Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UM GOSTO MÓRBIDO POR OSSOS
Na bela e luminosa manhã de princípios de Maio em que verdadeiramente se pode considerar que começou todo o sensacional caso das relíquias de Gwytherin, o Irmão Cadfael estava a pé desde muito antes de tocar a matinas, a transplantar rebentos de repolho antes que se levantasse o vento diurno. Todos os seus pensamentos estavam focados em ideias de nascimento, crescimento e fertilidade, portanto muito longe de túmulos, ou relíquias, ou mortes violentas, fossem de santos, pecadores ou homens comuns, decentes e falíveis como ele próprio. Nada perturbava a sua paz, além da necessidade de voltar para casa por causa da missa e da meia hora de reunião do cabido que se lhe seguia, a qual sempre tendia a prolongar-se por uns dez minutos extras. Era de má vontade que passava esse tempo longe dos seus mais importantes afazeres ali entre as verduras, mas não podia fugir ao dever. Afinal de contas, escolhera aquela vida de claustro com os olhos bem abertos e não podia queixar-se nem mesmo das partes que achava pouco atraentes, quando o conjunto tão bem se lhe adaptava e lhe dava aquela espécie de satisfação que agora sentiu quando endireitou as costas e olhou em seu redor.
Duvidava de que em todo o reino houvesse um jardim beneditino mais belo ou mais bem fornecido de ervas, quer próprias para condimentar as carnes quer valiosas no campo medicinal.
As principais terras e pomares da Abadia de S. Pedro e S. Paulo de Shrewsbury ficavam no lado norte da estrada, fora do enclave monástico, mas aqui, no jardim rodeado pelos muros, próximo dos viveiros de peixe do superior do convento e do ribeiro que fazia funcionar o moinho da Abadia, o Irmão Cadfael tinha incontestável autoridade. O herbário era, particularmente, o seu reino, pois
construíra-o gradualmente ao longo de quinze anos de labor e acrescentara-lhe muitas plantas exóticas, fruto do seu cuidadoso cultivo, que coleccionara durante uma juventude de vagabundagem que o levara tão longe como a Veneza, Chipre e Terra Santa.
Isto, porque o Irmão Cadfael só tarde viera para a vida monástica, tal como um navio muito gasto que por fim se abriga num porto sossegado. Sabia muito bem que nos primeiros anos dos votos, os noviços e criados laicos não deixavam de o apontar uns aos outros com sussurros cheios de temor.
- Vê aquele irmão a trabalhar ali no jardim? Aquele sujeito forte que balança de uma perna para a outra como se fosse um marujo? Ao olhar para ele, não seria capaz de imaginar que, quando novo, andou nas Cruzadas, pois não? Estava em Antioquia com Godofredo de Bulhão quando os Sarracenos entregaram essa cidade. E andou no mar, como comandante, quando o rei de Jerusalém governava toda a costa da Terra Santa, e lutou durante dez anos contra os corsários! Agora, é difícil acreditar, hem?
Mas o Irmão Cadfael nada achava de estranho na sua carreira tão amplamente variada e nada esquecera e de nada se arrependia. Não via qualquer contradição entre o deleite que sentira na guerra e nas aventuras e o subtil prazer que agora encontrava na quietude. Condimentada, é certo, com umas tantas travessuras sempre que se lhe deparava a oportunidade, pois gostava dos pratos bem temperados, mas, em todo o caso, a quietude, um navio em calmaria e que gosta de estar assim. E era bem provável que os jovens que o miravam com tal curiosidade também murmurassem que, numa vida tal como a que ele levara, certamente houvera encontros com mulheres, e nem todos puramente cavalheirescos, e que espécie de base era essa para uma vida conventual?
Tinham razão no que se referia a mulheres. Pondo de parte Richildis, que, depois de dez anos, não pouco naturalmente, se cansara de esperar o seu regresso e se casara com um pequeno proprietário rural de natureza sólida e com bons projectos de futuro no condado e sem qualquer intenção de fugir para a guerra, o Irmão Cadfael recordava outras mulheres, em mais de uma terra, com quem tivera encontros agradáveis para ambas as partes e sem prejudicar qualquer delas: Bianca, a tirar água da fonte de pedra em Veneza; Arianna, a rapariga grega que tinha um barco; Mariam, a viúva sarracena que vendia especiarias e fruta em Antioquia e que o considerou homem suficiente para, por uns tempos, substituir o marido que wperdera. Dos encontros, quer os ligeiros quer os sérios, nenhum provocara qualquer ressentimento. Considerava isso uma proeza bastante grande, e tê-las conhecido contribuíra para o harmonioso equilíbrio que agora lhe permitia viver contente com esta vida protegida e contemplativa e lhe dava paciência e compreensão para suportar essas almas simples e enclausuradas que tinham vestido o hábito dos Beneditinos como se abraçassem uma profissão, ao passo que para ele isso fora uma reforma bem programada. Quando já se fez tudo o mais que há para fazer, aperfeiçoar um jardim-herbário conventual é uma coisa bela e que satisfaz. Mas não podia conceber a ideia de entrar para esta vida sem antes nada ter feito de diferente.
Mais cinco minutos e tinha de ir lavar as mãos e apresentar-se na igreja para a missa. Aproveitou a folga para percorrer o seu reino de flores pálidas e fragrantes, onde o Irmão John e o Irmão Columbanus, dois jovens tonsurados há pouco mais de um ano, se ocupavam em tirar as ervas daninhas e em aparar as bordas. Brilhantes ou baças, oleosas ou penugentas, as folhas apresentavam todas as variações possíveis da cor verde. As flores eram essencialmente tímidas, pequeninas, quase furtivas, em cores suaves e esbatidas, lilases e azuis sombreados e pálidos amarelos, pois eram uma parte sem importância e sem interesse para além do facto de assegurarem a semente para a continuidade. A arruda, a sálvia, o alecrim, a aljofareira, o gengibre, a hortelã, o tomilho, a aquilégia, o cebolim, a mostarda - ervas de todas as espécies cresciam ali -, o funcho, a atanásia, o basílico e o aneto, a salsa, o cerefólio e a manjerona. Ensinara a todos os seus assistentes a utilidade até das que não eram conhecidas e também os esclareceu sobre os seus perigos, pois o poder benéfico das ervas está na sua proporção exacta, e uma dosagem excessiva pode ser pior que a própria doença. Pequenas em tamanho, modestas na cor, rasteiras e tímidas, as suas ervas só chamavam a atenção pela doçura que exalavam quando o sol as aquecia. Mas, por trás das suas escolhidas fileiras, outras se erguiam, mais altas e imponentes: maciços de peónias cultivadas por causa das suas sementes, que eram uma especiaria, e arrogantes botões de papoila, de folhas esbatidas, ainda mal mostrando, através da sua cerrada armadura, as pétalas brancas ou de púrpura quase negra. Erguiam-se tão altas como um homem baixo, e a sua terra natal ficava na parte oriental do mar Mediterrâneo. Daí trouxera Cadfael, há muito, os antepassados da planta, sob a forma de sementes, e cultivara-a e entrecruzara-a no seu próprio jardim, até conseguir a perfeição que ali tinha, para poder preparar remédios contra a dor, o maior inimigo do homem. Contra a dor e a ausência de sono, o qual é o melhor remédio para a dor.
Os dois jovens, com os hábitos arregaçados até ao joelho, estavam justamente a endireitar as costas e a sacudir a terra das mãos, tão conscientes da hora como ele. O Irmão Columbanus por nada no mundo deixaria escapar o mínimo dos seus deveres, ou apoiaria tal deslize em qualquer dos seus colegas.
Era um jovem muito agradável à vista, bem constituído e alto, com uma cabeça normanda formidável e redonda, pois vinha de uma família normanda, aristocrática e formidável. Era um filho mais novo despachado para fazer carreira nas alas monásticas, como a melhor hipótese a seguir a herdar terra. Tinha o cabelo amarelo, rígido e espetado e grandes olhos azuis, e o seu comportamento modesto e a sua retraída palidez tendiam a obscurecer a força muscular do seu corpo. Um colega não muito confortável, este Irmão Columbanus, pois, apesar do seu admirável arcaboiço físico, provara, havia já um certo tempo, que tinha um arcaboiço mental de alarmante sensibilidade e era dado a ataques de tensão emocional, crises de consciência e visões apocalípticas, muito afastadas daquilo que o seu sólido crânio fazia esperar. Mas era novo e idealista e tinha ainda tempo para se curar dos seus tormentos.
O Irmão Cadfael trabalhava com ele há já vários meses e tinha nele fortes esperanças. Estava sempre pronto para tudo, era enérgico e quase que demasiado ansioso em agradar. Possivelmente sentia ainda muito próxima a sua dívida para com a aristocrática família e temia qualquer erro que fosse reflectir-se nos seus parentes. Não se pode ser de nobre sangue normando e não ser excelente em tudo! O Irmão Cadfael lastimava todas as vítimas apanhadas nessa ratoeira, sendo, como era, de antiga linhagem galesa, sem pretensões sobre-humanas. Por isso tolerava com paciência o Irmão Columbanus e tratava filosoficamente os seus ocasionais excessos. O suco das papoilas dormideiras mais de uma vez acalmara Columbanus, quando o fervor religioso o deixara prostrado.
Bom, pelo menos com o outro não havia qualquer disparate desse género! O Irmão John era tão comum e prático como o seu nome, um jovem entroncado, com nariz arrebitado e uma indomável coroa de crespos caracóis ruços e contornar-lhe a tonsura. Estava sempre com fome, e o principal interesse que tinha em todas as coisas que cresciam nos jardins era saber se eram comestíveis e de sabor agradável. Vindo o Outono, certamente arranjava um modo de conseguir penetrar nos pomares. Nesse momento, enquanto esperava a estação dos frutos macios, estava contente em ajudar o irmão Cadfael a transplantar umas alfaces têmporas. Era uma alma bela, cheia de vida e bem-humorada, que parecia ter estupidamente mergulhado nesta vida de clausura devido a qualquer erro incompreensível e não ter ainda compreendido que viera para o lugar errado. O Irmão Cadfael pressentia-lhe um vivo sentimento de malícia muito semelhante ao seu, mas ao qual ainda não fora dada qualquer oportunidade num mundo mais amplo, e intimamente estava convencido de que, certo dia, aquele particular pássaro de crista encarnada decerto voaria para longe. Entretanto ia aproveitando todo o entretenimento que se lhe oferecesse e, por vezes, encontrava-o nos mais inesperados lugares.
- Tenho de chegar a horas - disse, soltando a veste e limpando alegremente as mãos no traseiro. - Esta semana sou o leitor. - E era mesmo, recordou Cadfael, e, por mais monótonas que fossem as passagens que lhe escolhiam para o refeitório e por mais inócuos que fossem os santos e os mártires que tinha de celebrar durante a reunião do cabido, John, da sua própria autoria, sempre conseguia insuflar-lhes drama e vida. Dessem-lhe a decapitação de S. João Baptista e ele faria até tremer os alicerces da casa.
- Irmão, tu lês para a glória de Deus e dos santos - recordou-lhe Columbanus, com uma censura cheia de amor e uma humildade um tanto ofensiva -, e não para a da tua própria alma!
- E isto mostrava o pouco que sabia sobre o assunto, ou quão falso podia ser.
- Esse abençoado pensamento está-me sempre no espírito disse o Irmão John com incontível prazer e, por trás das costas do colega, piscou o olho a Cadfael e lançou-se, cheio de entusiasmo, através das áleas de arbustos, em direcção ao portão da Abadia e do grande adro. Seguiram-no, mais calmamente, o jovem esguio, louro e ágil e o veterano de cinquenta e sete anos, baixo, tronco de barril e pernas tortas. ”Será que alguma vez”, perguntava-se Cadfael balançando no seu enérgico passo de marinheiro junto às passadas longas e elásticas do outro, ”eu fui assim tão jovem e sisudo?” Custou-lhe um certo esforço recordar que Columbanus tinha na realidade vinte e cinco anos, já completos, e que era o rebento de uma família sofisticada e ambiciosa, cuja fortuna, certamente, não era apenas baseada na religião!
Esta terceira missa do dia era não paroquial e breve, e depois dela os irmãos beneditinos da Abadia de Shrewsbury seguiam em procissão desde o coro até à sala do capítulo e dirigiam-se ordeiramente para os seus cadeirões, com o Superior Heribert à cabeça. O superior era velho, de feitio suave e dócil, um gentil asceta de cabelo grisalho que só desejava a paz e a harmonia em seu redor. A sua figura era pouco impressionante, embora a sua face fosse cativante na sua ansiosa doçura. Noviços e pupilos sentiam-se à vontade na sua presença, quando lá podiam chegar, o que de modo nenhum era sempre fácil, pois era bem provável que a figura extremamente impressionante do Prior Robert se metesse de permeio.
O Prior Robert Pennant, mistura de sangue galês e inglês, tinha mais de um metro e oitenta de altura e era delgado e gracioso; aos cinquenta anos, o seu cabelo era cinzento-prateado, o rosto pálido e belo, com feições longas e aristocráticas e uma arrogante testa marmórea. Nenhum homem nos condados do interior poderia ter um ar mais imponente com uma mitra - um super-homem em altura e autoridade -, e não havia na Inglaterra nenhum homem mais consciente desse facto ou mais determinado a prová-lo na primeira oportunidade. Até os seus movimentos, ao deslizar através da sala do capítulo até ao seu cadeirão, eram já um treino para o pontificado.
Atrás dele vinha o Irmão Richard, o subprior, sua antítese: grande, desajeitado, amigável e benevolente, com uma inteligência boa, mas mentalmente preguiçoso. Duvidava de vir a ser prior quando Robert alcançasse o seu objectivo, por haver tantos homens mais novos, industriosos e plenos de ambição que tinham em mira a subida de categoria e que, para a assegurar, estavam dispostos a grandes esforços.
Depois de Richard vinham todos os outros irmãos, segundo a sua hierarquia: o Irmão Benedict, sacristão, o Irmão Anselm, chantre, o Irmão Matthew, despenseiro, o Irmão Dennis, chefe do hospital, o Irmão Edmund, enfermeiro, o Irmão Oswald, esmoler, o Irmão Jerome, secretário do prior, e o Irmão Paulo, chefe dos noviços, seguidos pelo resto do convento, formando um número bem florescente. O Irmão Cadfael seguia entre os últimos, balançando-se até ao canto por ele escolhido, bem para a retaguarda e pobremente iluminado, meio escondido atrás de um pilar de pedra. Como não lhe competia qualquer trabalhosa tarefa envolvendo pergaminhos, era pouco provável que fosse chamado a falar no capítulo a respeito dos diferentes assuntos da casa, e, quando ainda por cima o assunto em questão fosse aborrecido, era costume seu, aproveitar bem o tempo para dormir, o que, graças a um longo hábito, conseguia fazer permanecendo muito direito no seu canto sombreado, sem ninguém disso se aperceber. Tinha um sexto sentido, que o alertava em casos de necessidade e o acordava instantaneamente e na plena posse das suas faculdades. Era até famoso por responder apropriadamente a uma pergunta, quando era certo que estava a dormir quando lhe fora feita.
Nesta particular manhã de Maio permaneceu acordado o tempo suficiente para se deleitar com o Irmão John, que, da vida de um qualquer santo obscuro que era festejado nesse dia, extraía até à última partícula de drama. Mas, quando o despenseiro começou a explicar um complicado problema em relação a um legado dado em parte para o altar de Nossa Senhora e em parte para a enfermaria, o Irmão Cadfael preparou-se para dormitar. Afinal de contas, sabia bem que, uma vez tratado o assunto de alguns prevaricadores, o tempo que sobrasse seria dedicado pelo Prior Robert à sua campanha para conseguir para o convento as relíquias de qualquer santo poderoso. Para além disso, muito pouco fora discutido nos últimos meses. Na verdade, o prior andava com aquilo metido na cabeça desde que no Convento dos Cluny de Wenlock tinham, com grande orgulho e júbilo, redescoberto o túmulo da sua fundadora de origem, Santa Milburga, e tinham triunfalmente instalado as suas ossadas sobre o altar. Um convento estranho, distante apenas algumas milhas, com o seu santo milagroso particular, e a grande casa beneditina de Shrewsbury tão vazia de relíquias como uma caixa das esmolas saqueada! Era de mais para o Prior Robert poder digerir! Agora, há mais de um ano que andava a espiolhar por todos os cantos à procura de um santo sobressalente, pondo as suas esperanças no País de Gales, onde era bem sabido que homens e mulheres santos tinham sido, no passado, tão comuns como cogumelos no Outono e considerados com o mesmo desinteresse.
O Irmão Cadfael não tinha qualquer vontade de ouvir as suas lamúrias e incitamentos. Adormeceu.
O calor do Sol reflectia-se nas facetas polidas da rocha pálida e ardente, pondo-lhe a face em carne viva, enquanto que a poeira árida que pairava no ar lhe queimava a garganta. Donde se abrigava com os companheiros, podia ver a longa crista da muralha e as cabeças cobertas de aço das sentinelas nas torres, reluzindo na forte luminosidade. Uma paisagem esculpida de pedra vermelha e fogo, toda feita de profundas gargantas e cristas escarpadas, sem uma única folha verde e fresca que a amenizasse, e, perante os seus olhos, o objectivo de toda a jornada, a cidade santa de Jerusalém, coroada de torres e cúpulas que ficavam dentro das suas muralhas. A poeira levantada pela batalha flutuava no ar, impedindo que se vissem com clareza as fortificações e o portão, e os gritos roucos e o som metálico das armaduras enchiam-lhe os ouvidos. Estava à espera de que a trombeta soasse para o assalto final e mantinha-se bem abrigado enquanto esperava, pois aprendera a respeitar o alcance do pequeno e retorcido arco sarraceno. Viu as flâmulas saírem do seu abrigo e avançarem em torrente sob o vento ardente.
O som que o fez sair do seu sonho e dar um pulo bem acordado era suficientemente forte e impressionante, mas não era o som estridente de uma trombeta; e não foi arrancado à imobilidade para um triunfante ataque a Jerusalém. Estava de novo no seu cadeirão no obscuro canto da sala do capítulo e pusera-se em pé tão alerta como os outros e com igual consternação e alarme. E o grito que o acordara esbatia-se numa série de gemidos e num choro quebrado que tanto podia significar extrema dor como extremo êxtase. Na área livre que havia no centro da sala do capítulo, o Irmão Columbanus jazia de cara para baixo, esbracejando e estrebuchando como peixe em terra seca, batendo com a testa e as palmas contra as lajes do chão, dando pontapés e trejeitos com as longas e pálidas pernas, destapadas até ao joelho pelas contorções, e ganindo aqueles extraordinários sons de impressionante excitação física, enquanto o irmão que lhe ficava mais próximo cambaleava sob um choque incontrolável e o Prior Robert, de mãos erguidas, lançava exortações e exclamações.
O Irmão Cadfael e o Irmão Edmund, o enfermeiro, chegaram junto à vítima ao mesmo tempo, ajoelharam um de cada lado desta e seguraram-na para impedir que rebentasse com os miolos contra as lajes do chão, ou que deslocasse as articulações com as suas contorções.
- A epilepsia! - disse, sucintamente, o Irmão Edmund e enfiou o grosso cordão da cintura de Columbanus entre os seus dentes e com ele uma prega do hábito para impedir que mordesse a língua.
O Irmão Cadfael não estava certo do diagnóstico, porque aquilo não eram os gemidos e ruídos desajeitados de um epiléptico durante um ataque, mas antes se assemelhava ao que seria de esperar de uma mulher histérica em fúria. Mas o tratamento fez, pelo menos, acabar metade do barulho e até pareceu fazer diminuir o vigor das convulsões, embora estas logo tenham recomeçado quando desfizeram um pouco o amplexo que o continha.
- Pobre rapaz! - sussurrou o Superior Heribert, que cambaleava mais atrás. - Que aflição tão súbita e tão cruel! Mexam-lhe com cuidado! Levem-no para a enfermaria. Devemos orar para que se restabeleça.
O capítulo desfez-se com uma certa desordem. Com a ajuda do Irmão John e de certos outros com espírito prático, embrulharam o Irmão Columbanus num lençol, com segurança mas também com conforto, prendendo-lhe os braços e as pernas de modo a não poder magoar-se a si próprio, separando-lhe os dentes com uma espátula de madeira em vez do pano, com o qual se poderia engasgar e sufocar, e carregaram com ele numa padiola até à enfermaria, onde o meteram na cama e o amarraram com ligaduras em volta do peito e das ancas. Ainda gemia, borbulhava e ofegava, mas a força ia enfraquecendo, e, quando conseguiram fazê-lo ingerir uma porção de suco de papoila do Irmão Cadfael, os gemidos transformaram-se num miserável murmúrio e enfraqueceu a violência da luta contra o que o prendia.
- Tomem bem conta dele - disse o Prior Robert, debruçando-se sobre a cama do jovem, com o sobrolho ansiosamente franzido. - Acho que devia ficar constantemente alguém junto dele para o vigiar, para o caso de recomeçar com ataques. Você tem de atender aos outros doentes, não pode permanecer sentado junto dele dia e noite. Irmão Jerome, ponho este paciente a seu cargo e, enquanto ele precisar de si, dispenso-o de todos os outros deveres.
- De boa vontade - disse o Irmão Jerome - e em oração! Era o assistente mais chegado ao Prior Robert e o seu mais devoto admirador e era inevitavelmente escolhido sempre que Robert precisasse de rigorosa obediência e de meticulosos relatórios, como bem podia ser o caso quando um membro do convento sucumbia ao que, noutro lado, se podia murmurar ser um ataque de loucura.
- Fique com ele especialmente de noite - disse o prior -, porque de noite a resistência humana enfraquece e o seu mal pode erguer-se novamente contra ele. Se ele dormir calmamente, você também pode descansar, mas fique por perto para o caso de precisar de si.
- Dentro de uma hora estará a dormir - disse Cadfael, confiante - e deve passar a um sono normal bem antes da noite. Se Deus quiser, ele pode bem estar livre disto antes da manhã.
Intimamente, pensava que ao Irmão Columbanus faltava trabalho suficiente tanto para o corpo como para o espírito e que este se vingava dessa falta com semelhantes excessos, semivoluntários e semi-involuntários, que eram dignos tanto de lástima como de censura. Mas era suficientemente cauteloso para guardar uma dúvida a respeito de qualquer convicção. Não estava certo de conhecer os seus irmãos de adopção suficientemente bem para poder julgar com certeza. Bom, o Irmão John, sim, talvez! Mas, dentro da vida conventual ou fora dela, os Irmãos Johns alegres, sinceros e extrovertidos eram escassos.
Na manhã seguinte, o Irmão Jerome apareceu no capítulo com um ar pleno de exaltação e o aspecto de alguém quase a rebentar com novidades recentes. Perante a suave censura do Superior Heribert por ter deixado o paciente sem autorização, juntou humildemente as mãos e curvou a cabeça, mas não perdeu nem um pouco da sua segurança plena de deleite.
- Padre, fui mandado aqui por outro dever que me pareceu ainda mais urgente. Deixei o Irmão Columbanus a dormir, se bem que não pacificamente, pois até o seu sono é atormentado. Mas estão dois irmãos laicos a vigiá-lo. Se fiz mal, peço humildemente perdão.
- Então o nosso irmão não está melhor? - perguntou o superior com ansiedade.
- Está ainda profundamente perturbado e, quando acorda, logo delira. Mas, padre, é a esse respeito o meu recado! Há uma esperança certa para ele! Durante a noite fui miraculosamente visitado. Vim dizer-vos o que a divina piedade me deu como instruções. Padre, de madrugada mergulhei num ligeiro sono, junto à cama do Irmão Columbanus, e tive um sonho maravilhosamente belo.
Por essa altura já tinha a atenção de toda a gente, e até o Irmão Cadfael estava bem acordado.
- O quê, outro? - sussurrou-lhe maliciosamente o Irmão John ao ouvido. - A praga alastra!
- Padre, pareceu-me que o muro da sala se abriu e uma forte luz brilhou e, através da luz e irradiando-a, aproximou-se uma lindíssima virgem que parou junto à cama do nosso irmão e falou para mim. Disse que o seu nome era Winifred e que no País de Gales existe uma nascente santa que brotou para a luz no local onde fora martirizada. E disse que, se o Irmão Columbanus se banhasse nas águas dessa nascente, logo ficaria sarado e recuperaria o tino. Depois abençoou a nossa casa e desapareceu numa forte luz, e acordei.
Por sobre o murmúrio de excitação que percorria a sala do capítulo, a voz do Prior Robert elevou-se em reverente triunfo:
- Padre superior, estamos a ser guiados! A nossa procura de um santo atraiu sobre nós este símbolo de favor, como sinal de que devemos perseverar.
- Winifred! - exclamou, duvidoso, o superior. - Não recordo com clareza a história dessa santa e mártir. Há tantos no País de Gales! Temos certamente de mandar o Irmão Columbanus à nascente santa, pois seria ingratidão não dar ouvidos a tão evidente sinal. Mas onde se encontra exactamente?
O olhar do Prior Robert andou à procura dos poucos galeses que havia entre os irmãos, passou um tanto apressado por sobre o Irmão Cadfael, que nunca fora um dos seus favoritos, talvez por causa de um certo brilho que tinha no olhar, assim como pelo seu passado notoriamente mundano, e iluminou-se de satisfação ao deparar com o velho Irmão Rhys, que estava praticamente senil, mas era seguro sob o ponto de vista de doutrina e tinha a capacidade de caprichosa memória própria dos muito idosos.
- Irmão, pode contar-nos a história desta santa e onde se encontra a nascente?
O idoso homem levou tempo a perceber que se tornara o centro das atenções. Era encolhido como um passarinho, desdentado, e estava acostumado a um tolerante esquecimento. Começou hesitante, mas foi ganhando calor para a tarefa quando viu todos os olhares postos em si.
- Santa Winifred, foi o que disse, padre? Toda a gente conhece Santa Winifred! Encontra-se a nascente pelo nome que se deu ao local, Holywell, e não fica longe de Chester. Mas ela não está aí. O seu túmulo não se encontra em Holywell.
- Conte-nos a história dela - pediu o Prior Robert, quase servil com tanta ânsia. - Conte-nos toda a história dela.
- Santa Winifred - declamou o idoso homem, começando a achar prazer na sua hora de glória - era a filha única de um cavaleiro chamado Tevyth, que vivia naquela região quando os príncipes ainda eram ateus. Mas este cavaleiro, assim como toda a sua casa, foi convertido por S. Beuno, construindo-lhe ali uma igreja, e deu-lhe habitação. A menina era ainda mais devota que seus pais e fez juramento de permanecer virgem toda a vida e ouvia missa todos os dias. Mas aconteceu que certo domingo, estando doente, ficou em casa, enquanto todos os outros foram para a igreja. E apareceu à porta o príncipe daquela região. Era Cradoc, filho do rei, e apaixonara-se por ela à distância. É que esta menina era muito bela. Muito bela! - exultava o Irmão Rhys e lambia ruidosamente os beiços. O Prior Robert recuou visivelmente, mas absteve-se de, com uma censura, fazer parar a torrente. - O príncipe alegou que estava com calor e sequioso, devido à caça - disse lugubremente o Irmão Rhys -, e pediu um copo de água e a menina deixou-o entrar e deu-lhe de beber. Então - disse em voz estridente, arquejando no seu volumoso hábito e estendendo todo o corpo com um vigor que nenhum dos presentes teria acreditado ser possível -, precipitando-se sobre ela, prendeu-a nos braços. Assim!
- O esforço quase era demasiado para ele e, além disso, o prior mirava-o alarmado; com dignidade, acalmou-se. - A fiel virgem dissuadiu-o com doces palavras e escapou para outra sala, trepou a uma janela e correu em direcção à igreja. Mas, descobrindo que fora enganado, o príncipe Cradoc subiu para o cavalo e foi em sua perseguição e alcançou-a já à vista da igreja. Então, temendo que revelasse a sua infâmia, cortou-lhe a cabeça com a espada.
Fez uma pausa à espera do murmúrio de horror, piedade e indignação e recebeu-o, juntamente com a comoção de mãos que se juntam em oração e um tributo de olhos arregalados.
- E foi desse modo comovente que atingiu a morte e a beatitude? - interrogou, entusiasticamente, o Irmão Jerome.
- Nem pensar! - retorquiu, secamente, o Irmão Rhys. Nunca gostara do Irmão Jerome. - S. Beuno e a congregação estavam a sair da igreja e viram o que se passava. O santo lançou uma terrível maldição sobre o assassino, que logo caiu no solo e começou a derreter como cera numa fogueira, até que todo o seu corpo se infiltrou na erva. Então, S. Beuno pôs a cabeça da virgem de novo sobre o seu pescoço e as carnes ligaram-se e ela ergueu-se de um pulo, viva, e uma nascente santificada brotou no ponto onde ressuscitou.
Esperavam enfeitiçados, mas deixou-os esperar. Depois da morte, perdera o interesse para ele.
- E depois? - insistiu o Prior Robert. - Que fez a santa com a vida que recuperou?
- Foi numa peregrinação a Roma - disse o Irmão Rhys, com indiferença - e participou num grande sínodo de santos e foi nomeada madre superiora de uma comunidade de irmãs virgens em Gwytherin, próximo de Llanrwst. E aí viveu muitos anos e fez muitos milagres durante a sua vida, se se pode chamar-lhe vida. Ela já morrera uma vez. E foi nesse lugar que morreu pela segunda vez. - Nada sentia em relação a este resto de vida e apresentou-o com um encolher de ombros. A rapariga tivera a sua oportunidade com o príncipe Cradoc: e deixara-a escapar, sendo óbvio que a sua inclinação natural era ser madre abadessa de um ninho de virgens, e nada mais havia a dizer a seu respeito.
- E está lá enterrada em Gwytherin? - insistiu o prior. - E os milagres continuaram depois da sua morte?
- Assim me contaram. Mas há já longo tempo - disse o velho - que não ouço mencionar o seu nome. E passou mais tempo ainda desde que andei por esses lados.
O Prior Robert ergueu-se, com toda a sua imponente altura, no círculo de luz que se coava por entre os pilares da sala do capítulo, e voltou para o Superior Heribert uma face radiante e um olhar pleno de comando.
- Padre, não lhe parece que a nossa reverente procura, de um patrono com grande poder e santidade está a ser guiada por mão divina? Essa doce santa visitou-nos em pessoa no sonho do Irmão Jerome e incitou-nos a levar até ela o nosso irmão em sofrimento para que o sare. Não poderemos então esperar que de novo nos venha mostrar o próximo passo? Se ela de facto aceitar as nossas preces e restituir a saúde do Irmão Columbanus, não poderemos sentir-nos encorajados a esperar que venha em pessoa habitar entre nós? Não poderíamos então pedir humildemente a sanção da Igreja para trazermos as suas abençoadas relíquias e instalarmo-las condignamente em Shrewsbury? Para glória e esplendor da nossa casa?
- E do Prior Robert! - sussurrou o Irmão John ao ouvido de Cadfael.
- É certo que ela parece ter-nos demonstrado especial favor - admitiu o Superior Heribert.
- Então, padre, tenho a sua autorização para enviar o Irmão Columbanus com uma escolta segura até Holywell? Hoje mesmo?
- Assim seja! - disse o superior. - Que vá com as orações de todos nós e que possa regressar como mensageiro da própria Santa Winifred, são e agradecido.
O perturbado homem, com a mente ainda errante e sempre a falar consigo próprio em incoerentes desatinos, passou o portão do convento para a primeira etapa da sua jornada, logo depois da refeição do meio-dia. Ia montado numa mula, com uma sela alta a formar como que um berço para o impedir de cair no caso de lhe dar novo ataque violento. De cada lado seguia o Irmão Jerome e um irmão laico, moreno, para o ampararem se necessário. Columbanus olhava em redor, com um olhar infantil, espantado e patético, e não parecia reconhecer ninguém, embora seguisse de modo submisso e confiante para onde o guiavam.
- Ter-me-ia sabido bem, agora, um simpático passeiozinho até ao País de Gales - disse, melancólico, o Irmão John, enquanto os via dobrar a esquina e desaparecer em direcção à ponte sobre o Severn. - Mas, provavelmente, eu não iria ver as visões correctas. Jerome desempenhará melhor essa tarefa.
- Rapaz - disse o Irmão Cadfael, em tom tolerante -, cada dia te tornas mais descrente.
- Nem um pouco! Estou tão pronto a acreditar na santidade e milagres da rapariga como qualquer outro. Nós sabemos que os santos têm poder para ajudar e abençoar, e estou crente de que também têm a boa vontade. Mas, quando é o fiel cãozinho do Prior Robert que tem o sonho, estão a pedir-me que creia na santidade dele, não na dela! E, em qualquer caso, o favor dela não é já suficiente glória? Não sei para que haveriam de querer cavar o pó da pobre senhora. Parece assunto de cemitério, não assunto de igreja. E o senhor pensa exactamente o mesmo - afirmou com firmeza e fitou o superior, olhos nos olhos.
- Quando eu quiser ouvir o meu eco - disse o Irmão Cadfael pelo menos falarei primeiro. Agora mexe-te e cava-me a faixa do fundo do terreno, porque há ali uns repolhos frisados à espera de serem plantados.
A delegação a Holywell andou por fora durante cinco dias e regressou a casa à noitinha, sob uma bela chuvada e um grande fulgor de graça, e os três, quando entraram para o pátio, entoaram hinos de oração. No meio cavalgava o irmão Columbanus, erecto, gracioso e jubilante, se tal palavra pudesse ser aplicada a alguém tão humilde na sua alegria. A sua face estava luminosa e clara, os olhos cheios de encanto e inteligência. Nunca um homem pareceu menos louco ou menos susceptível de estar sujeito à epilepsia. Foi directo à igreja e, de joelhos, deu graças e louvores a Deus e Santa Winifred, e, depois do altar, os três foram disciplinadamente apresentar o seu relatório ao superior, ao prior e ao subprior, nos aposentos do superior.
- Padre - disse o Irmão Columbanus, cheio de entusiasmo e felicidade -, não tenho capacidade para contar o que me aconteceu, pois sei menos que estes que trataram de mim durante o meu delírio. Tudo o que sei é que fui levado para esta jornada como um homem num pesadelo e fui para onde me levaram sem saber como tratar de mim próprio ou o que deveria fazer. E, de súbito, senti-me como um homem que acordou do tal pesadelo e encontrou uma luminosa manhã e um mundo em primavera e vi-me nu na erva junto a um poço, e estes bons irmãos estavam a despejar sobre mim uma água que sarava à medida que tocava em mim. Reconheci-me a mim e a eles e só me admirava a respeito do sítio onde me encontrava e de como ali viera parar, o que eles de boa vontade me explicaram. E então fomos todos, nós e muitos daquele lugar, cantar missa numa pequena capela que se ergue próximo do poço. Agora sei que devo a minha cura à intervenção de Santa Winifred e presto-lhe louvores e adoração do fundo do meu coração, assim como também a Deus, que a levou a apiedar-se de mim. O resto, estes irmãos contarão.
O irmão laico era grande e taciturno e estava cansado - pois fizera todo o trabalho - e, por esta altura, já um tanto enfastiado com toda esta história. Fez as exclamações apropriadas onde necessário, mas deixou a narrativa nas capazes mãos do Irmão Jerome, que tudo contou cheio de entusiasmo: como levaram o paciente até à aldeia de Holywell e pediram informações e ajuda aos habitantes; como estes lhes mostraram onde a santa ressuscitara depois do martírio; a fonte prateada que ainda jorrava no mesmo local, melhorada agora com uma bacia de pedra para conter a sagrada corrente. Para ali tinham conduzido Columbanus, que divagava, despido o seu hábito, camisa e cuecas, e despejado sobre ele a água sagrada, e instantaneamente ele se erguera e levantara as mãos em oração e dera graças por a mente lhe ter sido restituída. Depois perguntara-lhes, espantado, como para ali viera e o que lhe acontecera e ficara grandemente penalizado e exultante com a sua humilhação e libertação e profundamente grato à sua patrona, sob cuja ajuda ficara novamente são.
- E, padre, as pessoas de lá contaram-nos que a santa está realmente enterrada em Gwytherin, onde morreu depois do seu ministério, e que o lugar onde jaz o seu corpo já fez muitos milagres. Mas disseram que o seu túmulo, depois de tanto tempo, está abandonado e é pouco recordado, e é bem possível que anseie por um maior reconhecimento e por ser instalada num local onde possam ir peregrinos, onde possa ser reverenciada como é direito seu e tenha vastidão para aumentar as suas graças e bênçãos para poder abranger mais gente em necessidade.
- Como estiveste presente neste milagre, estás inspirado disse o Prior Robert, alto e esplêndido na sua fé recompensada e estás a dizer o que eu próprio senti ao ouvir-te. Certamente, Santa Winifred chama-nos em seu socorro, tal como veio em socorro do Irmão Columbanus. Muitos, como ele, precisam da sua bondade e nada sabem sobre ela. Nas nossas mãos, ela seria exaltada como merece, e todos os que precisam da sua graça saberiam onde ir procurá-la. Rogo que nos seja permitido organizar essa expedição de fé para a qual ela nos convoca. Padre superior, dê-me a sua permissão para apresentar uma petição à Igreja e trazer para casa essa abençoada dama, para que descanse entre nós e seja o nosso maior motivo de orgulho, pois creio ser esse o seu desejo e as suas ordens.
- Pelo santo nome de Deus - disse o Superior Heribert, com devoção -, aprovo esse projecto e para ele imploro a bênção do Céu!
- Ele tinha tudo planeado de antemão - disse o Irmão John, por sobre o canteiro de hortelã, com sentimentos entre a inveja e o desprezo. - Tudo aquilo foi um espectáculo, toda aquela maravilha e espanto, aquele perguntar sobre quem era Santa Winifred e onde encontrá-la. Ele sempre o soube. Já a escolhera de entre aqueles que descobrira abandonados em Gales e decidira que era ela quem mais probabilidades oferecia de poder ser obtida e também quem mais brilho lhe traria. Mas tinha de vir à luz por meios miraculosos. Sempre haverá outro prodígio cada vez que ele precisar de aplainar o caminho, até conseguir ter a rapariga instalada, a salvo, aqui na igreja, para sua glória pessoal. É um grande empreendimento e, apoiado na sua força, pretende trepar alto. Por isso começa com uma visão e uma cura de prodígio e com a graça divina a guiar os seus passos. É tão visível como o nariz na sua cara.
- E estás a dizer - perguntou suavemente o Irmão Cadfael que o Irmão Columbanus, tal como o Irmão Jerome, estava também metido na intriga e que aquele ataque de epilepsia foi falso também? Eu teria de me sentir muito seguro a respeito da minha recompensa no Céu antes de me apresentar como voluntário para partir as lajes do chão com a testa, mesmo que fosse para proporcionar um milagre ao Prior Robert.
Ó Irmão John, de testa franzida, considerou muito a sério estas palavras.
- Não, isso eu não diria. Todos sabemos que o nosso frágil cordeirinho branco é dado a sofrer horrores com uma penitência cumprida às pressas e a entrar em êxtase com uma vigília ou um jejum e que despejar água gelada por ele abaixo em Holywell seria o exacto tratamento que lhe traria de volta todo o juízo. Podíamos igualmente ter atirado com ele para o lago dos peixes, aqui! Mas claro que ele iria acreditar no que lhe dissessem e dar todos os créditos à santa. Não era ele quem iria perder tal oportunidade! Não, eu não diria que ele fazia parte da intriga: conscientemente não. Mas deu-lhes a oportunidade para uma esplêndida demonstração de graça. Há-de reparar que foi a Jerome que mandaram cuidar dele durante a noite! Só é necessário um homem para receber o favor de uma visão, mas tem de ser o homem certo. Rolava entre as palmas da mão um raminho de jovens folhas verdes, e a fragrância que destilavam enriquecia o ar da manhã. E vão ser os homens certos quem vai acompanhar o Prior Robert até Gales - disse, com amarga certeza. - Vai ver!
Não havia qualquer dúvida sobre o facto de este jovem andar a sonhar com uma nova vista de olhos pelo mundo e com um pouco do ar que corria fora dos muros. O Irmão Cadfael ficou a ponderar o caso, não só por simpatia pelo seu jovem assistente mas também por algumas agradáveis recordações pessoais. Tão importante acontecimento, na normalmente tão monótona vida monástica, não se devia perder. E também as indubitáveis possibilidades para pregar umas partidas!
- Certo! - disse, pensativamente.
- Talvez devêssemos tomar certas medidas para endireitar as coisas. É bem verdade que Gales não deve ficar com a noção de que Jerome é o melhor que Shrewsbury tem para apresentar.
- Ora, o senhor tem mais ou menos tantas hipóteses de ser convidado como eu - disse o Irmão John, com a costumada franqueza. - Jerome tem o lugar garantido, pois o Prior Robert precisa levar a sua mão direita. E Columbanus, o pobre inocente, foi o instrumento da graça e pode ser levado a servir novamente no mesmo sentido. Por delicadeza, terão de levar o irmão subprior. Acha que poderíamos descobrir uma maneira de meter o pé na história? Não podem ir antes de alguns dias, pois os carpinteiros e os escultores estão a trabalhar com afinco na esplêndida urna para as relíquias, que vão levar para a senhora, mas ainda lhes vai levar um tempo para acabar. Ponha os miolos a funcionar, irmão! Com miolos, nada há que se não possa fazer! Com prior ou sem prior!
- Bem, bem, e eu que dizia que não tinhas fé! - exclamou o Irmão Cadfael, encantado e desarmado. - Eu conseguia entrada para mim, posso sempre arranjar maneira, mas como hei-de recomendar um malandrim sem graça como tu? Em que poderias ser útil se te levassem em tal missão?
- Sou bom a tratar de mulas - disse, esperançoso, o Irmão John -, e não pensa que o Prior Robert pretende ir a pé, suponho. Ou que vai pessoalmente tratar delas, alimentá-las e dar-lhes de beber. Ou tratar dos despejos. Eles vão precisar de alguém que faça o trabalho pesado e os sirva. Por que não eu?
Era, na verdade, algo em que parecia que ainda ninguém pensara. E porquê levar um irmão laico, se havia um irmão de claustro com uma bela voz para cantar na missa, disposto a aguentar com todo o suor? E o rapaz merecia a passeata, uma vez que estava disposto a pagá-la com esforço. Além disso, ainda podia vir a ser útil antes do fim. Se não para o Prior Robert, pelo menos para o Irmão Cadfael.
- Veremos! - disse e, com essa palavra, enviou o seu amotinado protegido de volta para o trabalho em curso. Mas depois do jantar, naquela meia hora de sono para os mais velhos e de brincadeira para os noviços, foi ter com o Superior Heribert ao seu gabinete.
- Padre superior, sou de opinião de que nos estamos a meter nesta peregrinação a Gwytherin sem considerar bem todos os aspectos. Primeiro, temos de contactar o bispo de Bangor, em cuja diocese fica Gwytherin, pois sem a sua aprovação o assunto não pode ir mais adiante. Bom, aí não é essencial ter um porta-voz fluente em galês, pois o bispo obviamente saberá conversar em latim. Mas nem todos os párocos de Gales dominam essa língua, e é vital poder falar livremente com o padre de Gwytherin no caso de o bispo sancionar o nosso pedido. Mas, mais importante ainda, a diocese de Bangor está toda sob a soberania do rei de Gwynedd, e certamente que a sua boa vontade e permissão são tão essenciais como as da Igreja. Os príncipes de Gwynedd falam apenas galês, embora tenham secretários cultos. O padre prior tem, é certo, umas vagas noções de galês, mas...
- Isso é bem verdade - disse o Superior Heribert, facilmente desanimado. - São apenas vagas noções. E o consentimento do rei é essencial. Irmão Cadfael, o galês é a sua língua-mãe e a que melhor conhece e não tem qualquer mistério para si. O irmão poderia... ? O jardim, eu sei... Mas, com a sua ajuda, não haveria qualquer problema.
- No jardim - disse Cadfael - tudo está bem adiantado e pode aguentar-se sem mim por dez ou mais dias, sem prejuízo algum. Teria, na verdade, imenso prazer em ser o intérprete e também em pôr as minhas capacidades à disposição em Gwytherin.
- Então, assim seja! - suspirou, com bem sentido alívio, o superior. - Vá com o Prior Robert e seja a nossa voz junto do povo galês. Eu próprio sancionarei a sua missão, e terá a minha autoridade pessoal.
Ele era velho e humano e gentil, cheio de experiência, vazio de ambição, farisaísmo ou resolução. Havia dois modos de o abordar com respeito ao Irmão John. Cadfael usou o mais simples e honesto.
- Padre, há um jovem irmão sobre cuja vocação tenho certas dúvidas, mas sobre cuja bondade não tenho nenhumas, Tenho-lhe afeição e gostaria que encontrasse o seu verdadeiro caminho, porque, quando o encontrar, nunca o trairá. Mas talvez não seja entre nós. Rogo permissão para o levar comigo, como encarregado da lenha e de acarretar água nesta missão, para lhe proporcionar tempo para reconsiderar.
O Superior Heribert mostrou um ar ligeiramente consternado e apreensivo, mas não sem simpatia. Talvez estivesse a recordar dias passados há muito em que a sua própria vocação sofrera períodos de tempestade.
- Eu lastimaria - disse - recusar a oportunidade de escolha a qualquer homem que possa estar mais preparado para servir a Deus noutro lugar. Qual de nós pode afirmar que nunca olhou para trás? O irmão - perguntou, delicadamente, chegando ao aspecto que realmente o preocupava - não tocou neste assunto junto do Prior Robert?
- Não, padre - disse o Irmão Cadfael, virtuosamente. Pensei que seria um erro sobrecarregá-lo com tão ínfima responsabilidade, quando já tem de suportar uma tão pesada!
- Muito certo! - concordou o superior, com entusiasmo. Seria maldade distrair-lhe, nesta altura, o espírito para longe da sua grande missão. Eu não lhe diria palavra sobre a razão que nos levou a acrescentar esse jovem ao grupo. O Prior Robert, na sua firme certeza pessoal, tem tendência a considerar austeramente qualquer homem que olhe para trás depois de já ter posto a mão no arado.
- E, contudo, padre, nem todos fomos talhados para ser lavradores. Alguns poderiam ser mais úteis a trabalhar de outro modo.
- Certo! - disse o superior, sorrindo cansadamente e recordando o enigma que muitas vezes era esquecido, mas que sempre voltava a surgir, a respeito do próprio Irmão Cadfael. Muitas vezes cismei, confesso... Bom, mas isso não interessa! Muito bem, diga-me o nome do jovem irmão e lá o terá.
Pela e gélida face do Prior Robert registou momentaneamente desprazer e suspeita quando ouviu como a sua delegação ia ser aumentada. A retorcida e considerada sem malícia auto-suficiência do Irmão Cadfael causava-lhe um certo desconforto, apesar de não haver nem uma palavra errada nem um olhar deslocado; mas sentia-se como se a sua dignidade estivesse, de qualquer modo, cerceada. A respeito do Irmão John nada conhecia de particularmente mau, mas o encarnado do seu cabelo, a exuberância da sua saúde e a sua boa disposição, até o modo como insuflava sangue vivo em antigos martírios, com aquele extravagante entusiasmo que punha na leitura, tudo era uma ofensa em si mesmo e irritava a sensibilidade estética do prior. Contudo, visto que o Superior Heribert inocentemente decretara que deviam fazer parte do grupo e como era inegável que alguém fluente em galês poderia, em dada altura, tornar-se uma necessidade premente, o Prior Robert aceitou a ordem sem objecções e tentou ver as coisas pelo seu lado melhor.
Partiram logo que ficou pronto o belo relicário para os ossos da santa: carvalho polido ornamentado com prata, como pequena amostra das honrarias que aguardavam Winifred no seu novo túmulo. Chegaram a Bangor na terceira semana de Maio e contaram a sua história ao bispo David, que foi compreensivo e prontamente deu o seu consentimento para a transladação proposta. Este consentimento estava apenas sujeito à aprovação do príncipe Owain, que era então o regente de Gwynedd, devido à doença do velho rei, seu pai. Conseguiram contactar o príncipe em Aber e tiveram igualmente sorte, pois não só deu a desejada aprovação como também mandou com eles o seu único secretário, e capelão, que falava inglês para que lhes mostrasse o melhor e mais rápido caminho para Gwytherin e para que os recomendasse, bem como à sua missão, ao pároco de lá.
Com a bênção episcopal e real, o Prior Robert conduziu o seu grupo para a última fase da sua jornada, facilmente convencido de que o seu avanço estava a ser divinamente facilitado e que assim continuaria até ao seu fim triunfante.
Em Llanrwst afastaram-se do vale do Conway, trepando para longe do rio, em direcção a uma região montanhosa e coberta de florestas. Atravessaram o Elwy onde é ainda um rio jovem e pequeno e seguiram para sudeste através de densos bosques; atravessaram outra crista de planaltos para voltarem a descer para o vale de um pequeno rio ao longo de cujas margens cresciam prados pantanosos, e acima dessas luxuriantes pastagens estendia-se uma estreita faixa de campos lavrados, ondulantes e firmes, protegidos pelas florestas. A crista de florestas, em ambos os lados, estendia-se em pregas oblíquas, de um verde muito rico, escondendo as esparsas propriedades rurais. Os campos já estavam plantados, e aqui e ali viam-se pomares em flor. Abaixo deles, lá onde os bosques se recolhiam para trás para formar um anfiteatro de verdura, via-se uma pequena igreja de pedra, caiada e a rebrilhar, e, junto dela, uma pequena casa de madeira.
- Estais a ver o alvo da vossa peregrinação - disse o capelão Urien. Era um personagem compacto, impecável, bem barbeado, muito bem vestido e bem montado, parecendo mais um embaixador que um secretário.
- Aquilo é Gwytherin? - perguntou o Prior Robert.
- É a igreja e a casa paroquial de Gwytherin. A paróquia estende-se por várias milhas ao longo do vale do rio e por uma milha ou mais em cada margem, contada a partir do Cledwen. Aqui não nos aglomeramos em aldeias, como fazem os Ingleses. Há muita terra boa para caçar, mas é escassa a que serve para lavrar. Cada pessoa vive onde mais lhe convém para poder cuidar dos seus campos e conservar a sua caça.
- É um lugar muito belo - disse o subprior e pensava-o, pois as colinas, bem cobertas de árvores, estendendo-se em ondulação após ondulação para lá dos rios, formavam um belo desenho de beleza primaveril em centenas de diferentes tons de verde, e os pastos junto à água assemelhavam-se a um colar de esmeraldas posto à beira de outro colar, de prata e lápis-lazúli.
- Belo para olhar, difícil para trabalhar - disse, prático, Urien.
- Veja, do outro lado está uma parelha de bois a tentar abrir um novo socalco, agora que todo o resto já está plantado. Observe o esforço dos animais e poderá ver como é difícil o solo mais elevado. Do outro lado do rio, um pouco abaixo deles mas muito distanciada, a curva serpenteante dos socalcos já ganhos formava um desenho sobre a encosta, com campos cultivados por entre árvores pendentes, como algo escrito em castanho-escuro sobre o declive da colina, e no socalco superior, ainda incompleto, os bois curvavam-se sob os jugos e puxavam, e o homem atrás deles empurrava e ajudava na pesada tarefa. À frente da parelha caminhava um homem às arrecuas, os braços a acenar e a incitar com suavidade, de aguilhão que era uma simples varinha empunhada para fazer magia, e não para picar, e os seus chamados em tom alto e puro subiam no ar, persuadindo, enaltecendo. E os animais inclinavam-se de boa vontade em direcção a ele, seguindo os seus chamamentos com toda a sua força. Depois da sua passagem, o solo recentemente arado, castanho-acinzentado e moroso, erguia-se para a luz, húmido e fresco.
- Uma região rude - disse Urien, como alguém que faz uma afirmação, não uma queixa, e fez seguir o cavalo pela colina abaixo, em direcção à igreja. - Venham, vou entregá-los ao Padre Huw e vê-los-ei bem recebidos.
Seguiram-no por um carreiro verde que serpenteava para longe das colinas e em breve perderam a vista do vale por entre árvores espalhadas e em flor. Por entre os bosques, aparecia uma ou duas casas de madeira, cercadas por pequenas parcelas de jardim, que de novo desapareciam.
- Viu? - perguntou o Irmão John ao ouvido de Cadfael, seguindo junto à mula de carga. - Viu como os animais trabalhavam para aquele sujeito, não para escapar ao aguilhão, mas apenas para ir para onde ele queria, apenas para lhe agradar? E que labor tamanho! Aquilo gostaria eu de aprender!
- É labor duro, tanto para o homem como para os animais disse o Irmão Cadfael.
- Mas de livre vontade! Eles queriam ir com ele, fazer o que queria que fizessem. Irmão, será que discípulos devotos podem fazer mais? Quer dizer-me que ele não tem prazer no que faz?
- Nenhum homem, nem Deus, que veja os seus servi-lo com fiel prazer - disse Cadfael, com paciência e cautela - pode deixar de ter prazer também. Agora, silêncio, ainda mal chegámos; temos muito tempo para observar tudo.
Estavam em baixo, na pequena área de talhões de erva e vegetais, livre de árvores. A igreja de pedra, com a sua diminuta torre e, lá dentro, o sino mais diminuto ainda, brilhava de um branco ofuscante, um branco-azulado, contra o fundo verde luxuriante. E, saindo do rego, recentemente plantado de repolhos, a sotavento da casinha de madeira, surgiu um homem pequeno e quadrado, vestido com uma sotaina de linhagem castanha e com um maciço de cabelo e barba castanho, encaracolado, que semi-escondia uma face morena, larga e interrogadora, com grandes olhos azul-escuros. Aproximou-se à pressa, limpando as mãos às saias. Vistos de perto, os seus olhos eram maiores, mais azuis e mais espantados que nunca e tão tímidos como os meigos olhos de uma rola.
- Bom dia, Padre Huw - disse Urien, puxando as rédeas em frente dele.
- Trouxe-lhe uns distintos hóspedes da Inglaterra que vieram tratar de importante assunto relativo à Igreja e que trazem a bênção do príncipe e do bispo.
Quando chegaram à clareira, o padre era certamente o único homem à vista, mas, quando Urien chegou ao fim dos seus cumprimentos, inúmeras figuras silenciosas e apressadas tinham aparecido, saídas do nada, formando um semicírculo, atento e curioso, em redor do seu pastor. Pelo ar confuso do olhar do Padre Huw, via-se que estava ocupado em calcular, com um certo alarme, quantos destes estrangeiros poderia decentemente abrigar na sua humilde cabana, onde haveria de arrumar os outros, quanta comida teria na sua despensa para preparar uma refeição para tanta gente e onde melhor podia pedir tudo o mais que fosse necessário. Mas nem se punha a hipótese de não oferecer as suas boas-vindas. Hóspedes eram coisa sacrossanta, e nem mesmo se lhes devia perguntar por quanto tempo se propunham ficar, por muito ruinoso que fosse.
