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UM ESTRANHO SONHADOR - Parte III
50
O DIA INTEIRO PARA ENFRENTAR
Na cidadela e na cidade, Sarai e Lazlo sentiam o “chamar” um do outro, como uma linha fina amarrada entre seus corações. Outra linha entre seus lábios, onde o beijo mal havia começado. E uma terceira do umbigo dela ao dele, onde uma nova atração surgiu. Suave, insistente, delirante, esse chamar. Se ao menos pudessem recolher as linhas e enrolá-las para chegar cada vez mais perto, até finalmente encontrarem-se no meio.
Mas havia um dia inteiro para enfrentar antes que chegasse a hora, de novo, dos sonhos.
Acordando de seu primeiro beijo, ainda preenchida pela magia da noite extraordinária, Sarai estava animada e com uma nova fonte de esperança. O mundo parecia mais belo, menos brutal, e o mesmo acontecia com o futuro, porque Lazlo estava nele. A garota estava deitada na cama quente, seus dedos brincando com seu próprio sorriso, como se o encontrasse pela primeira vez. Ela sentia-se nova para si mesma, não uma coisa obscena que fazia os fantasmas recuarem, mas um poema. Um conto de fadas.
Após o sonho, tudo parecia possível. Até a liberdade.
Até o amor.
Mas era difícil agarrar-se àquele sentimento enquanto a realidade se afirmava.
Ela ainda era uma prisioneira, para começar, com o exército de Minya impedindo-a de sair do quarto. Quando tentou atravessar a porta, os fantasmas agarraram seus braços, bem em cima dos machucados que haviam feito no dia anterior, e arrastaram-na de volta. Pequena Ellen não chegou com sua bandeja da manhã, nem Feyzi ou Awyss com o jarro de água fresca que sempre traziam logo no início do dia. Sarai usara o resto da água na noite anterior para limpar a ferida do braço e acordou desidratada, sem dúvida seu choro durante a noite não tinha ajudado, sem nada para beber.
Ela estava com sede e com fome. Será que Minya queria matá-la de fome? A garota não comeu ou bebeu nada até que Grande Ellen veio em algum momento do início da tarde com o avental cheio de ameixas.
– Ah, ainda bem! – exclamou Sarai. Mas quando fitou Grande Ellen, ficou perturbada com o que viu. Era o rosto amado da fantasma, largo e matronal, com suas “bochechas de felicidade” redondas e vermelhas, mas não havia nada de feliz em suas feições, tão apáticas quanto de qualquer fantasma do exército de Minya. E quando ela falou, o ritmo de sua voz não era seu, mas reconhecidamente o de Minya.
– Até traidoras precisam ser alimentadas – disse ela, e então baixou a bainha de seu avental e deixou cair as ameixas no chão.
– O que...? – perguntou Sarai, recuando enquanto as frutas rolavam por toda parte. Conforme a fantasma se virava para ir embora, Sarai viu como seus olhos se esforçavam para ficarem fixos pelo máximo de tempo possível nela, e ela viu dor ali, e um pedido de desculpas.
Suas mãos tremeram enquanto ela pegava as ameixas. As primeiras, ela comeu ainda agachada no chão. Sua boca e garganta estavam muito secas. O sabor era divino, embora estivessem machucadas devido à forma como foram entregues, e pelo horror de Minya usar Grande Ellen dessa forma. Sarai comeu cinco ameixas, então se arrastou pelo chão até reunir todo o resto e enfiar nos bolsos do robe. Ela podia ter comido mais, mas não sabia quanto tempo as frutas teriam de durar.
No dia anterior, trancada no quarto, ela sentiu desespero. Hoje, o sentimento não se repetiu. Em vez disso, ficou enlouquecida. Com Minya, é claro, mas também com os outros. Os fantasmas não tinham livre-arbítrio, mas, e quanto a Feral, Rubi e Pardal? Onde estavam? E se fosse um deles que estivesse sendo punido, ela não iria apenas se resignar e continuar com seu dia. Ela lutaria por eles, mesmo contra Minya.
Será que os outros realmente acreditavam que ela os havia traído? Sarai não havia escolhido os humanos em vez dos filhos dos deuses, mas sim a vida no lugar da morte, pelo bem de todos. Será que eles não viam isso?
Sob a influência do lull, seus dias não eram nada além dos momentos cinzentos sem sono entre uma noite e outra. Esse dia era o contrário. Ele não terminava.
Ela observou os quadrados de luz solar que as janelas lançavam no chão e que deveriam ter mudado de posição conforme o movimento sol, mas ela tinha certeza que estavam congelados no lugar. É claro que hoje seria o dia em que o sol ficaria preso no céu. As engrenagens celestes haviam travado, agora seria dia eternamente.
Por que não noite eterna?
Lazlo e noite para sempre. Sarai sentiu um frio na barriga, e desejava a fuga que a noite traria, se enfim a noite chegasse.
Dormir ajudaria a passar o tempo, se ela ousasse.
Sarai certamente precisava disso. O pequeno descanso que conseguiu, dormindo no sonho de Lazlo, não tinha nem começado a diminuir seu cansaço. Esses últimos dias, perseguida por pesadelos, sentira a presença deles mesmo enquanto estava acordada. Ela sentia-os agora, também, e ainda tinha medo. Entretanto, não estava mais aterrorizada e isso era maravilhoso.
Ela considerou suas opções. Podia andar para cá e para lá, amarga e frenética, sentindo cada segundo da privação e frustração enquanto o sol se demorava em seu caminho pelo céu.
Ou podia ir até a porta, ficar diante dos guardas-fantasmas e gritar para o corredor até que Minya viesse.
E, então, o que aconteceria?
Ou podia dormir, e talvez lutar contra os pesadelos – e talvez vencer e deixar o dia transcorrer sozinho.
Não era uma escolha, na verdade. Sarai estava cansada, mas não aterrorizada, então deitou-se na cama, colocou as mãos sob a face e dormiu.
Lazlo olhou para a cidadela e perguntou-se, pela centésima vez naquele dia, o que Sarai estaria fazendo. Será que ela dormia? Se sim, estava se defendendo dos pesadelos sozinha? Ele fitou o anjo de metal e concentrou sua mente, como se ao fazer isso pudesse transmitir-lhe força.
Também, pela centésima vez naquele dia, lembrou-se do beijo.
Poderia ter sido breve, mas boa parte do beijo, um primeiro beijo, especialmente, é o que antecede o momento em que os lábios se tocam, e antes que os olhos se fechem, quando se está preenchido com a visão do outro, e com a compulsão, a atração, e é como... é como... encontrar um livro dentro de outro livro. Um pequeno tesouro de livro escondido dentro de um grande e comum, como feitiços impressos nas asas de uma libélula, descobertos dentro de um livro de culinária, bem entre as receitas de repolho e milho. É assim que é um beijo, ele pensou, não importa quão breve: é uma história mágica e minúscula, e uma interrupção milagrosa do mundano.
Lazlo estava mais do que pronto para que o mundano fosse interrompido novamente.
– Que horas são? – ele perguntou a Ruza, olhando para o céu, que, no espaço em que aparecia em torno dos limites da cidadela, estava extremamente claro e azul. Ele nunca tinha sentido raiva do céu antes. Até os dias intermináveis da travessia do Elmuthaleth haviam passado mais rapidamente do que este.
– Eu pareço um relógio? – perguntou o guerreiro. – Meu rosto é redondo? Há números nele?
– Se o seu rosto fosse um relógio – Lazlo disse lentamente –, eu não perguntaria que horas são. Eu apenas olharia para ele.
– Bom argumento – admitiu Ruza.
Era um dia comum, mas pelo menos dez vezes mais longo do que deveria ser. Soulzeren e Ozwin fizeram como solicitado e inventaram uma razão plausível para postergar um segundo lançamento. Ninguém questionou. Os cidadãos estavam aliviados, enquanto os estrangeiros estavam apenas ocupados.
Thyon Nero não era o único que estava se exaurindo, embora fosse o único retirando sua própria essência vital para fazê-lo. Todos estavam profundamente engajados, trabalhando duro, e eram competitivos. Bem, todos estavam profundamente engajados e competitivos e, todos, com exceção de Drave, também trabalhavam duro. Embora, deva-se dizer, isso não fosse sua culpa. Ele gostaria muito de explodir alguma coisa, mas estava claro para todo mundo, para ele inclusive, que ele e sua pólvora eram um último recurso.
Quando tudo mais falhar: explosões.
Isso não lhe caiu bem.
– Como posso ganhar a recompensa se não tenho permissão para fazer nada? – ele perguntou a Lazlo, naquela tarde, cercando-o do lado de fora da estação de guarda dos Tizerkane onde tinha parado para conversar com Ruza e Tzara e alguns dos outros guerreiros.
Lazlo não se sensibilizou. Drave estava sendo recompensado por seu tempo, assim como todos os demais. E quanto à recompensa, a fortuna pessoal de Drave não estava na sua lista de prioridades.
– Não sei – Lazlo respondeu. – Você pode criar uma solução para o problema que não envolva destruição.
Drave riu, de escárnio.
– Que não envolva destruição? É como se eu pedisse para você não ser um poltrão dissimulado.
As sobrancelhas de Lazlo subiram.
– Poltrão?
– Procure o significado – soltou Drave.
Lazlo virou-se para Ruza.
– Você acha que sou um poltrão? – quis saber, do jeito que uma menina pergunta se seu vestido é feio.
– Eu não sei o que é isso.
– Acho que é um tipo de cogumelo – disse Lazlo, que sabia muito bem o significado de poltrão. Na verdade, ele estava surpreso que Drave soubesse.
– Você é certamente um cogumelo – disse Ruza.
– Significa “covarde” – disse Drave.
– Oh – Lazlo virou-se para Ruza. – Você acha que sou um covarde?
Ruza considerou a questão.
– Mais para um cogumelo – ele decidiu. Para Drave: – Acho que você estava mais perto da primeira vez.
– Eu nunca disse que ele era um cogumelo.
– Então estou confuso.
– Vou tomar como um elogio – Lazlo continuou, puramente para enfurecer Drave. Era mesquinho, mas divertido. – Cogumelos são fascinantes. Você sabia que eles não são plantas?
Ruza continuou a brincadeira, com uma descrença fascinante.
– Eu não sabia disso. Por favor, conte-me mais.
– É verdade. Os fungos são tão diferentes das plantas quanto os animais.
– Eu nunca disse nada sobre cogumelos – disse Drave, cerrando os dentes.
– Ah, me desculpe. Drave, você queria alguma coisa.
Mas o explosionista já estava cheio deles, então estendeu a mão em um gesto de irritação e saiu a passos largos.
– Ele está entediado, pobre homem – disse Tzara, com uma falta de piedade fria. – Nada para destruir.
– Nós podíamos pelo menos lhe dar um bairro pequeno para demolir – sugeriu Ruza. – Que tipo de anfitriões nós somos?
E Lazlo sentiu um... crepitar de inquietação. Um explosionista entediado era uma coisa. Um explosionista entediado e desapontado era outra. Mas então a conversa tomou um rumo que lhe espantou todos os pensamentos sobre Drave da cabeça.
– Eu consigo pensar num jeito de mantê-lo ocupado – disse Shimzen, um dos outros guerreiros. – Envie-o para cima com o trenó de seda para explodir as crias dos deuses e transformá-las num cozido azul.
Lazlo ouviu as palavras, mas haviam sido ditas tão casualmente que ele levou um momento para assimilá-las, e então só conseguiu piscar.
Cozido azul.
– Desde que eu não tenha que limpar – falou Ruza, também casualmente.
Eles tinham sido informados, mais cedo, sobre a... situação... na cidadela. Seu comportamento relaxado era certamente um disfarce para a profunda inquietação, mas isso não significava que não estivessem falando sério. Tzara balançou a cabeça e Lazlo achou que fosse repreender os homens pela sua desumanidade, mas ela disse:
– Qual é a graça disso? Não dá nem para ver eles morrerem.
Sua respiração saiu em uma erupção, como se ele tivesse levado um soco no estômago. Todos se viraram para ele, rindo.
– Qual é o seu problema? – perguntou Ruza, vendo sua expressão. – Você parece alguém que comeu cozido azul no jantar. – Ele riu, satisfeito com a piada, enquanto Shimzen batia-lhe no ombro.
O rosto de Lazlo ficou quente e contraído. Tudo o que ele podia ver era Sarai, presa e com medo.
– Como vocês podem falar assim – ele perguntou – quando nem os conheceram?
– Conhecer? – As sobrancelhas de Ruza ergueram-se. – Você não conhece monstros. Você os mata.
Tzara deve ter visto a raiva de Lazlo, sua... estupefação.
– Acredite, Estranho – ela lhe disse. – Se você soubesse alguma coisa sobre eles, ficaria feliz em lançar os explosivos por conta própria.
– Se você soubesse alguma coisa sobre mim – ele respondeu –, não pensaria que eu ficaria feliz em matar alguém.
Todos o fitaram, confusos, e irritados também por ele ter estragado a diversão. Ruza disse:
– Você está pensando neles como pessoas. Esse é o seu problema. Imagine que são threaves...
– Nós não matamos a threave.
– Bem, isso é verdade – Ruza fez uma careta. – Exemplo ruim. Mas você teria olhado para mim desse jeito se eu tivesse matado?
– Não sei. Mas eles não são threaves.
– Não – concordou Ruza. – São muito mais perigosos.
E isso era verdade, mas fugia ao ponto. Eles eram pessoas, e não se ri de transformar pessoas em cozido.
Especialmente não Sarai.
“Você acha que pessoas boas não podem odiar?”, ela perguntou a Lazlo na noite passada. “Você acha que pessoas boas não matam?”. Como ele tinha sido ingênuo por imaginar que era apenas uma questão de compreensão. Se eles a conhecessem, disse a si mesmo, não iriam querer machucá-la. Mas estava tão claro para ele agora: eles nunca poderiam conhecê-la. Eles nunca se permitiriam. Suheyla havia tentado dizer-lhe: o ódio era como uma doença, então enfim entendeu o que ela quis dizer. Mas será que havia uma cura?
Será que um dia as pessoas de Lamento aceitariam os sobreviventes da cidadela? Ou, como com a threave no deserto, pelo menos os deixariam viver?
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POLTRÕES
– Há um campo magnético entre as âncoras e a cidadela – Mouzaive, o filósofo natural, estava dizendo a Kether, criador de máquinas de guerra, na sala de jantar da câmara. – Mas é diferente de tudo que já vi antes.
Drave, irracionalmente furioso por encontrar cogumelos em seu prato, estava sentado na mesa ao lado. O aspecto taciturno de seu rosto não dava nenhuma pista de que ele ouvia tudo.
Mouzaive inventara um instrumento que chamou de criptocronômetro, que usava uma proteína extraída dos olhos de pássaros para detectar a presença de campos magnéticos. Parecia muito absurdo para Drave, mas o que ele sabia?
– Âncoras magnéticas – disse Kether, perguntando-se como ele poderia se apropriar da tecnologia para os desenhos das suas máquinas. – Então se você pudesse desligá-las, a cidadela simplesmente... flutuaria para longe?
– Essa é a minha melhor hipótese.
– Como algo tão grande flutua?
– Uma tecnologia que nós não podemos nem começar a decifrar – explicou Mouzaive. – Não é gás de ulola, isso é certo.
Kether, que estava muito interessado em se apropriar daquela tecnologia, disse sabiamente:
– Se há algo de certo, é que não há nada certo.
Drave virou os olhos.
– O que faz isso? – ele perguntou, rude. – O campo magnético. Há um maquinário dentro das âncoras ou algo do tipo?
Mouzaive ergueu os ombros.
– Quem sabe? Pode ser a pérola de lua mágica até onde posso dizer. Se pudéssemos entrar na maldita coisa, poderíamos descobrir.
Eles discutiram o progresso dos metalúrgicos e de Thyon Nero, especulando quem quebraria as cascas de metal primeiro. Drave não disse nenhuma palavra mais. Ele mastigava. Comeu até os cogumelos enquanto frases como “quebrar as cascas” soavam como sinos em sua mente. Ele deveria ficar parado enquanto os Fellering e Nero competiam pela recompensa? Como se Nero precisasse dela, quando podia simplesmente fazer ouro qualquer dia da semana.
De jeito nenhum esse bando de poltrões o impediria de apostar suas fichas.
Ou melhor, de explodir as malditas fichas.
52
MARAVILHOSO, MAS QUEIMADO
Pardal havia tentado visitar Sarai, mas os fantasmas bloquearam o corredor e não a deixaram passar. A menininha fantasma, Bahar, pingando água do rio e tristeza, disse-lhe solenemente: “Sarai não pode brincar agora”, o que lhe causou um arrepio na espinha. Ela foi até as Ellens na cozinha para ver se sabiam como Sarai estava, mas as encontrou severas e silenciosas, o que lhe deu outro arrepio, pois nunca foram assim. Devia ser coisa de Minya, mas Minya nunca tinha oprimido as babás como fazia com os outros fantasmas. Por que isso agora?
Ela não encontrou Minya em lugar nenhum, nem Rubi ou Feral.
Às vezes, eles simplesmente precisavam de um tempo sozinhos. Foi isso que Pardal disse para si naquela tarde na cidadela. Mas ela precisava do contrário. Precisava de sua família. Ela odiava não poder ir até Sarai, estava furiosa por não conseguir encontrar Minya para apelar. Ela foi até o coração da cidadela e chamou pela abertura estreita que antes tinha sido uma porta. Com certeza Minya estava lá dentro, mas ela não respondeu.
Mesmo o jardim não podia amenizar seu dia. Sua magia estava fraca, como se o rio dentro de si estivesse seco. Ela se imaginava chorando, e Feral segurando-a para confortá-la. Ele alisaria seu cabelo com as mãos e murmuraria palavras de alívio, ela olharia para cima, ele olharia para baixo, e... e não seria nada parecido com quando Rubi o beijou, com aquele barulho de chupar e nuvens de tempestade. Seria doce, muito doce.
Isso podia acontecer, ela pensou. Agora, com tudo tão perigoso. Por que não? As lágrimas eram fáceis de se produzir; ela as estivera segurando o dia inteiro. Quanto a Feral, ele só podia estar em seu quarto. Pardal vagou pelo corredor, passando pelo seu próprio quarto e pelo de Rubi, silenciosamente atrás das cortinas.
Ela se sentiria muito tola mais tarde por imaginar que Rubi queria um tempo para si. Ela nunca queria. Para Rubi, os pensamentos eram inúteis se não havia ninguém para contá-los no instante que os tinha.
Ela chegou à porta de Feral, e tudo não estava em silêncio atrás de sua cortina.
“Como vou saber se você não vai me queimar?”, Feral havia perguntado a Rubi dias antes.
“Ah, isso só aconteceria se eu perdesse completamente o controle”, ela dissera. “Você teria que ser muito bom. Não estou preocupada”.
Tinha sido uma espécie de insulto e Feral não se esquecera. Isso criou um enigma, contudo. Como ele podia fazê-la engolir aquelas palavras, sem se queimar com seu esforço?
Eram dias sombrios, e era bom ocupar-se com um desafio para tirar sua mente dos fantasmas e da destruição: fazer Rubi perder totalmente o controle, sem terminar como uma pilha de carvão. Feral empenhou-se. A curva de aprendizado era deliciosa. Ele estava finamente sintonizado com o prazer de Rubi, em parte porque ela podia matá-lo, em parte porque... ele gostava. Gostava do prazer dela; ele nunca gostara tanto dela quanto quando a garota estava encostada nele, com respirações curtas de surpresa ou olhando-o sob os cílios, as pálpebras pesadas de contentamento hedônico.
Era tudo muito, muito agradável, mais ainda quando, finalmente, ela fez um som como o suspiro das pombas e violinos e... pôs fogo em sua cama.
O cheiro de queimado. Um flash de calor. O lábio entreaberto e os olhos brilhando como brasas. Feral afastou-se já invocando uma nuvem; ele ensaiara planos de emergência em sua cabeça. O ar estava cheio de vapor. Os lençóis de seda, presos nos punhos de Rubi, explodiram em chamas e, no instante seguinte, a nuvem explodiu em chuva, cortando o suspiro de pomba e violino e apagando-a antes que o resto da fogueira pudesse acender.
Ela soltou um gritinho e ficou em pé em um instante. A chuva derramou-se sobre ela enquanto Feral ficou observando, a salvo e satisfeito consigo mesmo. Seu mérito foi manter a nuvem chovendo não mais do que o necessário e, além de tudo, não estava nem mesmo frio. Era uma nuvem tropical. Ele considerou esse um gesto de gentileza, mas o romance perdia-se com Rubi.
– Que... que... rude! – ela exclamou, sacudindo a água dos braços. Seus seios azuis brilhavam. Seus cabelos faziam escorrer rios pelas costas e ombros.
– Rude? – Feral repetiu. – Então a opção educada seria queimar sem reclamar?
Ela o encarou.
– Sim.
Ele analisou a cena.
– Veja! – ele apontou. – Você queimou meus lençóis.
Ela tinha queimado. Havia furos pretos encharcados no lugar onde ela os tinha agarrado.
– Você espera que eu me desculpe? – Rubi perguntou.
Mas Feral balançou a cabeça, sorrindo. Ele não tinha a intenção de repreendê-la. Ao contrário, estava satisfeito.
– Você perdeu o controle – ele explicou. – Sabe o que isso significa, não? Quer dizer que sou muito bom.
Os olhos dela estreitaram-se. Ainda emaranhada nos lençóis de Feral, ela virou uma Fogueira total, acendendo-se como uma tocha e levando a cama inteira consigo.
Feral gemeu, mas só pôde assistir enquanto seus lençóis, travesseiros, colchão – tudo o que não era de mesarthium – ardia e era devorado pelo fogo, não deixando nada para trás a não ser metal e uma garota nua fumegante com as sobrancelhas erguidas como se estivesse dizendo “que tal isso como lençóis queimados?”. Entretanto, ela não parecia estar brava. Um sorriso repuxou o canto de sua boca.
– Acho que você melhorou – ela admitiu.
Aquilo era como ganhar um jogo, só que muito melhor. Feral riu. Ele conhecia Rubi a vida inteira e havia se irritado com ela por metade desse tempo, mas agora ele estava apenas surpreso pela virada que as coisas podiam dar entre duas pessoas, e os sentimentos que podiam surgir enquanto se distraíam do fim do mundo. Ele andou na direção dela.
– Você destruiu minha cama – disse ele, naturalmente. – Terei que dormir com você a partir de agora.
– Ah, verdade? Você não tem medo que eu o incinere?
Ele deu de ombros.
– Eu só terei que ser menos maravilhoso. Para ficar seguro.
– Faça isso e eu o descarto.
– Que dilema. – Ele sentou-se na beira do estrado da cama. – Ser menos maravilhoso para continuar vivo. Ou ser maravilhoso e me queimar. – O mesarthium não retinha o calor; já estava de volta ao normal, mas a pele de Rubi não. Ela estava quente, como um dia de verão ou um beijo muito bom. Feral inclinou-se na direção dela, com a intenção de beijá-la, e congelou.
Naquele mesmo momento, perceberam um movimento em sua visão periférica. A cortina. Havia sido afastada e Pardal estava parada lá, pasma.
53
CORAÇÕES MANCHADOS
Os sonhos de Sarai aquele dia não foram sem terrores, mas, dessa vez, ela não estava indefesa. “Nós os afastaremos”, Lazlo havia dito, “ou os transformaremos em vaga-lumes e os prenderemos em potes de vidro”.
Ela tentou, e funcionou, e em determinado momento da noite, viu-se atravessando um bosque escuro com uma armadura de Tizerkane, carregando um pote de vidro cheio de vaga-lumes que antes tinham sido ravides, Rasalas, e até sua mãe. Ela segurou o pote para iluminar o caminho e isso iluminou seu sorriso também, bravio de triunfo.
