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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM LORDE IRRESISTÍVEL / Ana Seymour
UM LORDE IRRESISTÍVEL / Ana Seymour

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM LORDE IRRESISTÍVEL

 

                   Inglaterra, 1130

Era um dia diferente. Em volta do pátio da estrebaria uma geada cristalina de­lineava as árvores e cercas com um galão branco. O hálito de Connor escapava de seus lábios em nu­vens enquanto ele tentava se desvencilhar dos bra­ços fortes do irmão que o segurava com força.

— Acho que você aumentou um quilo da última semana para cá, Martin — Connor falou, arquejante.

Padre Martin, frade da congregação de St. John, empurrou com o ombro o rapaz e ambos rolaram pelo solo gelado.

— Você é que ficou mais fraco, meu irmão. É melhor que ponha de lado seu alaúde e se dedique mais aos exercícios físicos.

Connor afastou o corpo volumoso de Martin a fim de poder se levantar, e depois sentou-se.

— Não estou tão fraco a ponto de não conseguir atirá-lo longe, Martin.

— Tente isso, tente, e verá — Padre Martin desafiou-o.

Connor sorriu e respondeu:

— Não faço tal coisa porque tenho muito respeito pela Santa Madre Igreja.

— Agora uma pergunta — o padre sussurrou, res­folegando. — Há quanto tempo você não comparece às preces vespertinas? E há quanto tempo não se confessa?

Connor levantou-se do chão, ofereceu a mão a Martin para ajudá-lo, e comentou:

— Tenho motivos para evitar o confessionário.

— Como seu assistente espiritual, gostaria de sa­ber que motivos são esses — Padre Martin falava solenemente, porém havia uma sombra de sorriso em seus lábios.

— Você é meu irmão de sangue, mas não meu pai. Não há leis na igreja que possam mudar isso.

— Bem, mas quero ouvir a razão de qualquer forma. Por que tem negligenciado tanto os sacramentos?

— Juro por todos os santos, Martin, que se eu fizesse uma confissão verdadeira, arruinaria a re­putação da metade das moças de Lyonsbridge. O cavalheirismo não é, por acaso, uma virtude aos olhos da igreja?

Connor acreditou ter visto um ligeiro tom rosado no rosto do irmão. Não pela primeira vez, ele se perguntava o que seria se ele, Connor, fosse o ter­ceiro filho, em vez de ser o primeiro, destinado por­tanto a dar sua vida à igreja. Sentiu um tremor percorrer-lhe a espinha. Mas claro, sendo os boatos verdadeiros, o voto de castidade dos padres não era seguido por vários membros das santas ordens. Em­bora Connor soubesse que Martin, apesar da natu­reza jovial, levava sua vocação a sério.

Como para confirmar o pensamento do irmão, pa­dre Martin franziu a testa.

— Você devia se confessar, Connor. Mas, consi­derando-se a quantidade de seus pecados, ficará por certo muito tempo no confessionário, garanto.

Connor começou a andar de um lado para o outro pela estrebaria. Era tarde e passara já a hora de alimentar os animais.

— Seria bem mais seguro e prudente se a relação dos pecados que cometi jamais saísse de meus lábios, Martin. Mas diga-me, você tem tempo de me ajudar com os animais?

Padre Martin tentou acompanhar o irmão, embora a batina lhe atrasasse os passos.

— Tenho tempo, sim. Irmão Augustine foi desig­nado para fazer as preces esta noite.

— Talvez algum dia eu satisfaça seu desejo, Mar­tin, e confesse meus pecados.

O padre riu muito e disse:

— Desista, irmão. Aposto que o único exercício que você tem feito ultimamente foi na cama com uma mulher.

Connor examinou o irmão. O rosto estava rosado devido ao frio, o que deixava os olhos dele ainda mais azuis. Os cabelos que restavam em volta da tonsura eram louros, idênticos aos de Connor. Antes de Martin fazer os votos, ele e Connor pareciam gêmeos, embora houvesse quatro anos de diferença de idade entre os dois. Atraentes e fortes, os três irmãos Brand começaram a virar a cabeça das mu­lheres da cidade desde muito jovens. Suas aventuras provocaram ultraje e admiração em igual medida.

— Você não tem saudade das mulheres, Martin? — Connor lhe perguntou, porém com certo cuidado.

Padre Martin hesitou durante alguns segundos, em seguida sacudiu a cabeça.

— Deixo as mulheres a seu cargo, Connor, e me lembrarei de você em minhas preces todas as noites, uma vez que está decidido a arriscar perder sua alma imortal.

Eles chegavam ao portão maciço da estrebaria de Lyonsbridge. Era bem sabido que não havia cavalos me­lhores em toda a Inglaterra. O pai de Connor importara animais puros-sangues de lugares distantes como a Es­panha, a terra que se orgulhava de seus cavalos.

— Se Deus faz objeção ao prazer de um homem com uma mulher, então é um Deus cruel. Por que quereria ele nos deixar, a nós saxões, com tão pouca alegria em nossas vidas? — Connor comentou.

- Era verdade que a vida não tinha sido fácil para os saxões nos últimos anos. Com o rei normando, Henry, firmemente estabelecido no trono, as lutas terminaram. Mas a miséria continuava.

— Oh, sim. Os tempos têm sido difíceis e acredito que, se o homem e a mulher quiserem e precisarem muito, Deus tolerará um encontro ou dois fora do leito matrimonial — Martin observou.

Connor riu de novo.

— Bom para mim, Martin. Mas não será que Deus tolerará um ou dois encontros desse tipo apesar de seu voto de castidade? Leofric, o moleiro, tem duas filhas, as moças mais lindas que já conheci. Escolhi a mais velha. A mais moça é bem apetitosa, Martin...

Padre Martin interrompeu-o.

— Ficarei de joelhos até meia-noite, em penitência, se você continuar com essa conversa, irmão. Por isso lhe peço humildemente que mudemos de assunto.

— O convento fez de você um santo, lamento. Não posso despertar seu interesse mesmo falando das virtudes de uma mulher?

— Não é das virtudes que você deseja falar, Con­nor, por isso abandone esse tema. Não me disse que tem algo a me contar?  

— E sobre nossos novos senhores que vão chegar.

— Lorde Wakelin em pessoa?

— Não. Parece que o novo lorde de Lyonsbridge não deseja encarar as pessoas cujas terras ele usur­pou. Está mandando um sobrinho e, segundo ouvi dizer, sua filha.

— Lady Ellen? — Padre Martin indagou, surpreso.

— Sim.

— E você não tem curiosidade de vê-la? — Padre Martin passou a mão pelo lombo de um garanhão preto de nome Thunder, uma das melhores monta­rias do estábulo.

Connor sacudiu os ombros.

— Duvido que possa vê-la. Contaram-me que as moças normandas banham-se em leite, dormem com camisola de seda e nunca deixam a luz do dia tocar sua pele de alabastro. Vai me ajudar ou não, Martin? Ávida santa de ociosidade sexual não está sugerindo algo a você?

Padre Martin foi para perto de Connor e voltou ao assunto anterior.

— Fala-se que o rei da França deseja lady Ellen para si. Todos cantam sua beleza.

— Deixe-os cantar. Escolherei uma linda inglesa para mim, qualquer dia desses. Não quero saber de normandas — Connor declarou.

— Sim, aposto que encontrará logo essa inglesa.

 

Mas até eu fico curioso em saber se a beleza de lady Ellen faz jus às baladas que cantam para ela.

— Curioso, você disse? — Connor riu muito. — Talvez a esperança não esteja totalmente perdida em seu caso, Martin.

Os ingleses se ressentiam muito da invasão dos normandos em seu território. No século onze a Normandia já era um dos mais importantes estados da Europa e os duques normandos lançavam mão de princípios feudais para aumentar seu poder. Tinham o direito de legislar e aumentar os impostos por todo o ducado. A força do governo normando permitiu ao duque William conquistar a Inglaterra em 1066. Com a morte de William o controle da Normandia e da Inglaterra foi disputado entre seus filhos, e as duas arcus acabaram sendo reunidas sob o comando de Henry I, em 1106. Depois da morte de Henry, em 1135, a Normandia foi conquistada por Geoffrey Plantagenet, conde de Anjou, e marido da filha de Henry, Matilda. O desenvolvimento político da Normandia continuou por muito tempo ainda. O sistema jurídico foi estabelecido, e a coleta de impostos centralizada.

— Eu sabia que a Inglaterra era atrasada, pri­mitiva, mas nunca pensei que fosse também muito mais fria do que a cela do próprio diabo — Ellen de Wakelin comentou, tremendo de frio.

Sebastian Phippen riu olhando para a prima e fez o sinal da cruz sobre o peito.

— Não admira seu pai a ter exilado, Ellen, com a língua afiada que você tem.

Ellen acomodou-se melhor na sela.

— Não é exílio. Meu pai pediu-me para vir a Lyonsbridge porque deseja que aqui seja feito um bom governo normando. Ele disse que negligenciou este lugar durante muito tempo.

— Por isso me pediu para ocupar a posição dele como castelão — Sebastian explicou. — Embora seja, acima de tudo, um prazer para mim ficar em sua companhia, querida prima.

— Não pense que estou gostando de estar aqui, Sebastian. Por isso, quanto mais depressa pusermos em ordem o lugar e voltarmos a nossa querida Nor­mandia, melhor.

Ellen olhou para o campo muito verde. Aqui e ali, as gotas de geada brilhavam à luz do sol poente. Era lindo, e ela provavelmente estaria adorando a caval­gada se não estivesse com os dedos tão doloridos por segurar as rédeas da montaria. Não se queixara, pois fora idéia sua prosseguir viagem, mesmo sabendo que não chegariam ao castelo antes da noite.

— Devíamos ter parado numa hospedaria para descansar — Sebastian resmungou, erguendo as mãos, uma de cada vez, com o fim de assoprar os dedos. Virou-se para falar com um dos seis guardas acompanhantes. — Quanto falta para chegarmos?

O homem interrogado aproximou-se de Sebastian, ficando ao lado dele e assim ocupando quase toda a estrada com os enormes cavalos.

— Cuidado, homem — Sebastian gritou. A mon­taria dele empinou, mas Ellen manteve a sua per­feitamente controlada.

— Essas infernais colinas são todas iguais — o guarda informou. — Mas acho que estamos quase lá.

— Espero que você esteja certo. É quase noite agora. — Sebastian lançou um olhar de desaprova­ção à prima e perguntou ao guarda. — Há soldados patrulhando as estradas durante a noite?

— Não nestes últimos cinco anos. Antes disso, naturalmente, porque   as lutas eram violentas. Lyonsbridge foi um dos últimos territórios a se en­tregar às leis normandas.

— Talvez por isso o rei Henry tenha ganhado a confiança de lorde Wakelin. — Sebastian informou o homem com um sorriso aberto. — Ele sabia que se tratava de um guerreiro capaz de controlar o povo com mãos de ferro.

— Como já lhe disse, milorde, não houve pro­blemas nestes últimos anos. Lyonsbridge esteve em paz.

— E espero que continue assim — Sebastian disse, esporeando sua montaria.

Ellen presenteou o soldado com um sorriso, e ele trouxe à tona uma expressão de encantamento. Com mais de vinte anos de idade, e linda, era de estra­nhar Ellen continuar solteira. Mas não por falta de pedidos de casamento. Seu pai recebera vários des­ses pedidos, vindos dos quatro cantos da Europa, porém Ellen não encontrara ainda o homem que considerava merecedor de seu afeto. O pai aceitava as exigências de Ellen pois, sendo sua única filha, relutava em deixá-la sair de casa para se casar.

Lorde Wakelin com certeza não teria consentido em se separar dela com a viagem à Inglaterra, não fosse pelas desavenças que Ellen provocara recentemente en­tre dois príncipes de principados rivais. Ambos lutaram para conseguir seus favores, porém ela não tinha intenção de concedê-los a nenhum dos dois. E, nas lutas, um dos príncipes ficara gravemente ferido.

A última réstia de sol desaparecia atrás de um maciço de árvores, e imediatamente o frio aumentou. Ellen tremeu de novo e escondeu as mãos embaixo dos braços. Não se preocupava em deixar as rédeas soltas, confiava em Jocelyn para continuar sem governo na estrada.

— Acho que posso divisar o castelo ao longe — disse Sebastian, apontando para a frente.

Ellen segurou a respiração. Depois de uma curva na estrada o pequeno castelo apareceu, as pedras vermelhas bem visíveis e brilhantes ao sol que sumia aos poucos.

A estrutura era dominada por duas imponentes torres, uma quadrada à esquerda e uma octogonal à direita. As torres escuras e o entalhe saliente das ameias contra o rosado do pôr-do-sol proporcionava extraordinária vista.

— Aquele é o castelo de Lyonsbridge? — ela per­guntou, atônita.

Sebastian também ficou impressionado. Mas, como sempre, fez comentários num sentido negativo.

— Não é tão grande como nos informaram — disse.

— Não é grande como Wakelin — ela argumentou. — Mas duas vezes mais lindo. — Ellen esporeou o cavalo iniciando pleno galope e deixando o primo, que vinha logo atrás, envolvido numa nuvem de poeira.

— Ellen! — Sebastian gritou. — Volte já! Isso não tem cabimento. Não corra tanto.

Ele galopou atrás da prima, mas a enorme égua que ela montava continuava em desabalada louca pela estrada, longe dos comentários daqueles que a acompanhavam.

— Devemos segui-la, milorde? — um dos guardas perguntou.

— Não. — Sebastian sacudiu a cabeça. — Nós a alcançaremos logo, não se preocupe.

— Perdão, milorde, mas saberão os vassalos quem é ela se chegar assim sem acompanhamento? — o guarda persistia.

— Se não souberem — respondeu Sebastian com um sorriso gélido —, pode ter certeza de que lady Ellen os fará consciente disso em pouco tempo.

Connor e padre Martin saíram da estrebaria de braços dados. Embora o frade fizesse visitas frequen­tes ao irmão na casa onde passaram a infância, ha­via sempre um quê de tristeza no momento da se­paração. Não podiam se esquecer dos dias despreo­cupados quando nem o envolvimento com os nor­mandos, nem a inevitável sina de Martin com a igreja, obscurecia o entusiasmo da juventude pela vida. Tanta coisa mudara! E como mudara!

— Quando verei você outra vez? — Connor per­guntou a Martin, segurando-lhe a mão.

Padre Martin endireitou o corpo, puxou a mão, mais uma vez voltando a ser o frade da St. John, proibido pela lei da igreja a desnecessários contatos carnais com uma alma vivente.

—   Talvez logo, se os visitantes normandos mandarem me chamar para celebrar uma missa para eles.

Connor franziu a testa.

— Dirá aos normandos quem é você?

— Para todos os efeitos, sou padre Martin, o ca­pelão local. É tudo que terei a dizer.

— Você não mencionará que os compatriotas desses mesmos visitantes que vão chegar, os norman­dos, mataram seu pai e irmão, como também ma­taram sua mãe? — A expressão do rosto de Connor endureceu.

