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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM HOMEM PARADO NO INVERNO / Baptista Bastos
UM HOMEM PARADO NO INVERNO / Baptista Bastos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

     E uns tinham apenas gasto horas, outros a eternidade; e apagava-se o rasto convulso de uma consciência cujo segredo perdêramos havia muito sem disso darmos conta; e tudo era indiferença, talvez recordação da ausência, talvez; de uma maneira ou de outra todos temos cicatrizes: há umas que se não vêem. Bruscamente, notou que os vizinhos se mudavam aos poucos, um a um, casal a casal: retirantes de um bairro que já nada lhes dizia, de ruas sumárias cujo passado pertencia a outra história que não às deles. Um outro silêncio sobrepunha-se ao seu silêncio interior. As coisas lacónicas e recessivas que, outrora, o demoviam ou faziam agir iam desaparecendo. Teve medo de mergulhar nesse lago podre que é a solidão. E entretanto as ruas esvaziavam-se. Sem rostos nem sons. Renunciavam a conviver com aqueles que haviam criado a esperança para melhor a poder perseguir e sitiar. Anos a fio dedicara-se à civilização e ao mito e vivia entre a beleza e a indignação, mas uma espécie de impotência espiritual, resignada e soturna, impedia-o de realizar as suas aspirações. Guiava o carro com precaução; porém como se estivesse distante: sofria o seu próprio silêncio. Mas a memória restaurava contra si a escrita invisível do tempo, os rumores de ruas reencontradas, de gestos evanescentes; rostos e mortes ressurrectos, o bulir das folhas no renascer de curtas primaveras, e amara-a mais do que é possível dizer. Os tempos que passámos juntos ajudam-me a recordá-la. Por isso não a abandonara. Queria conservar dela a lembrança da minha juventude: o seu rosto de antigamente era o meu rosto de antigamente. Disseram que eu fora insensível; que manifestara um sentimento muito próximo da indiferença e do desdém. Ah!, como as pessoas não entendem nada das pessoas. Mas, apesar de tudo, a morte, ocasionalmente, é mais do que aceitável e desejável: é reconfortante. Tenho o sentimento da perda mas, também, a percepção da qualidade do silêncio. Não pretende encurtar a distância. Gosta da natureza oculta e do sentido secreto da palavra demora. Conduz o carro por um caminho antigo, ainda o mesmo desde os tempos da adolescência, quando ia para a aldeia passar férias. Conserva na memória, no ponto mais

     A memória, porém, é uma cábula que só diz o essencial, e a que recorremos quando procuramos respostas vitais. Em vão: a memória não possui um registo fidedigno. A memória, com indulgência e reserva, alimenta os esforços que fazemos para reavivar impressões soterradas, mas destrói as imagens mais vivas acumuladas pela lenta sedimentação dos anos.

     O caminho antigo termina abruptamente num campo de cardos. Pára o carro, desliga o motor. Agora pensas assim: a minha imaginação era intrépida mas a realidade física admoestava-a com severidade. Nunca gostei da realidade: a realidade contém resíduos de múltiplos horrores e apresenta quase sempre cenários inamistosos; chove; um odor fértil misturado com pedaços soltos de névoa evola do campo de cardos; noite; fuma lentamente, os vidros do carro embaciados; chovia e era Inverno; ela despira-se, tiritara nua, envolvera-se numa velha gabardina amarela, colocara um lenço vermelho na cabeça e caminhara para a praia; correra pelas dunas, envolvera-se nas ondas do mar; saíra rindo; cada um de nós está sempre suspenso da imaginação de um outro; ela dissera mais tarde: acho que preciso de alguém que me faça chorar; ele, nessa estação da vida, sabia apenas exprimir-se pelo silêncio ou pela ira; examinou-a bebendo pequenos goles de aguardente; alugara uma vivenda de praia, a praia era antiga e ignorada; as casas do povoado escassas e afastadas umas das outras; e havia também o firmamento e ela juntou as mãos como se fosse rezar; para ela a meta da harmonia era o céu, sendo a salvação uma questão individual que dependia da graça divina; então porque decidiste passar este fim-de-semana comigo?; era grotesca, a frase; citou Fernando Pessoa, um despropósito; ele concluíra: os católicos morrem julgando que tudo é graça, os materialistas que tudo é desgraça, ambos simplificam julgando que aprofundam: completam-se; dormiram serenamente, trocando um desajeitado beijo.

     Uma observação: as suas vozes eram vozes de perdidos.

    

    

 

 

 

 

     A casa na aldeia, para aonde se dirigia, obtivera-a de uma herança confusa e dolorosa. Raramente lá ia. Quando adolescente, inscrito numa lógica de integração familiar, passava na aldeia dois longos e entediados meses. Relações de vizinhança cortês impeliam-no a um convívio constrangido com os Magalhães, proprietários rurais propensos a conclusões irrecusáveis: reclamavam-se da ascendência do circum-navegador, aumentavam os seus domínios, convocavam Deus e a Ordem para testemunhar a linguagem da sua frágil unidade e o estilo dos seus direitos.

     Um longínquo avô de origem castelhana, Alejandro Parra Magallanes, inculcara em dispersos descendentes o gosto da beleza e o culto das letras. Gerações posteriores, pressionadas pela lavoura e pela comercialização, tinham perdido a intimidade com os livros ou nunca haviam sido conquistadas pelos prazeres da contemplação. Bêbados, ex-pegadores de touros, corredores de ralis, agentes de import-export, estilistas de moda, publicitários, um jornalista: a teia reticular de uma família que festejava datas em comum, sobretudo as canónicas, com jantares prolongados até madrugada na enorme mansão construída em forma de anfiteatro no extremo sudeste da aldeia.

     Conhecera Sebastian num desses verões antigos. Sebastian era um rapaz paciente e resignado, repartido entre o torpor de uma espécie de autismo, os sobressaltos pouco repetidos de uma vocação canhestra para a pintura e a manutenção e defesa dos invioláveis direitos familiares. Sem disso se aperceber fora perdendo as características da sua pessoal identidade. Repetia definitivas parábolas: “A natureza de toda a propriedade baseia-se no desejo constante de independência. E esse desejo obriga a que tudo o que construamos permaneça e aumente no tempo, de forma a que todas as gerações futuras sejam cada vez mais independentes.”

   Sebastian, porém, nos intervalos dos seus tédios, manifestava um júbilo caloroso quando convidava o amigo da cidade a visitar a espaçosa biblioteca. Sentia, no entanto, que estava sempre a desiludir ou a surpreender as pessoas com as suas evasivas ou com as suas paixões.

     Nos últimos tempos tinha descoberto uma grande parte de si mesmo que desconhecia. Lia volumes consagrados à formação da Terra, os grossos códices adquiridos pelo avô Alejandro Parra Magallanes que enalteciam os mistérios da Cabala, consultava portulanos, devorava páginas e páginas sobre religiões e enigmas cósmicos. Numa dessas visitas à biblioteca monumental, apresentou-lhe a versão latina de um magno tratado árabe acerca das imagens celestes, “Alí de imaginibus coelestibus”, e, de aparente bom humor, citou de cor Flávio Mitridate: “Esta é a ciência divina que torna os homens felizes, que lhes ensina a parecer deuses entre os mortais: esta, fala com as estrelas e, se é lícito dizê-lo, governa com Deus tudo aquilo que há no Mundo.”

   A meio da sala imensa, um javali embalsamado parecia seguir, com olhos de vidro, os passos das visitas. Armários continham objectos de arqueologia e epigrafia: estelas funerárias em granito, lascas, lâminas e um bastão de mando em sílex, potes de cerâmica lisa, uma arma de arremesso, machados votivos, fíbulas, adornos em bronze e pratos de cerâmica. Moedas do tempo de Dom Fernando: tornés, pilastres, barbudas; de Dom Afonso V: cotrim, espadim; outras. Em vários nichos de madeira, incorporados nas estantes, esculturas religiosas: São Pedro a orar de joelhos; busto relicário de Santa Teresa; busto do Padre Eterno; Santíssima Trindade; São Paio em pedra lioz; um Cristo crucificado. As peças se guiam uma ordem cronológica, em grupos, por escolas e épocas.

   Periodicamente, a fim de se evitar o odor a velho e preservar as encadernações da erosão do tempo, uma criada defumava a sala com essências e substituía com zelo as bolas de naftalina colocadas em zonas discretas das prateleiras com livros.

     Um dia, por insolência, dissera qualquer coisa sobre a inerte natureza dos livros. Sebastian olhara-o com deferente desaprovação. Parecia ter saído de um lugar longínquo, com o seu ar moroso e seráfico: reclinou-se numa cadeira de espaldar, sorveu delicadamente um gole de licor. Com a habitual sinceridade descuidada, e indicando num movimento de cabeça os armários de vidro repletos de objectos antiquíssimos, Manuel referiu, fitando Sebastian:

     - Os geólogos e os arqueólogos só vêem rochas e minerais, coisas insepultas ou sinais obstinados de fidelidade à morte. Entendem, por isso, que as mudanças na Terra são vagarosas. Mas os homens são impacientes.

     Docemente Sebastian sorriu. Como se lhe parecesse importante rectificar, numa metáfora, a presunção reconhecida do amigo, citou um provérbio medieval, compêndio da visão teocêntrica de uma época que, amiúde, recuperava nas conversas:

     - Deus começa por tirar a inteligência das coisas àqueles que quer perder.

     E quando ela morreu os candeeiros da rua apagaram-se; os velhos e as crianças entraram e ajoelharam-se; é estranho mas o destino não tem superfície e, habitualmente, vamo-nos afastando dos seres amados; olhava-a deposta no caixão e era um corpo pertencente a outra idade; jamais dois sem ti, dissera ela, nos tempos da resignação comum; era um reparo a duas personalidades diferentes e afins: com ela o drama adquiria um rosto, e o desespero grandeza e dignidade; com ele os dias mais difíceis não os tinha vivido em vão; os anos insípidos e injustos haviam-no distanciado dos afectos; convocara a juventude como se recorresse a um reino obsequioso; tenho de organizar as ideias, não me posso distrair nem ter o pensamento ocupado com outra coisa, não posso permitir-me devanear, não devo ser devassado por lembranças lacónicas e próximas que me desviem do que tenho em mente, não cair no refúgio das promessas; quando cheguei a falar em deixá-la, ela dissera: não me sinto capaz de voltar a ter esperança; e ele respondera: se conseguires viver tanto como eu vivi aprenderás que não há uma só esperança; tentara fazer um acordo entre a compaixão e a vida, contudo, mais indeciso do que contrariado, não conseguia vencer e simultaneamente glorificar a sua temerosa e urgente necessidade de solidão; as conversas maçavam-no por inócuas, o convívio apavorava-o por hipócrita; dizia não compreender: a maneira cuidadosa de manifestar desaprovação; e uma das coisas que a insónia me ensinou é que a dor pode ser mensurável: em anos, por exemplo; lembrava-se de uma frase escrita num muro do bairro da Lapa: “O medo de ser livre provoca nos homens o orgulho de ser escravo”; a tumultuosa carga da História que o conduzira a dissenções tristes, sem carácter e sem alma, advertia-o de que permanecemos muito mais fiéis a uma atitude de que a uma ideia; a obra do sonho pertence continua a chover; sai do campo de cardos; fez marcha-atrás; abandona o caminho antigo, envereda pela estrada número 1; a névoa dissolve-se; a noite constela-se de estrelas; passa por um templo isolado no campo de estevas; uma data está gravada no dintel de um pórtico enegrecido e decorado por estranhos rostos de gárgulas e de santos.

     Vai em direcção da aldeia.

    

     A aldeia, no litoral sudoeste, aparecia depois de uma zona de ardósia, numa região de penumbras e nevoeiros. O rio formava ali um grupo de pequenos lagos. Golfinhos e aves aquáticas, sem forças para vencer o turbilhão da foz e a violência dos ventos setentrionais, procuravam reaver as energias junto das águas baixas: eram devorados por animais de acosso. O tempo era tangível e perceptível. A aldeia: um conjunto de casas dispersas, dominadas pelo solar em anfiteatro, onde a instância da morte provocava uma sensação de nefasto sossego. Sempre me pareceu que a vida na aldeia é um assunto subjectivo e particular, um território de diferença que mantém antigos poderes desaparecidos e obedece a cultos e a ritos nos quais a dúvida é interdita. Mas sempre apreciei essa anulação ou regressão do tempo.

     O pai de Sebastian tinha a postura de um pontífice, o rosto de um santo, a alma de um aventureiro e o espírito de um mercador. Diogo Gaspar de Magalhães não dormia na cama conjugal, tratava a mulher com apreensivo desdém e desprezava todos aqueles que falhavam as oportunidades: fossem elas de negócios ou de apropriações mesmo indevidas. Acreditava que ninguém podia viver impunemente, gostava de apressar as suas decisões pessoais e de emendar as coisas, as intenções e as frases dos outros. Filatelista e filólogo, raramente ia a Lisboa, cidade que considerava abandonada pela história universal, covil de comunistas e emissária das mais fatídicas crueldades.

     - Sei sempre onde estou. Sair daqui é fugir. Que importa fugir? - dizia.

     - Há uma altura na vida de um homem em que ele não quer saber o que vem a seguir - dizia.

     Em tardes taciturnas gostava de passear pelo cemitério abandonado da aldeia. A hera invadira as lápidas inclinadas; a erva povoara os trilhos, cobrira as campas. As raízes das árvores que procuravam água e encontravam ossadas, calcificavam-se, petrificando-se. Os mortos, desde há muitos anos, eram sepultados noutro terreno, longe, muito longe do povoado. Sendo assim, os enterros formavam cortejos densos e inquietantes, bandas tocavam músicas fúnebres; choros e gritos que se escutavam para além das serras.

     Diogo Gaspar de Magalhães, sobre ser orgulhoso e arrogante, contraíra um complexo intolerável: quando falava as placas dentárias moviam-se desencontradamente, pareciam morder as palavras, as frases saíam como que da garganta de um ventríloquo. Ajeitava a prótese com um movimento de maxilares, o queixo ficava semelhante à boca de um sapo; sentia-se extremamente humilhado. Ainda por cima tudo isto acontecia a um homem dado à recta-pronúncia e à pureza do idioma!

     Encerrava-se dias inteiros na biblioteca lendo os livros que tinham apavorado a sua infância: páginas sagradas que falavam de anjos exterminadores destinados a aparecer na Terra e a resgatar séculos e séculos de devassidão e de iniquidades; códigos de santidade cujos versículos determinavam que a blasfémia devia ser punida com a lapidação; textos de execração egípcia e reproduções iconográficas das tabuinhas de Amarna, que falavam de lugares onde os prazeres eram malditos. Nessas ocasiões, Diogo Gaspar de Magalhães experimentava um bem-estar e uma felicidade absolutos, só interrompidos pelo miar persistente dos gatos que sua mulher, Mafalda, recolhera aos bandos, e que se moviam por toda as salas com esbelta indolência.

     Um dia surpreendera Sebastian a espreitar a mãe. Mafalda estava nua e observava-se no espelho enorme do guarda-vestidos da antecâmara, entre a casa de banho e o quarto onde dormia só. Mafalda examinava com agrado o corpo intocado havia anos. Percorria as mãos pela face, demorou-se a afagar os seios, passeou as polpas dos dedos pelas ancas, pelo ventre, pelas coxas. Sebastian extático, respiração suspensa; quando o pai o agarrou, sacudindo-o com ira, soltou um grito rouco e fugiu espavorido. Diogo Gaspar de Magalhães escancarou a porta entreaberta, a mulher encolheu-se e tentou cobrir-se com as mãos.

     - Recato! Mais recato consigo. E decoro! Tenha decoro! - gritou.

     Regressara ao silêncio acolhedor da biblioteca, refugiando-se nos livros para que o seu desapontamento e a sua cólera não pudessem ser tomados como confissão de insegurança. Folheou a versão portuguesa do “Quot sunt hora” e, espécie de testamento hológrafo atribuído a Reginaldo, monge medieval de Cantuária, que mencionava como blasfemos os amantes do próprio corpo, os adúlteros, os ímpios e os cismáticos. Reginaldo referia, em abono das próprias teses, que Plotino sempre manifestara vergonha de ter corpo; e citava o “Segundo Livro de Baruc”: “Todo o homem é o Adão da própria alma”, rematando as sábias reflexões com uma frase que exprimia intenso sentimento de alívio: “É a existência do Mal que nos obriga a crer no Bem.”

     A solidão física de Diogo Gaspar de Magalhães era um acidente material e a sua indiferença por Mafalda surgira de uma agressão sem palavras: à falta de desejo pela mulher sucedera uma ternura e uma simpatia que se prolongaram até serem substituídas por um desdenhoso ódio surdo quando ela, certa noite, lhe aparecera no quarto, testemunhando com o corpo oferente e nu o apetite longamente refreado de ser possuída. Ferido involuntário, Diogo sentira-se miserável naquilo que considerava ser o excesso da presença de Mafalda.

     Desejando pôr fim à amargura de viver revigorara o abalado gosto pelos místicos fundando a sua moral provisória na certeza absoluta de que a existência era também provisória. A leitura obcecada, os livros que celebravam meditações concebíveis sobre a perpetuidade da alma e a impersonalidade do ser deram-lhe novos alentos. Nas páginas imaculadas do “Flos Sanctorum” sentiu-se trespassado pelas castas respirações dos eleitos. Aprendeu que todas as situações humanas têm, simultaneamente, dimensões de apropriação e de abandono; que nada é em vão e que não há tragédias pessoais. Sentiu-se mais descansado com o conforto oferecido por tais espíritos santificados.

     Mafalda possuía e exercitava uma incansável eloquência. Mas a voz era medida e o raciocínio organizado por alíneas. Desculpava os grandes erros, os comportamentos mais gravosos. Era implacável para as pequenas faltas, para as falhas mais insignificantes. Nisso, o seu carácter era rigorosamente previsível. Costumava dizer: “Este país é cada dia menos meu”. Porém, perturbava-se com facilidade perante um olhar mais insistente. O marido tinha por hábito afirmar que vinte livros bem escolhidos bastavam para ocupar uma vida. Ela, embora tocada por um prazer sensual quando afagava as lombadas dos volumes arrumados com esmero, e que nunca abria, ou quase, contrapunha: “Os livros não passam de uma memória artificial.”

     Numa dessas visitas ao solar, levado por circunstâncias recomendadas pela cortesia, notou que os proprietários haviam colocado um enorme retrato de Salazar no espaço mais visível da biblioteca. Diogo Gaspar de Magalhães seguiu-lhe o olhar. Sorriu com discrição. Numa voz abolida pelo tempo mas a que não faltava uma enfadada ironia, perguntou-lhe:

     - Não o incomoda?

     Respondeu:

     - Nunca dei de comer a peixes.

    

     E de repente deixaram de poder falar um com o outro; ambos desejavam estar devolvidos a si próprios, apenas os nomes diziam ocasionalmente, Manuel, Madalena; nem sequer disputavam ao esquecimento os episódios ocorridos durante o dia e que, ainda não há muito, constituíam motivo de crítica, de divertimento ou de prazer; a moral da resignação da qual o convívio fora afastado por já não constituir denominador comum; a filantropia dolorosa de cada um ter de suportar o outro dissolvia-se nas recriminações silenciosas; nem sequer meias-palavras; um mal-estar, um sossego infortunado; a companhia que se ignora mutuamente; a fadiga endurecida numa existência sem forma;

     - Crespuscular - diz agora, em voz alta, e acelera um pouco o carro.

     Madalena, numa dessas noites remotíssimas:

     - Qual é a cor do tempo?

     Manuel:

     - O tempo tem uma cor especial para cada pessoa. demonstrava o ar lastimoso de quem pede perdão pelas faltas gerais da humanidade; fora-se transformando num desses seres decantados pelas desilusões; um desses seres que a vida vai secando, engelhando, até se confundir com algo de ósseo e de mineral; já tocada pela mão ignorante da morte pedira a Manuel que a ajudasse a chegar à janela; dali via tudo o que jamais vira, da Cordilheira dos Andes ao Mar de Marmara, do Peloponeso a Ouro Preto; a nossa vida é um deserto; uns cruzam os braços enquanto outros são dizimados; a nossa vida é um deserto mas devíamos aprender a colori-lo; morrera com extrema delicadeza, o braço direito declinado, a mão entreaberta, olhos cerrados com doçura; gostava que te visses bem, mas acho que nunca o conseguirás, e Manuel fitara-a e à morte detidamente; nada nos é revelado porque todas as coisas são misteriosas; nada nos é revelado sem que procuremos; e de tanto e tão esforçadamente procurarmos chegará a altura em que nada será mistério, em que tudo será descoberta e assombro;

     - Só sei mentir - dissera Manuel.

     - Não é importante - dissera Madalena. - Todos nós mentimos uma vez por outra.

     - Só aprendi a mentir durante toda a minha vida. Os outros têm uma concepção de verdade a que sou alheio. Mentir, no fundo, não é fugir à verdade. É fugir à realidade. A realidade é-me insuportável. E tenho de suportar o insuportável, mentindo.

     Fora ele quem a vestira, recusando as ofertas piedosas das vizinhas; sempre ouvira dizer que mesmo clinicamente morto o cérebro humano ainda captava sons durante algum tempo, obedecia a vozes e a ordens desde que formuladas docemente e sem intimidação; afagara-lhe o corpo nu e com ele falara baixo e devagarinho; ia-lhe dizendo o que pensava, o que sobrevinha à tona do meu pensamento, mas pensava mais do que dizia; deparou-se-lhe junto ao seio direito de Madalena, um seio mirrado pela doença, estrepado pela morte, deparou-se-lhe uma cicatriz, um sinal?, em que nunca reparara, e que mais parecia um minúsculo desenho de uma rosa-dos-ventos;

     Desejava preservar em si o pouco de humanidade que lhe restava, depois de tantos anos recenseadores e rudes. Sonhara com um outro país, um país diferente, e, nos tempos ásperos, dizia: “Não é a luta que me agrada. É o sentido da luta.” Depois, com o impiedoso refluxo das coisas, percebera que habitava num mundo sem transcendência e de transigência, no qual todos os gestos eram antecipadamente inúteis. A História ocorria sem o consultar e nenhuma lenda já o prendia a obrigações. Os sinais de notoriedade obtinham-se através do dinheiro. Dava-se conta da estranha perversidade que havia quando procurava consolar-se; assim: “Eles têm o dinheiro, nós temos a memória. Introduzem em todas as frases expressões inglesas: “know how, breefing, target, low-profile”, background, feed back, head line, base “line”; é o que possuem. Nós dispomos de papel, de caneta e de pincéis. Recordamos os nossos sonhos. Quando chegarem à nossa idade nada terão para recordar, e envelheceram antes de tempo. Estão condenados a passear em corredores vazios, murmurando frases absurdas com palavras inglesas pelo meio.”

     Vivia de comprar e vender antiguidades. Escrevera diários que não voltara a folhear, sem qualquer intenção que não fosse a de fixar frases, comportamentos, indiscrições, contradições. Não ficara ainda amargo. Porém, convencido de que a sua vida se resumira a uma fraude resignada, tornara-se numa personalidade errática, relutante e obedecida. Sentia, no entanto, um devorador sentimento de autocompaixão; um mal-estar persistente. Dedicara-se, numa estação da vida, ao estudo e coloração de certas flores. Obtivera estranhas combinações e cruzamentos botânicos; nunca conseguira a perfeição imaculada de um cor-de-rosa. Levantava-se a correr. Ia a correr trabalhar. À noite via televisão; lia. Ao sábado, cinema. Ao domingo, circuito de manutenção. De vez em quando bebia de mais.

     As sombras e as opacidades da memória adensam-se quando procura estabelecer relações entre os episódios de que fora protagonista e os desafectos que os marcaram. Porém, tinha a consciência subtil da total vacuidade desse exercício estafante: a memória, como defesa, desmemoria-se. Anos sem desculpa; anos de recordação e de olvido para os quais olhava agitado por uma espécie particular de incredulidade. Enumerava, escalonando-os em ordem afectiva, os acontecimentos e as incoerências que o haviam emocionalmente reduzido a um homem ausente; a um homem nocturno. Se conseguira anular eventuais rancores acumulados, a verdade é que sofrera sem compreender nem se lastimar.

     Já nada queria saber da história dos outros. Desinteressara-se. Outrora, a sua curiosidade estivera sempre ocupada pela solidariedade; disponível para o conhecimento da existência dos demais, para compartilhar os denominadores comuns. Apaziguava assim a consciência. Mas os portugueses são pequenos mortos carregados de bandos de filhos. Lastimam-se, lamentam-se, queixam-se; só raramente protestam, só raramente se indignam: falam baixo. Raquíticos, supersticiosos, ignorantes, obesos, confundem passado, presente e futuro, embebedam-se, escarram no chão, batem nas mulheres, recriminam-se uns aos outros, investem-se de mitos primitivos, habitam espaços reduzidos em bairros infectos, elevam o som das rádios para lá de limites suportáveis, discutem futebol toda a semana, crêem na má-sorte, acreditam no milagre de Fátima, amontoam-se, tornam-se patéticos com a modéstia abjecta dos seus desejos; voltam a embebedar-se. Ei-los maltratados, agredidos, feridos, arranhados: e resignam-se à ilusória ficção de que, quando contam as suas desgraças, são escutados com reverente compreensão e simpatia. E fazem-no sem pudor. Satisfazem-se demonstrando as suas misérias: até publicamente. Nas bichas dos carros eléctricos, no interior dos autocarros apinhados, no confuso tumulto das carruagens do Metro, odores de suor, de corpos mal lavados, detritos, imundícies, fétidos rostos de cadáveres, zangas sem significado, intrigas, vaidades, anedotas, piadas grosseiras, astúcias menores, manhas grotescas. Aos domingos passeiam aos magotes pelos centros comerciais.

    

     Deseja viver largos meses na aldeia. Ganhou dinheiro suficiente para se permitir o luxo de uma reclusão voluntária. A tardia revelação de que está livre com a morte de Madalena não o subtrai à ideia de que também se encontra só. Mas espera que o tempo de tudo se encarregue. Reaprendera a reivindicar a escolha dos seus desejos. A decisão de ir para a aldeia fora tomada calculadamente, embora os amigos mais próximos a considerassem como sobrevivência da sua dissimulada melancolia. Nos bares, onde bebia aguardando qualquer relação fortuita, reconciliava-se com o estouvamento antigo. Recuparava a liberdade dos seus jogos de palavras. Retomava o riso claro, o olhar divertido. Parecia não admitir as compressões impiedosas e as anulações veementes às quais a época o submetera. O álcool inclinava-o a sufocar o embaraço depressivo que lhe causava o facto de regressar a casa e de não ter Madalena, de não haver Madalena. Faziam-lhe falta os longos silêncios e o constrangimento da presença dela, admitidos quase como sacrifícios propiciatórios. Horas oblíquas, de consumação. Vicente Alexandre soube como poucos poetas tocar essas margens intemporais

     “Pelo que um homem fez o tempo conta. Fazer é viver mais ou haver vivido, ou ir viver. Quem morre vive, e dura”.

     Os seus novos amigos apraziam-se com delícias inocentes e com divertimentos inofensivos e medíocres. As suas vidas estavam inteiramente preenchidas com especializações de carácter transitório. Facilmente se sabe o que uma pessoa é. Ninguém sabe o que ela pode vir a ser. Não perdiam ocasião de ostentar um insolente conhecimento de todas as questões, citavam Nietzsche. Viviam Zaratustra em lugar de o ler. Eram os triunfadores, os vitoriosos. Mas para quê? Contra quem ou sobre quem, a vitória? Era preciso, antes de tudo, sobreviver. Tomavam ansiolíticos e profaminas; alguns snifavam cocaína ou misturavam aspirinas no uísque. Conversavam sobre mulheres; sobre os seus êxitos profissionais, sempre ascensões e promoções; carros e casas de cinco assoalhadas. Tagarelice e tédio. Compravam revistas inglesas e americanas de negócios: “‘EuroBusiness”, International Business Week”, “Business Month”‘. Não observam: espreitam. Contemplam-se. Não sabem nada: ensinam tudo. Nunca davam razão aos outros. Só falavam: não diziam nada. Mas a sua forma de dizer é que seduzia. Fumavam Peter Stuyvesant ou Marlboro, guardavam os maços de cigarros no bolso superior de dentro dos casacos. Exercitavam ociosos jogos verbais:

     - Onde estavas quando foi o 25 de Abril?

