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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM GOSTO A CINZAS - P.3 / Elizabeth George
UM GOSTO A CINZAS - P.3 / Elizabeth George

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

Fui visitá-la na quarta-feira à noite, porque sabia que Chris tinha uma festa e não podia ir comigo. Porque eu não queria que Chris fosse comigo. Porque precisava de estar a sós com ela.

 

A sós com ela? perguntou Lynley. E Fleming? Ele poderia muito bem estar em casa nessa noite?

 

Ele não tinha qualquer importância para mim. O que eu não conseguia suportar era que Chris me visse rastejar aos pés da minha mãe. Mas se Kenneth assistisse à cena, se estivesse presente na sala, então talvez as minhas hipóteses de sucesso aumentassem. Na minha maneira de ver as coisas, a minha mãe ficaria radiante por poder representar o papel de Dama Misericordiosa e Magnânima em frente a Kenneth. Nem lhe passaria pela cabeça

pôr-me no olho da rua, se ele estivesse em casa.

 

E quando percebeu que ele não estava? inquiriu Lynley.

 

Descobri que não tinha importância. A minha mãe viu... Olivia virou a cabeça na direcção de Faraday. Aparentemente, ele achou que ela precisava de encorajamento, pois dirigiu-lhe um aceno de cabeça e olhou para ela com uma expressão afável. A minha mãe viu-me. Neste estado. Talvez pior, porque era mais tarde, noite dentro, e eu fico pior durante a noite. E aconteceu que, no fim de contas, não precisei de rastejar aos pés dela. Não tive de lhe pedir nada.

 

Foi essa a razão que a levou a visitá-la? Foi fazer-lhe um pedido?

 

Sim, essa foi a razão.

 

O quê?

 

Não tem nada a ver com isto. Com Kenneth. Com a morte dele. Só tem a ver comigo e com a minha mãe. E com o meu pai, também.

 

Seja como for, é um elemento primordial. E vai ser necessário que nos diga de que se trata. Lamento muito insistir neste ponto, sei que é difícil para si.

 

Não. O senhor não lamenta coisa nenhuma abanou a cabeça de um lado para o outro, numa lenta negativa. Parecia demasiado cansada para continuar a lutar contra ele. Eu pedi disse ela. A minha mãe concordou.

 

Concordou com o quê, Miss Whitelaw?

 

Em juntar as minhas cinzas às do meu pai, inspector.

 

 

 

 

                                         CAPÍTULO 17

Barbara Havers experimentou uma deliciosa sensação de bem-estar ao esticar o braço para a travessa segundos antes de Lynley, para se apoderar da última argola de calamari fritti. Ponderou por breves instantes sobre qual dos molhos deveria escolher para aí mergulhar a lula: marinara, azeite virgem e ervas aromáticas, ou alho e manteiga. Escolheu o segundo, perguntando qual dos dois seria a metade virgem: a azeitona ou o azeite. Aliás, como é que algum dos dois poderia ser virgem?

 

Quando Lynley lhe sugerira que começassem por partilhar os calamari, ela opinara: ”Excelente ideia, inspector. Venham lá, então, esses calamari.” Depois, consultara a ementa, esforçando-se por aparentar o ar de sofisticação adequado. Ora, em matéria de cozinha italiana, a sua experiência mais significativa resumira-se ao ocasional prato de spaghetti bolognese, engolido à pressa numa anónima cafetaria. O esparguete de pacote e a bolonhesa de lata tinham sido atirados para dentro de um prato onde um aro de azeite cor de ferrugem rapidamente se formara em torno da comida, um prenúncio de fortes perturbações digestivas.

 

O spaghetti bolognese não fazia parte da ementa que acabara de consultar. E a designação dos pratos não estava traduzida em inglês. Se tivesse pedido, certamente que lhe teriam trazido uma ementa em língua inglesa, mas isso teria sido o mesmo que revelar abertamente a sua ignorância perante o seu superior hierárquico, que falava pelo menos três malfadados idiomas, e que, depois de examinar a ementa com um interesse extremo, perguntara ao empregado se o cinghiale estava bem stagionato e qual era o processo de envelhecimento que eles utilizavam. Nessa altura, Barbara fizera o seu pedido num tom de voz alegre e despreocupado, massacrando pronúncias, arvorando um ar entendido e acalentando a secreta esperança de que não lhe trouxessem polvo.

 

Os calamari não estavam longe do género, como ela cedo descobriu. Não pareciam lulas, era certo. Não via nenhum tentáculo ondulando amigavelmente na sua direcção. Todavia, se soubesse do que se tratava quando concordara em partilhá-los com Lynley, teria alegado uma alergia a todas as criaturas munidas de apêndices capazes de sucção.

 

A primeira dentada tranquilizou-a, no entanto. A segunda, a terceira e a quarta alternando os molhos com um entusiasmo crescente convenceram-na de que até aí vivera uma existência demasiado cautelosa em termos gastronómicos. Já tinha demolido uma boa parte da delicada e artística pirâmide de lulas, quando se apercebeu que Lynley estava a ter dificuldade em acompanhar o seu ritmo. Ela manteve o seu empenho, orgulhosa do seu sucesso, e esperando que Lynley ousasse fazer um comentário sobre o seu apetite ou as suas maneiras à mesa.

 

Não fez nem uma coisa nem outra. Esmigalhava maquinalmente um bocado defocaccia, sob um olhar atento, como se tivesse a intenção de espalhar as migalhas que daí resultassem ao longo do rebordo que delimitava o perímetro do Capannina di Sante, um restaurante situado a poucos passos de Kensington High Street, que oferecia aos seus clientes juntamente com uma putativa, ainda que obscura, ligação a um estabelecimento com o mesmo nome situado em Florença a possibilidade de usufruir de um jantar al fresco, sempre que o caprichoso tempo londrino o permitia. Alertados, sem dúvida, por uma espécie de sexto sentido comum a todas as criaturas aladas, seis pequenas aves acastanhadas tinham-se aproximado no preciso instante em que Lynley tirara um bocado de pão do cesto e o depusera na beira do seu prato. Saltitando nervosamente do rebordo do canteiro para os bem aparados ramos dos juníperos que cresciam dentro dele, os olhos vivos e suplicantes fixos em Lynley, que parecia não lhes prestar nenhuma atenção.

 

Barbara enfiou a derradeira argola de calamari na boca. Mastigou, saboreou, engoliu, suspirou de prazer e antecipou U secando. Escolhera-o apenas pela complexidade do nome: tagliatelle fagioli alluccelletto. Tantas letras. Tantas palavras. Fosse qual fosse a forma correcta de as pronunciar, estava certa de que o prato devia ser uma obra-prima do chefe. E se assim não fosse, poderia sempre procurar consolo junto dos anatra albicocche que se seguiriam. E se, mesmo assim, as anatra não lhe agradassem, não tinha dúvidas de que Lynley deixaria o seu jantar praticamente intacto, para benefício dela. Pelo menos até àquele momento, ele não dera mostras de grande apetite.

 

E então? disse ela. É a comida ou a companhia? Subitamente, e a despropósito, ele comentou:

 

Helen preparou-me o jantar, ontem à noite.

 

Barbara pegou noutro pedaço defocaccia e ignorou os pássaros. Lynley pusera os óculos, a fim de ler o rótulo de uma garrafa de vinho e, com um movimento de cabeça, fez sinal ao empregado para que o servisse.

 

E o banquete foi assim tão memorável que não consegue sequer conceber a ideia de comer aqui, neste sítio? Sem dúvida por medo que o sabor da comida apague as recordações dos cozinhados de Helen. A menos que tenha jurado que os seus lábios não tocariam em nada, a não ser que tivesse sido feito pelas mãos dela? Qual destas hipóteses é a verdadeira? inquiriu Havers.

 

Quase nem tocou nas lulas. Pensava que deveríamos estar a comemorar alguma coisa. Conseguimos a nossa confissão. Que mais quer, inspector?

 

Ela não sabe cozinhar, Havers. Contudo, imagino que seja capaz de fazer qualquer coisa com um ovo. Ou seja, cozê-lo.

 

E?

 

E nada. Lembrei-me desse facto, apenas.

 

Dos cozinhados de Helen?

 

Tivemos uma discussão.

 

Por causa dos cozinhados dela? Essa é uma atitude bastante sexista inspector. O que é que lhe vai pedir a seguir: que lhe cosa os botões das camisas e lhe passaje as peúgas?

 

Lynley tornou a guardar os óculos no estojo respectivo e enfiou este último no bolso do casaco. Pegou no copo e contemplou a cor do vinho antes de o beber.

 

Disse-lhe que devia tomar uma decisão disse ele. Ou avançamos ou pomos um ponto final na nossa história. Estou cansado de implorar e já estou farto de vaguear numa espécie de limbo.

 

E ela? Decidiu?

 

Não sei. Não falei com ela desde essa altura. Nem sequer pensei nela, na verdade, até este momento. O que é que acha que isso pode significar? Acha que tenho hipótese de recuperar quando ela me deixar com o coração destroçado?

 

Todos nós recuperamos quando se trata de amor.

 

Acha que sim?

 

Recuperar do amor sexual? Do amor romântico. Sim, acho que sim. Já quanto ao outro, acho que nunca conseguimos refazer-nos dele fez uma pausa enquanto o empregado punha e tirava pratos e talheres. Tornou a encher o copo de Lynley e serviu-lhe mais água mineral. Ele diz que o odiava, mas eu não acredito. Acho que o matou porque não conseguia suportar o amor imenso que sentia por ele e a dor que sentia ao ver-se substituído por Gabriella Patten. Porque era assim que Jimmy via as coisas. Não só como uma rejeição da mãe deles, mas também como uma rejeição deles próprios. Gabriella roubara-lhe o pai...

 

Fleming tinha saído de casa há anos.

 

Mas não de forma clara e permanente contrapôs Barbara. Até há pouco tempo. Havia sempre uma esperança. Era a última coisa a morrer. E para tornar tudo ainda pior, para que a rejeição fosse ainda mais completa, o pai anula a viagem que devia fazer com Jimmy por ocasião do seu aniversário. E porquê? Para ir ter com Gabriella.

 

Para romper com ela, a acreditar no que diz Gabriella.

 

Mas Jimmy ignorava isso. Ele julgava que o pai ia a correr para o Kent, para se atirar nos braços dela. Barbara ergueu o copo de água mineral e reflectiu sobre o cenário que acabava de delinear. - Espere um instante. E se essa for a chave do enigma?

 

Fez a pergunta mais para si própria do que para ele. Lynley aguardou, cooperativamente. O prato seguinte foi, entretanto, servido. Ofereceram-lhes queijo ralado, romano ou parmesão. Barbara imitou-o. Depois atacou a massa, os tomates, os feijões. Não era exactamente aquilo que ela esperava, tendo em conta a designação extravagante. Mas não era mau de todo. Acrescentou um pouco mais de sal.

 

- Jim conhecia-a - continuou ela, enrodilhando atabalhoadamente os tagliatelle no rebordo do prato. Atencioso, o empregado providenciara uma colher de sopa, mas ela não fazia a mais pequena ideia de como haveria de usá-la. - Viu-a. Já tinha estado com ela, não é verdade? Umas vezes com o pai, outras... outras não, suponho. Imaginemos que o pai saía com os dois mais novos e deixava Jimmy a sós com ela. Já que ele era o osso duro de roer, não era? Os mais novos teriam sido fáceis de conquistar, mas Jimmy não. Talvez ela tenha tentado seduzi-lo. O próprio Fleming tê-la-ia encorajado a agir dessa maneira. Um dia, ela iria ser a madrasta do miúdo. Ela haveria de querer que ele gostasse dela e Fleming haveria de querer que o filho gostasse dela. Era importante que ele gostasse dela. Ela, aliás, haveria de querer que ele sentisse mais qualquer coisa por ela, que não se limitasse a gostar dela.

 

- Não está a querer dizer-me que ela tentou seduzir o rapaz, Havers.

 

- Porque não? O senhor viu-a em acção com os seus próprios olhos, esta manhã.

 

- O que vi era que ela tinha absolutamente de conquistar Mollison e não dispunha de muito tempo para isso.

 

- Acha que aquela encenaçãozinha se dirigia apenas a Mollison? Que não o incluía a si também, inspector? Um pequeno vislumbre do que o senhor ia perder só porque tinha o azar de ser polícia e de estar a investigar um caso. E se não fosse? E se lhe telefonasse esta noite e lhe dissesse que precisava de ir até lá conversar com ela, a fim de esclarecer melhor alguns pormenores? Acha que ela não iria gostar de testar os seus talentos de mulher fatal em si? - Lynley prendeu um scampi com o garfo e comeu-o em silêncio. - Ela gosta de provocar os homens, senhor. O próprio marido dela disse-nos isso. Mollison também, e ela própria quase o confessou diante dos nossos olhos. Como poderia ela não ter aproveitado a oportunidade de seduzir Jimmy, se esta se tivesse apresentado?

 

- Quer que lhe diga porquê? Com toda a franqueza?

 

- Com toda a franqueza.

 

- Porque ele é repelente. Nojento, nada higiénico, está provavelmente infestado de piolhos e é, quase de certeza, um agente transmissor de doenças: herpes, sífilis, gonorreia, bexigas, vírus HIV. Gabriella Patten pode gostar de dominar os homens sexualmente, mas não me pareceu totalmente desprovida de bom senso. A sua primeira preocupação, em qualquer situação, seria zelar muito bem pelos seus interesses. Pense no que disse o marido dela, Haver. Mrs. Whitelaw, Mollison, a própria Gabriella.

 

Mas o senhor está a pensar em Jimmy agora, inspector. E naquela época? E antes disso? Ele nem sempre terá sido tão desmazelado? Esta aversão pela higiene deve ter uma explicação.

 

E a perda do pai não é um motivo suficientemente forte, na sua opinião?

 

E para si, foi? Ou para o seu irmão? Barbara viu-o erguer o queixo bruscamente e percebeu que tinha ido longe de mais. Peço desculpa. Estou a meter-me em assuntos que não me dizem respeito. Tornou a prestar atenção à massa. Ele diz que o odiava. Afirma que o matou porque o odiava porque ele era um sacana que merecia morrer.

 

E você não considera isso um motivo suficientemente forte?

 

Só estou a tentar dizer que não é assim tão simples. Há mais qualquer coisa. E essa é, provavelmente, Gabriella. Ela não deveria fazer a mais pequena ideia de como actuar para que ele a aceitasse como futura madrasta, mas, astuta como é, devia ter uma série de trunfos na manga ou no decote da blusa. Suponhamos que ela o seduziu. Em parte, porque conquistar um adolescente é algo que a excita, em parte porque acha que essa é a única forma de meter Jimmy no bolso. Só que acaba por ser demasiado bem sucedida, pois o garoto também quer provar uma fatia do bolo que pertence ao pai. Tem as glândulas a trabalhar a todo o vapor e o ciúme está a dar-lhe cabo do juízo. À primeira oportunidade, liquida o pai para ficar com Gabriella só para ele.

 

A sua versão não contempla o facto de ele estar convencido de que Gabriella também se encontrava na casa sublinhou Lynley.

 

Isso é o que ele diz. E é normal que assim fosse, não é? Não lhe deve agradar muito que nós fiquemos a saber que ele tinha liquidado o pai para se enfiar na cama da futura madrasta, pois não? Mas ele tinha a certeza de que o pai lá estava. Tinha-o visto através da janela da cozinha.

 

Ardery não encontrou pegadas junto à janela.

 

E depois? Ele estava no jardim.

 

No fundo do jardim.

 

Esgueirou-se até à cabana. Podia ter visto o pai daí. Barbara parou para enrolar a massa. Ser-lhe-ia bem difícil engordar se comesse aquele tipo de comida todos os dias. Só o esforço para a arrancar ao prato era enorme. Avaliou a expressão no rosto de Lynley. Longínqua, demasiado longínqua. Não gostou do que viu. Não está a pensar, no entanto, em riscar o rapaz da lista dos suspeitos, pois não, inspector? Ele confessou, apesar de tudo.

 

Uma confissão incompleta.

 

E o que é que esperava? Ainda só passámos a primeira fase.

 

Lynley empurrou o seu prato para o centro da mesa. Lançou uma olhadela rápida para o canteiro, onde os pássaros continuavam à espera, ansiosos. Atirou-lhes uma mão-cheia de migalhas.

 

Inspector...

 

Quarta-feira à noite disse Lynley. O que é que fez depois do trabalho?

 

O que é que eu...? Não sei.

 

Pense bem. Saiu da Yard. Estava sozinha? Acompanhada? Foi de carro? Ou apanhou o metropolitano?

 

Ela reflectiu por instantes.

 

Fui tomar um copo com Winston disse ela. Ao King’s Arms.

 

E o que é que tomaram?

 

Uma limonada.

 

Nkata?

 

Não sei. O que ele costuma tomar.

 

E depois?

 

Fui para casa. Comi qualquer coisa. Vi um filme na televisão e fui para a cama.

 

Muito bem. E que filme é que viu? A que horas? Quando é que começou? E quando é que acabou?

 

Ela franziu as sobrancelhas.

 

Deve ter sido depois das notícias.

 

Que notícias? Que canal?

 

Não sei, que diabo.

 

Quem é que entrava no filme?

 

Não consegui ver a ficha técnica. Ninguém em especial. Uma das Redgraves, talvez, uma das mais novas. Talvez...

 

De que é que tratava o filme?

 

Qualquer coisa relacionada com minas. Não me lembro exactamente. Adormeci.

 

Como é que se chamava?

 

Não me lembro.

 

Você viu um filme e não se lembra nem do título, nem do enredo nem dos actores? perguntou Lynley.

 

Exacto.

 

Espantoso.

 

O tom de voz dele irritou Havers. Tal como a implicação subtil de uma Superioridade intrínseca e de uma atitude conciliatória da parte dele.

 

Porquê? Deveria lembrar-me? Onde é que quer chegar?

 

Lynley fez sinal ao empregado para que viesse levantar-lhe o prato. Barbara enfiou uma última garfada renitente de tagliatelle na boca e fez sinal para que ele levantasse o seu prato também. O empregado preparou a mesa para receber os pratos principais, colocando talheres novos.

 

Alibis disse Lynley. Quem os tem. Quem os não tem. Pegou noutro bocado de focaccia e começou a esmigalhá-lo, como fizera com o primeiro. Cinco outros pássaros tinham vindo fazer companhia aos primeiros seis, no rebordo do canteiro. Lynley atirou-lhes algumas migalhas sem prestar atenção aos olhares pouco amáveis que lhe lançavam tanto os outros frequentadores do restaurante como o gerente do estabelecimento O prato principal chegou, e Lynley pegou na faca e no garfo. Barbara no entanto, nem olhou para a comida, continuando a conversa enquanto uma nuvem de vapor se elevava do seu prato, espalhando um aroma delicioso.

 

Está a ser completamente pateta e o senhor sabe-o, inspector. Nós não precisamos de investigar nenhum alibi. Temos o rapaz.

 

Não estou convencido.

 

Nesse caso, porque é que não vamos ao fundo das coisas? Jimmy confessou. Baseemo-nos nas suas declarações para continuar a investigação.

 

Uma confissão incompleta recordou Lynley.

 

Pois então vamos completá-la. Procuramos aquele vadio mais uma vez, arrastamo-lo de volta para a Yard e esprememo-lo. Sacamos-lhe tudo o que pudermos. Pressionamo-lo até ele deitar cá para fora a história de fio a pavio.

 

Lynley espetou um pouco de cinghiale no garfo. Enquanto mastigava, contemplava os pássaros. Estes eram, simultaneamente, pacientes e decididos, saltitando dos juníperos para o rebordo do canteiro. Só a presença deles foi suficiente para que a sua vontade cedesse à deles. Atirou-lhes mais migalhas e viu-os precipitarem-se sobre elas. Um deles apoderou-se de um pedaço de pão do tamanho de uma unha de polegar e afastou-se para pousar numa goteira por cima de uma janela, do outro lado da rua.

 

O senhor só está a encorajá-los disse Barbara, por fim. Eles são perfeitamente capazes de se desenvencilhar sozinhos.

 

Acha que sim? perguntou Lynley, num tom meditativo.

 

Comeu. Bebeu. Barbara esperava. Sabia que na mente dele desfilavam agora factos e personagens. De nada valia continuar a argumentar. No entanto, sentiu-se compelida a acrescentar, tão calmamente quanto lhe era possível, tendo em conta a intensidade dos seus sentimentos em relação ao assunto em discussão.

 

Ele esteve no Kent. Temos as fibras, as pegadas e o óleo da moto. Agora as impressões digitais dele estão na Yard, e em breve estarão também em poder de Ardery. Só precisamos de saber a marca daquele cigarro.

 

E a verdade disse Lynley.

 

Pelo amor de Deus, inspector! Que mais é que o senhor quer? Lynley indicou o prato de Havers com um movimento de cabeça.

 

A sua comida está a arrefecer.

 

Ela baixou os olhos para o prato. Uma ave com um molho qualquer.

 

A ave estava estaladiça. O molho tinha uma cor amarelo-alaranjado. Tocou

o frango com a ponta do garfo e perguntou a si própria que diabo de prato teria pedido.

 

. Pato informou Lynley, como se lhe lesse os pensamentos. Com molho de damasco.

 

Pelo menos não é frango.

 

De modo nenhum.

 

Ele continuou a comer. Perto deles, outros convivas tagarelavam animadamente. Os empregados circulavam silenciosos, parando junto às mesas para acenderem velas, à medida que a noite se adensava.

 

Eu não me teria importado de traduzir.

 

O quê?

 

A ementa. Bastava que mo tivesse pedido.

 

Barbara cortou uma fatia de pato. Era a primeira vez que comia pato. A carne era mais escura do que ela esperava.

 

Gosto de correr riscos.

 

Mesmo quando não há necessidade de os correr?

 

É mais divertido. Mais excitante. Sabe o que quero dizer, senhor.

 

Mas só em restaurantes disse ele.

 

Como?

 

Correr riscos. Seguir os seus instintos. Ela pousou o garfo.

 

Então, agora falta-me o toque de génio. Só que é preciso que haja alguém assim, não é? Alguém que use a razão, de vez em quando.

 

Não discordo.

 

Então, porque é que está a evitar considerar a hipótese de Jimmy Cooper? Que raio há de mal com ele?

 

Mais uma vez, ele concentrou-se na comida. Examinou o cesto, procurando obviamente mais pão que pudesse atirar aos pássaros. Eles, porém, já tinham comido tudo. Bebeu o vinho e uma olhadela na direcção do empregado fez com que este se dirigisse de imediato à mesa deles, para tornar a encher-lhe o copo e afastar-se novamente. Era claro para Barbara que Lynley estava a aproveitar o tempo de que dispunha para tomar uma decisão acerca do rumo a tomar. Esforçou-se por manter a boca fechada, por respeitar o lugar e a posição que ocupava e por aceitar a decisão que ele tomasse, fosse ela qual fosse. Quando ele falou, teve dificuldade em acreditar que conseguira fazer valer o seu ponto de vista.

 

Leve-o para a Yard amanhã às dez horas pediu Lynley. Certifique-se de que o advogado dele também está presente.

 

Sim, senhor.

 

E comunique ao gabinete de imprensa que vamos interrogá-lo uma segunda vez. Barbara sentiu o queixo descair. Fechou a boca abruptamente. O gabinete de imprensa? Mas eles vão passar a palavra àqueles malditos jornalistas...

 

Exactamente confirmou Lynley, pensativo.

 

Onde estão os sapatos dele?

 

Foi a primeira pergunta que Jeannie Cooper fez a Mr. Friskin, quando ele acompanhou Jimmy a casa. A pergunta foi feita num tom de voz agudo e estridente, porque desde que os detectives da Scotland Yard lhe tinham levado o filho sentia um nó apertando-lhe o estômago e o ouvido deteriorado, ao ponto de haver momentos em que não conseguia sequer ouvir o som da sua própria voz. Assustara Sharon e Stan, que tinham começado por se agarrar a ela antes de saírem a correr da sala, quando ela os repelira violentamente, dizendo apenas, ”Não! Não! Não!”, num tom de voz tão agudo que as crianças julgaram, erradamente, que ela estava a ralhar-lhes. Aterrorizado, Stan precipitara-se para as escadas enquanto Shar se refugiara no jardim por detrás da casa. Jeannie não fora procurá-los. Ela própria passara o tempo passeando sem descanso pela sala.

 

A única medida positiva que tomara, passado o primeiro quarto de hora após a partida de Jimmy, fora pegar no telefone e telefonar à única pessoa que poderia ajudá-los na situação em que se encontravam. Embora se odiasse por isso, já que Miriam Whitelaw estava na origem de todas as angústias que Jeannie conhecera nos últimos seis anos desde que ela reaparecera na vida de Kenny. Todavia, ela era também a única pessoa capaz de descobrir um advogado, às cinco e meia da tarde de um domingo. A única dúvida consistia em saber se Mrs. Whitelaw estaria na disposição de efectuar as diligências necessárias para ajudar Jimmy.

 

Estivera, de facto. ”Meu Deus, Jean” tinham sido as suas únicas palavras, ditas num tom de voz consternado quando Jeannie se identificara. ”Não consigo acreditar...” Jeannie sabia que não conseguiria suportar as lágrimas de Miriam, ao pensar em tudo o que elas deixariam entrever acerca do sofrimento que não conseguia sentir, que não se permitiria a si própria sentir. Por isso, reagiu com brusquidão, ”Levaram Jim para a Scotland Yard. Preciso de um advogado”, e Miriam arranjara-lhe um.

 

Era esse advogado que estava agora diante dela, um passo atrás de Jimmy, um pouco à esquerda.

 

Onde estão os sapatos dele? tornou a perguntar. O que é que eles fizeram aos sapatos dele?

 

O saco de papel balançava na mão direita do filho, mas era óbvio que os Doc Martens não se encontravam no seu interior. Olhou para os pés dele uma segunda vez, apenas para se assegurar de que tinha visto bem, de que ele usava somente um par de peúgas, que tanto poderiam ter sido branco sujo como cinzentas.

 

Mr. Friskin que Jeannie imaginara como um homem de meia-idade, calvo, encurvado, vestido com um fato cinzento-escuro, mas que na realidade era jovem e longilíneo, usando uma audaciosa gravata florida que pendia, torta, sobre uma camisa azul, e dotado de uma massa de cabelo escuro que descia do rosto até aos ombros e lhe conferia o aspecto de um herói de romances cor-de-rosa respondeu pelo filho, embora não à pergunta que ela colocara.

 

Mrs. Cooper...

 

Ms.

 

Peço desculpa. Sim, Jim falou com eles antes de eu ter chegado à Yard. Ele confessou.

 

Um véu branco e depois escuro desceu sobre os olhos de Jean, como se um relâmpago tivesse iluminado subitamente a divisão onde se encontravam. Mr. Friskin continuou a falar sobre o que iria passar-se dali para a frente, informando-a de que Jimmy não poderia pôr um pé fora de casa, nem dizer uma palavra fosse a quem fosse, exceptuando a membros da sua família, sem que o seu advogado estivesse presente. Disse qualquer coisa sobre uma dureza compreensível e acrescentou as palavras juvenil e intimidação, bem como os requisitos das regras dos juizes. Ela, porém, não ouviu tudo o que ele disse, pois interrogava-se sobre se teria, de facto, ficado cega, como aquele santo da Bíblia. Só que com este acontecera exactamente o contrário, não era? Tinha começado a ver de repente, certo? Não conseguia lembrar-se. Se calhar, nada daquilo tinha acontecido. A Bíblia era um chorrilho de disparates, afinal.

 

Na cozinha, os pés de uma cadeira roçaram o linóleo, e Jeannie percebeu que o irmão, que sem dúvida escutara cada uma das palavras que Mr. Friskin proferira, se levantava da cadeira. Ao ouvir o ruído, arrependeu-se de ter ligado para casa dos pais duas horas depois de Jimmy ter sido levado para a Scotland Yard. Fumara, passeara pela sala, fora até à janela da cozinha e vira Shar, encolhida como uma pedinte, na base do bebedouro dos pássaros em cimento, ouvira Stan vomitar por três vezes, na casa de banho, e cedera, por fim, à pressão.

 

Não falara com nenhum dos pais, porque o afecto que ambos sentiam por Kenny era algo que a assustava e, nos olhos deles, lia apenas a culpa dela por Kenny ter chegado ao ponto de pedir tempo e espaço para si próprio, a fim de decidir o rumo que queria dar à sua vida, que, segundo eles, não precisava de qualquer reviravolta. Perguntara por Der e, pouco depois, o irmão estava a bater-lhe à porta, exteriorizando a dose certa de raiva, incredulidade e desejo de vingança contra os imbecis dos polícias.

 

A sua visão tornou-se mais nítida quando Der disse:

 

O quê? Perdeste o juízo, Jim? Falaste com aqueles sacanas?

 

Der disse Jeannie.

 

Oiça lá! tornou ele. Eu julgava que você estava aqui para lhe pôr um batoque na boca. É assim que você ganha a massa?

 

Era óbvio que Mr. Friskin estava habituado a lidar com clientes em estados emocionais delicados. Por isso explicou que, ao que parecia, Jimmy tivera vontade de falar. Prestara declarações de livre vontade, concluíra Mr. Friskin depois de ter insistido junto dos detectives para que lhe permitissem o acesso às cassetes onde a polícia gravara o depoimento de Jimmy. Não havia provas de nenhum tipo de coacção...

 

És completamente palerma, Jim! Der precipitou-se para a sala de estar. Bufaste para os ouvidos daqueles sacanas e ainda por cima deixaste-os gravar tudo?

 

Jimmy não respondeu. Ficou de pé, em frente de Mr. Friskin, como se a sua coluna vertebral estivesse a derreter-se lentamente. Cabeça descaída sobre o peito, um buraco em vez de estômago.

 

Ouve lá! disse Der. Estou a falar contigo, meu estúpido.

 

Jim interveio Jeannie, eu disse-te. Disse-te. Porque é que não me deste ouvidos?

 

Ms. Cooper disse Mr. Friskin, acredite no que lhe digo. Ainda é cedo.

 

Cedo! rugiu Der. Eu já lhe mostro o que é cedo. O senhor estava encarregado de manter a goela dele bem fechada e agora vem dizer-nos que ele despejou tudo. Para que é que o senhor serve, afinal? virou-se para Jeannie. O que é que se passa contigo? Onde é que foste desencantar esta ave rara? E tu... empurrou a irmã para poder aproximar-se do sobrinho, o que é que tens dentro da cabeça? Feijões? Caca de peixe? O quê? Não se abre o bico à polícia. Nunca se abre o bico à polícia. Eles ameaçaram-te com quê, imbecil? Com a penitenciária? Borstal ou The Scrubs?

 

Jimmy nem sequer se parecia com uma pessoa, pensou Jeannie. Parecia um boneco sujo e inchado, que estava a perder ar por um buraco qualquer feito com uma picadela de alfinete. Estava ali, apenas, submetendo-se a um chorrilho de insultos sem proferir palavra, como se soubesse que tudo aquilo acabaria mais depressa, se ele não esboçasse a mais leve reacção.

 

Comeste alguma coisa, Jim? perguntou ela.

 

Comer? Comer? Comer? disse Der, falando cada vez mais alto. Ele não vai comer nada enquanto não nos der algumas respostas. Aqui e agora-

 

Agarrou no braço do rapaz. Jimmy inclinou-se para a frente, como um boneco cheio de palha. Jeannie viu os músculos poderosos do braço do irmão-

 

Fala com a gente, meu vadio Der aproximou o seu rosto do de Jimmy. Fala com a gente como falaste com a bófia. Agora, e como deve ser.

 

Isto não nos leva a lado nenhum disse Mr. Friskin. O rapaz passou por uma experiência dolorosa, de que muitos adultos teriam dificuldade em recuperar.

 

Eu já lhe digo como é gritou Der, muito perto de Mr. Friskin.

 

O advogado nem pestanejou. Falando calmamente e dando mostras de grande sangue-frio, disse:

 

Ms. Cooper, peço-lhe que se decida. Quem gostaria que se ocupasse do caso do seu filho?

 

Der repreendeu Jeannie. Deixa-o em paz. Mr. Friskin sabe o que é melhor para todos.

 

Derrick soltou o braço de Jimmy, como se este fosse um objecto viscoso.

 

Imbecil de merda insultou Der, salpicando a face de Jimmy com gotas de saliva.

 

O rapaz recuou ligeiramente, mas não levou a mão ao rosto para limpar a saliva.

 

Vai lá acima ver como está Stan pediu Jeannie ao irmão. Ele tem estado a vomitar que nem um bêbedo desde que levaram Jimmy.

 

Pelo canto do olho, viu o filho mais velho erguer a cabeça ao ouvir estas palavras. Quando olhou para ele, no entanto, já ele a baixara novamente.

 

Está bem concordou Der, lançando um olhar agressivo, tanto a Jimmy como a Mr. Friskin antes de começar a subir as escadas, chamando: Stan! Ei! Continuas com a cabeça enfiada na sanita?

 

Peço desculpa disse Jeannie a Mr. Friskin. Der nem sempre pensa bem quando perde a cabeça.

 

Mr. Friskin emitiu diversas interjeições conciliatórias, indicando que já estava habituado aos tios dos suspeitos que espumam raiva pelas narinas, como um touro investindo para a capa de um toureiro. Explicou que Jimmy entregara as Doc Martens a pedido da polícia, que autorizara a que lhe tirassem as impressões digitais e a que o fotografassem e que os deixara cortar vários fios de cabelo.

 

Cabelo? os olhos de Jeannie pousaram sobre os cabelos em desalinho do filho.

 

Ou estão a compará-los com as amostras recolhidas no interior da casa, ou vão usá-los para fazer um teste de ADN. No primeiro caso, os especialistas da polícia poderão obter resultados no espaço de horas. No segundo, conseguimos ganhar algumas semanas.

 

O que é que significa isso tudo?

 

A polícia estava a construir um caso, explicou Mr. Friskin. Ainda não dispunham de uma confissão completa.

 

Mas já têm o suficiente?

Para o prender? Para acusá-lo? Mr. Friskin abanou a cabeça, afirmativamente. Se quiserem.

 

Nesse caso, porque é que o deixaram sair? Isso quer dizer que acabou? Não, disse-lhe Mr. Friskin. Não tinha acabado. Eles tinham um trunfo na manga. Podia ter a certeza de que iam voltar. No entanto, quando isso acontecesse, ele estaria ao lado de Jimmy. Não havia qualquer hipótese da polícia vir a falar com Jimmy a sós, novamente.

 

Queres fazer alguma pergunta, Jimmy?

 

E quando o rapaz abanou a cabeça para um lado em jeito de resposta Mr. Friskin entregou o seu cartão a Jeannie, dizendo:

 

Tente não ficar preocupada, Ms. Cooper. E deixou-os.

 

Quando a porta se fechou depois de ele ter saído, Jeannie disse, ”Jim?” Tirou-lhe o saco de papel das mãos e pousou-o sobre a mesa da sala, com um cuidado deliberado, como se a embalagem contivesse objectos em vidro. Jimmy ficou onde estava, o peso do corpo assente numa das ancas, o braço direito agarrando o cotovelo esquerdo. Os dedos dos pés estavam encarquilhados de frio.

 

Queres os chinelos? perguntou-lhe ela. Ele ergueu um ombro e baixou-o logo a seguir.

 

Vou aquecer-te um pouco de sopa. Tenho de tomate com arroz, Jim. Vem comigo.

 

Estava à espera de resistência, mas ele seguiu-a até à cozinha. Acabara de se sentar à mesa quando a porta das traseiras se abriu com um ranger de gonzos e Shar entrou na cozinha. Fechou a porta e deixou-se ficar encostada a ela, mãos atrás das costas segurando a maçaneta. Tinha o nariz vermelho e os óculos apresentavam enormes manchas na base das lentes, em forma de meia-lua. Olhou para o irmão, olhos bem abertos, mas não disse nada. Engoliu em seco e Jeannie reparou nos seus lábios trémulos, viu a sua boca formar a palavra Pai, sem conseguir dizê-la em voz alta. Jeannie indicou as escadas com um movimento de cabeça. Shar pareceu querer desobedecer, mas no último instante, no momento em que um soluço lhe sufocou a garganta, fugiu da cozinha e correu escadas acima.

 

Jimmy afundou-se na cadeira. Jeannie abriu a lata de sopa e esvaziou-a para dentro de um tacho. Colocou-o ao lume, mexeu nos botões do fogão e tentou acendê-lo sem sucesso. ”Merda”, murmurou. Sabia que aqueles momentos na companhia do filho eram preciosos. Percebeu que a mais leve tentativa de forçar aquele momento especial poderia destruí-lo para sempre. E isso era a última coisa que poderia acontecer. Não enquanto ela não soubesse.

 

Ouviu-o mexer-se. A cadeira dele arrastou-se sobre o linóleo.

 

Vou ter de comprar um fogão novo, um dia destes apressou-se a dizer, para o obrigar a ficar junto dela. Já não demora muito, Jim ””” acrescentou, julgando que ele se preparava para sair da cozinha.

 

Em vez disso, todavia, aproximou-se de uma gaveta, de onde tirou uma caixa de fósforos. Acendeu um, aproximou-o do bico de gás e acendeu a chama. O fósforo consumiu-se entre os dedos dele, tal como na sexta-feira à noite. Só que, ao contrário de sexta-feira à noite, ela estava agora mais próxima dele. Por isso, quando a chama devorou a madeira e roçou a pele dele, ela estava suficientemente perto para a apagar.

 

Já estava mais alto do que ela, concluiu. Em breve seria tão alto como o pai. Parecia-lhe que ainda há muito pouco tempo conseguia olhar para baixo e ver o seu rosto erguido para ela, e que há menos tempo, ainda, podiam olhar-se olhos nos olhos. Agora, porém, era ela que levantava o queixo para fitar o filho. Era praticamente um homem adulto. Apenas uma ínfima parte dele era adolescente.

 

- Os polícias não te fizeram mal? - perguntou - Não te magoaram? Ele abanou a cabeça negativamente. Virou-se para se ir embora, mas ela agarrou-o pelo pulso. Ele tentou libertar-se. Ela manteve-se firme.

 

Dois dias de agonia eram mais do que suficientes, decidiu. Dois dias a dizer para si própria, Não, não vou, não, não posso, não lhe tinham fornecido nenhuma explicação, nenhum entendimento e, mais do que isso, nenhuma paz de espírito. Como é que te perdi, Jimmy?, pensou. Onde? Quando? Eu queria ser forte por nós todos, mas acabei por vos afastar quando precisaram de mim. Pensei que se mostrasse como era forte, se conseguisse suportar o sofrimento de tudo o que tinha acontecido sem me deixar abater, vocês três aprenderiam a enfrentar os golpes mais duros que a vida nos reserva. Mas não foi assim que as coisas se passaram, pois não, Jimmy? Não é assim que as coisas se passam.

 

E porque sabia que, finalmente, alcançara um grau de entendimento que antes não possuía, reuniu coragem para avançar. - Diz-me o que contaste à polícia - pediu.

 

O rosto dele pareceu endurecer-se, primeiro em volta dos olhos e depois em torno da boca e no maxilar. Não fez nenhum esforço para se afastar, mas desviou as atenções dela para a parede por cima do fogão, onde há anos estava pendurada uma moldura com um pano bordado a ponto de cruz. Estava esbatido agora e manchado de gordura, mas ainda era possível distinguir um campo de críquete e a silhueta dos jogadores. Uma brincadeira da sogra para Kenny. Jeannie percebeu que deveria tê-lo tirado da parede há muito tempo.

 

- Conta-me - tornou a pedir. - Fala comigo, Jimmy. Eu fiz coisas erradas. Mas foi com a melhor das intenções. Tens de saber isso, filho. E tens de saber que te amo. Sempre te amei. Tens de falar comigo agora. Tenho de saber o que te aconteceu na quarta-feira à noite.

 

O corpo dele foi sacudido por um estremecimento. Tão forte que parecia um espasmo, que o abalou desde os ombros aos dedos dos pés. Hesitante, aumentou a pressão sobre o pulso dele. Ele não tentou afastar-se uma segunda vez. A mão dela deslizou do pulso para o braço e depois para o ombro. Ousou até aflorar-lhe o cabelo.

 

- Conta-me - disse ela. - Fala comigo, filho. - Depois acrescentou o que tinha para acrescentar, ainda que fosse algo em que não acreditasse, nem soubesse como haveria de começar. - Não vou deixar que nada te magoe, Jim. Vamos ultrapassar isto de alguma maneira. Mas para isso preciso de saber o que lhes contaste.

 

Ela ficou à espera que ele lhe fizesse a pergunta lógica: Porquê? Mas isso não aconteceu. No fogão, a sopa de tomate exalava um odor característico. Ela mexeu-a sem olhar, os olhos colados no filho. Medo, incredulidade, recusa rodopiavam velozmente dentro da sua cabeça. Ela, no entanto, tentou impedir que o rosto e a voz traíssem o turbilhão que agitava o seu interior.

 

- Tinha catorze anos quando comecei a sair com o teu pai - disse ela.

- Queria ser como as minhas irmãs, que costumavam sair com rapazes. Porque é que eu não podia fazer o mesmo, pensava eu. Não sou menos que elas. -Jimmy continuava a fitar o quadro de ponto de cruz. Jeannie mexeu a sopa e continuou. - Nós divertíamo-nos, lá isso era verdade. Só que o meu pai descobriu, porque a tua tia Lynn lhe disse. Então, uma noite, o meu pai puxou do cinto e quando eu cheguei a casa, depois de ter estado com Kenny, obrigou-me a tirar tudo o que eu trazia vestido e deu-me uma boa sova na frente de toda a família. Não chorei. Mas fiquei a odiá-lo. Queria que ele morresse. Teria ficado bem satisfeita se ele tivesse caído, fulminado por um raio, naquele momento. Talvez eu própria tivesse feito qualquer coisa para ajudar, até.

 

Tirou uma tigela do armário. Lançou uma olhadela ao filho, enquanto tirava a sopa do tacho para a tigela.

 

- Cheira bem. Queres uma torrada, para acompanhar, Jim?

 

A expressão no rosto dele revelava um misto de desconfiança e de perplexidade. Ela não estava a descrever os acontecimentos da forma que queria, aquela mistura de raiva e humilhação que, por uma fracção de segundo, a tinham feito desejar ardentemente a morte do pai. Jimmy não compreendia. Talvez porque as idades de ambos fossem diferentes. A dela, uma breve tempestade de fogo, a dele, um carvão incandescente que ardia sem descanso.

 

Pôs a sopa na mesa. Encheu um copo com leite. Fez-lhe uma torrada. Colocou a refeição sobre a mesa e fez-lhe sinal para que se sentasse. Ele continuou imóvel, junto ao fogão.

 

Ela fez, então, o único comentário que continuava por fazer, um comentário em que ela não acreditava, mas que tinha de o convencer a aceitar, se quisesse saber a verdade.

 

- O que interessa são os que restam - disse. - Tu e eu, Stan e Shar. É assim que as coisas são, Jim.

 

Ele olhou para ela e depois para a sopa. Jeannie tornou a fazer-lhe sinal para que se sentasse à mesa, sentando-se ela própria a fim de dar o exemplo, um lugar que a Deixaria frente a frente com ele, caso ele decidisse juntar-se-lhe. Jimmy limpou as mãos às costuras das calças de ganga. Os dedos dele curvaram-se.

 

Sacana disse, em tom casual. Começou a fodê-la em Outubro passado, e ela manteve-o bem oleado. Disse que eram só amigos, porque ela era casada com aquele ricaço, mas eu percebi tudo. Shar perguntava-lhe quando é que ele estava a pensar voltar para casa, e ele respondia que já não faltava muito tempo, dentro de um mês ou dois, quando souber quem sou, quando souber como é que as coisas são. Não te preocupes com nada, minha querida, dizia ele. Mas durante todo esse tempo, estava a planear ir ter com ela sempre que pudesse. Punha-lhe a mão no rabo quando pensava que ninguém estava a olhar. Quando a abraçava, ela desatava a esfregar-se no pirilau dele. E durante todo o tempo era óbvio que o que eles mais queriam era que nós desaparecêssemos para que eles pudessem saltar para cima da cama.

 

Jeannie queria tapar os ouvidos. Aquele não era o relato que ela esperava ouvir. Todavia, obrigou-se a ouvir até ao fim. O seu rosto permaneceu impassível e disse para si mesma que nada daquilo a afectava. De qualquer maneira, nada daquilo era novidade para ela, e aquela parte da verdade já não poderia magoá-la.

 

Já não era o pai disse Jimmy. Estava completamente obcecado com ela. Bastava ela telefonar e lá ia ele a correr ter com ela. Quando ela dizia, deixa-me em paz, Ken, ele desatava aos murros às paredes. Bastava que ela dissesse preciso ou quero qualquer coisa para que ele fosse logo a correr procurar qualquer coisa que a deixasse satisfeita. E quando acabava... Jimmy calou-se, mas continuou a fitar a sopa, como se estivesse a ver a história do caso espelhada na tigela de sopa.

 

E quando acabava... Jeannie falou, apesar da dor aguda que já se lhe tornara tão familiar.

 

O filho soltou uma gargalhada sarcástica.

 

Tu sabes onde eu quero chegar, mãe finalmente, atravessou a cozinha e sentou-se à mesa, em frente a ela. Era um mentiroso. Um sacana. E um aldrabão e pêras.

 

Mergulhou a colher na sopa. Manteve-a em suspenso à altura do queixo. Os olhos dele cruzaram-se com os dela pela primeira vez desde que chegara a casa.

 

E tu querias que ele morresse. Querias que ele morresse mais do que tudo no mundo, mãe. Os dois sabemos isso, não sabemos?

 

Do sítio onde estou sentada, distingo a luz coada do candeeiro da mesa-de-cabeceira do quarto de Chris. Consigo ouvi-lo virar as páginas. Há muito que devia ter-se deitado, mas está a ler no quarto, à espera que eu acabe de escrever. Os cães fazem-lhe companhia. Toast ressona. Beans entretém-se com um osso. Panda veio ter comigo há cerca de meia hora atrás. Começou por se aconchegar no meu colo, mas agora está enrolada como um novelo de lã sobre a cómoda, no local da sua predilecção: em cima do correio do dia, que dispôs a seu gosto. Finge estar a dormir, mas eu não me deixo enganar. De cada vez que viro uma das páginas do meu caderno, as suas orelhas viram-se na minha direcção como um aparelho de radar.

 

Ergo a caneca para beber o meu Gunpowder. Examino as folhas de chá que conseguiram escapar ao crivo do passador. Formam um desenho que evoca um arco-íris encimado por um relâmpago. Aproximo a ponta do lápis do raio, a fim de o endireitar, e tento imaginar como é que um adivinho interpretaria esta combinação de sinais auspiciosos e nefastos.

 

Na semana passada, enquanto Max e eu estávamos entretidos a jogar póquer utilizando biscoitos para cão para sinalizar as nossas apostas, ele pousou as cartas sobre a mesa, viradas para baixo, recostou-se na cadeira e, passando a mão pela cabeça calva, disse:

 

É uma merda, miúda. Quanto a isso não há dúvida.

 

Hum. Exactamente.

 

Mas a merda apresenta vantagens distintas, sabes?

 

Que tu vais ter o prazer de me revelar.

 

Quando é devidamente utilizada, a merda ajuda a fazer crescer as flores.

 

O guano também. Mas não é por esse motivo que me apetece rebolar-me nele.

 

Já para não falar nas colheitas. Permite o enriquecimento do solo, do qual brota a vida.

 

Não vou esquecer esse pensamento edificante.

 

Reorganizei as minhas cartas, como se isso bastasse para melhorar o jogo que tinha na mão: um infeliz par de quadras.

 

Saber o momento em que as coisas vão acontecer, miúda. Já pensaste.

 

O poder que significa poder antecipar o momento em que algo vai acontecer?

 

Atirando dois biscoitos para cima da mesa, disse:

 

Não sei quando será. Sei como é que vai acontecer. Há uma diferença.

 

. Mas tu estás mais bem informada do que a maioria das pessoas.

 

E que tipo de satisfação devo retirar desse facto? Não me importava nada de trocar esse conhecimento pela ignorância e a felicidade.

 

O que é que farias de diferente, se fosses ignorante como nós? Dispus as cartas em leque e considerei as possibilidades estatísticas de rejeitar três delas e terminar a partida com um full house. Quase nulas. Separei-me de três cartas. Max deu-me outras três. Tornei a organizar as cartas. Decidi fazer bluff. Atirei mais seis biscoitos para o meio da mesa, dizendo:

 

Muito bem, meu menino. Vamos jogar.

 

E então? perguntou ele. O que é que farias? Se fosses ignorante como nós.

 

Nada respondi. Continuaria aqui. Tudo seria diferente, no entanto, porque eu estaria em condições de competir.

 

Com Chris? Porque diabo haverias de sentir necessidade de...

 

Não com Chris. Com ela.

 

Max encheu as bochechas de ar. Juntou as suas cartas e ordenou-as. Por fim, olhou por cima delas, para mim, o seu único olho visível reflectindo um brilho muito particular. Teve a delicadeza de não se armar em inocente.

 

Lamento muito disse. Não sabia que estavas ao corrente. Ele não tem intenções de ser cruel.

 

Ele não está a ser cruel. Está a ser discreto. Jamais mencionou o nome dela.

 

Chris sente um grande afecto por ti, miúda. Eu lancei-lhe um olhar zangado.

 

Vai-te lixar, meu pateta.

 

Sabes que é verdade insistiu ele.

 

Talvez, mas não é isso que me ajuda a suportar a situação. Chris também sente um grande afecto pelos bichos.

 

Max e eu entrreolhámo-nos durante alguns momentos. Eu sabia muito bem o que ele estava a pensar. Dissera a verdade e eu também.

 

Nunca imaginei que as coisas fossem passar-se desta maneira. Pensei que deixaria de sentir desejo por ele. Que acabaria por desistir. Que diria Para mim própria, ”Bom, é assim que as coisas são e não há nada a fazer”, e aceitaria as péssimas cartas que me tinham calhado naquela partida de poquer sem sequer tentar mudar nada. E, no entanto, pouco mais consegui do que camuflar o meu desejo e a minha ira. Tenho consciência de que é muito mais do que eu teria conseguido conquistar noutros tempos, mas não é motivo de grande regozijo.

 

Um passo em falso. Foi assim que começou a derrocada. Um insignificante passo em falso, há pouco mais de um ano, no momento em que saía da carrinha. De início, atribuí as causas à minha saída precipitada de dentro do veículo. Abri a porta da carrinha, pus o pé em terra e dei um passo em falso ao tentar percorrer a distância que mediava entre a rua e o passeio. Antes que tivesse consciência do que tinha acontecido, estava estatelada no chão um golpe no queixo e um gosto a sangue na boca devido a uma mordidela no lábio. Beans farejava o meu cabelo, preocupado, e Toast enfiava o focinho no meio das laranjas que tinham rolado de dentro do saco das mercearias acabando por ir parar à sarjeta.

 

”Que desajeitada que eu sou”, pensei, apoiando-me nos joelhos. Sentia dores em todo o corpo, mas não tinha nada partido. Passei a manga da camisola pelo queixo e verifiquei que ficara manchado de sangue. ”Merda”, desabafei. Juntei as laranjas, fiz sinal aos cães e desci os degraus que conduziam ao acesso que se prolongava ao longo do canal.

 

Nessa noite, quando atravessava a oficina, os cães saltitando nos meus calcanhares, ansiosos pelo passeio nocturno, Chris disse:

 

O que é que te aconteceu, Livie?

 

Aconteceu?

 

Estás a coxear.

 

Caíra, disse-lhe eu. Nada de grave. Devo ter feito uma distensão muscular.

 

Nem penses em ir correr, nesse caso? Fica em casa, a descansar. Eu levo os cães à rua, logo que acabe o que estou a fazer.

 

Eu estou bem.

 

Tens a certeza?

 

Não o diria, se não tivesse.

 

Subi as escadas e saí. Passei alguns minutos a estirar-me com cautela. Não sentia nenhuma dor, de facto, o que me parecia estranho, porque se tivesse feito uma distensão muscular, ou uma rotura de ligamentos, ou se tivesse um osso partido, haveria de sentir alguma coisa, não era? Não sentia nada, a não ser o coxeio, sempre que tentava mexer a perna direita.

 

Naquela noite devo ter-me parecido muito com Toast, tentando correr ao longo do canal com os cães seguindo à minha frente. Não consegui ir para além da ponte, que não era muito longe. Quando os cães galgaram os degraus e se preparavam para descer, como habitualmente, Maida Avenue, na direcção de Lisson Grove e do Grand Union Canal, chamei-os de volta. Hesitaram, obviamente confusos, divididos entre o respeito pela tradição e o espírito de cooperação.

 

Vamos lá embora, vocês dois ordenei. Esta noite, não.

 

E em nenhuma das outras que se seguiram. No dia seguinte, o meu pé direito não estava bom. Estava a ajudar a equipa de ultra-sons do jardim zoológico a mudar o seu equipamento para a gaiola de um tapir, a fim de supervisionar a sua gravidez. Eu segurava o balde com as maçãs e as cenouras. A equipa tomava conta do carrinho onde estava colocada a máquina. Um dos elementos da equipa perguntou-me:

 

O que é que te aconteceu, Livie? dando-me a primeira indicação de que estava a arrastar o pé, num movimento cadenciado.

 

O que me deixou inquieta foi o facto de nas duas ocasiões o coxear e o arrastar o pé eu não me ter apercebido de que o fazia.

 

Pode ser um nervo inflamado disse Chris nessa noite. O que explica o facto de não sentires nada.

 

Agarrou o meu pé com uma das mãos e virou-o para a esquerda e para a direita.

 

Segui o movimento dos dedos dele, enquanto me examinava.

 

Não seria pior se fosse um nervo? Não devia sentir uma sensação de formigueiro, de dor, qualquer coisa?

 

Ele tornou a pousar o meu pé no chão.

 

Pode ser outra coisa.

 

O quê?

 

Vamos falar com Max, está bem?

 

Max deu umas pancadinhas suaves na minha planta do pé. Fazia deslizar uma pequena roda com dentes diminutos ao longo do meu corpo, pedindo-me que descrevesse o que sentia. Puxou o nariz e bateu com o indicador no queixo. Sugeriu que consultássemos um médico.

 

Há quanto tempo estás assim?

 

Há quase uma semana repliquei.

 

Falou de Harley Street, de um especialista, da necessidade de obter respostas definitivas.

 

E o que é? perguntei. Tu sabes, não sabes? Mas não me queres dizer. Meu Deus, é cancro? Achas que tenho um tumor?

 

As doenças dos homens não são, de facto, a especialidade dos médicos veterinários, miúda.

 

Doenças. Que doenças?

 

Não sabia, disse-me ele. Tinha a impressão de que qualquer coisa estaria a afectar os meus neurónios.

 

O diagnóstico amador de Chris veio-me imediatamente à memória.

 

Um nervo inflamado, por exemplo? Chris murmurou:

 

O sistema nervoso central, Livie.

 

De súbito, pareceu-me que as paredes começavam a avançar na minha direcção.

 

O quê? perguntei. Sistema nervoso central?

 

Os neurónios são células explicou Max. Formados por um corpo celular, um axónio e dendrites. São eles que conduzem os impulsos ao cérebro. Quando eles...

 

Um tumor no cérebro? agarrei-me ao braço dele. É isso, Max? Achas que eu tenho um tumor no cérebro?

 

Ele apertou-me a mão.

 

O que tu tens é um enorme ataque de pânico disse ele. Precisas de fazer alguns testes para te sentires mais tranquila. E agora, Christopher que dizes a acabarmos aquele nosso joguinho de xadrez?

 

Max falou num tom ligeiro, mas quando se despediu naquela noite ouvi-o conversar com Chris na plataforma de acesso ao cais. Não consegui distinguir as palavras que ambos trocavam, apenas o meu nome. Quando Chris veio buscar os cães para os levar a passear, eu disse:

 

Ele sabe o que se passa comigo, não sabe? Sabe que é grave. Então, porque é que não me diz nada? Eu ouvi-o falar contigo sobre mim. Diz-me, Chris. Porque, se não me disseres...

 

Aproximando-se do cadeirão onde eu estava sentada, Chris apoiou a minha cabeça contra o seu estômago durante alguns instantes, a mão cálida pousada sobre a minha orelha. Despenteou-me os cabelos, na brincadeira.

 

És um verdadeiro ouriço disse. Estás a criar demasiados espinhos. O que ele disse foi que pode telefonar a uns amigos que, por sua vez, podem telefonar a outros amigos de maneira a obter rapidamente uma consulta para este tipo em Harley Street. Eu disse-lhe que fizesse os telefonemas. Acho que é a melhor solução. Não concordas?

 

Libertei-me dos braços dele.

 

Olha para mim, Chris.

 

O que é? o rosto dele estava impassível.

 

Ele disse-te mais qualquer coisa.

 

O que é que te leva a pensar isso?

 

Porque me chamou Olivia.

 

Chris abanou a cabeça, exasperado. Puxando-me a cabeça para trás, inclinou-se e beijou-me rapidamente os lábios. Nunca me beijara até àquele dia. Nunca mais me beijou desde esse dia. A pressão seca e fugaz da sua boca contra a minha foi mais eloquente do que eu teria desejado.

 

Iniciei, então, o meu primeiro périplo por consultórios médicos e a primeira série de exames clínicos. Começámos pelos mais simples: análises ao sangue e à urina. Em seguida, passámos às radiografias. Depois fui submetida a uma experiência digna de qualquer história de ficção científica, deslizaria para dentro de uma espécie de pulmão de aço para fazer uma ressonância magnética. Depois de ter estudado os resultados estava sentada num cadeirão em frente de uma secretária, numa sala tão luxuosamente apainelada que poderia passar pelo cenário de um filme, enquanto Chris aguardava na sala de espera, pois não queria que ele estivesse presente quando eu tivesse de ouvir o pior, o médico disse apenas:

 

Vamos ter de fazer uma punção à medula. Para quando é que deseja marcá-la?

 

Porquê? Como é que é possível que ainda não saiba o que se passa comigo? Não quero fazer mais testes. Pelo menos desse género. É horrível, não é? Eu sei como é. As agulhas e o líquido. Recuso-me. Recuso-me a fazer mais exames.

 

Ele juntou os dedos, descansando as mãos sobre o processo que continha o resultado dos meus exames, cada vez mais grosso a cada dia que passava.

 

Lamento muito disse. É necessário que o faça.

 

Mas qual é a sua opinião?

 

Que vai ter de se submeter a mais este exame. E nessa altura veremos o que acontece.

 

As pessoas com dinheiro sujeitam-se, sem dúvida, a este acto médico em sofisticadas clínicas privadas com corredores ornamentados por ramos de flores, chão alcatifado e música ambiente. Eu fiz o meu ao abrigo do Serviço Nacional de Saúde. Quem o efectuou foi um médico-estagiário, o que não me incutiu grande confiança. Talvez pelo facto de o supervisor dele estar perfilado ao seu lado, debitando instruções num calão médico que incluía perguntas incisivas como, ”Não quero ser indiscreto, Harris, mas qual a vértebra que pretende atingir?” Terminado o exame, fiquei deitada na posição prescrita de costas, cabeça virada para trás, esforçando-me por ignorar o rápido pulsar que parecia ressoar ao longo da minha coluna vertebral e tentando ignorar o pressentimento funesto que me invadira nessa manhã quando, ainda deitada, sentira os músculos da minha perna direita agitados por uma vibração, como se tivessem vontade própria.

 

Atribuí-o aos nervos e à inquietação.

 

O último exame foi realizado vários dias mais tarde, no consultório do médico. Fazendo-me sentar em cima de uma mesa forrada com uma pele extremamente macia, colocou a mão na planta do meu pé direito.

 

Faça força pediu. Fiz o melhor que podia.

 

Outra vez. Tornei a obedecer.

 

Estendeu as mãos dele para as minhas.

 

Força.

 

Mas o problema não está nas minhas mãos.

 

Força. Obedeci.

 

Ele abanou a cabeça, fez algumas anotações no meu processo e tornou a abanar a cabeça.

 

Venha comigo disse ele, conduzindo-me ao gabinete dele. Desapareceu e regressou acompanhado de Chris.

 

Senti os cabelos arrepiarem-se-me na nuca.

 

O que é que se passa?

 

Em vez de responder, porém, fez sinal para que nos sentássemos no sofá, sobre o qual estava pendurada uma tela representando uma cena campestre pintada em tons carregados: colinas imensas, um rio, árvores densas e uma pastora guardando um rebanho com uma vara feita de folhas na mão. No mar de pormenores que compõem aquele final de manhã em Harley... É estranho que eu ainda me lembre do quadro. Sobretudo quando apenas lhe lancei uma olhadela rápida.

 

Ele empurrou um cadeirão para perto de nós. Trouxe o meu processo, embora não o tivesse consultado uma única vez. Sentou-se, colocou o processo sobre os joelhos e encheu um copo com água que tirou de uma garrafa colocada numa mesa baixa colocada entre nós. Estendeu-nos a garrafa. Chris recusou. Eu tinha a boca seca e aceitei.

 

Parece-me que sofre de um distúrbio neurológico conhecido por esclerose lateral amiotrófica anunciou o médico.

 

A tensão abandonou-me tal como a água que irrompe através de um dique. Um distúrbio. Aleluia. Um distúrbio. Um distúrbio. Não era nenhuma doença, afinal. Não era um tumor. Não era cancro. Graças a Deus. Graças a Deus.

 

Sentado no sofá, ao meu lado, Chris mexeu-se e inclinou-se para a frente.

 

Amio... quê?

 

Esclerose lateral amiotrófica. É um distúrbio que afecta os neurónios motores, normalmente conhecida pela abreviatura: ELA.

 

E o que é que eu tomo para curar isso? perguntei.

 

Nada.

 

Nada?

 

Não há medicamentos para este distúrbio, receio bem.

 

Oh, bem... suponho que não deve haver, de facto. Tratando-se de um distúrbio. Então, o que é que faço para me curar? Exercício físico? Fisioterapia?

 

O médico deslizou os dedos ao longo do rebordo do processo, como se pretendesse endireitar a papelada acumulada no seu interior, já impecavelmente alinhada e organizada.

 

Na verdade, não há nada que possa fazer disse ele.

 

Está a tentar dizer-me que vou ficar coxa e manca para o resto da vida?

 

Não disse ele. Não é isso que vai acontecer.

 

Algo na voz dele fez com que o meu estômago empurrasse o meu pequeno-almoço na direcção da minha garganta. Senti o sabor intenso e desagradável da bílis invadir-me a boca. Havia uma janela mesmo ao lado do sofá,e através das cortinas translúcidas distingui os contornos de uma árvore, ramos ainda completamente despidos, apesar de já estarmos no fim de Abril. Um plátano, pensei desnecessariamente, são sempre as últimas árvores a dar folha. Nunca dão guarida a ninhos de pássaros. Como seria agradável trepá-la no Verão. Quando era miúda nunca construí uma casa numa árvore,

 

lembro-me dos castanheiros que cresciam à beira do riacho, no Kent... e de brincar aos castanheiros, as castanhas sibilando como o laço de um cowboy sobre a minha cabeça.

 

Lamento muito ter de dizer-lhe isto disse o médico, mas é...

 

Não quero saber.

 

Livie Chris quis agarrar-me na mão. Repeli-o.

 

Temo que se trate de uma afecção progressiva acrescentou o médico.

 

Sentia os olhos dele fixos em mim, mas eu continuava a observar a árvore.

 

É um distúrbio que afecta a medula espinal, disse ele. Falava devagar, para que eu percebesse. Bem como o tronco cerebral e os neurónios motores de grande diâmetro do córtex cerebral. Daí resulta uma degenerescência progressiva dos neurónios motores, bem como um enfraquecimento gradual dos músculos, que termina na atrofia dos mesmos.

 

O senhor não sabe se é isso que eu tenho disse eu. Não pode ter a certeza.

 

Eu podia sempre procurar uma segunda opinião, se quisesse, disse ele. Na verdade, encorajava-me a que o fizesse. Em seguida começou a enumerar os indícios que recolhera: os resultados do exame à medula, a perda generalizada de tónus muscular, a resposta débil dos meus músculos. Disse que este tipo de distúrbio começa por afectar as mãos, progredindo depois para os antebraços e os ombros e só mais tarde atacando os membros inferiores. No meu caso, porém, parecia estar a progredir na direcção contrária.

 

Ou seja, posso sofrer de outra coisa qualquer observei. Por isso, não pode estar cem por cento certo, não é?

 

Ele concordou, dizendo que nenhuma ciência médica podia apresentar-se como exacta. Em seguida, acrescentou:

 

Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Já sentiu algum tipo de fibrilação nos músculos da perna?

 

Fib... quê?

 

Contracções rápidas. Fibrilações.

 

Tornei a virar-me para a janela. Atávamos as castanhas a pedaços de cordel, agitávamo-las no ar, que se enchia de sonoridades sibilantes, fingíamos que éramos cowboys americanos, capturando bezerros com castanhas em vez de cordas.

 

Livie? disse Chris. Já sentiste...

 

Isso não quer dizer nada. De qualquer maneira, vou vencer isto. Vou ficar curada. Só preciso de fazer mais exercício.

 

E foi isso que comecei por fazer. Andar o mais possível, subir escadas levantar pesos. Músculos fracos, é tudo, pensava eu. Hei-de sobreviver a isto. Sobrevivi a tudo o resto, não foi? Nunca até hoje me deixei abater por muito tempo e não é agora que vou começar.

 

Continuei a participar nos assaltos, instigada pelo medo e pela raiva Havia de provar que estavam todos errados, dizia para mim mesma. Haveria de pôr o meu corpo a funcionar como uma máquina.

 

Durante cinco meses, Chris deixou-me conservar o meu posto de libertadora. Até à primeira ocasião em que eu fiz atrasar a unidade. Nessa altura, transferiu-me para o posto de sentinela, dizendo, ”O assunto não está aberto a discussão, Livie”, quando protestei aos gritos, ”Não podes! Estás a fazer de mim o alvo da troça de toda a gente! Não estás a dar-me uma oportunidade de recuperar as minhas forças. Quero fazer parte da equipa, contigo, com o resto do grupo. Chris!” Ele disse-me que eu tinha de enfrentar os factos. Eu respondi-lhe que haveria de lhe mostrar o que eram os factos, ai isso é que ia. E dirigi-me ao hospital universitário, para uma segunda série de exames.

 

Os resultados foram os mesmos. Só a atmosfera em que os recebi foi diferente. Não num consultório de luxo, mas num cubículo ao fundo de um corredor buliçoso e movimentado, ao longo do qual rolavam macas com uma frequência inquietante. Quando a médica fechou a porta, virou a cadeira para mim e se sentou, os joelhos praticamente roçando nos meus, percebi tudo.

 

Ela começou pelos aspectos encorajadores que não eram muitos embora classificasse a ELA como uma doença e não se referisse a ela como distúrbio, um termo sem dúvida mais inofensivo. Disse-me que o meu estado iria agravar-se regularmente, embora lentamente. Insistiu no lentamente. Começaria por sentir os músculos fracos e depois eles atrofiar-se-iam. À medida que as células nervosas do cérebro e da medula espinal fossem degenerando, começariam a enviar impulsos irregulares aos músculos dos braços e das pernas, que nessa altura fibrilariam. A doença progrediria a partir dos pés e pernas para as mãos e braços, depois para o interior do meu corpo até eu ficar completamente paralisada. Todavia, insistiu ela, no seu tom de voz maternal/ eu jamais perderia o controlo da bexiga e dos esfíncteres. A minha inteligência e a minha consciência nunca seriam afectadas, nem sequer na fase terminal da doença, altura em que os meus pulmões seriam afectados e acabariam também por atrofiar.

 

Ou seja, vou transformar-me num farrapo e manter a minha lucidez disse eu.

 

Colocando as pontas dos dedos na minha rótula, ela disse:

 

Sabe, Olivia, duvido que Stephen Hawking se considere a si mesmo como um farrapo. Sabe quem ele é, não sabe?

 

Stephen Hawking? O que é que ele tem a ver... empurrei a cadeira para trás. Já o tinha visto em jornais. Na televisão. A cadeira de rodas eléctrica, os ajudantes, a voz computadorizada. Aquilo é ELA? perguntei.

 

É, sim. Uma doença que afecta os neurónios motores. É extraordinário ver como ele desafiou todas as suas probabilidades de sobrevivência ao longo de tantos anos. Tudo é possível, nunca se esqueça disso.

 

Possível? O que é que é possível?

 

Viver. A progressão desta doença oscila entre os dezoito meses e os sete anos. Vá dizer isso a Hawking. Ele sobrevive há mais de trinta.

 

Mas... daquela maneira. Numa cadeira. Preso e encarquilhado... não consigo. Não quero...

 

Há-de ficar espantada consigo própria quando pensar no que quer e no que consegue fazer. Espere e verá.