— Isso é passado, Connor. — Martin suspirou.

— E você fez um juramento de esquecer o passado.

— Não precisa me lembrar do juramento feito no leito de morte de nossa mãe, Martin — Connor de­clarou, empertigado.

— Sim, eu sei, mas é que... — Martin colocou a mão em pala para proteger a vista do sol. — Jesus, o que é aquilo?

Connor seguiu a direção do olhar do irmão e viu algo na estrada.

— Quem quer que seja, deve ser um louco para cavalgar desse jeito num solo escorregadio, como é o da estrada.

— E trata-se de uma mulher — Padre Martin acrescentou, com espanto.

Connor já tinha visto que era uma mulher. Em­bora em sela feminina, com as saias esvoaçantes a sua volta, ela cavalgava como um homem, demons­trando absoluta segurança.

— É uma louca, sem dúvida — Connor confirmou. A mulher aproximava-se com tanta rapidez que se tornava difícil ter uma visão clara da silhueta dela, mas a vestimenta era a de uma pessoa abas­tada, e a montaria parecia de excelente origem. Quando a amazona chegou bem perto dos dois ir­mãos, eles logo adivinharam qual a identidade da recém-chegada.

— Sua curiosidade vai ser satisfeita agora, Martin

— Connor comentou.

— Ela veio sozinha? Onde foi parar o séquito?

— Pela velocidade que a mulher imprimia ao ani­mal, o cortejo deve vir bem atrás — Connor res­pondeu, dando um passo à frente, pronto a erguer a mão a fim de fazer a enorme égua diminuir a marcha, se necessário fosse.

A montaria parou a dois metros dele. Contudo, a mulher não deu atenção nenhuma a Connor, olhan­do apenas para o homem de batina.

— O senhor é o frade de Lyonsbridge? — ela in­dagou, sem preâmbulos.

Padre Martin olhou para Connor antes de responder.

— Sou padre Martin, minha filha, da ordem de St. John, e capelão deste estado.

Ela apontou então para Connor e disse ao padre:

— Pode dizer a esse homem aí que me ajude a apear? E mande-o depois cuidar de minha égua. Tivemos uma viagem longa, ela deve estar exausta.

Connor examinou a amazona dos pés à cabeça. Não quisera confessar a Martin que também tinha curiosidade em conhecer a moça normanda, pois as histórias que ouvira sobre sua beleza e inteligência despertaram-lhe o interesse. Acostumado que estava a essas histórias que geralmente exageravam os fa­tos, deu o desconto, lógico. Porém, ao ver a jovem mulher, sentada na montaria, com uma auréola pro­duzida pelo pôr-do-sol, convenceu-se de que, dessa vez, não houvera exagero. Lady Ellen Wakelin era tudo o que falavam dela, e um pouco mais.

Padre Martin respondeu, com um ligeiro sorriso:

— Sinta-se livre em dar suas ordens ao homem a senhora mesma, milady, uma vez que ele é nosso novo chefe dos cavalariços.

Ellen encarou Connor e pareceu notar melhor o tipo de roupa que ele usava. E, pela primeira vez em anos, Connor deu-se conta de que seu traje não era o mesmo de quando seus familiares eram os senhores de Lyonsbridge. Agora, a túnica e o paletó eram os de um camponês.  

— Cara milady — ele disse, sem que lhe fosse dirigida a palavra —, seja bem-vinda a Lyonsbridge.

Ellen arregalou os olhos e hesitou um momento. Mas logo recuperou seu autocontrole e colocou um pé na mão e o braço no ombro de Connor, a fim de desmontar.

Assim que pisou no solo respondeu ao cumpri­mento amável de Connor, mas depois dirigiu-se no­vamente ao padre.

— Sei que éramos esperados apenas amanhã, padre. Sir William precisa ser informado de nossa chegada.

William Booth servira como magistrado desde a concessão de Lyonsbridge a lorde Wakelin, no ano anterior. Booth fora recentemente elevado à categoria de cavaleiro pelo rei, por ter estabelecido a ordem no que o soberano considerava uma parte ingovernável do país. Porém ninguém questionava sobre os esforços que custaram ao povo que ele subjugara.

Padre Martin fitou Connor, esperando pelos pro­testos de seu irmão. Mas Connor limitou-se a segu­rar as rédeas do animal, observando-a com um sor­riso divertido nos lábios.

— Certamente informarei sir William — padre Martin respondeu. — Mas, filha, onde está o resto de seu cortejo?

— Vem atrás, como sempre — ela disse ao padre. — Meu primo não é conhecido como um dos melhores cavaleiros da Normandia.

— Talvez seu primo tenha bastante bom senso para não forçar sua montaria cansada a subir a galope uma colina gelada — comentou Connor.

Padre Martin e Ellen olharam para ele.

A expressão do padre era um misto de diverti­mento e censura, mas o rosto de Ellen demonstrava irritação.

— Como ousa? — ela indignou-se. Connor sacudiu os ombros.

— Como o bom padre lhe contou, milady, sou o chefe dos cavalariços aqui. Cabe a mim providenciar para que os cavalos não sejam abusados.

Com o fim de confirmar suas palavras, Connor pôs a mão no focinho do animal. Imediatamente o cavalo baixou a cabeça e permaneceu imóvel. Ellen ficou surpreendida, mas sua voz ainda demonstrava irritação ao dizer:

— Venho montando Jocelyn nestes últimos cinco anos e sei de suas possibilidades mais do que qual­quer servo.

Connor teria ficado furioso se não estivesse fas­cinado pelo modo como a raiva aumentava o corado das faces de Ellen. Ele nunca vira mulher tão linda. E os cabelos! Ela não usava, como as moças de Lyonsbridge, touca sobre os cabelos negros que caíam livremente pelos ombros, presos apenas por simples tiara de ouro.

Connor fez por encará-la quando acrescentou:

— Não tenho vínculo empregatício nenhum com sua família, milady. Trabalho como um homem livre.

— Nesse caso é melhor que reflita bem sobre esse seu posto, senhor chefe dos cavalariços, pois sua per­manência aqui depende de minha aceitação.

Connor manteve a expressão impassível. Ele não queria que Ellen ou qualquer outro normando sou­besse do status anterior de sua família em Lyonsbridge. Com a morte do pai, o estado fora tomado pelo filho do conquistador William. Passara por mui­tas mãos antes de chegar ao jovem sucessor, o rei Henry, que recebera Lyonsbridge das mãos do pai de Ellen.

— Tentarei me lembrar disso, milady — Connor sussurrou.

Ellen voltou sua atenção ao padre Martin que observava a troca de palavras com interesse.

— Pode me acompanhar ao interior do castelo, padre? — ela perguntou.

Padre Martin virou-se para Connor, que falava numa voz cheia de ironia.

— Por favor, padre — ele disse. — Conduza a senhora para dentro do castelo. Não podemos deixar uma visita normanda aqui fora, sofrendo o frio ar da Inglaterra, podemos?

Padre Martin sacudiu a cabeça em desaprovação ao tom cínico do irmão. Mas Ellen pareceu não dar atenção a isso e já se encaminhava rapidamente aos portões do castelo. Martin parou perto de Connor e disse:

— Modere sua língua, irmão. Não se esqueça de que vivemos num mundo exclusivamente normando agora.

Depois correu para alcançar a nova senhora de Lyonsbridge.

 

Ao contrário dos castelos muito fortifi­cados de algumas partes da Europa, Lyonsbridge não tinha fosso, não tinha defesas. Além das estrebarias, um grande número de outras construções ficava fora dos baixos muros que cir­cundavam o castelo, e uma pequena ponte atraves­sava a vala indo até os enormes portões de madeira.

Ellen estava acostumada aos castelos da França e do resto da Europa. Eram construções sólidas, mui­to bem protegidas. Os castelos medievais espalharam-se rapidamente pela Europa ocidental a partir do século nove. As fortificações erigidas na França, no século dez, geralmente constavam de alto morro de pedra circundado por um fosso. E lá no cimo ficava o castelo. No século seguinte esse tipo de re­sidência era visto por toda a Europa.

Daí a razão de Ellen considerar a proteção daquele castelo de Lyonsbridge sumamente precária.

— E um empregado diferente dos outros esse chefe dos cavalariços — ela comentou.

Padre Martin fitou-a com surpresa.

E Ellen mordeu a língua, chegando à conclusão de que, após o modo estranho como dispensara o chefe dos cavalariços, sua súbita observação soava fora de hora.

— Garanto que a senhora vai constatar que Con­nor é um empregado valioso, milady — o padre res­pondeu, depois de refletir um pouco, temendo ser imprudente. — Sairá ganhando se resolver tirar vantagem da experiência dele aqui.

— Experiência com cavalos?

Mais uma vez padre Martin hesitou antes de responder:

— Experiência com tudo, com animais, com pes­soas, com o próprio estado.

— Quer dizer que ele está aqui há muito tempo?

— Durante toda sua vida.

Ellen olhou para trás, para além da colina que conduzia às estrebarias, mas o rapaz alto e louro sumira totalmente de vista.

— Toda sua vida? E, apesar disso, não é um es­cravo? Como explica isso?

— Não, milady. A senhora jamais teria chance de ver Connor Brand como escravo de homem algum. Ninguém conseguiria escravizá-lo.

— Parece-me tratar-se de um rapaz obstinado. Padre Martin sorriu, mas tudo o que disse foi um reticente:

— Talvez...

— Bem, nesse caso acho melhor ele não agir de maneira tão obstinada com meu primo. Sebastian não tem temperamento dos mais fáceis.

— Passarei sua informação a Connor, milady. Dois membros da casa real abriram os portões que davam acesso ao pátio do castelo. Um deles carregava um tocheiro, pois já era noite. Ellen saudou-os e entrou para ver o local onde ela iria morar nos próximos, meses.

Embora não tendo podido ver bem a construção de pedra enquanto cavalgava pela estrada, bem ra­pidamente se deu conta de que, conforme imaginara, iria habitar uma parte do mundo muito pouco civi­lizada. Suspirou.

— Este é o pátio central? — ela perguntou ao padre, um pouco desanimada.

— É o único pátio do castelo.

Nesse único pátio do castelo, mal havia espaço para se caminhar, tão atravancado estava. Galhos de árvore para serem usados como lenha na lareira espalhavam-se em pilhas, metade deles bloqueando a pequena escada da extremidade da ponte. Um monte de armaduras enferrujadas acumulava-se à esquerda dos portões, e à direita havia um cabana de madeira, em ruínas, que cheirava a urina.

Ellen torceu o nariz quando passaram por lá.

— Quem está cuidando da limpeza da casa para sir William? — ela perguntou.

Padre Martin deu um pontapé num aglomerado de ossos com que dois cachorros do castelo se di­vertiam, e respondeu:

— Sir William não tem esposa, milady.

Com a chegada deles, os dois cachorros fugiram e se embrenharam pela escuridão da noite.

— Que ele não tem esposa é evidente, logo se vê — Ellen declarou.

— Lá está sir William — disse padre Martin, apon­tando para uma entrada em arco um pouco à esquerda.

O homem que lá apareceu era baixo de estatura, bem mais baixo que Ellen. Quase imediatamente ela pressentiu uma natureza beligerante em sir Wil­liam, e não gostou dele. Más não gostou principalmente por causa da desordem em que encontrara o castelo. Porém seu pai se referira ao magistrado com tanta consideração, que Ellen concluiu que lorde Wakelin estava muito grato pelo modo como sir William pusera ordem no lugar com tão pouca ajuda da Normandia. Ela concluiu que errara ao julgar a eficiência do homem pela aparência do castelo, em particular não tendo ele uma esposa que pudesse ajudá-lo. Na ver­dade, o aspecto de tudo o que vira justificava a razão pela qual seu pai a mandara para lá. Ellen de re­pente se capacitou de sua missão, e cumprimentou com amabilidade o homem que se aproximava.

— Muito prazer em conhecê-lo, sir William — ela disse em resposta às palavras quase ininteligíveis que o homem balbuciara, e ao aceno de cabeça. — Meu pai lhe manda saudações.

— Imaginei que ele viesse com a senhorita. Uma pena não ter vindo. Estou ansioso para que veja como sua propriedade prosperou.

Quando sir William a fitou, Ellen comparou o olhar dele ao de um rato. A cabeça estava raspada à maneira normanda, e a barba preta tinha miga­lhas de pão. Achou-o cômico, e teve vontade de rir, mas segurou seu impulso e disse, com amabilidade:

— Posso ver seus esforços, sir William, e mandarei uma carta a meu pai relatando tudo.

— Obrigado, milady. — Os olhos dele foram dos portões localizados logo atrás de Ellen, para o padre Martin, e de volta a Ellen. — Entendo por que seu pai está mandando o sobrinho a fim de verificar o que foi feito no território inglês que lhe pertence.

— Sir Sebastian, meu primo, deve estar chegando. Ele vinha atrás de mim — Ellen explicou. — Eu estava possuída de uma onda de energia e galopei na frente, para desaprovação de seu chefe dos cavalariços.

Sir William franziu a testa e a expressão de rato que tanto a divertira, de repente ficou mais sinistra.

— Esse chefe dos cavalariços é um grande cau­sador de desordens por aqui — disse sir William e depois, dirigindo-se ao padre: — Desculpe, padre Martin, pois é de seu sangue, mas Lyonsbridge es­taria bem melhor sem pessoas como Connor Brand.

Ellen fitou padre Martin, com expressão inquisitiva.

— Connor é meu irmão — ele explicou, antes de ela perguntar.

— Seu irmão? — Ellen não podia entender por que fora tão grande surpresa saber que o homem que encontrara nas estrebarias era irmão do padre. Agora sabendo, notou de imediato a semelhança en­tre os dois. Ambos possuíam a mesma feição atraen­te, o mesmo sorriso. O padre tinha um aspecto pe­sado sob a roupagem, enquanto que o outro, ela lembrou-se corando muito, possuía sem dúvida uma estrutura bastante muscular.

— Talvez eu devesse ter mencionado nosso pa­rentesco desde o início — padre Martin desculpou-se.

— Irmão ou não irmão — sir Wiliam resmungou —, ele tem sido como um espinho em minhas vestes desde o dia em que pus os pés em Lyonsbridge.

Como o padre Martin não respondesse nada, Ellen perguntou:

— Então, por que não despediu o homem se não gosta dele?

— Connor é muito bom com os cavalos. — Sir William deu de ombros e sacudiu a mão. — Mas chega de vermos esta parte do castelo. Vamos entrar. Deixe-me mostrar-lhe o interior.

Ellen pôs a mão no braço que sir William lhe oferecia e deixou que ele a conduzisse através do pátio na direção das escadas, mas continuou intri­gada com a resposta que ele lhe dera sobre Connor. Parecia-lhe estranho um magistrado a cargo da ad­ministração de um castelo conservar a seu serviço um criado que ele detestava, não importando quão eficiente o rapaz pudesse ser no trato com os ani­mais. Havia mesmo algo especial em Connor Brand. Era um homem diferente, como dissera ao padre. Sem dúvida. E o mais estranho de tudo era que ela, a senhora de toda a propriedade e aclamada pelos mais nobres homens da cristandade, parecia não poder banir o chefe dos cavalariços de seus pen­samentos. Sentia-se igual ao magistrado, que não conseguira mandar embora o criado.