     - E o 11 de Março?

     - E o 25 de Novembro?

     - Os antifascistas estão fora de moda.

     - São datas que o meu pai evoca. Não sei nada disso.

     - Era miúdo, nada tenho a ver com isso.

     - Aliás, quero que tudo isso se lixe. Cheira a ranço.

     - Tenho é de viver bem a minha vida e morrer velho e cheio de dinheiro.

    

     Portugal é um país que ingressou na amnésia histórica. Onde ninguém ama ninguém.

     Deseja, agora, viver largos meses na aldeia.

     E então, no esboço de uma acalmia, a adversidade da manhã com a pulsação das coisas; escancarou as janelas, verificou as canalizações organizadas a partir de um poço; percebeu que o telhado abrira fendas; a cancela que rodeia a casa de dois andares está meio derruída; a lareira, no térreo, funciona razoavelmente; o mobiliário é reduzido, porém forte e funcional; colocou nas estantes mais livros que trouxe da cidade; as paredes estão com visgo da humidade; o sol aparece e entra.

     Quando chegou, ontem, a casa encerrava um frio estático que nem a lareira conseguia aquecer. Bebera um pouco de aguardente, manuseara um livro, “‘Combates pela História”‘, de Lucien Febvre, atentara no final do prefácio:

     “Nestes anos em que tantas angústias nos oprimem, não quero repetir, com o Michelet do Peuple: “Jovens e Velhos, estamos cansados.” Cansados, os jovens? Tenho esperança que não. Cansados, os velhos? Não quero. Para lá de tantas tragédias e perturbações, grandes claridades brilham no horizonte. No sangue e na dor cria-se uma Humanidade nova”.

     Ficara sentado, imerso em pensamentos soltos; bebera mais; dormitara e acordara com o livro tombado; o crepitar do fogo na lareira, os estalidos secos, o rumor agradável de coisas indizíveis. Erguera-se pesadamente, subira as escadas com dificuldade, deitara-se na cama imensa, os lençóis estavam gelados e hirtos, adormecera sem primeiro ler.

    

     Observa da janela do quarto a linha do horizonte que surge vacilante na manhã. Cumprimenta quem passa. Quem passa saúda-o com polidez e cortesia. Sabe que vai estar submetido à vigilância da aldeia. As conversas recairão sobre si; discorrer-se-á sobre a sua permanência, aventar-se-ão hipóteses. A casa foi construída num cômoro: divisa-se a região quase plana, uma terra de prados e culturas disseminadas; há povoados escondidos pelas depressões do terreno, outros descobertos pelos relevos. Dentro de pouco tempo tocará no batente o senhor Inácio, um homem áspero que toma conta da casa há muitos anos. Para festejarem hábitos contraídos nos reencontros irão beber zimbro, aguardente fortíssima que o senhor Inácio produz num alambique familiar de gerações. Antigo ferreiro, a sua constituição não se debilitou nem com os anos nem com o uso imoderado do álcool. O senhor Inácio é a conservação explícita da rudeza sob forma humana. Mantém sempre, no entanto, um excelente humor. Impacienta-se quando, bebida a aguardente de zimbro, Manuel demora a oferecer-lhe o uísque que trouxe da cidade. Isilda, a mulher do senhor Inácio, tratou da casa enquanto foi nova. Com absorvente convicção limpava, lavava, fazia as refeições. Parecia um ser indestrutível. Manuel, então adolescente, olhava assombrado para aquela mulher poderosa que indulgentemente trabalhava no campo, na casa, e dera à luz filhos e filhas. A uma dessas filhas, Rosália, solteira, única dos irmãos e irmãs não atraída pelas seduções da emigração, fora atribuída a tarefa de substituir a mãe nos assuntos domésticos de Manuel, enquanto este vivesse na al deia. Rosália era uma mulher de poucas palavras, cujos esforços se concentravam em ser eficiente sem dar nas vistas. Pertencia ao escasso número de pessoas que coram quando se lhes presta homenagem. Ouvia as conversas com extrema discrição, retinha os ditos e as histórias mais maliciosas, sorria, corava. Quando olhava para Manuel, porém, ficava ligeiramente suspensa, como se estivesse à beira de lhe fazer uma confidência capital.

     Há muitos anos, adolescente, surpreendera-a deitada com um homem num chão de vinha, ambos gemendo, ambos movendo-se. Ela vira-o de relance, provocara-o com um sorriso, agarrara-se mais ao homem. Assistira com tristeza àquela cena inadmissível porque até então parecera-lhe reconhecer, no olhar quente e no rubor de Rosália, a garantia de ternas promessas. Escondera-se, desejoso de reconhecer o homem. Depois afastara-se, renunciando a cauterizar a ferida do seu ressentimento. Rosália tinha pouco menos do que a idade dele; diferenciava-se das demais raparigas por ser estranhamente sardenta, ter olhos azuis e tranças loiras que rematava num penteado redondo enganchado harmoniosamente na nuca.

     Dias depois cruzaram-se. Ela corou, como de hábito, mas logo encolheu os ombros, talvez para significar que a cena da antevéspera não justificava outro tipo de atenção ou qualquer forma de cumplicidade. Entre os dois manifestara-se uma espécie de afastamento embaraçoso que o decorrer dos anos e os longos intervalos das visitas e estadas de Manuel na aldeia mais acentuaram.

     Certa vez, num curto período de férias, bebia e conversava na taberna, Rosália fora tirar vinho da pipa. Interpelara-a com uma frase publicitária que a Televisão tornara em voga: “Então, como é que vamos de amores?” Os homens tinham rido. Manuel logo se censurara, embora admitindo que não tivera outra intenção senão a de falar por falar. Mas a recordação da cena antiga impunha às palavras um sentido que ambos reconheciam. Tomada de leve aflição ela apressara-se a regressar à cozinha não sem lhe lançar um olhar de desdém. Ele sentira-se tão triste e tão acabrunhado que antecipara o regresso à cidade.

     Da cidade se ausentara, dias antes, porque tudo lhe parecia amortalhado em indiferença. Ainda não sabia de Madalena; Madalena fora-lhe apresentada muito depois, numa dessas reuniões de amigos em que se conheciam uns aos outros, em que se questionavam uns e outros, em que se tinha opiniões definitivas uns sobre os outros. Salazar era a severa prefiguração do censor eterno, o “praeceptor Portugaliae”, que deseja ser a boa consciência da História: “A Pátria e Deus não se discutem.” Não que não se discutem! As lealdades são, amiúde, experiências de mortificações. Mas as conversas assemelhavam-se a boas acções praticadas depois dos delitos de negligência ou dos pecados de compromissos com o Poder. Arrastadas por estas disposições, as conivências e conveniências eram habilidosamente mascaradas por sentimentos exuberantes. Desatara a rir. A curiosidade espantada dos outros levara-o a dizer, no meio do silêncio deformante: “Desculpem lá. Lembrei-me, agora, de uma anedota.”

    Consolava-se na bebida. A letargia dos seus sentimentos não lhe obscurecia a consciência de que os outros e ele próprio calcavam vozes antigas, confinados à insuficiência fastidiosa de um desespero contínuo. Fora um ciclo. Nesse ciclo procurara uma dolorosa fuga para a frente. Mas Portugal era um país prisioneiro de velhas doenças endémicas: ignorância, superstição, mediocridade, provincianismo. E ele era um homem perdido nesse país que se reflectia, imperfeito, no espelho quebrado da sua memória.

     Então dissimulava na esperança de então dissimulei; construí o meu passado; inventei a minha biografia; enchia-a de avós e de pais e de outros parentes ricos de histórias, de pormenores, de factos soberbos, de façanhas e de aventuras; a família que não tive fila nascer; confundi e acreditei nas minhas próprias ficções; eu merecia ter a história que de mim próprio criei; também inventei Lisboa, claro; a Lisboa que eu inventei, as ruas breves e belas, as manhãs sempre claras, as pessoas calorosas não existem; é a Lisboa que eu desejava fosse; queria, no fundo, banalizar o paradoxal; e a velhice surgia, pés de lã, inclemente; eu voltava a cabeça e pressentia, sempre que me julgava só, alguém a vigiar-me, a examinar-me e ao que fazia, ao que tinha feito até então; um homem apressado que corria para a velhice e para a morte a fim de viver mais depressa; um homem vítima das suas feridas, doente das suas interrogações e dolorosamente iluminado pelas respostas que conseguira obter; eis,

     Eis que um dia fora assaltado pelo medo.

     Dissera a Madalena:

     - Tenho-te visto mas não te conheço. Agora, que te conheço, vou passar a ver-te.

     Assaltado pelo medo, ele. Mas esse tempo acumulava outro silêncio: um silêncio que se antepunha à revelação das trevas. Começara a viver com Madalena. Porque o surpreendera com a sua ternura, porque o confortava com a sua bondade. Dizia: “Tudo tem uma razão para acontecer.” Era, então; um homem torrencial que decidira apoderar-se da felicidade ou, pelo menos, dos instantes felizes. Ouvia os outros falar dos horizontes de vida; que se reduziam cada vez mais; da velhice, da morte - para ele símbolos de um impudor primordial. E recolhera-se, dizia; recolhera-se dentro de si próprio, tentando apenas recordar episódios favoráveis, cenas aprazíveis, acontecimentos felizes. Cap turava-os; isso mesmo: capturava-os. Quando começamos a envelhecer o que conta são os momentos, não os anos. Aqueles rostos inermes, aqueles gestos cautos, aqueles olhares irresolutos. Por vezes entretinha-se a recortar, de revistas ilustradas, fotografpias de mulheres, que desmembrava, para formar uma outra, a sua, a inexistente. Jogo da bela e da feia. Madalena dissera-lhe:

     - Tantas mortes tem a vida!

     - De todas as mortes que a vida contém só a última não tem resposta.

    

     Rosália vem tratar-lhe da casa. Diz que o pai chegará mais tarde, para o cumprimentar. Manuel observa os movimentos de Rosália. Vê-a subir as escadas, escuta os ruídos mansos que faz na execução das tarefas. Ela exprime-se num tom pausado, ele exprime-se com negligência estudada. Nenhum deles faz grandes esforços para compreender o outro. Rosália está de novo no andar térreo; pequenos gestos, silêncios suspensos. Limpa, arruma, dispõe os objectos com resumida indiferença.

     - Choveu muito, ontem - diz ela.

     - Foi. Choveu muito - diz ele.

     - Vem para ficar muito tempo?

     - Preciso de pôr as ideias em ordem.

     Rosália está de braços cruzados, parada. Manuel está sentado no cadeirão alto, pernas esticadas sobre uma peanha. Rosália dedica-lhe um sorriso leve. Manuel repara que ela não corou. Rosália move-se, olha pela janela:

     - Às vezes apetece-me sair daqui.

     É uma inexplicável e surpreendente confissão, que contraria tudo o que Manuel dela pensa. Ela repete:

     - Sair daqui. Meter-me num comboio, num carro e sair daqui.

     - Para aonde?

     - Ora, sei lá! Ir à lua, à América, sei lá!

     Desta vez cora. Diz Manuel:

     - É bom sonhar.

     - Passei a vida a limpar, a servir, a arrumar. O mundo está cheio de gente que não acredita. Estou farta de aturar essa gente. Mas as estradas daqui não conduzem a parte alguma.

     (Madalena: “Gosto do meu rosto, do meu corpo. Só não gosto daquilo que penso. Mas nunca soube calcular as emoções. Há duas coisas difíceis de governar: as nossas paixões e as nossas modas. Sei que te amo. Sei que só a ti amas. Os teus olhos dizem sempre uma coisa; a tua boca, outra.”)

     Ergue-se do cadeirão alto. Rosália deixa-o aproximar. Manuel afaga-lhe as faces, ela cerra os olhos. Abraça-a. Não a beija: abraça-a. E afaga-a com gratidão, bondade e ternura.

     - Tenho de ir - diz ela. E, sem se afastar, toca-lhe de leve na cara, no pescoço, nos ombros.

     (Madalena na primeira noite: “Deixa-me tocar-te. Apenas tocar-te. Há anos que não toco num ser humano com afeição.”)

     Mexe-lhe com delicadeza. É ela que o beija; de leve. Sai apressadamente.

    

     Nunca a vi, nunca com ela me cruzei. Nunca escutei a sua voz nem fixei o contorno do seu rosto, o registo luminoso (ou não?) do seu olhar; a maneira de caminhar, o movimento dos braços. Imagino-a apenas. Imagino-a e construo-a. Desejo pensá-la assim: uma imagem de memória como um segredo contagioso. Digo: “És muito bela, inteligente e dócil.” Faço-a falar (ouço-a?): “Repete o que disseste.” Que estará ela a pensar? Em quê? Em quem? Olha para a mulher: está sentada mesmo em frente; reclinada no espaldar da cadeira em frente. Quando Rosália saiu, ela entrou; libertara-se de uma frágil névoa e, da janela do andar térreo, que mandara rasgar à maneira mediterrânica, afloravam os botões desenvolvidos de rosas amarelas. Ela entrara dominando a sua obsessão: um leve polvilho na suave claridade da sala. Sentara-se e sorrira-lhe. O sorriso murchara depois, com lentidão, para ser ocupado por um olhar fixo. A dúvida atinge-o. Que estará ela a pensar? Em quê? Em quem? Estará entediada, maçada, aborrecida com esta vida monótona, com o decorrer taciturno destes dias sempre iguais que para ela e para mim inventei? Observa-a com uma espécie de incredulidade passageira. Vê as pessoas da aldeia caminhando na estrada. Sopra uma inesperada brisa cálida, abre-se um odor a terra fértil. Sucede sempre que choveu na véspera. É excitante ver (sem ser visto) as pessoas a caminhar lentas, com ócio, como se dispusessem do tempo todo, como se o tempo não dispusesse de limites próprios, aplicáveis para cada uma dessas pessoas. Tenta enumerar o dia, elaborar o que fez e o que tem de fazer. A mesa está junto da janela aberta: almoçou; depois leu. Até que Rosália surgira. Aguarda agora o senhor Inácio, que só aparecerá ao princípio da noite. Que estará ela a pensar?

     “Fazes sempre com que tudo pareça lindo e simples.”

     Começa a conversar em voz baixa: possui o poder de fazer falar a mulher imaginária. Os postes de luz acendem-se. Tocam no batente. Desvanece-se a imagem da mulher. Sebastian está na soleira da porta:

     - Vim dar-te as boas-vindas.

    

     Vem lá do fundo; como uma imagem rasurada que, aos poucos, a si mesma se contorna. Agora é um rosto anguloso, no qual sombra e luz parecem debater-se; olhos que fixam, intensos e graves, um horizonte longínquo e inacessível.

     Abraçam-se comovidos. Sempre assim é quando se reencontram.

     Sebastian fora educado para o ócio e para obedecer à autoridade paterna, cuja assunção adquirira um carácter quase divino. Indolente, flébil, católico e condescendente nunca protestara contra qualquer imposição familiar e reservava as angústias para o lamento secreto nas horas litúrgicas. Certa ocasião, entre bules de chá, bolachas e rendas velhas, Mafalda disse, apontando o filho:

     - Ele chama-se Sebastião; mas Sebastião é horrível: é quase uma agressão à fonética. Sebastian soa melhor, não acha?

     Concordara, acenando com a cabeça, movendo os olhos de um para outro lado, desajeitadamente a procurar qualquer suporte, o mínimo apoio. Sebastian também concordara; todos concordaram, aliás. Na sala havia gente velha. E tanto quanto a memória o permite, Manuel lembra-se de que eram todos muito velhos e estavam todos vestidos de negro: corvos; sobreviventes; desintegrados. A grasnada, a perversidade, a perfídia em todos eles que o observavam com minúcia: era o único que, nessa noite longínqua, não se vestira de escuro para o jantar. Olhavam de soslaio, esquivos mas minuciosos; o resmungar azedo, a ferrugem do ódio a manifestar-se nos pequenos gestos. Manuel: esta gente sente-se tão em baixo que tem de fazer com que alguém se sinta pior.

     Bules de chá, bolachas e rendas velhas, outra vez. Diz Mafalda:

     - Olha o Manuel...

     Bem articuladas as sílabas, e espaçadas; assim: Ma-nu-el.

     - Olha o Ma-nu-el... E já com cabelos grisalhos...

     - Todos nós vamos envelhecendo - diz Diogo, com um livro na mão.

     - Há quem envelheça lentamente; outros não - diz Mafalda.

     Sebastian está ligeiramente afastado, expectante: como alguém a pedir socorro sem que ninguém dê por isso. Manuel: Há pessoas que nunca envelhecem, morrem depois. Sebastian pertence a essa categoria de seres humanos. Pisca o olho a Sebastian. Percebe que Sebastian, agora, neste preciso momento, está naquele delicioso mundo de transição onde tudo brilha e flutua. Como quando olha as estrelas através de um telescópio: localizou Saturno, divisou oito objectos desconhecidos; sorri muito feliz.

     - Os portugueses nunca combateram muito bem. Não são disso. Não sabem lutar. Nunca souberam. Apenas são bons em duas coisas: cuidar da terra e fazer mestiços.

   - Que horror!

     - Estamos quase no final do século e ainda falamos nos Descobrimentos. Que monotonia!

     - Portugal, país de marinheiros, não tem barcos, não tem mais nada. Só vestígios.

     - São as ruínas de um Portugal sagrado: restos, sobras, sobejos...

     - É. É isso mesmo. E no futuro, quero dizer brevemente, os velhos armazéns dos cais vão transformar-se em condomínios.

     - Um país hemiplégico, é o que é.

     - O que ficou depois do descalabro.

     - Salazar ainda nos deu a oportunidade de sermos quem não somos.

     - Este país sempre se mediu pelo tamanho de uma vida: Dom Afonso Henriques, Dom Nuno Álvares Pereira, Dom Miguel, Sidónio, Salazar.

     - Em Portugal até os mortos são uma espécie em vias de extinção. Ressuscitam com tantas homenagens e nomeações.

     Olham para Manuel quando termina a intromissão pausada. Sorri cortesmente e Mafalda repete que ele já tem os cabelos grisalhos. Move-se para um extremo da sala, inclina a cabeça, levemente, para Manuel. Manuel: Perdi a fé, perdi o tempo, perdi o pé nas coisas. A minha mulher está na cova e eu estou aqui só. Às vezes pergunto-me: que se passa?

     Um grande silêncio na sala. Como tudo está ligado pela informação dos símbolos, Diogo acerca-se de Manuel, poisa-lhe a mão no ombro, diz:

     - Nós gostamos muito de si. Sempre gostámos muito de si.

     A própria linguagem é um jogo: jogo social, acrescente-se, com códigos e sinais e convenções muito próprios e talvez perigosos.

     Manuel:

     - Aprendi que não devo combater em guerras que acabaram há muito.

     Diz por dizer, claro. Mas andara à procura de aprovação e de simpatia. E nesse outro jogo de equívocos passara a vida a ficar - quando devia ter saído, ter partido, ter dado a volta às coisas. É difícil, se não impossível, recompor o afecto quando o afecto foi atingido pela rotina, pela decepção, pela velhice. Ao perdermos a juventude acusamos sempre o outro; não perdoamos o envelhecimento próprio no envelhecimento do outro.

     Mafalda:

     - As pessoas não gostam que se saibam coisas antes de estarem preparadas para as contar ou para as escutar. Sabe Manuel?, o que nos aproxima ainda mais é que ambos não gostamos de medíocres.

     Mafalda olha os circunstantes, todos sem excepção. Diogo bebe, demorado, um licor magenta. Mas todos, sem excepção, olham detidamente para Manuel, como o culpado desta subtil retaliação verbal.

     Manuel:

     - A mediocridade, em Portugal, não é um sintoma de decrepitude: é estimulada, tem viço, desenvolve-se com leviandade, envolve tudo e todos, enreda-se, sufoca.

     Mafalda:

     - Não queria embaraçá-lo com lembranças dolorosas.

     Manuel:

     - Nada disso. Vim para a aldeia porque me sentia sufocado. E preciso de falar. Desculpem-me.

     Mafalda:

   - Acabei de ler um livro muito interessante de Elias Canetti. Conhece Elias Canetti?

     Manuel:

     - Ainda não li nada dele.

     Mafalda:

     - É um livro que não pertence às atenções de Diogo; um contemporâneo, Canetti, nesse livro, diz...

     Dirige-se para uma mesa pequena e redonda onde está o livro. É um livro de formato de bolso, capa esverdeada. Mafalda folheia-o; encontra o que deseja; lê em voz alta:

     - “Diz as tuas coisas mais pessoais. Di-las: é a única coisa que importa. Não te envergonhes: as generalidades vêm nos jornais.” Extremamente lúcido, não acha?, e estimulante.

     “Lúcido”, um adjectivo de outra época, anos 60; “estimulante”, um adjectivo posto em circulação pelos redactores do semanário “‘Radar”‘, como “excessivo”, “desmesurado”, “incontornável”, “interessante”. Sempre embirrava com o “interessante”: uma palavra neutra, que não tomava partido. Quando se não deseja tomar posição, quando se não quer afirmar se determinada coisa é boa ou má, salta logo o “interessante”. Vá lá a gente entender o quê. Fragmentos de outras conversas. Indicações e acusações: lúcidas e estimulantes, para quem saiba estar atento.

     Vão todos jantar, a seguir. Na bibilioteca, mais tarde, Diogo, Sebastian e Manuel carregaram-lhe bem nos copos. Falaram, entre outras estimáveis inutilidades, do homem. O homem que é um animal misterioso e, por isso mesmo, suporta mal os semelhantes que parecem ainda mais misteriosos do que ele. Manuel sentia-se muito bem.

     Diogo:

     - Mafalda foi-se deitar, estamos à vontade. E os velhos também se foram todos embora; que bom! Não gosto nada de velhos: só cheiram a morte e só farejam a morte. Nós, cá em casa, somos muito seus amigos, Manuel.

     Manuel está ligeiramente embriagado:

     - Um amigo dura uma vida.

     Sebastian:

     - E quanto tempo vai durar a tua vida?

     Vivo numa época em que se negam os princípios e se modifica a moral, pensa Manuel. Está mais do que ligeiramente embriagado. Sebastian serve-lhe outro uísque; diz:

     - Bebe à vontade. Se for preciso levo-te a casa.

     Manuel sente-se muito bem. É quando Diogo grita:

     - Viva Dom Duarte Pio!

     - Quem? - Manuel, bêbado, a perguntar.

     - Dom Duarte Pio!

     Manuel:

     - Tantas vezes ouvimos o nome que acabamos por comprar a marca.

     Os três riem.

     - Um brinde aos finais felizes!

     Subitamente Manuel experimenta uma vaga sensação de vulnerabilidade.

     Caminha pelo descampado, um pouco antes do local onde o rio forma um grupo de pequenos lagos. Sol a pino. Depara-se-lhe uma cena: dois escorpiões lutam sobre uma colónia de baratas fulvas; algumas baratas são feridas, perdem as patas na agitação entre os dois escorpiões: as outras precipitam-se e devoram-nas; mas todas aguardam, amontoando-se, debatendo-se ferozmente, o resultado da luta dos escorpiões: de qualquer das formas, nenhum deles sairá dali vivo: qualquer que seja o vencedor, ambos serão comidos.

     Contará, num dos serões em casa de Sebastian, o espectáculo medonho. Notará que o escutam sem horror, com uma crispada curiosidade. Inventará pormenores, aumentará a narrativa. Dirá que, finda a batalha, devorados os bichos que tinham de ser devorados, as baratas voarão em densos grupos, baratas voadoras, isso mesmo, como só vira em Moçâmedes, há muitos, muitos anos. Percebe que deixou de ter meros e entediados ouvintes para dispor de uma plateia. Passou a ser um mensageiro, para os velhos corvos, que o haviam tomado por um importuno. Há um surdo rumor de júbilo quando fala de babas e de espichos repulsivos.

     Mas ele caminhava vagarosamente e, depois da luta dos bichos, sem mesmo assistir ao remate final, descera o talude e passeara pela pequena praia. Absorto, mergulhado na autocompaixão e no remorso que sempre se sucedem a uma noite de álcool. Sobressalta-se com o farfalhar das asas de pássaros de uma só estação. Os pássaros fugiram certamente por adivinharem qualquer espécie particular de perigo. Pensa: É talvez estranho, mas ando sempre a lembrar-me de coisas que nunca aconteceram. Sou um homem que tem vergonha de ser infeliz. Há anos divertia-me a adivinhar a ocupação das pessoas pela maneira como andavam. E criava histórias para cada uma delas: amores, conflitos, encontros, felicidades, temores. Com eloquente simplicidade admitia que a mentira só se torna verdade quando queremos acreditar nela. Nessa época nunca colocava a paixão acima dos princípios, mesmo que isso significasse perder. Mas já transportava dentro de si a sua própria prisão: era um estranho onde quer que estivesse, aonde quer que fosse. Estranho, até, no seu tempo, do seu tempo. Fala para a mulher imaginada:

     - Quando Madalena morreu senti-me culpado. Como se ela tivesse feito tudo por mim e eu nada tivesse feito por ela. Era uma mulher silenciosa e, por vezes, muito distante. Trazia consigo uma indiferença muito parecida com a morte.

     - Queres que me vá embora?

     - Às vezes, Madalena advertia-me: “Não te esqueças, não digas tudo; ninguém diz tudo a ninguém”.

     - Perguntei-te se queres que me vá embora.

     - Faz como quiseres. Neste momento nem contigo estou bem.

     Contorna o grupo de pequenos lagos. De manhã, o senhor Inácio repetiu o que Mafalda lhe dissera: “Já está ruço, o senhor Manuel; as brancas começaram a aparecer-lhe. A cidade dá cabo de si, não é, senhor Manuel?” Haviam combinado uma conversa mais prolongada, molhada a aguardente de zimbro. Inácio continua a pertencer à sua memória, ao seu passado, como uma daquelas fidelidades que, ao envelhecer, qualquer homem resguarda obstinadamente, apenas porque fazem parte da sua juventude.

     Mas a amizade entre os dois homens era uma forma de mal-entendido. Inácio sempre se afirmara partidário da ordem, aceitara sem reservas a existência da polícia política, fora membro da União Nacional, desfilara em manifestações de apoio a Salazar. Extrovertido até ao impudor, nas conversas com Manuel mantinha um silêncio polido quando inflectiam para a política, como se a conversa política fosse uma sequência inevitável mas inútil. As esquivas, as piruetas, os desvios de Inácio indicavam que não nutria uma admiração particular pelas ideias de Manuel - o que quer que elas actualmente fossem ou representassem. A sua segurança ia ao ponto de beber em excesso sem nunca cair em inconfidências.

     Manuel, no fundo, desprezava o seu moralismo longínquo, a prevenção discretamente manifestada por tudo o que era novo. E, também, a prepotência exercida sobre Rosália e Isilda: subtil, porém determinada e eficaz, porque envolvida num ríspido sentido de humor. A necessidade de dominar as desgraças para impor a força do temperamento era um dos atractivos do seu carácter. Atractivo que, consoante os pontos de vista, tanto o poderia designar à admiração como à indiferença ou à relutância. Espancara um amigo porque este atrevera-se a sorrir quanto à intocabilidade da sua honra. Um homem apaixonado até à brutalidade, ardente até à paixão, inquieto até ao furor - sobretudo quando se lhe falava, veladamente embora, de certos aspectos menos claros do seu passado, das suas ausências prolongadas da aldeia, antes e depois do 25 de Abril.

     Dizia, e quando dizia o bojo das palavras possuía uma melancólica grandeza:

     - Sempre consegui fazer a coisa acertada no momento inesperado,

     Frase correcta, porém evasiva e maliciosa. Cada um que a interpretasse como desejava. Mas havia algo de terrivelmente verdadeiro nessa indeterminação, na dúbia natureza da própria frase. Inácio sabia todas as histórias da aldeia. E a que contava de Sebastian era oposta à que corria.

