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ESTA HISTÓRIA começa com um repentino acesso de raiva.
Não obstante, minutos antes a calma matinal reinava na secretaria de governo sueco, onde o acontecimento teve lugar. A causa de tudo aquilo fora um relatório entregue na noite anterior, que o primeiro-ministro sueco lia agora, sentado à sua mesa de madeira escura.
Estava-se na primavera de 1983, de manhã cedo, em Estocolmo; uma neblina húmida e indefinida pairava sobre a cidade e sobre as árvores, que ainda não tinham começado a florescer. No gabinete do primeiro-ministro se falava, naturalmente, do tempo, tal como acontecia em qualquer outro local de trabalho. Ake Leander, que trabalhava como contínuo nos mais recônditos domínios da secretaria de governo, era a pessoa a quem todos se dirigiam quando se tratava do tempo e das suas manifestações. Dispunha sempre, segundo o que se dizia, da informação meteorológica mais confiável.
Alguns anos antes, tinham concedido um título a Leander que soava mais distinto que o de simples contínuo: "expedidor de repartição" ou algo semelhante. No entanto, ele continuava se considerando contínuo e não sentia a menor necessidade de uma nova denominação profissional. Ake Leander estivera sempre ali, na proximidade dos primeiros-ministros e dos secretários de Estado, antigos e atuais, como uma peça do inventário, cumpridor e discreto. Houve quem propusesse, brincando, que, depois da sua morte, fosse nomeado santo padroeiro da secretaria de governo, um fantasma simpático que zelasse pelo esforço de governar esse país que se chama Suécia.
O fato de Ake Leander saber tanto sobre o clima se devia ao seu passatempo favorito nas horas livres. Era solteiro, morava num apartamento mediano em Kungsholmen, e era dali que se mantinha em contato com uma rede de amigos internacionais com quem se comunicava através de emissões entusiásticas de radioamadorismo. Desde longa data que sabia de memória a maior parte dos códigos utilizados na gíria dos radioamadores. Não só que QRT significava "interromper emissão" ou que AURORA indicava interferências na emissão e recepção por causa de uma aurora boreal de alta frequência. Quase todas as noites, colocava os auriculares e enviava o seu QRZ: "Está sendo chamado por..." seguido do seu nome. Circulava uma lenda que dizia que numa ocasião, há muitos anos, o então primeiro-ministro precisara, por motivo desconhecido, de saber a previsão do tempo para os meses de outubro e novembro em Pitcairn, uma ilha remota do Oceano Pacífico onde os marinheiros amotinados contra o capitão Bligh, do Bounty, tinham queimado o navio sequestrado, ficando na ilha para sempre. No dia seguinte à consulta, Ake Leander informou ao primeiro-ministro os dados meteorológicos que solicitara. E, naturalmente, não perguntou porque precisava deles. Como já se disse, era um homem muito discreto.
"Ake Leander é um homem que ninguém, nem sequer o pessoal do Ministério dos Negócios Estrangeiros, consegue superar no que toca a contatos internacionais", costumavam dizer com malevolência ao vê-lo percorrer os corredores com passos medidos. Seja como for, está visto que ninguém, nem mesmo ele, pôde prever o acesso de raiva que ia quebrar a calma.
Quando o primeiro-ministro concluiu a leitura da última página, se levantou e se aproximou de uma das janelas. Lá fora, as gaivotas esvoaçavam em todas as direções.
Tratava-se dos submarinos. Os malditos submarinos que durante o outono de 1982 haviam entrado supostamente em águas territoriais suecas, violando assim as fronteiras do país. No meio de todo o escândalo, a Suécia realizava eleições, e o presidente do Parlamento incumbira Olof Palme da tarefa de formar um novo governo, depois do Partido Conservador ter perdido vários lugares e ficado em minoria parlamentar. A seguir à tomada de posse, o novo governo designou imediatamente uma comissão para que investigasse os acontecimentos relacionados com os ditos submarinos que não haviam sido forçados a emergir. Sven Andersson, o anterior Ministro da Defesa, fora nomeado presidente da comissão e acabara de apresentar o resultado do seu trabalho; Olof Palme tinha lido o relatório e não entendia nada: as conclusões da investigação eram incompreensíveis. Estava fora de si de raiva.
No entanto, vale a pena notar que não era a primeira vez que Olof Palme se enfurecia com Sven Andersson. Na realidade, a sua aversão remontava a um dia de junho de 1963, véspera do solstício de verão, em que um sujeito grisalho de cinquenta e sete anos, elegantemente vestido, fora detido na Ponte de Riksbron, no coração de Estocolmo. Tudo acontecera de forma tão discreta que ninguém que por acaso se encontrasse nas proximidades se dera a mínima conta. O homem detido se chamava Wennerstrõm, era coronel da Força Aérea e, a partir desse momento, fora desmascarado como espião a favor da União Soviética.
Ao mesmo tempo que Wennerstrõm era detido, Tage Erlander, o primeiro-ministro sueco na época, regressava para casa de uma viagem ao estrangeiro depois de desfrutar de uma das suas escassas semanas de férias num complexo turístico de Riva del Sole. Quando saiu do avião e se viu cercado pelos jornalistas, Erlander demonstrou a mais absoluta surpresa, pois ignorava quase por completo o assunto. Não sabia nada sobre a detenção, nem conhecia nenhum coronel Wennerstrõm de caráter duvidoso da Força Aérea. Quando muito, o nome e as suspeitas talvez tivessem sido mencionados meramente de passagem em alguma das ocasiões em que o Ministro da Defesa finalizava uma das suas reuniões irregulares com ele. No entanto, nada de gravoso tinha sido apresentado, nada para realmente ser tido em conta. As suspeitas da existência de espiões russos estavam sempre presentes, flutuando nas águas turvas da Guerra Fria. Daí que a resposta de Erlander para os jornalistas tenha sido pouco explícita: o homem que durante tantos anos seguidos, vinte e três para ser exato, tinha sido primeiro-ministro sueco ficou com cara de idiota sem saber o que havia de responder.
Nem Andersson, o ministro da Defesa, nem qualquer outro político que estivesse ao corrente do assunto tinham lhe comunicado o que estava acontecendo. Durante a última parte da viagem, um voo de pouco menos de uma hora entre Copenhague e Estocolmo, teria podido se inteirar minimamente do assunto escandaloso e se preparar para o confronto com os excitados jornalistas. Mas ninguém o recebeu nem o acompanhou na escala no aeroporto dinamarquês.
Embora nunca chegasse a vir a público, durante os dias imediatamente a seguir ao seu regresso, Erlander esteve a ponto de se demitir como primeiro-ministro e presidente do Partido Social-Democrata; nunca tinha se sentido tão desiludido com os seus colegas do governo. E Olof Palme, que já nessa época começava a ser considerado como o seu sucessor, compartilhava óbvia e lealmente a indignação perante a negligência que levara Erlander àquela humilhante situação. Nos círculos próximos do governo costumava se dizer que Olof Palme velava pelo seu mestre como um sabujo furibundo. Olof Palme nunca conseguiu perdoar Sven Andersson por ter exposto Erlander a tamanho embaraço.
Muitas pessoas se perguntaram mais tarde por que razão Olof Palme, apesar de tudo, convidara Sven Andersson para fazer parte do seu gabinete. Na verdade, não era muito difícil de compreender. Se tivesse outra hipótese, teria evitado essa, claro, mas simplesmente não era possível. Sven Andersson era um homem com muito poder e influência nas bases locais do partido; oriundo de uma família da classe operária, ao contrário de Olof Palme, que tinha raízes na histórica nobreza báltica, entre cujos familiares se contavam oficiais, aliás, ele mesmo era oficial na reserva, mas, acima de tudo, pertencia à abastada classe alta sueca. Não tinha qualquer apoio das bases do partido; Olof Palme era um renegado, certamente que sério e sincero nas suas convicções políticas, mas, mesmo assim, um peregrino político forasteiro que tinha vindo numa visita vitalícia.
Ake Leander, que naquele momento caminhava pelo corredor em frente à porta do primeiro-ministro com um memorando escrito em termos pouco amistosos contra os funcionários que se descuidavam com o trancar das portas da secretaria de governo à noite, teve oportunidade de ouvir o irromper da raiva. Deteve-se por um breve instante antes de prosseguir como se nada tivesse acontecido.
Olof Palme era incapaz de conter a sua fúria. Dirigiu-se a Sven Andersson, que se encolhia no sofá cinzento do gabinete do primeiro-ministro. Estava ruborizado de raiva e agitava os braços em espasmos estranhos que eram característicos dos seus momentos coléricos.
— Não existe prova nenhuma! Gritou. — Não passam de alegações, insinuações, histórias sutis e mal contadas por oficiais desleais da Marinha. Esta investigação não nos ajudou a esclarecer seja o que for, pelo contrário, nos conduzirá diretamente aos terrenos lamacentos da política.
Um ano e meio antes, na noite de 28 de outubro de 1981, um submarino soviético tinha encalhado na baía de Gasefjärden, ao largo de Karlskrona. Não eram somente águas territoriais suecas, mas também uma área militar interdita. O submarino correspondia à designação de U 137, e o seu comandante, Anatoli Michajlovitj Gusjtjin, defendia que o submarino se desviara da rota devido a uma falha não identificada da bússola giroscópica. Oficiais da Marinha sueca e também os pescadores da região manifestaram a sua firme convicção de que só um comandante em estado de embriaguez extrema poderia cometer a proeza de se embrenhar tanto no arquipélago sem ter encalhado muito antes.
A 6 de novembro, o U 137 foi rebocado para águas internacionais e desapareceu. Neste caso, ninguém mais colocava em dúvida de que era um submarino soviético e que tinha violado as águas territoriais suecas. Por outro lado, nunca se esclareceu se se tratava de uma violação consciente ou se tinha sido obra de um comandante ébrio, mas uma vez que os russos se mantiveram sempre firmes em relação à versão da falha da bússola, se interpretou isso como a confirmação de que o comandante estava, efetivamente, bêbado. Evidentemente, nenhuma frota que se prezasse admitiria que um seu comandante estava embriagado no exercício das suas funções.
Na época se dispunha de provas, mas onde estavam essas provas agora?
O que o anterior ministro da Defesa tinha a apresentar a seu favor, e a favor da investigação, ninguém sabe. De fato, não guardou quaisquer anotações sobre o assunto, e Olof Palme, que morreu assassinado alguns anos mais tarde, também não deixou nenhum testemunho escrito a esse respeito.
Ake Leander também não expressou qualquer opinião, nem oral nem escrita, sobre aquele acesso de raiva no gabinete do primeiro-ministro. Deixou o seu cargo em 1989, nas vésperas do Ano Novo, e se refugiou no seu apartamento e nas amizades radiofônicas. Recebeu um reconhecimento caloroso do então primeiro-ministro, e ninguém teve qualquer sensação de que aparecesse sob forma fantasmagórica na secretaria de governo depois do outono de 1998, ano em que faleceu.
Foi, portanto, com esse acesso de raiva que tudo começou: esta história sobre as condicionantes da política, esta viagem pelos terrenos lamacentos em que a verdade e a mentira foram permutando de aparência até que, finalmente, não haveria maneira de se esclarecer nada.
* * *
Primeira Parte
A Caminhada Para o Pantanal
Um
NO MESMO ano em que Kurt Wallander completou cinquenta e cinco anos, concretizou, para seu próprio espanto, um sonho que vinha alimentando há muito tempo. Desde que se separara de Mona, praticamente quinze anos antes, que pensava em deixar o apartamento de Mariagatan, cujas paredes guardavam tantas memórias dolorosas, e se mudar para uma casa no campo. Cada vez que chegava em casa à noite, depois de um dia de trabalho mais ou menos inútil, era subjugado pela memória dos tempos idos em que vivera ali com a sua família. Agora, por outro lado, os móveis pareciam fitá-lo com uma espécie de acusação de abandono.
Nunca conseguiu se reconciliar com a ideia de ter de viver naquela casa até atingir uma idade em que talvez não pudesse se governar sozinho. Apesar de ainda não ter sessenta anos, cada vez pensava com mais frequência na velhice solitária do pai e sabia que não desejava repetir a sua experiência; bastava se olhar no espelho de manhã, na hora de fazer a barba, para comprovar que se parecia cada vez mais com o seu progenitor. Quando era jovem, tivera uma fisionomia que fazia lembrar a mãe, mas agora tinha a sensação de que o pai estava ganhando terreno, como um corredor que tivesse ficado muito para trás, mas que agora, pouco a pouco, o ia alcançando à medida que se aproximava da meta invisível.
A existência que Wallander conceitualizava era muito simples: não queria se transformar num homem amargo e isolado, envelhecendo na solidão e apenas recebendo visitas da sua filha e talvez, esporadicamente, dos seus antigos colegas que subitamente se lembrassem de que ainda estava vivo. Não tinha nenhuma crença religiosa moralizadora que o levasse a esperar algo melhor do outro lado do rio das águas negras; ali não haveria mais nada a não ser a mesma escuridão da qual nascera. Antes de ter completado cinquenta anos, a morte o assustava, mas de forma pouco clara; temia aquilo que repetia como um mantra pessoal: continuaria morto por uma imensidade de tempo. Tinha visto muitos mortos na sua vida e dificilmente podia dizer que nos seus mudos semblantes transparecesse algo que sugerisse a existência de um céu que acolheria essas almas.
Como tantos outros policiais, tinha vivido todas as variantes imagináveis da morte. Em certa ocasião, logo depois de completar cinquenta anos e de ter sido felicitado na delegacia com um bolo de aniversário e um discurso vazio de lugares-comuns proferido por Lisa Holgersson, na época a chefe do posto, começou a rebuscar na memória e a anotar num caderno comprado para esse fim todos os mortos que conhecera. Tinha sido uma ocupação macabra que o atraía sem que soubesse porquê. Quando chegou ao décimo suicídio, de um homem por volta dos quarenta anos, um toxicodependente que tinha quase todos os problemas imagináveis, se deu por vencido. O sujeito tinha se enforcado no sótão da casa em ruínas onde se alojava; o morto, que se chamava Welin, se pendurara de modo a que o pescoço forçosamente quebrasse, para não correr o risco de ir sufocando lentamente. O médico-legista dissera a Wallander que conseguira o seu propósito; fora hábil no trabalho de carrasco de si mesmo.
Nesse momento, Wallander abandonou os casos de suicídio e, por estupidez sua, se dedicou durante algumas horas a tentar recordar os jovens ou crianças que encontrara mortos. No entanto, também acabou desistindo dessa tarefa, pois era muito repulsiva. Depois sentiu vergonha e queimou o caderno de apontamentos, como estivesse fazendo algo perverso e proibido. Wallander era, no fundo, um homem bem-disposto, embora nem sempre se permitisse encorajar essa faceta de sua personalidade.
Porém, sempre tivera a morte como companheira, e ele mesmo matara duas pessoas em serviço, mas, uma vez concluídas as investigações obrigatórias, nunca o acusaram de ter recorrido a violência desproporcionada. Ter matado duas pessoas era a cruz particular que lhe coubera carregar. O fato de não ter por hábito rir muito amiúdo se devia às experiências que se vira obrigado a vivenciar.
Contudo, um dia, Wallander tomou uma decisão determinante. Encontrava-se perto de Lõderup, não muito longe da casa onde o seu pai morara, falando com um agricultor que sofrera um assalto violento, e no caminho de volta a Ystad viu a seta de uma imobiliária que apontava para um pequeno caminho de cascalho e anunciava uma casa à venda. A decisão tinha surgido de repente, do nada. Parou, deu meia volta e procurou a casa, mas antes mesmo de sair do carro já notara que precisaria de obras. Tratava-se de uma construção antiga, em forma de U, com barrinhas de madeira cruzados na fachada. Faltava uma das alas, provavelmente desaparecida num incêndio, que pôde constatar ao percorrer o pequeno terreno. Ainda se recordava de que naquele dia, no princípio do outono, um bando de aves migratórias tinha passado rumo ao sul numa rota mesmo por cima da sua cabeça. Espiou pelas janelas e não demorou a verificar que era apenas o telhado que precisava de uma bom conserto. A vista era deslumbrante: viu o mar ao longe, talvez até um dos ferryboats que vinham da Polônia a caminho de Ystad. Naquela tarde de setembro de 2003 iniciou uma relação de amor imediata com aquela casa solitária.
Foi diretamente à imobiliária em Ystad e ficou contente por saber que o preço não era tão alto que não pudesse contrair um empréstimo com amortizações dentro do seu orçamento. Logo no dia seguinte voltou à casa na companhia do agente imobiliário, um jovem que falava muito depressa e parecia viver num universo paralelo. Os últimos proprietários da casa tinham sido um jovem casal que abandonara a sua vida em Estocolmo, mas quase imediatamente, antes de sequer terem começado a escolher a mobília, decidiram se separar. Não obstante, as paredes da casa vazia não ocultavam nada que o fizesse repensar. E o mais importante de tudo era, sem sombra de dúvida, poder se mudar imediatamente, porque o telhado ainda aguentaria mais uns anos; a única coisa que precisaria fazer era pintar algumas paredes, talvez mudar a banheira e eventualmente comprar um fogão novo. Mas a caldeira não tinha mais de quinze anos, e a canalização e a instalação elétrica aproximadamente a mesma idade.
Antes de ir embora, Wallander perguntou se havia mais alguém interessado. Havia uma pessoa, assegurou o agente com ar preocupado, como se quisesse que fosse Wallander a ficar com ela, e com a tácita e subentendida advertência de que devia se decidir sem qualquer demora. No entanto, Wallander não tinha intenção de adiar a decisão, de modo que falou com um colega que tinha um irmão avaliador, e conseguiu que este inspecionasse a casa no dia seguinte; não encontrou outros defeitos além dos que ele mesmo já tinha notado. Nesse mesmo dia se dirigiu ao seu banco, onde lhe comunicaram que seria concedido o crédito necessário para comprar a casa. Durante todos os anos que tinha vivido em Ystad fora juntando dinheiro sem nenhum objetivo definido, e tinha agora economias suficientes para pagar a entrada.
Nessa mesma noite, se sentou à mesa da cozinha e se pôs a fazer um cálculo detalhado, num estado de espírito um tanto solene por causa da nova situação. A meia-noite já estava decidido: compraria aquela casa que tinha o nome teatral de Outeiro Negro. Apesar de ser muito tarde, telefonou à sua filha Linda, que morava numa área residencial recentemente construída junto à saída da estrada para Malmõ; ainda não estava dormindo.
— Venha aqui! Disse Wallander exaltado. — Tenho grandes novidades.
— A meia-noite?
— Sim, sei que amanhã está de folga.
Chegara a ele, como uma surpresa total, o dia em que Linda, uns anos antes durante uma caminhada pela praia de Mossby, confessara que tinha resolvido seguir os passos do pai. Não levara muitos instantes a reconhecer que a sua decisão o enchia de alegria, porque em certa medida era como se ela voltasse desse modo a dar sentido a todos os anos em que tinha trabalhado como policial. Quando terminou a formação, Linda começou a trabalhar em Ystad e nos primeiros meses viveu com ele em Mariagatan, embora não tivesse sido muito boa ideia, visto que ele mais se parecia com um velho cão, habituado a se sentar sempre no mesmo lugar; além disso lhe custava vê-la como a mulher adulta em que se transformara. A relação deles se salvou quando Linda conseguiu o seu próprio apartamento.
Naquela noite, Wallander contou os seus planos, e Linda acompanhou-o no dia seguinte para verem a casa e não hesitou em afirmar que era precisamente aquela que o pai deveria comprar; mais nenhuma senão aquela mesma, no fim de um caminho, sobre uma colina suavemente inclinada e com vista para o mar.
— O avô vai aparecer por aqui, brincou ela. — Mas não precisa ter medo, será só para dar a sua bênção.
O dia em que assinou o contrato de compra da casa e, de repente, se viu com um grande molho de chaves na mão foi um momento decisivo e feliz na vida de Wallander.
Mudou-se em primeiro de novembro, depois de ter pintado dois dos aposentos e de ter desistido da compra de um fogão novo. Deixou o apartamento de Mariagatan sem a menor dúvida se estaria fazendo a coisa certa. No dia em que tomou posse do seu novo lar soprava um vento forte de sudeste.
Logo na primeira noite, no meio do temporal intenso, acabou a luz; inesperadamente, Wallander se viu sentado na sua casa nova, agora escura como breu. As vigas do teto chiavam como se estivessem se contorcendo, e, para piorar as coisas, notou que entrava chuva num canto. Mas, mesmo assim, não se arrependia minimamente: era ali que queria viver.
No jardim havia uma casinha de cachorro. Quando criança sempre sonhara ter um cão, mas quando fizera treze anos já tinha perdido qualquer esperança; no entanto, nesse dia os pais surpreenderam-no com um cachorro, e desde então amara aquele bicho acima de tudo. Mais tarde costumava pensar que, no fundo, tinha sido a cadela, Saga, que tinha lhe ensinado o que podia ser o amor verdadeiro. Quando Saga tinha três anos foi atropelada por um caminhão, e o rapaz nunca havia sentido um choque e uma dor tão intensos; não tinha qualquer dificuldade em evocar os sentimentos caóticos que o tinham invadido, apesar de ter acontecido há mais de quarenta anos. A morte é avassaladora, pensava às vezes. Tem um punho forte e implacável. Duas semanas mais tarde comprou um cão, um cachorro labrador preto que, apesar de não ser de raça pura, foi apresentado pelo dono como da mais elevada categoria. Wallander já tinha decidido lhe pôr o nome de Jussi, em honra do grande tenor sueco, um dos seus maiores heróis.
No princípio de dezembro convidou os colegas da delegacia para uma festa de inauguração. Também nessa noite houve um corte de eletricidade, mas agora já estava preparado com velas e os dois lampiões à querosene que tinha herdado do pai; um pouco menos de uma hora a luz voltou. Acabou por ser uma noite que Wallander queria recordar para sempre: ainda não era muito velho para ter coragem de romper com tudo; ainda tinha amigos, não apenas colegas que compareceram por uma espécie de sentido de dever.
Depois dos últimos convidados terem ido embora, Wallander deu uma caminhada com Jussi já a altas horas da noite. Levava uma lanterna para não tropeçar na escuridão, já que não estava exatamente sóbrio e havia bastantes valas escondidas entre os terrenos de cultivo que no verão brilhariam cobertos de colza amarela. Soltou Jussi, que se perdeu na noite. O céu brilhava, frio e límpido, o vento tinha acalmado. Ao longe, no horizonte, vislumbrou as luzes de uma embarcação.
Cheguei até aqui, disse de si para si. Aventurei-me a mudar a minha vida, até comprei um cão. Agora a questão é: o que faço com este ponto de viragem? Jussi voltou da escuridão como uma sombra silenciosa, mas o cão também não tinha uma resposta na ponta da língua à pergunta que Wallander tinha colocado no vazio da noite.
Passados quase quatro anos, no início de 2007, Wallander sonhou precisamente com aquele instante, na noite seguinte à festa na sua nova casa. A pergunta continua no ar, pensou ao acordar. Passaram-se quase quatro anos e ainda não sei por onde ir nesta espécie de encruzilhada.
Era uma terça-feira, depois do Dia de Reis. Durante a noite, uma tempestade de neve passageira fustigara o sul de Skâne antes de desaparecer no mar Báltico e deixara um monte de neve que bloqueava a entrada da casa. Antes das seis horas da manhã, Wallander se pôs a limpar a neve enquanto Jussi farejava entusiasticamente o rastro de alguma lebre nos campos vestidos de branco. Ia começar o dia com uma visita ao médico para controlar o nível de glicose no sangue. A diabete fora diagnosticada há mais de dez anos e no princípio conseguira manter os valores num nível aceitável através de uma mudança de dieta, algum exercício físico e comprimidos, mas a partir de alguns anos atrás também se injetava insulina todos os dias.
Depois da consulta médica, Wallander continuaria com a investigação que o tinha ocupado desde os princípios de dezembro; se tratava do caso de um comerciante de armas já com uma certa idade, de nome Olof Hansson, e da sua mulher, Hanna, que tinham sido atacados brutalmente por assaltantes durante um roubo em que tinha sido levada uma grande quantidade de armas. O homem ainda permanecia em coma induzido e o seu prognóstico era muito ruim. A mulher estava consciente, mas ia perder a visão de um olho e sofrera uma fratura craniana. Wallander fora um dos primeiros a chegar ao local do crime, uma casa bonita com um vasto jardim, a pouco mais de dez quilômetros ao norte de Ystad, e se impressionara com a violência desmedida com que tinham atacado os dois idosos. Tinham batido até deixá-los inconscientes, amarrados com cordas e deixados abandonados ali para morrer.
Há mais de um mês que trabalhava para deter os autores do crime. As primeiras semanas se passaram sem a menor ideia ou pista confiável, embora o fato de ter sido tão bem planejado fosse por si só uma pista para Wallander, pois dava a entender que os criminosos estariam com toda a probabilidade entre os delinquentes cadastrados.
Olof Hansson morreu na véspera de Natal e o caso passou da categoria de roubo e ofensas corporais graves ao de homicídio. Nele trabalhavam principalmente duas agentes de polícia, Ann-Louise Edenman, de Lund, e Kristina Magnusson, que, como o próprio Wallander, tinha pedido transferência de Malmó para Ystad; no entanto, sem que ninguém o tivesse realmente decidido, a tarefa de dirigir a investigação recaiu sobre Wallander.
No dia 12 de janeiro, a sua vida mudou de um momento para o outro. Tudo começou com um avanço decisivo na investigação quando Kristina Magnusson entrou de repente na sala de Wallander quando ele relia uns relatórios sobre roubos de armas que tinham enviado da Direção-Geral da Polícia Judiciária. Pela expressão da sua cara, Wallander compreendeu que algo acontecera; reconheceu a si mesmo naquele rosto, pois também ele costumava irromper pelas salas dos colegas quando recebia dados novos importantes.
— Hanna Hansson começou a falar, anunciou a colega — E a recuperar a memória.
— O que contou?
— Que reconheceu pelo menos dois dos homens.
— Então e as máscaras?
— Disse que reconheceu as vozes. Os dois já tinham estado antes na loja.
— Com as caras destapadas?
Kristina Magnusson assentiu. Wallander compreendeu imediatamente o que aquilo podia significar.
— Quer dizer que estão registrados nas antigas gravações das câmeras.
— Não é de excluí-lo.
Wallander avaliou a informação que acabara de receber.
— Tem certeza de que não está enganada?
— Parecia ter a mente lúcida e soava muito convencida.
— Sabe que o marido faleceu?
— Não. As duas filhas estão no hospital, mas os médicos pediram para que não lhe dessem a notícia agora.
Wallander meneou a cabeça, pensativo.
— Se está tão lúcida como diz, então já deve saber; terá deduzido pelo olhar das filhas.
— Está dizendo que tanto faz se nós lhe dissermos? Wallander se levantou da cadeira.
— Só estou dizendo que não devemos nos iludir; certamente sabe que o marido morreu. Há quanto tempo estavam casados? Quarenta e sete anos? Bem, vamos reunir todo o pessoal disponível e estudar as filmagens das câmeras de vigilância.
Quando Wallander saiu para o corredor atrás de Kristina Magnusson, cujo traseiro gostava de observar secretamente, tocou o telefone da sua sala. Hesitou se atenderia ou não, mas finalmente resolveu voltar para trás. Era Linda dizendo que tinha alguns dias de folga depois de ter trabalhado durante a véspera do Ano Novo em Ystad, que fora mais agitado que o costume, com muitas brigas familiares e casos de maus-tratos.
— Tem um minuto?
— Na realidade, não. É possível que possamos identificar alguns dos ladrões das armas.
— Precisamos nos encontrar.
Wallander notou que estava tensa e se preocupou, como sempre acontecia quando achava que podia ter lhe acontecido alguma coisa.
— É algo grave?
— Não, não.
— Podemos nos encontrar à uma hora.
— Na praia de Mossby?
Wallander achou que era uma piada.
— Levo roupa de banho?
— Estou falando sério. Na praia de Mossby à uma, mas nada de banho.
— O que vamos fazer lá com este frio e vento insuportáveis?
— Estarei lá à uma. E você também.
Linda desligou sem lhe dar tempo para fazer mais perguntas. O que quereria? Durante uns momentos ficou imóvel tentando encontrar uma resposta, mas sem êxito. Depois se encaminhou para a sala de reuniões que tinha o melhor aparelho de televisão e passou duas horas vendo os cassetes das câmeras de vigilância de Hansson. Pouco antes do meio-dia e meia ainda faltava ver metade das filmagens. Wallander se levantou e anunciou que retomariam a visualização depois das duas da tarde. Martinsson, um dos policiais com que Wallander tinha trabalhado mais anos em Ystad, olhou-o surpreso.
— Vamos interromper agora no meio? Que eu saiba, você nunca teve horas fixas para almoçar.
— Não vou almoçar. Tenho outra reunião.
Deixou a sala pensando que a sua resposta tinha sido mais ríspida que o necessário. Martinsson e ele não eram apenas colegas, eram amigos. Quando Wallander dera a festa de inauguração da casa de Lóderup, Martinsson fizera um discurso em sua honra, do cão e da casa. Somos como um fiel casal de velhos, pensou enquanto saía da delegacia. Um casal que discute, é certo, mas só para se manter em forma.
Encaminhou-se para o seu carro, um Peugeot que tinha comprado há quatro anos, e partiu em direção ao seu encontro. Quantas vezes terei percorrido esta estrada? Quantas mais a percorrerei? Enquanto esperava num semáforo vermelho, veio a sua memória algo que o pai tinha lhe contado sobre um primo que Wallander nunca conhecera. O primo era condutor de ferryboats entre as várias ilhas do arquipélago de Estocolmo; travessias curtas que, no geral, não duravam mais do que cinco minutos; anos sem conta o mesmo trajeto. Um dia não aguentou mais. O ferryboat estava cheio de barcos, no fim da tarde de um dia de outubro. E de repente virou o leme e rumou para mar aberto.
Mais tarde contou que sabia que a embarcação tinha combustível suficiente para chegar a um dos países bálticos. E foi tudo o que disse quando se viu rodeado de condutores indignados e da guarda costeira, que apareceu para obrigá-lo a voltar ao rumo; jamais deu uma explicação para tentar justificar o seu ato. Wallander pensou que, de alguma forma, compreendia o primo.
Umas nuvens solitárias se amontoavam no céu enquanto dirigia pela costa para oeste. De manhã, tinha ouvido no rádio que previam nova queda de neve. Pouco antes de passar o desvio para Marsvinsholm uma moto ultrapassou-o. O motoqueiro cumprimentou-o com a mão, e Wallander pensou que era uma das coisas que mais temia acima de tudo, que Linda sofresse um acidente de moto. Não fizera a menor ideia de que Linda gostava de motos até que um dia, vários anos antes, ela entrara no quintal do prédio do pai com a sua Harley-Davidson nova em folha, com os cromados reluzindo ao sol. A primeira pergunta que fez quando tirou o capacete foi se perdera totalmente o juízo.
— Você não conhece todos os meus sonhos, respondera ela com um sorriso, toda contente. — E eu também não sei quais são os seus.
— Uma moto seria a última coisa.
— Que pena. Poderíamos ter passeado juntos. Inclusivamente, chegou a prometer à filha que lhe compraria um carro e lhe pagaria a gasolina se se desfizesse da moto. Contudo, ela recusara, e Wallander soubera desde o início que tinha perdido a batalha. Linda herdara a sua teimosia, não conseguiria fazê-la desistir da moto, independentemente de como tentasse convencê-la.
Quando entrou no estacionamento da praia de Mossby, completamente deserta devido à ventania, Linda já tinha tirado o capacete e esperava-o em cima de uma duna, com o cabelo ao vento. Wallander desligou o motor do carro e ficou sentado observando a filha, vestida com aquela roupa de couro preto e as botas caras que encomendara sob medida a uma fábrica da Califórnia, e que lhe custaram quase o salário de um mês. Há pouco tempo era uma menina que se sentava no meu colo e me considerava o maior de todos os heróis, pensou Wallander. Agora já tem trinta e seis anos, é policial como eu e tem uma mente perspicaz e um sorriso aberto. O que mais posso pedir?
Saiu do carro, enfrentou as rajadas de vento e subiu ofegante a areia solta até chegar perto de Linda. Ela sorriu.
— Aconteceu uma coisa neste lugar, disse ela. — Lembra-se?
— Anunciou que ia ser policial. Sim, foi aqui.
— Não, estou pensando noutra coisa.
De repente, Wallander percebeu a que se referia.
— Um bote de borracha deu à costa com os cadáveres de dois homens, disse. — Foi há tantos anos que já nem me lembro da data. Para mim, é como se tivesse acontecido noutro mundo.
— Fale-me desse mundo.
— Não acredito que tenha me obrigado a vir aqui para isso.
— Conte assim mesmo!
Wallander estendeu a mão, apontando para o mar.
— Dos países que estão do outro lado sabíamos pouco ou nada; às vezes, até fingíamos que não existiam, para dizer a verdade. Estávamos separados dos países bálticos, nossos vizinhos mais próximos. E eles de nós. Um dia, o bote foi trazido pelo mar até aqui, e a investigação me levou até à Letônia, a Riga. Pude fazer uma visita ao outro lado de uma cortina de ferro que já não existe. Nessa época, o mundo era diferente; nem pior nem melhor, apenas diferente.
— Vou ter um filho, anunciou Linda. — Estou grávida.
Wallander susteve a respiração, como se não tivesse entendido o que acabava de ouvir. Começou logo a olhar para a barriga da filha, escondida por baixo da roupa de couro preto. Linda começou a rir.
— Claro que ainda não se nota nada, estou só de dois meses.
Anos mais tarde, Wallander se lembraria de todos os pormenores daquele encontro em que Linda lhe fizera aquela grande revelação. Desceram para a praia, encolhidos para se protegerem do vento que lhes batia no rosto. Linda contou tudo o que quis saber. Quando retornou para a delegacia, uma hora mais tarde, Wallander quase tinha esquecido da investigação de que era responsável.
Pouco antes das cinco horas da tarde, mesmo antes de começar a nevar outra vez, conseguiram localizar umas imagens de dois homens que provavelmente tinham estado envolvidos no roubo de armas e no brutal assassinato. Wallander resumiu o que já todos intuíam, que aquilo representava um passo importante para a resolução do caso.
Acabava de dar a reunião por terminada e todos recolhiam os seus papéis e pastas quando Wallander sentiu uma vontade quase irresistível de compartilhar a boa nova que inesperadamente lhe alegrara a vida. Porém, não disse nada. Obviamente.
Não era propriamente especialidade sua falar de assuntos tão íntimos, principalmente com os colegas. Nunca na vida.
* * *
Dois
WO DIA 30 de agosto de 2007, às duas e pouco da tarde, Linda deu à luz uma menina, a primeira neta de Kurt Wallander, no hospital de Ystad. O parto foi normal e também pontual: a data que a parteira apontara. Wallander tinha aproveitado para tirar uns dias de férias e passou o dia tentando fazer uma mistura de cimento e gesso em condições para tapar as fendas do muro que segurava o teto do alpendre junto à porta de entrada. Não teve muito êxito, mas pelo menos se mantinha ocupado.
Quando tocou o telefone e o comunicaram que, a partir daquele momento, podia se intitular avô, começou a chorar. A comoção invadiu-o e, por um instante, se sentiu completamente indefeso. Não foi Linda quem lhe telefonou, mas sim o pai da criança, o consultor financeiro Hans von Enke. Uma vez que Wallander não quis se mostrar emocionado, agradeceu curtamente a informação, pediu que desse um beijinho em Linda da sua parte e se apressou a terminar a conversa.
A seguir deu um longo passeio com Jussi. O calor dos últimos dias de verão ainda persistia em Skâne; tinha trovejado na noite anterior, e agora o ar depois da chuva era fresco e leve. Wallander pôde finalmente admitir as inúmeras vezes que tinha se perguntado por que razão Linda nunca manifestara o mínimo desejo de ter um filho.
Já completara trinta e sete anos, o que, na opinião de Wallander, era muito tarde para ser mãe. Mona era muito mais jovem quando Linda nascera. Wallander tinha se interessado pelas suas várias relações amorosas a uma distância discreta, e tinha gostado dos seus namorados, alguns mais do que outros. Algumas vezes, chegou a estar convencido de que Linda conhecera por fim o homem da sua vida, só para logo a seguir ficar sabendo que aquela relação tinha acabado de repente, mas sem que a filha alguma vez lhe desse uma explicação. Embora Wallander e Linda fossem muito ligados um ao outro, havia assuntos que não abordavam nem quando se entregavam às maiores confidencialidades. E entre os temas interditos se contava precisamente a questão dos filhos.
Naquele dia ventoso na praia de Mossby lhe falara pela primeira vez do homem com quem ia ter um filho. Para Wallander, a sua mera existência veio como uma total surpresa, pois estava convencido de que, nesse momento, a sua filha vivia sem um relacionamento estável. No entanto, tinha se enganado por completo, e a revelação de Linda surpreendera-o.
A filha conhecera Hans von Enke em Copenhague, em casa de uns amigos comuns que os tinham convidado para jantar e celebrar o seu noivado. Hans era de Estocolmo, mas vivia em Copenhague há dois anos, onde trabalhava numa consultora financeira especializada na criação de fundos de cobertura de risco. Linda achou-o arrogante e se irritou com ele. Explicou-lhe, num tom bastante feroz, que era uma simples policial com um salário baixo e que não fazia a menor ideia do que era esse tal fundo; duvidava até que conseguisse sequer pronunciar um nome tão complicado. Tudo acabou num longo passeio noturno por Copenhague, no fim do qual ficaram de voltar a se encontrar. Hans von Enke era dois anos mais velho que Linda e também não tinha filhos de nenhuma relação anterior. Desde que começaram a sair tinham decidido, embora de forma implícita, que queriam ter filhos.
Dois dias depois de Linda ter lhe comunicado aquela grande notícia, foi visitá-lo com o homem com quem tinha decidido partilhar a vida. Hans von Enke era alto e magro, de cabelo ralo e olhos de um azul penetrante. Wallander se sentiu imediatamente inseguro na sua companhia; a sua maneira de se expressar lhe soava estranha e se perguntava o que tinha levado a filha a se apaixonar por ele. Quando ela lhe contou que ganhava o triplo de Wallander e que o seu prêmio anual podia rondar um milhão de coroas, pensou entristecido que fora o dinheiro que tinha deslumbrado a filha. Só de pensar nisso se indignava de tal modo que, quando voltou a se encontrar com Linda, levantou a questão sem papas na língua. Estavam num café do centro de Ystad; Linda se aborreceu ao ponto de lhe atirar um bolo de canela na cara antes de se levantar e sair pela porta afora. Ele se apressou a alcançá-la na rua para pedir desculpas. Não, não era o dinheiro, explicara Linda, era um amor profundo e sincero, algo que nunca sentira até então.
Wallander decidiu se esforçar por ver o seu futuro genro com melhores olhos. Pela Internet e com a ajuda do empregado do banco que tratava dos seus modestos assuntos financeiros em Ystad, Wallander se informou do que pôde sobre a consultora financeira em que trabalhava o genro. Aprendeu o que significavam os fundos de cobertura de risco e uma série de outras coisas que, diziam, eram a base da atividade de uma financeira moderna. Quando Hans von Enke o convidou para visitar Copenhague, aceitou de bom grado e deu uma volta pelas luxuosas instalações situadas junto à Torre Redonda, onde a empresa tinha a sua sede. Depois, Hans von Enke convidou-o para almoçar e, quando Wallander retornou a Ystad, já não subsistia qualquer sensação de inferioridade que sentira na primeira ocasião. Telefonou para Linda do carro e disse que tinha começado a gostar do homem que ela escolhera.
— Mas tem um senão, admitiu Linda. — Tem pouco cabelo. De resto, está bem.
— Estou desejoso que chegue o dia em que possa lhe mostrar o meu escritório.
— Já mostrei. Esteve em Ystad a semana passada. Ninguém lhe contou?
Naturalmente, ninguém tinha dito nada a Wallander. Naquela noite se sentou à mesa da cozinha com um lápis na mão para calcular o que Hans von Enke ganhava por ano.
Ficou atônito ao ver o número e uma vaga sensação de mal-estar voltou a desanimá-lo. Depois de tantos anos de serviço, o ordenado dele quase nem chegava às quarenta mil coroas por mês; e, mesmo assim, se considerava afortunado. No entanto, não era ele, mas Linda, quem se ia casar; o dinheiro seria a sua felicidade ou a sua desgraça, mas não um assunto com o qual ele se deveria preocupar.
Em março, Linda e Hans se mudaram para os arredores de Rydsgârd, para viverem juntos numa grande casa que o jovem financeiro tinha comprado. Hans começou a ir e vir todos os dias para Copenhague, enquanto Linda continuou a trabalhar como de costume. Quando a casa já estava em ordem, Linda lhe perguntou se gostaria de jantar com eles no sábado seguinte; também convidariam os pais de Hans, que, naturalmente, o queriam conhecer.
— Também falei com a mãe, disse Linda.
— E ela vem?
— Não.
— Porquê? Linda encolheu os ombros.
— Acho que está doente.
— O que tem?
Linda olhou-o um bom tempo, antes de responder.
— Muito álcool. Acho que bebe mais do que nunca.
— Não sabia.
— Há muitas coisas que você não sabe.
Wallander aceitou, claro, o convite para o jantar em que conheceria os pais de Hans von Enke. O pai, Hakan von Enke, era um antigo capitão que tivera sob o seu comando tanto submarinos como navios, especializados na detecção de submarinos. Linda achava, embora não tivesse certeza, que também nalguma ocasião fizera parte do comando de operações que decidia quando as unidades do Exército deviam atacar ou não um inimigo com fogo vivo. A mãe de Hans von Enke se chamava Louise e tinha sido professora de idiomas. Não tinham mais filhos, Hans era o único.
— Não tenho o hábito de me relacionar com a nobreza, avisou Wallander sombrio quando Linda ficou em silêncio.
— São como a maioria das pessoas. Penso que terão muito sobre que falar.
— Como por exemplo?
— Já veremos. Não assuma essa atitude tão pessimista.
— Não sou pessimista! Estou só perguntando.
— O jantar é às seis. Não chegue tarde e não traga Jussi; só arma confusão.
— Olha que Jussi é um cão muito obediente. Que idade têm? Os pais, quero dizer.
— Hakan vai fazer setenta e cinco e Louise é uns anos mais nova. E, além disso, Jussi nunca obedece, como sabe, pois falhou redondamente em educá-lo. Graças a Deus, teve mais sorte comigo.
Com isso, saiu da sala antes que o pai pudesse replicar. Por um instante, Wallander quase o tomou por provocação, porque Linda conseguia sempre a última palavra, mas o sentimento passou e voltou a se concentrar na papelada que tinha à sua frente.
No sábado em que Wallander saiu de Ystad para conhecer os pais de Hans von Enke, caía sobre Skâne uma chuva de suavidade insólita para a estação em que se encontravam.
Tinha passado a manhã, desde muito cedo, sentado na sala revendo pela enésima vez a parte mais importante do material de investigação relativo ao comerciante de armas morto e aos revólveres roubados. Se bem que acreditassem ter identificado os ladrões, ainda careciam de provas. Ainda não encontrei a chave, pensou, estou apenas em busca do tinido remoto do chaveiro. Às três horas da tarde estava no meio da volumosa documentação e resolveu ir embora para casa, dormir umas horas e depois se preparar para o jantar. Linda tinha lhe dito que os pais de Hans von Enke talvez fossem um pouco formais demais para o seu gosto, mas precisamente por essa razão sugeriu que vestisse o seu melhor terno.
— Só tenho aquele que uso para os funerais, confessou Wallander. — Mas provavelmente não devo usar uma gravata preta, o que acha ?
— Não precisa vir se lhe dá tanto trabalho.
— Estava só tentando ser engraçado.
— Pois falhou. Tens no mínimo três gravatas azuis, põe uma delas. A meia-noite, quando Wallander regressava de táxi para Lóderup, pensou que a noite tinha sido muito mais agradável do que esperara. Tanto o velho capitão como a sua mulher eram, de fato, pessoas com quem se podia conversar.
Wallander ficava sempre de pé atrás com desconhecidos, porque pensava que considerariam a sua condição de policial com desprezo mais ou menos manifesto. No entanto, com nenhum dos dois se deu conta de indícios de algo semelhante; antes pelo contrário, mostraram o que ele interpretou como interesse autêntico pelo seu trabalho.
Hakan von Enke expressou, aliás, opiniões sobre a organização da polícia sueca e sobre as deficiências na investigação de vários casos de crime bem conhecidos, opiniões que Wallander até estava disposto a subscrever. O inspetor teve por sua vez a oportunidade de lhe fazer perguntas sobre os submarinos, sobre a Marinha sueca, sobre o desmantelamento da defesa militar sueca, e para todas recebeu respostas não só divertidas como também bem fundamentadas. Louise von Enke não falava muito; sempre com um sorriso amável nos lábios, se dedicou a ouvir a conversa que os outros convidados mantinham.
Depois de chamar um táxi, Linda acompanhou-o ao jardim e foi com ele até ao portão. Deu-lhe o braço e apoiou a cabeça sobre o seu ombro, algo que a jovem só fazia quando estava satisfeita com ele.
— Portei-me bem, portanto, constatou Wallander.
— Sim, melhor que nunca. Quando quer, consegue mesmo.
— Sei o quê?
— Comportar-se. Inclusive fazer perguntas inteligentes sobre outros assuntos que não tenham a ver com o trabalho policial.
— Gostei deles, embora não tenha ficado sabendo grande coisa sobre ela.
— Louise? Ela é mesmo assim; não fala muito, mas sabe ouvir as pessoas melhor do que todos os outros juntos.
— A mim me pareceu um tanto misteriosa.
Saíram do jardim para a rua e se refugiaram debaixo de uma árvore da chuvinha que continuara a cair durante todo o jantar.
— Mas não conheço ninguém tão misterioso como você, salientou Linda. — Durante anos acreditei que escondia alguma coisa, mas já aprendi que de todos aqueles que parecem misteriosos apenas uns poucos escondem realmente algo.
— E eu não me encontro entre eles?
— Não me parece. Tenho razão?
— Suponho que sim. Embora às vezes talvez tenhamos segredos cuja existência ignoramos. Quem sabe?
A luz dos faróis do táxi rompeu a escuridão. Era um desses veículos que pareciam miniônibus, que as companhias de táxis utilizavam cada vez mais.
— Detesto estes ônibus, resmungou Wallander.
— Não se irrite, por favor. Levarei o seu carro amanhã.
— Estarei na delegacia a partir das dez. E agora volta lá para dentro e escute o que pensam de mim. Quero um relatório completo amanhã.
No dia seguinte, pouco antes das onze, Linda lhe trouxe o carro.
— Boa, disse ela ao entrar na sua sala, sem bater, como de costume.
— Boa, o quê?
— Causou uma boa impressão. Hakan se exprimiu com certa graça. Disse: "O seu pai é uma aquisição extraordinária para a família."
— Nem sei o que isso quer dizer.
Linda deixou as chaves do carro sobre a mesa. Estava com pressa, pois tinham combinado ir passear de carro com os sogros. Wallander deitou uma olhada pela janela.
O manto de nuvens começava a se dissipar.
— Vão-se casar? Perguntou antes dela sair pela porta.
— Eles estão muito ansiosos, respondeu Linda. — Agradecia que não começasse a insistir você também. Primeiro vamos ver se nos damos bem.
— Mas vão ter um filho!
— Isso há de correr lindamente. Agora, vivermos juntos o resto da vida... É outra coisa.
E foi embora. Wallander ouviu os rápidos passos ressonantes dos saltos das suas botas contra o chão. Não conheço a minha filha, constatou para si. Houve um tempo em que achei que a conhecia, mas agora começo a compreender que cada vez me parece mais estranha.
Pôs-se junto à janela e contemplou o velho depósito de água, os pombos, as árvores, o céu azul que espiava entre as nuvens já menos espessas. Invadiu-o uma inquietação profunda, uma desolação que se estendia em torno da sua pessoa. Ou existia apenas no seu interior? Era como se todo ele, de forma imperceptível, estivesse se transformando numa ampulheta em que a areia fina ia correndo, implacável e silenciosa. Continuou a observar os pombos e as árvores, até o desassossego ceder. Então voltou para a mesa e continuou, persistente, com a revisão dos relatórios amontoados à sua frente.
Em meados de outubro, sete meses depois, Wallander e os seus colegas tinham avançado tanto na investigação que puderam apresentar o caso ao procurador e requerer a detenção de quatro suspeitos. Dois deles eram cidadãos poloneses, identificados graças às câmeras de vigilância da loja das armas. A polícia também tinha conseguido provas suficientes para fazer uma visita na casa de dois indivíduos de Gotemburgo, ambos ligados ao crime organizado dirigido por imigrantes da antiga Iugoslávia.
Wallander festejou o Natal com a família de Linda. Contemplava a sua neta, que ainda não tinha nome, com admiração e serena alegria. Linda assegurava que a garota se parecia com ele, sobretudo nos olhos, mas por mais que Wallander olhasse não via semelhança alguma.
— A menina já devia ter um nome, opinou quando estavam saboreando um bom vinho na noite de Natal.
— No seu devido momento, disse Linda.
— Acreditamos que o nome surgirá em breve, assegurou Hans.
— Porque me chamaram Linda? Perguntou a sua filha de repente. — De onde saiu esse nome?
— Foi ideia minha, respondeu Wallander. —Mona queria outro nome; não me recordo qual. Mas para mim teve sempre cara de Linda desde o primeiro momento.
O seu avô, por outro lado, achava que devia se chamar Vênus.
— Vênus?
— Bem, já sabe como às vezes não estava no seu perfeito juízo. Não gosta do seu nome, por acaso?
— Por acaso, gosto, respondeu Linda. — E não tem com que se preocupar: se nos casarmos, não vou mudar de sobrenome. Nunca me transformarei numa Linda von Enke.
— Talvez eu devesse mudar e me chamar Wallander, disse Hans. — Embora ache que os meus pais levariam isso a mal.
Nos dias a seguir ao Natal, Wallander se dedicou a organizar e a se desfazer de papéis acumulados ao longo de todo o ano. Era uma rotina que tinha estabelecido anos atrás, preparar espaço para o ano seguinte antes de entrarem no novo ano. No início de janeiro pronunciaram a sentença no caso do roubo das armas. Wallander tinha falado com o procurador, que pediu a pena máxima possível para os acusados, e os advogados de defesa não puderam levantar muitas objeções. Wallander pensou que, dessa maneira, a próxima vez que visse a filha de Hanna Hansson poderia olhá-la de frente.
E assim foi: os dois juízes se mostraram severos; os dois poloneses culpados das lesões e do homicídio foram condenados a oito anos de prisão. Wallander estava convencido de que o recurso para o Tribunal de Apelação não conduziria a qualquer redução significativa da pena.
No dia em que a sentença foi lida, Wallander tinha pensado em passar a noite em casa a ver um filme. Permitira-se o luxo de comprar uma antena parabólica, então agora tinha acesso a um sem-número de canais de cinema. Pegou na pistola, pois pensava levá-la para casa e limpá-la. Estava um tanto atrasado nos treinos de tiro e sabia que tinha de recomeçar a praticar no princípio de fevereiro, o mais tardar. A sua sala não estava limpa de papéis, mas não havia nenhuma investigação urgente pela qual fosse responsável. Mais vale aproveitar, disse para si mesmo. Esta noite posso ficar vendo um filme, amanhã talvez seja tarde demais.
Entretanto, uma vez em casa e depois de dar uma caminhada com Jussi foi tomado por um desassossego repentino. Havia épocas em que sentia um desamparo enorme naquela casa plantada no meio dos campos desertos. Chegava ao ponto de pensar que estava encalhado nessa terra lamacenta: tal e qual os destroços de um naufrágio. No geral, a inquietação passava depressa, mais precisamente naquela noite teimava em perdurar. Sentou-se à mesa da cozinha, estendeu um jornal velho e começou a limpar a sua arma. Quando terminou nem oito horas eram. Sem saber como, se decidiu num instante, mudou de roupa e voltou para Ystad. No inverno, a cidade estava quase deserta, principalmente à noite nos dias de semana; havia, quando muito, dois ou três bares ou restaurantes abertos de noite. Wallander estacionou o carro e se dirigiu a um restaurante que havia na praça. Não obstante os clientes serem poucos, preferiu se sentar num canto da sala e pediu uma entrada e uma garrafa de vinho. Enquanto esperava que o vinho e a comida chegassem, bebeu uns quantos aperitivos, consciente de que se inundava de álcool para aliviar a sua inquietude. Quando o garçom trouxe o jantar e lhe serviu o vinho, já estava embriagado.
— Isto parece estar às moscas, disse. — Onde se enfiaram os clientes?
O garçom encolheu os ombros.
— Não sei, mas aqui não estão, respondeu. — Bom proveito.
Wallander remexia mais do que comia do prato. A garrafa de vinho, pelo contrário, acabou em menos de meia hora. Pegou no celular e procurou entre os números da agenda. Tinha vontade de falar com alguém, mas com quem? Guardou o celular, pois não queria que alguém ouvisse que estava ébrio. A garrafa estava vazia, e já tinha bebido mais que o suficiente, mas, mesmo assim, pediu um café e um conhaque quando o garçom se aproximou para o informar que iam fechar. Pôs-se de pé e cambaleou, enquanto o garçom o observava com um olhar cansado.
— Um táxi, pediu Wallander.
O garçom fez a ligação a partir de um telefone pendurado na parede junto ao balcão. Wallander estava de pé, mas notava o balanço do corpo. O garçom desligou e assentiu.
Quando saiu para a rua, o vento soprava frio e cortante. Acomodou-se no banco de trás do táxi e, quando chegaram à porta de sua casa, estava quase dormindo. Deixou a roupa amontoada no meio do chão e adormeceu mal se deitou na cama.
Meia hora após o sono vencer o inspetor, chegou um homem à delegacia. Estava muito exaltado e exigiu falar com um dos policiais de serviço. Martmsson veio atendê-lo.
O homem explicou que era garçom de um restaurante. Em cima da mesa, à frente de Martinsson, pousou um saco de plástico que continha uma arma idêntica à do próprio Martinsson. O garçom conhecia, além do mais, o nome do cliente, porque com os anos Wallander tinha se transformado num personagem conhecido na cidade. Depois de redigir a participação, Martinsson permaneceu sentado durante muito tempo olhando para a arma.
Como era possível que Wallander esquecesse a arma de serviço? E, em primeiro lugar, porque a levara com ele para ir a um restaurante? Martinsson olhou o relógio; passava da meia-noite. Na verdade, devia telefonar para Wallander, mas se absteve.
Deixaria para o dia seguinte. Sentiu um grande mal-estar perante aquilo que se avizinhava.
* * *
Três
QUANDO Wallander chegou na delegacia no dia seguinte, esperava-o uma mensagem de Martinsson na recepção. Praguejou em silêncio; estava de ressaca e com náuseas. Se Martinsson queria falar com ele logo que chegasse só podia se dever a um acontecimento que exigisse a sua presença imediata. Se ao menos pudesse esperar um dia ou dois, lamentou o inspetor para si, ou mesmo se fosse só umas horas. Naquele momento desejava unicamente fechar a porta da sua sala, desligar o telefone e se pôr a dormir com os pés em cima da mesa. Despiu o casaco, bebeu o resto de uma garrafa de água mineral choca que havia sobre a mesa antes de ir diretamente encontrar Martinsson na sala deste, que ele mesmo ocupara antes.
Bateu na porta e entrou. Mal viu a expressão de Martinsson entendeu que algo grave acontecera. Wallander sabia interpretar o seu estado de espírito, visto que o colega alternava entre o mais vivo entusiasmo e o desânimo total. Wallander se sentou na cadeira das visitas.
— O que aconteceu? Não é costume me escrever- um recado destes, a menos que seja importante.
Martinsson olhou-o com um olhar estranho.
— Não faz nenhuma ideia do que quero lhe falar?
— Não. Por acaso devia?
Martinsson não respondeu e continuou a olhar para Wallander, que começava a se sentir cada vez mais maldisposto.
— Não vou ficar aqui tentando adivinhar, declarou finalmente.
— Diga o que quer.
— Continua a não imaginar porque quero falar consigo?
— Continuo.
— Pois isso complica ainda mais as coisas. Martinsson abriu uma gaveta, tirou a pistola de Wallander e colocou-a sobre a mesa.
— Suponho que agora entenda do que estou falando.
Wallander olhou fixamente para a arma. A sensação gélida de horror que se apoderou dele foi tão grande que quase se sobrepôs à ressaca e ao enjoo. Lembrava-se de ter limpo a pistola na noite anterior, mas o que acontecera depois? Fez um esforço para refrescar a memória. Da mesa da cozinha, a sua arma de serviço tinha ido parar na mesa de Martinsson, mas o que acontecera nesse percurso, como a pistola tinha chegado ali, não fazia a mínima ideia. Era incapaz de oferecer uma explicação, uma justificação.
— Ontem à noite esteve no bar de um restaurante, disse Martinsson. — Porque levou a pistola?
Wallander meneou a cabeça, incrédulo. Continuava a não se recordar de nada. Como poderia tê-la colocado no bolso quando foi para Ystad? Mas, por mais estranho que parecesse, fora isso mesmo que aparentemente fizera.
— Não sei, confessou Wallander. — Está tudo um buraco negro.
— Um garçom veio aqui ontem, começou Martinsson. — Por volta da meia-noite; estava muito exaltado, pois encontrara a sua arma na cadeira onde esteve sentado.
Fragmentos de memória difusos desfilaram no seu cérebro. Teria tirado a pistola do bolso do casaco juntamente com o celular? Mas, se fosse assim, como podia tê-la esquecido?
— Não tenho qualquer memória do que aconteceu, admitiu.
— Devo tê-la colocado no bolso quando saí de casa. Martinsson se levantou e abriu a porta.
— Quer um café?
Wallander negou com a cabeça. Martinsson saiu para o corredor e, entretanto, o inspetor pegou na pistola e verificou que tinha a carga completa. Começou a transpirar. Ocorreu-lhe como um relâmpago a hipótese de dar um tiro na cabeça. Virou a arma sobre a mesa para que apontasse para a janela. Finalmente, Martinsson voltou.
— Pode me ajudar? Perguntou Wallander.
— Desta vez não, pois o garçom reconheceu-o; é impossível. Terá de ver o chefe agora mesmo.
— Já falou com ele?
— Se não tivesse falado estaria em incumprimento do meu dever.
Wallander não tinha mais nada para dizer. Guardaram silêncio durante uns momentos enquanto ele tentava encontrar uma saída, consciente de que não a encontraria.
— O que acontecerá agora? Perguntou finalmente.
— Estive olhando o regulamento. É claro que haverá uma investigação interna. Além disso, existe o risco de aquele garçom, cujo nome é, aliás, Ture Saage, caso não saiba, ir aos jornais dar com a língua nos dentes. Nos tempos que correm pode ganhar umas notas se der a notícia oportunamente. Um policial embriagado que se distrai deve vender bastantes exemplares.
— Espero que tenha lhe pedido para manter a boca fechada.
— Se pedi! Até lhe disse que podia ser passível de punição divulgar a informação de uma investigação policial. Infelizmente acho que não se deixou enganar.
— Acha que devia falar com ele?
Martinsson se inclinou sobre a mesa. Wallander se entristeceu ao vê-lo cansado e abatido.
— Há quantos anos trabalhamos juntos? Há vinte? Ou mais? No princípio era você quem me repreendia. E com razão. Censurava-me, mas também me elogiava. Agora é a minha vez de lhe dar instruções: não faça nada. Mesmo se se lembrar de alguma coisa, só conseguirá mais confusão ainda. Não fale com Ture Saage, não fale com ninguém a não ser com Lennart. E vá vê-lo já; está a sua espera.
Wallander concordou em silêncio e se levantou.
— Devemos tentar que isto se resolva da melhor forma possível, prosseguiu Martinsson.
Pelo tom de voz do seu colega, Wallander percebeu que o seu prognóstico não era muito promissor. Antes de sair, estendeu a mão para recolher a sua arma. Martinsson negou com um gesto.
— Será melhor deixá-la aqui, afirmou.
Wallander saiu para o corredor. Kristina Magnusson passou ao seu lado com uma xícara de café na mão e cumprimentou-o com a cabeça. Wallander compreendeu que ela sabia e desta vez não se virou para olhar o seu traseiro. Entrou no banheiro e se fechou ali dentro. O espelho por cima do lavatório tinha uma rachadura de cima a baixo. Exatamente como eu, pensou. Lavou o rosto, secou-o e observou os olhos injetados de sangue. A rachadura do espelho lhe dividia o rosto em dois.
Sentou-se no sanitário. Outro sentimento tinha se juntado no seu interior à vergonha e ao temor daquilo que tinha feito. Era a primeira vez que lhe acontecia algo semelhante; não se lembrava de uma única ocasião em que tivesse tratado a arma de serviço de uma maneira que contrariasse o regulamento. Quando a levava para casa, guardava-a num armário fechado à chave, junto a uma caçadeira para a qual tinha licença e que usava nas ocasiões contadas pelos dedos em que ia caçar lebres com os vizinhos. Era algo que ultrapassava o fato de ter estado embriagado, outro tipo de esquecimento que não reconhecia; umas trevas sobre as quais não era capaz de verter qualquer luz.
Quando finalmente se levantou e continuou em frente para a sala do chefe da delegacia, tinha passado mais de vinte minutos sentado no banheiro. Se Martinsson telefonou dizendo que estava a caminho, vão pensar que fugi, pensou. Mas ainda não cheguei a isso.
Depois de duas mulheres no cargo, Lennart Mattson tinha assumido a chefia da delegacia no ano anterior. Era jovem, nem quarenta anos tinha, e fizera uma carreira meteórica na esfera burocrática da polícia em que atualmente se recrutava a maioria dos chefes. Como a maior parte dos policiais no ativo, Wallander considerava que esse tipo de recrutamento não abonava em favor da capacidade da polícia de executar o seu trabalho. Isto, juntamente com o fato de Mattson ser de Estocolmo e de se queixar com uma frequência irritante da sua dificuldade em compreender a pronúncia de Skâne, não facilitava as coisas. Wallander sabia que alguns dos seus colegas se esforçavam por falar com um sotaque quase indecifrável quando falavam com Mattson, mas o inspetor não participava nesse tipo de demonstrações mal-intencionadas; tinha decidido se manter no seu cantinho e não se misturar no que Mattson tivesse entre mãos, desde que ele não se intrometesse muito no trabalho policial do dia a dia. Visto que Mattson também parecia respeitá-lo, até ao momento não tinha tido nenhum problema com o seu novo chefe. No entanto, percebeu que essa situação agora tinha passado à história.
A porta da sala de Mattson estava entreaberta. Wallander bateu e entrou ao ouvir a voz esganiçada do chefe.
Sentaram-se num sofá estampado, com o qual, a bastante custo, se conseguira mobilar o espaço reduzido. Mattson desenvolvera a técnica de evitar ao máximo ser ele quem iniciava a conversa, inclusive quando ele mesmo convocava a reunião. Corria o rumor de que um assessor da Direção Nacional da Polícia tinha estado sentado com ele num silêncio absoluto. Passada meia hora, o assessor se levantara e, sem ter trocado uma palavra com Mattson, apanhara o avião de volta para Estocolmo.
Wallander pensou por um instante que talvez o pudesse pôr à prova ficando em silêncio, mas se sentia cada vez mais enjoado e com vontade de sair e de respirar ar fresco.
— Não tenho nenhuma explicação para o que aconteceu, começou. — Compreendo que é absolutamente indesculpável, e que tem de tomar as medidas apropriadas.
Mattson parecia ter preparado as perguntas, porque as formulou sem hesitar.
— Já aconteceu antes?
— Ter deixado a arma esquecida num bar? Claro que não!
— Tem problemas com álcool?
Wallander franziu a testa ao ouvir a pergunta. De onde tinha o homem tirado aquilo?
— Bebo moderadamente, assegurou Wallander. — Quando era jovem bebia muito aos fins de semana, mas isso acabou.
— No entanto, saiu para beber num dia de trabalho.
— Para beber não, fui jantar.
— Uma garrafa de vinho, várias outras bebidas alcoólicas e um conhaque com o café, não é verdade?
— Se já sabe, porque pergunta? Mas a isso não chamo beber e duvido que alguma pessoa sensata neste país o faça. Beber é quando se emborca aguardente ou vodca, para se embebedar, e não outra coisa.
Mattson refletiu um instante antes de formular a pergunta seguinte. Wallander se irritava com a sua voz aguda e se perguntou se aquele homem tinha a menor ideia das experiências dolorosas que o trabalho policial no terreno podia implicar.
— Há cerca de vinte anos, os seus colegas detiveram-no por dirigir embriagado. Entretanto, abafaram o incidente e não houve consequências. Mas compreenderá que me questionem se tem um problema de dependência do álcool, que talvez tente esconder, e que agora lhe causou consequências tão infelizes.
Wallander se lembrava perfeitamente do caso. Jantara com Mona em Malmõ; fora depois da separação, numa época em que ainda nutria a ilusão de poder convencê-la a voltar para ele. O jantar terminara numa discussão acesa, e depois vira um homem, que ele não conhecia, vir buscá-la de carro. Os ciúmes obscureceram-no de tal modo que perdera o bom senso por completo e dirigira o carro de volta para Ystad, embora devesse ter ficado num hotel ou dormido no carro. Na entrada da cidade fora mandado parar por uma patrulha noturna. Levaram-no para casa, estacionaram o seu carro e não aconteceu mais nada. Um dos policiais que o tinham detido morrera, o outro se aposentara. Mesmo assim, os rumores continuavam a circular, então acabara de ouvir. Wallander achava aquilo tudo muito estranho.
— Não nego, mas esse incidente, como bem disse, aconteceu há vinte anos. E lhe garanto que não tenho qualquer problema com o álcool. E no que se refere à razão por ter saído numa noite de semana, não vejo que isso possa interessar a alguém para além de mim.
— Todavia, preciso tomar medidas. E uma vez que tem férias acumuladas e neste momento não está à frente de nenhuma investigação importante, sugiro que tire uma semana de férias. Evidentemente que se abrirá uma investigação interna. Por agora é tudo o que posso lhe dizer.
Wallander se levantou; Mattson permaneceu sentado.
— Tem mais alguma coisa a acrescentar? Perguntou o chefe.
— Não, respondeu Wallander. — Farei o que sugere; tiro uns dias de férias e vou para casa.
— Seria bom deixar a pistola aqui.
— Não sou nenhum idiota, respondeu Wallander. — Embora talvez pense que sim.
Wallander foi diretamente para a sua sala para buscar o casaco. Em seguida, saiu da delegacia passando pela garagem e foi embora para casa. Depois das aventuras da noite anterior, lhe ocorreu que talvez houvesse restos de álcool no sangue, mas, como as coisas não podiam ficar piores do que já estavam, continuou a dirigir até chegar em casa. O vento de nordeste soprava cada vez mais forte. Wallander estremeceu de frio ao sair do carro. Jussi começou aos saltos no seu pequeno recinto, mas Wallander não se sentia minimamente em forma para levá-lo a passear. Despiu a roupa, se deitou e conseguiu conciliar o sono. Quando acordou, já era meio-dia. Deixou-se ficar na cama, quieto e de olhos abertos enquanto ouvia como o vento açoitava a casa. A sensação de haver algo que não estava bem corroía-o novamente; uma súbita sombra tinha descido sobre a sua existência. Como podia nem sequer ter dado pela falta da arma quando acordara de manhã? Era como se outra pessoa tivesse estado agindo no seu lugar e depois tivesse lhe bloqueado a memória para que não soubesse o que acontecera.
Levantou-se, se vestiu e tentou comer alguma coisa apesar de ainda se sentir enjoado. Foi tentado pela ideia de se servir de um copo de vinho, mas resistiu. Estava lavando a louça quando Linda telefonou.
— Vou aí, anunciou ela. — Só queria ter a certeza de que estava em casa.
Desligou antes que ele tivesse tido tempo de pronunciar uma palavra. Vinte minutos mais tarde chegou na casa do pai, com o bebê dormindo ao colo. Linda se sentou à frente do pai no sofá de pele que Wallander tinha comprado no ano em que se mudaram para Ystad. A criança dormia na cadeira ao lado. Wallander quis fazer algum comentário sobre o bebê, mas Linda meneou a cabeça num gesto subentendido: logo mais, agora não; no momento havia outros assuntos mais importantes.
— Já me contaram o que aconteceu, disse sem rodeios. — Mas fico com a impressão de que na realidade não sei de nada.
— Foi Martinsson quem lhe telefonou?
— Sim, me ligou depois de falar consigo. Estava muito por baixo.
— Não tão em baixo quanto eu, salientou Wallander.
— Conte-me o que não sei.
— Se veio para me submeter a interrogatórios, pode ir embora.
— Só queria saber o que aconteceu. Você é a última pessoa de quem esperaria um barraco desses.
— Não matei ninguém, protestou Wallander. — Nem ninguém se feriu sequer. Além disso, qualquer um pode fazer um barraco. Já vivi o suficiente para o comprovar.
A seguir lhe contou tudo, desde a sensação de desassossego que o impulsionara a sair de casa até não saber por que motivo levara a arma com ele. Quando terminou, Linda ficou em silêncio durante um bom tempo.
— Acredito em você, declarou por fim. — O que acaba de me contar se reduz a uma coisa, a uma única circunstância na sua vida: está muito só. De repente, perde o controle e não tem ninguém próximo que o acalme, que o impeça de sair correndo. Mas há uma coisa que ainda me pergunto.
— O quê?
— Contou-me tudo ou ainda ficou alguma coisa guardada?
Wallander ponderou por um instante se devia lhe falar daquela sensação estranha de ser dominado por uma sombra interior. Contudo, negou sem dizer nada; não havia nada a acrescentar.
— O que acha que vai acontecer? Perguntou Linda. — Não me lembro de qual é o procedimento quando fazemos asneira.
— Abrirão uma investigação interna. Depois disso, não sei.
— Há o risco de ter de se demitir?
— Devo ser velho demais para que me despeçam. Além disso, o que fiz também não é assim tão grave. Mas talvez exijam que me aposente.
— E não seria bom?
Quando ela fez a pergunta, Wallander estava comendo uma maçã; pegou a metade que faltava e jogou-a com uma força assustadora contra a parede.
— Não acaba de dizer que o meu problema é a solidão? Gritou. — E como acha que me sentirei se me obrigarem a me aposentar antecipadamente? Aí já não me restará nada.
A criança acordou com os gritos de Wallander.
— Desculpe, foi sem querer, lamentou o inspetor.
— Está assustado, resolveu ela. — E compreendo, eu também estaria. Entretanto acho que ninguém deve pedir desculpa pelos seus receios.
Linda ficou até à noite, preparou o jantar e não falaram mais do assunto. Na hora de ir embora, Kurt Wallander acompanhou-a até ao carro entre rajadas de vento frias e desagradáveis.
— Desenrasca-se sozinho agora? Perguntou Linda.
— Vou sobreviver, mas agradeço a sua preocupação.
No dia seguinte, Lennart Mattson telefonou para Wallander para dizer que queria vê-lo nesse mesmo dia. Na reunião, apresentaram-no ao investigador de assuntos internos, um colega de Malmö que viera para interrogá-lo.
— Quando lhe convier, disse o investigador, um homem chamado Holmgren e que tinha a idade de Wallander.
— Agora mesmo, respondeu o inspetor. — Esperar para quê? Fecharam-se numa das salas de reuniões menores da delegacia.
Wallander se esforçava por ser preciso, por não se desculpar ou tentar mitigar o acontecido. Holmgren tomava notas e, de vez em quando, pedia ao inspetor que recuasse, que repetisse uma resposta, para depois continuar com as perguntas. Wallander pensou que, se os papéis fossem invertidos, o interrogatório teria decorrido de igual forma. Ao cabo de pouco mais de uma hora terminou a sessão. Holmgren pousou a caneta e observou Wallander, não como se observa um delinquente que acaba de confessar, mas sim como alguém que se meteu em confusão. Parecia que estava prestes a lhe dar os pêsames.
— Não efetuou nenhum disparo, começou Holmgren. — Esqueceu-se da arma de serviço num restaurante e, além do mais, num estado de embriaguez. E grave, não há volta a lhe dar, mas na realidade não cometeu nenhum ato ilícito: ninguém se feriu, não aceitou subornos, não agrediu ninguém.
— Não me vão despedir, portanto?
— Dificilmente. Mas não sou eu quem o decide.
— E não tem um palpite?
— Não quero ir por aí. Terá de esperar e ver.
Holmgren recolheu os seus papéis e colocou-os cuidadosamente na pasta. De repente, parou.
— Nem será preciso dizer que nada disto deve transpirar para os meios de comunicação, salientou. — Assuntos como este pioram sempre quando não são tratados com discrição e mantidos dentro do corpo.
— Estou convencido de que não há motivos para preocupação, disse Wallander. — Se nada se publicou até agora, é sinal de que nada transpirou.
No entanto, o inspetor se enganava: nesse mesmo dia, alguém bateu à sua porta. Wallander, que estava descansando, se levantou e abriu, convencido de que seria o seu vizinho que vinha comentar alguma coisa. Mal abriu a porta, um fotógrafo lhe disparou um flash no rosto. Ao seu lado estava uma jornalista que disse se chamar Lisa Halbing e que exibiu um sorriso que o inspetor achou completamente artificial.
— Podemos falar? Perguntou a repórter sem rodeios.
— Sobre o quê? Inquiriu Wallander, com uma dor incipiente de estômago.
— O que lhe parece?
— Não me parece nada.
O fotógrafo disparou uma série de fotografias. O primeiro impulso de Wallander foi lhe dar um soco, mas logicamente não o fez. Em vez disso, exigiu ao fotógrafo que se comprometesse a não tirar nenhuma fotografia dele em sua casa, pois era propriedade privada. Tanto o fotógrafo como Lisa Halbing prometeram respeitar o seu desejo e Wallander deixou-os entrar. Convidou-os a se sentarem à mesa da cozinha e ofereceu café e os restos de um pão de ló com que, há uns dias, uma das suas vizinhas o tinha presenteado, todas elas apaixonadas por doces.
— De que jornal? Perguntou o inspetor uma vez servido o café. — Não me lembrei de perguntar antes.
— Eu deveria tê-lo dito, admitiu Lisa Halbing, que estava muito maquiada e escondia o seu excesso de peso debaixo de uma camisa larga por cima das calças. Rondava os trinta anos e se parecia um pouco com Linda, embora ela nunca tivesse se maquiado tanto.
— Trabalho para vários jornais, continuou Halbing. — Se tenho uma história boa, escolho aquele que paga melhor.
— Ou seja, agora eu sou uma história boa?
— Numa escala de um a dez lhe daria talvez um quatro. No máximo.
— O que teria me dado se tivesse disparado sobre o garçom do restaurante?
— Nesse caso, teria sido um dez contundente; manchetes em letras grandes logo na primeira página.
— Como soube disto?
O fotógrafo ansiava por pegar a máquina, mas continuou fiel à sua promessa. Lisa Halbing não largava o seu sorriso frio.
— Deve compreender que não penso responder a essa pergunta.
— Evidentemente. Presumo que foi o garçom que lhe deu a dica.
— De fato, não foi. E mais não lhe digo.
Mais tarde, Wallander assumiu que devia ter sido um dos seus colegas que fizera passar a história da pistola; podia ter sido qualquer um deles, até o próprio Lennart Mattson. Ou, porque não, até mesmo o investigador de Malmõ. Quanto teria cobrado? Durante a sua longa experiência, as fugas de informação sempre haviam sido um problema. No entanto, ele nunca as sofrera, nem se pusera vez alguma em contato com jornalistas, nem tinha ouvido que algum dos seus colegas o tivesse feito, mas o que sabia ele, no fundo? Com certeza absoluta não sabia nada. Nessa mesma noite telefonou para Linda para avisá-la do que apareceria no jornal do dia seguinte.
— Contou-lhes a história tal como aconteceu?
— Ao menos, ninguém poderá me acusar de ter mentido.
— Então vai se sair bem, pois a eles só interessam as mentiras. Levantarão muitas ondas, mas não creio que haja tempestade.
Nessa noite, Wallander dormiu mal. No dia seguinte estava à espera que o telefone não parasse de tocar, mas só recebeu dois telefonemas: um de Kristina Magnusson, que estava indignada pelo fato ter atingido proporções totalmente descabidas na imprensa; pouco depois Lennart Mattson.
— Foi muito infeliz ter se pronunciado, anunciou em tom de sermão.
Wallander se enfureceu.
— Que teria feito se o fotógrafo e a jornalista tivessem batido à sua porta? Quando, aliás, estavam a par do fato até o menor detalhe? Teria batido com a porta na tromba deles ou teria mentido?
— Bom, pensei que tinha sido você a se pôr em contato com eles, respondeu Mattson algo apagado.
— Nesse caso, é mais estúpido do que pensava!
Wallander desligou o telefone com um estrondo e tirou a tomada da parede. Depois ligou para Linda do celular para avisá-la de que, se quisesse falar com ele, usasse aquele número.
— Venha conosco, propôs Linda.
— Para onde?
Linda parecia surpresa.
— Ah, não lhe disse? Vamos a Estocolmo. O pai de Hans faz setenta e cinco anos. Venha com a gente!
— Não, respondeu Wallander. — Fico aqui. Não estou com disposição para festejar; basta aquela minha saída noturna na outra noite.
— Vamos depois de amanhã. Pense nisso.
Quando nessa noite foi para a cama, estava convencido de que não iria a parte alguma, mas na manhã seguinte mudou de opinião. Os vizinhos tomariam conta de Jussi. Não seria má ideia se desaparecesse durante uns dias.
No dia seguinte voou para Estocolmo, enquanto Linda viajava de carro com o restante da família. Wallander se alojou num hotel em frente à Estação Central. Quando folheou os jornais vespertinos, viu que a história da pistola tinha sido relegada para segundo plano. A grande notícia do dia era um assalto a um banco de Gotemburgo, perpetrado com um descaramento inaudito por quatro assaltantes com máscaras com os rostos dos cantores do ABBA. Um tanto contrariado, mandou um pensamento de agradecimento aos ladrões.
Nessa noite, dormiu invulgarmente bem na cama do hotel.
* * *
Quatro
O ANIVERSÁRIO de Hakan von Enke se comemorou numa sala de banquetes alugada em Djursholm, o bairro rico nos arredores de Estocolmo. Wallander nunca estivera ali na sua vida. Linda jurou de pés juntos que bastava que vestisse um terno, pois Von Enke odiava smoking e fraque, mas, por outro lado, adorava as fardas de todo o tipo que envergara durante a sua longa carreira na Marinha. Se Wallander quisesse, podia vestir a farda da polícia, naturalmente. No entanto, ele preferiu ir de terno, pois dadas as circunstâncias não lhe pareceu muito apropriado aparecer fardado.
Quando o trem rápido do Aeroporto de Arlanda chegou na Estação Central, Wallander se perguntou por que motivo tinha aceitado ir a Estocolmo. Talvez devesse ter procurado refúgio noutro lugar, como em Skagen, na Dinamarca, onde costumava ir passar uns dias de vez em quando, caminhando na praia, visitando o museu e descansando em alguma das pensões que já conhecia há quase trinta anos. Também tinha ido para Skagen quando, muitos anos antes, considerara a hipótese de deixar a polícia. Fosse como fosse, agora estava em Estocolmo para participar naquela festa de aniversário.
Mal Wallander chegou a Djursholm, Hakan von Enke se esforçou ao máximo por recebê-lo condignamente, parecendo verdadeiramente satisfeito com a sua presença. Durante o jantar lhe atribuíram um lugar na mesa principal, com Linda de um lado e a viúva de um contra-almirante do outro. A viúva, que de sobrenome Hók, era octogenária, tinha aparelho auditivo e bebia com avidez o vinho que serviam. Ainda durante o primeiro prato começou a comentar pequenos episódios, alguns menos lisonjeiros para os protagonistas. Wallander achou-a interessante, especialmente quando soube que um dos seus seis filhos era um perito forense de Lund que o inspetor encontrara em várias ocasiões e de quem tinha uma boa impressão. Fizeram-se muitos discursos, embora todos exemplares pela sua brevidade. De estilo militar, na opinião de Wallander. O mestre de cerimônias era um capitão de fragata de nome Tobiasson, que fazia comentários jocosos que fizeram rir a audiência, incluindo Wallander. Numa das raras ocasiões em que a viúva ficou em silêncio por que o seu aparelho começar a falhar, o inspetor refletiu sobre o que ocorreria quando ele mesmo completasse setenta e cinco anos, como Von Enke. Quem compareceria à sua festa, se resolvesse dar uma?
Linda tinha lhe contado que a ideia de alugar a sala de banquetes partira do próprio Hakan von Enke. Se Wallander entendeu bem, fora uma surpresa total para a sua mulher Louise, já que até então o marido sempre tinha dedicado um desprezo absoluto aos seus aniversários. Todavia, de repente mudara de opinião e organizara aquele jantar luxuoso.
Serviram o café numa sala contígua provida de cômodos assentos. Uma vez terminado o jantar propriamente dito, Wallander saiu para um terraço envidraçado para esticar as pernas. Um grande jardim enquadrava o edifício, habitado no passado por um dos primeiros e mais abastados homens da indústria sueca.
O aparecimento súbito e silencioso de Hakan von Enke sobressaltou-o. Von Enke levava na mão algo pouco usual naqueles tempos: um cachimbo com boquilha de sepiolite; mas Wallander reconhecia bem o tabaco, A Mistura de Hamilton, pois no final da sua adolescência fumara cachimbo durante um curto período e usava exatamente essa marca.
— Inverno, constatou Von Enke, lacônico. — E se aproxima uma tempestade de neve, segundo o boletim meteorológico.
Ficou em silêncio durante um momento enquanto contemplava o céu noturno.
— A bordo de um submarino que se encontre a profundidade suficiente, as condições climáticas deixam de existir. Ali em baixo reina a calma, como num oceano Pacífico submarino, desde que se alcance a profundidade suficiente, claro. No mar Báltico basta descer vinte e cinco metros, quando o vento não sopra muito forte na superfície; no mar do Norte é mais difícil. Lembro-me de uma vez quando partimos da Escócia no meio de uma tempestade: mesmo a trinta metros de profundidade adernávamos quinze graus; não foi nada agradável. Acendeu o cachimbo e olhou Wallander com um olhar curioso. — Uma observação muito poética para um policial, talvez?
— Não, mas os submarinos representam um mundo totalmente desconhecido para mim. E assustador, devo confessar.
O capitão inalou com prazer a fumaça do seu cachimbo.
— Sejamos honestos, propôs. — Esta festa aborrece aos dois. Todos sabem que eu a organizei, e o fiz porque muitos dos meus amigos assim o desejavam. Mas agora podemos nos esquivar para uma das salas menores que há por aqui. Mais tarde ou mais cedo a minha mulher começará à nossa procura, mas até lá estaremos em paz.
— Sim, mas você é o protagonista, realçou Wallander.
— Como numa boa peça de teatro, observou Von Enke. — Para criar mais tensão, o protagonista não deve estar sempre em cena; a intriga só tem a ganhar se algumas cenas se desenrolarem nos bastidores.
Ficou em silêncio de repente. Demasiado abruptamente, na opinião de Wallander. O olhar de Hakan von Enke se fixou em algo que havia atrás de Wallander. O inspetor se virou; ali estavam os jardins e uma das pequenas ruas de Djursholm que, mais à frente, se entroncavam com as estradas principais que se dirigiam a Estocolmo. Wallander entreviu a figura de um homem próximo do gradeamento, debaixo de um poste. Estava junto de um carro com o motor ligado; a fumaça saía do tubo de escape e se dissipava à luz amarelada da rua. Wallander notou que Von Enke estava nervoso.
— Vamos para uma das salinhas, repetiu Von Enke. — Levamos o café e fechamos a porta.
Antes de sair do terraço, Wallander se virou para olhar outra vez. O carro tinha desaparecido, tal como o homem junto ao poste. Talvez alguém que ele esqueceu de convidar para a festa, pensou Wallander. De qualquer modo, acho que não tem nada a ver comigo; não deve ser nenhum jornalista que queira me entrevistar sobre armas perdidas.
Foram buscar o café e Von Enke conduziu Wallander até uma pequena sala com paredes forradas de madeira e mobilada com poltronas de pele confortáveis. Wallander se deu conta de que não havia janelas, e Hakan von Enke captou o seu olhar.
— Parece um bunker, mas tem uma explicação, assegurou. — Na década de 1930, a casa foi durante alguns anos propriedade de um homem que tinha uma grande quantidade de clubes noturnos em Estocolmo, a maioria deles ilegais. Todas as noites os seus capangas, armados, percorriam os estabelecimentos para recolher o dinheiro em caixa e trazê-lo para cá. Na época, havia um grande cofre-forte nesta sala e aqui se sentavam os seus contabilistas para fazer o balanço e anotar tudo nos livros antes de guardar o dinheiro no cofre. Quando o proprietário foi preso pelos seus negócios sujos, serraram o cofre. O homem se chamava Gõransson, se não estou em erro. Pegou uma pena tão longa que não se aguentou; se enforcou na cela de Lângholmen.
Von Enke silenciou, bebeu o café e chupou o cachimbo, já apagado. Então, precisamente naquela sala tão bem isolada que mal deixava entrar o murmúrio distante da festa, Wallander compreendeu que Hakan von Enke tinha medo. Ao longo da sua vida tinha-o visto muitas vezes: um homem inquieto por alguma razão, imaginada ou real. Tinha certeza de que não se enganava.
A conversa começou com certa cautela. Von Enke recuou ao tempo em que era oficial ativo da Marinha.
— Outono de 1980, disse. — Já se passaram muitos anos, passou toda uma geração, vinte e oito longos anos. O que fazia nessa época?
— Então era policial em Ystad. Mudamo-nos para lá quando Linda era muito pequena, porque queria estar mais perto do meu pai que já era velho. E também achávamos que era um ambiente mais saudável para ela crescer; pelo menos essa foi uma das razões para termos deixado Malmõ. Depois, como tudo terminou é outra história.
Von Enke não pareceu ouvir a resposta e continuou o seu relato.
— Naquele outono trabalhava na base naval da costa leste. Dois anos antes, tinha deixado o comando de um dos nossos melhores submarinos, da classe Sjöormen; entre os militares lhe chamávamos sempre de Ormen. A minha colocação na base naval era transitória e o que eu mais desejava era voltar para alto mar, mas queriam que formasse parte da direção operacional da defesa marítima sueca. Os países do Pacto de Varsóvia levaram a cabo uma série de exercícios na costa da Alemanha do Leste em setembro, no golfo da Pomerânia. Os exercícios se chamavam MILOBALT, ainda me lembro. Não tinham nada de especial, os seus exercícios de outono costumavam coincidir com os nossos. No entanto, naquela ocasião eles envolveram uma grande quantidade de navios, uma vez que abrangiam tanto o desembarque como o rebocador de submarinos, segundo pudemos comprovar sem muito esforço. A central de radiocomunicações do Ministério da Defesa nos comunicou que havia muito tráfego de sinais entre os barcos de guerra soviéticos e a sua base de Leningrado. Mas tudo correu como de costume, nós vigiávamos o que faziam e anotávamos nos nossos diários o que considerávamos importante. Até que chegou aquela quinta-feira, 18 de setembro, nunca vou me esquecer dessa data. De repente, recebemos um telefonema do oficial de serviço de um dos rebocadores da Marinha, o HMS Ajax, que nos comunicou que acabavam de detectar a presença de um submarino estrangeiro em águas territoriais suecas. Eu me encontrava numa das cartotecas da base naval procurando uma imagem panorâmica mais detalhada da costa leste alemã quando um recruta irrompeu pela sala extremamente nervoso. O jovem não conseguiu me explicar o que acontecera; voltei à central de operações e falei pessoalmente pelo rádio com o oficial de serviço do Ajax, que assegurava ter avistado com os binóculos, a trezentos metros de distância, as antenas de um submarino. Quinze segundos mais tarde, o navio desapareceu debaixo d’água. O oficial, que era um tipo esperto, disse que o submarino estivera a uma profundidade de mergulho de superfície e que tinha começado a descer quando descobriu a presença do rebocador. Quando isto aconteceu, o Ajax se encontrava ao sul de Huvudskär, e o submarino rumava para sudoeste, o que implicava que se encontrava paralelo à fronteira das águas territoriais suecas. Mas, sem dúvida alguma, do lado sueco. Não levei muito tempo para verificar se havia algum submarino sueco na área; não havia. Voltei a pedir o contato com o Ajax e perguntei ao oficial de serviço se podia descrever o mastro ou o periscópio do submarino detectado. Pelas características que referiu deduzi que se tratava de um dos submarinos que a OTAN denominava de Whisky, na época utilizados exclusivamente pelos russos e pelos poloneses. Como deve imaginar, a minha tensão arterial subiu em flecha. E, entretanto, me assaltaram duas outras questões.
Von Enke ficou em silêncio como se esperasse que Wallander soubesse quais as questões que tinha em mente. Do outro lado da porta se ouviram uns risos animados que foram se atenuando até desaparecerem.
— Suponho que era se o submarino tinha entrado nas águas suecas por engano, disse Wallander. — Como asseguraram ter acontecido com aquele outro submarino russo que encalhou em Karlskrona, certo?
— A essa questão já respondi. Nenhum navio de uma frota militar é tão exaustivo com a sua rota como um submarino; nem será preciso dizer. O submarino detectado pelo Ajax se encontrava ali intencionalmente. A questão é: qual era a intenção? Testar a sua capacidade de navegar àquela pouca profundidade e fazer a ventilação sem ser descoberto? Nesse caso, era sinal de que a tripulação não estava suficientemente alerta. Mas existe também uma outra possibilidade, claro.
— Que o submarino queria ser descoberto?
Von Enke assentiu e tentou, uma vez mais, acender o seu relutante cachimbo.
— Se assim for, prosseguiu, — Não podia ter nada melhor do que um rebocador, pois esse tipo de navio não dispõe sequer de uma pedra com que atacar. E também não conta com uma tripulação instruída para uma confrontação. Visto que eu era o responsável, me pus em contato com o chefe do Estado-Maior, que se mostrou de acordo comigo para enviar imediatamente um helicóptero caça-submarinos. O helicóptero registou contato com um objeto móvel que classificamos como um submarino e pela primeira vez na minha vida tive de dar ordens de fogo fora do âmbito de um exercício prático. O helicóptero lançou uma carga de profundidade para avisar o submarino, que desapareceu do radar, e então perdemos contato.
— Como é possível que desaparecesse sem mais?
— Os submarinos têm muitas maneiras de se fazerem invisíveis. Podem se deter numa fossa marinha ou se colarem a uma rocha, podem emitir falsos sinais de sonar e despistar os possíveis perseguidores. Apesar de termos enviado vários helicópteros, não voltámos a lhe pôr os olhos em cima.
— Mas não pode ter sido atingido?
— As coisas não funcionam assim. A primeira carga de profundidade tem de ser, segundo as regras internacionais, uma advertência. Depois dessa primeira carga se pode obrigar o submarino a emergir para que se identifique.
— O que aconteceu depois?
— Na realidade, nada. Levou-se a cabo uma investigação e consideraram que eu tinha agido de forma correta. Aquilo foi provavelmente o início do que aconteceria dois anos depois, quando os submarinos começaram a se multiplicar em águas territoriais suecas, sobretudo no arquipélago de Estocolmo. O mais importante foi que tudo aquilo nos deu a confirmação de que os russos continuavam com o mesmo interesse de sempre nas nossas vias de navegação. Isto aconteceu numa época em que ninguém imaginava que o Muro de Berlim caísse um dia, nem que a União Soviética se desintegrasse por completo; é fácil de esquecer certas coisas e a Guerra Fria ainda não tinha chegado ao fim. Depois do incidente de Utõ, a Marinha recebeu um considerável incremento no orçamento. Mas isso foi tudo.
Von Enke deixou de falar e bebeu o resto do café. Wallander se preparava para levantar quando o seu anfitrião retomou o relato.
— Espere, ainda não acabei. Dois anos mais tarde aconteceu novamente. Eu tinha progredido na carreira até fazer parte do mais alto comando das forças navais suecas. Tínhamos o quartel-general em Berga, no arquipélago de Estocolmo, onde havia uma divisão operacional permanente, vinte e quatro horas por dia. Logo no primeiro dia de outubro fomos alertados para uma situação que nunca na vida nos tinha passado pela cabeça: existiam indicações de que um ou vários submarinos tinham entrado na baía de Hârsfjárden, muito próximo da nossa base de Muskõ. Por outras palavras, não se tratava apenas de uma violação das nossas águas territoriais mas também da presença de submarinos estrangeiros em área militar interdita. Certamente que se recorda desse acontecimento?
— Claro, os jornais não falavam de outra coisa, os jornalistas até trepavam nas rochas escarpadas.
— Pois não era comparável a nada que tivesse acontecido antes, a não ser vários helicópteros de um país hostil aterrizando no meio da praça do palácio real. Foi assim que nos sentimos ao ver aqueles submarinos tão próximos das nossas instalações militares mais secretas.
— Nessa época, acabavam de me confirmar o meu pedido de transferência para Ystad.
Então, a porta se abriu de repente e Von Enke estremeceu. Wallander viu de relance como levava a mão direita ao bolso superior do casaco; logo em seguida pousou-a sobre o joelho. Uma mulher bem bebida tinha aberto a porta à procura do banheiro, mas desapareceu em seguida e voltamos a ficar sozinhos.
— Foi em outubro, continuou Von Enke uma vez fechada a porta. — Às vezes tínhamos a sensação de que toda a costa sueca estava sob o ataque iminente de submarinos estrangeiros desconhecidos. Tive a sorte de não ser eu o responsável dos contatos com os meios de comunicação que vieram a Berga. Tivemos de transformar duas casernas em salas de imprensa. A minha tarefa consistia em localizar alguns daqueles submarinos e não podia abandonar o meu posto até conseguir; perderíamos toda a credibilidade se não conseguíssemos fazer emergir um único submarino. E, finalmente, chegou a noite em que, por fim, tínhamos cercado um submarino em Hârsfjárden. Não havia qualquer dúvida, na direção operacional estávamos convencidos. Eu tinha a responsabilidade plena de dar a ordem para abrir fogo; durante aquelas horas de agitação intensa, falei várias vezes com o chefe do Estado-Maior e com o novo ministro da Defesa, o Andersson, se se recorda. Era de Borlánge.
— Lembro-me vagamente de que o apelidaram de Bórje, o Vermelho.
— Exato. Mas não se aguentou; para ele, aquilo dos submarinos foi um inferno: se demitiu e voltou para Dalarna, e Anders Thunborg substituiu-o no ministério, era um dos homens de confiança de Olof Palme. Muitos dos meus colegas desconfiavam, mas eu mantive sempre uma boa relação com ele; não se intrometia, só fazia perguntas e, se obtinha respostas, se dava por satisfeito. No entanto, uma das vezes que lhe telefonei tive a sensação de que Palme estava com ele, mesmo ali ao seu lado. Não sei se era assim ou não, mas era uma forte impressão.
— O que aconteceu?
O rosto de Hàkan von Enke se contraiu como se a interrupção de Wallander o tivesse irritado, mas ao continuar não transpareceu qualquer incômodo.
— Tínhamos cercado o submarino num lugar onde não podia manobrar a menos que nós permitíssemos. Disse ao chefe do Estado-Maior que devíamos fazê-lo emergir com uma carga de profundidade, não precisaríamos de mais do que uma hora de preparativos para demonstrarmos ao mundo que tipo de submarino estrangeiro estava operando em águas suecas. Passou meia hora. Os ponteiros do relógio que havia na parede avançavam com uma lentidão insuportável. Eu estava em contato permanente com os helicópteros e os navios de superfície que aguardavam em círculo à volta do submarino. Passaram quarenta e cinco minutos, pouco faltava para o momento final. E então aconteceu.
Von Enke interrompeu o seu relato inesperadamente e saiu da sala. Wallander se perguntou se teria se sentido indisposto. Entretanto, o capitão voltou uns minutos mais tarde com dois cálices de conhaque.
— Está muito frio nesta noite, salientou. — Precisamos de alguma coisa que nos aqueça. E como ninguém parece sentir a nossa falta, podemos continuar a nossa conversa nesta velha casa-forte.
Wallander aguardava a continuação daquela história. Embora ouvir antigas histórias sobre submarinos não fosse muito fascinante, preferia a companhia de Von Enke a ter de confraternizar com pessoas que não conhecia.
— Então aconteceu, repetiu Von Enke. — Quatro minutos antes de começar a descarga tocou o telefone, que estava em linha direta com o Estado-Maior da Defesa. Pelo que sei, era um dos poucos telefones totalmente protegidos de escutas, e além disso tinha incorporado um deformador de voz automático. Através desse telefone recebi uma mensagem que não esperava. Imagina qual?
Wallander negou com a cabeça enquanto aquecia o cálice entre as mãos.
— Ordenaram-nos que interrompêssemos o ataque; fiquei absolutamente perplexo e pedi uma explicação. Mas, no início, não me deram nenhuma, tão-somente aquela ordem direta de não largar nenhuma carga de profundidade. Naturalmente, não podia fazer outra coisa senão obedecer. Quando os helicópteros receberam a mensagem, faltavam dois minutos. Nenhum de nós que estávamos em Berga compreendia o que estava acontecendo. Dez minutos depois recebemos a ordem seguinte, ainda mais inesperada, se é que é possível, que a primeira. Deu-nos a sensação de que os nossos superiores tinham perdido o juízo: bater em retirada.
Wallander ouvia com crescente interesse.
— Queriam que deixassem o submarino ir embora?
— Bem, como é lógico, ninguém disse tal coisa. Ordenaram-nos que dirigíssemos a nossa atenção para outra área, fora da baía de Hârsfjárden, no sul do estreito de Danziger Gatt; ali, diziam, um helicóptero tinha estabelecido contato com outro submarino. Porque havia de ser esse mais importante do que aquele que já tínhamos rodeado e estávamos prestes a obrigar a emergir? Eu e os meus colegas não compreendíamos nada; absolutamente nada. Exigi que me pusessem em contato direto com o chefe do Estado-Maior, mas estava ocupado e não podia atender, o que era muito estranho já que tinha aprovado a intervenção da Marinha. Tentei inclusive localizar o ministro da Defesa ou o seu secretário. De repente, era como se todos tivessem desaparecido, tivessem desligado os telefones e se vissem obrigados a guardar silêncio. O chefe do Estado-Maior e o ministro da Defesa obrigados a manter a boca calada? Mas por quem? Naturalmente, o governo ou o primeiro-ministro podiam fazer algo assim. Garanto-lhe que durante aquelas horas sofri de uma dor de estômago tremenda. Não entendi as ordens recebidas; interromper a intervenção contradizia toda a minha experiência e o meu instinto e estive muito perto de me recusar a obedecer. Em tal caso, a minha carreira militar teria acabado ali. No entanto, ainda conservava um pouco de bom senso, e enviámos os nossos helicópteros e os nossos navios de superfície para Danziger Gatt. Pedi que ao menos um helicóptero sobrevoasse a área onde sabíamos que se encontrava o submarino, mas se recusaram: devíamos abandonar imediatamente o local. E assim fizemos, com o resultado esperado.
— Ou seja?
— Evidentemente, não estabelecemos contato com nenhum submarino em Danziger Gatt. Fizemos tentativas durante toda a tarde e toda a noite; ainda me pergunto quantos milhares de litros de combustível os helicópteros não consumiram naquele empreendimento.
— O que aconteceu ao submarino que tinham cercado?
— Desapareceu sem deixar rastro.
Wallander refletiu sobre o que acabava de ouvir. Num passado longínquo fizera o serviço militar num regimento de carros de combate de Skôvde e se recordava daquela época com desagrado. No recenseamento pedira que o colocassem na Marinha, mas mandaram-no para Vástergótland. Nunca lhe custou aceitar a disciplina, mas sim compreender muitas das ordens que recebiam quando estavam em exercícios. Frequentemente, tinha a sensação de que era o acaso que determinava as regras, apesar de ser suposto se imaginarem envolvidos numa confrontação de vida ou de morte com o inimigo. Von Enke acabou o seu conhaque.
— Comecei a fazer perguntas sobre o incidente. Mas não o devia ter feito, pois não demorei a me dar conta de que a minha atitude não era muito bem acolhida. As pessoas começavam a me evitar, e até alguns dos meus colegas, entre os quais contava os meus melhores amigos, se mostravam incomodados com a minha curiosidade. No entanto, só queria entender a razão daquela contraordem. Ainda defendo que nunca estivéramos tão próximo, nem alguma vez estaríamos, de obrigar um submarino estrangeiro a vir à superfície; dois minutos, no máximo. No princípio, não fui o único indignado, pois Arenius, outro capitão de fragata, e um analista do Estado-Maior formavam parte da divisão que estava à frente da operação naquele dia. Mas, em menos de uma semana, também esses dois começaram a se mostrar reticentes; não queriam estar comigo quando me pus a investigar o assunto e a fazer perguntas. E um belo dia também eu parei de fazer perguntas.
Von Enke pôs o cálice na mesa e se inclinou para Wallander.
— Obviamente que não o esqueci. Muitas vezes ainda tento compreender o que aconteceu, e não somente naquele dia em que deixamos que, de forma voluntária, um submarino estrangeiro nos fugisse das mãos. Penso muito no que aconteceu naqueles anos. E acho que, finalmente, estou chegando a uma conclusão.
— Sobre a razão de não terem sido permitido obrigarem o submarino a vir à superfície?
Von Enke assentiu pensativo e voltou a acender o cachimbo, mas não disse nada. Wallander se perguntava se a história que acabava de ouvir ficaria inconclusiva.
— Deve imaginar que estou curioso; então, qual foi a justificação que lhe deram?
Von Enke fez um gesto de desculpas com a mão.
— É muito cedo para me pronunciar, porque ainda não cheguei à meta. Por agora não tenho mais nada a dizer. É melhor voltarmos para os outros convidados.
Os dois homens se levantaram e deixaram a sala. Wallander saiu de novo para o terraço e se deparou com a mulher que os tinha interrompido. Não tinha pensado mais no gesto que Von Enke fizera com a mão, primeiro decidido, para logo a seguir deixar cair a mão novamente sobre os joelhos.
Embora não parecesse lógica, apenas lhe ocorreu uma explicação: Von Enke estava armado. Seria possível? Pensou enquanto contemplava as árvores nuas do outro lado das janelas do terraço. Um capitão de fragata aposentado, armado na sua festa de aniversário? Wallander não acreditou e rejeitou a ideia. Deveria ser imaginação sua, uma impressão confusa tinha levado à outra, sem dúvida; primeiro o medo, depois a arma. Talvez a sua intuição estivesse perdendo sagacidade, da mesma forma como a sua memória já não era a mesma de antes.
Nesse momento, Linda apareceu no terraço.
— Pensei que tinha ido embora.
— Ainda não, mas não tardará muito.
— Tenho certeza de que Hakan e Louise estão contentes por ter vindo.
— Contou-me dos submarinos. Linda pestanejou.
— Sério?
— Porquê?
— Tentei que me contasse uma porção de vezes, mas muda sempre de tema ou diz que não quer falar do assunto. Quase que se aborrece quando pergunto.
Linda foi embora quando Hans a chamou lá de dentro. Wallander permaneceu ali pensando no que a filha tinha dito. Porque Hakan von Enke quisera confiar nele, precisamente?
Mais tarde, já de volta a Skâne e refletindo sobre aquilo que Von Enke tinha revelado, notou que havia mais coisas que o surpreendiam. Claro que no relato de Von Enke havia muitos detalhes pouco claros, vagos, difíceis de perceber, mas no que se referia à apresentação, ao enquadramento em si, tal como Wallander lhe chamava, não o entendia totalmente: Von Enke teria planejado de antemão, não obstante o curto espaço de tempo decorrido depois de saber que Wallander iria à sua festa? Ou se decidira quando viram o homem debaixo do poste de luz amarela do outro lado do gradeamento?
Quem era aquele homem? O inspetor não sabia como responder a essa pergunta.
* * *
Cinco
TRÊS MESES depois, mais precisamente em onze de abril, aconteceu algo que obrigou Wallander a recordar uma vez mais aquela noite de janeiro que passara fechado numa sala claustrofóbica ouvindo os relatos do aniversariante sobre acontecimentos que tinham tido lugar há quase trinta anos.
Aconteceu de forma súbita e totalmente inesperada para todos os afetados: Hakan von Enke desapareceu sem deixar rastro da sua residência no bairro de Ostermalm. Tinha por hábito dar uma caminhada todas as manhãs, independentemente do tempo que fizesse; naquele dia em concreto, caía uma chuva miudinha sobre Estocolmo. Von Enke tinha se levantado cedo, como de costume, e pouco depois das seis da manhã já estava sentado à mesa do café da manhã. Às sete bateu à porta do quarto da mulher para acordá-la e informar que estava saindo para a caminhada. Normalmente, esse levava duas horas, salvo nos dias de frio intenso, em que o reduzia para metade; tinha sido fumante compulsivo e os seus pulmões nunca haviam se recuperado totalmente. Fazia sempre o mesmo percurso: desde a sua casa na Rua Grevgatan se dirigia para Valhallavàgen, para depois continuar até à floresta de Lilljansskogen, onde seguia as pequenas e confusas trilhas que voltavam a conduzi-lo a Valhallavàgen, na direção sul pela Rua Sturegatan; depois virava à esquerda na Karlavágen, até chegar finalmente em casa. Caminhava muito depressa, utilizava uma das velhas bengalas do seu pai e chegava sempre suado em casa, ávido por um banho.
Aquela manhã foi como todas as outras, com uma exceção: Hakan von Enke não voltou para casa. Louise conhecia muito bem o seu percurso, pois costumava acompanhá-lo, mas deixara de fazê-lo quando já não era capaz de acompanhar o seu ritmo. Ao ver que não chegava em casa na hora habitual, se preocupou. O marido estava em boa forma física, mas apesar de tudo já tinha uma idade respeitável e podia ter acontecido alguma coisa; uma apoplexia, uma trombose. Lançou-se na sua procura assim que comprovou que tinha quebrado a sua promessa de levar sempre o celular com ele; efetivamente, tinha-o deixado em cima da mesa. Às onze horas estava de volta em casa depois de ter feito o percurso do marido, temendo todo o tempo encontrá-lo morto pelo caminho. Porém, não o encontrou, não estava em parte alguma. Quando chegou em casa telefonou a dois ou três amigos que o marido poderia ter ido visitar, mas, depois de verificar que nenhum deles o tinha visto, teve certeza de que algo acontecera. Era aproximadamente meio-dia quando telefonou para o escritório de Hans em Copenhague. Apesar do estado de nervos da mãe e da sua insistência em participar o desaparecimento de Von Enke à polícia, o filho tentou acalmá-la. Decidiram aguardar ainda umas horas, embora contra a vontade de Louise. Logo depois da conversa com a mãe, Hans telefonou para Linda, que por sua vez informou Wallander do ocorrido naquela manhã. O inspetor estava tentando ensinar Jussi a ficar quieto, enquanto lhe limpava as patas; através de um treinador de cães seu conhecido e residente em Skurup, tinha recebido instruções sobre como devia fazer. Quando o telefone tocou, Wallander estava pronto a desistir, porque acreditava que Jussi era incapaz de aprender a se comportar de forma diferente. Linda colocou-o a par dos temores da sogra e lhe pediu conselho.
— Você também é policial, respondeu Wallander. — Já conhece os procedimentos. A maioria dos desaparecidos acaba por aparecer.
— Há anos que ele não muda os seus hábitos. Entendo que Louise esteja preocupada, não é histérica.
— Espera até ao final do dia, aconselhou Wallander. — Com certeza que volta a aparecer.
Wallander estava convencido de que Hakan von Enke entraria pela porta de sua casa a qualquer momento e lhes daria uma explicação perfeitamente lógica para a sua ausência. O inspetor sentia mais curiosidade que preocupação pelo desenlace. Contudo, Hakan von Enke não voltou, nem naquela noite nem na seguinte. Nas primeiras horas da noite, Louise participou o desaparecimento do marido e a seguir percorreu num carro da polícia tudo o que era trilhos e caminhos de Lilljansskogen, sem encontrar rastro dele. No dia seguinte, o filho chegou de Copenhague. E então Wallander começou a compreender que, todavia, algo teria acontecido.
Naquele momento, ainda não tinha regressado ao seu posto; a investigação interna se prolongava. Além do mais, no princípio de fevereiro escorregara sobre o gelo do caminho de acesso a sua casa e fraturara o pulso esquerdo. Não só caíra como também se enredara na trela de Jussi, que não parava de morder e esticar, numa correria constante. Engessaram-lhe o pulso e lhe deram uma licença médica. Durante esse período costumava perder a paciência e ter acessos de ira frequentes, que faziam sofrer tanto ele mesmo como Jussi e, claro, Linda. Por isso, ela tinha evitado vê-lo mais do que o estritamente necessário, pois na sua opinião Wallander se parecia cada vez mais com o seu próprio pai: mal-humorado, suscetível, impaciente. Ele percebeu, a muito custo, que ela tinha razão. Mas não queria ficar como o pai, poderia suportar tudo menos isso; não queria se transformar num velho azedo que se repetia, fosse nos quadros que pintava ou nas opiniões sobre um mundo que lhe era cada vez mais incompreensível. Foram tempos em que Wallander andava pela casa como se estivesse numa jaula, um urso em clausura incapaz de enfrentar a realidade de que tinha sessenta anos e que, por conseguinte, estava irremediavelmente a caminho da velhice. Poderia viver dez ou vinte anos mais, mas não havia outra perspectiva que não um envelhecimento cada vez mais profundo. A juventude era uma lembrança distante e a idade madura pertencia ao passado; se encontrava nos bastidores antes de entrar em cena e dar início ao terceiro e último ato em que tudo ficaria esclarecido, os heróis aplaudidos e os maus vencidos. Resistia com todas as forças para não ter de desempenhar o trágico papel. Acima de tudo desejava poder se despedir do palco com uma gargalhada.
O que mais o preocupava era a perda de memória. Escrevia uma lista quando ia às compras em Simrishamn ou Ystad, mas ao chegar à loja se dava conta de que deixara a lista em casa, se perguntando se alguma vez a escrevera; não se lembrava. Um dia em que estava mais preocupado que o normal com a sua má memória crescente, marcou consulta com uma médica de Malmõ que anunciava os seus serviços como especialista em "problemas de envelhecimento". Ainda tinha o gesso no pulso e, além disso, sofria de um grande resfriado. A médica, que se chamava Margareta Bengtsson, recebeu-o num antigo prédio situado no centro da cidade. Segundo a opinião preconcebida de Wallander, era muito jovem para poder compreender minimamente as misérias da idade. Antes de sequer ter passado a porta, estava disposto a voltar para trás. No entanto, não o fez e entrou educadamente.
Sentou-se numa cadeira de pele preta e falou da sua falta de memória.
— Acha que tenho Alzheimer? Perguntou quando a consulta se aproximava do fim.
Margareta Bengtsson sorriu, não condescendente, mas com uma naturalidade amável.
— Não, disse. — Não creio. Embora ninguém saiba o que o espera ao dobrar a esquina.
Ao dobrar a esquina, pensou Wallander enquanto enfrentava o vento gélido a caminho do carro, estacionado precisamente ao dobrar a esquina. E ali por baixo do limpador de para-brisa esperava-o uma multa. Wallander jogou-a dentro do carro sem sequer ver o montante e arrancou.
Havia um carro estacionado em frente à sua casa, mas não lhe era familiar. Quando saiu da sua viatura, Wallander viu que Martinsson aguardava junto à casinha de Jussi enquanto lhe fazia festas entre as orelhas.
— Já ia embora, confessou o colega. — Deixei um bilhete na porta.
— Veio como mensageiro?
— Vim de livre vontade para ver como se encontrava.
Entraram em casa. Martinsson se pôs a ler as lombadas dos livros que Wallander tinha na sua biblioteca, a qual, com os anos, atingira um tamanho considerável. Sentaram-se à mesa da cozinha para tomar café. Wallander não disse nada sobre a sua viagem a Malmõ ou da sua visita à médica. Martinsson apontou para a mão engessada.
— Vou tirá-lo na próxima semana, explicou Wallander. — O que dizem as pessoas?
— Sobre a sua mão?
— Sobre mim. Sobre a cena da arma no restaurante.
— Lennart Mattson é um homem taciturno como poucos. Não sei o que acontece, mas pode ficar descansado que a gente vai apoiá-lo.
— Isso é mentira. Você certamente me apoia, mas a informação veio de algum lado. E na delegacia há muita gente que não acha graça nenhuma em mim. Martinsson encolheu os ombros.
— Bem, as coisas são como são; não há nada a fazer. E quem gostará de mim?
Conversaram durante algum tempo. Wallander notou, então, que Martinsson era o último que restava dos colegas em funções quando ele chegara a Ystad. Martinsson parecia abatido e Wallander lhe perguntou se estava doente.
— Não, doente não, respondeu Martinsson. — Mas estou convencido de que já pertence ao passado. Refiro-me ao meu tempo como policial.
— Também deixou a arma num restaurante?
— Não aguento mais.
Para grande surpresa de Wallander, o colega começou a chorar. Ali estava, como uma criança indefesa, com a xícara de café na mão e as lágrimas correndo pelas faces. Wallander não sabia o que fazer; ao longo dos anos tinha sido testemunha do desânimo de Martinsson em muitas ocasiões, mas nunca o tinha visto ir abaixo como naquele momento. O telefone tocou, mas desligou-o. Martinsson se recompôs e limpou as lágrimas.
— Sou uma figura! Lamentou-se. — Desculpe.
— Desculpa por quê? Quem é capaz de chorar na frente de outra pessoa demonstra, a meu ver, uma grande coragem, que a mim, infelizmente, me falta.
Martinsson lhe contou a travessia do seu deserto existencial; cada vez questionava com maior frequência a sua contribuição como policial, não porque não estivesse satisfeito com o resultado do seu trabalho, mas sim com o papel da polícia na Suécia atual. A distância entre as expectativas dos cidadãos e as atuações da polícia crescia de dia para dia. Agora tinha chegado a um ponto em que todas as noites se transformavam numa espera insone de um novo dia sobre o qual nada sabia, a não ser que seria uma tortura.
— Saio antes do verão, anunciou. — Falei com uma empresa de Malmõ. São consultores de segurança para pequenas empresas e edifícios privados, e posso trabalhar para eles, e com um salário que por sinal é muito mais elevado do que aquele que recebo hoje.
Wallander se lembrou do dia em que, há muitos anos, Martinsson dissera ter tomado a mesma decisão. Naquela ocasião, conseguira convencê-lo a ficar, fora há quinze anos ou mais. Agora, pelo contrário, percebia que seria impossível persuadi-lo. Aliás, a sua própria posição na vida também não lhe permitia ver o seu futuro profissional como algo de especialmente atraente; embora, evidentemente, jamais se lembrasse de se converter em consultor de segurança.
— Acho que lhe entendo, admitiu por fim. — E acho que faz bem: mude enquanto ainda é suficientemente jovem para isso.
— Faço cinquenta daqui a dois anos, observou Martinsson. — É ser jovem com esta idade?
— Eu tenho sessenta, respondeu Wallander. — E uma pessoa que já passou definitivamente a comporta por onde só passam os que vão envelhecendo.
Martinsson ficou mais um pouco e falou do trabalho que o esperava em Malmo. Wallander compreendeu que pretendia mostrar que ainda tinha algo com que se iludir, que não tinha perdido completamente o entusiasmo. Acompanhou-o até ao carro.
— Mattson já disse alguma coisa? Perguntou Martinsson com tato.