A geada do dia anterior sumira durante a noite, deixando uma névoa que cobria as árvores e a relva. Não era uma boa manhã para se cavalgar. Porém, depois de tomar um bom desjejum constante de pão e da forte cerveja inglesa, Ellen foi para as estre­barias. Seria interessante, dizia a si mesma, dar uma olhada em Jocelyn para ver como sua égua querida se sentia depois da dura jornada da véspera.

Estava já a alguns passos de uma das estrebarias, e tentando se convencer de que Jocelyn afinal provaria ser sua única alegria naquele local, quando, subitamente, o alto vulto do chefe dos cavalariços emergiu do meio da neblina. O coração de Ellen acelerou.

Mais uma vez, ele não esperou que se lhe dirigisse a palavra antes.

— Bom dia, milady — disse Connor. — Levan­tou-se cedo. Os pardais ainda dormem, aposto.

Ellen decidiu pôr de lado sua irritação ante o atre­vimento do empregado. Talvez na Inglaterra as ma­neiras não fossem tão formais como na França.

— Você chegou aqui antes de mim, Brand.

— Sei disso, mas o caso é que eu não passo de um criado cuja missão é trabalhar muito e desde cedo. A senhora é uma mulher nobre, criada exclusivamente para o prazer.

A resposta adequada a comentário tão fora de propósito seria ignorá-lo, mas o tom divertido de Connor ao se manifestar a fez responder:

— Porém acontece que vim à Inglaterra para su­pervisionar uma casa que me parece necessitada de mão firme, convém que você saiba. Não vim para me divertir.

Connor deu mais um passo para perto dela. E parou. Seus olhos muito azuis percorreram atrevidamente o corpo de Ellen, de cima a baixo. Sorriu e disse:

— Admito que não consigo vê-la tecendo sossega­damente sua tapeçaria o dia inteiro.

Ellen estava bem junto dele, o olhar de ambos no mesmo nível. Connor continuou encarando-a, sem lhe pedir desculpas. Por alguns segundos, ela não desviou o olhar. Depois, deu-se conta de que seu rosto queimava e de que tinha um nó na garganta. Deu um passo atrás.

— Eu lhe agradeceria se não me visse de jeito algum — ela disse, num tom de voz não tão impe­rioso como gostaria que tivesse sido.

Connor sorriu abertamente.

— O poderio normando roubou de nós, saxões, muitas coisas, milady, mas não conseguiu roubar nossos pensamentos, tampouco nossas fantasias.

Na Normandia um servo seria chicoteado por ta­manha insolência, mas, em vez de castigá-lo, Ellen se viu discutindo com ele:

— O poderio normando trouxe para os saxões mui­to mais do que tirou.

Connor ergueu as sobrancelhas.

— É a opinião de uma lady normanda?

—Sim — Ellen respondeu com firmeza. — É a opinião de uma lady normanda.

— Talvez um dia desses milady me informe sobre essas maravilhas que nossos conquistadores nos trou­xeram. Mas, no momento, preciso ir-me para cuidar das estrebarias de meus senhores normandos.

Aquele homem não era nada igual a qualquer ser­vo que ela havia conhecido em sua vida e Ellen não entendia por que continuava ela ali em pé, conver­sando como uma criadinha, mas deixando-o falar quase o tempo todo, e daquela maneira. Tinha algo a ver com o fato de as batidas de seu coração ainda não terem se regularizado depois do instante em que o vira, saindo da neblina?

Uma coisa era certa. Se ela quisesse mesmo pôr ordem naquele lugar, teria de começar por se controlar. — Você se esquece, Brand, de que se meu primo o ouvir falando comigo como falou há pouco, o man­dará para o rei a fim de ser castigado por rebelião.

— Ellen ficou muito contente por notar que, dessa vez, falara com a cabeça erguida.

Connor lhe deu as costas indo na direção das estrebarias, apanhando no caminho um garfo de jar­dim que estava encostado no muro. Por cima do ombro, disse:

— Julgou-me mal, milady. Sou um homem de paz.

— Não concordo. Você e seu irmão não parecem feitos da mesma massa. São completamente diversos.

Connor encarou-a, surpreendido, e perguntou:

— Quer dizer que ele lhe contou?

— Padre Martin? Claro que me contou.

— Nossos destinos nos proporcionaram rotas dife­rentes, mas caminhamos em direção ao mesmo fim.

Ellen sacudiu a cabeça. Estava muito confusa. E finalmente transformou em palavras o pensamento que a atormentava desde a véspera, quando o viu pela primeira vez.

— Você não fala como os demais chefes dos ca­valariços que conheci.

Connor enterrou a ponta do garfo no solo, virou a cabeça e deu uma gargalhada.

Havia, sem dúvida, um sentimento de indepen­dência naquele empregado que a deixava totalmente perdida.

— Falo sério — ela insistiu, sua voz subindo um tom. — Quem é você, afinal? Padre Martin disse que morou aqui toda sua vida.

— Isso é verdade, milady. Mas... quem sou eu? Bem, sou seu empregado da estrebaria, seu treina­dor de cavalos, seu chefe dos cavalariços. — Ele deixou o garfo espetado no chão e foi para bem perto do lugar onde Ellen estava. Muito suavemente, sus­surrou: — Sou seu servo fiel, milady.

A voz de Connor penetrou nela até o fundo. Os dois permaneceram lá por um momento, olhos nos olhos, enquanto o sangue subia ao rosto de Ellen. Ela engoliu em seco uma vez, mais uma vez, antes de dar uma resposta que soou não muito mais forte do que um sussurro.

— Sim, saxão, você é meu servo. Então trate de se portar como tal.

Connor gostava de mulher, era seu fraco. E sempre tivera muitas a escolher. Desde bem jovem, quase um menino, não conseguia viver sem elas. Seus dois irmãos não eram indiferentes a mulheres, mas não tão ansiosos em tê-las sempre ao lado, como ele. Con­nor costumava dizer que a mulher fora a melhor, a mais perfeita criação de Deus. Morria de pena do irmão Martin, pois, de acordo com a religião, não podia pensar na possibilidade de ter uma mulher consigo na cama. Contudo, muitas vezes, para se consolar, admitia para si mesmo que Martin devia enganar a igreja de vez em quando, muito de vez em quando. Mas logo se arrependia de seu pensamento pagão.

— Que bicho mordeu você hoje, Connor? — Padre Martin perguntou, irritado pelo fato de o irmão o haver evitado pela terceira vez desde que chegara ao castelo, no meio da manhã.

Connor colocou na relva o balde que vinha car­regando e sentou-se no chão, perto do padre.

— Perdoe-me, Martin. É por causa dessa infernal neblina, sem dúvida. Conduz-me à melancolia.

— Você sempre adorou dias encobertos. Connor olhou ao redor. Era meio-dia e mal se podia ver o castelo do lugar onde estavam. Ele suspirou.

— Talvez. Eu amava muitas coisas nos velhos tempos, coisas que não amo mais agora.

— Está melancólico mesmo, meu irmão. Não é bem de você tanta tristeza. Acho que tem a ver com a chegada dos normandos ontem. Em especial com a chegada de certa mulher normanda.

Connor olhou na direção do castelo, na esperança de ver aquela certa mulher vindo a seu encontro, como acontecera pela manhã. Na ocasião, Connor não dera sinal aparente algum de que a mulher o sacudira, mas o impacto fora profundo e violento. Não que estivesse por longo tempo privado da com­panhia de mulheres. Havia sempre muitas delas, na aldeia, prontas a satisfazer suas necessidades e a lhe proporcionar divertimento. Mas ele não podia se lembrar de a presença de uma mulher o ter afetado tão completamente. Percebera qualquer coisa na véspera, na primeira vez em que pusera os olhos nela. Mas naquela manhã, quando Ellen emergiu da neblina como uma fada rainha, ele perdera até a capacidade de refletir.

Ellen roubara-lhe a razão. Conversara com ela ousadamente, sem pensar nas consequências, coisa que jamais teria feito se estivesse na plena posse do raciocínio. Aquilo não poderia acontecer de novo. Tinha muitas responsabilidades para ser tão inconsequente.

— De fato, a moça me deixou estonteado — Con­nor confessou a Martin.

Padre Martin ficou atônito com a confissão, e preo­cupado também.

— Connor, você nunca poderia... —Martin parou de falar e colocou a mão no ombro dele. — Ela é uma normanda, irmão.

— Eu sei. Sabe como sou, não, Martin? Sei que não devo me esquecer de meu... — ele olhou à volta do pátio da estrebaria... —, de meu lugar em Lyonsbridge. Vejo nossa situação com bastante clareza. Reconheço que é caótica.

Padre Martin sentiu imenso alívio com a confissão de Connor.

— Imagino que você a verá com muita frequência e se acostumará a isso. Parece-me que se trata de exímia amazona.

Connor deu um pulo e sorriu para o irmão.

— Ora, ora, não há lei que proíba olhar para uma mulher bonita, há?

— Não no seu mundo, Connor — o padre observou.

— Ah, Martin, Deus não castigará você se der uma olhada ou duas. Quando estiver rezando missa hoje, tente fitá-la e diga-me se não acha que os olhos dela são de ouro.

Com mais dificuldade do que o irmão, por causa da gordura, padre Martin sentou-se no chão, sacu­dindo a cabeça. Esboçou um sorriso triste.

— Já olhei, irmão, e é verdade. Os olhos dela são de ouro puro, uma cor que eu nunca havia visto antes.

Lady Ellen não apareceu nas estrebarias nos dois dias seguintes. Sua égua, Jocelyn, estava inquieta na baia, e Connor a fez andar no pátio, segurando-a pela rédea a fim de exercitá-la um pouco, pois sabia como isso era importante para um animal de raça. Tratava-se de uma égua linda, que ele adoraria mon­tar, mas decidiu ser prudente e esperar as ordens da patroa, em especial depois das declarações que ele fizera naquela manhã.

Connor ainda se censurava por ter perdido seu controle habitual, e daquele jeito. No leito de morte do pai prometera cuidar dos habitantes de Lyonsbridge, e no leito de morte de sua mãe jurara manter a paz na região. Não poderia fazer nenhuma das duas coisas se enfurecesse os normandos a ponto de eles poderem mandá-lo embora.

Uma vez que a beleza da nova senhora de Lyonsbridge fizera renascer a chama que ele tivera tanto cuidado em manter apagada, Connor achou que a melhor solução seria manter-se longe dela. Devia ter ficado contente por Ellen não tornar a aparecer nas estrebarias. Contudo, apanhou-se olhando para o castelo várias vezes durante o dia, esperando vê-la indo a seu encontro.

Naquela manhã, não foi lady Ellen quem enfim surgiu descendo a colina, mas John, o filho do tanoeiro. Connor consertava a ferradura de um dos cavalos dos normandos. Fez uma pausa em seu trabalho a fim de cumprimentar o menino com um sorriso.

— Alô, amigo. Mais devagar. Por que tanta pressa numa manhã tão linda?

John escorregou e parou bem perto de Connor. Recobrou o fôlego e disse:

— Bom dia, master Connor.

Connor encantou-se com a cortesia infalível do menino, mesmo estando ele obviamente agitado.

— Bom dia, John. Agora conte-me o que o preocupa. Mudando sua posição de um pé para o outro, John derramou seu discurso.

— Sinto muito incomodá-lo, master Connor. Não me esqueci de suas palavras na aldeia, para darmos aos novos senhores uma chance. Todos nós estamos tentando, na verdade estamos. Mas sabe que minha mãe não vai bem de saúde, não sabe? Quase não comeu nos últimos quatro dias e Sarah precisa ficar em casa para cuidar dela. Porém os homens de sir William deram ordens para que todos, sem exceção, comparecessem ao castelo a fim de ficar à disposição da nova senhora.

Connor suspirou e com cuidado ergueu o casco do cavalo de seu colo. O animal não se moveu.

— Você explicou aos homens de sir William sobre a doença de sua mãe? Com certeza eles já ouviram falar de tuberculose.

— Expliquei-lhes e eles declararam que não havia exceções. — O rapaz sacudiu vigorosamente a cabeça e seus cabelos louros agitaram-se como haste de tri­go. — Eles não se importam, esses normandos.

— Por que estão ordenando que todos trabalhem no castelo? — perguntou Connor, colocando o formão ao lado.

— Ela é uma louca, se você quer mesmo saber. — John sacudiu os ombros. — Disseram que lady Ellen quer que se limpe quarto por quarto, do chão ao teto.

Connor não podia negar que uma limpeza com­pleta se fazia necessária. Havia ocasiões em que, quando prestava atenção à sujeira tolerada dentro do castelo de Lyonsbridge, achava que sua mãe devia tremer no túmulo. Connor olhou para as estrebarias a seu cargo e notou que até o feno estava amontoado em perfeita ordem. Embora os ocupantes fossem ani­mais, ele diria sem medo, se lhe perguntassem, que seu domínio era bem mais limpo do que o enorme hall do castelo.

— Uma boa limpeza não é má idéia, meu rapaz — Connor respondeu. — Mas existe muita gente para fazer isso. Não há necessidade de requisitar sua mãe ou sua irmã para isso.

— Já pegaram Sarah. Um dos soldados pratica­mente arrastou-a.

— Arrastou-a? — Ao ouvir essas palavras, Connor levantou-se, no ato derrubando o banquinho que es­tava atrás dele. Sarah Cooper tinha no máximo treze anos, era uma menina bonita, magra, e frágil demais para se defender dos grosseiros soldados normandos.

— Por isso vim falar com você, master Connor. Não consegui fazer com que os homens deixassem minha irmã em paz. Havia muitos deles.

Connor compadeceu-se do menino. Apenas um ano mais velho que a irmã, o jovem John tentara ser o chefe da família Cooper desde que o pai morrera nas mãos dos normandos havia cinco anos. Connor colocou a mão no ombro do rapaz.

— Você fez bem, John. Seria loucura enfrentar um batalhão inteiro. Foi muito bom ter vindo até mim.

— Eles não machucariam Sarah, não é mesmo? — John perguntou, a voz trêmula, o que o fez parecer ainda mais jovem.

— Não, eles não ousariam machucá-la, mas lem­bre-se de que obedecem ordens de lady Ellen. — Con­nor não tinha idéia se suas palavras otimistas eram verdadeiras, mas o menino pareceu aliviado. — Ve­nha, vamos procurar lady Ellen e endireitar isso.

— Você falará com ela diretamente?—John indagou.

Connor começou a colocar o cavalo dentro da es­trebaria. A observação do menino, ele sentiu qual­quer coisa estranha ao longo de seus membros. A imagem dos olhos dourados de lady Ellen Wakelin dançou em sua cabeça.