     Aos 14 anos, Sebastian, cuja mãe morrera de parto, devido a prolongada hemorragia que a incompetência de uma mulher de virtude e as preces de uma benta não conseguiram estancar, ficou órfão de pai, um arruaceiro minado de petulância e de cirrose alcoólica. Este pai autêntico era irmão de Diogo, que lhe prometeu cuidar de Sebastian como se fora seu filho. Encobrira-se o infausto caso e endossara-se à família mais chegada a responsabilidade de manter a Casa, o Sangue e a Casta. Indolente, o rapaz não fez questão em que um outro tio, Mem de Saavedra Gaspar de Magalhães, que recebera ordens observantes já muito adulto, lhe ministrasse o ensino do latim e a obediência rigorosa às horas canónicas. Mafalda colaborara na pia educação. Mas apesar da esforçada insistência não conseguiu desviar o sobrinho da hereditariedade paterna: uma cada vez mais acentuada tendência para apanhar bebedeiras de caixão à cova.

     As bebedeiras faziam-no chorar e adormecer com soluços. Sofria de incontinência urinária e alagava os colchões de mijo, continuando a dormir com intensa candura. Por vezes apresentava o ar displicente e entediado comum a todos aqueles que têm um convívio excessivo consigo próprios. Tudo, para ele, era esforço; até dizer um simples obrigado. Quando adolescente costumava deitar-se no leito de Mafalda, como se o leito fosse materno e Mafalda sua mãe verdadeira.

     Manuel ria-se com a imaginação de Inácio, com a sua capacidade de intrigar e de onzenar removendo a responsabilidade da verdade ou da mentira para a memória colectiva da aldeia. Mas ninguém confirmava a história narrada por Inácio. Também ninguém a desmentia. Havia, aqui e além, quem experimentasse uma sensação de indignado protesto. As indignações, porém, quedavam-se em frases fúteis e em palavras muito pouco comprometedoras. Ninguém cortejava as grandes lealdades: a verdade depende daquilo em que se acredita. Entre meias-verdades ou duas mentiras Manuel optara, comodamente, pela história digamos oficial. Sempre era mais conveniente acreditar nos sonhos bárbaros da razão do que admitir a predestinação do sistema de convergências e de coincidências. De qualquer modo, tudo parecia remoto e inverosímil: nada sobrou: a única história possível era-me narrada por fragmentos, muros desmoronados, olhos doídos e bocas silenciosas, corpos feridos e gestos marcados por pressentimentos e perfídias; o mundo da separação: nada sobrou; e murmurava os versos de Cecília Meireles

    

                       “Aqui, além, pelo mundo

                       ossos, nomes, poeira”

                       Onde, os rostos?, onde, as almas?

                       Nem os herdeiros recordam

                       rastro nenhum pelo chão”

    

os rostos de anjos que o tempo tinha roído; caminhando pela pequena praia, navegando; navegava entre a memória e a profecia porque um homem tem de saber o que está ou o que não está dentro de si; as melhores coisas que aconteceram na minha vida estão ligadas a agitações momentâneas e imediatamente esquecidas; mas há em mim muitas coisas para serem amadas; não me revelei, porém; não me entreguei nas alturas propícias, é isso; mas nenhuma palavra exprime rigorosamente tudo quanto quer dizer; por exemplo: infelicidade; infelicidade é, só, ser infeliz?; infelicidade não evoca outros sentimentos talvez menos impiedosos?; nenhuma palavra diz tudo: todas as palavras, cada palavra esconde muitíssimos mais propósitos, porque nenhuma palavra é excluente e comporta muitíssimas direcções; mas cada palavra oscila entre o entusiasmo apaixonado e uma peculiar forma de desprezo; e há palavras, oh!, se há!, que nos ensinam coisas importantes, como a coragem de desesperar.

     Sempre confiei naquilo que conhecia, nunca naquilo que via, porque sempre desejei alguma ração de sonho na realidade da minha vida. Fiquei só muito novo e se, conscientemente, não me ressenti muito com isso, a minha dependência foi apenas partilhada com a recordação permanente do meu pai. As suas faces, os seus movimentos pesados e lentos, as suas leviandades patéticas, a sua moral do trabalho são contornos e definições muito felizes para mim. Mas perdi-lhe o registo da voz, o timbre das frases. Era um bom pai. Um pai pródigo de si mesmo, usado e abusado, porém com o espírito ancorado em Luanda, onde vivera feliz durante dois anos, década de 25. Sabes que raramente retornei a imagem de minha mãe? A minha mãe era uma mulher seca e sóbria, de uma beleza delida de que o único retrato oval, de parede, que possuo, revela sinais harmoniosos. Fazia renda de bilros, sus pirava e parecia alhear-se das pequenas perversidades quotidianas. O meu pai era um homem de estatura média. Não sei, exactamente, qual a altura, o porte de minha mãe. Mas quero-a de andar esbelto e de voz suave. Quero-a a pentear-se nas tardes amenas e desejo tocar-lhe ao de leve nos cabelos. Nunca manifestou qualquer forma de ternura por mim, mas estou em crer que me amava muito. O meu pai disse-me que ela gostava de contar-me coisas acontecidas a si e aos seus antigos: uma fieira de histórias que envolviam a Calçada da Ajuda, o Bairro dos Mortos, as pessoas desprevenidas que por este ou por aquele motivo se lhe tinham atravessado no destino e na vida. O meu pai reiterava que ela me amava muitíssimo, embora sem eu a ele nada ter perguntado. Pouco de minha mãe me lembro. Ocasionalmente, sabes, examino o retrato oval, olho-a nos olhos, com ela converso, penso no colar de pérolas artificiais que traz ao pescoço, que foi feito do colar?, as coisas perdem-se assim?, os objectos de estimação desaparecem como?, fazem-se em pó?; nada se perde tudo se transforma?; observo minucioso o nariz direito e equilibrado, as maçãs do rosto, os retoques subtis que o fotógrafo executou, o esfumado cinzento por detrás. Como seriam as suas mãos? A minha mãe e o meu pai discutiam?, ter-se-iam amado?, conversavam sobre quê? Mas os limites dos retratos são inumeráveis. Os retratos são momentos fixados que se perdem nos próprios momentos. Os retratos são feitos e conservados para imaginarmos uma certa contagem do tempo. São feitos para eliminar o tempo, não para o conter. Porque nenhum retrato contém o movimento ondulante das mãos, o som das vozes, o testemunho de uma intrusão, a revelação do amor. Os retratos são a extensão do que imaginar se possa. Posso observar um retrato e dar-lhe a dimensão que pretender: os retratos são alvitres para inventarmos o mais mutável dos corpos e regularmos o mais enigmático dos hábitos. Os seus limites só então são transponíveis. Isto quer dizer que o retrato de minha mãe nada me diz de minha mãe; a não ser que a invente, como a ti eu inventei. Corre agora uma nuvem. É uma nuvem pesada e leitosa que se transformou em cirros extremamente luminosos. O céu recua; o céu está a recuar. Volto ao retrato; volto ao retrato porque, há tempos, comecei a pensar que muitos dos meus tormentos e apoquentações provinham da circunstância de passarem anos e anos sem, ao menos uma vez, eu ter fixado o retrato de minha mãe, falar-lhe, tentar reconhecer os sinais ocultos, a natureza secreta daquele olhar, o religioso distanciamento em que parece envolvida. Tê-la, enfim. E associar, de modo instintivo, a ideia de que lhe pertenço, perten cendo-me ela. Sinto, comecei a sentir, que o seu olhar me aguardava há muitos anos. Nos anos em que eu era um profano obscuro e quando pensava que abandonando a solidão entraria na loucura. Excluíra-me das ideias, dos pensamentos, das memórias. Só recuperava as ideias, os pensamentos e as memórias do meu pai, o único tocado pela graça, o único que possuía um manancial de dons e de bens. Mas ela morrera primeiro e ele vigiara a minha infância, protegera a minha adolescência, construíra-me na idade de homem. Agora sinto vibrar uma atmosfera antiga. Consigo revê-los jovens e esbeltos, desperdiçando o tempo, rindo por ninharias. Riram os dois, alguma vez? Quero dizer: aquele riso aberto, claro e uníssono a partir do qual parece existir uma felicidade perfeita? Faltam-me ambos. Falta-me, agora, a minha mãe. Sou um objecto danificado.

     - Há quanto tempo não te apaixonas, Manuel?

     Há quanto tempo não se apaixonava? Apaixonara-se alguma vez? Atracção sexual, desejo, curiosidade, isso sim. E ciúme, também. Uma cintilação atrás da outra. A relação com Madalena fora a mais duradoura, embora oculta por uma fachada de sorrisos para o exterior e de ásperas recriminações para o interior. Madalena fora uma mulher muito bela e muito pouco indulgente em lhe perdoar as omissões e as faltas. À medida que os anos caminharam tornara-se amargo, entregue a silêncios vazios e a uma complacência pouco resignada relativamente: àquilo que sonhara realizar e não conseguira. Aos poucos fora perdendo também os dons da sugestão. Bebia e consumia o tempo em conversas enérgicas sobre temas que lhe eram caros mas provavelmente inúteis.

     Dera-se conta de que quisera ser filho do século, homem do seu tempo, e de que o resultado de tudo em que se envolvera fora indefinido. A desenvoltura do seu carácter, a vasta área dos seus interesses e conhecimentos permitiram-lhe, durante anos, ser escutado, respeitado e tido como homem brilhante. Só ele, contudo, conhecia as suas fraquezas; e as lacunas de cultura dissimulava-as com a repetição das leituras feitas - muitas, de facto, e variadas. O dissídio com Madalena começou quando ela, sem o dizer claramente, tomou consciência das ocultas fragilidades:

     - És um homem cheio de problemas encobertos e de desejos dissimulados.

     - São os homens com problemas que fazem o mundo mover-se.

     - Mas eu creio que estás a afastar-te, cada vez mais, do mundo real. Deixaste de acreditar na festa.

     - Admitir a verdade não implica perder as boas recordações.

     Disse e olhara-a intensamente. Tentou, em vão, subtrair-se ao seu exame. Olhos nos olhos, silêncio pesaroso, um rio de suor a inundar o inferno dos seus estigmas. Consagrava, então, muitas horas a ler a publicidade nos semanários e nas revistas ilustradas: isso divertia-o, distraía-o e desvendava-lhe os costumes, os gostos, os hábitos e os desejos da época. Irritava-o o tom de certos artigos e reportagens que eliminavam ou afastavam para as regiões do patético as grandes exultações dos dias antigos. Decidira escrever cartas veementes para esses jornais. Esses jornais mandavam-nas para o cesto dos papéis com desencorajante persistência. O que o não demovia: escreveu, escreveu até que um chefe de Redacção distraído ou, como então era moda que fez regra, absolutamente inepto, lhe publicou uma delas.

     - Vês? Vês como ainda há alguém que esteja atento?

     - Mas tu não estás contente! Estás zangado!

     - Às vezes é perigoso não estar zangado.

     - Lá estás tu!! Cumpres rituais anacrónicos. E é pena que os lisboetas, tão ricos quando inventam anedotas, sejam tão pobres em dizer a verdade.

    

     Na cidade as pessoas haviam-se tornado hostis e desconhecidas; de repente ocorrera-lhe que nunca passeara pelo círculo calcetado da estátua do marquês de Pombal; tantos anos de Lisboa e nunca se aproximara da monumental memória; nunca pusera os pés naquela rotunda de bronze e pedra; tudo se tornara mais apressado e ele experimentara um grande cansaço: um cansaço letárgico por incompreensão; às vezes apetecia-lhe conversar com alguém que não conhecia, como outrora; é que todos nós temos direito a um pouco de autocompaixão; a cidade fora um conjunto de ruas e de bairros habitados por pessoas que, entretanto, tinham morrido ou simplesmente desaparecido; não, não era a cidade que se tornara agreste e inamistosa: as pessoas é que eram outras; uma desilusão; uma desilusão de quê?; portador cego de uma certeza que no fundo negava, o passado das lutas necessárias era a sua obsessão e o seu obstáculo; e cada vez estava menos livre, e cada vez se sentia mais testemunha de um dever não cumprido, e cada vez entendia melhor o perigo das atitudes puramente morais; também não sabia deixar-se guiar pelo que ia acontecendo; irreconciliado com o tempo actual procurava, na aldeia, a reconciliação; mas

     - Mas só muito mais tarde, quando perdera a consciência das coisas, quando me apercebera de que o meu inexorável envelhecimento tinha algo a ver com a tensão extrema de princípios que morrem, só muito mais tarde me ocorreu uma frase ouvida na distância: “O homem só é homem entre os homens.”

     Repara que as mãos do senhor Inácio estão polvilhadas de manchas castanhas. Bebem uísque, depois da aguardente de zimbro. Manuel tenta atenuar os efeitos do álcool mascando, a intervalos, pequenas porções de pasta de gengibre e sumo de limão, receita ensinada em Bona por um estalajadeiro que lhe afirmara ter sido descoberta por Beethoven, grande bêbado. A pasta, cinzenta e densa, provoca reacções imediatas: um choque no cérebro seguido de ligeiríssimo torpor, semelhantes às que se sentem quando se cheira amoníaco. Os resultados são surpreendentes: a clareza mantém-se e a equanimidade nunca é atingida beba-se o que se beber.

     Esforçando-se pela impassibilidade absoluta, Manuel escuta o senhor Inácio, que fala de costas voltadas para o tempo. A sua conversa também vem de muito longe; por isso e apesar de todas as diferenças o convívio é-lhe reconfortante e agradável. Nada fica inteiramente dito. Quando experimenta qualquer contrariedade, quando o rumo do diálogo o embaraça, Inácio conta as manchas castanhas da senilidade. É um hábito recente.

     Manuel recorda-se de, há dois ou três anos, Inácio ter manifestado apreensão com o aparecimento sistemático das manchas. Tranquilizara-o. Abandonado a uma inesperada frouxidão, o outro perguntara: “Só quer dizer que estou velho?” Acenara que sim. Inácio suspirara. De alívio ou por sentir o fardo da sua condição? Dissera logo a seguir: “Quando isto me apareceu dei por mim a passear no sítio do cemitério. Mas recompus-me. Não devemos evocar a morte. Se dela nos lembramos, a morte desperta mais cedo do que deve.” Manuel vira os traços do senhor Inácio adquirirem uma expressão lassa.

     - O senhor Manuel não pensa em voltar a casar?

     Olhou absorto para o interlocutor. Sem procurar explicação para a natureza das primeiras emoções, mas restaurando a singeleza dos tempos iniciais, lembrava-se de que ao aproximar-se de Madalena sentia a poderosa força do desejo. Ela adivinhava a sua perturbação e sorria numa espécie de desafio demorado. Madalena tinha as coxas ligeiramente arqueadas e o ventre um pouco convexo, e abraçava-o muito, quase o sufocava; beijava-o, mordia-o, olhos cerrados; murmurava palavras imperceptíveis; começava por gemer baixo até gritar e soltar obscenidades. De dia mantinha a aparente normalidade de um assunto julgado: como se nada tivesse ocorrido e a sua impassibilidade fosse comum à vulgaridade quotidiana.

     Muito tempo depois, como se desejasse reduzir as coisas a um íntimo fervor, ou procurando chocá-lo, disse: “Nos sonhos não consigo distinguir o bem do mal, nem vício nem virtude. Liberto-me, deixo de ter pudor, desconheço qualquer julgamento moral relativamente a mim mesma. Tenho uma particular falta de moderação e, quando acordo, assusto-me: que mulher sou eu, afinal? Já sonhei com cenas perversas: que fazia amor com um cão, que estava na posição de quatro patas e que o cão me introduzia o sexo no ânus. Abandono-me a todas as fantasias, as mais sórdidas. Já sonhei que estava com o meu pai na cama; já sonhei que estava a ser possuída por dois negros; já sonhei...“

     Deitara-se de bruços, tentando dissimular o embaraço que de súbito lhe causara a amplitude da confissão:

     - Nada há nos meus sonhos que não seja insensato.

     Disse Manuel:

     - Nada há na minha vida que insensato não seja.

     Erguera-se, ligeira, sacudira a cabeça como que para afastar as imagens correspondentes ao que confessara, examinara-o detidamente, talvez a solicitar-lhe compreensão ou uma espécie muda de auxílio. Depois retomara a postura habitual. Mas ainda acrescentara, sem procurar, nas formas de expressão, qualquer subtileza, que sabia destinada a falhar após a rudeza clara das revelações: “O estranho de tudo isto é que, quando sonhei com o cão, ao acordar doía-me o ânus; e que, quando sonhei com o meu pai, senti, durante meses, que ele parecia ocultar qualquer tendência em relação a mim. Sei que quase toda a gente tem sonhos considerados imorais; assim como sei que há opiniões opostas sobre a moralidade ou imoralidade dos sonhos. Ficaste chocado?”

     Respondera-lhe vagamente que os sonhos são a nossa liberdade mais espantosa, e que representam, muitas vezes, restos de uma actividade normal encastoados na memória.

     Nítido, o rosto de Madalena ressurge: um rosto desvairado?, vagueante ou a flutuar na penumbra do quarto, reduzida cada vez mais a tarde? Dois seres solitários, pensa agora Manuel, a tentarem compartilhar solidões irremediavelmente separadas, insuficientes cada um deles para fazer companhia ao outro, já excluídas da realidade as permutas do desejo.

     A noite não lhes deu tréguas. Tentou, porque presumira ser um alvitre a confissão de Madalena, tentou despertar-lhe as emoções e as experiências físicas provenientes dos sonhos. O corpo dela foi um não absoluto. E ele ficou intrigado e apreensivo.

     Enleado nessas obsessões, acalmando-se ou enfurecendo-se consoante os períodos em que pensava ou não estar a viver com uma mulher que desconhecia, agitado por um temor e por um ciúme indomináveis, observando-a com incredulidade quando ela se movia pela casa, Manuel tombara, pela primeira vez na vida, no interior de alguma coisa para a qual não estava preparado. Um amontoado de episódios, de silêncios, de factos, de hiatos guiava os seus mais obscuros pensamentos.

     Inversamente proporcional ao seu laconismo Madalena tornara-se, na aparência, mais viva, mais alegre, e ele interpretava certas frases soltas, certos sorrisos distantes como formas de ironia ou como ternas lembranças de situações em que ele não participara. Pouco a pouco foi substituindo por hipocrisia da parte dela o que sempre considerara a sua maneira de ser. Imaginou-a com outro homem, praticando todos os prazeres e experiências que a ele não consentia; e, sem transição, via-a com negros e com cães, tresloucada, desfeita a arrogância, num inominável abandono, como se todos esses actos por ela sonhados e por ele reflectidos em verdades fossem troféus e ostentações.

     Que estava a fazer naquele sítio, naquela casa, sentado noite após noite, anos e anos, obstinado e vigilante, uísque, televisão, examinando-lhe os mínimos gestos, julgando descortinar num fatigado cerrar de olhos uma mudança invisível, uma alteração frágil, cega e extraordinária no seu comportamento habitual? Uma batalha rumorosa na qual se abria o intervalo de um pesado descanso para logo se reavivar a chama da dúvida, da inquietação e do desespero.

     Certa tarde, ao regressar a casa, dera com ela a folhear um álbum de antigas gravuras eróticas; afastava-o ou aproximava-o dos olhos para se deter neste ou naquele ponto. Colocara o álbum na estante, com impassível gravidade, depois voltou-se, abraçou Manuel para logo o repelir quando ele lhe acariciou os seios sob a blusa. Nessa noite retraiu-se ainda mais, não correspondeu aos beijos, saiu bruscamente da cama e refugiou-se na casa de banho. Ouviu-a soluçar. Quando voltou à cama, o rosto envelhecera e a luz quebrada acentuou-lhe os cabelos em desordem, pálpebras inchadas, sombras nos olhos. Fitou-o sem nada dizer, riu-se, um riso de escárnio, um riso cruel?, mas porquê?, teve um efémero instante de fraqueza e abraçou-o, porém sem a instigação do desejo.

     Foi por essa altura que Manuel começou a temer o envelhecimento. Sem nada no seu corpo se haver substancialmente alterado, sem que coisa alguma fosse suspeita de modificação biológica, principiou por vigiar as urinas, o peso; a atentar melhor no rosto, nas rugas, nas comissuras dos lábios, nos olhos pandos, na cadência do andar. Por indicação de amigos começou a tomar produtos naturais com perseverante regularidade. Ginasticava-se com pequenos halteres, flexões, barra. E o silêncio entre os dois prolongava-se até quase ao desconhecimento das próprias presenças. Um túmulo de receios, de desconfiança e de indiferença. Ao mesmo tempo agressivo e mísero, o silêncio revelara-lhes a intransigência mútua. Nenhum queria saber do outro, nenhum avançava para desvendar esse abandono condenado à morte e que subsistia inclemente como uma amputação. Por inépcia, maldade, egoísmo e cansaço mortificavam-se fechados dentro dos muros pessoais de quase total incomunicabilidade.

     Murmuravam frias observações, o estrito indispensável, e mergulhavam em espessas camadas de frio, de desdém e de tempo, encarando-se como se não existissem ou vivessem em comum como sombras trespassáveis.

     Madalena começou a chegar tarde. Manuel começou a ficar dois e três dias fora de casa. Não manifestavam interesse em revelar os seus segredos, duplicavam essa recíproca tirania com brusquidões dilacerantes, provocações mudas, saídas precipitadas sem justificação; cada qual pretendia curvar a vida à sua própria vontade. Nenhum desejava, conseguia ou podia viver com o outro sem estimular esses demónios, como se as mutilações que se infligiam constituíssem a única possibilidade de sobrevivência.

     Pareciam fascinados pela demolição, pela tortura, pelo tédio, num entusiasmo mórbido em alimentar a derrocada progressiva da sua relação. Haviam-se negado à satisfação sexual, mortificavam a vontade, e as suas dissimulações produziam-lhes uma excitação perversa e particular. Dormiam juntos como dois estranhos, crispados numa dor que surdamente os regozijava porque não era uma dor infinita. Tinham ignorado a generosidade e esquecido de que não se pode viver sem um pouco de indulgência, de piedade e de tolerância. De tempos a tempos ela cantarolava, ria baixinho, falava consigo própria, voltava a rir baixinho. Certa noite interpelara-o bruscamente:

     - Que esperas para dar uma volta à vida?

     - Estou apenas à espera que morras.

     Quando Madalena morreu não se sentiu nem feliz nem liberto.

     Um estafeta vinha da cidade mais próxima, periodicamente, entregar-lhe jornais e revistas estrangeiros. Trouxera pacotes de cigarros Camel, tomava chá e comia bolachas pela manhã, organizava as outras refeições consoante o apetite e a disposição. Ocasionalmente comia um almoço abundante, preparado pela senhora Isilda ou pela filha desta. Rosália parecia evitá-lo. Começava a beber ao fim da tarde, enquanto tomava notas e apontamentos íntimos num caderno com capa de oleado negro. Escrevia com demora: a caligrafia era apurada e ele experimentava uma bela sensação de prazer enquanto desenhava as frases.

     A meia altura do andar térreo, na parede do patamar largo que inflectia suavemente para o piso superior, colocara, havia tempo, uma gravura de Sá Nogueira que representava uma mulher de rosto esbatido no qual se adivinhava, porém, uma discreta comoção. Ao lado, uma estante com livros que trouxera aos poucos de Lisboa e se acumulavam indiscriminadamente. Gostava de fixar a gravura, copo na mão, procurando descortinar qualquer linha aparentemente contraditória, a concepção secreta do que aquele rosto queria dizer, a mediação entre o lado pessoal do pintor e a própria pessoa espiritual ali representada.

     Ouvia rádio. Colocava cassetes de música clássica, jazz ou dos grandes cantores de bossa-nova, sua paixão sempre renovada. Ficava dois, três dias fechado em casa. Nessas alturas, abandonando a sua reserva, Rosália aparecia, advertindo que ia a mando da mãe ou do pai: “Precisa de alguma coisa? Quer comer? Quer que lhe arranje a casa?”. Entregava-se aos caprichos do seu humor ou da sua solidão. Passeava, conversava com conhecidos, bebia na taberna, escutava as últimas, lia, dormia. Sentia-se protegido de si próprio.

     A casa estava impregnada de cheiro a alfazema, e a alfazema recordava-lhe a infância, sítios já inexistentes que visitara, povoados que haviam desaparecido sob as águas de barragens. As raparigas do seu tempo eram matronas cheias de filhos, ou viúvas embiocadas de negro, curtidas, pés chinelados, sujos. Os rapazes do seu tempo eram homens na aparência muito mais velhos, sofocados pelo tédio, lentos e distantes, que o vigiavam incessantemente, não evitando ser indiscretos.

     Manuel pressentia que falavam nas suas costas, que conheciam a sua vida, que alimentavam uma forma estranha de altivez e de despeito. Já ninguém o tratava por tu. Ele também não: o senhor isto, o senhor aquilo; você isto, você aquilo. Quando recebeu, pelo correio, um volume de razoáveis proporções, pedido de livros franceses que fizera na Buchholz, logo admitiu, com divertida indiferença, que toda a aldeia soubera da encomenda, embora desconhecesse o seu conteúdo. Também sabia que o volume seria pretexto para as mais variadas suposições.

     Há alguns anos, o senhor Inácio e mais dois comparsas desafiaram-no para uma caçada ao pato real. Ainda os havia, nos tufos de juncos próximo dos pequenos lagos. Iam pelo alvorecer, escondiam-se nos arbustos densos, entre penumbras e nevoeiros, aguardavam em silêncio que os patos subissem. Os patos reais voam quase a prumo: é nesse curto trajecto que o caçador mostra a habilidade e dispara. Quando o pato real está já em rota horizontal, o autêntico caçador não atira: é um respeito.

     Declinara o convite. Já não tinha pernas nem pulmões, desculpou-se. “Olhe que os fidalgos vão. Encontrávamo-nos com eles” - insistiu o senhor Inácio. Os “fidalgos”. Todas as ocasiões em que assim se referiam aos Magalhães lembrava-se de Júlio Diniz e do seu Portugal litográfico.

     Antes das grandes emigrações para França e para a Alemanha, quando havia ainda muitos rapazinhos na aldeia, quando a aldeia era uma comunidade familiar de gente nova e procriadora, os caçadores levavam-nos aos bandos com os cães.

     Faziam-se, então, jogos estranhos e brutais.

     Assim que um pato era atingido, os rapazes atiravam-se à água, juntamente com os cães, num desafio absurdo para se ver qual chegava primeiro à ave tombada. Acontece que as águas estavam cheias de ratas corpulentas, atraídas pelo odor das matilhas e que aguardavam, com intenso nervosismo, a queda dos patos alvejados. Então, nadavam velozmente, cabeça fora de água, soltando guinchos que mais pareciam silvos. Enquanto os homens riam alto, estimulando com gritos os rapazes e os cães, as ratas atiravam-se às mãos dos rapazes, mordiam-nas com ferocidade, ocasionalmente decepavam parte de um ou de mais dedos. Na penumbra apenas se divisavam sombras imprecisas, dos nevoeiros só se escutavam imprecações, guinchos estridentes, gritos de dor, o resfolegar ou o ladrar dos cães. Quando um ou outro rapaz chegava ao pato semi-submerso primeiro do que os cães, os cães latiam com desespero ou ladravam com raiva: afastavam-se para as margens ou atacavam os rapazes. Estas cruéis brincadeiras terminavam com grandes comezainas, grandes bebedeiras e dedos ou mãos dilacerados, tratados com aguardente para desinfectar, cinza de pinho e resina.

     Copo de uísque na mão, cigarro, livro sobre as pernas, Manuel pensa em cenas brutais, em situações de violência a que assistiu ou de que foi protagonista. O homem não consegue nunca libertar-se da agressividade congénita, faz o polimento da bestialidade milenária, mas latente reside toda a sua primordial irracionalidade.

     No tempo em que fui feliz com Madalena ficávamos amiudadas vezes na aldeia. Éramos conhecidos e estimados por todos, todos desejavam ser gentis connosco, ofereciam-nos frutos, legumes, as faces eram agradáveis, os risos claros e abertos. Reuníamo-nos a meio da tarde na taberna, bebíamos sem furor, Madalena ficava corada, toldada por leve embriaguez.

