruídos vindos do exterior quebraram a tranquilidade... o leve tinido da campainha de um dos criados, o mugido dos animais que pastavam nos vastos campos, o ladrar de um cão, o restolhar dos criados que cumpriam as suas tarefas diárias. Parecia impossível que houvesse um mundo atarefado à volta deles. A única coisa que existia era aquele quarto e os dois nele.
Sem desviar o olhar do rosto dela, como se lhe tocasse, Hawksworth começou a acariciar o tornozelo com os dedos e deslizou-os para cima, numa subida lenta e luxuriosa. Lara começou a tremer, as pernas dela endureciam quando o seu marido lhe levantou a camisa até às coxas. Hunter encontrou as ligas tricotadas e desamarrou-as, e Lara não pôde evitar que lhe escapasse um pequeno soluço de alarme.
Tirou-lhe a meia crespa, os dedos roçando a parte interior da sua coxa, joelho e barriga da perna, provocando-lhe um ligeiro e doce sobressalto de cada vez que ele tocava na pele macia. Em seguida, pegou na outra meia, tirou-a e deixou-a cair no chão.
Lara estava sentada diante dele, meio nua, e os seus dedos enterravam-se nas bordas do assento. Ela recordou-se de como aquilo costumava acontecer entre eles, o cheiro rançoso da respiração dele quando a ia ver depois de uma grande bebedeira, o modo como ele montava sobre ela com quase nenhuma preliminar e se empurrava para dentro dela. Doloroso, vergonhoso... E, ainda pior, a sensação que a invadia a seguir, como se tivesse sido usada e deitada fora. Seguindo os conselhos práticos da sua mãe, ela permanecia sempre estendida de costas durante vários minutos depois de Hawksworth a deixar, dando à semente dele todas as hipóteses de enraizar.
Secretamente, Lara alegrava-se sempre que constatava que aquilo não resultava. Não lhe agradava a ideia de ter uma criança dele a crescer no seu ventre, aproveitando-se do seu corpo, permitindo que Hawksworth a apontasse como uma amostra da sua tão importante virilidade.
Por que razão ele nunca a teria tocado como estava fazendo agora?
Com as pontas do seu dedo indicador, ele acariciou a parte de cima da pálida perna de Lara, onde a liga tinha deixado marcas avermelhadas. Então, pegou num frasco de vidro azul-bristol que estava no toucador e que continha um creme com uma mistura de extratos de pepino e rosas.
— É isto que usa na sua pele? — perguntou ele em voz baixa.
— Sim — respondeu, indefesa.
Ele abriu o frasco, que libertou, no ar, um aroma fresco e floral. Tirou uma pequena quantidade de creme, espalhou-o uniformemente entre as mãos, e massajou as pernas.
— Oh... - os músculos de Lara contraíram-se com aquela massagem e revolveu-se, inquieta, na cadeira.
Ele concentrou-se na sua tarefa de acalmar as áreas esfoladas da pele e Lara seguia o movimento suave daquelas mãos morenas. A bainha da sua camisa deslizou para cima e ela apressou-se a puxá-la novamente para baixo, tentando conservar os últimos restos de modéstia.
A tentativa era inútil. As mãos de Hunter moviam-se ritmadamente para trás e para a frente, cada vez mais para cima, fazendo a sua respiração parar de cada vez que ele se aproximava do interior das suas coxas. Lara não conseguia compreender as reações do seu próprio corpo, aquele desejo de se abrir e de se empurrar contra ele, o repentino calor que se espalhava nas suas partes íntimas. Os seus dedos chegaram ainda mais acima, quase roçando a extremidade do ninho de pêlos escuros por debaixo da camisa.
Lara ofegou e agarrou-lhe os pulsos. Sentia um ardor macio entre as pernas, uma estranha onda de umidade.
— Pare — sussurrou ela, vacilante. — Pare.
Ao princípio, ele parecia não a ouvir, os seus olhos concentravam-se na sombra de caracóis, por debaixo da cambraia fina. As suas mãos apertaram a carne.
Pare. Ela pedia o impossível, mas Hunter, por alguma razão, obrigou-se a obedecer-lhe. Fechou os olhos antes que a visão dela o levasse à loucura... Aquela pele clara e macia, aquela penugem de pêlos escuros que lhe atraía os dedos, para que mergulhassem por baixo da camisa.
Era impossível Lara compreender quão desesperado ele estava por tocá-la, saboreá-la, mordê-la, devorá-la, chupá-la, beijar cada doce centímetro do seu corpo. Os músculos dele estavam rígidos como aço, isto para não mencionar a massa latejante que sobressaía contra o tecido justo das calças. Ele estava prestes a explodir.
Quando, finalmente, se conseguiu mexer, retirou as suas mãos das pernas de Lara e levantou-se. Sem prestar muita atenção para onde ia, atravessou o quarto até quase chocar contra uma parede. Apoiou-se nela com as mãos e esforçou-se por recuperar o domínio de si mesmo.
— Cubra-se — disse bruscamente, com o olhar fixo sobre o papel de parede berrante que tinha diante de si, — ou não serei mais responsável pelos meus atos.
Ouviu-a a mover-se como um coelho assustado e a revolver o armário à procura de alguma roupa para vestir. Enquanto ela se vestia, Hunter começou a respirar de uma forma mais regular e controlada. Conservava nas suas mãos a fragrância do creme. Quis voltar até ela e esfregar os dedos, perfumados de rosa, nos seios e por entre as suas coxas.
— Obrigada — A voz dela chegou até aos seus ouvidos, depois de atravessar uma grande distância.
— Obrigada porquê? — perguntou ele, com o olhar ainda cravado na parede coberta a papel.
— Você poderia ter feito valer os seus direitos sem levar em conta os meus desejos.
Hunter virou-se e apoiou as costas na parede, cruzando os braços sobre o peito. Lara tinha vestido um puritano roupão branco, repleto de filas de dobras complicadas. A vestimenta não tinha nada de especial mas cobria-a quase por completo, no entanto, não serviu para esfriar o seu desejo. Estava encantadora, com a face tingida de um rosa delicado. Ele dirigiu-lhe um sorriso diabólico.
— Quando eu fizer amor você, estará mais do que disposta. Vai implorar que eu o faça.
Ela soltou uma gargalhada trémula.
— É muito arrogante na escolha das palavras!
— Vai implorar - repetiu. — E amará cada momento que isso durar.
Um sinal de alarme cruzou o rosto dela e então, adotou um olhar frio e de desprezo.
— Se lhe agrada pensar assim...
Hunter observou como Lara se dirigia para o toucador e se sentava diante do espelho, escovando o seu longo cabelo negro. Ela entrançou os canudos escuros e recolheu-os num rolo quase no alto da cabeça. Parecia ter recuperado a sua compostura, porém, havia ainda um rasto de desilusão que lhe enrugava a testa, fazendo com que ela parecesse preocupada. Qualquer homem teria dado a sua fortuna para poder confortá-la.
— Fale-me sobre o menino — disse Hunter.
Os movimentos ágeis dos dedos de Lara pareciam hesitar.
— Johnny foi enviado para o orfanato vindo da prisão de Holbeach. O seu pai era um criminoso condenado. Eu trouxe Johnny para aqui porque não havia nenhum quarto para ele, nem mesmo uma cama disponível.
— E você quer que ele viva aqui, conosco? Em que qualidade? Criado? Uma criança adotada?
— Não há qualquer necessidade de o adotar, se você não o desejar — respondeu Lara, num tom cuidadosamente desinteressado. — Mas com os meios que temos à nossa disposição, pensei que seria possível criá-lo como... parte da família.
Perplexo e aborrecido, Hunter encarou duramente a imagem de Lara refletida no espelho.
— Nós não estamos a falar de acolher em nossa casa o filho de um familiar, Lara. É muito provável que ele venha de uma grande estirpe de ladrões e assassinos.
— Johnny não é responsável pela sua ascendência, ou pela falta dela — respondeu ela rapidamente, evidenciando que já teria pensado nesse argumento. — É uma criança inocente. Se tiver oportunidade de crescer numa casa decente, ele nunca será como o pai.
— Isso é apenas uma teoria — Contestou Hunter, pouco impressionado. — Então diga-me, você vai oferecer a nossa casa a todas as crianças sem-abrigo que encontrar? Há uma quantidade enorme de órfãos em Inglaterra. E eu não pretendo transformar-me no pai adotivo de todos eles. Nem sequer de um, se quer que eu seja sincero.
— Não tem de se comportar como um pai — Lara apertou as mãos sobre o colo. — Eu serei suficiente para ele. Tomarei conta dele e amá-lo-ei sem que isso me distraia das minhas outras responsabilidades.
— Nem das suas responsabilidades para comigo? — Ele assinalou a cama fazendo um gesto com a cabeça. — Avise-me quando estiver pronta para assumir o seu dever de mulher e então voltaremos a considerar o assunto do seu mais recente protegido.
Ofendida, Lara ofegou.
— Não posso acreditar que se esteja a referir... Está mesmo a dizer que não permitirá que eu fique com Johnny a menos que eu aceite deitar-me com você?
Hunter sorriu na brincadeira, ainda a decidir se iria ceder um pouco mais, mas só até certo ponto. Maldito seria se ele permitisse que ela tivesse tudo como queria, sem ter de pagar algum preço.
— Como já disse, eu estou aberto a negociações. Mas antes de estabelecermos as condições do acordo, eu quero lembrar-lhe de algo em que você pode ainda não ter reparado. Pode criar o menino como se fosse da família, se assim o desejar. Mas ele não terá a linhagem necessária para ser aceito na alta sociedade e também não será um criado, será considerado demasiado bem-educado para a classe baixa de onde vem.
Lara comprimiu os lábios, recusando-se a ver, por pura obstinação, a verdade daquelas palavras.
— Isso não importará. Eu vou ajudá-lo a encontrar o seu lugar no mundo.
— O raio, se não importa! — Exclamou ele com brutalidade. — Não sabe o que é gostar de viver entre dois mundos e não se ajustar a nenhum.
— E como é que sabe o que é viver como um inadaptado? Foi sempre um Hawksworth, desde o dia em que nasceu, teve todo o mundo a curvar-se e a rastejar perante si.
Hunter apertou tanto o seu maxilar, que rangeu. Uma torrente de palavras esmagava-o por dentro. Lara ousou desafiá-lo. Via-o como um canalha sem coração, e intitulava-se a ela própria como uma santa padroeira de todas as criaturas desamparadas. Muito bem, ele estava mais do que pronto a responder ao seu desafio.
— De acordo — disse ele. — Deixe-o ficar. Não me porei no seu caminho.
Obrigado - o tom de Lara era cauteloso, como se pressentisse o que iria seguir-se.
— Em troca — Continuou ele com suavidade, — pode fazer uma coisa por mim.
Caminhou até ao cadeirão Hepplewhite e pegou num pacote de papel castanho que estava junto dele. Descontraidamente, atirou-lhe o leve pacote, que ela agarrou num movimento reflexo.
— O que é isto? — perguntou Lara. — Um presente?
— Abra.
Ela abriu-o lentamente, como se suspeitasse de algum tipo de brincadeira... E era, de certo modo. O presente era para o benefício dele, não seu. Pousando o papel de embrulho castanho no toucador, Lara retirou de dentro uma peça comprida, delicada e insinuante, de seda e renda preta. Hunter tinha comprado o roupão a uma costureira em Londres que tinha criado aquele artigo de vestuário como parte de uma grande encomenda para uma cortesã conhecida. Mas a cliente não daria pela sua falta, assegurou a costureira a Hunter, ansiosa por o ter como cliente.
O roupão era pouco mais que uma seda transparente, com o corpete feito de uma fina renda translúcida. A saia fluida estava aberta em dois sítios até à cintura.
— Só uma prostituta usaria isto — sussurrou Lara, ultrajada, com os seus olhos verdes muito abertos de espanto.
— Uma prostituta muito, muito cara, meu amor — Hunter quis rir do horror óbvio dela.
— Eu nunca poderia... — A sua voz calou-se, como se o pensamento de usar aquilo fosse demasiado terrível para se mencionar em voz alta.
— Mas vai poder — disse ele, saboreando aquele momento. — Hoje à noite, irá usá-lo para mim.
— Deve estar louco! Como poderia eu usar algo assim?! É indecente, é... — Ela corou e o rubor desceu até ao seu decote. — Mais valia estar nua!
— Há sempre essa opção — Concordou ele com uma expressão pensativa.
— Você... é um demónio! Degenerado, chantagista...
— Quer que o Johnny fique? — perguntou ele.
— E se eu usar isto? Que garantia tenho eu que não irá...
— Saltar para cima de você num ataque de luxúria? — Ajudou. — Lança em riste, como um touro cobrindo a vaca, tocando o realejo.
— Oh! Pare com isso! — Ela olhou-o, furiosa, e a sua face incendiou-se num vermelho-vivo.
— Eu não tocarei em você - prometeu, com um sorriso a arrastar-se nos seus lábios. — Use apenas a maldita roupa esta noite. Será assim tão difícil?
— Não — Ela deixou cair o roupão e cobriu a rosto quente com as mãos, a sua voz baixa a escapar-se por entre os dedos. — É impossível. Por favor, tem de me pedir qualquer outra coisa.
— Oh, não - não havia mais nada no mundo que ele quisesse mais do que vê-la naquele roupão preto. — Lara já me disse o que queria, e em troca eu disse o que desejava. Fica com a melhor parte, sabe bem disso. A criança ficará aqui durante anos, enquanto a sua parte do acordo ficará cumprida numa noite.
Lara levantou o delicado tecido do roupão e observou-o com desgosto. Era evidente que ela preferiria usar uma túnica de penitência, de pêlo de animal, que lhe raspasse duas ou três camadas de pele. Os olhos verdes dela cravaram-se nos dele.
— Se ousar tocar-me ou gozar-me, eu nunca o perdoarei. E encontrarei uma forma de se arrepender. Eu irei...
— Meu amor - interrompeu Hunter suavemente, — você já conseguiu com que eu esteja arrependido. Provoca-me um arrependimento constante saber que se eu tivesse sido carinhoso com você todos esses anos, estaria agora nos seus braços. Em vez disso, tenho de me conformar e fazer um acordo com você para ter um simples vislumbre seu.
A raiva desafiadora de Lara esmoreceu, deixou-se ficar a examiná-lo numa confusão dolorosa.
— Nem tudo foi por sua culpa — disse ela, infeliz. — Não era eu quem você queria. Eu não aprecio intimidade desse gênero, suponho que serei mesmo assim, ou que me falta algum instinto...
— Não, Lara. Meu Deus. Não há nada de errado com você — Hunter fechou os olhos, e sentiu o sabor amargo de arrependimento na sua boca. Ele escolheu as palavras com um cuidado escrupuloso. – Se conseguisse acreditar, nem que fosse só por um momento, que não tem de ser doloroso ou desagradável...
— Talvez se pudesse ser mais cuidadoso que antes – disse Lara, baixando o olhar, — eu acreditaria que não teria de ser necessariamente doloroso. Mas mesmo assim, eu não penso que pudesse mudar os meus sentimentos em relação a este assunto.
O seu rosto adorável mostrava-se tão abatido, como que a pedir desculpas, que Hunter teve de apelar à toda a sua força para não ir até ela.
— Que sentimentos? — perguntou ele em voz rouca.
Lara respondeu com clara dificuldade.
— Para mim, o que acontece entre um homem e a mulher é tão... sórdido... vergonhoso... e eu sou um total fracasso nisso. Eu tenho algum orgulho, sabe? — Ela levantou a peça de seda que pendia das suas mãos suadas. — Fazer-me usar isto é uma brincadeira de muito mau gosto, não entende? Evoca a minha inaptidão para ser sua mulher.
— Não — disse ele asperamente. O fracasso foi do seu marido, Lara. Nunca seu.
Lara ficou a observá-lo, confusa. As palavras que ele escolheu, seu marido, soavam como se ele estivesse a falar de outro homem. Claro que ele poderia estar referir-se a ele na terceira pessoa, mas essa era uma forma muito estranha de falar. Sentiu uma pontada de medo no seu peito, e o coração começou a bater com mais força; ela desejava saber se deveria expressar as suas suspeitas. Porém, antes de conseguir falar, Hawksworth caminhou até à porta. Parou no limiar e olhou para atrás.
— O acordo está estabelecido, Lara. Se quiser que a criança fique, não colocarei nenhuma objeção. Mas já sabe o que eu quero em troca.
Lara assentiu num movimento rígido de cabeça, enquanto retorcia o roupão nas suas mãos.
Assim que Lara mudou de roupa, vestindo linhos frescos e um vestido de musselina leve, saiu do seu quarto para logo encontrar Hawksworth à sua espera. O seu rosto revelava uma certa expressão de penitência, mas ela duvidava seriamente que ele lamentasse o acordo que lhe tinha proposto.
— Eu pensei que você talvez me pudesse acompanhar a dar uma volta pela casa e descrever as mudanças que está a planejar fazer com o senhor Smith — disse ele.
— Talvez seja preferível consultar o senhor Smith e os seus assistentes. Tenho a certeza de que eles lhe explicariam muito melhor do que eu, e se não aprovar os esquemas que nós escolhemos, poderá transmitir-lhes diretamente.
— Eu aprovo tudo o que escolheu - pegou-lhe na mão e sorriu-lhe, brincando ligeiramente com os dedos. — E eu não quero falar com Smith. Quero-a a você. Por isso, leve-me pela casa... por favor.
As últimas palavras foram embelezadas por um sorriso tão sedutor que ela não conseguiu resistir.
Lara hesitou por uns instantes, enquanto as pontas dos dedos dele vagueavam pela pele sensível do seu pulso.
— Está bem — disse ela. — Eu tentarei explicar-lhe tanto quanto eu me consiga lembrar, embora o senhor Smith tenha usado muitos termos italianos que eu não conseguiria pronunciar.
Hawksworth soltou uma gargalhada e segurou na sua mão enquanto caminhavam, entrelaçando os seus dedos nos dela. Era muito estranho, mas também muito agradável, sentir a sua mão encerrada na de Hunter, que era muito maior.
Começaram pelo salão de baile onde as estátuas marroquinas seriam substituídas por fileiras de janelas luminosas e colunas de mármore.
— Eles vão utilizar o mármore fleur de pêche, julgo eu — disse Lara ao parar no meio do salão de baile, os dois sozinhos num imenso soalho resplandecente. A voz dela ecoava ligeiramente na sala enorme. — O senhor Smith disse que esse mármore contém belos reflexos âmbar. E, na parte superior das paredes colocarão painéis decorativos cor de marfim, para tornar a sala mais leve - virou-se para ele, procurando uma reação. Os seus olhos estavam tão escuros e insondáveis que Lara quase perdia a sua linha de pensamento. — Com relação ao estuque...
Um silêncio perdurou.
— Sim? — perguntou Hawksworth finalmente.
Lara sacudiu a cabeça, incapaz de se lembrar de uma única palavra do que estava para dizer. Deixou-se ficar a contemplá-lo, fascinada pelo rosto dele, tão absolutamente inglês e aristocrático como sempre o caracterizou... mas no entanto... havia nele algo diferente. Algo que ia mais para além do bronzeado cobre exótico da sua pele e da brancura surpreendente dos seus dentes. Era um rasto de estranheza, a sensação de que ele não pertencia ali, naquela casa civilizada, a discutir pormenores de decoração.
Com esforço, Lara virou-se e obrigou-se a continuar.
— Vão retirar todo o estuque dourado e substituí-lo por um baixo relevo mais sutil - susteve a respiração quando sentiu a mão dele rodear a sua cintura. Umedeceu os lábios e terminou a explicação. — A pedido do senhor Smith, dois artistas stucatori virão de Veneza para fazer o trabalho.
— Que bom — murmurou.
Ele era tão alto, estava muito perto e a sua cabeça chegava-lhe apenas ao seu ombro. De repente, ela foi tentada a encostar-se mais e apoiar a sua cabeça contra o peito dele até que pudesse ouvir o bater do seu coração. Não gostava especialmente de homens corpulentos, já que se sentia dominada na companhia deles, mas agora, a força dele parecia convidativa e, numa surpresa silenciada, deu-se conta de que já não achava o seu toque desagradável.
Lara afastou-se dele com um riso nervoso.
— Espero que o Arthur e a Janet nunca mais voltem a tomar posse da casa — Comentou ela, sorrindo. — Uma pessoa põe-se logo a pensar que novos esquemas poderiam eles ainda engendrar aqui.
Hunter não lhe retribuiu o sorriso.
— Eles não voltarão — disse seriamente, aproximando-se novamente dela. Deslizou a mão morna pela parte inferior das costas de Lara. — Não há nada a temer dos Crossland.
Enquanto ele a contemplava, ergueu a mão e acariciou o pescoço de Lara com os nós dos dedos. Lara engoliu em seco e olhou para ele, tremendo com aquele toque leve.
— Sabe que eles devem estar preparando algum tipo de ação legal contra você... nós — disse ela.
— Eu trato deles quando o momento chegar - os olhos escuros dele procuraram os dela. — Eu tomarei conta de você, Lara. Não duvide nem por um segundo.
— Não, claro que eu... — Ela parou e susteve a respiração ao sentir que ele lhe acariciava a cintura, deslizando as suas mãos até roçarem os lados dos seios. Surpreendida e baralhada, sentiu interiormente um pulsar, como reação àquela carícia. — Eu gostaria que não me tocasse assim — sussurrou. Ele inclinou a cabeça e ela sentiu o roçar da boca contra a sua garganta.
— Porque não? — perguntou Hunter, enquanto procurava a concavidade minúscula por debaixo da orelha dela.
— Porque me faz sentir tão... — Ela procurava em vão as palavras, mas quando ele se aproximou ainda mais, todos os pensamentos racionais desapareceram.
Segurou no seio com extraordinária ternura e o volume macio adaptou-se perfeitamente à sua mão. Ao mesmo tempo, pegou no lóbulo da sua orelha com os dentes e tocou-lhe com a ponta da língua.
— Como é que a faz sentir? — murmurou ele, mas ela apenas soluçava e apertava-se contra ele, como num pedido inconsciente por mais.
Ele obedeceu imediatamente, e tomou-a num beijo longo e terno, a sua língua penetrando, sondando e acariciando. Provocou-a e acariciou-a com tanta habilidade e com um beijo tão vigoroso que ela não pôde deixar de responder. Lara estava totalmente aturdida com a improbabilidade da situação, por ter descoberto um intenso prazer nos braços do seu marido. Abraçaram-se ainda com mais força, as mãos pequenas dela agarravam nas costas largas dele, o seu corpo preso entre as coxas duras dele. A excitação intensificou-se e Lara gemeu, caindo contra ele até que os seus corpos se moldaram juntos, desde o peito até às coxas.
Só nessa altura Hawksworth a libertou, com um riso instável, e com os pulmões a arfar tentando ganhar fôlego. Ficou a olhar para os lábios inchados dela e para o seu rosto corado, e uma leve frustração escapou dos lábios dele.
— Com você é difícil concentrar-me em painéis e sanefas — murmurou, com os olhos a brilharem de contentamento.
Lara respirou fundo e tentou recuperar a compostura. Fez um esforço para não olhar para ele, pois receava que, se o fizesse, seria tentada a cair novamente nos seus braços.
— Será melhor retomarmos a excursão? — perguntou ela em voz baixa.
Hunter aproximou-se e deslizou os dedos por baixo do queixo dela, inclinando-lhe o rosto para cima.
— Sim — disse ele, com um sorriso sincero. — Mas não me mostre nenhum dos quartos, a não ser que esteja preparada para acarretar com as consequências.
Capítulo 10
O jantar daquela noite foi um acontecimento prolongado, onde participaram catorze convidados. Entusiasmados pela perspectiva de conhecer o célebre Possibilidade Smith, muitos dos burgueses de Market Hill tinham feito tudo para serem convidados, como o presidente da câmara, o pároco, o doutor Slade e as senhoras Withers, duas irmãs solteironas apaixonadas por jardinagem. À última hora, Lara convidou também o capitão e a senhora Tyler, um casal que tinha arrendado recentemente um solar, não muito longe da cidade.
Os convidados começaram a chegar às sete horas e foram encaminhados para o salão de recepções, onde Lara os juntava discretamente em grupos aguardando o início do jantar. Os últimos a chegar foram o capitão Tyler e a sua mulher. Dava a impressão de que os Tyler eram um casal bem parecido, os dois de baixa estatura e com uma expressão agradável. Visto não os ter conhecido antes, Lara foi imediatamente ter com eles.
— Capitão Tyler! Senhora Tyler! — Exclamou ela, cumprimentando-os calorosamente. — Sejam bem-vindos a Hawksworth Hall.
— A senhora Tyler agradeceu o convite com um murmúrio tímido enquanto o capitão Tyler, um cavalheiro moreno e com bigode preto bem aparado, se encarregou de responder.
— Como está a senhora, Lady Hawksworth? - inclinou-se rapidamente sobre a mão de Lara. — Sentimo-nos muito honrados pelo seu convite. Foi muito amável da sua parte incluir-nos entre os seus convidados.
— Não diga isso. Nós temos uma tremenda necessidade de novos amigos para animar a vizinhança — Lara ergueu a cabeça e sorriu para ele com curiosidade. — Soube que regressou recentemente de uma comissão na Índia.
— É verdade - reconheceu Tyler. — É bom voltar a pisar solo inglês.
— Então, terá muitas coisas em comum com o meu marido, já que ele viveu na Índia por uns tempos.
— Receio nunca ter tido o prazer de travar conhecimento com Lorde Hawksworth, mas, no entanto, já tinha ouvido falar dele. Nós não nos dávamos com as mesmas pessoas.
Embora o rosto do capitão Tyler fosse inexpressivo, Lara teve a sensação de que o seu último comentário tinha sido intencional. Como militar, Tyler provavelmente desaprovava o estilo de vida que Hunter levava naquele país, já que se alojou numa enorme mansão com pelo menos cinquenta criados indianos, totalmente dedicados a atender apenas um homem. Sem dúvida nenhuma, Hunter teria sido conhecido como um libertino, nunca se privando de nada numa terra de mulheres bonitas e prazeres sensuais. Os rumores sobre as orgias intermináveis em Calcutá eram já bem conhecidos em Londres e Lara estava plenamente consciente de que o seu marido não seria nenhum santo.
Mesmo assim, a ideia das libertinagens sexuais de Hunter provocou-lhe uma sensação amarga e desagradável, que ela tentou disfarçar com um sorriso cordial muito insípido.
— Se o senhor ainda não conhece Lorde Hawksworth — disse ela, então deveremos alterar isso imediatamente - olhando à volta da sala, viu Hunter a conversar com Lorde Lonsdale. Estavam visivelmente entretidos numa conversa sobre caça, bebidas, ou outras conquistas masculinas. Lara conseguiu chamar a atenção de Hunter, que pediu desculpa a Lonsdale e foi dar as boas-vindas aos recém-chegados.
Vestido com um deslumbrante colete branco e gravata, calças bege e um casaco castanho-chocolate com botões dourados, Hunter revelava ser um aristocrata com séculos de boa linhagem. Apenas o bronzeado profundo da sua pele e a graça felina dos seus movimentos o distinguiam do homem que ele era antes. Aproximou-se deles com um sorriso afável de um anfitrião que executa o seu dever... até que viu o rosto do capitão Tyler. Então, abrandou os passos e, pareceu a Lara, que se viu um vislumbre de reconhecimento no olhar dele, antes da sua expressão se transformar numa máscara inescrutável.
O capitão Tyler exibia a mesma aparência impassível, mas o seu rosto tornou-se pálido e o seu corpo ficou completamente tenso.
Eles conheciam-se um ao outro, Lara não tinha qualquer dúvida. Ela poderia ter apostado a sua vida.
Mas eles comportaram-se como se nunca se tivessem encontrado. Atordoada, Lara apresentou-os e testemunhou as suas tentativas fingidas para manterem uma conversa.
O capitão Tyler encarava o marido dela como se estivesse a ver um fantasma.
— Muitos parabéns pelo seu milagroso regresso à Inglaterra. É tema para uma lenda.
Hunter abanou a cabeça.
— A lenda é o senhor, capitão, não eu. Os seus êxitos na Índia, particularmente na contenção dos tugues, devem ser louvados.
O capitão inclinou a cabeça.
— Obrigado.
Lara olhou para a senhora Tyler que parecia tão confusa quanto ela. Por que razão os dois homens fingiam ser estranhos entre si, quando era evidente que havia um conhecimento comum entre eles? Eles devem ter-se conhecido na Índia e talvez tivessem algum amigo comum ou tenham estado envolvidos em algo que os relacionava de uma misteriosa maneira.
Lara encarou Hunter com um estranho olhar, mas ele não lhe devolveu. Ocultou-se por detrás de uma máscara de implacável cortesia, que não traía nenhum dos seus verdadeiros pensamentos. Os convidados foram conduzidos à sala de jantar, e todos eles exclamavam com admiração ao verem a mesa posta com cristais, pratas, velas e flores. Sentada longe do marido, Lara entreteve, sem grande entusiasmo, os convidados mais próximos, suportando o falatório das senhoras Wither sobre sementes e plantas rasteiras, e o relato do doutor Slade sobre as suas mais recentes proezas médicas.
O primeiro prato foi trazido, uma deliciosa exibição de sopas e peixe. Seguiu-se um prato de carne de veado, pudins e legumes, e a seguir, outro de perdiz, pato e codorniz, bolos de queijo e tartes, e assim sucessivamente, até que chegaram finalmente os doces, fruta e biscoitos. O vinho fluiu generosamente ao longo de toda a refeição;
O mordomo ia abrindo habilmente as garrafas de Sauterne, Bordeaux e champanhe, enquanto os criados se esforçavam por manter os copos dos convidados cheios.
Lara reparou, com grande consternação, que Hunter estava a beber demasiado. Ele sempre fora um grande apreciador de bebidas, mas desta vez não bebia por prazer... aquilo era intencional. Como se ele estivesse a tentar suavizar alguma dor interior que teimava em não desaparecer. Ele erguia o seu copo uma e outra vez, em silêncio, com exceção de algum comentário mordaz que provocava o riso dos seus convidados.
Falou com o capitão Tyler uma só vez, quando o tema da conversa se desviou para a Índia e Tyler expunha a ideia de que os indianos não tinham preparação para se governarem sozinhos.
—... a história tem demonstrado que os nativos são corruptos e que não se deve confiar neles — Comentou o capitão Tyler, muito sério. — Só com a intervenção britânica é que os indianos chegaram em condições até ao século XIX. E mesmo assim, irão sempre necessitar da orientação e supervisão dos oficiais britânicos.
Pousando o seu copo, Hunter olhou na direção de Tyler com um olhar gelado.
— Eu conheci vários indianos que tiveram a audácia de acreditar que poderiam realmente governar-se sozinhos.
— Ah, sim? — Deu-se uma longa pausa, até que o olhar de Tyler adquiriu um vislumbre malicioso. — Que interessante. De acordo com sua reputação, o senhor teria rejeitado a proposta de autonomia das províncias para os nativos.
— Eu mudei a minha opinião — respondeu Hunter.
— Os indianos demonstraram que não estão prontos para tal responsabilidade — Contra-atacou Tyler. — Numa sociedade onde prevalece a incineração das viúvas, o infanticídio, o banditismo, a idolatria...
— A intervenção britânica não ajudou em nenhuma dessas questões, até porque não nos dizem, minimamente, respeito - interrompeu-o Hunter, ignorando as exclamações que se ouviam ao redor da mesa, em reação à audácia da sua afirmação.
— E o que me diz sobre o cristianismo? Suponho que dirá que os indianos não beneficiaram disso...
Hunter encolheu os ombros.
— Deixe-os ter os seus próprios deuses. Até agora têm-se entendido muito bem com eles. Duvido que o hindu comum ou o muçulmano sejam piores do que qualquer pessoa, minha conhecida, que se intitule cristã.
Toda a mesa ficou calada perante aquela declaração sacrílega.
Então o capitão Tyler começou a rir, aliviando a tensão e os sorrisos começaram a aparecer quando, indiretamente, todo o grupo decidiu abordar a discussão que estava na mesa como uma piada.
O resto do jantar decorreu sem incidentes, embora Lara tivesse ainda dificuldade em afastar o olhar do seu marido. Ela raramente tinha discutido política com Hunter, já que ele não tinha nenhum interesse na opinião de uma mulher sobre esses temas. Porém, não lhe restavam dúvidas de que ele, numa outra época, defendia com toda a convicção a interferência britânica na Índia. Como era possível que agora, aparentemente, advogasse um ponto de vista contrário?
Demorou uma eternidade até que terminasse o jantar; os rituais do vinho do Porto e do chá depois do jantar sucederam-se lentamente, e os convidados deixaram-se ficar até depois da meia-noite. Quando, finalmente, o último partiu, os criados começaram a retirar os restantes pratos, cristais e pratas. Lara tentou escapar-se para o seu quarto, deduzindo que Hunter tivesse bebido demais e não notaria para onde ela teria ido. No exato momento em que alcançava as escadarias principais, ele apareceu e agarrou-lhe o braço com a sua enorme mão, assustando-a.
Lara virou-se de frente para ele e sentiu o seu coração a bater na garganta. Hunter cheirava a Porto, os seus olhos estavam vítreos e o rosto congestionado, e não se aguentava muito bem de pé. Bêbado como um imperador, teria dito o pai dela. Alguns homens naquele estado eram tão mansos como um cordeiro, mas outros, tornavam-se ruidosos e tumultuosos. Hunter não se revelava de nenhuma dessas formas. A boca dele contorcia-se num esgar sombrio e a sua expressão anunciava um mau humor perigoso.
— Aonde pensa que vai? — perguntou ele, apertando-lhe o braço com firmeza.
Com uma pontada de alarme, Lara percebeu que Hunter estava com a intenção de lhe cobrar, ainda naquela noite, a parte do acordo que tinham feito. Ela teria de encontrar uma maneira de o dissuadir. Com o seu marido naquele estado, ela não estava com nenhuma disposição para se exibir naquele roupão provocante. As piores noites da sua vida tinham começado assim, com Hunter bêbado, pesado e forçando-se sobre ela.
— Pensei que seria mais conveniente deixá-lo desfrutar de mais um ou dois cálices de vinho do Porto — disse ela, forçando os seus trêmulos lábios a esboçar um sorriso.
— E esperava que eu bebesse até cair - terminou ele, retribuindo-lhe um sorriso sarcástico. — Você não terá essa sorte, minha querida.
Ele começou a puxá-la escadas acima, como um tigre que arrasta a sua presa para um canto adequado para a devorar. Lara, vencida e triste, seguiu-o aos tropeções.
— Esta noite não parecia o mesmo — Arriscou-se a dizer, mas então refletiu que ele nunca parecia o mesmo, e que era impossível saber o que esperar dele. — Porque se revoltou tanto com o capitão Tyler?
— Oh sim, os Tyler... — A voz dele era suave e controlada, mas de certa forma cortante como um chicote. — Diga-me, meu amor... como é que eles vieram parar à minha mesa hoje à noite?
— Eles arrendaram o Solar de Morland — respondeu ela incomodada. — Eu tinha ouvido dizer que o capitão Tyler tinha servido na Índia, e pensei que gostaria de o conhecer.
Chegaram ao cimo das escadas, ele a fez dar meia volta para que ficasse de frente para ele. Lara estremeceu com o olhar que escrutinava no seu rosto. Parecia furioso, acusador, como se ela o tivesse traído de alguma forma.
— Hunter — disse ela com suavidade, — o que fiz eu de errado?
Pouco depois, a raiva dele abandonava-o, mas os seus olhos ainda conservavam um brilho perigoso. Parecia que estava a travar uma batalha contra más recordações.
— Não quero mais surpresas — murmurou ele, sacudindo-a ligeiramente para enfatizar aquele pedido. — Eu não gosto deles.
— Já chega de surpresas - repetiu Lara, com esperança que a tempestade passasse.
Hunter respirou fundo e soltou-a. Esfregou a cabeça com as duas mãos e despenteou o cabelo até este parecer uma massa de madeixas louras e castanhas. Parecia cansado e Lara pensou por um momento que ele poderia ir para a cama e dormir.
Hunter desfez-lhe as esperanças com uma frase curta.
— Vá e ponha o roupão.
Lara ficou quase sem palavras.
— Eu... Mas não poderá talvez... Eu penso que outra noite seria...
— Esta noite - sorriu ligeiramente, o seu rosto escuro e trocista. — Eu esperei todo o dia para poder contemplá-la. Nem um barril inteiro de vinho seria suficiente para me deter, e muito menos uma ou duas garrafas.
— Eu preferiria esperar - insistiu Lara com um olhar consternado.
— Vá agora — murmurou ele. — Ou eu assumirei que você quer que eu a ajude a mudar de roupa.
Silenciosa, Lara avaliou a determinação própria de um alcoolizado e encolheu os ombros. Ela faria isso, nem que fosse só para demonstrar que não tinha medo de nada do que ele lhe pudesse fazer.
— Muito bem — disse ela, claramente. — Venha até ao meu quarto dentro de dez minutos.
Ele soltou um grunhido em resposta, e ficou a observá-la enquanto ela se afastava com as costas eretas.
Lara lutava com um sentimento de irrealidade à medida que entrava no quarto e fechava a porta. Perguntava-se realmente conseguiria apresentar-se diante dele, coberta por um roupão que tinha sido desenhado para evidenciar o corpo de uma mulher... um roupão criado para excitar um homem. Era mais provocante que a nudez. Hunter nunca lhe tinha pedido para fazer algo assim. Concluiu que aquilo era com certeza o resultado das suas experiências sexuais na Índia, ou talvez fosse somente uma forma de ele reafirmar o seu domínio sobre ela, expondo-a e humilhando-a até que não lhe restasse mais algum orgulho.
Pois bem, aquilo não iria funcionar. Ele poderia humilhá-la como quisesse, mas nunca conseguiria tocar no respeito que ela tinha por si própria. Ela iria colocar aquele roupão ordinário e menosprezá-lo durante todos os minutos que usasse aquilo.
Tremendo com a afronta que sentia, Lara foi até ao roupeiro onde tinha escondido o roupão numa pilha de roupas interiores mais decentes. Encontrou-o e pegou nele com uma expressão de desgosto. A frágil trama de seda e rendas era tão fina, que ela poderia tê-la passado facilmente através de um anel.
Sem pedir a ajuda de Naomi, Lara despiu-se sozinha com gestos desajeitados. Deixou as roupas e os sapatos no chão em monte. O roupão deslizou pelo seu corpo com um fresco sussurro de seda que a fez arrepiar e Lara atou as minúsculas fitas que simplesmente mantinham o corpete e a cintura juntos. A saia, se isso se pudesse chamar saia, abria nos lados quando ela andava, expondo todo o comprimento das suas pernas e parte das ancas.
Deveria deixar o cabelo solto? Sentiu-se tentada a retirar os ganchos que prendiam o diadema sobre a cabeça e a pentear as madeixas maiores para que talvez ajudassem a esconder um pouco o seu corpo. Era melhor não... Hunter só ficaria ainda mais divertido com a sua tentativa covarde de modéstia.
Lara ficou tensa ao ouvir que alguém entrava no quarto sem bater à porta. Escondeu-se ao lado do roupeiro, meio tapada pelo enorme móvel e espreitou cuidadosamente à sua volta. O seu marido passeava-se até ao cadeirão Hepplewhite, com uma garrafa de vinho na mão. Ele tinha tirado o casaco e a gravata, desapertado o botão da camisa branca, deixando à vista o pescoço bronzeado. Instalou-se no cadeirão e sorriu com insolência ao ver o rosto tenso de Lara com os lábios apertados. Sem se preocupar em dissimular a sua ansiedade, deu um grande golo da garrafa e fez um gesto a Lara para que saísse do esconderijo.
Aquela ordem silenciosa intensificou ainda mais os nervos e a fúria de Lara. Afinal de contas, ela era a sua mulher, não alguma qualquer prostituta a quem ele tivesse pago para atuar a seu pedido.
— O que devo fazer? — perguntou ela em voz baixa, ressentida.
— Caminhe até mim.
A lareira estava acesa, mas Lara estava longe de sentir o seu calor. Arrepiada de frio e com os dentes a tiritar, forçou-se a obedecer. Deu um passo e depois outro e sentiu o picar do tapete Aubusson nos seus pés descalços. Aproximou-se mais de Hunter e a luz do fogo brilhou através da seda preta transparente.
Sabia que ele podia ver tudo, vislumbres da sua pele de marfim, a forma do seu corpo, o escuro triângulo entre as suas pernas.
Parou à frente dele com a cara a arder.
Hunter resistia hirto como uma estátua, o rosto e o cabelo dele refletiam a luz das chamas a dançar.
— Oh, Lara — disse ele com suavidade. — E tão bonita, que eu... — Ele parou e engoliu em seco, como se lhe custasse falar. O seu sorriso lânguido já se tinha desvanecido e pôs de lado a garrafa de vinho, parecendo que os dedos já não a conseguiam agarrar. Parecia também não conseguir retomar o fôlego ao percorrer o seu olhar desde os pés descalços até aos seus seios, demorando mais nos bicos rosados que se pressionavam contra a renda delicada.
O quarto já não estava frio, mas Lara continuava a tremer.
— Eu prometi que não lhe tocava — disse com voz rouca, — mas, maldito seja eu, se consigo manter essa promessa.
Se ele a tivesse agarrado ou a tivesse forçado de alguma forma, Lara teria resistido. Porém, ele aproximou-se dela tão lentamente, passando com os dedos com tanto cuidado nas ancas dela, como se receasse assustá-la com qualquer movimento mais brusco. Ele olhava para baixo, sendo difícil decifrar a sua expressão. Mas Lara conseguia ouvir a sua respiração acelerada, que lhe roçava o pescoço.
— Imaginei isto tantas vezes... — disse ele com voz pastosa. — Vê-la... tocá-la... — As suas grandes mãos deslizaram até às nádegas de Lara e os seus dedos moldaram-se às suas curvas tensas. Com uma leve pressão, ele puxou-a para mais próximo de si, colocando-a entre os seus joelhos. Hipnotizada, Lara sentia que as mãos dele iniciavam uma lenta e metódica viagem pelo seu corpo, deslizando pelas costas, pela cintura, pelas ancas e coxas, até chegar à parte de trás dos seus joelhos O calor daquelas mãos atravessava a fina barreira de seda, como se esta nem existisse.
O coração de Lara latejava e ela pensou em afastar-se, mas o seu corpo atraiçoou-a e parecia não querer obedecer. Hunter olhou para ela com os olhos intensamente sensuais e manteve aquele olhar enquanto as suas mãos começaram a deslizar lentamente para os seios.
Ele segurou-os, sentindo a sua suavidade escondida na renda preta, e ergueu-os ligeiramente. Lara soltou um suspiro sufocado e sentiu que os seus joelhos tremiam, obrigando-a a apelar por todas as suas forças para não cair vencida no colo de Hunter. As pontas dos dedos dele acariciavam e puxavam ligeiramente os seus mamilos, que endureciam, erguendo-se, formando bicos rosados. Ele inclinou-se sobre ela, o seu fôlego parecia vapor, da maneira como flutuava sobre a sua pele.
A boca dele cobriu-lhe o mamilo, envolvendo-o com o calor e a umidade que passava pela renda do roupão. Ela sentia a língua de Hunter a circular e a acariciá-la, provocando ondas de prazer que percorriam a sua carne, já atormentada.
— Lara — disse ele numa voz profunda. — Eu desejo-a tanto... Deixe-me beijá-la... saboreá-la...
A pressa tornou-o desajeitado, puxou o corpete do vestido até ela ficar com o ombro descoberto e a renda começar a ficar muito apertada e desconfortável.
Então, Lara gemeu, dividida entre a indecisão e a excitação.
— Chega — disse ela, agitando as mãos contra os ombros de Hunter. — Não deve fazer isso... Isto não é o que eu...
Mas Hunter tinha encontrado uma das fitas de seda e soltou-a, fazendo com que a renda preta se abrisse, deixando os seios descobertos. Encheu as mãos com aquelas curvas opulentas e começou a beijá-las com avidez. Em seguida pegou num mamilo com a boca e chupou-o vorazmente, enquanto Lara estremecia e tentava afastá-lo.
— Diga-me que não quer isto — sussurrou ele, entre beijos.
Lara não conseguia responder, não conseguia falar com a língua dele a deslizar por entre os seus seios e com aquelas mãos a acariciar a sua pele nua. Ele soltou o segundo laço e o roupão caiu até às ancas. Respirando profundamente de prazer, Hunter beijou-lhe o ventre e a sua língua brincou à volta do umbigo dela antes de mergulhar delicadamente lá dentro. Lara gemeu, surpreendida, torcendo-se com aquele toque quente e úmido e cravando os dedos na seda grosseira do cabelo dele.
Hunter empurrou a cabeça dele contra a barriga dela com um gemido torturado e deslizou o braço à volta da cintura de Lara.
— Não me impeça — suplicou ele. — Por favor.
Ele pegou-a ao colo, como se ela fosse uma criança, e cambaleou para a cama, nuns passos largos de bêbado. Pousou-a na cama e encostou-se a ela imediatamente, o seu grande corpo a mover-se em cima do dela. Pegou no rosto de Lara com as mãos e beijou-a com avidez, mergulhando e explorando com a língua a boca dela, Lara gemia num misto de delícia e medo. Com timidez, ela abraçou o pescoço dele e Hunter soltou um gemido de prazer. Então, ele libertou-lhe a cara e deslizou a mão até à coxa, ali, onde a mata de caracóis escuros estava ainda tapada pelo roupão.
— Não... espere - pediu Lara, juntando as pernas.
Para surpresa de Lara, ele obedeceu e apoiou a mão no ventre plano dela. Deixou cair a cabeça junto à dela e mergulhou com a testa, de frente para o colchão, soltando um enorme e vibrante suspiro.
Ambos ficaram em silêncio, com o calor dos seus corpos fundindo-se num só. Lara sentia o peso de Hunter junto ao dela e as suas pernas e braços muito mais compridos que os dela.
Em outros tempos, ele tê-la-ia forçado brutalmente.
Cheia de deslumbramento e gratidão, Lara descansou a sua mão no braço pesado que tinha atravessado na sua cintura. Acariciou lentamente a dura curva dos seus músculos, até lhe chegar ao ombro. Um pensamento malicioso assaltou a mente: desejava que Hunter tivesse tirado a camisa e tivesse exposto a sua pele bronzeada, que tanto a desconcertava.
— Obrigada — disse ela, num sussurro. — Obrigada por não me ter forçado.
O silêncio dele incentivou-a a continuar e então, ela acariciou o ombro, no primeiro gesto de afeto que alguma vez se atreveu fazendo.
— Não é que eu o ache mal parecido — murmurou, corando subitamente. — Na realidade, eu penso que é realmente bastante... atraente — Ela virou a cabeça até a sua boca ficar apertada contra a pele ardente da garganta dele. — Eu estou muito feliz por ter voltado. Realmente feliz.
Um ronco macio ressoou perto do ouvido dela. Sobressaltada, Lara afastou-se ligeiramente e olhou para ele. O marido estava com os olhos fechados e os lábios entreabertos como uma criança a dormir.
— Hunter — sussurrou ela com cuidado. Ele fez um ruído de satisfação e aconchegou-se na colcha. Suspirou novamente e continuou a roncar.
Lara mordeu o lábio para reprimir uma gargalhada súbita. Desembaraçou-se do abraço dele, levantou-se da cama e em seguida tirou o roupão com um pontapé, já que este se tinha enroscado à volta dos tornozelos. Apressou-se até ao roupeiro e vestiu uma camisa de noite fresca e um roupão. Hunter permanecia na cama, um monte pacífico de pernas compridas e sonoros roncos.
Já em segurança e novamente vestida, Lara aproximou-se do seu marido. Um sorriso divertido desenhou-se nos lábios e começou a tirar-lhe os sapatos e as meias. Hesitou antes de lhe desabotoar o colete, pois receava que ele acordasse de repente. Mas ele deixou-se ficar relaxado e inerte, e os seus músculos descontraíam-se à medida que ela removia aquela peça de tão bom corte. Deixou-o de camisa e de cuecas e cobriu-o com a manta para o proteger do frio da noite.
Antes de apagar a luz do candeeiro, Lara fez uma pausa para voltar a dirigir um último olhar ao seu marido. Ele dormia como uma magnífica fera, com todo aquele seu estado de alerta e vitalidade temporariamente abafados, as suas garras embainhadas. Mas na próxima manhã ele voltaria ao seu estilo habitual, trocista, argumentativo, encantador... e retomaria os seus esforços para seduzi-la.
O que enervava Lara era dar-se conta de que de certo modo, ela na verdade aguardava com alguma ansiedade que esse dia chegasse.
Com as sobrancelhas franzido, Lara foi para o quarto de Hunter para passar a noite sozinha.
Capítulo 11
Johnny estava sentado numa cadeira próxima de Lara e no assento estava colocada uma pilha de livros que o elevavam até à altura da mesa. O guardanapo branco que tinha amarrado ao pescoço estava salpicado de chocolate, uma guloseima, Lara calculava, que ele nunca deveria ter provado. Depois de engolir uma xícara inteira daquela bebida tão depressa que Lara receava que ele tivesse queimado a língua, pediu logo outra.
— Primeiro tens de comer qualquer coisa — disse Lara empurrando até ele um pequeno prato com ovos escalfados. — Experimenta um pouco disto... São deliciosos.
Johnny olhou para o esplendor dourado e branco dos ovos escalfados com clara suspeita.
— Não quero isso.
— Eles vão ajudar-te a crescer grande e forte - tentou Lara persuadi-lo.
— Não!
Lara estremeceu quando reparou no olhar reprovador que surgiu no rosto do criado. Os ovos eram considerados um deleite de luxo para os criados, que nunca deveriam ser desperdiçados. Embora eles fossem bem treinados para que não demonstrassem abertamente a sua opinião, alguns criados não queriam servir um menino com um passado tão pobre como o de Johnny. Porém, o menino poderia suavizar esse sentimento se comportasse e demonstrasse o devido reconhecimento pelo seu novo estilo de vida. Se caísse nas graças dos criados da mansão, mas em especial nas graças do patrão, a sua posição estaria muito mais salvaguardada.
— Eu tenho a certeza de que consegues provar só um pouco - insistiu Lara, tirando um pouco de comida com uma colher de prata.
Johnny abanou a cabeça, com violência.
— Mais chocolate - ordenou ele, deixando bem claro que naquela manhã não tencionava portar-se bem.
— Depois — disse Lara com firmeza. — Vá, come esta torrada. E um pedaço de fiambre também.
Johnny encarou-a, tentando avaliar a determinação dela e acedeu imediatamente.
— Tá bem — Ele segurou num pedaço de torrada com as duas mãos, mordiscou um dos cantos e começou a mastigar com entusiasmo. Sem fazer caso do garfo que tinha junto ao prato, rasgou um pedaço grosso de fiambre com os dedos e meteu-o na boca.