Ela não encontrou Lazlo no sonho, não exatamente. Talvez seu inconsciente preferisse esperar pela coisa real. Mas reviveu o beijo, exatamente como havia sido – doce de derreter e rápido demais – e acordou exatamente quando tinha acordado antes. Ela não se levantou como um raio da cama desta vez, ficou deitada onde estava, preguiçosa e líquida de sono e bem-estar. Pela manhã, a solidão a tinha cumprimentado, mas não agora. Abrindo seus olhos, ela levou um susto.
Minya estava parada aos pés de sua cama.
Então, levantou-se como um raio.
– Minya! E quanto a respeitar as cortinas?
– Ah, as cortinas – falou Minya, pouco ligando. – Por que se preocupar com as cortinas, Sarai, a menos que você tenha algo a esconder? – Ela tinha um ar dissimulado. – Rubi e Feral têm o que esconder, sabe. Mas as cortinas, bem, elas não bloqueiam muito bem os sons. – Ela fez barulhos exagerados de beijos e isso lembrou Sarai de como elas riam quando ela lhes contou sobre as coisas que os humanos faziam em suas camas. Fazia muito tempo que ela tinha contado.
Rubi e Feral, contudo? Isso não a surpreendia. Enquanto ela estava enrolada em seu próprio sofrimento, a vida na cidadela continuava. Pobre Pardal, pensou.
– Bem, não estou escondendo nada – ela mentiu.
Minya não acreditou nem por um segundo.
– Não? Então por que você está assim?
– Assim como?
Minya a estudou, seu olhar frio movendo-se para cima e para baixo, de forma que Sarai se sentiu despida. Vista, mas não de uma boa maneira. Minya pronunciou, como se diagnosticasse uma doença:
– Feliz.
Feliz. Que conceito.
– É isso que é essa sensação? – ela disse, sem tentar escondê-la. – Eu me esqueci completamente dela.
– O que você tem para se sentir feliz?
– Eu estava apenas tendo um sonho bom – respondeu Sarai. – Isso é tudo.
As narinas de Minya abriram-se. Sarai não deveria ter sonhos bons.
– Como isso é possível?
Sarai deu de ombros.
– Eu fecho meus olhos, deito sem me mexer, e...
Minya estava furiosa. Todo o seu corpo estava rígido. Sua voz assumiu o tom sibilante de saliva voando, normalmente reservado para a palavra vingança.
– Você não tem vergonha? Deitada aí toda sedosa e libertina, tendo sonhos bons enquanto nossas vidas são destruídas?
Sarai tinha vergonha o bastante. Minya podia muito bem ter perguntado “você não tem sangue?” ou “você não tem espírito?”, porque a vergonha corria em suas veias. Mas... não neste momento. “Acho que você é um conto de fadas”. Engraçado como ela se sentia leve sem ela. “Acho que você é mágica, e corajosa, e única”.
– Estou farta de vergonha, Minya! – exclamou. – E estou farta de lull, e farta de pesadelos, e farta de vingança. Lamento já sofreu o bastante, e nós também. Precisamos encontrar outro jeito.
– Não seja tola. Não há outro jeito.
“Muitas coisas podem acontecer”, Sarai tinha dito a Rubi, sem acreditar em si mesma. Isso fora dias atrás. Ela acreditava agora. Coisas tinham acontecido. Coisas inacreditáveis. Mas no que concernia à cidadela, nada podia acontecer a menos que Minya deixasse.
Sarai tinha de persuadi-la a deixar.
Por anos ela tinha reprimido sua própria empatia e guardado-a por medo da ira de Minya. Mas agora tanta coisa dependia disso – não apenas seu amor, mas todas as suas vidas. Ela respirou fundo.
– Minya, você precisa me ouvir. Por favor. Sei que está brava comigo, mas, por favor, tente abrir a sua mente.
– Por quê? Para você colocar coisas dentro dela? Não vou perdoar os seus humanos, se é o que você pensa.
Seus humanos. E eles eram seus humanos, Sarai pensou. Não só Eril-Fane e Lazlo, mas todos eles. Porque seu dom a havia forçado a conhecê-los, e permitido isso.
– Por favor, Min – ela disse. Sua voz vibrou como se estivesse tentando voar para longe, como desejava que pudesse fazer. – Eril-Fane não contou para ninguém o que aconteceu ontem. Ele não contou sobre mim, nem sobre os fantasmas.
– Então você o viu mesmo – disse Minya, em tom de reclamação. – Você costumava ser uma péssima mentirosa, sabe disso. Eu sempre sabia. Mas você parece estar melhorando.
– Eu não estava mentindo. Eu não o estava vendo, e agora estou.
– E ele está bem, nosso grande herói?
– Não, Minya. Ele nunca esteve bem. Não desde Isagol.
– Ah, pare! – protestou Minya, pressionando uma mão contra o peito. – Você está partindo meus corações.
– Que corações? – perguntou Sarai. – Os corações que você manchou com fantasmas miseráveis para poder se agarrar ao seu ódio?
– Os corações que manchei com fantasmas miseráveis? Isso é bom, Sarai. Verdadeiramente poético.
Sarai espremeu os olhos. Falar com Minya era como levar um tapa na cara.
– O ponto é: ele não contou a ninguém. E se ele está enojado com o que fez, e quiser se desculpar?
– Se ele puder trazer todos de volta à vida, então certamente considerarei.
– Você sabe que ele não pode! Mas só porque o passado é de sangue não significa que o futuro também deva ser. Não podíamos tentar conversar com ele? Se prometermos a ele um salvo-conduto.
– Salvo-conduto! Você está preocupada com a segurança dele? Será que Lamento prometerá um salvo-conduto para nós? Ou não precisa mais da gente? Talvez, agora, não sejamos uma família boa o suficiente para você. Você precisa ansiar pelo homem que matou os nossos.
Sarai engoliu em seco. É claro que precisava deles. É claro que eles eram sua verdadeira família, e sempre seriam. Quanto ao resto, ela queria negar por completo. Quando Minya colocava dessa forma, isso a intimidava.
– Isso é ridículo – afirmou. – Não tem a ver nem com ele. Diz respeito a nós e ao nosso futuro.
– Você acha mesmo que ele pode passar a te amar um dia? – a menina perguntou. – Você acha mesmo que um humano poderia suportar vê-la? Até uma semana atrás, Sarai teria dito que não. Ou não teria dito nada, mas apenas sentido o não como vergonha, enfraquecendo e degenerando-a como uma flor sem rega. Mas a resposta havia mudado, e a tinha mudado.
– Sim – respondeu, suave porém resolutamente. – Eu conheço um humano que pode suportar me ver, Minya, porque há um que pode me ver.
As palavras haviam sido ditas. Ela não as poderia retirar. Uma onda de calor espalhou-se por seu peito e pescoço.
– E ele suporta muito bem me ver muito.
Minya observou-a. Sarai nunca a tinha visto chocada antes. Por um instante, até sua raiva foi varrida.
Mas ela voltou.
– Quem? – ela perguntou, com uma voz mortalmente perturbada.
Sarai sentiu um tremor de apreensão por ter aberto a porta para seu segredo. Mas ela não via como Lazlo pudesse se manter um segredo por muito mais tempo, não se quisessem ter qualquer chance daquele futuro pelo qual esperava.
– Ele é um dos faranji – falou, tentando soar forte para o bem dele. Lazlo merecia que falassem dele com orgulho. – Você nunca viu sonhos como os dele, Min. A beleza que ele vê no mundo, e em mim. Ela pode mudar coisas. Posso sentir isso.
Será que ela pensou que poderia influenciá-la? Será que imaginou que Minya a ouviria?
– Então é isso – disse a garota. – Um homem coloca os olhos em você, e sem mais nem menos você está pronta para virar as costas para nós e ir brincar de casinha em Lamento. Você está tão faminta assim por amor? Eu podia esperar isso de Rubi, mas não de você.
Ah, aquela vozinha traiçoeira.
– Não estou virando as costas para ninguém. O ponto é que os humanos não têm que nos desprezar. Se pudéssemos simplesmente falar com eles, então veríamos se existe uma chance, uma chance para nós vivermos e não meramente existirmos. Minya, posso levar uma mensagem para Eril-Fane. Ele poderia vir aqui amanhã, e então nós saberíamos...
– Certamente! – exclamou Minya. – Traga-o aqui, e o seu amante também. Traga todos os faranji, por que não? Como seria conveniente se pudéssemos pegá-los todos de uma vez. Isso seria uma grande ajuda, na verdade. Obrigada, Sarai.
– Pegá-los todos – ela repetiu, entorpecida.
– Eu não fui clara? Qualquer ser humano que pisar na cidadela vai morrer.
Lágrimas de futilidade arderam os olhos de Sarai. A mente de Minya, como seu corpo, estavam imutáveis. O que quer que respondesse pela estagnação que a havia mantido como uma criança por quinze anos, estava além do alcance da razão ou da persuasão. Ela teria seu massacre e sua vingança e arrastaria todos junto com ela.
“Você podia dar um abraço caloroso em Minya”, Pardal tinha dito a Rubi no jardim. Ela não quis dizer aquilo, e o pensamento envenenado, aquela noção chocante, inconcebível e impensável dos cinco fazendo mal uns aos outros, tinha deixado Sarai nauseada. Ela sentiu isso agora, também, olhando para os olhos ardentes da menina que a tinha dado uma vida, e perguntando a si mesma como... como ela podia simplesmente ficar parada e deixá-la começar uma guerra.
Ela queria gritar.
Ela queria gritar suas mariposas.
– Você foi bem clara – ela soltou. Suas mariposas estavam brotando. Elas queriam sair. Ela queria sair. O sol havia se posto. O céu não estava totalmente escuro, mas escuro o bastante. Ela enfrentou a pequena tirana, herdeira da crueldade de Skathis, senão do seu dom. Seus punhos fecharam-se. Seus dentes cerraram-se. O grito cresceu dentro dela, tão violento quanto o primeiro, anos atrás, que ela tinha segurado por semanas, tão certa de que era algo ruim.
“Ruim será bom”, Minya tinha dito então. “Nós precisamos de ruim”.
E, assim, a Musa dos Pesadelos nasceu, e o destino de Sarai foi decidido naquelas poucas palavras.
– Vá em frente, então! – disse Minya. Seus punhos também estavam cerrados, e seu rosto estava selvagem, meio louco de raiva e ressentimento. – Posso ver que você quer. Desça para os seus humanos se é só para isso que você liga! Seu amante deve estar lhe esperando. Vá para ele, Sarai. – Ela mostrou seus dentinhos brancos. – Diga-lhe que eu mal posso esperar para conhecê-lo.
Sarai estava tremendo. Seus braços estavam rígidos ao longo do corpo. Inclinando-se na direção de Minya, ela abriu a boca e gritou. Nenhum som saiu. Apenas mariposas. Todas em Minya, direto em Minya. Uma torrente de escuridão, asas frenéticas e fúria. Elas foram vomitadas nela. Elas derramaram-se nela. Elas voaram em seu rosto e ela soltou um grito, tentando sair do caminho. Elas mergulharam quando a garota se abaixou. Ela não podia escapar. Elas batiam as asas em seu rosto e cabelos, a corrente delas dividindo-se em volta dela como um rio em torno de uma rocha. Passando por ela, para fora da alcova, sobre as cabeças dos fantasmas que faziam guarda e para fora no crepúsculo.
Sarai ficou parada onde estava, ainda gritando e, embora nenhum som saísse, sua voz tendo desaparecido, seus lábios formaram a palavra Saia! Saia! Saia! até que Minya se levantou de onde estava agachada e, com um olhar terrível, virou-se e fugiu.
Sarai caiu deitada na cama, arfando com soluços silenciosos enquanto suas mariposas voaram cada vez mais para baixo. Elas não se dividiram, porque sua mente não se dividiria. Ela pensava somente em Lazlo, então foi para lá que elas voaram, direto para a casa e a janela que conhecia tão bem, para o quarto onde ela esperava encontrá-lo dormindo.
Mas ainda era cedo. A cama dele estava vazia e suas botas não estavam lá, então as mariposas, agitadas, não tiveram escolha a não ser pousar e esperar.
54
AMÁVEL DEMAIS PARA NÃO DEVORAR
Lazlo não queria falar com ninguém, exceto Sarai. Ele achava que não podia manter sua compostura durante mais conversas sobre as “crias dos deuses”, quer falassem bem ou mal deles. Considerou entrar pela janela para evitar Suheyla, mas não podia fazer isso, então entrou pela porta verde e encontrou-a no quintal. O jantar estava esperando.
– Não se preocupe – ela lhe disse, imediatamente. – Apenas uma refeição leve. Sei que você deve estar muito ansioso por dormir.
Ele estava, e podia muito bem passar sem jantar, mas obrigou-se a fazer uma pausa. Sarai era neta dela, afinal, a única. Ele tinha ficado com raiva daquela manhã por ela e Eril-Fane não receberem com alegria a notícia de sua existência, mas à luz do que tinha sido a reação dos Tizerkane, viu que a reação deles fora generosa e honesta. Lazlo tentou entender o que isso significava para a mulher.
Suheyla colocou tigelas de sopa na mesa e pendurou um disco de pão fresco no gancho. O pão tinha sementes e pétalas assados no meio, em um padrão de círculos. Uma refeição leve, talvez, mas ela devia ter levado horas para prepará-la. Normalmente, ela conversava sem esforço, mas não esta noite, na qual percebeu uma curiosidade tímida e envergonhada nela, e várias vezes ela pareceu prestes a falar, mas achou melhor não.
– No outro dia – ele começou – você me disse para simplesmente perguntar. Agora é minha vez. Está tudo bem. Você pode perguntar.
Sua voz estava tímida.
– Ela... ela nos odeia muito?
– Não – ele respondeu –, ela não os odeia nem um pouco. – E sentiu-se confiante de que aquilo era verdade. Ela confessara sobre o paradoxo no cerne do seu ser e da maldição de conhecer seus inimigos bem demais para poder odiá-los. – Talvez ela odiasse antes, mas agora não mais. – Ele queria contar-lhe que Sarai entendia, mas essa absolvição só podia vir de Sarai.
Ele comeu e depois Suheyla lhe fez um chá, que foi recusado, pois estava ansioso para ir, mas ela disse que o chá o ajudaria a dormir mais rápido.
– Ah. Então isso seria maravilhoso.
Ele bebeu em um gole, agradeceu, fez uma pausa para apertar-lhe a mão e foi, finalmente, ao seu quarto. Abriu a porta e... parou na soleira.
Mariposas.
Mariposas estavam pousadas na cabeceira de madeira da cama e nos travesseiros e na parede atrás da cama e, quando a porta se abriu, elas levantaram-se no ar como folhas sopradas pelo vento.
Sarai, ele pensou. Ele não sabia o que pensar sobre o número de mariposas. Elas o dominaram, não com medo ou, deuses o perdoem, nojo, mas com reverência, e uma ferroada de pavor.
Talvez ele tenha trazido todo o pavor consigo da estação dos guardas e das palavras brutais e sangrentas de seus amigos, e talvez as mariposas trouxessem um pouco dele com suas asas felpudas de crepúsculo. Ele entendeu uma coisa naquele redemoinho de criaturas: Sarai estava esperando por ele.
Lazlo fechou a porta. Teria lavado o rosto e barbeado-se, escovado os dentes, penteado o cabelo, mudado. Ele corou com a ideia de tirar a camisa, embora soubesse que ela já o tivesse visto dormindo daquele jeito antes. Resolveu escovar os dentes e tirar as botas e, então, deitou-se. Sobre sua cabeça, as mariposas juntaram-se na viga do teto como um galho florescendo escuridão.
O garoto percebeu, depois de se acomodar, que havia deixado espaço suficiente na cama para Sarai, do lado que ela tinha escolhido no sonho, embora tudo o que fosse necessário era sua testa para as mariposas pousarem. Em outro momento isso podia tê-lo feito rir de si mesmo, mas não esta noite. Esta noite ele só sentia a ausência dela em um mundo que não a queria.
Ele não se moveu, mas fechou os olhos, sentindo todas as mariposas à sua volta, Sarai à sua volta. Estava impaciente para que o sono chegasse a fim de poder estar com ela, hoje não havia euforia que o mantivesse acordado. Havia apenas um lento afundar, e não demorou...
A mariposa, a testa.
O limiar do sonho.
Sarai encontrou-se no mercado do anfiteatro. Ela ansiava pela cor e pela doçura da Lamento do Sonhador como se lembrava, mas não havia disso ali. O lugar estava vazio. Um vento soprou, arrastando lixo pelos seus tornozelos, e um terrível buraco de medo abriu-se nela. Onde estava toda a cor? Devia haver seda esvoaçando, música no ar e risos das crianças na corda-bamba. Não havia crianças na corda-bamba e todas as tendas do mercado estavam vazias. Algumas até pareciam queimadas, e não havia um som a ser ouvido.
A cidade havia parado de respirar.
Sarai também parou de respirar. Será que ela tinha feito esse lugar para refletir seu desespero ou ele era criação de Lazlo? Isso parecia impossível. Sua alma precisava da Lamento do Sonhador, e ela precisava dele.
Lá estava Lazlo, bem ali, seus cabelos longos selvagens ao vento. Seu rosto era sóbrio, a alegria fácil tinha desaparecido, mas ainda havia, Sarai respirou de novo, um encantamento em seus olhos. Ela tinha encantamento nos seus também, e o sentia sair de si como algo que pudesse tocá-lo. Ela deu um passo à frente seguindo o seu caminho e ele fez o mesmo.
Os dois pararam frente a frente, à distância de um braço, sem se tocarem. As três cordas que os uniam os aproximaram ainda mais. Corações, lábios, umbigo. Mais perto, ainda sem tocar. O ar entre eles era um lugar morto, como se ambos estivessem carregando sua desesperança à frente, esperando que o outro a mandasse para longe. Eles seguraram tudo o que tinham para dizer, cada coisa desesperada, e não queriam dizer nada daquilo. Só queriam que aquilo desaparecesse – ali, pelo menos, no lugar que era deles.
– Bem – observou Sarai –, hoje foi um dia longo.
Isso rendeu uma risada surpresa de Lazlo.
– O mais longo – ele concordou. – Você conseguiu dormir um pouco?
– Sim – ela respondeu, revelando um sorrisinho. – Transformei meus pesadelos em vaga-lumes e os prendi num pote de vidro.
– Isso é bom. Eu estava preocupado. – Lazlo corou. – Pode ser que eu tenha pensado em você algumas vezes hoje.
– Só algumas vezes? – ela provocou, corando também.
– Talvez mais – ele admitiu. E pegou a mão dela, que estava quente como a sua. A beirada de suas desesperanças dissolveu-se, apenas um pouco.
– Também pensei em você – Sarai revelou, entrelaçando seus dedos nos dele. Marrom e azul, azul e marrom. Ela ficou paralisada ao ver isso. E murmurou: – E é justo eu te contar que sonhei com você.
– Oh! Espero que eu tenha me comportado.
– Não comportado demais – falou timidamente e acrescentou: – Não mais do que esta manhã, quando o sol se levantou rudemente.
Ela referia-se ao beijo; ele entendeu.
– O sol. E ainda não o perdoei. – O espaço entre eles só podia se encolher, não crescer. A voz de Lazlo foi música, a música mais bela e rouca, quando pegou Sarai em seus braços e disse: – Quero capturá-lo num pote de vidro e colocá-lo junto com os vaga-lumes.
– A lua num bracelete e o sol num pote de vidro – disse Sarai. – Nós realmente causamos uma confusão no céu, não?
A voz de Lazlo afundou-se mais fundo em sua garganta. Mais rouca. Mais faminta.
– Espero que os céus sobrevivam. – E então a beijou.
Como eles haviam sobrevivido a um dia inteiro com o mero toque que foi o beijo da noite anterior? Se soubessem então o que era um beijo, não teriam sobrevivido. Teria sido insuportável chegar tão perto – mal sentir e quase sentir o gosto e serem separados antes... bem, antes disso. Mas eles não sabiam.
E agora sabiam.
Agora, bem agora, aprenderam. Sarai encostou-se em Lazlo, seus olhos fechando-se em expectativa. Os dele foram mais lentos. Ele queria vê-la. Não queria perder nem um segundo de seu rosto. Sua beleza macia e cerúlea o mantinha enfeitiçado. Havia uma poeira de sardas quase invisíveis sobre seu nariz. O deslizar de seus rostos foi tão lento quanto mel se derramando, e seus lábios. Tão delicadamente, entreabriram-se. O lábio inferior, voluptuoso como uma fruta reluzindo a orvalho, separou-se de seu igual – para ele – e foi a coisa mais sedutora que ele já vira. Uma chama de desejo acendeu-se nele e ele encostou-se na lentidão de mel, empurrando a desesperança para fora do caminho para tomar aquele lábio doce e macio entre os seus.
A maciez ardente, o derretimento.
Quando Lazlo tinha desejado descobrir, com Sarai, o reino do desconhecido, pensara em grandes, imensos mistérios como a origem e a natureza dos deuses. Mas, neste momento, havia aberto mão de tudo isso por este pequeno mistério, esse minúsculo, novo e melhor mistério de Lamento. O beijo.
Esse exato beijo.
Lábios. A maravilha dos lábios que podiam roçar ou pressionar, abrirem-se e fecharem-se e, abrindo-se e fechando-se, pegar o outro lábio na mais doce das mordidas. Não uma mordida de verdade. Nada de dentes. Ah, os dentes ainda eram um segredo. Mas a ponta da língua, bem... a desesperança tinha pouca chance contra a descoberta da ponta da língua. E a coisa que quase cegava, insondável, era isso: inebriante que era – tão inebriante que ele se sentiu atordoado, tonto –, ainda assim sentia que até isso era apenas o limiar para outro reino do desconhecido. Uma porta aberta e um pequeno feixe de luz dando pista de uma radiância além.
Ele sentiu-se leve e pesado ao mesmo tempo. Ardendo, flutuando. Nunca tinha suspeitado. Ele pensava nas garotas, é claro, e tinha todo tipo de pensamento que os homens jovens têm (os melhores, claro; melhores homens e melhores pensamentos) e é claro que não era ignorante da... biologia das coisas. Mas nunca havia tido qualquer suspeita do que estava atrás daquela porta provocante. Era uma radiância que parecia rica e profunda, imensa e próxima, secreta e delirante, e... sagrada.
Era seu futuro com a garota que ele abraçava. E o que quer que tivesse sentido e temido no caminho da estação de guarda para casa, agora tinha certeza: haveria um futuro.
A esperança era fácil, afinal de contas. Aqui, neste lugar.
Ele puxou-a para mais perto, com os braços em torno de sua cintura e perdeu-se na maravilha dela, na maravilha disso. Sentiu o aroma e o gosto dela, e arrepiou quando os dedos de Sarai percorreram de seu braço até a nuca. Ela entrelaçou-os nos cabelos dele e despertou mais sensações, um fogo de prazer que se irradiava pelos ombros e couro cabeludo, cutucando aquela porta provocante com todos os seus segredos luminosos. Quando ele interrompeu o beijo, finalmente, foi para pressionar o rosto contra o dela. A testa encostada na dela, seu queixo, áspero, contra o dela, liso.
– Sarai – ele disse, com os lábios em seu rosto. Ele sentia-se como um copo cheio de esplendor e sorte. Os lábios curvaram-se em um sorriso. Ele sussurrou: – Você arruinou minha língua para todos os outros sabores! – E entendeu, por fim, o que aquela frase significava.
Sarai afastou-se um pouco, apenas o suficiente para que pudessem se olhar. Seu encantamento espelhava o dele, seu olhar era o equivalente de um sussurro oh, rouco, atônito e desperto.
O riso alcançou-os primeiro, riso de criança, e depois a cor. Ambos desviaram o olhar para observar ao redor e perceberam que a cidade não estava mais prendendo o fôlego. Havia bandeirolas tremulando nos domos e o céu era um mosaico de pipas. As lojas do mercado não estavam mais vazias, mas ganhando vida como se abrissem para a manhã, com vendedores de longos aventais expondo seus produtos. Grupos de borboletas brilhantes moviam-se como cardumes de peixes e os níveis mais altos do anfiteatro estavam repletos de árvores frutíferas adornadas com joias.