     Sebastian também aparecia; ao transpor o limiar da porta os homens levantavam-se, cumprimentavam-no com a malícia que se reserva a alguém que se teme por atavismo embora se reconheça como tolo. A princípio, aquele cerimonial surpreendera Madalena, e tivera necessidade de o fazer sentir ao próprio Sebastian e aos outros. Sebastian trazia consigo o seu pobre privado: um miúdo indolente e abstruso que o seguia, que dele não desviava o olhar, que ia ao balcão buscar-lhe as garrafas e a quem, quando finalmente se erguia, cambaleando, lançava um grupo de moedas depois de com elas brincar, fazendo-as saltitar, uma a uma, com destreza, entre os dedos. Este jogo estranho e mecânico organizava-o à medida que ia bebendo.

     O termo peremptório destas reuniões periódicas registou-se quando Sebastian, mais bêbado do que o costume, se contrariou com o miúdo devido a qualquer despercebida insignificância e o esbofeteou ante o silêncio ressentido dos presentes. Perdendo a calma, Madalena insultou-o de tudo e empurrou-o. Ele sucumbiu ao peso do álcool e ao impulso do empurrão: tombou como um fardo. Auxiliaram-no a levantar-se e a caminhar pela estrada. Estatelou-se no macadame e feriu profundamente a cara. Ninguém o voltou a erguer. Abandonaram-no com desdém.

     Dias depois, ao cruzar-se com Madalena pedira-lhe desculpa da inconveniência. O miúdo deixara de o acompanhar. Madalena respondera-lhe com rispidez: “Peça desculpa ao garoto”. Sebastian encolhera os ombros, sobrancelhas erguidas, um lento sorriso afectado; dissera: “Não se inquiete. Aquilo não fui eu, foi o álcool. Além disso, ele e eu somos amigos. Entendemo-nos e precisamos um do outro.”

     A um tempo familiares e reservados, os habitantes da aldeia acolhiam os de fora com a afabilidade de quem recebe visitas: atentos, furtivos na curiosidade até que as barreiras entre os homens se esbatiam na taberna. Reminiscências apreensivas desapareciam com os mecanismos de cordialidade que o álcool desenvolve. Léo Verbist foi um desses casos. Holandês do Levante, tal como Van Gogh, e também pintor, adquiriu uma casa semiarruinada a imigrados, reconstruíra-a praticamente só, da estrebaria fez estúdio, trabalhava, bebia, caçava e nadava mesmo quando o mar não era propício.

     Homem de enorme estatura, cabelo ruivo e ouriçado, bigode a cobrir-lhe a boca, vestia blusas de veludo e calças largas, usava botas cardadas e ria por tudo e por nada. Aos poucos entrou na intimidade da aldeia. Não cometia O mais leve deslize, mesmo quando bebia garrafas atrás de garrafas de vinho, caminhava hirto como um espeque, e só às vezes, quando o álcool o incitava a recordações, murmurava frases incompreensíveis na sua língua natal. Numa transfusão de sentimentos chamava todas as mulheres que via por um nome: Hildegard.

     - Que pena - dizia a senhora Isilda para o marido. - Que pena um homem ainda novo e forte como um touro e tão sozinho.

     O senhor Inácio, seu companheiro de caça e parceiro preferido na taberna; defendia-lhe o comportamento, conjecturava que o nome desconhecido seria o de um grande amor na vida do holandês e rematava:

     - Não percebo nada da pintura que faz. Mas ele tem sempre um lugar entre nós.

     Madalena também visitara o estúdio e insistira em comprar-lhe um quadro que Verbist desejava oferecer-lhe. O quadro ficou na casa da aldeia, porque onde moravam, na capital, não havia paredes suficientemente grandes para suportar as suas enormes dimensões. Era um quadro soturno, de verdes pálidos e de ocres fulvos figurando uma serialização de pequenas personagens iguais, de braços erguidos como possessas, que tendiam para a infinitude. No extremo superior direito, um círculo negro semelhante a um buraco que se adivinhava terrível e pernicioso. O título era também estranho: “Mysterier”, vocábulo norueguês, e não holandês, que Verbist revelou haver tirado de um romance de Knut Hamsun: “Mistérios”.

     Disse-o com um sorriso honesto, para logo a seguir, num minucioso orgulho, discutir amavelmente sobre a natureza da pintura, da literatura e dos objectos antigos. Os seus conhecimentos eram vastos, pelo menos na área em que Manuel se profissionalizara, e os seus interesses múltiplos. Fora um homem para quem a História externa, objectiva, autónoma impelira à participação. Traído, estivera preso. Não revelou as causas, confessou os efeitos: excluíra-se.

     - Uma etapa que já acabou num mundo que está para nascer.

     Manuel e Madalena suspeitavam de que Léo Verbist se envolvera em acções violentas. Sem ter a aparência de quem enfrenta mudas recriminações ou aquiescências momentâneas recomendadas pela discrição, o holandês disse-lhes:

     - A intolerância e a perseguição continuarão no mundo, porque o homem está marcado pela exacerbação da violência. Depois de épocas de permissividade, suceder-se-ão épocas repressivas, de tirania e de terror. Ciclicamente, sucessivamente. A perseguição, a intolerância, o desprezo pela condição humana estão cunhados no carácter do homem. E não são só as religiões, como o cristianismo e o islamismo, que pretendem deter verdades únicas e fomentam hostes de fanáticos. O terrorismo de Estado provoca, como reacção, outro tipo de terrorismo. Os pré-socráticos já disso falavam. No entanto, é preciso não desistir, é preciso manter a esperança. É preciso que haja sempre homens dispostos a resistir, a persistir, a tudo recomeçar. As cidades do mundo foram construídas de destroços e sobre destroços. O homem é um despojo de todos os destroços.

   Interrompeu-se e riu alto, talvez no vago sentimento de que, embora escutado em silêncio e com atenção, se precipitara numa situação falsa. Ofereceu-lhes bebida. Convidou Manuel a juntar-se-lhe na manhã seguinte, a fim de pescarem linguados à maneira setentrional. Era uma espécie de consolação concedida a si e ao casal português depois de recordar em voz alta valores, ideias e princípios a que já não permanecia fiel.

     Começara por invejar os pares felizes que via nas ruas, abraçados, aos beijos; era uma inveja inerte e ainda não fora atingido pelas mortificações do azedume; contraíra falsos hábitos de pudor e de timidez; a ostentação do amor irritava-o e, frequentemente, estivera à beira de cometer uma grande tolice, invectivando os jovens; retraíra-se, persuadido de que a sua pequena praça-forte estava agora vulnerável; à noite, da janela, observava as casas iluminadas da capital e também os prédios sem luz porque ninguém dorme profundamente; odiava as pessoas desconhecidas que nesses andares viviam e eram certamente felizes, mulheres novas, homens novos reclamando-se mutuamente, amando-se numa inteira disponibilidade; um ódio manso mas agitado por perturbações desordenadas; saíra; ia a bares procurar companhia e descobria-se cada vez mais isolado, sobretudo quando os outros partiam e regressavam às mulheres que os aguardavam pacientes ou iradas, porém mulheres, as mulheres deles; metia-se no carro, dava voltas e voltas pela cidade, parava no último bar aberto onde era conhecido e o serviam com afectada delicadeza; reprovava os costumes da época, a época era desdenhosa, implacável e insaciável; nos seus modestos delírios desejava fazer confidências, mas nem as raparigas dos bares lhe davam sequer o conforto de um sinal, uma pequena indicação apaziguadora; parecia-lhe que todos lhe viravam o rosto, por enfado ou desinteresse; suspeitava de que, quando finalmente obtinha um pouco de atenção, as pessoas se impacientavam com as suas histórias; ah!, Madalena, deverias ter feito um ligeiro esforço para que a vida tivesse sido mais suportável; porém, vivíamos entre silêncios e discussões intermináveis: vagas que nada explicavam e que nos atingiam, vítimas feridas e indefesas; estendidos ao lado um do outro, indiferentes aos corpos, deles desabituados, separados da atracção da pele, conscientes da inutilidade de qualquer gesto, mergulhávamos num sono sobressaltado; e quando chegou o inverno, aquele inverno, tudo se tornou ainda mais lento, ainda mais frio e ainda mais impenetrável; foi quando começaste a gemer com dores e eu a pensar que eram pesadelos delirantes; percebi que ambos estávamos à espera de quem já não virá.

     Os pequenos lagos brilhavam na alvorada. Verbist e Manuel avançavam com cuidado. Tinham bebido um pouco de aguardente de zimbro aquecida e comido broa de milho com toucinho. Distinguiam, à distância, insectos nocturnos que voltavam às suas nocas, e vultos de pesadas aves que se dissimulavam entre os tufos e os canaviais, pressagiando perigo. O ar era salgado e agreste e a brisa marítima arrastava consigo odores profundos. Respiravam com satisfação. Ouviam-se ruídos indistintos.

     O holandês fez-lhe um mudo sinal de paragem. Olhou em derredor, como se algo entre eles se tivesse interposto. O holandês tranquilizou-o e, sem se permitir qualquer explicação, despiu-se, ficou nu, correu pela escassa praia e mergulhou no mar. Manuel não o viu durante minutos. Depois, a cabeça dele surgiu, muito mais além, uma substância esquisita que se transformou num ponto negro até se diluir. As ondas eram altíssimas e Léo Verbist afastara-se tanto que Manuel ficou apreensivo. Voltou a vê-lo muito depois, no fluxo de uma onda. Gritou de contentamento e fez um gesto tranquilizador. Nadava com extrema perfeição e velozmente. Quando saiu da água correu em várias direcções com gestos grotescos, flectiu os braços e as pernas, tornou a correr e só a seguir se vestiu, com grandes exclamações de júbilo.

     Regressaram aos pequenos lagos. Aí, o holandês examinou atentamente a superfície das areias, três, quatro metros após o fio da água. Caminhava com precaução, estava descalço e quase não tocava com os pés na areia. Nenhum deles falava. A operação exigia atenção e silêncio. Decorreu muito tempo. Ia para dizer imprudentemente qualquer coisa mas Verbist fez-lhe um enérgico sinal com os dedos. Apontou para um certo sítio na areia: notavam-se minúsculas borbulhas que avançavam e paravam como corpos invisíveis ou feridas que palpitavam avidamente.

     De súbito saltou, pés juntos e todo o peso do corpo, sobre um desses grupos borbulhantes. Rápido, enfiou os dedos na areia, a mão enterrada quase até ao punho, escavou, abriu uma fenda e arrancou do interior das areias, preso entre as unhas do indicador e do polegar, um grande linguado. O linguado debatia-se, contraía o corpo, lutava contra aquela tenaz afiada que o cegara, contorcia-se, dilatava as guelras com desespero procurando o mar ou o lodo ou o subterrâneo húmido e mole por onde se aventurara em busca de alimentos. O holandês atirou o peixe à distância. Depois prosseguiu a estranha pescaria, rindo sob o efeito de um prazer adolescente, cada vez mais feliz. Só parou quando o sol começava a aquecer a areia: sete linguados jaziam, separados uns dos outros pelo impulso das projecções. Ainda contornou duas ou três rochas, procurando mexilhões, numa impaciência esperançada.

     Mais tarde arranjou o peixe, comeram-no junto ao estúdio, Madalena, Manuel, o senhor Inácio e a senhora Isilda. Rosália escusara-se, alegando ter de tratar da horta. Passados anos, Manuel não conseguia abstrair-se da cena, pensando que, apesar de estarem cinco pessoas juntas, aquela refeição lhe parecera solitária e triste, assinalada por obscuro desgosto.

     Foi sabendo do holandês: esparsas notícias. A vida, na capital, complicara-se-lhe, o negócio de antiguidades não ia bem porque, nessa época, submetido a emoções de posse, apaixonava-se por objectos de que se não desfazia, embora encontrasse compradores interessados. Só muito espaçadamente ia à aldeia. As suas relações com os vizinhos e amigos eram então passageiras: pagava o que tinha a pagar, cumpria os rituais das cortesias, regressava a Lisboa ao anoitecer. Durante muito tempo fora indulgente para com as afectadas capacidades de preconizar, por quase todos os Magalhães manifestadas, antes de descobrir que eles não amavam as ideias. Não sou mais do que um velho adolescente, pensara, a quem foi revelado que esta gente é cheia de má-consciência e habitada pela mentira.

     Um dia, porém, teve conhecimento de que, atingido por um cancro na garganta, Léo Verbist viajara para França e, em Villejuif, numa clínica especializada, haviam-lhe feito uma traqueotomia. Léo Verbist partira sem temor, rindo o mesmo riso largo, e talvez persuadido de qualquer solução agradavelmente imprevisível. Quando voltou à aldeia não falava. Decidira recusar a utilização de um aparelho fonador, cobria o buraco aberto no pescoço com um caprichoso colarinho de couro encastoado de estrelas de latão, exprimia-se por gestos.

     Continuou a fazer a mesma vida de sempre. Nadava com mais cautela, de costas, apesar de todas as prevenções que lhe faziam. Numa dessas ocasiões desapareceu no mar. Sabe-se lá porquê atirara-se da falésia e mergulhara, não voltando à superfície. “Foi uma retirada estratégica” - disse o senhor Inácio. - “Reparou que as pessoas se afastavam, talvez por medo de contágio ou repulsa, e isso apoquentou-o. Quanto a mim, ele tinha sempre um lugar entre nós. Mas foi uma retirada estratégica, lá isso foi.” A senhora Isilda comentava: “Valha-te Deus, homem! Que Deus te perdoe! Um homenzarrão daqueles não ligava certa mente a essas coisas. Aquilo foi o seguinte: ele tinha tanto o hábito de tomar banho no mar, em qualquer estação do ano, que se esqueceu de que tinha um buraco na garganta. A água entrou-lhe pelo buraco e ele morreu afogado, pobre homem!”

     O senhor Inácio revogava as afirmações da mulher com uma negação de enfado: “Desistiu. Quero eu dizer com isto que se matou. Cada vez bebia mais e cada vez nomeava mais a mulher que amara, Hildegard. Quem seria essa Hildegard? Nunca tive suficiente coragem para lhe perguntar. Era como entrar numa intimidade muito distante no tempo e, também, muitíssimo pessoal.”

     E a casa de Léo Verbist? E as suas pinturas e os seus objectos? Ninguém reclamara coisa alguma, as autoridades não se haviam interessado, e tudo estava quase como dantes, cheio de pó, de teias, de humidade e de mofo. Acedendo àquela parte da aldeia onde a antiga casa do holandês se erguia, Manuel para lá guiou os passos, demorando-se no interior. Lembrou-se de cenas familiares, das conversas, da atracção que Verbist exercia nas pessoas, da secura das suas esperanças. “Pode-se entrar na bondade; da maldade nunca se sai” - dizia, em voz ferida. - “Quem viveu a nossa época já a esqueceu e quem a não viveu não sente o que foi, embora possa vagamente saber do que se trata. Eis as celebrações do esquecimento. Até nos esquecemos do que significa ter um inimigo.” Havia no holandês uma mistura de coragem e de; inconsciência, de disciplina e de desordens. Mas não está longe do olhar antigo quando contempla o que o rodeia. Os quadros amontoavam-se, inacabados quase todos. As divisões denotavam um abandono ressequido e uma melancolia dispersa que o enterneciam. Deveria ter falado mais com ele, penetrar com delicada perseverança na sua história secreta, convidá-lo, talvez, a visitá-los em Lisboa.

     - Não te censures - disse em voz alta. Disse e estremeceu ligeiramente.

     Voltou a casa. Experimentava um certo mal-estar porque se não sentia à vontade com as evidências. Resolveu anotar os sentimentos acastelados, as ideias que o tinham percorrido, as emoções que sentira. Fê-lo, porém, sem convicção. Para que serviam aqueles apontamentos, senão...

    

     Mas a casa na aldeia era a sua liberdade e o seu cativeiro. Não podia levar consigo outra mulher, conduzi-la aos mesmos locais, nem viver as mesmas histórias nem assistir a idênticas peripécias. Propusera-se recomeçar, mas recomeçar quê? Tudo já foi. Para que a verdade se torne convincente é necessário mentir. Não tenho com quem falar. Perdi amigos, perdi a mulher, perdi a fé. Verbist era meu igual. As nossas histórias tinham-se cruzado no tempo e talvez no tempo houvéssemos alimentado análogas esperanças. Sei agora que a função histórica é imposta ao indivíduo pelo destino, e que muitos de nós viveram uma lenda declinante.

     Certo setembro, por altura das vindimas, ainda chegara a pensar com veemência em instalar-se na aldeia por duas ou três semanas, levando consigo uma mulher muito bem parecida com a qual se relacionara. Quando as coisas chegaram ao ponto da decisão final, a ideia surgiu-lhe inadequada. Uma precipitação imponderada, e irritante como uma profanação das suas memórias felizes e até dos seus rancores: sentimentos e emoções que só a ele e a Madalena pertenciam. Depois, pensou, a aldeia é uma lentíssima intriga, entretecida de perpétuos acrescentos. O aparecimento de outra mulher arrastaria de certeza presunções injuriosas para ela. Se a aldeia era capaz dos mais abertos afectos e das recepções mais acolhedoras também sabia perverter o que via ou julgava ver em ignomínias e em calúnias insuportáveis.

     Devia ter ido. No entanto devia ter ido. Chegava e dizia: “Esta é a mulher com quem vivo.” Ensaiou a frase várias vezes. Experimentou sorrisos. Nada resultou. Revia os rostos impassíveis ou falsamente deferentes dos outros, temia que lhe falassem na morte recente de Madalena ou que lhe dessem a entender que acontecimentos de tal natureza merecem um mínimo de consideração. Tinham desde sempre entendido como um facto a harmonia tácita entre os dois: o chamado casal perfeito, que se dá muitíssimo bem: generosidade espontânea e compreensão calculada de paciência e de discreta expansividade. As correntes de simpatia estabelecidas entre Madalena e os outros apenas relevavam de uma excepção: Rosália. Sem o exprimir nunca, ou abertamente deixar transparecer, Rosália suportava mal a presença de Madalena. Na expansão da sua vivacidade, na esfuziante correcção com que tratava as pessoas, na administração inteligente da cordialidade, Madalena obtinha os louvores e as atenções e, sem o saber, justificava uma prevalecente infelicidade em Rosália. Isilda e Inácio perceberam a situação. Quando estavam reunidos observavam-na aplicadamente, enquanto Manuel se contentava em cortejá-la com a sua melancolia. Rosto ausente, como tudo o que já nele habitava, e como tudo o que ele já era.

     Agora, homem só, tentava escapar a esses ritos formais dos convites para refeições. Nem sempre, por delicadeza, conseguia decliná-los, sob a alegação de que estava a fazer algo de urgente. Eram, de costume, jantares abundantes e prolongados, e a ordenação cortês recomendava que se bebesse em excesso. Levava consigo uma garrafa de uísque, bebida até à última gota depois dos vinhos e da aguardente de zimbro. Como não desejava tornar-se objecto dos sarcasmos da aldeia jamais revelara o segredo da pasta de gengibre. Resultado: embriagava-se sem defesa possível. Num desses voluptuosos jantares, o senhor Inácio referira-se a Rosália. Estava bêbado mas o seu olhar mantinha um brilho oblíquo e malicioso:

     - Santo Deus! Faz pena ver uma mulheraça como a minha Rosália, não acha senhor Manuel?, ainda sem homem. Também aqui os não há: foram todos para o estrangeiro. Mas faz pena, lá isso faz.

   Rosália atravessava a sala nesse momento e Manuel não duvidou de que ela ouvira o júbilo e o descontentamento simultâneos do pai. Colocou copos lavados na mesa e regressou à cozinha onde se encontrava a mãe, não sem reter os olhos em Manuel, que lhe surpreendeu um leve trejeito nos lábios e um quase imperceptível mas desdenhoso encolher de ombros. Ficou embaraçado e encaminhou a conversa para frivolidades.

     - Uma mulheraça, uma mulheraça - repetiu o senhor Inácio, contrariando a tentativa. Esticou os lábios, acenou vagarosamente com a cabeça e pareceu reconfortado com o uísque.

     As duas mulheres voltaram depois à sala e começaram a pôr ordem nas coisas. A noite estava espessa e quente. Sentaram-se num banco corrido, sob a trepadeira de enforcado, escutavam os ruídos dos bichos nocturnos, Manuel foi envolvido por agradável lassidão, Inácio dormitava.

     - Vamos, homem, que se faz tarde - chamou, muito depois, a senhora Isilda.

     Rosália estava por detrás da mãe, braços cruzados sobre o peito, num plano superior porque não descera os degraus, a sua silhueta meticulosamente definida em contraluz. Diz Rosália:

     - Depois de amanhã há festa lá em cima. já fomos faladas para dar uma ajuda na cozinha e nos arranjos. Disseram-lhe alguma coisa, pai?

     - Não me dás novidade nenhuma - responde Inácio, as palavras retardadas. - Vão juntar-se todos. Nunca prestam contas em público. Prestam sempre contas em privado, lá entre eles.

    

     A reunião familiar dos Magalhães demorou dois dias. Superiores às paixões e dissidências particulares erguiam-se os seus interesses. Automóveis estacionados no pátio de saibro, breves saídas e passeios curtos, conversações fúteis, sorrisos e gestos de circunstância, regresso à mansão para se voltar a falar gravemente. De todos, apenas não aparecera Mariano, o jornalista.

     Manuel lembrava-se de que o ausente era um repórter medíocre; não gostava de jornais mas não podia viver sem eles. Tinha o físico triste de um ponto de interrogação e era hábil em intrigas políticas. Usava pêra e bigode e quando falava atropelava as palavras. Apreciava artes marciais e orgulhava-se de nunca ter sido traído pelas instituições, cândida definição das mentiras ou das meias-verdades que escrevia. “Vocês sabem como é: os guerreiros Ninja cortavam os dedos quando falhavam e eu ainda tenho os dedos todos”, dizia.

     Certa noite, ao sair do Bar Snob, fora espancado sem clemência por alguém cuja identidade tentou ocultar com perseverança mas de resultado nulo. Publicara, na secção “Rostos” do semanário onde trabalhava, uma impostura em forma de discurso directo atribuindo-a a um antigo oficial da Armada. O antigo oficial da Armada, desdenhando a arqueologia de relações de que o jornalista se ufanava ser beneficiário, resolvera a murro o direito de resposta.

     Direito, aliás, habitualmente reduzido pelo semanário a meia dúzia de linhas sob o equívoco título de “Rectificações”.

     Todos adulavam Mafalda, com uma excepção única: Adelaide, segunda prima, estilista de modas, loira, ruiva ou morena consoante os caprichos cíclicos, que dissimulava a falta de harmonia das linhas corporais com vestidos, saias e blusas de cortes habilidosos e cores combinadas, e que se não dispensava de falar calão a preceito. O ex-pegador de touros, um gigante sedentário, quase vegetal, que atendia pelo inesperado nome de Titocas, não conseguia ocultar uma piedosa falta de entendimento por tudo quanto se passava em seu redor e costumava concordar com as resoluções dos outros acenando ambiguamente com a cabeça, após o que dizia duas ou três inapropriadas expressões tauromáquicas. Rudolfo, o publicitário, pederasta renitente, melómano apaixonado por Mozart, inteligente, culto e arteiro, recalcitrava com constância, impondo aos demais o registo da sua voz forte e uma obstinação empertigada. Entendia-se bem com Ernesto, corredor de ralis, sempre tenso, também apreciador de Mozart, e muito melhor com César João, dito Janecas, agente de import-export, suave de gesto, manso de fala, cuidadoso no vestir, o único abstémio de uma família de intensos e imoderados praticantes: um ser doentio e servil.

     Parece um cenáculo de apóstolos, pensa Manuel. “Antes que o galo cante, renegar-me-ás três vezes”, e sorri à lembrança de que as devoções falsas e as adulações cegas são o fermento das grandes traições. Enquanto Manuel assim pensa, a aldeia propende em recapitular o que no interior da mansão ocorre.

     - Aquilo é tudo política e negócios - resume o senhor Inácio.

     Sabe do que fala, não só pela experiência do seu passado como por aquilo que a mulher lhe revela quando regressa a casa com a filha. A política implica o exercício da vontade, os negócios exigem a conivência da política. Nem os negócios nem a política são contemplativos.

     - Alguma coisa corre mal em Lisboa - adianta o senhor Inácio. - Não é habitual haver reuniões destas. Só pelos santos ou pelos aniversários, e mesmo assim...

     Os demais manifestam opiniões variadas. Mas convergem na simpatia por Adelaide. A vivacidade da estilista cativa-os, a sua solicitude exuberante agrada-lhes, a sua maneira de falar lisonjeia-os, a sua desprendida camaradagem suprime neles o retraimento atávico. Adelaide era uma autoridade em considerar imprescindível o supérfluo mas nunca perdia de vista a equanimidade das hipóteses.

     - Aquilo é outra história - diz o senhor Inácio. Ergue-se da mesa da taberna como se tivesse feito uma afirmação inconveniente. Não é uma frase de retirada nem uma inconfidência arrependida: é um estratagema. Usa-o com astúcia quando deseja prender a atenção dos circunstantes.

     - Por detrás daquela alegria toda há um grande drama - acrescenta, decorridos minutos. - É tudo para enganar o parceiro; é tudo para se esquecer desse grande drama.

     Aguardam a revelação. Inácio não desvenda o segredo que sugere conhecer. Queda-se absorto; depois afirma:

     - E podem crer que não tenho medo das palavras.

     Afirmação presunçosa, pensa Manuel. As palavras metem medo especialmente quando agridem. Poucas vezes esquecemos uma palavra injuriosa, uma frase malévola. Um murro é menos eficaz do que uma palavra violenta. Passeia no espaço do andar térreo, que lhe parece uma amplidão. Organiza a sua presença material com elementos adventícios: ruídos difusos, sons de vozes, sussurros das árvores, luzes, ideias repentinas, fragmentos de sonhos eróticos, revê em imagens devolvidas mulheres que o atraíram ou com quem manteve relações fugazes. Sempre notara em que havia qualquer coisa de semelhante no temperamento de Adelaide e no de Madalena. Ambas escondiam algo que as confinava e sufocava: as suas pessoais exuberâncias eram dissimulações de insinuosos temores. Ambas, também, nunca tinham procurado as evidências mascaradas pelas próprias superstições. Um dia, Adelaide dissera-lhe:

     - Não tenho vida real.

     A frase poderia ter sido dita por Madalena. Adelaide acompanhara-o numa das suas deambulações pela falésia até à praia, era Fevereiro mas o dia estava tépido. Adelaide, mais efusiva do que o habitual, sentara-se numa Rocha, levantara as saias para sentir a brisa morna, inclinara a cabeça para trás, depois rira e, voltando-se para Manuel, perguntara:

     - Você não é feliz com a Madalena, pois não?

     Nem malícia nem inocência na pergunta. Manuel demorou o olhar pelas pernas, pelas coxas. Adelaide veio em seu auxílio com frases atenuantes:

     - Queres ver o teu corpo? Mata o teu porco. Aprendi isto com o senhor Inácio: diz que o interior do corpo humano é igual ao de um porco.

     Ergueu-se, a saia cobriu-lhe as pernas, acercou-se de Manuel. Manuel disse:

     - Eu e a Madalena não gostamos da vulgaridade.

     - Que quer isso dizer?

     - Estou a responder-lhe.

     - Não respondeu: contornou a pergunta. Aliás, desculpe!, isso não é da minha conta.

     - Não é, mas vou responder-lhe direito. Tentamos ser felizes. Por isso, temos dias.

     Subitamente grave, Adelaide fitou a linha distante do mar, procurando atardar-se para perder o indistinto medo que a transtornara e readquirir a alegria tranquilizadora, depois de ter sido absorvida por qualquer imagem intolerável. Falou, parecendo oferecer a Manuel a intimidade de um segredo, sem relegar a recordação longínqua de uma ausência outrora amada:

     - É estranho: as coisas parecem-me mais próximas do que antigamente. O que permanece na mesma é o cheiro forte das madeiras e do mar. Sabe, Manuel?, durante meses, dia após dia, noite após noite, fui preparando, com inflexível regularidade, a chegada daquele que não vinha, que não veio nunca. Houve ocasiões em que caminhei pelas ruas de Lisboa, entre a multidão, descobrindo pequenas coisas, coisas insignificantes, ocupando o tempo, frequentando locais na moda, o meu coração pulsava a um olhar mais obstinado, mas ele nunca voltou, e era sempre outro, desinteressante e oposto.

     - Quem era ele?

     - Ninguém. Como lhe disse, eu não tenho vida real.