— Claro, meu rapaz — disse —, falarei com lady Ellen diretamente.

Após haver prometido, Connor sentiu um certo medo. Não propriamente medo de enfrentá-la, mas medo de se apaixonar. O que deveria na verdade fazer era afastar-se de Ellen, fugir dela caso fosse necessário. E não conversar nunca mais com a mu­lher dos olhos da cor do ouro. Como os detestáveis normandos conseguiram produzir coisa tão linda?, ele se perguntava.

Teve dificuldade em conciliar o sono na noite an­terior. A imagem de Ellen não lhe saía da mente. Santo Deus, por que a mulher enviada para super­visionar Lyonsbridge não fora uma bruxa horrenda? Talvez impusesse mais respeito. Até nisso aqueles normandos não agiam com inteligência.

Porém mais uma vez Connor prometeu a si mesmo que não daria passo errado no futuro. Mas, pelo sim ou pelo não, fugiria da linda Ellen.

 

CAPÍTULO III

Ellen escondeu os punhos rendados de sua blusa dobrando-os e enfiando-os por bai­xo da manga comprida da túnica. Por segundos teve vontade de livrar-se das elaboradas roupas que usava e pôr um vestido mais simples, de fazenda grosseira, como o da menina que trabalhava a seu lado. Seu traje e o apertado colete não eram práticos para serviços pesados. Mas, se vestisse roupas de camponesa não mostraria aos saxões o que se usava no mundo civili­zado existente além das fronteiras de Lyonsbridge. Quando seu pai chegasse na primavera para visitar o local, Ellen queria que tudo estivesse em perfeita or­dem, tanto na casa como na mesa, esta bem sortida com alimentação adequada, e desejava também que o povo tivesse tão boas maneiras como os normandos. Portanto, sendo ela a atual castelã, daria o exemplo. Ellen esquecia-se de que Lyonsbridge não era toda a Inglaterra. E esquecia-se, também, de que na Normandia havia outros lugares diferentes daquele em que ela morava. Diferentes no sentido de menos so­fisticados, menos adiantados.

— Esta mesa precisa também ser polida, milady? — a menina que a ajudava perguntou.

As duas tinham acabado de encerar duas cadeiras de madeira maciça, da sala de jantar, especiais para o uso dos donos da casa. O encosto entalhado estava encardido, mas Ellen teve de reconhecer, ainda que a contragosto, que o trabalho de entalhe havia sido tão perfeito quanto o efetuado na Normandia.

— Da mesa vamos encerar apenas os pés. O tampo precisa ser lixado antes. — Ellen parou de trabalhar um pouco e encarou a menina que a ajudava. — Você é Sarah, não é?

— Sou, milady. Meu nome é Sarah.

A menina fitou-a brevemente e logo desviou o olhar, dando impressão de que receava que a patroa a estrangulasse a qualquer momento.

Ellen esforçou-se para se comunicar num tom de voz amigável:

— Você mora na aldeia?

— Moro, milady.

Depois dessa breve troca de palavras, as duas trabalharam em silêncio durante algum tempo, até finalmente Ellen recomeçar com a conversa.

— Quem mais mora com você, Sarah?

— Minha mãe, que por sinal não come há dias, milady. Não consegue comer, está muito doente. Mal fica de pé, imagine só trabalhar.

Sarah estava apavorada, temendo que a mãe fosse castigada por não estar obedecendo às ordens dadas por lady Ellen. O rosto da menina, antes pálido, agora pegava fogo, e ela tremia.

— O que está dizendo, Sarah? E por que todo esse medo, quer me contar? — Ellen franziu a testa.

Lágrimas escorriam pelas faces de Sarah.

— Minha mãe... Os soldados de sir William disseram que todos tinham de trabalhar, todos sem exceção. Mas minha mãe tem aquela doença, sabe, aquela que não tem cura, e ela passou muito mal durante o inverno. Por favor, não a castigue, milady. Minha mãe não pode nem ficar de pé.

Ellen endireitou o corpo, pois inclinava-se sobre a cadeira com a qual se ocupava, e encarou a menina que agora chorava muito e que parecia horrorizada.

— Ninguém vai castigar sua mãe, Sarah. Mon Dieu que idéia!

— Desculpe, milady. Não quis ser impertinente, mas sir William disse que eram ordens da senhora. E falou que minha mãe seria chicoteada se não vies­se trabalhar no castelo.

Ellen ficou estarrecida. Com certeza houvera um mal-entendido. No afã de agradar a nova senhora, ela admitiu, os guardas exageraram em seu entu­siasmo acerca do recrutamento de empregados, re­querido por ela. Mas chegar a ponto de açoitar uma mulher doente? Era demais.

— Você deve ter entendido mal o que disseram os homens de sir William, Sarah. Eles não poderiam ter falado em açoites.

— Não foram os homens, milady. Foi o próprio sir William quem disse isso. É verdade, eu ouvi.

A menina parecia ser muito inteligente. Ellen não duvidava disso, mas como se basear nas palavras de uma criada no julgamento de um magistrado? O assunto requeria mais investigações.

De fato, no regime em que viviam, o feudalismo, Ellen refletiu, os arrendatários prestavam serviço a seus senhores. E, dependendo desses senhores feu­dais, a vida dos habitantes das aldeias podia ser boa, regular, ou péssima. De qualquer modo, deso­bedecer aos senhores feudais era sempre crime mui­to grave. Ellen tinha plena consciência disso, e sabia ser bem difícil contrariar sir William. Porém ela o faria, sendo necessário.

— Quem está cuidando de sua mãe agora? — Ellen perguntou a Sarah.      

— Ninguém. Ela está só, milady. Eu não a teria deixado, mas os guardas forçaram-me a vir.

— Então, volte para sua casa já. Chega por hoje, e não venha aqui enquanto sua mãe precisar de você. Se alguém a importunar, mande que venha falar comigo. Agora corra. Visitarei você amanhã para saber como vai sua mãe.

As lágrimas de Sarah secaram e a menina esboçou um sorriso radioso.

— Oh, milady — Sarah disse com voz embargada. Agarrou a mão de Ellen com ambas as suas e fez uma breve saudação. Em seguida saiu, atravessando a sala de jantar correndo.

Ellen observava-a, perdida em pensamentos. Sua primeira impressão de sir William não fora muito favorável, e até agora o magistrado não fizera nada para que ela mudasse de opinião. Considerava-o ar­rogante e ao mesmo tempo servil, mas Sebastian, o primo, parecia estar gostando muito do trabalho que o magistrado vinha desempenhando na proprie­dade. Não obstante, se estava mesmo abusando das pessoas, ela queria saber. Dirigir bem um estado, era uma coisa. Abusar dos habitantes, era outra bem diversa e desnecessária.

Ellen estava tão absorta em suas reflexões que não viu as duas pessoas que entraram pela porta que ficava atrás dela. Assustou-se quando uma perguntou:

— Podemos falar com Vossa Senhoria?

Era o chefe dos cavalariços acompanhado de um menino. Embora as maneiras dele fossem mais res­peitosas do que haviam sido no outro dia nas estrebarias, falava indicando que o pedido de permis­são era mera formalidade. Não obstante, conside­rando o que acabara de ouvir dos lábios de Sarah sobre o mau tratamento reinante na aldeia, Ellen resolveu ser tolerante.

— Bom dia, master Brand. — Era mais fácil con­versar com ele no castelo do que nas estrebarias. Sentia-se bem no controle da situação embora não soubesse decidir se seria por estar em sua própria casa ou porque a pouca claridade da sala diminuía de intensidade o azul dos olhos dele. Apontou para o menino que chegara com o cavalariço e perguntou: — E seu aprendiz?

— Não. — Connor sacudiu a cabeça. — Este é John Cooper. Ele pediu-me que o ajudasse num pro­blema que está tendo sobre sua família. Explique você mesmo, John.

O menino olhava para Ellen como se ela fosse a Virgem Maria que tivesse descido à terra. Abriu a boca mas não saiu uma palavra sequer.

Ellen olhava de John para Connor.

— Qual é o problema? — perguntou.

— Parece que seus homens pegaram a irmã dele à força, para trabalhar. E John está preocupado — Connor resolveu explicar ele mesmo.

Estava bem junto da cadeira que Ellen encerava. Assim tão perto do chefe dos cavalariços, ela sentiu de novo aquela insegurança que a presença do enor­me saxão provocava. Desde a idade dos doze anos Ellen tivera homens lhe fazendo a corte, tivera ho­mens a sua volta como abelhas em volta da flor. Contudo, aquele chefe dos cavalariços, um simples criado, continuava tratando-a como se tivesse na vida coisas mais importantes do que ela com que se preocupar. Isso fez com que seus joelhos ficassem fracos como se ela fosse a mais inexperiente das donzelas.

John finalmente falou:

— O nome de minha irmã é Sarah, milady. É uma boa menina.

— Se seus homens fizeram mal a ela milady, vão pagar caro por isso — Connor acrescentou.

Ellen ficou furiosa com a ameaça do cavalariço. Porém achou que a expressão de ódio dele aumen­tava sua atração, em vez de diminuir. Santo Deus, Ellen pensava, teria o homem usado de magia lan­çando um encantamento nela como fazia com os ani­mais? Ellen mordeu a ponta da língua até que a dor clareasse a névoa que envolvia sua mente e ela pudesse dar uma resposta adequada. Poderia liberar o menino daquele sofrimento com apenas uma pa­lavra sua, mas antes precisava fazer esforço para que o chefe dos cavalariços reconhecesse qual era seu lugar naquela casa.

— O que tem você a ver com esse negócio, Connor? — Ellen indagou, de cabeça erguida.

— O velho John Cooper morreu há cinco anos e os vizinhos protegem a viúva e as crianças — Connor explicou.

Ellen hesitou. Posto dessa maneira, o interesse de Connor Brand não lhe pareceu tão fora de lugar. Isso embora ela não devesse permitir que o chefe dos cavalariços interferisse nos negócios entre os guardas e os habitantes da aldeia. O melhor a fazer era mandar que master Brand voltasse a cuidar de seus cavalos apenas, mas tinha a impressão de que ele não lhe obedeceria tão facilmente. Enfim, desis­tiu de pensar em como agir e declarou:

— A menina esteve comigo a maior parte da manhã e mandei-a para casa a fim de tomar conta da mãe.

John deu um profundo suspiro e agradeceu, exclamando,

— Obrigado, milady!

— Felizmente Sarah está bem — disse Connor. — O meio mais seguro de provocar revolta na aldeia é importunar as mulheres. Não sei como se faz na Normandia, mas os homens daqui não tolerariam tal atrevimento.

E lá estava Connor novamente lhe dando aula. Ellen ficou furiosa. Agarrou o encosta da cadeira com força.

— Master Brand, acho que já conversamos sobre isso antes. Você não passa de um criado aqui. Eu lhe agradeceria se guardasse seus conselhos sobre como dirigir Lyonsbridge para si. Na verdade, eu lhe agradeceria se guardasse para si suas opiniões em geral. Fale apenas quando for solicitado, assim conservará sua posição mais segura nesta casa.

Connor não pareceu nada impressionado com a ameaça.

— Verá, milady, que posso lhe ser de grande uti­lidade. Se o menino tivesse ido se queixar com outros homens da aldeia em vez de vir a mim, não teria havido progresso algum em sua limpeza hoje. Há homens neste lugar que preferem se amotinar antes de conversar. Mesmo sir William necessitou de mi­nha arbitragem uma ou duas vezes já.

— Sir William teve pouca ajuda logo que chegou. Mas agora que meu primo está aqui com muitos homens de meu pai...

Connor interrompeu-a:

— Mais uma razão para milady ter cuidado. Em geral, os saxões de Lyonsbridge são pacíficos. Porém, quanto mais soldados entrarem em cena, mais chan­ce para haver problemas.

Ellen tentava se lembrar se algum arrendatário ou criado de seu pai havia falado com ele com tanta arrogância. Mas tinha certeza de que lorde Wakelin não toleraria tal comportamento.

— Manter a paz em Lyonsbridge é missão de sir William, não sua, master Connor. Acho melhor você se limitar a ficar em seu domínio sempre, que é a estrebaria.

Connor pareceu querer dizer alguma coisa. Mas resolveu se calar. Uma sombra de sorriso brincou em seus lábios, o que fez ressurgir a fúria de Ellen.

— Onde ficam seus aposentos no castelo? — ela lhe perguntou, não resistindo ao impulso de man­dá-lo dormir com os criados menos categorizados.

— Não durmo no castelo, milady. Meu lar é nas estrebarias.

Ellen arregalou os olhos.

— Você dorme lá? Na Normandia, nem mesmo o mais humilde dos criados dormiria com os animais.

— Verdade? — Ele abriu um sorriso. — Sinta-se à vontade para me fazer uma visita, milady.

Ambos haviam se esquecido da presença de John. O menino tossiu, Connor virou-se então e disse:

— Vá embora, rapaz. Vá se encontrar com sua mãe e irmã.

John olhou para Ellen, duvidoso. Ela fez um aceno afirmativo de cabeça e John saiu correndo.

— Eu é que deveria ter despedido o rapaz, não você — Ellen protestou.

— Claro. E foi o que fez, com seu ligeiro aceno de cabeça, não foi? — Connor respondeu, divertindo-se.

O homem é de enfurecer qualquer um. Não havia outra palavra para isso. Ellen endireitou os ombros e ordenou:

— Você está dispensado também, master Brand, Providencie para que minha égua esteja arreada e pronta amanhã ao meio-dia.

— Estarei sempre a sua disposição, milady — Con­nor respondeu com uma saudação exagerada, sem desviar o olhar.

Como ele não fizesse movimento algum para se retirar, Ellen jogou longe o pano que segurava na mão e virou-se para ir embora. Podia sentir o tempo todo o olhar de Connor queimando-lhe as costas, até sair da sala.

Ele tinha a impressão de que, apesar de sua ma­neira imperiosa, Ellen esperava ansiosamente pelo encontro do dia seguinte, aliás, tanto quanto ele. Os dois não tinham nada em comum e, na verdade, muita oposição. E quando um estava perto do outro surgiam mais faíscas no ar do que da bigorna de um ferreiro. Connor apostaria qualquer quantia que ela sentia isso tão fortemente como ele.

Aquilo era loucura, naturalmente. Não teria sido necessário Martin lhe dizer que qualquer associação, muito menos amizade, entre uma normanda nobre e um empregado de estrebaria saxão seria um ab­surdo. Mas isso não o impediu de se revirar na cama a noite toda, pensando nela. Contudo, na manhã seguinte, teve vontade de deixar um de seus ajudantes cuidando das estrebarias e de apressar-se para fazer sua visita ao irmão na aba­dia. Teve uma premonição de que os futuros en­contros com lady Ellen terminariam em problemas para ambos.

Ele ainda refletia sobre essa sua covardia de fugir, quando a viu descendo a colina. Era mais cedo do que fora combinado, o que não lhe deu tempo de escapar. E notou imediatamente que ficara muito alegre com isso.