Lara sorriu, resistindo ao desejo de se inclinar e abraçá-lo com todas as suas forças. Para já, bastava-lhe que ele comesse, para que o seu corpo esquelético ganhasse algum peso. O uso correto dos talheres seria tratado por ela numa fase posterior.
Apesar do tempo que ela tinha passado no orfanato, nunca tinha tido a oportunidade de acompanhar de perto a rotina diária de uma criança em especial, nem de desfrutar de situações como esta que vivia ali. Sentiu que era inexplicavelmente compensador.
Pela primeira vez na sua vida, o fardo da sua esterilidade não lhe parecia tão esmagador. Sentia que, mesmo que ela não pudesse ter uma criança do seu sangue, poderia constituir uma família.
Enquanto Lara especulava silenciosamente sobre as possíveis reações do marido ao hospedar mais crianças em casa, Hunter entrou na ala de refeições, numa atitude estranhamente acanhada.
— Bom dia — disse Lara com precaução.
Hunter não respondeu, limitou-se apenas a olhar com repugnância para o aparador carregado com comida. Parecia pálido por debaixo do seu bronzeado, e virou-se para o criado de serviço.
— Peça à senhora Gorst que me faça uma das suas bebidas mágicas — Grunhiu. — E enquanto espera, traga-me um pouco daquele pó para esta maldita enxaqueca.
— Sim, senhor — respondeu o criado, apressando-se a cumprir o pedido. A receita para aquele remédio especial de ressaca estava na família há anos, mas só a senhora Gorst sabia o que continha.
Johnny assistiu com os olhos muito abertos, ao modo como Hunter enchia um copo com água. A criança olhou para Lara com um olhar interrogador.
— Ele é um duque?
— Não, meu querido — respondeu divertida. — É um conde.
Claramente desapontado, Johnny continuou a observar as costas largas de Hunter e puxou a manga de Lara.
— O que foi? — murmurou ela.
— Ele agora vai ser o meu papai?
Hunter engasgou-se com um golo de água. Os lábios de Lara tremeram antes que ela conseguisse responder à criança. Acariciou com ternura o cabelo preto dele.
— Não, Johnny.
— Porque é que não diz nada? — perguntou o menino, com uma voz tão aguda que fazia a cabeça de Hunter ranger.
— Chiu, meu querido — sussurrou ela. — Eu penso que ele está com uma dor de cabeça.
— Oh — Johnny perdeu todo o interesse em Hunter e contemplou as migalhas no seu prato. — Eu gostava de saber como está o Mousie.
Sorrindo, Lara pensou como poderia distraí-lo da recordação da sua mascote perdida.
— Porque é que não vais hoje visitar os estábulos? - sugeriu ela. Podes fazer festinhas aos cavalos e dar-lhes uma cenoura ou duas para eles comerem.
— Oh, sim! — Ele pareceu entusiasmar-se com a ideia e deslizou logo da pilha de livros.
— Espera — Acautelou Lara enquanto lhe tirava o guardanapo do pescoço. — Primeiro tenho de chamar Naomi e ela vai ajudar-te a lavares as mãos e a cara.
— Mas eu já lavei ontem — respondeu, indignado.
Lara soltou uma gargalhada e limpou-lhe com suavidade a cara pegajosa com o guardanapo.
— Antes de visitares os estábulos, tens de lavar-te dessas manchas de chocolate, ou então, vais atrair todas as moscas de Market Hill.
Depois de Johnny ter saído da sala com Naomi e de o criado ter trazido um copo cheio do misterioso remédio, Lara virou a sua atenção para Hunter.
— Sente-se — Convidou ela. — Talvez lhe faça bem comer uma torrada...
— Meu Deus, não! — Aquela sugestão provocou uma careta de mal-estar na expressão de Hunter. Bebeu devagar o remédio e pô-lo de lado depois de terminar meio copo. De pé junto à janela, lançou de relance um olhar preocupado a Lara. Dava a impressão de que ele não a conseguia encarar nos olhos, quase como se...
Seria possível que ele se sentisse envergonhado pela bebedeira da noite anterior? Lara rejeitou essa hipótese imediatamente. Não era nenhuma vergonha um homem beber demais. Na verdade, Hunter e os camaradas consideravam um ritual masculino engolir o máximo de álcool que pudessem suportar.
Confusa, Lara estudou o perfil esquivo dele. À primeira vista, parecia que ele estava de mau humor, mas depois de um exame mais cuidado, ela achou que ele estava com a expressão de um homem que tinha uma penosa tarefa a executar. Lara sentiu crescer a sua curiosidade e, com um gesto, indicou ao criado que se retirasse; ele saiu silenciosamente da sala, dando-lhes privacidade.
Lara levantou-se e dirigiu-se ao aparador com um ar descontraído e desinteressado, enquanto o silêncio se tornava mais tenso. Lembrou-se de que Hunter talvez se sentisse incomodado pela recordação da intimidade que eles partilharam, as coisas que ele tinha dito, a forma como ele a tocou... Uma mancha de calor aflorou-lhe o rosto, com a lembrança.
— Hunter - observou ela, — parece-me bastante calado esta manhã. Espero que não esteja preocupado pelo... que aconteceu ontem à noite — Enquanto esperava pela resposta, sentiu que corava ainda com mais intensidade.
Depois de uns momentos, Hunter juntou-se a ela perto do aparador, os dois sem desviarem o olhar dos pratos do café da manhã. Ele respirou profundamente.
— Lara... relativamente à ontem à noite, não me recordo exatamente do que eu... — Agarrou a borda do aparador até que as pontas dos seus dedos ficaram brancas com a pressão. — Eu espero... Eu não a machuquei... Pois não?
Lara piscou os olhos, assombrada. Hunter achava que a tinha forçado a ter relações com ele. E que mais poderia ele pensar, ao acordar na cama dela com as roupas desalinhadas? Mas por que razão isto o perturbava tanto, se ele o fizera por diversas vezes no passado? Ela olhou-o pelo canto do olho, rapidamente. Parecia estar constrangido pelos remorsos.
Como era irônico, tudo aquilo. Hunter nunca tinha sentido um pingo de culpa durante as inúmeras vezes em que realmente a macucará, e agora sentia uma tão profunda vergonha por algo que não tinha feito. Subitamente, aquela situação pareceu-lhe irresistivelmente engraçada e Lara virou-se para esconder o rosto.
— Você bebeu demais — disse ela, esforçando-se por parecer séria. — Eu supus que não sabia o que estava fazendo.
Lara apercebeu-se que ele soltava um chorrilho de pragas em voz baixa, o que só aumentou a sua vontade de rir, mas lutou por se conter até ao ponto de lhe tremerem os ombros.
— Pelo amor de Deus, não chore — suplicou Hunter, enervado. — Lara, por favor... Tem de acreditar que eu não tencionava...
Lara voltou-se para ele, e ele ficou boquiaberto quando viu o ar de divertimento dela.
— Mas... não fez nada — disse ela, sufocada de riso. — Caiu na cama... e dormiu — Entre soluços e gargalhadas, ela afastou-se.
— Sua diabinha! — Explodiu Hunter, perseguindo-a pela sala. O seu alívio só parecia igualar-se ao seu aborrecimento. — Eu passei um verdadeiro inferno, esta manhã!
— Ainda bem — respondeu ela com uma satisfação descarada, colocando-se do lado mais distante da mesa. — Depois de me fazer usar aquele pavoroso roupão, também mereceu sentir-se um pouco desconfortável.
Hunter tentou aproximar-se dela em passos largos, mas Lara esquivou-se e pôs-se atrás de uma cadeira.
— Eu não lamento tê-la obrigado a usar o roupão, o único problema é que eu não me lembro de a ver com ele. Terá de o vestir novamente.
— Não o farei, de certeza!
— Se eu não me lembro, não conta.
— Eu lembro-me o suficiente pelos dois. Nunca me senti tão atormentada!
Hunter abandonou a perseguição, apoiou a mão na mesa e contemplou-a com os seus olhos escuros e brilhantes.
— Você estava linda. Disso sei que me recordo.
Ela tentou não se deixar desarmar ou sentir lisonjeada, mas era difícil. O clima que existia entre eles transformou-se, ficando surpreendentemente confortável. Lara sentou-se à mesa e Hunter ficou a olhar para as migalhas que Johnny tinha espalhado na mesa.
— Disse ao rapaz que ele iria viver conosco de agora em diante? — perguntou ele de repente.
Um sorriso leve surgiu nos lábios dela.
— Não lhe disse com essas palavras. Na verdade, penso que ele dá esse fato como assente.
— Ele tem uma maldita sorte. Qualquer criança na situação dele teria sido despachada para um estabelecimento corretivo... ou pior.
Lara pegou num garfo e pôs-se a brincar com os restos de comida do seu prato.
— Senhor — murmurou ela, — há um assunto que eu gostaria de discutir com você. Eu tenho pensado no que aconteceu a Johnny, o fato de ele ter tido de viver dentro da prisão com o pai, porque não havia ninguém para cuidar dele, e... Eu tenho a certeza de que ele não é o único vivendo assim. Se isto acontece em Holbeach, tem forçosamente de acontecer noutras prisões. Neste momento, podem existir muitas crianças a residir com os pais atrás das grades e eu não com você imaginar um ambiente mais pavoroso...
— Espere — Hunter puxou uma cadeira, sentou-se de frente para ela e pegou-lhe nas mãos. Apertou-lhe suave e calorosamente os dedos, olhando-a nos olhos. — É uma mulher muito caridosa, Lara. Só Deus sabe que não descansará até que todos os órfãos, todos os mendigos e todos os cães e gatos abandonados do mundo recebam o cuidado merecido. Mas peço-lhe, não comece essa cruzada precisamente agora.
Aborrecida, Lara retirou as mãos.
— Eu ainda não propus fazer nada — Contestou.
— Ainda...
— Para já, tudo o que eu pretendo é descobrir se há outras crianças nas mesmas condições de Johnny. Eu refleti e pensei escrever aos diretores de várias prisões perguntando se eles estão a albergar filhos de prisioneiros, mas receio que não admitam essa realidade, se for esse o caso. Especialmente sabendo que quem lhes pergunta isso é uma mulher — Calou-se e olhou para ele, na expectativa.
— Então, quer que seja eu a averiguar isso — disse Hunter peremptório, franzindo a sobrancelha. — Que raio, Lara, eu tenho mais que fazer para estar a preocupar-me agora com isso.
— Você teve, em tempos, relações políticas muito influentes - persistiu Lara. — Se pedisse a alguns funcionários ou inspetores do governo, qualquer informação que eles pudessem ter... ou talvez haja alguma instituição de correção de presidiários e que talvez pudesse prover...
— Existem pelo menos trezentas prisões em Inglaterra. Suponha que nós descobrimos que realmente há crianças vivendo com os pais condenados, dez, vinte, talvez cem. Que diabo é que julga que poderia fazer acerca disso? Adotá-los a todos? — Hunter riu sem vontade e abanou a cabeça. — Tire isso da sua cabeça, Lara.
— Eu não com você — respondeu ela, apaixonadamente. — Eu não com você ser tão racional como o Hunter. Não descansarei até descobrir o que quero saber. Se for necessário, vou pessoalmente visitar todas as prisões que consiga encontrar.
— Raios me partam, se permitirei que ponha um pé sequer numa prisão.
— Não me pode impedir!
Olharam-se fixamente e Lara sentiu-se corar muito com uma raiva crescente, que parecia desproporcionada para a situação. Se ela não tivesse sabido o que é viver sem um marido e não tivesse vivido a fascinante experiência de tomar as suas próprias decisões sozinha depois de ele ter partido para a Índia, então talvez ela pudesse aceitar o juízo de Hunter. Mas agora, a sensação de ser controlada e proibida de fazer alguma coisa, deixava-a extremamente furiosa. Esteve prestes a pronunciar palavras terríveis, que desejava que fosse de novo para a Índia, ou para o fundo do mar, ou qualquer outro lugar, desde que não estivesse na mesma sala que ela. Sem saber bem como, conseguiu manter-se em silêncio e o seu esforço trouxe-lhe lágrimas de fúria aos olhos.
Ouviu a voz baixa de Hunter.
— Lara. É demasiado preciosa para mim para que eu permita que se ponha em perigo. Assim, em vez de eu ter de a atar à barra da cama para garantir que não vai visitar uma maldita prisão... eu tenho uma proposta para lhe fazer.
Desconcertada com aquela inesperada ternura do marido, Lara baixou a cabeça e concentrou-se em fazer círculos invisíveis sobre a saia.
— Seja qual for a sua proposta, não voltarei a usar aquele roupão.
Ele aproximou-se e pôs a mão sobre a coxa de Lara.
— Esta é a proposta, meu amor... Eu conseguirei as informações que pretende, mas até lá, não se deverá aproximar de Holbeach ou de qualquer outro lugar semelhante. E quando eu descobrir o que deseja saber, tem de prometer-me que não fará nada sem antes me consultar.
Lara olhou para cima e abriu a boca para começar a protestar, mas ele continuou.
— Eu não pus objeções quando me disse que o Johnny ia viver conosco - lembrou ele. — Você encarregou-se do assunto sozinha, sem me dizer uma palavra. Eu optei por não me envolver porque compreendi o quanto desejava ficar com o rapaz. Mas no futuro, porém, nós trataremos destas questões juntos, como sócios, está de acordo?
Lara não podia acreditar que Hunter Cameron Crossland, o sexto conde de Hawksworth, estava a sugerir ser sócio dela. Ele sempre deixara muito claro que ela não era mais nada para além de uma extensão dele, um apêndice... uma propriedade.
— Sim, concordo — murmurou Lara, e olhou-o de relance, como se suspeitasse dele. — Está a rir-se de quê?
— De você — Ele observou-a com uma expressão muito masculina, que já parecia familiar a Lara. Aquele sorriso preguiçoso permanecia nos seus lábios. — Aposto tudo o que quiser que toda a gente que a conhece a considera meiga, doce e solícita. Mas não é.
— Então, sou o quê?
A mão de Hunter deslizou pelo pescoço dela, e puxou-a para ele, até os lábios quase tocarem. Lara sentia o roçar morno da respiração dele, e o estômago dela revirou-se de excitação.
— Você é uma leoa — disse ele, e largou-a sem a beijar... deixando-a com uma absurda sensação de decepção.
O vestíbulo ecoava com ruídos de uma criança a choramingar. Hunter abrandou o passo e deteve-se junto da arcada da entrada e olhou para as colunas que existiam em redor da sala. Johnny estava ali, encolhido num canto e de costas contra a parede. O menino não estava a chorar declaradamente, mas fungava como se as lágrimas fossem eminentes e tinha a face vermelha. Olhou para Hunter enquanto esfregava nervosamente os curtos cabelos pretos.
— Porque é que estás aí sentado? — perguntou Hunter com uma certa irritação devido à sua falta de experiência com crianças, ou de qualquer conhecimento sobre as suas necessidades e desejos.
— Estou perdido — respondeu a criança, angustiada.
— Porque é que não está alguém contigo? — Deveria haver alguém designado para cuidar do menino. Só Deus sabia em que gênero de travessuras o rapaz era capaz de se meter. Ao notar que não recebia nenhuma resposta, Hunter voltou a tentar. — Aonde é que queres ir?
Os seus minúsculos ombros encolheram-se por debaixo da sua enorme camisa.
— Quero fazer chichi.
Hunter sorriu com uma relutante simpatia.
— Não sabes onde são as casas de banho? Bem, eu levo-te a uma delas. Vem comigo.
— Eu vou andar com você.
— Eu levo-te ao colo. Mas aviso-te que acho melhor que te aguentes. — Com muito cuidado, Hunter pegou no pequenito e atravessou o vestíbulo. Ele era extraordinariamente leve. E que olhos tão estranhos tinha, um tom azul tão límpido e escuro que parecia violeta.
— Está casado com a senhora? — perguntou Johnny, agarrando-se ao pescoço dele com os seus bracinhos.
— Estou.
— Quando eu for grande, vou casar com ela.
— Mas ela não pode estar casada com dois homens ao mesmo tempo — respondeu Hunter divertido. — O que vais fazer comigo?
— Pode ficar aqui - ofereceu o rapaz com generosidade. — Se a senhora deixar.
Hunter sorriu para aquele pequeno rosto tão próximo do seu.
— Obrigado.
Enquanto caminhavam, Johnny olhava para baixo.
— O senhor é alto — disse ele. — Mais alto que o meu papai.
Aquela observação despertou o interesse de Hunter.
— Diz-me, pirralho... porque é que enforcaram o teu pai?
— O papai era um caçador de malandros. E matou alguém, mas foi sem querer.
Estes caçadores de malandros, pensou Hunter, eram os homens que assaltavam os bêbados que vagueavam à noite pelas ruas. Não se consideravam criminosos da pior espécie... somente uma escória que boiava nas profundezas de Londres. Hunter disfarçou o seu desgosto e mudou o menino para o outro braço.
— Onde está a tua mãe? — perguntou ele.
— A mamãe 'tá no céu.
O menino não tinha ninguém, portanto.
Um sorriso inocente iluminou o rosto da criança, como se, de alguma forma, ele pudesse ler os pensamentos de Hunter.
— Agora o senhor e a senhora ficam comigo, não é?
Só naquela altura, Hunter começou a entender a atração de Lara pela criança.
— Sim, ficamos - ouviu-se ele dizer, sem quaisquer sinais de sarcasmo. Não havia dúvida de que o rapaz tinha a habilidade de convencer as pessoas a desejarem cuidar dele.
Chegaram a uma pequena sala de banho, e Hunter pousou cuidadosamente a sua carga.
— Já cá estamos — parou e perguntou, com algum incômodo: — Precisas de ajuda com... com este tipo de coisas?
— Não, eu com você fazer isto - o menino entrou no pequeno quarto e olhou ansiosamente para trás. — Vai ficar aí até eu acabar?
— Eu fico aqui - tranquilizou-o Hunter, parado diante da entrada e esperou que o menino fechasse a porta. Sem esperar, aquela criança comoveu-o, um patinho feio vivendo entre cisnes. Só que Hunter não era nenhum cisne.
Não seria confortável viver com uma criança que lhe recordava continuamente a sua tão grande fragilidade, dia após dia. Um hindu encolheria os ombros e diria que era a vontade dos deuses. Cada homem é responsável pela sua própria salvação, transmitiu-lhe uma vez um homem santo. Isto seria considerado uma blasfêmia para um cristão, mas aquilo fazia sentido para Hunter. Em certos casos, a salvação só acontece quando se rompe com a sociedade. Johnny chegaria um dia à mesma conclusão, se decidisse alguma vez viver naquele canto do mundo chamado Inglaterra.
O capitão Tyler deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira de couro do salão de cavalheiros, apenas iluminado por chamas tênues que ardiam na lareira. Segurava um copo de brandy com as duas mãos, deixando que o calor das suas palmas aquecesse a bebida. Bebia lentamente, à maneira de um homem que aprecia profundamente os pequenos luxos da vida.
Morland Manor era uma casa pequena, mas bem mantida, situava-se no topo de uma colina, como se tratasse de um elegante pássaro instalado no seu território preferido. A noite sem nuvens, vasta e fria, envolvia tudo, e Tyler sentia-se feliz no seu confortável santuário. Era tarde e a sua atraente mulher dormia tranquilamente no piso de cima, com a barriga ligeiramente alargada por uma gravidez recente.
A alegria de esperar o seu primeiro filho deveria encher Tyler de satisfação. E encontrar-se de regresso à Inglaterra, algo que ele desejara tão desesperadamente durante oito anos, deveria ter-lhe dado a paz que ele há muito esperava. No entanto, aquela paz e aquela satisfação tão merecidas, estavam toldadas por mais uma mudança inesperada de acontecimentos.
— Maldito — murmurou Tyler, agarrando no brandy com força. — Porque é que não ficou na Índia?
E então algo assombroso aconteceu... Algo que, mais tarde, ele reconheceria que deveria ter previsto. As sombras da sala moveram-se e uma silhueta escura emergiu de um canto. Demasiado aturdido para conseguir reagir, Tyler deixou-se ficar quieto a olhar para o conde de Hawksworth, que avançava até ele.
— Eu tinha outros planos — disse Hunter suavemente.
Felizmente para ele, Tyler aparentou estar tranquilo, mas lutava no seu interior por manter a compostura. O tremer do copo nas mãos era a única coisa que traía o seu nervosismo controlado.
— Seu canalha arrogante — disse ele. — Só você se atreveria a aparecer desta maneira na minha casa.
— Queria vê-lo em privado.
Tyler mergulhou o nariz no copo de brandy e bebeu até o esvaziar.
— Até ontem à noite, eu julgava que estava morto — disse Tyler num tom de voz rouco. — Que diabo está fazendo em Inglaterra?
— Não tem nada a ver com isso. Eu só vim adverti-lo de que não interfira nos meus assuntos.
— Como ousa dar-me ordens?! — Tyler ficou vermelho. — E a senhora Hawksworth? Aquela pobre mulher tem o direito de saber...
— Eu estou a tratar dela - interrompeu Hunter, num tom ligeiramente ameaçador. — E vou contar com o seu silêncio, Tyler... de uma forma ou de outra. Afinal de contas, depois de tudo o que eu fiz por si, creio que mereço isso.
Tyler pareceu aceitar aquela reprimenda, enquanto a sua consciência batalhava contra a amarga sensação da obrigação. Finalmente, os seus ombros descaíram, vencido.
— Talvez assim seja — murmurou ele. — Terei de pensar melhor neste assunto. Agora, por favor, vá-se embora. Faz-me recordar coisas que eu tento esforçar-me arduamente por esquecer.
Capítulo 12
Para grande consternação de Lara, o prometido relatório acerca das casas de correção inglesas não chegou na semana que se seguiu, nem na outra. Ela estava quase agradecida pelas duras tarefas de remodelação da casa, já que ocupavam grande parte da sua atenção. O senhor Possibilidade Smith já estava instalado fazendo o seu trabalho, acompanhado por um exército de artesãos e de assistentes. Ela também se ocupou em visitar os seus amigos de Market Hill e do orfanato. Mas, a maior parte do tempo era preenchida com Johnny, na tarefa de o acostumar àquele novo mundo onde tinha sido colocado.
E, claro, também havia Hunter.
Ele administrava os negócios da família, assistia obedientemente aos eventos sociais e atendia às preocupações dos seus arrendatários. Para além disso, decidiu adotar a estratégia tão traiçoeira e pouco ortodoxa de se envolver mais a fundo no comércio, exatamente quando os seus pares aspiravam fazendo o contrário. Um homem teria uma posição social mais elevada se retirasse completamente das preocupações mercantis e se concentrasse tão somente no negócio aristocrático de latifúndio. Porém, Hunter demonstrava uma admirável vontade em sacrificar o seu orgulho a favor da viabilidade do negócio. Hunter era agora o marido que Lara sempre desejou que ele fosse: responsável, cortês, amável... amigável. E este último atributo deixava-a inesperadamente irritada. Numa mudança de tática desconcertante, ele parecia procurar a amizade de Lara e pouco mais. Parecia tratá-la apenas como mulher.
Noutra época, Lara teria ficado encantada com aquela atitude. Ela tinha todos os benefícios de um marido: segurança, conforto, companhia, isto tudo sem as obrigações carnais que tanto a repugnavam. Então, por que razão se sentia constantemente nervosa? Por que razão despertava a meio da noite com uma sensação de vazio, agitada e a arder por algo que não sabia identificar?
Ansiava pela companhia do seu marido, até que começou a inventar desculpas para o ver. E de cada vez que estavam juntos, Hunter demonstrava-lhe a mesma atitude amistosa, tão enlouquecedora que a fazia ranger os dentes.
Lara não sabia o que queria dele. Ela sonhava com os seus beijos; não propriamente com aqueles suaves beijos fraternais que ele lhe dava às vezes, mas com aquelas doces e infinitas uniões de lábios e línguas que deixavam o mundo dela de pernas para o ar. Sim, ela queria que ele a beijasse. Mais do que isso já não tinha a certeza. Se permitisse que ele dormisse com ela, ele iria achar-se no direito de a possuir sempre que quisesse. Era melhor deixar as coisas tal como estavam. Mas que razão teria Hunter para a tratar como se ela fosse a sua irmã mais nova?
Sentiu então um impulso para alterar essa situação; Lara pediu para a costureira lhe alterar os vestidos que estavam a ser feitos para ela e que abrisse todos os decotes mais uns centímetros. Pouco tempo depois, a coleção finalmente chegou, um arco-íris em tons pastel de seda, musselina e cambraia, com chapéus decorados com penas ou flores, a combinar com os vestidos... lenços de seda e luvas... sapatos e chinelos trabalhados, leques em marfim, papel e renda...
Cheia de entusiasmo com o seu novo vestuário, Lara colocou um vestido verde-pálido que combinava com os seus olhos e tornava a sua pele resplandecente. O vertiginoso decote exibia os seios alçados, apenas cobertos por uma echarpe translúcida. Como sabia que Hunter estava sozinho na biblioteca a trabalhar, foi ter com ele imediatamente. Seria cortês, agradecendo-lhe a sua generosidade.
O marido estava sentado à secretária. Tinha tirado o colete, arregaçado as mangas e aberto o colarinho da camisa, para aproveitar qualquer brisa refrescante que entrasse na sala. Ele olhou para Lara rapidamente e dirigiu-lhe um sorriso distraído, e logo voltou a sua atenção para o trabalho. Em menos de um segundo, porém, o seu olhar voou novamente para ela... E ali se manteve.
— É um vestido novo? — perguntou com suavidade, embora soubesse perfeitamente bem que era.
Lara aproximou-se um pouco mais.
— Gosta?
Não havia nenhuma alteração na expressão de Hunter, mas os seus dedos seguravam com tanta firmeza a pena que esta ameaçava estalar. O olhar dele devorava-a, catando todos os pormenores, passeando lentamente por aquele corpo sublime.
— O tecido é muito bonito — respondeu com um tom de voz monótono... mas uma corrente quente parecia correr sob as suas palavras e Lara estremeceu. Ele ainda a desejava. Ela não percebia porque é que aquilo lhe agradava.
Um sorriso brincalhão pairou nos lábios dela.
— O tecido é bonito? Só vai dizer isso?
Um brilho perigoso apareceu nos olhos dele.
— Eu poderia elogiar o desenho, mas parece ter omitido uma grande parte do corpete.
— Os decotes baixos são a última moda — Confirmou-a.
Hunter fez um grunhido de indiferença e voltou a prestar atenção ao balancete que tinha aberto em cima da sua secretária. Deliberadamente, Lara aproximou-se da cadeira dele e fingiu ter interesse no livro. Inclinou-se sobre ele, roçando o peito no braço de Hunter. O toque era acidental, mas sentiu um arrepio por todo o corpo e ela sabia que ele também o sentiu. Ele inspirou profundamente e deixou cair a pena, que espalhou gotas de tinta pela secretária.
— Estou tentando trabalhar — disse asperamente — Não consigo concentrar-me com o seu peito na minha cara.
Lara recuou, espicaçada.
— Você é que insistiu que eu mandasse fazer alguns vestidos. Eu simplesmente quis-lhe mostrar um. Estava com a ideia absurda de lhe agradecer.
— Está bem, então... — Ele ria-se e gemia ao mesmo tempo e apanhou Lara antes de ela conseguir dar a volta para se afastar. Agarrou-a pelas ancas com um braço, e apertou-o firmemente à volta das nádegas. Colocou-a entre as suas pernas, e olhou-a com avidez.
— O vestido é muito bonito — murmurou ele. — Como a Lara. Na verdade, até me dói olhar para você.
— Dói-lhe?
— Todo o meu corpo é uma única e enorme dor - trouxe-a para mais perto, tirou-lhe a echarpe, que deixou cair no chão. Com uma ligeireza que a deixou atordoada, enterrou a cara no seu decote e percorreu o peito com a boca entreaberta, demorando a sua língua sobre a fresca suavidade do marfim. — Você está a deixar-me louco - mastigou ele, enquanto a sua barba incipiente esfolava a pele de Lara. — Não, não me impeça... deixe-me...
Lara sobressaltou-se quando Hunter encontrou o mamilo dela através da delicada musselina do seu vestido.
— Pare... pare!
Ele libertou-a com um rosnar frustrado, pôs-se de pé e observou-a, altivo.
— Sabia perfeitamente o que estava fazendo, ao entrar aqui assim vestida. Não me culpe por ter mordido a isca.
Lara baixou-se e apanhou desajeitadamente a echarpe caída.
— Eu... eu não pedi para ser maltratada.
— Sabe o que se chama a uma mulher que excita deliberadamente um homem e que depois se nega?
— Não — respondeu ela, rapidamente.
— Uma provocadora.
— Eu não estava a tentar... provocá-lo. Talvez eu desejasse um beijo ou um elogio, mas julguei...
— O que sinto por você não se resume a beijos. Raios a partam! Pensa que é fácil para mim, viver debaixo do mesmo teto que você, vê-la todos os dias e nunca lhe poder tocar?
Lara encarou-o com uma crescente perplexidade e uma certa sensação de vergonha. Ela tinha-o interpretado mal, ela não tinha entendido que ele ainda a desejava e que era assim tão difícil para ele viver com ela.
— Eu quero fazer amor com você - prosseguiu, numa voz ligeiramente rouca. — Eu quero vê-la nua, beijá-la em todos os sítios dos seu corpo... dar-lhe tanto prazer até que me implore para parar. E acordar de manhã com você nos meus braços. E ouvir a sua voz dizer-me... — Ele parou e apertou os maxilares, tentando conter as palavras.
Lara moveu-se, irrequieta.
— Tenho muita pena — disse ela com suavidade. — Não percebi que ainda me desejava.
— Pois aqui tem uma pista — Chegou-se novamente até ela, pegou-lhe no pulso e puxou a sua mão, colocando-a entre as pernas dele.
Sem fazer caso dos protestos de Lara, ele moldou a mão dela em torno do rígido e tenso tamanho da ereção dele, até que o seu calor trespassasse as calças e chegasse à mão de Lara. Com o seu outro braço, apertou o corpo dela firmemente contra o dele. — Isto é o que acontece de cada vez que estou com você, no mesmo quarto, um pau duro e duas bolas roxas são indicações bastante claras de que um homem a deseja.
As recordações de todas as suas antigas experiências com ele pareciam nublar a mente de Lara. Ela só conseguia pensar naquela palpitante dureza que latejava por debaixo da sua mão, como uma arma. Evocou as antigas investidas como golpes de um punhal, golpes tão profundos que a deixavam dolorida, derrotada e envergonhada. Nunca, nunca mais...
— Não tenho qualquer interesse em discutir as suas partes privadas — disse numa voz sufocada. Tentou libertar a sua mão, mas ele não o permitia.
— Eu sou um homem, não um eunuco. Não a posso beijar e acariciar, e depois nunca a ter — Enterrou a boca na curva do pescoço dela, fazendo-a tremer. — Deixe-me ir ter com você hoje à noite. Eu tentei ser paciente, mas não com consigo aguentar mais.
Prestes a chorar, Lara conseguiu forçar-se e finalmente libertar a mão, cambaleando uns passos para trás.
— Desculpe-me, sinceramente. Mas eu não posso, eu não posso. Não sei porque razão, mas eu... Por favor, vá ter com Lady Carlysle.
A simples menção do nome da sua antiga amante parecia ser a última gota. O rosto de Hunter transformou-se numa expressão de fúria.
— Talvez vá.
Lara ficou imóvel como uma estátua assistindo ao seu marido a dirigir-se até à secretária onde apanhou uma carta.
— A propósito — Comentou Hunter com aspereza — Eu recebi há pouco uma carta de Lorde Newmarsh, ele serviu numa comissão parlamentar criada para investigar prisões. Aqui está a informação que queria.
Atirou-lhe a carta, e Lara fez uma tentativa desajeitada para a agarrar. O papel dobrado revolteou nos dedos dela e caiu para o chão.
Hunter começou a sair do quarto a passos largos, mas antes, ainda lançou um último comentário sarcástico para trás das costas.
— Vá ajudar os pobres e os necessitados, senhora Magnânima.
Lara recolheu a carta, virou-se e viu a porta bater com estrondo.
— Que devasso — disse ela, mas uma réstia de culpa escapou através do seu descontentamento. Hunter tinha razão, ela sabia bem o que estava fazendo. Ela queria que ele a admirasse. Queria despertar o seu desejo. Então, o que a levou a provocá-lo se não tinha nenhum desejo de dormir com ele? Porque não deixou as coisas como estavam e desfrutava a relação distante, mas agradável que eles já tinham desenvolvido?
Ela sentia uma opressiva necessidade de fazer as pazes com Hunter, mas suspeitou que nesse momento, ele aceitaria só um tipo de desculpas, e isso envolveria esfregar-se nos lençóis com ele.
Lara suspirou, foi até à secretária e sentou-se na cadeira. Tocou no assento de couro que parecia ainda conservar um rasto do calor do corpo dele. Se ela fechasse os olhos, quase conseguia sentir o cheiro dele, aquele odor a sândalo, tão limpo, fresco e exótico. Perdoe-me, disse ela, quase em voz alta, mas não havia ninguém para a ouvir. Ela lamentava muito por não ser como as outras mulheres, que pareciam não se incomodar em partilhar a sua intimidade com os homens e lamentava também por Hunter, que necessitava de mais do que ela lhe podia dar. O remorso e a solidão deixaram-na sufocada.
Inclinou a cabeça sobre a carta e começou a ler.
Hunter partiu a cavalo, sem dizer a ninguém onde ia e esteve ausente durante toda a tarde e toda a noite. Lara esperou por ele na sala de estar da família, aninhada no sofá forrado a veludo. Cobria os joelhos com a manta encarnada e azul que tinha sido tricotada especialmente para ela por umas das meninas do orfanato. As criadas tentaram substituí-la pelo menos três vezes por mantas bordadas bem mais elegantes que havia no quarto das roupas da casa, mas Lara recuperava-a sistematicamente.
— Eu gosto desta encarnada e azul — Contou ela uma vez a Naomi, sorrindo com a expressão perplexa da criada. — Eu sei que não é perfeita, mas cada ponto aberto ou borboto faz-me lembrar as crianças que fizeram isto. E é sem dúvida a manta mais confortável da casa.
— Se eu fosse a senhora, eu não ficaria com nada que me lembrasse de quando os Crossland a expulsaram de casa - ousou Naomi comentar, olhando para a manta com alguma aversão. — Foi uma altura má para todos nós.
— Eu não quero esquecer essa época, Naomi — Lara, então, alisou a manta e dobrou-a com carinho. — Aprendi coisas bem importantes com aquela experiência. Desde então, tornei-me uma pessoa melhor, assim espero eu.
— Ah, minha senhora — Naomi dedicou-lhe um sorriso quente. — A senhora foi sempre muito boa. Todos nós pensamos assim.
— Vê o que pensam de Lorde Hawksworth? — perguntou Lara de repente. — Os criados gostam mais ou menos dele, desde o seu regresso?
Naomi franziu a sobrancelha, pensativa.
— Ele sempre foi um bom amo e eles gostavam dele o suficiente. Mas agora ele presta mais atenção às necessidades dos criados. Como no outro dia, em que mandou chamar o médico quando viu que uma das criadas da casa tinha um abscesso no braço, ou quando ele disse a George, o lacaio, que poderia convidar a sua noiva a tomar um chá com ele, na cozinha, nas suas folgas. Antes, ele nunca fazia estas coisas...
Os pensamentos de Lara foram interrompidos pelas suaves badaladas do relógio da entrada. Então, decidiu retirar-se para o quarto, espreguiçou-se no sofá e afastou a manta para um lado. Naquele momento, uma figura escura apareceu à porta e ela deteve-se para perceber o que é que a lamparina iluminava.
O intruso, obviamente, era Hunter; tinha as roupas desalinhadas e andava de uma forma um tanto ou quanto trôpega. Ele tinha estado a beber, mas visivelmente, não parecia estar bêbado. Entrou na sala com um sorriso irritante no rosto, o sorriso de um adolescente que se portou mal, mas que se sente orgulhoso por isso.
Lara juntou os joelhos e agarrou-os com força com os dedos entrelaçados.
— Espero que se sinta melhor — disse rispidamente. — Pelo seu cheiro a tabaco, álcool e perfume, deduzo que encontrou alguma rameira para satisfazer as suas necessidades.
Hunter deteve-se junto dela e o seu sorriso transformou-se numa expressão de estranheza.
— Para alguém que não quer ter nada a ver com as minhas partes privadas, mostra um interesse indecente no que elas estiveram fazendo.
— Simplesmente alegro-me em saber que seguiu o meu conselho e que encontrou uma mulher para você — respondeu.
— Fui beber com Lonsdale e com alguns amigos; também havia mulheres, mas não me envolvi com nenhuma delas.
— Isso é uma pena — disse Lara, não conseguindo deixar de sentir uma pontada de alívio com aquela informação. — Como já lhe disse antes, eu ficaria muito agradecida se arranjasse uma amante e me poupasse aos seus cuidados.
— Ah, ficaria? — perguntou, num tom claramente superficial. — Então, porque é que esperou que eu chegasse?
— Eu não estava à sua espera... Não conseguia dormir. Não com você deixar de pensar na carta do Lorde Newmarsh e nas crianças que estão nas mesmas terríveis circunstâncias em que Johnny esteve...
— Doze - interrompeu-a ele. — Há doze pirralhos ao todo — Arqueou uma sobrancelha num gesto sarcástico. — Eu suponho que agora queira fazer algo por eles.
— Nós podemos discutir isto amanhã, quando a sua disposição estiver mais afável.
— Umas horas de descanso não me vão tornar mais afável.
Hunter deixou-se cair no canto oposto do sofá com as pernas esticadas, numa postura relaxada tipicamente masculina. Fez um gesto amplo com a mão, sugerindo que ela prosseguisse.
Lara hesitou, procurando medir o humor dele. Havia algo de confuso na sua expressão, parecia paciente e em alerta, como um animal agachado no seu terreno de caça favorito. Ele esperava por uma oportunidade, e quando ela viesse, iria lançar-se sobre ela. Ela não conseguia adivinhar o que ele pensava fazer, mas tinha a forte suspeita de que não iria gostar.
— Eu tenho a certeza de que as prisões prefeririam que estas crianças fossem retiradas daqueles ambientes tão horríveis, bastaria que alguém oferecesse uma alternativa satisfatória — Começou ela a explicar com cautela. Hunter concordou com a cabeça e Lara continuou. — Obviamente, eles deveriam ser levados para o orfanato de Market Hill, mas o edifício é muito pequeno. Uma dúzia de crianças... bem, precisaríamos de ampliar o lugar, contratar mais pessoal e encontrar uma maneira de prover mais comida, roupas e materiais... e isso tudo é um grande empreendimento. Desejava que tivéssemos os meios para realizar tudo...
— Pois, não temos - interrompeu ele. — Para já, não temos.
— Sim, eu estou bem ciente disso — Lara clareou a voz e compôs as suas saias com muito cuidado. — Então, temos de arranjar fundos de outras fontes. Entre todos os nossos amigos e conhecidos, não deveria ser assim tão difícil. Se eu, quero dizer, se nós pudéssemos organizar algum tipo de evento de beneficência para o orfanato...
— Que tipo de evento?
— Um baile. Um baile de grandes proporções. Nós poderíamos aproveitá-lo para angariar donativos para o orfanato de Market Hill. E para nos assegurarmos de que todas as pessoas viessem, também poderíamos aproveitar a ocasião para... para celebrar o seu regresso a casa — Ela assumiu uma postura determinada, para não vacilar com o olhar cerrado de Hunter. De fato, era uma boa ideia. Estariam todos tão curiosos por ver Lorde Hawksworth, tão misteriosamente regressado e por ouvir a sua história incrível, que iriam afluir ao baile que nem um rebanho. Hunter já era falado em Londres, e este seria, certamente, o evento da temporada.
— Vejo que planeia exibir-me como se fosse uma criatura de duas cabeças numa feira de aldeia e depois gastar os lucros nos seus órfãos.
— Não seria de todo assim... — protestou Lara de imediato.
— Seria precisamente assim - lentamente, sentou-se melhor e inclinou-se para a frente, sem nunca desviar dela aquele escuro olhar indecifrável. — Depois de tudo por que passei, agora é esperado que eu suporte uma noite de perguntas curiosas e de escrutínio de um punhado de patetas superficiais. E para quê?
— Para as crianças - resumiu Lara, seriamente. — Terá de enfrentar toda essa gente. Porque não fazê-lo já, e depois poderá organizar a sua agenda como melhor lhe convier? Porque não tem a satisfação de salvar doze crianças, que merecem a oportunidade de levar uma vida decente?
— Subestima-me, meu amor. Eu não tenho um único osso caridoso em todo o meu corpo. Eu não perco o sono a pensar nos órfãos e nos pobrezinhos. Eles são um fato da vida, nunca irão desaparecer. Salve mil, dez mil e haverá sempre mais.
— Eu não o compreendo — disse Lara, abanando a cabeça. — Como pode ser tão amável com os seus próprios criados e depois tão insensível com estranhos?
— Eu só posso dar-me ao luxo de cuidar daqueles que vivem debaixo do mesmo teto que eu. O resto do mundo bem pode ir para inferno.
— Afinal de contas, parece que não mudou - uma decepção repulsiva irrompeu de dentro dela. — Você está tão insensível como sempre. Por alguma razão, eu pensei realmente que me permitiria ajudar crianças.
— Eu não a proibi de organizar esse baile. Eu só estou a conduzi-la até às condições que eu lhe irei impor.
— Que condições? — perguntou ela, cautelosa.
— Pergunte-me por que razão não me envolvi com nenhuma das prostitutas com quem estive esta noite — disse Hunter. — Poderia tê-lo feito com toda a facilidade. Havia uma com mamas do tamanho de melões que não parava de meter a língua na minha orelha...
— Eu não quero saber nada sobre isso.
— Lonsdale e os nossos outros amigos esmagavam as raparigas contra as mesas, no chão, contra a parede... Mas eu vim-me embora logo no início, e vim para casa, ter com você. Sabe porquê? — Hunter sorriu amargamente, como se estivesse a ponto de contar uma piada ordinária. — Porque eu preferiria sentar-me à porta do seu quarto a velar o seu sono, enquanto dorme numa cama de solteiro. O simples gesto de segurar a sua mão, ou ouvir a sua voz, ou cheirar o seu perfume, é para mim muito mais excitante do que deitar-me com cem mulheres.
— Você só me quer porque eu represento um desafio.
— Eu quero-a porque é doce, pura, inocente — respondeu ele com voz rouca. — Nos últimos anos, eu vi as coisas mais imundas que poderia alguma vez imaginar... Eu fiz coisas que a Lara nunca... - parou e deu um forte suspiro. — Eu preciso de algumas horas de paz. De prazer. Eu já me esqueci de como é estar feliz, se é que alguma vez o soube. Eu gostaria de dormir na minha cama com a minha mulher... e, maldito seja eu, se isso for considerado um crime.
— Está a falar de quê? — perguntou Lara, confusa. — O que lhe aconteceu na Índia?
Ele sacudiu a cabeça e assumiu uma máscara implacável que encobriu a sua angústia.
— Não importa. No estado em que as coisas estão agora, eu estou reduzido a ter de negociar para poder passar uma noite com você... e, diabos me levem, ficarei bem contente quando conseguir.
— Se pensa que eu dormirei com você em troca de... — Abriu os olhos, indignada. — Com toda a certeza, não pode estar a sugerir que não me deixará fazer o baile se eu não fizer...
— Isso é exatamente o que eu quero dizer. Faça os arranjos necessários e envie mil convites. Eu garanto que os seus esforços serão muito admirados e que os órfãos lhe estarão muito agradecidos. Ficarão todos muito satisfeitos. Inclusive eu. Porque à uma da manhã da noite do baile de beneficência, subirá comigo, irá meter-se na minha cama e deixar-me-á fazer com você tudo o que eu pretender.
— Não sabe pensar em mais ninguém ou em mais nada para além de você? — Lara ficou vermelha. — Como se atreve a usar a miséria dessas pobres crianças para me fazer dormir com você?
— Porque estou desesperado — respondeu com um sorriso brincalhão. — Então, temos negócio, meu amor?
Ela não respondeu.
— Não será a primeira vez que fará isso - lembrou-lhe ele.
— Sempre odiei fazê-lo — murmurou ela, projetando o lábio inferior obstinadamente.
— Mas sobreviveu — disse. Então, Hunter sentou-se e ficou à espera, robusto e inamovível como um enorme bloco de granito, resistente ao gesticular nervoso de Lara. Não havia mais nada que ela pudesse dizer, nenhuma contraproposta que ele pudesse aceitar. Cretino egocêntrico! Como ousava ele transformar uma causa nobre numa conquista da sua própria satisfação sexual? Ela tinha vontade de atirar aquela proposta à cara dele e fazer-lhe ver que não havia nada no mundo que a levasse novamente a submeter-se àquilo. Mas pensar nas doze crianças como Johnny, a sofrer desnecessariamente... e pensar no que ela poderia fazer por elas... era mais do que poderia suportar.
Seria assim tão terrível passar uma noite na cama de Hunter? Ele tinha razão, ela já tinha sobrevivido por outras vezes. E ela tinha conseguido apagar toda a emoção e toda a sensação, para se concentrar noutras coisas e esquecer o que lhe estava a acontecer.
O coração de Lara afundou-se no peito quando percebeu que ela teria de fazer a coisa que mais lhe repugnava, para obter o que mais desejava.
— Está bem — disse ela numa voz sombria. — A noite do baile. Uma única vez. E depois... — Ela procurou na sua mente o epíteto apropriado. — Depois pode ir para o inferno!
Ele não mostrou nenhum sinal de satisfação, mas Lara pressentiu o enorme prazer que lhe causaram aquelas palavras de rendição.
— Eu já estou no inferno — respondeu ele. — Eu só estou pedindo uma noite de folga.
Hunter deixou a sua mulher pálida e muito tensa, e, de alguma forma, conseguiu chegar até ao seu quarto. Esforçou-se por se libertar das botas e arrastou-se sobre a cama, completamente vestido. O seu cérebro era um redemoinho, não só devido ao álcool mas também por causa das emoções que o comoveram. Ele julgava que se iria sentir triunfante mas, em vez disso, só sentia alívio. Ele tinha-se imaginado a abraçar Lara, amá-la, a beber toda a sua doçura como uma alma no inferno a quem lhe tinha sido concedido um copo de água fresca.
— Obrigado, meu Deus — murmurou ele, com a cabeça enterrada na almofada. — Obrigado, meu Deus.
— Oh, meu Deus - os olhos cor de avelã de Rachel estavam arregalados de espanto. — Eu nunca ouvi falar de um marido que negociasse com a sua mulher dessa forma. Claro, sei que os homens fazem arranjos semelhantes com as suas amantes, mas... a Lara não é propriamente... - ficou sem palavras e terminou dizendo debilmente: — Isto é tudo muito estranho.
— Extremamente estranho — Anuiu Lara, muito séria. — Depois de eu ficar viúva, e permitir-me acreditar que nunca mais seria incomodada por homens e pelas suas desagradáveis necessidades, vejo-me agora na situação de ter de dormir novamente com Hunter - tensa, encolheu-se na cadeira e contemplou com uma expressão abatida, o ambiente luxuoso e refinado da sala de visitas de Rachel. — E é ainda mais terrível ser informada sobre isto com tanto tempo de antecedência.
Rachel olhou para ela com uma espécie de pesar fascinado.
— E pretende manter a sua promessa?
— Claro que não — Lara disse prontamente. — Eu quero que me ajude a pensar num plano. Foi por isso que a vim visitar.
Obviamente lisonjeada e agradada pôr a sua irmã mais velha valorizar as suas ideias, Rachel pôs de lado o bordado que estava fazendo e concentrou-se no problema.
— Suponho que talvez se pudesse pôr tão pouco atrativa, que ele deixaria de a desejar - sugeriu. — Ou podia tentar ser contagiada com varíola por alguém, e esperar que os sinais se estendessem por toda a sua cara.
Lara franziu o nariz.
— Essa ideia não me atrai particularmente.
Rachel começou a entusiasmar-se com a estratégia.
— Você poderia fingir que está doente.
— Isso só resultaria por pouco tempo.
— Talvez haja alguma forma de o tornar impotente. Poderíamos dar- lhe alguma erva ou algum pó.
Lara considerou aquela sugestão com alguma dúvida.
— Eu não quero correr o risco de pô-lo doente... e parece ser um plano muito arriscado. Eu ficaria tão nervosa que acabaria por lhe dar o frasco inteiro.
— Hum — Rachel encontrou um fio de seda solto e enroscou-o à volta do dedo. — Talvez... — disse cautelosa. — Talvez possa conceder-lhe só uma noite e depois dar o assunto por terminado.
— Eu não vou deixar que ele me utilize desse modo — Afirmou Lara, ferozmente. — Não serei um objeto nem uma propriedade.
— Tenho de discordar de você, Larissa. Eu não sei onde foi buscar essas ideias tão estranhas, Lorde Hawksworth é seu marido e a pertence. Jurou obedecer-lhe.
— E obedeci. Acatei os desejos dele no que diz respeito ao meu comportamento e às companhias que mantive. Pedi a autorização dele para tudo. E tolerei o seu adultério sem nunca lhe negar a minha cama, nem uma vez sequer. Mas depois ele partiu para Índia e durante três anos, eu só tive de me agradar a mim mesma... e agora eu não posso voltar a ser o que era.
— Mas penso que isso terá de acontecer — murmurou Rachel. — A menos que nós as duas consigamos encontrar um plano satisfatório para o dissuadir.
Ficaram as duas num silêncio prolongado. Os seus pensamentos estavam sublinhados pelo som do forte bater da copiosa chuva que caía lá fora, que salpicava os caminhos de gravilha e escorria pelos postigos. O dia estava cinzento e triste, a combinar perfeitamente com o desânimo de Lara.
— Penso que o que faz mais sentido é encontrar outra pessoa a quem Hunter deseje mais do que eu. Assim ele estaria tão absorto na sua nova descoberta que se esqueceria por completo do nosso acordo.
— Mas... ele não lhe disse que você é a única mulher que ele quer?
— Ele não quis dizer isso — Contestou Lara de imediato. — Sei por experiência que Hunter é incapaz de resistir a uma mulher. Ele gosta de variedade. E delicia-se com a conquista.
— E quem vai procurar? — perguntou Rachel, confusa. — Que tipo de mulher será infalivelmente irresistível para ele?
— Essa é a parte mais fácil — Lara levantou-se e dirigiu-se até à janela, onde contemplou o lençol de chuva que caía do céu. — Sabe, Rachel, eu creio que este plano tem grandes possibilidades de funcionar.
Capítulo 13
Quando Lara saiu da propriedade Lonsdale, as estradas tinham-se convertido num autêntico lamaçal. A pesada carruagem, puxada por quatro cavalos, movia-se com dificuldade sobre o lodo, avançando muito lentamente por entre as pastagens encharcadas, pelas quintas e pelas fileiras de arbustos com espinhos, plantados para impedir a saída do gado. Parecia impossível que continuasse a chover com tanta intensidade, mas a chuva conseguiu rasgar a cobertura do teto da carruagem como se alguém estivesse a esvaziar baldes de água. Preocupada com o conforto dos cavalos, do cocheiro e do criado, Lara lamentou não ter esperado para visitar a sua irmã quando o tempo estivesse mais ameno. Teria sido má ideia aventurar-se na rua durante uma chuva de Primavera, mas quem poderia esperar semelhante dilúvio?