— Há quatro possibilidades entre as quais o procurador pode escolher, explicou Wallander. — Uma é a "conversa admonitória"; mas não me podem aplicar essa medida, pois seria cobrir de ridículo toda a corporação policial. Um homem de sessenta anos exposto, como um jovem desobediente, a uma reprimenda do inspetor regional ou de qualquer outro chefe.
— Puseram essa hipótese? Nesse caso, devem estar loucos!
— Podem optar por me dar um aviso, prosseguiu Wallander. — Ou por uma redução de salário. E a última estaca do caminho seria me despedir. Desconfio que me aplicarão redução de salário.
Despediram-se junto ao carro. Martinsson desapareceu numa nuvem de neve. Wallander voltou para dentro de casa, folheou o calendário e viu que já passara mais de um mês desde a noite infeliz em que se esquecera da arma onde não devia.
Continuou de licença depois de lhe tirarem o gesso, porque numa consulta de ortopedia em dez de abril no hospital de Ystad se descobriu que o osso do pulso não tinha cicatrizado devidamente. Por um terrível instante, Wallander pensou que queriam lhe operar a mão, mas o médico tranquilizou-o, assegurando que existiam medidas mais apropriadas. No entanto, era essencial que Wallander não utilizasse a mão, e por isso não podia voltar ao trabalho.
Depois da visita ao ortopedista, Wallander ficou na cidade. No teatro de Ystad estava em cena, nessa noite, uma peça de um dramaturgo americano contemporâneo. Wallander tinha o bilhete de Linda, que não podia ir por estar muito resfriada. Quando adolescente, a sua filha sonhara durante algum tempo em ser atriz, mas passara depressa e agora estava contente por ter percebido, a tempo, que não tinha nenhum talento para o palco. Wallander não tinha detectado qualquer decepção na sua voz no dia em que ela o confessou.
Mal tinham decorrido dez minutos do início da peça quando Wallander começou a olhar para o relógio. A peça aborrecia-o; uns atores medíocres andavam por uma sala debitando as suas deixas aqui e ali, junto a um banco, uma mesa ou um peitoril. A obra, que tratava de uma família em vias de destruição devido à tensão contida, conflitos não resolvidos, mentiras e sonhos gorados, era incapaz de suscitar o seu interesse. Quando finalmente chegou o intervalo, Wallander pegou o casaco e foi embora. Tinha esperado por aquela noite com tanta alegria e agora se sentia triste. Seria culpa sua ou a peça era realmente tão desinteressante como lhe parecera?
Tinha deixado o carro na estação ferroviária. Depois de atravessar a via cortou por um caminho deserto nos fundos da estação, pintada de vermelho. De repente, sentiu um forte golpe nas costas e caiu no chão. Dois jovens, de dezoito ou dezanove anos, se puseram à sua frente; um deles usava uma camisa com o capuz posto, o outro vestia um casaco de couro. O rapaz do capuz segurava uma faca na mão. Uma faca de cozinha, chegou Wallander a pensar antes de levar um soco na cara que lhe arrebentou o lábio, começando a sangrar. Levou outro soco, desta vez na testa; o jovem era forte e batia violentamente, como se estivesse fora de si. Depois começou a lhe puxar a roupa e a exigir entredentes que lhe entregasse a carteira e o celular. Wallander levantou o braço para se proteger, sem deixar de vigiar a faca.
De repente, percebeu que os rapazes estavam mais assustados que ele e que não precisava se preocupar com a mão trêmula que segurava a faca; tomou impulso e deu um pontapé certeiro no rapaz da faca. Falhou, mas conseguiu lhe segurar a mão e torcer o pulso, e a faca voou para longe. Ao mesmo tempo, sentiu uma pancada brutal na nuca e caiu redondo no chão. Foi uma agressão tão violenta que não conseguia se levantar; ficou de joelhos, sentindo o frio do chão que atravessava as pernas das calças, e pensou que não levariam muito tempo até o esfaquear. Mas nada aconteceu e quando levantou o olhar os dois jovens tinham desaparecido. Apalpou a nuca com a mão e sentiu-a pegajosa. Levantou-se muito devagar, teve tonturas e se agarrou ao gradeamento que cercava a estação. Respirou fundo e uns minutos depois pôde seguir para o carro. Não voltou a ver os rapazes. A nuca sangrava, mas não tanto que não pudesse tratar da ferida ele mesmo quando chegasse em casa; achava que não devia ter sofrido qualquer traumatismo craniano.
Permaneceu sentado no carro sem dar a ignição. De um mundo para o outro, refletiu. Assisto a uma peça de teatro que não me diz nada, vou me embora e sou atirado para um mundo que normalmente só vejo de fora. Mas, desta vez, sou eu quem jaz no chão, atacado, ameaçado.
Pensava sobretudo na faca. Uma vez, quando se encontrava precisamente no início da sua carreira e era um jovem polícia de Malmo, sofrera uma facada terrível no Pildammsparken por um louco que perdera as estribeiras. Se a lâmina tivesse penetrado mais uns centímetros no seu corpo e noutra direção, teria atingido o seu coração. Em tal caso, não teria vivido todos aqueles anos em Ystad, nem teria podido ver a filha Linda crescer; a sua vida teria terminado antes de ter começado a sério. Lembrava-se do que pensara então: Há um tempo para viver e outro para morrer.
Fazia frio no carro; pôs o motor para trabalhar e o aquecimento no máximo. Não conseguia deixar de pensar no assalto. Ainda estava em choque, mas notou que também a ira abria caminho no seu interior. Sobressaltou-se ao ouvir que alguém batia no vidro ao seu lado e se preparou para encarar os dois jovens. Contudo, o rosto que espiou pelo vidro era de uma senhora de cabelos brancos com uma boina na cabeça. Wallander entreabriu a porta.
— É proibido deixar o motor trabalhando assim tanto tempo, observou. — Estou passeando com o cão e verifiquei pelo relógio o tempo que está parado aí. Wallander não respondeu, simplesmente assentiu e arrancou.
Nessa noite foi difícil conciliar o sono; a última vez que olhou para o relógio passava das cinco. No dia seguinte Hakan von Enke desapareceu. E o inspetor não participou o assalto que fora vítima; não o confidenciou a ninguém, nem sequer a Linda.
Decorridas quarenta e oito horas do desaparecimento de Von Enke, Wallander começou a compreender que algo devia, de fato, ter acontecido. Como ainda estava de licença, lhe pareceu perfeitamente lógico que o seu futuro genro lhe telefonasse para pedir que fosse para Estocolmo. Wallander percebeu que, na realidade, foi Louise quem o convencera a pedir ajuda. Em qualquer caso, o inspetor aceitou, salvaguardando que não pretendia se misturar no trabalho da polícia, que os encarregados do caso eram os seus colegas de Estocolmo. Os policiais que se intrometiam nas tarefas uns dos outros e pisavam terreno alheio não costumavam ser muito bem vistos.
Na véspera antes de partir, numa daquelas noites cada vez mais claras de primavera, Wallander foi visitar Linda. Como de costume, Hans não estava em casa, pois ficava sempre trabalhando até tarde naquilo a que Wallander chamava, mas só em privado, "especulações financeiras". Aquela circunstância tinha provocado, de resto, a primeira e até então única discussão entre Wallander e o seu futuro genro. Hans tinha protestado vivamente contra a ideia de que ele e os seus colegas alguma vez se dedicassem a algo tão vulgar, mas, por outro lado, quando Wallander lhe perguntou em que consistia precisamente o seu trabalho, entendeu que a resposta era exatamente essa: especulações com divisas e ações, derivados e fundos de cobertura de risco, algo sobre o qual Wallander não se importava de admitir a sua total ignorância. Linda interveio para explicar que o seu pai não entendia nada que tivesse a ver com os instrumentos financeiros modernos, tão misteriosos que o intimidavam. Antes, Wallander teria certamente se indignado com as suas palavras, mas agora notava a ternura na voz dela e levantou os braços em sinal de que, efetivamente, se rendia à opinião da filha.
No entanto, ali estava, em casa de Linda. O bebê, que continuava sem ter nome, dormia sobre uma manta aos pés da mãe. Wallander observava-a e notou, talvez pela primeira vez, de que nunca voltaria a ter a sua filha ao colo. Quando os filhos têm filhos, se deixa irrevogavelmente algo para trás.
— O que acha que terá acontecido a Hakan, perguntou Wallander. — Qual é a sua opinião, como policial e como companheira de Hans? A resposta de Linda foi rápida, de forma bem ponderada.
— Tenho certeza de que lhe aconteceu alguma coisa grave; até tenho medo que esteja morto. Hakan não é o tipo de homem que desaparece sem mais nem menos e nunca lhe passaria pela cabeça se suicidar sem deixar uma mensagem que explicasse as suas razões. Aliás, nunca lhe ocorreria se suicidar, mas isso é outra história. Se tivesse realizado algum crime, não tentaria fugir ao castigo. Simplesmente, não acredito que tenha desaparecido por sua livre vontade.
— Poderia me explicar?
— É necessário? Já sabe do que estou falando.
— Sim, mas gostaria de ouvir de você.
Wallander voltou a sentir que Linda tinha se preparado bem. Não falava apenas enquanto familiar, mas também com a perspicácia de uma jovem policial que dava a sua opinião enquanto profissional.
— Ao dizer que não desapareceu voluntariamente, acho que existem duas alternativas: uma, que tenha havido um acidente, que tenha pisado uma capa de gelo muito fina ou que tenha sido atropelado; a outra, que tenha sido vítima de uma agressão violenta, que o tenham sequestrado ou assassinado. A hipótese do acidente já não parece verosímil; ele não se encontra em nenhum hospital. Portanto, essa via está encerrada e assim só resta a outra possibilidade.
Wallander levantou a mão para interrompê-la.
— Façamos uma suposição, sugeriu. — Sobre algo que tanto você como eu sabemos que acontece com muito mais frequência do que se imagina; sobretudo quando se trata de homens de certa idade.
— Que tenha fugido com outra mulher?
— Sim, era mais ou menos isso que tinha em mente. Linda meneou a cabeça.
— Deve compreender que já falei disso com Hans. E ele nega categoricamente quaisquer rabos de palha; Hakan tem sido fiel a Louise toda a sua vida. Wallander contrapôs logo.
— E Louise? Tem lhe sido fiel?
Wallander viu que Linda não tinha colocado essa questão a si mesma. Ainda não aprendera tudo sobre como enfrentar as reviravoltas de um interrogatório.
— Isso é algo que dificilmente posso imaginar; não faz o gênero dela.
— Essa resposta não serve, pois nunca pode se dizer sobre alguém que "não faz o gênero". Isso é subestimar a natureza humana.
— Então me deixe colocar assim: não acredito que alguma vez tenha tido uma aventura. Embora, claro, não possa afirmar com certeza. Mas pergunte a ela!
— Nem pensar! Seria uma impertinência, dadas as circunstâncias. Wallander hesitou diante da questão seguinte que lhe ocorreu. — Você e Hans devem ter se falado durante estes dias. Não é possível que ande sempre nos seus computadores. Que diz ele? Não ficou surpreso quando Hakan não voltou para casa?
— Porque não teria ficado surpreso?
— Não sei, mas quando estive em Estocolmo me deu a sensação de que Hakan andava preocupado com alguma coisa.
— Porque não me disse?
— Porque tirei essa ideia da cabeça, pensei que seria só impressão minha.
— Mas a sua impressão não costuma falhar.
— Obrigado, mas cada vez estou menos seguro disso como de tantas outras coisas.
Linda ficou em silêncio. Wallander observou o rosto dela; tinha ganho peso com a gravidez, as suas faces estavam agora mais cheias. Notava-se o cansaço no olhar.
Lembrou-se de Mona e da sua irritação permanente por ele nunca se levantar de noite quando Linda acordava chorando. Perguntei-me como Linda se aguenta, pensou. Quando os filhos nascem, todas as cordas esticam ao mesmo tempo e uma ou outra chega a se quebrar.
— Algo me diz que tem razão, declarou Linda por fim. — Agora que penso nisso, me lembro de situações, quase imperceptíveis, em que parecia estar nervoso. Às vezes surpreendia-o olhando para trás.
— Em sentido literal ou figurativo?
— Literal. Virava-se para olhar para trás. Não tinha notado até agora.
— Lembra-se de algum outro detalhe?
— Tinha sempre muito cuidado em fechar as portas à chave. E certas luzes deviam permanecer sempre acesas.
— Porquê?
— Não sei. Mas se tratava, por exemplo, da luminária da sua mesa e da luz do corredor.
Um velho oficial da Marinha, pensou Wallander, que mantém certas vias de navegação iluminadas de noite. Faróis solitários, numa passagem militar secreta através de águas que os navios normalmente não podem sulcar.
Nesse momento, a criança acordou e Wallander ficou com ela nos braços até parar de chorar.
No trem para Estocolmo, o inspetor não conseguiu parar de pensar nas luzes acesas na casa de Von Enke. Aquilo era algo que teria de investigar. Teria uma explicação natural? O mesmo se poderia aplicar à pessoa de Hakan von Enke. Até então não fazia ideia do caminho a seguir. Contudo, esperava que o desaparecimento tivesse um desenlace lógico e livre de dramatismos.
* * *
Seis
EM CERTA OCASIÃO, no final da década de 1970, ele e Mona tinham feito uma viagem a Estocolmo. Wallander se lembrava de que tinha se alojado no Hotel Naval, no bairro de Sõder, e foi para esse hotel que telefonou para reservar um quarto para duas noites. Quando saiu do trem hesitou entre pegar um táxi ou o metrô; no fim optou por ir a pé com o pesado saco pendurado ao ombro. Ainda fazia frio, mas o sol brilhava e o horizonte aparecia sem nuvens que pressagiassem chuva.
Tinham feito aquela viagem no verão de 1979, se recordava enquanto passava pela Cidade Velha. Não fora ele que a propusera, mas sim Mona, que de repente se dera conta de que nunca tinha visitado a capital do país e quisera preencher essa lacuna quase vergonhosa. Wallander tirara quatro dos seus dias de férias de verão para a viagem; Mona acabara de se inscrever num curso e não tinha direito a salário ou férias pagas. Linda ficara uns dias na casa de uma colega de turma, ia começar o terceiro ano naquele outono. Lembrava-se bem daqueles quatro dias de agosto, dias quentes, trovoadas de vez em quando e logo a seguir uma nova onda de calor que os levava a se abrigarem à sombra oferecida pelas altas árvores dos parques. Foi há quase trinta anos, pensou enquanto se aproximava da Praça de Slussen e da subida algo acentuada para o hotel. Trinta anos, toda uma geração, e aqui estou uma vez mais. Embora desta vez sozinho.
Ao entrar, não reconheceu o local e se perguntou se, na realidade, seria aquele o hotel em que se alojara com Mona. Depois afastou o repentino mal-estar que o invadia, fechou as portas a todas as memórias do passado e entrou no elevador, que o levou ao segundo andar onde ficava o seu quarto. Afastou a colcha e se deitou na cama. A viagem de trem tinha sido cansativa, pois estava rodeado de crianças barulhentas e um grupo de jovens bêbados que entraram em Alvesta. Fechou os olhos e tentou dormir. Quando acordou sobressaltado viu que apenas tinha se passado dez minutos. Levantou-se e foi até à janela. O que teria acontecido a Hakan von Enke? Se unisse as peças de que dispunha, as que Linda tinha lhe proporcionado, as que ele mesmo conseguira com a sua experiência, qual era o resultado? Não chegava sequer ao início de uma conclusão.
Tinham combinado um encontro às sete horas da tarde na casa de Louise. Uma vez mais, decidiu ir a pé. Ao passar pelo palácio real parou: estivera ali com Mona, se recordava perfeitamente; naquela mesma ponte pararam e confessaram que lhes doíam os pés. Era uma memória tão nítida que quase ouvia a conversa. Havia momentos em que era avassalado por uma tristeza profunda ao pensar no desastre do seu casamento, e aquele era um desses momentos. Olhou o redemoinho das águas e pensou que a sua vida consistia, cada vez mais, em recordar um passado de que agora sentia falta.
Louise von Enke acabava de servir o chá quando bateu na porta. Era evidente que não tinha dormido e que estava exausta, mas também surpreendentemente composta. Nas paredes da sala de estar havia retratos da família Von Enke e óleos de batalhas em cores apagadas. Ela notou que o inspetor observava os quadros.
— Hakan foi o primeiro oficial da Armada na família. O seu pai, o avô e o bisavô foram todos oficiais do Exército. E um tio foi inclusivamente camareiro do rei Óscar, não me lembro se do primeiro ou do segundo. A espada que está no canto foi oferecida a outro familiar pelo rei Carlos XIV por algum serviço prestado. A versão de Hakan é que a missão consistia em prover sua majestade com jovens damas de boa apresentação.
— O que acha que terá acontecido?
— Sinceramente, não sei.
— No dia em que desapareceu notou alguma coisa fora do normal? Algo que saísse do seu comportamento habitual?
— Não. Tudo se passou como sempre. Hakan é uma pessoa fiel às suas rotinas, sem chegar a ser exagerado.
— Como se comportou nos dias precedentes? Na semana anterior?
— Estava resfriado e um dia abdicou da sua caminhada. Foi tudo.
— Recebeu algum correio, algum telefonema, uma visita?
— Falou várias vezes com Sten Nordlander, o seu melhor amigo.
— Esteve na festa de Djursholm?
— Não, se encontrava em viagem. Hakan e Sten se conheceram quando serviram no mesmo submarino; Hakan era comandante e Sten era oficial da sala de máquinas. Deve ter sido no final dos anos sessenta.
— Qual é a sua opinião sobre o desaparecimento?
— Sten está tão preocupado como os outros; também não encontra nenhuma explicação. Disse que estaria disposto a falar consigo quando viesse.
Louise von Enke estava sentada em frente a Wallander. O sol da tarde iluminou subitamente o seu rosto e ela mudou de lugar para ficar à sombra. Wallander pensou que era uma daquelas mulheres que tentam esconder a sua beleza atrás de uma máscara de simplicidade. Como se tivesse lido o pensamento dele, ela deu um sorriso tímido. Wallander tirou o bloco de apontamentos e anotou o número de telefone de Sten Nordlander; e não passou despercebido que Louise os sabia de cor, tanto o fixo como o celular.
Conversaram durante uma hora sem que Wallander conseguisse averiguar nada que já não soubesse. Depois, ela lhe mostrou o escritório do marido. Wallander observou a luminária que havia sobre a mesa.
— Deixava a luz acesa de noite?
— Quem lhe contou?
— Linda. Que, entre outras, deixava a luminária da mesa acesa.
A mulher correu as cortinas enquanto respondia. Wallander notou um ligeiro cheiro a tabaco.
— A escuridão lhe dava medo, confessou ela enquanto sacudia o pó de uma das cortinas pesadas e escuras. — Era uma vergonha para ele, dizia que tudo começara a bordo dos submarinos. Mas o medo veio muito depois, quando deixou de ir de vez para o mar. Fez-me prometer que não contaria a ninguém.
— E, mesmo assim, o seu filho sabe, não sabe? E ele por sua vez contou à Linda.
— Hakan deve ter contado a Hans sem que eu soubesse.
Ouviu-se o toque distante do telefone.
— Esteja à vontade, disse ela antes de sair pela porta dupla. Wallander se surpreendeu a si mesmo seguindo-a com o olhar tal como costumava fazer com Kristina Magnusson. Sentou-se na cadeira que estava na frente da mesa, feita em madeira de cor avermelhada-escura com o encosto e o assento forrados de couro verde. Percorreu o escritório com o olhar. Acendeu a luz; havia pó sobre o interruptor. Passou o dedo pela superfície de mogno polido e levantou o mata-borrão, pois era um costume adquirido durante os seus anos de aprendizagem com Rydberg. Sempre que se apresentavam numa cena de crime onde havia uma mesa, Rydberg começava precisamente por aí. Na maioria das vezes não havia nada debaixo, mas ele lhe explicou enigmaticamente que mesmo uma superfície vazia podia constituir uma pista importante.
Na mesa havia várias esferográficas, uma lupa, um jarro de porcelana em forma de cisne, uma pedra decorativa e uma caixa com clips; era tudo. Girou a cadeira devagar e olhou em volta. As paredes estavam cobertas de fotografias de submarinos e outros tipos de navios. Uma grande fotografia em cores de Hans, com o chapéu da sua graduação. A fotografia do casamento, com Hakan envergando a farda de cerimônia e os recém-casados atravessando um arco de sabres erguidos pela guarda de honra. Fotografias de pessoas idosas, os homens quase todos de farda. Numa das paredes havia um quadro, e Wallander se levantou e se aproximou para estudá-lo mais de perto: era um retrato romântico da batalha de Trafalgar, o almirante Nelson moribundo apoiado num canhão e marinheiros chorando, ajoelhados à sua volta. O quadro surpreendeu-o bastante; era uma obra popular num apartamento onde imperava o bom gosto. Porque estaria pendurado ali? O inspetor levantou o quadro com cuidado e virou-o; não havia nada escrito atrás.
Um mata-borrão que nada ocultava, o reverso vazio de um quadro de má qualidade. E muito tarde para começar a revistar o escritório, disse para si. São quase oito e meia e me levará muitas horas. É melhor começar amanhã. Saiu do escritório e voltou a uma das salas de estar, situadas lado a lado. Louise saiu da cozinha e Wallander sentiu um cheiro sutil de álcool, mas não teve certeza. Acordaram que regressaria às nove horas no dia seguinte. Quando vestiu o casaco no hall, assaltou-o uma dúvida.
— Parece cansada, observou. — Será que não dorme o suficiente?
— Umas horas, talvez. Como vou dormir com esta incerteza?
— Quer que fique aqui?
— E muito amável, mas não é preciso. Estou habituada a ficar sozinha, não se esqueça de que sou mulher de um marinheiro.
Percorreu a pé o longo caminho até ao hotel, parou num restaurante italiano que lhe pareceu barato, com uma ementa que correspondia ao preço. Para que não ficasse acordado pensando, tomou metade de um comprimido; pensou com amargura que aquela era uma das poucas formas que tinha de se divertir, atrair o sono desenroscando a tampa do frasco branco.
* * *
O dia seguinte começou do mesmo modo que a sua visita na véspera: Louise lhe ofereceu chá. Wallander notou que a mulher tinha dormido muito pouco na noite anterior.
Tinha uma mensagem telefônica para ele, de um inspetor que se chamava Ytterberg, responsável pelo desaparecimento. Louise lhe passou o telefone sem fio, se levantou e foi para a cozinha. No espelho que havia na parede, Wallander viu-a imóvel, de costas para ele.
Ytterberg falava com uma pronúncia inconfundível do Norte.
— Está em curso uma investigação em todas as frentes, pois estamos agora convencidos de que algo aconteceu. A mulher de Von Enke me deu a entender que queria que revistasse os seus papéis.
— Já não o fizeram?
— Ela, mas não encontrou nada. Suponho que quer que o verifique uma vez mais.
— Têm alguma ideia? Alguém que o tenha visto?
— Só uma testemunha insegura que acredita tê-lo visto em Lilljansskogen. Isso é tudo.
Wallander ouviu que Ytterberg, mal-humorado, pedia a alguém que voltasse mais tarde.
— Nunca vou entender, continuou o colega. — Porque as pessoas deixaram de bater nas portas?
— Vai chegar o dia em que o chefe da polícia proporá que trabalhemos em open space para aumentar a nossa eficiência, vaticinou Wallander. — Poderemos ouvir as testemunhas dos outros e lhes dar uma ajuda nas investigações...
Ytterberg soltou uma gargalhada satisfeita. Wallander pensou que acabava de estabelecer um bom contato com a polícia de Estocolmo.
— Ah, e outra coisa, acrescentou Ytterberg. — Hakan von Enke foi durante a sua vida profissional um militar de alta patente. Em casos assim, os serviços de informação costumam intervir. Os nossos colegas da secreta adoram a perspectiva de encontrar um possível espião.
Wallander ficou estupefato.
— Existem suspeitas sobre ele nesse sentido?
— Claro que não. Mas precisam ter algo para apresentar quando se negociar o orçamento do próximo ano.
Wallander se afastou mais uns passos da porta da cozinha.
— Entre nós os dois, disse em voz baixa, — O que acha que aconteceu? Além dos dados, só o que sugere a sua experiência.
— Parece grave. Podem ter lhe dado um tiro na floresta e tê-lo levado para algum lugar. Isso é o que acho por agora.
Ytterberg pediu o número de celular de Wallander antes de concluir a conversa. Wallander voltou para a mesa de chá enquanto pensava que teria preferido um café. Louise voltou da cozinha e olhou-o com um ar inquiridor. Wallander negou com um gesto.
— Nenhuma novidade, mas levam o seu desaparecimento muito a sério. Ela permaneceu junto ao sofá, sem se sentar.
— Sei que está morto, declarou de repente. — Até agora tenho resistido a pensar no pior, mas já não posso mais.
— Bem, o pensamento veio de algum lugar, disse Wallander com delicadeza. — Há alguma razão especial para que pense assim?
— Vivo com ele há quarenta anos, explicou. — Nunca me faria isto. Nem a mim nem ao resto da família.
Com isso, saiu precipitadamente da sala. Wallander ouviu que fechava a porta do banheiro. Aguardou um instante, se levantou e saiu sem fazer barulho para o corredor onde se encontravam os quartos e escutou com atenção. Ouviu que Louise chorava atrás da porta fechada do banheiro. Apesar de não ser muito sentimental, sentiu um nó na garganta. Bebeu o resto do chá e se encaminhou para o escritório onde estivera na tarde anterior. As cortinas ainda estavam corridas; abriu-as e deixou entrar a luz. Começou a revistar a mesa, gaveta a gaveta, e comprovou que tudo estava organizado com uma ordem impecável. Numa das gavetas havia cachimbos antigos, limpadores e algo que parecia um pano de polir. Wallander passou para o outro bloco de gavetas; a mesma ordem. Velhas avaliações escolares, certificados, um diploma de piloto; em março de 1958, Hakart von Enke obtivera licença para pilotar aviões de um só motor, tendo realizado o exame no Aeroporto de Bromma. O homem não vivia apenas nas profundezas, portanto, concluiu Wallander. Não queria só imitar os peixes, mas também os pássaros.
O inspetor observou as notas de Von Enke na Escola Norra Latin. Em história e idioma sueco tinha tido a classificação máxima, tal como geografia. Passara raspando em alemão e religião. Na gaveta seguinte havia uma máquina fotográfica e um par de velhos auscultadores. Quando Wallander examinou a velha Leica com mais atenção viu que havia um rolo de filme no interior; ou tinha tirado doze fotografias ou restavam doze por tirar. Pousou a máquina sobre a mesa. Os auscultadores também eram antigos, Wallander calculou que teriam sido modernos há uns cinquenta anos. Porque os conservava? Na última gaveta não havia nada além de uma banda desenhada que em tiras coloridas e balões relatava O Último Moicano, de Cooper. A revista estava tão manuseada que quase se desfez entre as suas mãos. Lembrou-se do que tinha lhe dito Rydberg numa ocasião: Procure sempre aquilo que foge da norma. O que fazia uma história infantil dos clássicos ilustrados de 1962 na última gaveta da mesa de Hakan von Enke?
Não ouviu Louise chegar. Subitamente, ali estava, na porta. Tinha apagado cuidadosamente todos os vestígios da sua agitação, retocara o pó de arroz no rosto. Ele lhe mostrou a banda desenhada.
— Por que motivo a conservou?
— Penso que foi o pai quem lhe deu numa ocasião muito especial, embora nunca tenha me contado o motivo.
Louise voltou a sair da sala e Wallander abriu a gaveta um pouco maior que havia entre os dois blocos. Nela, ao invés, reinava a desordem: cartas, fotografias, bilhetes de avião usados, um certificado médico de cor amarela, algumas faturas. Porque reinava a desordem ali e apenas ali? Decidiu que, no momento, não tocaria no seu conteúdo e deixou a gaveta aberta; a única coisa que tirou foi o certificado médico.
O homem cujo rastro seguia se vacinara muitas vezes na sua vida; apenas há três semanas tinha se vacinado contra febre-amarela e, também, contra tétano e hepatite. Entre as pastas do certificado amarelo viu também uma receita para um medicamento de profilaxia de malária. Wallander franziu a testa. Febre-amarela? Para onde pensava viajar para precisar daquela vacina? Deixou o documento na gaveta sem encontrar uma resposta.
Levantou-se e examinou o conteúdo da estante. Se aqueles livros traduzissem a verdade, então Hakan von Enke sentia um vivo interesse por história inglesa e pela evolução naval do século XX. Havia também muitos livros de história universal e biografias políticas. Notou que as memórias de Tage Erlander estavam junto à biografia do espião Wennerström. Descobriu com surpresa que Von Enke também se interessava pela poesia sueca moderna. Ali havia poetas que Wallander não conhecia e outros que pelo menos conhecia de nome, como Sonnevi e Transtrómer. Tirou alguns daqueles livros da prateleira e viu que as folhas tinham sido cortadas manualmente. Num dos livros de Transtrómer havia anotações na margem, uma dizia "poema brilhante"; leu-o e teve de concordar. Falava de pinhais sussurrantes. Um metro da estante estava reservado a Ivar Lo-Johansson, outro a Vilhelm Moberg. A imagem que tinha do homem desaparecido mudava constantemente, se aprofundava. Não havia nada que lhe desse a impressão de que o capitão era um homem vaidoso que queria fazer o mundo acreditar que se interessava também pelas humanidades. Wallander se considerava dotado de um faro quase canino para detectar precisamente esse tipo de pessoas, uma vez que era um dos comportamentos que mais detestava.
Deixou a estante, se dirigiu ao arquivo e abriu uma gaveta atrás de outra. Reinava a ordem absoluta entre pastas, cartas, relatórios, uma série de diários privados, desenhos de submarinos com a anotação "comandados por mim". Tudo impecavelmente organizado, a gaveta da mesa era a única e inesperada exceção. Não obstante, algo chamou a atenção de Wallander, embora não pudesse identificar de que se tratava. Sentou-se na cadeira novamente e ficou olhando o arquivo aberto. Num dos cantos do escritório havia uma poltrona de pele, uma mesa com alguns livros, uma luminária com abajur vermelho que atenuava a luz. O inspetor mudou de lugar, da mesa para a poltrona. Havia dois livros sobre a mesa, os dois abertos. Um era antigo, Primavera Silenciosa, de Rachel Carson; sabia que fora um dos primeiros livros a advertir para a ameaça que o avanço da civilização ocidental constituía para o futuro do planeta. O outro tratava de borboletas suecas, textos curtos intercalados de bonitas fotografias coloridas. Borboletas e um planeta ameaçado, refletiu Wallander e desordem numa gaveta. Não conseguia encaixar as peças do quebra-cabeça.
Então descobriu que o canto de uma revista sobressaía debaixo da poltrona. Inclinou-se e tirou uma revista inglesa ou talvez norte-americana sobre navios de guerra. Folheou a publicação; continha de tudo, desde artigos sobre o porta-aviões Ronald Reagan até esboços de submarinos que ainda não passavam da fase de planejamento.
Wallander deixou a revista e voltou a se concentrar no arquivo. "Olhar sem ver"; essa fora a primeira advertência que Rydberg lhe fizera, o perigo de não perceber o que os olhos registravam. Revistou de novo o conteúdo do arquivo; numa das gavetas havia um pano para pó. Também gostava de ter as coisas limpas, disse Wallander para si mesmo. Nem um grão de pó nos seus documentos, apenas ordem exemplar. Sentou-se na cadeira da mesa e voltou a estudar a gaveta aberta onde os documentos estavam revirados numa total desorganização, como uma viva contradição. Começou a examinar o conteúdo com muito cuidado, mas não encontrou nada que chamasse a atenção. Só que aquela desordem o preocupava; sugeria uma rutura, não era algo natural em Hakan von Enke. Ou seria a barafunda o natural e a ordem o desvio?
Levantou-se e apalpou a parte superior do arquivo. Encontrou uma pasta de documentos que pegou sem hesitar. Era um relatório sobre a situação política no Camboja, redigido por Robert Jackson e Evelyn Harrison. Wallander verificou perplexo que vinha do Ministério da Defesa norte-americano. O relatório tinha a data de março de 2008; ou seja, era muito recente. Quem quer que o tivesse lido havia-o feito com paixão, sublinhando alguns excertos e introduzindo anotações à margem com grandes pontos de exclamação muito acentuados. Wallander tentou esboçar a correta tradução do título em inglês, On the Challenges of Cambodia, Based upon the Legacies of the Pol Pot Regime, sem no entanto conseguir.
Voltou para a sala de estar, onde as xícaras de chá já tinham sido retiradas. Louise se encontrava junto a uma das janelas olhando para a rua e apenas notou a presença do inspetor quando ele tossiu; se virou de forma tão repentina que lhe deu a impressão de tê-la assustado. Wallander se lembrou do gesto apressado do seu marido na festa em Djursholm. O mesmo tipo de reação, pensou. Os dois estão inquietos, assustados, e reagem como se se encontrassem sob ameaça. Não tinha pensado formular a pergunta expressamente, mas o fez quando recordou aquela noite em Djursholm.
— O seu marido tem alguma arma?
— Não, agora não. Quando ainda estava na ativa, talvez tivesse. Mas aqui em casa, nunca.
— Têm alguma casa de férias?
— Temos falado disso em várias ocasiões, mas acabamos sempre por alugar alguma coisa. Quando Hans era pequeno, costumávamos ir todos os verões para Utõ. Ultimamente temos preferido viajar para a Riviera e alugamos um apartamento. Sim, falamos em comprar uma casa de férias, mas nunca chegamos a fazê-lo.
— Não há nenhum outro lugar onde pudesse guardar uma arma?
— Não. Por que motivo pergunta?
— Talvez tenha algum depósito em algum lugar? A casa não tem um porão? Ou um sótão?
— Guardamos alguns móveis velhos e objetos da sua infância no porão, mas não me parece que haja uma arma.
Dito isto, saiu para voltar em seguida com a chave de um cadeado. Wallander recebeu-a e guardou-a no bolso. Louise von Enke perguntou se desejava mais chá, mas ele declinou a oferta, embora não fosse capaz de dizer que gostaria antes de um café.
Voltou para o escritório e continuou a folhear o relatório sobre a situação política do Camboja. Porque estaria aquele relatório em cima do arquivo? Junto à cadeira havia uma escadinha, Wallander pô-lo em frente ao arquivo e subiu para ela na ponta de pés para poder ver o lugar onde encontrara a pasta. A parte de cima do móvel estava cheia de pó exceto no espaço onde estivera o relatório. Wallander devolveu a escadinha ao seu lugar e ficou de pé, pensativo. De repente, notou do que chamara a sua atenção; parecia que faltavam documentos, principalmente dentro do arquivo. Para se certificar, voltou a examinar tudo uma vez mais, tanto o conteúdo das gavetas como o do arquivo, e efetivamente descobriu indícios de que alguém estivera selecionando papéis aqui e ali. Teria sido o próprio Hakan? Obviamente não se podia excluir essa possibilidade; também podia ter sido Louise.
Wallander se dirigiu à sala de estar, onde encontrou Louise sentada numa cadeira que ao inspetor pareceu muito antiga. A mulher estava olhando para as mãos e ao ver Wallander entrar voltou a perguntar se queria um chá; desta vez aceitou. Esperou até que lhe tivesse servido embora ela não o acompanhasse.
— Não encontrei nada, admitiu Wallander. — É possível que alguém esteve mexendo nos documentos de Hakan?
Ela lhe deu um olhar inquiridor. O cansaço lhe deixara o rosto acinzentado, quase distorcido.
— Eu tenho procurado entre os seus papéis, naturalmente, mas, além de mim, quem teria tido acesso a eles?
— Não sei, mas me parece que faltam documentos; diria que há uma desordem repentina. Claro que posso estar enganado.
— Ninguém esteve no seu escritório desde o dia que desapareceu. Salvo eu.
— Já falamos disto, mas queria repetir a pergunta acerca do seu sentido de ordem.
— Detestava a desorganização.
— Embora não chegasse a ser maníaco, se bem me lembro.
— Quando temos visitas costuma me ajudar a pôr a mesa e verifica sempre se os copos e os talheres estão como deve ser. Mas não usa nenhuma régua para que tudo fique em linhas retas. Chega-lhe esta resposta?
— Chega perfeitamente, assegurou Wallander afável e consternado ao ver o cansaço crescente no semblante dela.
Depois de terminar o chá desceu ao porão para ver o depósito. Havia umas quantas malas velhas, um cavalinho de balanço, caixas de plástico com brinquedos de gerações anteriores, não só de Hans. Apoiados contra a parede viu vários pares de esquis e um equipamento desmontado para cópia de negativos fotográficos.
Sentou-se com cuidado no cavalinho. A certeza tomou-o como um assalto impiedoso, tal como aquele que sofrera recentemente: não existia outra explicação, Hakan von Enke estava morto. A sensação não só o entristeceu, também o inquietou.
Hakan von Enke tentou me contar alguma coisa, concluiu. Mas naquela noite, naquela sala hermética em Djursholm, infelizmente eu não soube compreender.
* * *
Sete
WALLANDER acordou de madrugada com a discussão de um jovem casal no quarto ao lado. O isolamento das paredes era de tão má qualidade que ouviu nitidamente as duras acusações que dirigiam um ao outro. Levantou-se e foi ver tinha alguns tampões para os ouvidos no seu saco de toilette, mas aparentemente tinha esquecido.
Bateu com força na parede, duas pancadas e logo mais uma, como se quisesse transmitir uma praga categórica através do punho. A briga acabou imediatamente; ou continuou em um volume tão baixo que já não entendia o que diziam. Antes de voltar a dormir se pôs a pensar se ele e Mona não teriam protagonizado também alguma discussão estúpida no hotel durante a sua viagem à capital. Às vezes acontecia que se pegavam por detalhes insignificantes, sempre eram detalhes e nunca nada realmente importante, o que os enchia de irritação. Os nossos confrontos nunca tinham brilho, eram sempre sisudos, disse para si. Estávamos tristes ou decepcionados, ou as duas coisas ao mesmo tempo, e ambos sabíamos que acabaria por passar. Mesmo assim, continuávamos a discutir, com um comportamento infantil, e dizendo tolices que lamentávamos no momento que eram pronunciadas. Cuspíamos cobras e lagartos descontroladamente.
Voltou a adormecer, sonhou com uma pessoa que lhe pareceu ser Rydberg, ou talvez o seu pai, que se encontrava no exterior à sua espera, debaixo de chuva. Mas ele se atrasava, talvez por causa do carro que estava quebrado; sabia que receberia uma descompostura pelo atraso.
Depois do café da manhã, se sentou na recepção e discou o número de Sten Nordlander, começando pelo telefone da sua casa; ninguém atendeu. No celular também não teve resposta, mas aí ao menos pôde deixar uma mensagem de voz. Disse o seu nome e o motivo do telefonema. No entanto, qual seria na verdade o motivo da ligação? Procurar o desaparecido Hakan von Enke era tarefa da polícia de Estocolmo e não sua; na melhor das hipóteses podiam aturá-lo como um detetive privado, uma ocupação com muito má fama desde o assassinato de Olof Palme.
O toque do celular arrancou-o dos seus pensamentos. Era Sten Nordlander; tinha uma voz grave e rouca.
— Sei quem é, pois tanto Louise como Hakan têm falado de si, informou Sten. — Onde quer que o vá buscar?
Wallander já estava na rua quando Sten Nordlander freou e parou o carro junto a calçada. Era um Dodge de meados da década de 1950, com adornos cromados brilhantes e pneus com listras brancas. Certamente, Sten Nordlander tinha sido um teddy boy na sua juventude, um dos "jovens motorizados" que tanta indignação causaram ao cidadão comum naquela época. E agora também vinha vestido com um casaco de couro, botas americanas, calças jeans e apenas uma fina camisa apesar do frio que fazia. Wallander se perguntou como Hakan von Enke e Sten Nordlander tinham se tornado amigos; à primeira vista, não podia imaginar duas pessoas mais diferentes. No entanto, seria perigoso julgar somente pela primeira impressão. Umas das sentenças prediletas de Rydberg era precisamente que a aparência é quase sempre traiçoeira.
— Entre, convidou Sten Nordlander.
Wallander não lhe perguntou para onde iam, se limitou a afundar no assento vermelho de pele que, certamente, seria original. Fez algumas perguntas de cortesia sobre o carro, às quais recebeu respostas igualmente corteses, e a seguir ficaram em silêncio. Dois dados grandes de um material parecido com lã balançavam pendurados no vidro traseiro. Tinha visto muitos carros daquele estilo na sua adolescência, sempre com homens de meia-idade ao volante, vestidos de ternos tão brilhantes como os cromados dos seus automóveis. Eram os homens que compravam os quadros do seu pai às dúzias e pagavam com notas que tiravam de maços grossos. "Os cavalheiros de seda", lhes chamava então. Depois compreendeu que humilhavam o pai, pois pagavam uma ninharia pelos seus quadros.
Aquela memória entristeceu-o um pouco. Uma época passada, irremediavelmente desaparecida.
O carro não tinha cintos de segurança e Sten Nordlander viu que Wallander os procurava.
— Este carro é uma antiguidade, explicou. — Está dispensado de cintos de segurança.
Quando chegaram à área de Värmdö, havia muito que Wallander perdera o sentido da orientação e da distância. Nordlander parou o Dodge bamboleante em frente a uma casa pintada de cor marrom em que havia um café.
— A proprietária do café era casada com um amigo meu e de Hakan, disse Sten Nordlander. — Agora é viúva. Chama-se Matilda, e o marido, Claes Hornvig, era primeiro-tenente a bordo de um Ormen em que Hakan e eu trabalhávamos.
Wallander assentiu. Lembrava-se de que Hakan von Enke tinha mencionado aquele tipo de submarino.
— Costumamos vir aqui. O dinheiro lhe faz falta e, além disso, o café é muito bom.
A primeira coisa com que Wallander se deparou ao entrar foi um velho periscópio que havia no meio do chão. Sten Nordlander lhe explicou de que submarino já desmantelado procedia, e Wallander percebeu que se encontrava num museu privado de submersíveis.
— Transformou-se num hábito, explicou Sten Nordlander. — Todos os que serviam em submarinos suecos faziam no mínimo uma peregrinação ao café da Matilda. E traziam sempre alguma coisa com eles, o contrário seria impensável: uma peça de louça roubada, uma manta, até lemes e painéis de controle. Os momentos mais empolgantes eram naturalmente quando os submarinos atingiam o fim da sua vida útil e eram retirados de serviço; aí aparecia muita gente para recolher recordações e havia sempre alguém que conseguia alguma coisa para embelezar a coleção de Matilda. A ideia não era propriamente recolher fundos mas encontrar, por exemplo, um medidor de profundidade desmontado.
Uma mulher de uns vinte anos saiu por uma porta de vaivém que dava para a cozinha.
— É Marie, a neta de Claes e Matilda, informou-o Sten Nordlander. — Matilda ainda vem às vezes, mas tem mais de noventa anos. Segundo ela, a mãe chegou aos cento e um anos e a avó aos cento e três.
— É verdade, disse a garota. — A minha mãe tem cinquenta e calcula que ainda só viveu metade da vida.
Serviu-lhes uma bandeja com café e bolinhos. Sten Nordlander pediu também uma fatia de cheesecake. Havia clientes em quase todas as mesas, a maioria pessoas de idade.
— Velhos membros das tripulações de submarinos? Perguntou Wallander enquanto se dirigiam à sala mais afastada, que estava vazia.
— Não necessariamente, respondeu Sten Nordlander. — Mas conheço muitos deles.
As paredes da sala estavam decoradas com jaquetas antigas e bandeiras de sinalização militar. Wallander teve a sensação de se encontrar no armazém de adereços de um filme de guerra. Sentaram-se à mesa do canto. Na parede junto à mesa havia uma fotografia em preto e branco emoldurada. Sten Nordlander apontou para ela.
— Aí tem uma das nossas Serpentes Marinhas. O número dois da segunda fila sou eu e o quarto é Hakan; Claes Hornvig não fazia parte dessa vez.
Wallander se inclinou para ver melhor a imagem; não era fácil distinguir os rostos da fotografia. Sten Nordlander contou que a tinham tirado em Karlskrona mesmo antes de empreender uma longa expedição.
— Não se pode dizer que foi uma viagem de sonho, continuou. — Devíamos sair de Karlskrona rumo a Kvarken, chegar a Kalix e voltar. Estávamos em novembro, fazia um frio de rachar. Se não estou em erro houve tempestade quase a travessia toda. O submarino balançava constantemente onde quer que nos encontrássemos uma vez que o golfo de Bótnia tem tão pouca profundidade que nunca descemos o suficiente. O Báltico não passa de um charco.
Sten Nordlander comia o seu bolinho com avidez, mas não parecia reparar no seu sabor. De repente, pousou o garfo.
— O que terá acontecido? Perguntou.
— Olhe, não sei mais do que Louise ou você.
Sten Nordlander afastou a xícara de café com um movimento brusco. Wallander observou que estava tão cansado como Louise. Outro que não dorme, constatou para si.
— Você o conhece, disse Wallander. — Melhor que a maioria. Louise me disse que têm uma amizade muito grande. Se for assim, a sua opinião do que possa ter acontecido é mais importante que muitas outras.
— Está falando tal como o policial com quem falei na delegacia de Bergsgatan.
— Pois é, eu sou policial.
Sten Nordlander assentiu. Estava muito tenso, a sua preocupação se refletia na rigidez dos maxilares e nos cantos da boca.
— Por que razão não esteve no seu aniversário? Perguntou Wallander.
— Tenho uma irmã que vive na Noruega, em Bergen. O seu marido faleceu de forma repentina e ela precisava da minha ajuda. Além disso, as comemorações com muita gente não me atraem. Hakan e eu comemorámos uma semana antes com uma festa privada.
— Onde?
— Aqui mesmo. Com café e bolinhos.
Sten Nordlander apontou para um gorro de uniforme que estava pendurado na parede.
— Esse era do Hakan. Doou-o quando festejamos o seu aniversário.
— De que falaram?
— Do costume, do que aconteceu em outubro de 1982. Eu servia na época no contratorpedeiro Halland que em breve sairia de serviço; agora está no museu naval de Gotemburgo.
— Portanto, não era só maquinista-chefe de submarinos.
— Comecei num torpedeiro e mais tarde passei para uma corveta, um contratorpedeiro, um submarino e finalmente para um contratorpedeiro outra vez. Estávamos na costa oeste quando começaram a aparecer submarinos no Báltico. Ao meio-dia de dois de outubro, o comandante Nyman anunciou que devíamos nos dirigir a todo o vapor para o arquipélago de Estocolmo para atuar como reforço adicional numa operação.
— Esteve em contato com Hakan durante aqueles dias de tão intensa atividade?
— Ele me telefonou.
— Para casa ou para bordo do navio?
— Para o contratorpedeiro. Naquela época, eu nunca estava em casa; suspenderam todas as licenças visto que nos encontrávamos, sem dúvida alguma, em alerta máximo.
Vale a pena lembrar que foi durante a época maravilhosa em que os celulares ainda não apareciam nas mãos de toda a gente. Os recrutas que prestavam serviço na central telefônica do navio desciam e nos avisavam quando alguém nos telefonava. Ele costumava me ligar de noite e pedia para que falasse do meu camarote.
— Porquê?
— Suponho que não queria que alguém ouvisse as nossas conversas. Havia um certo tom áspero e relutante nas respostas de Sten Nordlander. E não parava de esmigalhar com o garfo o último pedaço do bolinho. — Falávamos praticamente todas as noites entre 1 e 15 de outubro. Na verdade, não creio que lhe permitissem falar comigo como fazia, mas nós confiávamos um no outro; ele sentia o peso da responsabilidade, podiam se enganar no lançamento de alguma carga de profundidade a afundar o submarino em vez de obrigá-lo a emergir.
Sten Nordlander tinha esmagado completamente o que restava do bolinho até o deixar transformado numa massa muito pouco apetitosa. Largou o garfo e cobriu o prato com um guardanapo de papel.
— Nessa última noite me telefonou três vezes. A altas horas da noite, ou melhor, de madrugada, me ligou pela última vez.
— Você continuava a bordo do contratorpedeiro?
— Estávamos a menos de uma milha a sudeste de Hârsfjárden. Fazia vento, mas não soprava muito forte. A bordo tínhamos alerta máximo. Obviamente, os oficiais sabiam o que acontecia, mas o restante da tripulação só estava em alerta sem saber os motivos.
— Acha que existia a possibilidade real de ordenarem que dessem caça ao submarino?
— Bem, não sabíamos qual seria a reação dos russos se obrigássemos um dos seus submarinos a emergir; talvez tentassem libertá-lo. Ao norte de Gotland havia navios de guerra russos que avançavam devagar para as nossas posições. Um dos nossos telegrafistas disse que nunca tinha visto um intercâmbio por rádio tão intenso entre os russos, nem durante as manobras de maior envergadura realizadas na costa báltica. Estavam nervosos e não era para menos.
Ficou em silêncio quando Marie entrou perguntando se queriam mais café, mas ambos responderam que não.
— Bem, falemos do mais importante, sugeriu Wallander. — O que achou de terem deixado ir embora o submarino detido?
— Não quis acreditar, evidentemente.
— Como tomou conhecimento?
— De repente, Nyman recebeu ordens de retirada, de nos afastar até Landsort e aguardar ali. Não nos deram a menor explicação, e Nyman também não é dos que fazem perguntas desnecessárias. Eu estava na sala de máquinas quando me avisaram de que tinha uma ligação e subi correndo para o meu camarote. Era Hakan; me perguntou se estava sozinho.
— Costumava se certificar?
— Só naquele dia, nas outras ocasiões não o fez. Disse-lhe que sim. Insistiu em que era importante que lhe dissesse a verdade; me lembro que quase me irritei. De repente, notei que ele tinha deixado o comando das operações e de que falava de um telefone público.
— Como soube? Ele lhe disse?
— Não, mas ouvi quando introduzia as moedas. Na sala dos oficiais havia um desses telefones, e uma vez que não podia se ausentar muito da sala de comando, não mais do que levaria numa ida ao banheiro, deduzi que fora correndo para lá.
— Ele disse isso?
Sten Nordlander lhe deu um olhar irritado.
— Quem é o policial aqui, você ou eu? Ouvi-o arfar! Wallander não se deixou perturbar, apenas fez um gesto calmo pedindo que continuasse. — Podemos dizer que estava alterado, furioso e assustado ao mesmo tempo. Era como se estivesse sob fogo cruzado; gritava ao telefone que aquilo era traição e que ia se recusar a obedecer às ordens e lançar uma bomba naquele submarino, dissessem o que dissessem. E então acabaram as moedas, foi como se alguém tivesse cortado a fita de uma gravação.
Wallander olhou-o fixamente, aguardando uma continuação.
— Ele disse isso? Traição é uma palavra forte.
— Sim, mas era precisamente isso! Traição à pátria. Libertaram um submarino que tinha violado as nossas fronteiras.
— Quem era o responsável?
— Alguém do alto-comando, possivelmente mais do que um, que se assustou muito e recuou. Não desejavam obrigar um submarino russo a vir à superfície.
Um homem com uma xícara na mão entrou na sala, mas Sten Nordlander lhe deu um olhar tão agressivo que o indivíduo imediatamente recuou e foi procurar mesa noutra sala.
— Quem deu a ordem é algo que ignoro, mas à questão do "porquê" talvez seja mais fácil responder. Embora, evidentemente, não passem de meras especulações; o que não se sabe, não se sabe e pronto.
— Às vezes, é necessário pensar em voz alta. Mesmo para os policiais.
— Suponhamos que a bordo daquele submarino havia algo a que as autoridades suecas não deviam ter acesso.
— Como por exemplo?
Sten Nordlander abaixou a voz, não muito, mas o suficiente para que Wallander notasse.
— Vamos mais além na dita suposição e digamos que não se tratava de "algo", mas sim de "alguém". O que teria acontecido se tivessem encontrado um oficial sueco a bordo? É um exemplo, claro.
— O que o leva a pensar isso?
— Não é ideia minha, é uma teoria de Hakan. E tinha muitas. Wallander refletiu antes de continuar. Notou que deveria ter tomado notas de tudo o que Sten Nordlander lhe confiava.
— O que aconteceu depois?
— Depois de quê?
Sten Nordlander começava a se irritar de verdade, mas Wallander não soube se se devia às suas perguntas ou à preocupação que sentia pelo desaparecimento do amigo.
— Hakan me contou que começara a fazer perguntas, confessou Wallander.
— Sim, tentou investigar. Obviamente, a maior parte da documentação em causa era secreta; uma parte tinha inclusive a classificação de ultrassecreta, de modo que não serão acessíveis até decorridos setenta anos. É o prazo máximo na Suécia, o normal são quarenta anos. Mas neste caso a interdição à leitura de certos documentos é por um período de setenta anos. Nem mesmo a simpática Marie que nos serviu o café deverá poder ler esses papéis antes de morrer.
— Por outro lado, faz parte de uma família com bons genes, observou Wallander.
Sten Nordlander não reagiu ao comentário.
— Hakan podia ser uma pessoa difícil quando metia uma ideia na cabeça, continuou Nordlander. — Sentia-se tão violado como as águas territoriais suecas: alguém tinha cometido uma traição e uma traição grave. Apesar de haver montes de jornalistas que vasculharam o assunto dos submarinos, Hakan não estava satisfeito; queria investigá-lo por si mesmo. E arriscou a sua carreira por isso.
— Com quem falou?
A resposta de Sten Nordlander foi instantânea, como uma chicotada a um cavalo invisível.
— Com todos. Perguntou a toda a gente; talvez não exatamente ao rei, mas quase. Pediu audiência ao primeiro-ministro, disso tenho certeza. Telefonou para Thage G. Peterson, um dos bons velhos sociais-democratas da sala, e lhe pediu um encontro com Palme. Peterson lhe disse que não tinha nenhuma vaga, mas Hakan insistiu. "Pois então consulte a outra agenda", exigiu. "Aquela em que sempre se podem incluir visitas urgentes." E, de fato, lhe concederam um encontro, uns dias antes do Natal de 1983.
— E ele lhe contou isso?
— Acompanhei-o.
— Na visita a Palme?
— Naquele dia me fiz de motorista, por assim dizer. Fiquei à sua espera no carro e o vi com a sua farda e o sobretudo preto se dirigir para a porta e desaparecer no edifício mais sagrado do país, depois do palácio real. A visita durou aproximadamente trinta minutos. Uns dez minutos depois de Hakan ter saído do carro, um supervisor de estacionamento bateu no vidro para me avisar de que ali era só permitido parar para deixar ou recolher pessoas, mas não estacionar. Abaixei o vidro e expliquei que esperava por uma pessoa que estava reunida com o primeiro-ministro do país e que não tinha a menor intenção de sair do lugar onde estava. Então me deixou em paz. Quando Hakan voltou trazia a testa banhada em suor.
Tinham ido logo embora em silêncio.
— Viemos para cá, prosseguiu Sten Nordlander. — E sentamos precisamente nesta mesa. Quando saímos do carro começou a nevar; naquele ano houve um Natal branco em Estocolmo, e a neve aguentou até à véspera do Ano Novo, mas a seguir veio a chuva e derreteu tudo.
Marie voltou com a cafeteira e desta vez os dois aceitaram que lhes enchesse as xícaras. Quando Sten Nordlander levou um torrão de açúcar à boca, Wallander observou que tinha dentadura postiça e, por um segundo, aquilo o incomodou, talvez porque se lembrasse da falta de regularidade com que ele mesmo visitava o dentista.
Segundo Sten Nordlander, Von Enke foi muito exaustivo com os detalhes ao narrar o seu encontro com Olof Palme. Este lhe dispensara um acolhimento afável e perguntara acerca da sua carreira militar, comentando com ironia a sua própria condição de oficial de reserva. O primeiro-ministro escutara com atenção o que Von Enke viera comunicar, e Von Enke se explicara com total clareza. Segundo Sten Nordlander, no que dizia respeito à sua lealdade para com o seu empregador, o Ministério da Defesa, transgrediu todos os limites imagináveis. Ao contactar o primeiro-ministro por iniciativa própria criara uma situação insustentável perante o chefe do Estado-Maior e a sua sala. Mas agora não podia voltar atrás, ele tinha de dizer a verdade; levou mais de dez minutos expondo o seu ponto de vista, e Palme o ouviu, segundo contou Von Enke, de boca meio aberta e sem deixar de olhá-lo nos olhos. Depois, quando ele terminou, Palme refletiu um instante antes de começar a formular as suas perguntas. Antes de tudo, queria saber se os militares tinham certeza da nacionalidade do submarino e se, de fato, pertencia ao Pacto de Varsóvia. Hakan respondeu com outra pergunta, explicou Sten Nordlander: lhe perguntou que outra origem poderia ter; Palme não respondeu, se limitando a exibir uma expressão de desagrado e a menear a cabeça. Quando Hakan começou a falar de traição à pátria e de escândalo político-militar, Palme interrompeu-o e disse que aquela discussão devia se desenrolar de outro modo, não a sós com o primeiro-ministro. Não passaram daí. Uma secretária bateu discretamente à porta para lembrar a Palme que tinha outro encontro. Quando Hakan saiu estava suado, mas ao mesmo tempo aliviado. Palme tinha ouvido tudo, afirmou. Sentia-se muito otimista e pensava que finalmente se lançaria luz sobre o acontecido. Estava convencido de que o primeiro-ministro tinha compreendido perfeitamente a sua exposição do assunto da traição e de que daria um puxão de orelhas no seu ministro da Defesa e no seu chefe do Estado-Maior, lhes exigindo uma explicação. Quem tinha aberto a jaula e deixado fugir assim o submarino? E, antes de tudo, porquê?
Sten Nordlander ficou em silêncio e deitou uma olhada no relógio.
— O que aconteceu depois? Quis Wallander saber.
— Era Natal, e tudo esteve calmo durante uns dias, mas antes do Ano Novo convocaram Hakan para uma reunião com o chefe do Estado-Maior. Recebeu uma boa reprimenda por ter visitado Olof Palme sem o seu conhecimento. Mas Hakan não era idiota e percebeu claramente que, na realidade, as críticas se dirigiam ao próprio primeiro-ministro, que não deveria ter recebido um oficial da Marinha desnorteado.
— No entanto, Hakan continuou a indagar sobre o assunto, não é verdade? Não se deu por vencido apesar de ter sido repreendido.
— Nunca mais parou. Já se passaram vinte e cinco anos!
— Você era o seu melhor amigo e suponho que falou consigo das ameaças que recebeu.
Sten Nordlander assentiu em silêncio, sem fazer qualquer comentário.
— E agora está desaparecido, continuou o inspetor.
— Está morto. Alguém o assassinou.
Foi uma resposta inequívoca e fulminante. Sten Nordlander mencionou a morte do seu amigo como se se tratasse de uma evidência.
— Como pode ter tanta certeza?
— Por acaso há lugar para dúvidas?
— Quem acha que o matou? E porquê?
— Não sei. Talvez estivesse na posse de alguma informação que se mostrou ser muito perigosa.
— Foi há vinte e cinco anos que aqueles submarinos violaram as águas territoriais suecas. O que pode ser agora tão perigoso depois de tantos anos? Pelo amor de Deus! Já nem sequer existe a União Soviética e o Muro de Berlim caiu. E a Alemanha de Leste; esses tempos pertencem ao passado. Que sombras do passado poderiam surgir agora? Opinou Wallander.
— Nós acreditamos que já passou tudo, mas talvez alguém esteve nos bastidores todo este tempo e agora virou a casaca. O repertório pode ser outro, mas o palco é o mesmo.
Com isso, Sten Nordlander se levantou.
— Podemos continuar noutro dia, propôs. — Tenho a minha mulher à minha espera.
Levou Wallander de volta ao hotel e, mesmo antes de se despedir o inspetor se deu conta de que tinha outra pergunta para lhe fazer.
— Hakan confiava em alguma outra pessoa tanto como em si?
— Ele não confiava em ninguém. Talvez em Louise. Os velhos lobos do mar costumam ser reservados, gostam de ser discretos. Seria um exagero afirmar que éramos amigos íntimos, mas podemos dizer que eu era o seu amigo mais próximo.
Wallander notou que Nordlander hesitava, como se duvidasse da conveniência de dizer.
— Steven Atkins, disse por fim. — Um comandante de submarinos norte-americano. Um pouco mais jovem que ele; penso que vai fazer setenta e cinco no ano que vem.
Wallander tirou o seu bloco de notas e apontou o nome.
— Tem o seu endereço?
— Mora na Califórnia, perto de San Diego. Antes estava estacionado em Groton, a grande base naval.
Wallander se perguntou por que razão Louise não tinha mencionado Steven Atkins, mas não queria incomodar Nordlander com essa questão, pois o homem parecia estar com pressa e já pisava impaciente o acelerador.
Wallander viu a viatura reluzente desaparecer encosta acima.
Depois subiu para o seu quarto e passou o resto do dia refletindo nas informações que tinha recebido. Em qualquer caso, o desaparecimento de Hakan von Enke continuava um mistério e ele não parecia ter se aproximado um passo sequer de uma explicação.
* * *
Oito
NA MANHÃ do dia seguinte, Linda ligou para perguntar se tudo estava correndo bem em Estocolmo. Ele disse a verdade, que Louise parecia convencida de que Hakan estava morto.
— Hans se recusa a acreditar nisso, assegurou Linda. — Está convencido de que o pai está vivo.
— No fundo, deve desconfiar que a situação pode ser tão séria como Louise pressente.
— E você, o que acha?
— A coisa está negra.
Wallander perguntou se tinha falado com alguém de Ystad, pois sabia que Linda mantinha contato com Kristina Magnusson fora do trabalho.
— A equipe de investigação interna retornou a Malmó, disse. — O que significa que o seu caso ficará resolvido em breve.
— Talvez me ponham na rua, pressagiou Wallander.
A resposta de Linda deixava transparecer a sua indignação.
— Claro que foi muito estúpido ao levar a arma consigo para o restaurante, mas, se isso for razão para o despedirem, então acho que poderíamos contar com que duzentos outros policiais também perderiam o seu emprego de uma só machadada. E por falhas de disciplina bem mais graves, se diga de passagem.
— Estou preparado para o pior, insistiu Wallander sombrio.
— Quando puser de lado essa autocomiseração voltaremos a falar do assunto, disse ela antes de desligar.
Wallander pensou que Linda tinha razão. O mais provável era que recebesse um aviso sério ou talvez uma redução de salário. Pegou no telefone para lhe falar novamente, mas mudou de ideia; existia o alto risco de que se envolvessem numa discussão. Vestiu-se, tomou o café da manhã e telefonou para Ytterberg, que prometera recebê-lo às nove. Wallander perguntou se tinha encontrado algum rastro, mas a resposta foi um não.
— Recebemos uma informação anônima dizendo que Von Enke foi visto em Södertälje, informou Ytterberg. — De todos os lugares imagine. Seja como for, não havia nada; era outro fulano de farda e o nosso homem não estava fardado quando saiu para o seu passeio.
— Em qualquer caso, é estranho que ninguém o tenha visto, observou Wallander. — Se bem me recordo, há muita gente que vai para Lilljansskogen fazer exercício ou passear o cão.
— Sim, concordo, disse Ytterberg. — Também a nós preocupa, mas ninguém parece tê-lo visto. Venha às nove e falaremos. Sairei ao seu encontro.
Ytterberg era alto e robusto e fez Wallander pensar num dos clássicos lutadores suecos. Deu uma olhada nas suas orelhas para ver se apresentavam as deformações típicas em forma de couve-flor, tão habituais nos lutadores, mas não encontrou qualquer indício de que aquele homem tivesse deixado para trás uma carreira na luta livre. Não obstante o seu corpo enorme, Ytterberg se movia com agilidade; quase não roçava no chão enquanto avançava pelos corredores com Wallander seguindo-o como podia. No final chegaram a um escritório caótico sobre cujo chão jazia um gigantesco golfinho insuflável.
— É para a minha neta, explicou Ytterberg. — Vou oferecê-lo à Anna Laura Constance, que faz nove anos na quarta-feira. Você tem netos?
— Acabo de ter o primeiro, uma neta.
— Como se chama?
— Por enquanto, nada. Estão à espera que o nome surja sozinho.
Ytterberg murmurou um comentário inaudível e afundou pesadamente na cadeira. Apontou para uma máquina de café que havia no peitoril da janela, mas Wallander declinou o convite com um gesto de cabeça.
— Partimos simplesmente do princípio de que foi cometido um crime violento, começou Ytterberg. — Está desaparecido há muito tempo. Todo este assunto é muito estranho: nem uma única pista, nem alguém que o tenha visto; um homem mais desaparecido da face da Terra não deve haver. Aquele caminho da floresta está sempre cheio de gente, mas ninguém sabe de nada; há aqui algo que não bate certo.
— Então isso quer dizer que se afastou do seu percurso habitual, que nunca esteve ali, certo?
— Ou, pelo menos, que algo aconteceu no caminho antes de chegar à floresta. Seja como for, é esquisito não haver ninguém que tivesse visto alguma coisa. Não se pode matar uma pessoa em Valhallavàgen e passar despercebido, e também não é fácil colocar um homem num carro assim sem mais.
— Acha que, apesar de tudo, é possível que tenha ido embora por vontade própria?
— Uma vez que ninguém o viu, é o mais verosímil. No entanto, não há nada que sustente essa hipótese.
Wallander assentiu.
— Disse-me que os serviços de informação se interessaram pelo assunto, não é verdade? Adiantaram alguma coisa?
Ytterberg semicerrou os olhos e se recostou na cadeira.
— Desde quando é que a secreta contribuiu para algo sensato deste país? Dizem que é pura rotina e que se envolvem porque o desaparecido é um militar de alta patente, ainda que esteja aposentado há muito tempo.
Ytterberg se serviu de café, mas Wallander voltou a indicar com um gesto que não queria.
— Na festa do seu aniversário, Von Enke me pareceu preocupado, revelou.
Uma vez que Ytterberg lhe inspirava confiança, Wallander falou do episódio no terraço, quando Hakan von Enke se assustara.
— Nessa noite, também tive a sensação, prosseguiu Wallander, — De que queria me confiar alguma coisa. Entretanto, nada do que me disse explicava a sua inquietação, nem me fez nenhuma revelação que se pudesse qualificar realmente de confidência.
— Mas a sua opinião é que estava assustado?
— Sim, acho que sim. Lembro-me de ter pensado que um comandante de submarino não se preocuparia com um perigo imaginário; os anos passados debaixo das águas deveriam garantir tal suposição.
— Percebo a que se refere, respondeu Ytterberg, pensativo.
Então se ouviu no corredor a voz de uma mulher exaltada. Wallander compreendeu que estava furiosa por "ter sido interrogada por um palhaço". Depois tudo voltou a ficar em silêncio.
— Estive pensando, disse Wallander. — Quando revistei o escritório no apartamento de Grevgatan fiquei com a sensação de que alguém mexera nos papéis dele. Não consigo determinar exatamente o que era, mas você já sabe como são estas coisas: na forma como uma pessoa organiza os seus pertences pode se detectar um sistema, sobretudo nos documentos que todos vamos acumulando, a espuma da existência, como me disse um velho inspetor numa ocasião. E, de repente, o sistema vem abaixo e surgem lacunas estranhas. Além disso, por todo o lado reinava a mais perfeita ordem, exceto numa gaveta em que tudo estava numa desordem total.
— O que lhe disse a mulher?
— Que ninguém tinha mexido ali.
— Então existem duas possibilidades: ou ela mesma mexeu nos papéis por alguma razão que não nos deseja revelar; talvez simplesmente não queira que a julguemos curiosa, vai ver tem vergonha da sua curiosidade, eu sei lá. Ou então foi ele mesmo quem andou fazendo uma limpeza.
Wallander ficou pensando no que Ytterberg dissera. Havia algo de que devia ter percebido, uma ligação que lhe ocorreu de súbito, mas que se esfumou com a mesma rapidez. Não conseguiu captar a ideia que lhe escapou irremediavelmente.
— Voltemos um momento ao assunto dos serviços de informação, sugeriu Wallander. — Será possível que tenham algo contra ele? Uma velha suspeita que estivesse acumulando pó numa gaveta e que agora tenha voltado a despertar interesse, por exemplo.
— Fiz-lhes a mesma pergunta e recebi uma resposta tão vaga que se pode interpretar de qualquer maneira. Talvez o agente que me visitou não dispunha de mais informação. Todos suspeitamos que os serviços de informação guardam uma série de segredos internos ao mesmo tempo que são péssimos em manter a boca calada no que toca ao que sabem.
— Mas por acaso tinham alguma coisa contra Von Enke ?
Ytterberg levantou os braços num gesto de resignação, bateu sem querer na xícara de café, cujo conteúdo derramou. Irritado, jogou a xícara no cesto de papéis e limpou a mesa e os documentos molhados com um pano que havia numa prateleira atrás da mesa. Wallander suspeitou que o episódio da xícara não acontecia pela primeira vez.
— Não havia nada, disse Ytterberg uma vez terminada a limpeza. — Hakan von Enke é um militar sueco de retidão inquestionável. Falei com uma pessoa, de cujo nome não me recordo agora, uma pessoa que tem acesso aos arquivos dos oficiais da Marinha, e Hakan von Enke teve uma rápida ascensão na sua carreira, chegou a capitão de fragata muito cedo. Mas depois parou, se poderia dizer que a sua carreira emperrou.
Com o queixo apoiado na mão, Wallander refletiu um momento sobre o que Sten Nordlander lhe revelara ao assegurar que Von Enke tinha arriscado a carreira. Ytterberg limpava as unhas com um abridor de cartas. Alguém passou assobiando pelo corredor, e Wallander notou com surpresa de que se tratava do velho êxito da guerra We'll Meet Again. "Don't know where, don't know when...", cantarolou para os seus botões.
— Quanto tempo pensa ficar em Estocolmo? Perguntou Ytterberg rompendo o silêncio.
— Volto para casa esta tarde.
— Dê-me o seu número de telefone e o manterei informado.
Ytterberg acompanhou-o até à saída que dava para Bergsgatan. Wallander desceu pela Praça Kungsholms Torg, chamou um táxi e retornou ao hotel. Pendurou a placa de "Não incomodar" e se deitou na cama. Mentalmente se deslocou novamente para a festa de Djursholm e, como quem descalça os sapatos para se aproximar na ponta dos pés, se aproximou sem fazer barulho das suas lembranças do comportamento e das palavras de Hakan von Enke. Deu voltas e mais voltas às imagens da sua memória, tentando detectar alguma brecha. Estaria enganado? E se aquilo que ele interpretou como medo fosse outra coisa completamente diferente? A expressão do rosto de uma pessoa podia se interpretar de mil maneiras; os míopes, por exemplo, ao semicerrarem os olhos para focar a imagem, eram às vezes tomados por insolentes ou desdenhosos.
O homem cujo rastro procurava estava desaparecido há seis dias. Wallander sabia que tinham ultrapassado o limite de tempo em que as coisas costumavam se resolver; depois de tantos dias, os desaparecidos já tinham regressado aos seus lares ou, pelo menos, tinham dado sinais de vida. De Hakan von Enke não tinham a menor notícia.
Simplesmente tinha se esfumado, prosseguia Wallander naquela conversa com ele mesmo. Sai para passear e não volta. Tem o passaporte em casa, não leva dinheiro, nem mesmo o celular. Esse foi um dos pontos em que o inspetor se deteve, uma das circunstâncias mais desconcertantes. O do celular constituía um mistério que requeria solução, exigia uma resposta. Claro que podia tê-lo esquecido, mas porquê precisamente na manhã em que desapareceu? Aquilo não parecia verosímil e reforçava a hipótese de que o seu desaparecimento não fora voluntário.
Preparou-se para a viagem de regresso a Ystad. Dedicou a hora antes da partida do trem a almoçar num restaurante próximo da estação. Durante o trajeto tentou resolver dois problemas de palavras cruzadas, mas, como de costume, havia algumas palavras que, para irritação sua, não descobriu, de modo que passou a maior parte do tempo pensando nelas. Chegou em casa pouco depois das nove. Quando foi buscar Jussi, o cão quase o derrubou, tanta era a alegria de o voltar a ver.
Assim que atravessou o limiar da porta notou de um cheiro estranho. Seguido por Jussi, foi farejando até o ralo no chão do banheiro. Jogou dois baldes de água em cima sem que houvesse qualquer diminuição significativa do fedor. O cano de esgoto estava provavelmente entupido; fechou a porta do banheiro. O encanador ao qual costumava recorrer se afundava de tempos a tempos em crises alcoólicas, e Wallander esperava que não se encontrasse numa dessas fases.
Jarmo, assim se chamava o encanador, estava absolutamente sóbrio quando Wallander lhe telefonou logo de manhã. O mau cheiro do cano ainda não tinha desaparecido.
Uma hora mais tarde, o homem apareceu em sua casa e, depois de outra hora de trabalho, a canalização ficou limpa; o fedor desapareceu quase imediatamente. Wallander lhe pagou por baixo da mesa, uma coisa que não lhe agradava, mas Jarmo, por princípio, era contra a emissão de faturas. Com cerca de quarenta anos, tinha filhos espalhados por toda a região. Havia uns anos, Wallander tinha-o detido numa ocasião depois de alguém o indicar como receptador de objetos roubados em diversas obras de construção. Contudo, Jarmo revelou ser inocente, tinha acontecido um mal-entendido, e, desde que Wallander comprara a casa, lhe telefonava sempre para que se ocupasse dos problemas constantes de canalização.
— Como vai aquilo da arma? Perguntou Jarmo alegremente, enquanto guardava na volumosa carteira as notas com que Wallander lhe pagou.
— Ainda estou à espera de notícias, respondeu Wallander, que, por outro lado, não tinha o menor desejo de falar do assunto.
— Pois eu acho que nunca estive tão bêbado para esquecer os alicates no bar.
Wallander não encontrou uma resposta apropriada e se limitou a se despedir com um gesto mudo da mão quando o homem foi embora na sua furgoneta enferrujada. Ligou para a delegacia, para o número direto de Martinsson. Uma gravação com a voz do colega lhe comunicou que se encontrava em Lund, onde participava num seminário sobre transporte ilegal de imigrantes. Por um instante, considerou telefonar para Kristina Magnusson, mas decidiu não o fazer. Resolveu outro par de palavras cruzadas, pôs o freezer para descongelar e deu uma longa caminhada com Jussi. O fato de não poder trabalhar aborrecia-o e inquietava-o muito. O telefone tocou e Wallander levantou imediatamente o auscultador, como se estivesse à espera de ouvir o sinal. Uma jovem voz despreocupada perguntou se estava interessado em alugar um equipamento de massagem que podia se guardar num roupeiro e que ocupava um espaço mínimo mesmo montado. Wallander desligou num ímpeto, mas se arrependeu logo de ter sido tão brusco com a jovem, que não merecia tal tratamento.
O telefone tocou novamente. Hesitou antes de responder, mas decidiu atender. Havia interferências, como se chamassem de um lugar remoto. Uma voz lhe chegava desfasada. E falava em inglês.
Era um homem que perguntava, aos gritos, se falava com a pessoa adequada, pois ele queria contactar com Kurt, com Kurt Wallander.
— Sou eu, vociferou Wallander por sua vez, no meio da crepitação da linha. — Mas com quem estou falando?
A ligação pareceu cair. Wallander estava prestes a desligar quando os gritos voltaram, embora mais distintos, como se mais próximos.
— Wallander? Gritou o homem. — Kurt, é você?
— Sim, sou eu!
— Steven Atkins. Sabe quem sou?
— Sim! É o amigo de Hakan von Enke.
— Já apareceu?
— Não.
— Disse que não?
— Sim, disse que não!
— Portanto, está desaparecido há uma semana.
— Sim, aproximadamente.
A ligação começava a falhar de novo. Wallander supôs que Steven Atkins ligava de um celular.
— Estou preocupado, continuou Atkins sempre aos gritos. — Ele não é dos que desaparecem sem mais.
— Quando foi a última vez que falou com ele?
— Faz oito dias no domingo; à tarde, hora da Suécia. Um dia antes de ter desaparecido, calculou Wallander.
— Foi você quem telefonou ou foi ele que se pôs em contato consigo?
— Ele é que me telefonou. Assegurou-me que tinha chegado a uma conclusão.
— Sobre o quê?
— Não sei, não me disse.
— Só isso? Que tinha chegado a uma conclusão? Mas deve ter dito mais alguma coisa, não?
— Não senhor, nada disso, pois era um homem muito cauteloso quando falava ao telefone. Às vezes, até me ligava de uma cabina.
A linha voltou a falhar. Wallander susteve a respiração com medo de interferências.
— Quero saber o que está acontecendo, continuou Atkins. — Estou preocupado.
— Falou-lhe de alguma viagem que ia fazer?
— Há muito tempo que não o notava tão feliz. Hakan podia às vezes parecer desanimado; não gostava de envelhecer, temia não dispor de tempo suficiente. Quantos anos tem, Kurt?
— Sessenta.
— Isso não é idade. Tem um endereço eletrônico?
Wallander soletrou o seu endereço com alguma dificuldade, mas não confessou que raramente o usava.
— Escreverei, Kurt! Gritou Atkins. — Porque não vem me visitar? Mas primeiro encontre Hakan, está bem?
A ligação enfraqueceu de novo antes de se cortar bruscamente. Wallander ficou atônito com o auscultador na mão. Porque não vem me visitar? Desligou e se sentou à mesa da cozinha. Da Califórnia distante, Steven Atkins tinha lhe proporcionado uma série de dados novos, assim, de forma direta. Reviu ponto por ponto, réplica por réplica, a conversa: um dia antes do seu desaparecimento, Hakan von Enke telefonara para a Califórnia; não para Sten Nordlander, e também não para o filho. Fora uma escolha consciente? E teria feito aquele telefonema em particular de uma cabina? Teria saído de casa precisamente para telefonar? A pergunta carecia de resposta.
Continuou a escrever até ter repassado a fundo toda a conversa e quando terminou se levantou e se afastou uns metros da mesa, observando o bloco de notas como um pintor estudando de longe o quadro que descansa no cavalete. Naturalmente, fora Sten Nordlander quem dera o seu número a Steven Atkins, não havia nada de estranho nisso. Atkins estava tão preocupado como os outros. Ou não estaria? De repente, lhe sobreveio a ideia de que Hakan von Enke estivera ao lado de Steven Atkins quando este lhe telefonara. Refutou a ideia em seguida, quase como se fosse um pensamento indecente.
Sentiu um súbito cansaço daquela história. Claro que podia estar preocupado, tal como os outros, mas não era sua missão procurar o desaparecido nem andar especulando sobre as diversas circunstâncias que rodeavam o caso. Tentava apenas preencher a sua ociosidade com fantasmas. Talvez fosse um exercício prévio à infelicidade que o aguardava quando a inescapável aposentadoria o encurralasse também?
Preparou uma refeição, arrumou um pouco a casa, mas sem grande entusiasmo, e tentou ler um livro, presente de Linda, sobre a história da polícia sueca. Tinha adormecido com o livro na mão quando, de repente, o telefone o arrancou do sono. Era Ytterberg.
— Espero não estar incomodando, se desculpou.
— De maneira nenhuma, estava lendo.
— Fizemos um achado, informou Ytterberg. — E queria pô-lo a par.
— Encontraram um corpo ?
— Carbonizado. Foi descoberto há umas horas em Lidingó, numa pensão reduzida a cinzas, não muito longe de Lilljansskogen. A idade pode ser a certa, embora, na realidade, não haja indícios de que seja ele. Ainda não vamos dizer nada à mulher nem aos outros membros da família.
— E os jornais?
— Nem uma palavra.
Naquela noite, Wallander voltou a dormir mal. Levantou-se vezes sem conta, pegou no livro sobre a polícia da Suécia só para voltar a largá-lo em seguida.
Jussi dormitava em frente à lareira e seguia-o com o olhar; de vez em quando, Wallander lhe permitia dormir dentro de casa.
Ytterberg telefonou às seis e pouco da manhã: o corpo carbonizado que encontraram em Lidingõ não era de Hakan von Enke; o anel que o cadáver tinha no dedo permitiu identificá-lo como outra pessoa. Wallander se sentiu aliviado e conseguiu voltar a dormir, até às nove. Tinha acabado de se sentar à mesa do café da manhã quando Lennart Mattson ligou.
— Resolvido, anunciou. — O recursos humanos deliberou castigá-lo com cinco dias sem salário por ter se esquecido da arma.
— Mais nada?
— Não acha suficiente?
— Chega e sobra. Bem, nesse caso parto do princípio de que posso voltar ao trabalho já nesta segunda-feira.
E assim foi. Na segunda-feira de manhã, bem cedo, Wallander voltava a ocupar o seu lugar à mesa da sua sala. Entretanto, continuava a não haver o mínimo rastro do paradeiro de Hakan von Enke.
* * *
Nove
O HOMEM continuou desaparecido. Wallander voltou ao serviço e foi acolhido com um sorriso pelos colegas, contentes pela medida disciplinar imposta ter sido tão leve. Houve até quem sugerisse organizar uma coleta para suprir o dinheiro que o Estado sueco retivesse do seu salário, mas logicamente não chegaram a tanto. Wallander desconfiava que um ou outro dos que lhe deram as boas-vindas no fundo se regozijava com o seu infortúnio, mas decidiu não dar importância; não pensava em se dedicar a detectar os possíveis hipócritas, tinha mais o que fazer. E, além disso, dormiria pior ainda se fosse para a cama pensando em colegas que riam dele sorrateiramente.
Depois de finalizar com êxito a investigação do caso das armas, que até lhe valera um ramo de flores da filha do casal, a sua primeira tarefa digna desse nome foi um caso de agressão grave. Ocorreu num dos ferryboats que faziam o trajeto entre Ystad e a Polônia, uma história deprimente de insólita brutalidade que tinha como ponto de partida a situação clássica em que não existe uma única testemunha confiável e em que todos se acusam mutuamente. A agressão teve lugar num estreito camarote, a vítima era uma jovem de Skurup que empreendera aquela viagem infeliz com o seu namorado, que sabia ser ciumento e mau bebedor. Durante o trajeto, travaram amizade com um grupo de jovens de Malmó, cuja viagem tinha como único objetivo beber sem parar. No decorrer da investigação, Wallander refletiu muito sobre aquela circunstância: como podia alguém achar que beber desmedidamente e não se lembrar de nada no dia seguinte podia ser a melhor maneira de passar uma noite livre?
No princípio, era o único responsável pelo caso, com a assistência ocasional de Martinsson. Não parecia necessário aplicar mais recursos, uma vez que os autores se encontravam com todas as probabilidades entre os jovens que a jovem conhecera a bordo. Desde que sacudisse a árvore com força suficiente, os frutos cairiam no chão sem mais e ele apenas teria de selecioná-los e classificar em cestos adequados: um para os inocentes e outro para aquele ou aqueles que tinham batido na jovem quase até a matar e haviam lhe arrancado metade da orelha esquerda. No que tocava ao caso Von Enke, prosseguia sem novidades. Wallander falava praticamente todos os dias com Ytterberg, que continuava a não acreditar que o comandante tivesse desaparecido por vontade própria, se baseando no passaporte deixado em casa e no fato de não se ter registrado qualquer utilização do cartão de crédito. "Mas é sobretudo uma questão de caráter do homem", afirmava Ytterberg. "Hakan von Enke simplesmente não é o gênero de pessoa que desapareça abandonando a mulher. Não faz sentido."
Wallander também costumava falar com Louise. Era sempre ela quem telefonava, no geral por volta das sete, quando ele já estava em casa e jantava qualquer coisa cozinhada às pressas e sem esmero. Wallander intuía que a mulher já se conformara com a ideia da morte do marido; de fato, lhe dissera que já conseguia dormir de noite, mas com a ajuda de soporíferos. Todos permanecem esperando, se dizia Wallander uma vez concluída a conversa com Louise. Neste momento, não há dúvida, está desaparecido sem ter deixado o menor rastro; se esfumou, como se costuma dizer, pelo escape da existência. Estará o seu corpo se decompondo em algum lugar? Ou o homem estará vivo e neste momento está calmamente jantando? Noutro planeta, com outro nome, compartilhando a mesa com alguma celebridade desconhecida? Qual era a opinião do próprio Wallander? Sabia por experiência que todos os indícios de que dispunham apontavam para que o velho capitão de fragata já estivesse morto. Wallander temia que chegasse o dia em que viesse à luz que fora a consequência de um acontecimento banal, talvez uma agressão que acabara mal, que levara à sua morte. De qualquer maneira, não podia ter certeza. Não se atrevia a recolher todas as velas do mastro, talvez existisse uma mínima possibilidade de que Von Enke tivesse ido embora voluntariamente, embora não conseguissem descobrir qual seria a razão de tão inesperada manobra. Linda era quem mais insistentemente falava da teoria de que Von Enke teria sido assassinado. "Não é um homem que se mate sem mais nem menos", defendia quase indignada nos seus encontros habituais com Wallander na pastelaria do centro da cidade, com o bebê dormindo no carrinho. No entanto, ela também não conseguia compreender por que razão Von Enke teria ido embora sem aviso prévio. Hans nunca lhe telefonava diretamente, mas, pelas perguntas e reflexões de Linda, Wallander se sentia como se o futuro genro estivesse sempre presente. Em qualquer caso, não quis perguntar, se intrometer, porque isso só dizia respeito ao casal e a mais ninguém.
Steven Atkins começou a lhe escrever longas mensagens de correio eletrônico, de várias páginas. Quanto mais longas eram, mais Wallander abreviava as suas respostas.
Teria gostado de se estender mais, mas o seu inglês era tão deficiente que não se atrevia a se envolver em frases muito complexas. Não obstante, ficou sabendo que Steven Atkins vivia em Point Loma, próximo da grande base naval de San Diego, onde tinha uma pequena casa numa área quase exclusivamente habitada por veteranos; efetivamente, no bairro havia homens suficientes "para fornecer um ou mesmo dois submarinos com toda a tripulação necessária, até o último marinheiro". Wallander se perguntou como seria viver num bairro habitado unicamente por antigos policiais se; arrepiou de pavor.
Atkins lhe falava da sua vida, da família, dos filhos e netos e até lhe mandava fotografias em fichários anexos que Wallander não era capaz de abrir sem a ajuda de Linda. Tratava-se de belas imagens, com navios de guerra ao fundo, o próprio Atkins fardado e rodeado pela sua numerosa família, todos sorrindo para Wallander. Atkins era calvo e magro e com o braço rodeava os ombros da sua mulher, sorridente e também magra, embora não calva. Wallander imaginou a fotografia num anúncio de detergente ou de uma nova marca de cereais para o café da manhã; daqueles retratos cumprimentava-o a rosada família norte-americana.
Um dia, Wallander verificou no calendário que fazia exatamente um mês que Hakan von Enke saíra do apartamento de Grevgatan e fechara a porta para nunca mais voltar.
Nesse mesmo dia, Ytterberg e Wallander mantiveram uma longa conversa por telefone; era o dia onze de maio e uma chuva torrencial caía sobre Estocolmo. Ytterberg parecia desanimado, embora Wallander ignorasse se seria por causa do tempo ou pelo andamento da investigação. Ele, por sua parte, não parava de pensar em como encontrar o culpado do triste caso de agressão ocorrido no ferry. Noutras palavras, quem conversava naquele dia eram dois policiais cansados e de mau humor. Wallander voltou a perguntar se o serviço secreto continuava interessado no desaparecimento.
— De vez em quando aparece por aqui um sujeito chamado William, respondeu Ytterberg. — Para dizer a verdade, não sei se esse é o seu nome ou o sobrenome. E também não é que me importe muito; na última vez que veio, senti vontade de estrangulá-lo. Perguntei tinha sem alguma coisa que pudesse nos facilitar a tarefa, algo assim como um intercâmbio normal de serviços, isso que se supõe ser o alicerce deste país democraticamente constituído a que chamamos Suécia. Uma suspeita mínima, por mais insignificante que fosse, do que podia ter acontecido. Mas, claro, William não tinha nada para nos adiantar, pelo menos foi isso que me disse. Fica por saber se é verdade; a existência dos serviços de informação se baseia num jogo cujos principais e mais afiados instrumentos são a mentira e o engano. É óbvio que nós, policiais normais, também enganamos as pessoas de vez em quando, embora isso não seja a base da nossa forma de funcionar profissionalmente.
Depois da conversa, Wallander voltou a se concentrar na pasta onde guardava os interrogatórios e junto à qual tinha a fotografia do rosto maltratado de uma jovem.
Por isso me dedico ao meu trabalho, disse para si mesmo. Porque alguém bateu nesta mulher quase até matá-la.
Quando chegou em casa naquela tarde, Jussi estava doente; o cão estava prostrado na sua casinha, não tinha apetite e também não queria beber. Wallander ficou preocupadíssimo e telefonou imediatamente para um veterinário que conhecia por tê-lo ajudado numa ocasião a encontrar um indivíduo que maltratava de forma brutal os potros que pastavam na coudelaria de Ystad; o veterinário vivia em Kâseberga e prometeu socorrê-lo sem demora. Depois de examinar Jussi, assegurou que o mais provável era que o animal tivesse ingerido algo em mau estado e que não demoraria a se recuperar. Naquela noite, Jussi dormiu num tapete em frente da lareira sob os cuidados de Wallander. Na manhã seguinte, se mostrou um pouco melhor, embora ainda lhe vacilassem as pernas.
O alívio de Wallander foi imenso ao comprovar a melhoria. Quando chegou na sua sala e ligou o computador pensou que já fazia cinco dias que não recebia notícias de Atkins. Talvez o homem não tivesse mais nada para lhe contar nem mais fotografias para enviar. Entretanto, pouco antes do meio-dia, quando Wallander hesitava entre ir para casa e preparar algo para comer ou almoçar num restaurante, ligaram da recepção anunciando que tinha uma visita.
— Quem é? Perguntou o inspetor. — E o que quer?
— É um estrangeiro, disse a recepcionista. — E eu diria que é policial.
Wallander se levantou, foi à recepção e, uma vez ali, percebeu logo de quem se tratava: a farda não era da polícia, mas sim da Marinha Norte-Americana; efetivamente, ali estava Steven Atkins, com o boné da farda debaixo do braço.
— Não era minha intenção aparecer sem avisar, se desculpou Atkins. — Infelizmente, confundi a hora de chegada a Copenhague. Telefonei para sua casa e para o seu celular, mas como não atendia resolvi vir aqui.
— Estou deveras surpreso, respondeu Wallander. — É claro que é bem-vindo. Se não me engano, é a primeira vez que vem à Suécia, não é?
— É verdade; apesar do meu grande amigo, o desaparecido Hakan, ter me convidado vezes sem conta, a oportunidade nunca apareceu.
Almoçaram no restaurante que na opinião de Wallander era o melhor da cidade. Atkins era uma pessoa amável que estudava tudo à sua volta com muita curiosidade, fazia perguntas por interesse, não por cortesia, e prestava atenção nas respostas. Num primeiro momento, Wallander teve dificuldade em imaginar Atkins no seu posto como comandante de um submarino, e mais ainda num dos mais potentes da armada submarina norte-americana, os de propulsão nuclear. Atkins tinha um aspeto muito jovial, embora Wallander carecesse de fundamento para julgar quem era, ou não era, adequado como chefe de um submarino.
Atkins chegara à Suécia impulsionado pela angústia que lhe provocava pensar no destino do seu amigo. Wallander se comoveu com aquela preocupação: um homem velho que sentia falta de outro não menos velho; uma amizade inquestionavelmente profunda. Atkins se alojava no Hilton, próximo do Aeroporto de Kastrup, e alugara um carro para vir para Ystad.
— Claro que não podia perder a oportunidade de atravessar a famosa ponte, disse entre risos.
Wallander sentiu uma repentina inveja da sua fileira de dentes brancos e reluzentes. A seguir ao almoço telefonou para a delegacia para avisar que não voltaria nesse dia e depois foi indicando a Atkins o caminho para a sua casa. O norte-americano se mostrou ser um grande amante de cães e Jussi recebeu-o com entusiasmo. Com o animal pela trela, deram um longo passeio, seguindo os caminhos através dos campos e parando de vez em quando para admirar o mar e a paisagem de colinas suaves. De repente, Atkins se virou para Wallander, mordeu o lábio e perguntou:
— Hakan está morto?
Wallander compreendeu imediatamente qual era a sua intenção: Atkins lançara a sua pergunta de tal modo que não pudesse se escudar atrás de uma meia-verdade ou simplesmente atrás de uma evasiva; queria informação clara e concreta. Naquele momento, agiu como o comandante de um submarino ao perguntar se tinha perdido um navio.
— Não sabemos. Só podemos assegurar com certeza que está desaparecido e que não há o menor rastro dele.
Atkins observou-o durante um bom tempo e assentiu devagar. Retomaram o passeio. Meia hora depois, já de volta à casa de Wallander, este preparou café e se sentaram à mesa da cozinha.
— Falou-me da sua última conversa telefônica, comentou Wallander. — Como pode alguém dizer que chegou a uma conclusão se a pessoa a quem o diz não faz ideia do que está falando?
— Bem, às vezes acreditamos que os outros sabem o que pensamos, disse Atkins. — Talvez Hakan pensasse que eu sabia do que falava.
— Devem ter tido muitas conversas, certamente. Havia algum tema recorrente? Algum que se destacasse dos outros?
Wallander não preparara aquelas perguntas; surgiam espontaneamente, de forma simples e natural.
— Hakan e eu éramos da mesma idade, observou Atkins. — E ambos filhos da Guerra Fria. Eu tinha vinte e três anos quando os russos lançaram o Sputnik e me lembro de ficar aterrorizado com a ideia de que estavam nos ultrapassando. Hakan me confessou em dado momento que ele também sentiu algo assim, embora de forma mais inocente, não tão angustiante; os russos eram uma realidade, mas não tão monstruosa como para mim. Em todo o caso, aquela época nos marcou. Sei que Hakan se indignava por a Suécia se manter fora da OTAN, uma situação que ele achava um equívoco com consequências desastrosas. Costumava dizer que a neutralidade não só era um perigo e um erro mas também uma demonstração de pura hipocrisia. Estávamos do mesmo lado; a Suécia não se encontrava numa espécie de terra de ninguém neutra, independentemente do que dissessem os políticos das suas tribunas. Quando desmascararam Wennerström, o espião sueco, Hakan me telefonou excitadíssimo, ainda me recordo. Foi em junho de 1963; eu era segundo-comandante de um submarino que se preparava para rumar ao Pacífico. Hakan não se indignava por aquele coronel ter cometido traição ao servir os russos como espião; na realidade, estava encantado! Deste modo, o povo sueco compreenderia finalmente o que estava acontecendo: os russos tinham se infiltrado em todo o sistema de defesa sueco; havia desertores por toda a parte e, no dia em que os russos decidissem ocupar o seu país, só o fato de pertencer à OTAN poderia salvar a Suécia. Quer saber se havia algum tema recorrente nas nossas conversas? A política era o tema, estava sempre presente, sobretudo na forma como os políticos reduziam as nossas possibilidades de manter a situação equilibrada frente aos russos. E não me recordo de uma única conversa em que não abordássemos reflexões políticas de algum tipo.
— E, em tal caso, se a política dominava sempre tudo de que falavam, a que conclusão acha que se referia naquela última vez? Quis saber Wallander. -- Houve alguma outra ocasião em que se mostrasse excitado com as conclusões a que tinha chegado?
— Que me lembre não. Claro que nos conhecemos há quase cinquenta anos e é inevitável que algumas lembranças vão se apagando com o tempo.
— Como se conheceram?
— Como costuma acontecer com todos os encontros importantes: pelo mais puro e estranho acaso.
Enquanto Atkins lhe contava sobre o seu primeiro encontro com Hakan von Enke, começara a chover. O norte-americano mostrou ser um narrador muito mais cativante do que o homem com quem Wallander tivera ocasião de falar naquele espaço sem janelas do salão de banquete. Ou então é uma questão de idioma, observou o inspetor para si mesmo. Penso sempre que as histórias em inglês são mais ricas ou importantes que as que ouço no meu próprio idioma.
— Vai fazer cinquenta anos; foi em agosto de 1961, para ser exato, começou Atkins em voz baixa. — No último lugar em que se imagina que se possam encontrar dois jovens oficiais da Marinha. Tinha vindo à Europa com o meu pai, que era coronel do Exército; ele queria me mostrar Berlim, aquele reduto isolado e diminuto no meio da área russa. Lembro-me de que voamos de Hamburgo com a Pan Am num avião cheio de militares; além de uns sacerdotes vestidos de preto, quase não havia civis. Reinava uma grande tensão, mas uma vez no nosso destino não havia carros de combate nem do Leste nem do Ocidente dispostos a empreender um ataque. No entanto, uma noite, quando estávamos perto de Friedrichstrasse, o meu pai e eu nos vimos no meio de uma multidão. A nossa frente, um grupo de soldados da Alemanha do Leste desenrolava um rolo de arame farpado enquanto outros levantavam uma parede de tijolo e cimento. Ao meu lado estava um jovem mais ou menos da minha idade, fardado. Perguntei-lhe de onde era e ele me respondeu que era sueco; efetivamente, era Hakan, e foi assim que nos conhecemos. Ali estávamos os dois, presenciando como Berlim ficava dividida por um muro, como se se amputasse um membro ao mundo, por assim dizer. Ulbricht, o líder da Alemanha do Leste, explicou que se tratava de uma medida para "salvaguardar a liberdade e plantar a primeira pedra do florescimento sempre crescente do Estado socialista". No entanto, no dia em que levantaram o muro vimos do outro lado uma idosa que chorava; estava pobremente vestida e tinha uma cicatriz grande no rosto. Mais tarde comentamos que parecia ter uma orelha postiça coberta pelo cabelo, mas não tínhamos certeza. Ambos nos demos conta, todavia, e nenhum de nós jamais o esqueceria, de que estendia o braço numa espécie de gesto impotente para aqueles que erguiam aquela barreira diante dos seus olhos. Aquela pobre mulher não estava pregada numa cruz, mas estendeu a mão e estendeu-a para nós. Acredito que, naquele preciso momento, Hakan e eu compreendemos realmente a magnitude da nossa missão, a de manter livre o mundo livre e a de procurar que nenhum outro país ficasse isolado atrás de muros carcerários. E ainda mais convencidos ficamos duas semanas depois, quando os russos retomaram os seus ensaios nucleares. Nessa época, eu já tinha regressado a Groton, onde estava colocado, e Hakan ia de trem a caminho da Suécia, mas tínhamos trocado endereços, e aquele foi o início de uma amizade que perdura ainda hoje. Hakan tinha então vinte e oito anos e eu acabava de fazer vinte e sete. Quarenta e sete anos é muito tempo.
— Ele chegou a visitá-lo nos Estados Unidos?
— Oh sim, muitas vezes. Veio me ver em quinze ocasiões diferentes no mínimo, ou mais.
Aquela resposta surpreendeu Wallander; pensava que Hakan von Enke visitara os Estados Unidos apenas uma ou outra vez. Seria devido a algum comentário de Linda ou se tratava de imaginação sua? Em todo o caso, agora sabia que pensara mal.
— Esse número supõe mais ou menos uma viagem em cada três anos, calculou Wallander.
— Hakan era um grande amigo da América.
— Costumava ficar muito tempo?
— Raramente menos de três semanas. Louise acompanhava-o sempre; ela e a minha mulher se davam bem e nós adorávamos recebê-los.
— Sabe que o seu filho, Hans, vive em Copenhague, não sabe?
— Sim, vou me encontrar com ele esta noite.
— E sabe também que vive com a minha filha?
— Sim, sei, embora não a vá conhecer nesta ocasião. Hans tem muito trabalho agora e vamos nos encontrar no meu hotel, a partir das dez da noite. Amanhã pegarei um voo para Estocolmo para ver Louise.
A chuva parara. Um avião voou a baixa altitude em direção ao Aeroporto de Sturup e fez vibrar os vidros das janelas ao passar.
— O que acha que terá acontecido? Perguntou Wallander.
— Não sei, admitiu Atkins. — Não me agrada nada dar essa resposta, pois a dúvida é algo que vai contra toda a minha maneira de ser, mas não posso acreditar que ele tenha ido embora voluntariamente e deixado a mulher e o filho, e agora, também, a neta, entregues à preocupação e à angústia. Não tenho outro remédio senão içar a bandeira branca, apesar de me custar muito.
Atkins bebeu o café e se levantou; estava na hora de regressar a Copenhague. Wallander lhe explicou qual era o melhor caminho para pegar a estrada principal que o conduziria até Ystad e Malmö. Quando se preparava para sair, Atkins tirou uma pequena pedra do bolso e deu-a a Wallander.
— É um presente, explicou. — Uma vez ouvi um velho índio falar de uma tradição da sua tribo, os Kiowa se não me engano. Quando alguém tem problemas, guarda uma pedra no bolso, de preferência pesada, e leva-a consigo até resolver as suas dificuldades. Então deixa-a e segue a sua vida, mais ligeiro e aliviado. Guarde esta pedra no bolso e deixe-a ficar aí até sabermos o que aconteceu a Hakan.
Deve ser uma pedra qualquer, pensou Wallander depois de se despedir de Atkins, que já ia colina abaixo. Então, um pouco ausente, se lembrou da pedra que vira em cima da mesa do apartamento de Grevgatan. Pensou no que Atkins lhe contara sobre o seu primeiro encontro com Hakan von Enke. Wallander não tinha quaisquer memórias daqueles dias de agosto de 1961; completara treze anos nesse ano e a única lembrança forte que conservava daquele tempo era a da tempestade hormonal que se abateu sobre ele e que fez com que passasse a vida sonhando com mulheres, fictícias ou reais.
Wallander pertencia à geração que se fez adulta na década de 1960. No entanto, nunca fez parte de nenhum dos movimentos políticos da época, nunca participou em nenhuma das manifestações organizadas em Malmõ, nunca entendeu completamente o que era a Guerra do Vietnam nem se interessou pelos movimentos de libertação de países cuja localização geográfica mal conhecia. Linda censurava-o muitas vezes pela sua ignorância. Ele encarava a política apenas como o poder superior que controlava a forma da polícia manter a ordem, mas pouco mais. É verdade que ia votar quando havia eleições, mas hesitava sempre até à última hora. O seu pai era social-democrata ferrenho e era esse o partido em que Wallander geralmente também votava, embora raramente com verdadeira convicção.
O encontro com Atkins encheu-o de inquietação. Procurou nas suas lembranças por um Muro de Berlim, mas sem êxito. Teria a sua vida, por acaso, sido tão limitada que os grandes acontecimentos que o rodeavam nunca o tinham afetado verdadeiramente? Que fatos o indignavam, no fundo? Imagens de crianças em sofrimento, evidentemente, mas não até ao ponto de ter contribuído para mudar a situação. Sempre me escudei no meu trabalho, pensou. Claro que nesse campo tenho conseguido, as vezes, ser prestável às pessoas, ao tirar os delinquentes das ruas. Mas, e além disso, o quê? Percorreu os campos com o olhar, onde nada crescia ainda, mas não encontrou resposta.
Nessa noite arrumou a sua mesa e colocou em cima dela todas as peças de um puzzle que Linda lhe oferecera no seu aniversário do ano anterior, que reproduzia um quadro de Degas. Organizou as peças de forma sistemática e conseguiu completar o canto inferior esquerdo da imagem.
Nunca deixou de se interrogar sobre o destino de Hakan von Enke. Embora, bem vistas as coisas, o objeto das suas reflexões fosse mais o seu próprio destino.
Continuava a procurar aquele Muro de Berlim inexistente.
* * *
Dez
UMA TARDE no início de junho, Wallander estacionou o carro na marina antes de ir se sentar no último banco do cais; era um dos assentos solenes da sua vida, um confessionário sem sacerdote, onde costumava se refugiar quando desejava estar em paz e arrumar as ideias que o atormentavam. Fora uma primavera fria, com muita chuva e muito vento, mas agora tinha chegado a primeira onda de calor a todo o país. Wallander despiu o casaco e fechou os olhos ao sol, mas voltou logo a abri-los; o rosto de Aina Dahlberg, uma antiga vizinha do pai que visitara recentemente no hospital a pedido do marido, se intrometia como uma membrana entre ele e o sol.
"O seu pai amava-o sinceramente." Ele tinha se perguntado muitas vezes se era verdade; para começar, o pai nunca lhe perdoara ter se tornado policial. Contudo, a sua vida não se resumia certamente a isso. Mona achava que o seu pai era uma pessoa horrível e se recusava a acompanhar Wallander quando este decidia ir visitá-lo, então ele e Linda acabavam sempre por ir sozinhos a Lõderup. Com a neta, o avô se mostrou sempre simpático, se dedicando a ela com uma paciência que nem Wallander nem a sua irmã Kristina recordavam da sua infância. Era um homem difícil de entender, disse Wallander para si mesmo. Estarei me tornando igual a ele?
Um homem mais ou menos da sua idade limpava umas redes sentado na borda do seu pequeno barco; estava totalmente concentrado e trauteava uma melodia alegre enquanto trabalhava. Wallander ficou a observá-lo algum tempo e pensou que naquele instante daria tudo para trocar com ele, do banco para a cama de rede, da delegacia para um bonito barco de madeira envernizada.
O seu pai constituíra um mistério para ele. Seria também ele um mistério para Linda? Que diria a sua neta do avô? Seria para ela um velho policial sombrio e taciturno que, fechado na sua casa, recebia cada vez menos visitas, cada vez menos gente? Temo que aconteça assim, confessou Wallander para si mesmo. E tenho todas as razões no mundo para ter medo, pois na verdade não tenho apreciado nem cultivado a minha amizade com os outros.
Agora era, em muitos aspetos, muito tarde, porque algumas das pessoas com quem tinha tido uma relação chegada estavam mortas; sobretudo Rydberg, mas também o seu velho amigo Sten Widén, treinador de cavalos. Wallander nunca compreendeu aqueles que afirmavam que não havia razão para interromper a relação com uma pessoa só porque estava morta e que a conversa bem podia continuar mesmo que descansassem debaixo da terra. Ele não conseguira; os mortos eram rostos de que já quase não se recordava e as suas vozes tinham deixado de lhe falar.
Muito contrariado se levantou do banco, pois devia voltar para a delegacia. A investigação às agressões no ferryboat estava concluída; um homem fora condenado, mas Wallander estava convencido de que, na realidade, tinham sido dois os que agrediram a mulher. Tinha a sensação de que não tinham chegado ao fundo, fora apenas uma meia vitória: uma pessoa foi condenada e a outra obteve justiça, se é que se podia falar de tal coisa quando tinham lhe quebrado a cara. No entanto, um dos delinquentes escapara entre as malhas da rede, e Wallander não estava de todo convencido de que não tivessem podido levar a cabo a investigação de uma maneira muito mais satisfatória.
Já eram três horas da tarde quando o inspetor retornou do seu passeio ao porto e encontrou em cima da mesa o recado de um telefonema de Ytterberg; quem tinha tomado nota advertiu que o assunto era urgente. E não podia deixar de ser na vida policial de Wallander, pois nunca na sua carreira recebera uma mensagem que não fosse impreterível; por isso não respondeu imediatamente, tendo se sentado antes para ler um memorando da Direção Nacional da Polícia, sobre o qual Lennart Mattson tinha pedido a sua opinião e que abordava uma das reestruturações incessantes a que os distritos policiais do país estavam submetidos. Nesta ocasião se tratava de criar um sistema para dotar as ruas de maior presença policial aos fins de semana, não só nas grandes cidades mas também em centros urbanos menores como Ystad.
Wallander leu as páginas com indignação crescente perante a cerimoniosa linguagem burocrática e, uma vez concluída a leitura, pensou que, na realidade, não compreendia em que consistia o assunto. Escreveu uns comentários sem conteúdo e guardou tudo num envelope que pensava deixar a caixa de entrada do chefe da delegacia quando fosse embora ao final do dia. A seguir telefonou para Ytterberg, que atendeu imediatamente.
— Queria falar comigo? Perguntou Wallander.
— Sim. Ela também desapareceu.
— Quem?
— Louise, Louise von Enke. Não está em parte alguma. Wallander ficou sem fôlego. Teria ouvido bem? Ytterberg procurou entre as suas notas para lhe dar uma síntese exata. — Há alguns anos que a família Von Enke tem uma mulher diarista búlgara, com autorização de residência; se não me engano tem o mesmo nome que a capital, Sofia. Vai lá todas as segundas, quartas e sextas-feiras de manhã, três horas por dia; esteve lá na segunda-feira passada, e não reparou em nada fora do normal. Esta senhora búlgara inspira confiança quando se fala com ela; a informação que nos deu é clara e concreta e parece completamente transparente e, além disso, fala extremamente bem sueco, com um toque fascinante de calão do Bairro Sóder, se sabe lá porquê. Enfim, quando deixou o apartamento por volta da uma da tarde de segunda-feira, Louise se despediu com um "nos veremos na quarta-feira". Entretanto, quando Sofia chegou nesse dia às nove não havia ninguém, mas não pensou muito nisso porque era perfeitamente normal Louise não estar sempre em casa. Mas quando chegou hoje de manhã, notou de que algo não estava bem; tem certeza absoluta de que Louise não esteve no apartamento desde quarta-feira, pois tudo apresentava exatamente a mesma ordem de quando ela fora embora naquela tarde; Louise nunca antes se ausentara tanto tempo sem avisar. E não havia nenhuma nota, nada, apenas encontrou o apartamento deserto. Aí, a empregada telefonou para Copenhague para falar com o filho de Louise, que lhe disse que tinha falado com a mãe no domingo; ou seja, hoje faz cinco dias. E o filho telefonou para mim. Aliás, tem alguma ideia a que se dedica ele, precisamente?
— Dinheiro, respondeu Wallander. — Dinheiro e nada mais.
— Deve ser uma ocupação fascinante, observou Ytterberg algo pensativo. Com essa reflexão, voltou às suas notas. — Hans me deu o número de telefone da Sofia, que esteve comigo quando fui inspecionar o apartamento. Percebi logo que a senhora búlgara possui um conhecimento profundo do conteúdo dos armários, e me disse a última coisa que desejava ouvir. Já deve calcular o quê.
— Sim, confirmou Wallander. — Não falta nada.
— Foi exatamente isso que me disse. Nenhuma mala, nada de roupa, nem o porta-moedas, e o passaporte também não, que estava na gaveta onde a Sofia sabia que a patroa o guardava.
— O celular?
— Tinha-o deixado na cozinha carregando. E foi quando o vi que comecei a me preocupar de verdade.
Wallander refletiu sobre a informação que acabava de ouvir. Nunca poderia ter imaginado que depois do desaparecimento de Hakan von Enke houvesse mais um.
— É muito desagradável, afirmou por fim. — Existe alguma explicação lógica?
— Tanto quanto eu sei, não há. Já telefonei para os seus amigos mais íntimos, mas ninguém a vê ou sabe nada dela desde domingo, dia em que telefonou para uma tal Katarina Lindén para lhe perguntar a sua opinião sobre um certo hotel de montanha norueguês em que a senhora Lindén, pelo visto, tinha se alojado. Segundo Katarina Lindén, a sua amiga soava como sempre. Depois dessa conversa, ninguém parece ter falado com ela. O grupo que está encarregado do desaparecimento do marido vai se reunir agora e queria lhe telefonar antes. Para dizer a verdade, era para saber a sua primeira reação.
— A primeira coisa que me ocorreu foi que ela conhece o paradeiro de Hakan e que decidiu se juntar a ele, mas, por outro lado, o passaporte e o celular indicam o contrário.
— Sim, também pensei algo parecido, embora tenha dúvidas, tal como você.
— Não acha que, apesar de tudo, possa haver uma explicação racional? Poderia ter adoecido ou caído na rua, não?
— Assim que me deram a notícia, telefonei para os hospitais. Segundo Sofia, de quem não há motivo algum para duvidar, Louise não saía sem levar a carteira de identidade no bolso do casaco, e visto não o termos encontrado em casa é de acreditar que o levava com ela quando saiu.
Wallander se perguntou por que motivo Louise não lhe contara que tinham uma empregada doméstica que vinha três vezes por semana, e Hans também não o mencionara. Claro que aquilo não tinha de significar nada; a família Von Enke pertencia a uma classe social em que as empregadas domésticas eram tomadas por evidentes: não era necessário falar delas; simplesmente, existiam. Ytterberg prometeu mantê-lo informado e, já a se preparar para terminar a conversa, Wallander lhe perguntou tinha se falado com Atkins, que conhecera quando este visitara Estocolmo.
— Porquê, acha que pode saber alguma coisa? Quis saber Ytterberg.
Wallander achou um tanto estranho que Ytterberg não estivesse a par do grau de intimidade das duas famílias. Atkins teria lhe dado uma versão diferente daquela que tinha oferecido a Wallander?
— Que horas são na Califórnia? Perguntou Ytterberg. — Não faz sentido nenhum telefonar para as pessoas no meio da noite.
— A diferença horária com a costa leste dos Estados Unidos é de seis horas, esclareceu Wallander. — Com a Califórnia não sei qual é, mas posso tentar saber e lhe telefonar eu mesmo.
— Está bem, resolveu Ytterberg. — Peça a ligação através da operadora e assim somos nós a pagar.
— O meu telefone de trabalho ainda não está bloqueado, respondeu Wallander. — Não creio que permitam que a polícia vá à falência devido a contas de telefone por pagar. Ainda não chegamos a isso.
Wallander telefonou para o serviço de informações telefônicas, onde lhe disseram que havia uma diferença horária de nove horas com a Califórnia. Em San Diego eram seis da manhã, então decidiu esperar umas horas antes de telefonar para Atkins. Em vez disso, ligou para Linda; a sua filha acabava de ter uma longa conversa com Hans, que continuava em Copenhague.
— Passe por aqui, propôs Linda. — Vou ficar em casa, e Klara está dormindo no carrinho.
— Klara? Linda riu ao ouvir a surpresa na sua voz.
— Ficou decidido ontem à noite; vai se chamar Klara. Bem, já se chama Klara.
— Como a minha mãe? A sua avó?
— Já sabe que não cheguei a conhecê-la. Espero que não leve a mal, mas escolhemos esse nome, antes de tudo, porque é um nome muito bonito, e vai bem com os dois sobrenomes; Klara Wallander ou Klara von Enke.
— E qual dos dois será?
— Por enquanto, Wallander, mais tarde ela escolherá. Bem, vem ou não? Convido-o para um café e uma espécie de festa improvisada de batismo.
— E vão batizá-la de verdade?
Linda ficou lhe devendo a resposta, mas Wallander foi suficientemente sensato para não insistir na pergunta.
Quinze minutos depois, estacionou em frente da casa da filha. O bonito jardim brilhava nas cores mais variadas, o que fez Wallander se lembrar do estado descuidado do seu próprio jardim, em que mal regava as plantas. Enquanto vivera em Mariagatan, sonhara sempre com outra existência, na qual se dedicaria a andar de gatinhas pela horta a se deliciar com os aromas e arrancando as ervas daninhas.
Klara dormia no carrinho à sombra de uma pereira. Wallander observou o pequeno rosto protegido pela tule mosquiteira.
— Klara é um nome bonito, declarou. — Aliás, como pensaram nele?
— Vimos no jornal; uma jovem chamada Klara fez uma intervenção heroica num incêndio, em Ostersund. E aí decidimos quase imediatamente.
Passearam pelo jardim enquanto comentavam o acontecido; o desaparecimento de Louise fora tão surpreendente para Linda e para Hans como para os outros. Não existiam motivos para pressagiar tal coisa, nem nada que indicasse que Louise tivesse engendrado um plano que agora tivesse posto em prática.
— Achas que estamos perante outro ato violento? Perguntou Wallander. — Se aceitarmos como verosímil que Hakan tenha sido agredido, claro?
— Alguém que queira se livrar dos dois? Perguntou Linda. — E qual seria o motivo?
— Pois, essa é a questão, respondeu Wallander enquanto contemplava um arbusto de rosas exuberantes. — Teriam algum segredo em comum que mais ninguém sabia?