– Assim é melhor – suspirou Sarai. No alto, na cidadela, as lágrimas dela secaram nas bochechas. A tensão nos punhos e no estômago relaxou.
– Bem melhor – Lazlo concordou. – Você acha que nós fizemos isso?
– Tenho certeza disso.
– Ponto para nós – afirmou, então acrescentou, com indiferença exagerada: – Eu me pergunto o que aconteceria se continuássemos nos beijando.
Em uma demonstração similar de indiferença fingida, Sarai ergueu os ombros e disse:
– Bem, acho que nós podemos descobrir.
Eles sabiam que tinham de falar sobre o dia, sobre o futuro e todo o ódio, desespero e impotência, mas... ainda não. Aquele lugar em suas mentes que havia produzido as transformações da mahalath estava colorindo a Lamento do Sonhador com a felicidade deles. Tudo mais podia esperar.
– Lazlo – Sarai sussurrou, e ela fez uma pergunta para a qual já sabia a resposta –, você ainda me quer em sua mente?
– Sarai, eu quero você... – Seus braços já estavam ao redor dela. Ele puxou-a para mais perto ainda. – Na minha mente.
– Ainda bem – ela mordeu o lábio, e a visão de seus belos dentes brancos pressionando aquele lábio sedutor e delicado plantou pelo menos um pensamento inconsciente em sua mente sobre o potencial dos dentes no beijo. – Eu vou dormir, já estou deitada na minha cama. – Ela não teve a intenção de soar sedutora, mas em sua repentina timidez, sua voz transformou-se em um sussurro e Lazlo ouviu-a como um ronronar.
Ele engoliu em seco.
– Você precisa deitar aqui? – No sonho, ele quis dizer, porque ela tinha deitado da última vez.
– Acho que não. Agora que sei que funciona, acho que será fácil. – Ela tocou a ponta do nariz dele com a ponta do seu. Moldado por contos de fadas, pensou, o que o tornava melhor do que qualquer nariz reto do mundo. – Mas há uma coisa que você pode fazer por mim.
– O que é? – perguntou Lazlo – Qualquer coisa.
– Você pode me beijar mais um pouco.
E ele beijou.
Lá em cima na cidadela, o corpo de Sarai caiu no sono e, logo que isso aconteceu, ela deixou de ser a garota deitada na cama, deixou de ser a mariposa pousada na testa de Lazlo e tornou-se apenas e gloriosamente a garota em seus braços.
Beijar, o casal descobriu, era uma dessas coisas que só se melhorava quanto mais se fazia, e tornava-se mais... interessante... à medida que ganhavam confiança. Ah, as formas com que os lábios podiam se conhecer, e línguas, como elas podiam provocar. Línguas, como elas podiam lamber.
Algumas coisas, pensou Sarai, eram adoráveis demais para devorar, enquanto outras eram adoráveis demais para não serem devoradas.
E, juntos, descobriram que beijar não era apenas para as bocas. Aquilo foi uma revelação. Bem, uma boca era necessária, claro. Mas aquela boca podia decidir tirar pequenas férias no lugar suave abaixo da mandíbula, ou no local macio e único logo abaixo da orelha. Ou o lóbulo da orelha. Quem diria. Ou o pescoço. O pescoço inteiro! E ali estava uma peculiaridade astuta da fisiologia. Sarai descobriu que ela podia beijar o pescoço de Lazlo enquanto ele beijava o seu. Isso não era sorte? E era imensamente prazeroso sentir seus tremores quando seus lábios encontravam um lugar em que a sensação era particularmente boa. Quase tão prazeroso quanto quando ele encontrou um lugar assim nela. E não com seus lábios, oh.
Seus dentes.
Até mesmo na cidadela, os dentes fizeram-na arrepiar.
– Eu nunca soube dos pescoços – Sarai sussurrou entre beijos rápidos e quentes.
– Nem eu – disse Lazlo, sem fôlego.
– Ou orelhas.
– Eu sei. Quem poderia ter imaginado isso sobre as orelhas?
Durante todo esse tempo eles ainda estavam no mercado da Lamento do Sonhador. Em algum momento do início do beijo – se alguém podia, com generosidade, chamar aquilo de um beijo –, uma árvore convenientemente cresceu a partir de uma fresta nos paralelepípedos, alta, lisa e inclinada no ângulo exato para encostar quando a vertigem se tornou demais. Isso jamais iria mais longe do que encostar. Havia, mesmo no deleite dos pescoços, uma inocência nascida da perfeita inexperiência, combinada com... educação. As mãos deles estavam quentes, mas estavam quentes em lugares seguros e seus corpos estavam próximos, mas castos.
Bem.
O que o corpo sabe sobre castidade? Apenas aquilo que a mente insiste e, se as mentes de Lazlo e Sarai insistiam, não era porque seus corpos falhavam em apresentar um argumento convincente. Era apenas porque era tudo tão novo e tão sublime. Podia levar semanas apenas para dominar os pescoços. Os dedos de Sarai, em determinado momento do fluxo descuidado do sonho, encontraram-se deslizando sob a barra da camisa de Lazlo para brincar muito levemente sobre a pele nua de sua cintura. Ela percebeu-o arrepiar e sentiu – e ele também – o quanto existia a ser descoberto. Ela fez cócegas de propósito e o beijo transformou-se em uma risada. Ele devolveu as cócegas, suas mãos encorajadas, e a risada do casal preencheu o ar.
Ambos estavam perdidos dentro do sonho, sem consciência do real – dos quartos, camas, mariposas ou testas. E tanto foi assim no vertiginoso e excitante mundo de seu abraço, que o Lazlo real – dormindo pesado na cidade de Lamento – virou-se em seu travesseiro, esmagou a mariposa e rompeu o sonho.
55
FALTA DE FÉ
Na cidade real, Thyon Nero andou até a âncora com a mochila pendurada no ombro. Na noite anterior, havia feito a mesma caminhada com a mesma mochila. Ele estivera cansado e pensando em cochilar. Deveria estar mais cansado agora, mas não estava.
Sua pulsação estava fraca. O espírito, exaurido pela própria pilhagem, pulsava rápido demais nas veias, pareando com um zumbido e um estrépito discordante de... de descrença chocando-se contra as evidências, produzindo uma sensação de falta de fé.
Tropeçara no que se recusava a acreditar. Sua mente estava em guerra consigo mesma. Alquimia e magia. O místico e o material. Demônios e anjos, deuses e homens. O que era o mundo? O que era o cosmos? Lá em cima no escuro havia estradas através das estrelas, viajadas por seres impossíveis? No que ele tinha entrado, tendo atravessado o mundo?
Chegou à âncora e lá estava a face ampla dela, visível para qualquer passante, não que fosse provável haver passantes a esta hora da noite, e lá estava a viela com o mural que retratava os deuses sangrentos e desgraçados. A viela era onde vinha fazendo seus testes, onde ninguém o veria se passasse por ali. Se pudesse ter um fragmento de mesarthium para experimentar em seu laboratório, não teria de fazer essas saídas tarde da noite, com o risco da descoberta. Mas não existiam fragmentos, pela razão mais simples: o mesarthium não podia ser cortado. Não havia pedaços para se ter. Havia apenas essa placa massiva e outras três idênticas nos limites da cidade, ao sul, a leste e a oeste.
Ele voltou ao seu local na viela e mudou de lugar o entulho que deixara lá, para protegê-lo da visão. E ali, na base dessa âncora invencível, onde o mesarthium liso encontrava-se com as pedras que tinha destruído duzentos anos atrás sob seu peso terrível, estava a solução para o problema de Lamento.
Thyon Nero havia conseguido.
Então, por que ele não havia falado com Eril-Fane de uma vez e conquistado para si a inveja de todos os outros delegados e a gratidão de Lamento? Bem, era preciso confirmar os resultados primeiro. Rigor, sempre. Podia ter sido um acaso.
Não era. Ele sabia disso. Ele não entendia e não acreditava, mas sabia.
“Histórias serão contadas sobre mim”. Foi isso que havia dito a Estranho, em Zosma, sua razão para vir nessa jornada. Não era sua principal razão, mas não importa. Aquilo tinha sido uma fuga, da rainha, de seu pai e do Chrysopoesium e da caixa sufocante que era sua vida. Qualquer que tivesse sido a razão, ali estava ele agora e uma história desenrolava-se à sua frente. Uma lenda assumindo forma.
Ele pôs a mochila no chão e abriu-a. Mais frascos do que na noite anterior e uma glave portátil para iluminar. Ele tinha vários testes a realizar desta vez. O velho alkahest e o novo. As anotações que fazia eram hábito e conforto, como se sua caligrafia organizada pudesse transformar o mistério em sentido.
Havia uma fenda no metal. Ficava à altura do joelho, com um pé de largura na base, e profunda o bastante para colocar o braço dentro. Parecia um corte de machado, exceto pelo fato de que as bordas não eram pontudas, mas lisas, como se tivessem sido derretidas.
Os novos testes provaram o que Thyon já sabia, não o que ele entendia ou acreditava, mas o que ele sabia, da mesma forma que um homem que cai de cara conhece o chão.
O mesarthium tinha sido vencido.
Havia uma lenda formando-se. Mas não era a dele.
Guardou as coisas na mochila e encostou o entulho contra a âncora, para proteger a fenda da vista. Ficou parado na boca da viela, com a pulsação fraca e o espírito devastado, perguntando-se o que tudo aquilo significava. Lamento não deu resposta. A noite estava silenciosa. Ele lentamente afastou-se de lá.
Do outro lado da rua, Drave observava e, quando o alquimista se foi, ele saiu das sombras, rastejou até a boca da viela e entrou.
56
OS FAZEDORES DE SONHOS
– Não, não, não, não, não – disse Lazlo, levantando-se, repentinamente, da cama. A mariposa estava deitada em seu travesseiro como um pedaço de veludo escuro. Cutucou-a com o dedo, mas o inseto não se moveu. Estava morta. Era de Sarai e ele a tinha matado. A bizarra e tênue natureza de sua conexão atingiu-o com uma nova força, o fato de uma mariposa ser sua única ligação. De que eles pudessem estar compartilhando tal momento e perdê-lo em um instante porque ele rolou sobre o travesseiro e esmagou uma mariposa. Ele pegou a pobre criatura na palma da mão e colocou-a, gentilmente, no criado-mudo. Ela desapareceria ao amanhecer, ele sabia, e renasceria no próximo crepúsculo. Ele não tinha matado nada... além de seu próprio ardor.
Era engraçado, na verdade. Absurdo. Enfurecedor. E engraçado.
Ele deixou-se cair nos travesseiros e olhou para as mariposas na viga do teto, que estavam ativas e sabia que Sarai podia vê-lo através de seus olhos. Com um sorriso triste, ele acenou.
Lá em cima, em seu quarto, Sarai riu, sem emitir som. A aparência do rosto dele era muito engraçada, e seu corpo estava flácido com uma vexação impotente. Volte a dormir, ela desejou. Agora.
Ele fez isso. Bem, levou dez horas, ou talvez dez minutos, e então Sarai estava em pé diante dele com as mãos na cintura.
– Assassino de mariposas – ela repreendeu-o.
– Sinto muito – desculpou-se. – Eu amava mesmo aquela mariposa. Aquela era minha favorita.
– Melhor falar baixinho ou esta daqui ficará magoada e voará para longe.
– Quero dizer, esta é minha favorita! – ele corrigiu. – Prometo que não vou esmagá-la.
– Certifique-se de não fazer isso.
Ambos estavam sorrindo como bobos. Tão cheios de felicidade, e a Lamento do Sonhador foi colorida por ela. Ah, se a Lamento real pudesse ser consertada tão facilmente.
– Foi provavelmente melhor assim – Lazlo afirmou.
– Ahn?
– Humm. Eu não teria sido capaz de parar de beijá-la. Tenho certeza de que ainda estaria te beijando.
– Isso seria terrível – ela disse, e deu um passo para perto dele, estendendo a mão para traçar uma linha no centro do seu peito.
– Seria deplorável – ele concordou. Ela estava levantando o rosto em direção ao dele, pronta para retomar de onde haviam parado, e ele queria se derreter novamente nela, respirar o néctar e o alecrim dela, provocar o pescoço dela com os dentes e fazer sua boca curvar-se em um sorriso felino.
Ele ficava emocionado por fazê-la sorrir, mas tinha a noção galante de que deveria fazer o maior esforço, agora, para fazer isso de outras maneiras.
– Tenho uma surpresa para você – ele disse, antes que ela pudesse beijá-lo e minar suas boas intenções.
– Uma surpresa? – ela perguntou, cética. Na experiência de Sarai, surpresas eram ruins.
– Você vai gostar. Prometo.
Ele pegou a mão da garota e enganchou-a em seu braço levando-a para andar pelo mercado da Lamento do Sonhador, onde misturados entre os itens comuns estavam outros maravilhosos, como mel de bruxa, que, supostamente, proporcionava-lhe uma ótima voz para cantar. Eles experimentaram e funcionou, mas apenas por poucos segundos. E havia besouros que podiam mastigar pedras preciosas melhor do que qualquer joalheiro pudesse cortá-las, e trombetas de silêncio que, quando sopradas, tocavam um cobertor de quietude alto o bastante para sufocar um trovão. Havia espelhos que refletiam a aura das pessoas, e vinham com cartõezinhos que explicavam o que as cores significavam. As auras de Sarai e Lazlo eram de um tom fúcsia que caía entre o rosa do “desejo” e o vermelho do “amor”, e quando leram, Lazlo corou quase da mesma cor, enquanto Sarai ficou mais violeta.
Ambos viram o centauro e sua mulher; ela segurava uma sombrinha e ele uma sacola de mercado, e eram apenas mais um casal passeando, comprando verduras para o jantar.
E viram o reflexo da lua em um balde d’água, não importava que fosse de dia, e não estava à venda, mas era “gratuito” para quem fosse capaz de pegá-lo. Havia flores açucaradas e ossos de ijji, joias de ouro e esculturas de lys. Havia até mesmo uma velha astuta com um barril cheio de ovos de threave. “Para enterrar no quintal do seu inimigo”, ela lhes disse, com uma gargalhada.
Lazlo estremeceu e contou a Sarai que tinha visto uma no deserto. Eles pararam para tomar sorvete, servido em copos altos, e ela contou-lhe sobre as tempestades de Feral e como comiam neve com colheradas de geleia.
Eles conversaram, andando lado a lado. Ela contou-lhe sobre a Bruxa das Orquídeas e a Fogueira, que eram como suas irmãs mais novas, e ele contou-lhe sobre o mosteiro, e sobre o pomar onde antes ele brincava de ser um guerreiro Tizerkane. Ele pausou diante de uma tenda do mercado que não pareceu a ela especialmente maravilhosa, mas o jeito que ele sorriu a fez dar uma segunda olhada.
– Peixe? – ela indagou. – Essa não é minha surpresa, é?
– Não, eu apenas amo peixe. Você sabe por quê?
– Porque eles são deliciosos?! – ela arriscou. – Se eles forem. Nunca experimentei peixe.
– É difícil encontrar peixe no céu.
– Sim – a garota respondeu.
– Eles podem ser saborosos – disse ele –, mas, na verdade, é com o peixe estragado que eu tenho uma dívida.
– Peixe estragado. Você quer dizer... podre?
– Não exatamente podre. Apenas passado, de forma que você não perceberia, mas comeria e ficaria doente.
Sarai estava confusa.
– Sei.
– Você provavelmente não sabe – disse Lazlo, sorrindo.
– Não faço a mínima ideia – Sarai concordou.
– Se não fosse pelo peixe estragado – ele disse, como se contasse um segredo –, eu seria um monge. – Muito embora ele estivesse fazendo essa revelação no espírito de brincadeira, quando chegou a ela, não pareceu tolice. Pareceu uma escapada por muito pouco, ser enviado para a biblioteca naquele dia há muito tempo. Pareceu o momento em que o trenó de seda cruzou uma fronteira invisível e os fantasmas começaram a dissolver. – Eu seria um monge – ele repetiu, com um horror mais profundo. Pegou Sarai pelos ombros e disse, com convicção ressoante: – Estou contente de não ser um monge.
Ela ainda não sabia do que ele estava falando, mas sentia a forma disso.
– Também estou contente – disse ela, sem saber se ria, e, se existisse um status de “não monge” a ser celebrado com um beijo, era esse.
Foi um beijo bom, mas não totalmente intenso que precisasse da árvore para se encostarem. Sarai abriu os olhos de novo, sentindo-se sonhadora e obscura, como uma sentença traduzida em um belo e novo idioma. A barraca de peixe tinha desaparecido. Outra coisa estava em seu lugar, uma tenda preta com um letreiro dourado.
POR QUE NÃO VOAR?, ela leu. Por que não voar? Ela não conseguiu pensar em nenhum motivo. Por que não voar?
Ela voltou-se para Lazlo, excitada. Ali estava sua surpresa.
– Os fabricantes de asas! – ela exclamou, beijando-o de novo. De braços dados, entraram na tenda. Como acontece nos sonhos, entraram na tenda preta, mas foram parar em um pátio grande e iluminado, aberto para o céu. Havia varandas dos quatro lados e em toda parte havia manequins vestidos com roupas estranhas – roupas de penas, e vestidos feitos de fumaça, neblina e vidro. Todos completos com óculos – como os de Soulzeren, mas mais esquisitos, com lentes amarelas luminosas e misteriosos mecanismos. Um até tinha uma probóscide de borboleta, enrolada como um ornamento de proa de barco.
E cada manequim, é claro, estava coroado com um glorioso par de asas.
Havia asas de borboleta, para combinar com as probóscides. Um par era laranja cor do pôr do sol, com rabo de andorinha e contornado de preto. Outro, uma maravilha iridescente de verde-azulado e índigo, com pintas amarelas como olhos de gato. Havia até mesmo asas de mariposa, mas elas eram pálidas como a lua, e não escuras como o crepúsculo, como as mariposas de Sarai. Asas de pássaro, de morcego, até asas de peixe voador. Sarai parou diante de um par que estava coberto de uma macia pelagem cor de laranja.
– De que tipo são estas? – ela perguntou, passando a mão nelas.
– Asas de raposa – Lazlo lhe disse, como se ela devesse saber.
– Asas de raposa. É claro. – Ela levantou o queixo e disse, decidida: – Vou ficar com as asas de raposa, por favor, meu bom senhor.
– Uma excelente escolha, senhorita – disse Lazlo. – Aqui, vamos experimentá-las e ver se elas servem.
A armadura era igualzinha às do trenó de seda. Lazlo prendeu-a para ela, e pegou um par para si.
– Asas de dragão – ele disse, e vestiu-as como mangas.
POR QUE NÃO VOAR?, as letras em dourado perguntavam. Nenhum motivo no mundo. Ou se havia muitos motivos no mundo, a física, a anatomia e assim por diante, ao menos ali não havia motivo.
E, então, eles voaram.
Sarai conhecia sonhos de voar, e este era melhor. Aquele era seu desejo desde que era pequena, antes que seu dom se manifestasse e roubasse sua última esperança disso. Voar era liberdade.
Mas também era divertido, uma diversão ridícula e maravilhosa. E se a luz do sol estivera presente há poucos momentos, convinha-lhes, agora, ter estrelas, e assim o fizeram. Elas estavam tão baixas a ponto de serem colhidas como frutas em um galho, e colocadas no bracelete com a lua.
Tudo era extraordinário.
Lazlo pegou a mão de Sarai no voo. Lembrou-se da primeira vez que a pegou e sentiu o mesmo choque inigualável do real.
– Desça por aqui – ele disse –, pela âncora.
– Pela âncora não – ela protestou. Ela apareceu, de repente, abaixo deles, erguendo-se da cidade. – Rasalas está lá.
– Eu sei – disse Lazlo. – Acho que devemos descer e visitá-lo.
– O quê? Por quê?
– Porque ele tomou jeito – explicou. – Estava cansado de ser um monstro meio apodrecido, sabe. Ele praticamente me implorou por lábios e globos oculares.
Sarai deu uma risada.
– Ele fez isso, fez?
– Juro solenemente – disse Lazlo, e entrelaçaram os dedos para descer pela âncora. Sarai desceu na frente da besta e observou. Lábios e globos oculares, de fato. Ainda dava para reconhecer a besta de Skathis, mas por pouco. Era a besta de Skathis refeita pela mente de Lazlo, então o que era feio foi tornado bonito. Lá se foram a cabeça de ave de rapina com o sorriso de presas afiadas. A carne que estava caindo dos ossos – carne de mesarthium, ossos de mesarthium – cobria todo o crânio agora, e não apenas carne, mas também pelos, e a face tinha a beleza delicada de um espectral misturado com o poder de um ravide. Seus chifres eram uma versão mais refinada do que haviam sido, estendendo-se em espirais apertadas, e os olhos que preenchiam os buracos vazios eram grandes e brilhantes. A corcunda de seus grandes ombros tinha encolhido. Todas as suas proporções ficaram mais elegantes. Skathis podia ter sido um artista, mas era um artista perverso. Estranho, o sonhador, também era um artista, e ele era o antídoto de perverso.
– O que você acha? – Lazlo perguntou.
– Ele é adorável, na verdade – ela elogiou. – Ele ficaria deslocado num pesadelo agora.
– Fico contente que tenha gostado.
– Você faz um bom trabalho, fazedor de sonhos.
– Fazedor de sonhos. Gosto de como isso soa. E você é uma também, é claro. Nós devíamos montar uma barraca no mercado.
– Por que não sonhar? – disse Sarai, pintando um logo no ar. As letras brilharam douradas, então desapareceram, e ela imaginou uma vida de conto de fadas em que ela e Lazlo trabalhavam com magia em uma tenda listrada no mercado e beijavam-se quando não tinham clientes. Ela virou-se para ele, afastou a borda larga de suas asas de raposa dos ombros e enlaçou a cintura dele com os braços. – Eu já te disse que no primeiro momento em que entrei nos seus sonhos soube que havia algo de especial em você?
– Acho que você não falou, não – disse Lazlo, encontrando um lugar para seus braços perto dos ombros dela, dos cabelos selvagens varridos pelo vento, das asas e tudo. – Por favor, continue.
– Mesmo antes de você olhar para mim. De me ver, quero dizer, a primeira pessoa que me viu. Depois disso, é claro, eu sabia que havia algo, mas mesmo antes, bastava ver Lamento pelos olhos da sua mente. Era tão mágico. Eu queria que ela fosse real e queria descer e trazer Pardal, Rubi, Feral e Minya para viverem nela, do jeito que você a sonhou.
– Foi tudo por causa do bolo, não foi? Isca para deusas.
– Isso ajudou – ela admitiu, rindo.
Lazlo ficou sério.
– Eu gostaria de torná-la real para você.
A risada de Sarai desapareceu.
– Eu sei.
A desesperança não voltou para nenhum dos dois, mas as razões para ela, sim.
– Foi um dia ruim – disse Lazlo.
– Para mim também.
Eles contaram tudo um ao outro, embora Lazlo não tivesse achado necessário repetir as palavras exatas dos guerreiros.
– Isso fez com que eu pensasse que era impossível – ele deslizou o dedo pelo rosto dela –, mas eu já pensei que algumas coisas eram impossíveis antes, e até agora, nenhuma delas foi. Além disso, sei que Eril-Fane não quer mais nenhum assassinato. Ele quer subir à cidadela – revelou a ela – para te encontrar.
– Ele quer? – A esperança frágil em sua voz partiu os corações de Lazlo.
Ele assentiu.
– Como ele poderia não querer? – Lágrimas formaram-se nos olhos dela. – Eu lhe disse que você podia pedir uma trégua aos outros. Posso ir também. Eu gostaria muito de encontrá-la.
Um desejo suave passou pelos olhos de Sarai, mas agora Lazlo viu-os endurecer.
– Eu já perguntei – ela revelou.
– E eles disseram não?
– Apenas uma disse, e só o voto dela importa.
Era hora de contar a ele sobre Minya. Sarai já havia lhe descrito Rubi, Pardal e Feral, e até as Ellens, porque todos se encaixavam no encanto dali e na doçura desta noite. Minya não. Só de pensar nela já contaminava a noite.