Ansiosa, inclinou-se mais para a frente no seu assento, como se de alguma forma, a sua força de vontade pudesse ajudar a carruagem a chegar ao seu destino sem sofrer percalços. As rodas arrastavam-se pela estrada, afundando-se nos buracos cheios de lama, e os cavalos puxavam com grande esforço o veículo. Subitamente, a carruagem deu uma estranha sacudidela e inclinou-se, atirando Lara sobre o assento, deixando-a estendida. Então, conseguiu sentar-se e tentou alcançar a porta, ansiando por saber o que teria acontecido. Quando abriu a porta, entraram jorros de água e vento para o interior da carruagem. Apareceu imediatamente o criado, com uma expressão muito preocupada.
— Machucou-se, minha senhora?
— Não, não, eu estou bem — disse ela rapidamente para o tranquilizar. — E o George? E o senhor Colby?
— Nós estamos bem, minha senhora. Havia um buraco na estrada e a carruagem ficou descontrolada. O senhor Colby diz que já não estamos longe de Market Hill, e se concordar, vamos desenganchar os cavalos, e eu irei até Hawksworth Hall buscar um veículo mais leve. O senhor Colby ficará aqui com você até eu regressar.
— Parece-me uma boa ideia. Obrigada George. Por favor, diga ao senhor Colby que espere dentro da carruagem comigo, aqui estará muito mais confortável.
— Sim, minha senhora.
O criado fechou a porta, conferenciou com o cocheiro e voltou passado um minuto.
— Lady Hawksworth, o senhor Colby diz que preferiria ficar aqui fora, junto à porta. Ele diz que tem um guarda-chuva e um sobretudo para se proteger da chuva, e nunca se sabe que tipo de gentalha viaja por estes caminhos.
— Muito bem — Ela aceitou e encostou-se novamente no banco. Suspeitava que o cocheiro se preocupava mais com a sua reputação do que com a sua segurança. — Transmita por favor ao senhor Colby que eu acho que ele é um cavalheiro.
— Sim, minha senhora.
A chuva batia na carruagem desengonçada com gotas pesadas e agressivas que pareciam vir de todas as direções. Os relâmpagos rompiam o céu e os trovões ressoavam pontuados por rasgos arrepiantes que faziam Lara saltar.
— Que desgraça — disse ela em voz alta, com esperança que o George e o senhor Colby não ficassem seriamente doentes depois de ficarem tão ensopados e gelados até aos ossos. Se isso acontecesse, ela iria sentir-se muito culpada.
A espera parecia interminável, mas ao fim de algum tempo, notou-se lá fora alguma atividade, diferente da tempestade. Lara olhou pela janela, mas só conseguiu perceber umas figuras turvas que se moviam através da escuridão da tempestade. Aproximou-se mais da porta e pegou na maçaneta, procurando ver melhor lá para fora. Naquele instante, a porta abriu-se de rompante deixando entrar uma rajada de vento e de chuva gelada. Assustada, Lara recuou até ao canto mais afastado da carruagem; uma figura enorme e escura apareceu à sua frente.
O homem, embrulhado num sobretudo preto, tirou o chapéu. Era Hunter, exibindo um sorriso suave nos lábios e com as pestanas compridas molhadas da água que escorria pelo seu rosto.
— Pensei que era um salteador de estradas! — Exclamou Lara assustada.
— Não é nada assim tão romântico — Asseverou ele. — É só o seu marido.
Um marido que era tão arrebatador e imprevisível como qualquer salteador de estradas, pensou ela.
— O senhor não deveria ter saído com esta chuva. Os criados são bem capazes de me levar de volta à casa — disse Lara.
— Eu não tinha mais nada para fazer — Apesar do seu tom despreocupado, Hunter olhou de relance para Lara, como se estivesse a avaliá-la e Lara percebeu que ele se tinha preocupado com a sua segurança. Aquele pensamento alegrou subtilmente o seu coração.
Com diligência, procurou uma caixa de mogno que estava arrumada por debaixo do assento e retirou um par de tamancos para a chuva. Era a única forma de evitar que as bainhas das suas saias ficassem arruinadas.
Hunter olhou para os aros metálicos colocados em andas minúsculas com um evidente ceticismo.
— Não vai precisar disso — disse-lhe ele, enquanto a sua mulher tentava prender as fitas de couro à volta dos pés.
— Sim, vou. Caso contrário, as minhas saias ficarão cheias de lama.
Aquele comentário provocou em Hunter uma sonora gargalhada.
— Eu estou enfiado em lama até aos tornozelos, minha senhora. Você ficaria até os joelhos. Largue isso e venha cá.
Lara concordou com alguma relutância atando as tiras do chapéu com cuidado.
— Não trouxe nenhuma carruagem? — perguntou ela.
— E arriscava-me a que também essa ficasse atolada? — Estendeu-se para Lara, pegou nela e levou-a através da tempestade. Surpreendida, emitiu um som aflito e baixou a cabeça contra o ombro de Hunter, quando sentiu os pingos da chuva a picar a cara com força. Conseguiu ainda ver que o senhor Colby estava montado num cavalo e que segurava as rédeas do cavalo baio de Hunter, enquanto esperava por eles.
Hunter pousou Lara sobre a sela como se ela não pesasse mais do que uma pena e montou atrás dela. A sela era escorregadia e lisa, sem espaço onde Lara pudesse encaixar o joelho. Instintivamente, procurou algum sítio onde se pudesse agarrar, pois sentia que deslizava pelo cavalo. Nessa altura, um braço musculado abraçou-a.
— Relaxe — disse-lhe Hunter ao ouvido, com uma voz carinhosa. — Julga que eu a deixaria cair?
Lara não conseguiu responder; piscava os olhos contra a chuva forte e tremia de frio à medida que a água escorria para o interior da sua capa sem mangas. Com uma mão, Hunter desabotoou o sobretudo e puxou-a para dentro, envolvendo-a como se fosse um casulo apertado. Estava quente junto ao seu corpo, os seus calafrios de desconforto transformaram-se em tremores de prazer. Inspirou profundamente, e encheu as narinas com o cheiro da lã úmida, o cheiro do homem, o cheiro característico e pungente de Hunter. Deslizou os braços ao redor da cintura, sentindo-se totalmente segura, protegida dentro do seu abrigo, enquanto a chuva caía à volta deles. Evidentemente, o chapéu dela incomodava-o, pelo que ele desfez impacientemente a tira, puxou-o e lançou-o para longe, à medida que o cavalo começou a trotar vigorosa e desajeitadamente.
Lara emergiu do casaco dele, indignada.
— Era o meu favorito...! — Começou a protestar, mas uma cortina de água lhe golpeou o rosto e ela voltou a encolher-se dentro do sobretudo. O andamento do cavalo passou para um galope médio e suave, ela só tinha montado assim uma vez, quando ainda era uma criança e ao seu pai a tinha levado a cavalo até à loja da aldeia onde lhe comprou uma fita para o cabelo. O pai parecia-lhe tão grande e poderoso, tão capaz de resolver todos os seus problemas. À medida que ela foi crescendo, o pai foi encolhendo em proporções humanas enquanto Lara assistia com decepção ao modo como ele se afastava das suas duas filhas depois de elas se terem casado. Era como se Rachel e ela já não fossem da sua responsabilidade.
Lorde Hawksworth é seu marido, a voz de Rachel ecoava na sua mente. Você pertence-lhe...
Sentia que o forte braço de Hunter a rodeava através do sobretudo e que as suas coxas se moviam compassadas para controlar o cavalo. Uma pontada nervosa apertou o estômago de Lara, quando se lembrou de que iria estar à mercê deste homem tão grande e aparentemente invulnerável. Ele tinha prometido ser gentil com ela... Mas Lara sabia que, quando um homem é levado pelos seus instintos mais primários, tem pouco controle sobre as suas ações.
Com aqueles pensamentos sombrios em mente, a proximidade do corpo de Hunter já não lhe parecia agradável, agitando-se incomodada. Então ouviu, vindo de cima da sua cabeça, o seu marido perguntar algo, mas a tempestade e o estrondo dos cascos do cavalo impediram-na de perceber o que ele dizia.
Por que razão teria Hunter vindo buscá-la? No passado, ele acharia que ela não seria razão suficiente para se preocupar assim. Muitas das suas atitudes hoje em dia eram desconcertantes... O modo como ele negociou pelos seus favores, em vez de simplesmente a possuir pela força... Aquela mistura de gozo e de afeto que nunca revelava os seus verdadeiros sentimentos... E agora, aquele salvamento, quando não havia absolutamente nenhuma necessidade para tal. Era como se ele estivesse a tentar cortejá-la para ganhar os seus favores. Mas porque é que ele a cortejava agora, quando sabia que dormiriam juntos dentro de um mês, sensivelmente?
Lara estava tão abstraída com tantas perguntas sem resposta que quase surpreendeu ao descobrir que já tinham chegado ao caminho de acesso a Hawksworth Hall.
Pararam diante da entrada principal. Os criados apressaram-se para o exterior levando guarda-chuvas. Quando Hunter a libertou do seu abrigo e a ajudou a sair do cavalo, Lara sentiu-se simultaneamente entristecida e aliviada. Um criado segurou um guarda-chuva por cima dela e escoltou-a até ao hall de entrada. Naomi veio a correr para a ajudar a despir a sua capa encharcada, enquanto a senhora Gorst mandava duas criadas preparar um banho. Lara ficou de pé a tremer, no seu vestido de viagem completamente empapado, reparando como Hunter retirava o casaco e o chapéu.
Ele esfregou o rosto que escorria água, passou os dedos pelo cabelo úmido e sorriu-lhe com um ar malandro.
Lara sentia-se confusa com os seus próprios sentimentos. Ele era o seu adversário, mas também o seu protetor. Queria o corpo dela, e enquanto a perseguia, poderia muito possivelmente destroçar o coração de Lara.
Não se importando que os criados os pudessem ver, Lara aproximou-se dele, hesitante.
— Obrigada — sussurrou. Antes que Hunter pudesse responder, Lara pôs-se em bicos dos pés, apoiou as mãos contra o duro peito dele e apertou os lábios no seu rosto barbeado. Hunter estava muito quieto, com uma respiração muito lenta. O beijo foi absolutamente puro, mas quando ela se afastou para o olhar, viu que ele a contemplava com uma expressão absorta e intensa.
Os seus olhares encontraram-se, e um sorriso irônico surgiu nos lábios dele.
— Por outro desses, eu atravessaria o canal a nado — disse, e saiu em direção à biblioteca.
Lara entregou-se ao luxo daquele banho, imergiu até ao pescoço e fechou os olhos, satisfeita. O calor da água parecia penetrar nos seus ossos e o perfume a lavanda, que Naomi salpicou na água do banho, elevava-se no ar numa nuvem fragrante de vapor.
Algumas madeixas compridas de cabelo soltaram-se e caíam na água. No momento em que ela derramava água sobre o peito e o pescoço, alguém abriu a porta do quarto de vestir sem bater. Lara ficou paralisada e Naomi avançou para a porta para interceptar o intruso.
— Oh, meu senhor — Lara ouviu-a dizer, — Lady Hawksworth sente-se um pouco indisposta... quero dizer...
Hunter entrou no quarto e deteve-se ao ver a sua mulher no banho. Só estava visível a cabeça e um dos pés, cujos dedos se enrolavam firmemente sobre a borda da banheira de cobre.
— Eu julguei que já tivesse terminado — disse Hunter, contemplando-a sem pestanejar.
— Como pode ver, estou a meio do meu banho — respondeu Lara, esforçando-se para manter a dignidade. — Naomi, por favor, acompanhe Lorde Hawksworth até à saída.
— Não se incomode, Naomi — Hunter virou-se para a criada com um sorriso deliberado. — Eu trato da minha mulher. Porque não vai até à cozinha e bebe uma xícara de chá? Descansa um bocado? Aliás, tire o resto da tarde livre.
— Espere... — Começou Lara a dizer, franzindo a sobrancelha, mas já era tarde.
Entre tímidas risadas, Naomi aceitou o convite e desapareceu, deixando os dois ali sozinhos. A porta fechou-se atrás dela com um som suave do trinco. Lara dirigiu um olhar de reprovação ao marido.
— Porque fez isso?
Ele ignorou a pergunta.
— Tem os olhos de uma sereia — murmurou. — De um verde-claro suave. Lindos.
— Eu sabia que era só uma questão de tempo, para o ver a irromper durante a hora do meu banho — disse Lara, tentando parecer calma, embora o seu coração batesse loucamente. — A sua vontade de me ver naquele roupão evidencia suficientemente bem que é um voyeur sem vergonha.
Hunter sorriu.
— Parece que fui descoberto. Mas não pode culpar-me por isso.
— E porque não?
— Depois de mais de um ano de abstinência sexual, um homem merece alguns prazeres.
Poderia gastar a sua energia em algo mais produtivo - sugeriu Lara quando ele se aproximou da banheira. — Arranje um passatempo... Colecione qualquer coisa... Dedique-se ao xadrez ou ao pugilismo.
Incomodado com o tom conciso de Lara, Hunter piscou os olhos.
— Eu já tenho um passatempo, minha senhora.
— E qual é?
— Admirá-la.
Ela abanou a cabeça, sorrindo contra a sua vontade.
— Se não fosse tão maçador, senhor, poderia até ser encantador.
— Se não fosse tão bonita, eu não estaria a maçá-la — disse, dedicando-lhe um sorriso rápido e viril. – Tenho a intenção maçá-la com muita frequência, minha senhora, um dia verá que gostará — Deu outro passo em direção à banheira. — Cubra-se... Estou quase a chegar...
Lara ficou rígida, pensando em cobrir-se, em gritar, salpicá-lo com água... Mas não fez nada disso. Permaneceu na banheira, deitada perante ele como num sacrifício pagão. Hunter não fez grande alarido ao contemplá-la abertamente, mas ela pressentiu que ele catou todos os pormenores do seu corpo, que cintilava dentro da água perfumada.
— O que pretende? — perguntou-lhe. Sentia a cara a ferver, não por causa do vapor, mas devido à sua própria excitação.
Se Hunter se chegasse agora mesmo à água, a tomasse nos seus braços e a levasse para a cama... ela não tinha a certeza se lhe resistiria. Uma parte dela desejava-o. Uma parte dela queria perder-se nele... E aquela ideia não a assustou tanto como deveria. Hunter parecia respirar com dificuldade. Aproximou-se e pegou na mão de Lara, soltando com determinação, os dedos que agarravam a borda da banheira.
— Tome. Isto é para você.
Lara sentiu que ele colocava um pequeno objeto na palma da sua mão e apertou-o com os dedos.
— Poderia ter aguardado que eu terminasse o banho.
— E correr o risco de não a ver assim? - riu ansioso e afastou-se da banheira, como se já não confiasse em si próprio.
Lara abriu os dedos molhados e olhou para o anel de ouro que tinha na mão, uma banda de ouro pesada com um enorme diamante lapidado em forma de rosa. Aquele simples desenho aumentava a imponente beleza do diamante de água branco.
— Oh! — Exclamou com suavidade, contemplando a estonteante peça, sem conseguir acreditar nos seus próprios olhos.
— Se bem me lembro, nunca teve um anel de noivado comentou Hunter descontraído.
Lara continuou a olhar para a cintilante pedra preciosa que tinha na mão.
— Mas... será prudente fazer este gasto nesta altura?
— Nós podemos suportar esta despesa — Contestou ele com brusquidão, parecendo aborrecido. — Deixe essas preocupações para mim. Se não gostar, poderemos trocá-lo por outra coisa mais do seu agrado.
— Não, eu... não. É muito bonito - hesitante, Lara deslizou a pedra, que pesava pelo menos quatro quilates, sobre o seu dedo. O anel ajustou-se perfeitamente ao dedo anelar e a sua magnificência parecia conferir-lhe um ar irreal. Sentia-se estranha por usar um anel depois de ter deixado a sua mão nua durante tanto tempo. Finalmente, atreveu-se a olhar para Hunter. Ele permanecia inexpressivo, mas a sua postura revelava a tensão em que estava. À vista do pequeno sorriso dela, ele pareceu relaxar.
— Nunca me ofereceu nada semelhante — disse ela. — Nem sei o que dizer.
— Pode agradecer-me depois — respondeu Hunter, recuperando a sua habitual presunção. — Creio que sabe como — Abandonou o quarto soltando uma forte e arrogante gargalhada. O tímido deleite de Lara transformou-se em aborrecimento. Ela deveria ter adivinhado que ele iria arruinar aquele momento tão terno com uma lembrança daquele acordo horroroso que eles tinham feito.
Voltou a deitar-se para trás, na banheira, erguendo languidamente a mão para observar o anel de perto. Era uma joia digna de uma rainha. Por que razão lhe deu ele um presente tão valioso? Ela suspeitava de que o anel era uma espécie de declaração de propriedade... Ou talvez ele quisesse demonstrar aos seus conhecidos que eles não estavam, de modo algum, destituídos financeiramente. Ou queria, simplesmente, amolecer o seu coração, para o aceitar? Abanou a cabeça, sem saber o que pensar e olhou para a porta fechada.
— Eu não o entendo, meu senhor — disse em voz alta. — Nunca entendi... E aparentemente nunca irei entender.
As obras de Possibilidade Smith em Hawksworth Hall estavam longe de terminar, mas só com as mudanças realizadas no salão de baile, já ele tinha ganho mais do que os seus honorários. Retiraram-se os mouros negros de mármore com túnicas rosa e o pesado e horrendo laminado a ouro. O salão estava agora luminoso e fresco, as paredes estavam pintadas com tinta bege e coroadas com um delicado trabalho de estuque, e a fila de janelas altas estava decorada com colunas e mármore de cor âmbar. No teto estavam pendurados quatro enormes lustres, adornados com fiadas de gotas de cristal brilhante que irradiavam a luz no chão de madeira.
Seguindo as instruções de Lara, o jardineiro, o senhor Moody, tinha feito uns enormes arranjos florais com rosas, lírios e flores exóticas, que foram dispostos ao redor do salão de baile. A sua fragrância inebriante espalhava-se pelo ar como uma fresca brisa primaveril que soprava das janelas abertas.
A noite do baile chegou depressa... demasiadamente depressa para Lara.
Ela queria desesperadamente que a noite fosse um êxito. Pelas respostas entusiásticas que receberam, não havia dúvida nenhuma de que seria um baile muito concorrido. Lara tencionava usar todos os meios ao seu alcance para angariar donativos suficientes para o orfanato, garantindo que não houvesse mais crianças forçadas a viver numa prisão em Inglaterra. Tinha esperança de que Hunter cumprisse a parte dele e recebesse os convidados, entretendo-os com os relatos do seu milagroso regresso da Índia.
— Prometa-me que se esforçará por se mostrar encantador — suplicou Lara umas horas antes. — E prometa-me que não se irá rir se alguém lhe fizer alguma pergunta disparatada...
— Eu sei o que tenho de fazer - interrompeu Hunter asperamente, impaciente com toda aquela agitação. — Desempenharei o meu papel, satisfazendo tudo e todos. Desde que você cumpra com as suas obrigações.
Percebendo o que ele queria dizer, Lara mordeu os lábios e dirigiu-lhe um olhar rápido.
Era a primeira vez, no espaço de um mês, que Hunter tinha tido o mau gosto de lhe recordar o acordo que tinham feito. Consolou-se ao pensar que, quando a uma hora da manhã chegasse, Hunter estaria demasiado ocupado com outra mulher, não se lembrando minimamente dela.
Com a ajuda de Naomi, tomou um banho sossegado, em água quente perfumada com lavanda e esfregou os ombros, os braços e o pescoço com creme perfumado. Um suave toque de pó de pérola deu um brilho translúcido ao seu rosto e aplicou uma pomada rosa nos lábios para os tornar orvalhados e rosados. Naomi recolheu o cabelo de Lara num rolo trançado sobre a cabeça, dando-lhe o efeito de uma coroa da cor do mogno, e enfeitou-o ainda com pérolas cosidas individualmente sobre alfinetes.
O vestido de Lara era simples, mas muito bonito. Consistia em uma delicada cobertura branca, revestida por uma gaze prateada transparente. O decote descia drasticamente e as mangas não eram mais do que faixas transparentes de renda prateada. Era um vestido elegante, mas também um pouco ousado. Certamente, tinha um ar mais comedido, antes de ela, talvez precipitadamente ter dito à costureira que baixasse o decote.
Contemplou-se ao espelho com um olhar crítico.
— Graças a Deus, ainda tenho tempo para mudar de roupa.
— Oh, minha senhora, não o faça! — Exclamou Naomi. — É o vestido mais adorável que já vi na minha vida, e a senhora parece saída de uma pintura.
— O quadro da indecência — disse Lara, rindo-se enquanto ajustava com dificuldade o corpete. — Eu vou tirá-lo num instante.
— Lady Crossland usava vestidos com decotes mais baixos do que esse e nem pestanejava — disse Naomi. — É a moda.
Sem referir ao fato de que Janet era o tipo de mulher que tinha colocado um espelho no teto do quarto dela, Lara negou com a cabeça.
— Traga-me o vestido cor-de-rosa, Naomi. Eu vou tirar as pérolas do meu cabelo e vou decorá-lo com uma rosa.
Quando a criada abriu a boca para discutir o assunto, Johnny irrompeu no quarto, com gritos e guinchos de diversão.
— Cuidado! Ele vem aí! — Exclamou e atirou-se para as saias de Lara.
Assustada, Lara levantou os olhos quando o rugido de um tigre ressoou pelo quarto e Hunter apareceu na entrada. Aproximou-se de Lara com uma velocidade felina e apanhou o menino que se desfazia em gargalhadas. Levantou-o ao ar e fingiu devorá-lo como um animal faminto, enquanto Johnny se retorcia, gritava e ria.
— Estão outra vez a brincar à caça ao tigre na Índia — Explicou Naomi a Lara. — Estiveram com isso toda a semana.
Lara contemplou os dois e sorriu. Nas últimas semanas Johnny começara a revelar uma energia indomável que igualava dez meninos. Era um imitador nato e tinha respondido muito bem aos esforços de Lara para lhe ensinar bons modos. Gostava de todos os tipos de jogos e usava a inteligência astuta para os superar.
Vestido com uma jaqueta azul-claro e calças azuis-escuros, com o seu cabelo preto coberto com o boné, que trazia sempre com ele, adornado com botões de bronze, Johnny nunca poderia ser confundido com uma criança que tinha vindo da sarjeta. Era bonito, saudável e adorável. E era dela.
Lara não se preocupava com o que os outros pensavam daquilo, ou com quantas sobrancelhas se ergueram de desdém. E nem se preocupava com o futuro, quando outros tratassem de espalhar maus rumores sobre a linhagem de Johnny e insinuassem que ele era o filho bastardo dela, ou de Hunter. Como poderia isso ser importante? Foi-lhe dada a graça de cuidar de uma criança e de a amar. Ela pretendia fazer precisamente isso.
O que não esperava, é certo, era a ligação de Hunter com Johnny. Apesar da falta de experiência dele com crianças e da sua resistência inicial à presença de Johnny naquela casa, Hunter parecia entender o menino muito melhor que a própria Lara. Ele aprendeu rapidamente a misteriosa linguagem das rãs, dos bolos de lama, de varas, de roedores e de pedras que encantavam tanto os meninos pequenos. Jogos de perseguição e desafios, lutas, histórias de terror... Hunter conhecia intermináveis formas de fascinar Johnny.
— Eu gosto do rapaz — Admitiu com facilidade, num dia em que Lara tinha ousado mencionar o seu aparente apego à criança. — E porque não? Prefiro-o a ele do que àquelas criaturas delicadas e inertes que saem a trote da maior parte dos berçários aristocráticos.
— Imaginei que o rejeitaria porque ele não é seu — disse Lara de imediato.
Hunter lançou lhe um sorriso irônico.
— Como uma vez me demonstrou, ele não tem culpa da sua falta de linhagem. E o simples fato de ter sangue Crossland nas veias não é garantia de que um menino se converta num modelo de perfeição. Eu mesmo sou prova viva disso.
Retorcendo-se nos braços de Hunter, Johnny libertou-se e voltou a aninhar-se no colo de Lara. Os seus olhos azuis abriram-se com interesse e admiração ao contemplar o vestido de noite dela.
— Está muito bonita, mamãe.
— Obrigada, querido — Lara ajoelhou-se e abraçou-o, com cuidado para não olhar para Hunter ou Naomi. Como Johnny não tinha nenhuma recordação da sua própria mãe, começou, timidamente, a chamá-la mamãe, e Lara não o dissuadiu. Ela sabia que aquilo perturbava os criados, mas nenhum deles ousava mencioná-lo. Quanto à reação de Hunter, ele preferiu guardar a sua opinião só para ele. Jonhny tocou numa dobra do tecido prateado e esfregou-o entre o seu dedo polegar e o indicador.
— Parece metal, mas é macio! — Exclamou ele. Lara riu-se e endireitou-lhe o boné.
— É quase hora de dormir. Naomi vai-te ajudar a lavares-te e a vestires a camisa de noite, eu irei dentro de uns minutos para rezar as orações da noite.
As pequenas sobrancelhas pretas franziram-se numa só.
— Eu quero ver o baile.
Lara sorriu, porque compreendia a curiosidade de Johnny perante tão estranho acontecimento. Durante os últimos dias, ele tinha assistido aos preparativos para o baile, às flores e às decorações que eram trazidas lá para casa, à montagem das cadeiras e dos cavaletes para os músicos, e aos esforços laboriosos do pessoal de cozinha.
— Quando fores mais velho, terás bailes próprios para crianças — disse-lhe. — E quando fores adulto, poderás assistir a todos os bailes que desejares... Embora eu presuma que, até lá, farás os possíveis para os evitar.
— Mas vai demorar anos e anos até eu ser um adulto — protestou Johnny irritado, suportando o sorridente beijo de Lara e arrastou-se atrás de Naomi, que o acompanhou para fora do quarto. Sozinha com Hunter, Lara pôde finalmente dar-lhe atenção.
— Oh — disse ela em voz baixa, ao ser surpreendida por ver o seu marido vestido com o traje de noite; uma visão digna de ser admirada.
Enquanto assentava melhor o colete bege e ajustava a gravata branca, Hunter olhou para Lara exibindo um sorriso malandro. As suas calças, também beges, eram justas sem serem demasiadamente apertadas e o casaco azul-escuro seguia as linhas dos seus largos ombros e do seu corpo magro e musculoso com uma precisão de cortar a respiração. Usava o cabelo denso, curto e com madeixas castanhas-douradas, penteadas para trás. No decorrer das últimas semanas, o seu tom de pele tinha ficado mais claro, passando de um magnífico bronzeado cobre para uma suave cor âmbar.
Um homem educado, completamente civilizado, pensaria qualquer pessoa quando olhasse para ele... Mas um estudo mais cuidado, revelava algo exótico e misterioso.
Enquanto o contemplava, Lara voltou a experimentar um instante de dúvida que a deixou assustada.
Ele tinha de ser o seu marido, disse para si. Ele possuía a aparência inconfundível dos Crossland. Para além disso, nenhum estranho poderia ter chegado tão longe, enganando os amigos de Hunter, a família e a sua própria mulher, e ainda atrever-se a apresentar-se hoje à noite a toda a sociedade... Ultrapassaria todos os limites possíveis de audácia. Seria quase loucura. Ele tem de ser Hunter. Tropeçando naquele súbito ataque de ansiedade, Lara não conseguiu continuar a olhar para ele.
— Está mesmo apresentável — disse ela num tom de voz frágil e suave.
Ele foi até junto dela e tocou-lhe; os dedos dele acariciaram o seu braço despido, a extremidade do decote, parando na curva elevada do seu peito esquerdo. Lara não pode evitar a aceleração selvagem do bater do seu coração, aquela ansiedade incontrolável que a fazia desejar apertar todo o seu corpo contra o dele. Conseguiu permanecer imóvel, tremendo ligeiramente com o esforço de se conter, confusa, ansiosa e alarmada.
— É a mulher mais bonita que eu já alguma vez vi — Ela ouviu-o a dizer. — Mais bonita do que qualquer pessoa ou qualquer coisa na terra - inclinou-se aproximando-se mais e Lara sentiu a boca dele contra as têmporas.
— Com este vestido, necessita de mais pérolas, no pescoço, na cintura, nos pulsos... Um dia vou cobri-la toda com pérolas.
As mãos de Lara agitaram-se, caídas ao longo do corpo. Ela queria apoiar-se nele, tocá-lo, mas cerrou os punhos para os manter firmes. O anel de diamante tinha-se virado no dedo e a pedra lapidada como uma rosa, repousava sossegadamente na palma da mão.
— Não tem que me dar joias — disse ela.
— Eu dar-lhe-ei metade da Inglaterra antes de me dar por satisfeito. Voltarei a construir a nossa fortuna, vou torná-la dez vezes maior... Lara terá tudo o que sempre desejou. Joias... terras... uma dúzia de casas cheias de órfãos.
Lara olhou diretamente para aqueles olhos escuros provocadores e, para seu alívio, aquela sombra de dúvida desvaneceu-se. Obviamente, ela ainda estava nervosa, esperando que o seu plano para desviar a atenção dele naquela noite funcionasse, mas aquele outro assunto... a suspeita sobre a sua identidade... de repente, parecia-lhe ridícula.
— Só lhe peço ajuda para os doze órfãos — respondeu ela. — Apesar de que gostaria de ampliar o orfanato, o suficiente para acomodar duas vezes mais essa quantidade. Eu tenho a certeza de que não será difícil encontrar crianças para preencher o espaço livre.
Hunter sorriu e abanou a cabeça.
— Deus ajude quem se puser no seu caminho. Incluindo eu - tocou numa das pérolas colocadas no cabelo de Lara e acariciou a trança brilhante que ela tinha enrolada no topo da cabeça.
— O que a fez ficar tão apaixonada pelo bem-estar das crianças? — murmurou ele. — Será porque é estéril?
Era estranho, aquela palavra, que outrora a feria tão profundamente, tinha agora perdido toda a sua capacidade de a magoar. De certo modo, a frontalidade de Hunter parecia perdoá-la de toda a culpa e infelicidade que ela tinha alguma vez sentido. Ela não tinha culpa da sua esterilidade mas, apesar de tudo, sempre se tinha sentido responsável.
— Não sei — respondeu — É que há tantas crianças que necessitam de alguém que as ajude. E, se eu não posso ser mãe, pelo menos, poderei ser uma espécie de benfeitora.
Hunter recuou e olhou para ela com admiração. Os olhos dele eram tão claros e profundos que os vários reflexos de canela pareciam flamejar nas suas íris cor de café.
— Lembre-se do que irá suceder à uma hora — disse ele em voz baixa, sem sombra de brincadeira ou escárnio.
O estômago de Lara agitou-se e ela ficou demasiado nervosa. Ela conseguiu concordar ligeiramente com a cabeça, baixando o queixo. Dava a impressão de que ele queria dizer mais qualquer coisa, mas o instinto fê-lo deixar as coisas como estavam e permaneceu em silêncio. Ele retribuiu-lhe o aceno com outro igual e cauteloso. Lara apercebeu-se de que ele temia que ela não respeitasse o acordo. A ideia provocou-lhe um súbito interesse... O que faria Hunter se ela simplesmente se recusasse a dormir com ele? Ficaria furioso, exigente, ressentido? Ou tentaria seduzi-la, forçá-la ou simplesmente ignorá-la?
As carruagens formavam uma fila ao longo do caminho que conduzia a Hawksworth Hall. Enquanto uma multidão de criados e lacaios se esforçava, com grande eficiência, por conduzir os membros da alta sociedade desde os seus transportes até ao vestíbulo de entrada, Lara e Hunter aguardavam juntos, cumprimentando e trocando galanteios com cada convidado recém-chegado. Hunter executou as suas obrigações com competência e encanto, mas Lara conseguia perceber uma certa tensão, uma impaciência reprimida que denunciava o seu desejo de estar em outro sítio que não aquele.
O salão de baile e os corredores que o circundavam ressoavam com as conversas e as gargalhadas dos convidados, que trocavam ditos espirituosos e com extrema elegância. Tal qual um enxame, invadiam a fileira de mesas de buffet bem guarnecidas e enchiam pratos de porcelana com carnes frias, pudins, ovos cozidos recheados com caviar, tartes e saladas, fruta exótica e doces de maçapão. O desarrolhar das garrafas de vinho e de champanhe proporcionava um ruído de fundo continuado que se destacava do zumbido sufocante dos convidados, enquanto uma melodia céltica fluía do pavilhão dos músicos.
— Que encantador! — Exclamou Rachel, reunindo-se a Lara quando esta finalmente conseguiu movimentar-se livremente por entre os convidados. Lara teve a impressão de que a sua irmã tinha perdido peso recentemente, já que os seus delicados ossos estavam muito proeminentes. Mesmo assim, Rachel era excepcionalmente bonita, com a sua tez branca como leite e os olhos de uma estonteante mistura de verde, castanho e dourado. A seda âmbar do vestido caía suavemente sobre a sua esbelta figura, a cauda ondulada apenas cobria as pequenas sandálias douradas nos seus pés.
Lara divertiu-se ao notar que vários homens admiravam notoriamente a sua irmã, apesar de ela ser uma mulher casada. Claro que estes cavalheiros da nobreza não se deixavam perturbar por assuntos tão insignificantes como os votos de matrimonio. Ela própria recebia olhares de admiração, mas que ignorava com frieza. Os homens que agora lhe lançavam comentários e olhares galanteadores eram os mesmos que a evitavam como à peste, quando era uma viúva pobre.
— Acredito que este é o acontecimento mais importante que alguma vez vi em Lincolnshire — disse Rachel com entusiasmo. — Organizou-o de forma brilhante, Larissa. Parece ser a anfitriã maravilhosa que era dantes.
— Perdi um pouco a prática — Comentou Lara, encolhendo os ombros num gesto resignado.
— Pois ninguém diria - lançou um olhar sub-reptício à volta, baixou a voz antes de prosseguir. — E ela já chegou?
Não havia nenhuma necessidade de perguntar a quem ela se estava a referir. Lara tinha estado a controlar a porta, como um falcão, durante as últimas duas horas. Negou com a cabeça e assumiu uma expressão séria.
— Não, ainda não.
— Talvez não venha - sugeriu Rachel, vacilante.
— Ela tem de vir — respondeu Lara implacável. — Ela virá, nem que seja por curiosidade.
— Espero que sim.
A conversa delas foi interrompida pela chegada de Lorde Tufton, um jovem e tímido visconde que tinha uma vez pedido a mão de Rachel em casamento, mas tinha sido eclipsado pela fortuna e posição de Lonsdale. Lonsdale assemelhava-se a um príncipe, com a sua constituição atlética, a sua elegância sombria e a sua aura de virilidade. Tufton, pelo contrário, era um tipo pequeno, um rato de biblioteca e que se sentia mais à vontade em reuniões mais íntimas do que em festas grandiosas. Era amável e inteligente e a sua devoção por Rachel parecia não ter diminuído durante os anos de casamento com Lonsdale. Outrora, Lara acreditava, como todos os demais, que Lonsdale era muito melhor partido para a irmã.
Atualmente, ela refletia com alguma tristeza que Rachel teria sido muito mais feliz com este homem tímido e doce do que com um bruto como Lonsdale. Depois de as cumprimentar, Tufton dirigiu a Rachel um sorriso esperançado.
— Lady Lonsdale — murmurou ele — Dar-me-ia a honra... quero dizer, consideraria...
— Está a pedir-me que eu lhe reserve uma dança, Lorde Tufton? — perguntou Rachel.
— Sim — respondeu ele visivelmente aliviado.
Rachel sorriu.
— Meu senhor, eu teria muito gosto em...
— Olá, minha querida.
Para desânimo de todos, a voz de Lorde Lonsdale interrompeu a resposta de Rachel. Ele deslizou o braço pela cintura da mulher e apertou-a até Lara ver a sua irmã fazer uma careta de dor. O seu olhar duro pareceu perfurar os doces olhos castanhos de Tufton.
— A minha mulher reservou-me todas as danças, Tufton... Esta noite e todas as noites que se seguirão. Poupe-se ao embaraço da rejeição, contendo-se quando pretender aproximar-se dela, novamente. E, já agora, transmita isto a qualquer outro que deseje suspirar e babar-se em cima dela.
Lorde Tufton corou e balbuciou desculpas, enquanto empreendia uma retirada estratégica até ao outro extremo do salão.
Lara olhou fixamente para Lonsdale, interrogando-se sobre o que teria causado aquele comportamento tão rude da sua parte.
— Lorde Lonsdale — disse ela friamente, — é perfeitamente normal que uma mulher casada presenteie com uma ou duas danças inofensivas outro homem.
— Eu trato da minha mulher como me parecer mais conveniente. Agradeço-lhe que não interfira. Com vossa licença... minhas senhoras!
Lonsdale dirigiu-lhes um olhar de gozo, como se aquele qualificativo não lhes fosse aplicável e partiu depois de fazer um último comentário a Rachel.
— Tente não se comportar como uma rameira, está bem?
Quando finalmente se afastou, as duas irmãs ficaram congeladas num longo silêncio.
— Lorde Lonsdale acabou de lhe chamar rameira? — Conseguiu Lara articular, branca como cal.
— É que ele é muito ciumento — murmurou Rachel, que fixava os olhos no chão. Parecia-se com uma flor murcha e todo o seu encantador brilho se evaporou.
Lara fervia de raiva.
— Mas de que é que Lonsdale tem de ter ciúmes? Certamente, ele nunca se atreveria a acusá-la de infidelidade. Rachel é a mulher mais doce e mais honrada que existe, enquanto ele é um grande hipócrita desprezível...
— Larissa, por favor. Baixe a voz, a menos que queira provocar uma cena no seu próprio baile.
— Não com você evitá-lo — respondeu Lara. — Odeio o modo como ele a trata. Se eu fosse homem, batia-lhe até o desfazer em papa, ou desafiá-lo-ia para um duelo, ou...
— Eu não quero discutir mais este assunto, não aqui — Dissimulada atrás de uma calma artificial, Rachel afastou-se, como se não pudesse mais tolerar outra palavra.
Lara, fervendo de frustração, retrocedeu até um canto do salão onde poderia fervilhar à vontade. Aceitou um copo de champanhe de um criado que passava com uma bandeja e bebeu-o muito depressa, o que lhe provocou uma série de soluços. O champanhe não era uma bebida fácil de engolir.
Enquanto fazia girar o copo vazio entre os dedos, Lara viu que o seu marido se aproximava. Hunter exibia o mesmo sorriso insípido que tinha há duas horas atrás. Tal como ele próprio tinha previsto, era o foco da atenção de todos. Tanto os seus antigos ou novos conhecidos, estavam visivelmente fascinados com ele e não hesitavam em bajulá-lo, interrogá-lo e aborrecê-lo, como um enxame de mosquitos.
— Está a divertir-se? — perguntou-lhe Lara, apesar de já saber a resposta.
Aquele minúsculo sorriso cordial não afrouxou.
— Imensamente. Há pacotes de idiotas em todos os lados para onde eu me viro.
— Beba um pouco de champanhe — Aconselhou Lara, e de imediato sentiu-se repugnada com o sentimento que, de repente, a tomou, uma espécie de camaradagem, como se os dois compartilhassem uma cumplicidade que excluía o resto do mundo. — Torna tudo um pouco mais fácil de suportar — Gesticulou com o copo. — Pelo menos, é isso que eu espero.
— Eu não gosto de champanhe.
— Então, beba ponche.
— Preferiria tê-la a si.
Os olhares deles encontraram-se e fixaram-se e Lara verificou que aquele comentário de gozo a tinha afetado muito mais que o champanhe. Sentiu-se insegura, tonta e à beira do perigo. Ele estava à espera, percebeu ela, minuto após minuto, à espera da uma da manhã, quando ela cairia indefesa nos seus braços. O seu instinto incitou-a a dar meia volta e correr... mas não havia nenhum lugar seguro para onde escapar. Lara suspirou profundamente, mas ainda se sentia sufocada.
Com grande gentileza, Hunter retirou o copo dos seus dedos enervados, chamou um criado com um gesto, que apareceu num ápice, e colocou o copo na bandeja de prata.
— Deseja tomar outro? — perguntou ele e Lara acenou rigidamente com a cabeça.
A sua mão fechou-se ao redor do pé de um novo copo e bebeu o champanhe tão rapidamente quanto o primeiro, com os mesmos resultados. As bolhas cintilantes pareciam flutuar na sua cabeça e teve de cobrir a boca com a mão para impedir outro ataque de soluços.
Os olhos castanhos de Hunter brilharam, divertidos.
— Não vai funcionar, minha querida.
— O que é que não vai funcionar?
— Pode beber até ficar em conserva... mas não deixarei de fazendo cumprir o nosso trato.
Ela olhou-o com uma expressão que fervia de descontentamento.
— Não planejei nada dessa natureza. Porém, irei beber tanto champanhe quanto eu quiser. Afinal de contas, eu não me com você recordar de uma só vez em que Hunter tenha visitado a minha cama sóbrio.
O olhar dele evitou o de Lara e apertou os lábios, num gesto que poderia ser de raiva ou de pena.
— Eu lamento muito tudo isso — disse com uma voz rouca e passou o olhar pela sala, como se aquele comentário o tivesse incomodado. — Lara, eu...
Subitamente, algo distraiu a sua atenção e Hunter interrompeu o que ia dizer a meio da frase. Não parecia tão surpreendido como... tencionava... como se, de repente, estivesse ocupado a resolver um importante enigma. Lara seguiu o olhar fixo dele e todo o seu corpo se contraiu ao perceber para quem ele estava a olhar.
Uma mulher alta junto à entrada. A atração que transmitia, era mais pela elegância, do que propriamente pela sua beleza. Era magra, de ossos largos, com os braços ligeiramente musculados e apaixonada pelas atividades ao ar livre como a falcoaria, a caça e a prática de tiro ao alvo. Uma verdadeira mulher de armas. As suas fortes características, quase duras, eram equilibradas pela espessa cabeleira castanha, os olhos da cor de xerez e uma boca graciosamente curva. Usava um vestido de cor creme apanhado num dos ombros, deixando o outro despido, que caía sobre a sua figura de estátua, com um charme nunca inferior ao de uma deusa grega.
Lara ficou desconcertada pela óbvia expressão de falta de reconhecimento de Hunter. Este olhou à volta e catou a corrente de olhares curiosos que se concentravam nele, a forma como todos aguardavam a sua reação. Então, voltou a olhar para aquela mulher, que lhe dirigiu um sorriso trêmulo.
Subitamente, pareceu reconhecê-la e disparou um olhar de raiva sombrio a Lara.
— Maldita sejas - respirando fundo, deixou-a e dirigiu-se até à sua antiga amante, Lady Carlysle.
Lara sentia centenas de olhares pousados sobre ela à medida que aquela cena se desenrolava. O corrupio dos comentários, divertidos, compassivos, fascinados, ameaçavam abafar o trabalho dos músicos. Abalada, Lara quase nem reparou na aproximação da irmã.
— Tudo corre conforme planeado — Comentou Rachel, tentando fingir que nada de estranho se estava a passar. — Tente sorrir, Larissa... Estão todos a olhar para você.
Lara obedeceu e curvou os lábios numa imitação de sorriso, mas a sua boca parecia estar rígida e entorpecida ao mesmo tempo.
— Porque está assim, com essa cara, querida? — perguntou Rachel em voz baixa — Ele já foi ter com ela, exatamente como planejou. Era isso que queria, não é verdade?
Sim, era o que ela queria... Mas, como poderia explicar que tudo aquilo lhe parecia terrivelmente errado? Como poderia ela explicar aquele horrível momento em que Hunter parecia não ter reconhecido a sua antiga amante? Essa reação só se poderia dever ao choque que ele deve ter sentido com aquela visão inesperada... de fato, ele não via Lady Carlysle há mais de três anos. Por isso, demorou alguns segundos a reagir.
Lara respirou fundo, procurando acalmar-se, mas a pressão que sentia no peito teimava em não parar. Ela tinha atingido o seu objetivo de juntar Hunter e Lady Carlysle. Agora a velha paixão deles voltaria a acender-se e Lara viveria de novo em paz. Era exatamente o que ela queria que acontecesse.
Então, porque é que se sentia tão atraiçoada? Porque é que tinha aquela sensação de ter cometido um erro imperdoável?
— Vá, dê-me isso — Rachel pegou no copo vazio da irmã. — Está quase a partir o pé do copo — Ficou a olhar Lara de perto. — Minha querida, o que se passa? Como a posso ajudar?
— Está muito calor aqui — disse Lara com a voz pastosa. — Não me sinto bem. Faça as vezes de anfitriã por mim, Rachel, só por alguns minutos. Certifique-se de que tudo corre bem até que eu regresse.
— Sim, claro — Rachel apertou-lhe a mão. — Vai tudo correr bem, querida.
— Obrigada — sussurrou Lara, sem acreditar nela nem por um momento.
Capítulo 14
Hunter viu a inequívoca expressão de culpa no rosto de Lara e, naquele instante, percebeu o que ela tinha feito. Estava furioso por ter sido manipulado pela sua própria mulher. Mais ainda, ele percebeu, como por uma revelação irônica, que deveria ter adivinhado uma manobra daquele gênero. Lara era uma mulher inteligente e obstinada, e faria qualquer coisa para não ter de se lhe render. Tinha sido uma brilhante ideia organizar um encontro público com a sua antiga amante. Lara demonstrou um sentido de oportunidade digno de ser admirado. Sem dúvida nenhuma, ela esperava que, de uma forma ou de outra, durante o resto da noite, ficasse entretido com Lady Carlysle.
Não podia esperar para esclarecer a sua mulher sobre alguns aspectos importantes.
Até lá, no entanto, teria de tratar de Lady Carlysle, algo que ele tinha tentado evitar desde que chegara a Inglaterra. Um sorriso duro aflorou-lhe nos lábios.
— Vai pagar caro por isto, minha querida — murmurou entre dentes, endireitando os ombros ao aproximar-se de Lady Carlysle.
— Esther — disse ele, inclinando-se sobre a mão dela, segurando-a na sua um segundo mais do que o estritamente correto. Os dedos de Lady Carlysle, dentro das luvas, eram longos e fortes e o seu aperto de mão invulgarmente firme. Ele conseguia ver com clareza a atração desta mulher, tão franca que nunca exigiria que um homem fosse um herói, apenas um companheiro. Exceto que... todos os homens sentiam a necessidade de serem heróis de vez em quando e de oferecer a sua força e a sua proteção a uma mulher... e milhares de anos de civilização nunca eliminariam esse impulso.
— Seu velhaco insensível — murmurou Lady Carlysle, apesar de os seus olhos castanhos estarem cheios de ternura e afeto. — Porque não veio ter comigo? Tenho esperado desde que me inteirei do seu regresso do Oriente — Deu-lhe um ligeiro aperto nos dedos e por fim, retirou a mão.
— Eu teria escolhido um momento com mais privacidade do que este — respondeu, com um leve sorriso.
— O tempo e o lugar não foram escolha minha. A nossa querida Larissa persuadiu-me, através de uma carta encantadora, dizendo-me que eu deveria vir aqui esta noite.
— Ah, sim? - observou Hunter com simpatia, ansiando encontrar a sua intrometida mulher e estrangulá-la. — O que é que ela escreveu exatamente, Esther?
— Oh, mencionava algo de querer que Hunter fosse feliz, depois de tudo pelo que passou... E que acreditava que eu seria uma peça fundamental para essa felicidade. — O seu olhar cruzou-se com o dele. Com a sua altura, não era necessário levantar o olhar para o encarar.
— E ela tinha razão, meu senhor? — Vindo de outra mulher, a pergunta poderia ter soado modesta, mas ela infundiu-a com uma tão discreta seriedade que comoveu Hunter.
Raios partam o baile e os convidados avidamente curiosos, pensou Hunter, de repente. Maldito seria ele, se optasse por ferir esta mulher diante de todos. Ele já tinha proporcionado entretenimento mais do que suficiente para eles, e à sua própria custa.
— Vamos conversar — disse, num impulso, tomando-a pelo braço para saírem do salão de baile.
Lady Carlysle soltou uma discreta gargalhada de prazer e acompanhou-o de bom grado.
— Já estamos a conversar, meu querido.
Hunter levou-a à biblioteca e fechou as portas. Envolveu-os no ambiente confortável da madeira encerada, do cheiro dos livros, do couro e do licor. Hunter trancou a porta à chave e lutou contra um repentino e pavoroso pressentimento. Amaldiçoou Lara em silêncio pôr o ter posto naquela situação.
— Esther... — Começou a dizer.
Ela sorriu e estendeu-lhe os braços.
— Bem-vindo a casa. Oh, já passou tanto tempo!
Hunter hesitou e foi até ela. Ela era uma mulher atraente, graciosa, mas Hunter ficou tenso ao sentir os braços dela à sua volta. Não era a mulher que desejava, com que havia sonhado, e não se daria por satisfeito com ninguém para além de Lara.
Felizmente, Lady Carlysle não o tentou beijar. Inclinou a cabeça para trás e sorriu para ele.
— Está muito magro — disse. — Tenho saudades da sensação dos seus braços a abraçarem-me. Era como ser abraçada por um grande urso musculoso. Prometa-me que irá comer um bife todas as noites até recuperar a sua estatura anterior.
Hunter não lhe devolveu o sorriso, simplesmente limitou-se a encará-la seriamente enquanto procurava palavras para lhe dizer que não tinha mais nenhum interesse por ela. Meu Deus, isto seria mais fácil se ela o repugnasse, mas o relutante respeito que ela lhe inspirava era um claro obstáculo. Mas, dadas as circunstâncias, as explicações deixaram de ser necessárias. Lady Carlysle conseguiu ler tudo na sua expressão. Afrouxou o abraço amigável e deixou cair os braços.
— Você não me quer, não é verdade? — perguntou, incrédula. Os seus olhos acusavam uma expressão de confusão e dor, mas mesmo assim, Hunter esforçou-se por encará-la.
— Eu quero uma nova oportunidade com a minha mulher — Contestou com voz rouca.
— Com Lara...? — Deixou cair o queixo. — Se queria libertar de mim, Hawksworth, bastava dizê-lo e ponto final. Mas não me insulte com mentiras.
— E porque é que não deveria querer a minha própria mulher?
— Porque ela é a última mulher que alguma vez desejaria! Recordo-me muito bem das inúmeras vezes em que nós os dois nós rimos dela. Você costumava desprezar criaturas como ela... Dizia que Lara era tão frouxa e fria como uma alforreca! E agora espera que eu acredite que sente algo por ela? Ela nunca ficaria mais do que cinco minutos com você. Ela nunca conseguiu ficar!