     - Sempre que criamos qualquer coisa tornamo-nos alvo da rejeição; não esperemos bondade nem generosidade.

     Regressaram em silêncio à aldeia. Madalena aguardava-os e examinou-os com ostensiva curiosidade:

     - Estiveram a enganar-me?

     Adelaide, com secura:

     - Só amigos enganam amigos.

     Como atentara na seriedade brusca da resposta, abraçou-se a Madalena, rindo, para remediar ou dissipar qualquer confusão:

     - Vocês formam um belo par. Um par uno e indivisível. Gostam-se; gostam um do outro. E só devemos dar o que gostamos a quem gostamos.

     Começara a acreditar em horóscopos com a impaciência de um materialista que vê acumularem-se as coincidências, as provas e as semelhanças, antagonistas contundentes das suas já vacilantes convicções; supersticioso, somava mentalmente os números de páginas ocasionais do livro que estava a ler e fazia a prova dos noves, se o resultado fosse ímpar era azar, se fosse par era sorte; consultou um grafólogo; mandou deitar cartas a uma mulher que induzia e aconselhava amigos seus com sóbria veemência; e admirou-se quando certos acontecimentos ou episódios que o haviam afectado convergiam com a linguagem impassível das cartas; a insolência de um quiromante que ousara aventurar-se, com astúcias e hábeis interrogações, em aspectos íntimos da sua vida, exasperou-o a ponto de renegar a fraude em que crera sem reticências; mergulhara, de novo, no trabalho, interrompido pela aceitação cega do que lhe prediziam; mecanizado pelo hábito procurava refúgio na profissão, viajando pelo país em busca de objectos raros ou, então, mas isso sucedeu mais tarde, interessando-se pela sociobiologia ou pelos morosos textos de Jankelevitch sobre a morte; tentava assumir o seu destino, com ele se reconciliar, opondo ao curso de uma época quantitativa uma ética pessoalíssima desprovida de conteúdo histórico; aprendera que insurgir-se contra a fatalidade, rebelar-se contra as mudanças arrastadas como um vendaval pelas exigências dos mais jovens e pelas requisições implacáveis dos novos tempos seria reforçar a sua dolorosa indiferença; não se adaptava, porém, nem se abandonava às seduções vivamente recomendadas pelo instinto; as fugas para a aldeia, outrora por escassos períodos, desta vez por meses, considerava-as como um repouso incorporado na sua insuficiente reconciliação: não era evadir-se das ciladas e dos confrontos, talvez fosse a subtracção do dramático ao drama, um exorcismo em que coabitavam compromisso, teimosia e permanência, e o que o inspirava era essa particular beleza egoísta e suspensa nos anos, a aldeia, que mantinha uma altiva dignidade até na afectação desvanecida com que suportava o isolamento e as feridas da emigração; um retábulo de velhos que assistiam, entre intrigas, malevolências e inexprimíveis ressentimentos, à lenta desintegração do seu mundo; o ancestral

     Dava-se agora ao cuidado de esperar. E esperava o convite inevitável para o jantar também inevitável que se seguiria à longa reunião dos Magalhães. O recado foi-lhe transmitido pela senhora Isilda. Tocara-lhe no batente, ficara à soleira da porta, dissera o que tinha a dizer, Rosália mantivera-se à distância, na estrada, de perfil, sem o encarar. Achou-a com um aspecto soberbo e de novo sentiu-se atraído pelo corpo de Rosália, pelo seu rosto tranquilo, pelos braços fortes, tisnados; pelo porte.

     - Parece que ficou abalado pelo convite - disse a senhora Isilda.

     - Não. Nada disso; até o esperava: estava a pensar noutra coisa.

     - Entendo-o muito bem. É a primeira vez que vai sozinho, quero dizer: sem a menina Madalena a um jantar com os fidalgos.

     - Talvez seja isso; não sei bem, talvez.

     - Ficam-lhe muito bem esses sentimentos - disse Rosália num tom irónico que nem levemente ocultou.

     A mãe examinou-a com surpresa e repreensão. Tirou depois um lenço do bolso do avental, assoou-se com estrépito, saudou Manuel e empurrou a filha. Caminhavam falando e gesticulando quando Manuel fechou a porta. Preparou-se com displicência, vagarosamente. Como bebera uma boa porção de uísque mastigou a pasta de gengibre. Sentou-se a fumar, fazendo horas, o olhar fixo no crepúsculo imponente que se observava através da janela. A distância que separava a sua casa da mansão não era longa: decidira percorrê-la a pé. Foi quando ouviu o ruído de um carro e logo a voz de Adelaide:

     - Vim buscá-lo, seu eremita. Hoje vai ser uma noite bestial.

     Lareira, quadros, bibelôs, meiples, móveis de madeira-rica. Dois enormes gatos de vidro colocados lateralmente a uma porta forrada. Gatos autênticos movem-se livremente com lentíssima determinação. Tinham comido devagar: marisco, peixe grelhado, “tête-au-veau”; pratos largos com círculos doirados e azuis nos rebordos, talheres pesados, guardanapos de linho levemente gomados, pessoais. Vinhos tintos cálidos; brancos secos frios. Janecas bebia água; dissera, numa entoação fúnebre:

     - É uma boa água. Água filtrada, por isso é tão boa. É água do mar, filtrada. É muito leve e muito boa. Mas não mata a sede.

     Ninguém lhe prestara atenção. Parecia que todos desejavam mergulhar num passageiro esquecimento. Rudolfo começara a contar que em Lisboa fora inaugurado “um novo espaço para gente diferente, muito divertido, o Titocas havia de gostar, aparecem lá os mais badalados travestis”, riu baixinho, colocando a fina mão direita sobre os lábios. Adelaide murmurara:

   - Panasca.

     - Como? - perguntara Rudolfo.

     - Nada, nada. Apenas disse que estou à rasca.

     Diogo Gaspar de Magalhães erguera as sobrancelhas exprimindo reprovação:

     - Olhe as maneiras, Adelaide; olhe a gramática. Não fale calão. Detesto, como sabe. A nossa bela língua está cheia de ciladas, mas temos de nos precaver aprendendo as regras. As regras, Adelaide, as regras são essenciais, tanto na gramática como na vida. As regras são a ordem, o equilíbrio, o bom senso. A ordem da regra a opor-se ao caos. Como no cosmos, como no cosmos. Tudo é regra, graças a Deus.

     - Graças a Deus que Deus não é português - disse Adelaide a meia-voz. - E se aqui esteve fugiu a sete pés.

     - Que disse, Adelaide?

     Ouviam-no com sonolenta indiferença. Quando passaram para a sala dos gatos de vidro Mafalda dizia a Ernesto que “nos cantos nupciais siríacos, o noivo e a noiva são chamados rei e rainha”, e Janecas, num inglês incompreensível, recitava Shelley e Swinburne, a despropósito, para um Titocas espantadíssimo. Diogo, dando o braço a Manuel, perguntava-lhe por que motivo não tivera filhos. Manuel respondeu com evasivas. Diogo disse:

     - Mas ainda está muito a tempo.

     Titocas, afundado num meiple, comentou, rindo, a boca sem lábios muito aberta:

     - Ora, ora: o Manel já não tem idade para pegar de caras. Se calhar nem de cernelha.

     Diogo:

     - Filhos das minhas filhas meus netos são; filhos dos meus filhos serão ou não.

     Manuel (ironia neutra):

     - É espantoso o que o senhor sabe.

     Diogo (ajeitando a prótese dentária):

     - É uma das vantagens da velhice: lembramo-nos de coisas.

     Manuel:

     - Eu queria dizer “saber” e não “recordar”.

     Diogo:

     - Então veja lá se sabe esta, que é muito curiosa, muito curiosa: “Uma cancela são três anos; três cancelas é um cão; três cães é um cavalo; três cavalos é um homem; três homens é um leão; três leões é um corvo.” Excelente, hã? Olhe que aprendi isto na instrução primária: o jogo das idades. Agora não se aprende coisíssima nenhuma. Sai-se da instrução primária absolutamente a zero. A zero.

     Mafalda colocara um disco: Sonata n'o 10 para piano de Mozart, olhando, conivente, para Ernesto. Rudolfo servia uísque a Manuel. Manuel disse-lhe:

     - Você sabe que a Inquisição proibiu, no século XV para o XVI, o acorde da sétima diminuta, porque a sua dissonância era considerada criação do diabo?

     - Que horror!

     - E houve um músico, Martin Ruiz Gonçalves, que por ter tocado o acorde interdito foi açoitado em praça pública, marcado na nádega com ferro em brasa e depois queimado na Cruz dos Quatro Caminhos.

     - Arre! Até sinto um arrepio na espinha!

     Sebastian aproximara-se, colocara a mão no ombro de Manuel:

     - Como vai o nosso herói?

     - Nem sequer sou herói de mim mesmo.

     Rudolfo afastara-se para conversar com Mafalda. Ernesto escutava Mozart; Titocas dormitava no meiple; Diogo bebia licor magenta e Janecas falava ao ouvido de Adelaide que não tirava os olhos de Manuel. Sebastian disse, sorrindo amenamente:

     - Há um episódio, no “Livro dos Mortos Tibetano”, que relata a viagem luminosa, colorida e muito bela, de quarenta e nove dias, que uma alma cumpre antes de voltar a casa. Uma espécie de maravilhosa expiação.

     - E que é que isso tem a ver comigo?

     - Não sei bem. Talvez tenha. Vieste para a aldeia fugindo de quê?

     - Ora - riu Manuel. - Se calhar de criaturas chatas como tu.

     Passa devagar e discretamente para a sala da biblioteca. Examina uma das estantes: Frei Heitor Pinto, Amador Arrais, Frei Pantaleão de Aveiro; “Discursos e Notas Políticas”, de Salazar; “Memórias”, de Pedro Theotónio Pereira; “Salazar”, de Franco Nogueira; Joaquim Paço d'Arcos, António Manuel Couto Viana, Goulart Nogueira, Amândio César, António Corrêa de Oliveira. Lembra-se de uma quadra sarcástica, atribuída a um jornalista anarquista dos anos 30, que caracterizava a mansuetude estudada de António Corrêa de Oliveira:

    

                        “As mãos

                       pombinhas fizeram ninho.

                       És São Francisco de Assis

                       vestido à moda do Minho”.

    

     Afundou-se numa poltrona. Bebia com prazer o uísque de malte, aconchegava o copo nas mãos, discorria mentalmente, envolvido pela suavidade do local. O javali embalsamado lá estava a fitá-lo com persistência.

     Fuma com lentidão, circunda o olhar pelos armários pejados de objectos antigos: a genealogia acumulada do saber através de pedras, moedas, espadins, esculturas que são os vícios de outras solidões. Rastos e trajectos de muitas mãos que teceram os fios invisíveis da História construindo peças que outros arvoraram em cronologias. Mãos verdes. No Evangeliário de Lotário I, um códice admirável que possuíra durante anos até o vender por bom preço a um alemão cortês e culto, lera o seguinte, que copiara para um dos seus diários inúteis: “Ehéctal, ou Homem do Vento, dispunha de um dom soberbo entre os demais: sua mão direita era verde e em tudo quanto tocava se cumpria o nascimento e se multiplicava o crescimento.” Deu-se o caso de Ehéctal cair na ira de um deus desconhecido por se recusar a pousar num corpo chaguento e moribundo a mão verde e salvadora. O deus desconhecido secara-lhe a mão até mirrar, e a mão mirrara até se transformar em madeira ressequida, castanho-cinza e desprovida de poder mágico. O Homem do Vento dissolvera-se em si próprio, desencadeando uma tempestade de que o Evangeliário conservava pavorosa notícia.

     Posso aplicar a fábula a uma variedade de experiências, reflecte Manuel. Os olhos do javali estão cravados nele, o silêncio impõe-se com perturbadora insistência, dá pelo silêncio intimidante, vive nesse silêncio e nele mergulha, sentindo-se infinitamente seguro e invadido por leve torpor de bem-estar. Desperta com a reconfortante sensação de que alguém o vigia. Adelaide está sentada em sua frente; fuma; olha-o directamente nos olhos. Eis uma inesperada mulher deslumbrante que olha meigamente, sem o mínimo sinal de relutância, e ele sente que o coração dela bate talvez ao compasso das batidas do seu próprio coração.

     - Os outros? - pergunta Manuel.

     - Estão a ver vídeos. Creio que “O Comboio Apitou Três Vezes” ou o “Shane”, não sei bem - a voz de Adelaide estranhamente rouca. - Livros, vídeos, música e discórdia, é do que se vive nesta casa. Ninguém dorme com ninguém. E você?, esteve aqui sozinho, é claro.

     - Na companhia daquele - diz Manuel, indicando o retrato de Salazar.

     - Que também não dormia com ninguém.

     Experimentou uma ligeira sensação de embaraço. Adelaide fechara-se, aguardando certamente uma resposta ajustada ao que dissera, rosto interrogador, jogos de palavras, sugestões e alvitres. Voltou a falar, um brevíssimo tremular na voz:

     - Deixou de existir ternura em si, Manuel? Com a morte de Madalena morreu em si também o amor?

     Manuel ficou rígido: uma onda de calor invadiu-o. Indignava-o que alguém, fosse quem fosse e em que circunstâncias fossem, violasse com fria brutalidade os domínios privados dos seus sentimentos. O que as pessoas pensam, quando o dizem, sempre o resumem em meia dúzia de frases vulgares ou ásperas. Um afluxo de ideias adveio-lhe ao espírito; ia para responder rudemente; mais rudemente disse Adelaide:

     - Nunca suportei a Madalena, devo confessar-lhe.

     - Não estou a gostar da conversa. A imagem da Madalena está ainda muito presente em mim. Não houve nenhuma quebra de sequência na nossa vida. Entendemo-nos sempre bem.

     Adelaide não pareceu desconcertada. Talvez tivesse feito mal em considerar como simples divertimento ou brincadeira maliciosa a direcção do diálogo por si própria organizada. Bebera um pouco mais. O silêncio que emergira da desavença quebrou-o com um riso largo. Foi buscar outra bebida; regressou, ergueu o copo para o retrato de Salazar como se acabasse de dedicar-lhe a última homenagem, caiu pesadamente na poltrona, o copo soltou-se-lhe da mão e tombou no tapete sem se estilhaçar. Piscou os olhos repetidas vezes. Disse:

     - Nunca me entendi bem com ninguém. Isso só dá resultado quando conhecemos às cegas, perfeitamente, o corpo um do outro. Gostava de conhecer o meu corpo?

     - Gostava - disse Manuel. - Mas noutra ocasião.

   - Não há substituições. As pessoas são insubstituíveis. Mas há muito tempo que não me acontece isso, percebe?, isso, e não posso impedir-me de pensar que me fazia bem. Muito bem, mesmo.

     Soergueu-se; ajeitou-se espreguiçando-se na poltrona:

     - Há quem crie alternativas. O Sebastian, por exemplo, vê à sorrelfa filmes pornográficos. Penso que se masturba. Quando era miúdo tinha o hábito de se deitar com a Mafalda. A Mafalda contou-me. A princípio ficou surpreendida: ele encostava-se ao corpo dela, enroscava-se praticamente no corpo dela, abraçava-a, tocava-lhe devagar nos seios. Ela deixava-o tocar com emocionado desvelo; talvez também gostasse. Nisso, a Mafalda foi omissa. Certa noite, o Sebastian beijou-a nos lábios: estava mergulhado num abismo de felicidade, os dois já não sabiam bem o que faziam, Mafalda afagava-lhe a cabeça, mas depois caiu em si, expulsou-o da cama e gritou-lhe: “Sou a tua mãe!” Mas não é; muita gente sabe que Sebastian...

     - A verdade, Adelaide, é que nada tenho a ver com isso. E não é bom devolvermos ao presente certas memórias do passado.

     só ter saudades do futuro, como se dizia nos anos exultantes; mas era legítimo ter saudades do passado; há um tipo de saudade que consiste em correr à procura da nossa identidade, ou da nossa juventude?; não me debruçar demasiado nesta janela; calcular com a exactidão possível a expansão de emoções; delimitar os seus confins; és um homem a quem apetece ser um pouco amado, mas nem para isso és capaz de ter um gesto pioneiro; não queria ser assim: um homem reservado e rancoroso, cativo de tantos mitos e de tantas obsessões; sendo como era e não querendo assim ser, vivia na contradição de desejar esquecer e no desejo de conservar e de preservar tudo: mágoas, desgostos, deslealdades: a fuligem da vida; persistia em não apagar a consciência infeliz; essas ofensas, reavidas no tempo em imagens, sons e palavras, constituíam o seu pesadelo e a sua desordem; o ancestral antagonismo; um homem desintegrado que deixara de se habituar a si mesmo;

     - Mas o passado - diz Adelaide - não é apenas factos e datas. A própria História não é só isso.

     - Coisa alguma é apenas factos.

     E havia o homem sem boca e sem olhos, as pálpebras coladas, que não dispunha de palavras e que emitia sons cujo enigma não consegui nunca decifrar; sabes o que dizia esse homem sem boca e sem olhos?; sabes o que tentavam exprimir os sons?; isto: o homem é indigno do homem porque envilece e torna mesquinha a sua grandeza; era no Bairro dos Mortos que esse homem me perseguia; chamavam ao bairro o dos Mortos porque a toponímia das ruas relembrava ociosamente obscuros soldados tombados em obscuras guerras; e ninguém sabia explicar com exactidão porque é que se homenageava num aglomerado de casas de renda económica (aliás triste, aliás sem gente nas ruas, aliás sempre de janelas cerradas) tanta tropa e tanto morto desconhecido; tudo tropa; tudo morto; tudo desconhecido; um dia estavas a brincar muito bem, inventando histórias e falando em voz alta porque brincavas sozinho; sozinho como habitualmente; e comia cascas de laranja atiradas para as valetas; as valetas eram limpas, porém; mesmo as sarjetas eram sarjetas asseadas; coisa estranha: eu brincava e falava em voz alta e comia cascas de laranja, assim mesmo, quando me apareceu o homem sem boca e sem olhos; emitia sons; os sons parece que lhe saíam pelo nariz; o nariz dispunha de uma só cavidade; a cavidade no extremo do septo; quiseste fugir; o homem sem boca tranquilizou-me com um apaziguador gesto de mãos; reparaste que o homem sem boca tinha os dedos unidos por uma membrana; como os patos; saberias mais tarde que o homem sem boca e com membranas entre os dedos se divertia a caçar baratas para depois as domesticar; nunca disse a ninguém que travara conhecimento com esse homem; nunca disseste porquê?, sim, porquê?; acaso temias que o teu pai te castigasse?; nessa altura a tua mãe já tinha morrido não é assim?; não, a minha mãe estava a morrer; é curioso: como é que só agora e neste momento estas imagens sobrelevam toda a névoa do esquecimento e emergem nítidas; o homem sem boca e com mãos de pato passeou depois contigo por todas as ruas do Bairro dos Mortos; procurava o teu amparo; eu, já sem medo, aspirava à sua protecção; estava sozinho e aflito, o bairro era triste e vazio, a minha mãe morria vagarosamente, o meu pai trabalhava, o meu avô estava; onde estava o meu avô?; fora chamar de urgência o médico da Calçada; era um médico competente; mas era um médico caro e rogado; encontrámo-nos depois, vários dias; como que por acaso eu e o homem sem boca começámos a estimar-nos sem sobranceria um, sem desprimor o outro; posso chamar-lhe amigo?; o som e o assentimento de cabeça foram claros e radiantes; amanhã poderemos descer a Rua de Dom Vasco, ir até ao Campo das Salésias e ver o baixo-relevo do Pepe; talvez; deste-lhe a mão, não para o encaminhar, ele sabia muitíssimo bem o caminho, todos os caminhos; deste-lhe a mão porque eras o mais pequeno e os mais pequenos oferecem sempre a mão aos mais velhos; foram ao rio; o rio, então, era farto e indomável; foram comprar bolos; os bolos eram de nata e polvilhavam-nos com açúcar e com canela; depois, o homem sem boca e com mãos de pato deixou de aparecer; ao que disseram os mais antigos do Largo da Boa Hora tinham-no levado a um instituto médico para o investigar com minúcia; foi assim, foi; mas eu pressenti que algo ia acontecer; certa manhã senti-me atraído pelo carácter indefeso do homem sem boca; o homem sem boca e sem olhos movia a cabeça com nervosismo, instado por inescrutáveis curiosidades; que foi?; abanou negativamente com a cabeça; a cabeça pendeu-lhe tristemente; depois abriu os braços; abraçámo-nos e eu poisei a cabeça no seu peito; solucei; só mais tarde, muito depois desta cena, é que o levaram; levaram-no para sempre; a seguir.

     Tudo isto, esta gente, o jantar, esta gente que parece sentinelas de um tesouro arcaico e que se distrai numa tagarelice abandonada, tudo isto procura abreviar-se fazendo emergir, à superfície da memória, antigos dias e antigas imagens. Adelaide possui, apesar do álcool e da vida aparentemente solta, a consciência encantadora do provisório. Ainda acredita, vagamente embora, na preeminência dos destinos humanos; mas é com dificuldade que rasga caminho. Autopunição, cilícios, os salvo-condutos utilizados por certos católicos para a bem-aventurança. Faz-me lembrar aquela história do Papa Pio XII, mortalmente enfermo, que recusava analgésicos para conhecer as dores e os sofrimentos conhecidos da gente simples. No entanto, esta forma de cândido estoicismo não será a arrogante argumentação de uma pessoal superioridade e de uma suposta ascendência moral sobre os outros?

     - Não suportava a Madalena - repete Adelaide.

     - Já mo revelou, ainda há pouco - diz Manuel.

     Quer expulsar aquele olhar obsessivo, intenso, que reconhece desde os primeiros encontros; aquela soberba franqueza que sempre lhe pareceu um instrumento de apropriação e de agressão. Um metálico encanto que apesar de tudo o seduz.

     - Vocês entendiam-se bem na cama? - pergunta Adelaide.

     - A bebida está a agir contra nós - diz Manuel.

     Eis uma triste versão do culto da hipocrisia como uma das belas-artes. Acodem-me à lembrança os efeitos do álcool deliberadamente procurados por Juvenal Macedo, que se embebedava com impaciência para abrir o dique da sua enorme reserva de ódios. Tempos houve em que Juvenal Macedo deixava o coração governar a rota. Conhecera-o em uma daquelas reuniões de amigos da Madalena, numa noite tão chuvosa que a casa onde se encontravam mais parecia um camarote de recurso num mar de tempestade. Um homem baixo, de braços curtos, lábios finíssimos, pouco eloquente, sentado a um canto da sala a saborear com ironia as conversas tresmalhadas. Obtivera relativa fama como crítico marxista de cinema, mais tarde convertido ao pós-modernismo e hoje tolerado como um cínico articulista da direita da esquerda ou da esquerda da direita. Escrevera também alguns contos estimáveis e uma novela muito boa “Dúvida para Três”, que reeditava periodicamente, que fora adaptada ao teatro e ao cinema, que fora série na televisão. Chamavam-lhe o Chulo da Dúvida, porque nunca mais conseguira escrever algo que prolongasse a qualidade daquele texto.

     Mas quando conhecera Juvenal Macedo cativara-o a ironia amável desse homem que não cedia a ideias preconcebidas e que defendia o pudor artístico como primeiro valor moral. Com o tempo, o despeito ligara-se-lhe à sufocação física, a forma mais maligna de opressão, e o rosto tornara-se-lhe mau, quadrado e perverso, o olhar pérfido, e repelentes os métodos de intimidação. Cheio de raivas, de reticências e de evasivas quando a outros se referia, empenhava-se em conhecer os vícios secretos e os escondidos defeitos de escritores seus confrades, para depois a eles se referir com obstinação e agressões qualificadas. Deixara de excluir a frivolidade nas suas conversas e desenvolvia, agora, nos artigos para jornais um estilo permanente de contenda excessiva.

     Certa vez, Manuel fizera a Madalena um reparo desagradado sobre o já então modificado carácter de Juvenal. Como não frequentava a intimidade de escritores, sempre admitira como adquirida que a relação entre eles era, se não boa, pelo menos razoável e franca. A alteração no comportamento de Juvenal Macedo deu-lhe os indícios de um corpo colectivamente apodrecido. Farejara esse jogo de exclusões e de paixões indignas com surpresa, mas também com fadiga. Madalena rira-se, desculpara-os, chamara-lhe ingénuo, citara Claudel: “Le Diable n'est pas si large que Dieu; L'Enfer n'est pas si vaste que l'Amour”. O rosto ficara-lhe imóvel, por vacilantes segundos, depois acrescentara: “Sabes?, o Juvenal é um homem a quem o destino lançou mau-olhado.”

     Foi quando, uma noite, no Bar Copo de Dois, chamado por Juvenal que se encontrava só como de costume, e após um movimento de recuo, se sentara relutante à mesa do escritor. Juvenal, muito bebido, lamentou-se da solidão com uma espécie de espanto contrariado, mas a sua perversidade pressentia-se. Falou lamentosamente dos abandonos, reprimiu um soluço de ébrio e afirmou que possuía um precioso e absolutamente incomunicável passado.

     - Estou a naufragar, percebes?

     - Nada disso - tentou Manuel sossegá-lo.

     - Estou a naufragar. Não entendes que tudo isto vai voltar ao mesmo?

     Olhou em volta, pediu mais bebida, repreendeu o empregado que lhe não concedeu a mínima atenção, insultou inúmeras pessoas conhecidas, sempre em voz muito alta, e com a voz cada vez mais alta perguntou, dedo estendido:

     - Quem são estes merdas tão feios? Escritores? Os escritores, em Portugal, deixaram de ser escritores, são homens de negócios.

     Voltou-se para Manuel, abria e fechava os olhos, a cabeça movia-se descoordenada sobre os ombros, avançou com os braços curtos para o abraçar, Manuel ensaiava o lento prazer de o repelir ou de lhe manifestar repulsa pela sua baixeza e pusilanimidade.

     - Que tal te dás com a Madalena na cama? Já ouvi dizer que és impotente - disse Juvenal, a respiração pesada, piscando cada vez mais os olhos. - Sabes uma coisa? Não há homens impotentes; há é mulheres incompetentes.

     Manuel ergueu-se com extrema serenidade. Disse-lhe:

     - Já estás fora de jogo. Já estás fora de jogo há muito tempo.

     Instaurou-se um grande silêncio. Adelaide continuava a olhá-lo como se convocasse uma recordação obscena.

     - Você, Manuel, nunca lhe mentiu?

     - Nunca lhe contei a verdade.

     - Quando se perde alguém ou algo que se ama, só há um lado: não existe opção.

     - Devo dizer-lhe que o que sinto por Madalena baseia-se na dor - levara tempo a dar esta resposta, que seguira um labiríntico raciocínio até ao fundo das coisas.

     - Bastava ser afectuoso, amável e directo.

     - Não percebi.

     - Também não importa muito. É uma daquelas coisas que se dizem. Mas quanto de nós todos, que a conhecemos, morreu com ela?

     Mudou de conversa abruptamente. Dissipara-se-lhe o torpor alcoólico, e não resistia ao desejo de descobrir o contra-senso dos seus caprichos, falando diligentemente de modas, de viagens, de cenários, de cores. Erguera-se com elegância. Para não pisar os gatos por ali e acolá enroscados, percorrera com cuidado e leveza o espaço solene da biblioteca, colocara-se junto do porco-espinho dissecado:

     - Que raio de ideia essa, a de vir instalar-se nesta pasmaceira.

     - Quero poder descansar.

     - De uma vez por todas?

     - Estou numa espécie de exílio particular por mim próprio escolhido.

     - Desculpe aquele disparate de há pouco.

     - Que quer dizer com isso?

     - Nada. Às vezes cometo deslizes e faço disparates. Mas é superior a mim. Nas impressões de conjunto não consigo dominar-me e as palavras saem-me. Asseguro-lhe de que o não quis melindrar.

     - Claro. Isso está fora de questão.

     - Amigos como dantes?

     - Amigos como dantes.

     - De qualquer das formas, desculpe a insistência, a sua vinda para a aldeia, por um tempo indeterminado, não faz com que os seus negócios paralisem?

     - Ganharei em oxigénio o que perco em dinheiro.

     Ela riu:

   - O pânico do desespero quase total - olhou para as estantes, uma das mãos apoiada na cabeça do porco-espinho dissecado. - Aquele imbecil do Mariano!! Que pensa do Mariano?