Continuaram a passear em silêncio. Linda refletiu sobre a última pergunta do pai.
— Sabemos tão pouco sobre as pessoas, reconheceu por fim, quando voltaram para a parte da frente da casa e depois de verificar que tudo estava em ordem debaixo da rede que protegia o carrinho da criança.
Klara dormia com os minúsculos dedos agarrados à manta.
— Em certa medida, poderíamos dizer que não sei muito mais sobre eles do que desta pequena vida, continuou, olhando para a filha.
— Hakan e Louise pareciam misteriosos?
— De modo algum, antes pelo contrário! Comigo se mostraram sempre abertos e acessíveis.
— Há pessoas que vão deixando pistas falsas delas mesmas, observou Wallander, pensativo. — A abertura e a acessibilidade podem ser uma espécie de cadeado invisível com que encerram uma realidade que não têm o menor desejo de colocar a descoberto.
Tomaram café e conversaram no jardim até que Wallander olhou para o relógio e viu que era hora de telefonar para Atkins. Voltou para a delegacia e discou o número dentro da sua sala, e depois de quatro sinais ouviu a voz trovejante do norte-americano, que soava como se estivesse preparado para receber uma ordem. Wallander lhe contou o fato e, quando terminou, se fez um silêncio tão prolongado que pensou que a ligação tivesse se interrompido antes de, finalmente, voltar a ouvir a voz forte de Atkins.
— Isso não pode ser, sentenciou.
— Mas entretanto Louise está desaparecida desde segunda ou terça-feira.
Wallander notou a perturbação de Atkins e ouviu a sua respiração ofegante ao telefone. Perguntou-lhe quando tinha sido a última vez que falara com ela; a resposta demorou alguns instantes.
— Quarta-feira à tarde; isto é, a tarde dela, para mim foi de manhã.
— Quem fez a ligação?
— Ela é que me telefonou.
Wallander franziu a testa, pois não esperava essa resposta.
— E o que queria?
— Dar os parabéns à minha mulher que fazia anos. Tanto ela como eu estranhamos bastante, porque não costumamos ligar muito aos aniversários.
— Acha que pode haver outra razão para ela ter telefonado?
— Deu-nos a sensação de que lhe pesava a solidão, que queria falar com alguém, o que não é difícil de compreender.
— Se puder refletir um pouco, diria que houve algo no seu telefonema que agora possa relacionar com o seu desaparecimento?
Wallander se desesperava com o seu péssimo inglês, mas Atkins compreendeu o que ele queria dizer e voltou a se dar um tempo antes de responder.
— Não, nada, disse por fim. — Soava como sempre.
— Mas deve haver alguma coisa, não acha? Insistiu Wallander. — Primeiro ele desaparece e pouco depois ela.
— É como na história dos dez negrinhos, comentou Atkins. — Vão desaparecendo um a seguir ao outro. Já desapareceu metade da família e agora só restam os dois filhos.
Wallander estremeceu. Teria ouvido mal?
— Bem, só há mais um suscetível de desaparecer, disse o inspetor com delicadeza. — A não ser que esteja incluindo Linda?
— Não nos devemos esquecer da irmã de Hans, respondeu Atkins.
— A irmã? Hans tem uma irmã?
— Tem. Chama-se Signe; não sei se estou pronunciando bem o nome, mas posso soletrá-lo se quiser. Ela não vive com o resto da família, não sei porquê, mas não se deve indagar de forma gratuita sobre a vida das pessoas. Nunca a vi, foi Hakan que me contou que tinha uma filha.
Wallander estava muito perplexo para continuar fazendo perguntas, de modo que concluiu a conversa. Aproximou-se da janela e observou o depósito de água. Tinham uma filha que se chama Signe. Por que razão ninguém lhe falara dela em nenhum momento?
Nessa noite, Wallander se sentou à mesa da cozinha com a intenção de rever as notas que tomara desde o dia em que Hakan von Enke desaparecera. No entanto, não encontrou nelas o menor indício da existência da filha: Signe não existia; era como se nunca tivesse existido.
* * *
Segunda Parte
Sob as Águas
Onze
WALLANDER estava indignado. E essa foi a razão pela qual escolheu um ataque direto, atitude muito rara nele. Sentia-se enganado por aquela família, da qual dois membros tinham desaparecido, e agora acabava de saber da existência de um terceiro. Achou que tinha sido sujeito às mentiras habituais da classe alta, segredos de família que tinham de se esconder a qualquer custo para que não transcendessem num mundo certamente nada interessado neles. Depois da conversa com Atkins e daquela longa tarde em que, uma vez mais, fez marcha-a-ré para, preso a uma espécie de ira frenética, rever tudo o que acontecera e fora dito desde o aniversário dos setenta e cinco anos de Hakan von Enke, Wallander dormiu profundamente. No dia seguinte telefonou para Linda pouco depois das sete da manhã, na esperança de poder falar com Hans, mais precisamente naquela manhã este saíra de casa logo às seis horas.
— O que tinha o homem para fazer tão cedo? Perguntou Wallander, irritado. — A esta hora não há nenhum banco aberto, nem deve haver ninguém negociando ações.
— Experimente no Japão, replicou Linda. — Ou, porque não, na Nova Zelândia. A economia nunca dorme, aparentemente há movimentos importantes nas bolsas da Ásia, e não é de estranhar que tivesse de sair tão cedo. Por outro lado, você não costuma telefonar às sete da manhã. Não vale a pena se zangar comigo. Aconteceu alguma coisa?
— Vamos falar de Signe, propôs Wallander.
— E quem é Signe?
— A irmã do seu namorado.
Ouviu-a respirar fundo através do auscultador. Cada inspiração, uma ideia.
— Mas Hans não tem nenhuma irmã!
— Tem certeza?
Linda conhecia o pai e compreendeu imediatamente que falava a sério; não teria telefonado àquela hora da manhã para lhe pregar uma partida de mau gosto. Klara começava a choramingar no berço.
— Precisa vir aqui para falarmos disso, disse ela. — Klara está acordada e as manhãs costumam ser complicadas. Talvez saiu a você...
Uma hora mais tarde, Wallander parava o carro no caminho de cascalho que desembocava à frente da casa da sua filha. Nesse momento, Klara já comera e estava sossegada, e Linda já levantara e se vestira. Wallander continuava a achá-la pálida e desanimada e se perguntou se não se sentiria bem, mas, claro, não fez qualquer comentário. Linda era como ele, não gostava que as pessoas se intrometessem nos seus assuntos.
Sentaram-se à mesa da cozinha. Wallander reconheceu a toalha que a cobria, a mesma que havia na sua casa quando ele era criança e que depois estivera na casa de Lõderup onde o seu pai vivera e, agora, na casa de Linda. Quando criança, costumava seguir com um dedo o complicado desenho de fio vermelho que a bordeava.
— Precisa me explicar isso, disse Linda. — E repito que o Hans não tem nenhuma irmã.
— Acredito em você, assegurou Wallander. — Você não sabe da existência da sua irmã, tal como eu também não sabia, até há pouco.
Wallander lhe contou a sua conversa telefônica com Atkins e o comentário inopinado sobre a jovem que se chamava Signe. Provavelmente, a irmã secreta fora mencionada por mera casualidade; de fato, se a conversa tivesse enveredado por outros caminhos, continuariam a ignorar a existência de Signe. Tensa, Linda ouvia-o com uma crescente expressão de consternação.
— Hans nunca me disse uma palavra sobre qualquer irmã, garantiu quando Wallander terminou. — Esta situação é absurda. Wallander apontou para o telefone.
— Ligue e lhe pergunte sem rodeios: por que razão não me contou que tem uma irmã?
— É mais velha ou mais nova que ele?
Wallander refletiu um instante. Atkins não lhe dissera nada a esse respeito, mas ele tinha um palpite de que devia ser mais velha, uma vez que, se tivesse nascido depois de Hans, o segredo teria sido muito difícil de guardar.
— Não quero telefonar, disse Linda. — Pergunto quando voltar para casa.
— Não, se opôs Wallander. — Temos duas pessoas desaparecidas e isto não é um assunto privado, mas sim um caso de polícia. Se você não lhe telefonar, telefono eu.
— Talvez seja melhor, admitiu Linda.
Wallander foi discando os dígitos do número de Copenhague à medida que ela ditava. Depois do sinal de chamada, escutou música clássica. Linda se inclinou para ouvir melhor.
— É o seu número direto, explicou. — Fui eu que escolhi a música. Antes tinha uma canção horrorosa de country americano, de um tal Billy Ray Cyrus, mas obriguei-o a mudar sob pena de deixar de lhe telefonar. Não demorará a atender, com certeza.
Mal acabara de falar quando Wallander ouviu a voz de Hans; soava incomodado, quase como se lhe faltasse o ar. O que terá acontecido nas bolsas de valores da Ásia? Perguntou-se Wallander.
— Preciso fazer uma pergunta, Hans, sobre um assunto que não pode esperar, explicou Wallander. — Aliás, estou em sua casa, sentado na sua cozinha.
— É sobre Louise? Perguntou Hans, impaciente. — Ou talvez Hakan? Algum dos dois apareceu?
— Gostaria muito de dizer que sim, mas se trata de outra pessoa. Não imagina quem?
Wallander notou de que Linda estava irritada, pois lhe parecia certamente desnecessário que o seu pai andasse brincando de gato e rato. Compreendeu que a filha tinha razão, que deveria deixar de rodeios, tal como ele mesmo dizia.
— Trata-se da sua irmã, revelou por fim. — Da sua irmã Signe. Fez-se um silêncio bastante prolongado, até que voltou a ouvir a voz de Hans.
— Não sei do que está falando. É alguma piada?
Linda se inclinara sobre a mesa e Wallander segurava o auscultador de modo a que ela também pudesse ouvir o que Hans dizia. Wallander percebeu que este estava sendo completamente sincero.
— Não, não se trata de nenhuma piada, assegurou. — Então, é mesmo verdade que não sabe nada do assunto? Que não sabe que tem uma irmã chamada Signe?
— Eu não tenho irmãos. Posso falar com Linda?
Sem dizer nada, Wallander passou o telefone à filha, que lhe referiu o que o seu pai tinha lhe contado.
— Quando era criança costumava perguntar aos meus pais porque não tinha irmãos, disse Hans. — E me davam invariavelmente a mesma resposta: consideravam que um filho era suficiente. Nunca ouvi falar de nenhuma Signe, nunca vi fotografias dela. E fui sempre filho único.
— É difícil de acreditar, respondeu Linda.
Hans perdeu as estribeiras e gritou para o auscultador.
— E o que acha que é para mim? Wallander tirou o auscultador da mão de Linda.
— Eu acredito em você, Hans, se apressou a dizer. — E Linda também. Mas deve compreender que é importante averiguar que sentido tem tudo isto, se é que tem algum. Os seus pais desapareceram e agora aparece uma irmã desconhecida do nada.
— Não entendi, confessou Hans. — Estou começando a me sentir maldisposto.
— Seja qual for a explicação, vou encontrá-la.
Wallander devolveu o auscultador a Linda, que tentou acalmar Hans. Wallander não queria ouvir do que falavam e, uma vez que a conversa se prolongava, escreveu uma nota num pedaço de papel que deixou sobre a mesa da cozinha. Linda assentiu, alcançou o chaveiro que pendurara no caixilho da janela e entregou-o a Wallander. Este foi embora, mas primeiro parou para ver Klara, que dormia de barriga para cima no seu berço. Com muito cuidado, lhe acariciou a bochecha com um dedo; a criança estremeceu, mas continuou dormindo.
Quando Wallander chegou à delegacia, telefonou para Sten Nordlander sem sequer despir o casaco e obteve logo a confirmação que esperava.
— É claro que têm outro filho, assegurou Sten Nordlander. — Uma filha que nasceu com uma deficiência gravíssima; um caso totalmente irremediável, Hakan me contou. Não havia a menor hipótese de poderem tratá-la em casa, precisava de cuidados especiais desde que nasceu. Nunca falavam dela e eu achava que tinha de respeitar, claro.
— Chama-se Signe?
— Sim.
— Sabe quando nasceu?
Sten Nordlander pensou bem e respondeu:
— Deve ser quase dez anos mais velha que o irmão. Suponho que o choque foi tão duro quando Signe nasceu que demoraram bastante até terem coragem para ter outro filho.
— Então agora terá mais de quarenta anos, calculou Wallander. — Sabe onde vive? Em que lar ou instituição?
— Acho que me lembro de Hakan uma vez ter mencionado um lugar nos arredores de Mariefred, mas nunca me disse o nome.
Wallander acabou rapidamente a conversa; sentia uma estranha ansiedade, apesar de aquilo não ser de modo algum assunto seu. Sabia que deveria se pôr em contato com Ytterberg antes de agir, mas a sua curiosidade impedia-o a se mover noutra direção. Consultou a lista telefônica pegajosa de dedadas até encontrar o número de celular que procurava; o de uma mulher que trabalhava no Departamento dos Assuntos Sociais do Município de Ystad. Era filha de um ex-funcionário civil que trabalhava na delegacia, e Wallander conhecera-a há uns anos, quando investigava um caso complicado de pedofilia. Chamava-se Sara Amander e atendeu quase imediatamente.
Trocaram umas frases sobre a vida e sobre o tempo antes de Wallander abordar o motivo do seu telefonema.
— Conhece alguma instituição regional para deficientes nos arredores de Mariefred? Talvez haja várias; era bom se me conseguisse os endereços e os números de telefone.
— Não pode me dar mais dados? Trata-se de alguma lesão cerebral congênita?
— Acho que se trata sobretudo de deficiência física, de uma pessoa que necessita de cuidados especiais desde o dia em que nasceu. Claro que também pode haver limitações psíquicas; talvez até fosse uma vantagem para uma pessoa tão incapacitada, não ser muito consciente da vida terrível que tem.
— Devemos ter cuidado ao nos pronunciarmos sobre a vida de outras pessoas, advertiu Sara Amander. — Você se admiraria se soubesse a quantidade de pessoas com graves limitações que levam uma vida cheia de felicidade. Enfim, verei o que posso encontrar.
Wallander terminou a conversa, foi tirar um café na máquina da copa e trocou umas palavras com Kristina Magnusson, que lhe recordou que, depois do trabalho no dia seguinte, todos os colegas estavam convidados para uma festa improvisada no jardim de sua casa. Evidentemente, Wallander esquecera, mas disse que iria com muito gosto. Voltou para a sua sala e escreveu um lembrete numa folha que colocou junto ao telefone.
Passadas umas horas, Sara Amander telefonou para informar que tinha duas alternativas que podiam lhe interessar: a primeira, uma residência privada chamada Amalienborg que ficava nos arredores de Mariefred; a segunda, Niklasgârden, um lar gerido pelo governo regional perto do castelo de Gripsholm. Wallander anotou os endereços e os números de telefone e se preparava para discar o primeiro quando Martinsson apareceu na porta entreaberta da sua sala; pousou o auscultador e com um gesto convidou-o a entrar. Martinsson fez uma careta.
— O que aconteceu?
— Uma partida de pôquer que degenerou noutra coisa; a ambulância acaba de sair para o hospital com um homem esfaqueado. Temos lá um carro-patrulha, mas é melhor nós irmos também.
Wallander pegou o casaco e saiu com Martinsson. Levou-lhes o resto da manhã e uma parte da tarde averiguar o acontecido durante a partida que terminara numa cena de tamanha violência. Já passava das oito quando Wallander retornou à delegacia e pôde realizar as ligações para os números indicados por Sara Amander. Começou por Amalienborg, onde lhe atendeu uma mulher muito amável; mas assim que perguntou por Signe von Enke, notou o seu erro: naturalmente, não obteria nenhuma resposta, pois uma instituição que se encarregava de doentes graves não podia dar o nome dos seus doentes a qualquer pessoa, e efetivamente foi isso que lhe disseram.
Também não teve sucesso com as demais perguntas que fez, por exemplo, se tinha doentes de todas as idades ou se apenas se tratavam de adultos. A simpática senhora continuou a assegurar, com muita paciência, que não lhe era permitido prestar nenhum tipo de informação e, infelizmente, se lamentou, não podia ajudá-lo por mais que quisesse. Wallander desligou convencido de que deveria telefonar para Ytterberg, mas não o fez; realmente, não havia razão para incomodá-lo àquelas horas, quando podia telefonar no dia seguinte.
Como estava um fim de tarde bonito, quente e calmo, resolveu pôr a mesa no jardim e comeu ali a refeição que preparara quando chegou em casa. Jussi acompanhou-o, deitado debaixo da mesa, apanhando os pedaços de comida que de vez em quando caíam do garfo de Wallander. Nos campos que o rodeavam reluzia a colza madura, e se lembrou de que o seu pai, por qualquer razão desconhecida, lhe dissera certa ocasião que aquela planta, em latim, se denominava Brassica napus. Aquelas palavras tinham ficado gravadas na sua mente. Também lhe veio à memória uma cena muito desagradável de uma mulher desesperada que, há muitos anos, tocara fogo em si mesma e morrera queimada num campo de colza. Afastou a recordação; naquele momento só desejava desfrutar da noite estival, porque, embora a sua vida estivesse cheia de pessoas agredidas, humilhadas e assassinadas, precisava se permitir uma noite sem lembranças dolorosas.
Contudo, a existência da irmã de Hans não o deixava em paz. Tentou interpretar o silêncio em torno da sua pessoa, tentou imaginar o que teriam feito ele e Mona se tivessem tido um filho dependente dos cuidados de um estranho desde o primeiro dia. Arrepiou-se só de pensar nisso, era simplesmente impossível se imaginar numa situação dessas. E ali estava, absorto em reflexões, quando o telefone tocou. Jussi esticou as orelhas. Era Linda, falava em voz muito baixa porque Hans estava dormindo.
— Está consternadíssimo, afirmou. — O pior de tudo, diz, é que agora não tem ninguém a quem perguntar por ela.
— Estou tentando localizá-la, respondeu Wallander. — Dentro de um dia ou dois já devo saber onde se encontra.
— Consegue entender como Hakan e Louise foram capazes de fazer uma coisa dessas?
— Não. Mas talvez seja a única forma de se conseguir suportar, quando nasce um filho tão incapacitado; fingir que não existe.
Então Wallander lhe descreveu o campo de colza e o horizonte.
— Tenho saudades do dia em que terei Klara correndo por aqui, daqui a uns anos, disse por fim.
— Está bem, mas está com falta de companhia, devia arranjar uma mulher.
— Não se arranja uma mulher!
— Mas também não encontrará nenhuma se não fizer um esforço A solidão vai devorá-lo por dentro e se transformará num velho inválido.
Wallander ficou sentado no jardim até depois das dez, pensando no que dissera a sua filha. Não obstante, dormiu bem, acordou descansado pouco depois das cinco e às seis e meia entrava na sua sala, já com uma ideia tomado forma na mente. Consultou a sua agenda até ao solstício de verão e constatou que realmente não tinha nenhum compromisso que o retivesse em Ystad, pois os outros colegas podiam tomar conta da história da partida de pôquer. Lennart Mattson costumava ser madrugador, então foi bater na sua porta. O chefe acabava de chegar quando Wallander entrou para pedir três dias de férias, que queria tirar a partir do dia seguinte.
— Bem, sei que o meu pedido é um pouco repentino, admitiu. — Mas é por motivos pessoais e, para compensar, pode contar comigo no fim de semana do solstício, embora, na verdade, seja a minha primeira semana de férias.
Lennart Mattson não manifestou discordância, e Wallander saiu dali com os seus três dias livres. Voltou para a sala e fez uma busca na Internet a fim de localizar os lares de Amalienborg e Niklasgárden, mas da informação obtida não pôde deduzir qual dos dois era aquele que lhe interessava, uma vez que ambos pareciam acolher pessoas com limitações muito variadas, mas todas incapacitantes.
Nessa noite foi à festa de Kristina Magnusson. Sabia que Linda tinha aceitado o convite, e ela apareceu por volta das nove horas, depois de Klara finalmente adormecer e Hans chegar em casa. Mal ela entrou no jardim, Wallander chamou-a à parte e lhe falou da excursão que pensava fazer logo de manhã cedo no dia seguinte. Linda viu que estava bebendo água com gás e lhe disse que quase contava que iria tomar aquela decisão. Uma hora mais tarde, Wallander se despediu da festa. Kristina Magnusson acompanhou-o até à rua e Wallander sentiu um repentino desejo de beijá-la, mas, felizmente, conseguiu se dominar. Kristina tinha bebido bastante e não parecia notar as suas intenções contidas.
Antes de ir para a festa deixara Jussi com os vizinhos. A sua casinha estava vazia. Wallander se deitou na cama, pôs o despertador para as três e dormiu umas horas.
Às quatro da madrugada se sentou ao volante e partiu em direção ao Norte. A alvorada veio coberta de neblina transparente, mas o dia prometia ser bonito. Por volta do meio-dia chegou a Mariefred, almoçou num restaurante de estrada e dormiu um pouco no carro antes de procurar Amalienborg, uma velha escola com um edifício anexo, agora convertido numa casa de saúde. Identificou-se como policial na recepção, com a esperança de que fosse o suficiente pelo menos para averiguar se aquele era o lugar que procurava. A recepcionista não estava muito segura e foi buscar a diretora, que estudou minuciosamente o documento de identificação do inspetor.
— Signe von Enke, disse Wallander em tom amável. — Só preciso saber se está aqui ou não. Trata-se dos seus pais, que infelizmente desapareceram.
A diretora tinha uma placa na blusa que a identificava como Anna Gustafsson. Ouviu a explicação de Wallander enquanto o observava atentamente.
— O capitão de fragata, é a ele que está se referindo? Perguntou a mulher.
— Exatamente, respondeu Wallander sem esconder a sua surpresa.
— Li sobre o caso nos jornais.
— Quero saber da sua filha, insistiu Wallander. — Encontra-se aqui?
Anna Gustafsson negou com a cabeça.
— Não; não temos nenhuma Signe aqui, nem ninguém que seja filha de um capitão de fragata, lhe garanto.
Wallander prosseguiu a sua viagem. Uma trovoada forte rebombou pelo caminho e chovia com tanta intensidade que se viu obrigado a parar, porque não tinha visibilidade.
Dirigiu-se para um desvio e desligou o motor do carro e, sentado ali, fechado como numa redoma, com o ressoar da chuva intensa contra o teto, se esforçou mais uma vez por desvendar os acontecimentos relacionados com os dois desaparecidos. Apesar de Hakan von Enke ter sido o primeiro a ir embora ou a ser vítima de um crime ou de um acidente, isso não indicava necessariamente que o desaparecimento de Louise fosse consequência direta do que acontecera a ele, segundo um dos princípios elementares ensinados pelo seu mentor Rydberg. Em mais de uma ocasião haviam descoberto que os acontecimentos revelados apresentavam uma ordem causal inversa, ou seja, a última coisa que descobriam ou que sucedia era o prelúdio, e não a conclusão, de uma cadeia de eventos. Uma vez mais, pensou na desordem reinante numa das gavetas de Hakan von Enke. A bússola do seu cérebro girava, incapaz de se decidir por uma direção concreta.
No final das contas, tudo aquilo podia muito bem ser imaginação sua, e nem a sua impressão de que Hakan estivesse nervoso ou preocupado tinha de corresponder à realidade.
Esses fantasmas já tinham visitado Wallander de vez em quando, embora, no geral, conseguisse manter o sangue-frio perante as suas suposições. Ao longo da sua carreira tivera de procurar pessoas desaparecidas em numerosas ocasiões, e quase desde o primeiro momento existiam sempre indícios sobre se se deveria esperar uma explicação natural ou se, pelo contrário, havia motivos de preocupação. No caso de Hakan e Louise, por outro lado, não sabia. Está tudo muito confuso, realmente, disse para si mesmo enquanto, sentado no carro, aguardava que o tempo abrisse um pouco. Parecia um estado de nevoeiro crescente e por enquanto não há nada que indique uma melhoria da visibilidade.
Quando a chuva por fim parou, dirigiu até Niklasgárden, que se situava num lugar muito bonito junto a um lago de nome Vángsjõn, conforme constava no mapa. Os edifícios brancos de madeira se erguiam sobre uma encosta salpicada de árvores majestosas e um pouco mais à frente se estendiam campos de cultivo e pastagens de animais. Wallander saiu do carro e inspirou com prazer o ar refrescado pela chuva; era como se contemplasse uma velha gravura das que se usavam nas aulas quando andava na escola primária de Limhamn; quadros com paisagens bíblicas em que aparecia sempre a Terra Santa com pastores e rebanhos de ovelhas ou campos de cultivo suecos com todas as suas variações. Ao ver Niklasgárden diante dos seus olhos como um recorte de um desses quadros, Wallander foi instantaneamente arrebatado por um sentimento saudoso daquela época dos quadros, mas acabou por se livrar, decidido, daquelas recordações, pois sabia que o sentimentalismo pelo passado não fazia mais do que aumentar a ideia dolorosa e assustadora que tinha da velhice que o aguardava.
Tirou o binóculo que levava na mochila e observou os edifícios e o jardim, ou melhor, o parque, que o rodeavam. Wallander sorriu com amargura ao pensar que se parecia com um periscópio que emergia no meio daquela bela paisagem estival, um submarino arrastado para terra sob o disfarce de um Peugeot com a pintura toda riscada. À sombra de umas árvores descobriu duas cadeiras de rodas; ajustou o binóculo e tentou mantê-los firmes. Viu então que nas cadeiras havia pessoas cuja cabeça pendia, inerte; uma mulher de idade indefinível inclinava a cabeça sobre o peito, e na outra cadeira havia um homem, um jovem, se a vista não o enganava, todo encostado para trás, como se o pescoço tivesse perdido toda a força para se manter reto. Afastou o binóculo e, com um certo mal-estar, se perguntou com que se depararia uma vez dentro daquele lar, antes de se sentar novamente no carro e se dirigir para o edifício principal, onde o Governo Civil de Sörmland lhe dava as boas-vindas com setas que apontavam em direções diferentes. Wallander entrou na recepção, tocou a uma campainha e esperou. De algum lugar indistinto chegava o som de um rádio.
Ao fim de algum tempo, viu sair de uma sala contígua uma mulher de aproximadamente quarenta anos e ficou imediatamente impressionado pela sua beleza. Tinha cabelo curto e negro, olhos também negros, e olhou-o com um sorriso. Assim que a ouviu falar notou que tinha um sotaque estrangeiro, e Wallander supôs que vinha de um país árabe. O inspetor lhe mostrou a sua identificação e explicou o assunto, mas a mulher bonita não adiantou nada, apenas continuou a observá-lo com o seu lindo sorriso.
— É a primeira vez que recebemos a visita da polícia, afirmou. — E logo de uma cidade tão longínqua, mas lamento dizer que não posso lhe dar nomes; todos os residentes têm direito à sua privacidade.
— Claro, compreendo, respondeu Wallander. — Se for necessário, posso obter um documento do procurador que me permita revistar todos os quartos do lar, examinar todos os documentos e verificar todos os nomes, mas isso é algo que preferia evitar a todo o custo. Se, em vez disso, a senhora assentir ou negar com a cabeça será suficiente, e prometo que e vou embora em seguida e não voltarei.
A mulher pensou um pouco antes de responder. Wallander continuava enfeitiçado pela sua beleza.
— Está bem, entendi, disse por fim. — Faça o favor de perguntar, então.
— Têm alguma pessoa internada chamada Signe von Enke? Deve ter uns quarenta anos e está incapacitada desde a nascença.
A mulher assentiu uma só vez. Isso foi tudo, mas Wallander também não necessitava de mais, porque agora sabia onde Signe se encontrava. Mas antes de prosseguir teria de falar com Ytterberg. Já tinha se virado, conseguindo desviar o olhar do seu belo rosto quando percebeu de que tinha outra pergunta que a mulher talvez consentisse em responder. Voltou-se novamente para ela.
— Afirme só, pediu. — Ou então negue: já passou muito tempo desde que alguém veio visitar Signe?
Ela demorou uns instantes para responder, desta vez com palavras.
— Faz uns meses, afirmou. — Em abril, mas posso verificar a data exata se for importante.
— Importantíssimo, confirmou Wallander. — Seria uma grande ajuda.
A mulher entrou na sala de onde tinha saído antes e, depois de alguns minutos, voltou com um documento.
— Em dez de abril, anunciou. — Foi a última visita; desde então ninguém a veio ver. De repente, se transformou num ser muito só.
Wallander procurou na memória. Dez de abril; no dia seguinte, Hakan von Enke saiu do seu apartamento para não mais voltar, até hoje.
— Calculo que foi o seu pai que veio vê-la nesse dia, arriscou, pensativo. A mulher assentiu.
Wallander saiu de Niklasgárden e se pôs a caminho de Estocolmo. Quando chegou, parou em frente ao prédio de Grevgatan e abriu o apartamento com as chaves que Linda lhe dera. Pensou que era como começar outra vez desde o princípio, mas o princípio de quê? Permaneceu imóvel na sala de estar, bastante tempo, tentando compreender. Contudo, não havia nada que o ajudasse a avançar.
A sua volta só havia silêncio, o de uma profundeza submarina em que nada denunciava a agitação do mar.
* * *
Doze
NESSA NOITE, Wallander dormiu no apartamento vazio.
Devido ao calor quase sufocante, deixou várias janelas entreabertas cujas cortinas se moviam devagar ao sopro da brisa. Da rua, se ouviam de vez em quando as vozes das pessoas, e Wallander pensou que era como ouvir vozes de sombras, como acontece em casas ou apartamentos recentemente abandonados. Por outro lado, não tinha pedido as chaves a Linda para poupar o custo de um quarto de hotel. Sabia por experiência própria que a primeira impressão era decisiva na investigação de um crime e que raramente o regresso à cena costumava produzir algum resultado novo. Não obstante, desta vez sabia o que procurava.
Wallander se movia descalço para não despertar a suspeita dos vizinhos. Revistou as gavetas da mesa de Hakan, as duas cômodas de Louise, e também examinou a grande estante que havia na sala de estar, assim como os demais armários e prateleiras do apartamento. Quando, por volta das dez horas da noite, saiu às escondidas do apartamento para ir comer alguma coisa, tinha tanta certeza quanto possível: tinham eliminado cuidadosamente todos os rastros da filha deficiente.
Wallander comeu num restaurante supostamente húngaro, embora todos os empregados de mesa e o pessoal da cozinha, integrada na sala, falassem italiano. Uma vez dentro do lento elevador que o levaria de novo para o apartamento do terceiro andar, se perguntou onde dormiria. Havia um sofá no escritório de Hakan, mas acabou por se deitar na sala de estar, justamente no sofá onde se sentara quando estivera tomando chá com Louise, e se cobriu com um cobertor escocês quadriculado.
A uma da manhã acordou com as vozes altas de pessoas que passavam na rua. E então, enquanto estava deitado na penumbra da sala de estar, despertou por completo. Era absurdo que não houvesse o menor rastro da mulher que agora vivia em Niklasgárden; quase o indignava não ter encontrado uma fotografia, nem sequer um documento, alguma prova burocrática de identidade, daquelas que todos os suecos obtinham ao nascer. Voltou a percorrer o apartamento na ponta dos pés. Levava uma pequena lanterna que acendia de vez em quando para iluminar os cantos mais escuros, pois queria evitar acender as luzes, salvo algumas das menores, com receio de despertar a curiosidade de algum vizinho do prédio em frente. Mas também se lembrou de que Hakan von Enke deixava sempre uma luminária acesa. Seria mesmo verdade? Não seria antes o caso da família Von Enke transgredir a fronteira entre a mentira e a verdade com muita facilidade? Parou na cozinha e tentou encontrar uma resposta antes de prosseguir, infatigável: tinha atiçado o cão farejador que levava às vezes dentro de si e agora não pensava deixá-lo descansar enquanto não achasse os rastros da existência de Signe que, forçosamente, tinham de existir ali. Por volta das quatro da manhã teve êxito. Na estante, escondido atrás de uns espessos volumes de arte, encontrou um álbum de fotografias.
Não havia muitas, mas estavam cuidadosamente coladas, a maioria com as cores já desbotadas, algumas em preto e branco. O álbum só continha fotografias, sem datas ou comentários explicativos, e sem qualquer retrato dos dois irmãos juntos, o que também não esperara encontrar. Quando Hans nasceu, já tinham feito Signe desaparecer, tinham-na abandonado, apagado da memória. Wallander contou quase cinquenta fotografias, na maioria delas aparecia Signe sozinha, sempre deitada em posições diferentes, mas na última estava nos braços de Louise, que, muito séria, afastava o olhar da máquina fotográfica. Wallander sentiu uma grande tristeza ao perceber que o retrato na realidade revelava a aversão de Louise em aparecer com a filha no colo. A imagem irradiava uma desolação infinita. Wallander meneou a cabeça, perturbado por um profundo incômodo.
Voltou a se deitar no sofá; estava muito cansado, mas ao mesmo tempo se sentia aliviado e adormeceu imediatamente.
Às oito da manhã, a buzina de um carro lá em baixo na rua sobressaltou-o e arrancou-o do sono. Sonhara com cavalos; uma manada que galopava pelas dunas de Mossby entrava, destemida, na água. Quis interpretar o sonho, mas não conseguiu; a maior parte das vezes não sabia interpretá-los nem o que fazer exatamente com eles. Encheu a banheira, bebeu um café e por volta das nove telefonou para Ytterberg, que estava numa reunião. Wallander conseguiu lhe deixar um recado e recebeu uma mensagem escrita no celular dizendo que podiam se encontrar às onze em frente à Câmara Municipal, do lado que dava para o cais.
E ali estava Wallander à hora acordada quando Ytterberg chegou na sua bicicleta. Sentaram-se na esplanada e ambos pediram café.
— O que o traz aqui? Perguntou Ytterberg. — Pensava que preferia cidades pequenas ou o campo.
— E prefiro, mas às vezes não há outro remédio.
Wallander lhe falou de Signe, e Ytterberg ouvia-o muito atento, sem interromper. Terminou comentado sobre o álbum que encontrara na noite anterior e que levava num saco plástico que agora colocou em cima da mesa. Ytterberg afastou a xícara, limpou as mãos e começou a folhear o álbum com cuidado.
— Que idade terá agora? Perguntou. — Quarenta, por aí?
— Sim, Atkins me disse.
— Aqui não há fotografias dela com mais de dois anos, ou três, no máximo.
— É exatamente isso, disse Wallander. — A não ser que haja outro álbum, o que não acredito. A partir dos dois anos erradicaram-na das suas vidas.
Ytterberg fez uma careta e voltou a colocar o álbum no saco. Um barco branco de passageiros passou calmamente na baía de Riddarfjárden. Wallander moveu a sua cadeira para ficar na sombra.
— Estou pensando em voltar a Niklasgârden, confessou Wallander. — Afinal de contas, faço parte da família da garota. Mas gostaria de ter o seu aval, quero que esteja a par do que estou fazendo.
— O que pensa poder descobrir voltando lá?
— Não sei. No entanto, o pai foi vê-la no dia anterior ao seu desaparecimento, e desde então não recebeu mais nenhuma visita.
Ytterberg refletiu um instante antes de responder.
— É muito estranho que Louise não tenha ido visitá-la uma única vez desde que Hakan desapareceu. O que lhe parece?
— A mim não me parece nada, embora estranhe tanto como você. E se fôssemos lá os dois?
— Não, vá você sozinho. Vou fazer um telefonema avisando que tem autorização para vê-la.
Wallander se dirigiu para o cais e ficou contemplando as águas enquanto Ytterberg falava ao telefone. O sol brilhava alto no céu límpido. É pleno verão, constatou para si mesmo. Pouco depois, Ytterberg veio se juntar a ele.
— Está tudo arranjado, informou. — Mas deve saber que a pessoa que me atendeu me disse que Signe não fala; não porque não queira, mas porque é incapaz. Não sei se entendi bem, mas aparentemente nasceu sem cordas vocais, entre outras coisas. Wallander olhou-o intrigado.
— Entre outras coisas?
— Sim, bom, parece que o seu grau de incapacidade física é tremendo e lhe falta mais de uma coisa. Na verdade, estou contente por não ser eu a ir vê-la. Sobretudo hoje.
— O que há de especial com o dia de hoje?
— Faz bom tempo, respondeu Ytterberg. — Um dos primeiros dias de verão do ano. Prefiro não me enervar sem necessidade.
— Falava com um sotaque estrangeiro? Perguntou Wallander quando foram embora. — Refiro-me à mulher que atendeu o telefone em Niklasgárden.
— Falava; tinha uma voz bonita. Disse que se chamava Fátima, se entendi bem. Imagino que seja do Irã ou do Iraque.
Wallander prometeu dar notícias mais tarde. Estacionara o carro na entrada principal da Câmara Municipal e chegou mesmo a tempo de se adiantar a um guarda do estacionamento.
Saiu da cidade e, pouco mais de uma hora depois, estava estacionando o carro em frente à porta de Niklasgárden. Já dentro da recepção viu um homem de idade que se apresentou como Artur Kállberg, que fazia o turno da tarde até à meia-noite.
— É melhor começarmos do princípio, disse Wallander. — Conte-me quais as doenças que Signe padece.
— Bem, é uma das internadas com maior grau de incapacidade, assegurou Artur Kállberg. — Ninguém acreditava que ia sobreviver quando nasceu. Mas algumas pessoas têm tanta vontade de viver que nós, os simples mortais, não somos capazes de entender.
— E mais concretamente? Insistiu Wallander. — O que tem?
Artur Kállberg hesitou, como se duvidasse que o inspetor suportasse ouvir uma descrição detalhada, ou se, pelo contrário, merecia saber a verdade.
— Faltam-lhe os dois braços e, além disso, tem um defeito na garganta que impossibilita a fala. Também nasceu com uma disfunção cerebral e malformação na coluna. Como pode calcular, a sua capacidade de movimentos é muito limitada.
— O que quer dizer?
— Que pode mover a cabeça e o pescoço até certo ponto. Por exemplo, é capaz de fechar os olhos.
Wallander tentava imaginar a situação terrível, o sofrimento infindável, se Klara tivesse nascido com malformações tão devastadoras, se Linda tivesse dado à luz um filho com tamanha incapacidade. Como ele teria reagido, por exemplo? Era realmente capaz de se pôr no lugar de Hakan e Louise e compreender o que significou para eles? Naturalmente, Wallander não conseguiu chegar a nenhuma conclusão sobre como se sentiria numa situação dessas, o que pensaria ou diria.
— Há quanto tempo está aqui?
— Passou os primeiros anos da sua vida num lar para crianças com deficiências graves, explicou Källberg. — Ficava em Lidingö, mas o fecharam em 1972. Wallander levantou a mão para interrompê-lo.
— Sejamos precisos, observou. — Leve em conta que, desta garota, não sei mais que o nome.
— Bem, sendo assim, pare de chamá-la "garota", salientou Källberg. — Vai fazer quarenta e um anos. E capaz de adivinhar quando?
— Como havia de saber?
— Faz anos hoje. Em condições normais, o seu pai teria vindo aqui passar toda a tarde com ela. Mas hoje não verá ninguém.
Källberg parecia indignado perante a ideia de que Signe von Enke se visse obrigada a passar o seu aniversário sem nenhuma visita. Wallander compreendeu-o. Evidentemente, havia uma pergunta muito mais importante que as outras, mas decidiu ir por ordem e esperar. Tirou do bolso o seu bloco de apontamentos, onde as folhas quase tinham se separado.
— Portanto, nasceu em 8 de junho de 1967, correto?
— Correto.
— Chegou a viver algum tempo na casa dos pais?
— Segundo a informação que tenho do hospital, dali levaram-na diretamente para Nyhagahemmet, em Lidingö. Quando tiveram de ampliar o lar, os vizinhos temeram que as suas casas diminuíssem de preço. Não sei como conseguiram, mas não só trataram de impedir as obras como também de fechar o lar.
— E para onde a levaram?
— Entrou numa roda-viva de instituições. Entre outros lugares, passou um tempo na Gotlândia, nos arredores de Hemse. Até há vinte e nove anos, quando chegou aqui e onde vive desde então.
Wallander não deixava de tomar notas. A imagem de Klara sem braços aparecia de vez em quando na sua cabeça com uma teimosia macabra.
— Fale-me do seu estado, pediu Wallander. — Bem, já me falou um pouco, mas gostaria de saber mais sobre o seu estado mental. Até que ponto compreende e sente?
— Não sabemos. Apenas expressa reações básicas, mediante uma espécie de linguagem corporal e certa mímica que pode ser de difícil compreensão para os não iniciados. Aqui é considerada um bebê, embora com uma longa experiência de vida.
— É possível imaginar o que pensa?
— Não, mas na realidade nada indica que esteja consciente da magnitude do seu sofrimento; nunca exprimiu dor ou desespero. E, claro, se assim for, é um grande alívio.
Wallander assentiu, pois pensava compreender. E já era tempo de formular a pergunta mais importante.
— Entendi que o pai costumava vir vê-la. Com que frequência?
— Uma vez por mês, no mínimo, às vezes mais, e não eram visitas curtas; nunca ficava menos de duas horas.
— E o que fazia se não podiam falar?
— Ela não pode falar. Ele, por sua vez, se sentava ao seu lado e conversava com ela. Era absolutamente comovente; lhe contava o que acontecera, falava do quotidiano, das grandes e pequenas coisas da vida. Falava como para um adulto normal, sem se aborrecer.
— E o que acontecia quando estava de serviço no alto mar? Durante muitos anos, Hakan von Enke foi comandante de submarinos e outros navios de guerra.
— Avisava sempre que se ia ausentar. Era impressionante ouvir como o explicava à Signe.
— E quem vinha visitá-la nessa época? A sua mãe?
A resposta de Källberg foi clara e fria, e não suscitava dúvidas.
— A mãe nunca esteve aqui. Trabalho em Niklasgärden desde 1944 e essa mulher nunca veio ver a filha; o único que veio é o pai.
— Está dizendo que Louise von Enke nunca esteve aqui para ver a filha?
— Nunca.
— Isso não é um tanto estranho? Kallberg encolheu os ombros.
— Não necessariamente, pois há pessoas que simplesmente não suportam ver o sofrimento dos outros.
Wallander guardou o bloco de notas, se perguntando se seria capaz de depois ler o que tinha escrito.
— Gostaria de vê-la, disse. — A não ser que isso a transtorne.
— É verdade, me esqueci de lhe dizer, se lembrou Kallberg. — Também não enxerga bem; parece que só consegue distinguir as pessoas como figuras desfocadas, recortadas sobre um fundo cinzento. Pelo menos, é nisso que os médicos acreditam.
— Então reconhecia o seu pai pela voz? Perguntou Wallander.
— Sim, provavelmente. A julgar pelos seus gestos, diria que sim. Wallander se levantou, mas Kallberg não se moveu da cadeira.
— Tem a certeza absoluta de que quer vê-la?
— Tenho, confirmou Wallander. — Absoluta. Obviamente, aquilo não era verdade, pois o que ele realmente desejava ver era o quarto de Signe.
Saíram pelas portas de vidro, que se fecharam sem qualquer barulho atrás deles.
Kallberg abriu uma porta que havia ao fundo de um corredor. Era um quarto com muita luz e uma carpete de poliéster cobria o chão; algumas cadeiras, uma estante e uma cama em que Signe estava deitada, toda encolhida.
— Deixe-me a sós com ela, pediu Wallander. — Espere lá fora. Quando Kallberg saiu, Wallander olhou rapidamente à sua volta.
Porquê uma estante num quarto de uma pessoa que é cega e que não tem consciência? Deu mais um passo em direção à cama e observou Signe. Tinha um cabelo louro muito curto e era parecida com o seu irmão Hans. Os seus olhos arregalados olhavam o vazio, a respiração era entrecortada, como se cada suspiro lhe doesse. Wallander sentiu um nó na garganta. Por que razão uma pessoa tinha de sofrer tanto? Viver uma vida sem nunca poder se aproximar sequer daquilo que dava à existência um indício de sentido, por mais ilusório que fosse? Continuou a observá-la, mas ela não parecia consciente da sua presença. O tempo ficou suspenso; sentiu que se encontrava numa espécie de museu estranho, num lugar onde se via obrigado a contemplar um ser fechado entre muros. A menina da torre, disse para si mesmo. Prisioneira dentro dos seus próprios muros.
Olhou a cadeira que havia junto à janela. A cadeira em que Hakan von Enke costumava se sentar quando a visitava. Depois se aproximou da estante e se agachou em frente às prateleiras que estavam cheias de livros infantis, de contos ilustrados. O desenvolvimento de Signe von Enke tinha sido interrompido, continuava a ser uma criança.
Wallander examinou o móvel detalhadamente, tirando os livros e verificando que não havia nada por trás deles.
Entre uma série de livros do elefante Babar, encontrou o que procurava. Desta vez, não foi um álbum de fotografias, mas também não esperava que fosse; na realidade, não sabia muito bem o que procurava. Mas algo faltava no apartamento de Grevgatan, não tinha dúvidas disso: ou porque alguém tivesse feito uma limpeza entre os documentos ou porque o próprio Hakan von Enke o tivesse escondido. E, nesse caso, onde poderia tê-lo colocado senão naquele quarto? Entre os livros de Babar, que tanto ele como Linda tinham lido em criança, havia uma pasta de documentos com uma capa preta dura, presa por dois elásticos grossos. Wallander hesitou um instante se devia abri-la ali, mas tomou uma rápida decisão: despiu o casaco e cobriu a pasta com ele. Signe continuava deitada com os olhos abertos, imóvel.
Wallander abriu a porta. Kallberg removia com o dedo a terra ressequida de um vaso.
— É muito triste, declarou Wallander. — Fiquei coberto de suor frio só de ver.
Voltaram para a recepção.
— Há uns anos veio aqui uma jovem estudante de arte, contou Kállberg. — O seu irmão estava internado aqui, mas já faleceu. Perguntou-nos se podia desenhar os doentes, nos trouxe alguns dos seus desenhos para comprovarmos o que era capaz de fazer. Eu estava completamente a favor do que prometia, mas a direção achava que podia violar o direito à privacidade dos doentes.
— O que acontece quando morrem?
— Quase todos têm família, mas há um ou outro que temos de enterrar sem a presença de familiares. Então procuramos ir todos; a maior parte do pessoal trabalha aqui há anos e chega um momento em que constituímos a sua única família.
Quando se despediram, Wallander se dirigiu a Mariefred e tomou uma refeição numa pizzaria. Na esplanada havia umas mesas e, depois de comer, se acomodou numa delas com um café enquanto olhava, desconfiado, as nuvens negras de trovoada que se amontoavam no horizonte. Viu um homem tocando acordeom na porta de um pequeno centro comercial; tocava tão mal que era de partir o coração. Era um mendigo, não um músico de rua. A música chegava a ser insuportável, e Wallander acabou o café e retornou a Estocolmo.
Acabava de entrar no apartamento de Grevgatan quando o telefone tocou, com sinais que ressoavam desoladores pelas divisões desertas; não deixaram nenhuma mensagem no atendedor. Wallander escutou as mensagens anteriores, de um dentista e de uma costureira. Adiantaram a marcação de Louise devido a um cancelamento, mas para quando? Wallander anotou o nome do dentista, Skõldin. A modista apenas disse "o seu terno está pronto", sem mencionar o nome nem o dia em que deviam ir buscá-lo.
A chuva começou a cair de repente sobre Estocolmo, uma chuva forte e grossa. Wallander se colocou junto à janela e olhou a rua; se sentia como um invasor, mas o desaparecimento do casal Von Enke tinha repercussão na vida dos outros, na vida de pessoas que lhe eram próximas. E essa era a razão pela qual se encontrava agora ali.
Uma hora mais tarde, a tormenta começou a diminuir, uma das piores sofridas naquele verão na capital, com inundações dos porões e avarias nos semáforos por toda a cidade devido a curtos-circuitos. Entretanto, tudo aquilo passou despercebido a Wallander, que estava totalmente absorto na pasta que Hakan von Enke deixara escondida no quarto da filha. Não precisou de mais do que alguns minutos até compreender que aquilo à sua frente era uma barafunda descomunal: havia poemas haikus, extratos fotocopiados dos diários de guerra do chefe do Estado-Maior Lennart Ljung, datados de outono de 1982, aforismos mais ou menos imprecisos formulados por Hakan von Enke e muito, muito mais. Recortes de jornais, fotografias e até algumas aquarelas manchadas. Wallander foi passando as folhas com a sensação crescente de que aquele diário curioso, se assim se podia chamar era a última coisa que esperava de uma pessoa como Von Enke. Em primeiro lugar, folheou a pasta, tentando descobrir algum fio condutor. A seguir voltou a examinar as páginas, mais detalhadamente desta vez. Quando finalmente a fechou e se endireitou na cadeira, concluiu que, na realidade, aquilo não o esclarecera em nada.
Saiu para jantar. O vento forte e a chuva tinham parado. Eram nove horas da noite quando retornou ao apartamento vazio. Pela terceira vez, pegou na pasta de capa preta e voltou a rever o seu conteúdo. Procurava, disse para si mesmo, o outro conteúdo; o invisível, escrito entre as linhas. Um conteúdo que tinha de existir. Tinha certeza absoluta disso.
* * *
Treze
ERAM PERTO das três da manhã quando Wallander se levantou do sofá, se aproximou da janela e constatou que a chuva regressara, embora fosse apenas um chuvisco que caía nas ruas já molhadas. Uma vez mais, voltou a reconstituir, cansado, o dia da festa em Djursholm, quando Hakan von Enke lhe falou dos submarinos. Wallander estava convencido de que já nesse momento havia documentos escondidos nos livros de Babar que Signe tinha no seu quarto e que aquele era o quarto secreto de Hakan, mais seguro que um cofre-forte. A certeza de Wallanderse devia, simplesmente, ao fato de Von Enke ter datado alguns dos documentos, a última anotação datava do dia anterior à festa do seu aniversário, então devia ter visitado a sua filha no mínimo mais uma vez; por exemplo, no dia antes de desaparecer, só que então não anotara nada.
"Não posso avançar mais", tinha deixado escrito. "Mas já descobri bastante." Aquelas eram as suas últimas palavras, exceto uma outra que, aparentemente, acrescentara depois, com outra caneta: "Pântano"; só isso, uma única palavra. Provavelmente a última pelo seu punho, disse Wallander para si, embora não pudesse ter certeza. Mas no momento também não achou que fosse importante, uma vez que havia outras coisas que revelavam muito mais acerca do dono da pasta do que havia entre os livros infantis.
Antes de tudo, as cópias dos diários de guerra do chefe do Estado-Maior Lennart Ljung. No fundo, o que se revestia de verdadeira importância não eram os diários em si, mas antes os comentários que Hakan von Enke acrescentara nas margens, frequentemente escritos em vermelho, às vezes riscados ou corrigidos; apêndices e, mais à frente, em alguns casos mesmo anos depois, raciocínios totalmente novos. Por vezes também desenhava bonecos, diabretes com machados ou tridentes nas mãos. Numa das cópias tinha colado uma carta náutica de Harsfjärden, em tamanho reduzido, e nela marcara uma série de pontos vermelhos e desenhado um esboço de vias marítimas diversas para navios de guerra desconhecidos, riscando tudo em desespero para em seguida recomeçar do princípio. Na carta também anotara o número de cargas de profundidade lançadas, diversas linhas de minas existentes debaixo d’água, contatos de sonar. De vez em quando, tudo se confundia numa misturada indecifrável aos olhos cansados de Wallander e então o inspetor ia à cozinha para refrescar o rosto com água fria. E se debruçava de novo sobre aquilo.
Em mais do que uma ocasião, Von Enke fizera tanta força na caneta contra o papel que o perfurara. As notas indicavam que o velho comandante de submarinos possuía um caráter quase obsessivo, talvez até roçando o limite da loucura. Não havia ali nada da serenidade com que pronunciara o monólogo na tal sala sem janelas.
Wallander permaneceu junto à janela e ouviu uns jovens que gritavam obscenidades na noite, cambaleantes, a caminho de casa. São os que não conseguiram pescar nada, quem mais grita, pensou Wallander. Aqueles que voltam a casa sozinhos. Tal como eu também fiz em tantas ocasiões, há quarenta anos.
Leu os textos selecionados dos diários de guerra com tanta atenção que tinha a sensação de já saber recitá-los de memória.
Quarta-feira 24 de setembro de 1980
O chefe do Estado-Maior visita um regimento de artilharia antiaérea próximo de Estocolmo, toma nota de que ainda subsistem problemas com o recrutamento de oficiais, apesar das grandes somas de dinheiro investidas na renovação dos quartéis para torná-los mais atraentes.
Nesse parágrafo, Hakan von Enke não escrevera um único comentário, mas no final da página, pelo contrário, entra em ação a caneta vermelha, como se de um golpe de espada no papel se tratasse.
Mais uma vez, veio à conversa ao longo do dia de hoje a questão dos submarinos em águas territoriais suecas. Na semana passada descobriram um submarino perto de Utõ, bem dentro das fronteiras territoriais. Foi visto, em parte, em emersão. A sua identificação indica de forma unívoca que se trata de um submarino da classe Misky. Tanto a União Soviética como a Polônia possuem esse tipo de submarino.
Naquele ponto, as anotações começavam a ficar algo ilegíveis. Wallander pegou a lupa da mesa de Von Enke e, por fim, conseguiu ler o que estava escrito. O comandante se interroga sobre que "parte" dizem ter visto. O periscópio? A torre? Outras dúvidas se referem a quanto tempo se manteve visível à superfície, quem o avistou, que rumo levava, parece irritado pela falta de detalhes apresentados no diário. Junto à expressão "da classe Misky", Von Enke escreveu: "OTAN e Whisky" por outras palavras, a denominação ocidental do submarino em questão. As últimas linhas dessa página estão sublinhadas a caneta vermelha:
Nesta ocasião, lançaram fogo de advertência, tanto com armas de fogo como com cargas de profundidade. Não conseguiram obrigar o submarino a emergir. Supuseram que teria abandonado depois as águas territoriais suecas.
Wallander ficou sentado durante algum tempo refletindo sobre o que seria uma arma de fogo naquele contexto, mas não encontrou nenhuma explicação nas notas que tinha à sua frente, nem nunca tinha ouvido falar daquilo. Na margem se lia:
É impossível obrigar um submarino a emergir com fogo de advertência, só se consegue com fogo vivo. Porque permitiram que aquele submarino escapasse?
As notas prosseguiam até ao dia 28 de setembro. Nesse dia, Ljung tem uma conversa com o chefe da Marinha, que estivera de visita à Iugoslávia. Mas isso não parece interessar a Von Enke, pois não há uma única anotação ou boneco, nem sequer um ponto de exclamação. No entanto, no final da mesma página, Ljung se mostra insatisfeito com as declarações do Departamento de Relações Públicas da Marinha, exortando o chefe da Marinha a repreender o responsável. Na margem, uma nova anotação a vermelho: "Teria sido mais importante dar prioridade a outras anomalias." O submarino avistado perto de Utó; Wallander se recordava de que Von Enke lhe falara dele em Djursholm: "Foi então que tudo começou", se lembrara que lhe dissera, embora não se recordasse das palavras exatas.
O segundo extrato do diário de guerra era muito mais longo e abrangia os dias de 5 a 15 de outubro de 1982. Agora é que podemos falar de um verdadeiro espetáculo, disse Wallander para com os seus botões.
A Suécia está na mira do mundo inteiro; todos seguem atentamente o desenlace da caça redobrada da Marinha Sueca e dos seus helicópteros aos submarinos, ou alegados submarinos, ou submarinos inexistentes. Ao mesmo tempo, o país está em plena mudança de governo, e o chefe do Estado-Maior tem enorme dificuldade em manter informado tanto o governo demissionário como aquele que vai tomar posse. Em dado momento, Torbjórn Fãlldin parece esquecer de que já não é o primeiro-ministro e emite opiniões que provocam a indignação expressa de Olof Palme, que alega não ter sido devidamente informado sobre o que está acontecendo em Hârsfjárden. O chefe do Estado-Maior não tem um minuto de sossego, se vê lançado num verdadeiro vaivém entre a base de Berga e os dois governos, que fazem tudo para pisarem nos calos mutuamente. Além disso, tem de responder aos comentários insinuantes de Adelsohn, líder do Partido Moderador, que não entende porque não se pode obrigar os submarinos a emergir.
Nesse ponto, Von Enke acrescenta umas linhas irônicas em que diz ter encontrado, finalmente um político que faz as mesmas perguntas que ele.
Wallander já começara a fazer uma lista de nomes, datas e indicações horárias no seu caderno de notas maltratado, sem, na realidade, saber o porquê; talvez apenas pretendesse organizar um pouco a teia de detalhes, para compreender com mais clareza os apontamentos cada vez mais amargos que Von Enke ia deixando nas margens.
De vez em quando tinha a sensação de que o capitão de fragata estava tentando deixar testemunho de outro desenvolvimento dos acontecimentos. Está querendo reescrever a história, disse para si mesmo. É como aquele louco que, fechado num hospital psiquiátrico, passa quarenta anos lendo os clássicos para depois modificar os seus finais quando lhe parecem muito trágicos. Von Enke escreve o que na sua opinião deveria ter acontecido e, assim, levanta a questão de por que motivo não aconteceu.
Num momento de máxima concentração na leitura, Wallander tirara a camisa e, meio despido no sofá, começou a se perguntar se Von Enke não sofreria de uma espécie de paranoia. Contudo, pôs logo a ideia de parte; as notas nas margens e as que tinha incluído entre as linhas revelavam a sua indignação, mas eram claras e lógicas. Pelo menos na medida em que Wallander entendia o seu significado. Introduzidas no meio do texto apareceram de repente umas simples palavras que lhe fizeram lembrar um poema haiku:
Sob as águas, ninguém nota o que acontece.
Sob as águas, o submarino escapa, ninguém quer pô-lo a nu.
Foi isso o que aconteceu? Se perguntou Wallander. Foi tudo uma farsa? E na realidade nunca tiveram intenção alguma de identificar o submarino? No entanto, para Von Enke havia outra questão mais importante. Ele tinha se entregado a outra perseguição cujo objetivo não era o submarino, mas sim uma pessoa; era um tema recorrente nas suas notas, como o rufar persistente de um tambor. Quem toma as decisões? Quem as altera? Quem?
No meio de uma passagem, Von Enke escrevera o seguinte comentário:
Para conseguir chegar à pessoa ou pessoas que tomaram aquela decisão devo responder antes à questão do porquê. Ou essa resposta não será já óbvia?
Desta vez, não existe qualquer indicação de ira ou de indignação da sua parte; pelo contrário, há uma serenidade total, não se veem buracos de caneta no papel. Naquele momento, Wallander já compreendia sem dificuldade a percepção que Von Enke tinha do acontecimento. Tinham se dado ordens e tinha se seguido de forma exemplar a linha de autoridade militar. Entretanto, alguém se intrometera de repente e alterara uma decisão, e os submarinos haviam desaparecido subitamente. Von Enke não anotou nenhum nome, ou pelo menos nenhum que ele considerasse suspeito, embora às vezes assinalasse as pessoas com as letras "X" ou "Y" ou "Z". Esconde-as, conclui Wallander. Depois esconde também a pasta de documentos entre os contos de Babar da sua filha Signe, e a seguir desaparece.
E agora Louise também está desaparecida.
Wallander levou várias horas revendo as cópias dos diários de guerra, embora também estudasse com muita atenção o restante do material. Entre as capas daquela pasta se encontrava, de fato, o relato completo da vida de Von Enke, desde o dia em que resolvera empreender a carreira de oficial. Fotografias, recordações e postais. Pautas de avaliação, certificados militares e nomeações honorárias. Também encontrou a fotografia do seu casamento com Louise e outras de Hans, de diferentes épocas.
Uma vez terminado, e enquanto contemplava pela janela a chuvinha da noite estival, pensou: Agora sei mais, mas não se pode dizer que o assunto esteja esclarecido. Principalmente, não se esclareceu o mais importante, isto é, porque está desaparecido há vários meses e porque também Louise desapareceu. Não sei as respostas para essas perguntas, mas agora conheço melhor Hãkan von Enke.
E foi com aquelas reflexões em mente que se deitou, por fim, no sofá, onde se cobriu com a manta e adormeceu.
* * *
Quando acordou às oito horas da manhã tinha a cabeça pesada e a boca seca, como se tivesse estado numa festa na noite anterior. Contudo, assim que abriu os olhos soube o que devia fazer. Discou o número de telefone ainda antes de beber o café. Sten Nordlander atendeu no segundo toque.
— Estou em Estocolmo, explicou Wallander. — Preciso vê-lo.
— Tinha pensado sair e dar uma volta no meu barco. Se tivesse ligado dez minutos mais tarde já não me pegava em casa. Não quer vir comigo e assim podemos conversar?
— Não trouxe roupa adequada para andar de barco.
— Não faz mal, eu empresto. Onde está?
— Em Grevgatan.
— Vamos nos encontrar dentro de meia hora; vou até aí buscá-lo.
Sten Nordlander apareceu vestindo um velho e gasto macacão cinzento com o emblema da Marinha sueca. No assento traseiro levava um cesto grande com comida e várias garrafas térmicas. Saíram da cidade em direção a Farsta antes de seguirem por estradas secundárias até chegarem à pequena marina em que Sten Nordlander tinha o seu barco. Durante a viagem, tinha dado um olhar fugaz para o saco plástico de Wallander com a pasta preta, mas não dissera uma palavra. E Wallander por sua vez preferia esperar até estarem a bordo.
No cais flutuante viram o pequeno barco de madeira, recentemente envernizado e reluzente.
— Um Petterson autêntico, declarou Sten Nordlander, orgulhoso. — Tudo é original. Já não constroem barcos como este. A fibra dá menos trabalho quando temos de preparar o barco na primavera, mas é impossível amar um barco de fibra como se ama um barco de madeira. Este cheira como um ramo de flores. Venha, vou lhe mostrar Hârsfjàrden.
Wallander estava espantado, porque assim que tinham deixado a cidade perdera o sentido de orientação por completo e até chegara a pensar que o barco talvez se achasse num lago menor ou no Mälaren. Mas agora constatava que a enseada se abria até à ilha de Utö e ao mar Báltico, que Nordlander lhe apontou numa carta náutica, e ao recanto mais sagrado da Marinha sueca, a base de Muskõ. Nordlander lhe emprestou um macacão idêntico ao que ele vestia e também um boné azul-escuro.
— Agora tem um aspeto decente, assegurou Nordlander assim que Wallander mudou de roupa.
O barco tinha um motor de explosão a gasóleo; depois de virar a manivela para pô-lo a trabalhar, Wallander levantou ferro, tentando esconder a sua falta de jeito, enquanto pedia a todos os santos que o vento não soprasse muito forte no arquipélago. Sten Nordlander se inclinou sobre o vidro, com uma mão apoiada despreocupadamente sobre o bonito leme de madeira.
— Dez nós, anunciou. — É uma boa velocidade para uma pessoa poder desfrutar do mar, sem andar aos saltos como se estivéssemos com pressa para chegar ao horizonte. Então diga o que queria me contar.
— Ontem fui ver Signe, disse Wallander. — No lar. Estava deitada na cama, encolhida como um bebê, embora tenha quarenta anos. Sten Nordlander levantou a mão com veemência.
— Não quero saber. Se Hakan ou Louise quisessem me contar, teriam contado.
— Pois bem, não lhe digo mais nada.
— Telefonou-me para falar dela? Custo a acreditar.
— Não. Encontrei uma coisa que quero que veja depois mais detalhadamente, quando pararmos.
Wallander descreveu o seu achado, sem no entanto revelar nada acerca do conteúdo, pois queria que Sten Nordlander descobrisse por si mesmo.
— Parece muito estranho, opinou quando Wallander tinha terminado.
— O que lhe parece estranho?
— Que Hakan tivesse um diário, pois não era de todo dado à escrita. Uma vez fomos juntos até a Inglaterra e nem sequer mandou um postal com umas linhas, porque dizia que não sabia o que escrever. E os seus diários de bordo também não eram exatamente um exemplo de obra literária.
— Pois aqui até há poemas, ou pelo menos é o que parecem ser.
— Isso custo realmente a acreditar.
— Bem, já verá com os seus próprios olhos.
— De que se trata?
— A maior parte tem precisamente a ver com o lugar para onde nos dirigimos.
— Muskö?
— Harsfjärden, os submarinos e isso. Parece completamente obcecado por aqueles acontecimentos no princípio da década de 1980.
Sten Nordlander estendeu o braço em direção a Utö.
— Ali, nas imediações da ilha, estiveram rasteando submarinos em 1980, explicou.
— Sim, no mês de setembro, respondeu Wallander. — Penso que se tratava de um daqueles a que a OTAN chamava Whisky, provavelmente russo, mas também podia ser polonês.
Sten Nordlander olhou-o com olhos semicerrados e sorriu.
— Está bem informado!
Passou-lhe o leme e foi buscar xícaras e café. Wallander manteve o rumo para o ponto que Nordlander lhe apontou na carta. Um navio da guarda costeira vinha na direção contrária e agitou a água ao passar. Sten Nordlander desacelerou e deixou o barco ir ao sabor das ondas enquanto bebiam café e comiam sanduíches.
— Hakan não foi o único que se indignou, assegurou Nordlander. — Muitos de nós nos perguntámos o que estaria acontecendo e, não obstante aquele caso do Wennerström já ter acontecido há muitos anos, continuavam a circular rumores.
— Sobre o quê?
Sten Nordlander inclinou a cabeça para o lado, como se desafiasse Wallander dizendo algo que deveria saber.
— Espiões?
— Simplesmente não era lógico que aqueles submarinos, que com toda certeza se encontravam nas águas de Hârsfjárden, estivessem sempre um passo à nossa frente. Agiram como se soubessem a tática que empregávamos e onde estavam colocadas as nossas minas; era quase como se ouvissem os nossos chefes discutindo. Corria o rumor da existência de um espião mais bem posicionado até do que Wennerström. E não se esqueça de que, naquela época, havia um homem na Noruega, Arne Treholt, que se movia nos círculos do governo norueguês, e o próprio secretário de Willy Brandt era um espião da Alemanha do Leste. As suspeitas nunca se concretizaram, não pegaram ninguém, mas isso não significa que não existisse um espião na mesma.
Wallander pensou nas letras X, Y e Z.
— Mas havia pessoas de que suspeitavam concretamente, não havia?
— Segundo alguns oficiais da Marinha, havia vários indícios de que o próprio Palme era espião. A mim, essa hipótese sempre me pareceu uma loucura, mas, na realidade, ninguém estava livre de suspeitas. Além disso nos, atacaram de outra forma.
— Atacaram vocês?
— Cortes orçamentais; o dinheiro foi parar na Força Aérea e na aquisição de mísseis, enquanto as penúrias da Marinha iam aumentando. Foram muitos os jornalistas que se pronunciaram com desprezo sobre os nossos "submarinos orçamentais", diziam que era pura invenção da Marinha para que se assegurassem mais recursos e de melhor qualidade.
— E você duvidou em algum momento?
— De quê?
— Da existência dos submarinos.
— Nunca. Os submarinos russos existiram mesmo.
Wallander tirou a pasta do saco. Estava convencido de que Sten Nordlander nunca a vira antes, como lhe confirmou a sua expressão inquisitiva que parecia totalmente sincera. Nordlander limpou as mãos e apoiou com muito cuidado a pasta aberta sobre os joelhos. Soprava uma brisa leve que agitava ligeiramente a superfície da água. Foi folheando devagar e de vez em quando levantava o olhar para verificar o rumo do barco, antes de voltar a se concentrar na pasta. Quando terminou devolveu-a a Wallander, sacudindo a cabeça com estranheza.
— Continuo estupefato, confessou. — Embora talvez um pouco menos. Sabia que Hakan estava investigando, mas não tinha a menor ideia de que o tivesse abordado de forma tão exaustiva. Como chamaria você a estas notas? Um diário? Umas memórias pessoais?
— Acho que se pode ler de duas maneiras, respondeu Wallander. — Em parte, de forma literal, mas também como uma investigação inconclusiva daquilo que realmente aconteceu.
— Inconclusiva?
Tem razão, pensou Wallander imediatamente. Porque terei dito aquilo? O mais provável é que a pasta seja justamente o contrário, algo concluído, um capítulo encerrado.
— Provavelmente tem razão, admitiu Wallander. — Hakan deve ter lhe posto um fim, mas a questão é o que pensava conseguir?
— Levei muito tempo até compreender quanto tempo investiu nos arquivos; lendo relatórios, atas, diários e livros. E também falava com inúmeras pessoas. Houve quem me telefonasse para me perguntar o que Von Enke estava fazendo, e eu lhes dizia que o mais provável era que quisesse conhecer toda a verdade sobre o fato.
— E a sua curiosidade não foi bem acolhida, não é? Pelo menos foi isso o que me disse a mim.
— Tenho a impressão de que no final consideraram-no uma pessoa pouco confiável, coisa trágica, pois não havia ninguém na Marinha tão vertical e escrupuloso como ele. Isso deve tê-lo magoado profundamente, embora nunca dissesse nada a esse respeito. Sten Nordlander levantou o capô do motor e estudou-o um instante.
— Tal e qual o bonito pulsar de um coração, disse e voltou a fechá-lo. — Trabalhei uma vez em Smaland como oficial da sala de máquinas num dos nossos dois contratorpedeiros da classe Halland, e o simples fato de poder estar na sua sala de máquinas foi uma das experiências mais inesquecíveis da minha vida. Tinha duas turbinas a vapor, fabricadas pela Lavai, capazes de gerar uns sessenta mil cavalos; podíamos pôr em movimento um navio de três mil e quinhentas toneladas e alcançar uma velocidade de trinta e cinco nós. Uma coisa espantosa; uma verdadeira alegria de viver.
— Acredito. No entanto, queria lhe fazer uma pergunta que deve levar muito a sério, advertiu Wallander. — Viu algo na pasta que não deveria estar lá?
— Está falando de algo secreto? Perguntou Nordlander com um ar intrigado. — Não, não vi nada.
— E o que o surpreendeu?
— Bem, não li os pormenores todos e mal consegui decifrar a sua caligrafia nos comentários anotados na margem, mas não detectei nada que me fizesse sobressaltar.
— Nesse caso, poderia me explicar porque ele escondeu este material?
Sten Nordlander refletiu bastante tempo antes de responder, enquanto olhava um barco à vela que passava ao longe.
— Na verdade, não compreendo o que considerava tão secreto, disse por fim. — Nem de quem pensou que devia escondê-lo.
Wallander ficou alerta: o homem ao seu lado acabava de dizer algo importante. Contudo, não foi capaz de concretizar a ideia antes da impressão se evaporar, mas gravou aquelas palavras na sua memória.
Sten Nordlander voltou a dar todo o gás, dez nós, rumo a Mysingen e Harsfjärden, e Wallander se postou ao seu lado. Durante as horas seguintes, Sten Nordlander guiou-o por Muskö e Harsfjärden, indicando e explicando onde tinham se atirado as cargas de profundidade e por onde tinham escapado os submarinos ao não se ativar as linhas de minas. Wallander foi comprovando numa carta náutica a profundidade e os inúmeros escolhos assinalados com pequenos pontos; o inspetor percebeu que só uma tripulação muito bem treinada seria capaz de navegar por Harsfjärden em imersão.
Quando Nordlander considerou que já tinham visto o suficiente, mudou o rumo e se dirigiu a umas pequenas ilhas e recifes que se achavam no estreito entre Orno e Utó. Ao longe se via o mar aberto. Com mão experiente, foi navegando para dentro de uma pequena baía junto a um dos ilhéus e atracou o barco com cautela à beira de uma falésia rochosa.
— Pouca gente conhece esta baía, afirmou quando desligou o motor. — Por isso, aqui me deixam em paz. Tome!
Wallander, que já se encontrava em terra com um cabo na mão, pegou o cesto que Nordlander lhe atirou e pousou-o sobre as rochas. Cheirava intensamente a mar e à flora que crescia densa nas gretas. De repente, se sentiu como um garoto numa expedição de descoberta de uma ilha desconhecida.
— Como se chama esta ilha? Perguntou.
— É antes um ilhote; não tem nome, esclareceu Nordlander.
E depois, sem dizer uma palavra, se despiu e mergulhou na água. Wallander viu emergir a sua cabeça, que logo voltou a desaparecer. O homem é como um submarino, pensou. Está fazendo exercícios de imersão e emersão. E não se importa com a água fria. Nordlander trepou de novo as rochas e pegou num toalhão vermelho do cesto, onde também havia pratos e comida.
— Devia experimentar, animou-o. — Está fria, mas faz muito bem.
— Fica para outra vez. A que temperatura estará?
— Por trás da bússola há um termômetro com que pode ver, enquanto me seco e vou tirando a comida.
Wallander foi buscar o termômetro, que tinha uma pequena boia de borracha. Deixou-o flutuar um pouco junto às rochas e verificou o resultado.
— Onze graus, anunciou quando voltou para o lugar onde Nordlander dispunha a refeição. — Muito fria para mim. Não me diga que também toma banho no inverno?
— Não, mas já considerei fazê-lo mais de uma vez. Dentro de dez minutos podemos comer; aproveite para dar uma volta no ilhéu, talvez encontre uma garrafa com uma mensagem de algum submarino russo afundado.
Wallander se perguntou se não estaria falando sério, mas não acreditava, pois Nordlander não era um homem de subentendidos obscuros. Sentou-se numa das rochas, donde se via até ao horizonte, e apanhou umas pedras que foi jogando na água. Quando jogara a última vez sapo na água? Lembrou-se do dia em que visitara Stenshuvud juntamente com Linda, na época adolescente e pouco interessada em fazer excursões com o pai. Então foram jogando pedras na água, e ela tinha muito mais jeito do que ele. Agora está praticamente casada, refletiu com nostalgia. Um homem aguardava-a em algum lugar, o homem certo. E, se não tivesse sido ele, eu não me encontraria hoje sentado num ilhéu, contemplando o vasto mar e me interrogando sobre o desaparecimento dos seus pais. Um dia também ensinaria Klara a jogar pedras na superfície para vê-las saltitar como rãs ágeis antes de afundarem nas águas.
Preparava-se para se levantar quando Sten Nordlander o chamou. Permaneceu sentado uns minutos mais, com uma pedra na mão; cinzenta, pequena, um fragmento de granito sueco. Então lhe ocorreu de repente uma ideia, no princípio pouco clara, depois cada vez mais evidente.
Ficou ali sentado tanto tempo que Sten Nordlander voltou a chamá-lo, e desta vez se levantou e se encaminhou para a merenda já servida, com uma ideia bem gravada na sua memória.
Nessa noite, quando chegou à casa de Grevgatan, e depois de se despedir de Sten Nordlander na porta, se apressou a subir para o apartamento. E comprovou que a sua intuição tinha sido certeira: a pequena pedra cinzenta que havia na mesa de Hakan von Enke tinha desaparecido.
Não havia a menor dúvida; não se enganara. A pedra já não estava ali.
* * *
Quatorze
DEPOIS da excursão de barco, Wallander se sentia cansado. Ao mesmo tempo, o passeio no mar tinha suscitado muitas reflexões, que não se deviam só ao desaparecimento da pedra da mesa; também se perguntava sobre a súbita atenção que as palavras de Sten Nordlander tinham despertado nele. "Nem de quem pensou que devia escondê-lo." No fundo, Hakan von Enke apenas podia ter uma razão para esconder a pasta: ainda estava acontecendo alguma coisa. Não se dedicava só a agitar o passado ou a tentar despertar uma verdade adormecida ou mumificada; o que ocorrera então tinha consequências na atualidade.
Wallander estava sentado no sofá, à procura de algo que tivesse podido escapar às mós de moinho do seu cérebro. Devia se tratar de pessoas vivas, não mortas há muito tempo. Em algum lugar na pasta, Von Enke escrevera uma lista de nomes que não diziam nada a Wallander; com uma exceção, um homem que aparecera frequentemente nos meios de comunicação durante a caça aos submarinos da década de 1980, um oficial de alta patente da Marinha chamado Sven-Erik Hakansson. Junto ao seu nome havia uma cruz, além de dois sinais, um de exclamação e outro de interrogação. Que significaria aquilo? As notas não haviam sido introduzidas ao acaso, tudo estava bem calculado, embora em muitos sentidos ainda constituíssem um idioma secreto para Wallander, apenas parcialmente decifrável.
Tirou o caderno de apontamentos e observou os nomes, se perguntando se corresponderiam a pessoas envolvidas na luta contra os invasores ou se, pelo contrário, seriam suspeitas. E, em tal caso, suspeitas de quê?
De repente respirou fundo; finalmente acreditava ter compreendido: Hakan von Enke perseguia um espião russo; alguém que proporcionara aos submarinos russos informações suficientes para que pudessem enganar os perseguidores suecos e mesmo dirigir as suas ações armadas. E esse alguém continuava ali, ainda não fora descoberto, e era dessa pessoa que escondia as suas notas, pois a temia. O homem na penumbra do outro lado do gradeamento, lembrou Wallander. Seria alguém a quem desagradava a ideia de que Hakan von Enke tivesse se entregado à procura de um espião?
Wallander ajeitou a luz da luminária que estava junto ao sofá e reviu de novo a grossa pasta, se demorando nas anotações que pudessem indicar possíveis pistas na localização de um espião. Talvez essa também fosse a resposta à outra pergunta, que alguém fizera uma limpeza entre os documentos que se encontravam no arquivo do seu escritório. Com toda a probabilidade, quem retirara esses documentos fora o próprio Hakan von Enke. Aquilo fazia pensar numa boneca russa, uma figura que continha outra no seu interior, que, por sua vez, continha outra. Não só escondera as suas notas, como também se preocupara em tornar incompreensível aos olhos alheios o que figurava nelas; colocara uma cortina de fumaça, ou antes, talvez, uma fileira de minas que pudesse ativar à sua vontade se desconfiasse que alguém não autorizado se aproximara muito.
Finalmente, Wallander apagou a luz e se deitou, sem no entanto conseguir conciliar o sono. Levado por um impulso, se vestiu e saiu para a rua. Em outras épocas da sua vida, quando não suportava o peso da solidão, procurava aliviar a ansiedade com longas caminhadas noturnas, e não havia uma única rua em Ystad que não tivesse percorrido durante essas peregrinações. Agora desceu a rua até Strandvägen e virou à esquerda para chegar à ponte que levava a Djurgarden. A noite estival estava amena e ainda havia pessoas na rua; muitas estavam embriagadas e falavam alto. Wallander se sentiu como um forasteiro inseguro se movendo entre as sombras. Continuou em frente no Parque de Diversões Gróna Lund e só voltou para trás quando chegou à Galeria Thielska. De novo no apartamento, comprovou que a caminhada tinha surtido o efeito esperado e conseguiu adormecer imediatamente.
* * *
Retornou para casa no dia seguinte e antes do entardecer já se encontrava de volta a Skâne. Quando lhe faltava cobrir a última parte, parou para comprar comida e ir buscar Jussi, que, louco de alegria, lhe deixou a roupa cheia de marcas de patas sujas de terra. Depois de comer e de dormir uma sesta, se sentou à mesa da cozinha com a pasta. Pegou na lupa mais potente que tinha, que o seu pai um dia tinha lhe oferecido quando, no princípio da adolescência, demonstrara um repentino interesse pelos insetos que viviam no gramado do jardim. Aliás, era um dos poucos presentes, além do cachorro Saga, que alguma vez recebera e daí que a conservasse com tanto carinho. Agora se debruçava sobre as fotografias que a pasta continha, deixando de lado os textos e as anotações das margens.
Uma das fotografias parecia fora do lugar; não se dera conta disso da primeira vez e viu que tinha um aspeto muito civil. Estava convencido de que nada na pasta fora parar ali por acaso, pois Hakan von Enke era um caçador cauteloso, mas muito determinado. Fora tirada em preto e branco no que parecia uma instalação portuária. Ao fundo se via uma casa sem janelas, com certeza um depósito, e na difusa periferia da imagem Wallander conseguiu, com a ajuda da lupa, identificar duas empilhadoras de carga e umas caixas de peixe amontoadas. O fotógrafo focara a lente em duas pessoas que se achavam junto a um barco de pesca, um modelo de traineira antigo; uma era velha, enquanto a outra era dum rapaz, quase uma criança. Wallander calculou que fora tirada na década de 1960, quando os pescadores ainda usavam camisas de lã e casacos de pele, chapéus e casacões de oleado. O barco era branco com marcas pretas no casco. Em segundo plano, entre as pernas do homem velho, Wallander entreviu o que devia ser a identificação alfanumérica do barco; a última letra era um G, disso não tinha a menor dúvida, a primeira ficava escondida por completo, enquanto a do centro podia ser um R ou um T. Os números eram mais fáceis de identificar: um, dois, três. Wallander se sentou à frente do computador, se conectou à Internet e pesquisou no Google diversas combinações, com a ideia de averiguar onde a traineira estaria registrada. Não demorou muito para concluir que só existia uma possibilidade: NRG; por outras palavras, a traineira estava registrada na costa leste, próximo de Norrkõping. Dedicou mais uns minutos à busca, a qual o conduziu à Administração Nacional de Navegação e à Direção-Geral de Pesca. Anotou o número de contato num papel e voltou para a cozinha quando o telefone tocou. Era Linda que ligava para perguntar porque não tinha avisado do seu regresso.
— Desaparece sem dizeres nada, se queixou Linda. — Já chega de pessoas perdidas.
— Bom, não precisa se preocupar comigo, assegurou Wallander. — Cheguei há poucas horas e pensava telefonar amanhã.
— Mas quero falar consigo agora, cortou ela. — Preciso saber e Hans também, claro, o que conseguiu descobrir.
— Hans está em casa?
— Não, ainda não voltou do trabalho. Esta manhã briguei com ele porque nunca está em casa e tentei fazê-lo compreender que um dia destes eu também começarei a trabalhar. E o que acontecerá então?
— O que acontecerá?
— Terá de ajudar mais em casa. Então vamos, conte!
Wallander tentou descrever o encontro com Signe, esse ser solitário e encolhido de cabelo louro, mas mal tinha começado quando Klara começou a chorar e Linda teve de interromper a conversa. Combinaram que ele lhe telefonaria no dia seguinte.
* * *
A primeira coisa que fez ao chegar na delegacia na manhã seguinte foi procurar Martinsson e esclarecer com ele se teria de trabalhar durante o fim de semana do solstício. Martinsson era o colega que estava mais a par das constantes alterações do horário de serviço e levou apenas dez minutos para obter a resposta; apesar dos três dias de férias gozados, Wallander não teria de trabalhar nesse período. Martinsson, por seu lado, prometera à sua filha mais nova acompanhá-la num acampamento de ioga na Dinamarca.
— Nem sei no que isso vai dar, confessou sem tentar dissimular a sua preocupação. — Acha normal que uma menina de treze anos esteja tão obcecada pela prática de ioga?
— Antes isso do que por muitas outras coisas.
— As minhas outras duas filhas eram apaixonadas por cavalos e são muito mais calmas. Mas esta, que veio tarde, é diferente.
— Todos nós somos diferentes, observou Wallander com um certo tom misterioso, antes de sair da sala.
Discou o número que tinha pesquisado na noite anterior e não precisou de muito tempo até descobrir que o registro NRG 123 pertencia a um pescador chamado Eskil Lundberg, de Bokõ, no arquipélago sul de Gryt. Quando telefonou ligou o atendedor de ligações, de modo que deixou uma mensagem avisando que se tratava de um assunto urgente.
A seguir telefonou para Linda para concluir a conversa da noite anterior. Entretanto, ela tinha falado com Hans e os dois desejavam ir ver Signe, e embora Wallander não se surpreendesse, se perguntou se, de verdade, compreendiam o que a visita lhes reservava. O que esperara ele mesmo ao decidir ir àquele lar?
— Decidimos festejar o solstício de verão, anunciou Linda. — Apesar de tudo o que está acontecendo e apesar de toda a nossa angústia pelo desaparecimento dos pais de Hans. Tínhamos pensado em lhe dar uma alegria e fazer a festa em sua casa.
— Ótimo! Vai ser muito bom! Que bela surpresa!
Foi buscar um café na máquina, que excepcionalmente não entupiu, e trocou umas palavras com um dos técnicos forenses que tinham passado a noite num pântano onde se supunha ter se suicidado uma mulher transtornada. Quando o técnico finalmente chegara em casa já no raiar do dia, tirara uma rã de um dos muitos bolsos da sua roupa protetora. A sua mulher não achou muita graça no achado.
Wallander voltou para a sua sala e procurou outro número na sua avultada agenda. Era o último telefonema que pensara em fazer naquela manhã antes de largar o assunto do casal desaparecido e retornar ao seu trabalho habitual de policial. Há pouco tinha deixado uma mensagem num atendedor; agora procurou o número de celular do mesmo assinante e passados alguns instantes obteve resposta.
— Alô?
Reconheceu imediatamente a voz frágil, quase infantil, do jovem catedrático de geologia que conhecera uns anos atrás, quando ele prestara um serviço muito valioso como perito na hora de averiguar que partículas minerais estavam nos bolsos de um homem encontrado morto na praia de Svarte. Hans-Olov Uddmark fizera uma análise rápida e exaustiva e os informara de que havia três espécies de minerais. Essa informação fora de extrema importância para identificar a cena do crime, diferente do lugar do achado do corpo, e a sua ajuda levara à detenção do assassino. Wallander ouviu em fundo o anúncio da saída de um avião.
— Olá, é Wallander. Está num aeroporto, não está?
— Estou, em Kastrup. Acabo de retornar de um congresso de geologia no Chile. Parece que a minha mala se extraviou.
— Preciso de sua ajuda, explicou Wallander. — Queria que analisasse umas pedras.
— Está bem, mas não pode esperar até amanhã? Fico imprestável após tantas horas de voo.
Wallander se lembrou de que Uddmark, apesar de ser tão jovem tinha nada menos que cinco filhos.
— Espero que os presentes para os seus filhos não estivessem na mala.
— Pior ainda, também levava lá umas pedras de grande beleza.
— O endereço do seu trabalho continua sendo o mesmo? Porque nesse caso lhe mandaria as pedras hoje mesmo.
— O que precisa que faça, além de determinar a que tipo de rocha pertencem?
— Quero poder excluir a hipótese de que alguma delas venha dos Estados Unidos. Se é que é possível determinar isso?
— Consegue ser um pouco mais preciso?
— Das proximidades de San Diego, na Califórnia, ou da costa leste, da área de Boston.
— Vou ver o que posso fazer, mas não parece fácil. Tem alguma ideia de quantos tipos de rochas existem?
Wallander respondeu que não fazia ideia, lamentou uma vez mais a perda da mala, terminou a conversa e foi a toda a pressa para a reunião da manhã, na qual devia participar; alguém tinha deixado um bilhete na sua mesa avisando-o de que era importante. Foi o último a chegar à sala de reuniões; as janelas estavam abertas de par em par pois o dia se apresentava muito quente. Pensou em todas as ocasiões em que ele mesmo tinha convocado as reuniões, e agora que a responsabilidade não era sua experimentava uma sensação ambígua. Ao longo dos anos, sonhara com o dia em que a tarefa já não lhe coubesse, mas agora que eram outros que dirigiam as diferentes investigações tinha saudades da época em que ele instigava os colegas, distribuía as tarefas e dava as orientações.
Nesse dia, um inspetor chamado Ove Sunde dirigia a reunião; tinha chegado a Ystad no ano anterior, procedente de Váxjó. Alguém segredou a Wallander que tinha solicitado a transferência depois de um divórcio doloroso e de uma investigação malsucedida que provocou um debate aceso no jornal Smãlandsposten. Era originário de Gotemburgo e não fazia o menor esforço para esconder a sua pronúncia. Consideravam-no bom no seu trabalho, embora um pouco preguiçoso. Segundo outro rumor, Ove Sunde encontrara uma nova companheira em Ystad, uma mulher tão jovem que podia ser sua filha. Wallander desconfiava dos homens da sua idade que procuravam companhia em mulheres muito jovens; essas histórias raramente tinham final feliz, muitas vezes acabavam em novas e tormentosas separações. No entanto, era altamente duvidoso que a sua própria solidão permanente fosse realmente uma alternativa melhor.
Sunde começou a sua exposição com o caso da mulher no pântano, que tudo levava a crer não se tratar apenas de um caso de suicídio mas também de um assassinato, uma vez que tinham encontrado o seu marido morto em casa, numa pequena aldeia perto de Marsvinsholm. O assunto se complicava por que o marido tinha estado na delegacia de Ystad uns dias antes para denunciar que a sua mulher planejava matá-lo, mas o polícia que recebera a participação não a considerara grave, pois o homem parecia confuso e apresentara dados muito contraditórios. Agora o mais importante era esclarecer o decorrer dos acontecimentos com a celeridade suficiente para que os meios de comunicação não se inteirassem do sucedido e armassem um escândalo por causa da participação negligenciada. Wallander se irritou com o tom de Sunde, excessivamente oficioso a seu ver; considerava que essa manifestação de medo da opinião que os meios de comunicação pudessem ter não passava de pura covardia. Quando se cometia um erro, havia que admiti-lo. Pensou que deveria expressar a sua opinião, calma e objetivamente, com firmeza e sem hostilidade, mas optou por não dizer nada. Do outro lado da mesa estava Martinsson tentando disfarçar um sorriso. Ele está adivinhando os meus pensamentos, intuiu Wallander. E está de acordo comigo, quer eu fale quer não.
Depois da reunião, Wallander e Martinsson partiram para a casa onde tinham encontrado o cadáver do homem. Com fotografias da cena do crime e capas de plástico nos sapatos, os dois colegas percorreram a casa acompanhados por um técnico criminal. De repente, teve a impressão intensa de já ter estado naquela casa levando a cabo uma inspeção ocular do local do crime, como teria lhe chamado Lennart Mattson. Obviamente, não era verdade, era só o caso de se ter visto tantas vezes numa situação igual.
Há uns anos comprara um livro nos saldos que se debruçava sobre alguns crimes ocorridos no princípio do século XIX, e ao longo da leitura, primeiro algo cético, mas depois cada vez com mais entusiasmo, teve a sensação de que teria podido entrar no relato juntamente com o governador e o intendente da polícia e resolver o caso de duplo assassinato de um casal de lavradores de Vãrmdõ, nos arredores de Estocolmo. O ser humano funcionava sempre da mesma maneira, os delitos mais comuns não eram mais que repetições dos crimes das gerações anteriores. Entre as causas principais figuravam quase sempre as disputas por dinheiro, os ciúmes e talvez também o desejo de vingança. E, antes dele, já essas mesmas observações haviam sido feitas pelas gerações precedentes de policiais, governadores e intendentes policiais, ou procuradores. Na atualidade tinham aperfeiçoado os meios técnicos para assegurar provas, mas a capacidade de observação continuava a ser decisiva.
Wallander interrompeu de repente as suas divagações ao entrar no quarto do casal. Viu sangue no chão e num dos lados da cama, mas o que chamou a sua atenção foi um quadro pendurado na parede, por cima da cabeceira; representava um galo silvestre no meio de uma floresta. Nesse momento, Martinsson apareceu a seu lado.
— Obra do seu pai, não é?
Wallander assentiu e meneou a cabeça com incredulidade.
— Causa-me sempre a mesma surpresa.
— Pelo menos nunca precisou de se preocupar com que o falsificassem, comentou Martinsson, pensativo.
— Claro que não. Do ponto de vista artístico são uma porcaria, sentenciou Wallander.
— Não diga isso, protestou Martinsson.
— Só digo a verdade, insistiu Wallander. — Onde está a arma do crime?
Saíram para o jardim, onde tinham montado um plástico protetor por cima de um velho machado. Wallander notou que havia sangue até no extremo do cabo.
— Temos algum motivo plausível? Há quanto tempo estavam casados?
— No ano passado comemorara bodas de ouro. Têm quatro filhos adultos e uma porção de netos. Ninguém tem uma explicação.
— Haverá dinheiro pelo meio?
— Pelo que dizem os vizinhos, os dois eram apegados ao dinheiro. Ainda não sei quanto dinheiro tinham, o banco está investigando, mas suponho que bastante.
— Parece que houve uma briga, observou Wallander depois de algum tempo de reflexão. — Ele opôs resistência. No caso da mulher, não poderemos dizer quantas lesões sofreu até a encontrarmos.
— O pântano não é muito extenso, salientou Martinsson. — Contam tirá-la ao longo do dia.
Regressaram à delegacia depois de saírem do local do crime deserto com uma certa sensação de desânimo; Wallander pensou que era como se a paisagem estival tivesse se tornado por um momento numa imagem em preto e branco. Balançou-se na cadeira durante um bom tempo e resolveu ligar mais uma vez para Eskil Lundberg. Desta vez atenderam, a esposa lhe disse que o marido tinha saído com o barco. No fundo, Wallander ouvia as vozes de umas crianças e supôs que Eskil Lundberg era o rapaz que aparecia na fotografia.
— Calculo que esteja pescando, arriscou Wallander.
— Que outra coisa haveria de fazer? Tem quilômetro e meio de rede no mar. Abastece o mercado de Sõderkõping dia sim, dia não.
— Enguias? A mulher pareceu quase ofendida ao responder.
— Se tivesse ido pescar enguia, teria utilizado funil e não rede. Só que não há enguias e daqui a pouco não haverá peixe nenhum.
— Ainda mantém o barco?
— Qual deles?
— A traineira grande, a NRG 123. Wallander notou que a mulher estava cada vez mais reticente, quase desconfiada.
— Ah, essa; tentou vendê-la há muito tempo, mas ninguém quis comprar desastre semelhante e acabou por apodrecer. Conseguiu cem coroas com a venda do motor. O que quer exatamente?
— Falar com ele, respondeu Wallander com amabilidade. — O seu marido leva algum celular com ele?
— Não, no mar há pouca cobertura. Será melhor voltar a telefonar quando ele estiver em casa, dentro de duas horas.
— Está bem, assim farei. Conseguiu terminar a conversa antes que a mulher voltasse a perguntar o que queria. Recostou-se na cadeira e pôs os pés sobre a mesa.
Não tinha nenhuma reunião, nenhum dever que requeresse a sua presença, de modo que colocou a mão no casaco e deixou a delegacia. Por precaução saiu pela garagem para não correr o risco de que alguém, no último minuto, o visse e reclamasse a sua ajuda. Continuou a pé até ao centro e sentiu que o seu passo era leve; pelo visto, não era tão velho que pudesse dizer que tudo estava acabado. E o sol e o calor tornavam tudo mais suportável.
Almoçou perto da praça, leu o Ystads Allehanda e um dos jornais vespertinos. A seguir se sentou num dos bancos da praça para passar os últimos quinze minutos que faltavam até poder voltar a telefonar para casa de Eskil Lundberg. Perguntou-se onde estariam Hakan e Louise naquele momento. Continuariam vivos ou estariam mortos? Teriam pactuado encenar o seu desaparecimento? Pensou no caso do espião Bergling, mas lhe custava achar semelhanças entre o reto capitão de fragata e o vaidoso Bergling.
Refletiu também sobre outro fato, o qual, com muita pena, lhe pareceu ser de importância crucial. Hakan von Enke tinha ido visitar a sua filha com regularidade; estaria disposto agora a abandoná-la, desaparecendo da face da Terra? Chegou à conclusão inevitável de que Hakan von Enke devia estar morto.
Naturalmente existia outra possibilidade, dizia Wallander de si para si enquanto olhava distraidamente as pessoas que remexiam entre velhos discos de vinil à venda numa bancada da praça. Von Enke andava com medo; não seria pois razoável pensar que aquele ou aqueles a quem temia o tinham sequestrado? Não encontrava respostas, apenas perguntas que devia se esforçar por formular com tanta clareza e exatidão quanto lhe fosse possível.
Quando chegou a hora, discou o número de Bokõ, ao mesmo tempo que um homem algo embriagado se sentava na outra ponta do banco de madeira. Depois de muitos sinais de chamada, atendeu uma voz masculina. Wallander tinha decidido ser muito claro; se apresentou e disse que era policial.
— Estou telefonando porque encontrei uma fotografia sua numa pasta que pertence a um homem chamado Hakan von Enke. Conhece-o?
— Não.
Foi uma resposta tão rápida quanto firme e Wallander pensou que Lundberg estava prevenido.
— Conhece Louise, a sua mulher?
— Não.
— Pois os seus caminhos devem ter se cruzado de algum modo em dado momento. Caso contrário, não há explicação para o fato de ele ter uma fotografia sua, em que aparece com um homem que suponho ser o seu pai. E o barco com a matrícula NRG 123, não é seu?
— O meu pai comprou-o em Gotemburgo no início dos anos sessenta, quando começaram a fabricar barcos maiores e já não utilizavam madeira na construção. Comprou-o barato. Então havia bastante arenque.
Wallander lhe descreveu a fotografia e perguntou onde tinha sido tirada.
— Em Fyrudden, respondeu Lundberg. — Era onde tínhamos o barco, que se chamava Helga. Foi construído num estaleiro do Sul da Noruega, acho que a cidade se chamava Tönsberg.
— Quem tirou a fotografia?
— Deve ter sido Gustav Holmqvist. Ele fazia barcos de madeira e quando não estava trabalhando andava sempre fotografando.
— É possível que o seu pai conhecesse Hakan von Enke?
— O meu pai já morreu. E não se relacionava com esse tipo de gente.
— Como assim?
— Com gente nobre.
— Hakan von Enke também era marinheiro, tal como você e o seu pai.
— Pois eu não o conheço, e o meu pai também não.
— Nesse caso, como chegou a fotografia às suas mãos?
— Sei lá.
— Talvez devesse perguntar a Gustav Holmqvist. Tem o seu número?
— Holmqvist não tem telefone; morreu há quinze anos. A mulher também morreu, e a filha também. Estão todos mortos.
Não parecia que pudesse conseguir muito mais e nada indicava que Eskil Lundberg estivesse mentindo. No entanto, Wallander tinha a sensação de que algo estava mal contado, só que não sabia o que podia ser.
Pediu desculpas por ter incomodado e ficou ali sentado com o celular na mão. O ébrio ao seu lado tinha adormecido no banco e, de repente, reconheceu-o: há uns anos, detivera-o juntamente com outros delinquentes por uma série de assaltos a casas. Depois de passar um tempo na prisão, fora embora de Ystad, mas aparentemente estava de volta.
Wallander se levantou e tomou o caminho da delegacia. Repetia, a conversa na sua cabeça, palavra por palavra. Lundberg não mostrou a menor curiosidade, disse o inspetor para si. Estaria realmente tão desinteressado como pareceu? Ou por acaso sabia de antemão o que lhe queria perguntar? Continuou às voltas com a conversa até que entrou na sua sala, sem no entanto chegar a uma conclusão clara. Martinsson interrompeu as suas meditações ao aparecer na porta entreaberta.
— Encontramos a velha, anunciou. Wallander ficou olhando-o sem entender do que falava.
— Quem?
— A mulher que matou o marido com um machado; a mulher do pântano, Evelina Andersson. Vou para lá agora mesmo. Vem?
— Sim, vou consigo. Wallander espremeu em vão a sua memória; simplesmente, não tinha a menor ideia do que falava o colega.
Foram no carro de Martinsson. Wallander começou a desesperar, pois continuava sem saber para onde se dirigiam ou porquê. Martinsson olhou-o de relance.
— Não se sente bem?
— Não, estou bem.
Por fim, quando tinham deixado a cidade para trás, a paralisia da sua memória cedeu. E como se uma sombra às vezes cobrisse a minha mente, pensou Wallander, irritado consigo mesmo. Agora retornou, só que desta vez com toda a intensidade.
— É que me lembrei de repente de uma coisa, explicou. — Tenho hora com o dentista.
Martinsson reduziu a velocidade.
— Quer que volte para trás?
— Não, algum dos outros colegas pode me levar à cidade.
Wallander não se incomodou sequer em dar um olhar na mulher cujo corpo acabavam de recuperar do pântano. Um carro-patrulha levou-o de volta a Ystad, saiu junto à delegacia, agradeceu a carona e entrou no seu carro com um profundo mal-estar; aquelas falhas de memória lhe causavam muito medo.
Depois de alguns minutos foi para a sua sala, prometendo a si mesmo que falaria sem falta com o seu médico acerca daquelas trevas repentinas que lhe obscureciam o cérebro. Mal se sentara à mesa quando o celular emitiu um som agudo; era uma mensagem de texto, curta e precisa: "As duas pedras provêm da Suécia. Nenhuma da costa dos Estados Unidos. Hans-Olov."
Wallander permaneceu imóvel na cadeira e, embora não conseguisse abranger, no momento, todo o sentido daquela informação, sabia com absoluta certeza que algo não batia certo. Pressentia que estava se aproximando de um ponto fulcral, mas não pôde determinar com exatidão o que significaria. Também não sabia se os cônjuges Von Enke se distanciavam dele.
Ou se, pelo contrário, os tinha cada vez mais próximos.
* * *
Quinze
ALGUNS dias antes do solstício, Wallander pegou o carro e se dirigiu para norte pela costa leste. Imediatamente depois de passar Vàstervik esteve prestes a se chocar com um alce; depois do incidente ficou parado num parque de estacionamento durante um bom tempo, sentado dentro do carro com o coração palpitando e pensando em Kiara até ter forças para seguir viagem. No caminho iria passar à frente de um café onde parara numa ocasião há muitos anos, esgotado, exausto e onde lhe ofereceram dormida num quarto dos fundos. Muitas vezes ao longo dos anos, surgira na sua mente a lembrança nostálgica e melancólica da mulher que geria o negócio. Quando chegou ao café parou e estacionou na esplanada, mas não saiu do carro; permaneceu lá dentro, hesitante, com as mãos agarradas ao volante, antes de arrancar e continuar viagem para o norte.
Evidentemente que sabia por que motivo fugira: temia que fosse outra pessoa que estivesse atendendo à caixa e à máquina do café, se ver obrigado a descobrir que também naquele lugar o tempo lhe escapara das mãos para nunca mais voltar ao que, naquele momento, pertencia a um passado remoto.
Às onze e pouco já se encontrava no porto de Fyrudden porque, como de costume, tinha guiado muito depressa. Ao sair do carro viu que o depósito que aparecia na fotografia ainda continuava ali, embora o tivessem renovado e agora tivesse janelas. Não havia caixas de peixe e a grande traineira também tinha desaparecido; a doca estava cheia de barcos de recreio. Wallander estacionou junto da casa vermelha da guarda costeira, pagou o estacionamento na loja de abastecimentos e caminhou até ao último cais.
Esta viagem é como jogar na roleta, pensou. Não anunciara a sua visita a Eskil Lundberg, pois estava convencido de que, se tivesse lhe telefonado de Skâne, ele teria se recusado a recebê-lo. Mas, e se o encontrasse no porto? Sentou-se num banco de madeira junto à loja de abastecimentos e discou o número com a sensação de que chegara a hora da verdade. Se ele tivesse tido um brasão com uma divisa, se tivesse sido Von Wallander, teria usado precisamente essas palavras, "A hora da verdade", como lema e distintivo da sua nobreza.
Efetivamente, caracterizava muito bem como tinha sido a sua vida. Discou o número e esperou ter sorte. Lundberg respondeu imediatamente.
— Wallander. Falamos há uma semana, aproximadamente.
— O que quer agora?
Se a ligação o tinha surpreendido, sabia esconder bem, disse Wallander para si mesmo. Pelo que parecia, Lundberg pertencia àquele tipo de pessoas de temperamento invejável, sempre dispostas a aceitar que qualquer coisa era possível; que do outro lado do fio telefônico podia se ouvir a voz de qualquer pessoa, um rei, um mendigo ou, porque não, um policial de Ystad.
— Estou em Fyrudden, continuou Wallander, pegando o touro pelos chifre. -- Espero que possamos nos encontrar.
— O que o faz pensar que agora poderia lhe contar mais coisas do que da última vez que falamos?
E nesse instante, assistido por toda a sua experiência policial, soube com toda a certeza que Lundberg tinha de fato mais para lhe contar.
— Bem, tenho a sensação de que deveríamos conversar.
— É outra forma de dizer que vai me interrogar?
— De maneira nenhuma, só quero falar consigo e lhe mostrar a fotografia que encontrei.
Lundberg refletiu uns segundos.
— Vou buscá-lo dentro de uma hora, aceitou por fim. Enquanto esperava, Wallander aproveitou para comer no pequeno restaurante, de onde pôde observar o porto, as ilhas e, ao longe, o mar aberto.
Numa carta náutica emoldurada e pendurada numa das paredes viu que Bokó ficava ao sul e foi portanto nos barcos que vinham dessa direção que concentrou a atenção.
Imaginava que, como pescador, Lundberg teria um barco parecido, pelo menos à primeira vista, com o barco de madeira de Sten Nordlander, mas se enganou redondamente, pois Eskil Lundberg chegou num barco de fibra com motor fora de borda, cheio de baldes de plástico e cestos com redes. Atracou no cais e olhou em volta. Wallander captou o seu olhar inquieto e subiu a bordo; apesar de medir os passos, escorregou e quase caiu na coberta molhada. Os dois homens se cumprimentaram.
— Tinha pensado que poderíamos ir até minha casa, propôs Lundberg. — Aqui há muitos desconhecidos para o meu gosto.
Sem aguardar resposta, recuou e saiu da doca com demasiada velocidade, na opinião de Wallander. Um homem sentado no poço do convés de um veleiro amarrado observou a sua marcha com manifesta desaprovação. Wallander tinha se sentado na proa, de onde podia ver passar as ilhas cobertas de árvores e os rochedos áridos. Atravessaram um estreito que Wallander pela carta náutica do restaurante sabia se chamar Halsò e seguiram rumo a sul. As ilhas abundantes ainda salpicavam as águas e só de vez em quando se entrevia o mar aberto. Lundberg vestia umas calças a meia perna, umas botas enroladas até abaixo e uma camiseta com o texto curioso "Eu queimo o meu próprio lixo". Wallander calculou que teria uns cinquenta anos, talvez um pouco mais, e, a ser assim, se enquadrava na idade do rapaz da fotografia.
Viraram numa baía de carvalhos e bétulas e atracaram à frente de um abrigo de barcos pintado de vermelho que cheirava a breu e no qual entravam as andorinhas para logo voltarem a sair. Diante do abrigo havia dois grandes fogões com fumeiro.
— A sua mulher me disse que já não havia enguias, observou Wallander. — A coisa está assim tão feia?
— Pior ainda, confirmou Lundberg. — Daqui a pouco não restará nada para pescar. A minha mulher não lhe disse?
O edifício vermelho de dois andares se entrevia numa depressão do terreno a cem metros da água. Havia brinquedos de plástico espalhados por toda a parte. Anna, a mulher de Lundberg, se mostrou tão reticente quando o cumprimentou em pessoa como por telefone. A cozinha exalava um cheiro agradável de peixe e batatas cozidas e um rádio tocava música baixa num canto. Anna Lundberg pôs uma cafeteira na mesa e foi embora. Tinha a mesma idade do marido e, de certo modo, também se pareciam fisicamente.
Um cão entrou de repente na cozinha vindo de outro aposento. Que bonito cocker spaniel, pensou Wallander enquanto lhe fazia festas e Lundberg servia o café.
Quando Wallander pousou a fotografia sobre a toalha de plástico da mesa, Lundberg tirou uns óculos do bolso da camisa, olhou brevemente a fotografia e afastou-a.
— Deve ter sido em 1968 ou 1969. No outono, se a memória não me falha.
— Encontrei-a entre os documentos de Hakan von Enke. Alguma ideia?
Lundberg olhou-o nos olhos.
— Não sei quem é esse homem.
— Um oficial de alta patente da Marinha sueca; capitão de fragata. Acha que o seu pai o conheceu?
— Pode ser, claro que sim, mas duvido.
— Porquê?
— Porque não gostava muito dos militares.
— Você também está na fotografia.
— Mas não posso responder às suas perguntas. Mesmo se quisesse. Wallander decidiu ir por outro lado e começar de novo desde o princípio.
— Nasceu aqui, nesta ilha?
— Nasci, e o velho também; sou a quarta geração.
— Quando o seu pai morreu?
— Em 1994. Uma onda virou o barco quando estava lançando as redes. Ao vermos que não chegava em casa, chamamos a guarda costeira. Lasse Aman encontrou-o; o seu corpo ia à deriva para Bjórkskár. Mas acredito que ele queria morrer assim. Wallander intuiu pelo tom que a relação não teria sido de todo satisfatória entre pai e filho.
— E sempre viveu aqui? Também enquanto o seu pai era vivo?
— Isso não teria funcionado, pois uma pessoa não pode ser pau-mandado do seu próprio pai. E sobretudo de um pai que quer sempre mandar em tudo e, como se não bastasse, ter razão em tudo. Mesmo quando não tem. Eskil Lundberg começou a rir. — Não era só quando íamos pescar que queria sempre levar a melhor, prosseguiu. — Lembro-me de uma noite em que estávamos vendo um programa de televisão, um concurso qualquer. A pergunta era com que país fazia fronteira o rochedo de Gibraltar; ele disse Itália e eu Espanha. Bem, quando viu que eu tinha razão se levantou, simplesmente desligou a televisão e foi diretamente para a cama. Assim era o meu pai.
— Ou seja, você foi embora daqui, correto?
Eskil Lundberg inclinou a cabeça para o lado e fez uma careta.
— Por acaso isso importa?
— Pode ser que sim.
— Então me conte outra vez, para que eu entenda. Disse que alguém desapareceu?
— Duas pessoas, marido e mulher; o casal Von Enke. E ao rebuscar no diário do marido, o capitão de fragata, encontrei esta fotografia.
— Disse que vivem em Estocolmo, não disse? Mas você é de Ystad certo? Qual é a ligação?
— A minha filha vai se casar com o filho dessa família; já têm uma filha. Isto é, os que desapareceram são os futuros sogros da minha filha.
Eskil Lundberg assentiu. Parecia que, de repente, olhava Wallander com menos desconfiança.
— Saí da ilha quando acabei a escola e encontrei trabalho numa fábrica nos arredores de Kalmar; fiquei lá um ano. Depois voltei para casa e comecei a me dedicar à pesca, mas o meu pai e eu não nos dávamos bem. Se não fazia como ele ordenava, se enfurecia, de modo que fui embora novamente.
— Voltou para a fábrica?
— Direito para leste dessa vez; para Gotlândia. Durante vinte anos trabalhei na fábrica de cimento de Slite, até que o meu pai adoeceu. Foi ali que conheci a minha mulher; tivemos dois filhos. Viemos para cá quando não restava muito tempo ao meu pai. A minha mãe tinha morrido e a minha irmã vive na Dinamarca, de maneira que éramos os únicos que podíamos tomar conta disto. Temos uma propriedade bastante extensa: terras, águas de pesca, trinta e seis ilhas, não muito grandes, e um bom número de ilhotas.
— Então não estava aqui no início dos anos oitenta?
— Uma ou outra semana no verão, mas de resto não.
— É possível que o seu pai tivesse contato então com algum oficial da Marinha sem que você o soubesse? Insistiu Wallander.
Eskil Lundberg negou veementemente com a cabeça.
— Isso não seria próprio dele; o meu pai dizia que adoraria ver a Marinha sueca afundar, com recrutas e oficiais; sobretudo os comandantes dos navios.
— E porquê?
— Às vezes passavam por aqui a todo o vapor durante as suas manobras. Temos um ancoradouro do outro lado da ilha em que está a traineira e a ondulação provocada pelos barcos dos militares desfê-lo em pedaços dois outonos consecutivos; arrancaram pura e simplesmente fundações de pedra. E não pagaram os danos, o meu pai se fartava de escrever cartas de protesto, mas não nos valeu de nada. A tripulação até chegava a jogar restos de comida nos poços das ilhas. Quem sabe o que significa um poço para os habitantes de uma ilha não faz uma coisa dessas. Mas há mais... Eskil Lundberg pareceu hesitar outra vez. Wallander aguardava sem o pressionar, como raposa paciente que era. — Mesmo antes de morrer, o meu pai me contou uma coisa que aconteceu no início da década de 1980, continuou Eskil Lundberg. — Nessa época, ele já não podia sair da cama. Podemos dizer que tinha se transformado num ser menos cruel; suponho que se conformou com o fato de que, depois de tudo, eu seria o herdeiro.
Eskil Lundberg se levantou e saiu da cozinha. Wallander começava a pensar que, apesar de tudo, não tinha a intenção de lhe proporcionar mais informação, mas o homem voltou com duas agendas antigas.
— Setembro de 1982, leu em voz alta. — São as agendas dele; nelas anotava as capturas e o tempo que fazia, mas também deixava testemunho de qualquer acontecimento especial. Em 19 de setembro de 1982 se deu, realmente, um desses acontecimentos.
Entregou-lhe a agenda por cima da mesa e apontou para a data. Numa caligrafia bem feita se lia: "Quase no fundo."
— O que queria dizer com isso?
— Explicou-me quando jazia na cama, prestes a morrer. No início me perguntei se não estaria senil e um pouco perturbado, mas me contou os fatos com tanto pormenor que o dei por verdadeiro; não foi uma invenção sua.
— Comece desde o princípio, pediu Wallander. — Precisamente esse outono de 1982 me interessa.
Eskil Lundberg afastou a xícara, como se precisasse de espaço para começar o seu relato.
— O meu pai estava pescando na traineira a leste da Gotlândia quando aquilo aconteceu: de repente, foi como se o barco estacasse, notou um puxão nas redes e o barco começou a escorar; não compreendia o que estava acontecendo, mas sentia que algo tinha se emaranhado nas redes e aí ficou cauteloso, porque uma vez quando era jovem recolhera granadas de gás nas redes. Ele e os outros dois pescadores que levava a bordo se aplicaram em libertar as redes, mas então notaram que o barco tinha girado e que o arrasto tinha se soltado do fundo. No entanto conseguiram puxá-lo para bordo e juntamente com ele veio um cilindro de aço de um metro de comprimento, aproximadamente. Não era uma granada nem uma mina, mas antes uma peça de uma máquina procedente de algum navio. O cilindro pesava muito e não parecia ter estado muito tempo na água. Tentaram descobrir o que seria, mas sem êxito, e quando chegaram em casa o meu pai continuou a investigar o cilindro, mas não chegou a conclusão nenhuma sobre que uso poderia ter. Guardou-o num canto qualquer e se concentrou em reparar o arrasto. Era um homem sovina e não gostava de jogar nada fora. Mas a história continua.
Eskil Lundberg colocou a mão à agenda e passou várias folhas até chegar em 27 de setembro. Uma vez mais, mostrou a página aberta a Wallander: "Estão à procura"; três palavras, nada mais.
— Tinha quase esquecido o cilindro quando, de repente, começaram a aparecer navios da Marinha justamente no lugar onde o encontrara. Ele costumava pescar sempre no mesmo lugar ao leste da Gotlândia e compreendeu imediatamente que aquilo não eram manobras normais, pois os navios se moviam de uma forma muito estranha; ou ficavam parados ou andavam em círculos lentos e cada vez mais fechados. Não levou muito tempo para compreender o que estava acontecendo.
Eskil Lundberg fechou a agenda e olhou para Wallander.
— Buscavam algo que tinham perdido, nem mais nem menos. Só que o meu pai não tinha nenhuma intenção de lhes devolver o cilindro de aço; tinham destruído o seu arrasto. De modo que continuou a pescar como se não os tivesse visto.
— O que aconteceu depois?
— Houve mergulhadores e navios da Marinha na área durante todo o outono, até ao mês de dezembro, época em que foram embora os últimos barcos. Então começou a correr o rumor de que um submarino tinha afundado, mas as águas onde buscavam não tinham profundidade suficiente para um submarino. Os militares nunca recuperaram o cilindro e o meu pai nunca soube o que era exatamente. Mas se sentia satisfeito por ter podido se vingar do ancoradouro destroçado. Quer dizer, não estou vendo-o a contactar com um oficial da Marinha. Ficaram em silêncio.
O cão se coçava. Wallander tentou compreender de que maneira Hakan von Enke se enquadrava na informação que acabava de ouvir.