— As coisas mudaram, Esther.
— Pois, parece-me que sim. Eu... - olhou para ele e a sua expressão transformou-se, de um modo bastante estranho, o brilho saudável da sua pele foi substituído por uma palidez repentina. — Oh, não — sussurrou. — Oh, eu deveria ter adivinhado...
— O que foi? — Hunter aproximou-se, preocupado, mas ela repeliu-o, soltando um gemido sufocado. Olhou desesperadamente para a porta e por um instante pensou em escapar, mas optou por se dirigir até uma cadeira. Deixou-se cair nela, como se lhe tivessem cortado as pernas.
— Uma bebida — suplicou, olhando para Hunter com horror. — Por favor.
Hunter sabia que deveria sentir remorsos pela evidente angústia de Esther, mas o que sentiu foi uma impaciência infernal. Maldita seja, pensou com crueldade, quantos problemas me vai trazer? Arrebatou um copo do aparador, serviu-lhe uma generosa quantidade de champanhe e levou-o até ela, sem se preocupar com a cortesia de aquecer previamente o copo entre as suas mãos.
Lady Carlysle aceitou a bebida e bebeu-a até o seu rosto ganhar cores novamente.
— Meu Deus — murmurou, olhando-o com estranheza. — Não sei como fui tão tonta e acalentei esperanças. Ele não sobreviveu ao naufrágio. Ele está morto. E de alguma forma, o senhor conseguiu ocupar o seu lugar. — Os olhos encheram-se de lágrimas, mas ela secou-as com impaciência.
— O senhor não é Hawksworth. Não é sequer metade do homem que ele era.
Aquela acusação encheu-o de uma fúria glacial, mas a sua resposta foi serena e calma.
— Está perturbada.
— E o senhor tremendamente convincente! — Exclamou ela. — Mas deixe-me dizer-lhe que Hawksworth jamais preferiria Lara. Ele amava-me a mim, não a ela.
— Às vezes, o amor acaba — respondeu. A simpatia inicial que sentia por Esther parecia esmorecer rapidamente. Era difícil entender como é que ela estava tão certa da sua superioridade sobre Lara.
Lady Carlysle conteve a sua aflição com mais um golo de brandy e dirigiu-lhe um olhar gélido, como aqueles que trocam os homens, de pistola na mão, ao amanhecer.
— Afinal, quem é você?
— Eu sou Lorde Hawksworth — Contestou, como se estivesse a falar com os aldeões.
Ela riu amargamente.
— E Lara acredita em você? Eu apostaria que sim, aquela fútil. Nunca entendeu Hawksworth, nem lhe deu a mais pequena importância. Seria bastante fácil convencê-la, especialmente perante esta tão notável semelhança física. Mas eu conhecia Hawksworth melhor do que qualquer um em toda a terra e poderia provar, em menos de um minuto, que o senhor é um impostor.
— Tente — Convidou ele.
De repente ela parecia quase admirada.
— Que coragem tem! Eu faria, se tivesse alguma coisa a ganhar com isso. Mas a única coisa que eu quero no mundo é Hawksworth e o senhor não pode devolver. Mas admito que seria bastante satisfatório ouvi-lo admitir que é, de fato, um impostor...
— Jamais ouvirá algo semelhante — Assegurou-lhe ele. — Porque não é a verdade.
— Suspeito, meu senhor, que nunca reconheceria a verdade nem que lhe arrancassem os olhos - levantou-se, com falta de equilíbrio, deixando de lado o copo vazio. — Boa sorte — disse, apesar de ser evidente que lhe desejava tudo, menos isso. — O senhor é um charlatão com talento e qualquer um que acredite em você, ele ou ela, merece as consequências. Engane-os a todos, se conseguir. Mas a mim não me enganou e fará frio no Inferno se conseguir convencer a condessa viúva que é o filho dela. Ela porá fim a esta farsa, quando regressar da sua viagem.
— Não sabe o que está dizendo.
— Oh, claro que sei. E aqui tem mais uma coisa para refletir, Larissa não é mais do que uma bonita boneca de cera. Não vai conseguir obter dela mais satisfação do que Hawksworth. Não há nada por debaixo daquela aparência, compreende? Não há calor e há muito pouca inteligência. Não vale a pena dormir com ela.
— Esther — disse ele em voz baixa, — penso que já está na hora de ir para casa.
— Sim — Assentiu, furiosa, desapontada e cansada. — Eu também acho.
Lara estava sozinha e muito agitada, numa sala para convidados situada ao lado do vestíbulo de entrada. Ali sentada, reviveu uma dúzia de vezes a cena passada no salão de baile e questionou-se sobre o que estariam fazendo, naquele momento, Hunter e a sua antiga amante. Há já algum tempo que ninguém os via. Certamente, eles não tiveram o mau gosto de organizar um encontro ali mesmo. Por outro lado, na verdade, eles eram amantes apaixonados que não se viam há mais de três anos.
Um estranho sentimento borbulhava no seu interior... ciúmes, que lhe deixavam um sabor amargo na boca. A imagem de Hunter com Lady Carlysle, as suas mãos a deslizarem pelo corpo dela, a sua escura cabeça a inclinar-se sobre ela... Oh, era insuportável! Porque não poderia ela sentir o alívio que tanto havia ansiado?
Lara pôs-se de pé, gemendo, e abandonou a sala de estar. Iria tomar só mais uma bebida e voltaria logo para o salão de baile, onde fingiria estar encantada com aquela situação. Atiraria a cabeça para trás e riria, e dançaria até que se lhe gastassem as solas dos sapatos. Ninguém, nem sequer o seu próprio marido, poderia adivinhar o seu desassossego.
Deambulou pelo imenso vestíbulo e deteve-se a meio para trocar palavras de cortesia com duas mulheres que se dirigiam à galeria do piso de baixo, uma área muito frequentada, cheia de pinturas, esculturas e com longos bancos de mármore. As mulheres seguiram de braço dado, conversando animadamente, e Lara decidiu ir até à biblioteca. Ela sabia que Hunter mantinha o aparador provido de uma boa variedade de vinhos e bebidas espirituosas. Tomaria um pequeno cálice de algo que a estimulasse e iria reunir-se com os seus convidados no salão de baile.
Para seu grande desânimo, reparou que Hunter entrava no vestíbulo na mesma altura que ela começava a cruzá-lo. Os dois detiveram-se e olharam um para o outro, separados por escassos metros.
O rosto de Hunter era tão polido e duro como granito... mas o brilho escuro dos seus olhos acusava uma violência reprimida, que fervia no seu interior. Levada por um forte instinto de autopreservação, Lara virou-se, tentando fugir. Hunter avançou em passos largos e apanhou-a sem dificuldade. Apertou os dedos em torno do seu braço enluvado e arrastou-a sem nenhum cuidado. O seu andar obrigou-a a correr atrás dele, enquanto largava protestos a cada passo.
— Meu senhor... O que é que... Pare, não posso...
Hunter arrastou-a até ao canto escuro que havia debaixo de um dos lados da escadaria... Era ali que as criadas se encontravam por vezes com os seus pretendentes, ou que os lacaios roubavam beijos às suas amadas. Lara nunca tinha imaginado que ela própria seria encurralada nesse mesmo canto. Apesar das suas desesperadas objeções, ela ficou presa contra a parede por mais de oitenta quilos de fúria masculina. Uma das mãos de Hunter afundou-se no seu impecável penteado, enquanto a outra lhe agarrou a anca através do tecido macio do vestido.
A voz de Hunter transbordava de fúria.
— Não me recordo de ter visto o nome de Lady Carlysle na lista dos convidados.
Ao sentir que ele lhe puxava os cabelos, Lara estremeceu de dor.
— Eu julguei que lhe estava fazendo um favor.
— Os seus favores que vão para o Inferno. Pensou que assim se estaria a livrar de mim e das minhas atenções não desejadas.
— Onde está Lady Carlysle?
— Decidiu ir-se embora quando eu lhe expliquei que não estou interessado nela. E agora, a única pergunta que resta é o que vou fazer com você.
— Nós deveríamos regressar ao salão de baile — Conseguiu dizer Lara. As pessoas devem estar a querer saber onde estamos.
— Não parecia tão preocupada com as aparências, quando organizou o meu encontro com Lady Carlysle, diante de todos.
— T... talvez eu pudesse ter sido mais discreta...
— Talvez pudesse meter-se apenas nos seus assuntos. Ou talvez pudesse ter acreditado em mim quando eu lhe disse que já não a queria.
— Lamento — murmurou Lara, fazendo um esforço para acalmá-lo. — Peço desculpa. Vejo que foi errado da minha parte. Agora, se pudéssemos regressar ao...
— Eu não quero um pedido de desculpas - forçou a cabeça dela para trás e olhou-a fixamente, com uma expressão indignada, com os olhos a refulgir como carvão quente na escuridão. — Meu Deus, eu poderia torcer-lhe o pescoço — murmurou. — Mas tenho outra forma de a castigar... Algo de que vou desfrutar muitíssimo mais.
Assustada, Lara ofegou quando ele se chegou ainda mais perto. A dura e dilatada proeminência da sua ereção apertou-se contra ela e a sólida parede do seu peito quase espalmou os seus seios.
— Aqui não — disse agitada e cheia de pânico diante da hipótese de que algum criado ou convidado por ali passasse. — Por favor, alguém pode ver-nos.
— Pensa que eu me importo com isso? — disse, numa voz densa. — Lara é a minha mulher, minha, e eu farei com você tudo o que quiser. — Inclinou a cabeça e selou a boca, beijando-a com brutalidade, metendo toda a língua na sua boca. Lara lutou apenas por um instante, só até o medo de ser descoberta debaixo das escadarias ter dado lugar a uma súbita onda de prazer.
Hunter beijou-a como se a devorasse com aquela boca ávida e exploradora, enquanto lhe segurava a nuca com as mãos e a obrigava a permanecer quieta. O beijo sabia a brandy e àquela essência picante que lhe era tão própria. Lara cerrou os punhos e tentou lutar contra a vontade de lhe corresponder, mas as suas defesas foram esmagadas quando ele se apropriou da sua boca, com beijos profundos e deliciosos. Gemendo, agarrou-se aos seus ombros largos e arqueou o corpo contra o de Hunter. Só mais um minuto, e então o afastaria. Mais um beijo, mais uma carícia...
Hunter separou violentamente a sua boca da de Lara, arrancou a luva direita com os dentes, atirando-a para o chão. Deslizou os dedos sobre a garganta dela, gozando a sua pele delicada, e mergulhou-os na borda do decote. Puxou o tecido do corpete com tanta brusquidão, que Lara temeu que o tivesse rasgado. De repente, o seu seio ficou descoberto, e o mamilo endureceu ao ar livre. Tomou aquele seio na mão e alcançou aquela extremidade sensível com as pontas dos dedos, puxando e acariciando até ela sufocar um gemido, com a boca enterrada no casaco.
— Aqui não... Agora não... - ofegou.
Ele não fez caso, simplesmente inclinou-se e levou o mamilo à boca, enquanto a sua mão levantava as saias de tecido suave e deslizava por debaixo. Um grunhido de satisfação escapou dos seus lábios ao descobrir que Lara não estava a usar cuecas. A sua mão larga apertou a curva das nádegas desnudas e Lara deu um salto, chocada. Podia ouvir a música e as vozes do baile, o que a fez recordar o perigo iminente de serem descobertos. Começou a lutar com mais intensidade, mas apenas conseguiu desalinhar ainda mais as suas roupas.
Hunter esmagou a boca dela em outro beijo voraz e deslizou a mão por entre as coxas, passando os dedos através do triângulo de cachos protetores. Ela sufocou, contorceu-se e gemeu em protesto, até que ele separou o macio velo e acariciou a delicada linha dos lábios fechados. Lara estremeceu e deixou-se ficar quieta, com os nervos abalados ante aquela carícia tão íntima. Não conseguiu respirar, não conseguiu falar quando ele a acariciou mais profundamente e encontrou um humilhante rasto de umidade. Hunter afastou a sua boca e sussurrou profundamente junto ao ouvido de Lara.
— Esta noite, vou beijá-la aí.
A imagem chocou Lara e a fez corar da cabeça aos pés e teve de se apoiar contra ele, já que as suas pernas ameaçavam desmoronar-se. Hunter abriu as pregas femininas e explorou-a só com a ponta de um dedo, deslizando pela umidade, rodeando a entrada do seu corpo, para depois acariciar um lugar minúsculo de intensa e abrasadora sensibilidade. Lara colocou os braços à volta do pescoço dele e agarrou o seu próprio pulso com a outra mão, cravando as unhas na pele. Nunca tinha imaginado que ele a poderia acariciar daquela forma, num movimento delicado e seguro da ponta do seu dedo, usando a umidade do seu próprio corpo como lubrificante. Ele acariciou-a e provocou-a até que ela começou a mover-se contra a mão dele com rápidas e leves investidas das ancas.
Hunter beijou-lhe a garganta e chegou ao sensível orifício da base.
— Quer mais? — perguntou com um tom de voz áspero, um tom que dificilmente se sobrepunha ao rugido do coração de Lara.
— Eu... Não sei o que quer dizer.
— Quer?
— Sim, sim — Lara tinha ultrapassado a vergonha ou razão, não se preocupando com o que ele lhe pudesse fazer, desde que não parasse. O seu corpo estremeceu num voluptuoso tremor quando sentiu o dedo dele deslizar continuamente no seu interior.
— Oh...
Ele acariciou a escorregadia seda do seu corpo, avançando, no início, um centímetro ou dois, e logo introduzindo todo o dedo dentro dela. Lara deixou a cabeça cair para trás e fechou os olhos enquanto o prazer ameaçava avançar de tal forma que, com toda a certeza, a faria desfalecer. Ou, até pior, gritar. Lutando para reprimir os gemidos que subiam na sua garganta, Lara ferrou os dentes no lábio inferior.
O dedo dele moveu-se num delicioso padrão de avanço e recuo, e Lara apercebeu-se de que ele estava a simular os movimentos do ato sexual. As suas ancas forçaram-se contra ele, em descontrolada resposta, deliciando-se com cada lenta penetração e os seus músculos internos agarravam-se avidamente a ele.
— Beije-me - pediu com uma voz estremecida, ansiando por ter a boca dele junto à sua. — Por favor, agora...
Hunter baixou a cabeça, mas deixou a boca a uns escassos e provocantes centímetros da dela. O arfar deles misturava-se em redemoinhos de calor. O seu corpo estava tenso e excitado, a sua pele coberta por uma fina névoa úmida.
— Este é o seu castigo, Lara — sussurrou. — Arder como eu ardo.
Cortou a respiração assim que sentiu que ele retirava o dedo do seu corpo trêmulo. Suavemente, Hunter soltou os braços de Lara que lhe rodeavam o pescoço, libertando-se. Baixou-se para recolher a luva do chão. Lara encostou-se à parede e ficou a olhar para ele. Ele ia deixá-la ali.
— Não — Gemeu, tenuemente. — Espere, eu...
Ele dirigiu-lhe um olhar ardente e foi-se embora, deixando-a sozinha na sombra, debaixo dos degraus. Lara acompanhou-o com o olhar... furiosa... espantada.
— Como pôde? - ouviu-se murmurar a si mesma. — Como pôde?
Passado uns minutos, ajustou tropegamente as roupas e fez um esforço por se restabelecer, mas os seus dedos estavam estranhamente desajeitados. Só conseguia pensar no marido e nas coisas excitantes e mortificantes que lhe acabara de fazer.
Lara nunca soube totalmente como conseguiu sobreviver ao resto do serão. De alguma forma conseguiu ser sociável, manter um sorriso agradável e um ar tranquilo, que dissimulavam o caos que sentia no seu interior. Houve só um único momento em que receou que aquela aparência pudesse ruir, quando chegou a hora do baile começar. Conduzir a primeira dança era um dever que ela poderia até achar agradável, não fosse o medo de que todas as pessoas se apercebessem do que tinha acontecido entre eles.
— Eu não posso — sussurrou a Hunter quando este se aproximou dela e lhe ofereceu o braço. Para seu tormento, sentiu uma onda vermelha a estender-se pelo peito e pelo rosto. — Estão todos assistindo.
— Foi você que convidou a minha ex-amante — murmurou ele, com uma expressão indecifrável. — Agora, não os pode culpar por estarem curiosos com o estado da nossa relação.
— Os mexericos serão dez vezes piores se nos retirarmos muito cedo. Irão supor que nós estamos a discutir, ou...
— Ou a montarmos um no outro até ao esgotamento — Completou ele, esboçando um sorriso brincalhão.
— É necessário que seja tão grosseiro? — perguntou com firmeza.
Hunter respondeu tratando-a com uma cortesia exagerada, que era quase pior que a sua crueldade. Acenou aos músicos com a cabeça, instruindo-os para que começassem o baile, tocando uma enérgica quadrilha. Conduziu Lara ao centro do salão de baile e esperou que os outros convidados os seguissem.
Rapidamente afluiu uma multidão de pares e Lara viu-se logo imersa numa coreografia de quatro pares, onde cada um vai rodando entre si, com passos e pequenos saltos laterais. Sempre tinha gostado de dançar e já há muito tempo que não dirigia uma quadrilha, mas naquele momento, sentia muito pouca satisfação, o que era doloroso.
Parecia que estava entorpecida e terrivelmente exposta, incapaz de libertar da sua mente a recordação do que eles acabaram de fazer por debaixo das escadarias... Esteve quase a tropeçar quando pensou nas mãos suaves do seu marido sobre os seios, entre as suas coxas.
A meia-noite chegou e os minutos avançaram uns sobre os outros em rápida sucessão até à hora designada. Lara deu uma olhadela pelo abarrotado salão de baile, procurando o seu marido, mas não havia nenhum sinal dele. Talvez ele já estivesse lá em cima... à espera dela. Sentia-se tão desesperada como um criminoso que aguarda o momento da execução. Mas o encontro debaixo das escadarias ainda estava presente e aquele vergonhoso prazer ainda permanecia no seu corpo como um perfume inebriante.
Era quase uma hora... Hunter tinha escolhido bem a hora. Os convidados moviam-se como um enxame embriagado entretendo-se a si próprio; certamente que a sua ausência iria ser pouco notada. Discretamente, conseguiu desembaraçar-se de uma conversa e saiu do salão de baile.
Quando o relógio do corredor do piso superior ressoou uma badalada, Lara já tinha chegado ao quarto. Conseguiu despir-se sozinha, torcendo-se e repuxando a parte de trás do vestido e, finalmente, deixou-o cair no chão. Depois de atirar a roupa interior e as meias para o monte, Lara abriu o armário e encontrou o roupão preto. A peça deslizou sobre o seu corpo como um trêmulo sussurro leve como uma névoa.
Os dedos pareciam já não responder quando removeu as pérolas do cabelo e soltou a longa trança do carrapito que tinha na cabeça. Passou uma escova pelas madeixas onduladas até as alisar e, por fim, contemplou-se no espelho do toucador.
Tinha os olhos demasiadamente abertos e a pele estava muito pálida. Beliscou as bochechas para lhes dar um pouco de cor e respirou profundamente, tão profundamente que os seus pulmões doeram com a pressão.
Não seria tão terrível quanto era dantes, pensou. Acreditava que Hunter, apesar do seu aborrecimento, tentaria ser gentil e, em troca, ela seria tão permissiva quanto possível, na esperança de que ele terminasse tudo depressa. Então aquela tormenta passaria e, pela manhã, as coisas voltariam a ser como dantes. Com essa ideia em mente, abandonou o quarto e percorreu rapidamente o corredor até chegar aos aposentos de Hunter.
Tremendo de nervos, Lara entrou no quarto sem bater à porta. O candeeiro tinha sido regulado para difundir uma luz tênue, um suave resplendor que mal rodeava a enorme cama. Hunter estava sentado num dos cantos do colchão, ainda vestido com o seu traje de noite. Levantou a cabeça e um murmúrio saiu da sua garganta, quando a viu no roupão preto. Ele permaneceu imóvel à medida que ela se aproximava, contemplando-a e absorvendo todos os pormenores: o branco refulgir dos seus pés descalços, as curvas dos seus seios encerrados em renda preta, a cascata escura do seu cabelo.
— Lara — disse em voz baixa, enquanto tocava numa madeixa do seu cabelo, com os dedos inseguros. — Parece um anjo vestido de preto.
Ela abanou a cabeça.
— As minhas ações de hoje à noite demonstram que eu estou longe de ser um anjo.
Ele não rebateu aquele ponto.
Ao ver que a raiva que ele tinha há pouco tinha desaparecido, Lara iniciou um cuidadoso pedido de desculpas.
— Meu senhor, acerca de Lady Carlysle...
— Não vamos falar nela. Não significa nada.
— Sim, mas eu...
— Está tudo bem, Lara — Ele libertou-lhe os cabelos e acariciou levemente o pescoço. — Minha querida... Volte para o seu quarto.
Desconcertada ao ouvir aquelas palavras, Lara deixou-se ficar a olhar para ele, em silêncio.
— Não é que eu não a deseje - prosseguiu, enquanto se levantava e tirava o casaco. Colocou-o sobre os ombros de Lara e fechou-o à frente. — Na realidade, vê-la com esse roupão é mais do que eu posso suportar.
— Então... porquê? — perguntou, confusa.
— Porque esta noite, eu percebi que não posso fazer jogos e reclamar o seu corpo como recompensa, Eu julguei que podia, mas... - parou e teve um acesso de riso de gozo de si próprio. — Chame-lhe escrúpulo, algo que nunca soube que tinha.
— Eu quero cumprir o acordo...
— Eu não a quero assim, como se me devesse alguma coisa. Não me deve nada.
— Mas, eu devo.
— Maldito seja, se a única forma de a ter é mediante a coação. Por isso... volte para o seu quarto. E feche a porta.
Aquele momento foi uma revelação. O olhar de espanto de Lara pareceu incomodá-lo e ele virou-se e voltou para a cama, sentou-se num canto e fez um gesto abruto a Lara, para que partisse.
Lara não se moveu. Um novo sentimento de confiança começou a crescer dentro de si, quando compreendeu que Hunter nunca mais a voltaria a forçar, independentemente das circunstâncias, independentemente do desejo que nutria por ela. Ela sempre se sentiu um pouco amedrontada pela sua natureza dominante e insensível, mas de alguma forma, ele parecia ter mudado as regras entre ambos, e agora...
Teve a sensação de estar à beira de um precipício, suspensa naquele instante de êxtase antes de se atirar no abismo.
Seria fácil aceitar aquela hipótese de fuga que ele lhe oferecia. Contemplou o rosto inexpressivo do seu marido. Como já anteriormente ele lhe tinha assinalado, Lara sobreviveu a outras noites com ele. Esta não seria, certamente, pior que as outras. E, talvez, pudesse ser muito melhor. Hesitante, tirou o casaco dos ombros e foi até ao seu marido.
— Eu quero ficar com você — disse, com simplicidade.
Ao ver que ele não fazia nenhum esforço para lhe tocar, subiu para a cama, para junto dele.
O olhar dele que era sombrio e cheio de interrogações, fixou-se no rosto dela.
— Não tem de fazê-lo.
— Mas eu quero - nervosa, mas determinada, acariciou o rosto, os ombros, encorajando-o a que a tomasse nos seus braços. Hunter permaneceu imóvel, perplexo, contemplando-a como se ela fosse uma aparição num sonho.
Lara enfiou os dedos naquele espaço tão morno, entre a camisa e o colete de seda creme. Roçou as suas mãos pelo largo peito de costelas e músculos. A quietude dele encorajou-a e ela foi até aos botões de madrepérola esculpidos, soltando-os um a um até o colete ficar aberto. Tirou o nó da gravata e percebeu como aquele linho engomado era difícil de soltar. Embora ela sentisse que ele a olhava fixamente, Lara concentrou-se na sua tarefa até conseguir finalmente desprender a tira de tecido branco.
As casas dos botões estavam abertas, deixando a descoberto a sua pele úmida e marcada por a gravata estar tão apertada. Lara pôs de lado a gravata engomada e deslizou os dedos até à nuca, esfregando-a suavemente.
— Por que usarão os homens gravatas, tão altas e rígidas?
Ao sentir aquela carícia, Hunter fechou ligeiramente os olhos.
— Foi Brummell quem começou com esse hábito — murmurou ele. — Para que pudesse esconder as glândulas dilatadas do seu pescoço.
— Mas Hunter tem um pescoço muito bonito — disse Lara, deslizando um dedo pelo seu pescoço moreno. — É uma pena escondê-lo.
Aquele movimento fez Hunter inspirar profundamente e, imediatamente, agarrou-lhe os pulsos com uma rapidez surpreendente.
— Lara — Advertiu, vacilante, — não comece algo que não possa terminar.
Com os pulsos ainda presos, Lara debruçou-se sobre ele. Pousou os lábios sobre os de Hunter em toques leves e repetidos, tentando-o, oferecendo-se, até que ele a surpreendeu com um beijo sensual e farto. Ela respondeu àquela pressão e aceitou de bom grado o toque da língua dele, explorando a sua boca com crescente curiosidade.
Hunter libertou-lhe os braços e deitou-a na cama, beijando-lhe os lábios, a face e o pescoço. Lara abraçou-o pelo pescoço, contemplando a silhueta da cabeça e dos ombros que se inclinavam sobre ela.
— Não deixe de me beijar - pediu, ávida daquele sabor.
Hunter apoiou a nuca dela com as mãos; a boca dele a cobrir a dela num beijo profundo, irresistível, que acelerava o bater do seu coração e a obrigava a puxar os joelhos para cima, como se desejasse enroscar-se em torno dele.
Não se recordava com precisão de quando fora a última vez que ele fez amor com ela, apenas sabia que tinha sido um ato sumário, realizado sem uma única palavra ou carícia. Como era diferente a forma como ele a tocava agora! Sentiu as pontas dos dedos a mexerem-se sobre ela como se fossem as asas de uma borboleta. Levantou a bainha do roupão até os joelhos e, então, agachou-se sobre as pernas dela e beijou-as... Os arcos dos seus pés, o tenro espaço interior de um dos tornozelos. Lara deixou-o levantar a sua perna mais para cima, mais para o lado, e arqueou o corpo quando sentiu que ele lhe mordiscava a concavidade sensível por detrás do joelho dela.
— Gosta disto? — perguntou ele.
— Eu... não... Não sei.
Ele apertou a cara contra a parte interior da sua coxa, até que ela sentiu o picar da barba dele através da seda fina do roupão.
— Diga-me do que gosta - pediu ele, numa voz entrecortada. — E do que não gosta. Diga-me qualquer coisa que queira.
— Quando eu vim ter com você, esta noite — respondeu ela - pensei que queria que terminasse rapidamente com isto.
Ele começou a rir de repente, com as mãos a agarrar as pernas de Lara.
— Eu quero que isto dure o máximo de tempo possível. Esperei tanto por esta noite... Só Deus sabe quando poderei ter outra noite assim - o calor da sua boca trespassou o roupão quando lhe beijou a coxa.
Lara pôs-se tensa e pressionou as pernas contra ele, os joelhos batiam contra a sólida muralha do peito de Hunter, à medida que ele ia subindo suavemente. O roupão era um traiçoeiro véu noturno entre os dois. Ele distribuiu beijos na sua perna, enquanto as mãos lhe acariciavam as ancas e deslizavam para as nádegas.
A boca de Hunter foi até à borda do lugar privado e proibido e Lara reagiu sem pensar, tentando afastar a cabeça dele. Irredutível, ele pegou-lhe numa mão, beijou-lhe os dedos e voltou a baixar a cabeça sobre o seu corpo encolhido. Lara sentia a língua dele através da seda, uma carícia úmida e voluptuosa entre as suas coxas, exatamente onde a pele sensível não estava protegida. Gemeu com aquela íntima sensação e então, o seu marido acomodou-se melhor sobre ela, obrigando-a a abrir ainda mais as pernas. Voltou a lambê-la, umedecendo aquele tecido fino com a língua sinuosa e provocante, dando-lhe um prazer paralisante por todo o corpo. Ela soltou um suspiro, não sabendo se aquilo poderia ser um protesto ou um estímulo e Hunter levantou a cabeça.
— Vamos tentar fazer isto sem o roupão? — perguntou, com voz rouca.
— Não!
Hunter riu-se com a sua rápida reação e ergueu-se até ficarem os dois cara a cara.
— Tire-o — Ele persuadiu-a, puxando o roupão que deslizou pelo seu ombro muito branco.
— Primeiro, apague a luz.
— Eu quero vê-la — disse. Beijou-lhe a pele delicada que havia posto a descoberto e acariciou a prega macia das axilas de Lara. — E quero que me veja a mim.
Lara observou-o com cautela. Seria mais fácil no escuro, assim conseguiria separar a sua personalidade habitual daquela que participava nestes jogos que eram demasiado íntimos para serem realizados à luz do dia. Ela não se sentia capaz de ver o que estava a acontecer entre eles.
— Não — disse ela, queixosa, mas ele conseguiu perceber uma certa insegurança na sua voz.
— Meu amor — sussurrou contra o ombro de Lara. — Experimente só desta vez.
Ela ficou quieta e sem protestar enquanto Hunter lhe tirava o roupão soltando a outra fita dos ombros e o desceu pelas pernas abaixo, deixando-a exposta e vulnerável sob a luz suave do candeeiro. Ele puxou-a até si e a pele desnuda dela ficou apertada por aquele corpo totalmente vestido do seu marido.
— Ajude-me - pediu-lhe ele.
Obediente, Lara desapertou-lhe os botões da camisa, cujo linho estava amarrotado e quente com o calor da sua pele. Embora ele aguardasse pacientemente, tinha os músculos tensos e trêmulos pela ansiedade, e a sua respiração estava cada vez mais acelerada, esforçando-se por catar o tão necessário oxigênio. Enquanto Lara se esforçava por abrir os botões de punho franceses, ele cerrou as mãos.
— Eu desejo-a. Mais que qualquer coisa na minha vida.
Antes que ela pudesse acabar de tirar os botões de punho, ele empurrou-a para baixo e agachou-se sobre ela, com a camisa aberta a cair para cada lado do corpo nu de Lara. Hunter acariciou-a com o olhar, absorvendo sofregamente cada pormenor do seu corpo. Beijou-a, com o peito musculado sobre ela, todo o seu peso apoiado nos cotovelos e coxas. Eram tantas as coisas de que Lara não se conseguia recordar dele, que nunca tinha ousado investigar. Vacilante, tocou naquele tronco nu, tão duro e suave por debaixo das suas mãos, nos círculos castanhos dos seus mamilos, na grande tensão da sua cintura. Em outros tempos, o seu corpo era robusto e cheio, tão diferente desta elástica e esguia animalidade.
Hunter deixou-se deslizar sobre o seu peito e brincou com os seus seios, tomando-os entre as mãos, rodeando os bicos com dedos. A sua boca abriu-se sobre um dos rechonchudos montículos e apanhou o mamilo, apertando-o entre os dentes.
Lara soltou um gemido, fascinada com a visão da cabeça de Hunter sobre o seu peito, enquanto ele se esfregava e chupava, primeiro um seio, depois o outro... Sentia-se estranha, febril... Algo se libertava dentro de si, todas as suas defesas desfaleciam. A mão dele moveu-se sobre o ventre e Lara abriu as pernas para o convidar a que a tocasse, que a penetrasse, tudo o que ele lhe quisesse fazer.
Ao perceber o seu súbito abandono, Hunter percorreu com a sua boca todos os lados, provando e beijando-lhe a cintura, o ventre, as coxas... e também os macios caracóis entre elas, inspirando a sua íntima fragrância. Utilizou os dedos para abrir os caracóis e separou a carne com muita suavidade para encontrar o ponto que procurava e, então, pressionou a língua sobre ele. Lara arqueou-se, reagindo àquela onda de prazer, tão aguda e aterradora, enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas quentes e salgadas. Ele lambeu-a em pequenos círculos de fogo que a faziam ofegar e estremecer; ela sentiu que a sua língua ia cada vez mais fundo, invadindo-a com primorosa suavidade. Ele usou o peso do seu peito para manter as pernas dela abertas e a sua língua estimulava aquela sensação, tornando-a numa intensidade selvagem.
Lara lutou por se levantar, apoiando-se no cotovelo. E com a mão livre, acariciou a cabeça e enredou os dedos na sua espessa cabeleira.
O coração dela latejava contra o peito, a sua visão turvou-se e todas as suas sensações se concentraram naquele ponto coberto pela boca de Hunter. Ele venerou-a, consumiu-a e provocou-a, até que aquele tortuoso prazer se tornou excessivo e Lara contraiu-se em espasmos intermináveis, gemendo com a força da sua libertação.
Quando a última contração se desvaneceu, Hunter ergueu-se para olhar diretamente para os olhos úmidos e confusos de Lara. Com uma expressão séria, secou as lágrimas do rosto com os dedos. Ela tocou na boca dele com os dedos a tremer e sentiu aqueles lábios úmidos pelo licor do seu próprio corpo. Hunter colocou o joelho entre as coxas dela, e Lara separou as pernas imediatamente, entregando-se a ele com tudo o que restava de si. Quando ele abriu desajeitadamente as suas calças, Lara sentiu uma pressão brutal e pesada contra a fenda macia do seu corpo. Ela preparou-se para o que aí vinha, sabendo que a dor viria agora. Ele penetrou lentamente, empurrando tão gradualmente contra a carne flexível que não sentiu nenhum desconforto, apenas a sensação de ser esticada e deliciosamente preenchida. O seu corpo aceitou aquela enorme intrusão e, a cada investida, a penetração fez-se mais profunda até que, finalmente, Lara, surpreendida, soltou um gemido de prazer.
Agora, completamente unido a ela, Hunter deteve-se e enterrou o rosto na perfumada curva do ombro de Lara. Ela sentiu como aquele grande corpo se sacudia e como lutava por conter uma enorme paixão reprimida.
— Está tudo bem — murmurou ela, acariciando as costas. Levantou as ancas, para o estimular e ele ofegou com aquele pequeno movimento.
— Não, Lara — Gemeu, como uma voz densa. — Não, espere... Oh, meu Deus, eu não com você...
Ela continuou a empurrar mais para cima, conseguindo trazê-lo ainda mais para dentro do seu corpo, e aquela sedosa ondulação foi o arrebatar de todas as sensações. Soltou um rugido e chegou ao clímax, sem sequer investir uma última vez, com o corpo a vibrar de prazer.
Depois de um longo e avassalador minuto, ele rolou para o lado e deitou-se de costas, levando-a com você. Ainda ofegante, beijou-a com ferocidade, com a boca a saber a sal e a uma essência provocante, nada desagradável.
Lara foi a primeira a falar, com o rosto apertado contra o seu peito macio.
— E agora, posso apagar a luz?
A gargalhada de Hunter ressoou na sua face. Ele fez-lhe a vontade e saiu da cama por um instante, para se libertar das suas roupas e para desligar a luz do candeeiro. Quando toda a réstia de luz se extinguiu, voltou para junto dela na escuridão.
Lara despertou de um sonho sobre Psique, a donzela que foi sacrificada a uma serpente alada e que foi resgatada por Eros... o marido desconhecido que a visitava todas as noites e que fazia amor com ela sem se deixar ver. Ao pôr-se de costas e espreguiçar-se, Lara assustou-se ao sentir o corpo de um homem ao seu lado. Imediatamente, puxou o lençol que estava pela cintura. Uma grande mão cobriu a sua.
— Não se cubra — murmurou Hunter. — Gosto de ver a luz do luar sobre a sua pele.
Ele estava acordado a contemplá-la. Lara baixou os olhos até ao seu corpo, iluminado pela luz azul e prateada que entrava pela janela entreaberta, e continuou a puxar o lençol.
Hunter retirou o tecido das mãos dela e destapou-a por completo. Tocou-lhe nos bicos dos seios, nas curvas prateadas que conduziam até ao buraco negro que havia mais em baixo. Ela voltou-se para ele, procurando a sua boca, e ele deu-lhe um beijo tão agradável e sedutor, que ela sentiu a sua pulsação acelerar uma vez mais. As mãos dele deslizaram até às suas nádegas tomando aquelas formas redondas nas suas mãos, agarrando-a e puxando-a mais para ele.
A dura extensão da ereção dele apertou-se contra o seu ventre, mas aquilo não era mais uma arma a ser temida, simplesmente um instrumento de prazer. Lara, tímida e cautelosamente, estendeu a mão para lhe tocar e rodeou-o com os seus dedos, deslizando-os ao longo da ardente e sedosa pele. O seu toque o fez estremecer, o seu corpo respondia avidamente àquela carícia. Lara teve a sensação de que havia muitas coisas que ele gostaria de lhe mostrar, de lhe ensinar, mas por agora, ele ia deixá-la explorá-lo como ela preferisse. Ela baixou a mão até ao sexo de Hunter e explorou aquele peso suspenso, deslizando os seus dedos novamente para cima, até alcançar a larga e suave ponta. Ele gemeu e baixou a boca até ao pescoço dela, beijando-o, dizendo entre murmúrios guturais o quanto a desejava.
Levantou-se e separou os joelhos dela, acomodou-se na cavidade das coxas de Lara e possuiu-a, penetrando-a com um único e profundo movimento. Lara soltou um gemido e retorceu-se para se ajustar a ele. Houve só um instante de desconforto antes de o seu corpo o aceitar num úmido acolhimento. Hunter começou com um ritmo regular, avançando direto e seguro dentro dela, inclinando-se para pressionar o sexo dela, em cada investida. Ela arqueou-se até ele, embalando-o com as suas próprias ancas e ferrando-se com as mãos aos tensos músculos das costas dele. Era duro, delicioso, e montava-a exatamente como ela queria, cobrindo-a com o seu peso masculino, mergulhando ainda mais fundo, mais fundo... Aquele prazer era esmagador.
No auge daquilo, Lara gritou e o seu corpo encheu-se com um ímpeto líquido de deleite e um estremecimento de satisfação. Era igualmente bom compartilhar a satisfação de Hunter, tê-lo nos seus braços, e sentir como se sacudia com sensações que já não podia controlar.
Ele permaneceu por muito tempo dentro dela, com a boca a cobrir a sua, acariciando-a e saboreando-a. Pensativamente, Lara acariciou o cabelo espesso dele e encontrou um lugar atrás da orelha onde a pele era suave e aveludada como a de uma criança. Sentiu que ele se começava a mexer para se afastar dela e gemeu em protesto:
— Oh, não saia...
— Vou esmagá-la — sussurrou ele, rodando sobre as costas. Colocou a coxa dele entre a dela e brincou à toa com a mancha de pêlos úmida, alisando-os e despenteando-os ao mesmo tempo.
— Era isto o que fazia com Lady Carlysle? — perguntou ela, olhando para o seu rosto escondido nas sombras.
— Eu nunca fiz isto com ninguém.
Agradada pela resposta dele, Lara aconchegou-se mais e apoiou a cara no seu peito.
— Hunter? — murmurou.
— Mmm?
— O que lhe disse Lady Carlysle, esta noite?
O movimento dos dedos dele parou. Lara conseguiu sentir uma nova tensão a afluir no corpo de Hunter e, quando respondeu, a voz dele ficou presa, soando exasperada.
— Esther ficou desapontada quando eu deixei claro que não estava mais interessado em reatar a nossa relação. Na realidade, ficou tão decepcionada, que garantia que eu não poderia ser o verdadeiro Hawksworth.
— Oh — Lara manteve o rosto encostado ao peito dele. — Acha que ela pensa fazer algum tipo de acusação pública?
Os ombros dele encolheram-se ligeiramente.
— Duvido. A sociedade assumiria que semelhante acusação surgiria do seu orgulho ferido. E Esther não tem nenhum desejo em se fazer passar por tola.
— Claro que não — Lara piscou os olhos e as suas pestanas acariciaram o peito do marido. — Desculpe-me.
— Porquê?
— Pôr o fazer passar por tal tormento esta noite.
— Bem... - meteu os dedos na fenda entre as suas coxas com um movimento torcido suave que a fez estremecer. Continuou bem para dentro das suas profundidades, explorando com subtil e diabólica destreza. — Lara vai recompensar-me — murmurou. — Não vai?
— Sim... sim — E os lábios dela abriram-se contra o seu peito num suspiro de prazer.
— Mamãe. Mamãe.
Lara bocejou e abriu os olhos com dificuldade, à medida que os primeiros raios de sol da manhã a alcançaram. Alarmada, viu Johnny de pé junto à cama, com o seu pequeno rosto junto ao dela. Estava de pijama, descalço, com os pés sujos e com o cabelo negro despenteado.
Depois de se dar conta de que a criança a tinha encontrado na cama de Hunter, Lara olhou para trás e viu o marido, que começava a despertar. Manteve os lençóis puxados bem para cima e voltou-se para Johnny.
— Porque é que te levantaste tão cedo?
— As galinhas estão a chocar os ovos.
Ainda sonolenta, Lara recordou-se dos ninhos de ovos das galinhas que eles tinham estado a vigiar nos últimos dias.
— Como é que sabes, meu querido?
— Saí e fui vê-los - o seu olhar inocente passou dela para Hunter, que acabava de se sentar e esfregava o cabelo despenteado, com o lençol caído até à cintura.
— Bom dia — disse Hunter com toda a tranquilidade, como se a situação fosse o mais normal possível.
— Bom dia — respondeu Johnny alegremente e voltou a sua atenção novamente para Lara. — Mamãe, porque é que não está na sua cama?
Estremecendo com aquela pergunta, Lara decidiu que a explicação mais simples seria a melhor.
— Porque ontem à noite, Lorde Hawksworth convidou-me para dormir aqui.
— E onde está a sua camisa de noite? — perguntou logo em seguida.
Lara corou e evitou a todo o custo olhar para Hunter.
— Eu tinha tanto sono ontem à noite, que me devo ter esquecido de a pôr.
— Que tonta, mamãe! — disse ele, rindo-se daquele descuido.
Lara devolveu-lhe o sorriso.
— Agora, vai buscar o teu roupão e os teus chinelos.
Quando a criança saiu da sua vista, Hunter aproximou-se de Lara, mas ela afastou-se e saiu da cama. Encontrou a camisa dele no chão, recolheu-a e usou-a temporariamente para cobrir a sua nudez. Manteve-a apertada à frente enquanto contemplava o enorme corpo do seu marido que se espreguiçava na cama. Os olhares deles encontraram-se e trocaram um sorriso indeciso.
— Como está? — perguntou Hunter suavemente.
Por um instante, Lara não respondeu, tentando dar um nome ao sentimento que a consumia dos pés à cabeça. Era uma alegria estranha e morna, mais completa e autêntica do que qualquer coisa que já tinha sentido antes. Ela não queria deixá-lo, nem por um minuto sequer, queria passar todo o dia com ele, e o dia de amanhã, e todos os dias posteriores até que tivesse aprendido tudo sobre ele.
— Estou feliz — disse Lara. — Estou tão feliz, que tenho medo.
Os olhos dele estavam escuros e ternos como mel.
— Medo de quê, meu amor?
— Eu quero tanto que isto dure...
Com um gesto, Hunter pediu-lhe que se aproximasse, mas ela só se aproximou o suficiente para lhe dar um beijo fugaz e recuou logo, pondo-se fora do seu alcance.
— Aonde vai? — perguntou ele.
Lara parou junto à entrada e sorriu.
— Vou vestir-me e ver as galinhas, naturalmente.
Capítulo 15
Alguma coisa teria de ser feita pelas crianças que viviam na prisão enquanto o orfanato estava sendo ampliado. Deixá-las nas condições em que se encontravam, estava totalmente fora de questão. Lara não conseguia suportar a ideia de que qualquer uma delas pudesse ainda passar mais uma noite naqueles lugares repugnantes e perigosos em que tinham sido condenadas a viver. A única solução era convencer os habitantes de Market Hill a acolhê-las nas suas casas até que o orfanato estivesse pronto para recebê-las. Mas, infelizmente, aquela ideia foi recebida com uma relutância generalizada, o que a deixou surpreendida.
— Como podem ter corações de gelo? - queixou-se a Hunter, depois de ter estado toda a manhã em visitas, e onde, educadamente, lhe tinham sido recusados os seus pedidos de ajuda para as crianças. Enquanto vagueava pela biblioteca, tirou o chapéu, atirou-o para uma cadeira e abanou o rosto acalorado. — As únicas pessoas a quem pedi alojamento para uma ou duas crianças são famílias que têm meios suficientes para recebê-las... e seria só por alguns meses! Porque é que ninguém levanta um dedo sequer para ajudar? Eu tinha tanta certeza de que poderia contar com a senhora Hartcup, ou até com os Wyndham...
— Considerações práticas — respondeu Hunter com realismo, empurrando a cadeira da secretária. Puxou Lara até ao colo e começou a desatar-lhe o colarinho que lhe envolvia o pescoço. — Pondo de lado todos os impulsos caridosos, meu amor, terá de reconhecer que não lhes está a pedir que acolham crianças normais. Os bons cidadãos de Market Hill consideram os órfãos das prisões como criminosos em treino, e quem os poderia culpar?
Lara pôs-se rígida sobre o colo dele e dirigiu-lhe um olhar de descontentamento.
— Como pode dizer isso quando Johnny tem demonstrado ser um anjo?
— Ele é um bom rapaz - reconheceu, sorrindo com humor enquanto olhava de relance para a janela. Só naquela altura, Lara ouviu um barulho de algo que rebentava e estalava, e percebeu que Johnny estava lá fora a desfrutar do seu passatempo favorito, atirar pedras a umas minúsculas bolsas de pólvora ou a disparar com a sua pistola de brincar. — Mas o Johnny é uma exceção. Muitas dessas crianças necessitarão de atenção e cuidados especiais. E em alguns casos, acredito que não se poderá dar mais confiança do que se daria se eles fossem animais selvagens postos à solta na cidade. Você não pode esperar que os Hartcup, os Wyndham, ou quaisquer outros, assumam semelhante responsabilidade.
— Mas claro que posso - teimou, encarando-o com uma expressão carrancuda. — Hunter, o que é que poderemos fazer?
— Esperar que as obras da nova ala do orfanato terminem e as novas professoras sejam contratadas.
— Eu não posso esperar. Quero ver aquelas crianças fora da prisão, imediatamente. Vou trazê-las todas para aqui e cuidar delas pessoalmente, se preciso for.
— E o Johnny? — perguntou Hunter calmamente. — Como lhe irá explicar isso quando todo o seu tempo for dedicado à atenção de uma dúzia de outras crianças e não reste nenhum minuto para ele?
— Vou dizer-lhe... Simplesmente, direi... — Lara parou com um gemido de frustração. — Ele não irá compreender — Admitiu.
Diante daquela evidente aflição, Hunter abanou a cabeça e prosseguiu.
— Meu amor — murmurou. — Eu aconselharia a que endurecesse um pouco o seu coração... Mas, por alguma razão, acredito que não consiga.
— Não posso deixar essas crianças na prisão, durante meses — disse, consternada.
— De acordo, que diabo. Eu vou ver o que se poderá fazer, mas duvido ter mais sorte do que você.
— Vai ter — Encorajou-o Lara, de repente esperançosa. — Você tem um talento especial para conseguir que as pessoas façam o que quer.
Hunter sorriu de repente.
— Também tenho outros talentos que me proponho mostrar-lhe, esta noite.
— Talvez — disse ela provocando-o, saindo do seu colo.
Hunter tornou-se um aliado inesperado, fez visitas, pressionou, negociou e influenciou com todo o seu valioso charme, até encontrar locais onde as doze crianças pudessem ficar temporariamente. Depois de ter sido o objeto da persuasão de Hunter, embora para um fim bem diferente, Lara sabia perfeitamente que seria difícil que os seus conterrâneos se recusassem a apoiá-lo.
Nunca mais voltaria a vê-lo da mesma forma depois daquela noite que passaram juntos. A primeira vez, em toda a sua vida, em que sentira prazer e plenitude nos braços de um homem. E, ainda mais surpreendente do que a satisfação física, era a súbita compreensão de que podia confiar nele.
Hunter é um bom homem, pensou com algum assombro. O seu marido, bom, não só para ela, mas para os outros que o rodeavam... Não sabia o que poderia ter provocado aquela transformação, mas estava-lhe profundamente agradecida. Embora ele não aprovasse a sua intromissão filantrópica na vida das outras pessoas, parecia entender e até aceitava colaborar, sempre que lhe parecesse que a causa era razoável.
Hunter sempre tinha estado ocupado, mas agora as suas atividades eram, de longe, bem diferentes das dos primeiros anos de casamento. Em outros tempos, ele era figura assídua em todos os eventos de caça ou de desporto, isto para não mencionar a sua evidente fixação em clubes de jogo. Lara suspeitava de que os seus antigos companheiros tinham ficado, certamente, decepcionados ao descobrirem que Hunter tinha regressado da Índia com um novo sentido de responsabilidade para com aqueles que dependiam dele.
Desenvolveu os interesses dos Crossland na marinha mercante, no comércio e nas empresas de manufatura, e adquiriu uma cervejaria que dava um lucro regular todos os meses. Interessou-se também pelo funcionamento da sua própria propriedade, prestou atenção às colheitas e ao cultivo das terras e empreendeu melhorias há já muito tempo pedidas pelos seus arrendatários.
Quando Hunter era mais novo, acostumou-se a privilégios e estava totalmente convencido da sua invulnerabilidade. E assim, achava que o mundo existia para seu próprio prazer. A única vez em que lhe foi negada alguma coisa, foi quando se viu confrontado com a infertilidade de Lara, e lidou muito mal com essa situação. Atualmente, parecia consideravelmente mais maduro e mais sábio, não tomando nada como garantido e assumindo todas as responsabilidades que antes se esforçava por evitar.
Mas aquele Hunter também não era um santo... Havia nele um toque de malandro, que Lara apreciava. Era sedutor, malicioso, provocante, encorajando-a a colocar a sua moralidade de lado e a brincar com ele, como ela nunca acreditou ser capaz. Uma noite, visitou-a no seu quarto com a declarada intenção de desfrutar do espelho do teto antes que Possibilidade Smith e os seus assistentes o retirassem. Ignorando os protestos mortificados de Lara, fez amor com ela, contemplando os seus próprios reflexos no teto e riu-se às gargalhadas quando Lara se escondeu nos lençóis, logo a seguir. Levou-a uma noite a um evento musical solene e sussurrou-lhe ao ouvido passagens escandalosas de textos de amor indianos... e acompanhou-a num piquenique privado, seduzindo-a a céu aberto.
Ele era o marido que ela nunca tinha ousado sonhar: compassivo, excitante, e forte. Ela amava-o, era impossível sentir o contrário, embora algumas réstias de medo ainda a impedissem de admiti-lo. Ela diria a seu tempo, quando sentisse que era mais seguro fazê-lo. Uma parte do seu coração esperava que ele lhe desse provas, que lhe oferecesse um indício, ou uma chave que lhe permitisse entregar-se por completo.