Connor cumprimentou-a com um sorriso, mas des­sa vez deixou que ela falasse antes.

Ellen pareceu não saber o que fazer. Após segun­dos, disse:

— O sol enfim surgiu para nos aquecer. Ótimo!

— É verdade. Dia lindo para um passeio a cavalo, milady. Mas perdoe-me, ainda não encilhei sua mon­taria. Demorarei apenas um minuto. Sua Jocelyn não é uma égua difícil.

Ellen usava um vestido verde que tornara a co­loração de sua pele mais atraente que nunca. Connor se deu conta de que a fitava a ponto de ser rude.

— Esquisito. — Ela ergueu uma sobrancelha. — Na Normandia, os rapazes da estrebaria fugiam para não ter de cuidar dela. Diziam que Jocelyn era muito arisca.

— Todos os cavalos são por natureza ariscos, como os demais seres vivos. Mas ficam dóceis quando entregues a mãos certas. Notei, por exemplo, que milady não tem dificuldades com a égua.

— As pessoas dizem que Jocelyn é montaria para uma mulher apenas. Não age igualmente com nin­guém mais.

— Ah! — Connor sorriu. — Vou arreá-la já. Quer ver?

Ellen seguiu-o para dentro da estrebaria, um edi­fício escuro, com duas carreiras de baias, uma a cada lado de um corredor central.

— Vocês têm muitos cavalos, master Connor — ela comentou.

Connor diminuiu a marcha, para não andar muito na frente dela.

— Não, milady, a senhora tem muitos cavalos. Estes animais pertencem a lorde de Lyonsbridge. Sempre pertenceram. — Connor manteve sua voz num tom calmo. Não queria cometer impru­dências e cair na desgraça de seus senhores, os normandos.

— Lindos animais — observou ela. — Maiores do que os nossos.

— Sim. E mais fortes também. — Connor sorriu. — Prefiro não dizer que os animais são uma cópia dos saxões, não dos normandos, mais fracos, para não irritar milady hoje.

Ellen estava em pé perto de uma abertura por onde penetrava um raio de sol. Com seu traje de montaria, de couro, era tal qual rainha inatingível. Porém, quando ela sorriu, Connor sentiu um suave pontapé no peito.

— Em tal caso vou fazer esforço para não me irritar hoje — ela disse. — E pode se orgulhar da força dos saxões, se quiser. Testemunhei o fato on­tem, enquanto limpávamos o castelo.

— É o trabalho duro que constrói o homem, cos­tumamos falar.

— Concordo. Você, por exemplo, faz dois de meu primo.

Connor vira Sebastian Phippen andando pela pro­priedade na companhia de sir William. O francês era alto mas de aparência frágil e tinha o rosto pálido e magro, comparado às faces coradas e ro­bustas dos residentes de Lyonsbridge.

Connor, naturalmente, achara prudente não fazer esse comentário com a nova castelã. Virou-se e foi na direção da baia de Jocelyn.

Parou a alguns metros de distância da égua e disse a lady Ellen:

— Está percebendo a tensão dela? Tem a cabeça erguida, a cauda contraída. Espera para ver quem está se aproximando. Então fale com ela, e deixe-a saber quem é você. Mas fale suavemente.

Ellen acompanhou, extasiada, a conversa de Con­nor com Jocelyn e observou que ele afagava-lhe o pescoço o tempo todo. O animal abaixou a cabeça imediatamente.

— Veja como Jocelyn lambe os beiços — ele sus­surrou. — Quer dizer que está pronta a cooperar.

Ele colocou a ampla sela no lombo do animal e apertou a barrigueira. Jocelyn nem ao menos le­vantou uma pata em protesto.

— Talvez ela não seja tão arisca como me conta­ram, master Connor. Talvez meus treinadores lá de casa contavam mentiras, exageravam as coisas.

— Talvez — Connor disse simplesmente, depois terminou de fazer seu trabalho. Deu um passo atrás para tirar a égua da baia.

— Você pode me explicar como se vai à casa dos Cooper? — Ellen perguntou.

— Posso, mas... — Ele fez uma pausa. — Milady, perdoe-me a intromissão, mas é costume na Normandia senhoritas andarem sozinhas pelo campo?

Ellen riu muito.

— Não, mas estou acostumada a fazer o que tenho vontade.

— Acredito. Não duvido disso. — Ele sorriu. — Mas recomendo-lhe que tenha cuidado. Se não se preocupa consigo mesma que seja ao menos pelo bem público. Se acontecer alguma coisa com milady, garanto que seu pai transformará esta terra num campo de batalha.

A expressão do rosto dela mudou, e depois de um momento Ellen respondeu, amuada:

— É detestável ser mulher.

Eles já haviam saído da estrebaria e enfrentavam um sol acolhedor.

— Pedindo desculpas a milady para discordar, acho que isso não é nada detestável para nós, homens.

O olhar que ele lhe lançou não deixou dúvidas quanto ao significado de seu comentário. Foi mais ousado do que deveria ter se permitido ser, mas Ellen não pareceu contrariada. Na verdade, suas faces adquiriram um súbito tom rosado.

— Sir William diz. que a ordem foi trazida de volta a Lyonsbridge — Ellen falou, fingindo ignorar o comentário de Connor.

Ele ficou tenso e retrucou:

— Há um certo tipo de ordem, sim, mas isso não significa que se possa tentar o diabo dando-lhe opor­tunidade para fazer algo de mal.

— Fala-se na Normandia que o diabo passeia é por aqui, na Inglaterra — Ellen disse com um sorriso endiabrado.

— E milady não devia ficar tentando o diabo, nem qualquer outra pessoa — Connor censurou-a, e se­riamente. — Se não tem quem a acompanhe hoje, eu mesmo a levarei à casa dos Cooper.

Ele não pretendera dizer isso, e uma súbita luz nos olhos de Ellen, após sua oferta, o fez antever perigo. Como dissera antes a seu irmão, lady Ellen embaralhara sua mente. A última coisa de que pre­cisava agora, para atrair desgraças, era ficar mais tempo na companhia dela. Mas, dizia a si mesmo enquanto arreava Thunder, seria muito pior se a linda castelã tivesse dificuldades em sua primeira semana em Lyonsbridge. Se estava sendo tão imprudente a ponto de querer cavalgar sozinha em área longe de locais habitados, ele tinha obrigação moral de providenciar para que nada de mal lhe acontecesse.

Não que fossem comuns ocorrências desagradá­veis naquela região. Porém não se poderia garantir que, no caso de mulher tão linda como Ellen cavalgar sem escolta, não houvesse algum homem mais ou­sado decidido a arriscar tudo por um sorriso dela. Um sorriso ou algo mais, Connor refletia, agora com cara de poucos amigos.

E era sua obrigação cuidar dela, continuava in­sistindo consigo mesmo, enquanto seguiam juntos pela rota que os conduzia à aldeia.

Depois que a deixasse sã e salva no castelo, pro­curaria Martin e insistiria com o irmão para que fosse falar com lady Ellen e o primo e explicasse da necessidade de se providenciar um acompanhan­te para ela em tempo integral.

Faria esse serviço apenas naquela vez, assim teria o prazer de ver como a linda mulher montava bem, como mantinha o corpo ereto na sela. Cavalgaria com ela só naquele dia... Jurou...

Quanto a Ellen, não podia se lembrar de ocasião em que se sentira tão consciente da presença de outra pessoa a seu lado. Quando Connor se movia, fazendo o couro da sela estalar, seus ouvidos re­gistravam o som como se ele tivesse gritado. Quando Connor a fitava, a pele bronzeada com pequenas rugas no canto dos olhos por causa do sol, Ellen tinha a sensação do toque das mãos dele em seu rosto.

Contudo, pelo modo como as coisas se condu­ziam, podia-se dizer que ambos estavam tensos. Nenhum dos dois relaxava. Um nervosismo estra­nho os consumia.

O dia estava magnífico. Um dia glorioso, na lin­guagem dos britânicos, cheio de sol e com a tempe­ratura perfeita. Mas Ellen não conseguia usufruir nem ao menos o prazer de estar montando sua que­rida Jocelyn, conforme desejara tanto. Em vez disso estava tensa, esperando que Connor falasse, e se perguntando se ela deveria ser a primeira a falar.

Quando o silêncio se prolongou atingindo o des­conforto, os dois falaram juntos.

— Milady...

— Master Connor...

Então ambos riram, juntos também. E ambos re­laxaram juntos na sela.

— Ladies first. — Connor disse.

— Eu ia agora mesmo lhe fazer perguntas sobre a família Cooper. Você disse que o pai havia morrido?

— Disse. Morreu numa das últimas escaramuças antes da paz.

— Quer dizer que foi assassinado pelos normandos?

— Foi, deixando dois filhos e uma mulher grávida, que por sinal deu à luz gêmeos.

Ellen ficou muito tempo sem dar uma palavra.

Depois murmurou:

— Gêmeos! Ficou com quatro filhos, então, e o povo daqui tem boa memória...

— Milady não pode esperar que as pessoas se esqueçam de seus entes queridos mortos: maridos, irmãos, pais.

As feições de Connor endureceram, e Ellen arrependeu-se de haver trazido à baila o assunto da família Cooper.

— Naturalmente que não podem se esquecer — ela concordou prontamente. — Mas também não se esqueça de que há muitas esposas e mães cho­rando a morte de seus entes queridos lá na Normandia. Por isso devemos todos nos alegrar pela paz que finalmente chegou, e nos esforçar para que seja duradoura.

— Amém. Assim espero — ele respondeu, e não mais falou. Mas uma nuvem escura fora lançada no brilhante dia.

Os dois continuaram em silêncio até a aldeia. A atmosfera emocional deles foi de tal maneira pre­judicada que Ellen chegou a se arrepender de ter feito perguntas demais. Porém, reconhecia que o as­sunto da animosidade entre ingleses e normandos teria continuidade durante muito tempo ainda. Não era possível se afastar com tanta facilidade o ódio que se arraigava entre dois povos que disputavam o mesmo território. Com razão ou sem razão, um jamais toleraria o outro, Ellen se convenceu. Jamais?, questionou-se logo em seguida.

 

A aldeia que se desenvolvera em torno do castelo de Lyonsbridge era ainda rústica, em especial do ponto de vista normando. Para uma pessoa que passara os últimos dois anos da vida na corte do rei Luís, em Paris, as primitivas condições de algumas cidades da Inglaterra eram apenas toleradas. Com certo desânimo, Ellen obser­vou as ruas de terra por onde passavam, ladeadas de casas mais que modestas.

— Os Cooper moram afastados do centro da al­deia, perto da Abadia — Connor disse, diminuindo a marcha de sua montaria. Ele pareceu notar a reação de desprazer de Ellen e acrescentou: — Apesar de milady acreditar que a ocupação normanda nos trouxe benefícios, até agora a guerra só proporcionou para este povo penúria, privações de todos os tipos.

Silenciosa, Ellen seguia atrás de Connor. Apesar de já ser meio-dia, não havia ninguém pelas ruas. Um pouco adiante uma janela bateu, e ela imaginou ter visto alguém.

— Onde está todo mundo? — perguntou finalmente.

— Nas janelas — Connor sorriu. — Olhando por alguma fresta.

— Mas por que não se encontram conosco aber­tamente? Eu os cumprimentaria se aparecessem.

— Suponho que o povo de Lyonsbridge tenha aprendido que é mais seguro ficar fora do caminho de seus senhores normandos.

Ellen lembrou-se logo das palavras da menina Sarah acerca da ameaça de sua mãe ser chicoteada. Era hora de saber o que havia de verdade naquilo.

— Por que têm eles medo de nós? — Ellen insistia em saber.

Connor fez sua montaria parar e fitou-a, surpreso.

— Milady disse ontem mesmo que não poderia condená-los por chorar a morte de seus filhos e com­panheiros. E houve mortes, não houve?

— Mas a guerra agora pertence ao passado. Ellen ouviu um ruído numa casa a dois passos de distância. Olhou, na esperança de ver alguém. Mas pessoa alguma apareceu.

— A guerra acabou — disse Connor —, mas há agora outro tipo de conflito, milady. Por acaso a formiga não tem medo da bota, mesmo quando a bota está dentro do armário?

Mais uma vez Ellen se deu conta de que o chefe dos cavalariços falava mais como um homem da cor­te do que como um camponês. Sua curiosidade sobre ele aumentava a cada encontro.

— Não gosto de pensar que o povo desta cidade, agora minha também, receie ser esmagado como for­miga. Precisamos corrigir essa situação.

Connor ia fazer um comentário, mas depois de refletir um pouco sacudiu a cabeça e continuou a marcha.

— Quase chegamos, milady. Garanto que os Cooper vão ficar muito assustados quando a virem a sua porta.

— Eu disse ontem a Sarah que viria visitá-los.

Embora a mãe de Ellen tivesse morrido havia dez anos já, ela lembrou-se com bastante nitidez das vezes em que acompanhara a mãe nas visitas aos arrendatários das propriedades de seu pai, na Normandia. Era uma das obrigações mais desagradáveis da nobreza, ela achava, pois detestava ver crianças não muito limpas e tentava impedir que suas saias bordadas ficassem imundas ao se arrastar pelo chão das choupanas onde essa gente morava.

Connor parou em frente a um pequeno chalé. Ao lado do chalé havia um cercado com uma porca e alguns leitões que guinchavam o tempo inteiro. El­len fitou as cômicas criaturinhas e sorriu.

— John era jovem demais para assumir os ne­gócios do pai — Connor explicou. — Por isso a família está criando porcos e assim satisfazer suas necessidades.

— Ao menos tiveram sorte em poder conservar isto. — Ela apontou para o chalé.

— Os normandos não conseguiriam jamais deixar a família do velho John Cooper sem um teto sobre a cabeça e sem ter o que comer. O chalé e os porcos foram presentes dos habitantes da aldeia para que eles sobrevivessem.

Ellen virou a cabeça a fim de observar a rua por onde haviam acabado de passar.

— Não me parece que essa gente tenha ficado sem nada — disse.

— Cuidamos de nossos habitantes — Connor de­clarou secamente. — Não ficamos por completo sem nada após a derrota, não.

Ele apeou e amarrou as rédeas num pilar.

Sem esperar por ajuda, Ellen pulou no chão e, seguindo o exemplo de Connor, amarrou as rédeas de sua montaria também. E disse:

— Não sou uma pessoa cem por cento dependente, como viu, master Connor.

Ellen não sabia bem por que, mas queria impres­sionar o chefe dos cavalariços, apeando sem ajuda. Diferente de qualquer outro servo que ela tivera antes, Connor a fazia sentir-se como se ele fosse não apenas seu igual, mas superior. Mais velho, mais inteligente e mais valioso.

Bem, mais velho, sem dúvida, mais capaz no trato com cavalos, talvez. Afinal, era a posição dele na vida. Porém era absurdo um criado saxão, mesmo um criado independente, considerar-se igual a um Wakelin.