— Acho que ainda está aqui, disse Lundberg.
Wallander pensou que não tinha ouvido bem, mas Eskil Lundberg já tinha se levantado da mesa.
— O cilindro, continuou. — Acho que ainda está lá fora no depósito.
Saíram da casa com o cão farejando diante dos seus pés. O vento começara a soprar. Anna Lundberg estava estendendo roupa numa corda esticada entre duas velhas cerejeiras; as fronhas brancas estalavam ao vento. Atrás do abrigo de barcos havia um telheiro que se equilibrava perigosamente sobre as rochas abruptas, iluminado por uma lâmpada solitária. Wallander entrou num espaço carregado de cheiros. Numa das paredes estava pendurado um antigo arpão para pesca de enguias. Eskil Lundberg se agachou e rebuscou num canto do telheiro entre rolos de corda, vertedouros quebrados, boias velhas e redes rasgadas. O homem remexia na tralha como se contagiado pela ira que o alvoroço dos navios de guerra despertara no seu velho pai. Finalmente se levantou, deu um passo para o lado e apontou para o seu achado. Wallander viu um objeto alongado de aço escuro que parecia um estojo de charuto gigantesco, com uns vinte centímetros de diâmetro. Numa das extremidades do cilindro se via uma tampa parcialmente aberta pela qual assomavam meadas de fios elétricos e dispositivos de comutação.
— Se me der uma ajuda, podemos tirá-lo daqui para fora, observou Lundberg.
Quando o levaram para o ancoradouro, o cão veio logo correndo para cheirar. Wallander se perguntava qual seria a função do cilindro; duvidava que fosse uma peça de motor, seria antes algo relacionado com um radar ou talvez com um mecanismo de lançamento de torpedos ou de minas. Wallander se sentou de cócoras para localizar algum número de série ou o local de fabricação, mas não encontrou inscrição alguma. O cão lhe cheirou o rosto até que Lundberg o afugentou dali.
— O que acha que é? Perguntou Wallander já de pé.
— Não sei. E o meu pai também nunca soube, o que o irritava; nisso somos parecidos, gostamos de ter respostas às nossas perguntas.
Eskil Lundberg ficou em silêncio durante uns segundos antes de continuar.
— Eu não preciso dele, mas para si talvez seja útil.
Wallander demorou um instante para compreender que se referia ao cilindro que tinham aos pés.
— Sim, gostaria de levá-lo, respondeu ao mesmo tempo que pensava que talvez Sten Nordlander pudesse explicar para que servia aquele curioso objeto.
Colocaram-no no barco e Wallander soltou as amarras. Lundberg virou para leste, rumo ao estreito formado entre Bokõ e a ilha chamada Bjõrkskãr. Passaram em frente a uma ilhota em que se avistava uma casa solitária plantada no meio dela.
— Uma velha cabana de caça, explicou Lundberg. — Ali dormiam os homens quando iam caçar aves marinhas. Mas o meu velho costumava usá-la quando queria passar uns dias bebendo sem que o incomodassem. É um bom esconderijo para quem queira desaparecer da face da Terra por um tempo.
Atracaram num molhe. Wallander recuou com o carro até ao barco e os dois levaram o cilindro para o assento traseiro.
— Estava pensando numa coisa, disse Eskil Lundberg. — Disse que os dois tinham desaparecido, mas entendi mal ou também disse que isso não aconteceu ao mesmo tempo?
— Entendeu bem. Hakan von Enke desapareceu em abril e o caso da sua mulher se deu há poucas semanas.
— E não é esquisito que não haja nem um rastro sequer? Onde teria o homem se colocado? Os dois, aliás?
— Todas as hipóteses continuam de pé; podem estar vivos ou mortos, não sabemos.
Eskil Lundberg meneou a cabeça. Wallander pensou que havia certa retração, próprio talvez de pessoas que viviam nas ilhas, completamente desligadas do mundo durante os longos e duros invernos.
— A questão da fotografia ainda está pendente, lembrou Wallander.
— Não sei o que lhe dizer.
Talvez fosse porque a resposta de Lundberg veio tão pronta, Wallander não tinha certeza, mas se perguntou instintiva e imediatamente se seria verdade. Não haveria, apesar de tudo, algo que Lundberg não queria contar?
— Bem, talvez vá se lembrar mais para a frente, disse Wallander. — Nunca se sabe. Um destes dias, a lembrança pode surgir. Wallander viu-o retroceder para sair do molhe, e ambos levantaram a mão para se despedirem, uma vez mais antes da pequena e rápida embarcação partir rumo ao estreito de Halsö.
No caminho de regresso, Wallander optou por outro trajeto, pois não queria voltar a passar pelo pequeno café.
* * *
Ao chegar em casa notou que estava cansado e esfomeado e decidiu ir buscar Jussi mais tarde na casa do vizinho. Ouviu ao longe o murmúrio de trovoada; tinha chovido e a grama exalava um cheiro agradável sob os seus pés. Abriu a porta e entrou em casa. Pendurou o casaco no cabide e descalçou os sapatos.
Parou no hall, susteve a respiração, escutou com atenção. Não havia ninguém, estava tudo como dantes e, mesmo assim, ele sabia que alguém entrara na casa durante a sua ausência. Foi descalço para a cozinha. Não viu nenhum bilhete; se tivesse sido Linda, teria deixado alguma mensagem. Continuou até à sala de estar e caminhou devagar e em círculo. Não havia dúvidas, tivera visitas; alguém entrara e fora embora. Calçou as botas e saiu para o jardim. Prosseguiu a inspeção em volta da casa e voltou à entrada. Após verificar que ninguém o observava, se aproximou da casinha do cão e se agachou.
Apalpou o interior com a mão: continuava ali o que deixara lá antes de partir.
* * *
Dezesseis
AQUELA caixa de latão era uma herança do seu pai. Para dizer a verdade, encontrara-a entre os quadros rejeitados, pincéis e latas de tinta. Quando, depois da morte do pai, Wallander começara a limpeza do ateliê não conseguira conter as lágrimas. Num dos pincéis mais antigos pôde ler que fora feito em 1942, durante a guerra.
Aquela fora a vida do seu pai, disse para si mesmo, um número sempre crescente de pincéis usados que se acumulavam em montes nos cantos da sala. Encontrara a caixa quando, depois de limpar tudo e já perdida a paciência, pedira um contentor para jogar fora os grandes sacos de lixo acumulado. Estava vazia e enferrujada, mas Wallander se lembrava vagamente dela da sua infância; efetivamente, nela haviam estado outrora guardados os brinquedos do seu pai, fabricados em tempos remotos, soldadinhos de chumbo bem feitos e pintados com cores bonitas, um utensílio para fundir e moldes de gesso; inclusive peças de um jogo Meccano.
Não sabia onde teriam ido parar todos esses brinquedos; revistara todos os cantos da casa e da oficina na esperança de encontrá-los e até tinha procurado no velho monte de lixo acumulado atrás da casa, remexendo-o com a pá e a forquilha, sem que os encontrasse. A caixa de latão estava vazia e, para Wallander, constituía uma espécie de símbolo, uma herança que ele mesmo devia dotar de um conteúdo. Limpara-a, raspara as partes mais danificadas pela ferrugem e deixara-a no sótão do apartamento que tinha em Mariagatan, e não pensara mais na sua existência até ao dia em que se mudara para a nova casa. Mas voltou a lhe dar uso quando teve de arrumar um esconderijo adequado para a pasta preta encontrada no quarto de Signe; em certo sentido, aquela pasta lhe pertencia: era o livro de Signe, com páginas que talvez revelassem o motivo do desaparecimento dos seus pais.
Debaixo das tábuas sobre as quais Jussi costumava dormir era, no seu entender, o lugar mais adequado para esconder a caixa e sentiu grande alívio ao comprovar que a pasta continuava ali. Decidiu ir buscar Jussi sem mais delongas. A casa do vizinho ficava do outro lado de uns campos de colza extensos que tinham sido ceifados durante sua ausência, e agora Wallander seguiu pelos seus rebordos e por um trilho de lavra. Conversou um pouco com o vizinho, que estava consertando o trator, e foi buscar Jussi, que, ao vê-lo, começou a saltar e a puxar a corrente que o retinha nos fundos da casa. De novo em casa, Wallander tirou o cilindro do carro e transportou-o com bastante esforço para o interior, estendeu uns jornais sobre a mesa da cozinha, onde o colocou para examiná-lo, com a máxima precaução, pois no íntimo do seu ser ressoava um alarme. E se o objeto alongado que tinha à sua frente continha algo perigoso? Com muito cuidado, conseguiu desembaraçar os finos novelos de cabos e desligar as diferentes tomadas em que convergia a cablagem. Na parte inferior viu que tinham arrancado uma espécie de fecho.
Não se via nenhum número de série ou outro dado que informasse sobre o local de fabricação ou o nome do proprietário. Interrompeu a desmontagem do objeto estranho para preparar o jantar, que consistiu num omelete com cogumelos em conserva e que comeu em frente à televisão enquanto seguia com desinteresse um jogo de futebol, procurando não pensar nem em cilindros nem em desaparecidos. Jussi veio se deitar ao seu lado e Wallander deixou-o comer os últimos restos do omelete. Viu distraído como uma das equipes marcava um gol, ia se saber quem jogava, e saiu para dar uma caminhada com o cão. Como estava um fim de tarde bonito, não pôde evitar a tentação de se sentar numa das cadeiras de madeira pintadas de branco que tinha no lado oeste da casa, donde podia contemplar o sol, que, precisamente nesse momento, começava a descer no horizonte. Acordou de forma abrupta, surpreso ao compreender que tinha adormecido; durante cerca de uma hora estivera noutro mundo. Tinha a boca seca e entrou para controlar o nível de glicose no sangue; viu que estava em 274, ou seja, muito alto, e sentiu uma picada de preocupação. Não se descuidava, comia como devia, dava as caminhadas recomendadas, tomava pontualmente os seus comprimidos e as injeções; não obstante, o nível de glicose era excessivo. Não lhe ocorreu outra explicação senão pensar que se devia à dosagem da medicação, tinha chegado o momento de aumentar a quantidade de insulina que administrava no corpo segundo um horário estabelecido.
Permaneceu uns minutos sentado no canto da mesa da cozinha, onde tinha se picado no dedo para controlar a glicose. O desânimo, a resignação e a maldição da velhice se apoderaram dele novamente sobretudo por causa da sua preocupação com as falhas de memória e do sentido do tempo e do lugar. Estou aqui, disse para si mesmo desmontando um cilindro de aço, quando na realidade deveria estar na casa da minha filha convivendo com ela e com a minha neta.
Fiel ao seu hábito em momentos como aquele, quando se batia contra a falta de esperança, se serviu de um bom copo de aguardente e bebeu-o de um trago; um bom trago e foi tudo, nem mais um pingo. A seguir voltou a inspecionar o cilindro uma vez mais, antes de decidir que já era suficiente. Tomou um banho relaxante e antes da meia-noite já estava dormindo.
* * *
Logo muito cedo na manhã seguinte telefonou a Sten Nordlander, que estava no barco, mas voltaria a terra dentro de uma hora e que lhe prometeu telefonar então.
— Aconteceu alguma coisa? Gritou Nordlander para se sobrepor às interferências.
— Sim! Vociferou Wallander por sua vez. — Não encontramos os desaparecidos, mas descobri uma coisa!
Martinsson ligou às sete e meia para relembrar da reunião que estava agendada para aquela mesma manhã; um dos bandos de motoqueiros suecos estava em vias de adquirir uma propriedade nos arredores de Ystad, e Lennart Mattson tinha convocado a reunião. Wallander confirmou que estaria lá às dez em ponto.
Wallander não pensava em revelar a Nordlander o lugar exato onde encontrara o cilindro, porque depois de detectar a visita indesejada ao voltar para casa decidira não confiar em ninguém, pelo menos não sem certa reserva. Claro que a pessoa que entrara em sua casa podia tê-lo feito movida por outra razão, não necessariamente relacionada com Hakan e Louise von Enke, mas, nesse caso, de que razão se tratava? Wallander inspecionou a casa assim que se levantou; uma das janelas que davam para leste, a do quarto em que tinha colocado uma cama para visitas que nunca apareciam, estava entreaberta, mas Wallander tinha certeza de que não a tinha deixado aberta. Por outro lado, um ladrão bem podia ter entrado e saído por ela sem deixar muitos rastros, mas porque não levara nada? De fato, agora estava convencido de que não faltava absolutamente nada e só lhe ocorriam duas alternativas: ou o ladrão não encontrara o que procurava ou entrara para deixar algo. Daí Wallander ter prestado atenção não só ao que podia faltar mas também à presença de algum objeto que não estivesse ali antes. Foi se agachando para olhar debaixo das cadeiras, das camas e do sofá, virou os quadros e olhou entre os livros. Decorrida cerca de uma hora, precisamente antes de Sten Nordlander telefonar, deu por terminada a busca sem qualquer resultado.
Ainda pensou na possibilidade de falar com Nyberg, o perito forense da polícia de Ystad, e de lhe pedir que tentasse detectar possíveis microfones, mas desistiu da ideia, pois isso implicaria muitas perguntas e muitos rumores. Sten Nordlander telefonou tal como prometera; estava sentado numa esplanada de Sandhamn tomando café.
— Vou para o Norte, explicou. — Umas férias que me levarão a Hárnósand e depois à costa finlandesa, antes de retornar via Aland. Duas semanas só na companhia do vento e do mar.
— Ou seja, um marinheiro nunca se cansa do mar?
— Nunca. Conte-me então o que encontrou.
Wallander descreveu o cilindro de aço até ao mais ínfimo detalhe. Com a ajuda do velho metro articulado do seu pai, salpicado de manchas de tinta, foi anotando o comprimento exato e para o diâmetro se serviu de um barbante.
— Onde o encontrou? Perguntou Sten Nordlander quando Wallander tinha terminado.
— No porão de Hakan e Louise, mentiu. — Sabe o que pode ser?
— Não, não tenho nenhuma ideia, mas vou pensar. No porão deles, disse?
— Sim. Nunca viu nada parecido?
— Os cilindros possuem qualidades aerodinâmicas e náuticas que lhes dão utilidade em variadíssimos campos, mas um objeto desses que acaba de descrever não me lembro de alguma vez ter visto. Descarnou algum dos cabos?
— Não.
— Então faça-o, pode dar mais informações.
Wallander foi buscar uma faca e abriu com cuidado um dos revestimentos pretos, que deixou a descoberto uns cabos mais finos, semelhantes a fios.
— Nesse caso, não se trata de cabos elétricos, assegurou Sten Nordlander. — Trata-se antes de alguma instalação de comunicação mas continuo a não poder dizer o que é exatamente. Deixe-me pensar nisso.
— Está bem. Agradeço que me avise quando souber mais alguma coisa, respondeu Wallander.
— E estranho que não conste o local de fabricação, pois isso e também o número de série costumam ser gravados no próprio aço. E pergunto-me como foi parar a casa de Hakan. Como o terá conseguido?
Wallander olhou o relógio e viu que devia ir para a delegacia se não queria chegar tarde. Sten Nordlander concluiu a conversa, descrevendo com displicência o imenso iate que nesse momento se aproximava do cais.
* * *
A reunião sobre o bando de motoqueiros durou quase duas horas, durante as quais Wallander praguejou em silêncio contra a incapacidade de Mattson de agilizar a reunião e chegar a alguma conclusão construtiva. No fim, se impacientou tanto que interrompeu Mattson para dizer que deveria ser possível impedir a compra do imóvel pressionando diretamente o proprietário e que, a partir daí, poderiam continuar a desenvolver estratégias para dificultar e impedir a atividade dos motoqueiros. No entanto, Mattson se fez de desentendido e continuou a insistir, mas Wallander guardava outro trunfo na manga de cuja existência nenhum dos seus colegas sabia; Linda lhe dera a notícia, que, por sua vez, soubera por um colega de Estocolmo. Wallander pediu a palavra e expôs a nova informação.
— Há uma situação que vem complicar o assunto, anunciou. — Nomeadamente, um médico de duvidosa reputação, entre cujas contribuições mais extraordinárias se contam as baixas médicas que conseguiu fornecer a nada menos do que catorze membros de um desses bandos. De modo que todos eles recebem subsídio por doença, pois sofrem de depressão grave. Ouviram-se risos abafados na sala. — Esse médico acaba de se aposentar e, infelizmente, se mudou para cá, prosseguiu. — Comprou uma bonita casa no centro da cidade. Não é preciso dizer que existe o risco de que continue a passar baixas médicas aos coitadinhos dos motoqueiros por se encontrarem tão abatidos que não podem trabalhar. A Direção-Geral da Segurança Social está o investigando, mas já sabemos até que ponto nos podemos fiar.
Wallander se levantou e escreveu o nome do médico no quadro.
— Todos devemos estar de olhos postos neste homem, recomendou e saiu da sala.
Pela parte que lhe tocava, a reunião tinha terminado.
Durante o restante daquela manhã sem grandes acontecimentos, continuou pensando no cilindro. Pegou o carro e se dirigiu à biblioteca, onde pediu ajuda para encontrar tudo o que havia sobre submarinos e navios de guerra em geral, assim como livros de consulta sobre a ciência da guerra moderna. A bibliotecária, que fora colega de turma de Linda, selecionou um monte impressionante. Wallander já estava de saída quando se lembrou de pedir também as memórias do espião Wennerstrõm. A seguir levou os livros para o carro e se dirigiu para Saltsjòbaden, onde almoçou num restaurante junto ao mar; acabavam de servir a comida quando Kristina Magnusson apareceu e perguntou se podiam compartilhar a mesa. A colega confirmou a sua sensação de que a reunião tinha sido maçante e pouco frutífera.
— Estava quase tendo um ataque, admitiu Kristina.
— Bem, uma pessoa vai se habituando, consolou Wallander.
— Como soube que estava aqui?
— Não sabia, só que de repente senti que precisava sair dali e apanhar ar.
Depois do almoço deram uma caminhada pela ciclovia da praia. Wallander não falou muito, quem falava era Kristina. Soube que a colega estava bastante insatisfeita com muitas situações da delegacia e em particular com algumas questões de organização. Passado um pouco, Wallander parou, olhou-a e perguntou:
— Está pensando em pedir transferência?
— Não, mas há tantas coisas que deviam mudar. Pergunto-me como seriam as coisas se você fosse o chefe.
— Isso seria uma catástrofe, assegurou Wallander. — Não tenho jeito nenhum para me relacionar com os burocratas dos órgãos centrais, com as suas regras e diretrizes, nem para elaborar orçamentos que nunca são suficientes.
Com isso, se encerrou o assunto. Pelo caminho de regresso trocaram umas frases sobre a ponte iminente do solstício de verão; Kristina disse que a previsão do tempo anunciava chuva e vento forte. Não é propriamente o tempo que eu queria oferecer à Klara, disse Wallander para si.
Já na sua sala leu umas transcrições de interrogatórios e vários pareceres técnicos, falou com um patologista de Lund sobre um caso já antigo e dedicou o resto da tarde folheando os livros que trouxera da biblioteca. As quatro horas recebeu um telefonema de um jornalista de Estocolmo: esquecera por completo da sua promessa de responder a um inquérito para o próximo número da revista Svensk Polis que se dedicaria aos cursos de formação de novos policiais. Na realidade, não tinha nenhuma opinião em especial, mas respondeu que não havia dificuldades em Ystad, visto que já há muito que seguiam um sistema com mentores individuais, graças ao qual os recém-chegados contavam sempre com uma pessoa a quem podiam recorrer. No entanto, não informou que naquele mesmo ano ele se recusara a ser mentor, uma vez que o tinha sido durante quase quinze anos e achava que já era hora de ser outro a assumir essa responsabilidade.
As cinco da tarde, Wallander foi para casa e fez as compras pelo caminho. Antes de sair de manhã colara discretamente pequenas tiras de fita-adesiva nas portas e nas janelas e, ao retornar, verificou que todas estavam intactas. Jantou um gratinado de peixe, se dedicou a ler os livros amontoados na mesa da cozinha e leu até não poder mais. Quando se deitou à meia-noite começava a cair uma chuva intensa que ressoava contra o telhado. Adormeceu imediatamente; o tamborilar das gotas sempre lhe induzira o sono, desde criança.
* * *
No dia seguinte, chegou à delegacia completamente encharcado. Ao ver o nível altíssimo de açúcar no sangue decidira deixar o carro na estação de trem e ir a pé para o trabalho; tinha de fazer mais exercício e com mais frequência. No meio do caminho foi surpreendido por uma carga de água torrencial. Uma vez na sua sala, pendurou as calças molhadas para secar e tirou uma outra que tinha no armário; ao vesti-las notou que ganhara peso, se irritou e fechou a porta do armário com um estrondo. Nesse momento entrou Nyberg, que olhou para ele sem compreender a sua reação violenta.
— Está chateado?
— Calças molhadas. Nyberg assentiu e respondeu com a sua mistura singular de boa disposição e desânimo. — Entendo-o perfeitamente. Todos podemos suportar ficar com os pés molhados, mas com as calças é outra história. É como se urinássemos nelas, se produz uma sensação de calor, agradável mas todavia passageira.
Wallander se sentou à mesa e ligou para Ytterberg, que tinha saído sem informar quando estaria de volta. Wallander já tentara localizá-lo no celular, mas sem êxito. A caminho da máquina de café se encontrou com Martinsson, que se dirigia para a rua para pegar um pouco de ar. Os dois colegas saíram juntos e se sentaram à frente da delegacia. Martinsson lhe falou do caso do pirômano assassino que ainda não tinham prendido.
— Acha que vamos apanhá-lo desta vez? Perguntou Wallander.
— Acabaremos por prendê-lo, observou Martinsson.
— A questão é se vamos poder mantê-lo preso, mas agora temos uma testemunha que me inspira confiança e desta vez acredito que conseguiremos pô-lo atrás das grades.
Voltaram para dentro e se encaminharam cada um para a sua sala. Wallander ficou mais umas horas antes de ir embora para casa, ainda sem ter localizado Ytterberg.
Em todo o caso, anotara os pontos mais importantes num papel e tinha a intenção de continuar a procurá-lo ao longo da tarde, pois Ytterberg era o responsável pela investigação dos desaparecidos. Entregaria o material de que dispunha, a pasta preta e o cilindro de aço, para que Ytterberg tirasse ele mesmo as conclusões oportunas e possíveis. Na realidade, Wallander não tinha nada a ver com aquele caso, não era o investigador responsável, era apenas o pai de Linda, e entrara no assunto só porque não gostava que os futuros sogros da filha tivessem desaparecido sem deixar rastro. Fosse como fosse, agora se concentraria em celebrar o solstício e tirar umas férias.
Contudo, nada aconteceu como tinha planejado. Ao chegar em casa, viu um carro que não reconheceu, um Ford em mau estado com as portas dianteiras cheias de ferrugem. Wallander nunca o tinha visto e antes de entrar no jardim refletiu sobre quem seria o proprietário. Uma das cadeiras brancas do jardim, a mesma em que ele adormecera na noite anterior, estava agora ocupada por uma mulher.
Na mesa em frente dela estava uma garrafa de vinho aberta, mas Wallander não viu nenhum copo. Cheio de um mau pressentimento, se aproximou da mulher para cumprimentá-la.
* * *
Dezessete
QUEM ESTAVA sentada na cadeira era Mona, a sua ex-mulher. Tinham passado anos desde a última vez que tinham se visto, muito de passagem, quando Linda concluíra os estudos na Escola de Polícia. Depois disso, tinham se falado por telefone brevemente algumas vezes, mas pouco mais.
Mais tarde, naquela mesma noite, quando Mona já dormia no quarto dele, enquanto ele estreava a cama do quarto de hóspedes, sentiu um grande incômodo. Tinha muita dificuldade em compreender o estado de espírito volúvel de Mona, que se alterara diversas vezes, passando de acessos de ira a explosões emocionais. Estava bêbada quando ele chegou. Cambaleou ao se levantar para lhe dar um abraço e teria caído de costas não fosse ele agarrá-la no último instante. Wallander notou que parecia tensa e nervosa pelo encontro e que estava mais maquiada que o conveniente. A jovem que Wallander conhecera e por quem se apaixonara há quarenta anos quase não usava maquiagem, não necessitava de nenhum retoque.
Viera procurá-lo aquela noite porque se sentia ferida, alguém a magoara tanto que ele era a única pessoa a quem podia recorrer. Wallander se sentou ao seu lado no jardim, com as andorinhas esvoaçando à sua volta, e experimentou a estranha sensação do retorno a um tempo há muito desaparecido; de algum canto em breve apareceria Linda com cinco anos saltando e reclamando a atenção dos pais. Porém, mal pronunciara umas frases desajeitadas de boas-vindas quando Mona desatou num choro intenso.
Aquilo deixou-o um tanto embaraçado, tal como acontecera nos últimos e penosos anos da sua vida em comum. Nessa época, fora impossível levar a sério as explosões emocionais da mulher. Mona fora se transformando numa espécie de atriz que desempenhava um papel que lhe era inadequado. Não tinha jeito para a tragédia, nem talvez também para a comédia, encarnando antes uma normalidade que resistia mal às grandes alterações emocionais. Em qualquer dos casos, estava ali agora em prantos e Wallander não se lembrou de outra coisa a não ser ir buscar um rolo de papel higiênico para que limpasse as lágrimas. Ao fim de algum tempo Mona deixou de chorar e pediu desculpas, mas não lhe foi fácil falar sem arrastar as palavras. Wallander desejou a presença de Linda, pois ela sabia melhor que ninguém como lidar com Mona.
Mas também o invadia outra sensação difícil de admitir, mas que não o abandonava: o desejo de levá-la pela mão para o quarto de dormir. A sua presença excitava-o e pouco faltou para que tentasse ver se funcionava. Mas não fez nada disso, logicamente. Em passos instáveis Mona se dirigiu para o recinto cercado de Jussi, que dava pulos de expectativa, com Wallander atrás, mais como um guarda-costas do que um acompanhante, preparado para segurá-la se ela caísse. Pouco demorou até ela perder o interesse no cão e quando disse que sentia frio foram para dentro de casa. Andou de aposento em aposento, insistiu muito para que Wallander lhe "mostrasse tudo", como se estivesse numa galeria de arte. Parecia-lhe magnífica, não tinha palavras para dizer o quão bonita era a casa, embora devesse se desfazer daquele sofá horrível que tinham comprado para o apartamento quando se casaram. De repente, Mona viu a fotografia do casamento exposta numa cômoda e começou a chorar novamente, desta vez de forma tão forçada que Wallander teve vontade de colocá-la na rua. Claro que não o fez, mas preparou café, escondeu uma garrafa de uísque antes que ela a visse e finalmente conseguiu que se sentasse à mesa da cozinha.
Um dia amei-a como nunca amei outra mulher na minha vida, pensou Wallander uma vez servidos os cafés. Mesmo se conhecesse outro grande amor, Mona continuaria a ser a mulher mais importante da minha vida. É um fato contra o qual não há nada a fazer. Talvez um novo amor venha substituir outro, mas um amor antigo perdura sempre. Vivemos a vida com um fundo duplo, provavelmente para não afundarmos se um deles se abrir debaixo dos nossos pés.
Mona bebeu o café e inesperadamente começou a recuperar a sobriedade. Wallander se lembrou de que muitas vezes se fazia mais de bêbada do que realmente estava.
— Desculpe por me comportar desta maneira e por ter vindo sem avisar. Quer que eu vá embora?
— De todo, mas gostaria de saber por que motivo veio até aqui.
— Porquê essa atitude negativa? Dificilmente me pode acusar de vir incomodá-lo muitas vezes.
Wallander recuou imediatamente perante o seu tom ameaçador. O último ano vivido com Mona se passara no meio de uma luta constante em que se esforçava para não ser arrastado para o seu mundo de acusações e ameaças. Evidentemente que ela achava que ele se comportava exatamente da mesma forma, e Wallander sabia que não lhe faltava razão. Ambos eram autores e vítimas de um nó górdio que só podia se desatar com um golpe certeiro, ou seja, o divórcio, seguindo cada um a sua vida.
— Conte-me, pediu com alguma cautela. — Porque está tão em baixo?
Ela começou uma verdadeira lamúria fúnebre, uma balada com um número de versos aparentemente infinito, a versão de Mona do Livro das Lamentações ou de Elvira Madigan, pensou Wallander. No ano anterior, Mona conhecera um homem que, ao invés do anterior, não se dedicava a jogar golfe e a viver dos rendimentos que, na firme convicção de Wallander, provinham de saques de empresas fictícias. Pelo contrário, este era algo tão prosaico como dono de um supermercado ICA, em Malmõ. Tinha a mesma idade de Mona e também fora casado. No entanto, Mona não demorou a verificar com horror que também um simples e honrado comerciante de produtos alimentares era capaz de mostrar traços psicopáticos. O homem começou a controlá-la, a fazer ameaças veladas, até que finalmente chegou aos maus-tratos físicos. Por ingenuidade estúpida, ela pensou que aquilo passaria, que os seus ciúmes terminariam, mas não foi assim, e agora tinha rompido com ele. E só podia recorrer a Wallander porque estava convencida de que o dono do supermercado começaria a persegui-la. Simplesmente tinha medo e essa era a razão pela qual viera a sua casa.
Wallander se perguntou quanto havia de verdade no que acabava de lhe contar, pois Mona nem sempre era de confiar, às vezes mentia, mesmo sem más intenções, mas naquele caso Wallander pensou que devia acreditar nela e, obviamente, se indignou ao ouvir que a tinham maltratado.
Quando Mona terminou de falar se sentiu enjoada e se apressou em direção ao banheiro. Wallander se pôs junto à porta fechada, donde a ouviu vomitar; não se tratava, pois, de nenhum ato teatral com ele como único espectador. Depois, Mona foi se deitar no sofá que, segundo ela, Wallander deveria ter despachado há muito, esteve chorando mais um pouco e adormeceu embrulhada num cobertor. Wallander se sentou na poltrona e continuou com a leitura do material da biblioteca, mas, como era de esperar, não conseguiu se concentrar. Mona acordou sobressaltada ao fim de duas horas e, quando tomou consciência de que se encontrava em casa de Wallander, esteve prestes a irromper em lágrimas de novo, mas desta vez Wallander disse que já bastava de choro. Também lhe propôs que jantasse um pouco se quisesse e que passasse a noite em sua casa. No dia seguinte poderia falar com Linda, que seria muito melhor conselheira que ele. Mona não tinha fome, de modo que Wallander apenas preparou uma sopa e uma quantidade excessiva de fatias de pão com que encheu a barriga. Sentados à mesa da cozinha, um em frente ao outro, Mona começou a falar do bom relacionamento que em tempos houvera entre os dois. Wallander se perguntou se não seria esse o verdadeiro motivo da sua visita e se Mona não estaria lhe arrastando a asa na esperança de reatar a relação. Se tivesse vindo com esse propósito há uns anos teria conseguido, disse para si mesmo Wallander. Acreditou durante anos e anos que um dia poderiam voltar a viverem juntos. Até que compreendeu que era uma ilusão, tinham deixado tudo para trás, e na verdade ele nem desejaria nem poderia voltar ao passado.
Depois do jantar, Mona pediu algo para beber, mas ele disse que se recusava a lhe servir uma gota de álcool enquanto se encontrasse em sua casa e, se não o aceitasse, podia chamar um táxi e se alojar num hotel da cidade. Ela deu sinal de protesto, mas desistiu quando compreendeu que Wallander não tinha qualquer intenção de ceder.
Quando Mona foi se deitar por volta da meia-noite fez uma discreta tentativa de levá-lo para a cama com ela, mas Wallander soube evitar; lhe fez uma festa fugaz na cabeça e saiu do quarto. Em várias ocasiões foi até à porta entreaberta espiar despercebidamente. Mona ficou acordada um bom tempo, mas por fim adormeceu.
Wallander saiu para o jardim, soltou Jussi e se sentou na cama de rede que outrora estivera no jardim da casa do seu pai. Estava uma clara noite estival, sem vento e repleta de aromas da vegetação. Jussi veio se deitar aos seus pés e Wallander se sentiu subitamente invadido por uma sensação de mal-estar; não era possível voltar atrás por mais que, na sua grande ingenuidade, ele assim o desejasse. Nem sequer um passo.
Quando finalmente foi se deitar tomou meio comprimido para dormir para que não ficasse dando voltas na cama. Simplesmente, não queria pensar mais, nem na mulher que agora dormia na sua cama nem nas ideias que o tinham atormentado enquanto estivera sentado lá fora no jardim.
* * *
Quando se levantou de manhã viu com espanto que Mona fora embora. Ele, que acordava ao mínimo barulho, não a ouvira sair da casa. Na mesa da cozinha encontrou um bilhete em que ela escrevera: "Desculpe por estar aqui quando chegou." Apenas isso, nem uma palavra do que esperava dele. Perguntou-se quantas vezes durante o seu casamento ela lhe deixara esse tipo de bilhete de desculpas. Uma imensidade, que nem queria nem podia recordar.
Bebeu um café, deu de comer a Jussi e considerou telefonar para Linda para lhe contar da visita de Mona. Mas, uma vez que, antes de tudo, precisava falar com Ytterberg, decidiu que o faria logo. Estava uma manhã fria, soprava vento de norte e o tempo estival parecia ter desaparecido momentaneamente. As ovelhas do vizinho pastavam no seu campo vedado, alguns cisnes voavam rumo a leste. Wallander telefonou para o escritório de Ytterberg e desta vez teve sorte.
— Disseram-me que tinha telefonado. Já encontrou o casal Von Enke?
— Não, só queria saber como vão as coisas por aí.
— Nada de novo que valha a pena reportar.
— Nada?
— Não. E você, tem algo a contar? Wallander decidira contar a Ytterberg a sua viagem a Bokö e lhe falar do estranho cilindro que encontrara, mas agora mudara de repente de ideia sem saber por quê: deveria pelo menos poder confiar em Ytterberg.
— Não, na realidade não.
Depois daquela conversa, breve e inútil, Wallander foi para a delegacia. A prioridade do seu dia de trabalho era rever um deprimente caso de agressão em que fora chamado a testemunhar. Todos tinham se acusado uns aos outros, e a vítima da agressão, que esteve em coma durante quinze dias, não tinha a menor lembrança do incidente. Wallander foi um dos primeiros a chegar ao local do fato, então devia dar conta das suas observações no julgamento. Mas agora tinha de fazer um esforço indescritível para conseguir trazer os seus reparos à memória, mesmo o relatório que ele mesmo escrevera lhe parecia irreal.
De repente, Linda entrou na sua sala. Já era meio-dia.
— Parece que teve uma visita inesperada, comentou. Wallander afastou as pastas que deixara abertas sobre a mesa e observou a filha. Deu-lhe a impressão de que tinha o rosto menos inchado e pensou que talvez tivesse perdido alguns quilos.
— Então, Mona também foi bater à sua porta?
— Telefonou-me de Malmó. E se queixou de a ter recebido muito mal. Wallander ficou perplexo.
— O que queria dizer com isso?
— Disse que a deixou entrar muito contrariado, apesar dela se encontrar mal. Depois quase não lhe ofereceu nada para comer e fechou-a no quarto.
— Nada disso é verdade. Essa velhaca está mentindo.
— Não fale assim da minha mãe, advertiu Linda, indignada.
— Estou dizendo que mente, quer goste ou não. Recebi-a, deixei-a entrar, limpei as lágrimas dela e até fiz a cama com lençóis novos.
— Mas não mentiu sobre o seu novo companheiro. Já estive com ele e era tão charmoso como os psicopatas costumam ser. A minha mãe tem o estranho hábito de ficar caidinha pelo homem errado.
— Obrigado.
— Já sabe que não me refiro a você. Mas aquele jogador de golfe não era muito melhor do que esse com quem anda agora.
— A questão é o que eu posso fazer.
Linda refletiu um instante antes de responder. Esfregava o nariz com o indicador da mão esquerda. Tal como fazia o seu avô, pensou Wallander, surpreso, pois nunca antes reparara nisso, e começou a rir. Ela olhou-o admirada, lhe ele contou e então foi a vez dela rir.
— Estou com a Klara no carro, explicou. — Só queria trocar umas palavras consigo sobre a mãe. Logo falamos mais.
— Deixou a menina sozinha no carro? Perguntou Wallander, incomodado. — Como pode fazer uma coisa dessas?
— Está com uma amiga. O que pensou? Parou à porta da sala e se virou para ele. — Acho que a mãe precisa da nossa ajuda, observou.
— Eu estou sempre disponível, respondeu Wallander. — Mas preferia que estivesse sóbria quando viesse pedir ajuda. E que me avisasse antes.
— E você, está sempre sóbrio? E telefona sempre antes de visitar alguém? Nunca se sentiu em baixo?
Linda não esperou pela resposta, virou as costas e saiu para o corredor. Wallander acabava de pegar outra vez no relatório quando recebeu a ligação de Ytterberg.
— Saio de férias dentro de dois dias, disse Ytterberg. — Esqueci de lhe dizer antes.
— O que vai fazer no seu tempo livre?
— Vou passá-lo numa antiga cabana de um guarda-linha situada numa localidade bonita junto a um lago, perto de Vásterâs. Mas me deixe contar o que penso sobre o assunto do casal Von Enke; fui muito conciso quando falamos há pouco.
— Estou ouvindo.
— Bem, digamos que tenho duas teorias sobre o seu desaparecimento, com as quais os meus colegas, aliás, estão de acordo. Quero comprovar se é da mesma opinião. Por um lado, talvez tenham planejado o seu desaparecimento juntos, mas por algum motivo decidiram não irem embora ao mesmo tempo, para o qual pode haver várias explicações. Por exemplo, se pretendiam mudar de identidade talvez ele tenha ido em primeiro lugar para algum destino desconhecido, a fim de preparar a chegada dela. Para recebê-la num caminho de rosas e folhas de palmeira, como diz a Bíblia. Mas claro que pode haver outras razões. Essa é uma das linhas que seguimos. Além dessa hipótese, só existe outra possibilidade razoável, naturalmente: que tenham sido vítimas de algum tipo de agressão. Ou seja, que estão mortos. Mas é difícil encontrar uma explicação sobre porque teriam sofrido um ato violento e ainda por cima em momentos diferentes. Seja como for, além dessas duas possibilidades não vemos nenhuma outra, tudo é um buraco negro.
— Sim, acho que também teria raciocinado da mesma forma.
— Consultei os melhores peritos do país sobre as circunstâncias imagináveis que podem rodear os desaparecimentos de pessoas. A nossa missão é simples, no sentido que só temos um objetivo.
— Encontrá-los.
— Ou pelo menos descobrir porque não os encontramos.
— Não surgiu qualquer tipo de dado novo?
— Nada. Embora, claro, haja uma pessoa com quem devemos contar.
— Está pensando no filho?
— Sim, é necessário. Suponhamos que fingiram o seu desaparecimento; cabe perguntar porque o expõem a algo tão tenebroso. É desumano, para dizer o mínimo. Entretanto, a nossa impressão do casal contradiz esse tipo de crueldade; você certamente concorda, uma vez que os conheceu pessoalmente. O que conseguimos averiguar sobre Hakan von Enke aponta para que foi um comandante militar apreciado, um oficial sem mania de grandeza, sensato, justo, de temperamento estável. A única coisa negativa que ouvimos dele é que muito ocasionalmente podia mostrar impaciência, mas quem não faz isso? Quanto à Louise, sempre foi muito estimada como professora. Um pouco introvertida, segundo muitos dos interrogados, mas não falar constantemente não é motivo de suspeita, evidentemente, e também tem de haver quem ouça de vez em quando. Em qualquer caso, não parece verosímil que tenham levado uma vida dupla. Até falamos com especialistas da Europol, e eu mesmo falei em pessoa com uma agente da polícia francesa, a mademoiselle Germain, de Paris, que me facilitou informações interessantes. Ela esteve de acordo com a minha opinião de que há que ter em conta outras hipóteses totalmente distintas.
Wallander compreendeu imediatamente a que aludia.
— Está se referindo ao papel que Hans eventualmente terá desempenhado nisto tudo, não está?
— Exatamente. Se houvesse uma grande fortuna no meio poderíamos ter encontrado aí uma ideia sobre a qual trabalhar. Mas, claro, não é o caso, uma vez que as posses não ultrapassam um milhão de coroas, sem contar com a casa, que deve valer uns sete ou oito milhões. Por outro lado, pode se dizer que isso é muito dinheiro para um mortal comum, mas hoje em dia uma pessoa sem dívidas e com um patrimônio assim se considera em boa situação financeira mas não propriamente rica.
— Já falou com Hans?
— Esteve em Estocolmo há coisa de uma semana num encontro com as autoridades tributárias e ele mesmo se pôs em contato comigo. Não posso negar que a sua preocupação parece autêntica e que não compreende de todo o que aconteceu. Além disso, ele ganha muitíssimo bem no seu trabalho.
— E é nesse ponto que estamos?
— Sim, não é uma posição muito sólida, infelizmente. Teremos de continuar a trabalhar o terreno apesar da sua dureza.
Ytterberg pousou o auscultador de forma inopinada. Wallander ouvia-o praguejar e logo depois voltou ao telefone.
— Bom, saio de férias agora, mas há sempre alguém de serviço no caso, assegurou Ytterberg.
— Prometo telefonar só se for mesmo importante, finalizou Wallander e desligou.
Depois daquele telefonema, Wallander saiu e se sentou no banco da entrada pensando no que lhe dissera Ytterberg.
Permaneceu ali muito tempo. A visita de Mona deixara-o cansado. Não queria que se repetisse a situação, que Mona transtornasse a sua vida, lhe impondo novas condições. Precisava falar com ela e deixar isso bem claro se voltasse a aparecer na porta de sua casa e também tinha de convencer Linda a se pôr do seu lado. Ele podia ajudar Mona, não se tratava disso, mas o passado já passara, morrera.
Wallander desceu a ladeira que dirigia ao quiosque de cachorro-quente situado em frente ao hospital. Uma gralha se precipitou a voar e se apoderou de uma porção de purê de batata que caíra do prato de plástico para o chão.
De repente, Wallander teve a sensação de que tinha se esquecido de algo. Verificou se não levava a sua arma de serviço. Ou seria alguma outra coisa? Também não tinha certeza se tinha ido ao quiosque de carro ou a pé desde a delegacia.
Jogou o prato de purê meio comido num caixote de lixo e olhou à sua volta. Não via o carro. Muito devagar, começou a subir em direção à delegacia. No meio caminho recuperou a memória; sentiu um suor frio e teve palpitações. Já não podia continuar adiando a visita ao médico, pois era a terceira vez que aquilo lhe acontecia num espaço de tempo relativamente curto e queria saber o que estava se alterando na sua cabeça.
Assim que chegou à delegacia telefonou para a mesma médica da vez anterior. Marcou uma consulta para alguns dias depois do solstício. Quando desligou foi comprovar que a arma de serviço se encontrava onde devia, fechada à chave.
Dedicou o resto do dia a preparar a sua intervenção para o tribunal. Eram seis horas da tarde quando fechou a última pasta e a deixou cair na cadeira das visitas.
Já de pé, prestes a ir embora com o casaco na mão, lhe ocorreu uma ideia, embora não soubesse donde surgira. Porque Von Enke não levara a pasta secreta com ele da última vez que visitou Signe? Wallander via apenas duas explicações possíveis: ou tinha intenção de voltar ou acontecera algo que impossibilitara o seu regresso. Sentou-se novamente à mesa e procurou o número de telefone de Niklasgârden. Atendeu a mulher da voz melodiosa e sotaque estrangeiro.
— Só queria saber se tudo está bem com Signe, explicou.
— Ela vive num mundo em que pouco ou nada muda, a não ser o envelhecimento, esse movimento invisível que todos sofremos.
— Calculo que o pai não veio visitá-la, não é?
— Mas ele não estava desaparecido? Encontraram-no?
— Não, estava só perguntando.
— Quem veio vê-la ontem foi o tio. Eu estava de folga, mas vi no diário das visitas.
Wallander susteve a respiração.
— O tio?
— Sim, se apresento- como Gustaf von Enke. Chegou durante a tarde e ficou uma hora com ela, mais ou menos.
— Tem certeza absoluta do que está me dizendo?
— Sim, porque iria inventar uma coisa dessas?
— Claro que não. Se o tio da Signe voltar a visitá-la, pode me avisar?
Subitamente, a voz da mulher soava preocupada.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, não. Obrigado por tudo.
Wallander pousou o telefone e ficou sentado, pensando. Não se enganava, estava convencido disso. Verificara todos os parentes da família Von Enke com tanta minuciosidade que sabia sem sombra de dúvida que não existia tio algum.
Fosse quem fosse o homem que visitara Signe, se apresentara ali sob nome e parentesco falsos. Wallander foi embora para casa.
A inquietação que sentira antes invadiu-o com toda a intensidade.
* * *
Dezoito
NO DIA SEGUINTE, Wallander acordou com febre e dores de garganta. Até ao último momento tentou acreditar que era imaginação sua. Mas no final pôs o termômetro e viu que estava com quase quarenta graus de febre. Ligou para a delegacia e avisou que não iria trabalhar. Passou a maior parte do dia entre a cama e a cozinha, ocupado com os livros da biblioteca que ainda não lera.
Na noite anterior sonhara com Signe. Fora visitá-la em Niklasgârden. De repente, descobriu que era outra pessoa que jazia encolhida na cama. O quarto estava às escuras, tentou acender a luz, mas o interruptor estava quebrado. Então tirou o celular do bolso e usou-o como lanterna. A luz fraca do celular viu que era Louise quem estava na cama, uma cópia exata da sua filha. Sobreveio-lhe um medo incontrolável, mas quando quis sair do quarto a porta se encontrava fechada à chave.
Nesse momento acordou. Eram quatro horas da manhã e já era de dia. Notou a dor de garganta incipiente, se sentia quente e se apressou a voltar a dormir. De manhã tentou interpretar o sonho, mas não chegou a nenhuma conclusão, só que alguns aspetos no desaparecimento de Hakan e de Louise pareciam se encobrir mutuamente.
Wallander se levantou, pôs um cachecol em volta do pescoço, ligou o computador e começou a procurar o nome de Gustaf von Enke na Internet. Não apareceu ninguém com esse nome. Esperou até às oito da manhã e telefonou para Ytterberg, que trabalhava o seu último dia antes das férias. Estava prestes a empreender uma tarefa extremamente desagradável, pois devia interrogar um homem que tentara estrangular a mulher e os dois filhos só porque, ao que parecia, conhecera outra mulher com quem queria viver.
— Dá para crer que também quis matar os filhos? Faz lembrar uma tragédia grega, disse Ytterberg, entristecido.
Wallander não sabia muito sobre as obras de teatro escritas há mais de dois mil anos. No entanto, uma vez Linda levara-o a Malmõ para verem Medeia, e aquele drama impressionara-o, mas não ao ponto de começar a ir ao teatro com mais frequência. E a última vez que fora não lhe despertou grande interesse. Contou a conversa que tivera no dia anterior com a empregada de Niklasgârden.
— Não pode haver um engano?
— Não, assegurou Wallander. — Não existe nenhum tio. Signe tem um primo que vive na Inglaterra, mas nada mais.
— É realmente muito estranho.
— Sei que sai de férias agora, mas talvez possa pedir a algum colega que vá a Niklasgârden e tente obter uma descrição?
— Sim, tenho uma colega muito competente, a Rebecka Andersson, informou Ytterberg. — É sensacional nesse tipo de missões apesar da sua juventude. Falarei com ela.
Conferiram os números de telefone, e Wallander se preparava para se despedir quando Ytterberg o reteve.
— Também lhe acontece o mesmo? Perguntou de improviso. — Não sente às vezes uma vontade desesperada de se ver livre de toda esta porcaria que nos chega até aos cabelos?
— Acontece.
— E o que nos faz aguentar?
— Não sei. Uma espécie de sentido de responsabilidade, suponho. Tive um mentor já há muito tempo, um velho inspetor chamado Rydberg. Ele costumava dizer isso, que era uma questão de responsabilidade, simplesmente.
Meia hora mais tarde Rebecka Andersson telefonou, verificou com ele a informação recebida de Ytterberg, pois pensava se dirigir a Niklasgarden nessa mesma manhã.
Wallander preparou o café da manhã e foi ao banheiro. Quando puxou a descarga, o sanitário entupiu. Tentou limpar o esgoto com uma ventosa, mas foi inútil. Irritado, deu um pontapé no sanitário e telefonou para Jarmo; mas este estava bêbado e, embora estivesse disposto a fazer o trabalho, Wallander recusou. Dedicou as duas horas seguintes a procurar outro encanador que pudesse vir consertar o entupimento. Já era meio-dia quando um carro parou no jardim e saiu dela um jovial encanador polonês que falava um sueco praticamente incompreensível. Wallander se lembrou do debate que seguira nos jornais há cerca de um ano sobre os trabalhadores poloneses que pareciam estar inundado a Europa como uma praga indesejada de gafanhotos. No entanto, aquele encanador não levou mais de vinte minutos para resolver o problema. Chegando o momento de pagar o conserto, Wallander comprovou que o homem cobrava menos que Jarmo.
Voltou aos seus livros. Rebecka Andersson telefonou por volta das duas horas, ainda estava em Niklasgârden.
— Calculei que queria ter a informação o mais rápido possível, disse. — Agora estou sentada num banco de jardim no lar. Está um tempo maravilhoso. Tem com que escrever?
— Sim, estou pronto para tomar notas.
— Ótimo. Foi um homem de cinquenta anos, vestido com terno e gravata, cabelo louro encaracolado e olhos azuis. Falava o que se costuma chamar sueco normalizado, ou seja, nenhum dialeto identificável. E sem sotaque estrangeiro, portanto. Uma coisa ficou clara desde logo: era a primeira vez que vinha ao lar e tiveram de lhe indicar qual era o quarto da Signe, mas ninguém achou isso estranho.
— O que disse? Como se apresentou?
— Na realidade não disse nada, mas foi extremamente educado e amável.
— E o quarto?
— Pedi a duas empregadas do lar que o inspecionassem em separado para ver se detectavam algum tipo de anomalia, mas não viram nada de diferente. Tive a impressão de que estavam muito certas do que diziam.
— Certo, mas em todo o caso o homem ficou nada menos que duas horas, não é verdade?
— Bem, isso não está claro. A informação no registro não parece muito exata, pois não são muito cuidadosos anotando as entradas e saídas das visitas. Penso que permaneceu no mínimo uma hora no quarto, mas não mais de uma hora e meia.
— E depois?
— Foi embora.
— Como chegou?
— De carro. Parto desse princípio, embora ninguém o visse. De repente, desapareceu sem que ninguém desse por isso.
Wallander refletiu uns instantes, mas não tinha mais perguntas a fazer e agradeceu a ajuda. Pela janela avistou o carro amarela dos correios que se afastava pela estrada. Saiu tal como estava, de roupão e meias, para ver a caixa de correio, onde encontrou uma única carta, carimbada em Ystad e enviada por um tal Robert Akerblom. Wallander se lembrava vagamente do nome, embora não soubesse de onde conhecia o indivíduo. Sentado à mesa da cozinha abriu o envelope. Continha a fotografia de um homem acompanhado de duas mulheres jovens. Ao ver o homem da fotografia reconheceu-o imediatamente e uma memória dolorosa de há quinze anos surgiu logo na sua mente: no início da década de 1990, a mulher de Robert Akerblom fora brutalmente assassinada. Veio-se a saber que o crime tinha implicações curiosas com acontecimentos na África do Sul e com um atentado contra Nelson Mandela. Virou a fotografia e leu no verso: "Para que se lembre de nós e para lhe agradecer todo o apoio que nos prestou durante os piores anos da nossa vida." Era disto mesmo que precisava, pensou Wallander. Uma prova que me convença de que o nosso trabalho, apesar de tudo, tem um significado decisivo para muita gente.
Colou a fotografia na parede.
No dia seguinte comemorariam o solstício. Apesar de não se sentir muito bem, resolveu sair para fazer compras. Não gostava das lojas apinhadas de gente; na realidade, não gostava de fazer quaisquer compras, mas estava decidido a que nada faltaria na sua mesa no dia da festa. Num momento de bom senso, comprara as bebidas com antecedência. Fez uma lista de compras e saiu de casa.
* * *
No dia seguinte já não lhe doía a garganta nem tinha febre. Chovera durante a noite, mas agora o céu estava desanuviado. Wallander observou o horizonte e decidiu que poderiam jantar no jardim. Quando Linda e a sua família chegaram lá pelas cinco da tarde, estava tudo preparado. Depois de elogiar os seus esforços, Linda chamou-o à parte.
— Vamos ter mais uma pessoa à mesa.
— Quem?
— A minha mãe.
— Isso é que não. Porquê? Já sabe o que aconteceu da última vez que esteve aqui.
— Não quero que passe esta noite sozinha.
— Pois logo terá de levá-la para casa.
— Não se preocupe, já sei. Tenta pensar que fará uma boa ação ao aceitar.
— E quando chega?
— Disse-lhe para vir às cinco e meia. Daqui a pouco estará aqui.
— Olha que é responsabilidade sua de se certificar de que não se embriague.
— Claro. E não se esqueça que Hans gosta dela. Além disso, tem o direito de estar com a neta.
Wallander não disse mais nada, mas assim que ficou sozinho na cozinha bebeu um cálice de aguardente de um só trago para acalmar os nervos.
Mona chegou e, no princípio, correu tudo bem. Tinha se arrumado e estava bem-disposta. Comeram, beberam moderadamente e desfrutaram do bom tempo. Wallander observou como Mona se dedicava à neta com total naturalidade; foi como voltar a vê-la com Linda ao colo. No entanto, a paz não durou toda a noite. Por volta das onze, Mona começou a se queixar das injustiças sofridas no passado. Linda tentou pôr água na fervura, mas aparentemente Mona bebera mais do que tinha notado; ou talvez trouxesse uma garrafinha na bolsa. Primeiro, Wallander ficou em silêncio e simplesmente ouvia a lengalenga, mas depois não suportou mais. Bateu com o punho na mesa e lhe pediu que fosse embora. Linda, que também não estava totalmente sóbria, lhe gritou que se acalmasse e que não devia ligar à conversa. Mas Wallander ligava.
Quando, depois daqueles anos todos, finalmente compreendera que já não tinha nenhuma saudades dela, os seus sentimentos se transformaram numa acusação: Mona era culpada por ele não ter encontrado outra mulher com quem partilhar a sua vida. Levantou-se da mesa, chamou Jussi e saiu de casa.
Quando voltou meia hora mais tarde, já se preparavam para ir embora. Mona estava sentada no carro que Hans dirigia, ele era o único que bebera somente um copo de vinho.
— Tenho pena que tenha acabado assim, lamentou Linda. — Foi um jantar muito agradável, mas agora vejo que a maneira como Mona bebe só pode levar a este tipo de incidentes.
— Então admite que tinha razão?
— Se isso o faz se sentir melhor. Talvez não devesse tê-la convidado. Por outro lado, ficamos sabendo que realmente precisa de uma atenção especial. E pensar que até agora não me dei conta de que a minha mãe está se matando com tanto álcool!
Linda lhe acariciou a face e se abraçaram.
— Sem você não teria sobrevivido, confessou Wallander.
— Daqui a uns tempos Klara poderá ficar aqui consigo. Dentro de um ano ou assim. O tempo passa voando.
Wallander se despediu deles, levantou a mesa e despejou o lixo. A seguir fez algo que apenas acontecia uma ou duas vezes por ano: procurou um charuto e voltou ao jardim para fumar.
Começava a refrescar. Os pensamentos vagueavam livremente pela sua mente: lhe vieram à memória os seus antigos colegas de turma, os que tinham cursado com ele a escola de Limhamn. Como teriam se desenrolado as suas vidas? Há uns anos tinham feito uma reunião, mas ele não se dera ao trabalho de comparecer. E agora se arrependia, pois o fato de ver como tinham decorrido as suas vidas poderia ter lhe oferecido outra perspectiva sobre a sua. Deixou o charuto e foi remexer numa caixa até achar uma velha fotografia de 1962, o seu último ano na escola. Recordava-se dos rostos e também de quase todos os nomes. Uma jovem se chamava Siv, a mais tímida de todas, um gênio em matemática. Ele estava na fila de cima, o penúltimo da esquerda, com o cabelo cortado à escovinha e um pequeno sorriso. Vestia uma camisa de flanela por cima de uma camisa cinzenta. E agora temos sessenta anos, disse para com os seus botões. As nossas vidas deslizam suavemente até ao trecho final. E não é de esperar grandes alterações.
Permaneceu no jardim até às duas da madrugada. Em certo momento lhe chegou o som de uma música distante, talvez a valsa Calle Schewen, embora não tivesse certeza.
Depois foi deitar e dormiu quase toda a manhã. Continuou passando os olhos pelos livros da biblioteca, deitado na cama. Subitamente, se sentou num sobressalto. Efetivamente, encontrara umas fotografias em preto e branco que figuravam num livro sobre submarinos norte-americanos e a sua constante competição com os seus equivalentes soviéticos durante a Guerra Fria. Olhou fixamente para uma das fotografias, com o coração acelerado. Não havia a menor dúvida: a imagem representava exatamente o objeto que ele levara de Bokõ para casa. Pulou da cama e tirou o grande cilindro que escondera detrás de uma prateleira em que guardava sapatos velhos.
Com a ajuda de um dicionário de inglês se assegurou de que não tinha interpretado mal nada do que se dizia no capítulo onde aparecia a fotografia. Versava sobre James Bradley, chefe da armada submarina americana no princípio da década de 1970. Tinha fama de passar as noites sentado na sua sala do Pentágono, inventando novos métodos com que medir forças com os russos. Uma noite em que o gigantesco edifício estava quase deserto, à exceção dos vigilantes que transitavam permanentemente pelos corredores, teve uma ideia. Era de tal forma ousada que compreendeu que devia se dirigir imediatamente a Henry Kissinger, o conselheiro de segurança do presidente Nixon. Naquela época, circulava a lenda de que Kissinger raramente escutava mais de cinco minutos, e de forma alguma mais de vinte, alguém que tivesse algo para lhe comunicar. Bradley falou durante mais de quarenta e cinco minutos. Quando voltou para o Pentágono, não tinha qualquer dúvida de que receberia o dinheiro e o equipamento necessários. Kissinger não lhe prometera nada, mas Bradley vira o fascínio que despertara nele.
Rapidamente se tomou a decisão de que o submarino Halibut, um dos maiores da frota submarina americana, seria utilizado para aquela missão ultrassecreta. Wallander ficou estupefato ao ler o seu peso, as dimensões, o armamento e o número de oficiais e a tripulação restante. Em princípio, podia estar fora em missão militar o ano inteiro e apenas necessitava de emergir de vez em quando para repor ar fresco e provisões. O reabastecimento de víveres se fazia normalmente em menos de uma hora em mar aberto. No entanto, se queriam levar a cabo aquela missão com êxito o submarino teria de ser remodelado. Havia que equipá-lo com uma câmara de pressão para os mergulhadores que executariam a parte mais arriscada, nas profundezas marinhas.
No fundo, a ideia de Bradley era muito simples. A fim de possibilitar a comunicação entre os comandos de terra firme e os submarinos com armamento nuclear que partiam da base de Petropavlovsk, na península de Kamchatka, os russos tinham estendido um cabo através do mar de Okhotsk. O plano de Bradley consistia em nada mais do que colocar um equipamento de escuta no tal cabo. Contudo, existia um grande problema: o mar de Okhotsk tinha mais de seiscentos mil quilômetros quadrados. Como conseguiriam localizar a orientação do cabo? A solução mostrou ser tão inacreditavelmente simples como a ideia em si. Urna noite no escritório do Pentágono, Bradley evocou os verões da sua infância à beira do rio Mississipi. Aquela lembrança infantil resolveu o seu problema num ápice. Nas margens do rio surgiam com intervalos regulares uns letreiros com a legenda: "Proibido atracar. Cabo submarino." Com exceção da cidade de Vladivostok, o Leste da Rússia era um verdadeiro deserto. Portanto, não deviam existir muitas localidades por onde passaria o cabo submarino. E na União Soviética também havia letreiros.
O Halibut zarpou e atravessou o oceano Pacífico submerso. Depois de uma arriscada travessia, durante a qual estabeleceu contato de sonar com vários submarinos russos, conseguiu entrar em território russo. Teve então lugar um dos momentos mais arriscados da operação, a entrada despercebida através de um dos estreitos entre as ilhas Curilas. Foi graças ao fato de o Halibut ter sido apetrechado com o mais avançado sistema existente para a detecção de linhas de minas e de contatos de sonar que a manobra foi realizada com êxito. Depois de um espaço de tempo relativamente curto, localizaram também o cabo. Mas ainda faltava a parte mais sensível da missão: como conseguiriam acoplar o sistema de escuta ao cabo sem que os russos os detectassem? Depois de várias tentativas falhadas conseguiram finalmente montar o aparelho, e a bordo do submarino passou a se ouvir a comunicação dos russos em terra para os seus comandantes no mar e vice-versa. Em agradecimento à sua contribuição, Bradley teve a honra de ser recebido pelo presidente Nixon, que o felicitou pessoalmente pelo grande êxito.
Wallander saiu para se sentar no jardim. Soprava um vento frio, mas na esquina junto à parede da casa encontrou abrigo. Soltou Jussi, que desapareceu nos fundos. Depois daquela leitura, se apresentavam algumas perguntas, lógicas e precisas. Como fora parar um cilindro com aquelas características em um abrigo de barcos sueco? Qual era a relação entre esse fato e o casal Von Enke? Isto vai mais além do que eu imaginava, disse para si. Por trás do desaparecimento deles se esconde alguma coisa que não tenho meios para compreender. A partir de agora precisarei de ajuda.
Hesitou apenas alguns minutos. Depois se dirigiu para o telefone ligou para Sten Nordlander. Como de costume, havia pouca cobertura mas conseguiram se fazer entender com algum esforço.
— Onde está? Perguntou Wallander.
— Na baía de Gávle. Vento fraco de sudoeste, nebulosidade ligeira. Por outras palavras, uma maravilha. E você?
— Em casa. Tem de vir aqui, encontrei uma coisa que devia ver. Pegue um avião.
— E assim tão importante?
— Não tenho a menor dúvida de que sim. De uma forma ou de outra, está ligado ao desaparecimento de Hakan.
— Confesso que despertou a minha curiosidade.
— Naturalmente que existe o risco de estar enganado, mas nesse caso estará de volta ao seu barco amanhã. Eu pago as passagens.
— Não é necessário, mas é melhor não contar comigo até à noite, porque ainda falta um bom pedaço até Gávle.
— Irei buscá-lo se me avisar da hora da sua chegada.
Eram seis horas da tarde quando Sten Nordlander telefonou. Estava no Aeroporto de Arlanda e o voo sairia para Malmó uma hora mais tarde. Wallander se preparou para ir buscá-lo. Deixou Jussi dentro de casa, convencido de que o cão manteria longe um eventual intruso.
O avião chegou na hora anunciada. E Wallander já esperava Sten Nordlander quando este saiu pelas silenciosas portas automáticas; se dirigiram para casa do inspetor a fim de examinar o estranho cilindro de aço que os aguardava.
* * *
Dezenove
STEN NORDLANDER reconheceu imediatamente o cilindro que Wallander colocara na mesa da cozinha. Se bem que nunca tivesse visto nenhum engenho daqueles na realidade, tinha, tanto através de esboços como de desenhos e fotografias, uma clara noção do que via.
Não escondeu a sua perplexidade. Wallander decidiu que já não havia razão para continuar a brincar de gato e rato com o seu convidado. No final das contas, se Nordlander fora o melhor amigo de Hakan von Enke em vida, também deveria sê-lo agora, se chegassem ao extremo de comprovar que estava morto. Wallander serviu café e contou ao seu hóspede toda a história de como aquele cilindro fora parar às suas mãos. Não omitiu nenhum detalhe; começou pela fotografia dos dois homens junto ao barco de pesca e só terminou quando lhe disse como identificara o objeto de aço que recuperara no escuro dentro do abrigo de Bokó.
— Não sei qual é a sua opinião, disse Wallander ao terminar, — Nem se lhe parece que a viagem de Gávle para cá valeu a pena.
— Sem dúvida que valeu, assegurou Sten Nordlander. — E estou tão desconcertado como você. Não se trata de nenhuma imitação. E até acho que consigo ver uma ligação.
Já passava das onze. Sten Nordlander não aceitou o convite de Wallander de tomarem uma refeição substancial e se contentou com chá e biscoitos. Wallander teve de rebuscar entre todos os pacotes meio vazios da sua despensa até encontrar um de biscoitos de aveia, onde a maior parte do conteúdo se transformara em migalhas.
— Por mais que me sinta tentado a continuar a nossa conversa, não posso, lamentou Sten Nordlander. — É que o meu médico me proibiu de fazer noitadas, com ou sem bebidas estimulantes, de modo que teremos de voltar ao assunto amanhã. Deixe-me só folhear o livro em que encontrou a fotografia antes de ir me deitar.
* * *
O dia seguinte amanheceu quente e sem vento. Uma ave de rapina pairava suspensa sobre uma valeta. Jussi observava-a, fascinado e imóvel. Wallander se levantara às cinco da manhã, impaciente por ouvir a opinião de Sten Nordlander. O convidado saiu do quarto de hóspedes às sete e meia. Agradavelmente surpreso, contemplou o jardim e a vista.
— Há o mito de que Skáne é uma região plana e até monótona, observou. — Mas o que vejo aqui é algo bem diferente. Esta paisagem faz me lembrar ondas amplas e suaves, se me permite a comparação. E ali atrás é o mar, não é?
— Costumo pensar nos mesmos termos, confessou Wallander. — As florestas escuras e cerradas me assustam. Esta terra aberta impede uma pessoa de se esconder, o que é bom. É possível precisamos todos de nos esconder às vezes, mas há quem o faça com demasiada frequência.
Sten Nordlander observou Wallander, pensativo.
— Por acaso já pensou, tal como eu, que Hakan e Louise se mantêm escondidos por razões que desconhecemos?
— Sim, faz parte do procedimento rotineiro na busca de pessoas desaparecidas.
Depois do café da manhã, Sten Nordlander propôs que dessem uma caminhada.
— Preciso fazer um pouco de exercício de manhã. Senão, me custa a fazer a digestão.
Jussi se perdeu de vista como uma mancha negra correndo para o bosque, onde as pequenas poças de água representavam um desafio irresistível ao seu faro.
— Houve época, no princípio da década de 1970, em que estávamos convencidos de que o poder militar dos russos era tão avassalador como parecia, começou Sten Nordlander. — Os desfiles de outubro representavam a verdade, era o que parecia, enquanto milhares de peritos viam as imagens de televisão dos carros de combate que circulavam em frente ao Kremlin, enquanto se fazia a mais importante de todas as perguntas: o que não nos deixam ver? Isso foi na época em que a Guerra Fria estava no seu auge; por assim dizer, os anos antes de o papão ser posto a descoberto.
Detiveram-se à frente de um escoadouro. A madeira do passadiço estava quebrada e Wallander procurou uma tábua que não estivesse muito apodrecida e que desse para passarem para o outro lado.
— O papão ser posto a descoberto, repetiu Wallander. — Era a pressão que o meu velho colega Rydberg costumava empregar quando uma linha de investigação se revelava totalmente errada.
— Neste caso, o que compreendemos foi que a defesa soviética não era tão poderosa como acreditávamos. Uma certeza assustadora que foi amadurecendo naqueles que resolviam os quebra-cabeças com as peças de informação que conseguiam reunir através de espiões, aviões U-2 ou até de simples imagens de televisão. A defesa russa estava ruindo em todos os níveis e, em muitos casos, não passava de uma fachada. Bem conseguida, mas oca. O que agora lhe digo não deve ser mal interpretado, nem levá-lo a pensar que não existia uma ameaça real e contundente de armamento nuclear. Claro que existia. Mas, do mesmo modo que se corrompia a economia juntamente com a burocracia inútil e um partido que já não acreditava no que fazia, também a defesa estava em decadência total. E logicamente essa situação dava muito o que pensar aos dirigentes militares do Pentágono e à OTAN. E à própria Suécia, claro. O que implicaria se se revelasse que o urso russo não era no fundo mais do que um gatinho belicoso?
— Que a ameaça do Dia do Juízo Final diminuiria, calculo. Sten Nordlander parecia quase impaciente ao responder:
— Os militares nunca se destacaram por se inclinarem para a filosofia. São pessoas com sentido prático; em cada general ou almirante competente se abriga quase sempre um bom engenheiro. A questão do fim do mundo não era a mais urgente. Qual diria você que era?
— Os gastos da defesa?
— Exato. Porque o mundo ocidental devia continuar a se armar quando o seu principal inimigo já não representava qualquer perigo? Não se encontra um inimigo da mesma grandeza tão facilmente. A China e em certa medida também a índia estavam naturalmente dentro dessa categoria, mas naquela época a China era ainda um país absolutamente subdesenvolvido do ponto de vista militar; na realidade, a sua defesa se baseava exclusivamente no fato de contar aparentemente com um número infindável de soldados para servir de carne de canhão. Entretanto, isso não era motivo suficiente para que o Ocidente continuasse a desenvolver um armamento cada vez mais sofisticado que apenas se destinava a competir com o soviético. Noutras palavras, de repente se instalara um problema gravíssimo; simplesmente, não era do interesse de ninguém que viesse à luz tudo o que se sabia sobre o precário estado de saúde do urso russo. Tratava -se, pois, de nunca pôr o papão a descoberto.
Tinham chegado a uma pequena colina de onde se via o mar. Wallander e Linda tinham reunido as suas forças no ano anterior e conseguiram transportar até ali um velho banco que ela descobrira num leilão e comprara por uma soma ridícula. E ali se sentaram os dois homens. Wallander chamou por Jussi, que se aproximou muito contra a sua vontade.
— Estamos falando de coisas que aconteceram quando a União Soviética ainda era um inimigo muito sério, prosseguiu Sten Nordlander. — Não era só nos jogos de hóquei no gelo que sabíamos, nós os suecos, que nunca os venceríamos. Tínhamos a convicção absoluta de que o inimigo viria, como de costume, do Leste e de que devíamos estar muito atentos aos seus movimentos no mar Báltico. Foi então, no final da década de 1960, que começaram a se espalhar rumores.
Sten Nordlander olhou em volta como se temesse que houvesse alguém escutando. Ouvia-se o barulho de uma debulhadora que trabalhava perto da estrada principal que dirigia a Simrishamn. De vez em quando, chegava à colina também o burburinho do trânsito distante.
— Sabíamos que os russos tinham a sua grande base naval concentrada em Leningrado. Além disso, contavam com uma série de bases mais ou menos secretas espalhadas no mar Báltico e na Alemanha do Leste. A Suécia não era o único país que abria caminho à força de dinamite no fundo rochoso do mar Báltico. Os alemães na época de Hitler também o tinham feito, e os russos continuaram quando substituíram a cruz nazista pela bandeira vermelha. Começou a correr o rumor de que existia um cabo nas profundezas do mar Báltico, entre Leningrado e os países bálticos, pelo qual se geria uma grande parte da transmissão de mensagens. Nesse momento começou a se considerar mais seguro instalar cabos próprios em vez de correr o risco de que os sinais aéreos fossem interceptados por ouvidos alheios. Não devemos esquecer que a Suécia esteve implicada nisso em larga escala. No início de 1950 foi abatido um avião de reconhecimento e atualmente ninguém duvida de que espiaram as transmissões russas.
— Está dizendo que aquilo do cabo era um rumor?
— Diziam que o instalaram no início da década de 1960 quando os russos ainda se achavam capazes de medir forças com os Estados Unidos e mesmo superá-los. Não se esqueça da nossa perplexidade ao saber que o Sputnik que começou a sondar o espaço não tinha sido lançado pelos Estados Unidos. A convicção dos russos tinha a sua razão de ser; houve uma época em que estiveram a ponto de alcançar os Estados Unidos. Olhando para trás, poderíamos dizer, se quisermos ser cínicos, que deviam ter atacado nesse momento. Se quisessem provocar uma guerra e desencadear o Dia do Juízo Final, como você dizia há pouco. Seja como for, se acredita que foi um traidor do serviço secreto da Alemanha do Leste, um general dissidente carregado de condecorações e que subitamente tomou gosto pela doce vida londrina, quem revelou a existência do cabo a um seu homólogo inglês. Os ingleses venderam cara a notícia aos seus amigos americanos, que andavam sempre à espera de favores. O problema era que os novos submarinos de ponta americanos não podiam passar o estreito de Öresund sem que os russos descobrissem. Daí que tiveram de recorrer a métodos de busca muito menos chamativos, como minissubmarinos, entre outros. Mas, em todo o caso, careciam da informação exata. Onde estava o cabo submarino? No meio do mar Báltico ou talvez tivessem optado pelo trecho mais curto, desde o golfo da Finlândia até aos países bálticos? Até havia a possibilidade de que os russos fossem mais astutos ainda e o tivessem instalado perto da Gotlândia, onde ninguém acreditaria que se encontrava. Mas continuaram à procura e a ideia era, obviamente, colocarem um cilindro gêmeo daquele que já tinham colocado na Kamchatka.
— Está se referindo ao que tenho na mesa da minha cozinha?
— Se for esse, claro. Não há nada que diga que não existem mais.
— Estou vendo. No entanto, tudo isto é muito estranho. Hoje já não existe a Rússia como superpotência. Os países bálticos voltaram a ser livres e as duas Alemanhas se reunificaram. Um sistema de escuta como esse deveria ir parar num museu sobre a Guerra Fria, não acha?
— Sim, é possível, mas não me sinto capaz de responder a essa pergunta. Só posso explicar o que é o objeto que tem em seu poder.
Continuaram a caminhada. Já de volta ao jardim, Wallander formulou a mais importante de todas as perguntas:
— Aonde nos leva tudo isto, no que toca ao caso de Hakan e Louise?
— Não sei. Para mim, o caso é cada vez mais estranho. O que pensa fazer com o cilindro ?
— Pôr-me em contato com a Polícia Judiciária de Estocolmo Apesar de tudo, são eles que conduzem a investigação. O que fizerem a partir daí com os serviços de informação e com os militares não é da minha conta.
* * *
Às onze da manhã, Wallander levou Sten Nordlander ao Aeroporto de Sturup. Antes de se despedirem na entrada do edifício amarelo, o inspetor insistiu mais uma vez em pagar as despesas da viagem, mas Sten Nordlander recusou determinadamente.
— O cilindro também é do meu interesse. Lembre-se de que Hakan era o meu melhor amigo. Todos os dias penso nele. E também em Louise.
Dito isso, pegou a mala e entrou no terminal. Wallander se sentou no carro e voltou para casa. Uma vez ali, se sentiu exausto e se perguntou se não estaria ficando doente outra vez. Decidiu que um banho lhe faria bem. A última coisa de que se lembrava era de como lhe custara correr a cortina de plástico da banheira.
Acordou no quarto de um hospital, com Linda ao lado da cama. Nas costas da mão havia uma sonda pela qual lhe administravam um líquido por via intravenosa. Não fazia a menor ideia por que motivo se encontrava ali.
— O que aconteceu?
Linda lhe explicou o que acontecera com tanta objetividade como se estivesse lendo diretamente de um relatório policial. As suas palavras não despertaram em Wallander nenhuma memória, apenas encheram o vazio existente na sua mente. Aparentemente, Linda telefonara lá pelas seis horas da tarde, mas ele não atendera. Depois disso, continuou a tentar de vez em quando até às dez da noite. Nesse momento estava tão preocupada que deixou Klara com Hans, que, para variar, estava em casa, pegou no carro e se dirigiu para Lóderup. Encontrou-o na banheira, molhado e desmaiado, então chamou uma ambulância e assim pôde pôr o médico imediatamente a par da situação.
O pessoal do hospital não demorou a compreender que sofrera uma crise de hipoglicemia: o nível de açúcar no sangue era tão baixo que perdera a consciência.
— Lembro-me de que tinha fome, explicou devagar depois de Linda o pôr a par. — Mas não comi nada.
— Podia ter morrido, advertiu Linda. Wallander viu que ela estava quase chorando. Se Linda não tivesse ido na sua casa, se não tivesse pressentido que algo não estava bem, poderia ter falecido ali mesmo, no banho. Uma espécie de tremor lhe atravessou o corpo. A sua vida poderia ter terminado assim, nu no chão do banheiro.
— Não cuida bem de você, pai, censurou-o ela. — Um dia será tarde demais. Exijo que deixe que Klara tenha o seu avô pelo menos durante mais quinze anos. Depois poderá fazer o que quiser com a sua vida.
— Só que não consigo compreender como isso pôde acontecer, pois não é a primeira vez que tenho o índice de açúcar baixo.
— Deve falar com o médico sobre isso. Eu estou me referindo a outra coisa: a sua obrigação de continuar a viver.
Wallander assentiu sem dizer nada; cada palavra lhe saía com esforço e se sentiu invadido por uma estranha fadiga persistente.
— O que estão me pondo no soro? Quis saber.
— Não faço ideia.
— Quanto tempo preciso ficar aqui?
— Não sei.
Linda se levantou. Wallander se deu conta de quão cansada estava e na sua consciência entorpecida compreendeu que talvez tivesse estado muitas horas a seu lado.
— Vá para casa agora, eu ficarei bem, animou-a.
— Sim, se safou. Desta vez. Inclinou-se e olhou-o nos olhos. — Tenho um recado de Klara. Ela também está feliz por ter se livrado desta.
Wallander ficou sozinho no quarto. Fechou os olhos, queria dormir. E antes de mais nada queria acordar com a sensação de que não tinha culpa do que acontecera.
Entretanto, um pouco mais tarde nesse dia, o médico de Wallander, que na realidade não estava de serviço, mas mesmo assim foi vê-lo no hospital, advertiu-o de que já não poderia continuar a descuidar os seus valores de glicemia. Há cerca de vinte anos que Wallander era paciente do doutor Hansen, de modo que não havia hipótese de tentar enganá-lo com desculpas, pois sabia que era um homem firme e nada dado a sentimentalismos. O doutor Hansen repetiu várias vezes que Wallander podia continuar a teimar em não levar a sério a sua doença mas que da próxima vez que acontecesse algo parecido poderia contar com consequências para as quais era, na realidade, muito jovem.
— Tenho sessenta anos, respondeu Wallander. — Então isso não é ser velho?
— Bem, há duas gerações éramos velhos, mas hoje não é assim. O corpo envelhece e contra isso não se pode fazer nada, mas vivemos em média quinze ou vinte anos mais do que antes.
— E o que faço agora?
— Permanecerá no hospital até amanhã para que os meus colegas possam verificar se os seus níveis de glicemia no sangue se normalizam e que não sofrerá sequelas. Depois poderá ir para casa e recomeçar a sua vida de pecador.
— Eu, pecador?
O doutor Hansen era uns anos mais velho que Wallander e fora casado nada menos que seis vezes. Em Ystad toda a gente comentava que nas férias se via obrigado a trabalhar em hospitais noruegueses além do círculo polar ártico, onde ninguém ia a não ser que fosse absolutamente necessário, só para conseguir pagar pensão às suas ex-mulheres.
— Não será isso mesmo que precisa, uma pitada de atividade pecaminosa refrescante? Não faria bem a um policial quebrar algumas regras?
Foi só depois, quando o doutor Hansen foi embora, que realmente tomou consciência de quão próximo estivera da morte. Por um instante sentiu pânico, um medo da morte mais intenso do que nunca, pelo menos fora do exercício da sua profissão. Havia o medo inerente ao seu papel de policial e outro inerente ao homem comum.
Relembrou uma vez mais o instante em que, sendo ainda um jovem policial de ronda em Malmó, fora gravemente ferido por uma arma branca. Naquela ocasião, escapara por um triz da escuridão imensa e derradeira. Agora a morte voltara a lhe espiar por cima do ombro e desta vez fora ele mesmo que abrira a porta que o poderia ter conduzido para o fim.
Naquela noite no hospital, Wallander tomou várias decisões que, segundo suspeitava, nunca conseguiria cumprir. Tinham a ver com os seus hábitos alimentares, o exercício físico, novos passatempos cativantes e com empreender uma luta renovada contra a solidão. Antes de tudo, pensava gozar ao máximo as suas férias, não trabalhar, não persistir na busca dos sogros desaparecidos de Linda. Estar livre, descansar, dormir muito, dar longas caminhadas pela praia, brincar com Klara. Deitado ali na cama do hospital traçou um plano. Nos próximos cinco anos, percorreria a pé toda a costa de Skâne, desde o cume de Hallandsâsen até à fronteira com Blekinge. No mesmo instante em que lhe ocorreu, duvidou de que alguma vez o pusesse em prática, mas se permitir alimentar esse sonho aliviava-o, mesmo se fosse apenas para deixá-lo desvanecer aos poucos logo em seguida.
Alguns anos antes, num jantar na casa de Martinsson, tivera a oportunidade de conversar com um professor de escola secundária já aposentado que lhe falou das suas caminhadas até Santiago de Compostela, o clássico caminho dos peregrinos. Wallander pensou então empreender ele mesmo aquele projeto, embora dividido em várias etapas distribuídas por cinco anos, por exemplo. Até começou a treinar com uma mochila cheia de pedras; mas se entusiasmara muito, era um esforço muito grande para um principiante, e fez um esporão de calcâneo no pé esquerdo. Aí terminou a sua peregrinação mesmo antes de sequer ter começado. Curara-se da maleita graças a um número de injeções dolorosas de cortisona administrada diretamente no calcanhar, entre outros tratamentos. Mas talvez umas caminhadas bem planejadas pelas praias de Skâne pudessem estar dentro dos limites do possível.
No dia seguinte lhe deram alta e foi para casa. Apanhou Jussi, que mais uma vez ficara entregue ao vizinho, e não quis aceitar a oferta de Linda de ir para sua casa e lhe preparar o jantar; disse para si mesmo que devia tomar as rédeas da situação sem a sua ajuda. Se vivia sozinho, explicou à filha, tinha de se governar sozinho. Agora, para começar, devia levar a sério a intenção de não desperdiçar as férias.
Antes de ir para a cama naquela noite, escreveu uma longa mensagem eletrônica para Ytterberg. Não mencionou a sua estada no hospital, só disse que precisava tirar uns dias de folga, pois trabalhara em excesso e pensava pôr totalmente de parte o caso de Hakan e Louise. "Pela primeira vez, tomei consciência das minhas limitações quanto à minha idade e às minhas forças", declarou no final da missiva. "Nunca me acontecera. Já não tenho quarenta anos e acho que devo me reconciliar com a ideia de que o passado nunca voltará. Acho que compartilho essa ilusão com a maioria das pessoas, quero dizer, pensar que é possível se lavar duas vezes na mesma água."
Releu o escrito, apertou "Enviar" e desligou o computador. Quando foi se deitar, ouviu trovões à distância.
Uma frente fria de trovoada vinha a caminho. No entanto, o céu naquela noite estival ainda estava claro.
* * *
Vinte
NO DIA SEGUINTE, Wallander viu que a tempestade passara sem atingir a sua casa, porque a frente se deslocara mais para leste. Sentia-se repousado quando se levantou por volta das oito horas. Estava uma manhã fria, mas não obstante levou o café da manhã lá para fora e se sentou à mesa branca do jardim. Para celebrar as suas férias agora iniciadas, cortou umas rosas de um arbusto e colocou-as na mesa. Acabava de se sentar quando tocou o telefone; era Linda que ligava para saber como se encontrava.
— Foi um aviso, admitiu Wallander. — Agora me sinto bem e não vou a parte nenhuma sem levar o telefone comigo.
— Sim, era isso que queria lhe pedir.
— Como estão vocês?
— Klara está resfriada, é uma infecção típica do verão. E Hans não trabalha esta semana.
— Por vontade sua ou contrariado?
— Por vontade minha! Não se atreve a fazer outra coisa, pois lhe fiz um ultimato.
— Qual?
— O trabalho ou eu. Não se negocia sobre Klara.
Wallander continuou com o seu café da manhã enquanto pensava até que ponto Linda se parecia cada vez mais com o avô. O mesmo tom mordaz, a mesma postura um tanto trocista e irônica perante o inundo circundante, mas também uma predisposição para se encolerizar, latente debaixo da superfície.
Wallander cruzou os pés sobre uma cadeira, se recostou, bocejou e fechou os olhos. Finalmente começavam as suas férias.
O telefone tocou. Num primeiro momento, pensou não atender e ouvir mais tarde a eventual mensagem, mas por fim atendeu.
— Olá, é Ytterberg. Acordei-o?
— Para isso teria de ter telefonado há várias horas.
— Encontramos Louise von Enke. Morta.
Wallander susteve a respiração ao mesmo tempo que se levantava da cadeira.
— Quis telefonar sem demora, prosseguiu Ytterberg. — Talvez possamos mantê-lo em segredo mais uma hora, mas temos de informar o filho e também a sua filha. E não existem mais familiares a não ser o primo da Inglaterra, não é verdade?
— Está se esquecendo da filha que está internada no lar de Niklasgárden. Devíamos pelo menos informar o pessoal, mas posso me encarregar eu disso.
— Sim, já desconfiava que preferiria fazê-lo pessoalmente. No entanto, entendo perfeitamente se não o quiser fazer e telefonarei eu mesmo para lá.
— Eu ligo, confirmou Wallander. — Ponha-me só a par dos detalhes mais importantes.
— Na verdade, toda a situação é absurda, começou Ytterberg. — Uma idosa senil desapareceu ontem à noite de um lar de terceira idade em Vármdó. Não era a primeira vez que a coitada fugia, e lhe tinham colocado um tipo qualquer de alarme com GPS que permitia localizá-la com facilidade. Mas a velha pelo visto conseguiu arrancá-lo, de maneira que a polícia teve de recorrer a patrulhas de voluntários. Finalmente encontraram a pobre mulher, a idosa senil, que se encontrava de perfeita saúde, conforme me disseram. Mas nas buscas se perderam dois dos voluntários. Dá para acreditar? E nem tinham a bateria do celular carregada. Bem, teve de se organizar outra batida, e encontraram-nos, claro, mas no caminho de regresso encontraram mais alguém.
— Louise?
— Sim. Jazia junto a um pequeno caminho na floresta, a cerca de três quilômetros da estrada mais próxima. O caminho atravessa uma área de árvores desbastadas. Acabei de voltar de lá.
— Foi assassinada?
— Não. Tudo indica que se suicidou, pois não há quaisquer indícios de violência externa. Tomou uma dose excessiva de soporíferos, encontramos o frasco vazio próximo do corpo. Se estava cheio, deve ter ingerido cem comprimidos.
— Não têm qualquer dúvida de que se trata de um suicídio, portanto?
— Pelo que vimos, não restam dúvidas. Embora, evidentemente, vamos aguardar pelo resultado do exame forense.
— Que aspecto tinha?
— Jazia de lado, ligeiramente encolhida. Vestia saia e blusa cinzenta e casaco comprido. Os sapatos estavam junto ao corpo. Ao seu lado encontraram também uma bolsa de mão com chaves e documentos. Ao que parece, um animal estivera ali cheirando, mas o cadáver não mostrava sinais de mutilação.
— Sabe em que parte de Värmd a encontraram?
Ytterberg lhe deu as indicações exatas e prometeu lhe enviar um mapa por correio eletrônico.
— Faço-o chegar agora mesmo.
— Continuam sem ter rastro de Hakan?
— Nada.
— Porque ela escolheria justamente uma área desbastada?
— Não sei. Dificilmente pode se dizer que foi uma morte bonita. Rodeada de matagal e troncos de árvores ressequidos. Bem, lhe envio o mapa. Telefone se tiver alguma dúvida.
— Como vão as suas férias?
— Entretanto surgiu isto. Não é a primeira vez na minha vida que preciso adiar as férias.
Wallander recebeu o mapa ao fim de uns minutos. Com a mão um tanto relutante sobre o auscultador, pensou que aquele era um sentimento que compartilhava com todos os policiais do mundo: a aversão em anunciar a morte de um familiar, um dever que nunca podia se converter numa tarefa de rotina. A morte chegava sempre em má hora, fosse quando fosse.
Discou o número com mão trêmula e foi Linda quem atendeu.
— Você outra vez? Mas acabamos de falar! Tem certeza de que está bem?
— Sim, sim, estou bem. E você, está sozinha?
— Hans está mudando a fralda da Klara. Não lhe disse que tinha feito um ultimato?
— Disse, sim. Escute, penso que é melhor se sentar. Pelo seu tom de voz, Linda deduziu que se tratava de algo grave, pois sabia que ele não costumava exagerar. — Louise morreu. Suicidou-se há uns dias. Encontraram-na na noite passada ou esta madrugada num caminho de floresta em Värmdö, numa área desbastada.
Primeiro, Linda não disse nada. No fim perguntou:
— Têm mesmo certeza?
— Não me parece que haja algum motivo para colocar em dúvida. Mas não encontraram nenhum rastro de Hakan.
— Tudo isto é sinistro!
— Como acha que Hans vai reagir?
— Não sei. Não pode ter havido um engano?
— Linda, não teria telefonado se não tivessem identificado Louise.
— Claro, estava me referindo ao fato de ela ter se suicidado. Não é próprio dela, não era esse tipo de pessoa.
— É melhor ir para junto de Hans. Se ele quiser falar diretamente comigo, pode telefonar para casa. E também posso lhe dar o número direto da polícia de Estocolmo.
Wallander se preparava para concluir o telefonema quando Linda o reteve um instante.
— Onde esteve este tempo todo? E porque se matou precisamente agora?
— Sei tão pouco as respostas quanto você. Esperemos que, apesar desta tragédia, a sua morte nos ajude a localizar Hakan. Mas falaremos disso mais tarde.
Uma vez concluída a conversa, Wallander ligou para o lar de Niklasgarden. Tanto Artur Källberg como a mulher da recepção estavam de férias, mas finalmente pôde falar com uma substituta, que desconhecia por completo a longa história de Signe von Enke. Wallander teve a impressão desagradável de estar falando com uma parede. Mas talvez seja uma vantagem, disse para si mesmo, dadas as circunstâncias.
Mal acabara de falar com a substituta quando Hans telefonou. Estava consternado, à beira do choro. Wallander respondeu pacientemente a todas as suas perguntas e prometeu avisá-lo assim que recebesse mais informações. A seguir, Linda veio ao telefone.
— Acho que ainda não compreendeu, disse em voz contida.
— Nenhum de nós compreende.
— O que tomou?
— Soporíferos. Ytterberg não me disse o nome. Rohypnol, talvez. Não chamam assim?
— Ela nunca tomava comprimidos para dormir.
— As mulheres costumam ingerir comprimidos quando decidem se matar.
— Só que há uma coisa que disse que me intriga.
— O que?
— É verdade que tinha tirado os sapatos?
— Segundo o que me disse Ytterberg, sim.
— E não acha estranho? Se a tivessem encontrado dentro de casa entenderia, mas porque uma pessoa haveria de descalçar os sapatos quando se deita para morrer ao ar livre?
— Não sei.
— Disseram que sapatos eram?
— Não, mas também não perguntei.
— Precisa nos contar tudo, insistiu Linda.
— Por que razão os manteria à margem?
— Às vezes esquece de contar as coisas, talvez por consideração. Quando os jornais saberão?
— A qualquer momento; ligue a TV e veja. Costumam ser os primeiros.
Wallander aguardou com o auscultador na mão. Passados uns minutos, Linda voltou.
— Já apareceu: "Louise von Enke encontrada morta. O marido continua desaparecido."
— Voltamos a falar mais tarde.
Wallander ligou a televisão e constatou que concediam grande relevo à notícia. Mas, a não ser que acontecesse algo que modificasse ou aprofundasse a situação, a morte de Louise von Enke não levaria muito tempo a passar para segundo plano.
O resto do dia, Wallander tentou se dedicar ao jardim. Comprara uma tesoura de poda a um preço reduzido num grande armazém de bricolagem, mas depressa percebeu que se tratava de uma ferramenta praticamente inútil. Aparou alguns arbustos e ramos de árvores de fruta meio secos, consciente de que tal procedimento não era aconselhável em pleno verão. Não deixava de pensar em Louise.
Não chegara a conhecê-la bem. O que ele sabia, na realidade, sobre a sogra da sua filha? Sobre a mulher que ouvia com um discreto sorriso todas as conversas em torno da mesa, embora sem nunca dizer palavra? Era professora de alemão, talvez de algum outro idioma. Naquele momento, Wallander não se lembrava, mas também não tinha vontade de ir buscar os seus apontamentos.
Há muitos anos, essa mulher teve uma filha, pensou. E ainda no hospital soube que a menina nascera com uma deficiência gravíssima. Deram-lhe o nome de Signe e nunca poderia ter uma vida normal. Foi o seu primeiro filho. Que efeito terá uma coisa assim numa mãe? Wallander refletia enquanto andava de um lado para o outro com a tesoura de poda que não lhe servia de grande coisa, mas não encontrou resposta. No entanto, também não se sentia triste; não tinha sentido lamentar os mortos. Por outro lado, podia compreender os sentimentos de Hans e de Linda. E também pensava em Klara, que nunca conheceria a sua avó paterna.
Jussi apareceu coxeando com um espinho numa das patas da frente. Wallander se sentou junto à mesa do jardim, com os óculos na ponta do nariz e uma pinça com que o extraiu. Jussi mostrou a sua gratidão desaparecendo como um raio negro por um dos campos lavrados. Um planador sobrevoou a casa de Wallander a baixa altitude; seguiu-o com os olhos semicerrados. Não tinha a sensação de estar de férias. Via Louise estendida no chão junto a um caminho que serpenteava por um terreno de árvores cortadas. E ao seu lado um par de sapatos cuidadosamente alinhados.
Deixou a tesoura em casa e se deitou na rede. O planador desapareceu de vista. Ouvia-se à distância o som dos tratores nos campos e o murmúrio da estrada principal que ia e vinha em ondas. De repente, se levantou da cama de rede. Não havia outro remédio, as férias não seriam férias antes de ver aquilo com os seus próprios olhos. Mais uma vez, tinha de fazer uma viagem para Estocolmo.
* * *
Wallander partiu de avião nessa mesma noite depois de ter deixado Jussi na casa do vizinho, que, amavelmente mas não sem ironia, lhe perguntou se começara a se cansar do cão. Falou com Linda do aeroporto, mas a sua filha lhe assegurou que não estava surpresa e que, no fundo, não esperava outro comportamento do pai.
— Tire muitas fotografias, pediu. — Há alguma coisa nisto que não bate certo.
— Nada bate certo, sentenciou Wallander. — É por essa razão que vou para lá.
Durante o voo sofreu muito com os guinchos incessantes de uma criança sentada na fila logo atrás da sua e passou quase toda a viagem tapando os ouvidos. Encontrou um quarto livre num hotel modesto nas imediações da Estação Central. No momento em que entrava na recepção, começou um forte aguaceiro. Viu pela janela como as pessoas se apressavam a se resguardar da chuva. Será que pode haver uma solidão maior? Perguntou-se. Chuva, quartos de hotel... Aqui estou, aos sessenta anos. Se me virar para trás, não encontrarei ninguém. Perguntou-se como estaria Mona. A sua solidão é provavelmente tão grande como a minha, disse para si mesmo. Ou talvez maior ainda, visto que não resiste a tentar afogá-la na bebida.
Quando parou de chover, Wallander voltou à Estação Central e comprou uma planta detalhada da cidade, antes de fazer um telefonema e alugar um carro para o dia seguinte. Como estavam no verão, a procura de carros de aluguel era grande e a única viatura que havia disponível não era tão barata como ele esperava, mas aceitou-a. Foi jantar na Cidade Velha. Acompanhou a refeição com vinho tinto e, de repente, veio à sua mente a memória de um verão, há já muitos anos, em que conhecera uma mulher, logo depois de ter se separado de Mona. Chamava-se Monika e fora a Ystad visitar uns amigos. Conhecera-a num baile deprimente e combinaram que voltariam a se encontrar para um jantar em Estocolmo. Mesmo antes de terminar a entrada, compreendeu que aquilo não levaria a lado nenhum. Não tinham nada para dizer um ao outro, mesmo nada, os silêncios se eternizavam, e Wallander conseguiu uma valente bebedeira. Agora brindava à sua memória com a esperança de que a sua vida tivesse corrido bem. Saiu do restaurante um tanto tocado e vagueou pelas ruelas antes de retornar ao hotel. Nessa noite voltou a sonhar com cavalos que galopavam direitos ao mar. Quando acordou de manhã, procurou o seu medidor de glicemia e picou a ponta do dedo: 100. Era o valor correto; começava bem o dia.
Um manto pesado de nuvens cobria a região de Estocolmo quando, por volta das oito horas, se dirigiu para a área de Värmdö onde tinham encontrado o corpo de Louise von Enke. Chegou finalmente ao local exato, onde ainda havia restos de fita policial. O chão estava completamente encharcado depois da chuva intensa, mas Wallander pôde distinguir as marcas deixadas pelas delimitações da polícia em volta do cadáver.
Permaneceu totalmente imóvel, sustendo a respiração e ouvindo com atenção. A primeira impressão era sempre a mais importante. Olhou à sua volta com um lento movimento circular. O lugar onde encontraram Louise se situava numa pequena depressão ladeada por rochedos e ligeiras elevações do terreno. Se se deitara ali com a intenção de não ser vista por ninguém, escolhera o lugar ideal.
Depois pensou nas rosas; nas palavras que Linda disse a primeira vez que falou da futura sogra: "É uma mulher que adora flores, sempre sonhou ter um jardim bonito, uma mulher com jeito para plantas." Fora isso que Linda dissera; se lembrava perfeitamente. E aquilo estava tão longe de um bonito jardim quanto se podia imaginar.
Fora essa a razão para tê-lo escolhido? Porque a morte não era bonita, porque nada tinha a ver com rosas e com um jardim cuidado? Percorreu o lugar e observou-o de pontos distintos. Deve ter feito o último pedaço a pé, concluiu. E deve ter vindo desde o ponto em que deixei o carro. Mas como chegou aqui? De ônibus? De táxi? Ou alguém a trouxe?
Encaminhou-se até uma velha torre de vigilância para caçadores que se erguia no meio da área desbastada. A escada estava rachada e subiu-a com cuidado. Ali encontrou pontas de cigarro e latas de cerveja vazias. Viu um rato morto num canto. Desceu e continuou a caminhar. Tentou imaginar que se tratava do seu próprio suicídio.
Um lugar solitário, desarborizado e feio, um frasco de soporíferos. De repente, estacou. Cem comprimidos. Ytterberg não mencionara nenhuma garrafa de água. Podia alguém engolir tantos comprimidos sem beber nada? Uma vez mais, voltou pelo mesmo caminho por onde viera, pisando as suas próprias pegadas e tentou ver se havia alguma coisa que passara despercebida na sua primeira inspeção. Enquanto estudava o solo, tentou sentir Louise, aquela mulher tímida que com tanta simpatia e delicadeza ouvia o que os outros tinham para dizer. E foi então que Wallander começou a ficar ciente de que se achava na periferia de um mundo do qual nada sabia.
Era o mundo de Hakan e Louise von Enke, com quem nunca tivera uma relação até então. Não sabia o que foi exatamente que viu e sentiu entre os cepos de árvores e as silvas durante aquele instante. Não se tratava de algo tangível e muito menos de uma revelação. Era antes uma sensação de proximidade a algo que não poderia compreender, não tinha as condições necessárias.
Saiu daquele lugar e retornou à cidade, estacionou o carro em Grevgatan e subiu para o apartamento. Deambulou silencioso pelos aposentos desertos, recolheu o correio que estava no chão junto à porta e selecionou as faturas que Hans devia pagar, pois o serviço de reenvio ainda não começara a funcionar corretamente. Vasculhou as cartas para ver se encontrava algo inesperado, mas não havia nada. Uma vez que o apartamento precisava muito ser arejado, e Wallander tinha dores de cabeça provavelmente por causa do vinho de má qualidade que bebera na noite anterior, abriu a janela que dava para a rua com o máximo cuidado. Deu uma olhada ao atendedor de chamadas, cuja luz vermelha anunciava que havia ligações gravadas, e sentou para ouvi-las. "Marta Hõrnelius quer saber se Louise von Enke estaria interessada em participar num clube de leitura sobre literatura clássica alemã, com início no outono." Era tudo. Louise von Enke não participará em nenhum clube de leitura, disse Wallander para si. Fechou todos os seus livros para sempre.
Preparou um café na cozinha, foi ver na geladeira se havia algum alimento que tivesse começado a apodrecer e entrou no quarto, onde Louise tinha dois grandes armários. Não se deu ao trabalho de examinar a roupa e se centrou nos sapatos, que estavam arrumados em filas. Levou-os para a mesa da cozinha. Ao todo eram vinte e dois pares, mais dois pares de botas de borracha. Para que todos coubessem, se viu obrigado a recorrer ao balcão e à bancada da cozinha. Pôs os óculos e começou a examinar metodicamente todos os sapatos, um a um. Reparou que Louise calçava tamanhos muito grandes e que apenas comprava marcas de qualidade; até as botas de borracha eram de uma marca italiana que a Wallander também pareceu bem cara. Não sabia muito bem o que procurava, mas tanto Linda como ele mesmo tinham reagido ao fato de Louise ter descalçado os sapatos e tê-los deixado ao seu lado antes de morrer. Como se para criar uma impressão de perfeição, se dizia Wallander. Mas porquê?
Levou meia hora inspecionando os sapatos todos. A seguir telefonou para o celular de Linda e lhe contou as suas impressões da visita a Värmdö.
— Tem quantos pares de sapatos?
— Não sei.
— Louise tem vinte e dois, além daquele que está com a polícia. Isso é muito ou pouco?
— A mim me parece normal. Era uma mulher que se preocupava com o seu aspecto e a sua roupa.
— Era só isso que queria saber.
— Não tem mais nada para contar?
— Por agora, não.
Apesar dos seus protestos, Wallander se despediu de Linda e ligou para Ytterberg. Surpreendeu-se ao ouvir a voz de uma criança no auscultador, embora Ytterberg atendesse logo a seguir.
— A minha neta adora falar ao telefone. Hoje trouxe-a para o escritório.
— Não é minha intenção incomodá-lo, mas queria fazer uma pergunta.
— Não está incomodando. Mas me diga, não estava de férias também? Ou entendi mal?
— Não, estou de férias.
— Certo. O que queria perguntar? Não tenho nada que jogue nova luz sobre a morte de Louise von Enke, para dizer a verdade. Embora continuemos à espera do relatório forense.
Wallander se lembrou subitamente da questão da água.
— Na realidade, tenho duas perguntas. A primeira é muito simples: se é verdade que ingeriu tantos comprimidos, deve ter bebido alguma coisa para os engolir, não é?
— Sim, encontraram uma garrafa de água mineral de litro e meio vazia junto do corpo. Não lhe disse?
— Deve ter dito, mas talvez não estivesse ouvindo com atenção suficiente. Era Ramlösa ?
— Não, acho que era Loka, mas não tenho certeza. É importante?
— Não, não. Depois há o assunto dos sapatos.
— Sim, estavam junto ao corpo de Louise, cuidadosamente colocados.
— Pode descrevê-los?
— Marrons, salto baixo e novos, diria eu.
— Faria algum sentido pensar que tinha calçado uns sapatos desses para ir àquele lugar?
— Não eram propriamente uns sapatos de dança.
— Certo, mas eram novos?
— Eram. Pelo menos tinham um aspecto novo.
— Está bem, penso que não tenho mais perguntas.
— Telefono assim que vier o parecer do médico-legista. Só que ainda pode levar algum tempo, uma vez que estamos no verão.
— Ah, antes que me esqueça: têm alguma ideia de como chegou a Värmdö?
— Não, admitiu Ytterberg. — Ainda estamos averiguando isso.
— Era só por curiosidade. Obrigado mais uma vez.
Rodeado novamente pelo silêncio do apartamento, Wallander ficou muito tempo com o auscultador na mão, se agarrando a ele como se fosse o último objeto que lhe restava na vida. Sapatos marrons, novos. Certamente não uns sapatos de dança. Muito devagar e muito pensativo, foi devolvendo os sapatos ao armário.
* * *
No dia seguinte retornou bem cedo a Ystad. Logo na mesma tarde, se dirigiu para o grande armazém para devolver a tesoura de poda e lhes dizer que não prestava. Ao contrário do que era habitual nele, nesta ocasião se irritou bastante e exigiu falar com um responsável. Veio um chefe, que por sinal sabia quem ele era, e no fim lhe entregaram um modelo mais sofisticado pelo mesmo preço.
Quando chegou em casa, viu que Ytterberg telefonara. Wallander discou o seu número.
— Deu-me que pensar, confessou Ytterberg. — Não pude evitar ir ver os sapatos outra vez. Tal como lhe disse, quase não tinham sido usados.
— Não era preciso se incomodar para satisfazer a minha curiosidade.
— Na verdade, não é por causa dos sapatos que quero falar consigo, prosseguiu Ytterberg impassível. — E que resolvi dar mais uma vista de olhos na bolsa dela, já que estava revendo as suas coisas. E então descobri que tinha uma espécie de bolso interior, quase como um compartimento secreto. E nele encontrei uma coisa muito interessante.
Wallander susteve a respiração.
— Papéis, continuou Ytterberg. — Documentos. Em russo. E também material em microfilme. Não sei o que contém, mas achei suficientemente extraordinário para telefonar aos nossos colegas da polícia secreta.
Wallander teve uma certa dificuldade em compreender o alcance daquilo que acabava de ouvir.
— Significa que Louise andava por aí com informação secreta?
— Não sabemos. Mas um microfilme é um microfilme e compartimentos secretos são secretos. E russo é russo. Só queria que soubesse. Talvez seja melhor reservarmos a informação, no momento. Até sabermos do que se trata realmente. Ligo quando tiver mais notícias.
Terminado o telefonema, Wallander saiu para o jardim e se sentou. O calor voltara e a noite prometia ser uma bonita noite de verão. Ele, porém, começara a sentir frio.
* * *
Terceira Parte
O Sono da Bela Adormecida
Vinte e Um
WALLANDER não tinha qualquer intenção de cumprir a sua promessa e resolveu falar imediatamente com Linda e com Hans. Tratando-se de escolher entre respeitar a sua família ou os serviços de informação suecos, não duvidava da sua opção. Diria, palavra por palavra, a informação obtida sobre Louise; era o seu dever para com eles.
A seguir à conversa com Ytterberg, permaneceu sentado durante muito tempo. A sua primeira reação foi a de que havia algo que não fazia sentido. Era uma ideia absurda: Louise von Enke, agente a serviço da Rússia? Mesmo que a polícia tivesse encontrado documentos comprometedores na sua bolsa, mesmo dentro de um local secreto, ele era incapaz de acreditar que fosse verdade. Por outro lado, por que motivo Ytterberg lhe telefonaria para contar uma mentira? Depois dos seus breves encontros, Wallander começara a confiar nele e tinha a convicção de que não teria ligado se não tivesse certeza absoluta da veracidade da informação. Sabia o que devia fazer. Louise não beneficiaria em nada se tentasse protegê-la negando os fatos; não, tinha de levar a sério a versão de Ytterberg. Independentemente de qual fosse a explicação posterior, nunca implicaria que a relação dos fatos apresentados por Ytterberg fosse falsa; pelo contrário, as conclusões seriam, ou deveriam ser, distintas.
Sentou-se ao volante e se dirigiu para a casa de Linda e Hans. Tinham deixado Klara no carrinho à sombra de uma árvore, enquanto eles se balançavam na cama de rede, cada um com uma xícara de café na mão.
Wallander se sentou numa das cadeiras de jardim e lhes transmitiu textualmente a informação recebida. Tanto Hans como Linda reagiram com incredulidade. Enquanto Wallander falava, surgiu na sua mente o nome de Wennerström, o coronel da Força Aérea que cerca de cinquenta anos atrás vendera uma boa parte da informação confidencial da defesa sueca. No entanto, não lhe passaria pela cabeça ligar Louise von Enke àquele homem que com tanta avareza e astúcia se dedicara à espionagem durante tantos anos.
— Não estou pondo em causa o que me contou Ytterberg, concluiu. — Como aliás também não duvido que existirá uma explicação lógica para que esses documentos se encontrassem na sua bolsa.
Linda meneou a cabeça, olhou para Hans e depois fixou o olhar no pai.
— É mesmo verdade?
— Obviamente que não teria vindo aqui para contar uma coisa que não fosse a reprodução exata daquilo que acaba de me ser transmitido.
— Não precisa se irritar, é natural que perguntemos.
— Não me irrito, mas não me façam perguntas desnecessárias.
Tanto Linda como Wallander se deram conta de que estavam prestes a entrar numa discussão e conseguiram parar a tempo. Hans, por outro lado, não parecia notar nada. Wallander se virou para ele e viu a tristeza e a preocupação que ensombravam o seu rosto.
— O que acaba de ouvir lhe sugere alguma coisa? Perguntou com certa prudência. — Ao fim e ao cabo, de nós três você é a pessoa que melhor a conhecia.
— Nada de nada. Há pouco tempo, fiquei sabendo que tenho uma irmã, e agora isto. Tenho a sensação de que os meus pais estão se tornando nuns estranhos para mim. É como se os visse nuns binóculos virados ao contrário; vão se afastando cada vez mais.
— Não lhe desperta nada? Memórias remotas? Algumas palavras pronunciadas em algum momento, alguma visita?
— Nada. Só sinto um terrível nó no estômago.
Linda pegou na sua mão, e Wallander se levantou e se aproximou do carrinho que continuava por baixo da macieira. Um besouro zumbia em volta do mosquiteiro. Wallander levantou a rede com cuidado e observou a garotinha, que dormia. Recordou a imagem de Linda também no seu carrinho, a angústia permanente de Mona e a sua própria felicidade por ser pai. Voltou para a sua cadeira.
— Ela ainda dorme.
— Mona me contou que eu costumava chorar durante a noite.
— Chorava, sim. Era eu que costumava levantar para pegá-la no colo.
— Isso não é o que Mona conta.
— Está bem, ela nunca se interessou muito pela verdade. Pensa que se lembra de coisas de que na realidade já se esqueceu. Era eu quem passava as noites consigo nos braços enquanto ela dormia. Havia noites em que não tive mais de duas horas de sono e depois tinha de ir trabalhar na mesma.
— Klara quase nunca nos acorda de noite.
— Isso é uma bênção. Posso dizer que passei mais de uma noite horrível, consigo chorando, baba e ranho.
— E era você que me consolava?
— Sim senhora, embora às vezes colocasse tampões nos ouvidos. Mas sim, tocava a mim andar consigo nos braços, e o resto é mentira, por muito que lhe diga Mona.
Hans pousou a xícara de café sobre a mesa com tal veemência que parte do conteúdo salpicou para fora. Parecia não ter prestado atenção nenhuma à conversa entre pai e filha.
— Onde esteve a minha mãe todo este tempo? E onde está Hakan?
— O que acha? Qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça agora que tudo está mudando?
Foi Linda quem fez aquelas perguntas. Wallander olhou-a surpreso, pois ele acabava de formar as mesmas interrogações na sua mente; mas Linda fora mais rápida.
— Não sei o que responder. Mas algo me diz que o meu pai continua vivo. Por estranho que pareça, no mesmo instante em que soube da morte da minha mãe tive a nítida sensação de que o meu pai ainda está vivo.
Wallander se encarregou das perguntas seguintes.
— Porquê? Deve certamente haver alguma coisa que o fez pensar assim, não é verdade?
— Não sei. Wallander não esperava que Hans tivesse muito a dizer tão de repente, pois já se dera conta de que a falta de comunicação entre os vários membros da família Von Enke era grande.
Parou no meio do seu raciocínio, se dizendo que esse fato, precisamente, lhe oferecia um ponto de partida. O que sabiam os cônjuges Von Enke um do outro, no fundo? Havia entre eles tantos segredos como entre o restante da família ou seria ao contrário? Podia se dar o caso de ter havido uma relação muito profunda entre Hakan e Louise? No momento não encontrava respostas, não era possível adiantar mais nada.
Sem dizer nada, Hans se levantou e entrou em casa.
— Precisa telefonar para Copenhague, explicou Linda. — Acabamos de combinar isso quando você chegou.
— Combinar o quê?
— Que hoje ficaria em casa.
— Mas o homem nunca tira um dia de folga?
— Bom, há um grande nervosismo nas bolsas de valores. Hans está preocupado, por isso está sempre trabalhado.
— Com os islandeses? Linda olhou-o, intrigada.
— Está tentando ser irônico? Não esqueça de que está falando do pai da minha filha!
— Bem, quando me mostrou a sua sala, estava cheio de islandeses. Não vejo porque havia de ser irônico que me lembrasse disso agora.
Linda rejeitou aquele comentário com um gesto de mão precisamente quando Hans voltava para a cama de rede. Durante uns minutos falaram do funeral de Louise. Wallander não soube dizer quando poderiam recuperar o corpo depois do exame de medicina legal.
— É esquisito, comentou Hans. — Ontem recebi um envelope enorme cheio de fotografias do aniversário de Hakan. Alguém as tirou e só agora é que se lembrou de enviar. Devem ser umas cem fotografias, no mínimo.
— Quer que as vejamos? Perguntou Linda.
— Não, agora não. Hans encolheu os ombros. — Guardei-as com as listas de convidados e os outros documentos que têm a ver com a festa. As cópias das faturas, por exemplo.
Wallander estava mergulhado nos seus pensamentos e só ouviu vagamente o que Hans acabava de dizer a Linda. De repente, despertou da sua letargia e perguntou:
— Ouvi bem? Disse "lista de convidados"?
— Sim, bom, tudo estava muito bem organizado. Não era por acaso que o meu pai era oficial. Foi anotando quem veio, quem avisou que não podia vir e quem, contra todas as regras, nem apareceu nem deu explicação nenhuma para a sua ausência.
— E como essas listas estão em seu poder?
— Porque nem o meu pai nem a minha mãe sabiam muito de informática, de modo que os ajudei a pôr tudo no computador e imprimir. Ele queria que também fosse introduzindo os seus comentários, sabe se lá porquê, mas nunca cheguei a fazer.
Wallander mordia o lábio enquanto refletia, até que se levantou e disse:
— Gostaria de ver essas listas. E as fotografias. Posso ir para casa agora e levá-las comigo se tiverem outros planos.
— Com um bebê não se fazem planos, respondeu Linda. — Já esqueceu? Daqui a pouco vai acordar e então se acabou esta paz celestial. Se bem o conheço, é melhor ir para casa agora. Acho que será melhor para todos.
Hans entrou em casa e voltou minutos depois com várias capas de plástico, cheias de papéis e fotografias. Linda acompanhou Wallander até ao carro. A distância se ouviu o súbito ribombar de um trovão. Antes de Wallander abrir a porta do carro, ela se colocou à frente da porta.
— É possível que tenham se enganado e se trate de um assassinato?
— Nada faz pensar que assim seja. Ytterberg é um bom policial e muito experiente. Reagiria à mínima suspeita.
— Conte-me outra vez qual era o seu aspecto quando a encontraram.
— Os sapatos estavam cuidadosamente colocados junto ao corpo. E jazia de meias e com a roupa aprumada; quer dizer, não tinha caído, se deitara de livre vontade.
— Mas, e os sapatos?
— Conhece o ditado que já caiu em desuso e que diz que uma pessoa descalça os sapatos quando morre?
Linda meneou a cabeça com manifesta impaciência.
— Que roupa tinha vestida?
Wallander fez um esforço para se lembrar do que Ytterberg lhe dissera a esse respeito.
— Saia preta, blusa cinzenta, roupa interior e meias até ao joelho.
Linda protestou de forma veemente.
— Nem pensar! Nunca a vi usar meias pelo joelho. Ou usava collants ou não usava nada.
— Tem certeza?
— Absoluta. Só usava meias de lã nas poucas vezes que fazia esqui. Mas isso não tem nada a ver.
Wallander refletiu sobre o que podia significar aquilo. Não tinha qualquer dúvida de que Linda sabia do que estava falando: quando se mostrava tão convencida costumava ter razão.