Lara cobriu-se com um enorme avental e ficou de pé, junto à mesa da cozinha, a esmagar sementes de linhaça num pequeno almofariz de mármore. Com muito cuidado, raspou o pó gordurento que resultou desta operação e deitou o óleo de linhaça numa taça com cera de abelha, derretida. Era uma velha receita familiar para uma cataplasma indicada para aliviar a gota, uma doença que ultimamente atormentava um residente de Market Hill, Sir Ralph Woodfield. Embora Sir Ralph fosse um homem orgulhoso e detestasse ter de pedir favores, naquela manhã, porém, enviou um criado para lhe solicitar um pouco daquele remédio.
Desfrutando da fragrância refrescante da cera de abelha, Lara verteu outra meia xícara de sementes de linhaça no almofariz e começou a moê-las com movimentos energéticos e circulares. A cozinheira e duas criadas de cozinha estavam do outro lado da mesa a amassar grandes bocados de massa de pão e a moldá-la, logo em seguida, em forma de perfeitas carcaças oblongas. Estavam todas a ouvir, entretidas, o cantarolar alegre de uma das criadas, de uma canção de amor muito popular naquela altura, na aldeia. A menina amassava habilmente o pão, sempre ao ritmo da melodia.
Oh, o rapaz que me tomar deve ter bolsos de ouro, bem dourado,
Um cavalo, uma carruagem e um relógio de prata também
E é melhor que seja bonito e muito arrojado,
Com cabelo castanho e olhos muito azuis...
A canção prosseguia, exaltando as virtudes daquele rapaz imaginário, até que todas as mulheres na cozinha terminaram em gargalhadas.
— Como se existisse um homem assim, em Market Hill! — Exclamou a cozinheira.
No meio daquela diversão, Naomi entrou despercebida na cozinha, com as saias do vestido cheias de pó do caminho que fez desde a aldeia. Dirigiu-se imediatamente a Lara, enquanto retirava o chapéu de palha e mostrava uma expressão preocupada.
— Naomi — disse Lara, interrompendo o trabalho. — Hoje é o seu dia de folga, pensei que ia passá-lo na aldeia com os seus amigos.
— Tive de voltar imediatamente, minha senhora — murmurou Naomi, enquanto as outras continuavam a cantar e a tagarelar. — Não sei em que acreditar, ou se é verdade, mas... ouvi uma coisa na aldeia.
Lara pôs de lado o pilão do almofariz e encarou a criada com uma expressão curiosa.
— É Lady Lonsdale — Continuou Naomi. — Eu sou amiga da criada de quarto dela, a Betty, sabe? E começamos a conversar... — Claramente incomodada, Naomi respirou fundo e terminou num instante. — A Betty disse que é segredo, mas a Lady Lonsdale está doente.
Consciente de que as outras mulheres estavam a ouvir, Lara puxou a criada para um canto.
— Doente? — sussurrou rapidamente. — Mas isso não é possível... Porque não me disseram nada?
A Betty diz que a família não quer que ninguém saiba.
— Mas está doente como? — perguntou Lara, confusa. — Naomi, porventura a criada de Rachel disse-lhe... Lorde Lonsdale fez algum mal à minha irmã?
A criada baixou os olhos.
— Parece que foi uma queda das escadas, foi o que lhe disse Lady Lonsdale. A Betty não viu, mas ela acha que parece mais do que uma simples queda. Ela diz que Lady Lonsdale está mal e que nem sequer mandaram chamar o médico.
Lara ficou horrorizada, inquieta e, principalmente, furiosa... Ficou a tremer com aquela enxurrada de emoções que caía sobre ela. Lonsdale tinha voltado a bater em Rachel, tinha a certeza. E, como em ocasiões anteriores, depois arrependia-se e sentia-se demasiado envergonhado para chamar o médico, embora Rachel necessitasse de ser observada. Então, a mente de Lara começou a despertar com esquemas... Ela tinha de ir ter com Rachel, tinha de a levar para longe de Lonsdale, levá-la para um local seguro, ajudá-la a recuperar.
— Minha senhora — disse a menina, hesitante, — por favor não diga a ninguém como é que descobriu. Eu não quero que a Betty seja despedida por causa disto.
— É claro que eu não vou fazê-lo — respondeu Lara, de certo modo espantada com a sua própria tranquilidade, tendo em conta o caos que fervia no seu interior. — Obrigada, Naomi. Fez muito bem em contar-me isso.
— Sim, minha senhora. — Parecendo aliviada, Naomi pegou no chapéu de palha e saiu da cozinha.
Sem olhar para a cozinheira nem para as ajudantes de cozinha, que já começavam a murmurar, Lara saiu, atordoada, e vagueou até ir ao salão dos cavalheiros. As paredes estavam cobertas com uma variedade de peças de caça que Hunter e o seu pai tinham caçado. Misteriosos olhos de vidro, brilhavam nas sombrias cabeças dos animais.
Aquela aura de triunfalismo masculino vitoriano, fomentado por muitas gerações de Hawksworth, parecia preencher o salão. Passando a ação, Lara foi até aos armários junto à longa fila de caixas de armas e abriu-as discretamente. Encontrou bolsas com balas, instrumentos de limpeza de armas, sacos com pólvora e caixas de mogno com pistolas acomodadas em almofadas de veludo. Pistolas com coronhas em madrepérola, madeira e prata... esculpidas, gravadas e adornadas com tanto esplendor como se tratasse de objetos religiosos. Lara nunca tinha disparado uma pistola, mas já tinha visto Hunter e outros homens seus conhecidos fazê-lo. A sua carga e o seu manejo pareciam-lhe ser operações bastante simples. Alimentada por uma raiva que aumentava a cada minuto que passava, não reparou que alguém tinha entrado na sala, até Hunter falar. Tinha acabado de regressar de uma inspeção a uma nova sebe que tinha sido, recentemente, posta à volta da propriedade, e estava ainda vestido com o fato de montar.
— Vai para um duelo? — perguntou ele com ligeireza e avançou para lhe tirar a pistola das mãos tremulas. — Se for matar alguém, gostaria de ser informado com antecedência.
Lara resistiu-lhe e apertou a pistola contra o ventre.
— Vou — respondeu, à medida que uma fúria angustiada irrompia ao olhar para o rosto tenso do seu marido. Lágrimas romperam dos seus olhos. — Sim... Vou matar o seu amigo Lonsdale. Ele voltou a violentar Rachel, novamente... Não sei em que condições se encontra, mas pretendo levá-la para longe daquele lugar. Já deveria tê-lo feito há muito tempo! Só espero que Lonsdale esteja lá quando eu chegar, para eu poder meter-lhe uma bala no coração...
— Silêncio. — A grande mão de Hunter fechou-se em redor da pistola, tirou-a das suas mãos e pousou-a na mesa de apoio, com cuidado. Voltou para junto de Lara e o seu olhar atento cobriu aquele rosto choroso. De alguma forma, a sólida realidade da sua presença conseguiu aliviar o pânico de Lara. Então, abraçou-a e apertou-a contra o peito, falando-lhe em voz baixa, tranquilizando-a. A soluçar, Lara meteu a mão dentro do colete de Hunter e apoiou-a sobre o peito, sentindo as batidas regulares do seu coração. A sensação da sua respiração morna a afundar-se até ao seu couro cabeludo, a fez estremecer. Era algo tão íntimo, estar a chorar nos seus braços... era até mais pessoal que fazer amor. Ela detestou sentir-se tão indefesa, mas Hunter nunca se tinha parecido tanto com um verdadeiro marido, como nesse momento. Cada vez mais tranquila, inalou o seu cheiro já familiar e deixou escapar um suspiro trêmulo. Hunter pegou num lenço e passou-o no rosto dela, secando-o.
— Muito bem — disse ele com muita suavidade, enxugando o nariz. — Diga-me o que aconteceu.
Lara negou com a cabeça, sabendo que ele não seria grande ajuda, pelo menos no que dissesse respeito a Lonsdale. Eles eram amigos há muito tempo. Para homens como Hunter e Lonsdale, a amizade era mais sagrada do que o casamento. Uma mulher, como dizia Hunter há uns tempos atrás, era uma necessidade inevitável, e todas as outras mulheres serviam para recreação. Os amigos de um homem, pelo contrário, eram cuidadosamente escolhidos e cultivados durante toda a vida.
— Mencionou Lonsdale — Espicaçando-a, ao ver que ela permanecia calada. — O que aconteceu?
Lara esforçou-se para se libertar do seu abraço.
— Eu não quero falar disso — respondeu. — Tenho a certeza de que defenderá Lonsdale, como sempre o fez. Neste tipo de assuntos, os homens sempre se encobriram uns aos outros.
— Conte-me, Lara.
— Naomi ouviu hoje um rumor na aldeia de que Rachel estava doente. Algo sobre ela ter ficado ferida depois de ter caído das escadas. Sabendo o que sei sobre a minha irmã e o seu marido, estou convencida de que aconteceu alguma coisa, muito mais horrível.
— É simplesmente um mexerico, então. Até que se confirme com provas claras...
— Como pode duvidar? — Gritou Lara. — Lonsdale utiliza qualquer desculpa para descarregar o seu mau feitio na minha irmã. Todos sabem disso, mas ninguém se atreve a interferir. E a própria Rachel está mais disposta a morrer do que a admiti-lo. Ela nunca o vai deixar, nem sequer dizer uma só palavra contra ele.
— Ela é uma mulher adulta, Lara. Deixe-a tomar as suas próprias decisões em relação a este assunto.
Lara encarou-o, furiosa.
— Rachel não está em condições de tomar nenhuma decisão no que diz respeito a Lonsdale. Ela continua a acreditar, como todas as pessoas, que uma esposa é propriedade do seu marido. Um homem pode dar pontapés ao seu cão, pode chicotear o seu cavalo e pode espancar a sua mulher. Está no seu direito - os olhos de Lara encheram-se novamente de lágrimas, que lhe corriam pelo rosto. — Eu não sei se ele a feriu gravemente, desta vez, mas acredito que algo de terrível se esteja a passar. Não lhe estou a pedir nada, uma vez que conheço muito bem a sua amizade para com Lonsdale. Tudo o que eu peço é que não interfira quando eu fizer o que tenho de fazer.
— Não, enquanto você andar a vasculhar o armário onde eu guardo as armas - segurou-lhe o braço antes que ela conseguisse alcançar outra caixa de mogno. — Lara olhe para mim. Irei à propriedade de Lonsdale e irei averiguar se existe algum motivo de preocupação. Isso a deixará mais satisfeita?
— Não — respondeu ela, obstinada. — Eu também quero ir. E não importa qual seja o estado de saúde de Rachel, quero trazê-la para aqui.
— O que você está dizendo, não faz sentido — disse num duro tom de voz. — Não pode interferir no casamento de um homem e tirar da sua própria casa a sua mulher, à força.
— Não me importo com a lei. Só me importa a segurança da minha irmã.
— E o que sugere que façamos para a manter aqui, quando ela quiser regressar a casa? Vai fechá-la num quarto? Prendê-la, com correntes, à mobília?
— Sim! — Exclamou Lara, consciente de que o que dizia era ilógico. — Sim, farei qualquer coisa para a manter longe daquele monstro.
— Pois, mas não vai lá — disse Hunter, severamente. — Se, realmente, Rachel estiver doente, você só irá afligi-la e tornar as coisas ainda piores.
Lara libertou-se dele e dirigiu-se até outro armário. Apoiou as mãos sobre o cristal frio da porta e manchou a imaculada superfície.
— Você não tem nenhum irmão ou irmã — disse ela, engolindo as lágrimas que continuavam a avolumar-se na garganta. — Se tivesse, iria entender o que eu sinto por Rachel. Desde o seu nascimento, sempre desejei cuidar dela — Esfregou os olhos ardentes. — Lembro-me de uma situação, quando éramos pequenas, em que Rachel queria trepar a uma grande árvore que existia no nosso jardim. Embora o papai nos tivesse proibido de o fazer, ajudei a Rachel, que subiu comigo. Estávamos sentadas num dos ramos, a balançar as pernas, quando, de repente, ela perdeu o equilíbrio e caiu. Fraturou o braço e a clavícula, ao bater no chão. Fui demasiado lenta para a conseguir ajudar. A única coisa que fiz foi ficar a vê-la cair, com o estômago a revolver-se, como se fosse eu própria que estivesse a cair. Teria dado qualquer coisa para que tivesse sido eu a cair e não ela. E é assim que eu me sinto agora, sabendo que algo de terrível lhe aconteceu e que a única coisa que posso fazer é olhar...
O queixo de Lara tremeu com violência e ela apertou o maxilar para não começar a chorar de novo.
Passou-se bastante tempo. A sala ficou num silêncio tão profundo que Lara poderia até pensar que Hunter se tinha ido embora, não fosse o seu reflexo no cristal, marcado com as dedadas feitas por ela, há pouco.
— Eu sei que não pode fazer nada — disse Lara, duramente. — Não pretende que o seu melhor amigo se transforme num inimigo, e é o que acontecerá se ousar interferir.
Hunter soltou uma maldição que deixou Lara arrepiada.
— Fique aqui, que diabo — Exclamou, grosseiramente. — Eu trarei Rachel.
Lara deu a volta e encarou-o com um olhar admirado.
— Trará?
— Prometo — respondeu com voz seca.
Lara ficou visivelmente aliviada.
— Oh, Hunter...
Ele sacudiu a cabeça, franzindo a sobrancelha.
— Não me agradeça por uma coisa que eu não tenho nenhum desejo de fazer.
— Então, porquê...
— Porque é óbvio que, se eu não o fizer, você não me vai dar um minuto de descanso. — Olhou-a, como se a desejasse estrangular. — Ao contrário de você, eu não sinto nenhuma necessidade imperiosa de salvar o mundo... Só gostaria de conseguir encontrar alguma paz para mim próprio. Depois deste pequeno episódio, agradeceria que me concedesse alguns dias sem ter de me preocupar com os órfãos, com os idosos ou com outras desgraçadas criaturas. Quero uma ou duas noites de privacidade. Se isso não for pedir muito.
O olhar observador de Lara cruzou-se com o de Hunter, irritado. Então Lara percebeu que ele não queria aparentar ser um cavaleiro andante, e estava a tentar convencê-la de que os seus motivos eram mais egoístas do que propriamente benevolentes.
Mas não estava a funcionar. Nada poderia disfarçar o fato de que, uma vez mais, Hunter estava fazendo o que era correto. Lara estava maravilhada ao ver o quanto ele tinha mudado.
— Devo confessar uma coisa — disse.
— O quê? — perguntou, friamente.
— Uma vez, há já alguns anos... Eu, na verdade, invejei Rachel porquê... - o seu olhar desviou-se do rosto colérico do seu marido e fixou- se no tapete. — Quando Rachel casou com Lonsdale, ela acreditava estar apaixonada por ele. Lonsdale parecia tão arrebatador e romântico! E, quando eu comparava os dois, o resultado era que você era bastante... pior. Era infinitamente mais sério e egocêntrico, e não tinha o charme de Lonsdale. Com certeza que não é surpresa nenhuma saber que eu não o amava. Os meus pais organizaram o nosso casamento, tendo eu aceito o fato como uma escolha sensata. Mas eu não podia deixar de pensar, quando via o afeto que existia entre Rachel e Lonsdale, que ela tinha tido mais sorte. Nunca pensei admitir tal coisa perante você, mas é que agora... — Lara torceu as mãos num nó apertado. — Agora vejo como estava errada. Hunter tornou-se tão... parou e corou, antes que a gratidão e alguma mais profunda e dinâmica emoção, a forçassem a terminar. — É mais do que eu esperava que pudesse, alguma vez, ser. Não com você explicar como, mas Hunter transformou-se num homem em quem eu posso confiar. Um homem que eu poderia amar.
Não se atreveu a olhar para ele e não fazia a mínima ideia se aquele seu reconhecimento era algo que ele queria ou não ouvir. Hunter atravessou o salão, as suas botas cruzaram o seu campo de visão, e saiu pela porta entreaberta... deixando-a sozinha, com o eco da sua impetuosa confissão.
Capítulo 16
Parecia que os criados da propriedade de Lonsdale tinham feito a sua escolha, os homens apoiavam o senhor da casa e as mulheres, pelo contrário, davam apoio e simpatia à dona. Um par de lacaios e um estoico mordomo faziam o melhor que podiam, para impedir Hunter de entrar na mansão, enquanto a governanta e as criadas de quarto acompanhavam de perto a senhora, observando e atendendo ansiosamente a todas as suas necessidades.
Hunter sentia que as criadas estavam mais do que dispostas a mostrar-lhe o quarto da cunhada. Hunter tornou-se inexpressivo quando fixou o olhar no mordomo, um homem idoso que tinha sido leal aos Lonsdale durante décadas. Sem sombra de dúvida, ele tinha visto e ajudado a esconder muitos delitos cometidos pela família. O homem foi cortês e digno quando cumprimentou Hunter, mas a expressão de intranquilidade dos seus olhos, revelava que havia alguma coisa que não estava como deveria estar. Hunter foi rodeado por dois lacaios corpulentos que pareciam preparados para expulsá-lo da propriedade.
— Onde está Lonsdale? — perguntou Hunter resumidamente.
— O patrão saiu, meu senhor.
— Tive conhecimento de que Lady Lonsdale está doente. Vim, pessoalmente, averiguar o seu estado de saúde. O mordomo falou com respeito, mas parecia que a sua cor se tornava cada vez mais intensa.
— Não posso dar-lhe nenhum pormenor sobre a saúde de Lady Lonsdale, meu senhor. Como compreenderá, é um assunto privado. Talvez possa falar sobre isso com Lorde Lonsdale, quando ele regressar.
Hunter olhou para os lacaios e para as duas mulheres que se encontravam nas escadarias. As expressões geladas das mulheres fizeram-no perceber que Rachel estava, realmente, doente.
A situação o fez lembrar-se de uma ocasião, na Índia, quando foi visitar a casa de um amigo que estava agonizante e encontrou a casa cheia de parentes dos dois lados da família. O desespero silencioso deles flutuava no ar, envolvendo-o numa nuvem pesada. Todos eles sabiam que, se o homem morresse, a sua mulher seria queimada viva, junto ao cadáver do marido. Hunter lembrou-se da impressão da mão que a esposa deixara na porta, de um vermelho-vivo, antes de ter de cumprir a antiga tradição sati. A marca seria tudo o que ela deixava para que o mundo se lembrasse da sua existência. Apesar da terrível frustração que sentiu, Hunter nada pôde fazer para a ajudar. Os indianos acreditavam tanto no culto de sati, que matariam qualquer estranho que tentasse interferir ou ajudar.
Quão pouco era valorizada a vida de uma mulher, em muitas das culturas conhecidas. Até mesmo na nossa cultura, supostamente tão moderna e elitista. Hunter não tinha conseguido argumentar com Lara, fazendo-a ver que na lei inglesa a esposa de um homem é sua propriedade, podendo ele fazer dela o que quisesse. Julgando pelo pessimismo e ansiedade que pairavam no ar, a infeliz Lady Lonsdale iria ser vítima da cruel indiferença da sociedade. A não ser que alguém interviesse.
Hunter falou para o mordomo, apesar de as suas palavras se dirigirem a todos eles.
— Se ela morrer — disse serenamente, — serão todos acusados de cumplicidade num assassinato.
Percebeu, mesmo sem olhar, como o comentário afetou o grupo. Uma corrente de medo, culpa e preocupação passou pela sala. Todos eles ficaram imóveis, até mesmo o mordomo, quando Hunter começou a subir as escadarias. Parou em frente de uma criada anafada.
— Mostre-me o quarto de Lady Lonsdale.
— Sim, meu senhor. — Ela subiu as escadarias com tal rapidez, que Hunter foi obrigado a subir os degraus de dois em dois.
O quarto de Rachel, estava escuro e silencioso, sentindo-se um perfume doce e seco no ar, as cortinas de veludo estavam corridas e apenas havia uma pequena abertura entre elas, que deixava entrar uma réstia de luz. Encontrou Rachel reclinada sobre grandes e confortáveis almofadas de renda, o cabelo comprido e solto, o seu frágil corpo envolto numa camisa de dormir branca. Não havia nenhuma contusão aparente no rosto ou nos braços, mas tinha a pele com uma cor de cera e os lábios estavam gretados e sem vida.
Abriu os olhos ao aperceber-se da presença de alguém no quarto, e viu a silhueta escura de Hunter. Escapou lhe um lamento de medo e ele percebeu que ela julgava que quem estava ali era o seu marido.
— Lady Lonsdale — disse ele suavemente, dirigindo-se para perto dela. — Rachel - olhou-a, à medida que toda ela se encolhia. — O que é que lhe aconteceu? Há quanto tempo está doente? - pegou-lhe na mão magra e fria, cobriu-a com a sua mão enorme e acariciou os dedos.
Ela fitou-o com a expressão de um animal ferido.
— Não sei — sussurrou. — Não sei o que aconteceu. Ele não quis fazê-lo, tenho a certeza... mas, não sei como, caí. Repouso... é tudo do que preciso. Só que... dói-me horrivelmente... não consigo dormir.
Ela precisava muito mais do que repousar, e para já, precisava da visita do doutor Slade. Hunter nunca tinha prestado muita atenção a Rachel, pensava nela simplesmente como uma imitação de Lara, atraente, mas menos interessante. Porém, vendo a semelhança dela com a sua mulher e o evidente sofrimento de que ela estava a padecer, sentiu dentro de si um enorme sentimento de dor.
— Lara pediu-me para a vir buscar — murmurou. — Deus sabe que não deveria tirá-la daqui... mas prometi-lhe... - interrompeu a frase, invadido por uma enorme frustração.
O nome de Lara parecia penetrar através daquele profundo pesadelo de Rachel.
— Oh, sim... Larissa. Eu quero ver Larissa. Por favor.
Hunter lançou um olhar de soslaio à criada que permanecia de pé, junto a eles.
— Afinal, o que é se passa aqui?
— Ela tem estado a sangrar, senhor — respondeu a criada suavemente. — Desde que caiu. Nada do que nós fizemos parece ter resultado. Eu quis chamar o doutor, mas o patrão proibiu. A sua voz foi-se sumindo até ficar inaudível. — Por favor, senhor... leve-a para longe daqui, antes que ele volte. Não sabemos o que poderá acontecer, se não a levar.
Hunter olhou para a frágil figura pousada na cama e afastou os lençóis. Reparou que a camisa de dormir tinha manchas secas de sangue e que por debaixo do corpo, havia muitas mais. Furioso, pediu à governanta que o ajudasse e, entre os dois, envolveram um roupão muito macio, de cambraia, ao redor do seu corpo. Rachel tentou colaborar, fazendo um esforço para enfiar os braços nas mangas, mas o mais pequeno movimento causava-lhe enormes dores. Tinha os lábios azuis e firmemente comprimidos, enquanto a criada lhe abotoava o roupão.
Hunter inclinou-se e deslizou os braços por debaixo dela, falando ternamente, como se tratasse de uma criança pequena.
— Muito bem, é assim mesmo — murmurou, enquanto a erguia sem grande esforço. — Vou levá-la para junto de Larissa e vai ver como se irá sentir muito melhor - tentou levantá-la suavemente, mas mesmo assim ela gemeu de dor, encostando-se ao seu peito. Blasfemando em silêncio, Hunter pensou se, ao transportá-la, não poderia causar-lhe a morte.
— Leve-a, senhor — disse a criada perante a hesitação dele. — É o melhor que lhe pode fazer, acredite em mim.
Hunter acenou com a cabeça e levou-a do quarto. A cabeça dela pendeu e ele pensou que ela tinha desfalecido, mas ao descer as escadarias ouviu um fraco gemido.
— Obrigado... seja quem for.
A dor e perda de sangue fizeram-na delirar, pensou.
— Sou Hawksworth — respondeu, tentando não a balançar demasiado enquanto descia a escadaria.
— Não, não é — Deu-lhe uma resposta débil, mas com certeza... tocou-lhe no queixo com os seus dedos magros, como se lhe estivesse a dedicar uma suave bênção.
O caminho até Hawksworth Hall foi torturante. Rachel, pálida e doente, sentia intensamente o andamento da carruagem e cada buraco da estrada por onde passavam. Estava deitada a todo o comprimento do assento aveludado, rodeada por almofadas e aquecida por mantas, que aliviavam um pouco todo o seu sofrimento. Hunter estremecia a cada movimento e ao consequente gemido de Rachel. O seu sofrimento abalava-o mais do que ele poderia imaginar.
Como toda a gente, Hunter tinha querido ignorar os maus-tratos que Lonsdale infligia a Rachel, argumentando que o que se passava na intimidade de um casal não dizia respeito a ninguém. Não tinha dúvidas nenhumas do que muita gente iria dizer, que tinha ido longe demais ao tirar Rachel da sua própria casa.
— Para o diabo, com todos eles - pensou enraivecido, ao mesmo tempo que Rachel gemia com desespero. A culpa era de todos os que viviam em Market Hill e de todos os amigos e parentes dos Lonsdale, já que todos eles permitiram que a situação chegasse àquele extremo.
Parecia quase um milagre que Rachel não tivesse morrido durante o tumultuoso trajeto de carruagem. Chegaram finalmente a Hawksworth Hall e Hunter levou-a para casa, com o maior dos cuidados. Quando chegou, encontrou o doutor Slade à espera, junto de Lara. A sua mulher não parecia surpreendida ao ver o estado da irmã, e ele percebeu que ela estava à espera de a encontrar ainda muito pior. Por indicação de Lara, Hunter levou a doente para o quarto dela e deitou-a em lençóis de linho, limpos e frescos. Enquanto as criadas, atarefadas, andavam de um lado para o outro e Lara se inclinava sobre Rachel, o doutor Slade procurava na maleta os utensílios médicos de que iria precisar. Hunter afastou-se do quarto.
Naquele momento a sua participação naquele caso tinha terminado. Ele achava que deveria ter sentido algum tipo de satisfação por ter cumprido com a promessa que tinha feito, mas em vez disso, sentia-se preocupado e inquieto. Foi para a biblioteca e aí se fechou, bebendo pausadamente enquanto refletia em como iria lidar com Lonsdale, quando ele lá chegasse. Por muito arrependido que se mostrasse, Hunter não iria permitir que ele levasse Rachel. Como poderia ele convencê-los de que não voltaria a maltratar Rachel? Como poderiam ter a certeza de que ele não acabaria por matá-la?
Lonsdale não mudaria, pensou Hunter, enquanto se servia de uma segunda bebida. As pessoas nunca mudam. No entanto, pensou no que Lara lhe tinha dito há dias: Não com você explicar como, mas Hunter transformou-se num homem em quem eu posso confiar. Um homem que eu poderia amar.
Uma confissão tão séria, dita com uma tão grande e suave esperança, tinha-o enchido de um profundo desejo. Ele não soube responder, e ainda não sabia como fazê-lo. Queria muito o amor de Lara. Faria qualquer coisa para o ter, mas poderia ser tão destrutivo para ela, à sua maneira, como Lonsdale era para Rachel.
Um criado veio dizer-lhe que o doutor Slade estava pronto para se retirar e Hunter pôs de lado o brandy. Chegou ao vestíbulo da entrada principal ao mesmo tempo que Lara e o doutor Slade. A expressão do velho médico estava séria e ensombrada com o desgosto, as suas rugas estavam mais vincadas que o habitual, fazendo-o parecer um buldogue rezingão. Lara parecia recomposta, mas ainda frágil, aparentemente, escondia um enorme turbilhão de emoções, por debaixo daquela aparência.
Hunter olhou para um e para o outro, enquanto esperava que lhe dessem as notícias.
— Então? — perguntou impacientemente.
— Lady Lonsdale sofreu um aborto — respondeu o doutor Slade. Parece que ela não tinha conhecimento do seu estado, até a hemorragia ter começado.
— Como aconteceu?
Lonsdale empurrou-a pela escadaria abaixo — disse Lara serenamente, mas com os olhos incendiados. — Ele tinha estado novamente a beber e ficou, de repente, com muito mal feitio. Rachel afirma que ele não sabia o que fazia.
O doutor Slade franziu a sobrancelha e exprimiu um profundo desagrado.
— Tudo isto é muito sórdido — Comentou. — Nunca pensei vir dizendo isto, mas é uma bênção saber que o velho Lorde Lonsdale não está vivo, para que não possa presenciar naquilo em que se tornou o seu filho. Lembro-me do orgulho que sentia no rapaz...
— Ela irá ficar bem? - interrompeu Hunter, sentindo que se iria estender com reminiscências do passado.
— Acredito que Lady Lonsdale recuperará completamente — respondeu o médico, — desde que receba os cuidados e o repouso de que necessita. Sugiro que ninguém a perturbe, uma vez que o seu estado é de grande debilidade. Em relação ao marido... - hesitou e abanou a cabeça, reconhecendo silenciosamente que o assunto estava fora do seu alcance. — Esperemos que ele possa ser persuadido a entender que este tipo de comportamento não é aceitável.
— Ele vai ser! — Exclamou Lara com firmeza, antes que Hunter conseguisse responder. Deu a volta, sem olhar para nenhum deles e voltou a subir a escadaria, dirigindo-se ao quarto de convalescença da sua irmã. A rigidez das suas costas e a postura da sua cabeça fez com que Hunter se sentisse ligeiramente culpado, como se a atuação de Lonsdale os implicasse de algum modo, a ele e ao doutor Slade. Como se os dois tivessem sido julgados e condenados por terem tomado parte numa grande conspiração de homens contra mulheres.
— Maldito Lonsdale — murmurou com uma expressão zangada.
O médico endireitou-se e bateu-lhe suavemente no ombro.
— Compreendo-o perfeitamente. Sei bem o carinho que sente pelo seu amigo. Mas se a opinião de um velho homem representa alguma coisa para você, devo dizer-lhe que estou feliz que tenha Lady Lonsdale à sua guarda. Mostra uma compaixão que nem sempre foi vista nas atitudes da família Crossland. Espero que não se ofenda.
A boca de Hunter torceu-se numa expressão irônica.
— Não posso ofender-me com a verdade — disse, instruindo um dos lacaios para que trouxessem a carruagem que iria levar o velho médico a casa.
Lara velou toda a noite junto à cama de Rachel, até que adormeceu na cadeira, apesar de continuar sentada muito direita. Despertou sobressaltada, ao sentir uma enorme figura que se movia no quarto.
— O que é...
— Sou eu — murmurou Hunter, encontrando-a na escuridão e pousando as suas mãos nos ombros dela. — Venha deitar-se, Lara. A sua irmã está dormindo... Não conseguirá tomar conta dela amanhã, se não descansar um pouco. Lara bocejou, recusou com a cabeça e estremeceu ao sentir uma dor aguda nos músculos tensos do pescoço.
— Não. Se ela acordar... se precisar de alguma coisa... Quero estar ao seu lado — Ela não podia explicar o sentimento irracional que a impedia de deixar a irmã sozinha, que ela precisava de constante proteção de qualquer monstro, real ou invisível.
As pontas dos dedos de Hunter acariciaram o pescoço, com ternura.
— Não a poderá ajudar, se cair de exaustão — disse-lhe ele.
Lara encostou a cara na mão dele e suspirou.
— Quero sentir que estou fazendo qualquer coisa, nem que seja velar o seu sono.
Ele acariciou a testa com o polegar e encostou os lábios na sua cabeça.
— Vá para a cama, minha querida — disse-lhe, com a voz muito sumida, por ter a boca afundada no seu cabelo. — Agora, cuidarei eu dela. — Apesar da sua relutância, ele levantou-a da cadeira e encaminhou-a para fora do quarto, tendo chegado à sua própria cama, quase como uma sonâmbula.
Lonsdale chegou a Hawksworth Hall, no dia seguinte, à tarde.
Ao princípio, Lara não teve conhecimento da chegada dele, uma vez que esteve quase todo dia no quarto de Rachel. Com muita paciência, conseguiu persuadir Rachel a tomar um pouco de sopa, uma colher de manjar-branco e os medicamentos que o doutor Slade tinha prescrito. Silenciosa e exausta, Rachel parecia agradecer o alívio que os medicamentos lhe davam. Adormeceu rapidamente, agarrando na mão de Lara com uma confiança tão infantil, que lhe partia o coração.
Com cuidado, Lara retirou a mão e acariciou os seus longos cabelos castanhos.
— Durma bem, minha querida — sussurrou. — Vai correr tudo bem.
Saiu do quarto, silenciosamente, debatendo-se com o problema de como e quando iria contar aos seus pais o que se estava a passar com Rachel. No mínimo, ia ser muito desagradável. Estava à espera que não acreditassem e negassem tudo. Diriam que Lonsdale era um homem de bem e que talvez tivesse feito tudo por engano, precisando de compreensão e perdão de todos.
Lara sabia que o apoio de Hunter era essencial para ela poder manter Rachel longe de Lonsdale. Se Hunter mudasse de opinião, ela não teria a quem recorrer. Ele era o único que podia impedir que Lonsdale levasse Rachel e fizesse dela o que bem lhe apetecesse. Lara estava-lhe muito agradecida por tudo o que tinha feito até agora, mas não podia deixar de temer que a amizade que unia os dois homens prevalecesse. Não imaginava ver o seu marido a negar a Lonsdale o acesso à própria mulher. E se Hunter cedesse aos pedidos do amigo... Lara não tinha certeza do que faria.
Com pensamentos cada vez mais desencorajadores, aproximou-se do cimo da escadaria que conduzia até ao grande salão de entrada. Ouviu o som de vozes masculinas, que soavam num tom muito intenso. Pegando nas saias para não tropeçar, desceu as escadas com rapidez. Ao chegar ao último degrau viu que Hunter estava a falar com Lonsdale.
A visão do seu cunhado, bem vestido e muito bem parecido, encheu-a de raiva. Lonsdale parecia descontraído e afetuoso, como se nada de errado se passasse. Que fosse amaldiçoada, se permitisse que ele voltasse a pôr as mãos em Rachel. Se ele se atrevesse a fazê-lo, ela própria dar-lhe-ia um tiro.
Apesar de Lara não ter feito um único som, Hunter sentiu a sua presença. Virou-se e dirigiu-lhe um olhar penetrante.
— Fique onde está — disse asperamente. Ela obedeceu, com o coração a bater com violência, enquanto Hunter voltava a sua atenção para Lonsdale.
— Hawksworth — murmurou Lonsdale, parecendo desconcertado diante da fria recepção que tinha acabado de receber. — Meu Deus, quanto tempo me vai obrigar a permanecer aqui, de pé? Convide-me para entrar e conversaremos amigavelmente, enquanto tomamos uma bebida.
— Não é a ocasião mais propícia para uma bebida amigável — disse Hunter de um modo cortante.
— Sim, bem... a razão da minha visita é óbvia. — Lonsdale fez uma pausa e mostrou uma preocupação evidente. — Como está a minha mulher?
— Não está nada bem — Comentou Hunter.
— Não pretendo perceber o que se está a passar. Rachel teve um acidente e, em vez de permitir que recuperasse na sua própria casa, foi buscá-la, atravessando toda a zona rural com ela... Sem dúvida, para satisfazer algum capricho de Lara. Eu entendo a reação da sua mulher, é como todas as mulheres, o cérebro delas é do tamanho do de uma galinha, mas você — Lonsdale sacudiu a cabeça, com assombro. — O que o levou a tomar tal atitude, Hawksworth? Não é o seu estilo, meter-se nos assuntos de outro homem, sobretudo quando esse homem é o malvado do melhor amigo que já alguma vez teve.
— Já não é — disse Hunter suavemente.
Os olhos azuis de Lonsdale crisparam-se, sobressaltados.
— O que está a dizer? É como um irmão, para mim. Nenhuma disputa por causa de uma mulher se pode entrepor entre nós. Deixe-me levar Rachel comigo e tudo entre nós será como antes.
— Ela não pode ser transportada, neste momento.
Lonsdale riu, incrédulo perante a recusa.
— Ela será transportada, se eu assim o desejar. Ela é minha mulher — Controlou-se, ao reparar que Hunter permanecia inalterável e continuava a encará-lo implacavelmente. — Porque me olha dessa maneira? Que diabo vem a ser isto?
Hunter não pestanejou.
— Saia, Terrell.
Uma expressão de ansiedade adensou-se no rosto de Terrell.
— Diga-me como está Rachel!
— Ela estava grávida — disse Hunter com um ar cansado. — Perdeu o bebê.
Lonsdale empalideceu e a sua boca torceu-se numa convulsão.
— Eu quero vê-la.
Hunter abanou a cabeça, não permitindo que ele avançasse.
— Ela está sendo muito bem cuidada.
— Ela perdeu o bebê porque a trouxe para aqui enquanto ela estava doente — Gritou Lonsdale.
Lara mordeu o lábio numa tentativa de permanecer calada mas, sem saber como, a sua voz irrompeu com toda a força.
— A Rachel perdeu o bebê porque a atirou pela escadaria abaixo! Ela contou-nos tudo, ao doutor Slade e a mim.
— É mentira!
— Lara, cale-se — disse Hunter com rispidez.
— Nem sequer chamou um médico para a observar — Continuou Lara com ousadia, não fazendo caso da ordem do seu marido.
— Não precisava de nenhum médico, maldita seja! — O impetuoso temperamento de Lonsdale explodiu e ele avançou para ela, com laivos de um rubor escuro no rosto. — Está a tentar pôr todos contra mim. Eu fecharei essa boca, sua cabra...
Lara retrocedeu instintivamente, esquecendo-se que as escadas estavam mesmo atrás dela. Caiu para trás com um grito sufocado e sentou-se com força, no segundo degrau. Dali, pôde observar horrorizada como Hunter agarrava em Lonsdale, tal como um cão de caça apanhava uma raposa indefesa.
— Daqui para fora — disse Hunter, empurrando o seu antigo amigo pela porta fora.
Lonsdale soltou-se e virou-se a Hunter com os punhos em riste. Lara esperou que Hunter reagisse da mesma forma, adotando a posição clássica dos pugilistas. Ambos partilhavam o mesmo interesse por aquele desporto, tendo assistido a inúmeros combates de boxe profissional, e tendo-o praticado, muitas vezes, com os seus amigos aristocratas.
Mas o que aconteceu ante o olhar confuso de Lara, não foi isso, nem sequer o que qualquer um poderia esperar. Hunter realizou um estranho movimento com o joelho e com a mão inclinada deu um golpe tão certeiro a Lonsdale, que o fez cair ao chão soltando um gemido. Atuou instintivamente, sem hesitar um segundo. Hunter continuou, baixou-se sobre Lonsdale e puxou-lhe o braço para trás, preparando-se para lhe aplicar o último golpe. Lara temeu que pudesse ser um golpe mortal. Olhou para o rosto tenso e pálido de Hunter e percebeu que ele estava capaz de matar o homem que tinha por baixo de si. A razão desaparecera da sua mente e fora substituída por um puro instinto letal.
— Hunter — disse ela desesperada. — Hunter, espere!
A névoa que o cercava pareceu dissipar-se ao ouvir o seu nome. Olhou atentamente para ela, ainda em estado de alerta e baixou o braço alguns centímetros. Lara quase recuou quando viu a expressão dos seus olhos, de uma tal brutalidade, que excedia em muito a gravidade da situação. Ele lutava para evitar entrar naquele abismo escuro aonde parecia não desejar voltar. Havia muitas coisas que ela não conseguia entender, mas não tinha a mínima dúvida de que deveria ajudá-lo a voltar à normalidade, tão depressa quanto possível.
— Isso já é suficiente — disse Lara, enquanto os criados apareciam vindos de todas as direções, olhando confusos para os dois homens que estavam no centro do vestíbulo. — Lorde Lonsdale deseja retirar-se — disse, já de pé, dando um jeito às saias e dirigindo-se ao criado que estava mais perto. — George, por favor, acompanhe Lorde Lonsdale até à sua carruagem.
O criado deu um passo em frente, afastando-se do grupo de criados que certamente se interrogavam sobre o que tinha acontecido.
— Entendendo os desejos de Lara, a senhora Gorst dispersou a pequena assistência.
— Para os seus lugares, vamos — disse a governanta com firmeza —, há muito trabalho para ser feito, não há tempo para ficarem aí especados.
Hunter não se mexeu enquanto Lonsdale, estupefato, era afastado do vestíbulo. Dois criados arrastaram Lonsdale até à carruagem que o esperava. Lara dirigiu-se ao marido e acariciou timidamente o braço.
— Senhor — disse ela, agradecida. — Obrigada por ter protegido a minha irmã. Muito obrigada.
Ele dirigiu-lhe um olhar intenso e ardente.
— Agradeça-me na cama — disse-lhe, num tom pouco audível.
Lara encarou-o, assustada.
— Agora? — sussurrou, enquanto se sentia corar. Hunter não respondeu e continuou a olhá-la com insistência.
Ela não se atreveu a olhar à sua volta, com medo de que alguém ali estivesse e se apercebesse, pelo seu olhar, como ele a desejava. Veio-lhe à cabeça a ideia de recusar. Afinal de contas, o cansaço por cuidar de Rachel poderia ser uma boa justificação, uma vez que até era verdade. Mas Hunter nunca lhe tinha feito, desta forma, um tal pedido. Das outras vezes tinha-se mostrado sedutor, provocante e encorajador... sem estar desesperado... como se necessitasse que ela lhe salvasse a alma. Intimidada com a intensidade daquele olhar, voltou-se e dirigiu-se em direção à escadaria. Hunter seguiu-a imediatamente, não deixando mais que um passo de distância entre eles. Não tentou apressá-la, simplesmente ia atrás dela, como se a estivesse a escoltar. Ela podia ouvi-lo respirar, de um modo claro e ofegante, não pelo esforço, mas por desejo. Lara quase desmaiava com a força com que o seu coração batia. Parou no cimo da escadaria, sem saber se deveria ir para o seu quarto, ou para o dele.
— On... onde? — perguntou suavemente.
— É-me indiferente — respondeu em voz baixa.
Ela dirigiu-se para o quarto dele, que era um pouco mais resguardado que o dela. Hunter fechou a porta bruscamente. Fixou-a de novo com um olhar cheio de desejo. Retirou o colete e a camisa sem pressas, mas Lara sabia o turbilhão que ia dentro dele, debaixo de todo aquele controle. Enervada, alcançou o pescoço para desabotoar o vestido. Tinha retirado só os dois primeiros botões, quando ele avançou para ela e agarrou-lhe a cabeça entre as mãos, como se temesse que ela fugisse. Beijou-a com intensidade, com a sua boca quente e ansiosa e a língua penetrando na profundidade da sua boca.
Ela procurou-o, tocando nos músculos firmes e duros do seu peito. A pele, debaixo das suas mãos, ardia febrilmente. As grandes mãos de Hunter pressionaram-lhe a cabeça, enquanto ele a beijava de uma forma violenta e abrasadora. O prazer foi crescendo até que ela lançou um gemido de excitação.
Tremendo de um feroz desejo, Hunter afastou a sua boca da dela e empurrou-a para a cama. Lara tropeçou, confusa, mas as mãos dele guiaram-na, segurando-a pelas ancas e deitando-a, com a cara virada para o colchão. Os pensamentos de Lara dispersaram-se, quando ela sentiu que ele lhe levantava as saias até à cintura. Ouviu-se um estranho som entrecortado, quando ele lhe rasgou a camisa e a abriu para os lados.
— O que está fazendo? — perguntou ela, tentando puxar-se para cima da cama. Ele prendeu-a e ela sentiu os seus dedos a deslizarem por entre as coxas.
— Deixe-me — murmurou. — Não vou machuca-la. Fique quieta, por mim. — Afastou o emaranhado dos caracóis escuros e deslizou um dedo para dentro da inflamada entrada do seu corpo, alcançando profundamente o calor e a umidade do seu interior. Lara estremeceu e agarrou a colcha até a amarrotar. — Está pronta para mim — disse roucamente, enquanto tirava as calças.
Percebendo que ele pretendia tomá-la desse modo, por trás, Lara fechou os olhos e esperou. O seu coração latejava, numa mistura de medo e ansiedade. Ela sentiu o seu sexo contra ela, procurando, apertando e entrando dentro dela num longo empurrão que a fez gritar. Apertou os músculos firmemente ao redor daquela invasora e opressiva dureza, à medida que ele deslizava cada vez mais fundo.
Mantendo-se dentro dela, Hunter rasgou a parte de trás do vestido dela, fazendo saltar os delicados botões por toda a parte. A camisa recebeu o mesmo tratamento e a frágil musselina cedeu ao contato agressivo das suas mãos, caindo ao longo do corpo. Sentiu a sua boca quente nas costas, beijando a tenra pele da sua nuca, deslizando lentamente pela espinha e estremeceu com aquela estranha sensação.
— Agora — Ela implorou-lhe, com um desejo cada vez maior, apertando as nádegas contra o corpo dele. Em resposta, ele moveu as ancas em pequenos círculos, até que ela gemeu agarrando com mais força a colcha.
— Quero tocar-lhe - ofegou. — Por favor, deixe-me...
— Não — murmurou. Lambeu a borda da orelha, introduziu a língua no seu interior.
Lara tremeu, com um prazer enlouquecedor, sentindo-o dentro dela, à volta dela, mas sem o poder tocar.
— Por favor, Hunter, deixe-me virar.
Ele usou as pernas para alargar ainda mais as suas coxas. Deslizou a mão até ao seu ventre muito tenso e chegou ao tufo de pêlos encaracolados. Encontrando o ponto sensível onde todo o prazer se concentra, acariciou-o suavemente. Apanhada entre o toque suave dos seus dedos e as profundas penetrações que lhe fazia, Lara pronunciou o seu nome entre soluços. O seu corpo estava indefeso e quase inerte debaixo do peso de Hunter, que foi aumentando o ritmo das suas estocadas, aumentando o prazer cada vez mais, até que todos os seus sentidos se abriram e a estonteante libertação começou.
Vibrando em espasmos de prazer, afogou os gritos na colcha e sentiu a pressão da cara dele nas suas costas. Nesse momento ele atingiu o clímax, apertando a palma das mãos nas nádegas dela, derramando o seu sêmen dentro dela com um enorme gemido de satisfação.
Quando tudo acabou, Lara estava demasiado fraca para se conseguir mexer. Acomodou-se, exausta, sentindo que Hunter acabava de rasgar o que restava da sua roupa. Acabou de tirar as calças e deitou-se na cama completamente nu, encostando-a contra o seu corpo. Ela relaxou e dormiu durante algum tempo, não tendo a noção se teriam passado horas ou minutos. Quando despertou, Hunter estava a olhá-la com os olhos cor de veludo negro.
— É a última mulher com quem farei amor — disse ele, brincando com os seus seios e acariciando os seus mamilos rosados. Ela acariciou o cabelo, que brilhava com reflexos dourados, e a nuca musculosa, sentindo um imenso prazer em estar ao seu lado.
— Muito bem — sussurrou.
— Fique comigo, Lara. Eu não a quero deixar.
Confusa, deslizou os braços pelas suas costas, as pontas dos seus dedos quase não chegavam ao meio delas. Por que estaria Hunter tão preocupado que ela o deixasse? Por acaso temia algum acidente ou catástrofe que os separasse de novo? Esta ideia parecia-lhe terrível. Não há muito tempo tinham-lhe dito que ele estava morto... E, na verdade não tinha lamentado a sua perda, para sua vergonha. Mas, se acontecesse alguma coisa novamente e eles tivessem de ficar novamente separados... Meu Deus, ela não iria aguentar. Ela não queria viver sem ele. Olhou-o com uma expressão cheia de brilho e as suas pernas abriram-se, de boa vontade, quando ele meteu o joelho entre elas,
— Então fique comigo. Não pensemos, nunca mais, no passado — disse ela, com ternura.
— Sim. Meu Deus, sim — Enroscou-se nela, com força e gemeu. Lara olhou para o seu rosto e notou as suas finas feições e o maxilar cerrado. Fizeram amor muito lentamente, tentando que durasse até à eternidade, até que ela sentiu ondas de prazer intermináveis e percebeu que, de alguma forma, ele entendia a sua alma e que, por vezes também lhe mostrava a dele, convertendo os segredos em cinzas.
— Ama-me?
— Sim, sim...
Lara não sabia quem tinha perguntado ou quem tinha dado a resposta... só sabia que a resposta era verdadeira para ambos.
Capítulo 17
Durante os dias que se seguiram, Lorde Lonsdale manteve um inquietante silêncio, não fazendo mais nenhuma tentativa para se dirigir a Hawksworth Hall. Finalmente, uma nota breve e formal, chegou a Hawksworth, onde ele pedia para ser informado das condições de saúde da sua mulher. Lara ficou na dúvida se deveria ou não responder. Sentia que Lonsdale não tinha o direito de saber nada sobre Rachel depois do que lhe tinha feito. No entanto, a decisão não era dela. Com alguma relutância, decidiu falar na carta à sua irmã, que se encontrava a descansar no sofá da sala de estar.
Rachel estava vestida com uma camisa de noite branca e com as pernas tapadas por uma manta tricotada. Parecia uma frágil estatueta de porcelana. Olhava pela janela, com o olhar perdido e um romance aberto pousado sobre o colo.
— Não é do seu agrado, querida? — perguntou Lara, acenando para o livro, com a cabeça. — Se preferir, posso trazer-lhe qualquer outra coisa da biblioteca...
— Não, obrigada — Rachel sorriu-lhe, um sorriso sincero, mas cansado. Não me com você concentrar em absolutamente nada. Começo a ler e, passado um minuto, as palavras deixam de fazer sentido.
— Tem fome? Rachel negou com a cabeça.
— Johnny trouxe-me mesmo há pouco um pêssego do jardim. Garantiu-me que era um pêssego mágico, que faria sentir-me melhor e insistiu em ficar aqui enquanto eu o comia.
A imaginação da criança fez sorrir Lara.
— Que querido! — disse.
— Há momentos em que eu poderia quase jurar que ele é seu - prosseguiu Rachel. — Com a sua coleção de tartarugas e de animaizinhos que traz lá de fora... Parece-se muito com você.
— Depois do modo como ele se comportou durante a última visita do doutor Slade, vasculhando na sua maleta de médico e, depois da centena de perguntas que ele lhe fez, não me surpreenderia que algum dia quisesse estudar medicina.
— Seria muito conveniente ter um médico na família — Concordou Rachel e, logo em seguida, encostou a cabeça para trás com um pequeno suspiro.
Lara ajoelhou-se junto da irmã e cobriu-lhe a mão fria, com a sua.
— Rachel... Lonsdale escreveu para perguntar sobre o seu estado. Eu gostava de saber se devo responder ou se prefere que eu permaneça em silêncio.
O rosto de Rachel ficou pálido e sacudiu a cabeça.
— Não faço ideia.
Ficaram ambas sem dizer nada enquanto Lara continuava a segurar na mão de Rachel, num tácito sinal de apoio. Finalmente, ela atreveu-se a dizer à irmã o que tinha querido dizer, desde o aborto.
— Rachel... não é obrigada a voltar para ele. Nunca mais. Pode ficar conosco, ou ter a sua própria casa onde mais gostar.
— Sem marido, sem filhos, sem nenhuma das coisas que dão sentido à vida de uma mulher — respondeu Rachel, desolada — Qual é a alternativa? Devo voltar para Lonsdale, com a esperança de que ele mude.