Ele a aguardava agora, impassível, à porta do chalé dos Cooper.

— É melhor batermos na porta, milady. Já vão ficar bastante sem jeito ao nos ver aqui.

Ellen pensou imediatamente e de novo nas visitas que ela e a mãe faziam aos arrendatários. Em geral avisados, esperavam-nas à porta, saudando-as à chegada.

— Por favor, diga que eu vim junto, master Brand — ela pediu.

Connor bateu e a porta se abriu segundos após. John Cooper espiou e arregalou os olhos.

— Lady Ellen veio ver se sua mãe está bem — Connor anunciou.

— Sarah falou que ela viria, mas não acreditei.

— Bem, milady está aqui. Convide-nos para en­trar, rapaz — Connor disse, com um sorriso. — Sua mãe está deitada?

— Está, e Sarah ficou com ela. John abriu mais a porta a fim de que eles pu­dessem entrar.

Ellen resistiu à tentação de erguer um pouco as saias para que não arrastassem no chão, mas, para grande surpresa sua, o interior da casa era imacu­lado. O chão nu fora varrido e não tinha um grão de poeira sequer. A mesa do centro da sala havia sido polida e a louça sobre o aparador brilhava. Es­palhava-se pela casa o odor da carne de porco que fervia na lareira. Sarah sentava-se numa cadeira perto da cama no canto da sala. Levantou-se e fez uma saudação respeitosa.

Ellen sorriu, e depois olhou para a mulher magra, de cabelos grisalhos, que se esforçava por sentar.

— Faça-me um favor, não se incomode por minha causa, sra. Cooper — pediu Ellen. — Não quero que se preocupe com esta visita.

A velha senhora continuou tentando se sentar por algum tempo ainda, mas logo desistiu ao notar que o corpo não obedecia. Caiu para trás, contra o col­chão de palha.

— Sinto muito, milady — balbuciou. Pela primeira vez em muitos meses Ellen teve novamente saudade da mãe. Sofrera por causa da ausência nos meses subsequentes à morte dela, mas os últimos anos na corte haviam sido tão cheios de emoções que a dor pela morte da mãe não tivera mais lugar em seu coração. Sua mãe saberia o que dar à viúva Cooper, talvez um chá de ervas para o corpo, e palavras animadoras para o espírito. A com­binação exata de fortalecimento e estímulo. Ellen suspirou e foi perto da doente.

— Vim aqui para ver como a senhora está pas­sando, sra. Cooper, não para perturbar seu repouso.

— Deus a abençoe por tanta bondade, milady. Minha filha disse que tinha sido muito bem tratada ontem no castelo. — O sorriso da velha senhora foi exatamente igual ao que Sarah dera na véspera a Ellen, ao apertar-lhe a mão em agradecimento.

— A senhora tem dois filhos maravilhosos.

— Obrigada, milady. Mas Deus me proporcionou bênçãos ainda maiores. Tenho quatro filhos.

Ellen virou-se e deparou com duas crianças de mais ou menos cinco anos, paradas num canto do quarto, como estátuas, de mãos dadas. Vestiam-se com roupas idênticas e eram louras. Não se poderia dizer se meninos ou meninas.

Ellen foi para perto deles.

— Como vocês se chamam? — perguntou.

— Abel e Karyn — John respondeu, ainda da porta, onde ficara o tempo todo. — São nomes que meu pai escolheu antes de... — ele parou de repente, depois reiniciou: — Abel, se fosse um menino, e Ka­ryn, se fosse uma menina. Mas aconteceu que veio um de cada.

— Bom dia, Abel. Bom dia, Karyn — Ellen cum­primentou-os com um sorriso nos lábios. As duas crianças continuaram imóveis.

— Nasceram um mês depois da morte do pai — Connor acrescentou, o que concorreu para fazer com que o sorriso de Ellen sumisse.

— Como lhe disse, milady, Deus me prodigalizou com muitas bênçãos — a mulher repetiu. Mas assim que acabou de falar teve um acesso violento de tosse.

O corpo da velha senhora sacudia todo. Sarah correu para perto da doente, alarmada. Pôs uma toalha junto à boca da mãe e a fez erguer-se um pouco.

— O que vocês têm feito para aliviá-la? — Ellen perguntou.

— Essa tosse é por causa do frio — Sarah res­pondeu, como a pedir desculpas. — Quando o tempo está bom, nós a levamos para apanhar um pouco de sol, e ela fica bem melhor.

— Mas devia tomar algum tônico. Alivia a tosse.

— É verdade, milady — Sarah concordou, porém não sugeriu nada mais. E a sra. Cooper continuava tossindo sem parar.

— Suponho que os filhos não lhe tenham dado nenhum remédio porque não têm dinheiro para com­prá-lo — Connor explicou.

— Ela piorou muito nos últimos três dias — John entrou na conversa. — Eu iria lhe contar, master Brand, se a tosse continuasse assim por mais dois ou três dias.

Connor fez um aceno de cabeça, não achando nada estranho um simples chefe dos cavalariços ser a pes­soa a quem John trataria de comunicar o fato. Ele tinha um ar de autoconfiança e autoridade que ul­trapassava sua posição, e Ellen achou aquilo bas­tante estranho.

— Ela precisa de um remédio — declarou. — Direi a sir William que providencie algo. — Ellen foi para perto da cama e pôs a mão no ombro da sra. Cooper que agora estava muito pálida, com lágrimas corren­do-lhe dos olhos fechados. Mas o espasmo passara.

Sarah sorriu, dizendo:

— Obrigada, milady.

— Sir William não gosta de ser incomodado com essas coisas, milady — John aventou.

— Sir William fará o que eu lhe mandar que faça, goste ou não goste — Ellen protestou.

Houve um longo silêncio depois que a sra. Cooper sossegou, relaxando e dando profundos suspiros.

— Milady a acalmou — Sarah disse.

Ellen tirou a mão do ombro da doente e olhou a sua volta. De repente sentiu-se fora de lugar. E comentou:

— Acho que a tosse a cansou, o que a fez dormir, Sarah.

Sarah sacudiu a cabeça.

— Não foi isso, não. Muitas vezes quando ela co­meça com essa tosse, fica assim a noite inteira. Foi a senhora que a acalmou.

— A menina tem razão — Connor opinou. Ele estivera-o tempo todo sentado, com os gêmeos no colo, acariciando-os. — Já testemunhei várias dessas crises, e duraram horas, por mais que se fizesse para dar um alívio à pobre senhora.

— Olhe, ela está dormindo! — John exclamou, surpreso.

E era verdade. O peito da sra. Cooper subia e descia com a respiração regular de um sono tranquilo. Ellen então disse:

— Acho melhor irmos para deixá-la descansar. Connor levantou-se, carregando um gêmeo em cada braço. As duas crianças não emitiram um som desde o instante em que Ellen e Connor entraram no chalé. Sentindo-se seguros no colo do chefe dos cavalariços, ousaram esboçar um sorriso. Ellen ficou emocionada. Foi para perto do trio e perguntou com carinho:

— Qual de vocês é Abel, e qual é Karyn? Querem me dizer seus nomes agora?

A criança, que estava no braço direito de Connor, sussurrou: Abel. O próprio Abel esticou o braço na direção da irmã e disse: Karyn.

Karyn nem olhou para Ellen.

— Que tal se Karyn me disser seu nome, ela mes­ma? — Ellen sugeriu.

— Karyn ouve tudo o que a senhora diz, milady, mas não pode falar — Connor explicou.

— Ela é irremediavelmente muda. De contrapar­tida, meu irmão fala por ambos — John declarou.

A menina encostou a cabeça no ombro de Connor e enfim olhou para Ellen. Os olhos tinham um tom de azul bem claro, seus traços eram delicados e per­feitos. Ellen ficou encantada. Num ato espontâneo, estendeu os braços para pegá-la mas Karyn agar­rou-se ao pescoço de Connor.

— O que você quis dizer, John, com irremedia­velmente muda? — ela perguntou.

John trocou um olhar com Sarah e não deu uma palavra.

— Minha mãe diz que isso é um ato de Deus para fazê-la especial — Sarah explicou. Ela fez o sinal da cruz e John imitou-a.

Ellen tornou a encarar a menina. Com os cabelos louros e crespos emoldurando-lhe a face, parecia-se mesmo com os querubins pintados nos tetos das ca­tedrais da Normandia.

— Talvez sua mãe esteja certa, Sarah. Connor beijou as duas crianças e as pôs no chão. — Vamos, milady? — perguntou.

— Vamos — Ellen concordou.

Ela sentia-se trêmula por dentro, como se não ti­vesse comido nada, quando na realidade se alimentara bem pela manhã. Virou-se para Sarah e disse:

— Prometo que mandarei um tônico para sua mãe esta tarde mesmo. Voltarei daqui a dois dias, pois desejo ver se o remédio fez efeito.

Todas as crianças, incluindo os gêmeos, sauda­ram-na e os maiores agradeceram com palavras. Ellen saiu e Connor seguiu-a. Quando chegaram ao ar livre, ela teve a impressão de que estivera dentro do chalé uma eternidade, quando permanecera lá apenas alguns minutos.

Dessa vez deixou que Connor a ajudasse a montar. Não falaram nada enquanto atravessaram a aldeia. Ao chegar na estrada, Ellen comentou:

— É uma família muito especial, concorda?

— Sim. Você a viu num estado de grande fraqueza, mas Agnes Cooper foi e está sendo formidável na criação dos filhos. Sozinha.

Cavalgavam lado a lado. O enorme cavalo de Con­nor acompanhava com facilidade a égua.

— Uma mulher fantástica — Ellen concordou. — Mas tem tido bastante ajuda, pareceu-me. O menino olhava para você procurando proteção o tempo inteiro.

— John é um bom rapaz. — Foi tudo o que Connor respondeu.

Após alguns minutos de silêncio, ela indagou:

— Você se interessa por todos os habitantes da aldeia, master Connor?

Ele encarou-a com aquele mesmo sorriso diverti­do, e perguntou:

— É por acaso contra as leis normandas amigos se ajudarem mutuamente?

— Claro que não — Ellen respondeu.

Ela se irritava terrivelmente com o modo como Connor se esquivava de responder a suas perguntas, como recusava satisfazer sua curiosidade acerca da pessoa dele. Talvez precisasse ser mais direta, e dei­xar de gentilezas.

— Às vezes me pergunto qual a natureza de seu relacionamento com o pessoal da aldeia. — Ellen resolveu ir mais direto ao assunto. — Sua família mora aqui?

— Não tenho família, milady, além de meu irmão Martin, que milady já conhece.

— Mas foi criado aqui, não foi? — ela persistia.

— Por aqui.

Ellen desistiu. Se aquele empregado se negava falar sobre sua origem, por que tinha ela de insistir? Mas a frustração a perturbava. Esporeou a égua num galope louco, esperando deixar Connor comen­do poeira. Porém Connor fez o mesmo, e continuou ao lado dela como antes.

— Gosta de apostar corrida, master Connor?

— Não exatamente. Mas acompanho-a, milady. Onde milady for, eu irei. Não deixarei seu lado.

— Veremos. — Ela soltou uma gargalhada e es­poreou Jocelyn ainda mais, dando rédeas soltas a sua montaria, numa corrida que sempre fora difícil à maioria dos outros cavaleiros segui-la.

Mas Connor não ficou atrás nem por um minuto. Continuou lado a lado com a castelã, mas logo pas­sou à frente deixando um rastro de terra e pedre­gulhos tal qual pequena tempestade de pó. Logo divisaram o vulto do castelo de Lyonsbridge, sobre a colina. Ellen segurou as rédeas.

— Chegamos! — ela exclamou, num tom de voz de desaponto.

— Chegamos, milady. A viagem fica curta a essa velocidade.

— Eu não estava tentando vencer.

Connor sorriu, aquele sorriso que ela aprendera a conhecer, um sorriso de mofa.

— Não estava mesmo — Ellen repetiu. — E, afinal de contas, você precisa reconhecer que é muito mais fácil cavalgar numa sela comum do que nas usadas pelas mulheres.

Connor ergueu as sobrancelhas.

— Espero que milady não monte como homem. Monta? — ele perguntou.

— Montava na Normandia quando meu pai e mi­nhas governantas não estavam por perto.

— Imagino que sua mãe não permitiria esse com­portamento tão pouco feminino.

— Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos de idade — ela disse, arrependendo-se imediatamen­te de ter feito confidências. O homem não lhe dissera nada sobre a própria vida, e agora ela acabava de lhe confiar o mais sensível detalhe da história de sua vida.

— Sinto muito ter provocado assunto tão doloroso. Mas quis dizer que sua mãe teria orgulho da linda moça em que a filha se transformara.

Ellen corou até a raiz dos cabelos.

Haviam quase atingido as estrebarias. Connor se­guiu na frente e pôs sua montaria perto da cerca. Quando Ellen chegou, ele já tinha apeado e estava pronto para ajudá-la a descer, apesar do fato de ela ter feito isso sozinha na aldeia.

— Não quero que milady quebre o pescoço bem em frente ao castelo de seu pai — ele explicou, se­gurando-a nos braços, mas com um sorriso que não era mais o de zombaria. O olhar de insolência su­mira. Por instantes Ellen desejou que ela e Connor fossem apenas um homem e uma mulher como quaisquer outros, livres para cavalgar pelos campos, rir e trocar provocações sem se preocupar com o que é certo, com o que é errado, de acordo com as convenções sociais.

Sacudindo a cabeça pretendendo afastar essa idéia, ela escorregou para os braços dele. Connor não cheirava a cavalo, mas a palha fresca e a algo mais picante, talvez hortelã. Ele agarrou-a pela cin­tura fortemente e colocou-a no chão com suavidade, em vez de abandoná-la ainda no ar. Demoraram um pouco a se separar, depois ele deu um passo atrás e, pela primeira vez desde que se conhece­ram, fez uma ligeira saudação. Foi como se sentisse necessidade de lembrar, aos dois, suas respectivas posições.

— Obrigada pela companhia, master Connor — ela agradeceu. — Na próxima vez quem sabe eu peça para usar uma de suas selas e apostaremos uma corrida em condições idênticas.

Mas, tão logo Connor se afastou, a expressão de sua face mudou voltando à expressão antiga, dando a idéia de que seus pensamentos mais uma vez es­tavam com os amigos, da aldeia.

— Se milady mandar o tônico à viúva Cooper, seu gesto impressionará todos os habitantes locais, que a adorarão por isso — ele declarou.

Ellen sentiu um ligeiro mal-estar ante a abrupta mudança no tom de voz dele. E suspeitou que Connor Brand, embora sendo um criado, poderia ter a mes­ma elegância de qualquer cortesão da Europa.

— O tônico — ele repetiu, quando Ellen não deu resposta.

— Não preciso ser lembrada de meus deveres por um simples treinador de cavalos — ela finalmente disse. — Fui eu que decidi ir à aldeia hoje. Prometi o tônico à viúva, e ela terá esse tônico.

A intensidade do olhar diminuiu quando Connor saudou-a de novo. Ele pegou as rédeas de Jocelyn.