Ela contou-lhe primeiro como Minya os tinha salvado do Massacre, o que ela tinha testemunhado, e contou-lhe sobre o estranho fato de ela não envelhecer. Por último, contou-lhe sobre o dom de Minya.
– O exército-fantasma. É dela. Quando alguém morre, sua alma é levada para cima, em direção a... não sei. O céu. Elas não têm forma, nenhuma capacidade de se mover. Não podem ser vistas ou ouvidas, exceto por ela. Ela pega as almas e as domina. Dá forma a elas e as escraviza.
Lazlo estremeceu ao pensar nisso. Era poder sobre a morte e era tão repugnante quanto os dons dos Mesarthim. Isso lançava um manto escuro sobre seu otimismo.
– Ela matará qualquer um que for lá – a garota afirmou. – Você não deve deixar Eril-Fane ir. Você não deve ir. Por favor, não duvide do que ela pode, vai e quer fazer.
– Então o que devemos fazer? – ele indagou, perdido.
É claro que não havia resposta, pelo menos não esta noite. Sarai olhou para a cidadela. Sob a luz das estrelas baixas, ela parecia uma jaula enorme.
– Eu não quero voltar lá ainda – ela disse.
Lazlo a puxou para perto.
– Não é manhã ainda – ele respondeu, fazendo um gesto com a mão e a cidadela desapareceu, simples assim. Ele fez outro gesto e a âncora também desapareceu, sob seus pés. Eles estavam no céu novamente, voando. A cidade brilhava lá embaixo, luz de glaves e domos dourados. O céu luzia ao redor, luz de estrelas e infinidade, e ao todo já tinham se passado segundos demais desde o último beijo. Lazlo pensou, tudo isso é seu, até a infinidade, e então ele transformou aquilo. Até a gravidade, porque ele podia.
Sarai não estava esperando. Suas asas a mantinham para cima, mas então o que estava em cima foi para baixo e ela tropeçou, exatamente como Lazlo tinha planejado, para cair em seus braços. Ela levou um susto e ficou em silêncio enquanto ele a segurava. Ele envolveu-a com as asas e juntos eles caíram, não em direção ao chão, mas para longe, para as profundezas do céu.
Eles caíram nas estrelas em um movimento rápido de ar e éter. Eles respiraram a respiração um do outro. Nunca tinham estado tão próximos. Era tudo velocidade e física dos sonhos – sem necessidade de ficar em pé, deitar ou voar, mas apenas cair. Ambos já estavam caídos. Eles nunca terminariam de cair. O universo era infinito, e o amor tinha sua própria lógica. Seus corpos curvaram-se juntos, pressionados um ao outro, e encontraram o encaixe perfeito. Corações, lábios, umbigos, todas as cordas bem presas. A mão de Lazlo abriu-se contra as costas de Sarai. Ele a segurava perto de si. Os dedos dela enroscaram-se nos longos cabelos castanhos dele. Suas bocas eram macias e lentas.
Seus beijos no chão tinham sido vertiginosos. Este era diferente. Era reverente. Era uma promessa, e deixaram um rastro de fogo como um cometa enquanto se beijavam.
Ele sabia que não era sua vontade que os levou a pousar. Sarai também era uma fazedora de sonhos e essa escolha tinha sido só dela. Lazlo tinha lhe dado a lua no pulso, e as estrelas que a enfeitavam, o sol no pote de vidro junto com os vaga-lumes. Ele tinha até lhe dado asas. Mas o que ela mais queria naquele momento não era o céu. Era o mundo e as coisas quebradas, vigas entalhadas à mão e cobertas emaranhadas, e uma tatuagem adorável em volta do umbigo, como uma garota com esperança no futuro. A garota queria conhecer todas as coisas para as quais os corpos são feitos, e todas as coisas que os corações podiam sentir. Ela queria dormir nos braços de Lazlo – e queria não dormir neles.
Ela queria. Ela queria.
Ela queria acordar de mãos dadas.
Sarai desejou e o sonho obedeceu. O quarto de Lazlo substituiu o universo. Em vez de estrelas, glaves. Em vez do travesseiro de ar infinito, havia, debaixo dela, a maciez das penas. Seu peso acomodou-se nelas e o de Lazlo sobre ela, e tudo com a naturalidade da coreografia se encontrando com a música.
Os trajes de Sarai desapareceram. Sua camisola era rosa como pétalas, as alças finas como teias de aranha contra o azul de sua pele. Lazlo ergueu-se sobre o cotovelo e a observou, maravilhado. Ele traçou a linha do seu pescoço, tonto com essa nova topografia. Ali estavam suas clavículas, como ele as vira naquela primeira noite. Ele inclinou-se e beijou a depressão morna entre elas. Seus dedos percorreram a extensão do braço dela e fizeram uma pausa para rolar a fina alça de seda entre eles.
Sustentando seu olhar, ele a soltou pelo lado. O corpo dela levantou-se contra o dele, sua cabeça inclinando-se para trás para expor seu pescoço. Ele o cobriu com a boca, então beijou um caminho até o ombro nu dela. Sua pele estava quente...
E a boca dele também...
E tudo aquilo ainda era apenas o começo.
Aquilo não foi o que Thyon Nero viu quando chegou para espiar pela janela de Lazlo. Nada de amantes e nenhuma bela moça azul. Apenas Lazlo sozinho, sonhando e, de certa forma, radiante. Ele estava exalando... felicidade, Thyon pensou, da mesma forma que uma glave emite luz.
E... havia uma mariposa pousada em sua testa? E...
O lábio de Thyon curvou-se de aversão. Na parede acima da cama, e nas vigas do teto: asas mexendo-se suavemente. Mariposas. O quarto estava infestado delas. Ele ajoelhou-se e pegou algumas pedrinhas e pesou-as na palma da mão. Mirou com cuidado, levou a mão para trás e arremessou.
57
A LINGUAGEM SECRETA
Lazlo levantou-se, inesperadamente, piscando. A mariposa espantou-se de sua testa e todas as outras da parede, para voar até o teto e baterem-se contra as vigas. Mas ele não estava pensando sobre mariposas. Ele não estava pensando. O sonho o havia puxado para um lugar tão profundo que estava sob o pensamento, submerso em um lugar de pura emoção – e que emoção. Todas as emoções, e com elas a noção de que haviam sido despidas até sua essência, revelando-se pela primeira vez em toda sua beleza indizível, sua fragilidade intolerável. Não havia nenhuma parte dele que sabia que ele estava sonhando – ou, mais precisamente, que ele repentinamente não estava sonhando.
Ele só sabia que estava abraçando Sarai, a pele de seu ombro quente e macia contra sua boca, e então não estava mais.
Duas vezes antes, o sonho tinha se rompido e a roubado, mas daquelas outras vezes entendia o que estava acontecendo. Agora não. Agora sentiu como se a própria Sarai – carne, respiração, corações e esperança – tivesse derretido e transformado-se em nada em seus braços. Tentou agarrar-se a ela, mas era como tentar segurar fumaça ou sombra, ou – como o Sathaz do folclore – o reflexo da lua. Lazlo sentiu toda a impotência de Sarai. Mesmo enquanto se sentava em sua cama neste quarto onde Sarai jamais havia estado, o ar parecia aderir às curvas dela, quente com os vestígios de seu perfume e calor – mas vazio, abandonado. Destituído.
Daquelas outras vezes ele sentiu frustração. Desta vez era perda, e dilacerou algo dentro dele.
– Não – ele suspirou, subindo à tona rápido para ser cuspido de volta à realidade como alguém lançado na areia pelo quebrar de uma onda. O sonho retrocedeu e deixou-o lá, em sua cama, sozinho – naufragado na intransigência impiedosa da realidade, e era uma verdade tão desoladora para sua alma quanto o nada do Elmuthaleth.
Ele exalou com um tremor, seus braços desistindo do doce e perdido fantasma de Sarai. Até sua fragrância havia se perdido. Ele estava acordado, e estava sozinho. Quer dizer, acordado ele estava.
Ele ouviu um som – um estalo fraco e incrédulo – e virou-se na direção dele. A janela estava aberta e deveria ser um quadrado de sombra cortada do escuro, simples e vazia contra a noite. Em vez disso, uma silhueta a bloqueava: cabeça e ombros, brilhando em um ouro pálido.
– Isso sim parecia um sonho muito bom – disse Thyon Nero com pachorra.
Lazlo encarou-o. Thyon Nero estava parado em frente à sua janela. Estivera observando Lazlo dormir, observando-o sonhar. Observando-o sonhar aquele sonho.
A indignação tomou conta dele, e era desproporcional em relação ao momento, como se Thyon estivesse espiando não só o quarto, mas o próprio sonho, testemunha daqueles momentos perfeitos com Sarai.
– Desculpe interromper, o que quer que seja – Thyon continuou. – Embora você devesse mesmo era me agradecer. – Ele lançou mais uma pedrinha sobre o ombro para deslizar sobre os paralelepípedos. – Havia mariposas por toda parte. – Elas ainda estavam lá, pousando nas vigas do teto. – Havia até uma em seu rosto.
E Lazlo percebeu que o afilhado dourado não tinha apenas o espionado. Na verdade, ele o tinha acordado. Não fora o nascer do sol nem uma mariposa esmagada que tinham interrompido seu sonho, mas as pedrinhas de Thyon Nero. A indignação de Lazlo transformou-se em raiva em um instante – simples e quente – e ele saiu da cama tão rápido quanto saíra do sono.
– O que você está fazendo aqui? – ele resmungou, aparecendo no espaço da janela aberta de modo que Thyon, surpreso, tropeçou para trás. Ele observou Lazlo com cautela e olhos estreitos. Ele nunca tinha visto Lazlo bravo, muito menos irado, e isso o fazia parecer maior, de alguma forma bem diferente; uma espécie mais perigosa de Estranho do que a forma que conhecera todos estes anos.
O que não deveria surpreendê-lo, considerando por que ele viera.
– Essa é uma boa pergunta – disse ele, e voltou-se para Lazlo. – O que estou fazendo aqui, Estranho? Você vai me esclarecer? – Sua voz era vazia, bem como seus olhos, suas bochechas encovadas. Ele estava magro com a perda de espírito, sua cor era doentia. A aparência estava ainda pior do que no dia anterior.
Quanto a Lazlo, surpreendeu-se com a própria raiva, que agora estava abrandando. Não era uma emoção com a qual tinha muita experiência – ela não lhe cabia – e ele sabia que não tinha sido Thyon que a havia provocado, mas sua própria impotência de salvar Sarai. Por um instante, apenas um instante, sentiu uma angústia por perdê-la – mas aquilo não era real. Ela não estava perdida. Suas mariposas ainda estavam ali, nas vigas do teto, e a noite não tinha acabado. Assim que ele voltasse a dormir, ela retornaria.
É claro, ele precisava se livrar do alquimista primeiro.
– Esclarecer? – ele perguntou, confuso. – Do que você está falando, Nero?
Thyon balançou a cabeça com desprezo.
– Você sempre foi bom nisso, o olhar infeliz. Esses olhos inocentes – falou com amargura. – Ontem você quase me convenceu de que tinha me ajudado porque eu precisava. – Isso ele disse como se fosse a mais absurda das afirmações. – Como se qualquer homem chegasse para o outro e oferecesse o espírito de suas veias. Mas eu não podia imaginar qual motivo você teria, então quase acreditei.
Lazlo o fitou.
– Você deve acreditar. Que outro motivo poderia existir?
– É isso o que preciso saber. Você me lançou nisso anos atrás, lá no Chrysopoesium. Por que, Estranho? Qual é o seu jogo? – Ele parecia tão louco quanto doente, um brilho de suor em sua testa. – Quem é você de verdade?
A pergunta desconcertou Lazlo. Thyon o conhecia desde que tinha treze anos. Sabia quem ele era, até onde era possível conhecê-lo. Ele era Estranho, com tudo o que isso implicava.
– Qual é o problema, Nero?
– Nem pense em me fazer de bobo, Estranho...
Lazlo perdeu a paciência e o interrompeu, repetindo, em um tom mais alto:
– Qual é o problema, Nero?
Os dois jovens estavam em lados opostos da janela aberta, encarando-se como uma vez se encararam no balcão de informações, exceto que agora Lazlo não estava intimidado. Sarai observou-os através de suas sentinelas. Ela havia acordado quando Lazlo acordou, então jogou-se novamente nos travesseiros, espremendo os olhos para bloquear a visão das paredes e do teto de mesarthium que a cercavam. Ela não tinha dito que não queria voltar para lá ainda? Ela podia ter chorado de frustração. Seu sangue e espírito estavam correndo rápido e seu ombro estava quente, tão quente como se pela respiração real de Lazlo. A alcinha rosa de seda tinha até caído, assim como no sonho. Ela a tocou com os dedos, olhos fechados, lembrando-se da sensação dos lábios e mãos de Lazlo, os sutis caminhos das sensações que ganhavam vida onde quer que ele a tocasse. O que o faranji queria, vindo aqui no meio da noite?
Os dois falavam em sua língua própria, tão sem sentido para ela quanto tambores ou canto de pássaros. Ela não sabia o que estavam dizendo, mas viu a cautela em sua postura, a desconfiança em seus olhos e isso deixou-a tensa. Com a mão, Lazlo afastou os cabelos para trás com impaciência. Um momento passou em silêncio. Então o outro homem colocou a mão no bolso. O movimento foi imprevisível e repentino. Sarai viu um brilho de metal.
Lazlo também viu. Uma faca. Brilhando em sua direção.
Ele afastou-se. A cama estava bem atrás dele, então bateu nela e acabou sentado. Neste momento Ruza balançaria a cabeça, desesperando-se por nunca o transformar em um guerreiro.
Thyon olhou-o com desdém.
– Não vou matá-lo, Estranho – disse ele, e Lazlo viu que não era uma faca que estava na mão aberta de Thyon, mas uma lasca de metal.
Seus corações batiam pausadamente. Não era apenas metal. Era mesarthium.
A compreensão o inundou e ele levantou-se de uma vez. Naquele momento, esquecera-se de toda raiva e as insinuações enigmáticas de Thyon e estava completamente dominado pelo significado daquilo.
– Você conseguiu! – ele disse, abrindo um sorriso. – O alkahest funcionou. Nero, você conseguiu!
O olhar rigoroso de Thyon desapareceu e foi substituído pela incerteza. Ele havia se convencido de que isso era parte de algum golpe, algum truque ou traição orquestrada por Estranho, mas, de repente, não tinha certeza. Na reação de Lazlo havia a mais pura empolgação, e até ele podia ver que não era fingido. Ele balançou a cabeça, não em negação, mas mais como se estivesse sacudindo alguma coisa. Era a mesma sensação de falta de fé que experimentara na âncora – de descrença chocando-se com evidência. Lazlo não estava escondendo nada. Qualquer que fosse o significado desse enigma, também era um mistério para ele.
– Posso? – Lazlo perguntou, sem esperar por uma resposta. O metal parecia lhe chamar. Ele o tirou da mão de Thyon e o pesou na sua. A ondulação da luz da glave sobre o brilho de cetim azul era hipnotizante, a superfície fria contra a febre do sonho em sua pele. – Você contou para Eril-Fane? – ele perguntou e, quando Thyon não respondeu, levantou o olhar do metal. O desprezo e a suspeita haviam desaparecido da face do alquimista, deixando-o estupefato. Lazlo não sabia exatamente o que esse avanço significaria para o problema de Lamento, que era bem mais complicado do que Thyon sabia, mas não havia dúvida de que era um grande feito. – Por que você não está triunfante, Nero? – ele perguntou. Não havia ressentimento em sua voz quando ele disse: – É um bom episódio para o seu mito, com certeza.
– Cale a boca, Estranho – respondeu Thyon, embora houvesse menos rancor nessas palavras do que em todas as outras que vieram antes delas. – Ouça o que vou dizer. É importante. – Ele cerrou os dentes e descerrou. Seu olhar estava afiado como garras. – Nosso mundo tem uma coesão notável, um conjunto de elementos que formam tudo nele. Tudo. Folhas e besouro, língua e dentes, ferro e água, mel e ouro. O azoth é... – ele buscou uma forma de explicar. – É a linguagem secreta que todos compreendem. Você entende? É a chave-mestra que destranca todas as portas. – Ele fez uma pausa para deixar a informação ser assimilada.
– E você está destrancando as portas – disse Lazlo, tentando adivinhar onde ele queria chegar com isso.
– Sim, estou. Não todas elas, ainda não. É o trabalho de uma vida, o Grande Trabalho. Meu grande trabalho, Estranho. Não sou um fazedor de ouro para passar os meus dias enchendo a bolsa de moedas de uma rainha. Estou desvendando os mistérios do mundo, um a um, e ainda não cheguei a uma fechadura, por assim dizer, em que minha chave não coubesse. O mundo é a minha casa. Eu sou o dono. O azoth é a minha chave.
Ele fez uma nova pausa, com ênfase, e Lazlo, buscando preencher o silêncio, arriscou um cauteloso:
– De nada?
Mas qualquer que fosse a intenção de Thyon, aparentemente não era gratidão pelo papel que Lazlo tinha desempenhado em dar-lhe sua “chave”. Fora um estreitamento de olhos, ele continuou como se não tivesse ouvido.
– Mas o mesarthium – ele fez uma pausa antes de colocar as próximas palavras com grande peso – não é deste mundo.
Falou como se fosse uma grande revelação, mas Lazlo apenas levantou as sobrancelhas, pois já sabia disso. Bem, podia não saber do jeito que Thyon sabia, por meio de experimentos e evidências empíricas. Ainda assim, tivera certeza disso desde a primeira vez em que colocou os olhos na cidadela.
– Nero, eu devia ter pensado que isso era óbvio.
– E sendo esse o caso, não deveria ser uma surpresa que ele não entenda a linguagem secreta. A chave-mestra não encaixa. – Com uma voz que não dava margem à dúvida, ele disse: – O azoth deste mundo não afeta o mesarthium.
Lazlo franziu as sobrancelhas.
– Mas afetou – afirmou, segurando o pedaço de metal.
– Não exatamente – Thyon o fitou com dureza. – O azoth destilado do meu espírito não teve nenhum efeito sobre ele. Então eu te pergunto novamente, Lazlo Estranho... quem é você?
58
IRA DE UMA AMEIXA
Pardal encostou-se na balaustrada do jardim. A cidade estava lá embaixo, cortada pela avenida de luz – luz do luar, agora – que escapava por entre as asas do grande serafim. Parecia um caminho. À noite, especialmente, o horizonte da cidade escurecia o suficiente para que se perdesse a noção de escala. Bastava deixar os olhos perderem o foco para a avenida tornar-se uma linha de luz pela qual se podia atravessar até a Cúspide e além. Por que não?
Uma brisa moveu os galhos das ameixeiras, soprando folhas e os cabelos de Pardal. Ela colheu uma ameixa, que cabia perfeitamente na palma de sua mão. Segurou-a por um momento, olhando para fora, olhando para baixo. Rubi tinha jogado uma. Rubi descuidada. Como seria, Pardal perguntou-se, ser rebelde como sua irmã, e pegar o que – e quem – ela quisesse e fazer o que quisesse? Ela riu por dentro. Ela jamais saberia.
Passando pelo corredor em direção ao quarto de Feral, ela estivera sonhando com um beijo – um único e doce beijo – apenas para descobrir...
Pois bem.
Ela sentiu-se uma criança. Além de tudo – do peito doendo como se seus corações tivessem sido esmagados, e do choque que a deixara assustada até agora –, ela estava envergonhada. Estivera pensando em um beijo, enquanto eles estavam fazendo... aquilo. Era muito além de qualquer coisa que ela conhecia. Sarai costumava contar-lhes sobre as coisas que os humanos faziam juntos e aquilo tudo havia sido tão escandaloso, tão distante. Nunca imaginara fazer aquilo e, apesar de toda a fixação de sua irmã com o beijo, nunca a tinha imaginado fazendo aquilo também. Especialmente não com Feral. Ela espremeu os olhos bem fechados e segurou o rosto com as mãos, sentindo-se tão boba, traída e... passada para trás.
Ela pesou a ameixa na mão e, por apenas um momento, a fruta pareceu representar tudo que ela não era – ou talvez toda coisa doce e insípida que ela era.
Rubi era fogo – fogo e desejos, como um bastão-do-imperador – e ela era... fruta? Não, pior: ela era o kimril, doce e nutritivo, mas sem sabor. Levou o braço para trás e lançou a ameixa o mais longe que podia. Instantaneamente, arrependeu-se. “Talvez eu atinja um deles”, Rubi tinha dito, mas Pardal não queria atingir ninguém.
Bem, talvez Rubi e Feral.
Como se invocada por seus pensamentos, Rubi saiu no jardim. Vendo-a, Pardal pegou outra ameixa, que não a jogou nela, mas ainda assim a segurou, só por garantia.
– O que você está fazendo acordada? – ela perguntou.
– Estou com fome – disse Rubi. Quatro crianças famintas crescendo na cidadela dos Mesarthim, nunca tinha havido uma despensa para assaltar. Havia apenas as ameixeiras que Pardal mantinha em perpétua frutificação.
– É claro – respondeu. E pesou a ameixa em sua mão. – Você estava... em atividade recentemente.
Rubi ergueu os ombros, sem arrependimento. Ela passou pelo caminho entre as ervas e os aromas subiram ao seu redor. Estava com os cabelos desgrenhados como sempre – ou ainda mais, de seus exercícios recentes – e tinha vestido uma lingerie com um robe, sem amarrar, as pontas do cinto esvoaçando atrás dela como rabos de gato de seda.
Rubi encostou-se indolentemente na balaustrada. Ela pegou uma ameixa e comeu-a. O suco pingou de seus dedos. Ela lambeou-os e olhou para a Cúspide.
– Você está apaixonada por ele? – ela perguntou.
– O quê? – Pardal olhou zangada. – Não.
Tanto fazia ela responder ou não, Rubi ignorou-a completamente.
– Eu não sabia, sabe? Você podia ter me contado.
– O que, e ter arruinado sua diversão?
– Mártir – disse Rubi, suavemente. – Era apenas uma coisa a fazer, e ele era alguém com quem fazer essa coisa. O único garoto vivo.
– Que romântico.
– Bem, se é romance que você quer, não espere muito do nosso Feral.
– Não espero nada dele – respondeu Pardal, irritada. – Eu não o quero agora.
– Por que não? Porque eu fiquei com ele? Não me diga que é como quando nós lambíamos as colheres para guardar nossos lugares na mesa.
Pardal jogou a ameixa para cima e a pegou.
– É um pouco assim, sim.
– Bem, então. As colheres estavam como novas depois de lavadas. O mesmo deve valer para garotos.
– Não tem a ver com lambidas. É óbvio quem Feral quer.
– Não, não é. É só porque eu estava lá. Se você tivesse ido até ele, então seria você.
Pardal franziu a testa.
– Se isso é verdade, então não o quero mesmo. Quero alguém que queira apenas a mim.
Rubi achou que isso era verdade e, para sua surpresa, isso a incomodou. Quando Pardal explicou desse jeito, ela pensou que também preferiria alguém que quisesse apenas a ela, então, experimentou um lampejo irracional de ressentimento em relação a Feral. E lembrou-se do que ele tinha visto pouco antes de ambos verem Pardal na porta do quarto. “Terei que dormir com você de agora em diante”.
Suas bochechas esquentaram quando pensou nisso. À primeira vista, não parecia nada romântico. “Terei” fazia soar como se não houvesse outra escolha, mas é claro que havia. Se ele preferia vir até ela, bem. Até agora, ela que sempre havia ido até ele. E ele dissera “de agora em diante”. Parecia uma... promessa. Será que ele estava falando sério? Ela queria isso?
Ela estendeu a mão e pegou um cacho dos cabelos de Pardal, com sua mão melada de ameixa, e puxou suavemente. Um ar melancólico tomou conta dela, o mais perto que podia chegar do remorso.
– Eu só queria saber como era, caso fosse minha última chance. Eu nunca quis tirá-lo de você.
– Você não o tirou. Você não o amarrou e o obrigou – Pardal fez uma pausa, pensativa. – Você não o obrigou, obrigou?