 

Depois de saber o que me esperava, decidi que tinha de deixar Chris. Não conseguiria continuar a desenvencilhar-me sozinha na lancha e não tencionava ficar até não ter outro remédio a não ser depender da caridade dele. Regressei a Little Venice e comecei a meter as minhas coisas dentro de mochilas. Voltaria para Earl’s Court e haveria de conseguir descobrir um estúdio para morar. Continuaria a trabalhar no jardim zoológico enquanto pudesse. E quando me fosse impossível continuar, logo se veria. Será que um tipo se importaria de fornicar com uma puta que já não pudesse enrolar as pernas em volta do traseiro dele? Cujos pés já não conseguissem equilibrar-se em cima de saltos de doze centímetros. Que seria feito de Archie, com os seus chicotes e os seus apetrechos de cabedal? Já se tinham passado alguns anos. Será que ele ainda gostava que a sua Maria Imaculada lhe batesse até ele ficar num estado de êxtase frenético enquanto ela própria se encontrava sob uma ameaça de morte? Será que viria a gostar ainda mais, se soubesse a verdade? Veríamos.

 

Estava a escrever um bilhete a Chris, sentada à mesa da cozinha, quando ele chegou a casa.

 

Tenho um projecto bastante grande em Fulham que nos deve permitir manter as finanças equilibradas durante algum tempo disse. Uma daquelas mansões transformadas em blocos de apartamentos. Enorme. Devias ver os quartos, Livie. São... parou à entrada da cozinha. Pousou um tubo cheio de plantas e esboços sobre a mesa. O que é que se passa? Sentou-se numa cadeira virada ao contrário e empurrou uma das minhas mochilas com a ponta do pé. Vais levar roupa à lavandaria, é isso?

 

Vou-me embora esclareci.

 

Porquê?

 

Já é altura de cada um de nós seguir o seu caminho. Há muito tempo que isso devia ter acontecido. Não há necessidade de esperar que o cadáver comece a cheirar mal para o enterrar. Sabes como é.

 

Coloquei um ponto final na última frase que acabara de escrever e tornei a arrumar o lápis no meio dos outros, na nova lata de conservas. Empurrei o bilhete na direcção dele e levantei-me.

 

Então é verdade disse ele. Coloquei a primeira mochila aos ombros.

 

O quê?

 

ELA.

 

E se for?

 

Deves ter ficado a saber hoje. É por isso... tudo isto leu o bilhete. Dobrou-o com cuidado. Inevitável está mal escrito.

 

Como queiras peguei na segunda mochila. Não é uma palavra mal escrita que vai mudar os factos, pois não? Um tipo e uma miúda não podem viver juntos desta maneira sem que as coisas acabem por se estragar, com o tempo.

 

Inevitável, foi a palavra que usaste no bilhete.

 

Tu tens o teu trabalho e eu tenho...

 

ELA. É por isso que te vais embora guardou o bilhete no bolso. Estranho, Livie. Nunca te tomei por alguém que baixasse os braços logo à primeira.

 

Eu não estou a baixar os braços coisa nenhuma. Só me vou embora. Isto não tem nada a ver com a ELA. Tem a ver contigo e comigo. Com o que eu quero. Com o que tu queres. Com a pessoa que eu sou. Com a pessoa que tu és. Não vai funcionar.

 

Há mais de quatro anos que funciona.

 

Para mim, não. É... enfiei um braço na segunda mochila e outro braço na terceira. Vi a minha imagem reflectida na janela da cozinha. Parecia uma corcunda carregada de alforges. Ouve, viver desta maneira não é normal. Tu e eu. É esquisito. É como uma daquelas atracções de feira. Senhoras e Senhores, Meninos e Meninas, venham ver os solteirões inveterados. Sinto-me como se estivesse num convento ou num sítio parecido. Isto não é vida para ninguém. Não consigo aguentar mais, entendes?

 

Com os dedos, foi sublinhando os pontos focados à medida que me respondia.

 

Esquisito. Atracção de feira. Celibato. Convento. Alguma vez leste Hamlet?

 

E o que é que Hamlet tem a ver com isto?

 

Uma das personagens diz qualquer coisa sobre o significado de protestar em demasia.

 

Eu não estou a protestar coisíssima nenhuma.

 

Ou apresentar demasiados argumentos ou rejeições explicou. que não fazem sentido. Sobretudo, se considerarmos o facto de nunca teres estado solteira durante mais de uma semana.

 

Isso é uma mentira nojenta.

 

Baixei as mochilas. Ouvi o som que as garras dos cães produziam ao roçarem no linóleo e vi Beans que saía da oficina para vir cheirar os meus sacos.

 

Achas que é? Chris tirou uma maçã da taça que estava sobre o aparador e roçou-a, com uma expressão despreocupada, contra a camisa de flanela. E quanto ao jardim zoológico?

 

O que é que tem o jardim zoológico?

 

Trabalhas lá há quantos? quase dois anos, não é? Quantos tipos já passaste a pente fino, por lá?

 

Senti o rosto em chamas.

 

Tens cá uma lata.

 

Não estiveste solteira, então. O que significa que podemos eliminar esse argumento. E o do convento também.

 

Libertei-me da terceira mochila e deixei-a cair ao lado das outras. Beans enfiou o focinho debaixo da aba e emitiu um som satisfeito quando descobriu algo que lhe agradou. Empurrei-o.

 

Ouve bem o que te vou dizer comecei. Não há mal nenhum em gostar de sexo. Não há mal nenhum em querer fazer sexo. Eu gosto e quero fazer, e...

 

O que nos deixa apenas com a atracção de feira e o adjectivo esquisito concluiu ele.

 

A minha boca abriu-se de espanto. Fechei-a logo de seguida.

 

Não concordas? perguntou. Estamos a seguir um simples processo de eliminação, Livie.

 

Estás a dizer que sou esquisita?

 

Tu referiste as palavras celibato, convento, atracção de feira e esquisito. Eliminámos as primeiras duas. Agora vamos examinar as outras. Estamos a tentar chegar à verdade.

 

Muito bem. É a verdade que tu queres, não é, senhor Picha Mole? Quando eu encontro um gajo que gosta de sexo como eu e que quer fazer sexo tanto como eu, nós fazemo-lo. Divertimo-nos um bocado. E se quiseres condenar-me por fazer uma coisa que é tão natural como respirar, não te acanhes. Mas vais ter de fazer o teu julgamento sem público, porque eu estou farta da tua santidade e vou-me embora.

 

Porque não aguentas viver com um gajo esquisito?

 

Aleluia. O rapaz finalmente percebeu a ideia.

 

Ou porque tens medo de te tornares esquisita também e descobrires que sou eu que não aguento viver com uma gaja esquisita?

 

Respondi com uma gargalhada.

 

Não há nenhuma hipótese de que isso venha a acontecer. Não há nada de errado comigo. Já provámos isso. Eu sou uma mulher de corpo inteiro, que gosta de ir para a cama com um homem de corpo inteiro. Desde o primeiro dia que assim é e não tenho vergonha de o admitir seja à frente de quem for.

 

Ele deu uma dentada na maçã. Toast apareceu e colocou o focinho sobre o joelho de Chris. Beans empurrava uma das minhas mochilas.

 

Boa resposta, se eu estivesse a referir-me ao sexo disse Chris Mas como não estou, perdeste a vantagem.

 

O problema não é a ELA disse eu, pacientemente. Trata-se de mim e de ti. E das nossas diferenças.

 

Uma parte das quais é a ELA, como sem dúvida concordarás.

 

Oh, merda baixei-me para apertar a fivela da mochila, no sítio onde Beans enfiara o focinho explorador. Acredita no que quiseres, naquilo que for melhor para o teu ego, está bem?

 

Estás a fazer projecções, Livie.

 

E isso quer dizer o quê, exactamente?

 

Que é muito mais fácil para o teu ego ires embora agora do que correr o risco de ver o que acontece entre nós quando a doença começar a piorar.

 

Levantei-me de um salto.

 

Não é uma doença. É um maldito de um distúrbio.

 

Ele virou a maçã que tinha na mão, depois de lhe ter dado três dentadas. Vi que tinha alcançado uma zona pisada, de cor acastanhada. Tinha um aspecto perfeitamente repugnante. Ele deu uma dentada precisamente no sítio onde a maçã estava estragada. Estremeci. Ele continuou a mastigar.

 

Porque é que não me dás uma oportunidade? perguntou ele.

 

Uma oportunidade para quê?

 

De provar que sou teu amigo.

 

Oh, por favor. Poupa-me o número do Bom Samaritano. Faz-me pele de galinha tornei a concentrar-me nas presilhas das mochilas. Depois aproximei-me da mesa, onde estava a mala a tiracolo, o conteúdo espalhado sobre o tampo. Tornei a empurrar tudo para dentro. Representa-o para outra disse eu. Vai até Earl’s Court, descobre outra puta, mas deixa-me em paz, peguei na mala a tiracolo. Ele inclinou-se para a frente e agarrou-me pelo braço.

 

Ainda não percebeste, pois não?

 

Tentei afastá-lo com um puxão, mas ele manteve-se firme.

 

O quê?

 

Às vezes, as pessoas gostam umas das outras só pelo prazer de gos” tarem umas das outras, Livie.

 

Vai-te lixar.

 

Será que nunca ninguém gostou de ti sem segundas intenções? Sem exigir algo em troca?

 

Afastei-me dele, mas não consegui fazer com que me largasse o braço. Ia ficar com nódoas negras no sítio onde os dedos dele se enterravam na minha carne. Na manhã do dia seguinte, lá estariam as marcas.

 

Eu gosto de ti disse ele. Admito que não da forma como gostarias de ser amada. Não é a forma como imaginas que homens e mulheres se amem e estejam juntos. Mas não deixa de ser amor. É verdadeiro e existe. Sobretudo, existe. E na minha maneira de ver as coisas, esse amor é suficiente para nos ajudar a sobreviver. O que é muito mais do que podes esperar de um tipo qualquer com quem te cruzes na rua.

 

Libertou-me. Levei o braço ao peito. Friccionei o sítio onde ele tinha enterrado os dedos. Olhei-o fixamente. As costas começavam a acusar o peso das mochilas, os músculos da perna direita começavam a contrair-se. Ele tornou a prestar atenção à maçã, que acabou ao fim de mais três dentadas. Deixou Toast farejar o caroço do fruto, mas o cão rejeitou-o e acabou por atirá-lo para o outro lado da cozinha, na direcção do lava-loiça.

 

Não quero que te vás embora disse ele. Desafias-me. Deixas-me os nervos em franja. Tornas-me uma pessoa melhor do que a que sou.

 

Caminhei até ao lava-loiça e apanhei o caroço da maçã. Deitei-o dentro do caixote do lixo.

 

Livie. Quero que fiques.

 

Através da janela, eu conseguia ver os candeeiros da rua e o reflexo que projectavam sobre a água do lago. Sobre as formas ovais e flutuantes criadas pela luz dos candeeiros desenhavam-se as árvores de Browning’s Island. Consultei o relógio. Quase oito horas. Quando finalmente chegasse a Earl’s Court seriam nove horas. A minha perna direita estava a começar a tremer.

 

A pouco e pouco vou transformar-me numa boneca de trapos murmurei. Uma abóbora demasiado cozida, com braços e pernas.

 

Ias embora, se fosse eu que estivesse doente?

 

Não sei.

 

Eu sei.

 

Ouvi-o levantar-se da mesa e atravessar a cozinha. Libertou-me das mochilas e deixou-as cair no chão. Pôs o braço em volta dos meus ombros e roçou os lábios pelos meus cabelos.

 

Não é o mesmo género de amor disse, mas é amor.

 

E eu fiquei. Empenhei-me no meu programa de exercícios e levantamento de pesos. Consultei curandeiros que sugeriram que eu sofria de um quisto, que estava em vias de desenvolver uma massa incapaz de mobilizar energia, em reacção a uma atmosfera negativa. Quando, passado o primeiro ano a doença não progredira para além das minhas pernas, disse a mim mesma que, tal como Stephen Hawking, ia conseguir inverter as probabilidades à minha maneira. Sentia-me confiante e agarrei-me a essa esperança até ao dia em que, ao redigir uma lista de compras, reparei no que os meus dedos estavam a fazer à minha caligrafia.

 

Não vos conto tudo isto para vos inspirar sentimentos de compaixão Conto-vos toda esta história, porque embora a ELA seja uma maldição é também graças a ela que eu sei o que sei. É a razão por que eu sei o que mais ninguém sabe. À excepção da minha mãe.

 

Os rumores foram mais que muitos quando Kenneth Fleming se mudou para a casa da minha mãe, em Kensington. Se Kenneth não tivesse iniciado a sua carreira na selecção da Inglaterra com uma actuação tão humilhante no terreno do Lord’s, é provável que se tivesse passado uma eternidade até que a imprensa sensacionalista tivesse descoberto o seu domicílio. Todavia no dia em que ele realizou aquele memorável e mortificante desempenho, todas as atenções do mundo do críquete se viraram para ele. E quando isso aconteceu, a minha mãe passou a estar igualmente na ribalta.

 

E os jornais não se fizeram rogados. Os trinta e quatro anos que separavam o jogador de críquete da sua mentora faziam as delícias da imprensa sensacionalista. Quais eram exactamente os laços entre ambos? Seria ela a sua verdadeira mãe? Entregara-o para adopção à nascença e, agora que procurava uma companhia durante a velhice, conseguira descobrir o paradeiro do filho? Seria uma tia, que o teria escolhido como destinatário da sua imensa fortuna entre inúmeros sobrinhos e sobrinhas? Uma fada-madrinha cheia de dinheiro, uma mulher que procurava nos bairros londrinos um indivíduo com talento a quem pudesse ajudar com a sua varinha de condão? A nova patrona da selecção inglesa, que encarava as suas responsabilidades com tal seriedade que chegava a envolver-se intimamente nas conflituosas vidas privadas dos seus jogadores? Ou haveria aqui algo um pouco mais obsceno? Um complexo de Édipo mal resolvido da parte de Kenneth Fleming, ao qual a Jocasta representada na figura de Miriam Whitelaw aderira com mais entusiasmo do que aconselhava o bom senso?

 

Onde é que cada um deles dormia?, interrogava-se a imprensa. Vivem juntos na mesma casa, sozinhos? Haveria algum empregado que estivesse disposto a revelar a verdadeira história? Uma mulher-a-dias que fizesse diariamente duas camas, em vez de uma. Se dormiam em quartos separados, será que estes ficavam no mesmo piso? E porque seria que Miriam Whitelaw nunca perdia um jogo de Kenneth Fleming?

 

Uma vez que a história verdadeira jamais poderia rivalizar em interesse com as especulações, os tablóides mantiveram-se fiéis à especulação. Vendia mais jornais. Quem é que estava interessado em ler histórias sobre uma antiga professora de Inglês e o seu aluno favorito, em cuja vida ela se tinha visto envolvida? Não era, nem de longe nem de perto, tão intrigante como as picantes insinuações contidas numa fotografia de Kenneth com a minha mãe saindo de Grace Gate debaixo de um único chapéu-de-chuva, o braço dele sobre os ombros dela, o rosto sorridente erguido para o do seu protegido.

 

E Jean, em toda esta história? Já devem saber, certamente. No início, foi mais franca e desabrida com a imprensa do que deveria ter sido. Era uma presa fácil, tanto para o Daily Mirror como para o Sun. Jean queria que Kenneth voltasse para casa e julgou que os jornais iriam ajudá-la a consegui-lo. Tiraram-se, então, fotografias dela na cafetaria, em Billingsgate Market, fotografias dos filhos a caminho da escola, fotografias da família sem o pai, sentada à volta da mesa da cozinha coberta por uma toalha de plástico vermelha, diante do prato de salsichas e puré de batata dos sábados à noite, fotografias de Jean atirando desajeitadamente uma bola a Jimmy, que sonhava confessara ela seguir as pisadas do pai. ”Onde está Ken?”, interrogavam-se alguns dos tablóides, enquanto outros declaravam: ”Abandonada, com o coração destroçado.” ”Demasiado Bom para ela, agora?”, perguntava a Woman’s Own, enquanto a Woman’s Realm lançava a dúvida: ”Que fazer quando ele a deixa por outra que tem idade para ser sua mãe?”

A tudo isto, Kenneth Fleming respondeu com o silêncio, consagrando-se por inteiro ao críquete. Visitava periodicamente a Isle of Dogs, mas tudo o que tinha a dizer a Jean acerca da relação que ela mantinha com a imprensa, dizia-o em privado. O seu estilo de vida podia ser pouco convencional, mas quando era questionado sobre o assunto limitava-se a afirmar, ”Por agora é a melhor solução”.

 

Posso apenas adivinhar como era a vida e o relacionamento de Kenneth e da minha mãe, naquela época. Posso preencher os espaços que os tablóides deixaram em aberto, é certo, e fornecer pormenores quanto à organização doméstica: dormiam em quartos separados, situados no mesmo piso da casa e ligados entre si por uma porta de comunicação. Kenneth instalara-se, com efeito, naquele que fora o quarto de vestir do meu bisavô e que era, ao mesmo tempo, a segunda divisão mais ampla da casa. Nada havia de pouco recomendável nisto. Os poucos hóspedes que tínhamos recebido ao longo dos anos sempre tinham dormido naquele quarto. Posso, ainda, revelar quem eram os frequentadores mais assíduos da casa: ninguém, à excepção de uma mulher natural do Sri Lanka que vinha duas vezes por semana tratar da casa e da roupa. Quanto aos restantes convidados, sei tanto como o mais comum dos mortais.

 

As conversas entre ambos deviam ser multifacetadas. Sempre que a minha mãe tinha de tomar uma decisão relacionada com a fábrica terá perguntado a opinião e os conselhos de Kenneth, apresentando-lhe teorias e reflexões e escutando atentamente o que ele tinha para lhe dizer sobre o assunto. Quando Kenneth ia visitar Jean e os filhos, fazia-lhe certamente um relato Pormenorizado da visita, falando-lhe sobre a sua decisão de continuar a viver separado da família e confessando-lhe as razões por que ainda não tinha pedido o divórcio. Quando a selecção inglesa jogava fora do país, ele devia contar-lhe todos os pormenores da viagem, falando-lhe sobre as pessoas que conhecera e as paisagens que contemplara. Se ela tivesse lido um livro ou se tivesse visto uma peça de teatro, teria partilhado com ele as suas reacções. E se ele tivesse começado a interessar-se pela política nacional ter-lhe-ia transmitido esse interesse.

 

Kenneth Fleming e a minha mãe acabaram por tornar-se íntimos. Ele dizia que ela era a sua melhor amiga, e os meses passados em casa dela rapidamente passaram a um ano e depois a dois. Durante todo esse tempo, ambos ignoraram os mexericos e as especulações.

 

A primeira vez que ouvi falar neles foi através dos jornais. Não liguei nenhuma importância ao caso, pois tinha uma função muito activa no seio do ARM, que nessa altura estava empenhado em abalar os alicerces da Universidade de Cambridge. Nada me poderia ter dado mais prazer do que semear a confusão naquele mundo de gente empertigada e recalcada. Por essa razão, quando li um artigo sobre a minha mãe e Kenneth, encolhi os ombros e usei o jornal para embrulhar cascas de batata.

 

Mais tarde, ao pensar no assunto, concluí que a minha mãe estava empenhada num processo de substituição. Em primeiro lugar, parecia-me que ela estava a substituir-me. Há anos que não mantínhamos qualquer contacto, por isso Kenneth funcionava como uma espécie de substituto filial para quem ela poderia canalizar o seu amor maternal. Mais tarde, e para ser franca, à medida que o silêncio dos principais protagonistas alimentava cada vez mais as especulações, comecei a pensar que ela estava a tentar substituir o meu pai. De início pareceu-me ridículo, a ideia da minha mãe e de Kenneth debaixo dos cobertores, ele tentando ignorar a pele enrugada e a carne flácida e ela esforçando-se por mantê-lo em erecção o tempo suficiente para conseguirem levar o acto a bom termo. Passado algum tempo, porém, quando o nome de Kenneth continuou a não ser associado a nenhuma outra mulher, decidi que aquela era a única explicação que fazia algum sentido. Enquanto continuasse casado com Jean, poderia repelir as atenções de outras mulheres da sua idade com uma desculpa do género, ”Lamento muito, mas sou um homem casado”. O que o manteria a salvo de envolvimentos susceptíveis de constituírem uma ameaça ao seu envolvimento, esse sim verdadeiro, com a minha mãe.

 

Como ele próprio dizia, ela era a sua melhor amiga. Não deve ter sido fácil passar de melhor amiga a melhor companheira de cama. Como terá acontecido? Uma noite, em que a intimidade da conversa terá sugerido outro tipo de intimidade?

 

Ele terá olhado para ela, sentada no lado oposto da sala de estar, sentindo o desejo crescer dentro dele. O desejo e o horror. Meu Deus, ela tem idade para ser minha mãe, terá pensado.

 

Ela terá recebido o olhar dele com um sorriso. As linhas do rosto ter-se-ão tornado menos duras e o pulso ter-se-á acelerado.

 

O que é que se passa? terá perguntado. Porque é que te calaste, de repente?

 

Por nada terá ele respondido, e passando a palma da mão pela testa, num movimento rápido, terá acrescentado: É só...

 

O quê?

 

Nada. Nada. É uma estupidez.

 

Nada do que tu digas é estúpido, meu querido. Pelo menos, para mim.

 

”Meu querido” terá ele repetido, em tom brincalhão. Faz-me sentir como uma criança.

 

Desculpa-me, Ken. Eu não te considero uma criança.

 

Então como? Como é que... Como é que me vê?

 

Como um homem, claro.

 

Ela terá olhado para o relógio e terá dito:

 

Acho que vou subir. Ainda tencionas ficar a pé muito tempo? Ele ter-se-á levantado.

 

Não terá dito. Vou subir também. Consigo... se não se importa... Miriam.

 

Ah, aquela hesitação entre consigo e o se não se importa. Se ela não tivesse existido, ela provavelmente nunca teria percebido o que ele queria dizer.

 

A minha mãe deve ter passado diante dele, parando para entrelaçar os seus dedos nos dele durante breves instantes.

 

Não me importo nada terá ela respondido. Mesmo nada, Ken. Melhor amigo, alma gémea, um companheiro de cama com trinta anos de idade. Pela primeira vez na vida dela, a minha mãe tinha tudo o que desejava.

 

Foi Max quem primeiro sugeriu a ideia de informar a minha mãe. Dez meses depois do diagnóstico, enquanto comíamos num restaurante italiano a dois passos de Camden Lock Market, onde Max passara uma hora a remexer em caixas de bugigangas que os vendedores tentavam fazer passar por roupas antigas, no enorme armazém onde há de tudo, desde máquinas de pastilhas elásticas a sofás em veludo. Procurava um par de calças de golfe adequadamente usadas para uma peça de teatro amador que estava a dirigir. Se pretendia usá-las como guarda-roupa ou como adereço, recusou-se a dizer. ”Não posso espalhar os segredos da companhia aos quatro ventos, meninos e meninas”, declarara. ”Têm de ir ver a peça com os vossos próprios olhos.” Há algum tempo que usava uma bengala para caminhar o que não me agradava muito e ficava cansada com mais frequência do que teria desejado. Quando me cansava, os meus músculos fibrilavam. A fibrilação, por seu turno, dava origem a cãibras frequentes. E era isso que eu estava a sentir no preciso momento em que a minha lasanha de espinafres surgiu na minha frente, fumegante, deliciosamente aromática, coberta por uma camada de queijo borbulhante.

 

Quando a primeira cãibra transformou o meu músculo num nó duro como pedra, mesmo por baixo do meu joelho direito, soltei um gemido abafado, tapei os olhos com a mão e cerrei os dentes com quanta força tinha.

 

Tens muitas dores? perguntou Chris.

 

Já passa respondi.

 

A lasanha continuou a fumegar e eu continuei a ignorá-la. Chris empurrou a cadeira para trás e começou a massajar-me a perna: a única coisa que me proporcionava algum alívio.

 

Come a tua massa disse-lhe eu.

 

Ela não desaparece.

 

Eu aguento-me sozinha.

 

Os espasmos intensificaram-se. Nunca tinham sido tão violentos. Tinha a impressão que alguém estava literalmente a torcer a minha perna direita. Foi então que a perna esquerda começou a fibrilar pela primeira vez. ”Merda”, murmurei-

 

O que é que se passa?

 

Nada.

 

As mãos dele moviam-se com perícia. A vibração da outra perna aumentou. Olhei fixamente para a mesa. Os talheres reluziam. Tentei pensar noutras coisas.

 

Está melhor? perguntou.

 

Grande piada! Numa voz estrangulada, consegui dizer:

 

Obrigada. Já chega.

 

Tens a certeza? Se ainda sentes dor...

 

Não me chateies, está bem? Come o teu jantar!

 

Chris baixou as mãos, mas não se virou. Conseguia imaginá-lo contando de um a dez.

 

Queria pedir-lhe desculpa. Queria dizer, ”Tenho medo. A culpa não é tua. Tenho medo, tenho medo”. Em vez disso, porém, concentrei-me em enviar impulsos desde o cérebro às minhas pernas. Visualizar, era como o último curandeiro lhe chamava. Pratique imagens mentais, é essa a solução, verá. As minhas imagens mentais eram duas pernas cruzando-se calma e suavemente, envoltas em meias pretas e terminando num par de sapatos de salto alto. As cãibras e as fibrilações continuaram. Apoiei os punhos cerrados na testa. Fechei os olhos com tanta força que não consegui conter as lágrimas. Que se lixe, pensei.

 

Max, que estava sentado à minha frente, tinha começado a comer. Chris continuava imóvel. O silêncio dele era acusador. Provavelmente merecia-o, mas não havia nada que eu pudesse fazer contra esse facto.

 

Que diabo, Chris. Pára de olhar para mim dessa maneira pedi, entredentes. Tenho a impressão de que sou um bebé com duas cabeças.

 

Nessa altura virou-se. Pegou no garfo e mergulhou-o no seu tagliatelle com cogumelos. Enrolou o garfo com movimentos bruscos e acabou por levar à boca uma montanha de massa que mais parecia um novelo de lã. Tornou a pousar o garfo com a comida.

 

Max mastigava rapidamente, olhando ora para Chris ora para mim. Era um olhar prudente, que fazia lembrar o de um pássaro. Baixou o garfo. Limpou a boca com um guardanapo de papel no qual, se bem me recordo, estavam impressas as palavras Evelyn’s Eats, o que era surpreendente tendo em conta que o restaurante onde nos encontrávamos se chamava The Black Olive.

 

Não sei se já te disse, miúda, mas li um artigo sobre a tua mãe, a semana passada, no pasquim do bairro.

 

Fazendo um esforço para me controlar, peguei no meu garfo e enterrei-o na lasanha.

 

Ai, sim?

 

É uma mulher e tanto, a tua mãe. Ao que parece. A situação é um nadinha invulgar, claro, refiro-me a ela e àquele jogador de críquete, mas, na minha opinião, ela parece ser uma verdadeira senhora. Não deixa de ser estranho, no entanto.

 

O quê?

 

Nunca falas muito nela. Atendendo à sua crescente notoriedade considero isso um pouco... curioso.

 

Não há nada de estranho nesse facto, Max. Perdemo-nos de vista com os anos.

 

Ah! Desde quando?

 

Desde há muito tempo respirei fundo. A vibração continuava, mas as cãibras começavam a abrandar. Olhei para Chris. Desculpem-me disse em voz baixa. Não queria... ser como sou. Assim obrigou-me a calar com um gesto, mas não disse nada. Eu continuei: Oh, merda, Chris. Por favor

 

Esquece.

 

Não faço de propósito... quando as coisas começam... fico... deixo de ser eu própria.

 

Não há problema. Não precisas de explicar. Eu...

 

Compreendo. Era o que ias dizer, não era? Por amor de Deus, Chris. Não precisas de fazer o papel de mártir o tempo todo. Preferia que tu...

 

Fizesse o quê? Que te batesse? Que me fosse embora? Ias sentir-te melhor assim? Então, porque diabo continuas a pressionar-me dessa maneira?

 

Pousei o garfo.

 

Meu Deus. Isto não nos leva a lado nenhum.

 

Max segurava o único copo de vinho tinto que se permitia a si próprio todos os dias. Bebericou, conservou o líquido na língua durante cinco segundos e em seguida engoliu-o com uma expressão aprovadora.

 

Estão a tentar o impossível, vocês dois comentou.

 

Há anos que lhe digo isso mesmo. Ignorou a minha observação.

 

Tu não vais conseguir lidar com a situação sozinho disse para Chris e, depois acrescentou, dirigindo-se a nós dois: Não passam de um par de patetas, se pensam que conseguem e para mim. Chegou o momento.

 

O momento? Que momento?

 

Ela precisa de saber.

 

Não era propriamente difícil relacionar esta última observação com as perguntas e os comentários anteriores. Levantei a cabeça e estiquei o queixo numa atitude de desafio.

 

Ela não precisa de saber coisíssima nenhuma sobre mim, muito obrigada.

 

Não te ponhas com joguinhos, miúda. Neste momento, os jogos são absolutamente inoportunos. Estamos a falar de uma situação terminal.

 

Nesse caso, podes enviar-lhe um telegrama logo depois de eu ter ido desta para melhor.

 

Tratavas a tua mãe dessa maneira?

 

Olho por olho, dente por dente. Ela há-de recuperar. Eu recuperei

 

Não de uma coisa destas.

 

Eu sei que vou morrer. Não há necessidade de estarem sempre a lembrar-me o facto.

 

Não estava a falar de ti, mas dela.

 

Tu não a conheces. Acredita no que te digo, a mulher tem recursos

 

com que simplórios como nós nem sonham. Ela há-de recompor-se da minha morte enquanto o Diabo esfrega um olho.

 

Talvez disse ele, mas isso significa descartar a possibilidade de ela poder ajudar-te.

 

Eu não preciso da ajuda dela. E também não a quero.

 

E Chris? perguntou Max. E se ele quiser? Se precisar e se quiser? Não agora, mas depois, quando a situação se tornar mais complicada? Como tu sabes que vai acontecer?

 

Peguei no garfo. Enterrei-o na lasanha e fiquei a ver o queijo deslizar por entre os dentes do talher como se fosse caramelo mole.

 

E então? insistiu Max.

 

Chris? disse eu.

 

Eu aguento-me respondeu ele.

 

Estamos conversados, nesse caso.

 

Todavia, enquanto levava o garfo à boca, vi o olhar que Max e Chris trocaram, e fiquei a saber que os dois já tinham conversado sobre o tema da minha mãe.

 

Há mais de nove anos que não a via. Durante o tempo em que trabalhara e vivera em Earl’s Court, as probabilidades de que os nossos caminhos tornassem a cruzar-se eram quase nulas. Apesar da sua conhecida apetência pelas boas obras, a minha mãe nunca tentara resgatar as almas e os corações dos mercadores de carne da cidade. Por isso, eu sempre soubera que estava a salvo de um hipotético e desagradável encontro com ela. Não que essa possibilidade me tivesse deixado muito perturbada. No entanto, o facto de ter uma harpia de meia-idade sempre atrás de mim não seria muito bom para o negócio.

 

Desde que deixara de me prostituir, encontrava-me numa situação mais delicada no que dizia respeito à minha mãe. Lá estava ela, em Kensington. E ali estava eu, a quinze minutos de distância, em Little Venice. Gostaria de me ter esquecido por completo da sua existência, mas a verdade é que semanas houve em que nunca saía da lancha durante o dia sem que não me ocorresse a ideia de poder vir a cruzar-me com ela ao longo do trajecto que me levava até ao jardim zoológico, à mercearia, ou quando ia inspeccionar um apartamento que Chris ia remodelar, ou me deslocava à serração a fim de ir buscar material para acabar a lancha ou fazer algum conserto.

 

Não sou capaz de explicar por que ainda pensava nela. Não estava à espera de que isso acontecesse. Antes, esperara que os laços que nos uniam Permanecessem cortados para sempre. E eles tinham sido cortados fisicamente.

 

Eu encarregara-me disso, naquela noite em Convent Garden. E ela tratara de fazer quando me enviara o telegrama informando-me da morte do meu pai da sua cremação. Nem sequer me deixara o consolo de uma campa que eu pudesse visitar, e isso, para mim, era tão imperdoável como a forma que esco lhera para me dar a conhecer a morte dele. Não tinha, portanto, nenhuma intenção de que os nossos universos se cruzassem.

 

A única coisa que não fui capaz de fazer foi apagar a imagem da minha mãe da minha memória e do meu pensamento. Não tenho a certeza de que haja alguém que consiga fazê-lo, quando se trata de um pai ou de um irmão Os laços que unem uma pessoa à sua família mais próxima podem ser cortados, mas as pontas tendem a flutuar à frente dos nossos olhos em dias mais ventosos.

 

É evidente que, quando a minha mãe e Kenneth Fleming se tornaram objecto de grandes especulações jornalísticas, há cerca de dois anos atrás, essas pontas começaram a esvoaçar diante dos meus olhos com mais frequência do que eu desejaria. É difícil explicar o que sentia ao ver, de quando em vez, uma fotografia de ambos nas páginas do Daily Mail, que uma das técnicas do jardim zoológico trazia religiosamente para a clínica para ler durante os intervalos de trabalho. Eu espreitava as fotografias por cima do ombro dela. Por vezes conseguia até ler o cabeçalho. Desviava os olhos. Pegava na minha chávena de café e ia sentar-me numa mesa junto à janela. Bebia-o rapidamente, os olhos fixos nas copas das árvores. E tentava perceber as causas daquela sensação estranha no estômago.

 

De início pensava que tudo o que eu vira mais não era do que a prova de que ela levara a sua vida de benemérita até ao seu desfecho lógico, transformando a teoria em factos, como faria qualquer cientista social digno desse nome. Ela sempre partira do princípio de que, se lhes fossem dadas as oportunidades certas, os menos favorecidos conseguiriam alcançar o mesmo futuro radioso que os mais privilegiados. O sucesso nada tinha que ver com nascimento, laços sanguíneos, predisposições genéticas ou modelos familiares. O Homo sapiens tinha fome de sucesso simplesmente pelo facto de ser Homo sapiens. Kenneth Fleming fora um dos seus objectos de estudo. Kenneth Fleming provara a veracidade da sua teoria. O que é que tudo aquilo tinha a ver comigo?

 

Odeio admiti-lo. Quão juvenil e questionável tudo me parece, realmente. Nem sequer consigo relatá-lo sem sentir algum embaraço.

 

Ao instalar Kenneth Fleming na sua casa, a minha mãe confirmou uma ideia que eu acalentava há muito: ela preferia-o a mim e sempre desejara que ele fosse filho dela. Não apenas no momento em que teria sido razoável pensar que ela estaria mais do que ansiosa por encontrar alguém que substituísse a criatura desprezível com quem ela se cruzara perto da Estação de Convent Garden. Mas muito antes disso, quando eu ainda vivia com ela, quando Kenneth e eu frequentávamos o mesmo ano, ainda que em escolas diferentes.

 

Quando vi as fotografias de ambos nos jornais, pela primeira vez, quando li os artigos, sob a frágil capa da minha indiferença escondia-se o despeito, por baixo dessa fina camada de pele, a reacção à rejeição fervilhava como uma caldeira em ebulição.

 

Dor e ciúme. Senti ambos. E porquê, perguntar-me-ão. Há tantos anos que não nos falávamos, a minha mãe e eu. Por que razão me haveria eu de preocupar com o facto de ela ter decidido partilhar a sua casa e a sua vida com uma pessoa que poderia representar o papel de filho adulto? Eu não quisera desempenhar esse papel, pois não? Pois não?

 

Não acreditam realmente em mim, não é verdade? Tal como Chris, pensam que estou a apresentar demasiados protestos. Julgam que aquilo que eu sentia não era nem dor nem ciúme, não é? Estão a classificá-lo como medo. Estão a pensar que Miriam Whitelaw não irá viver para sempre e que haverá muitos bens a herdar no dia em que ela morrer: a casa de Kensington e respectivo recheio, a fábrica, a casa de campo do Kent, e só Deus sabe quantos investimentos... Não será essa a verdadeira razão por que o estômago de Olivia Whitelaw ficou aos saltos na primeira vez que ela tomou consciência do verdadeiro significado da presença de Kenneth Fleming na vida da mãe? Porque a verdade é que Olivia não teria muitas saídas, ao nível jurídico, se a mãe tivesse decidido deixar todos os seus bens a Kenneth Fleming. Afinal de contas, fora a própria Olivia quem desaparecera, em tempos, da vida da mãe e de uma forma bastante peremptória.

 

Talvez não acreditem no que vou dizer-vos, mas eu não tenho ideia de que essas preocupações fizessem parte daquilo que senti. A minha mãe tinha apenas sessenta anos quando retomou o contacto com Kenneth Fleming, na fábrica. Estava de perfeita saúde. Nunca me ocorreu que ela pudesse morrer, por conseguinte nunca me preocupei verdadeiramente com o destino que ela daria aos seus bens pessoais.

 

Quando me habituei à ideia de que Kenneth e a minha mãe viviam juntos mais, quando a estranheza da situação começou a atrair a atenção do público, no momento em que este se apercebeu de que Kenneth nada fazia para alterar o seu estado civil a minha dor dissolveu-se em incredulidade. Ela tem mais de sessenta anos, pensava eu. Que estará ela a pensar que vai acontecer entre ambos? A incredulidade em breve se transformou em escárnio. Está a ridicularizar-se e não é pouco.

 

Com o passar do tempo e quando comecei a perceber que o acordo entre Kenneth e a minha mãe lhes convinha perfeitamente, esforcei-me por ignorá-los. A quem é que poderia interessar o facto de eles serem mãe e filho, Melhores amigos, amantes, ou os maiores fanáticos de críquete do mundo inteiro? Quanto a mim podiam fazer o que lhes apetecesse. Podiam divertir~se/ ou pavonear-se completamente nus em frente ao Palácio de Buckingham, que eu não fazia tenções de perder nem um minuto de sono por causa disso.

 

Assim, quando Max sugeriu que era tempo de informar a minha mãe sobre a ELA, eu recusei liminarmente. Internem-me num hospital, disse eu Ponham-me numa casa de saúde. Na rua. Mas não quero nem uma palavra àquela bruxa acerca de mim. Entendido? Entendido?

 

Depois dessa noite, ninguém tornou a pronunciar o nome da minha mãe A semente, porém, fora plantada, e essa poderá ter sido a intenção de Max. Se assim é, plantara-a da forma mais inteligente possível: não contes à tua mãe por tua causa. Não é isso que está em jogo. Se decidires contar-lhe fá-lo por Chris.

 

Chris. Bem vistas as coisas, o que é que eu não faria por Chris?

 

Exercício, exercício físico. Caminhadas. Levantamento de pesos. Intermináveis subidas de escadas. Eu seria a vítima que haveria de vencer a doença. E da maneira mais fantástica possível. Não como Hawking, uma mente brilhante confinada a um corpo imobilizado. Eu servir-me-ia da minha mente, perfeitamente controlada, para comandar o meu corpo e triunfar sobre as cãibras, o enfraquecimento, os tremores.

 

No início, a doença progrediu lentamente. Tinham-me prevenido de que isso poderia acontecer, mas eu preferi interpretar a relativa inactividade da doença como uma indicação de que o meu programa de recuperação estava a surtir efeito. Olhem só para mim, observem bem o meu porte, a perna direita não está pior, a esquerda não está afectada, tenho esta ELA bem agarrada e não tenciono largá-la. Mas não havia nenhuma alteração de fundo no meu estado. Este período constituiu um mero interlúdio, uma ironia temporal em que eu me deixei levar e acreditei que seria capaz de deter o movimento da maré, entrando no mar e perguntando delicadamente à água se ela não estaria interessada em demorar-se um pouco mais por ali.

 

A minha perna direita tornou-se um osso rodeado por um monte de carne mole. E por baixo da pele, pendiam os músculos, que se contorciam, contraíam e lutavam entre si, formando nós e transformando-se de novo em simples tiras de cartilagem. Porquê?, perguntei. Porquê? Se os músculos ainda mexem, se ainda sinto cãibras e contorções, porquê, porquê, porque é que não fazem o que eu quero e quando lhes peço? Essa era, no entanto, conforme me disseram, a natureza da doença. É como um cabo de alta tensão que ficou danificado depois de uma tempestade. A corrente eléctrica ainda circula através dele, manifestando-se em faíscas ocasionais, mas a energia produzida não serve para nada.

 

Foi então que a minha perna esquerda começou a fazer das suas. A partir do momento em que começaram as primeiras fibrilações, no restaurante perto de Camden Lock, o processo de desintegração não conheceu tréguas. Tudo aconteceu devagar, é verdade, um enfraquecimento insignificante que se foi tornando cada vez mais acentuado, à medida que as semanas iam passando. Todavia, era impossível negar o avanço da doença. A fibrilação aumentou, terminando em cãibras tremendamente dolorosas. Nesse estádio, o exercício físico ficou fora de questão. Era impossível andar, subir escadas ou levantar pesos quando era necessário concentrarmo-nos em controlar a dor sem ter de esmagar a cabeça na parede mais próxima.

 

Chris nunca disse nada ao longo de todo esse tempo. Não quero dizer que fosse mudo. Pelo contrário. Mantinha-me ao corrente dos progressos conseguidos pela unidade de assalto, falava-me dos seus trabalhos de renovação, pedia-me conselhos sobre a forma de gerir situações delicadas no seio do ARM, conversava sobre os pais, o irmão e planeava levar-me a visitá-los em Leeds.

 

Eu sabia que Chris seria a última pessoa a mencionar a ELA. Fora eu que tomara a decisão de passar a andar de bengala. Fora eu, também, que achara conveniente comprar uma segunda. Sabia que o passo seguinte seria adquirir um andarilho, para que pudesse arrastar-me mais facilmente do quarto para a casa de banho, desta para a cozinha, daqui para a oficina e novamente para o quarto. Depois disso, porém, quando o andarilho começou a impor demasiadas exigências à minha resistência, ver-me-ia forçada a optar por uma cadeira de rodas. E era esta que eu temia a cadeira de rodas que ainda temo desesperadamente e tudo aquilo que ela representava. Estes, no entanto, eram temas que Chris jamais se atreveria a abordar, porque a doença era minha, não dele, e as decisões que a ela diziam respeito e que se referiam à forma de a combater eram minhas, também, não dele. Desse modo, se estas decisões pendentes tivessem de ser discutidas, teria de ser eu a introduzir o assunto.

 

Quando comecei a usar o andarilho de alumínio, a fim de cumprir o trajecto entre a oficina e a cozinha, sabia que chegara o momento de o fazer. O esforço para me movimentar com o andarilho fazia-me suar profusamente nas costas e debaixo dos braços. Tentei convencer-me de que o único problema consistia em habituar-me àquela nova forma de locomoção. Ao fazê-lo, porém, estava a contar com a possibilidade de aumentar a força da parte superior do meu corpo através de uma situação que me sugava as forças a olhos vistos. Chris e eu teríamos de ter uma conversa séria e não havia forma de o evitar.

 

Tinham passado menos de três semanas desde que eu começara a usar o andarilho quando Max veio passar um serão connosco. Foi no início de Abril deste ano, num domingo à noite. Jantámos juntos e depois fomos sentar-nos no tombadilho da lancha, onde ficámos a ver os cães que brincavam no tecto da cabina. Chris subira as escadas carregando-me ao colo, Max acendera-me o cigarro e ambos tinham executado uma vénia antes de desaparecerem dentro da lancha para ir buscar cobertores, conhaque, copos e a taça da fruta. Ouvi o som abafado das suas vozes. Chris dizia, ”Não, nada de facto”, e Max, ”Parece mais fraca”. Virei-me para não ter de continuar a ouvi-los e concentrei-me no canal, no lago e em Browning’s Island.

 

Quase nem conseguia acreditar que já tinha passado cinco anos ali, indo e vindo, trabalhando no jardim zoológico, transportando animais de um lado para o outro, discutindo com Chris, amando-o. Em determinados momentos dera-me conta da paz e da segurança que envolviam aquele lugar, mas nunca nenhum dos diversos elementos que compunham Little Venice tivera tanto significado para mim como naquela noite. Quis abarcar tudo com um só olhar como se inspirasse grandes baforadas de ar. O salgueiro solitário de Browning’s Island que, ao contrário dos outros, se inclina sobre a água como um estudante destemido, os ramos quase roçando o cais. A fileira de lanchas verde-limão, cujos proprietários vêm sentar-se nos tombadilhos quando está bom tempo e nos acenam quando saímos para levar os cães a passear. O ferro forjado verde e vermelho da ponte de Warwick Avenue e a sucessão infinita de casas brancas que se erguem, alinhadas, ao longo da avenida que conduz à ponte. E em frente às casas, as bonitas cerejeiras que começam a evidenciar os primeiros rebentos, cujas flores o vento acaricia como se fossem cabelos de anjos, fazendo-as flutuar até pousarem no passeio onde formam tapetes cor-de-rosa. Os pássaros espalham as pétalas. Lançam-se, velozes, da Warwick Avenue em direcção ao canal. Aí esvoaçam de árvore em árvore, até à plataforma de acesso, em busca de pedaços de fio, galhos tenros e cabelos com os quais possam construir os seus ninhos... Como poderia eu deixar aquele lugar?

 

Tornei a ouvir as vozes deles.

 

... difícil, sabes... Ela chama-lhe a nossa prova de fogo... faz o melhor que pode para compreender...

 

Ao que Max respondeu:

 

... sempre que precises de te afastar, percebes. E Chris:

 

Obrigado. Eu sei. Torna as coisas mais fáceis de suportar. Contemplei a água, a forma como os contornos das árvores do canal e dos edifícios que se erguiam para além delas ziguezagueavam sobre a superfície enrugada da água. Vi o ganso saltar para dentro de água, a partir das margens da ilha, e gerar uma série de ondas circulares que se iam tornando cada vez mais amplas até alcançarem, por fim, a lancha. Não me sentia traída pelo facto de Chris e Max estarem a falar sobre mim, sobre aquela cujo nome eu desconhecia ainda, sobre a situação infeliz em que todos nós nos encontrávamos. Chegara o momento de eu própria dizer alguma coisa.

 

Eles regressaram com o conhaque, os copos e a fruta. Chris enrolou um cobertor à volta das minhas pernas e, com um sorriso, fez-me uma festa na face. Beans saltou do tecto da cabina para o tombadilho, radiante perante a perspectiva de poder vir a comer qualquer coisa. Toast começou a percorrer a extremidade do tecto, latindo e esperando que alguém o ajudasse a descer.

 

Está a comportar-se como um bebé disse Chris, quando Max se aproximou de Toast para o ajudar a descer. É perfeitamente capaz de descer sozinho.

 

Claro que pode, mas é um amor, não é? disse Max ao colocar Toast ao lado de Beans. E, nesse caso, não me importo de me dar a esse trabalho.

 

Desde que ele não se habitue a mimos disse Chris. Pode tornar-se demasiado dependente, se souber que há alguém disposto a fazer por ele aquilo que ele pode fazer por si próprio. E isso, meu amigo, será a sua ruína.

 

O quê? perguntei. A dependência?

 

Max cortou uma maçã com movimentos lentos. Chris serviu o conhaque e sentou-se aos meus pés. Puxou Beans para si e fez uma festa no sítio sensível a que chamava ”a zona de supremo êxtase canino”, exactamente por baixo das orelhas moles do animal.

 

É, de facto disse eu.

 

É o quê? perguntou Chris. Max deu um quarto da maçã a Toost.

 

A ruína. Tens razão. A dependência leva à ruína.

 

Estava a falar por falar, Livie.

 

É como uma rede de pesca continuei. Já as viste, não viste? Aquelas que os barcos espalham à superfície da água para apanhar um cardume de cavalas, ou outro peixe do género. É isso a ruína, uma rede. Não se limita a capturar e a destruir o elemento dependente, mas todos os outros também. Todos os pequenos peixes que nadam despreocupadamente ao lado do único peixe que é o primeiro a ser uma criatura dependente.

 

Essa é uma metáfora um pouco exagerada, miúda.

 

Max enterrou a faca noutro quarto de maçã e estendeu-mo. Abanei a cabeça.

 

Serve disse eu. Olhei para Chris e ele devolveu-me o olhar. A mão dele parou de afagar as orelhas do beagle. Beans empurrou os dedos dele com o focinho. Chris baixou os olhos.

 

Se todos aqueles peixes nadassem longe uns dos outros nunca seriam apanhados disse eu. Talvez um ou dois, ou dez ou doze. Mas não o cardume inteiro. E essa é a parte triste do facto de eles andarem sempre juntos.

 

É o instinto argumentou Chris. É assim que eles funcionam. Cardumes de peixes, bandos de aves, manadas de animais. Vai tudo dar ao mesmo.

 

Excepto quando se trata de pessoas. Nós não precisamos de funcionar por instinto. Podemos pensar nas coisas racionalmente e fazer o que é Melhor para poupar os nossos semelhantes às consequências da nossa própria ruína. Não concordam? Chris? Então?

 

Ele começou a descascar uma laranja. Eu senti o aroma ácido na língua

quando inspirei profundamente. Começou a dividir a laranja em pequenos Quartos. Estendeu-me um. Os nossos dedos tocaram-se quando eu peguei na laranja. Ele virou a cabeça e contemplou a água como se estivesse à procura de detritos.

 

Aquilo que dizes faz algum sentido, miúda disse Max.

 

Max interveio Chris, num tom de voz cauteloso.

 

É uma questão de responsabilidade acrescentou Max. Até que ponto somos responsáveis pelas vidas que entretanto se cruzaram com as nossas?

 

E pela ruína dessas vidas disse eu. Sobretudo quando fazemos vista grossa em relação ao que podemos fazer para impedir a ruína.

 

Max deu o resto da maçã aos cães um quarto para Beans, outro para Toast. Espetou a faca numa segunda maçã. Desta vez, porém, descascou-a começando no topo e esforçando-se por formar uma espiral única e perfeita. Observámo-lo, Chris e eu. A faca deslizou a três quartos do percurso, cortando a casca, que caiu no chão do tombadilho. Ficámos os três a olhar para ela, caída sobre o chão de madeira, uma fita vermelha assinalando uma tentativa falhada para alcançar a perfeição.

 

Não posso disse eu. Percebem isso, não percebem?

 

O quê? perguntou Chris.

 

Ser responsável.

 

Por quê?

 

Tu sabes o que quero dizer. Vá lá, Chris.

 

Observei-o com atenção. As minhas palavras tinham forçosamente de o deixar aliviado. Não era mulher dele, nem sequer era sua amante. Nunca fora nem uma nem outra, nunca me fora prometido que poderia ser uma coisa ou outra. Eu era, cinco anos depois, a prostituta que ele encontrara na rua, em frente ao Exhibition Centre de Earl’s Court, quando por lá passava acompanhado por um cão num estado miserável. Eu cumprira a minha parte do acordo enquanto co-habitante da lancha. Contribuíra para as despesas comuns. Em breve, porém, iria deixar de poder continuar a colaborar tão activamente como antes. Ambos sabíamos isso. Por isso fiquei a olhar para ele, à espera de um sinal que me dissesse que ele reconhecia que o momento da sua libertação estava próximo.

 

E, ao mesmo tempo, devo confessar que queria que ele protestasse. Imaginava-o, dizendo, ”Eu aguento-me. Nós dois vamos conseguir aguentar-nos. Sempre conseguimos e havemos de continuar a conseguir. Estamos juntos nisto, tu e eu, Livie. E vamos ficar juntos até ao fim”.

 

Porque ele dissera-o antes, por palavras muito diferentes, quando era mais fácil, quando a ELA não estava ainda tão avançada. Nesses tempos podíamos falar corajosamente sobre como seria o futuro, pois este vinha ainda longe e nós não tínhamos de o enfrentar. Desta vez, no entanto, ele não disse nada. Puxou Toast para junto de si e começou a examinar o emplastro que o cão tinha entre os olhos. O animal, encantado com as atenções que lhe eram dis” pensadas, agitava, alegremente, a cauda que embatia no chão do tombadilho.

 

Chris?

 

Tu não és a minha ruína respondeu ele. É uma situação difícil, nada mais.

 

Max tirou a rolha da garrafa de conhaque e encheu os nossos copos, embora nenhum de nós tivesse bebido ainda uma única gota. Durante alguns instantes, pousou a mão enorme sobre os meus joelhos e apertou-os. O gesto significava: Coragem, miúda, não te deixes abater.

 

As minhas pernas estão cada vez mais fracas. O andarilho já não é suficiente.

 

Precisas de te habituar a isso. Recuperar as tuas forças.

 

Dentro de pouco tempo, as minhas pernas vão parecer esparguete cozido, Chris.

 

Isso é porque não estás a fazer exercício suficiente. Não estás a usar o andarilho tanto como deverias.

 

Mais dois meses e nem sequer vou conseguir ficar de pé.

 

Se os teus braços estiverem suficientemente fortes...

 

Raios te partam, Chris, ouve o que estou a tentar dizer-te. Vou precisar de uma cadeira de rodas.

 

Chris ficou calado. Max levantou-se, encostou-se ao tecto da cabina. Bebeu um pouco de conhaque. Pousou o copo sobre o tecto da cabina e procurou uma ponta de charuto dentro do bolso, que levou à boca ainda por acender.

 

Muito bem, nesse caso havemos de arranjar uma cadeira de rodas disse Chris.

 

E depois? perguntei.

 

Depois, o quê?

 

Onde é que eu vou viver?

 

O que é que queres dizer com isso? Aqui, claro. Onde é que havia de ser?

 

Não sejas ridículo. Não posso viver aqui. E tu sabes isso. Foste tu que construíste a lancha, não foste? Chris lançou-me um olhar inexpressivo. Não posso ficar aqui continuei. Não vou conseguir movimentar-me.

 

Claro que vais...

 

As portas, Chris.

 

Tinha dito tudo o que tinha para dizer. O andarilho, a cadeira de rodas. Ele não precisava de saber mais nada. Não podia falar das vibrações que tinham começado a afectar-me os dedos das mãos. Não era capaz de lhe confessar que a caneta deslizava sobre o papel como uma sola de cabedal sobre uma superfície de madeira polida, sempre que eu tentava escrever. Na verdade, isso seria o mesmo que admitir que até a cadeira de rodas que eu tanto temia e odiava apenas me seria útil durante escassos meses, antes que a doença tornasse os meus braços tão inúteis como as minhas pernas.

 

Ainda não estou doente o suficiente para ser internada numa casa de saúde disse-lhe, mas estou a ficar demasiado doente para poder continuar a viver aqui.

 

Max atirou a ponta de charuto ainda apagada para dentro da lata de conservas. Contornando os cães, esparramados ao lado de Chris, aproximou-se das costas da minha cadeira. Senti as mãos dele sobre os meus ombros. Senti o calor e a pressão, o indício subtil de uma massagem. Ele v em mim uma alma nobre, a nata das mulheres inglesas em declínio, uma sofredora conferindo ao seu bem-amado o direito à liberdade e a uma vida própria. Que imbecilidade. Eu limitava-me a flutuar entre o vazio e o nada

 

Nesse caso, mudamos de casa disse Chris. Para um sítio onde te possas deslocar à vontade na cadeira de rodas.

 

Nem penses em deixar a tua própria casa recusei. Isso é a última coisa que vamos fazer.

 

Eu posso alugar a lancha com muita facilidade, Livie. Provavelmente por mais do que aquilo que pagaríamos por um apartamento. Não quero que tu...

 

Já lhe telefonei disse eu. Ela sabe que quero encontrar-me com ela. Só não sabe porquê.

 

Chris levantou a cabeça e olhou para trás de mim. Mantive-me perfeitamente imóvel. Esforcei-me por fazer renascer a personagem de Liv Whitelaw, a fora-de-lei, a fim de poder manter a mentira até ao fim.

 

Está tudo combinado disse eu.

 

E quando é que vais encontrar-te com ela?

 

Quando eu achar que é o momento adequado. Por agora limitei-me a retomar o contacto com ela e a perguntar-lhe se estaria disposta a encontrar-se comigo um destes dias.

 

E ela?

 

Continua a ser minha mãe, Chris.

 

Apaguei o cigarro e fiz deslizar outro para o colo. Segurei-o entre os dedos sem o aproximar dos lábios. Não me apetecia fumá-lo. Queria apenas ter as mãos ocupadas enquanto esperava a reacção dele. Chris, no entanto, ficou calado. Foi Max quem falou.

 

Tomaste uma decisão acertada, miúda. Ela tem o direito de saber. E tu tens direito à ajuda que ela te pode dar.

 

Eu não queria a ajuda dela. Queria trabalhar no jardim zoológico, correr ao longo do canal na companhia dos cães, diluir-me nas sombras de laboratórios no meio de um grupo de libertadores, brindar às nossas vitórias ao lado de Chris, ficar à janela do apartamento onde a unidade de assalto se encontrava, perto de Wormwood Scrubs, olhar para a penitenciária e agradecer a Deus por já não ser prisioneira de nada.

 

Está tudo combinado, Chris repeti.

 

Ele passou os braços à volta das pernas e descansou a cabeça sobre os joelhos.

 

Se é isso que tu queres... disse ele.

 

Sim. É isso que eu quero menti.

 

                                               CAPÍTULO 18

Lynley escolheu o Concerto Bindeburguês Número Um. A música lembrava-lhe a sua infância, as correrias despreocupadas através do parque da mansão familiar, na Cornualha, desafiando o irmão e a irmã para uma corrida até ao bosque ancestral que protegia Howenstow do mar. Bach não era tão exigente como os compositores russos. Era espuma, ar, o companheiro ideal para momentos de reflexão sobre temas alheios à música.

 

Lynley fez girar o resto de uísque que ainda havia dentro do copo, vendo o âmbar assumir progressivamente uma tonalidade dourada à medida que a luz incidia sobre o líquido. Terminou a bebida, saboreando o calor deixado pelo álcool ao deslizar pela garganta, e pousou o copo perto da garrafa de cristal colocada sobre a mesa de cerejeira, ao lado do cadeirão onde se sentara. O concerto de Bach prosseguia numa sucessão veloz de violinos e trompas e os pensamentos de Lynley atropelavam-se à mesma velocidade vertiginosa dentro da sua cabeça.

 

Ele e a sargento Havers tinham-se separado depois de terem jantado juntos em Kensington. Havers apanhara o metro que a deixaria perto do carro, estacionado no parque da New Scotland Yard, e Lynley decidira fazer nova visita a Staffordshire Terrace. O concerto proporcionava, aliás, o fundo sonoro para uma reflexão sobre esta visita e a sensação de inquietação que a mesma lhe deixara.

 

Miriam Whitelaw conduzira-o, mais uma vez, até à sala de estar do primeiro andar, onde um solitário candeeiro de bronze derramava um cone de luz sobre uma poltrona. O candeeiro pouco fazia para dissipar a obscuridade sepulcral que envolvia a divisão, e Miriam Whitelaw, vestida com uma túnica e umas calças pretas, diluía-se nas trevas sem dificuldade. Era evidente, no entanto, que não o levara para aquela parte da casa com um propósito deliberado, sabendo que ele tencionava interrogá-la e procurando, por isso, refúgio nas sombras. Antes pelo contrário. Já lá devia estar instalada antes da sua chegada, pois murmurara:

 

Tenho dificuldade em suportar a luz. Mal a vejo, a minha cabeça começa a latejar, em seguida aparecem as enxaquecas e não consigo mexer um único dedo. O melhor que tenho a fazer, nesse caso, é evitar chegar a um tal estado.

 

Deslocara-se lentamente, mas com desembaraço, por entre a exuberância de mobiliário e acendera um candeeiro coberto por um quebra-luz adornado de franjas, colocado atrás do piano. Em seguida, ligara outro que se encon trava sobre uma mesa de abas. Nenhuma das lâmpadas era muito intensa pelo que a sala continuou envolta numa luminosidade difusa, recriando, sem dúvida, o ambiente proporcionado pelos candeeiros a gás dos tempos do seu avô.

 

A obscuridade ajuda-me a fazer de conta. Tenho estado aqui sentada imaginando sons parecendo ler a pergunta espelhada no rosto de Lynley imerso nas sombras, continuou sem sobressaltos. Ouvia sempre Ken chegar a casa, antes de o ver entrar. O bater da porta da garagem. O eco dos seus passos nas lajes do jardim. A porta da cozinha. Estava a tentar recriar todos estes sons. A tentar ouvi-lo chegar. Não estava a tentar imaginá-lo aqui nesta sala, nem sequer dentro desta casa, pois sei que isso é impossível. Imaginava a sua chegada, apenas. E os sons que a acompanhavam. Porque, se for capaz de os reavivar na minha mente, terei a ilusão de que ele não desapareceu por completo.

 

Aproximara-se de uma poltrona sobre a qual repousava uma velha bola de críquete, junto a uma almofada persa. Sentou-se e pegou na bola. Um gesto tão natural que deu a entender a Lynley que, antes da sua chegada, ela deveria ter estado sentada naquela mesma posição, na penumbra.

 

Jean telefonou-me ao fim da tarde dissera ela. Para me dizer que tinham levado Jimmy para a Yard. Jimmy. As mãos dela tremeram e os seus dedos agarraram na bola com mais força. Tenho finalmente a sensação de me ter tornado demasiado velha, inspector. Já não compreendo nada. Nem os homens, nem as mulheres. Nem os maridos, nem as esposas. Nem os pais, nem os filhos. Já não compreendo nada.

 

Lynley aproveitara a oportunidade para lhe perguntar por que razão não lhe falara na visita da filha, na noite em que Fleming morrera. Durante alguns instantes, ela ficara calada. O tiquetaque do relógio de sala parecia ressoar com intensidade acrescida, quebrando o silêncio que se instalara na sala. Finalmente, murmurara no tom característico de alguém que acabava de sofrer uma derrota.

 

Falou com Olivia.

 

Ele dissera que sim, que tinha falado com Olivia por duas vezes e, tendo em conta que ela já lhe mentira uma vez sobre o seu paradeiro na noite em que Fleming morrera, interrogara-se sobre se lhe teria mentido também a propósito de outra coisa. Ou se a mãe dela lhe teria mentido, também.

 

Não se tratou de uma mentira disse Mrs. Whitelaw. Apenas de uma omissão.

 

E explicou-lhe, como fizera a filha, embora com muito mais calma e resignação, que a visita de Olivia nada tivera que ver com o caso e que ao discuti-la com ele estaria a violar o direito da filha à sua privacidade. E ela tinha esse direito, assegurara Mrs. Whitelaw. Era, aliás, uma das poucas coisas que lhe restavam.

 

Perdi-os a ambos. Ken... agora. E Olivia... Encostou a bola de críquete ao peito, como se com esse gesto procurasse reunir coragem para continuar. Olivia, em breve. E de uma forma tão brutal que quando penso nisso... algo que me é muito difícil... quando penso que ela vai perder o controlo do seu corpo, o seu orgulho próprio, e que até ao último minuto de vida vai estar perfeitamente consciente desse processo abominável... A minha filha Olivia era, de facto, uma pessoa orgulhosa, altiva, uma criatura selvagem e indomável que durante anos transformou a minha vida num inferno até eu já não conseguir suportar a sua presença e abençoar o dia em que, finalmente, me vi forçada a romper definitivamente com ela. Parecia prestes a perder a compostura, mas conseguiu dominar-se. Não, de facto não lhe falei em Olivia, inspector. Não podia. Ela está a morrer. Já me foi difícil ter de falar sobre Ken. Mencionar Olivia ter-me-ia sido... insuportável.

 

Naquele momento, porém, não lhe restava outra alternativa a não ser falar, pensara Lynley. Em seguida, quisera saber por que motivo Olivia viera visitá-la. Para fazer as pazes, respondera Mrs. Whitelaw. E pedir ajuda.

 

Virara a cabeça na direcção de uma das orelhas da poltrona, murmurando num tom extremamente cansado:

 

Porque se recusa a acreditar em mim? Olivia não teve nada a ver com a morte de Ken.

 

Pessoalmente, talvez não dissera Lynley, aguardando a reacção dela.

 

A cabeça ainda virada para a orelha do cadeirão, a mão crispada sobre a bola de críquete, que continuava a segurar junto ao peito, Mrs. Whitelaw permanecera imóvel. Quase um minuto se escoara antes que ela se decidisse a perguntar-lhe onde é que ele pretendia chegar.

 

Fora então que ele partilhara com ela a dúvida que continuava a obcecá-lo naquele preciso momento, na sala de Eaton Terrace, que o obcecara durante o jantar com a sargento Havers: Chris Faraday também estivera ausente durante toda a noite de quarta-feira. Tal como Olivia. Será que ela, Mrs. Whitelaw, estava ao corrente desse facto?

 

Não. Não estava.

 

Lynley não julgara necessário esclarecer Mrs. Whitelaw sobre o alibi apresentado por Faraday. Fora, no entanto, esse mesmo alibi que o deixara extremamente intrigado desde que ele e Havers tinham visitado a lancha pela Primeira vez.

 

A história de Faraday, o relato do que fizera na noite de quarta-feira tinha-lhe soado como um texto decorado. Que ele recitara praticamente sem hesitações. A lista dos amigos presentes na festa, o rol dos filmes que tinham alugado, o nome e morada do clube de vídeo. A própria tranquilidade com que Faraday descrevera os acontecimentos da noite, como se fosse algo muito bem preparado com antecedência. Sobretudo a excelente capacidade de memória de que dera mostras, ao lembrar-se de todos os filmes que tinham visto, nada de grandes e aparatosas produções made in Hollywood, recheada de estrelas bem conhecidas, mas filmes pornográficos de segunda categoria como Betty assalta Banguecoque, ou Calcinhas em Chamas, ou fosse o que fosse que Faraday lhes chamara. E quantos tinha ele conseguido enumerar sem qualquer dificuldade? Dez? Doze? A sargento Havers teria argumentado que nada seria mais fácil de verificar. Bastava que fizessem uma visita ao clube de vídeo e comprovassem a veracidade da história de Faraday. Lynley no entanto, não tinha quaisquer dúvidas de que os registos da loja revelariam que aqueles filmes tinham, de facto, sido alugados naquela noite, ou pelo próprio Faraday, ou por um dos tipos cujo nome figuraria na lista de amigos que ele lhes fornecera. E era isso, precisamente, que o deixava tão desconfiado. Era um alibi demasiado perfeito.

 

O namorado de Olivia? perguntara Mrs. Whitelaw. Mas então porque é que levaram Jimmy? Jean disse que tinham levado Jimmy.

 

Para o interrogar, apenas, retorquira Lynley. Por vezes, o facto de entrar na New Scotland Yard era suficiente para avivar a memória de uma pessoa. Haveria outros acontecimentos relativos à noite de quarta-feira que Mrs. Whitelaw quisesse contar-lhe? Algum pormenor que tivesse omitido nas conversas que tinham tido anteriormente?

 

Não, dissera. Nada. Ele estava a par de tudo, agora.

 

Lynley não acrescentara mais nada, esperando até que tivessem alcançado a porta da entrada, o rosto directamente iluminado pelo candeeiro do vestíbulo. Nessa altura, detivera-se, a mão pousada sobre a maçaneta da porta, e fingira lembrar-se de algo subitamente. Virara-se para Mrs. Whitelaw e perguntara:

 

Gabriella Patten. Teve notícias dela?

 

Há semanas que não falo com Gabriella. Já a localizaram? -Já.

 

Ela... Como é que ela está?

 

Não como seria de esperar de uma mulher que acabou de perder o homem com quem planeava casar-se.

 

Bom dissera ela, Gabriella é assim, não é verdade?

 

Não sei respondera Lynley. É?

 

Gabriella não chegava aos calcanhares de Ken, inspector dissera Mrs. Whitelaw. Lamento apenas que ele não se tenha apercebido desse facto.

 

Será que ainda estaria vivo, se se tivesse dado conta?

 

Acredito que sim.

 

À luz mais intensa do vestíbulo, ele reparara que ela tinha feito um golpe na testa. Um emplastro fora colocado ao longo da raiz dos cabelos. Uma gota de sangue grumosa, vermelho-escura, como um sinal canceroso perpassara através da gaze. Levou os dedos à testa e roçou-os pelo penso, dizendo:

 

Foi mais fácil.

 

O quê?

 

Ferir-me. A dor física é mais forte do que a outra.

 

Com efeito concordou Lynley, com um assentimento de cabeça. Afundou-se ainda mais na poltrona da sala de Eaton Terrace. Esticou as pernas e lançou um olhar especulativo na direcção da garrafa do uísque, perto do copo vazio. Resistiu ao impulso, juntando os dedos sob o queixo e observando atentamente os desenhos do tapete de Axminster. Reflectiu sobre a verdade, as meias-verdades, as mentiras e as crenças a que nos agarramos, aquelas que adoptamos em público e na força assustadora em que o amor se pode tornar quando é demasiado intenso, quando uma paixão outrora recíproca é rejeitada, ou quando simplesmente não é correspondida.

 

Regra geral, o amor obsessivo e não correspondido não terminava no assassínio do ser amado. O apagamento perante a vontade do outro podia revestir-se de múltiplas formas. Todavia, quando a cedência à obsessão se tornava fatal, podia conduzir à catástrofe.