- A minha humilde casa está à disposição dos reverendos padres - disse - e também tudo o que esteja em meu poder para servi-los. Vêm directos de Aber?
- De Aber - disse Urien -, do príncipe Owain, e tenho de regressar para lá esta noite. Sou apenas o arauto destes irmãos beneditinos, que vêm em missão sagrada, e, logo que lhe tenha explicado o caso deles, deixo-os nas suas mãos. - Apresentou-os pelo nome, começando pelo Prior Robert. - E não tema depois da minha partida, porque aqui o Irmão Cadfael é, ele próprio, um homem de Gwynedd e fala galês tão bem como nós.
O olhar de assustada apreensão de Huw logo relaxou, mas, para o caso de ainda manter alguma dúvida, Cadfael gratificou-o com um rápido mas amigável discurso de saudação na língua prometida, o que, para seu grande prazer, produziu um idêntico olhar de ligeira desconfiança e insegurança nos usualmente tão firmes olhos cinzentos do Prior Robert.
- Sejam bem-vindos a esta pobre casa, na qual é uma honra recebê-los - disse Huw e, passando um rápido olhar pelos cavalos, mulas e suas cargas, sem hesitação, chamou um par de nomes de entre os que estavam na sua retaguarda.
Em resposta, prontamente avançaram um homem de certa idade, de cabelo desgrenhado, e um rapaz queimado pelo sol, de cerca de dez anos.
- lanto, ajuda o bom irmão a dessedentar os animais e põe-nos a pastar no cercado pequeno, até vermos onde melhor os poderemos abrigar. Edwin, corre e diz a Marared que temos hóspedes e ajuda-a a trazer água e vinho.
Apressaram-se a cumprir as suas ordens, e vários dos outros que ali se tinham juntado, homens castanhos, de pernas nuas, esguias mulheres morenas e crianças seminuas, aproximaram-se mais uns dos outros, conferenciaram em voz baixa entre si, e as mulheres afastaram-se para ir aos seus fornos e lareiras de cozinha e trazer tudo o que pudessem para contribuir para a hospitalidade de Gwytherin.
- Como está um tempo tão belo e suave - disse Huw, afastando-se para, com um gesto, os convidar a entrar no pequeno cercado que era o seu jardim -, talvez lhes agrade mais sentarem-se no pomar. Tenho lá mesa e bancos. Durante o Verão, costumo viver fora de portas. Quando os dias diminuem e as noites se tornam frias, é então a altura de ir lá para dentro e acender as lareiras.
A sua terra era pequena e os rendimentos bastante pobres, mas tratava cuidadosamente das suas árvores de fruto e era um diligente jardineiro, notou o Irmão Cadfael, com aprovação. E, para Urn homem que, ao contrário da maioria dos párocos da seita celta, Parecia ser celibatário e feliz com o facto, tinha a pequena e nua casa e o terreno em volta em estado impecável. E, vindas da sua Própria despensa ou das reservas dos seus paroquianos, conseguiu apresentar umas tábuas de pão muito limpas, com pão muito bom nelas pousado, e uns cálices simples mas apresentáveis, para beberem o áspero vinho tinto. Executou com humilde dignidade todas as cerimónias que cumprem a quem recebe hóspedes. O rapaz Edwin regressou com uma mulher já de idade mas cheia de vida, vizinha de Huw, e traziam comida e bebida. E, durante todo o tempo que os visitantes ali ficaram sentados ao sol, vários dos habitantes de Gwytherin, por muito espalhada que fosse a paróquia, arranjaram pretexto para passar junto à cerca de caniços do pomar e examinar cuidadosamente o grupo, embora sem o darem a perceber. De facto, não era todos os dias, nem mesmo todos os anos, que recebiam assim tão importantes visitantes.
Antes da noite, já todas as almas da paróquia certamente saberiam não só que em casa de Huw estavam hospedados uns monges de Shrewsbury mas também quantos eram, qual o seu aspecto, como eram belos os seus cavalos e boas as suas mulas e, muito provavelmente, também ao que tinham vindo. Mas espreitavam e escutavam com perfeita cortesia e discrição.
- E agora, visto que mestre Urien tem de regressar a Aber disse Huw, depois de terem comido e enquanto repousavam, sentados à vontade -, talvez fosse bom que ele me explicasse em que aspecto poderei ser útil aos irmãos de Shrewsbury, para que, antes de nos deixar, possa assegurar-se de que nos compreendemos uns aos outros. E certamente farei tudo o que estiver dentro das minhas possibilidades.
Urien contou a história como a ouvira, e o Prior Robert elaborou-a numa medida tal que o Irmão John, começando a ficar enfastiado e em desassossego, deixou vaguear o olhar para apreciar as figuras que ocasionalmente passavam ao longo da cerca, de ouvidos alerta e olhares tímidos mas penetrantes. A curiosidade e o interesse dele eram um tanto ou quanto menos discretos que os daquela gente. E, por ali, havia algumas raparigas realmente bonitas! Por exemplo aquela que estava agora a passar, o andar lento e gracioso - ela sabia que estava a ser observada! -, e o cabelo, preso numa grande e pesada trança caída sobre um ombro, era da cor do mogno polido, de um castanho sedoso e cheio de luz, até com uns reflexos prateados, como os veios do mogno...
- E o bispo deu o seu consentimento à vossa proposta? perguntou Huw, depois de um longo minuto de silêncio, numa voz que sugeria espanto e dúvida.
- Tanto o bispo como o príncipe a sancionaram. - O Prior Robert ficou um pouco inquieto com a ligeira sugestão de um obstáculo neste ponto. - Certamente que os sinais divinos nos não enganaram. Santa Winifred está aqui, não está? Foi aqui que viveu depois de ressuscitada e está enterrada neste lugar, não é verdade?
Huw reconheceu que assim era, mas num tom de cautela e relutância tão estranho que Cadfael resolveu que ele estava a tentar recordar exactamente onde se encontrava a senhora e a cismar em que estado iriam descobrir o seu túmulo, depois de passado tanto tempo desde a última vez que nele pensara.
- Ela está aqui, neste cemitério? - A pequena igreja, caiada, brilhava, provocante, à luz do Sol.
Não, aqui não. - Desta vez sentia um pouco de alívio, pois não teria de revelar imediatamente o seu paradeiro. - Esta igreja é posterior ao tempo da santa. O túmulo fica no velho cemitério da igreja de madeira da colina, a uma milha ou mais daqui. Há muito está sem uso. Sim, certamente que os sinais divinos favorecem os vossos planos, e é indubitável que a santa está aqui, em Gwytherin. Mas...
- Mas? - disse o Prior Robert, com desagrado.
- Tanto o bispo como o príncipe nos deram a sua bênção e lhe recomendaram a nossa causa. Além disso, ouvimos dizer, e eles concordaram que, durante a sua permanência aqui, entre vós, a santa tem sido muito negligenciada e pode bem desejar ser recebida num sítio onde lhe serão prestadas muito mais honrarias.
- Na minha igreja - disse Huw, humildemente - nunca ouvi dizer que os santos desejassem honrarias para si próprios, mas antes queriam honrar directamente a Deus. Por isso, não posso pretender saber qual possa ser a vontade de Santa Winifred a respeito deste caso. Que os senhores e a vossa confraria desejem honrá-la como merece, isso é outro assunto e muito digno de louvor. Mas... Esta abençoada virgem viveu a vida, que lhe foi miraculosamente restituída, aqui, neste lugar, e em nenhum outro. Aqui morreu pela segunda vez e aqui está enterrada, mas, mesmo que o meu povo, sendo humano e sujeito a faltas, a tenha negligenciado, sempre soube que ela estava aqui, no meio deles, e que num aperto sempre se podia contar com ela. E, para uma santa galesa, penso que isso conta muito. Príncipe e bispo, e a ambos reverencio como é meu dever, talvez não compreendam bem como se irá sentir o meu rebanho se a sua mais sagrada virgem tiver de ser cavada para fora da campa e levada para a Inglaterra. Talvez isso tenha pouco significado para a coroa ou para o báculo, pois uma santa é uma santa, qualquer que seja o local onde repousem as suas relíquias. Mas digo-vos muito claramente que o povo de Gwytherin não vai gostar nada disto!
O Irmão Cadfael, despertado por esta eloquência simples para um atavístico fervor galês, arrancou, neste ponto, a iniciativa a Urien, e traduziu tudo no estilo declamatório dos bardos.
Em plena peroração, afastou os olhos das faces que o distraíam, apenas para os fazer brilhar sobre outra face que distraía mais ainda. A rapariga com o brilho de mogno claro no cabelo passava de novo junto à cerca e de tal modo ficara enfeitiçada com o que ouvira e com a veemência com que era dito que, por um momento, se esqueceu de continuar a andar e ali ficou, de olhos fixos, radiante a face cor de flor de pessegueiro, sorridentes os lábios cor de pétala de rosa. E, com a mesma fascinação com que fitava Cadfael, fitava-a o irmão John a ela. Cadfael observou ambos e ficou deslumbrado.
Mas imediatamente ela se recompôs com súbito alarme, corou de um lindo modo e desapareceu da vista. Muito depois de ter desaparecido, ainda o Irmão John continuava de boca aberta.
- Isso pouca importância tem, não é certo? - disse o Prior Robert, com portentosa suavidade. - O vosso bispo e o vosso príncipe mostraram claramente a sua opinião. Os paroquianos não precisam ser consultados.
Também isso foi Cadfael quem traduziu, preferindo Urien permanecer neutro e mudo.
- Impossível! - disse Huw, com firmeza, sabendo-se em terreno seguro. - Num assunto de tal gravidade e que afecta toda a paróquia, nada se pode fazer sem convocar a assembleia dos homens livres para lhes expor todo o caso, detalhada e publicamente. Sem dúvida que a vontade do príncipe e do bispo serão respeitadas, mas, mesmo assim, têm de ser apresentadas ao povo para que lhes dêem um sim ou um não. Convocarei essa assembleia para amanhã. O vosso caso só pode ser completamente reivindicado com a aceitação pública.
- O que ele diz é verdade - disse Urien, fixando os olhos austeros e meio ofendidos do prior. - Será bom que consigamos o apoio de Gwytherin, por mais bênçãos que já tenhamos. Eles respeitam o bispo e estão muito satisfeitos com o rei e os filhos deste. Duvido que venhamos a lamentar o atraso.
O Prior Robert aceitou tanto o aviso como a tentativa de tranquilizar e sentiu a necessidade de um período de sossego para rever a sua estratégia e preparar os argumentos de persuasão. Quando Urien se levantou para se despedir, cumprida já minuciosamente a sua missão, o prior levantou-se também, meia cabeça mais alto que o mais alto dos que ali estavam, e juntou as longas mãos brancas em sinal de submissão e resignação.
- Faltam ainda mais de duas horas para as vésperas - disse, estudando o ângulo do Sol. - Gostaria de me retirar para a igreja e passar um tempo em meditação e oração para implorar a direcção divina. Irmão Cadfael, é melhor que fique com o Padre Huw para o ajudar em qualquer preparativo que precise fazer, e você, Irmão John, acomode os cavalos como o padre lhe indicar e cuide deles. Os outros juntar-se-ao a mim para interceder, para que possamos conduzir este empreendimento como deve ser.
Afastou-se deslizante, alto, prateado e majestoso, e teve de inclinar a cabeça para passar sob o baixo arco da porta da igreja. O Irmão Richard, o Irmão Jerome e o Irmão Columbanus desapareceram lá para dentro, atrás dele. Não iam permanecer em oração todo o tempo que lá iam passar juntos. Iriam considerar quais os argumentos com mais probabilidades de convencer a assembleia livre do Padre Huw, ou quais as ameaças eclesiásticas indirectas que os poderiam dobrar à submissão.
O Irmão John observou a altiva cabeça prateada até que, com precisa dignidade, ela se curvou apenas o suficiente para passar sob a pedra e soltou um som que ficava entre um suspiro e uma gargalhada dominada, como se tivesse estado a orar para que houvesse um erro de cálculo. Com a jornada, o exercício e a vida ao ar livre, tinha um aspecto mais robusto e saudável e mais atlético que nunca.
- Todo este tempo tenho vindo a sonhar com uma oportunidade para passar a perna sobre aquele cavalo cinzento malhado
- disse. - Richard cavalga nele como um saco de lã mal equilibrado. Espero que o estábulo do Padre Huw fique a uma milha, ou mais, de distância.
Os planos do Padre Huw para eles, segundo parecia, incluíam dois dos mais próximos e prósperos membros do seu rebanho. Apesar de próximos, porém, graças ao sistema galês, as suas casas ficavam dispersas no vale e na floresta.
- Cederei a minha própria casa ao prior e ao subprior, é claro - disse Huw -, e dormirei no palheiro, por cima da minha vaca. O meu pasto aqui é demasiado pequeno para os animais, e não tenho estábulo, mas Bened, o ferreiro, tem um grande cercado acima das pastagens ribeirinhas e um estábulo com um sótão, se este jovem irmão não se importar de ficar acomodado a mais de uma milha de distância dos colegas. Para si e para os seus dois companheiros, Irmão Cadfael, há acomodação a meia milha daqui, indo pela floresta, em casa de Cadwallon, que possui uma das maiores propriedades destas bandas.
O Irmão Cadfael estudou a hipótese de ficar instalado com Jerome e Columbanus e achou-a pouco atraente.
- Uma vez que sou o único de nós que domina o galês fluentemente - disse, com diplomacia -, penso que devia ficar próximo do Prior Robert. Se estiver de acordo, Huw, partilharei consigo o palheiro por cima do estábulo da vaca e ficarei muito confortável.
- Se é esse o seu desejo - disse Huw, com simplicidade -, terei muito gosto na sua companhia. E agora tenho de pôr este jovem a caminho do ferreiro.
- E eu - disse Cadfael -, se não precisa que vá consigo (e aquele rapaz há-de conseguir fazer-se compreender em qualquer língua, ou em nenhuma!), acompanharei Urien durante uma parte do caminho de regresso. Se eu puder travar conhecimento com um ou outro do seu rebanho, tanto melhor, pois gosto do aspecto deles e do vosso vale.
O Irmão John aproximou-se, vindo do pequeno cercado, e trazia os dois altos cavalos pela mão, com as mulas seguindo presas a rédeas compridas. Os olhos de Huw brilharam quase tanto como os de John quando lhes acariciaram as suaves linhas do pescoço e do lombo.
- Há que tempos - disse de modo sonhador - não monto um bom cavalo!
- Então, venha daí, padre - incitou o Irmão John, percebendo o olhar, se não as palavras. - Toca a trepar! Segure-se à minha mão, se é o alazão que cobiça. Siga à frente em grande estilo! - E formou uma plataforma com a mão para o pé erguido do padre e içou-o, ofuscado e radiante, para a sela.
Ele próprio montou o cavalo cinzento e pôs-se-lhe a par, pronto para o caso de o homem mais velho precisar de uma ajuda para o segurar, mas os joelhos castanhos abraçavam, felizes, a montada. Ainda não esquecera.
- Bravo! - disse John, com enorme sorriso. - Vamos entender-nos maravilhosamente e acabar o passeio em corrida!
Urien, dominando a hilaridade, observou-os a afastarem-se da suave concha formada pela clareira.
- Ali vão dois homens felizes - disse, pensativamente.
- Cada vez me dá mais para cismar - disse Cadfael - como é que aquele jovem alguma vez resolveu entregar-se à vida monástica!
- Ou você, por exemplo? - disse Urien, com o pé no estribo. Venha; se quer observar as redondezas, seguiremos pelo vale durante um bocado, antes de eu deixar você e seguir para as colinas.
Separaram-se na crista da colina, entre as árvores, mas onde uma prega do solo lhes mostrava a parelha de bois a lavrar ainda perseverantemente um segundo socalco, que continuava a linha do primeiro, acima das terras mais ricas do vale. Dois socalcos assim num só dia era trabalho prodigioso.
- O seu prior agiria sabiamente - disse Urien, ao despedir-se
- se aprendesse uma lição com aquele jovem ali. Dirigir e incitar, por estes lados, dá mais resultado que ordenar. Mas não preciso de dizer-lhe isto a si, um homem tão galês como eu.
Cadfael viu-o afastar-se, cavalgando elegantemente ao longo do carreiro desbravado, até que desapareceu por entre as árvores. Depois regressou em direcção a Gwytherin, mas seguindo um caminho íngreme pela colina abaixo até ao rio, e, na orla da floresta, parou numa sombra verde sob uma carvalha, a olhar, através dos prados iluminados pelo Sol e do fio de prata formado pelo rio, para aquele lugar onde a parelha puxava e se esforçava ao longo do último rego.
Naquele ponto não era grande a distância entre eles e podia ver com clareza o brilho do suor na pele dos bois e a forte curva do solo depois do trabalho. O homem do arado era trigueiro, entroncado e cheio de vigor, com um toque de cinzento nos caracóis despenteados; mas o boiadeiro era alto e delgado e o cabelo, ondelado, que lhe balouçava no pescoço e se lhe colava à humidade da testa, era tão branco como linho. Conseguia andar às arrecuas sem olhar para trás, seguindo o caminho de um modo ligeiro e gracioso, como se tivesse olhos nos calcanhares. Agora já a sua voz estava cansada e rouca de tanto uso, mas ainda clara e alegre, mais efectiva que qualquer aguilhão, à medida que, com doces palavras, incitava os cansados animais ao longo do rego final, chamando, lisonjeando e louvando, dizendo-lhes que tinham conseguido fazer maravilhas e que teriam, por isso, o seu descanso e recompensa, que dentro de apenas poucos momentos iriam para casa, que estava orgulhoso deles e que os amava - tudo como se estivesse a falar com almas cristãs. E os animais puxavam e empurravam, lançando todo o seu peso de encontro ao jugo e mantendo os olhos fixos nele, e era bem visível que fariam tudo o que estivesse em seu poder para lhe agradar.
Quando o arado chegou ao fim e virou, os bois, exalando vapor, ficaram parados com as cabeças pendentes; o jovem aproximou-se-lhes e lançou um braço sobre o pescoço do que lhe ficava mais próximo e coçou, com os nós dos dedos, o encaracolado pêlo da fronte do outro, e Cadfael disse em voz alta:
- Bravo! Mas, meu amigo, como veio você aqui parar ao País de Gales?
Uma coisa qualquer pequenina, redonda e dura caiu com um sussurro através da folhagem por cima da sua cabeça e veio bater-lhe, muito direitinho, no meio da bronzeada tonsura. Levou uma mão à coroa e disse algo que não condizia com o hábito. Mas era apenas um fruto velho do carvalho, seco pela invernia, até que ganhara a dureza de um seixo.
Olhou para cima, para a folhagem acima da sua cabeça, já densa e transformando-se num verde rico depois do anterior dourado, e pareceu-lhe que o tremor das folhas onde não havia vento exigia uma explicação maior do que a acidental queda de um pequeno remanescente de um ano que morrera. Imobilizou-se muito rapidamente, e até a sua calmaria, por contraste, parecia demasiado cautelosa e vigilante. Cadfael afastou-se alguns metros como que para continuar a andar, mas, escondendo-se numa barreira próxima formada por arbustos, olhou para trás para ver se tinham mordido o isco.
Um pequeno pé nu, ligeiramente manchado pelo musgo e pela casca da árvore, esticou-se de entre os ramos, até um apoio no tronco. O seu companheiro, na ponta de uma perna longa e delgada, balançava no ar, pois o rapaz preparava-se para saltar. O Irmão Cadfael, fascinado, subitamente afastou os olhos a toda a pressa e voltou-se de costas, mas estava a sorrir e, afinal de contas, não se foi embora, antes rodeou a divisória de arbustos e reapareceu inocentemente na frente do pássaro que acabara de descer do ninho.
Não era nenhum rapaz, como primeiramente pensara, mas uma rapariga, uma rapariga muitíssimo atraente, e estava agora decorosamente em pé na relva, com as saias caindo nobremente em torno de si, e até os pequenos pés nus estavam escondidos.
Ali ficaram a olhar um para o outro com cândida curiosidade, absolutamente nada atrapalhados. Poderia ter dezoito ou dezanove anos, mas talvez fosse mais nova, porque havia em toda ela uma calma segurança que lhe conferia a dignidade própria de quem já tem maturidade, apesar de acabada de saltar de uma carvalha. E, apesar dos seus pés descalços e da juba de cabelo não entrançado, não era nenhuma serva. Tudo nela indicava claramente que sabia bem o seu valor. O vestido era de boa lã fiada em casa, de um tinto azul-claro, e tinha bordados no pescoço e nas mangas. Era, sem dúvida, uma beleza. A face era oval e de feições firmes, o cabelo, que lhe caía pelos ombros em ondas selvagens, era quase preto, mas preto com um reflexo de encarnado-escuro e brilhante nos pontos onde incidia a luz, e os olhos, grandes e de pestanas negras, que estudavam o Irmão Cadfael com tão franco interesse, eram quase da mesma cor, negros como abrunhos, brilhantes como os reflexos da mica dos seixos do rio.
- O senhor é um dos monges de Shrewsbury - disse, com absoluta certeza. E, para grande espanto dele, dissera-o num inglês fluente e fácil.
- Pois sou - disse Cadfael. - Mas como conseguiu saber tão depressa tudo a nosso respeito? Não me parece que tenha sido uma daquelas pessoas que decidiram passar ao longo do jardim de Huw enquanto conversávamos. Houve lá uma rapariga muito linda, recordo-me, mas não uma cachopa de cabelo negro como você.
Ela sorriu. Tinha um sorriso encantador, súbito e radioso.
- Oh, essa devia ser a Annest. Mas, a esta hora, já todos em Gwytherin sabem tudo a vosso respeito e ao que vieram. O Padre Huw tem razão, sabe? - avisou, muito séria. - Não vamos gostar nada disso. Por que querem levar Santa Winifred daqui, quando já cá está há tanto tempo e nunca antes lhe prestaram a mínima atenção? Não me parece de boa vizinhança, nem muito honesto.
A escolha das palavras era excelente, pensou ele, e ficou maravilhado de como o conseguira uma rapariga galesa, pois ela utilizava o inglês como se fosse a sua língua de nascença, ou como se o tivesse aprendido por amor.
- Para ser franco, eu próprio ponho em dúvida a sua justiça concordou, com pesar. - Quando o Padre Huw falou em nome da sua paróquia, confesso que descobri que estava inclinado para o seu lado na discussão.
Isto fê-la mirá-lo de um modo mais penetrante e cuidadoso que anteriormente, franzindo a testa com uma súbita dúvida ou suspeita que lhe surgiu na mente. Quem quer que a informara, certamente fora testemunha de tudo o que se passara no jardim do Padre Huw. Hesitou um momento, a ponderar, e inesperadamente dirigiu-se-lhe em galês:
- O senhor deve ser aquele que fala a nossa língua, aquele que traduziu o que disse o Padre Huw. - O caso parecia perturbá-la mais do que seria razoável. - O senhor sabe mesmo galês! Está a compreender-me agora.
- Ora, sou galês como você, filha - admitiu, suavemente e só me tornei um beneditino já na meia-idade, mas ainda não esqueci a minha língua-mãe, espero. Mas estou maravilhado de como, aqui no coração de Rhos, conseguiu aprender a falar inglês tão bem como eu próprio falo.
- Oh, não - disse, na defensiva. - Só aprendi muito pouco. Tentei empregá-lo consigo, porque julgava que era inglês. Como havia eu de saber que o senhor era justamente o tal?
Mas, por que haveria de lhe causar tanta inquietação o facto de ele ser bilíngue? Cismou. E por que lançava ela tantos olhares rápidos e furtivos em direcção ao rio, que se apercebia brilhando por entre as árvores? Onde, como pôde ver num relance de olhos tão rápido como o dela, o alto e louro jovem que não era galês mas que era, certamente, o melhor boiadeiro em Gwytherin se separara da sua parelha, que agora bebia placidamente, e atravessava o rio com água até à anca, em direcção a esta alta carvalha em particular, numa nuvem de espuma rebrilhando.
A rapariga estivera escondida nesta mesma árvore, donde, sem dúvida, tinha uma visibilidade muito boa sobre o campo recém-trabalhado. E descera logo que o trabalho acabara!
- Tenho vergonha do meu inglês - disse ela, suplicante e vulnerável. - Não conte a ninguém!
Estava a desejar que ele se afastasse e ao mesmo tempo pedia-lhe a sua discrição. A sua presença, concluiu Cadf ael, era inconveniente.
- Eu próprio senti o mesmo problema - disse, de modo descontraído - quando comecei a tentar habituar a minha língua ao inglês. Nunca porei em causa os seus esforços. E agora é melhor pôr-me a caminho, de regresso às nossas acomodações, ou chegarei tarde para as vésperas.
- Então, que Deus o acompanhe, padre - disse, radiante e aliviada.
- E a si, minha filha.
Retirou-se por um caminho cuidadosamente escolhido, que afastava qualquer risco de se esbarrar contra o jovem louro. E ela ficou longo tempo a vê-lo ir, antes de se voltar ansiosamente para ir ao encontro do boiadeiro, que já vinha a patinhar pelos baixios e trepava pela margem.
Cadfael achou que ela estava perfeitamente consciente de quanto ele observara e compreendera e que estava satisfeita com as suas reticências. Satisfeita e tranquilizada. Uma rapariga galesa de categoria social, com bordados nas orlas do vestido, precisava bem de andar de mansinho se ia encontrar-se com um estrangeiro, um homem sem terras e sem raízes, aqui numa sociedade de clãs, onde não ter lugar em nenhuma parentela significava não ter meios de vida. E, contudo, ele era um jovem agradável e simpático, bom no seu trabalho e com sentimento para com os seus animais.
Quando estava certo de que os arbustos o tapavam, Cadfael olhou para trás e viu os dois próximos um do outro, imóveis e felizes, sem se tocarem, quase que com vergonha um do outro. Não voltou a olhar para trás.
”E, agora, do que realmente preciso aqui”, pensou, enquanto voltava para a igreja de Gwytherin, ”é de um conhecimento simpático e apropriado, alguém que conheça todos os homens, mulheres e crianças da paróquia, mas que não seja obrigado a carregar com o peso das suas almas. Um sólido companheiro de bebida com senso comum - é disso que preciso.”
Não encontrou um companheiro como queria, mas sim três de uma assentada, depois do último ofício divino quando, à luz do crepúsculo, foi com o Irmão John até ao cercado do ferreiro, junto dos campOS do vale. O Prior Robert e o Irmão Richard tinham-se já retirado para a casa do Padre Huw para passar a noite; Jerome e Columbanus iam a caminho, através da floresta, até à propriedade de Cadwallon; e quem iria indagar se o Irmão Cadfael tinha também ido para a sua enxerga no palheiro do padre, ou se andava à solta entre os mexeriqueiros de Gwytherin? Os arranjos em relação às acomodações estavam a funcionar maravilhosamente bem. Nunca se sentira menos inclinado ao sono a esta doce hora da noite, nem ninguém aqui os ia acordar à meia-noite para as matinas. O Irmão John estava encantado por poder apresentá-lo à família do ferreiro, e o Padre Huw apadrinhara o encontro, por razões pessoais. Era bom que outros, além dele, falassem em nome do povo da paróquia, e Bened, o ferreiro, era um homem muito respeitado, como todos os da sua arte, e as suas palavras teriam peso.
Quando chegaram, havia três homens sentados no banco que ficava do lado de fora da porta de Bened, e o canjirão circulava tão rápido como a conversa. Ao ruído dos passos que se aproximavam, todas as cabeças se ergueram alerta e um silêncio momentâneo marcou a solidariedade dos habitantes locais. Mas o Irmão John, pelos vistos, já se tornara ali bem-vindo, e Cadfael lançou-lhes um cumprimento em galês, como um pescador que lança uma rede, e foi aceite com algo mais quente do que tudo o que a rígida cortesia inglesa jamais poderia encontrar. Annest, a rapariga do cabelo castanho-claro com manchas cor de sol, espalhara aos quatro ventos a notícia de que ele era galês. Puxaram outro banco, e as canecas de beber continuaram a circular, num círculo mais alargado. Do outro lado do rio, a luz esmorecia gradualmente, e o que se avistava da penumbra era verde, com as cores dos prados e das florestas, e atravessado pela corrente de água prateada.
Bened era um homem entroncado e musculoso, de meia-idade, com barba e cabelo castanho. Dos seus dois companheiros, o mais novo era fácil de reconhecer como o homem do arado que naquele dia seguira atrás da parelha de bois, e não era de admirar que estivesse tão sequioso depois de tal labuta. E o terceiro era um homem de mais idade, de cabelo grisalho, com uma barba longa e delicadamente aparada e mãos belas e nervosas, e estava vestido com uma ampla túnica tecida em casa que já vira melhores dias, talvez usada por outra pessoa. Comportava-se como alguém com direito a respeito e recebia-o.
- Aqui o Padrig é um bom poeta e um óptimo harpista - disse Bened -, e Gwytherin tem a felicidade de o ter por cá uns tempos, no solar de Rhisiart. Fica numa clareira da floresta, um pouco para além da casa de Cadwallon, mas Rhisiart tem também terra para estas bandas, em ambos os lados do rio. É o maior proprietário rural desta zona. Não há por cá muita gente que se possa orgulhar de ter uma harpa, porque então talvez fôssemos honrados com mais visitas de bardos ambulantes, como Padrig. Eu, pessoalmente, tenho uma pequena harpa. Tenho esse privilégio. Mas a de Rhisiart é muito boa e sempre mantida em uso. Já algumas vezes ouvi a filha dele tocá-la.
- As mulheres não podem ser bardos - disse Padrig, com tolerante desprezo. - Mas ela sabe mantê-la afinada e bem cuidada, isso devo reconhecer. O pai é um patrono das artes, generoso e de mãos largas. Do seu solar não parte nenhum bardo desapontado e nunca nenhum sai sem insistirem para que fique. Uma bela família!
- E este é Cai, o homem do arado de Rhisiart. Sem dúvida, quando hoje passou a crista da colina, deve ter visto a parelha a abrir novas terras.
- Vi, e admirei o trabalho - disse Cadfael, do coração.
- Nunca vi melhor. Tinha ali uma bela parelha e um bom boiadeiro também.
- O melhor - disse Cai, sem hesitação.
- Em toda a minha vida, já trabalhei com um bom número deles, mas nunca conheci
nenhum com o jeito que Engelard tem com os animais. Por ele dariam a vida. E é igualmente bom com todo o gado, quando há crias ou animais doentes, ou seja lá no que for. Se o perdesse, Rhisiart havia de o lamentar.
- Ah, fizemos hoje um bom dia de trabalho!
- Deve ter ouvido da parte do Padre Huw - disse Cadfael que todos os homens livres foram convocados para estar amanhã na igreja, depois da missa, para ouvir o que o nosso prior tem a propor. Certamente vamos ver Rhisiart lá.
- Ver e ouvir - disse Cai e sorriu. - Diz sempre o que tem na cabeça. É um homem de coração aberto, de natureza aberta, com um temperamento que tanto está por cima como por baixo, e nunca guarda ressentimentos; mas tente demovê-lo quando já tomou uma decisão, e está a perder o seu tempo.
- Bom, um homem não pode senão manter-se fiel ao que acredita que está certo, e até o oponente que enfrenta devia reconhecer-lhe o mérito. Mas os filhos dele não se interessam pela harpa, para assim a deixarem para a irmã?
- Não tem filhos - disse Bened. - A mulher morreu e nunca quis tomar outra, e só há essa rapariga para lhe suceder.
- E não tem qualquer herdeiro varão entre a parentela? É raro ser uma filha a herdar.
- Nem um homem do lado da família dele - disse Cai -, e é uma pena. O único parente chegado é o irmão da mãe, mas esse não tem direito e, ainda por cima, é velho. Sioned é o melhor partido de todo este vale, e os jovens andam atrás dela como moscas. Mas se Deus quiser, ela será uma esposa feliz com um filho ao colo, muito antes de Rhisiart se juntar aos seus antepassados.
- Um neto filho de um homem bom; e que mais poderá alguém desejar? - disse Padrig e depois esvaziou a caneca e passou o copo.
- Compreenda-me; pessoalmente não sou homem de Gwytherin e não tenho direito a dar opinião num ou noutro sentido. Mas, se me é permitido dizer uma coisa que os meus amigos não dirão pessoalmente, pois você tem deveres para com o seu prior, do mesmo modo que Cai tem para com o seu senhor ou eu para com a arte e os meus patronos, não esteja à espera de um caminho fácil e não se ofenda se o encontrar bloqueado. Não é nada de pessoal consigo! Mas, sempre que os homens livres de Gales acham que não há honestidade num assunto, não se põem com palavras bonitas e não se afastam para deixar os outros ir avante.
- Eu lastimaria se o fizessem - disse Cadfael. - Pela minha parte, o que desejava era uma solução justa, que não deixasse ninguém com justo ressentimento. E que me contam a respeito dos outros senhores que devemos lá ver? Já ouvimos falar de Cadwallon, pois dois dos nossos irmãos estão a gozar a sua hospitalidade. As terras dele são vizinhas das de Rhisiart?
- É ainda um bom bocado para lá, através da floresta, que fica o solar de Rhisiart. Mas são vizinhos, limites com limites, sim, e amigos desde a juventude. Cadwallon é um homem de paz, que gosta do seu conforto e da sua caça. A sua tendência seria dizer sim ao que quer o bispo quer o príncipe tenham recomendado; porém, é também hábito seu, normalmente, dizer sim a Rhisiart. Por essa razão reconheceu Bened, escorropichando a última gota da caneca não sei melhor que o senhor o que qualquer deles terá a dizer a respeito do assunto. Pelo que sei, podiam até aceitar os vossos sinais divinos e dar a bênção ao vosso desejo. Se as vozes dos homens livres votarem a favor do vosso prior, Santa Winifred volta convosco para casa e é o fim da história.
Era também o fim da bebida por aquela noite.
- Passe aqui a noite - disse Bened a Padrig, quando os hóspedes se levantaram para irem para casa - e tocaremos um pouco de música amanhã, antes da sua partida. A minha pequena harpa precisa ser tocada; conservei-a em bom estado por sua causa.
- Ah, assim farei, já que é tão amável - disse Padrig e seguiu lentamente o caminho para dentro de casa, com o amigo.
E Cai e o Irmão Cadfael, tendo-se despedido, seguiram amigavelmente ombro a ombro, de volta até à casa do Padre Huw; e daí, por cortesia, seguiram uma parte do caminho em direcção ao solar Rhisiart, antes de se despedirem.
- Eu não quis falar mais, nem mais explícito - disse Cai, em confidência -, enquanto Bened estava presente, nem, para falar verdade, na frente de Padrig, embora seja bom sujeito (aliás, ambos são!), mas é um viajante de passagem, não é de cá. A tal Sioned, a filha de Rhisiart... A verdade é que o próprio Bened gostaria de ser um dos seus pretendentes, e é um homem bom e sólido, e a rapariga podia encontrar bem pior. Mas é viúvo, pobre homem, e anos mais velho que a moça, e as hipóteses são poucas. Mas o senhor ainda não viu a rapariga!
O Irmão Cadfael começava a suspeitar de que tinha efectivamente visto a rapariga e visto até mais do que a qualquer um deles já fora permitido ver. Mas nada disse.
- A rapariga parece um esquilo! É tão rápida, tão repentina, tão negra e tão vermelha como ele! Mesmo que ela nada tivesse, viriam na mesma de muitas milhas em redor; e vai ter terras que qualquer homem poderia cobiçar, mesmo que ela tivesse os olhos tortos! E lá anda o pobre Bened, muito metido consigo, alimentando-se do seu próprio silêncio, e ainda com esperanças. Afinal, um ferreiro é uma pessoa respeitada em todos os níveis. E, reconheçamos-lhe o mérito, não é a herança que ele cobiça. É a própria rapariga. Se a tivesse visto, já percebia porquê. Em qualquer caso - disse Cai, dando um profundo suspiro de lástima pelo amigo -, o pai já tem um favorito para genro e sempre o teve. O filho de Cadwallon sempre entrou e saiu à vontade do solar de Rhisiart e se serviu a seu bel-prazer dos seus criados, falcões a cavalos, desde que aprendeu a andar, e cresceu com a rapariga. E é o único herdeiro da propriedade contígua, e que há que melhor pudesse agradar a qualquer um dos pais? Há anos que combinaram isso entre si. É, os pequenos parecem formar um par ideal, pois conhecem-se perfeitamente, como irmão e irmã.
- Tenho as minhas dúvidas a respeito de isso dar o par ideal disse Cadfael, com sinceridade.
- É o que parece pensar Sioned também - disse Cai, com secura. - Até à data tem resistido a todas as pressões para aceitar esse Peredur. E, repare, ele é um jovem alegre, cheio de vida, bem parecido, amimado como tudo, pois é filho único, e mostre-me uma única rapariga das redondezas que não viesse a correr se ele levantasse o dedo mindinho: todas menos esta! Oh, ela gosta bem dele, mas mais nada. Para já, não quer ouvir falar em casamento; brinca ainda às meninas de coração livre.
- E Rhisiart aceita-lhe isso? - perguntou Cadfael, com delicadeza.
- Também o não conhece. Ele adora a filha, e bem que pode fazê-lo, e ela tem por ele a maior reverência, e bem que pode tê-la, mas onde nos leva isso? Ele recusa-se a forçar-lhe a escolha. Nunca perde uma oportunidade para insistir em como Peredur é o que melhor lhe convém, e ela nunca o nega. Ele vai aguardando, com a esperança de que ela venha a concordar.
- E virá? - perguntou o Irmão Cadfael, respondendo a qualquer coisa que sentiu na voz do homem. A sua estava mais suave que leite.
- Ninguém pode saber - disse Cai, lentamente - o que vai pela cabeça de uma rapariga. Talvez tenha outros planos muito seus. É arrojada e corajosa, inteligente e com paciência para conseguir o que pretende. Mas o que isso possa ser, que sei eu? O senhor sabe? Saberá alguém?
- Pode talvez haver um homem que saiba - disse Cadfael, com desinteresse cheio de astúcia.
Se Cai não tivesse mordido o isco, Cadfael teria deixado o assunto morrer, pois não lhe competia revelar os segredos da rapariga, quando ele próprio só por acaso tropeçara neles. Mas não ficou de modo nenhum surpreendido quando o homem deliberadamente se aproximou do seu braço e lhe enterrou um cotovelo significativo nas costelas. Um homem que, como ele, trabalhava tão de perto com o boiadeiro devia certamente ter notado já algumas coisas muito óbvias. Por exemplo a travessia cheia de propósito dessa tarde, através dos prados e da água, até um determinado carvalho grande seria, em si própria, suficiente para qualquer pessoa esperta. E, se mantinha a boca calada a respeito do caso, era porque as suas simpatias estavam, muito claramente, do lado do colega de trabalho.
- Irmão Cadfael, você não é homem de falar de mais, pelo menos do que não deve, e não está ligado a um ou a outro dos lados das nossas pequenas disputas daqui. Não há qualquer razão para que lhe não conte. Isto que fique aqui entre nós, mas ela tem mesmo um homem debaixo de olho, e um que a quer ainda com mais ânsia do que Bened e que tem ainda menos hipóteses de a conseguir: lembra-se de termos falado de Engelard, o meu colega com a parelha? Um homem com muito jeito para o gado, muito valioso para o seu senhor; e Rhisiart sabe isso muito bem, e por isso lhe reconhece um imenso valor. Mas o rapaz é um alltud: um estrangeiro!
- Saxão? - perguntou Cadfael
- O cabelo louro! Sim, você viu-o hoje. Também viu a altura dele e como é delgado. Sim, é um homem de Cheshire, das margens do Maelor, fugido dos meirinhos do conde Ranulf of Chester. Oh, não por assassínio, ou banditismo ou semelhante! Mas apenas porque o rapaz era simplesmente o mais descarado caçador furtivo de todo o condado. Com o arco curto é um mestre, e sempre caçava a pé e sozinho. E o meirinho queria-lhe o sangue. Quando o encurralaram, nada mais podia fazer senão correr para Gwynedd, Para poder salvar a pele. E não ousa regressar, pelo menos por agora; e o senhor sabe o que significa para um estrangeiro querer ganhar a vida em Gales.
E Cadfael sabia mesmo. Num país onde cada nativo tinha e conhecia o seu lugar, assegurado numa parentela de clã, e onde a base de todas as relações estava fundada na terra, quer como senhor livre quer como vilão pertencendo à comunidade da aldeia, o homem vindo de fora, não possuindo ali qualquer terra, não pertencendo a nenhum lugar, ficava privado da própria base para viver. O único meio que tinha de poder ali estabelecer-se era conseguir que qualquer senhor superior fizesse um tratado com ele e o empregasse, aproveitando uma qualquer arte que esse estranho tivesse para oferecer. Durante três gerações, esse contrato entre eles era revogável em qualquer altura e o estrangeiro podia partir pagando um preço justo: dividia o que possuía a meias com o senhor que lhe proporcionara o meio de tudo poder adquirir.
- Eu sei. Com que então, Rhisiart tomou esse jovem ao seu serviço e instalou-o nas suas terras?
- Foi. Faz agora dois anos e pouco. E nenhum deles teve qualquer razão para se arrepender. Rhisiart é um patrão justo e dá crédito onde for merecido. Mas, por mais que o respeite e considere, o senhor pode imaginar um nobre galês alguma vez a deixar ir a filha única para um alltud?
- Nunca! - concordou Cadfael positivamente. - Nem hipótese! Seria contra todas as suas leis, costumes e consciência. Os próprios parentes nunca lho perdoariam.
- Tão verdadeiro como o ar que respiro! - suspirou Cai, tristemente. - Mas vá tentar dizer tal coisa a um sujeito orgulhoso e teimoso como Engelard, que tem as suas próprias leis e direitos de outro lugar, onde o pai é senhor de uma boa propriedade e, à sua moda feudal, tem exactamente tanto peso como Rhisiart tem aqui.
- Está a querer dizer-me que ele efectivamente falou com o pai da rapariga? - perguntou Cadfael, espantado e sentindo admiração pelo rapaz.
- Falou e recebeu a resposta que seria de esperar. Sem qualquer malícia, mas sem nenhuma esperança também. Falou, manteve-se firme e defendeu à mesma a sua causa. E volta ao assunto sempre que uma oportunidade se oferece, para recordar a Rhisiart que não desistiu nem nunca desistirá. Digo-lhe uma coisa, esses dois são os dois do mesmo género, ambos de temperamento exaltado, ambos obstinados, mas ambos do mais aberto e honesto que se possa encontrar, e têm um grande respeito um pelo outro, o que de algum modo os impede de serem maliciosos ou de, com esta história, despedaçarem o coração. Mas, sempre que o assunto vem à baila, voam as faíscas. Uma vez, Rhisiart deu um soco em Engelard, porque este o pressionou demasiado, e o rapaz esteve por um fio para o socar também. Qual teria sido a resposta a isso? Nunca ouvi contar que tivesse acontecido com um alltud, mas, se um escravo bate num homem livre, está sujeito a perder a mão com que o fez. Mas ele parou a tempo, embora eu não creia que tenha sido o medo que o fez parar, mas sabia que estava errado. E Rhisiart nada fez senão, menos de meia hora mais tarde, voltar atrás e pedir perdão! Disse que fora insolente, pouco razoável, um indecente não-galês, e que não lhe devia ter batido.
”Entre aqueles dois há uma guerra contínua, a toda a hora, e nenhum deles pode ter paz, mas, se alguém disser algo contra Rhisiart na presença de Engelard, terá de engolir tudo pela garganta abaixo, com o punho de Engelard a empurrar. E, se algum dos servos alguma vez tenta diminuir Engelard, julgando com isso atrair os favores de Rhisiart, logo lhe é dito que o alltud é um homem honesto e um bom trabalhador e que vale dez iguais aos que dele dizem mal. E assim continuará! E não vejo que fim possa vir a ter!
- E a rapariga? - disse Cadfael. - Que diz ela a tudo isto?
- Muito pouco e em voz baixa. Talvez que no princípio tenha discutido e rogado, mas, se tal aconteceu, foi em particular, sozinha com o pai. Agora ela está a deixar passar o tempo e tenta mantê-los afastados um do outro, o melhor que pode.
”E encontra-se com o seu apaixonado junto à carvalha”, pensou Cadfael, ”ou em qualquer outro lugar combinado, onde quer que o trabalho o leve. Foi então assim que aprendeu o inglês durante esses dois anos inteiros, enquanto o rapaz saxão se atarefava a aprender com ela o galês.” E fora por isso que, embora estivesse disposta a dizer banalidades a um monge inglês de passagem, na língua dele, ficara preocupada por ter traído o seu segredo com um estranho que falava galês, que podia inocentemente comentar o facto por aí. Se estava a deixar passar o tempo e a evitar uma cena de guerra entre o pai e o apaixonado, até conseguir convencê-los à sua maneira, dificilmente quereria deixar que se soubesse quantas vezes se encontrava com Engelard em secreto. E quem poderia dizer qual seria o primeiro a ceder, quando todos pareciam tão determinados?
- Parece que já cá têm os vossos problemas em Gwytherin, e agora ainda têm o que nós trouxemos - disse, quando se despediu de Cai.
- Com tempo, Deus tudo resolve - disse Cai, filosoficamente, e afastou-se na escuridão. E Cadfael regressou pelo caminho fora, com a desconfortável sensação de que Deus, contudo, exigia uma pequena ajuda da parte dos homens, e o que mais recebia, porém, eram obstáculos.
No dia seguinte, todos os homens livres de Gwytherin vieram à reunião e com eles vieram à missa as suas mulheres e toda a comunidade de vilões. À medida que foram aparecendo, o Padre Huw ia citando baixinho a Cadfael o nome dos principais de entre eles. Raramente tivera tal congregação.
- E aquele é Rhisiart, com a filha e o administrador e a dama de companhia da filha.
Rhisiart era um homem grande, franco e enérgico, com cerca de cinquenta anos. Era moreno e tinha o cabelo escuro e uma barba pequena e grisalha e feições arrojadas, que podiam estar alegres ou coléricas, autoritárias ou joviais, mas que eram demasiado expressivas para jamais poderem ser reservadas ou vis. O seu passo era longo e impetuoso e o sorriso rápido na resposta quando era cumprimentado. A roupa dificilmente o distinguia de qualquer dos outros proprietários livres que invadiam a igreja, pois era tão simples como qualquer outra, mas de bom tecido fabricado em casa. A julgar pela face radiosa, vinha sem ideias preconcebidas, disposto a ouvir, e, apesar de todos os seus complicados problemas familiares, parecia um homem expansivamente feliz, orgulhoso e amigo da filha.
Quanto à rapariga, seguia-o modestamente, com a cabeça erguida e os olhos serenos. Nesta ocasião trazia sapatos, e o cabelo estava escovado e entrançado, seguro sobre o pescoço, formando um rolo de um negro brilhante, e estava coberto com uma touca de linho, mas não havia possibilidade de engano. Era a garota da carvalha e a maior herdeira e o mais desejável prémio de casamento de toda a região.
O administrador era um homem mais idoso, de cabeça agrisalhada e meio careca, com face suave e bem-humorada.
- É parente de Rhisiart por casamento - sussurrou Huw, o irmão mais velho da mulher.
- E a outra rapariga é a camareira de Sioned? - Não era preciso citar-lhe o nome, pois ele já o sabia. Sorridente, com covinhas na face, Annest seguiu a amiga na igreja, com passos curtos e calmos, e o Sol fez brilhar todos os reflexos luminosos e prateados do seu puxo de cabelo. - É a sobrinha do ferreiro - disse Huw, para ajudar. - É uma boa rapariga e, desde que ele enterrou a mulher, muitas vezes vai a casa dele e coze-lhe o pão.
- Sobrinha de Bened? - O Irmão John arrebitou as orelhas e olhou para a cinturinha fina e para o brilhante cabelo com um olhar fascinado, e sem dúvida estava a desejar que houvesse dia de cozer pão antes que partissem de Gwytherin.
Era certo que os arranjos com respeito às acomodações tinham sido inspirados; faltava ainda ver se por um anjo ou por um demónio.
- Baixe os olhos, irmão - disse Jerome, com censura na voz.
- Não fica bem olhar de modo tão directo para as mulheres.
- E como sabia ele que estavam a passar mulheres - ciciou o Irmão John, com rebeldia -, se os seus olhos estavam postos no chão, como era seu dever?
O Irmão Columbanus, ao menos, mantinha-se, como mandava a lei em presença de mulheres, com as pálidas mãos unidas em oração, as arrogantes pálpebras abaixadas e o olhar posto no chão.
- E agora cá vem Cadwallon - disse o Padre Huw. - Estes irmãos já o conhecem, claro. E a sua senhora. E o seu filho Peredur.
Com que então, aquele rapaz que trotava atrás dos pais, com a passada longa e saltitante de um jovem cabrito montês, é que era o marido escolhido para Sioned, o rapaz de quem ela gostava bastante e que conhecera intimamente toda a vida, mas com quem não estava de modo nenhum inclinada a casar. Ocorreu então a Cadfael que nunca perguntara o que sentia o rapaz a respeito da situação, mas foi preciso apenas um relance pela cara de Peredur, quando deu com os olhos em Sioned, para resolver o problema. Havia ali uma complicação. Talvez a rapariga tivesse despendido toda a sua inclinação para o amor numa mera amizade, mas o mesmo se não dera certamente com o rapaz. Quando a avistou, a sua cara empalideceu e os olhos pareceram encher-se de fogo.
Os pais eram bastante comuns, gente confortável que engordara com uma vida plácida e que esperava que tudo continuasse a decorrer suave e calmamente, como sempre acontecera.
Cadwallon tinha uma cara redonda, cheia de carnes e sorridente, e a mulher era gorda, loura e dada a lamúrias. O rapaz saía a um qualquer antepassado mais perigoso. A elasticidade do seu andar era uma alegria para os olhos. Não era de altura acima da média, mas tão bem proporcionado que parecia alto. O cabelo, escuro, estava cortado curto e a cabeça estava toda coberta de caracóis crespos. O queixo estava bem barbeado e todos os ossos da face eram tão ousados e elegantes como era viva a sua tez, com manchas arruçadas do sol sobre altas maçãs do rosto, e uma boca encarnada, audaciosa e determinada. Tal jovem pessoa podia bem achar difícil suportar que outro, ainda por cima estrangeiro, fosse preferido em vez dele. Em todos os movimentos e olhares proclamava que tudo e todos na sua vida sempre tinham, até à data, respondido servilmente ao seu encanto.
No momento certo, quando a igreja estava cheia, o Prior Robert, alto, imponente e cuidadosamente vestido, entrou pela microscópica sacristia e tomou o seu lugar, e todos os monges de Shrewsbury alinharam por ordem e seguiram-no. A missa começara.
Claro que as mulheres não tomavam parte nas deliberações da assembleia livre da paróquia. E os vilões também não, embora tivessem uma influência indirecta através dos amigos que tinham entre os homens livres. Por isso, enquanto os homens livres se demoraram na igreja depois da missa, o resto dispersou, afastando-se com uma dignidade lenta, mas não para muito longe, apenas o suficiente para estar discretamente longe da vista e da possibilidade de ouvir, mas perto bastante para, por instinto, detectar o que se estava a passar e poder confirmá-lo logo que a reunião acabasse.
Os homens livres reuniram-se ao ar livre, em frente da igreja. O Sol já ia alto, pois faltava pouco mais de uma hora para o meio-dia. O Padre Huw pôs-se em frente da assembleia e explicou-lhe o essencial do assunto, como lhe tinha sido apresentado. Era o pai deste rebanho e devia dar a verdade ao seu povo, mas também devia lealdade à Igreja. Contou-lhes o que o bispo e o príncipe tinham respondido ao pedido apresentado por Shrewsbury com muita reverência e muitas provas. Deixou a Robert a tarefa de explicar quais eram essas provas.
Nunca o prior tivera um ar mais sagrado ou parecera tão certamente predestinado para a sua própria santidade. Tinha sempre o sentido das ocasiões e estava fora de dúvidas que fora a sua ideia de ter a reunião ali ao ar livre, onde o Sol poderia dourar e iluminar a sua beleza, que parecia do outro mundo. Era opinião desprendida de Cadfael que tinha de fazer justiça a Robert e reconhecer que estava menos arrogante do que aquilo que seria de esperar. Usualmente exagerava as coisas, mas desta vez estava na medida certa, ou pelo menos tão certa como o pode ser uma coisa cuja rectidão não deixa de ser equívoca.
- Eles não estão felizes! - sussurrou o Irmão John ao ouvido de Cadfael, acontecendo que a sua própria voz estava longe de estar triste. Havia alturas em que até o Irmão John conseguia ser humanamente presumido.
Na verdade, todas aquelas caras galesas ordenadas em redor deles mostravam singular falta de entusiasmo por todos aqueles milagres ingleses realizados por uma santa galesa. Robert, apesar de na melhor das formas, não estava exactamente a arrastar a audiência.
Moveram-se, murmuraram, fitaram-se uns aos outros e depois de novo se voltaram para o fitar como um só homem.
- Se Owain Griffith o quer e se o bispo dá a sua bênção também - começou Cadwallon, de modo hesitante -, como leais filhos da Igreja e verdadeiros homens de Gwynedd, dificilmente poderíamos...
- Tanto o príncipe como o bispo deram a bênção à nossa comissão - disse o prior, altivo.
- Mas a rapariga está aqui, em Gwytherin - disse Rhisiart, abruptamente. Tinha a voz que se poderia esperar de um homem, como ele, forte, melodiosa e profunda, uma voz que traduzia o que sentia e só depois esperava pelo pensamento, para afinal descobrir que o pensamento já lá estivera, no sentimento. - É nossa, não do bispo David! Não de Owain Griffith! Foi aqui que ela viveu a sua vida e nunca disse qualquer palavra a respeito de querer abandonar-nos. Será que devo facilmente acreditar que agora, depois de tanto tempo, é que quer partir de ao pé de nós? E por que nunca nos disse isso a nós? Porquê?
- Disse-no-lo a nós, claramente - disse o prior -, por meio de muitas manifestações, como já lhes contei.
- Mas nem uma palavra a nós - gritou Rhisiart, exaltado. - E chama a isso cortesia? E devemos acreditar semelhante coisa da parte de uma virgem que escolheu fazer o seu lar aqui entre nós?
Todos estavam do lado dele, pois a sua firmeza incendiara a relutância latente em todos. Logo gritaram todos à uma, de várias direcções, que Santa Winifred pertencia a Gwytherin e a nenhum outro lugar.