     - Que raio de homem é ele para só trabalhar com mentiras? - disse Manuel.

   - Pronto, já respondeu. Mas aquele imbecil do Mariano pegou, um dia, num destes volumes, o “Breve Memorial de Pecados”, do Garcia de Resende, sabe?, e induziu o débil mental do Titocas na convicção de que se tratava de um livro pornográfico. E o mais giro é que ele próprio se convencera.

     - Parece que ouvi falar de mim.

     Titocas entrara, imediatamente seguido de Sebastian e dos outros. Disse Sebastian:

     - A mãe e o pai foram descansar.

     - Que tal os vídeos? - Adelaide voltou a sentar-se. - Amanhã vão-se todos embora não é?, todos menos eu, fico mais uns dias.

     - Mas não tinhas um trabalho urgente a fazer em Lisboa?

     Sebastian fez a pergunta, observou Manuel, expressão de súbito contemplativa. Rudolfo e Ernesto, recostados num sofá, entreolharam-se.

     - Não percebi nada dos vídeos - disse Titocas.

     - Quê? Nem d'O Comboio Apitou Três Vezes? - perguntou Adelaide.

     - Não vimos esse - disse Sebastian. - Estivemos a passar um excelente vídeo espanhol sobre a grande exposição de Velásquez, e um outro, “The Price of the Ticket”, de um tal Karen Thorsen, sobre a vida e obra e a morte de James Baldwin, aquele escritor negro norte-americano que viveu em Paris.

     - Uma grande chatice - comentou Titocas.

     - O homem de Neandertal expulso da árvore genealógica do ser humano - disse Rudolfo.

     Contempla a gravura de Sá Nogueira, mãos nas algibeiras das calças. As minhas noites são mais ricas do que os vossos dias. A mulher de rosto esbatido com a sua discreta emoção transmite-lhe a beleza sublime da limpidez de um destino. Fechei a porta da minha casa como se tivesse antecipadamente maquinado o meu desaparecimento, e agora tenho a impressão de que sou testemunha da minha própria ausência. A mulher de rosto esbatido não permanece encarcerada na moldura e a discreta emoção que manifesta é o domínio da vontade sobre a razão. Ensinaram-me a acreditar na obediência; aprendi quase tudo menos a adaptar-me à confrontação com as novas ideias. E tinha cedido a um absurdo reflexo que esquece o que é a lei, o direito, a liberdade, para somente obedecer à tribo e exaltá-la. Investi parte substancial da minha vida na aceitação e no elogio da indecência e deixei envolver-me numa espiral de megalomania: expus-me e aos meus defeitos. Calei as qualidades; mas mesmo o intransmissível será dito. Quando se dedicara ao negócio de antiguidades ainda estava possuído do misticismo da religião que escolhera. Estremeceu, retirou as mãos das algibeiras, passou-as pelo rosto como que a afugentar um sonho mau. Mas não quero ser como Juvenal Macedo para o qual Marx, ainda não há muito, era uma figura inoxidável, o profeta iluminado da consciência em expansão livre, e que, depois, passou à ambiguidade moral de não estar nem com o povo nem com o príncipe. Manuel desce o patamar para o andar térreo. Bossa-nova, João Gilberto: “O barquinho vai/ A tardinha cai”, serve-se de um uísque, acende um Camel, senta-se no cadeirão alto. O rosto crepuscular de um homem sobressaltado. Houve uma época em que tudo era mais verdade do que hoje, embora por vezes fôssemos tentados a decifrar mensagens. E era muito fácil dizer dos outros: eles estão mortos porque se não lembram; e nós queríamos sempre lembrar-nos porque não desejávamos nunca faltar à manifestação da nossa existência. Agora tudo aquilo lhe parece semelhante ao solene jantar dos Magalhães, “os fidalgos”, como gravemente dizem na aldeia. Também nós fomos sentinelas de um tesouro arcaico, e recorríamos às imagens e aos dias antigos como espaços de enunciações indiscutíveis.

  

     Acordou com a cabeça pesada e o corpo alquebrado. Aguentava cada vez menos o álcool porque bebia cada vez mais depressa, sem os vagares cuidadosos e os sábios intervalos requeridos pelos grandes praticantes. Para se beber em quantidades apreciáveis é preciso um bom físico e uma boa dose de consciência moral. Nada disso o afligia. Só muito raramente fora afectado por qualquer alteração química provocada pela excessiva ingestão de álcool. E repudiava em absoluto a ideia segundo a qual os grandes bebedores estão a fugir de alguma coisa ou desejam artificialmente perpetuar a juventude. Os incidentes que tivera, quando muito bebido, não eram restos atrofiados de azedumes nem de ressentimentos. E nunca se esquecia do que ocorrera na noite anterior. Pelo contrário: tudo se revestia de uma intensa claridade, e os episódios e os rostos devolviam-se-lhe em imagens nítidas. Divertia-se com ser um explorador da vertigem, organizando muito bem as pausas, bebendo lentamente pequenos goles, comendo sempre, voltava a beber pelo mesmo copo, poucas vezes mudava de bebida e quando o fazia calculava metodicamente o tempo decorrido entre uma e outra. Dispunha de uma sabedoria adquirida com a experiência e de um equilíbrio interior que o impediam de cometer qualquer desacato ou a mínima indelicadeza.

     Gostava de bares e houve tempo em que chegara a frequentar os mais sórdidos e os mais perigosos. Embora fossem locais de convivência ou de melancolia, os bares permitiam-lhe experimentar uma agradável sensação de vácuo, no qual mergulhava com a segurança de quem sabe sobrepor-se a qualquer percalço infeliz. Chegara a transportar amigos ou conhecidos em estado quase letárgico, depois de absorver idênticas doses sem perturbações tão acentuadas.

     Ocasiões havia em que encontrava Juvenal Macedo, então um activo impenitente, com o qual a conversa ainda se não diluíra em recalcitrantes antagonismos e cujo talento parecia incólume à ruína que se avizinhava sem disso ninguém adivinhar ou pressentir. A ironia cáustica do novelista não dissipava a clara certeza das suas convicções, nem contundia minimamente com uma ortodoxia constantemente invocada para o combate contra o que designava de “desigualdades afrontosas”, “injustiças sociais, “capitalismo desenfreado”. Quando Manuel formulava qualquer dúvida ou quando circunstâncias externas o deixavam mais crispado e propenso a judiciosas severidades, logo Juvenal acudia com uma frase repetitiva mas à qual emprestava a força de uma soberba zombaria:

     - Já tens essa idade e aprendeste tão pouco!

     O remoque ficava-se nisso. Discorria, depois, sobre outros assuntos, até que a bebida o fazia tropeçar nas frases, embrulhando-se em palavras imperceptíveis. E ria, ria muito. Manuel levara-o imensas vezes a casa, embora Juvenal insistisse em conduzir o carro. Ao outro dia, invariavelmente, telefonava-lhe:

     - Estava muito bêbado ontem, não estava? Cambaleava e tudo?

     Ria-se ao telefone, sem remorsos nem outras preocupações que não fossem as contidas nesta pergunta:

     - Depois das atribulações de ontem à noite não sei onde deixei o carro.

     Manuel indicava-lhe o sítio, recomendava-lhe precaução:

     - Uma noite destas, cheio de copos, ainda te estampas. Ou então roubam-te o carro.

     - Mas olha, diz-me cá: cometi alguma tropelia imperdoável?

     Espreguiça-se na cama, sente-se intumescido. Pela primeira vez, advém-lhe a ideia de que já nessa altura Juvenal Macedo começava a estar profundamente perturbado. Quando um bebedor dá indícios de que não está bem é quando bebe sem intervalos, muito rapidamente, não consegue parar, perdeu o gosto de apreciar a bebida, bebe por fúria, deseja atordoar-se, interiorizou um conflito, é um homem num período quase irracional colocado perante a apoquentação de que se não resolveu, há nele algo de inacabado.

     Ocorrem-lhe outras cenas fortuitas a que não atribuíra a importância que já possuíam, adicionadas por outras atitudes surpreendentes por equívocas, e cujo significado desculpara, na ocasião, a Juvenal, responsabilizando com ligeireza a imoderação no álcool.

     O lento declínio do novelista acompanhara a sua embriaguês permanente. Evitavam-no por enfadonho. Tornara-se insuportável pela fatuidade das suas maledicências e pela soma crescente dos seus rancores. Sabia-se de antemão o que ia dizer.

     - É um dom raro ver as coisas que os outros não vêem - insistia.

     Foi tudo há tanto tempo, e tudo é tão fugaz, tão perecível. Todas as coisas num pedestal de ludíbrios e de equívocos. Todas as pessoas menos disponíveis para a admissão das mais pequenas porções de compreensão e de solidariedade. Solidariedade, outra palavra do nosso arsenal e, afinal, armadilha de perversões. Outra palavra apropriada por quem nunca cedera o mais pequeno espaço à utopia. “A utopia é a sopa dos pobres”, costumava afirmar-lhe o avô, carbonário, republicano, que fora da intimidade de Gomes Leal, com quem bebera muita aguardente e ao qual não perdoara ter acabado católico de beatério. “Um homem que não sabia beber e acabou tolo”, dizia.

     O avô, já muito velho, mantinha um porte altivo e mostrava-se habitualmente jubiloso. Nunca denotara a menor preocupação com a velhice nem o mais pequeno sinal de futuras nostalgias. Era um homem suficientemente feliz para se impedir de fazer afirmações impetuosas: “Desconfia de um homem que não bebe ou de um homem que anda com ar grave”; parava um pouco, rematava: “Ambos escondem qualquer coisa que lhes vai lá dentro”. Ou então um trocadilho persistente: “O direito dos mais fracos tem um inimigo: a direita dos mais fortes.”

     Evocava a mulher, morta havia anos, com o reiterado orgulho de quem fala da trave-mestra de uma casa sólida. E brindava-lhe frequentemente a memória, pagando rodadas de copos nas tabernas. Pelo dia da santa onomástica, Conceição, nunca se esquecia de colocar uma rosa junto do retrato da morta. “Não é que eu acredite nestas tontices, mas a tua avó tinha uma grande veneração por esta santa, coisas lá entre elas as duas.” Este culto que o avô votava pela única mulher que verdadeiramente amara nunca deixara de comover Manuel. Assim como a solidão majestosa a que o velho se entregara, recusando com energia qualquer forma de dependência familiar. “Visitem-me quando quiserem. Mas nunca me tratem como a um inválido. Sei muito bem cuidar de mim.” Discreteava sobre a implantação da República, os dias gloriosos das barricadas, a exultação dos grandes comícios, o fervor dos tribunos, os bailes fora-de-portas que os operários organizavam. Ficava com o rosto em fogo, os olhos cintilavam. Manuel aconselhava-o a acalmar-se: já não tinha idade para enlear-se em emoções intensas. O avô sorria, pegava na garrafa e voltava a encher o copo: “Os velhos cavalos de guerra vão sempre atrás dos tambores.”

     Extraía da onça Virgínia fios de tabaco que enrolava habilmente na mortalha Zig-Zag, humedecia com a língua a parte gomada e fazia um cigarro espesso e perfeito. “Aquilo é que eram tempos. Os tempos dos grandes ideais. Já tínhamos construído a nossa vida e estávamos a construir a nossa pátria. Vocês, hoje, não prestam para nada. Que é feito dos ideais? Que é feito da utopia?”

     Falava da chegada a Lisboa de Gago Coutinho e Sacadura Cabral; das multidões que recebiam os heróis; do discurso de Leonardo Coimbra na varanda dos Paços do Concelho; repetia de cor as frases que mais o haviam empolgado: “Silêncio! Silêncio! Para que no meio desta praça se sinta o pulsar do coração de Portugal!” Perseguiam-no as imagens fulgurantes de um passado que nomeava com ostentação para as contrapor à opacidade da época em que envelhecia. “Já restam poucos, os de esse tempo”, rematava num momentâneo cansaço. Mas logo se regozijava: “Atrás de tempos, tempos virão. Vamos lá a um último copo para a sossega.”

     Recorda o avô, que morrera há muitos anos sem nunca ocultar o saldo de todas as contas de que se dizia devedor à República. Pouco antes de morrer saíra do leito onde a fadiga da velhice o prostrara. Entreabrira as janelas do quarto e observara detidamente as pessoas que caminhavam, o estandarte içado num dos torreões do quartel de Infantaria Um. Fez um gesto breve para um espaço vazio. Manuel tivera a impressão extraordinária de que o avô não fazia uma despedida definitiva a tudo quanto amava. Pressentira que o avô dizia um até breve, incitando o resto do mundo para um desafio formidável.

     Espreguiça-se de novo. Salta da cama com surpreendente ligeireza para quem, ainda há pouco, estava zonzo e dorido. Dirigiu-se para o espelho e examinou-se minuciosamente, virando o rosto de um lado para o outro. Esfrega as pálpebras inchadas. Apalpa o ventre. Faz flexões. O peito arde-lhe e a garganta é um tecido seco, agredido pelo fumo. Diz em voz alta:

     - Isto não inventei. Tudo isto aconteceu.

     E desejava esquecer as coisas para conseguir sobreviver; mas os homens são passageiros do presente, e todo o presente é imediatamente passado; passageiros do presente e gravitando no passado, do futuro nada sabem, embora lhes tivessem acenado com a esperança e alimentado um sonho desmedido; é aí que nasce o medo; do futuro já nada há; de concreto só existe o presente, porque até o passado é uma dúbia memória vista através de um fosco espelho retrovisor; temos muito para chorar; há lembranças intoleráveis que emergem nítidas à flor das águas tormentosas; mas Deus dá a chaga e a mezinha, ouvira dizer a uma mulher da aldeia; fora apanhado no turbilhão das suas emoções, dos seus sonhos; da sua época e da sua solidão; sem grandeza não há paixão possível, recorda o avô, e os ideais e a utopia não mudam consoante as gerações; ou mudam?; nunca fora feliz; nunca fora inteiramente livre; os portugueses vivem num crisol de inveja, despeito e ódio; absurdos e anacrónicos desencontraram-se com a História e a História não esperou por eles; a repressão ideológica, a perseguição à ciência, o obscurantismo cultural, duraram séculos e geraram um povo que possui a volúpia do mesquinho na mesquinhez; resignados e infelizes não perdoam, e fecundam uma inferioridade que os incita à indiferença ou ao rancor; é um povo herdeiro do mal, basta ler o João de Barros das “Décadas,” ou os relatos trágico-marítimos; assassina por uma partilha duvidosa de bens ou por um regueiro de água que, no seu entender, foi-lhe abusivamente desviado; emigra e faz um leito de nações, porém é incapaz de promover o seu destino colectivo; não representa: enuncia; não realiza: deseja; a decisão mais judiciosa que deveria tomar era desaparecer, fundir-se na angústia para procurar conhecer-se; tudo lhe é inalcançável, tudo lhe está distante e turvo; de longe em longe experimenta uma sensação de euforia, passageira porém; logo se dilui na inveja, logo se veste de uma odiosa melancolia; e passeia lentamente pelo promontório calcário; e vê à distância as cores amarelo-torrado dos grandes arrozais; e os dias são líquidos, amenos e acolhedores; passeia e o passeio é uma dissimulação reduzida ao esboço de um falso esquecimento; daqui vê-se o que em sítio algum se vê: o equilíbrio da beleza não foi ainda punido; mas cada um atribui a tudo a sua moral reservada; dizer-se: há muitas coisas sagradas no mundo é uma intenção que se esgota na resposta: mas nada há mais sagrado do que o mundo; pára um pouco; senta-se no chão, a cabeça pousada sobre os braços, os braços apoiados nos joelhos; e sente-se expressamente autorizado a ser a voz de todos os silêncios; nada há mais belo do que sentir a afinidade profunda com esta terra que detesto mas da qual não consigo ou não sei separar-me; é um momentâneo reduto, um instante de apaziguamento, como quando o medo se lhe manifestava, veios pulsantes de medo, e se agarrava ao corpo de Madalena, no corpo de Madalena se envolvia, nele se escondia, nele se sentia seguro e protegido, afastado e preservado de todos os perigos, removidas todas as subterrâneas ameaças; Madalena aconchegava-o como a um náufrago, acariciava-lhe a cabeça; de Madalena emanava um calor oferente, adormecia sossegado; havia uma alameda ladeada de salgueiros; o pavimento fora de saibro e, agora, era um caminho fofo, os pés enterravam-se nas inúmeras camadas de folhas e de ervas secas; a alameda conduzia aos restos do que fora uma abastada quinta; a seguir às ruínas havia um cômoro e mais adiante um pequeno deserto de puas e cardos, estevas, urtigas e urze; ali se perdia a voz do mar; quando o tempo estava ruim nuvens pesadas ocultavam quase tudo e tudo parecia amolecido; a esse mar de nuvens chamavam o Mar do Inglês; dera-se o caso de um inglês, séculos atrás, ter ido parar àqueles locais onde a morte surge como uma anunciação difusa; o inglês, certamente um inglês abstruso e suficientemente tolo para confundir as coisas mais evidentes, tomara as nuvens por mar; sem medir os resultados de um instantâneo impulso atirou-se de cabeça, do cômoro, para as nuvens; a história era contada nas tabernas, entre as famílias, de geração para geração, e rematava com um epílogo que se alterava consoante a imaginação das pessoas: o inglês fora tragado, o inglês volatilizara-se, o inglês fora arrebatado pelas nuvens e com elas voara; corpo de inglês, esse, nunca mais foi visto; que raio de atracção levara o inglês tolo a tal região do país, isso nunca ninguém conseguiu explicar com clareza; e as mães da aldeia, pelos anos fora, quando queriam intimidar os filhos ou impor-lhes uma deliberação que eles recusavam, ameaçavam levá-los ao Mar do Inglês; caminha pela alameda; gosta destes passeios solitários para repelir o desgosto de si mesmo; percorre as ruínas, divisa um pássaro recolhido, uma colónia de formigas enormes agita-se das tocas para o exterior, do exterior para as tocas, duas filas cerradas e incansáveis; o cheiro é forte e enjoativo; é um cheiro a mofo e a verde podre, certas cores possuem cheiro; atinge o cômoro, volta-se e revê a quinta arruinada, o musgo e os fetos a invadi-la; enternece-se com a ideia de que viveu ali gente; que será feito dessa gente, dos descendentes?; a quinta parece envolvida em luto, repousada na sua destruição, ou um sonho incompleto; observa as nuvens, o Mar do Inglês, a lenta decomposição da névoa, os vapores que provêm dos pântanos, para além da charneca e mesmo junto à parte setentrional da falésia; a paisagem torna-se mórbida, porém agrada-lhe estar ali, nessa região de sombras assíduas que nunca se deixou vencer pelo tempo e que contém um extraordinário halo de eternidade; estremece; ouviu um ruído, talvez um suspiro de desânimo; virou a cabeça para a direita, de onde proviera esse quase indistinto sinal de vida; das brumas surge Sebastian.

     - Não é muito sensato andares por aqui - disse Sebastian, com uma palidez mortal nas faces. - Podes perder-te.

     - Por que temos de agir sempre com sensatez?

     - Há milhões de coisas que a razão não entende e que os olhos não descortinam.

     - Conheço muito bem esta região - disse Manuel.

     - Andas à procura de alguma coisa?

     Manuel riu:

     - Todos nós andamos à procura. Andamos toda a vida à procura de qualquer coisa: de glória, de dinheiro, de afecto...

     - De amor...

     - ...ou de Poder.

     - Esta paisagem também te atrai?

     - Sebastian, Sebastião, o que saiu das brumas - diz Manuel; e afasta-se um pouco.

     - Mas o outro nunca reapareceu numa manhã de nevoeiro.

     - É isso. Apesar de todas as contrariedades, ou se calhar por isso mesmo, sempre os portugueses viveram de utopias e de mitos - diz Manuel. - O Antero, o Antero escreveu mais ou menos isto: que não houve povo como o nosso que tivesse absorvido tantos tesouros e ficasse ao mesmo tempo tão pobre.

     - Dizes “os portugueses” como se falasses de outro povo.

     - Essa questão deixou de me interessar. Nem aos portugueses ela interessa, quanto mais a mim, que vim cá só para ver o futebol.

     - Nunca te atrevas a falar assim diante do meu pai!

     - Porquê? Se o teu pai só exprime curiosidade pelas evidências arqueológicas, queres tema melhor do que Portugal para com ele conversar?

     - O meu pai é um nacionalista. E um nacionalista grave.

     - Deu nisso. Porque antigamente era um grande gozão. Se calhar ainda anda a gozar connosco sem darmos por isso.

     Diogo Gaspar de Magalhães fora famoso nos bordéis de Lisboa e de Setúbal não só pela frequência com que partilhava a intimidade em bacanais selectivas, envolvendo homens e mulheres, como pelas partidas que pregava. Durante certo período adquiriu o hábito de entrar em restaurantes, particularmente os da baixa pombalina, instalar-se numa mesa e aguardar. Até que o empregado aparecia, ementa na mão:

     - V. Exa. deseja?

     - Antes de tudo um copo com água.

     - Sim, senhor. Mas não deseja passar os olhos pela ementazinha?

     - Não. Antes de tudo quero um copo com água.

     - Claro - volvia o empregado. - Mas enquanto eu vou e venho, V. Exa. pode talvez escolher o que deseja.

     Enfadado, afastava o empregado com um gesto:

     - Nada disso. Antes de tudo quero um copo com água.

     Traziam-lhe o copo com água. O empregado, de rosto fechado, aguardava. Diogo, com extremo cuidado, metia os polegares na boca e extraía a dentadura posterior; depois, com os indicadores, a inferior. Limpava as próteses com o guardanapo, enfiava-as no copo com água e só a seguir é que se decidia. Sem dentes, o seu pedido era quase imperceptível, e ele acentuava a cena grotesca quando notava que a solicitude do empregado não se alterava. Os circunstantes voltavam rosto, enjoados e espantados. O despropósito deixou de sortir efeito quando, certa noite, um galego, já advertido da façanha, colocou um penico na mesa:

     - Ponha aqui os seus dentinhos, senhor dom Diogo.

     Sebastian ria. Manuel encolheu os ombros:

     - E nunca ninguém lhe deu uma pêra bem dada!

     - Foi um homem muito duro - diz Sebastian. - Um homem que necessitava da autoridade e da ordem, embora em ambas não acreditasse verdadeiramente. Ficou mais brando quando deixou a vida de boémio e se recolheu a...

     - Ficou mais brando porque se gastou muito depressa. Envelheceu antes de tempo. Mas a verdade é que ainda hoje acredita numa ordem cíclica no mundo - diz Manuel. - Vê tu como sabe impor, pela indiferença ou pelo desdém uma espécie muito pessoal de autoridade. E aquela história de Andrea Biggio marcou-o para sempre.

     Andrea Biggio surgira em Lisboa imediatamente a seguir à Segunda Guerra. Andava de capote largo de veludo e na arça da lapela do casaco ostentava uma flor que todos os dias substituía. O seu passado era um mistério. O dinheiro de que dispunha, aparentemente inesgotável. Instalara-se no Estoril, refúgio de reis destronados e de déspotas em vilegiatura, jogava no Casino, imiscuíra-se nos meios da política portuguesa, era recebido por Umberto de Sabóia, tinha lugar garantido nas festas onde o beija-mão e o incensário conservavam uma suave e nostálgica atmosfera de outra época. De natureza alegre e temperamento tumultuoso, cedo fora requestado pelo grupo de Diogo, com quem fizera uma amizade fundada em bebedeiras e em cenas de pancadaria ignoradas pelos jornais ou cuidadosamente cortadas pela censura.

     Andrea Biggio, por vezes, desaparecia durante semanas. Desculpava-se, ao reaparecer, explicando que tivera de fazer uns trabalhos, cuja origem era tão misteriosa quanto duvidosos os fins. Visto, amiúde, em jantares ou em ceias, com ministros ou outras altas personagens da hierarquia do Estado, refugiava-se em evasivas mas não conseguia dissimular um turvo mal-estar, inflectindo a conversa para trivialidades. Voltava o grupo às grandes noites. Até que Andrea Biggio caiu enfermo. O que se presumia ser um vírus persistente transformou-se numa doença incurável. Foram meses de sofrimento. Rodeado dos amigos, seco, descarnado, murcho, murmurara com voz flébil:

     - Estava-me mesmo a apetecer um uísque.

     As visitas ficaram embaraçadas com o estranho desejo. E mais o ficaram quando Andrea Biggio rematou:

     - É uma felicidade estar com esta doença maravilhosa. Faz-me ver de perto as coisas e, sendo estrangeiro, mais emocionado fico e mais admiração tenho pela hospitalidade portuguesa. Que belos amigos!

     Soluçou. Pareceu a todos que dormitava, o braço direito inerte sobre o ventre, o esquerdo coberto pelos lençóis. Aguardaram. Finalmente deram-se conta de que Andrea Biggio desistira. Decidiram comemorar a morte do italiano no Negresco, um bar-restaurante muito em voga, perto dos Restauradores. O barman, Gaston, fora resistente em França, durante a Ocupação. Detestava, por igual, pederastas, fascistas, desordeiros e aristocratas. Rodeava-o o respeito pela eficiência do seu profissionalismo e pela distanciada atenção que concedia aos clientes, mesmo que muitos não fossem do seu agrado.

     Serviu primeiro uísque, depois coqueteiles, em doses substanciais. Os amigos de Andrea quase não falaram entre si: beberam encarniçadamente sem sucumbir. Já manhã, findaram a velada com conhaques. Diogo preveniu-se com uma garrafa de uísque, despediu-se de Gaston que correspondeu à cortesia com um leve inclinar de cabeça, e encaminharam-se todos para a capela mortuária, de onde o enterro sairia.

     As exéquias celebraram-se perante um numeroso conjunto de pessoas. Caixão aberto, Andrea Biggio parecia ser apanhado em flagrante delito: rosto assustado, pele arrepanhada de medo, testa franzida. Quando a liturgia ficou completada, e mão piedosa se preparava para encerrar o caixão, Diogo aproximou-se, tirou a rolha da garrafa de uísque e despejou o conteúdo na face do morto. Ante o pasmo geral e a indignação de muitos exclamou:

     - Querido amigo, seja feita a tua última vontade!

     Foi empurrado para a rua, enquanto algumas mulheres se benziam. A fim de evitar dissabores não acompanharam o corpo ao cemitério. Continuaram a beber. As secções de necrologia dos jornais não relataram o incidente. Porém “Novidades”, matutino do Patriarcado; “A Voz”, jornal monárquico e católico; e “Diário da Manhã”, porta-voz da União Nacional, o partido único, publicaram graves editoriais, atormentados pela profanação e apoquentados pela heresia. Alguns dias depois, Diogo recebeu um volumoso embrulho. No interior, a capa de veludo que Andrea lhe legara. Emocionou-se com a lembrança; e reviu o rosto do amigo, no caixão aberto. Porém, a tétrica imagem não lhe devolvia o rosto alterado e em pré-decomposição; nada disso. Até adivinhou uma cúmplice piscadela de olho, sob o arco das sobrancelhas espessas.

     Chegara-lhe mais tarde aos ouvidos que Andrea Biggio ensinava russo a agentes da polícia política, e que a cena do derramamento de uísque na cara do estimável defunto fora considerada uma irreverência inconcebível e uma afronta sem perdão. Engrenando os factos, Diogo concluiu que os severos editoriais publicados nos três matutinos haviam sido sóbrias admoestações do Poder. De resto, os amigos noctívagos abandonavam-no secamente. Esta verificação coincidiu com a perturbadora descoberta de que estava quase impotente.

     Resolveu instalar-se na aldeia e consagrar-se a provas de paciência, que consistiam em professar a leitura, recolher-se à meditação e pôr mais regra na jorna dos trabalhadores. Mafalda recebeu-o com benevolência e inquietação. Habituara-se à ausência do marido e dedicara-se por inteiro a Sebastian, aplicada em educar-lhe a carne e o espírito nas virtudes teologais e na reza como expiação. Diogo, a princípio, quase ignorava Sebastian com soberba. Não resistira, porém, ao terno encanto do rapaz, à suavidade das suas maneiras, e ao cumprimento da promessa feita ao irmão no leito de morte. Com o correr dos anos até lhe desculpara as bebedeiras, talvez recordando-se dos seus tempos, embora não negligenciasse uma advertência mais viva quando Sebastian se quedava num dos seus torpores ou não dominava a incontinência urinária.