 

Se este raciocínio pudesse ser aplicado ao homicídio de Kenneth Fleming, é porque o seu assassino o amara tanto quanto o odiara. Matar Fleming teria sido uma forma de o assassino realizar um matrimónio com a vítima, forçando um laço indissolúvel entre os corpos e as almas de ambos, criando, na morte, um elo permanente que jamais poderia ter sido alcançada em vida.

 

Só que todas estas reflexões levavam Lynley a interrogar-se sobre Gabriella Patten. E ele não podia fugir a Gabriella Patten à sua personalidade, aos seus gestos e movimentos, às suas declarações, se quisesse descobrir a verdade.

 

A porta da sala entreabriu-se ligeiramente e Denton espreitou para o interior da divisão. Quando o seu olhar se cruzou com o de Lynley, ele entrou e, com passos silenciosos, aproximou-se da poltrona onde Lynley estava sentado. Pegou na garrafa de cristal que estava em cima da mesa, com uma expressão que parecia querer dizer, ”Deseja que o sirva, senhor?” Lynley disse que sim com a cabeça. Denton serviu-lhe mais um pouco de uísque e arrumou a garrafa junto das outras, no armário. Lynley sorriu perante aquela subtil gestão do seu consumo de álcool. Denton era hábil, sem dúvida. Enquanto ele estivesse por perto, não correria o risco de cair nas garras da dipsomania.

 

Vai desejar mais alguma coisa, senhor? Denton elevou o tom de voz, a fim de se fazer ouvir. Lynley fez-lhe sinal para que baixasse o volume da aparelhagem e Bach tornou-se uma suave música de fundo.

 

Lynley fez a pergunta desnecessária, dado que o silêncio do seu mordomo era já em si mesmo uma resposta.

 

Lady Helen não telefonou?

 

Não desde esta manhã.

 

Denton sacudiu um grão de pó que lhe maculava a manga do casaco.

 

E a que horas foi isso?

 

A que horas? Reflectiu sobre a pergunta erguendo os olhos para o tecto, como se a resposta à pergunta de Lynley aí se encontrasse. Cerca de uma hora depois de o senhor e a sargento Havers terem saído.

 

Lynley pegou no copo e fez rodopiar o uísque, enquanto Denton tirava um lenço de dentro do bolso e o passava futilmente ao longo da parte de cima de um móvel. Fez o mesmo a uma das garrafas de cristal. Lynley pigarreou e esforçou-se para que a sua pergunta soasse casual.

 

Como é que ela te pareceu?

 

Quem?

 

Helen.

 

Pareceu?

 

Sim. Acho que a minha pergunta é suficientemente clara. Como é que ela te pareceu?

 

Denton franziu o sobrolho, pensativo, mas não conseguiu deixar de se exceder um pouco na personificação da imagem da Contemplação.

 

Como é que ela pareceu... Bom... Deixe-me pensar...

 

Denton, responde de uma vez por todas, está bem?

 

Claro, senhor. É só que não consegui realmente...

 

Poupa-me. Sabes perfeitamente que tivemos uma discussão. Não estou a acusar-te de andares a escutar atrás das portas, mas uma vez que apareceste no momento exacto, sabes que tivemos um desentendimento. Por isso, responde à minha pergunta. Como é que ela te pareceu?

 

Bom, na verdade, pareceu-me igual a ela própria.

 

Pelo menos, pensou Lynley, ele teve a delicadeza de fazer um ar contrito ao revelar a informação. Denton, no entanto, não era homem para decifrar as subtilezas espelhadas num rosto feminino, como o atestava a sua vida sentimental, mais fértil em momentos baixos do que altos. Lynley continuou, então:

 

Não estava furiosa? Não te pareceu...

 

Que palavra procurava ele, exactamente? Pensativa? Desencorajada. Determinada? Exasperada? Infeliz? Ansiosa? Qualquer uma delas seria uma escolha acertada.

 

Achei que ela estava igual a si própria repetiu Denton. Tal e qual Lady Helen.

 

Isso significava, concluiu Lynley, impassível. O que era, por seu turno, o ponto forte de Helen. Sabia manejar a calma e o sangue-frio com a mesma facilidade com que manusearia uma caçadeira. Ele próprio já fora apanhado na linha de fogo mais de uma vez, e a sua constante recusa em ceder a um acesso de mau humor era algo que o deixava literalmente furioso.

 

Merda, pensou, e acabou de beber o uísque. Queria acrescentar, ”Merda! Quero é que ela vá para o diabo”. Mas não conseguia.

 

É tudo, senhor? tornou a perguntar Denton.

 

O seu rosto assumira uma expressão imperscrutável e a voz alterara-se, adquirindo um tom irritantemente servil.

 

Por amor de Deus, Denton, pára de te armares em Jeeves.! É tudo, sim.

 

Muito bem, senh...

 

Denton! exclamou Lynley. O mordomo sorriu.

 

Muito bem aproximou-se novamente da poltrona de Lynley e pegou no copo de uísque vazio. Vou deitar-me, então. Os seus ovos, amanhã de manhã, como é que os quer?

 

Cozidos respondeu Lynley.

 

Excelente ideia.

 

Denton tornou a elevar o volume do concerto de Bach e deixou Lynley entregue aos seus pensamentos.

 

Lynley espalhara os matutinos sobre a secretária e estava a examinar o seu conteúdo quando o superintendente Malcolm Webberly apareceu. Chegou envolto numa espessa nuvem de fumo e precedido pelo odor acre do seu charuto. Sem sequer levantar os olhos dos jornais e antes que o seu superior hierárquico tivesse proferido palavra, Lynley murmurou, ”Senhor”, cumprimentando-o enquanto comparava o tratamento que os diferentes jornais tinham dado à investigação do homicídio de Fleming. O Daily Mail consagrava-lhe a totalidade da sua primeira página. The Times reservara-lhe a página três, o Guardian, a página sete e o Daily Mirror, a primeira página e uma fotografia de meia página de Jean Cooper precipitando-se para o carro de Lynley com um saco de papel na mão. Faltava-lhe examinar ainda o Independent, o Observer e o Daily Telegraph, e Dorothea Harriman saíra a fim de tentar adquirir um exemplar do Sun e do Daily Express. Até àquele momento, todos os jornais agiam com grande cuidado, fazendo os possíveis para não serem acusados de abuso de informação. Nenhum deles publicava uma fotografia nítida de Jimmy Cooper. Nenhum deles mencionava o seu nome, relacionando-o com o rapaz de dezasseis anos até agora não identificado que ”estava a auxiliar a polícia nas suas investigações”. Limitavam-se a uma mera enumeração de pormenores, apresentados segundo uma ordem que

 

Alusão à personagem criada por P. G. Wodehouse. [N. da T.]

 

qualquer pessoa minimamente inteligente e capacitada para ler nas entrelinhas seria capaz de compreender.

 

Webberly aproximou-se arrastando consigo um intenso odor a tabaco. Impregnava-lhe o casaco e escapava-se do seu corpo em vagas sucessivas. Lynley tinha a certeza que o superintendente ainda cheirava intensamente a charuto mesmo depois de ter tomado banho, escovado os dentes, aplicado o elixir bocal e penteado os cabelos.

 

Quem é que está a controlar as relações com a imprensa? quis saber Webberly.

 

Sou eu elucidou Lynley.

 

Cuidado, para não deitar tudo a perder.

 

Webberly pegou no Daily Mirror, lançou-lhe uma olhadela rápida e resmungou, ”Abutres”, deixando-o cair novamente sobre a secretária de Lynley. Acendeu um fósforo. Lynley ergueu a cabeça no momento em que Webberly aproximava a chama de um charuto meio consumido, que acabava de tirar do bolso do casaco. Com uma expressão pesarosa, Lynley tornou a centrar a sua atenção nos jornais.

 

Webberly passeava pelo gabinete, inquieto. Remexeu num monte de pastas. Tirou uma cópia de um relatório de dentro de um arquivador metálico. Tornou a arrumá-la. Suspirou. Por fim, confessou:

 

Para ser franco, meu rapaz, estou preocupado. Lynley tornou a erguer a cabeça e Webberly prosseguiu: Você tem uma matilha de caçadores de notícias à porta do gabinete de imprensa e um segundo grupo lá fora, que não lhe dá tréguas. Na minha opinião, é deliberado. E, nesse caso, qual é o rumo de toda esta história? Só estou a fazer-lhe esta pergunta, porque Hillier vai com certeza querer saber, se por acaso chegar à Yard enquanto a matilha ainda ansiar pela raposa. Os jornalistas podem muito bem lançar-se no encalço dele, uma situação que, conforme não preciso de lhe recordar, seria preferível evitar.

 

Havia alguma verdade naquele comentário. Sir David Hillier era o superintendente-chefe, e gostava que o seu departamento funcionasse como uma máquina bem oleada: com eficácia e, se, possível, em silêncio. A presença dos jornalistas iria provavelmente sugerir a Hillier que uma das peças da engrenagem estava avariada, ou pelo menos, em vias de avariar. O que não iria deixá-lo muito satisfeito.

 

Era de esperar uma reacção deste género por parte da imprensa comentou Lynley, dobrando um exemplar de The Times e substituindo-o pelo do Independent. Fleming era um desportista, uma figura nacionalNão se pode esperar que a investigação do seu homicídio decorra sem atrair as atenções da comunicação social.

 

Uma abominável nuvem de fumo elevou-se entre ele e os jornais. Lynley tossiu discretamente, mas Webberly ignorou-o.

 

E é essa a resposta que acha que devo dar a Hillier? perguntou o superintendente.

 

Se ele perguntar, sim.

 

Lynley folheou o Independent e deixou escapar uma exclamação de surpresa quando os seus olhos caíram sobre a fotografia da página três. Através do vidro do Bentley era possível distinguir os contornos vagos da cabeça de Jimmy Cooper. E, reflectidas no vidro, as inconfundíveis letras prateadas do símbolo rotativo da Yard.

 

Olhando por cima do ombro, Webberly suspirou.

 

Não estou a gostar disto, meu rapaz. Se você não tem cuidado, pode dar cabo do caso antes mesmo de ele chegar a tribunal.

 

Eu estou atento replicou Lynley. Mas é uma questão de química elementar, quer queiramos quer não.

 

E isso significa?

 

Se aumentarmos a pressão, alteraremos a temperatura esclareceu Lynley.

 

Isso é para os líquidos, Tommy. Estamos a lidar com pessoas. E as pessoas não fervem.

 

Tem razão. Quebram.

 

Consegui encontrar tudo o que me pediu, inspector Lynley disse, ofegante, Dorothea Harriman, entrando de rompante no gabinete com uma pilha de jornais debaixo do braço. Sun, Express, o Telegraph de ontem, o Mail de ontem e com um olhar incisivo na direcção de Webberly: Sigmund Freud fumava doze charutos por dia. Sabia disso, superintendente Webberly? Acabou por ter cancro no céu da boca.

 

Mas aposto que morreu com um sorriso nos lábios retorquiu Webberly.

 

Harriman revirou os olhos numa careta expressiva.

 

Mais alguma coisa, inspector Lynley?

 

Lynley considerou a hipótese de lhe pedir que parasse de lhe chamar inspector a toda a hora, mas sabia que o pedido não teria seguimento.

 

É tudo, Dee.

 

O gabinete de imprensa quer saber se tenciona falar aos repórteres esta manhã. O que é que lhes digo?

 

Que, hoje, vou dar esse prazer aos meus superiores hierárquicos.

 

Senhor? A sargento Havers assomou à porta do gabinete, enfiada num amarrotado fato castanho que parecia ter sido já muito útil como pano de loiça. O contraste entre ela e a secretária de Webberly impecavelmente vestida num fato em crepe bege adornado por um vivo preto onde não se via O mais pequeno vestígio de tinta era gritante. O rapaz está cá.

 

Lynley olhou para o relógio. Passavam quatro minutos das dez.

 

Óptimo disse, tirando os óculos. Vou já. O advogado está com ele?

 

Um tipo chamado Friskin. Segundo ele, o nosso querido Jimmy não tem mais nada a dizer à polícia, por agora.

 

Ai não? Lynley pegou no casaco, que estava pendurado nas costas de uma cadeira, e nas pastas relativas ao processo de Fleming, escondidas por baixo dos jornais. É o que vamos ver.

 

Seguiram para a sala de interrogatórios, evitando inspectores, funcionários, secretários e mensageiros que circulavam pelos corredores. Havers caminhava ao lado de Lynley. Consultava os blocos-notas e punha-o ao corrente dos últimos desenvolvimentos. Nkata estava a investigar o clube de vídeo de Berwick Street enquanto outro agente se encarregava de escrutinar as imediações de Clapham, onde alegadamente decorrera a festa ”só para homens” Continuavam sem notícias da equipa da inspectora Ardery. Deveria telefonar para Maidstone e agitar um pouco as águas?

 

Espere até ao meio-dia decidiu Lynley.

 

Muito bem retorquiu Havers, dirigindo-se à sala de operações em passo acelerado.

 

Friskin pôs-se imediatamente de pé no momento em que Lynley abriu a porta da sala de interrogatórios. Avançando na sua direcção, disse:

 

Gostaria que me concedesse alguns minutos, inspector e saiu para o corredor, onde por pouco não chocou com um dos funcionários do arquivo. Tenho sérias dúvidas sobre a legitimidade do interrogatório a que o meu cliente foi submetido, ontem. Segundo os termos da lei, é necessária a presença de um adulto sempre que um menor é interrogado. Por que razão não foram respeitadas estas determinações?

 

O senhor ouviu a gravação da entrevista, não ouviu Mr. Friskin? Perguntámos ao rapaz se queria um advogado presente.

 

Os olhos cinzentos de Friskin estreitaram-se.

 

Acha, realmente, que aquela confissão ridícula terá alguma validade em tribunal?

 

Neste momento, o tribunal é a menor das minhas preocupações. O que me interessa é chegar ao fundo da morte de Kenneth Fleming. E o filho dele está relacionado com essa morte...

 

Uma ligação circunstancial. Meramente circunstancial. O senhor não possui uma única prova concreta que coloque o meu cliente no interior da casa, na quarta-feira à noite, e sabe perfeitamente disso.

 

Gostaria de ouvir o que ele tem a dizer sobre as suas deslocações e o seu paradeiro na noite de quarta-feira. Até agora tudo o que temos é um relato incompleto. Logo que ele nos forneça as peças que faltam, saberemos qual a direcção a seguir. Podemos prosseguir, ou tem mais alguma questão a colocar.

 

Friskin bloqueou a porta, colocando a mão na maçaneta.

 

Diga-me, inspector, também é responsável pelo circo desta manhã Oh, não faça esse ar desentendido. Os jornalistas lançaram-se sobre o meu carro como tubarões esfomeados. É óbvio que alguém os avisou da nossa chegada. Quem é que anda a passar-lhes informações? Lynley tirou o relógio de bolso e abriu-o.

 

Eles nunca se atrevem a publicar seja o que for que possa causar-lhes problemas.

 

Friskin agitou o dedo indicador debaixo do nariz de Lynley.

 

Não me tome por um imbecil, inspector Lynley. Se persistir nesse tipo de actuação, garanto-lhe que arranjo maneira de o senhor nunca mais trocar uma palavra que seja com o garoto. Pode tentar intimidar um adolescente, se quiser, mas ouça o que lhe vou dizer. Não vai conseguir intimidar-me a mim. Fui claro?

 

Perfeitamente claro, Mr. Friskin. E agora, podemos começar.

 

Como queira.

 

Friskin abriu a porta e dirigiu-se para junto do seu cliente.

 

Jimmy estava espojado no mesmo sítio do dia anterior, repuxando a bainha meio desfeita da mesma T-shirt que vestia na véspera. Tudo nele permanecia igual, à excepção dos sapatos. Calçava, agora, um par de ténis imundos e sem atacadores, em vez dos Doc Martens, que tinham sido confiscados como provas.

 

Lynley ofereceu-lhe uma bebida. Café, chá, leite, sumo. Jimmy inclinou a cabeça para a esquerda, recusando. Lynley ligou o gravador, indicou a hora, a data e as pessoas presentes enquanto se sentava.

 

Gostaria de deixar algo bem claro disse Mr. Friskin, tirando partido da ocasião. Tu não és obrigado a dizer mais nada, Jim. A polícia está a tentar fazer-te crer que tem a situação sob controlo, trazendo-te até aqui. Na verdade, o que quer é assustar-te, fazer com que tu acredites que está, de facto, em vantagem. Com efeito, tu não estás preso, não foste formalmente acusado, apenas recebeste uma advertência. E existe uma diferença clara, do ponto de vista legal, entre uma coisa e outra. Estamos aqui para auxiliar a polícia e para cooperar tanto quanto acharmos necessário, mas não estamos aqui por obrigação. Compreendes? Se não quiseres, não precisas de falar. Não precisas de lhes dizer nada.

 

Jimmy mantinha a cabeça baixa, mas fez um movimento quase imperceptível que podia passar por um assentimento. Dando por concluído o seu discurso, Friskin desapertou o nó da gravata florida e recostou-se na cadeira.

 

Prossiga, então, inspector Lynley disse, com uma expressão que Parecia querer dar a entender ao inspector que o melhor seria não alimentar grandes esperanças quanto ao resultado do interrogatório.

 

Lynley resumiu tudo o que Jimmy lhes dissera na véspera. O telefonema com o pai, as desculpas invocadas por Fleming para cancelar a viagem, a ida de moto até ao Kent, o parque de estacionamento do pub que ele encontrara deserto, o atalho que conduzia a Celandine Cottage, a chave que ele fora buscar à cabana do jardim. Reviu ainda a história que Jimmy lhes contara sobre a forma como ateara o incêndio. Concluiu, dizendo:

 

Disseste que era um jPS e que o tinhas colocado no cadeirão. parámos neste ponto. Lembras-te disso, Jim?

 

Lembro-me.

 

Voltemos, então, ao momento em que acendeste o cigarro - disse Lynley.

 

O que é que tem?

 

Disseste que tinhas usado um fósforo para acender o cigarro.

 

Pois foi.

 

Conta-me como é que o fizeste?

 

Em relação a quê?

 

Ao fósforo. Onde é que o arranjaste? Levaste os fósforos contigo? Ou paraste pelo caminho para os comprar? Encontraste-os dentro da casa?

 

Jimmy passou o dedo por baixo do nariz.

 

Que é que isso interessa?

 

Não tenho a certeza se interessa ou não respondeu Lynley, prontamente. O mais provável é que não interesse. Mas eu só estou a tentar fazer uma ideia o mais completa possível do que se passou. Faz parte do meu trabalho.

 

Presta atenção, Jimmy interveio Friskin. O adolescente fechou a boca.

 

Ontem, quando fumaste um cigarro aqui, nesta sala, precisaste de quatro fósforos para o acender. Lembras-te? Tiveste a mesma dificuldade na quarta-feira à noite? Conseguiste acender o cigarro só com um fósforo? Ou tiveste de usar mais de um?

 

Eu consigo acender um cigarro com um único fósforo. Não sou nenhum imbecil, está a perceber?

 

Usaste um único fósforo, então? E tiraste-o de onde? De uma carteira ou de uma caixa?

 

O rapaz mexeu-se na cadeira, mas não respondeu. Lynley decidiu experimentar uma táctica diferente.

 

O que é que fizeste ao fósforo depois de teres acendido o PS? Era um PS, não era? Um sinal afirmativo com a cabeça. Muito bem. E o fósforo? O que é que lhe aconteceu?

 

Os olhos de Jimmy moveram-se para a direita e para a esquerda. Estaria ele a recordar os factos? A alterá-los? A recriá-los, à medida que ia falando. Lynley não sabia ao certo. Por fim, o rapaz disse, com um leve sorriso:

 

Levei-o comigo. Dentro do bolso.

 

O fósforo, queres tu dizer.

 

Claro. Não estava interessado em deixar nenhuma prova, percebe?

 

Acendeste, então, o cigarro com um único fósforo, meteste-o dentro do bolso e fizeste o quê com o cigarro?

 

Tens a certeza que queres responder a esta pergunta, Jim? tornou a intervir Mr. Friskin. Não és obrigado a fazê-lo. Podes ficar calado.

 

Nada disso. Posso dizer. Ele já sabe o que aconteceu, não sabe?

 

Ele não sabe nada que tu não lhe queiras dizer. Jimmy pareceu reflectir durante alguns instantes.

 

Concede-me uns momentos a sós com o meu cliente, por favor? perguntou Friskin.

 

Lynley estendeu o braço para desligar o gravador. Antes que a mão de Lynley alcançasse a tecla adequada, Jimmy declarou:

 

Oiça, eu acendi o maldito do fósforo e enfiei-o no cadeirão. Já lhe disse isso ontem.

 

Que cadeirão?

 

Jim, presta atenção tornou a advertir Mr. Friskin.

 

Que cadeirão? Que raio de pergunta é essa?

 

Sim, que cadeirão. Em que sala estava esse cadeirão?

 

Jimmy contorceu as mãos e repuxou a bainha da T-shirt. Elevou as pernas da frente da cadeira cerca de dois centímetros acima do chão. ”Malditos chuis”, murmurou entredentes. Lynley, no entanto, não desistiu:

 

Na cozinha, na sala de jantar, na sala de estar, no quarto. Onde, exactamente, se encontrava o cadeirão que tu incendiaste, Jim?

 

O senhor sabe muito bem que cadeirão foi. Viu-o com os seus próprios olhos. Porque é que me está a fazer estas perguntas estúpidas?

 

Em qual dos lados do cadeirão colocaste o cigarro? Ele não respondeu.

 

À esquerda ou à direita? Ou terá sido atrás? Debaixo do coxim, talvez?

 

Jimmy balançou-se na cadeira.

 

E, a propósito, o que é que aconteceu aos gatos de Mrs. Patten? Reparaste se estavam dentro de casa? Levaste-os contigo?

 

O rapaz tornou a baixar a cadeira, que assentou no chão com um ruído seco.

 

Fui eu que dei cabo do meu pai, está a ouvir? E ela vem a seguir. Já lhe disse isso e não tenho mais nada a acrescentar.

 

Sim, de facto, foi isso que nos disseste ontem.

 

Lynley abriu o processo que trouxera consigo do gabinete e que colocara em cima da mesa. Entre as fotografias que a inspectora Ardery lhes tinha fornecido, encontrou uma ampliação do cadeirão em questão. Este ocupava a totalidade da fotografia, sendo ainda possível entrever, por detrás dele, a orla rendilhada de um cortinado.

 

Aqui tens disse Lynley. Achas que isto é capaz de te refrescar a memória? Jimmy olhou para a imagem com uma expressão carrancuda, dizendo ”Sim. É esse”, e preparou-se para desviar os olhos rapidamente. Nesse instante, porém, o canto de uma outra fotografia, mais saída em relação às restantes, atraiu a sua atenção. Uma mão pendia molemente na beira de uma cama. Lynley viu Jimmy engolir em seco no momento em que o seu olhar pousou sobre aquela mão.

 

Lynley tirou a fotografia de debaixo das outras, observando uma sucessão de expressões diferentes no rosto do adolescente à medida que o corpo do pai ia surgindo lentamente. A mão, o braço, o ombro e, depois, uma das faces. Kenneth Fleming poderia perfeitamente estar a dormir, não fora a palidez mortal que lhe tingia a pele e a espuma rosada que lhe cobria os lábios.

 

Jimmy parecia fascinado pela fotografia. Era como se estivesse na presença de uma cobra. As suas mãos tornaram a apoderar-se da bainha da T-shirt.

 

Que cadeirão, Jim? insistiu Lynley.

 

O rapaz ficou calado, os olhos presos na imagem. No corredor, a azáfama continuava, fazendo ricochete nas paredes. Na sala de interrogatórios, o gravador produzia um ruído suave e ritmado à medida que a cassete girava no interior.

 

O que é que aconteceu na quarta-feira à noite? perguntou Lynley. Do princípio ao fim. Temos de saber a verdade.

 

Já lhe disse. Fui eu.

 

Mas não estás a contar-me tudo, pois não? Porquê, Jimmy? Tens medo?

 

Claro que tem medo disse Friskin, zangado. Guarde essa fotografia. E desligue o gravador. A entrevista acabou. Agora. Estou a falar a sério.

 

Queres acabar a entrevista, Jimmy?

 

O rapaz conseguiu, finalmente, desviar os olhos da fotografia do pai.

 

Quero. Já disse o que tinha a dizer.

 

Lynley carregou na tecla e fez parar o aparelho. Sem pressas começou a juntar as fotografias, mas Jimmy não tornou a olhar para elas. Dirigindo-se a Friskin, disse, ”Mantemo-nos em contacto”. Em seguida deixou que o advogado conduzisse o seu cliente ao encontro da multidão de repórteres e fotógrafos que, naquela altura, estariam certamente à espreita em todas as entradas e saídas da New Scotland Yard.

 

Cruzou-se com a sargento Havers um pãozinho numa das mãos e uma chávena de plástico na outra a caminho do seu gabinete. Com a boca cheia, ela informou-o:

 

Billingsgate confirmou. Jean Cooper foi trabalhar na quinta-feira de manhã. E chegou à hora exacta.

 

Ou seja?

 

Às quatro da manhã.

 

Interessante.

 

Mas não está lá hoje.

 

Não? E está onde?

 

Lá em baixo, pelo que me disseram da recepção. Semeando a maior das confusões e tentando furar a segurança. Já despachou o garoto?

 

Por agora.

 

Ele ainda cá está?

 

Acabou de sair com Friskin.

 

É pena disse Havers, Ardery telefonou.

 

Esperou que tivessem entrado no gabinete dele e depois pô-lo a par das informações fornecidas pela inspectora Ardery. O óleo encontrado nas folhas de hera do jardim de Lesser Springburn coincidia com a amostra de óleo retirada das fibras encontradas na casa do Kent. E ambos coincidiam com o óleo da moto de Jimmy Cooper.

 

Perfeito disse Lynley.

 

Havers prosseguiu. As impressões digitais de Jimmy Cooper coincidiam com as impressões recolhidas no pato que estava na cabana do jardim de Celandine Cottage, mas e este é que é o ponto interessante, senhor dentro de casa não havia nada, aparentemente. Nem nos parapeitos das janelas, nem nas portas. Havia muitas marcas, mas nenhuma delas pertencia a Jimmy.

 

Lynley abanou a cabeça. Atirou os processos do caso Fleming para cima da mesa. Desdobrou um conjunto de jornais que ainda não tinha examinado e procurou os óculos.

 

Não parece surpreendido notou Havers.

 

E não estou, de facto.

 

Nesse caso, suponho que também não irá ficar admirado com o resto.

 

Que é?

 

O cigarro. O perito deles chegou às nove horas de hoje. Fez a identificação, tirou as fotografias e concluiu o relatório.

 

- E?

 

B&H.

 

Benson & Hedges? Lynley fez girar a cadeira na direcção da janela. A arquitectura prosaica do Ministério dos Negócios Estrangeiros surgiu diante dos seus olhos, mas ele não a viu. O que viu, de facto, foi uma chama aproximando-se de um cigarro, seguido por uma série de rostos e por um turbilhão de fumo.

 

- Sem sombra de dúvida - confirmou Havers. - B & H - pousou a chávena de plástico sobre a secretária e aproveitou a oportunidade para se deixar cair numa das cadeiras em frente. - Isso vem lixar-nos à grande, não vem?

 

Ele não respondeu. Em vez disso, começou a estudar mentalmente os dados que possuíam em termos de móbil e meios, tentando fazê-los coincidir com a oportunidade.

 

- E então? - lançou Havers, ao fim de alguns instantes. - Estamos lixados, não estamos? Com esta história dos Benson & Hedges.

 

Lynley observou um bando de pombos que descolava do telhado dos Negócios Estrangeiros rumo ao firmamento. Voavam em formação cerrada, como uma flecha, um grupo coeso seguindo na direcção de St. James’s Park. Era a hora da refeição. A ponte pequena que sobrevoava o lago em forma de lavagante em breve estaria repleta de turistas, mãos estendidas e a abarrotar de comida para os pardais. Os pombos faziam tenções de participar no festim.

 

- Com efeito - disse Lynley enquanto via os pássaros voarem na direcção do parque, o único propósito do seu voo -, o caso assume proporções e contornos diferentes, sargento.

 

                                              CAPÍTULO 19

Jeannie Cooper seguiu o Rover de Mr. Friskin no Cavalier azul que Kenny lhe comprara no ano anterior, a primeira e única prenda que ela aceitara dele. Aparecera com o carro numa terça-feira à tarde, dizendo, a fim de vencer a relutância dela, ”Não quero que andes com os miúdos de um lado para o outro dentro daquele velho Metro, Jean. Podes ter uma avaria a qualquer momento. E se ele decidir avariar na auto-estrada, vocês ficam desamparados”. Ao que ela respondera, em tom ríspido, ”Se isso acontecer, havemos de nos desenrascar. Podes ficar descansado que o telefone de Mrs. Whitelaw não há-de tocar a meio da noite comigo a pedir-te que nos venhas ajudar”. Nessa altura, ele retorquira, calmamente, como era seu hábito, fazendo saltar a chave do carro de uma mão para a outra e lançando-lhe um olhar penetrante que a deixara hipnotizada, ”Jean, este carro não é para ti nem para mim. É para os miúdos. Por isso aceita-o. Podes dizer-lhes o que quiseres em relação à forma como o arranjaste. Não me interessa o que lhes vais dizer acerca desse assunto. Não fales no meu nome, se é isso que queres. Eu só quero contribuir para a segurança deles”.

 

Segurança, pensou. Um riso rouco e zangado que roçava ao de leve os limites da histeria jorrou dos seus lábios, como prenúncio de uma reacção mais violenta ainda. Kenny queria contribuir para a segurança deles. Sufocou o choro que pretendia seguir-se ao riso. Não, disse para si mesma. Não daria a ninguém o prazer de a ver perder o controlo novamente. Não depois do que se passara na tarde do dia anterior, com todas aquelas câmaras e máquinas fotográficas zumbindo à sua volta e aquela multidão de repórteres abatendo-se sobre ela, sugando-a como chacais, esperando pelo mais ténue indício de fraqueza para o registar para a eternidade. Pois muito bem, já tinham tido espectáculo que chegasse e tinham-no pespegado na primeira página. Não fazia tenções de continuar a ser carne para canhão.

 

Furara a barreira de jornalistas na New Scotland Yard, o rosto fechado como uma ostra. Tinham-na bombardeado com perguntas. Tinham-na atingido de todos os ângulos com as suas máquinas infernais. Tinham-se divertido muito, decerto, desejosos de fotografá-la com o uniforme da Crissys, o avental crivado de nódoas que ela nem se dera ao trabalho de despir, na pressa de sair, quando Mr. Friskin lhe telefonara para Billingsgate Market, comunicando-lhe que a polícia ia tornar a interrogar Jimmy. Isso, porém era tudo o que tinham conseguido: a visão de uma mulher em fato de trabalho O resto, os repórteres e os fotógrafos não viam. E se não viam, não podiam tocar.

 

Em Parllament Square viram-se embrenhados num engarrafamento e Jeannie manteve-se o mais perto possível do Rover de Mr. Friskin, animada pelo desejo vago de proteger o filho. Jimmy recusara-se a entrar no carro dela. Em vez disso, enfiara-se no automóvel de Mr. Friskin, antes sequer que a mãe ou o advogado tivessem tido tempo de lhe dirigir a palavra ou de conversar um com o outro.

 

O que é que aconteceu? perguntara Jeannie. O que é que eles lhe fizeram?

 

Mr. Friskin respondera com um sorriso grave:

 

Neste momento, a polícia está a fazer o seu jogo habitual.

 

Jogo? Que jogo? perguntara. O que é que aconteceu? O que é que quer dizer com isso?

 

A polícia está a tentar vencer-nos pelo cansaço dissera ele. E nós vamos tentar manter as nossas posições.

 

E não tivera tempo de dizer mais nada, pois entretanto foram rodeados pela horda de jornalistas.

 

Não vão largar Jimmy tão cedo murmurara. Não, não me refiro aos jornalistas... Ao ouvir estas palavras, a sua atenção foi desviada para os repórteres e fotógrafos que se aproximavam. Esses também não, mas eu estava a referir-me à polícia.

 

O que é que ele disse? perguntara ela, sentindo o suor acumular-se-lhe na nuca. O que é que ele lhes disse?

 

Agora não. Mr. Friskin saltara para dentro do carro e arrancara com grande estrondo. Partira a toda a velocidade, deixando-a sozinha diante da multidão de jornalistas. Abrira a porta do carro e entrara. As câmaras registaram cada um dos seus movimentos, mas as imagens não iriam mostrar nem declarações nem qualquer outro tipo de reacção às perguntas dos jornalistas, que queriam a todo o custo saber por que razão Jim fora interrogado pela polícia a propósito do assassínio do seu próprio pai.

 

E, apesar de tudo, ela estava tão longe de saber o que ele dissera à polícia como no final da conversa que tinham tido na cozinha, na véspera.

 

O que tu mais querias era que ele morresse, não era, mãe? Tu e eu sabemos isso, não sabemos?

 

Muito tempo depois de ele a ter deixado sozinha, sentada à frente da tigela de sopa, olhando fixamente para a película que se formava à superfície do líquido, interrogando-se vagamente sobre as razões que levavam a que aquele género de película se formasse apenas na sopa de tomate e não nas outras, as duas perguntas de Jimmy continuavam a martelar-lhe o cérebro. Esforçara-se por apagá-las da mente, mas nada - nem as orações, nem a evocação da imagem do marido, dos rostos dos filhos, nem a recordação da família unida que em tempos tinham formado, instalada à mesa para comer o assado dos domingos - fazia calar as perguntas do filho mais velho, o tom conspirativo e malicioso em que ele as fizera, ou as respostas que lhe ocorriam ao espírito, tão espontâneas quanto contraditórias.

 

Não. Eu não queria que ele morresse, Jim. Queria que ele passasse o resto da sua vida comigo. Queria o riso dele, a sua respiração junto ao meu ombro enquanto dormia, a pressão da sua mão sobre a minha coxa, à noite, enquanto conversávamos sobre os acontecimentos do dia que passara, a imagem dele abrindo o jornal com gestos firmes, embrenhando-se na leitura de um artigo com o mesmo ímpeto com que um pára-quedista se atira de um avião. Queria cheirar o odor da sua pele, ouvir o som da sua voz, gritando, «Atira-me essa bola, Jimmy! Vamos, pensa como um lançador, filho», sentir o toque dos seus dedos sobre a minha nuca, como fazia todas as noites, quando chegava da fábrica, vê-lo à beira-mar com Stan empoleirado nos ombros e Shar a seu lado, os três partilhando os binóculos e observando os pássaros; e queria o gosto dele. Eu desejava-o, Jim. E quando se deseja alguém dessa maneira, queremos que essa pessoa viva, não que morra.

 

Mas ela estava sempre presente, não estava? Vendo o que eu via. Cobiçando o que era meu, como um gato ansioso por um prato de leite. Sempre entre nós e aquilo que deveríamos ter sido - Kenny voltando a casa, Kenny cantando a plenos pulmões, no duche, todas as manhãs, Kenny deixando as calças amontoadas todas as noites, os sapatos e meias abandonados ao fundo das escadas, Kenny deitando-se ao meu lado na nossa cama, puxando-me para ele, Kenny pressionando as suas pernas e a sua barriga contra as minhas pernas e a minha barriga. Enquanto ela se mantivesse entre mim e Kenny, entre ele e a sua família, entre Kenny e o que ele deveria ser, não haveria nenhuma esperança, Jim. E enquanto ela estivesse entre nós, sim, eu queria-o morto. Porque se ele estivesse morto - realmente morto - eu não teria de pensar em Kenny e nela, juntos.

 

Como poderia ela dizer-lhe isto, pensou Jeannie. O filho queria sins e nãos. Eram respostas definitivas como esta que davam sentido à vida. Que permitiam clarificar facilmente uma situação complicada. Revelar-lhe tudo isto seria o mesmo que exigir que saltasse directamente para a vida adulta, uma passagem que ele ainda não estava preparado para fazer. Era muito mais fácil dizer que não, não, eu nunca quis nada disso, Jim. Era muito mais fácil passar pelos factos rápida e vagamente. Todavia, enquanto seguia atrás do Rover, ao longo do Tamisa, tentando em vão adivinhar o que estaria a passar-se no outro carro, entre o advogado e o filho, Jeannie sabia que seria tão incapaz de mentir a Jimmy quanto seria capaz de lhe contar a verdade.

 

Os repórteres tinham finalmente desaparecido de Cardale Street, e no momento, pelo menos, nenhum deles decidira percorrer o longo trajecto de regresso à Isle of Dogs. Era óbvio que naquela fase dos acontecimentos o lugar da notícia era junto à porta principal da New Scotland Yard. Apesar disso, Jeannie estava certa de que haveriam de tornar a aparecer, munidos dos seus blocos-notas e das respectivas máquinas e câmaras, mal tivessem a certeza de que a deslocação seria proveitosa. O segredo consistia em não a tornar proveitosa. A única forma de o conseguir seria fechar-se em casa e ficar longe das janelas.

 

Mr. Friskin seguiu Jeannie quando esta entrou em casa. Jimmy passou por eles e dirigiu-se para as escadas. Quando ela o chamou, não parou e o advogado aconselhou, num tom de voz simpático:

 

É melhor deixá-lo ficar um pouco sozinho, Ms. Cooper.

 

Sentiu-se desesperadamente cansada, tão inútil como uma esponja ressequida e profundamente só. Mandara Stan e Shar para a escola, nessa manhã, mas agora estava arrependida de o ter feito. Se eles estivessem em casa, pelo menos teria um pretexto para cozinhar. Sabia, sem compreender muito bem porquê, que se preparasse uma refeição para Jimmy, ele não lhe tocaria. Por alguma razão, esta conclusão reavivou o desespero que a assaltava. Não podia proporcionar ao filho nada que ele precisasse ou desejasse. Nem uma refeição que lhe aumentasse as energias, nem uma família que lhe desse apoio, nem um pai que o guiasse.

 

Sabia que devia ter agido de forma diferente. No entanto, enquanto via os ténis de Jimmy desaparecerem escada acima, não conseguia explicar como, exactamente.

 

Ele não me quis dizer nada, ontem à noite confessou a Mr. Friskin. O que é que ele contou à polícia?

 

Mr. Friskin pô-la ao corrente de tudo, de tudo o que ela já sabia mas tentara negar desde o momento em que os dois agentes de polícia tinham entrado na Crissys, na sexta-feira à tarde, dizendo que vinham de Kent. Cada facto atingia-a como um golpe mortal, apesar de Mr. Friskin se esforçar por relatar os acontecimentos com gentileza.

 

E, assim, confirmou algumas das suspeitas deles concluiu o advogado.

 

O que é que isso quer dizer?

 

Que eles vão continuar a pressionar até ver que mais conseguem arrancar-lhe. Ele não está a dizer-lhes tudo o que eles querem saber. Quanto a isso não há dúvidas.

 

E o que é que eles querem saber?

 

Ele abriu as mãos e mostrou as palmas vazias.

 

Se me dissessem aquilo que procuram seria o mesmo que me colocarem do lado deles, e eu não estou do lado deles. Estou do seu lado. E de Jimmy.

 

Ainda não acabou, embora eu desconfie que eles vão esperar vinte e quatro horas, ou mais, antes de tornarem a chamá-lo. É uma maneira de o deixar apreensivo em relação ao que vai acontecer a seguir.

 

Vai piorar, então?

 

Eles gostam de pressionar, Ms. Cooper. E vão fazê-lo. Faz parte do trabalho deles.

 

E nós, o que é que fazemos?

 

O nosso trabalho, tal como eles fazem o deles. Alinhamos no jogo.

 

Mas ele já lhes disse mais do que quando eles estiveram aqui em casa disse Jeannie. Não pode obrigá-lo a calar a boca? Ouviu o desespero na sua voz e tentou controlá-lo, não tanto por uma questão de orgulho, mas sobretudo por medo do que esse desespero poderia sugerir ao advogado acerca da verdade. Porque, se ele continua a falar... se o deixar falar... não consegue calá-lo?

 

Não é assim que funciona. Aconselhei-o, e continuarei a fazê-lo, mas a partir de dado momento todas as decisões cabem a Jim. Se ele quiser falar, não posso amordaçá-lo. E... Mr. Friskin pareceu hesitar. Aparentemente, fazia um esforço para medir as palavras, um comportamento que Jeannie não esperava de um advogado. Regra geral, as palavras pareciam sair da boca de pessoas como ele com a mesma facilidade com que as enguias se esquivavam às armadilhas. Ele parece querer falar com eles, Ms. Cooper continuou Friskin. Sabe porquê?

 

Ele quer falar com eles, falar com eles, falar com eles. Não conseguia ouvir mais nada. Siderada pela revelação, titubeou até junto do televisor onde estavam os cigarros. Tirou um e, pouco depois, uma chama cintilou em frente ao seu rosto como um foguete: o isqueiro de Mr. Friskin.

 

Sabe? perguntou. Sabe por que razão é que ele quer falar com eles?

 

Disse que não com a cabeça, concentrando-se no cigarro e no acto de fumar como pretexto para não falar. Mr. Friskin observava-a sem vacilar. Ela ficou à espera que ele lhe fizesse outra pergunta ou que lhe oferecesse uma opinião de especialista sobre o comportamento incompreensível de Jimmy. Não fez nem uma coisa nem outra. Contentou-se em olhá-la fixamente nos olhos como se não se cansasse de repetir, ”Sabe porquê, sabe porquê, sabe porquê, Ms. Cooper?” Ela, no entanto, continuou muda.

 

Cabe-lhes a eles tomarem a iniciativa disse, por fim. Quando tal acontecer, estarei presente. Até lá... Tirou a chave do carro do bolso das calças e dirigiu-se para a porta. Telefone-me, se achar que há alguma coisa que possamos discutir.

 

Assentiu com a cabeça. Ele saiu.

 

Ficou parada junto ao televisor, como se fosse um autómato. Imaginou Jimmy na sala de interrogatórios. Jimmy que queria falar.

 

Os garotos são todos um pouco estranhos dissera-lhe Kenny uma tarde, no quarto, estendido na cama, a perna direita dobrada sobre a esquerda formando o número quatro. Os cortinados estavam corridos para impedir que o sol do meio-dia entrasse pelo quarto dentro. Mesmo assim, a luz conseguiu penetrar através do tecido, alterando a cor dos corpos deles. O de Kenny era dourado, adornado por músculos que lhe esculpiam a pele, deitado sobre as almofadas, um braço dobrado por baixo da cabeça, como se tencionasse ficar ali para sempre. O que não acontecera. O que ela sabia que não iria acontecer. A mão dele passeara ao longo da coluna vertebral de Jeannie e, com a ponta dos dedos, massajara-lhe a nuca em suaves movimentos circulares. Não te lembras de como nós éramos quando tínhamos a idade dele?

 

Nessa altura falavas comigo replicara Jean. Ele não.

 

Isso é porque és mãe dele. Os rapazes não falam com as mães.

 

Então falam com quem?

 

Com as namoradas e inclinando-se para a frente, beijara-lhe o ombro. Enquanto conservava a boca colada à pele dela, abrindo caminho do ombro até ao pescoço, murmurara: e com os amigos, também.

 

Ah, sim? E os pais?

 

A boca dele imobilizara-se. Não falara, nem continuara a beijá-la. Ela pousara a mão sobre a perna dele, roçando o polegar pelo músculo que terminava por baixo do joelho.

 

Ele precisa do pai, Kenny.

 

Sentiu que ele a deixava, como se o seu espírito se afastasse já, embora o corpo se mantivesse tão imóvel como a água estagnada no fundo de um poço. Estava tão perto dela que a sua respiração contra a pele dela parecia um beijo fantasma. Em espírito, porém, já estava longe.

 

Ele tem um pai.

 

Tu sabes o que eu quero dizer. Aqui. Em casa.

 

Sentara-se na cama, passando as pernas pelo rebordo da cama. Pegara nas calças e começara a vestir-se. Ao ouvir o ruge-ruge das roupas deslizando ao longo da pele do marido, pensara que cada peça era uma armadura que o protegia contra ela, mais eficaz do que uma cota de malha. O facto de ter começado a vestir-se e de o ter feito naquele preciso instante fornecera-lhe a resposta à questão que ela não ousava colocar. A dor era insuportável.

 

Amo-te dissera. O meu coração transborda de alegria quando te tenho aqui, comigo. Sentira a cama mexer-se quando ele se pusera de pé. Nós precisamos de ti, Kenny. E não estou a pensar só em mim. Estou a pensar neles.

 

Jean dissera ele, já é suficientemente difícil para mim...

 

E tu queres que eu te facilite a vida, não é?

 

Não disse isso. O que te estou a dizer é que não é tão simples como fazer as malas e voltar para casa.

 

Podia ser, se tu quisesses.

 

Para ti. Para mim, não.

 

Ela respirara fundo e emitira uma espécie de soluço.

 

Não chores, rapariga. Vá lá, Jean.

 

Virara a cabeça e lutara para sufocar o soluço.

 

Porque é que vens cá, Kenny? perguntara ela. Porque é que continuas a vir até aqui? Porque é que não te vais embora de uma vez por todas?

 

Ele aproximara-se dela. Os seus dedos prenderam algumas finas madeixas do cabelo dela, largando-as logo em seguida. Não respondera à pergunta dela. Ela, porém, não tinha necessidade de uma resposta. Aquilo de que ele precisava estava ali, dentro daquelas quatro paredes. Aquilo que ele queria, todavia, estava noutro lado, e ele ainda não o encontrara.

 

Jeannie apagou o cigarro no cinzeiro em forma de concha e deitou as cinzas e as beatas no caixote de lixo da cozinha. Tirou o boné e o avental da Crissys, colocou o primeiro sobre a mesa, entre o frasco da pimenta em forma de pantera e o suporte para guardanapos de papel reproduzindo uma folha de palmeira, e pendurou o segundo numa das cadeiras, alisando-o com muito cuidado como se tivesse intenção de o usar na manhã seguinte.

 

Um comboio de deveria ter feito desfilou na sua mente. A situação poderia ter sido muito diferente, se ela tivesse tido a coragem de agir de outra maneira. A ideia que ressoava mais alto dentro da sua cabeça, perseguindo-a implacavelmente, dizia respeito a Kenny. Era muito simples. Ouvira-a dia e noite, ao longo dos últimos quatro anos. Deveria ter sabido o que fazer para prender o marido.

 

A saída de Kenny de Cardale Street tinha sido a fonte de todos os problemas de ambos. Tudo começara por pequenas coisas, como a morte do rafeiro de Jim, esmagado debaixo das rodas de um camião, em Manchester Road, menos de uma semana depois de Kenny ter feito as malas. Depois, alastrara como um cancro. E, naquele momento, ao lembrar-se de todos esses problemas desde a morte de Bouncer, ao incêndio que Jimmy ateara na escola, à incontinência e à masturbação nocturna de Stan, à dedicação cega de Shar aos seus pássaros, aos diferentes meios utilizados pelos filhos para atraírem a sua atenção, embora sem sucesso, desistindo de a querer ou de precisar dela, sequer a sua vontade era culpar Kenny por tudo o que lhes acontecera. Porque ele era o pai deles. Tinha responsabilidades. Participara Por sua livre e espontânea vontade na criação de três vidas e, por isso, não tinha o direito de os abandonar ou de abdicar da tarefa de os proteger. Todavia, mesmo que quisesse culpar o marido, o primeiro dos deveria ter feito tornava a insinuar-se no seu espírito para que Jeannie se lembrasse a quem cabia, de facto, a maior parte da culpa e da responsabilidade. Ela deveria ter sabido o que fazer para manter o marido junto dela. Porque se o tivesse feito, todos os problemas dos últimos quatro anos nunca se teriam abatido sobre a sua família.

 

Finalmente, sentiu que estava pronta para subir as escadas até ao primeiro andar. A porta do quarto de Jimmy estava fechada e ela abriu-a sem bater. Jimmy estava deitado na cama, o rosto enterrado na almofada, como se tentasse sufocar-se a si próprio. Uma das mãos dele estava pousada no parapeito da janela, enquanto a outra agarrava uma das atarracadas colunas da cama. Agitava o braço, como se quisesse puxar o corpo de encontro à cabeceira da cama e aí esmagar o crânio. As biqueiras dos ténis, por seu turno enterravam-se na cama, primeiro uma depois outra, como se ele estivesse a correr.

 

Jim chamou.

 

Mãos e pés imobilizaram-se. Jeannie pensou naquilo que queria dizer ao filho e no que precisava de dizer, mas tudo o que conseguiu articular, foi:

 

Mr. Friskin diz que a polícia vai querer falar contigo outra vez. Talvez amanhã, diz ele. Mas só talvez. Vão-te fazer esperar. Ele disse-te a mesma coisa?

 

Viu a mão dele crispar-se em torno da coluna da cama.

 

Parece que Mr. Friskin percebe das coisas continuou. Não achas?

 

Caminhou até meio do quarto, parando para juntar um dos ursos de Stan, que colocou no meio dos outros bonecos, junto à cabeceira da cama. Em seguida aproximou-se da cama de Jimmy. Sentou-se na beira do colchão e sentiu a rigidez súbita que se apoderou do corpo do filho espalhar-se pelo colchão como se fosse corrente eléctrica. Evitou tocá-lo.

 

Ele disse... Jeannie passeava a mão ao longo da parte da frente do vestido, pressionando a palma contra um vinco que se formara desde a cintura até à bainha. Julgava que tinha passado aquele vestido a ferro, às duas da manhã, hora a que finalmente desistira de tentar dormir, mas talvez não o tivesse feito. Talvez tivesse passado a ferro um e vestido outro. Não seria de admirar, tendo em conta que a cabeça e o corpo dela tinham passado a funcionar em piloto automático, maquinalmente.

 

Eu tinha dezasseis anos disse, quando tu nasceste. Sabias disso, Jim? Julgava que sabia tudo. Achava que podia ser uma boa mãe e que não precisava que ninguém me dissesse o que devia fazer. É uma reacção natural nas mulheres, pensava eu. Um tipo engravida uma miúda e o corpo dela muda, tal como tudo o resto nela. Não queria que ninguém me dissesse como devia ser mãe do meu bebezinho, porque eu sabia, percebes? Eu tinha decidido que ia ser tal e qual um anúncio de publicidade. Ia dar-te a papa na boca e o teu pai andaria por ali, de um lado para o outro, tirando fotografias que mostrariam como éramos felizes. Decidi ter outro bebé depressa, porque achava que as crianças não devem crescer sozinhas e eu queria fazer tudo como era suposto uma mãe fazer. Por isso tivemos-te a ti, e depois Shar e depois/ eu e o teu pai fizemos dezoito anos.

 

Jimmy emitiu um som inarticulado que foi abafado pela almofada, um ruído que soou mais como um gemido do que como uma palavra.

 

Mas eu não sabia, estás a perceber. Esse é que era o problema. Eu pensava que uma pessoa tinha um bebé, gostava dele e que ele crescia e depois tinha filhos seus. Não pensei noutras coisas: como falar com ele, ouvir o que ele tinha a dizer, ralhar-lhe quando ele fizesse alguma coisa errada, não perder as estribeiras quando nos apetecesse desatar aos gritos e dar-lhe uma palmada no traseiro quando ele fazia aquilo que já lhe tínhamos dito para não fazer uma centena de vezes. Pensava no Pai Natal, na sua cara iluminada pelas fogueiras do Dia de Guy Fawkes. Vamos divertir-nos tanto, julgava eu. Vou ser tão boa mãe. E já sei tudo, porque tenho a minha mãe e o meu pai como modelos, por isso sei exactamente que tipo de mãe não quero ser.

 

Estendeu a mão, num gesto quase imperceptível, na direcção do parapeito da janela, pousando-a a escassos milímetros do corpo do filho. Sentia o calor que se libertava dele, mesmo sem lhe tocar. Esperava que ele fosse capaz de sentir o mesmo em relação a ela.

 

Acho que o que estou a tentar dizer é que não fiz as coisas como devia ter feito, Jim. Eu pensava que sabia tudo e que, por isso, não tinha nada a aprender. O que estou a tentar dizer, Jim, é que falhei. Mas quero que saibas que não queria que isso acontecesse.

 

O corpo dele continuava tenso, embora parecesse já ter perdido alguma da rigidez anterior. E ela julgou até que tinha visto a cabeça dele mexer-se muito ligeiramente.

 

Mr. Friskin contou-me o que tu lhes tinhas dito continuou. Mas disse-me que eles querem saber mais. E também me perguntou uma coisa. Ele disse... Percebeu que não era mais fácil naquele momento, do que fora da primeira vez que tentara dizê-lo. Naquele momento, porém, não havia mais nada a fazer a não ser seguir em frente e correr o risco de ouvir a pior das respostas. Ele disse que tu quiseste falar com eles, Jim. Que quiseste contar-lhes uma coisa. Não me... Jim, não me queres dizer o que é? Será que não tens confiança em mim?

 

Os ombros e depois as costas dele foram sacudidos por um estremecimento.

 

Jim?

 

Foi então que todo o seu corpo começou a tremer. Ele puxou a coluna da cama com mais força e enterrou ainda mais os pés na cama.

 

1 Festa comemorativa da Conspiração da Pólvora (1605) de que Guy Fawkes (1570-1606) i um dos instigadores, por ocasião da qual são ateadas fogueiras comemorativas no dia 5 de Novembro. [N. da T.]

 

Jimmy chamou a mãe. Jimmy. Jim!

 

Virou a cabeça, ofegante. E foi então que Jeannie percebeu que o filho dela ria convulsivamente.

 

Barbara Havers desligou o telefone, enfiou o último biscoito ressequido na boca, mastigou-o energicamente e engoliu um gole de Darjeeling já morno Belo lanche, não havia dúvida. Trabalhar na New Scotland Yard era um verdadeiro paraíso, gastronomicamente falando, claro!

 

Agarrou no bloco-notas e dirigiu-se ao gabinete de Lynley. Não o encontrou à secretária, no entanto. No seu lugar, deu de caras com Dorothea Harriman, que viera deixar uma nova remessa de jornais. O Evening Standard daquele dia. A expressão no rosto de Dee deixava transparecer, tanto o seu desagrado como a sua repulsa por aquela tarefa, embora a razão para esta aversão parecesse residir mais no material de leitura em si mesmo do que no facto de lhe ter sido confiada a missão de ter de adquiri-lo. Segurava, ainda, dois outros tablóides ofensivos. Colocou-os no chão, junto à cadeira de Lynley, juntando-os a todos os que trouxera nessa manhã. Por fim, apenas o Evening Standard ficou em cima da secretária do inspector.

 

Que horror! exclamou Harriman, abanando a cabeça, como se ela própria não se lançasse avidamente sobre aqueles mesmos jornais em busca dos últimos mexericos sobre a família real. Pergunto-me para que os quererá ele?

 

Tem a ver com o caso informou Barbara.

 

O caso? O tom de voz de Harriman dava a entender que aquela ideia lhe parecia perfeitamente absurda. Bom, só espero que ele saiba o que está a fazer, sargento Havers.

 

Barbara partilhava este ponto de vista. Quando Harriman saiu do gabinete, para ir atender os gritos distantes de Webberly, que clamava, ”Harriman! Dee! Onde é que pára o malfadado processo Snowbridge”, Barbara aproximou-se da secretária de Lynley, a fim de lançar uma olhadela ao jornal. Cabeça pendente, cabelos sobre o rosto, mãos caídas ao longo do corpo, Jimmy Cooper aparecia com honras de primeira página. Tal como Mr. Friskin, que falava insistentemente aos ouvidos do rapaz. Era impossível dizer se a fotografia fora tirada durante a ida à Yard, na véspera, se no decorrer da visita daquele mesmo dia, uma vez que a T-shirt e as calças de ganga de Jimmy pareciam estar coladas ao corpo dele, como uma segunda pele. Além disso, Barbara não vira e, por isso, era incapaz de usar o facto para avaliação Mr. Friskin em nenhuma das idas do rapaz à Yard. Leu a legenda e percebeu que o jornal relacionava a fotografia com a visita dessa manhã, usando-a para ilustrar o artigo que a acompanhava e cujo título era: ”Yard pressiona no caso do homicídio do jogador de críquete.

 

Barbara passou os olhos pelos dois primeiros parágrafos. Lynley, percebeu, estava a fornecer informações à imprensa com inequívoco talento. Havia expressões vagas do género, alegadamente, em quantidade suficiente, e várias referências a um relatório que não foi confirmado e a fontes bem informadas, no seio da Scotland Yard. Barbara mordeu o lábio inferior à medida que ia lendo o artigo e reflectia sobre a eficácia da abordagem. Tal como Harriman, esperava que Lynley soubesse o que estava a fazer. Foi encontrá-lo na sala de operações, onde cópias das fotografias do corpo de Fleming e do local do crime tinham sido afixadas num painel de informações. Ele examinava-as, enquanto um dos agentes falava ao telefone acerca de um reforço da vigilância na residência de Cardale Street e uma das secretárias do departamento dactilografava no respectivo processador de texto. Outro agente falava com Maidstone ao telefone e dizia, ”Peça-lhe, por favor, que entre em contacto com o inspector Lynley, logo que a autópsia... Sim... Muito bem... Está bem... Entendido”.

 

Barbara juntou-se a Lynley, que bebericava qualquer coisa líquida dentro de um copo de plástico, um pacote de Jaffa Cakes, ainda por abrir, entre os dedos. Lançou um olhar guloso aos biscoitos, mas decidiu que já estava suficientemente inchada e deixou-se cair num dos sofás.

 

Quentin Melvin Abercrombie disse ela, em jeito de introdução. Advogado de Fleming. Acabo de falar com ele ao telefone. Lynley ergueu uma sobrancelha, embora os seus olhos não se desviassem das fotografias. Pronto, já sei. Não me pediu para lhe telefonar. Mas como Maidstone já identificou aqueles cigarros... Não sei, senhor. Parece-me que precisamos de começar a esgravatar para esse lado.

 

E?

 

E eu acho que tenho qualquer coisa que poderá interessá-lo.

 

Sobre o divórcio Fleming-Cooper, suponho.

 

Segundo Abercrombie, ele e Fleming preencheram a petição de divórcio faz na próxima quarta-feira três semanas. Abercrombie entregou a petição em Somerset House, na quinta, e Jean deveria ter recebido a sua cópia e qualquer coisa como um aviso de recepção da citação, na tarde da terça-feira seguinte. Abercrombie diz que Fleming tinha esperanças de obter o divórcio com base numa separação de dois anos que, na verdade, era uma separação de quatro anos, como nós já sabemos, embora a lei exija apenas os tais dois anos. Está a acompanhar-me?

 

Muito bem.

 

Se Jean tivesse concordado em pôr termo ao casamento, Fleming Poderia ter conseguido que o processo de divórcio tivesse sido assinado, Selado e entregue no espaço de cinco meses, ficando livre para se casar logo em seguida, o que, de acordo com Abercrombie, estava desejoso de fazer. No entanto, ele também pensava que Jean poderia opor resistência, e confessou-o a Abercrombie, razão pela qual, também segundo o advogado, Fleming quis entregar, pessoalmente, a cópia da petição a Jean. Não podia fazê-lo. O documento tinha de ser enviado pelo tribunal, mas ele disse a Abercrombie que queria ser ele a levar-lhe a cópia, a fim de a preparar para o que se seguiria. Para dourar a pílula, suponho. Continua a acompanhar-me?

 

E chegou a entregar?

 

A cópia da petição? Barbara abanou a cabeça. Abercrombie julga que sim, embora, como qualquer advogado que se preze, não esteja pronto a jurá-lo uma vez que não viu com os seus próprios olhos os papéis sendo transferidos das mãos de Fleming para as dela. Todavia, tinha uma mensagem de Fleming no atendedor de chamadas, nessa mesma terça-feira à noite, dizendo que Jean tinha os papéis e que, aparentemente, estava disposta a lutar.

 

Contra o divórcio?

 

Isso mesmo.

 

E ele estava disposto a ir a tribunal?

 

Abercrombie disse que achava que não, porque na sua mensagem, Fleming fazia alusão ao facto de vir a ter de esperar um ano, até fazer cinco anos que estavam separados, para obter o divórcio sem o consentimento de Jean. Não queria ser obrigado a fazê-lo, porque, segundo diz Abercrombie, estava ansioso por começar uma nova vida...

 

Como já mencionou antes.

 

Exacto. Mas ele estava ainda menos interessado em ir a tribunal e em arrastar o nome de toda a gente pela lama.

 

Sobretudo o dele, julgo eu.

 

E o de Gabriella Patten.

 

Lynley fez rodar o copo de plástico sobre a mesa, dizendo:

 

E de que modo é que tudo isto nos ajuda, sargento?

 

Porque todas as peças encaixam. Conhece a legislação sobre divórcio, senhor?

 

Uma vez que nunca consegui sequer casar-me...

 

Muito bem. Pois eu tive direito a um curso intensivo por telefone, dado por Q. Melvin.

 

E passou a descrever as diferentes etapas do processo. Num primeiro momento, o advogado e o seu cliente preenchiam uma petição de dissolução do casamento. Em seguida, esta petição era expedida para o tribunal, que fazia chegar uma cópia assim como um aviso de recepção da citação à parte contrária. Esta dispunha de oito dias para preencher o aviso de recepção de toda a documentação e tornar a remetê-la ao tribunal. A partir daí desencadeava-se o processo.

 

E é justamente neste ponto que a coisa se torna interessante prosseguiu Barbara. Jean recebeu a cópia da petição, na terça-feira em questão, dispondo por isso de oito dias para acusar a recepção da mesma. No entanto, uma vez que as coisas tomaram o rumo que nós lhe conhecemos, ela não teve de acusar a recepção dos documentos, pelo que o processo de divórcio não pôde ser iniciado.

 

Porque no dia em que o aviso de recepção deveria ter dado entrada no tribunal, Fleming encontrava a morte no Kent disse Lynley.

 

Precisamente no mesmo dia. Então, o que é que me diz a esta coincidência extraordinária, inspector?

 

Barbara aproximou-se das fotografias, em particular de um grande plano do rosto de Fleming. As vítimas de homicídio, pensou, nunca têm ar de quem está a dormir tranquilamente. É só nos romances que, ao observá-las, os polícias se entregam a reflexões sobre a beleza pungente de uma vida precocemente interrompida.

 

Quer que a convoquemos? perguntou. Porque tudo isto explica por que...

 

Que dia, este! O agente Winston Nkata irrompeu pela sala, o casaco atirado para cima do ombro e uma sanduíche fumegante numa das mãos. Fazem uma pequena ideia de quantos clubes de vídeo existem no Soho? Pois, deixem-me que vos diga, meus senhores, que revirei cada um deles de cima a baixo. Deu uma dentada generosa na sanduíche e, depois de se ter assegurado que conquistara a atenção deles, virou uma cadeira ao contrário e sentou-se, cotovelos apoiados nas costas, sublinhando as suas palavras com a sanduíche. Mas o resultado final foi o resultado final, por mais catálogos que eu obrigasse estes meus inocentes olhos a percorrer. E deixe-me que lhe diga, inspector, a minha querida mãezinha vai ter uma conversa séria consigo, acerca da missão que o senhor confiou ao filhinho mais novo.

 

Julgava que tinha o nome da loja interveio Lynley em tom seco. Não havia necessidade de realizar uma expedição pornográfica tão extensa, pois não?

 

Nkata deu outra dentada na sanduíche. Barbara sentiu o seu estômago reagir vivamente ao aroma da carne. Oh, poder voltar à rua, pensou, e ter livre acesso a comida, acima de tudo, a todo o tipo de comida nada saudável.

 

Temos de ser rigorosos. Quando chegar a altura da promoção, lembre-se do nome Nkata a seguir à palavra Agente. Os seus maxilares trituravam a carne com o mesmo vigor com que um martelo pneumático ataca o asfalto. A situação é a seguinte, embora me tenha dado algum trabalho Para conseguir sacá-la ao tipo da loja, porque, conforme ele não parava de lhe martelar ao ouvido, quando não estava a tentar soprar para dentro dele uma história que vou guardar para outra ocasião...

 

Os nossos profundos agradecimentos disse Lynley, em tom vivo.

 

... parece que a maior parte dos clientes não gosta que se saiba que eles alugam cassetes de filmes pornográficos. Não que seja ilegal, atenção.

 

É só que cai mal. É uma questão de reputação. É claro que, neste caso não havia nada a temer, dado que os tipos em questão nunca chegaram a alugar os filmes. Meteu na boca o último pedaço de sanduíche e lambeu os dedos. Ora bem, por que razão é que estou a pensar que estas novidades não a surpreendem?

 

E os filmes existem, sequer? perguntou Barbara.

 

Oh, claro que existem. Todos eles, ainda que, segundo o tipo da loja Calcinhas em Chamas tenha um tal sucesso que as imagens já estão gastas.

 

Mas, então, se Faraday e os seus amigos não os alugaram na última quarta-feira... Tornou a lançar um olhar às fotografias de Fleming.

 

O que é que tudo isto tem a ver com Jimmy Cooper, senhor?

 

Esperem lá um bocadinho apressou-se a acrescentar Nkata.

 

Não estou a dizer que o amigo de Faraday não alugou nenhum dos filmes. O que estou a dizer é que não os alugou naquela noite. Nem nas noites seguintes... Chegado a este ponto, tirou o bloco-notas de dentro do bolso do casaco. Limpou os dedos num imaculado lenço branco, antes de começar a folhear as páginas do seu bloco-notas. Chegado a uma página, marcada com uma estreita fita vermelha, leu a lista de datas que remontavam até mais de cinco anos antes. Cada uma das datas estava relacionada com um clube de vídeo diferente, mas a lista evidenciava um carácter cíclico, repetindo-se depois de todas as lojas terem sido usadas uma vez. Não havia, no entanto, nenhum intervalo de tempo específico entre cada data. Interessante, não?

 

Boa iniciativa, Winston reconheceu Lynley.

 

O agente curvou a cabeça, numa demonstração de espúria humildade.

 

Um dos telefones soou e alguém levantou o auscultador. O agente que atendeu o telefonema falou em voz baixa. Barbara meditou sobre as informações recolhidas por Nkata, que continuou a falar.

 

A não ser que tenham uma predilecção especial por este conjunto de filmes, parece-me que estes rapazes arranjaram um alibi permanente para si próprios. Basta memorizar uma lista de filmes na eventualidade de os chuis aparecerem e começarem a fazer perguntas, certo? O único pormenor que muda de tempos a tempos é a loja de onde provêm os filmes, e isso é fácil de lembrar, não é verdade, desde que nos digam o nome do sítio.

 

Nesse caso, uma pessoa que investigasse os registos de um único clube de vídeo, não perceberia que os mesmos filmes eram alugados sem interrupção comentou Barbara, pensativa.

 

O que equivaleria a chamar a atenção para esse pormenor capital. Algo que eles não queriam fazer.

 

Eles repetiu ela.

 

Os participantes na festa só para homens de Faraday esclareceu Nkata. Na minha opinião, estes tipos, independentemente daquilo em que estiverem metidos, estão metidos no assunto juntos.

 

Mas não na última quarta-feira.

Claro. Fosse onde fosse que Faraday tivesse ido naquela noite, fê-lo sozinho.

 

Senhor? O agente que tinha atendido o telefone virou-se para a sala. Maidstone está a enviar a autópsia por fax, mas as novidades não são muitas. Asfixia por monóxido de carbono. E uma dose de álcool no sangue, em dose suficiente para adormecer um touro.

 

Há uma garrafa de Black Rush na mesa-de-cabeceira. Barbara fez um gesto na direcção das fotografias. E um copo, também, A partir do teor de álcool encontrado no sangue disse o agente, acho que é seguro concluir que ele perdeu a consciência muito tempo antes de o fogo ter sido ateado. Dormiu o tempo todo.

 

Quando se tem de partir desta para melhor notou Nkata, não é má solução, Lynley levantou-se, Só que com ele não tinha de ser assim, Assim como?

 

Ele não tinha de partir desta para melhor. Pegou no copo, agora vazio, e no pacote de Jaffa Cakes, ainda por abrir. Atirou o primeiro para o lixo e olhou indeciso para o segundo, antes de se decidir a atirá-lo na direcção de Havers. Vamos ter com ele. Com Faraday?

 

Vamos ver quais as outras historietas que ele consegue inventar acerca da última quarta-feira à noite. Ela apressou-se a segui-lo, dizendo: E quanto a Jean Cooper? E ao divórcio?

 

Ela ainda vai estar no mesmo sítio quando tivermos despachado Faraday.

 

                                               CAPÍTULO 20

Um telefonema permitiu localizar Chris Faraday. Não estava em Little Venice. Estava a trabalhar em Kilburn, na restauração de uma loja situada num antigo picadeiro chamado Priory Walk. Esta mais não era do que uma viela estreita ladeada por edifícios abandonados com janelas entaipadas e paredes de tijolo fuliginoso cobertas de graffiti. Para além de um Ladbroke, na esquina, e de um restaurante chinês que vendia comida para fora, na porta ao lado, chamado Dump-Ling’s Exotic Foods, a única empresa realmente próspera das imediações parecia ser o Platinum Gym And Aerobic Studio, cujo ”pavimento, especialmente concebido para amortecer os choques sofridos pelas articulações dos ginastas”, suportava naquele momento o peso e os movimentos de um verdadeiro grupo de fanáticos da aeróbica. Uma canção de Cindy Lauper incitava o grupo, sempre que a instrutora fazia uma paragem para recobrar o fôlego.