– Praticamente. Mas ele não gritou pedindo ajuda, então...
Pardal lançou a ameixa de perto e acertou Rubi na clavícula. Ela disse “ai!”, embora não tivesse doído. Esfregando os dedos no lugar do impacto, fitou Pardal.
– É isso, então? Você extravasou sua ira?
– Sim – respondeu a garota, limpando as mãos. – Foi a ira de uma ameixa.
– Que triste para Feral. Ele só vale uma ameixa. Ele não vai ficar chateado quando contarmos?
– Não precisamos contar a ele.
– É claro que precisamos – Rubi respondeu. – Agora ele é capaz de achar que nós duas estamos apaixonadas por ele. Não podemos deixar isso assim. – Ela parou na grade. – Veja, lá está Sarai.
Pardal olhou. Do jardim, podiam ver o terraço de Sarai. Era longe; elas só conseguiam ver a silhueta dela, andando de um lado para o outro. Elas acenaram, mas Sarai não acenou de volta.
– Ela não nos vê – disse Pardal, descendo a mão. – De qualquer jeito, ela não está lá de verdade.
Rubi sabia o que ela queria dizer.
– Eu sei. Ela está lá embaixo, na cidade. – Ela suspirou, pensativa, e descansou o queixo sobre a mão, olhando para baixo, onde as pessoas viviam, dançavam, amavam e falavam da vida dos outros e não tinham de comer kimril se não quisessem. – O que eu não daria para ver a cidade apenas uma vez.
59
CINZA COMO A CHUVA
Sarai não havia saído no terraço desde o ataque ao trenó de seda. Permanecera em seu quarto tentando preservar alguma privacidade enquanto estava sob guarda cerrada, mas não pôde mais aguentar. Ela precisava de ar, precisava se mexer. Sempre ficava impaciente quando suas mariposas estavam fora, e agora a confusão acentuava isso.
O que isso queria dizer?
Andava de um lado para o outro e havia fantasmas ao seu redor, mas ela mal estava consciente deles. Ainda não conseguia compreender a conversa entre Lazlo e o faranji, embora, claramente, tivesse a ver com o mesarthium. Lazlo estava tenso, isso ela percebia. Ele devolveu o pedaço de metal. O outro homem saiu – finalmente – e ela esperava que Lazlo voltasse a dormir. Que voltasse para ela.
Em vez disso, ele calçou as botas. O desalento invadiu-a. Agora ela não pensava mais sobre os caminhos da sensação ou no calor dos lábios dele em seu ombro. Aquilo tudo tinha sido afastado por um fio de preocupação. Aonde ele ia a esta hora da noite? Ele estava distraído, a um milhão de quilômetros dali. Ela observou-o vestir um colete sobre o pijama solto. O impulso de tocá-lo era tão forte, mas ela não podia, e sua boca estava cheia de perguntas que ela não tinha como fazer. Uma mariposa agitou-se em volta de sua cabeça, seu caminho um rabisco.
Ele viu-a e piscou para ajustar o foco.
– Sinto muito – ele disse, sem ter certeza de que ela podia ouvi-lo, e estendeu a mão.
Sarai hesitou antes de pousar nela. Fazia muito tempo que não tinha contato com uma pessoa acordada, mas ela sabia o que esperar. Ela não esperava entrar em um espaço de sonho onde pudesse vê-lo e falar com ele e, de fato, não foi o que aconteceu.
A mente inconsciente é um terreno aberto – sem muros ou barreiras, para o bem ou para o mal. Pensamentos e sentimentos ficam livres para vagar, como personagens deixando os livros para experimentar a vida em outras histórias. Terrores perambulam, e o mesmo acontece com desejos. Segredos são revirados como bolsos, e velhas memórias encontram-se com novas. Elas dançam e deixam seus aromas umas nas outras, como o perfume transferido entre amantes. Assim que se produz significado. A mente constrói como o ninho de uma sirrah, com o que estiver à mão: fios de seda, cabelos roubados e as penas de um parente morto. A única regra é que não há regras. Nesse espaço, Sarai ia aonde queria e fazia o que bem entendia. Nada estava fechado para ela.
A mente consciente era uma história diferente. Não havia mistura de perfumes, nenhum perambular. Segredos derretiam-se na escuridão e todas as portas fechavam-se com estrondo. Nesse mundo vigiado, ela não podia entrar. Enquanto Lazlo estivesse acordado, ela estava trancada para fora da entrada de sua mente. Ela já sabia disso, mas ele não. Quando a mariposa fez contato, ele esperava que ela se manifestasse em sua mente, mas isso não aconteceu. Ele disse seu nome – primeiro em voz alta no quarto e, então, mais alto em sua mente.
– Sarai?
Sarai?
Nada de resposta, apenas uma vaga sensação de que ela estava por perto – trancada do outro lado de uma porta que ele não sabia como abrir. Ele entendeu que devia adormecer se quisesse falar com ela, mas isso era impossível agora. Sua mente estava agitada com a pergunta de Thyon.
Quem é você?
Ele imaginava que outras pessoas tivessem um lugar no centro de si mesmas – bem no centro de si mesmas –, onde residia a resposta para essa pergunta. Mas ele tinha apenas um espaço vazio.
– Você sabe que não sei – ele tinha dito a Thyon, incomodado. – O que você está sugerindo?
– Estou sugerindo – o afilhado dourado respondera – que você não é um camponês órfão de Zosma.
Então quem eu sou?
Então o quê?
Azoth deste mundo. Foi isso que Thyon dissera. O azoth deste mundo não afetava o mesarthium. O azoth destilado do espírito do alquimista não tinha nenhum efeito sobre ele. E ainda assim Nero cortara um pedaço da âncora e isso era prova suficiente: alguma coisa tinha afetado o mesarthium e essa coisa, de acordo com Thyon, era Lazlo.
Lazlo tentou se convencer de que Nero estava zombando dele, que era tudo uma brincadeira. Talvez Drave estivesse se escondendo, rindo como um menino.
Mas que tipo de brincadeira? Um ardil elaborado para fazê-lo pensar que havia algo de especial nele? Lazlo não podia acreditar que Nero se daria ao trabalho, principalmente agora, quando estava tão obcecado com o desafio que se apresentava. Thyon Nero tinha muitas características, mas a frivolidade não era uma delas.
Mas então, talvez Lazlo só quisesse que fosse verdade. Que houvesse algo de especial nele.
Não sabia o que pensar. O mesarthium estava no centro do mistério, então era para lá que ele estava indo – para a âncora, como se os campos magnéticos invisíveis de Mouzaive estivessem puxando-o para lá. Ele saiu da casa, com a mariposa de Sarai ainda pousada em sua mão. Ele não sabia o que lhe contar, se ela podia ouvi-lo. Sua mente estava girando com pensamentos e memórias e, no centro de tudo: o mistério sobre si.
“Então você pode ser qualquer um”, Sarai tinha dito quando ele lhe contou sobre a carroça de órfãos e sobre o fato de não saber seu nome.
Ele pensou no mosteiro, nos monges, na fileira de berços, nos bebês chorando, e nele mesmo, silencioso em meio aos demais.
“Não era natural”, o Irmão Argos tinha falado assim dele. As palavras ecoaram nos pensamentos de Lazlo. Não era natural. Ele tinha se referido ao silêncio de Lazlo, não? “Pensei que com certeza morreria”, o monge havia dito também. “Cinza como a chuva, você era”.
Um crepitar de arrepios irradiou-se do couro cabeludo de Lazlo e desceu pelo pescoço e coluna dele.
Cinza como a chuva, você era, mas sua cor se tornou normal com o tempo.
Na rua silenciosa da cidade adormecida, os pés de Lazlo desaceleraram e pararam. Levantou a mão que estava, momentos antes, segurando o pedaço de mesarthium. As asas da mariposa ergueram-se e desceram, mas ele não a fitava. A mancha estava de volta – um cinza em sua palma, onde havia segurado o fragmento fino. Ele sabia que ela desapareceria, desde que não estivesse tocando o mesarthium, e retornaria assim que tocasse. E todos aqueles anos atrás, sua pele havia sido cinza e voltara ao normal.
O som de seus batimentos cardíacos ecoava em sua cabeça.
E se ele jamais tivesse ficado doente? E se ele fosse... algo muito mais estranho que o nome Estranho pudesse significar?
Outra onda de arrepios percorreu seu corpo. Ele pensou que era alguma propriedade do metal que reagisse com sua pele, mas ele era o único que reagia a ele.
E agora, de acordo com Thyon, o metal havia reagido a ele.
O que isso significava? O que tudo isso significava? Ele começou a andar novamente, mais rápido agora, desejando que Sarai estivesse ao seu lado. Ele queria lhe dar a mão, em vez de ter uma mariposa pousada na mão. Depois do encantamento e da facilidade de voar no sonho que parecia tão real, ele sentia-se pesado, arrastando-se e preso ali na superfície do mundo. Essa era a maldição de sonhar: ele acordou para a pálida realidade, sem asas nos ombros nem deusa nos braços.
Bem, ele talvez nunca tivesse asas em sua vida acordado, mas abraçaria Sarai – não o fantasma dela nem a mariposa, mas ela, em carne, osso e espírito. De uma forma ou de outra, prometeu, essa parte de seu sonho se tornaria realidade.
À medida que Lazlo acelerou o passo, Sarai fez o mesmo. Seus pés descalços moviam-se rapidamente sobre o metal frio da palma do anjo, como se ela estivesse tentando segui-lo. Era inconsciente. Como Rubi e Pardal haviam dito, ela não estava realmente ali, mas tinha deixado consciência suficiente em seu corpo para saber quando se virar e não subir pela ponta íngreme da mão do serafim e ultrapassar a beirada.
A maior parte de sua atenção estava com Lazlo: pousada em seu pulso e pressionada contra a porta fechada da consciência do garoto. Ela sentia o pulso dele acelerado e a onda de arrepios que passava por sua carne bem como poderia sentir também a onda de emoção irradiando-se dele – e era o tipo de tremor e reverência que se costuma sentir na presença do sublime. Era claro e forte, entretanto Sarai não conseguia entender a causa. Seus sentimentos a atingiam em ondas, como música ouvida por meio de paredes, mas seus pensamentos continuavam escondidos lá dentro.
As outras noventa e nove mariposas tinham voado e estavam girando pela cidade em grupos, procurando algum indício de atividade. Mas ela não conseguia encontrar nada de errado. Lamento estava quieta. Os guardas Tizerkane eram silhuetas silenciosas em suas torres de vigia, e o faranji dourado tinha retornado diretamente ao laboratório e trancado-se lá dentro. Eril-Fane e Azareen estavam dormindo – ela em sua cama, ele no chão, a porta fechada entre o casal – e os trenós de seda estavam onde haviam sido deixados.
Sarai disse para si que não tinha nada com o que se preocupar e, então, ouvindo as palavras em sua mente, deu uma risada dura e sem voz. Nada com o que se preocupar? Nada mesmo. Qual preocupação poderia existir?
Apenas descoberta, massacre e morte.
Essas eram as preocupações com as quais ela tinha crescido e estavam atenuadas pela familiaridade. Mas havia novas preocupações, porque havia nova esperança, e desejo, e... e amor, e essas não eram familiares nem amenas. Até poucos dias atrás, Sarai mal podia dizer que havia um motivo para viver, mas agora seus corações estavam cheios de razões. Eles estavam cheios, pesados e sobrecarregados de uma urgência para viver – por causa de Lazlo, e do mundo que construíram quando suas mentes se tocaram, e da crença, apesar de tudo, de que eles podiam torná-lo real. Se apenas os outros os deixassem.
Mas não iriam.
Esta noite ela e Lazlo tinham buscado conforto um no outro e o encontraram, e se esconderam nele, bloqueando a realidade e o ódio contra o qual eram impotentes. Nenhum dos dois tinha solução nem esperança, então deleitaram-se no que eles tinham – um ao outro, pelo menos nos sonhos – e tentaram esquecer todo o resto.
Mas não havia esquecimento.
Sarai viu Rasalas pousado na âncora. Ela normalmente evitava o monstro, mas agora enviara um grupo de mariposas para perto. Tinha sido bonito no sonho. E podia ter servido como um símbolo de esperança – se Rasalas podia ser refeito, então qualquer coisa também podia –, mas ali estava ele como sempre: um símbolo de nada além de brutalidade.
A garota não podia suportar a visão. Suas mariposas separaram-se e viraram-se para longe, e foi então que um som lhe chegou aos ouvidos. Lá de baixo, na sombra da âncora, ouviu passos e alguma outra coisa. Um rangido obstinado, baixo e repetitivo. Fazendo fluir mais atenção para aquela dúzia ou mais de mariposas, ela enviou-as para baixo para investigar. Elas avançaram em direção ao som e seguiram-no até a viela que corria ao longo da base da âncora.
Sarai conhecia o lugar, mas não muito bem. Este bairro era abandonado. Ninguém vivera ali em todo o tempo em que ela descera para Lamento, então não havia motivo para mandar suas mariposas para lá. Ela tinha praticamente esquecido do mural, e a visão dele a fez parar: seis deuses mortos, cruamente azuis e pingando vermelho, seu pai no meio: herói, libertador, assassino.
O rangido estava mais alto agora, e Sarai pôde distinguir a silhueta de um homem. Ela não podia ver seu rosto, mas podia sentir seu cheiro: o fedor amarelo de enxofre.
O que ele está fazendo aqui?, perguntou-se, com desgosto. A visão confirmou o que os outros sentidos tinham lhe dito. Era aquele homem de rosto descamado, cujos sonhos tanto a perturbaram. Entre sua mente horrível e higiene rançosa, ela não tinha feito contato com ele desde aquela segunda noite, mas apenas passado por ele, retraindo-se com repugnância. Ela passara menos tempo em sua mente do que na de seus colegas, por isso tinha apenas uma noção vaga de seu conhecimento, e menor ainda de seus pensamentos e planos.
Talvez isso tivesse sido um erro.
Ele estava andando devagar, segurando uma espécie de roda nas mãos – um carretel do qual desenrolava um longo fio atrás de si. Era esse o rangido ritmado: a roda, enferrujada, gemendo enquanto girava. Ela observou, perplexa. Na boca da viela, ele espiou e olhou em volta. Tudo nele era furtivo. Quando ele se certificou de que não havia ninguém por perto, colocou a mão no bolso, apalpou no escuro e acendeu um fósforo. A chama acendeu-se alta e azul, então encolheu-se e transformou-se em uma pequena língua laranja, menor que a ponta de um dedo.
Inclinando-se para baixo, ele levou a chama até o fio, que obviamente não era um fio, mas um pavio.
E então correu.
60
ALGO ESQUISITO
Thyon colocou o pedaço de mesarthium em sua mesa de trabalho e deixou-se cair, pesadamente, no banquinho. Com um suspiro – frustração acima de um grande cansaço –, ele descansou a testa sobre a mão e olhou para a longa lasca do metal exótico. Havia ido em busca de respostas e não conseguira nenhuma, mas o mistério não o abandonava.
– O que é você? – perguntou ao mesarthium, como se o metal pudesse lhe dizer o que Estranho não tinha dito. – De onde você vem? – sua voz era baixa, acusatória.
“Por que você não está orgulhoso?”, Estranho tinha lhe perguntado. “Você conseguiu”.
Mas o que, exatamente, ele fizera? Ou, mais especificamente, por que tinha funcionado? O frasco rotulado ESPÍRITO DE BIBLIOTECÁRIO estava a poucos centímetros do metal. Thyon permaneceu sentado, olhando fixamente para as duas coisas – o frasco com as gotas restantes da essência vital e o pedaço de metal que a essência lhe havia permitido cortar.
E talvez fosse porque ele estava entorpecido com a perda de espírito ou talvez apenas cansado e a meio caminho do sonho, mas embora olhasse com todo o rigor de um cientista, seu olhar era filtrado pelo véu tremeluzente do devaneio – a mesma sensação de encantamento que lhe acometia quando ele lia seu livro secreto de milagres. E assim, quando percebeu algo esquisito, considerou todas as possibilidades, incluindo aquelas que não deveriam ser possíveis.
Ele pegou o metal e examinou-o mais de perto. As bordas estavam irregulares onde o alkahest as havia carcomido, mas um lado era perfeitamente liso como a superfície da âncora. Ou tinha sido. Ele tinha certeza.
Não era mais. Agora, sem dúvida, ele trazia as marcas sutis de... bem, de dedos, onde Lazlo Estranho tinha-o segurado na mão.
61
QUENTE, PODRE E ERRADO
Enquanto Sarai sentia as ondas dos sentimentos de Lazlo até mesmo através das barreiras de sua consciência, ele também sentia a chama repentina dos seus.
Um frigir de pânico – sem pensamentos, sem imagens, apenas uma bofetada de sensação e ele sobressaltou-se, a dois quarteirões da âncora e, então, inundando seus sentidos: o cheiro penetrante do enxofre, quente, podre e errado.
Era o fedor de Drave, e pareceu uma premonição, porque só então Drave apareceu no começo da rua, virando a esquina em uma corrida desenfreada. Seus olhos arregalaram-se quando ele viu Lazlo, mas ele não desacelerou, continuando a toda velocidade, como se estivesse sendo perseguido por ravides. Tudo em um instante: o pânico, o cheiro e o explosionista. Lazlo piscou.
E então o mundo ficou branco.
Um florir de luz. A noite tornou-se dia – mais clara que o dia, nenhuma escuridão para contar a história. As estrelas brilharam fracas contra os céus branqueados como ossos e as sombras morreram. O momento oscilou em um silêncio trêmulo, ofuscante, nulo e dormente.
E então a explosão.
Ela arremessou-o. Ele não a conhecia. Conhecia somente o flash. O mundo ficou branco e, então, ficou preto e isso era tudo.
Não para Sarai. Ela estava a salvo da onda da explosão – pelo menos seu corpo estava, lá na cidadela. As mariposas próximas à âncora foram incineradas em um instante. No primeiro segundo antes que sua atenção pudesse fluir para suas outras sentinelas, foi como se o fogo tivesse chamuscado sua visão em pedaços, deixando furos rotos com bordas de cinzas.
Aquelas mariposas foram perdidas. Ela tinha outras oitenta ainda voando pela cidade, mas a explosão rasgou tão rápido e tão longe que atingiu a todas em sua ressaca e varreu-as para longe. Seus sentidos reviraram-se com elas, capotando, sem saber o que estava em cima ou embaixo. Ela caiu de joelhos no terraço, a cabeça girando enquanto mais mariposas morriam, mais furos derretendo-se em sua visão, e o resto continuava desgovernado, fora de seu controle. Isso aconteceu segundos antes que ela pudesse recolher os sentidos em seu corpo – a maior parte deles, contudo. O suficiente para parar de girar enquanto seus pequenos fragmentos se espalhavam. Sua mente e estômago reviraram-se, nauseados, atordoados e frenéticos. O pior era que ela tinha perdido Lazlo. A mariposa em sua mão havia sido varrida e aspirada para fora da existência e, até onde ela sabia, ele também.
Não.
Uma explosão. Ela tinha entendido isso. O ruído da explosão fora curiosamente surdo. Ela rastejou até a beirada do terraço e reclinou-se com o peito contra o metal, e espiou lá embaixo, não sabendo o que esperar ver em Lamento. Caos – caos para condizer com a agitação de seus sentidos esparramados pelo vento? Mas tudo o que viu foi um delicado florescer de fogo no bairro da âncora, e frondes de fumaça subindo em câmera lenta. Lá de cima, parecia uma fogueira.
Rubi e Pardal, espiando por sobre a balaustrada do jardim, pensaram o mesmo.
Era... bonito.
Talvez não fosse ruim, Sarai pensou – ela rezou –, enquanto buscava suas sentinelas remanescentes. Muitas estavam esmagadas ou machucadas, mas várias dúzias ainda podiam voar, e as fez voar rápido em direção à âncora, o local onde perdera Lazlo.
A visão ao nível da rua não era nada como a vista calma lá de cima. Era quase irreconhecível em relação à paisagem de um momento atrás. Uma névoa de poeira e fumaça pairava sobre tudo, iluminada pelo fogo que ardia no local da explosão. Não parecia uma fogueira ali de baixo, mas uma revolução. Sarai buscou com suas dúzias de olhos, nada fazia muito sentido. Tinha quase certeza de que fora ali que tinha perdido Lazlo, mas a topografia havia mudado. Pedaços de rocha estavam na rua onde antes não havia nenhuma pedra. Elas tinham sido arremessadas pela explosão.
E sob uma delas havia um corpo preso.
Não, disse a alma de Sarai. Às vezes, é tudo que há: um eco infinito da menor das palavras. Não não não não não para sempre.
A pedra era um pedaço do muro, e não qualquer pedaço. Era um fragmento do mural, arremessado até ali. O rosto pintado de Isagol olhava ali de cima e o corte de sua garganta aberta parecia um sorriso.
A mente de Sarai havia se esvaziado de tudo, exceto do não. Ela ouviu um gemido e suas mariposas voaram até o corpo – e, rapidamente, afastaram-se dele.
Não era Lazlo, mas Drave, que estava com o rosto para baixo, pois fora pego enquanto corria do caos que ele mesmo causara. Suas pernas e pélvis estavam esmagadas pela pedra. Os braços arranhavam a rua como se ele quisesse se libertar, mas seus olhos estavam vidrados, sem enxergar, e sangue borbulhava de suas narinas. Sarai não ficou para vê-lo morrer. Sua mente, que havia se encolhido a uma única palavra – não –, desfraldava-se, mais uma vez, com esperança. Suas mariposas separaram-se, cortando a fumaça que soprava até encontrarem outra figura estatelada e imóvel.
Esse era Lazlo, deitado de costas, olhos fechados, boca relaxada, seu rosto branco de poeira, exceto onde o sangue corria de seu nariz e ouvidos. Um soluço formou-se na garganta de Sarai e suas mariposas cortaram o ar na pressa para alcançá-lo – para tocá-lo e saber se seu espírito ainda fluía, se sua pele estava quente. Uma voou até seus lábios, outras até a sua testa. Assim que o tocaram, ela caiu dentro de sua mente, para fora da poeira e fumaça da noite pintada pelo fogo e para... um lugar onde ela nunca estivera antes.
Era um pomar. As árvores eram nuas e pretas.
– Lazlo? – ela chamou, e sua respiração produziu uma nuvem que logo desapareceu. Tudo estava parado. Ela deu um passo e o gelo rachou sob seus pés descalços. Estava muito frio. Ela chamou-o novamente. Outra nuvem de respiração formou-se e desapareceu, mas não houve resposta. Ela parecia estar sozinha ali. O medo aninhou-se em suas entranhas. Ela estava na mente dele, o que significava que ele estava vivo – e a mariposa que pousara sobre seus lábios podia sentir sua respiração fraca –, mas onde ele estava? Onde ela estava? Que lugar era este? Ela vagou por entre as árvores, partindo os galhos com as mãos, andando cada vez mais rápido, cada vez mais ansiosa. O que significava o fato de ele não estar ali?
– Lazlo! – ela chamou. – Lazlo!
E então ela chegou a uma clareira e ele estava lá – de joelhos, cavando a terra com as mãos.
– Lazlo!
Ele olhou para cima. Seus olhos estavam vidrados, mas iluminaram-se ao vê-la.
– Sarai? O que você está fazendo aqui?
– Procurando você! – ela respondeu, e correu para lançar seus braços ao redor dele. Ela beijou-lhe o rosto. Sentiu seu cheiro. – Mas o que você está fazendo aqui? – Ela pegou as mãos dele entre as suas. Elas estavam sujas de terra preta, suas unhas rachadas e quebradas de raspar a terra congelada.
– Estou procurando uma coisa...
– O quê?
– Meu nome – ele disse, em dúvida. – A verdade.
Suavemente, ela tocou a testa dele, engolindo o medo que a queria sufocar. Tendo sido arremessado daquela forma, ele devia ter batido a cabeça. E se estivesse ferido? E se ele estivesse... avariado? Ela pegou a cabeça dele nas mãos, desejando fortemente estar em Lamento, para segurar sua cabeça de verdade no colo e acariciar sua face e estar lá quando ele acordasse, porque é claro que ele acordaria. É claro que ele estava bem. É claro.