— Há muitas coisas válidas com que pode preencher a sua vida, Rachel...
— Eu não sou como você - interrompeu, em voz baixa. — Não sou assim tão independente. Nunca conseguiria fazer o que você fez depois da morte de Hawksworth, construir uma vida nova sem incluir nenhum homem. Se eu estivesse no seu lugar, teria imediatamente procurado outro marido. Eu sempre quis constituir a minha própria família, entende? É certo que Lonsdale tem os seus defeitos, mas desde há muito tempo eu percebi que tenho de aprender a aceitar as suas limitações...
— Ele quase a matou, Rachel — disse Lara. — Não, nem tente discutir. Na minha opinião, a recusa de Lonsdale em chamar um médico não foi mais do que uma tentativa de assassinato. Ele é um ser abominável em todos os sentidos e eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para evitar que volte para ele.
— Ele não foi gentil — Concordou Rachel — E eu não o posso defender por tudo o que ele faz. Mas, uma coisa é certa, se eu tivesse percebido o meu estado e lhe tivesse dito, talvez ele tivesse sido mais cauteloso, não teria acontecido nenhum acidente.
Lara ficou tão agitada que soltou a mão de Rachel e levantou-se num salto. Começou a dar voltas na sala e parecia até que deitava fumo, furiosa.
— Depois deste acidente, como lhe quer chamar, tenho a certeza de que Lonsdale se irá conter durante uns tempos. Mas, não tenho dúvidas de que voltará a revelar a sua verdadeira personalidade... presunçoso, egoísta e cruel. Ele nunca irá mudar, Rachel!
Os olhos cor de avelã de Rachel, normalmente tão ternos, estavam agora frios e cortantes quando olhou para Lara.
— O seu marido mudou — Assinalou. — Não é verdade?
Lara ficou confusa com aquele tom de desafio da sua irmã.
— Julgo que sim — respondeu, cautelosa. — Hunter tornou-se num homem melhor, mas muitas vezes ocorre-me que esta mudança pode não ser permanente.
Rachel contemplou-a durante algum tempo.
— Eu penso que é — murmurou. — Eu creio que Hawksworth se converteu completamente em outro homem. No dia em que ele me foi buscar à mansão, eu quase não o reconheci. As dores tinham ficado bastante intensas e a minha mente estava confusa quando ele apareceu... Naquela altura, pensei que ele era um amável e meigo desconhecido. Eu não pude compreender que, na realidade, era Hawksworth. Pensei até que se tratava de um anjo.
— Ele tem os seus momentos - reconheceu Lara, mas a frase que Hawksworth se converteu completamente em outro homem ecoava na sua mente de uma forma estranha. Olhou para a sua irmã, que estava de rosto voltado para o chão. — Rachel, tenho a sensação de que me está a tentar dizer alguma coisa... — Calou-se e reuniu coragem para lhe fazer uma pergunta. — Está a tentar dizer-me que não acredita que o meu marido seja mesmo Hawksworth?
O olhar penetrante de Rachel cruzou-se com o da sua irmã.
— Eu prefiro acreditar que ele é Hawksworth, porque você decidiu acreditar nisso.
— Não é uma questão de escolha — disse Lara, profundamente perturbada. — Todos os fatos confirmam a identidade dele...
— Os fatos não são absolutos. Qualquer pessoa os pode discutir eternamente — A serenidade de Rachel evidenciava ainda mais a turbulência interior de Lara. — O importante é que o aceitou por motivos que só você entende - sorriu com ironia e prosseguiu. — Minha querida, é a pessoa com menos consciência de si mesma que eu conheço. Todos os seus pensamentos e toda a sua energia não são interiorizados mas dirigidos para ajudar os outros. Toma decisões instintivas, nunca examinando os motivos que a levam a reagir dessa forma. Envolve-se nos problemas alheios como uma desculpa para evitar olhar para dentro de si.
— O que está a dizer?
— Eu estou a dizer que... — A voz de Rachel desvaneceu-se e olhou para Lara com ternura e preocupação. — Perdoe-me. Estou a afligi-la sem necessidade. A única coisa que eu lhe queria transmitir é que eu decidi acreditar que, por algum milagre, o seu marido regressou a casa, para estar com você, visto eu desejar tanto a sua felicidade. E, também pela mesma razão, deve permitir que eu volte para Lonsdale quando estiver preparada, e acalentar a esperança de que, também a mim, me possa suceder um milagre.
Lara estava estendida na cama, de barriga para baixo e desnuda, enquanto o seu marido espalhava com as palmas das mãos um óleo perfumado. A fragrância a lavanda enchia o ar de uma embriagadora doçura. Ela pôs-se rígida, ao sentir as mãos mornas de Hunter nas suas costas. Um suave shhhh escapou dos lábios dele, um som que a acalmava e permaneceu imóvel sob o cuidado daquelas mãos.
Ele exibiu um conhecimento surpreendente do corpo da sua mulher, encontrando os nódulos nos músculos dos ombros e nas áreas mais tensas das suas costas. Aliviou a dor com tanta precisão, que Lara não pôde deixar de soltar um gemido de prazer.
— Oh, isso sabe tão... Oh, sim, aí mesmo.
Com os polegares, Hunter massageava os músculos doridos de ambos os lados da coluna, fazendo gestos semicirculares e subindo devagar, em direção aos ombros.
— Diga-me o que se passa — disse, passados alguns minutos, quando Lara já se encontrava relaxada e totalmente maleável. Começou a trabalhar a nuca, comprimindo com os dedos os nódulos dos músculos.
Num instante, Lara achou que já seria fácil desabafar e transmitir-lhe toda a preocupação que sentia e que não lhe tinha permitido comer durante o jantar. Apesar das tentativas de Hunter para animá-la, ela permaneceu calada, debruçada sobre o prato de comida intato, até que ele, finalmente, a levou até à privacidade do quarto.
— Hoje conversei com Rachel sobre Lonsdale — disse ela. — Quer regressar para ele, quando recuperar. Naturalmente, eu opus-me e discutimos. Quem me dera conseguir encontrar as palavras mais adequadas para a convencer de que ela não deve voltar. Tenho de pensar em alguma coisa que...
— Lara - interrompeu ele, sem deixar de massagear a nuca. Havia um sorriso na sua voz — Como sempre, quer encontrar a solução ideal e resolver tudo a seu gosto. Mas desta vez, o seu plano não irá funcionar. Deixe a Rachel descansar. Não a pressione com perguntas que ela não está ainda pronta a responder. Nos próximos tempos, ela não irá a lado nenhum.
Reconhecendo a sabedoria daquele conselho, Lara concordou.
— Sou demasiado impaciente — disse ela, como que a repreender-se. Eu nunca deveria ter mencionado Lonsdale tão cedo. Quando é que eu vou aprender a não me intrometer nos assuntos dos outros?
Hunter voltou-a para cima e sorriu, enquanto a sua mão com perfume a lavanda esfregava a zona das clavículas.
— Adoro a sua impaciência — murmurou. — Adoro a sua intromissão.
Lara contemplou com insegurança o rosto escuro que tinha sobre ela.
— Rachel disse que eu me envolvo nos problemas das outras pessoas para evitar pensar nos meus. Concorda com ela? — perguntou, com curiosidade.
— Não totalmente. E você?
— Bem... - juntou os joelhos e cruzou os braços por cima do peito. — Suponho que é mais fácil ver o que precisa de ser resolvido na vida dos outros do que examinar em pormenor a nossa própria vida.
Ele baixou a cabeça e beijou-lhe o rosto.
— Eu penso que a satisfação que você sente ao ajudar as outras pessoas lhe dá uma grande força vital — sussurrou. — E não há nada de errado nisso - suavemente, retirou os braços dela de cima do peito. — Porque é que está sempre tentando se cobrir? — perguntou-lhe. — Continua tímida, depois de tudo o que temos feito?
Lara corou ao ver que Hunter contemplava atentamente a sua nudez.
— Não consigo evitá-lo. Jamais me sentirei confortável sem roupa.
— Oh, claro que se sentirá — disse, à medida que os dedos, ligeiramente untados de óleo, acariciavam o seu ventre, em movimentos circulares, que a fizeram contrair-se. — Por acaso, eu conheço a cura perfeita para a timidez.
— E que cura é essa? — Ouviu o que ele lhe sussurrava, com os olhos muito abertos de espanto. Ainda antes de ele terminar de descrever a sua cura, ela começou a gaguejar numa mistura de diversão e descrença. — Já fez isso alguma vez? — perguntou.
— Não. Só ouvi falar.
— Pois eu garanto que nem sequer é possível.
Os dentes de Hunter brilharam ao esboçar um sorriso.
— Então, teremos de averiguar, não acha? — Sem lhe dar a oportunidade para responder, cobriu a boca dela com a sua e puxou-a até ao seu corpo excitado.
Numa cidade como Market Hill, os rumores espalhavam-se como as ondulações de uma pedra lançada numa lagoa. Segredos, doenças e problemas de todo o gênero, eram descobertos, discutidos e rapidamente se arranjava uma solução para eles, ou eram logo esquecidos... A comunidade conseguia processar uma quantidade infinita desse tipo de informação. Da mesma forma, não levou muito tempo para que as mais recentes notícias sobre o capitão Tyler e a sua mulher chegassem a Hawksworth Hall.
Aparentemente, a senhora Tyler, que esperava o seu primeiro filho, padecia de dores que obrigaram o doutor Slade a prescrever que ficasse na cama até ao final da gravidez. Lara reagiu às notícias com afetuosidade e preocupação. A ideia de ter de ficar confinada a uma cama durante quatro ou cinco meses, pareceu-lhe terrível. Para além do desconforto físico, o aborrecimento seria de tal ordem, que poderia levar qualquer mulher à loucura. Obviamente, ela teria de fazer alguma coisa pela pobre senhora Tyler, nem que fosse apenas levar-lhe alguns romances, que a ajudassem a passar os dias mais depressa.
Mas no entanto, Lara sentia que havia algum problema latente. Lara ainda não tinha esquecido a reação do marido com a presença inesperada dos Tyler no jantar que ela ofereceu, quando do seu regresso a casa. Ele mostrou-se incomodado, frio e inexplicavelmente furioso. E também se recordava daquele estranho momento em que quase jurou que Hunter e o capitão Tyler se conheciam perfeitamente mas que fingiram ser uns estranhos. Desde então, Lara manteve uma certa distância dos Tyler, pois tinha a ligeira sensação de que, se não o fizesse, poderiam surgir problemas entre ela e Hunter.
Por outro lado, agradar ao seu marido parecia estar em segundo plano, em relação ao impulso da sua própria consciência. A mulher do capitão via-se obrigada a permanecer na cama, desamparada, durante meses e Lara não podia ignorar aquela situação. Decidiu visitar a senhora Tyler discretamente e, caso Hunter descobrisse, só lhe restava enfrentar as consequências.
Num dia em que Hunter foi a Londres para tratar dos seus negócios, Lara aproveitou para se deslocar até ao solar de Morland. Preparou uma cesta com pudins e pêssegos das plantações de Hawksworth, escolhidos com muito cuidado, assim como uns quantos romances que poderiam ajudar a senhora Tyler a passar o tempo.
Durante a viagem de uma hora pelo interior rural, Lara contemplou pela janela da carruagem, as verdes pradarias, impecavelmente divididas por pastos cercados. Ali pastavam tranquilamente ovelhas gordas e gado de pelagem parda, que paravam, erguendo ligeiramente as cabeças à passagem da carruagem.
Embora aquele veículo fosse luxuoso, Lara não se sentia confortável. Trocava várias vezes de posição, ajustava as saias e começava a sentir uma necessidade, cada vez mais urgente, de usar o privado. Os seus lábios esboçaram um sorriso atrapalhado ao imaginar a sua chegada iminente ao Solar de Morland. Chegar assim, sem ser anunciada, e procurar logo um lugar para aliviar as suas necessidades, era de certo modo uma falta de educação, mas de fato, era isso que se iria passar. Era estranho que a sua bexiga tivesse ficado tão pouco fiável, ultimamente.
O sorriso de Lara enfraqueceu quando continuou a pensar no seu próprio estado físico, algo que ela tinha negligenciado, dada a sua preocupação para com o de Rachel. Nos últimos tempos, o seu corpo estava muito temperamental, sentia-se mais pesada, apesar da atividade física e estava muito propensa a pontadas de dor e outras queixas... E a sua menstruação, não deveria ter já chegado? Nunca tinha sido irregular, em toda a sua vida.
Aquela ideia deixou-a perplexa. Sim, ela estava atrasada... Estava duas semanas atrasada. O seu fluxo menstrual, que até ali, sempre sucedera com uma regularidade teimosa, pela primeira vez na vida, não apareceu. Qualquer outra mulher reconheceria aquilo como uma prova bem evidente de gravidez. Mas não eu, pensou, com a respiração cada vez mais fraca com a angústia. Nunca eu.
Lara começou a remexer na pilha de livros, com a pretensão de se distrair. No entanto, era impossível ignorar aquela possibilidade, agora apresentada.
— Quantas vezes, durante os primeiros anos do seu casamento com Hunter, tinha desejado conceber? A culpa, a inaptidão, a ansiedade... Tudo se tinha tornado insuportável. Por fim, já tinha conseguido aceitar a ideia de que seria uma mulher sem filhos. E, ironicamente, tinha sido o próprio Hunter, de todas as pessoas que a rodeavam, que realmente a tinha ajudado a aceitar a sua esterilidade e a reconhecer o seu valor pessoal, para além da capacidade de gerar crianças.
Mas, e se...? Tinha medo, só de pensar. Se realmente aquilo fosse real, se... Lara fechou os olhos, manteve as mãos no ventre e rezou uma oração em voz baixa. Ela queria carregar dentro de si, um filho de Hunter, queria reter uma parte dele dentro dela. Parecia ser um milagre impossível o fato de lhe ser concedida uma coisa que era tão normal para o resto do mundo. Lara fechou os olhos com muita força, mas uma lágrima escapou-se, apesar dos seus esforços para o evitar. Sentiu-se quase doente de ansiedade.
Lara conseguiu recompor-se até a carruagem chegar ao solar de Morland. Completamente escondido entre os arvoredos do bosque, o solar estilo Tudor, tinha a fachada meio revestida a madeira e outra metade a tijolos vermelhos, que lhe conferiam certo charme. Já visivelmente tranquila, Lara instruiu um criado para que carregasse a cesta de iguarias e o pacote de livros para o vestíbulo da entrada. Ficou na entrada, à espera e, em menos de um minuto, o capitão Tyler apareceu para a cumprimentar.
— Lady Hawksworth! — Exclamou o capitão, parecendo mais surpreendido do que propriamente, contente. — Que honra tão inesperada...
— Peço desculpa se a minha visita não é oportuna — respondeu Lara, enquanto lhe oferecia a sua mão enluvada. — Eu só gostaria de os cumprimentar e de entregar alguns presentes à senhora Tyler.
— É muito amável da sua parte - o seu assombro momentâneo deu lugar à gratidão. — Por favor, entre e tome um refresco. Vou pedir a um criado que suba e veja se a senhora Tyler está acordada, talvez ela a possa receber.
— Mas, por favor, não a perturbe por minha causa. Eu não me vou demorar.
Lara acompanhou-o e tirou as luvas e o chapéu de viagem. Estava um dia quente e puxou um lenço de renda do interior da manga para secar o suor da testa e do rosto.
O capitão recebeu Lara numa pequena sala de visitas e indicou-lhe um sofá de costas arredondadas forrado a chita florida. Lara ajustou as saias e sorriu-lhe, enquanto ele se sentava numa cadeira de mogno. A primeira impressão que sentiu, não se alterou, desde a noite do jantar. Parecia ser um homem agradável, talvez um pouco sério. Mas com um olhar intenso que a perturbava, como se ele estivesse a guardar, num silêncio incômodo, um assunto que a interessava.
— Lady Hawksworth — disse o capitão, com prudência, — espero não a ofender se perguntar sobre a saúde da sua irmã.
— Ela está muito bem, obrigado. E a sua tão amável preocupação não me ofende, certamente. Porque deveria ofender-me?
Tyler baixou o olhar.
— As circunstâncias da doença da sua irmã fazem com que a situação seja bastante estranha...
— Sim, é um escândalo - terminou Lara com suavidade. — Não tenho qualquer dúvida de que todas as pessoas de Market Hill têm alguma opinião sobre o assunto. Mas a vergonha desta situação pertence única e simplesmente a Lorde Lonsdale.
Tyler juntou as mãos, formando uma pirâmide com os dedos.
— Infelizmente, esta não é a primeira vez que ouço falar de um comportamento tão covarde de um marido para com a sua mulher e receio que também não será a última - hesitou, antes de prosseguir com muita diplomacia. — Desejo sinceramente que, a partir de agora, Lady Lonsdale possa desfrutar de circunstâncias mais felizes.
— E eu também — respondeu Lara. Continuaram a conversar durante mais alguns minutos, mencionando assuntos triviais, até chegarem a algo mais pessoal, o estado de saúde da senhora Tyler.
— O doutor Slade assegura-nos de que, se seguirmos as suas instruções, tanto a minha mulher como o bebê terão boas possibilidades de resistir, sem grande sofrimento — Explicou o capitão Tyler. — Eu sei que uma pessoa não deveria desconfiar de um homem com a sua experiência e sabedoria. Mas, não obstante, estou preocupado. Gosto muitíssimo da senhora Tyler. Acompanhou-me fielmente por todas as tormentas por que a fiz passar, especialmente durante os anos na Índia.
Comovida por tal devoção à mulher, Lara atreveu-se a mencionar o tema que a tinha incomodado desde há algum tempo.
— Capitão Tyler — disse com cautela, — a sua referência à Índia, faz-me lembrar algo sobre o qual me tenho questionado.
— Sim? — Ele ficou imediatamente alerta. O seu bigode preto contraiu-se, como os bigodes de um gato nervoso.
Lara prosseguiu com cuidado.
— Quando o senhor participou no jantar em Hawksworth Hall, há uns meses atrás, e o senhor e Lorde Hawksworth foram apresentados... Fiquei com a ligeira impressão de que já se conheciam.
— Não, minha senhora.
— Oh! — Lara fez um esforço para esconder a sua decepção. — Há tantos episódios relacionados com a Índia que o meu marido se recusa a discutir. Por alguma razão, tinha a esperança de que me pudesse clarificar alguns assuntos.
— Eu não conheci Hawksworth na Índia — disse Tyler, olhando-a fixamente. Seguiu-se uma pausa interminável e Lara sentiu que, de repente, algo se desvanecia, como se ele tivesse uma postura forçada que não poderia continuar a manter. — No entanto... - prosseguiu lentamente, — o seu marido faz-me lembrar vagamente um homem que conheci lá.
Aquela afirmação parecia inofensiva, mas algo a advertiu que era um convite para fazendo descobrir mais alguma coisa. Os pêlos da sua nuca arrepiaram-se. Este assunto tem de ser esclarecido já, pensou ela nesse momento.
— Ah, sim? — murmurou em voz baixa.
O capitão Tyler avaliou com interesse a mulher que tinha diante de si. O seu rosto era suave, desprotegido e com uma beleza luminosa que ele apenas tinha visto em pinturas de Rembrandt. De fato, ela era uma mulher muito meiga e muito querida por todos, e que se preocupava empenhadamente pelos menos afortunados que ela. Alguém como ela não merecia ser usada e atraiçoada... Mas essas eram as regras do mundo em que viviam. Os predadores sempre se aproveitavam dos mais fracos e vulneráveis.
Tyler sabia que Lady Hawksworth estava a ser vítima de uma mentira, mas não havia nada fazendo. Para um homem na sua posição, muitas vezes, não havia escolhas perfeitas, somente podia escolher entre todos os males, aquele que era menor. E já tinha tido a oportunidade de comprovar que os seus maiores erros tinham sido sempre consequência de decisões muito precipitadas.
Neste assunto de Hawksworth em particular, Tyler sentia que a oportunidade para ele poder cumprir o seu dever, se apresentaria de forma gradual, à medida que as coisas se fossem revelando. E ele não tinha dúvidas nenhumas de que a situação, mais cedo ou mais tarde, se iria desmascarar.
De fato, ele devia a sua lealdade ao homem que conhecia como sendo Hunter, Lorde Hawksworth. Ele salvou-lhe uma vez a vida e Tyler odiava ter de lhe pagar com uma traição. Mas, ao mesmo tempo, esta mulher amável e inocente merecia saber a verdade e dependia dele, informá-la ou não da realidade. Se ela não tivesse ido até sua casa naquele dia, Tyler sabia que nunca iria referir o assunto. Mas, a verdade é que ela estava ali, e quase parecia que o destino tinha proporcionado esse encontro entre os dois, com bastante tempo e privacidade para falarem.
— O homem a quem eu me refiro era um mercenário, de fato — disse Tyler. — Conheci-o quando ele estava empregado como agente comissionista na Companhia das Índias Orientais. Ele era de uma inteligência extraordinária, discreto e, à primeira vista, sem nenhuma ambição particular. Embora fosse inglês de nascença, tinha sido criado entre os indianos por um casal de missionários.
A narrativa de Tyler foi interrompida pela chegada de um criado que trazia uma bandeja com refrescos.
— Desejam alguma sanduíche, biscoitos? — perguntou.
Lara recusou a oferta de comida, mas aceitou um copo de limonada, sendo-lhe agradável o sabor ácido que sentiu ao dar o primeiro golo. Observou uma gravura pequena e delicada, na parte superior do copo, que representava uma pastora a guardar ovelhas, e desejou saber por que razão o capitão estava tão preocupado em falar-lhe, com tanto pormenor, sobre um homem que não tinha nenhum significado para ela.
— Lembrei-me, então, de o utilizar numa força de meia dúzia de homens, que me ajudassem a restaurar a ordem nos territórios recentemente anexados. Como certamente poderá imaginar, havia, e ainda há, todo o tipo de conflitos quando os bárbaros são submetidos à proteção do leão britânico.
— Sem dúvida, muitos indianos devem ser relutantes em aceitar a proteção do leão britânico — disse Lara, asperamente.
— Mas eles acabam sempre por perceber que é para seu bem — respondeu Tyler, muito sério, ignorando o toque de ironia do comentário de Lara. — Mas, entretanto, a rebelião assumiu contornos muito perigosos. Assassinatos, assaltos, roubos, uma tal quantidade de situações, que nos vimos forçados a restabelecer a ordem sem aplicarmos os procedimentos habituais da lei britânica. Por mais que eu deteste reconhecer isto, também existia corrupção entre os nossos próprios oficiais, o que provocava certa tensão. Então, criei uma unidade mais pequena destinada a realizar tarefas especiais e altamente secretas. Quatro desses homens estavam já sob o meu comando e outros dois não pertenciam ao regimento. E este homem de quem eu falo, revelou-se perfeito para esta missão.
— Por causa da sua inteligência e da sua proximidade com os nativos — disse Lara.
— Precisamente. Mas havia qualquer outra coisa nele... Tinha uma capacidade assombrosa para se moldar a cada situação, com um certo mimetismo. Nunca conheci alguém tão parecido com um camaleão. Se desejasse, ele era capaz de se transformar em qualquer coisa, numa qualquer pessoa. Era capaz de adotar qualquer aspecto, gestos ou pronúncia. Vi-o a entrosar-se por entre os nativos como se fosse um deles e, logo em seguida, a assistir a um baile na embaixada, como um cavalheiro inglês, tudo isto sem levantar a mais pequena suspeita. Ele era tão furtivo quanto um tigre e totalmente implacável. O mais importante era que ele não tinha nenhum medo da morte, o que o tornava notavelmente eficiente nas suas obrigações. Eu usei-o como espião, investigador e, às vezes, até mesmo como... — Tyler fez uma pausa, estava manifestamente incomodado. — Como uma arma, poder-se ia dizer - terminou, calmamente.
— Ele executou pessoas, a seu pedido? — Lara perguntou, com repugnância.
O capitão acenou com a cabeça.
— Quando isso tinha de ser feito de forma rápida e discreta. Penso que ele fazia aquilo com a técnica dos tugues, usando um pano com uma moeda lá dentro. Eles são bastante meticulosos em não derramarem sangue, sabia? — Ao ver a expressão pálida de Lara, apercebeu-se de que tinha ido longe demais e franziu a sobrancelha, pedindo desculpa. – Perdoe-me, minha senhora. Eu não deveria ter sido assim tão explícito, mas de fato, quis descrever com precisão o caráter deste homem.
— Caráter? repetiu Lara, com um sorriso forçado. – Parece-me que ele tem uma completa falta de caráter.
— Sim, suponho que se pode dizer isso.
— O que lhe aconteceu? — perguntou, sem grande interesse, ansiosa por terminar rapidamente com aquelas recordações desagradáveis. — Ele ainda deambula pela Índia sob o comando de outra pessoa?
O capitão negou com a cabeça.
— Um dia desapareceu, de repente. Pensei que alguém o tivesse morto ou que até se tivesse suicidado. A sua vida não tinha muito sentido, tanto quanto sabia. De qualquer modo, nunca mais o voltei a ver. Até que...
— Sim? — perguntou ela rapidamente.
O capitão Tyler demorou tanto a responder, que ela pensou que ele tinha decidido não continuar.
— Até que regressei a Inglaterra — disse, por fim. — E compareci ao jantar de Hawksworth Hall. E o vi a seu lado - secou o suor da testa com a manga do casaco e olhou-a fixamente, com uma expressão patente de lástima. — Minha senhora, a desagradável verdade é... que ele ocupou o lugar do seu marido.
Lara sentiu-se esmagada, comprimida, até a sala crescer muito à sua volta, e o capitão Tyler parecer estar a falar a uma grande distância. Só conseguia ouvir o eco apagado e suave das suas palavras.
—... deveria ter dito antes... obrigações... não tinha a certeza do que... por favor, acredite... ajudá-la de algum modo...
Lara sacudiu a cabeça, sentindo como se alguém a tivesse atacado. Sentia-se confusa e tinha de se esforçar para respirar, mas era quase impossível suportar a pressão que sentia no próprio peito.
— O senhor está enganado — Conseguiu dizer. Sentiu a preocupação do capitão e ouviu-o pedir-lhe que ficasse e que se acalmasse, oferecendo-lhe algo para beber...
— Não, eu não posso ficar - para seu alívio, conseguiu reunir ainda uma ínfima dignidade que lhe permitiu falar com alguma clareza. — A minha irmã precisa de mim. Obrigada. O senhor está errado sobre o meu marido. Ele não se parece com o homem que descreveu. Tenha um bom dia.
Quando saiu, as pernas tremiam-lhe. Sentia-se bastante estranha, e era um grande alívio poder caminhar apoiada no braço do seu próprio criado e entrar na familiaridade da sua carruagem. Ao perceber que algo estava terrivelmente errado, o criado perguntou-lhe se sentia bem.
— Leve-me para casa — respondeu Lara, quase sem conseguir respirar e com o olhar perdido.
Capítulo 18
Lara sentou-se na carruagem tão hirta como uma boneca de cera, enquanto pensamentos e vozes murmuravam na sua cabeça.
A desagradável verdade é...
Fique comigo, Lara...
... que ele ocupou o lugar do seu marido.
Eu não a quero deixar.
Ama-me?
Sim, sim...
A crueldade da situação era atordoadora. Ela tinha finalmente aprendido a confiar num homem, entregando-se de alma e coração... e tudo tinha sido uma ilusão. Um camaleão, dissera o capitão. Um homem sem consciência e sem capacidade para sentir remorsos. Um assassino de sangue-frio. Ele veio até ela, manipulou-a, seduziu-a e fecundou-a. Ele roubou o nome, o dinheiro e as propriedades de Hunter, e até a sua mulher. Que enorme desprezo teve para com as pessoas que enganou.
Qualquer outra mulher teria reconhecido o seu próprio marido, pensou Lara estarrecida. Ela tinha aceite as suas mentiras, porque o seu coração queria acreditar. Ao recordar Janet Crossland e as suas odiosas acusações: Que disposta, que ansiosa se mostra para se meter entre os lençóis com um perfeito desconhecido! Lara queria morrer de vergonha. Esta era a realidade. Desde o primeiro momento que o desejava, instintiva e impetuosamente. Todo o seu ser era atraído para ele. E ela permitiu que tudo aquilo acontecesse.
Humilhação, fúria e angústia agitavam-se dentro dela. A dor era demasiado grande para a conseguir suportar. Sentiu um enorme tremor e ficou muito quieta, tal como uma criança apavorada e pensou por que razão não conseguia chorar. Quase tudo o que era importante para ela lhe tinha sido arrancado. Um turbilhão de sentimentos irrompeu dentro dela, mas nenhum conseguiu penetrar na sua barreira de gelo.
Debilmente, tentou recuperar forças para manter a sanidade. Tinha de traçar um plano, mas os pensamentos racionais escapavam lhe, como peixes escorregadios resvalando entre os dedos. Queria que a carruagem não parasse, que as rodas continuassem a rolar, que os cavalos suportassem o cansaço até chegarem aos confins da terra, lançando-se depois no infinito. Não podia ir para casa. Precisava de ajuda, mas a única pessoa que a poderia socorrer tinha-a traído.
— Hunter — sussurrou com uma dor aflitiva. Mas o verdadeiro Hunter estava morto e o homem que ela chegou a pensar ser seu marido... Nem sabia o seu nome. Um riso histérico crescia-lhe na garganta, mas reprimiu-o com medo de não o poder controlar uma vez que começasse, temendo acabar num manicômio. Para dizer a verdade, a ideia não lhe parecia tão desagradável. Naquele momento, teria apreciado as vantagens de um lugar onde pudesse gritar, rir e bater com a cabeça na parede, sempre que quisesse.
Cheia de força de vontade e mais calma, ficou silenciosa, esperando pacientemente que a carruagem chegasse a Hawksworth Hall. Perdeu a noção do tempo. Poderiam ter passado minutos ou horas, até que finalmente a carruagem parou e o criado, com visível preocupação, lhe abriu a porta.
— Minha senhora — Acompanhou-a cuidadosamente até casa. Lara sabia que havia algo de estranho na sua expressão. Era óbvio, pelo modo como os criados a tratavam. Tratavam-na com a deferência que mostrariam por uma pessoa doente.
— Minha senhora — perguntou a senhora Gorst cuidadosamente - posso fazer alguma coisa por si? A senhora parece um pouco...
— Estou só um pouco cansada — disse Lara. — Quero descansar no meu quarto. Por favor, encarregue-se de que nada me incomode.
Subiu a escadaria com a ajuda do corrimão.
Quando se viu ao espelho do vestíbulo do piso superior, Lara entendeu a razão da preocupação dos criados. Tinha um aspecto febril, como se tivesse apanhado uma insolação, e tinha os olhos brilhantes e aterrorizados. Mas aquele rubor ardente era causado pela vergonha e pela fúria que sentia dentro de si, não por qualquer outra razão.
Quase sem forças, Lara dirigiu-se para o seu quarto mas, em vez disso, encontrou-se à frente da porta do quarto de Rachel. Bateu à porta suavemente e olhou lá para dentro, reparando que a sua irmã estava sentada junto à janela.
— Larissa — disse Rachel com um sorriso rasgando o rosto. — Entre e fale-me da visita que fez aos Tyler - quando olhou para Lara, a sua testa franziu-se com preocupação. — O que aconteceu? O que se passa?
Lara sacudiu a cabeça, incapaz de expressar a sua terrível descoberta. A sua garganta parecia estar cheia de areia. Engoliu diversas vezes, esforçando-se por falar.
— Rachel — disse timidamente, — eu quis trazê-la para aqui para que pudesse tratar de si, mas... receio muito que... em vez disso, tenha de cuidar de mim.
As delicadas mãos de Rachel ergueram-se num gesto de interrogação. Os papéis tinham-se invertido, era a irmã mais nova que agora oferecia conforto à mais velha, mas Lara foi ter com ela sem hesitação.
Sentou-se no chão e apoiou a cabeça no regaço de Rachel.
— Sou uma tonta — disse Lara, penosamente. A história começou a fluir em frases inacabadas, algumas delas incompreensíveis, mas de algum modo Rachel parecia compreender tudo. Lara confessou, em arranques de alma, todos os pormenores mais humilhantes e sombrios, enquanto Rachel acariciava o seu cabelo com os seus finos dedos. Por fim conseguiu chorar, com soluços tão violentos e profundos que lhe causaram tremores por todo o corpo, mas a sua irmã soube manter-se firme enquanto a tormenta passava.
— Está tudo bem - murmurava Rachel vezes sem conta. — Está tudo bem.
— Não — disse Lara, sufocada, sucumbindo em desespero. — Nada será como dantes. Penso que estou à espera de um filho dele. Um filho dele, entende?
Os dedos de Rachel tremeram sobre o cabelo de Lara.
— Oh, minha querida — sussurrou, calando-se enquanto Lara continuava a sua dolorosa confissão.
— O capitão Tyler pode ter-se enganado — disse Rachel a certa altura. — Quem pode saber com total certeza quem é Lorde Hawksworth?
Lara suspirou profundamente e negou com a cabeça.
— O verdadeiro Hunter está morto — disse, abatida. — Não é bom fingir o contrário. Este homem não é meu marido. Penso que sempre soube desde o início, mas não quis enfrentar a realidade. Deixei que acontecesse porque o queria para mim. O que tudo isto faz de mim, Rachel?
— Não tem culpa de nada — respondeu a irmã decidida. Estava muito só. Nunca tinha estado apaixonada antes...
— Não há desculpa para o que fiz. Oh meu Deus, estou tão envergonhada! Porque a verdade é que eu ainda o amo. Eu não quero deixá-lo ir.
— Então, porque deveria querer que ele se fosse embora?
A audácia da pergunta, vinda de uma mulher com princípios como os de Rachel, tirou-lhe a respiração. Olhou maravilhada e espantada para a irmã e em seguida respondeu tremula.
— Por mil razões... mas nenhuma delas importa mais do que o fato de que tudo o que ele disse e fez foi uma mentira. Não significo nada para ele, simplesmente sou um meio para ele atingir os seus fins.
— Ele comportou-se como se gostasse verdadeiramente de você.
— Só porque era conveniente para ele fazê-lo — De repente, um rubor escarlate apoderou-se do seu corpo. — Oh, quando eu penso como fui uma conquista fácil... A pobre viúva, sôfrega de amor... — Enterrou a cara no regaço de Rachel e começou a soluçar novamente. — Só agora entendi como fui protegida. Nem sequer a morte de Hunter me afetou como deveria. Ele era tão estranho para mim, dois anos depois de termos casado, como o era antes. Mas este homem apareceu-me como num sonho e insinuou-se completamente na minha vida... E eu, amei-o. Todos os momentos que passei com ele. E quando ele partir, levará o meu coração com ele. Ele arruinou-me, não poderei ser feliz com mais ninguém.
Ela falou e lamentou-se sem interrupção até que foi superada pelo esgotamento. A sua cabeça caiu no regaço da irmã e adormeceu durante alguns minutos. Quando acordou, tendo estado sentada no chão, a tensão muscular do pescoço e das costas era insuportável. Por um momento pensou que tinha tido um enorme pesadelo e o seu coração bateu cheio de esperança. Mas, ao olhar para o rosto de Rachel percebeu que o pesadelo era real.
— O que vai fazer? — perguntou Rachel com calma.
Lara esfregou os olhos cansados.
— Terei de chamar Lorde Arthur e Lady Janet — disse. — O título ser-lhes-á devolvido, é deles por direito. Devo-lhes toda a ajuda que lhes possa proporcionar. Com relação a Hunter... — Ela parou, engasgando-se no nome. — Ele voltará de Londres amanhã — disse. — Aconselhá-lo a partir antes que seja acusado. Caso contrário, não tenho qualquer dúvida que será enforcado, não só pelo que me fez, mas também pelas fraudes que cometeu em nome do meu marido. Contratos, investimentos, empréstimos... Oh, meu Deus, nenhum deles agora é válido.
— E o bebê? — perguntou a irmã, com suavidade.
— Ninguém tem de saber — disse Lara imediatamente. — Especialmente ele. Agora, já nada tem a ver com ele. O bebê é meu e só meu.
— Você quer ficar com ele?
— Oh, sim - levou a mão ao ventre e fez um enorme esforço para reprimir as lágrimas. — Será que é errado querer esta criança, apesar de tudo?
Rachel acariciou os cabelos desordenados.
— Não, minha querida.
Depois de uma noite de sono intranquilo, Lara despertou e enfrentou o dia com uma enorme sensação de fadiga. Ela sentia a necessidade de vestir luto, como se alguém tivesse morrido, mas colocou um vestido azul, com um ar sóbrio, adornado com uma fita de seda bordada, na cintura e na bainha. A casa parecida envolvida em escuridão.
Ela sabia que deveria dar uma explicação aos criados, amigos e conhecidos de Market Hill... e a Johnny. Como poderia ela fazer uma criança entender o que tinha acontecido, quando ela própria não entendia? Pensando em tudo o que tinha de resolver sentiu um cansaço indescritível.
Prometeu a si mesma que, quando tudo tivesse terminado, quando Hunter desaparecesse da sua vida e o título dos Hawksworth fosse devolvido a Arthur e a Janet, deixaria este lugar para sempre. Talvez refizesse a sua vida em Itália ou em França. Poderia até convencer Rachel a ir com ela. Mas a ideia de recomeçar tudo, deu-lhe de novo vontade de chorar.
Ela contou o tempo desde que Hunter aparecera, não sabia outra forma de referir-se a ele. Três meses. O tempo mais feliz e pleno da sua vida, quando saboreou a felicidade reservada a tão poucas pessoas. Tinha florescido sob o feitiço da suave, apaixonada e amorosa presença dele. Se a dor não fosse tão intensa, o preço que agora pagava teria valido a pena.
Procurando as palavras precisas, Lara tentou preparar uma espécie de discurso para quando Hunter voltasse de Londres. Falaria de forma digna e pausada, evitando argumentos e acusações desagradáveis. Mas tudo o que lhe vinha à cabeça, eram perguntas. Com as emoções em ebulição, resguardadas por uma capa de gelo, foi para o jardim à procura de solidão. Sentou-se num banco, encolheu os joelhos, rodeou-os com os braços e olhou para uma pequena fonte de repuxo com querubins. Uma leve brisa agitava ligeiramente os arbustos podados com esmero e as flores plantadas em canteiros de pedra. Respirou o cheiro quente e doce da relva e esfregou a testa num esforço para aliviar a enorme dor de cabeça.
Como num pesadelo, reparou nas duas figuras que se aproximavam, Arthur e Janet Crossland. Tão cedo, pensou com tristeza. Mas era óbvio que eles não perderiam a mínima oportunidade de recuperar o título, como autênticos abutres sobrevoando a presa acabada de matar. Chegaram cheios de si, altos, mais louros e presunçosos, e com sorrisos muito parecidos.
Janet falou primeiro, sem dar oportunidade a Arthur.
— Levou algum tempo para que caísse em si - fazendo o comentário num tom mordaz. — Suponho que, agora que a sua pequena aventura finalizou, podemos recuperar o que nos pertence por direito.
— Sim — respondeu Lara, num tom apagado. — A aventura terminou.
Arthur inclinou-se para pegar na sua mão caída e apertou-a num ato de preocupação.
— Minha querida sobrinha. Eu entendo tudo aquilo que está sofrendo. Foi enganada, traída e humilhada...
— Estou perfeitamente consciente de tudo o que passei — respondeu Lara. — Não há necessidade de lembrar tudo de novo.
Parecendo surpreendido por aquela ligeira reprimenda, Arthur clareou a voz e disse.
— Ainda não está em si, Larissa. Vou ignorar a sua falta de cortesia, pois sei que está confusa e alterada.
Janet cruzou os braços ossudos à volta do peito e olhou-a com um sorriso frio nos lábios.
— Para mim ela não me parece assim tão confusa - observou. — Parece-me mais uma criança caprichosa a quem tiraram o seu doce.
Arthur dirigiu-se à esposa e murmurou qualquer coisa, por entre dentes. Embora as palavras não fossem claras, serviu para a silenciar temporariamente. Ele olhou para Lara com um sorriso malicioso.
— O seu sentido de oportunidade é intocável, querida Larissa. Foi justamente o que fez, esperar que ele se fosse embora, para me chamar. Certifiquei-me de que ele foi detido em Londres. Embora tivesse preferido que ele fosse posto na prisão, tive de aceitar a prisão domiciliária, na casa dos Hawksworth de Londres, até ao julgamento. Naturalmente o julgamento deverá ter lugar na Câmara dos Lordes, já que ele terá de ser julgado pelos seus pares... Embora eles rapidamente descubram que ele não é um deles!
Lara tentou mas não conseguiu imaginar que o homem que ela supusera ser seu marido estivesse sob guarda. Sabia que ele enlouqueceria ao ser privado da sua liberdade. E bem pior, a ideia de ele ser julgado por todos os Lordes influentes, em Londres... Abafou um pequeno grito de angústia. Ele sempre foi orgulhoso, não o queria ver a ser tão humilhado.
— É necessário que ele seja julgado pelos Lordes? — perguntou com timidez.
— Primeiro prestaremos declarações em privado perante o Lorde Chanceler, Presidente da Câmara dos Lordes. A menos que ele decida anular o caso, o que é muito improvável, haverá uma audiência na Câmara dos Lordes — disse Arthur, sorrindo com malícia. — Oh, sim! Em breve, teremos o nosso suposto Hawksworth a dançar na ponta de uma corda. E vou pedir-lhes que se assegurem de que o pescoço dele não se quebre de imediato, para que sufoque e fique todo azul até que a corda lhe esmague a garganta. E eu estarei lá durante todo o tempo para não perder um só pormenor, enquanto ele é estrangulado lentamente... - parou, ao ver que Lara emitia um ruído inarticulado. Imediatamente adotou um olhar de solícita preocupação. — Minha querida, será melhor que a deixemos em privado para que continue a refletir. Mas, sinceramente, tenho a certeza de que acabará por entender que isto tudo é pelo melhor.
Lara mordeu o lábio e não respondeu, enquanto tudo dentro dela gritava em protesto. Seguramente, esta era a coisa certa, moralmente certa, fazendo. Como poderia enganar-se com a verdade mesmo à sua frente? Mas todos os argumentos lógicos só pareciam confundi-la mais. Ela apoiava os Crossland e a reivindicação deles ao título porque era sua obrigação fazê-lo, apesar de lhe trazer uma imensa tristeza. Eles iriam dilapidar a fortuna da família, seriam arrogantes e egoístas, e todos os moradores da propriedade de Hawksworth iriam sofrer. E Johnny seria privado do futuro seguro que ela tinha pretendido para ele. Como era possível que tudo isto fosse o mais certo fazendo?
Uma única lágrima quente rolou pelo rosto, e Janet olhou-a com um sorriso malicioso.
— Anime-se, minha querida — disse, com suavidade. — Teve uma excitante aventura, não teve? O seu marido temporário era realmente um homem bem-parecido. Sem dúvida, terá sido um entretenimento muito bom na cama. Nem que seja apenas por isso, deveria estar-lhe agradecida.
Arthur agarrou o braço magro da mulher e empurrou-a bruscamente. Lara ouviu as palavras murmuradas por ele.
— Cale-se, não é mais do que uma harpia de língua viperina. Continue a provocá-la e ainda perdemos o título. Precisamos do seu testemunho, não entende? - voltou a olhar para Lara e sorriu com uma expressão tranquilizadora.
— Não se preocupe com nada, Larissa. Tudo isto terminará em breve e estará finalmente em paz. Entretanto, existem alguns obstáculos a ultrapassar, eu irei ajudá-la em todos os passos.
— Oh, obrigada — respondeu Lara em voz baixa.
Ele olhou-a fixamente, desejando saber claramente se tinha imaginado um tom de sarcasmo na sua resposta.
— Espero cortesia da sua parte, Larissa. Lembre-se, nós somos toda uma família, com um único objetivo em mente. E, para além disso, espero que seja cordial com Lorde Lonsdale quando ele chegar esta tarde, apesar da discórdia que parece ter surgido entre os dois.
— Não! — Lara levantou-se rapidamente e o seu rosto ficou subitamente pálido. — Por amor de Deus! Porque é que convidaram Lorde Lonsdale a vir a esta casa?
— Acalme-se — disse Arthur, sem levantar a voz e olhando-a fixamente. — Lorde Lonsdale tem informações que são extremamente úteis para o nosso caso, e eu pretendo discuti-las com ele. Ele também aqui vem porque deseja recuperar a mulher. Quem o pode recriminar, depois do modo como roubou a sua irmã da sua própria casa.
— Não vou permitir que Lorde Lonsdale ponha um pé nesta propriedade — Exclamou determinada. — Não o vou permitir, entende?
— Não vai permitir? — perguntou Arthur, incrédulo, enquanto Janet ria sordidamente. — Lembre-se, sobrinha, já não é a senhora da casa. Já não tem nenhum direito de objetar contra qualquer uma das minhas decisões, e muito menos de proibir seja o que for.
— Não obstante, eu faço-o — disse Lara, semicerrando os olhos. — E se me contrariar nesta questão, não terá o meu testemunho contra Hunter. Retirarei a minha ajuda e jurarei, diante de quem quer que seja, que ele é, e sempre foi, o meu marido... A não ser que me prometa aqui e agora que manterá Lorde Lonsdale longe da minha irmã.
— Por quanto tempo? — perguntou Arthur, encarando-a como se ela fosse uma louca.
— Indefinidamente — respondeu Lara.
Ele desatou a rir, não acreditando no que ouvia.
— Manter um marido longe da sua própria mulher... indefinidamente... Receio que isso seja pedir demais, minha querida.
— Ele é um marido violento e abusivo. Quase matou Rachel da última vez que lhe bateu. Se quiser confirmar, pergunte ao doutor Slade.
— Tenho a certeza de que está a exagerar - rebateu Arthur.
— Sempre achei Lorde Lonsdale muito agradável - observou Janet. — Além disso, se bateu em Rachel, foi porque, eventualmente, ela o tenha merecido.
Lara negou lentamente com a cabeça e encarou Janet fixamente.
— Que observação, vinda de outra mulher... — Lara começou a falar, mas a sua voz desvaneceu-se ao compreender que não valia a pena argumentar com Janet.
Olhou para Arthur.
— A sua promessa, em troca do meu testemunho.
— Está me pedindo algo que não só é imoral, como também é ilegal — protestou Arthur.
— Não me parece que isso o preocupe muito — Contestou Lara, com frieza. — Jamais terá o meu apoio de outro modo. Além disso, espero que mantenha a sua palavra até mesmo depois do julgamento. Só espero que seja suficientemente cavalheiro para a manter.
— Sua teimosa, irracional, insolente... — disse Arthur, com o rosto magro a enrubescer de raiva, mas Janet interrompeu-o com um toque de prazer felino.
— Lembre-se, querido... nós precisamos do testemunho dela.
Arthur fechou a boca, os músculos da cara torceram-se e contraíram-se ao tentar controlar a raiva que sentia.
— Está bem — respondeu bruscamente e lançando a Lara um olhar fulminante. — Desfrute desta pequena vitória. Juro-lhe que será a última — Deu meia volta e saiu, enfurecido. Janet saiu atrás dele.
A fúria contida de Lara tardou algum tempo a desaparecer. Sentou-se novamente, com os joelhos a tremer, e escondeu o rosto nas mãos. As lágrimas escorriam por entre os dedos e suspirou.
— Oh, Hunter — sussurrou, arrasada. — Porque não conseguiu ser verdadeiro?
Dali em diante, os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade desconcertante. Embora Hunter tivesse recusado qualquer tipo de ajuda legal, o senhor Young ignorou as suas instruções e chamou o advogado da família, o senhor Eliot, advogado do tribunal de Sua Majestade, que, por sua vez, mandou chamar o conceituado advogado, o sargento Wilcox.
Lorde Arthur e Lady Janet, por sua vez, contrataram outro advogado para levar avante a acusação, embora nem ele, nem Wilcox, muito pudessem fazer. O Presidente da Câmara dos Lordes tinha enviado dois oficiais de justiça a Market Hill para recolher testemunhos de todos aqueles que tivessem uma informação válida para oferecer. Estes oficiais estiveram freneticamente ocupados durante dois dias, pondo por escrito os testemunhos e opiniões de quase todo o condado. Lara estava quase grata pelo modo como Lorde Arthur a manteve protegida da enorme quantidade de visitas. Ele conseguiu manter os visitantes à distância, informando todos os conhecidos de que Lara estava muito constrangida para receber visitas.
Porém, Lara consentiu a visita do senhor Young, quando este regressou de Londres. Ela sabia que ele tinha visto Hunter e, apesar de todos os seus esforços para parecer indiferente, ansiava por saber algumas notícias.
O senhor Young aparentava um aspecto muito cansado devido â falta de sono. Os seus suaves olhos castanhos estavam encarnados, revelando grande preocupação. Lara recebeu-o na sala de estar e fechou a porta, porque conhecia bem o hábito de Janet espiar as conversas alheias. Aqui disporiam de uma certa privacidade.
— Como está ele? — perguntou Lara sem rodeios, enquanto se sentava e, com um gesto, o convidava fazendo o mesmo.
O senhor Young sentou-se na extremidade do sofá, junto a ela. Os seus magros joelhos e cotovelos destacavam-se nas roupas amarrotadas.
— A sua saúde está boa — respondeu de forma sombria. — Mas em relação ao seu estado emocional, não sei o que lhe possa dizer. Ele fala muito pouco e não demonstra raiva nem medo. Na realidade, dá a impressão de que todo o processo lhe é indiferente.
— Ele precisa de alguma coisa? — perguntou Lara, com um nó na garganta. Ela tinha uma enorme necessidade de o ver, de lhe oferecer o seu apoio e consolo.
— Se a senhora não se importar, gostava de lhe levar roupa limpa e alguns objetos pessoais amanhã, quando voltar para Londres.
Lara assentiu com a cabeça.
— Por favor, assegure-se de que tem tudo de que necessita.
— Lady Hawksworth — disse o senhor Young com uma certa timidez, — asseguro-lhe que nem eu nem o doutor Slade teríamos trazido Lorde Hawksworth se não tivéssemos a total certeza da sua identidade.
— Todos queríamos acreditar nele — murmurou Lara. — Ele sabia disso, e aproveitou-se.
— Minha senhora, sabe que a sua opinião merece o meu mais absoluto respeito... Mas não posso deixar de pensar que está a atuar debaixo da influência do seu tio. Não é tarde para mudar de opinião - o seu tom de voz tornava-se mais intenso, conforme ia falando. — Tem consciência do que acontecerá ao seu marido se não retirar as acusações?
Lara sorriu com tristeza, enquanto olhava para ele.
— Foi ele que o enviou até aqui, para me dizer isso?
O senhor Young negou com a cabeça.
— Hawksworth recusa-se a proferir uma única palavra em sua própria defesa. Ele não vai confirmar ou negar a sua identidade. Só se limita a dizer que todo o assunto deverá ser decidido por você.
— O assunto deve ser resolvido com a intervenção de cada um de nós e temos de fazer todos os possíveis para honrar a verdade. Tudo o que eu posso fazer é manter as minhas convicções, goste ou não das consequências.