 

A loja onde Faraday estava a trabalhar ficava em frente ao ginásio. A porta de correr, em chapa ondulada, estava quase fechada, mas havia uma carrinha verde coberta de poeira estacionada perto dela, e à medida que se aproximavam Lynley e Havers distinguiram um par de pés calçados com uns ténis andando de um lado para outro.

 

Lynley bateu e chamou, ”Faraday?”, baixando-se para passar por baixo da porta. Havers seguiu-o.

 

De pé, diante de um banco de carpinteiro encostado a uma das paredes, Chris Faraday virou-se para eles. Sobre o banco de carpinteiro, viam-se vários moldes de borracha lado a lado com sacos de gesso e ferramentas de metal. Cinco elaborados esboços a lápis de carvão, feitos em papel transparente e fino estavam pendurados na parede, por cima dele. Representavam cofragens, vários moldes de cornijas e outras ornamentações de tectos. Faziam lembrar o estilo Adam pela sua delicadeza, sendo ao mesmo tempo mais audaciosos, como se tivessem sido desenhados por alguém que não tinha a mais pequena esperança de, um dia, os ver ornamentando um tecto.

 

Faraday viu que Lynley examinava os desenhos.

 

Ao fim de algum tempo, depois de se ter visto trabalhos de Taylor. Adam e Nash, damos connosco a pensar, ”Isto parece fácil, eu próprio podia fazer qualquer coisa em gesso”. Não que haja muita procura de criadores nesta área. Em contrapartida, as pessoas estão sempre à procura de alguém com talento suficiente para reparar os desenhos antigos.

 

São bons, os seus desenhos disse Lynley. Inovadores.

 

A inovação não dá nada, quando não se tem um nome firmado. E eu não tenho nome.

 

Em quê? perguntou Lynley.

 

Sou conhecido como restaurador, é tudo.

 

Há um espaço para os restauradores, como decerto terá descoberto.

 

Não um que eu queira ocupar para sempre com a ponta do dedo indicador, Faraday testou a consistência do gesso que vertera para dentro de um dos moldes. Limpou os dedos às calças de ganga manchadas e levantou um balde de plástico que estava pousado no chão. Levou-o até uma banheira de cimento, numa das extremidades da loja e começou a enchê-lo com água. Falando por cima do ombro, perguntou:

 

Não vieram até aqui para conversar sobre tectos. Em que é que posso ajudá-los?

 

Pode contar-me o que se passou na quarta-feira à noite. A verdade, se não se importa.

 

Faraday continuou a deitar água para dentro do balde. Esfregava-o com uma escova metálica, que tirara da prateleira que estava por cima da banheira. Deitou a água fora e passou o balde por água. Tornou a trazê-lo para junto do banco de carpinteiro e colocou-o ao lado de um saco de gesso. O seu pé esquerdo deixou um rasto ao longo do tapete de pó branco que cobria o chão da loja. As suas pegadas misturaram-se com outras, já antigas.

 

Estou convencido de que você é um tipo inteligente disse Lynley. Fiquei com essa impressão nas duas vezes que nos encontrámos. Devia saber que iríamos confirmar a sua história, por isso tenho estado a pensar nas razões que o teriam levado a contá-la.

 

Faraday encostou-se ao banco de carpinteiro. A sua boca abriu-se e fechou-se várias vezes, enquanto ele parecia pesar as diversas respostas possíveis.

 

Eu não tive outra alternativa disse, por fim.Livie estava presente.

 

E você tinha-lhe dito que tinha ido a uma festa só para homens? perguntou Lynley.

 

Ela estava à espera que eu fizesse referência a essa festa.

 

Ora aí está uma variante curiosa, Mr. Faraday.

 

Um tamborete alto de rodízios estava encaixado debaixo do banco de carpinteiro. Faraday puxou-o para fora e sentou-se. A sargento Havers conseguiu empoleirar-se no degrau cimeiro de um escadote de três degraus, bloco-notas na mão, enquanto Lynley ficou onde estava. Ao contrário do que sucedera durante as suas duas deslocações à lancha, a iluminação da divisão onde se encontravam era favorável a Lynley. Com efeito, a claridade provinha de duas fontes distintas: directamente da rua e de uma lâmpada fluorescente colocada sobre o banco de carpinteiro, que incidia mesmo sobre o rosto de Faraday.

 

É óbvio disse Lynley, que vamos precisar de uma explicação Pois, se é verdade que não esteve em nenhuma festa só para homens e estava apenas a usá-la como pretexto para encobrir outra coisa qualquer, parece-me muito mais verosímil que poderia ter inventado um esquema que a polícia tivesse mais dificuldade em verificar. Como eu já disse, devia suspeitar que nós iríamos investigar a situação logo que nos fornecesse os títulos dos filmes e o nome do clube de vídeo.

 

Se eu tivesse dito outra coisa qualquer... Faraday friccionou o pescoço. Que confusão murmurou. Oiçam, tudo o que eu fiz na quarta-feira à noite só diz respeito a mim e a Livie. Não tem nada a ver com Fleming. Eu nem sequer o conhecia. Isto é, sabia que ele vivia em Kensington, com a mãe de Livie. Mas nada mais. Nunca o vi pessoalmente. Tal como Livie.

 

Nesse caso, suponho que não terá qualquer dificuldade em relatar-nos os factos referentes à noite de quarta-feira. Uma vez que eles nada têm a ver com a morte de Fleming.

 

A sargento Havers folheou as páginas do bloco-notas com um ruído significativo. Faraday olhou na direcção onde ela se encontrava.

 

Livie estava convencida que a história da festa ia pegar disse Faraday. Em circunstâncias diferentes, acho que isso teria de facto acontecido. Por isso, ela estava à espera que eu falasse sobre a festa, e se não o tivesse feito, seria levada a tirar determinadas conclusões que poderiam vir a magoá-la. E eu não queria magoá-la, por isso contei-vos a história que ela esperava ouvir. E é tudo.

 

Deduzo, então, que se serve da desculpa da festa só para homens como um alibi habitual.

 

Não é isso que eu estou a dizer.

 

Sargento? chamou Lynley.

 

Havers começou a ler a listagem dos clubes de vídeo que Nkata lhes fornecera, bem como as datas em que os filmes tinham sido alugados ao longo dos últimos cinco anos. Chegara apenas ao terceiro ano quando Faraday a obrigou a deter-se.

 

Já percebi. Mas não vou falar sobre nada disso, está bem? A história da festa só para homens não tem nada a ver com os motivos por que vieram falar comigo.

 

E tem a ver com quê, então?

 

Não tem a ver, nem com o que se passou na quarta-feira à noite, nem com o que se passou com Fleming, se é essa a vossa esperança. Quer que eu lhe conte o que aconteceu na quarta-feira à noite, ou não? Porque estou disposto a fazê-lo, e a minha história tem confirmação, mas só vos posso dizer alguma coisa, se me prometerem que fecham os olhos em relação ao resto.

 

Quando Lynley se preparava para lhe responder, Faraday interrompeu-o:

 

E não me venha com a história de que a polícia não alinha em acordos quando se trata de descobrir a verdade. Todos nós sabemos que os senhores passam o tempo a fazer coisas desse género.

 

Lynley pesou as opções que se lhe apresentavam, mas percebeu que pouco ganharia em arrastar Faraday à força para a sede da New Scotland Yard para uma demonstração de força policial e uma sessão de gravações na sala de interrogatórios. O outro homem só tinha de telefonar a um advogado e manter-se de boca calada, para que Lynley ficasse em desvantagem: pouco mais conseguiria saber para além do que conseguira descobrir nas duas primeiras entrevistas.

 

Continue pediu, impassível.

 

Deixam-me em paz em relação a tudo o resto?

 

Já lhe disse que estou interessado na noite de quarta-feira, Mr. Faraday.

 

Faraday deixou cair a mão sobre a superfície do banco de carpinteiro, onde os seus dedos procuraram um dos moldes de borracha.

 

Muito bem disse ele. Livie pensa que preciso de um alibi consistente para justificar a minha saída de quarta-feira à noite. Foi o que eu lhe disse, e dado que ela já conhecia a história do costume, não tive muita alternativa a não ser repeti-la à vossa frente. A verdade, no entanto mexeu no molde de borracha. Ajeitou-se no tamborete. A verdade é que na quarta-feira à noite fui encontrar-me com uma mulher. Chama-se Amanda Beckstead e passei a noite no apartamento dela, em Pimlico.

 

Olhou para Lynley com uma expressão algo desafiadora, como se esperasse ser julgado e preparando-se para essa eventualidade. Pareceu sentir-se obrigado a acrescentar:

 

Livie e eu não somos namorados, caso pensem que estou a traí-la. Nunca fomos. Só não quero magoá-la, levando-a a pensar que preciso de algo que ela própria gostaria de me dar, mas não pode. Não espero que compreendam o que estou a dizer-vos, mas é a verdade.

 

Faraday terminou a frase vermelho como um tomate. Lynley não considerou pertinente sublinhar que havia múltiplas maneiras de trair ou de enganar alguém. Em vez disso, limitou-se a perguntar:

 

A morada e o número de telefone de Amanda Beckstead? Faraday comunicou-lhos. A sargento Havers escrevinhou os elementos

 

no meio das suas outras notas.

 

O irmão dela também vive lá acrescentou Faraday. Ele sabe que eu estive com ela e pode confirmá-lo. Tal como os vizinhos.

 

Se a sua história for verdadeira, saiu muito cedo de casa dela.

 

Livie estava à espera que eu passasse pela casa da mãe dela, cerca das cinco da manhã. E foi o que eu fiz. Embora, tendo em conta a forma como tudo aconteceu, não precisasse de me ter despachado tão depressa Livie e a mãe ainda estavam a tomar o pequeno-almoço quando eu cheguei e tinham ar de quem estava em grande forma.

 

Não estavam a discutir? Faraday fez um ar surpreendido.

 

Não. Que ideia! Antes pelo contrário, estavam a enterrar o machado de guerra. Viviam separadas desde os vinte e dois anos de Livie, por isso tinham muita conversa a pôr em dia e pouco tempo para o fazer. Do que eu pude perceber, tinham passado a noite inteira acordadas, na conversa.

 

Sobre o quê?

 

Faraday desviou as suas atenções para o molde de borracha que estava mais próximo dos seus dedos. Passeou o polegar por um dos lados do boneco.

 

Poderei, então, deduzir disse Lynley, que estavam a conversar apenas sobre o destino a dar às cinzas de Olivia?

 

A conversa não tinha nada a ver com Fleming disse Faraday.

 

Nesse caso, nada o impede de nos falar no assunto.

 

Não é bem assim, inspector levantou a cabeça e olhou para Lynley. Está relacionado com Livie. E deve ser ela a dizer-vos, não eu.

 

Acho que estão todos a canalizar muitas energias para a protecção de Olivia Whitelaw. A mãe dela está a protegê-la. Você está a protegê-la. Ela está a proteger-se a si própria. Qual é a sua opinião sobre isto?

 

Eu não estou a gastar energias nenhumas a proteger Livie.

 

O acto de negação requer energia, Mr. Faraday. Tal como as evasivas e as mentiras descaradas.

 

Que diabo está o senhor a sugerir?

 

Que você está a tentar ocultar alguns factos.

 

Eu já vos disse onde tinha estado na quarta-feira à noite. Disse-vos com quem estive. Quase que vos disse também o que estivemos a fazer. Esta é a minha parte da história, e se quiserem saber o resto vão ter de ir perguntá-lo a outra pessoa.

 

Sabe, então, sobre o que é que elas conversaram. A noite inteira.

 

Faraday murmurou uma imprecação. Levantou-se do tamborete e começou a passear pela divisão. No exterior, no Platinum Gym, a voz de Cindy Lauper tinha dado lugar à música dos Metallica, que soava em alto e bom som. Faraday caminhou até à porta da loja e fechou-a com estrondo. O ruído ensurdecedor das guitarras esmoreceu ligeiramente.

 

Não vou conseguir aguentar-me sozinho por muito mais tempo. Livie sabe-o. Consegui manter-me firme até agora, sobretudo porque consegui reservar umas horas, de vez em quando, para estar com Amanda. Ela tem sido... Não sei. Acho que ela tem sido a minha salvação. Sem ela, acho que já teria atirado tudo ao ar há muito tempo.

 

Tudo o quê?

 

Livie e a doença dela. Uma doença nos neurónios motores. A partir desta fase, vai começar a piorar rapidamente.

 

Inquieto, afastou-se do banco de carpinteiro e aproximou-se de um monte de moldes velhos que estavam encostados à parede mais longínqua da loja. Tocou-lhes com a ponta dos ténis e continuou a falar como se o seu interlocutor fosse o chão e não Lynley.

 

Quando ela já não puder usar o andarilho, vai precisar de uma cadeira de rodas. Depois disso, de um ventilador e de uma cama articulada. E nessa altura vai deixar de poder continuar a viver na lancha. Podia ir para uma casa de saúde, mas não quer e eu também não quero que ela vá. Quanto mais reflectíamos sobre a situação e analisávamos as possíveis soluções, mais pensávamos na mãe dela. E na hipótese de ela voltar a viver com a mãe. Foi por isso que Livie foi visitá-la na quarta-feira à noite.

 

Para pedir à mãe que a deixasse mudar-se para casa dela? Faraday abanou a cabeça em sinal de assentimento. Deu um ligeiro pontapé nos moldes velhos. Três deles partiram-se, libertando uma nuvem de poeira que pousou sobre as calças de ganga dele. Limpou-as. Um gesto inútil, já que a poeira branca estava por toda a parte.

 

Porque é que vocês dois não nos contaram tudo isso logo de início? perguntou Lynley.

 

Já vos disse porquê respondeu. Ou pelo menos tentei. Não conseguem perceber o que está a acontecer? Ela está a conviver com a realidade da sua morte. Todos os dias se sente mais diminuída. Ela e a mãe não se viam há anos e ali estava Livie, obrigada a rastejar de regresso a casa, a fim de pedir ajuda à mãe. Acham que isso foi fácil para Livie? Ela é muito orgulhosa. Toda esta situação tem sido um inferno para ela. E se ela não quis fornecer-vos pormenores sobre aquela noite, não era eu que ia obrigá-la a fazê-lo. Eu achava que ela já vos tinha contado o suficiente, aliás. Que mais queriam dela?

 

A verdade disse Lynley. Que é o que eu pretendo obter de toda a gente que está envolvida no caso.

 

Bom, pois agora já têm a verdade, não é?

 

Lynley interrogou-se sobre se seria mesmo assim. Não tanto sobre a questão de ter, ou não, conseguido apurar a verdade, mas sobre o próprio Faraday. Parecera sincero quando decidira cooperar, mas não havia forma de ignorar um aspecto conspícuo da entrevista que tinham mantido com ele. Enquanto contara os factos relacionados com os seus movimentos, na quarta-feira à noite, permanecera sob o alcance da lâmpada fluorescente. Todavia, mal o seu relato passara a referir-se a Olivia, procurara refúgio nas sombras.

 

Luz e sombra, pareciam ser os temas recorrentes nos encontros entre Lynley e Faraday e as mulheres da família Whitelaw. Percebeu que não podia ignorar uma interrogação insistente: por que razão é que estes três indivíduos procuravam obsessivamente a protecção das sombras?

 

Lynley insistiu em levá-la a casa. Quando Barbara lhe confessou que optara por se submeter aos tormentos da Northern Line, nessa manhã, em vez de enfrentar o trânsito infernal e os engarrafamentos, ele comentara que Kilburn não ficava longe de Belsize Park, abaixo do qual o Bairro de Chalk Farm formava um traço diagonal entre Camden Lock e Haverstock Hill. Seria grosseiro, dissera ele em resposta aos protestos dela, levá-la de volta à Yard quando poderia deixá-la em casa em dez minutos. Quando ela insistira nos seus protestos, ele pedira-lhe que o poupasse aos seus argumentos idiotas e acrescentara que o melhor que tinha a fazer era indicar-lhe a direcção a seguir para chegar a casa dela, se não quisesse obrigá-lo a andar às voltas durante horas, na esperança de dar com o sítio onde ela morava por mero acaso.

 

Barbara conseguira evitar que ele se confrontasse com a triste realidade da sua casa de Acton ao longo dos três anos e meio em que já trabalhavam juntos. No entanto, a expressão decidida do rosto dele dizia-lhe que desta vez não iria conseguir convencê-lo a deixá-la à entrada da estação de metro mais próxima. Sobretudo, porque a estação mais próxima pertencia a uma linha completamente diferente daquela que a servia e iria exigir uma mudança de comboios em Baker Street e outra, ainda mais demorada, em King’s Cross. A viagem demoraria uns bons quarenta minutos de comboio contra uns escassos dez de carro. Continuou a reclamar em voz baixa, mas forneceu-lhe as indicações necessárias.

 

Ao chegar a Eaton Villas, Lynley surpreendeu-a ao estacionar o Bentley e desligar o motor.

 

Obrigada pela boleia, senhor. Qual é o programa para amanhã de manhã? perguntou quando abria a porta do carro.

 

Ele imitou-a. Saiu do carro e examinou as casas que se erguiam nas redondezas. Os candeeiros de rua acenderam-se entretanto, iluminando de forma agradável os edifícios eduardianos que ladeavam a rua.

 

Bonito bairro, sargento. Calmo...

 

É, sim. A que horas é que...

 

Vamos lá conhecer a sua casa nova. Lynley fechou a porta do carro.

 

Conhecer a minha casa nova? pensou ela. O seu primeiro impulso foi protestar, mas conseguiu conter-se a tempo.

 

Ah.er...?

 

Lembrou-se da casa dele, em Belgravia. Quadros em molduras douradas, porcelanas finas sobre os fogões de sala, pratas reluzindo dentro de armários com portas de vidro. Eaton Terrace e Eton Villas: o dia e a noite, apesar das ligeiras semelhanças sonoras entre os dois nomes. Merda, pensou, apressando-se a acrescentar:

 

Oh, inspector! Não há grande coisa a ver. É uma casa minúscula. Acho que o senhor não...

 

Não diga disparates. E começou a subir a álea. Ela seguiu-o, dizendo:

 

Senhor... senhor?

 

Percebeu, no entanto, que seria inútil tentar detê-lo, quando o viu empurrar o portão e encaminhar-se para os degraus do patamar da entrada. Numa última tentativa, ainda disse:

 

É só uma casinha insignificante. Não, nem isso. É mais uma cabana de jardim. O tecto não é suficientemente alto para si, senhor. Garanto-lhe, inspector. Se o senhor entrar, vai sentir-se como o Quasimodo em menos de um fósforo.

 

Ele continuou a percorrer a álea, na direcção da porta principal. Ela decidiu baixar os braços e deixar de oferecer resistência.

 

Oh, merda. Inspector? É por aqui. Pelas traseiras.

 

Conduziu-o ao longo da parte lateral da casa, tentando recordar em que estado a deixara ao sair para o emprego naquela manhã. Teria deixado alguma peça de roupa interior em cima do lava-loiça? A cama estava feita ou desfeita? Pratos esquecidos em cima da mesa? O chão juncado de migalhas? Não conseguia lembrar-se. Remexeu dentro da mala, à procura das chaves.

 

Estranho comentou Lynley atrás dela, enquanto ela virava a mala do avesso. Acha que é intencional, Havers? Que faz parte de um plano generalizado para tornar a vida moderna mais conveniente?

 

Levantou os olhos e viu que Hadiyyah, a sua jovem vizinha, tratara finalmente de fazer cumprir a sua promessa. O frigorífico envolto num pano cor-de-rosa que, naquela manhã se encontrava ainda sobre as lajes fronteiras ao apartamento do rés-do-chão fora transferido e estava, agora, ao lado da porta da casa de Barbara. Sobre ele, alguém prendera um bilhete com um pedaço de fita-cola. Lynley passou-o a Barbara. Ela desdobrou-o e, à luz difusa que jorrava de uma das janelas da parte traseira da casa, distinguiu uma caligrafia elegante e delicada. Alguém escrevera, ”Infelizmente, foi impossível colocar o frigorífico dentro da sua casa, pois a porta estava trancada. Pelo facto, as minhas desculPas”. Em jeito de assinatura, dois nomes dos quais ela apenas conseguia decifrar as primeiras letras. T-a-y, no primeiro nome. A-z, no segundo.

 

Muito obrigada, Tay Az disse Barbara. E contou a Lynley a história do frigorífico. Terminou, dizendo: Por isso, presumo que tenha sido o pai de Hadiyyah quem o trouxe até aqui. Simpático, não foi? Embora eu duvid que ele tivesse gostado muito de o ter como tema de conversa, à porta de sua casa durante os últimos dois dias. Quando tiver oportunidade...

 

Acendeu as luzes e lançou um olhar rápido pelo interior da casa. Um soutien cor-de-rosa e um par de cuecas às pintinhas verdes pendiam de uma corda colocada entre dois dos armários por cima do lava-loiça. Escondeu-as apressadamente dentro da gaveta dos talheres, antes de acender o candeeiro ao lado do sofá-cama e voltou para junto da porta de entrada

 

Não é grande coisa, de facto. O senhor provavelmente... Inspector o que é que o senhor está a fazer?

 

Pergunta desnecessária. Empurrando o frigorífico com um dos ombros Lynley decidira solucionar o dilema do electrodoméstico. Barbara imaginou manchas de óleo, sujando irremediavelmente o seu fato elegante.

 

Eu trato disso. Estou a falar a sério. Amanhã de manhã. Deixe estar isso, inspector. Posso oferecer-lhe uma bebida? Tenho uma garrafa de...

 

Uma garrafa de quê?, perguntou a si própria, enquanto Lynley continuava a fazer avançar o frigorífico, na direcção da porta.

 

Dispôs-se a ajudá-lo, colocando-se do lado oposto àquele onde ele se encontrava. Entre os dois conseguiram percorrer sem dificuldade o pequeno patamar, e ao cabo de alguns minutos tinham transposto a ombreira da porta de entrada e alcançado a cozinha, sem que para isso se tivessem visto forçados a remover nenhuma porta. Quando, finalmente, deixaram o aparelho na posição em que iria ficar, ficha convenientemente ligada à tomada, o motor ronronando a uma cadência uniforme, Barbara disse:

 

Excelente. Muito obrigada, senhor. Se formos despedidos por causa do caso Fleming, poderemos sempre ganhar a vida fazendo mudanças.

 

Ele observou os móveis dela. Uma parte vinha de Camden Lock, outra de Acton e uma terceira de leilões e lojas de velharias. Bibliófilo compulsivo como era, aproximou-se das estantes. Escolheu um volume ao acaso, depois outro.

 

Uma data de porcaria. São só para me ajudar a descontrair. Tornou a colocar o volume no lugar respectivo e pegou no livro de bolso que estava sobre a mesa ao lado da cama. Pôs os óculos e leu a contracapa.

 

As pessoas vivem mesmo felizes para sempre nestes livros, sargento?

 

Não sei. As histórias terminam pouco antes dessa parte. Mas as cenas de sexo são divertidas. Para quem gosta do género. Barbara estremeceu quando o viu ler o título Sweet Southern Comfort, fazendo um comentário sobre a ilustração expressiva da sobrecapa. Merda, pensou.

 

Quer que lhe prepare alguma coisa para comer? Não sei se almoçou/ mas no que me diz respeito, não consegui engolir uma única refeição decente em todo o dia. E se comêssemos qualquer coisa?

 

Lynley levou o romance e foi sentar-se numa das duas cadeiras arrumadas Por debaixo da mesa de jantar.

 

Não é má ideia, Havers disse, sem parar de ler. O que é que sugere?

 

Ovos. Com ovos.

 

Nesse caso, como ovos.

 

Perfeito retorquiu ela e começou a procurar dentro do balde que tinha debaixo do lava-loiça.

 

Não era muito dotada para a cozinha, porque nunca tinha tido nem tempo nem energia para se dedicar à arte culinária. Enquanto Lynley folheava o exemplar de Sweet Southern Comfort, detendo-se de tempos a tempos para ler uma página ou outra, emitir uma interjeição e uma vez para dizer, ”Santo Deus”, ela preparava aquilo a que chamava uma omoleta. Ficou ligeiramente queimada e um pouco torta, mas decidiu acompanhá-la com queijo, cebolas e um único tomate que jazia, esquecido, dentro do balde, por cima de um frasco de maionese. Conseguiu, ainda, preparar umas torradas a partir de quatro fatias de pão de trigo, decididamente endurecidas, mas não bolorentas, felizmente.

 

Enchia um bule de chá com água quente quando Lynley se levantou.

 

Peço desculpa. Sou um péssimo convidado. Devia estar a ajudá-la. Onde é que guarda os talheres, sargento?

 

Na gaveta ao lado do lava-loiça respondeu, enquanto colocava o bule na mesa. Não é um banquete, mas...

 

De súbito, deixou cair o bule sobre a mesa com um gesto violento. Correu para a cozinha, no momento em que Lynley abria a gaveta. Lançou-se sobre ele e apoderou-se das cuecas e do soutien.

 

Ele ergueu uma sobrancelha. Ela enfiou a roupa interior dentro do bolso.

 

Tenho falta de espaço para arrumação comentou, em tom ligeiro. Espero que não tenha nada contra P. G. Tips. Não tenho Lapsang Souchong.

 

Ele tirou duas facas, dois garfos e duas colheres do emaranhado de peças metálicas que enchiam a gaveta.

 

Por mim, está óptimo disse ele, levando os talheres para a mesa. Ela seguiu-o com os pratos.

 

A omoleta fazia lembrar um pedaço de borracha, mas Lynley cortou uma fatia, prendeu-a no garfo e disse:

 

Isto tem um aspecto excelente, sargento e comeu.

 

Com o pretexto de ter de pôr a mesa para o jantar, ela aproveitara para retirar o exemplar de Sweet Southern Comfort e atirá-lo para as profundezas da casa. Ele, porém, não pareceu dar pelo desaparecimento do livro. Em vez disso, tinha uma expressão pensativa. Barbara não era do género meditativo, pelo que depois de estarem a comer em silêncio há já alguns minutos, comeÇou a sentir-se inquieta e acabou por perguntar:

 

O que é que se passa?

 

O que é que se passa? perguntou ele, em resposta.

 

É a comida, o ambiente, ou a companhia? Ou é a visão da minha roupa interior. Estava lavada, a propósito. Ou foi o livro? Flint Southern foi para a frente com a Star Qualquer-Coisa? Não consigo lembrar-me.

 

Tenho a impressão de que nem sequer chegaram a tirar as roupas. disse Lynley, após alguns minutos de reflexão. Como será isso possível?

 

Erro editorial. Então sempre consumaram a paixão?

 

Eu diria que sim.

 

Muito bem. Óptimo. Assim já não preciso de ler o resto. O que só me faz bem. Aquele Flint já estava a começar a implicar-me com os nervos

 

Continuaram a comer. Lynley espalhou doce de amora sobre uma das torradas, ignorando simpaticamente os vestígios de manteiga misturados com a compota, restos de refeições anteriores. Barbara observava-o, constrangida. Não era típico de Lynley perder-se em longos pensamentos quando estava na companhia dela. Na verdade, não conseguia lembrar-se de uma única ocasião, desde que trabalhavam juntos, em que ele não tivesse partilhado com ela cada uma das fases do seu processo de raciocínio em relação a um caso que estivessem a investigar. A forma como se dispunha a expor as suas ideias e o modo como a encorajava a partilhar as dela era uma das qualidades que ela mais admirava em Lynley e que acabara por tomar por um dado adquirido. O facto de, naquele momento, ele parecer renunciar a algo que era essencial à relação de trabalho entre ambos era tão surpreendente quanto desmoralizador para ela.

 

Vendo que ele não aproveitava a abertura que ela lhe proporcionara, comeu mais um bocado de omoleta, encheu a torrada de manteiga e serviu-se de mais uma chávena de chá.

 

É por causa de Helen, inspector? perguntou, finalmente. O nome de Helen pareceu despertá-lo.

 

Helen? perguntou.

 

Sim. O senhor lembra-se de Helen. Um metro e setenta, aproximadamente. Cabelo castanho. Olhos castanhos. Pele bonita, acetinada. Pesa qualquer coisa como cinquenta e três quilos. Dorme com ela desde o passado mês de Novembro. Soa-lhe familiar?

 

Ele aplicou mais uma camada de compota sobre a torrada.

 

Não, não se trata de Helen disse. Em todo o caso, não mais do que o costume.

 

Ora, a isso é que eu chamo uma resposta esclarecedora. Se não se trata de Helen, trata-se de quê, então?

 

Estava a pensar em Faraday.

 

Em quê, exactamente? Na história que ele nos contou.

 

O seu espírito de colaboração incomoda-me. É demasiado perfeito para ser verdade.

 

Se é verdade que ele não matou Fleming, há-de ter um alibi, certo?

 

Sim, mas vem mesmo a calhar que ele tenha um alibi muito consistente, quando o de toda a gente é bastante frouxo, para não dizer outra coisa.

 

O alibi de Patten é tão consistente como o de Faraday contrapôs ela E, pensando bem, o de Mollison também. E o de Mrs. Whitelaw. Ou o de Olivia. Não está a pensar que Faraday tenha convencido esta tal Amanda Beckstead, o irmão dela e a vizinhança inteira a cometerem perjúrio em favor dele? Além disso, que tinha ele a ganhar com a morte de Fleming?

 

Ele não beneficia directamente.

 

Então, quem é que beneficia? Barbara respondeu, ela mesma, à sua pergunta, instantes depois de a ter formulado. Olivia?

 

Se conseguissem eliminar Fleming, as hipóteses de a mãe de Olivia a receber de volta aumentariam. Não concorda?

 

Barbara enfiou a faca dentro do frasco da compota e barrou a torrada com uma dose generosa de doce.

 

Claro que concordo disse. Depois de perder Fleming, Mrs. Whitelaw compadecer-se-ia mais facilmente.

 

E então...

 

Barbara ergueu a faca tingida de púrpura para o interromper.

 

Todavia, factos são factos, por mais que queiramos deformá-los de maneira a que eles encaixem nas nossas teorias. Sabe tão bem como eu que a história de Faraday vai ser confirmada. Eu vou fazer o que me compete e descobrir o paradeiro de Amanda e Companhia Limitada, amanhã de manhã, mas aposto cinco libras em como todas as pessoas com quem vou falar vão contar uma história coincidente com a de Faraday. Amanda e o irmão poderão até adiantar o nome de alguém a quem possamos telefonar a pedir uma confirmação suplementar. Um pub com um empregado falador, onde Amanda e Faraday terão bebido umas Guinness até à hora do fecho. Ou um vizinho que tenha ouvido um deles desatar à gargalhada ao subir as escadas, ou outro que se tenha queixado, com umas pancadinhas no tecto, do ranger excessivo das molas do colchão enquanto eles estavam na cama, fazendo amor da meia-noite às cinco da madrugada. É claro que Faraday não disse a verdade desde o início, mas as justificações dele fazem sentido. O senhor viu o estado em que está Olivia. Ela está na rota para o esquecimento. Se estivesse no lugar de Faraday, iria querer magoá-la se pudesse evitá-lo? O senhor parece querer atribuir-lhe intenções sinistras quando tudo se trata de um desejo real de proteger alguém que está a morrer.

 

Barbara recostou-se na cadeira e respirou fundo. Fora o discurso mais longo que alguma vez fizera na presença dele. Esperou pela reacção.

 

Lynley acabou de beber o chá. Ela serviu-lhe outra chávena. Ele mexeu O líquido distraidamente, sem adicionar nem açúcar, nem leite, servindo-se do garfo para picar uma última partícula de tomate que tinha no prato. Era óbvio que Lynley não se deixara persuadir pela sua linha de raciocínio, e ela não conseguia perceber porquê.

 

Enfrente os factos, inspector. O alibi de Faraday é sólido como rocha Obviamente que podemos continuar a escavar ainda mais, se quisermos Podemos até destacar três ou quatro agentes para descobrir em que é que Faraday está realmente envolvido, quando usa o alibi das festas só para homens para encobrir as suas deslocações. Só que, bem vistas as coisas, nada disso nos ajudará a descobrir mais facilmente a pista do assassino de Fleming E é dele que estamos à procura. Ou será que o objecto da nossa investigação se alterou enquanto eu estava a olhar para o lado?

 

Lynley depôs os talheres sobre o prato vazio. Barbara foi até à cozinha, buscar uma taça de uvas que entretanto tinham iniciado um lento e moroso processo de decomposição. Separou as que ainda pareciam comestíveis e levou-as para a mesa, juntamente com um bocado de queijo cheddar, do qual retirou uma fina camada de bolor.

 

Eis o que eu penso continuou. Eu penso que precisamos de interrogar Jean Cooper. Temos de lhe perguntar por que razão ela não tem colaborado connosco na investigação. Porque é que não tem sido honesta connosco em relação ao casamento. Às visitas que Fleming lhe fazia. Acerca da petição de divórcio e do momento interessante em que a mesma lhe foi enviada. Temos de pegar nela, levá-la para a Yard e deixá-la lá ficar umas boas seis horas. Precisamos de lhe dar um apertão valente, por uma vez que seja, e de a desgastar um bocado.

 

Ela nunca vai correr o risco de entrar na Yard sem ser acompanhada por um advogado, Havers.

 

E que diferença faz isso? Podemos perfeitamente lidar com Friskin ou com qualquer outro advogado que ela queira trazer. O objectivo é dar-lhe um abanão, inspector. E essa é, na minha opinião, a única maneira de chegar à verdade. Porque se ela não levou um abanão até agora, e o filho tem sido exibido perante a imprensa como um bezerro sacrificial, nunca mais irá levar um safanão, se não formos nós a apertar-lhe os calos pessoalmente.

 

Barbara cortou um bocado de queijo e comeu-o juntamente com o resto da sua torrada. Agarrou numa porção de uvas e exclamou, ”Que horror!”, quando o seu paladar ácido se lhe espalhou pela língua e desceu pela garganta abaixo. Afastou a taça, dizendo:

 

Peço desculpa. São um horror.

 

Lynley cortou uma fatia de cheddar, mas em vez de o comer, divertiu-se abrindo pequenos buracos com os dentes do garfo, compondo um desenho geométrico. No momento em que Barbara, já desesperada, esperava que ele reagisse à sugestão dela o que, na opinião dela, era o próximo e único passo na investigação ele meneou a cabeça, como se tanto ele como os seus pensamentos tivessem alcançado uma solução de compromisso.

 

Tem razão, sargento disse. E quanto mais penso no assunto, mais convencido estou de que o que é preciso é dar um abanão.

 

Óptimo disse ela. Nesse caso, vamos buscar Jean a casa ou pedimos-lhe que...

 

Não, não estou a referir-me a Jean esclareceu ele.

 

Não... a quem, então?

 

A Jimmy.

 

Jimmy? Jimmy. Barbara sentiu que precisava de fazer qualquer coisa, se não iria certamente começar a levitar de cólera. Agarrou-se com força à beira da mesa. Ela não vai quebrar por causa de Jimmy, inspector. Friskin deve ter-lhe dito, hoje, que Jimmy não está a dizer-nos aquilo que nós queremos ouvir. Ela vai aconselhar o filho a manter-se firme. Se ele assim fizer e continuar de boca bem fechada sempre que nós estivermos prestes a apanhá-lo em falso, ficará livre. E ele tem de saber isso. Tal como ela sabe. Estou a dizer-lhe, senhor, Jean Cooper não se vai deixar abalar por Jimmy. E também não vai ceder por causa dele.

 

Faça com que ele esteja na sede por volta do meio-dia pediu Lynley.

 

Mas porque é que havemos de perder o nosso tempo com ele? Os jornais vão cair em cima de nós, já para não falar de Webberly e de Hillier. Não vamos ganhar nada e acabaremos por perder tempo. Escute o que estou a dizer-lhe, senhor. Se apanharmos Jean, estaremos na pista certa. Teremos material para trabalhar. Se insistirmos em pressionar Jimmy, não vamos conseguir abalar Jean.

 

Você está certa em relação ao que está a dizer disse Lynley. Amarfanhou o guardanapo de papel e atirou-o para cima da mesa.

 

Estou certa em relação a quê?

 

Em relação a dar um abanão em Jean Cooper.

 

Óptimo. Nesse caso, se estou certa...

 

Mas não é Jean Cooper que eu quero assustar. Faça os possíveis para que Jimmy esteja na Yard ao meio-dia.

 

Lynley decidiu escolher o percurso mais demorado e tortuoso para regressar a casa. Não tinha pressa nenhuma. Não tinha razões para pensar que iria encontrar uma mensagem de Helen ao entrar em casa conhecia-a suficientemente bem para saber que ela não devia ter gostado da sua tentativa de a pressionar da véspera. Além disso, chegara já à conclusão de que quando se afastava de um local onde supostamente deveria pensar e reflectir conseguia, de facto, raciocinar com mais clareza do que em casa ou no seu gabinete, na Yard. Por esta razão, em mais de uma ocasião abandonara a Sede da New Scotland Yard no meio de uma investigação e percorrera a pé a curta distância que o separava de St. James’s Park. Uma vez aí, seguia o trilho que rodeava o lago, contemplando os pelicanos, escutando os sons guturais emitidos pelos habitantes de Duck Island, enquanto esperava que as suas ideias se tornassem mais claras. Assim, naquela noite, em vez de seguir para sudoeste, na direcção de Belgravia, decidiu descer para Regent’s Park Rolou ao longo do Outer Circle e depois do Inner Circle, acabando por ir dar a Park Road onde, depois de ter virado para oeste, se encontrou, sem perceber bem como, à entrada do terreno do Lord’s.

 

Havia luz no recinto, proveniente da iluminação temporária instalada pelos operários que reparavam uma canalização no exterior do Pavilhão. No momento em que Lynley transpunha Grace Gates e se dispunha a caminhar até à tribuna, foi detido por um segurança. Quando Lynley lhe mostrou a sua identificação e mencionou o nome de Kenneth Fleming, o vigilante pareceu disposto a iniciar uma conversa.

 

Scotland Yard, hein? Estão perto de concluir o caso, é? E depois disso, o que é que acontece? Se quer saber a minha opinião, devíamos voltar a ter a pena de morte e despachar este tipo. Em público inspirou fundo e cuspiu para o chão. Era um tipo bestial, Fleming. Tinha sempre uma palavra simpática para toda a gente. Perguntava-me sempre pela minha mulher e pelos miúdos. Conhecia-nos a todos pelo nome. É raro encontrar alguém assim. É o que se chama ter classe.

 

Certamente murmurou Lynley.

 

Interpretando esta simples palavra como um sinal de encorajamento, o vigilante pareceu disposto a desenvolver o seu raciocínio. Tentando impedi-lo de continuar, Lynley perguntou-lhe se o acesso à tribuna estava aberto.

 

Não há muito que ver aí replicou o vigilante. Quase todas as luzes estão apagadas. Quer que eu as acenda?

 

Não, disse Lynley, agradecendo com um movimento de cabeça quando o segurança lhe indicou o caminho de acesso à tribuna.

 

Sabia que não adiantaria muito ver os terrenos, o campo e a tribuna iluminados. A noite da véspera e o dia que agora findava tinham demonstrado à sociedade que a chave do mistério não estava na descoberta de um indício um fio de cabelo, um fósforo, um bilhete, uma pegada susceptível de ser examinado sob as luzes artificiais de um campo de críquete ou até de um laboratório e, posteriormente, apresentadas em tribunal como provas irrefutáveis da identidade do assassino. Muito pelo contrário, aquilo que permitiria resolver o caso seria algo muito mais impalpável, uma admissão de culpa decorrente da recusa de uma alma simples em manter-se calada e na incapacidade dessa mesma alma para suportar o peso da injustiça.

 

Lynley dirigiu-se para uma das tribunas e percorreu a passagem escura que conduzia à barreira que separava os espectadores do campo. Apoiou os cotovelos sobre a barreira e deixou os olhos errarem desde o Pavilhão, à sua esquerda, até aos toldos que cobriam Mound Stand, à direita, depois desde aí até ao quadrado de alcatrão situado no extremo do campo. Na escuridão, o quadro da pontuação não era mais do que uma sombra rectangular onde era possível distinguir os contornos vagos de uma série de letras e as linhas curvas e suaves das fileiras de assentos brancos espalhando-se como um naipe de cartas sobre uma mesa de mogno.

 

Fleming jogara naquele campo, pensou Lynley. Fora aqui, no Lord’s, que vivera o seu sonho. Batera na bola com um misto de entusiasmo e de talento, marcando centenas de pontos sem qualquer dificuldade, como se acreditasse que tinha direito a eles sempre que se colocava em posição. O seu bastão, o seu nome e a sua fotografia poderiam muito bem ter vindo a figurar, um dia, no Long Room, ao lado de jogadores como Fry e Grace. Essa possibilidade, porém, bem como o seu outrora futuro promissor no mundo do desporto tinham morrido juntamente com ele, numa casa em Kent.

 

Era o crime perfeito.

 

Ao fim de tantos anos como investigador de homicídios, Lynley sabia que o crime perfeito não era aquele em que não existiam provas. Crimes como esses não existem num mundo equipado com cromatógrafos, análises microscópicas comparativas, aparelhos que permitem fazer análises de ADN, computadores altamente sofisticados, lasers e lâmpadas de fibra óptica. No presente, o crime perfeito era aquele em que nenhuma das provas recolhidas no local do crime podiam ser relacionadas para além da margem de dúvida admitida pela lei com o assassino. Podia encontrar-se fios de cabelo presos ao cadáver, mas a sua presença poderia ser rapidamente explicada. Poderiam ser encontradas impressões digitais no mesmo quarto em que estava o corpo, mas depressa se concluiria que pertenciam a outra pessoa. A presença de um estranho nas imediações do local do crime, um comentário casual escutado antes ou depois de o crime ter sido cometido, a impossibilidade de indicar com exactidão o local onde alguém se encontrava no momento do crime... Tudo isto não passava de meras provas circunstanciais que, nas mãos de um bom advogado de defesa, passariam a ser tão insignificantes quanto um grão de areia.

 

Todos os assassinos dignos desse nome sabiam-no. E o assassino de Fleming não constituía excepção.

 

Na tranquila obscuridade do terreno de críquete do Lord’s, Lynley admitiu para si próprio que setenta e duas horas passadas sobre a data do crime, a investigação pouco avançara. Não dispunham de nenhuma prova tangível que pudesse ser indisputavelmente relacionada com um dos suspeitos e, a° mesmo tempo, estivesse intimamente ligada ao crime em si mesmo. De um lado, tinham beatas, pegadas, fibras, duas manchas de óleo uma nas fibras, outra no chão e uma confissão. Do outro, um cadeirão queimado, meia dúzia de cabeças de fósforos e o que restava de um cigarro Benson and Hedges. Para além disso, possuíam uma das chaves da porta da cozinha encontrada entre os pertences de Jimmy Cooper, uma discussão escutada por um dos vizinhos da casa de Kent, que saíra para um breve passeio nocturno uma zaragata no parque de estacionamento do campo de críquete, uma petição de divórcio cuja recepção não fora comunicada e uma história de amor que conhecera um desfecho trágico. Todavia, cada um destes elementos concretos, tal como os testemunhos recolhidos até àquele momento, funcionavam como um fragmento naquilo que prometia transformar-se num mosaico eternamente incompleto.

 

E foi aquilo que não tinham em seu poder que obrigou Lynley a reflectir, que o levou de volta à biblioteca da família, na casa ancestral da Cornualha, onde as chamas de uma lareira iluminavam as paredes com os seus reflexos vivos e alegres enquanto a chuva fustigava as vidraças em vagas regulares e insistentes. Ele estava deitado no chão, a cabeça apoiada nos braços. A irmã estava enroscada num coxim próximo. O pai deles estava sentado num cadeirão e lia-lhes uma história que os dois conheciam de cor: o desaparecimento de um cavalo de competição, a morte do seu treinador e os poderes dedutivos de Sherlock Holmes. Era uma história que já tinham ouvido mais de uma centena de vezes, a primeira escolha de ambos nas raras ocasiões em que o pai deles se oferecia para ler para eles em voz alta. Em cada uma dessas sessões de leitura, quando o conde se aproximava do clímax da história, a apreensão crescia dentro deles. Lynley sentava-se. Judith apertava o coxim contra a barriga. E no momento em que o conde pigarreava e dizia ao Sherlock Holmes, imitando a voz deferente do inspector Gregory, ”Há algum ponto para o qual deseje chamar a minha atenção?”, Lynley e a irmã continuavam a história. Lynley dizia, ”O estranho incidente com o cão, durante a noite”, ao que Judith retorquia, ”O cão não fez nada durante a noite”. E, logo de seguida, ambos gritavam em coro, excitados, ”Esse foi o estranho incidente”.

 

No caso de Kenneth Fleming, no entanto, o diálogo entre Holmes e Gregory teria de ser alterado. Não era o comportamento do cão durante a noite que era o elemento estranho, mas sim as declarações do suspeito. Era aí, de facto, que Lynley fazia recair a sua atenção: no estranho incidente relacionado com as declarações do suspeito.

 

O suspeito em questão não dissera absolutamente nada.

 

E isso, bem vistas as coisas, é que era surpreendente.

 

                                       CAPÍTULO 21

Voltemos ao momento em que abriste a porta da casa disse Lynley.

Quero que recordes esse momento mais uma vez. De que porta se tratava?

 

Jimmy Cooper levou um dos dedos à boca e arrancou um bocado de pele. Estavam na sala de interrogatórios havia mais de uma hora, e durante todo esse tempo o adolescente conseguira fazer sangrar o dedo por duas vezes, sem o mais leve indício de dor.

 

Lynley deixara Friskin e Jimmy à sua espera, na sala de interrogatórios, durante quarenta e sete minutos. Queria que o garoto estivesse à beira de um ataque de nervos quando finalmente fosse ter com ele, pelo que deixara que advogado e cliente marinassem na sua própria ansiedade ao mesmo tempo que eram obrigados a escutar o incessante rumor de passos que enchia o corredor, indicando que a polícia prosseguia as suas actividades com a mesma eficácia de sempre. Astuto como era, Friskin não deixara de informar o seu cliente do estratagema da polícia, obrigando-os a ficar ali à espera. O advogado, contudo, não exercia nenhum controlo férreo sobre o estado psicológico do rapaz. Afinal, era a vida de Jimmy que estava em jogo, e não a do seu advogado. E Lynley esperava que ele fosse capaz de perceber isso.

 

Tenciona acusar formalmente o meu cliente? Mr. Friskin parecia estar de péssimo humor. Mais uma vez, tanto ele como Jimmy tinham-se visto obrigados a enfrentar o assalto de uma horda de jornalistas entre Victoria Street e Broadway, uma experiência que parecia não ter agradado ao advogado. É com a maior das satisfações que aceitamos colaborar com a polícia, acreditem, e aliás a nossa presença aqui confirma-o. No entanto, se não faz tenção de acusar o meu cliente, não acha que Jim estaria muito melhor na escola?

 

Lynley nem se deu ao trabalho de recordar ao advogado que a George Green Comprehensive School confiara Jimmy aos cuidados dos serviços sociais durante o resto do trimestre. Sabia que os protestos do advogado eram sobretudo uma formalidade, destinados a mostrar abertamente ao seu cliente que o apoiava e poder, assim, ganhar a sua confiança.

 

Friskin prosseguiu:

 

Já revimos os mesmos factos pelo menos quatro vezes. Tornar a fazê-lo uma quinta vez não vai alterar nenhum deles.

 

Consegues indicar-me exactamente qual a porta a que estavas a referir-te? tornou a perguntar Lynley.

 

Friskin soltou um suspiro de desalento. Jimmy agitou-se na cadeira.

 

Já lhe disse qual era. A da cozinha.

 

E usaste a chave...?

 

Que estava na cabana do jardim. Também já lhe disse isso.

 

Pois disseste. Apenas quero ter a certeza de que não há nenhum engano. Meteste a chave na fechadura. Rodaste a chave. E depois, o que é que aconteceu?

 

O que é que quer dizer com isso?

 

Tudo isto é ridículo comentou Friskin.

 

O que é que acha que devia ter acontecido? perguntou Jimmy. Abri a maldita porta e entrei dentro de casa.

 

E como é que abriste a porta?

 

Merda! Jimmy afastou a cadeira da mesa.

 

Inspector interveio Friskin. Acha que é absolutamente necessário estudar com tanta minúcia a forma como a porta foi aberta? Com que objectivo? O que é que o senhor pretende do meu cliente?

 

A porta abriu-se sozinha depois de teres rodado a chave na fechadura? perguntou Lynley. Ou tiveste de a empurrar?

 

Jim... advertiu Friskin, como se subitamente tivesse percebido quais eram as intenções de Lynley.

 

Jimmy encolheu um dos ombros na direcção do advogado, tentando dizer-lhe, talvez, que o deixasse em paz.

 

Claro que empurrei a porta. Como é que uma pessoa abre uma porta a não ser com um empurrão?

 

Perfeito. Explica-me, então, como é que fizeste.

 

Como é que fiz o quê?

 

Como é que a empurraste?

 

Ora... dei-lhe um empurrão.

 

Onde? Por baixo da maçaneta? Por cima da maçaneta? Na própria maçaneta?

 

Não sei o rapaz recostou-se na cadeira. Por cima, acho.

 

Deste um empurrão por cima da maçaneta. A porta abriu-se. Entraste. Havia luzes acesas no interior?

 

Jimmy franziu o sobrolho. Era uma pergunta que Lynley ainda não lhe tinha feito. Jimmy abanou a cabeça.

 

Acendeste-as?

 

Para quê?

 

Para te movimentares com mais facilidade, suponho. Tinhas de encontrar o cadeirão. Tinhas levado uma lanterna contigo? Acendeste um fósforo?

 

Jimmy pareceu reflectir sobre cada uma destas questões. Se teria acendido as luzes, levado uma lanterna, ou acendido um fósforo. Ao mesmo tempo, devia estar a pesar as implicações de cada uma das opções. Finalmente, decidiu-se a responder:

 

Não podia levar uma lanterna, se fui de moto, não é?

 

Então usaste um fósforo, foi isso?

 

Não foi isso que eu disse.

 

Acendeste as luzes?

 

Talvez. Mas só durante um instante.

 

Muito bem. E depois?

 

Depois fiz aquilo que já disse que tinha feito. Acendi o estupor do cigarro e enfiei-o no cadeirão. A seguir, vim-me embora.

 

Lynley meneou a cabeça, pensativo. Pôs os óculos e tirou algumas fotografias do local do crime de dentro de um envelope. Passou-as em revista, dizendo à medida que as examinava:

 

Não viste o teu pai?

 

Já lhe disse...

 

Não falaste com ele?

 

Não.

 

Não o ouviste andar de um lado para o outro, no quarto do andar superior?

 

Já lhe contei essas coisas todas.

 

Já, já contaste. Lynley espalhou as fotografias sobre a mesa. Jimmy evitou olhar para elas. Lynley estudou-as demoradamente. Por fim, levantou a cabeça e disse: Saíste pelo mesmo sítio por onde entraste? Pela porta da cozinha?

 

Foi.

 

Tinhas deixado a porta aberta?

 

Jimmy levou a mão direita à boca. O dedo indicador deslizou entre os dentes da frente e, sem se aperceber bem do que fazia, começou a morder a pele.

 

Sim, acho que sim.

 

Estava aberta, então? perguntou Lynley, secamente. Jimmy mudou de direcção.

 

Não.

 

Estava fechada?

 

Sim, fechada. Estava fechada.

 

Tens a certeza?

 

Friskin inclinou-se para a frente.

 

Mas quantas vezes é que ele vai ter de...

 

E entraste e saíste sem nenhum impedimento?

 

Sem o quê?

 

Sem dificuldades. Não encontraste nada nem ninguém.

 

Eu já disse isso, não disse? Já faz dez vezes que...

 

Nesse caso, o que é que aconteceu aos bichos? perguntou Lynley -Mrs. Patten disse que os gatos ficaram dentro de casa quando ela saiu.

 

Eu não vi gatos nenhuns.

 

Não estavam dentro de casa?

 

Não estou a dizer que não estavam.

 

Disseste que tinhas ficado a olhar para a casa no fundo do jardim Que tinhas visto o teu pai através da janela da cozinha. Que o tinhas visto subir para o quarto. Também o viste abrir a porta? Viste-o pôr os gatos lá fora?

 

O rosto de Jimmy indicava claramente que ele acabava de perceber que as perguntas de Lynley escondiam alguma coisa. Só não conseguia descobrir o quê, exactamente.

 

Não sei, está a perceber? Não me lembro.

 

Talvez o teu pai os tenha deixado sair antes de tu chegares. Viste os gatos no jardim?

 

Mas quem é que está interessado na porcaria dos gatos?

 

Lynley reorganizou a disposição das fotografias. O olhar de Jimmy caiu sobre elas, mas ele desviou rapidamente os olhos.

 

Isto é uma perda de tempo para todos nós disse Friskin. Não estamos a chegar a lado nenhum. Nem vamos chegar, enquanto os senhores não tiverem descoberto dados novos. Quando isso acontecer, Jim estará mais do que disposto a colaborar com a polícia e a responder às vossas perguntas. Até lá...

 

O que é que tinhas vestido naquela noite, Jim? quis saber Lynley.

 

Inspector, ele já lhe disse...

 

Uma T-shirt, se bem me lembro disse Lynley. Estou certo? Calças de ganga. Uma camisola. Os Doc Martens. Mais alguma coisa?

 

Cuecas e peúgas completou Jimmy, sarcástico. As mesmas que tenho vestidas agora.

 

E é tudo?

 

É tudo.

 

Mais nada?

 

Inspector...

 

Mais nada, Jimmy?

 

Já disse. Mais nada.

 

Lynley tirou os óculos e pousou-os sobre a mesa, dizendo:

 

É curioso.

 

Porquê?

 

Porque, uma vez que não deixaste impressões digitais concluí que devias ter usado luvas.

 

Não toquei em nada.

 

Mas acabaste de explicar como é que tinhas tocado na porta para a empurrar. E, no entanto, não encontrámos as tuas impressões digitais na porta. Nem na madeira, nem na maçaneta, nem no interior da casa, nem fora. O interruptor da luz da cozinha também não tinha quaisquer marcas.

 

Limpei-as. Tinha-me esquecido. É isso mesmo. Limpei tudo.

 

Limpaste as tuas impressões digitais e, mesmo assim, conseguiste lá deixar as outras? Como é que fizeste tal coisa?

 

Friskin endireitou-se na sua cadeira e olhou fixamente para o rapaz. Em seguida centrou a sua atenção em Lynley. Ficou calado.

 

Jimmy arrastou os pés debaixo da cadeira. Enterrou a ponta dos ténis no chão. E ficou calado, também.

 

E se conseguiste a proeza de apagar as tuas impressões digitais e, ao mesmo tempo, deixar ficar todas as outras, porque é que deixaste as tuas impressões digitais no pote de cerâmica da cabana do jardim?

 

Não tenho mais nada a dizer.

 

Podemos conversar uns instantes, inspector? pediu Friskin. Lynley fez menção de se levantar.

 

Eu não preciso de instante nenhum! exclamou Jimmy. Já lhe disse o que tinha feito. Já disse as mesmas coisas milhares de vezes. Tirei a chave. Entrei. Meti o cigarro no cadeirão.

 

Não replicou Lynley. Não foi isso que aconteceu.

 

Foi, sim! Já lhe disse mais de uma vez...

 

O que tu nos disseste foi o que tu imaginas que pode ter acontecido. Talvez nos tenhas dito o que terias feito, se tivesses tido oportunidade para tal. Mas não nos disseste como as coisas se passaram realmente.

 

Ai isso é que disse!

 

Não disseste, não.

 

Lynley desligou o gravador. Tirou a cassete e substituiu-a por outra onde estava gravada uma das sessões anteriores. Tinha sido programada para arrancar no momento que ele seleccionara nessa manhã, por isso limitou-se a premir a tecla que pôs a cassete em movimento. As vozes deles soaram nas colunas do gravador.

 

Estavas a fumar nessa altura?

 

O que é que acha? Que eu sou algum imbecil? Era um destes? Um JPS?

 

Exactamente, um JPS.

 

E acendeste-o? Não me queres mostrar como é que o fizeste, por favor?

 

Mostrar o quê?

 

Como é que acendeste o cigarro.

 

Lynley desligou o gravador, tirou a cassete e tornou a colocar a que dizia respeito à entrevista que estava a decorrer. Premiu a tecla.

 

E depois? disse Jimmy. Disse o que disse e fiz o que fiz.

 

Com um / PS.

 

Mas você é surdo, ou quê?

 

Não, não sou surdo. Lynley passou a mão pela testa e depois baixou-a para poder observar o rapaz. Jimmy balançava-se na cadeira.

 

Porque é que estás a mentir, Jim?

 

Eu nunca...

 

O que é que tu não queres que nós saibamos? O rapaz continuou a balançar-se na cadeira.

 

Oiça, eu disse...

 

Não me disseste a verdade.

 

Eu estava lá. Já lhe disse.

 

Pois estavas. No jardim. Estiveste também na cabana do jardim. Mas não entraste na casa. Nem foste tu quem matou o teu pai.

 

Matei, sim. Sacana. Dei-lhe aquilo que ele merecia.

 

O dia em que o teu pai foi assassinado foi também o dia em que a tua mãe devia ter acusado a recepção da petição de divórcio que ele tinha preenchido. Sabias isso, Jim?

 

Ele merecia morrer.

 

Mas a tua mãe não queria divorciar-se. Se quisesse, teria ela própria preenchido a sua petição dois anos depois de ele ter deixado a família. Por abandono do domicílio conjugal. Juridicamente, ela teria motivos para isso.

 

Eu queria que ele morresse.

 

Mas em vez disso ela aguentou a situação durante quatro anos. E talvez tenha pensado que ele acabaria por voltar para casa, um dia.

 

Eu matava aquele sacana outra vez, se pudesse.

 

Achas que ela tinha razões para pensar desta maneira, Jim? Afinal, o teu pai tinha continuado a visitá-la ao longo daqueles anos todos. Quando tu e os teus irmãos não estavam em casa. Sabias disso?

 

Fui eu. Fui eu.

 

Na minha opinião, a tua mãe tinha esperanças de que ele voltasse. Uma vez que ele continuava a visitá-la.

 

Jimmy deixou cair a cadeira, que retomou a posição inicial. As suas mãos contorciam-se debaixo da T-shirt, esticando o tecido na direcção dos joelhos.

 

Já lhe disse repetiu.

 

E o significado destas palavras era claro como água: não me chateie. Não lhe vou dizer nem mais uma palavra. Lynley pôs-se de pé.

 

Nós não vamos acusar formalmente o seu cliente, Mr. Friskin. Jimmy ergueu a cabeça num movimento rápido.

 

Mas vamos querer conversar com ele mais uma vez. Quando ele se lembrar do que realmente aconteceu na quarta-feira à noite.

 

Duas horas mais tarde, Barbara Havers apresentava a Lynley o seu relatório sobre as actividades de Chris Faraday e de Amanda Beckstead, na noite de quarta-feira. Amanda, disse ela, morava numa antiga moradia reconvertida num edifício de apartamentos, em Moreton Street. Havia vizinhos em cima e em baixo, um grupo de pessoas simpáticas que se conheciam e se comportavam como se passassem o tempo a vigiar a vida uns dos outros. Amanda confirmara que Chris Faraday passara a noite com ela.

 

É uma situação bastante delicada por causa de Livie dissera ela, numa voz suave e calma, a mão direita delicadamente pousada sobre a direita.

 

Concordara em encontrar-se com Barbara Havers durante a sua hora de almoço, longe da loja de cuidados para animais e do estúdio de fotografia que dirigia com o irmão em Pimlico, e em conversar com a sargento desde que pudesse comer a sua sanduíche de queijo e beber a sua garrafa de Evian, ao mesmo tempo. Tinham ido até Pimlico Gardens, à beira-rio, onde se tinham sentado junto à estátua de William Huskisson, um estadista do século xix esculpido em pedra e retratado em toga e, por mais estranho que tal possa parecer, botas de montar. Aparentemente, Amanda não prestara atenção à forma incongruente como Huskisson estava vestido. Tão-pouco parecera incomodada pelo vento que varria a superfície do rio, ou pelo ruído ensurdecedor produzido pelos veículos que circulavam ao longo de Grosvenor Road. Sentada na posição de lótus sobre o banco de madeira, começara simplesmente a falar enquanto almoçava.

 

Livie e Chris vivem juntos há quatro anos dissera ela, e agora que Livie está doente, Chris não tem coragem de a abandonar. Sugeri-lhe que tentássemos viver em comunidade, o meu irmão, Chris, Livie e eu própria. Mas Chris não quer. Diz que Livie não seria capaz de encarar o facto de eu e ele querermos estar juntos. Ia insistir para que ele a internasse numa casa de saúde, porque é assim que ela é. E ele também não quer isso. Sente-se responsável por ela. Por isso estamos assim, numa situação de impasse.

 

Ao longo dos últimos meses, ela e Chris tinham conseguido encontrar-se em segredo, dissera a Barbara, mas nunca tinham conseguido passar mais de quatro horas sozinhos. Na quarta-feira, surgira a primeira oportunidade de passarem uma noite inteira juntos, porque Livie planeara ir visitar a mãe e ficaria à espera que Chris a fosse buscar na manhã do dia seguinte. Com a maior das franquezas, Amanda confidenciara a Barbara:

 

Queríamos apenas dormir juntos. E acordar juntos. Era mais do que fazer amor. Era partilhar uma intimidade mais profunda do que simplesmente ter relações sexuais. Compreende o que quero dizer?

 

Ela parecera tão sincera que Barbara se sentira obrigada a menear a cabeça em sinal de assentimento, como se a experiência de dormir com um homem fosse o seu pão de cada dia. Exactamente, pensara. Estabelecer uma relação de intimidade com um tipo. Claro que compreendo o que isso é. Sem sombra de dúvida.

 

Para concluir o seu relatório, Barbara disse a Lynley:

 

A minha opinião é a seguinte: ou a morte de Fleming foi uma conspiração que contou com a maior parte dos moradores de Moreton Street ou Amanda Beckstead está a dizer a verdade. Eu voto na segunda hipótese E o senhor?

 

Lynley estava junto à janela do seu gabinete, mãos enfiadas nos bolsos e atenção centrada na rua. Barbara perguntou a si própria se os repórteres e os fotógrafos teriam dispersado.

 

E o que é que conseguiu arrancar ao nosso rufiazinho desta vez?

 

A confirmação de que ele não matou o pai.

 

Ele continua a manter a mesma versão?

 

De momento.

 

Gaita. Tirou uma tira de Juicy Fruit, dobrou-a ao meio e meteu-a na boca. Porque é que não a trazemos até cá? Qual é a vantagem de rodear a questão desta maneira?

 

A vantagem está nas provas, sargento.

 

Quanto às provas, havemos de encontrá-las. Já temos o móbil, os meios e a oportunidade. Temos razões suficientes para a trazer até aqui e pressioná-la um bocadinho. O resto virá naturalmente.

 

Lynley abanou a cabeça lentamente. Durante longos instantes, observou a rua, depois o céu, cinzento como um navio de guerra, como se a Primavera tivesse decidido fazer greve.

 

Tem de ser o rapaz a dizer o nome dela disse, por fim. Barbara tentou convencer-se de que não tinha ouvido bem. Exasperada,

 

continuou a mastigar a pastilha elástica, dando estalidos dentro da boca. Era tão pouco característico de Lynley, aquele tipo de abordagem tão cautelosa, que, numa atitude um pouco desleal da sua parte, ela chegou a interrogar-se se a indecisão de que dava mostras na sua vida sentimental e no seu relacionamento com Helen Clyde estariam, finalmente, a contaminar o seu trabalho.

 

Inspector esforçou-se por assumir o tom de voz paciente de boa colega, não acha que é pouco realista esperar uma atitude dessas da parte de um adolescente de dezasseis anos? Ela é mãe dele, afinal. Podem não se entender lá muito bem, mas se ele a nomear como a assassina do pai, consegue imaginar o que é que isso vai gerar dentro dele. E ele deve saber o que lhe vai acontecer, se fizer uma coisa dessas.

 

Lynley passou o dedo pelo maxilar, com uma expressão pensativaBarbara sentiu-se encorajada e continuou:

 

No espaço de uma semana, o miúdo terá perdido o pai e a mãe. Diga-me, com toda a franqueza, é capaz de o imaginar a fazer uma coisa dessas? Está à espera que ele faça dos irmãos, já para não falar dele mesmo, órfãos? Que os coloque à guarda do tribunal? Não acha que isso é pedir muito? Não acha que isso é exigir demasiado do rapaz?

 

Talvez seja, Havers respondeu Lynley.

 

Bom, então...

 

Mas, infelizmente, vamos ter de o obrigar a ceder se quisermos descobrir a verdade.

 

Barbara preparava-se para continuar a argumentar quando Lynley desviou os olhos para a porta do gabinete, atrás dela.

 

Sim, Dee. O que é que se passa?

 

Dorothea Harriman compôs um dos folhos da sua blusa de seda. Naquela tarde, ela era uma verdadeira sinfonia em azul.

 

O superintendente Webberly deseja vê-lo, a si e à sargento Havers. Quer que lhe diga que acabaram de sair.

 

Não. Nós vamos já.

 

Sir David está com ele acrescentou Harriman. Foi Sir David quem convocou a reunião, aliás.

 

Hillier gemeu Havers. Deus tenha piedade de nós. Lá se vão duas horas, pelo menos, inspector. Sabe como ele é, quando está lançado... Vamos fugir a esta enquanto podemos. Dee pode apresentar uma desculpa qualquer.

 

Harriman esboçou um sorriso adorável que lhe deixou o rosto cheio de covinhas.

 

Com o maior dos prazeres, inspector. Ele está de cinzento-antracite, hoje.

 

Barbara afundou-se ainda mais na sua cadeira. Os fatos cinzento-antracite de Sir David Hillier eram lendários na New Scotland Yard. Corte perfeito, escrupulosamente dobrados nos sítios certos, primorosamente engomados e imaculados como se tivessem sido acabados de desembrulhar, Hillier usava-os sempre que queria sublinhar a sua posição hierárquica como superintendente-chefe. Quando chegava a Victoria Street vestido com um dos seus fatos cinzento-antracite, era sempre tratado por ”Sir David”. Nos outros dias, era apenas ”o Chefe”.

 

Estão no gabinete de Webberly? perguntou Lynley.

 

Harriman confirmou com um aceno de cabeça e avançou à frente deles.

 

Tanto Hillier como Webberly estavam sentados na mesa redonda colocada no centro do gabinete de Webberly, e o assunto que Hillier desejava discutir com eles ocupava por completo o tampo da mesa: os matutinos estavam espalhados e abertos como se tivessem sido percorridos por um actor principiante ansioso por conhecer as impressões dos críticos na manhã seguinte à noite de estreia. E, conforme Barbara pôde ver depois de uma olhadela rápida enquanto Hillier se punha solenemente de pé para saudar a entrada na sala de um membro do sexo oposto, o superintendente-chefe tinha igualmente examinado os jornais da véspera.

 

Inspector, sargento cumprimentou Hillier.

 

Webberly levantou-se da mesa e, passando por detrás deles, dirigiu-se à porta e fechou-a. O superintendente já tinha fumado mais de um charuto naquele dia, e o ambiente no interior do seu gabinete estava carregado, uma nuvem de fumo pairando pela divisão.

 

Com a ajuda de um lápis dourado, Hillier designou os jornais que se encontravam sobre a mesa. As fotografias das edições daquele dia mostravam desde Mr. Friskin escondendo o rosto de Jimmy com o braço a Jean Cooper abrindo caminho por entre uma multidão de repórteres, tentando chegar até ao carro. Para além disso, o apetite dos leitores fora saciado com a inclusão de uma ampla panóplia de imagens que não se restringia aos principais protagonistas do caso. O Daily Mail publicara o que parecia ser uma foto-reportagem da vida de Kenneth Fleming, que incluía fotografias da sua antiga casa da Isle of Dogs, da família, da casa do Kent, da fábrica em Stepney, de Míriam Whitelaw e de Gabriella Patten. O Guardian e o Independent tinham optado por uma abordagem mais intelectual, publicando um esquema do local do crime. Quanto ao Daily Mirror, ao Sun e ao Daily Express, publicavam entrevistas com patrocinadores da selecção inglesa, com Guy Mollison e com o capitão da equipa do Middlesex. Todavia, o maior número de colunas em The Times fora dedicado à questão do aumento da taxa de criminalidade entre adolescentes, deixando a cargo do leitor a capacidade de relacionar este artigo de fundo com as notícias relativas ao assassínio de Fleming. Nada de visões tendenciosas, declarava-se no artigo, embora o uso recorrente da expressão alegadamente, não impedisse o jornal de mencionar o hipotético envolvimento no caso de um jovem desconhecido de dezasseis anos.