- Será que se atrevem a dizer-me - disse o Prior Robert, em voz alta e clara - que a costumam ir visitar? Que a ela dedicam as vossas orações? Que invocam a ajuda dessa abençoada virgem e lhe dão todas as honrarias que lhe são devidas? Conhecem alguma razão por que haveria de querer permanecer aqui convosco? Não é verdade que até a sua campa negligenciaram?
- E, se assim fosse - disse Rhisiart, com jovial convicção - julga que a rapariga se iria preocupar com tal coisa? O senhor nunca viveu aqui entre nós. Ela sim. O senhor é inglês, ela era galesa, conhecia-nos e nunca esteve aborrecida connosco a ponto de se afastar ou de se queixar. Nós sabemos que ela ali está, não é preciso andar em exclamações ou fazer grande alarido. Se temos necessidades, ela sabe-o, mas nunca exige que nos aproximemos com preces e lágrimas, batendo com os joelhos no chão em frente dela. Se fizesse questão de ter algumas silvas e ervas, teria encontrado um meio de no-lo dizer. A nós, não a um qualquer distante convento beneditino lá na Inglaterra!
As gargantas abriram-se agora cheias de entusiasmo, gritando, quando antes só murmuravam. O homem nascera para poeta e pregador e estava à altura para fazer frente a qualquer inglês. O Irmão Cadfael deu asas ao seu sangue de bardo e regozijou-se em silêncio. Nem era sequer porque o Prior Robert se recolhia em raiva marmórea sob o cerco galês, mas apenas porque era uma voz galesa que chamava à batalha.
- E quer negar - trovejou Robert, esticando o seu ascético comprimento até ao máximo - a verdade de todos os sinais divinos e milagres que lhe narrei, a chamada que aqui nos conduziu?
- Não! - disse Rhisiart, redondamente. - Nunca duvidei de que acreditassem nesses portentos ou de que os tivessem experimentado. Podem surgir portentos, mas tanto podem ser produzidos por anjos como por demónios. Se vêm do Céu, por que não somos nós a receber instruções? A pequena santa está aqui, não em Inglaterra. Deve-nos a cortesia do parentesco. Será que se atreve a dizer que ela se tornou traidora? E não há uma igreja em Gales, uma igreja celta, que ela própria serviu? Que sabia ela da vossa? Não acredito que vos falasse a vós e não a nós. Fostes enganados por demónios! Winifred nunca disse palavra!
Uma dúzia de vozes tomaram o repto, ecoando aplausos às palavras do seu mais articulado porta-voz, que pusera o dedo exactamente no ponto onde lhes doía o ressentimento. Até o próprio sistema de bispados afrontava os devotos aderentes da velha e santa igreja celta, que não tinha pompas mundanas nem cortejava tronos, antes se afastava do mundo para a abençoada solidão do pensamento e da oração. O murmúrio tornou-se num rumor dominado, depois num trovejar, depois num estrondo. O Prior Robert, não muito inteligentemente, elevou a sua voz, habituada ao comando, para os mandar calar.
- Ela não vos dirigiu a palavra a vós porque a deixastes esquecida e sem honrarias. Voltou-se para nós à procura de reconhecimento a partir do momento em que não recebia nenhum de vós.
- Isso não é verdade - disse Rhisiart -, embora o senhor, na sua ignorância, o possa crer. A santa é uma boa mulher galesa e conhece os seus compatriotas. Nós não somos apressados com respeito a hierarquias e riquezas, não tiramos o chapéu nem fazemos a reverência ou rapapés perante qualquer pessoa que se venha exibir perante nós. Somos rudes e familiares até nos louvores. Aquilo a que damos valor, damo-lo no coração, e essa rapariga galesa sabe disso. Nunca deixaria os seus abandonados, mesmo que nos tenhamos esquecido de aparar a relva da sua campa. É o espírito que para nós se inclina e é por nós considerado guardião e parente. Mas essas ossadas que vieram aqui caçar são dela também. Não nossas, não vossas! Até que ela própria nos diga que as quer noutro lugar, é aqui que ficam. De outro modo, seríamos amaldiçoados!
Era o mais amargo golpe na vida do Prior Robert saber que encontrara quem lhe podia fazer frente e vencê-lo em eloquência e argumentos, e logo aqui, num proprietário galês semibárbaro, não um grande senhor mas um mero fidalgote elevado, no meio dos seus inferiores, a um nível que não lhe competia, pelo menos aos olhos normandos. A diferença entre eles era que Robert pensava em termos de hierarquias e Rhisiart em termos de laços de sangue; altos ou baixos, era o mesmo e um só parentesco, e nem um homem de entre eles estava consciente de qualquer inferioridade, apenas do seu respectivo lugar numa família unida.
O trovejar soava agora como uma só voz, exigente e segura, mas fora um homem que lhe dera existência. O Prior Robert, bem consciente de que era um só adversário quem o enfrentava, dominou o seu tom colérico e optou pela sabedoria da pomba e pela subtileza do combate singular. Erguendo os longos e elegantes braços, dos quais as amplas mangas do hábito caíam em liberdade, sorriu para a assistência, voltando o seu mais atraente sorriso em direcção a Rhisiart.
- Vamos, Irmão Cadfael, diga por mim ao Sr. Rhisiart que é bem fácil para nós, que no coração temos a mesma devoção, entrar em desacordo por causa dos meios. É melhor falar-se calmamente, de homem a homem, e evitar a deformação da ira. Lorde Rhisiart, peço-lhe que venha falar comigo a sós, discutamos este assunto com calma e depois terá liberdade para dizer o que quiser. E, tendo-lhe dito honestamente tudo o que tenho a dizer, não direi nem mais uma palavra que ameace o que tiver para participar à sua gente.
- Isso é honesto e generoso - disse Rhisiart prontamente, perante semelhante oferta, e avançou com ingénuo prazer por entre a multidão, que abriu caminho para o deixar passar.
- Não levaremos para a igreja nem sequer a sombra de uma discussão - disse o Prior Robert. - Poderá vir connosco até à casa do Padre Huw? - Todos aqueles olhares interessados, brilhantes e obstinados, os seguiram até à baixa passagem e permaneceram ali fixos à espera de os verem de novo aparecer. Nem um dos homens entre os galeses se moveu do seu lugar. Tinham confiança em que a voz que até ali falara por eles continuaria ainda a falar por eles.
Na pequena sala, que cheirava a madeira e que, depois da luminosidade do dia lá fora, parecia escura, o Prior Robert encarou o seu oponente com uma face calma e razoável.
- O senhor falou bem - disse - e louvo a sua fé e o alto valor em que põe a santa, pois também nós a temos em grande valor. E só por desejo dela, pois é nisso que cremos, viemos aqui, apenas para a servir. Tanto a Igreja como o Estado estão por nós, e o senhor sabe melhor do que eu qual a obrigação que um nobre de Gales tem para com ambos. Mas eu não partiria feliz de Gwytherin se deixasse um sentimento de agravo, pois sei que a partida de Santa Winifred é uma grande perda para Gwytherin. Isso nós reconhecemos e gostaríamos de vos dar a devida compensação.
- Compensação a Gwytherin? - repetiu Rhisiart, quando isto lhe foi traduzido. - Não percebo como...
- E a si - disse Robert, suavemente e de modo descontraído -, se retirar a sua oposição, porque então tenho a certeza de que todos os seus colegas fariam o mesmo e sensatamente aceitariam o que o bispo e o príncipe ordenaram.
A medida que traduzia isto, ocorreu a Cadfael, mesmo antes de o prior começar o lento e significante movimento de levar uma longa mão ao peitilho do hábito, que Robert estava à beira de cometer o mais desastroso erro de cálculo da sua vida. Mas a face de Rhisiart permaneceu cheia de dúvidas e reservada, absolutamente sem nada compreender, quando o prior tirou do peito uma saquinha de pelica macia, apertada com um fio, e a pousou na mesa, empurrando-a com suavidade até que foi parar junto à mão direita de Rhisiart. O seu avanço sobre as ásperas tábuas produziu um ligeiro tinido de moedas. Rhisiart mirou-o com suspeita e ergueu um olhar cheio de interrogações para fitar o prior.
- Não estou a compreender. Que é isto?
- É seu - disse Robert - se conseguir persuadir a paróquia a concordar em desistir da santa.
Só demasiado tarde sentiu a frialdade incrível que pairava no ar e percebeu o terrível erro que cometera. Apressadamente, fez o melhor que pôde para recuperar o terreno perdido.
- Para utilizar como achar que é melhor para Gwytherin: uma grande soma... - Era inútil. Cadfael deixou aquilo passar em silêncio.
- Dinheiro! - exclamou, Rhisiart, no mais extraordinário tom de voz, simultaneamente curioso, com desprezo e revoltado. Claro que ele sabia o que era dinheiro; e até percebia a sua utilidade, mas apenas como uma aberração nas relações humanas.
Nas regiões rurais de Gales, que na verdade compunham quase a totalidade de Gales, raramente o dinheiro era utilizado e dificilmente era necessário. No código estavam feitas provisões para todas as trocas necessárias de bens e serviços, ninguém era tão pobre que não tivesse os seus bens de subsistência, e pedintes era coisa desconhecida. A parentela tomava conta dos membros desprotegidos da família, e todas as casas estavam para eles abertas como que de direito. As moedas cunhadas que tinham penetrado através da fronteira eram como excentricidade absolutamente inútil. Só depois de uns momentos de espanto cheio de desprezo é que ocorreu a Rhisiart que, neste caso, eram também um insulto mortal. Retirou de repelão a mão para fugir a um contacto que o ofendia e o sangue subiu-lhe à face, tornando-a de um encarnado-escuro, atingindo até o branco dos olhos.
- Dinheiro? Atreve-se a propor comprar a nossa santa? Comprar-me? Eu tinha o espírito dividido a seu respeito e a respeito do que deveria fazer, mas agora, por Deus, sei o que pensar! O senhor teve os seus sinais divinos. Agora tive eu os meus!
- Está enganado a meu respeito! - exclamou o prior, titubeando depois do seu disparate e vendo-se cada vez mais distanciado com cada minuto que passava. - Não se pode comprar o que é sagrado; estou apenas a oferecer uma dádiva a Gwytherin, em gratidão e como compensação pelo sacrifício...
- Meu, foi o que disse que era - recordou-lhe Rhisiart, rebrilhando num tom de cobre polido na sua digna ira. - Que era meu se eu persuadisse...] Não é uma dádiva! É um suborno! Essa coisa estúpida a que dá, de longe, muito mais valor que à sua reputação, não pense que pode usá-la para comprar a minha consciência. Sei agora que tinha razão em duvidar de si.
”Já me disse o que tinha a dizer, agora irei eu falar aos meus, como prometeu que me seria permitido, sem qualquer intervenção da sua parte.
- Não, espere! - O prior estava numa agitação tal que até estendeu a mão e agarrou o seu interlocutor pela manga. - Não faça nada de modo apressado! Na verdade, enganou-se na interpretação do que eu queria dizer e, se até em oferecer uma esmola a Gwytherin eu estava errado, peço desculpa. Mas não lhe chame...
Rhisiart afastou-se, irado, da mão que o segurava e cortou abruptamente o protesto, voltando-se para Cadfael.
- Diga-lhe que não precisa de estar com medo. Eu teria vergonha de dizer ao meu povo que um prior de Shrewsbury tentou corromper-me com um suborno. Eu não emprego essa espécie de armas. Mas, qual a minha posição pessoal, isso sem dúvida que lhes direi e a vós também.
E afastou-se deles, e o Padre Huw ergueu uma das mãos em aviso para impedir que qualquer deles tentasse detê-lo ou segui-lo.
- Agora não! Neste momento está exaltado. Amanhã poderá fazer-se alguma coisa para o contactar, mas por agora não. Devem deixá-lo dizer o que quiser.
- Então, pelo menos vamos aparecer em público - disse o prior, apanhando, de modo magnificente, todos os cacos que pôde da ruína que criara; e saiu para o sol e postou-se junto à porta da igreja, com todos os monges seus colegas seguindo-o de perto, e ali ficou com a cabeça erguida e os braços calmamente cruzados, à vista de todos, enquanto Rhisiart rugia na sua declaração ao povo de Gwytherin, ali reunido.
- Escutei o que esses homens de Shrewsbury tinham para me dizer e tomei a minha decisão de acordo com isso e agora comunico-a a vós. E digo que, longe de mudar de opinião, confirmei mil vezes que tinha razão em me opor ao sacrilégio que desejam. Digo que o lugar da Santa Winifred é aqui connosco, aonde sempre pertenceu, e que seria pecado mortal deixá-la ser levada para um lugar estranho, onde nem as orações seriam ditas na língua que conhece e onde a sua única companhia seriam estrangeiros que não são dignos de se lhe aproximarem. Declaro a minha oposição total contra qualquer tentativa de mudar as suas ossadas de lugar e apelo para que façam o mesmo. E agora esta conferência está encerrada.
Assim o disse e assim se fez. Não havia nenhum modo possível de a prolongar. O prior foi forçado a continuar de pé, com a cara de mármore e as mãos imóveis, enquanto Rhisiart se afastou em direcção ao caminho da floresta, e toda a assembleia, em atemorizado silêncio e cheia de determinação, depois da sua partida, dispersou misteriosamente em todas as direcções, de tal modo que em poucos minutos toda aquela área, verde e pisada, estava vazia.
Devia ter-me dito o que pretendia fazer - disse o Padre Huw, com tímida censura. - Poderia ter-lhe dito que era loucura, a pior possível. Que atracção pensa que tem o dinheiro para um homem como Imga Rhisiart? Mesmo que ele estivesse à venda, e não está, o senhor teria de encontrar outros meios para o comprar. Pensei que calculara a medida dele e se propunha defender junto dele a triste sorte dos peregrinos ingleses, que não têm santos poderosos próprios e têm premente necessidade de tal protectora. Ele teria dado ouvidos a algo que sensibilizasse a sua generosidade.
- Eu vim com a bênção da Igreja e do soberano - disse o prior renhidamente, embora a repetição estivesse a perder a força, até para ele. - Não posso ser repudiado a bel-prazer de um pequeno fidalgo local. A minha ordem não tem direitos aqui em Gales?
- Muito poucos - disse Cadfael, sem cerimónias. - O meu povo tem uma reverência natural, mas inclina-se para o eremitério, não para o claustro.
A exaltada conferência continuou até às vésperas e até envenenou estas com o seu amargor, pois nelas o Prior Robert pregou um sermão aterrador, detalhando todos os sinais divinos que mostravam que Winifred desejava, acima de tudo, retirar-se para a santidade de Shrewsbury e transmitindo as proféticas ameaças contra todos aqueles que se interpusessem no caminho da sua trasladação. Seria terrível a sua ira sobre os que ousassem resistir à sua vontade.
E foi assim que o Prior Robert iniciou a necessária reconciliação com Rhisiart. E, embora Cadfael, ao traduzir, tivesse amenizado a ameaça tanto quanto ousava, havia entre a congregação alguns que compreendiam inglês o suficiente para apanhar toda a sua força.
Reconheceu-o pelas suas faces fechadas e sombrias. Agora iriam espalhar a história entre aqueles que não tinham estado presentes, até que todos em Gwytherin soubessem que o prior lhes pedira que lembrassem o que acontecera ao príncipe Cradoc, cuja carne se desfizera em água e penetrara no solo como chuva, de tal modo que desaparecera por completo, e assim o corpo fora expulso deste mundo, enquanto no que respeitava à alma nem mesmo a mais fértil imaginação podia adivinhar. E também o mesmo poderia acontecer agora a todos os que se atrevessem a ofender Winifred. O Padre Huw, preocupado e ansioso, procurava, o mais honestamente que lhe era possível, qualquer meio de agradar a toda a gente. Levou-lhe a maior parte da tarde conseguir que o prior escutasse, mas, por fim, a calma sempre tinha de se restabelecer graças a puro esgotamento.
- Rhisiart não é um ímpio...
- Não é ímpio! - disse o Irmão Jerome, com voz esganiçada, apelando para o Céu com os olhos erguidos. - Houve homens que já foram excomungados por menos!
- Então excomungaram homens que não tinham qualquer maldade - disse Huw, firmemente -, e, para falar verdade, penso que por vezes o fazem. Não; afirmo que Rhisiart é um homem decente e devoto, de mãos abertas e justo, e tinha o direito de se ressentir, quando foi mal compreendido e ofendido. Se pretender que ele alguma vez venha a retirar a sua oposição, terá de ser o senhor, padre prior, a dar o primeiro passo de aproximação, e num estilo muito diferente. Não em pessoa a princípio; eu não pediria isso, nem o aconselharia. Mas, se eu fosse ter com ele, talvez aqui com o Irmão Cadfael, que todos sabem ser ele próprio um bom galês, e lhe pedisse para esquecer tudo o que fora dito e feito e vir de espírito aberto recomeçar a discussão novamente, penso que não recusaria. Além disso, o próprio acto de lhe ir ao encontro haveria de o desarmar, pois tem um coração generoso. Não digo que vá necessariamente mudar de opinião, pois isso dependerá da maneira como for tratado desta vez, mas afirmo que escutará.
- Longe de mim - disse o Prior Robert, altivamente desprezar qualquer meio de salvar uma alma da perdição. Não desejo nenhum mal ao homem, desde que retrate as suas ofensas. Não é humilhação inclinarmo-nos para salvar um pecador.
- Oh, maravilhosa clemência! - entoou o Irmão Jerome. Que santa generosidade para com o prevaricador!
O Irmão John lançou-lhe um olhar a rebrilhar por entre os olhos semicerrados e mexeu desconf ortavelmente com um pé, como que reprimindo o impulso para dar um pontapé. O Padre Huw, desesperado para manter de igual modo toda a sua boa vontade junto do príncipe, do bispo, do prior e dos paroquianos, lançou-lhe um olhar de aviso e apressadamente retomou a palavra:
- Irei hoje à noite ter com Rhisiart, para convidá-lo a jantar amanhã aqui, em minha casa. Então, se conseguirmos chegar a acordo entre nós, pode convocar-se nova assembleia para que todos possam ficar a saber que se fez a paz.
- Muito bem! - disse o prior, depois de certa consideração. Desse modo não precisaria actualmente de admitir qualquer culpa da sua parte, ou de pedir desculpas por qualquer acto seu, nem precisava de indagar muito de perto o que Huw poderia ter de dizer em sua defesa. - Muito bem, faça isso, e espero que tenha bom êxito.
- Seria um sinal do seu status e da importância deste gesto sugeriu Cadfael, de cara muito séria - se os seus mensageiros fossem a cavalo. Ainda não está escuro e aos cavalos o exercício só faria bem.
- Certo - disse o prior, levemente agradecido. - Estaria de acordo com a nossa dignidade e daria peso à tarefa. Muito bem, que o Irmão John traga os cavalos.
- Bom, a isto é que eu chamo um amigo! - disse o Irmão John, cheio de entusiasmo, quando todos os três estavam na sela e a salvo, afastados já na penumbra que reinava sob as árvores, o Padre Huw e o Irmão John nos dois grandes cavalos e o Irmão Cadfael na melhor mula. - Mais dez minutos e eu teria ganhado o direito a uma penitência que iria durar um mês ou mais, e agora aqui estamos, na melhor das companhias, a caminho de uma missão decente e a gozar a calma da noitinha.
- E eu alguma vez falei em tu vires connosco? - disse Cadfael, matreiro. - Eu disse que os cavalos acrescentariam lustro à embaixada, mas nunca fui ao ponto de dizer que tu lho acrescentarias também.
- Eu vou junto com os cavalos. Alguma vez ouviu falar de um embaixador a cavalgar sem criados? Manter-me-ei bem afastado enquanto estiverem em conferência e desempenharei o papel de criado cumpridor. E, a propósito, esta noite Bened estará a beber lá no solar. Eles recebem à vez e hoje calha a Cai.
- E como ficaste a saber tanto - admirou-se Cadfael - sem saberes uma palavra de galês?
- Oh, arranjam um meio qualquer de me fazer perceber o que querem dizer, e eu a eles! Além disso, já sei várias palavras em galês e, se ficarmos aqui presos por uns tempos, depressa aprenderei muitíssimas mais, se conseguir que a minha língua lhes ganhe o jeito. Também podia aprender a arte de ferreiro. Esta manhã dei-lhe uma mão na forja.
- Recebeste uma grande honra. Em Gales, ser ferreiro não é para qualquer um.
Huw indicou a vedação que começara a estender-se à direita deles.
- A propriedade de Cadwallon. Temos ainda uma milha de floresta para percorrer até ao solar de Rhisiart.
Ainda era apenas crepúsculo quando emergiram numa grande clareira, com faixas aradas e plantadas a rodear uma longa cerca de canas. No ar pairava o cheiro de fumo de lenha, e a porta aberta do solar estava iluminada com o brilho de tochas. Junto ao lado interior da vedação havia estábulos, celeiros e currais, e homens e mulheres moviam-se activos a tratar das necessidades da noite de uma casa com um número considerável de gente.
- Bem, bem! - disse a voz de Cai, o homem do arado, vinda de um banco sob o beiral de um dos estábulos. - Com que então o nariz guiou-lhe os passos até ao sítio onde esta noite está o canjirão, Irmão Cadfael! - E moveu-se delicadamente, ficando ombro a ombro com Bened, para dar lugar. - Padrig está a tocar música lá dentro e, pelo que ouvi, talvez seja música de guerra, mas dentro de pouco tempo estará connosco. Sentem-se e sejam bem-vindos. Ninguém os considera a vós como inimigos.
Estava com eles já um terceiro homem, um homem alto, sentado na sombra mais profunda, com as pernas estendidas à vontade bem para diante e o cabelo assemelhando-se, mesmo na penumbra, à palidez das margaridas. O jovem estrangeiro, Engelard, de boa vontade dobrou os longos membros e moveu-se para partilhar também o banco. Tinha um sorriso rápido e aberto, cheio de vida, que lhe era dada pelos dentes muito brancos.
- Viemos expressamente para fazer parar a guerra - disse o Irmão Cadfael quando desmontou, e um criado da casa veio a correr segurar as rédeas. - O Padre Huw tem a paz nas mãos, e eu sou apenas um assessor para ver que o jogo é honesto. E infelizmente esperam que voltemos com uma resposta logo que tenhamos falado com o vosso senhor. Mas, se quiserem tomar conta do Irmão John enquanto tratamos do caso, ele ficará muito grato. Pode falar inglês com Engelard, pois uma pessoa deve praticar a sua própria língua sempre que pode.
Mas o Irmão John, segundo o que parecia, tinha, de momento, perdido completamente o uso da boca em qualquer língua, pois permanecia de olhos fixos e deixara que lhe tirassem as rédeas da mão como um homem num sonho. E nem olhava para Engelard, mas sim para a entrada do solar, donde saíra a figura de uma rapariga que atravessava alegremente em direcção aos bebedores sob o beiral, trazendo uma grande caneca em cada mão. Os vivos olhos castanhos chisparam quando viram os visitantes, tomaram conhecimento das pessoas de Cadfael e do padre com uma amizade simples e abriram-se arregalados perante a figura do Irmão John, que permanecia como uma estátua muito viva, cabelo ruivo espetado, bochechas queimadas pelo sol e olhos selvagens e admiradores. Cadfael olhou para onde olhavam os olhos de Annest e viu, com aprovação, um jovem muito recto, honesto, franco e simpático, talvez dois ou três anos mais velho, que a rapariga. O hábito beneditino, arregaçado até aos joelhos para permitir andar a cavalo e aí esquecido, era tão parecido com uma túnica de trabalho galesa que nem se notava a diferença, e a tonsura, por mais que um homem (ou uma rapariga soubesse que ali estava, era invisível por trás do matagal de caracóis cor de fogo.
- Devem estar sequiosos! - disse Annest, ainda com um olho sobre o Irmão John, e pousou o canjirão no banco junto de Cai e, com um voltear da saia e uma ondulação da cabeleira castanho-clara, sentou-se, aceitando a caneca que Bened lhe ofereceu. O Irmão John continuava mudo e encantado.
- Anda daí, rapaz - disse Bened e fez-lhe lugar entre si e Cai, apenas com uma pessoa entre ele e o sítio onde a rapariga estava delicadamente sentada a bebericar. E o Irmão John, como homem em sonho, embora talvez com uma determinação muito mais cheia de vida, avançou para o assento reservado para si.
- Bem, bem! - disse Cadfael, silenciosamente para si próprio, e deixou aquele problema insolúvel para que fosse resolvido por Aquele que tudo resolve e, junto com o Padre Huw, entrou no solar.
- Irei - disse Rhisiart, numa pequena sala à parte com os seus visitantes. - Claro que irei. Nenhuma pessoa pode recusar-se a ouvir o que outra tem a dizer. Nenhuma pessoa pode estar certa de nunca se fazer compreender mal e de dar triste ideia de si, e Deus não permita que eu recuse a outro uma segunda oportunidade. Muitas vezes eu próprio falei com demasiada pressa e depois me arrependi e confessei-o, como o vosso prior fez agora.
- Claro que ele não confessara com tantas palavras que o fizera, nem Huw o afirmou. Este contou antes a sua própria vergonha e remorso, mas, se Rhisiart os atribuíra ao Prior Robert, Huw estava suficientemente desesperado para o deixar continuar na ilusão.
- Mas devo confessar-lhe que tenho poucas esperanças nesse encontro. O abismo entre nós é demasiado grande. A si posso dizer o que não disse a ninguém dos que lá não estavam, porque me sentia envergonhado. O homem ofereceu-me dinheiro. Ele agora diz que o ofereceu a Gwytherin, mas como era isso possível? Serei eu Gwytherin? Eu sou um homem como qualquer outro. Ocupo o meu lugar o melhor que posso, mas continuo a ser apenas um homem. Não, foi a mim que ele ofereceu a bolsa, para que retirasse a minha voz de oposição a ele. Para que persuadisse o meu próprio povo a concordar com os seus desejos. Aceito a sua vontade de falar novamente comigo, de tentar fazer-me ver as coisas como ele as vê. Mas não posso esquecer que viu a coisa como algo que podia comprar com dinheiro. Se ele me quer fazer mudar de opinião, isso terá de mudar também e ver-se que mudou. Quanto às ameaças dele, pois é o que são, e agradeço ter-mas contado lealmente, não me incomodam nem um pouco. A minha reverência para com a nossa pequena santa é tão grande como a dele ou a de qualquer outra pessoa. E acha que ela não o sabe?
- Estou certo de que sabe - disse o Padre Huw.
- E, se tudo o que querem é honrá-la e adorá-la como merece, por que o não fazem aqui onde está? Por que não, até, enfeitar-lhe a campa, se é isso que os preocupa, por a termos deixado ao desamparo?
- Boa pergunta - disse Cadfael. - Já a fiz a mim próprio. O sono dos santos devia ser ainda mais sagrado e livre de perturbações do que o sono das pessoas vulgares.
Rhisiart fitou-o com uns olhos inteligentes e desafiadores, um ou dois graus mais claros que os de sua filha, e sorriu.
- Seja como for, irei; e os meus agradecimentos por todos os incómodos que tiveram. Ao meio-dia ou um pouco depois, aparecerei para o seu jantar e escutarei honestamente o que quer que seja que me queiram dizer.
Soavam umas boas risadas de ponta a ponta do banco, sob o beiral do telhado, e era bem tentador juntar-se aos bebedores, pelo menos para uma bebida rápida, como exigia Cai. Bened levantara-se para voltar a encher a sua caneca do canjirão, e o Irmão John, silencioso e corado mas rebrilhando de felicidade, estava sentado, sem barreiras, entre ele e a rapariga, as mangas quase se tocando quando ela se inclinava curiosamente mais perto e com um caracol solto do cabelo dela a cair junto do ombro dele.
- Então como se saíram? - perguntou Cai, servindo-lhes uma bebida. - Ele sempre vai para tentar chegar a acordo com o vosso prior?
-Vai - disse Cadfael. - Quanto a chegarem a acordo, duvido. Ele ficou muito ofendido. Mas irá lá comer, e isso já é alguma coisa.
- Toda a paróquia o saberá, antes mesmo de vocês chegarem de regresso ao presbitério - disse Cai. - Por estes lados, as novidades correm mais rápidas que o vento, e, depois desta manhã, todos apoiam Rhisiart. Digo-lhe que, se ele mudar de música e disser ”ámen”, também eles o farão. Não por não terem dúvidas pessoais e hesitações, mas porque confiam nele. Ele tomou uma posição, e sabem que não a abandonará sem boas razões. Convençam-no e conseguirão o que querem.
- Não o que eu quero - disse Cadfael. - Nunca pude perceber porque se não pode venerar a nossa santa favorita sem a necessidade de lhe acariciar as ossadas, mas há, nos dias que correm, uma grande rivalidade entre as abadias a respeito de relíquias. Boa bebida esta, Cai!
- Foi aqui a nossa Annest quem a preparou - disse Bened, com tolerante orgulho na sobrinha e pondo-lhe carinhosamente uma mão no ombro. - E com tantas aptidões como ela tem só há uma! Há-de ser o tesouro para um homem, quando casar, mas será uma triste perda para mim.
- Podia arranjar-lhe um bom ferreiro para trabalhar consigo disse a pequena, formando covinhas nas faces. - E, então, onde estava a perda?
Já escurecera bastante, e, por mais vontade que sentissem de por ali se demorar, tinham de pôr-se a caminho. Huw estava inquieto, pensando na crescente impaciência do Prior Robert, com a sua alta figura a percorrer o jardim para diante e para trás e à espreita do primeiro sinal de regresso dos seus mensageiros.
- Devemos partir. Devem estar à nossa espera. Vamos, irmão, apresente as suas despedidas.
O Irmão John levantou-se, com relutância mas obediente. O criado avançava com os cavalos, um braço sob cada pescoço arqueado. Com face composta mas olhos cheios de entusiasmo, o Irmão John deu as boas noites em geral e invocou uma bênção. Num galês hesitante mas sonoro!
O eco acompanhou os cavaleiros até ao portão, com uma vaga de risadas e de boa vontade, na qual ressoava alegremente a fina voz da rapariga, e o ”Deus vos acompanhe!”, no inglês cheio de alma de Engelard, deu equilíbrio às línguas.
- E quem te ensinou isso entre o crepúsculo e a noite? perguntou o Irmão Cadfael, com interesse, quando entraram no lusco-fusco verde-escuro, sob as árvores. - Bened ou Cai?
- Nem um, nem outro - disse o Irmão John, feliz, pensando numa qualquer grande satisfação íntima.
E não valia a pena perguntar como é que ela o conseguira, não sabendo ela qualquer inglês, nem ele galês, como conseguira descobrir qual era a frase que lhe devia meter na cabeça. Estava ali em acção uma espécie de linguagem que fazia troça dos intérpretes.
- Bom, podes verdadeiramente gabar-te de que não perdeste o dia - reconheceu Cadfael, com generosidade -, pois que aprendeste alguma coisa. E fizeste mais alguma descoberta para somar a essa?
- Sim - disse o Irmão John, sorrindo placidamente. - Depois de amanhã é dia de cozer pão em casa de Bened.
- Pode descansar e dormir, padre prior - disse Huw, enfrentando corajosamente a testa alta e pálida com a sua baixa e bronzeada. Rhisiart diz que virá e ouvirá. Foi amável e razoável. Amanhã ao meio-dia, ou pouco mais tarde, cá estará.
É bem certo que o Prior Robert soltou um suspiro de alívio, cuidadoso e reprimido. Mas ainda tinha mais a exigir antes de todos poderem ir embora e dormir. Richard assomou-lhe junto ao ombro, grande, benigno e ansioso.
- E ele está consciente da incorrecção da sua resistência? Irá retirar a sua oposição?
Na penumbra, onde mal chegava a luz da vela, os Irmãos Jerome e Columbanus tremiam e esperavam, porque, enquanto persistisse a dúvida, não lhes seria permitido retirar-se para descansar na casa de Cadwallon. Os olhos ansiosos apelavam, reflectindo a luz.
O Padre Huw, querendo ele próprio ir dormir, torneou a questão. - Ele oferece uma atenção amigável e honesta consideração. Não pedi mais.
O Irmão Cadfael disse, com brusquidão:
- Vai precisar de ser persuasivo e sincero. Ele é sincero. Não estou de modo nenhum convencido de que Rhisiart poderá ser facilmente persuadido. - Estava cansado de animar vaidades feridas e disse em voz alta o que lhe ia no coração. - Padre prior, o senhor cometeu um erro para com ele esta manhã. Para desfazer esse dano, vai precisar de uma mudança no coração, no seu ou no dele.
O Prior Robert tomou as suas disposições, com bastante cuidado, logo que a missa acabou no dia seguinte.
- À mesa só nos sentamos o irmão subprior e eu, com o Padre Huw e o Irmão Cadfael como intérprete. O senhor, Irmão John, tentará ser útil à cozinheira e fazer o que quer que precise de ser feito e pode também cuidar do gado e das galinhas do Padre Huw. E para vós os dois, Irmão Jerome e Irmão Columbanus, tenho uma missão especial. Uma vez que vamos tratar do assunto de Santa Winifred, quero que passem em vigília e oração as horas durante as quais estivermos a deliberar, implorando a ajuda dela para trazer o teimoso à razão e para que a nossa missão tenha uma conclusão com êxito. Não na igreja aqui, mas na pequena capela do velho cemitério, onde está enterrada. Pegai na vossa comida e na vossa medida de vinho e ide já. O rapaz Edwin mostrar-vos-á o caminho. Se convencermos Rhisiart, como, com a ajuda da santa, creio que faremos, mandarei avisar-vos. Mas continuai com as vossas preces até que vos mande chamar.
Espalharam-se obedientemente, e John, de modo bastante alegre, foi tratar do fogo para Marared e fazer tudo o que ela ordenasse. A velha mulher, há muito viúva e com os próprios filhos já adultos, orgulhava-se por ter um jovem jeitoso a fazer-lhe companhia, e Cadfael reflectiu que era bem possível que John fosse favorecido com os melhores bocados, antes mesmo de a refeição vir para a mesa. Quanto a Jerome e Columbanus, viu-os porem-se a caminho com o rapaz, o pão e a carne embrulhados em guardanapos e enfiados sob o peitilho do hábito, e Columbanus carregando com a ração de vinho que lhes competia e uma pequena garrafa de água da fonte para si próprio.
- É apenas uma pequena oferta - disse, timidamente mas em nada tocarei além de água, até que a nossa causa esteja ganha.
- Grande parvo que ele é - disse o Irmão John, jovialmente pois talvez esteja a prometer ficar sem vinho até ao fim da sua vida.
Estava uma bela manhã de Primavera, mas caprichosa como só Maio sabe ser. O Prior Robert e os seus acompanhantes ficaram sentados no pomar até que foram obrigados a entrar, empurrados por um forte e cintilante aguaceiro, que durou quase meia hora. Estava-se, então, próximo do meio-dia, hora a que Rhisiart se devia juntar a eles. Ia ter uma caminhada bem molhada através do atalho da floresta. Ou talvez tivesse esperado o regresso do Sol em casa de Cadwallon, que ficava em caminho. Contando com isso, não se preocuparam quando outra meia hora passou sem ele aparecer. Mas, quando já estava uma hora atrasado para o encontro e ainda sem sinais dele, a face do Prior Robert começou a ficar simultaneamente severa e cautelosamente triunfante.
- Contaram-lhe as palavras de aviso que eu proferi contra o seu pecado e teme vir enfrentar-me - disse.
- Contaram-lhe as palavras de aviso, é certo - disse o Padre Huw, gravemente -, mas não vi nele qualquer sinal de medo. Falava muito firme e calmamente. E é homem de palavra. Não compreendo isto, não está nada nos seus hábitos.
- Vamos comer, mas com frugalidade - disse o prior e dar-lhe todas as hipóteses de cumprir a sua promessa, se algo aconteceu para o atrasar. Pode acontecer a qualquer pessoa. Esperaremos até estar na hora de nos prepararmos para as vésperas.
- Irei até casa de Cadwallon - ofereceu-se Richard -, porque há um só caminho até esse ponto, e talvez me encontre com ele ou tenha notícias de já estar a caminho.
Esteve fora mais de hora e meia e voltou sozinho.
- Fui um pouco mais além, ao longo do caminho, mas não vi sinais dele. No regresso perguntei no portão de Cadwallon, mas ninguém o vira passar. Temi que tivesse seguido pelo atalho enquanto eu seguia pelo outro caminho.
- Esperaremos até às vésperas, mas nem mais um minuto disse o prior, e por essa altura a sua face começava a ficar severamente confidente, pois já não contava com a vinda do hóspede, e o inimigo ter-se-ia assim posto em posição falsa, para grande vantagem do Prior Robert. Esperaram, portanto, até às vésperas, cinco horas depois da hora marcada. Dificilmente as pessoas de Gwytherin poderiam dizer que tinham posto Rhisiart de lado de modo demasiado apressado.
- E acabou - disse o prior, levantando-se e sacudindo as saias como alguém que afasta uma dúvida ou um micróbio. - Perdeu a coragem, e a sua oposição não terá agora peso junto de ninguém. Vamos indo!
A luz do Sol estava ainda brilhante mas caindo obliquamente sobre a clareira verde onde se erguia a igreja, e várias pessoas se aproximavam para o serviço. E da sombra, de um verde profundo onde começava o caminho da floresta, surgiu não Rhisiart, mas sim a sua filha, passando galantemente vestida, com um vestido verde, para a luz do Sol, o selvagem cabelo dominado e entrançado e, sobre ele, uma touca de linho. Sioned, com a sua personalidade de ir à igreja, com Peredur no seu encalço e segurando-lhe o cotovelo de modo possessivo, embora ela pouca importância estivesse a dar à atenção dele. Ela viu-os sair do portão de Huw, em silenciosa procissão, e os seus olhos foram de um para outro; parando em Cadfael, que seguia em último, de novo olhou com um pequeno franzir do sobrolho, como se faltasse uma face que esperava ver no grupo.
- Onde está o meu pai? - perguntou, os grandes olhos surpreendidos, mas ainda não preocupados. - Já não está aqui convosco? Eu fui a cavalo até à casa de Cadwallon, e ele tinha vindo a pé; por isso, se partiu há mais de uma hora, pode bem, a estas horas, já estar em casa. Vim para o acompanhar à igreja e depois regressar com ele.
O Prior Robert olhou para ela um tanto espantado, com uma primeira ponta de desconforto a fazer-lhe estremecer as narinas.
- Que está ela a dizer? Está a dizer-me que o Sr. Rhisiart se pôs a caminho para vir ao nosso encontro?
- Claro! - disse Sioned, espantada. - Ele tinha dito que viria.
- Mas não veio - disse Robert. - Estamos à espera desde o meio-dia e não vimos nem sinais dele. O irmão subprior seguiu uma parte do caminho para ver se o encontrava, mas em vão. Rhisiart não esteve aqui.
Sioned apanhou o sentido daquelas palavras sem a ajuda de Cadfael. Os olhos relampejaram enquanto miravam uma face após outra, desconfiados e prontos a irar-se.
- Está a dizer-me a verdade? Ou esconderam-no preso com cadeado e chave, até poderem tirar Winifred da sua campa e levá-la para Shrewsbury? Só ele vos impediria o caminho. É o senhor ameaçou-o!
Peredur apertou ansiosamente os dedos no braço dela e puxou-a para o seu lado.
- Acalma-te, não deves dizer tais coisas. Os irmãos não iriam mentir.
- A que horas - perguntou Cadfael - se pôs o seu pai a caminho, hoje de manhã?
Olhou para ele e sentiu-se um pouco mais segura. O círculo de silenciosos espectadores aproximou-se mais e escutava atentamente, pronto a tomar o partido dela se precisasse de um exército.
- Uma boa hora antes do meio-dia. Ia primeiro aos campos da clareira; por isso continuaria para aqui pelo atalho, cortando assim um quarto de milha de floresta ao caminho normal. Tinha imenso tempo para cá chegar antes do meio-dia. Até à clareira, Engelard ia com ele; depois seguia mais para diante, para os estábulos da colina. Há lá duas vacas mesmo no ponto de terem as crias.
- Estamos a dizer-te a verdade, filha - disse o Padre Huw, com a voz tão grave e ansiosa como a dela. - Esperámos por ele, mas não veio.
- Que poderá ter-lhe acontecido? Onde poderá estar?
- Deve ter-se desencontrado de nós e ido para casa argumentou Peredur, indeciso e infeliz junto ao ombro dela. Vamos regressar a cavalo e certamente o encontraremos, já lá chegado antes de nós.
- Não! Por que havia ele de voltar para trás e não vir cá comer? E se o fez, porquê tão tarde? E, além disso, nunca faria isso.
- Penso - disse o Padre Huw - que toda a minha paróquia está interessada neste assunto, e era melhor adiarmos tudo o mais, mesmo os serviços da igreja, até termos encontrado Rhisiart e termo-nos assegurado de que tudo está bem com ele. Na verdade, isto nada mais deve ser que uma confusão de horários e mal-entendidos, mas vamos primeiro resolver isto e depois descobrir o que o motivou. Os que estamos aqui somos já bastantes. Vamos mandar grupos percorrer os caminhos que ele pode ter seguido, e Sioned vai mostrar-nos onde pensa que iria dar o tal atalho que vem dos campos das terras altas. É impossível que tenha encontrado qualquer animal perigoso nestas florestas, mas pode ter caído, ter tido um acidente que o fez parar ou atrasar. Padre prior, quer juntar-se a nós?
- Com toda a minha alma - disse o Prior Robert -, e o mesmo faremos todos nós.
Os menos activos foram mandados seguir a estrada larga, com ordem para se espalharem de ambos os lados do caminho e passarem as cercanias a pente fino à medida que avançavam, enquanto os mais atléticos seguiam o estreito atalho para lá da vedação de Cadwallon. Aqui os bosques não eram ainda muito densos; havia sob as árvores uma erva forte e primaveril e arbustos rasteiros pouco densos.
Espalharam-se em semicírculo, avançando com uma distância de poucos passos entre eles, e Sioned avançava pelo caminho, apressada e cheia de determinação, com os lábios comprimidos e os olhos fixos. Peredur, evidenciando em tudo uma afeição desesperada, seguia-a de perto e murmurava agitados argumentos aos seus ouvidos, que nada escutavam. Quer ele acreditasse ou não nas afirmações que fazia, era fora de dúvida que estava ali um jovem profundamente apaixonado e pronto a fazer o que quer que fosse para servir e proteger Sioned, enquanto esta nada mais via nele que o rapaz da propriedade pegada à sua, e, ainda por cima, cansativo.
Estavam, talvez, a meia milha para lá da vedação de Cadwallon, quando o Padre Huw subitamente puxou pela manga de Cadfael.
- Esquecemo-nos do Irmão Jerome e do Irmão Columbanus! A colina onde está a capela é aqui para a direita, não muito distante. Pergunte ao Prior Robert se não seria melhor mandar lá chamá-los para que se juntem a nós.
-Tinha-me, na verdade, esquecido - admitiu o prior. - Claro, nem se discute, mande lá alguém. É melhor ir um dos seus paroquianos, pois todos conhecem o caminho.
Um dos homens, obedientemente, desviou-se por entre as árvores e correu. O grupo, alinhado em forma de foice, continuou lentamente para a parte mais profunda da floresta.
- Mais ou menos aqui - disse Sioned, parando - devia ele vir parar, vindo da clareira. Se seguirmos obliquamente para a direita e nos espalharmos como antes, devemos cobrir o caminho que possivelmente seguiu.
O terreno elevava-se, as árvores começavam a estar mais próximas umas das outras e a vegetação rasteira era mais densa. Tinham de rodear os arbustos, que impediam o andamento, tendo por vezes de se separar alguns metros e, por momentos, perdiam os vizinhos de vista. Tinham seguido assim apenas durante uma curta distância, quando Bened, o ferreiro, que seguia esmagando os arbustos à esquerda do Irmão Cadfael, soltou um forte grito de exclamação e desalento, e todos os da ondulante linha pararam e estremeceram com aquele som.
Cadfael voltou-se em direcção ao grito, lançando-se através dos ramos cheios de espinhos, e foi dar a um estreito oval de erva, rodeado de densos arbustos por todo o lado, através dos quais, no lado mais extenso da oval, se abria um atalho não mais largo que os ombros de um homem. Mesmo no sítio por onde devia ter passado para o espaço livre, Rhisiart jazia de costas, a anca direita fazendo uma cova na erva por baixo dele, os ombros de encontro ao solo e os braços completamente abertos. As pernas estavam encolhidas por baixo dele com os joelhos dobrados, com a perna esquerda cruzada sobre a direita. A barba, pequena e desafiante, apontava para o céu. E o mesmo acontecia, exactamente com o mesmo ângulo de inclinação, com as penas da seta que sobressaía de sob a caixa torácica.
Aproximaram-se de todos os lados, atraídos pelo grito do ferreiro seguindo através dos arbustos como uma manada de corças assustadas a correr e parando atemorizados em redor da oval onde jazia o corpo. Cadfael pôs-se de joelhos e procurou qualquer sinal de respiração por entre os lábios afastados, tentou sentir o pulso na garganta estendida ou notar qualquer subida e descida do peito trespassado, mas nada havia. E, durante esses primeiros momentos, ele era o único que se movia dentro do espaço aberto de erva, e tudo o que fez foi feito num silêncio estranho e profundamente intenso, como se todos à sua volta estivessem de respiração suspensa.
Depois, tudo simultaneamente se desfez em barulho e movimento. Sioned forçou a passagem por entre o círculo que lhe tapava a visão e viu o corpo do pai, lançou um profundo grito que era ainda mais de fúria que de dor e atirou-se para diante. Peredur apanhou-a pelo pulso e segurou-a entre os braços, uma mão em concha por trás da cabeça e empurrou-lhe a face contra o seu ombro, mas ela gritou de novo e bateu-lhe com toda a força e, libertando-se, deixou-se cair de joelhos em frente de Cadfael, inclinando-se para abraçar o corpo do pai. Cadfael esticou-se para a impedir, com um braço enterrado na erva, sob o sovaco direito de Rhisiart.
- Não! Não mexa em nada! Por agora, não! Deixe-o só, pois tem ainda coisas para nos dizer!
Levada por uma prontidão instintiva de espírito que nem naquele momento a abandonou, obedeceu primeiro ao tom de voz, mas logo imediatamente acordou para as palavras também. Os olhos interrogavam-no, muito abertos, e lentamente sentou-se na erva e cruzou as mãos sobre o colo. Os lábios repetiram-lhe as palavras silenciosamente: ”... coisas para nos dizer!” O seu olhar foi da face de Cadfael à do morto. Sabia que estava morto. Também sabia que os mortos podem falar, muitas vezes através do trovão. E descendia de orgulhosa família galesa, para quem um feudo de sangue é coisa sagrada, um dever que transcende até a própria dor.
Quando os outros que os seguiam se aproximaram mais e um deles estendeu a mão para tocar em Rhisiart, foi ela quem protectoramente estendeu o braço sobre o corpo e disse com autoridade:
- Não! Deixem-no em paz!
Cadfael retirou o braço de sob o corpo e, por uns momentos, ficou a cismar no que estaria a perturbá-lo com respeito à palma da mão que levantara de sobre a relva, junto ao peito de Rhisiart. Depois compreendeu. No sítio onde se ajoelhara, a erva estava perceptivelmente húmida, devido ao forte aguaceiro da manhã, e até podia sentir o hábito colar-se-lhe às pernas, quando mudava o joelho de posição. Contudo, sob o braço direito, todo aberto, a erva estava seca, e a sua mão saíra de debaixo dele sem a mínima ponta de humidade, o mínimo sinal de chuva. Voltou a pôr a mão, fez correr os dedos para cima e para baixo, ao longo do flanco direito de Rhisiart. Já estava junto ao joelho quando sentiu a primeira humidade e a fragrância da erva molhada. Tacteou por fora do corpo, em toda a volta, e encontrou os mesmos indícios. Estranho! Muito estranho! O seu espírito registou o facto e arquivou-o para pensar mais tarde, porque de momento havia que observar outras coisas, e toda a espécie de perigos ameaçava toda a espécie de gente.
A alta figura que assomava nas suas costas, imóvel e fria, não podia ser outrem que não o Prior Robert, num curioso estado de choque exaltado, mais próximo dos ataques de êxtase do Irmão Columbanus do que jamais estivera antes ou voltaria a estar. A voz aguda e forçada perguntou, por sobre a calma tremente dos soluços sem lágrimas de Sioned:
- Está morto?
- Morto - disse positivamente Cadfael e fitou longamente os olhos muito abertos e secos de Sioned, prometendo-lhe algo ainda indefinido. O que quer que fosse, ela compreendeu-o e ficou mais em paz, porque ele também era galês e sabia o que era um feudo de sangue. E ela era a única herdeira, a única parente próxima de um homem que fora assassinado. Tinha uma tarefa a cumprir muito mais importante que o desgosto.
Subitamente, a voz do prior rugiu, atemorizada e exaltada.
- Observai a vingança da santa! Então eu não tinha dito que a sua ira cairia sobre todos aqueles que se interpusessem à realização dos seus desejos? Traduza-lhes o que estou a dizer! Diga-lhes que observem bem o cumprimento da minha profecia e que fiquem avisados todos os demais corações obstinados. Santa Winifred mostrou-nos o seu poder e o seu desagrado.
Não havia praticamente necessidade de traduzir, pois já lhe tinham compreendido o sentido. Uma dúzia daqueles que estavam próximo afastou-se prudentemente, uma dúzia de vozes titubeou uma submissão apressada. Por nada no mundo se interporiam aos desejos da santa.
- O homem ímpio colhe o que semeia - declarou Robert. Rhisiart recebeu um aviso, mas não lhe deu ouvidos.
Por essa altura já os mais timoratos estavam de joelhos, aterrorizados e horrificados. Não era como se Santa Winifred tivesse significado muito para eles, até que alguém de fora a quisera, e Rhisiart defendera a prioridade de direitos da paróquia. E Rhisiart fora violentamente morto, abatido de modo inesperado nas suas próprias florestas.
Por cima do coração trespassado de seu pai, os olhos de Sioned fitaram os de Cadfael. Era uma rapariga corajosa e não disse nem uma palavra, embora estivesse cheia de palavras, que nela se amontoavam, prontas para ser ditas, ou, antes, cuspidas, na pálida e aristocrática face de alabastro do Prior Robert. Não foi ela quem subitamente falou. Foi Peredur.
- Não posso acreditar nisso! - Tinha uma bela voz, clara e veemente, que ressoava sob a folhagem.
- O quê, uma santa virgem, tão delicada, a vingar-se de tal modo de um homem que era bom, mesmo que estivesse enganado! E, se ela fosse tão desapiedada que até quisesse matar (e não acredito nisso da parte dela!), que necessidade teria de arcos e flechas? Fogo do Céu teria realizado a sua vontade igualmente bem e mostrado melhor o seu poder. Padre prior, está a olhar para um homem que foi assassinado. Foi uma mão de homem que ajustou aquela seta, uma mão de homem que puxou o arco e por causa de uma razão humana. Certamente havia outros, além de Santa Winifred, que tinham qualquer ressentimento contra Rhisiart, outros cujos planos ele obstruía. Porquê culpá-la a ela deste crime?
Cadfael traduziu para inglês este simples senso comum galês, para benefício de Robert, que apreendera o seu tom dissonante, mas não o conteúdo.
- E o jovem tem razão. Esta seta não foi, nunca, atirada do Céu. Olhe-lhe para o ângulo, de baixo para cima, de sob as costelas em direcção ao coração. Poderíamos, antes, dizer que saiu da Terra! Um homem com um arco pequeno, de joelhos entre o matagal? Certo que o terreno é inclinado; podia até estar mais abaixo que Rhisiart, mas, mesmo assim...
- Os santos vingadores podem fazer uso de instrumentos terrestres - disse Robert, de modo arrogante.
- E o instrumento não deixaria de ser um assassino - disse Cadfael. - Em Gales também há lei. Vamos ser obrigados a mandar a notícia ao meirinho do príncipe.
Todo aquele tempo, Bened permanecera de pé a olhar sombriamente para o corpo, para o fio, muito delgado, de sangue que havia em redor da ferida, para a seta que sobressaía com as suas penas aparadas. Lentamente disse:
- Conheço esta seta. Conheço o seu dono, ou pelo menos o homem a quem pertence a marca que nela se observa. Quando na mesma casa há vários jovens a viver próximos uns dos outros, cada um marca as suas setas com um sinal distinto para que não haja discussões. Reparem na ponta lateral do conjunto de penas, que está tingida de azul. - Era tal como ele dizia e, ao ouvir mencionar o facto, vários dos que ali estavam respiraram fundo, pois conheciam a marca tão bem como ele.
- É a marca de Engelard - disse Bened, firmemente, e três ou quatro vozes abafadas confirmaram.
Sioned levantou a face, aflita. A calma gelada e irreal provocada pelo choque derreteu-se subitamente e desfez-se em medo e ira. Rhisiart estava morto, nada mais podia agora fazer por ele além de o chorar e esperar, mas Engelard estava vivo e era vulnerável e estrangeiro, sem parentes para defendê-lo. Levantou-se abruptamente, delgada e muito erecta, percorrendo com os olhos ferozes, uma após outra, todas as faces do círculo que os rodeava.
Engelard é o mais digno de confiança de todos os homens do meu pai e preferiria cortar a própria mão com que puxa o arco a ter de disparar contra a vida de meu pai. Quem se atreve a afirmar que isto é obra sua?
-Não foi isso que eu disse - fez notar Bened, moderadamente.
- Disse que esta seta está marcada como as suas. Com o arco curto, ele é o melhor atirador de toda a região.
- E toda a gente em Gwytherin sabe - disse uma voz de entre o grupo dos galeses, não acusando mas apenas apontando o facto
- que ele discutiu muitas vezes e violentamente com Rhisiart a respeito de determinado assunto em conflito entre eles.
-A respeito de mim - disse, asperamente, Sioned. - Diga tudo o que tem a dizer! Eu, melhor que ninguém, conheço a verdade. Melhor que todos vós! Sim, muitas vezes trocaram palavras em alta voz a respeito desse assunto, e só desse, e continuariam a fazê-lo; mas, apesar de tudo isso, os dois compreendiam-se bem e nenhum deles, jamais, faria o mínimo mal ao outro. Não acham que o prémio a respeito do qual se luta acaba por conhecer bem os riscos que há para si própria e para ambos os lutadores? É certo que discutiam, mas tinham melhor opinião do seu respectivo oponente do que qualquer um de nós, e com boas razões.
- E, contudo, quem poderá dizer - disse Peredur, em voz baixa - até que ponto se desviará um homem da sua própria natureza levado pelo amor?
Ela voltou-se e fitou-o com crescente desprezo.
- Julgava que eras amigo dele!