A decepção do senhor Young era evidente.
— Eu entendo, Lady Hawksworth. No entanto, espero que não fique ofendida se o doutor Slade e eu prestarmos o nosso apoio a Lorde Hawksworth.
— Antes pelo contrário — disse Lara, lutando para impedir que a sua voz a denunciasse. — Alegra-me saber que o irão ajudar em tudo o que possam, já que eu não o posso fazer.
— Sim, minha senhora — disse o senhor Young, dirigindo-lhe um sorriso triste. Por favor, perdoe a minha rudeza, mas tenho de ir. Tenho muitos assuntos para tratar a pedido do Lorde Hawksworth.
Lara levantou-se e estendeu-lhe a mão.
— Faça tudo o que puder por ele — disse, suavemente.
— Claro - o senhor Young franziu a testa pesarosamente. — Sou de opinião que vocês os dois são um par marcado pelo destino. Sempre pensei que tinham todos os motivos para serem felizes, mas o destino é traiçoeiro e colocou obstáculos no vosso caminho. Jamais imaginei que pudesse acabar assim.
— Nem eu — sussurrou Lara.
— Eu nunca me considerei um romântico - prosseguiu, desajeitadamente, — mas, minha senhora, espero vivamente que a senhora e ele...
— Não — disse ela gentilmente, acompanhando-o à porta. — Não tenha esperanças.
Nas paredes do quarto das crianças, estavam alinhados bonecos e jogos, e estavam pendurados quadros com imagens de crianças a brincar. Lara tinha tentado tornar aquele quarto num refúgio confortável para Johnny, mas, agora, parecia-lhe muito reduzida a proteção que lhe poderia oferecer. Endireitou um livro na estante pintada de azul e sentou-se na extremidade da cama de Johnny. Ele parecia tão pequeno, deitado por cima das almofadas, com o seu cabelo preto ainda úmido do banho.
A reação do menino aos acontecimentos dos últimos dias foi quase pior do que as lágrimas que Lara esperava. Reagiu à ausência de Hunter com uma seriedade inabalável, todos os sorrisos e vitalidade infantis se extinguiram por completo.
Lara não entrou em pormenores ao explicar-lhe a ausência de Hunter, porque sabia que iria ultrapassar a capacidade de entendimento de uma criança com tão pouca idade. Limitou-se a explicar que Hawksworth se havia portado mal e que tinha sido preso, até que um juiz pudesse clarificar tudo.
— Mamãe, o Lorde Hawksworth é mau? — perguntou Johnny, olhando-a fixamente com os seus enormes olhos azuis.
Lara acariciou o cabelo.
— Não, querido — murmurou. — Não acredito que seja mal de verdade, mas talvez o tenham de castigar por ter feito coisas erradas no passado.
— Lorde Arthur disse que o vão enforcar, como fizeram com o meu papai.
— Ele disse isso? — perguntou Lara gentilmente, tentando ocultar o súbito acesso de raiva que sentia de Arthur. — Bem, ninguém sabe ao certo o que vai acontecer, até sermos recebidos pelo Lorde Chanceler.
Johnny virou-se de costas e apoiou a cabeça na pequena mão.
— Mamãe, um dia eu também vou para a prisão?
— Nunca — respondeu Lara com firmeza, baixando-se para beijar a sua escura cabeleira. — Eu nunca permitirei que isso aconteça.
— Mas, e se eu crescer e for um homem mau?
— Irás ser um homem muito bom — disse Lara, olhando-o fixamente, cheia de ternura e de um intenso amor. — Não te preocupes com esses assuntos. Vamos ficar sempre juntos, Johnny, e tudo ficará bem.
O menino aconchegou-se no travesseiro, com uma expressão ainda grave e cheia de incertezas.
— Eu quero que Lorde Hawksworth volte — disse.
Lara fechou os olhos, enquanto reprimia as lágrimas repentinas.
— Sim, já sei disso. — Deixou sair um profundo suspiro e cobriu o menino, aconchegando-lhe os ombros estreitos.
Lara chegou a Londres na noite anterior à reunião marcada com o Lorde Chanceler. Decidiu alojar-se na casa dos Hawksworth, a residência de Park Place, onde Hunter se encontrava sob custódia. A casa de um branco resplandecente, tinha janelas brancas de sacada alta e um frontão clássico, apoiado em quatro pilares, construída com elegância e bom gosto. O interior estava forrado com lambris de madeira de carvalho, pintados com uma gama de cores suaves de bege, pedra e uma forte tonalidade azeitona, criada especialmente para os Hawksworth, há cinquenta anos antes. Era uma mescla de azul-da-prússia e ocre. Este tom muito peculiar de azeitona causou sensação em toda a Inglaterra e tornou-se muito popular.
Lara era inundada por um enorme tremor à medida que se aproximava da casa. A sensação de passar a noite debaixo do mesmo teto que Hunter, embora em quartos separados, fazia-a tremer incontrolavelmente. Ela queria fazer-lhe todas as perguntas que a tinham atormentado dia e noite. No entanto, não tinha a certeza de o conseguir encarar. Não, sem se sentir ir abaixo em frente dele, humilhação com a qual ela não conseguiria viver para o resto da sua vida.
Para alívio de Lara, Lady e Lorde Crossland tinham escolhido ficar na sua própria casa de Londres, preferindo as suas familiares extravagâncias ao ambiente da casa de Hawksworth. Silenciosamente, pediu aos criados que levassem as malas para o seu quarto e que arrumassem as suas coisas, mas o mordomo informou-a que esse quarto já estava ocupado.
— Por quem? — perguntou Lara, receosa.
— Pela condessa viúva, minha senhora.
— A mãe de Hunter está aqui? Os lábios de Lara entreabriam-se pelo espanto, encarando o mordomo com um olhar inexpressivo.
— Quando...? Como?
— Cheguei esta tarde - ouviu-se a voz da condessa viúva vinda do cimo das escadas. — Quando finalmente me chegou às mãos uma das suas cartas, daquelas que enviou por toda a Europa, decidi vir imediatamente para Londres. Tencionava ir amanhã até à propriedade e pôr em ordem toda esta trapalhada, pessoalmente. Mas, entretanto, descobri que o meu suposto filho estava aqui sob vigilância. Parece-me que a minha chegada não poderia ter sido mais oportuna.
Lara tinha começado a subir as escadas enquanto a sua sogra falava. Como sempre, Sophie, a condessa viúva de Hawksworth, mantinha-se elegante e atraente, com o seu majestoso penteado, o cabelo prateado apanhado em cima e o seu característico colar de pérolas que descia sobre o peito. Era uma mulher inteligente e resoluta, que reprimia qualquer emoção, mesmo nas circunstâncias mais extremas. Sophie era difícil de amar, mas muito fácil de gostar.
— Mãe! — Exclamou Lara, abraçando-a imediatamente.
Sophie tolerou o abraço, sem o retribuir e sorriu-lhe amigavelmente.
— Bem, Larissa... Pelo que vejo, teria sido melhor ter aceite o meu convite para compartilhar as minhas viagens. Foram tempos difíceis, não foram?
— Sim — disse Lara, devolvendo um frágil sorriso, com uma expressão ferida no olhar.
— Bom, bom — disse Sophie, suavizando a sua expressão. — Nós as duas sairemos disto e arranjaremos alguma solução. Uma garrafa de vinho e uma boa e longa conversa... é do que precisamos nesta altura.
Depois de dar algumas ásperas instruções aos criados, Sophie pegou no braço de Lara e foram as duas para a sala lavanda, uma sala de estar que Sophie tinha decorado. A única exceção numa casa tipicamente masculina, era esse quarto, que era extremamente feminino. De tons malva e lavanda, e com alguns apontamentos cor de ameixa, tinha também pequenas mesas retocadas a ouro e violetas pintadas nos vidros das janelas. O cheiro a violetas impregnava o seu cabelo e os seus pulsos, uma fragrância que era a preferida de Sophie, desde há décadas.
Lara questionava-se em que quarto Hunter estaria aprisionado, o que estaria a pensar e se saberia que ela estava ali.
— Já o viu? — Lara perguntou, com um certo nervosismo.
A viúva demorou um certo tempo até responder e sentou-se cuidadosamente numa cadeira forrada a veludo.
— Sim, vi-o. Conversamos durante algum tempo.
— Ele parece-se muito com Hunter, não acha?
— Naturalmente. Eu ficaria muito surpreendida se não se parecesse.
Perplexa, Lara sentou-se noutra cadeira e encarou a sua sogra.
— Estou certa que não sei ao que se refere.
Os seus olhares encontraram-se e ficaram num silêncio glacial durante uns instantes. Lara nunca tinha visto Sophie tão perturbada.
— Estou percebendo — murmurou a viúva, finalmente. — Não lhe contaram nada, não é certo?
— Não me contaram o quê? - um sentimento de frustração apoderou-se de Lara. — Meu Deus, estou cansada de tantos segredos — Exclamou. — Por favor, o que pode revelar sobre o homem que está sob guarda, nesta casa?
— Para começar — respondeu a viúva com aspereza, — ele e o meu filho Hunter eram meios-irmãos.
Capítulo 19
Perante o olhar atônito de Lara, Sophie aguardou com paciência e em silêncio até que um criado chegasse com uma garrafa de vinho tinto e dois copos de cristal, com incisões em forma de diamante, talhadas no pé. Outro criado encarregou-se, cerimoniosamente, de abrir a garrafa. Lara teve de morder o lábio para conseguir manter o silêncio, enquanto observava, cada vez com mais ansiedade, a lentidão dos criados. Lara agarrou o copo de vinho pelo pé, de tal forma que a talha do pé lhe fez marcas nos dedos. Esperou até que os criados se retirassem para falar.
— Por favor conte-me - pediu com suavidade, tentando manter a calma.
— O meu marido, Harry, tinha uma enorme fraqueza por mulheres atraentes — disse Sophie. — Eu tolerava essa situação porque ele era discreto e porque voltava sempre para mim. Nenhum homem é perfeito, Larissa. Cada um deles tem características ou hábitos desagradáveis que temos de tolerar. Amei Harry, apesar das suas infidelidades que nunca se tornaram grande problema para mim... até que, em certa ocasião, uma das relações acabou numa gravidez não desejada.
— Quem era ela? — perguntou Lara. Bebeu um golo de vinho e o sabor acre invadiu a boca.
— A mulher de um embaixador. Quase todos os homens em Londres a pretendiam. Para Harry ela era um troféu, estou certa disso. A relação durou quase um ano, e quando o bebê nasceu, ela comunicou a Harry que não pensava ficar com a criança. Seria dele, para que fizesse o que achasse melhor.
— Mas ele queria-o?
— Sim, Harry queria muito aquele bebê. Pretendeu que a criança vivesse conosco, ou pelo menos que fosse criado num lugar perto de nós, para que o pudesse visitar de vez em quando. No entanto, eu não quis ouvir falar nessa possibilidade. Como sabe, não tivemos muita sorte em relação à saúde dos nossos filhos. Os nossos três primeiros filhos morreram, muito pequenos. Entretanto, tínhamos sido finalmente abençoados com a chegada de Hunter. Tive medo que o interesse de Harry pelo seu filho bastardo fosse maior do que pelo seu próprio filho. Preocupava-me muito em proteger os interesses de Hunter. Insisti para que o bastardo fosse entregue a um casal de missionários que o levassem para tão longe, que nós nunca mais o víssemos.
— Para a Índia — Completou Lara. Cada palavra de Sophie chegava até aos seus ouvidos como o suave clique das peças de um puzzle, que ia ficando completo.
— Sim. Eu sabia que aquela decisão resultaria indubitavelmente numa vida dura para a criança, sem meios ou posição social e afastado do seu pai. O meu marido estava bastante relutante em tomar a decisão definitiva, mas eu insisti. — Sophie compôs as saias com um cuidado excessivo. — Durante trinta anos, tentei esquecer o que tinha feito, mas ele permaneceu diariamente nos meus pensamentos mais profundos... A assombrar-me, poderei dizê-lo.
Lara pôs de lado o seu copo de vinho, encarando a sogra sem pestanejar.
— Como se chamava ele?
Sophie encolheu os ombros.
— Eu não podia permitir que o pai dele lhe escolhesse um nome. Não tenho nenhuma ideia de como o chamaram os seus pais adotivos.
— E o seu filho legítimo sabia que tinha um irmão?
— Não. Eu não vi nenhuma razão para lhe dizer. Jamais pretendi que um filho bastardo de Harry interferisse nas nossas vidas — As leves rugas nos cantos da boca de Sophie, esticaram-se para esboçar um sorriso nervoso. — A ironia de tudo isto é surpreendente, não acha?
Lara não estava com disposição para apreciar ironias e não devolveu o sorriso à sua sogra. Sentia-se vítima de uma cadeia de acontecimentos cuja origem era bastante anterior ao seu próprio nascimento. O caráter mulherengo de Harry, a cruel rejeição da própria criança, pela mulher do embaixador, o repúdio de Sophie pela criança bastarda, a egoísta irresponsabilidade de Hunter... e finalmente, o desconhecido que tinha invadido a sua vida e a tinha seduzido com as suas mentiras.
Lara não tinha tido influência em nenhuma daquelas situações e, no final de contas, acabou por ser ela a ser castigada, pelas ações de todos os outros. Teria de lidar com as consequências durante toda a sua vida... também ela ia conceber um filho ilegítimo. E, ao ficar com ele, significava ver-se afastada da sociedade, para o resto da sua vida. Embora Lara estivesse tentada a contar a Sophie sobre a sua gravidez, guardou silêncio, movida por um instinto maternal que germinava em si. A única maneira de proteger os interesses da criança era mantê-la em segredo.
— E agora? O que vamos fazer? — perguntou em voz baixa.
Sophie olhou-a com uma expressão inquiridora.
— Isso é você que deve decidir.
Lara negou com a cabeça, em sinal de protesto.
— Eu não estou em condições de poder pensar com clareza.
— Eu sugiro que vá até ao piso de baixo, ao quarto de hóspedes, onde o seu amante está sob vigilância e fale diretamente com ele. Depois disso, acredito que saberá como deseja proceder.
O seu amante... A expressão não lhe parecia apropriada. Lara ainda o via como sendo o seu marido, apesar da relação deles ter sido agora realçada como uma ligação ilícita.
— Eu não sei se consigo enfrentá-lo — murmurou.
— Ora essa — Sophie repreendeu-a com suavidade, — se eu pude reunir a coragem para o fazer, depois de trinta anos, seguramente a Larissa também poderá.
Lara retirou as suas roupas de viagem, pôs um simples vestido de musselina, estampado com minúsculas flores cor-de-rosa e folhas verde-pálido. Escovou o cabelo e recolheu-o num rolo apertado sobre a cabeça. Olhou para o espelho e viu que estava pálida e assustada... Mas não era de Hunter que ela tinha medo, era de si mesma.
Endireitou os ombros e jurou em silêncio que, independentemente do que pudesse acontecer entre os dois, ela não cederia às lágrimas ou à raiva. Tinha de preservar a sua dignidade, a todo o custo.
Chegou a uma porta que estava flanqueada por dois guardas e, gentilmente, pediu permissão para visitar o prisioneiro. Reparou, aliviada, que eram homens respeitadores e corteses, tendo um deles sugerido que ela os chamasse, se necessitasse de ajuda. À medida que entrava no quarto, o sangue acelerava nas veias, devido aos nervos e à excitação, e Lara sentia que o seu rosto estava de um tom vermelho-vivo.
E lá estava ele.
De pé, no meio do quarto sem janelas, os seus cabelos tinham o mesmo tom de ouro envelhecido e castanho das molduras douradas dos quadros que cobriam as paredes. O quarto de hóspedes era pequeno mas luxuoso, as paredes revestidas de azeitona forte e damasco dourado, e o estuque de gesso, pintado com um tom cinza suave. Duas portas de vidro com dobradiças em fole, separavam a zona de estar da de dormir. Ele parecia estar em casa, naquele ambiente tão elegante, um autêntico cavalheiro inglês, em todos os aspectos. Era impossível adivinhar quem ele era na realidade, ou de onde tinha vindo. Era um camaleão, realmente.
— Como está? — perguntou ele, cravando o olhar no seu rosto.
A pergunta avivou uma chama de raiva. Como se atrevia ele a mostrar preocupação por ela depois do que lhe tinha feito? Mas uma parte de Lara não conseguiu evitar responder. Desejava ir até ele e sentir os seus braços a rodearem-na, de apoiar a cabeça no seu ombro firme.
— Não estou bem — Admitiu.
Toda a naturalidade e intimidade que tinha existido entre eles, permaneciam ainda. Lara sentiu um súbito e vertiginoso prazer ao estar junto dele e, ainda mais grave, aquele sentimento de plenitude que jamais experimentaria com outra pessoa.
— Como é que descobriu? — perguntou com rispidez.
— Falei com o capitão Tyler.
Ele assentiu ligeiramente com a cabeça, sem dar mostras de surpresa ou de raiva. Ele nunca pensou que aquilo fosse durar, percebeu Lara, sempre soube que esta farsa era apenas temporária. Então, por que o fazia? Para quê arriscar a sua vida em troca de uns quantos meses a fingir ser Hawksworth?
— Por favor — disse ela, ouvindo a sua própria voz, como se estivesse a falar de um sonho — Ajude-me a entender porque é que me fez isto.
Ele não respondeu de imediato, observava-a com a concentração de alguém que tenta resolver um problema matemático. Então afastou-se ligeiramente dela, com o perfil endurecido, as suas grossas pestanas semicerradas.
— As pessoas que me criaram — Ele não conseguia chamá-los pais. Eram, no melhor dos casos, protetores mas muito negligentes, por sinal - ... nunca me esconderam a minha verdadeira identidade. Cresci com o desejo de saber mais sobre aquele pai que não quis ficar comigo, e sobre o meu meio-irmão que, muito provavelmente, nem sequer sabia da minha existência. Quando soube que Hawksworth estava na Índia e que tinha uma casa em Calcutá, quis descobrir mais sobre ele. Durante algum tempo, observei-o à distância, até que uma noite, entrei na casa dele, aproveitando a sua ausência.
— E esteve a ver os pertences dele - mais do que uma pergunta, era uma afirmação. Lara sentou-se num pequeno sofá de bordas arredondadas. As suas pernas, de repente, já não conseguiam apoiá-la. Ele permaneceu de pé, no outro extremo do quarto.
— Sim.
— E encontrou o meu retrato em miniatura.
— Sim. E também as cartas que lhe tinha enviado.
— As minhas cartas? — Lara tentou recordar-se do conteúdo das suas cartas para Hunter. Na sua maior parte, eram descrições das suas atividades diárias, das suas relações com as pessoas da aldeia e notícias da família e de amigos de longa data. Não havia palavras de amor ou de saudade, nada sobre a sua vida privada. — Não com você perceber por que é que Hunter as teria guardado. Não tinham nada de especial.
— Eram adoráveis — disse ele, com ternura. — Encontrei-as dentro de uma gaveta, onde ele as guardava, junto dos seus diários.
— Hunter nunca teve diários - negou ela, com determinação.
— Tinha sim — respondeu tranquilamente. — E pelo modo como foram numerados e datados, entendi que ele teria outros aqui em Inglaterra. Encontrei-os pouco depois de chegar a Hawksworth Hall e, quando retirei toda a informação de que precisava, destruí-os.
Lara sacudiu a cabeça, perturbada com esta revelação sobre o seu marido.
— O que é que Hunter escrevia nestes diários? — perguntou Lara.
— Ele encheu-os com coisas que julgava serem segredos importantes, intrigas políticas, escândalos sociais... na sua maior parte, coisas sem interesse.
— Ele mencionou o meu nome? — perguntou, hesitante. — O que é que... — Calou-se ao perceber pela expressão dele, que Hunter não se referia a ela com ternura.
— Era evidente que o casamento não corria bem.
— Ele aborrecia-se comigo — disse Lara.
Ao ouvir aquele tom de derrota na voz de Lara, ele olhou para ela com súbita intensidade.
— Hunter desejava Lady Carlysle. Casou-se com você porque era suficientemente jovem para lhe dar filhos.
E tinha-se revelado que ela era estéril.
— Pobre Hunter — sussurrou Lara.
— Pobre e estúpido canalha — Acrescentou ele. — Ele era demasiado pretensioso e obtuso para conseguir apreciar a sorte que tinha. Eu li as suas cartas e soube, instantaneamente, que tipo de mulher era você, compreendi exatamente o que ele estava a desperdiçar. Ele tinha desperdiçado, com demasiada facilidade, a vida que eu desejava, a vida que eu julgava merecer - semicerrou os olhos. — Eu levei a sua miniatura e mantive-a sempre comigo. Pensava, a todo o momento, o que poderia estar fazendo... Se estava a tomar banho... a escovar o seu cabelo... se estava a visitar os seus amigos na aldeia... sentada sozinha, a ler... a rir... a chorar. Tornou-se numa obsessão, para mim.
— Chegou a conhecer o meu marido? — perguntou Lara.
Ele ficou calado durante muito tempo.
— Não.
— Está mentindo — disse ela, com calma. — Conte-me o que se passou, na realidade.
Ele olhou fixamente para Lara, tão bonita e obstinada, que aquela sua fragilidade se transformava numa fortaleza severa e delicada, derrotando-o. Não poderia continuar a ocultar-lhe coisa nenhuma, era como se tivesse escancarado a alma e tudo se revelasse, até o seu segredo melhor guardado. Ele não estava consciente dos seus movimentos, mas deparou-se num canto do quarto, apoiando a testa ao papel de parede cor de damasco.
— Foi no mês de Março, durante o festival... Holi e Dhuleti, assim se intitula. O festival das cores. Acendem-se fogueiras por toda a parte e a cidade enlouquece com as celebrações. Todos sabiam que Hawksworth dava a maior festa de Calcutá... — Ele continuou a relatar tudo, distraidamente, e quase esquecia da presença de Lara no quarto.
Vagueava pelas ruas, em frente do palácio de Hawksworth, por entre a tumultuosa multidão. As pessoas riam e gritavam e, dos telhados das casas, lançavam um pó colorido e tinta. As raparigas usavam canas de bambu para borrifar água perfumada, purpurinas prateadas e tinta vermelha aos transeuntes, enquanto os rapazes besuntavam os seus rostos com maquiagem, vestiam saris atrevidos e dançavam nas ruas.
Uma horda de pessoas entrava e saía do enorme solar de Hawksworth, um edifício opulento de traçado clássico que se erguia, imponente, junto à margem do rio Hugli. Estava revestido com estuque de chunam cor de marfim, polido como se fosse mármore, e uma fila de elegantes colunas adornava a fachada. Aquele mar de rostos ingleses parecia idêntico ao dele, todos eles manchados com tinta colorida, os seus olhos vidrados devido ao álcool e as caras pegajosas de se empanturrarem de guloseimas e frutos secos.
Com o coração a bater com força, decidiu entrar no solar e misturar-se entre os foliões. Usava uma espécie de capa com capuz, de algodão vermelho-escuro, semelhante às extravagantes indumentárias dos outros convidados. O luxo da casa era impressionante, nas salas havia enormes lustres pendurados nos tetos, as paredes estavam revestidas com pinturas de Ticiano, havia cristais de Veneza por toda a parte.
À medida que caminhava de quarto em quarto, as mulheres já ébrias, lançavam-se para cima dele, contagiadas pelo ambiente orgíaco que ali se vivia. Ele afastava-as com desdém, mas parecia que nenhuma delas notava que ele as rejeitava e simplesmente davam risadinhas e partiam, à procura de uma nova presa.
Os únicos rostos sóbrios na multidão eram os dos criados indianos, que andavam de um lado para outro com travessas de comida e de bebidas, que eram devoradas imediatamente. Perguntou a um dos criados onde estava Hawksworth, mas o rapaz apenas encolheu os ombros e dirigiu-lhe um olhar perdido. Procurou, à cautela, pelo solar e chegou, ao que lhe parecia ser a biblioteca. A porta estava entreaberta e só conseguiu vislumbrar uma alta estante de livros de mogno, sobre a qual havia uma coleção de bustos em mármore e umas escadas de biblioteca, com um corrimão em madeira talhada.
Ao ouvir vozes murmuradas, aproximou-se da entrada. Havia risos ligeiros, suspiros e um gemido baixo... o som inconfundível de um casal fazendo amor. Franziu a sobrancelha e recuou até ficar dissimulado por entre as sombras.
Pouco tempo depois, ficou tudo em silêncio e uma mulher morena deixou o quarto. Ela estava corada e atraente, com um sorriso nos lábios à medida que endireitava as saias do seu vestido de seda selvagem cor de romã, e ajustava os seios no peitilho decotado. Satisfeita com a sua aparência, saiu a toda a pressa, sem reparar no homem no canto sombrio.
Logo em seguida, entrou na sala sem fazer ruído, e viu um homem alto e de ombros largos, virado de costas para ele, a abotoar as suas calças. O homem virou a cabeça e conseguiu-se perceber aquele característico perfil, nariz comprido, maxilar bem definido e testa parcialmente escurecida com uma espessa mata de cabelo preto. Era Hawksworth.
Hawksworth dirigiu-se até à secretária, revestida com couro verde, e pegou num copo que continha uma bebida de cor âmbar. Nessa altura, reparou que não estava sozinho, voltou-se e olhou diretamente para o intruso.
— Maldito! — Exclamou assombrado. — Quem pensa que é, para aparecer assim tão furtivamente pelas minhas costas? Exijo uma explicação!
— Peço desculpa — respondeu com alguma dificuldade. Tirou a capa e permaneceu ali, a olhar fixamente para Hawksworth, fascinado por aquele rosto tão misteriosamente semelhante ao seu. Hawksworth, também notou a semelhança.
— Ai, meu Deus — murmurou, pondo de lado a sua bebida e aproximando-se dele. Dois pares de olhos castanho-escuros contemplaram-se, com mútua fascinação.
Eles não eram idênticos... Hawksworth era mais escuro, mais corpulento e tinha o aspecto elegante e bem tratado dos animais de puro-sangue. Mas se alguém os visse juntos, saberia imediatamente que eles estavam relacionados.
— Que diabo, quem é o senhor? — Exclamou logo Hawksworth.
— Eu sou o seu meio-irmão — respondeu com calma, enquanto estudava o conjunto complexo de emoções no rosto de Hawksworth.
— Meu Deus — murmurou Hawksworth e, num ápice, agarrou novamente o seu copo e bebeu de uma só vez. Baixou o copo, tossiu e ficou a olhar para aquele estranho com o rosto vermelho.
— Um deslize do meu pai — disse com brusquidão. — Ele falou-me de si, numa ocasião, mas não me soube dizer onde tinha ido parar.
— Fui criado por missionários, em Nandagow.
— Não estou minimamente interessado em saber pormenores da sua vida - interrompeu-o Hawksworth, indignado e com uma sensação de suspeita, — mas posso adivinhar o motivo que o trouxe até mim. Garanto-lhe que já tenho demasiados parasitas a tentarem constantemente mexer nos meus bolsos. É dinheiro, o que pretende? - inclinou-se, procurou na gaveta da secretária e retirou uma caixa de dinheiro. Meteu a mão na caixa, que não estava trancada, retirou um punhado de moedas e atirou-as ao estranho. — Tome. E saia daqui. Acredite que isto é tudo o que vai obter de mim.
— Eu não quero dinheiro - humilhado e furioso, permaneceu ali, suspenso, entre as moedas cintilantes.
— Então, o que quer? — Hawksworth exigiu saber.
Não podia responder, só conseguiu ficar parado, como um pobre miserável, enquanto no seu interior, morriam todas as perguntas que tinha sobre o seu pai e sobre o seu passado.
Hawksworth parecia conseguir ler os seus pensamentos.
— O que julgava que iria acontecer, ao vir aqui? — perguntou com um desprezo penetrante. — Achava que eu o receberia de braços abertos, a ovelha tresmalhada, e dar-lhe-ia as boas-vindas? Não o queremos e nem sequer precisamos de si. Não há lugar para si na nossa família. Suponho que não há necessidade de lhe dar qualquer explicação, depois do modo como os meus pais o escorraçaram para fora da Inglaterra. Foi um erro e, por isso, havia necessidade de apagá-lo.
Ao ouvir aquelas palavras ofensivas, ele não conseguiu deixar de pensar na injustiça do destino. Por que razão este asno presunçoso havia de ter nascido como Lorde Hawksworth? Hawksworth tinha sido agraciado com uma família, terras, título, fortuna, uma jovem e adorável mulher, e valorizava aquilo tão pouco, que ainda deixou Inglaterra por mera frivolidade. Ele, pelo contrário, nascido bastardo, não teve direito a nada.
Entendeu muito bem toda aquela hostilidade de Hawksworth. Ele tinha sido criado com a convicção de que era o único filho de Crossland, legítimo ou não. A família não queria saber de qualquer descendência bastarda, que só lhes causaria embaraço.
— Eu não lhe vim fazer nenhuma exigência — murmurou, ao interromper o discurso de Hawksworth. — Eu só quis conhecê-lo.
As suas palavras não fizeram nada para apaziguar aquele homem enraivecido.
— Pois já alcançou o seu objetivo. E agora, aconselho-o a que deixe a minha casa, se não quer arranjar problemas!
Saiu da casa de Hawksworth, sem tocar numa única moeda do chão e com uma certa satisfação por saber que ainda possuía a miniatura do retrato de Lady Hawksworth. E que podia guardar aquele minúsculo pedaço da vida do seu meio-irmão, para si próprio.
—... continuei o meu serviço, sob o comando do capitão Tyler durante algum tempo, até que tive conhecimento do naufrágio do barco de Hawksworth - prosseguiu a sua explicação a Lara, com um tom apagado. — Ele tinha desaparecido e eu percebi que tudo o que ele tinha, tudo o que eu sempre desejei, se encontrava aqui, à minha espera. Decidi, então, fazer tudo o que fosse necessário para a ter, mesmo que fosse por pouco tempo.
— E assim, ficou com o seu lugar, para provar que era um homem melhor do que ele — disse ela.
— Não, eu... - fez uma pausa, esforçando-se por ser verdadeiro. — Isso era parte do motivo, no início - reconheceu. — Mas, apaixonei-me por você... e, imediatamente, você tornou-se na única coisa que me importava.
— Nunca pensou nas consequências do que estava fazendo — disse Lara, libertando a sua raiva. — Destruiu qualquer possibilidade de eu voltar a confiar novamente em alguém. Roubou a vida de outro homem, feriu-me de uma forma imperdoável e agora, muito provavelmente, será enforcado. Por acaso, valeu a pena ter feito tudo isto?
Ele olhou-a de tal forma, que parecia que lhe queimava a alma; os olhos dele, brilhantes, transmitiam um amor melancólico e feroz.
— Sim.
— É um desgraçado e um egoísta! — Gritou, com os lábios a tremer.
— Eu converteria em qualquer pessoa, em qualquer coisa por você. Poderia mentir, roubar, implorar ou matar, tudo isto só por você. Não me arrependo do que fiz nestes últimos meses. A minha vida não teria nenhum significado.
— E a minha vida? — perguntou, já sem fôlego. — Como pode afirmar que me estima, quando tudo o que fez foi mentir e aproveitar-se de mim, transformando-me na pessoa mais idiota que já alguma vez existiu?
— Você não é nenhuma idiota. Eu coagi-a para que acreditasse que eu era, de fato, Hunter. Eu sabia que iria ignorar as suas próprias dúvidas, se quisesse acreditar interiormente em mim... E foi exatamente isso que aconteceu.
— Mas nada daquilo foi real — disse Lara, e as lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. Tudo o que me disse, todas as vezes que me beijou... Era tudo mentira.
— Não - refutou ele, com voz grossa. Começou a aproximar-se dela, mas deteve-se ao reparar que Lara se encolhia e recuava.
— Eu nem sequer sei o seu nome. Oh, porque é que teve de fingir ser Hunter?
— E eu poderia tê-la de outra forma? — perguntou, rispidamente. Era uma verdadeira tortura vê-la chorar daquela forma, e não a poder confortar. — Se tivesse ido até si com a verdade sobre quem eu era, alguma vez me teria deixado aproximar?
Lara ficou calada durante algum tempo.
— Não — respondeu, finalmente.
Ele assentiu com a cabeça, já que a resposta confirmava o que ele já sabia.
— Eu não posso mentir por você — Arriscou-se Lara a dizer, depois de um momento de introspecção. — Não poderia passar o resto da minha vida...
— Não — murmurou Hunter. — Eu nunca lhe pediria isso.
Lara sentiu todo o seu corpo ficar tenso, à medida que ele se dirigia para junto dela. Avançou com cautela, consciente de que um movimento súbito a poderia fazer recuar. Quando já estava à distância de um braço, parou e pôs-se de joelhos, aos seus pés.
— Eu jamais me cansaria de olhar para você — Confessou, com uma voz rouca. — Olhar para os seus lindos olhos verdes. A doçura do seu rosto - olhou-a com um sentimento tão puro, que ela sentiu-se queimar pelo fogo dos seus olhos. — Lara, uma coisa quero que compreenda. Estes últimos meses com você... o tempo que compartilhámos... Vale a pena morrer por eles. Se eu só puder ter esse tempo, eu aceito. Por isso, não importa o que você irá escolher para dizer amanhã, ou o que me irá suceder de agora em diante.
Lara não conseguiu falar. Tinha de sair dali antes que as suas lágrimas se tornassem incontroláveis. Levantou-se, um pouco tremula, baixou a cabeça e dirigiu-se até à porta. Teve a impressão de que ele a chamava, mas ela não conseguia parar, não conseguia aguentar a presença dele sem fraquejar.
Sophie estava à sua espera e olhou-a intensamente, ao ver o rosto perturbado de Lara.
— Você está apaixonada por ele — disse, sem rodeios, enquanto punha o braço ao redor dos ombros de Lara. Subiram juntas, a escadaria.
— Eu lamento tanto tudo isto — disse Lara, com um riso nervoso e triste. — Suponho que me deve desprezar por eu me sentir assim. Eu, que nunca entreguei o meu amor ao homem que, verdadeiramente, tinha direito a recebê-lo.
Como alguém pragmático e que faz questão em reduzir qualquer situação até à sua expressão mais elementar, Sophie não se sentiu forçada em concordar com a nora.
— E porque é que eu à deveria desprezar? Eu não faço ideia se o meu filho merecia esse amor. Ele fez algum esforço sincero por conquistar o seu coração?
— Não, mas...
— Claro que não fez. Hunter estava demasiado apaixonado por essa tal Lady Carlysle, e só Deus sabe o que ele viu nessa criatura tão masculina. Ele estava louco por ela, e era com ela que se deveria ter casado. Devo confessar, com grande arrependimento, que fui eu quem o aconselhou a casar-se com você e a mantê-la a ela como amante. Eu disse-lhe que ele poderia servir a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo. Foi um engano da minha parte, eu julgava que ele acabaria por sucumbir aos seus encantos e que você seria a melhor influência para ele.
— Bom, isso não aconteceu — respondeu Lara. Embora não pretendesse que aquele comentário fosse gracioso, a condessa soltou uma gargalhada seca.
— Obviamente que não - suspirou, e o seu rosto foi ficando cada vez mais sério, à medida que se aproximavam da sala de estar. — O meu pobre filho. Sei perfeitamente que ele não era um bom marido para você. E que ele nunca teve o menor sentido da responsabilidade. Talvez tudo isso se devesse ao fato de ele ter sido muito mimado enquanto criança, tudo lhe era facilitado. Teriam sido muito bem-vindas, algumas daquelas dificuldades que moldam o caráter de um homem. Mas eu não pude evitar adorá-lo, ele era tudo o que eu tinha. Receio que tenha fomentado o seu egoísmo.
Embora a Lara fosse tentada a concordar com Sophie, preferiu guardar silêncio. Estavam as duas sentadas, muito juntas, e Lara esfregou os olhos cansados.
— Já decidiu o que vai fazer amanhã? — perguntou a condessa rapidamente.
— Que alternativa tenho eu? Eu tenho a responsabilidade de dizer a verdade.
— Tolice.
— O quê? perguntou Lara, fragilizada.
— Eu nunca entendi porque é que a honestidade é sempre considerada a maior das virtudes. Há coisas muito mais importantes do que a verdade.
Totalmente surpreendida, Lara olhou-a, de olhos muito abertos.
— Perdoe-me, mas isso que me está dizendo, parece-me ser muito estranho.
— Acha que sim? Foi sempre demasiado convencional, Lara. Não se preocupa com aquelas pessoas cujo destino será determinado pelo desenlace de toda esta situação? E também não se importa com o seu próprio bem-estar?
— Sophie parece querer que este estranho ocupe o lugar do seu filho — disse Lara, incrédula.
— O meu filho já não está entre nós — respondeu a condessa. — Tudo o que me resta fazer agora é avaliar a situação, tal como ela se apresenta. Arthur e a sua mulher provaram que não são atos para salvaguardar a fortuna da família Hawksworth. Eles farão tudo o que estiver ao seu alcance para desonrarem o título. Por outro lado, legítimo ou não, este jovem é filho do meu marido e ele parece ter agido adequadamente no papel de Hawksworth. Na minha opinião, ele tem tanto direito ao título, como Arthur. E, a acrescentar a isso, ele parece ter ganho o seu afeto. Eu procedi injustamente com ele, durante todos estes anos. Por minha causa, ele teve um pobre começo de vida e, mesmo nessas circunstâncias, parece ter-se tornado num homem íntegro. Naturalmente, não aprovo o que ele fez, porém, aceito que as suas ações não são as de um homem malvado, mas são somente de um homem desesperado.
— Está a dizer que ele tem o seu apoio? — perguntou Lara, confusa.
— Só se você assim o desejar. Porque é você, minha querida, quem terá de viver com essa mentira para o resto da sua vida... É você quem terá de criar os seus filhos e que atuará como sua mulher, em todos os sentidos. Se estiver disposta a aceitá-lo como seu marido, então eu estarei disposta a aceitá-lo como meu filho. Mas preste bem atenção, se nós agora o aceitarmos como se fosse o verdadeiro Hawksworth, não haverá mais volta a dar.
— Conseguiria, realmente, trair o autêntico Hunter desta forma? sussurrou Lara. — Seria capaz de aceitar outro homem em seu lugar?
— Os meus sentimentos face a Hunter só a mim me dirão respeito e a mais ninguém — respondeu, com grande dignidade. — Agora, o que é mais importante é saber o que deseja, Larissa. Vai salvar este homem ou vai enviá-lo para o Inferno? Continuará ele a ser Lorde Hawksworth ou irá devolver esse título a Arthur? Tem de decidir, hoje à noite.
Lara ficou desconcertada com os argumentos da sogra. Nunca esperaria que Sophie tomasse uma postura absolutamente tão bizarra e nada daquilo lhe parecia correto. Pelo contrário, ela tinha julgado que, em lugar de apoiar aquela farsa e de sugerir que ela continuasse, Sophie reagisse com a indignação lógica de alguém que tinha perante si um homem que se fazia passar pelo seu filho.
Os pensamentos giravam na sua cabeça e então, Lara recordou as palavras de Rachel, os fatos não são absolutos. Qualquer pessoa os pode discutir eternamente. E, para agravar ainda mais esta confusão intolerável, havia outros fatos a considerar: o homem que estava no piso de baixo... quem quer que ele fosse... tinha sido bom para ela. Tinha-a feito feliz. Tinha cuidado de Johnny, de Rachel e de todos os que moram na propriedade. Independentemente do que ele tivesse feito no passado, Lara sabia que ele era um homem bom. E ela amou-o com toda a sua alma.
— Mas... como posso eu amar um homem que realmente não conheço? — perguntou, mais para si, do que para Sophie. — E como posso eu acreditar que ele me ama, de verdade? Ele é um camaleão, exatamente como disse o capitão Tyler. Ninguém me poderá dar certezas se ele voltará a ser um homem honesto. Estará sempre atento, a esconder os seus pensamentos e nunca permitirá que os outros conheçam a sua verdadeira identidade.
— Será sempre uma alma atormentada — disse a viúva, com um sorriso que revelava uma mistura de ironia, ternura e uma sugestão de desafio, deixando Lara confusa. — Bom, cuidar de almas assim é a sua especialidade, não é verdade?
Capítulo 20
Sabendo que o capitão Tyler tinha sido convocado a Londres para prestar declarações, Lara tinha-lhe pedido que viesse vê-la de manhã, bem cedo. Para seu alívio, ele veio imediatamente até Park Place. Estava fardado, com uma casaca escarlate, com grossas dragonas douradas, calças de um branco resplandecente, botas negras imaculadas e um chapéu preto emplumado, debaixo do braço.
— Lady Hawksworth - saudou respeitosamente, enquanto entrava na sala e se inclinava para lhe beijar a mão.
— Obrigado por vir tão depressa — disse ela.
— Só espero poder servi-la, minha senhora.
— Também eu — respondeu Lara gravemente, enquanto se sentava numa cadeira aveludada e confortável, e apoiava a cabeça contra um espaldar de mogno talhado. Percebendo o seu gesto, o capitão sentou-se numa cadeira igual, perto dela.
— Está em Londres para depor perante a Câmara dos Lordes, segundo presumo.
— Sim, minha senhora - o impecável bigode negro, tremia de inquietação. Permita-me pedir desculpas novamente por lhe ter escondido a verdade durante tanto tempo e pela angústia que lhe causei, atuando do nosso último encontro. Lamentarei sempre a minha atitude a esse respeito e espero que algum dia possa perdoar o meu inexplicável silêncio...
— Não há nada que lamentar, nem que perdoar — Assegurou ela, com sinceridade. — Percebi o seu silêncio relativamente a Lorde Hawksworth e, de certo modo, até agradeço. Na realidade... - respirou fundo e olhou-o diretamente, antes de prosseguir. — A razão por que o quis ver esta manhã, é para lhe pedir que se mantenha em silêncio.
Ele não mostrou qualquer emoção, simplesmente pestanejou ligeiramente.
— Percebo — disse pausadamente. — A senhora está a pedir-me que cometa um ato de perjúrio, hoje, diante do Chanceler. Quer que eu negue conhecer o homem que se faz passar por Lorde Hawksworth.
— Exatamente - limitou-se ela a dizer.
— Posso perguntar-lhe qual a razão?
— Depois de muita reflexão, comecei a acreditar que seria mais benéfico para os Crossland e também para mim, este homem continuar como cabeça da família.
— Minha senhora, talvez não lhe tenha descrito com clareza o caráter desse homem, que...
— Eu estou completamente ciente do seu caráter.
Suspirando, o capitão Tyler esfregou o polegar, num movimento repetitivo, nos grossos galões dourados, que tinha na manga da sua casaca.
— Gostaria de concordar com o seu pedido, saldando assim uma dívida que tenho para com ele. No entanto, permitir-lhe que venha a ter uma posição de tanto poder e responsabilidade... permitir que ele roube a vida de outro homem... Não me parece correto.
— Que dívida tem para com ele? — perguntou Lara com curiosidade.
Ele explicou, com alguma cerimônia.
— Ele salvou-me a vida. Nós, refiro-me à Coroa da Inglaterra, estávamo-nos a expandir ao longo do Ganges, havendo, nessa altura, conflitos no território de Cawnpore. Os tugues ocultavam-se nas bermas das estradas e atacavam os viajantes, matando-os impiedosamente, não poupando sequer mulheres ou crianças. Quando se aperceberam que não nós íamos retirar, a sua agressividade intensificou-se. Muitos dos homens da minha companhia foram perseguidos e chacinados, alguns deles nas suas próprias tarimbas. Uma noite, quando voltava de Calcutá, fui atacado. De repente vi-me rodeado de meia dúzia de assaltantes que mataram um jovem alferes e um outro militar, e estavam prontos a atacarem-me... - fez uma pausa e começou a suar, ao virem-lhe as imagens à memória. — Então ele chegou. Saiu da noite, como uma sombra, matou dois dos assaltantes com tal rapidez que os outros fugiram a toda a pressa, gritando que ele era o mensageiro de algum deus irado. Essa foi a última vez que o vi, até à sua reencarnação na figura de Lorde Hawksworth.
— A cicatriz que ele tem na nuca... — disse Lara num momento de intuição.
Tyler assentiu com a cabeça.
— Durante a luta, um dos assaltantes apoderou-se da minha espada. O seu Hawksworth teve uma sorte enorme em não ter sido decapitado. Afortunadamente, ele é muito ágil em combate - tirou um lenço da algibeira e secou a fronte. — Ele é um homem fora do comum, minha senhora. Se aceitar corresponder ao seu pedido, não posso ser responsabilizado por qualquer dano ou infelicidade que ele lhe possa causar, no futuro.
Lara sorriu-lhe, com muita franqueza.
— Tenho a certeza de que ele merece toda a minha confiança. Não tenho dúvidas de que terá uma vida exemplar, se lhe for dada essa oportunidade.
O capitão olhou-a como se ela fosse uma santa, ou uma lunática.
— Perdoe-me, mas confia muito facilmente nas pessoas, Lady Hawksworth. De todo o meu coração, espero que ele seja merecedor da sua bondade.
— Ele será — disse ela, agarrando-lhe na mão e apertando-a com força. — Eu acredito que ele será, capitão.
Lara esperou unicamente uma hora na antecâmara dos gabinetes do Chanceler, Presidente da Câmara dos Lordes, mas pareceu-lhe uma eternidade. Atenta a qualquer barulho proveniente das salas ou dos corredores que a rodeavam, Lara sentou-se numa cadeira dura de madeira, tentando interpretar o que estava a acontecer. Finalmente, um funcionário apareceu na antecâmara e acompanhou-a até ao vestíbulo, junto ao gabinete do Chanceler. O seu coração estremeceu quando viu o capitão sair do gabinete. Os seus olhares cruzaram-se, o dela interrogando-o, o dele tranquilizando-a. Então, em resposta a um pedido não expresso, ele assentiu levemente com a cabeça. Correu tudo bem, pareciam querer dizer os seus olhos, e a terrível tensão em que Lara se encontrava, diminuía de intensidade.
Recuperando a confiança, Lara acompanhou o funcionário ao gabinete do Chanceler. Sunbury, o Lorde Chanceler, esperava-a atrás de uma enorme secretária de mogno, aguardando que Lara se sentasse antes de ele fazer o mesmo no seu cadeirão de couro castanho. Lorde Sunbury tinha uma figura imponente, vestido com uma brilhante toga escarlate e com a sua cara, de maxilares proeminentes, emoldurada por uma longa peruca prateada. Ele brincava com um pequeno globo terrestre coberto com minúsculos mapas pintados e Lara reparou que a sua mão direita suportava o peso de três enormes anéis de ouro.
Os olhos cinzentos de Sunbury eram pequenos, mas penetrantes e sobressaíam nitidamente de um rosto carnudo. O seu aspecto era muito distinto, mesmo sem o aparato que o rodeava, devido ao cargo que ocupava. Lara considerou que não ficaria surpreendida se o visse no Dia do Juízo Final, em frente às portas do céu, avaliando os méritos dos aspirantes a anjos.
Como um ímã, o seu olhar foi atraído para Hunter. Estava sentado no extremo da enorme mesa, com a silhueta da sua cabeça recortada contra a luz tremula que vinha da janela. Ele quase parecia sobrenatural, na sua austera beleza, na sua expressão distante, no seu corpo magro vestido com umas calças creme, um colete preto e um casaco verde-escuro de veludo listrado. Não devolveu o olhar a Lara, limitou-se a observar, unicamente, o juiz com o olhar impassível de uma criatura selvagem.
Havia mais pessoas no gabinete... um funcionário que transcrevia para o papel os depoimentos das pessoas interrogadas, os advogados Eliot e Wilcox, o promotor de justiça cujo nome Lara não se recordava, Sophie, Arthur e Janet... e um rosto familiar que Lara não pode ver sem sentir uma enorme e profunda indignação. Era Lorde Lonsdale, vestido de ponto em branco, com um colete de cetim bordado com borboletas, sapatos ornados de fivelas e um alfinete de diamante na gravata. Ele sorriu-lhe, os olhos azuis brilhando, com uma satisfação maliciosa. O que estava ele fazendo ali? Que informação poderia ele ter para a sua presença ser necessária perante o juiz?
Todo o tipo de perguntas e protestos formavam-se na sua mente, mas Lara conseguiu manter-se silenciosa. Olhou para Sophie, que brincava despreocupada com o seu colar de pérolas, que caía sobre o decote do vestido cor de pêssego.
— Agora, toda a verdade virá ao de cima — disse Arthur em tom triunfal, enquanto olhava para Lara autoritariamente. Ele falou como se ela fosse uma criança pequena. — Limite-se a responder às perguntas do Lorde Chanceler, o mais honestamente possível, Larissa.
Ofendida com aquele tom paternal, Lara ignorou-o e focou a sua atenção em Lorde Sunbury.
O juiz falou, com um tom de voz grave e forte.
— Lady Hawksworth, espero sinceramente que seja capaz de nos dar uma luz sobre esta inexplicável situação.
— Tentarei — respondeu ela, suavemente.
Sunbury pousou a sua volumosa mão sobre um grosso monte de papéis.
— Foram-me apresentados testemunhos de várias pessoas que insistem, com veemência, terem conhecimento que este homem é o conde de Hawksworth. A condessa viúva de Hawksworth, nem mais nem menos, afirma que ele é realmente o seu filho - fez uma pausa e olhou para Sophie que, por sua vez, fez um aceno impaciente, com a cabeça. — No entanto - retomou Sunbury, — surgiram algumas opiniões contraditórias, a mais notável do cavalheiro em questão, que insiste não ser Lorde Hawksworth, recusando-se a dar mais explicações. Diga-me, minha senhora... quem é realmente este homem?
Um silêncio sepulcral instalou-se na sala e Lara umedeceu os lábios antes de falar.
— Ele é Hunter Cameron Crossland, conde de Hawksworth — respondeu ela, numa voz clara e firme. Era enervante ver aquele funcionário a registrar cada palavra que saía dos seus lábios. — Ele é o meu marido, sempre o foi e espero com toda a minha alma que continue a sê-lo para sempre.
— O quê? — Exclamou Arthur ao mesmo tempo que Janet saltava da cadeira num ímpeto.
— É uma cabra mentirosa — Guinchou ela, enquanto se dirigia a Lara com os dedos transformados em garras. Lara estremeceu perante a reação de Janet mas, antes que ela a alcançasse, Hunter saltou da cadeira e agarrou Janet por trás, pegando-lhe nos pulsos, que ela começou a sacudir com brutalidade. Reagiu como uma gata furiosa, retorcendo-se e dando uns gritos que alarmaram todos os presentes exceto Arthur, que se limitava a olhá-la com um ar de asco.
— Fora! - trovejou Lorde Chanceler, com a sua enorme cara desfigurada pela afronta. — Insisto para que esta criatura seja retirada imediatamente do meu gabinete.
O pandemônio era cada vez maior.
— Ela está mentindo! — Exclamou Arthur. — Larissa é uma bruxa de língua viperina e eu vê-la-ei no Inferno por isso...