 

Hillier usou o lápis uma segunda vez para indicar duas cadeiras colocadas em frente à sua. Quando Barbara e Lynley se sentaram, ele aproximou-se do painel de informações pendurado na parede junto à porta do gabinete e examinou, ostensivamente, os avisos que aí estavam afixados. Webberly caminhou até à sua secretária, mas em vez de se sentar, apoiou o seu monumental traseiro no parapeito da janela e começou a desembrulhar um charuto.

 

Estou à espera das suas explicações disse Hillier, dirigindo-se ao painel de informações.

 

Senhor retorquiu Lynley.

 

Barbara lançou uma olhadela rápida na direcção de Lynley. Falara num tom neutro mas não deferente. Hillier não devia ter gostado do facto.

 

O superintendente-chefe prosseguiu, modulando a voz de uma forma que sugeria que estava mergulhado numa espécie de estado contemplativo.

 

Acabo de viver uma manhã no mínimo curiosa. Levei metade do tempo a tentar evitar os editores de todos os principais jornais desta cidade, e a outra metade ao telefone com antigos e futuros patrocinadores da selecção inglesa de críquete. Tive uma reunião nada gratificante com o comissário-adjunto e depois um almoço algo indigesto, no terreno do Lord’s, com sete dos membros do MCC. Suponho que tudo isto faça sentido para si, Lord

 

Asherton?

 

Barbara sentiu Lynley estremecer ao seu lado, ao ouvir a menção do seu

 

título aristocrático. Apercebeu-se do enorme esforço que ele fez para não morder o isco lançado por Hillier.

 

Com um sangue-frio notável, respondeu:

 

Todos, e isso é mais do que compreensível, estão ansiosos por ver este caso concluído. É o que costuma acontecer sempre que uma figura pública é assassinada. Não concorda... Sir David?

 

mouche, pensou Barbara. Todavia, sentiu as entranhas revolverem-se, enquanto esperava pela reacção de Hillier.

 

Ao virar-se para eles, o rosto de Hillier, habitualmente rosado, estava agora escarlate, contrastando vivamente com o seu cabelo grisalho. Se iam optar por fazer apelo aos respectivos títulos, seria ele quem sairia a perder e todos os que estavam presentes no gabinete estavam cientes desse facto.

 

Não precisa obviamente que lhe recorde que já se passaram seis dias desde que Fleming foi assassinado, inspector.

 

Mas quatro, apenas, desde que estamos a trabalhar no caso.

 

E tanto quanto me é dado ver continuou Hillier, o senhor passou a maior parte do tempo com idas e vindas entre a Yard e a Isle of Dogs, numa perseguição desnecessária a um adolescente de dezasseis anos.

 

Isso não é inteiramente correcto, senhor interveio Barbara.

 

Então, expliquem-se disse Hillier com um sorriso que parecia deliberadamente insincero. Porque, embora eu leia os jornais, eles não são a minha fonte de informação preferida quando se trata de ser posto a par do trabalho desenvolvido pelos meus subordinados.

 

Barbara meteu a mão dentro da mala e começou a procurar o bloco-notas. Viu a mão de Lynley mover-se no braço da cadeira onde estava sentado e percebeu que ele estava a dizer-lhe que não se desse a esse trabalho. Um instante mais tarde, percebeu porquê, quando Hillier continuou:

 

Segundo esta gente disse, estendendo uma mão bem tratada na direcção dos jornais, o senhor tem uma confissão em seu poder, inspector. Descobri, esta manhã, que essa informação tinha sido posta a circular tanto no interior deste edifício como fora dele. Suponho que não só o senhor está a par do facto como deixou que tal acontecesse de propósito. Estou enganado?

 

Não estou em posição de rebater essa conclusão respondeu Lynley. A resposta não agradou em absoluto a Hillier.

 

Oiça o que lhe vou dizer. Existem críticas a todos os níveis acerca da competência com que este caso está a ser tratado. E são críticas que não carecem de fundamento.

 

Lynley olhou rapidamente para Webberly.

 

Superintendente?

 

Webberly transferiu o charuto de um dos cantos da boca para o outro Enfiou o dedo indicador no colarinho puído da camisa. Tal como competia a Hillier supervisionar os problemas que pudessem surgir entre o Departamento de Investigação Criminal e todos os outros departamentos, era da responsabilidade de Webberly estabelecer a ligação entre Hillier e os inspectores da sua divisão. Naquele dia falhara a sua missão e era evidente que não gostava que lho lembrassem, mesmo que fosse através de uma palavra tão inofensiva como ”superintendente”. Além disso, sabia muito bem o que estava implicado naquela interrogação: ”De que lado está o senhor, superintendente? Posso contar com o seu apoio? Está disposto a adoptar uma posição arriscada?”

 

Num tom de voz brusco, Webberly disse:

 

Você pode contar comigo, meu rapaz. Mas o superintendente-chefe Webberly jamais se referira a Hillier tratando-o por Sir David precisa de ter elementos concretos para poder continuar a desempenhar o seu papel de agente de ligação entre o público e as autoridades.

 

Porque é que não acusou formalmente o garoto? perguntou Hillier, aparentemente satisfeito com a posição assumida por Webberly.

 

Ainda não estamos prontos para o fazer.

 

Nesse caso, por que diabo deixou que o gabinete de imprensa divulgasse informações capazes de sugerir uma detenção iminente? Trata-se de alguma espécie de jogo cujas regras só você conheça? Tem consciência da forma como estão a ser interpretados os factos relacionados com esta investigação, inspector? Por todos, desde o comissário-adjunto aos vendedores de bilhetes no metropolitano? ”Se a polícia conseguiu obter uma confissão, se conseguiu reunir provas, porque é que não actua?” Como é que acha que devo responder a perguntas como estas?

 

Explicando aquilo que já sabe: que uma admissão de culpa não constitui uma confissão digna desse nome respondeu Lynley. Temos uma admissão de culpa por parte do garoto. Não temos uma confissão.

 

Você trá-lo até à Yard. Não consegue arrancar-lhe nada. Manda-o para casa. Repete a actuação uma segunda vez e depois uma terceira. O resultado é o mesmo. Entretanto, os jornalistas não nos largam a porta. Conclusão: o senhor, e, por inerência, todos nós, passamos por incompetentes por sermos incapazes, ou será por não estarmos dispostos, inspector?, a tomar medidas concretas. O que me parece é que o senhor está a permitir que um garoto de dezasseis anos, a quem um bom banho não faria mal nenhum, o tome por um imbecil.

 

Contra isso, nada há a fazer disse Lynley. E, francamente, se isso não me incomoda, superintendente-chefe Hillier, não vejo por que razão há-de incomodá-lo a si.

 

Barbara baixou a cabeça para esconder a sua crispação. Lynley tinha passado das marcas, pensou. O seu título de nobreza era indubitavelmente mais antigo e prestigiado do que o de Hillier, mas dentro da New Scotland Yard a hierarquia nada tinha que ver com a pureza sanguínea nem com a origem dos títulos nobiliárquicos: quer por atribuição da Rainha, em cada final de ano, quer por direito de nascimento.

 

O rosto de Hillier tingiu-se da cor das ameixas bem maduras e ele disse:

 

Eu tenho responsabilidades, que diabo. É por isso que me incomoda. E se não consegue dar o caso por encerrado em tempo útil, talvez seja preferível entregá-lo a outro inspector.

 

Cabe-lhe a si tomar essa decisão, obviamente replicou Lynley.

 

Acredite que nada me daria mais prazer do que fazê-lo.

 

Se não recear perder ainda mais tempo, não deve hesitar em retirar-me do caso.

 

David Webberly interveio rapidamente, num tom de voz onde perpassava uma advertência. Era um tom que parecia querer dizer, ”Deixe-me resolver este problema”. Ninguém está a pensar em substituí-lo, Tommy. Nem ninguém está a questionar a sua competência. Simplesmente, a sua conduta deixa-nos um pouco desconfortáveis. Você está a manobrar a imprensa de uma forma que não é lá muito ortodoxa, e isso é algo que não passa despercebido.

 

É exactamente isso que eu pretendo explicou Lynley. Hillier acrescentou:

 

Permita-me que lhe recorde que a história prova que nunca ninguém ganhou nada em conduzir uma investigação de homicídio com a colaboração da comunicação social.

 

Não é isso que eu estou a fazer.

 

Nesse caso, importa-se de ter a gentileza de nos explicar o que tem em mente. Porque, se bem entendi novo movimento semicircular com o lápis dourado, na direcção dos jornais sempre que o inspector Lynley solta um espirro, a imprensa é informada a tempo de poder dizer, ”Santinho”.

 

Essa é uma das consequências da...

 

Não estou a pedir-lhe que me apresente desculpas, inspector. Mas sim factos. Compreendo que se sinta satisfeito por poder gozar dos seus quinze minutos de fama, mas não se esqueça que o senhor é apenas uma pequena peça de toda esta operação. E que as peças são facilmente substituíveis. E agora, explique-me o que se está a passar.

 

Pelo canto do olho, Barbara conseguia ver a mão de Lynley pousada sobre o braço da sua cadeira. Os dedos anelar e mínimo estavam crispados sobre o tecido puído, mas essa era a sua única reacção visível aos ataques de Hillier. Numa voz pausada e sem desviar os olhos do superintendente-chef Lynley fez-lhe o relato de todos os factos relacionados com o caso. Sempre que precisava que Barbara interviesse, dizia simplesmente, ”Havers”, sem sequer olhar para ela. Quando terminou depois de ter mencionado tudo, desde a presença de Hugh Patten no Cherbourg Club, na noite da morte de Fleming, até à confirmação de Amanda Beckstead do paradeiro de Chris Faraday administrou um coup de grace que nem mesmo Barbara esperara ouvir alguma vez

 

Sei que a Yard gostaria de ver o caso encerrado disse, mas a verdade é que, apesar dos nossos melhores esforços e de todos os recursos humanos envolvidos, é provável que não sejamos capazes de o dar por encerrado.

 

Barbara ficou à espera que Hillier sofresse um colapso. Lynley não pareceu ter qualquer receio de vir a provocar um, pois continuou:

 

Não temos nada de concreto para fornecer ao ministério público.

 

Quer fazer o favor de se explicar pediu Hillier. O senhor gastou quatro dias e mobilizou só Deus sabe quantos efectivos para seguirem suspeitos e recolherem provas. Aliás, demorou uns bons vinte minutos a explicar-me tudo isso.

 

Mas depois de ter seguido todos os suspeitos e de ter recolhido todas as provas, ainda não sou capaz de fazer uma identificação formal do assassino, porque não existe nenhum elo directo entre o assassino e as provas. E eu não estou preparado para pedir a um advogado de acusação que se pronuncie sobre a culpabilidade de alguém que eu não consigo sequer provar que cometeu um crime. Se o fizesse, seria sem dúvida motivo de chacota em qualquer tribunal. E mesmo que assim não fosse, jamais poderia tornar a olhar-me ao espelho se colocasse no banco dos réus alguém sobre cuja culpabilidade eu não estivesse absolutamente seguro.

 

Hillier adoptara uma postura cada vez mais rígida à medida que ia ouvindo Lynley.

 

E Deus nos livre de lhe pedirmos que faça algo que o impeça de se olhar ao espelho, inspector Lynley.

 

Sim respondeu Lynley, impassível. E preferia que não me exigissem algo de semelhante. De novo, superintendente-chefe. Uma vez é suficiente. Não concorda?

 

Ambos trocaram olhares belicosos. Lynley cruzou as pernas, como se estivesse a preparar-se para um combate verbal, há muito adiado mas necessário. Barbara pensou, ”Ele está doido varrido”.

 

Chega, Tommy interveio Webberly. Acendeu o charuto, exalando fumo suficiente para tornar o ar do gabinete irrespirável. Todos nós temos os nosso segredos. Não há necessidade de começar agora a alardeá-los.

 

Contornou a sua secretária e juntou-se a eles em volta da mesa onde se serviu do charuto como ponteiro, tal como Hillier fizera com o lápis dourado. Designando os jornais, disse a Lynley:

 

Você assumiu riscos enormes, Tommy. Se tudo isto lhe rebentar nas mãos, quem é que se afunda consigo?

 

Ninguém.

 

Certifique-se de que assim continue.

 

Inclinando a cabeça para a porta fez-lhes sinal para saírem.

 

Barbara fez os possíveis por não se precipitar para fora do gabinete. Lynley seguiu-a em passo lento. Quando já estavam os dois no corredor, a porta do gabinete quase fechada, Hillier exclamou num tom seco e suficientemente elevado para que Lynley pudesse ouvi-lo: Pretensioso de meia-tigela! Santo Deus, como eu gostaria de...

 

Mas você já o fez, David, não é verdade? perguntou Webberly. Barbara viu que Lynley não parecia de modo nenhum perturbado pela atitude de Hillier. Via as horas no relógio de bolso. Barbara consultou o relógio. Quatro e meia.

 

Porque é que disse aquilo, inspector? perguntou ela.

 

Ele começou a dirigir-se para o seu gabinete. Como ele não respondia, ela insistiu:

 

Porque é que disse a Hillier que poderíamos não ser capazes de resolver o caso?

 

Porque ele queria ouvir a verdade, e essa é a verdade.

 

Como é que pode dizer isso? perguntou Barbara.

 

Lynley continuou a andar, desviando-se de um funcionário que empurrava um carrinho cheio de bules de chá e de cafeteiras de café na direcção de uma das salas de operações. Pareceu ignorar a pergunta dela.

 

Ainda não falámos com ela insistiu Barbara. Isto é, ainda não conversámos com ela a sério. Não tentámos pressioná-la. Sabemos mais coisas agora do que sabíamos quando fui falar com ela, no sábado, e faz todo o sentido que falemos com ela novamente. Que lhe perguntemos o que pretendia Fleming quando ia visitá-la. Que lhe perguntemos sobre a petição de divórcio. Sobre as razões que a levaram a não acusar a recepção da citação e ° significado de já não ter de o fazer agora. Que lhe perguntemos sobre os termos do testamento de Fleming e sobre qual é a situação actual, agora que ele morreu e que ela é a sua única esposa legítima. Temos de arranjar um mandado de busca para a casa e o carro. Procurar os fósforos. Procurar um maço de Benson and Hedges. Nem sequer precisamos de encontrar um cigarro inteiro, senhor. Um selo do maço seria suficiente.

 

Lynley entrou no seu gabinete. Barbara seguiu-o. Ele começou a folhear a papelada referente ao caso Fleming, que começava a assumir proporções consideráveis. Transcrições de entrevistas, registos criminais, relatórios de vigilâncias, fotografias, provas, informações sobre a autópsia e uma pilha de jornais que chegava quase à altura da cintura.

 

Barbara sentiu a impaciência começar a invadi-la, sentiu um formigueiro subir-lhe pelas pernas acima. Apetecia-lhe passear de um lado para o outro sem parar. Apetecia-lhe fumar. Agarrar em toda aquela papelada com as suas próprias mãos e obrigá-lo a escutar a voz da razão.

 

Se não falar com ela agora, inspector disse, o senhor estará precisamente a fazer o jogo de Hillier. Ele ia adorar escrever deserção do posto de trabalho na sua avaliação de final de ano. Ele está em pulgas por sua causa porque sabe muito bem que virá o dia em que o senhor irá tirar-lhe o lugar e ele não consegue suportar a ideia de ter de o tratar por ”chefe”. Como se isso alguma vez fosse possível enterrou os dedos nos cabelos. O tempo está a passar muito depressa continuou. Cada dia que passa sem que nós tomemos uma atitude torna as coisas ainda mais difíceis. O tempo permite que as pessoas inventem alibis. Dá-lhes mais uma oportunidade para trabalharem e embelezarem as suas histórias. Pior do que isso, dá-lhes uma oportunidade para pensar.

 

Que é precisamente o que eu quero disse Lynley.

 

Barbara desistiu de tentar respeitar a zona de não fumadores que era o gabinete de Lynley.

 

Peço muita desculpa. Mais um minuto e começo a dar murros na parede. Acendeu um cigarro e recuou até à porta do gabinete, onde poderia expelir o fumo para o corredor. Reflectiu sobre o que ele tinha dito.

 

Pelo que podia ver, o inspector Lynley andava a meditar demasiado sobre este caso. Apesar do seu discurso algo pomposo, no domingo à noite ao jantar, abandonara o seu modo de actuação habitual, tendo desistido de dar ouvidos ao instinto precisamente no momento em que este lhe seria mais útil. Estranhamente, Barbara tinha a impressão que as posições se tinham invertido e que era ela, agora, quem agia por instinto, enquanto ele, por uma razão que ela desconhecia, decidira avançar com uma cautela extrema, um pé de cada vez. Ela não conseguia perceber essa mudança que se operara nele. Não era por temer as críticas dos seus superiores hierárquicos. Ele não precisava daquele emprego. Se eles decidissem despedi-lo, arrumaria a secretária, tiraria os quadros da parede do gabinete, reuniria os livros, devolveria o distintivo e partiria para a Cornualha sem olhar para trás uma única vez. Então, porquê toda aquela hesitação, agora? Sobre que é que ele queria reflectir ainda mais? E a propósito de quê.

 

Soltou uma imprecação silenciosa e acrescentou:

 

De quanto tempo precisa, então?

 

Para quê? guardava os jornais dentro de uma caixa.

 

Para pensar. De quanto tempo precisa para pensar?

 

Colocou um exemplar de The Times por cima do Sun. Uma madeixaloira tombou-lhe sobre a testa e ele empurrou-a com o dedo indicador.

 

Percebeu mal disse ele. Não sou eu quem precisa de pensar.

 

Quem é, então, inspector?

 

Julgava que era óbvio. Estamos à espera que o assassino seja identificado pelo nome. E isso leva tempo.

 

Quanto tempo mais, santo Deus? perguntou Barbara.

 

A voz dela começou a derrapar nos agudos e ela tentou controlá-la. Perdeu o juízo, pensou. Desta vez é que ele ficou maluquinho de todo.

 

Inspector, não quero pisar em terreno que não me diz respeito, mas haverá a mais remota possibilidade de Jimmy... desesperada, procurou uma palavra neutra, e quando não conseguiu lembrar-se de nenhuma, continuou: Será possível que o conflito que opõe Jimmy à mãe faça vibrar uma corda sensível em si? Será possível que esteja a dar-lhe a ele e a Jean Cooper tanto espaço de manobra porque... bem, porque, em certo sentido, o senhor já viveu uma situação semelhante?

 

Puxou uma fumaça rápida e deixou cair a cinza do cigarro no chão, que, disfarçadamente, tentou empurrar como se fossem grãos de poeira.

 

Em que sentido? perguntou Lynley em tom calmo.

 

O senhor e a sua mãe. Isto é, durante muitos anos, o senhor... suspirou e disse: O senhor e a sua mãe mantiveram uma relação distante durante muitos anos, não foi? Talvez esteja a rever-se na relação de Jimmy com a mãe. O que eu quero dizer...

 

Com o calcanhar do sapato do pé direito deu uma leve pancadinha no esquerdo. Estava a cavar a sua sepultura e embora estivesse consciente desse facto, não sabia muito bem como haveria de pôr fim ao caso.

 

Talvez esteja a pensar que com tempo teria sido capaz de fazer uma coisa que Jimmy Cooper é incapaz de fazer.

 

Ah! disse Lynley. Acabou de guardar os jornais dentro da caixa. Engana-se.

 

Concorda, então, que até o senhor teria hesitado em revelar o nome da sua mãe num caso de homicídio?

 

Não é isso que estou a dizer, embora isso provavelmente seja verdade. O que estou a dizer é que está enganada quanto ao que eu estou a pensar. E sobre quem é que, neste caso, precisa de fazer o quê.

 

Ergueu a caixa de jornais. Ela pegou na pilha de pastas. Ele dirigiu-se para a porta do gabinete e ela seguiu-o, sem saber muito bem para onde levavam tudo aquilo, mas pronta para conhecer a resposta.

 

Quem é, então? inquiriu ela. Quem é que precisa de ser capaz de fazer o quê?

 

Não é Jimmy explicou Lynley. Nunca foi Jimmy.

 

                                CAPÍTULO 22

Sem pressas, Jeannie Cooper dobrou a última peça de roupa lavada. Não que dobrar o casaco de pijama de uma criança de oito anos fosse uma tarefa complicada e morosa. Simplesmente, quando acabasse de tratar da roupa, Jeannie não teria desculpa para não se ir juntar aos filhos na sala de estar, onde estes se tinham instalado em frente à televisão há meia hora atrás.

 

Na cozinha, enquanto metia a roupa na máquina de lavar e secar, Jeannie tentara escutar as conversas deles. Entre os três, no entanto, reinava um silêncio sepulcral.

 

Não conseguia lembrar-se com exactidão se aquele era o comportamento habitual dos filhos quando se encontravam em frente à televisão. Tinha dúvidas. Lembrava-se, vagamente, de ocasionais gritos de protesto quando um deles decidia mudar de canal e do coro de alegres e estridentes gargalhadas que sempre pontuava este ou aquele sketch de um dos antigos programas de Benny Hill. Recordava-se das perguntas de Stan, das respostas de Jimmy, das discordâncias pouco convincentes de Shar. Todavia, ainda que não tivesse as ideias muito claras a este respeito, Jeannie percebeu, de súbito, que todas estas reacções tinham ocorrido à margem do seu mundo, que eram uma espécie de sonho onde ela desempenhava o papel de espectadora e não intervinha activamente. Esta fora, aliás, a forma como concebera o seu papel de mãe desde que Kenny a deixara.

 

Ao longo dos últimos anos, decidira agir como se nada se tivesse passado e continuar o seu caminho, para não ter de enfrentar os filhos. Levar a vida para a frente significava ir trabalhar na Crissys como sempre fizera, levantar-se às três e um quarto da manhã, sair de casa antes das quatro, regressar por volta do meio-dia a tempo de cumprir, maquinalmente, todos os seus deveres de mãe. Saber se os filhos tinham trabalhos de casa para fazer, por exemplo. Tratar da roupa deles, preparar as refeições, manter a casa limpa e arrumada. Dizia para si própria que se comportava como uma mãe digna desse nome, pois cumpria bem os seus deveres: comida quente sobre a mesa, idas à missa nas datas importantes, árvore de Natal com decorações e lâmpadas de várias cores, Domingo de Páscoa em casa dos avós, mesada suficiente para pagar alguns jogos de vídeo. No entanto, apesar dos seus esforços para levar uma vida normal, sabia que, tal como Kenny, também ela abandonara os filhos. Só que ela agira de uma forma mais insidiosa. Porque, se era verdade que, fisicamente, continuava em Cardale Street fazendo crer aos filhos que ainda podiam contar com o amor inabalável de urna mãe de carne e osso não era menos verdade que o seu coração e a sua alma se tinham evaporado no dia em que Kenny se fora embora.

 

O segredo ignóbil que Jeannie se esforçava por recalcar dentro de si era que o seu amor pelo marido era mais forte do que o afecto que sentia pelos três filhos. Era um sentimento que ela preferia ignorar. Em primeiro lugar, porque não conseguia suportar o fogo que lhe consumia o peito, que lhe descia até ao ventre, fazendo-a ansiar por ele sempre que ouvia pronunciar o seu nome ou o lia num jornal, ou escutava a sua voz ao telefone. Em segundo lugar, porque sabia que sentir mais amor por um homem do que pelos filhos que ambos tinham gerado era um pecado tão hediondo e tão contrário à natureza que ela jamais poderia aspirar à redenção, por maiores que fossem as penas a que se submetesse.

 

Dissera para si mesma que o mínimo que poderia fazer seria esconder estes sentimentos das crianças. Jurara a si mesma que elas jamais haveriam de suspeitar que ela se sentia todos os dias como um trapo velho e usado, oca por dentro, sem nunca esquecer o que antes a preenchera. Assim, desempenhara maquinalmente as suas obrigações maternais, prometendo que tudo faria para não desiludir os filhos, para não intensificar ainda mais o sofrimento que o pai já lhes causara.

 

A despeito dos seus esforços, no entanto, Jeannie percebia agora que acabara por fazer tanto mal aos filhos quanto o marido. Porque a sua determinação cega em levar uma vida normal, como se nada se tivesse passado, obrigara-os a imitá-la. Se ela devia fazer de conta que era mãe, sem trair uma única vez o vazio e o desespero provocados pelo abandono de Kenny, então os filhos também deveriam fazer de conta que eram filhos. Fora assim que todos eles tinham enfrentado juntos aquela etapa difícil das suas vidas, indicando com o seu comportamento apesar do que sentiam que se o pai deles se tinha ido embora, se não os queria, se não fazia tenções de voltar para casa, então que fosse passear e os deixasse em paz.

 

Colocou o pijama de Stan sobre a pilha de roupa. Pegou nela e dirigiu-se para as escadas, onde se deteve por alguns instantes. Stan estava sentado no chão, entre o sofá e a mesa baixa, a face encostada ao joelho de Jimmy. Shar estava ao lado do irmão, segurando a manga da T-shirt dele entre os seus dedos. Estavam a perder o irmão mais velho e sabiam-no. E ao vê-los agarrados a ele como se assim pudessem impedi-lo de partir, Jeannie sentiu uma dor tão intensa que teve vontade de lhes bater e separá-los logo em seguida.

 

Meninos disse, num tom demasiado brusco.

 

Shar olhou rapidamente na direcção dela. Stan também. O braço de Stan apertou com mais força ainda a perna de Jimmy. Jeannie percebeu que estavam a erguer a barricada e perguntou a si própria desde quando é que a simples entoação da sua voz era suficiente para os colocar na defensiva. Mudando de tom, disse com uma afabilidade nascida da exaustão e do desespero.

 

Tenho croquetes de peixe e batatas fritas para o jantar. E Coca-Cola também.

 

O rosto de Stan iluminou-se.

 

Uau, Coca-Cola! exclamou, erguendo os olhos para o irmão. Era sinónimo de festa.

 

Jimmy, no entanto, não esboçou qualquer reacção. Só Shar fez coro com o irmão mais novo, ainda que de forma algo contida.

 

Genial, mãe. Queres que ponha a mesa?

 

Não te importas, querida? replicou Jeannie.

 

Levou a roupa lavada para o andar superior e arrumou-a calmamente.

 

No quarto dos rapazes, pôs ordem no pelotão de ursos de pelúcia de Stan e endireitou os livros e álbuns de banda desenhada, que se amontoavam nas prateleiras de ferro forjado. Apanhou um atacador que estava caído no chão. Dobrou uma camisola. Ajeitou as almofadas das duas camas. O que era preciso era não ficar parada sem fazer nada. Seguir em frente, nunca baixar os braços, não pensar, não fazer perguntas e, sobretudo, não tentar imaginar o porquê das coisas.

 

Sentou-se na beira da cama de Jimmy.

 

A polícia afirma que ele está a mentir confiara-lhe Mr. Friskin. Segundo as autoridades, Jimmy não esteve na casa do Kent. Mas nada é definitivo, acredite. Garanto-lhe que não vão largá-lo tão cedo.

 

Jeannie agarrara-se, desesperada, àquela frágil esperança.

 

Mas se ele está a mentir...

 

Eles afirmam que ele está a mentir. Há uma diferença subtil entre aquilo que eles nos dizem e aquilo que eles realmente sabem. A polícia recorre a todo o tipo de truques e estratagemas para obrigar os suspeitos a falar. E nós devemos estar de sobreaviso, porque isto pode muito bem ser apenas um truque.

 

E se não for? Se for verdade que ele mentiu desde o princípio e a polícia souber disso? Porque é que não hão-de deixá-lo sossegado?

 

Muito simples: devem estar à espera que ele lhes revele o nome do assassino.

 

Um sentimento de horror apoderou-se dela, como um acesso de vómito que lhe subisse do estômago até à garganta.

 

É a única justificação que consigo encontrar disse Mr. Friskin. É lógico que eles tirem essa conclusão. A partir da sua presença no local do crime, na quarta-feira passada, devem ter deduzido que ele deve ter visto o incendiário. E estão a tentar pressioná-lo para que ele o identifique. Devem ter certamente chegado à conclusão de que ele está a assumir a responsabilidade pelo homicídio para não ter de denunciar outra pessoa. Jeannie conseguiu apenas pronunciar uma única palavra:

 

Denunciar.

 

Este género de atitude é frequente em adolescentes, Mrs... Ms. Cooper. Embora, logicamente, ela costume resultar de uma recusa em trair um elemento do grupo de amigos mais próximo. Mas esta tendência dos jovens para ficarem de boca calada pode muito bem ter-se tornado uma segunda pele em Jimmy. Tendo em conta as... peço desculpa pela forma como vou colocar a questão, mas tendo em conta as circunstâncias em que ele se encontra, quem é que pode saber ao certo a quem é que ele acha que deve lealdade?

 

O que é que quer dizer com isso? perguntara. Tendo em conta as circunstâncias em que ele se encontra?

 

O advogado olhou fixamente para os sapatos.

 

Se partirmos do princípio que as mentiras de Jimmy denotam uma recusa em denunciar alguém e nada mais, teremos de examinar a sua vida e as pessoas com quem ele convive mais de perto até descobrir por que razão ele se recusa obstinadamente a falar. Colegas de escola, por exemplo. Se, pelo contrário, não existirem amizades íntimas e se, por conseguinte, ele não estiver a agir segundo os códigos de comportamento do grupo de amigos, seremos obrigados a concluir que as mentiras dele significam algo completamente diferente.

 

O quê, por exemplo? perguntara Jeannie, sentindo a boca e os lábios ressequidos como papel.

 

Que está a proteger alguém.

 

Mr. Friskin desviara os olhos dos sapatos para fitar o rosto dela. Os segundos transformaram-se em minutos e Jeannie sentira a passagem do tempo ecoar no latejar das veias nas suas têmporas.

 

A polícia tornaria a aparecer, dissera finalmente Mr. Friskin. O melhor que ela podia fazer pelo filho naquele momento seria encorajá-lo a contar a verdade quando as autoridades viessem visitá-lo novamente. Percebia isso, não percebia? A verdade era a única esperança que lhes restava para expulsar a polícia e a imprensa da vida de Jimmy. Porque, de facto, ele não merecia tê-los à perna indefinidamente, pois não, Ms. Cooper? Era impossível que a sua própria mãe não fosse da mesma opinião, não era?

 

Jeannie passou a mão pelo desenho em ziguezague da colcha da cama de Jimmy. A voz grave de Mr. Friskin ainda ecoava na sua cabeça: É a única solução, Ms. Cooper. Tente convencer o seu filho a contar a verdade.

 

E supondo que ele contava a verdade? Que aconteceria nessa altura? Como é que o facto de ele dizer a verdade poderia fazê-lo esquecer o inferno em que vivera nos últimos tempos?

 

Na noite anterior, confessara ao filho que falhara como mãe, mas agora percebia que apenas lhe servira um sem-número de disparates, já que não acreditara em nada do que lhe dissera. Fizera-o apenas para tentar arrancá-lo à concha a que ele se confinara, para o obrigar a falar, na esperança de que ele dissesse, ”Não, mãe, não tens sido uma má mãe. Passaste por um mau bocado como todos nós. Eu compreendo isso, sempre compreendi”. Uma vez quebrado o gelo entre ambos, poderiam começar a conversar um com o outro. Era isso que se esperava que os filhos fizessem: que conversassem com as mães quando estas se mostravam à altura. Todavia, até o advogado, que conhecia Jeannie e os filhos há escassas quarenta e oito horas, reconhecera a natureza da relação entre a mãe e aquele filho muito especial. Com efeito, ainda que lhe tivesse dito que devia encorajar o filho a contar a verdade, nem por um instante procurara convencê-la a fazer com que Jimmy lhe contasse a verdade a ela.

 

Conta a verdade ao teu advogado, Jim. Conta-a à polícia. Àqueles repórteres que não te deixam em paz. Conta-a a desconhecidos. Mas nem penses em dizer-me seja o que for. E depois de teres dito tudo, Jimmy... depois de teres contado o que viste e tudo o que sabes a pessoas que se estão nas tintas para o que estás a sofrer, a pessoas que apenas querem dar este caso por encerrado para que possam regressar tranquilamente a suas casas e sentarem-se à mesa para jantar...

 

Não, pensou. Não iria ser assim. Era mãe dele. Apesar de tudo e por causa de tudo ninguém, a não ser ela, tinha deveres para com ele.

 

Desceu as escadas. Shar estava na cozinha. Substituíra a cobertura de plástico pela toalha de Natal, aquela que tinha uma grinalda bordada ao centro e um Pai Natal em cada um dos cantos. Stan e Jim continuavam em frente ao televisor, onde um homem de nariz aquilino e rosto por barbear discorria sobre um filme que acabara de fazer, falando como se tivesse uma ameixa dentro da boca.

 

Fala como um larilas, não achas, Jim? troçou Stan, dando uma pancadinha no joelho do irmão.

 

Nada de palavrões repreendeu Jeannie. E vem ajudar a tua irmã a pôr a mesa.

 

Aproximou-se do aparelho de televisão e desligou-o. Em seguida, ordenou a Jim:

 

Tu, vem comigo.

 

Depois, ao vê-lo afundar-se ainda mais no sofá, insistiu num tom de voz mais doce:

 

Anda lá, querido. Vamos só até lá fora, ao jardim.

 

Shar ficou na cozinha, dispondo meticulosamente os croquetes de peixe numa frigideira e Stan agitando uma porção de batatas congeladas dentro de uma fritadeira.

 

Queres que faça uma salada também, mãe? perguntou Shar quando Jeannie abria a porta que dava acesso ao jardim.

 

Podemos comer feijões? perguntou Stan.

 

Façam o que quiserem disse-lhes Jeannie. E chamem-nos quando a comida estiver pronta.

 

Jimmy desceu o pequeno degrau de cimento à frente dela. Dirigiu-se para o bebedouro dos pássaros e Jeannie seguiu-o, colocando os cigarros e os fósforos sobre o rebordo partido. Tira um cigarro, se quiseres disse ao filho. Passou a ponta do dedo pelo local onde o rebordo estava destruído. Não fez qualquer gesto na direcção dos cigarros.

 

É claro que preferia que não fumasses disse Jeannie, mas se tens vontade, tira um. Quanto a mim, preferia nunca ter começado a fumar. Talvez consiga largar os cigarros, quando tudo isto tiver terminado. Olhou em volta, contemplando o jardim miserável. Um bebedouro para pássaros meio destruído, uma laje em cimento interrompida aqui e ali por canteiros plantados com amores-perfeitos raquíticos, Seria bom se tivéssemos um jardim como deve ser, não achas, Jim? Quem sabe se não podemos transformar este monte de ervas num cantinho simpático. Quando as coisas tiverem acalmado. Se tirarmos a laje e plantarmos relva, umas flores bonitas e uma árvore, podemos sentar-nos cá fora, i quando o tempo estiver bom. Eu gostava de poder fazer isso. Mas ias ter de me ajudar. Não ia conseguir fazer tudo sozinha. Dá muito trabalho, As mãos de Jimmy desapareceram dentro dos bolsos das calças de ganga. Tirou os cigarros e os fósforos. Acendeu um e pousou o maço e a carteira de fósforos ao lado dos dela.

 

Jeannie foi assaltada por um intenso desejo de fumar quando sentiu o odor a tabaco. Teve a impressão que alguém lhe torcia os nervos. Apesar disso, não estendeu a mão para os cigarros.

 

Obrigada, Jim, é simpático da tua parte. Com todo o gosto disse e tirou um cigarro dos dele. Acendeu-o, tossiu e continuou:

 

Bolas, tanto eu como tu temos de acabar com este vício. Podíamos tentar os dois ao mesmo tempo, o que é que dizes? Eu ajudo-te e tu ajudas-me. Não agora. Quando tudo isto tiver terminado.

 

Jimmy sacudiu a cinza para o bebedouro, que estava vazio.

 

Eu ia precisar da tua ajuda disse ela. E a ti também te dava jeito uma mãozinha. Além disso, não convém que Shar e Stan comecem a fumar, por isso temos de dar o exemplo. Até podíamos decidir que estes eram os nossos últimos cigarros, se quiséssemos. Temos de cuidar de Shar e de Stan.

 

Ele exalou o fumo. Parecia mais um grunhido. Fazia troça das palavras dela.

 

Ela reagiu, dizendo:

 

Shar e Stan precisam de ti.

 

A cabeça dele estava virada para a parede que separava o jardim da casa deles da propriedade vizinha. Por esse motivo, ela não conseguia ver o rosto do filho, embora o tivesse ouvido murmurar claramente:

 

Têm-te a ti, não têm?

 

É claro que me têm a mim concordou Jeannie. Sou mãe deles e vou estar sempre aqui. Mas também precisam do irmão mais velho. Percebes isso, não percebes? Precisam de ti aqui, mais do que nunca. Vão olhar para ti como um modelo a seguir, agora que... viu a cilada, mas aclarou a voz e forçou-se a continuar. Vão precisar ainda mais de ti, agora que o teu pai...

 

Têm-te a ti, já disse repetiu Jimmy numa voz indiferente. Têm a mãe deles.

 

Mas também precisam de um homem.

 

O tio Der.

 

O tio Der não é a mesma coisa. Gosta deles, é verdade, mas não os conhece tão bem como tu, Jim. E eles não contam com ele da mesma maneira que contam contigo. Um irmão não é a mesma coisa que um tio. É mais chegado, está sempre ao lado deles, para olhar por eles. E isso é importante. Que olhes por eles. Por Stan. Por Shar.

 

Humedeceu os lábios e engoliu o fumo acre do cigarro. A sua reserva de palavras banais estava quase esgotada.

 

Contornou o bebedouro e ficou de frente para ele. Acabou o cigarro e esmagou a beata sob a sola do sapato. Sentiu os olhos do filho fixos nela e viu a sua expressão circunspecta.

 

Quando os olhares de ambos se cruzaram, ela perguntou-lhe docemente:

 

Porque é que estás a mentir à polícia, filho?

 

Ele desviou a cabeça. Deu uma fumaça tão longa que Jeannie chegou a pensar que ele ia fumar o cigarro de uma só vez.

 

O que é que viste naquela noite? perguntou em voz baixa.

 

Ele merecia morrer.

 

Não digas isso.

 

Digo o que me apetece. Tenho esse direito. Quero lá saber que ele tenha morrido.

 

Isso não é verdade. Tu adoravas o teu pai e nenhuma mentira no mundo vai mudar isso, Jimmy.

 

Cuspiu um fio de tabaco para o chão, seguido de um escarro esverdeado. Jeannie recusou-se a deixar que ele a distraísse.

 

Tu querias que o teu pai voltasse para casa, tanto como eu. Talvez mais do que eu, até. Porque entre ti e o teu pai não havia nenhuma sirigaita loura, como havia entre mim e ele. Não havia nada que te deixasse as ideias baralhadas, sem saber o que sentias e se realmente querias que ele voltasse para casa. Talvez seja por isso que estás a mentir, Jim. A mim. A Mr. Friskin. À polícia subitamente, um dos músculos do maxilar do filho ficou tenso. Sentiu que estavam a dois passos de dizer um ao outro tudo o que precisava ser dito, e prosseguiu: Talvez estejas a mentir porque é mais fácil. Já pensaste nisso? Talvez estejas a mentir porque é mais fácil e menos doloroso do que pensar que desta vez o teu pai não vai voltar nunca mais.

 

Jimmy atirou o cigarro ao chão e deixou-o consumir-se lentamente.

 

É isso mesmo. Já percebeste tudo, mãe disse num tom demasiado aliviado para agradar a Jeannie.

 

Estendeu a mão para o maço de PS. Jeannie adiantou-se-lhe e os seus dedos fecharam-se sobre o punho do filho.

 

Mas se calhar quem tem razão é Mr. Friskin.

 

Mãe? chamou Shar, à porta da cozinha.

 

Jim impedia Jeannie de ver a casa. Ignorou a filha e continuou, baixando ainda mais a voz.

 

Ouve o que te digo, Jim.

 

Mãe tornou a chamar Shar.

 

Tens de me dizer porque é que estás a mentir. Tens de me contar a verdade, agora.

 

Já te disse.

 

Tens de me contar exactamente o que é que viste. Estendeu a mão na direcção dele, por cima do bebedouro, mas ele recuou. Se me contares, se me contares a verdade, Jim, tu e eu podemos pensar no que havemos de fazer a seguir.

 

Eu disse a verdade. Mais de cem vezes. Só que ninguém quer saber.

 

Mas não contaste toda a verdade. E é isso que tens de me dizer agora. Para tu e eu podermos pensar no que vamos fazer. Porque, caso contrário...

 

Mãe! tornou a chamar Shar. Stanley gemeu:

 

Jimmy!

 

Jim virou-se na direcção da porta. Jeannie contornou o bebedouro e segurou-o pelo cotovelo.

 

Merda! exclamou Jim.

 

Não protestou Jeannie.

 

Com gestos suaves, o inspector Lynley libertou-se das mãos de Shar e de Stan que o puxavam por um braço. Ainda na cozinha, disse:

 

Gostaríamos de te fazer mais algumas perguntas. E Jimmy desatou a correr.

 

Lynley nunca pensou que o rapaz fosse capaz de reagir tão depressa. Ainda não tinha terminado a frase, já o adolescente se libertara da mãe e se precipitara para o fundo do jardim. Sem se dar ao trabalho de abrir o portão saltou por cima do muro. Os seus passos ressoaram na ruela atrás da casa A mãe gritou: ”Jimmy!” e correu atrás dele.

 

Lynley disse por cima do ombro:

 

Ele fugiu na direcção de Plevna Street. Tente interceptá-lo, sargento Empurrou as duas crianças e lançou-se em perseguição de Jim, enquanto Havers tornava a atravessar a sala para sair pela porta principal.

 

Jean Cooper já tinha aberto o portão do jardim quando Lynley a alcançou. Agarrando-o pelo braço, gritou:

 

Deixe-o em paz!

 

Lynley libertou-se e continuou a correr atrás do rapaz. Ela seguiu-o gritando o nome do filho.

 

Jimmy percorreu velozmente a estreita ruela de cimento que separava as duas fileiras de casas. Depois de ter lançado um rápido olhar por cima do ombro, acelerou o passo. Uma bicicleta estava encostada a um portão que dava acesso a uma casa ao fundo da rua. Ao passar por ela, derrubou-a e, com um salto, galgou o arame farpado que encimava a parede de tijolo que assinalava o local onde a ruela se cruzava com Plevna Street. Desapareceu do outro lado do muro.

 

Lynley saltou por cima da bicicleta e precipitou-se para um portão de madeira que passara despercebido ao adolescente. Trancado. Procurou um apoio na vedação de arame farpado. Do outro lado do muro, ouviu Havers gritar. Em seguida, o som de passos ressoou na calçada. Uma verdadeira cavalgada.

 

Conseguiu içar-se, transpor o muro e deixar-se cair no chão a tempo de ver Havers correr a toda a velocidade ao longo de Plevna Street, na direcção de Manchester Road, seguida por três homens, um dos quais corria de máquina fotográfica em punho.

 

Caramba disse, retomando a perseguição e desviando-se de um velhote que caminhava lentamente com a ajuda de uma bengala e de uma rapariga de cabelos tingidos de cor-de-rosa que comia, sentada no passeio.

 

Precisou de uns escassos dez segundos para ultrapassar os jornalistas e de cinco para alcançar Havers.

 

Para onde? perguntou.

 

Ela apontou o dedo sem parar de correr e Lynley viu-o. Saltara por cima de outra vedação, que delimitava um parque situado na esquina de Plevna Street. Percorria uma passagem de tijolo, estreita e serpenteante, na direcção de Manchester Road.

 

Ele é completamente palerma ao meter por ali disse Havers, arfando ruidosamente.

 

Porquê?

 

A esquadra de Manchester Road. Fica ali perto. Na direcção do rio.

 

Telefone-lhes.

 

De onde?

 

Lynley apontou para a esquina de Plevna Street e Manchester Road, onde se erguia um edifício de tijolo atarracado com duas cruzes vermelhas e a palavra Clínica escrita sobre uma cornija branca. Havers lançou-se na sua direcção, enquanto Lynley seguia na direcção do parque.

 

Jimmy transpôs os portões do parque, em Manchester Road, e esgueirou-se para sul. Lynley gritou o nome dele e, nesse momento, Jean Cooper e os repórteres, que acabavam de dobrar a esquina de Plevna Street, alcançaram-no.

 

Os repórteres clamaram em uníssono:

 

Quem... Porque é que...

 

Enquanto isso, o fotógrafo ergueu uma das máquinas e começou a fotografar a cena. Lynley tornou a lançar-se em perseguição do rapaz. Jean Cooper gritou a plenos pulmões:

 

Jimmy! Pára!

 

Jimmy, no entanto, continuou ainda com mais determinação. O vento soprava de leste e no sítio onde Manchester Road curvava ligeiramente para oeste, o adolescente conseguiu aumentar facilmente a distância que o separava dos seus perseguidores. Corria como uma flecha, pés afastados e cabeça baixa. Passou por um armazém abandonado e virou para a rua quando se aproximou de uma florista, onde uma velhota vestida com uma bata cinzenta mudava vasos de flores do passeio para o interior da loja. A mulher gritou, sobressaltada, quando Jimmy passou por ela a correr. Em resposta, um pastor-alemão apareceu à porta da loja. O cão ladrou, enfurecido, e, atirando-se a Jimmy, ferrou os dentes na manga da T-shirt.

 

Graças a Deus, pensou Lynley e abrandou o passo. Atrás dele, a mãe do rapaz gritava o seu nome. A vendedora de flores deixou cair um balde cheio de narcisos no passeio, gritando, ”César! Quieto!” ao mesmo tempo que puxava o animal pela coleira. O cão libertou Jimmy no preciso momento em que Lynley gritava: ”Não! Não o deixe fugir!” E quando a mulher se virou, a mão enterrada no pêlo do pastor-alemão, o rosto contorcido de medo e de espanto, Jimmy aproveitou para tornar a escapulir-se.

 

Lynley pisou os narcisos espalhados sobre o passeio, enquanto o rapaz virava para a direita, cerca de trinta metros mais à frente. Trepou mais uma vedação e desapareceu nos terrenos da escola primária de Cubitt Town.

 

Nem sequer perdeu o fôlego, pensou Lynley, siderado. Das duas, uma: ou era o terror que lhe dava asas ou era fundista nas horas vagas.

 

Jimmy atravessou o pátio da escola; Lynley seguiu-o, galgando a vedação. Uma das alas do edifício estava em obras. Jimmy lançou-se na direcção desta última, contornando tijolos empilhados, tábuas de madeira e montes de areia. As aulas daquele dia tinham terminado havia pelo menos duas horas, pelo que não havia ninguém no pátio para travar o seu avanço. Quando se aproximou do edifício mais afastado, no entanto, para além do qual se estendiam os campos de jogos, apareceu um dos contínuos que, ao vê-lo, desatou a gritar. Jimmy ultrapassou-o antes mesmo que o homem tivesse tempo de reagir. Em seguida viu Lynley e tornou a gritar:

 

Mas afinal, o que é que se passa? e colocou-se precisamente a meio do caminho por onde Jimmy acabara de passar.

 

Um momento.

 

O contínuo bloqueou o caminho, punhos apoiados nas ancas. Olhou para trás de Lynley, na direcção de Manchester Road, e viu Jean Cooper saltando a vedação, seguida de perto pelos repórteres.

 

Hei! Aí em baixo. Tudo parado. Ninguém se mexe. O recinto está fechado!

 

Polícia disse Lynley.

 

Prove-o replicou o contínuo. Jean aproximou-se deles, cambaleante.

 

Deixe... agarrou Lynley pelo casaco. Deixe-o em...

 

Lynley empurrou o contínuo para o lado. Jimmy conseguira um avanço de mais de vinte metros. Atravessara mais de metade dos campos de jogos e corria na direcção de um lote de terreno urbanizado. Lynley recomeçou a correr.

 

Hei! Vou chamar a polícia gritou o contínuo. Lynley exortou-o a pôr em prática a ameaça.

 

Jean Cooper seguiu-o. Estava quase sem fôlego.

 

Ele vai... Ele está a voltar para casa. Não percebe que ele está a voltar para casa?

 

Com efeito, Jimmy virava na direcção de Cardale Street, embora Lynley se recusasse a acreditar que ele seria parvo o suficiente para lançar-se na boca do lobo. O rapaz olhara para trás por mais de uma vez. Com certeza, já se apercebera de que a sargento Havers já não integrava o grupo dos que o perseguiam.

 

Alcançou o extremo do campo de jogos, que era delimitado por uma sebe. Saltou por cima desta, mas perdeu alguns segundos ao tropeçar e cair de joelhos no outro lado.

 

Lynley tinha a impressão de que o seu peito estava a ser apertado num torno. Por breves instantes desejou que o rapaz se deixasse ficar onde estava. Todavia, enquanto tentava encurtar a distância que o separava de Jimmy, o adolescente pôs-se de pé e recomeçou a correr.

 

Atravessou um terreno vago, onde os restos calcinados da carroçaria de um automóvel, assente sobre quatro pneus em decomposição, jaziam rodeados por um mar de garrafas de vinho vazias e detritos diversos. O terreno terminava em East Ferry Road e, sem perder tempo, Jimmy rumou para norte na direcção de casa. Lynley ouviu a mãe do rapaz gritar: ”Eu não lhe tinha dito!” Todavia, ainda ela não se calara e já Jimmy atravessava velozmente a estrada, desviando-se de um motociclista que guinou e derrapou para não o atingir, e galgava os degraus que davam acesso a Crossharbour Station, onde naquele preciso instante um comboio azul da Docklands Railway se imobilizava na via-férrea.

 

Lynley não tinha qualquer hipótese de o alcançar. As portas da carruagem fecharam-se e o comboio, com Jimmy lá dentro, abandonou a estação no momento em que Lynley chegava a East Ferry Road.

 

Jimmy! gritou a mãe.

 

Lynley lutou para recobrar o fôlego. Jean Cooper parou abruptamente junto dele, dando-lhe um encontrão. Atrás deles, os jornalistas acotovelavam-se tentando saltar por cima da sebe. Gritavam uns com os outros, tanto quanto gritavam na direcção de Lynley.

 

Para onde é que ele vai? perguntou Lynley. Jean abanou a cabeça, ofegante.

 

Quantas estações até ao fim da linha?

 

Duas passou a mão pela testa. Mudchute. Island Gardens.

 

A via-férrea formava uma linha recta e corria paralelamente a East Ferry Road.

 

A que distância fica Mudchute?

 

Jean enterrou as falanges numa das faces.

 

A que distância? insistiu ele.

 

Um quilómetro e meio, talvez. Não, menos.

 

Lynley lançou um último olhar ao comboio, vendo-o desaparecer. Não conseguia percorrer aquela distância a pé. No entanto, Cardale Street terminava em East Ferry Road cinquenta metros mais a norte, e o Bentley estava estacionado em Cardale Street. Havia uma hipótese remota de...

 

Correu na direcção do carro. Jean Cooper seguiu-o de perto, gritando:

 

O que é que vai fazer? Deixe-o em paz. Ele não fez nada. Não tem mais nada para lhe dizer.

 

Em Cardale Street, a sargento Havers estava encostada ao carro de Lynley. Levantou a cabeça quando o ouviu aproximar-se.

 

Perdeu-o? perguntou ela.

 

O carro disse Lynley, ofegante. Entre. Depressa!

 

Ela deslizou rapidamente para dentro do Bentley. Lynley pôs o motor do carro a trabalhar com estrondo. Stan e Shar saíram de casa a correr, as bocas soltando gritos que foram abafados pelo troar do motor. Enquanto Shar tentava abrir o portão, Jean Cooper apareceu e fez sinal aos filhos para que recuassem.

 

Lynley carregou no acelerador e afastou-se do passeio. Jean Cooper colocou-se à frente do carro e impediu-o de avançar.

 

Cuidado! gritou Havers, agarrando-se ao painel de instrumentos quando Lynley travou a fundo e guinou violentamente o volante para se desviar de Jean. Ela deu um soco no capot do carro, depois cambaleou e abriu uma das portas da retaguarda. Entrou e deixou-se cair no assento, ofegante

 

Porquê... porque é que não o deixa em paz? Ele não fez nada O senhor sabe isso. O senhor...

 

Lynley arrancou.

 

Dobraram a esquina e seguiram a toda a velocidade para sul, ao longo da East Ferry Road. Ultrapassaram, velozes, o grupo de jornalistas que avançavam, hesitantes e arquejantes, para Cardale Street, na direcção oposta Acima deles e a oeste da estrada por onde seguiam, os carris da Docklands Railway traçavam uma linha recta na direcção de Mudchute.

 

Conseguiu contactar a esquadra de Manchester Road? As palavras de Lynley saíram entrecortadas.

 

Eles estão em cima do acontecimento.

 

Polícia? exclamou Jean. Mais polícia?

 

Lynley buzinou para chamar a atenção de um camião que surgiu na frente deles. Mudou para a faixa da direita e ultrapassou-o sem perder mais tempo. A arquitectura elegante de Crossharbour e de Millwall Outer Dock deu lugar às fieiras de casinhas de tijolo de Cubitt Town, onde a roupa lavada flutuava nos jardins das traseiras dos edifícios, suspensa nos estendais, como se fossem bandeiras desfraldadas.

 

A mão de Jean agarrou com força as costas do assento de Lynley quando ele ultrapassou um velho Vauxhall, que se arrastava como um caracol. Decidida a obter uma resposta da parte dele:

 

Porque é que chamaram a polícia? Vocês são a polícia. Ninguém precisa de mais polícia. Ele está só...

 

Ali! A sargento Havers esticou o braço na direcção de Mudchute, onde os terrenos circundantes se elevavam acima da estrada em pequenos outeiros formados por gerações de lama das docas de Millwall. Jimmy Cooper escalava justamente um desses outeiros, dirigindo-se para sudeste.

 

Vai para casa da avó afirmou Jean quando Lynley parou o carro. Em Schooner Estate. Para casa da minha mãe. É para lá que ele vai. Fica a sul de Millwall Park.

 

Lynley abriu a porta do carro.

 

Eu disse-lhe para onde é que ele ia disse Jean. Podemos...

 

Leve o carro disse a Havers, lançando-se no encalço do rapaz enquanto a sargento se instalava ao volante do seu carro. Ouviu o troar do motor do Bently atrás de si quando alcançou o primeiro outeiro e começou a escalá-lo em passo rápido. O terreno estava húmido por causa das últimas chuvadas do mês de Abril, e os sapatos que tinha calçados, com sola de cabedal, faziam-no escorregar e deslizar pela terra fofa. Chegou a cair de joelhos, tentando agarrar-se por duas vezes às ortigas que cresciam no meio das ervas altas. No cimo do outeiro, o vento soprava com violência, varrendo os terrenos vazios. As rajadas sacudiam-lhe o casaco e enchiam-lhe os olhos de lágrimas, obrigando-o a parar e a pestanejar várias vezes a fim de tentar distinguir o caminho com clareza. Perdeu quatro segundos, mas conseguiu localizar o fugitivo.

 

Jimmy tinha uma vantagem: usava ténis. Escalara todos os outeiros e descia agora para os terrenos desportivos que ficavam do outro lado. Todavia, fosse porque pensava que tinha escapado aos seus perseguidores, fosse por se sentir extenuado, abrandara o passo e avançava com as mãos na cintura, como se tivesse uma ferida na anca.

 

Lynley correu ao longo do cimo do primeiro outeiro. Fez os possíveis por manter o adolescente no seu campo de visão, antes de se deixar deslizar ao longo da encosta e de iniciar a escalada do segundo outeiro. Quando alcançou o cimo deste último, viu que Jimmy deixara de correr e passara a caminhar. Tinha boas razões para isso. Um homem e um rapaz, ambos vestidos com blusões vermelhos, passeavam pelos terrenos desportivos acompanhados por dois grand danois e um cão de guarda irlandês. Os cães descreviam vastos círculos, ladrando e tentando farejar bolas, lixo e tudo o que se movesse. Depois do encontro com o pastor-alemão em Manchester Road, era evidente que Jimmy não estava interessado em provocar a ira daqueles magníficos exemplares da raça canina.

 

Lynley tirou partido da vantagem. Escalou o terceiro outeiro, deixou-se escorregar ao longo da encosta e desatou a correr através do terreno de jogos. Manteve-se o mais distante possível dos cães, mas quando se encontrava a cerca de vinte metros dos animais, o cão de guarda viu-o e começou a ladrar na sua direcção. Os grand danois decidiram fazer coro com ele, e os três avançaram para ele. Os donos gritaram. Foi o suficiente.

 

Jimmy olhou para trás. O vento agitou os seus longos cabelos e atirou-os para os olhos. Ele afastou-os. Recomeçou a correr.

 

Abandonando os terrenos desportivos, seguiu para Millwall Park. Vendo a direcção que o rapaz tomava, Lynley abrandou o ritmo. Do outro lado do parque, os edifícios cinzentos e castanhos de dois andares, da urbanização de Schooner Estate, sucediam-se uns aos outros como dedos de uma mão esticados na direcção do Tamisa. E era para aí que Jimmy certamente se dirigia. Ele não tinha forma de adivinhar que a sargento Havers e a mãe tinham antecipado os seus movimentos. Àquela hora já deveriam ter chegado ao seu destino e não teriam qualquer dificuldade em interceptá-lo, caso ele se dirigisse para o parque de estacionamento.

 

O rapaz atravessou o parque sem hesitar, caminhando através da relva e pisando os canteiros que se atravessavam no seu caminho. Foi só no último momento, quando se aproximou dos limites do parque de estacionamento, que fez menção de correr para os prédios situados mais para leste. Mudou de ideias no último minuto e virou para sul.

 

Apesar do vento, Lynley conseguiu ouvir o grito da sargento Havers seguido da voz de Jean Cooper. Correu para o parque de estacionamento a tempo de ver o Bentley lançar-se no encalço do rapaz. Jimmy, no entanto estava em vantagem sobre o carro. Virou para a secção em forma de ferradura de Manchester Road, que ficava mais para sul. Aí, um camião travou a fundo e por pouco não o atropelou. Contornou-o, alcançou o passeio do outro lado da rua e saltou por cima da vedação que delimitava a estrutura cinzenta semelhante a uma prisão da George Green Comprehensive School.

 

Ao volante do Bentley, Havers subiu o passeio. Regressava novamente à faixa de rodagem quando Lynley se juntou a ela. Depois de ter corrido ao longo da fachada da escola, o rapaz preparava-se para contornar a esquina do edifício, a oeste.

 

O pátio da escola estava vazio, pelo que Jimmy tinha o caminho livre. Aproveitou-o sem hesitar. Quando Lynley e Havers alcançaram a esquina do edifício, já o rapaz tinha atravessado o pátio. Serviu-se do caixote do lixo como trampolim para trepar o muro do fundo do pátio e galgou-o antes que eles tivessem percorrido vinte metros.

 

Leve o carro disse Lynley a Havers. Dê a volta. Ele vai na direcção do rio.

 

Do rio? Merda! O que é que...

 

Rápido!

 

Atrás dele, ouviu Jean Cooper gritar qualquer coisa ao sargento Havers, enquanto ela regressava rapidamente para junto do carro. A voz dela foi-se tornando mais sumida à medida que ele se aproximava do muro. Agarrou-se ao cimo e, apoiando-se no caixote de lixo, trepou-o e saltou para o outro lado.

 

Atrás da escola havia outra rua. Para norte, um muro. Para sul, urbanizações em voga: edifícios modernos em tijolo com portões electrónicos, que se sucediam quase sem interrupção ao longo da rua, em forma de quarto crescente. Terminavam numa extensão de relva e árvores, à beira-rio. Era a única possibilidade. Lynley correu na sua direcção.

 

Transpôs o portão, onde uma lápide identificava a zona como sendo Island Gardens. No extremo mais recuado, para oeste, via-se um edifício circular em tijolo, encimado por uma cúpula de vidro. Um reflexo branco passou contra os tijolos vermelhos. Lynley viu Jimmy Cooper tentando abrir a porta do edifício. Era um beco sem saída, pensou. Por que razão, o rapaz...? Olhou para a esquerda, para a outra margem do rio, e compreendeu. Tinham chegado à passagem pedonal subterrânea de Greenwich. Jimmy preparava-se para atravessar o rio.

 

Lynley acelerou o passo. Ao fazê-lo, o Bentley dobrou a esquina mais afastada. Jean Cooper e a sargento Havers apearam-se, apressadas. Jean gritou o nome do filho, Jimmy puxou os batentes da porta de acesso à passagem subterrânea. A porta não cedeu nem um milímetro.

 

Lynley aproximava-se rapidamente, vindo de nordeste. A sargento Havers e Jean Cooper também, provenientes de noroeste. O rapaz olhou para um lado, depois para outro. Arrancou para leste, ao longo do muro que bordejava o rio.

 

Lynley atravessou o relvado para interceptá-lo. Havers e Jean Cooper tomaram a álea. Num derradeiro esforço, Jimmy saltou por cima de um banco e trepou o murete. Içou-se até ao gradeamento em ferro forjado, pintado de branco, que separava os jardins do rio, em baixo.

 

Lynley chamou-o.

 

Jean Cooper gritou.

 

Agitando os braços como as velas de um moinho de vento, Jimmy mergulhou no Tamisa.

 

                             CAPÍTULO 23

Lynley foi o primeiro a alcançar o murete que bordejava o rio. Lá em baixo, na água, Jimmy lutava contra a corrente. A maré, já alta, continuava a encher e a corrente seguia rápida, no sentido leste-oeste. Jean Cooper gritou o nome do filho ao chegar ao murete. Agarrou-se ao gradeamento e começou a trepá-lo.

 

Lynley puxou-a para trás e empurrou-a na direcção de Havers.

 

Telefone à polícia fluvial.

 

Despiu o casaco e descalçou os sapatos.

 

Mas eles estão na Waterloo Bridge! protestou Havers enquanto tentava puxar Jean Cooper para trás. Não vão conseguir chegar a tempo.

 

Telefone, é uma ordem.

 

Lynley subiu para cima do murete e trepou o gradeamento. No rio, o rapaz agitava os braços em dificuldades, lutando contra a corrente e contra o estado de exaustão em que se encontrava. Lynley passou para o outro lado do gradeamento. A cabeça de Jimmy desapareceu nas águas turvas.

 

Lynley mergulhou. Quando tocou na água, ouviu Havers gritar:

 

Tommy! Grande merda!

 

A água estava gelada, parecia quase o mar do Norte. E a corrente era muito mais rápida do que ele imaginara ao olhar para a água por detrás do murete de Island Gardens. O vento fustigava a superfície do rio. E a maré criava uma corrente submarina. Mal voltou à superfície, Lynley sentiu-se arrastado para sudoeste, mas não para a margem oposta do rio.

 

Fendia a água com grandes movimentos de braços e tentando manter-se à superfície. Procurou o garoto. Conseguia ver a fachada do Naval College de Greenwich, no outro lado do rio, e um pouco mais para oeste, os mastros da Cutty Sark. Era até capaz de distinguir a cúpula que cobria a saída da passagem pedonal de Greenwich. E, no entanto, não conseguia ver Jimmy.

 

Deixou-se arrastar pela corrente. Os seus batimentos cardíacos ecoavam-lhe nos ouvidos. Sentia os membros pesados. De Island Gardens chegavam-lhe os ecos distantes de vozes e gritos. Mas o vento, o coração e os pulmões arquejantes não o deixavam perceber o que alguém estaria a tentar dizer-lhe.

 

Contorcia-se dentro da água que o arrastava. Boiava, tentando localizar Jimmy. Nenhum barco viria em seu socorro. Os iates não se atreviam a sair com mau tempo e há muito que os barcos de turismo haviam regressado aos respectivos embarcadouros. As únicas embarcações visíveis eram duas lanchas, que subiam lentamente o rio. E mesmo estas, estavam a trezentos metros de distância, pelo menos, do local onde ele se encontrava, demasiado longe para que pudesse fazer-lhes sinal. Além disso, jamais conseguiriam chegar junto dele a tempo.

 

Uma garrafa flutuou ao lado dele. O pé direito embateu naquilo que lhe pareceu ser uma rede. Começou a nadar ao sabor da corrente, que o arrastava na direcção de Greenwich. Jimmy devia deslizar nessa mesma direcção.

 

Manteve a cabeça baixa, esforçando-se por continuar a agitar os braços e as pernas. Tentou respirar a intervalos regulares.

 

A água tornava as suas roupas mais pesadas e puxava-o para o fundo. Ele lutava, debatia-se, mas o esforço estava a deixá-lo esgotado. Correra, trepara e saltara em demasia. E a corrente era tão insistente quanto forte. Engoliu água. Tossiu. Sentiu-se afundar. Debateu-se, tornou a vir à superfície e respirou, quase sem fôlego. E, mais uma vez, sentiu-se afundar.

 

Sob a superfície da água, nada ou quase nada. Lama. Bolhas de ar, do ar que se escapava dos seus pulmões. Um tornado líquido, no meio do qual os detritos redemoinhavam sem cessar. Verde, branco, cinzento, castanho. Não tinha fim.

 

Lembrou-se do pai. Parecia-lhe que conseguia ouvir a sua voz, no tombadilho do Daze, deixando a baía de Lamorna. ”Nunca confies no mar, Tom. É uma amante que te trairá na primeira oportunidade que se lhe apresente.” Lynley queria protestar, dizer que não estava no mar mas sim no Tamisa, e que ninguém, santo Deus, ninguém era estúpido ao ponto de se afogar num rio. O seu pai, no entanto, dizia-lhe: ”Um rio com marés. As marés vêm do mar. Só os loucos confiam no mar.” E a água arrastava-o para o fundo.

 

Tudo se tornou negro diante dos seus olhos. Os ouvidos encheram-se de zumbidos. Ouviu a voz da mãe e as gargalhadas do irmão. Depois, Helen disse-lhe distintamente: ”Não sei, Tommy. Não posso dar-te a resposta que queres, só porque a queres.”

 

Meu Deus, pensou. A mesma ambivalência de sempre. Até naquele momento. Quando era o que menos interessava. Nunca se decidiria. Para o diabo com ela.

 

Agitou as pernas e os braços debaixo de água. Veio à superfície. Afastou a água dos olhos, tossindo e arfando. Ouviu o garoto.

 

Jimmy gritava a cerca de vinte metros de distância dele, para oeste. Os seus braços batiam na água. Rodopiava como um escolho. Quando Lynley começou a nadar na sua direcção, o rapaz tornou a desaparecer debaixo de água.

 

Lynley mergulhou e avançou para ele, rezando para que os seus pulmões se portassem à altura da importância do momento. Desta vez, a corrente estava a seu favor. Colidiu com o rapaz e agarrou-o pelos cabelos

 

Nadou para a superfície. Jimmy debateu-se, agitando as pernas como um peixe apanhado na rede. Quando alcançaram a superfície, o rapaz começou aos murros e aos pontapés. ”Não, não, não, não!”, gritou, tentando libertar-se.

 

Lynley largou os cabelos de Jimmy e agarrou-se à sua T-shirt. Passou um braço por baixo dos braços do adolescente e rodeou-lhe o peito. Restavam-lhe já poucas forças, mas conseguiu dizer, quase sem fôlego:

 

Ou te afogas ou sobrevives. Escolhe.

 

O rapaz continuou a debater-se freneticamente. Lynley agarrou-o com mais força. Usou as pernas e o braço livre para mantê-los a ambos à superfície.

 

Se continuas a debater-te, afogamo-nos os dois. Se me ajudares a nadar, talvez possamos safar-nos. Decide-te.

 

Não!

 

Mas os protestos de Jimmy eram débeis, e quando Lynley começou a puxá-lo na direcção da margem norte do rio, já não tinha forças para lutar contra ele.

 

Mexe as pernas disse Lynley. Não consigo fazer isto sozinho.

 

Não consigo respondeu Jimmy, ofegante.

 

Consegues, sim. Ajuda-me, vá lá.

 

Todavia, os últimos quarenta segundos de luta tinham consumido as últimas forças de Jimmy. Lynley sentia a exaustão que o dominava. Os seus membros pesavam como chumbo. A cabeça pendia-lhe para trás.

 

Lynley mudou de posição. Passou o braço esquerdo por baixo do queixo de Jimmy. Em seguida, apelou às poucas forças que lhe restavam para virar-se a si próprio, e ao rapaz, na direcção da margem norte do rio. Começou a rasgar a água nesta direcção.

 

Ouviu gritos, mas não teve forças para os localizar. Ouviu a buzina de um barco, perto dali, mas não podia correr o risco de parar para tentar descobri-la. Sabia que a única oportunidade que ambos tinham de sobreviver consistia em continuar a nadar. Por isso continuou a nadar, a respirar, a contar as braçadas, uma braçada e duas pernadas contra a exaustão total e o desejo de se deixar afundar e pôr um ponto final a tudo aquilo.

 

Conseguiu distinguir os contornos vagos da margem, coberta de seixos, e o plano inclinado de um pontão. Avançou nessa direcção. Os seus pés mexiam-se cada vez com menos energia. E sentia uma dificuldade crescente em continuar a agarrar o rapaz. Ao atingir os limites da sua resistência, agitou as pernas uma última vez e tocou no fundo. Primeiro areia, depois alguns seixos, seguidos de pedras maiores. Descobriu uma base de apoio para os pés, respirou fundo e puxou o rapaz para longe da zona onde o rio era mais fundo. Chegados a um ponto onde a água era menos profunda, deixou-se cair sobre as mãos e joelhos, a cerca de oito metros de uma abita.