- E sou amigo dele - disse Peredur, empalidecendo mas firme.
- Disse o que creio que me poderia acontecer a mim, tanto como a ele.
- Que história é essa de um Engelard? - perguntou o Prior Robert, que se perdera com esta troca de palavras. - Conte-me o que eles estão a dizer.-E, quando Cadfael o fizera, tão sucintamente quanto possível: - Parece-me bem que, no mínimo, se deve pedir a esse jovem que descreva os movimentos que fez neste dia decretou Robert, apropriando-se de uma autoridade a que ali não tinha direito. - Talvez aconteça que outros tenham estado com ele e possam responder por ele. Mas, em caso contrário...
- Hoje de manhã, ele pôs-se a caminho com o seu pai - disse Huw, olhando lamentavelmente para a face rígida e desafiante da rapariga. - Foi o que nos contou. Seguiram juntos até aos campos da clareira. Depois, o seu pai virou para descer até nossa casa, e Engelard devia ir até uma milha mais adiante, até aos estábulos onde as vacas estavam prestes a ter as crias. Temos de mandar indagar para saber se alguém viu o seu pai depois que se separou de Engelard. Há aí alguém que tenha algo a dizer a esse respeito?
Reinou o silêncio. O número das pessoas reunidas em redor deles aumentava rapidamente. Alguns dos mais lentos, que tinham estado a procurar na estrada larga, tinham seguido até ali acima, sem novidades do seu lado, apenas para vir encontrar o assunto assim resolvido de modo tão terrível. Outros, tendo ouvido na aldeia rumores a respeito do homem que faltava, tinham seguido para ali. O mensageiro de Huw apareceu depois deles, com o irmão Columbanus e o Irmão Jerome, que vinham da capela. Mas ninguém tomou a palavra para dizer que vira Rhisiart nesse dia. Nem ninguém falou voluntariamente para dizer que se encontrara com Engelard.
- Ele tem de ser interrogado - disse o Prior Robert - e, se as suas respostas não forem satisfatórias, terá de ser preso e entregue ao meirinho. Porque, de acordo com o que foi dito, é bem claro que esse homem certamente tinha um motivo para desejar afastar Rhisiart do seu caminho.
- Motivo? - exclamou Sioned, ardendo abruptamente, como uma fogueira negra e calma que, de súbito, começa a lançar chamas. Por instinto refugiou-se no galês, embora já tivesse revelado como podia bem seguir o que à sua volta era dito em inglês, apesar de a principal razão para as suas reticências a respeito dos seus conhecimentos ter sido tão cruelmente afastada. - Um motivo não tão forte como o senhor mesmo tinha, padre prior! Todas as almas desta paróquia sabem o interesse que o senhor tinha em tirar-nos Santa Winifred, a glória que isso representaria para a vossa abadia e, acima de tudo, para si próprio. E quem se atravessava no seu caminho senão o meu pai? No seu, não no da santa! Mostre-me melhor razão para o querer ver morto! Durante todos estes anos, ninguém jamais quis levantar a mão contra ele! Até que o senhor veio para cá, em perseguição das relíquias de Winifred! O desacordo entre Engelard e o meu pai era constante e conhecido, o seu era novo e urgente. A nossa necessidade podia esperar, somos jovens. A sua não podia esperar. E quem melhor do que o senhor sabia a que horas viria o meu pai pela floresta de Gwytherin? Ou que não mudaria de opinião?
O Padre Huw estendera muito antes disto uma mão horrorizada para a silenciar, mas ela não se deixava calar.
- Filha, filha, não deves fazer tão terríveis acusações contra o reverendo prior, que é pecado mortal!
- Apenas cito os factos; deixai-os falar por si mesmos - retorquiu Sioned. - Onde está a ofensa? O Prior Robert pôde apontar os factos que lhe convinham, e eu mostrei os outros, aqueles que não lhe convêm. O meu pai era o único obstáculo no seu caminho, e o meu pai foi afastado.
- Filha, digo-te que todas as almas deste vale sabiam que o teu pai vinha a minha casa e a hora da sua vinda, e muitos deviam conhecer todos os caminhos possíveis, muito melhor que qualquer destes bons irmãos de Shrewsbury.
”A ocasião podia bem servir para outro ressentimento. E deves saber que o Prior Robert esteve comigo, com o Irmão Richard e aqui com o Irmão Cadfael, desde a missa da manhã. - E, torcendo as mãos, o Padre Huw voltou-se para Robert em agitada súplica.
- Padre prior, imploro-lhe, não leve a mal o facto de a rapariga lhe falar de modo tão selvagem. Ela está mergulhada em profunda dor: a perda de um pai... Não podemos admirar-nos se se voltar contra todos nós.
- Não digo qualquer palavra de censura - disse o prior, se bem que friamente. - Segundo depreendo, andou a lançar dúvidas sobre mim próprio e sobre os meus companheiros, mas, sem dúvida, o senhor já lhe respondeu. Diga à jovem, em meu nome, que tanto o senhor como os outros daqui podem dar testemunho da minha pessoa, pois todo o dia estive à vista de todos vós.
Grato por ter ao menos uma certeza, Huw voltou-se para repetir o mesmo a Sioned de novo, mas ela irrompeu com prontidão mordaz e força, esquecendo todas as reservas, na sua necessidade de confrontar Robert face a face, sem a entediante intervenção de intérpretes.
- E talvez tenha estado, padre prior - flamejou em puro inglês.
- De qualquer modo, não imagino o senhor muito capaz de ser bom atirador com o arco. Mas um homem que tentou comprar a aquiescência do meu pai estaria disposto e teria a possibilidade de comprar alguma pessoa mais maleável até para fazer este serviço para ele. O senhor ainda tinha a sua bolsa! Rhisiart rejeitou-a!
- Faça atenção! - trovejou Robert, irritado para além dos limites da sua frágil paciência. - Está a pôr a sua alma em perigo! Suportei-a até agora, fazendo-lhe concessões por causa da sua dor, mas não vá mais adiante por esse caminho!
Fitavam-se mutuamente como adversários na arena, antes de cair o bastão que dá início à luta, ele muito alto, rígido e frio como gelo, ela leve, graciosa e muito bela, a touca perdida há muito por entre os arbustos e as mechas de cabelo negro soltas sobre os ombros. E nesse mesmo momento, antes de ela poder cuspir mais fogo ou de ele poder ameaçar com mais danações, todos ouviram vozes que se aproximavam, vindas dos bosques mais acima, uma voz de homem e outra de mulher numa troca de palavras rápida e preocupada, e que rapidamente soavam cada vez mais perto, junto com um ligeiro pisar de ramos, como se tivessem ouvido os tons elevados de voz e os ruídos ameaçadores de muitas pessoas reunidas ali no coração da floresta e se apressassem a descobrir o que estava a acontecer.
Os dois antagonistas ouviram-nos e a sua concentração um no outro foi abalada e interrompida. Sioned reconheceu-os e uma fugidia sombra de medo e desespero passou-lhe sobre a face. Olhou selvaticamente em volta, mas não havia qualquer ajuda possível. Um braço de rapariga separou os arbustos acima da oval onde estavam reunidos, e Annest passou por entre eles e parou cheia de espanto, observando em redor a inexplicável multidão que tinha perante si.
Foi a estreiteza do atalho - nada mais que a sombra de um carreiro de corças na erva - e a brusquidão com que Annest parara que deram a Sioned a sua única hipótese. Agarrou-a logo, corajosamente.
- Volta para casa, Annest - disse, em voz alta. - Estou a caminho com companhia. Vai e prepara tudo para receber hóspedes e rapidamente, pois terás pouco tempo. - A voz era aguda e urgente. Annest ainda não baixara os olhos para o solo, e a erva e as sombras encobriam o corpo de Rhisiart.
O esforço foi baldado. Uma outra mão, grande e delicada, veio pousar-se no ombro de Annest enquanto esta hesitava e fê-la afastar-se para o lado.
- A companhia faz um som um tanto alto e zangado - disse uma voz de homem, alta e clara. - Por isso, com tua licença, Sioned, iremos todos juntos.
Engelard afastou a rapariga com ambas as mãos, com tanta familiaridade e serenidade como o poderia ter feito um irmão e, passando por ela, entrou na clareira.
Não tinha olhos senão para Sioned e caminhou para ela com o porte recto de um proprietário; à medida que se aproximava, apercebeu-se da sua pose rígida e da sua face com uma fixidez de fogo, gelo e desespero, e a sua própria face espelhou tudo o que via na dela. As sobrancelhas juntaram-se-lhe, o sorriso, tenso e formidável ao começo, desapareceu completamente e os olhos faiscavam mais azuis que as flores do milho. Passou pelo Prior Robert como se este nem ali estivesse ou como se, pelo menos, não fosse vivo, qual pau ou árvore morta no caminho. Estendeu as mãos e Sioned pôs nelas as suas e, por uns momentos, fechou os olhos.
Agora não havia mais maneira de o afastar; ele ali estava no meio de todos, absolutamente sem defesa. O círculo, nem todos inimigos mas todos estorvando, fechava-se em redor dele.
Segurava-a pelas mãos quando viu o corpo de Rhisiart.
O choque penetrou nele tão abruptamente como a flecha devia ter entrado em Rhisiart: e fê-lo instantaneamente parar. Cadfael tinha-o bem à vista e viu-lhe os lábios afastarem-se e murmurar silenciosamente: ”Jesus Cristo nos valha!” O que se seguiu foi altamente eloquente. O jovem saxão moveu-se com um vagar cheio de carinho. Com uma das suas mãos segurou as duas de Sioned e, com a mão direita que ficara livre, acariciou-lhe suavemente o cabelo, continuou pela testa e pela face, indo até ao queixo e à garganta, tudo com uma tal paixão controlada que ela se acalmou como era intenção dele, embora pessoalmente ainda mal tivesse parado de tremer com o choque.
Pôs um braço em redor dela, mantendo-a junto a si, e lentamente olhou em redor para o círculo de faces curiosas e depois olhou lentamente para baixo, para o corpo do seu senhor. A face estava friamente zangada.
- Quem fez isto?
Olhou em volta, à procura daquele que, por direito, deveria ser o porta-voz, hesitando entre o Prior Robert, que se arrogava a autoridade sempre que tinha oportunidade, e o Padre Huw, que era ali bem conhecido e em quem todos confiavam.
Repetiu a pergunta em inglês, mas nenhum dos dois lhe respondeu e, por longo tempo, mais ninguém o fez. Depois Sioned disse, com um tom de aviso claro e deliberado:
- Há aqui pessoas a dizer que foste tu.
- Eu? - exclamou, mais espantado e cheio de desprezo que alarmado, e voltou-se, num repente, para lhe estudar a face, que traduzia determinação e urgência.
Os lábios dela formaram silenciosamente as palavras:
- Foge! Eles estão a acusar-te!
Era tudo o que lhe era possível fazer e ele bem a compreendeu, pois havia uma tal união entre eles que podiam fazer-se entender sem palavras, com um simples olhar. Com um rápido golpe de vista, ele mediu o número dos possíveis inimigos e os espaços entre eles, mas não se moveu.
- Quem me acusa? - perguntou. - E com que bases? Parece-me antes que sou eu quem tem o direito de vos interrogar a todos vós, pois encontro-os a todos aqui junto ao corpo morto do meu senhor, enquanto eu estive todo o dia longe a tratar das vacas, para lá de Bryn. Quando cheguei a casa, Annest estava muito perturbada porque Sioned ainda não chegara e o rapaz das ovelhas lhe dissera que não houvera serviço de vésperas na igreja. Saímos para ir à vossa procura e encontrámo-los pelo barulho que faziam todos juntos. E pergunto novamente, e não desistirei enquanto não souber: Quem fez isto?
-Todos fazemos essa pergunta - disse o Padre Huw.
- Filho, ninguém aqui te acusou. Mas há coisas que nos dão o direito de te interrogar, e um homem sem pesos na consciência não terá vergonha ou medo de responder. Já olhaste com cuidado para a flecha que abateu Rhisiart? Então, olha agora!
Franzindo a testa, Engelard avançou um passo e olhou, de modo sério e amargo, para o homem morto e só depois para a flecha. Viu a mancha azul-escura e abriu a boca atónito.
- Mas é uma das minhas! - e ergueu os olhos terrivelmente suspeitosos para todos eles. - Ou é minha, ou alguém copiou a minha marca. Mas não, esta é mesmo minha, conheço-lhe o aparado das penas, pois armei-a há apenas uma semana ou pouco mais.
- Reconhece que é dele? - indagou Robert, seguindo a conversa o melhor que podia. - Admite?
- Admito? - retorquiu Engelard, em inglês. - Que há aqui para admitir? Eu afirmo! Quanto a saber como foi trazida para aqui, quem a perdeu, não sei mais que os senhores, mas reconheço que é uma das minhas setas. Por Deus! - exclamou, furioso. - Pensa que, se tivesse alguma coisa a ver com esta vilania, eu teria deixado a minha marca a flamejar no ferimento? Será que, além de estrangeiro, sou também um louco? E pensa que iria fazer algo que iria ferir Rhisiart? O homem que foi meu amigo e me proporcionou os meios de viver aqui quando tive de partir de Cheshire por caçar furtivamente?
- Ele recusou-se a considerá-lo como pretendente aceitável para a filha - disse Bened, quase que com relutância -, por mais que o tenha ajudado nos outros aspectos.
- Pois recusou e, de acordo com os seus princípios, recusou muito justamente. E eu, depois de aprender tudo o que aprendi a respeito de Gales e apesar de me ter rebelado com isso, sei que ele tinha a razão e o costume do seu lado. Nunca me fez nada que eu pudesse classificar de injusto. Se formos a ver bem as coisas, aturou muita arrogância e impaciência da minha parte. Não há outro homem em Gwynedd de quem eu mais goste ou a quem tenha mais respeito. Preferia ter cortado o próprio pescoço a ferir Rhisiart.
- Ele sabia e sabe que o meu pai tinha razão - disse Sioned -, e eu igualmente.
- Contudo, a seta é tua - disse Huw, infeliz. - E, quanto a retirá-la do corpo ou disfarçá-la, pode muito bem ter acontecido que, depois de tal acto, uma rápida fuga se tivesse tornado mais importante.
-Se eu tivesse planeado tal acto - disse Engelard -, mas Deus não permita que eu jamais venha sequer a imaginar coisa tão vil, podia facilmente ter feito o que qualquer diabo me fez a mim agora e ter usado a seta de outro homem.
- Mas, filho, estaria mais de acordo com a tua natureza continuou tristemente o padre - cometer um tal acto sem premeditação, tendo contigo apenas o teu próprio arco e setas. Uma nova tentativa de entendimento, uma disputa, uma ira súbita e selvagem! Ninguém pensa que isto tenha sido premeditado.
- Durante todo o dia, nunca tive o arco comigo. Estava ocupado com o gado, e para que queria eu o arco?
- Será ao meirinho real que competirá inquirir todos os aspectos possíveis em relação com este caso - disse o Prior Robert, reclamando resolutamente a supremacia entre todos os que ali estavam. - O que se devia perguntar imediatamente a este jovem é onde esteve todo o dia, a fazer o quê e na companhia de quem?
- Na companhia de ninguém. Os estábulos de Bryn estão num local isolado; têm boas pastagens, mas ficam longe dos caminhos usados normalmente. Duas vacas tiveram hoje cria, uma cerca do meio-dia, a outra antes do fim da tarde, e esse foi um parto difícil e deu-me muito trabalho. Mas as vitelinhas estão lá vivas e, a estas horas, já de pé, para testemunharem a respeito do que andei a fazer.
- Separou-se de Rhisiart nos terrenos dele junto ao caminho?
- Separei e segui imediatamente para o meu trabalho. E não tornei a vê-lo até agora.
- E falou com alguém lá nos estábulos? Haverá alguém que possa testemunhar a respeito do sítio onde o senhor estava e a que horas, durante o dia? - Agora já era pouco provável que alguém retirasse a iniciativa a Robert. Engelard olhou rapidamente à sua volta, a pesar as probabilidades. Annest avançou silenciosamente e colocou-se ao lado de Sioned. Os olhos aflitos e ansiosos do Irmão John acompanharam-lhe o avanço e aprovaram a lealdade que não tinha outro modo para se expressar.
- Engelard só chegou a casa há meia hora - disse resolutamente.
- Filha - disse o Padre Huw, desconsoladamente -, saber onde ele não estava não confirma, de modo algum, que estivesse onde diz que estava. Duas vitelas podem nascer em muito menos tempo do que ele diz que estas levaram, e como podemos estar certos, se não estávamos lá? Teve tempo suficiente para escapar até aqui, fazer esta coisa e voltar para junto do gado, sem ser notado. A menos que possamos encontrar alguém que testemunhe tê-lo visto noutro lado à hora, seja lá qual for, em que este crime deve ter sido cometido, temo que tenhamos de manter Engelard sob custódia até que o meirinho do príncipe tome conta do caso.
Os homens de Gwytherin hesitavam, murmurando uns convencidos, muitos zangados, pois Rhisiart fora muito estimado, outros hesitantes mas reconhecendo que o estrangeiro devia ser preso até se provar a sua inocência ou a sua culpa. Mexeram-se no lugar e aproximaram-se uns dos outros, e o murmúrio tornou-se de concordância geral.
- É justo - disse Bened, e respondeu-lhe um resmungo de concordância.
- Um inglês sozinho com as costas de encontro à parede sussurrou, pleno de indignação, o Irmão John ao ouvido de Cadfael -, e que hipótese poderá ter, sem ninguém para corroborar o que diz? E é a verdade pura, pela certa! Acha que age e fala como um assassino?
Todo este tempo Peredur permanecera imóvel como uma estaca, raramente desviando os olhos da face de Engelard, apenas para fitar Sioned cheio de seriedade e desgosto. Quando o Prior Robert ergueu um braço imperioso contra Engelard e toda a assembleia, em obediência, cerrou lentamente fileiras, preparada para lhe deitar a mão, Peredur recuou um pouco mais para trás, para a orla das árvores, e Cadfael viu-o fitar Sioned, lançar-lhe um olhar aberto e selvagem e sacudir a cabeça como que a chamá-la. Devido ao cansaço e ao desgosto, ela lançou-lhe um rápido olhar de resposta e inclinou-se para ciciar rapidamente algo ao ouvido de Engelard.
- Cumpri com o vosso dever, vós todos - ordenou Robert -, dever para com as vossas leis, o vosso príncipe e a vossa igreja, e ponham a mão nesse homem!
Houve um momento de imobilidade, mas depois todos se aproximaram, ficando uma única abertura entre as fileiras, onde Peredur permanecia ainda recuado. Engelard, que estava junto de Sioned, deu um grande salto como se pretendesse lançar-se para a parte mais densa dos arbustos e então, em vez disso, apanhou um ramo morto e caído que jazia sobre a erva e fê-lo voltear em seu redor num grande círculo, fazendo cair dois homens mais idosos e desatentos e fazendo outros recuar e sair das fileiras. Antes de se poderem reagrupar mudara já de direcção; saltou sobre um dos homens caídos e passou pelo meio deles, livrando-se do único que quase lhe deitava a mão, e seguiu direito à abertura que Peredur deixara entre as fileiras.
A voz do Padre Huw, com uma agitação vexada, gritou a Peredur que o fizesse parar, e Peredur saltou para lhe interceptar a fuga. Nunca se conseguiu saber exactamente como aconteceu, embora o Irmão Cadfael tivesse uma pequena ideia, mas, no momento exacto em que a sua mão estendida quase tocava na manga de Engelard, Peredur tropeçou num ramo podre caído na turfa que quebrou sob o seu pé e rolou, fazendo-o cair sobre a face, meio cego pelos arbustos. E possivelmente ficou sem fôlego, pois não fez qualquer movimento para se levantar antes de Engelard ter passado por ele e fugido.
Mesmo nesse momento, ainda o assunto não ficou completamente arrumado, porque os espectadores mais próximos de cada lado, vendo o cariz que tomara a caça, começaram também a correr como lebres, seguindo direcções que iriam convergir com o caminho seguido pelo fugitivo, mesmo junto à orla da clareira. Da esquerda veio um vilão de Cadwallon que tinha pernas tão compridas que dava passadas como as de um galgo, e da direita o Irmão John, o hábito a esvoaçar, os pés calçados de sandálias batendo portentosamente na terra. Foi talvez a primeira vez que o Irmão John teve direito à sincera aprovação do Prior Robert. Foi certamente a última.
Já mais ninguém ficara na corrida além destes três e, embora Engelard estivesse adiantado, parecia que o sujeito das pernas compridas ia colidir com ele antes que pudesse desaparecer. Todos os três se precipitavam para uma tremenda colisão, ou pelo menos assim parecia. O vilão estendeu uns braços, tão formidavelmente longos como as pernas. E o mesmo fez o Irmão John do outro lado. Uma grande mão apanhou uma pequena dobra da túnica de Engelard de um dos lados. O Irmão John precipitou-se exuberantemente do outro. O prior soltou um suspiro de alívio, esperando ver o prisioneiro cercado por um duplo abraço. Mas o Irmão John, mergulhando, apanhou o vilão de Cadwallon pelos joelhos e fê-lo esborrachar-se no chão, e Engelard, puxando a túnica para a soltar da mão do inimigo, saltou para o meio dos arbustos e desapareceu no meio de um sussurro decrescente de ramos, até que o silêncio e a imobilidade voltaram a reinar no caminho depois da sua partida.
Metade do grupo de caçadores, mais por excitação que por real inimizade, internou-se na floresta em perseguição, mas agora apenas com reduzido entusiasmo. Tinham poucas hipóteses de o capturar. Provavelmente nem tinham grande desejo de conseguir semelhante coisa, embora, uma vez na pista, os perdigueiros tenham de segui-la. O verdadeiro drama ficou atrás, na clareira. Pelo menos ali, a justiça tinha um indubitável prevaricador nas mãos.
O Irmão John tirou os braços dos joelhos da sua vítima, sentou-se na erva, evitou placidamente um débil golpe que o vilão lhe queria dar e disse, num inglês forte mas incompreensível:
- Ora, deixa-o em paz, rapaz! Que é que ele te fez? Mas, por minha fé, lastimo ter sido obrigado a fazer-te cair com tanta vio lência. Se pensas que foste maltratado, alegra-te! Eu devo ter de pagar muito mais caro que tu!
Olhou em redor de si de um modo bastante complacente, à medida que se punha em pé a sacudir os bocadinhos de rolhas e galhos que estavam presos ao hábito. E lá estava o Prior Robert, ainda não refeito do choque de incrédula desilusão, alto, rígido e grisalho, um nobre normando a pensar nas terríveis penalidades para a traição. Mas também lá estava Sioned, cansada, desalentada, esgotada pela paixão, mas com um pequeno e vivificante brilho nos olhos, e lá estava Annest junto a ela, com um braço protector passado à volta da sua cintura, mas a cara de rosa voltada na direcção de John. Não valia muito a Robert rugir e relampejar, enquanto ela assim sorrisse, animada, irradiando a sua gratidão e admiração.
O Irmão Richard e o Irmão Jerome pairavam, um de cada lado, quais mensageiros da fatalidade.
- Irmão John, está intimado. Cometeu grave ofensa. Seguiu com eles, resignadamente. Apesar de todos os trovões ameaçadores, nunca se sentira mais livre na vida. E, nada mais tendo agora a perder além do respeito próprio, estava firmemente decidido a não o sacrificar.
- Irmão infiel e indigno - sibilou o Prior Robert, erguendo-se como uma torre na sua terrível indignação -, que foi fazer? Não tente negar o que todos presenciámos. Não apenas conspirou para a fuga de um criminoso, como frustrou as tentativas feitas por um servo leal para o apanhar. Fez deliberadamente cair aquele bom homem para deixar Engelard partir em liberdade. Traidor contra a Igreja e a lei, pôs-se para além de qualquer clemência. Se tem algo a dizer em sua defesa, diga-o já.
- Achei que o rapaz estava a ser perseguido para além do que permite a razão e sob uma suspeita muito suspeita - disse o Irmão John, com ousadia. - Já falei com Engelard e tenho a minha opinião pessoal a respeito dele; é uma alma decente e aberta que nunca cometeria furtivamente violências contra outro homem e muito menos contra Rhisiart, de quem gostava e a quem tinha em alto valor. Não acredito que tenha algo a ver com esta morte e, o que é mais, penso que não se afastará muito até saber quem teve, e Deus acuda ao assassino! Por isso lhe dei a oportunidade e lhe desejo boa sorte.
As duas raparigas, as cabeças próximas uma da outra em solidariedade feminina, interpretaram para si próprias o tom do discurso, mesmo que tenham perdido as palavras, e rebrilhavam num aplauso silencioso. O Prior Robert estava perdido, embora ainda não o soubesse. O Irmão Cadfael sabia isso muito bem.
- Desavergonhado! - trovejou Robert, irritado a tal ponto que até a sua suave pureza se mostrou afectada pela afronta. Condenou-se por sua própria boca, e é uma vergonha para a nossa Ordem. Aqui, no que respeita à lei galesa, não tenho qualquer jurisdição. O meirinho do príncipe terá de resolver este crime, que clama por vingança. Mas, no que respeita aos meus próprios subordinados e naquilo em que infringiram as leis desta terra onde somos hóspedes, dois castigos o ameaçam, Irmão John. Quanto à soberania de Gwynedd, não posso falar. Quanto à minha própria disciplina, posso e devo. Ultrapassou grandemente a penitência simplesmente eclesiástica. Condeno-o à prisão até poder conferenciar com a autoridade secular de cá e, entretanto, recuso-lhe todos os confortos e consolações da Igreja. - Olhou em volta e pensou um pouco, zangado. O Padre Huw pairava, miserável, perdido neste oceano de queixas e acusações. - Irmão Cadfael, pergunte ao Padre Huw onde há uma prisão segura em que o possamos prender.
Isto ia além daquilo com que o Irmão John contara e, embora de nada se arrependesse, como homem prático começou a olhar em volta para pesar as hipóteses de fugir às consequências. Como fizera Engelard, estudou as aberturas no anel que os rodeava, fincou os pés sólidos bem separados e flectiu experimentalmente os ombros, como se estivesse a pensar em dar uma cotovelada na barriga do Irmão Richard, um pontapé para fazer vergar as pernas de Jerome e dar uma corrida para a liberdade. Parou mesmo a tempo, quando ouviu Cadfael relatar calmamente:
- O Padre Huw sugere que há apenas um local suficientemente seguro. Se Sioned estiver de acordo em que se use a sua propriedade, só ali um prisioneiro fica bem seguro.
Nesse ponto o Irmão John, incompreensivelmente, perdeu qualquer interesse numa fuga imediata.
- A minha casa está à disposição do Prior Robert - disse Sioned em galês, com apropriada frialdade mas muito pronta. Já se dominara por completo e não mais tinha lapsos em que falava inglês. - Há armazéns e estábulos, se quiser utilizá-los. Comprometo-me a não me aproximar do prisioneiro ou guardar pessoalmente a chave da sua prisão. O padre prior poderá escolher pessoalmente, entre a minha gente, o guarda que achar conveniente. A minha casa fornecerá o alimento para ele, mas mesmo disso encarregarei outra pessoa. Se eu tomasse pessoalmente conta do caso, temo que pudessem duvidar da minha imparcialidade depois do que aconteceu.
”Uma boa rapariga”, pensou Cadfael à medida que traduzia, menos para benefício de Robert que de John. Suficientemente inteligente para rodear resolutamente qualquer mentira efectiva, mesmo quando destroçada por um desastre após outro, e generosa bastante para pensar nas necessidades e desejos dos outros. A outra pessoa que ficaria encarregada de ver que o Irmão John fosse decentemente instalado e alimentado estava ali encostada à patroa enquanto esta falava, uma cabeça loura junto a uma escura. Um par formidável! Mas só puderam encontrar a via aberta para esta solução inesperada e prometedora graças à inocência de párocos celibatários.
- Esse talvez seja o melhor plano - disse o Prior Robert, frígido mas cortês -, e estou-lhe grato pela generosa oferta, minha filha. Mantenha-o seguro e veja que tenha o que precisa para sobreviver e nada mais. Ele tem a alma em grande perigo, mas o corpo pode contrabalançar em certa medida. Se me permite, iremos à frente e pô-lo-emos em segurança e contaremos a seu tio o que aconteceu para que lhe mande aqui alguém que a leve para casa. Não quero incomodar mais uma família em luto.
- Mostrar-lhe-ei o caminho - disse Annest, saindo afectadamente do lado de Sioned.
- Segurem-no bem! - avisou o prior, quando se juntaram em massa para a seguir colina acima, através dos bosques. Contudo, ele próprio podia ter visto, se olhasse de perto, que a resignação do pecador abrandara em algo muito semelhante a complacência e que se pôs a caminho com tanto ânimo como os guardas, bastante mais atento a manter à vista a cintura delgada e os frágeis ombros de Annest que qualquer oportunidade de fuga.
”Bom”, pensou Cadfael, deixando-os partir sem ele e voltando-se para encontrar o olhar firme de Sioned, ”Deus tudo resolve. E é indubitável que o está a fazer agora, como sempre!”
Os homens de Gwytherin cortaram uns ramos tenros e fizeram uma liteira verde para transportar o corpo de Rhisiart para casa. Sob o cadáver, quando o levantaram, havia muito mais sangue que junto ao ferimento fronteiro, embora a seta só ligeiramente tivesse trespassado a pele e a roupa. Cadfael teria gostado de examinar mais de perto a túnica e o ferimento, mas evitou-o porque Sioned estava ali a seu lado, rigidamente erecta na sua dor de pedra, e, naquele momento, nenhuma palavra ou acto que não fossem hieráticos e cerimoniais eram permissíveis na sua presença. Além disso, em breve todos os servos dos domínios de Rhisiart vieram em força para levar o senhor para casa, enquanto o administrador esperava no portão com bardos e carpideiras para lhe dar as boas-vindas pela última vez. Agora já não se tratava de um inquérito a respeito de culpas, mas sim de uma primeira celebração do ritual de um grande funeral, durante o qual observar provas teria sido indecente. Já não havia esperanças de poder averiguar mais nada nessa noite. Até o Prior Robert reconhecera que se devia retirar com reverência, juntamente com os seus colegas, de uma comunidade em luto em que não tinham direitos. Quando chegou a altura de levantar a liteira e a sua carga agora decentemente estendida, com as pernas torcidas já endireitadas e as mãos calmamente arrumadas a seu lado, Sioned olhou em volta à procura de alguém mais a quem pretendia confiar uma parte desta carga honorável. Não o encontrou.
- Onde está Peredur? Que foi feito dele?
Ninguém o vira ir, mas desaparecera. Ninguém tivera atenção para desperdiçar com ele depois que o Irmão John completara o que Peredur começara. Deslizara para longe sem uma palavra, como se tivesse feito algo de que se devesse envergonhar, algo que lhe fizesse esperar censuras, mais que agradecimentos. Mesmo na sua grande dor, Sioned ficou um pouco ferida com a sua deserção.
- Pensava que ele havia de querer ajudar-me a levar o meu pai para casa. Era um favorito dele e gostava muito dele. Desde rapazinho entrava e saía da nossa casa como se fosse sua.
- Talvez duvidasse de ser bem-vindo - disse Cadfael depois de ter dito umas coisas a respeito de Engelard que vos desagradaram.
- E depois de, posteriormente, ter feito uma coisa que mais do que compensou tudo? - disse ela, mas apenas para os ouvidos dele. Não havia qualquer necessidade de declarar perante toda a gente que sabia muito bem que Peredur conspirara para conseguir uma saída para o namorado dela. - Não, não consigo perceber porque desapareceria assim, sem uma palavra! - Mas naquele momento nada mais disse, apenas com o olhar pediu a Cadfael que caminhasse junto dela quando se pôs a caminho atrás da liteira. Andaram uma certa distância em silêncio. Depois perguntou, sem olhar de lado para ele: - O meu pai chegou a dizer-lhe as coisas que tinha para dizer?
- Algumas - disse Cadfael. - Não todas.
- Haverá alguma coisa que eu deva fazer, ou não fazer? Preciso saber. Temos de o pôr decente esta noite. - No dia seguinte estaria rígido e ela sabia-o. - Se precisa de algo de mim, diga-mo agora.
- Guarde as roupas que ele traz agora vestidas, quando lhas tirar, e repare onde estão húmidas da chuva da manhã e onde estão secas. Se notar algo de estranho, fixe-o na memória. Amanhã, o mais cedo que possa, virei ter consigo.
- Preciso de saber a verdade - disse.-O senhor sabe porquê?
- Sim, sei. Mas esta noite cante para ele e beba em sua memória e não duvide de que ele ouvirá as suas canções.
- Sim - disse e soltou novo suspiro profundo. - O senhor é um bom homem. Estou contente por tê-lo aqui. O senhor não acredita que foi Engelard.
- Estou praticamente certo de que não foi. Primeiro, e é a razão principal, não é próprio dele. Rapazes como Engelard podem atacar se perderem a cabeça, mas com os punhos, não com armas. Segundo, se tivesse sido capaz de o fazer, teria feito obra mais asseada. Você viu o ângulo da seta. Engelard, calculo, tem de altura mais uns três dedos que o seu pai. Como podia ele acertar com uma seta sob a caixa torácica de um homem que era mais baixo que ele, mesmo de um sítio mais baixo? Mesmo que se ajoelhasse ou se acocorasse emboscado no mato, duvido de que o pudesse fazer. E qual a justificação para o fazer? Não, isto é loucura. E quanto a dizer-se que o melhor atirador destas regiões não poderia atravessar este homem com a sua seta de qualquer distância donde o pudesse ver? Não poderia ser mais de cinquenta metros em qualquer direcção. E, maior loucura ainda, por que iria um bom atirador escolher um lugar tão emaranhado como este? Não observaram o local, ou não teriam aventado semelhante estupidez. Mas, acima de tudo, aquele seu jovem é demasiado aberto e honesto para matar furtivamente, até um homem que ele odeie. E não odiava Rhisiart. Não precisa dizer-mo, eu sei.
Muito do que dissera poderia bem ter sido doloroso para ela, mas não o foi. Ela acompanhou-lhe todos os passos do raciocínio e corou e sentiu-se reconfortada na sua juventude bem comportada e vulnerável, ao ouvir assim descrito o homem que amava.
- Não disse qualquer palavra de espanto - disse -, por eu não estar mais preocupada com o que acontecerá a Engelard ou com o sítio, na terra, onde poderá agora estar.
- Não - disse Cadfael e sorriu. - Você sabe onde ele está e sabe como entrar em contacto com ele sempre que precisar. Penso que vocês os dois têm dois ou três lugares combinados mais secretos que a carvalha, e Engelard descansa agora num deles, ou breve estará lá a chegar. Você parece pensar que estará bastante seguro. Não me conte nada, a menos que precise de um mensageiro ou de ajuda.
-Se estivesse de acordo, poderia ser meu mensageiro, mas para outra pessoa - disse. Estavam a emergir da floresta junto à orla dos campos domésticos de Rhisiart, e o Prior Robert afastou-se, alto, severo e reservado, do caminho deles, com os companheiros discretamente atrás de si, as mãos, as feições e o ângulo da cabeça delicadamente inclinada, tudo tendendo a transmitir respeito pela morte e compaixão pelos que tinham sofrido aquela perda, sem realmente traduzir perdão ao morto. O prisioneiro estava acomodado em segurança e Robert esperava apenas para recolher a última rês tresmalhada do seu rebanho e fazer uma saída apropriadamente impressionante. - Diga a Peredur que senti a falta dele entre aqueles que meu pai teria gostado que o levassem para casa. Diga-lhe que o que fez foi generoso e que lhe estou muito grata. Lastimo que tenha tido dúvidas a esse respeito.
Aproximavam-se do portão e o tio Meurice, o administrador, veio-lhes ao encontro, com a cara generosa e suave a estremecer e desformada devido ao choque e ao desgosto.
- E venha amanhã - disse Sioned, num sopro quase inaudível, e afastou-se sozinha, passando o largo portão atrás do corpo de seu pai.
A mensagem de Sioned talvez não pudesse ter sido entregue tão depressa, pois não teria sido fácil desviar do caminho junto à casa de Cadwallon sem uma palavra de pedido ou de desculpa ao Prior Robert; mas, na penumbra dos bosques, um pouco acima da propriedade, Cadfael distinguiu uma figura que se escondia deles com evidente propósito, a uns cinquenta metros de distância, e viu que era Peredur. Não esperava ser seguido, pois afastou-se apenas o necessário para evitar qualquer encontro no caminho e ali se sentou tristemente num tronco caído, as costas encostadas a uma árvore jovem, que vergou sob o seu peso, e com um pé remexia no monte de folhas do ano anterior.
Cadfael não pediu permissão, mas foi ter com ele.
Peredur ergueu os olhos quando ouviu o som de outros pés a pisar o mato e levantou-se como que na intenção de se afastar para mais longe para evitar conversas, mas depois desistiu da ideia e permaneceu imóvel, mudo e pouco amável mas resignado.
- Tenho um recado para si - disse suavemente Cadfael -, de Sioned. Pediu-me que lhe dissesse que sentiu a sua falta, pois teria tido prazer em pedir-lhe que desse uma ajuda para carregar o esquife de seu pai. Manda dizer que foi muito generoso naquilo que fez e que lhe está muito grata.
Peredur remexeu desconfortavelmente os pés e recuou para a sombra mais densa.
- Havia lá imensa gente dela - disse, depois de uma pausa que parecia mais motivada por falta de à vontade que por aborrecimento. - Não tinha necessidade de mim.
- Oh, claro que tinha suficientes mãos e suficientes ombros concordou Cadfael. - Mesmo assim, ela sentiu-lhe a falta. Parece-me que o considera como alguém que tem um lugar de primazia entre a sua própria gente. Desde criança que você tem sido para ela como um irmão, e ela bem precisava agora de um irmão.
A rigidez do jovem corpo de Peredur era palpável, até na verde penumbra, uma contracção que lhe paralisava mesmo a língua. Conseguiu exclamar, com uma gargalhada amarga:
- Não era seu irmão que eu queria ser!
- Não, compreendo. Contudo, quando chegou a altura de dar provas, você comportou-se como tal, para com ela e para com Engelard.
Aquilo que pretendera como um conforto e um cumprimento pareceu, pelo contrário, magoá-lo. Peredur recolheu-se ainda mais na sua morosa solidão.
- Com que então, ela sente que tem uma dívida para comigo e quer pagá-la, mas não é por causa de mim pessoalmente. Não é a mim que ela quer.
- Bom - disse Cadfael, equânime -, entreguei-lhe a mensagem, e, se for vê-la, ela, melhor que eu, o poderá convencer. Há lá outro que, se pudesse falar, também iria querer a sua presença lá.
- Oh, esteja calado! - disse Peredur e atirou com a cabeça para o lado, num movimento de súbita dor. - Não diga mais...
- Não, perdoe-me. Sei que é também um desgosto para si, como é para ela. Ela assim o disse. ”Era um dos favoritos dele”, contou ela, ”e gostava muito dele...”
O rapaz soltou um profundo gemido e, voltando-se com terrível pressa, afastou-se rapidamente por entre as árvores, indo mais para o interior da floresta, e abandonou o Irmão Cadfael, que, muito pensativo, regressou para junto dos companheiros com o sentimento de que o local, extremamente vulnerável, que tacteara com o dedo perscrutador ainda estremecia.
- O senhor e eu - disse Bened, quando, depois do último serviço da noite, Cadfael foi até a casa do ferreiro - teremos, esta noite, de beber sozinhos, meu amigo. Huw ainda não regressou do solar de Rhisiart, e Padrig estará ocupado a cantar para o morto até de madrugada. Foi bom que ele aqui estivesse nesta altura. Uma pessoa só lucra se é acompanhada até à sepultura pelos cantares de um bom poeta e harpista, e é uma bela coisa para os seus filhos recordarem. E o Cai... o Cai, por uns tempos, não o veremos muito por aqui, até que o meirinho venha tirar-lhe o prisioneiro das mãos.
- Está a querer dizer que o Irmão John tem Cai como carcereiro? - perguntou Cadfael, aliviado.
- Apresentou-se para a tarefa, como voluntário. Suspeito que aquela minha rapariga foi incitá-lo, mas não devia precisar de grandes incitamentos. Entre os dois, o Irmão John vai repousar-se muito confortavelmente por um dia ou dois. Não precisa preocupar-se com ele.
- Nada mais longe do meu pensamento - disse Cadfael. - E é Cai quem guarda a chave?
- Pode ter a certeza. E com o príncipe Owain em viagem pelo Sul, como ouvi, duvido de que o xerife ou o meirinho tenham tempo a perder com um pequeno caso de insubordinação em Gwytherin.
- Bened suspirou profundamente sobre a caneca, que, desta vez, estava cheia de um áspero vinho tinto. - Arrependo-me agora por ter falado e chamado a atenção para a mancha azul nas penas, pelo menos na frente da pequena. Mas um outro qualquer tê-lo-ia dito. E é verdade que agora, apenas com o tio Meurice como tutor, ela poderia levar a sua avante. Ela faz dele o que quer e ele não se atravessaria no seu caminho. Mas agora vejo que nenhum homem seria suficientemente louco para deixar a sua marca pessoal num morto, para que todos a pudessem ver. A menos que se tenha assustado e tenha sido obrigado a fugir. Tudo o que seria necessário, era aparar um pouco no canto; e, se traz consigo a faca, que tempo pode levar a fazê-lo? Não, é difícil de compreender. Mas, contudo, pode ter acontecido assim!
Segundo se depreendia do seu profundo abatimento, Bened tinha mais coisas no espírito. Algures lá por dentro, estava uma terrível dúvida, sem saber se não teria falado com a esperança de ter ele próprio mais hipóteses com Sioned, no caso de o rival mais favorecido ser afastado. Abanou tristemente a cabeça.
- Fiquei satisfeito quando se safou dali, mas ficarei feliz se, depois deste susto, voltar para Cheshire. E, no entanto, é difícil imaginá-lo como sendo um assassino.
- Se quiser, podemos discutir esse assunto mais profundamente - disse Cadfael -, pois você conhece melhor que eu as pessoas da região. Reconheçamos que a suspeita da rapariga, a que lançou à cara do Prior Robert, será no que muitos cá estarão agora a pensar, quer o digam quer não. Aqui estamos nós, acabados de chegar a um lugar e a começar uma grande contenda, principalmente com este senhor (não precisamos de discutir para saber quem tinha razão), e é ele o único obstáculo que se opõe a que consigamos aquilo para que viemos, e de súbito aparece morto, assassinado. Que haveria de mais natural que apontarem-nos a nós, a todos nós?
- Só o chegar a considerar tal acusação contra os reverendos irmãos é já uma blasfémia - disse Bened, chocado.
- Reis e abades são também homens e podem cair em tentação. Por isso, em que posição ficamos em relação aos acontecimentos de hoje? Todos nós estivemos juntos, ou à vista uns dos outros, até depois da missa. Depois, o Prior Robert, o Irmão Richard e eu estivemos com o Padre Huw, primeiro no pomar e depois, quando, meia hora antes do meio-dia, começou a chover, dentro de casa. Nenhum de nós os quatro podia ter ido até à floresta. O Irmão John também andava pela casa e na propriedade, e Marared, tanto como nós, poderá testemunhar a favor dele. O único que saiu antes de todos irmos para as vésperas, que foi em busca de Rhisiart, foi o Irmão Richard, que se ofereceu para ir ver se o encontrava ou se tinha notícias dele e que esteve fora cerca de hora e meia e voltou de mãos vazias. Partiu uma hora depois do meio-dia e também foi para a floresta, pelo que diz, e não disse ter encontrado alguém até que, no caminho de regresso, foi perguntar no portão de Cadwallon, o que deve ter acontecido cerca das duas e meia. Tenho de falar com o guarda-portão e ver se confirma isso. Sobram ainda dois dos nossos, mas não sem lhes conhecermos o paradeiro. O Irmão Jerome e o Irmão Columbanus foram mandados fazer juntos uma vigília na Capela de Santa Winifred, para implorarem um acordo pacífico. Todos os vimos partir juntos, e já deviam estar na capela e há muito de joelhos antes mesmo de Rhisiart se pôr a caminho. E lá ficaram até o mensageiro do Padre Huw os ir buscar para se juntarem a nós. Cada um deles é a testemunha do outro.
- Eu assim disse - disse Bened, mais sossegado. - Homens santos não cometem assassínios.
- Homem - disse Cadfael, seriamente -, há tantas pessoas santas fora das ordens como dentro delas e, para falar verdade, homens tão bons fora da igreja cristã como a maioria dos que encontrei dentro dela. Na Terra Santa, conheci sarracenos em que eu confiaria mais do que nos cruzados comuns, homens honrados, generosos e delicados, que teriam desprezado a ideia de disputar ou regatear por causa de terras e comércio, como fizeram alguns dos nossos aliados. Procura reconhecer os homens como os encontras, porque todos são feitos da mesma maneira, sob um hábito, sob uma túnica ou sob farrapos. Uns são mais bem feitos que outros, alguns estão mais bem cuidados, mas todos feitos segundo o mesmo modelo. Mas a coisa está assim. Tanto quanto posso ver, só um de nós, o Irmão Richard, teve qualquer hipótese de estar por perto quando Rhisiart foi morto, e de nós todos é ele que tem menos probabilidades de ser um criminoso. Por isso somos forçados a olhar se o campo não estará aberto a outros, sendo Santa Winifred apenas uma oportunidade e uma desculpa. Será que Rhisiart tinha um inimigo qualquer em Gwytherin? Alguém que talvez nunca tivesse feito nada contra ele se não tivéssemos feito rebentar esta tempestade e posto a tentação no seu caminho.
Bened ficou a pensar gravemente, acariciando a caneca de vinho.
- Não diria que há qualquer homem, seja lá onde for, que não tenha alguém que lhe deseje mal, mas há uma grande distância entre isso e um crime. Tempos houve em que o próprio Padre Huw entrou em discussão com Rhisiart por causa de uma leira de terra que ambos afirmavam pertencer-lhes, e os ânimos exaltaram-se, mas resolveram o problema da forma apropriada, com o testemunho dos vizinhos, e não guardaram qualquer ressentimento mútuo depois disso. E houve questões no tribunal. O senhor alguma vez ouviu falar de um proprietário galês sem uma ou duas questões judiciais em mão? Uma foi com Rhys Cynam por causa dos limites de uma propriedade, outra por causa de uns animais tresmalhados. Nada que provocasse rancores eternos. Nós adoramos questões judiciais. Uma coisa é certa: com o interesse despertado aqui por vós, qualquer pessoa num raio de algumas milhas sabia que Rhisiart era esperado ao meio-dia no presbitério do Padre Huw. Não há, pois, qualquer hipótese de estabelecer limites a respeito de quem teria tido a possibilidade de se emboscar no caminho à espera dele.
Foi até onde puderam ir. O campo das possibilidades era vasto, suficientemente vasto para incluir Engelard, por mais persuadido que Cadfael estivesse de que aquele seria incapaz de tal acto. Vasto bastante até para englobar vizinhos como Cadwallon, vilões da aldeia, servos da sua própria casa.
”Mas não suficientemente vasto”, pensou Cadfael na escuridão esverdeada e fragrante do caminho de regresso ao sótão de Huw, ”para incluir aquele estranho jovem que fora um favorito de Rhisiart, que gostara dele e que desde a sua infância entrava e saía da sua casa como um filho?” O jovem que, a respeito de Engelard e de si próprio, dissera que um homem, por amor, podia afastar-se muito até da sua própria natureza, e um jovem que, presumivelmente por amor, abrira caminho para a fuga de Engelard, como Cadfael pessoalmente verificara, e qual evitava agora a gratidão e o afecto de Sioned, quer porque não era amor, e amor era a única coisa que queria aceitar dela, quer por qualquer outra obscura razão. Quando, em silêncio, fugira pela floresta dentro, tinha o ar de alguém perseguido pelo demónio. Mas pela certa que não era esse demónio? Pois, bem longe de lhe aumentar as probabilidades pessoais, a morte de Rhisiart viera roubar-lhe o seu mais firme aliado, que esperava pacientemente e constantemente insistia, tentando fazer que por fim a filha acabasse na desejada aliança. Não, qualquer que fosse o ângulo pelo qual olhasse, Peredur sempre permanecia misterioso e perturbador.
O Padre Huw não voltou nessa noite da casa de Rhisiart. O Irmão Cadfael dormiu sozinho no celeiro e, consciente de que o Irmão John estava prisioneiro algures nos armazéns de Sioned e que não havia ninguém para lhe preparar a comida, levantou-se bem cedo e foi tratar disso pessoalmente e depois pôs-se a caminho do cercado de Bened para cuidar dos cavalos, que também tinham ficado sem tratador.
Agradava-lhe mais andar lá por fora a trabalhar ao ar fresco da manhã do que estar amarrado ao Prior Robert, mas tinha a obrigação de regressar a tempo para o capítulo, que o prior declarara dever ser mantido diariamente, como no convento, por mais breve que fosse o assunto que tinham ali a tratar.
Reuniram-se no pomar, todos os cinco, com o Prior Robert a presidir com a mesma solene dignidade de sempre. O Irmão Richard leu sobre os santos a celebrar nesse dia e no seguinte. O Irmão Jerome compôs toda a sua esganiçada pessoa na usual forma de bajuladora reverência e entoou todos os responsos apropriados. Mas pareceu a Cadfael que o Irmão Columbanus tinha um ar inusitadamente reservado e confuso e sombreados os olhos muito azuis. O contraste entre a sua elegante constituição atlética, a cabeça aristocrática e a devoção servil e ansiosa das suas feições e compostura sempre era perturbador para quem o observasse, mas, naquela manhã, a sua extrema preocupação com uma qualquer crise interior, devido a um pecado real ou imaginário, fazia que olhar para ele se tornasse doloroso.
O Irmão Cadfael suspirou, esperando outro ataque de epilepsia, como aquele que os lançara a todos na presente aventura. Quem poderia adivinhar o que iria fazer seguidamente aquele desequilibrado, meio santo, meio idiota?
- Aqui temos apenas um assunto a tratar - disse o Prior Robert, com firmeza - e prosseguiremos com ele, pois a isso somos obrigados pelo dever. Tenciono pressionar mais que nunca para defender o nosso direito a levar as relíquias da santa e trasladá-las para Shrewsbury. Mas somos obrigados a admitir que até à data não fomos muito bem sucedidos com respeito a pôr o povo do nosso lado. Tinha grandes esperanças de que tudo se resolvesse ontem. Fizemos todas as reverentes preparações possíveis para merecer o sucesso...
Nesse ponto foi interrompido por um audível soluço do Irmão Columbanus, o que atraiu todos os olhares sobre o jovem. A tremer e titubeante, saiu do seu lugar e postou-se perante Robert, com os olhos baixos e as mãos postas.
- Padre prior, ai de mim, mea culpa! Mereço censuras! Fui infiel e desejo confessar-me. Vim para o capítulo decidido a purificar a minha alma e receber a punição, pois as minhas fraquezas têm sido a causa dos nossos contínuos aborrecimentos. Posso falar?
”Eu sabia que estava a preparar alguma”, pensou o Irmão Cadfael, resignado e cheio de desprezo. ”Mas desta vez, ao menos, é sem se rolar pelo chão e sem morder a erva!”
- Fala - disse o prior, não sem simpatia.
- Numa procuraste esconder as tuas fraquezas, e não penso que precises de temer uma condenação demasiado severa. Usualmente, és tu o teu mais severo juiz. - E fora mesmo; mas isso mesmo, bem manejado, pode ser um meio de se evadir e evitar o julgamento dos outros.
O Irmão Columbanus deixou-se cair de joelhos na terra do pomar. E tinha um ar muito simpático e aristocrático, admitiu Cadfael, admirando novamente, com surpresa, a graça compacta e a força daquele corpo e a leveza dos seus movimentos.
- Padre, mandou-me ontem com o Irmão Jerome para ficarmos em vigília na capela e orarmos intensamente para alcançarmos uma boa solução, em amizade e paz. Padre, chegámos lá bastante cedo, antes das onze, segundo creio, e, tendo comido a nossa refeição, entrámos e tomámos o nosso lugar, pois lá dentro há genuflexórios e o altar está limpo e bem cuidado. Oh, padre, a vontade de me manter em vigília era grande, mas a carne foi fraca. Ainda não estava ajoelhado em oração há bem meia hora, quando, para minha grande vergonha, caí a dormir com os braços no genuflexório. O facto de ter dormido mal e ter pensado muito desde que aqui chegámos não serve de desculpa. A oração devia fixar-me o espírito e purificá-lo. Adormeci e a nossa causa ficou enfraquecida. Devo ter dormido toda a tarde, porque a primeira coisa de que me lembro a seguir é do Irmão Jerome a sacudir-me pelos ombros e a dizer-me que estava ali um mensageiro para nos levar consigo.
Reteve a respiração e uma lágrima louca rolou-lhe pela bochecha abaixo, rodeando o arrogante e arredondado osso normando.
- Oh, não olhem com reprovação para o Irmão Jerome, pois certamente nunca soube que eu estava a dormir e não tem culpa se não me observou ou denunciou o meu pecado. Acordei quando me tocou, levantei-me e fui com ele. Julgava-me tão seriamente em prece como ele e não cometeu qualquer falta.
Provavelmente ninguém, até àquele momento, pensara em olhar com reprovação para o Irmão Jerome, mas Cadfael era certamente o mais rápido e o mais alerta e foi o único que apanhou a curiosa expressão de apreensão rapidamente transformada em complacência que passou pela face, normalmente controlada, do Irmão Jerome. Jerome não andava a dedicar-se aos mesmos estudos que Cadfael, ou estaria longe de ser complacente. Porque o Irmão Columbanus, na sua inocência egoísta, acabara de afastar qualquer certeza de que Jerome passara a manhã anterior e a tarde imóvel na Capela de Santa Winifred, rogando por uma solução feliz. O seu único garante tinha, todo o tempo, estado a dormir profundamente. Podia muito bem ter dado uma passeata até lá fora e ido onde quer que lhe apetecesse.
- Filho - disse o Prior Robert, numa voz indulgente que certamente nunca teria usado com o Irmão John -, a sua falta é humana, e a facilidade em pecar faz parte da nossa natureza. E redimiu o seu próprio erro, ao defender o seu irmão. Por que não nos contou tudo isso ontem?
- Padre, como poderia? Antes de ouvirmos contar da morte de Rhisiart, não houve oportunidade. E, tendo o senhor já esse pesadelo, como poderia sobrecarregá-lo mais em semelhante hora? Calei-me até este capítulo, o local certo para que irmãos pecadores recebam a sua penitência e se humilhem. Como eu me humilho, agora, perante todos, como indigno da vocação que escolhi. Profira agora a minha sentença, pois desejo cumprir penitência.