— Providenciarei para que sua égua seja bem es­covada. Ela precisa disso depois da corrida desta tarde.

Deixando Ellen em pé no lugar onde ele a colocara no pátio, Connor levou a égua sem olhar para trás. Ellen ficou observando-os até que ambos, homem e animal, desaparecessem no escuro estábulo.

Durante todo o caminho de volta, subindo a colina do castelo, Ellen tentava acalmar seu nervosismo. Connor não fizera nada de errado. Até saudara-a, atitude condizente com a posição de criado. Porém ela tinha certeza de que não houvera nada de sub­serviente no gesto de master Brand, como jamais haveria.

E talvez o mais irritante daquilo tudo fora a cer­teza, contrariamente ao que Connor lhe falara, de que sua mãe não teria orgulho do comportamento da filha naquele dia. Porque, depois da felicidade que tiveram na cavalgada juntos, o incidente do tônico da viúva Cooper sumira totalmente da mente de Ellen até Connor mencionar o fato.

Connor bateu com força na porta da Abadia de St. John. Ele puxou a faca do cinto com a intenção de usar o punho da arma para anunciar sua chegada com mais autoridade, mas, antes que pudesse fazer isso, a colossal porta rangeu, abrindo-se. Um enor­me monge, magro apesar das roupas, sorriu para ele e disse:                        

— Seja bem-vindo, Connor.

Irmão Augustine era alguns anos mais velho que Martin e sempre pareceu a Connor ser o mais in­teligente dentre os frades que passavam os entediantes dias e noites em santa contemplação. Quan­do Connor sentia necessidade de um conselheiro es­piritual, recorria a irmão Augustine.

Mas não fora um assunto espiritual que o condu­zira à Abadia naquele dia.

— Bom dia, irmão — ele disse. — Tudo bem?

— Sim, com a graça de Deus — respondeu o mon­ge, fazendo o sinal da cruz.

— Viu meu ir... ah, viu padre Martin?

O monge sacudiu a cabeça, o que fez com que o sol brilhasse na calvície, já adiantada.

— Seu irmão está na igreja. Na sacristia, acho. Nossos novos senhores decidiram fazer uma capela lá em cima, no castelo, e ele está resolvendo o que precisa ser levado para o local.

Connor agradeceu ao monge e, atravessando o pátio da Abadia chegou à capela de pedra do lado oposto ao portão. Encontrou seu irmão no lugar onde o monge dissera, sentado no chão de pedra da sacristia, escolhendo dentro de uma caixa al­guns recipientes de prata usados para administrar os sacramentos.

— Quer dizer que os normandos agora querem levar as possessões de Deus, além de levar as nossas — Connor observou, enquanto ia ao encontro do irmão.

— Tudo é possessão de Deus — padre Martin retrucou —, estando num lugar sagrado ou numa humilde choupana.

— Ou num castelo normando — Connor acres­centou, secamente.

— Sim.

— Você vai lá hoje?

— Assim que terminar tudo aqui. Você pode me ajudar a carregar estas coisas? — padre Martin perguntou.

Connor franziu a testa.

— Eu me sentiria mal. Essas coisas pertencem à igreja.

— Mas haverá uma capela abençoada lá em cima.

— Porém não mais acessível ao povo, apenas aos normandos que forem convidados.

Padre Martin suspirou e levantou-se com esforço.

— Esqueça isso, Connor. Trata-se de algo do que você não achará falta, pois não receberia os sacra­mentos em nenhum dos dois lugares.

Connor ajudou o irmão a colocar a pesada caixa na gaveta da cômoda.

— Ajudo você, Martin, desde que eu não faça parte dessa pilhagem, e se você não puder encontrar outra pessoa para fazer isso. Mas vim aqui a fim de lhe pedir um favor.

Padre Martin fitou-o, surpreso, porque Connor ja­mais pedia conselhos a alguém.

Connor hesitou. Na próxima vez, ela dissera. Ellen insistira que, na próxima vez em que cavalgassem juntos, seria uma competição. De verdade. E ele te­mia que a verdadeira competição iria ser entre sua mente controlada e seus impulsos incontroláveis. Quando Ellen caíra-lhe nos braços, no término do último passeio, ele esforçara-se ao máximo para não agarrá-la junto ao tórax. Sem dúvida, a moça o en­feitiçara, e ele não poderia de forma alguma sucum­bir sob a influência daquela bruxaria.

— O que você quer de mim? — padre Martin per­guntou, depois do silêncio prolongado entre os dois.

— Não é para mim, na verdade, é para a segu­rança da própria lady.

— Presumo que esteja falando de lady Ellen.

— E estou. Você precisa dizer ao primo que lady Ellen precisa de um acompanhante em suas caval­gadas pelos campos.

— E você espera ser indicado ao posto?

— Deus, não! Espero não ter de deixar meu tra­balho e servir de babá para a moça, como fui for­çado hoje.

— Ah! — Padre Martin enrolou vagarosamente as mangas da batina, observando o irmão com o canto dos olhos. — Quer dizer que achou seu tra­balho penoso? Foi isso?

O rosto de Connor ficou rubro.

— Pode perfeitamente bem imaginar que não hou­ve nada de penoso, Martin. Mas foi você mesmo que me preveniu sobre os perigos dessa proximidade.

O ar de divertimento sumiu dos olhos do padre.

— Ah, irmão, eu o preveni, é verdade. Vou falar com lady Ellen também, eu mesmo.

— Mas não diga que fui eu que pedi.

— Não, irmão, não direi nada a ela.

— Ficarei seu devedor pelo resto da vida, Martin — disse Connor. Ele foi para a porta, dizendo: -É melhor que eu volte ao meu lugar agora. Mais tarde virei ajudá-lo.

Padre Martin estava com o olhar turvo enquanto observava o irmão, até o alto vulto desaparecer pela porta dos fundos e atravessar o pátio.

 

Pelo visto, as palavras de padre Martin não surtiram o efeito desejado, pois, dois dias após o passeio deles pela aldeia, lady Ellen apareceu mais uma vez nas estrebarias, e sozinha. Dois meninos ajudavam Connor no conserto da cerca do pátio. Eles pararam de trabalhar e fitaram Ellen, atônitos. Connor ficou igualmente surpreso.

— Master Brand — ela foi logo dizendo —, vim aqui para a corrida. Lembra-se de nossa combina­ção? Espero que sim.

Os meninos continuaram imóveis, cada vez mais estarrecidos, enquanto Connor tentava falar natu­ralmente, apesar da pulsação acelerada.

— Bom dia, milady.

Ela foi para perto do lugar onde os três trabalhavam.

— Aceita minha provocação, master Brand? — perguntou, com um sorriso e um desafiador meneio de cabeça.

Connor respirou fundo.

— Estou no meio de um trabalho complicado, mi­lady. Imaginei que milady fosse encontrar outro acompanhante para seus passeios pelo campo. Acon­selhei-a que procurasse um.

Connor estava com pavor de si mesmo. Não podia continuar com aqueles encontros. Não aguentaria por muito tempo evitar se apaixonar irremediavelmente por Ellen. Isso se já não estivesse apaixonado.

Ellen parou a alguns passos dele.

— Estou muito contente com meu acompanhante do outro dia. E quero contratá-lo mais uma vez.

— Jem e eu podemos continuar com a tarefa so­zinhos — um dos meninos sé prontificou. — É um trabalho bastante fácil para nós dois. — A fim de provar o que dizia, ele colocou um varal da cerca no lugar, sem a ajuda de ninguém.

Ellen bateu palmas.

— Viu? — perguntou. — Seus ajudantes não pre­cisam mais de você. Foi dispensado. Concorda? E o dia está lindo para uma cavalgada.

Sobre isso, ao menos, Connor podia concordar ple­namente com Ellen. O dia estava radioso. E ele não montava havia dois dias já e passara as duas noites correspondentes revirando-se na cama, sem poder dor­mir. Um exercício lhe faria bem. Achou que seria bom sentir Thunder entre suas pernas e arremessar-se em disparada louca pela luxuriante campina inglesa.

Seus olhos encontraram os de Ellen, que brilha­vam com evidente desafio.

— Muito bem, milady, aceito o desafio. Vamos apostar essa corrida logo.

E decidiu consigo mesmo que não seria respon­sável pelas consequências, quaisquer que fossem elas. Afinal, o convite não partira de seu lado.

Concordaram então em ir ver a família Cooper antes da competição, e durante a visita Ellen começou a sentir-se bem mais à vontade, talvez devido ao calor humano existente naquela casa. Quanto a Connor, não se comportava agora como o audacioso criado, tampouco como o sedutor que ela enxergara de quando em quando, sob a forma de lampejos no olhar, durante o trajeto até a casa dos Cooper. Em vez disso, ele mostrava-se quase zangado agora, pa­recendo de prontidão contra qualquer inimigo ima­ginário, desconhecido, que pudesse surgir de um mo­mento para o outro.

Mas assim que entraram na casa de Agnes Coo­per, a conduta de Connor mudara completamente. Os gêmeos apareceram correndo e ele abraçou-os. O rosto pálido de Sarah adquirira um tom rosado, e tanto ela como John sorriram com a chegada dos visitantes.

Para grande surpresa de Ellen, a viúva estava sentada numa cadeira de balanço, ao lado da lareira, e não deitada na cama como no outro dia.

— Sente-se melhor hoje? — ela perguntou.

— Muito melhor, milady. Sem dúvida graças ao remédio que a senhora me mandou.

Ela lutou para se levantar, mas Ellen fez sinal com a mão para que ficasse onde estava. E disse:

— Alegra-me muito ouvir isso.

— Sir William em pessoa o trouxe, milady — John acrescentou. — Todos na aldeia estão falando sobre a vinda dele em nossa casa.

Ellen ficou grata, ainda que um pouco surpresa, ao saber que o magistrado fora tão diligente a ponto de cumprir pessoalmente as instruções que lhe dera.

Não era habitual um magistrado abandonar seu alto posto para prestar algum serviço a arrendatá­rios. E sir William não tinha nada de caridoso.

— Espero que a senhora continue recebendo o remédio até seu completo restabelecimento — Ellen disse à sra. Cooper.

Ellen notou que um dos gêmeos fora para o lado dela e passava o minúsculo dedo sobre o bordado de seu vestido.

— Karyn, não mexa no vestido de lady Ellen — Sarah repreendeu-a.

A menina fitou Ellen com seus olhos muito azuis e sorriu.

— Deixe-a — Ellen pediu. — Você viu, Karyn? Isso é um dragão. Mas não é um monstro mau, como os demais dragões. O meu é amigo de todos, principal­mente das crianças, sabe? Passe os dedos pela cauda dele, se quiser. — Ellen pegou na mão da menina a fim de que ela pudesse sentir o relevo do trabalho.

Karyn voltou a atenção para a saia bordada e, com cuidado, apalpou cada saliência da cauda do monstro. Em seguida olhou para Ellen, com um sor­riso de grande satisfação.

Milady sentiu um desejo premente de abraçar a menina, mas não tinha certeza se seu abraço seria bem recebido. Por isso meramente falou:

— Vou lhe trazer um dragão num desses dias. — Quando os olhos da menina registraram alarme, ela acrescentou: — Um de madeira, não de verdade, chérie. Mas bem bonito, como o de meu vestido.

Karyn encarou-a de novo, porém dessa vez com ar de adoração.

— Ela está agradecendo, milady — disse o irmão gêmeo, que continuava nos braços de Connor.

Karyn sacudiu a cabeça, num acordo silencioso. Era de cortar o coração ver aquela menina linda sem poder falar. Ellen se perguntava o que teria causado a mudez. Era irremediavelmente muda, eles haviam dito. Teria falado algum dia? Natural­mente que essas coisas ocorriam às vezes, e Ellen sabia muito bem disso. Mas sabia também que não seria interessante perguntar demais sobre o ocorri­do. Contudo, não podia imaginar que mesmo uma bruxa pudesse ser tão má a ponto de causar danos a uma criança como Karyn Cooper.

— Milady é tão boa para nós — a viúva sussurrou. — Assim que eu melhorar, levarei uma torta de carne de porco para sua mesa.

Ellen sorriu. Não conseguia se lembrar de algum arrendatário da Normandia ter oferecido comida para a mesa de seu pai. A idéia lhe pareceu quase absurda. Era evidente que qualquer família de cam­poneses tinha muito pouco, enquanto que na casa de seu pai nada fazia falta. Ela não sabia o que responder.

Connor concorreu para que não precisasse abrir a boca.

— A torta de carne de porco da sra. Cooper é famosa em todo o condado — comentou ele, sorrindo tanto para a viúva como para Ellen. — Será um prato muito especial, mesmo no caso de milady, que tem tudo.

A sra. Cooper pareceu contente com o elogio, mas tinha um aspecto notadamente pior do que quando eles entraram no chalé. Talvez fatigada.

— Preciso levar minha mãe de volta à cama — disse Sarah.

— Claro, querida — observou Ellen. — Não vim aqui para cansá-la. Vamos embora, master Connor?

Ellen dirigiu o olhar na direção do chefe dos ca­valariços que se levantou imediatamente. Ela quase se esquecera da presença de Connor por alguns se­gundos, enquanto conversava com a família dos ar­rendatários. Mas agora, vendo o enorme vulto de Connor que reduzia tudo o mais a dimensões ridí­culas, sentiu um tipo de excitação. Lembrou-se então da corrida prometida.

Depois que Sarah e John recusaram a oferta que eles fizeram de ajudar a pôr a viúva na cama, des­pediram-se e partiram. Mais uma vez Ellen teve aquela sensação de liberdade quando saiu do escuro chalé para o sol. Como seria viver com cinco pessoas em lugar tão minúsculo?, ela se questionou, pela primeiravez na vida. Mas seus pensamentos não se demoraram na indagação, e sim concentraram-se na corrida que faria com Connor.

Na primeira visita deles à casa dos Cooper, não houvera ninguém cumprimentando-os quando atra­vessaram a aldeia. Mas agora, na viagem de volta, Ellen via camponeses por toda parte, em geral na frente de seus chalés, cuidando dos jardins. Nenhum deles os cumprimentara, por isso seguiram sem pa­rar. Talvez o povo da aldeia achasse indelicado fixar o olhar numa verdadeira lady montada em enorme cavalo como homem, as saias erguidas, cavalgando pelas ruas. Concluiriam ser rude observá-la, mesmo que fosse para cumprimentá-la. Mas... seria mesmo essa a razão?

— Tenho de reconhecer uma coisa, milady — disse Connor, assim que eles deixaram a aldeia. — Milady cavalga nessa sela quase tão bem como um homem, apesar da diferença do vestuário.

— Quase tão bem, master Brand? Eis aí um de­safio que nunca me fizeram antes. Preciso tentar acabar com esse quase.

— Não foi minha intenção desafiá-la — ele respon­deu, com um sorriso. Mas não retirou suas palavras.

— Acho que preciso convencê-lo com atos em vez de com palavras. É isso? Francamente, não gostei do tal quase.