 

Seguiu-se um chapinhar acompanhado por gritos frenéticos. Alguém chorava, ao seu lado. Depois ouviu a sargento soltando violentas imprecações. Braços rodearam-lhe o corpo e alguém o puxou para fora da água e o deitou no pontão do clube de remo, na direcção do qual ele nadara.

 

Tossiu. Sentiu o estômago às voltas. Virou-se, ajoelhou-se e vomitou para cima dos sapatos da sargento.

 

Passou uma das mãos pelo cabelo e levou a outra à testa.

 

Deixou-a deslizar ao longo do rosto e tapou a boca. O gosto era horrível.

 

Peço imensa desculpa disse.

 

Não tem importância respondeu Havers. A cor só os favorece.

 

O rapaz?

 

Está com a mãe.

 

Jeannie estava ajoelhada na água, abraçando o filho. Estava a chorar, a cabeça erguida para o céu.

 

Lynley começou a levantar-se, titubeante.

 

Meu Deus. Ele não... Havers agarrou-o pelo braço.

 

Ele está bem. Salvou-lhe a vida, inspector. Ele está bem.

 

Lynley tornou a deixar-se cair no chão. Lentamente, os seus sentidos começaram a despertar. Apercebeu-se de que estava sentado sobre um monte de lixo. Ouviu um burburinho nas suas costas e, lançando um olhar por cima do ombro, viu que a polícia local chegara, finalmente, e esforçava-se por impedir o avanço de um grupo de espectadores, entre os quais se encontravam os mesmos jornalistas que o perseguiam desde que saíra da New Scotland Yard. O fotógrafo que os acompanhava fazia o seu trabalho, documentando o drama que se desenrolava diante de todos, por entre os ombros dos agentes de polícia da esquadra de Manchester Road. Desta vez, a imprensa não teria

necessidade de ocultar a identidade do rapaz. O salvamento podia ser relatado pelos jornais sem que houvesse necessidade de mencionar o assassínio de Fleming. Ao ouvir as perguntas e o ruído produzido pelas máquinas fotográficas, Lynley percebeu que os repórteres faziam tenções de descrever o acontecimento em pormenor.

 

E a polícia fluvial, onde é que se meteu? perguntou a Havers. Pedi-lhe que fosse chamá-la.

 

Eu sei, mas...

 

Você ouviu o que eu disse, não ouviu?

 

Não tive tempo.

 

O quê? Nem sequer se preocupou em chamar a polícia? Mas aquilo era uma ordem, Havers. Podíamos ter morrido afogados ali. Deus me livre de alguma vez ter de recorrer a si numa situação de emergência. Mais vale contar com...

 

Inspector a voz de Havers soou firme, embora o seu rosto estivesse pálido o senhor esteve na água durante cinco minutos.

 

Cinco minutos repetiu ele, em tom inexpressivo.

 

Não tive tempo de chamar a polícia mordeu o lábio e desviou o rosto. Além disso, eu... eu entrei em pânico, pronto. O senhor desapareceu debaixo de água por duas vezes. Num ápice. Quando vi isso disse para mim própria que a polícia fluvial nunca chegaria a tempo, e se assim fosse..

 

Com gestos bruscos, passou o dedo debaixo do nariz. Lynley viu-a pestanejar rapidamente e fazer de conta que era o vento que a fazia chorar. Pôs-se de pé.

 

Nesse caso, não tive razão ao dizer o que disse, Barbara. Atribua as minhas palavras ao meu próprio pânico. Peço-lhe que me desculpe.

 

Não foi nada replicou ela.

 

Aproximaram-se da beira da água, onde Jean Cooper ainda se encontrava, abraçada ao filho. Lynley ajoelhou-se junto de ambos.

 

A mão de Jean segurava a cabeça do filho apertando-a contra o peito. Estava inclinada sobre ele. Os olhos do rapaz estavam perdidos no vago, mas não vítreos. Quando Lynley estendeu a mão para tocar no braço de Jean antes de os ajudar a levantar, Jimmy mexeu-se e olhou fixamente para a mãe.

 

Ela não se cansava de repetir, maquinalmente:

 

Porquê? Porquê?

 

Ele mexeu a boca, como se tentasse reunir forças para falar.

 

Eu vi sussurrou.

 

O quê? perguntou ela. O quê? Porque é que não queres dizer?

 

A ti disse ele. Eu vi-te, mãe.

 

Viste-me?

 

Vi-te lá pareceu sucumbir de exaustão, nos braços dela. Vi-te lá. Naquela noite.

 

Lynley ouviu Havers murmurar, ”Até que enfim”, e viu-a preparar-se para se aproximar de Jean Cooper. Fez-lhe sinal para que se deixasse ficar onde estava.

 

A mim? Viste-me onde?

 

Naquela noite. O pai.

 

Lynley viu o horror e depois a compreensão espelhados no rosto de Jean Cooper.

 

Estás a falar do Kent? perguntou ela. Da casa do Kent.

 

Vi-te. Estacionaste o carro na entrada murmurou ele. Foste buscar a chave à cabana. Entraste em casa. Saíste. Estava escuro, mas eu vi tudo.

 

A mãe agarrou-se ainda mais ao filho.

 

E pensaste que... que eu... apertou ainda mais. Jim, eu amava o teu pai. Amava-o. Eu nunca teria... Jim, eu pensava que tu...

 

Vi-te lá insistiu Jimmy.

 

Eu não sabia que ele lá estava. Não sabia que havia alguém na casa do Kent. Julgava que tu e ele tivessem ido de férias. Depois tu disseste que ele tinha telefonado. Disseste que ele tinha de resolver uns assuntos relacionados com o críquete. Que as vossas férias tinham sido adiadas.

 

Ele abanou a cabeça.

 

Saíste da casa. Trazias umas coisas que mexiam.

 

Que mexiam? Jim...

 

Os gatos esclareceu Havers.

 

Gatos? ecoou Jean. Mas quais gatos? Onde? De que é que estás a falar?

 

Puseste-os no chão. Enxotaste-os. Lá na casa.

 

Eu não estive na casa do Kent. Nunca lá estive. Nunca.

 

Mas eu vi-te repetiu Jimmy.

 

Alguns passos soaram ao longo do pontão. Atrás deles, alguém gritou: ”Vá lá, deixe-nos dar-lhes uma palavrinha!” Jean virou-se para ver quem avançava. Jimmy olhou também na direcção da voz. Semicerrou os olhos, a fim de conseguir distinguir de quem se tratava. E foi então que Lynley compreendeu o que se tinha passado.

 

Os teus óculos, Jimmy. Na quarta-feira à noite. Tinhas os teus óculos postos nesse dia?

 

Barbara Havers arrastava-se penosamente ao longo da álea que conduzia à sua casa, ao fundo do jardim. Os seus pés estavam ensopados. Esfregara os sapatos vigorosamente debaixo da torneira do lavatório da casa de banho das Senhoras, na New Scotland Yard, pelo que já não cheiravam a vomitado. Apesar de tudo, estavam completamente arrumados. Suspirou.

 

Estava exausta. Tudo o que queria era um duche e doze horas de sono. Há uma eternidade que não comia nada, mas a comida podia muito bem esperar.

 

Tinham acompanhado Jimmy e a mãe, protegendo-os dos olhares dos curiosos e repórteres e salvaguardando-os da máquina fotográfica do único fotógrafo que acompanhava os jornalistas. Tinham-nos levado a casa, de carro. Não, não era necessário chamar um médico por causa do filho, insistira Jean Cooper, levando-o para o primeiro andar, onde pusera água a correr para um banho, enquanto as duas crianças mais novas cirandavam em torno de ambos, gritando, ”Mãe!” e ” Jim!”. Por fim, Jean dissera, ”Aquece um pouco de sopa”, dirigindo-se à filha, e, para o rapazinho, ”Vai abrir a cama do teu irmão”. Ambos desapareceram, apressando-se a cumprir as ordens dela.

 

Jean protestara quando Lynley lhe dissera que queria falar com o filho ”Chega de conversas”, dissera. Ele, no entanto, insistira calmamente. Depois de Jimmy ter saído do banho e se ter enfiado na cama, Lynley subiu as escadas, a roupa húmida colada ao corpo, e sentou-se aos pés da cama de Jimmy ”Conta-me o que viste naquela noite.” Ao lado dele, Barbara sentia-o tremer da cabeça aos pés. O casaco e os sapatos eram as únicas peças de vestuário secas que tinha sobre o corpo, e a adrenalina que até àquele momento o sustentara começava a fraquejar. Havers pediu a Jean que lhe emprestasse um cobertor, mas ele recusou-o. Em vez disso, disse ao garoto: ”Conta-me tudo, desta vez. Não estarás a incriminar a tua mãe, Jimmy. Eu sei que ela não estava lá.”

 

Barbara tivera vontade de perguntar a Lynley por que razão acreditava numa simples negação da parte de Jean. Admitia a reacção confusa dela ao saber da existência dos gatos, mas não estava disposta a acreditar na sua inocência a pretexto de que agira como se ignorasse por completo a existência dos bichos. Os assassinos eram, muitas vezes, mestres na arte da representação. Não conseguia perceber em que é que Lynley se baseava para decidir que Jean Cooper não era nem uma coisa nem outra.

 

Jimmy contou-lhes o que tinha visto: o carro azul estacionando no caminho; a silhueta de uma mulher de cabelo claro entrando no jardim e deslizando suavemente até à cabana; essa mesma mulher entrando na casa; e tornando a sair, menos de cinco minutos depois, dirigindo-se à cabana do jardim para aí deixar a chave e partindo, finalmente. Ficara a vigiar a casa durante mais meia hora, aproximadamente. Em seguida esgueirara-se até à cabana e tirara a chave.

 

Porquê? perguntara Lynley.

 

Não sei respondera Jimmy. Por tirar. Porque me apeteceu. Os dedos dele repuxavam levemente a colcha da cama.

 

Lynley tremia tanto que Barbara tinha a certeza de que eram os seus estremecimentos que faziam vibrar o soalho. Quisera insistir com ele para que fosse mudar de roupa, para que se tapasse com o cobertor, comesse um pouco de sopa, bebesse um conhaque, fizesse qualquer coisa por ele próprio. No entanto, no momento em que se preparava para sugerir que talvez já tivessem ouvido o suficiente por uma noite o rapaz não ia fugir para parte nenhuma, pois não? Podiam voltar no dia seguinte, se quisessem saber mais coisas Lynley apoiara as mãos nos pés da cama e, inclinando-se na direcção do rapaz, dissera:

 

Tu gostavas do teu pai, não gostavas? Ele seria a última pessoa no mundo a quem terias feito mal.

 

Os lábios de Jimmy estremeceram sem dúvida, por causa do tom, da simpatia, da compreensão contida na voz de Lynley e as suas pálpebras baixaram. Azuladas pelo efeito da fadiga.

 

Queres ajudar-me a encontrar a pessoa que o matou? perguntou Lynley. Já a viste, Jimmy. Não queres ajudar-me a fazê-la sair da toca? És a única pessoa capaz de fazer isso.

 

O rapaz tornou a abrir os olhos.

 

Mas não tinha os óculos disse. Pensei... vi o carro e vi-a a ela. Pensei que a minha mãe...

 

Não vais ter de a identificar. Só precisas de fazer o que eu te pedir. Não vai ser muito agradável. Vou ter de fornecer o teu nome aos jornalistas. Vamos ter de percorrer mais uma etapa, tu e eu. Mas acho que vai dar resultado. Estás disposto a ajudar-me?

 

Jimmy engoliu em seco. Em silêncio, concordou com um movimento de cabeça. Virou a cabeça devagar, encostou a face à almofada e olhou para a mãe, que estava sentada na beira da cama. Humedeceu os lábios, num gesto cansado.

 

Eu vi murmurou. Um dia... em que faltei às aulas... vi... As lágrimas rolaram lentamente ao longo das faces de Jean.

 

Viste o quê?

 

Faltara às aulas, dissera ele numa voz quase inaudível. Comprara uma dose de peixe frito com batatas fritas no restaurante chinês e comera-a, sentado num banco, em St. John’s Park. Em seguida, lembrara-se da Watney que estava dentro do frigorífico, lá em casa. Àquela hora do dia, a casa estava sempre vazia e ele poderia beber metade dela e encher o resto com água ou, talvez, beber a garrafa inteira e negá-lo sem hesitar quando a mãe o confrontasse com o facto. Decidira, então, ir para casa. Entrara pela porta das traseiras, pela cozinha. Abrira o frigorífico, fizera saltar a cápsula da garrafa de Watney e ouvira barulho no andar superior.

 

Subira as escadas. A porta do quarto dela estava fechada, mas não trancada. Escutara os ruídos e, subitamente, percebera o que estava a acontecer. Foi por causa disto, pensara, sentindo a cólera crescer dentro dele, foi por causa disto que ele se foi embora. Foi... por causa... disto.

 

Entreabrira a porta com a ponta do pé. Vira-a primeiro a ela. Agarrada à cabeceira da cama em latão escurecido, chorava. Mas parecia ofegante, também, arqueando o corpo e colando-o ao do companheiro. O tipo estava ajoelhado, entre as coxas dela, que estavam levantadas. Completamente nu, cabeça baixa, o corpo reluzente como se tivesse sido ungido com óleo.

 

Ninguém gemia. Ninguém... nunca.

 

Ninguém repetia ela, sem fôlego.

 

És minha e repetia: Minha, minha, minha! e começara a mover-se cada vez mais depressa até alcançar um ritmo frenético, enquanto ela soluçava e ele atirava a cabeça para trás, gritando, ”Jeannie! Jean!”

 

E nesse momento Jimmy percebera que se tratava do pai. Descera as escadas em silêncio. Colocara a Watney, intacta, sobre o balcão da cozinha e virara-se para a mesa, onde estava um sobrescrito sem selo.

 

Abrira-o e tirara os papéis, vira Q. Melvin Abercrombie escrito no cabeçalho Percorrera os termos esotéricos e as frases incompreensíveis. Até que vira a única palavra que tinha importância divórcio. Nesse momento tornara a meter os papéis dentro do sobrescrito e saíra de casa.

 

Oh, meu Deus sussurrara Jean quando o filho se calara.

 

amava-o, Jim. Nunca deixei de o amar. Queria, mas não era capaz. Continuei a ter esperanças de que ele acabaria por voltar para casa. Bastava que eu fosse boa para ele. Se fosse paciente e meiga. Se fizesse o que ele queria. Se lhe desse tempo.

 

Não adiantou de nada disse Jimmy.

 

Mas podia ter funcionado retorquiu Jean. com o tempo. Porque eu conhecia o teu pai. Ele teria voltado para casa, se...

 

Jimmy abanou a cabeça lentamente.

 

se não tivesse conhecido a outra. E essa é a pura verdade, Jim. O rapaz fechou os olhos.

 

Gabriella Patten. Era ela a chave do enigma. Mesmo quando Barbara se esforçara por fazer valer o seu ponto de vista, persuadida de que a verdadeira culpada era Jean Cooper ”Ela não tem nenhum alibi, inspector. Estava em casa com os filhos? A dormir? Quem é que pode prová-lo? Ninguém, e o senhor sabe isso”, Lynley obrigara-a a desviar as suas atenções para Gabriella Patten. Não lhe apresentara factos, no entanto, nem pedira que ela os examinasse. Dissera apenas, numa voz cansada, durante a viagem de regresso à Yard: Tudo converge para Gabriella. E é nisso que reside a ironia da coisa. Voltamos sempre ao ponto de partida.

 

Nesse caso, vamos prendê-la disse Barbara. Não precisamos do puto. Podemos levá-la para a Yard. Pressioná-la. Agora não, claro apressara-se a acrescentar quando Lynley ligara o aquecimento do Bentley, a fim de tentar eliminar os arrepios de frio que o faziam estremecer da cabeça aos pés. Amanhã de manhã. Ela ainda deve estar em Mayfair, tratando da saúde a Mollison, imagino, depois de o seu querido Claude-Pierre, ou lá como se ele chama, ter acabado de massajar-lhe os músculos.

 

Nem pensar retorquira Lynley.

 

Porque não? Acabou de dizer que Gabriella...

 

Um novo interrogatório a Gabriella Patten não nos vai levar a lado nenhum. É o crime perfeito, Barbara.

 

E recusou-se a acrescentar fosse o que fosse. Quando lhe perguntara, ”Como é que pode ser perfeito? Temos Jimmy. Temos uma testemunha. Ele viu...”, Lynley interrompera-a, dizendo: ”O quê? Quem? Um carro azul que ele confundiu com o Vauxhall. Uma mulher de cabelo claro que ele julgou que fosse a mãe dele. Nenhum delegado do ministério público vai querer levar a tribunal um caso baseado num testemunho deste género. E nenhum juri no mundo inteiro decidiria pela condenação.

 

Barbara quisera insistir nalguns pontos. Tinham provas, afinal de contas, por mais inconsistentes que fossem, tinham provas. O maço de Benson and Hedges. Os fósforos usados para fabricar o dispositivo de incêndio. Decerto que haveriam de ter alguma importância. Todavia, percebera que Lynley estava esgotado. As poucas forças que lhe restavam estavam concentradas no controlo dos arrepios de frio que lhe percorriam o corpo enquanto conduzia o Bentley através do trânsito vespertino e os levava de regresso à New Scotland Yard. Depois de terem estacionado ao lado do Mini de Havers, no parque de estacionamento subterrâneo, repetira-lhe o que já tinha dito ao superintendente-chefe Hillier. Por melhores que fossem as suas intenções, ela tinha de se preparar para a eventualidade de poderem vir a não ser capazes de resolver aquele caso.

 

Mesmo com a ajuda do rapaz, tudo se vai jogar ao nível da consciência dissera. E não posso garantir que a consciência seja um motivo suficientemente forte.

 

Forte para quê? perguntara, sentindo tanta necessidade de argumentar quanto de compreender.

 

Mas fora tudo o que ele se atrevera a dizer. Para além de, ”Agora não. Preciso de tomar um banho e de mudar de roupa”, antes de se despedir dela.

 

Naquele momento, em Chalk Farm, enquanto arrastava os pés ao longo da entrada de sua casa, tentava compreender o que ele teria querido dizer quando mencionara a consciência. Todavia, por mais interpretações que desse aos factos e aos acontecimentos dos últimos dias, todos eles acabavam por apontar na mesma direcção e não visavam ninguém que precisasse de ter consciência em relação ao que quer que fosse.

 

Sabiam que se tratava de um incêndio de origem criminosa, afinal. E, por conseguinte, de um crime. Estavam na posse de um cigarro que podia ser submetido a um teste de saliva. Fosse qual fosse o tempo que os peritos da inspectora Ardery demorassem a concluir o estudo das secreções, se o incendiário ou seja, Gabriella Patten, já que Lynley parecia preferi-la a ela em vez de Jean Cooper tivesse deixado saliva em quantidade suficiente, no final dos testes encontrar-se-iam na posse de dados científicos palpáveis, desde a composição de antigénios à descrição pormenorizada do genótipo. Desde que, obviamente, Gabriella Patten fosse o agente segregador. Se não, voltariam à estaca zero. E nessa altura teriam de se basear em... quê? Na consciência? Na consciência de Gabriella Patten? Que sentido tinha tudo aquilo? Será que Lynley estaria, de facto, à espera que a mulher se sentiria compelida a confessar que assassinara Kenneth Fleming porque ele a abandonara? E quando é que o faria? No intervalo dos seus encontros amorosos com Guy Mollison, para esquecer a morte prematura de Fleming e o facto de ele ter terminado tudo com ela de forma ainda mais prematura. Grande merda, pensou Barbara. Não admirava que Lynley dissesse que poderiam nunca vir a concluir o caso.

 

Fracassos daquele género aconteciam a toda a gente. Mas nunca tinham acontecido a Lynley. E, por inerência, uma vez que ele era o inspector com quem trabalhava há mais tempo, também nunca lhe tinham acontecido a ela.

 

Este não era, porém, o melhor dos casos para viver um fracasso. Não só a comunicação social seguia o caso de muito perto, gerando mais interesse por parte da opinião pública do que provocaria a morte de alguém dotado de um rosto e de um nome menos familiares, como também os seus superiores hierárquicos, na New Scotland Yard, acompanhavam o evoluir da investigação com grande nervosismo. O interesse da imprensa combinado com a extrema atenção dos superiores de ambos não prometiam ser vantajosos nem para Lynley nem para Barbara. Era mais do que certo de que prejudicariam Lynley, já que quase desde o princípio ele seguira uma orientação que violava um dos preceitos de todo o trabalho policial eficaz: decidira provocar a comunicação social e continuava a provocá-la a bem de um desfecho que só ele conhecia, um desfecho que até ao momento ele se revelara incapaz de concretizar. Quanto a Barbara, sairia certamente prejudicada porque era culpada por inerência. E o superintendente Hillier assinalara esse facto quando a obrigara a participar na última reunião que tivera com Lynley a propósito deste caso.

 

Conseguia quase ouvir o tom da repreensão que haveria de acompanhar a sua próxima avaliação de desempenho. Será que realmente verbalizou alguma objecção, sargento Havers? A sua posição na equipa é obviamente subordinada, mas desde quando é que uma posição subordinada tolhe a capacidade de emitir opiniões de uma pessoa, numa questão de ética? Aos olhos do superintendente-chefe Hillier, o facto de ela ter de facto comunicado as suas opiniões a Lynley durante a investigação não teria qualquer importância. Não o fizera de forma declarada, ou seja, não o fizera durante a reunião convocada por Hillier.

 

Hillier quisera que ela fizesse ver a Lynley que a comunicação social era uma amante desastrosa. Pérfida, na melhor das hipóteses, perseguindo sem tréguas o objecto da sua cobiça. Na pior, não eram generosas, arrancando o máximo que podiam ao objecto da sua paixão, não deixando ficar nada para trás depois de se sentirem saciados.

 

Nada dissera, no entanto. O navio afundava-se e ela preparava-se para ir ao fundo juntamente com o resto da tripulação.

 

Não iria custar o emprego a nenhum dos dois. Todos esperavam cometer falhanços aqui e ali. Agora, falhar sob a luz crua dos projectores, que o próprio Lynley parecia incentivar... Era pouco provável que o caso fosse esquecido tão cedo, muito menos a hierarquia superior, nas mãos de quem estava o futuro de Barbara.

 

Bando de imbecis murmurou Barbara, enquanto procurava dentro da mala a chave de casa. Estava quase demasiado cansada para estar deprimida.

 

Mas não estava suficientemente cansada. Quando entrou em casa, acendeu a luz e olhou em volta. Suspirou. Santo Deus, que espelunca. O frigorífico estava a funcionar, graças a Deus, ao menos conseguira livrar-se do balde. Além disso, o quarto pouco mais era do que uma declaração de fracasso pessoal, e ela sabia-o. Solidão. Era a palavra escrita por toda a casa. Cama de solteira. Mesa de jantar com duas cadeiras apenas e isso já era esticar as suas hipóteses até ao limite, não era, Barb? Uma velha fotografia de escola de um irmão desaparecido há muito tempo. Um instantâneo dos pais, um deles já falecido e o outro, em adiantado estado de demência. Um conjunto de breves romances daqueles que se lêem em duas horas em que homens eternamente resistentes eram apanhados na grande roda do amor para serem eternamente redimidos pela adoração de mulheres admiráveis que esses mesmos homens envolviam nos braços e atiravam para cima de uma cama ou de um monte de feno. E viveriam eles felizes para sempre, depois do grande final no meio de muitos soluços e palpitações. Alguém viveria? Feliz para sempre, isto é.

 

Pára com esses disparates, ordenou Barbara a si própria com brusquidão. Estás cansada, molhada das coxas aos pés, cega de fome, preocupada, ou seja, és um caso desesperado. Precisas de um duche, que vais tomar imediatamente. De uma tigela de sopa, que hás-de engolir mal tenhas terminado o duche. De telefonar à tua mãe a dizer que no domingo irás a Greenford para passearem juntas pelo jardim público e fazer tudo o que vos apetecer. E quando tiveres terminado tudo isso, vais meter-te na cama, ajeitar o candeeiro da mesa-de-cabeceira e deliciares-te com os prazeres altamente duvidosos do amor por interpostas pessoas.

 

Muito bem declarou.

 

Despiu-se, deixou a roupa amontoada a um canto e dirigiu-se até à casa de banho, onde pôs a água a correr para um banho e entrou, com um frasco de champô na mão. Deixou que a água deslizasse ao longo do corpo, cantarolando, enquanto esfregava vigorosamente o couro-cabeludo. Era a noite dos clássicos, uma homenagem a Buddy Holly. Depois de ter despachado ”Peggy Sue”, ”That’ll Be the Day”, ”Raining in My Heart” e ”Rave On”, decidiu concluir com uma homenagem ao maior de todos e terminar com uma péssima interpretação de ”American Pie”. De pé, envolta no velho roupão turco, uma toalha enrolada em torno da cabeça, clamava The daaaaaaaay the muuuuusic died, pela última vez, quando ouviu alguém bater à porta. Parou de cantar, abruptamente. As batidas pararam ao mesmo tempo e depois recomeçaram. Quatro batidas rápidas e secas. Na porta principal.

 

Quem...?perguntou, saindo da casa de banho, descalça, e apertando o cinto do roupão. Sim? tornou a perguntar junto à porta.

 

Olá. Sou eu respondeu uma voz de criança.

 

Tu, quem?

 

Vim visitar-te na outra noite. Lembras-te? Aquele rapaz deu-nos o teu frigorífico por engano e tu ficaste a olhar para ele, e eu vim cá fora e tu con vidaste-me para conhecer a tua casa, se eu deixasse um bilhete ao meu pai e

 

Convidar não era exactamente a palavra que Barbara teria escolhido

 

Hadiyyah disse.

 

Lembras-te! Eu sabia que te lembravas. Vi-te chegar a casa, porque estava à janela, e perguntei ao meu pai se podia vir visitar-te. O meu pai disse que sim, porque eu disse que eras minha amiga. Por isso...

 

Oh, estou muito cansada disse Barbara, falando para a porta. Acabei de chegar a casa agora mesmo. Podemos ver-nos depois? Amanhã, talvez?

 

Oh, acho que não devia... é só que eu queria... a vozinha calou-se desiludida. Está bem. Mais tarde, talvez e depois, num tom mais animado: Trouxe uma coisa para ti. Queres que a deixe no degrau? Não faz mal, pois não? É bastante especial.

 

Ora, que é que eu tenho a perder, pensou Barbara.

 

Espera um segundo, está bem? juntou as roupas espalhadas pelo chão, atirou-as para dentro da casa de banho e voltou para junto da porta. Abriu-a, dizendo:

 

Então, o que é que tens feito? O teu pai sabe que tu... parou quando percebeu que Hadiyyah não estava sozinha.

 

Um homem acompanhava-a. Tez escura, mais escura do que a criança, magro e elegantemente vestido num fato riscado. A própria Hadiyyah usava o uniforme escolar, as tranças adornadas por laços cor-de-rosa desta vez, segurando o desconhecido pela mão. Este usava, conforme reparou Barbara, um relógio de ouro muito bonito.

 

Trouxe o meu pai anunciou Hadiyyah, orgulhosa. Barbara cumprimentou com um aceno de cabeça.

 

Não era ele que ias deixar no degrau, pois não? Hadiyyah riu-se e puxou a mão do pai.

 

Ela tem a língua afiada, pai. Eu tinha-te dito, não tinha?

 

Disseste, sim.

 

O homem observou Barbara com os seus olhos castanho-escuros. Ela devolveu-lhe o olhar. Não era muito alto e as suas feições delicadas eram mais bonitas do que atraentes. Os espessos cabelos negros estavam penteados para trás, e o sinal que ornava a maçã do rosto estava tão bem colocado que Barbara teria jurado que não era verdadeiro. Parecia ter entre vinte e cinco e quarenta anos. Era difícil atribuir-lhe uma idade exacta, porque não tinha praticamente rugas nenhumas.

 

Taymullah Azhar apresentou-se com alguma formalidade. Barbara interrogou-se sobre como haveria de responder. Seria aquela

 

uma espécie de saudação muçulmana? Com um movimento de cabeça que fez deslocar a toalha, ela retorquiu, ”Certo”, ajustando-a em torno da cabeça.

 

A sombra de um sorriso perpassou pelos lábios do desconhecido.

 

Sou Taymullah Azhar. O pai de Hadiyyah.

 

Oh! Barbara Havers estendeu-lhe a mão. Foi o senhor que trouxe o meu frigorífico até aqui. Li o seu bilhete. Só não consegui decifrar a assinatura. Obrigada. Muito gosto em conhecê-lo, Mr... juntou as sobrancelhas, tentando lembrar-se da maneira como estas pessoas enunciavam os respectivos nomes.

 

Basta tratar-me por Azhar. Afinal, somos vizinhos disse ele. Barbara viu que, por baixo do casaco, ele usava uma camisa tão branca que parecia incandescente à luz difusa do final de tarde. Hadiyyah insistiu em apresentar-me à sua amiga Barbara logo que cheguei a casa. Mas pelo que vejo, não viemos em boa altura.

 

Bom... em... isto é... Por que razão não conseguiria falar? Tentou controlar-se. Acabei de tomar um banho parcial no Tamisa, razão por que estou assim vestida. Caso contrário, não estaria, isto é, que horas são, afinal? Ainda não são horas de ir para a cama, pois não? Querem entrar um bocadinho?

 

Hadiyyah puxou a mão dele e executou alguns passos de dança. O pai pousou a mão no ombro, e ela imobilizou-se de imediato.

 

Não. Seríamos uns intrusos, esta noite disse ele. Mas agradecemos-lhe na mesma, Hadiyyah e eu.

 

Já jantaste? perguntou Hadiyyah num tom vivo. Porque nós, não. E vamos comer caril. É o meu pai quem vai cozinhá-lo. Comprou um pedaço de carneiro. O que temos é suficiente. Temos muito carneiro. O meu pai faz um caril muito bom. Se ainda não tivesses jantado.

 

Hadiyyah disse Azhar, em voz baixa. Acalma-te, por favor. A criança tornou a imobilizar-se, embora o rosto e os olhos continuassem radiantes. Não tens nada que gostasses de deixar à tua amiga?

 

Oh, sim, sim! deu um pequeno salto.

 

O pai tirou um sobrescrito verde vivo do bolso do casaco, que entregou a Hadiyyah. Esta estendeu-o cerimoniosamente a Barbara.

 

Era isto que eu ia deixar no degrau disse ela. Não és obrigada a abrir agora. Mas se quiseres, podes.

 

Barbara fez deslizar o dedo pela abertura. Retirou do sobrescrito um pedaço de papel amarelo que, uma vez desdobrado, se tornava um girassol resplandecente, no centro do qual fora cuidadosamente impressa a mensagem: Está cordialmente convidada para a festa de aniversário de Khalidah Hadiyyah, na próxima sexta-feira, pelas 19h00. Haverá todo o tipo de jogos e será servido um lanche delicioso.

 

Hadiyyah não ficaria descansada se não entregasse o convite ainda hoje explicou educadamente Taymullah Azhar. Espero que possamos contar com a sua companhia, Barbara. Seremos apenas... lançou um olhar cauteloso à filha...um pequeno grupo.

 

Vou fazer oito anos disse Hadiyyah. Vamos comer gelado de morango e bolos de chocolate. Não precisas de trazer presente. Vou ter outros acho. A minha mãe vai mandar qualquer coisa de Ontario. Fica no Canadá Ela está de férias, mas sabe que faço anos e sabe aquilo que eu quero. Eu disse-lhe antes dela ir embora, não foi, pai?

 

Disseste, pois. Azhar procurou a mão da filha e segurou-a.

 

E agora que já entregaste o teu convite à tua amiga, talvez seja melhor desejar-lhe boa-noite.

 

Vem? perguntou Hadiyyah. Vai ser tão divertido. Vai ver. Barbara olhou para a criança impaciente e depois para o pai, tão sóbrio.

 

Perguntou a si própria que segredos se ocultariam por detrás da aparência de cada um deles.

 

Bolos de chocolate disse a garota. Gelado de morango.

 

Hadiyyah. Azhar disse o nome da filha baixinho.

 

Claro que vou respondeu Barbara.

 

Hadiyyah recompensou-a com um sorriso e recuou um pouco. Puxando o pai pela mão, arrastou-o na direcção do apartamento de ambos.

 

Sete horas disse ela. Não te vais esquecer, pois não?

 

Não, não vou.

 

Obrigado, Barbara Havers disse simplesmente Taymullah Azhar.

 

Chame-me Barbara, apenas pediu ela.

 

Ele meneou a cabeça e, gentilmente, conduziu a filha ao longo da álea. Ela seguia na frente dele, tranças esvoaçando em volta do rosto como cordas.

 

Faço anos, faço anos, faço anos cantarolava.

 

Barbara ficou a vê-los desaparecer a seguir à esquina da casa principal. Fechou a porta. Olhou para o convite em forma de girassol. Abanou a cabeça.

 

Três semanas e quatro dias sem uma palavra, sem um sorriso. Quem poderia ter adivinhado que a sua primeira amiga iria ser uma garotinha de oito anos? - descansei durante quase uma hora. Devia ir para a cama, mas se for para o quarto antes de ter acabado de escrever, agora que estou tão perto do fim, acabarei por perder a coragem.

Chris saiu do quarto dele há um bom bocado. Tinha os olhos raiados de vermelho, como quando acorda de manhã, pelo que foi fácil deduzir que tinha estado a dormir uma curta sesta. Tinha vestida a parte de baixo do pijama às riscas. Nada mais. De pé, encostado à ombreira da porta da cozinha, pestanejou várias vezes e bocejou.

 

Estava a ler. Adormeci como uma pedra. Estou a ficar velho. Dirigiu-se ao lava-loiça e encheu um copo com água. Não a bebeu, no entanto. Em vez disso, inclinou-se para a frente e despejou o líquido sobre o pescoço e os cabelos, despenteando-os com gestos vigorosos.

 

Estás a ler o quê? perguntei-lhe.

 

Atlas Shrugged. O monólogo.

 

Outra vez? estremeci. Não admira que tenhas caído para o lado.

 

Aquilo que sempre me intrigou... Tornou a bocejar e esticou os braços acima da cabeça. Com uma expressão ausente, coçou o trilho de pêlos esparsos que cresciam em forma de pena desde o umbigo até ao peito. Parecia mais magro do que nunca.

 

O que é que sempre te intrigou? perguntei.

 

Falar durante sessenta e três páginas de enfiada. Quanto tempo é que isso pode demorar?

 

Qualquer gajo que precise de sessenta e três páginas para dizer o que tem a dizer não merece que o escutem concluí eu. Pousei o lápis na mesa e esforcei-me por fechar os punhos. ”Quem é John Galt?” só merece o estatuto de pergunta se a resposta for ”Quem é que está interessado em saber?”

 

Chris desatou a rir. Aproximou-se da minha cadeira e disse:

 

Chega para lá um bocadinho e, empurrando-me para a beira do assento, sentou-se atrás de mim.

 

Vou cair disse eu.

 

Eu seguro-te. Encosta-te a mim puxou-me para ele e passou os braços em volta da minha cintura. Descansou o queixo no meu ombro.

 

Sentia a respiração dele junto do meu pescoço. A minha cabeça roçando na dele.

 

Vai para a cama disse-lhe eu. Eu estou bem.

 

Manteve um dos braços à minha volta e prendeu-me à cadeira. Com a outra mão acariciava-me uma das têmporas.

 

Estava a sonhar murmurou. Estava na escola com Lloyd-Georee Marley.

 

Um parente afastado de Bob?

 

Era o que ele dizia. Estávamos frente A frente com um bando de marginais que costumava parar perto da praça de táxis, a dois passos da escola Estes gajos pertenciam à National Front. Botas com biqueiras de metal, estás a ver o género. Falava com uma voz doce. Os seus dedos massajavam-me a nuca, no sítio onde os músculos estavam tensos. Virámos uma esquina, Lloyd-George e eu, e vimos os gajos, percebes? Percebi logo que eles estavam à procura de confusão. Não comigo, mas com Lloyd-George. Queriam chateá-lo, dar uma lição aos outros tipos como ele. Porque é que não voltam para o sítio donde vieram, selvagens de merda, em vez de virem para cá poluir o bom e puro sangue inglês. Tinham os dedos enfiados em punhos de metal, brandiam correntes. Percebi que íamos apanhar à grande.

 

E o que é que fizeste?

 

Tentei gritar, dizer a Lloyd-George que desatasse a correr. Mas sabes como é que as coisas acontecem nos sonhos. Nem um som me saiu da boca. E ele continuou a avançar para eles. E eles a avançarem em direcção a ele. Consegui alcançá-lo, sacudi-o e disse-lhe: ”Vamos embora daqui.” Eu queria sair dali. Ele queria combater.

 

E?

 

Acordei.

 

Sortudo.

 

Não é isso.

 

É o quê, então?

 

Senti o braço dele apertar-me ainda mais.

 

Senti-me aliviado por não ter de tomar uma decisão, Livie. Torci-me toda para poder olhar para ele. A sua barba era cor de canela.

 

Não tem importância disse eu. Foi só um sonho. Já estás acordado.

 

Claro que tem importância.

 

Sentia o coração dele bater junto a mim.

 

Não te preocupes disse eu.

 

Lamento muito disse ele. Tudo isto. O que tudo isto te custa.

 

Conheces alguma coisa que não custe nada?

 

Mas não a este ponto.

 

Não sei.

 

Fiz-lhe uma festa na mão e fechei os olhos. A luz da cozinha brilhava como um farol contra as minhas pálpebras. Apesar disso, adormeci.

 

Chris continuou a segurar-me nos braços. Quando as cãibras me acordaram, ele deslizou para fora da cadeira e começou a massajar-me as pernas. Às vezes digo-lhe que quando tudo isto terminar, ele poderá sempre encontrar trabalho como massagista profissional. Ou isso, ou padeiro, responde ele. ”Tenho boas mãos”, explica Chris. ”Eu também”, digo eu. E há alguma verdade nisto. A doença faz-nos tomar consciência das nossas necessidades. Apaga qualquer ideia de independência da nossa cabeça, o desejo de ser insolente, de fanfarronar.

 

O que me leva a pensar na minha mãe.

 

Uma coisa era tomar a decisão de falar à minha mãe da minha doença. Outra, muito diferente, era contar-lhe tudo, frente a frente. Depois de ter decidido pô-la a par da situação, naquela noite em que jantei na lancha com Chris e com Max, adiei o meu encontro com ela durante um mês. Imaginava cenário atrás de cenário. Pensei em pedir-lhe que se encontrasse comigo num local público, no restaurante italiano de Argyll Road, por exemplo. Pediria risotto o prato que me colocaria menos dificuldades e beberia dois copos de vinho para descontrair. Talvez pedisse até uma garrafa, que poderia partilhar com ela. E quando ela estivesse levemente tocada, dar-lhe-ia a notícia. Chegaria cedo, antes dela, e pediria ao empregado que me guardasse o andarilho. Ela acharia estranho eu não me levantar quando ela chegasse, mas quando ficasse a conhecer as minhas razões, perdoar-me-ia a afronta.

 

Ou, então, propor-lhe-ia que viesse ter comigo à lancha e pediria a Chris e a Max que estivessem presentes, para que ela visse como a minha vida tinha mudado nos últimos anos. Max conversaria com ela sobre críquete, sobre as pesadas responsabilidades de gerir uma gráfica, sobre antiguidades vitorianas, uma paixão que ele inventaria de propósito para a ocasião. Chris seria igual a si próprio. Sentar-se-ia no degrau cimeiro das escadas, dando um bocado de banana a Panda, que ela haveria de mastigar interrogando-se sobre as razões de tão inesperada generosidade. Eu teria Toast de um lado e Beans do outro. Normalmente, tanto um como outro preferem ficar junto de Chris, mas eu encheria os bolsos com biscoitos para cães e colocá-los-ia no chão entre as patas deles quando a minha mãe não estivesse a ver. Seríamos a imagem viva da harmonia: amigos, camaradas, compatriotas. Seria impossível que ela não aderisse à nossa causa.

 

Ou pediria ao meu médico que lhe telefonasse. ”Mrs. Whitelaw”, diria ele, ”fala Stewart Alderson. Estou a telefonar-lhe por causa da sua filha Olivia. Será que nos poderíamos encontrar?” Ela haveria de querer saber de que se tratava. Ele responderia que não queria discutir o assunto pelo telefone. Eu já estaria no consultório dele quando ela chegasse. Ao entrar, ela veria o andarilho encostado à minha cadeira. ”Meu Deus. Olivia. O que é isto, Olivia?” - diria ela. O médico começaria então a falar, enquanto eu me manteria de olhos baixos durante o tempo todo.

 

Revia mentalmente cada uma destas cenas de reconciliação, do princípio ao fim. De cada vez, porém, a conclusão era a mesma. A minha mãe ganhava eu perdia. As circunstâncias dos encontros em si mesmos colocavam-me numa posição de desvantagem. A única forma de eu sair vencedora seria encontrando-me com a minha mãe em condições em que ela se visse forçada a demonstrar afecto, compaixão e complacência para comigo. Era preciso que ela quisesse parecer em vantagem. Uma vez que não seria razoável da minha parte esperar que ela quisesse demonstrar uma posição de força apenas para me agradar, eu sabia que quando finalmente nos encontrássemos, Kenneth Fleming teria de estar presente. Portanto, eu teria de ir a Kensington.

 

Chris queria ir comigo, mas como lhe tinha mentido ao dizer-lhe que já tinha telefonado à minha mãe, não poderia de modo nenhum levá-lo comigo quando fosse a casa dela. Esperei, então, até ao dia em que ele tivesse um assalto planeado, e nessa noite anunciei-lhe, ao jantar, que a minha mãe estava à minha espera por volta das dez e meia. Podia deixar-me em Kensington, disse-lhe eu, quando fosse para o laboratório, em Northampton. Apressei-me a acrescentar que não tinha qualquer importância se ele só pudesse vir buscar-me de madrugada, como decerto sucederia, tendo em conta a actividade marcada para aquela noite. A minha mãe e eu tínhamos muito que conversar e ela, disse eu, estava tão ansiosa por quebrar barreiras quanto eu. O nosso, não era um encontro que pudesse durar apenas uma hora ou duas. Afinal, tínhamos dez anos de vida para pôr em dia. Dez anos em que tínhamos vivido longe uma da outra.

 

Não sei, Livie disse ele, relutante. Não gosto da ideia de te saber presa naquela casa. Imagina que as coisas dão para o torto?

 

Eu já tinha quebrado o gelo, disse-lhe eu. O que é que poderia correr mal? Não estava propriamente em condições de provocar uma discussão com a minha mãe. Ia visitá-la, de cabeça baixa, como uma pedinte. Era ela quem detinha a vantagem. Etc., etc., etc.

 

E se ela se tornar desagradável?

 

É pouco provável que ela queira armar confusão com uma aleijada, não achas? Sobretudo, se o amiguinho estiver presente.

 

Mas Fleming poderia muito bem encorajá-la a isso, fez notar Chris. Fleming poderia não estar interessado nas mudanças que uma eventual reconciliação entre mim e a minha mãe certamente provocariam na vida dele.

 

Se Kenneth quiser arranjar confusão com uma aleijada disse eu, basta-me telefonar a Max e ele vai buscar-me. Está bem assim?

 

Chris concordou, contrariado.

 

Às dez e vinte e cinco, chegámos a Staffordshire Terrace. Como sempre, não havia um único lugar vago onde estacionar o carro. Por isso, Chris deixou o motor a trabalhar, saiu do carro e deu a volta para vir ajudar-me a sair. Colocou o andarilho na rua e pegou-me ao colo, colocando-me na frente dele.

 

Estás bem? Menti, alegremente:

 

Sólida como uma rocha.

 

Tinha de vencer sete degraus até alcançar a porta principal da casa da minha mãe. Entre os dois conseguimos chegar ao alpendre. As luzes da sala de jantar estavam acesas. A janela da frente estava iluminada. Por cima dela, na sala de estar, viam-se mais luzes. Chris adiantou-se e tocou à campainha.

 

Espera pedi-lhe com um sorriso. Preciso de recobrar o fôlego. E de ganhar coragem. Esperámos.

 

Ouvia música através de uma janela aberta, algures por cima de nós, ali perto. A minha mãe plantara jasmins no canteiro junto à janela da sala de jantar, e estes formavam um cortinado de rebentos que pendiam sobre as janelas do rés-do-chão, imediatamente por baixo. Inspirei o perfume das flores.

 

Ouve, Chris. A partir daqui, consigo aguentar-me sozinha. Podes ir embora.

 

Vou só esperar até estares instalada.

 

Não precisas de te dar a esse trabalho. A minha mãe encarrega-se disso.

 

Não te armes em difícil, Livie. Fez-me uma festa no ombro, passou à minha frente e tornou a tocar à campainha.

 

Disse para mim mesma: Desta vez, é impossível recuar. Que diabo vou eu contar à minha mãe para atenuar o choque, quando ela me vir chegar aqui inesperadamente, sem ser convidada. Chris não iria gostar de saber que eu lhe tinha mentido.

 

Passaram trinta segundos. Chris tocou à campainha mais uma vez. Mais trinta segundos se escoaram.

 

Julgava que me tinhas dito...

 

Provavelmente está na casa de banho respondi.

 

Tirei a chave do bolso e rezei para que ela não tivesse mudado a fechadura da porta. Não, não tinha.

 

No vestíbulo, enquanto Chris se colocava atrás de mim, junto à porta de entrada, chamei:

 

Mãe? Sou eu, Olivia. Já cheguei.

 

A música que tínhamos escutado quando estávamos na rua vinha do andar superior. Frank Sinatra cantava My Way. ”A voz” ecoava pela casa inteira, e tão alto que era impossível que alguém tivesse ouvido a campainha da porta ou a minha voz.

 

Ela está lá em cima disse Chris. Queres que vá chamá-la?

 

Ela nunca te viu, Chris. Vais pregar-lhe um susto de morte.

 

Se ela está à espera da tua vis...

 

Ela julga que venho sozinha. Não! Chris, não faças isso! disse eu quando ele começou a dirigir-se para a escada ao fundo do corredor.

 

Mrs. Whitelaw? chamou, subindo os degraus. Sou Chris Faraday. Trouxe-lhe Livie. Mrs. Whitelaw? Vim trazer Livie.

 

Desapareceu no sítio onde as escadas formam um cotovelo, ao nível do primeiro mezanino. Soltando um gemido, arrastei-me para a sala de jantar Nada mais havia a fazer agora, a não ser ouvir a música, e esta não seria sem dúvida, a voz melodiosa de Frank Sinatra.

 

Tinha de me colocar numa posição de poder relativo. Atravessando penosamente a sala, dirigi-me à saleta onde o terrível canapé de dois lugares, em veludo e nogueira, que pertencera à minha bisavó ocupava o mesmo sítio desde 1850. Haveria de servir.

 

Quando já estava instalada, o andarilho colocado ao lado do canapé e convenientemente escondido, Chris entrou na saleta.

 

Não está em casa disse ele. Pelo menos, lá em cima não está. Santo Deus, este sítio faz-me arrepios, Livie. Parece um museu. Está atafulhado de móveis.

 

Viste no quarto dela? A porta estava fechada? Quando ele abanou a cabeça, pedi:

 

Tenta a cozinha. Ao fundo do corredor, passas a porta e desces as escadas. Não consegue ouvir-nos, se lá estiver.

 

Teria, no entanto, ouvido a campainha. Abstive-me de mencionar este facto a Chris, que desapareceu à procura da minha mãe. Passou um minuto. Frank Sinatra passou a Luck Be a Lady. Muito apropriado.

 

Por baixo de mim, a porta das traseiras, que dava acesso ao jardim, abriu-se e pensei imediatamente: ”Aí está ela.” Inspirei fundo, tentando acalmar-me, tentei ajeitar-me melhor no canapé e rezei para que Chris não lhe pregasse um susto de morte quando se encontrassem à porta da cozinha. Momentos mais tarde, no entanto, ouvi Chris no jardim, chamando, ”Mrs. Whitelaw?” Nessa altura percebi que fora ele quem abrira a porta. Fiz um esforço para escutar, mas não consegui ouvir mais nenhum som. Parecia estar a atravessar o jardim. Esperei, impaciente, que ele regressasse.

 

Ela não estava em parte nenhuma, disse-me ele ao entrar na saleta, cerca de três minutos mais tarde. Mas havia um carro estacionado na garagem, um BMW branco. Era dela?

 

Não fazia a mais pequena ideia que carro teria ela, por isso disse: ”Deve ser. Provavelmente, deu um salto à casa de um vizinho.”

 

E Fleming, que é feito dele?

 

Não sei. Talvez tenha ido com ela. Não interessa. Ela deve estar a chegar. Sabe que venho visitá-la. Concentrei-me na franja de um xaile de motivos orientais, que cobria as costas do canapé. Deixaste o motor da carrinha a trabalhar lembrei-lhe, o mais simpaticamente possível, tendo em conta a pressa que eu tinha em que ele se fosse embora antes que a minha mãe chegasse. Vai-te lá embora. Eu fico bem.

 

Não gosto de te deixar aqui sozinha.

 

Eu não estou sozinha, Chris. Vai lá. Não te armes em difícil. Não sou nenhuma criança. Consigo aguentar-me muito bem sozinha.

 

Cruzou os braços e estudou o meu rosto, sem sair do sítio onde se encontrava, junto à porta. Sabia que ele estava a tentar avaliar a veracidade das minhas palavras. Todavia, no departamento das mentiras, Chris Faraday nunca fora um adversário à altura.

 

Vai-te embora disse eu. A equipa está à tua espera.

 

E telefonas a Max, se houver algum problema?

 

Não vai haver problemas.

 

Mas se houver.

 

Telefono a Max, sim. Agora, vai. Tens coisas a fazer.

 

Ele aproximou-se do canapé, inclinou-se para mim e beijou-me a face.

 

Está certo disse. Vou-me embora, então. Hesitou ainda. Julguei que ele estava prestes a adivinhar a verdade, que iria dizer, ”A tua mãe não faz a mais pequena ideia que estás aqui, não é verdade, Livie?” quando, em vez disso, mordeu o lábio superior e disse: Deixei-te ficar mal.

 

Deixa-te de disparates repliquei eu. Vai-te embora. Por favor. Aquilo que tem de ser dito entre mim e A minha mãe não pode ser dito diante de testemunhas.

 

Tinha pronunciado as palavras mágicas. Sustive a respiração até ouvir a porta principal fechar-se. Recostei-me no rebordo de nogueira que se prolongava ao longo do topo do velho canapé e tentei escutar o ronronar do motor da carrinha. A voz de Frank Sinatra, que continuava a divagar sobre a sorte e o azar com vigor crescente, não me deixava ouvir os ruídos provenientes da rua. Todavia, à medida que os minutos se escoavam, sentia o meu corpo relaxar em contacto com o veludo e percebi que tinha conseguido levar por diante pelo menos uma parte do meu plano sem ser apanhada em flagrante.

 

O carro estava na garagem, dissera Chris. As luzes estavam acesas. O CD estava ligado. Estavam algures, perto dali Kenneth Fleming e a minha mãe. Eu tinha a vantagem de estar dentro de casa sem que eles tivessem conhecimento desse facto, pelo que conseguira assegurar o benefício do elemento surpresa. Restava-me agora descobrir como poderia tirar melhor partido dele.

 

Comecei a fazer planos. Como iria comportar-me, o que iria dizer, onde pediria que se sentassem, se deveria mencionar a doença ou referir-me vagamente ao meu ”estado”. Frank Sinatra prosseguia: de New York, New York para Cabaret, depois para Anything Goes. Em seguida fez-se silêncio. Agora é que é, pensei. Santo Deus, sempre estavam cá em casa, afinal. Chris não verificara o último andar, pois não? Estavam no meu antigo quarto e ali vinham eles, descendo as escadas, mais uns minutos e estaremos frente a frente, tenho de...

 

A voz de um tenor ressoou pela casa. Ópera. Italiana. A voz do cantor entoava as notas com dramatismo crescente. Cada um dos temas obrigava o tenor a um ritmo de tal modo rigoroso que eu sabia que devia estar a escutar a versão operática de um dos maiores êxitos de um compositor qualquer Verdi, talvez. Quem mais teria escrito óperas em italiano? Fiquei a meditar sobre o assunto, tentando lembrar-me de outros nomes. Fez-se novo silêncio. Depois, foi a vez de Michael Crawford e de Sarah Brightman. O Fantasma Consultei o relógio. O Sinatra e o tenor tinham cantado durante mais de uma hora. Era meia-noite menos um quarto.

 

As luzes da sala de jantar apagaram-se subitamente. Estremeci. Teria dormitado sem dar por isso e não teria dado pela chegada da minha mãe? Chamei: ”Mãe? És tu? Está aí alguém?” Nada. O meu coração começou a bater desenfreadamente. Estava a dizer, ”Mãe? É Olivia. Estou aqui, na salA...”, quando a luz do candeeiro da saleta se desligou também. Estava na mesa junto à janela saliente que dava para o jardim das traseiras. Acendera-se quando eu entrara na saleta, e eu não acendera mais nenhum. Naquele momento estava sentada na mais completa escuridão, tentando perceber que diabo se estava a passar.

 

Nos cinco, dez minutos seguintes que me pareceram meses não aconteceu nada. Crawford e Brightman completaram o respectivo dueto de AU I Ask of You e Crawford passou rapidamente a The Music of the Night. Alguns compassos mais à frente, a voz calou-se, a meio de uma nota, como se alguém tivesse dito, ”Chega de lamúrias!” e tivesse desligado a aparelhagem. Quando a música parou, o silêncio desceu sobre a casa como folhas outonais sopradas pelo vento. Esperei para ver se ouvia outro som passos, risos abafados, um suspiro, um ranger de molas que traísse uma presença humana. Nada. Era como se os fantasmas de Kenneth Fleming e da minha mãe se tivessem dirigido para a cama.

 

Mãe? tornei a chamar. Estás aí? É Olivia.

 

A minha voz pareceu sumir-se entre os xailes suspensos da lareira, absorvida pelo guarda-fogo de ferro e bronze com os seus pelicanos equilibrados numa só pata, entreolhando-se, no meio das centenas de gravuras espalhadas pelas paredes, dos monstruosos arranjos de flores secas dispostos sobre as mesas, daquela parafrenália vitoriana que enchia aquela saleta claustrofóbica que, por alguma razão, parecia tornar-se ainda mais claustrofóbica enquanto eu esperava, sentada no escuro, dizendo a mim mesma que devia respirar, respirar, respirar.

 

Era a casa, evidentemente. O facto de me encontrar imersa numa escuridão inesperada, naquele mausoléu era o suficiente para comprometer o bom senso de qualquer pessoa.

 

Tentei lembrar-me qual era o candeeiro mais próximo do canapé. A luz dos candeeiros de rua de Staffordshire Terrace, que entrava pela sala de jantar, traçava reflexos sobre a carpete da saleta. Os objectos começaram a tomar forma: uma guitarra pendurada na parede, um relógio sobre a lareira, as esculturas pseudogregas nos seus pedestais de mármore, colocadas em dois dos cantos da divisão, o horrendo candeeiro de pé com um quebra-luz de pompons...

 

Sim. Lá estava ele, no extremo oposto do canapé. Arrastei-me na sua direcção, estiquei-me e informei os meus braços de que deveriam agarrá-lo. E eles obedeceram. Acendi-o.

 

Voltei à minha posição original e estiquei o pescoço, por forma a ver, para além de um divã, a mesa junto à janela, sobre a qual se encontrava o candeeiro. Segui o fio com os olhos. Descia até à alcatifa e elevava-se em seguida até uma tomada eléctrica, junto à bainha dos cortinados. Vi, então, que o fio não estava ligado à tomada, mas sim a um temporizador que, esse sim, estava ligado à tomada da electricidade.

 

Felicitei-me a mim própria com um ”Parabéns, Sherlock”, e depois recostei-me às costas do canapé, pensando no que iria fazer a seguir. Se o BMW estava na garagem, era porque tinham saído e não tencionavam regressar naquela noite, deixando as luzes e o CD ligados a temporizadores eléctricos para dar a entender que estavam em casa e, assim, afugentar potenciais assaltantes. Embora me parecesse que, se por acaso o perigo de assalto fosse real, o ladrão teria muito trabalho para muito pouco ganho, já que o verdadeiro alvo era o Victoria & Albert. Quanto a mim, se tivesse saído para um encontro romântico com o meu namorado, teria deixado a porta da frente aberta na esperança de que alguém esvaziasse a casa e me poupasse a mim o trabalho de o fazer.

 

Pela primeira vez, interroguei-me sobre se conseguiria manipular uma cadeira de rodas ao longo das várias divisões daquela casa. Ao contrário do que acontecia na lancha, as portas eram largas, mas o resto da casa era uma corrida de obstáculos. Senti a inquietação começar a invadir-me. Tinha a impressão de que o meu futuro não estava em Stafforddshire Terrace, com a minha mãe e o seu amiguinho, mas sim numa casa de saúde, ou num hospital de corredores amplos, quartos severos e despojados e pacientes em estado terminal olhando para a televisão, à espera do fim.

 

E depois? Que diferença faria isso?, pensei. O essencial é pôr a minha mãe a par da situação, para que quando as coisas chegarem àquela fase em que Chris e eu vamos necessitar de ajuda, ela esteja pronta a fornecê-la da forma que quiser. Hospital, casa de saúde, um apartamento meu, remodelado por forma a albergar a parafrenália médica que eu acumulava rapidamente, uma conta bancária da qual pudesse retirar os fundos necessários para cuidar de mim mesma, um simpático cheque em branco enviado pelo correio uma vez por mês. Não precisava de alterar a decoração daquele túmulo para arranjar espaço para ela. Só tinha de nos ajudar. E isso ela faria, não faria mal estivesse a par de todos os factos?

 

Isso significava que eu seria obrigada a falar-lhe da doença e não poderia limitar-me a fazer referências veladas ao meu estado. O que, por sua vez queria dizer que teria de comover o seu coração e excitar a sua compaixão o que implicava que teria de conversar com ela na presença de Kenneth Fleming. E onde estava ele, afinal? E ela? Onde estavam ambos? Tornei a consultar o relógio? Quase meia-noite e meia.

 

Descansei a cabeça no braço do canapé e olhei para o tecto, que, tal como as paredes, fora forrado com papel pintado William Morris. O desenho, tal como o da sala de jantar, reproduzia romãs, um fruto mágico. Se comermos uma grainha vermelho rubi... e depois? Pedimos um desejo? Os nossos sonhos tornam-se realidade? Não conseguia lembrar-se. Mas uma romã não vinha a calhar nada mal.

 

Bom, disse para mim própria, o teu plano está lixado. Tenho de telefonar a Max e pedir-lhe que venha buscar-me. Tenho de pensar em alguma coisa para dizer a Chris. Tenho de arranjar um Plano B. Tenho...

 

O telefone tocou, arrancando-me de súbito à dolência que entretanto se apoderara de mim. Estava na mesa à minha frente, junto à janela. Escutei a campainha estridente e perguntei a mim própria se deveria... Ora, porque não. Podia muito bem ser Chris ou Max, querendo saber como é que eu estava a enfrentar o leão dentro da sua jaula. Devia tranquilizá-los. Era uma oportunidade perfeita para mentir. Peguei no andarilho, pus-me de pé, desviei-me do divã e aproximei-me do telefone quando este completava o seu décimo segundo sinal de chamada.

 

Atendi.

 

Estou?

 

Ouvi música de fundo, um ruído surdo: acordes rápidos de guitarra clássica, alguém cantando em castelhano. E depois um estalido. Uma espécie de soluço violento do outro lado do fio.

 

Estou? insisti.

 

Uma voz feminina enunciou:

 

Puta. Puta nojenta. Conseguiste o que querias parecia ébria. Mas isto ainda não acabou. Ainda... não... acabou. Percebeste, velha caquéctica? Quem é que julgas...

 

Quem fala?

 

Uma gargalhada. Uma respiração sonora.

 

Sabes muito bem quem é que está a falar. Espera só e verás, avozinha. Fecha bem as janelas e as portas. Espera... e... verás.

 

Desligaram. Tornei a colocar o auscultador no gancho. Friccionei a mão na perna das calças de ganga e fiquei a olhar fixamente para o telefone. Devia estar bêbeda. Devia ter sentido necessidade de desabafar. Devia estar...

 

não sabia. Estremeci e perguntei-me por que razão estaria a tremer. Não tinha nada com que me preocupar. Ou assim pensava.

 

Talvez fosse melhor telefonar a Max. Regressar à lancha. Voltar outro dia. Porque era óbvio que a minha mãe e Kenneth tinham saído por aquela noite, talvez até nas duas ou três seguintes. Teria de voltar outro dia.

 

Mas quando, quando? Quantas semanas teria eu realmente à minha frente antes de a cadeira de rodas se tornar uma componente imperativa e toda a minha vida na lancha chegar ao fim? Quantas oportunidades teria eu, ainda, antes que a doença se agravasse dessa forma, em que Chris estivesse fora, numa actividade do ARM, e eu pudesse marcar um encontro a sós com a minha mãe. Nada estava a correr como eu planeara. Era de loucos, só de pensar em repetir esta farsa com Chris.

 

Suspirei. Já que o Plano A não estava a funcionar, valia a pena tentar o Plano B. Perto da porta que dava para a sala de jantar estava a escrivaninha da minha mãe. Deveria haver papel e canetas no interior. Escrever-lhe-ia uma carta. O efeito surpresa não seria o mesmo, mas não havia nada a fazer.

 

Encontrei o que procurava e sentei-me para escrever. Sentia-me cansada, os meus dedos recusavam-se a colaborar. Ao fim de cada parágrafo, tinha de parar para descansar. Tinha escrito quatro páginas quando descansar os dedos passou a significar descansar os olhos, que passou a ser descansar a cabeça sobre o tampo inclinado da escrivaninha. Cinco minutos, pensei. Cinco minutos de descanso e já continuo.

 

O sonho levou-me até ao último andar da casa, até ao meu antigo quarto. Tinha as mochilas comigo, mas quando as abri para as esvaziar, não encontrei roupas mas sim os cadáveres dos gatos que tínhamos salvo do laboratório de experiências sobre a medula espinal. Pensei que estavam mortos, mas não estavam. Começaram a rastejar, a arrastar-se ao longo da cabeceira da cama, as patinhas traseiras retorcidas e esticadas, inúteis. Tentei pegar neles, nos gatinhos. Sabia que tinha de os esconder antes que a minha mãe chegasse. No entanto, sempre que conseguia apanhar um, aparecia outro. Estavam debaixo das almofadas e no chão. Quando abri uma das gavetas da cómoda, para os esconder, também já se tinham multiplicado lá dentro. E então, naquelas bizarras mudanças de cena, tão características dos sonhos, apareceu Richie Brewster. Estávamos no quarto da minha mãe, agora. Deitados na cama dela. Richie estava a tocar saxofone com uma serpente ao ombro. Eu deslizei ao longo do peito dele e escondi-me por baixo dos cobertores. Richie sorriu e gesticulou com o saxofone, dizendo, ”Isso, querida. Isso mesmo, Liv.” Sabia o que ele queria, mas tinha medo da serpente, medo do que sucederia se a minha mãe entrasse e nos apanhasse na cama dela. Fosse como fosse, enfiei-me debaixo dos cobertores e fiz o que ele queria. No entanto, quando o ouvi gemer, levantei a cabeça e vi que era o meu pai. Sorriu e abriu a boca para falar. A serpente saltou. Soltei um soluço e acordei.

 

O meu rosto estava húmido. A minha boca abrira-se enquanto eu dormia e manchara a página em que estivera a escrever. Graças a Deus que podemos acordar dos sonhos, pensei. Graças a Deus que os sonhos não significam nada. Graças a Deus... e depois ouvi o barulho.

 

Não acordara sozinha. Fora o barulho que me despertara. Em baixo algures, uma porta fechava-se. A porta do jardim.

 

O telefonema, pensei. Não disse nada quando o meu coração começou a bater descompassado. O som de passos na escada da cozinha. A porta ao fundo do corredor abriu-se. Fechou-se. Mais passos. Uma pausa. E depois passos, novamente, rápidos.

 

O telefonema, pensei. Oh, meu Deus! Oh, meu Deus. Olhei para o telefone e esforcei-me por reunir as forças suficientes para poder atravessar a sala e premir as teclas do número de emergência. Mas fui incapaz de me mexer. Nunca, como naquele momento, me sentira tão consciente do que o presente significava e do que o futuro me reservava.

 

                               CAPÍTULO 24

Concluída a reunião com o superintendente Webberly, Lynley reuniu os processos e os jornais dos três últimos dias. A imprensa começara por relatar o mergulho de Jimmy Cooper no Tamisa, na tarde de quinta-feira. Depois disso, tinha tornado pública a sua detenção na quarta-feira de manhã fora levado da George Green Comprehensive School, cabeça baixa, ombros descaídos, por dois agentes uniformizados. Na quinta-feira, grandes manchetes anunciavam que iria ser acusado de homicídio na pessoa do seu pai, Kenneth Fleming. Os jornais tinham continuado a cobrir o caso através de gráficos que explicavam os procedimentos jurídicos relativamente aos menores e de entrevistas onde diversos procuradores se pronunciavam sobre a idade em que as crianças deveriam ser julgadas como adultos. Para rematar, uma recapitulação das circunstâncias do crime, alguns pormenores sobre a família Fleming e um resumo da carreira do desportista. A mensagem implícita em todas as histórias: o caso estava encerrado e o julgamento iminente. Lynley não poderia ter pedido mais.

 

Tem a certeza de que o alibi de Mrs. Whitelaw é seguro? perguntou Webberly.

 

Absolutamente. Desde o princípio.

 

Webberly levantou-se da cadeira onde se sentara, junto à mesa redonda, ao princípio da tarde. Dirigiu-se aos armários de arquivo e pegou numa fotografia de Miranda, a sua filha única. Esta posava, com uma expressão feliz, no terraço de St. Stephen’s College, em Cambridge, trompete debaixo do braço. Webberly fitou-a, pensativo.

 

Parece-me que você está a esticar de mais a corda, Tommy disse a Lynley sem levantar os olhos.

 

É a nossa única esperança, senhor. Nos três últimos dias, pedi aos nossos homens que voltassem a examinar minuciosamente todas as provas e interrogatórios. Havers e eu fomos ao Kent duas vezes. Reunimos com a equipa de peritos de Maidstone. Falámos com todos os vizinhos mais próximos de Celandine Cottage. Passámos o jardim e a casa a pente fino. Fomos às duas Springburns e vasculhámos tudo. E não conseguimos descobrir mais nada para além dos elementos de que já dispúnhamos. Na minha opinião só nos resta seguir uma única pista: esta.

 

Webberly abanou a cabeça, mas não pareceu particularmente satisfeito com a resposta de Lynley. Tornou a colocar a fotografia de Miranda no seu lugar habitual e limpou um grão de poeira que maculava o caixilho. No mesmo tom de voz pensativo, prosseguiu:

 

Hillier está fora de si.

 

Isso não me surpreende. Eu deixei que a imprensa se aproximasse demasiado, contrariando os procedimentos estabelecidos. É natural que isso não lhe agrade.

 

Pediu-me que marcasse outra reunião. Consegui adiá-la para segunda-feira à tarde.

 

Webberly lançou a Lynley um olhar eloquente: Lynley tinha até segunda-feira para fechar o caso. Nessa altura, Hillier, que era o superior hierárquico de ambos, tomaria o assunto em mãos e nomearia outro inspector para o caso.

 

Muito bem disse Lynley. Agradeço-lhe por tê-lo tirado do meu caminho, senhor. Não deve ter sido fácil.

 

Não vou poder mantê-lo ao largo por muito mais tempo. Em todo o caso, depois de segunda-feira, isso já não será possível.

 

Não creio que vá ser necessário. Webberly ergueu uma sobrancelha.

 

Está assim tão confiante?

 

Lynley enfiou os processos e os jornais debaixo do braço.

 

Não exactamente. Sobretudo quanto tudo o que tenho se resume a um telefonema que não consigo localizar. Não é muito, como indício.

 

Vá em frente, então.

 

O superintendente voltou para junto da secretária e desenterrou um outro processo, perdido no meio de um monte de papelada. Despediu-se de Lynley com um movimento de cabeça.

 

Lynley passou pelo seu gabinete para deixar os processos e tornou a sair, levando os jornais consigo. Cruzou-se com Havers no elevador. Ela folheava um maço de documentos dactilografados, franzindo o sobrolho e murmurando, ”Merda, merda, merda”. Quando o viu, parou, mudou de direcção e acertou o seu passo pelo dele.

 

Vamos a algum lado?

 

Lynley tirou o relógio de bolso e abriu-o. Cinco menos um quarto.

 

Não disse que tinha uma festa hoje? Todo o tipo de Jogos e um Lanche Delicioso? Não deveria estar a preparar-se para a festa?