– E... você acha que está aqui? – ela perguntou, sem saber o que mais dizer.
– Tem alguma coisa aqui. Sei que tem – ele respondeu, e... havia algo.
Estava solidificado na terra, mas quando ele o tirou, a terra caiu e o objeto brilhou branco como uma pérola. Era... uma pena? Não qualquer pena. Suas extremidades encontravam-se com o ar como se derretessem, como se pudesse se dissolver.
– A Aparição – disse Sarai, surpresa.
– O pássaro branco – completou Lazlo. Analisou a pena virando-a em sua mão. Imagens fragmentadas tremulavam no limite da memória. Vislumbres de penas brancas, de asas gravadas contra estrelas. Ele franziu a testa. Tentar capturar as memórias era como tentar capturar um reflexo. Assim que ele as buscava, elas se distorciam e desapareciam.
Por sua vez, Sarai perguntou-se o que uma pena da Aparição estava fazendo ali, enterrada na mente inconsciente de Lazlo. Mas era um sonho – de um golpe na cabeça, nada menos – e, provavelmente, não significava nada.
– Lazlo – ela disse, umedecendo os lábios, o medo quente e apertado na garganta e no peito –, você sabe o que aconteceu? Você sabe onde está?
Ele olhou em volta.
– Esse é o pomar do mosteiro. Eu costumava brincar aqui quando era criança.
– Não – ela esclareceu. – Isso é um sonho. Sabe onde você está?
Ele franziu a testa:
– Eu... eu estava andando para a âncora norte.
Sarai assentiu. Ela acariciou-lhe o rosto, maravilhando-se com o que ele tinha passado a significar para ela em um período tão curto de tempo – seu nariz torto, suas maçãs do rosto grosseiras, os cílios de gato e os olhos sonhadores. Ela queria ficar com ele, era tudo o que desejava – mesmo aqui, neste lugar inóspito. Bastaria dar-lhes meio minuto que eles o transformariam no paraíso – flores abrindo-se nas árvores negras e nuas, uma casinha com uma lareira e um tapete felpudo na frente dela, perfeito para fazer amor.
A última coisa que ela queria fazer – última mesmo – era empurrá-lo por uma porta na qual ela não o pudesse seguir. Mas ela beijou seus lábios, e suas pálpebras, e sussurrou palavras que fariam exatamente aquilo. Ela disse:
– Lazlo. Você tem que acordar agora, meu amor.
E ele acordou.
Da quietude do pomar e dos carinhos de Sarai, Lazlo acordou para... uma quietude que não era silêncio, mas o som virado do avesso. Sua cabeça estava cheia dele, estourando, e ele não conseguia ouvir nada. Ele estava surdo, e estava asfixiado. O ar estava pesado e o impedindo de respirar. Poeira. Fumaça. Por que...? Por que ele estava deitado?
Ele tentou sentar-se. Fracassou.
Ficou deitado ali, piscando, e as formas começaram a distinguir-se na sombra. Acima dele, viu um pedaço do céu. Não, não era o céu. Era o céu de Lamento: a cidadela. Ele podia ver o contorno de suas asas.
O contorno de asas. Sim. Por um instante, capturou a memória – asas brancas contra as estrelas –, apenas um vislumbre, acompanhado por uma sensação de leveza que era a antítese do que sentia agora, esparramado na rua, olhando para a cidadela. Sarai estava lá em cima. Sarai, cujas palavras ainda estavam em sua mente, cujas mãos ainda estavam em seu rosto. Ela tinha acabado de estar com ele...
Não, aquilo era um sonho, ela dissera. Ele estava andando em direção à âncora, era isso. Ele lembrava-se... Drave correndo e luz branca. A compreensão lentamente penetrou sua mente. Explosionista. Explosão. Drave tinha feito aquilo.
Feito o quê?
Um som de campainha suplantou o silêncio em sua cabeça. Era baixo, mas estava aumentando. Sacudiu a cabeça, tentando livrar-se dele, e as mariposas em sua testa e bochechas voaram em torno dele como uma coroa. A campainha ficou mais alta. Terrível. Ele conseguiu rolar de lado para levantar-se, apoiando-se nos joelhos e nos cotovelos. Ele cerrou os olhos, que ardiam com o ar quente e sujo, analisou em volta. A fumaça girava como a mahalath e o fogo estava ardendo atrás de telhados estilhaçados, que pareciam dentes quebrados. Ele podia sentir o calor das chamas no rosto, mas ainda não conseguia ouvir o barulho do fogo ou qualquer outra coisa além da campainha.
Ele levantou-se. O mundo girou à sua volta e o fez cair, então levantou-se de novo, mais lentamente.
A poeira e a fumaça moviam-se como um rio entre ilhas de destroços – pedaços de muro e telhado, até um fogão de ferro em pé, como se tivesse sido entregue por uma carroça. Ele estremeceu com sua sorte, nada o tinha atingido. Foi então que viu Drave, que não fora tão sortudo.
Tropeçando, Lazlo ajoelhou-se ao lado dele. Primeiro, viu os olhos de Isagol, no mural. Os olhos do explosionista também estavam fixos, mas cobertos de poeira, sem ver nada.
Morto.
Lazlo levantou-se e continuou andando, embora certamente apenas um tolo ande na direção do fogo em vez de fugir dele. Precisava ver o que Drave havia feito, mas aquela não era a única razão. Ele estava indo à âncora quando a explosão o atingiu e, embora não se lembrasse do motivo, qualquer que fosse não o havia abandonado. A mesma compulsão o motivava agora.
“Meu nome”, dissera a Sarai quando ela perguntou o que ele procurava. “A verdade”.
Que verdade? Tudo estava obscuro, dentro e fora de sua cabeça. Mas se apenas um tolo vai em direção do fogo, então ele estava em boa companhia. Ele não os ouviu se aproximando por trás, mas em um momento tinha sido varrido com eles: Tizerkane do quartel, mais ferozes do que jamais os tinha visto. Passaram por ele, apressados. Alguém parou. Era Ruza, e era muito bom ver seu rosto. Seus lábios estavam movendo-se, mas Lazlo não conseguia ouvir. Ele balançou a cabeça, tocou seus ouvidos para explicar para Ruza, e seus dedos saíram molhados, então notou que estavam vermelhos.
Isso não podia ser bom.
Ruza viu e agarrou-lhe o braço. Lazlo nunca vira o amigo tão sério. Ele queria fazer uma piada, mas nada lhe veio à mente. Ele afastou a mão de Ruza e fez um gesto para a frente.
– Vamos – disse, embora não pudesse ouvir as próprias palavras melhor do que as de Ruza.
Juntos eles viraram a esquina para ver o que a explosão havia feito.
62
UM APOCALIPSE CALMO
A fumaça cinza e pesada subiu em direção ao céu. Havia um odor acre de salitre e o ar estava denso e granulado. As ruínas em torno do flanco leste da âncora já não existiam mais. Havia uma terra devastada de escombros incinerados agora. A cena era apocalíptica, mas... era um apocalipse calmo. Ninguém estava correndo ou gritando. Ninguém morava ali e isso era uma bênção. Não havia ninguém para evacuar, ninguém e nada para salvar.
No meio disso tudo, a âncora erguia-se invencível. Apesar de todo o poder selvagem da explosão, ela havia permanecido ilesa. Lazlo podia reconhecer Rasalas lá no alto, enevoado em meio ao tecido da luz do fogo difusa pela poeira. A besta parecia tão intocável como se sempre e para sempre fosse lançar seu olhar de morte sobre a cidade.
– Você está bem? – Ruza quis saber, e Lazlo começou a assentir antes mesmo de perceber que o tinha ouvido. As palavras tinham um trinado subaquático e ainda havia uma campainha baixinha em seus ouvidos, mas ele podia ouvir.
– Estou bem – respondeu, tenso demais para estar aliviado. Mas o pânico estava-o deixando, e a desorientação também. Ele viu Eril-Fane dando ordens. Uma carroça em fogo passou. As chamas já estavam baixando à medida que as madeiras antigas eram consumidas. Tudo estava sob controle. Parecia que ninguém tinha se machucado – exceto por Drave, e ninguém choraria por ele.
– Podia ter sido bem pior – ele disse, com uma sensação de ter escapado por pouco.
E, então, como se em resposta, a terra soltou um profundo e rachado créc e o lançou ao chão de joelhos.
Drave tinha colocado o explosivo na fenda que o alkahest de Thyon fizera na âncora. Ele tratou-a como pedra, porque pedra era o que ele conhecia: montanhas, minas. A âncora era como uma pequena montanha para ele, que pensou em explodir um buraco nela para expor seu interior – quis fazer rapidamente o que Nero estava fazendo devagar, e então ganhar o crédito por isso.
Mas o mesarthium não era pedra e a âncora não era uma montanha. Ela permaneceu impenetrável e, assim, o explosivo, encontrando perfeita resistência por cima, não tinha para onde ir a não ser... para baixo.
Um novo som atravessou a campainha dos ouvidos de Lazlo – ou era uma sensação? Um estrondo, um rugido, ele podia ouvir com os ossos.
– Terremoto! – gritou.
O chão sob seus pés podia ser o chão da cidade, mas também era um teto, o teto de algo vasto e profundo: um mundo não mapeado de túneis em que o Uzumark fluía na escuridão e monstros míticos nadavam em cavernas fechadas. Ninguém conhecia a profundidade dele, mas agora, todo o invisível estrato subterrâneo intrincado estava em colapso. A rocha tinha se fraturado com a força da explosão e não podia mais suportar o peso da âncora. Rachaduras estavam desenhando-se como teias de aranha, como se fosse de gesso. Imensas rachaduras no gesso.
Lazlo mal podia manter-se em pé. Nunca tinha presenciado um terremoto antes, mas era como estar de pé na pele de um tambor enquanto mãos gigantes batiam sem ritmo. Cada concussão o lançava, cambaleando, e ele observou, com perplexidade, à medida que as rachaduras cresciam para se transformar em fraturas largas o bastante para engolir um homem. Os paralelepípedos de lápis-lazúli dobraram-se. Os das beiradas caíram para dentro e desapareceram e as fraturas transformaram-se em abismos.
– Estranho! – Ruza gritou, arrastando-o. Lazlo deixou-se ser arrastado, mas continuou olhando.
Atingiu-lhe como um golpe de martelo o que deveria acontecer em seguida. Sua perplexidade transformou-se em horror. Ele observou a âncora, viu-a estremecer. Ouviu o ruído cataclísmico de rocha e metal à medida que o chão cedia. O grande monólito inclinou-se e começou a afundar, moendo camadas ancestrais de pedra, rasgando-as como se fossem papel. O som era de partir a alma e esse apocalipse já não era mais calmo.
A âncora afundava como um navio.
E acima, com um balanço estonteante, a cidadela dos Mesarthim soltou-se do céu.
63
SEM PESO
Feral dormia na cama de Rubi.
Rubi e Pardal estavam encostadas na balaustrada do jardim, observando o fogo na cidade lá embaixo.
Minya estava no coração da cidadela, com os pés balançando na beirada da passarela.
Sarai estava ajoelhada em seu terraço, olhando para baixo.
Em todas suas vidas, a cidadela jamais havia balançado com o vento. E, agora, sem aviso, havia se inclinado. O horizonte desnivelou-se, como um quadro enviesado na parede. Seus estômagos subiram. O chão sumiu de seus pés. Eles perderam o apoio. Era como flutuar. Por um ou dois segundos muito longos, ficaram suspensos no ar.
Então a gravidade os tomou. E arremessou-os.
Feral acordou quando foi jogado para fora da cama. Seu primeiro pensamento foi em Rubi – primeiro, desorientado, pensou que ela havia lhe empurrado; o segundo, enquanto cambaleava... morro abaixo?, se ela estava bem. Ele atingiu a parede, batendo a cabeça e esforçou-se para levantar.
– Rubi! – chamou. Nenhuma resposta. Ele estava sozinho no quarto, e o quarto dela estava...
... inclinado?
Minya foi lançada para fora da passarela, mas segurou na beirada com os dedos e ficou pendurada ali, balançando-se na imensa sala esférica, a cerca de quinze metros do chão. Ari-Eil estava perto, imune à inclinação tanto quanto o era à gravidade ou à necessidade de respirar. Suas ações não eram suas, mas seus pensamentos eram e, enquanto eles se moviam para segurar Minya pelos pulsos, ficou surpreso em perceber-se em conflito.
Ele a odiava e queria que ela morresse. O conflito não tinha a ver com ela – exceto na medida em que era ela que o impedia de se dissolver no nada. Se ela morresse, ele pararia de existir.
Ari-Eil percebeu, enquanto colocava Minya de volta na passarela, que não desejava deixar de existir.
No jardim. No terraço. Três garotas com lábios cor de ameixa e flores no cabelo. Rubi, Pardal e Sarai ficaram sem peso e não havia paredes ou fantasmas para segurá-las.
Ou, havia fantasmas, mas o domínio de Minya era muito rígido para permitir-lhes a escolha que poderiam ou não ter feito: segurar as filhas dos deuses e impedir que elas caíssem no céu. Bahar teria ajudado, mas não podia. Ela só podia assistir.
Mãos seguraram no metal, em galhos de ameixeira.
No ar.
E uma das garotas – delicada em todas as coisas, até nisso – escorregou para fora.
E caiu.
Foi uma longa queda até Lamento. Apenas os primeiros segundos foram terríveis.
Bem. E o último.
64
QUE VERSÃO DO MUNDO
Lazlo viu. Ele estava olhando para cima, chocado com a visão inimaginável da cidadela inclinando-se em seu eixo, quando, através da fumaça e da poeira percebeu algo cair de lá de cima. Uma minúscula coisa distante. Um cisco, um pássaro.
Sarai, ele pensou, e afastou a possibilidade. Tudo era irreal, tingido pelo impossível. Alguma coisa havia caído, mas não podia ser ela, e o grande serafim não podia estar tombando.
Mas estava. Parecia estar inclinando-se para olhar de perto a cidade lá embaixo. Os delegados haviam debatido o propósito das âncoras, presumindo que elas impediam que a cidadela saísse voando. Mas agora a verdade fora revelada. Elas sustentavam-na no lugar. Ou assim tinham feito. Ela inclinou-se devagar, ainda suspensa pelo campo magnético das âncoras do leste, oeste e sul, mas perdera o equilíbrio, como uma mesa sem uma perna. Era possível inclinar-se até um ponto antes de cair.
A cidadela cairia sobre a cidade. O impacto seria inacreditável. Nada poderia sobreviver. Lazlo viu como seria. Lamento estaria acabada, junto a todos que nela estavam. Ele estaria acabado, e também Sarai, e os sonhos, e a esperança.
E o amor.
Isso não podia acontecer. Não podia terminar desse jeito. Ele nunca se sentira tão impotente.
A catástrofe no céu estava distante, lenta, até serena. Mas a catástrofe no chão não estava. A rua estava desintegrando-se. A âncora que afundava abria caminho por meio de camadas de crosta e sedimento e as rachaduras encontravam-se e tornavam-se buracos, lançando lajes de terra e rocha na escuridão abaixo, onde a primeira espuma do Uzumark estava saindo de seus túneis. O rugido, o trovão. Era tudo o que Lazlo conseguia ouvir, tudo o que podia sentir. Parecia habitar nele. E no meio disso tudo, ele não conseguia tirar seus olhos da âncora.
O impulso o tinha movido até então. Algo mais forte assumira o comando. Instinto ou euforia, ele não sabia, não pensou sobre isso. Não havia espaço em sua cabeça para pensar. A âncora estava pulsando cheia de horror e rugido, e havia apenas uma coisa mais barulhenta – a necessidade de chegar até ela.
O brilho de sua superfície azul chamava-o. Sem pensar, deu alguns passos à frente. Seus corações estavam na garganta. O que fora uma larga avenida estava rapidamente se transformando em um sumidouro com água escura borbulhando para preenchê-lo. Ruza segurou seu braço, gritando. Lazlo não conseguia ouvi-lo por causa do estrondo de destruição, mas era fácil ler as palavras proferidas pela sua boca.
“Volte!” e “Você quer morrer?”
Lazlo não queria morrer. O desejo de não morrer nunca tinha sido tão intenso. Era como ouvir uma música tão bela que fazia entender não só o significado da arte, mas da vida. Isso o devastava e o inspirava, arrancava seus corações e devolvia-os maiores. Ele estava desesperado por não morrer, e até mais que isso, por viver.
Todos recuavam, até Eril-Fane – como se “recuar” fosse seguro. Nenhum lugar era seguro, não com a cidadela pronta para tombar. Lazlo não podia simplesmente recuar e observar aquilo acontecer, era preciso fazer alguma coisa. Tudo nele invocava a ação, e o instinto ou a euforia estavam lhe dizendo qual ação.
Ir até a âncora.
Ele desvencilhou-se de Ruza e voltou-se para encará-la, mas ainda assim hesitou. “Meu rapaz”, ele ouviu em sua mente – as palavras gentis do velho Mestre Hyrrokkin. “Como você pode ajudar?” E as palavras de Mestre Ellemire, nada gentis. “Acho que dificilmente eles estejam recrutando bibliotecários, rapaz”. E sempre havia a voz de Thyon Nero: “Ilumine-me, Estranho. Em que versão do mundo você poderia me ajudar?”.
Que versão do mundo?
A versão do sonho, na qual ele podia fazer de tudo, até mesmo voar. Até remoldar o mesarthium. Até segurar Sarai em seus braços.
Ele respirou fundo. Era melhor morrer tentando segurar o mundo em seus ombros do que sair correndo. Era melhor, sempre, ir correndo. E assim o fez. Todos os outros seguiram a sensatez e o comando e correram para a segurança efêmera que podiam encontrar antes do cataclisma final. Mas não Lazlo Estranho.
Ele fingiu que era um sonho, pois era mais fácil dessa maneira. Baixou a cabeça e correu.
Sobre a paisagem suicida da rua partindo-se, em volta da espuma turbulenta do Uzumark, sobre os paralelepípedos revirados e as ruínas em fumaça, para o brilho do metal azul que parecia chamá-lo.
Eril-Fane viu-o e gritou: “Estranho!”. Ele olhou da âncora para a cidadela e seu horror intensificou-se, uma nova camada acrescentada à tristeza dessa destruição: a filha que havia sobrevivido todos estes anos para morrer agora. Ele parou em seu recuo, e o mesmo fizeram os guerreiros, para observar Lazlo correr para a âncora. Era loucura, é claro, mas havia beleza nisso. Todos perceberam – naquele momento se já não tinham percebido – como tinham passado a gostar do jovem estrangeiro. E mesmo que soubessem que a morte estava chegando para eles, ninguém queria vê-lo morrer primeiro. Eles observaram-no escalar os escombros em movimento, perder o equilíbrio e escorregar, levantando-se novamente para avançar até chegar na parede de metal que parecera intransponível, encolhendo agora que a terra a sugava.
Mesmo que o metal estivesse afundando, Lazlo ainda parecia pequeno perto dela. Foi absurdo o que ele fez em seguida: ergueu as mãos e segurou-a, como se, com a força de seu corpo, pudesse sustentá-la.
Havia esculturas de deuses exatamente nessa posição. No Templo de Thakra, serafins seguravam os céus. Podia parecer absurdo ver Lazlo tentar isso, mas ninguém riu, nem desviou o olhar. Apenas Thyon Nero entendeu o que estava vendo. Ele chegou na cena sem fôlego. Correu de seu laboratório com a lasca de mesarthium na mão, desesperado para encontrar Estranho e lhe contar... contar o quê?
Que havia impressões digitais no metal, e isso podia significar alguma coisa.
Bem, ele não precisou contar. O corpo de Lazlo sabia o que fazer.
Ele entregou-se, assim como tinha feito com a mahalath. Algum lugar no fundo de sua mente havia assumido o controle. Suas mãos estavam pressionadas totalmente contra o mesarthium, e elas pulsavam com o ritmo de seus batimentos cardíacos. O metal estava frio sob suas mãos, e...
... vivo.
Mesmo com todo o tumulto à sua volta, o ruído, o tremor e o chão movendo-se sob seus pés, ele sentiu a mudança. Parecia um zumbido – ou melhor, a sensação nos lábios quando se solta um zumbido, mas por todo o corpo. Ele estava extraordinariamente consciente da superfície de si mesmo, das linhas de seu corpo e dos planos de seu rosto, como se sua pele estivesse viva com algumas vibrações sutis. Era mais forte onde suas mãos entravam em contato com o metal. O que quer que estivesse acordando dentro dele, estava acordando o metal também. Sentiu como se o estivesse absorvendo, ou como se o metal o estivesse absorvendo. O metal estava tornando-se ele e ele, o metal. Era uma nova sensação, mais do que o toque. Sentia, principalmente, nas mãos, mas estava se espalhando: uma pulsação de sangue e espírito e... poder.
Thyon Nero estava certo. Parecia que Lazlo Estranho não era um camponês órfão de Zosma.
O entusiasmo varreu seu corpo e, com isso seu novo sentido se desenvolveu, crescendo e estendendo-se, buscando e encontrando, e sabendo. Ele descobriu um esquema de energias – a mesma força incomensurável que mantinha a cidadela no céu – e podia sentir tudo. As quatro âncoras e o grande peso que sustentavam. Com uma delas se inclinando e desalinhando-se, todo o elegante esquema havia se rasgado, desgastado. O equilíbrio estava desfeito e Lazlo sentiu, tão claramente como se o serafim fosse seu próprio corpo caindo no chão, como endireitá-lo.
Eram as asas. Elas só precisavam se dobrar. Apenas isso! Asas cuja vasta amplitude sombreavam uma cidade inteira, e ele precisava apenas dobrá-las, como um leque.
Na verdade, era fácil. Ali estava toda uma língua nova, falada por meio da pele e, para a surpresa de Lazlo, ele já a conhecia. Ele desejou, e o mesarthium obedeceu.
No céu acima de Lamento, o anjo dobrou as asas, e a luz da lua e das estrelas que, por quinze anos havia permanecido distante, inundou a cidade, parecendo tão brilhante quanto o sol depois de tão longa ausência. Ela incidiu em feixes através do apocalipse de fumaça e poeira enquanto o novo centro de gravidade da cidadela se reajustava em seus três suportes restantes.
Lazlo sentiu tudo isso. O zumbido baixou em seu centro e rompeu-o, inundando-o com essa nova percepção – todo um novo sentido afinado com o mesarthium, e ele era o mestre disso. Equilibrar a cidadela era tão simples quanto encontrar apoio em um terreno irregular. Sem esforço, o grande serafim aprumou-se, como um homem endireitando-se de uma reverência.
Lazlo permaneceu completamente concentrado nesse feito durante os minutos que levou para realizá-lo. Não tinha consciência do seu entorno. A parte profunda de si que podia sentir as energias as seguiu para onde elas levavam, e não fora só o anjo que fora alterado. A âncora também. Todos aqueles que estavam assistindo viram sua superfície irredutível derreter-se e fluir para baixo e para fora: debaixo da terra, para selar as rachaduras na rocha partida – e sobre as ruas, para distribuir seu peso sobre sua fundação comprometida.
E também havia Rasalas.
Lazlo não tinha consciência do que estava fazendo. Era a mahalath de sua alma refazendo o monstro como tinha feito no sonho. Suas proporções passaram de grosseiras e ameaçadoras para flexíveis e harmoniosas. Seus chifres afinaram, estendendo-se e espiralando nas pontas, tão sinuosos quanto tinta derramada na água. E à medida que a âncora redistribuiu o peso, parecendo derreter-se e derramar-se, a besta desceu em cima dela, cada vez mais perto da superfície da cidade, de forma que no momento em que parou, no momento em que tudo parou – a terra de tremer, a poeira de voar, o anjo de assumir uma nova posição no céu – foi isso que as testemunhas viram:
Lazlo Estranho empurrando a âncora, cabeça baixa e braços estendidos, mãos enfiadas até os pulsos no mesarthium fluido, com a besta refeita empoleirada acima. Era o monstro de Skathis, moldado agora não por um pesadelo, mas pela elegância. A cena... A cena era deslumbrante. Ela carregava consigo o arrojo angustiante da corrida de Lazlo até a âncora, toda a certeza da morte e a esperança como uma pequena chama insana brilhando em um lugar escuro, muito escuro, à medida que ele levantou os braços para sustentar o mundo. Se houvesse alguma justiça, a cena seria entalhada em um monumento de vidro de demônio e colocada ali para comemorar a salvação de Lamento.