O prior ia abrir a boca para proferir o seu julgamento, e fazia-o de modo bastante paciente, pois uma tão devota submissão e tal consciência de culpa deixavam-no desarmado, quando foram interrompidos pelo ruído da trave de madeira do portão do jardim e viram o Padre Huw atravessando a relva em sua direcção, o cabelo e a barba ainda em maior desalinho que de costume, os olhos inchados e cansados da falta de sono, mas a face resoluta e calma.
- Padre prior - disse, parando em frente deles -, acabo de reunir com Cadwallon, Rhys, Meurice e todos os homens de importância da minha paróquia. Era a melhor oportunidade, embora lastime profundamente a causa. Todos vieram ao velório de Rhisiart. Todos os homens que ali estavam sabiam como fora abatido e como tal destino lhe fora antes profetizado...
- Deus não permita - disse, apressadamente, o Prior Robert que eu provoque a morte de qualquer homem. Eu disse que, a seu tempo, Santa Winifred se vingaria do homem que se interpunha no seu caminho e lhe fazia agravo, mas nunca falei em matar.
- Mas, quando o viu morto, o senhor afirmou que era a vingança da santa. Todos os homens que ali estavam o ouviram, e a maioria acreditou. Aproveitei a oportunidade para discutirmos de novo o assunto. Eles não querem fazer nada que seja contra os desejos do Céu, ou que ofenda a Ordem dos Beneditinos e a Abadia de Shrewsbury. Depois do que aconteceu, não acham certo, ou ajuizado, pôr em perigo qualquer homem, mulher ou criança de Gwytherin.
”Encarregaram-me, padre prior, de lhe comunicar que retiram qualquer oposição aos vossos planos. As relíquias de Santa Winifred são vossas e podeis levá-las convosco.
O Prior Robert soltou um profundo suspiro de triunfo e satisfação, e qualquer inclinação que tivesse tido mesmo para o mais leve dos castigos abandonou-o num instante. Aquilo era tudo por que ansiara. O Irmão Columbanus, ainda ajoelhado, voltou, radiante, o olhar para os Céus e juntou as mãos em sinal de gratidão e, de qualquer modo, conseguiu dar a sensação de que ele próprio conseguira a desejada solução, tendo o aborrecimento causado pela sua infidelidade sido completamente recompensado por este prémio à sua penitência.
O Irmão Jerome, igualmente decidido a, com a sua devoção, impressionar prior e padre, juntou as mãos e proferiu, em latim, uma reverente invocação de louvor a Deus e aos santos.
- Estou certo - disse o Prior Robert, com magnanimidade de que o povo de Gwytherin nunca quis ofender e de que agora agiu sábia e correctamente. Estou feliz, tanto por eles como pela minha Abadia, por podermos completar a nossa tarefa aqui e despedir-nos de todos em amizade. E todos lhe estamos muito agradecidos, Padre Huw, pela parte que teve neste feliz final. O senhor agiu bem para com a sua paróquia e o seu povo.
- Tenho a obrigação de lhe dizer - disse Huw, honestamente - que não estão nada satisfeitos por perderem a sua santa. Mas nenhum porá qualquer obstáculo ao que o senhor deseja. Se quiser, levá-lo-emos à campa hoje mesmo.
- Iremos em procissão depois da próxima missa - disse o prior, e, tendo conseguido os seus intentos, uma animação pouco usual iluminava-lhe as feições - e não tocaremos em qualquer alimento até termos ajoelhado perante o altar de Santa Winifred e lhe termos apresentado os nossos agradecimentos. - O seu olhar iluminou-se ao recair sobre o Irmão Columbanus, ainda pacientemente ajoelhado e fitando-o com uns olhares de canina submissão, continuando a insistir em ter o seu pecado reconhecido. Por um momento, Robert teve um ar ligeiramente surpreso, como se tivesse esquecido a existência do jovem. - Ergue-te, irmão, e anima-te, pois vês que anda perdão no ar. Não serás privado da tua parte no prazer de visitar a santa virgem e de lhe prestar homenagem.
- E a minha penitência? - insistiu o incorrigível penitente. Havia muito de rijo na fragilidade do Irmão Columbanus.
- Como penitência terás de cumprir as obrigações servis que recaíam sobre o Irmão John e serás o servo dos teus companheiros e dos seus animais até regressarmos a casa. Mas, a tua parte na glória de hoje, não deixarás de a ter e ajudarás a carregar o relicário no qual irão repousar as ossadas da santa. Levá-lo-emos connosco e colocá-lo-emos perante o altar. Quero que a virgem aprove, à vista de toda a gente, qualquer movimento que façamos.
- E vai pôr-se hoje a caminho de regresso? - perguntou o Padre Huw, de modo cansado. Era indubitável que ficaria feliz em ver todo este episódio acabado e esquecido e em ver-se livre de todos eles, para que Gwytherin pudesse continuar com a sua vida de sempre, embora com um bom homem a menos.
- Não - disse o Prior Robert, depois de pensar maduramente.
- Desejo mostrar a todos a nossa vontade de ser guiados e a verdade daquilo que afirmámos, ou seja, que a nossa missão foi inspirada por Santa Winifred pessoalmente. Decreto que haverá três noites de vigília e oração perante o altar da capela, antes de nos pormos a caminho, para confirmar a todos que o que estamos a fazer é na verdade certo e abençoado. Somos seis, Padre Huw, se quiser juntar-se a nós. Ficaremos, dois a dois, toda a noite em vigília na capela e oraremos para sermos dirigidos pelo bom caminho.
Pegaram na urna forrada de prata que fora feita em Shrewsbury com uma fé implícita e levaram-na em procissão através dos bosques. Passaram pela casa de Cadwallon e tomaram o atalho da direita, que os afastava em diagonal da cena da morte de Rhisiart, até que chegaram a uma pequena clareira, na encosta de uma colina, rodeada em três lados por densos e altos maciços de espinheiros, que nessa época estavam cobertos de flores cor de neve. A capela era de madeira, escurecida com a idade, pequena e sombreada por dentro e com um minúsculo torreão, sem sino, sobre a entrada. Como que cheio de ondulantes saias verdes, o velho cemitério espraiava-se à sua volta, denso de matagal e silvas e altas ervas. Na altura em que acabaram de chegar àquele lugar, levavam a companhia silenciosa e cada vez mais numerosa dos habitantes locais que os seguiam, curiosos, submissos e atentos. Era impossível dizer se ainda sentiam ressentimentos. Os olhos eram firmes, observadores e opacos, determinados a nada deixar escapar e a nada revelar.
Junto ao pouco firme portão de madeira que ainda existia no ponto onde acabava o atalho, o Prior Robert parou e fez o sinal da cruz com gestos grandes e solenes.
- Esperai aqui! - disse, quando Huw tentou conduzi-lo em frente. - Vejamos se a oração pode guiar os meus passos, porque orei verdadeiramente. O senhor não me irá mostrar a campa da santa. Sou eu que vou mostrar-lha a si, se ela me vier em auxílio.
Obedientemente, todos ficaram parados a observar a sua alta figura, que avançava com passos cuidadosos, como se tacteasse o caminho, as saias do hábito a varrer os emaranhados de ervas e flores. Sem hesitações ou pressas, dirigiu-se a um pequeno montículo coberto de vegetação junto à extremidade leste da capela e caiu de joelhos na sua frente.
- Santa Winifred jaz aqui - disse.
Quando, nessa tarde, seguia para o solar de Rhisiart, Cadfael pensou nesse assunto durante toda a caminhada. Podia sempre esperar-se do Prior Robert que fosse impressivo, mas aquele pequeno milagre fora um golpe de mestre. Ainda tinha presente o silêncio de respiração cortada, o progressivo surto de comentários, o espanto e temor entre a gente de Gwytherin. Não havia qualquer dúvida de que a essa hora, mesmo na mais remota cabana de vilão ou na pobre propriedade livre, estariam a cochichar a respeito da notícia. Os monges de Shrewsbury estavam vingados. A santa tomara o prior pela mão e conduzira-o à sua campa. Não, o homem nunca antes estivera naquele lugar, nem a campa estava de qualquer modo marcada, como, por exemplo, por uma tardia tentativa de lhe cortar as silvas. Estava como sempre estivera, e, contudo, ele reconhecera-a de entre as outras.
De nada valeria fazer notar a uma multidão dominada pela emoção que, se era bem verdade que o Prior Robert não tinha antes ido à capela, os Irmãos Jerome e Columbanus, os seus mais fiéis seguidores, tinham ido, e apenas no dia anterior e com o rapaz Edwin a servir-lhes de guia. E que haveria de mais provável do que ter um deles perguntado ao pequeno onde era o paradeiro da dama que de tão longe tinham vindo procurar?
E agora, com este triunfo confirmando já a sua afirmação, Robert concedera-se três dias inteiros e três noites de demora, durante os quais outros prodígios semelhantes poderiam bem firmar a sua ascendência. Um passo verdadeiramente arrojado, mas Robert era um homem arrojado e pleno de recursos, muito capaz de arriscar novas hipóteses de conseguir mais milagres, contra o risco de que qualquer azar lhos viesse recusar. Tinha a intenção de partir de Gwytherin com aquilo que o fizera vir, mas partir, se não com todos completamente reconciliados com a ideia, pelo menos permanentemente intimidados. Nada de fugir às pressas com o seu prémio de ossadas, como que ainda com medo de que lho roubassem.
”Mas não podia ter morto Rhisiart”, pensou Cadfael. ”Com certeza que não. Isso sei eu. Teria ido ao ponto de arranjar...? Considerou a hipótese com honestidade e pô-la de lado. Suportava Robert, apenas, e não gostava dele, mas, de certo modo, admirava-o. Com a idade do Irmão John tê-lo-ia detestado, mas Cadfael era velho, tinha muita experiência e tornara-se tolerante.
Chegou à portaria da propriedade de Rhisiart, uma cabana de colmo abrigada num canto da vedação. O homem ainda se lembrava dele da véspera e deixou-o entrar livremente. Cai atravessou, sorridente, o pátio interior para vir ao seu encontro. Ali, de momento, todos os sorrisos eram um pouco pálidos e amargos, mas sobrevivia uma centelha de malícia íntima.
- Veio libertar o seu parceiro? - perguntou Cai. - Duvido de que lho agradeça; está confortavelmente instalado e alimentado como um galo de briga e ainda não houve qualquer ameaça da parte do meirinho. Ela não disse nada, pode estar certo, e o Padre Huw não está nada apressado. Suponho que teremos ainda um par de dias, a menos que o seu prior resolva tratar do assunto, embora não lhe diga respeito. E, se o fizer, temos rapazes pelas cercanias que nos trarão a novidade muito tempo antes de qualquer cavaleiro chegar ao portão. O Irmão John está em boas mãos.
Era o colega de trabalho de Engelard que falava, o homem que naquele lugar o conhecia melhor que ninguém. Era bem claro que o Irmão John conquistara o seu carcereiro, e a missão de Cai era mais afastar dele o mundo ameaçador que impedi-lo de partir pelo mundo fora. Se a chave fosse precisa para um propósito certo, logo seria apresentada.
- Tome cuidado com a sua cabeça - disse Cadfael, mas sem muita ansiedade. Eles sabiam bem o que estavam a fazer. - O vosso príncipe pode ter espírito de homem de leis e querer manter-se de bem com os Beneditinos no outro lado da fronteira.
- Ah, não se preocupe! Um delinquente que foge não é culpa de ninguém. E é caça para toda a gente, mas prémio de ninguém. O senhor nunca andou cheio de zelo à procura, em todos os lugares errados, de algo que não queria encontrar?
- Não diga mais - disse Cadfael -, ou terei de tapar os ouvidos. E diga ao rapaz que nem perguntei por ele, pois sei que não é necessário.
- Não gostaria de conversar um bocado com ele? - ofereceu Cai, com generosidade. - Está acomodado ali, naquele simpático e pequeno estábulo, que está limpo e vazio, e são-lhe servidas refeições principescas, garanto-lhe!
- Não me conte nada, porque posso ser interrogado - disse Cadfael. - Olhos que não vêem e ouvidos que não ouvem podem, por vezes, ser muito úteis. Contudo, terei muito prazer em passar consigo algum tempo, mas primeiro tenho de ir ter com ela. Temos umas coisas a tratar.
Sioned não estava na sala, mas na pequena câmara que estava separada, por cortinas, da sua extremidade e que era o quarto particular de Rhisiart. E Rhisiart estava lá em particular com a sua filha, estendido muito direito numa mesa de armar, deitado ainda sobre um monte de peles e com um lençol de linho a cobri-lo. A rapariga estava sentada a seu lado, à espera, vestida de modo muito formal, muito séria, o cabelo austeramente entrançado e enrolado à volta da cabeça. Agora, que era a senhora destas propriedades, parecia mais velha e mais alta. Mas levantou-se para receber Cadf ael, com o sorriso luminoso, triste e ansioso de uma criança, certa de que vai ter conselho e guia.
- Esperava por si mais cedo. Não importa, estou contente por ter vindo. Tenho as roupas dele para si. Não as dobrei; se o tivesse feito, a humidade ter-se-ia espalhado por igual, mas assim, embora possam ter secado, penso que poderá notar a diferença.
- Trouxe-as: calças, túnica e camisa. E Cadfael pegou nelas e apalpou-as cuidadosamente. - Vejo - disse ela - que já sabe onde procurar.
As calças de Rhisiart, embora parcialmente cobertas pela túnica que trouxera vestida, estavam ainda húmidas na parte de trás das coxas e das pernas mas secas na frente, embora a humidade tivesse alastrado um pouco pelas costuras, de modo que apanhava uns centímetros da parte seca. A túnica, nas costas, estava toda molhada até à bainha, com toda a largura dos ombros ainda marcada por uma nódoa escura, como asas abertas, enquanto todo o peito, em volta do rasgão orlado de escuro feito pela seta, estava absolutamente seco. A camisa, embora menos vincadamente, mostrava o mesmo padrão. A parte da frente das mangas estava seca, a de trás húmida. No ferimento de saída feito nas costas, tanto a camisa como a túnica estavam ensopadas em sangue, o qual começava a secar e a ganhar crosta.
- Recorda-se - disse Cadfael - de como jazia quando o encontrámos?
- Recordá-lo-ei toda a minha vida - disse Sioned. - Apoiado nas costas desde as ancas até à cabeça, mas a anca direita estava de lado, enterrada na erva, e as pernas estavam cruzadas, a esquerda sobre a direita, como... - Hesitou, franzindo a testa, à procura do significado apenas semiapercebido e, finalmente, encontrou-o. Como um homem que, tendo estado deitado de barriga para baixo, se volta de costas durante o sono e imediatamente recomeça a dormir.
- Ou - disse Cadfael - como um homem que, jazendo de barriga para baixo, é puxado pelo ombro e voltado sobre as costas. Depois de já estar bem a dormir!
Ela fitou-o firmemente, com os olhos vazios e negros como abismos.
- Conte-me todos os seus pensamentos. Preciso saber. Tenho de saber.
- Bom, então, em primeiro lugar - disse o Irmão Cadfael chamo-lhe a atenção para o lugar onde a coisa aconteceu. Um lugar cerrado, cheio de moitas, cheio de arbustos, para servir de esconderijo, mas com uma visibilidade de, no máximo, cinquenta passos em qualquer direcção. Isso é terreno próprio para um arqueiro? Penso que não. Mesmo que pretendesse deixar o corpo nos bosques, num local onde pudesse permanecer várias horas sem ser descoberto, podia ter encontrado uma centena de lugares mais favoráveis para si. Um bom arqueiro não precisa aproximar-se muito da sua presa, antes precisa de espaço para atirar num alvo que terá de manter à vista o tempo suficiente para acertar a pontaria.
- Sim - disse Sioned. - Mesmo que pudesse acreditar que seria capaz de matar, isso poria de fora Engelard.
- Não só Engelard, como também qualquer bom arqueiro. Mas, se alguém tão pouco competente que precisasse de atirar de tão perto o tentasse, duvido de que fosse bem sucedido. Não estou a gostar desta flecha, pois não tem aqui cabimento; contudo, cá está. Tem um propósito bem claro, lançar a culpa sobre Engelard. Mas não posso tirar da cabeça que não tenha um outro propósito também.
- Matar! - disse Sioned, com uma ira sombria.
- Até isso ponho em dúvida, embora possa parecer loucura. Veja o ângulo em que entrou e saiu. E depois veja como o sangue está todo nas costas, e não onde entrou a flecha. E recorde tudo o que dissemos e reparámos a respeito das roupas, como estavam húmidas na parte de trás, embora jazesse de costas. E como você própria disse que era a atitude de um homem que se voltara depois de ter estado de barriga para baixo. E ontem, quando me ajoelhei ao lado dele, descobri uma outra coisa. Por baixo dele, a erva, grossa, estava húmida. Mas estava completamente seca do lado direito, a todo o comprimento, desde o ombro até à anca e com a largura de um corpo. Ontem de manhã houve um forte aguaceiro, uma meia hora de chuva. Quando começou essa chuva, o seu pai jazia de barriga para baixo, já morto. De que outro modo, senão por ter estado abrigada com o corpo, poderia estar seca aquela zona da erva?
- E depois - disse Sioned, em voz baixa mas clara -, como disse, foi puxado pelo ombro e virado de costas. Quando estava bem a dormir. A dormir profundamente!
- É o que me parece!
- Mas a flecha penetrou no peito - disse ela. - Como poderia cair de barriga para baixo?
- Isso é o que teremos de descobrir. E também porque sangrou pelas costas, e não na frente. Mas esteve certamente de barriga, e isso desde antes de ter começado a chuva até depois de ter parado, ou a erva sob ele não podia estar seca. Desde meia hora antes do meio-dia, quando caíram as primeiras gotas, até alguns minutos depois das doze, quando reapareceu o Sol. Sioned, poderei, com toda a reverência, voltar a olhar de perto para o corpo?
- Não conheço maior reverência que se possa prestar a um homem assassinado - disse, com firmeza - do que procurar por todos os meios possíveis quem foi o assassino e vingá-lo. Sim, pode mexer-lhe, se precisar. Eu ajudo. Mais ninguém! Pelo menos disse, com um sorriso pálido e amargo -, você e eu não temos medo de lhe tocar, não tememos que sangre como acusação contra nós.
Cadfael parou subitamente a meio de puxar para baixo o lençol que cobria o corpo de Rhisiart, como se aquilo que ela dissera lhe tivesse despertado uma nova e prometedora ideia na cabeça.
- Verdade! Não há muitos que não acreditem nessa prova. Você acha que todos cá a aceitam como autêntica?
- A sua gente não acredita nela? O senhor não? - Estava espantada. Os olhos arredondaram-se-lhe como os de uma criança.
- Os meus irmãos de claustro... Sim, posso dizer que todos, ou a maioria, acreditam nela. Eu? Filha, vi demasiados homens trucidados, remexidos vezes sem conta, depois de uma batalha, por aqueles que acabavam com eles e nunca soube de nenhum que tivesse jorrado sangue fresco depois de já estar sem vida. Mas aquilo em que eu acredito ou não acredito não está aqui em causa. Mas pode bem estar aquilo em que acredita o assassino. Não, você já sofreu bastante. Deixe-o agora comigo.
Contudo, ela não afastou os olhos quando Cadfael retirou o lençol de cobertura. Devia ter antecipado a necessidade de um exame mais profundo do corpo, pois deixara-o nu até àquela hora, sem mortalha.
Lavado e o sangue limpo, Rhisiart jazia composto e com ar de paz, um tronco largo e forte, queimado até à cintura, mais branco para baixo. O ferimento sob as costelas, um corte recto, mostrava-se agora feio e rasgado, com lábios rebentados e azulados, embora tivessem feito o melhor possível para unir a carne lacerada.
- Tenho de voltá-lo - disse Cadfael. - Preciso de ver o outro ferimento.
Ela não hesitou; antes, com a ternura de uma mãe, mais do que a de uma filha, fez resvalar um braço sob os ombros de seu pai e, com a mão livre espalmada sob o outro lado, ergueu o rígido cadáver até ficar sobre o flanco direito, com a face aconchegada na curva do seu braço. Cadfael endireitou as pernas estendidas e inclinou-se para examinar de perto o ferimento ao alto do lado esquerdo das costas.
- Deve ter tido muito trabalho para puxar a flecha para fora. Teve de a tirar pela frente!
- Sim. - Estremeceu por um momento, pois fora essa a parte pior de todas. - A ponta mal rebentou a pele do lado de trás e não havia maneira de a cortar. Foi uma vergonha ter de o lacerar a tal ponto, mas que outra coisa podíamos fazer? E, no entanto, todo aquele sangue!
Na verdade, a ponta de aço pouco mais fizera que furar a pele, deixando um pequeno ponto enegrecido, sangue seco com uma zona pisada e azulada em redor. Mas havia ali uma outra marca, delgada, clara e ténue. A partir do ponto negro, estendia-se a linha castanha de um outro golpe, um pouco mais longa para cima da marca da flecha que para baixo; o seu comprimento, ao todo com uma medida aproximada à de uma polegada de Cadfael, tinha uma ténue marca de pisadura em cada extremidade para além do ponto onde a pele estava fendida, o que a fazia parecer mais longa. Todo aquele sangue - embora, de facto, não fosse tanto assim, apesar de ter levado consigo a vida de Rhisiart - escorrera daquele fino golpe, e não do ferimento no peito, embora esse agora desse muito nas vistas e este estivesse fechado e secreto.
- Acabei - disse Cadfael, suavemente, e ajudou-a a colocar o pai novamente em descanso.
Quando tinham posto em ordem até a espessa cabeleira, cobriram-no de novo reverentemente. Então Cadfael contou-lhe exactamente o que vira. Ela mirava-o com os olhos arregalados e ficou a pensar em silêncio durante uns instantes. Depois disse:
- Eu vi essa marca de que está a falar. Não conseguia explicá-la. Se o senhor consegue, conte-me.
- Foi dali que saiu o sangue que lhe levou a vida - disse Cadfael. - E não devido ao pequeno furo produzido certamente pela flecha, mas devido a um ferimento anterior. Um ferimento feito, segundo penso, por uma longa adaga, muito fina e afiada, não uma faca de trabalho normal. Logo que foi retirada, a ferida ficou praticamente fechada. Contudo, a lâmina passou direitinha por ela. E assim foi possível, mais tarde, retirá-la pelo caminho inverso por onde entrara, e de modo certeiro. O que considerámos ser o ferimento de saída, não era nada disso, antes era um ferimento de entrada. A flecha foi enterrada pela frente depois de ele já estar morto, para esconder o facto de que o tinham apunhalado pelas costas. Foi essa a razão por que a cilada teve lugar numa zona de muito mato, num local tão emaranhado. Foi essa a razão por que caiu de barriga para baixo e por que, mais tarde, o viraram de costas. E a razão por que a inclinação da seta é tão pouco provável. Não foi atirada com um arco. Enterrar uma seta num corpo é trabalho difícil, pois foi feita para ganhar força com o voo. Penso que primeiro abriram caminho com um punhal.
- O mesmo que o atingiu pelas costas - disse ela, branca e transparente como uma chama.
- É o que parece. A flecha foi inserida depois. Mesmo assim, não conseguiu fazê-la penetrar mais. Desde o princípio que fiquei a desconfiar daquele tiro. Daquela distância, Engelard poderia ter feito uma flecha atravessar perfeitamente duas tábuas de carvalho. E o mesmo faria qualquer outro arqueiro digno desse nome. Mas, enterrá-la com as próprias mãos, não; para esta tarefa, mesmo assim imperfeita, foi preciso um braço forte e vigoroso. E, pelo menos, seguiu a linha correctamente. Bons olhos, mão sensível.
- E coração demoníaco - disse Sioned -, e com a flecha de Engelard! Alguém que sabia onde encontrá-las e que sabia que Engelard não estaria lá para o impedir. - Apesar de todas as intoleráveis provações por que passara, pensava ainda com clareza.
- Tenho ainda uma pergunta a fazer. Por que é que este assassino demorou tanto tempo entre matar e disfarçar o crime? O meu pai já estava morto antes da chuva. O senhor demonstrou-o claramente. Mas não foi virado de costas para receber a flecha de Engelard senão depois de ter parado a chuva. Mais de meia hora. Porquê? Será que o assassino fugiu porque se assustou com alguém a passar perto? Será que esperou no mato até ter a certeza de que Rhisiart estava morto, antes de ousar tocar-lhe? Ou só mais tarde se terá lembrado dessa partida demoníaca e terá tido de ir buscar a flecha para o seu propósito? E porquê tanto tempo?
- Isso - disse Cadfael, honestamente - não sei.
- Que sabemos? Que quem quer que tenha sido queria fazer atribuir o facto a Engelard. Teria sido essa a única causa? Será que o meu pai não passou de um objecto disponível para se verem livres de Engelard? Um isco para apanhar um outro homem? Ou será que alguém queria afastar o meu pai e só mais tarde se lembrou de como seria fácil e seria conveniente afastar Engelard também?
- Não sei mais que você - disse Cadfael, sentindo-se, ele próprio, também abalado. E lembrou-se, desejando não o ter feito, do jovem remexendo os pés entre as folhas, de modo tão atormentado, e fugindo da confiança de Sioned como de perigo mortal. - Talvez que, quem quer que tenha sido, depois de cometido o acto, se tenha afastado. Parou então para pensar e viu como seria fácil afastar para longe de si as suspeitas; e voltou atrás para o fazer. De uma só coisa estamos certos, e, filha, graças a Deus por isso. Engelard foi transformado em vítima sacrificial e está limpo de qualquer nódoa. Guarde essa certeza na alma e espere.
- E, quer possamos ou não descobrir o verdadeiro criminoso, se chegar a ser necessário, o senhor está disposto a falar a favor de Engelard?
- Certamente que sim, e do fundo da alma. Mas, para já, não fale nisto a ninguém, porque nós ainda cá estamos, nós os perturbadores da paz de Gwytherin, e não pense que nos considero à parte, como gente imaculada. Até sabermos quem é o culpado, não sabemos quem está inocente.
- Nada retiro - disse Sioned, com firmeza - daquilo que disse a respeito do seu prior.
- E, todavia, ele não o poderia ter feito. Nunca saiu da minha vista.
- Não, isso eu aceito. Mas ele compra homens e estava absolutamente determinado a levar a sua santa; e agora, segundo percebi, conseguiu o seu desejo. É um motivo. E não se esqueça de que os Galeses, como os Ingleses, podem estar à venda. Rogo a Deus que não haja muitos desses. Mas alguns sempre haverá.
- Não esqueço - disse Cadfael.
- Quem é ele? Quem? Conhecia os movimentos de meu pai. Sabia onde encontrar as flechas de Engelard. Quer, sabe Deus o quê, com a morte de meu pai, mas é bem certo que quer culpar Engelard do crime. Irmão Cadfael, quem poderá ser esse homem?
- Isso, se Deus o permitir - disse -, descobri-lo-emos nós os dois. Mas, para já, nada posso dizer sem alvitrar, estou completamente perdido. O que foi feito, isso posso ver, mas porquê ou por quem nada mais sei que você. Mas fez-me recordar de que é crença comum rebelarem-se os mortos perante o contacto daqueles que os abateram, e, do mesmo modo que Rhisiart já tanto nos disse, poderá ainda dizer-nos o resto.
Falou-lhe, então, das três noites de oração e vigília decretadas pelo Prior Robert e de como todos os monges e o Padre Huw iriam participar nesse dever, por turnos. Mas não lhe contou como Columbanus, na sua egoística inocência e preocupação pela própria consciência, acrescentara mais um aos que tinham tido a oportunidade de se emboscar à espera do seu pai na floresta. Nem admitiu perante ela, e dificilmente para si próprio, que o que agora ali tinham descoberto dava sinistro significado à revelação de Columbanus. Jerome à solta com arco e flechas, à caça do seu homem, era uma imagem muito improvável, mas Jerome a aproximar-se sorrateiramente de um homem, pelas costas e com uma adaga afiada nas mãos...
Cadfael tentou afastar o pensamento, mas este não foi para longe. Havia nele uma certa credibilidade de que não gostava mesmo nada.
- Esta noite, e durante as duas noites que se seguem, dois de nós ficarão de vigilância na capela, desde o último serviço da noite até ao primeiro da manhã. Todos os seis podemos ser sujeitos à mesma prova, e ninguém se poderá sentir ofendido. Depois disso, veremos. Agora - disse Cadfael -, ouça o que tem a fazer...
Depois do último serviço da noite, sob a suave luminosidade do crepúsculo, com a luz oblíqua do pôr do Sol coada através da jovem folhagem verdejante, seguiram os seis, todos juntos, até à capela de madeira e ao solitário cemitério, para acompanhar o par de peregrinos até à sua vigília. E aí, avançando para se encontrar com eles na clareira em frente ao portão, vinha outra procissão, oito dos oficiais e servos da casa de Rhisiart, que saíam justamente dos bosques com o corpo do seu senhor sobre os ombros e com a filha do senhor, agora ela própria a senhora, caminhando muito direita e cheia de dignidade à frente deles, vestida com um vestido escuro e coberta com um véu cinzento, sob o qual se espalhava o longo cabelo, solto em sinal de luto. A face estava calma e rígida, os olhos fixavam longe. Podia assustar qualquer homem, mesmo um abade. O Prior Robert estacou subitamente perante a sua aparição. Cadfael estava orgulhoso dela.
Quando deu com os olhos em Robert, longe de parar, deu um ligeiro toque de esperança e determinação aos seus passos e continuou em frente, sem qualquer pausa. Parou a três passos de distância, face a face com ele, e permaneceu tão imóvel e silenciosa que, se fosse estúpido bastante para isso, ele poderia ter, enganosamente, tomado aquilo como submissão. Mas ele não era estúpido e ficou a mirá-la e a medi-la em silêncio e viu uma mulher, uma simples rapariga, que viera desafiá-lo. Mas ainda não reconhecia nela um parceiro digno de si.
- Irmão Cadfael - disse ela, sem retirar os olhos da face de Robert -, ponha-se a meu lado e torne claras as minhas palavras para o reverendo prior, pois tenho um pedido a fazer-lhe em nome de meu pai.
Rhisiart estava ali, deitado de costas, não metido num caixão, mas apenas envolto e amortalhado em linho branco, e todas as linhas do corpo e da face se viam nítidas sob as apertadas envoltas. Estava sobre um berço de ramos cobertos de folhas, colocado numa padiola de madeira. Todos aqueles olhos galeses, negros e secretos, dos homens que o carregavam, brilhavam como pequenas lamparinas em volta de um carro fúnebre, nada traindo, nada vendo.
E a rapariga era tão jovem e tão solitária! O Prior Robert, mesmo na sua segura situação, sentiu-se pouco à vontade. Talvez até estivesse comovido.
- Faça o seu pedido, filha - disse.
- Ouvi dizer que pretendiam permanecer três noites de vigília em honra de Santa Winifred, antes de a levarem daqui convosco. Para que a alma de meu pai tenha paz e para o caso de a ter ofendido, o que nunca foi sua intenção, peço que lhe seja permitido jazer estas três noites em frente ao altar, ao cuidado daqueles que estão em vigília. Peço para que, em toda uma longa noite de oração, digam uma prece pelo perdão e descanso da sua alma. Será pedir de mais?
- É um pedido justo - disse Robert -, de uma filha leal. - E, afinal de contas, ele descendia de uma nobre família também, sabia o valor dos laços de sangue e de família e ele não era apenas falsidade.
- Espero ter um sinal da graça divina - disse Sioned -, mais ainda se tiver a sua aprovação.
Tal pedido nada mais podia fazer além de acrescentar o lustro e a glória da sua reputação. A herdeira do seu oponente, sua única filha, vinha pedir-lhe apoio e protecção. Estava mais que satisfeito, estava encantado. Deu amavelmente o seu consentimento, consciente de que era observado por mais pares de olhos de Gwytherin do que aqueles que pertenciam aos que carregavam Rhisiart. Embora as propriedades fossem muito espalhadas, exceptuando a comunidade dos vilãos, que tratava das suas terras como uma única família, onde quer que fossem os estrangeiros, sempre os bosques estavam cheios de olhos. Pena que não tivessem mantido uma tal vigilância sobre Rhisiart enquanto estava vivo!
Instalaram a padiola verde sobre uma armação em frente ao altar, junto ao relicário que esperava as ossadas de Santa Winifred. O altar era pequeno e simples e o ataúde fazia-o parecer diminuto, e a luz que entrava pela estreita janela, a nascente, mal iluminava a cena, mesmo que entrasse a luz da manhã. O Prior Robert trouxera na arca toalhas de altar e com elas cobriram a armação. Foi aí que o grupo da casa de Rhisiart deixou o seu senhor, cheio de dignidade, e silenciosamente retirou-se e voltou para casa.
- De manhã - disse Sioned, antes de seguir com eles - virei para apresentar os meus agradecimentos àqueles que oraram pelo meu pai durante a noite. E assim farei todas as manhãs, até que o enterremos.
Fez ao Prior Robert a reverência devida e partiu sem mais uma palavra, sem mesmo um olhar para o Irmão Cadfael e aconchegando o véu em volta do rosto.
Até ali, tudo bem! A vaidade e interesses pessoais de Robert, se não a sua compaixão, tinham-lhe garantido uma oportunidade; faltava agora ver o que dali sairia.
A ordem das vigílias fora decretada pessoalmente por Robert, sem consultar ninguém além do Padre Huw, o qual desejava ser o primeiro a passar a noite abrindo o coração à influência da santa, se a esta agradasse tornar a sua presença conhecida. O seu parceiro era o Irmão Jerome, de cuja obsequiosa atenção o prior ocasionalmente se cansava, e Cadfael estava grato pela escolha acidental que era a que mais lhe convinha. Naquela manhã, pelo menos, ninguém sabia o que tinha a esperar. Depois, os outros teriam o devido aviso, mas certamente que não teriam modo de se evadir à prova.
De manhã, quando chegaram à capela, foram encontrar lá reunido um número razoável de habitantes de Gwytherin, se bem que discretos, espreitando da orla do bosque, de sob a fragrante sombra das sebes de espinheiro. Apenas quando o prior e os seus companheiros entraram na capela é que os aldeões emergiram silenciosamente dos seus esconderijos e se juntaram, e a primeira a aproximar-se foi Sioned, com Annest a seu lado. Abriram caminho para as duas raparigas, e o povo de Gwytherin amontoou-se atrás delas, enchendo a portaria da capela e bloqueando a entrada à luz matutina, de tal modo que só as velas do altar derramavam um pálido fulgor sobre o ataúde onde repousava o morto.
O Padre Huw levantou-se de modo um tanto empenado da posição de ajoelhado, apoiando-se na madeira sólida da estante do genuflexório até conseguir endireitar as velhas pernas e pô-las novamente em estado de funcionar. Do outro genuflexório a seu lado levantou-se Jerome, com vivacidade e leveza. Cadfael pensou, com suspeitas, nos vigilantes devotos que adormeciam tão confortavelmente quanto possível sobre os braços cruzados, mas, naquele momento, isso não tinha qualquer importância. De qualquer modo, dificilmente teria esperado que os Céus se abrissem para deixar cair uma chuva de rosas de perdão a pedido de Jerome.
- Uma vigília sossegada - disse Huw - e absolutamente calma. Não fui visitado por nenhuma grande experiência, mas isso dificilmente irá acontecer a um humilde pároco. Orámos, filha, e tenho fé em que tenhamos sido ouvidos.
- Estou-lhes muito grata - disse Sioned. - E, antes de partirem, poderão fazer-nos mais um favor, a mim e aos meus? Como todos vós sofrestes também com este problema e desentendimento, querereis mostrar o vosso desejo pessoal de misericórdia? Orastes por ele, agora peço-vos que cada um de vós ponha a mão sobre o coração de meu pai, em sinal de confiança e perdão.
As pessoas de Gwytherin, imóveis à porta como árvores, mas árvores vivas, e cobertas de olhos tal como uma árvore está coberta de folhas, não faziam nem um som, não deixavam escapar um só movimento.
- Com prazer! - disse o Padre Huw. Aproximou-se do ataúde e, carinhosamente, pousou a sua rude mão sobre o coração trespassado e, pelo estremecer da sua barba, via-se que os seus lábios de novo se moviam em silenciosa intercessão. Todos os olhos se voltaram para o Irmão Jerome, pois o Irmão Jerome estava a hesitar.
Não parecia grandemente perturbado, mas tinha um ar um tanto ou quanto evasivo. A face que voltou para Sioned era doce e benevolente e, tendo-lhe concedido o obrigatório olhar de compaixão, baixou modestamente os olhos perante ela, como era de regra; e voltou um olhar confiante para o Prior Robert.
- O Padre Huw tem o curato desta paróquia e está sujeito a uma disciplina, mas eu a outra. Certamente que o Sr. Rhisiart cumpria com fidelidade os seus deveres religiosos, o que reconheço. Mas morreu de morte violenta, sem confissão e sem absolvição, e tal morte deixa em dúvida o estado da sua alma. Não estou apto a pronunciar-me sobre este caso. Orei, mas não posso dispensar bênçãos sem autoridade. Se o Prior Robert achar que é justificado e me der a sua permissão, é com prazer que farei aquilo que me pedem.
Cadfael acompanhou-o ao longo deste sinuoso caminho, com espanto e considerável dúvida. Se o prior tivesse pessoalmente autorizado a morte, Jerome não podia ter voltado mais habilmente a ameaça contra o seu superior. Por outro lado, conhecendo Jerome, isto podia ser apenas a sua maneira de lisonjear e bajular nesta oportunidade, como sempre fazia. E, se Robert graciosamente desse a sua permissão, iria ele supor que isso o protegeria - uma vez que, claramente, entregara a culpa e a ameaça onde verdadeiramente pertenciam - e o deixaria livre de tocar a sua vítima com impunidade?
Teria menos importância se Cadfael acreditasse firmemente, em que os assassinados sangravam quando o criminoso lhes tocava, mas acreditava em coisa bem diferente; só que aquela crença era generalizada entre a maior parte das pessoas e podia levar o culposo ao terror e à confissão, quando apertado. Esse mesmo terror e tensão poderiam até produzir uma pequena efusão de sangue, embora duvidasse disso. Começava a crer que também Jerome duvidava.
Os olhares penetrantes tinham mudado de vítima e estavam pesadamente suspensos sobre o prior. Este franziu o sobrolho e meditou gravemente durante alguns momentos, antes de dar o seu julgamento.
- Pode, de consciência tranquila, fazer aquilo que deseja. Ela apenas pede perdão, o que qualquer pessoa pode dar; não pede absolvição.
E o Irmão Jerome, aceitando agradecido as instruções, aproximou-se prontamente do ataúde e, sem um tremor, colocou a sua mão sobre o lacerado coração. Através da mortalha não apareceu nenhum jacto vermelho para o acusar. Em seguida seguiu, com complacência, o Prior Robert para fora da capela, com os outros ordeiramente atrás, e o povo, silencioso e atento, afastou-se da entrada e deixou-os passar.
”E onde nos conduz isto?”, pensou Cadfael, seguindo-os. ”Será que foi tão terrivelmente ousado a respeito da prova porque não acredita nela, ou será que sente que passou a culpa para o culposo, independentemente da parte que tenha tido no caso, e que, portanto, está fora de perigo? Ou não teve qualquer participação no caso, e tudo isto não serviu nenhum propósito? É suficientemente mesquinho para recusar um favor à rapariga, a menos que o pudesse transformar em crédito e vantagem para si próprio
”Bom, veremos amanhã”, raciocinou Cadfael, ”o que fará Robert quando Lhe pedirem o seu perdão, em lugar de ser generoso com o perdão de outra pessoa.”
Todavia, as coisas não aconteceram exactamente como esperara. Era certo que o Prior Robert escolhera essa noite para vigiar, ele próprio, com o Irmão Richard. Mas, quando os dois iam a caminho da capela, ao passarem pela propriedade de Cadwallon, o prior foi interceptado pelo guarda-portão, e Cadwallon, em pessoa, apressou-se a vir ao seu encontro, acompanhado por um corpulento galês, elegantemente vestido com uma túnica curta de montar, o qual o seguia de perto.
A primeira notícia que Cadfael teve do caso foi quando o prior regressou apressado ao jardim de Huw, com o estranho a seu lado, mesmo na hora em que devia estar a deixar-se cair de joelhos na sombria capela, com as suas minúsculas luzes, para fazer toda a noite companhia ao morto, numa confrontação que poderia ainda produzir frutuosa evidência. Mas cá estava ele, mesmo a tempo de impedir Cadfael de desaparecer para ir a casa de Bened, o ferreiro, para comentar as novidades do dia e partilhar uma caneca de vinho. E era visível que não estava grandemente aborrecido por ter perturbado a sua vigília da noite.
- Irmão Cadfael, temos um visitante e vou precisar dos seus serviços. Este é Griffith ap Rhys, o meirinho do príncipe Owain, em Rhos. Cadwallon mandou-lhe recado a respeito da morte do Sr. Rhisiart e tenho de fazer-lhe o meu depoimento pessoal e discutir o que há a fazer. Ele vai obrigar a depor todos os que possam ter assistido ao caso, mas requer que eu faça primeiro o meu próprio relatório. Tive de mandar o Irmão Richard seguir para a capela sem mim.
Jerome e Columbanus estavam também preparados para seguir para as suas camas, na casa de Cadwallon, mas, ao ouvirem isto, ficaram obedientemente.
- Irei no seu lugar, padre prior - ofereceu-se Jerome devotamente, com a certeza de que seria recusado.
- Não, você já esteve uma noite sem dormir. - Teria estado? Naquele sombrio interior não havia modo de se ter a certeza, mesmo que o Padre Huw fosse pessoa dada a suspeitas. E Jerome não era da raça de se estafar desnecessariamente. - Tem de ter o seu repouso.
- Eu tomaria o seu lugar com prazer, padre prior - ofereceu Columbanus, de modo igualmente ardente.
- Amanhã é a sua vez. Cuidado, irmão, não tome demasiado sobre si mesmo; acautele-se da arrogância sob o disfarce de humildade. Não; o Irmão Richard fará, esta noite, a vigília sozinho. Podem ambos esperar até terem dado o vosso testemunho a respeito do que fizeram e viram no dia de anteontem e depois podem partir e dormir calmamente.
Foi uma sessão longa e entediante, que muito martirizou o Irmão Cadfael, o qual foi obrigado a trair a sua concepção de verdade, não propriamente traduzindo de modo falso, mas acrescentando o seu ponto de vista pessoal sobre as coisas que tinham acontecido na floresta, em redor do corpo de Rhisiart. Por sua própria autoridade não eliminou nada do que Robert disse, mas separou os factos verídicos das suposições, o que fora observado das meras suposições precipitadas. Quem estava lá com suficiente conhecimento de galês para o pôr em dúvida, além do próprio Griffith ap Rhys? E esse oficial, experiente e céptico, cedo provou ser não só um ouvinte rápido e hábil, mas também um perspicaz dissecador de sentimentos e motivos. Afinal de contas ele era galês até aos ossos, e eram ossos galeses que estavam no coração de toda esta embrulhada. Pela altura em que acabou de tratar de Jerome e Columbanus, esses dois fiéis vigilantes, dos quais um acabara por revelar-se um traidor que dormia durante a sua obrigação (embora nem eles nem o Prior Robert tivessem sentido a necessidade de mencionar esse lapso!), Cadfael estava a começar a sentir que podia confiar no bom senso do meirinho do príncipe e que não teria tido necessidade de se dar a tanto trabalho para suprimir a maior parte do que ele próprio sabia e andava a fazer. Melhor assim, porém, decidiu por fim, porque aquilo de que agora mais precisava era de tempo, e um ou dois dias poupados com o facto de Griffith ter de percorrer toda a paróquia à procura de evidências poderiam permitir a conclusão satisfatória das suas investigações pessoais. A justiça oficial não cava muito profundamente, mas observa o que vem mais rapidamente à superfície e tira as suas conclusões de acordo com isso. Uma ou outra dúvida importuna é o preço que paga para um rápido restabelecimento da ordem e para um país em paz. Mas Cadfael não estava preparado para permitir que ocorresse uma dúvida importuna em relação a Engelard ou ao Irmão John. Não; era melhor seguir o seu próprio caminho até ao fim e ter um caso acabado para apresentar ao meirinho e ao príncipe.
Por isso, quando Sioned chegou na manhã seguinte, nada mais tinha a fazer além de pedir ao Irmão Richard, esse homem grande, preguiçoso e bom, que só desejava a paz e a harmonia entre todos os que o rodeavam, a sua piedade pessoal para com o seu pai e a sua bênção com a imposição das mãos, o que ele fez de boa vontade e sem malícia e partiu ainda ignorando o que fizera e do que fora absolvido.
- Senti a sua falta - disse Bened, a quem fez uma breve visita entre a missa e o almoço. - Padrig esteve cá um bocado e falámos dos velhos tempos, quando Rhisiart era mais jovem. Haja um bom número de anos que Padrig vem até cá. Conhece-nos a todos. Perguntou por si.
- Diga-lhe que beberemos juntos uma caneca um destes dias, aqui ou lá. E diga-lhe que ando a tratar do assunto de Rhisiart, se isso lhe puder dar qualquer consolação.
- Estamos a acostumar-nos a si - disse Bened, inclinando-se sobre o fogo, enquanto um vigoroso rapaz se dirigia para o fole. O senhor devia ficar; arranjava-se cá lugar para si.
- Tenho o meu lugar - disse Cadfael. - Não se preocupe comigo. Escolhi o hábito com os dois olhos bem abertos. Sabia o que estava a fazer.
- Há alguns que não consigo imaginar ligados a si - disse Bened, tendo na mão o ferro para a ferradura que aguardava.
- Ah, priores e irmãos vêm e vão, tão diferentes entre si como o resto dos homens, mas o claustro permanece. Porém, há alguns que verdadeiramente se enganaram no caminho, isso eu reconheço
- disse Cadfael. - A maior parte é gente jovem que julgou ver o fim do mundo no ”não” de uma rapariga. Alguns desses podiam até tornar-se úteis artesãos, se chegassem a libertar-se. Sempre supondo, claro, que eram homens livres e que pudessem ter entrada, digamos, no mistério da arte de ferreiro...
- Esse tem um bom braço e um bom pulso - disse Bened, pensativo - e sabe saltar quando o mandam, quando o homem que manda sabe o que está a fazer. Isso já é metade da arte. Se não soltou no mundo o assassino de Rhisiart, não há estrangeiro que fosse aqui mais bem recebido. Mas isso eu ainda não sei, embora a pobre rapariga lá de cima pense que sabe. E se estivesse enganada? O senhor sabe?
- Ainda não - reconheceu Cadfael. - Mas dê-nos tempo e acabaremos por saber.
Nesse terceiro dia do seu pseudocativeiro, o Irmão John viu-se mais apertadamente preso. Correra a notícia de que o meirinho estava na paróquia e que andava por todo o lado a fazer perguntas em relação às circunstâncias da morte de Rhisiart e sabia-se que tivera uma longa entrevista com o prior no presbitério do Padre Huw. Certamente fora incitado e admoestado a cumprir o seu dever e a agir também em relação ao crime do Irmão John. Não que John tivesse qualquer queixa em relação às suas acomodações, comida ou companhia; raras vezes estivera tão completamente contente. Mas, durante dois dias, com breves intervalos, quando a cautela parecia ser aconselhável, andara lá por fora, pela propriedade, desde a aurora até ao crepúsculo, dando uma ajuda com o gado, reabastecendo a pilha de lenha, levando e trazendo coisas, tratando da horta, e não tivera nem tempo nem inclinação para se preocupar com a sua situação. Agora que estava posto fora de vistas e ficava sentado e ocioso no estábulo, as realidades perturbavam até John, e a sua falta de conhecimento de galês, ou do Irmão Cadfael para suprir essa falta, era uma frustração nada fácil de suportar. Não sabia o que Sioned e Cadfael andavam a tramar, não sabia o que estava a acontecer com Santa Winifred ou com o Prior Robert e os seus colegas e, acima de tudo, não sabia onde estava Engelard, ou como se iria libertar da teia de suspeitas que se tinham levantado contra ele. Desde o seu gesto de instintiva solidariedade, John tomara um interesse de proprietário por Engelard e queria-o a salvo, vingado e feliz com Sioned.
Mas Sioned, fiel à sua palavra, não se aproximava dele, e não havia mais ninguém na propriedade que pudesse falar facilmente com ele. Podiam comunicar-se coisas simples mas não havia maneira de lhe darem a conhecer tudo o que queria e precisava saber. Ali estava, pronto para trabalhar mas inútil, cismando e preocupando-se com a sorte dos seus amigos e absolutamente incapaz de fazer o que quer que fosse para os ajudar.
Annest trouxera-lhe o almoço e sentou-se junto dele enquanto comia, e a mesma falta de palavras perturbava-a também. Era muito fácil ensinar-lhe palavras simples e frases em galês, tocando na coisa a que se referia, mas como conseguir lançar-se na narração, como gostaria de saber, de tudo o que estava a acontecer na capela e do que andava a aldeia a dizer e a pensar? A impossibilidade de conversar tornava os seus encontros quase que completamente silenciosos, mas por vezes falavam em voz alta, ele em inglês, ela em galês, e diziam coisas porque não se podiam conter, coisas que só num qualquer dia futuro seriam compreendidas pelo outro, embora o tom de voz talvez transmitisse pelo menos o sentimento de amizade, como uma espécie de carícia reprimida. E assim mantinham dois pequenos monólogos que, apesar de tudo, eram uma forma de comunicar e um conforto.
Por vezes até, sem o saberem, estavam a responder às perguntas um do outro.
- Cismo em quem terá sido a rapariga - dizia Annest, doce e hesitante - que te levou a tomar o hábito. Sioned e eu não podemos deixar de cismar em como é que um rapagão como tu chegou algum dia a fazer tal coisa. - Ora, se ele fosse galês, nunca ela lhe poderia ter dito tal coisa.
- Como diabo cheguei a pensar que Margery era uma beleza!
- maravilhava-se John. - E como pude levar tão a sério a sua rejeição? Mas, até àquela altura, nunca vira nada realmente belo, nunca te tinha visto a ti!
- Ela pregou-nos a todos uma grande partida - disse Annest, suspirando -, quem quer que tenha sido, ao levar-te assim a tomar o hábito para toda a vida!
- Deus do Céu - disse John -, e pensar que poderia ter casado com ela! Com o ”não” fez-me ao menos esse favor. Entre tu e eu há apenas o problema de um hábito, não uma esposa. - E foi essa a primeira vez que lhe ocorreu a ofuscante ideia de que talvez fosse possível escapar aos seus votos. O pensamento fê-lo voltar a cabeça e olhar ainda mais de perto e com mais ardente atenção para o belo rosto tão próximo do seu. Ela tinha bochechas macias, arredondadas, cor de flor de macieira, feições delicadas e lustrosas do Sol e olhos como água de nascente ao Sol e correndo sobre seixos brilhantes, polidos, claros como o cristal.
- Ainda pensas nela? - murmurou Annest, num sussurro. Uma parva presunçosa que não teve nem a inteligência de reconhecer um homem bom quando o viu? - Ele era, na realidade, um jovem muito bem desenvolvido, jeitoso, bem-parecido, bem-humorado, ele mais as suas longas e robustas pernas, as suas mãos grandes e habilidosas e o seu matagal de caracóis ruivos, e a rapariga que se julgara boa de mais para ele devia ter sido uma autêntica louca. - Detesto-a! - disse Annest, inclinando-se, descuidada, para ele.
Os lábios que o supliciavam com suaves frases que não conseguira compreender estavam apenas a curta distância dos seus. Em desespero de causa recorreu a uma espécie de linguagem de sinais que não necessitava de qualquer intérprete. Não beijava uma rapariga desde que Margery, a filha do negociante de tecidos, o abandonara quando seu pai se tornara o meirinho de Shrewsbury, mas parecia que não se esquecera de como se procedia. E Annest derreteu-se nos seus braços, onde condizia muito melhor do que os seus demasiado apressados votos.
- Oh, Annest! - ofegou o Irmão John, que nunca na vida se sentira menos ”irmão”. - Penso que te amo!
O Irmão Cadfael e o Irmão Columbanus seguiam juntos pelo bosque acima para passar a terceira noite de oração. A noitinha estava suave e sem vento, mas nublada, e, sob as árvores, a luz tornava-se de um verde sombrio.
Até ao último momento existira a hipótese de o Prior Robert, tendo perdido a noite que lhe competia, resolver estar presente nesta última ocasião, mas ele não dissera nem uma palavra. Para falar verdade, Cadfael começava a pensar se aquela longa sessão com o meirinho fora realmente necessária, ou se o prior a recebera de braços abertos como uma alternativa a ter de aguentar a vigília de uma noite e, pela manhã, enfrentar Sioned com o seu pedido. Não era necessariamente uma prova de culpa da sua parte, além da culpa de querer continuar a recusar a absolvição a Rhisiart, sem ter de o fazer directamente, cara a cara com a sua filha. Porque, por mais virtudes que se pudessem encontrar no Prior Robert, a humildade não era uma delas, nem a magnanimidade. Sentia-se invariavelmente certo de estar na razão e não perdoava no caso de lhe porem essa razão em dúvida.
- Esta tarefa e esta vigília, irmão - disse Columbanus, e as suas longas e jovens passadas acompanhavam com facilidade o balançar de marinheiro de Cadfael -, são para nós um grande privilégio. A história da nossa Abadia mencionará os nossos nomes, e os irmãos das gerações futuras irão invejar-nos.
- Já ouvi dizer - disse Cadfael, secamente - que o Prior Robert se propõe escrever uma vida de Santa Winifred e completá-la com a história desta trasladação para Shrewsbury. Acha que ele vai mencionar os nomes de todos os seus companheiros? ”O teu, contudo”, pensou, ”é bem possível que mencione, como sendo o do irmão angustiado que caiu doente e foi mandado a Holywell para ser curado. E o de Jerome, que teve o sonho que lá te levou. Mas o meu, tenho a certeza de que ficará no silêncio, e tanto melhor!”
- Tenho uma falta a resgatar - lembrou Columbanus, devotamente -, por ter já uma vez, nesta capela, traído o meu dever. Logo eu que, mais que ninguém, devia ter-me mantido fiel.