     - Vocês andam todos enganados. De tolo o rapaz não tem nada - dizia. - Mija-se mas isso ainda é o menos. Do que ele precisa é de mulher. Mas esta casa parece um claustro.

     - Gosto muito de ti - Manuel põe a mão no ombro de Sebastian, dá-lhe palmadas amigáveis.

     Sebastian sorri. Traça com o pé um círculo na terra, sorri outra vez, percebe-se que não relega as recordações e que nada receia. Diz:

     - Gosto muito de falar contigo. És meu amigo, não és?

     - Claro que sou teu amigo.

     Experimenta uma ligeira sensação de embaraço. Não gosta de confissões deste género. Confia aos diários os seus desígnios; mas, nesses desabafos reservados, também não revela tudo: tende mais para a presença de enigmas latentes. Pequenas anotações, reproduções de episódios, o contorno do carácter de este ou de aquele, reflexões: um diário acautelado, vigiado, brunido.

     - Vamos beber um copo?

     Não contradiz nem confirma o convite de Sebastian. Vai com ele.

     Deseja ver Rosália.

     - Sabes?, nós julgamos que somos livres quando a morte nos afasta de alguém cuja presença se tinha tornado demasiado pesada ou opressiva. Mas é outro nada que nos está reservado, quando ficamos. E então talvez percebamos que estamos condenados a não dispor de palavras próprias. Todas as palavras já foram ditas, e o que repetimos não é mais do que aspirações anteriormente formuladas. Mas não devemos ocultar o nosso passado. O nosso passado foi construído por um sonho grandioso entre os demais. Chegámos aditivamente ao conhecimento da tragédia por dolorosas aquiescências, através de passivas cumplicidades e de conivências desconcertantes. O sonho era desmedido, repito. E o nosso passado esplêndido. Não o vamos esquecer. Vamos transcendê-lo sem remorsos. Estamos lá. Não todos: os melhores de nós. Os que suportaram tudo com benévolo comedimento e com serena coragem. Nada houve de superficial no terno humanismo que defendemos, sem exigência e sem transigência. A nossa pedra de armas estava à entrada do nosso coração. Ah!, o que lamentamos, ainda hoje, entre os escombros, são os nossos mortos. Há homens cuja natureza não pertence a nenhuma época, é de todas pelo seu singelo amor à liberdade: outro sonho desmedido. E todos os sonhos envolvem riscos e impelem a erros às vezes desnecessários. Olhas assim para mim porquê? Essa pureza árida consente ou exprime qualquer forma de julgamento? Fomos derrotados, e então? Recomecemos, talvez sem o alvoroço inicial, talvez com uma tristeza sem indulgência, mas ninguém nem nada nos obriga a renunciar à quimera, à utopia. O que me fatiga é a adopção de outras alegorias. O que me deprime é a tentativa que se faz para anestesiar as sucessivas experiências de cada um e de todos. Aconteceu, pronto. Há uma frase de Santo Agostinho que introduz nos homens o sentido da festa: “A alma sente mais alegria em encontrar ou reencontrar aquilo que ela ama do que em conservá-lo constantemente.” Aplica-se à quimera, à esperança, como ao amor ou à amizade. Sorris, agora, mas o teu sorriso é mesquinho porque presumes que desejo ser agradável assumindo as responsabilidades e as culpas. Agora sei que nem a morte consegue separar tudo, assim como a vida poucas coisas desvenda. Temos nós de as descobrir. Entretanto envelhecemos; quando aprendemos algo, quando julgamos ter adquirido o conhecimento bastante para sopesar a nossa experiência comparando-a com a dos outros, já fomos tomados de sombria indiferença, já fomos castigados pela melancolia. Mas escuta: as vozes recomeçam, elas também. Provêm lá do fundo e não se mascaram de vazio. Não são vozes de lamento nem impelidas pela brusquidão. Provêm de uma noite solícita.

     E há uma pequena luz a

     Que vemos agora?

     O bar com divisórias de madeira, cadeiras confortáveis, mesas largas, pesadas e redondas (imitação dos “pubs” ingleses e irlandeses) do Albergue dos Quatro Cavalos. O Albergue dos Quatro Cavalos é uma construção sólida e um empreendimento rendoso. O primeiro proprietário foi um inglês ponderado, que viu na beleza do local o sítio exacto para reproduzir uma dessas acolhedoras estalagens para viajantes que abundam em Inglaterra e na Irlanda. Noutros tempos, uma imensa coutada atraía caçadores nacionais e estrangeiros: os preços por peça abatida só se tornavam comportáveis para gente com dinheiro. E o dono do Albergue facturava a primor. No verão recebia excursões de estrangeiros velhos e reformados, que utilizavam voos especiais e procuravam revigorar-se no clima favorável às suas bronquites e ameno para os seus reumatismos. O negócio começou a decair. O inglês ponderado trespassou a casa a um antigo emigrante, que aliciou outra clientela com uma cozinha admirável, uma excelente garrafeira e uma cuidadosa gestão orientada para todas as estações do ano. O antigo emigrante inverteu a aparente decadência do Albergue e começou a fazer fortuna. Admitia casais que desejavam uma aventura fugaz, ao contrário do antigo proprietário, exigente na apresentação de documentos legais e de registos assinados a preceito. A Albergaria dos Quatro Cavalos fora cunstruída na clareira de um bosque, a cerca de três quilómetros da estrada nacional e a vinte da aldeia. Para se lá chegar era necessário percorrer um caminho de paralelepípedos bordejado de faias.

     Que vemos agora?

     Adelaide, que folheia uma revista de modas. Está a um canto: sem ser imediatamente localizada pode observar quem entra e quem sai. Na última hora não entrou nem saiu ninguém. Detém-se numa das páginas da revista, bebe maquinalmente um pouco de Cuba Libre. Por detrás do balcão, o empregado lê “‘A Bola”‘. De quando em quando ergue os olhos, fita sem interesse de maior a cliente solitária, observa-lhe as pernas cruzadas, muda a atenção da leitura para outra coluna do jornal.

     Adelaide andou a manhã à procura de Manuel. Foi dar um passeio, diziam-lhe, sem esclarecer aonde porque o não sabiam. Um daqueles passeios que ele costuma fazer sem direcção; por aí. Recebera uma carta de Mariana dando-lhe conta dos motivos por que não pudera deslocar-se à aldeia, pormenor que a deixara indiferente. Mas a carta continha um pedido: que Adelaide intercedesse junto de Diogo para este aceder a um empréstimo de dinheiro. Diogo tomara conhecimento do pedido e murmurara: “Cá por esta banda estás bem servido. E mergulhara nos graves códices e nos pensamentos atrabiliários. Adelaide tencionava permanecer na aldeia o tempo necessário para recompor-se das feridas de uma ligação pouco amável. Iludira uns e outros, ostentando a falsa imagem de uma solidão feliz. Queria agora confessar a Manuel que estava confusa e dolorida e que a sua exuberância e certas frases alimentadas por uma fogosa independência de espírito mais não eram do que amargas dissimulações.

     Sentia-se muito melhor desde que os outros haviam regressado a Lisboa. Claro que as veementes expressões do seu temperamento reduziam-lhe, ainda mais, o núcleo já escasso de afeições. Dizia na cara das pessoas o que pensava delas, agitava como troféus os êxitos que acumulava, inculcava nos que mal a conheciam a ideia infeliz de um ser desagradável e frívolo. Carregava esse peso com secreta mágoa; mas nada fazia para desfazer os equívocos. Como se os seus caminhos divergissem em absoluto dos caminhos de todos os outros.

     “Tem muito mau feitio” - conhecia a definição e reconhecia-a com contrariedade. “Para se ter mau feitio é preciso dispor de dinheiro ou de poder”, dissera-lhe certo pintor, perseguido por idêntica fama. Durante anos, o pintor roera as unhas até ao sabugo, origem de piadas inclementes. Em tempos recuados envolvera-se fugazmente em política, cultivava com impudor esse acontecimento passageiro e, beneficiando do facto de partilhar o leito com uma mulher rica, fora a Londres para se submeter a uma aplicação de unhas postiças. O episódio estivera na base de devastadora série de anedotas obscenas, que mais reforçara o péssimo carácter do alvejado.

     Esforçando-se embora por manter a desfavorável opinião dos outros, Adelaide concluíra que essa marca irremodelável pela permanência fora a defesa concebida pela sua solidão. Em casa falava em voz alta com os objectos ou os utensílios de que se servia. Ao frigorífico chamava Friozinho; ao fogão, Quentinho; à televisão, Amiguinha.

     - Então, Friozinho, guardou a comidinha da dona? E você, Quentinho, vai fazer o jantarinho da menina, vai?

     Viajava nessa latitude onde o pânico se confunde com a mais patética sensibilidade. O jogo desconexo de perguntas sem resposta fora-o aperfeiçoando com os anos, da mesma forma que criava amores imaginários, homens perfeitos e inatingíveis, como meio de adormecer. Ocasionalmente, de manhã, dava por si a conversar com esses fantasmas nocturnos e a formar diálogos sonâmbulos com amantes inexistentes. O aproximar dos fins-de-semana aumentava-lhe a inquietação e a morbidez. Dois dias vazios, a indisposição para se encontrar com alguém, a perturbação que lhe causavam os convites declinados, a penosa sensação de ser excluída, de se aperceber afastada.

     De defesa em defesa organizara uma manobra mental: deitar-se muito tarde e muito bebida, a fim de acordar aos domingos quase ao anoitecer. Começara, num alvoroço temporário, por frequentar bares na moda. Aborrecia-se com as conversas de mesa para mesa e aturdia-se com o álcool. Num desses lugares onde a vivacidade dos diálogos não cobria a penúria das façanhas por uns e outros narradas, encontrou, uma noite, Manuel. Não esquece o sorriso de Manuel quando este notou que ela bebera um pouco mais. Com delicadeza conduzira-a a casa. No carro também transportava Juvenal Macedo, igualmente bêbado. Juvenal atirara-se a ela, recriando as cenas burlescas de muitos alcoólicos que vêem tudo difuso mas que não perdem o hábito de mexer com as mãos. Manuel tivera de o repreender. Chegara a parar o carro, mas que merda é esta?, e a sacudir Juvenal Macedo com irritação. Deixara primeiro o novelista à porta da residência, depois metera Adelaide no elevador do prédio onde ela morava. Estivera meses sem o ver. Deixara de visitar bares. Preferia beber só. Como agora, no Albergue dos Quatro Cavalos.

     Entra um grupo de homens. Pedem vinho branco e uns petiscos para acompanhar. Gritam e riem. Quando dão por Adelaide entreolham-se, trocam frases, observam-na demoradamente. Adelaide ergue-se, pede a conta, sai.

     Deseja ver Manuel.

     O senhor Inácio joga o dominó com um parceiro. Em roda da mesa, outros homens seguem o movimento das pedras. O senhor Inácio só raramente deixa que uma força oculta guie os seus dedos; joga com cálculo e inteligência, fixando a menor contracção na face do adversário, adivinha as pedras que faltam sair. Os outros homens manifestam em silêncio a sua aprovação ou desaprovação, consoante as jogadas boas ou más. O senhor Inácio não se preocupa com disfarçar o seu desagrado quando move mal as pedras e o adversário avança. A taberna está cheia de moscas. As moscas estão por todo o lado, atraídas pelo doce perfume das vindimas. Os homens estão na taberna: o calor é excessivo: deci diram dar uma pausa no trabalho. Pouco mais há a fazer do que jogar, beber, conversar, dormir. Lá pelo fim da tarde voltarão às vindimas. As mulheres acompanhá-los-ão. Enquanto baralha as pedras, concluída uma bola, o senhor Inácio volta-se para Manuel:

     - Então foi-se tudo embora - mais uma afirmação do que uma pergunta.

     - Tudo não. Ainda cá fiquei eu - responde Manuel.

     - Bom, também cá ficou a menina Adelaide.

     - Sim, também cá ficou.

     - Por muito tempo?

     - Não sei - diz Manuel. - Mas pergunte-lhe; ela vem aí.

     Vira-a na estrada dirigindo-se para a taberna. Quando vai transpor os umbrais da porta cruza-se com Rosália. Rosália chama o senhor Inácio:

     - Pai, a mãe pede-lhe que vá lá. A torneira da cozinha está escangalhada.

     Adelaide e Rosália sorriem uma para a outra. Olham para Manuel, que se levantou do banco corrido. Dirige-se para as duas: Rosália com uma das mãos na anca; Adelaide com os braços pendentes. Uma linha de enfatuamento surge-lhe um pouco acima das sobrancelhas. Rosália parece desapontada. Em ambas há qualquer coisa de artificial.

    - Não quer dar uma volta por aí? Isto dá-me um tédio - diz Adelaide.

     - Então porque não regressa a Lisboa?

     A abrupta intervenção de Rosália surpreendeu os circunstantes. O silêncio estabeleceu-se como muda recriminação. Pelo menos o rosto do senhor Inácio alterou-se e não escondeu a contrariedade que a interrogação da filha lhe causara. Com absoluta impassibilidade, Rosália virou-se para o pai:

     - Então, ainda demora muito?

     Depois saiu com ar quase alegre.

     No carro, enquanto mete a mudança, Adelaide diz para Manuel:

     - Estamos quase no fim do verão.

     Conduz para a auto-estrada. Apetece-lhe guiar vertiginosamente.

     Nesse momento Diogo Gaspar de Magalhães deambulava pelo cemitério abandonado, Sebastian dormia a sesta e Mafalda passeava pela biblioteca seguida de numerosos gatos. Sempre soubera manter distâncias, apesar de ter gasto a melhor parte da existência a fugir e a perseguir desejos. Conseguira dominar impulsos já esquecidos, habituara-se a não cometer imprudências. A avidez que a natureza escondia, quando nova, abafara-a com lágrimas e punições solitárias. O marido, nesse tempo, passava longos meses em Lisboa, deixando-a só, com Sebastian e os criados, na mansão imensa, que ainda mais assumia proporções desconformes. O fim do verão era-lhe insuportável. As chuvas, que não tardariam, deixavam-na num estado de inquietação próximo do desespero. Vagueava pelos corredores, pelos salões, pela biblioteca, fielmente acompanhada dos gatos. Recordar e esquecer; esquecer e recordar. A morte que nascia com ela e com ela vivia e com ela adormecia.

     Tornara-se numa mulher ríspida, repreendia os criados com imerecida rudeza, dedicava-se a banalidades, preenchia o tempo ocupando-se com ninharias, aguardava ansiosamente os dias festivos para conviver com outra gente que não a da aldeia. Mas não conseguia abolir a distância que vai entre a solidão e o isolamento. No decorrer dos anos, aquietada a sensualidade, o martírio passara a uma lenta e tensa resignação. Um ocasional estremecimento agitava-a quando na presença de pessoas ruidosas, sobretudo jovens. Logo reprimia o súbito mal-estar temendo que a brusquidão do seu comportamento fosse pressentida ou por alguém adivinhada. Quando dava por si a examinar qualquer homem, e este julgava surpreender no olhar fixo um alvitre vago, mais do que um modesto sinal de distracção, Mafalda tornava-se rígida, sobrancelha erguida, como se tivesse sido alvo de uma profanação. Gostava, porém, de que a apreciassem.

     Enquanto anda, passa a mão pela parte superior dos armários de vidro. Rodeia-os, observando sem curiosidade as peças cuja origem e história conhece até à saturação. Também eu sou um objecto arqueológico. E cada dia sou menos minha. Outrora gostara de velhos, assistira-os com bondade e compaixão. Agora detestava-os porque lhe impunham a assustadora imagem do seu próprio envelhecimento. Mas os velhos, a sua presença esquiva e obstinada, os seus olhares penosos, a sua compungida dependência, faziam-lhe falta. Lastimava a agitação de Adelaide, os seus movimentos sempre urgentes e sempre impregnados de uma ganância sem pudor. Invejava, com gélido rancor, a vida que ostensivamente ela sugeria levar em Lisboa. Intrigavam-na os processos de que Adelaide se servia para alcançar os proventos que afirmava auferir. Se a confrontação entre os dois feitios satisfazia Adelaide, porque sentia subjugar Mafalda, esta irritava-se por ser incapaz de mascarar o seu embaraço e, no fundo, a sua recalcada fragilidade.

     O odor da biblioteca perturba-a ligeiramente. Senta-se num dos meiples, cerra as pálpebras, reclina a cabeça, mãos sobre as coxas, deixa-se embalar num doce entorpecimento. Os gatos dormitam meigamente encostados uns aos outros. O sono ligeiro traz-lhe um cenário de rostos alvos e de olhos vazios, marcados por traços mórbidos. Os rostos e os olhos voam, ondulam, vagueiam, até que se consubstanciam em dezenas de corpos de mulheres nuas e deitadas. No cenário entra um homem, as mulheres vigiam-lhe os passos até que saltam das camas e o perseguem soltando gritos roucos. Mafalda desperta nesse instante. Suspira e endireita-se no meiple. Relaciona o sonho com uma história que Rudolfo lhe contou. Certo fotógrafo fora contratado para obter imagens no interior de um hospício. Concluída a tarefa, metera-se por um emaranhado de corredores frios e desabitados, percorrendo-os com precaução. Abrira uma porta, presumindo ser uma saída possível. Entrara por engano numa enfermaria de mulheres. As mulheres estavam deitadas, ou sentadas nas camas, ou em deambulações sonâmbulas. Mas a súbita aparição do homem desprevenido sacudira-lhes a semi-sonolência e despertara-lhes uma abstracta curiosidade. Estacaram. Suspenderam gestos e movimentos. Pareciam tomadas de letargia. As respirações acentuaram-se: primeiro opressas e depois aceleradas. Começaram a soltar frases incompreensíveis, sons guturais, aproximando-se lentamente do fotógrafo, cada vez mais assustado. E para ele correram, gritando e gesticulando. Apavorado, tentou escapar. Não o conseguiu. Quando surgiram os enfermeiros, atraídos pelos gritos, o fotógrafo estrebuchava no chão, as mulheres inclinavam-se-lhe sobre o corpo, disputando-o, rasgando-lhe as roupas. Regressada a calma, depois de esforços a que não faltou a brutalidade dos enfermeiros, entretanto reforçados por outra equipa, o homem foi repreendido:

     - Elas estão doentes mas estão vivas!

     Mafalda reconhece sem emoção a impossibilidade de obter ou de conquistar outro futuro. Está sã mas está morta. E o seu passado é um estojo lamentável de desilusões e de desgostos que impede a intromissão de qualquer fugaz alegria e resguarda o sofrimento, a dor e o abandono com perversa volúpia. Os gatos espreguiçam-se. Ergue-se do meiple na mesma altura em que Sebastian entra na biblioteca:

     - Dormi cá uma destas sonecas...

     Entardecia quando decidiram regressar. Adelaide guiara o carro para o interior, haviam percorrido largos quilómetros, visitado a extensa área formada por uma península arenosa, e parado junto de um armazém abandonado. A pouca distância, casas com tecto de colmo, melancias e melões espalhados, peixe a secar. De quando em quando espreitavam cabeças rápidas. Mais para trás, o que restava de uma estação balneária romana, de cujo cerro se avistava uma paisagem grandiosa. No sentido oposto, feios edifícios construídos à maneira das granjas germânicas, telha preta, telhado abruptamente inclinado, sótãos rectangulares e boleados nos extremos, formas cónicas e absolutamente inúteis. E avisos pintados em pedaços de madeira: “Terreno vende-se. Telefone:...

     Na margem norte da península erguiam-se duas torres pesadas e sombrias. “Está tudo a ser comprado por belgas, holandeses, alemães”, disse Adelaide. “Dentro de poucos anos, isto vai ficar irreconhecível.” Manuel olhou vagamente em torno de si. Adelaide voltou a falar: “Há um holandês interessado em adquirir a mansão. Foi por isso que nos reunimos. Diogo está inclinado a aceitar a oferta, que é muito tentadora, e a viver em Lisboa. Os outros hesitam. Eu estou-me nas tintas. Mas aquela casa está cheia de memórias. E Mafalda deseja lá permanecer até ao resto dos dias. O passado é mais o seu cárcere do que a sua liberdade. O que espantou a todos foi a inesperada concordância de Diogo. Nós julgávamo-lo definitivamente preso àquela espécie particular de vida. Mas escasseiam-lhe os recursos económicos e esgotam-se-lhe as reservas espirituais.”

     Saíram do automóvel, vagueram pelo exterior do armazém onde se acumulam detritos, garrafas quebradas, latas de Coca-Cola, pedras. Entalado num grupo de piteiras uma página rasgada e amarelada de “‘El Pais”‘ com uma fotografia de Juan Carlos e Sofia. Manuel diz:

     - Recordo-me muito bem dele, do pai, o conde de Barcelona, e da irmã cega. Juan Carlos ia muito às matinés do São Luiz, sempre muito bem acompanhado. Louro, de cabelo ondulado, simpático, cumprimentava com um largo sorriso as pessoas que o reconheciam. Contrariando a vontade do pai, Juan Carlos dava-se muito bem com o Franco, que já se preparava para restaurar a Monarquia em Espanha e fazê-lo rei. Viviam no Estoril ou em Cascais, já não me lembro. Tem piada, sempre atribuí à época do nazismo uma cor sépia, à do salazarismo uma ausência de cor. Mas naqueles anos, quando também frequentava as matinés do São Luiz, tudo me surge dourado, coisa estranha. Creio até que Juan Carlos esteve presente numa antestreia de “O Homem de Palha”, do Pietro Germi, e o Pietro Germi respondia às nossas perguntas, éramos quase todos cineclubistas, mas que raio estaria lá a fazer o Juan Carlos? Se calhar é confusão minha. Teria sido convidado? A antestreia foi de manhã, disso tenho a certeza, e também penso que, com o Pietro Germi estava mais gente, italianos, mas a imagem que retenho é...

     Um leve sopro marinho envolve-os de odores: pinheiros, terra molhada, salsugem. Adelaide afasta-se, aproxima-se, insinua-se:

     - Isto é ainda um pouco o jardim do Paraíso. Os romanos sabiam muito bem escolher.

     Reentra no carro, aguarda Manuel, liga o motor:

     - E que tal irmos jantar ao Albergue dos Quatro Cavalos? Estive lá esta tarde. Agradável. E saí para me encontrar consigo.

     Manuel traz a folha rasgada de “‘El Pais”‘. Vem a sorrir:

     - Ouça esta notícia: “Un cartero madrileño, Peio García, de 28 años, estranguló a su esposa, Begoña, de 52 años, después de que ésta le acusara de inadecuación sexual, cortó su cuerpo em trozos y los guardó en la nevera de sua casa.”

     - Que raio será “inadecuación sexual” para uma mulher de 52 anos?

     - Ora, ela queria mais e ele passava o tempo a entregar cartas. Ou desejava outras coisas e ele era incompetente.

     - São certezas ou hipóteses?

     - Vivemos num mundo que deixou de possuir certezas. Resta-nos a imaginação, e a imaginação pode ser imensamente persuasiva.

     Adelaide parece aguardar uma resposta que tarda. Manuel observa a beleza suave e majestosa do local, vê ao longe a foz:

     - Daqui a anos, quando tudo estiver esquecido e eu tiver esquecido tudo isto, e os nomes e as pessoas se desvanecerem, daqui a anos...

     Senta-se ao lado de Adelaide. Adelaide arranca com o carro. Poucos quilómetros depois, sem desviar os olhos da estrada, diz:

     - Regresso amanhã a Lisboa.

     Pensávamos ter descoberto e decifrado o objecto de antigas querelas e tudo era uma fraude tecida de fios invisíveis. Apuro o ouvido: parece-me escutar um clamor longínquo. Recosta-se melhor na cadeira alta. Sente o rumor da noite e o brando desafio do silêncio. Um sopro forte de vento açoita os telhados e estende-se até ao vale. As copas das árvores, os caniçais, emitem um doloroso gemido. No tempo em que eu procurava o rosto daquilo que seria amanhã, acreditava que as coisas da História só acontecem uma vez. Mas os anos bateram-me muito e transformei-me; não mudei: transformei-me. Conseguira, porém, não denotar a natureza íntima dos meus sentimentos. “Não deixes que te vejam como te sentes”, ensinara-me o meu avô. Nessa época obrigava-me a ser feliz porque tudo, afinal, terminava sempre bem. Havia muita gente que previa erradamente os factos, e os pontos dolorosos do passado eram esquecidos com sabedoria e serenidade. Eu fora atingido por tuberculose, sombras no pulmão direito, e com estreptomicina e ares de aldeia recompusera-me em poucos meses. Tinha 21 anos e, um dia, li no “‘Diário de Notícias”‘ que Getúlio Vargas se suicidara. Nunca contei estas coisas a ninguém; e se agora delas me recordo é porque ultimamente tenho sabido sopesar o tempo como se o tempo fosse táctil. O tom desenvolto que cultivei esfumou-se numa subtil hipocrisia e num discreto cinismo. Soube, finalmente, que só a morte devolve às pessoas a perene singularidade que a vida lhes negou; e hoje (hoje?, há quanto tempo?) deixei de estar interessado em enfren tar os perigos de qualquer tarefa reconstrutora. Ser português não é uma nacionalidade: é um calvário. Fomos educados a fazer aquilo que os outros fazem e a gostar daquilo que os outros gostam. Não vivemos de sonho: alimentámos a ilusão, iludimo-nos, e iludimo-nos conscientemente, caminhámos como aturdidos para o abismo, sem protestar, sem reflectir, sem interpelar e sem questionar. Portugal é um lugar de sofrimento e de desespero, e a sua História um longo eclipse da razão: um país sem rigor moral.

     Um tropel de imagens. Conhecera, havia anos, no Nina (os anúncios da época diziam: “Nina - Boìte de nuit”, o toque francês sempre na moda, veja-se a Tágide, da Mireille Robert, uma parisiense comedida e muito bela, contratou o Mouloudji, o Mouloudji parece que era do grupo dos existencialistas, ena, há que anos...), Gilberto Moreira Paz, director de um jornal que herdara por morte do pai. Distinguia-se pelo impressionante volume do corpo, pela imoderada ingestão de álcool e por um raciocínio incorrigivelmente lento. “Abusa do privilégio de ser estúpido”, dizia-se de Moreira Paz, o doutor, que fazia versos medonhos e que parecia estar sempre em estado gasoso. Para o seu casamento convidara trezentas pessoas e obtivera a bênção papal por intercessão do cardeal Cerejeira. O cardeal Cerejeira fora compensado do piedoso favor com a obtenção do direito vitalício a retrato e panegírico na primeira página. Gilberto Moreira Paz sofria de flatulência e, quando bebia mais do que o habitual excessivo, não conseguia evitar os gases, cujos efeitos sonoros procurava ocultar com ataques de tosse que só provocavam ataques de riso.

     Foi numa dessas noites que o conheceu. Moreira Paz entrara já na idade em que se deixa de ter um olhar idóneo e na qual o espírito manifesta uma impressionante capacidade para alimentar uma insinuosa categoria de rancor. Acrescente-se que a morte dos seus próximos amigos, o facto de a mulher haver sido atingida pela doença de Parkinson e de ninguém o tomar rigorosamente a sério faziam dele a caricatura patética de um sobrevivente de coisa nenhuma.

     As prostitutas afastavam-se desse escombro endinheirado dizendo-lhe, entre a zombaria e o ardil, que ele já estava velho para aquelas folias. “Ora, ora, quanto mais velho é o violino mais doce é a melodia”, respondia. Nos editoriais usava um estilo usurpado, sem urbanidade, uma prosa que inspirava a Manuel um desprezo próximo do vómito, sobretudo em período de eleições.

     Um hábil negócio financeiro impelira Gilberto Moreira Paz a vender o jornal a um grupo bancário. Dispondo de dinheiro, mas destituído de poder, deixou de aparecer na noite da cidade. Manuel soube, muito depois, que Gilberto Moreira Paz adquirira uma pequena máquina de impressão, dois cavaletes com caracteres tipográficos e que, regularmente, imprimia um Jornal da Casa, no qual narrava episódios familiares, os mais hilariantes, e publicava poemas rimados a verso salteado. O jornal era distribuído pelo que restava de amigos e comentado com desvanecedora aquiescência. Por vezes, acontecimentos ocorridos no círculo íntimo também eram noticiados. A tiragem subia dos vinte e cinco exemplares habituais para os cinquenta.