A segunda salvação de Lamento e seu novo herói.
Poucas pessoas testemunharão um ato destinado a tornar-se lenda. Como acontece, que os eventos de um dia, ou de uma noite – ou de uma vida – sejam transformados em história? Há um hiato no meio, onde a reverência esculpe um espaço que as palavras ainda têm de preencher. Este era um hiato assim: o silêncio do resultado, no escuro da noite do segundo Sabá da décima segunda lua, e a âncora norte derretida de Lamento.
Lazlo tinha finalizado. A elegância das energias se restaurara. Cidade e cidadela estavam a salvo, estava tudo certo. Ele estava cheio de bem-estar. Isso era o que ele era. Isso era o que ele era. Podia não saber seu verdadeiro nome, mas o lugar no seu centro não estava mais vazio. Sangue na face, cabelos cobertos de poeira das ruínas desmoronadas, ele levantou a cabeça. Talvez porque não tivesse observado tudo acontecer, mas sim sentido, ou talvez porque... tivesse sido fácil, ele não entendia a magnitude do momento. Não sabia que havia um hiato lentamente se preenchendo de lenda, muito menos que era a sua lenda. Ele não se sentia um herói e, bem... tampouco sentia-se um monstro.
Entretanto, no espaço onde sua lenda estava juntando palavras, monstro estava certamente entre elas.
Ele abriu os olhos, voltando lentamente à percepção do mundo fora de sua mente e encontrou-o ecoando o silêncio. De trás dele vieram passos, muitos e cautelosos. Parecia-lhe que eles juntaram o silêncio como um manto e o carregavam, passo a passo. Não houve gritos de vitória, nenhum suspiro de alívio. Mal havia respiração. Vendo suas mãos ainda enfiadas no metal, ele retirou-as como se as tirasse da água. E... as observou.
Talvez ele não devesse ter se surpreendido pelo que viu, mas tinha. Isso o fez sentir-se dentro de um sonho, porque foi apenas em um sonho que suas mãos apareceram assim. Elas não eram mais do marrom da pele bronzeada pelo deserto, tampouco do cinza dos bebês encardidos e doentes.
Elas eram de um azul celeste vívido.
Azul como centáureas, asas de libélula ou o céu da primavera, não do verão.
Azul como a tirania, a escravidão e assassinato na iminência de acontecer.
Nunca uma cor havia significado tanto, tão profundamente. Ele virou-se para fitar a multidão que se formava. Eril-Fane, Azareen, Ruza, Tzara, os outros Tizerkane, até Calixte e Thyon Nero. Todos o olhavam, para seu rosto que era tão azul quanto suas mãos, e debateram-se – todos, menos Thyon – com uma dissonância cognitiva esmagadora. Esse jovem que eles encontraram em uma biblioteca em uma terra distante, a quem haviam recebido em seus corações e suas casas, e a quem valorizavam acima de qualquer outro estrangeiro que já tivessem conhecido, era também, de modo impossível, cria dos deuses.
65
QUEDAVENTO
Estavam todos tão quietos, tão mudos e paralisados, com expressões vazias com o choque. E então esse foi o espelho em que Lazlo se conheceu: herói, monstro. Cria dos deuses.
Ele viu, no choque dos outros, uma batalha para reconciliar o que achavam que conheciam dele com o que viam diante de si, sem mencionar o que tinham acabado de vê-lo fazer, e o que isso significava uma vez que sua gratidão rivalizava com desconfiança e traição.
Naquelas circunstâncias – ou seja, o fato de estarem vivos –, poderia se esperar sua aceitação, senão um entusiasmo igual ao de Lazlo. Mas as raízes de seu ódio e medo eram muito profundas e Lazlo viu indícios de repugnância à medida que a confusão daquelas pessoas manchava um sentimento com o outro. E ele não podia lhes oferecer nenhuma explicação. Ele não tinha clareza, apenas um redemoinho enlameado, com traços de toda cor e emoção.
Ele olhou para Eril-Fane, que parecia, particularmente, estupefato.
– Eu não sabia – falou. – Juro a você.
– Como? – disse Eril-Fane. – Como é possível que você seja... isso?
O que Lazlo podia lhe dizer? Ele mesmo queria saber isso. Como um filho dos Mesarthim acabou em uma carroça de órfãos em Zosma? Sua única resposta era uma pena branca enterrada, uma memória distante de asas contra o céu e uma sensação de falta de peso.
– Eu não sei.
Talvez a resposta estivesse na cidadela. Ele inclinou a cabeça para cima a fim de fitá-la, uma nova satisfação florescendo em si. Ele mal podia esperar para contar a Sarai. Para mostrar-lhe. Ele nem precisava esperar pelo cair da noite. Ele podia voar. Ali mesmo. Ela estava lá em cima, real e quente, carne e respiração, risos e dentes, pés descalços e panturrilhas lisas e azuis e cabelos macios cor de canela, e ele não podia esperar para mostrar-lhe: a mahalath tinha acertado, mesmo que não tivesse desvendado seu dom.
Seu dom. Ele riu em voz alta. Alguns dos Tizerkane recuaram com o som.
– Vocês não veem o que isso significa? – ele perguntou. Sua voz estava forte e cheia de encantamento, e todos a conheciam tão bem. Era a voz do contador de histórias, rouca e pura, a voz do amigo que repetia todas as frases tolas que eles inventavam nas aulas de língua. Eles o conheciam, azul ou não. Ele queria ultrapassar a fealdade do ódio antigo e dos medos que desvirtuavam a alma e começar uma nova era. Pela primeira vez, isso parecera verdadeiramente possível. – Eu posso mover a cidadela. – Ele podia libertar a cidade da sombra agora, e Sarai de sua prisão. O que ele não podia fazer nesta versão do mundo na qual ele era o herói e o monstro ao mesmo tempo? Ele riu novamente. – Vocês não veem? – ele perguntou, perdendo a paciência com a desconfiança e o escrutínio e a inaceitável ausência de celebração. – O problema está solucionado!
Não houve comemoração. Ele não esperava nenhuma, mas eles podiam ao menos estar felizes por não estarem mortos. Em vez disso, estavam apenas chocados, olhando para Eril-Fane para ver o que ele faria.
Ele colocou-se à frente, com passos pesados. Podia ser chamado de Matador de Deuses por um bom motivo, mas Lazlo não o temia. Ele olhou-o bem nos olhos e viu um homem que era grande, bom e humano, que havia feito coisas extraordinárias e coisas terríveis, que se partira e se refizera como uma concha, só então para fazer a coisa mais corajosa de todas: continuar vivendo, embora houvesse caminhos mais fáceis a tomar.
Eril-Fane olhou de volta para Lazlo, assimilando a nova cor de seu rosto familiar. O tempo passou em batimentos cardíacos e, por fim, ele estendeu a mão.
– Você salvou a cidade e todas as nossas vidas, Lazlo Estranho. Nós lhe devemos muito.
Lazlo pegou sua mão.
– Não há dívida – ele respondeu. – Era tudo o que eu queria...
Mas ele interrompeu-se, porque foi então, no silêncio, depois que a terra se assentou e o crepitar do fogo cessou, que os gritos os alcançaram e, um momento mais tarde, trazida por um cavaleiro tomado pelo terror, a notícia chegou.
Uma garota havia caído do céu. Ela era azul.
E estava morta.
O som e o ar foram roubados, e a alegria, o pensamento e o propósito. O encantamento de Lazlo tornou-se seu inverso sombrio: nem mesmo desespero, mas o vazio. Porque para o desespero teria de haver aceitação, e isso era impossível. Havia apenas o vazio, tanto vazio que ele não podia respirar.
– Onde? – ele engasgou-se.
Quedavento. Quedavento, onde as ameixas maduras choviam das árvores dos deuses e sempre havia o aroma doce de frutas podres.
A queda, lembrou-se, nauseado com a memória repentina. Ele a tinha visto cair? Não. Não. Disse para si que não podia ser ela, e tinha de acreditar nisso agora. Ele saberia se Sarai tivesse...
Ele mal podia formar a palavra em sua mente. Ele sentiria o medo dela – como tinha acontecido antes da explosão, quando aquela urgência de sensações o tinha atingido, junto com o fedor de enxofre de Drave, como uma premonição. Aquilo só podia ter vindo dela, por meio da mariposa.
A mariposa dela.
Alguma coisa havia penetrado o vazio e essa coisa era o pavor. Onde estavam as mariposas de Sarai? Por que não estavam ali? Elas tinham estado quando ele estivera no chão, inconsciente. “Você precisa acordar agora, meu amor”.
Meu amor.
Meu amor.
E elas estiveram com ele quando ele cambaleou pela rua até o fogo. Quando elas partiram? E para onde?
E por quê?
Ele fez a pergunta, mas fechou a porta para qualquer resposta. Uma garota estava morta e a garota era azul, mas não podia ser Sarai, afinal, havia quatro garotas na cidadela. Pareceu vil desejar que fosse uma das outras, mas desejou mesmo assim. Ele estava perto o bastante dos restos derretidos da âncora para estender a mão e tocá-los e o fez, instantaneamente, acessando seu poder. E Rasalas – o Rasalas refeito – levantou seus grandes chifres.
Era como uma criatura acordando do sono e, quando ela se moveu – sinuosa, líquida – e abriu suas asas enormes, um terror percorreu os ossos de todos os guerreiros, que empunharam suas espadas, embora elas fossem inúteis e, quando Rasalas saltou de onde estava empoleirado, eles se espalharam, todos menos Eril-Fane, atingido por um terror semelhante ao de Lazlo. Uma garota, caída. Uma garota, morta. Ele estava balançando a cabeça. Seus punhos cerraram-se. Lazlo não o viu. Ele não via ninguém, exceto Sarai, viva em sua mente, rindo, bonita e viva – como se imaginá-la assim provasse que ela estava viva.
Com um salto, ele montou em Rasalas. Sua vontade fluiu para o metal. Seus músculos enrijeceram-se. A criatura saltou, e os dois estavam no ar. Lazlo voava, mas não havia alegria nisso, apenas o reconhecimento desinteressado de que essa era a versão do mundo que desejara poucos instantes atrás. Era inacreditável. Ele podia moldar o mesarthium e podia voar. Tudo isso tinha acontecido, mas havia uma peça faltando, a peça mais importante: segurar Sarai em seus braços. Era uma parte do desejo, e o resto tinha acontecido, então isso também tinha de acontecer. Uma voz teimosa e desesperada dentro de Lazlo negociou com o que quer que estivesse ouvindo. Se houvesse alguma providência ou vontade cósmica, algum esquema de energias ou mesmo algum deus ou anjo respondendo às suas preces esta noite, então ele haveria de conceder essa parte também.
E... pode-se dizer que ele atendeu.
Rasalas desceu em Quedavento. Era um bairro normalmente tranquilo, mas não agora. Agora era o caos: cidadãos de olhos arregalados envoltos em um circo de pesadelo no qual havia apenas uma atração. Tudo era histeria. O horror e o cataclisma evitado tinham se derramado sobre ela, misturando o velho ódio e impotência, e à medida que a besta desceu dos céus, o fervor subiu para um novo patamar.
Lazlo estava pouco consciente disso. No centro de tudo, em um bolsão de quietude dentro do ninho turbulento de gritos, estava a garota. Ela estava arqueada sobre um portal de jardim, a cabeça inclinada para trás, braços soltos em torno do rosto. Ela era bela. Vívida. Sua pele era azul e sua lingerie era... era cor-de-rosa, e seu cabelo, derramando-se solto, era do vermelho alaranjado do cobre e caqui, canela e mel de flores silvestres.
E sangue.
Lazlo segurou Sarai em seus braços aquela noite e ela era real e de carne, sangue e espírito, mas sem o riso. Sem a respiração, que havia deixado seu corpo para sempre.
A Musa dos Pesadelos estava morta.
66
DEUS E FANTASMA
É claro que era um sonho. Tudo aquilo, mais um pesadelo. O balanço brusco e nauseante da cidadela, o impotente deslizar da seda sobre o mesarthium na palma lisa do serafim, o esforço inútil de buscar algo em que se segurar e não encontrar nada, e então... a queda. Sarai havia sonhado com quedas antes. Ela havia sonhado em morrer de vários jeitos desde que seu lull parara de funcionar. É claro... daquelas outras vezes, ela sempre acordara no momento da morte. A faca no seu coração, as presas em sua garganta, o instante do impacto, e ela levantava-se repentinamente na cama, sem fôlego. Mas ali estava ela: nem acordada, nem dormindo.
Nem viva.
A descrença veio primeiro, então a surpresa. Em um sonho, havia centenas de milhares de formas de isso acontecer, e muitas delas eram belas. Asas de raposa, um tapete voador, cair para sempre nas estrelas.
Entretanto, só havia mesmo uma maneira e não era nem um pouco bela. Era repentina. Quase repentina demais para doer.
Quase.
Incandescente, como partir no meio, e então nada.
Cercada por fantasmas como sempre estivera, Sarai perguntou-se como era, por fim, e quanto poder uma alma tinha, para deixar o corpo ou ficar nele. Ela tinha imaginado, como outros antes e depois dela, que era de certa forma uma questão de vontade. Se você se agarrasse com todas as forças e se recusasse a abandoná-lo, você podia... bem, você podia viver.
Ela queria tanto viver.
Mas quando chegou sua hora, não houve forma de se agarrar e nenhuma escolha. Ali estava algo com o qual não tinha contado: lá estava seu corpo para ela se agarrar, mas nada com que se agarrar. Ela escorregou para fora de si com a sensação de ser largada – como a pena de um pássaro, ou uma ameixa que caiu da árvore.
O choque disso. Ela não tinha peso, não tinha substância. Ela estava no ar e a irrealidade parecida com um sonho de flutuar lutou com a verdade horrível sob ela. Seu corpo. Ela... ele... havia caído em um portão e estava curvado sobre ele, de costas, os cabelos longos derramados, flores chovendo dele como pequenas chamas. Seu pescoço era de um azul suave, seus olhos vidrados e fixos. Sua lingerie rosa parecia impudica para ela dali, seu robe havia subido pelas suas coxas nuas – ainda mais quando uma multidão começou a se aglomerar.
E gritos.
Uma lança de ferro tinha atravessado seu corpo, bem no centro do peito. Sarai olhou para aquela pequena ponta de ferro vermelho e... pairou lá, sobre a casca de seu corpo, enquanto os homens, mulheres e crianças de Lamento apontavam, apertavam suas gargantas e soltavam gritos ásperos e vacilantes. Um som tão cruel, rostos tão contorcidos, eles mal eram humanos em seu horror. Ela queria gritar de volta para eles, mas eles não a ouviriam. Não podiam vê-la, não a ela – uma fantasma tremendo, sentada sobre o peito de seu próprio cadáver fresco. Tudo o que viam era calamidade, obscenidade. Crias dos deuses.
Suas mariposas encontraram-na, aquelas que restavam. Ela sempre achou que as sentinelas morreriam quando ela morresse, mas algum vestígio de vida havia ainda nelas – os últimos pedaços dela, até que a luz do sol as transformasse em fumaça. Frenéticas, voavam em torno do rosto morto e arrancavam selvagens os seus cabelos ensanguentados – como se a pudessem levantar e carregá-la de volta para casa.
Elas não podiam. Um vento sujo levou-as em um redemoinho e havia apenas gritos, os rostos odiosos contorcidos, e... a verdade.
Era tudo real.
Sarai estava morta. E embora não precisasse mais de ar, a constatação a sufocou, como quando acordava de um pesadelo e não conseguia respirar. A visão de seu pobre corpo... desse jeito, exposto para eles. Ela queria pegar a si mesma em seus próprios braços. E seu corpo... era apenas o começo da perda. Sua alma também iria. O mundo a reabsorveria. A energia nunca se perdia, mas ela se perderia, e suas memórias junto, e todo seu desejo, todo seu amor. Seu amor.
Lazlo.
Tudo voltou em uma torrente. A explosão, e o que veio depois. Morrer a tinha distraído. Surpresa, ela olhou para cima, preparada para ver a cidadela caindo do céu. Em vez disso, ela viu... o céu – a luz da lua atravessando a fumaça e até o brilho das estrelas. Ela piscou. A cidadela não estava caindo. As asas do serafim estavam dobradas.
A verdade escapou novamente. O que era real?
O frenesi ao redor dela, já insuportável, ficou ainda mais selvagem. Ela não teria acreditado que os gritos pudessem ficar ainda mais altos, mas ficaram e, quando viu o porquê, seus corações – ou a memória deles – tiveram uma guinada de esperança bruta.
Rasalas estava no céu e Lazlo montado nele. Oh, glória, a imagem! A criatura estava refeita, e... Lazlo também. Ele era Lazlo da mahalath, tão azul quanto céus e opalas, e tirou o fôlego de Sarai. Seus longos cabelos castanhos voavam com o vento do bater de asas de Rasalas, enquanto descia para pousar, e Sarai foi tomada por uma alegria selvagem de alívio. Se Rasalas estava voando, se Lazlo era azul, então era tudo mesmo apenas um sonho.
Oh, deuses.
Lazlo desceu das costas de Rasalas e parou na frente de Sarai, e se o desespero dela fora horrível antes daquela onda de alegria, quão desgraçado se tornou depois. Sua esperança não pôde sobreviver ao pesar que viu nele. Ele balançou sobre os pés. Não conseguia recuperar o fôlego. Seus belos olhos de sonhador pareciam buracos queimados e a pior coisa era: ele não estava olhando para ela. Ele estava olhando para o corpo arqueado sobre o portão, pingando sangue das pontas dos cabelos cor de canela e foi neles que tocou. Não nela, mas naquilo.
Sarai viu a mão dele tremer. Ela observou-o traçar com os dedos a fina alça cor-de-rosa pendurada em seu ombro morto, e lembrou-se da sensação da mão dele ali, soltando a mesma alça, o calor de sua boca na pele e os caminhos apurados das sensações, de todas as formas como se tivesse realmente acontecido – como se seus corpos tivessem se unido, e não apenas suas mentes. A crueldade disso era uma faca em sua alma. Lazlo nunca a havia tocado antes e, agora sim, mas ela não conseguia sentir nada.
Ele colocou a alça de volta no lugar. Lágrimas escorreram por sua face. O portão era alto. O rosto morto de Sarai, de cabeça para baixo, estava mais alto do que o dele. Ele abraçou seus cabelos como se fossem algo precioso. O sangue pingou em sua camisa e espalhou-se por seu pescoço e queixo. Ele segurou-a pela nuca. Com que delicadeza ele segurava aquele corpo morto. Sarai estendeu as mãos em direção ao rosto dele, mas elas passaram através dele.
Da primeira vez que entrou em seu sonho, ela havia se colocado à frente dele, segura em sua invisibilidade e ansiosa, desejando que aquele estranho sonhador fixasse seus doces olhos cinza nela.
E, então, ele o fizera. Apenas ele. Ele a tinha visto, e o fato de vê-la havia dado existência a ela, como se o enfeitiçamento dele fosse a magia que a tornasse real. Ela tinha vivido mais nas últimas noites do que em todos os sonhos em que entrara antes, mais ainda do que nos seus dias e noites reais, e tudo porque ele a tinha visto.
Mas agora não mais. Não havia mais enfeitiçamento e encantamento – apenas desespero digno de Isagol em sua pior faceta.
– Lazlo! – ela gritou. Ou pelo menos, ela formou o nome, mas não tinha fôlego nem língua nem dentes para lhe dar som. Ela não tinha nada. A mahalath tinha chegado e refeito ambos. Ele era um deus, e ela era um fantasma. Uma página havia sido virada. Uma nova história estava começando. Bastava olhar para Lazlo para saber que seria brilhante.
E Sarai não poderia estar nela.
Lazlo não sentiu a página virar, sentiu o livro fechar-se com violência. Ele o sentiu cair, como aquele que há muito tempo tinha destruído seu nariz, só que dessa vez destruindo sua vida.
Ele subiu à base de pedra do portão e esticou-se para pegar o corpo de Sarai. Colocou uma mão sob sua lombar e a outra ainda segurava sua nuca. Com todo cuidado, levantou-a. Soluços abafados brotaram dele à medida que soltou seu corpo esguio da ponta que o segurava no lugar. Quando ela saiu, ele desceu, aninhando-a no peito ao mesmo tempo devastado e preenchido por um carinho inexprimível. Ali, afinal, estavam seus braços reais, que jamais o enlaçariam. Seus lábios reais, que jamais o beijariam. Ele inclinou-se sobre ela como se a pudesse proteger, mas era tarde demais para isso.
Como era possível que, em seu triunfo, ele salvara todos menos ela?
Na fornalha de sua dor, a raiva acendeu. Quando se virou, segurando o corpo da garota que amava – tão leve, tão brutalmente sem vida –, o cobertor de choque que havia emudecido os gritos fora jogado fora e o som chegou rugindo para ele, tão ensurdecedor quanto qualquer explosão, mais alto do que o rasgar da terra. Ele queria rugir de volta. Aqueles que não tinham fugido estavam se aproximando. Havia ameaça em seu ódio e medo, e quando Lazlo viu isso, a sensação dentro dele foi como uma rajada de fogo subindo pela garganta de um dragão. Se ele gritasse, queimaria a cidade até carbonizar. Era assim que ele se sentia. Essa era a fúria que estava dentro dele.
“Você entende, não?”, Sarai havia dito, “que eles me matariam assim que me vissem?”
Ele entendia agora. E sabia que eles não a tinham matado e sabia que a teriam matado, se tivessem tido a chance. E ele sabia que Lamento, a cidade de seus sonhos, que ele havia acabado de salvar da devastação, não estava mais aberta para ele. Ele podia ter preenchido o lugar no centro de si mesmo com a resposta para quem ele era, mas havia perdido muito mais. Lamento e Sarai. A chance de um lar e a chance do amor. Perdidas.
Ele não gritou. Rasalas, sim. Lazlo não estava nem mesmo o tocando. Ele não precisava agora; a proximidade era suficiente. Como uma coisa viva, a besta da âncora correu para a multidão que se fechava, e o som que explodiu de sua garganta de metal não foi de fúria, mas de angústia.
O som chocou-se com os gritos e suplantou-os. Era como cor afogando cor. O ódio era preto e o medo era vermelho, e a angústia era azul. Não o azul de centáureas ou asas de libélula ou dos céus, e não de tirania, tampouco, ou de assassinatos na iminência de acontecer. Era a cor de pele machucada e tempestades escuras no mar, o azul frio e sem esperança dos olhos de uma garota morta. Era sofrimento e, no fundo de tudo, como borra em uma xícara, não havia verdade mais profunda na alma de Lamento do que esta.
O Matador de Deuses e Azareen chegaram a Quedavento quando Rasalas gritou. Eles atravessaram a multidão. O som de dor entalhou-os antes que vissem...
Que vissem Lazlo e o que ele segurava nos braços – o corpo esguio, membros frouxos, as flores pingando sangue, o derramar de cabelos cor de canela, e a verdade que isso traía. Eril-Fane cambaleou. Seu susto foi a ruptura da pequena e corajosa esperança que estava crescendo dentro de sua vergonha e, quando Lazlo montou em Rasalas com Sarai nos braços, ele caiu de joelhos como um guerreiro caído em batalha.
Rasalas alçou voo. Seu bater de asas levantou uma tempestade de poeira e a multidão teve de fechar os olhos. Na escuridão por trás das pálpebras fechadas, todos viram a mesma coisa: nenhuma cor, apenas perda como um buraco aberto no mundo.