- Estavam junto ao decrépito portão, e à sua frente estendia-se o emaranhado que era o cemitério, cortado por um estreito carreiro que mal se distinguia por entre as altas ervas. - Sinto um sopro sagrado que vem até mim - disse o jovem, estremecendo, com a face esguia e pálida. - Estou a ser arrastado para uma luz. Creio que estamos a aproximar-nos de uma maravilha, um milagre da graça. E uma tal mercê concedida a mim, que caí a dormir, traindo a minha obrigação para com ela! - E seguiu à frente até à porta aberta, as passadas crescendo com o anseio, as mãos estendidas como que para agarrar uma amante, mais do que para prestar reverência perante uma santa. Cadfael seguiu lentamente, mas resignado, acostumado que estava a estes pouco confortáveis ardores, mas pouco entusiasmado com a ideia de ter de ficar toda a noite encerrado com eles numa capela tão pequena. Tinha de pensar, além de orar, e Columbanus não era grande ajuda para qualquer dessas actividades.
Dentro da capela, o ar estava pesado com o perfume da madeira velha, as especiarias e o incenso dos panejamentos onde estava pousado o relicário e com a ténue e aromática aura de anos de pó e parcial desuso. No altar ardia uma pequena lamparina de óleo com chama amarela. Cadfael avançou e, com ela, acendeu as duas velas do altar e pôs uma de cada lado. A fragrância do espinheiro entrava pela estreita janela, a nascente, trazida por uma brisa muito suave que trouxe um ar de frescura e fez as chamas estremecer por uns momentos. O seu fulgor ténue e dançante reflectia-se em todas as superfícies próximas, mas não chegava aos cantos do tecto nem deixava aperceber as paredes no seu lugar, Eles estavam numa estreita caverna que tinha uma escuridão castanha com cheiro a madeira, tendo um ténue foco de luz à sua frente que brilhava sobre um caixão vazio e um cadáver sem caixão e apenas lhes deixava aperceber-se dos vagos contornos dos dois genuflexórios postos lado a lado, a pouca distância do ataúde. Rhisiart jazia mais próximo deles; a massa negra e prateada do relicário formava como que um muro baixo que o protegia das luzes do altar.
O Irmão Columbanus fez humildemente profunda vénia em frente do altar e tomou lugar no genuflexório da direita. O Irmão Cadfael instalou-se solidamente no da esquerda e, com movimentos que denotavam longa prática, procurou e encontrou a melhor posição para os seus joelhos.
Suavemente, desceu sobre eles a calma. Cadfael preparou-se para uma longa vigília e disse a sua prece pela alma de Rhisiart, que não era a primeira que por ele orava. A grande escuridão, a luz constante e fraca, o lento decorrer do tempo, muito para além do seu pensamento e muito para além do seu poder de o acompanhar, a solidão que o rodeava e o mundo perturbado e cheio de gente que tinha dentro de si, tudo isto estabeleceu um padrão perpétuo, um ritmo cadenciado tão perfeito como o sono. Não pensou mais em Columbanus, esqueceu-se de que Columbanus existia. Orava à medida que respirava, não formando palavras e não fazendo pedidos específicos, guardando apenas no coração, como aves feridas na concha da mão, toda aquela gente que sofria e chorava por causa desta pequena santa, pois, se ele próprio tanto sofria pensando neles, quanto mais não sentiria ela?
As velas iam durar toda a noite, e, por instinto, calculou o tempo pelo ritmo com que diminuíam e reconheceu quando a meia-noite estava próxima.
Pensava em Sioned, a quem pela manhã nada mais tinha para oferecer senão ele próprio, quando ouviu o mais ténue e estranho dos sons vindo do genuflexório à sua direita, onde Columbanus se apoiava numa absorção total. Nesse momento, a face não estava escondida nas mãos postas, mas erguida e esforçando-se por apanhar toda a luz que até lá chegava, e, embora essa luz fosse fraca, dava uma palidez amarelo-pálida ao seu severo perfil. Os olhos estavam esbugalhados e fitavam para além da parede da capela, os lábios estavam abertos e cantavam, com uma expressão de êxtase, apenas um murmúrio de um cântico latino em louvor à virgindade. Quase não era audível, contudo era tão nítido como num sonho. E antes de Cadfael poder perceber completamente o que estava a ouvir, viu o jovem erguer-se bruscamente, segurando-se ao apoio do genuflexório, e ficar erecto perante o altar. O cântico cessou. De súbito esticou-se o mais possível, puxando a cabeça para trás como se, através do telhado, estivesse a ver uma noite de Primavera cheia de estrelas, e estendia os braços de ambos os lados como um homem estendido numa cruz. Lançou um grande grito sem palavras que parecia simultaneamente de dor e triunfo e caiu para a frente sobre o chão de terra batida, embatendo rigidamente no solo, os braços ainda abertos, o corpo completamente esticado até aos dedos dos pés, e ali ficou com a testa de encontro à franja da toalha do altar, que saía de sob o corpo de Rhisiart e arrastava no chão.
Cadfael levantou-se à pressa e foi até ele, interiormente dividido entre ansiedade e alarme por um lado e resignação enfastiada por outro. ”Exactamente o que se poderia esperar do idiota”, pensou, exasperado, ao mesmo tempo que, de joelhos, apalpava a fronte inclinada e puxava uma prega da toalha do altar para libertar a posição do nariz e da boca e virava a cabeça do jovem para um lado para que pudesse respirar livremente.
”Eu devia ter reconhecido os sinais! Nunca perde a oportunidade de ter um ataque de devoção ou um êxtase místico às ordens. Um destes dias vai ser absorvido por essa sua luz e nunca mais regressará. Contudo, notei que consegue cair de borco sobre a face sem se aleijar e ter um ataque de pias convulsões a respeito das suas visões ou pecados sem nunca embater contra qualquer aresta aguda ou coisa dura e sem nunca morder a língua. A mesma espécie de providência que cuida dos bêbedos toma conta de Columbanus nas suas agonias.” E, no fundo de si mesmo e cheio de mordacidade, reflectiu - que devia existir ali uma qualquer moral englobando todos os excessos.
Pelo menos, desta vez não teve convulsões. Simplesmente, vira o que quer que seja que tinha visto, ou pensado ver, e caíra naquele êxtase destruidor. Cadfael sacudiu-o pelo ombro suavemente, depois com mais força, mas continuava rígido e sem dar resposta. A testa estava fresca e lisa, as feições, se bem que apenas apercebidas, pareciam serenas e compostas, e, se traduziam alguma coisa, era uma paz suave e feliz, Se não fosse a rigidez do corpo e dos membros e a atitude pouco natural de quem jaz estendido numa cruz, dir-se-ia que dormia. Tudo o que Cadfael conseguira fazer para o pôr mais confortável fora virar-lhe a cabeça, de modo que agora repousava sobre a bochecha direita, tendo a toalha como almofada. Quanto tentou dobrar o braço direito e virar o rapaz de lado para ficar mais cómodo, as articulações resistiram-lhe e teve de o deixar assim.
”E, agora, que deverei fazer? Abandonar a minha vigília e ir lá abaixo buscar o prior para que venha com outros para o levarem? Que podem eles fazer por ele que eu não possa fazer aqui? Se não consigo fazê-lo voltar a si, também eles não podem. Ele sairá deste transe na devida altura e nem um minuto antes. Não sofreu qualquer lesão e a sua respiração é firme e profunda. O coração bate forte e regular. Não tem febre. Porquê interferir com os prazeres pessoais de uma pessoa, se não o estão a prejudicar? Aqui não está frio e posso pôr-lhe uma destas toalhas de altar a fazer de cobertor, uma fantasia que lhe deve agradar. Não; viemos para permanecer em vigília toda a noite e assim faremos. Eu aqui de joelhos, como é devido, e ele onde quer que os seus sonhos o tenham levado.”
Cobriu Columbanus, ajustou os paramentos para lhe proteger a cabeça e voltou para o seu genuflexório. Mas, independentemente do que aquela experiência pudesse ter feito por Columbanus, para Cadfael desfizera qualquer possibilidade de reflexão ou concentração. Quanto mais tentava focar o espírito, quer sobre a sua obrigação de orar e meditar, quer sobre a urgente necessidade de estudar em que posição estava agora Sioned e o que se poderia ainda fazer, tanto mais era arrastado a olhar de novo para o corpo inclinado e a escutar para se certificar de que continuava a respirar tão normalmente como sempre. O que poderia ter sido uma noite proveitosa era agora um peso para ele, perdida no campo da adoração, inútil no do pensamento, a noite mais longa, vazia e entediante que jamais passara.
O primeiro abrandar da escuridão para uma claridade cinzenta cor de rola veio como uma bênção, trazendo ao menos alívio para a vista. O estreito pedaço de céu que se via através da janela do altar mudou de cinzento para um verde-pálido e claro, de verde para açafrão, de açafrão para ouro. Era uma manhã sem nuvens. O primeiro raio de sol passou pela fenda e caiu sobre o altar, sobre o relicário, sobre o corpo amortalhado, e, atravessando a capela como uma espada de ouro, deixou Columbanus na sombra. Continuava deitado, rígido, mas respirando profunda e suavemente, e nada sentia quando se lhe tocava ou falava.
Continuava nesta mesma condição quando chegou o Prior Robert com os colegas, Sioned acompanhada de Annest e toda a gente da aldeia e das propriedades das redondezas, silenciosos e vigilantes como sempre; vinham ver o fim desta vigília de três noites.
Sioned foi a primeira a entrar, e a penumbra interior, depois da claridade do exterior, cegou-a por um momento e teve de parar na entrada até os olhos se lhe aclimatarem à mudança. O Prior Robert estava logo atrás dela, quando à sua frente ela viu as solas erguidas das sandálias do Irmão Columbanus. Tocava-lhes o raio de sol que vinha da janela, enquanto o resto do seu corpo continuava na sombra. Os olhos abriram-se-lhe de espanto e horror e, antes que Cadfael pudesse erguer-se e voltar-se para a tranquilizar, ela soltou agudo grito:
- Que é isto? Está morto?
O prior afastou-a rapidamente e ultrapassou-a, mas foi obrigado a parar, com o pé sobre a bainha do hábito de, Columbanus.
- Que aconteceu aqui? Columbanus! Irmão! - Inclinou-se e pousou uma mão sobre um ombro rígido. Columbanus continuou a dormir e a sonhar, sem se mover e sem deixar que o movessem.
- Irmão Cadfael, que significa isto? Que lhe aconteceu?
- Ele não está morto - disse Cadfael, dando prioridade às coisas importantes -, nem penso que esteja em qualquer perigo. Respira como um homem pacificamente a dormir. A cor é boa, está fresco ao apalpar e não tem qualquer lesão. Apenas que, à meia-noite, levantou-se subitamente frente ao altar, abriu os braços, muito abertos, e caiu para a frente, assim em transe. Permaneceu assim toda a noite, mas sem sofrimento ou agitação.
- Devia ter-nos chamado para o ajudarmos - disse o prior, abalado e consternado.
- Tinha também a obrigação - disse Cadfael, sucintamente de permanecer aqui para manter a vigília que me ordenaram. E que mais se poderia ter feito por ele e que eu não tenha feito, dando-lhe uma almofada para a cabeça e uma cobertura para o proteger da frescura da noite? Nem ele ficaria agradecido, penso, se o afastassem daqui antes da hora marcada. Ele manteve fielmente a sua própria vigília e, se o não pudermos fazer voltar a si, podemos carregá-lo até à sua cama, sem violentarmos o seu sentido do dever.
- Há algo de verdadeiro nas suas palavras - disse o Irmão Richard, muito a sério -, porque sabemos que o Irmão Columbanus várias vezes foi visitado e favorecido com visões, e poderia ter sido muito mau tirá-lo do próprio lugar onde recebeu tal bênção. Talvez até fosse uma ofensa para a própria santa, se resolveu revelar-se-lhe. E, se assim é, ele acordará quando chegar a altura própria para isso, e poderia ser muito prejudicial para ele que tentássemos adiantar essa hora.
-É certo - disse o prior, um pouco tranquilizado - que parece em paz, tem boas cores e não mostra sinais de problemas ou dores. Isto é muito estranho. Será possível que este jovem irmão seja objecto de outro prodígio no género daquele que nos conduziu até Santa Winifred?
- Ele já uma vez foi instrumento da graça - disse Richard - e pode voltar a sê-lo. Era melhor levá-lo para a sua cama em casa de Cadwallon e mantê-lo quieto e quente e aguardarmos. Ou seria melhor levá-lo para o presbitério do Padre Huw para que fique próximo da igreja? Pode acontecer que a sua primeira necessidade seja ir à igreja agradecer.
Com uma forte toalha de altar e as próprias faixas fizeram uma maca para transportar Columbanus e levantaram-no do chão, duro como um ramo de árvore, e até os braços estendidos continuavam rígidos. Colocaram-no de costas na liteira improvisada, mas aguentou tudo o que lhe fizeram sem emitir um som ou um sinal. Alguns dos nativos que observavam a cena, comovidos e atemorizados com ela, avançaram para dar uma ajuda para o levar para baixo, até à casa de Huw. Cadfael deixou-os ir. Voltou-se para olhar para Sioned, e esta fitava-o com olhos cheios de dúvidas e interrogações.
- Bom, eu pelo menos - disse -, estou com todo o meu juízo e vou fazer aquilo que não me pediu. - E avançou até junto de Rhisiart, pousou a mão sobre o coração do morto e fez-lhe um sinal da cruz sobre a testa.
Quando seguiram a lenta procissão que descia em direcção à aldeia, Sioned caminhava a seu lado.
- Que mais poderemos fazer? Se sabe alguma coisa, não deixe de me contar. Até agora não temos tido sorte. E hoje está marcado o enterro.
- Eu sei - disse Cadfael, pensativo. - Quanto à história desta noite, estou dividido entre dois pensamentos. Seria capaz de pensar na possibilidade de tudo ter sido planeado para reforçar a nossa causa com outro milagre, mas não posso por duas razões. O espanto e a preocupação do Prior Robert, por mais que os estude, parecem-me verdadeiros, e não falsos. E Columbanus já anteriormente mostrou estas estranhas propensões, e o modo como o atacam é violento e perigoso e é difícil crer que esteja a fingir. Um malabarista de feira, ganhando a vida a fazer o diabo com o próprio corpo, não conseguiria ultrapassar Columbanus quando lhe dão os seus ataques. Não sou capaz de julgar. Penso que há pessoas que, na alma, vivem sobre o fio de uma navalha e que, por vezes, são levadas a atirar-se para o ar e a deixar que o Céu ou o Inferno resolvam para que lado hão-de cair.
- Eu, tudo o que sei - disse Sioned, com a cara a arder de vermelho-escuro, como uma tocha - é que o meu pai, a quem eu amava, foi assassinado e que quero justiça para o assassino e não aceito qualquer dinheiro pelo seu sangue. Nunca aceitaria um preço pelo sangue de Rhisiart!
- Eu sei, eu sei! - disse Cadfael. - Sou também galês. Mas deixe uma porta aberta para a piedade, pois quem sabe quando você ou eu poderemos vir a precisar dela! E já falou com Engelard? Ele está bem?
Junto dele, ela estremeceu, corou, suavizou-se, tal como uma flor queimada pela geada que revive miraculosamente com um vento do sul. Mas não respondeu. Não era preciso.
- Ah, você há-de sobreviver! - disse o Irmão Cadfael, satisfeito. - Como ele gostaria que acontecesse. Mesmo que, como um senhor galês que se preza, se tenha sempre oposto. No fim, você teria conseguido arranjar as coisas como queria, tinha razão a esse respeito. E, ouça, lembrei-me de duas coisas que devia ainda fazer. Temos de tentar tudo o que for possível. Não volte para sua casa agora. Deixe que Annest a conduza a casa de Bened, o ferreiro, para descansar, e venham ambas à missa. Quem sabe o que poderemos ficar a saber quando o nosso semiempenado santo recuperar os sentidos? E depois, também, quando enterrar o seu pai, assegure-se de que Peredur venha com o pai dele. Se lhe tem fugido até agora, é capaz de tentar evitar vir, mas, se lho pedir, não poderá recusar. Ainda não tenho opinião clara e decidida a respeito do Sr. Peredur.
Foi o som do pequeno sino de bronze a tocar para a missa o que finalmente penetrou no sono encantado do irmão Columbanus. Não se pode dizer que o tenha acordado, mas fê-lo abrir os olhos, até aí fechados, estremecer ao longo dos membros gelados, flectir os rígidos braços e apertar as reanimadas mãos sobre o peito. Para além disso, a face não se alterou, nem pareceu tomar consciência daqueles que estavam ansiosamente reunidos em volta da cama onde estava deitado. Era como se não estivessem lá. A única coisa a que o Irmão Columbanus reagiu foi ao sino, à primeira chamada para a adoração. Mexeu-se e sentou-se. Levantou-se da cama e ergueu-se com firmeza. Tinha um ar radiante, mas ainda absorto e desligado da realidade.
- Está a preparar-se para tomar o seu lugar habitual entre nós - disse o prior, comovido e atemorizado. - Andemos, mas não façam ainda qualquer tentativa para o fazer voltar a si. Quando tiver apresentado os seus agradecimentos, ele regressará para nós e contar-nos-á a sua experiência.
Robert seguiu à frente a caminho da igreja e, como supusera, Columbanus tomou o seu lugar do costume, como o mais jovem dos irmãos, agora que John caíra em desgraça, e seguiu com modéstia e com modéstia tomou parte no serviço divino, sempre como um homem em sonhos.
A igreja estava completamente cheia e havia ainda gente amontoada junto à entrada. Já correra a notícia de que acontecera algo de estranho e maravilhoso na Capela de Santa Winifred e de que bem podiam seguir-se-lhe revelações durante a missa.
Até ao fim da missa não ocorreu nenhuma outra alteração no estado do Irmão Columbanus. Mas, quando o prior, lentamente e cheio de expectativa, como alguém que faz girar uma chave estando praticamente certo de que poderá entrar, deu o primeiro passo em direcção à saída, Columbanus teve subitamente um estremeção e soltou um pequeno grito e olhava espantado para todas aquelas faces conhecidas que o rodeavam. O seu rosto voltou à vida com um sorriso. Estendeu uma mão como que para impedir a partida do prior e disse em voz alta:
- Oh, padre, fui tão abençoado, conheci uma tal bem-aventurança! Como vim aqui ter, se sei bem que estava noutro lado, e como passei da escuridão da noite para tão gloriosa luz? E este é, certamente, o mundo donde parti! Um mundo bastante belo, é certo, mas estive num outro, para além de todos os meus desertos, que é muito mais belo ainda! Oh, se eu lhe conseguisse contar!
Todos os olhos estavam postos nele e todos os ouvidos estavam estendidos para captar todas as suas palavras. Nem uma alma saiu da igreja, antes todos se aproximaram mais.
- Filho - disse o Prior Robert, com uma gentileza respeitosa, pouco comum nele -, está aqui entre os seus irmãos, em adoração a Deus, e nada tem a temer ou a lastimar, pois a visão que lhe foi concedida pretendia certamente inspirá-lo e prepará-lo para prosseguir sem medo através de um mundo imperfeito, com a esperança de um mundo perfeito no Além. O irmão estava de vigília na Capela de Santa Winifred, com o Irmão Cadfael. Lembra-se disso? Durante a noite, algo se apoderou de si e, durante um tempo, manteve o seu espírito afastado de nós, fora do seu corpo, mas deixou esse corpo sem qualquer lesão e em descanso como uma criança que dorme. Trouxemo-lo para aqui, mas o espírito continuava ausente de nós; mas agora ei-lo de volta connosco, e tudo está em ordem. Teve um grande privilégio!
- Oh, enorme, muito maior do que pensa - contou Columbanus, refulgindo como uma pálida lanterna. - Sou o mensageiro de uma tal bondade, sou o instrumento de reconciliação e paz. Oh, padre... padre Huw... irmãos... deixai-me falar aqui perante todos, porque aquilo que me ordenaram que dissesse diz respeito a todos.
Nada, pensou Cadfael, o poderia deter, pois era bem claro que a sua mensagem celeste afastava qualquer objecção que um simples prior ou padre pudessem apresentar. E Robert estava a mostrar-se surpreendentemente complacente ao aceitar esta transferência de autoridade. Ou já sabia que a voz do Céu ia dizer algo inteiramente favorável para os seus planos e para o conduzir à glória, ou então estava verdadeiramente impressionado e inclinado de coração e ouvidos para escutar tão devotamente como qualquer outro homem ali presente.
- Fale livremente, irmão - disse -, deixe-nos compartilhar da sua felicidade.
- Padre, à hora da meia-noite, estando eu ajoelhado perante o altar, ouvi uma voz doce chamar o meu nome; levantei-me e avancei para responder à chamada. O que então aconteceu ao meu corpo é coisa que não sei; o senhor contou-me que, quando veio, eu estava estendido a dormir. Mas, quando me dirigia ao altar, pareceu-me que, subitamente, havia sobre todo ele uma luz suave e dourada e, flutuando no meio dessa luz, erguia-se a mais bela virgem, que se movia por entre uma miraculosa chuva de pétalas brancas e exalava da sua túnica e longos cabelos os mais doces perfumes. E esse gracioso ser falou comigo e disse-me que se chamava Winifred e que viera aprovar o nosso empreendimento e também para perdoar a todos aqueles que, até à data e levados por uma falsa lealdade e reverência, a ele se tinham oposto. E então (oh, deusa maravilhosa!) pousou a mão sobre o peito de Rhisiart, como a sua filha nos tinha pedido que fizéssemos como símbolo do nosso perdão puramente pessoal; mas ela fê-lo em divina absolvição e com uma tal perfeição de graça que o não posso descrever.
- Oh, filho meu - disse o Prior Robert enlevado, sobrepondo-se aos murmúrios agitados que cruzavam a igreja como ondas num lago -, conta-nos uma maravilha muito maior do que jamais poderíamos ter esperado. Até o perdido foi salvo!
- Assim é! E, padre, ainda há mais! Quando ela lhe pousou a mão, pediu-me que falasse a todos os homens deste lugar, tanto nativos como estrangeiros, e lhes desse a conhecer o seu misericordioso desejo. E este é: ”No chão donde vão retirar as minhas ossadas”, disse, ”ficará uma campa aberta. Aquilo que abandono, isso posso oferecer. Nessa campa”, disse Winifred, ”enterrem Rhisiart, para que o seu descanso possa ser assegurado e o meu poder manifestado.”
- Que podia eu fazer - disse Sioned - senão agradecer-lhe os seus bons serviços, uma vez que trouxe a certeza divina da bem-aventurança de meu pai? E, no entanto, ofende-me. Eu devia antes ter-me levantado e afirmado que nunca tive a mínima dúvida a respeito de o meu pai estar, neste momento, em bem-aven-turança, pois ele era um homem bom, que nunca fez o mínimo mal a ninguém. Certamente que é muito amável da parte da Santa Winifred oferecer-lhe a morada que abandona e o gracioso perdão
para ele, mas... perdoar-lhe o quê? Absolvição de quê? Já que tocava no assunto, podia antes tê-lo elogiado e dizer logo que ele estava justificado, não perdoado.
- E, contudo, foi uma mensagem verdadeiramente própria de um bom embaixador - admitiu Cadfael, apreciativo -, calculada para nos dar aquilo que viemos buscar, acalmar o povo de Gwytherin, e espalhar a paz por todo o lado...
- E para me apaziguar e levar-me a desistir de perseguir o assassino de meu pai - disse Sioned - e a enterrar o caso junto com a vítima. Só que não terei descanso enquanto não souber.
- Se para derramar um reflexo de glória sobre o Prior Robert, ia eu ainda dizer. Quem me dera saber qual foi a cabeça que concebeu tal ideia!
Encontraram-se durante uns apressados minutos em casa de Bened, onde Cadfael fora pedir emprestadas as picaretas e pás para o santo trabalho que faltava realizar. Até alguns dos homens de Gwytherin tinham avançado e pedido para participar na escavação da terra sagrada, porque, embora estivessem ainda relutantes em perder a sua santa, se era desejo desta abandoná-los, não a queriam fazer zangar. Estavam a acontecer coisas prodigiosas, e antes preferiam ser credores da sua aprovação e bênçãos a arriscar-se a encontrar uma das suas flechas.
- Parece-me que ultimamente a maior parte da glória recai essencialmente sobre o Irmão Columbanus - disse Sioned, astuta.
- E o prior aceitou calmamente e não fez qualquer tentativa para a fazer recair sobre si. É a única coisa que me faz acreditar que talvez esteja a ser honesto.
Ela dissera algo que fez que Cadfael fizesse uma pausa e a mirasse atentamente, coçando, duvidoso, o nariz.
- Talvez tenha razão. E é bem provável que esta história volte connosco para Shrewsbury e, logo que cheguemos em triunfo, se espalhe por todos os conventos da nossa Ordem. Sim, certamente que Columbanus terá ganhado para si, na nossa Ordem, uma grande fama de santidade e favor divino.
- Diz-se que um homem ambicioso pode fazer uma grande carreira no claustro - disse ela. - Talvez ele esteja a trabalhar afanosamente nos alicerces, um grande avanço para ele próprio vir a ser o prior, quando Robert se tornar o superior do convento. Ou até o superior, quando Robert estiver a pensar que está ele próprio quase a ser nomeado! Porque não é do seu nome que se falará pelos condados em redor como o homem que recebe visões e que os santos usam para tornar conhecidos os seus desejos.
- Disso - concordou Cadfael - talvez Robert ainda não se tenha lembrado, mas, logo que tenha passado toda a emoção do momento, certamente se lembrará. E foi ele quem se comprometeu a escrever a vida da santa e a completá-la com o relato da nossa peregrinação. Columbanus pode bem vir a acabar como um irmão anónimo que por acaso foi encarregado de dar uma mensagem ao prior, da parte da sua protectora. Os cronistas podem eliminar nomes com a mesma facilidade com que os visionários os espalham em voz alta. Mas uma coisa lhe asseguro: é que o rapaz vem de uma importante família normanda que não veste o hábito dos Beneditinos, nem mesmo aos filhos mais novos, para passar a vida a fazer trabalhos servis, como a jardinagem.
- E não avançamos nada - disse Sioned, amargamente.
- Não. Mas também ainda não acabámos.
- Mas, do modo como veio as coisas, isto foi estudado para ser um final, para encerrar todo o episódio num clima de amizade geral, como se tudo tivesse sido resolvido! Algures, nesta terra, existe um homem que apunhalou o meu pai pelas costas, e pedem-nos que corramos uma cortina sobre o caso e o percamos de vista perante o grande tratado de paz. Mas quero encontrar esse homem, quero ilibar Engelard e vingar o meu pai e não descansarei, nem deixarei ninguém descansar, até ter o que desejo. E agora diga-me o que devo fazer.
- O que já lhe disse - disse Cadfael. - Reuna na capela toda a gente da sua casa e os amigos para verem cavar a campa e assegure-se de que Peredur assista.
- Já mandei Annest pedir-lhe que venha - disse Sioned. - E depois? Que devo dizer ou fazer com Peredur?
- Essa cruz de prata que traz ao pescoço... - disse Cadfael. Estará disposta a separar-se dela para avançar um passo no sentido de saber o que quer?
- Isso e tudo o mais que possuo. O senhor sabe.
- Então - disse Cadfael -, eis o que tem a fazer...
Acompanhando-se com orações e salmos, carregaram com as pás e picaretas até ao emaranhado cemitério junto à capela, cortaram as silvas, as flores selvagens e as longas ervas que havia no montículo que era a campa de Winifred e, com reverência, fenderam a terra. Trabalharam por turnos, partilhando todos na tarefa pelo mérito que trazia. E, durante o dia, a maior parte da gente de Gwytherin reuniu-se em volta daquele lugar, deixando parado todo o trabalho dos campos e cercados, para observar o final desta contenda. Sioned dissera a verdade. Ela e todos os servos da sua casa estavam lá entre os outros, de luto e unidos para, quando chegasse a altura, trazerem o corpo de Rhisiart para o enterrar. Mas, de momento, esse grupo fúnebre não era mais que uma coisa secundária, um incidente na história de Santa Winifred, e, ainda para mais, um incidente encerrado.
Estava lá Cadwallon, estava lá o tio Meurice e Bened e todos os outros vizinhos. E, junto a seu pai, recolhido e pensativo, estava o jovem Peredur, que, pelo aspecto, desejava estar a centenas de léguas de distância. As espessas sobrancelhas castanhas estavam unidas como se lhe doesse a cabeça e os olhos, por mais que lhe vagueassem, nunca se voltavam na direcção de Sioned. Viera, embora com relutância, porque ela expressamente lho pedira, mas não podia, ou não queria, encará-la. A arrojada boca vermelha estava gelada e pálida devido à pressão com que estava apertada contra os dentes. Via o buraco escuro a ficar cada vez mais profundo, respirando fundo e com esforço, como um homem a conter a dor, muito longe do rapaz amimado, com o andar longo e ligeiro e o audacioso sorriso, que tão visivelmente tinha como certo que o mundo nascera para lhe satisfazer os desejos. Os demónios de Peredur roíam-no por dentro.
O solo estava rijo mas leve e o trabalho não era duro, mas a cova era profunda. Gradualmente, os homens que escavavam ficaram mergulhados no buraco até aos ombros e, a meio da tarde, o Irmão Cadfael, o mais baixo do grupo, quase desapareceu da vista quando fez o último turno no buraco.
Ninguém ousava duvidar declaradamente se estariam no lugar certo, mas muitos deviam estar a interrogar-se. Cadfael, por nenhuma razão que pudesse perceber, não tinha qualquer dúvida.
A rapariga estava ali. Depois do seu breve martírio e miraculosa volta à vida, vivera muitos anos como abadessa; porém, pensava nela como aquela rapariga devota e inexperiente, romanticamente apaixonada pelo celibato e pela santidade, que fugira dos avanços do príncipe Cradoc como do próprio Diabo. Graças a uma qualquer perversa partilha do coração em dois, Cadfael podia lastimar igualmente ambos, ela e o desesperado amante, cuja carne fora tão rudemente derretida e cujo espírito fora presumivelmente exterminado. Será que alguém, alguma vez, orara por ele? Estava em maior necessidade que Winifred. Afinal de contas, talvez as únicas orações de que tivesse beneficiado tivessem sido as preces de Winifred. Ela fora galesa e capaz de desinteresse e subtileza. Havia bem a possibilidade de ter ela feito uns pedidos por ele, para que reagrupasse a sua pessoa liquefeita e a coagulasse novamente, com a figura de um homem. Um homem purificado, sem dúvida, mas com a mesma forma de antes. Até uma santa pode sentir um certo prazer, em retrospectiva, por um dia ter sido desejada.
No solo negro e friável, a pá arranhou algo, algo que não era nem greda nem pedra. Imediatamente, perante a sua sugestão de idade, fragilidade e desmoronada secura, Cadfael interrompeu o golpe. Pousou a pá e inclinou-se para, com as mãos, retirar aquela terra fresca, perfumada e macia, que lhe tapava a vista do obstáculo. Sob os seus dedos, o negro solo pôs a descoberto uma coisa delicada, pálida e delgada, com a cor cinzento-suave da pré-madrugada, mas salpicada de pontos pretos. Retirou um osso do braço, escassamente maior que o tamanho do de uma criança, e limpou-o da terra que tinha agarrada. Em baixo viam-se ilhas do mesmo colorido, agrupadas livremente. Não queria partir nenhum deles. Empunhou a pá e atirou-a para fora do buraco.
- Está aqui! Encontrámo-la! Calma, agora; deixem-na comigo.
De cima, espreitavam faces. O Prior Robert refulgia numa agitação prateada e ansiava por mergulhar e trazer pessoalmente o prémio, mas foi travado pela escuridão pegajosa do solo e pela brancura das suas mãos. Na orla, o Irmão Columbanus erguia-se como uma torre e resplandecia, com o exaltado rosto voltado não para as profundidades onde a frágil substância virgem jazia em repouso, mas sim para os Céus, donde a sua difusa essência espiritual se lhe dirigira. Exibia, sem a mínima dúvida, uma aura de nítida propriedade que abafava tanto o prior como o subprior e que brilhava com todo o fulgor para aqueles que observavam à distância. O Irmão Columbanus pretendia ser, era e sabia que o era, memorável nesta hora memorável.
O Irmão Cadfael ajoelhou. Pode até ter sido um significativo augúrio o facto de, naquele momento, só ele estar ajoelhado. Calculava estar aos pés do esqueleto. Permanecera ali durante séculos, mas a terra tratara-o com gentileza e podia bem estar ainda completo, ou praticamente completo. Não quisera nada que a perturbassem, mas, já agora, queria que fosse perturbada o menos possível e trabalhou cuidadosamente com as palmas em concha e as pontas dos dedos para pôr à vista toda a estreita extensão sem lhe causar danos. Ela devia ter sido de altura um pouco acima da média, mas delgada como uma rapariga de dezassete anos. Com carinho afastou a terra que estava em redor. Encontrou o crânio e inclinou-se com os braços estendidos e, com os dedos, limpou os buracos dos olhos, maravilhando-se com a estreita elegância dos ossos da face e a generosidade da abóbada. Tinha beleza e requinte na morte. Inclinou-se sobre ela como um escudo protector e chorou.
- Façam descer um lençol de linho - disse - e umas faixas para a podermos erguer suavemente. Ela não vai sair daqui osso a osso, mas uma mulher completa como para cá entrou.
Entregaram-lhe um lençol, que estendeu junto ao leve esqueleto, e, com infinito cuidado, levantou-a da terra solta e, centímetro a centímetro, pô-la sobre a mortalha de linho, colocando o osso solto do braço no lugar que lhe competia. Foi içada para a luz do dia com faixas de pano passadas por baixo dela e foi carinhosamente pousada na erva, junto à campa.
- Temos de lavar as manchas de terra desses ossos - disse o Prior Robert, olhando com reverente temor para o prémio por que tanto lutara - e envolvê-los de novo.
- Estão secos, frágeis e quebradiços - avisou Cadfael com impaciência. - Se lhe roubarem esta terra galesa, pode bem desfazer-se ela própria em terra galesa, sob as vossas mãos. E, se a mantiver demasiado tempo aqui ao ar e ao sol, pode, de qualquer modo, desfazer-se em pó. Se quer agir sabiamente, padre prior, embrulhe-a bem, tal como está, meta-a no relicário e feche-o o mais hermeticamente possível e tão depressa quanto possível.
Aquilo fazia sentido e o prior agiu de acordo com as instruções, apesar de não lhe agradar muito ouvir dizer assim tão bruscamente o que devia fazer. Com preces apressadas mas exultantes, trouxeram a resplandecente urna para a senhora, para evitar movê-la mais do que o necessário e, com repetidas envoltas de linho, ligaram-lhe cuidadosamente os pequenos ossos e colocaram-na no caixão. Os irmãos que o tinham feito tinham compreendido a necessidade de o fechar perfeitamente para preservar o tesouro e tinham tido o máximo cuidado para que a tampa aderisse como pele, tendo forrado o interior com chumbo. Antes de Santa Winifred ser levada de volta para a capela, para a missa de agradecimento, a tampa foi fechada, os fechos apertados e, no final do serviço, juntaram-lhe os selos do prior para dar segurança. Tinham-na presa para a levar para a terra estranha que a queria como patrona. Todos os galeses que puderam amontoar-se na capela ou suficientemente perto da entrada para ver uns relances do que se passava mantinham um silêncio estranhamente absoluto, os olhos seguiam todos os gestos, olhos secretos que não exprimiam ressentimentos mas que, com essa atenção fixa e contínua, implicavam uma irreconciliável oposição da qual tinham medo de falar em voz alta.
- Agora, que este sagrado dever está cumprido - disse o Padre Huw, simultaneamente aliviado e entristecido -, é altura de darmos atenção a outro dever de que a própria santa nos incumbiu e enterrarmos Rhisiart de modo honorável, com absolvição total, na campa que ela lhe legou. E quero lembrar, na presença de todos, que grande bênção lhe foi assim concedida, e que grande honra! Era o mais longe que tinha a coragem de ir para exprimir a sua própria opinião sobre Rhisiart e nisto, pelo menos, tinha a simpatia de todos os galeses ali presentes.
O serviço fúnebre foi breve e, depois dele, seis dos mais antigos e fiéis servos de Rhisiart pegaram no ataúde de ramos, um pouco murchos mas ainda verdes, e levaram-no para junto da campa. As mesmas faixas que tinha trazido Santa Winifred para cima esperavam para fazer baixar Rhisiart para o mesmo leito.
Sioned permanecia junto de seu tio e olhou em redor para o círculo de amigos e vizinhos e retirou a cruz de prata que trazia ao pescoço. Colocara-se de modo a que Cadwallon e Peredur estivessem do seu lado direito, e voltar-se para eles foi uma coisa simples e natural. Todo o tempo, Peredur ficara um pouco para trás, nunca olhando para ela senão quando tinha a certeza de que estava a olhar para outro lado, mas, quando ela de súbito se voltou para ele, não teve maneira de a evitar.
- Quero dar a meu pai uma última dádiva. E gostaria que tu, Peredur, fosses a pessoa que lha entregasse. Foste para ele como um filho. Põe-lhe, por favor, esta cruz sobre o peito, no sítio onde a seta do criminoso o atravessou. Quero que seja enterrada com ele. É a minha despedida; que seja a tua também.
Peredur permaneceu emudecido e desorientado, fixando o rosto imóvel e desafiante e depois a pequena cruz que ela lhe estendia em frente de tantas testemunhas. Todos o conheciam e ele conhecia a todos. Ela falara claramente para ser ouvida por todos. Todos os olhares estavam postos nele e todos notaram, embora sem compreenderem, o lento desaparecer do sangue do seu rosto, o seu olhar cheio de pavor: Não podia recusar o que lhe pedia. Não podia fazê-lo sem tocar no morto, tocar exactamente no ponto onde a morte o atingira.
A sua mão estendeu-se com dolorosa relutância e tomou a cruz da mão dela. Deixá-la assim de mão estendida em vão era mais do que ele podia suportar. Não olhou para a cruz mas apenas para ela e de modo desesperado, e na face dela a calma empalidecera em incrédulo espanto, pois julgava agora perceber tudo, e era pior do que jamais pudera imaginar. Mas, do mesmo modo que ele não podia fugir à ratoeira que lhe estendera, também ela o não podia libertar. Estava accionada e ele tinha de lutar para se libertar o melhor que pudesse. Já todos se interrogavam porque não se movia ele e cochichavam entre si, preocupados com semelhante hesitação.
Fez um grande esforço, reunindo todas as suas forças numa prontidão frenética que só durou um momento. Deu alguns passos irresolutos em direcção ao ataúde e à campa, mas estacou como um cavalo assustado e parou de novo, e isso foi pior, porque agora estava sozinho no centro do círculo de testemunhas e não conseguia andar nem para a frente nem para trás. Cadfael viu o suor brotar-lhe em grandes gotas na testa e nos lábios.
- Vem, filho - disse gentilmente o Padre Huw, o último a suspeitar de qualquer mal -, não faças esperar o morto e não o lastimes de mais, porque isso seria pecado. Eu sei que, como disse Sioned, ele era para ti como um segundo pai e que partilhas a sua dor. O mesmo se passa com todos nós.
Ao ouvir o nome de Sioned e a palavra ”pai”, Peredur começou a tremer e tentou avançar, mas não conseguiu mover-se. Os pés recusavam-se a levá-lo um único passo para mais perto da forma amortalhada que jazia junto à campa aberta. A luz do Sol sobre si e o peso de todos os olhares empurravam-no para baixo. Subitamente caiu de joelhos, com a cruz ainda apertada numa das mãos e a outra aberta a esconder-lhe a face.
- Ele não pode...! - gritou, numa voz rouca, por trás da mão protectora. - Ele não pode acusar-me! Não sou culpado de assassínio! O que fiz foi feito depois de Rhisiart já estar morto!
Um grande suspiro de espanto passou como um vento súbito por toda a clareira e por sobre a campa e morreu num silêncio profundo. Passou um longo minuto antes de o Padre Huw o quebrar, porque este rapaz pertencia ao seu rebanho, não ao do prior Robert; era uma rês do seu rebanho e por isso um filho da graça, agora num ataque de selvagem auto-acusação de um qualquer terrível crime ainda não explicado, mas relacionado com morte violenta.
- Filho Peredur - disse o Padre Huw, com firmeza -, não foste acusado de nada por ninguém, a não ser por ti próprio. Estamos apenas à espera que faças o que Sioned te pediu, porque o facto de to ter pedido foi uma honra. Por isso, faz o que te pede ou explica porque o não fazes, mas fala claramente.
Peredur ouviu e deixou de tremer. Durante um momento permaneceu de joelhos e retomou a sua compostura, envolvendo-se nela como numa capa. Depois destapou o rosto, que estava pálido e cheio de desespero mas mais em paz, não mais em luta com a verdade, mas cedendo a esta. Era um jovem de coragem. Pôs-se em pé e encarou-os de frente.
- Padre, é com esforço que faço esta confissão e pouco feliz, porque tenho vergonha daquilo que devo confessar. Mas não é um assassínio. Eu não matei Rhisiart. Encontrei-o morto.
- A que horas? - perguntou o Irmão Cadfael, sem qualquer direito, mas ninguém pôs em causa a interrupção.
- Saí depois de parar a chuva. Lembram-se de que choveu. Lembravam. E com boas razões. - Devia passar um pouco do meio-dia. Ia para as nossas pastagens junto de Bryn e encontrei-o deitado de borco naquele lugar onde depois todos o viram. Já estava morto, juro! E fiquei muito penalizado, mas também tentado, pois, embora nada houvesse neste mundo que eu pudesse fazer por Rhisiart, vi uma maneira... - Peredur engoliu em seco e suspirou para ganhar força contra o destino e continuou. - Vi um meio para me livrar de um rival. Do rival favorecido. Rhisiart recusara a sua filha a Engelard, mas Sioned não se recusara, e eu bem sabia que, por mais que o pai insistisse, não havia qualquer esperança para mim enquanto existisse Engelard entre nós. As pessoas poderiam facilmente acreditar que Engelard matara Rhisiart se... se houvesse qualquer prova...
- Mas você não acreditava nisso - disse Cadfael, tão suavemente que mal notaram a interrupção, que foi aceite e respondida quase sem pensar.
- Não! - disse Peredur, quase com desprezo. - Eu conheço-o; nunca faria tal coisa!
- E, contudo, pretendia fazê-lo ser apanhado e acusado. A si não lhe importava que fosse a morte que o afastasse do seu caminho; por isso o afastou.
- Não! - disse de novo Peredur, em fogo, mas sabendo que estava a ser castigado com justiça. - Não, isso não! Pensava que ele fugiria, que partiria de volta para a Inglaterra e nos deixaria sós, a Sioned e a mim. Nunca lhe desejei nada pior que isso. Pensei que, uma vez longe, Sioned acabaria por fazer aquilo que o pai desejara e casaria comigo. Eu podia esperar! Teria esperado anos... Ele não o disse, mas havia ali pelo menos duas pessoas que sabiam, e o recordavam em seu favor, que fora ele quem conseguira abrir caminho para que Engelard pudesse fugir do círculo que o rodeava e quem o deixara deliberadamente passar, tal como depois o Irmão John, com melhor consciência, fizera gorar a perseguição.
O Irmão Cadfael prosseguiu, severo:
- Mas chegou ao ponto de roubar uma das flechas desse infeliz para se assegurar de que todos os olhos se voltariam para ele.
- Não a roubei, embora isso não venha diminuir o meu descrédito por tê-la usado como usei. Menos de uma semana antes desse dia, andara à caça com Engelard, com licença de Rhisiart. Quando recuperámos as nossas flechas, por engano levei uma das dele junto com as minhas. Tinha-a comigo naquela altura.
Os ombros de Peredur tinham-se endireitado, a cabeça erguera-se, as mãos, com a direita segurando ainda a cruz de Sioned, pendiam calma e resignadamente junto ao corpo. A face estava pálida, mas calma. Depois de tudo o que sofrera sozinho naqueles últimos dias, a confissão e a penitência eram um bálsamo, e pusera o pior para fora da alma.
- Deixem-me contar toda a história, tudo o que fiz e que desde aí me fez parecer um monstro aos meus próprios olhos. Não tentarei minimizar nada, e foi uma coisa horrenda. Rhisiart fora apunhalado pelas costas e a adaga fora retirada e desaparecera. Virei-o de costas e, confesso, as minhas mãos agora ardem de vergonha, mas fi-lo. Ele estava morto e nada sentiu. Foi a minha carne que trespassei, não a dele. Podia ver a direcção do ferimento, porque o punhal atravessara-o lado a lado, embora o ferimento do peito fosse pequeno. Peguei no meu próprio punhal e abri caminho para que a flecha de Engelard pudesse entrar; enterrei-a por essa abertura e deixei-a metida nele para que servisse de prova. E nunca mais tive um momento de paz, nem de dia nem de noite - disse Peredur, não a pedir piedade, antes grato porque o seu silêncio fora agora quebrado e a sua infâmia conhecida e porque nada mais tinha a esquecer -, desde que cometi esse acto tão vil e mesquinho, mas agora estou contente por ter contado tudo, independentemente do que me possa vir a acontecer. E, pelo menos, reconheçam que não armei a minha ratoeira de modo tal que viesse a acusar Engelard de matar um homem pelas costas! Conhecia-o! Desde que para cá veio, fugido, que vivemos lado a lado; éramos da mesma idade e bons parceiros. Gostei dele, cacei com ele, lutei com ele, tive ciúmes dele, até o odiei, porque era amado enquanto eu não o era. O amor leva os homens a fazer coisas terríveis - disse Peredur, não para implorar clemência, mas assombrado -, até com os seus amigos.
De modo completamente inconsciente, criara em toda a volta um tremendo murmúrio de temor perante a sua blasfémia, de espantada piedade pela sua desolação, de dorido espanto perante as falsas interpretações de todos eles. A verdade caiu como um trovão, subjugando-os a todos. Rhisiart não fora atingido por uma flecha; fora, sim, atacado pelas costas e à queima-roupa por alguém que se encontrava emboscado - um assassínio de cobarde. Homens, e não santos, é que usam tal espécie de traição.
O Padre Huw quebrou o silêncio. No seu próprio campo de acção, onde nenhum dignitário estrangeiro se atreveria a intervir, ganhou mais altura e segurança na sua autoridade suave e amigável. Fora cometida uma grande violência, o pecador teria de pagar um grande preço, mas precisava também de grande compaixão.
- Filho Peredur - disse -, estás em grande pecado e não podes ser desculpado. Uma tal violação da imagem de Deus, o uso tão deturpado de uma sã afeição que tinhas por Rhisiart e tanta malícia contra um homem inocente, pois tu mesmo proclamaste que Engelard o era, não podem ficar sem castigo.
- Deus não permita - disse Peredur, humildemente - que eu escape a nada do que me é devido. Eu quero esse castigo! Nunca poderia continuar a viver comigo próprio se só tivesse este ”eu” de agora para viver comigo!
- Filho, se és sincero, põe-te nas minhas mãos para que sejas entregue tanto à justiça secular como à divina. No que respeita à lei, falarei com o meirinho do príncipe. Quanto à penitência que te é devida perante Deus, diz-me respeito a mim, como teu confessor, e exijo que aguardes o julgamento que eu considere adequado.
- Assim farei, padre - disse Peredur. - Não quero um perdão que não tenha ganhado. Cumprirei a penitência de boa vontade.
- Então, não desesperes quanto à graça. Agora, vai para casa e fica dentro de portas até que te mande chamar.
- Ser-lhe-ei obediente em tudo. Mas tenho ainda um pedido a fazer antes de ir. - Voltou-se lentamente e encarou Sioned. Continuava de pé, muito quieta, no ponto onde aquele pesadelo a atingira, as mãos engalfinhadas nas faces, os olhos fixos, cheios de fascinação e dor, no rapaz que crescera como seu companheiro de brinquedos. Mas a rigidez abandonou-a, porque, apesar de ele próprio se considerar um monstro, afinal de contas não era o monstro que ela, por uns momentos, acreditara que fosse. Posso agora fazer o que me pediste? Já não tenho medo. Ele sempre foi um homem justo. Não me acusará mais do que me é devido.
Estava simultaneamente a pedir-lhe o seu perdão e a despedir-se de toda a esperança de a ganhar que alguma vez tivesse albergado, pois isso morrera irrevogavelmente. E o mais que agora, mesmo depois de tal ofensa, podia aproximar sem qualquer constrangimento, quase que sem ciúme. Nem a face dela exprimiu qualquer grande ira ou amargura contra ele. Estava pensativa e intensa.
- Sim - disse -, ainda o desejo. - Se ele contara toda a verdade, e estava persuadida de que o fizeram, era bom que pudesse apresentar o seu apelo a Rhisiart, de um modo que seria reconhecido por todos os que ali estavam. Numa justiça do Além, o corpo iria ilibá-lo de um mal que não cometera, agora que confessara o que realmente fizera.
Peredur avançou com firmeza, deixou-se cair de joelhos junto ao corpo de Rhisiart e pousou primeiro a mão e depois a cruz de Sioned sobre o coração que trespassara; e, quando lhe tocou, não jorrou nenhuma golfada de sangue. E, se se podia ter a certeza de alguma coisa, era de que estava ali um homem que acreditava. Ainda ajoelhado, hesitou um momento e, sentindo a necessidade mais de agradecer esta aceitação do que de fazer qualquer exibição de afecto tardia e despropositada, inclinou-se e beijou a mão direita que estava calmamente pousada sobre o lado esquerdo do peito de Rhisiart, notando-se-lhe a forma através da apertada mortalha. Isso feito, levantou-se e afastou-se com firmeza pelo carreiro que descia a colina até à casa de seu pai. As pessoas apartaram-se em grande silêncio para o deixar passar e Cadwallon, saindo de uma crise de um sofrimento incrível, deu apressadamente um salto em frente e seguiu atrás de seu filho.
A noite aproximava-se quando acabaram de enterrar Rhisiart e era demasiado tarde para que o Prior Robert e seus companheiros pegassem no prémio e seguissem logo para casa, mesmo que parecesse uma boa ideia depois de tudo o que acontecera. Deviam uma qualquer cerimónia à comunidade que a santa abandonava e às casas que tão abertamente tinham oferecido hospitalidade até àqueles que os vinham roubar.
- Ficaremos ainda esta noite e cantaremos convosco na igreja o serviço de vésperas e o último serviço e apresentaremos os devidos agradecimentos - disse o Prior Robert. - E depois do último serviço, um de nós ficará novamente de vigília toda a noite com Santa Winifred, como é próprio. E, se o meirinho do príncipe exigir que permaneçamos mais tempo, faremos como pedir. Pois há ainda o problema do Irmão John, que, para nossa vergonha, desafiou a lei.
- Para já - disse o Padre Huw, desdenhoso -, o meirinho dedica a sua atenção ao caso do assassínio de Rhisiart. Porque, embora tenhamos tido muitas revelações em relação ao assunto, vejo que nada nos aproximámos no sentido de saber quem é o culpado. O que hoje vimos foi um homem que de certeza está inocente deste crime, independentemente de outros crimes que possa ter cometido.
- Temo - disse o Prior Robert, com inabitual humildade que, sem intenção, fôssemos a causa de grande dor e problemas, o que lastimo. E lastimo profundamente os pais daquele rapaz pecador, os quais, suponho, sofrem muito mais do que ele, embora não tenham qualquer culpa.
- Vou agora a casa deles - disse Huw. - Importa-se de ir andando, padre prior, e cantar as vésperas em meu lugar? Pois talvez me atrase um pouco. Tenho de fazer tudo o que estiver ao meu alcance por aquela família sofredora.
A gente de Gwytherin começara a afastar-se por diversos caminhos, desaparecendo nos bosques para ir espalhar a notícia dos acontecimentos do dia até aos mais longínquos recantos da paróquia. Na alta erva do cemitério, agora pisada por muitos pés, a forma escura e tosca da campa de Rhisiart formava como que uma cicatriz, e dois dos seus homens enchiam-na de terra. Estava acabado. Sioned seguiu em direcção ao portão, seguida pelo resto da sua gente.
Quando a submissa e desordenada procissão se pôs a caminho para voltar à aldeia, Cadfael pôs-se ao lado de Sioned.
- Bom - disse, com resignação -, valeu a pena tentar. E não podemos dizer que nada nos trouxe. Agora, pelo menos, sabemos quem cometeu o crime menor, mesmo que estejamos pouco mais próximos da descoberta de quem cometeu o maior. E sabemos que foram dois, e não fazia nenhum sentido que fosse apenas um, e o mesmo. E, de qualquer modo, tirámos aquele rapaz do inferno. Está muito revoltada com o que ele fez? Como ele próprio está?
- Estranho - disse Sioned -, creio que não estou. Fiquei demasiado doente, de horror, durante o curto espaço de tempo em que pensei ser ele o criminoso. Depois disso, o facto de saber que não o era foi puro alívio. Nunca deixou de ter o que queria, sabe, até que me quis a mim...
- Era um querer real - disse o Irmão Cadfael, relembrando velhas fomes de há muito, do seu próprio passado. - Duvido de que ele consiga alguma vez esquecer completamente, embora tenha a certeza de que fará um bom casamento e terá belos filhos, parecidos com ele, e será razoavelmente feliz. Ele hoje tornou-se adulto e ela, seja ela quem for, não ficará desapontada. Mas nunca será Sioned.
O rosto dela, cansado, angustiado e desencorajado, suavizou-se e ganhou calor, e, de súbito, viu-a a sorrir a seu lado de um modo ténue mas reconfortante.
- O senhor é um bom homem. Tem jeito para reconciliar as pessoas. Mas não é preciso! Pensa que não vi como ele se arrastou penosamente para a cerimónia desta tarde e como partiu de cabeça erguida para receber o castigo de braços abertos? Talvez, realmente, o pudesse ter amado um pouco se não tivesse existido Engelard. Mas só um pouco! Ele pode ter melhor que isso.
- Você é uma boa rapariga - disse o Irmão Cadfael, do fundo do coração. - Se a tivesse encontrado tendo eu menos trinta anos, teria feito Engelard suar muito para a conseguir. Peredur devia dar graças até por tê-la como irmã. Mas não estamos nem um pouco mais próximos de descobrir o que queremos saber.
- E teremos mais setas para perder? - perguntou ela, pesarosa.
- Mais armadilhas para armar? Pelo menos conseguimos libertar a pobre alma que apanhámos na última destas.
Ele permaneceu silencioso, a pensar sombriamente.
- É amanhã - disse ela, com tristeza - o Prior Robert vai pegar na sua santa e em todos os seus irmãos, com o senhor incluído, e pôr-se a caminho de casa, e ficarei sem ter ninguém para quem me virar. O Padre Huw, no seu modo pequeno e confuso, é quase tão santo como o foi Santa Winifred, mas não me é de nenhuma utilidade. E o tio Meurice é uma doce criatura que sabe como dirigir uma propriedade senhorial, mas não sabe mais nada de nada e não quer aborrecimentos ou esforços. E, como sabe, Engelard tem de continuar escondido. A teia que Peredur lhe preparou, perdeu o interesse como todos sabemos. Mas será que isso prova que não tenha matado o meu pai depois de qualquer violenta discussão?