— Não consigo lhe dar uma explicação satisfatória. Mas vou fazer chegar a sua questão à polícia de Estocolmo.
Linda se afastou e fechou a porta depois de Wallander se sentar ao volante.
— Louise não era o tipo de mulher que se suicida, assegurou.
— No entanto, foi isso que fez.
Linda meneou a cabeça sem dizer nada. Wallander notou de que ela deixara subentendida uma mensagem para que a interpretasse, mas não era nada que tivesse de ser discutido naquele momento. Pôs o motor a trabalhar e arrancou. Quando parou ao chegar à estrada principal, virou de repente na direção contrária, deixou Ystad para trás e seguiu o caminho paralelo ao mar, para Trelleborg. Sentia necessidade de se mover. Na praia de Mossby havia vários trailers e os campistas gozavam a vista do mar. Estacionou junto ao meio-fio e desceu até a praia. A cada vez que voltava àquele lugar ficava com a sensação de que precisamente aquele pedaço de praia, nada de especial e não muito bonito, era um dos lugares centrais na sua vida. Ali costumava ir caminhar quando Linda era pequena, ali tentou se reconciliar com Mona quando ela lhe disse que queria se separar. Naquela praia, Linda lhe comunicara, dez anos antes, a sua decisão de ser policial e que já fora aceita no curso da Escola Superior de Polícia de Estocolmo. E, não menos importante, foi ali que Linda contou que estava grávida de Klara.
Naquela mesma praia chegara, há quase vinte anos, uma balsa com dois homens mortos, torturados, anônimos, e só muito tempo depois fora possível identificá-los como cidadãos letões. Wallander sabia exatamente o ponto em que a balsa dera à costa, quase conseguia ver os seus colegas em volta da embarcação vermelha, sentir o vento cortante que os açoitava, e a expressão amarga de Nyberg tentando fazer uma ideia do que teria acontecido àqueles dois homens, além de estarem mortos, assassinados a tiro, não afogados.
Wallander começou a caminhar pela praia e aos poucos o seu corpo se desprendeu de toda a rigidez provocada pelo seu sedentarismo, pela imobilidade. Pensava no que Linda dissera. Bem, mas as pessoas se suicidam, quer nós queiramos quer não, disse para si. Conheço vários casos em que nunca pude imaginar que acabariam com a sua própria vida e que não obstante o fizeram sem hesitar e, na maioria das vezes, seguindo um plano bem premeditado. Quantos mortos não ajudei a tirar a corda com que se enforcaram? Quantos restos não recolhi depois de enfiarem a pistola na boca e dispararem? E posso contar pelos dedos de uma mão os familiares que admitiram que não estavam surpresos.
Wallander prolongou tanto a caminhada que se sentiu cansado ao voltar para o carro. Sentou-se atrás do volante, abriu uma das capas de Hans e parou ao acaso numa ou noutra fotografia. Acreditou reconhecer muitos rostos, de outros não se recordava. Deixou as fotografias na capa e foi para casa. Se queria tirar partido daquele material, teria de estudá-lo exaustivamente e não passá-lo por alto como agora, atrás do volante do carro.
No fim da tarde se sentou à mesa da cozinha. Devo começar por aqui, disse para si mesmo. Pelas fotografias de uma grande festa familiar bem organizada, com um homem que faz anos e a sua mulher. Observou as imagens uma a uma. Visto que se entreviam sempre as mesas, podia calcular aproximadamente se as fotografias haviam sido tiradas antes, durante ou depois da refeição. No total se tratava de cento e quatro retratos, muitos deles desfocados ou com má resolução. Em sessenta e quatro apareciam ou Louise ou Hakan e em doze os dois juntos. Em duas das fotografias trocavam olhares, ela sorria, ele parecia mais sério. Wallander colocou as fotografias em fila, organizando-as segundo a cronologia mais verosímil. Chamou-lhe a atenção a seriedade de Hakan von Enke, perceptível em todas as fotografias. Posa como um oficial severo ou estas imagens refletem a inquietação da qual não demorará em me falar naquela noite? Se perguntava Wallander. Não sei, mas diria que aqui já estava preocupado.
Louise, por outro lado, sorria em todas exceto numa fotografia onde não estava ciente da presença imediata do fotógrafo. É a única fotografia sincera ou é mero acaso? Interrogou-se Wallander. Passou a estudar aquelas imagens em que a máquina fotográfica captara uma boa parte dos convidados; rostos amáveis de pessoas de certa idade que respiravam vidas desafogadas. Não são exatamente uns pobrezinhos os que vieram assistir à festa de Hakan von Enke, resmungou para si. Esta gente pode se dar ao luxo de mostrar um ar satisfeito.
Wallander afastou as fotografias e passou à lista dos convidados Contou cento e dois, redigidos por ordem alfabética. Muitos eram marido e mulher. Estudava a primeira lista quando o telefone tocou. Era Linda.
— Tenho curiosidade, confessou. — Encontrou alguma coisa?
— Nada que já não soubesse antes. Louise sorri, Hakan está sério. Será que nunca sorria?
— Não muitas vezes. Mas o sorriso de Louise é sincero; ela não fingia. Aliás, acho que sabia distinguir muito bem as pessoas fingidas.
— Acabo de começar a ver as listas de convidados, cento e dois nomes. Quase não conheço nenhum: Alvén, Alm, Appelgren, Berntsius...
— Desse me lembro bem, interrompeu-o Linda. — Sten Berntsius, um alto oficial da Armada. Conheci-o num jantar bastante desagradável na casa de Hakan e Louise. Tinha ido com a mulher, uma criatura reprimida que não abria a boca sem se ruborizar e que bebia demais. Mas Sten Berntsius era horrível.
— Em que sentido?
— Pelo seu ódio a Olof Palme. Wallander franziu a testa.
— Há quanto tempo conhece Hans? Uns dois anos, desde 2006? Se não me engano, se passaram vinte anos desde o assassinato do Palme.
— O ódio costuma perdurar.
— Não podes estar falando sério se diz que esteve num jantar em que os convidados falavam mal de um primeiro-ministro sueco assassinado há mais de duas décadas?
— É exatamente isso que estou dizendo. Sten Berntsius começou por dizer que Palme fazia espionagem por conta da União Soviética, um comunista clandestino, um traidor à pátria, e sabe lá Deus o que mais disse.
— E quais eram as opiniões de Hakan e Louise?
— Infelizmente, acho que pelo menos Hakan estava de acordo. Louise não dizia grande coisa, se limitava a pôr panos quentes. Mas se instalou um ambiente de cortar com faca.
Wallander puxou pela memória. Para ele, Olof Palme representava antes de tudo um exemplo do mais lamentável fracasso da polícia sueca. Mal se lembrava dele como político. Um homem de voz cortante e com um sorriso por vezes não muito afável. Não era capaz de dizer que memórias eram fiéis à verdade. Durante a época de Palme, a política não lhe interessava, pois coincidira com os anos em que tentava pôr ordem na sua própria vida e, também, lidar com o difícil temperamento do pai.
— Palme era primeiro-ministro quando os submarinos estrangeiros invadiram as nossas águas, disse. — Suponho que foi isso que os levou a falar dele?
— Na verdade, não foi. Se a memória não me falha, discutiram sobretudo acerca da degradação da defesa sueca, que, segundo diziam, tinha começado durante o seu mandato. Ele era o único responsável pela Suécia ter ficado sem capacidade para se defender. Berntsius afirmava que foi um grande erro acreditar que a Rússia adotaria sempre uma posição pacífica.
— Que opiniões políticas assumiam o casal Von Enke, no fundo?
— Os dois eram evidentemente muito conservadores. Louise, por seu lado, quis dar a impressão de que desprezava tudo o que tinha a ver com política. No entanto, não era bem verdade.
— Ou seja, também fingia, apesar de tudo.
— Talvez. Enfim, telefone se encontrar algo interessante.
Wallander saiu para dar de comer a Jussi. O pelo do cão estava emaranhado e o animal tinha um aspecto cansado. Wallander se perguntou se seria verdade que os cães e os seus donos acabavam por se parecer uns com os outros. Nesse caso, a julgar pelo cão, podia se dizer que a velhice lhe colocara realmente as garras. Estaria já nesse estado, se aproximando da senilidade, cada vez mais débil? Pôs de parte essas preocupações e voltou para dentro de casa. Entretanto, quando se preparava para se sentar novamente à mesa da cozinha, notou do absurdo da sua tarefa: não havia nada nem nas fotografias nem nas listas de convidados que pudesse lançar luz sobre os desaparecimentos. Não, ali não acharia nada. Fosse qual fosse a realidade, devia haver outra explicação; a sua busca era inútil. Não estava à procura da agulha, mas sim de um palheiro. Recolheu o que espalhara sobre a mesa da cozinha e deixou o material na mesa do hall. Devolveria tudo no dia seguinte e tentaria deixar de pensar na morte de Louise e no desaparecimento de Hakan.
Quando chegasse o momento, compareceriam na Igreja de Kristberg, magnificamente situada com vista para o lago Boren, na Gotlândia Oriental onde a família Von Enke dispunha de um mausoléu familiar centenário em que depositariam o ataúde de Louise. Hans lhe contara que os seus pais tinham deixado um testamento conjunto em que declararam que não queriam ser cremados. Wallander se sentou na poltrona da sala e fechou os olhos. O que ele preferia? Não tinha nenhum mausoléu nem nenhum túmulo. As cinzas da sua mãe haviam sido espalhadas num jardim memorial e o seu pai fora enterrado num dos cemitérios de Ystad. Quanto à sua irmã Kristina, que vivia em Estocolmo, desconhecia os seus planos a esse respeito. Adormeceu na poltrona.
* * *
Acordou sobressaltado. Prestou atenção aos ruídos da noite estival: o latido de Jussi arrancara-o do sono. Levantou-se com a camisa empapada de suor, devia ter estado a sonhar. Jussi não costumava latir sem motivo. Quando começou a caminhar sentiu as pernas dormentes e foi reanimando-as enquanto continuava atento aos sons da penumbra: Jussi deixara de latir. Wallander abriu a porta e parou na entrada, e o animal começou a dar saltos e a ganir na frente da cerca.
Wallander olhou em volta. Deve ser uma raposa que anda rondando por aqui, disse para si mesmo. Atravessou o pátio. A grama soltava um aroma intenso. Não havia vento, tudo estava calmo. Coçou Jussi atrás das orelhas. O que lhe fez latir? Perguntou-lhe num sussurro. Viu algum animal? Ou será que os cães também têm pesadelos?
Caminhou até ao limite da propriedade e urinou enquanto contemplava os campos cultivados. Tudo eram sombras, o difuso pressentimento da luz da manhã a leste. Olhou o relógio, quinze para as duas; passara quase quatro horas dormindo na poltrona. Estremeceu de frio por causa da camisa úmida, voltou a entrar e se deitou na cama, mas não conseguiu conciliar o sono. Kurt Wallander pensa na morte deitado na cama, declarou em voz alta. E assim era; estava pensando na morte. Por outro lado, fazia isso muitas vezes; a morte era mais um componente da sua vida desde aquele dia em que, ainda um jovem policial, levara uma facada no peito a uns míseros centímetros do coração. Todas as manhãs via o rosto da morte no espelho. Mas, agora que não podia dormir, sentia-a subitamente muito próxima. Tinha sessenta anos, era diabético, tinha peso a mais, não se cuidava como devia, fazia pouco exercício, bebia demais, comia mal e de forma desordenada. De vez em quando se obrigava a manter uma disciplina que não demorava a abandonar, E, deitado agora ali na penumbra, sentiu pânico. Já não contava com nenhuma margem, já não tinha nada entre o que escolher: ou mudava o seu estilo de vida de forma radical ou sofreria uma morte prematura; ou tentava chegar aos setenta anos ou contava com que a morte se podia apresentar a qualquer momento. Nesse caso, Klara ficaria sem avô, do mesmo modo que, por razões ainda por esclarecer, perdera a sua avó paterna.
Ficou acordado até às quatro da madrugada. O medo ia e vinha em ondas. Quando por fim adormeceu, tinha o coração encolhido de tristeza, pois a maior parte da sua vida ficara irremediavelmente para trás.
* * *
Acabava de acordar pouco depois das sete, cansado e com uma dor de cabeça, quando de repente tocou o telefone. Num primeiro momento pensou em deixá-lo tocar. Certamente seria Linda que ligava para satisfazer a sua curiosidade. A filha podia esperar e, ao ver que não respondia, perceberia que estava dormindo. Mas, no quarto toque, saiu da cama e levantou o auscultador. Era Ytterberg, que soava desperto e cheio de energia.
— Acordei-o?
— Quase, respondeu Wallander. — Tento estar de férias, mas a verdade é que não me saio muito bem.
— Vou ser breve, mas desconfio que quer saber o que neste momento tenho na minha mão: um documento do Instituto de Medicina Legal, de uma tal doutora Anahit Indoyan. Levei algum tempo para descobrir que se tratava de uma mulher.
— Que nome curioso, opinou Wallander.
— O nosso país está sendo inundado de nomes curiosos, disse Ytterberg algo desanimado. — Claro que não digo isso num sentido negativo, até acho bem que se tente acabar com os nomes vulgares e assumir que nem toda a gente se chama Andersson.
— Bem, os "Wallander" e os "Ytterberg" não correm esse risco, observou Wallander. — Não creio que haja mais do que alguns milhares em todo o país.
— Anahit Indoyan, repetiu Ytterberg, — Segundo informação que recolhi por mera curiosidade, é armênia. Escreve um sueco impecável que pude verificar ao ler a análise que fez das substâncias químicas encontradas no cadáver de Louise von Enke. E fez um achado que lhe pareceu estranho.
Wallander susteve a respiração à espera da continuação. Ouviu como o policial folheava uns papéis.
— Trata-se sem dúvida de um composto químico que, para simplificar, pode se incluir no grupo dos soporíferos, prosseguiu Ytterberg finalmente. — Pôde identificar parte dos componentes, mas há outros que não reconhece. Ou melhor, não é capaz de determinar de que substância se trata, mas claro que não pensa em desistir. No entanto se permitiu fazer uma observação muito interessante no final do seu relatório preliminar. Segundo diz, existem semelhanças mais ou menos óbvias com compostos químicos utilizados nos tempos da antiga República Democrática Alemã.
— República Democrática Alemã?
— Parece que afinal ainda não está bem acordado? Wallander não compreendia nada. — A Alemanha do Leste. O milagre do esporte, não se lembra? Todos aqueles nadadores e atletas fora de série que vinham de lá. Hoje sabemos que estavam drogados até à raiz dos cabelos. Na realidade, os milagrosos esportistas da Alemanha do Leste não passavam de monstros completamente toxicodependentes. E não restam dúvidas de que tudo estava relacionado: o que a Stasi fazia e aquilo a que os laboratórios esportivos se dedicavam eram duas atividades complementares; compartilhavam as suas experiências. Daí que a boa doutora Anahit se permita supor que podem ser compostos químicos relacionados com a antiga Alemanha do Leste, concluiu Ytterberg.
— Apesar de não existir há vinte anos?
— Bem, não exatamente, mas quase. Foi em 1989 que o Muro de Berlim caiu. Lembro-me porque nesse outono me casei pela segunda vez.
Ytterberg se calou e Wallander tentou ordenar as suas ideias.
— Pois me parece muito estranho, sentenciou por fim.
— Parece, não parece? Percebi logo que isto despertaria o seu interesse. Quer que lhe envie uma cópia para a delegacia?
— Estou de férias, mas irei lá buscá-la.
— E esperemos pela continuação, disse Ytterberg. — Agora vou dar uma caminhada na floresta com a minha mulher.
Wallander desligou. Não deixava de pensar no que lhe dissera Ytterberg, cujas palavras tinham suscitado uma ideia na sua mente. Já sabia o que devia fazer. Pouco depois das oito se sentou ao volante e guiou na direção do noroeste. O seu destino se encontrava nos arredores de Hóór, numa pequena casa que vira os seus melhores dias se desvanecerem há muitos anos.
* * *
Vinte e Dois
WALLANDER recolheu o relatório na recepção da delegacia. No caminho para Höör, fez algo que raramente se permitia fazer. Parou pouco depois da saída de Ystad e aceitou uma mulher que pedia carona. A mulher aparentava ter trinta anos, tinha cabelo comprido e escuro e uma mochila pequena pendurada no ombro. Não sabia porque parara, talvez fosse pura curiosidade. Com os anos, vira diminuir o número de pessoas que pediam carona, até praticamente desaparecerem das calçadas e dos acessos à cidade. Essa forma de viajar fora ultrapassada pelo preço reduzido das passagens de ônibus e de avião.
Ele mesmo andara de carona duas vezes na sua vida, aos dezessete e aos dezoito anos, quando viajara pela Europa, apesar do seu pai se opor categoricamente a aventuras dessa natureza. Em ambas as ocasiões conseguira chegar a Paris e voltar para casa. Ainda guardava na memória os momentos de espera desolada em acostamentos na chuva, a mochila muito pesada e motoristas cuja conversa o aborrecia. No entanto, dois acontecimentos tinham permanecido intactos nas suas lembranças. Numa das ocasiões, se encontrava perto de Gent, na Bélgica, chovia e quase não tinha dinheiro para voltar para casa. Então, parou um carro que o levou todo o caminho até Helsingborg.
Nunca se esqueceu da sensação de felicidade que o inundou ao ver que chegaria à Suécia em uma carona só. A outra recordação também era da Bélgica. Numa noite de sábado, desta vez a caminho de Paris, ficara preso num lugar pequeno e afastado, apenas ligado ao mundo por estradas secundárias. Permitira-se o luxo de comer um prato de sopa num restaurante barato antes de iniciar a caminhada, disposto a encontrar algum viaduto por baixo do qual passar a noite. De repente, em frente a um monumento junto à estrada, vira um homem a levar um trompete à boca e dar o toque melancólico do recolher. Wallander compreendeu que tocava em honra de todos os soldados caídos durante as duas grandes guerras, Foi um momento emocionante que jamais esqueceu.
Agora, tão cedo de manhã, via uma mulher junto ao acostamento, com o polegar estendido. Era como se acabasse de sair de outra época. A mulher correu para o carro quando o viu frear e se sentou ao seu lado. Aparentemente, se contentava que ele a deixasse em Höör; depois seguiria para Smaland. Cheirava intensamente a perfume e parecia muito cansada. Quando puxou a saia sobre os joelhos, Wallander entreviu umas manchas de um líquido. Mal parara o carro e já estava arrependido. Porque havia de levar uma completa desconhecida no carro? Sobre o que conversaria com ela? A mulher guardava silêncio, Wallander também. Então, tocou um celular dentro da mochila, ela tirou o aparelho e leu algo no visor.
— Não nos deixam em paz, comentou Wallander. — Os telefones, quero dizer.
— Bem, não precisamos de atender se não quisermos.
Falava com um sotaque acentuado de Skane. Wallander calculou que fosse de uma área operária de Malmö. Tentou imaginar o seu trabalho, como seria a sua vida. Não tinha nenhuma aliança no anelar esquerdo. Pela olhada rápida que deu nas suas mãos descobriu também que roía as unhas até à raiz. Wallander descartou a possibilidade dela trabalhar na área da saúde ou num cabeleireiro. E também não seria garçonete, evidentemente. Além disso, parecia nervosa; mordia o lábio inferior com muita persistência.
— Estava à espera há muito tempo?
— Quinze minutos ou isso. Tive de sair de outro carro. O motorista começava a se tornar incômodo.
Falava em tom neutro; parecia ausente, relutante em conversar. Wallander decidiu não insistir mais. Dentro de pouco tempo ela sairia em Höör e nunca mais voltariam a se ver. Considerou vários nomes possíveis na sua mente e decidiu que a recordaria como Carola, que apareceu do nada e que veria pela última vez pelo espelho retrovisor.
Perguntou-lhe onde queria que a deixasse.
— Tenho fome, respondeu ela. — Deixe-me num lugar onde haja um café.
Wallander virou para estacionar num restaurante de estrada. Ela lhe deu um sorriso tímido, agradeceu e foi embora. Wallander engatou a marcha-a-ré, retrocedeu e, subitamente, não sabia para onde ir. Tinha a mente em branco. Estava em Höör e acabava de deixar uma mulher, mas o que ele fazia ali? Começou a sentir um pânico crescente. Tentou acalmar, fechou os olhos na esperança de tudo voltar à normalidade. Passou-se mais de um minuto até que se lembrou de qual era o seu destino. Donde procedia aquele súbito vazio que o invadia às vezes? O que é que lhe provocava aqueles lapsos momentâneos de memória? Por que motivo não sabiam os médicos dizer o que acontecia com ele?
Retomou a sua viagem. Apesar de já terem se passado cinco ou seis anos desde a última vez que vira o homem que ia visitar, se lembrava perfeitamente da estrada que serpenteava através de um pequeno bosque, passando por umas cercas onde pastavam cavalos islandeses e desembocando finalmente numa depressão de terreno. E ali estava a casa de tijolo vermelho, tão deteriorada como ele a recordava. O único indício de uma mudança digna de nome era a caixa de correio nova em folha que havia junto ao portão aberto, onde também havia uma pequena pracinha para os veículos dos correios e do lixo darem a volta. Na caixa se lia o nome "Eber" em grandes letras manuscritas a vermelho. Wallander desligou o motor e permaneceu um pouco sentado ao volante. Lembrou-se do dia em que conhecera Herman Eber, há mais de vinte anos, por volta de 1985 ou 1986, quando ele entrara sem papéis na Suécia vindo da Alemanha do Leste e resultou num caso policial. Eber pedira asilo político, que lhe foi concedido passado algum tempo. Wallander foi quem fez o primeiro interrogatório sumário na noite em que se apresentou na delegacia de Ystad, se declarando refugiado político. Ainda se lembrava da sua fala num inglês deficitário, assim como da sua desconfiança ao ouvir que Eber pertencia à Stasi, a polícia secreta da República Democrática Alemã, e que se não lhe concedessem asilo político temia pela sua vida. O caso foi entregue a outro, e Wallander só voltou a saber dele meses depois quando o próprio Eber entrou em contacto com ele, já com autorização de residência na Suécia. Aprendera sueco quase a perfeição num período de tempo surpreendentemente curto e foi na sala de Wallander para agradecer. "Agradecer o quê? Perguntara Wallander então. E Eber lhe falou então do espanto que sentira ao ver que um policial como Wallander tratava com tanta amabilidade um homem procedente de um país inimigo. Pouco a pouco compreendeu que a propaganda malévola que a Alemanha do Leste difundia contra os países vizinhos não tinha neles correspondência. Precisava agradecer a alguém, dissera Eber. E a sua escolha incidiu simbolicamente sobre Wallander. Depois começaram a se ver de vez em quando, visto que ambos partilhavam a mesma paixão por ópera italiana.
Quando caiu o Muro de Berlim, Eber viu a cobertura desse feito histórico direto na televisão de Wallander em Mariagatan, com os olhos cheios de lágrimas. Durante as suas longas conversas, Eber fora contando a Wallander o seu percurso de vida, começando pelo seu apoio incondicional ao sistema político, que foi dando lugar a um sentido crítico cada vez mais contundente. E, ao mesmo tempo, começou também a odiar a si mesmo; ele fora um dos muitos que espiavam, perseguiam e torturavam os seus concidadãos.
A sua situação era privilegiada, até tinha tido a honra de apertar a mão de Erich Honecker durante um banquete. Aquilo enchera-o de orgulho, um aperto de mão com o grande líder, mas depois teria preferido não tê-lo feito. No fim, as suas dúvidas eram tão fortes que começou a se perguntar o que estava fazendo exatamente e a sensação crescente de que a República Democrática Alemã era um projeto político condenado ao fracasso, até que decidira fugir. Escolhera a Suécia apenas porque viu a possibilidade de entrar nesse país com êxito: sob uma identidade falsa podia subir a bordo de um dos ferryboats para Trelleborg.
Wallander sabia que ainda temia que o passado o pegasse e lhe ensombrasse o presente. Apesar da Alemanha do Leste ter deixado de existir, as suas vítimas continuavam vivas. Wallander percebeu naquele momento que nada podia remediar o medo de Eber, que existia e talvez nunca chegasse a se dissipar. Com o passar dos anos, Eber foi tornando num homem cada vez mais tímido e reservado, e os seus encontros foram se espaçando até cessarem por completo.
A última vez que se viram se deveu ao fato de Wallander ter ouvido o rumor de que Eber estava doente e numa tarde de domingo resolveu ir a Höör para ver como se encontrava. Eber estava como sempre, talvez um pouco mais magro. Era uns dez anos mais novo que Wallander, mas parecia envelhecer muito mais rapidamente. Wallander refletiu muito sobre o destino de Herman Eber quando foi para casa naquele dia, depois da visita malsucedida em que ficaram calados, um em frente ao outro. A porta da casa de tijolo vermelho estava entreaberta. Wallander saiu do carro.
— Olá, sou eu! Gritou. — Nem mais nem menos que o seu velho amigo de Ystad!
Herman Eber apareceu na entrada. Estava vestido com uma velha roupa de treino que Wallander suspeitava ser uma das poucas peças de roupa que conseguira trazer quando fugira do seu país. O pátio estava cheio de peças desmontadas e Wallander se perguntou fugazmente se Herman Eber não teria colocado armadilhas em pontos estratégicos em volta da casa. O homem semicerrou os olhos ao olhar para Wallander, como se não visse a luz do dia há muito tempo.
— Ah, é você, disse Eber finalmente. — Há quanto tempo não vinha aqui!
— Há muitos anos. Mas, e você foi me visitar alguma vez, por acaso? Nem deve saber que me mudei para uma casa no campo.
Herman Eber meneou a cabeça. Estava quase totalmente calvo. O seu olhar fugidio convenceu Wallander de que não perdera o antigo medo da vingança.
Eber apontou para uma mesa de jardim caindo de velha e algumas cadeiras instáveis. Wallander compreendeu que não desejava que entrasse em sua casa. A sua casa estava sempre suja e desarrumada, mas esta era a primeira vez que lhe negava o acesso. Talvez a situação tenha ido longe demais, supôs Wallander. Provavelmente, vive num monte de lixo. Sentou-se com hesitação na cadeira que lhe parecia menos instável, enquanto Herman Eber se encostou à parede da casa. Wallander se perguntou se ainda conservaria aquela sagacidade que antes constituía a sua característica mais evidente. Eber era um homem inteligente, apesar de viver uma vida que em tudo representava uma contradição em relação à sua capacidade intelectual. Mais de uma vez surpreendera Wallander ao aparecer num encontro combinado sem ter se lavado e até cheirando mal. Vestia-se de uma maneira muito peculiar e era capaz de sair com roupa de verão em pleno inverno. No entanto, por detrás daquela aparência, que despertava tanto desconcerto como repulsa, existia uma mente lúcida, fato de que Wallander se dera conta desde o primeiro momento. O seu modo de analisar aquilo que deixara de ser o milagre alemão permitiu revelar a Wallander um sistema social e uma forma de ver a política até então totalmente desconhecidos para ele.
Herman Eber costumava reagir com aversão e reticência quando Wallander lhe perguntava pelo seu trabalho na Stasi. Ainda lhe custava muito, se sentia indefeso perante a dor, da qual não se conseguia livrar. Contudo, nas ocasiões em que Wallander mostrava paciência suficiente, acabava por falar. Certo dia, revelara inesperadamente e com toda a simplicidade que houvera um período em que trabalhava numa das seções secretas que só se dedicavam a tirar a vida das pessoas. Daí Wallander ter pensado imediatamente nele quando Ytterberg telefonou para o pôr a par do conteúdo do relatório da medicina legal.
Eber se sentou. Wallander reparou que desta vez não cheirava mal. Havia uma pequena piscina para crianças cheia de água no meio do jardim descuidado. Junto a ela, sobre uma pequena mesa, se viam uma toalha, sabão, limas para as unhas e outros utensílios que, na opinião de Wallander, mais pareciam instrumentos de tortura. Em todo o caso, era evidente que Eber utilizava a piscina para se lavar.
Ao surgir à porta, trazia uns papéis na mão e dois lápis atrás das orelhas. Desde que chegara à Suécia, Eber ganhava a vida compondo palavras cruzadas para diversos jornais alemães. A sua especialidade eram as verdadeiramente difíceis, destinadas aos leitores muito avançados. Inventar palavras cruzadas era uma arte; não era apenas uma questão de dispor as palavras com o menor número possível de quadradinhos pretos, deviam sempre incluir algo mais, um tema complexo de decifrar, possivelmente associações a personagens históricas, segundo explicava o próprio Eber. Wallander fez um gesto apontando para os papéis que trazia na mão.
— Novos quebra-cabeças?
— O mais difícil até agora. Umas palavras cruzadas cujas pistas mais engenhosas se encontram na filosofia clássica.
— Mas a ideia deve ser, imagino, as pessoas serem capazes de resolver as suas palavras cruzadas, não é?
Herman Eber não respondeu. Wallander pressentiu de repente que o homem que tinha à sua frente, vestido com aqueles trapos velhos, na realidade sonhava criar umas palavras cruzadas que ninguém conseguisse completar. Por um instante se perguntou se Eber, apesar de tudo, não teria perdido o juízo por causa do medo. Ou por viver naquele buraco rodeado de colinas que bem podiam se assemelhar a muros ameaçadores. Não sabia. No fundo, Herman Eber continuava a ser um desconhecido para ele.
— Preciso da sua ajuda, anunciou, ao mesmo tempo que pousava o relatório da médica-legista em cima da mesa, antes de começar a lhe explicar, calma e metodicamente, todos os fatos.
Herman Eber posicionou um par de óculos sujos no nariz. Examinou os documentos durante uns minutos, se levantou sem dizer palavra e se dirigiu ao interior da casa. Wallander esperou. Passados uns quinze minutos, Eber continuava lá dentro. Wallander se perguntou se teria ido para a cama ou se talvez estivesse preparando o almoço depois de ter esquecido completamente da visita que aguardava no jardim. Continuou a esperar, sentindo uma impaciência cada vez mais insuportável. Decidiu lhe dar mais cinco minutos.
Nesse instante, Herman Eber voltou a aparecer. Segurava vários papéis amarelados na mão e um livro grosso debaixo do braço.
— Isto pertence a outro mundo, declarou Eber. — Precisei procurar.
— Certo, mas pelo visto encontrou alguma coisa.
— Foi sensato em vir me encontrar, pois devo ser o único que pode lhe dar a ajuda de que precisa. Ao mesmo tempo, deve compreender que tudo isso me traz imensas memórias dolorosas. Enquanto procurava comecei a chorar. Não me ouviu?
Wallander negou com a cabeça. Achou que Eber estava exagerando, pois não se via qualquer sinal de lágrimas nas suas faces.
— Conheço essas substâncias, prosseguiu Eber. — Arrancam-me daquele sono de Bela Adormecida em que teria preferido continuar mergulhado para o resto da minha vida.
— Quer isso dizer que sabe do que se trata, então?
— Muito provavelmente. Os ingredientes, os compostos químicos sintéticos que se mencionam são praticamente os mesmos com que trabalhei naquela época.
Calou-se. Wallander esperou, pois Herman Eber não gostava de ser interrompido. Certa vez, sob o efeito de vários copos de uísque, lhe confessara que isso tinha a ver com o poder de que gozara como oficial de alta patente na Stasi. Naquela época, ninguém teria se atrevido a pôr em causa a sua autoridade.
Eber apertou o grosso volume entre as mãos, como se se tratasse de um escrito sagrado. Parecia hesitar, e Wallander percebeu que devia avançar com tato. Um melro pousou na borda da piscina. Eber deixou o livro cair sobre a mesa com uma pancada e o melro levantou voo. Wallander se lembrou de que Eber sofria de um pavor misterioso e inexplicável de pássaros.
— Vamos, conte, animou-o Wallander. — Quais são as substâncias que conseguiu identificar?
— Utilizei-as há milhares de anos. Estava convencido de que tinham desaparecido da minha vida, mas agora chega você, num belo dia de verão, e me obriga a pensar em coisas que desejava esquecer acima de tudo.
— Mas o que quer esquecer?
Herman Eber soltou um suspiro e coçou a cabeça careca. Era preciso conseguir que se concentrasse na questão, Wallander sabia. Caso contrário, era capaz de se refugiar por outros caminhos e se perder em exposições intermináveis sobre as suas palavras cruzadas.
— De que é que quer esquecer? Repetiu Wallander. Herman Eber começou a se balançar na cadeira sem responder.
Wallander estava prestes a perder a paciência.
— Seja quem for que tenha morrido, isso não tem nenhuma importância aqui e agora, disse com dureza. — Quero que me diga se conhece estas substâncias.
— Tive a ver com elas no passado.
— Isso não é resposta suficiente. "Tive a ver", o que significa? Precisa ser mais específico. Não esqueça de que me prometeu um dia que, quando pedisse, me faria um favor.
— Não me esqueci de nada.
Eber meneou a cabeça. Wallander percebeu que a situação o atormentava.
— Leve o tempo que quiser, disse. — Preciso da sua resposta, dos seus pontos de vista, saber o que pensa. Mas não tenho pressa. Se quiser, posso voltar mais tarde.
— Não, não, fique! Preciso simplesmente de tempo para voltar àquilo que já passou. É como se me obrigassem a escavar um túnel que já tinha tapado tão cuidadosamente com terra. Wallander se levantou.
— Vou dar uma caminhada, anunciou. — Vou ver os cavalos islandeses.
— Meia hora, é o que preciso, não mais.
Herman Eber limpou o suor da testa. Wallander subiu a encosta e se dirigiu ao prado mais próximo. Os cavalos se aproximaram imediatamente da vedação e começaram a lhe cheirar as mãos. Então lhe veio à memória uma recordação de quando Linda tinha doze anos. Um dia chegara da escola e lhes disse que queria um cavalo. Foi durante a pior época da sua relação com Mona, a que culminou com a ruptura definitiva da sua parte. Wallander pensara logo em Sten Widén o treinador de cavalos de corrida; ele tinha sempre algum cavalo de montar nos seus estábulos e certamente deixaria que Linda fosse ali praticar. Mas Mona recusou e Linda acabou por se fechar no seu quarto. Wallander não se lembrava bem do que acontecera depois, mas Linda nunca mais voltou a falar de cavalos.
Wallander retornou depois de meia hora. O vento começara a soprar e um grupo de nuvens se aproximava de sul. Herman Eber permanecia imóvel na sua cadeira quando Wallander abriu o portão, que ameaçava cair a qualquer momento. Agora havia mais um livro sobre a mesa, um velho calendário com capas marrons. Eber começou a falar assim que Wallander se sentou. Quando se enervava, como agora, a sua voz se tornava aguda, quase estridente. Em várias ocasiões, Wallander imaginara como teriam se sentido os interrogados por Herman Eber quando este ainda estava convicto de que a Alemanha do Leste era o Paraíso na Terra.
— Igor Kirov, começou Eber. — Também conhecido por "Boris". Era o seu nome artístico, o pseudônimo que usava. Um cidadão russo, o agente de ligação responsável por uma das seções especiais do KGB em Moscou. Chegou a Berlim Oriental alguns meses antes de construírem o Muro. Conheci-o pessoalmente e falei várias vezes com ele, embora não tivéssemos diretamente nada a ver um com o outro. Em todo o caso, o rumor falava uma linguagem muito clara: Boris era um homem que sabia fazer o seu trabalho. Não consentia nenhum tipo de irregularidade ou de negligência à sua volta. Em pouco mais de dois meses, vários funcionários de topo da Stasi foram transferidos ou despromovidos. Boris era, por assim dizer, a estrela russa, o núcleo do KGB mais temido de Berlim Oriental. Não estivera conosco nem seis meses e já tinha desmantelado uma das melhores redes de agentes na Grã-Bretanha, e três ou quatro desses agentes foram fuzilados depois de julgamentos secretos e sumários. Em condições normais, teriam sido extraditados em troca de agentes soviéticos ou da Alemanha do Leste presos em Londres, mas Boris foi se encontrar diretamente com Ulbricht e exigiu a sua execução. Com isso pretendia lançar um sério aviso, tanto para o estrangeiro como para quem porventura acalentasse a ideia de traição à pátria na RDA. Boris tinha se transformado numa lenda temida antes de estar sequer um ano em Berlim Oriental. Dizia-se que levava uma vida simples, ninguém sabia se era casado ou se tinha filhos, se bebia ou sequer se jogava xadrez. A única coisa que podia se dizer com toda a certeza era que tinha uma capacidade fora de série para criar uma organização de colaboração eficiente entre a Stasi e o KGB. Quando o fim chegou, ficaram todos boquiabertos. A Alemanha do Leste inteira teria ficado boquiaberta se tivessem permitido que se soubesse o que aconteceu. Mas, claro, abafaram tudo.
— E o que aconteceu?
— Um belo dia se evaporou. Como se um mágico tivesse lhe colocado um pano por cima da cabeça e, pimba, o tivesse feito desaparecer. Só que, evidentemente, desta vez ninguém bateu palmas. O grande herói tinha vendido a sua alma aos ingleses, e também aos Estados Unidos, claro. Não sei como conseguiu esconder que era responsável pela execução dos agentes ingleses; talvez até nem fosse necessário esconder, pois todos os serviços secretos têm de ser cínicos para funcionar. Foi uma lição vergonhosa tanto para o KGB como para a Stasi, e rolou um grande número de cabeças. Ulbricht foi chamado a Moscou e voltou com o rabo entre as pernas, embora não tivesse culpa nenhuma por Boris não ter sido descoberto a tempo. Dessa vez, faltou pouco para que Markus Wolf, o grande líder da Stasi, não caísse em desgraça. E talvez tivesse sido assim se não tivesse dado a ordem que nos leva ao motivo da sua visita. Uma ordem à qual se concedeu prioridade máxima. Wallander intuiu a ligação.
— Boris tinha de morrer?
— Exato. Mas não só devia morrer como também devia parecer que morria arrependido. Devia se suicidar e deixar uma carta em que desse conta da sua traição, qualificando-a como imperdoável. Devia louvar tanto a União Soviética como a RDA e, com uma grande dose de autodesprezo e uma igual dose dos nossos soporíferos especiais devia se resignar a morrer.
— E como fizeram isso?
— Eu nessa época trabalhava num laboratório nas imediações de Berlim, num lugar curiosamente não muito longe de Wansee, onde os nazistas decidiram a solução final da questão judaica. De repente apareceu um sujeito novo para trabalhar no laboratório.
Herman Eber se interrompeu e apontou para o livro de notas com a capa marrom.
— Vi que estava olhando para ele. Tive de procurar o seu nome, porque me falhou a memória, o que não costuma acontecer. Como vai a sua memória, aliás?
— Bem, respondeu Wallander, evasivo. — Vamos, continue.
Herman Eber pareceu notar a sua reticência em falar do tema da memória. Wallander pensou que a sensibilidade aos tons da voz e às palavras subentendidas devia estar especialmente bem desenvolvida nas pessoas que haviam trabalhado nos serviços de informações, onde um passo em falso ou uma avaliação errada podia significar se ver perante um pelotão de fuzilamento.
— Klaus Dietmar, declarou Eber. — Vinha diretamente da equipe das nadadoras, isso eu sei com toda certeza, embora nunca chegasse a ser o seu treinador oficial. Pertencia àqueles que tinham planejado e levado o grande milagre esportivo para a frente. Era um homem delgado e de baixa estatura, se movia silenciosamente e tinha mãos de menina. Quem se deixasse enganar pelo seu aspecto podia interpretar os seus modos como se andasse sempre pedindo desculpas por ter nascido. No entanto, era um comunista fanático que rezava com certeza para Walter Ulbricht todas as noites antes de apagar a luz. Dirigia o grupo do qual eu era membro; a nossa única missão consistia em elaborar um preparado para matar Igor Kirov sem deixar mais indícios que os de um soporífero corrente.
Herman Eber se levantou e entrou de novo em casa. Wallander não pôde resistir à tentação de espiar pela janela. Comprovou que tivera razão na sua suposição: dentro daquele aposento reinava um caos desconcertante. Jornais, roupa, lixo, pratos e restos de comida inundavam todo o espaço disponível. Entre todo aquele lixo se distinguia algo como um trilho muito utilizado. Wallander quase que pôde sentir o fedor do interior se filtrando pelos vidros. O sol se escondera atrás de uma nuvem. Eber saiu e ajeitou as calças da roupa de treino antes de voltar para a mesa. Sentou-se e coçou o queixo como se tivesse lhe dado uma comichão repentina. Wallander teve a imagem fugaz de ter diante dele um homem com quem não desejava trocar de identidade e naquele momento sentiu uma gratidão sincera por ser quem era.
— Levamos cerca de dois anos, disse Herman Eber ao mesmo tempo que estudava as suas unhas sujas. — Muitos de nós achávamos certamente que a Stasi investia muitos recursos para localizar Igor Kirov, mas o caso era uma questão de prestígio: tinha prestado juramento no mais sagrado dos templos comunistas e era impensável deixá-lo morrer em pecado. Não nos levou muito tempo a encontrar uma combinação química semelhante aos soporíferos mais comuns receitados na Inglaterra. O problema era encontrar o momento em que seria possível ultrapassar todas as medidas de segurança que o rodeavam. E a mais difícil, claro, era a sua própria desconfiança; tinha o seu passado bem presente e sabia perfeitamente quais os cães que seguiam o seu rastro.
Herman Eber sofreu um súbito ataque de tosse e respirava com aspereza e dificuldade. Wallander aguardou. O vento que começara a soprar lhe esfriava a nuca.
— Todos os agentes sabem que o mais importante na sua vida é mudar constantemente as rotinas, prosseguiu Eber depois de passar a tosse. — E foi isso que o Kirov fez. No entanto, descuidou um pequeno detalhe, que lhe custou a vida. Aos sábados, por volta das três horas da tarde, costumava ir a um pub de Notting Hill ver os jogos de futebol na televisão. Sentava-se sempre à mesma mesa e tomava um chá russo. Chegava pontualmente às dez para as três e ia embora depois do jogo. O nosso gatuno, que podia entrar em qualquer luar, manteve-o debaixo de olho durante bastante tempo até que engendrou um plano para liquidar Igor Kirov de uma vez por todas. O elo fraco eram duas garçonetes que às vezes eram substituídas temporariamente por outras, as quais podíamos substituir por duas jovens nossas. A eliminação foi realizada num sábado de dezembro de 1972, depois de as falsas garçonetes lhe servirem o chá envenenado. O relatório que pude ler mais tarde indicava expressamente que o último jogo que o Kirov viu na vida foi o de Birmingham contra Leicester; o resultado foi empate de um gol. Voltou para o seu apartamento e ali faleceu, na cama, umas horas depois. Os serviços secretos britânicos não duvidaram, no início, que tivesse sido um suicídio, pois a carta com as suas impressões digitais e a sua caligrafia era prova mais do que suficiente. Nos nossos serviços secretos houve um júbilo enorme: Igor Kirov tinha finalmente encontrado o destino que merecia.
Herman Eber fez várias perguntas sobre a mulher morta. Wallander respondeu tão exaustivamente quanto possível, mas a impaciência estava dando cabo dele. Não tinha a menor intenção de ficar ali respondendo às perguntas de Eber. O homem pareceu detectar a sua irritação e se calou.
— Está dizendo que Louise morreu vítima do mesmo composto químico que naquele dia matou Igor Kirov? Quis saber Wallander.
— Parece que sim.
— O que, a ser verdade, implica que foi assassinada, que se trata de um suicídio apenas na aparência.
— Se o relatório de medicina legal estiver correto, é certamente isso. Wallander meneou a cabeça, incrédulo. Segundo a sua maneira de ver as coisas, isso simplesmente não podia acontecer no mundo atual.
— E quem fabrica hoje esses compostos? Tanto a Alemanha do Leste como a Stasi deixaram de existir. E você vive na Suécia e se dedica a compor palavras cruzadas.
— Os serviços de informação nunca deixam de existir. Mudam de nome, mas continuam. Quem pensa que a espionagem nos nossos dias diminuiu não entende nada. E não esqueça de que vários dos velhos mestres continuam vivos.
— Mestres?
Herman Eber pareceu quase magoado ao responder.
— Independentemente do que fizemos e do que as pessoas dizem de nós, éramos especialistas. Sabíamos o que fazíamos.
— E por que motivo Louise von Enke iria ser vítima de uma coisa dessas?
— Bem, deve compreender que não posso responder a essa pergunta.
— Mas tem certeza de como ela morreu, então?
— Tanta quanta se pode ter, me baseando nos dados que me relatou. De repente, Wallander se sentiu cansado e inquieto. Levantou-se e estendeu a mão a Herman Eber.
— Devo voltar, avisou ao se despedir.
— Sim, já contava com isso, respondeu Herman Eber. — Neste nosso mundo, voltamos a ver as pessoas nos momentos mais curiosos.
Wallander se sentou ao volante do carro e voltou para casa. Mesmo antes da rotunda de acesso a Ystad começou a chover e chovia torrencialmente quando correu do carro para abrir a porta de casa. Jussi latia de dentro do seu recinto cercado. Wallander se sentou à mesa da cozinha e contemplou a chuva que batia contra os vidros das janelas. O seu cabelo pingava água. Não duvidava de que Herman Eber tinha razão. Louise von Enke não se suicidara.
Tinha sido assassinada.
* * *
Vinte e Três
WALLANDER tirou um pedaço de carne que havia num prato na geladeira e que, em conjunto com metade de uma couve-flor, constituiria a sua refeição. Quando se sentou à mesa e folheou o jornal da tarde que comprara no caminho para casa pensou que, tanto quanto se lembrava, sempre sentira uma profunda satisfação em comer enquanto folheava o jornal sem ser incomodado. Contudo, desta vez mal abrira o jornal quando a ampliação de uma fotografia lhe saltou à vista, com um título bombástico. Perguntou-se se realmente não estaria enganado, mas não: o rosto que via à sua frente pertencia à mulher a quem dera carona. Com um espanto cada vez maior, foi sabendo que no dia anterior ela matara à pancadas os seus pais, numa casa perto da Rua Södra Förstadsgatan, no centro de Malmó, e que estava desaparecida desde então. A polícia não queria especular sobre o motivo, mas não havia dúvidas de que ela, que não se chamava Carola, claro, mas Ana-Lena, era a autora de tão brutal assassinato. Um policial, de cujo nome Wallander achava se lembrar vagamente, descrevia o acontecido como um caso de violência sem paralelo, uma ira desenfreada, um verdadeiro banho de sangue perpetrado no pequeno apartamento onde vivia a família. A polícia procurava a mulher e tinham emitido um mandado de captura. Wallander afastou o jornal e o prato.
Tentou uma vez mais se convencer de que era imaginação sua; não podia se tratar da mesma mulher. Depois pegou o telefone e discou o número de Martinsson.
— Precisa vir aqui.
— Estou dando banho aos meus netos, respondeu Martinsson. — Não pode esperar?
— Não, não pode esperar.
Exatamente trinta minutos mais tarde, Martinsson estacionou junto à casa de Wallander, que já o esperava ao portão. A chuva parara e não se viam mais nuvens. Martinsson, que estava muito familiarizado com os métodos de Wallander, não duvidava de que algo grave acontecera. Jussi, que andava solto, não parava de saltar à volta do visitante. Com muito esforço, Wallander conseguiu que o cão se deitasse.
— Afinal conseguiu com que o obedeça, observou Martinsson.
— Não muito bem. Vamos lá para dentro. Entraram na cozinha e Wallander mostrou ao colega a fotografia do jornal.
— Dei-lhe carona para Höör há umas horas, revelou. — Disse que estava a caminho de Smâland, embora não seja necessariamente verdade, claro. Depois de uma fotografia destas nos jornais, a probabilidade de já ter sido reconhecida é muito alta, diria eu, mas a polícia deve procurar a partir de Höör.
Martinsson olhou atônito para Wallander.
— Ou me engano muito ou não tínhamos dito, há um ano, que nenhum de nós daria carona?
— Esta manhã abri uma exceção.
— No caminho para Höör?
— Sim, tenho um amigo lá.
— Em Höör?
— Talvez não saiba tudo sobre os meus amigos. Porque não havia de ter um amigo em Höör? Então, você não tem um velho amigo nas Hébridas? Estou dizendo a verdade.
Martinsson assentiu e tirou o bloco de notas do bolso. A caneta não escrevia, Wallander lhe emprestou outra e, com um pano de cozinha, cobriu a comida, onde já pousavam duas moscas. Martinsson anotou como a mulher estava vestida, o que dissera, as indicações horárias exatas. Já tinha o telefone na mão quando Wallander o reteve.
— Talvez possamos dizer que a polícia foi informada por uma pessoa não identificada?
— Já tinha pensado nisso. Em vez de comunicar que foi um policial muito conhecido de Ystad que ajudou a mulher em fuga.
— Mas não sabia quem era!
— Está bem, mas sabe tão bem como eu o que dirão os jornais se a verdade vier a tona. O seu envolvimento cairia como moscas no mel, tendo em conta a falta de notícias por ser verão.
Wallander ouvia enquanto Martinsson falava com a delegacia.
— Foi uma ligação anônima, assegurou Martinsson para concluir. — Não sei como obtiveram o meu número privado, mas o homem que telefonou estava sóbrio e parecia de confiança.
Com isso, terminou a ligação.
— Quem não estaria sóbrio à hora do almoço, homem? Objetou Wallander com azedume. — Era preciso acrescentar esse comentário?
— Quando apanharmos essa fulana, vai dizer que um desconhecido lhe deu carona. Isso é tudo. Nunca saberá que foi você; ninguém saberá.
Wallander se lembrou de repente que a mulher lhe dissera mais uma coisa.
— Ah, ia me esquecendo: também me disse que tinha chegado ao local onde lhe dei carona com um sujeito que começou a incomodá-la.
Martinsson apontou para a fotografia no jornal.
— É uma mulher interessante, embora seja uma assassina. Não dizia que vestia uma minissaia amarela?
— Era muito atraente, admitiu Wallander. — Se não fosse pelas unhas, claro. Não há coisa que me faça perder mais o interesse do que umas unhas roídas.
Martinsson olhou-o com um sorriso, admirado.
— Quase que já não o fazemos, suspirou. — Falarmos das mulheres que se cruzam no nosso caminho, quero dizer. Houve um tempo em que não falávamos de outra coisa.
Wallander perguntou se queria tomar um café, mas Martinsson declinou a oferta. Despediram-se e Wallander voltou ao almoço interrompido. Não lhe caía bem, mas ao menos saciou sua fome. Depois de comer deu uma longa caminhada com Jussi, cortou uma sebe nos fundos da casa e voltou a atarraxar a caixa de correio, que se soltara.
Tudo isso sem nunca deixar de pensar no que Herman Eber lhe contara. Esteve tentado a ligar para Ytterberg, mas decidiu esperar pelo dia seguinte. Tinha que pensar: um suicídio estava prestes a se transformar num homicídio e ele não entendia de todo como era possível tal transformação. Ao mesmo tempo, começava a corroê-lo novamente a sensação de que havia algo que passara despercebido. E não só a ele, mas a todos aqueles que de algum modo estavam envolvidos na investigação. Contudo, não conseguia descobrir o que era; se tratava, mais uma vez, da sua velha intuição, de cuja fidelidade começava a se questionar cada vez mais.
Pelas cinco horas da tarde, Wallander se sentiu subitamente doente. Em menos de meia hora começou a vomitar e a ter febre. Desconfiava que a carne não estava bem cozida e que passara muito tempo no porta-malas quente do carro, dentro do saco plástico da loja. Deitou-se no sofá em frente à televisão e foi passando de canal em canal, se interrompendo de vez em quando para dar uma corrida veloz ao banheiro. Quando o telefone tocou às nove horas da noite, acabara de vomitar, mas mesmo assim quis atender. Era Linda. Primeiro, ficou muito preocupada, mas depois se tranquilizou quando percebeu que não tinha nada a ver com o seu nível de insulina.
— Vai ver que amanhã estará bem. Beba muito chá.
— Não posso; vomito-o logo a seguir.
— Então bebe água.
— E o que pensa que estou fazendo?
— O problema é que come poucos vegetais.
— E o que isso tem a ver com a minha má disposição?
— Amanhã vou aí ver como está. Está ficando tão rabugento como o avô.
Wallander voltou a se encolher no sofá, mas não demorou muito até ter de vomitar outra vez; dormiu uma hora e achou que estava melhor, mas teve de correr de novo para o banheiro. Continuou a mudar de canal, exausto, sem encontrar nada que realmente o interessasse. Finalmente parou num canal que estava transmitindo um combate de boxe asiático. Um tailandês pequeno e magro derrubava um holandês enorme com um pontapé perfeito dirigido à cabeça. Wallander quase sentiu a dor no seu próprio corpo. Adormeceu por volta da meia-noite e acordou no meio de um sonho com Herman Eber e Louise von Enke. Eram cinco horas da manhã, o estômago estava mais calmo, embora continuasse muito fraco e com dores de cabeça. Preparou uma xícara de chá, que desta vez ficou no estômago. Pela janela viu Jussi no recinto; estava imóvel com uma pata no ar, como se estivesse observando atentamente um dos campos lavrados. Wallander não viu o que chamava a atenção do animal, talvez um veado que tivesse se aproximado ao sair do bosque com o irromper do dia. Pensou que o seu pai poderia ter escolhido essa imagem para convertê-la num dos seus temas eternos. Cão farejando ao amanhecer. Em vez disso, o homem optou por uma paisagem em que, a intervalos certos e com uma precisão monótona, incluía um galo silvestre.
Pensou naquilo que sonhara. Encontrava-se na lixeira a que Eber chamava lar. Louise tentava manter o equilíbrio em cima de uma escadinha enquanto pendurava umas cortinas amarelas. Ele lhe perguntava onde se escondera enquanto estivera ausente. Então Louise caía da escadinha e morria em seguida. Herman Eber aparecia entre o lixo vestido com uma farda militar verde alemã, era muito jovem e a sua boca desdentada parecia um imenso buraco negro. Tentava dizer alguma coisa, mas Wallander não conseguia entender as suas palavras. E foi então que acordou com aquela sensação de medo e impotência. Não era o estômago o que o atormentava; era a morte de Louise que o enchia de dissabor e tristeza. O decurso dos acontecimentos está se desviando, pensou. Até então partia do pressuposto de que era Hakan o protagonista, disse para si mesmo. Reexaminarei tudo mais uma vez, mas de outro ângulo, preciso mudar a minha perspectiva. Em todo o caso, antes disso precisava dormir mais umas horas para recuperar as forças e poder raciocinar com clareza. Despiu-se e se deitou na cama. Uma aranha trepava por uma viga do teto. Wallander adormeceu num instante.
* * *
Às oito horas da manhã, quando já terminara um café da manhã prudente, viu o carro de Linda aparecer junto ao portão. Trazia Klara com ela e gritou a Wallander que nem pensasse em se aproximar para não as contagiar; devia se manter no mínimo a dois metros de distância, lhe disse. Wallander se irritou um pouco ao vê-la chegar tão cedo: já que estava de férias queria desfrutar calmamente das suas manhãs.
Sentaram-se no jardim.
— Está melhor?
— Muito melhor.
— Não lhe disse?
— Disse que como poucos vegetais. O que você sabe sobre a minha alimentação?
Linda soltou um suspiro e não se preocupou em responder. Wallander notou que tinha madeixas azuis no cabelo.
— Porque pintou o cabelo de azul?
— Porque gosto.
— E o que Hans diz?
— Ele também me acha maluca.
— Permite-me que discorde. Porque não ficou ele com a menina, já que tem tanto medo de serem contagiadas?
— Hoje teve de ir trabalhar. O rosto de Linda se ensombrou de repente, parecia nervosa.
— Há alguma coisa que o preocupa?
— Sim, há movimentações no setor financeiro mundial que não consegue entender.
— Pois eu não entendo quase nada do que acaba me de dizer. "Movimentações no setor financeiro mundial"? Pensava que trabalhava com ações.
— E trabalha, mas também com outras coisas: derivados, opções, fundos de cobertura de risco...
Wallander levantou as mãos para detê-la.
— Chega, já não preciso ouvir mais. De qualquer maneira, não entendo uma palavra.
Wallander foi buscar um copo de água. Klara tentava engatinhar, feliz, pelo gramado.
— Como vai Mona?
— Está inacessível, não atende o telefone. E quando bato na porta de sua casa, não abre, embora eu saiba que está lá dentro.
— Continua a beber, portanto.
— Não sei. Neste momento não consigo me responsabilizar por mais uma criança; já tenho que chegue com Klara.
Um avião com rumo ao Aeroporto de Sturup sobrevoou a área a baixa altitude. Uma vez desaparecido o ruído, Wallander contou a Linda a sua visita a Herman Eber. Explicou a conversa com todos os detalhes e também o seu raciocínio e dúvidas. A medida que se convencia de que Louise morrera assassinada, lhe parecia que a outra metade do mistério se adensava. Por que razão alguém queria matar Louise? Qual poderia ser a ligação daquela mulher afável a um país como a Alemanha do Leste, um país morto e enterrado? Se é que existia alguma ligação, claro.
Wallander ficou em silêncio. Klara engatinhava à volta das pernas de Linda, que meneou a cabeça devagar.
— Não duvido do que está dizendo, mas o que significa tudo isso?
— Não sei. Neste momento só me faço uma pergunta: quem era, na realidade, Louise von Enke? O que ainda não sei dela?
— O que sabemos, no fundo, de qualquer pessoa? Não é isso que costuma me repetir, uma e outra vez, que não devo me surpreender? Além disso, existe uma ligação à antiga Alemanha do Leste, disse Linda pensativa. — Não tinha lhe contado?
— Só contou que se interessava pela cultura clássica alemã e que era professora de alemão.
— Bem, estou me referindo a um acontecimento do passado remoto, explicou Linda. — Há quase cinquenta anos. Antes do nascimento de Hans. E do nascimento de Signe, claro. Na realidade deveria falar disso com Hans.
— Comecemos com aquilo que você sabe, está bem? Pediu Wallander.
— Não é muito, mas Louise esteve na RDA no princípio dos anos sessenta, com algumas jovens promessas suecas da natação; era uma espécie de intercâmbio esportivo. Louise treinava as jovens; ao que parece, ela mesma tinha sido muito boa em saltos na juventude, mas não sei muito acerca disso. Acho que durante alguns anos esteve várias vezes em Berlim Oriental e em Leipzig. Mas depois acabou. Segundo Hans, houve uma razão concreta para que as viagens cessassem.
— Qual?
— Hakan deixou muito claro que as visitas à Alemanha do Leste tinham de terminar. Não era bom para a sua carreira ter uma mulher que viajava constantemente para um país que era tido como inimigo. É fácil imaginar que os militares e os políticos suecos consideravam a Alemanha do Leste como um dos vassalos mais sinistros dos russos.
— Mas não tem certeza daquilo que está me contando, é isso?
— Bem, Louise se submetia sempre à vontade do marido. Acredito que a situação no princípio dos anos sessenta se tornou insustentável. Hakan estava atingindo uma posição importante na Marinha.
— Sabe como ela reagiu?
— Não faço ideia.
De repente, Klara se picou em algo que havia no chão e começou a chorar. Wallander, que não suportava o choro de crianças, foi fazer festas em Jussi e ficou com ele até Klara se acalmar.
— O que fazia quando eu chorava? Perguntou Linda.
— Os meus ouvidos eram mais resistentes nessa época. Permaneceram em silêncio algum tempo observando a criança, que examinava um dente-de-leão apanhado entre duas pedras.
— É evidente que tenho estado dando voltas à cabeça todo o tempo desde que eles desapareceram, reatou Linda. — Tenho voltado atrás no tempo e tentado me lembra- de detalhes de conversas e da maneira de se comportarem entre si e com os outros. Tenho tentado arrancar de Hans tudo o que sabe e tudo o que presumia que eu devia saber. E mesmo há poucos dias tive a sensação de que havia alguma coisa que não batia certo, que ele não me tinha contado toda a verdade.
— Sobre o quê?
— Sobre o dinheiro.
— Que dinheiro?
— É um fato que há certamente muito mais dinheiro guardado em algum lugar do que tinham me dito. Hakan e Louise viviam bem; sem luxos que chamassem a atenção e sem exageros, mas poderiam ter gastado mais se tivessem querido.
— Estamos falando de que valores?
— Não me interrompa, advertiu bruscamente. — Já chegarei lá, mas me deixe contar no meu ritmo. Claro que é um problema que Hans não tenha me contado tudo, deveria tê-lo feito. Isso me irrita e sei que, mais tarde ou mais cedo, terei de abordar essa questão com ele.
— Queres dizer que afinal sempre é aí que bate o ponto, que o dinheiro é crucial?
— Não, mas não gosto nada que Hans não seja claro. Mas não temos de falar sobre isso agora.
Wallander levantou as mãos num gesto de desculpas e não perguntou mais. Então Linda se deu conta de que Klara estava comendo a flor e foi correndo limpar a sua boca, então a criança voltou a berrar. Wallander decidiu suportar estoicamente e permaneceu sentado. Jussi andava de frente para trás no seu recinto observando a cena. A minha família, constatou Wallander. Estão todos aqui, exceto a minha irmã Kristina e a minha ex-mulher, que se entretém se matando com bebida.
O incidente depressa estava esquecido; Klara voltou a empreender as suas aventuras de gatinhas, Linda se balançava na cadeira.
— Não posso garantir que resista, avisou-a Wallander.
— Pois é, os velhos móveis de jardim do avô, riu Linda. — Se a cadeira se quebrar, sobreviverei, só caio no seu canteiro cheio de ervas.
Wallander não respondeu, mas notou que o irritava que Linda andasse sempre colocando o nariz no que ele fazia para logo apontar as falhas.
— Desde que me levantei de manhã que ando com esta pergunta na cabeça, continuou Linda. — E não pode esperar, por mais importante que seja o assunto de Louise e Hakan. Não percebi como tenho conseguido evitar fazê-la durante todos estes anos; nem a você nem à mãe. Talvez tivesse medo da resposta... Ninguém quer ser concebido por acaso.
Wallander ficou logo de pé atrás. Era raríssimo que Linda se referisse a Mona como "mãe", e não era capaz de se lembrar da última vez que o chamara "pai", a não ser quando se zangava ou queria ser irônica.
— Não se assuste, prosseguiu Linda. — Já vejo que está começando a ficar nervoso. Só quero saber como se conheceram, o dia em que os meus pais se conheceram. Nunca me contaram.
— Tenho má memória, mas não até esse ponto, respondeu Wallander. — Conhecemo-nos em 1968, num barco durante a travessia de Copenhague para Malmõ. íamos num dos ferryboats lentos, não num hovercraft, e era no final do dia.
— Há quarenta anos ?
— Éramos os dois muito jovens. Ela estava sentada a uma mesa e, como não havia mesas livres, perguntei se podia me sentar e ela disse que sim. Não me importo de lhe contar mais noutro dia, agora não estou preparado para começar a remexer no passado. Mas voltemos ao assunto do dinheiro. De que somas estamos falando?
— Dois milhões, por aí. Mas não vai se safar de me contar o que aconteceu depois do ferryboat atracar em Malmó.
— Não aconteceu nada, mas, como lhe disse, prometo contar noutro dia. Está dizendo que tinham milhões no banco? E onde os conseguiram?
— Poupanças.
Wallander franziu a testa. Era muito dinheiro para ter em economias. Ele não conseguia sequer sonhar em poupar montantes semelhantes.
— Será mesmo possível? Não acha que há aí fuga do fisco ou outro tipo de falcatrua?
— Impossível, segundo Hans.
— Mas você disse que não foi sincero consigo no que toca ao dinheiro, não é?
— Bem, também não tinha de ser. Até há uns meses, o que os seus pais fizessem com o dinheiro era só com eles. — E o que faziam com ele?
— Pediam a Hans que o investisse. Com cautela, nada de aventuras.
Wallander refletiu um instante. Algo lhe dizia que o que acabava de ouvir podia se revestir de grande importância. Passara toda a sua carreira policial sabendo que o dinheiro era o motivo dos crimes mais graves que as pessoas eram capazes de cometer. Não existia razão mais frequente ou com tantas variáveis.
— Qual dos dois tomava conta dos negócios? Ambos ou só Hakan?
— Hans saberá isso.
— Então temos de falar com ele.
— Eu é que tenho. Se descobrir alguma coisa, lhe conto.
Klara bocejava sentada no chão. Linda fez um sinal a Wallander, que levantou a neta e a deitou com mimo na cama de rede. Linda lhe sorriu.
— Tento ver a mim mesma nos seus braços, confessou. — Mas é difícil.
— Como assim?
— Não sei. Mas não quero magoá-lo.
Um casal de cisnes apareceu sobrevoando os campos. Seguiram as aves com o olhar até o som das suas asas se desvanecer.
— Acredita sinceramente que Louise foi assassinada? Perguntou Linda.
— A investigação tem de prosseguir, mas acredito que há indícios suficientes que apoiam essa hipótese.
— Mas porquê? E na mão de quem? E a história de que levava documentos russos na bolsa? Não deve passar de uma invenção sem sentido.
— Levava documentos confidenciais suecos na bolsa, destinados aos russos. Preste atenção ao que lhe digo.
Wallander esperava uma reação de ira, mas Linda apenas assentiu em sinal de concordância.
— Entretanto permanece uma questão, observou Wallander.
— Onde está Hakan?
— Vivo ou morto?
— Para mim, Hakan está mais vivo desde que encontramos Louise morta. Não faz sentido, já sei, e não tenho nenhuma explicação lógica para esse pressentimento. Talvez se deva à minha longa experiência como policial, mas nem sequer aí encontro uma justificação unívoca. E mesmo assim acredito que está vivo.
— Acha que foi ele quem matou Louise?
— Não há nada que nos leve a pensar isso.
— E também nada que nos leve a pensar o contrário. Wallander assentiu sem dizer nada. Era exatamente nesses termos que pensara. E a filha fazia o mesmo raciocínio.
* * *
À noite, quando Wallander saiu para dar uma caminhada com Jussi, parou na borda de uma valeta para urinar. Os campos recém-ceifados cheiravam intensamente.
De repente, tomou consciência de que havia pelo menos um fato de que não duvidava de todo: independentemente do que tivesse acontecido, tudo começara com Hakan von Enke. E com ele acabaria tudo; Louise era um elo intermediário, por mais que ele há umas horas tivesse acreditado o contrário.
No entanto, não sabia onde isso o levaria. Voltou para casa mais preocupado do que antes. A única coisa que nesse momento lhe parecia um fato irrefutável era que Hakan von Enke estivera um dia à sua frente, numa sala de banquetes de Djursholm, e que parecera verdadeiramente inquieto. Foi aí que tudo começou, disse Wallander para si.
Começou com um homem inquieto.
* * *
Vinte e Quatro
Uma Noite de Julho
WALLANDER estava sentado de caneta na mão. Na sua opinião, a introdução da carta soava como o título de um mau filme sueco da década de 1950. Ou talvez como um romance, bem melhor, de umas décadas anteriores; um dos que havia em sua casa quando era criança entre a coleção de livros que pertencera ao seu avô materno, falecido muito antes de ele ter nascido.
De resto, a descrição correspondia à realidade: estavam no mês de julho e era de noite. Wallander já fora se deitar quando de repente se lembrou de que dentro de dias era o aniversário da sua irmã Kristina. Já se transformara num hábito lhe escrever a única carta do ano para felicitá-la, de modo que se levantou, uma vez que nem tinha sono, e encontrou na carta uma boa desculpa para não ficar acordado dando voltas na cama. Sentou-se à mesa da cozinha com papel e com a caneta que Linda lhe oferecera quando fizera cinquenta anos. As primeiras palavras ficaram tal e qual como escrevera, "Uma noite de julho", sem alterar nada. Foi uma carta muito curta, pois, depois de lhe falar da alegria sentida pelo nascimento de Klara, achou que não tinha muito mais para contar. As cartas para a sua irmã iam ficando cada vez mais curtas à medida que os anos passavam, e Wallander se perguntou com amargura como acabariam. Leu o que escreveu, achou-o pobre, mas não tinha mais nada para acrescentar. A relação com a sua irmã Kristina tinha culminado durante os últimos anos de vida do pai, e desde então apenas se encontravam uma ou outra vez quando
Wallander ia a Estocolmo e se lembrava de lhe telefonar. Eram completamente opostos e além disso guardavam memórias totalmente diferentes da sua infância. Ao fim de uns minutos juntos, a conversa costumava se esgotar, e olhavam um para o outro como se se perguntassem: "Será que não temos mais nada para dizer um ao outro?"
Wallander fechou o envelope e voltou para a cama. A janela esta entreaberta e se ouviam à distância sons abafados de música e de festa. Foi uma decisão acertada se mudar do apartamento de Margatan, disse para si mesmo. No campo escutava sons que nunca antes ouvira. E cheiros agradáveis, claro.
Ficou acordado na cama pensando na visita que tinha feito à delegacia. Não a planejara, mas, como o seu computador estava quebrado foi a Ystad por volta das nove horas da noite. Afim de não se cruzar com os colegas que faziam o turno da noite entrou pelo porão, marcou o código da porta e chegou na sua sala sem se encontrar com ninguém pelo caminho, mas ao passar ouviu a conversa vinda de uma das salas. Um dos interlocutores estava muito ébrio, e Wallander se sentiu aliviado por não ser ele o encarregado do interrogatório.
Mesmo antes de sair de férias fizera um esforço e reduzira substancialmente o monte de papéis que cobriam a sua mesa, que agora quase convidava ao trabalho. Pendurou o casaco na cadeira de visitas e ligou o computador. Enquanto esperava que arrancasse com o seu zumbido habitual, tirou duas pastas que guardara à chave numa gaveta. Uma tinha a etiqueta "Louise", a outra "Hakan". Escrevera com uma caneta que perdia tinta e borrara os nomes. Deixou a primeira de lado e se centrou na segunda. Entretanto, pensava na conversa mantida há umas horas com Linda, que ligara quando Klara estava dormindo e Hans fora a uma loja de conveniência comprar fraldas. Ela lhe contou sem rodeios o que Hans respondera às suas perguntas sobre o dinheiro dos pais, sobre a ligação da sua mãe à RDA e sobre se havia mais alguma coisa que não tivesse lhe contado. Num primeiro momento, se mostrou magoado, como se Linda desconfiasse dele. E foi preciso um bom tempo para convencê-lo de que as suas perguntas não tinham outro fim que não esclarecer o que acontecera aos seus pais, uma vez que, apesar de tudo, se moviam na fronteira de um eventual assassinato. Hans finalmente se acalmou, compreendeu a sua boa intenção e respondeu o melhor que pôde.
Wallander tirou uma folha dobrada que tinha no bolso traseiro das calças e alisou-a. Nela anotara os dados mais importantes relatados por Linda.
Foi só quando Hans começou o seu trabalho atual que os seus pais lhe pediram que atuasse como seu banqueiro particular. Nessa época, se tratava de administrar um montante de pouco menos de dois milhões, que atualmente aumentara para dois milhões e meio. Justificaram essas somas com a sua vida frugal e também com uma herança de um parente de Louise. Hans não sabia quanto viera da herança e quanto seria das próprias poupanças dos pais. O familiar se chamava Hana Edling, falecera em 1976 e era proprietária de várias lojas de roupas no Oeste da Suécia. Não havia irregularidades fiscais, embora todos os anos Hakan resmungasse por causa daquilo que ele chamava de imposto ultrajante dos sociais-democratas sobre o patrimônio. Agora essa tributação deixara de existir, mas Hans nunca teve a oportunidade, com muita pena sua, de informar ao seu pai de que aquilo acrescentaria mais algumas coroas às suas poupanças.
— Hans me explicou que os seus pais tinham uma atitude muito particular relativamente ao dinheiro, disse Linda. "Não se deve falar de dinheiro, deve-se tê-lo."
— Se fosse assim tão simples... Respondeu Wallander. — É assim que fala a abastada classe alta.
— E eles são classe alta, precisou Linda. — Como de resto já sabia. Não vale a pena perdermos tempo com isso.
Duas vezes por ano, Hans costumava lhes apresentar os lucros e as perdas eventuais. Por vezes, Hakan lhe telefonava para comentar algum investimento interessante sobre o qual lera nos jornais, mas nunca se preocupava em verificar se Hans seguia ou não a sua sugestão. No que se referia à participação ativa de Louise na gestão financeira, esta era ainda mais rara. No entanto, uma vez, no ano anterior, Louise pedira um levantamento de duzentas mil coroas do capital investido. Hans se surpreendeu, pois não era normal que os seus pais quisessem dispor de tanto dinheiro e, além disso, costumava ser Hakan a levantar dinheiro quando iam fazer um cruzeiro ou passar umas semanas na Riviera. Dessa vez, Hans perguntou a Louise para que queria o dinheiro, mas ela não respondeu e disse apenas para ele fazer o que pedia.
— Ainda por cima, não queria que dissesse nada a Hakan, acrescentou Linda. — E isso é o mais estranho de tudo, visto que ele mais tarde ou mais cedo notaria, claro.
— Bom, não tem de se tratar forçosamente de algum mistério, observou Wallander, cauteloso. — Talvez quisesse fazer uma surpresa ao marido.
— Talvez. Mas Hans também me disse que foi a única vez que notou um tom ameaçador na voz de Louise ao se dirigir a ele.
— Disse precisamente isso, ameaçador?
— Disse.
— Não lhe parece estranho? Empregar uma palavra tão forte?
— Garanto que escolheu-a cuidadosamente.
Wallander anotara a palavra "ameaçador" na folha. Se aquilo correspondia à verdade, fornecia uma nova faceta daquela mulher de sorriso eterno.
— E que lhe disse sobre a Alemanha do Leste?
Linda lhe assegurou que tentara avivar a memória de Hans por variadíssimas vias, mas que, simplesmente, não tinha a menor lembrança. Só conservava umas vagas imagens dos seus primeiros anos de infância, se lembrava de uma vez quando a sua mãe lhe trouxera uns brinquedos de madeira de Berlim Oriental. Mas era tudo. Não se lembrava de quanto tempo estivera fora nem de alguma vez ter conhecido o motivo da viagem. Naquela época tinham uma empregada doméstica, Katarina, e passava mais tempo com ela do que com os pais. Hakan estava sempre de serviço no alto mar e a Louise ensinava alemão na Escola Francesa e num das escolas de Estocolmo, não se recordava de qual. Talvez, nalguma ocasião, tivessem sido convidados para uma casa em que se falasse alemão. Mas, como já explicara, só tinha imagens fragmentadas de homens fardados em torno da mesa do jantar que cantavam músicas alegres numa língua estrangeira para acompanhar as bebidas.
— Tenho certeza de que não se lembra de mais nada, afirmou Linda. — O que significa que, das duas uma, ou não havia mais nada para se lembrar ou então Louise se preocupou em esconder conscientemente as suas aventuras naquele país. Mas, sendo assim, porque fez isso?
— Claro que não era ilegal os suecos visitarem a Alemanha do Leste, salientou Wallander. — De fato, fazíamos negócios com eles da mesma forma como com os outros. Por outro lado, me parece que os seus cidadãos tinham mais dificuldades em visitar a Suécia. O Muro de Berlim se construiu precisamente para evitar que as pessoas saíssem do país.
— Isso foi antes de eu nascer, claro. Lembro-me de quando o Muro foi jogado abaixo, mas não de quando foi construído, disse Linda, concluindo o seu relato.
Ao fundo, Wallander ouviu uma porta que se abria para logo a seguir se fechar. Começou a rever sistematicamente o material que compilara acerca do desaparecimento de Von Enke e concluiu que se desenhava uma conclusão: segundo demonstrava a experiência, Hakan von Enke estava desaparecido há tanto tempo que seguramente estaria morto. Contudo, o inspetor decidiu que por um tempo continuaria a agir como se estivesse vivo.
Passados alguns minutos, Wallander afastou a pasta com os papéis e se recostou na cadeira. E se Von Enke já no dia da festa, dentro daquela sala sem janelas em Djursholm, soubesse que em breve iria desaparecer? Será que esperava que eu o lesse nas entrelinhas quando me falou do assunto dos submarinos? Refletiu.
Endireitou-se bruscamente na cadeira, tomado por uma impaciência insuportável. A situação estava muito parada e ele tinha de avançar. Entrou na Internet, sem saber bem o que procurar. Parecia uma busca ao acaso, mas ao mesmo tempo não era. Folheou toda a informação oficial que a Marinha sueca proporcionava e passo a passo foi seguindo a carreira de Von Enke, que decorrera como habitualmente, sem nenhum tipo de promoção rápida ou surpreendente. No mesmo contingente do desaparecido capitão de fragata, Wallander encontrou outros companheiros com carreiras mais fulgurantes que a de Von Enke. Depois de uma hora navegando pela Net, parou numa fotografia que apareceu na tela. Fora tirada durante uma recepção no Ministério de Negócios Estrangeiros para os adidos militares estrangeiros. Nela apareciam vários jovens oficiais, entre eles o próprio Hakan, que sorria diretamente para a máquina. Um sorriso largo e autoconfiante. Wallander estudou a velha fotografia. Pretendo chegar a um ponto em que possa ver tudo mais claramente, disse para si mesmo. Algo que me diga quem era na realidade aquele homem inquieto que conheci em Djursholm.
Sobressaltou-se quando alguém bateu à porta, que se abriu antes dele ter podido responder. Era Nyberg, vestido de casaco azul-claro e um boné verde enfiado na cabeça. Parou ao ver Wallander.
— Pensei que não tinha ninguém, confessou. — Costumo ir apagando as luzes que estão acesas sem necessidade. Detecto-as porque se filtram pelas frinchas das portas.
— E porque bateu se achava que não tinha ninguém?
Nyberg tirou o boné e coçou a cabeça. Um gesto que repete constantemente, pensou Wallander. Desde que o conheço que faz isso quando está preocupado. Que tique terei eu?
— Se quer que lhe diga, não sei o que responder à sua pergunta, admitiu Nyberg. — Deve ser um velho hábito; antes de abrir batemos à porta. Aliás, não devia estar de férias?
— E estou, me entretendo com o desaparecimento dos sogros de Linda. Nyberg assentiu.
Wallander já falara com ele algumas vezes sobre o acontecido, pois as suas opiniões sempre mereceram o seu respeito, embora nem sempre fosse fácil trabalhar com ele. Nyberg era famoso pelos seus acessos de cólera, mas atualmente Wallander se encontrava raramente na linha de fogo; eram mais os médicos-legistas e os técnicos forenses que viviam debaixo da sombra ameaçadora de Nyberg. O perito ficou de pé, com o boné na mão.
— Talvez já saiba que vou me aposentar até o Natal?
— Não, não sabia.
— Pois é, acho que já chega.
Wallander se surpreendeu verdadeiramente, pois de alguma forma infantil imaginara que Nyberg sempre estaria ali na ativa, dia após dia, sob um sol radiante ou uma chuva fria, remexendo na lama em busca de vestígios de todo o tipo de crime. No passado longínquo, Nyberg fora casado e, de fato, tinha filhos. No entanto, sempre fora o tipo solitário de boné verde que irrompia em ataques irascíveis e ao mesmo tempo era o melhor entre os melhores da sua profissão.
— E o que vai fazer? Perguntou Wallander um pouco apagado. — A aposentadoria, sem mais?
— Penso me mudar daqui, respondeu Nyberg com um entusiasmo repentino. — Para longe, muito longe.
— E para onde, se posso saber? Para Espanha?
Nyberg olhou-o como se tivesse dito alguma inconveniência. Wallander se perguntou se, apesar de tudo, não teria chegado também a ele a hora da famosa irrupção de ira.
— E o que ia fazer na Espanha? Transpirar? Vou me mudar para o Norte. Comprei uma velha casa, bonita embora algo degradada, entre Hárjedalen e Jámtland. Quilômetros e quilômetros até ao vizinho mais perto, só árvores e árvores até onde a vista alcança.
— Mas você não é daqui de Skâne? Nasceu em Hássleholm, se não me engano. O que vai fazer enterrado naquela floresta cerrada?
— Viver em paz. Além disso, com certeza que há menos vento ali entre as árvores.
— Não vai aguentar, habituado como está às amplas planícies.
— É um desejo antigo, disse Nyberg simplesmente. — A grande floresta. Quando fui até o Norte e vi a casa, senti imediatamente que aquele era o meu lar. Pronto, é só isso. E você, quanto tempo mais pensa em continuar? Wallander encolheu os ombros.
— Não sei. Custa-me imaginar a vida longe deste escritório.
— Olhe, a mim não, respondeu Nyberg alegremente. — Vou aprender a caçar e vou escrever as minhas memórias. Wallander ficou perplexo.
— Pensa escrever um livro?
— E porque não? Tenho muitas coisas para contar. Aliás, hoje em dia o interesse pela minha profissão é maior que nunca.
Wallander compreendeu que Nyberg falava a sério. Estava convencido de que era suficientemente teimoso não só para escrever um livro mas também para conseguir que o publicassem.
— E falará de mim?
— Você vai sair bem, respondeu Nyberg despreocupado. — Mas haverá outros que não. Penso falar longamente sobre essa mania de recrutar chefes que não têm o mínimo de conhecimento sobre trabalho policial de campo. Bem, não esqueça de apagar a luz quando for embora.
Nyberg fez intenção de sair, mas Wallander reteve-o; não pôde evitar de perguntar:
— Escute, coça sempre a cabeça quando se põe a pensar. E eu, que gesto característico tenho? Nyberg apontou para o nariz.
— Esfrega as asas do nariz. Às vezes até ficarem completamente vermelhas.
Nyberg se despediu com um aceno e foi embora. Wallander Pensou que sentiria a sua falta. Além disso, ele mesmo deveria, sem mais demoras e muito a sério, começar a pensar na sua própria situação. Na realidade, quanto tempo poderia continuar a exercer a sua profissão? E o que faria depois? Nunca se mudaria, obviamente, para viver no meio da floresta, só a mera ideia lhe provocava calafrios E também não pensava em escrever as suas memórias. Para isso, não tinha nem paciência nem capacidade literária.
Deixou aquelas perguntas sem resposta, entreabriu a janela e voltou a se concentrar no computador e na vida de Hakan von Enke. Tentava utilizar a sua imaginação para encontrar novas vias por onde aceder à informação, leu sobre a Alemanha do Leste, as manobras da sua frota no Sul do Báltico, das quais tanto Sten Nordlander como o próprio Von Enke tinham lhe falado. O maior espaço de tempo que dedicou foi aos incidentes com submarinos na década de 1980. De vez em quando anotava um nome, um acontecimento, uma reflexão. Mas não encontrou uma única falha no retrato de Hakan von Enke e, quando virou a sua atenção para a Escola Francesa, também não encontrou nada chamativo sobre Louise. Simplesmente, não havia nada. Pensou que Linda escolhera dois magníficos exemplares da alta burguesia para sogros. Pelo menos aparentemente.
Era cerca da meia-noite quando começou a bocejar. Toda aquela pesquisa na Internet levara-o à periferia do que podia ser interessante. Mas de repente estremeceu e se aproximou da tela; havia ali um artigo do princípio de 1987, num jornal vespertino. Um jornalista de investigação conseguira obter informações sobre uma sala de festas privadas de Estocolmo onde costumavam ir oficiais da Marinha. Aparentemente, as festas eram realizadas com o maior sigilo, somente se permitia o acesso a uns quantos, e nenhum dos oficiais com que o jornalista contactara quisera prestar declarações. Por outro lado, prestou-as uma das empregadas, Fany Klarstrõm, que lhe falou sobre as conversas desagradáveis dos oficiais arrogantes, que tinham em comum o seu ódio a Olof Palme. Assegurou-lhe que deixara de trabalhar ali porque não suportava mais. Entre os que frequentavam o local se encontrava Hakan von Enke.
Wallander imprimiu as duas páginas do jornal. Havia uma fotografia de Fany Klarstrõm, e Wallander calculou que deveria ter uns cinquenta anos quando foi tirada, então ainda podia estar viva. Também tomou nota do nome do jornalista e pensou que aquela era a segunda sala de festas com que se deparava em relação a Hakan von Enke. Dobrou o artigo impresso e guardou-o no bolso.
Não era inaudito que de vez em quando circulasse o rumor de sociedades secretas entre certos círculos policiais. No entanto, Wallander nunca fora convidado para participar de tais atividades. O mais parecido que conseguia se lembrar fora aquela ocasião em que Rydberg lhe propusera que, uma vez por mês, fizessem um bom jantar no restaurante do castelo de Svaneholm, sugestão que no entanto nunca chegou a se concretizar.
Wallander desligou o computador e deixou a sala. Quando estava no meio do corredor voltou atrás e apagou a luz. Foi embora pelo mesmo caminho por onde chegara, pelo porão, e aproveitou para tirar as toalhas e camisas sujas do seu armário para lavá-las em casa.
Parou no estacionamento e inspirou fundo o ar fresco da noite estival. Ainda tinha muitos anos de vida pela frente, ainda sentia uma grande vontade de viver. Chegou em casa, dormiu, teve um sonho agitado com Mona, mas acordou descansado. Levantou-se diligente da cama com a intenção de aproveitar a energia inesperada que o preenchia. Ainda não eram oito horas quando se sentou ao telefone para tentar localizar o jornalista que, há mais de vinte anos, escrevera o artigo sobre as reuniões secretas dos oficiais da Marinha. Depois de várias consultas infrutíferas ao serviço informativo telefônico, observou com paciência o seu computador quebrado enquanto se perguntava quem deveria incomodar, se Linda ou Martinsson. Escolheu o segundo e telefonou para sua casa, onde respondeu um dos netos do colega. Wallander não conseguiu encetar qualquer conversa sensata com aquela pessoa de tenra idade antes de Martinsson vir ao telefone.
— Estava falando com Astrid, explicou. — Tem três anos, é ruiva cor de cenoura e adora me puxar o pouco cabelo que ainda me resta.
— Escute, o meu computador está quebrado. Importa-se de me ajudar com uma pesquisa?
— Posso ligar dentro de uns minutos?
Martinsson ligou cinco minutos mais tarde e Wallander lhe deu o nome do jornalista, Torbjórn Setterwall. Martinsson não levou muito tempo para localizá-lo.
— Com três anos de atraso, anunciou Martinsson.
— Como assim?
— Torbjörn Setterwall faleceu há três anos, num estranho acidente de elevador, parece. Tinha cinquenta e quatro anos, deixou mulher e três filhos. Como se morre num elevador?
— Talvez tivesse quebrado um cabo e a cabina tenha caído em queda livre ou então ficou entalado ali dentro de alguma forma.
— Bem, a ajuda que lhe pude dar não foi grande.
— Espere, tenho mais um nome, duma mulher, disse Wallander. — Talvez lhe dê mais trabalho. Além disso, o risco de ela estar morta é ainda maior.
— Como se chama?
— Fany Klarström.
— Jornalista?
— Garçonete.
— Vejamos. Mas concordo, pode ser mais difícil, embora nem o nome Fany nem o sobrenome Klarström se encontrem entre os mais vulgares.
Wallander aguardou enquanto Martinsson fazia a pesquisa. Ouviu-o a trautear uma melodia conhecida ao mesmo tempo que teclava. Vá lá, parece que o taciturno do Martinsson hoje está bem-disposto. Espero que dure.
— Já ligo. Parece que vai levar mais tempo do que pensava.
Martinsson não levou nem vinte minutos. Quando ligou, contou que Fany Klarstrõm, de oitenta e quatro anos, vivia em Markaryd, Smáland. Tinha um apartamento próprio num condomínio para a terceira idade chamado Lillgârden.
— Como a encontrou? Quis saber Wallander. — Tem certeza de que é a pessoa que procuro?
— Absoluta.
— E porquê?
— Porque acabo de falar com ela, respondeu Martinsson para grande espanto de Wallander. — Telefonei e ela me disse que trabalhou como garçonete durante quase cinquenta anos.
— Incrível. Um dia vai me contar o que faz com o computador, que eu não sou capaz.
Wallander anotou o endereço e o telefone de Fany Klarstrõm. Segundo Martinsson, pela voz trêmula era muito velha, mas a cabeça funcionava bem.
Depois da conversa com Martinsson, o inspetor saiu para o jardim. O sol brilhava num limpo céu azul. Um bando de milhafres pairava na corrente de ar ascendente à espia de presas nos sulcos dos campos. Wallander pensou em Nyberg e na sua ânsia de viver no meio de florestas densas. O que desejava ele, além do que já tinha? Nada, dizia a si mesmo. Talvez só poder se permitir viajar para o sul nos meses mais frios do inverno; uma pequena casa na Espanha. Mas logo afastou essa ideia: nunca se adaptaria ali, rodeado de estranhos e de um idioma que só conseguiria aprender de forma rudimentar. Fosse como fosse, Skâne seria a sua última estação, continuaria a viver na sua casa enquanto pudesse. E quando já não pudesse se governar sozinho, esperava que o fim chegasse o quanto antes. O que mais temia acima de tudo era que a sua velhice se reduzisse à espera do fim, a um período em que nada daquilo que constituía a sua vida de sempre fosse possível.
Tomou uma decisão: viajaria para Markaryd para falar com a antiga garçonete. Não sabia o que esperava atingir com uma conversa com a senhora, mas não conseguia se livrar da curiosidade que aquele artigo lhe despertara. Abriu o seu velho atlas da escola; Markaryd se encontrava apenas a umas horas de carro.
Partiu nesse mesmo dia depois de falar ao telefone com Linda. Ela ouviu-o com atenção e, uma vez a par, quis acompanhá-lo. Ele não gostou nada da ideia e lhe perguntou como pensava que Klara suportaria uma viagem de carro num dia que ameaçava ser um dos mais quentes desse verão.
— Hans está em casa, que se ocupe da filha, respondeu ela.
— Ah, bom, nesse caso é diferente.
— Não quer que vá consigo, sei pelo seu tom de voz.
— Porque diz isso?
— Porque é verdade.
E era verdade. Wallander idealizara uma viagem de carro sozinho, rumo ao Norte, às florestas de Smáland. Era um dos seus prazeres simples, viajar de carro sem companhia; gostava de se conceder essa liberdade, sozinho com os seus pensamentos, com o rádio desligado e a possibilidade de parar quando tivesse vontade. Mas Linda adivinhara.
— Está chateada? Perguntou.
— Não, respondeu ela. — Mas às vezes é muito esquisito para o meu gosto.
— Bem, não podemos escolher os nossos progenitores. E se sou esquisito é porque herdei a esquisitice do seu avô. Esse, sim, era uma pessoa estranha.
— Boa sorte. E depois de falar com ela me diga alguma coisa. Em boa verdade, preciso dizer que não é um homem que desiste.
— E você, desiste? Ela riu baixinho.
— Nunca. Nem sei como se escreve essa palavra.
Quando Wallander se pôs a caminho eram onze horas da manhã. À uma e pouco chegou a Älmhult, onde almoçou no restaurante apinhado do IKEA. A longa fila ao balcão impacientou-o e irritou-o; comeu muito depressa. Depois se enganou na estrada e chegou a Markaryd uma hora mais tarde do que o previsto. Numa bomba de gasolina lhe indicaram o caminho para a residência Lillgarden. Quando saiu do carro, pensou imediatamente na grande semelhança que tinha com o lar de Niklasgarden. Perguntou-se se o homem que disse ser tio de Signe von Enke teria voltado a visitá-la. Averiguaria assim que tivesse oportunidade.
Havia um homem de certa idade vestido um macacão azul debruçado sobre uma máquina de cortar grama virada ao contrário; com um pau retirava tufos de grama que estavam agarrados às lâminas. Wallander lhe perguntou pelo apartamento de Fany Klarström. O homem se levantou e esticou as costas. Falava com um sotaque cerrado de Smaland que Wallander teve dificuldade em compreender.
— É o último, no térreo.
— Como está ela? O homem observou Wallander com um olhar inquiridor e desconfiado.
— Fany está velha e cansada. E quem é o senhor? Wallander tirou a sua identificação de polícia, mas se arrependeu no mesmo instante. Porquê expor a pobre Fany ao risco de as pessoas começarem a lançar boatos sobre a visita de um policial? No entanto, já era muito tarde. O homem estudou detidamente a sua identificação.
— Deduzo pela sua pronúncia que é de Skane. De Ystad?
— Como vê.
— E veio a Markaryd para ver Fany?
— Na realidade, não se trata de nenhum assunto policial, explicou Wallander com toda a amabilidade de que foi capaz. — É antes uma visita de tipo pessoal.
— Isso fará bem à Fany. Quase não recebe visitas.
Wallander apontou com a cabeça para a máquina de cortar grama.
— Devia usar uma proteção para os ouvidos.
— O barulho não me incomoda; os meus ouvidos se arruinaram na minha juventude, quando trabalhava nas minas.
Wallander entrou no prédio e seguiu o corredor da esquerda. Havia um idoso junto a uma janela olhando fixamente para a fachada traseira de uma cabana em ruínas. Wallander se arrepiou. Parou em frente a uma porta em que se lia o nome numa placa, esmeradamente adornada com flores pintadas em cores pastel. Por um instante, considerou a hipótese de ir embora nesse momento.
Em vez disso, bateu à porta.
* * *
Vinte e Cinco
FANY KLARSTRÖM abriu imediatamente a porta, como se tivesse estado à sua espera há uma eternidade, e recebeu-o com um amplo sorriso. Era o visitante ansiado, pensou Wallander antes de a mulher o mandar entrar e fechar a porta. Wallander teve a sensação de estar entrando num mundo perdido.
A casa de Fany Klarström cheirava como se alguém tivesse acabado de acender uma fogueira com madeira de amieiro ali mesmo, um aroma que fez Wallander se recordar do breve período em que estivera nos escoteiros. Uma vez o seu grupo saíra para ir acampar; montaram as tendas à beira de um lago, pensava se recordar de que era o de Krageholm, onde depois vivera várias experiências profissionais desagradáveis, e ali acenderam uma fogueira com madeira de amieiro. Mas por acaso cresceriam amieiros junto aos lagos de Skane? Wallander decidiu deixar para mais tarde a resposta a essa questão.
Fany Klarström tinha cabelo azul ondulado e estava elegantemente maquiada como se estivesse sempre pronta para uma visita inesperada. Ao sorrir, brilharam uns dentes impecáveis que encheram Wallander de inveja; a ele lhe colocaram os primeiros chumbos nos dentes aos doze anos e, a partir daquele momento, manteve uma luta constante com medidas de higiene oral e visitas ao dentista, que o repreendia sempre mais ou menos abertamente. Apesar de tudo, ainda conservava a maioria dos seus dentes, embora o seu dentista o tivesse prevenido de que começaria a perdê-los se não se esforçasse mais com a escova. Aos oitenta e quatro anos, Fany Klarström conservava todos os seus dentes, que além do mais reluziam iguais aos dos jovens de vinte anos. Não lhe perguntou quem era nem o que queria, simplesmente convidou-o para entrar na pequena sala de estar cujas paredes estavam cobertas de fotografias emolduradas. Tinha muitos tipos de plantas bem cuidadas nas janelas e em várias prateleiras. Não se via uma partícula de pó, disse Wallander para si mesmo. Quem mora aqui é uma pessoa viva e bem viva. Sentou-se no canto do sofá que ela lhe apontou e aceitou uma xícara de café. Enquanto a mulher se encontrava na pequena cozinha, Wallander foi estudando as fotografias. Ali estava a fotografia de casamento, datada em 1942, Fany Klarström com um homem muito rígido e com o cabelo penteado para trás. Wallander achou ver nele o mesmo homem de outra fotografia em que aparecia de roupa de treino e a bordo de um barco e que fora tirada a partir de um cais. Continuou a vaguear por entre os retratos e chegou à conclusão de que a senhora só tinha um filho. Ouviu o tinido da bandeja e voltou a se sentar no sofá. Fany Klarström serviu o café com mão firme, sem derramar uma gota, prova de que mantivera o jeito adquirido por uma longa vida profissional. Sentou-se numa velha cadeira de balanço em frente a Wallander. De repente, um gato cinzento matizado, até então invisível, saltou para o colo da mulher. Fany levou a xícara à boca. Era um café muito forte e Wallander se engasgou e até lhe saltaram lágrimas dos olhos. Quando o ataque de tosse passou, Fany lhe deu um guardanapo para que secasse os olhos. Wallander viu que tinha o nome "Hotel Billingen" impresso.
— Bem, talvez devesse começar por explicar o que me trouxe aqui, começou Wallander.
— As pessoas amáveis são sempre bem-vindas, assegurou Fany Klarström.
Falava com o dialeto inconfundível de Estocolmo. Wallander se perguntou o que a teria levado à decisão de envelhecer num lugar tão remoto como Markaryd. Wallander pousou a cópia do artigo do jornal sobre a toalha bordada que cobria a mesa. Ela não se incomodou a lê-lo, apenas deu uma olhada nas duas fotografias. Embora parecesse reconhecê-las, Wallander não queria ser muito direto e apontou com educado interesse para as fotografias emolduradas na parede. E ela não hesitou em contar; sem demasiadas palavras resumiu a sua vida.
Em 1941, Fany, que então de sobrenome Andersson, conheceu um jovem marinheiro de nome Arne Klarström.
— Foi realmente uma grande paixão, confessou a mulher. — Conhecemo-nos num dos ferryboats de Djurgârden, rumo ao Parque de Diversões Grõna Lund. Quando ia saindo no terminal de Slussen tropecei e ele me ajudou a levantar. O que teria acontecido se não tivesse caído? Na verdade pode se dizer que caí redondinha nos braços do meu grande amor. E que durou exatamente dois anos. Casamos, fiquei grávida, e Arne hesitou até ao último momento sobre se devia continuar a trabalhar nas escoltas de navios da marinha mercante. Esquecemos com facilidade de quantos marinheiros morreram por causa das explosões de minas durante aqueles anos apesar de não estarmos diretamente envolvidos na guerra. No entanto, Arne se sentia invulnerável, e a mim nem me passava pela cabeça que alguma coisa pudesse lhe acontecer. O nosso filho, Gunar, nasceu no dia 12 de janeiro de 1943, às seis e meia da manhã. Arne estava em casa e foi a única vez que viu o filho. Nove dias depois de embarcar, se chocaram com uma mina no mar do Norte. Nunca encontraram qualquer rastro, nem do barco nem da tripulação.
A idosa ficou em silêncio e lançou um olhar para as fotografias da parede. Depois continuou:
— E ali estava eu, sozinha com uma paixão perdida e um filho por criar. Tentei encontrar um outro homem com quem partilhar a vida, pois ainda era muito jovem. Mas ninguém podia se comparar a Arne; ele era quem era, o meu marido, vivo ou morto. E nunca conheci ninguém que pudesse tomar o seu lugar.
De repente, Fany começou a chorar, sem gestos e quase sem se ouvir. Wallander sentiu um nó na garganta e lhe empurrou delicadamente o guardanapo que ela lhe oferecera antes.
— Às vezes sinto falta de alguém com quem dividir a minha dor, disse ainda com lágrimas nos olhos. — Talvez por isso a solidão me pese tanto. Imagine o que é ter de convidar um total estranho para casa só para ter alguém com quem chorar.
— E o seu filho? Perguntou Wallander com tato.
— Vive em Abisko, é muito longe daqui. Vem aqui uma vez por ano, às vezes sozinho e outras vezes com a mulher e algum dos seus filhos. Quer que me mude para lá, mas fica muito para o norte, faz muito frio. Incha-nos os pés, às velhas garçonetes, e não suportamos o frio.
— O que faz o seu filho em Abisko?
— Tem a ver com a floresta, penso que conta árvores. Wallander se perguntou se Abisko estaria muito longe da floresta onde Nyberg pensava se instalar; suspeitava que assim era. Aliás, Abisko não ficava na Lapônia?
— Mas a senhora veio viver em Markaryd.
— Sim, passei alguns anos da minha infância aqui, antes de nos mudarmos para Estocolmo. Na realidade, eu não queria ir embora. E me mudei para cá só para provar que continuava teimosa e, além disso, é barato. As garçonetes não acumulam grandes fortunas.
— E trabalhou como garçonete toda a vida?
— Trabalhei. Um vaivém eterno de copos, xícaras e pratos, era como se estivéssemos numa linha de montagem que nunca parava. Restaurantes, hotéis, uma vez até servi na festa do Prêmio Nobel; me lembro de que tive a grande honra de servir o jantar ao escritor Ernest Hemingway. Uma única vez me lançou um olhar fugaz. Estive prestes lhe a pedir que escrevesse um livro sobre o terrível destino que tantos marinheiros sofreram durante a guerra. Creio que foi em 1954. Em todo o caso, Arne já tinha morrido há muito e Gunar era quase adolescente.
— Estou vendo. Mas às vezes também trabalhava em locais de celebrações privadas, não trabalhava?
— Sim, gostava de mudar. E também não era pessoa de me calar se algum chefe de sala não se comportasse como devia ser. Protestava pelos meus colegas de trabalho, não apenas por mim, de maneira que de vez em quando me despediam. Fui muito ativa no sindicato durante aqueles anos.
— Falemos então desta sala de festas, disse Wallander, que pensava que já era oportuno abordar o assunto.
Apontou para o artigo e a mulher colocou os óculos que estavam pendurados num fio em volta do pescoço. Leu rapidamente o artigo e devolveu-o a Wallander.
— Deixe-me começar por me defender, disse ela entre risos. — Era um trabalho muito bem pago, servir aqueles oficiais desagradáveis. Para uma empregada pobre como eu, numa noite podia lucrar tanto como o salário de um mês inteiro, se corresse bem. Saíam dali bêbados, alguns largavam notas de cem como se fossem adubo. Podíamos fazer muito dinheiro.
— Onde era o local?
— No bairro de Östermalm, não diz no artigo? Era propriedade de um homem que estivera ligado ao movimento nazista de Per Engdahl. Independentemente das suas ideias políticas desprezíveis, era muito bom cozinheiro. Tinha feito muito dinheiro trabalhando como chefe de cozinha particular para vários altos oficiais alemães refugiados na Argentina. Lá ganhava bem, cozinhava o que lhe pediam, dizia "Heil Hitler" e, lá para o fim dos anos cinquenta, voltou para a Suécia e comprou aquela sala de festas. E sei tudo isso através daquilo que se pode chamar fontes fidedignas.
— Quem lhe contou? A idosa hesitou um instante antes de responder.
— Umas pessoas que se desligaram do movimento de Engdahl. Wallander notou de que não tinha informação suficiente sobre o passado de Fany Klarström.
— Engano-me se imaginar que não só era ativa no sindicato mas que também tinha interesses políticos?
— Sim, era politicamente ativa no Partido Comunista. Em certa medida, ainda sou, pois a ideia de um mundo solidário continua a ser a única coisa em que ainda sou capaz de acreditar. A única verdade política que não se pode pôr em causa, no meu entender.
— Isso teve algo a ver com a escolha do lugar de trabalho?
— O partido me pediu. Importava saber de que falavam os oficiais conservadores da Marinha quando estavam sozinhos. Ninguém contava que uma empregada de pernas inchadas se interessasse pela conversa e a gravasse na memória. Wallander tentava compreender o alcance daquilo que acabava de ouvir.
— Não havia o risco de, ao repetir o que ouvira, ser acusada de cometer uma irregularidade?
As lágrimas tinham já secado, e a idosa olhava-o agora, divertida.
— Irregularidade? Fany Klarström nunca foi uma espiã, se é isso que quer dizer. Não entendo porque os policiais têm sempre de se expressar de uma forma tão rebuscada. Falava com os meus camaradas de partido, era tudo. Do mesmo modo que outros podiam falar das atitudes dos condutores dos trens ou dos empregados do comércio. Nos anos cinquenta, os conservadores não eram os únicos que consideravam os comunistas traidores, também os sociais-democratas cantavam nesse coro, mas, evidentemente, não o éramos.
— Bem, então esqueçamos essa pergunta. Mas eu sou policial e a minha curiosidade é legítima.
— Isso foi há mais de cinquenta anos. Aquilo que porventura se disse ou fez naquele tempo deve ter prescrito há muito e não tem interesse nenhum.
— Olhe que não é bem assim, objetou Wallander. — A história não é só o que deixamos para trás, mas é também algo que vai nos acompanhando ao longo da vida.
Fany Klarström não fez qualquer comentário às suas últimas palavras, e Wallander não estava totalmente convencido de que o tivesse entendido. Voltou a orientar a conversa para o artigo do jornal. Percebera que a idosa sentia uma necessidade há muito reprimida de falar com alguém, o que acarretava um sério risco da conversa se prolongar muito. Seria um reflexo da imagem do seu próprio futuro? O velho solitário que se agarrava a qualquer pessoa que cruzasse o seu caminho, tentando retê-la o máximo de tempo possível?
A garçonete Fany tinha boa memória; se lembrava da maioria dos homens fardados de diversas patentes que apareciam na desfocada fotografia cinzenta. Os seus comentários eram de uma perspicácia brilhante, muitas vezes cortantes, e o inspetor compreendeu que considerava as suas palavras totalmente justificadas. Por exemplo, havia um comandante, um tal Sunesson, que andava sempre contando anedotas porcas, que ela não achava divertidas, apenas grosseiras. Além disso, era um dos principais detratores de Palme, e quem com mais insistência prometia abertamente os mais variados métodos para liquidar o "espião russo".
— Tenho uma recordação revoltante do comandante Sunesson, disse. — Dois dias depois de Olof Palme ter sido abatido a tiros na rua, estes oficiais tiveram um daqueles jantares privados. Sunesson se levantou e propôs um brinde a Olof Palme, que finalmente tinha tido o bom senso de não continuar entre os vivos, fazendo a vida negra a todos os cidadãos honestos. Lembro-me exatamente das suas palavras e por pouco não lhe entornei a terrina da sopa em cima. Foi uma noite odiosa. Wallander apontou para Hakan von Enke.
— O que se lembra dele?
— Era um dos melhores, pois não bebia muito e quase não falava; só escutava. Também era um dos mais educados quando se dirigia a mim. Importava-se comigo, por assim dizer.
— E também tinha ódio a Palme? E medo da Rússia?
— Esses sentimentos eram partilhados por todos e todos diziam que a Suécia devia fazer parte da OTAN, que era uma vergonha não pertencermos. Muitos deles achavam também que a Suécia devia se armar com armas nucleares o quanto antes; se equipássemos alguns submarinos com esse tipo de armamento, seria possível defender as fronteiras suecas. Todas as conversas giravam em volta da mesma luta entre Deus e o Diabo.
— E o Diabo era o Leste?
— E o Deus Pai eram os Estados Unidos. Já nos anos cinquenta se falava frequentemente dos aviões americanos que sobrevoavam o território sueco sem que as nossas estações de radar dessem alarme. Aparentemente existiam acordos confidenciais entre o governo e os militares que davam livre acesso aos pilotos americanos ao nosso espaço aéreo. Os nossos controladores aéreos empregavam certos códigos que os americanos utilizavam. A partir daí, só tinham de levantar das bases norueguesas e voar para a União Soviética. Lembro-me de que os meus camaradas e eu discutíamos este assunto em reuniões agitadas.
— E o que me diz dos submarinos?
— Bem, era naturalmente um tema constante.
— Incluindo o que encalhou ao largo de Karlskrona? E o do canal de Harsfjärden? A sua resposta surpreendeu-o.
— Tratava-se de coisas muito distintas.
— Como?
— O de Karlskrona era um submarino russo que encalhou, mas nunca houve provas de que o que se escondia sob a superfície em Harsfjärden também fosse. O que foi, sem dúvida, intencional.
— O que quer dizer?
— Às vezes brindavam àquele pobre comandante, como se chamava?
— Gushchin.
— Exato. Coitado do Gushchin, diziam eles, estava tão bêbado que deixou o seu submarino ficar preso num rochedo sueco. Portanto, já podiam capturar o seu submarino russo. Já não restavam dúvidas de que eram os russos que brincavam às escondidas em águas suecas. Mas, no caso de Harsfjärden, nunca chegaram a brindar a nenhum comandante russo. Está entendendo o que lhe digo?
— Está dizendo que não eram os russos que andavam colocando o nariz nas águas de Harsfjärden?
— Dificilmente haverá provas, nem duma coisa nem doutra.
Fany Klarström continuou falando com entusiasmo de assuntos sobre os quais Wallander pouco sabia. Para ele, conceitos como "a Guerra Fria" e "não-alinhamento" no fundo eram combinações de palavras sem conteúdo. Tinha plena consciência de que os seus conhecimentos de História eram extremamente limitados, nunca negara. E também não sentira muito interesse, até àquele momento. Mas agora ouvia Fany Klarström com a máxima atenção.
— Por outras palavras, a Rússia era o inimigo, precisou Wallander.
— Todos os nossos militares eram dessa opinião. Quando se reuniam, falavam como se estivéssemos em guerra contra os russos. Não passava pela cabeça de nenhum deles que os Estados Unidos também pudessem constituir uma ameaça para a nossa soberania.
— Qual era o verdadeiro objetivo daquelas reuniões?
— Comer e beber e falar mal dos políticos que "constituíam uma ameaça para a soberania nacional sueca". Usavam sempre a mesma expressão. O inimigo principal eram os sociais-democratas. Apesar de todos saberem que Olof Palme era um social-democrata convicto, nesses círculos rotulavam-no sempre de "comunista".
Não obstante os protestos de Wallander, Fany Klarström se levantou para preparar mais café. Quando voltou com a cafeteira, o inspetor lhe expôs o verdadeiro motivo da sua visita a Markaryd.
— Sim, me recordo de ter lido nos jornais sobre o desaparecimento desse casal, disse Fany Klarström quando Wallander terminou.
— A mulher, Louise, foi encontrada nos arredores de Estocolmo há pouco, morta.
— Coitada! O que lhe aconteceu?
— Provavelmente foi assassinada.
— Porquê?
— Ainda não se sabe.
— E o marido é este que aparece na fotografia?
— Hakan von Enke. Se se lembrar de mais alguma coisa sob ele, agradecia muito que me contasse.
A idosa refletiu enquanto observava a fotografia.
— Tenho alguma dificuldade em me lembrar dele, disse passado um pouco. — Acho que já lhe contei tudo o que me lembro. E, se formos ver, talvez isso também diga alguma coisa sobre ele, não acha? Não chamava a atenção, normalmente falava pouco, não se contava entre os que bebiam mais e faziam mais alarde. Lembro-me dele sempre sorridente.
Wallander franziu a testa. Não estaria a senhora confundindo-o com outra pessoa?
— Tem certeza de que sorria? A mim me deu sempre a impressão de ser um homem muito sério.
— Posso estar enganada, mas tenho certeza de que não era um dos incitadores à guerra mais ferozes. Pelo contrário, pertencia à minoria que, de vez em quando, advogava a paz, e claro que me lembro porque isso me interessava.
— O quê?
— A paz. Já nos anos cinquenta me contava entre aqueles que exigiam que a Suécia se abstivesse de fabricar armas nucleares.
— Portanto, Hakan von Enke era a favor da paz?
— Tanto quanto me lembro, sim. Mas já passou muito tempo.
— Lembra-se de algum outro detalhe?
Wallander percebeu que Fany Klarström fazia um grande esforço por se recordar. Entretanto, ele apenas bebericava o café, não queria beber mais, e começou a trincar um biscoito. De repente, lhe caiu o chumbo de um dente e sentiu imediatamente um pico no nervo. Escondeu discretamente o metal num guardanapo e guardou-o no bolso.
Estavam em pleno verão, o seu dentista já devia estar de férias, e certamente o enviariam para um outro de urgência. Muito irritado, pensou que o seu corpo estava se degradando cada vez mais, as peças se soltavam umas atrás das outras: quando os elos mais importantes deixassem de funcionar seria o fim.
— Ah, é verdade, os Estados Unidos! Exclamou Fany Klarström subitamente. — Já sabia que havia mais alguma coisa.
Tratava-se de um incidente que ficara gravado na sua memória, que lhe causara uma impressão profunda, por isso recordava-o com tanta nitidez.
— Foi uma das últimas vezes em que servi o jantar. Aparentemente, alguns dos oficiais tinham expressado o seu desejo de ver mulheres mais jovens por ali, de saia curta e pernas menos inchadas. Eu não me importava com isso, pois já não suportava continuar a servir jantares regados a álcool àqueles senhores. Reuniam-se na primeira terça-feira de cada mês. Aquilo deve ter sido em 1987, no começo da primavera. Lembro-me porque tinha fraturado o dedo mindinho da mão esquerda e fiquei um tempo sem poder trabalhar. E regressei precisamente na noite dessa terça-feira depois de me darem alta; foi em março. O café e o conhaque eram sempre servidos numa sala lúgubre com poltronas de pele e estantes escuras. Lembro-me bem da sala porque sempre adorei ler. Numa ocasião em que cheguei antes da hora entrei nessa sala para ver os livros antes de pôr a mesa. Para meu espanto, vi que eram falsos, ocos, eram só as capas. Parece que o proprietário, ou talvez o arquiteto de interiores que contratara, os tinha comprado numa loja de decoração. Lembro-me de que a minha consideração por aqueles homens diminuiu ainda mais.
A idosa se endireitou melhor na cadeira, como se necessitasse corrigir a sua postura para não perder o fio da meada.
— De repente, um dos oficiais começou a falar de espiões, prosseguiu. — Nesse momento, eu estava servindo conhaque de uma garrafa cara. Não era invulgar falarem de espiões; Wenerstrõm, por exemplo, era um tema frequente. Houve vários que se apresentavam como voluntários para matá-lo quando estavam bem regados; me lembro dum almirante, se chamava Von Hartman ou algo parecido, que achava que deviam estrangulá-lo lentamente com uma corda de balalaica. De repente, Hakan von Enke tomou a palavra e perguntou porque ninguém se preocupava com a possibilidade de haver espiões norte-americanos operando na Suécia. Os outros se opuseram ferozmente a essa ideia e a discussão degenerou numa cena de colocar medo em que vários dos oficiais puseram a sua lealdade em questão. Não é preciso dizer que todos estavam mais ou menos bêbados, exceto o próprio Von Enke, talvez. De qualquer maneira, se indignou tanto que se levantou e saiu. Foi a primeira vez que algo parecido aconteceu desde que comecei a trabalhar ali. E não sei se voltou a acontecer, pois a partir daquela noite fui substituída por outras empregadas mais jovens e atraentes. Lembro-me de tudo tão bem porque os meus camaradas e eu éramos da mesma opinião, isto é, se os russos tinham espiões na Suécia, como seguramente tinham, era óbvio que os americanos não estariam de braços cruzados. No entanto, aqueles oficiais se recusavam a admitir isso. Ou talvez preferissem ignorar o que todos sabiam.
Fany Klarström se levantou para servir mais café, mas o inspetor cobriu a xícara com um gesto delicado. Quando voltou a sentar, Wallander reparou nas suas pernas inchadas e cheias de varizes. E não foi difícil imaginá-la ali, entre os oficiais da Marinha na sala de jantar.
— Não me lembro de mais nada, disse passado um pouco. — Acha que pode ser de alguma utilidade?
— Com certeza que sim, assegurou Wallander. — Toda a informação que possamos reunir aumenta as nossas possibilidades de esclarecer o acontecido.
Ela tirou os óculos e olhou-o com um olhar inquiridor.
— O Von Enke também está morto?
— Não sabemos.
— É possível que tenha sido ele a matá-la?
— Também não sabemos. Mas, claro, tudo é possível.
— Sim, costuma ser assim, disse ela com um suspiro. — Os maridos matam as mulheres. Às vezes dizem que tinham pensado em se suicidar a seguir, mas muitos não têm essa coragem.
— Sim, concordou Wallander. — Acontece muitas vezes. Na hora da verdade, muitos homens se mostram covardes.
Subitamente, Fany Klarström começou a chorar de novo; umas lágrimas quase imperceptíveis corriam pelas suas faces. Wallander voltou a sentir um nó na garganta. A solidão não é bonita, disse para si mesmo. Esta mulher se vê aqui no meio das suas fotografias mudas, com as recordações como única companhia.