Azareen ajoelhou-se atrás do marido. Tremendo, ela abraçou-o e curvou-se contra suas costas, encostou o rosto ao lado de seu pescoço e chorou as lágrimas que ele não conseguia. Eril-Fane estremeceu quando as lágrimas dela queimaram sua pele e algo dentro dele cedeu. Ele puxou os braços dela de encontro ao peito e escondeu o rosto em suas mãos. E então, ali, por tudo que tinha sido perdido e roubado, tanto dele quanto por ele em todos aqueles longos anos, o Matador de Deuses começou a soluçar.
Sarai viu tudo, mas não pôde fazer nada. Quando Lazlo ergueu seu corpo, ela nem mesmo conseguiu seguir. Alguma corda invisível havia se rompido e ela estava à deriva. De uma vez, houve uma sensação de... desenlace. Ela sentiu-se começando a se desfazer. Ali estava sua evanescência e era como morrer novamente. Lembrou-se do sonho da mahalath, quando a névoa a tinha desfeito e toda a sensação física desaparecera, exceto por uma coisa, uma coisa sólida: a mão de Lazlo segurando a sua.
Agora não. Ele pegou seu corpo e deixou sua alma. Ela gritou para ele, mas seus gritos eram silenciosos até para si mesma e, com um flash de metal e um redemoinho de fumaça, ele tinha desaparecido.
Sarai estava sozinha em seu desaparecimento final, sua alma dispersando-se no ar.
Como uma nuvem de respiração em um pomar quando não resta nada a dizer.
67
PAZ COM O IMPOSSÍVEL
A cidade viu o novo deus levantar-se para o céu e a cidadela o viu chegar.
O brilho suave de Rasalas derramou-se para cima, bater de asa após bater de asa, para fora da fumaça que ainda se agitava em torno dos telhados de Lamento. A lua estava finalmente se pondo; logo o sol se levantaria.
Rubi, Pardal e Feral estavam na beira do jardim. Seus rostos estavam abatidos, cinzentos e seus corações também. Sua dor era inarticulada, ainda emaranhada no choque. Começavam a entender a tarefa que estava à sua frente: a tarefa de acreditar que aquilo havia realmente acontecido, que a cidadela tinha se movido de verdade.
E que Sarai havia mesmo caído.
Apenas Pardal a tinha visto e apenas de soslaio. “Como uma estrela cadente”, ela havia dito, afogando-se em soluços, quando ela e Rubi finalmente soltaram as mãos da balaustrada e dos galhos de ameixeira que as salvaram de compartilhar o mesmo destino. Rubi balançava a cabeça, negando, rejeitando a ideia, e ainda a estava balançando, lenta e mecanicamente, como se não pudesse parar. Feral segurou-a contra o peito. Suas respirações pesadas e cruas como soluços tinham entrado em um ritmo. Ele estava observando o terraço de Sarai e continuava esperando que ela aparecesse. Ele continuava desejando que ela aparecesse. Seu pedido de “vamos, vamos”, era um canto indizível, no mesmo tempo do balançar de cabeça de Rubi. Mas lá no fundo ele sabia que se houvesse alguma chance de ela estar lá – de que Sarai ainda estivesse lá –, ele estaria andando até o fim do corredor para provar com seus próprios olhos.
Mas ele não estava. Ele não podia. Porque suas entranhas já sabiam o que sua cabeça se recusava a aceitar, e ele não queria provar isso.
Apenas Minya não estremeceu de descrença. Tampouco parecia afligida pela dor ou por qualquer outro sentimento. Ela ficou na arcada, apenas alguns passos dentro do jardim, seu corpinho enquadrado por uma arcada a céu aberto. Não havia expressão em seu rosto além de um remoto... estado de alerta.
Como se ela estivesse ouvindo alguma coisa.
O que quer que fosse, não eram bater de asas. Esses, quando chegaram, surrando o ar e salpicados pelos gritos surpresos dos outros, fizeram-na piscar e sair de sua paralisia e, quando ela viu o que se revelou, subindo no ar em frente ao jardim, seu choque foi como um golpe.
Por um momento, cada fantasma na cidadela sentiu suas amarras afrouxarem-se. Imediatamente, a sensação passou. A vontade de Minya reafirmou-se, as amarras, mais uma vez, esticadas, mas todos sentiram, de uma vez, um suspiro de liberdade esquivo demais para explorar. Que tormento – como a porta de uma jaula se abrindo e fechando-se com um estrondo logo em seguida. Isso nunca havia acontecido antes. As Ellens podiam atestar que, em quinze anos, a vontade de Minya nunca havia vacilado, nem mesmo quando ela dormia.
Tal foi seu assombro ao ver o homem e a criatura erguendo-se sobre as cabeças de Rubi, Feral e Pardal para pousar, em meio às rajadas de vento do bater de asas, no canteiro de botões de anadne no centro do jardim. Flores brancas rodopiaram como neve e seus cabelos voaram para trás enquanto ela fechava os olhos contra a corrente de vento.
Mesarthim. Mesarthium. Homem e besta, ambos estranhos, azul e azul. E antes que soubesse quem, e antes que soubesse como, Minya entendeu todas as ramificações da existência de Lazlo e compreendeu que isso mudava tudo.
O que ela sentiu primeiro, diante da solução do seu problema e do de Lamento, não foi alívio, mas – lenta e constantemente, devastadora, como um vazamento que roubaria todo o ar do mundo – uma certa perda de controle.
Ela conteve-se tão parada quanto uma rainha em um tabuleiro de quell, os olhos tão estreitos quanto os furos na cabeça de uma cobra, e viu-os chegar.
Lazlo desmontou. Ele tinha visto os outros primeiro – os três rostos pasmos na grade do jardim – e estava bastante ciente dos fantasmas, mas foi Minya quem ele procurou e em quem fixou o olhar, e foi para ela que ele se dirigiu, com Sarai nos braços.
Todos viram o que ele segurava, a forma insuportavelmente partida dela, o rosa, vermelho e canela tão brutalmente belos contra o azul de sua pele e da dele. Foi Rubi quem soltou um soluço doloroso e baixo. O vermelho brilhou em seus olhos vazios. As pontas de seus dedos acenderam e viraram dez velas azuis e ela nem sentiu. A tristeza de Pardal manifestou-se no definhar das flores em volta de seus pés. Seu dom, que eles nunca souberam que funcionava ao revés, estava sugando a vida de todas as plantas que ela tocava. E tampouco Feral invocou conscientemente o conjunto de nuvens que coalesceu em torno deles, bloqueando o céu, o horizonte, a Cúspide, encolhendo o mundo a este lugar – este jardim e apenas ele.
Apenas Minya tinha propósito. À medida que Lazlo se aproximou, o mesmo fez seus fantasmas.
Havia uma dúzia posicionada em torno do jardim e muitos mais dentro da galeria, sempre prontos para repelir a invasão. E embora o olhar de Lazlo não desviasse de Minya, ele sentia-os atrás de si. Ele os viu atrás dela, através da arcada, e à medida que os mortos de Lamento responderam ao chamado de Minya, movendo-se em direção aos arcos que por quinze anos ficaram abertos entre o jardim e a galeria, Lazlo fechou-os.
A vontade dela invocou os fantasmas e a dele barrou seu caminho. Era um diálogo de poder – sem palavras, apenas magia. O metal dos arcos tornou-se fluido e fechou-se, como não fazia desde a época de Skathis, separando Minya da maior parte de seu exército. Suas costas estavam voltadas para a galeria, e o fluir do mesarthium não fez nenhum som, mas ela o sentiu no emudecer das almas na outra ponta de suas amarras. Ela cerrou os dentes. Os fantasmas no jardim deslizaram para sua posição, flanqueando Lazlo pelas costas. Ele não se virou para os encarar, mas Rasalas o fez, um rosnado de alerta subindo pela garganta de metal.
Rubi, Pardal e Feral observaram tudo isso sem respirar.
Lazlo e Minya encararam-se e podiam ser estranhos, mas havia mais entre eles do que o corpo de Sarai. Minya entendeu, mesmo que Lazlo não. Esse faranji podia controlar o mesarthium, o que significava que ele era filho de Skathis.
E, portanto, seu irmão.
A revelação não atiçou nenhum sentimento de familiaridade, mas apenas uma amargura – de que ele tivesse herdado o dom que deveria ser dela, mas sem nada do sofrimento que a fizera tão desesperada por ele.
De onde ele tinha vindo?
Ele devia ser aquele sobre quem Sarai havia falado, e que a tinha tornado tão desafiante. “Eu conheço um humano que pode suportar me ver”, ela dissera, com uma ousadia que Minya nunca tinha visto. “Porque há um que pode me ver, e ele suporta muito bem me ver”.
Bem, ela devia estar desinformada ou mentindo. Ele não era humano. A besta encarou os fantasmas, assim como o homem encarou a garota. Os segundos entre eles estavam carregados de desafio. O poder eriçou-se, mal contido. Em Minya, Lazlo viu a criança impiedosa que havia tentado matá-lo, cuja devoção ao derramamento de sangue tinha enchido Sarai de desespero. Ele viu uma inimiga, e então sua fúria encontrou um foco.
No entanto, ela era uma inimiga que prendia fantasmas como borboletas em uma rede, e ele era um homem com seu amor morto nos braços.
Ele caiu de joelhos na frente dela. Inclinado sobre seu fardo, sentou-se sobre os calcanhares para ficar na altura exata dela. Ele a encarou e não encontrou nenhuma empatia, nenhum lampejo de humanidade e preparou-se para uma batalha.
– A alma dela... – disse ele, e sua voz nunca fora tão rouca, tão crua que era, praticamente, sangrenta. Ele não sabia como funcionava ou o que isso significaria. Apenas sabia que alguma parte de Sarai talvez pudesse ser salva, e deveria ser. – Você precisa prendê-la.
Outra pessoa – praticamente qualquer um – teria visto sua dor e perdoado seu tom de comando.
Mas não Minya.
Ela tinha toda intenção de capturar a alma de Sarai. Era isso que estava procurando ouvir. Desde o momento em que ficou sabendo que Sarai tinha caído, havia estendido seus sentidos até o limite, esperando, mal respirando, alerta aos fantasmas que passavam. Era assim que acontecia: ela esforçava-se para ouvir com todo seu ser. E assim como com os sons, a espuma sutil de uma alma podia ser afogada por uma presença mais alta e próxima.
Como um homem arrogante e intruso montado em uma besta de metal alada.
Esse estranho ousara chegar ali e quebrar sua concentração para ordená-la a fazer o que ela já estava fazendo?
Como se, se não fosse por ele, ela fosse deixar Sarai desaparecer?
– Quem você pensa que é? – ela ferveu entre dentes cerrados.
Quem Lazlo pensava que era? Órfão, cria dos deuses, bibliotecário, herói? Talvez ele fosse todas essas coisas, mas a única resposta que lhe vinha, e o único contexto relevante, era Sarai – o que ela era para ele, e ele para ela.
– Eu sou... de Sarai o – ele começou, mas não conseguiu terminar. Não havia uma palavra para dizer o que ele era de Sarai. Não eram casados nem prometidos – que tempo tinha havido para promessas? Não eram amantes ainda, mas muito mais do que amigos. Então ele hesitou em sua resposta, deixando-a inacabada, e era, a seu modo, simples e perfeitamente verdadeira. Ele era de Sarai.
– O que de Sarai? – perguntou Minya, sua fúria crescendo. – O protetor dela? Contra mim? – Isso a enraiveceu, a forma como ele segurava o corpo dela, como se Sarai pertencesse a ele, como se ela pudesse ser mais preciosa para ele do que para sua própria família. – Deixe-a e vá embora – esbravejou, ríspida –, se quiser viver.
Viver? Lazlo sentiu uma risada subir por sua garganta. Seu novo poder cresceu dentro dele. Parecia uma tempestade pronta para explodir através de sua pele.
– Eu não vou a lugar algum – respondeu, sua fúria equiparando-se à dela e, para Minya, isso foi um desafio à sua família e a seu lar, tudo a que ela se dedicou e no que se derramou, cada momento de cada dia, desde que o sangue dos deuses jorrou e ela salvou quem pôde carregar.
Mas salvá-los foi apenas o começo. Ela precisava mantê-los vivos – quatro bebês a seus cuidados, dentro de uma cena do crime de corpos e fantasmas, e ela era apenas uma criança traumatizada. Sua mente foi formada no padrão desesperado, de manter vivo, daquelas primeiras semanas e meses à medida que se exauria e se consumia. Ela não conhecia outro jeito. Não havia sobrado nada, nada, nem mesmo o bastante para crescer. Por meio de uma vontade absoluta e feroz, Minya colocou até mesmo sua força vital no gasto colossal de magia necessária para prender seus fantasmas e manter seus protegidos seguros – e não só seguros, mas amados. Em Grande Ellen, ela deu-lhes uma mãe, da melhor forma que pôde. E no esforço disso tudo, havia impedido seu crescimento, havia secado a si mesma até o osso. Ela não era uma criança. Ela mal era uma pessoa. Ela era um propósito e não tinha feito tudo aquilo e dado tudo de si apenas para perder o controle agora.
O poder explodiu dela. Rubi, Feral e Pardal gritaram enquanto os doze fantasmas que permaneciam no jardim – Grande Ellen entre eles – voaram até Lazlo com suas facas e ganchos de carne, e Grande Ellen, com suas mãos se moldando em formato de garras enquanto seus dentes viravam presas para envergonhar até o Rasalas de Skathis.
Lazlo nem pensou. Da parede alta de metal que era pano de fundo para o jardim – e que compunha os ombros do serafim e a coluna de seu pescoço – uma grande onda de metal líquido descascou-se e derramou-se, brilhando com os primeiros raios do sol que levantava, para congelar-se em uma barreira entre ele e o ataque violento. No mesmo momento, Rasalas saltou. A criatura não se incomodou com os fantasmas, mas derrubou Minya no chão como um brinquedo para um gato e prendeu-a ali, uma pata de metal pressionando seu peito.
Foi tão rápido – um borrão de metal e ela estava caída. Ela ficou sem respirar, e... Lazlo ficou sem fúria. O que quer que ela fosse, essa garotinha cruel – sua assassina em potencial, nada menos –, vê-la caída daquele jeito à mercê de Rasalas, envergonhava-o. Suas pernas eram impossivelmente finas, suas roupas tão esfarrapadas quanto as dos mendigos de Grin. Ela não desistiu. Seus fantasmas ainda foram para cima dele, mas o metal moveu-se contra, fluindo para bloqueá-los, pegando as armas e congelando em torno deles, impedindo-os de se aproximar.
Ele ajoelhou-se perto de Minya, que ainda lutou, e Rasalas aumentou a pressão da elegante pata sobre o peito dela. O suficiente para segurá-la sem machucar. Seus olhos ardiam, negros. Ela odiava a piedade que viu nos de Lazlo. Era mil vezes pior do que a fúria. Ela cerrou os dentes, interrompeu o ataque dos fantasmas e cuspiu:
– Você quer que eu a salve ou não?
Ele queria. Rasalas levantou a pata e Minya deslizou por debaixo dela, esfregando o peito onde ele a havia segurado. Como ela odiava Lazlo. Ao obrigá-la pela força a fazer algo que ela estava planejando de qualquer forma, parecia que ele tinha vencido algo, e ela tinha perdido.
Perdido o quê?
O controle.
A rainha estava vulnerável no tabuleiro sem peões para protegê-la. Esse novo adversário possuía o dom que ela sempre almejara e, contra ele, ela não era nada. Seu poder varreu o dela para longe como uma mão limpando migalhas em uma mesa. Seu controle do mesarthium dava-lhes a liberdade de todos os jeitos que imaginaram, mas Minya nem sabia se ela seria contada entre eles, ou seria varrida assim como seu poder e seus fantasmas. Eles podiam abandoná-la se quisessem, se decidissem que não confiavam nela, ou que simplesmente não gostavam dela. E o que ela poderia fazer? E quanto aos humanos, e o Matador de Deuses, e a vingança? Parecia que a cidadela balançava sob seus pés, mas ela estava estável. Era o seu mundo que balançava, e apenas ela podia sentir isso.
Ela levantou-se. Sentiu a pulsação nas têmporas. Fechou os olhos. Lazlo observou-a, sentindo uma dor de ternura por ela, embora não soubesse dizer por quê. Talvez fosse apenas porque com os olhos fechados ela parecesse mesmo uma criança de seis anos e isso mostrava o que ela havia sido no passado: apenas uma criança de seis anos com um fardo opressor.
Quando a menina entrou em uma quietude de concentração profunda, ele permitiu-se esperar por aquilo que até então apenas imaginara: que seria possível que Sarai não estivesse perdida para ele.
Que ela estava, mesmo agora, à deriva, como uma flor de ulola carregada pelo vento. Onde ela estava? O próprio ar parecia vivo com possibilidades, carregado de almas e magia.
Havia um homem que amava a lua, mas sempre que ele a tentava abraçar, ela partia-se em mil pedaços e deixava-o molhado, de braços vazios.
Sathaz finalmente descobriu que se entrasse no lago e ficasse imóvel, a lua viria até ele e permitiria que ele ficasse perto dela. Apenas perto, sem tocá-la. Ele não podia tocá-la sem estilhaçá-la e, assim, – como Lazlo tinha dito a Sarai – ele fizera as pazes com o impossível. Pegava o que podia receber.
Lazlo amara Sarai como um sonho e a amaria como fantasma também.
Ele finalmente reconheceu que o que carregava em seus braços não era Sarai, mas apenas uma casca, vazia agora da mente e da alma que o haviam tocado nos sonhos. Com cuidado, ele a colocou sobre as flores do jardim, que acolheram-na como uma cama. Seus olhos sem vida estavam abertos. Ele desejou fechá-los, mas suas mãos estavam sujas de sangue, e o rosto dela estava sereno, então ele inclinou-se para perto e usou os lábios: o toque mais leve, pegando seus cílios vermelhos cor de mel com o lábio inferior e levando-os para baixo, terminando com um beijo em cada pálpebra, e depois em cada bochecha e, finalmente, em seus lábios. Leve como o roçar de uma asa de mariposa sobre uma fruta doce e madura com uma fenda no meio, tão suave como pele de pêssego. Finalmente, os cantos, como luas crescentes, onde seu sorriso tinha vivido.
Os outros observaram, com corações partidos ou endurecidos e, quando ele se levantou e voltou-se para Minya, sentiu-se como Sathaz no lago, esperando pela lua.
Ele não sabia como funcionava, não sabia o que procurar. Realmente, não era tão diferente de esperar por ela em um sonho quando ela podia aparecer em qualquer lugar e todo seu ser se apertava em um nó de ansiedade. Ele observou o rosto de Minya, alerta a qualquer mudança em sua expressão, mas não havia nenhuma. Seu rostinho sujo estava imóvel como uma máscara até o momento em que seus olhos se abriram.
Havia uma luz neles. Triunfo, Lazlo pensou, e seus corações deram um salto de alegria porque ele achou que isso significava que ela tinha encontrado Sarai e a prendido.
E ela tinha.
Como uma gravura no ar que lentamente se encheu de beleza, Sarai foi recolhida do nada e trazida de volta à existência. Ela estava usando sua lingerie cor-de-rosa, sem nenhuma mancha de sangue. O azul liso de seu peito estava intacto e os cabelos ainda estavam enfeitados de flores.
Para Sarai, a sensação de se tecer era como ser salva de um afogamento, e suas primeiras respirações com os pulmões de fantasma – que eram, como tudo em seu novo estado, ilusão, mas ilusão com forma – foram as mais doces que já experimentara.
Ela não estava viva e sabia disso, mas... o que quer que faltasse ao seu novo estado, era infinitamente preferível à dissolução que quase a havia devorado. Ela riu. O som encontrou o ar como uma voz real e seu corpo tinha massa como um corpo real – embora ela soubesse que ele respondia a um conjunto de regras mais frouxas. E toda a pena e o ultraje que sentira pelos fantasmas de Minya a desertaram. Como ela podia ter pensado que a evanescência era melhor? Minya a tinha salvado e a alma de Sarai fluiu na direção dela como música.
Era assim que ela sentia que se movia. Como música que toma vida. Ela lançou os braços em torno de Minya.
– Obrigada – sussurrou, impetuosa, e soltou-a.
Os braços de Minya não tinham respondido, nem sua voz. Sarai poderia ter visto o brilho frio de seu olhar se não estivesse tão levada pelo momento. Nenhum dos seus antigos medos podia se comparar com a dolorosa perda da qual acabara de escapar.
E lá estava Lazlo.
Ela parou. Seus corações de fantasma batiam como corações reais, e suas bochechas coraram – todos os hábitos de seu corpo vivo enraizaram-se em seu corpo de fantasma. Havia sangue no peito dele e encanto em seus olhos. Ele estava azul e inflamado de poder e de amor e Sarai voou até ele.
Lágrimas escorreram pela face dele. Ela beijou-as.
Estou morta, ela pensou, mas não conseguiu sentir que aquilo era verdade mais do que sentia que os sonhos que compartilhara com Lazlo eram falsos. Para ele era a mesma coisa. Ela parecia, em seus braços, como parecia em sua mente: única, e tudo o que ele conhecia era felicidade, segundas chances e a magia da possibilidade. Ele conhecia o toque dos lábios de sonho dela e tinha até mesmo beijado seu rosto morto em um suave adeus. Então ele inclinou-se e beijou o fantasma dela, e encontrou sua boca doce, cheia e sorridente.
Ele sentiu seu sorriso. Ele o provou. E viu sua alegria. Suas bochechas estavam coradas e seus olhos estavam brilhando. Ele inclinou a cabeça para beijar seu ombro, movendo a alça cor-de-rosa para o lado com os lábios, e estava sentindo seu perfume – alecrim e néctar – quando ela sussurrou em seu ouvido. O roçar de seus lábios causou-lhe arrepios e as palavras provocaram-lhe calafrios.
Ele paralisou.
Os lábios eram dela, mas as palavras não.
– Nós vamos jogar um jogo – ela disse, e sua voz estava toda errada. Era nítida e doce como açúcar de confeiteiro. – Eu sou boa em jogos. Você vai ver. Este vai funcionar assim.
Ele olhou por cima do ombro de Sarai. Prendeu os olhos nos de Minya e a luz do triunfo nos olhos dela tinha todo um novo significado. Ela sorriu, e os lábios de Sarai sussurraram suas palavras no ouvido de Lazlo.
– Só existe uma regra. Você faz tudo o que eu digo ou eu deixo a alma dela partir. Que tal?
Lazlo retraiu-se rapidamente e olhou para Sarai. O sorriso que havia experimentado sumira de seus lábios, bem como a alegria de seus olhos. Havia apenas horror agora que a nova verdade ficou clara para ambos. Sarai havia jurado a si mesma que nunca mais serviria à vontade deturpada de Minya, e agora... agora ela era impotente contra ela. Ela estava morta e fora salva, mas estava presa e era impotente.
Não.
Ela queria gritar – não! –, mas seus lábios formaram as palavras de Minya e não as suas.
– Balance a cabeça se você entendeu – ela sussurrou para Lazlo, e odiou cada sílaba, e odiou-se por não resistir, mas não havia como resistir. Quando a alma foi sacudida de seu corpo, não tinha nada para se segurar; nada de braços para estender ou mãos para agarrar. Agora ela não tinha força para resistir.
Lazlo entendeu. A garotinha segurava a alma de Sarai, então também segurava a sua – e de seu poder também.
O que ela faria com ele? O que ela o mandaria fazer? Era um jogo, ela tinha dito. “Balance a cabeça se você entendeu”.
Ele entendeu. E segurou Sarai nos braços. Seu fantasma, seu destino, e o destino de Lamento também. Lazlo ficou em pé na cidadela dos Mesarthim e não era desse mundo, e ele não era quem havia sido. “Então você pode ser qualquer um”, Sarai dissera. “Até mesmo um príncipe”.
Mas Lazlo não era um príncipe. Ele era um deus. E isso não era um jogo para ele.
Assentiu para Minya e o espaço onde sua lenda estava reunindo palavras ficou maior.
Porque essa história ainda não tinha acabado.
Laini Taylor
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