- Pelas costas? - disse Cadfael, com uma indignação sem disfarces.
Ela sorriu.
- Isso só prova que o conhece! Mas nem toda a gente está na mesma situação. Neste mesmo momento, alguns devem estar a dizer, talvez, afinal de contas... que Peredur, sem mesmo o saber, talvez tenha tido razão.
Pensou no assunto e ficou descoroçoado, porque estava fora de dúvidas que ela tinha razão. Na verdade, que é que podia provar o facto de outro homem ter querido sobrecarregá-lo com a culpa? Certamente que não provava que a culpa não fosse sua. O Irmão Cadfael encarou a responsabilidade que assumira voluntariamente e reuniu as forças para a enfrentar.
- Temos ainda o caso do Irmão John para considerar - disse Sioned. Podia bem ter acontecido que Annest, que caminhava um pouco atrás, a tivesse incitado.
- Não esqueci o Irmão John - concordou Cadfael.
- Mas penso que o meirinho pode bem tê-lo feito. Ele fecharia os olhos ou olharia para o outro lado se o Irmão John partisse para Shrewsbury convosco. Já cá tem problemas suficientes. Para que quererá mais um, e que não lhe diz respeito?
- E, se lhe parecesse que o Irmão John partira para Shrewsbury, ficaria satisfeito? E não faria perguntas a respeito de mais um estrangeiro tomado sob a protecção de alguém de cá?
- Sempre soube que o senhor era rápido a perceber as coisas disse Sioned, morena, brilhante e mimada, quase ela própria de novo. - Mas o Prior Robert não o iria perseguir, se ouvisse que já não estava sob custódia? Não o imagino um homem muito capaz de perdão.
- Não, não é, mas como trataria do caso? A Ordem dos Beneditinos não tem qualquer domínio em Gales. Não; penso que deixaria correr o assunto, agora que já tem aquilo que queria. Estou mais preocupado com Engelard. Dê-me mais esta noite, filha, e faça isto por mim! Mande a sua gente para casa e fique com Annest no celeiro de Bened; e, se Deus me ajudar com qualquer nova ideia (e nunca se esqueça de que, com este grande crime, Deus foi muito mais ofendido que você ou eu!), irei lá ter convosco.
- Assim faremos - disse Sioned. - E certamente que virá. Tinham-se atrasado para deixar que o cortejo seguisse bem à frente, para poderem falar livremente. Aproximavam-se da casa do guarda da propriedade de Cadwallon, e o Prior Robert e os colegas iam longe, à frente, e já tinham ultrapassado o portão, na intenção de cantar as vésperas na hora certa. O Padre Huw, surgindo apressado e agitado à procura de ajuda, pareceu mais aliviado que aborrecido ao ver que só Cadfael estava por perto. A presença de Sioned obrigou-o a andar com passadas decorosas e a tomar um tom comedido, mas não conseguiu diminuir o efeito do seu cabelo em pé e do seu ar alterado.
- Irmão Cadfael, poderá dispensar uns minutos a esta família em aflição? O senhor tem conhecimentos sobre remédios, talvez possa aconselhar...
- A mãe dele! - murmurou Sioned, para imediatamente o tranquilizar. - Sempre tem profundos ataques de choro quando algo lhe desagrada. Já sabia que isto a havia de perturbar. Pobre Peredur, já está a receber a sua penitência! Devo ir também?
- É melhor não - disse Cadfael, docemente, e afastou-se para ir ter com o Padre Huw. Afinal de contas, Sioned era causa inocente de Peredur ter caído em desgraça e provavelmente seria a última pessoa de quem se podia esperar que acalmasse a mãe. E Sioned assim o percebeu e continuou o caminho, deixando-lhe o assunto nas mãos, e de modo tão calmo que era evidente que não esperava qualquer resultado trágico do presente drama. Toda a sua vida conhecera a mulher de Cadwallon e, sem dúvida, aprendera a tratar os seus altos e baixos com a mesma filosofia com que Cadfael encarava os êxtases e excessos do Irmão Columbanus. Também esse nunca se magoava realmente durante os seus ataques!
- A Sr.a Branwen está num tal estado - disse o Padre Huw, agitado, dirigindo apressadamente Cadfael em direcção à porta aberta, do solar. - Temo pelo seu juízo. Já antes a vi perturbada e bastante difícil de acalmar, mas desta vez o filho único e um tão grande choque... Na verdade, pode até magoar-se se a não conseguirmos aquietar.
De facto, ouviram a Sr.a Branwen mesmo antes de entrarem na pequena sala onde marido e filho tentavam acalmá-la de uma onda de tremendos choros e lamentações que quase os ensurdecia. A senhora, gorda, loura e exteriormente apenas construída para uma placidez calma e vazia, estava meio sentada e meio reclinada num canapé; contorcionava o substancial corpo num extravagante desespero, ora tapando o estúpido e querido rosto, ora estendendo os braços em amplos gestos de desolação e angústia, mas não deixando, nem por um momento, de gritar em voz alta a sua dor e vergonha. As lágrimas que corriam livremente pelas redondas bochechas e os soluços abrasadores que a torturavam não pareciam impedir a torrente de palavras que dela jorrava como pesado aguaceiro.
Cadwallon, de um lado, e Peredur, do outro, afagavam, amimavam, confortavam, mas em vão. Mal o pai tentava afirmar-se, virava-se contra ele com censuras selvagens, gritando que ele não tinha qualquer confiança no seu próprio filho, ou nunca poderia ter acreditado coisa tão terrível da parte dele, que o rapaz estava enfeitiçado, sob um qualquer bruxedo que o obrigava a falsas confissões, que devia tê-lo defendido na frente desta gente e evitado que a história tivesse sido aceite com tanta facilidade, pois havia ali bruxaria certamente.
Mal Peredur tentava convencê-la de que contara a verdade, que estava pronto a pagar e que ela devia aceitar a sua palavra, virava-se para ele com novas vagas de lágrimas, gritando que o seu próprio filho fizera cair a terrível desgraça sobre si e sobre ela, que se espantava de ele ousar aproximar-se dela, que nunca mais poderia levantar a cabeça, que ele era um monstro...
Quanto ao pobre Padre Huw, quando tentava afirmar a sua autoridade espiritual e lhe ordenava que se submetesse à força da verdade e aceitasse o acto do filho com humildade, como fizera o próprio Peredur ao apresentar completa confissão e oferecendo completa submissão, gritou que toda a sua vida fora temente a Deus e cumpridora da sua lei, que tudo fizera para educar o filho no mesmo caminho e que agora não podia aceitar que a culpa dele recaísse sobre si.
- Mãe - disse Peredur, desfigurado e a suar ainda mais do que quando enfrentara o corpo de Rhisiart -, ninguém te censura e ninguém o fará. O que fiz foi feito por mim e sou eu quem tem de sofrer as consequências, e não tu. Não há uma única mulher em Gwytherin que não tenha pena de ti.
Ao ouvir isto, lançou um profundo gemido de dor e lançou-lhe os braços em redor e jurou que ele não teria de sofrer qualquer dura penalidade, que era o seu único filho e que ela o protegeria. E, quando, com uma paciência que esmorecia, ele se libertou dos seus braços, gritou que ele queria matá-la, que era um desgraçado sem sentimentos, e desatou num estrépito de gargalhadas soluçantes que rebentavam os ouvidos.
O Irmão Cadfael agarrou Peredur firmemente pela manga e empurrou-o para o fundo da sala.
- Mostra um pouco de raciocínio, rapaz, e sai-lhe da vista, pois és combustível para o fogo que a consome. Se ninguém lhe desse atenção, há muito que teria parado, mas, agora que chegou a este estado, já não está capaz de o fazer sozinha. Sabes se os nossos dois irmãos pararam aqui, ou seguiram com o prior?
Peredur estava a tremer e rebentado de cansaço, mas correspondeu de um modo auspicioso a este tratamento natural.
- Não estiveram cá, porque eu tê-los-ia visto. Devem ter seguido para a igreja.
Naturalmente que quer Columbanus quer Jerome nem sonhavam em estar ausentes das vésperas em dia tão importante.
- Não importa, tu mesmo podes mostrar-me onde se alojam. Columbanus trouxe consigo um pouco do meu xarope de papoilas, para o caso de necessitar, e o frasco deve estar na sua sacola, pois dificilmente o traria com ele. E, tanto quanto sei, não teve ocasião de o usar, porque os seus fanicos aqui em Gales têm sido de um género mais calmo. Poderemos agora dar-lhe utilidade.
- Para que serve? - perguntou Peredur, de olhos arregalados.
- Acalma as paixões e tira a dor, tanto do corpo como do espírito.
- Também a mim me fazia jeito um pouco disso - disse Peredur, com um sorriso amargo, e conduziu-o até uma das pequenas divisões do lado de dentro da paliçada. Aos hóspedes de Shrewsbury tinham sido dadas as melhores acomodações que a casa podia proporcionar, com dois leitos baixos, uma pequena arca e uma lamparina com pavio de junco para os iluminar. As suas poucas possessões quase não ocupavam espaço, mas cada um tinha uma sacola de couro para as guardar, e ambas pendiam de um prego espetado na madeira da parede. O Irmão Cadfael abriu primeiro uma e depois a outra e na segunda encontrou o que procurava.
Retirou-o e ergueu-o contra a luz, um pequeno frasco de vidro esverdeado. Mesmo antes de ver o nível do líquido, o seu pouco peso fizera-o estacar e espantar-se. Em vez de estar cheia até à rolha com o denso e adocicado xarope, a garrafa estava três quartos vazia.
O Irmão Cadfael ficou imóvel por um momento, com o frasco na mão e mirando-o em silêncio. É certo que Columbanus podia, numa altura qualquer, ter sentido necessidade de se precaver contra qualquer ameaça de distúrbio espiritual, mas Cadfael não se lembrava de lhe ter ouvido nada a esse respeito ou de nele ter observado qualquer sinal daquela calma rósea e confortante, provocada pelas papoilas. O que faltava na garrafa era suficiente para restaurar três vezes a serenidade, suficiente para pôr uma pessoa a dormir durante horas. E agora, que pensava no caso, houvera pelo menos uma ocasião em que uma pessoa realmente dormira várias horas seguidas, durante o dia, em vez de manter a vigília que lhe fora ordenada. No dia da morte de Rhisiart, Columbanus falhara no seu dever e confessara-o com sentida penitência. Columbanus, que tinha o xarope na sua posse e sabia como usá-lo...
- Que devemos fazer? - perguntou Peredur, pouco à vontade com o silêncio. - Se tiver gosto desagradável, terá dificuldade em fazê-la beber isso.
- É doce. - Mas já não havia muito e podia ser necessário um pequeno reforço de algo calmante e agradável. - Vá buscar uma taça de vinho forte e veremos como correm as coisas.
Naquele dia, quando os dois se tinham posto a caminho da capela, tinham levado uma medida de vinho consigo, recordou, a ração para os dois. Columbanus servira o vinho e carregava-o. E uma garrafa de água para si, pois fizera um acto de devoção e renunciara ao vinho até que a missão estivesse cumprida. Jerome andara com sorte, pois conseguira ração dupla.
O Irmão Cadfael obrigou-se a abandonar aqueles pensamentos selvagens para tratar das necessidades mais imediatas. Peredur apressou-se a cumprir o que lhe mandara, mas trouxe hidromel em vez de vinho.
- É mais fácil que o beba sem se lembrar de ser obstinada, pois prefere-o. E é mais forte.
- Óptimo! - disse Cadfael. - Disfarça melhor o xarope. E agora vai para um lugar sossegado e endurece o coração, tapa os ouvidos e afasta-te da vista dela, porque é o melhor que podes fazer para a ajudar e, Deus bem sabe, o melhor que podes fazer por ti próprio, depois de um dia como o de hoje. E deixa de sofrer tanto com os teus pecados, por mais negros que sejam, pois não há um confessor na Terra que não tenha ouvido pior e sem mexer um cabelo. Ter uma tal certeza de que ultrapassaste todas as possibilidades de redenção é uma espécie de arrogância.
A bebida doce e enjoativa dançou na taça e o xarope espalhou-se nela em espiral, misturando-se lentamente e desaparecendo. Peredur observou de olhos sombrios e quedou silencioso.
Passado um momento disse muito baixinho:
- É estranho! Eu nunca poderia agir tão indecentemente com alguém a quem odiasse.
-Não é nada estranho - disse Cadfael, bruscamente, mexendo a poção. - Quando acossados, vamos até onde ousamos, e com aqueles de quem estamos certos ousamos ir até muito longe, sabendo que o perdão está assegurado.
Peredur mordeu o lábio ao máximo.
- E estará certo?
- Tão certo como a luz do dia de amanhã, filho! E agora sai do meu caminho e deixa de fazer perguntas tolas. O Padre Huw não terá hoje tempo para falar contigo; há coisas mais importantes à espera.
Peredur foi-se embora como uma criança obediente, espantado e reconfortado, e, onde quer que se tenha escondido, fê-lo a sério, pois Cadfael não o tornou a ver nessa tarde. No fundo era bom rapaz, e este seu selvagem mergulho na inveja e mesquinhez
pusera-o de frente com uma imagem de si próprio de que não gostara nada. As orações que Huw lhe estipulasse como penitência certamente atingiriam os Céus, com o irresistível fervor dos trovões, e qualquer trabalho que lhe mandassem fazer, por mais duro que fosse, certamente ficaria sólido como o carvalho e duraria para sempre.
Cadfael pegou na poção e foi até ao sítio onde a Sr.a Branwen continuava a resfolegar e a estremecer com incontroláveis soluços, estando agora em genuíno desespero, exausta de tantos esforços mas incapaz de os fazer parar. Cadfael aproveitou o seu absoluto esgotamento para lhe apresentar a taça logo que chegou a seu lado, com uma autoridade abrupta que agiu sobre ela antes de poder reunir coragem para ser obstinada.
- Beba isto! - E automaticamente bebeu, ingerindo metade por pura surpresa e a segunda metade porque a primeira lhe mostrara como a sua garganta estava seca e dorida devido a tantos esforços e como era macia e doce ao paladar aquela mistura. O próprio acto de a engolir quebrou o ritmo assustador dos profundos suspiros que a convulsionavam de modo quase que ainda pior que os suspiros. O Padre Huw teve tempo para limpar a testa com uma prega da manga antes de ela recomeçar com as suas lamúrias. Mesmo então, em comparação com o que eram anteriormente, pareciam ter só metade da intensidade.
- Nós, as mulheres, nós, as mães, sacrificamos as nossas vidas para criar os filhos, e, quando crescem, recompensam-nos fazendo recair sobre nós a vergonha. Que fiz eu para merecer tal coisa?
- Ele ainda lhe há-de dar motivos de orgulho - disse Cadfael, alegremente. - Ajude-o durante a penitência, mas nunca tente desculpar-lhe o pecado, e só a admirará por isso.
Estas palavras passaram por ela como o vento que soprava na altura, embora mais tarde as possa ter recordado. A voz esmoreceu-lhe gradualmente; da ofendida autojustificação passou para um monólogo de dor meio sonhador e por fim tomou um tom de quente e sonolenta complacência, até que finalmente caiu em silêncio.
Cadwallon respirou funda e cuidadosamente e fitou os seus conselheiros.
- Se fosse a si, chamava as aias dela e punha-a na cama - disse Cadfael. - Vai dormir toda a noite, e isso só lhe pode fazer bem.
”E a si mais bem ainda”, pensou, mas não disse. - Deixe o seu filho descansar também e não torne a falar no problema dele senão em tom casual, como qualquer outro assunto da vida de todos os dias, a menos que seja ele o primeiro a falar. O Padre Huw tomará fielmente conta dele.
- Assim farei - disse Huw. - Ele merece os nossos esforços. A Sr.a Branwen seguiu docemente para onde a levaram e a casa
ficou maravilhosamente silenciosa. Cadfael e Huw saíram juntos, perseguidos até ao portão pela gratidão louca de Cadwallon. Quando estavam bem longe da propriedade, na extremidade da paliçada, a paz da noitinha desceu docemente sobre eles, uma nuvem pousando delicadamente sobre outra nuvem.
- Se não chegámos a tempo das vésperas, vamos, ao menos, a tempo do jantar - disse Huw, cansado. - Que teríamos feito sem o senhor, Irmão Cadfael? Não tenho jeito nenhum para tratar com mulheres, deixam-me absolutamente confuso. Fico maravilhado com o modo como aprendeu a lidar tão sabiamente com elas, o senhor, um monge do claustro!
Cadfael pensou em Bianca, em Arianna, em Mariam e em todas as outras, algumas conhecidas apenas por tão pouco tempo, mas todas bem conhecidas.
- Homens e mulheres possuem a mesma natureza humana, Huw. Ambos sangramos quando nos ferimos. Aquela mulher é uma pobre tola, é certo, mas podemos mostrar imensos homens que também são uns pobres tolos. E há mulheres que são tão fortes como nós e tão capazes. - Estava a pensar em Mariam, ou seria em Sioned? - Vá jantar, Huw, e apresente as minhas desculpas; eu, se puder, juntar-me-ei a vós antes do último serviço. Tenho primeiro umas coisas a tratar em casa de Bened.
O frasco vazio balouçava pesadamente no bolso da sua manga direita, fazendo-o recordar. O espírito continuava-lhe ocupado com as implicações. Muito antes de chegar ao celeiro de Bened, já tinha bem claro o que tinha de ser feito, mas estava longe de saber como havia de pô-lo em prática.
Cai estava sentado com Bened no banco sob o beiral, com uma caneca de rude vinho entre eles. Não estavam a falar, apenas esperavam que aparecesse, e não podia haver outra razão para isso que não fosse ter-lhes Sioned garantido que viria.
- Saiu-nos uma boa embrulhada - disse Bened, abanando a cabeça grisalha. - E o senhor vai partir e deixar-nos com tudo nas mãos. Não estamos a culpá-lo; o senhor tem de ir para onde o dever o chama. Mas, quando partir, que iremos fazer com respeito a Rhisiart? Mais de metade das pessoas desta paróquia pensa que foram os seus beneditinos quem o matou, e a parte em minoria pensa que um qualquer inimigo aproveitou a oportunidade de vos atirar com as culpas e de poder ficar calmamente na sombra. Até vocês virem, isto era uma comunidade pacífica e ninguém entre nós pensava em assassínios.
- Deus sabe que não pretendíamos trazer tal coisa connosco disse Cadfael. - Mas resta-nos ainda uma noite antes de irmos e ainda não atirei o meu último dardo. Tenho de ir falar com Sioned. Temos umas coisas a fazer, mas pouco tempo para as levar a cabo.
- Beba uma taça connosco antes de ir ter com ela - insistiu Cai. - Não leva tempo nenhum e é uma grande ajuda para pensar.
Estavam os três sentados juntos, três homens simples e honestos, e o vinho estava notavelmente mais baixo na caneca, quando alguém passou o portão; ouviram-se correr pés ligeiros, apressados ao longo do caminho, e de súbito viram Annest à sua frente, as saias a esvoaçar e a voltar ao sítio como asas a dobrar-se, a respiração curta e difícil, a face consternada e plena de excitação. E pronta a indignar-se por vê-los pacificamente sentados a beber vinho.
- Era melhor que se mexessem - disse, ofegante e irada. Fui a casa do Padre Huw para ver o que por lá se passava. Marrared e Edwin têm andado de olhos bem abertos para nos contar. Sabem quem está lá a jantar com os beneditinos? Griffith Rhys, o meirinho! E sabem onde vai depois? Lá acima, a nossa casa, para levar o Irmão John para a prisão!
Ao ouvirem a notícia, num instante se puseram de pé, embora Bened se tenha atrevido a duvidar dela.
- Não pode estar. Da última vez que tive notícias dele estava no moinho.
- E isso foi esta manhã, mas digo-lhe que agora está a comer e a beber com o Prior Robert e os outros. Vi-o com os meus próprios olhos, portanto não me diga que não pode lá estar. E venho encontrá-los sentados em cima dos vossos presuntos, como se tivessem todo o tempo do mundo!
- Mas porquê esta noite, a toda a pressa? - insistiu Bened. Será que o prior o mandou chamar porque quer partir amanhã?
- Foi obra do Diabo! O meirinho veio para as vésperas para cumprimentar o Padre Huw, mas quem havia de encontrar a celebrar o serviço senão o Prior Robert, e este agarrou a oportunidade que procurava e insistiu e persuadiu-o de que o Irmão John deve ser hoje levado prisioneiro, pois não pode partir sem o saber seguro nas mãos da lei. Diz que o meirinho deve tratar da ofensa secular por obstar à prisão de um criminoso, e, quando tiver servido a sentença, terá de ser mandado para Shrewsbury para responder pelo desafio à disciplina, ou então o prior mandará uma escolta buscá-lo. E que podia o meirinho fazer a não ser concordar, uma vez que o problema lhe foi posto desta maneira? E vocês aqui sentados!...
- Pronto, rapariga, pronto - disse Cai, apaziguador. - Parto já neste minuto e o Irmão John estará fora de lá e num lugar seguro antes de o meirinho conseguir aproximar-se. Levo um dos teus cavalos, Bened...
- Sele outro para mim - disse Annest, com determinação. Vou consigo.
Cai seguiu a passo forçado para o cercado e Annest, respirando mais facilmente agora que o pior já fora contado, bebeu o resto do vinho que ele deixara na taça e soltou um suspiro profundo e resoluto.
- É melhor sairmos rápidos de cá, porque aquele jovem irmão que agora trata dos cavalos virá cá buscá-los depois do jantar. O prior quer estar lá para ver John preso em segurança.
”Ainda dá tempo antes do último serviço da noite”, disse ele. Também se queixava por precisar de si para lhe servir de intérprete, pois era com dificuldade que se entendiam entre si, só em latim. Meu Deus, que dia este!
”E que noite”, pensou Cadfael, ”virá provavelmente ainda a ser!”
- Que mais acontecia por lá? - perguntou. - Ouviu alguma coisa que possa dar-me qualquer luz? Só Deus sabe quanto precisava de alguma!
- Estavam a debater qual deles devia vigiar toda a noite na capela. E aquele jovem louro, aquele que tem as visões, levantou-se e pediu que lhe fosse permitido ir ele. Disse que já uma vez fora infiel na sua vigília e que ainda queria resgatar a falta. E o prior permitiu-lho. Isso percebi eu. A única coisa em que o prior parece pensar é em conseguir o máximo de complicações para John disse Annest, cheia de ressentimento -, ou julgo que talvez tivesse mandado um outro no lugar daquele. Aquele jovem irmão... Como lhe chamam?
- Columbanus - disse o Irmão Cadfael.
- É esse mesmo, Columbanus! Está a tomar uns ares como se fosse o dono de Santa Winifred. Eu não queria nada que ela fosse embora, mas, pelo menos, foi o prior quem primeiro pensou nisso; e agora, se há auréola para alguém, mudou para a cabeça desse outro sujeito.
Sem o saber, dera realmente uma luz a Cadfael que ia brilhando com mais força com cada palavra que dizia.
- Com que então, é ele quem vai vigiar toda a noite em frente ao altar, e só, não é?
- Foi o que ouvi. - Cai aproximava-se com os cavalos, vindo da pastagem num trote alegre. Annest levantou-se com avidez, levantou as saias e prendeu a faixa da cintura firmemente sobre a prega que formara nas ancas. - Irmão Cadfael não acha que seja mau eu amar o John? Não me interessa o que os outros pensam, mas lastimaria muito se o senhor achasse que fazemos algo de perverso.
Cai não perdera tempo a arranjar uma sela para si, mas preparara uma para ela. De modo absolutamente simples e natural, o Irmão Cadfael pôs as mãos em concha para lhe apoiar o pé e ajudá-la a subir para o largo dorso do cavalo, e, enquanto montava, o perfume fresco das roupas e a macia frescura do seu tornozelo de encontro aos pulsos dele fizeram daquele momento um dos melhores de todo aquele dia, interminável a caótico.
- Por mais tempo que eu viva, rapariga - disse -, duvido de que venha jamais a encontrar duas criaturas com menos maldade entre si. Ele cometeu um erro, mas devia estar prevista a possibilidade de um novo começo para toda a gente. Desta vez, não me parece que ele esteja enganado.
Viu-a afastar-se, estabelecendo certo andamento para subir a colina, ao qual Cai de boa vontade se adaptou. Tinham um bom avanço, pois ainda levaria uns dez minutos ou mais para Columbanus vir buscar os cavalos e, mesmo então, ainda teria de os levar primeiro até ao presbitério. Talvez fosse bom que aparecesse e fosse com Robert para obedientemente traduzir as suas imprecações; e, nesse caso, era melhor que se apressasse, pois tinha agora muito a dizer a Sioned, e os movimentos dessa noite deviam ser minuciosamente preparados. Logo que Annest e Cai saíram da vista, retirou-se para o celeiro, e Sioned saiu ansiosa das sombras para vir ao seu encontro.
- Esperava que Annest chegasse cá antes do senhor. Foi investigar o que se estava a passar em casa do Padre Huw. Achei melhor ficar fora das vistas. Se pensarem que estou em casa, melhor ainda. Não viu Annest?
- Vi e soube todas as novidades - disse Cadfael e contou-lhe o que andava a tramar-se e onde fora Annest. - Não se preocupe com o John, pois chegarão lá bem antes de qualquer perseguição. Temos outros assuntos a tratar e não temos tempo a perder, pois devem contar que vá com o prior, o que no fundo é o melhor. Quero estar lá para ter a certeza que há jogo limpo. Se tratarmos do nosso assunto tão bem como imagino que Cai e Annest tratarão do deles, bem que, antes da manhã, poderemos saber tudo o que queremos.
- O senhor descobriu alguma coisa - disse, num tom de certeza. - Está mudado! Está seguro!
Contou-lhe em poucas palavras tudo o que acontecera em casa de Cadwallon, como ficara a cismar em tudo isso, mas sem divisar qualquer luz quanto ao modo como o poderia aproveitar, e como Annest inocentemente lhe mostrara. Depois disse-lhe o que esperava dela.
- Sei que sabe falar inglês e deve empregá-lo esta noite. Esta armadilha pode ser muito mais perigosa que as outras que antes armámos, mas ficarei por perto. E pode também mandar chamar Engelard, se ele prometer que se mantém escondido. Mas, filha, se tiver qualquer dúvida ou medo, se preferir que eu tente de outro modo, diga-mo já e assim faremos.
- Não - disse -, nem dúvida, nem medo. Posso fazer seja lá o que for. Ousaria não importa o quê.
- Então, sente-se ao pé de mim e aprenda bem o seu papel pois não temos muito tempo. E, enquanto fazemos os nossos planos, poderia pedir-lhe que me trouxesse um pouco de pão e um naco de queijo? Porque fiquei sem jantar.
O Prior Robert e o Irmão Richard entraram na propriedade de Rhisiart com o meirinho do príncipe cavalgando entre os dois, os dois lacaios deste e o Irmão Cadfael atrás. Eram cerca das sete e meia e havia um crepúsculo suave, e vinham com toda a calma cerimónia da lei, como se Griffith Rhys tivesse recebido o seu posto de S. Beneditino, e não de Owain Gwynedd. Na verdade, o meirinho estava mais que aborrecido com este encontro, que o deixara sem outra alternativa que não fosse satisfazer as exigências de Robert. Fora declarada uma ofensa contra a lei galesa e tinham-na trazido ao seu conhecimento, por isso era obrigado a investigá-la, embora preferisse mandar toda a delegação beneditina, mais as suas malas, de volta para Shrewsbury, para porem lá em ordem os seus problemas pessoais, sem incomodarem um homem ocupado que tinha no espírito vários assuntos muito mais importantes.
Infelizmente, o vilão de Cadwallon, o sujeito das pernas compridas que fora deitado ao chão pelo Irmão John, deu testemunho em altos gritos, corroborando a acusação; caso contrário, teria sido mais fácil ignorá-la.
Não estava ninguém de serviço ao portão, o que era estranho, e, quando entraram, inúmeras pessoas pareciam correr de um lado para o outro de um modo confuso, como se algo de imprevisto tivesse acontecido e como se estivessem a ser dadas ordens confusas e opostas, partindo de várias autoridades ao mesmo tempo. Também não apareceu nenhum lacaio para os atender. Isto não agradou ao Prior Robert. Griffith Rhys ficou ligeiramente interessado e alerta. Quando finalmente alguém reparou neles, foi uma jovem muito bela ostentando um vestido verde, que veio a correr com as saias apanhadas nas mãos, e com o cabelo claro a escapar do brilhante rolo que lhe caía sobre os ombros.
- Oh, meus senhores, peço-lhes que desculpem a nossa negligência, pois estamos muito perturbados! Chamámos o guarda-portão para nos ajudar e todos os criados andam a perseguir... Mas é uma vergonha permitir que os nossos problemas venham ensombrar a nossa hospitalidade. A minha senhora está a descansar e não pode ser incomodada, mas eu estou às vossas ordens. Gostariam de descansar? Poderei mandar preparar aposentos para vós?
- Não tencionamos demorar-nos - disse Griffith Rhys, desconfiando já desta boa vontade cheia de candura e aprovando o modo como era irradiada. - Viemos libertar-vos de um certo jovem malfeitor que têm tido aqui sob custódia. Mas parece que sofreram qualquer outra calamidade, e lastimaríamos ter de sobrecarregar as vossas preocupações ou incomodar a sua senhora, depois do terrível dia que teve hoje.
- Senhora - disse o Prior Robert, educadamente, mas de modo oficioso -, está a falar com o meirinho do príncipe para a região de Rhos, e eu sou o prior da Abadia de Shrewsbury. Têm preso aqui um irmão da nossa confraria, e o meirinho real veio libertar-vos desse cuidado.
E tudo isto Cadfael traduziu obediente e solenemente para benefício de Annest, e a sua face estava tão inocente como a dela.
- Oh, Excelência! - Abriu muito os olhos e fez profunda vénia perante Griffith e uma mais ligeira perante o prior, separando assim os seus e os estranhos. - É verdade que tínhamos esse irmão aqui prisioneiro...
- Tinham? - perguntou Robert, cortante, conseguindo, por uma vez, distinguir a diferença no tempo do verbo.
- Tinham? - disse Griffith, pensativo.
- Fugiu, Excelência! Estão a ver a confusão em que deixou todos. Esta tarde, quando o guarda lhe levou o jantar, esse irmão atingiu-o com uma tábua que soltara da manjedoura que tinha na prisão, trancou-o lá dentro e escapou-se. Só algum tempo depois é que soubemos. Deve ter trepado pelo muro, que não é muito alto. Temos agora homens a procurá-lo nos bosques e cá dentro por todo o lado. Mas temo que tenha desaparecido!
Cai fez a sua entrada na hora exacta, saindo de um celeiro com passos hesitantes, a cabeça ligada com um pano branco ligeiramente manchado de vermelho.
- Pobre homem, o malvado partiu-lhe a cabeça! Levou algum tempo até conseguir arrastar-se até à porta e bater nela, para que o pudessem ouvir. É impossível saber a que distância estará o sujeito agora. Mas toda a criadagem anda lá fora, em sua perseguição.
O meirinho, como era seu dever, interrogou Cai, mas de modo gentil e breve, e interrogou todos os outros servos que corriam para se tornar úteis, conseguindo apenas atrapalhar tudo magnificamente.
E o Prior Robert, ardendo em zelo vingativo, gostaria de os pressionar mais vigorosamente, mas era impedido pela presença do meirinho, pela sua óbvia prioridade de direitos e pela brevidade do tempo de que dispunha se queria estar de volta para o último serviço divino. De qualquer modo, era bem evidente de que o Irmão John passara o muro e estava bem longe. Com a maior das boas vontades, mostraram-lhes o lugar onde estivera aprisionado, a manjedoura de onde arrancara a tábua e a própria tábua, com uma das extremidades artisticamente salpicada com gotas do sangue de Cai, embora pudesse também ser, está claro, pigmento cedido pelo carniceiro.
- Parece-me que o nosso jovem nos fugiu a todos - disse Griffith, com admirável serenidade para um homem da lei que perdeu um malfeitor. - Já não se pode fazer aqui mais nada. Dificilmente poderiam ter esperado tal violência da parte de um monge beneditino; não podemos censurá-los.
Foi com considerável prazer que Cadfael traduziu aquela aguçada espetadela. Despertou uma centelha nos expressivos olhos da jovem de verde, o que não passou despercebido a Griffith. Mas desafiá-la teria sido loucura. Os transparentes olhos castanhos ter-se-iam aberto até estarem suficientemente grandes e profundos na sua inocência para lá afogarem uma pessoa.
- É melhor deixarmo-los em paz para poderem remendar as suas manjedouras e cabeças partidas - disse Griffith - e procuraremos o nosso fugitivo noutro lado.
- O desgraçado aumenta as suas ofensas - disse Robert, furioso. - Mas não posso permitir que a sua vilania perturbe a minha missão. Amanhã tenho de me pôr a caminho de regresso e deixar para si a captura.
- Pode confiar em que tratarei dele como é devido - disse Griffith, secamente -, quando for encontrado. - Se pôs uma ligeira ênfase no ”quando”, ninguém parece ter notado, além de Cadfael e Annest. Nessa altura, já Annest se convencera de que gostava deste oficial do príncipe e de que se podia confiar em que agiria como homem razoável que não anda à procura de sarilhos, nem a tentar arranjá-los para outros tão inofensivos como ele.
- E quando tiver redimido as ofensas que cometeu para com a lei galesa, o senhor devolve-o ao nosso convento, não é?
- Quando o tiver feito - disse Griffith, e desta vez era bem nítida a força no ”quando” -, certamente que o receberá de volta.
E o Prior Robert teve de se contentar com isto, embora o seu espírito formando estivesse em fogo por ter sido privado da vítima que era sua de direito. E, durante a cavalgada de regresso, não ficou nada mais calmo com as histórias de Griffith a respeito do elevado número de fora-da-lei fugidos que não tinham tido qualquer dificuldade em viver a monte pelas florestas e até conseguiam fazer amigos entre a gente das aldeias, ser aceites nas suas famílias e, por fim, até passar a ser considerados respeitáveis. Irritava-lhe o espírito, ordenado, pensar em qualquer insubordinação abrandando com o tempo, acabando por ser tolerada e aceite.
Quando, mesmo na hora do último serviço, entrou na igreja do Padre Huw, não ia com uma disposição de espírito muito cristã.
Estavam lá todos, menos o Irmão John, os cinco irmãos de Shrewsbury que restavam e um bom número de pessoas de Gwytherin para observarem a última manifestação do devoto dom de Columbanus para o êxtase, dedicado agora inteiramente a Santa Winifred, sua patrona pessoal, que o sarara da loucura, o favorecera com a sua presença real durante um sonho e que através dele tornara conhecida a sua vontade com respeito ao enterro de Rhisiart. Pois, no final do serviço, ao levantar-se para seguir para a vigília que ele próprio escolhera, Columbanus voltou-se para o altar, ergueu os braços em amplo gesto e orou numa voz alta e nítida, pedindo que a virgem-mártir se dignasse visitá-lo uma vez mais durante a sua santa solidão, no silêncio da noite, e revelar-lhe de novo aquela inarrável bem-aventurança que com tanta relutância ele tivera de deixar para voltar para este mundo imperfeito. E, mais, que desta vez, se o achasse digno de uma transferência para fora do corpo, o levasse vivo para esse mundo de luz. Submeter-se-ia humildemente à vontade dela se o mandasse sofrer este mundo cá em baixo e cumpriria o seu dever no estado que lhe fosse destinado; mas com enlevo fez o seu desejo repercutir no telhado de madeira, o desejo de ser retirado da carne e transportado através da morte, mesmo sem ter morrido, se a santa o considerasse pronto para essa ascensão.
Todos os presentes ouviram e estremeceram com tal virtude. Todos menos Cadfael, que há muito deixara de tremer com a arrogância do homem e cujo espírito, de qualquer modo, estava ocupado e ansioso com outros assuntos, se bem que relacionados.
O Irmão Columbanus entrou na pequena capela, escura e cheirando a madeira, pesada com os odores de séculos, e fechou suavemente a porta, sem lhe correr o ferrolho. Nessa noite não havia velas acesas, só a pequena lamparina de óleo do altar, cujo flutuante pavio ardia com uma chama alta e firme. Aquele único delgado castelo de luz lançava sombras a toda a volta e, como estava ao mesmo nível que o ataúde de Santa Winifred, colocado à sua frente sobre uma armação, dava-lhe a forma de um caixão negro, apenas retocado aqui e ali com raios reflectidos pela prata.
Para além do casulo de suave luz dourada, tudo era escuridão, perfumada com a idade e o pó. Havia uma segunda entrada na diminuta sacristia, que não era mais que um pórtico junto ao altar, mas nenhuma aragem daí ou de qualquer outra origem fez estremecer, uma única vez, a chama da lamparina. Parecia não haver tempestades do ar ou do espírito, ventos ou respiração de criatura humana capazes de perturbarem a calma.
O Irmão Columbanus fez a reverência perante o altar, de modo breve e quase reduzido. Não havia ninguém para ver, pois viera sozinho e não vira nem ouvira sinal de qualquer outra alma vivente, quer no cemitério quer nos bosques em redor. Afastou o segundo genuflexório para o lado e colocou o que escolhera bem no centro da capela, em frente ao ataúde. O seu comportamento era marcadamente mais prático e moderado do que quando havia gente perto para o ver, mas não diferia grandemente em outros aspectos. Viera para ficar de vigília de joelhos toda a noite e estava preparado para o fazer, mas não havia necessidade de elaborar esforços até de manhã, quando os colegas viessem para levar Santa Winifred em reverente procissão, para a primeira etapa da jornada.
Columbanus, no sítio para os joelhos, almofadou o genuflexório com as saias arregaçadas do hábito e instalou-se o mais confortavelmente possível, com os braços abertos dobrados de modo a formar uma almofada para a cabeça. A escuridão ambarina estava perfumada e pesada com o calor da madeira e a noite lá fora não estava fria. Tendo-se protegido da pequena e erecta torre da luz e das poucas superfícies brilhantes onde aquela se reflectia, a sonolência que convidara foi-se apoderando dele em longas ondas embaladoras, até que lhe encheu toda a cabeça, e adormeceu.
Como é costume no sono, parecia que não passara nenhum tempo quando foi acordado em sobressalto, mas, na realidade, tinham passado mais de três horas, e a meia-noite aproximava-se quando os seus sonos começaram a ser estranhamente perturbados com um sonho persistente em que alguém, uma mulher, o chamava pelo nome em voz baixa mas clara, uma vez, outra e outra: ”Columbanus... Columbanus...” Com uma paciência inexaurível e incansável. E, mesmo a dormir, teve a sensação de que aquela mulher tinha todo o tempo do mundo e de que estava disposta a continuar a chamar para sempre, enquanto para ele não restava mais nenhum tempo e devia acordar e ver-se livre dela.
Levantou-se de súbito, rígido até à ponta dos dedos das mãos e dos pés, as orelhas estendidas e os olhos perscrutando selvaticamente, mas havia o envolvente casulo de suave escuridão em sua volta, tal como anteriormente, e o relicário estava também negro, mais negro que antes, ou assim parecia, como se a chama da lamparina, apesar de firme, tivesse diminuído e estivesse agora mais de meio escondida atrás do caixão. Esquecera-se de verificar o óleo. Contudo, sabia que fora cheia até acima depois do funeral de Rhisiart, e isso fora apenas há uma questão de poucas horas.
Parecia que, de todos os seus sentidos, a audição fora o último que recuperara, pois, com um arrepio gelado de medo na pele, começou a ter a consciência de que a voz do sonho continuava consigo e ali estivera todo o tempo, passando do sonho para a realidade, sem quebra de continuidade. Muito suave, muito baixa, muito deliberada, não era um sussurro, mas sim um claro fio de voz, insistindo, sem sombra de dúvida:
- Columbanus... Columbanus... Columbanus, que fizeste?
A voz vinha do relicário, da luz que, no próprio momento em que a fixava cheio de terror e desconfiança, começou a declinar.
- Columbanus, Columbanus, meu falso servo, que blasfemas contra a minha vontade e assassinas os meus defensores, que podes dizer a Winifred em tua defesa? Pensas que me podes enganar como enganas o prior e os teus irmãos?
Sem pressas, sem calor, a voz provinha da abside escura do altar, fina, terrível, e ecoava fantasmagoricamente para fora da sua sagrada caverna.
- Tu, que pretendes ser o meu adorador, atraiçoaste-me como o vil Cradoc; pensas que poderás fugir ao fim que ele teve? Eu nunca quis abandonar o meu lugar de repouso aqui, em Gwytherin. Quem te disse coisa diferente senão o diabo da tua ambição? Pus a minha mão num homem bom e mandei-o avançar como meu defensor, e neste mesmo dia foi enterrado aqui, um mártir por minha causa. O pecado está registado no Céu; não há esconderijo para ti. Por que - perguntou a voz, fria, peremptória e ameaçadora na sua calma mataste o meu servo Rhisiart?
Tentou erguer-se dos joelhos, mas era como se estivessem pregados à madeira do genuflexório. Tentou recuperar a voz, mas da sua rígida garganta só saiu um grasnar seco. Ela não podia estar ali, ali não estava ninguém! Mas os santos vão onde querem e revelam-se a quem querem, por vezes de modo terrível. Os dedos gelados agarraram-se ao apoio, mas nada sentiam. A língua, qual lasca de madeira não trabalhada, rasgou-lhe o céu da boca quando lutou para a fazer falar.
- Para ti, Columbanus, não há outra esperança que não seja a confissão, assassino! Fala! Confessa!
- Não! - grasnou Columbanus, forçando as palavras com uma pressa frenética. - Nunca toquei em Rhisiart! Estive aqui, na tua capela, santa virgem, toda a tarde; como o poderia ter ferido? Pequei contra ti, fui infiel, adormeci... Isso eu reconheço! Não lances sobre mim maior culpa...
- Não foste tu quem adormeceu - respirou a voz, um tom mais elevada, um grau mais agressiva. - Que mentiroso que és! Quem trouxe o vinho? Quem envenenou o vinho, causando o pecado de um irmão inocente? O Irmão Jerome é que dormiu, não tu! Tu saíste para a floresta, esperaste por Rhisiart e abateste-o.
- Não... não, juro! - A tremer e a suar, espetava as unhas no apoio à sua frente, mas, com as mãos, não conseguia ganhar impulso para conseguir pôr-se de pé e fugir dela. Como se pode fugir de seres que estão em toda a parte e tudo vêem? Porque nenhuma coisa mortal teria a possibilidade de saber o que este ser sabia. - Não, isso é engano, fui injustamente inculpado! Eu estava aqui a dormir quando o mensageiro do Padre Huw nos veio chamar. Jerome sacudiu-me para me acordar... O mensageiro é testemunha...
- O mensageiro não passou da entrada. O Irmão Jerome começava já a sair do seu sono envenenado e foi ter com ele. Quanto a ti, fingiste e mentiste, como estás agora a fingir e a mentir. Quem é que trouxe o xarope de papoilas? Quem é que sabia como usá-lo? Tu estavas a fingir dormir, e Jerome, tão fraco como tu és, vil, ficou suficientemente feliz por pensar que não o podias acusar, nem vendo que na verdade estavas a acusá-lo de pior, do teu próprio acto, do teu crime! Ele não sabia que mentias e não te podia acusar disso. Mas eu sei, eu acuso-te! E, a vingança que lancei sobre Cradoc, posso também lançá-la sobre ti, se me mentires mais uma vez que seja!
- Não! - uivou e cobriu o rosto, como se o cegassem com relâmpagos, quando, afinal, só um som fino, pequeno, terrível, o ameaçava. - Não; poupa-me! Não estou a mentir! Bendita virgem, fui teu servo fiel... tentei fazer a tua vontade... Nada sei sobre o assunto! Não feri Rhisiart! Não dei vinho envenenado a Jerome!
- Louco! - disse a voz, num grito subitamente forte. - Pensas que podes enganar-me? Então que é isto?
Houve um súbito raio prateado no ar à sua frente e algo caiu e se esmagou contra o chão, frente ao genuflexório, com um ruído de vidros partidos, salpicando-lhe os joelhos com fragmentos agudos e umas gotas microscópicas e pegajosas, ao mesmo tempo que a chama da lamparina morreu definitivamente e tudo ficou inundado por negra escuridão.
Tremendo e doente de medo, Columbanus tacteou o chão à sua frente e, sob as suas mãos, partículas de vidro partiram-se e espetaram-se-lhe nas palmas, fazendo sangue. Levantou uma das mãos até ao rosto, a soluçar, e cheirou o perfume adocicado e enjoativo do xarope de papoilas, reconhecendo que estava ajoelhado entre os fragmentos do frasco que deixara a salvo na sua sacola em casa de Cadwallon.
Não levou mais de um minuto para que a escuridão total começasse a abrandar e, para lá do ataúde e do altar, a forma oblonga e pequena da janela formava, em comparação, um céu profundo e claro, sem luar mas iluminado pelas estrelas. De novo as formas começaram a esboçar-se dentro da capela de modo muito ténue, dando razão ao seu terror doentio. Entre ele e o ataúde erguia-se uma figura imóvel.
Levou um certo tempo para que os seus olhos se acostumassem à penumbra e apercebessem nela uma palidez erecta e sombria, uma mulher, perdida na escuridão da cintura para baixo, mas com a cabeça e os ombros fracamente iluminados pela luz das estrelas que vinha pela janela do altar. Não a vira chegar, nada ouvira. Aparecera enquanto ele arrastava as rasgadas palmas sobre as lascas de vidro, gemendo como que por causa de irrisória dor. Era uma forma delgada e imóvel, vestida de branco dos pés à cabeça
- Winifred com as roupas com que fora enterrada, há muito transformada em pó, um fino véu cobrindo-lhe o rosto e a cabeça e o braço estendido a apontar para ele.
Recuou perante ela, rastejando abjectamente pelo chão fora, fazendo débeis gestos com as mãos para tapar aquela imagem. Lágrimas frenéticas jorraram-lhe dos olhos, frenéticas palavras da boca.
- Foi para ti! Foi para ti e para a minha Abadia! Fiz aquilo para glória do nosso convento! Acreditava que tinha o aval teu e o do Céu! Ele interpunha-se à vontade de Deus! Não te deixava partir! Eu só tinha boas intenções quando fiz o que fiz!
- Fala claramente - disse a voz, aguda, de comando - e conta tudo o que fizeste!
- Dei o xarope ao Jerome, no vinho, e, quando adormeceu, saí para o atalho da floresta e esperei por Rhisiart. Seguiu-o. Abati-o ... Oh, doce Santa Winifred, não permitas que eu seja condenado por abater o inimigo que obstruía o caminho para a bem-aventurança...
- Apunhalado pelas costas! - disse a pálida figura, e um súbito golpe de ar passou sobre ela fazendo-lhe estremecer as roupagens e, atravessando a capela, soprou sobre Columbanus, deixando-o gelado até aos ossos. Como se ela o tivesse tocado! E, apesar de a não ter visto mover-se, estava certamente um passo mais perto. Apunhalado pelas costas, como fazem os cobardes mesquinhos e os traidores! Reconhece! Conta tudo!
- Pelas costas! - balbuciou Columbanus, engatinhando para longe dela como um animal ferido, até que as costas encostaram à parede e já não podia recuar mais. - Reconheço! Confesso tudo! Oh, misericordiosa santa, tu, tudo sabes, e nada posso esconder de ti! Tem piedade de mim! Não me destruas! Foi tudo por ti, fi-lo por ti!
- Fizeste-o por ti próprio - acusou a voz, mais fria que gelo e queimando como gelo. - Tu, que querias ser mestre em qualquer ordem para que entrasses; tu, com as tuas ambições e estratagemas; tu, exibindo-te continuamente para chamares a ti toda a glória de me possuíres, para abrires caminho até ao centro de todos os acontecimentos, para apareceres como o escolhido dos Céus, o modelo de piedade, para afastares o Irmão Richard do seu lugar, na sucessão ao lugar do prior e, se pudesses, o prior do seu lugar para superior. Tu, com a tua sede de te tornares a cabeça mais jovem sob uma mitra, neste país ou em qualquer outro! Conheço-te, conheço a tua laia. Nada é demasiado cruel, desde que te conduza ao poder.
- Não, não! - arquejava ele, espalmando-se contra a parede, porque era bem certo que ela agora avançava sobre ele, com uma fúria amarga e calma, lançando ameaças pelas pontas dos dedos estendidos. - Foi tudo por ti, só por ti! Eu julgava estar a fazer a tua vontade!
- A minha vontade para o mal? - A voz elevou-se, num grito arrepiante, afiada como um punhal.-A minha vontade para matar?
Ela dera um passo a mais. Columbanus teve um ataque de medo frenético, esgadanhou o muro até conseguir pôr-se em pé de encontro a ele e esbracejou com ambas as mãos, tentando bater nela cegamente para impedir que lhe tocasse e soltando uns finos gritos balbuciantes à medida que esbracejava em seu redor. A mão esquerda foi apanhada no véu e fê-lo escorregar da cabeça e do rosto. Sobre os ombros caíam-lhe o cabelo castanho. Os dedos dele entraram em contacto com a curva de uma face macia e fresca, fresca mas não fria, macia com as graciosas curvas da carne firme e jovem, quando, no seu horror doentio, esperara mergulhar as mãos nos ossudos buracos de uma caveira.
Lançou um grito que começou em frenético terror e terminou em sublime triunfo. A mão que retrocedera perante o contacto voltou subitamente para agarrar, enfiando os fortes dedos no negro emaranhado do cabelo. Columbanus era rápido. Não lhe levou mais de um segundo para perceber que na ponta do seu braço tinha uma mulher de carne e osso e pouco mais levou para perceber quem ela deveria ser e o que lhe fizera com esta intolerável ratoeira, onde o conseguira apanhar. E só mais um segundo para considerar que ela estava ali sozinha e que, pelas aparências, armara sozinha a cilada, que, se ela sobrevivesse, ele estaria perdido e que, se não sobrevivesse, se desaparecesse - ainda faltava muito para acabar a noite! -, ele estaria salvo, ainda no comando de toda esta expedição e herdeiro de toda a sua glória.
Foi infelicidade sua que Sioned fosse de raciocínio quase tão rápido como o seu. Numa escuridão em que a visão dificilmente ajudava ou prejudicava, ela ouviu o profundo suspiro que o libertou do medo tanto do Céu como da Terra e sentiu a onda de fúria animal que dimanava dele como um mau cheiro, quase tão enjoativo como o odor do seu medo. Por instinto, deu um salto para trás e repeliu-o, arrancando-se ao seu amplexo pelo preço de algumas mechas de cabelo. Mas a mão feita garra, sentindo-se enganada, soltou os bocados de cabelo e de novo se agarrou ao lençol de linho que a envolvia, mas esse não rasgava tão facilmente. Ela rodou para a esquerda para pôr a máxima distância possível entre o seu corpo e a mão direita dele, mas viu-o mergulhar a mão no peitilho do hábito e viu o brilho breve e sombrio do aço quando ele de lá a retirou; e seguiu o balanço dele, esfaqueando na penumbra. ”O mesmo punhal”, pensou ela, baixando-se sob o primeiro golpe cego, ”que matou o meu pai.”
Algures abrira-se completamente uma porta para a noite, pois de súbito o vento soprou através da capela, e pés calçados de sandálias entraram com o ar da noite, um corpo robusto e forte empurrando a corrente de ar à sua frente. Uma voz alta trovejou um aviso. O Irmão Cadfael irrompeu na capela, vindo da sacristia, como uma seta de um arco e atirou-se para a luta a toda a velocidade.
Columbanus estava justamente a dar um segundo golpe, enquanto com a mão esquerda agarrava firmemente o lençol que envolvia o corpo de Sioned. Mas ela rodopiava para longe dele, para soltar essas envoltas que a prendiam, e o golpe com que ele queria atingir-lhe o coração apenas lhe arranhou dolorosamente o braço esquerdo. Depois soltou-a e ela caiu de encontro à parede, e Columbanus fugiu, chocando contra a porta em plena fuga. O Irmão Cadfael amparou Sioned com braços fortes e protectores, ralhando-lhe em voz furiosa e cheia de alma, enquanto a mantinha num abraço de urso bom e se preocupava com ela tão terna e fervorosamente como uma mãe.
- Por amor de Deus, filha louca, porque se pôs ao alcance dele? Eu disse-lhe para manter a urna entre os dois!...
- Vá atrás dele! - gritou Sioned, colérica. - Quer que ele consiga escapar? Eu estou razoavelmente bem; vá apanhá-lo! Ele matou o meu pai!
Dirigiram-se juntos para a porta, mas Cadfael saiu primeiro. A rapariga era forte, vigorosa e vingativa, uma galesa até aos ossos, só ligeiramente ferida; ele conhecia o género. O vento da acção empurrava-a; não sentia a dor e não estava consciente de qualquer efusão de sangue; ela própria exigia sangue, e com razão. Seguia-o de perto quando se lançou como um trovão pelo estreito carreiro que atravessava o cemitério, em direcção ao portão. A noite era imensa, aveludada, coberta de estrelas cuja luz velada e delicada quase não provocava sombras. Todo esse vasto espaço recebeu e abafou o som da sua passagem e derramou sobre eles o silêncio da noite.
Dos arbustos que ficavam para lá do muro do cemitério surgiu a figura de um homem, alto, delgado e rápido, que saltou para bloquear o portão. Columbanus viu-o e estacou por um momento, mas Cadfael corria apressado atrás dele, e, no instante seguinte, o fugitivo decidiu-se e precipitou-se em frente, direito à sombra que se movia para o interceptar. Muito próximo de Cadfael, Sioned subitamente gritou:
- Toma cuidado, Engelard! Ele tem o punhal!
Engelard ouviu-a e voltou-se para a direita no momento exacto da colisão, de modo que o golpe que era destinado ao seu coração apenas lhe cortou uma esvoaçante tira de tecido da manga. Columbanus tentou prosseguir o caminho a toda a velocidade e correr para o abrigo dos bosques, mas o longo braço esquerdo de Engelard embateu-lhe com força na nuca, desequilibrando-o por um momento, embora continuasse de pé, e o punho direito de Engelard agarrou firme no capuz em fuga e torceu.
Semiestrangulado, Columbanus rodou de novo e atacou com a faca, mas desta vez Engelard estava preparado para o ataque e apanhou a mão que atacava com a sua própria mão esquerda. Cambalearam e lutaram um com o outro, com os pés enterrados na erva, e eram parceiros muito equiparados, se ambos estivessem armados. Esse desequilíbrio breve ficou corrigido. Engelard torceu o punho que tinha preso, ignorando a mão livre de Columbanus, que lhe agarrava o pescoço, e por fim os dedos insensibilizados abriram-se e deixaram cair o punhal. Ambos se precipitaram, mas Engelard apanhou-o e, cheio de desprezo, atirou-o para o mato e agarrou o oponente com as mãos nuas. A luta estava praticamente acabada. Columbanus pendia ofegante e sem fôlego, ambos os braços presos, e olhava selvaticamente em volta à procura de um meio de fuga, mas nada encontrou.