— Antes nunca chorava, disse enquanto limpava as lágrimas. — Mas, à medida que vou envelhecendo, me vem cada vez mais a memória o meu marido. Acho que me espera ali em baixo, nas profundidades, que me reclama. E dentro em breve irei me encontrar com ele. Já vivi a minha vida, é essa a sensação que tenho. Mas mesmo assim continua aqui este velho coração cansado que bate dia após dia. Depois do outono se seguirão as primaveras dos que ficam.
— Parece um poema, disse Wallander.
— Parece, não parece? Concordou ela e riu. — Uma velhota que se entrega à poesia nos seus momentos solitários.
Wallander se levantou e lhe agradeceu. Ela fez questão de acompanhá-lo até ao carro apesar das evidentes dores nas pernas que isso lhe causava. O homem da máquina de cortar grama já tinha ido embora.
— O verão nos traz a saudade, disse e lhe pegou na mão. — O meu marido faleceu há sessenta anos, mas mesmo assim sinto uma saudade profunda dele, como quando acabáramos de nos conhecer ou durante os escassos anos que estivemos juntos. Pode um policial também sentir algo parecido?
— Pode, pode, assegurou Wallander. — Sem dúvida que sim.
Fany Klarström acenou um adeus com a mão quando ele se afastou ao volante do carro. Uma pessoa que nunca mais voltarei a ver, pensou Wallander.
Deixou a pequena cidade e afastou a melancolia que lhe infundira a visita a Fany Klarström, mas não era capaz de deixar de pensar no que ela lhe dissera sobre os maridos que matam as mulheres, mas que são muito covardes para se suicidarem. Depois do seu encontro com Herman Eber, uma das primeiras hipóteses que colocara fora precisamente essa, que Hakan von Enke tivesse matado a mulher. Não conhecia nenhum motivo, nenhuma prova, nenhum vestígio; não era mais do que uma possibilidade entre muitas outras.
No entanto, era como se o fato de ter ouvido Fany Klarström pronunciar aquelas palavras o obrigasse a reconsiderar aquela frágil hipótese. Enquanto atravessava as florestas de Smaland tentou imaginar a cadeia de acontecimentos que poderiam ter conduzido a que Louise tivesse morrido nas mãos do marido.
Chegou em casa sem se sentir minimamente mais iluminado. Nessa noite ficou acordado muito tempo pensando em Fany Klarström, até que acabou por adormecer.
* * *
Vinte e Seis
WALLANDER foi arrancado do sono pelo som estridente do telefone. Era o velho aparelho do seu pai, que, por razões sentimentais, conservara quando esvaziou a casa de Löderup antes de vendê-la. Pensou deixá-lo tocar, mas por fim se levantou para atender. Era uma das novas recepcionistas da delegacia. Ebba, a recepcionista que o acompanhara durante toda a sua carreira, se aposentara, e ela e o marido tinham ido viver num apartamento no centro de Malmó, onde viviam os filhos. Não foi capaz de se lembrar do nome da nova recepcionista, talvez Ana? Não tinha certeza.
— Está aqui uma senhora perguntando pela seu endereço, disse a jovem. — Só posso informar com o seu consentimento. É estrangeira.
— Claro, respondeu Wallander. — Todas as mulheres que conheço são estrangeiras.
Uma vez que já estava ao telefone, decidiu procurar um dentista e, na terceira tentativa, conseguiu encontrar um que podia atendê-lo dentro de uma hora.
Era quase meio-dia quando voltou do dentista e já estava pensando almoçar quando bateram na porta. Reconheceu-a imediatamente, embora estivesse muito diferente. Tinham se passado muitos anos desde a última vez que vira Baiba Liepa, de Riga, na Letônia. Mas ali estava, embora mais pálida e mais velha.
— Meu Deus! Exclamou. — Então foi você que perguntou pela meu endereço na delegacia?
— Espero que não se importe.
— Como poderia me importar com uma visita sua?
Puxou-a para si, abraçou-a e notou que estava muito mais magra. Tinham se passado mais de quinze anos desde a sua breve mas intensa relação de amor. E havia mais de dez que tinham perdido o contacto; da última vez estava bêbado e lhe telefonara a altas da noite. Depois se arrependeu, evidentemente, e decidiu nunca mais voltar a contactá-la. No entanto, ao vê-la agora à sua frente, sentiu que a antiga chama se reacendia. Baiba fora a maior paixão que alguma vez vivera. A sua história de amor fê-lo ver com outra perspectiva a relação prolongada com Mona. Com Baiba experimentara uma sensualidade que não achava possível e estava disposto a começar uma vida nova; queria se casar com ela, mas ela não aceitou. Não queria voltar a viver com um policial e correr o risco de ficar viúva pela segunda vez.
Agora estavam em frente um ao outro na sala de estar de Wallander. Ainda lhe custava acreditar que fosse mesmo ela, que tivesse regressado de verdade, de um lugar distante no tempo e no espaço.
— Nunca pensei que nos voltaríamos a ver, admitiu Wallander. — Nunca mais me telefonou.
— Não, não telefonei. Não queria reviver o passado.
Conduziu-a para o sofá e se sentou ao seu lado. De repente, teve a sensação de que algo estava mal. Estava muito pálida, muito magra, talvez também muito cansada e lenta nos seus movimentos. Ela adivinhou os seus pensamentos, como sempre, e lhe pegou na mão.
— Precisava lhe ver, confessou. — Pensamos que as pessoas desaparecem para sempre, até que um dia acordamos e compreendemos que nunca é tarde demais. As pessoas que significaram alguma coisa para nós nunca saem completamente da nossa vida.
— Mas acredito que haja uma razão especial para ter vindo, salientou Wallander.
— Gostaria de tomar um chá, sugeriu ela. — Tem certeza de que não incomodo?
— Só tenho um cão, respondeu Wallander. — É tudo.
— Como está a sua filha?
— Lembra-se do seu nome? Baiba pareceu magoada com aquela pergunta e Wallander se lembrou de como se ofendia facilmente.
— Pensava mesmo que tinha me esquecido da Linda?
— Bem, pensava que tinha apagado tudo o que tinha a ver comigo.
— Há uma coisa em você de que nunca gostei. Fica sempre tão dramático quando se trata de algo sério. Como seria possível "apagar" alguém que se amou?
Wallander se levantou para ir até à cozinha preparar um chá.
— Faço-lhe companhia na cozinha, disse Baiba ao mesmo tempo que se colocava de pé. Ao ver o esforço que fazia, Wallander compreendeu que estava doente.
Baiba tirou uma panela e pôs água a ferver, como se conhecesse a cozinha. Ele tirou duas xícaras que herdara da mãe, a única coisa que na realidade restava. Sentaram-se à mesa da cozinha.
— Isto aqui é bonito, comentou Baiba. — Lembro de ter me falado em mudar para o campo, mas nunca pensei que o fizesse.
— E eu também não acreditava que chegasse a se concretizar. Nem que fosse ter um cão.
— Como se chama?
— É um macho, chama-se Jussi.
Com isso, a conversa esmoreceu. Observou-a discretamente. À luz radiante do sol que se filtrava pela janela, o seu aspecto emagrecido parecia se acentuar.
— Nunca saí de Riga, disse Baiba ao fim de um tempo. — Consegui me mudar para um apartamento melhor duas vezes, mas para mim a ideia de viver no campo é quase insuportável. Quando era criança, vivi com os meus avós paternos alguns anos. Era uma vida de pobreza que sempre associarei à Letônia rural. É provável que seja uma imagem falsa, mas nunca conseguirei me desfazer dela.
— Trabalhava na universidade quando nos conhecemos; o que faz agora?
Baiba não respondeu logo; bebeu um pouco de chá, devagar e aos golinhos, e depois afastou a xícara.
— Na verdade me formei em engenharia, explicou. — Tinha esquecido? Quando nos conhecemos, trabalhava como tradutora de livros técnicos para a Faculdade de Engenharia, mas já não estou lá. Agora, como estou doente...
— O que tem?
Respondeu com serenidade, como se não estivesse falando de nada grave.
— Vou morrer; tenho câncer. Mas agora não quero falar disso. Posso me deitar e descansar um pouco? Os analgésicos que me receitaram são tão fortes que me fazem quase adormecer.
Ela mostrou intenção de voltar para o sofá, mas Wallander encaminhou-a para o quarto, onde mudara os lençóis da cama uns dias antes. Alisou-os antes de ela se deitar. Baiba afundou a cabeça no travesseiro e sorriu, como se inspirada por uma lembrança.
— Já tinha me deitado nesta cama antes, não tinha?
— É verdade. A cama é muito antiga.
— Então evocarei essa época enquanto durmo um pouco. Só uma hora. Na delegacia disseram que estava de férias.
— Pode dormir o tempo que quiser.
Não teve certeza se ela o ouviu ou se já adormecera. Porque veio me ver agora? Perguntou-se. Não suporto mais mortes e mais desgraças, esposas que se afogam em álcool, sogras assassinadas. Arrependeu-se imediatamente desses pensamentos e se sentou com cuidado aos pés da cama para contemplar Baiba. A recordação do seu grande amor voltou e afetou-o de tal modo que quase começou a tremer. Não quero que morra, disse para si mesmo. Quero que continue a viver. Quem sabe se não estaria disposta um dia a partilhar a vida com um policial mais uma vez?
Wallander saiu e se sentou numa das cadeiras do jardim. Passado um pouco, soltou Jussi. O carro de Baiba era um velho Citroen com matrícula letã. Ligou o celular e viu que Linda telefonara. Parecia contente quando ligou de volta.
— Era para lhe contar que Hans recebeu um bônus no trabalho, duzentas mil coroas! O que significa que poderemos fazer as obras em casa.
— Será que merece realmente esse dinheiro? Perguntou Wallander em tom crítico.
— E porque não haveria de merecê-lo? Wallander lhe contou que Baiba estava de visita em sua casa. Linda ouviu o que lhe contou da mulher que nesse momento descansava na cama do pai.
— Vi-a em fotografias, disse Linda quando Wallander se calou. — Falou dela, há muito tempo. Mas, segundo a minha mãe, não passava de uma prostituta letã. Wallander se enfureceu.
— A sua mãe às vezes é uma pessoa mesmo vil! Devia ter vergonha de dizer uma coisa dessas. Em muitos sentidos, Baiba tem todas as qualidades que faltam à sua mãe. Quando lhe disse isso?
— E como quer que me lembre?
— Vou lhe telefonar e dizer que não pense em me contactar mais alguma vez.
— E o que ganhará com isso? Suponho que tinha ciúmes. Os ciúmes nos fazem dizer coisas assim.
Muito contrariado, Wallander compreendeu que Linda tinha razão e acabou por se acalmar. E então lhe contou que Baiba estava doente.
— Veio para se despedir? Que coisa tão triste.
— Sim, essa foi a minha primeira conclusão. Fiquei surpreso e me deu uma grande alegria vê-la novamente. Mas, ao conhecer o seu estado, fiquei muito para baixo. Ultimamente tenho a sensação de que só estou rodeado de morte e sofrimento.
— Bom, sempre esteve, realçou Linda. — Esse era um dos primeiros temas que se abordavam na Escola Superior de Polícia. Que tipo de vida profissional nos aguardava? Mas não esqueça de que agora tem a Klara.
— Não é disso que estou falando, objetou Wallander. — E a sensação de velhice que parece estar entrando pela calada e cravando as suas garras no meu pescoço. O número dos escassos amigos à minha volta vai diminuindo cada vez mais. Com a morte do meu pai, eu passei a ser o próximo da fila, se entende o que quero dizer. Klara é o último elo dessa linhagem, eu sou o primeiro.
— Se Baiba veio vê-lo é porque significas alguma coisa para ela. Isso é o mais importante.
— Venha aqui em casa, pediu Wallander. — Gostaria que conhecesse a única mulher verdadeiramente importante na minha vida.
— Além de Mona?
— E escusado dizê-lo. Linda refletiu um momento antes de responder.
— Estou aqui com uma amiga. Lembra-se da Rakel? É policial e agora está colocada em Malmó. Klara e ela se dão muito bem.
— Não vai trazer Klara?
— Não, vou só eu e estarei aí daqui a pouco.
* * *
Eram três horas quando Linda entrou com uma guinada no pátio de Wallander; teve de dar uma freada brusca para não bater na traseira do carro de Baiba. A velocidade exagerada com que Linda por regra dirigia era a grande preocupação de Wallander, mas, por outro lado, ficava satisfeito de cada vez que se abstinha de usar a moto em lugar do carro. E costumava lhe dizer isso, embora não obtivesse mais do que um resmungo por resposta.
Baiba já estava levantada e bebera um pouco de água e outra xícara de chá. Wallander viu às escondidas como administrava uma injeção na coxa. Por um instante entreviu o seu corpo meio nu e sentiu como o desespero o invadia, por tudo aquilo que tinham passado juntos e nunca poderiam viver de novo.
Baiba se demorou algum tempo no banheiro. Quando saiu, o seu aspecto denotava menos cansaço do que umas horas antes. Para Wallander foi um grande acontecimento presenciar o encontro entre Linda e Baiba; agora lhe parecia ver a mulher que conhecera na Letônia, há tanto tempo.
Como se fosse o mais natural do mundo, Linda abraçou-a e disse que estava contente por finalmente conhecer o grande amor da vida do seu pai. Wallander se sentiu um pouco embaraçado, mas ao mesmo tempo feliz por vê-las juntas. Apesar de estar tão zangado com Mona, pensou que, se ela estivesse ali e Linda tivesse levado Klara, teria tido ali reunidas as únicas mulheres da sua vida, cada uma à sua maneira. Um grande dia, disse para si mesmo, em pleno verão, quando a velhice se aproxima sorrateiramente.
Ao saber que Baiba ainda não comera, Linda mandou Wallander para a cozinha para lhe preparar um omelete. Pela janela aberta ouvia Baiba rindo e o seu riso avivou mais ainda as suas recordações. Os seus olhos se encheram de lágrimas e pensou que estava se tornando sentimental, algo que nunca fora, a não ser em estado de embriaguez.
Aproveitaram a sombra e comeram no jardim. Wallander ouviu com atenção quando Linda perguntou sobre a Letônia, um país que ela nunca visitara. Por um instante, renasce uma família, pensou. Mas será por pouco. E a pergunta, a mais difícil de todas, é o que restará de tudo isto.
Linda ficou com eles pouco mais de uma hora antes de voltar para casa. Trouxera uma fotografia de Klara para mostrar a Baiba.
— Talvez venha a se parecer com o avô, disse Baiba.
— Valha-nos Deus! Exclamou Wallander.
— Não acredite nele, riu Linda. — Não há nada que lhe agradasse mais, ver que Klara é parecida com ele. Ver-nos-emos em breve, Baiba, Linda se despediu e levantou para ir embora.
Baiba não respondeu. Não tinham falado sobre a morte.
Wallander e Baiba ficaram sentados no jardim, conversando sobre suas vidas. Baiba tinha muitas perguntas para lhe fazer e ele foi respondendo o melhor que pôde. Ambos continuavam vivendo sozinhos embora, dez anos antes, ela tivesse tentado assentar numa relação com um médico, mas desistiu depois de seis meses. Nunca chegou a ter filhos. Wallander nunca soube se o lamentava ou não.
— Tive uma vida boa, assegurou Baiba com ênfase. — Quando por fim abriram as fronteiras, pude viajar. A minha vida era frugal; escrevia artigos e trabalhava como assessora de empresas que queriam se estabelecer na Letônia. Quem melhor me pagou foi por sinal um banco sueco, hoje o mais importante do meu país. Viajei duas vezes por ano e agora sei infinitamente mais sobre o mundo em que vivo do que quando nos conhecemos. Tive uma vida boa, solitária mas boa.
— O meu pavor foi sempre ter de acordar sozinho, confessou Wallander, se perguntando se o que acabava de dizer era verdade. Baiba riu e disse:
— Bem, eu vivi sozinha, à exceção do curto período da minha relação com o médico, mas isso não significa que tenha sempre acordado sozinha. Não é preciso viver em celibato só porque não se tem uma relação estável.
Wallander sentiu uma picada de ciúmes ao imaginar homens desconhecidos deitados na cama com Baiba. No entanto, naturalmente, não disse uma palavra.
De repente, Baiba começou a falar da sua doença. Falou como sempre costumava fazer quando se tratava de assuntos sérios, lhe deu um relato muito factual.
— Começou com um cansaço repentino, disse. — Mas depressa comecei a desconfiar que havia mais alguma coisa, uma ameaça escondida por trás desse cansaço. No início, os médicos não encontraram nada de estranho. Esgotamento, a idade, ninguém me dava uma resposta que eu pudesse considerar fiável. Por fim, fui ver um especialista em Bona de que tinha ouvido falar, um homem que tinha se especializado em casos que outros médicos não conseguiam diagnosticar. Depois de vários dias de testes e análises, me informaram de que tinha um tumor bastante invulgar no fígado. Voltei para Riga com a minha sentença de morte como um carimbo invisível no passaporte. Não tenho nenhum problema em admitir que recorri a todos os meios. Para a operação, contudo, já era tarde; o tumor tinha se espalhado. Há umas semanas soube que também tenho metástases no cérebro. Não passou um ano sequer. Não estarei aqui no próximo Natal, vou morrer neste outono. Agora procuro empregar o tempo que me resta tentando fazer o que mais quero. Há alguns lugares que sempre quis visitar e algumas pessoas que quero voltar a ver. Você é uma delas, talvez a pessoa que mais desejei encontrar novamente.
Wallander não conseguiu se dominar e começou a chorar. Baiba lhe pegou na mão e com esse gesto lhe dificultou ainda mais a situação. Levantou-se, se afastou para a parte posterior da casa e não voltou até ter se acalmado.
— Não quero trazer tristeza, assegurou Baiba. — Espero que compreenda porque tive de vir.
— Nunca me esqueci do tempo que passamos juntos, respondeu Wallander. — E muitas vezes desejei que pudesse voltar atrás. Agora que a tenho aqui, preciso perguntar: alguma vez se arrependeu?
— De não ter aceitado quando propôs que nos casássemos?
— Sim, essa pergunta não me sai da cabeça.
— Nunca. Naquele momento foi a decisão certa e deve continuar a sê-lo mesmo depois de tantos anos.
Wallander ficou em silêncio. Compreendia-a. Porque deveria sequer considerar a possibilidade de se casar com um policial estrangeiro quando o seu marido, também policial, acabava de ser assassinado? Wallander se lembrava de como tentara convencê-la então. Mas, se tivesse sido ao contrário, como ele teria reagido? Que teria feito no seu lugar?
Permaneceram sem falar durante um bom tempo, até que Baiba se levantou, passou a mão pelo cabelo de Wallander e entrou em casa. Ele notou de que as dores tinham voltado a atormentá-la e supôs que ia tomar outra injeção. Ao ver que não voltava, foi procurá-la; adormecera na sua cama. Acordou no fim da tarde e, uma vez saída da confusão momentânea ao ver onde se encontrava, lhe perguntou se podia passar a noite ali, antes de pegar o ferryboat para a Polônia e continuar de carro até Riga.
— É uma distância muito grande para dirigir sozinha! Disse Wallander alarmado. — Eu vou consigo, levo-a para casa. E volto de avião.
Ela negou veementemente com a cabeça. Queria voltar sozinha tal como chegara. Perante a insistência de Wallander, Baiba se irritou e começou a gritar com ele, para logo se calar e pedir desculpas. Ele se sentou na borda da cama e lhe agarrou a mão.
— Sei o que está pensando, disse Baiba. — Quanto tempo? Quando Baiba morrerá? Bem, se tivesse a menor suspeita de que tinha chegado a minha hora, não teria pedido que me desse abrigo nesta noite; nem sequer teria vindo. Devem me restar uns dois meses e, quando sentir que o fim absoluto e irrevogável se aproxima, não penso em prolongar o sofrimento. Disponho tanto de comprimidos como de injeções e penso morrer com uma garrafa de champanhe junto à minha cama. E brindarei porque, apesar de tudo, tive a oportunidade de viver a aventura maravilhosa de nascer, viver e um dia voltar para as sombras.
— Não tem medo?
Wallander pensou que devia ter mordido a língua. Como era capaz de perguntar uma coisa dessas a uma pessoa que estava morrendo? Mas ela não levou a mal. Com uma mistura de desespero e de vergonha, Wallander pensou que certamente se acostumara há muito à sua falta de jeito, que nunca chegava a ser mal-intencionada.
— Não, assegurou Baiba. — Não tenho medo. Resta-me muito pouco tempo, não posso perdê-lo com algo que só serve para piorar as coisas.
Levantou-se da cama e percorreu a casa. De repente, parou à frente de uma prateleira, onde viu o livro sobre a Letônia que ela lhe oferecera.
— Alguma vez o abriu, sequer? Perguntou com um sorriso.
— Montes de vezes, respondeu Wallander.
E era verdade.
* * *
Mais tarde, Wallander se lembraria do dia que passou com Baiba como um espaço de tempo em que todos os relógios tinham parado e todo o movimento cessado. Baiba quase não comia, só dormia ou simplesmente descansava na cama, encolhida por baixo de um lençol. De vez em quando, tomava as suas injeções. Queria que ele estivesse ao seu lado. Os dois deitados na cama, acordados, conversando às vezes, outras vezes em silêncio quando Baiba se sentia muito cansada para continuar a conversar ou quando simplesmente caía vencida pelo sono. Wallander também dormitava, mas acordava sobressaltado somente uns minutos depois, por não estar habituado a ter alguém ao seu lado.
Ela lhe falou dos anos transcorridos e da espantosa mudança por que passou o seu país.
— Quando nos conhecemos, não fazíamos ideia. Disse. — Lembra-se dos boinas negras soviéticos que em diversas ocasiões abriram fogo indiscriminadamente pelas ruas de Riga? Hoje posso admitir que então nunca pensei que a União Soviética nos largasse; imaginava que a opressão se agravaria. O pior era que ninguém sabia em quem confiar. Os nossos vizinhos teriam alguma coisa a ganhar com a liberdade ou, pelo contrário, temiam-na? Quem enviava informações ao onipresente KGB, um ouvido gigantesco do qual ninguém podia escapar? Agora sei que estava enganada e estou grata por isso. Ao mesmo tempo, ninguém sabe qual será o destino da Letônia. O capitalismo não resolve os problemas do socialismo nem do modelo de planificação centralizado, como a democracia também não resolve todas as crises econômicas. Neste momento, penso que de fato estamos vivendo acima das nossas possibilidades.
— Não se costuma falar dos "tigres bálticos"? Perguntou Wallander. — De Estados com tanto êxito econômico como os países asiáticos?
Ela negou com um gesto de amargura.
— Vivemos de dinheiro emprestado. Pela Suécia, entre outros países. Não digo que sou uma economista especializada nem particularmente informada, mas tenho certeza de que os bancos suecos emprestam somas enormes ao meu país, mas sem garantias seguras. E isso só pode acabar de uma maneira.
— Mal?
— Muito mal, em primeiro lugar para os bancos suecos.
Wallander pensou nos primeiros anos da década de 1990, quando ele e Baiba tinham vivido o seu romance. Lembrava-se do medo em que todos pareciam constantemente mergulhados. Ainda hoje continuava a não compreender muitas das coisas que aconteceram naquela época; aparentemente, um grande acontecimento político mudara a Europa de forma radical e com isso também a relação de poder entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Daquela vez, antes de viajar para Riga para tentar contribuir para a resolução do caso do assassinato de dois homens cujos cadáveres apareceram numa balsa, Wallander nunca pensara que três dos vizinhos mais próximos da Suécia estavam ocupados por uma potência estrangeira. Como era possível que tanta gente da sua geração, nascida no final da década de 1940 e, portanto, depois da Segunda Guerra Mundial, nunca percebesse verdadeiramente de que a Guerra Fria era precisamente isso, uma guerra, com territórios ocupados e populações oprimidas? Na década de 1960, em muitos sentidos o distante Vietnam parecia mais próximo das fronteiras suecas do que os próprios países bálticos.
— Também nós tínhamos dificuldade em entender, explicou Baiba já a altas horas da noite, quando a luz do amanhecer já começava a dar outra cor ao céu. — Costumávamos dizer que atrás de cada letão havia um russo. Mas por trás de cada russo também havia alguém.
— Quem?
— Também nos países bálticos, o raciocínio russo era marcado por aquilo que os Estados Unidos faziam no mundo.
— Ou seja, atrás de cada russo havia um americano. É isso?
— Bem, claro, se pode colocar as coisas assim. Só que ninguém o saberá até os historiadores russos contarem a verdadeira história de tudo o que aconteceu então.
E ali, em dado momento daquele diálogo vacilante sobre um tempo há muito deixado para trás, terminou também o seu inesperado encontro. A última vez que Wallander olhou para o relógio antes de adormecer eram cinco e meia da manhã. Quando acordou pouco mais de uma hora depois, Baiba não estava. Saiu correndo para o jardim, mas o seu carro também não estava. Sobre a mesa, debaixo de uma pedra, deixara uma fotografia; era um retrato tirado em maio de 1991 em Riga, junto ao Monumento da Liberdade. Wallander se lembrava do momento, haviam pedido a um transeunte que o tirasse. Os dois sorriam, muito juntos, Baiba com a cabeça apoiada no seu ombro.
Junto à fotografia deixou um bilhete que parecia arrancado de uma agenda. Não havia nenhum texto escrito, desenhara simplesmente um coração. Wallander pensou em se dirigir imediatamente para Ystad, até o ferryboat para a Polônia. Já estava ao volante com o motor ligado quando compreendeu que isso seria a última coisa que ela desejava que fizesse. Voltou a entrar em casa e se deitou na cama, onde ainda sentia o aroma do corpo de Baiba.
Estava exausto e adormeceu quase instantaneamente. Assim que acordou umas horas mais tarde, lhe veio à mente aquilo que ela dissera: atrás de cada russo havia alguém. Era como se ela lhe tivesse oferecido um novo fio para a meada de Hakan e Louise von Enke. Atrás de cada russo havia alguém. Quem estaria por trás deles? Perguntou-se. E qual deles estaria atrás do outro? Não encontrou a resposta, mas percebeu que a pergunta poderia ser importante para o caso. Era um fio pelo qual puxaria, sem dúvida.
Saiu para o jardim, tirou a escadinha que o limpa-chaminés costumava usar e subiu para o telhado com uns binóculos. Dali podia ver o ferryboat branco em direção à Polônia. Uma parte importante dos seus tempos mais intensos e felizes ia a bordo daquele barco, para nunca mais voltar. Sentia uma dor e uma tristeza quase insuportáveis.
Quando chegou o caminhão do lixo, ainda continuava lá em cima. Mas o homem que recolheu o saco não notou que ele estava ali, sentado como um corvo no seu próprio telhado.
* * *
Vinte e Sete
WALLANDER viu o caminhão do lixo partir. O ferryboat para a Polônia desaparecera na neblina que avançava para a costa de Skâne. Os seus pensamentos assustavam-no. Depois daquela longa noite, Baiba partira enquanto ele dormia, para o barco e para a eternidade. Embora ninguém soubesse se tal eternidade existia. No entanto, Baiba estava mais próxima do precipício que dirigia diretamente ao desconhecido. Ela lhe dissera que tinha uns meses, se tanto.
De repente, se viu a si mesmo com uma clareza total: um homem carregado de uma enorme autocomiseração, uma figura absolutamente patética. Ali estava, sentado no telhado, e a única coisa que lhe era realmente importante era que seria Baiba a morrer, não ele.
Por fim desceu e levou Jussi para uma caminhada que mais parecia uma fuga. Ele era quem era, pensou por fim. Um homem bom na sua profissão, até perspicaz. Durante toda a sua vida se esforçara por fazer parte das forças justas deste mundo e, se não o conseguira, também não era o único. O que podia um homem fazer senão tentar?
Começou a se descontrair. Caminhava com Jussi à espera que chovesse, por campos recentemente ceifados, em pousio ou prontos para a colheita. De cinquenta em cinquenta passos tentava conceber um novo pensamento, mas sem êxito. Era um jogo a que costumava se entregar com Linda quando ela ainda era pequena. Contudo, o jogo se transformara em crua realidade uns anos antes, no dia em que quis identificar um assassino que matara um grupo de jovens num baile de máscaras na época do solstício de verão.
A investigação lhe trouxera muita angústia e uma sensação crescente de ter perdido completamente a capacidade de interpretar o local do crime e as escassas pistas que, ao fim e ao cabo, tinham à sua disposição. Naquele caso, esse jogo lhe foi útil: nas várias fases da investigação conseguiu literalmente caminhar passo a passo até à sua resolução. Agora tentava refletir sobre a sua própria pessoa, sobre a sua vida e sobre a coragem de Baiba perante o golpe fatal que a atingira, coragem que ele certamente não possuía. Foi percorrendo caminhos de tratores e valetas, não muito depressa, com Jussi correndo livremente à sua volta.
Transpirando de tanto caminhar, se sentou junto a um pequeno reservatório de água rodeado de velhas peças de lavoura enferrujadas. Jussi farejou a água e bebeu um pouco antes de se deitar ao seu lado. As nuvens tinham dispersado; pelo visto, não choveria. Ouviu à distância as sirenes de um veículo de emergência; um carro de bombeiros, pensou, desta vez não era um carro-patrulha nem uma ambulância. Fechou os olhos e tentou recriar a imagem de Baiba. O som das sirenes se aproximava, ouvia-as atrás dele, na estrada que dirigia a Simrishamn. Virou-se. Ainda tinha o binóculo pendurado no pescoço que utilizara para ver o ferryboat do telhado. Agora as sirenes estavam muito perto e se ouviam claramente. Pôs-se de pé. Teria acontecido algum incêndio na casa de um dos seus vizinhos? Desde que não fosse a casa do velho casal Hansson... A mulher, Elin, não podia se governar sozinha, e Rune, o marido, mal se movia sem a sua bengala. O som das sirenes se ouvia cada vez mais próximo. Olhou pelo binóculo e comprovou, horrorizado, que havia dois carros de bombeiros estacionados em frente à sua casa. Começou a correr, precedido por Jussi.
De vez em quando parava para olhar a sua casa através do binóculo, sempre com o temor de ver as chamas irrompendo pelo telhado onde acabara de estar ou rolos de fumaça saindo pelas janelas estilhaçadas. Contudo, nada disso aconteceu; só se viam os carros, as sirenes já desligadas, e os bombeiros de um lado para o outro no pátio.
Quando chegou ao jardim com o coração palpitante de tanto correr, encontrou o comandante dos bombeiros, Peter Edler, fazendo festas em Jussi, que viera muito à sua frente. O homem sorriu, mas pouco, ao vê-lo aparecer todo ofegante. Os bombeiros já se preparavam para se retirar. Peter Edler tinha a idade de Wallander e era um homem sardento que falava com uma ligeira pronúncia de Smâland. Encontravam-se de vez em quando devido a alguma investigação. Wallander tinha muito respeito por ele e gostava do seu sentido de humor um tanto sórdido.
— Um dos meus homens sabia que esta era a sua casa, disse Edler sem deixar de acariciar Jussi.
— O que aconteceu?
— Isso eu lhe pergunto.
— Há fogo nalgum lugar?
— Parece que não, mas podia ter havido. Wallander olhou-o sem compreender.
— Saí para dar uma caminhada há coisa de meia hora... Edler lhe fez um sinal para a casa.
— Entre.
Wallander sentiu o bafo do cheiro penetrante e quase corrosivo de borracha queimada. Edler conduziu-o até à cozinha, onde os bombeiros tinham aberto uma janela para ventilar o ambiente. Numa das bocas do fogão se via uma frigideira e junto a ela uma base para tachos carbonizada. Edler cheirou a frigideira, que ainda fumegava.
— Ovos estrelados ou salsichas com batata?
— Ovos.
— Saiu sem apagar o fogo. Também colocou a base para os tachos em cima do fogão. Não é descuido muito para um inspetor?
Edler meneou a cabeça. Saíram para o jardim, onde os bombeiros, já nos carros, aguardavam o chefe.
— É a primeira vez que me acontece uma coisa destas, garantiu Wallander.
— Pois é melhor que não volte a acontecer. Edler olhou à sua volta e contemplou a vista.
— Afinal veio para o campo. Se quer que lhe diga, nunca pensei que conseguiria sair da cidade. Agora vive num lugar muito bonito.
— Você continua no lugar de sempre?
— Sim, no mesmo prédio, no centro da cidade. Gunel quer que a gente vá viver no campo, mas eu me recuso. Pelo menos enquanto ainda estiver na ativa.
— Quanto tempo vai continuar?
Apreensivo, Edler encolheu os ombros. Bateu na perna com o capacete que segurava na mão, como se se tratasse de uma arma.
— Enquanto puder ou me deixarem; mais três ou quatro anos. Não sei o que vou fazer depois, mas não posso ficar em casa resolvendo palavras cruzadas.
— Podia se dedicar a criá-las, disse Wllander, se lembrando de Helman Eber.
Edler olhou-o inquisitivo, mas não perguntou o que queria dizer. Por outro lado, se interessou pelo futuro de Wallander. Até parecia que esperava que se apresentasse tão lúgubre como o seu.
— Acho que a mim ainda vão me querer mais uns anos; depois se livrarão de mim, certamente. Talvez pudéssemos nos juntar? Formar uma pequena equipe e andarmos pelo país dando palestras sobre como se proteger de roubos e incêndios, o que lhe parece? Delito e Incêndio, Sociedade Anônima.
— Acha que é possível nos protegermos de roubos?
— Não creio, mas sempre podemos ensinar métodos simples para dissuadir os ladrões de se meterem nas nossas casas ou apartamentos. Edler olhou-o, incrédulo.
— Por acaso acredita no que está dizendo?
— Faço por isso. Mas os ladrões são como as crianças: estão sempre aprendendo.
Edler meneou a cabeça, divertido com a comparação mais do que duvidosa de Wallander, e entrou no carro.
— Não se esqueça de desligar o fogão, advertiu ao se despedir. — Mas ao menos teve a preocupação de instalar um bom sistema de detecção de incêndios, diretamente ligado a nós. Caso contrário, poderia ter sido um fogo brutal que teria se espalhado imediatamente por toda a casa. Teria vivido o pesadelo de se ver à frente de uma ruína em pleno verão.
Wallander não respondeu. Fora Linda quem insistira para que instalasse aquele alarme e pagara-o ela mesma. Oferecera-o como presente de Natal e tratara de tudo para que fosse montado.
Deu de comer a Jussi e se preparava para cortar grama quando viu o carro de Linda entrar no pátio. Desta vez não trazia Klara. Wallander notou logo de que estava nervosa e supôs que cruzara com os carros de bombeiros.
— O que faziam os bombeiros aqui? Perguntou sem cumprimentá-lo.
— Enganaram-se na casa, mentiu ele. — Uma sobrecarga na instalação elétrica no estábulo dos vizinhos.
— Que estábulo?
— O dos Hansson.
— Quem são esses?
— Por quê tanta pergunta? De qualquer maneira, não sabe onde é a casa deles.
Linda levava na mão a sua pequena mochila de sempre. De repente arremessou-a com todas as suas forças. Wallander quase que conseguiu se esquivar. Afastou a cabeça a tempo, mas lhe acertou em cheio no ombro. Enfurecido, levantou-a do chão.
— Que diabos está fazendo?
— Achas normal que tenha de aturar que minta na minha cara?
— Não estou mentindo.
— Os bombeiros vieram aqui! Parei para falar com o vizinho, que o viu aqui no meio dos dois carros de bombeiro.
— Esqueci de desligar o fogão...
— Estavas dormindo?
Wallander apontou para os campos donde há pouco viera correndo como um louco, um esforço do qual ainda se ressentia nas pernas.
— Saí para uma caminhada com Jussi.
Sem dizer uma palavra, Linda puxou a mochila de suas mãos e entrou na casa. Wallander ponderou a possibilidade de entrar no carro e ir embora dali, pois sabia que Linda não desistiria tão cedo de falar sobre a sua mentira, nem da sua desmedida falta de cuidado. Continuaria revoltada, o que conduziria inevitavelmente a que ele se zangasse. Como aliás já estava a ponto de acontecer. Não fazia ideia do que Linda levava na mochila, mas era alguma coisa pesada que lhe provocara dores no ombro. Cada vez mais indignado, pensou que era a primeira vez que a sua filha recorria a algo que bem podia se descrever como violência física. Nesse momento, Linda voltou lá de dentro.
— Lembra-se do que falamos há umas semanas? Naquele dia do dilúvio, quando estive aqui com Klara?
— Como quer que me lembre de tudo o que dizemos?
— Estávamos falando de que a Klara de vez em quando podia passar aqui uns dias consigo, quando for mais crescida.
— Bem, falemos com calma, propôs Wallander. — Mandou instalar um detector de incêndio. Agora sabemos que funciona; a casa não ficou reduzida a cinzas. Só me esqueci de apagar o fogo, a você nunca aconteceu? Linda respondeu sem qualquer hesitação.
— Nunca, desde que Klara nasceu.
— A mim também nunca aconteceu quando você era pequena.
Dito isso, a irritação começou a se dissipar. Os dois eram bons espadachins e nenhum tinha vontade de atacar a sério. Linda se sentou numa das cadeiras do jardim; Wallander ficou de pé, por prevenção, para o caso de a ira dela se reavivar. Linda olhou-o com um ar preocupado.
— Está começando a ficar esquecido?
— Sempre fui, em certa medida. Bom, talvez seja antes distraído.
— Quero dizer mais do que o costume.
Wallander se sentou, subitamente cansado de dizer tantas vezes coisas que não correspondiam à verdade.
— Acho que sim. Às vezes, períodos de tempo inteiros somem da memória, como se fossem blocos de gelo se derretendo.
— Explique-me.
Wallander contou-lhe da sua viagem a Hóôr, embora omitisse o episódio da mulher e da carona.
— De repente, não tinha a menor ideia do que tinha ido fazer ali. Era como se me encontrasse numa sala muito iluminada e alguém apagasse a luz, sem avisar. Não sei quanto tempo estive às escuras, mas era como se já não me lembrasse de quem sou.
— Já lhe acontecera antes?
— Não até esse ponto. De qualquer maneira fui ao médico, uma especialista de Malmô. Segundo ela, é esgotamento; disse que ainda penso que tenho a energia dos trinta, com a mesma resistência de então.
— Não gosto nada desse diagnóstico. Peça uma segunda opinião. Wallander assentiu sem dizer nada. Ela se levantou e entrou outra vez em casa, para logo em seguida voltar com dois copos de água. Wallander perguntou num tom despreocupado se a polícia encontrara a mulher que matara os pais.
— Detiveram-na em Växjö, segundo percebi. — Aparentemente, apanhou carona de um tipo que desconfiou dela. Convidou-a para um café num dos restaurantes de estrada à saída da cidade e depois telefonou para a polícia. A mulher tentou se esfaquear no próprio coração com uma faca que tinha na bolsa, mas impediram-na a tempo.
— Alguma vez teve vontade de me matar? Perguntou ele aliviado por ver que a sua contribuição para a fuga da mulher não fora descoberta. Martinsson mantivera a boca fechada, tal como lhe prometera.
— Claro que sim, respondeu Linda desatando a rir. — Muitas vezes; a última mesmo há pouco. Oxalá não viva o suficiente para se tornar num velho chato e xexé, pensei. Deixe, todos os filhos pensam assim às vezes. E você, quantas vezes quis me ver morta?
— Nunca.
— E quer que acredite?
— Quero sim.
— Se lhe servir de alguma consolação, posso dizer que pensei nisso mais vezes em relação à Mona, mas tem de perceber que penso com horror no dia em que vocês não estiverem aqui. Aliás, Hans e eu conseguimos convencer Mona a se internar numa clínica de desintoxicação.
Jussi avistou uma lebre no campo e se pôs a latir. Pai e filha ficaram contemplando as suas vãs tentativas de saltar a rede do seu recinto. A lebre se perdeu de vista e Jussi acabou por se calar.
— Na verdade, vim aqui por outra razão, disse Linda inesperadamente.
— Aconteceu alguma coisa com Klara?
— Não, ela está bem. Hans está em casa com ela. Obrigo-o a se responsabilizar por ela e acho que ele agradece; não há nada mais distante do mundo estressante da banca que Klara.
— Mas algo aconteceu, não aconteceu?
— Ontem estive em Copenhague com duas amigas. Fomos a um concerto da Madona, o ídolo da minha juventude. Foi realmente uma experiência extraordinária. Depois fomos jantar e a seguir cada uma foi para seu lado. Eu estava alojada num daqueles hotéis caros, o Hotel D'Angleterre; a empresa onde Hans trabalha tem um acordo com eles. Como me sentia muito bem-disposta e não tinha sono nenhum, fui dar uma caminhada por Stroget. Havia muita gente na rua, me sentei num banco e então o vi.
— Quem?
— Hakan.
Wallander susteve a respiração, olhando-a perplexo. Linda estava totalmente segura disso, não havia a menor dúvida.
— Parece muito certa.
— Não era só pela fisionomia, pelo seu rosto, que vi durante uns segundos, que o reconheci; era também pela sua forma de se mover, com as costas muito retas e o andar com passos breves e rápidos.
— O que foi que viu concretamente?
— Estava sentada num banco, num pequeno largo de Stroget, não me lembro exatamente de como se chama. Ele veio do lado do porto de Nyhavn; já tinha passado quando me dei conta. Primeiro o cabelo da nuca, depois a sua forma de caminhar e, por último, o sobretudo.
— O sobretudo?
— Sim, reconheci-o.
— Mas deve haver mil sobretudos iguais, não acha?
— Não, o sobretudo de Hakan não é um qualquer. É muito fino, azul-marinho, parece um impermeável de marinheiro. Não posso descrevê-la melhor, mas tenho certeza do que vi.
— E o que fez?
— O que lhe parece? Um concerto da Madona, as minhas amigas, o jantar, a noite amena, livre do choro de Klara e do marido. E de repente avisto Hakan passando por ali! Talvez tenha levado quinze segundos para reagir, depois comecei a correr atrás dele, mas já era tarde. Não vi nem rastro dele. Havia muita gente, ruelas, táxis, bares. Segui toda a avenida de Stroget até à Praça Râdhuspladsen e voltei pelo mesmo caminho sem tornar a vê-lo.
Wallander bebeu a água do copo de uma só vez. Por mais incrível que lhe parecesse aquilo que acabava de ouvir, sabia que Linda era muito perspicaz e raramente se enganava quando identificava alguém.
— Bem, recapitulemos, disse Wallander. — Se não a entendi mal, ele já tinha passado à frente do banco onde estava sentada quando descobriu que era ele. Mas antes disse que lhe entreviu o rosto, o que quer dizer que em algum momento virou o rosto para olhar, não é?
— Sim, olhou de relance para trás, por cima do ombro.
— E porque o faria? Linda franziu a testa.
— Como quer que o saiba?
— Porque é uma pergunta muito lógica e simples. Esperava ver alguém atrás dele? Estava inquieto? Fez como se por acaso tivesse ouvido alguém? Há uma quantidade de respostas plausíveis.
— Acho que o fez para verificar se alguém o seguia.
— Acha?
— Não posso confirmar com toda certeza, mas sim, acho que olhou para verificar que ninguém indesejável o seguia.
— Parecia assustado, inquieto?
— Isso não sei dizer.
Wallander refletiu sobre as respostas de Linda. Ainda faltavam duas ou três perguntas por responder.
— Acha que a viu?
— Não.
— Como pode estar tão segura?
— Porque para me ver teria de ter olhado para o banco e não o fez.
— Contou a Hans?
— Sim, contei. Sobressaltou-se bastante, disse que devia ser imaginação minha.
— Vai se certificar de que não tem se encontrado com o pai sem você saber? Linda assentiu sem dizer nada.
O sol se escondeu por detrás de uma nuvem e ao longe se ouvia o ribombar de trovoada. Foram para dentro de casa, Wallander queria que Linda ficasse para comerem alguma coisa, mas ela tinha de voltar para casa. Precisamente quando abriu a porta iniciou uma tempestade, acompanhada por uma chuva torrencial. O pátio se transformou num lamaçal desolador. Wallander decidiu que encomendaria, naquela mesma semana, vários contentores de cascalho a fim de não ter de atravessar a vau aquele mar lamacento de cada vez que chovia.
— Tenho certeza, insistiu Linda. — Era ele. Vivo e bem vivo, em Copenhague.
— Pronto, então já sabemos, se rendeu Wallander. — Hakan não sofreu o mesmo destino que a mulher. Está vivo e isso muda tudo.
Linda assentiu. Os dois já sabiam que não podiam excluir a possibilidade de que Hakan tivesse assassinado a mulher, mas não deviam se precipitar. Haveria outra explicação para o fato dele se manter escondido? Por medo, talvez, ou por alguma outra causa ainda desconhecida? Estaria em fuga de alguma coisa ou de alguém?
Wallander e Linda guardavam silêncio, cada um mergulhado nos seus pensamentos. A chuva terminou de forma tão repentina como começara.
— O que fazia em Copenhague? Perguntou Wallander. — Para mim, só há uma resposta lógica a essa pergunta.
— Para ver Hans. É isso que está pensando. Talvez para resolver algum tipo de problema financeiro. Mas eu estou convencida de que Hans não mentiu.
— Não, claro que não, não duvido disso. Mas o que lhe diz que já estiveram em contato? E se ocorrer amanhã?
— Então, Hans me contará.
— Talvez, respondeu Wallander, pensativo.
— Porque não haveria?
— É difícil gerir as diversas lealdades que uma pessoa guarda. O que acontecerá se o seu pai lhe disser que não deve revelar a ninguém que se encontraram, nem sequer a você? E se lhe der uma razão que Hans não tenha coragem de questionar?
— Se me esconder alguma coisa, notarei.
— A vida me ensinou pelo menos uma coisa, disse Wallander ao pousar o pé devagar no chão ensopado. — É que nunca devemos julgar que sabemos muito sobre os pensamentos e as intenções dos outros.
— Então, o que faço?
— Por agora, não diga mais nada. Não faça perguntas. Preciso pensar bem sobre o que pode significar tudo isto. E você também. Mas obviamente que falarei com Ytterberg.
Wallander acompanhou Linda até ao carro. Ela precisou de se segurar ao seu braço para não escorregar.
— Precisa fazer alguma coisa com este pátio, advertiu ela. — Já pensou numa cobertura de cascalho?
— Sim, já tinha pensado nisso, respondeu Wallander.
Linda já estava sentada no carro quando voltou ao tema de Baiba.
— É realmente tão grave? Vai mesmo morrer?
— Sim.
— Quando foi embora?
— Esta manhã, muito cedo.
— Como se sentiu ao vê-la novamente?
— Veio para se despedir. Tem câncer e vai morrer em breve. Deve poder imaginar como me senti sem precisar que lhe diga.
— Deve ter sido horrível.
Wallander deu meia-volta e dobrou a esquina de sua casa. Não queria começar a chorar ali mesmo, não porque receava se mostrar fraco diante de Linda, mas por si mesmo. Simplesmente, não queria pensar na sua própria morte, que, no fundo, era a única coisa que o assustava. Ficou junto da casa até ouvir Linda ligar o motor e ir embora, pois compreendera que ele desejava estar sozinho. Quando entrou na cozinha, se sentou à mesa em frente ao lugar que costumava ocupar habitualmente.
Refletiu sobre o que Linda lhe contara sobre Hakan von Enke.
Voltara tudo à estaca zero.
* * *
Vinte e Oito
WALLANDER subiu a escada pouco segura que se dirigia ao sótão e foi recebido por um cheiro a humidade e a mofo. Tinha consciência de que um dia se veria obrigado a renovar o telhado todo, mas ainda não era época; talvez dentro de um ano ou dois na melhor das hipóteses. Tinha uma vaga ideia de onde deixara a caixa que viera procurar. Não obstante, foi outra que chamou a sua atenção assim que entrou: numa caixa com o nome de uma empresa de mudanças de Helsingborg se encontrava a sua coleção de discos LP de vinil. Quando vivia em Mariagatan tinha um toca-discos em que podia ouvi-los. No entanto, o aparelho acabou por quebrar e não conseguiu que o concertassem; jogara-o no lixo com tudo o resto de que se desfizera ao se mudar, mas guardara os discos e levara-os para o sótão. Sentou-se para ver os seus velhos álbuns; cada capa trazia uma recordação, às vezes perfeitamente definida, outras, uma neblina de rostos, cheiros, sentimentos. Nos primeiros anos da sua adolescência fora um seguidor fanático dos The Spotnicks, tinha os seus quatro primeiros discos e reconheceu todos os títulos que foi lendo no verso. A música e as guitarras elétricas ressoavam no seu interior. Na caixa havia também um disco de Mahalia Jackson, que, para surpresa sua, uma vez lhe oferecera um dos "cavalheiros de seda" que compravam os quadros do pai. Provavelmente, o homem repartia o seu tempo revendendo discos e quadros. Dessa vez, Wallander ajudara-o a levar dois quadros para o carro, e o fulano lhe dera o disco em sinal de agradecimento. A música gospel impressionou-o profundamente. Go Down, Moses, disse para com os seus botões, vendo diante de si o seu primeiro toca-discos, cujos alto-falantes incorporados na tampa emitiam sempre um ruído áspero. Subitamente, se viu com um disco de Edith Piaf nas mãos, com uma fotografia em preto e branco da cantora na capa. Fora Mona, que detestava os The Spotnicks, quem lhe oferecera esse disco. Ela preferia os grupos suecos Streaplers e SvenIngvars, mas a sua favorita era aquela pequena cantora francesa. Nem Mona nem Wallander compreendiam uma palavra das suas letras, mas a sua voz cativava-os.
Depois do disco de Piaf havia outro de jazz, de John Coltrane. Onde o conseguira? Não se lembrava. Tirou o disco e verificou que estava praticamente por estrear. Apesar dos seus esforços, o disco não lhe dizia nada; não conseguiu ouvir uma só nota do saxofone de Coltrane. No fundo da caixa havia dois discos de ópera, La Traviata e Rigoletto. Ao contrário de John Coltrane, tinham sido tocados quase até se desfazerem.
Permaneceu ali sentado no chão do sótão, pensando se levaria a caixa inteira e compraria um toca-discos para poder ouvir aqueles discos de novo, mas acabou por afastar a ideia, pois já tinha em cassete ou em CD a música que escutava na atualidade. Aqueles discos riscados de vinil já não lhe faziam falta; pertenciam ao passado e aí deviam ficar, na penumbra do sótão.
Procurou a caixa que lhe interessava e levou-a até à mesa da cozinha. Lá de dentro tirou uma grande quantidade de peças de Lego, que estendeu sobre a superfície. Era um jogo de Lego que presenteara Linda quando ela era criança; ganhara-o numa rifa. Fora Rydberg quem lhe dera a ideia numa noite de primavera, a uma hora tardia, os dois sentados àquela mesma mesa de cozinha, num dos últimos anos de vida do seu mentor. A cidade de Ystad e também os seus arredores tinham sofrido uma série de roubos cometidos por um homem encapuzado e armado com uma caçadeira de canos serrados.
A fim de ordenar os acontecimentos e talvez também para encontrar uma estrutura, Rydberg fora buscar um baralho de cartas, que usou para marcar os progressos do ladrão. O criminoso desconhecido era o valete de espadas. Nessa noite, Wallander aprendeu uma maneira de obter uma visão geral de como trabalhava o autor dos crimes, porventura até como pensava. Mais tarde, quando experimentou o método, escolheu peças de Lego em lugar de cartas, embora nunca o confessasse a Rydberg.
Com as peças foi assinalando Hakan e Louise, as datas, lugares, acontecimentos diferentes. Um bombeiro de capacete vermelho representava Hakan, um boneco que Linda batizara como Gata Borralheira fez de Louise. Pôs de parte um grupo de pequenos soldados: representavam as perguntas sem resposta que naquele momento considerava mais importantes. Quem se fizera passar pelo tio de Signe von Enke? Porque saíra o seu pai da sombra precisamente agora? Onde estivera e por que motivo se escondera? Lembrou-se de repente que tinha de telefonar para Niklasgârden. Informaram-no de que Signe não recebera nenhuma visita, nem do pai nem de qualquer tio incógnito.
Permaneceu pensativo, com uma peça de Lego na mão. Alguém não diz a verdade, disse para si mesmo. Entre todas as pessoas com que estive falando acerca de Hakan e de Louise von Enke, alguém não disse a verdade. Ou mente ou distorce a verdade, ocultando informações. Quem? E, uma vez mais, porquê?
O telefone tocou. Wallander se levantou e levou-o para o jardim. Era Linda, que foi direta ao assunto.
— Acabo de falar com Hans. Infelizmente, não pude deixar de pressioná-lo; se irritou e saiu, mas quando voltar lhe pedirei desculpas.
— Algo que a Mona nunca fez.
— O quê? Ir embora depois de uma discussão ou pedir desculpas?
— Saía muitas vezes batendo com a porta. Era o seu último argumento para alguma coisa, mas quando voltava nunca pedia desculpas.
Linda começou a rir. Parece um pouco nervosa, constatou Wallander. Devem ter discutido mais do que quer me dar a entender.
— Segundo Mona, era ao contrário, assegurou ela. — Era você quem batia a porta e ia embora, era você quem nunca pedia desculpas.
— Pensava que estávamos de acordo em como Mona costuma contar mentiras, apontou Wallander.
— Olha que você também. Nenhum dos meus pais é totalmente sincero. Wallander se indignou.
— E você? Por acaso é uma pessoa totalmente sincera?
— Não, mas nunca afirmei o contrário.
— Bom, vá ao que interessa!
— A minha ligação interrompeu nalguma coisa? Nesse mesmo instante, e não sem uma certa satisfação, Wallander decidiu lhe mentir.
— Estava cozinhando. Ela era mais esperta do que ele.
— No jardim? Estou ouvindo os pássaros!
— Vou fazer um churrasco.
— Mas você detesta churrascos.
— Você não faz ideia do que eu detesto ou deixo de detestar. Enfim o que queria?
— Já lhe disse, falei com Hans. Não teve nenhum contato com o pai nem detectou qualquer movimento nas contas da família além do levantamento que Louise fez antes dela mesma desaparecer. Hans está tomando conta de todo o correio; não levantaram dinheiro, nem no banco nem por outra via.
De repente, Wallander notou de que a pergunta era muito mais importante do que ele imaginara.
— De que terá vivido Hakan desde que desapareceu? Aparece do nada em Copenhague. É evidente que não precisa de dinheiro, uma vez que não se pôs em contato com o filho nem fez saques nos caixas automáticos. Isso indica que talvez haja alguém o ajudando. Ou talvez o casal tenha alguma conta que Hans desconheça?
— Sim, claro que há essa possibilidade, mas Hans aproveitou os seus contatos no mundo da banca para investigar isso, sem resultado. Embora existam muitas formas de esconder dinheiro, obviamente.
Wallander ficou em silêncio. Não tinha mais perguntas para fazer, mas começava a pensar seriamente se o fato de Hakan não necessitar de dinheiro não seria, em si, uma espécie de pista. Enquanto refletia, Klara começou a chorar.
— Tenho que desligar, disse Linda.
— Sim, estou ouvindo. Só para terminar, podemos então pôr de lado qualquer suspeita de um contato secreto entre Hans e o pai?
— Podemos.
Concluíram a conversa. Wallander pousou o telefone e se sentou na cama de rede, onde começou a se balançar devagar com um pé apoiado no chão. Recriou na sua mente a figura de Hakan von Enke caminhando por Stroget: ia depressa, se detinha de vez em quando e se virava para olhar para trás, para logo retomar o caminho. De repente, desaparecia numa perpendicular ou se perdia entre as muitas pessoas que caminhavam pelas ruas.
Wallander acordou sobressaltado. Começara a chover e as gotas molhavam o seu pé descalço pousado no chão. Levantou-se e entrou em casa, mas quando fechou a porta parou, pensativo. De repente, uma ligação começou a se perfilar na sua mente, embora ainda um tanto confusa, mas era pelo menos algo que podia lançar alguma luz sobre onde estivera escondido Hakan von Enke desde o seu desaparecimento. Um esconderijo, disse Wallander para si mesmo. Quando foi embora, sabia perfeitamente o que devia fazer. Ao longo do percurso por Valhallavãgen se encaminhou para um lugar onde ninguém o encontraria. Agora Wallander se sentiu convencido e que Louise não estava prevenida do desaparecimento do marido, a sua inquietação era verdadeira. Não tinha nenhuma nova prova ou qualquer dado objetivo, apenas aquela intuição em que confiava. Encaminhou-se em passo lento para a cozinha, sentindo a pedra fria do chão sob os pés descalços. Movia-se devagar como se tivesse medo de que a ideia se evaporasse.
As peças de Lego estavam sobre a mesa, e se sentou. Um esconderijo, repetiu para si mesmo. Tudo planejado, bem organizado, um comandante de submarinos que sabe como há de estruturar a sua vida até ao mais ínfimo detalhe. Tentou imaginar o esconderijo. Tinha a nítida sensação de que na realidade sabia onde Hakan von Enke se escondera e que até estivera muito perto desse lugar, sem se dar conta. Inclinou-se sobre a mesa e colocou em fila umas figuras de Lego, que representavam todos aqueles que tinham algo a ver com Hakan e Louise: Sten Nordlander, Signe, Steve Atkins na sua casa perto de San Diego, e também aqueles que se encontravam mais na periferia. Alinhou as figuras umas atrás das outras, enquanto se perguntava quem teria ajudado Von Enke, alguém que teria se certificado de que tinha tudo o que necessitava, incluindo dinheiro.
É isso que devo procurar, resolveu Wallander. Um esconderijo. A questão é se Ytterberg pensa como eu ou se joga com outro tipo de peças. Pegou no telefone e discou o número. Começara a chover com mais força, uma chuva torrencial que matraqueava o peitoril. Ytterberg respondeu de um lugar no exterior com má cobertura.
— Estou na esplanada de um restaurante, explicou Ytterberg. — Acabei de pedir a conta. Posso ligar daqui a pouco?
Ytterberg ligou vinte minutos depois quando já se encontrava na sua sala de Bergsgatan.
— Pertenço àqueles que acham fácil voltar a trabalhar depois de férias, disse Ytterberg quando Wallander perguntou como se sentia nos primeiros dias de regresso ao trabalho.
— Não posso dizer que partilho dessa sensação, confessou Wallander. — Voltar significa chegar a uma mesa com papéis amontoados que os outros ali deixaram e mensagens engraçadas sobre as suas férias que se aproximam.
Wallander começou por contar o seu encontro com Herrnan Eber. Ytterberg ouviu atento e fez várias perguntas. Depois contou do regresso de Hakan von Enke, relatando o que Linda lhe contara mais convencido do que antes de que a sua filha não se enganara, e não vacilou quando Ytterberg lhe perguntou:
— A sua filha não pode ter se enganado?
— Não, mas entendo que me coloque essa questão, pois é uma coincidência extraordinária.
— Não tem qualquer dúvida de que era ele?
— Não, conheço a minha filha; se diz que era ele, era mesmo. Não se tratava de nenhum sósia ou alguém que se parecesse com ele; era Hakan von Enke em pessoa.
— O que diz o seu genro?
— O pai não foi a Copenhague para vê-lo. E não há razão nenhuma para não acreditar nele.
— Mas acha que faz sentido que não tenha se posto em contato com o filho?
— Eu não sei o que faz sentido ou não, mas duvido que Hans seja tão estúpido que tente iludir Linda.
— Iludir Linda, a companheira, ou Linda, a sua filha?
— Antes de tudo, a mulher com quem tem uma filha. Se é que se pode estabelecer alguma diferença.
Falaram durante algum tempo sobre o que podia significar o regresso de Von Enke. Para Ytterberg implicava sobretudo que devia repensar o modo como poderia estar envolvido na morte da mulher.
— Não sei o que você terá pensado, disse Ytterberg. — Mas tive sempre a convicção de que ele também estava morto. Pelo menos desde que apareceu o corpo da mulher em Värmdö.
— Bem, tinha as minhas dúvidas, admitiu Wallander. — Mas, se estivesse à frente da investigação, o mais provável é que pensaria o mesmo. Wallander lhe expôs rápida mas detalhadamente as suas ideias sobre o esconderijo de Von Enke.
— Os documentos confidenciais que encontramos na bolsa de Louise von Enke me levam a considerar uma possibilidade, disse Ytterberg. — Uma vez que Von Enke se mantém escondido, pode se pensar que ele também está implicado, que os dois estavam trabalhando juntos.
— Como espiões? Se for assim, não seria o primeiro caso de marido e mulher a operarem juntos neste país. Embora só um esteja diretamente implicado. Está pensando em Stig Bergling e a esposa?
— Sabe de mais alguém, por acaso?
Wallander pensou que Ytterberg caía de vez em quando num tom arrogante que em condições normais não teria tolerado. Se alguém na delegacia de Ystad lhe fizesse uma pergunta irônica se enfureceria, mas desta vez deixou passar porque certamente que Ytterberg não estava consciente da impressão que poderia causar.
— Sabe alguma coisa sobre o conteúdo dos microfilmes? Defesa, indústria bélica, política externa?
— Nada. Tenho a impressão de que os colegas da secreta andam preocupados, pois requisitaram todos os documentos que fazem parte desta exígua investigação. A mim me convocaram para uma reunião amanhã com um tal comandante Holm, que aparentemente desempenha um papel importante dentro da inteligência militar.
— Gostaria muito que me contasse depois que perguntas lhe fez.
— Sim, sempre é uma boa maneira de averiguar o que as pessoas sabem de antemão. Ou seja, o que quer saber é que perguntas não me faz, correto?
— Exato.
— Prometo que telefono.
Trocaram umas frases acerca do tempo antes de concluir a conversa. Wallander hesitou um instante antes de varrer com a mão as peças de Lego para dentro da caixa e decidiu que no restante do dia deixaria em repouso as ideias em torno de Hakan von Enke e da sua falecida mulher; apesar de tudo, estava de férias. Depois de fazer a lista de compras, se sentou ao volante e partiu rumo à cidade. Quando já se encontrava na caixa do supermercado, se deu conta de que esquecera a carteira em casa. Deixou lá as compras e se dirigiu à delegacia, onde Nyberg, com quem se encontrou no corredor, lhe emprestou quinhentas coroas. O colega tinha uma ligadura grande na cabeça.
— O que aconteceu?
— Caí da bicicleta.
— Não usa capacete?
— Não, infelizmente não.
Wallander notou de que Nyberg tinha pouca vontade de continuar a conversa. Prometeu que devolveria o empréstimo no dia seguinte, voltou para a loja e dali foi para casa. Nessa noite viu um documentário sobre o monte crescente de resíduos que o mundo gerava e se deitou invulgarmente cedo, pouco depois das onze. Folheou um jornal e adormeceu pelas onze e meia. Em certo momento acordou com o grito de uma ave noturna, talvez uma coruja, mas não demorou a pegar de novo no sono.
* * *
Quando acordou às seis da manhã, se lembrava do pássaro. Como se sentia bem descansado, se levantou. Da janela do quarto notou que os campos se apresentavam cobertos de neblina e observou Jussi, que estava sentado no seu recinto olhando para o horizonte.
Quando era jovem nunca poderia ter acreditado que seria aquela a vida que levaria depois de fazer sessenta anos, que uma manhã poderia contemplar a paisagem de Skâne envolta em bruma da janela da sua própria casa, com o seu próprio cão e com uma filha que acabava de lhe dar o primeiro neto. A reflexão encheu-o de melancolia, sensação de que se livrou ao tomar banho.
Depois de tomar o café da manhã verificou todas as bocas do fogão antes de sair com Jussi, que se perdeu como um raio entre a neblina que levantava. Há muito que não se sentia tão lúcido. Nada lhe parecia muito difícil e sentia um gosto enorme pela vida.
De repente, começou a correr pelo caminho, como se desafiando a indolência que o invadira nos últimos meses. Correu até ficar exausto. O sol começava a aquecer, tirou a camisa transpirada, olhou com desgosto para a sua barriga, muito grande, e decidiu começar imediatamente a fazer dieta, como em tantas ocasiões anteriores.
De regresso a casa, tocou o celular. Alguém falava numa língua estrangeira, uma voz de mulher que soava muito distante, perdida numa tempestade de estalidos. Depois de uns segundos, a ligação caiu. Wallander pensou que poderia ser Baiba, pois lhe pareceu ter ouvido a sua voz apesar do forte ruído. Ao ver que não restabeleciam a ligação, continuou até chegar a casa e se sentou no jardim com uma xícara de café.
O dia de verão estava bonito e Wallander decidiu fazer um piquenique sozinho. Sempre pensara que era uma das coisas boas da vida poder se esticar entre as dunas e dormir um pouco depois de ter comido a refeição trazida de casa. Começou a preparar um cesto, relíquia do seu lar de infância. Nesse cesto, a sua mãe costumava guardar novelos de lã, agulhas e camisas começadas; encheu-o de sanduíches, uma térmica, duas maçãs e alguns exemplares da revista Svensk Polis que ainda tinha para ler.
Ainda nem eram onze horas quando uma vez mais verificou as bocas do fogão, saiu e fechou a porta à chave. Dirigiu-se para Sandhammaren e achou um lugar abrigado do vento entre as dunas e as árvores baixas. Depois de comer e folhear as revistas, se embrulhou no cobertor e adormeceu.
Acordou com frio. As nuvens tinham escondido o Sol, o ar esfriara, e ele se descobrira. Voltou a se enrolar no cobertor e dobrou o casaco, que utilizou como travesseiro para se deitar outra vez. Depois de uns minutos, o sol começou a aquecer de novo. De repente, se lembrou de um sonho que tivera anos antes, um sonho recorrente em que se via envolvido num jogo erótico com uma mulher negra, sem rosto. No entanto, o sonho acabou por desaparecer, tão inopinadamente como surgira. Além de um caso horrível que tivera lugar numa viagem que fizera às Caraíbas, onde uma noite se embebedou tanto que perdeu o juízo e levou uma prostituta para o quarto do hotel, nunca tivera uma relação com mulheres de pele escura. E também nunca tivera esse desejo. Aquela mulher se instalou repentinamente nos seus sonhos, para desaparecer por completo uns meses mais tarde.
Nuvens espessas e negras se aproximavam no horizonte e Wallander recolheu as coisas para voltar para casa. Ao chegar a Kâseberga virou no porto e comprou um pouco de peixe defumado. Acabava de entrar em casa quando tocou o telefone; era a mesma mulher da ligação anterior, mas agora que era boa; soube que não se tratava de Baiba, mas de uma mulher que falava inglês com alguma dificuldade.
— Kurt Wallander?
— Sim, sou eu.
— Chamo-me Lilja. Sabe quem sou?
— Não.
De repente, a mulher rompeu num choro desesperado e Wallander se assustou seriamente.
— Baiba! Gritou a mulher. — A Baiba...
— O que aconteceu? Sim, conheço a Baiba.
— Morreu.
Wallander deixou cair o saco de peixe que trouxera de Kâseberga e que ainda levava na mão.
— Baiba morreu? Mas esteve aqui ainda há dois dias!
— Sim, eu sei. Era minha amiga. E agora está morta.
Wallander sentiu que o seu coração acelerava e se sentou num banco que tinha perto da porta. Pelo relato desconcertante e agitado de Lilja, Wallander compreendeu o acontecido: Baiba se encontrava apenas a uns quilômetros de Riga quando saiu da estrada a grande velocidade e bateu num muro de pedra. Teve morte imediata, repetia Lilja uma e outra vez, como se para evitar que Wallander caísse num poço de dor incontrolável. Porém foi em vão, porque jamais sentira um desespero igual àquele que lhe sobreveio naquele momento.
A comunicação caiu subitamente, sem prévio aviso, antes que Wallander pudesse anotar o número de telefone de Lilja. Aguardou que ela voltasse a ligar, ainda sentado no banco do hall. Ao ver que não conseguia restabelecer a comunicação, se levantou e foi para a cozinha, mas deixou o saco com o peixe defumado no chão. Não sabia o que fazer. Acendeu uma vela e colocou-a sobre a mesa. Dirigira com certeza sem descansar, concluiu. Desde o barco no porto polonês, através da Polônia, da Lituânia e depois quase até chegar a Riga. Teria adormecido ao volante? Ou teria batido propositadamente na parede com o intuito de se matar? Wallander sabia que os acidentes de motoristas solitários muitas vezes eram suicídios disfarçados. Uma antiga auxiliar administrativa da delegacia de Ystad, uma mulher divorciada com problemas de álcool, escolhera o mesmo caminho uns anos antes. No entanto, ele não acreditava que Baiba fosse capaz de algo assim; uma pessoa que decide viajar para se despedir dos seus amigos e amantes não dá cabo da vida simulando um acidente de automóvel fatal. Com certeza estava cansada e perdera o controle do carro, não podia imaginar outra explicação.
Pegou no telefone para ligar para Linda, pois não tinha forças de lidar sozinho com a situação. Havia momentos em que, de fato, necessitava de ter alguém ao seu lado. Discou o número, mas desligou assim que começou a ouvir o sinal de chamada; era muito cedo, ainda não tinha nada para lhe dizer. Deixou cair o telefone no sofá, foi até ao recinto de Jussi e abriu a porta. Pôs-se de cócoras e acariciou-o.
O telefone tocou e entrou correndo para atender a ligação: era Lilja, já mais calma. Desta vez, Wallander pôde lhe fazer algumas perguntas sobre o acidente e criar uma imagem mais clara do acontecido. Havia, naturalmente, outra questão sobre a qual desejava obter resposta.
— Porque telefonou para mim? E como sabia da minha existência?
— Baiba me pediu.
— Pediu-lhe o quê?
— Que lhe telefonasse quando ela morresse. Mas claro que não esperava que acontecesse tão depressa. A própria Baiba acreditava que viveria quase até ao Natal.
— A mim me disse que esperava durar até ao outono.
— Nunca dizia o mesmo a uns e a outros. Acho que queria nos fazer sentir a mesma incerteza que ela sentia.
Lilja lhe contou quem era, uma velha amiga e colega de Baiba; se conheciam desde a adolescência.
— Eu conhecia-o de vista, explicou Lilja. — Um dia, Baiba me telefonou e disse: "O meu amigo sueco está aqui em Riga. Esta tarde penso ir com ele até ao café do Hotel Latvia. Se passar por lá poderá vê-lo." Assim fiz e vi os dois juntos.
— Talvez Baiba tenha mencionado o seu nome alguma vez; me parece que sim. Em todo o caso, não chegou a nos apresentar, não é?
— Não. Mas o vi, e a Baiba gostava muito de si. Sim, ela amava-o. Lilja começou a chorar de novo. Wallander esperou que parasse enquanto ouvia os estrondos dos trovões ao longe. Ela tossiu e se assoou antes de voltar a pegar o telefone.
— Que vai acontecer? Perguntou Wallander.
— Não sei.
— Quem são os parentes mais próximos?
— A mãe e os irmãos.
— A mãe deve ser muito velha, não é? Não me lembro de Baiba alguma vez ter falado nela.
— Tem noventa e cinco anos, mas é uma mulher muito lúcida; sabe que a filha morreu. Ela e Baiba tiveram uma relação muito complicada praticamente desde a sua infância.
— Gostaria de saber quando será o funeral, disse Wallander.
— Avisarei sem falta.
— O que ela lhe disse sobre mim? Quis saber Wallander.
— Não muito.
— Sim, mas alguma coisa deve ter dito.
— Sim, mas pouca coisa, apesar de sermos amigas. Baiba não deixava que as pessoas se aproximassem muito.
— Eu sei, concordou Wallander.
Depois de concluída a conversa, se deitou na cama e ficou olhando fixamente para o teto, onde há uns meses aparecera uma mancha de humidade. Permaneceu assim, muito tempo, até que voltou para a mesa da cozinha. Pouco depois das oito horas ligou para Linda e lhe contou o acontecido.
Custou-lhe muito; o desespero no seu íntimo era quase insuportável.
* * *
Vinte e Nove
NO DIA 14 de julho, às onze da manhã, se celebrou o funeral de Baiba Liepa numa capela do centro de Riga. Wallander chegara à cidade no dia anterior, num voo de Copenhague. Quando saiu do avião reconheceu imediatamente o lugar, apesar de terem renovado o terminal do aeroporto. Dos aviões militares soviéticos que vira no início da década de 1990 não havia sinal. Pela janela do táxi viu uma cidade muito mudada, embora nos arredores ainda se avistasse um ou outro porco remexendo nos montes de esterco junto a locais degradados, e na parte antiga se elevavam os velhos edifícios de sempre. No entanto, os letreiros eram diferentes, tinham pintado as fachadas e consertado as calçadas. A diferença mais importante era, sem dúvida, as pessoas que caminhavam pelas ruas, a sua maneira de vestir, os carros que se aglomeravam em frente aos semáforos vermelhos e nas saídas dos estacionamentos do centro.
Uma chuva quente caía sobre Riga no dia em que Wallander chegou. Lilja, cujo sobrenome era Blooms, lhe telefonara para dizer os detalhes relacionados com o funeral de Baiba. A única coisa que Wallander perguntou foi se a sua presença poderia ser interpretada como inapropriada.
— Porque havia de ser?
— Talvez haja alguma situação familiar que eu desconheça?
— Todos sabem quem é, respondeu Lilja Blooms. — Baiba falou de si; nunca foi segredo.
— Está bem, mas a questão é o que disse sobre mim.
— Porque está tão preocupado? Pensei que se amassem, que iam se casar. Enfim, era isso que toda a gente acreditava.
— Sim, mas ela não queria. Wallander notou que as suas palavras surpreenderam Lilja.
— Bem, aqui todos pensamos que foi você quem mudou de ideia. Ela não disse nada, claro. E levamos muito tempo para compreender que a história tinha terminado. Seja como for, ela não gostava de falar do assunto.
Foi Linda que lhe deu argumentos para que tomasse a decisão de ir ao funeral. Foi se encontrar com ele assim que o pai telefonou; estava tão comovida que tinha os olhos cheios de lágrimas quando entrou na casa de Wallander, e isso o permitiu chorar abertamente a morte de Baiba. Assim, passou muito tempo com Linda falando de velhas recordações da época em que Baiba e ele estavam juntos.
— O marido da Baiba, Karlis Liepa, morreu assassinado, contou Wallander. — Foi um assassinato político, pois naquela época as tensões entre russos e letões eram grandes. Fui para Riga para colaborar na investigação do assassinato. Não é preciso dizer que eu ignorava completamente os abismos políticos em que o país tinha caído. Hoje estou disposto a admitir que foi então que comecei a compreender como era o mundo durante a Guerra Fria. Já se passaram dezessete anos.
— Sim, me lembro da sua viagem, assegurou Linda. — Nesse momento estava em um curso superior sem saber muito bem a que me dedicaria. Mas no fundo já devia ter compreendido há muito que queria ser policial.
— Então me lembro de tudo menos dessa profissão.
— Por isso, devia ter ficado desconfiado! E pensar que nem lhe passava pela cabeça que podia ter esse desejo...
— Também não imaginava a existência de Baiba quando Karlis Liepa entrou na delegacia de Ystad.
Wallander se lembrava dos acontecimentos com total nitidez. Tirando o fato do homem fumar como uma chaminé, o que provocava uma onda de protestos entre os muitos policiais não fumantes, Karlis Liepa era uma pessoa tranquila que passava quase despercebida e com quem Wallander se dava muito bem. Uma noite, durante uma violenta tempestade de neve, levou-o à sua casa de Mariagatan. Convidou-o para um uísque e descobriu com grande alegria que o major Liepa apreciava ópera quase tanto como ele mesmo. Nessa noite ouviram uma gravação de Turandot com Maria Callas, enquanto a neve redemoinhava ao sabor do vento forte que varria as ruas desertas da cidade.
Mas onde estaria aquele disco agora? Não o encontrara no dia anterior entre os discos guardados no sótão. Soube a resposta quando Linda lhe disse que era ela quem estava com ele.
— Deu-me quando eu sonhava ser atriz, explicou. — Sonhava com uma peça, comigo no único papel, sobre o trágico destino da Maria Callas. Imagina só! Eu, que nem sequer sou parecida com uma cantora grega de ópera.
— E que sofria dos nervos, acrescentou Wallander.
— A que se dedicava Baiba, na realidade? Era professora?
— Quando a conheci era tradutora de livros técnicos em inglês. Mas acho que sabia fazer um pouco de tudo, era muito habilidosa.
— Deve ir ao funeral. Para o seu próprio bem.
Não foi assim tão simples, mas Linda conseguiu convencê-lo no fim. Também se certificou de que o pai ia comprar um terno escuro, acompanhou-o à loja de Malmó e quando ele se assustou com o preço, lhe explicou que era um terno de qualidade que duraria para o resto da vida.
— Os casamentos já não serão tantos, lembrou Linda.
— Na sua idade, são mais os funerais. Wallander murmurou algo imperceptível, mas no fim pagou o preço. Linda não fez mais comentários.
Saiu do táxi e entrou na recepção do Hotel Latvia com a sua pequena mala de viagem. O café onde Lilja o vira com Baiba já não existia, segundo comprovou imediatamente.
Registrou-se e lhe deram o quarto 1516. Quando saiu do elevador e já diante da porta, teve a repentina sensação de que aquele era o quarto onde se alojara durante a sua primeira visita a Riga. Lembrava-se perfeitamente de que o número continha as cifras cinco e seis. Abriu a porta e entrou, mas não era de todo como se recordava, embora a vista da janela fosse a mesma; uma igreja bonita cujo nome não fixara então. Abriu a mala e pendurou o terno novo num cabide. A ideia de que fora naquele hotel, talvez até no mesmo quarto, que se encontrara com Baiba pela primeira vez lhe causou uma dor quase insuportável.
Foi até o banheiro e refrescou o rosto. Não era mais que meio-dia e meia, não tinha nenhum plano a não ser talvez dar uma pequena caminhada. Queria honrar a memória de Baiba, recordando-a como era quando se conheceram. De repente, lhe surgiu uma dúvida com que nunca antes tivera coragem para se confrontar: o seu amor por Baiba fora mais intenso que aquele que sentira por Mona? E apesar de ser ela a mãe de Linda? Não era capaz de resolver a dúvida, sabia que jamais teria uma resposta inequívoca.
Saiu, deambulou pela cidade, almoçou num restaurante, embora não sentisse muita fome. No fim da tarde se sentou num dos bares do hotel. Uma jovem de vinte e poucos anos veio perguntar se queria companhia; ele nem respondeu, apenas negou com a cabeça. Justamente antes do restaurante fechar, pediu um prato de esparguete, em que mal tocou. No entanto, bebeu vinho e quando se levantou estava um pouco tocado.
Não parara de chover enquanto Wallander jantava, mas como o tempo já estava melhor foi buscar o casaco e saiu para o ar húmido da noite estival. Andou até o Monumento da Liberdade, onde um dia o fotografaram e a Baiba. Uns adolescentes andavam de skate na praça à frente do monumento. Prosseguiu o seu caminho e chegou ao hotel já muito tarde. Adormeceu vestido em cima da cama sem tirar mais nada além dos sapatos.
Acordou de manhã quando bateram à porta, arrancando-o do sono com a ideia confusa de que uma vez mais era Baiba quem o acordava. No entanto, quando abriu a porta viu que se tratava de uma mulher jovem. Wallander se irritou e disse para si mesmo que detestava que as jovens prostitutas pudessem entrar assim a qualquer hora do dia e já se preparava para fechar a porta quando a expressão da jovem o fez hesitar.
— Kurt Wallander? Perguntou. — Não me conhece, mas conheceu a minha mãe.
Wallander franziu a testa, ainda um pouco hesitante, mas finalmente convidou-a a entrar. Teria Baiba uma filha cuja existência ele ignorava? Por um instante aterrador até se perguntou se seria filha dele, mas pôs imediatamente a ideia de lado, pois Baiba teria lhe dito. Com um gesto indicou à jovem para se sentar na cadeira, enquanto ele se sentou na borda da cama. A jovem tinha o cabelo claro, aparentava ter dezoito ou dezenove anos, vestia roupa simples e não usava maquiagem.
— O meu nome é Vera, se apresentou. — A minha mãe se chamava Inês.
Nesse mesmo momento, Wallander percebeu quem era: Inês, a amiga de Baiba, que conhecera durante a sua primeira estada em Riga; ela fora buscá-lo durante algumas das suas visitas noturnas ao agrupamento político secreto que solicitara a sua ajuda. E Wallander vira-a morrer numa violenta troca de tiros que explodiu quando o local onde o grupo de resistência se reunia foi assaltado. Ainda se lembrava perfeitamente dela, coberta de sangue e inerte sobre uma cadeira virada.
— Sim, disse Wallander por fim. — Estive com a sua mãe algumas vezes. Não cheguei propriamente a conhecê-la, mas sei que era amiga de Baiba.
— Lilja me disse que você viria para o funeral. Eu não tinha mais de dois anos quando a minha mãe morreu. Não é minha intenção incomodar, só queria vê-lo, uma vez que a conheceu e eu quase não tenho nenhuma imagem dela.
— Recordo-a como uma mulher muito bonita, respondeu Wallander. — E também forte e corajosa.
— É verdade que estava com ela quando morreu? A jovem fez a pergunta inesperadamente, sem hesitações. Wallander confirmou com a cabeça. — Pergunto isso a todos os que possam ter alguma recordação dela. Surgem detalhes diferentes conforme a pessoa, alguma faceta que ganha uma dimensão mais profunda ou talvez algo que eu nem conhecesse.
— Foi há tanto tempo e já não sei se as minhas memórias são de confiar ou se são algo que acredito recordar...
Mesmo assim, Wallander fez um esforço para lhe contar as suas impressões de então, para evocar os acontecimentos e os instantes de que se recordava. No entanto, quando chegou o momento de contar o momento em que Inês caíra morta sobre aquela cadeira, lhe disse simplesmente que estava convencido de que morrera instantaneamente ao ser atingida pelas balas.
Ela perguntou mais coisas, mas Wallander tinha lhe dito tudo de que se lembrava, não tinha mais respostas para dar. Vera se levantou e alisou a saia branca. Por um instante, Wallander teve a impressão de que os seus traços tinham certa semelhança com os da sua mãe, embora não tivesse certeza, pois as recordações podiam ser enganadoras.
— Quem era o seu pai? Perguntou Wallander.
— Não sei. A minha mãe disse à Baiba que me contaria quando fosse mais crescida, mas nem Baiba sabia, pois Inês não o confidenciou a nenhuma amiga. Às vezes, desconfio que talvez fosse da União Soviética.
— Como assim?
— Porque a minha mãe nunca ter dito a ninguém quem era; talvez por vergonha... Obrigada por ter me recebido, disse a jovem. — Notei que esteve quase para fechar a porta ao me ver. Pensava que vinha me vender? Tem mesmo esse tipo de preconceitos sobre a nossa gente?
— Não sei bem o que pensava...
— Lilja vem às dez, pediu que eu lhe dissesse. Vai levá-lo à igreja.
Wallander acompanhou-a à porta e permaneceu ali enquanto ela se afastava pelo corredor em direção ao elevador. Depois vestiu o terno para o funeral e desceu para tomar o café da manhã, apesar de não ter fome.
No Aeroporto de Kastrup comprara duas pequenas garrafas de vodca, uma das quais levava no bolso interior do casaco. Na descida do elevador para a sala de refeições, desenroscou a tampa e bebeu um gole.
Wallander estava na recepção quando Lilja Blooms entrou pela porta giratória de vidro. Reconheceu-o logo e se aproximou imediatamente. Baiba devia ter lhe mostrado alguma das poucas fotografias que tinha dele, pensou.
Lilja era de estatura baixa, de formas generosas e com o cabelo quase cortado à escovinha. O seu aspecto não coincidia em nada com aquele que Wallander lhe atribuíra na sua imaginação. Na verdade, esperara ver uma mulher mais parecida com Baiba. Quando se cumprimentaram, Wallander se sentiu um pouco inibido, sem saber porquê.
— A capela fica perto daqui, disse Lilja. — São só dez minutos a pé, de maneira que dá tempo para eu fumar um cigarro. Pode esperar aqui, se quiser.
— Não, vou consigo, respondeu Wallander. Ficaram à entrada, ao sol, Lilja com óculos escuros e um cigarro aceso.
— Ela tinha bebido, disse de repente. Wallander levou uns segundos a compreender a quem se referia.
— Baiba?
— Estava embriagada quando morreu. É o que mostra a autópsia; percentagem de álcool no sangue era bastante alta e por isso saiu fora da estrada.
— Custa-me a acreditar.
— A mim também, e todos os seus amigos estranharam muito, mas por outro lado o que sabemos de como raciocina uma mulher que padece de uma doença mortal?
— Está dizendo que se matou? Que bateu com o carro conscientemente?
— Não serve de nada especular sobre essa possibilidade, uma vez que nunca saberemos com toda a certeza. No entanto, não havia marcas de freada de pneus no local do acidente. Além disso, o motorista que vinha atrás declarou que, embora a velocidade não fosse excessiva, o carro oscilava muito.
Wallander tentou recriar mentalmente o acontecido, imaginar os últimos instantes da vida de Baiba. Compreendeu que nunca saberia o que acontecera na realidade, se fora um acidente ou um suicídio. De repente, lhe surgiu outra ideia: a morte de Louise não teria sido também consequência de um acidente e não assassinato ou suicídio?
Nunca completou essa linha de pensamento pois Lilja apagou o cigarro e disse que eram horas de irem. Wallander se desculpou, foi ao banheiro da recepção e bebeu outro gole de vodca. Olhou-se ao espelho; um homem a caminho da velhice, inquieto com o que a vida lhe reservava.
Chegaram à igreja, onde a penumbra era mais intensa devido à intensidade do sol que brilhava no exterior, e Wallander levou uns minutos a se habituar ao escuro. Então imaginou que o funeral de Baiba seria uma espécie de exercício preparatório para o seu. A ideia encheu-o de tal temor que esteve a pontos de se levantar e sair; não devia ter ido a Riga, aquilo não era da sua conta. Contudo, permaneceu sentado no banco e, graças sobretudo ao álcool, conseguiu conter o choro mesmo quando viu a grande dor de Lilja Blooms, sentada ao seu lado.
O caixão lhe pareceu uma ilha deserta varrida pelo mar, um esconderijo e ao mesmo tempo o último repouso de uma mulher a quem ele em tempos amara. Por alguma razão insondável, lhe veio subitamente à mente a imagem de Hakan von Enke. Irritado, afastou a imagem.
Wallander começava a sentir o efeito do álcool. Era como se a cerimônia não tivesse nada a ver com ele; quando tudo terminou Lilja Blooms foi dar os pêsames à mãe de Baiba, se apressou a sair discretamente da igreja. Sem olhar para trás uma única vez, retornou diretamente ao hotel e pediu à recepcionista para o ajudar a trocar a passagem. Planejara ficar até o dia seguinte, mas naquele momento desejava ir embora dali o mais depressa possível. Havia lugar naquela mesma tarde no voo para Copenhague. Fez a mala, mas manteve o terno de funeral vestido e saiu do hotel num táxi, temendo que Lilja Blooms aparecesse à sua procura. Teve de esperar cerca de três horas sentado num banco à frente do terminal até chegar a hora de passar o controle de passaportes.
Já a bordo do avião continuou a beber. Uma vez em Ystad, apanhou um táxi e quando chegou em casa esteve prestes a cair no chão ao sair do veículo. Jussi se encontrava, como de costume, na casa dos vizinhos, mas decidiu ir buscá-lo no dia seguinte. Caiu redondo na cama, dormiu profundamente e acordou pouco antes das nove da manhã. Porém, invadiu-o um remorso profundo por ter fugido da igreja sem sequer se despedir de Lilja. Agora, passados uns dias, teria de lhe telefonar para lhe dar uma desculpa aceitável. Mas o que haveria de dizer?
Sentia-se maldisposto quando acordou de manhã. Não encontrou nenhuma aspirina, apesar de revistar toda o banheiro e também as gavetas da cozinha. Pegou o carro, mas uma vez que não suportava a ideia de ir à cidade, parou na casa da vizinha mais próxima para perguntar tinha se algum analgésico. Tomou o comprimido num copo de água ali mesmo e a mulher lhe deu mais alguns para levar para casa.
Quando voltou, fechou Jussi no recinto. A luz do atendedor de chamadas piscava. Sten Nordlander tinha telefonado novamente e Wallander procurou o seu número de celular e ligou. O vento rugia à volta de Sten Nordlander quando este atendeu.
— Ligo de volta daqui a pouco! Gritou. — Vou só procurar um lugar abrigado!
— Estou em casa.
— Dentro de dez minutos. Está tudo bem?
— Está.
— Já ligo, então.
Wallander se sentou à mesa da cozinha à espera da ligação. Jussi dava voltas no recinto, farejando a visita de algum rato ou de algum pássaro. De vez em quando, lançava um olhar para a janela da cozinha. Wallander levantou a mão e acenou, mas Jussi não reagiu, não o viu, embora soubesse que ele estava ali dentro. Abriu a janela e Jussi começou logo a agitar a cauda e a se erguer nas patas traseiras, se apoiando na rede.
O telefone tocou; Sten Nordlander encontrara um lugar resguardado do vento, que já não se ouvia.
— Saí com o barco, explicou. — Estou numa ilha, apenas um ilhéu sem árvores, próximo de Mója. Conhece?
— Não.
— É no lugar mais remoto do arquipélago de Estocolmo. Uma verdadeira maravilha.
— Ainda bem que ligou, disse Wallander. — Há novidades. Era para lhe telefonar porque Hakan apareceu. Wallander lhe contou resumidamente o ocorrido.
— Que estranho! Exclamou Sten Nordlander. — Acabei de pensar nele ao sair do barco neste lugar.
— Por alguma razão especial?
— Bem, ele gostava de ilhas. Uma vez me contou que tinha sonhado em visitar as ilhas de todos os mares do mundo.
— Sabe se alguma vez tentou concretizar esses sonhos?
— Não acho. Louise não gostava nem de voar nem de viajar de barco.
— E isso não lhes causou problemas?
— Que eu saiba, não. Ele gostava muito dela e ela dele. Os sonhos tem um valor intrínseco, mesmo que não se tornem realidade.
A ligação não era muito boa na ilhota em que se encontrava Ster Nordlander, no limite da área de cobertura. Acordaram que telefonaria para Wallander quando voltasse para terra firme.
Wallander pousou o telefone sobre a mesa muito devagar e permaneceu imóvel. De repente, teve a sensação intensa de que sabia onde se encontrava Hakan von Enke. Sten Nordlander lhe indicara a direção que devia seguir. Não havia maneira de ter certeza, não tinha provas. Mesmo assim sabia.
Lembrou-se de um livro que havia na estante do quarto de Signe von Enke, junto dos livros de Babar: o conto A Bela Adormecida. Dormi um longo sono, disse Wallander para si mesmo. Devia ter compreendido muito antes onde ele se encontra. Finalmente acordei. Realmente estava envelhecendo, pois mal via o que tinha à frente.
Jussi deu um latido e Wallander saiu para lhe dar de comer.
* * *
Bem cedo na manhã seguinte se sentou ao volante. A mulher do vizinho se surpreendeu ao vê-lo aparecer para deixar Jussi outra vez. Perguntou-lhe quanto tempo estaria fora e ele lhe disse a verdade.
Não sabia. Não tinha a menor ideia.
* * *
Trinta
O BARCO que conseguiu alugar era uma lancha descoberta de apenas seis metros de comprimento, com um motor fora de borda da marca Evinrude, de sete cavalos. Além disso, o dono da lancha lhe emprestou também uma carta náutica. Escolheu aquela embarcação porque com aquele tamanho não seria difícil manejá-la a remo, como supunha que se viria obrigado a fazer. Quando assinou o contrato de aluguel mostrou a sua identificação de policial. O homem teve um sobressalto.
— Não se assuste, tranquilizou-o Wallander. — Preciso de um tanque sobressalente de gasolina. Talvez lhe devolva a lancha amanhã mesmo ou talvez demore uns dias. Como tomou nota do meu cartão de crédito, pode ficar descansado quanto ao pagamento.
— Visita da polícia, observou o homem. — Aconteceu alguma coisa?
— Não, nada, só quero fazer uma surpresa a um velho amigo que faz cinquenta anos.
Wallander não preparara aquela mentira, mas era bom para improvisar subterfúgios e já lhe ocorriam sem esforço.
A lancha estava atracada entre duas grandes embarcações a motor, uma delas da marca Storõ. O motor não tinha ignição elétrica, mas ligou assim que Wallander puxou a corda de arranque. O dono, que tinha um sotaque finlandês, lhe garantiu que o motor era de confiança.
— Eu mesmo uso esta lancha para pescar, assegurou. — O problema é que já quase não há peixe. Mas, eu vou pescar de qualquer jeito.
Eram quatro horas da tarde. Wallander chegara a Valdermarsvik uma hora antes e comera no que parecia ser o único restaurante da vila. Depois procurara o local de aluguel de barcos, que ficava muito próximo dali, num dos lados da ampla baía. Wallander preparara uma mochila com duas lanternas e um saco de comida, entre outras coisas. Também levava roupa quente, embora àquela hora da tarde fizesse calor.
Pegara bastante chuva a caminho da região oriental da Gotlândia e uma vez, ao passar por Roneby, chovia tanto que se vira obrigado a parar num parque e esperar até que diminuísse. Enquanto ouvia o tamborilar da chuva contra o teto do carro e via a água jorrar pelo para-brisas, se perguntara se o seu raciocínio realmente batia certo. Teria sido enganado pelo seu faro ou, como em tantas ocasiões anteriores, teria interpretado a situação corretamente?
Ficou quase meia hora no parque mergulhado nos seus pensamentos até que a chuva parou. Prosseguiu viagem e, quando finalmente chegou a Valdermarsvik, o tempo já desanuviara e quase não havia vento. A água da baía espumava ao sopro das rajadas leves de vento que iam e vinham. Cheirava a lodo. Recordava-se do cheiro desde a última vez que estivera ali.
Wallander pôs o motor a trabalhar. O homem que alugara a lancha ficou olhando um bom tempo antes de voltar para a sua sala. Wallander decidira sair da baía enquanto estivesse de dia; depois atracaria em algum lugar e desfrutaria do entardecer estival. Tentou calcular em que fase estava a lua, mas sem êxito. Poderia ter telefonado para Linda, mas uma vez que não queria revelar onde ia nem o motivo da viagem, não o fez. Quando tivesse saído da baía poderia ligar para Martinsson, se alguém telefonasse. A missão que se impusera a si mesmo não dependia do luar nem da escuridão, mas queria simplesmente saber o que o esperava.
Quando entreviu o mar aberto entre as ilhas que tinha à frente, deixou o motor ligado e estudou com atenção a carta náutica que levava consigo. Assim que se orientou e teve certeza de onde se encontrava, escolheu um lugar não muito longe do seu destino, onde podia esperar o anoitecer. No entanto, o lugar estava ocupado, já havia várias embarcações atracadas junto às rochas. Continuou até encontrar outro ilhéu, não muito maior que uma ilhota com algumas árvores, até cuja orla podia remar depois de recolher o motor. Vestiu o casaco, se encostou a uma das árvores e se serviu de um pouco de café da garrafa térmica. Depois ligou para Martinsson, e uma vez mais foi uma criança que atendeu o telefone, talvez a mesma da vez anterior. Ao fim de uns segundos, Martinsson pegou no auscultador.
— Tem sorte, disse. — A minha neta está se tornando a sua secretária.
— Escute, a lua... Disse Wallander.
— O que tem a lua?
— Calma, ainda não acabei.
— Desculpe, mas os netos exigem atenção permanente.
— Sim, entendo. E não incomodaria se não fosse importante. Tem um calendário? Em que fase se encontra a lua agora?
— A lua? É essa a pergunta que quer me fazer? Está numa aventura astronômica?
— Talvez. Mas, pode me dar a informação ou não?
— Espere um pouco.
Martinsson pousou o telefone. Pelo tom de voz de Wallander deduziu que este não pensava lhe dar qualquer explicação.
— Estamos na lua nova, disse quando voltou ao auscultador. — Uma tirinha de crescente. A menos que se encontres num lugar diferente da Suécia, claro.
— Não, estou aqui. Obrigado pela ajuda, respondeu Wallander. — Explicarei um dia.
— Estou habituado a esperar.
— A esperar o quê?
— Explicações. Até dos meus filhos quando não fazem o que lhes digo. Claro que isso foi mais quando eram pequenos.
— Sim, passei pela mesma coisa com Linda, concordou Wallander numa tentativa de mostrar interesse.
Agradeceu mais uma vez a ajuda relativa à fase lunar e concluiu a conversa. Comeu dois sanduíches e se deitou no chão, com uma pedra como travesseiro.
A dor apareceu sem aviso. Estava deitado olhando para o céu, umas gaivotas gritavam ao longe, quando de repente sentiu uma pontada de dor no braço esquerdo, uma dor que se estendeu pelo peito até ao estômago. No início achou que se devia ao incômodo causado por alguma aresta da rocha, mas depois tomou consciência de que a dor vinha do interior e pensou que estava se dando o que tanto temera: estava sofrendo um enfarte. Permaneceu imóvel, rígido e horrorizado, sustendo a respiração com medo de que um novo suspiro extinguisse o que restava da capacidade de bater do seu coração.
A recordação da morte da mãe lhe surgiu subitamente com toda clareza.. Era como se os seus últimos minutos de vida se repetissem ali mesmo, diante dele. Não tinha mais de cinquenta anos quando morrera. Nunca trabalhara fora de casa, mas tentara manter o casamento com um marido temperamental, cujos rendimentos eram sempre irregulares e incertos, cuidara dos seus dois filhos, Kurt e Kristina. Nessa altura viviam em Limhamn, numa casa de paredes meias com outra família, que o pai de Wallander não suportava. O seu vizinho era maquinista de trem, um homem que não fazia mal a ninguém, mas que numa ocasião se lembrara de lhe perguntar, por pura amabilidade, se não seria mais relaxante para ele pintar, durante um período, outros motivos diferentes da sempre repetida paisagem. Wallander ouvira a conversa. Nils Persson, era esse o nome do maquinista, deu como exemplo a sua própria vida profissional: depois de um longo período de viagens constantes entre Malmõ e Alvesta, ficara contentíssimo quando o mudaram para o expresso de Gotemburgo, que às vezes até ia a Oslo. O pai de Wallander explodira de ira e dera imediatamente por terminada a relação com os vizinhos. Naturalmente, a mãe de Wallander tivera de intervir para restabelecer uma convivência minimamente suportável entre vizinhos.
A mãe morrera de forma repentina, numa tarde no princípio do outono de 1962. Saíra para estender a roupa no pequeno jardim; Wallander acabara de chegar da escola e estava sentado à mesa da cozinha lanchando. Num dado momento se virou para olhar pela janela e viu-a com o cesto da roupa e uma fronha nas mãos. Logo voltou a se concentrar no lanche. A vez seguinte que olhou viu-a de joelhos, pressionando o peito com as duas mãos. Num primeiro momento pensou que deixara cair alguma coisa, mas depois viu-a cair de lado, devagar, como se quisesse resistir até ao último instante. Ele saiu para a rua, gritando o seu nome, mas já era impossível salvá-la. O médico que fez a autópsia disse que fora um enfarte fulminante, mesmo que estivesse estado no hospital quando aconteceu não conseguiriam lhe salvar a vida.
E ele recriava agora tudo aquilo em imagens passageiras, ao mesmo tempo que tentava manter longe a sua própria dor; não queria perder a vida de forma prematura, tal como a sua mãe, e não desejava de maneira nenhuma morrer assim, sozinho numa ilhota no meio do Báltico.
Formulou rezas mudas e angustiadas. Não dirigidas a nenhum deus, mas antes a si mesmo para resistir, para não se deixar arrastar para o silêncio eterno. E finalmente notou que a dor não aumentava, que o coração continuava a bater. Tentou se obrigar a manter a calma, a agir com sensatez, a não se ver afundado num pânico desesperado e cego. Com o máximo cuidado se sentou e foi apalpando com a mão, até que encontrou o celular, que deixara junto à mochila. Começou a discar o número de Linda, mas se arrependeu imediatamente. O que ela poderia fazer? Se aquilo fosse um enfarte, deveria ligar para a emergência.
Contudo, algo o retinha, talvez por comprovar que a dor parecia diminuir. Mediu a pulsação, que batia regular. Muito devagar foi virando o braço esquerdo até achar uma postura em que a dor se atenuava, logo outras em que era mais aguda. Aquilo não se coadunava com os sintomas de um enfarte cardíaco. Sentou-se, sempre com a maior cautela, e mediu novamente a pulsação: setenta e quatro pulsações por minuto. Normalmente, costumava estar entre sessenta e seis e setenta e oito; tudo estava em ordem. Deve ser o estresse, disse para si mesmo. O meu corpo desencadeou uma simulação daquilo que me pode acontecer se não me acalmo, se continuo a acreditar que sou um policial insubstituível e se não tiro umas férias como deve ser. Voltou a se deitar. A dor foi diminuindo, embora continuasse presente, surda, como uma espécie de ameaça.
Uma hora mais tarde se atreveu a afirmar que não sofrera nenhum enfarte; fora uma advertência. Talvez devesse voltar para casa, telefonar para Ytterberg e revelar a conclusão a que chegara. Mas resolveu ficar; já que chegara até ali, averiguaria se tinha ou não razão. E, fosse qual fosse o resultado, deixaria depois o assunto nas mãos de Ytterberg. A partir daí não teria de continuar a se preocupar com isso.
Sentiu um enorme alívio, como se estivesse ébrio de vida, algo que não sentia há muitos anos. Invadiu-o uma grande vontade de se pôr de pé e anunciá-lo ao mar aberto a plenos pulmões. No entanto permaneceu sentado, apoiado contra a árvore olhando os barcos que passavam e respirando o cheiro do mar. A temperatura ainda estava agradável. Deitou-se, se cobriu com o casaco e adormeceu. Acordou passados uns dez ou quinze minutos e verificou que a dor desaparecera por completo. Levantou-se e começou a caminhar pela ilhota. Pelo lado que dava para o sul, as rochas se erguiam quase na vertical, e foi só com grande esforço que conseguiu dar a volta pela beira-mar.
De repente, parou e se agachou. Havia uma fenda estreita na rocha a uns vinte metros de onde se encontrava. Mesmo à frente da rocha estava amarrada uma embarcação e puxado para as rochas se via um bote. Dentro da abertura na rocha havia duas pessoas fazendo amor.
Wallander se colou contra a parede rochosa, mas não pôde resistir à tentação de olhar. Eram jovens, pouco mais de vinte anos. Permaneceu olhando como que enfeitiçado pelos seus corpos nus, até que conseguiu afastar a vista e, sem fazer barulho, recuar pelo caminho até à árvore.
Várias horas mais tarde, quando por fim começou a cair a noite, viu passar o barco com o bote a reboque. Levantou-se e saudou-os com a mão, e os jovens devolveram a saudação.
Em certa medida invejava-os, mas não era uma inveja amarga, pois nunca sentira nenhuma saudade da sua juventude. As suas primeiras vivências eróticas haviam sido, como as da maioria, bastante inseguras, desencorajadoras, muitas vezes raiando o embaraçoso. Sempre escutara, incrédulo, as descrições que os seus amigos faziam das suas escapadas e conquistas. Experimentou o verdadeiro prazer sensual quando conheceu Mona, e durante os seus primeiros anos juntos desfrutaram de uma vida sexual que ultrapassava os seus sonhos mais loucos. Com algumas mulheres, poucas, tivera grandes experiências, mas nunca tão intensas como as que partilhara com Mona no início da sua relação. A grande exceção fora Baiba, naturalmente.
No entanto, nunca fizera amor com alguém numa rocha no meio do mar aberto. O mais próximo que estivera alguma vez de algo arriscado fora aquela vez em que, já algo bebido, convencera Mona a se meterem no banheiro de um trem, mas foram interrompidos pelo feroz bater à porta de alguém que esperava para entrar. Mona achara que era uma situação incrivelmente embaraçosa e, enfurecida, fê-lo jurar que nunca voltaria a tentar atraí-la para excursões eróticas semelhantes.
E não o fizera. Até ao fim da sua longa relação e casamento, o desejo dos dois foi enfraquecendo, embora no caso de Wallander renascesse com toda a sua força assim que Mona lhe comunicara que queria o divórcio. Mas ela rejeitara-o; a porta estava irrevogavelmente fechada.
Subitamente viu o percurso da sua vida com toda a clareza, com quatro momentos decisivos a ressaltar. O primeiro, o dia em que me opus à vontade do meu pai e a sua atitude prepotente e decidi ser policial, recordou. O segundo quando matei uma pessoa em serviço e pensei que não suportaria mais, mas mesmo assim decidi continuar na minha profissão. O terceiro quando deixei o apartamento de Mariagatan e me mudei para o campo e arrumei um cão, Jussi. E o quarto talvez seja o dia quando finalmente aceitei que Mona e eu não voltaríamos a viver juntos. Essa é sem dúvida a mais dura das minhas experiências. Mas fiz as minhas escolhas: não passei a vida hesitando e duvidando para um dia compreender que tudo era tarde demais. E sou o único responsável. Quando vejo a amargura que abarca muitas das pessoas que me rodeiam fico feliz por não estar no seu lugar. Apesar de tudo, tentei assumir a responsabilidade de tudo quanto fiz na vida, em vez de deixá-la ir com a corrente.
Com o pôr do sol chegaram os mosquitos, que começaram a torturá-lo imediatamente, mas se lembrara de trazer um creme repelente e cobriu a cabeça com o capuz do anoraque. Cada vez se ouviam menos barcos a motor pelas passagens estreitas e as enseadas em redor. Um veleiro solitário navegava para o mar aberto.
Pouco depois da meia-noite, com os mosquitos zumbindo nos ouvidos, saiu da ilhota. Seguiu as silhuetas cada vez mais escuras das ilhas ao longo do trajeto que marcara com a ajuda da carta náutica. Navegava sem pressa, se certificando de que não se enganava no rumo. Quando já estava próximo do seu destino reduziu a velocidade ainda mais, até parar por completo. Começara a soprar uma tímida brisa noturna. Desligou o motor, tirou os remos e começou a remar. De vez em quando descansava sobre eles e tentava penetrar a escuridão com o olhar, mas não via luz alguma e isso preocupou-o. Deveria haver luz, pensou. Não deveria estar tão escuro.
Remou até à praia e saiu devagar da lancha. Quando puxou a proa, as pedras rasparam o casco. Amarrou o cabo a uns amieiros que cresciam à beira-mar. Tirara as lanternas da mochila assim que entrara no barco e levava uma no bolso e a outra na mão. Mas também guardara outro objeto na mochila que agora procurou entre a roupa que levava: a sua arma de serviço. Hesitara até ao último momento, mas no fim se decidira e guardara-a no fundo da mochila, junto com o carregador cheio. Na realidade, não soube explicar a si mesmo por que razão trouxera arma, pois nada indicava que fosse se expor a alguma ameaça física.
No entanto, Louise está morta, argumentou para si mesmo. E Herman Eber me convenceu de que fora assassinada. Enquanto não souber um pouco mais, preciso partir do pressuposto de que Hakan pode ser o culpado, por mais que careça de provas e de um motivo.
Empurrou o carregador para dentro da câmara e comprovou que o gatilho estava preso. Depois acendeu a lanterna e se assegurou de que o filtro azul que colocara sobre o foco ainda estava lá. Desta maneira a luz seria mais fraca e ninguém que não estivesse alerta a detectaria. Concentrou-se na escuridão da noite, mas a agitação do mar tornava difícil distinguir outros sons. Deixou a mochila no barco, iluminou o cabo e verificou que o barco estava bem amarrado antes de começar a caminhar cautelosamente terra adentro. Próximo da água, os arbustos eram densos e, ao fim de alguns metros, se viu embrulhado numa teia de aranha; começou a agitar os braços descontroladamente quando se deu conta de que a enorme aranha ficara presa ao seu anoraque. Era capaz de suportar as serpentes, mas não podia com aranhas. Em vez de atravessar os arbustos, seguiu pela praia para procurar um lugar com menos vegetação. Depois de caminhar uns cinquenta metros chegou a um lugar onde se via os restos de uma velha rampa de barcos. Posto que era a primeira vez que colocava o pé na ilha e só a vira do mar, a bordo de um barco, estava sendo difícil se orientar.
Naquela ocasião tinham passado junto à ilha pelo lado oposto, para oeste, mas agora ele atracara na orla leste, com a esperança de que fosse a parte posterior da ilha. Ouviu o toque do celular vindo de algum dos seus bolsos e, ao tentar encontrá-lo para desligá-lo, deixou cair a lanterna. O celular continuou a tocar. Praguejou em silêncio enquanto apalpava e rebuscava nos bolsos; contou pelo menos seis sinais até que encontrou o aparelho e o desligou. Viu na tela que era Linda, mas guardou o celular no bolso do peito e puxou o fecho-éclair; os toques pareciam sinais de alarme naquele silêncio. Escutou atentamente, mas não detectou nem movimentos nem sons no escuro. Apenas o rumor do mar.
Prosseguiu com muito cuidado e, quando avistou a silhueta da casa, se postou atrás de um carvalho, mas não viu luz. Pronto, me enganei disse para si mesmo. Não tem ninguém aqui. Cheguei simplesmente a uma conclusão errada. Contudo, ao fim de algum tempo acabou por vislumbrar o reflexo tênue de uma luz que se filtrava por entre o parapeito e a cortina que estava corrida. Quando se aproximou também distinguiu um vago brilho noutras janelas. Contornou a casa pé ante pé. Todas as janelas estavam tapadas, como se estivessem em guerra e qualquer luz pudesse guiar o inimigo. O inimigo sou eu, pensou Wallander.
Encostou o ouvido na parede de madeira e escutou atentamente. Detectou vozes sussurrantes, de vez em quando misturadas com música, talvez procedente de uma televisão ou de um rádio, não tinha certeza. Retirou-se para as sombras outra vez e tentou decidir o que fazer. Não planejara o que faria depois de ter chegado ao ponto onde se encontrava naquele momento. Avançaria? Como? Ou seria melhor esperar até ao amanhecer e bater na porta para ver quem a abriria? Estava hesitante e a falta de resolução irritava-o muito. De que teria medo, no fundo?
Não teve tempo de responder a essa pergunta, pelo menos naquele momento. Sentiu uma mão sobre o ombro, se sobressaltou e se virou. Ao ver Hakan von Enke na penumbra ficou perplexo, apesar de ter viajado até àquele lugar precisamente para encontrá-lo. Vestia um casaco de roupa de treino e calças jeans, tinha a barba por fazer e o cabelo muito crescido. Ficaram se olhando em silêncio, Wallander com a lanterna na mão, Hakan von Enke descalço sobre a terra úmida.
— Suponho que tenha ouvido o celular, adivinhou Wallander. Hakan von Enke negou com um gesto. Não só parecia assustado como também triste.
— Tenho um alarme instalado em volta da casa. Estou há dez minutos tentando imaginar quem poderia estar na ilha.
— Pois sou eu, só eu, respondeu Wallander.
— Sim, é só você.
Entraram na casa. Já lá dentro e à luz, Wallander viu que Von Enke também levava uma arma, uma pistola, colocada na cintura das calças. No dia da festa em Djursholm levava-a por baixo do casaco. De quem tem medo? Perguntou-se Wallander. De quem se esconde? Já não se ouvia o murmúrio das ondas. Wallander observou homem que estava desaparecido há tanto tempo.
Guardaram silêncio durante um bom tempo. No fim começaram a falar, devagar, como se se aproximassem um do outro com a máxima cautela.
* * *
Quarta Parte
A Miragem
Trinta e Um
FOI UMA LONGA noite. Durante a prolongada conversa com o fugitivo que acabava de apanhar, Wallander pensou várias vezes que aquilo parecia uma continuação do diálogo que tinham iniciado há quase seis meses, numa sala sem janelas de um salão de banquetes perto de Estocolmo. O que agora começava a compreender encheu-o de espanto, mas explicava perfeitamente a inquietação que Hakan von Enke demonstrara na época.
Wallander não se sentia de todo como um Stanley que tivesse reencontrado o seu Livingstone. Simplesmente acertara nas suas suspeitas; a sua intuição voltara a lhe indicar o caminho certo. E se Von Enke estranhava o fato de terem descoberto o seu esconderijo, não o deixou transparecer. Wallander pensou que o velho comandante de submarinos fazia questão de mostrar o seu sangue-frio, não se deixando surpreender acontecesse o que acontecesse.
A cabana, cujo aspecto por fora era extremamente simples, exibiu um aspecto bem diferente quando Wallander passou o umbral. Não havia paredes, tão-só uma grande sala com cozinha incorporada. O pequeno anexo onde se encontrava o banheiro era o único espaço que podia se fechar. Num canto da sala se encontrava a cama. Muito espartano, pensou Wallander. Parece um camarote ou o compartimento com que o capitão tem de se contentar a bordo do seu submarino. No centro da sala havia uma grande mesa cheia de livros, pastas e papéis. Numa das paredes se via uma prateleira com um rádio e sobre uma pequena mesa estavam uma televisão e um toca-discos, junto de um velho cadeirão de pele vermelho-escura.
— Pensei que não havia eletricidade na ilha, observou Wallander.
— Tenho um gerador instalado numa cavidade da rocha. Nem quando o mar está totalmente calmo se ouve o barulho do motor.
Hakan von Enke fazia café junto ao fogão. Aproveitando o silêncio reinante, Wallander tentou se preparar para a conversa que teriam pela frente. No entanto, agora que encontrara o paradeiro daquele homem que tanto procurara, notou de que não sabia exatamente o que perguntar. Tudo aquilo em que pensara antes lhe parecia agora uma confusão de conclusões inacabadas.
— Se não me engano, gosta do café sem leite e sem açúcar, disse Von Enke de repente, interrompendo assim as suas vacilações.
— É isso mesmo.
— Infelizmente, não tenho nem pão nem biscoitos para oferecer. Tem fome?
— Não.
Hakan von Enke desimpediu uma boa parte da mesa grande. Wallander viu que a maioria dos livros eram sobre táticas bélicas modernas e política contemporânea. Um deles, o que parecia mais lido e consultado, se chamava A Ameaça dos Submarinos, nem mais nem menos.
O café que Von Enke lhe serviu era muito forte. Ele tomava chá e Wallander se arrependeu de não ter pedido o mesmo.
Faltavam dez minutos para a uma da manhã.
— Obviamente percebo que tenha muitas perguntas a fazer, afirmou Von Enke. — Mas não garanto que saiba ou queira responder a todas. Contudo, antes que cheguemos a esse ponto, gostaria também de lhe fazer algumas perguntas. A primeira de todas: veio sozinho?
— Vim.
— Quem mais sabe que está aqui?
— Ninguém.
Wallander viu que Von Enke não sabia se devia acreditar ou não.
— Ninguém sabe, insistiu Wallander. — Esta viagem é só minha; não envolvi ninguém nos preparativos da expedição.
— Nem sequer Linda?
— Nem sequer ela.
— Como chegou até aqui?
— Numa lancha. Se quiser, lhe dou o nome do dono, mas ele não tem nenhuma ideia para onde me dirigia. Disse-lhe que ia fazer uma surpresa a um amigo que fazia anos.
— Onde está a lancha?
Wallander apontou por cima do ombro.
— Do outro lado da ilha. Arrastei-a para terra e amarrei-a a umas árvores. Hakan von Enke ficou em silêncio enquanto observava a sua xícara de chá. Wallander aguardou.
— Claro que não me surpreende que alguém tenha finalmente me encontrado, admitiu Von Enke. — Mas confesso que nunca acreditei que fosse você.
— E quem esperava encontrar ali no escuro?
Hakan von Enke meneou a cabeça, não queria responder a essa pergunta. Wallander decidiu deixá-la para mais tarde.
— Como achou o meu paradeiro?
Von Enke fez a pergunta num tom cansado e Wallander compreendeu que devia ser esgotante andar fugido, mesmo se uma pessoa não se movesse constantemente de um lugar para outro.