— Silêncio! — Lorde Chanceler levantou-se e a toga escarlate volteou-se sobre o seu corpo enorme. — Não permitirei que haja lugar para difamações e violência nesta sala. Retire a sua esposa, senhor, e se daqui por diante, também não for capaz de se controlar, não volte!
Roxo de raiva, Arthur arrancou o corpo contorcido de Janet das mãos de Hunter. Hunter dirigiu-se a Lara e percorreu-a com o seu olhar, para se certificar de que ela estava bem. Ao ver que não tinha sido magoada, inclinou-se, apoiando as mãos nos braços da cadeira. O rosto dele estava perto do dela e, de repente, tudo à volta deles tinha desaparecido, só existindo os dois. Os olhos escuros dele deitavam chispas de raiva.
— Porque é que está fazendo isto? — perguntou-lhe com severidade. — Diga-lhes a verdade, Lara.
Ela ergueu o queixo e susteve o olhar nele, com determinação.
— Não permitirei que se vá embora.
— Maldita seja, será que não lhe causei danos suficientes?
— Não causou nenhum — respondeu ela suavemente.
As palavras dela pareciam enfurecê-lo, em lugar de lhe agradar. Largou a cadeira, com uma certa frustração e atravessou a sala em passos largos e rápidos. Reinava um ambiente carregado e tenso.
Arthur voltou à sala e conferenciou rapidamente com o promotor que, em seguida, se dirigiu a Lorde Chanceler. Trocaram breves palavras e Lara1 viu na expressão da boca do promotor uma estreita linha ele desaprovação. Desanimado, voltou a sentar-se, e fez um gesto a Arthur para que fizesse o mesmo.
— Prossigamos — disse Sunbury encarando Lara. — Espero que nos elucide, Lady Hawksworth. A senhora reivindicou que este homem é seu marido, no entanto, ele insiste que não é Lorde Hawksworth. Qual de vós está a contar a verdade?
Lara olhou-o com uma expressão grave.
— Lorde Chanceler, senhor, creio que o meu marido se sente indigno comigo devido a uma indiscrição cometida no passado. Os seus famosos devaneios com uma certa... — Ela fez uma pausa, como se lhe fosse doloroso mencionar o nome.
Lorde Chanceler assentiu com a cabeça e os canudos da sua peruca prateada, deslizaram-lhe sobre os ombros.
— Lady Carlysle - pontificou. — Já prestou o seu testemunho.
— Então, tenho a certeza de que terá sido informado sobre a sua ligação com o meu marido - prosseguiu Lara - uma relação que me causou bastante sofrimento. Devido aos remorsos que sentia, acredito que o meu marido se tenha querido punir da forma mais drástica, chegando mesmo a negar a sua identidade. No entanto, o meu desejo é fazê-lo compreender que o perdoei de tudo o que fez - olhou para Hunter, que tinha a cabeça inclinada para baixo, com dureza. — De tudo - repetiu com firmeza. — Quero começar tudo novamente, senhor.
— De fato — murmurou Lorde Chanceler. Observou o semblante inacessível de Hunter e a expressão resoluta de Lara. Voltou a desviar o seu olhar para Hunter, — se o que Lady Hawksworth diz é verdade, meu caro senhor, foi um pouco longe demais ao renunciar o seu nome. Um homem comete erros de vez em quando. E são as nossas mulheres que, fazendo jus à suas virtudes superiores, decidem ou não perdoar-nos - riu da sua própria piada, não ligando ao fato de ninguém a ter compartilhado com ele.
— Tolices! — Exclamou Arthur olhando para Lara. — Senhor, esta mulher padece de um desarranjo mental. Ela não faz a mínima ideia do que está dizendo. Este impostor, de uma enorme esperteza, convenceu-a de alguma maneira a apoiá-lo quando, afinal, ainda ontem, ela própria o denunciou.
— Que tem a dizer sobre isto, Lady Hawksworth? - inquiriu Lorde Sunbury.
— Eu cometi um terrível equívoco - reconheceu Lara. — Só me resta implorar que me perdoem pelo transtorno que causei a todos. Denunciei o meu marido num ato de fúria devido à sua relação com Lady Carlysle, tendo sido profundamente influenciada pelo meu tio. Normalmente, eu não sou tão fraca... mas receio que o meu estado me tenha deixado um pouco fraca e irracional.
— O seu estado? - repetiu Lorde Sunbury, enquanto todas as pessoas que se encontravam na sala, olharam para ela boquiabertas, incluindo Hunter e Sophie.
— Sim... — Lara corou e continuou. Odiava ter de recorrer à sua gravidez, daquela forma, mas ela pretendia usar todas as armas que tivesse ao seu dispor. — Estou à espera de um filho, senhor. Tenho a certeza de que entende a instabilidade emocional de uma mulher, quando se encontra neste estado.
— Certamente — Lorde Chanceler murmurou, acariciando o queixo pensativamente. O rosto de Hunter estava pálido apesar do tom bronzeado dourado da sua pele. Do modo como ele a olhava, Lara percebeu que ele pensava que ela mentia.
— Já chega, Lara — disse, com rispidez.
— Mais mentiras! — Explodiu Arthur, levantando-se e desprendendo-se da mão do seu advogado. — Ela é mais estéril do que o deserto. Todos sabem que ela é incapaz de engravidar. Senhor, ela está a fingir uma gravidez e fingirá um aborto, assim que for conveniente!
Lara começou a divertir-se com o semblante apoplético do tio. Com o mais lânguido dos sorrisos, ela virou-se para Lorde Chanceler.
— Estou disposta a submeter-me a qualquer médico da sua conveniência, senhor, se esse for o seu desejo. Não tenho nada a temer — Sunbury observou-a com um olhar longo e profundo e, apesar de perceber que havia um tom grave na sua expressão, os seus olhos cinzentos sorriram.
— Não será necessário, Lady Hawksworth. E parece que a devemos felicitar.
— Desculpe-me - ouviu-se a voz cortante de Lorde Lonsdale. — Lamento ter de interromper a comovente história de Lady Hawksworth, uma vez que gosto de ouvir contar histórias, como toda a gente. No entanto, posso provar em menos de um minuto que este homem é uma fraude... e que a nossa encantadora Lady Hawksworth é uma mentirosa.
As grisalhas sobrancelhas de Lorde Chanceler arquearam-se.
— Ah, sim? E pode saber-se como, Lorde Lonsdale?
Lonsdale fez uma pausa teatral.
— Tenho uma informação que vos surpreenderá a todos, uma informação confidencial sobre o verdadeiro Lorde Hawksworth.
— Então, faça com que a conheçamos — respondeu Sunbury, enquanto o pequeno globo terrestre passava de uma das suas mãos pesadas para a outra.
— Muito bem — Lonsdale levantou-se e levando algum tempo, arranjou o seu colete de cetim. — O verdadeiro Hawksworth e eu não éramos só os amigos mais íntimos, mas também estávamos unidos por pertencermos a uma sociedade secreta. Os escorpiões, era como nos chamávamos. Não sinto necessidade de explicar a razão dessa sociedade, a não ser que tínhamos certos objetivos políticos. Embora cada um de nós tenha prestado juramento que nos obrigava a manter a nossa filiação em segredo, sinto-me na obrigação de revelar este assunto, provando assim que este suposto Hawksworth não passa de um impostor. Antes de Lorde Hawksworth partir para a Índia, todos nós fizemos uma marca na parte interior do braço esquerdo. Uma marca permanente, feita com tinta introduzida debaixo da pele. Eu tenho essa marca, assim como todos os outros. E só o verdadeiro conde de Hawksworth poderá tê-la.
— Essa marca, suponho eu, tem a forma de um escorpião? — perguntou Lorde Sunbury.
— Exatamente — disse Lonsdale, fazendo um movimento para tirar o casaco. — Se me autorizar a despender um ou dois minutos, Lorde Sunbury, mostrar-lhe-ei a marca...
— Isso não será necessário — respondeu Lorde Sunbury num tom grave. — Seria mais indicado que Lorde Hawksworth nos mostrasse o seu braço.
Todos os olhares se viraram para Hunter, que fixou Sunbury tom uma expressão rebelde.
— Não vejo necessidade — murmurou, — Eu não sou Hawksworth.
Lorde Chanceler devolveu-lhe um olhar duro, sem pestanejar.
— Então, demonstre retirando a sua camisa, senhor.
— Não — disse Hunter por entre dentes.
A pronta e direta recusa fez subir a cor ao rosto de Sunbury.
— Prefere que a mande tirar, por você? — perguntou, com cortesia.
Lara respirou profunda e agitadamente. Ela não se lembrava de ter visto qualquer tipo de marca no braço de Hunter. Ao pensar que uma pequena marca de tinta poderia levar-lhe todas as esperanças e sonhos... Apertou as mãos nas saias e torceu-as firmemente.
— Dou-lhe a minha palavra em como a marca está lá! — Gritou Lara.
Lorde Chanceler sorriu sarcasticamente.
— Com o devido respeito, Lady Hawksworth, neste momento eu preferiria uma prova sólida da sua palavra - voltou a olhar para Hunter. — A camisa, se fizer o favor.
Arthur começou a rir com uma alegria selvagem.
— Agora sim, meteu-se num sarilho, maldito charlatão!
Lorde Chanceler começou a repreendê-lo por aquela profanação, mas a sua atenção foi desviada quando Hunter se levantou. Com a sobrancelha franzido e os maxilares tensos, Hunter olhava para o chão, enquanto tirava o casaco, puxando as mangas com força. Tirado o casaco, começou a desabotoar o colete preto. Lara mordeu o lábio numa angústia silenciosa, tremendo ao ver que o rosto escuro de Hunter se ensombrava por momentos. Pôs o casaco de lado e começou a puxar a camisa para fora das calças. Quando estava a meio, parou e olhou para o juiz.
— Eu não sou Hawksworth — disse com veemência. — Escute-me, só por um minuto, que diabos....
— Façam-no continuar - resmungou Arthur. — Eu insisto que prossiga.
— Pode falar o que quiser, senhor — disse Sunbury a Hunter, — depois de eu ter examinado o seu braço. Continue.
Hunter não se moveu.
Enfurecido por toda aquela hesitação, Arthur saltou até ele, agarrou numa parte solta da camisa e arrancou-a, ouvindo-se o barulho do linho a rasgar-se. A camisa ficou em tiras, que pendiam dos pulsos, revelando um corpo magro e tenso marcado por músculos salientes. A pele bronzeada tinha várias cicatrizes, não muito diferentes das que o seu marido tinha feito na caça, quando perseguia javalis e gamos selvagens. Com o rosto perplexo ante a visão do corpo de Hunter e a terrível certeza do que estava para acontecer, Lara conteve a respiração.
Arthur empurrou Hunter até Lorde Chanceler.
— Vá — disse ele, com enorme desprezo. — Mostre-lhe o braço, seu bastardo mentiroso.
Hunter levantou o braço com o punho cerrado com força.
De onde estava sentada, Lara conseguia ver com perfeita clareza. Uns centímetros abaixo da axila viram a pequena figura de um escorpião, pintado a azul.
Lonsdale, que se tinha chegado mais à frente para ver, ficou estupefato e deu um passo para trás, cambaleando.
— Como é possível? — perguntou-lhe com uma voz rouca, desviando o olhar da marca para o rosto tenso de Hunter. — Como diabo sabia?
A mente de Lara estava ocupada com a mesma pergunta. Ela ponderou, num silêncio confuso, até que lhe ocorreu que a única maneira de ele ter podido reproduzir o escorpião só poderia ter sido através dos diários do marido.
Uma verdadeira fúria desencadeou-se dentro de Arthur. Arfando de raiva e indignação, Arthur abriu um espaço e sentou-se na cadeira mais próxima quase desmaiando.
Sophie contemplou Hunter com um estranho olhar de perplexa admiração e dirigiu-se ao juiz.
— Suponho que o caso esteja encerrado, Lorde Sunbury.
Lonsdale torceu-se numa fúria assassina.
— Não ganhará - sibilou para Hunter. — Primeiro, vê-lo-ei morto - saiu da sala numa torrente de blasfêmias, atirando com a porta com tal força que pareceu fazer com que todo o edifício tremesse.
Lorde Chanceler revirou os olhos e lançou a sua atenção para o pequeno globo terrestre que tinha na mão. Abriu-o, retirou um pequeno mapa com as constelações e passou um dos seus dedos sobre uma série de estrelas pintadas.
— Bom, meu rapaz — murmurou, olhando de relance para o rosto mal humorado de Hunter. — Estou bastante inclinado em acreditar na sua mulher. Então, tentava castigar-se por uma indiscrição?! Foi o que aconteceu? Bem, até mesmo o melhor dos homens, muitas vezes luta contra essas fraquezas. E, mesmo na eventualidade de não ser o conde de Hawksworth... Eu não estou minimamente inclinado a discutir com a maior parte das pessoas que dizem que é. Parece-me razoável encerrar este caso a favor de Lorde Hawksworth, dizendo que é, de fato... Lorde Hawksworth. Encerrarei o caso imediatamente - olhou esperançado para Hunter. — Espero que não vá continuar a argumentar, senhor. Gostaria muito de não chegar tarde ao meu almoço.
— Onde está ele? — perguntou Lara aflita, procurando na sala, sob o olhar desaprovador de Sophie. — Eu não posso deixar Londres sem o ver, mas tenho de voltar para junto de Rachel e de Johnny. O que poderia ter pensado para desaparecer desta forma?
Durante a confusão que se gerou a seguir à decisão de Lorde Chanceler, Hunter tinha desaparecido. Lara não tinha outra escolha senão voltar para o solar citadino de Hawksworth, e esperar por ele ali. Já tinham passado quatro horas e nenhum sinal dele. Lara queria desesperadamente falar com ele, no entanto sentia também uma necessidade premente de voltar para Lincolnshire. Os seus instintos advertiram-na de que ela tinha de voltar, tão depressa quanto possível, para junto de Rachel. Não queria imaginar o que Lonsdale seria capaz de fazer, estando tão furioso... Tinha a certeza de que ele iria buscar Rachel e a levaria à força, se fosse preciso.
De repente algo lhe veio à ideia e dirigiu a Sophie um olhar aterrorizado.
— Não irá desaparecer para sempre, pois não? E se ele não volta mais?
Incomodada por se ver confrontada com emoções tão voláteis, Sophie fechou o semblante e respondeu num tom recriminatório.
— Deixe-o, Larissa. Prometo-lhe que ele virá quando estiver preparado. Não vai desaparecer. Depois da surpreendente notícia que anunciou no tribunal, ele virá assim que descobrir se é verdade ou não... O que me leva a perguntar... está à espera de bebê ou não?
— Tenho a certeza que sim — disse Lara rapidamente, muito mais preocupada com Hunter do que em partilhar a novidade com Sophie.
A condessa recostou-se com um sorriso de satisfação.
— Louvado seja Deus. Depois de tudo, parece que a linhagem de Harry continuará. Uma viril criatura, esse seu errante amante. Não teve qualquer problema em à fecundar.
— Marido — Corrigiu Lara. — De agora em diante, referir-nos-emos a ele como meu marido.
Sophie encolheu os ombros, com indiferença.
— Como preferir, Larissa. Agora acalme-se, está demasiado nervosa... Não é bom para o bebê.
— Penso que ele não acreditou em mim, em relação ao bebê — murmurou Lara permanecendo de pé, junto à janela, recordando a expressão atordoada de Hunter na sala de Lorde Chanceler. De certeza que pensou que era uma mentira para o salvar. Encostou com força a testa e as palmas das mãos contra a janela e sentiu uma enorme dor no peito ao pensar que ele poderia nunca mais regressar.
Capítulo 21
A carruagem de Lara chegou a Hawksworth Hall bastante tarde, quando a maior parte dos residentes já dormia. Ficou contente por ser poupada da tarefa de, ainda durante aquela noite, ter de explicar o inexplicável a Johnny, a Rachel e a todos os outros. Estava cansada de falar, de viajar e de tentar não pensar em tudo o que ressoava na sua cabeça. A cada volta que as rodas da carruagem davam, desde que saíra de Londres, a sensação de derrota e de desespero ia aumentando. Naquele momento, ela queria, unicamente, entregar-se a um sono profundo.
— Lady Hawksworth — perguntou a senhora Gorst, em voz baixa, enquanto a recebia à porta, — Lorde Arthur regressará a esta casa?
— Não — disse Lara, sacudindo a cabeça. — O juiz encerrou o caso.
— Entendo - um sorriso sincero estendeu-se no rosto da governanta. — São muito boas notícias, minha senhora! Então, Lorde Hawksworth irá regressar brevemente?
— Eu não sei — respondeu, a forma abatida da sua atitude pareceu desencorajar a boa disposição da senhora Gorst.
A governanta restringiu-se fazendo novas perguntas, instruindo um criado para que levasse a mala de viagem de Lara para cima e a uma criada que arrumasse tudo. Enquanto os criados estavam assim atarefados, Lara subiu a toda a pressa até ao quarto onde Johnny dormia. Entrou no quarto sem fazer ruído e pousou uma vela na cômoda pintada de azul. Ao ouvir a respiração macia e serena do menino, o seu coração contraiu-se de súbita alegria. Aquilo, pelo menos, era algo com que ela poderia contar... a confiança e o amor inocente de uma criança. Tinha a cabeça aconchegada na almofada macia e a sua carinha infantil brilhava com o reflexo da luz da vela.
Lara baixou-se para beijá-lo.
— Já estou em casa — sussurrou.
Johnny mexeu-se e murmurou palavras não muito claras. Levantou as pestanas pretas e revelou um pequeno risco dos seus olhos azuis. Ficou contente de vê-la e esboçou um sorriso sonolento, antes de voltar a adormecer profundamente.
Lara voltou a pegar na vela, saiu com suavidade do quarto e dirigiu-se para o seu. Parecia muito vazio, apesar da presença das criadas, que arrumavam, diligentemente, o que havia na mala de viagem e preparavam a sua cama. Quando finalmente, a deixaram sozinha, colocou a camisa de noite e deixou a roupa amontoada no chão. Apagou os candeeiros, meteu-se na cama e deitou-se de costas, com os olhos bem abertos na obscuridade do quarto.
Estendeu a mão e acariciou o espaço vazio ao seu lado. Já estivera com dois homens diferentes naquela cama. Um tinha sido por obrigação, outro por paixão.
Lara sentia dentro do seu coração que Hunter não tinha intenções de voltar para ela, que ele iria querer reconciliar-se com todas as injustiças que a tinha feito passar. Ele acreditou quando ela lhe dissera que não poderia mentir, por sua causa, até ao resto da sua vida. Pensou que seria melhor para ela, que lhe facilitaria as coisas, se ele desaparecesse para sempre.
Mas a realidade era que ela o amava demasiado para permitir que ele se fosse embora. Lara queria tê-lo como seu marido e não se importava com o que as outras pessoas pudessem pensar. O amor que sentia por ele era muito superior ao dever, ao decoro e até mesmo à honra.
Caiu num sono turbulento, com a mente submersa em imagens inquietantes. Nos seus sonhos, as pessoas que ela amava caminhavam para longe dela, como se não a vissem ou ouvissem.
Ela corria atrás daquelas figuras sinistras, suplicando, puxando por elas, mas estas mostravam-se impassíveis perante os seus gritos desesperados. Uma a uma, as figuras começaram a desaparecer, até que só restava Hunter... e então, também ele se dissipou.
— Não! — Chorou enquanto o procurava, freneticamente, — nãããooo...
Um grito lancinante rasgou o silêncio da casa.
Lara sentou-se direita na cama, com o coração a bater desordenadamente e com muita força. No início, pensou que o grito poderia ter sido seu, mas, ao escutar com mais atenção, ouviu novamente.
— Rachel! - respirou fundo e pulou de cama, impulsionada pelos gritos sufocados da sua irmã. Saiu a correr do quarto, descalça, não se preocupando em calçar os sapatos de quarto ou em vestir o roupão. Quando chegou ao topo da escadaria principal, viu que a meio dela, um homem descia puxando Rachel com violência e arrastando-a com ele. Com uma das grandes mãos, agarrava a longa trança de Rachel, e com a outra prendia-lhe o braço para a imobilizar.
— Não, Terrell, por favor - implorou Rachel, tentando afastá-lo a cada passo.
Ele lançava-a para diante, empurrando-a três ou quatro degraus até que ela desfaleceu logo no primeiro patamar.
Horrorizada, Lara deixou escapar um grito estridente. Lonsdale... Ela não esperava que ele se atrevesse a entrar ali a meio da noite e arrancasse Rachel da cama. Ele estava ruborizado devido ao álcool e a uma raiva farisaica. Levantou o olhar e fez uma expressão de desprezo ao ver a cunhada.
— Estou a levar o que é meu — disse, com uma voz inarticulada. — Vou ensiná-la a não se pôr no meu caminho! Nunca mais vai ver a minha mulher, nunca mais. E se alguma vez, eu as encontrar juntas, mato-as às duas! — Agarrou Rachel pelos cabelos e levantou-a, parecendo apreciar os seus soluços de dor. — Pensava que poderia separar-se de mim - rosnou. — Mas pertence-me, e eu vou fazer de você o que bem entender, sua cabra traidora. A primeira lição começa ainda esta noite.
A chorar violentamente, Rachel olhou para Lara.
— Larissa, não o deixe levar-me!
Lara lançou-se pelas escadarias e Lonsdale continuava a arrastar e a empurrar a sua irmã.
— Não se atreva a tocar-lhe! — Gritou Lara, enquanto os seus pés descalços desciam pelos degraus abaixo a toda a velocidade. Quando chegou perto deles, agarrou o braço de Lonsdale e puxou-o com força. — Solte-a, ou eu juro que o mato!
— Fará o quê? — perguntou, dando uma gargalhada de desprezo e sacudindo-a com uma facilidade assustadora. A força do seu braço atirou-a para o chão tendo batido violentamente com a nuca na parede. Por um momento, o mundo deixou de existir e a sua mente ficou coberta por uma espessa nuvem cinzenta. Tentou reagir, levou as mãos à cabeça e então apercebeu-se de um zumbido enervante e penetrante que não passava. Para além deste som, ouvia ainda as súplicas de Rachel, à distância.
Esforçando-se por se sentar, Lara percebeu que Lonsdale arrastava a sua irmã pelo vestíbulo e Rachel tropeçava e chorava a seu lado. Apesar da sua debilidade física, Rachel reagia com coragem, e com todas as suas forças, tentava libertar o braço, que tinha preso. Furioso com aquela resistência, Lonsdale bateu-lhe na cabeça com algum objeto que tinha na mão. Rachel cambaleou e quase desmaiou. Ela gemeu de dor e seguiu-o, submissa. Todo o seu corpo estremecia.
Os criados tinham sido despertados com os gritos. Alguns deles acudiram chegando ao vestíbulo, e olhavam boquiabertos para aquele espetáculo, sem conseguirem acreditar no que viam.
— Oh, detenham-no! - pediu Lara, enquanto se agarrava ao corrimão e tentava pôr-se de pé. — Não os deixem sair!
Mas nenhum dos criados se moveu e, imediatamente, ela percebeu porquê. O objeto que Lonsdale segurava nas mãos era uma pistola. Naquele estado de fúria, ele não hesitaria em usá-la.
— Abra as portas! - ordenou Lonsdale com brutalidade, apontando a arma a um dos criados. — Agora!
O criado apressou-se a obedecer. Foi até à entrada, tentou virar as maçanetas e abriu as portas pesadas, empurrando-as suavemente para fora.
Para espanto de todos os presentes, uma voz aguda ecoou por todo o vestíbulo.
— Pare! - o olhar de Lara desviou-se para ao topo das escadarias. Ali estava Johnny, de pé, vestido apenas com a sua pequena camisa de noite branca e com o cabelo escuro, todo despenteado. Ele segurava uma pistola de brincar na mão, uma das que poderia ser carregada com um cartucho de pólvora inofensivo.
— Vou dar-lhe um tiro! — Gritou o menino, apontando a pistola a Lonsdale.
Instintivamente, Lonsdale ergueu a sua arma e fez pontaria àquela pequena figura.
— Não! — Gritou Lara a Lonsdale. — É só um brinquedo!
— Solte a tia Rachel! — Johnny gritou e disparou. O brinquedo emitiu um fraco estouro, que deixou todos perplexos.
Ao dar-se conta de que aquela minúscula pistola era inofensiva, Lonsdale começou a rir-se, não querendo acreditar no que estava a assistir, naquela pequena criança, furiosa, no topo das escadarias.
De repente, uma figura indistinta entrou pela porta principal, surgindo com a agilidade de um animal
— Hunter... — disse Lara, num fôlego, ao mesmo tempo que ele se lançava sobre Lonsdale, com um tal impacto que os dois homens caíram ao chão.
Com a força da colisão, Rachel foi lançada para o lado e rolou uma, duas vezes, até que o seu corpo ficou prostrado devido à dor e ao choque. Fechou os olhos e desmaiou, com os braços estendidos, como uma boneca de trapos atirada ao chão.
Os dois homens lutavam com ferocidade, para se apoderarem da arma, insultando-se e rosnando enquanto se esmurravam um ao outro. Lara deu a volta e subiu as escadarias, o mais rápido que conseguiu. Numa questão de segundos, aproximou-se de Johnny e puxou-o para o chão, protegendo aquele pequeno corpo com o seu. Desconcertado, o menino começou a soluçar e o seu rosto ficou encharcado com as lágrimas.
— Mamãe, o que se passa? — perguntou, aflito. Lara abraçou o com força.
Ela arriscou olhar para a cena que se passava no piso de baixo, onde Hunter se retorcia e se esforçava por agarrar a arma. Mordeu o lábio, aterrorizada, lutando por se manter em silêncio. Aqueles homens enormes estavam envolvidos num combate mortal e rolavam pelo chão brilhante... E então, uma estrondosa explosão ouviu-se no ar.
Os dois homens permaneceram imóveis.
Lara agarrou-se a Johnny. Tinha os olhos muito abertos e fixos nos dois longos corpos e na mancha de sangue, vermelha como rubi, que se estendia ao redor deles. A sua garganta emitiu um som sufocado e teve de cobrir a boca com a mão para conter um grito de angústia.
Hunter começou a mover-se, lentamente, desembaraçou-se do outro homem e pressionou com as suas grandes mãos, a ferida aberta no abdômen de Lonsdale. Respirando com dificuldade, Hunter olhou para os criados que estavam ao pé de si.
— Chamem o doutor Slade! E alguém vá buscar a polícia — Gritou, em seguida acenou ao mordomo, com a cabeça — E você... leve Lady Lonsdale lá para cima, para o quarto dela, antes que recupere os sentidos - no meio daquele caos instalado, o tom ríspido da sua voz parecia incutir alguma ordem, e todos se apressaram a obedecer-lhe, gratos pela sua liderança.
A tremer de alívio, Lara pegou na mão de Johnny e puxou-o para longe da cena.
— Não olhe, meu querido — murmurou quando percebeu que ele tentava espreitar.
— Ele voltou — disse Johnny, apertando-lhe os dedos, com força. — Ele voltou.
Estava quase amanhecendo, quando a polícia se foi embora, depois de submeterem os Hawksworth e os criados a um interrogatório prolongado. O desenvolvimento daqueles acontecimentos, não parecia ter surpreendido o chefe da polícia. Como ele mesmo observou, no seu jeito lacônico, todos conheciam o habitual estado de embriaguez e a violência de Lonsdale. Era só uma questão de tempo, até ele ter o castigo merecido.
Embora parecesse que o assunto seria posto de lado, sem repercussões para Hunter, este não conseguia ultrapassar tudo o que se tinha passado, com facilidade. Sentado na banheira do seu quarto de banho, começou a esfregar-se com violência, tentando eliminar aquelas terríveis imagens. Com uma boa dose de sabão, conseguiu remover do seu corpo todo o traço de porcaria e de sangue, mas ainda não se sentia limpo. Durante quase toda a sua vida, tinha conseguido ignorar a sua própria consciência. Na realidade, ele tinha demasiadas certezas de que não a possuía. Mas agora, estava profundamente perturbado com as consequências de ter trazido Rachel para Hawksworth Hall. Se ele não o tivesse feito, provavelmente, Lorde Lonsdale ainda estaria vivo. Por outro lado, se Hunter tivesse deixado Rachel à mercê do seu marido, talvez fosse ela, quem estaria morta. Teria tomado à escolha mais acertada? Teria havido outra escolha possível?
Vestiu-se, penteou os cabelos molhados e, começou a pensar em Lara. Havia ainda, entre eles, coisas deixadas por dizer... coisas dolorosas, que ele não quis dizer e que ela não quereria ouvir. Queixando-se de dor, esfregou os olhos machucados com as costas das mãos. Então recordou-se de como tudo tinha começado, com o seu desejo incontrolável de se tornar Hunter Cameron Crossland. O mais surpreendente de tudo era a naturalidade que sentiu com tudo aquilo que se tinha passado. Tinha-se apropriado daquele nome e, por vezes, até mesmo ele próprio, tinha tido dificuldades em se recordar que estava vivendo uma vida que não era a dele. A sua outra existência, triste e deprimente, tinha sido arrumada, como uma arca num sótão escuro que ele não desejava visitar, nunca mais.
E Lara, por algum motivo que ele ainda não tinha conseguido entender, tinha tornado possível que a farsa prosseguisse. Talvez ela estivesse a tentar tratá-lo como um dos seus inúmeros casos de caridade, tentando salvá-lo daquilo em que ele se tinha tornado.
Mas ele não poderia permitir que Lara se tornasse parte da mentira. Ele não suportava corrompê-la ainda mais do que já a tinha corrompido.
Inundado de medo e de desejo, foi despedir-se de Lara.
Lara estava sentada numa cadeira, junto à lareira, e estremecia enquanto o calor do carvão se estendia sobre os seus pés descalços. Rachel tinha adormecido no seu próprio quarto, logo depois de o médico lhe ter administrado uma dose de láudano. Johnny tinha ido para o seu quarto, tinha tomado um copo de leite para acalmar e tinha adormecido a ouvir uma história. Embora estivesse exausta, Lara preferiu ficar acordada, receando que Hunter a deixasse uma vez mais, caso adormecesse.
O seu corpo deu um pequeno salto ao ouvir a maçaneta girar e ver Hunter a entrar no quarto, sem bater. Levantou-se imediatamente e, depois de olhar rapidamente para aquele rosto distante, Lara conteve-se e cruzou os braços, abraçando-se a si mesma.
— Pensei que me tinha abandonado, depois dos testemunhos de Londres — disse ela, com calma. — Pensei que não ia voltar.
— Não ia fazê-lo. Mas entretanto, pensei que estaria aqui sozinha, com Rachel, e imaginei o que Lonsdale seria capaz de fazer — Emitiu um ruído de desagrado por si mesmo. — Eu teria vindo mais cedo, se tivesse pensado com mais clareza.
— Veio a tempo — Concluiu Lara, com a voz quebrada. — Oh, Hunter... lá em baixo... Por um momento, eu pensei que tinha ficado ferido... ou morto...
— Não diga mais nada — Hunter levantou a mão, indicando-lhe que ficasse em silêncio.
Completamente destroçada, Lara calou-se. Como era possível que, ainda há tão pouco tempo, estivessem tão intimamente ligados e agora estivessem diante um do outro, como perfeitos desconhecidos? Ela amava-o, qualquer que fosse o seu nome, independente do sangue que corria nas suas veias, independente do que ele acreditasse ou desejasse. Desde que ele também a amasse. Mas, ao ver aqueles olhos escuros tão impenetráveis, pensou que convencê-lo parecia uma tarefa impossível.
— Fique comigo — sussurrou ela, estendendo uma mão, em súplica. — Por favor.
— Não me peça isso, Lara — Ele olhou-a como se odiasse a si mesmo.
— Mas você me ama. Eu sei que me ama.
— Isso não muda nada — respondeu com muita tristeza. — Sabe bem porque é que eu devo partir.
— O seu lugar é aqui, comigo - insistiu. — Em primeiro lugar, tem o dever de cuidar da criança que ajudou a gerar.
— Não há criança — respondeu, aborrecido.
Lara aproximou-se dele, reduzindo a distância que os separava. Cuidadosamente, pegou na sua mão enorme, que estava caída, e levou-a até ao seu ventre. Pressionou a mão contra o seu corpo, como se ela pudesse fazê-lo sentir a verdade das suas palavras.
— Eu tenho o seu filho, dentro de mim.
— Não — sussurrou ele. — Não pode estar.
— Eu nunca lhe mentiria.
— Não a mim — Concordou ele, com amargura, — mas sim ao resto do mundo. O fez por mim - o seu outro braço deslizou ao redor dela e abraçou-a, como se não conseguisse mais conter-se. Todo o seu corpo estremeceu e ele mergulhou o rosto no cabelo solto de Lara. Ela ouviu o ritmo da sua respiração alterar-se e percebeu que a máscara dele estava a romper-se, revelando o desespero e o amor frustrado, sob aquela aparência.
— Lara, não sabe o que sou.
— Sei, sim — respondeu logo, e abraçou as suas costas com muita força, para impedi-lo de se afastar. — É um homem bom, embora não se aperceba disso. E é meu marido em todos os aspectos que realmente importam.
Um riso trêmulo escapou-se da sua garganta.
— Diabos. Você não entende que a melhor coisa que eu posso fazer por ti, é sair da sua vida?
Lara deu um passo atrás e segurou-lhe a cabeça, forçando-o a olhar para ela. Os seus olhos escuros brilhavam devido às lágrimas e a sua boca tremia com as emoções que ele tinha reprimido até àquele momento. Ela acariciou o belo cabelo, o amado rosto, como se o pudesse curar com aquele toque.
— Fique comigo - pediu, tentando sacudir os seus ombros volumosos. Mas o seu enorme corpo não se movia. — Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre este assunto. Eu não entendo porque deveremos viver separados e sofrer, quando temos toda a possibilidade de estar juntos. Se não se achar merecedor de mim, esforce-se por se superar todos os dias, durante os próximos cinquenta anos – agarrou a camisa de Hunter e apertou-se contra ele. — De qualquer das formas, eu não quero um homem perfeito ao meu lado.
Hunter desviou o olhar, tentando controlar-se.
— Pois, realmente, isso é coisa que eu não sou.
Lara sorriu-lhe ligeiramente, ao perceber algo na sua voz que lhe deu uma réstia de esperança.
— Eu estou oferecendo a vida que sempre desejou — Acrescentou. — Uma vida com sentido, objetivo e amor. Aceite-a. Aceite-me.
Apertou os lábios contra a sua boca firme, roubando-lhe um beijo rápido, e depois outro, persuadindo-o e seduzindo-o até que ele respondeu com um gemido. Então, ele esmagou a boca na dela, com um desejo tremendo, que de repente ficou totalmente descontrolado. Explorou a boca dela com a língua e um som primitivo e viril emergiu da sua garganta quando ele puxou para cima a camisa de noite de Lara, em gestos frenéticos e desesperados.
Lara entrelaçou a sua perna nua ao redor da dele, oferecendo-se com uma vontade que parecia deixá-lo louco de desejo. Rapidamente, levou-a em braços até à cama e o cansaço de Lara desvaneceu-se, à medida que o seu sangue corria com excitação.
— Eu amo-o — sussurrou-lhe, enquanto o puxava até ela e sentia o tremor que se estendia nele, em resposta. Hunter puxou pela sua camisa de dormir até a arrancar, deixando-a nua. Os lábios dele encontraram o seu mamilo e chuparam-no com firmeza, estendendo os dedos pelo seu ventre e pelas ancas.
Lara gemeu e embalou-o com os braços e pernas. Ela precisava dele, mais do que alguma vez imaginou ser humanamente possível. Ele levantou a cabeça e voltou a beijar-lhe os lábios, beijos profundos e intensos, que a deixaram sem fôlego. Ofegando, ela tirou-lhe as roupas e tentou desabotoar a camisa.
— Não posso esperar mais — murmurou ele, ao levar as mãos até às calças, desabotoando-as num esticão.
— Quero sentir a sua pele — Choramingou ela, ainda lutando com a camisa dele.
— Depois... oh meu Deus... — Abriu-lhe as pernas e penetrou-a num firme empurrão. Aquela doce e pesada pressão tão dentro do seu corpo, a fez gritar e o seu corpo foi invadido por deliciosas sensações que percorreram todos os seus nervos. Arqueou-se para cima e estremeceu de prazer enquanto ele se começou a mover com suavidade dentro dela, prolongando aquela intensa sensação. Os empurrões ficaram mais e mais profundos, a um ritmo alucinante e provocante, de impacto e retirada. Ele fez amor com ela como se estivesse a festejar nela todos os movimentos carnais e deliberados. Lara conseguiu introduzir as mãos por debaixo da sua camisa e agarrou os músculos tensos das costas, urgindo-o a que terminasse depressa. Porém, ele levou o tempo que quis, parecendo apreciar os pequenos gemidos dela.
— Eu não posso... Estou muito cansada - implorou ela. — Por favor, mais não...
— Outra vez — disse ele com voz grossa, afundando-se novamente nela até que ela voltou a estremecer em outro clímax, que desta vez se tornou quase doloroso, de tão intenso. Hunter enterrou-se completamente dentro de Lara e deixou que as contrações internas dela o levassem à sua própria libertação, apertando os dentes enquanto a tempestade passava por ele.
A tremer e a respirar irregularmente, foram relaxando na confusão das roupas da cama. Lara afundou-se numa letargia de paz e voltou o rosto em direção a Hunter, ao sentir que ele lhe acariciava o cabelo. A luz do dia ameaçava entrar na quietude do quarto, mas as cortinas pesadas mantiveram-na à distância.
— Mesmo que tivesse decidido abandonar-me — disse Lara, sonolenta, — não teria conseguido manter-se afastado por muito tempo.
Ele fez um som pesaroso.
— Porque eu preciso de você — respondeu, e beijou-lhe a testa.
— Não tanto quanto eu preciso de você.
Ele sorriu e passou as mãos, com suavidade, por todo o seu corpo. Mas quando voltou a falar, o seu tom era sério.
— O que vamos fazer de agora em diante, com tudo o que sucedeu entre nós?
— Não sei — Lara apoiou a cabeça na parte interior do seu ombro. — Começaremos tudo de novo, apenas.
— Cada vez que olhar para mim - notou ele, — vai recordar-se de que eu ocupei o lugar do seu verdadeiro marido.
— Não — respondeu, pondo os dedos sobre os lábios dele, determinada a que nenhum fantasma do passado os assombrasse naquela altura. — Suponho que irei pensar nele em algumas ocasiões... Mas, nunca o conheci realmente. Ele não queria uma vida comigo, nem eu com ele.
Ela sentiu que ele torcia a boca num tom irônico.
— E isso é tudo o que eu sempre desejei — murmurou ele.
Lara levou a mão até ao peito de Hunter e sentiu o bater do seu coração.
— Quando eu olho para você, só o vejo a você — Aconchegou-se mais próximo dele. — Eu conheço-o muito bem — Acrescentou.
Aquele comentário provocou nele um riso involuntário e Hunter virou-se de lado para a observar melhor. Era óbvio que ele estava pronto para discutir o assunto, mas ao contemplar aquele pequeno rosto, a expressão dele mudou e uma ternura extraordinária invadiu-o.
— Talvez sim — disse, puxando-a para mais perto dele.
Epílogo
Depois de visitar o orfanato e de ver as melhorias que tinham sido feitas, Lara ficou plenamente satisfeita. Estava tudo pronto para admitir as novas crianças, que seriam apenas dez, em vez das doze, uma vez que duas famílias de Market Hill estavam tão felizes com os seus hóspedes temporários, que decidiram ficar com eles. Seria bastante fácil ocupar as camas que sobravam, pensou Lara. Haveria sempre mais duas crianças que tivessem necessidade de viver num lugar decente.
Quando saiu da carruagem e entrou em Hawksworth Hall, a sua mente estava tão ocupada com tantos planos, que quase não reparou no homem que esperava por ela.
— Lady Hawksworth... perdoe-me, minha senhora... — A voz culta de um cavalheiro repetiu o seu nome, ela parou e virou-se surpreendida, com um sorriso de interrogação.
O visitante era Lorde Tufton, o homem tímido e amável que tinha cortejado Rachel, antes de ela se ter casado com Lonsdale. Ele era mais um intelectual do que propriamente atlético, tinha um ar afável e sério, que Lara sempre apreciara. Ela tinha ouvido recentemente que Tufton tinha herdado uma enorme fortuna, com a inesperada morte do seu tio, fazendo dele um ótimo partido para muitas jovens ambiciosas.
— Lorde Tufton! — Exclamou Lara, com sincero prazer. — Que agradável surpresa.
Trocaram algumas palavras amáveis durante uns minutos e em seguida, Tufton chamou-lhe a atenção para um magnífico ramo de rosas que estava sobre a mesa da entrada.
— Comprei-as para oferecer a toda a sua família — disse, com timidez.
— Como são maravilhosas — disse calorosamente, escondendo um sorriso quando percebeu que as rosas eram para a irmã. Naturalmente, não teria sido muito próprio se Tufton as oferecesse diretamente à sua irmã, uma vez que ela se encontrava ainda de luto.
— Obrigada. Todos nós as apreciaremos muito, especialmente a minha irmã. Ela é totalmente apaixonada por rosas, como sabe.
— Sim, eu... — Clareou a voz, com nervosismo. — Poderei perguntar pela saúde de Lady Rachel, minha senhora?
— Ela está bastante bem — Assegurou Lara, — embora... nestes últimos dias, esteja bastante silenciosa e abatida.
— Que outra coisa se poderia esperar - retorquiu gentilmente — Depois da tragédia por que acabou de passar.
Lara observou-o com um sorriso pensativo. Rachel não tinha recebido visitas nos últimos dois meses, desde a morte de Lonsdale mas, de alguma forma, Lara tinha a impressão de que a presença de Tufton seria bem-vinda.
— Lorde Tufton, nesta altura do dia, a minha irmã está sempre lá fora no jardim a dar um longo passeio. Tenho a certeza de que gostaria de ter alguém que a acompanhasse.
Ele parecia, ao mesmo tempo, ansioso e hesitante perante a perspectiva.
— Oh, eu não quereria aborrecê-la... Ela pode desejar estar só...
— Venha comigo — disse Lara e puxou-o com determinação através do vestíbulo. Conduziu-o às portas envidraçadas que abriam para o jardim e olhou de relance, até ver Rachel por debaixo de uma sombrinha preta, enquanto caminhava por entre as sebes.
— Ali está ela — disse com satisfação. — Vá e junte-se a ela, Lorde Tufton.
— Mas eu não sei se... — murmurou.
— A minha irmã ficará encantada, tenho a certeza — Lara abriu a porta e obrigou-o a sair, observando como ele caminhava por entre o jardim florido.
— Mamãe! — Ao ouvir a voz de Johnny, Lara voltou-se, com um sorriso. O menino estava vestido com umas pequenas calças de montar e uma jaqueta azul, à espera da lição de equitação.
— Meu querido, onde está a tua ama? — perguntou.
— Está vindo da sala de estudo — disse Johnny, ligeiramente ofegante. — Mas ela não consegue correr tão rápido como eu.
Lara endireitou o boné da criança.
— Porque está sempre com tanta pressa?
— Porque não quero perder nada.
Rindo, Lara voltou a sua atenção para a janela, observando Lorde Tufton e Rachel. A sua irmã segurava o braço de Tufton, enquanto passeavam. Por debaixo da sombrinha preta, Lara vislumbrou um sorriso no rosto da irmã, como há já algum tempo não via.
— Quem é aquele que está com a tia Rachel? — perguntou Johnny.
— Penso que será o seu futuro marido — Explicou Lara pensativamente, olhando para o menino com um sorriso de cumplicidade. — Mas, por agora, será um segredo entre nós dois.
Isto levou-os a pensar em outro segredo partilhado pelos dois e Johnny agarrou-lhe nas saias.
— Mamãe, quando poderemos dizer a todo mundo que vai ter um bebê?
— Quando se começar a perceber — respondeu Lara. Perante o olhar confuso da criança, ela explicou, ruborizando. — Quando a minha barriga ficar maior.
— Ficará tão grande como a do senhor Ralph? - quis ele saber, lembrando-se de um cavalheiro robusto que eles conheciam.
Lara não pôde deixar de soltar uma gargalhada.
— Meu Deus, espero que isso não aconteça.
A expressão de Johnny tornou-se muito séria.
— Mamãe, quando o bebê chegar, vai continuar gostando de mim? — perguntou.
Sorrindo, cheia de felicidade, Lara ajoelhou-se e abraçou carinhosamente aquele corpinho delgado e pequeno.
— Claro que sim — murmurou, abraçando-o com força. — Sempre, Johnny.
Ao fim da tarde, Hunter chegou de Market Hill e encontrou Lara, que tinha acabado de mudar de roupa para o jantar. Chegou-se a ela e deu-lhe um beijo rápido e forte nos lábios.
— Já os tenho — disse, respondendo ao olhar interrogativo dela.
Lara sorriu, enquanto alisava a lapela do casaco de Hunter com as pontas dos dedos.
— Pensei que se poderia ter esquecido do que tínhamos planejado para esta noite.
Hunter negou com a cabeça.
— Pensei nisso todo o dia.
— Vamos jantar primeiro? — perguntou ela com suavidade.
— Eu não tenho fome. Tem?
— Não.
Pegou-lhe na pequena mão, fechou-a dentro da dele e puxou-a para junto de si.
— Então, vamos.
Levou-a para os arredores de Market Hill, conduzindo uma pequena charrete puxada por dois cavalos baios. Chegaram a uma pequena igreja de pedra, que havia junto a um arvoredo de pequenas árvores, perto da reitoria. O modesto e pitoresco edifício tinha um telhado de colmo, uma torre redonda em estilo saxônico que terminava num campanário. Parecia uma imagem retirada de um conto de fadas.
Lara sorriu em antecipação, enquanto Hunter a ajudava a descer da carruagem. Ele usou uma lanterna da carruagem para iluminar o pequeno caminho e tomou Lara pelo braço, para evitar que ela tropeçasse nas pedras. Entraram na igreja silenciosa e Lara contemplou o interior enquanto Hunter acendia duas velas junto ao altar. Uma simples cruz de madeira e um vitral redondo, eram os únicos ornamentos além de uma escultura em madeira talhada, que estava por detrás de quatro bancos.
— É perfeita — disse Lara.
Hunter olhou-a com um ar cético.
— Lara, eu desejava...
— Isto é mais do que suficiente - interrompeu-o, com o rosto a brilhar à luz das velas. — Não precisamos de uma igreja sofisticada, de uma congregação ou de um padre para fazermos uma cerimônia digna.
— Mas você merece muito mais — murmurou ele.
— Chegue aqui. — De pé junto ao altar, esperou. Os seus lábios esboçaram um sorriso.
Hunter aproximou-se e retirou do bolso uma pequena bolsa de veludo. Suavemente, deixou cair o seu conteúdo para a mão. Lara ficou quase sem respirar quando viu a joia que ele lhe mostrava, dois aros de ouro entrelaçados num só.
— É lindo — disse, olhando ao vê-lo separar as duas peças e a colocá-las no altar.
Movida pela doce serenidade do ambiente, Lara baixou a cabeça e rezou silenciosamente, com o coração cheio de esperança e alegria. Ergueu o olhar e encontrou os olhos escuros e brilhantes de Hunter fixos nela.
— Por muito tempo que esteja junto de você — disse com voz rouca - nunca será o suficiente.
Sem mais palavras, ela ofereceu-lhe a mão e Hunter agarrou-a com firmeza. Segurou-a por um momento, pegou numa das alianças de ouro e deslizou-a no seu dedo.
— Prometo — disse ele lentamente, fitando-a nos olhos, — dar-lhe todo o meu corpo e toda a minha alma... cuidar sempre de você... respeitá-la e honrá-la... e principalmente amá-la até ao dia da minha morte... e mesmo depois disso - fez uma pausa e sorriu-lhe com um toque de brincadeira e ternura no olhar. — E prometo não me queixar dos seus projetos de caridade... desde que se lembre de guardar algum tempo para mim.
A mão de Lara tremeu um pouco ao colocar a outra aliança no dedo de Hunter.
— Eu prometo ser sua companheira, amiga e amante — disse ela com suavidade. — Prometo dar-lhe todo o meu amor e confiança e construir toda uma vida com você... ajudando-o a esquecer-se do passado e a alegrar cada dia que passarmos juntos.
— E me dará filhos — disse ele, enquanto colocava suavemente a mão no ventre dela.
— Dez — disse ela ambiciosamente, fazendo-o rir.
— Agora percebo o seu plano. Manter-me-á todo o tempo na cama, trabalhando para os produzir.
— Põe alguma objeção? — perguntou Lara.
Ele sorriu e abraçou-a com força.
— Por Deus, não. Estava só pensando... — E encheu-lhe a boca de beijos apaixonados. — Será melhor... que comecemos a praticar.
As mãos dela deslizaram por trás da sua cabeça e beijaram-se apaixonadamente até ficarem sem fôlego.
— Diga-me o seu nome — sussurrou. — O seu nome verdadeiro.
Ela já lhe tinha perguntado muitas vezes mas, como sempre, ele recusava-se a dizê-lo.
— Não, minha pequenina querida — disse-lhe, com ternura, enquanto lhe acariciava o cabelo. — Esse homem já não existe.
— Diga-me — Exigiu, agarrando-se ao casaco dele.
Ele soltou-a, fazendo-lhe cócegas e Lara largou-o a rir, encostada ao seu peito.
— Nunca — respondeu ele.
Lara rodeou o pescoço com os braços.
— Tem a noção de que o farei dizer, um destes dias — disse-lhe, determinada, apertando com os lábios uma parte sensível do pescoço, fazendo-o estremecer. — Não tenha a mínima esperança de que irá conseguir resistir...
— Nem por um segundo — Concordou com uma voz rouca, inclinando-se novamente até à sua boca.
{1} Madrasta (em inglês Madras) Chennai desde 1996, é a capital do estado de Tami Nadu na Índia. O nome Madrasta poderá ser de origem portuguesa (Madre de Sois).
{2} Elizabethan era - período associado ao reinado da rainha Isabel I (1558-1603) e é muitas vezes considerado a era de ouro da história da Inglaterra.
{3} Patchwork - é uma forma de costura que envolve costurar peças de tecido umas às outras até se formar um desenho maior. Um estilo de colcha patchwork é a crazy quilting (manta disparatada). Crazy quilting era popular durante a época vitoriana (meados-finais do século XIX). Era composto por formas aleatórias de tecidos de luxo, como veludos, sedas e bordados, que eram cosidas, formando composições assimétricas não repetidas.
{4} Widow's peak - ponto descendente em forma de V na implantação do couro cabeludo acima da testa. Esta designação advém do uso pelas viúvas, em certas civilizações, de um lenço de cabeça colocado de forma a ficar com uma forma em V no alto da testa.
{5} Chippendale - Inglaterra no século XVIII, — desenhador e marceneiro londrino especializado em móveis, num estilo que se assemelha ao rococó inglês e ao neoclássico.
Lisa Kleypas
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