 

Diga-me uma coisa, senhor. Que diabo de prenda devo comprar para uma miúda de oito anos de idade? Uma boneca? Um jogo? Um estojo de química? Um nintendo? Um par de patins? Uma faca? Aguarelas? O quê? - revirou os olhos, mas, na verdade, Lynley via que ela estava radiante por ter de se preocupar com a compra em questão. Podia comprar-lhe um Diablo, claro prosseguiu, mordendo o lápis que usava para escrever na folha dactilografada. Em Camden Lock há uma loja que os vende. Ou, então, um equipamento de magia. Será que... o que é que acha de um equipamento de magia para uma criança de oito anos, senhor? Ou um fato? Os miúdos gostam de disfarces, não gostam? Podia comprar-lhe uma fantasia.

 

A que horas é a festa? perguntou Lynley enquanto chamava o elevador.

 

Às sete. E se comprasse brinquedos de guerra? Carros em miniatura? Aviões? Rock and roll? Acha que ela ainda é muito novinha para gostar de Sting ou de David Bowie?

 

O que eu acho é que você devia ir fazer as suas compras imediatamente disse Lynley. As portas do elevador abriram-se e ele entrou.

 

Uma corda para saltar? Um tabuleiro de xadrez? Um jogo de gamão? Uma planta? Excelente. Que imbecil que eu sou. Uma planta para uma garota de oito anos. E porque não livros? dizia ela, no momento em que as portas se fecharam.

 

Lynley perguntou a si próprio qual seria a sensação de ter preocupações tão prosaicas numa sexta-feira à noite.

 

Chris Faraday avançava em passo lento ao longo de Warwick Avenue, vindo da estação de metropolitano, a caminho de Blomfield Road. Beans e Toast saltitavam à sua frente. Obedientes, sentaram-se sobre as patas traseiras ao chegarem à esquina da rua, antecipando a ordem, ”Em frente!”, que os autorizaria a atravessar Warwick Place e a prosseguir caminho até à lancha. Quando a ordem não soou, correram para junto dele e começaram a andar em círculos à sua volta. Estavam habituados a correr do início ao fim do passeio. Chris sempre desejara que assim fosse. Se tivesse cedido às preferências dos animais, estes teriam optado por deambular, farejar os caixotes de lixo e correr atrás de gatos vadios, sempre que tivessem oportunidade para tal. Mas ele treinara-os bem, e aquela alteração na rotina deixava-os confusos. Expressaram a sua perplexidade por intermédio das suas cordas vocais. Ladravam e atropelavam-se de encontro às suas pernas.

 

Chris estava consciente da sua presença, sabia muito bem o que eles queriam: velocidade, acção e a brisa de fim de tarde soprando-lhes nas orelhas. Também não teriam dito que não a um jantar, ou a brincadeiras com uma bola. Chris, no entanto, estava mais preocupado com o Evening Standard.

 

O jornal, que comprara no caminho, trazia a lume mais uma variante do caso que desde há três, quatro dias tinha honras de primeira página. Conseguira a proeza de ter um fotógrafo destacado na Isle of Dogs no momento em que o rapaz tentara fugir à polícia, e os redactores tinham decidido dar o devido destaque à história. A edição de sexta-feira, dedicava uma página inteira intitulada ”Drama no East End” ao homicídio de Kenneth Fleming, à investigação subsequente, à perseguição ao filho de Fleming na Isle of Dogs, que quase terminara em afogamento, e ao salvamento espectacular do fugitivo. As fotografias tiradas junto ao rio estavam cheias de grão, por terem sido tiradas com uma teleobjectiva, mas a mensagem veiculada era clara: o braço longo da lei conseguia sempre alcançar os culpados, por maiores que fossem os seus esforços para lhe escapar.

 

Chris dobrou o jornal e enfiou-o debaixo do braço, juntamente com os outros. Pisou as flores de cerejeira que cobriam o passeio de Warwick Avenue e recordou a sua conversa com Amanda, na noite anterior, depois de ter ajudado Livie a deitar-se. Tudo o que conseguira dizer-lhe fora: ”Acho que as coisas não vão resultar conforme desejávamos.”

 

Ouvira o medo impregnando a voz dela, apesar dos seus esforços para se controlar.

 

Porquê? Aconteceu alguma coisa? Livie mudou de ideias, foi?

 

E pelo tom de voz dela percebera que não era tanto da verdade que ela tinha medo, mas do mal que esta poderia causar-lhe. Sabia que o que ela estava a dizer-lhe, ainda que não de forma directa, era, ”Preferes Livie, não é? Estás a escolhê-la em vez de mim, não estás?”

 

Quisera explicar-lhe que não se tratava de escolher ninguém. A situação era muito mais simples. O caminho que antes lhes parecera lógico e essencialmente simples era agora, não só tortuoso como quase impossível. Não podia dizer-lhe nada de semelhante, no entanto. Isso só a incitaria a fazer outras perguntas. Perguntas às quais ele gostaria de responder, mas não podia.

 

Dissera-lhe que não, que Livie não mudara de ideias, mas que as circunstâncias que rodeavam a sua decisão se tinham alterado. E quando ela perguntara como e dissera:

 

Oh, meu Deus, ela está melhor, não está? Oh, vais achar que sou horrível por fazer uma pergunta destas. Vais achar que desejo a morte dela, e não é nada disso que eu quero, Chris. É falso, falso.”

 

Eu sei interrompera ele. Mas não é isso. É só que Livie...

 

Não dissera ela, pára. Não quero ouvir nada. Não desta maneira. Pareço uma adolescente caprichosa. Quando estiveres preparado, Chris, quando Livie estiver preparada, dizes-me tudo.

 

O que fizera nascer dentro dele um desejo ainda mais forte de lhe contar, de lhe pedir conselhos. Limitara-se, no entanto, a dizer:

 

Amo-te. Isso não mudou.

 

Queria que estivesses aqui comigo.

 

Eu também queria estar aí.

 

Não havia mais nada a dizer. Apesar de tudo, tinham ficado ao telefone, prolongando o contacto durante mais uma hora. Já passava da uma da madrugada quando ela dissera, baixinho:

 

Tenho de desligar, Chris.

 

Claro dissera ele. Entras às nove, não é? Estou a ser egoísta, ficando aqui desta maneira.

 

Tu não és egoísta. Além disso, eu não quero que desligues.

 

Não a merecia. Sabia-o, ainda que passasse os dias inteiros a pensar nela.

 

Os cães tinham percorrido velozmente a distância que os separava da esquina de Warwick Avenue com Warwick Place. Abanando as caudas, esperaram as ordens dele. Alcançou-os, certificou-se de que não havia trânsito.

 

Em frente! disse.

 

Livie estava no tombadilho onde ele a deixara, sentada numa das cadeiras de lona, um cobertor em torno dos ombros. Olhava fixamente para Browning’s Island, onde os ramos dos salgueiros, carregados de folhas, tombavam para a água e quase roçavam o solo. Parecia mais mirrada do que nunca, um prenúncio do que lhes estava reservado nos meses que tinham pela frente.

 

Estremeceu quando Beans e Toast subiram para o tombadilho e vieram cheirar-lhe a mão esquerda, que pendia, mole, da cadeira. Ergueu a cabeça e pestanejou.

 

Chris pousou o jornal no tombadilho, ao lado dela, dizendo:

 

Está tudo na mesma, Livie.

 

Foi buscar as tigelas dos cães, que estavam no interior da lancha, enquanto ela começava a ler as notícias.

 

Deu água fresca aos cães e serviu-lhes a comida. Beans e Toast lançaram-se sobre ela sem demora. Enquanto devoravam o petisco, Chris encostou-se ao tejadilho da cabina da lancha e concentrou a sua atenção em Livie.

 

Desde sábado de manhã que lhe pedia para comprar os jornais. Lia-os todos, de fio a pavio, e recusara-se a deitá-los fora. Em vez disso, depois de a polícia os ter visitado no sábado, passara a pedir-lhe que lhe levasse os jornais para o quarto e que os empilhasse ao lado da cama estreita. Durante as últimas noites, enquanto esperava impacientemente a chegada do sono, deixava-se ficar a contemplar os desenhos que o candeeiro dela projectava na porta aberta do seu quarto, ouvindo-a virar calmamente as páginas dos jornais à medida que as examinava pela segunda ou terceira vez. Sabia o que ela estava a ler. Mas ignorava as razões que a levavam a fazê-lo.

 

Conseguira ficar calada mais tempo do que ele julgara possível. Sempre fora do género impulsivo, de falar sem pensar e de se lamentar depois, quando já não havia nada a fazer. Por isso, de início, deduzira que aquele silêncio traía um exercício de reflexão, pouco característico nela, sobre as repercussões que a morte de Kenneth Fleming tivera sobre a vida de toda a gente. Desabafara, finalmente, por não lhe restar outra alternativa. Ele estivera em Kensington no domingo à tarde. Vira e ouvira. Diante da sua insistência muda, acabara por partilhar com ele o fardo da verdade. Ao fazê-lo, ele percebeu que os seus projectos de vida iriam ser profundamente alterados. Razão por que ela não quisera contar-lhe nada. Porque sabia que, se o fizesse, ele exortá-la-ia a ir ter com a polícia e a contar-lhe tudo o que sabia. E se assim fosse, ambos sabiam que ficariam presos um ao outro até ao dia em que ela morresse. Nenhum deles se referiu a esta consequência do seu acto de confissão. Não havia necessidade de discutir o que era óbvio.

 

Beans e Toast terminaram a sua refeição e aproximaram-se da cadeira de lona onde Livie estava sentada. Beans deitou-se ao seu lado, a cabeça ao alcance da mão dela, não fosse Olivia ter vontade de ceder a um capricho momentâneo e fazer-lhe uma festa. Toast baixou-se cautelosamente à frente dela e descansou o queixo sobre o seu sapato de sola grossa. Livie inclinou-se para o jornal. Chris já tinha lido o artigo de primeira página, por isso sabia que ela estava a registar palavras relevantes como principal suspeito do homicídio, deverá ser acusado, adolescente perturbado, juventude delinquente. Aproximou a mão das fotografias, detendo-se na maior de todas. Nela, via-se o rapaz, um verdadeiro espantalho encharcado, nos braços da mãe, metidos no rio até à cintura, enquanto o inspector da New Scotland Yard, molhado até aos ossos, se inclinava sobre eles. Sob o olhar de Chris, a mão de Livie começou a amarrotar a fotografia. Era impossível dizer se se tratava de um gesto deliberado, se era o resultado de uma fibrilação muscular.

 

Aproximou-se dela. Acariciou-lhe uma das faces e puxou a cabeça de Olivia de encontro à sua coxa.

 

Aquilo não significa que vão acusá-lo, de facto disse ela. Não significa isso, pois não, Chris?

 

Livie a voz dele soou levemente admoestadora. Mente, se tens de o fazer. Mas não para ti própria, parecia querer dizer.

 

Não vão acusá-lo atirou a fotografia para o meio de uma massa enrugada debaixo da palma da mão dela. E mesmo que o façam, o que é que lhe pode acontecer? Acabou de fazer dezasseis anos. O que é que se faz com garotos que violam a lei quando têm apenas dezasseis anos?

 

A questão não é exactamente essa, pois não?

 

Enviam-nos para o reformatório de Borstal, ou para um sítio parecido. Obrigam-nos a ir à escola até obterem o certificado de conclusão de estudos obrigatórios. Ou ensinam-lhes um ofício. O jornal diz que ele costumava faltar às aulas. Por isso, se tivesse alguém que o obrigasse a ir, se não tivesse outro remédio...

 

Chris não se deu ao trabalho de discutir. Livie não era parva. Não tardaria a tomar consciência de que estava apenas a construir um castelo de cartas, mesmo que não quisesse admiti-lo.

 

Abandonou o jornal. Colocou o braço direito sobre o estômago e apertou-o, como se as entranhas lhe doessem. Lentamente, ergueu o braço esquerdo, que pendia sobre a cadeira, e pô-lo em volta da perna de Chris, agarrando-se a ele. Ele fez-lhe uma festa na face com o polegar.

 

Ele confessou disse ela, embora as suas palavras carecessem da convicção que tinha sublinhado as suas conclusões acerca de Borstal. Ele confessou, Chris. Ele estava lá. Os jornais dizem que ele estava lá. E que a polícia tem provas disso. Se esteve lá e se confessou é porque o deve ter feito. Não percebes? Talvez seja eu que estou a compreender mal o que se passou.

 

Acho que não disse Chris.

 

Então, porquê? Agarrou-se à perna dele com mais força, enquanto proferia a segunda palavra. Porque é que a polícia continua a persegui-lo desta maneira? Porque é que ele confessou? Porque é que está a dizer à polícia que matou o pai? Não faz sentido. Ele deve saber que é culpado de alguma coisa. É isso. Tem de ser. Ele é culpado de alguma coisa. Só não diz de quê. Não achas que é isto que está a acontecer?

 

Acho que o que está a acontecer é que o garoto ficou sem o pai, Livie. Perdeu-o de repente, quando não estava à espera de o perder de forma nenhuma. Não achas que ele pode estar a reagir a esse facto? Além disso, como é que uma pessoa se sente quando lhe dizem que o pai morreu, sem ela sequer ter tido oportunidade de se despedir dele?

 

O braço dela largou a perna dele.

 

Isso não é justo sussurrou. Ele insistiu:

 

O que é que tu fizeste, Livie? Como é que reagiste? Deste uma queca com um gajo que tinhas engatado num pub, não foi? Ele disse que te dava cinco libras se o deixasses aliviar-se, e tu estavas tão bêbeda nessa noite que te estavas nas tintas para o que te acontecesse a seguir. Porque o teu pai estava morto e tu nem sequer tinhas sido autorizada a ir ao funeral dele. Foi isso que aconteceu, não foi? Não foi assim que começaste a trabalhar na rua? Não estavas fora de ti, naquela época? Por causa do teu pai? Mesmo que não quisesses admiti-lo.

 

Não é a mesma coisa.

 

A dor e o sofrimento são os mesmos. O que varia é a forma como lidamos com eles.

 

Ele não disse o que disse à polícia por estar desesperado com a morte do pai.

 

Tu não sabes isso. E mesmo que soubesses, o que interessa é aquilo que ele está a fazer e a razão por que está a fazê-lo.

 

Ela mexeu-se para fugir ao contacto da mão dele sobre a sua cabeça. Alisou as páginas do jornal, dobrando-o em seguida. Colocou-o sobre os outros que ele lhe trouxera nessa manhã, sem lhes prestar atenção. Em vez disso ergueu a cabeça e olhou para Browning’s Island. Retomou a posição em que se encontrava quando ele chegara depois de ter levado os cães a passear

 

Livie, tens de falar com eles disse ele.

 

Não lhes devo nada. Não devo nada a ninguém.

 

O seu rosto parecia feito de pedra, como sempre acontecia quando queria fugir a um determinado assunto. Todos os argumentos que pudesse apresentar naquele momento seriam inúteis. Suspirou. Com a ponta dos dedos tocou-lhe o alto da cabeça, onde o cabelo muito curto crescia desordenadamente como um tufo de ervas daninhas.

 

Quer queiras, quer não é uma questão de dever.

 

Não devo rigorosamente nada àqueles estup...

 

Não estou a falar deles. Estou a falar de ti própria.

 

Lynley decidiu passar por casa, primeiro. Denton tomava o chá da tarde, chávena na mão, pés sobre a mesa baixa da sala de estar, cabeça reclinada no encosto do sofá, olhos fechados. A aparelhagem vomitava os acordes de uma partitura de Andrew Lloyd Weber e Denton acompanhava Michael Crawford com a sua voz esganiçada. Lynley perguntou maquinalmente a si próprio quando chegaria o dia em que o Fantasma da Ópera estaria, finalmente, fora de moda.

 

Dirigiu-se para a aparelhagem e baixou o volume. Na sala quase silenciosa, a voz de Denton soou estridente:

 

... A música da noiiiiiiiiiite.

 

Estás a cantar em falsete disse Lynley, secamente. Denton pôs-se de pé num salto.

 

Peço desculpa. Estava só a...

 

Não precisas de me fazer um desenho cortou Lynley.

 

Denton apressou-se a pousar a chávena sobre a mesa, limpando algumas migalhas imaginárias que foram aterrar na palma da sua mão. Depositou-as no tabuleiro onde dispusera as sanduíches, os biscoitos e as uvas que preparara para o seu lanche.

 

Chá, senhor? perguntou, timidamente.

 

Vou já sair.

 

Denton olhou para Lynley e depois para a porta.

 

Mas não acabou de chegar agora mesmo?

 

Acabei, sim. O que me valeu o privilégio de poder assistir aos últimos vinte minutos da tua sessão de exercícios vocais. Encaminhou-se para a porta da sala, dizendo: Continua à vontade. Não deixes que a minha presença te iniba. Mas, se não te importas, um bocadinho mais baixo. Jantar às oito e meia. Para dois.

 

Dois?

 

Lady Helen vem jantar comigo. O rosto de Denton iluminou-se.

 

Boas notícias, então? Isto é, o senhor e Lady Helen... o que quero perguntar é se...

 

Oito e meia disse Lynley.

 

Muito bem, senhor.

 

Denton afadigou-se, juntando o bule do chá, os pratos e as chávenas.

 

Enquanto subia as escadas, Lynley concluiu que, de facto, não tinha novidades verdadeiramente importantes a comunicar acerca de Helen, fosse a Denton fosse a outra pessoa qualquer. Apenas um telefonema na quarta-feira à noite, depois de ela ter lido os artigos de jornal relatando a sua aventura de terça-feira à tarde, na Isle of Dogs.

 

Meu Deus, Tommy. Estás bem? perguntara ela.

 

Estou óptimo. Tenho saudades tuas, querida.

 

No entanto, quando ela dissera, em tom cauteloso, ”Tommy, tenho pensado muito desde domingo de manhã. Tal como me pediste...”, descobrira que não teria coragem para manter uma conversa séria acerca do futuro de ambos. Fora então que sugerira:

 

E se conversássemos sobre tudo isso no próximo fim-de-semana, Helen? E, assim, tinham combinado jantar juntos.

 

Entrou no quarto e dirigiu-se ao armário. Tirou um par de calças de ganga, uma camisola pólo, uns ténis usados e um velho par de peúgas brancas. Despiu-se, atirando casaco, calças e colete para cima da cama. Olhou para o espelho colocado sobre a cómoda e estudou a sua imagem reflectida nele. Aquele corte de cabelo não o favorecia em nada. Passou uma mão pelos cabelos e despenteou-os. Tirou a chave do carro do bolso das calças do fato e saiu.

 

O trânsito congestionado das sextas-feiras à tarde não facilitou o trajecto entre Belgravia e Little Venice. Estava particularmente complicado nas imediações de Hyde Park, onde uma camioneta de turismo decidira estacionar em Park Lane, deixando uma fileira interminável de carros presos atrás de si.

 

Depois do parque, em Edgware Road, a circulação não conhecia grandes melhorias. Toda a gente parecia ter pressa em sair da cidade durante o fim-de-semana. Francamente, não podia culpá-los. O tempo magnífico daquele mês de Maio incitava a uma escapadela até ao campo ou à beira-mar. Ele próprio não se teria importado de ter como destino, quer o campo quer a beira-mar. A evocação das horas que se aproximavam também não o enchia de coragem, já que demasiadas coisas estavam dependentes do que iria passar-se.

 

Estacionou no lado sul de Little Venice e, jornais debaixo do braço, contornou Warwick Crescent, seguindo na direcção da ponte que ligava as duas margens de Regent’s Canal. Ao chegar aí, parou. Contemplou as águas turvas, onde cinco gansos nadavam na direcção do lago e de Browning’s Island.

 

Do local onde se encontrava, Lynley conseguia ver perfeitamente a lancha de Faraday. Apesar de ainda ser dia, e da perspectiva de mais duas horas de claridade, o tombadilho estava deserto e, no interior da lancha, cintilava a luz de candeeiros, que projectavam raios de luz dourada nas vidraças das janelas. Enquanto observava a embarcação, viu a luz dourada vacilar no momento em que alguém passou entre a janela e o candeeiro. Faraday, pensou Lynley teria preferido encontrar-se com Olivia a sós, mas sabia que seria muito pouco provável que ela aceitasse vê-lo na ausência do companheiro

 

Faraday encontrou-o à porta da cabina, antes que Lynley tivesse tido tempo de bater. Estava a meio das escadas, vestido com equipamento desportivo, os cães saltitando junto às suas pernas. Um deles arranhava o degrau no qual Faraday se detivera. O outro latia.

 

Faraday ficou calado. Limitou-se a tornar a descer a escada e a entrar novamente na lancha. Quando os cães começaram a avançar escada acima, na direcção de Lynley, preparando-se para saltar para o tombadilho, ordenou-lhes, ”P’ra baixo! Já!”

 

Lynley desceu. Faraday observava-o com uma expressão circunspecta. Os seus olhos detiveram-se por momentos nos jornais que Lynley trazia debaixo do braço e depois tornaram a fitar o rosto do inspector.

 

Ela está? perguntou Lynley.

 

O som de metal contra o linóleo da cozinha respondeu à sua pergunta. A voz de Olivia elevou-se.

 

Merda, Chris. Deixei cair o arroz. Espalhou-se em todas as direcções. Desculpa-me, está bem?

 

Faraday disse por cima do ombro:

 

Deixa estar.

 

Deixa estar? Santo Deus, Chris, pára de me tratar como...

 

Está aqui o inspector, Livie.

 

Fez-se um silêncio abrupto. Lynley sentia que Olivia inspirara fundo e estava a suster a respiração enquanto tentava decidir se poderia fugir a este último confronto, e como poderia fazê-lo. Ao cabo de alguns instantes, durante os quais Faraday ficara virado para a cozinha e os cães se tinham aproximado para ver o que se passava, o som de movimentos tornou a fazer-se ouvir. O andarilho de alumínio rangeu sob o peso do corpo dela. As solas dos sapatos arrastaram-se, penosamente, no chão. Olivia resmungou e depois disse:

 

Estou presa, Chris. Por causa do arroz. Não consigo passar por cima dele. Faraday foi ter com ela.

 

Beans! Toast! Deitados! ordenou.

 

O som das garras dos animais arranhando o linóleo esmoreceu à medida que eles se afastavam para os confins da lancha.

 

Lynley acendeu os candeeiros que ainda permaneciam apagados na sala grande. Olivia podia certamente refugiar-se na doença, se quisesse evitar recebê-lo, mas ele não iria permitir-lhe mais jogos de luz e sombra. Procurou uma mesa onde pudesse espalhar os jornais que trouxera consigo, mas para além do banco de carpinteiro de Faraday, encostado à parede do fundo, não havia mais nada que pudesse usar, a não ser um dos cadeirões, que não servia os seus propósitos. Dispôs os jornais no chão.

 

E então?

 

Virou-se. Olivia tinha conseguido arrastar-se até à abertura que separava a cozinha da divisão principal. Agarrava-se aos apoios do andarilho, ombros descaídos sob o peso do seu corpo. O seu rosto estava, ao mesmo tempo, macilento e reluzente, e enquanto avançava para ele, evitava cuidadosamente olhá-lo nos olhos.

 

Faraday seguia-a de perto, uma das mãos levantada, palma virada para cima, a escassos centímetros das costas dela. Olivia imobilizou-se quando o seu olhar pousou sobre os jornais, mas ela tornou a resmungar uma mistura de escárnio e de desdém e contornou-os com cuidado a fim de se instalar num dos cadeirões forrados de veludo canelado. Sentou-se, mantendo o andarilho à sua frente, como se assim quisesse impor uma barreira entre ela e Lynley. Faraday fez menção de a afastar.

 

Não disse ela. Não te importas de me ir buscar os cigarros, Chris?

 

Serviu-se do isqueiro para acender o cigarro que ele tirou do maço. Exalou o fumo. Dirigiu-se a Lynley:

 

Está a pensar ir a um baile de máscaras?

 

Já não estou de serviço retorquiu ele.

 

Puxou nova fumaça e expulsou novamente o fumo do cigarro. Tinha os lábios crispados e parecia zangada. Talvez fosse essa a sua intenção, ou talvez estivesse mesmo zangada.

 

Não me venha com essa história. Um chui nunca está fora de serviço.

 

Talvez. Mas eu não estou aqui na qualidade de polícia.

 

Então, está aqui como? Como um cidadão anónimo? Ou costuma visitar os doentinhos nas suas horas vagas? Não me faça rir. Um chui é sempre um chui, esteja de serviço ou não.

 

Virou a cabeça na direcção de Faraday, que entretanto se sentara à mesa da cozinha, a cadeira virada para a sala, onde eles estavam.

 

Tens a lata aí dentro, Chris? Preciso dela.

 

Trouxe-lha e afastou-se novamente. Ela encaixou a lata entre as pernas e sacudiu uma quantidade ínfima de cinza lá para dentro. Tinha uma argola de prata presa a uma das narinas e uma fiada de brincos prateados numa das orelhas. Todavia, os anéis que lhe ornavam os dedos, nas visitas anteriores, tinham sido substituídos por uma série de pulseiras enfiadas no braço esquerdo, que tilintavam sempre que ela levava o cigarro aos lábios.

 

O que é que quer desta vez, então?

 

Conversar consigo, apenas.

 

Não trouxe os lacaios consigo, hoje? Não me diga que ainda não me reservou um quarto em Holloway?

 

Isso não será necessário, como pode ver.

 

Ela aceitou a insinuação dele, mexendo o pé com movimentos atabalhoados para indicar os jornais que ele espalhara no chão.

 

É o reformatório, então. Diga-me uma coisa, inspector. Quanto é que este vadiozinho vai apanhar por ter limpo o sebo ao paizinho? Um ano?

 

A duração da pena é da competência do tribunal. E vai depender também dos talentos do advogado dele.

 

Nesse caso, é mesmo verdade?

 

O quê?

 

Que foi o garoto que o matou?

 

Com certeza que leu os jornais.

 

Ela levou o cigarro aos lábios e puxou uma fumaça, fitando-o por cima da extremidade incandescente.

 

Então porque é que está aqui? Não devia estar a comemorar o acontecimento?

 

Não há grande coisa a comemorar quando se trata de uma investigação de homicídio.

 

Nem sequer a captura dos mauzões?

 

Nem sequer isso. Os mauzões raramente são tão maus quanto os pintamos. As pessoas matam por diferentes razões, e raramente o fazem por maldade.

 

Nova fumaça. A sua desconfiança reflectia-se-lhe nos olhos e na pose. Por que razão terá ele vindo até aqui?, interrogava-se, e a expressão no seu rosto dizia-lhe que estava a tentar descobrir essas razões.

 

As pessoas matam por vingança continuou ele, tranquilamente, como se estivesse a dar uma simples aula de criminologia e não houvesse mais nada em jogo. Matam em consequência de acessos de ira repentinos. Por avareza. Ou para se defenderem.

 

Nesse caso, não há crime.

 

Às vezes, vêem-se envolvidas em disputas de terras. Ou tentam fazer justiça pelas suas próprias mãos. Ou precisam de encobrir outro crime. Outras vezes pode tratar-se de um acto desesperado, da tentativa de libertação de uma situação de submissão, por exemplo.

 

Ela meneou a cabeça. Atrás dela, Faraday agitou-se na cadeira. Lynley viu que a gata preta e branca se esgueirara silenciosamente para a cozinha enquanto ele falava e saltara para cima da mesa, onde serpenteava entre dois copos vazios. Faraday parecia não ter dado pela presença dela.

 

As pessoas também matam por ciúme disse Lynley. Por causa de paixões não correspondidas, por obsessões, por amor. Ou por engano. Visam uma determinada pessoa, mas acabam atingindo outra.

 

Sim, imagino que essas coisas aconteçam, de facto.

 

Olivia deu uma pancadinha com o cigarro no rebordo da lata. Tornou a levá-lo aos lábios e, com as duas mãos, puxou as pernas mais para junto do cadeirão.

 

Foi o que aconteceu neste caso disse Lynley.

 

O quê?

 

Alguém cometeu um erro.

 

Olivia lançou um olhar rápido aos jornais e, parecendo lembrar-se de que isso poderia ser interpretado como um comportamento de fuga, tornou a fitar Lynley. Os seus olhos não se desviaram dele, enquanto ele continuou a falar:

 

Ninguém sabia que Fleming fazia tenções de ir ao Kent, na última quarta-feira à noite. Sabia-o, Miss Whitelaw?

 

Uma vez que não conhecia Fleming, pessoalmente, confesso que não pensei muito no assunto.

 

Ele tinha dito à sua mãe que ia para a Grécia. E dissera o mesmo aos companheiros de equipa. Ao filho, disse que tinha de resolver uns assuntos relacionados com o críquete. Mas não disse a ninguém que ia ao Kent. Nem sequer a Gabriella Patten, que estava a viver na casa de campo e a quem ele, sem dúvida, desejava fazer uma surpresa. Curioso, não é?

 

O filho dele sabia que ele estava lá. É o que dizem os jornais.

 

Não. Os jornais dizem que Jimmy confessou o crime.

 

É uma mera questão de lógica. Se ele confessou que o tinha morto é porque sabia onde ele estava.

 

As coisas não funcionam dessa maneira disse Lynley. O assassino de Fleming...

 

O garoto.

 

Peço desculpa. Exactamente, o rapaz Jimmy, o assassino sabia que havia alguém na casa. E essa pessoa era, de facto, a vítima visada. Mas na mente do assassino...

 

Na mente de Jimmy...

 

... essa pessoa que estava na casa não era Fleming. Era Gabriella Patten. Olivia apagou o cigarro dentro da lata. Lançou um olhar a Faraday. Ele

 

trouxe-lhe outro cigarro. Acendeu-o e engoliu o fumo. Lynley imaginou-o misturando-se com o sangue dela e zumbindo dentro da sua cabeça.

 

Como é que chegou a essa conclusão? perguntou, finalmente.

 

Porque ninguém sabia que Fleming tencionava ir ao Kent. E o assassino...

 

O garoto disse Olivia secamente. Porque é que insiste em dizer ”o assassino de Fleming”, quando sabe que o garoto é o culpado?

 

Peço desculpa. É a força do hábito. Não consigo esquecer a terminologia policial.

 

Julgava que tinha dito que não estava de serviço.

 

E não estou. Peço-lhe que seja indulgente com os meus lapsos O assassino de Fleming Jimmy gostava dele, mas tinha fortes razões para odiar Gabriella Patten. Ela era uma influência nefasta. Fleming estava apaixonado por ela, mas a ligação entre ambos deixava-o extremamente perturbado, e ele não conseguia disfarçar esse facto. Além disso, a relação entre ambos prometia vir a provocar grandes mudanças na vida de Fleming. Se ele de facto, casasse com Gabriella, as circunstâncias da sua vida alterar-se-iam radicalmente.

 

Ou seja, ele nunca mais voltaria para casa. Esta conclusão pareceu tranquilizar Olivia. Que era o que o garoto queria, não era? Ele queria que o pai voltasse para casa, não queria?

 

Queria, sim confirmou Lynley. Acho até que foi esse o móbil do crime. Impedir Fleming de casar com Gabriella Patten. Não deixa de ser irónico, no entanto, se pensarmos bem. Se pensarmos bem na situação em si mesma.

 

Em vez de perguntar, ”Que situação?”, aproximou o cigarro dos lábios e ficou a observá-lo por detrás da cortina de fumo. Lynley continuou.

 

Ninguém teria morrido, se Fleming fosse menos orgulhoso. Involuntariamente, Olivia franziu as sobrancelhas.

 

É o orgulho dele que está na base do crime, de facto explicou Lynley. Se Fleming tivesse sido menos orgulhoso e tivesse explicado que tencionava ir ao Kent para pôr fim à sua relação com Mrs. Patten, dado que tinha acabado de descobrir que era mais um nome na longa lista dos amantes dela, o seu assassino lá estou eu outra vez, desculpe; Jimmy, o garoto não teria sentido necessidade de eliminar esta mulher. E não haveria dúvidas sobre a identidade de quem se encontrava na casa de campo do Kent, naquela noite. O próprio Fleming ainda estaria vivo. E o ass... e Jimmy não teria de passar o resto da sua vida atormentado pela ideia de ter assassinado, por engano, alguém que lhe era muito querido.

 

Olivia examinou o conteúdo da lata durante alguns instantes, antes de apagar o cigarro contra um dos lados do recipiente. Colocou-o no chão e cruzou as mãos sobre os joelhos.

 

Pois é disse. Acabamos sempre por magoar aqueles que mais amamos, não é isso que se costuma dizer? A vida é cruel, inspector. O garoto está a aprender isso depressa.

 

Está, não está? A aprender o que significa ser catalogado como parricida, ser acusado, fotografado, tirar impressões digitais e ser julgado por homicídio. E depois disso...

 

Devia ter pensado nisso tudo antes.

 

Mas não pensou, pois não? Porque ele, o assassino, Jimmy, o garoto, pensou que estava a cometer o crime perfeito. E por pouco que assim não era.

 

Ela fitou-o, desconfiada. Lynley julgou ter ouvido uma alteração no ritmo da sua respiração.

 

Houve só um pequeno pormenor que comprometeu tudo disse ele. Olivia estendeu o braço para o andarilho. Manifestamente, fazia tenções de se pôr de pé, mas a profundidade do cadeirão impedia-a de o fazer sozinha.

 

Chris chamou. Faraday, no entanto, não se mexeu. Ela virou a cabeça na direcção dele. Chris. Ajuda-me aqui.

 

Faraday olhou para Lynley e fez a pergunta que Olivia estava a tentar iludir.

 

Que pormenor?

 

Chris! Raios...

 

Que pormenor? insistiu ele.

 

Um telefonema feito por Gabriella Patten.

 

O que é que tem? perguntou Faraday.

 

Chris! Ajuda-me aqui.

 

Alguém o atendeu, tal como estava previsto disse Lynley. Só que a pessoa que, alegadamente, atendeu esse telefonema nem sequer sabe que a chamada foi feita. Um facto que acho curioso, sobretudo...

 

Não me diga? disse Olivia, em tom brusco. Você lembra-se de todos os telefonemas que recebe?

 

... quando penso na hora a que a chamada foi feita e na natureza da mensagem. Depois da meia-noite. Insultuosa.

 

Talvez não tenha havido nenhum telefonema disse Olivia. Já pensou nessa hipótese? Talvez ela tenha mentido.

 

Não disse Lynley. Gabriella Patten não tinha razões para mentir. Não quando uma mentira implicaria fornecer um alibi ao assassino de Fleming inclinou-se na direcção de Olivia, apoiando os cotovelos nos joelhos. Não estou aqui na qualidade de polícia, Miss Whitelaw. Estou aqui como um simples cidadão que gostaria que fosse feita justiça.

 

Mas já foi feita justiça. O garoto confessou. Que mais é que você quer?

 

Quero o verdadeiro assassino. O assassino que você pode identificar.

 

Tretas.

 

No entanto, fez os possíveis por não olhar para ele.

 

Leu os jornais. Jimmy confessou. Está preso. Foi acusado. Há-de ir a julgamento. E, no entanto, não foi ele quem matou o pai, e eu acho que você sabe isso.

 

Ela estendeu o braço para a lata de conservas. As suas intenções eram óbvias. Faraday, no entanto, fingiu que não a tinha compreendido.

 

Não acha que o garoto já sofreu demasiado, Miss Whitelaw? Se não é ele o culpado, liberte-o.

 

As coisas não funcionam assim. O futuro dele ficou traçado no momento em que ele declarou que tinha assassinado o pai. A etapa seguinte é um julgamento. Depois disso, a prisão. A única maneira de ele escapar a tudo isto é com a detenção do verdadeiro culpado.

 

Isso compete-lhe a si, não a mim.

 

Compete a todos nós. Faz parte do preço que temos de pagar quando escolhemos viver numa sociedade organizada.

 

Ai, sim?

 

Olivia empurrou a lata para o lado. Agarrou o andarilho e fez força para mover o corpo para a frente. Gemeu perante o esforço que era obrigada a fazer para mover os músculos, que se recusavam a cooperar. Gotas de suor enchiam-lhe a testa.

 

Livie. Faraday levantou-se e aproximou-se dela. Ela afastou-se dele.

 

Não, deixa estar.

 

Quando conseguiu ficar de pé, as pernas tremiam-lhe tanto que Lynley duvidou que ela conseguisse permanecer na posição vertical mais de um minuto.

 

Olhe para mim. Olhe... bem... para... mim. Tem ideia do que me está a pedir?

 

Tenho, sim respondeu Lynley.

 

Pois muito bem. Não o farei. Não o farei. Ele não me é nada. Nenhum deles me é nada. Estou-me nas tintas para eles. Estou-me nas tintas para toda a gente.

 

Não acredito nisso.

 

Faça um esforço. Vai ver que consegue.

 

Empurrou o andarilho para o lado e moveu o corpo na direcção do mesmo. Com uma lentidão extrema, saiu da sala. Quando passava pela mesa da cozinha, a gata saltou para o chão, meteu-se entre as pernas dela e seguiu-a. Passou-se mais de um minuto até eles ouvirem o som de uma porta a fechar-se.

 

Faraday parecia ter vontade de a seguir, mas deixou-se ficar onde estava, ao lado do cadeirão onde ela estivera sentada. Apesar de manter os olhos fixos na direcção por onde Olivia desaparecera, disse a Lynley em voz baixa, muito depressa:

 

Miriam não estava lá, naquela noite. Pelo menos quando chegámos, não estava. Mas o carro estava na garagem, as luzes estavam acesas e ela tinha deixado a música ligada, por isso pensámos... era lógico, pensámos que ela tinha dado um salto até à casa de um vizinho.

 

Que era exactamente aquilo que qualquer pessoa que tivesse batido à sua porta, naquela noite, deveria pensar.

 

Só que nós não batemos. Livie tinha a chave de casa. Entrámos. Eu... eu dei uma volta pela casa para lhe dizer que Livie tinha chegado. Mas ela não estava lá. Livie disse-me que me fosse embora, e eu fui virou-se para Lynley e perguntou-lhe, num tom de voz desesperado: Chega? Para o garoto?

 

Não respondeu Lynley e quando a expressão no rosto de Lynley se tornou ainda mais sombria, acrescentou: Lamento.

 

O que é que vai acontecer? Se ela não contar a verdade?

 

O futuro de um rapaz de dezasseis anos está em jogo.

 

Mas se não foi ele...

 

Ele confessou. E as suas declarações fazem todo o sentido. A única forma de as anularmos é identificando o verdadeiro assassino.

 

Lynley esperou uma reacção da parte de Faraday. Ficou à espera de uma simples pista em relação ao que poderia seguir-se. Esvaziara por completo a sua carteira de truques. Jogara todas as suas cartas. Se Olivia não cedesse, ele tinha manchado o nome e a reputação de um rapaz inocente para nada.

 

Faraday, no entanto, permaneceu em silêncio. Limitou-se a aproximar-se da mesa da cozinha, onde se sentou, segurando a cabeça entre as mãos. Os dedos enterraram-se no crânio até as suas unhas ficarem brancas.

 

Meu Deus! disse.

 

Converse com ela pediu Lynley.

 

Ela está a morrer. Está assustada. Não consigo encontrar as palavras certas.

 

Nesse caso, estavam perdidos, concluiu Lynley. Pegou nos jornais, dobrou-os e saiu.

 

Os passos aproximaram-se. Vivos. Decididos. Senti a boca secar-me à medida que eles se acercavam da porta da saleta. De repente, pararam. Alguém respirou fundo. Virei-me. Era a minha mãe. Ficámos a olhar uma para a outra. ”Santo Deus”, disse ela, uma mão pousada no peito, imóvel. Fiquei à espera de ouvir Kenneth, atrás dela. De ouvir a voz dele, dizendo, ”O que é que se passa, Miriam?”, ou ”Passa-se alguma coisa, querida?” O único som, porém, vinha do relógio de sala, ao fundo do corredor, que batia as três horas da madrugada. E a única voz era a da minha mãe.

 

Olivia? Olivia? Meu Deus, mas o que é que tu...

 

Julguei que ela fosse entrar na saleta, mas não. Deixou-se ficar no corredor escuro, uma mão apoiada na ombreira da porta e a outra pousada sobre a gola do vestido, que fechou. Apesar das sombras que a ocultavam, eu consegui ver que não usava um dos seus habituais conjuntos à Jackie Kennedy. Em vez disso, vestira uma espécie de vestido primaveril, de um verde vivo, cuja saia estava ornada de junquilhos desde a bainha até à cintura. Parecia um daqueles conjuntos típicos de uma montra do C&A. Não se parecia nada com o tipo de roupa que a minha mãe costumava vestir e, sobretudo, realçava-lhe as ancas da forma menos lisonjeira possível. Estranhei vê-la vestida daquela maneira. E, por momentos, não pude deixar de me perguntar se ela não teria deixado um chapéu de palha dependurado na porta do jardim. Fiquei à espera de olhar para os pés dela e vê-los calçados com um daqueles encantadores pares de sandálias colegiais. Senti-me terrivelmente constrangida. Não precisava de ser formada em psicologia para perceber o que a levava a vestir-se daquela maneira.

 

Estava a escrever-te uma carta disse-lhe eu.

 

Uma carta?

 

Devo ter adormecido.

 

Há quanto tempo estás aqui?

 

Desde as dez e meia, mais ou menos. Chris, o tipo com quem eu vivo, veio trazer-me. Estava à tua espera. Depois decidi escrever-te. Chris virá buscar-me daqui a pouco. Mas adormeci.

 

Sentia a cabeça pesada, as ideias baralhadas. As coisas não estavam a acontecer como eu tinha planeado. Eu devia estar descontraída, ser dona da situação. Mas ao olhar para ela, compreendi que não sabia que atitude deveria adoptar. Vá lá, vá lá, dizia para mim própria rudemente, que te interessa a ti a forma como ela se veste para agradar ao querido? Mostra-lhe que és tu quem dita as regras aqui. O efeito surpresa joga a teu favor, tal como querias.

 

Mas o factor surpresa também a beneficiava a ela, que não fazia o mais pequeno gesto para tornar a situação menos constrangedora. Não que ela fosse obrigada a tornar mais fácil o meu regresso ao seu mundo. Havia já muitos anos que eu renunciara a quaisquer conversas íntimas entre mãe e filha.

 

Os olhos da minha mãe estavam presos nos meus. Ela parecia decidida a não olhar para as minhas pernas, em não reparar no andarilho de alumínio que estava ao lado da escrivaninha e em não se interrogar sobre o que as minhas pernas, o andarilho e, sobretudo, a minha presença em casa dela às três horas da madrugada podiam significar.

 

Tenho lido artigos sobre ti nos jornais disse eu. Sobre ti, sobre Kenneth.

 

Sim replicou ela, como se a minha confissão fosse algo já esperado. Sentia as axilas molhadas. Ansiava por secá-las com um lenço ou algo parecido.

 

Ele parece ser um tipo simpático. Lembro-me de falares nele quando eras professora.

 

Sim tornou a dizer.

 

Grande merda, pensei. Onde é que iríamos parar com tudo aquilo? Ela deveria estar a perguntar, ”O que é que te aconteceu, Olivia?” e eu deveria responder, ”Vim falar contigo, preciso da tua ajuda, vou morrer”.

 

Em vez disso, porém, eu estava sentada numa cadeira diante da escrivaninha, meio virada para ela. Ela estava parada no corredor, o candeeiro projectando um raio de luz sobre a bainha do seu vestido grotesco. Eu não podia dar um passo na direcção dela sem me cobrir de ridículo. E, quanto a ela, era óbvio que não fazia tenções de se mexer. Era astuta o suficiente para perceber que eu tinha vindo pedir-lhe qualquer coisa. E vingativa o suficiente para me obrigar a caminhar sobre brasas para formular o meu pedido.

 

Muito bem, pensara eu. Vais ter direito à tua pequena e mesquinha vitória. Queres ver-me rastejar? Eu rastejo. Serei uma verdadeira campeã.

 

Vim falar contigo, mãe disse.

 

Às três da manhã?

Não podia adivinhar que ia ter de esperar por ti até às três horas.

 

Disseste que tinhas escrito uma carta.

 

Olhei para as folhas de papel que tinha preenchido. Já não conseguia continuar a usar a esferográfica, e não encontrara nenhum lápis dentro da escrivaninha. Os gatafunhos pareciam feitos pela mão de uma criança iletrada. Amarrotei as folhas.

 

Tenho de falar contigo repeti. E não é a mesma coisa por escrito... preciso contar-te tudo de viva voz. Mas é óbvio que escolhi mal o momento. Peço desculpa pelas horas a que vim. Se quiseres, posso voltar amanhã. Peço a Chris...

 

Não disse ela. Aparentemente, rastejara o suficiente para a deixar satisfeita. Deixa-me trocar de roupa e preparar um chá.

 

Afastou-se em passo rápido. Ouvi-a subir o primeiro lanço de escadas e depois o segundo até chegar ao seu quarto. Mais de cinco minutos se escoaram antes que ela tornasse a descer. Passou pela porta da saleta sem olhar para dentro, para mim. Desceu até à cozinha. Outros dez minutos passaram, lentos. Ia fazer-me esperar durante algum tempo. E ia gostar de me ter à espera. Eu queria responder-lhe na mesma moeda, mas não sabia como.

 

Levantei-me da cadeira que estava junto à escrivaninha, coloquei-me atrás do andarilho e comecei a arrastar-me penosamente na direcção do canapé. Executei a perigosa meia volta antes de me sentar no velho canapé de veludo e levantei os olhos a tempo de ver a minha mãe, parada na ombreira da porta, segurando um tabuleiro de chá nas mãos. Olhámo-nos durante algum tempo.

 

Há muito tempo que não nos víamos disse eu.

 

Dez anos, duas semanas e quatro dias replicou ela. Pestanejei e virei a cabeça para a parede. Nesta estava ainda pendurada uma miscelânea de estampas japonesas, retratos de família e uma tela da autoria de um mestre menor da escola flamenga. Olhei fixamente para este último enquanto a minha mãe entrava na saleta e pousava o tabuleiro sobre uma mesa de jogo, perto do divã.

 

Como sempre? perguntou-me. Leite e dois cubos de açúcar? Pò diabo com ela, pensei. Disse que sim com a cabeça. Continuei a olhar para o quadro: um centauro com as patas dianteiras suspensas no ar, e uma mulher presa no seu dorso, o braço esquerdo dele e o direito dela erguidos, por uma razão desconhecida. Nenhum dos dois parecia incomodado com a situação, nem criatura monstruosa nem a mulher de pernas nuas, o seu trofeu. Esta nem sequer se debatia para escapar à criatura.

 

Sofro de uma doença chamada ELA informei.

 

Atrás de mim ouvi o som reconfortante e familiar do chá quente sendo servido numa chávena de porcelana. Ouvi o tilintar de uma chávena sobre um pires no momento em que era pousada sobre uma mesa. Em seguida, senti-a perto de mim. Senti a mão dela roçando o andarilho.

 

Senta-te disse ela. Aqui tens o teu chá. Queres que te ajude?

 

O seu hálito. Cheirava a álcool. Percebi que devia ter procurado coragem para enfrentar o nosso encontro enquanto mudava de roupa e preparava o chá. Senti-me reconfortada ao perceber isso.

 

Precisas de ajuda, Olivia? tornou a perguntar.

 

Recusei com um movimento de cabeça. Afastou o andarilho para o lado quando me baixei e me instalei no canapé. Entregou-me a chávena, colocando o pires sobre os meus joelhos e segurando-o aí até que eu tivesse pegado nele e estivesse bem sentada.

 

Vestira um roupão azul-marinho. Já se parecia mais com a mãe que eu recordava.

 

ELA disse.

 

Desde há um ano, aproximadamente.

 

Tens dificuldade em andar?

 

Por agora.

 

Por agora?

 

Por agora, tenho dificuldade em andar.

 

E mais tarde?

 

Stephen Hawking.

 

Ela erguera a chávena para beber o chá. Por cima do rebordo, os olhos dela cruzaram-se com os meus. Lentamente, tornou a colocar a chávena sobre o pires, sem ter tocado no chá. Pousou a chávena e o pires sobre a mesa. Os seus movimentos eram tão cautelosos que nem sequer fez barulho. Estava sentada num dos cantos do divã. Os nossos corpos formavam ângulos rectos e os nossos joelhos estavam a menos de sete centímetros de distância.

 

Queria que ela dissesse qualquer coisa. A sua única reacção, no entanto, foi erguer a mão direita, levá-la à têmpora e fazer pressão sobre ela com os dedos.

 

Pensei em dizer-lhe que poderia voltar noutra altura. Em vez disso, disse:

 

Restam-me dois a cinco anos, basicamente. Sete, se tiver sorte. Baixou a mão.

 

Mas Stephen Hawking...

 

Ele é uma excepção. O que não tem importância, aliás, porque eu também não quero viver daquela maneira.

 

Tu não podes saber isso agora.

 

Posso, sim. Acredita.

 

A doença faz com que uma pessoa encare a vida de forma diferente.

 

Não.

 

Contei-lhe como tudo tinha começado, com o tropeção na rua. Falei-lhe dos exames e das análises, do programa de ginástica que se tinha revelado inútil, dos curandeiros. Finalmente, falei-lhe sobre a progressão da doença.

 

Está prestes a atingir os braços concluí. Os meus dedos estão a enfraquecer. Se leres a carta que estava a escrever-te...

 

Santo Deus desabafou ela, embora as suas palavras não contivessem o mínimo indício de violência. Santo Deus, Olivia.

 

Chegara o momento do sermão. Quisera ser a mais forte. Ganhar. Mas como poderia ter esperado outra coisa que não isto? Eu não tinha regressado a Staffordshire Terrace em triunfo. Regressara como uma filha pródiga, debilitada fisicamente, não financeiramente, agarrando-me a aforismos (”Sangue do meu sangue, carne da minha carne”). Como se os ditados pudessem reconstruir uma ponte que tanto prazer me dera destruir. Fiquei à espera de ouvir aquilo que ela achava que eu tinha de ouvir naquele momento: ”É isto que se colhe... Qual é a sensação de sentir o corpo todo trair-nos aos poucos... Destroçaste o coração do teu pai... Destruíste as vidas de todos nós...”

 

Haveria de sobreviver, pensei. Não passava de palavras. E ela tinha necessidade de as dizer. Quando tivesse terminado, poderíamos enterrar as ] recriminações em relação ao passado e passar aos projectos para o futuro. Para que ela pudesse concluir o sermão o mais depressa possível, decidi dar-lhe; uma ajuda. Eu fiz algumas coisas estúpidas, mãe... afinal, não era tão esperta como julgava. Estava enganada e lamento muito. Desta vez, a bola estava do lado dela. Esperei, resignada. Vamos lá, é agora ou nunca. Venha daí essa liçãozinha de moral, pensei.

 

Também eu, Olivia disse ela Também eu lamento muito. Nada mais. Não estava a olhar para ela. Puxava um fio solto na costura das minhas calças de ganga. Ergui os olhos. Os dela pareciam húmidos, mas eu: não conseguia perceber se eram as lágrimas, o cansaço, ou o esforço para combater uma enxaqueca. Os efeitos da idade pareciam estar a tornar-se visíveis muito rapidamente. Apesar da sua aparência, quando aparecera à entrada da saleta, meia hora antes, naquele momento acusava os anos que realmente tinha. A pergunta saiu-me sem querer: Porque é que me mandaste aquele telegrama?

 

Para te magoar.

 

Poderíamos ter-nos ajudado uma à outra. Não naquela época, Olivia.

 

Eu odiava-te. Eu culpava-te. E agora? Ela fez que não com a cabeça. E tu, continuas a odiar-me? Reflecti sobre a pergunta. Não sei. Ela esboçou um sorriso fugaz. Tornaste-te honesta, ao que parece. A morte tem esse efeito sobre as pessoas. Não deves dizer... Faz parte da honestidade. Comecei a colocar a minha chávena sobre a mesa. A chávena tilintou sobre o pires como campainhas. Ela tirou-ma das mãos. Cobriu o meu punho direito com a sua mão.

 

Estás diferente disse eu. Não esperava encontrar-te assim.

 

É o amor, sem dúvida.

 

Disse-o sem o mais leve indício de embaraço. Não parecia sentir orgulho, nem estar na defensiva. Anunciava um facto, apenas.

 

Onde está ele? perguntei eu. Ela franziu as sobrancelhas, perplexa.

 

Kenneth expliquei. Onde está ele?

 

Ken? Está na Grécia. Acabei de o levar ao aeroporto.

 

Pareceu dar-se conta da estranheza das suas palavras, tendo em conta o facto de serem quase três e meia da madrugada, pois mexeu-se na cadeira e acrescentou:

 

O voo saiu atrasado.

 

Vieste do aeroporto?

 

Sim.

 

Foste formidável com ele, mãe.

 

Eu? Não. Ele fez a maior parte do trabalho sozinho. É um trabalhador e um sonhador. Eu limitei-me a estar presente, a ouvir os seus sonhos e a dar-lhe coragem para que ele os tornasse realidade.

 

Mesmo assim...

 

Ela sorriu como se eu não tivesse falado.

 

Ken é o género de homem que constrói o seu próprio mundo, Olivia. Pega em água e num punhado de areia e transforma-os em mármore. Acho que vais gostar dele. Vocês têm a mesma idade, tu e Ken.

 

Eu odiava-o e apressei-me a rectificar: Tinha ciúmes dele.

 

É um bom rapaz, Olivia. Genuinamente bom. Não consegues imaginar as coisas que ele fez por mim, por pura generosidade... elevou ligeiramente a mão pousada no braço do divã. Que posso eu fazer para tornar a tua vida agradável? perguntava-me sempre. Como posso recompensar-te pelo que fizeste por mim? Preparar as refeições? Conversar sobre os acontecimentos do dia? Partilhar o meu mundo contigo? Aliviar as tuas dores de cabeça? Tornar-te parte da minha vida? Fazer-te sentir orgulho em mim?

 

Eu não fiz nada disso por ti.

 

Não tem importância. Porque tudo é diferente agora, a vida é diferente. Nunca pensei que a vida pudesse mudar tanto como de facto mudou. Mas muda, basta que estejamos disponíveis, minha querida.

 

Minha querida. Onde é que iríamos parar? Precipitei-me, sem reflectir:

 

A lancha onde vivo. É... Vou precisar de uma cadeira de rodas, mas a lancha é demasiado... tenho tentado... o doutor Alderson falou-me numas casas de saúde especializadas.

 

E existem casas. Ponto final disse a minha mãe. Como esta. Que é a tua.

 

Não me digas que queres...

 

Quero, pois.

 

E foi tudo. Levantou-se e disse que precisávamos de comer. Ajudou-me a passar para a sala de jantar, sentou-me à mesa e deixou-me sozinha enquanto descia até à cozinha. Regressou um quarto de hora mais tarde com ovos e torradas. Compota de morango. Chá. Não se sentou à minha frente, mas sim ao meu lado. E embora tivesse sido ela a sugerir que comêssemos qualquer coisa, praticamente não tocou na comida.

 

Vai ser horrível, mãe. Isto. Eu. A doença. Pousou uma mão no meu braço.

 

Amanhã teremos tempo para conversar sobre tudo isso disse. E depois de amanhã. E depois.

 

Senti um nó apertar-me a garganta. Pousei o garfo.

 

Estás em casa, agora disse a minha mãe. E eu compreendi que ela estava a falar a sério.

 

                                   CAPÍTULO 25

Lymley encontrou Helen no jardim de sua casa, caminhando no meio das roseiras, com um par de tesouras de podar. Não estava a colher botões de rosa, nem nenhuma flor em particular. Em vez disso, cortava as rosas murchas, deixando-as cair no chão.

 

Observou-a da janela da sala de jantar. O crepúsculo descia sobre o jardim, e a luz fraca envolvia-a docemente, arrancando reflexos conhaque aos seus cabelos e emprestando à sua pele um brilho de marfim raiado de ouro. Confiando na continuação do bom tempo, vestira uma túnica cor de damasco e umas calças de malha iguais e calçara umas sandálias de sola fina.

 

Enquanto ela se movia entre os arbustos, ele reconsiderava a pergunta dela sobre o amor. Como explicar o amor, pensou. Não só ao outro, mas a ele próprio, também.

 

Ela esperava que ele analisasse algo que não se prestava a ser analisado. Ou que ele, pelo menos, era incapaz de analisar. O amor era, para ele, um dos grandes mistérios da vida. Não era capaz de explicar de forma satisfatória por que razão o seu coração a escolhera a ela, da mesma forma que era incapaz de explicar a influência da Lua sobre a deslocação dos oceanos, o movimento de rotação da Terra, e as suas repercussões sobre as estações do ano, e porque é que apesar da velocidade vertiginosa a que a Terra rodava sobre si mesma tudo o que nela existia e se movia não era violentamente projectado para as profundezas do esquecimento. Alguns fenómenos naturais não se explicam. E o amor era um deles.

 

Se tivesse podido fazer uma escolha racional, provavelmente nem sequer teria pensado em Helen Clyde. A sua eleita teria sido uma mulher capaz de apreciar um passeio por Chysauster Village, por entre casas de pedra pré-históricas, sem se sentir obrigada a exclamar, ”Santo Deus, Tommy. Consegues imaginar os efeitos que este vento horrível deve ter tido sobre a pele das pobres mulheres daqueles tempos?” A sua eleita teria dito, ”Ashby de Ia Zouch? Ivanhoe, claro. O grande torneio. E Lord Hastings também, mas nós sabemos o que lhe aconteceu, não sabemos, querido?” Uma mulher que, ao percorrer os vestígios musgosos de Alnwick Castle tivesse pensado em Hotspur e em tudo aquilo que ele perdera quando sucumbira à sua ambição desmedida. Todavia, a mulher capaz de meditar sobre Chysauster, de se lançar em arroubos poéticos sobre Ashby e de lamentar o sangue derramado de Northumberland não teria sido Helen. Helen e a sua exasperante indiferença pela história milenar que os rodeava, com o seu talento despreocupado para usufruir do que a vida lhe proporcionava no momento presente, com a sua inacreditável frivolidade. Helen era uma figura deslocada, fora de tempo, pertencia a uma geração, a um século completamente diferentes. As hipóteses de permanecerem casados por mais de um ano eram mais do que remotas. E mesmo assim desejava-a.

 

Que a perdição se apodere da minha alma, pensou. Os seus lábios abriram-se num sorriso amargo e em seguida alargaram-se numa gargalhada quando ele reflectiu no desfecho daquele amor em particular. Não era com certeza um bom presságio que a declaração de amor do Mouro lhe ocorresse ao espírito no preciso momento em que ele pensava em Helen. Por outro lado, porém, se eles mantivessem o leito conjugal livre de almofadas e se Helen nunca estivesse envolta em lenços, talvez conseguissem sair-se bem da aventura.

 

Era tudo uma questão de riscos, não era?, perguntou a si próprio. Acreditar que o outro tem o poder de nos redimir? Era esta a explicação, Helen. O amor não nasce de uma semelhança na educação, na origem, na experiência. O amor nasce do nada e cria à medida que vai crescendo. E quando ele não existe, é o triunfo do caos.

 

No jardim, Helen deu por concluída a sua tarefa com as tesouras de podar. Baixou-se e começou a apanhar as flores murchas caídas no chão. Esquecera-se de levar um saco de lixo, por isso levantara a parte da frente da túnica formando uma espécie de avental e aí colocava as rosas que tinha cortado. Foi ter com ela.

 

O jardim precisa de ser arranjado disse ela. Se deixares as rosas na roseira, depois de terem murchado, ela continua a canalizar energias para os botões de rosa e acaba por dar menos flor. Sabias isto, Tommy?

 

Não, não sabia.

 

Pois é verdade. Mas se cortares as flores logo que elas começarem a ficar fanadas, a energia do arbusto passa a ser constantemente canalizada para os novos botões.

 

Avançou, meio levantada e meio inclinada, e continuou a sua tarefa. Não usava luvas e as suas mãos começavam a ficar sujas. Usava, no entanto, o anel que ele lhe oferecera. Um sinal de esperança. Uma promessa também. E o fim do caos.

 

Ela ergueu os olhos inesperadamente e viu os olhos dele fixos nas mãos dela.

 

Estou a ouvir-te pediu.

 

Ele procurou as palavras adequadas.

 

Dirias que começou, que Elizabeth Barrett amou Robert Browning?

 

Suponho que sim, mas não conheço bem a história de ambos.

 

Ela fugiu com ele. Rompeu com a família para o resto da vida, com o pai, em particular, para poder passar o resto da sua vida com ele. Escreveu um conjunto de poemas de amor para ele.

 

Portuguese Sonnets?

 

Exactamente.

 

E?

 

E, no entanto, no mais famoso desses sonetos, ela não consegue explicar-lhe porquê, Helen. Diz-lhe que o ama, diz-lhe a forma como o ama, com liberdade, pureza, com a fé de uma criança, mas nunca porquê. E Browning teve de acreditar na palavra dela. Teve de aceitar o amor dela sem nunca conhecer o porquê.

 

E é isso que tu queres que eu faça?

 

Sim, é isso.

 

Compreendo. Abanou a cabeça, pensativamente e juntou mais algumas flores murchas. As pétalas separaram-se das sépalas quando ela lhe tocou. A manga da túnica ficou presa num espinho de um dos arbustos e ele libertou-a. Cobriu a mão dele com a sua. Tommy disse e esperou que ele erguesse os olhos para ela, diz-me.

 

Não há mais nada a dizer, Helen. Lamento muito. Fiz o melhor que podia.

 

O rosto dela suavizou-se. Fez-lhe sinal para que se aproximasse dela e disse:

 

Não estava a referir-me a isto, a nós, a esta história do amor, querido. Estava a pedir-te que me contasses o que se passou. O jornal dizia que estava tudo acabado, mas não é verdade. Basta-me olhar para ti para sabê-lo.

 

Como?

 

Conta-me tudo repetiu ela, desta vez num tom de voz mais suave. Ele baixou-se e sentou-se no relvado que rodeava os canteiros de rosas.

 

E enquanto ela se esgueirava por entre as plantas, juntando os restos das flores, manchando a túnica e as calças de malha, sujando as mãos, ele começou a falar. Sobre Jean Cooper e o filho. Sobre Olivia Whitelaw. Sobre a mãe dela. Sobre Kenneth Fleming e as três mulheres que o tinham amado. Sobre o que acontecera por causa desse amor.

 

Na segunda-feira vão retirar-me do caso concluiu. E, francamente, Helen, é a melhor solução. Porque não me resta uma única ideia.

 

Ela veio sentar-se ao lado dele, pernas cruzadas sobre a relva, o colo repleto de rosas murchas cortadas.

 

Talvez haja outra saída disse ela. Ele abanou a cabeça.

 

Olivia é a única carta que me resta. Tudo o que ela tem a fazer é manter-se fiel à sua versão dos acontecimentos, e tem todos os motivos e mais algum para o fazer.

 

Excepto um retorquiu Helen.

 

Que é?

 

Saber qual a decisão certa a tomar.

 

Não me parece que o bem e o mal ocupem um lugar de destaque na vida de Olivia.

 

Talvez. Mas as pessoas podem surpreender-nos, às vezes, Tommy. Ele tornou a abanar a cabeça, percebendo que não queria continuar a falar

 

no caso. Era uma obsessão para ele e, aparentemente, iria continuar a sê-lo ao longo dos dias seguintes. Pelo menos de momento, e durante aquela noite, tinha a opção de o esquecer. Procurou a mão dela e sacudiu a terra que lhe sujava os dedos.

 

Era esse o porquê, aliás disse ele.

 

O quê?

 

Quando me pediste que te dissesse e eu não percebi o que estavas a pedir-me. Era esse o porquê.

 

Porque não percebeste?

 

Não. Porque me pediste que te dissesse. Olhaste para mim, sabias o que não estava bem e perguntaste. Era esse o porquê, Helen. E sempre será.

 

Ela ficou em silêncio durante alguns minutos. Parecia estudar a forma como ele segurava a mão dela.

 

Sim disse, por fim, numa voz calma e firme.

 

Compreendes, então?

 

Compreendo. Sim. Mas, na verdade, estava a dar-te a minha resposta.

 

A tua resposta?

 

À pergunta que me fizeste na sexta-feira à noite. Embora não tivesse sido exactamente uma pergunta, pois não? Soou mais como um pedido.

 

Sexta-feira à noite?

 

Reflectiu por momentos. Os dias tinham passado tão depressa que ele nem sequer conseguia lembrar-se do sítio onde tinha estado e no que tinha feito na sexta-feira à noite. Tinham planeado ir assistir a um concerto de Strauss, mas o encontro tinha sido cancelado, e ele fora até ao apartamento dela por volta das duas da manhã e... olhou para ela e viu que ela sorria.

 

Não estava a dormir confessou. Amo-te, Tommy. Suponho que sempre te amei, de uma maneira ou de outra, mesmo quando pensava que nunca seríamos mais do que amigos. Por isso é sim. Quero. Quando quiseres. Onde quiseres.

 

Tenho estado a observar Panda, que continua deitada na cómoda sobre um monte de cartas e contas. Parece bastante tranquila. Está enrolada como se fosse um novelo de lã, cabeça tocando o rabo e patas aconchegadas debaixo da cauda. Desistiu de tentar compreender por que razão o seu ritual da hora de deitar fora perturbado. Não se esforça por saber por que motivo fiquei sentada na cozinha horas a fio, em vez de me retirar para o meu quarto na sua companhia e arranjar os cobertores de maneira a fazer-lhe um pequeno ninho aos pés da minha cama. Gostaria de fazê-la descer do guarda-louça e de a sentar sobre os meus joelhos durante um bocado. Segurar um gato, acariciá-lo, é reconfortante. Tento chamar a sua atenção fazendo pequenos sons guturais. Arrebita as orelhas na minha direcção, mas permanece imóvel. Percebo muito bem o que está a tentar dizer-me. Assemelha-se terrivelmente ao que tenho estado a dizer a mim mesma. Aquilo que tenho de viver, tenho de o viver sozinha, é como um ensaio geral da morte.

 

Chris está no quarto. Tenho a impressão de que está a tentar manter-se acordado entregando-se de corpo e alma às limpezas domésticas da Primavera. Oiço constantemente um abrir e fechar de gavetas e de armários. Quando o chamo para lhe dizer que são horas de ele se deitar, responde, ”Daqui a pouco. Estou só à procura de uma coisa”. Pergunto-lhe o que é e ele diz, ”Uma fotografia de Lloyd-George Marley. Eu cheguei a dizer-te que ele usava o cabelo encaracolado à rastafari? E chinelos persas, com o bico revirado para cima?” Digo-lhe que Lloyd-George Marley devia ser um tipo mesmo fixe. Chris replica, ”Era mesmo”; e então eu pergunto, ”Perdeste-o de vista, foi? Porque é que ele nunca veio visitar-nos?” Oiço o som de uma gaveta a abrir-se e o seu conteúdo ser despejado sobre a cama de Chris. ”Chris, porque é que ele nunca...”, insisto. E Chris interrompe-me para me dizer, ”Ele já morreu, Livie”. Repito a palavra morreu e pergunto-lhe como. ”Uma facada”, diz Chris. Não pergunto a Chris se ele estava com ele quando tudo aconteceu. Já conheço a resposta.

 

Não creio que o mundo tenha muito para nos oferecer em matéria de felicidade e de satisfações. Há demasiada dor, demasiado sofrimento. São sentimentos que nascem do conhecimento, dos laços que estabelecemos com os outros, do nosso envolvimento com terceiros.

 

É um exercício inútil, mas não consigo deixar de me interrogar sobre o rumo que as coisas poderiam ter tomado se eu nunca tivesse entrado no Julip’s naquela noite e nunca tivesse conhecido Richie Brewster. Teria concluído a universidade, teria seguido uma carreira, teria sido motivo de orgulho para os meus pais... Quantas pessoas deveremos supostamente satisfazer ao longo de uma vida? Qual a nossa parte de culpa e responsabilidade quando nos revelamos incapazes de dar ao outro o grau de satisfação e realização de que ele está à espera? A resposta mais correcta a cada uma destas perguntas seria nenhuma, como qualquer especialista em assuntos do coração certamente aconselharia. Mas a vida é mais complicada do que esses peritos parecem querer fazer-nos crer.

 

Sinto as pálpebras a arder. Não sei que horas são, mas parece-me que o manto negro que se estende do lado de fora da janela da cozinha está a começar a tingir-se de cinzento. Digo a mim própria que por agora já escrevi o suficiente, que posso ir deitar-me. Preciso de descansar. Não foi isso que todos os médicos e curandeiros sempre me disseram? Poupe as forças, poupe as suas energias, não se cansavam de dizer.

 

Chamo Chris. Ele espreita para o corredor. Descobriu um fez vermelho e dourado dentro do armário e colocou-o na cabeça. ”Chamou, memsahib?”, mãos cruzadas sobre o peito. ”Enganaste-te no país, parvalhão. Precisas de um turbante. Não te queres sentar um bocadinho ao pé de mim, Chris?”, ao que ele replica, ”Chegou o momento, então?”, ”Sim”, respondo. ”Muito bem”, diz ele e recua por momentos para retirar o fez e atirá-lo para dentro do seu quarto. Entra depois na cozinha. Pega em Panda que continua em cima do guarda-louça e coloca-a sobre o ombro. Senta-se à minha frente. A gata não reage. Sabe que foi Chris quem pegou nela. Estende-se como um saco de juta sobre o ombro dele. Em seguida começa a ronronar.