— Quando fui a Bokõ falar com Eskil Lundberg, ele deixou escapar um comentário sobre a cabana, disse que era perfeita para quem desejasse desaparecer da face da Terra. Passamos na frente dela na travessia de volta para a península. Como é natural, você já sabe que fui falar com ele. Fiquei pensando nas palavras de Lundberg e depois, quando me disseram que tinha uma fraqueza especial pelas ilhas, percebi que devia estar aqui.
— Quem lhe falou da minha predileção pelas ilhas?
Wallander decidiu que mais valia manter Sten Nordlander de fora, pelo menos por enquanto. Podia dar outra resposta, cuja veracidade Von Enke não poderia comprovar.
— Louise.
Hakan assentiu em silêncio. Depois endireitou as costas como se se preparasse para alguma coisa.
— Temos duas maneiras de resolver este assunto, salientou Wallander. — Ou você me conta mesmo ou vai respondendo às minhas perguntas.
— Está me acusando de alguma coisa?
— Não, mas a sua mulher está morta. E você é suspeito, é uma coisa automática.
— Compreendo perfeitamente.
Suicídio ou assassinato, pensou Wallander fugazmente. Tenho a impressão de que o homem a minha frente sabe. Wallander compreendeu que devia avançar com cuidado; apesar de tudo, sabia muito pouco sobre ele.
— Conte-me, alentou Wallander. — Vou interrompê-lo se ficar confuso, se houver algo que não entenda. Pode começar por Djursholm, no dia do seu aniversário.
Hakan von Enke meneou a cabeça com veemência. Subitamente, o cansaço parecia ter desaparecido. Foi para o fogão, se serviu de outro chá e ficou assim, com a xícara na mão.
— Isso seria começar pelo lado errado, preciso recuar muito mais no tempo. Só existe um ponto de partida, afirmou. — Simples, mas totalmente certo. Eu amava Louise acima de tudo neste mundo. Deus me perdoe o que vou dizer, mas amava-a mais que ao meu filho. Louise era a alegria da minha vida, vê-la se aproximar de mim, ver o seu sorriso, ouvir os seus passos quando andava pela casa.
Calou-se e olhou para Wallander com uma expressão penetrante e provocadora; exigia uma resposta ou pelo menos uma reação por parte de Wallander.
— Sim, concordou o inspetor. — Acredito, estou convencido de que diz a verdade.
Então, Hakan von Enke começou o seu relato.
— Ora bem, temos de retornar a uma época muito distante. Não há razão alguma para que lhe conte o acontecido até ao mais ínfimo dos pormenores, pois levaria muito tempo e não é necessário. Mas há que recuar até aos anos sessenta e setenta. Então eu ainda estava no ativo, a bordo de um navio da Marinha entre outras coisas, e periodicamente como comandante de um dos mais modernos draga-minas suecos. Nessa época, Louise era professora e nos tempos livres se dedicava aos seus jovens atletas de natação, saltos para a água. De vez em quando viajava até à Europa do Leste, sobretudo à RDA, que, naquela época, tinha muito sucesso produzindo novos talentos. Hoje sabemos que se devia à mistura de um programa de treino feroz, quase escravo, com o uso indiscriminado de substâncias químicas. No fim dos anos setenta me transferiram para o serviço administrativo da Marinha e me destinaram ao topo da unidade operativa militar da Marinha sueca. O novo posto implicava muito trabalho, também fora do escritório. Várias vezes por semana chegava em casa com documentos secretos. Tinha um cofre-forte onde guardar as armas, pois também caçava, principalmente veados, mas de vez em quando também participei na caça a alces. Como lhe disse, tinha as minhas armas e munições fechadas à chave, e ali deixava a minha pasta com os documentos de noite ou quando levava Louise ao teatro ou a algum jantar.
Neste ponto deixou de falar, tirou a saqueta de chá da xícara e colocou-a no pires antes de continuar:
— Quando é que uma pessoa se dá conta de que alguma coisa não está bem? Quando nota os sinais quase invisíveis de algo estar desordenado ou ter mudado de lugar?
Suponho que você como policial tenha se visto muitas vezes em situações em que notou esse tipo de sinais vagos. Uma manhã, quando abri o cofre, notei uma coisa estranha e ainda posso evocar a sensação; ia tirar a minha pasta de pele quando me detive. Teria a deixado assim realmente? Algo no fecho e na posição da pega me fez hesitar, mas não mais de cinco segundos. Pus logo a ideia de parte. Costumava verificar que todos os documentos estavam no seu lugar, e aquela manhã não foi exceção, e não pensei mais no assunto. Considero-me bom observador e pessoa de boa memória, pelo menos então era assim; ao envelhecer, todas as capacidades se deterioram gradualmente e só podemos assistir impotentes a essa degradação. Você é mais jovem que eu, mas talvez já tenha alguma experiência disso?
— Sim, a vista, admitiu Wallander. — Todos os anos mais ou menos preciso mudar de óculos para ler. E também receio que o ouvido já não seja o que era.
— Pois é. O sentido que melhor se defende da idade é o olfato, é o único dos meus sentidos que ainda parece intato. Hoje, para mim, o cheiro das flores é tão perceptível como o era antigamente.
Ficaram em silêncio por um instante. Wallander ouviu um pequeno barulho na parede atrás dele.
— Ratinhos, explicou Hakan von Enke. — Quando cheguei aqui ainda fazia frio. Às vezes, era um raspar de patas infernal dentro das paredes. Mas enfim, um dia deixarei de ouvir os movimentos dos ratos debaixo do assoalho.
— Não quero interromper o seu relato, disse Wallander, — Mas, na manhã que desapareceu, veio diretamente para cá?
— Foram me buscar.
— Quem?
Von Enke meneou a cabeça, não queria responder à pergunta, e Wallander não insistiu.
— Voltando ao cofre-forte, disse Von Enke. — Uns meses depois me pareceu notar pela segunda vez que alguém tinha tocado na pasta que não estava como a deixara. Naturalmente, uma vez mais disse para mim mesmo que era imaginação minha, porque os documentos dentro dela não pareciam misturados nem alterados de forma alguma. No entanto, comecei a me preocupar. Guardava as chaves do cofre por baixo de uma balança de cartas que havia na minha mesa; a única pessoa que sabia onde as escondia era Louise, de modo que fiz o que devemos fazer quando algo nos preocupa.
— O quê?
— Perguntei-lhe diretamente. Ela estava tomando o café da manhã na cozinha.
— E o que lhe disse?
— Que não. E me fez a pergunta lógica de porquê haveria de ter se interessado pelo meu cofre-forte. Eu acho que ela não gostava que eu tivesse armas em casa, embora nunca fizesse nenhum comentário sobre isso. Lembro-me que senti vergonha quando saí de casa para o carro que me esperava para me levar ao Estado-Maior. O posto que ocupava então dava direito a um motorista militar.
— O que aconteceu depois?
Wallander notou que as suas perguntas incomodavam Von Enke, que desejava estabelecer pessoalmente o ritmo. Wallander levantou as mãos em sinal de desculpas, como para lhe indicar que não voltaria a incomodá-lo.
— Estou convencido de que Louise dizia a verdade. No entanto, continuei a ter a sensação de que alguém mudava a posição da pasta e dos documentos. Muito contrariado, comecei a colocar pequenas armadilhas imperceptíveis; desordenava conscientemente alguns papeis, deixava um cabelo no fecho da pasta, uma mancha de gordura na pega e coisas assim. Obviamente, o mais difícil tinha a ver com o motivo: que interesse Louise podia ter nos meus papéis? Não me passava pela cabeça que o fizesse por mera curiosidade ou por ciúmes, pois ela sabia que não havia razão nenhuma para isso. Passou-se um ano antes de me perguntar se o impensável não seria, ao fim e ao cabo, possível.
Von Enke fez uma breve pausa antes de prosseguir.
— Estaria Louise em contato com alguma potência estrangeira? A mim me parecia absolutamente inverosímil, por uma razão muito simples: exceto em raríssimas ocasiões, os documentos que eu levava para casa eram de tal natureza que dificilmente interessariam aos serviços de informações de outro país. No entanto, não me livrava da minha inquietação. Notei que começava a desconfiar da minha mulher, a suspeitar dela sem mais provas que intuições vagas e algum cabelo desaparecido. Finalmente, e isso foi já nos finais dos anos setenta, decidi averiguar de uma vez por todas se as minhas suspeitas sobre Louise eram justificadas ou não.
Von Enke se levantou e rebuscou num canto da sala, que estava cheio de mapas enrolados. Voltou e estendeu sobre a mesa uma carta náutica da parte central do Mar Báltico, segurando-a com umas pedras nos cantos.
— Outono de 1979, declarou. — Nos meses de agosto e setembro, para ser exato. íamos realizar as manobras habituais da temporada, que envolviam a maior parte dos navios da frota. Aquelas práticas não tinham nada de especial. Aconteceu durante o meu serviço no Estado-Maior e devia assistir como observador. Aproximadamente um mês antes de começarem as manobras, e uma vez elaborados todos os planos e calendários, estabelecidas as rotas de navegação e destacados todos os navios nos lugares correspondentes de atuação, elaborei o meu próprio plano. Redigi um documento que eu mesmo selei como confidencial. Até o dei para assinar ao comandante-chefe, sem que ele soubesse, claro. Incluí um elemento absolutamente secreto das práticas, o momento em que um dos nossos submarinos devia treinar uma complexa operação de aprovisionamento de combustível a partir de um navio dirigido por radar. Tudo era pura invenção, mas não impossível de todo de imaginar como real. Naquele documento descrevi com toda a exatidão a posição e a hora do exercício prático, sabia que o contratorpedeiro Smãland, onde se encontravam os observadores, estaria muito próximo na hora fixada. Levei aquele documento para casa, guardei-o no cofre-forte e, quando fui para o escritório, de manhã deixei-o bem escondido na minha mesa. Durante vários dias repeti o procedimento. Na semana seguinte guardei o documento numa caixa de segurança do banco, alugada exclusivamente para aquele fim. Hesitei em destruí-lo, mas compreendi que poderia precisar dele como prova. Durante o mês anterior às manobras começou o pior período da minha vida. Na frente de Louise devia me comportar como se nada tivesse acontecido, quando tinha lhe preparado uma armadilha que nos destruiria aos dois se se confirmassem os meus temores.
Apontou para a carta com o indicador. Wallander se inclinou e viu que indicava um ponto a nordeste da ilha Gotska Sandón.
— Ali teria lugar o encontro imaginário entre o submarino e o inexistente navio-cisterna. Num lugar situado fora da área exata das manobras. O fato de navios russos seguirem os nossos movimentos a certa distância não era nada de extraordinário. Também nós supervisionávamos as práticas do Pacto de Varsóvia, nos mantendo a uma distância discreta e prudente, sem provocação. Escolhi justamente aquele lugar para o encontro fictício porque o chefe do Estado-Maior devia desembarcar em Berga naquela manhã, e por isso o torpedeiro estaria no lugar adequado, rumo à área de exercícios, quando se concretizasse a minha suposta operação.
— Não queria interrompê-lo, observou Wallander. — Mas era realmente possível observar um horário tão exato com tantos navios implicados?
— Era uma parte do objetivo da manobra. Para a guerra não basta só dinheiro, também é preciso uma boa dose de pontualidade.
Ouviu-se algo a bater no telhado e Wallander se sobressaltou, mas Hakan von Enke não reagiu de todo.
— Um ramo de árvore, explicou brevemente. — Às vezes caem e batem no telhado. Ofereci-me para cortar pessoalmente esse carvalho seco e morto, mas não há nenhuma motosserra na ilha. O tronco é muito grosso, calculo que esse carvalho tenha criado raízes aqui nos meados do século XIX.
Von Enke continuou a sua descrição dos acontecimentos nos finais de agosto de 1979.
— As manobras de outono foram temperadas com um ingrediente adicional que ninguém tinha planejado. O mar Báltico ao sul de Estocolmo se viu fustigado por uma forte tempestade, com ventanias de sudoeste, de cuja envergadura os meteorologistas não conseguiram nos alertar a tempo. Um dos nossos submarinos, pilotado por Hans-Olov Fredháll, um dos nossos comandantes mais jovens e competentes, sofreu uma avaria no leme e teve de ser rebocado para o golfo de Brâviken e ficar abrigado até que pudéssemos levá-lo de volta para a ilha de Muskõ. Os homens a bordo não deviam estar achando graça nenhuma da tempestade, uma vez que os submarinos podem balançar muito violentamente. Como se isto não bastasse, uma corveta começou a colocar água próximo de Hávringe. A tripulação teve de ser evacuada para outro navio, mas a corveta não chegou a afundar. Apesar de tudo, a maior parte das manobras se levou a cabo tal como se planejara. O vento começou a soprar com menos intensidade quando chegou o dia de iniciar a última fase das práticas. Não me importo de admitir que estive inquieto e praticamente não preguei olho nos dias anteriores ao suposto encontro do submarino com o ultra-avançado navio-cisterna, mas ninguém pareceu pensar que me comportava de forma estranha. Deixamos em terra o chefe do Estado-Maior, que se mostrou satisfeito com o que vira. De repente, e de forma totalmente inesperada, o comandante do Smaland deu ordens para avançar à maior velocidade possível, com o intuito de comprovar que o seu navio estava em perfeitas condições. Por um instante tive medo que passássemos pelo lugar do encontro inventado muito cedo, mas o marulho fez com que a velocidade do torpedeiro não ultrapassasse aquela que eu tinha calculado. Passei a manhã toda na ponte de comando. O capitão tinha cedido a responsabilidade do navio ao seu segundo, Jórgen Mattson. Eram quinze para as dez da manhã. Foi Mattson que de repente me passou os seus binóculos e me indicou o ponto previsto por mim. Chovia e havia muito nevoeiro, mas não tive qualquer dúvida sobre o que o homem tinha descoberto: à nossa frente, a bombordo, havia duas traineiras equipadas com todo o aparato de vigilância e as antenas que já conhecíamos como pertencentes aos navios de patrulha da Marinha russa. Estávamos convencidos de que não haveria um único peixe no seu porão. Por outro lado, a embarcação estaria sem sombra de dúvida cheia de técnicos russos dedicados a interceptar a nossa comunicação por rádio. Talvez deva acrescentar que naquele momento nos encontrávamos em águas internacionais; ou seja, era lhes permitido transitar pela área.
— Quer dizer que eles esperavam ver um submarino e um navio-cisterna de características especiais?
— Sim, mas Mattson não tinha a menor ideia disso, claro. "O que fazem tão próximo da nossa área de manobras?", me perguntou. Ainda me lembro do que lhe respondi: "Talvez sejam traineiras verdadeiras." Mas Mattson não achou graça nenhuma da situação e telefonou para o capitão, que veio à ponte de comando. O torpedeiro fundeou enquanto reportamos a presença das traineiras, e ao fim de uns minutos apareceu um helicóptero que sobrevoou a área durante um tempo, até que as deixamos em paz e continuamos. Nesse momento eu já tinha abandonado a ponte e descera para o camarote, que ocuparia durante as manobras.
— Descobriu algo que preferia não ter sabido, certo?
— Aquilo me deixou doente. Nem na travessia mais acidentada tinha me sentido tão mal, vomitei assim que entrei no camarote. Depois me deitei na cama pensando que nada voltaria a ser como dantes. Não havia outra possibilidade: o documento falsificado por mim tinha ido parar em mãos inimigas graças à intervenção da minha mulher. Claro que havia a possibilidade de ter um cúmplice, e isso era o que eu desejava, que no fundo não fosse ela o elo direto com a inteligência estrangeira, mas sim a ajudante de um espião que teria controle sobre os principais contatos. Mas nem sequer tinha forças para acreditar nisso. Investiguei a sua vida até ao mínimo detalhe. Não se encontrava com ninguém de forma regular. Continuava a não ter ideia de como o fazia, nem sequer sabia como tinha copiado o meu documento falso, se o fotografou ou o copiou à mão. Ou até se o tinha memorizado. Além disso, como teria passado a informação? Outra questão por resolver era, evidentemente, onde obtinha toda a documentação confidencial; o pobre conteúdo do meu cofre-forte não podia ser suficiente. Com quem colaborava? Não sabia, apesar de durante mais de um ano ter dedicado todo o meu tempo livre a averiguar o que estava acontecendo. Em todo o caso, tive de me render às evidências. Estendido ali no camarote, sentindo as vibrações das máquinas, disse para mim mesmo que não havia saída: me obriguei a admitir que estava casado com uma mulher que não conhecia. O que por sua vez implicava, em certo modo, que também não me conhecia a mim. Como podia ter me enganado tanto a seu respeito?
Hakan von Enke se levantou e voltou a enrolar a carta náutica. Quando a deixou na prateleira, abriu a porta e saiu. Wallander ainda não compreendia o que acabava de ouvir, era complexo demais e as suas consequências muito graves. Por outro lado, ainda havia demasiadas perguntas que precisavam de resposta. Von Enke voltou para dentro, fechou a porta e verificou se tinha a braguilha fechada.
— Falou-me de acontecimentos de há quase trinta anos, observou Wallander. — É muito tempo. Como explica os acontecimentos mais recentes?
De repente, Hakan von Enke se mostrou relutante, irritado ao responder:
— O que lhe disse quando começamos esta conversa? Esqueceu? Disse-lhe que amava a minha mulher. Isso era algo que não podia mudar, independentemente do que tivesse feito.
— Mas mesmo assim deve ter lhe pedido explicações?
— Acha?
— Bem, uma coisa é ela ter praticado essa afronta contra o nosso país, mas também enganou a si. Roubou-lhe documentos secretos. Custa-me acreditar que pudesse continuar vivendo com ela sem revelar o que sabia.
— Custa?
Wallander teve muita dificuldade em acreditar que fosse verdade o que Von Enke lhe dava a entender. Contudo, aquele homem que girava a xícara de chá já vazia entre as mãos era muito convincente.
— Está querendo dizer que não lhe disse nada?
— Nada.
— Nunca, em nenhum momento? Isso me parece absurdo.
— Mas é verdade. Deixei de levar documentação confidencial para casa. Não foi uma medida repentina; ao mudar de tarefas era normal que a minha pasta estivesse vazia à noite.
— Mas, mesmo assim, ela deve ter notado alguma coisa! O contrário me parece inverosímil.
— Nunca notei nada nela; continuou a se comportar como sempre e uns anos depois comecei a pensar que tudo tinha sido um pesadelo. Mas, claro, talvez me engane; ela pôde muito bem ter notado de que a tinha descoberto. E assim passamos a vida, compartilhamos um segredo sem ter certeza se o outro o conhecia ou não. Até que um dia tudo mudou. Wallander intuía, sem saber ao certo, a que aludia Von Enke.
— Está se referindo aos submarinos?
— Estou. Já tinham começado a circular rumores de que o Estado-Maior suspeitava da existência de um espião no seio da defesa sueca. Os primeiros sinais de alarme se deram graças às declarações que um agente dissidente russo fez em Londres: no Ministério da Defesa sueco havia um espião que os russos tinham em alta consideração; uma pessoa que não pertencia aos outros, que dominava a arte de chegar à informação secreta ultrassensível. Wallander meneou a cabeça, incrédulo.
— Custo a compreender, admitiu. — Um espião no seio da defesa sueca. A sua mulher era professora e no seu tempo livre treinava jovens promessas em saltos para a água. Como conseguia documentação confidencial do Exército se você levava a pasta vazia para casa?
— Parece-me recordar que o dissidente russo se chamava Ragulin; um dos muitos que houve naquela época, às vezes nos era difícil distingui-los. Não é preciso dizer que ele ignorava o nome ou outras características daquela pessoa que os russos quase adoravam. Mas sabia uma coisa, um detalhe, se quiser, que mudou todo o panorama de uma forma drástica. E me refiro também a mim.
— O quê?
Hakan von Enke pousou a xícara vazia sobre a mesa. Parecia que estava tomando impulso. Por sua parte, Wallander se lembrou do que Herman Eber lhe dissera sobre outro dissidente russo, o espião chamado Kirov.
— Sabia que era uma mulher, declarou por fim. — Ragulin tinha ouvido dizer que o espião sueco era uma mulher.
Wallander não disse uma palavra.
Os ratos corriam, incansáveis, no interior das paredes da cabana.
* * *
Trinta e Dois
NO PARAPEITO de uma janela havia uma garrafa com um barco meio terminado. Wallander reparou nele quando Hakan von Enke se levantou da mesa para sair pela segunda vez. Era como se o atormentasse de forma indescritível ter confessado a outra pessoa que a sua mulher era espiã; Wallander viu que os seus olhos brilhavam quando subitamente se escusou e voltou a sair. Deixou a porta aberta, pois começara a amanhecer e já não corriam o risco de que alguém visse que havia luz na cabana. Quando Von Enke entrou novamente, Wallander ainda contemplava o minucioso trabalho daquilo que viria a ser um barco numa garrafa.
— A Santa Maria, disse Von Enke. — Uma das caravelas do Colombo. Ajuda-me a afugentar os pensamentos indesejados. Aprendi a arte com um velho engenheiro de máquinas que começou a ter problemas com álcool; já não podiam mantê-lo a bordo, transferiram-no para Karlskrona, onde se dedicou a falar mal de tudo e de todos. Mas curiosamente sabia a arte de construir barcos dentro de uma garrafa, apesar de as mãos logicamente lhe tremerem muito. E eu nunca tive tempo de me dedicar a isso até que cheguei aqui à ilha.
— Uma ilha sem nome, observou Wallander.
— Eu chamo-a de Ilha Azul. Precisa se chamar alguma coisa e já há duas ilhas que se chamam Luar Azul e Arriba Azul.
Voltaram a se sentar à mesa. Como que por acordo tácito, os dois sabiam que o sono teria de esperar, pois tinham começado uma conversa que devia continuar. Hakan von Enke aguardava as suas perguntas. Assim, Wallander começou por aquilo que para ele fora o ponto de partida:
— Regressemos ao seu aniversário, instigou. — Queria falar comigo, mas ainda não entendo muito bem porque decidiu me contar tudo aquilo, precisamente. Por outro lado, também não chegamos a nenhuma conclusão, e houve muitas coisas que não compreendi então e que ainda hoje continuo a não compreender.
— Pensei que devia saber, uma vez que o meu filho e a sua filha nossos únicos filhos, vão viver juntos para o resto das suas vidas. Ou pelo menos assim espero.
— Não, objetou Wallander. — Essa não é razão suficiente. Havia outro motivo, estou convencido disso. Também me indignou bastante que não me contasse toda a verdade, preciso lhe dizer.
Von Enke olhou-o sem compreender.
— Você e Louise têm uma filha, disse Wallander. — Signe, que passa os seus dias no lar de Niklasgârden. Ou seja, até sei onde se encontra. E não me disse uma única palavra sobre ela. Nem sequer o seu filho sabia da sua existência.
Hakan von Enke olhou-o fixamente, parecia paralisado na cadeira. Este homem não está nada habituado a que o surpreendam, concluiu Wallander. Mas agora está perplexo.
— Estive lá, continuou Wallander. — E vi. Além disso, sei que visitou-a com regularidade, inclusive que esteve lá no dia antes de desaparecer. Claro que podemos optar por não dizer a verdade, transformar isto numa conversa surda sem esclarecer nada e só aumentar a confusão; a escolha é nossa. Ou melhor, é sua. Eu já fiz a minha escolha.
Wallander observou Von Enke e se perguntou porque continuava a hesitar.
— Sim, claro que tem razão, admitiu Von Enke por fim. — Só que estou tão acostumado a negar a existência da Signe...
— Porquê?
— Pela Louise. Ela sentia uma culpa estranha por causa de Signe. Apesar da sua deficiência não ser consequência de uma lesão de parto ou de algo que tivesse ingerido ou feito durante a gravidez. Nunca falávamos dela. Simplesmente, Signe não existia para Louise. Mas para mim sim e sofri muito por não poder dizer nada a Hans.
Wallander ficou em silêncio. De repente, Hakan von Enke compreendeu a razão.
— Contou-lhe? Era necessário?
— Teria sido uma vergonha não tê-lo informado de que tinha uma irmã.
— E como acolheu a notícia?
— Com indignação, como é natural. Sentiu-se enganado.
Hakan von Enke meneou a cabeça devagar.
— Pois é algo de que terá de falar com ele. Ou não. O que me leva a uma pergunta totalmente diferente. O que fazia em Copenhague há uns dias?
A surpresa de Hakan von Enke foi sincera. Wallander sentiu que agora a vantagem era sua e a questão era como utilizá-la para obrigar o homem que tinha à frente dizendo a verdade. Ainda restavam muitas perguntas por responder.
— Como sabe que estive em Copenhague?
— No momento, não penso responder a essa pergunta.
— Porquê?
— Porque a resposta não tem importância neste momento. Além disso, agora sou eu quem faz as perguntas.
— Devo interpretar isto como um interrogatório oficial então?
— Não, mas não se esqueça de que, com o seu desaparecimento, sujeitou o seu filho, e a minha filha também, a uma situação de extrema tensão. Na realidade, fico furioso quando penso em como tem se comportado, e a única maneira que tem de me acalmar é responder às minhas perguntas com a verdade.
— Assim tentarei. Wallander voltou à carga.
— Teve contato com Hans?
— Não.
— Foi para Copenhague com esse intuito?
— Não.
— O que foi fazer lá, então?
— Fui levantar dinheiro.
— Mas acabou de dizer que não entrou em contato com Hans. Pelo que sei, é ele que gere as economias que você e Louise tinham.
— Tínhamos uma conta no Danske Bank da qual só nós sabíamos. Depois da minha reforma, prestei certos serviços de consultoria a um fabricante de sistemas de armamento para os navios da frota. Era pago em dólares. E não nego que foi uma espécie de fraude fiscal.
— De que montantes estamos falando?
— Não vejo que interesse isso possa ter, a menos que pense me denunciar às Finanças.
— É suspeito de delitos mais graves, mas me responda.
— Em torno de meio milhão de coroas.
— Porque escolheu um banco dinamarquês para abrir essa conta?
— A coroa dinamarquesa parecia estável.
— E não havia outra razão para ter ido a Copenhague?
— Não.
— Como chegou lá?
— De trem de Norrkõping e para lá fui de táxi. Já conhece Eski, ele me levou de carro a Fyrudden e também foi me buscar quando voltei.
No momento, Wallander não encontrava nenhuma razão para desconfiar daquilo que acabava de ouvir.
— Quer dizer que Louise sabia da existência desse dinheiro não declarado?
— Ela tinha tanto acesso ao dinheiro como eu. E nenhum de nós tinha qualquer má consciência, pois tanto eu como ela achávamos que a pressão fiscal na Suécia era inaceitável.
— Por que razão precisava de levantar dinheiro?
— Porque acabou o que eu tinha. Por mais frugal que seja o nosso modo de vida, precisamos sempre de dinheiro.
Wallander deixou o assunto da viagem a Copenhague para outro momento e voltou à noite de Djursholm.
— Há uma coisa que quero saber e que só você pode me explicar: quando estávamos no terraço, viu um homem atrás de mim. Admito que isso me deu muito que pensar; quem era?
— Não sei.
— No entanto, ficou perturbado ao vê-lo, não ficou?
— Assustei-me.
Aquela resposta ressoou como um rugido e Wallander ficou atento. Ao fim e ao cabo, aquela fuga, o fato de estar escondido tanto tempo, talvez tivesse sido uma pressão muito grande para Von Enke. Decidiu avançar com mais cautela.
— Quem acha que era?
— Já lhe respondi que não sei. E também não importa. A sua presença foi uma advertência, pelo menos acho que era esse o objetivo.
— Advertência para o quê? Peço-lhe que não faça com que tenha de lhe arrancar todas as respostas.
— De uma forma ou de outra, os contatos de Louise devem ter notado que eu suspeitava dela. Talvez até ela mesma tivesse dito que eu tinha descoberto o que estava acontecendo. Já acontecera me sentir vigiado, mas nunca de forma tão manifesta como naquela noite em Djursholm.
— Ou seja, acha que andava sendo seguido?
— Não constantemente, mas às vezes notava que alguém me espiava.
— Desde quando?
— Não sei. Pode ter sido durante muito tempo sem que eu soubesse. Anos, talvez.
— Então deixemos o terraço e vamos para a sala sem janelas, propôs Wallander. — Queria que nos retirássemos para um lugar afastado para que pudéssemos falar à vontade. Mas ainda não sei porque me escolheu como seu confessor.
— Bem, não era por qualquer plano, foi mais uma ideia que me surgiu de repente. Às vezes, até eu mesmo me espanto com as súbitas decisões que posso tomar num determinado momento. Suponho que também aconteça o mesmo a si, não é verdade? Tudo aquilo era muito desagradável para mim; fazia setenta e cinco anos e estava numa festa que, na realidade, não queria. Entrei numa espécie de pânico, suponho.
— Depois pensei que em certa medida havia uma mensagem oculta naquilo que me contou aquela noite. Ou estou enganado?
— Sim, não era nada disso. Queria simplesmente contar a alguém, talvez para testar se mais adiante me atreveria a lhe confiar o meu segredo. Isto é, que tudo levava a crer que estava casado com uma traidora da pátria.
— E não tinha mais ninguém com quem falar a não ser eu? O seu melhor amigo, Sten Nordlander, por exemplo?
— Só a ideia de lhe revelar a minha desgraça me envergonhava.
— E, então, Steve Atkins? Até lhe falou da sua filha.
— Sim, mas não estava sóbrio, foi num dia que bebemos muito uísque. Arrependi-me logo de ter lhe contado. Pensei que ele tinha esquecido, mas então está me dizendo não foi assim.
— Julgou que eu sabia.
— O que dizem os meus amigos do meu desaparecimento?
— Estão preocupados, chocados. No dia que souberem que tem estado escondido, vão sem dúvida ficar furiosos. Desconfio que perdeu as suas amizades, o que aliás me leva à pergunta seguinte: por que motivo desapareceu?
— Sentia-me ameaçado. O homem que me espiava do outro lado da cerca foi uma espécie de prólogo. Subitamente comecei a notar sombras por todo o lado, fosse por onde fosse. Nunca me sentira assim antes. Recebia telefonemas estranhíssimos; era como se soubessem sempre onde me encontrava. Um dia, quando fui visitar o Museu Marítimo, um dos porteiros se aproximou e disse que tinha uma ligação; era de um homem com sotaque que me fez uma advertência. Não me disse de quê só disse para ter cuidado. Começava a ser insuportável; nunca senti um terror semelhante. Estive prestes a ir à polícia e denunciar Louise; pensei até enviar uma carta anônima. No final, não pude mais. Consegui maneira de ficar com a cabana. Eskil veio para Estocolmo e foi me buscar junto ao estádio de futebol durante a minha caminhada matinal. Desde então que passo todo o tempo aqui, salvo a viagem a Copenhague.
— Continuo a achar impossível nunca ter confrontado Louise com as suas suspeitas, que deviam ter se transformado em certezas. Como podia viver com uma espiã?
— Não é verdade o que está dizendo. Confrontei-a, em duas ocasiões. A primeira vez no ano em que morreu Olof Palme. Claro que não tinha nada a ver com isso, mas foram tempos turbulentos. Às vezes, nos intervalos do café, eu e os meus colegas falávamos das nossas suspeitas de que havia um espião no Estado-Maior. Era uma situação terrível, estar comendo um bolo enquanto deliberava sobre um possível infiltrado que talvez fosse a minha própria mulher.
Wallander sofreu um ataque de espirros. Hakan von Enke aguardou enquanto passavam.
— No verão de 1986 encostei Louise na parede, continuou Von Enke. — Tínhamos ido para a Riviera com uns amigos, o capitão de fragata Frlis e a mulher, com quem costumávamos jogar bridge. Estávamos alojados num hotel em Menton. Uma noite jantamos sozinhos porque as filhas dos Frlis vieram visitá-los uns dias. Depois do jantar fomos dar uma caminhada pela cidade e de repente me detive e lhe perguntei diretamente. Na realidade não o tinha preparado, aquilo me saiu pela boca à fora, por assim dizer. Pus-me à sua frente e lhe fiz a pergunta, se era uma espiã. Ela indignou-se no princípio, se recusou a responder e até levantou a mão como se para me bater. Depois se conteve e respondeu com calma que evidentemente não era. Como podia ter me ocorrido uma coisa tão absurda? Que poderia ter a contar a um poder estrangeiro? Lembro-me que sorriu, não me levou a sério; me fez sentir ridículo. Simplesmente não podia acreditar que tivesse tanta capacidade de fingir. Pedi desculpas e disse que estava cansado. Passei o resto daquele verão convencido de que estava enganado, mas no outono as minhas suspeitas voltaram.
— O que aconteceu?
— A mesma coisa, uma vez mais. Os documentos no cofre-forte, a sensação de que alguém tivesse mexido na minha pasta.
— Notou alguma mudança nela depois de lhe ter confessado as suas suspeitas em Menton? Von Enke refletiu antes de responder.
— Obviamente que fiz essa pergunta muitas vezes a mim mesmo. Às vezes, ela me parecia algo diferente, outras não. E continuo a não ter certeza.
— E o que aconteceu da segunda vez que a enfrentou?
— Foi no inverno de 1996, precisamente dez anos depois; estávamos tomando o café da manhã em casa e nevava. De repente, ela me perguntou sobre alguma coisa que eu tinha dito durante o sono naquela noite. Assegurou que a acusei de ser uma espiã.
— E era verdade?
— Não sei. Sei que realmente acontecia eu falar durante o sono, embora nunca me lembrasse disso.
— E o que respondeu?
— Dei a volta à questão, isto é, lhe perguntei se o meu sonho era verdade.
— E o que ela respondeu?
— Jogou-me o guardanapo e saiu da cozinha. Levou dez minutos até voltar, me lembro de ter consultado o relógio: nove minutos e quarenta e cinco segundos. Pediu desculpas e me explicou, "de uma vez por todas", disse, que não queria voltar a ouvir falar daquelas minhas suspeitas, que eram absurdas. Se voltasse a acusá-la teria de supor que estava mentalmente transtornado ou que estava ficando senil.
— O que aconteceu depois?
— Nada, mas os meus receios não passaram. E os rumores sobre o espião que comprometia toda a defesa sueca continuavam a circular. Dois anos depois, a situação chegou a um extremo em que acreditei verdadeiramente que estava perdendo o juízo.
— O que aconteceu?
— Um dia, os serviços de informação militar me chamaram para um interrogatório. Não tinham nenhuma acusação concreta contra mim, mas durante um tempo me incluíram no grupo de militares suspeitos de espionagem. Era uma situação grotesca. Recordo-me de ter pensado que, se fosse verdade que Louise se dedicava a vender segredos militares aos russos, tinha conseguido o cobertor perfeito.
— Você?
— Exato, eu.
— E o que aconteceu depois?
— Nada. Os rumores sobre o imbatível espião iam e vinham, umas vezes com mais insistência, outras com menos. Chamaram muita gente para interrogatórios, inclusive gente aposentada. E eu continuei sempre com a sensação de estar sob vigilância.
Von Enke se levantou, apagou as luzes que ainda estavam acesas e abriu algumas cortinas. Entre as árvores se entrevia uma aurora cinzenta sobre um mar igualmente cinzento. Wallander se aproximou de uma janela. O vento começara a soprar e a lancha preocupava-o. Hakan acompanhou-o para verificar as amarras. Uns patos se balançavam sobre as cristas das ondas enquanto o sol dissipava pouco a pouco a neblina noturna. O barco estava onde o deixara. Reuniram forças e arrastaram a proa mais para terra, entre as rochas.
— Quem matou Louise? Perguntou Wallander uma vez preso o barco.
Hakan von Enke se virou e olhou-o nos olhos. Wallander imaginou que devia ter sido com esse olhar que confrontara Louise em Menton.
— Quem a matou? E pergunta isso a mim? Só sei que não fui eu. Mas o que diz a polícia? E o que você acha?
— O policial de Estocolmo encarregado do caso me parece perspicaz, mas não sabe de nada. Ou não sabe de nada ainda, devo acrescentar.
Regressaram à cabana em silêncio, voltaram a ocupar as suas posições à volta da mesa e continuaram a conversa.
— Temos de começar do princípio, sublinhou Wallander. — Por que ela desapareceu depois de si? A hipótese mais lógica para um observador exterior era, evidentemente, que tinham combinado.
— Mas não foi assim. Eu soube pelos jornais que ela tinha desaparecido; para mim foi um choque.
— E ela não conhecia o seu paradeiro, é isso?
— Exato.
— Quanto tempo pensava em se manter escondido?
— Precisava de um lugar calmo, de pensar. Além disso, tinham ameaçado me matar e tive de procurar uma saída.
— Vi Louise em várias ocasiões e estava sincera e profundamente preocupada com o que podia lhe ter acontecido.
— Enganou-o a si, da mesma maneira que a mim.
— Talvez não, talvez o amasse tanto como você a ela, não acha? Von Enke não respondeu, se limitando a menear a cabeça. — E você conseguiu? Perguntou Wallander.
— Não.
— Deve ter pensado muito todo este tempo, passando as noites em claro nesta cabana. Acredito quando diz que amava Louise e, mesmo assim, não abandonou o seu esconderijo quando ela morreu. O lógico seria que a sua vida tivesse deixado de correr perigo com a morte dela. No entanto, continuou escondido. Não consigo entender.
— Perdi quase dez quilos desde que ela morreu. Custa-me comer e quase não durmo. Tento compreender o que aconteceu, mas não consigo. Para mim é como se Louise tivesse se transformado num ser estranho. Não sei com quem se encontrou ou o que levou à sua morte. Não tenho respostas.
— Alguma vez lhe deu a impressão de estar assustada?
— Nunca.
— Vou lhe contar uma coisa que não veio nos jornais, algo que a polícia até agora não quis revelar.
Wallander pô-lo a par das suspeitas de que Louise tivesse sido assassinada com um veneno utilizado antigamente na Alemanha do Leste.
— Tudo leva a crer que você tem razão, concluiu Wallander. — Nalgum momento da vida a sua mulher se tornou agente dos serviços de informação russos. Ela era aquilo que você suspeitava: a espiã a que se referiam os rumores.
Von Enke se levantou bruscamente e saiu da cabana. Wallander aguardou, mas passado algum tempo começou a se preocupar e saiu também. Encontrou-o deitado entre as rochas, no lado da ilha que dava para o mar aberto. Wallander se sentou numa pedra ao seu lado.
— Precisa voltar, disse. — As coisas nunca se esclarecerão se continuar se escondendo aqui.
— E se me espera o mesmo veneno? De que servirá a minha morte também?
— De nada, mas a polícia dispõe de recursos para protegê-lo.
— Preciso me acostumar à ideia de que, apesar de tudo, eu tinha razão. Devo tentar compreender porque fez o que fez. Só então estarei em condições de retornar.
— Será melhor que não demore muito tempo, observou Wallander ao se levantar.
Voltou para a cabana e se pôs a preparar café. Sentia a cabeça pesada depois daquela longa noite. Quando Von Enke voltou, já bebera duas xícaras.
— Falemos de Signe, sugeriu Wallander. — Fui vê-la e no seu quarto encontrei a pasta que tinha escondido entre os seus livros.
— Amo a minha filha, mas visitava-a às escondidas. Louise nunca soube que ia vê-la.
— Ou seja, era o único que a visitava?
— Era.
— Pois está enganado. Depois do seu desaparecimento, outra pessoa foi lá pelo menos numa ocasião. Apresentou-se como sendo seu irmão.
Hakan von Enke meneou a cabeça com incredulidade.
— Eu não tenho irmãos. Tenho um familiar que vive na Inglaterra, é tudo.
— Acredito, disse Wallander. — Não sabemos quem foi ver a sua filha, o que certamente significa que tudo é mais complicado do que nós os dois possamos prever.
Wallander notou que Von Enke mudara de atitude. Nenhum dos temas abordados até ao momento provocara tanta inquietação nele como a notícia de que outra pessoa tivesse visitado Signe no lar de Niklasgarden.
Eram quase seis horas da manhã e a longa conversa noturna chegara ao fim. Nenhum dos dois tinha forças para continuar.
— Vou embora, anunciou Wallander. — Por enquanto sou o único que conhece o seu paradeiro, mas não pode adiar o seu regresso eternamente. Além disso, continuarei a importuná-lo com perguntas. Pense em quem possa ter ido a Niklasgârden, alguém deve tê-lo seguido, mas quem? E porquê? Esta conversa deve continuar.
— Diga a Hans e Linda que estou bem. Não quero que se preocupem. Diga que o contactei por escrito.
— Direi que me telefonou. Linda exigiria ver a carta.
Desceram juntos até à lancha e arrastaram-na para a água. Antes de sair da cabana, Wallander anotou o celular de Von Enke, embora este o advertisse de que a cobertura costumava falhar em Blâskár. O vento aumentara e Wallander começava a se preocupar com a travessia de regresso. Subiu na lancha e colocou o motor fora de borda.
— Preciso saber o que aconteceu à Louise, disse Von Enke. — Preciso saber quem a matou e por que motivo decidiu trair o seu país.
O motor pegou no primeiro puxão. Wallander levantou a mão em despedida e deu uma volta ao leme para orientar a popa para terra. Antes de rodear o cabo de Blâskár se virou e olhou para trás. Hakan von Enke continuava na praia. Nesse mesmo instante, Wallander teve o pressentimento de que algo não estava bem. Não sabia porquê, mas a sensação estava lá, intensa e persistente. Chegou à baía, devolveu a lancha e começou a viagem de regresso a Skáne. Parou para dormir umas horas num estacionamento de Gamleby.
Quando acordou tinha o corpo entorpecido. E aquele pressentimento persistia. Depois da noite interminável compartida com Von Enke, só havia um detalhe que continuava a atormentá-lo. Era como uma advertência, uma coisa que não batia certo de maneira nenhuma, algo que passara despercebido.
Muitas horas depois, quando fez a curva para entrar no pátio da sua casa, ainda não era capaz de identificar o que lhe escapara.
E pensou: Nada é o que parece.
* * *
Trinta e Três
NO DIA SEGUINTE, Wallander redigiu um resumo da longa conversa que tivera com Hakan von Enke. Uma vez mais, reviu toda a informação que recolhera e comprovou que Louise continuava a aparecer como um ser totalmente misterioso. Se era verdade que vendera informações aos russos, soubera se esconder com habilidade atrás de uma máscara insípida e esquiva. Quem era Louise, na realidade? Perguntava-se Wallander. Talvez pertencesse àquele tipo de pessoas que só se entende depois de mortas ou que nunca se chega a entender.
Naquele dia de julho, o vento e a chuva fustigavam Skâne. Pela janela, Wallander contemplava o panorama desolador e disse para si mesmo que aquele verão estava se transformando num dos piores da sua vida. Mesmo assim, se obrigou a sair e a dar uma caminhada com Jussi, pois precisava de ar fresco e desanuviar a cabeça. Tinha tantas saudades dos dias de sol e de quietude, dias em que podia ficar deitado no jardim sem ter de se preocupar com os problemas, que agora não o largavam.
Depois da caminhada e de tirar a roupa molhada, se sentou ao telefone envolto no seu velho roupão e começou a folhear a agenda. Estava cheia de números riscados, de alterações e acréscimos. No dia anterior, quando estava no carro, se recordara de um colega de turma, Solve Hagberg, que talvez pudesse ajudá-lo; era o número dele que agora procurava, anotara-o um dia em que o encontrara por acaso, alguns anos antes.
Já quando criança, Solve Hagberg era um pouco diferente. Wallander se lembrava, envergonhado, que ele mesmo se contava entre os que riam dele pela sua miopia e a sua vontade sincera de aprender algo na escola. No entanto, todas as tentativas de destruir a autoconfiança dele foram em vão: Solve não ligava nenhuma aos insultos, empurrões e pontapés. Depois da escola, tinham perdido o contato até que um dia Wallander, para seu espanto, o viu no programa de televisão O Dobro ou Nada.
Mais perplexo ficou ao ver que Solve Hagberg concorria na categoria de história da Marinha Sueca. Já quando criança tinha peso a mais, o que naturalmente facilitara ter sido escolhido como vítima pelos seus perseguidores. E se já naquela época tinha peso a mais, então agora era mesmo obeso; parecia que entrara no estúdio rolando sobre rodas invisíveis. Estava calvo, tinha óculos sem hastes e falava com o mesmo dialeto indecifrável de que Wallander se lembrava da escola. Ao vê-lo entrar no programa, Mona comentou o seu aspecto com desprezo e foi para a cozinha preparar café enquanto Wallander via como respondia corretamente a todas as perguntas que lhe faziam. E como não podia deixar de ser, Solve ganhou depois de ter respondido com a maior das naturalidades a cada pergunta de forma precisa e detalhada. Tanto quanto Wallander se lembrava, não hesitou em nenhum momento, pois sabia tudo o que merecia a pena saber sobre o longo e complexo passado da Marinha Sueca. O grande sonho de Solve Hagberg era cumprir o serviço militar na Marinha para logo entrar nos quadros superiores da Armada. Mas, claro está, foi recusado por causa do seu corpo descomunal e enviado para casa, de volta aos seus livros e modelos de barcos. Mas na televisão se vingara.
Durante um curto período, os jornais se interessaram por aquele homem tão singular, que ainda vivia em Limhamn, ganhando a vida dando palestras e escrevendo artigos em revistas e anuários publicados por diversas instâncias militares. Também o arquivo enorme de Solve Hagberg merecera muita atenção; possuía dados detalhados e constantemente atualizados sobre os oficiais da Marinha sueca desde o século XVII até à Era Moderna. E Wallander pensou que talvez encontrasse algum documento naquele arquivo que lançasse um pouco mais de luz sobre quem Hakan von Enke era no fundo.
Por fim, encontrou o número de telefone na margem borrada da letra H. Puxou o aparelho para mais perto de si e discou o número. Atendeu uma mulher; Wallander se apresentou e perguntou por Solve.
— Solve morreu.
Wallander ficou atônito. Passados uns momentos, a mulher perguntou se ainda estava ali.
— Sim, sim, estou. Sinto muito, não sabia que tinha morrido.
— É verdade, morreu há dois anos, com um ataque de coração. estava em Roneby dando uma palestra a um grupo de mecânicos formados que eram empregados da Marinha. De repente, desmaiou durante o jantar a seguir à palestra. Comunicaram-me que falecera entre o prato principal e a sobremesa.
— Suponho que a senhora é a esposa?
— Sim, sou Asta Hagberg. Estivemos casados durante vinte e seis anos. Eu lhe dizia que tinha de perder peso, mas a única coisa que fez foi reduzir para três torrões de açúcar em vez dos quatro no café.
— E senhor, como o conhecia?
Wallander explicou a sua relação com Solve e ao mesmo tempo decidiu, algo decepcionado, concluir aquela conversa o quanto antes.
— Foi um dos que riam dele, não é verdade? Disse a mulher inesperadamente quando ele terminou. — Sim, agora me lembro do seu nome. Um dos que lhe faziam a vida negra na escola. Solve tinha os seus nomes apontados e sabia perfeitamente o que faziam na vida. E não tinha vergonha de se alegrar ao saber que a vida corria mal a um de vocês. Por que motivo telefonou? O que queria?
— Esperava que me permitisse acesso ao seu arquivo.
— Solve morreu, mas talvez eu possa ajudar, embora no fundo não saiba se quero fazer. Porque não o deixaram em paz?
— Bom, acho que não sabíamos o que na realidade fazíamos. As crianças podem ser cruéis e eu não era exceção.
— Está arrependido?
— Claro.
— Então venha aqui. Ele desconfiava que não teria uma vida longa, de modo que me ensinou tudo sobre como organizar o arquivo. Não sei o que acontecerá no dia em que eu também não esteja entre os vivos. Estou sempre em casa, Solve me deixou dinheiro suficiente e não preciso trabalhar.
A mulher deu uma gargalhada.
— Sabe como ganhava esse dinheiro?
— Suponho que era um conferencista muito solicitado.
— Qual quê! Não cobrava nada por isso. Dou-lhe mais uma tentativa.
— Olhe, não sei.
— Jogava pôquer em clubes clandestinos. Suponho que é uma das coisas com que tem de lidar na sua profissão.
— Pensava que hoje em dia as pessoas jogavam na Internet.
— Não, isso não o interessava. Ele frequentava esses clubes e às vezes passava semanas fora de casa. Acontecia de perder grandes quantias, mas no geral chegava a casa com um saco cheio de notas. Então me pedia que as contasse e as depositasse no banco. A polícia veio aqui algumas vezes e até o prenderam em certas rusgas, mas nunca foi acusado ou condenado. Eu acho que tinha um acordo com a polícia.
— Como assim?
— Estou dizendo que lhes passava informações, claro. Se algum tipo procurado aparecia num clube com dinheiro roubado e essas coisas. Ninguém imaginava que o simpático e gordo Solve fosse um espião. Bem, vai vir ou não?
Ao anotar o endereço, Wallander notou que Solve tinha vivido sempre na mesma rua de Limhamn. Combinou com Asta Hagberg que iria na sua casa por volta das cinco horas daquela mesma tarde. Depois de concluir a conversa telefonou para Linda, mas o atendedor de chamadas ligou, de modo que deixou uma mensagem dizendo que estava em casa. Depois de ter jogado no lixo toda a comida fora de prazo do freezer, que ficou quase vazio, fez uma lista de compras. Preparava-se para sair quando Linda telefonou.
— Acabei de vir da farmácia; Klara está doente.
— É grave?
— Não precisa estar sempre perguntando como se estivesse às portas da morte. Tem febre e dores de garganta, mais nada.
— Já levou-a ao médico?
— Telefonei para o centro de saúde e penso que tenho tudo sob controle. Desde que não se enerve e enerve a mim também. Onde esteve?
— Bom, no momento não posso dizer.
— Noutras palavras, com uma mulher. Ainda bem.
— Não, nada de mulheres. Enfim, tenho uma mensagem importante para dar. Há pouco recebi um telefonema de Hakan.
Num primeiro instante, Linda achou não ter ouvido bem. Até que gritou diretamente no auscultador.
— Hakan telefonou?! Que diabos está dizendo? Onde está? Como está? E o que aconteceu?
— Calma, não grite no meu ouvido! Não sei onde está, não quis me revelar o seu paradeiro. Apenas me assegurou que está bem e não me pareceu que tenha lhe acontecido alguma coisa.
Wallander ouvia a respiração pesada de Linda ao telefone. Sentiu-se muito mal por ter de mentir e se arrependeu de ter dado a sua palavra antes de sair da ilha. Preciso lhe dizer, pensou. Não posso andar enganando a minha filha.
— Isso não faz sentido nenhum. E não lhe disse por que razão desapareceu?
— Não, mas disse que não teve nada a ver com a morte de Louise. Está tão impressionado como nós. Não contactou com ela desde que foi embora.
— Os meus sogros estão completamente loucos?
— Não posso responder a isso, mas devemos estar contentes por ele estar vivo. Isso era a única coisa que queria que transmitisse a vocês, que está bem. Mas não podia dizer quando ia voltar nem porque está escondido.
— Disse isso? Que está escondido?
Wallander compreendeu que dera com a língua nos dentes, mas já era tarde demais para voltar atrás.
— Não me lembro exatamente das suas palavras. Não se esqueça de que eu também fiquei estupefato.
— Preciso falar com Hans. Está em Copenhague.
— Não vou estar em casa esta tarde, mas telefono logo à noite e conversaremos mais. Quero naturalmente saber como Hans reagiu.
— Não vai reagir com outra coisa senão alegria.
Wallander desligou o telefone com um mal-estar profundo. No dia em que a verdade viesse à tona teria de estar preparado para a fúria de Linda.
Irritado, saiu de casa para ir às compras em Ystad. Comprou uma panela nova, de que não precisava, e pensou que os preços da alimentação tinham atingido um nível inaceitável. Deu uma caminhada pelo centro da cidade, entrou numa loja de roupas de homem, onde comprou um par de meias que também não lhe fazia falta, e foi embora para casa. Parara de chover, o céu estava limpo e a temperatura subira. Limpou a água acumulada na rede e se deitou; quando acordou eram três e meia. Sentou-se ao volante e tomou o rumo de Limhamn.
Não sabia o que encontraria exatamente. Ao chegar sentiu aquela mistura habitual entre mal-estar e saudade que sempre o invadia quando regressava ao lugar onde fora criança. Estacionou o carro próximo da casa de Asta Hagberg e foi a pé até ao prédio de apartamentos em que vivera quando criança.
Tinham renovado a fachada e um gradeamento novo rodeava o prédio, mas mesmo assim se lembrava de tudo desde a sua infância. A caixa de areia onde brincava então era maior agora, mas não havia rastro dos dois carvalhos em que costumava trepar. Parou na calçada e ficou olhando umas crianças que brincavam; tinham a pele escura, certamente seriam do Oriente Médio ou do Norte de África. Sentada na entrada do prédio, uma mulher envergando um hijab fazia tricô enquanto dava uma olhada nas crianças. E por uma janela aberta se ouviam os acordes de música árabe. Eu vivi aqui, disse Wallander para os seus botões. Noutro mundo, noutro tempo. Um homem saiu do prédio se aproximou do gradeamento. Também ele tinha a pele escura. Observou Wallander com um sorriso.
— Procura alguém? Perguntou num sueco inseguro.
— Não, respondeu Wallander. — É que morei neste prédio há muito tempo. Um dos meus vizinhos era maquinista de trem. Apontou para a janela do segundo andar que, outrora, fora a da sua sala de estar.
— É um bom lugar para viver, disse o homem. — Aqui estamos à vontade e as crianças também gostam. Não temos motivos para sentir medo.
— Ainda bem. Não está certo que as pessoas tenham de ter medo. Wallander assentiu e se despediu. A sensação de estar envelhecendo sufocava-o. Apressou o passo como para se distanciar dele mesmo.
O jardim que circundava a casa de Asta Hagberg estava muito descuidado. A mulher que abriu a porta era tão obesa como ele se recordava de Solve Hagberg daquele programa de televisão. Estava transpirada, despenteada e tinha uma saia muito curta. Primeiro, Wallander achou que era dela que vinha aquele cheiro intenso, mas logo comprovou que a casa toda estava impregnada de perfumes estranhos. Andara pela casa espalhando perfume pela mobília? Perguntou-se. Regara as plantas com almíscar?
A mulher perguntou se queria café, mas ele disse que não; já se sentia mal pelo cheiro enjoativo que chegava às suas narinas de todos os cantos da casa. Quando entrou na sala de estar teve a sensação de entrar na ponte de comando de um navio grande: por todo o lado havia lemes, bússolas com belas ferragens de bronze, barcos votivos pendurados do teto e um velho beliche de camarote junto a uma parede. Asta Hagberg se acomodou num tamborete alto giratório que
Wallander supôs ser proveniente de algum barco. Ele se sentou no que achou ser um sofá normal. No entanto, uma placa de bronze explicava que pertencera em tempos ao transatlântico Kungsholm, da companhia marítima Svenska Amerikalinjen.
— Como posso lhe ser útil? Perguntou a mulher, antes de acender um cigarro que antes pusera numa boquilha.
— Hakan von Enke, um velho capitão de fragata já aposentado.
Asta Hagberg teve um súbito ataque de tosse violento. Wallander rezou para que aquela mulher fumante e obesa não morresse ali mesmo, na sua presença. Calculou que teria mais ou menos a sua idade, sessenta anos. Asta tossiu tanto que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Assim que lhe passou o ataque, continuou calmamente a fumar.
— O desaparecido Von Enke, cuja mulher morreu há pouco. É isso?
— Sim. Sei que Solve tinha um arquivo único. Acha que terá algum documento que me ajude a desvendar o motivo do desaparecimento de Von Enke?
— Bem, a esta altura o homem já está morto, sem dúvida.
— Nesse caso, procurarei a razão da sua morte entre esses documentos, respondeu Wallander evasivo.
— A mulher se suicidou, o que indica que a família se deparava com grandes problemas, não concorda?
Aproximou-se de uma mesa e levantou um pano que protegia um computador. Wallander se surpreendeu com a agilidade com que os seus dedos grossos batiam nas teclas. Uns minutos mais tarde, Asta se afastou um pouco da tela com os olhos entreabertos.
— A carreira de Hakan von Enke foi completamente normal e chegou onde se esperava, mais ou menos. Se a Suécia tivesse se visto envolvida numa guerra, poderia ter atingido uma patente mais alta, mas é duvidoso.
Wallander se levantou e se colocou ao seu lado. O fedor a perfume era tão asfixiante que procurou respirar pela boca. Leu o texto que aparecia na tela e observou a fotografia que devia ter sido tirada quando Von Enke tinha cerca de quarenta anos.
— Não há nada de estranho no seu histórico?
— Não. Durante os anos de cadete ganhou vários prêmios em competições esportivas na Escandinávia. Bom atirador, boa forma física, ganhou várias provas de corta-mato. Se é que isso se pode considerar digno de nota.
— O que temos sobre a sua mulher?
Os dedos grossos de Asta voltaram a voar sobre o teclado e teve um novo ataque de tosse, mas não parou até que apareceu na tela uma fotografia de Louise. Wallander calculou que teria trinta e cinco, talvez quarenta anos. Sorria, fizera um permanente no cabelo e tinha um colar de pérolas. Wallander estudou o texto, mas ali também não havia nada de surpreendente ou de chamativo à primeira vista. Asta Hagberg abriu uma nova página. Wallander descobriu que a mãe de Louise era de Kiev.
Em 1905, Angela Stefanovich se casou com o exportador de carvão Hjalmar Sundblad. Muda-se para a Suécia e adquire a cidadania. Louise é a mais nova dos quatro filhos que teve com Hjalmar Sundblad.
— Como vê, tudo normal, observou Asta.
— Sim, exceto a sua ascendência russa.
— Bem, hoje diríamos ucraniana. A maioria dos suecos tem raízes em algum lugar longe das nossas fronteiras; somos um povo de finlandeses, alemães, russos, franceses... O tetravô de Solve era da Escócia, a minha avó tinha sangue turco. E você?
— Os meus antepassados eram camponeses de Smâland.
— Será que investigou as suas origens a sério?
— Não.
— Pois o dia em que o faça talvez encontre algo inesperado. É sempre emocionante, embora nem sempre agradável. Eu tenho um amigo que é sacerdote da Igreja sueca. Quando se aposentou, decidiu procurar as raízes da sua família e não demorou a encontrar dois parentes, em linhagem direta, que num espaço de tempo de cinquenta anos morreram executados. Um, no princípio do século XVII, foi condenado por roubo e assassinato, tendo sido decapitado. O seu neto se alistou num dos muitos exércitos alemães que marchavam pela Europa em meados do século XVII e esse foi enforcado por deserção. A partir daquela descoberta, o bom pastor deixou de investigar os seus antepassados. Como não é de estranhar, claro.
Asta se levantou da cadeira com bastante esforço e lhe fez um gesto para que a seguisse a uma sala contígua. As paredes estavam cobertas de filas de arquivos. Ela abriu uma das gavetas e mostrou um separador com várias capas.
— Nunca se sabe o que se pode encontrar, disse enquanto folheava o conteúdo.
Tirou uma das capas e deixou-a sobre a mesa. Estava cheia de fotografias. Wallander não tinha certeza se a mulher procurava algo em concreto ou se só olhava ao acaso. Asta parou diante de uma fotografia em preto e branco e aproximou-a da luz.
— Tenho uma vaga memória de tê-la visto. E não está desprovida de interesse, veja.
Entregou-a a Wallander, que pasmou com a imagem. Efetivamente, se tratava de um homem alto e magro, com terno e laço impecáveis e sorriso alegre: Stig Wenerstróm. Segurava uma taça na mão e falava precisamente com Hakan von Enke.
— Quando foi tirada?
— A data está no verso. Solve era muito exaustivo no que toca a indicar datas e lugares.
Wallander leu um texto escrito à máquina numa nota colada à fotografia. "Outubro de 1959, delegação da Marinha sueca de visita a Washington, recepção do adido da Defesa, Wenerstróm." Wallander tentou ver um significado naquela informação; se tivesse sido Louise von Enke aparecendo na fotografia, teria podido imaginar um contexto, mas ela não estava lá. Em segundo plano só havia homens e uma criada vestida de branco. Só que era negra.
— As esposas costumavam acompanhá-los? Quis saber Wallander.
— Só quando se tratava de viagens dos altos comandantes militares, em geral, Stig Wenerstróm levava a mulher nas viagens e nas recepções. Mas naquela ocasião Hakan von Enke estava ainda longe do topo e provavelmente viajava sozinho. Se Louise o acompanhou, ele pagou a viagem do seu bolso. E, claro, ela não participou na recepção do adido de defesa sueco.
— Teria gostado de saber exatamente o que aconteceu.
Asta Hagberg sofreu um novo ataque de tosse. Wallander se postou junto à janela e abriu-a ligeiramente. O odor a perfume afligia-o.
— Vai levar um tempo, disse Asta quando passou a tosse. — Preciso procurar. Mas tenho certeza de que Solve guardou os pormenores tanto desta viagem como de todas as realizadas por delegações militares suecas.
Wallander voltou para o sofá do Kungsholm. Ouviu Asta cantarolar uma melodia enquanto procurava numa outra sala a lista dos participantes em viagens aos Estados Unidos, nos finais da década de 1950. Levou cerca de quarenta minutos, durante os quais Wallander esperou cada vez mais impaciente, até que a mulher voltou com um papel na mão que lhe mostrou com um ar triunfante.
— A senhora Von Enke também esteve nessa viagem, declarou. — O seu nome figura entre os "acompanhantes", seguido de uma série de abreviaturas que sem dúvida significam que a Defesa não pagou a viagem. Se é importante, posso averiguar a que correspondem as abreviaturas em causa.
Wallander leu o documento. A delegação era composta por oito pessoas, sob o comando do capitão de fragata Karlén. Entre os demais "acompanhantes" se encontravam Louise von Enke e Marta Auren, a mulher do tenente-coronel Karl-Axel Auren.
— Pode-se fazer uma cópia disto? Perguntou Wallander.
— Não sei o que "se pode" fazer, mas eu tenho uma fotocopiadora no porão. Quantas quer?
— Uma.
— Costumo cobrar duas coroas por cada uma. Asta saiu da sala. Wallander começou a refletir: aquela viagem a Washington durara oito dias, o que significava que Louise podia ter sido contactada por alguém. Contudo, seria provável? Já naquela época? Se bem que no final dos anos cinquenta a Guerra Fria estivesse entrando numa fase muito dura, e fora uma época em que os americanos viam espiões russos em cada esquina. Acontecera alguma coisa naquela viagem?
Quando Asta Hagberg voltou com a fotocópia, Wallander deixou duas coroas sobre a mesa.
— Bem, não fui de tanta ajuda como esperava?
— A procura de desaparecidos costuma ser um trabalho lento e difícil; há que ir passo a passo.
Ela acompanhou-o até ao jardim, e finalmente Wallander pôde respirar ar puro, sem perfumes.
— Ligue-me quando quiser, se ofereceu Asta. — Se puder ser útil estarei aqui.
Wallander assentiu, agradeceu e saiu pelo portão. Sentou-se ao volante e estava prestes a deixar Limhamn quando decidiu visitar mais um lugar. Ponderara muitas vezes investigar se a marca que deixara há quase cinquenta anos ainda continuava ali. Estacionou o carro junto ao cemitério, caminhou até ao canto esquerdo do muro e se agachou.
Que idade teria então, dez ou onze anos? Não se lembrava, mas era bastante crescido para ter descoberto um dos grandes mistérios da vida: que ele era como era, não podia ser trocado por outro, um ser humano com identidade própria. Aquela descoberta lhe sugeriu uma grande tentação: deixaria a sua marca num lugar do qual nunca desapareceria. Escolheu como santuário o muro baixo do cemitério, arrematado por uma grade de ferro. E para ali se encaminhara numa noite de outono, com um martelo e um prego grosso escondidos por baixo da roupa. Limhamn estava deserta. Já antes escolhera o lugar exato; justamente no canto esquerdo, onde a pedra do muro era muito lisa. Com a chuva fria a lhe caindo pelas costas gravou as suas iniciais: KW.
Não levou tempo algum a encontrá-las. Apesar da inscrição estar se desvanecendo e ser difícil de ler depois de tantos anos, talhara e gravara a pedra tão profundamente que a sua marca ainda estava ali. Um dia virei aqui com Klara, disse para si mesmo. E falarei do dia em que decidi mudar o mundo, mesmo que tenha sido apenas por gravar as minhas iniciais num muro de pedra.
Entrou no cemitério e se sentou num banco à sombra de uma árvore. Fechou os olhos e pensou ouvir a sua própria voz infantil ressoando na mente, tal qual como soava antes da puberdade e de tudo aquilo que pertencia à vida adulta e o perturbava. Talvez devesse pedir que me enterrem aqui quando chegar o dia, pensou. Seria retornar ao ponto de partida, descansar justamente nesta terra. A lápide já está aqui, no muro.
Saiu do cemitério e se sentou no carro. Antes de ligar o motor, pensou no encontro com Asta Hagberg. O que lhe proporcionara? A resposta era muito simples: não avançara um passo sequer; Louise continuava a ser uma personagem tão desconhecida como antes. A mulher de um oficial, ausente de todas as fotografias. Contudo, a inquietação que sentia desde que vira Hakan von Enke na sua ilha persistia.
Não consigo ver, constatou para si. Há alguma coisa que deveria ter descoberto. Não encontro aquilo que poderia me ajudar a compreender o que realmente aconteceu.
* * *
Trinta e Quatro
WALLANDER voltou para casa. Podia suportar que a visita a Asta Hagberg não tivesse dado em nada, mas a dor pela morte de Baiba era demais. A lembrança da sua visita repentina e da sua morte igualmente repentina ia e vinha como em ondas. E não havia nada a fazer: na morte de Baiba via a sua própria.
Quando deixou o carro, soltou Jussi e deixou-o correr à vontade antes de se servir de uma vodca grande que bebeu num trago, de pé junto à bancada da cozinha. Voltou a encher o copo e levou-o para o quarto. Fechou as cortinas das duas janelas, se despiu e deitou na cama. Equilibrou o copo em cima da sua barriga gorda. Posso tentar dar mais um passo, resolveu. Se também não me ajudar a avançar no caso, vou abandoná-lo completamente. Direi a Hakan que penso falar com Linda e com Hans e lhes contar onde se encontra. Se isso o levar a continuar a fugir e a procurar outra toca onde se esconder, será lá com eles. Falarei com Ytterberg, com Nordlander e, evidentemente, com Atkins. E depois deixarei de considerar este caso como assunto meu, o que aliás nunca foi, no fundo. Dentro em breve, o verão terá passado, estraguei as minhas férias e voltarei a me perguntar onde o tempo foi parar.
Acabou o restante da bebida e sentiu o calor e a sensação agradável da embriaguez se espalhando pelo corpo. Mais um passo, repetiu para si. Qual será? Deixou o copo vazio na mesinha de cabeceira e, depois de pouco tempo, já estava dormindo.
Quando acordou uma hora mais tarde, já sabia o que fazer. Durante o sono, o seu cérebro formulara uma resposta; via-a com toda a nitidez. Era a única coisa que nesse momento importava. Quem, se não Hans, podia lhe dar informações? Era um jovem inteligente, talvez não muito sensível, mas as pessoas sabiam sempre mais do que pensavam sobre os acontecimentos, por observações que faziam de forma inconsciente. juntou a roupa suja e pôs a máquina de lavar para funcionar. Depois saiu para chamar Jussi. Ouviu um latido ao longe, de um dos campos recentemente lavrados dos vizinhos. Jussi veio correndo, tinha se rebolado em alguma coisa malcheirosa, e Wallander fechou-o no recinto, pegou na mangueira e lavou-o até o deixar limpo. Jussi olhava-o suplicante com o rabo entre as pernas.
— Estava fedendo. Justificou-se Wallander. — Não posso deixá-lo entrar em casa com esse cheiro.
Foi se sentar à mesa da cozinha. Anotou as perguntas mais pertinentes que lhe vieram à cabeça e procurou o número de telefone do trabalho de Hans em Copenhague. Impacientou-se ao ouvir que estaria ocupado todo o dia com uma série de reuniões importantes e disse à jovem da recepção que o avisasse de que, no prazo de uma hora, devia ligar para o inspetor Kurt Wallander de Ystad. E Hans assim fez; Wallander acabava de abrir a máquina de lavar roupa e verificar que esquecera de pôr sabão. Não conseguiu esconder a sua irritação.
— O que vai fazer amanhã?
— Trabalhar. Por que motivo está tão irritado?
— Deixe, não é nada. Quando conseguirá um tempo para mim?
— Terá de ser ao fim da tarde; estarei em reuniões todo o dia.
— Pois altere-as. Estarei em Copenhague às duas. Só preciso de uma hora; nem mais, nem menos.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim, estão sempre acontecendo coisas. Se fosse importante, já teria dito, naturalmente. Só preciso que responda às minhas perguntas, algumas já lhe tinha feito, outras são novas.
— Agradecia que esperasse até o fim do dia. Os mercados financeiros estão mesmo nervosos, há movimentos imprevisíveis a toda a hora.
— Estarei aí às duas, repetiu Wallander. — Contentar-me-ei com um café.
Desligou e ligou a máquina da roupa outra vez, depois de ter posto uma quantidade exagerada de sabão. Notou que estava sendo infantil ao castigar a máquina pelas suas falhas de memória.
Depois saiu para cortar a grama, apanhou as folhas caídas dos caminhos de cascalho e se deitou na cama de rede para ler uma biografia de Verdi, que ele mesmo se oferecera como presente de Natal. Quando esvaziou a máquina viu que havia um lenço vermelho entre a roupa branca, que tingira tudo. Pela terceira vez, carregou a máquina com a mesma roupa. Depois se sentou na cama e picou o dedo para medir a glicemia, outra das tarefas que às vezes descuidava. No entanto, marcava 146, aceitável embora bem justo.
Enquanto a máquina trabalhava, se deitou no sofá da sala e ouviu uma gravação nova de Rigoletto. Pensou em Baiba, os olhos se encheram de lágrimas e recordou-a como era quando estava viva. Contudo, Baiba desaparecera para sempre. Quando a música terminou descongelou um gratinado de peixe e acompanhou a refeição com água.
Olhou indeciso para uma garrafa de vinho que havia na bancada da cozinha, mas não chegou a abri-la. A vodca que bebera há pouco era suficiente. Já de noite, viu o filme Quanto mais Quente melhor na televisão, um dos filmes favoritos de Mona e dele e com o qual ainda era capaz de rir, apesar de tê-lo visto umas tantas vezes. Por mais surpreendente que pudesse parecer, dormiu bem aquela noite.
Estava tomando o café da manhã quando Linda telefonou. Wallander tinha a janela aberta, estava um dia bonito e quente, e se sentara nu à mesa da cozinha.
— O que disse Ytterberg sobre Hakan ter lhe telefonado?
— Bem, ainda não falei com ele.
Ela não só se surpreendeu com aquela resposta como também ficou indignada.
— E porque não? Se alguém deve saber que Hakan não está morto é ele!
— É que Hakan me pediu que não dissesse nada.
— Ah, pois a mim não mencionou isso.
— Devo ter me esquecido.
Linda notou imediatamente o tom evasivo da sua resposta.
— Há mais alguma coisa que não tenha me contado?
— Não.
— Bom, nesse caso acho que deve telefonar para Ytterberg assim que terminarmos esta conversa.
Wallander percebeu que estava furiosa.
— Ora bem, se lhe faço uma pergunta sincera, posso contar com uma resposta sincera? Quis Linda saber.
— Pode.
— O que está por trás de tudo o que aconteceu? Se bem o conheço, você já tem uma boa ideia.
— Neste caso não. Estou tão desnorteado como você.
— Deve admitir que não tem lógica nenhuma a hipótese de Louise ser uma espiã.
— Não posso afirmar se é lógico ou não, mas que a polícia encontrou indícios na sua bolsa, encontrou.
— Alguém os deve ter enfiado lá; é a única explicação que me ocorre. É evidente que ela não era nenhuma espiã, insistiu Linda. — Disso podemos ter certeza absoluta.
Calou-se como se esperasse que Wallander manifestasse o seu acordo. De repente, ouviu Klara chorar perto do telefone.
— O que ela está fazendo?
— Está no berço, mas não quer ficar lá. É verdade, queria perguntar como eu era em criança. Era muito chorona? Ou já tinha lhe perguntado?
— Todas as crianças choram. Quando eras bebê, tinha muitas cólicas. Aliás, já tínhamos falado disso, e lhe disse que era eu e não Mona quem a sossegava de noite.
— Estava só perguntando; acho que uma pessoa se vê a si mesma nos filhos. Então vá, fale com Ytterberg ainda hoje, não fala?
— Amanhã. E, quanto a você, era uma criança fácil. Pelo menos tanto quanto me lembro.
— O pior foi depois, na adolescência...
— Bem isso pode dizer, confirmou Wallander. — Muito pior.
Uma vez concluída a conversa, permaneceu sentado, pensativo. Era uma das piores memórias da sua vida e raras vezes permitira que emergisse à superfície: aos quinze anos, Linda tentara se matar. Provavelmente não fora uma tentativa séria, antes um grito clássico para chamar a atenção e pedir ajuda. Contudo, a coisa poderia ter terminado mal se Wallander não tivesse esquecido a carteira e se visse obrigado a voltar para casa. Encontrara-a quase inconsciente, balbuciando, com um frasco de comprimidos vazio ao seu lado. Nunca, nem antes nem depois, sentira um terror semelhante àquele que viveu naquele instante. Por outro lado, costumava incluir aquele episódio entre os maiores fracassos da sua vida, por não ter sabido compreender como Linda se sentia durante os anos difíceis da adolescência.
Estremeceu como que para se desfazer dessa terrível sensação. Estava convencido de que, se Linda tivesse morrido então, ele mesmo se mataria.
Voltou a recordar a conversa que haviam tido, e a convicção inabalável de Linda de que Louise não se dedicara à espionagem fez com que ele mesmo hesitasse. Não se tratava de provas, mas sim disso mesmo, de uma convicção: não era possível. No entanto, se for verdade, disse Wallander para si mesmo, qual é a explicação? Apesar de tudo, não teriam Hakan e Louise trabalhado juntos? Ou por acaso seria Von Enke um homem de tal falsidade e sangue-frio que falava do seu grande amor por Louise só para que não passasse pela cabeça de ninguém que não fosse verdadeiro? Talvez ele fosse o responsável pela sua morte e, nesse caso, tentava agora orientar toda a investigação numa direção errada.
Wallander anotou umas palavras no seu caderno. A convicção de Linda de que Louise é inocente. No fundo, ele não acreditava nisso e considerava que Louise era responsável pelo seu próprio assassinato. Não podia ser de outra maneira.
Alguns minutos antes das duas da tarde, Wallander tocou a campainha do escritório sofisticado da Torre Redonda, em Copenhague. Uma jovem lhe abriu a porta, que se moveu com um ligeiro zumbido. A jovem chamou Hans e este não demorou a aparecer no corredor. Estava pálido e parecia não ter dormido. Passaram por uma sala de reuniões onde estava em curso uma acesa troca de palavras entre um homem de meia-idade, que falava inglês, e dois jovens louros, que respondiam em islandês. Uma mulher vestida de negro servia de intérprete.
— Bolas, que agressividade, observou Wallander. — E eu pensava que os homens de negócios falavam sempre em tom baixo...
— Costumamos dizer que trabalhamos num matadouro, respondeu Hans. — Soa pior do que é. Mas se trabalharmos com dinheiro, acabaremos com as mãos manchadas de sangue. Num sentido metafórico, claro.
— O que os leva a discutir com tanta exaltação?
— Os negócios. Não posso dizer de que tipo, nem a si.
Wallander não insistiu com mais perguntas. Hans levou-o para uma pequena sala de reuniões com todas as paredes em vidro e que parecia suspensa na fachada do edifício. Até o chão era de vidro. Wallander teve a impressão de se encontrar num aquário. Uma mulher, tão jovem como a recepcionista, entrou com uma bandeja com café e biscoitos. Wallander deixou o caderno e a caneta junto à xícara enquanto Hans servia o café. Wallander observou que tremia das mãos.
— Achava que o tempo das notas escritas à mão pertencia ao passado, comentou Hans depois de encher as duas xícaras. — Pensei que os policiais hoje em dia só usavam gravadores ou talvez câmeras de vídeo.
— As séries de televisão nem sempre dão uma imagem realista do nosso trabalho. Claro que às vezes recorremos a gravadores, mas isto não é um interrogatório, é só uma conversa.
— Por onde quer que comecemos? Lembro-lhe que só tenho uma hora à sua disposição. Deu-me imenso trabalho ter que reorganizar a minha agenda.
— Trata-se da sua mãe, disse Wallander resoluto. — Nada pode ser mais importante do que averiguar o que aconteceu. Concorda, não concorda?
— Sim, claro; não era isso que queria dizer...
— Bem, nesse caso abordemos o assunto sem mais e esqueçamos isso. Hans olhou fixamente para Wallander.
— Antes de tudo, quero dizer que não cabe na cabeça de ninguém que a minha mãe fosse uma agente secreta. Embora não negue que às vezes se comportava de forma um tanto misteriosa. Wallander se surpreendeu.
— Ah, sim? Nunca me mencionou isso antes quando falamos dela, que fosse misteriosa. É uma novidade.
— É que andei pensando desde a última vez que conversamos. E a sua maneira de ser me parece cada vez mais enigmática; sobretudo por causa de Signe. Será que se pode castigar alguém com uma traição maior? Não lhe contar que tem uma irmã? Muitas vezes me queixava de ser filho único, sobretudo quando era criança, antes de começar a escola, sequer. Mas ela nunca hesitou nas justificações e agora que penso nisso preciso admitir que sempre respondeu ao meu desejo infantil com uma frieza medonha.
— E o seu pai?
— Bem, ele não passava muito tempo em casa. Ou, pelo menos me lembro dele como quase sempre ausente. Cada vez que o via entrar em casa sabia que não levaria muito tempo para ir embora outra vez. Trazia-me sempre presentes, mas eu não me atrevia a me sentir feliz Quando tiravam a sua farda para a arejar e escovar, sabia o que ia acontecer. No dia seguinte já não estaria lá.
— Poderia precisar um pouco a que se refere quando diz que a sua mãe era misteriosa?
— É difícil de dizer. Às vezes parecia ausente, tão mergulhada nos seus pensamentos que se zangava se a interrompia. Era quase como se a machucasse, como se a espetasse com alguma coisa. Não sei explicar melhor, era assim que sentia. Por vezes, quando eu entrava, fechava rapidamente um caderno de apontamentos ou escondia algum documento com que estivesse trabalhando. Entende?
— Havia algo que a sua mãe fizesse só quando o seu pai não estava, alguma mudança nas suas rotinas?
— Não, nada disso.
— Não seja tão peremptório; tente puxar pela memória!
Hans se levantou e se colocou junto à janela grande. Através do chão, Wallander viu um músico de rua que tocava guitarra sentado na calçada com um chapéu ao seu lado. No entanto, nem um único som atravessava o vidro. Hans voltou a sentar.
— Pensando nisso... Disse hesitante ao retomar a palavra. — Não posso jurar, pode ser imaginação minha, memórias distorcidas que podem não corresponder à realidade. Mas talvez tenha razão; quando o meu pai estava fora, a minha mãe falava frequentemente ao telefone, sempre com a porta fechada. E nunca fazia isso quando ele estava em casa.
— O quê? Falar ao telefone ou fechar a porta?
— Nem uma coisa nem outra.
— Continue.
— Na ausência do meu pai, ela estava sempre trabalhando com documentos. E quando ele regressava, bem, tenho a sensação de que os papéis desapareciam e a única coisa que havia na mesa eram umas flores.
— Que tipo de papéis?
— Não sei, mas às vezes também havia desenhos. Wallander estremeceu.
— Desenhos? De quê?
— De atletas de salto para a água. A minha mãe desenhava muito bem.
— Salto para a água?
— Sim, de vários saltos, das fases diferentes de cada um deles, tipo "salto alemão com rotação" e coisas do gênero.
— Lembra-se de outros desenhos?
— Sim, acontecia me desenhar. Não sei onde estarão esses desenhos, mas eram muito bons.
Wallander partiu um biscoito em dois e molhou uma metade no café. Olhou o relógio. O músico que estava lá em baixo continuava a interpretar a sua melodia muda.
— Ainda não acabamos, observou Wallander. — Gostaria que me falasse das opiniões da sua mãe, em termos políticos, sociais e econômicos. O que ela pensava da Suécia?
— Nunca se falava de política em minha casa.
— Nunca?
— Quando muito, um dizia que "os militares suecos já não eram capazes de defender a Suécia" e o outro respondia que "isso é culpa dos comunistas", e coisas do gênero, mas pouco mais. Qualquer um deles podia dizer uma coisa ou outra. Claro que os dois eram conservadores, disso já falamos. E não passava pela cabeça de nenhum votar num partido que não fosse de direita. Os impostos eram muito altos, a Suécia acolhia muitos imigrantes que só tornavam as ruas inseguras. Acho que se poderia dizer que pensavam como seria de esperar deles.
— E nunca qualquer deles se afastou dessa norma?
— Não, nunca, que me lembre. Wallander assentiu enquanto comeu a outra metade do biscoito.
— Bem, falemos da relação dos seus pais, disse quando acabou de engolir. — Como era?
— Boa.
— Nunca discutiam nem se zangavam?
— Não. Acho que poderia se dizer que se amavam de verdade. Tenho pensado nisso, já quando adulto. Em criança, nunca tive medo de que se separassem; era uma ideia simplesmente inconcebível.
— Está bem, mas ninguém pode levar uma vida sem conflitos, não acha?
— Mas eles sim. A menos que discutissem quando eu estava dormindo, mas me custa acreditar.
Wallander não tinha mais perguntas, mas não se sentia disposto a se render ainda.
— Há mais alguma coisa que queira acrescentar sobre a sua mãe? Era amável e um pouco misteriosa ou enigmática, como já sabemos. Mas lhe digo francamente que acho estranho que saiba tão pouco dela.
— Sim, concordo, respondeu Hans com uma sinceridade que Wallander interpretou como sendo um sentimento de dor. — Quase nunca havia momentos de muita proximidade entre nós. Guardava sempre uma espécie de distância comigo. Se caía e me machucava, me consolava evidentemente, mas agora penso que era quase como se a intimidade a incomodasse.
— Havia outro homem na sua vida?
Não era uma pergunta que Wallander tivesse preparado de antemão, mas agora lhe pareceu óbvia.
— Nunca. Não creio que alguma vez tenha havido infidelidade entre os meus pais. Nem dele, nem dela.
— E antes de se casarem? O que sabe dessa época?
— Dá-me a sensação de que, uma vez que se conheceram muito jovens, não tiveram outros parceiros. Quero dizer, parceiros sérios. Mas não posso garantir, claro.
Wallander guardou o caderno no bolso do casaco. Não anotara fosse o que fosse, pois nada lhe pareceu de interesse. Na realidade, sabia tão pouco depois da conversa como antes de começar. Levantou-se, mas Hans não se moveu.
— E o meu pai? Ele lhe telefonou, não telefonou? Está vivo, mas não quer sair do seu esconderijo, é isso?
Wallander voltou a se sentar. O músico de rua já lá não estava.
— Não restam dúvidas de que foi ele quem telefonou. Isto é, não foi ninguém que imitou a sua voz. Assegurou-me que se encontrava em perfeito estado de saúde, mas não me explicou a sua conduta. Só queria que soubessem que está vivo.
— E realmente não lhe deu nenhuma pista sobre onde se esconde.
— Nada.
— O que lhe pareceu? Estava longe? Falava de um celular ou de um fixo?
— Não posso responder a isso.
— Porque não pode ou porque não quer?
— Porque não posso.
Wallander voltou a se levantar e os dois saíram da sala de vidro. Quando passaram em frente da sala de reuniões, a porta estava fechada, mas a inflamada discussão prosseguia lá dentro. Despediram-se na recepção.
— Fui de alguma ajuda? Perguntou Hans.
— Bem, ao menos foi sincero, respondeu Wallander. — É a única coisa que posso pedir.
— É uma resposta diplomática. Por outras palavras, não lhe facultei aquilo que esperava obter.
Wallander fez um gesto resignado com os braços. As portas de vidro se abriram e ele se despediu de Hans. O elevador levou-o ao térreo sem emitir qualquer som.
Deixara o carro estacionado na rua perpendicular próxima da Praça Kongens Nytorv. Fazia muito calor e Wallander despiu o casaco e desabotoou um pouco a camisa.
De repente, sem saber porquê, se sentiu vigiado. Virou-se para trás, mas a rua estava cheia de gente. Não viu nenhum rosto que lhe fosse familiar. Depois de caminhar uma centena de metros, parou em frente de uma vitrine de sapatos de senhora de marcas exclusivas. Olhou de relance o pedaço de rua que acabava de percorrer. Um homem consultava o relógio de pulso e depois passou o sobretudo do braço direito para o esquerdo. Wallander teve a impressão de já tê-lo visto da primeira vez que se voltara para trás. Observou de novo a vitrine e o homem passou por trás dele. Lembrou-se de uma coisa de que Rydberg lhe falara: "Não é sempre preciso estar atrás da pessoa que vigiamos. Também se pode ir à frente." Wallander contou cem passos antes de se virar de novo e olhar para trás. Já não havia ninguém que chamasse a sua atenção.
O homem do sobretudo desaparecera. Quando chegou ao carro se virou para olhar uma vez mais; as pessoas que circulavam por ali lhe eram totalmente desconhecidas. Meneou a cabeça. Teria sido certamente imaginação sua.
Regressou pela ponte comprida, parou no Restaurante Fars Hatt e depois seguiu direto para casa.
Ao sair do carro teve uma súbita falta de memória; ali estava com as chaves na mão, o capô do motor ainda quente. Uma vez mais, o pânico lhe sobreveio: Onde estive? Jussi começou a latir e a saltar do outro lado da grade. Wallander olhou para o animal ao mesmo tempo que fazia um esforço enorme para se lembrar. Olhava as chaves e o carro como se pudessem lhe fornecer uma resposta. Levou quase dez minutos até o lapso de memória se dissipar e conseguir se lembrar do que fizera naquele dia. Isto está piorando, constatou. Preciso saber o que está acontecendo comigo.
Tirou o correio da caixa e se sentou à mesa do jardim. Ainda estava em choque pela falha de memória que se apoderara dele uma vez mais. Foi só depois, quando já dera de comer a Jussi, que descobriu que havia uma carta entre os jornais que tirara da caixa de correio. No envelope não figuravam nem o nome nem o endereço do remetente. E Wallander não reconheceu a letra.
Quando abriu viu que era uma carta manuscrita de Hakan von Enke.
* * *
Trinta e Cinco
A CARTA trazia o carimbo de Norrkóping e dizia assim:
Há um homem em Berlim chamado George Talboth. É americano e trabalhou também na embaixada em Estocolmo; fala muito bem sueco e é considerado perito nas relações entre a Escandinávia e a União Soviética, hoje a Rússia. Conheci-o no final da década de 1960, quando chegou a Estocolmo; costumava acompanhar o adido da Defesa de então, Hotchinson, em recepções e visitas diversas a Berga, entre outras. Nós ficamos amigos, tanto ele como a sua mulher jogavam bridge e começámos a nos ver com frequência. Pouco a pouco, compreendi que estava vinculado à CIA. Não obstante, nunca tentou obter informações sensíveis que eu não tivesse o direito de lhe dar. Por volta de 1974, ou talvez um pouco mais tarde, diagnosticaram um câncer em sua mulher, Marilyn, o qual acabou com a sua vida pouco depois. Para George aquilo foi uma catástrofe; ele e a mulher tinham uma relação muito chegada, talvez mais profunda do que eu e Louise. Começou a nos visitar com mais frequência ainda, praticamente todos os domingos e muitas vezes também durante a semana. Em 1979 transferiram-no para Bona, e ficou na Alemanha depois da sua aposentadoria, mas em Berlim.
Naturalmente, é possível que ainda preste serviços ao seu país, oficiosamente, digamos. Em todo o caso, não saberia dizer. Falei com ele por telefone bastante recentemente, em dezembro. Embora já tenha setenta e dois anos é um homem intelectualmente ativo. É da opinião firme de que a Guerra Fria continua a ser uma realidade, mesmo hoje. Se bem que, quando o Império Soviético desmoronou, se produziu uma revolução que em muitos aspectos foi tão avassaladora como a de 1917, mas, na opinião de George, não foi mais do que um retrocesso ocasional, uma fraqueza momentânea.
E pensa que o seu ponto de vista se veio a revelar correto, que a Rússia está cada vez mais forte e imporá cada vez mais exigências ao mundo circundante. Permiti-me lhe escrever umas linhas e lhe pedi que entre em contato consigo. Se alguém pode ajudá-lo a procurar uma explicação para a morte de Louise, essa pessoa é George.
Espero que não leve a mal que tente contribuir desta maneira para o que considero os esforços sinceros da sua parte.
Subscrevo-me com a maior das atenções,
Hakan von Enke
Wallander pousou a carta na mesa da cozinha. Claro que era muito positivo que Hakan von Enke tivesse querido lhe transmitir o nome de um contato, mas mesmo assim não gostava nada daquela carta. Voltou a ter a sensação de que havia algo que não conseguia ver. Leu-a uma vez mais, muito devagar, como se caminhasse por um campo minado. "Há que interpretar as cartas", lhe dissera Rydberg. Uma pessoa deve saber o que faz, sobretudo se a carta puder ser importante para a investigação de um crime. Mas o que se podia interpretar ali? Dizia o que dizia. Wallander foi para o computador e fez uma pesquisa no Google do nome George Talboth; obteve vários resultados, mas nenhum assertivo. Só para não dar o braço a torcer, introduziu a sigla CIA e, perante o seu espanto, apareceu uma hiperligação a um instituto culinário.
Além da CIA verdadeira, obviamente.
Desligou o computador e foi medir o índice de açúcar no sangue e desta vez não se alegrou tanto com o resultado: 184, muito alto. Não tinha sido rigoroso nem com os comprimidos de Metformina nem com a administração da insulina. Depois de espiar no armário, constatou que dentro dos próximos dias teria de repor o seu arsenal de medicamentos.
Todos os dias tomava nada menos que sete comprimidos diferentes, para a diabetes, para a hipertensão arterial e para o colesterol. Não gostava, encarava-o como uma derrota, ainda mais quando sabia que muitos dos seus colegas não precisavam de nenhuma medicação. Pelo menos era isso que diziam. Rydberg repudiava todos os preparados da farmácia; nem sequer tomava aspirina para a dor de cabeça que muitas vezes o atormentava. Todos os dias me enfrasco com uma quantidade de substâncias químicas das quais não sei nada, na realidade, disse para com os seus botões. Acredito piamente nos meus médicos e nas farmacêuticas, sem nunca questionar as suas prescrições.
Ninguém imaginava que estava dependente de toda aquela medicação, nem a sua filha. Apesar de Linda costumar ir lá, ela também não sabia que já começara a se injetar com insulina, pois ele tomara o cuidado de esconder as embalagens atrás de uns frascos de chutney de manga, uma coisa que sabia em que ela não tocaria.
Leu a carta repetidas vezes, sem descobrir qualquer segunda intenção naquilo que dizia. Hakan von Enke não lhe enviara nenhuma mensagem oculta.
Às sete horas da tarde Olofsson chegou inesperadamente, o seu vizinho mais próximo. Pelo cheiro, vinha diretamente do estábulo. Era um homem corpulento e lhe faltavam alguns dentes, mais parecia um jogador de hóquei do que um camponês de Skâne. Veio para lhe perguntar sobre o pequeno terreno de lavoura que Wallander possuía, mas que nunca cultivava: havia a possibilidade de poder arrendá-lo? No próximo ano tencionava oferecer um pônei à neta no seu aniversário e precisava de um pedaço de pasto para o animal. Naturalmente Wallander aceitou, mas se recusou a cobrar alguma coisa por isso, pois os vizinhos tomavam conta de Jussi de cada vez que ele se ausentava. Olofsson era muito falador e Wallander depressa compreendeu que não iria embora sem que o convidasse para um café. Falaram um pouco de tudo, do tempo instável e de bezerros fugidos das suas propriedades. Olofsson sentiu curiosidade e começou a lhe perguntar sobre vários crimes dos quais soubera pelo jornal Ystads Allehanda.
Eram quase dez horas da noite quando o vizinho finalmente levantou o corpo pesado da cadeira e se encaminhou para o trator. Firmaram o acordo sobre o terreno com um aperto de mão. Wallander se sentia esgotado quando entrou em casa. A carta de Hakan von Enke continuava ali sobre a mesa; começou a lê-la uma vez mais, mas deixou-a no meio, convencido de que procurava em vão algo que não existia.
Naquela noite sonhou com o pai. Viu-o ali fora, no pequeno prado que prometera ceder a Olofsson, acariciando o seu cavalete como se se tratasse de um cavalo.
Acabava de sair da cama, pouco depois das sete da manhã, quando o telefone tocou. Pensou que só Linda podia telefonar tão cedo agora que estava de férias. Levantou o auscultador.
— É Knut Wallander?
Era a voz de um homem. Apesar de falar um sueco impecável, Wallander detectou um ligeiro sotaque.
— Suponho que o senhor seja George Talboth, disse Wallander. — Esperava a sua ligação.
— Sugiro que nos tratemos por você. Eu sou George e você é Knut
— Não, não é Knut, é Kurt.
— Ah, Kurt, Kurt Wallander. Desculpe, misturo alguns nomes. Quando chega?
Wallander ficou perplexo perante tal pergunta. O que teria dito Von Enke ao homem?
— Bom, não contava ir a Berlim. Só ontem é que soube da sua existência, através de uma carta.
— Hakan disse que com certeza estaria disposto a vir.
— E não pode vir aqui?
— Não tenho carteira de motorista. E detesto viajar de avião e de trem.
Um americano que não tem carteira de motorista. Deve ser uma pessoa mesmo singular.
— Talvez possa lhe ajudar, prosseguiu George Talboth. — É que conhecia Louise. Tão bem quanto Hakan. E ela se dava também lindamente com Marilyn, a minha mulher, iam muitas vezes lanchar juntas. Marilyn me contava sempre das suas conversas.
— Ah, é? E de que falavam?
— O tema principal da conversa de Louise era política, enquanto Marilyn não se interessava muito por isso. Mas não se importava de ouvir.
Wallander franziu a testa. Hans não lhe dissera exatamente o contrário ? Não garantira que a sua mãe nunca falava de política, a não ser de forma passageira, em alguma conversa com o marido?
De repente, a ideia de ir a Berlim para falar com George Talbot lhe pareceu boa, pois não visitava a cidade desde o desmoronamento da Alemanha do Leste. Por outro lado, estivera em Berlim Oriental duas vezes com Linda, durante a sua época de obsessão pelo teatro. cedera ao seu desejo insistente de ir ao Berliner Ensemble. Ainda lembrava com mal-estar de como os policiais da RDA entravam bruscamente no compartimento do trem no meio da noite para pedir os passaportes. Ambas as vezes, Linda e ele ficaram alojados num hotel da Praça Alexanderplatz. Wallander nunca se sentiu à vontade ali.
— Talvez não seja má ideia eu ir aí. Posso ir de carro, até.
— E fica na minha casa, evidentemente, decidiu George Talboth. — Tenho um apartamento em Schõneberg. Quando vem?
— Quando poderá me receber?
— Sou viúvo, de modo que pode vir quando quiser.
— Depois de amanhã?
— Dou-lhe o meu número de telefone e liga quando estiver chegando a Berlim para que o oriente até à minha casa. O que gosta mais, carne ou peixe?
— As duas coisas.
— E o vinho?
— Tinto.
— Assim já sei tudo o que precisava saber. Tem com que escrever? Wallander anotou o número na margem da carta de Hakan von Enke.
— É bem-vindo, disse George Talboth. — Se não me engano, a sua filha é casada com o jovem Hans von Enke, não é?
— Bem, não propriamente; têm uma filha, Klara, mas ainda não se casaram.
— Ah. Traga uma fotografia da sua neta.
Wallander se despediu. Tinha fotografias de Klara um pouco por toda a casa. Tirou duas que havia na parede da cozinha, fixadas com alfinetes, e deixou-as sobre a mesa junto com o passaporte. Tomou o café da manhã enquanto consultava o atlas para calcular a distância entre Berlim e o porto de Sassnitz. Telefonou para a companhia que fazia as travessias desde Trelleborg, onde o informaram dos horários, que anotou enquanto pensava com satisfação na viagem que tinha pela frente. Este verão ficará na minha memória pelas inúmeras viagens de carro, disse para si mesmo. Tal como acontecia quando a Linda era pequena e íamos de férias a Dinamarca ou a Gotlândia e uma vez até fomos a Hammerfest, no Norte da Noruega.
No dia 23 de julho se sentou ao volante e pegou a estrada da costa em direção a Trelleborg, o ferryboat e o continente. Dissera a Linda que pensava gozar uns dias de férias em Berlim e ela não suspeitou nem perguntou nada; apenas disse que tinha inveja. Wallander viu nas notícias que havia uma onda de calor em Berlim e em toda a Europa Central. Decidiu não ir direto para Berlim, deixaria a autoestrada no meio caminho e se alojaria em algum hotel modesto, pois não tinha pressa.
Comeu no ferryboat, partilhou mesa com um camioneiro bastante falador que lhe contou que ia a Dresden com várias toneladas de comida para cães.
— Então os cães alemães são alimentados com comida sueca. Porquê? Perguntou Wallander.
— Boa pergunta. Mas deve ser consequência do mercado livre, não acha?
Wallander saiu para o convés. Percebeu por que motivo muita gente escolhia um emprego a bordo de um barco. Tal como fizera Hakan von Enke, embora no seu caso passasse longos períodos da vida abaixo da superfície. O que fará uma pessoa querer ser comandante de um submarino? Perguntou-se. Mas, por outro lado, deve haver muita gente que se pergunta porque alguém decide ser policial. O meu próprio pai era uma delas.
Antes de chegar a Sassnitz, parou num estacionamento, mudou de camisa e vestiu bermuda e calçou sandálias. Por um instante, a ideia de poder ficar onde quisesse, se alojar e comer onde tivesse vontade, encheu-o de felicidade. A liberdade é isto, constatou e sorriu perante essa ideia algo patética. Um velho policial se põe a milhas, fugindo de si mesmo.
Guiou até chegar a Oranienburg, a uns quilômetros de Berlim, quando decidiu parar para passar a noite. Teve de procurar um pouco antes de encontrar um hotel adequado e por fim escolheu o Kronhot, nas imediações da cidade. O recepcionista tinha alguma idade e usava um bigode vistoso. Ao ver que Wallander era sueco, disse que muitas vezes tinha pensado em comprar uma pequena casa de férias em alguma área da Suécia, rodeada pela floresta. Não teria o senhor Wallander a gentileza de lhe recomendar uma região apropriada?
— Smâland, respondeu Wallander. — Ali há montes de casas vazias à espera de um novo proprietário.
O recepcionista lhe deu um quarto de esquina do terceiro andar. Era grande e estava decorado com muitos móveis escuros e pesados, mas Wallander não desgostou.
Encontrava-se no último andar, ninguém o acordaria com os seus passos durante a noite. Vestiu umas calças e deambulou pela cidade durante umas horas, bebeu um café, entrou numa loja de antiguidades e voltou para o hotel. Eram cinco horas da tarde e tinha fome, mas decidiu esperar pelo jantar. Deitou-se na cama com uma revista de palavras cruzadas e mal solucionara as primeiras palavras já estava dormindo. Quando acordou, eram sete e meia. Desceu para o restaurante e se sentou numa mesa de canto. Havia pouca gente na sala, pois ainda era cedo. Uma garçonete que o fez lembrar Fany Klarström lhe entregou a ementa; comeu um Wienerschnitzel que acompanhou com vinho. Os clientes iam chegando e a maioria parecia se conhecer. Wallander pediu uma musse de chocolate para sobremesa, apesar de saber que não deveria comer tanto açúcar. Bebeu outro copo de vinho e começou a notar a embriaguez. Bem, pelo menos não trago nenhuma arma de que possa me esquecer, disse para si mesmo. Aqui não corro o risco de ter de enfrentar um Martinsson colérico logo de manhã.
Ficou ali até às nove, pediu a conta e subiu para o quarto. Foi se deitar, mas não conseguiu conciliar o sono por causa da sensação de desassossego que subitamente o assaltou, estragando o bem-estar que sentira ao jantar. Finalmente desistiu, voltou a se vestir e retornou ao restaurante. Havia um bar independente, onde se sentou e pediu um copo de vinho. No balcão havia alguns homens de certa idade que bebiam cerveja. As mesas estavam vazias, menos uma ao seu lado, ocupada por uma mulher de meia-idade. Tinha um copo de vinho branco à sua frente e estava enviando uma mensagem de celular. Olhou-o com um sorriso distraído, que ele devolveu, e levantaram os copos num brinde silencioso antes de ela voltar a se ocupar do seu celular. Wallander pediu mais um copo de vinho e também outro para a mulher.
Ela agradeceu, guardou o celular e passou para a sua mesa. No seu inglês macarrônico, Wallander lhe contou que era sueco e que estava a caminho de Berlim. Como não sabia como se pronunciava Kurt em inglês, disse que se chamava James.
— Mas James é um nome sueco? Perguntou a mulher.
— Bem, a minha mãe era irlandesa, mentiu Wallander.
Sorriu disfarçadamente ao pensar naquela mentira ridícula. Perguntou como se chamava; "Isabel", foi a resposta. A mulher lhe falou do crescimento enorme de Berlim, que dentro de poucos anos teria engolido Oranienburg. Wallander observava-a: tinha umas feições muito marcadas, estragadas, e estava muito maquiada. Perguntou-se se não seria uma mulher da vida que usava aquele bar como terreno de caça. No entanto, não se veste de forma provocatória, disse Wallander para si mesmo. Além disso, não ando atrás de prostitutas.
Quem seria aquela Isabel a quem acabava de convidar para um copo de vinho? Segundo ela, era florista, divorciada com filhos já adultos e vivia num apartamento sehrschön na opinião dela, num prédio perto de um parque ao qual tentou explicar como chegar. Mas Wallander não estava interessado nem em parques nem em direções, a mulher começava a atraí-lo e já a imaginava nua na cama do seu quarto, para onde tencionava levá-la. Ela estava um pouco ébria, isso era evidente, e ele também não deveria beber mais. Era quase meia-noite, o empregado do bar anunciou que era hora de pedir a última bebida. Wallander pediu a conta e disse a Isabel que gostaria de convidá-la para outro copo no seu quarto. Era a primeira vez nessa noite que deixava claro que estava alojado no hotel, mas ela não pareceu surpresa, talvez já soubesse. Haveria uma linha de comunicação invisível entre o bar e a recepção? Fosse como fosse, não pensou mais nisso, pagou a conta, deixou grande gorjeta e guiou-a pela recepção deserta até ao seu quarto. Uma vez fechada a porta, lhe confessou a triste verdade: não tinha nada para lhe oferecer para beber e também não havia minibar no quarto, o hotel não estava equipado com tais luxos, como também não dispunha de serviço de quarto. No entanto, a mulher sabia a que se prestara ao aceitar o convite e abraçou-o de repente. Wallander sentiu um desejo louco que foi incapaz de controlar; não se lembrava da última vez que se deitara com uma mulher. No corpo daquela Isabel tentou reconhecer Baiba ou Mona ou outras mulheres há muito esquecidas. Tudo aconteceu muito rápido e, quando Wallander sentiu novamente o desejo ansioso, ela já adormecera. Não conseguiu acordá-la, e tentar fazer amor com uma mulher que dormia e ressonava estava muito longe daquilo que porventura planejara fazer. Não lhe restava outra alternativa senão tentar dormir também, e assim fez, com uma mão entre as coxas transpiradas da mulher.
E ali continuava a sua mão quando acordou de madrugada. Doía-lhe a cabeça, tinha a boca seca e resolveu fugir imediatamente, tanto do quarto como de Isabel, que dormia ao seu lado. Vestiu-se em silêncio, consciente de que não se devia pôr ao volante, mas era impossível ficar ali. Pegou a mala e desceu para a recepção, onde um jovem dormia numa tarimba estendida debaixo do armário em que guardavam as chaves. Wallander acordou-o e o jovem preparou a conta e devolveu o troco.
Wallander deixou a chave no balcão junto com uma nota de dez euros.
— Deixei uma mulher dormindo no meu quarto. Suponho que isto chega para ela também.
— Alies klar, respondeu o jovem com um bocejo.
Wallander se apressou a chegar ao carro e rumou para Berlim, mas, assim que viu um estacionamento, virou, estacionou e se enrolou no banco de trás para dormir. Arrependia-se profundamente do acontecido durante a noite, mas tentou se convencer de que não era assim tão grave. Apesar de tudo, a mulher não exigira dinheiro. E também estava convencido de que ela não o vira como alguém totalmente repugnante.
Acordou às nove horas e continuou em direção a Berlim. Telefonou para George Talboth de um motel da autoestrada. O seu anfitrião tinha um mapa na mão e não demorou nada a localizar onde Wallander se encontrava.
— Estarei aí dentro de uma hora, assegurou. — Espere-me lá fora e desfrute do bom tempo.
— Como virá? Não disse que não tinhas carteira de motorista?
— Conseguirei maneira.
Wallander pediu um café num copo de papel e se sentou a sombra à frente do restaurante do motel. Perguntou-se se Isabel teria acordado e se estaria se perguntando o que seria feito dele. Quase não se lembrava de nenhum detalhe do seu desajeitado e insensível encontro amoroso; até se perguntava se, de fato, teria acontecido. Só se recordava de fragmentos vagos que, para cúmulo, o envergonharam. Foi buscar mais café e comprou um sanduíche embrulhado em plástico. É pior do que mastigar uma esponja, disse para si mesmo. Depois de se obrigar a comer metade, deu o resto aos pombos, que vieram debicar as migalhas do chão.
Passou uma hora sem que alguém aparecesse perguntando por um policial sueco. E mais quinze minutos se passaram até que um Mercedes preto com matrícula diplomática parou em frente à entrada do motel. Wallander percebeu que era George Talboth. Um homem de terno branco e óculos de sol saiu do veículo e olhou à sua volta antes de descobrir a presença de Wallander; se aproximou e tirou os óculos.
— Kurt Wallander?
— Sim, sou eu.
George Talboth tinha quase dois metros de altura, era corpulento e teria estrangulado Wallander com o seu aperto de mão firme se, em vez de lhe estender a mão, o tivesse agarrado pelo pescoço.
— Peço desculpas por chegar tarde, mas havia mais trânsito do que esperava.
— Segui o seu conselho e estive desfrutando do bom tempo, sem pensar na hora.
George Talboth levantou a mão e se despediu do motorista invisível do Mercedes, que foi embora.
— Ajudam-me sempre que preciso, explicou Talboth. — Vamos!
Entraram no Peugeot de Wallander. Talboth mostrou ser um verdadeiro GPS que, sem qualquer hesitação, o foi orientando entre o trânsito cada vez mais denso. Pouco mais de uma hora depois, pararam diante de um bonito prédio do bairro de Schóneberg. Wallander pensou que seria um dos raros edifícios que tinham sobrevivido ao final da Segunda Guerra Mundial, quando Hitler se matou com um tiro no seu abrigo subterrâneo, e o Exército Vermelho abriu caminho através da cidade, numa luta renhida.
Talboth vivia num apartamento de seis dependências no último andar; o quarto de hóspedes à disposição de Wallander dava para um pequeno parque.
— Vou deixá-lo sozinho umas horas, disse Talboth. — Tenho uns assuntos para tratar.
— Está bem, eu me governo.
— Quando voltar, teremos todo o tempo do mundo. Há um restaurante italiano perto daqui com uma comida excelente. Aí podemos falar à vontade. Quanto tempo pensa em ficar?
— Não muito. Na verdade, tinha a intenção de retornar amanhã. George Talboth negou com um gesto enérgico.
— Está fora de questão. Simplesmente não se pode vir a Berlim por tão pouco tempo; seria um insulto a esta cidade, testemunha de tão trágicos acontecimentos históricos.
— Falaremos disso mais tarde, se desculpou Wallander. — Mas, como disse há pouco, também os homens mais velhos às vezes têm assuntos para resolver.
George Talboth se contentou com a resposta, lhe indicou onde ficavam o banheiro, a cozinha e uma varanda espaçosa, e foi embora. Wallander se pôs junto à janela e viu-o partir uma vez mais no Mercedes preto. Tirou uma cerveja da geladeira e bebeu-a na varanda, diretamente da garrafa. Para ele, foi uma maneira de se despedir da mulher que conhecera na noite anterior, e a partir de agora deixaria de existir, a não ser como uma vaga memória incômoda nos seus sonhos. Costumava ser assim; as mulheres que ele amara de verdade raramente povoavam os seus sonhos. Por outro lado, as experiências que o tinham atormentado apareciam frequentemente.
Pensou que se recordava daquilo que queria esquecer e que se esquecia do que deveria ter presente na sua memória. Havia algo profundamente errado no seu modo de viver; não sabia se o mesmo acontecia a todas as pessoas. Com que Linda sonhava? E Martinsson? Ou como eram os sonhos de Lenart Mattson, o seu chefe impertinente?
Tomou mais uma cerveja e, um pouco tocado, encheu a banheira de água. Depois do banho e uma vez vestido, se sentiu mais animado.
George Talboth voltou duas horas mais tarde. Sentaram-se na varanda, que já estava à sombra, e começaram a falar.
E nesse momento Wallander reparou numa pequena pedra que havia sobre a mesa. Uma pedra que não lhe pareceu de todo estranha.
* * *
Trinta e Seis
UMA DÚVIDA perseguiu Wallander todo o tempo que passou com George Talboth. O seu anfitrião teria notado que ele reparara na pedra em cima da mesa? Ou não? Quando foi embora para casa no dia seguinte, Wallander continuava sem ter certeza. No entanto, ficara convencido de que George Talboth era um homem perspicaz.
Há uma atividade intensa atrás daqueles olhos, disse para si mesmo. O seu cérebro é uma máquina em perfeitas condições. O fato de às vezes parecer distraído e quase ausente não se deve interpretar como falta de atenção. A única coisa de que tinha certeza era que a pedra que desaparecera de cima da mesa de Hakan von Enke se encontrava agora na varanda de George Talboth. Ou então uma cópia exata dela. A ideia da cópia podia se aplicar ao próprio Talboth. Já no motel, Wallander tivera a sensação de que George Talboth se parecia com alguém, de que tinha um sósia.
Não necessariamente alguém que ele conhecesse em pessoa, mas antes uma pessoa que vira em algum lugar, sem que agora se lembrasse de onde ou de quem se tratava.
A noite, mesmo antes de irem jantar, achou a resposta: Talboth era parecido com o ator Humphrey Bogart, embora fosse mais alto e não tivesse o eterno cigarro pendurado no canto da boca. E não se tratava apenas de uma semelhança física, havia também algo na voz que Wallander reconheceu de filmes como O Tesouro de Sierra Madre e Uma Aventura na África. Perguntou-se se Talboth tinha consciência disso e supôs que teria; dava a impressão de ser um homem muito consciente.
Antes de se sentar para conversar na varanda, George Talboth demonstrou ter mais um coelho na cartola. Abriu a porta até então fechada de uma das salas do apartamento, em cujo interior havia um aquário enorme com peixes brilhantes, cardumes de tons vermelhos e azuis, que se moviam silenciosos atrás do vidro grosso. A sala estava cheia de tanques de água e tubos de borracha, mas o que mais espantou Wallander foi que no fundo do aquário apareciam túneis, engenhosamente construídos, nos quais circulavam trens elétricos. Os túneis eram transparentes, como um vidro dentro de outro. E neles não entrava uma única gota de água. Os trens circulavam neles a grande velocidade sem que os peixes parecessem reparar nessa ferrovia que cobria o seu fundo marítimo artificial.
— O túnel é praticamente uma cópia daquele que une Dover e Calais, explicou Talboth. — Utilizei os desenhos originais e certos pormenores da construção para realizar este modelo.
Wallander pensou em Hakan von Enke, na sua cabana com o barco dentro da garrafa. Existe uma relação além da amizade, pensou. Mas não sei quais as suas implicações.
— Gosto muito de trabalhos manuais, prosseguiu Talboth. — Não faz bem a uma pessoa utilizar só o cérebro. Acontece o mesmo consigo?
— Não, não creio. O meu pai tinha muito jeito, mas eu não herdei nada dessa habilidade.
— O que fazia o seu pai?
— Produzia quadros.
— Era artista, então. Porque empregou a palavra "produzir"?
— Bem, o meu pai era uma pessoa um tanto especial, respondeu Wallander. — Na realidade, pintou um único motivo na sua vida. Não há muito a falar sobre isso.
Talboth percebeu a relutância de Wallander e não fez mais perguntas. Observaram os movimentos lentos dos peixes e os trens que se precipitavam pelos túneis. Wallander notou que não cruzavam exatamente no mesmo lugar, existia uma diferença mal perceptível à primeira vista. Também observou que num determinado pedaço os trens avançavam pela mesma via. Hesitou um instante, mas passado um pouco perguntou por esse detalhe. Talboth confirmou:
— É muito observador. É isso mesmo, incorporei um certo atraso no sistema.
Tirou uma ampulheta de uma prateleira que Wallander não tinha visto quando entrara na sala.
— Esta areia vem da África Ocidental, explicou Talboth. — Das praias das ilhas que compõem o pequeno arquipélago de Bubaque, próximo da Guiné-Bissau, um país do qual a maioria das pessoas desconhece o nome. Um velho almirante inglês decidiu que esta era a areia perfeita para a armada inglesa, quando usavam ampulhetas para medir o tempo. Se tivesse virado a ampulheta no mesmo momento em que apertei o interruptor e coloquei os trens em marcha teria verificado que um deles alcançaria o outro exatamente aos cinquenta e nove minutos. Faço-o de vez em quando para controlar que a areia não desce mais devagar ou que a tensão do transformador não diminuiu.
Quando criança, Wallander sonhara ter um trem da marca Màrklin mas o seu pai nunca pudera comprar. A ideia de possuir trens como os que agora circulavam à sua frente ainda constituía uma espécie de sonho inatingível.
Sentaram-se na varanda. A tarde estival ainda era quente e Talboth pôs um jarro com água gelada e dois copos na mesa. Wallander pensou que não havia razão alguma para não ir direto ao assunto. A sua primeira pergunta era óbvia.
— O que pensou ao saber que Louise tinha desaparecido? Talboth não afastou os seus olhos claros de Wallander.
— Digamos que não me surpreendi muito.
— Porque não? Talboth encolheu os ombros.
— Não vou contar tudo o que já sabe. As suspeitas cada vez mais insustentáveis de Hakan, ou talvez devêssemos antes dizer a sua certeza de estar casado com uma traidora da pátria. Diz-se assim? O meu sueco nem sempre é totalmente correto.
— Sim, confirmou Wallander. — Quem se dedica a espionagem é geralmente traidor da sua pátria. Quando não se dedica a algo mais específico, como à espionagem industrial.
— Hakan foi embora porque não suportava mais, continuou Talboth. — Escondeu-se porque precisava de tempo para pensar. Quando Louise desapareceu, ele já estava decidido; pensava entregar as provas de que dispunha ao serviço de informações militares. Tudo devia se desenrolar segundo o protocolo; não pensava se livrar nem proteger a sua reputação. Naturalmente, sabia perfeitamente que Hans também seria afetado, mas era inevitável. Afinal, se transformou numa questão de honra. Quando Louise desapareceu, ficou perplexo e o seu medo aumentou. Depois de diversas conversas ao telefone que mantive com ele, comecei a me preocupar. Era quase como se sofresse de mania de perseguição. A sua única explicação para o fato de Louise ter desaparecido era que, de alguma forma, tinha adivinhado o que ele tencionava fazer. Tinha medo que ela descobrisse onde se encontrava ou, se não ela, algum dos chefes do serviço de informações russo. Hakan estava convencido de que Louise tinha sido e ainda era tão importante que não hesitariam em matá-lo para impedir quaisquer revelações. Mesmo sendo ela já muito velha naquele momento para continuar a trabalhar na ativa como espiã, ainda era essencial que não fosse descoberta. Logicamente, os russos não queriam revelar o que sabiam. Ou o que não sabiam.