     Quando esteve na moda falar-se na identidade portuguesa, Gilberto Moreira Paz foi convidado pela Televisão para depor sobre tão augusto problema. A direcção da TV convidara-o na qualidade de antigo director de um importante jornal. Gilberto Moreira Paz começou por afirmar que estava ali na qualidade de “profundo nacionalista”. Ninguém percebeu o que disse nem o que caucionara. E ante a perplexidade de uma audiência atónita rematou a intervenção com esta frase tão credível como qualquer outra - mas absolutamente despropositada: “Sempre associei o amor à melancolia.” Finda a emissão, Moreira Paz resolvera comemorar o regresso à vida pública com o reaparecimento nos cabarés. Falava por adágios: “A beleza está nos olhos de quem a vê”, “Pecados antigos têm longas sombras”, e todos se lhe riram na cara. Rir na cara das pessoas também estava um pouco na moda. O certo é que Gilberto Moreira Paz não apreciou a recepção. E entendeu, de uma vez por todas, que se lhe finara o estofo e o estilo. Regressou ao Jornal da Casa e manteve-se vivo durante alguns anos; poucos.

     Manuel lembra-se de que Diogo falava de Moreira Paz com o desinteresse de quem qualifica uma criatura inconrigível e irrevogavelmente imbecil. “Conheci-o bem. Quando queríamos desfrutar alguém esperávamos pelo Gilberto”, disse, quando a ele Manuel se referiu.

    

     Não sei porquê mas neste exacto momento acudiu-me à ideia o rosto distante e frio de Madalena, e o que lhe dissera, certa tarde, após um encontro fugaz com amigos: “Já me tinha esquecido de que deixaste de sorrir.” Li um livro, creio que de Jack London, ou seria de Conrad?, não me lembro bem, mas era de um deles, certamente de um deles, no qual se fala de uma ave australiana, a kookaburra, que canta a rir. Até tomei algumas notas sobre; queria escrever um texto cuidado sobre o riso, e ao saber dessa ave australiana a curiosidade aumentou. Acabei por não escrever nada. Sou, simultaneamente, prolixo e evasivo. Comecei tantas coisas na vida que nem sei quantas. Jack London morreu com 40 anos, hoje ninguém fala muito dele mas foi um grande escritor. Também deixou, ao que consta, dois livros inacabados, um deles era o começo de uma autobiografia e começava do seguinte modo: “Nasci entre o medo e o vento, numa cidade castigada pela venalidade e num país caprichoso nunca amado por Deus.” Se eu desejasse escrever uma autobiografia começaria como? Mas a minha vocação esfuma-se entre a urgência de ganhar dinheiro e a futilidade de agir como um diletante. Que vai ser de mim? E por quem, diabo!, me tomo?

     Estou irremediavelmente solitário e despojado e sinto a dor e a indiferença do vasto silêncio que me rodeia. Não se pode dizer que tenha sido um êxito a minha vida. Ambos sabemos que estou a perder há muito tempo; mas terei de continuar, indefinidamente, este memorial? Vejo as coisas de que gosto em casas de pessoas de quem não gosto. Mas a natureza e o mundo são injustos, não te esqueças. Sempre deram vantagem aos mais fortes. O que me aligeira as horas é a noite. Sempre me dei bem na noite e com a noite, nesse surpreendente prodígio de me sentir um lugar carregado de emoções e de pressentir o soberano murmúrio do tempo, o desejo de brindar a uma exultação muito íntima. Aqui estou nesta quietude estelar, e os meus pensamentos adquirem uma maior altitude porque sempre que anoitece penso em ti, hei-de sempre pensar em ti. E as trevas são propícias a que a memória se abra. E as palavras estão também em ti, lugar exacto. A noite é a vigília; o dia a provação. E cada local da noite, cada pedaço de noite é uma ração de afecto com o seu privativo sossego, a sua longínqua rutilação. Em tempos possuí a arte de não fazer da vida quotidiana uma vida de todos os dias. E sabia dizer as coisas com maior veemência quanto menos delas estava convencido, porque me recusava a aceitar a lenta mas inexorável e voraz aparição de outras forças e de outros poderes eminentemente mais criadores e inventivos. Tornei-me num refém de mim mesmo. E é-me intolerável saber que estão a realizar-se novos projectos, a erguer-se novos mundos, a surgir outra época e não sou chamado, não sou lembrado, não estou presente. Mas já não estava há muito; porém, eu as pessoas amam-se porque, no fundo, são inimigas; o segredo do amor não é a semelhança: é o antagonismo; e agora as pessoas chegam ao amor com mais afecto e menos culpa do que as da minha geração; acho que já não és feliz comigo, e isso põe-me inquieta, Manuel; nunca fui feliz contigo, e só o descobri muito tarde; tarde de mais?; muito tarde; porque estás sempre a mentir a ti próprio se, na verdade, escolheste o processo de te eliminares?; se calhar nasci sem beijos e desprovido da capacidade de amar; se calhar; mas pode escrever-se à máquina a palavra amor?; pode, claro; pode, até, num computador; mas não é a mesma coisa, porque há palavras que requerem a caneta: a escrita da alma; na hierarquia do amor o que restará, depois de tudo acabar, é uma espécie de função estética: a auto-estilização; mas acautela-te: não és o único a quem fizeram mal, apenas criaste inimigos entre quem não devias; mais ainda: o teu aparente apreço pela intuição foi contraposto pelo entusiasmo da técnica e do preciosismo de métodos e relatórios; trataste a vida como um palco permanente e transformaste-te num intérprete do vazio; depois, com notável vitalidade, alimentaste esse vazio escrevendo diários tão absurdos quanto inúteis; presumiste cultivar o mito e a civilização adquirindo velharias, ambiguamente movido pela irresponsabilidade de um sentimento amador diante do trabalho; encerrou-se o ciclo; enquanto outros se arriscavam nos territórios perigosos da criação, da política ou dos duelos do amor tu andaste pela beira da morte, sem aprender que a morte complica a vida; os teus deuses, entretanto, enlouqueceram com a tarefa de assassinar o que haviam procriado; agora, talvez escutando as rumorosas coisas da noite, nesta noite particular, os teus mudos gritos estejam condenados à indiferença do universo; e, no fundo, a tua tragédia é não seres crente e desejares dolorosamente sê-lo.

     Contempla a noite como de cada vez que experimenta uma contrariedade ou quando faz seus os bens do passado, transmitidos por uma luminosidade excitada de lutas antigas de que ninguém se lembra ou quer lembrar. Sem ruído, deixando-se envolver na volúpia do silêncio; um doce murmúrio do vento, agora; profundamente oculto e não um entre muitos; imobilizado e livre de todos os perigos; inerte na escuridão de todas as ruínas, sem nomear e sem nome, seguro e certo nas incontáveis horas de sombra; isento e afastado do mundo da razão, sem esperar ser desperto, indultado de todas as penas.

     Aqui é um dos últimos grandes lugares verdadeiros.

     E integra momentaneamente no coração o sossego e a paz.

     O musgo começou a prosperar logo após as chuvas de Outono. As raízes das heras escondiam-se nas nocas dos muros, as folhas húmidas rescendiam um áspero perfume, os verdes diluíam-se sob o efeito entorpecedor das águas e, quando surgia um sol breve e claro, bichos estranhos caminhavam penosamente pelas fofas camadas de vegetação morta. Consumia o tempo na taberna, incluía-se nas conversas triviais, lia os jornais e as revistas que o estafeta lhe trazia, anotou uma reflexão de Thomas Mann, publicada por Gunther Kastner no “‘Die Zeit”‘, para sustentar a tese de que o antinazismo do romancista não passara de uma ambiguidade ou, pior ainda, de um estratagema abjecto: “A liberdade política não me dá cuidado. Não se produziu, na Rússia, uma magnífica literatura sob uma tremenda opressão? Este é um exemplo palpável de que a luta pela “liberdade” é melhor que a própria liberdade”. Fez a anotação apurando a caligrafia. Mais tarde pensou: ao fixar a reflexão de Thomas Mann não teria sido impelido pelas reminiscências comuns a quem foi atingido por pavorosos desenganos e está condenado ao desassossego?

   Observa os rostos compostos dos que se encontram na taberna: nada os distingue entre o pesadelo e o sonho. Confinados aos limites por eles criados. Passa a senhora Isilda, com um tacho fumegante de comida; Rosália segue-a, pendura numa das traves um artefacto de cozinha, atiça o lume da lareira, olha para Manuel. O senhor Inácio joga a trezentas com vários parceiros, na mesa longa em cujo tampo estão gravados a canivete nomes, alcunhas, corações.

     Mais longe, muito mais longe, detém-se naquela cidade que tanto o atraíra. Heidelberga.

     - A tua repulsa pela Alemanha provinha de razões passionais, fragmentos de um sistema deformado de ideias que te propunha ver em cada alemão um inimigo poderoso e oculto. Mas admitias que a poesia, a música, a filosofia, a arquitectura eram alemãs. Não conseguias, resolver facilmente as coisas. Então, a pretexto de um negócio qualquer, foste a Berlim; depois a Hamburgo, a Dusseldórfia, a Munique.

     - Mas foi em Heidelberga onde permaneci mais tempo.

     “A primavera varava maio e o Neckar corria humilde e belo, para confluir com um rio poderoso, o Reno. O homem bebia cerveja gelada por um canecão com os símbolos e os emblemas de Heidelberga e só sentia, mas sentia intensamente, numa loucura mansa e absorta, que a sua terra ficava longe, para aquém das ásperas peles daquelas montanhas, muito para lá do fluir do Neckar e do corte subtil dos cedros da Floresta Negra. O homem era um meridional e estava sentado a uma távola, cujo tampo fora retalhado a canivete; e esses traços eram mensagens escritas em várias línguas, decifráveis e indecifráveis, e a um canto havia um velho tocador de espineta, que dedilhava as cordas e as teclas com aplicação, e era um som bonito, e o homem meridional, aproveitando uma pausa do tocador para beber “kirsh”, disse-lhe que se sentia ali muito bem, escutando aquela música muito bonita, e o tocador respondeu-lhe sem qualquer marca de emoção: “A música faz-se com doze sons, incluindo os sustenidos e os bemóis”, era uma resposta ríspida, quase malcriada. “Roter Ochsen” (Boi Vermelho), a taberna, estava cheia, cheia e feliz, e o homem meridional dobrou os olhos com infinito pudor da sua própria tristeza. Nessa altura, o homem meridional conseguiu decifrar uma das mensagens talhadas naquela távola daquela taberna naquela cidade de Heidelberga: “Chorei porque não tinha sapatos até ao dia em que vi uma criança que não tinha pés.”

     “- Herr Manuel!

     “Chama alguém. E o homem meridional deixa de ouvir o som harmonioso da espineta, termina a cerveja gelada, levanta-se da távola, sai de “Roter Ochsen” e vai ao encontro do amigo alemão que irá mostrar-lhe as belezas do Palatinado. Adquiriu várias peças antigas; na biblioteca da universidade contemplou manuscritos de Kant e de Hegel. Nas suaves estradas que conduzem a Hrrenalb, a Freudenstadt, a Deidesheim observa a memória e o remorso de guerras antigas. Hirtos lembretes de pedra encimados por águias de bronze; colunas com estátuas de jovens e viris guerreiros. No sopé de uma delas, moldadas a gótico, as palavras: “O homem vive, frequentemente, consigo próprio e precisa de virtude. Vive com os outros e precisa de honra. Saibamos merecer os nossos mortos.”

     “- “Bleib übrig” - diz o alemão.

     “- Que quer dizer? - pergunta o homem meridional, contemplando a estátua recolhida na sombra de um canto da estrada, e um pouco atrás incrusta-se um belo lago. - Que é bleib übrig?

     “- Sobreviver.

     “- Sobreviver era imperioso naqueles anos de guerra - dissera-lhe, dias antes, no parque do Hotel Haarlass, depois de uma maçadora reunião de antiquários, a senhora Albarosa Pacchetti.

     “A senhora Albarosa Pacchetti era uma italiana de Milão, representante de uma companhia de leilões de arte. O homem meridional ficara cativado pela branda melancolia do seu olhar, pela beleza moribunda de um rosto que fora certamente muito harmonioso e, também, pela delicadeza perfeita dos seus gestos. Cantava, por vezes, a senhora Pacchetti: cantava com três ou quatro compatriotas, e era um canto mutilado, um trisso de ave atingida. Falava bem alemão e o homem meridional perguntou-lhe como e porquê. “Sou filha de mãe austríaca e de pai italiano. Durante a guerra o meu pai foi mobilizado para combater em África e a minha mãe obrigada a deixar a Itália para viver em Viena. Fiquei só, em Milão, e foi um tempo duro para uma rapariga de pouco mais de dezasseis anos. Para se trabalhar era necessário estar inscrito no Partido Fascista. Inscrevi-me. Trabalhei em tarefas menores e rudes. Depois vieram os alemães. Eu sabia um pouco a língua deles e fui convocada para servir de intérprete num departamento oficial. Foi assim. Nunca mais soube do meu pai nem da minha mãe: mas aprendi bem alemão. Sobreviver era imperioso naqueles anos de guerra.”

     “- “Bleib übrig”? É assim que se pronuncia? - pergunta o homem meridional ao amigo alemão.

     “- É assim mesmo que se pronuncia. Correcto.

     “Responde-lhe a senhora Pacchetti. Ouvira a pergunta, juntara-se-lhes; repete:

     “- Sobreviver.

     “Três da manhã, no Tiffany's, clube nocturno em Heidelberga, proprietário e empregados italianos, música gravada. Alguém interpela um dos empregados, que levou bebidas para a mesa:

     “- Italiano?

     “- Sim. Italiano.

     “- De onde?

     “- De Palermo, na Sicília.

     “- Como se chama?

     “- É necessário dizer o nome?

     “- É só para dizer o seu nome quando o chamar.

     “- Salvatore.

     “- Salvatore. Salvatore como Giuliano. Salvatore Giuliano. E ele também da Sicília.

     “- E ele também era um homem.

     “O homem meridional caminha agora só, na madrugada fria de Heidelberga “Aqui estão sentados aqueles que sempre estão aqui sentados” - lê numa tabuleta colocada à entrada de uma taberna encerrada.”

     De uma ou de outra forma pessoas anuladas, desalojadas, sós entre todos os outros; desertores, posso assim dizer?, ou refugiadas?, a língua alemã dispõe de uma palavra exacta; “Staatsflüchtige”, fugitivos do Estado, seja: os dissentes da ordem, dos poderes omnipresentes, da vigilância; da vigilância da própria consciência: os que escapam e ficam sitiados. “Entsagung”, a renúncia a todas as formas de representação. Antecipam as atitudes de gerações futuras; repetem as atitudes de gerações passadas. Todas as curvas de todos os destinos, todas as recomposições do mundo são feitas de ausências, de exclusões e de violências deliberadas.

     Não desejava atribuir exageradas proporções a esse tipo de derrotas, nem se sentia inclinado a reconhecer que essas agitações atávicas se perpetuassem sem remédio. Com o tempo, porém, acabou por aceitar uma evidência quase ritual: os homens acalentam um secreto desejo de catástrofe.

     O senhor Inácio deixou de jogar e consulta o céu, queixo erguido, boca impertinente. Dá passagem a Sebastian, que entra apenas movido pela vivacidade do instinto. Sebastian, agora quase sempre só, pede vinho com a indiscreta fraqueza de quem sabe que vai escutar mansas recriminações: “Já bebeu o suficiente; olhe que a senhora dona Mafalda, depois, zanga-se é com a gente.” Inácio volta para o interior, senta-se ao lado de Manuel, observa Sebastian:

     - Porque bebe ele assim, até cair?

     - Cada um de nós bebe por qualquer motivo. Ele tem vários motivos para beber. E, sobretudo, creio que não se lembra de nada melhor.

     - Ainda se houvesse qualquer divertimento - Inácio olha para um recanto da sala onde, coberta por uma lona, está a mesa de um négus de que se vêem apenas as pernas. - Ele rasgou o pano, há uma porção de tempo, e não há dinheiro para mandar pôr outro. O négus sempre era um jogo bom e o pessoal divertia-se um bocado. Só cartas chateia.

     Fixa Sebastian, repete:

     - Rasgou o pano. Se eu dissesse ao dom Diogo claro que Pagaria, mas é melhor assim. Que chatice!, esta época acabou com as coisas decentes. Em tempos tive um cão, um belo cão, e dei-lhe o nome de Hitmuss um cão possante que não era nada para graças - acrescentou, como se revelasse uma intimidade: - Dei-lhe o nome de Hitmuss em memória de Hitler e de Mussolini. Mataram-me o cão com veneno de escaravelho, piratas! Bem gostaria de compreender melhor o Sebastian. No fundo gosto dele. Tenho uma certa compaixão por ele, pelo seu modo de vida e por tudo isso, faço-me entender?

     - Receio bem que não - disse Manuel. - Não vale a pena ligar às coisas que não fazemos. E não se consegue o que se quer a compreender as pessoas. O jogo é outro.

     - É. É outro. Como o négus. Mas está rasgado.

     - Creio que tudo possui a dignidade do provisório. E penso que Sebastian aprendeu isso com o álcool, o álcool não consente os maquinismos da mentira e, por vezes, repele a solidão e o medo, tornando-nos mais perspicazes.

     - Sabe, senhor Manuel?, eu acho que ele tem medo de ser quem é.

     - Acontece a muitos de nós. O senhor, por exemplo, não lhe acode ao pensamento ser outro?, mais velho ou mais novo, apropriar-se das ideias, dos instintos, da sabedoria, da beleza de um outro?, satisfazer as exigências e os desejos do corpo de outro, seu amigo ou inimigo?

     Inácio franziu os olhos e examinou Manuel sem se dar ao cuidado de dissimular a sua contrariedade:

     - Não entendo muito bem onde quer chegar. Se tenta dizer-me qualquer coisa de esquisito ou de pouco próprio confesso que não aprecio esse tipo de conversa. Um homem é sempre um homem. Essa história de eu gostar do corpo de outro homem, alto lá com o charuto! Há muitos anos viveu aqui um lenhador. Um dia, atingiu o sexo com um machado. Lá o consertaram no hospital e dizia-se que ficou com metade do que tivera. Mas essa metade funcionou. Fartou-se de fazer filhos, depois do acidente, só para mostrar que não era capado. Um homem é o que ele era, senhor Manuel, apesar de um pouco danificado.

     Estava visivelmente satisfeito com o relato e por formar uma continuidade de ideias claras. Riu, ao conseguir traduzir o acto misterioso e libertador constituído pela vitória do homem sobre o infortúnio. Manuel não estava disposto a seguir o rumo da conversa, mas também não desejava interrompê-la: sabia que se a desviasse Inácio preservaria a lembrança de uma vaga supremacia e teria tendência para contar aos amigos essa história de um ensinamento, embora não passasse de tagarelice medíocre. Disse:

     - Creio que está a cometer um erro de avaliação. Na hierarquia dos homens há vários valores que até na morte têm relevância. Um homem não é aquilo que faz; frequentemente isso nada prova. Um homem é aquilo que representa para os outros, e inclina-se quase sempre para a justificação do seu poder. Veja os homens que morrem vinte e trinta vezes: páginas e páginas de anúncios necrológicos nos jornais, que dizem sempre a mesma coisa. A disputa das famílias de certos mortos é patética: quantos mais anúncios, julgam elas, maior é a importância de quem morre. Anúncios com tarjas negras, com cruz ou sem cruz, com re trato ou sem retrato, com missa de corpo presente ou sem missa de corpo presente. Quanto mais numerosos são os anúncios mais extensa é a notícia do óbito, redigida por um jornalista enfadado: “Era um bom chefe de família, respeitado por superiores e subalternos”, ou “Um homem temente a Deus que praticou numerosas acções de filantropia e que, por isso, fora condecorado pelo Presidente da República.” O que lhe queria dizer é que...

     - Eu sei bem o que quer dizer. Não faça de mim parvo.

     - Nada disso, não se precipite.

     - Acha que Sebastian é homem mesmo?

     - Acho. Sebastian é um bom homem, compassivo e bondoso.

     - Há quem lhe chame tolo.

     - Conheci, em tempos, um homem que usava o chapéu sempre na mão e que, quando passava junto de uma igreja, o colocava ostensivamente na cabeça.

     - Uma falta de respeito.

     - Nada disso. Ele estava dentro da razão, tanto mais que decidiu ir para a cova com o chapéu na cabeça. Quantos de nós desejaríamos cumprir secretas vontades, satisfazer pequenas alegrias ou ir contra a corrente, desafiar as normas, os preconceitos e a ordem? Falta-nos a coragem é o que é. Sebastian é capaz de muito bem fazer o que muito bem lhe apetece.

     - Aos patetas não se exige responsabilidades.

     - Ignora os mecanismos da mentira e é quase livre. Olhe, senhor Inácio, até lhe digo mais: ao contrário de mim, que sou suficientemente sacana para admirar um escritor do qual nunca tenha lido uma linha.

     Manuel manifestava uma acentuada tendência para a grandiosidade, o que não deixava de o divertir. Serviu aguardente ao senhor Inácio, que fez um inicial gesto de não desejar mais, e depois encheu o seu copo. Ergueu-o e disse:

     - Bebo à memória de Salvatore Giuliano!

     - De quem?

     - De Salvatore Giuliano, que também era um homem!

     - Ah! - disse o senhor Inácio sem perceber nada.

   - Salvatore Giuliano era um idealista - a voz tornava-se-lhe cada vez mais lenta - Mas esqueceu-se... mas esqueceu-se de quê?... Ah!, esqueceu-se, ou se calhar não sabia, de que o idealista é aquele que, entre uma rosa e uma couve, descobre que a rosa tem melhor cheiro mas que a couve é que faz sopa. Cortaram-no à metralhadora.

     - Estava inocente? - Inácio cada vez mais confundido.

     - Que é isso de ser inocente?

     - Bom, é não ser culpado. Sei lá. É ser verdadeiro. Sei lá. É dizer a verdade.

     Manuel:

     - A inutilidade do primeiro dilúvio impediu Deus de enviar o segundo. Li isto não sei onde escrito por não sei quem. Mas sempre lhe digo: ninguém vive inocentemente.

     - Sente-se mal? - perguntou Inácio. E logo pensou: “Porra!, isto é mesmo conversa de bêbado.”

     - Janta com a gente, senhor Manuel? - perguntou Isilda, preparando-se para colocar a toalha na mesa.

     Rosália, à distância, aguardava a resposta para dispor a quantidade de pratos necessária. Manuel disse que sim e agradeceu. Rosália avançou, depois olhou para Sebastian, meio adormecido e desequilibrando o corpo em movimentos lentos e desconexos:

     - E aquele, também come cá?

     Insolência, impaciência e desprezo. E todos esses sentimentos acumulados não o deixavam de fora. Manuel pressente que Rosália se lhe dirige indirectamente. É apossado de um indefinido mal-estar, fica embaraçado, olha para Sebastian que parece depender de tudo menos da própria vontade. O senhor Inácio decide:

     - Jantamos todos.

     “Ganharei em oxigénio o que perco em dinheiro”, dissera a Adelaide, justificando com desajeitada malícia a sua vinda para a aldeia. A noite não consegue restituir-lhe a serenidade. Não tem pressa em regressar a casa. Sentou-se num dos bancos do largo, iluminado por um único candeeiro público, observa árvores esguias, a sombra pesada das casas, todas da mesma altura, mergulha na anulação dos sentidos. Uma súbita saudade de Lisboa, aliada a um corropio de lembranças, fá-lo sobressaltar. Sente a falta de certas ruas, de certas pessoas, até de algumas de quem não gosta; dos balcões de bares, dos percursos das suas fidelidades, das peripécias que envolvem a astúcia nos negócios, e da felicidade que experimenta quando os realiza com perfeição. Sempre tivera a prudência de tornar inapreensíveis as suas emoções. “Os emotivos não reflectem”, costumava afirmar.

     “Quando começaste a exercer a tua sedução distanciada começaste a expulsar-te, passando a habitar numa zona de penumbra entre o terror subtil e a doçura supérflua. A passagem para o confessional é, em ti, uma dor aguda que recusas admitir. Deixaste de ser um saudável imprecador para te tornares num ser lamuriento e amargo. Dizes que não te entendes com este tempo, mas a verdade é que não te entendes contigo mesmo.

     Dissera-lhe Julião Trigueiros, o psicanalista, poucos meses antes de morrer. Não gostara do que ouvira na primeira sessão de grupanálise, a que recorrera como um facto expresso pela obcecação da morte e pelo insinuoso apelo ao suicídio. Estava decidido a lá não voltar mais. O falecimento súbito do médico deixara-o num estado de depressão inimaginável. Apercebeu-se de que caminhava para outra exclusão, e receou enlouquecer: tudo parecia devorar-lhe os dias, o trabalho dizimava-lhe as forças, não conseguia subtrair-se ao tédio, à inércia, à atonia “‘venenum ad temperatum” da nossa época”, como o caracterizava Julião Trigueiros no seu modo solene e irónico de dizer este género de coisas.

     As mãos tremem-lhe ligeiramente. Tenho de cortar um pouco com a bebida e com os cigarros. Adelaide e os seus segredos. Rosália alimentando um desprezo que lentamente a vai destruir. E os outros, todos os outros aspirando a um recomeço que não seja o presságio de uma banição. Mas o tempo está sempre contra nós e, indefesos, procuramos dolorosamente um culpado ou vários culpados.

     É assim: o mundo desmorona-se e uns jogam o “bridge”, outros a trezentas ou o dominó, outros ainda bebem ou passeiam solitários pelos lugares mais solitários do mundo. Não podemos fazer de outra forma e tudo nos encaminha para o esquecimento. Tens de aproveitar esta oportunidade: a idade em que estás para decidir, finalmente, quem és. Afastaram-te, afastaste-te, esqueceram-te mas não te enterraram. Se precisas de encontrar alguém que te perdoe pensa bem de que culpas és responsável e que pecados cometeste. Mas toda a gente carrega pecados e esconde culpas. Sabes?, os desejos mais íntimos dos homens são, por vezes, os mais demolidores; como os sonhos. Sinto, no termo de um calvário suportado pela exaltação, que vou permanecer aqui muito mais tempo do que previra. É um bom lugar para se estar: onde tudo parece interminável e se reencontra a riqueza das cores, a nobreza do espaço e a verdade do silêncio. Já se foram, há muito, os anos em que procuravas o rosto daquilo que amanhã serias; não te esqueças agora.

     E, na cidade, onde amiúde foste objecto de uma adulação protectora, as pessoas não vão estranhar a tua prolongada ausência: ficarão até satisfeitas por te não ver. Se alguma ideia tens ela deriva do conhecimento da tua inutilidade.

     O inverno vai ser longo e áspero. E há augúrios de morte reconhecíveis nos cômoros, nas azinhagas, na falésia, na solidão rumorosa dos bosques, no vulto das gaivotas pousadas nas ondas a distâncias iguais. Tudo incita a uma vontade de submissão, de passividade, a um sentimento de abandono, a uma retenção dos pensamentos e a uma presença obsessiva de eternidade. Refaz maquinalmente os episódios mais assinaláveis dos últimos dias, relaciona-os com outros, mais remotos, improvisa cenas, empreende situações que não perturbem os finais que escolhe. Sente-se no interior de um tempo suspenso, errando por obscuros labirintos nos quais pessoas sem forma deambulam como que por um pesadelo irregular.

     Ergue-se do banco e dirige-se, lentamente, para a azinhaga. Dissolveu-se a estranha sufocação de cerco. Pára um pouco, olha em redor de si, para a noite e para as sombras. Um pássaro de largo porte voeja pesadamente num círculo largo; depois desfaz o rumo e integra-se na escuridão. Ouve um piar prolongado. O recorte do casario parece alterar-se. O vento traz consigo um odor acre, e distingue o som profundo das águas do mar; folhas de árvores e esporos vagabundos redemoinham. Um murmúrio, um sussurro, algo de impalpável, nada de importante.

     O inverno vai ser longo e áspero.

     Vou ter muito tempo para recordar.

 

                                                                               Baptista Bastos 

 

 

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