 

Chris estende a mão livre sobre a mesa, na minha direcção. Abre a palma da minha mão esquerda e, com cuidado, entrelaça os seus dedos nos meus. Eu observo os meus dedos trémulos antes de conseguir fechá-los sobre os dele. Apesar disso, consigo aperceber-me de que já não sou capaz de fechar a mão com tanta força como antes. Os dedos dele cobrem os meus.

 

Vá lá encoraja-me ele. Eu estou aqui.

 

E eu continuo.

 

A minha mãe e eu conversámos até à madrugada daquele dia, na casa de Kensington. Conversámos até ao momento em que Chris apareceu para vir buscar-me. ”É meu amigo”, disse eu, ”Acho que vais gostar dele”, ao que ela respondeu, ”É bom ter amigos. Um amigo verdadeiro, aliás, é mais importante do que qualquer outra coisa”. Virou a cabeça e acrescentou de forma algo timidamente, ”Foi o que eu descobri, pelo menos”.

 

Chris entrou, arrasado. Tomou uma chávena de chá connosco. ”Correu tudo bem?”, perguntei-lhe. Sem olhar para mim, ele respondeu, ”Muito bem”. A minha mãe lançou-nos um olhar intrigado, mas não fez perguntas. ”Obrigada por cuidar de Olivia, Chris”, disse ela. ”Livie cuida de si própria”, replicou ele. ”Ora. Se não fosses tu, eu não conseguia aguentar-me, e tu sabes isso muito bem”, disse eu. ”É assim que deve ser”, disse a minha mãe. Percebi que ela estava convencida que entre mim e Chris havia algo mais do que uma simples amizade. Como a maioria das mulheres apaixonadas, queria que toda a gente partilhasse desse sentimento. Eu queria dizer, ”Não há nada disso entre nós, mãe”, mas senti uma ponta de ciúme pelo facto de ela ter conseguido agarrar aquilo que estava fora do meu alcance.

 

Quando Chris e eu deixámos a casa dela já o dia tinha nascido. Ele já tinha estado com Max, disse. Os animais salvos já tinham sido entregues. ”Tenho elementos novos na equipa. Já te falei neles? Acho que se vão sair bastante bem”, acrescentou. Desconfio que estava a tentar falar-me de Amanda, mais uma vez. Deve ter-se sentido aliviado. Eu já tinha alguém que cuidasse de mim, o que significava que ele não teria de se preocupar comigo quando a doença estivesse muito avançada. Se quisesse manter a ligação com Amanda, apesar das severas regras do ARM, poderia fazê-lo sem ter de me magoar. Estaria provavelmente a pensar em tudo isto, mas eu não prestei muita atenção ao seu silêncio durante a viagem de regresso a Little Venice. Estava demasiado obcecada pelo que se passara entre mim e a minha mãe.

 

Ela está mudada disse eu. Parece estar em paz consigo própria. Reparaste nisso, Chris?

 

Ele não a conhecia antes, recordou-me. Por isso, era-lhe difícil saber se mudara ou não. Mas era a primeira mulher que ele conhecia que, às cinco da manhã, depois de uma noite em claro, parecia fresca que nem uma alface. Onde é que ela ia buscar tantas reservas de energia? Ele próprio estava exausto e eu também não tinha lá muito bom aspecto.

 

Disse-lhe que era do chá, da cafeína, da estranheza da situação e da excitação que a mesma provocara.

 

E do amor acrescentei. Disso também.

 

Mal sabia eu que estava mais perto da verdade do que julgava.

 

Subimos a bordo da lancha. Chris levou os cães a passear e eu enchi as tigelas deles com água e comida. Dei de comer à gata, retirando um prazer enorme do facto de ainda ser capaz de executar tarefas tão simples como aquelas. Vai tudo correr bem, pensei.

 

O meu corpo decidiu vingar-se da longa noite passada em Kensington. Durante o dia seguinte fui atacada por fibrilações e por uma prostração que não pude deixar de atribuir a um estado de completa exaustão. Chris, que dormiu até meio da tarde e apenas saiu da lancha por duas vezes, para levar os cães a passear, reforçou a minha conclusão.

 

Esperava ter notícias da minha mãe durante esse dia. Dera o primeiro passo. Certamente que ela não iria deixar de dar o segundo. No entanto, sempre que o telefone tocava, era para Chris.

 

É claro que a minha mãe e eu não tínhamos combinado telefonar-nos. E ela tinha ficado a pé toda a noite, tal como nós, pelo que o mais provável era que estivesse a dormir. Ou se não estivesse, o mais certo era ter ido até à fábrica tratar dos negócios. Deixaria passar alguns dias, decidi. Depois, telefonar-lhe-ia e convidá-la-ia para vir jantar connosco à lancha. Melhor ainda, esperaria até que Kenneth regressasse da Grécia. Usaria as férias dele como desculpa para telefonar. Um jantar de boas-vindas, diria eu. Seria a melhor maneira de mostrar à minha mãe que não só eu estava ansiosa por pôr fim a todos aqueles anos de inimizade entre nós, como também não fazia quaisquer juízos de valor acerca da sua ligação com um homem muito mais jovem do que ela. De facto, talvez não fosse má ideia colocar-me a par das últimas novidades referentes ao mundo do críquete. Afinal, teria de arranjar um tema de conversa com Kenneth quando finalmente o conhecesse?

 

Na manhã seguinte, quando Chris saiu com os cães, pedi-lhe que me comprasse um jornal. Ele voltou com The Times e o Daily Mail. Folheei-os até encontrar a secção de desporto. Artigos sobre pugilismo, remo e críquete enchiam a página. Comecei a ler.

 

O Nottinghamshire liderava o campeonato. Três batedores do Derbyshire tinham marcado cem pontos, cada um, no último dos quatro dias que durara o jogo contra o Worcestershire. Cambridge tinha dado muito trabalho à equipa de Surrey, antes de vencer a partida. Os responsáveis nacionais iam reunir-se em sessão extraordinária no Lord’s, a fim de discutir o futuro do críquete em Inglaterra. À parte isto, a única referência à selecção inglesa e aos próximos jogos contra a equipa da Austrália surgia integrada num artigo consagrado aos respectivos capitães de equipa. Guy Mollison, pela Inglaterra, era descrito como um indivíduo afável e educado, sempre pronto a responder às perguntas dos jornalistas. Em contrapartida, o capitão da selecção australiana, Henry Church, era apresentado como senhor de uma personalidade explosiva e arrogante. Tomei mentalmente nota dos adjectivos referentes a Church. Poderia ser um bom tema de conversa. Eu poderia perguntar, como forma de quebrar o gelo, ”É verdade que o capitão da selecção australiana é uma pessoa difícil, como dizem os jornais?”

 

Não pude deixar de rir interiormente. Quebrar o gelo, eu? Que estaria a passar-se comigo? Estaria eu, de facto, a preocupar-me com a necessidade de deixar alguém à vontade? Quando é que, alguma vez, tal coisa estivera no centro das minhas preocupações? Apesar do facto de, depois de ter caído em desgraça com Jean Cooper, Kenneth Fleming ter ensombrado toda a minha adolescência, descobria que queria gostar dele, queria que ele gostasse de mim, queria que nos déssemos todos bem. Que diabo estaria a acontecer? Que seria feito dos sentimentos de rancor, má vontade e desconfiança?

 

Com dificuldade, dirigi-me à casa de banho, a fim de olhar bem para a minha imagem reflectida no espelho. Se era verdade que já não espumava de raiva só de pensar na minha mãe, o meu aspecto exterior deveria ter mudado igualmente. Não tinha. E até o meu aspecto me deixou confusa. O cabelo estava na mesma, tal como a argola enfiada no nariz, os brincos nas orelhas, os riscos negros e grossos que ainda conseguia desenhar em torno dos olhos, todas as manhãs. Exteriormente, eu continuava a ser a mesma pessoa que pensara em Miriam Whitelaw como uma cabra e uma velhaca. O meu coração, no entanto, estava diferente, ao contrário da minha aparência. Era como se uma parte de mim tivesse desaparecido.

 

Concluí que a metamorfose que se operara em mim era uma consequência da mudança que eu constatara na minha mãe. Não me recebera com comentários cruéis do género, ”Há dez anos atrás, lavei as minhas mãos em relação a ti, Olivia”, ou ”Depois de tudo o que fizeste, Olivia”, numa necessidade de reavivar memórias passadas. Em vez disso, aceitara-me incondicionalmente. E este gesto exigia uma reacção idêntica da minha parte. Atribuindo a Kenneth Fleming o mérito desta espantosa transformação, disse para mim mesma que ele não podia deixar de ser uma criatura simpática. E se Kenneth Fleming era capaz de exercer tanta influência sobre o comportamento dela, eu estava mais do que disposta a gostar dele e a aceitá-lo.

 

Lembro-me agora de me ter interrogado vagamente sobre o que seria feito de Jean Cooper, sobre qual seria o papel dela em toda esta história e como é que a minha mãe tinha lidado com ela. Rapidamente decidi, no entanto, que o carácter triangular da relação entre a minha mãe, Fleming e Jean era um assunto que só a eles dizia respeito e que eu nada tinha que ver com ele. Se a minha mãe não se ralava com Jean Cooper, porque haveria eu de perder tempo a pensar no caso?

 

Fui buscar a colecção de livros de receitas vegetarianas de Chris, que estava na prateleira por cima do fogão, e coloquei os diversos volumes em cima da mesa. Abri o primeiro e comecei a planear a refeição que Chris e eu iríamos servir à minha mãe e a Kenneth. Entrada, prato principal, sobremesa e queijo. Seria uma refeição a sério. Teríamos até vinho. Comecei a ler. Escolhi um lápis entre os que estavam na lata de conserva e comecei a tirar notas.

 

Enquanto eu pensava e planeava, Chris estudava um molde na oficina. Os nossos lápis arranharam folhas de papel durante grande parte da tarde. À parte este ruído e o som da aparelhagem nada nos perturbou ou distraiu até à chegada de Max, que veio visitar-nos ao fim da tarde.

 

”Chris? Miúda? Estão aí em baixo?”, chamou em voz baixa enquanto subia a bordo da lancha com um resmungo. Os cães começaram a ladrar. Chris respondeu, ”Está aberta”, e Max desceu os degraus com cuidado. Ofereceu biscoitos aos cães, atirando-os para o fundo da oficina, e sorriu quando Toast e Beans desataram a correr atrás das guloseimas. Eu dormitava no cadeirão cor de laranja. Chris estivera deitado no chão, aos meus pés. Bocejámos os dois.

 

Olá, Max. O que há de novo? disse Chris.

 

Max segurava na mão direita um saco de compras branco. Ergueu-o ligeiramente. Durante alguns instantes pareceu incomodado e, o que era ainda mais estranho, hesitante.

 

Trouxe-vos algumas coisas para comer.

 

E qual é o motivo da comemoração?

 

Max desembrulhou um cacho de uvas moscatel, um bocado de queijo, biscoitos e uma garrafa de vinho italiano.

 

Estou a recorrer a uma reacção à crise que é mais velha do que o tempo. Quando a desgraça se abate sobre uma família da aldeia, os vizinhos trazem comida. É quase o mesmo do que preparar um chá.

 

Max foi até à cozinha. Chris e eu entreolhámo-nos, perplexos.

 

Desgraça? perguntou Chris. O que é que se passa, Max? Sentes-te bem?

 

Eu? perguntou ele. Regressou com copos, pratos e o saca-rolhas. Colocou-os sobre o banco de carpinteiro e virou-se para nós. Não ouviram a rádio, esta noite?

 

Dissemos que não com a cabeça.

 

O que é que aconteceu? tornou a perguntar Chris. E então o seu rosto alterou-se, rapidamente. Merda. A polícia apanhou alguma das equipas, Max?

 

Não tem nada a ver com o ARM disse Max e olhou para mim. Tem a ver com a tua mãe.

 

Oh, meu Deus, pensei. Ataque cardíaco, trombose, atropelamento e fuga, assalto em plena rua. Era como se uma mão gélida me acariciasse o rosto.

 

É o tipo com quem ela vivia continuou Max. Ainda não sabes o que aconteceu a Kenneth Fleming?

 

Kenneth? repeti eu, estupidamente. O quê, Max? O que é que aconteceu?

 

Nessas ocasiões, as ideias mais loucas atravessam a nossa mente a uma velocidade estonteante. Um acidente de avião, pensei. Mas os jornais dessa manhã não traziam notícias sobre nenhum acidente com um avião a caminho da Grécia. Se isso tivesse acontecido, todos os jornais falariam no assunto, não era? E eu tinha lido o jornal, não tinha? Dois, até. E o da véspera, também. E em nenhum deles...

 

Ouvi apenas fragmentos da resposta de Max.

 

Morto... incêndio... em Kent... próximo das Springburns.

 

Mas ele não podia estar no Kent disse eu. A mãe disse... calei-me, e o meu raciocínio imobilizou-se ao mesmo tempo que as palavras morriam nos meus lábios.

 

Eu sabia que Chris me observava. Fiz o melhor que podia para manter um rosto impassível. A minha memória começou a rever em pormenor as horas que passara sozinha e, mais tarde, na companhia da minha mãe, em Kensington. Porque ela tinha dito... ela tinha dito... Era a Grécia. O aeroporto. Ela levara-o ao aeroporto. Não tinha sido isso que ela tinha dito?

 

... Nos noticiários estava Max a dizer... não sei muito mais... uma tragédia para toda a gente.

 

Lembrei-me dela, parada no corredor escuro. Nas roupas esquisitas que tinha vestidas, na forma como dissera que precisava de mudar de roupa, no hálito a gin, no tempo infinito que demorara a despir um simples vestido e a enfiar um roupão. E que notara Chris quando viera ter connosco? A energia surpreendente de que ela dava mostras às cinco da madrugada, tão estranho numa mulher da idade dela. Que significaria tudo aquilo?

 

Senti um nó na garganta. Rezei para que Max se fosse embora o mais depressa possível, porque se ele não partisse, tinha a certeza que não ia aguentar a pressão e ia desatar a falar como um papagaio.

 

Mas falar sobre o quê? Devia tê-la percebido mal, pensei. Afinal de contas, estava enervada. Ela acordara-me de um sono agitado. Não devia ter prestado muita atenção ao que ela dizia. Estava demasiado preocupada em fazer com que o nosso reencontro não se transformasse numa troca de acusações e recriminações. Ela deve ter dito qualquer coisa que eu não entendi bem.

 

Na cama, nessa noite, examinei os factos. Ela disse que o tinha levado ao aeroporto... Não. Disse que tinha vindo do aeroporto, certo? O voo dele, dissera, saíra atrasado. Muito bem. E depois? Não o teria deixado sozinho no aeroporto. Deve ter ficado com ele, devem ter ido tomar uma bebida juntos. Finalmente, ele deve ter-lhe dito que voltasse para casa. E depois... depois o quê? Ele saiu do aeroporto e foi a correr para o Kent? Porquê? Mesmo que a saída do voo tivesse sido atrasada, ele já deveria ter feito o check in e seguido para a sala de espera das partidas internacionais, uma daquelas salas especiais para executivos, onde as pessoas que não têm cartão de embarque nem sequer podem entrar... da mesma maneira que não podiam entrar na sala de espera das partidas internacionais. Então porque é que eu estava a pensar que Kenneth e a minha mãe teriam ido tomar uma bebida juntos enquanto ele esperava pela partida do avião? Não, não era possível. Tinha de pensar noutra justificação.

 

Talvez o voo tivesse sido cancelado, e ele tivesse deixado o aeroporto rumo ao Kent, depois de ter decidido passar as férias na casa de campo. Não tinha dito nada à minha mãe, porque não sabia que acabaria por ir para lá, já que quando ela se despedira dele no aeroporto, ele ainda não sabia que o voo iria ser cancelado. Sim, era isso mesmo. Por isso, ele fora para o Kent. Sim, fora para o Kent. E morrera no Kent. Sozinho. Um incêndio. Um curto-circuito, faíscas caindo sobre a alcatifa, depois labaredas, que tinham deixado o seu corpo carbonizado. Um acidente horrível. Sim, fora isso mesmo que acontecera.

 

O alívio que senti perante esta conclusão foi indescritível. Que me teria passado pela cabeça?, perguntei a mim mesma. E porque diabo teria eu pensado numa coisa daquelas?

 

Quando Chris veio trazer-me o chá, na manhã seguinte, sentou-se na beira desta e disse:

 

Quando é que vamos?

 

Vamos? Vamos onde? perguntei eu.

 

Vê-la. Queres vê-la, não queres?

 

Murmurei um sim. Pedi-lhe que fosse comprar-me um jornal. ”Quero saber o que se passou”, disse eu. Antes de falar com ela. Preciso de saber, para poder decidir o que lhe vou dizer.

 

Ele trouxe-me The Times, novamente. E o Daily Mail. Enquanto ele preparava o nosso pequeno-almoço, sentei-me à mesa lendo as notícias. Na manhã em que o corpo de Kenneth foi descoberto, a imprensa pouco mais revelou para além do nome da vítima, da designação da casa onde o corpo fora encontrado, do nome do proprietário da casa, do distribuidor de leite que tinha dado o alerta, da hora da descoberta e da identificação dos principais investigadores. Seguia-se uma biografia de Kenneth Fleming. O artigo terminava com a apresentação das várias hipóteses do momento, que deveriam ser confirmadas, ou não, pelos resultados da autópsia e pela investigação que iria seguir-se. Li e reli esta última parte, demorando-me em palavras e expressões como especialista em incêndios de origem criminosa e na hora provável da morte. Olhei fixamente a frase: ”O médico legista que, posteriormente, procederá à autópsia do corpo, declarou que Fleming terá morrido entre trinta a trinta e seis horas antes da descoberta do corpo”, e efectuei um rápido cálculo mental. Isso significava que a morte ocorrera por volta da meia-noite de quarta-feira. Senti uma dor aguda no peito. Fosse o que fosse que a minha mãe me tivesse dito, na madrugada de quinta-feira, sobre o paradeiro de Kenneth Fleming, uma coisa era certa: ele nunca poderia ter estado em dois sítios ao mesmo tempo. Na companhia dela, no aeroporto, ou a caminho dele, e em Celandine Cottage, no Kent. Ou o médico legista estava redondamente enganado, ou a minha mãe estava a mentir.

 

Tinha de saber a verdade. Telefonei-lhe, mas ninguém atendeu o telefone. Passei o dia inteiro e uma parte da noite a ligar-lhe. E na tarde do dia seguinte, os meus nervos não aguentaram mais.

 

Perguntei a Chris se podíamos ir a Kensington imediatamente. Disse-lhe que queria estar a sós com a minha mãe, se ele não se importasse. Porque as nossas relações tinham sido distantes durante tanto tempo, acrescentei. Ela devia estar num estado lamentável. Não haveria de desejar a presença de uma pessoa que não fosse da família.

 

Chris disse que compreendia muito bem. Iria levar-me lá, disse, e ficaria à espera que eu telefonasse quando quisesse que ele fosse buscar-me.

 

Não toquei à campainha depois de ter subido a custo os sete degraus que me separavam da porta principal. Abri a porta com a minha chave. Fechei-a e reparei que a porta da sala de jantar estava fechada, tal como a outra, mais distante, que dava acesso à saleta. Os cortinados da janela que dava para o jardim estavam corridos. Esperei um pouco na semiobscuridade do vestíbulo, escutando o silêncio profundo em que a casa estava mergulhada.

 

Mãe? chamei com toda a segurança que consegui reunir. Estás em casa? Tal como acontecera na quarta-feira à noite, não obtive resposta. Avancei até à sala de jantar e abri a porta. Uma réstia de claridade iluminou, então, o vestíbulo, incidindo sobre o pilar na base das escadas. Uma mala a tiracolo estava pendurada nele. Aproximei-me e acariciei a pele macia. Algures, por cima de mim, rangeu uma tábua do soalho. Levantei a cabeça e tornei a chamar: Mãe? acrescentando: Chris já se foi embora. Estou sozinha.

 

Olhei para as escadas com os olhos semicerrados. Os degraus diluíam-se na escuridão. Estávamos no início da tarde, mas, à força de tantos cortinados corridos e portas fechadas, ela conseguira transformar a casa num verdadeiro túmulo. Não conseguia ver nada, para além de sombras e formas indistintas.

 

Li os jornais. Dirigi a voz para o único sítio onde ela podia estar, no segundo andar da casa, à porta do quarto, encostada à ombreira, mãos atrás das costas agarrando a maçaneta. Sei o que aconteceu a Kenneth. Lamento muito, mãe. Finge, pensei. Finge que nada mudou. Quando li a notícia do incêndio, não pude deixar de vir até aqui continuei. Deve ser horrível para ti. Sentes-te bem, mãe?

 

Tive a impressão de que um suspiro flutuara até mim, vindo do andar de cima, embora possa perfeitamente ter sido uma corrente de ar entrando pela janela ao fundo do corredor. Seguiu-se um roçagar. E foi então que os degraus começaram a ranger suavemente, como se alguém estivesse a fazer descer um peso enorme, centímetro a centímetro. Afastei-me do pilar. Esperei, e perguntei a mim mesma o que iríamos dizer uma à outra. Como é que vou conseguir continuar a fingir, perguntei-me. Ela é tua mãe, respondi, por isso vais ter de conseguir. Procurei lembrar-me de algo para dizer enquanto ela descia o primeiro lanço de escadas. Quando ela avançou ao longo do patamar por cima da minha cabeça, abri a porta da saleta. Afastei os cortinados da janela do fundo do corredor e fui ao encontro dela, junto das escadas.

 

Ela parou no mezanino. A mão esquerda agarrava o corrimão, a direita estava fechada em forma de punho sobre o peito. Usava o mesmo roupão que vestira às três da manhã de quinta-feira. Todavia, ao contrário daquele dia, parecia despojada daquilo que Chris classificara como energia invulgar e que era, percebi eu, o resultado de um estado de extrema tensão nervosa.

 

Quando li o artigo, disse para mim própria que não podia deixar de vir cá. Como é que te sentes, mãe?

 

Ela desceu o último lanço de escadas. Nesse momento, o telefone começou a tocar na saleta. Não deu sinais de ter ouvido o som do telefone, que continuou a tocar insistentemente. Olhei na direcção da saleta e pensei se deveria atendê-lo.

 

Jornalistas disse a minha mãe. Não passam de abutres, rondando o corpo, sedentos de sangue.

 

Ela alcançara o último degrau e a claridade que entrava pelas portas abertas e pela janela permitia-me comprovar as profundas mudanças que os acontecimentos do último dia tinham provocado nela. Embora estivesse em camisa de noite, não deveria ter pregado olho. As rugas pareciam verdadeiros trilhos sulcando-lhe o rosto e debaixo dos olhos tinham-se formado papos.

 

Vi que ela segurava qualquer coisa na mão fechada, um objecto castanho que se destacava contra a sua pele macilenta. Levou a mão ao rosto e encostou uma das faces ao objecto que tinha na mão.

 

Eu não sabia murmurou. Não sabia, meu querido. Juro.

 

Mãe disse eu.

 

Não sabia que estavas lá.

 

Lá, onde?

 

Na casa de Kent. Não sabia. Não sabia.

 

A minha boca ficou imediatamente seca, como a de um viajante que tivesse passado um mês errando pelo deserto, no momento em que ela destruiu todas as possibilidades de fingimento entre nós.

 

Havia apenas uma única solução para me impedir de desmaiar, que era concentrar-me num pormenor que não tivesse qualquer relação com os pensamentos que rodopiavam loucamente dentro da minha cabeça. Canalizei, então, a minha atenção para a contagem dos toques duplos do telefone que ainda ressoavam, estridentes, pela saleta. Quando o aparelho finalmente parou de tocar, olhei fixamente para o objecto que a minha mãe segurava junto à face. Era uma velha bola de críquete.

 

No dia em que marcaste os teus primeiros cem pontos sussurrou ela, os olhos presos em algo que só ela conseguia ver, fomos jantar. Um grupo pequeno. Parece que ainda estou a ver-te. Alegre. Transbordante de vida, pensei. Tão jovem, tão esfuziante. Levou a bola aos lábios. Deste-me isto. Na frente de todas aquelas pessoas. Da tua mulher. Dos teus filhos. Dos teus pais. Dos outros jogadores. E disseste: ”Temos de dar crédito a quem ele é devido. Ergo o meu copo em honra de Miriam, que me deu a coragem necessária para tornar os meus sonhos realidade.”

 

O rosto da minha mãe encheu-se, subitamente, de rugas fundas e a sua mão começou a tremer convulsivamente.

 

Eu não sabia disse, lábios colados à bola de couro. Eu não sabia. Passou por mim como se eu lá não estivesse. Percorreu o corredor e entrou na saleta. Segui-a em passo lento e fui dar com ela junto à janela, batendo com a testa na vidraça, cada vez com mais força. A cada pancada, murmurava ”Ken”.

 

Senti-me imobilizada pelo medo, pelo terror e pela minha própria deficiência. Que havia eu de fazer, pensei. Com quem deveria falar. De que forma é que poderia ajudar. Nem sequer conseguia descer até à cozinha e fazer algo tão simples como preparar-lhe uma refeição, que ela sem dúvida precisava, porque, depois de a ter cozinhado, jamais seria capaz de tornar a subir com a comida, e mesmo que pudesse, sentia-me aterrorizada só de pensar em deixá-la sozinha.

 

O telefone começou a tocar mais uma vez. Ao ouvi-lo, ela começou a bater com a testa na vidraça com mais força ainda. Senti as cãibras subirem-me pelas pernas acima, os braços fraquejarem. Precisava de me sentar. Queria desatar a correr.

 

Fui até ao telefone, levantei o auscultador e tornei a colocá-lo no descanso. Antes que tivesse tempo para recomeçar a tocar, marquei o número da lancha e rezei para que Chris tivesse regressado directamente a casa depois de me ter deixado em casa da minha mãe. Ela continuava a bater com a cabeça na janela. As vidraças estremeciam. Enquanto o telefone tocava no outro lado do fio, a primeira vidraça estalou. ”Mãe!”, exclamei à medida que ela continuava a bater com a cabeça, cada vez com mais força.

 

Quando ouvi a voz de Chris, disse-lhe, ”Vem até aqui. Depressa”, e desliguei o telefone antes que ele tivesse tempo de dizer fosse o que fosse. A vidraça partiu-se. Os estilhaços espalharam-se sobre o parapeito da janela e caíram no chão. Aproximei-me da minha mãe. Ela tinha feito um golpe na testa, mas não parecia ter consciência do fio de sangue que corria pelo canto do olho, prosseguindo depois ao longo da face, fazendo lembrar as lágrimas de uma mártir. Agarrei-lhe no braço e puxei-o suavemente.

 

Mãe. É Olivia. Estou aqui. Senta-te.

 

Ken continuava ela a dizer.

 

Não podes fazer isto a ti mesma. Pelo amor de Deus. Por favor. Uma segunda vidraça partiu-se. Os vidros caíram no chão. Vi mais sangue, em resultado de novos golpes. Dei-lhe um abanão.

 

Pára com isso!

 

Ela libertou-se e tornou a virar-se para a janela, continuando a bater com a cabeça na vidraça.

 

Pelo amor de Deus gritei. Pára com isso! Imediatamente! Aproximei-me dela, com dificuldade. Abracei-a. Segurei-lhe nas mãos.

 

Arranquei-lhe a bola de críquete das mãos e atirei-a para o chão. Rolou em direcção a um canto da sala até se imobilizar debaixo de um móvel. Nesse momento, ela virou a cabeça. Os seus olhos seguiram a trajectória da bola. Levou um dos pulsos à testa e tornou a baixá-lo, manchado de sangue. E então começou a chorar.

 

Não sabia que estavas lá. Ajuda-me. Meu querido. Eu não sabia que estavas lá.

 

Levei-a até ao divã da melhor forma que pude. Ela afundou-se a um canto, a cabeça pousada no braço, o sangue pingando sobre a cobertura em renda antiga. Fiquei a olhar para ela, impotente. O sangue. As lágrimas. Arrastei-me até à sala de jantar, onde descobri a garrafa do xerez. Enchi um copo e bebi-o de um trago. Depois bebi um segundo. Agarrei firmemente no terceiro e, sem tirar os olhos do copo para o impedir de transbordar, voltei para junto dela.

 

Bebe isto disse eu. Mãe, ouve-me. Bebe isto. Tens de segurar no copo, porque as minhas mãos estão demasiado fracas para o agarrar. Estás a ouvir-me, mãe? É xerez. Precisas de uma boa dose.

 

Ela tinha parado de falar. Parecia olhar fixamente para a fivela prateada do meu cinto. Uma das mãos repuxava a renda da cobertura. A outra agarrava o cinto do roupão. Estendi-lhe o copo de xerez.

 

Por favor disse eu. Peço-te, mãe. Bebe isto.

 

Ela pestanejou. Pousei o copo de xerez sobre a mesa de jogo. Limpei-lhe a testa com a renda. Os golpes não eram fundos. Apenas um deles continuava a sangrar. Pressionei a renda sobre a ferida quando a campainha soou.

 

Chris tomou conta da situação com a competência habitual. Examinou-a rapidamente, esfregou as mãos dela entre as suas e aproximou o xerez dos lábios dela obrigando-a a bebê-lo.

 

Ela precisa de ser vista por um médico disse ele.

 

Não! Que iria ela dizer? Que iria o médico pensar? Que poderia acontecer depois? Esforcei-me por controlar o meu tom de voz. Nós conseguimos resolver a situação. Ela está em choque. Temos de a obrigar a comer qualquer coisa. Temos de a meter na cama.

 

A minha mãe mexeu-se. Ergueu uma das mãos e examinou o pulso manchado de sangue que, já ressequido, adquirira uma tonalidade cor de ferrugem.

 

Oh! disse ela. Cortei-me.

 

Levou o pulso aos lábios e limpou o sangue com a língua.

 

Podes preparar-lhe alguma coisa para comer? perguntei a Chris.

 

Não sabia que estavas lá disse a minha mãe, num murmúrio. Chris olhou para ela e preparou-se para responder.

 

Pequeno-almoço disse eu, apressadamente. Cereais. Chá. Qualquer coisa. Por favor, Chris. Ela precisa de comer.

 

Eu não sabia disse a minha mãe.

 

O que é que ela...

 

Chris! Pelo amor de Deus. Eu não consigo descer até à cozinha. Ele abanou a cabeça e saiu.

 

Sentei-me ao lado dela. Mantive uma das mãos no andarilho, apenas para sentir o contacto de um objecto sólido e imutável.

 

Estiveste no Kent, na quarta-feira à noite? perguntei em voz baixa.

 

Não sabia que estavas lá, Ken. Não sabia.

 

As lágrimas marejavam-lhe os olhos.

 

Foste tu quem ateou o incêndio? Levou o punho cerrado à boca.

 

Porquê? sussurrei. Porque é que o fizeste?

 

Tudo, eras tudo para mim. O meu coração. A minha mente. Não quero que ninguém te faça mal. Nada. Nem ninguém.

 

Mordeu o dedo indicador e desatou a soluçar. Prendeu o dedo entre os dentes e, sem parar de chorar, começou a morder a zona mais carnuda. Cobri o punho dela com a minha mão.

 

Mãe disse eu, e tentei afastar o dedo da boca dela. Ela, porém, tinha muito mais força do que eu imaginava.

 

O telefone recomeçou a tocar. Interrompeu-se bruscamente, e deduzi que Chris atendera a chamada na cozinha. Ele arranjaria forma de manter os jornalistas à distância. Quanto a isso, não havia nada a temer. Ao olhar para a minha mãe, no entanto, percebi que aquilo que eu receava não eram os telefonemas dos jornalistas. A polícia era aquilo de que eu tinha medo.

 

Tentei acalmá-la, passando a mão pela têmpora e acariciando-lhe o cabelo.

 

Vamos pensar um pouco sobre tudo isto sugeri eu. Vai correr tudo bem.

 

Chris regressou com um tabuleiro, que levou para a sala de jantar. Ouvi o som de pratos e talheres sobre a mesa. Entrou na saleta. Passou o braço em torno dos ombros da minha mãe, dizendo:

 

Mrs. Whitelaw, fiz-lhe uns ovos mexidos. Em seguida, ajudou-a a levantar-se.

 

Ela agarrou-se ao braço dele. Colocou uma das mãos no ombro de Chris. Estudou o rosto dele com uma atenção extrema, como se quisesse gravá-lo na memória.

 

O que ela te fez passar continuou. O sofrimento que te causou. Não consegui suportá-lo, meu querido. Não queria que ela continuasse a fazer-te sofrer. Percebes?

 

Sentia o olhar de Chris preso em mim, mas mantive o meu rosto desviado e concentrei-me em levantar-me do divã e em agarrar-me às pegas do andarilho. Fomos até à sala de jantar. Sentámo-nos, a minha mãe entre nós os dois. Chris pegou num garfo e colocou-o na mão dela. Eu aproximei o prato.

 

Não consigo gemeu ela.

 

Coma um bocadinho, está bem? pediu Chris. Vai precisar de manter as forças.

 

Ela deixou cair o garfo no prato.

 

Disseste-me que ias para a Grécia. Deixa-me tratar deste assunto por ti, meu querido Ken, pensei eu. Deixa-me resolver este assunto.

 

Mãe intervim eu, rapidamente. Tu precisas de comer alguma coisa. Vais ter de falar com muita gente, não é? Jornalistas. A polícia. Seguros baixei os olhos. A casa. O seguro. Que teria ela feito? E porquê? Que horror, meu Deus. Não fales agora, mãe, e come enquanto ainda está quente.

 

Chris juntou uma porção de ovos mexidos e tornou a colocar-lhe o garfo na mão. Ela começou a mastigar. Os seus movimentos eram muito lentos, como se fossem o resultado de uma demorada reflexão.

 

Quando terminou de comer, levámo-la de volta para a saleta. Eu disse a Chris onde podia encontrar cobertores e almofadas e fizemos-lhe a cama no divã. Enquanto a instalávamos, o telefone soou novamente. Chris levantou o auscultador, ouviu e disse, ”Não está disponível, lamento muito”, e desligou. Encontrei a bola de críquete no sítio para onde a atirara, e depois de termos deitado a minha mãe no divã e de Chris ter acabado de aconchegá-la, entreguei-lhe a bola. Ela apertou-a debaixo do queixo. Quando se preparava para falar, interrompi-a:

 

Descansa um pouco, agora. Eu vou ficar aqui sentada, ao teu lado.

 

Fechou os olhos. Perguntei a mim própria quando teria sido a última vez que ela teria dormido.

 

Chris foi embora. Eu fiquei. Sentada no canapé de veludo. Olhando-a. Contando os quartos de hora que soavam no relógio de sala. Lentamente, o sol foi desenhando sombras móveis ao longo da saleta. Tentei pensar no que deveria fazer.

 

Ela deve ter precisado do dinheiro do seguro, pensei. E, a partir daí, comecei a explorar todo o tipo de hipóteses: não administrara a fábrica tão bem como deveria ter administrado. A situação estava a tornar-se difícil. Não dissera nada a Kenneth, porque não quisera deixá-lo preocupado, nem distraí-lo da sua carreira. Também ele se encontrava numa situação delicada. Tinha uma família para sustentar. Os filhos estavam a crescer. Financeiramente, tinha de fazer face a despesas cada vez maiores. Contraíra dívidas e os credores não o deixavam em paz. Tinham decidido ignorar as conveniências e casar, mas Jean exigira uma soma considerável em troca do divórcio. O filho mais velho queria ir para Winchester e essa era uma despesa que Kenneth não podia assumir, tendo em conta a soma que devia pagar a Jean. A minha mãe quisera ajudá-lo, para que pudessem casar. Ela sofria de cancro. Um dos filhos tinha cancro. Ele tinha cancro. Precisavam de dinheiro para experimentar um novo tratamento. Chantagem. Alguém sabia alguma coisa e estava a extorquir-lhe...

 

Apoiei a cabeça nas costas do canapé. Não conseguia pensar numa solução, porque não sabia o que tinha acontecido. Comecei a acusar o efeito da falta de sono das noites precedentes. Não conseguia tomar nenhuma decisão. Não conseguia fazer planos. Não conseguia pensar. Adormeci.

 

Quando acordei, a luz tinha desaparecido. Levantei a cabeça e fiz uma careta ao sentir a dor provocada pela posição em que estivera. Olhei para o divã. A minha mãe não estava lá. A minha mente entrou imediatamente em acção. Onde estava ela? Porquê? Que tinha ela feito? Seria possível que ela...

 

Dormiste bem, querida? Virei-me para a porta.

 

Tinha tomado banho. Vestira uma longa túnica preta e umas calças iguais. Pintara os lábios. Arranjara o cabelo e colocara um penso na testa, no sítio onde se cortara.

 

Tens fome? perguntou.

 

Eu disse que não com um movimento de cabeça. Ela entrou na saleta. Aproximou-se do divã e começou a dobrar os cobertores que tínhamos usado para abafá-la. Compô-los e colocou-os uns sobre os outros. Em seguida, dobrou a renda manchada de sangue e colocou-a sobre os cobertores. Depois sentou-se no mesmo sítio onde estivera sentada na quinta-feira de manhã, no canto do divã, o mais próximo possível do canapé onde eu me encontrava.

 

Olhou para mim sem vacilar.

 

Estou nas tuas mãos, Olivia disse.

 

E foi então que percebi que desta vez era eu quem detinha o poder.

 

Que sensação estranha. Em vez de triunfo, sentia apenas receio, medo e sentido de responsabilidade. Não queria experimentar nenhuma daquelas sensações, muito menos a última.

 

Porquê? perguntei-lhe. Ao menos diz-me porquê. Preciso de compreender.

 

Os olhos dela desviaram-se dos meus por breves instantes e pousaram no quadro flamengo pendurado na parede por cima da minha cabeça. Em seguida, tornaram a fixar o meu rosto.

 

Como é irónico disse.

 

O quê?

 

Pensar que depois de toda a angústia que tu e eu causámos uma à outra ao longo dos anos, no final das nossas vidas tudo se resume a uma questão de necessidade.

 

Continuou a olhar para mim sem vacilar, impassível. Parecia perfeitamente calma, não resignada mas preparada.

 

Há um morto nesta história disse eu. E se há alguém que precisa de alguma coisa é a polícia. Precisa de respostas. O que é que lhe vais dizer?

 

Nós precisamos uma da outra continuou ela. Tu e eu, Olivia. Tudo se resume a isso, afinal.

 

Estava prisioneira do seu olhar, como um gato fica hipnotizado pelo olhar de uma serpente, segundos antes de ser devorado por ela. Forcei-me a desviar os olhos para a lareira, para a enorme chaminé de mármore, onde estava o relógio que tinha parado para sempre na noite em que a rainha Vitória morrera. Fora a forma simbólica que o meu bisavô escolhera para chorar o fim de uma era. Para mim, era o símbolo do domínio que o passado conserva sobre nós.

 

A minha mãe tornou a falar. A sua voz soou tranquila.

 

Se não estivesses cá quando cheguei a casa, se eu não tivesse ficado a saber do teu... hesitou, aparentemente procurando um eufemismo. Se eu não tivesse visto o estado em que te encontras, os efeitos que essa doença está a provocar em ti, e vai continuar a provocar, ter-me-ia suicidado. Tê-lo-ia feito, na sexta-feira à noite sem a mais pequena hesitação, no momento em que me disseram que Ken tinha morrido na casa do Kent. Tinha as lâminas aqui, comigo. Enchi uma banheira com água, para poder sangrar mais facilmente. Sentei-me dentro de água e segurei a lâmina junto do pulso. Mas não consegui cortá-lo. Porque abandonar-te agora, obrigar-te a enfrentares uma morte horrível sem que eu esteja aqui para te ajudar no que puder... Abanou a cabeça. Como os deuses devem estar a rir-se de nós as duas, Olivia. Durante anos quis que a minha filha voltasse para casa.

 

E voltei disse eu.

 

Pois voltaste.

 

Passei a mão pela velha cobertura de veludo, sentindo o contacto do tecido usado debaixo dos meus dedos.

 

Tenho muita pena disse eu. O momento não foi o melhor. Santo Deus, estraguei tudo, não foi?

 

Ela não respondeu. Parecia esperar algo mais. Estava sentada, muito direita, na luz fraca da tarde, observando-me enquanto eu formulava a pergunta e reunia coragem para perguntar mais uma vez.

 

Porquê, mãe, porque é que o fizeste? Tens... Precisas de dinheiro, ou coisa parecida? Estavas a pensar no seguro da casa?

 

A mão direita dela procurou a aliança enfiada no anelar esquerdo. Os seus dedos fecharam-se sobre ela:

 

Não respondeu.

 

Então, o que foi?

 

Ela levantou-se. Aproximou-se da janela e tornou a colocar o auscultador no descanso. Ficou de pé, junto à janela, durante alguns instantes, cabeça baixa, os dedos roçando ao de leve o tampo da mesa.

 

Tenho de limpar estes vidros partidos.

 

Mãe, diz-me a verdade insisti.

 

A verdade? Ergueu a cabeça, mas continuou de costas viradas para mim. O amor, Olivia. É sempre assim que tudo começa, não é, Olivia? E termina, também. Mas isso era algo que eu ignorava.

 

Aprendi duas lições. A primeira é que a verdade existe. A segunda, que o facto de conhecer a verdade não nos liberta. Aprendi, ainda, que faça eu o que fizer, há sempre alguém que vai sofrer.

 

No início, pensei que conseguia guardar o que sabia só para mim. Todas as pontas soltas que rodeavam os acontecimentos da noite de quarta-feira e da manhã de quinta-feira. O facto de a minha mãe se recusar a explicar claramente o que entendia por amor, contentando-se em repetir que tudo o que fizera fizera-o por ele. O facto de eu não saber nem querer saber quem se escondia atrás do ela mencionado pela minha mãe, um pronome feminino que tinha uma ligação qualquer a Kenneth. Tudo o que eu sabia era que a morte de Kenneth Fleming, na casa de campo, naquela noite, fora um acidente. Um acidente. E a punição da minha mãe, se é que deveria haver uma punição, seria ter de viver com a certeza de que fora ela a autora do incêndio que tirara a vida ao homem que amava. Seria essa uma punição suficiente? Sim, concluí.

 

Decidi guardar para mim tudo o que sabia. Não contaria nada a Chris. De que serviria isso, afinal?

 

Mas foi nessa altura que a investigação começou a intensificar-se. Acompanhei a sua evolução tanto quanto pude através dos jornais e da rádio. O incêndio fora ateado por um dispositivo incendiário, cujas características a polícia não podia revelar. Eram, no entanto, essas mesmas características e não apenas a sua presença no local do crime, que levava as autoridades a utilizar palavras e expressões como incêndio de origem criminosa e homicídio. Uma vez pronunciadas estas palavras, outras se seguiram: suspeito, assassino, vítima, móbil. O interesse pela história cresceu. As especulações multiplicaram-se. E Jimmy Cooper confessou.

 

Fiquei à espera que a minha mãe me telefonasse. É uma mulher dotada de uma grande consciência moral, disse para mim mesma. Vai avançar, agora. A qualquer minuto. A qualquer momento. Porque trata-se do filho de Kenneth Fleming. Do filho de Ken.

 

Em seguida tentei persuadir-me que os acontecimentos corriam a nosso favor. Ele não passa de um garoto, pensei. Se for julgado e considerado culpado, que riscos poderá correr um rapaz de dezasseis anos, condenado por homicídio, no quadro do actual sistema de justiça? Mandá-lo-iam para um reformatório durante alguns anos, e era tudo. E não haveria algumas vantagens sociais nisso? Teria alguém para tratar dele, educá-lo, aprenderia um ofício, algo de que deveria precisar desesperadamente. O mais provável era que aquela experiência fizesse dele uma pessoa melhor.

 

Depois vi a fotografia, tirada no dia em que a polícia foi esperá-lo à saída da escola. Caminhando entre dois agentes, fazendo os possíveis por dar a entender que se estava nas tintas para o que lhe estava a acontecer. Esforçando-se por dar a entender que nada daquilo podia tocá-lo. Estava a armar em duro, ao tipo esperto que responderia a todas as perguntas com um sorriso irónico. Como eu conhecia aquele olhar que Jimmy tinha estampado no rosto. Dizia, ”Estou blindado”, e ”nada me importa”. Para ele, o passado não tinha qualquer importância, já que para ele o futuro não existia.

 

Foi nessa altura que telefonei à minha mãe. Perguntei-lhe se sabia o que tinha acontecido com Jimmy. Ela disse-me que a polícia queria apenas conversar com ele. Perguntei-lhe o que tencionava fazer. Ela respondeu que estava nas minhas mãos.

 

Olivia disse. Eu compreenderei a tua decisão. Seja ela qual for.

 

O que é que lhe vão fazer? Mãe, o que é que vão fazer com ele?

 

Não sei. Já lhe arranjei um advogado, que tem falado com ele.

 

E o advogado sabe alguma coisa? O que realmente... Isto é...

 

Não acredito que o levem a julgamento, Olivia. É possível que tenha estado nas imediações da casa, mas não entrou. A polícia não tem nenhuma prova.

 

O que é que aconteceu? perguntei-lhe. Naquela noite, mãe. Ao menos conta-me o que aconteceu.

 

Olivia, minha querida. É melhor que não saibas. É melhor que não fiques com tamanho fardo em cima dos ombros.

 

A voz dela soava tão calma, tão sensata. Não era a voz da Míriam Whitelaw que, outrora, calcorreara Londres febrilmente, em busca de boas obras. Era a voz de uma mulher que mudara para sempre.

 

Preciso de saber disse-lhe. E tu precisas de me contar.

 

Para que eu soubesse como agir, o que fazer, o que pensar, que atitude deveria adoptar daí para a frente.

 

Então, ela contou-me tudo. Tudo decorrera com uma simplicidade desconcertante. A casa de Kensington preparada para parecer ocupada luzes acesas, música alta, ambas controladas por temporizadores por forma a reproduzir, naquela noite, os movimentos lógicos dos seus habitantes. Esgueirara-se pelo jardim das traseiras e atravessara o antigo picadeiro protegida pelas sombras, tendo o cuidado de não fazer o mínimo barulho. Não levara o carro, porque não iria precisar dele.

 

Mas como? perguntei. Mas como é que foste para lá? Como é que conseguiste lá chegar?

 

Muito simples. Uma viagem de metropolitano até Victoria Station, de onde partem comboios toda a noite para o Aeroporto de Gatwick. Aqui, há agências de aluguer de automóveis que também funcionam durante toda a noite. Não tivera dificuldade em alugar um Vauxhall azul para uma curta viagem até ao Kent. Uma vez chegada ao seu destino, pouco depois da meia-noite, fora buscar a chave que ficava guardada na cabana do jardim. As luzes estavam apagadas e a única ocupante da casa estava a dormir, pelo que não poderia ouvir um intruso que demoraria menos de dois minutos a entrar dentro da casa, a enfiar num cadeirão um cigarro envolto num feixe de fósforos, um cigarro tirado de um maço comprado numa tabacaria anónima, um cigarro bastante vulgar, de facto, o cigarro mais vulgar possível. De volta à cozinha, uma breve pausa para pôr fora dois gatos pequenos, criaturas inocentes, que não tinham escolhido estar ali e, por isso, não mereciam morrer juntamente com ela, um incêndio enorme em que a casa é sacrificada. Nada disso tem importância, porém, ela não tem importância, nada tem importância para além de Kenneth e da vontade de pôr fim ao sofrimento que ela lhe causava.

 

Tinhas intenção de... Não foi um acidente. A que mais poderia agarrar-me, pensei.

 

Um acidente? Não. Não tinha sido um acidente. De modo nenhum. Nenhum acidente poderia ser planeado com tanta minúcia. Regressara ao aeroporto durante a noite, apanhara um comboio para Londres. Em frente a Victoria Station havia uma praça de táxis: apanhara um deles, que transportara uma mulher sozinha até uma casa imersa na escuridão a meio de Argyll Road. Daí seguira a pé até Phillips Walk, a dois passos de distância. No meio de um silêncio sepulcral regressara a casa, às primeiras horas da madrugada sem correr o risco de atrair as atenções de ninguém com o barulho do motor do seu carro. Uma brincadeira de crianças, na verdade. Com efeito, quem é que se lembraria de relacionar Victoria Station com o Aeroporto de Gatwick, um carro alugado e um incêndio no Kent?

 

Por isso, estou nas tuas mãos, Olivia.

 

O que é que tudo isto tem que ver comigo, tornei a perguntar a mim mesma, embora com menos convicção. Eu não conheço o rapaz de parte nenhuma. Não conheço a mãe dele. Não conheço os irmãos. Nunca cheguei a conhecer o pai deles. Se ele foi estúpido o suficiente para ir até ao Kent, justamente na noite em que o pai morreu, o problema era dele, não era? Não era?

 

Foi então que o senhor veio visitar-nos à lancha, inspector.

 

O ARM, disse para mim mesma, inicialmente. Começou por fazer perguntas sobre Kenneth Fleming, mas a verdadeira razão da sua visita era proceder a um pequeno reconhecimento de terreno. Nunca ninguém conseguira associar-nos ao movimento até então, mas havia sempre essa possibilidade.

 

Chris iniciara uma ligação com Amanda, contrariando os regulamentos do ARM. Talvez ela trabalhasse para a polícia. A sua missão era recolher informações, comunicá-las ao oficial superior, e ali estava o senhor, pronto a confirmar tudo o que ela fora capaz de apurar. Parecia lógico. A investigação de um homicídio não passava de um pretexto. As suas verdadeiras intenções eram procurar provas que nos relacionassem com o ARM.

 

Essas provas, aliás, estão aqui. Neste documento. Isso surpreende-o, inspector? O senhor, que está tão empenhado em que eu cometa um acto de traição... Quer saber porquê?...

 

Ora bem, o caminho da traição tem dois sentidos. Percorra-o. Sinta a realidade debaixo dos seus pés. E decida. Tal como eu. Decida.

 

Estávamos sentados no tombadilho da lancha quando, finalmente, contei a Chris tudo o que sabia. Esperara ser capaz de o convencer de que o senhor só queria apalpar terreno em relação às actividades do ARM, mas Chris não é parvo. Percebera que havia algo que não estava bem, no preciso momento em que vira a minha mãe em Kensington. Estivera lá em casa, vira o estado em que ela se encontrava, ouvira o que ela dissera, vira-me escrutinar os jornais, vira-me tentar deixar de os ler e falhar nessa tentativa. Perguntou-me se eu queria que ele soubesse o que estava a passar-se.

 

Eu estava sentada na minha cadeira de lona. Chris estava no tombadilho, joelhos flectidos, calças de ganga arregaçadas e peúgas brancas descaídas, deixando entrever uma tira de carne pálida em cada perna. Dava-lhe um ar vulnerável, aquela posição. Jovem. Cruzou as mãos em volta das pernas e os pulsos destacaram-se das mangas do casaco. Tão ossudos que eram. Tal como os cotovelos, os tornozelos e os joelhos.

 

Acho melhor conversarmos disse ele.

 

Acho que não sou capaz.

 

Tem a ver com a tua mãe.

 

Não era uma pergunta e eu não me dei ao trabalho de a negar, fingindo uma resposta. Em vez disso, disse:

 

Não tarda nada, vou parecer uma boneca de trapos, Chris. O mais provável é que venha a ficar presa a uma cadeira de rodas. Rodeada de tubos e ventiladores. Não vai ser um espectáculo agradável. E quando eu morrer...

 

Não vais estar só. Esticou o braço e rodeou-me os tornozelos com os dedos. Apertou-me a perna, num gesto carinhoso. Não te preocupes, Livie. Dou-te a minha palavra. Vou tomar conta de ti.

 

Como tomas conta dos cães murmurei.

 

Vou tomar conta de ti.

 

Não conseguia olhar para ele. Virei os olhos para a ilha. Os salgueiros, os ramos pesados roçando o solo, formando um dossel que dentro de algumas semanas serviria de abrigo aos casais de apaixonados que se deitariam no mesmo sítio em que gerações de casais apaixonados se tinham deitado antes deles. Eu, porém, não faria parte do grupo.

 

Estendi a minha mão para Chris. Ele segurou-a, mudando de posição de forma a sentar-se mais perto de mim, contemplando a ilha, tal como eu. Enquanto lhe contava o que se tinha passado naquela noite, em Kensington, ele escutou-me sem falar. Quando terminei, disse:

 

Não tens muito por onde escolher, Livie.

 

O que é que lhe podem fazer? Se houver julgamento, há todas as hipóteses de que não seja considerado culpado.

 

Culpado ou não, consegues imaginar como será o resto da vida dele, se ele for a julgamento?

 

Não me peças para fazer uma coisa destas. Por favor, não me peças isso.

 

Senti a pressão dos lábios dele sobre as costas da minha mão.

 

Está a arrefecer disse ele. E estou a ficar com fome. Vamos para baixo, está bem?

 

Preparou o jantar. Fiquei sentada na cozinha a observá-lo. Ele colocou os nossos pratos na mesa, sentou-se à minha frente no lugar que ocupava habitualmente. Ao contrário do que era costume, no entanto, não comeu com entusiasmo. Estendeu a mão sobre a mesa e fez-me uma festa na face.

 

O que é? perguntei.

 

Isso retorquiu ele. Mergulhou o garfo no meio dos vegetais. Nada parece certo, Livie. O que fazer. Como devemos ser. Às vezes, é tudo tão complicado.

 

Não quero saber o que está certo ou errado volvi. Apenas me interessa o que é fácil.

 

Tu e toda a gente.

 

Tu também?

 

Claro. Não sou diferente dos outros.

 

Mas eu não era desta opinião. Ele sempre me parecera tão seguro do rumo que seguia e do que fazia. Mesmo naquele momento, sentado à minha frente, segurando a minha mão, continuava a parecer-me seguro de si. Ergui a cabeça.

 

E então? pergunta ele.

 

Então, está feito respondo. Sinto a pressão dos dedos dele aumentar em torno dos meus. Se eu lhe enviar isto, Chris digo, não vou poder ir para casa. Terei de ficar aqui. Estamos entalados. Tu e eu. E tu sabes em que estado é que me encontro. Não vais poder... Tu e... Não vais poder... Não consigo dizer o resto. As palavras são tão fáceis de pronunciar: tu e Amanda não vão poder estar juntos da maneira como gostariam enquanto eu continuar viva e enquanto viver aqui, Chris. Já pensaste nisso? Mas não sou capaz de as dizer. Não consigo dizer o nome dela. Não consigo associar o nome dela ao dele.

 

Ele permanece imóvel. Observa-me. Lá fora, o dia nasce lentamente. Oiço um pato bater as asas na superfície do canal. Estará a pousar sobre as águas? Levantará voo? É impossível dizer ao certo.

 

Não é fácil diz Chris, numa voz firme. Mas é o que está certo, Livie. Acredito nisso.

 

Olhamos um para o outro e eu pergunto a mim própria que estará ele a ver. Quanto a mim, sei muito bem o que vejo. E o desejo de dizer tudo o que sinto, de pronunciar as palavras que me enchem o coração aperta-me o peito. Que alívio seria. Se ao menos Chris pudesse carregar o fardo durante um instante. Mas ele levanta-se, dá a volta à mesa, ajuda-me a levantar e a ir para o quarto. E eu sei que ele já tem fardos que cheguem.

 

                                   CAPÍTULO 26

Confia em mim, querido. É exactamente o que nos convém. Garanto-te que não te vais arrepender.

 

Com estas palavras, Helen conduziu Lynley até Hyde Park, no domingo de manhã. Ambos vestiam o equipamento desportivo que ela comprara na semana anterior. Se queriam realmente ficar em forma, afirmara ela, teriam de começar por uma caminhada rápida entre Eaton Terrace e Hyde Park Corner, ponto de partida para uma corrida. Depois de ter decidido que já tinham ”aquecido o suficiente”, ela rumou para norte, na direcção de Marble Arch, ainda um pouco distante do sítio onde se encontravam.

 

Helen impôs um ritmo de corrida admirável. Ultrapassaram pelo menos uma dezena de outros corredores sem dificuldade. Atrás dela, Lynley concentrava-se, esforçando-se por não ficar sem fôlego demasiado depressa. Ela era espantosa, de facto. Corria lindamente. Cabeça atirada para trás, braços flectidos à altura do cotovelo, os cabelos negros esvoaçando ao sabor do vento. Começava a perguntar-se se ela não teria frequentado cursos de ginástica em segredo só para o impressionar quando, chegados a Park Lane, perto do Dorchester, ela começou a evidenciar os primeiros sinais de fraqueza. Alcançou-a.

 

Ritmo demasiado rápido, querida?

 

Não, não respondeu, ofegante, afastando os braços. Formidável, não achas? O ar... o exercício.

 

Claro. Mas estás a ficar um pouco ruborizada.

 

Ai estou? continuou a correr corajosamente, sem abrandar o ritmo. Mas isso... é bom... não é? Para o sangue... a circulação... Tudo isso.

 

Percorreram mais cinquenta metros.

 

Eu diria que... inspirava como uma vítima de asfixia... é bom para... não concordas?

 

Sem dúvida concordou ele. Para o sistema cárdio-vascular, não há nada melhor. Ainda bem que tiveste esta ideia, Helen. Já era tempo de fazermos um esforço para nos pormos em forma. Queres que abrandemos um pouco o ritmo?

 

Não... não... de modo nenhum. Gotas de transpiração emergiam na testa dela e acumulavam-se sobre o lábio superior.Bom... isto... óptimo, não é?

 

Bastante contornaram a Fonte da Alegria e Lynley perguntou, elevando a voz: Para Speakers’ Corner? Ou para o parque?

 

Agitou o braço para norte.

 

Corner respondeu, ofegante.

 

Perfeito. Speakers’ Corner, aqui vamos nós. Mais devagar? Mais depressa? Como é que preferes?

 

Assim... bem. Óptimo. Lynley conteve um sorriso.

 

Não sei disse. Acho que precisamos de passar a uma velocidade superior, se é que vamos fazer exercício com regularidade. Podíamos pensar em trazer pesos.

 

O quê?

 

Pesos. Nunca viste uns, Helen? Podemos prendê-los aos pulsos e exercitar os braços enquanto corremos. É que o problema da corrida, se é que lhe podemos chamar um problema, porque só Deus sabe como isso me faz sentir estupendamente vem, não achas?

 

Sim... sim.

 

O problema, no entanto, vamos acelerar um pouco, acho que estamos a perder ritmo, é que a corrida faz trabalhar apenas o coração e as pernas. Quanto à parte de cima do corpo, nada feito. Agora, se usássemos pesos nos braços e fizéssemos exercícios com eles enquanto corremos, poderíamos...

 

Ela parou abruptamente. Mãos nos joelhos, o peito subindo e descendo, a respiração arquejante, ficou em pé, parada.

 

Passa-se alguma coisa, Helen? Lynley saltitava sem sair do lugar. Uma volta completa ao parque deverá demorar apenas... Não sei. Vejamos, quanto é que mede a circunferência? Dez quilómetros?

 

Meu Deus disse ela, sem fôlego. Os... meus pulmões...

 

Talvez fosse melhor descansar um pouco. Dois minutos, está bem para ti? Não podemos arrefecer. Podes fazer uma distensão muscular, se arrefeceres demasiado e depois recomeçares a correr de repente. E nós não queremos que isso aconteça, pois não?

 

Não, não. Precisou de dois minutos para recobrar o fôlego, deitada sobre a relva, cabeça virada para o céu. Quando finalmente conseguiu respirar normalmente, não se levantou. Continuou deitada, olhos fechados, e disse:

 

Chama-me um táxi.

 

Ele deitou-se ao lado dela, apoiado nos cotovelos.

 

Que disparate, Helen. Ainda agora começámos. É uma questão de hábito. Se eu puser o despertador para as cinco da manhã, todos os dias, e se nos levantarmos logo que ele toque, aposto em como em seis meses no máximo já serás capaz de dar duas voltas ao parque. Que dizes?

 

Abriu um dos olhos e fitou-o.

 

Quero um táxi. E tu és um patife incorrigível, Lord Asherton. Há quanto tempo corres em segredo?

 

Ele sorriu e prendeu uma madeixa de cabelo dela entre os dedos.

 

Desde Novembro.

 

Ela virou a cara, desesperada.

 

Seu patife. Tens andado a rir à minha custa nesta última semana?

 

De modo nenhum, querida.

 

E tossiu de repente para dissimular um acesso de riso.

 

Tens andado a levantar-te às cinco da manhã, todos os dias?

 

Às seis, na maioria das vezes.

 

E tens vindo correr?

 

Hum...

 

E tencionas continuar?

 

Claro que sim. Como tu própria disseste, e muito bem, é o melhor exercício que há e nós precisamos de nos mantermos em forma.

 

Muito certo. Ela gesticulou na direcção de Park Lane e deixou cair o braço no chão. Um táxi disse. Quanto ao exercício, logo se verá.

 

Denton cruzou-se com eles nas escadas, quando ambos se preparavam para tomar um bom duche depois do exercício matinal. Preparava-se para sair, ramo de flores numa mão, garrafa de vinho na outra, e as palavras destruidor de corações gravadas na testa. Parou, mudou de direcção e entrou na sala, para dizer a Lynley:

 

Menos de dez minutos depois de terem saído apareceu por cá um rapaz.

 

Regressou com um sobrescrito grosso debaixo do braço. Lynley pegou nele, enquanto Denton dizia:

 

Deixou isto. Não quis esperar. Pediu-me apenas que entregasse o sobrescrito ao inspector logo que ele chegasse.

 

Lynley abriu-o e perguntou:

 

Vais sair?

 

Um piquenique em Dorking. Box Hill respondeu Denton.

 

Ah! Com que então uma admiradora de Jane Austen?

 

Como, senhor?

 

Nada. Não te metas em sarilhos, é só. Denton sorriu.

 

Nunca.

 

Ouviram-no assobiar quando saiu e fechou a porta principal.

 

O que é que se passa, Tommy?

 

Virando as costas às escadas, Helen veio ter com ele enquanto ele retirava de dentro do sobrescrito um maço de folhas pautadas amarelas, preenchidas por gatafunhos escritos a lápis. Depois de ter lido as primeiras palavras na primeira página Chris saiu com os cães para um passeio soltou um profundo suspiro.

 

Tommy? disse Helen.

 

Olivia respondeu.

 

Ela mordeu o anzol, então?

 

Parece que sim.

 

Lynley, no entanto, cedo se apercebeu de que ela também lhe preparara uma armadilha. Enquanto Helen tomava duche, lavava o cabelo, se vestia e fazia o que quer que fosse que as mulheres achavam necessário para ocupar pelo menos noventa minutos, ele leu as folhas, junto à janela da sala. E compreendeu o que Olivia tentara mostrar-lhe. E sentiu o que ela se esforçara por fazê-lo sentir. Quando lhe revelara informações relativamente às actividades do ARM que em nada o poderiam ajudar a resolver o caso do homicídio de Kenneth Fleming, pensara, mas o que é isto? Porque é que ela...? E depois compreendeu. Aquelas eram revelações nascidas da raiva e do desespero com que ela encarava o acto de traição que ele lhe pedira que cometesse.

 

Terminava o último maço de folhas quando Helen regressou para junto dele. Pegou nos outros maços e começou a lê-los. Não disse nada quando acabou de ler e, pousando as folhas, saiu da sala. Ela continuou a ler, tranquilamente, página após página, pés descalços e pernas esbeltas esticadas no sofá e as costas apoiadas numa almofada.

 

Lynley tomou duche e vestiu-se. Enquanto isso, reflectiu sobre algumas das ironias da vida: conhecer a pessoa certa no pior dos momentos, escolher uma linha de conduta que acabaria por causar a perdição, descobrir que uma das nossas crenças mais queridas é falsa, alcançar um objectivo que almejamos desesperadamente apenas para descobrir que não é exactamente aquilo que queremos. Isto sem esquecer, obviamente, a ironia final: todas as meias-verdades, as mentiras descaradas e informações erróneas espalhadas deliberadamente, tudo isso para obter em troca uma miserável colecção de factos inequívocos.

 

Decida. Ouvia a voz dela, provocatória. Decida, inspector. O senhor é capaz. Decida.

 

Quando voltou para junto de Helen, esta estava a meio do relato de Olivia. Enquanto ela lia, ele dirigiu-se ao armário encostado à parede e começou a examinar uma fileira de CDs. Não sabia de que é que estava à procura. Helen continuou a ler. Escolheu Chopin. Opus 53 em Lá Maior. De todas as obras compostas por um não russo, esta era a sua favorita. Quando a música começou a soar pela sala, aproximou-se do sofá. Helen levantou os pés e mudou de posição. Ele sentou-se ao lado dela e beijou-a na têmpora.

 

Não falaram enquanto ela não terminou a leitura, e nessa altura já outra peça musical tinha começado a fazer-se ouvir.

 

Estavas certo, então disse ela. E quando ele confirmou com um aceno de cabeça, acrescentou: Sabias tudo.

 

Tudo, não. Não sabia como ela o tinha feito. E ignorava quem é que ela esperava que fosse preso no seu lugar, se as coisas chegassem a esse ponto.

 

Quem? quis saber Helen.

 

Jean Cooper.

 

A mulher? Não vejo como...

 

Alugou um Cavalier azul Vestiu-se de uma forma totalmente diferente do seu estilo habitual. Se ela ou o carro tivessem sido vistos no Kent, naquela noite, a descrição fornecida por qualquer testemunha corresponderia a Jean Cooper.

 

Mas o garoto... Tommy, o garoto não disse que a mulher que ele tinha visto naquela noite tinha cabelo claro?

 

Cabelo claro, grisalho. Ele estava sem óculos. Reconheceu o carro, entreviu a mulher e supôs o resto. Julgou que a mãe tivesse ido visitar o pai. E ela tinha boas razões para o fazer e boas razões para matar Gabriella Patten.

 

Helen abanou a cabeça, pensativa.

 

Se ao menos Fleming tivesse dito a Miriam Whitelaw que ia até ao Kent para terminar a sua ligação com Gabriella...

 

Ainda estaria vivo.

 

E porque é que não lhe terá dito?

 

Por orgulho. Já tinha estragado a vida dele uma vez. Não queria que ela soubesse quão perto estivera de a estragar novamente.

 

Mas ela teria acabado por saber.

 

É verdade. Mas ele poderia ter justificado o seu rompimento com Gabriella dizendo que se tinha cansado dela, que se apercebera do tipo de mulher que ela era. Que era aquilo que, provavelmente, ele teria acabado por dizer a Miriam. Só não estava preparado para lho dizer imediatamente.

 

Foi tudo uma questão de sincronização, nesse caso.

 

Em certo sentido, sim.

 

Lynley pegou na mão dela e viu os seus dedos entrelaçarem-se sem esforço nos dele. Sentiu-se inesperadamente comovido com aquele gesto, com as promessas que ele encerrava e com o que revelava.

 

E quanto ao resto disse Helen, hesitante, à história dos animais.

 

O que é que tem?

 

O que é que vais fazer em relação a isso?

 

Ficou calado, reflectindo sobre o assunto, avaliando as implicações por detrás de cada uma das respostas que poderia dar-lhe. Quando ele ficou calado, ela continuou.

 

Míriam irá para Holloway, Tommy.

 

Exacto.

 

E sabes quem é que está a trabalhar nos outros casos? Quem é que está a investigar o ARM?

 

É fácil descobrir.

 

Sentiu os dedos dela apertarem ainda mais os dele.

 

Se denunciares Chris Faraday a quem estiver a investigar os assaltos e os raptos... Tommy, ela ficará sem ninguém. Será obrigada a ir para um lar ou para um hospital. Tudo isto, tudo o que lhe pediste que fizesse, terá sido em vão.

 

Terá servido para prender um assassino, Helen. Achas que é pouco? Não a olhava, mas sentia os olhos dela colados nele, perscrutando-lhe o rosto, tentando ler a expressão dele e descobrir o que ele tencionava fazer. Algo que ele próprio não sabia. Não ainda. Era demasiado cedo.

 

Quero coisas simples, pensou. Quero-as bem definidas e demarcadas. Quero impor limites que ninguém se lembre de transpor. Quero escrever a palavra ”Fim”, quando por vezes se trata apenas de um interlúdio. É infeliz, mas é assim. É a minha vida, é o drama da minha vida. Sempre foi.

 

Decida, inspector. Tinha a impressão de ouvir a voz de Olivia. Decida. Decida. E, depois, viva com essa decisão. Tal como eu vou viver. Tal como vivo.

 

Sim, pensou Lynley. De certa forma, ele devia-lhe isso. Devia-lhe o facto de assumir o fardo da sua própria decisão, o peso da sua consciência e a consciência das responsabilidades para o resto da vida.

 

Trata-se de uma investigação de homicídio respondeu finalmente à pergunta silenciosa de Helen. Foi assim que começou. É assim que vai terminar. 

 

                                                                                Elizabeth George

 

 

                      

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