— O que pensou quando se disse que tinha se suicidado?
— Nem por um instante dei crédito a essa hipótese, pois para mim era óbvio que tinha sido assassinada.
— Porquê?
— Respondo com uma pergunta: porque havia de se suicidar?
— Bom, talvez tivesse remorsos, talvez compreendesse a tortura a que sujeitava o marido; pode haver mil razões possíveis. No meu trabalho como policial tenho visto muitas pessoas que se mataram por motivos muito menos sérios.
Por um instante, Talboth ponderou as palavras de Wallander.
— Sim, claro, pode ser. Vejo que não lhe dei uma imagem completa de Louise. É que eu conhecia-a e, embora fosse uma mulher que escondia boa parte da sua identidade, conheci-a muito bem: não era daquelas que se suicidam.
— Mas porque acha isso?
— Há pessoas que simplesmente nunca se suicidariam. Só isso. Wallander meneou a cabeça.
— Pois a minha experiência é outra, insistiu. — Aprendi que toda a gente, em certas circunstâncias extremas, é capaz de se suicidar.
— Está bem, não penso contradizê-lo; pode pensar o que quiser daquilo que lhe acabo de dizer sobre Louise. Longe de mim de duvidar que a sua experiência como policial seja importante, mas talvez não devamos menosprezar a experiência que uma pessoa vai ganhando durante uma longa vida na ativa no serviço secreto americano.
— Está bem, agora sabemos que foi assassinada. E também que levava documentos secretos na bolsa.
Talboth levantou o copo para beber água. Franziu a testa e pousou o copo sem ter bebido. De repente, Wallander pensou detectar no outro uma alteração na atenção.
— Ah, sim? Não sabia. Levava material confidencial que agora está no poder da polícia?
— E, na realidade, não deveria saber. Não deveria ter contado mas faço-o por Hakan e dou por certo que ficará entre nós.
— Não direi nada, isso também se aprende no serviço secreto . No dia em que uma pessoa se reforma, todos os seus conhecimentos devem se apagar. Deve limpar a memória da mesma maneira como noutros trabalhos as pessoas limpam o arquivo e a mesa ao se aposentarem.
— O que diria se lhe revelasse que Louise muito provavelmente foi assassinada com métodos utilizados na antiga Alemanha do Leste? Métodos destinados a encobrir execuções fazendo com que parecessem suicídios.
Talboth assentiu lentamente. Uma vez mais, levou o copo de água com gelo à boca e desta vez bebeu.
— É algo que também acontece na CIA, assegurou. — Naturalmente, nós também temos nos visto obrigados a liquidar pessoas. Com bastante frequência, aliás, e de forma que ninguém duvide que se trata de suicídios.
Wallander não estranhou a renitência de Talboth em falar daquilo que não tinha uma ligação direta com Hakan e Louise von Enke, mas estava decidido a ir tão longe quanto fosse possível com as suas indagações.
— Portanto, podemos dar por certo que Louise foi assassinada, observou.
— Há alguma possibilidade de o serviço secreto sueco a ter liquidado?
— Não, na Suécia as coisas não funcionam assim. Por outro lado, nada indica que tenha sido descoberta. Isto é, não temos nem assassino nem um motivo credível.
Talboth moveu a cadeira de vime em que estava sentado para a sombra. Ficou em silêncio um momento, mordendo o lábio inferior.
— Quase que se poderia pensar que se trata de um crime passional, sugeriu por fim.
Endireitou-se na cadeira com interesse renovado.
— Claro, trabalhar na Suécia nunca foi o mesmo que estar colocado atrás da Cortina de Ferro, enquanto existia, prosseguiu. — Aquele que era descoberto morria executado quase invariavelmente. Pelo menos, se não fosse um agente tão importante que pudesse ser trocado, um traidor em troca de outro. Os espiões podem perder a agudeza quando estão muito tempo na ativa, sempre expostos a que a sua identidade se revele. Pode haver demasiada pressão, fazendo com que se ataquem entre si; a violência se exerce de dentro. Quando um obtém muito êxito, podem surgir invejas, e a concorrência vem substituir o espírito de colaboração e de lealdade. No caso de Louise, não é impensável que fosse isso, por uma razão muito especial.
Agora foi a vez de Wallander mover a cadeira para a sombra. Inclinou-se para alcançar o copo de água. O gelo já derretera.
— Como Hakan já lhe contou, há muito que circulam rumores sobre um espião sueco, continuou Talboth. — A CIA sabe há anos. Quando trabalhava na embaixada em Estocolmo, investimos uma série de recursos nessa questão. O fato de alguém vender segredos militares aos russos constituía um problema, para nós e para a OTAN. A Suécia contava com uma indústria bélica de ponta em inovações técnicas. Mantínhamos negociações regulares com os nossos colegas suecos acerca dessa situação delicada, e também com colegas britânicos, franceses e noruegueses. Enfrentávamos um agente de habilidade extraordinária. Também sabíamos que com certeza existia um intermediário, um informante, do lado sueco; alguém que entregava a informação ao agente, que, por sua vez, a fazia chegar aos russos. E nos surpreendia o fato de nunca encontrarmos, ou melhor, dos nossos colegas suecos nunca encontrarem a menor pista. Os suecos tinham uma lista que incluía vinte nomes, todos de oficiais dos diversos ramos das Forças Armadas, mas os investigadores suecos nunca chegaram a qualquer conclusão. E nós não podíamos ajudá-los; era como se estivéssemos à caça de um fantasma. Algum esperto se lembrou de chamar ao sujeito Diana, como a noiva de O Fantasma. A mim me pareceu ridículo, antes de tudo porque não havia nenhum indício que permitisse pensar que houvesse uma mulher implicada. No entanto, o tempo demonstraria que a comparação daquele pateta foi bastante acertada, embora não soubesse. Enfim, essa foi a situação até março de 1987, até 8 de março, mais precisamente. Nesse dia aconteceu uma coisa que veio alterar a situação por completo: vários oficiais do serviço secreto sueco ficaram em maus lençóis, e isso nos obrigou a todos a raciocinar de outra forma. Não creio que Hakan tenha lhe falado disso, ou falou?
— Não.
— Tudo começou perto de Amsterdam, no Aeroporto de Schiphol, uma manhã muito cedo. De repente, se apresentou um homem no escritório da polícia do aeroporto. Vestia um terno largo, camisa branca e gravata. Levava uma pequena mala na mão, um sobretudo no braço e um chapéu na outra mão. Pelo seu aspecto devia parecer vindo de outra época, talvez de um filme em preto e branco com música de fundo lúgubre. Falou com um policial que na realidade era muito jovem para aquela tarefa, mas havia uma epidemia de gripe e tinham-no colocado ali para cobrir uma baixa, então agora se via à frente de um homem que num mau inglês procurava asilo político nos Países Baixos. Mostrou um passaporte russo segundo o qual o indivíduo se chamava Oleg Linde. Um nome pouco habitual num russo, poderia se pensar, mas era verdade. Tinha quarenta anos, cabelo curto e uma cicatriz na asa do nariz. O jovem policial, que nunca tinha se visto cara a cara com um refugiado do Leste, chamou um colega mais velho e experiente, que ficou encarregado do assunto. Antes que o policial, que se não me engano se chamava Geert, começasse a fazer perguntas, Oleg Linde contou a sua história. Li o relatório tantas vezes que penso que conheço o essencial quase de memória. Era coronel da KGB, da unidade especial de espionagem ocidental, e procurava asilo político porque não queria continuar a participar na tarefa de manter de pé o Império Soviético em vias de desabar. Aquelas foram as suas primeiras palavras, depois começou a lançar a isca que tinha preparado, o fato de conhecer muitos dos espiões russos que operavam no Ocidente. Sobretudo alguns dos agentes mais habilidosos que tinham a sua base na Holanda. A partir daí, o pessoal do serviço secreto tomou conta dele. Levaram-no para um apartamento em Haia, muito próximo do edifício do Tribunal Internacional, por mais irônico que possa parecer, onde o "desmantelaram", conforme a expressão dos colegas holandeses.
Não precisaram de muito tempo para comprovar que o Oleg Linde era autêntico. Mantiveram a sua identidade em segredo, mas começaram a comunicar aos colegas de todo o mundo que dispunham de uma peça magnífica, uma verdadeira "antiguidade". Gostariam de vir ver? Estudar a peça exaustivamente? Chegavam relatórios de Moscou segundo os quais o KGB estava histérico, o pessoal corria como formigas assustadas em cujo formigueiro alguém tivesse remexido com um pau. Oleg Linde era um dos elementos que simplesmente não podiam perder. E agora tinha desaparecido sem deixar rastro, e Moscou temia o pior. Souberam que se encontrava na Holanda quando se desfez a rede de agentes soviéticos ali destacados. Oleg Linde tinha começado os seus "grandes saldos", como se costuma dizer no nosso meio. E não era exatamente caro, apenas pedia um nome e uma identidade novos. Pelo que sei, foi viver nas ilhas Maurícias e se instalou numa cidade com o nome maravilhoso de Pamplemousse, onde ganhava a vida como marceneiro. Ao que parece, Oleg Linde era carpinteiro antes de chegar ao KGB. Bem, não estou muito seguro dessa parte da história.
— E o que faz agora?
— Dorme o sono eterno; morreu de câncer em 2006. Nas Maurícias conheceu uma jovem com quem se casou e que lhe deu vários filhos, mas não sei nada deles. A sua história me lembra, aliás, a de outro agente dissidente que deu pelo nome de Boris.
— Já ouvi falar dele, afirmou Wallander. — Naquela época devia haver uma avalanche de desertores russos.
Talboth se levantou e entrou no apartamento. Na rua passaram vários carros de bombeiros com as sirenes ligadas. Ao fim de uns minutos, Talboth voltou com o jarro de água cheio.
— Foi ele quem nos deu a informação de que o espião de que há tanto tempo estávamos à procura na Suécia era uma mulher. Não pôde nos revelar o seu nome, pois os contatos dela no KGB constituíam um grupo de agentes independentes. Era prática habitual com os espiões especialmente valiosos. Mas Boris tinha certeza de que se tratava de uma mulher, que não trabalhava nem na Defesa nem na indústria de armamento. O que significava que contactava com um ou vários fornecedores que lhe entregavam a preciosa informação que ela, por sua vez, vendia aos outros. Nunca se soube se se dedicou à espionagem por razões ideológicas ou meramente econômicas. O serviço secreto costuma preferir os espiões que o fazem por negócio, pois as implicações ideológicas são difíceis de gerir. Costumamos dizer que aqueles que têm convicções não são de confiança absoluta. O nosso ramo é muito cínico, e tem de ser para que funcione. E repetimos sempre, como um mantra, que talvez não façamos do mundo um lugar melhor, mas pior também não. Justificamos a nossa existência defendendo que mantemos uma espécie de equilíbrio de terror, o que provavelmente até é verdade.
Talboth mexeu a água gelada com uma colher.
— E no futuro as guerras estourarão por causa de bens básicos, disse pensativo. — Como a água. Os nossos soldados morrerão por uma poça de água.
Parecia quase entristecido quando encheu o seu copo, com muito cuidado para não entornar. Wallander aguardava que continuasse.
— Nunca a encontramos, prosseguiu Talboth. — Prestamos toda a ajuda ao nosso alcance aos suecos, mas nunca a identificamos; nunca a descobrimos e a prendemos. E começamos a pensar que talvez não passasse de uma invenção, embora os russos continuassem a saber coisas que não deveriam saber. Se a Bofors criava alguma melhoria técnica para um sistema de armamento, os russos não demoravam a ficar a par. Aprontamos uma quantidade infinita de armadilhas, mas nunca ninguém caiu nelas.
— E Louise?
— Ela estava acima de todas as suspeitas, naturalmente. Quem tinha motivo para desconfiar dela? Uma professora de línguas que adorava saltos ornamentais...
Talboth pediu licença para ir tratar do seu aquário. Wallander permaneceu na varanda; começou a anotar um pouco daquilo que dissera Talboth, mas não necessitava de pôr no papel, pois sabia que se recordaria. Entrou no seu quarto e se deitou na cama com os braços cruzados por baixo da cabeça. Quando acordou, viu que passara duas horas dormindo. Levantou-se de um pulo, como se tivesse dormido demais e tivesse se atrasado. Talboth estava fumando na varanda. Wallander voltou a se sentar.
— Acho que estava sonhando, disse Talboth. — Deu uns gritos bem altos.
— Sim, às vezes tenho uns sonhos muito agitados, explicou Wallander.
— Eu tenho sorte, nunca me lembro dos meus sonhos. E estou muito grato por isso.
Foram a pé para o restaurante italiano de que Talboth falara. Beberam vinho tinto com a comida e falaram de tudo menos de Louise von Enke. Depois do jantar, Talboth insistiu em que provassem várias categorias de grappa, antes de insistir, com a mesma resolução, em pagar a conta. Wallander se sentia um pouco embriagado quando saíram do Trovatore. Talboth acendeu um cigarro e virou o rosto para expelir o fumaça.
— Ou seja, foi há muitos anos que Oleg Linde falou de uma espiã sueca, observou Wallander. — Quanto a mim, me parece impossível que ainda estivesse na ativa.
— Se estiver, contrariou Talboth, — Não esqueça daquilo que falamos na varanda.
— Por outro lado, se a espionagem continua, ela é inocente, salientou Wallander.
— Não necessariamente; poderia ter passado o bastão a alguém. Neste mundo, as explicações simples não existem e a verdade pode muito bem ser o contrário daquilo em que acreditamos.
Caminhavam devagar pela rua. Talboth acendeu outro cigarro.
— E o intermediário, disse Wallander. — Aquele a quem você chamou de informante. Há tão poucos dados sobre ele como sobre a espiã?
— Nunca foi descoberto.
— O que significa, então, que poderia ser uma mulher. Talboth negou com um gesto.
— Não é habitual que uma mulher goze de tanta influência no Ministério da Defesa ou na indústria de armamento. Acho que poderia apostar a minha escassa pensão em como é um homem.
Estava uma noite quente, abafada. Wallander sentia uma dor de cabeça incipiente.
— Há algum detalhe no meu relato que tenha lhe surpreendido especialmente? Perguntou Talboth ausente, quase como para que a conversa não morresse.
— Não.
— E chegou a alguma conclusão que não coincide com aquilo que lhe disse?
— Não que me lembre.
— O que dizem os policiais que investigam a morte de Louise?
— Não têm pistas. Não há suspeitos nem motivo, a não ser o microfilme encontrado num local secreto da sua bolsa.
— Então, essa é a prova de que era espiã, certo? Talvez alguma coisa tivesse corrido mal no momento da entrega do material.
— Sim, é uma explicação razoável. E suponho que a polícia trabalha com essa hipótese, mas o que pode ter falhado? Quem a esperava? E por que motivo aconteceu precisamente agora?
Talboth parou e pisou a beata.
— Bem, apesar de tudo é um grande passo em frente, observou. — Agora há provas mais do que suficientes contra Louise, e podem concentrar a investigação na sua pessoa. O mais provável é acharem o informante mais tarde ou mais cedo.
Continuaram a caminhar e pararam em frente à porta. Talboth marcou o código de entrada.
— Preciso respirar um pouco de ar puro, disse Wallander. — Tenho o hábito inveterado das caminhadas noturnas e vou caminhar mais um pouco.
Talboth assentiu, lhe deu o código e entrou no prédio, enquanto Wallander observava a porta se fechar silenciosamente. Subiu a rua deserta, outra vez com a sensação de que havia algo que não batia certo, a mesma sensação que o invadira depois de ter passado a noite na cabana com Hakan von Enke. Pensou no que lhe dissera Talboth sobre a verdade que costumava ser contrária ao que uma pessoa esperava. Às vezes é preciso virar a verdade de pernas para o ar para que volte a se endireitar.
Parou e se virou para trás. A rua continuava deserta. Por uma janela aberta, se ouvia uma música popular alemã. Entendeu as palavras leben, eben e neben. Continuou até chegar a uma praça onde uns jovens se beijavam num banco. Quase que tenho vontade de gritar aqui mesmo. "Não entendo nada do que está acontecendo." Sim, poderia dizer aos gritos. A única coisa que sei com certeza absoluta é que há algo que me escapa em toda esta história. Um detalhe que resiste a ser descoberto, pelo menos, resiste a mim. Estou me aproximando da solução ou me encontro cada vez mais longe dela? Essa é a minha grande dúvida. Deu umas voltas pela praça, se sentindo cada vez mais frustrado.
Quando voltou para o apartamento, teve a impressão de que Talboth se retirara para o seu quarto. A porta da varanda estava fechada. Wallander se despiu e passado pouco tempo já estava dormindo.
Os cavalos começaram a correr novamente nos seus sonhos. No entanto, quando acordou de manhã, já não se lembrava deles.
* * *
Trinta e Sete
AO ABRIR os olhos, Wallander não soube imediatamente onde se encontrava. Deu uma olhada no relógio; eram seis horas. Ficou um pouco na cama. Através da parede lhe pareceu ouvir o sussurro das máquinas que regulavam a oxigenação da água do grande aquário. Por outro lado, não se ouviam os trens, porque naqueles túneis tão bem isolados levavam uma existência muda. Como as toupeiras, disse para si mesmo. Mas também como as pessoas que se infiltram nos corredores onde se tomam decisões secretas, resoluções que logo roubam e transmitem a quem não as deveria conhecer.
Levantou-se da cama invadido por uma ânsia repentina de ir embora. Não se deu ao trabalho de tomar banho, se vestiu e saiu para o corredor. A porta da varanda estava aberta, as leves cortinas se moviam com a brisa. Talboth estava sentado com um cigarro na mão e uma xícara de café na mesa e se virou lentamente para Wallander; era como se o tivesse ouvido se aproximar antes que chegasse na porta. Sorriu-lhe. De repente, Wallander notou de que desconfiava daquele sorriso.
— Espero que tenha dormido bem.
— Sim, a cama é boa, respondeu Wallander. — E o quarto silencioso e escuro. Mas chegou a hora de partir.
— Então, não pensa em passar mais um dia em Berlim? Há tanta coisa que gostaria de lhe mostrar.
— Adoraria ficar, mas acho que será melhor voltar para casa.
— Está bem, imagino que o cão não possa ficar sozinho muito mais tempo.
E como sabe que tenho um cão? Perguntou-se Wallander. Não lhe disse. Teve a vaga sensação de que Talboth notou que falara demais.
— Exato, confirmou Wallander. — É isso, não posso abusar da disponibilidade dos meus vizinhos para cuidar de Jussi. Passei o verão me ausentando. Além disso, não quero perder uma única oportunidade de ver a minha neta.
— Ainda bem que Louise pôde conhecê-la antes de morrer, disse Talboth. — Os filhos são uma coisa, mas os netos nos dão um maior sentido de plenitude. Se os filhos são o reflexo do sentido da nossa existência, os netos são a sua confirmação. Trouxe alguma fotografia?
Wallander mostrou as duas fotografias que escolhera para levar com ele.
— É muito engraçada, disse Talboth ao se pôr de pé. — Bem, toma o café da manhã antes de ir, não toma?
— Só café, aceitou Wallander. — Não costumo comer nada de manhã.
Talboth meneou a cabeça com um ar preocupado, mas voltou para a varanda com o café, sem leite, como Wallander sempre tomava.
— Estive pensando numa coisa que me disse ontem, admitiu Wallander.
— Sim, devo ter dito muitas coisas que lhe deram o que pensar.
— Disse que de vez em quando há que procurar as explicações em sentido oposto àquele que seguimos. Referia-se a algo em concreto ou se tratava de um princípio geral?
Talboth refletiu um instante.
— Na verdade mal me lembro de ter dito isso, respondeu Talboth. — Mas suponho que falava no geral.
Wallander assentiu. Não acreditava numa única palavra do que o homem lhe dizia. Aquelas palavras tinham um significado muito concreto, só que ele não o conseguira captar. Talboth parecia inquieto, não tão descontraído ou sereno como no dia anterior.
— Gostaria de tirar uma fotografia, de nós dois. Vou buscar a minha máquina. Como não tenho nenhum livro de hóspedes, costumo tirar uma fotografia das minhas visitas.
Voltou com uma máquina fotográfica, que colocou sobre o braço de uma cadeira, premiu o botão automático e se pôs junto a Wallander. Uma vez tirada a fotografia, pegou na máquina e tirou outra só de Wallander, antes de se despedir. Este já estava com o casaco numa mão e as chaves do carro na outra.
— Encontra a saída da cidade? Perguntou Talboth.
— O meu sentido de orientação não é muito bom, mas tarde ou cedo encontrarei o caminho. Além disso, há uma lógica inigualável na rede de estradas deste país.
Despediram-se com um aperto de mão. Quando Wallander saiu para a rua, levantou a mão e disse adeus a Talboth, que o olhava apoiado no parapeito da varanda. Ao sair do prédio se deu conta de que o nome de Talboth não figurava na placa dos inquilinos; no seu lugar se lia "USG Enterprises". Wallander memorizou o nome antes de partir.
Tal como temia, levou muito tempo para encontrar a saída da cidade. Quando finalmente se viu na autoestrada, notou tarde demais que perdera uma saída e que estava a caminho da fronteira com a Polônia. Depois de muito trabalho, conseguiu voltar para trás e encontrou, por fim, a estrada que o conduziria ao Norte. Ao passar por Oranienburg, se arrepiou ao se lembrar do episódio no hotel.
Fizera o trajeto de regresso sem nenhum problema. Naquela noite, Linda foi visitá-lo. Klara estava resfriada e Hans ficara com ela. No dia seguinte iria a Nova Iorque.
Sentaram-se no jardim, aproveitando a noite quente. Linda bebia chá.
— Então, como vão os negócios dele? Quis saber Wallander, enquanto se balançavam em ritmo lento na rede.
— Se quer que lhe diga, não sei, confessou Linda. — Mas às vezes me pergunto o que está acontecendo. Antes chegava em casa e me falava de todos os negócios brilhantes que tinha fechado durante o dia. Agora não conta nada.
Uns gansos selvagens sobrevoaram-nos em bando. Os dois observaram em silêncio a perfeita formação do bando que desapareceu rumo ao sul.
— Aves migratórias já? Estranhou Linda. — Não é muito cedo?
— Talvez estejam praticando decolagens e formações, respondeu Wallander. Linda deu uma gargalhada.
— Essa resposta é típica do avô. Está cada vez mais parecido com ele, sabia?
Wallander rejeitou a sua afirmação com um gesto.
— Ambos sabemos que tinha sentido de humor, mas também tinha mau feitio. Muito pior do que eu me permito ter.
— Não acho que fosse assim tão mau, objetou Linda. — Acho que tinha medo.
— De quê?
— Talvez de envelhecer. De morrer. E desconfio que o escondia atrás da sua irritabilidade, certamente mais fingida que real.
Wallander não respondeu, mas se perguntou se seria a isso que Linda se referia ao assegurar que se parecia cada vez mais com o pai, que também ele começava a manifestar o seu medo da morte.
— Amanhã, você e eu vamos ver Mona, anunciou Linda inesperadamente.
— E porquê?
— Porque é a minha mãe, e você e eu somos os seus parentes mais próximos.
— E o comerciante de supermercados, o tal psicopata que tem por marido, não pode se ocupar dela?
— Mas não tinha notado que isso acabou?
— Não, não sabia. De qualquer maneira, me recuso a ir.
— Porquê?
— Não quero ter mais nada a ver com ela. Agora que Baiba morreu, ainda tenho mais dificuldade em perdoá-la então.
— As pessoas ciumentas dizem coisas estúpidas ditadas pelos ciúmes. Mona me contou as coisas que você era capaz de dizer quando estava com ciúmes.
— Ela mente.
— Nem sempre.
— Seja como for, não vou. Não quero.
— Mas eu quero. E, sobretudo, acho que a mãe quer. Não pode apagá-la sem mais nem menos.
Wallander não insistiu, era inútil continuar a protestar. Se não fizesse o que Linda queria, a sua ira transformaria as suas vidas num longo inferno. E isso tinha de se evitar a todo o custo.
— Nem sei onde fica essa clínica, disse por fim.
— Amanhã verá. Será uma surpresa.
Naquela noite, uma frente fria atingiu Skâne. Poucos minutos depois das oito da manhã, quando Linda e Wallander empreenderam a viagem em direção a leste, começou uma tempestade. Wallander estava com frio; dormira mal naquela noite e estava cansado e mal-humorado quando Linda fora apanhá-lo. Linda mandou-o voltar para dentro e mudar as calças desbotadas que levava.
— Não precisa pôr um terno para ir vê-la, mas também não precisa parecer um mendigo.
Tomaram o desvio para o velho Palácio de Glimmingehus. Linda olhou-o de relance.
— Lembra-se?
— Claro que sim.
— Temos muito tempo, podemos parar um pouco.
Entrou no estacionamento junto aos muros altos do palácio. Saíram do carro e atravessaram a ponte levadiça até o pátio.
— É uma das minhas recordações mais antigas, disse Linda. — O dia em que me trouxe aqui. Quase que me matou de medo com todas aquelas histórias de fantasmas que me contou. Quantos anos teria?
— A primeira vez que viemos tinha acabado de fazer quatro, mas ainda não lhe contava histórias de fantasmas. Só comecei a fazer isso quando tinha mais ou menos sete. Talvez no verão antes de começar as primeiras aulas.
— Lembro-me que estava tão orgulhosa, confessou. — O meu pai, tão grande e tão bonito. Ainda consigo evocar os momentos em que me sentia tão segura e feliz da vida.
— Sim, eu sentia exatamente o mesmo, assegurou Wallander. — Eu diria que foram os melhores anos, quando era pequena.
— O que foi feito da vida? Perguntou Linda. — Pergunta-se isso, agora que tem sessenta anos?
— Pergunto-me. Há uns anos comecei a me dar conta de que lia a página dos obituários no Ystads Allehanda. E se pegasse qualquer outro jornal, era a primeira coisa que procurava. Perguntava-me cada vez com mais frequência o que teria sido feito dos meus colegas de turma da escola de Limhamn. Como seriam as suas vidas em comparação com a minha? Comecei a investigar, com mais ou menos empenho, o que teria lhes acontecido.
Sentaram-se na escadaria de pedra que dirigia às portas do palácio.
— Nós, que começamos a escola no outono de 1955, tivemos vidas muito diferentes, sem dúvida. Hoje acho que sei o que aconteceu à maioria: muitos tiveram uma vida complicada, alguns morreram, um se suicidou depois de ter emigrado para o Canadá. Alguns, poucos, conseguiram o que tinham se proposto, como Solve Hagberg, que ganhou o concurso O Dobro ou Nada. A maior parte trabalhou a vida toda, no duro, sem fazer grande barulho. Assim foram as suas vidas e assim foi a minha. Quando chega aos sessenta, já deixou quase tudo para trás, não há outra alternativa senão aceitar que é assim, por mais difícil que seja. As decisões importantes serão cada vez menos.
— Mas tem a sensação de que a sua vida está chegando ao fim?
— Às vezes.
— E em que pensa nesses momentos?
Wallander hesitou antes de responder. Depois disse a verdade.
— Sinto-me triste por a Baiba não estar presente. Por a nossa relação não ter dado certo.
— Há outras mulheres. Não tem de ficar sozinho. Wallander se levantou.
— Não, não há outras mulheres, discordou. — Não é possível substituir Baiba.
Voltaram para o carro e continuaram rumo à clínica, da qual ainda os separavam alguns quilômetros. Era um conjunto de quatro casas, revestidas de barrotes de madeira cruzados, que formava um quadrado em cujo interior tinham conservado o antigo jardim. Mona estava sentada num banco fumando quando eles entraram e subiram pelo caminho empedrado.
— Ela agora fuma? Perguntou Wallander. — Antes não fumava.
— Diz que o faz para acalmar os nervos e que deixará assim que tenha se recuperado.
— E isso quando é?
— Deve ficar aqui mais um mês.
— E Hans é que paga?
Linda não respondeu, uma vez que a resposta era óbvia. Mona se levantou ao vê-los se aproximarem. Incomodado, Wallander observou a sua palidez e as olheiras, muito acentuadas. Pareceu-lhe feia, algo que nunca lhe ocorrera pensar de Mona.
— É muito amável da sua parte vir me visitar, disse Mona ao cumprimentá-lo com um aperto de mão.
— Bem, queria ver como está, mastigou.
Sentaram-se no banco, cada um de um lado de Mona. Wallander só queria ir embora dali. O fato de Mona estar lutando contra os seus problemas de abstinência e angústia não era razão suficiente para justificar a sua presença naquele lugar. Porque Linda quisera que fosse vê-la no estado em que agora se encontrava? Para que de um modo ou outro admitisse a sua culpa? Culpa de quê? Notou que a sua indignação aumentava, ao passo que Linda e Mona conversavam tranquilamente. Passado um pouco, Mona perguntou se queriam ver o seu quarto. Wallander disse que não, mas Linda acompanhou-a até ao interior do edifício.
Ele deu umas voltas pelo jardim enquanto esperava. Sobressaltou-se quando tocou o celular no bolso do seu casaco. Era Ytterberg.
— Já está de serviço ou continua de férias? Perguntou este.
— Estou de férias, respondeu Wallander. — Pelo menos, é isso que digo a mim mesmo.
— Pois eu estou no meu escritório e à minha frente tenho o relatório de um dos nossos colegas do serviço secreto militar. Quer saber o que diz?
— Sim, mas pode acontecer que tenhamos de interromper a conversa.
— Se me conceder dois minutos, penso que haverá tempo. É um relatório invulgarmente curto, o que significa que consideram que nem eu nem outro policial normal devemos ter acesso ao resto. Cito textualmente: "Certas partes do relatório são confidenciais." Ou seja, quase tudo é secreto e só nos deixaram ficar com alguns ossos. Os lombos, se os houver, ficaram para eles.
Um repentino ataque de espirros interrompeu-o. Depois explicou:
— Sou alérgico a algum dos detergentes que usam na delegacia. Acho que vou começar a limpar a minha sala pessoalmente.
— Parece uma boa ideia, concordou Wallander, impaciente.
— No relatório consta o seguinte, que passo a ler: "O material, microfilmes, negativos e textos codificados, entre outros, encontrado na carteira de Louise von Enke contém informação destinada à Defesa Sueca exclusivamente. A maior parte desse material é extremamente delicada e está classificada como estritamente confidencial a fim de impedir que caia nas mãos erradas." Fim da citação. Por outras palavras, não há qualquer dúvida.
— Quer dizer que o material é autêntico?
— Exato. No relatório diz também que material de natureza similar, em várias ocasiões, foi parar nas mãos russas. Provou-se, de forma concludente e por diversos métodos de exclusão, que os russos dispunham de informações às quais não deveriam ter acesso. Compreende o que quero dizer? O relatório está redigido numa linguagem militar difícil de penetrar, para dizer o menos.
— Costuma ser assim que os nossos colegas da secreta se exprimem. E porque haviam de ser diferentes os tipos do serviço secreto militar? Mas enfim, penso que entendi.
— Não diz muito mais, mas é inevitável concluirmos que Louise von Enke andou colocando o nariz nos segredos militares. Vendeu informação secreta; só Deus sabe como a conseguiu obter.
— Sim, há muitas incógnitas por desvendar, admitiu Wallander. — O que aconteceu em Vármdó? Porque a assassinaram? Com quem se encontraria ali? E porque a pessoa ou as pessoas que a esperavam não levaram aquilo que guardava na bolsa?
— Talvez não soubessem que estava lá.
— Ou talvez não a levasse com ela, salientou Wallander.
— Estamos considerando essa possibilidade, que alguém o colocou na bolsa.
— A meu ver, não é impossível.
— Mas porquê?
— Para que seja suspeita de espionagem.
— Mas ela era um deles...
— Isto é um autêntico labirinto, suspirou Wallander. — Não encontro a saída. Mas me deixe pensar no que acabou de ler. Que prioridade tem este assassinato agora na sua delegacia?
— É altamente prioritário. Correm rumores de que se falará dele num programa de televisão sobre crimes por resolver. Os chefes ficam sempre muito nervosos quando os meios de comunicação se aproximam com os microfones.
— Mandem-nos para mim. Não tenho medo, assegurou Wallander.
— Quem falou em medo? Só receio ficar fulo se me fizerem perguntas imbecis.
Wallander se sentou no banco e refletiu sobre a informação que Ytterberg acabava de lhe dar. Esforçou-se por achar alguma incongruência, sem no entanto conseguir. Tinha dificuldade em se concentrar.
Mona tinha os olhos brilhantes quando voltou com Linda. Wallander percebeu que tinha chorado. Não queria saber de que falaram, mas subitamente sentiu compaixão por ela. Também a ela poderia perguntar: o que foi da sua vida? Ali estava, gasta e abatida, trêmula, confrontada com forças mais poderosas do que ela.
— Está na hora do meu tratamento, anunciou Mona. — Agradeço a visita. Estou passando por uma fase difícil.
— Em que consiste o tratamento? Quis saber Wallander.
— Bem, agora é uma conversa com o médico. O nome dele é Torsten Rosén; também teve problemas com o álcool. Desculpem, tenho que me despachar.
Despediram-se no jardim e Linda e Wallander voltaram para Ystad em silêncio. Wallander pensou que a visita a afetara mais a ela do que a ele, já que tivera uma relação muito estreita com a mãe uma vez superada a adolescência turbulenta.
— Estou contente por ter me acompanhado, disse Linda quando o deixou no portão de sua casa.
— Bom, não me deu outra alternativa, respondeu. — Mas claro, era importante que eu visse como se encontra e como se aguenta. A questão é se o conseguirá.
— Não sei. Mas espero que consiga.
— Sim, disse Wallander. — Ao fim e ao cabo, é a única coisa que nos resta, a esperança.
Enfiou a mão pelo vidro aberto e lhe acariciou fugazmente o cabelo. Ela virou o carro e foi embora. Wallander seguiu-a com o olhar até o carro desaparecer de vista.
Sentia-se muito desanimado. Soltou Jussi e se sentou um tempo para coçá-lo atrás das orelhas antes de abrir a porta. Notou imediatamente que alguém estivera lá dentro. As suas precauções haviam dado resultado; um dos pequenos sinais de alerta que colocara não estava no seu lugar: na janela mais próxima da porta alguém mudara o lugar de um pequeno candelabro que ele colocara mesmo em frente do puxador. Mas agora viu que se encontrava no canto esquerdo do peitoril. Estacou, sustendo a respiração.
Seria imaginação sua? Não, tinha certeza. Ao se aproximar para examinar a janela descobriu que a tinham aberto pelo lado de fora com algum objeto comprido e afiado, seguramente alguma ferramenta semelhante à que utilizavam os ladrões de automóveis para forçar as fechaduras. Com muito cuidado, levantou o candelabro e examinou a base, que era de madeira arrematada por um anel de cobre. Voltou a deixá-lo onde estava e reviu cautelosamente toda a casa. Não encontrou mais sinais da pessoa que estivera ali. São muito cuidadosos, disse para si mesmo. Cuidadosos e hábeis. O candelabro foi só um descuido momentâneo. Sentou-se à mesa da cozinha e observou o candelabro. Compreendeu que apenas podia existir uma explicação para um desconhecido ter entrado em sua casa.
Alguém estava convencido de que ele possuía dados que ele mesmo ignorava possuir. Conhecimentos que podiam se basear nas suas notas ou mesmo em algum objeto no seu poder. Deixou-se ficar imóvel. Estou me aproximando, pensou. Ou então é alguém que se aproxima de mim.
* * *
Trinta e Oito
NA MANHÃ SEGUINTE, Wallander foi arrancado ao seu repouso por sonhos que não conseguiu evocar. Talvez os cavalos tivessem andado à solta novamente ou talvez fosse um sonho diferente, era incapaz de se lembrar. O candelabro continuava na janela como se fosse uma advertência de que alguém andava por ali, próximo. Sem se vestir, saiu para o jardim, primeiro para urinar e a seguir para soltar Jussi. Uma neblina insinuante de outono pairava sobre os campos. Estremeceu de frio e se apressou a entrar. Vestiu-se, fez café e se sentou à mesa da cozinha, decidido a tentar uma vez mais colocar alguma luz sobre o que podia ter acontecido Louise von Enke.
Evidentemente, estava consciente de que conseguiria apenas chegar a uma explicação muito provisória, mas precisava rever tudo, exaustivamente, sobretudo para tentar encontrar a origem da sua sensação inquietante de que estava deixando escapar algum detalhe. Sensação que não diminuíra pelo fato de ter recebido uma segunda e misteriosa visita. Resumindo: não pensava em desistir.
Contudo, naquela manhã teve muita dificuldade em se concentrar no assunto e ao fim de algumas horas teve de se dar por vencido. Recolheu os papéis que espalhara sobre a mesa e se dirigiu para a delegacia; mais uma vez, optou pela entrada da garagem e chegou na sua sala sem ser visto. Depois de meia hora, debruçado sobre os documentos, se levantou e espiou no corredor vazio antes de se dirigir à máquina de café. E, precisamente quando acabara de encher a xícara, apareceu Lenart Mattson atrás dele. Há muito que Wallander não via o chefe, e também não sentira a sua falta. Lenart Mattson estava bronzeado e perdera peso, algo que fez Wallander praguejar mentalmente de inveja.
— Já de volta? Perguntou Mattson. — Não consegue passar sem isto? O dever chama? Isso é ótimo, sem vocação não pode haver bons policiais. Mas é só na segunda-feira que volta ao serviço, não é?
— Sim, já ia embora para casa, respondeu Wallander. — Precisava de uns documentos que tinha na sala.
— Tem um momento? Tenho uma boa notícia que gostaria de partilhar com alguém.
— Tenho todo o tempo do mundo, assegurou Wallander sem ocultar a ironia que, estava convencido, Lenart Mattson não seria capaz de detectar.
Assim, se encaminharam para o escritório do chefe. Wallander se sentou numa das cadeiras de visitas. Lenart Mattson pegou uma pasta que havia sobre a mesa impecavelmente arrumada.
— Como lhe disse, são boas notícias. Já é um fato que o nosso distrito tem uma das percentagens mais altas de todo o país no que se refere a investigações bem-sucedidas! Ou seja, resolvemos mais casos do que a maioria das delegacias. Não só contamos com os melhores resultados, como também com o maior incremento em comparação ao ano anterior. E isto é justamente o que precisávamos para melhorar ainda mais.
Wallander ouvia o seu chefe, impassível. Embora não tivesse razão para duvidar que aquilo que o chefe dizia fosse exatamente o que constava no relatório, Wallander sabia que a interpretação da estatística era uma questão de malabarismo. Era sempre possível apresentar dados verídicos, mas ao mesmo tempo enganadores. Tanto Wallander como os seus colegas estavam dolorosamente cientes de que o grau de resolução de casos pela polícia sueca era o mais baixo do mundo ocidental. E não acreditavam que já se batera no fundo; a evolução negativa continuaria. As constantes reformas burocráticas implicavam por sua vez um aumento igualmente constante de casos não resolvidos, se fechavam ou se reestruturavam delegacias e unidades policiais competentes, até que deixavam de ser. Era mais importante cumprir metas estatísticas do que realmente investigar os crimes e levar os autores ao tribunal. Além disso, à semelhança da maioria dos seus colegas, Wallander pensava que não se escolhiam as prioridades adequadamente. No dia em que a direção da polícia sueca decidira dar tolerância aos "delitos menores", se tirara o tapete ao que ainda restava da relação de confiança entre a polícia e o público. Para o cidadão comum não era normal aceitar que lhe assaltassem o carro, a garagem ou a casa de férias. Os cidadãos queriam que também esses delitos se resolvessem ou, pelo menos, que se investigassem. Obviamente, naquele momento não sentia vontade nenhuma de discutir tudo aquilo com Lenart Mattson. Teriam outras oportunidades para abordar o assunto no outono.
Lenart Mattson pôs o relatório de lado e olhou para o seu colega com um ar preocupado. Wallander viu que tinha a testa transpirada.
— E como está passando? Está um pouco pálido, não está? Porquê não pega sol?
— Qual sol?
— Ora essa, o verão não tem sido assim tão ruim, não acha? Estive de férias em Creta para ter certeza de bom tempo. Alguma vez visitou o Palácio de Cnosso? Tem uns golfinhos fantásticos nas paredes. Wallander se levantou.
— Estou bem, assegurou. — Mas uma vez que hoje faz um pouco de sol, vou seguir o seu conselho e passar o dia ao ar livre.
— Nada de armas esquecidas por aí?
Wallander cravou o olhar em Lenart Mattson. Por pouco não lhe deu um soco.
Wallander voltou para a sua sala, se sentou, pôs os pés sobre a mesa e fechou os olhos. Pensava em Baiba. E em Mona, que passava os dias tremendo na clínica de reabilitação. Ao passo que o seu chefe se congratulava com umas estatísticas que certamente não mostravam a verdade. Tirou os pés da mesa. Farei mais uma tentativa, resolveu. Outra tentativa de compreender o que me faz duvidar das minhas conclusões a toda a hora. Gostaria de ter mais conhecimentos sobre a política em geral, assim talvez não me sentisse tão confuso como neste momento.
De repente, se lembrou de um acontecimento do passado em que nunca voltara a pensar quando adulto. Devia ter sido em 1962 ou 1963, no outono. Aos sábados, Wallander trabalhava como estafeta para uma florista de Malmô e uma vez lhe pediram para levar, rápido como o relâmpago, um ramo de flores ao Folkets Park. O primeiro-ministro Tage Erlander pronunciava ali um discurso ao fim do qual uma menina lhe entregaria as flores. O problema era que algum empregado municipal descuidara das suas tarefas e esquecera de encomendar as flores. De maneira que havia pressa. Wallander pedalou com toda a força. A florista avisara da sua chegada e deixaram-no entrar imediatamente, retiraram o papel de embrulho do ramo e a menina que o devia entregar tomou conta dele. Deram nada menos que cinco coroas de gorjeta a Wallander, lhe ofereceram um refrigerante e ali ficou, bebendo pelo canudinho e ouvindo aquele homem muito alto que falava da tribuna com uma voz anasalada muito peculiar. Empregava palavras complicadas ou pelo menos estranhas a Wallander. Falou de desanuviamento político, dos direitos das pequenas nações, da óbvia neutralidade da Suécia e da sua independência de todo o tipo de pactos e adesões. Ou pelo menos foi isso que Wallander entendeu. Quando chegou em casa naquela noite, entrou na sala que o pai usava como ateliê. Curiosamente, se recordava de que naquela noite o pai estava pintando o quadro da floresta que constituía o fundo do seu eterno tema pictórico. Na adolescência, Wallander e o seu pai tinham uma boa relação. Talvez fosse aquele o melhor período da sua vida comum. Ainda faltavam três ou quatro anos até ao belo dia em que Wallander chegara a casa e anunciara a sua decisão de ser policial. Depois disso, o pai esteve a ponto de o correr de casa e durante dias a fio não lhe dirigiu palavra.
Wallander se sentou no seu banco do costume e lhe contou a visita a Folkets Park. O pai falava sempre de política e dos políticos por entredentes, afirmando que o assunto não lhe interessava. Contudo, Wallander compreendeu com o tempo que isso estava longe de ser verdade. O pai votava fielmente nos sociais-democratas, nutria uma desconfiança irascível dos comunistas e acusava invariavelmente todos os partidos conservadores de favorecerem sempre aqueles cidadãos que já tinham uma vida folgada. Wallander se lembrava da conversa quase literalmente. O pai sempre elogiara Erlander, embora com certa cautela; defendia que era uma pessoa honrada na qual se podia confiar, ao contrário de muitos outros políticos.
— Disse que a Rússia era nossa inimiga, contou o jovem Wallander.
— Isso não é bem assim. Talvez não fizesse mal aos nossos líderes políticos refletirem um pouco sobre o papel que os Estados Unidos desempenham hoje em dia.
Wallander se surpreendeu com as suas palavras. Então, os Estados Unidos não eram os bons? Eles tinham derrubado Hitler e o império milenário dos nazistas. Dos Estados Unidos vinham os filmes, a música e a moda. Para Wallander, Elvis Presley era o maior e nenhuma canção era então melhor do que Blue Suede Shoes. Se bem que já não colecionasse cromos, Alan Ladd fora o seu favorito enquanto o fizera sobretudo por causa do seu refinado apelido. E agora ouvia como o seu pai emitia um aviso velado contra os Estados Unidos. Havia algo de que ele não tivesse se dado conta?
De memória, Wallander repetira as palavras do primeiro-ministro: "A liberdade da Suécia relativa a todos os pactos e alianças, a neutralidade inquestionável da nação."
"Foi isso o que ele disse?" Respondeu o pai. "Pois a verdade é que os aviões norte-americanos sobrevoam o espaço aéreo sueco. Oficialmente fingimos ser um país não alinhado, ao mesmo tempo que, nos bastidores, fazemos o jogo da OTAN e, principalmente, o dos Estados Unidos."
Wallander tentou que o pai lhe explicasse o que queria dizer, mas este respondeu com um murmúrio quase audível, seguido da ordem de deixá-lo em paz.
— Faz muitas perguntas.
— Não me disse sempre que não devo ter medo de lhe perguntar o que quiser?
— Bem, tem de haver algum limite.
— E até onde vai?
— Até aqui: estou me enganando ao pintar.
— Mas como pode ser? Está pintando o mesmo tema desde muito antes de eu nascer...
— Rua, já! E me deixe- em paz!
Na porta, Wallander virou a cabeça e disse:
— Deram-me cinco coroas de gorjeta por chegar a tempo com as flores para Elander.
— É Erlander. Vê se aprende os nomes das pessoas.
E nesse preciso momento, como se a memória então lhe abrisse uma porta, Wallander começou a perceber que seguira um caminho totalmente errado. Tinham-no enganado e ele se deixara enganar; seguira a pista do que pensara ser certo em vez de seguir a da realidade. Ficou à frente da mesa sem se mover, com as mãos cruzadas, deixando que os seus pensamentos se entrelaçassem e formassem uma explicação nova e inesperada de tudo o que acontecera. O processo era tão vertiginoso que no princípio se recusou a acreditar que tivesse razão; a única coisa que parecia irrefutável era, como tantas outras vezes, aquilo de que o seu instinto o prevenira: de fato, houvera algo que passara despercebido; confundira a verdade com a mentira, pensara que a causa era o efeito e vice-versa.
Foi para o banheiro e despiu a camisa por estar toda úmida de transpiração. Depois de se lavar, desceu ao porão e tirou uma camisa lavada do seu armário. Lembrou-se vagamente de que fora Linda quem a oferecera há uns anos pelo seu aniversário. Quando voltou para a sua sala, procurou entre os papéis até que encontrou a fotografia de Asta Hagberg, aquela em que se via o coronel Stig Wenerstróm, conversando com o jovem Hakan von Enke em Washington. Pôs a fotografia sobre a mesa e observou o rosto dos dois homens. Wenerstróm com o seu sorriso frio, de taça de martíni na mão, Von Enke à sua frente, sério e atento ao que Wenerstróm lhe dizia.
Voltou a alinhar as peças de Lego mentalmente. Ali estavam todos, Louise e Hakan von Enke, Hans, Signe, na sua cama, Sten Nordlander, Herman Eber, Steven, o amigo da família na América, e George Talboth em Berlim. Acrescentou Fany Klarström e logo a seguir mais uma peça que todavia não sabia ainda quem representava. Muito lentamente e sempre na sua imaginação, foi retirando peça a peça até que apenas ficaram duas, Louise e Hakan. Largou a caneta que tinha na mão. E foi Louise quem sucumbiu. Assim terminara a sua vida, sucumbindo em algum lugar da ilha de Vãrmdó. No entanto, Hakan, o seu marido, continuava de pé.
Wallander pôs as suas ideias por escrito. Guardou a fotografia de Washington no bolso do casaco e saiu da delegacia. Desta vez, saiu pela porta de entrada, cumprimentou a jovem da recepção, falou com uns policiais de trânsito que acabavam de chegar e se dirigiu ao centro da cidade. Aqueles que porventura se encontraram ele talvez se perguntassem porque andava com passos vacilantes, ora rápidos ora muito lentos. De vez em quando, levantava o braço como se estivesse falando com alguém e tivesse de sublinhar o que dizia com esse gesto.
Parou no quiosque de cachorro-quente que havia em frente ao hospital e ficou ali um bom tempo tentando decidir o que comer. No final, foi embora dali sem ter pedido nada.
A sua mente não parava de voltar à mesma ideia. Seria mesmo verdade aquilo que agora via tão claro? Era possível que tivesse interpretado tão mal o curso dos acontecimentos? Deambulou pela cidade até que, por fim, se dirigiu ao porto de recreio e se sentou no banco do molhe. Tirou a fotografia de Washington do bolso, estudou-a a fundo uma vez mais e voltou a guardá-la. Subitamente, sabia como tudo estava ligado. Baiba tivera razão, a sua querida Baiba, e agora sentia que ela lhe fazia mais falta do que nunca.
Atrás de cada pessoa há sempre outra. E o erro que ele cometera consistia em ter confundido quem ia à frente e quem ia atrás. Finalmente, tudo fazia sentido, já via o padrão que lhe escapara até então. E com toda a nitidez.
Uma traineira saía do porto. O homem que ia ao leme levantou a mão e cumprimentou Wallander, que também lhe acenou. No horizonte, a sul, se amontoavam as nuvens de uma frente de trovoada. Naquele momento teve saudades do pai, uma coisa que não lhe acontecia muitas vezes. No princípio, depois da sua morte, Wallander sentira um vazio horrível e ao mesmo tempo alívio por saber que já não existia. Agora não havia nem vazio nem alívio; agora só sentia saudades, simplesmente, saudades dos bons momentos que, apesar de tudo, tinham vivido juntos.
Lembrou-se de quando fora visitar a idosa que tão bem lhe falara do pai. Talvez nunca chegasse a conhecê-lo, no fundo. Não vi como era, não percebi o que significava para mim e para os outros. Como também até agora não tinha compreendido o que havia por trás do desaparecimento de Hakan von Enke e da morte de Louise. Finalmente sinto que me aproximo da solução, em vez de me distanciar dela. Compreendeu que teria de fazer outra viagem naquele verão, já tão ocupado por deslocações de um lugar para o outro. Mas não lhe restava outra alternativa, agora que sabia o que devia fazer.
Uma vez mais, tirou a fotografia do bolso. Segurou-a à sua frente e com cuidado rasgou-a ao meio. Outrora existira um mundo que unira Stig Wenerstróm a Hakan von Enke; agora acabava de os separar.
Seria assim já naquele momento, quando se tirou a fotografia? Perguntou-se. Ou teria acontecido muito depois? Não sabia, mas em qualquer caso tinha a intenção de descobrir.
Ninguém o ouviu ali sentado no molhe falando com os seus botões.
* * *
Trinta e Nove
MAIS TARDE só tinha memórias vagas e dispersas daquele dia. Por fim, deixou o molhe e retornou à cidade, parou num restaurante que abrira recentemente as suas portas na Rua de Hamngatan, entrou e voltou a sair em seguida. Deu mais umas voltas pelas ruas antes de finalmente se decidir pelo restaurante chinês da Praça Stora Torget, onde era freguês assíduo. Sentou-se numa das mesas livres, nunca havia muita gente àquela hora, e, um pouco distraído, pediu um prato da ementa.
Se alguém tivesse lhe perguntado depois o que comera, não conseguiria responder, pois a sua mente estava noutro lugar. De fato, estava preparando um plano capaz de fazê-lo avançar; não tinha outro remédio senão averiguar se tinha razão ou não, agora que incluía uma visão bem diferente da anterior. Agora com novas cartas na mão que instantaneamente lhe proporcionaram outras premissas. Remetera tudo o que tinha pensado até ao momento para um canto do seu cérebro reservado às inutilidades.
Passou um bom tempo remexendo na comida com os pauzinhos até que, de repente, engoliu-a a toda a pressa, pagou e saiu do restaurante. Voltou para a delegacia. A caminho da sua sala, Kristina Magnusson deteve-o para perguntar se queria ir na sua casa jantar e conhecer a família no fim de semana seguinte; podia escolher o dia, sábado ou domingo. Uma vez que não encontrava nenhuma desculpa, aceitou ir no domingo. Pendurou na porta o aviso de "Não incomodar", que ele mesmo fizera, desligou o telefone e fechou os olhos. Passados uns minutos se endireitou na cadeira, anotou umas palavras num caderno, consciente de que já não podia voltar atrás.
Acontecesse o que acontecesse, tinha de descobrir se o seu raciocínio estava certo, isto é, que não só ele mesmo se enganara como também se deixara enganar. Num repentino acesso de fúria jogou a caneta contra a parede e lançou uma praga. Uma vez, só. Depois telefonou para Sten Nordlander, e, como já era costume, a linha era péssima. Ao insistir que era urgente que conversassem, Sten Nordlander prometeu ligar de volta. Wallander desligou, se perguntando porque seria tão difícil ligar para certas ilhas do arquipélago. Ou se encontraria Nordlander noutro lugar qualquer?
Wallander esperou, continuando a repisar tudo o que lhe enchia a cabeça. O seu cérebro era como um depósito cheio até cima. E tinha medo que começasse a transbordar. Sten Nordlander telefonou quarenta minutos mais tarde. Wallander pusera o seu relógio de pulso em cima da mesa e viu que os ponteiros indicavam seis horas e dez minutos. Desta vez, a ligação era excelente.
— Desculpe tê-lo feito esperar. Já estou em Utó.
— Não muito longe de Muskó, então, observou Wallander. — Ou me engano?
— Totalmente. Sem exagerar, pode se dizer que me encontro em águas clássicas, ou seja, em águas de submarino.
— Temos de nos encontrar, afirmou Wallander. — Preciso falar consigo.
— Aconteceu alguma coisa?
— Estão sempre acontecendo coisas. Mas quero falar consigo sobre uma ideia que me ocorreu.
— Não aconteceu nada, portanto?
— Nada. Mas não quero falar disso ao telefone. Gostaria que nos encontrássemos quanto antes.
— Se está pensando em vir aqui, deve ser importante.
— Tenho outro assunto para tratar em Estocolmo, disse Wallander o mais calmamente que foi capaz.
— Quando pensa em vir?
— Amanhã. Sei que estou avisando muito tarde; foi uma decisão de última hora.
Sten Nordlander refletiu um instante. Wallander ouvia a sua respiração no auricular.
— Ia voltar para casa, anunciou Nordlander por fim. — Podemos nos encontrar na cidade.
— Se me disser como chegar, posso ir encontrar consigo onde está agora.
— Não, será melhor que nos vejamos no vestíbulo do Hotel Naval. A que horas?
— Às quatro, disse Wallander. — Agradeço a sua disponibilidade. Sten Nordlander riu.
— Por acaso tenho escolha?
— Pareço assim tão severo?
— Como um velho professor de escola. Mas tem certeza de que não aconteceu nada?
— Nada que eu saiba, respondeu Wallander evasivo. — Então até amanhã.
Wallander se sentou ao computador e, não obstante certa dificuldade, conseguiu comprar uma passagem de trem e também reservar um quarto no Hotel Naval. Já que o trem saía cedo no dia seguinte, foi para casa e levou Jussi para os vizinhos. O homem estava consertando o trator e, ao ver Wallander vir com o cão, sorriu.
— Tem certeza de que não quer vender o bicho?
— Absoluta. Mas preciso sair de viagem outra vez. Vou a Estocolmo.
— E não era você que me assegurava noutro dia ali na minha cozinha que detestava as grandes cidades?
— Sim e é verdade. Mas é por uma questão de trabalho.
— E por aqui não há gatunos que cheguem com que se ocupar?
— Certamente que sim, mas agora devo ir a Estocolmo. Wallander fez umas festas em Jussi e deu a trela ao vizinho. Jussi, que já estava habituado, nem reagiu quando Wallander foi embora, atravessando sozinho os campos.
Antes de ir, fez uma pergunta típica daquela época do ano.
— Como será a colheita este ano?
— Não posso me queixar.
Ou seja, muito boa, concluiu Wallander para si mesmo enquanto tentava manter o equilíbrio nos sulcos. Normalmente, o homem só fazia prognósticos deprimentes.
Ao chegar em casa, telefonou para Linda. Também a ela não quis confessar a verdadeira razão da sua viagem e lhe disse que o tinham convocado para uma reunião em Estocolmo. Ela não duvidou, só perguntou quanto tempo pensava ficar fora.
— Dois dias, talvez três.
— Onde vai ficar?
— No Hotel Naval. Pelo menos na primeira noite; depois talvez fique na casa de Sten Nordlander.
As sete e meia, com a roupa já na mala e a porta fechada à chave, se sentou ao volante para seguir para Malmó. Depois de muita hesitação, colocou a sua velha caçadeira, na realidade a do seu pai, na mala junto com vários cartuchos e a sua arma de serviço. Como ia de trem não estaria sujeito a nenhum controle de segurança. Embora as armas lhe causassem mal-estar, não se atrevia a viajar sem elas.
Alojou-se num hotel barato nos arredores de Malmõ e jantou num restaurante perto de Jágersro antes de dar uma longa caminhada; queria se cansar o suficiente para ir dormir cedo. Antes das cinco da manhã do dia seguinte já estava de pé e vestido. Quando pagou o quarto, combinou com o empregado deixar o carro no estacionamento do hotel e chamou um táxi que o levou à estação de trens. O dia começava quente, constatou; talvez o verão tivesse por fim decidido chegar a Skâne.
Costumava ser mais perspicaz logo de manhã, tanto quanto se lembrava sempre fora assim. E, enquanto aguardava na calçada a chegada do táxi, não sentiu qualquer hesitação: estava fazendo o correto. Finalmente sentia que se aproximava da explicação para tudo.
Durante a viagem para Estocolmo folheou uns jornais e resolveu várias palavras cruzadas até a metade, mas acima de tudo deixou a sua mente vaguear, evocando vezes sem conta a noite de Djursholm. Pensou no monte de fotografias que tinha em casa relativas à festa: a inquietação de Hakan von Enke, e a única fotografia em que Louise não sorria; a única em que parecia séria.
Comeu dois sanduíches e bebeu café no vagão-restaurante, escandalizado com os preços, e a seguir passou o resto da viagem com a cabeça apoiada na mão, contemplando, absorto, a paisagem que fluía velozmente do outro lado da janela. Depois de Nássjõ aconteceu aquilo que ultimamente constituía o seu maior pesadelo. De repente, não sabia para onde se dirigia e se viu obrigado a consultar a passagem para se relembrar. Depois dessa falha de memória ficou com a camisa ensopada em suor; uma vez mais, se sentiu abalado.
Por volta do meio-dia estava no seu quarto do Hotel Naval e desceu para almoçar no restaurante do hotel. Ali havia um grupo de pessoas que falavam inglês, e Wallander ouviu alguém dizer que eram de Birmingham. Comeu um hambúrguer, que acompanhou com cerveja, e se mudou para o bar, onde tomou café. Eram quinze para as duas, de maneira que ainda lhe faltavam umas horas de espera.
Sten Nordlander chegou ao hotel poucos minutos depois das quatro. Estava bronzeado e cortara o cabelo muito curto. Wallander teve a impressão de que também ele perdera peso. Nordlander sorria de orelha a orelha.
— Parece cansado, observou Nordlander. — Não aproveitou bem as suas férias?
— Não devo ter aproveitado grande coisa, respondeu Wallander.
— Como está um dia bonito talvez queira sair? Ou prefere que fiquemos aqui?
— Não, também pensei que poderíamos sair. Podemos ir até Mosebacke, o que acha? Está uma temperatura boa para nos sentarmos na esplanada.
Durante o percurso pela ladeira que desembocava na praça, Wallander não disse nada sobre os motivos da sua viagem a Estocolmo, e Sten Nordlander também não perguntou.
Wallander ficou ofegante com a subida, ao passo que Nordlander parecia estar em forma. Sentaram-se no terraço, onde a maioria das mesas já estava ocupada. O outono e as tardes de frio chegariam dentro em breve e as pessoas aproveitavam para ficar ao ar livre enquanto fosse possível. Wallander pediu chá, porque tinha abusado do café e lhe ardia o estômago. Sten Nordlander pediu um sanduíche e uma cerveja. Wallander decidiu ir direto ao cerne da questão.
— Não fui completamente honesto quando lhe disse que nada acontecera. Só que preferia não anunciar pelo telefone.
Enquanto falava, não deixava de observar o outro, e a sua expressão de surpresa lhe pareceu totalmente sincera.
— É Hakan? Perguntou.
— Exato. Sei onde se encontra.
Sten Nordlander olhou espantado para Wallander. Ele não sabe nada, constatou para si mesmo, aliviado. Não tem a menor ideia. E neste momento preciso de uma pessoa em quem possa confiar. Sten Nordlander guardava um silêncio expectante. Das mesas vizinhas chegava um burburinho agradável.
— Conte o que aconteceu!
— Já vou contar, mas primeiro preciso fazer umas perguntas. Quero comprovar se a minha ideia acerca de tudo isto corresponde à realidade. Vejamos, falemos de política. Qual foi a inclinação política de Hakan von Enke enquanto estava na ativa? Quais eram as suas ideias? Deixe-me dar um exemplo: Olof Palme. Toda a gente sabe que ganhou o ódio de muitos militares que não hesitavam em difundir rumores infundados e absurdos de que estava louco e era submetido a tratamento hospitalar ou que era espião da União Soviética. Como se incluía Hakan nesse contexto?
— Não se incluía, e já tinha lhe dito porquê: Hakan nunca pertenceu ao grupo que incitava os ânimos contra Palme, nem contra o governo social-democrata. Como deve se lembrar, lhe contei que se encontrou com o primeiro-ministro numa ocasião. E certamente era da opinião de que as críticas contra Palme eram descabidas, da mesma forma que achava que se exagerava a capacidade bélica da União Soviética e a sua vontade de atacar a Suécia.
— Alguma vez teve razões para duvidar da sua sinceridade quanto a isso?
— Porque havia de fazer tal coisa? Hakan é um patriota, mas também um homem perspicaz e muito analítico. Acho que se sentia mal com toda a animosidade à sua volta contra tudo o que era russo.
— E o que pensava dos Estados Unidos?
— Também não poupava críticas. Lembro-me de uma vez tê-lo ouvido dizer que os Estados Unidos eram, de fato, o único país do mundo que tinha utilizado armas nucleares contra outro país. Claro que se pode invocar as circunstâncias especiais que existiam no final da Segunda Guerra Mundial, mas continua a ser um fato: os americanos recorreram a armas atômicas contra seres humanos. E isso nenhum outro país fez. Pelo menos até agora.
Wallander não tinha mais perguntas de momento. Nada do que Sten Nordlander disse o surpreendera, as respostas foram as que esperava. Serviu-se de um pouco de chá e pensou que chegara o momento.
— Já tínhamos falado uma vez da existência de um espião dentro das Forças Armadas suecas. Alguém cuja identidade não conseguiram desvendar.
— Bem, se trata do tipo de rumores que sempre corre nesses meios. Se não têm outro tema de conversa, podem sempre recorrer a especulações sobre toupeiras que vão abrindo caminhos subterrâneos.
— Se bem entendi, esses rumores falavam de um espião mais perigoso que o próprio Wenerstróm, por várias razões.
— Não sei nada disso, mas suponho que aquele espião que não se consegue deter é sempre quem mais nos ameaça. Wallander assentiu.
— Também circulava outro rumor, observou. — Ou melhor, circula, uma vez que ainda existe. E, segundo diz o rumor, o espião desconhecido é uma mulher.
— Bem, pouca gente deve ter acreditado nisso. Pelo menos, no meu círculo. Dado o número reduzido de mulheres que trabalham no Ministério da Defesa em posições com acesso a documentação secreta, não é de todo verosímil.
— Chegou a falar disso com Hakan?
— De uma espiã? Não, nunca.
— Pois Louise era a espiã, revelou Wallander com serenidade. — Era espiã da União Soviética.
Sten Nordlander não pareceu entender o que Wallander acabava de dizer. Depois tomou consciência da consequência daquela declaração.
— Não pode ser.
— Não só pode como também é.
— Pois eu não acredito nisso. Em que provas se apoia para afirmar tal coisa?
— Faria bem em acreditar. A polícia encontrou vários documentos confidenciais em microfilmes na bolsa de Louise e também vários negativos. Não sei o que continham, mas estou convencido de que esses documentos demonstram que se dedicava à espionagem. Contra a Suécia, a favor da Rússia, e antes da União Soviética. Por outras palavras, esteve muito tempo na ativa.
Sten Nordlander observava-o, incrédulo.
— Quer realmente que acredite nisso?
— Sim, tem de acreditar.
— Esta revelação me traz muitas perguntas, argumentos que contradizem o que acaba de assegurar.
— Mas me diga sinceramente: pode ter certeza, a certeza absoluta, de que me engano?
Sten Nordlander ficou petrificado, com o copo de cerveja na mão.
— Não me diga que Hakan também está colocado nisto? Trabalhavam em par?
— Não me parece.
Sten Nordlander pousou o copo na mesa com um estrondo.
— Sabe ou não sabe? Por que motivo não me diz a verdade, sem rodeios?
— Nada indica que Hakan tenha colaborado com Louise.
— Mas então porque se esconde?
— Porque suspeitava dela. Vigiou-a durante anos. No final temia pela sua vida, pois achava que Louise começara a notar que desconfiava dela. E então corria o risco de ser assassinado.
— Mas a assassinada é Louise!
— Não se esqueça de que, quando a encontraram, Hakan estava desaparecido há muito tempo.
Wallander viu surgir uma nova faceta de Sten Nordlander. Em condições normais, era um homem enérgico e franco, mas agora viu-o encolher, se transformar por causa do desconcerto que o invadia.
Deu-se um ligeiro tumulto numa mesa contígua quando um homem embriagado escorregou, arrastando com ele copos e garrafas. Não levou muito até aparecer o porteiro, que impôs a ordem novamente. Wallander continuava bebendo o seu chá. Sten Nordlander se levantara e se dirigira à vedação, de onde contemplava a cidade aos seus pés. Quando voltou, Wallander admitiu:
— Vou precisar da sua ajuda para conseguir que Hakan volte.
— E que posso fazer?
— Você é o seu melhor amigo. Quero que me acompanhe numa pequena excursão. Amanhã saberá o destino. Podemos usar o seu carro? Pode deixar o seu barco um dia ou dois?
— Sim, claro. Wallander se levantou.
— Venha me buscar amanhã às três horas da tarde, em frente ao hotel. Vista roupa impermeável. É melhor nos despedirmos aqui.
Não deu oportunidade a Sten Nordlander de fazer mais perguntas. Quando foi embora para o hotel, deu uma olhada à sua volta. Continuava sem poder confiar totalmente em Nordlander, mas tomara uma decisão e já era tarde para se arrepender.
Naquela noite ficou acordado durante muito tempo, dando voltas nos lençóis úmidos. Em sonhos viu Baiba levitando no ar; tinha o rosto completamente transparente.
Saiu muito cedo do hotel e apanhou um táxi para Djurgârden, onde dormitou por baixo de uma árvore. Usou o saco onde guardara a espingarda como almofada. Depois da sesta, foi caminhando devagar pela cidade. Quando Sten Nordlander parou o carro na entrada do hotel, ele já estava pronto. Deixou o saco no assento traseiro e se sentou ao lado de Nordlander.
— Para onde vamos?
— Para o sul.
— Longe?
— Uns duzentos quilômetros, mas não temos pressa. Deixaram a cidade e tomaram a autoestrada.
— O que nos espera? Quis Nordlander saber.
— Nada, a não ser uma conversa que quero que ouça.
Sten Nordlander não fez mais perguntas. Será que sabe para onde vamos? Perguntou-se Wallander. Estará fingindo surpresa? Não tinha certeza. Mas, claro, no seu íntimo sabia muito bem porque trouxera as armas. Trouxe-as porque não tenho certeza se vou precisar me defender, disse para si mesmo. Só espero que não venha a ser necessário.
Chegaram ao porto por volta das dez horas da noite, depois de Wallander ter insistido que parassem para jantar em Sõderkóping. Os dois homens observaram em silêncio o ribeiro que atravessava a cidade e que agora estava coberto de ervas. O barco que Wallander alugara com antecedência aguardava-os amarrado na doca.
Às onze, já estavam perto do seu destino. Wallander desligou o motor e deixou o barco à deriva. Ouvia com atenção; tudo estava em silêncio. A cara de Sten Nordlander mal se distinguia na escuridão.
Por fim, chegaram e desembarcaram.
* * *
Quarenta
AVANÇARAM com cautela por entre a penumbra da noite estival. Wallander sussurrou para Nordlander, sem mais explicações, que não devia se afastar do seu lado. Assim que chegaram à ilha, teve certeza de que Nordlander não conhecia o esconderijo de Hakan von Enke. Ninguém o conseguiria esconder tão habilidosamente se já soubesse onde encontrar o homem que procuravam.
Parou ao ver luz numa das janelas da cabana. E junto ao leve rumor das ondas também distinguiu música; levou alguns segundos até compreender que uma das janelas da casa estava aberta. Virou-se para Nordlander e perguntou num sussurro:
— Custa-lhe acreditar que Louise era espiã?
— Acha estranho?
— De todo.
— Entendo o que está dizendo, mas me recuso a acreditar que seja verdade.
— Faz bem, respondeu Wallander, pensativo. – Aquilo que lhe contei é o que querem que acreditemos.
Sten Nordlander meneou a cabeça.
— Agora é que não estou entendendo.
— É muito simples. A prova de que Louise era espiã são os documentos encontrados na sua bolsa de mão. No entanto, alguém pode tê-los colocado lá depois. Por outro lado, tentaram encobrir o assassinato, fazendo com que parecesse um suicídio, que ela mesma se matou. Quando me encontrei com Hakan aqui na ilha, me contou, com todos os detalhes, que durante muitos anos suspeitou que Louise se dedicasse à espionagem. A sua história era absolutamente credível. Entretanto, passado um tempo comecei a compreender o que antes não entendera. Podemos dizer que era como se visse os acontecimentos num espelho, observava-os de uma pÿerspectiva invertida.
— E o que viu?
— Algo que colocava tudo ao contrário. E ao pôr as coisas de pernas para o ar vi tudo direito, por assim dizer. Foi exatamente isso que me aconteceu.
— Portanto, apesar daquilo que me contou, devo tirar a conclusão de que Louise não era espiã? Mas o que me quer dizer, mais precisamente?
Wallander não respondeu à sua pergunta.
— Quero que se aproxime da cabana, disse. – E que fique ali, à escuta.
— A escuta de quê?
— Da conversa que penso ter com Hakan von Enke.
— Mas porquê este andar na ponta dos pés no escuro?
— Se ele souber que você está aqui, nos arriscamos a que não diga a verdade.
Sten Nordlander meneou a cabeça sem dizer nada; aceitou a explicação e se encaminhou para a cabana. Wallander, por sua parte, permaneceu imóvel onde estava. Estava convencido de que Von Enke, avisado pelos seus detetores de movimento, já sabia que havia alguém na ilha. Contudo, esperava que não se tivesse notado que havia mais de uma pessoa nas imediações da cabana.
Sten Nordlander chegou à fachada lateral. Se não soubesse que se encontrava ali, Wallander não teria podido descobrir a sua presença. E continuou à espera, sem se mover, enquanto sentia uma curiosa mistura de calma e de inquietação. O final da história, disse para si mesmo. Terei razão ou terei cometido o maior engano da minha vida. Lamentou não ter advertido Nordlander de que aquilo podia levar algum tempo.
De repente, uma ave noturna esvoaçou ao seu lado, para desaparecer logo em seguida. Wallander escutou atentamente a escuridão, à procura de algum som que o avisasse de que Hakan von Enke se aproximava. Sten Nordlander permanecia, impassível, junto à cabana, enquanto a música se filtrava pela janela aberta.
Sobressaltou-se ao sentir tocarem-lhe no ombro. Virou-se e se encontrou cara a cara com Von Enke.
— Outra vez por aqui? Perguntou ele em voz baixa. – Não foi nada disso que acordamos. Podia tê-lo tomado por um intruso. Por que veio?
— Para falar consigo.
— Aconteceu alguma coisa?
— Muitas coisas. Como certamente sabe, fui a Berlim e falei com o seu velho amigo George Talboth. Preciso dizer que se portou como esperava de um alto oficial da CIA.
Wallander se preparara o melhor possível. Sabia que não devia exagerar; tinha de falar suficientemente alto para que Sten Nordlander ouvisse bem, mas não tanto que Von Enke começasse a desconfiar.
— Ele disse que lhe pareceu ser uma boa pessoa.
— Nunca na minha vida tinha visto um aquário como o dele.
— Sim, é espantoso. Sobretudo os trens que circulam pelos túneis.
Uma forte lufada de vento soprou de repente ao seu lado e tudo voltou a ficar em silêncio.
— Como veio desta vez? Perguntou Von Enke.
— Com o mesmo barco.
— Sozinho?
— Porque não havia de ter vindo sozinho?
— Costumo desconfiar quando respondem às minhas perguntas com outra pergunta.
Subitamente, Hakan von Enke acendeu uma lanterna que levava junto ao corpo e focou o rosto de Wallander. Como num interrogatório, pensou. Desde que não a dirija para a casa e veja Nordlander. Seria o fim. A luz se apagou.
— Bem, não precisamos ficar aqui fora.
Wallander seguiu atrás de Von Enke, que, ao entrar na cabana, desligou o rádio. Nada mudara desde a última visita de Wallander. Hakan von Enke estava alerta, mas Wallander não sabia se se tratava de uma reação instintiva ou se intuía o perigo. Ou se a sua atitude se deveria apenas à desconfiança natural provocada pela sua visita inesperada.
— Por alguma coisa deve ter vindo, observou Hakan von Enke. – Porquê esta visita tão repentina, no meio da noite?
— Queria falar consigo.
— Sobre a visita a Berlim?
— Não, não é sobre Berlim.
— Então explique.
Wallander confiava que Nordlander pudesse ouvir a sua conversa do lugar onde se encontrava, ao lado da janela. O que aconteceria se Von Enke decidisse fechá-la? Não tenho tempo a perder, percebeu Wallander. Preciso ir direto ao assunto, não posso esperar mais.
— Exijo uma explicação, insistiu Von Enke.
— Trata-se da Louise. E da verdade sobre ela.
— Então já não a conhecemos? Não falamos disso a primeira vez que veio aqui, nesta mesma cabana?
— Falamos. Mas não creio que tenha me dito a verdade. Hakan von Enke observou-o com a mesma expressão impenetrável de sempre. — De repente, me sobreveio a sensação de que havia alguma coisa que não batia certo, prosseguiu Wallander. – Era como se estivesse olhando para o ar quando era o chão à minha frente que devia ter observado. Aconteceu-me durante a visita a Berlim. Notei que George Talboth não só respondia às minhas perguntas como também me sondava, discreta e habilidosamente, para averiguar o que eu, no fundo, sabia. Quando me dei conta, fiquei ciente de outra realidade; de algo horroroso, vergonhoso, uma traição tão infame e tão cheia de desprezo pelo ser humano que, no princípio, não quis admitir. O que eu acreditava, o que o Ytterberg pensava, o que você me explicou e o que o Talboth corroborou... Não era verdade. Usaram-me, se aproveitaram de mim, caí obediente e ingênuo em todas as armadilhas que colocaram no meu percurso. Mas isso me ajudou a descobrir outra pessoa.
— Quem?
— Aquela a que podemos chamar a verdadeira Louise. Ela nunca foi espiã; não havia falsidade nenhuma nela, era o ser mais autêntico que se possa imaginar. No dia em que a conheci, o seu sorriso bonito me chamou a atenção e pensei nisso no dia que nos vimos em Djursholm. Depois me convenci durante muito tempo de que usava aquele sorriso para esconder o seu grande segredo. Até que compreendi que era um sorriso absolutamente sincero.
— Não me diga que veio para falar do sorriso da minha falecida mulher?
Wallander negou com um gesto resignado. Aquela situação lhe era subitamente tão desagradável que não sabia como lidar com ela. Deveria se enfurecer, mas não tinha forças.
— Vim aqui porque encontrei finalmente a verdade que buscava: Louise nunca se entregou a espionagem nenhuma contra a Suécia, nem nada que se pareça. Deveria ter compreendido isso há muito tempo, mas me deixei enganar.
— E quem o enganou?
— Eu mesmo. Estava tão seduzido como os outros pela ideia de que o inimigo vem sempre do Leste. Mas o principal arquiteto do engano foi você, o verdadeiro espião.
Mantém-se impassível, observou Wallander para si mesmo. Mas por quanto tempo?
— O que está sugerindo? Que sou um espião?
— Exato!
— Insinua que cometi espionagem a favor da União Soviética ou da Rússia? Deve estar louco!
— Não estou me referindo nem à antiga União Soviética nem à nova Rússia; estou dizendo que é espião. A serviço dos Estados Unidos. E já o é há muitos anos, Hakan. Só você sabe há quantos e como tudo começou. Também não sei os motivos que o levaram a isso. Não é que você suspeitasse de Louise, foi ela que começou a desconfiar que trabalhava como agente dos americanos. E foi isso que a levou à morte.
— Não matei Louise!
A primeira brecha, constatou Wallander. A voz esganiçada. E começa a se defender.
— Não, não acho que matou Louise. Certamente foram outros. Talvez fosse George Talboth quem o ajudou? Mas Louise morreu para evitar que o expusessem.
— Não pode provar essas acusações absurdas.
— É verdade, admitiu Wallander. — Não posso. Mas há quem o possa fazer. Sei o suficiente para que a polícia e as autoridades militares decidam investigar o acontecido de uma nova pÿerspectiva. O espião de cuja existência suspeitaram durante tanto tempo não é uma mulher; é um homem que não hesita em se escudar atrás da sua mulher, conseguindo assim uma fachada perfeita. Todos buscam um espião russo que além do mais era mulher, quando na realidade deveriam ter perseguido um homem que espiava para os Estados Unidos. Ninguém se lembrava dessa possibilidade, obcecados como estavam por localizar o inimigo no Leste. Toda a minha vida ouvi dizer isso, que a ameaça vinha sempre do Leste. Não lhes passou pela cabeça que alguém pudesse cometer traição à pátria no sentido contrário, trabalhando para os Estados Unidos. E as vozes que porventura alertassem para essa hipótese pregavam no deserto. Claro que pode se pensar que não seria fácil aos Estados Unidos obterem as informações necessárias sobre a nossa defesa, mas não era bem assim. A OTAN e principalmente os Estados Unidos precisavam de ajuda que lhes facultasse o acesso à informação restrita sobre a defesa sueca, que por sua vez lhes proporcionaria uma imagem aprofundada sobre os nossos conhecimentos de diversos planos russos.
Wallander ficou em silêncio. Hakan von Enke fitou-o, sempre inexpressivo.
— Foi o escudo perfeito ao se tornar uma voz incômoda para a Marinha, continuou Wallander. — Cansou-se de protestar quando deixaram escapar os submarinos russos que violaram as águas territoriais suecas. Fez tantas perguntas que começaram a vê-lo como um inimigo fanático da Rússia. Ao mesmo tempo, censurava os Estados Unidos quando convinha. Mas sabia, não tenho dúvida, que os submarinos que naquela época passavam à socapa nas nossas águas eram da OTAN. Jogou as suas cartas e ganhou a partida. Ganhou a todos, salvo talvez à sua mulher, que começou a suspeitar de que algo estava mal. Não sei porque veio aqui se esconder. Recebeu ordem daqueles para quem trabalhava? O homem que fumava junto à grade naquela noite da festa dos seus anos em Djursholm era um deles? Para lhe dar um aviso pré-combinado? Esta cabana estava reservada como possível esconderijo há muito tempo; sabia da sua existência pelo pai do Eskil Lundberg, que o ajudou com todo o prazer, porque tratou com que recebesse uma boa indenização pelos estragos dos seus molhes e redes de pesca. Um homem que nunca denunciou a existência do equipamento de escuta que os americanos tentaram colocar no cabo submarino russo. Suponho que o viessem buscar num navio se fosse preciso evacuá-lo. Provavelmente não lhe disseram que Louise tinha de morrer. Mas sem dúvida foram os seus amigos que a mataram, e você sabia que esse seria o preço do seu jogo; nada podia fazer para evitar o que aconteceu. Não é assim? A única coisa que gostaria de saber é o que era tão importante que até valesse a vida da sua mulher.
Hakan von Enke não tirava o olhar da sua mão e parecia estranhamente indiferente a tudo aquilo que Wallander acabava de dizer. Talvez seja tristeza, apesar de tudo, pela morte de Louise ter sido o preço que foi obrigado a pagar, pensou Wallander. Agora, quando já é tarde demais.
— Nunca quis que ela morresse, disse Von Enke finalmente, sem desviar o olhar da mão.
— E o que pensou quando soube? Hakan von Enke respondeu num tom neutro, quase pragmático.
— Ponderei o suicídio e só a recordação da minha neta me impediu. Agora já não sei...
Ficaram em silêncio. Wallander pensou que Sten Nordlander deveria estar entrando a qualquer momento, mas ainda lhe restava uma pergunta.
— Como o fazia?
— O quê?
— Estou me referindo a como obtinha a informação secreta. Quero saber como se tornou espião.
— É uma longa história.
— Temos tempo. E também não precisa me dar um relato exaustivo, só o suficiente para que eu o compreenda.
Hakan von Enke se recostou na cadeira e fechou os olhos. E agora Wallander viu que era um homem envelhecido que tinha à sua frente.
— Tudo começou há muitos anos, disse Von Enke, ainda de olhos fechados. – Os americanos se puseram em contato comigo logo no princípio dos anos sessenta. Convenceram-me rapidamente da importância dos Estados Unidos e a OTAN terem acesso a informações, para o bem da nossa própria defesa. Nunca seríamos capazes de nos defendermos sozinhos, sem os Estados Unidos estaríamos perdidos de antemão.
— Quem se pôs em contato consigo?
— Não se esqueça de como as coisas eram nessa época. Havia um grupo de pessoas, jovens na sua maioria, que se dedicavam exclusivamente a se opor à guerra dos Estados Unidos no Vietnam. No entanto, a maioria das pessoas sabia que precisávamos do apoio dos americanos para resistir no dia em que tudo arrebentasse na Europa. Aquela gente romântica e ingênua de esquerda me dava raiva. Tinha de fazer alguma coisa e entrei naquilo de olhos bem abertos, ninguém me obrigou. Podemos dizer que foi por uma questão ideológica e continua sendo, ainda hoje. Sem os Estados Unidos, o mundo estaria entregue a forças que só desejam arrancar à Europa todo o seu poder. Que pensa que são as aspirações da China? E o que farão os russos no dia em que tenham posto ordem nos seus problemas internos?
— Mas também deve ter havido dinheiro no meio de tudo isso, não? Von Enke não respondeu; desviou o olhar e se afundou nos seus pensamentos. Wallander lhe fez mais umas perguntas que também não obtiveram resposta. Hakan von Enke dera simplesmente a conversa por terminada.
Levantou-se de repente e se dirigiu para o canto da cozinha. Tirou uma cerveja da geladeira e abriu uma gaveta. Wallander seguiu-o com o olhar. Quando Hakan von Enke se virou, segurava uma pistola na mão. Wallander se pôs de pé com um salto; a arma estava apontada para ele. Muito devagar, Von Enke pousou a garrafa de cerveja na bancada. Levantou a arma. Wallander viu como acertava a mira até estar na linha da sua cabeça. Lançou um grito e viu a arma se mover.
— Não posso mais, declarou Hakan von Enke. – Já não me resta futuro nenhum.
Encostou a boca do cano ao queixo e disparou. O tiro ressoou entre as paredes. No mesmo momento em que sucumbiu, a cara banhada em sangue, Sten Nordlander irrompeu pela cabana aos gritos.
— Está ferido? Disparou contra si?
— Não. Disparou contra si mesmo.
Não conseguiram tirar os olhos de cima do homem que jazia no chão com o corpo numa postura estranha. O sangue que cobria o rosto impedia-os de ver se os olhos estavam fechados ou não. Wallander foi o primeiro a notar que estava vivo. Pegou numa camisa pendurada numa cadeira e pressionou com ela a ferida do queixo de Von Enke enquanto gritava a Sten Nordlander que procurasse toalhas. O projétil saíra pela face. A trajetória da bala falhara e não lhe atravessara o cérebro.
— Falhou, disse Wallander quando Sten Nordlander voltou com um lençol que retirara da cama.
Hakan von Enke tinha os olhos abertos; ainda ardia neles a chama da vida.
— Aperte aqui, com força. Wallander mostrou a Sten Nordlander como devia fazer.
Procurou o celular dentro do bolso e discou o número da emergência. Não havia cobertura. Saiu da cabana e trepou até ao topo de um rochedo que se alçava atrás da casa. Ali também não pôde estabelecer uma ligação. Voltou para dentro da cabana.
— Está se esvaindo em sangue, advertiu Sten Nordlander.
— Tem de pressionar com mais força, explicou Wallander. – Não consigo telefonar, preciso ir pedir ajuda. A cobertura às vezes falha aqui.
— Não acho que sobreviva.
— Se morrer, nunca saberemos a verdade do que aconteceu.
Sten Nordlander estava de joelhos ao lado do homem, que sangrava abundantemente. Olhou para Wallander com medo nos olhos.
— Era verdade?
— Ouviu, não ouviu?
— Palavra por palavra. Era verdade, então?
— Sim, é tudo verdade. Tanto o que eu disse como o que ele disse. Foi espião dos Estados Unidos durante quarenta anos. Dedicou-se a lhes vender os nossos segredos de defesa, e os americanos devem ter achado que o fazia bem, uma vez que não hesitaram em assassinar a sua mulher.
— Não consigo entender.
— É mais uma razão para que façamos tudo para que não morra, pois só ele pode nos dar a explicação de que necessitamos. Vou buscar ajuda, levarei tempo. Se conseguir conter a hemorragia, talvez possamos salvá-lo.
Wallander já ia a caminho da porta quando ouviu a voz de Sten Nordlander atrás dele.
— Não há qualquer dúvida?
— Nenhuma.
— Nesse caso, me enganou toda a vida.
— Enganou a todos.
Wallander saiu da cabana e correu para onde estava o barco. Tropeçou várias vezes e até caiu. Chegando à beira-mar, comprovou que o vento começara a soprar com mais força. Soltou a amarra, empurrou o barco e pulou para bordo; o motor ligou na primeira tentativa. A noite era tão escura que tinha dúvidas se conseguiria navegar até ao porto. Acabava de virar e se preparava para acelerar quando ouviu o estalido surdo de um disparo. Não havia dúvida, alguém disparara uma arma. E o barulho vinha da cabana. Largou o acelerador e ouviu com atenção. Estaria confundindo? Deu a volta e retornou à praia. Saltou do barco mas aterrou na água e os sapatos ficaram encharcados.
Continuou a prestar atenção ao mínimo ruído. O vento ganhava intensidade. Tirou a espingarda e carregou-a. Haveria mais gente na ilha sem que ele soubesse? Voltou para a cabana de espingarda na mão, tentando se mover sem ruído. Parou ao ver uma luz tênue pelas frinchas das cortinas. Nem um som, só o rumor do mar e do vento entre as copas das árvores.
Acabava de começar a avançar para a porta da cabana quando ressoou outro disparo. Jogou-se no chão e ficou imóvel, com o rosto colado na terra úmida, protegendo a cabeça com as mãos, que tinham largado a espingarda. A cada segundo que passava, esperava o fim. Mas ninguém saiu da cabana. Finalmente, se atreveu a se levantar e apanhou a arma. Apalpou com os dedos para verificar se os dois canos não estavam cheios de terra.
Muito devagar, se aproximou da porta, agachado. Antes de abrir, bateu com força duas vezes. Nada. Gritou o nome de Sten Nordlander, mas este não respondeu. Dois disparos, pensou Wallander em desespero, tentando interpretar o significado. Era impossível saber, mas suspeitava. Na sua mente recriou o rosto de Sten Nordlander ao perguntar: Não há qualquer dúvida? Wallander empurrou a porta e entrou.
Hakan von Enke estava morto. Sten Nordlander lhe dera um tiro na testa. A seguir voltara a arma contra si mesmo e agora jazia morto no chão, ao lado do seu antigo colega. Chocado, Wallander se censurava por não ter previsto aquela possibilidade. Ali fora no escuro, Sten Nordlander escutara o relato de como Hakan von Enke traíra a todos, e talvez mais aqueles que confiavam nele, que não o viam tanto como um colega, mas antes como um amigo.
Wallander evitou pisar com os sapatos molhados a poça de sangue que se formava no chão. Afundou-se na cadeira de onde ouvira o que Hakan von Enke lhe revelara. O cansaço se apoderou dele e pensou que a verdade parecia mais difícil de suportar à medida que os anos passavam. Não obstante, era sempre ela que buscava.
Que distância haviam percorrido desde a festa de Djursholm? Perguntou-se. Se assumirmos que a conversa que mantivemos formava parte de um plano cujo objetivo era me fazer acreditar que a sua mulher era uma espiã e, assim, desviar as suspeitas de Hakan, penso que as decisões mais importantes já estariam tomadas então. Talvez fosse o próprio Hakan quem teve a ideia de me utilizar? Aproveitar-se do fato do seu filho viver com uma mulher cujo pai era um ignorante policial provinciano.
Dominava-o uma sensação tanto de raiva como de dor enquanto contemplava os dois homens mortos. No entanto, naquele momento o que mais o preocupava era o fato de Klara não iria conhecer nenhum dos seus avós paternos. A criança teria de se contentar com uma avó que se batia contra o álcool e um avô cada vez mais velho e debilitado.
Talvez tivesse permanecido ali sentado meia hora, talvez mais, antes de obrigar a si mesmo a agir novamente como policial. Arquitetou uma ideia simples baseada em deixar tudo tal como estava. Antes de partir, tirou as chaves do carro que Sten Nordlander tinha no bolso. Depois deixou a cabana, se dirigiu ao barco e se fez ao mar no meio da noite escura.
Contudo, antes de empurrar o barco para a água pela segunda vez, parou na praia e fechou os olhos. Era como se o passado se precipitasse para ele. Todo o mundo circundante do qual tão pouco sabia. Viu-se de repente como parte do elenco daquele palco enorme. Que sabia hoje que não soubesse antes? Na realidade, não muito mais, estava convencido. Continuo a ser a mesma pessoa a deriva na periferia dos grandes acontecimentos políticos e militares. Sou o mesmo homem inquieto e inseguro e me encontro à margem, como antes.
Empurrou o barco e apesar da escuridão total que o envolvia conseguiu navegar até chegar a bom porto. Deixou o barco onde o alugara. Não havia vivalma. Eram duas horas da madrugada quando se sentou no carro de Sten Nordlander e arrancou. Estacionou o carro perto da estação de trem e limpou cuidadosamente o volante e a alavanca de mudança, assim como a porta. Jogou as chaves para um poço e se sentou à espera do primeiro trem com destino ao sul; passou muitas horas no banco de um jardim. Pensou como era estranho se encontrar ali, numa cidade desconhecida, com a velha espingarda do seu pai num saco.
Começara a chuviscar ao amanhecer quando encontrou um café aberto. Pediu um café e folheou uns velhos jornais antes de retornar à estação e ir embora daquele lugar. Não pensava em voltar.
Da janela do trem viu o carro de Sten Nordlander no estacionamento. Tarde ou cedo, alguém se interessaria por ele. E uma coisa levaria à outra. Perguntariam como chegara ao porto e dali ao ilhéu de Bláskar, mas confiava que o alugador de barcos não o relacionasse com a tragédia que tivera lugar na cabana isolada. Além disso, estava convencido de que os detalhes seriam arquivados como secretos.
Wallander chegou a Malmô pouco depois do meio-dia, foi buscar o carro e rumou para Ystad. Mesmo à entrada da cidade, foi mandado parar numa operação stop. Mostrou o seu cartão de policial e soprou no alcoômetro.
— Então, como vai isso? Perguntou, mostrando ao seu colega um interesse encorajador. – A malta conduz sóbria ou quê?
— No geral, sim. Mas começamos mesmo agora; há sempre alguém que acaba por ser apanhado. E como vão as coisas em Ystad?
— Por enquanto, está tudo calmo, mas em agosto costuma haver mais trabalho que em julho.
Wallander fez um gesto de despedida, levantou o vidro e continuou o seu caminho. Há umas horas, tinha dois cadáveres aos meus pés, disse para si mesmo. Mas isso é algo que as outras pessoas não conseguem ver. Felizmente, as nossas memórias não nos transparecem na cara.
Fez compras pelo caminho, foi buscar Jussi e finalmente chegou em casa. Depois de colocar a comida na geladeira, se sentou à mesa da cozinha, rodeado pelo silêncio. Tentou decidir o que contar a Linda.
Mas não chegou a telefonar naquele dia, nem tampouco naquela noite. Simplesmente não fazia ideia do que deveria lhe dizer.
* * *
Epílogo
NUMA NOITE de maio de 2009, um pesadelo arrancou Wallander do sono. Acontecia cada vez com mais frequência, as memórias da noite continuavam presentes quando abria os olhos ao acordar. Antes quase não se lembrava do que sonhara. Jussi, que estivera doente, dormia no chão junto à cama. O relógio do rádio-despertador mostrava quatro e quinze. E se não fosse só o sonho que o despertara? Pela janela aberta do quarto talvez tivesse se filtrado na sua consciência o grito rouco de uma coruja, não seria a primeira vez.
Em todo o caso, a coruja já não estava lá. Sonhara com Linda e a conversa telefônica que deveria ter mantido com ela no dia em que voltara de Blâskár. No sonho, lhe contava o acontecido por telefone; ela ouvia sem dizer palavra e isso era tudo. O sonho se quebrou bruscamente, como um ramo podre.
Acordou com uma intensa sensação de mal-estar. Na realidade, nunca tivera forças para lhe telefonar. A explicação que dera a si mesmo não era mais do que uma simples desculpa. Ele não tinha provocado a tragédia, e lhe dar os dados exatos do acontecido apenas contribuiria para uma situação insuportável, além de que o tornaria suspeito de estar implicado. Apenas quando a tragédia se tornasse pública é que ela e Hans saberiam o que acontecera. Ao passo que ele, na melhor das hipóteses, continuaria a não se envolver.
Wallander pensou que fora uma das piores experiências da sua vida, só comparável àquela vez, muitos anos antes, em que, estando de serviço, matara pela primeira vez uma pessoa e chegara a se questionar seriamente se seria capaz de continuar na profissão. Então pensou fazer como Martinsson acabara por fazer: sair da polícia e se dedicar a uma atividade completamente diferente.
Wallander espiou devagar pela borda da cama e olhou para o cão. Também o animal sonhava, arranhando o ar com as patas. Wallander se estendeu novamente na cama, o ar que entrava pela janela aberta era agradável e se descobriu. Veio-lhe à mente o monte de papéis que tinha sobre a mesa da cozinha.
Em setembro do ano anterior começara a redigir um relato de tudo o que acontecera antes do trágico final que tivera lugar na cabana de Blâskár.
Fora Eskil Lundberg quem encontrara os cadáveres. A Polícia Judiciária de Norrkóping chamou logo Ytterberg para que ajudasse. Como também era assunto da polícia secreta e do serviço de informações militares, o caso foi imediatamente abafado e classificado como ultrassecreto. Wallander teve de se contentar com o que Ytterberg lhe revelou sob a máxima confidência. Temeu sempre que a sua presença na cena da tragédia se descobrisse a qualquer momento. E o que mais o preocupava era se Sten Nordlander teria mencionado a viagem à sua mulher, mas aparentemente não o chegara a fazer. Angustiado, Wallander lia nos jornais sobre o desespero da mulher com a morte do marido e a sua recusa em acreditar que tivesse matado o seu velho amigo a tiro antes de se suicidar com a mesma arma.
Às vezes, Ytterberg se queixava a Wallander. Nem sequer ele, que dirigia a investigação policial, sabia o que se tramava nos bastidores. Em todo o caso, podia se afirmar sem qualquer dúvida que Sten Nordlander disparara duas vezes sobre o amigo antes de também se matar com um tiro. Por outro lado, havia muitas dúvidas, sobre as quais ninguém soubera ainda adiantar uma explicação credível, sobre como Sten Nordlander chegara a Blâskár. "Isso implica", disse Ytterberg em várias ocasiões, "que pode se suspeitar da presença inicial de uma terceira pessoa." No entanto, Ytterberg não soube dizer quem seria ou que papel desempenharia essa terceira pessoa. Também não tinham logrado esclarecer a verdadeira causa de tão trágico acontecimento.
Os jornais e os outros meios de comunicação se superaram uns aos outros nas suas especulações, se deleitando com o drama sangrento que acontecera na cabana. Linda, Hans e Klara quase se viram obrigados a sair de sua casa para evitar a invasão de jornalistas curiosos que os importunavam com perguntas insolentes. Os defensores das teorias da conspiração asseguravam que Hakan von Enke e Sten Nordlander tinham levado para o túmulo um segredo relacionado com o assassinato de Olof Palme.
De vez em quando, durante as suas conversas com Ytterberg, Wallander lhe perguntava, cauteloso e cortês, em que ponto estavam as suspeitas de que Louise von Enke tivesse sido espiã russa. Ytterberg não pôde dar mais senão respostas sucintas.
— Tenho a impressão de que tudo estagnou no que diz respeito a ela, adiantou numa ocasião. — Não faço ideia dos fatos que a polícia secreta procura ou deseja suprimir. Não me admiraria que tenhamos de esperar até que um jornalista investigue o assunto.
Durante toda aquela época, Wallander nunca ouviu uma só palavra acerca da possibilidade de Hakan von Enke ter sido espião a soldo dos Estados Unidos; simplesmente, não havia nenhuma suspeita, nenhum rumor, nem sequer uma vaga ideia de que isso fosse a causa do acontecido. Uma vez perguntou sem rodeios a Ytterberg se existia alguma teoria nesse sentido. Este ficou perplexo.
— E porque cargas d’água havia Hakan von Enke de ser espião dos Estados Unidos?
— Estou só imaginando uma explicação plausível para tudo o que aconteceu, justificou Wallander. — Da mesma maneira que se suspeitou que Louise fosse espiã dos russos, se poderia considerar a outra possibilidade.
— Está bem, mas acho que, se a polícia secreta ou os militares tivessem alguma suspeita desse tipo, teria transpirado e chegado aos meus ouvidos. Também.
— Só estava pensando em voz alta, comentou Wallander, evasivo.
— Por acaso saberá algo que eu não saiba? Perguntou Ytterberg num tom inesperadamente desconfiado.
— Claro que não, assegurou Wallander. — Nada que você não saiba.
Fora então, a seguir àquele telefonema, que começara a escrever. Reuniu todas as suas ideias e notas e construiu um sistema de informação composto por pequenos papéis que colou numa das paredes da sala. No entanto, todas as vezes que Linda ia visitá-lo, com Hans e Klara ou sozinha, retirava-os, pois queria escrever o seu relato sem a intervenção de ninguém, sem que se pudesse imaginar sequer o que estava fazendo.
Começou a tentar eliminar todos os fios soltos que ainda encontrava na sua teoria. Alguns deles foram fáceis de eliminar. Por exemplo, não foi difícil comprovar que USG Enterprises, o nome que lera na campainha da porta de George Talboth, correspondia ao de uma consultoria da qual não havia razão para se suspeitar de qualquer irregularidade. No entanto, nunca conseguiu averiguar quem entrara em sua casa sem ser convidado, como também não soube quem foi visitar Signe no lar de Niklasgârden, se fazendo passar por seu tio. Era evidente que se tratava de pessoas que de algum modo se encontravam a serviço de Hakan von Enke, mas Wallander nunca conseguiu esclarecer as suas intenções, embora o mais certo fosse que estivessem à procura daquela pasta a que ele dera o nome de "o livro de Signe". Tinha sempre esse livro sobre a mesa enquanto escrevia, mas continuava a guardá-lo na casinha de Jussi.
Não precisou de muito tempo para compreender em que consistia realmente a tarefa a que se propusera: no fundo, escrevia sobre si mesmo e sobre a sua própria vida, tanto como a propósito de Hakan von Enke. Quando chamava à memória tudo o que ouvira dizer sobre a Guerra Fria, as opiniões divergentes entre os militares acerca da neutralidade e não-alinhamento da Suécia ou sobre a necessidade do país aderir à OTAN, compreendia o pouco que no fundo sabia do mundo em que vivia. Logicamente, era impossível adquirir os conhecimentos que na verdade nunca tinham lhe interessado. Agora podia apenas aprender sobre aquele mundo mediante uma revisão retrospectiva.
Desanimado, se perguntou se haveria alguma característica própria da sua geração, certa relutância em se interessar pelo mundo em que viviam, pelas circunstâncias políticas sempre em mudança. Ou se trataria, pelo contrário, de uma geração com opiniões divergentes entre si? Entre quem se preocupava e quem se mostrava indiferente?
Agora compreendia que o seu pai sempre estivera mais bem informado que ele mesmo sobre os importantes acontecimentos em seu redor. Não só por causa do episódio de Tage Erlander e o discurso por ele pronunciado em Malmõ. Também se lembrou de uma ocasião no início da década de 1970 em que o pai lhe dera um sermão assim que soubera que ele não se dera ao trabalho de ir votar nas eleições realizadas naquele dia. Wallander ainda tinha na memória a indignação do pai, que lhe chamara "preguiçoso político" e o pusera para fora do ateliê, lhe jogando um pincel no rosto. Naquela época, a atitude do pai lhe pareceu simplesmente estranha. Por que motivo haveria de se preocupar com as brigas entre os políticos suecos? O que podia lhe interessar eram, quando muito, as questões relativas aos aumentos dos salários ou a diminuição da carga tributária, e nada mais.
Tinha muito o hábito de ficar à mesa da cozinha, refletindo sobre se os seus amigos seriam iguais a ele, se também não se interessavam pela política além do que os tocava diretamente. Nas poucas vezes que falavam de política, a discussão se reduzia à crítica dos políticos; se queixavam das suas ações ridículas, mas sem nunca sair disso e se perguntarem que alternativa poderia haver.
Na realidade, só houve um curto período em que refletira seriamente sobre a situação política da Suécia, da Europa e talvez do mundo inteiro. Fora alguns vinte anos antes, por causa do duplo assassinato de um casal de velhos agricultores de Lenarp. Não passara muito tempo até comprovarem que as suspeitas recaíam principalmente nos imigrantes ilegais ou em pessoas que pediam asilo político. Wallander se vira obrigado a se confrontar com as suas próprias opiniões sobre a imigração maciça para a Suécia. E descobriu que, por trás da sua atitude aparentemente pacífica e tolerante, espiavam opiniões tenebrosas, talvez mesmo racistas. Essa descoberta inesperada assustara-o sinceramente; tentara superar os seus preconceitos e conseguira-o. Mas depois da investigação, que curiosamente teve a sua resolução no mercado de Kivik, onde os dois assassinos haviam sido detidos, voltara à sua apatia política.
Naquele outono, visitou a biblioteca de Ystad algumas vezes e levou para casa livros sobre a História da Suécia do pós-guerra. Leu tudo sobre as discussões políticas em torno do eventual desenvolvimento de armas nucleares ou se, por outro lado, o país devia aderir à OTAN. Não obstante estar entrando na idade adulta na época de vários dos debates relativos àqueles assuntos, não se recordava de ter reagido alguma vez às declarações dos políticos. Era como se tivesse vivido numa redoma de vidro. Em certa ocasião, Wallander contou a Linda que começara a examinar o seu passado, e comprovou que ela tinha um interesse bem diferente do seu pelas questões políticas. Admirou-se, pois não se dera conta disso até então, mas ela respondeu que a consciência política não era algo que simplesmente estivesse estampado na cara das pessoas.
— Alguma vez quis abordar uma questão política comigo, por acaso? Comentou Linda. — Porque devia falar desses assuntos consigo, sabendo que não lhe interessam minimamente?
— E o que Hans diz?
— Ele sabe muito do mundo que o rodeia, mas nem sempre estamos de acordo.
Wallander também costumava pensar muito em Hans. No outono de 2008, em meados de outubro, Linda lhe telefonara muito transtornada para anunciar que a polícia dinamarquesa fizera uma batida ao escritório de Hans em Copenhague. Alguns dos corretores, em particular dois islandeses, tinham atribuído falsos valores às ações para garantirem as suas próprias comissões e prêmios. Com a crise financeira, a bolha arrebentou, e durante um período todos os empregados, inclusive Hans, foram suspeitos de estarem implicados no imbróglio. Só no último mês de março é que Hans foi notificado de que já não era suspeito de ter participado em qualquer tipo de irregularidade. Esses tempos foram muito difíceis para ele porque também estava sofrendo a perda do pai. Em várias ocasiões, pedira a Wallander que lhe explicasse os detalhes do ocorrido, e ele lhe deu toda a informação possível, embora jamais lhe desse a entender sequer a razão que levara àquele final infeliz.
Wallander se perguntava sobretudo como proceder para que a síntese das suas ideias e conhecimentos concretos chegasse ao maior número de pessoas possível. Seria boa ideia entregar o seu relato às autoridades sob anonimato? Mas haveria alguém que o levasse a sério? Quem teria, no fundo, algum interesse em perturbar as boas relações entre a Suécia e os Estados Unidos? Não seria o silêncio em torno da espionagem de Hakan von Enke precisamente o que todos os implicados desejavam?
Começara a escrever no final do mês de setembro, ou seja, há oito meses. Não queria que o acontecido caísse no silêncio do esquecimento. Essa mera ideia indignava-o. Ao mesmo tempo que escrevia, cumpria as suas obrigações profissionais. Duas investigações sem fim à vista sobre agressões graves encheram os seus dias naquele outono.
Em abril de 2009 começou a se dedicar a uma série de incêndios criminosos na região de Ystad com consequências fatais.
O que mais o preocupava durante aquele período eram, naturalmente, as suas repentinas perdas de memória. O pior incidente ocorrera durante a época do Natal. Como nevara durante a noite, Wallander se vestira para limpar a neve da entrada. Quando terminou, de repente não sabia onde se encontrava; nem sequer reconheceu Jussi. Levou muito tempo para se lembrar de que estava no seu próprio jardim. Mas nunca fez o que logicamente deveria ter feito: ir ao médico. Não foi porque simplesmente lhe angustiava o resultado. Tentou se convencer de que trabalhava demais, que se esgotava. Às vezes, conseguia. No entanto, nunca se livrava do medo de que as perdas de memória se agravassem. A ideia de ficar demente, de estar entrado na primeira fase de Alzheimer, horrorizava-o.
Estava deitado na cama. Era uma manhã de domingo, não precisava ir trabalhar. À tarde, Linda viria visitá-lo com Klara, talvez Hans também viesse se não estivesse muito cansado.
Às seis da manhã se levantou, soltou Jussi e preparou o desjejum. Dedicou o resto da manhã aos seus papéis. Pela primeira vez, naquela mesma manhã, percebeu que estava escrevendo uma espécie de "testamento da sua vida". Assim fora a sua vida e, mesmo se vivesse mais dez ou quinze anos, não seria muito diferente. Por outro lado, se perguntava, não sem uma sensação de vazio interior, o que faria no dia em que entrasse na aposentadoria. Lembrou-se das conversas com Nyberg, que dentro em breve se refugiaria nas florestas cerradas do Norte. Só havia uma conclusão: Klara; a sua presença enchia-o sempre de alegria. E ela continuaria ali quando tudo terminasse.
Precisamente naquela manhã de maio pôs um ponto final nos seus escritos; achava que não tinha mais para dizer. Passara a limpo todas as folhas no computador e agora tinha uma cópia impressa à sua frente. Com esforço, palavra por palavra, fora reconstruindo o relato do homem que o fizera acreditar que a sua mulher era uma espiã. Pensou que ele mesmo também fazia parte da sua história, não era apenas o seu autor.
Para alguns dos fios soltos nunca encontrou solução. Ali continuavam. Um dos que mais o intrigavam era a questão dos sapatos de Louise. Porque deixá-los tão cuidadosamente colocados ao seu lado? Wallander concluiu que não a teriam assassinado em Vármdô, mas sim noutro lugar, e que então não os levara calçados. E quem deixou-os junto ao seu cadáver certamente não refletira sobre o que fazia. Também não achou resposta à pergunta sobre onde Louise estivera durante o tempo em que permaneceu desaparecida. O mais provável era que a tivessem em cativeiro até que decidiram que devia morrer para salvar Hakan von Enke.
Outra questão misteriosa dizia respeito às pedras: as que encontrou em casa de Hakan von Enke, a que lhe entregou Atkins e, por último, a que viu na mesa da varanda de George Talboth. Não duvidava de que se tratava de uma espécie de recordações, recolhidas no arquipélago sueco por pessoas que não deveriam ter estado ali, naquelas ilhas e ilhéus. Também não soube explicar por que motivo as pedras da mesa de Von Enke desapareceram; imaginava várias respostas possíveis, mas sem se decidir por alguma.
De vez em quando, falava com Atkins ao telefone. Ouviu-o chorar a morte do seu amigo. Dos seus amigos, se corrigia, pois não se esquecia de Louise. Atkins lhe disse que viria para o funeral, mas quando este se realizou, em meados de agosto, não compareceu. Nunca mais voltou a telefonar para Wallander. Perguntava-se às vezes de que falariam Atkins e Von Enke todas as vezes que se viam. Nunca saberia.
Havia outra pergunta que teria gostado de fazer a Hakan e Louise. Porquê aquela desordem na gaveta da mesa de Hakan? Planejara ir para o Camboja se se tivesse visto obrigado a fugir? Também não sabia por que razão Louise von Enke levantara duzentas mil coroas do banco. Não encontrou dinheiro algum quando esvaziaram o apartamento de Estocolmo; não havia rastro dele, nunca encontraram explicação.
Os mortos levaram os seus segredos com eles. Do mesmo modo que a decisão de Sten Nordlander de matar Hakan von Enke antes de se suicidar seria sempre um mistério para ele.
No fim de novembro, enquanto assistia a um curso em Estocolmo, alugou um carro e se dirigiu ao lar de Niklasgârden. Ia acompanhado de Hans, que ainda não tivera forças para empreender a viagem e conhecer a sua irmã; foi um momento comovente ver Hans junto à cama de Signe. E muitas vezes pensava no fato de Hakan von Enke visitar regularmente a filha. Confiava nela, disse Wallander para si mesmo. Tanto que ousava lhe confiar os seus documentos mais secretos.
Durante muito tempo hesitou se devia dar um título ao seu texto, mas acabou por deixar a capa em branco. Duzentas e doze páginas no total. Folheou-o pela última vez, parou de vez em quando para comprovar que não havia nenhum erro. E concluiu que se aproximara da verdade tanto quanto possível.
Decidiu enviá-lo para Ytterberg sem o seu nome figurar, fazendo lhe chegar de Estocolmo através da sua irmã Kristina. Obviamente, Ytterberg adivinharia que seria enviado por Wallander, mas nunca poderia provar. Ytterberg é uma pessoa sensata, pensou Wallander. Usará a informação da melhor forma. E certamente será capaz de compreender por que motivo o fiz chegar anonimamente.
Mas Wallander também percebeu que havia o risco de Ytterberg se debater com uma barreira intransponível. Para muitos suecos, os Estados Unidos ainda eram vistos como a última salvação; uma Europa sem os Estados Unidos seria quase um caso perdido. Talvez ninguém estivesse interessado em saber a verdade que Wallander achava ter encontrado.
Pensou nos soldados suecos enviados para o Afeganistão; isso nunca teria acontecido se os americanos não tivessem exigido. Não o fizeram abertamente, mas de forma tão dissimulada como os seus submarinos que, com a bênção da Marinha e dos políticos suecos, se esconderam nas águas suecas no princípio da década de 1980. Ou como daquela vez, em 18 de dezembro de 2001, em que se permitiu que os homens da CIA entrassem em território sueco e prendessem dois egípcios suspeitos de terrorismo e que, em condições extremamente humilhantes, os transportassem para as prisões e para a tortura no seu país de origem. Wallander chegou a pensar que, ao ser descoberto um espião como Hakan von Enke, talvez o vissem como um herói em vez de traidor desprezível da sua pátria. Não há nada, disse para si mesmo, que possamos tomar por certo. Nem como se interpretarão estes acontecimentos, nem o que será da minha vida a seguir.
Aquele dia de maio se apresentou desanuviado mas fresco. Na hora do almoço deu uma caminhada com Jussi, que já parecia recuperado. Quando Linda chegou, com Klara mas sem Hans, Wallander já arrumara a casa e comprovara que não havia nenhum documento à vista que ela não devesse ver. Klara adormecera no carro. Com cuidado, Wallander levou-a para dentro e deitou-a no sofá. Tê-la nos seus braços lhe dava sempre a sensação de que Linda tinha regressado sob outra aparência. Foram para a cozinha tomar café.
— Esteve limpando a casa? Perguntou Linda.
— O dia todo.
Ela deu uma gargalhada, meneando a cabeça, mas logo ficou séria. Wallander estava a par de todos os problemas que Hans tivera de enfrentar e que, naturalmente, também abalaram a ela.
— Quero voltar ao trabalho, anunciou Linda. — Começo a não suportar estar em casa com Klara.
— São só mais quatro meses até voltar novamente.
— Quatro meses podem ser uma eternidade. Noto que estou ficando sem paciência.
— Com Klara?
— Comigo mesma.
— Deve ter herdado isso de mim, essa impaciência.
— Não é você que costuma dizer que a paciência é a principal virtude de um bom policial?
— Está bem, mas isso não quer dizer que venha sem esforço.
Ela bebeu um pouco do café, refletindo no que o pai acabara de dizer.
— Sinto-me velho, confessou Wallander. — Todos os dias acordo com a sensação de que tudo passa tão depressa, muito depressa. Não sei se corro atrás de alguma coisa ou se me afasto dela. Vou correndo, simplesmente. Se quer que lhe diga a verdade, a velhice me apavora.
— Pense no avô! Ele continuou a sua vida como sempre sem nunca se preocupar com o envelhecimento.
— Isso não é bem assim. Tinha medo de morrer.
— Sim, talvez às vezes. Mas nem sempre.
— O seu avô era um homem muito singular. Não acho que haja alguém que se compare a ele.
— Pois eu me comparo a ele.
— Mas você teve uma relação muito especial com ele, que eu perdi quando era muito jovem. Às vezes penso que a relação dele com a minha irmã Kristina também era melhor. Talvez se desse melhor com mulheres, e eu nasci com o sexo errado. Talvez não quisesse ter filhos homens.
— Isso é uma idiotice, e você sabe que é.
— Idiotice ou não, penso nisso muitas vezes. Tenho medo de envelhecer.
Linda estendeu o braço e lhe acariciou a mão.
— Tenho notado que anda preocupado, mas no fundo sabe que é absurdo. Não podemos fazer nada contra a idade.
— Eu sei, concordou Wallander. — Mas às vezes sinto que me queixar é a única coisa que me resta fazer.
Linda ficou umas horas com ele. Continuaram a conversar até que Klara acordou e correu para o avô com um sorriso feliz.
De repente, um terror profundo avassalou-o. A memória abandonou-o novamente; não sabia quem era a criança que se aproximara. Certamente já a vira antes, mas não tinha ideia alguma de como se chamava ou porque se encontrava ali. Era como se se fizesse um silêncio absoluto. Como se as cores desaparecessem e não lhe deixassem nada a não ser um despojo em preto e branco. As sombras se aprofundaram. E aos poucos Kurt Wallander foi desaparecendo numa escuridão que alguns anos mais tarde o enviou para o universo vazio chamado doença de Alzheimer.
E é tudo. A história de Kurt Wallander termina irrevogavelmente. Os anos de vida que ainda lhe restam, talvez dez, talvez alguns mais, lhe pertencem, a ele e a Linda, a ele e a Klara. E a mais ninguém.
Henning Mankell
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