- É este o homem? - inquiriu Engelard.
Sioned disse:
- Sim. Ele confessou.
Então Engelard olhou pela primeira vez para além do prisioneiro e viu-a em pé à suave luz das estrelas, que, para os seus olhos já ambientados, estava a tornar-se quase tão clara como a luz do dia. Viu-a desgrenhada e pisada, olhando com grandes olhos, muito chocados, o braço esquerdo, ferido e sangrando livremente, embora o golpe fosse superficial. Viu as nódoas de sangue que manchavam o lençol branco em que se envolvera. À luz das estrelas não se distingue qualquer cor, ou apenas muito pouco, mas tudo o que Engelard via naquele momento estava encarnado cor de sangue. Este era o homem que cobardemente matara o amado senhor e bom amigo de Engelard - independentemente dos seus diferendos - e agora tentara matar a filha, do mesmo modo que matara o pai.
-Você atreveu-se, atreveu-se a tocar nela! - trovejou Engelard, com terrível fúria. - Seu rato de claustro inútil! - E pegou em Columbanus pelo pescoço e levantou-o em peso do solo, abanou-o como se fosse o rato que lhe chamara, deu-lhe uma sacudidela no ar como se fosse uma cobra venenosa e, tendo-lhe dado o merecido castigo, atirou-o para a erva a seus pés.
- Levanta-te! - resmungou, em pé junto aos destroços. Levanta-te agora e dou-te tempo para respirares e descansares; depois vais lutar até à morte como um homem, sem o punhal na mão, em vez de rastejares pelo mato para matares pelas costas, ou esfaqueares uma rapariga indefesa. Leva o tempo que quiseres, pois posso esperar até que recuperes o fôlego para depois te matar.
Sioned voou até ele e apertou-o fortemente nos braços, peito a peito.
- Não! Não lhe toques de novo! Não quero que a lei tenha a menor queixa de ti, mesmo que seja mínima.
- Tentou matar-te... estás ferida...
- Não! Não foi nada... só um arranhão. Deita sangue, mas não é nada!
Lentamente, a sua ira esmoreceu, deixando-o a tremer. Rodeou-a com os braços e apertou-a de encontro a si e, com um empurrão do pé, desdenhoso mas contido, incitou de novo o inimigo prostrado:
- Levanta-te! Não te tocarei. A lei que fique contigo e que lhe faça bom proveito!
Columbanus não se moveu, nem mesmo com um estremecimento das pálpebras ou um encolher dos dedos. Os três ficaram a olhar para ele, em silêncio, conscientes de como estava completamente imóvel e de como tal imobilidade é rara entre seres com vida.
- Está a fingir - disse Engelard, com desprezo -, com medo do pior e para despertar piedade. Ouvi contar que é mestre nessa arte.
Aqueles que fingem dormir e ouvem falar de si, normalmente, atraiçoam-se com um exagero de inocência. Columbanus jazia numa imobilidade perfeitamente descontraída e indiferente.
O Irmão Cadfael ajoelhou junto a ele, sacudiu-o suavemente pelo ombro e sentou-se para trás com profundo suspiro, quando observou o movimento desconexo da cabeça. Pôs uma mão por dentro do peito do hábito e inclinou-se sobre os lábios entreabertos e as amplas narinas. Depois tomou-lhe a cabeça entre as mãos e gentilmente rodou-a e pô-la na posição normal. Quando a soltou, esta rodou novamente para uma posição tão pouco provável que logo perceberam a má notícia, mesmo antes de Cadfael dizer, de modo absolutamente prático:
- Teria de esperar muito tempo para que ele recuperasse o fôlego, meu amigo. Você não conhece a sua própria força! O pescoço está partido. Ele está morto.
Chocados e sérios, estavam ambos a olhar, mudos, para aquilo que ainda nem tinham reconhecido como tragédia. Viram um acidente lamentável que nenhum tinha pretendido, mas que, afinal de contas, era uma espécie de justiça. Mas Cadfael viu um escândalo que podia ainda vir a destroçar-lhes as jovens vidas e de outros também, porque, sem Columbanus vivo e forçado por duas testemunhas respeitadas a repetir a sua confissão, até que ponto seriam fortes as provas contra ele? Cadfael ficou sentado a pensar. Agora, que o imperturbável silêncio da noite descera novamente sobre eles, era espantoso verificar como toda aquela violência e paixão decorrera com tão pouco ruído e sem outras testemunhas. Pôs-se à escuta, mas nenhum remexer de pés ou de asas veio perturbar o silêncio. Estavam bastante afastados de qualquer habitação e nenhuma alma fora incomodada. Isso era, pelo menos, tempo ganho.
- Não pode estar morto - disse Engelard, cheio de dúvidas. - Mal lhe mexi. Ninguém morre com essa facilidade.
- Este morreu. E agora, que poderemos fazer? Eu não contava com isto. - Não o disse a queixar-se, apenas a apontar que se tomava agora necessário elaborar planos urgentes e que era melhor manterem os espíritos calmos.
- Porquê, que se pode fazer? - Para Engelard tudo parecia simples, se bem que incomodativo. - Temos de ir chamar o Padre Huw e o seu prior e contar-lhes exactamente o que aconteceu. Que outra coisa podemos fazer? Lastimo ter morto o sujeito; é coisa que não pretendia fazer, mas não posso dizer que me sinta culpado com isso. - Nem esperava qualquer censura. A verdade era sempre a melhor política. Cadfael sentiu relutante afeição por tanta inocência. Mais cedo ou mais tarde iria ser ferida pelo mundo, mas, até à data, nem uma acusação injusta conseguira fazê-lo; ainda acreditava que os homens eram seres racionais. Cadfael duvidava de que Sioned estivesse tão certa disso. O silêncio dela era ansioso e cheio de pressentimentos. E o seu braço ferido ainda escorria sangue. Primeiro o que é importante, e podiam bem estar sensatamente ocupados enquanto pensava.
- Aqui, torne-se útil! Ajude-me a levar este estojo de volta para a capela, para fora das vistas. E, Sioned, procure o punhal, não o podemos abandonar por aí para servir de prova. Depois, vamos lavar e ligar esse seu braço. Há um fio de água por trás da sebe de espinheiros, e linho é coisa que não falta.
Tinham absoluta confiança nele e fizeram o que mandou, sem fazer perguntas, embora Engelard, uma vez assegurado que Sioned não estava ferida com gravidade e tendo-lhe cuidadosa e habilmente ligado o arranhão, voltasse à teimosa opinião de que o melhor a fazer era contar toda a história, que dificilmente poderia lançar infâmia sobre outrem que não Columbanus.
Cadfael atarefou-se com a pederneira até ter várias velas acesas e a lamparina cheia de novo. Fora ele quem lhe retirara determinada quantidade de óleo, antes de Sioned ir para o seu lugar sob os panejamentos do ataúde da santa.
- Pensa - disse, por fim - que, porque não fez nada de mal e porque nos unimos os três para clarificar um crime, todo o mundo será da mesma opinião e dará honestamente um passo em frente para o afirmar? Criança, eu sei que não é assim! A única prova que temos da culpa de Columbanus é a sua confissão, que ambos aqui ouvimos. Ou antes, a única prova que tínhamos, pois agora já nem essa temos. Vivo, nós os dois poderíamos tê-lo forçado a contar a verdade uma segunda vez. Morto, nunca nos dará essa satisfação. E, sem isso, a nossa posição é bastante vulnerável. E não se engane; se o acusarmos, se rebentar este terrível escândalo que ensombra a Abadia de Shrewsbury e toda a força da Ordem Beneditina, que está cá sob a protecção do bispo e do príncipe, e aceite a minha palavra, todas as forças da autoridade se aliarão para evitar o desastre, e a ninguém, muito menos a um estrangeiro sem amigos, será permitido atravessar-se no caminho. Eles, simplesmente, não podem permitir-se que a aquisição de Santa Winifred seja posta em dúvida e lhes traga má fama. Em vez disso, dirão que foi uma morte criminosa praticada por um homem desesperado, já fugitivo, procurado por outro crime e tentando escapar a ambos. Foi uma pena - disse - que eu tenha sugerido a Sioned que o chamasse para ficar de reserva, para o caso de termos sarilhos. Mas nada disto é culpa sua e não quero que fique marcado. Fui eu quem preparou este enredo e sou eu quem o deve desfazer. Mas desista dessa ideia de ir ter com o Padre Huw, ou com o meirinho, ou com outra pessoa qualquer, para contar a verdadeira história. É muito melhor aproveitarmos o resto da noite para arranjar as coisas o melhor possível. Pode chegar-se à justiça por mais de um caminho.
- Não se atreveriam a duvidar da palavra de Sioned - disse Engelard, de modo decisivo.
- Louco, diriam que Sioned, por amor, era tão capaz de se afastar da sua própria natureza como Peredur. E, no que me diz respeito, a minha influência é bem pequena e não estou interessado em proteger-me apenas a mim, mas a tantos quantos puder dos que estão metidos nesta trapalhada. Até ao meu prior, que é arrogante e severo, mas não é nenhum assassino nem mentiroso. E à minha Ordem, que não merecia um homem como Columbanus. Agora, calem-se e deixem-me pensar! E, enquanto faço isso, limpem bem os restos da garrafa de xarope. Amanhã, esta capela deve estar tão limpa e em ordem como estava antes de para cá trazermos as nossas histórias.
Obedientemente, lançaram-se à tarefa de apagar os traços dos alarmes daquela noite e deixaram-no em paz até que encontrasse um caminho para saírem daquela embrulhada.
- E estou agora a cismar - disse, por fim - no que a levou a aumentar todos os discursos que fiz para si e a pôr palavras tão violentas na boca de Santa Winifred. Que a levou a dizer que nunca quisera abandonar Gwytherin e que também o não queria agora? Que Rhisiart não era apenas um homem decente e honrado, mas também o defensor que escolhera?
Ela voltou-se e olhou para ele, cheia de espanto e admiração.
- Eu disse isso?
- Disse, e muito bem dito também. E soou de modo muito efectivo e inocente, mas penso que nunca ensaiámos assim. Onde foi buscar aquelas palavras?
- Não sei - disse Sioned, perturbada. - Não me recordo do que disse. As palavras pareciam brotar sozinhas, eu só as deixava correr.
- Pode ter acontecido - disse Engelard - que a santa tenha aproveitado a oportunidade que se lhe oferecia. Todos esses estrangeiros com visões e êxtases e interpretando-os como lhes convinha, mas, contudo, realmente ninguém perguntou a Santa Winifred o que ela desejava. Todos achavam que o sabiam melhor que ela.
”Da boca dos inocentes!”, disse Cadfael consigo próprio e perscrutou o caminho que gradualmente se abria perante os olhos do seu espírito. De todas as pessoas que deviam ficar felizes com o resultado, Santa Winifred era certamente a principal. ”Tenta”, pensou, ”fazer todos felizes, e, se for possível, para quê criar problemas desagradáveis? Olha Columbanus, por exemplo! Há apenas algumas horas, no último serviço religioso, orava em voz alta perante todos nós para que a virgem, se o achasse digno, o levasse deste mundo esta noite mesmo, o arrebatasse instantaneamente deste corpo. Bom, eis um que conseguiu o seu desejo! Se tivesse sabido que o seu pedido ia ser levado tão à letra, talvez o tivesse retirado, porque a sua intenção era fazer recair sobre si uma incomparável santidade mas enquanto ainda estava vivo para a gozar. Mas os santos têm o direito de supor que os seus devotos estão a falar verdade e de lhes conceder as suas dádivas de acordo com essa ideia. E, se a santa realmente falou através de Sioned, pensou - quem sou eu para pôr isso em dúvida? -, e se realmente quer ficar aqui na sua própria aldeia, o que é um desejo bastante razoável, bom, a campa onde repousava foi hoje remexida de fresco, e ninguém notará se voltar a ser remexida esta noite.”
- Creio - disse Sioned, mirando-o com um primeiro sorriso, frágil mas confiante - que está a começar a ver o seu caminho.
- Creio - disse Cadfael - que estou a começar a ver o nosso caminho, o que está mais de acordo com a realidade. Sioned, tenho algo que necessito que me faça, mas não precisa de se apressar, pois temos aqui trabalho para fazer enquanto estiver fora. Pegue nesse seu lençol e estenda-o sob os espinheiros das margens do bosque onde estão a começar a deixar cair a flor mas ainda não estão castanhas. Sacuda os arbustos e traga-nos um bom montão de pétalas. Na última vez que ela o visitou foi envolta em maravilhosos e doces perfumes e sob um chuveiro de flores brancas. Traga uma das coisas, que nós teremos a outra pronta.
Cheia de confiança, embora nada percebendo ainda, pegou no lençol de linho em que se envolvera como numa mortalha e foi fazer o que lhe pediam.
- Dê-me o punhal - disse Cadfael, bruscamente, quando ela partiu. Limpou a lâmina no véu que Columbanus arrancara da cabeça de Sioned e moveu as velas de modo que iluminassem os grandes selos de lacre encarnado que fechavam o relicário de Winifred. - Graças a Deus que ele não sangrou - disse. - O hábito e o resto das roupas não têm qualquer marca. Dispa-o!
Quando tacteou o primeiro selo, abanou a cabeça de satisfação ao notar a sua espessura perante um punhal tão fino e aguçado e mergulhou a ponta deste na chama da lamparina.
Ficaram prontos muito antes do romper do dia. Seguiram os três juntos, da capela em direcção à aldeia, e separaram-se na orla da floresta, onde vinha dar o caminho mais curto para subir até à propriedade de Rhisiart.
Sioned levava consigo o lençol manchado de sangue e tinham enterrado os fragmentos de vidro na floresta. Fora uma boa coisa terem os servos deixado as pás no cemitério, depois de encherem a campa de Rhisiart. No dia seguinte tencionavam ir aperfeiçoar a campa. Isso poupara uma caminhada, para ir buscar ferramenta emprestada sem licença, e uma boa hora.
- Não haverá escândalo - disse Cadfael, quando pararam no ponto onde os caminhos se cruzavam. - Nem escândalo, nem acusações. Penso que o podem levar convosco para casa, mas mantenham-no fora das vistas até termos partido. Quando tivermos ido, voltará em paz. E não precisam de temer que o príncipe ou o meirinho venham jamais a agir contra Engelard ou John. Vou dizer uma palavra ao ouvido de Peredur. Peredur di-la-á ao ouvido do meirinho, o meirinho di-la-á ao ouvido de Owainy Gwynedd. Vamos deixar o Padre Huw de fora, não há necessidade de lhe sobrecarregar a consciência, homem bom e simples que é. E se os monges de Shrewsbury estiverem felizes e o povo de Gwytherin estiver feliz, pois depressa ouvirá o boato, porque haveria alguém de querer perturbar um estado de coisas tão satisfatório e pronunciar a palavra em voz alta? Um príncipe sagaz, e Owain Gwynedd parece-me muito sagaz, deixará o assunto tranquilo.
- Toda a gente de Gwytherin - disse Sioned e estremeceu um pouco com a ideia - estará lá de manhã para vos ver levar o relicário.
-Tanto melhor; queremos todas as testemunhas que conseguirmos arranjar, toda a emoção, todo o espanto. Eu sou um grande pecador - disse Cadfael, com filosofia -, mas não sinto nenhum peso na consciência. Será que o fim justifica os meios? Gostaria de saber.
- Uma coisa eu sei - disse ela. - O meu pai pode agora descansar em paz, e isso deve-lho a si. E eu devo-lhe isso e muito mais. Da primeira vez que o encontrei, quando desci da árvore (lembra-se?), pensei que seria como os outros monges e que não quereria olhar para mim.
- Filha, era preciso que tivesse perdido o juízo para não querer olhar para si. Olhei com tanta atenção que toda a vida me lembrarei de si. Mas, quanto ao vosso amor, meus filhos, e ao modo como se vão arranjar, aí não vos posso ajudar.
- Não é preciso - disse Engelard. - Eu sou um estrangeiro com um contrato devidamente feito. O contrato pode ser dissolvido por mútuo acordo e posso ser um homem livre se dividir todos os meus bens a meias com o meu senhor; e agora o meu senhor é Sioned.
- E depois ninguém me pode impedir - disse Sioned - se eu resolver doar-lhe metade dos meus bens, como é justo. O tio Meurice não se atravessará no nosso caminho. E nem lhe será difícil justificar-se. Casar uma herdeira com um servo estrangeiro é uma coisa; casá-la com um homem livre e herdeiro de um solar, mesmo que seja na Inglaterra e que, por uns tempos, não possa ser reclamado, é outra muito diferente.
- Especialmente - disse Cadfael - quando já se sabe que, com gado, é o maior perito da região.
De qualquer modo, parecia que aqueles dois estavam satisfeitos.
E Rhisiart, no seu túmulo, não iria ressentir-se da sua felicidade. Nunca fora homem de ressentimentos.
Quando se separaram, Engelard, homem de poucas palavras, disse os seus agradecimentos de modo simples e breve. Sioned voltou impulsivamente para trás, atirou os braços ao pescoço de Cadfael e beijou-o. Era o seu adeus, pois ele achara melhor aconselhá-los a não voltarem a aparecer na capela. Constituiu um pormenor estranho o facto de ela cheirar tão profunda e docemente a flor de espinheiro e de quando o largou lhe deixar uma fragrância tão santa nos braços.
No caminho para o presbitério, Cadfael fez um desvio até ao lago do moinho e atirou com o punhal de Columbanus para a parte mais profunda da escura água.
”Que coisa tão boa”, pensou, ao preparar-se para se deitar na cama que só ocuparia uma hora ou pouco mais antes do primeiro serviço divino da manhã, ”os irmãos que fizeram o relicário serem uns artífices tão meticulosos e terem insistido em forrá-lo por dentro de chumbo!”
O prior Robert levantou-se e foi para o primeiro serviço do dia tão contente com o seu sucesso que quase esquecera a fuga do Irmão John. E, mesmo quando recordou esse pormenor pouco satisfatório, limitou-se a pô-lo de lado na mente, como algo que, na sua devida altura, terá de ser fielmente tratado, mas que não precisava agora de ensombrar o esplendor desta ocasião. E estava na verdade uma bela e radiosa manhã, muito brilhante e calma, quando saíram da igreja e seguiram em direcção ao velho cemitério e à capela. Toda a congregação os seguiu e, ao longo do caminho, outros foram silenciosamente surgindo de todos os atalhos e juntaram-se à procissão, até que esta se parecia com uma memorável peregrinação.
Chegaram ao portão de Cadwallon e este saiu para se juntar a eles, e Peredur, que ficara para trás em estrita obediência às ordens que recebera para permanecer em casa até que a penitência lhe fosse imposta, foi gentilmente convidado a avançar pelo Padre Huw e até recebeu um sorriso, se bem que de santo para pecador, da parte do Prior Robert. A Sr.a Branwen, se já não estivesse a dormir, estaria sem dúvida a recuperar-se dos seus vapores. Os homens da casa não tinham certamente sido muito insistentes no convite para que os acompanhasse, ou talvez ela ainda os estivesse a castigar, afastando-se deles. De um modo ou de outro, estavam livres da sua presença.
Como a ordem da procissão não tinha uma fórmula rígida, os irmãos e os aldeões podiam misturar-se, cumprimentar-se e trocar de companhia quando quisessem. Era uma celebração comunal. E isso era estranho, considerando a contenda que ameaçara durante vários dias. Gwytherin agia agora com muita prudência, atenta para tudo ver e nada revelar.
Peredur abriu caminho até chegar ao lado de Cadfael e ali ficou cheio de gratidão, se bem que silencioso. Cadfael perguntou-lhe pela mãe e o jovem corou e franziu o sobrolho, mas depois sorriu culpadamente como uma criança e disse que ela estava muito bem, ainda um pouco sonhadora, mas plácida e amigável.
- Se quiseres, podes fazer um grande serviço, a mim e a Gwytherin - disse o Irmão Cadfael e confiou-lhe ao ouvido as palavras que pretendia fazer chegar aos ouvidos de Griffith Rhys.
- Então é nisso que param as coisas! - disse Peredur, esquecendo completamente os seus pecados imperdoáveis. Os olhos estavam-lhe muito abertos. Assobiou baixinho. - E é assim que quer que continuem?
- É assim que estão e é assim que quero que continuem. Quem tem alguma coisa a perder? E todos têm a ganhar. Nós, vós, Rhisiart, Santa Winifred, principalmente Santa Winifred. E Sioned e Engelard, claro - disse Cadfael, com firmeza, experimentando o penitente até ao âmago.
- Sim... alegro-me por eles! - disse Peredur, um tudo nada veemente de mais, Tinha a cabeça inclinada e as pálpebras para baixo. Ainda não se alegrava assim tanto, mas estava a tentar. A vontade estava lá. - Com mais um ano ou dois, ninguém mais se lembrará do veado que Engelard apanhou. Acabará por ter a possibilidade de ir a Cheshire e voltar sempre que quiser e, quando o pai morrer, terá terras suas. E, logo que não seja mais considerado como fora-da-lei, não terá mais problemas. Hoje mesmo farei chegar o seu recado a Griffith Rhys, Ele está em casa do seu primo David, do outro lado do rio, mas, se é para ir voluntariamente ter com a lei, o Padre Huw dar-me-á uma indulgência.
- E sorriu amargamente. - Acho muito próprio que seja eu o mensageiro! Na mesma altura em que lhe confiar aquilo que todos devem saber, mas que ninguém pode dizer em voz alta, posso desabafar os meus próprios pecados.
- Óptimo! - disse o Irmão Cadfael, satisfeito. - O meirinho fará o resto. Uma palavrinha ao príncipe e todo o assunto ficará arrumado.
Tinham chegado ao local onde o caminho mais directo para a propriedade de Rhisiart vinha ligar-se ao caminho que seguiam. E por ele vinha metade do pessoal lá de cima, com Padrig, o bardo, carregando a sua pequena harpa portátil, talvez para se dirigir para outra casa, depois das despedidas. E Cai, o homem do arado, trazendo ainda uma impressionante ligadura em volta da cabeça absolutamente intacta, ostentando um artístico coxear no andar e um brilho desavergonhado no único olho que tinha à vista. Nem Sioned, nem Engelard, nem Annest, nem John. O Irmão Cadfael, embora ele próprio o tivesse ordenado, sentiu uma súbita e dolorosa sensação de privação.
Aproximavam-se agora da pequena clareira; os bosques afastavam-se de ambos os lados, o pequeno campo de erva selvagem abria-se e lá estava o muro de pedra, verde de cima a baixo, do velho cemitério. Pequena, encolhida, negra, uma forma corcovada demasiado alta para a base que tinha, assim se erguia a Capela de Santa Winifred, e, próximo à sua extremidade leste, o escuro oblongo da campa de Rhisiart formava uma cicatriz no opulento verde primaveril da relva.
O Prior Robert estacou junto ao portão e voltou-se com expressão benigna e quase afectuosa para encarar a multidão que o seguia e, por intermédio de Cadfael, dirigiu-se-lhes nestes termos:
- Padre Huw e boa gente de Gwytherin, viemos na melhor das intenções, guiados como críamos e continuamos a crer, por direcção divina, com o desejo de honrar Santa Winifred como ela nos ordenou. Não pretendíamos de modo algum privar-vos de um tesouro, antes queríamos permitir que o seu fulgor brilhasse, não só sobre nós como também sobre muitas mais pessoas. Causa-nos grande desgosto o facto de a nossa missão ter trazido sofrimento para alguns. É um alívio e uma alegria o facto de estarmos agora de acordo e de estarem dispostos a deixar-nos levar as relíquias da santa para longe, para uma mais vasta glória. Agora estais seguros de que não pretendíamos qualquer mal, mas só bem, e de que tudo o que fazemos é feito com reverência.
Um murmúrio começou a formar-se numa das extremidades do crescente e rolou suavemente em volta até chegar ao outro extremo, um murmúrio de aquiescência, quase de complacência.
- E não se ressentirão de possuirmos este bem precioso que levamos connosco? Crêem verdadeiramente que estamos a agir com justiça, que levamos apenas o que nos foi confiado?
”Não poderia escolher melhor as palavras”, pensou o Irmão Cadfael, espantado e gratificado, ”se tivesse conhecimento de toda a história... ou se tivesse sido eu a escrever-lhe o discurso. Agora, se surgir uma resposta com palavras igualmente bem escolhidas, acabarei por crer num milagre da minha autoria.”
A multidão remexeu-se e apresentou a robusta forma de Bened, tão sólido, respeitável e capaz de ser o porta-voz da sua paróquia como qualquer outro homem, salvo, talvez, o Padre Huw, que aqui estava na equívoca situação de ter um pé em cada campo e que por isso, muito inteligentemente, se mantinha silencioso.
- Padre prior - disse Bened, asperamente -, não há agora uma única pessoa entre nós que lhe cobice as relíquias que vão dentro da urna que está no altar. Cremos verdadeiramente que são vossas e é com o nosso consentimento que as leva para casa, para Shrewsbury, onde, segundo todos os sinais, realmente pertencem.
No conjunto, era demasiado bom. Pode bem ter trazido um tom de prazer, mesmo misturado com uns traços de vergonha, ao rosto do Prior Robert, mas levou Cadfael a percorrer com o olhar todas aquelas faces serenas, secretas e sorridentes, todos aqueles olhos abertos, honestos e opacos. Ninguém estremeceu, ninguém murmurou, ninguém, nem mesmo lá atrás, sorriu. Cai, com o único olho visível, observava com simples admiração. Padrig irradiava uma satisfação bárdica e benevolente, devido a esta total reconciliação.
Eles já sabiam! Quer através de qualquer discreto boato lançado por Sioned, quer por uma qualquer intuição pessoal de raiz terrena, as pessoas de Gwytherin sabiam, em essência, se não em pormenor, tudo o que havia para saber. E nem uma palavra em voz alta, nem uma palavra deslocada, até os estrangeiros terem partido.
- Andemos, então - disse o Prior Robert, profundamente gratificado. - Vamos libertar o Irmão Columbanus da sua vigília e levar Santa Winifred para a primeira etapa da sua jornada para casa.
- E voltou-se, muito alto, muito principesco, muito prateado, e caminhou majestosamente até à porta da capela, com a maior parte de Gwytherin amontoando-se no cemitério, atrás de si. Com uma das mãos, longa, branca e aristocrática, abriu a porta para trás e parou na soleira.
- Irmão Columbanus, cá estamos. A sua vigília acabou.
Deu apenas duas passadas no interior e os seus olhos acharam-no escuro depois da brilhante claridade que havia lá fora, apesar da luz clara que entrava pela pequena janela, a nascente. Depois, as paredes castanho-escuras e com cheiro a madeira começaram a ficar nítidas e todos os pormenores da cena lá dentro emergiram da penumbra para uma luz relativa e depois para uma luz tão brilhante e ofuscante que ele parou onde estavam, atemorizado e maravilhado.
Uma doçura pesada e fantasmagórica enchia o ar lá dentro, e a porta, ao abrir-se, deixara entrar um pequeno vento matinal que a transformou em grandes vagas de fragrância. Ambas as velas ardiam firmemente sobre o altar, com a pequena lamparina de óleo entre as duas. O genuflexório estava ao centro, frente à urna, mas ninguém estava nele ajoelhado. Sobre o altar e o relicário pousava uma nuvem de pétalas brancas, como se um vento milagroso as tivesse trazido nas asas, desde a sebe de espinheiros, atravessando dois campos, e, sem derramar uma única flor pelo caminho, as tivesse lançado para ali através da janela do altar. Aquela brancura estendia-se até ao genuflexório e cobria-o, assim como também as roupagens vazias e amarrotadas que estavam ali abandonadas.
- Columbanus...! Que é isto? Ele não está cá!
O Irmão Richard veio pôr-se à esquerda do prior, o Irmão Jerome à direita, e Bened, Cadwallon, Cai e outros entraram depois deles e espalharam-se de ambos os lados e postaram-se ao longo das paredes, a olhar para aquela maravilha com as narinas a dilatar-se perante a embriagadora doçura. Ninguém ousava avançar para lá do ponto onde estava o prior, até que ele próprio lentamente avançou e se inclinou para olhar de mais perto tudo o que restava de Columbanus.
O negro hábito beneditino jazia onde ele estivera ajoelhado, com as saias estendidas para trás, o corpo caído em pregas, as mangas abertas de ambos os lados como asas, dobradas pelo cotovelo como se os braços que tinham abandonado acabassem ainda em mãos postas em oração. Dentro do capuz, via-se uma margem branca.
- Olhe! - sussurrou o Irmão Richard, cheio de temor. - A camisa dele está ainda dentro do hábito e... Olhe! As sandálias! Estavam sob a bainha do hábito, cuidadosamente juntas, as solas para cima, tal como se os pés as tivessem deixado. E no apoio para livros no genuflexório, no sítio onde as suas mãos se tinham apoiado em oração, estava um único ramo de flor de espinheiro.
- Padre prior, todas as roupas dele estão aqui, camisa, cuecas e tudo, umas dentro das outras, como as trazia vestidas. Como se... como se tivesse sido içado para fora delas e as tivesse largado, como uma serpente que larga a velha pele e emerge brilhante com uma nova...
- Isto é absolutamente maravilhoso - disse o Prior Robert. Como poderemos compreender e não pecar?
- Padre, podemos levantar essas roupas? Se houver nelas um traço ou uma marca...
Não havia nenhuma, o Irmão Cadfael tinha a certeza. Columbanus não perdera sangue, o hábito não estava rasgado nem mesmo sujo. Caíra apenas em cima da grossa erva primaveril, que irresistivelmente brotara por entre a erva morta do último Outono.
- Padre, é como eu disse, como se tivesse sido docemente içado para fora das roupas e as tivesse deixado cair por já não precisar delas. Oh, padre, estamos na presença de um grande milagre! Tenho medo! - disse o Irmão Richard, referindo-se ao maravilhoso e abençoado medo perante o que é sagrado. Raras vezes falara com tal eloquência ou estivera tão comovido.
- Recordo agora - disse o prior, perturbado e modesto (e isso não lhe fazia mal nenhum!) - a prece que ele fez ontem durante o último serviço. Como pediu para ser levado vivo deste mundo, por puro êxtase, se a santa virgem o achasse digno de tal favor e bem-aventurança. Será possível que estivesse num tal estado de graça que foi considerado digno?
- Padre, devemos procurar? Aqui e lá fora? Nos bosques?
- Com que fim? - disse simplesmente o prior. - Iria correr nu pela noite? Um homem são de espírito? E, mesmo que tivesse enlouquecido e se tivesse descartado das roupas que vestia, estariam assim abandonadas em semelhante ordem, dobra sobre dobra, como quando estava ajoelhado? É impossível despir roupas deste modo. Não; ele foi muito para além destes bosques, muito para além deste mundo. Foi maravilhosamente favorecido e as suas preces mais prementes foram ouvidas. Digamos agora aqui uma missa pelo Irmão Columbanus, antes de levarmos a bendita senhora que fez dele seu mensageiro, e depois iremos dar a conhecer este milagre da fé.
Não havia modo de se saber, sendo o Prior Robert o homem que era, em que ponto a consciência da utilidade que se podia tirar desta maravilha pusera para trás a sua fé genuína, espanto e emoção, e o pôs a manipular os acontecimentos para deles conseguir extrair o máximo de glória. Não havia inconsistência em tal comportamento. Estava absolutamente certo de que o Irmão Columbanus fora levado vivo para fora deste mundo, tal como desejara. Mas, assim sendo, não era apenas oportunidade sua mas também dever seu, aproveitar ao máximo o favor exemplar para glória da Abadia de S. Pedro e S. Paulo de Shrewsbury; e era não só seu dever mas também prazer seu aproveitar o caso para lançar uma aura sobre a cabeça do Prior Robert, que fora a origem de tudo o que se passara.
E assim fez. Disse a missa com absoluta convicção, no meio da nuvem de brancas flores e tendo a seus pés o monte das roupas abandonadas. Certamente iria também, através do Padre Huw, informar Griffith Rhys de tudo o que acontecera e pedir-lhe para manter os olhos alerta para o caso de surgir qualquer informação relevante depois de terem partido os irmãos de Shrewsbury.
O irmão prior era fruto da sua fé e do seu nascimento, do seu treino para a santidade e para uma chefia arbitrária, e não podia livrar-se de nenhum desses aspectos.
O povo de Gwytherin, silencioso e observador, amontoou-se para encher o espaço disponível, sem qualquer ruído, sem exprimir qualquer opinião. A sua presença e silêncio eram tomados como aprovação. Guardavam para si aquilo que realmente pensavam.
- Agora - disse o Prior Robert, comovido quase até às lágrimas
- tomemos este abençoado fardo e louvemos a Deus pelo peso que carregamos.
E avançou em frente para oferecer as suas mãos delicadas e o frágil ombro, como primeiro devoto.
Este era o momento que o Irmão Cadfael mais temia, pois era o único pormenor de que se esquecera. Mas Bened, com desusada rapidez e no momento exacto, exclamou em voz alta:
- E Gwytherin vai ficar para trás, agora que foi feita a paz? - E rolou em frente com mais velocidade que imponência e tinha um sólido ombro sob a extremidade da cabeça do relicário antes de o prior conseguir chegar a ele, e meia dúzia de outros, com a poderosa e entroncada constituição do ferreiro, aceitaram o desafio com entusiasmo. Além de Cadfael, o único monge de Shrewsbury que teve um canto içado até ao pescoço foi Jerome, pois era sensivelmente da mesma altura, e a sua voz foi a única que teve uma exclamação de espanto perante o peso, e titubeou sob ele, até que Bened deslizou para mais perto e suportou a maior parte da carga que lhe cabia.
- O seu perdão, padre prior! Mas quem poderia pensar que aqueles ossos, pequenos e delgados, poderiam pesar tanto?
Cadfael falou, em apressada interpretação:
- Estamos aqui cercados de milagres, tanto pequenos como grandes. É bem verdade que o padre prior disse que agradecíamos a Deus pelo peso que tínhamos de carregar. Não será isto evidência e uma singular graça, ter o Céu permitido que o peso do seu valor fosse assim tão vincadamente demonstrado?
No seu estado presente, simultaneamente humilde e exaltado, o Prior Robert, aparentemente, não achou esta lógica tão estranha como o próprio Irmão Cadfael. Teria aceitado de braços abertos qualquer coisa que viesse aumentar o seu próprio triunfo.
E, assim, foi sobre robustos ombros de Gwytherin que o relicário e o seu conteúdo saíram da capela e foram levados em procissão até ao presbitério, com um tão vivo entusiasmo que quase parecia que a paróquia dificilmente podia esperar o momento de se ver livre deles. Foram homens de Gwytherin que foram buscar os cavalos e mulas e que atrelaram uma pequena carroça coberta de panejamentos, na qual a preciosa urna poderia ser levada para casa. Uma vez instalada neste veículo, que, afinal de contas, pouco custou em materiais e trabalho graças à benevolência do ferreiro, a urna não precisava de ser descarregada até chegarem a Shrewsbury. Ninguém queria que lhe acontecesse algo de adverso pelo caminho, tal como o Irmão Jerome sucumbir sob o seu peso e deixá-la cair, fazendo-a rebentar.
- Mas vamos sentir a sua falta - disse Cai, cheio de tristeza, atarefando-se com os arreios. - Padrig fez uma canção em louvor a Rhisiart, que o senhor teria gostado de ouvir, e mais uma noite com companhia para um pouco de bebida seria bem agradável. O rapaz manda-lhe os seus agradecimentos e desejos de boa viagem. Está escondido só até vocês terem desaparecido. E Sioned disse-me para lhe dizer, da parte dele, para cuidar bem das suas pereiras, porque as lagartas de Inverno estão a fazer o diabo com as nossas aqui.
- Ele é um bom ajudante num jardim - confirmou Cadfael, judiciosamente. - A mão ligeiramente pesada, mas despacha tudo o que seja de cavar, mais depressa do que qualquer outro noviço que tenha tido sob as minhas ordens. Também vou ter saudades dele. Só Deus sabe quem irei receber para o lugar dele.
- Mão leve não serve para trabalhar com ferro - disse Bened, recuando para admirar as rodas estriadas com que contribuíra para a carroça. - Habilidosas, sim! Leves, não! Vou dizer-lhe uma coisa, Cadfael! Ainda o hei-de ir ver a Shrewsbury. Há anos que sonho em fazer uma grande peregrinação através da Inglaterra e ir até Walsingham. Calculo que Shrewsbury fique mesmo no meu caminho.
No fim, quando tudo estava preparado e o Prior Robert já montara, Cai disse ao ouvido de Cadfael:
- Quando estiver no cimo da colina, donde nos viu a lavrar no outro dia, dê uma olhadela para o outro lado. Há um lugar onde os bosques se afastam um pouco e formam uma abertura na colina antes de voltarem a unir-se. Estaremos lá, um bom grupo dos nossos. E é por si.
O Irmão Cadfael, sem vergonha, pois estivera levantado e atarefado toda a noite e sentia-se muito cansado, anexou a mais mansa e inteligente das mulas, um animal de confiança, que seguiria por onde os cavalos conduzissem e que pisava com delicadeza em qualquer solo. Tinha uma sela alta e protegida, e Cadfael ainda não perdera o jeito de cavalgar com os joelhos, mesmo a dormir. A besta maior e mais pesada foi atrelada para puxar a carroça, mas esta era estreita se bem que estável, seguia bem mesmo em terreno de floresta; e Jerome, que não tinha grande peso, podia ainda viajar quer no costado da mula quer nos varais e na canga. De qualquer modo, porquê preocupar-se demasiado com o conforto de Jerome, que arquitectara aquela primeira visão de Santa Winifred, sabendo quase com certeza que as pesquisas do prior em Gales tinham elegido esta particular virgem como a mais desejável e mais disponível? Jerome teria cortejado Columbanus de modo igualmente assíduo, se este tivesse sobrevivido para destronar Robert.
O cortejo pôs-se cerimoniosamente a caminho, com metade de Gwytherin lá para vê-lo partir e soltar um imenso suspiro de alívio quando desapareceram. O Padre Huw abençoou os hóspedes que partiam. Peredur, era quase certo, estava do outro lado do rio, plantando a boa semente no espírito do meirinho. Merecia que esta missão fosse contada para seu crédito. Pecadores genuínos há-os aos montes, mas os penitentes genuínos são raros. Peredur cometera um acto detestável, mas continuava a ser um jovem muito simpático. Uma vez que esquecesse Sioned, Cadfael não sentia qualquer sério medo pelo seu futuro. Havia outras raparigas, afinal de contas. Não haveria muitas com a classe dela, mas algumas não lhe ficavam muito atrás.
O Irmão Cadfael acomodou-se bem na sela e sacudiu as rédeas para significar à mula que podia conduzi-lo para onde quisesse. Muito suavemente, dormitou. Ainda não se lhe podia chamar sono. Tinha ainda consciência da alternância da sombra e da luz sob as árvores, do ar fresco e do movimento sob o seu corpo e o sentimento de alguma coisa que estava terminada. Ou quase terminada, pois esta era apenas a primeira etapa do caminho para casa.
Quando chegaram à alta crista acima do vale do rio, despertou. Desta vez não estava lá nenhuma parelha de bois a lavrar, pois todo esse trabalho, até o arrotear dos novos campos, já estava feito. Voltou a cabeça para as terras altas cobertas de floresta, à sua direita, e esperou pela abertura entre as árvores. Era breve e estreita, um lanço de erva estendendo-se até uma suave crista, para lá da qual as árvores assomavam, densas e escuras. Nessa arredondada abertura amontoava-se um certo número de pessoas, a maioria, gente da casa de Sioned, suficientemente afastadas para não terem nome para qualquer pessoa que os conhecesse menos bem que ele. Uma nuvem de cabelo escuro junto a uma massa cor de linho, a vistosa ligadura de Cai empurrada para trás como um chapéu ao meio-dia de um dia quente, uma cabeça castanho-clara encostada a uma sebe vermelha que muito se assemelhava à abandonada tonsura do Irmão John. E também Padrig, que não partira ainda para as suas viagens. Todos acenavam e sorriam e Cadf ael retribuiu a saudação com entusiasmo. Depois, a procissão ambulante ultrapassou a estreita abertura, e os bosques tomaram conta de tudo.
O Irmão Cadfael, muito satisfeito, instalou-se confortavelmente na sela e caiu a dormir.
Pararam para passar a noite em Penmachmo, sob o abrigo de uma igreja onde davam hospitalidade aos viajantes. O Irmão Cadfael, sem uma desculpa a ninguém, retirou-se assim que acabou de tratar da mula e continuou o sono atrasado, no palheiro por cima do estábulo. Depois da meia-noite foi acordado pelo Irmão Jerome numa excitação de delírio.
- Irmão, uma grande maravilha! - baliu Jerome, estático. Chegou cá um viajante com muito sofrimento, devido a uma doença maligna, e de tal modo se queixou que todos na hospedaria foram roubados ao seu sono. E o Prior Robert pegou em algumas pétalas que tirámos da capela, mergulhou-as em água benta e deu esta a beber à pobre alma; depois levámo-lo para o pátio e deixámo-lo beijar os pés do relicário. E instantaneamente ficou aliviado da dor; e antes de voltarmos a pô-lo na cama já estava a dormir. Não sente nada; dorme como uma criança! Óh, irmão, somos o instrumento de espantosa graça!
- E é coisa para o espantar assim tanto? - perguntou o Irmão Cadfael, com censura, e a malícia vinha-lhe em parte por ter sido acordado e em parte em autodefesa, pois estava consideravelmente mais perturbado do que queria admitir. - Se o irmão tivesse fé naquilo que trouxemos de Gwytherin, certamente não ficaria admirado por se realizarem milagres ao longo do nosso caminho.
”Mas, pela mesma razão”, pensou com honestidade, depois de Jerome o ter abandonado para procurar uma audiência mais apreciadora, ”eu ficaria admirado! Creio verdadeiramente começar a compreender a natureza dos milagres! Porque seria um milagre se houvesse razão para ele? Os milagres não têm nada a ver com a razão. Os milagres contradizem a razão, vencem a razão, riem-se da razão, atacam meros desertos humanos e salvam onde querem. Se fizessem sentido, não seriam milagres.” E sentiu-se confortado e divertido e prontamente recaiu a dormir, sentindo que tudo ia bem num mundo que sempre soubera ser peculiar e perverso.
Vários prodígios menores, a maioria trivial, alguns irrisórios, seguiram-se por todo o caminho até Shrewsbury, embora fosse difícil julgar quantas das muletas abandonadas tinham sido necessárias e quantas, mesmo das que eram abandonadas, não teriam de ser retomadas pouco depois, quantos impedimentos da fala não seriam provocados mais pela vontade do que pela língua, quantos frágeis tendões eram produto mais do espírito do que das pernas; e, isto, sem mesmo contar com todos aqueles que procuram sensações e ligam um olho ou subitamente aparecem paralíticos, de modo a estarem de acordo com o último culto da moda. Tudo serviu para construir uma grande reputação que não só os acompanhou mas até se lhes adiantou e fazia já chegar à Abadia de S. Pedro e S. Paulo dádivas e legados à procura de atemorizado apoio, mandados na esperança de que os seus, duvidosos pecados fossem lavados pelas preces da santa.
Quando chegaram aos arredores de Shrewsbury, multidões de pessoas vieram ao seu encontro para acompanhar a procissão até à igreja limítrofe de S. Giles, onde o relicário devia aguardar o grande dia da trasladação da santa para a Abadia. Isto dificilmente podia ter lugar sem a bênção do bispo e a devida notícia a todas as igrejas e conventos religiosos para aumentar a glória crescente.
Não constituiu surpresa para Cadfael o facto de, quando esse dia finalmente chegou, se apresentar com um céu cinzento e uma chuva tempestuosa, para dar oportunidade a outro pequeno milagre. Porque, embora chovesse densamente em todos os campos e regiões em volta, nem uma gota caiu sobre a procissão, quando por fim levaram a urna de Santa Winifred para o seu lugar de descanso final, no altar da Abadia, onde imediatamente se apresentaram os procuradores de milagres, e a maior parte saiu satisfeita.
O Prior Robert fez o relato da missão ao Superior Heribert, em pleno capítulo.
- Padre, para meu grande desgosto sou obrigado a confessar que voltámos apenas quatro dos seis irmãos que juntos partimos de Shrewsbury. E regressámos sem glória e sem vergonha para o nosso convento, mas trazendo o tesouro que fomos buscar.
E em quase todas estas afirmações estava enganado, mas, como era pouco provável que alguém lho fosse fazer notar, não havia qualquer dano. O Irmão Cadfael dormitou suavemente por trás do seu pilar, através dos atemorizados elogios a respeito do Irmão Columbanus, de quem certamente teriam querido fazer um novo santo se não fosse o triste facto de todos suporem que as suas relíquias, com excepção das roupas abandonadas, estavam fora do seu alcance.
Deixando as devotas vozes apagar-se da sua consciência, Cadfael congratulou-se por ter tornado felizes tantas pessoas quanto possível e perdeu-se num sonho em que uma quente lâmina de punhal cortava habilmente a cera de um selo, sem nada estragar no conjunto. Há muito que não exercia algumas das suas artes mais duvidosas e ficou feliz em confirmar a sua crença de que não esquecera nenhuma delas e de que, a seu tempo, todas podiam ter meritória utilidade.
Foi cerca de dois anos mais tarde, no meio de uma brilhante tarde de Junho, que o Irmão Cadfael, atravessando o pátio grande de regresso do lago dos peixes, viu, entre os viajantes que chegavam ao portão, uma certa figura entroncada, robusta e forte que reconheceu. Bened, o ferreiro de Gwytherin, um pouco mais rotundo de barriga e mais cinzento de cabelo, achara que chegara a altura de realizar uma velha ambição e, vestido com uma túnica de peregrino, estava a caminho do túmulo de Nossa Senhora de Walsingham.
- Se tivesse adiado mais tempo - confidenciou, quando estavam os dois juntos num canto do jardim, com uma garrafa de vinho -, teria ficado demasiado velho para apreciar a jornada. E que havia lá agora que me retivesse, se tenho um bom rapaz, bem preparado e capaz de tomar conta do trabalho enquanto ando por fora? Habituou-se àquilo como peixe na água. Oh, sim, são marido e mulher há já dezoito meses e felizes como rouxinóis. Annest sempre soube o que queria, e desta vez devo confessar que não fez asneira.
- E já têm algum filho? - perguntou Cadfael, imaginando um turbulento rapazinho com um matagal de cabelo vermelho e com uma tonsura infantil provocada pelo contacto com a almofada.
- Ainda não, mas vem a caminho. Deve aparecer mais ou menos na altura em que eu regressar.
- E Annest está bem?
- Florescente como uma rosa.
- E Sioned e Engelard? Não tiveram problemas depois da nossa partida?
- Não, graças a Deus! Griffith Rhys participou que tudo estava bem e que não se falava mais no assunto. Estão casados e felizes e encarregaram-me de lhe apresentar as suas calorosas saudações e de lhe dizer que têm um filho (três meses, calculo que deve ter), moreno e galês como a mãe. E deram-lhe o nome de Cadfael.
- Bom, bom! - disse Cadfael, absurdamente feliz. - O melhor modo de aproveitar o lado bom de ter filhos e evitar o que tem de amargo é tê-los por procuração. Mas faço votos que nesse filho só encontrem alegrias. Ainda há-de haver um Bened, numa ou noutra das casas.
Bened, o peregrino, abanou a cabeça, mas sem grande desgosto, e estendeu a mão para a garrafa.
- Tempos houve em que esperei... Mas nunca teria dado resultado. Era um velho louco só a pensar nisso, e é melhor assim. E Cai está bom, manda-lhe lembranças e pede que beba um copo à saúde dele.
Beberam muito mais de um antes de chegar a hora do serviço de vésperas.
- Voltaremos a ver-nos amanhã, no capítulo - disse Bened, quando voltavam para o pátio grande -, porque trago cumprimentos do Padre Huw para o Prior Robert e para o Superior Heribert e vou precisar de si como intérprete.
- A esta hora, o Padre Huw deve ser a única pessoa em Gwytherin que não sabe a verdade - disse Cadfael, com certo remorso.
- Mas não teria sido justo sobrecarregar a sua consciência com tal carga. É melhor deixá-lo manter a sua inocência.
- A inocência está a salvo - disse Bened -, pois nunca disse palavra que a pusesse em dúvida, mas, apesar disso, não estou assim tão certo de que não saiba. O silêncio tem as suas vantagens.
Na manhã seguinte, durante o capítulo, entregou as suas mensagens de boa vontade e recomendações para o mosteiro em geral, em particular para os membros da missão do Prior Robert, da parte da paróquia onde Santa Winifred exercera o seu ministério para o altar da sua glorificação. O Superior Heribert fez-lhe amáveis perguntas a respeito da capela e do cemitério, que ele próprio nunca vira, mas aos quais, como disse, a Abadia devia o seu mais famoso patrono e as mais preciosas relíquias.
- E esperamos - disse, gentilmente - que o nosso grande ganho não se tenha traduzido em grande prejuízo para vós, porque nunca foi essa a nossa intenção.
- Não, padre superior - sossegou-o, sinceramente, Bened - não precisa de ter remorsos a esse respeito. É que, devo confessar-lhe, grandes maravilhas estão a acontecer no local da campa de Santa Winifred. Vai lá mais gente pedir ajuda que jamais anteriormente. Tem havido curas maravilhosas.
O Prior Robert ficou rígido no lugar e o austero rosto tornou-se de um branco azulado e contraiu-se com um ressentimento incrédulo.
- Mesmo agora, quando a santa está aqui no nosso altar e os devotos vêm aqui orar-lhe? Ah, mas são coisas pequenas, os resíduos da graça...
- Não, padre prior, são grandes coisas! Mulheres em labor de parto mortal, com as crianças atravessadas, têm sido levadas lá e pousadas sobre a campa donde a santa foi retirada e onde enterrámos Rhisiart, e as crianças têm endireitado e vindo perfeitas ao mundo, sem nenhum dano para as mães. Um homem cego há muitos anos veio lá, banhou os olhos numa infusão das flores do espinheiro que lá cresce e atirou a bengala fora e foi para casa a ver. Um jovem, cujo osso da perna fora partido e ficara unido torto, veio cheio de dores, cerrou os dentes com força e dançou para a santa; e, enquanto dançava, as dores abandonaram-no e os ossos endireitaram. Não consigo contar-lhe nem metade dos milagres que vimos em Gwytherin nestes últimos dois anos.
As lívidas feições do Prior Robert estavam a tomar um tom esverdeado e, sob as cuidadosas pálpebras, os olhos brilhavam com uma inveja cor de esmeralda. Como ousava aquela obscura aldeia, privada da sua santa, ultrapassar os pequenos prodígios de chuva que se guardava de cair, de feridas superficiais que saravam com louvável mas não miraculosa rapidez e até do número ligeiramente suspeito de coxos que traziam muletas e as deixavam perante o altar e saíam a caminhar sem ajuda?
- Houve uma criança de três anos que teve um ataque continuou Bened, com entusiasmo. - Estava dura como uma tábua nos braços da mãe e deixou de respirar; a mãe correu com ela todo o caminho desde uns campos distantes, atravessou o rio, levou-a até à campa de Santa Winifred e pousou-a na relva, morta. Mas, quando tocou na friagem da terra, a criança recomeçou a respirar e chorou, e a mãe pegou nela viva e levou-a para casa cheia de alegria, e até hoje continua com vida e de saúde.
- O quê, até mortos ressuscitados? - sibilou o Prior Robert, quase sem fala devido à inveja.
- Padre prior - disse o Irmão Cadfael, apaziguante -, certamente que isto não é mais que outra prova, a mais forte, do inultrapassável mérito e poder de Santa Winifred. Até o solo que outrora guardou as suas ossadas opera maravilhas, e toda a maravilha deve redundar em crédito e glória do lugar que asila esse mesmo corpo que abençoou a terra que ainda abençoa outros.
E o Superior Heribert, inconsciente do desgosto que consumia o seu prior, benignamente concordou que assim era e que a graça universal, quer se manifestasse em Gales, na Inglaterra ou na Terra Santa, ou onde quer que fosse, sempre devia ser louvada com universal gratidão.
- Aquilo foi inocência ou malícia? - perguntou Cadfael, quando mais tarde se despediu de Bened, junto ao portão.
- Descubra sozinho! O importante, Cadfael, é que era verdade! Essas coisas aconteceram e continuam ainda a acontecer.
Quando ele tomou a estrada em direcção a Lilleshall, o Irmão Cadfael ficou a vê-lo afastar-se, até que a corpulenta figura, com as suas passadas longas e fáceis, ficou do tamanho de uma criança e desapareceu na curva da muralha, Depois voltou para o seu jardim, onde um novo jovem noviço, com dezasseis anos acabados de fazer e saudades do lar, esperava muito sério pelas suas ordens, tendo acabado de plantar alfaces em fileiras. Para já, era um jovem calado. Talvez, quando tivesse tomado a medida de Cadfael, a sua língua começasse a agitar-se e ninguém mais a fizesse parar. Não sabia nada, mas era rápido a aprender, e, embora estivesse ainda tão próximo da infância, que atraía todo o solo húmido e solto para a sua própria pessoa, as plantas cresciam sob as suas mãos. No conjunto, Cadfael estava bem satisfeito.
”Não vejo”, pensou, revendo de novo toda a história a partir desta calma distância, ”o que poderia ter feito para agir melhor. A pequena santa galesa está onde sempre quis estar, abençoada seja, e, ao que parece, a mostrar o seu prazer por tomar bom cuidado dos seus. E nós temos o que antes nos pertencia, apenas aquilo a que tínhamos direito e talvez apenas aquilo que merecemos e, de um modo geral, parece ser considerado satisfatório. É evidente que o corpo de um criminoso calculista serve quase tão bem como a coisa real, se houver suficiente fé. Quase, mas não completamente!
”Sabendo o que agora todos sabem, aquela boa gente de
Gwytherin bem que pode ter esperança em grandes coisas. E se um pouco dos seus agradecimentos e gratidão passarem para Rhisiart... Bom, e por que não? Ele mereceu-o, e isso é sinal de que ela o recebeu com boas-vindas. Até pode estar contente por ter a sua companhia. Agora já não constitui ameaça para a sua virgindade; e, se ele está em terreno que não lhe pertence, a culpa não é dele. A sua companheira de campa não deixará de lhe dar uma ou duas folhas da sua grinalda de santa!”
Ellis Peters
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