— Vamos então mudar de assunto e seguir em frente. Segundo meu conhecimento, milady propôs uma corrida. Verdade?

— Sim. Mas, uma vez que não conheço a região, você é quem vai traçar o roteiro, o que sem dúvida lhe trará vantagens. Mas, paciência. Não há outra solução.

Connor ficou em pé nos estribos para observar a paisagem que se estendia a perder de vista. A es­trada da aldeia até Lyonsbridge era ligeiramente íngreme. Mas, para o lado do oeste, havia uma gran­de faixa de terreno bastante plana. Ele apontou na­quela direção.

— Podemos atravessar Anders Lea cavalgando por mais ou menos sete quilômetros sem um obstáculo sequer. Será muito fácil para milady. O que acha?

Ao encarar Connor, Ellen se convenceu imedia­tamente de que existia um desafio entre os dois. Incrível,.um desafio entre ela e o chefe dos cavala­riços! E o assunto precisava ser resolvido. Tinha de vencê-lo e esquecer-se de tudo para sempre.

— Muito bem — disse, segurando firmemente as rédeas de Jocelyn. — Dê a ordem de partida.

— Não. É sempre um privilégio da mulher, e da mais bonita da contenda, dar a ordem do começo da corrida.

Ellen engoliu o nó que sentia na garganta. Estava mais que na hora de pôr um fim àquela bobagem existente entre ela e um simples empregado. Mos­traria ao criado sua superioridade, e depois se con­centraria em colocar o castelo de seu pai em ordem, razão pela qual se encontrava lá.

— Vamos então começar — disse, erguendo a cabeça.

Quase antes que as palavras saíssem de seus lá­bios, ambos os cavalos entraram em ação, moven­do-se suavemente, lado a lado, a esguia égua e o pesado garanhão preto, o ruído das patas ecoando no terreno coberto de relva.

Cavalgaram em silêncio durante vários minutos, perdidos, cavaleiros e montarias, no prazer da cor­rida e da liberdade completa. Ellen apertava Jocelyn entre suas pernas, não se importando com a atitude indecorosa, e rindo de prazer. Chegaram a um ponto onde a grama crescia atingindo maior altura, mas Jocelyn continuava impávida, ignorando o obstáculo. O cavalo de Connor diminuiu a marcha, e Jocelyn continuou, agora na frente.

— Eu o verei no fim do circuito, master Brand — Ellen gritou, com um sorriso de escárnio.

Mas Connor parecia totalmente relaxado em sua sela, e retribuiu o sorriso com um ligeiro aceno de mão.

O roteiro era mais longo do que Ellen imaginara, e percebeu que Jocelyn estava cansada mas que, como animal de brio que era, continuaria correndo a toda velocidade até que sua dona segurasse as rédeas. A égua nunca pararia antes que Ellen o ordenasse, mes­mo estando na mais completa exaustão.

A menos de meio quilômetro distante do término, Ellen viu que o circuito acabava num abrupto vale de carvalhos. Sorriu para si mesma, percebendo que a vitória estava próxima. Apenas um pouquinho mais, Jocelyn querida, ela sussurrou.

De súbito, quando elamenos esperava, o cavalo de Connor disparou, desenvolvendo uma velocidade duas vezes maior que a da égua, deixando Ellen assombrada. Ela quase perdeu o comando das ré­deas, mas Jocelyn continuou na pista, impávida, sem diminuir a marcha.

Contudo, quando chegaram nas árvores, Connor já estava lá e desmontado, o rosto impassível, pronto para segurar as rédeas de milady.

Quando Jocelyn parou, erguendo o magnífico tra­seiro, Ellen acomodou-se na sela, estupefata.

— Foi uma linda competição, madame — ele disse após uns segundos. — Milady me fez correr de fato.

— Mas você ficou bem atrás durante algum tem­po — Ellen comentou, não entendendo bem o que acontecera.

— Eu não estava perdendo a corrida, estava ape­nas ganhando tempo.

Ellen sacudiu a cabeça.

— Nada disso. Não me pareceu uma distância só para ganhar tempo. Jocelyn correu na frente quase o tempo inteiro.

— Aí está seu engano. Uma corrida mais vagarosa no momento exato, garante o final feliz. E foi o que eu fiz. Garanti meu final feliz. Concorda?

O tom dele não era de zombaria, o que ajudou Ellen a confessar, comentando:

— Thunder corria como um raio. Nunca em minha vida vi um cavalo desenvolver tanta velocidade.

— Thunder é ótima montaria. E eu nunca vi cavalo nenhum melhor que ele.

— Eu gostaria de montar Thunder algum dia.

— Não cedo Thunder a muita gente. Melhor di­zendo, a ninguém. Mas Vossa Senhoria cavalga bem, posso abrir uma exceção.

Ellen sentiu que o elogio era real, sincero, algo que não recebia com muita frequência. Fora alvo de elogios inúmeras vezes, quanto a isso não havia dúvida, mas de elogios sinceros, muito poucas vezes. E agradou-se imensamente do elogio de Connor. Estava acostumada a ser elogiada por causa de sua posição social, ou por causa da posição social de seu pai. Porém sentia que as palavras elogiosas não tinham valor real, não eram sinceras, faziam parte de homenagens prestadas a uma autoridade, no caso, seu pai.

Connor deu alguns passos, conduzindo ambos os cavalos até a sombra projetada por um arvoredo de carvalhos.

— Milady gostaria de desmontar por alguns mi­nutos para que sua montaria pudesse descansar? — ele perguntou.

— Claro.

Ellen deu meia-volta com uma das pernas, num gesto bem pouco feminino, e apeou. Connor observou-a com expressão estranha no olhar.

— Você se movimenta tal qual um rapazinho — ele comentou.

— Minha governanta ficaria desesperada se ou­visse isso.

— Sua governanta?

— Deixei-a na Normandia. E contra a vontade de meu pai. Ele queria por força que a trouxesse comigo. Sou uma mulher adulta agora, não mais uma menina para ter todos os meus movimentos analisados e talvez censurados por uma governanta amarga. Como costumavam ser as minhas.

Connor era a única pessoa que a analisava agora, Ellen pensou, e ele não se parecia nada com uma governanta. Mesmo assim, depois de alguns instan­tes, a análise tornou-se desagradável, incomodativa.

— Não é muito amável encarar-me dessa maneira, chefe dos cavalariços. Não lhe ensinaram na Ingla­terra que isso é descortês?

Connor sorriu, não se sentindo insultado.

— Desculpe-me, milady. Minha santa mãe tentou me ensinar boas maneiras. Mas também me ensinou a apreciar a beleza de cada coisa viva.

Com um gesto, Connor apontou para as árvores à volta. Mas ambos sabiam que não eram as árvores que ele estava admirando, não era à vegetação que ele se referia.

— Sua mãe parece ser uma mulher maravilhosa — disse Ellen, imaginando que finalmente sabia algo sobre a vida daquele homem também maravi­lhoso. — Ela mora na aldeia?

— Não, milady. Se Deus é de fato justo, como se diz, ela mora com os anjos.

— Sinto muito, master Brand. E seu pai?

— Bem, agora, a coisa fica mais difícil de ser respondida. Deus tem de aspergir um pouco de sua bondade para elevar Geoffrey Brand ao foro divino. Pois gosto de imaginar meu pai e minha mãe juntos.

— Tenho certeza de que estão — disse Ellen, fa­zendo um sinal da cruz. — Eles têm seu irmão o padre Martin, para rezar por suas almas.

— Têm. De fato têm.

Connor deu-lhe as costas, evidentemente com o fim de desviar o assunto de família. Ellen observa­va-o agora enquanto ele amarrava as rédeas de am­bos os cavalos num galho baixo de árvore. Usava um casaco de couro que enfatizava suas costas am­plas, e com os ombros largos e cabelos louros parecia um verdadeiro viking dos velhos tempos, daqueles cantados nas baladas.

Ele tirou uma garrafa da bolsa pendurada na sela da montaria e perguntou a Ellen:

— Não está com sede? — Mas parou de repente, dando-se conta da impropriedade do tratamento que usara. E corrigiu-se: — Quer um pouco de vinho, milady?

Ellen fez um gesto afirmativo com a cabeça e pe­gou a garrafa de vinho. Os dedos de ambos se to­caram, os dele, quentes, os dela, gelados. Connor segurou a garrafa por mais tempo do que o neces­sário, antes de largá-la nas mãos de Ellen.

De fato, ela estava com a garganta seca, mas não por causa da cavalgada. Tomou um gole do vinho, mais um, mais outro.

— Madame sabe beber tão bem como montar — comentou ele, rindo.

Ellen procurou ver sinais do antigo sorriso caçoísta, mas não havia nem sombra dele.

— Sou filha única, e meu pai me ensinou maneiras usadas por ambos os sexos. — Ellen lhe devolveu a garrafa.

— Deixou um pouco para mim? — Connor per­guntou, brincando, tomando um gole apenas e de­volvendo a garrafa a ela.

Ellen recusou, caminhando vagarosamente pela relva macia. Connor seguiu-a.

— Dizem que algumas dessas árvores têm mais de cem anos — ele comentou. — Estavam aqui antes de os primeiros normandos porem os olhos em nos­sas terras.              

Com um sorriso maroto, Ellen respondeu:

— Está querendo reivindicar essas árvores como saxônicas, master Brand?

Ignorando o comentário malicioso de Ellen, Con­nor disse:

— Lembro-me de ter vindo aqui quando criança. O lugar não mudou nada desde então, embora mui­tas outras coisas tenham mudado... e bastante.

— O mundo seria horrível se nada mudasse, mas­ter Connor. Não acha?

— Talvez...

Chegavam a uma pequena clareira, onde as ár­vores formavam um círculo tão perfeito que dava a impressão de que haviam sido plantadas lá seguindo um planejamento prévio.

— Aqui é onde as fadas dançam — Connor acrescentou.

— Quer dizer que é um lugar encantado?

— Assim contam as velhas esposas da aldeia.

— Posso sentir isso. — Ellen parou de súbito, quase perdendo o equilíbrio.

Estendeu a mão para apoiar-se numa árvore, mas em vez de roçar num tronco áspero, encontrou o tórax rígido de Connor que deu um passo à frente e segurou-a, para impedir que ela caísse.

— Sinto muito não ser tão graciosa quanto as fadas — Ellen sussurrou, rindo muito em seguida.

Mas o sorriso de Connor desapareceu, quando dis­se, com voz grave:

— É duas vezes mais graciosa, Ellen de Wakelin.

Ellen parou de rir no instante em que os braços de Connor a envolveram, puxando-a para bem junto de si. Encostou os lábios nos dela e beijou-a, suavemente de início, depois com incontrolável paixão.

Ellen sentiu uma onda de prazer percorrendo-lhe o corpo todo, tal qual mel quente que derretia gra­dualmente, aquecendo cada centímetro de sua pele. Sua boca abriu-se com naturalidade, sem esforço, e as línguas se entrelaçaram, enviando uma série de sensações maravilhosas. Ela deitou a cabeça para trás e Connor escorregou os lábios da boca à sua­vidade do pescoço alvo.

Ellen jamais imaginara que pudesse ter essas sen­sações um dia.

Logo, porém, tudo terminava como um mergulho num lago gelado.

Connor deu um passo atrás, a expressão de fúria, blasfemando em voz muito baixa.

A essa altura, a mente de Ellen já se transformara num verdadeiro torvelinho. Ela sentia-se desnortea­da e ao mesmo tempo ferida pela abrupta recusa de Connor. Porém, mais ainda, apavorava-se ao se lembrar do modo como se entregara nos braços dele, impotente, vulnerável.

Fora cortejada por enorme quantidade de homens e prodigalizara o favor de um beijo a alguns deles. Mas nunca fora beijada daquele jeito. E, imagine-se, por um mero empregado, por um insignificante chefe dos cavalariços. O que diria seu pai se soubesse? Seria assim que se portavam as prostitutas?, ela se perguntava.

— Eu não queria que isso tivesse acontecido — disse Connor finalmente. — É melhor voltarmos, e talvez na próxima vez milady traga um acompa­nhante do castelo, conforme sugeri.

A expressão de Connor voltava ao normal, por certo mais depressa do que a dela. E o que a enfu­receu ainda mais foi o fato de admitir que ele possuía condições de encerrar facilmente o que se passara com tanta espontaneidade.

— Eu poderia ordenar que açoitassem você pelo que acabou de fazer, master Brand — Ellen ameaçou-o.

— Duvido. — Connor sorriu. — Acho que milady moveria montanhas para fazer com que seu primo não soubesse que veio aqui sem um acompanhante, desafiando um de seus empregados para uma cor­rida pelo campo, e sozinha.

— Desafiei você para uma corrida, não para um beijo.

Quanto mais ela pensava sobre o encontro que ti­veram, mais furiosa ficava. Contudo Connor conti­nuava sorrindo, aquele seu sorriso caçoísta de novo.

— Talvez tenha sido influência das fadas — ob­servou ele com indiferença, desviando o olhar para a clareira. — Vamos fingir que não somos respon­sáveis por nada, e tomaremos muito cuidado para que isso não aconteça de novo, no futuro.

— Pode ter certeza de que não acontecerá, master Brand. Nunca mais encostará suas mãos em mim, ou juro que meu primo e todos os moradores do castelo saberão disso. Não será minha reputação que sofrerá, mas você será banido do condado, se não acontecer algo pior.

Mesmo furiosa como estava, mesmo com aquelas palavras ameaçadoras, Ellen tinha uma sensação de perda. Por uma razão ou outra, Connor Brand e Lyonsbridge estavam irremediavelmente unidos. Ela não podia imaginar o castelo e seus arredores sem a presença dele.

Connor estava a apenas a alguns passos de dis­tância e Ellen podia sentir ainda a força dos braços musculosos. Seus lábios ainda queimavam.

— Amável St. Ellen — ela rezava, em voz muito baixa —, arranque essas sensações de mím. Apa­gue-as de minha memória.

Em seguida deu meia-volta e começou a andar. Então percebeu que não tinha idéia da direção que deveria tomar.

Por trás dela, a mão firme de Connor agarrou-a pelo ombro e a fez virar para a direita.

— Por aqui, milady — ele disse, agora com carinho. Ela afastou-se rudemente do contato daquela mão, mas tomou a direção que lhe fora indicada o olhar sempre em frente. Não encarou de novo o atrevido criado. Nunca mais cometeria o erro de fixar a vista naqueles devastadores olhos azuis.

Durante sua volta ao castelo, manteve-se o tempo todo em silêncio. Permitiu que Connor a ajudasse na montaria, mas não o encarou. Tampouco agra­deceu pelo trabalho do dia e tomou cuidado para não deixar que sua mão tocasse a dele quando re­tomou as rédeas de Jocelyn.

Subindo a rampa do castelo sem olhar para trás, repetia para si mesma a ladainha,

— Essa loucura está definitivamente terminada.

 

Sebastian Phippen franzia a testa, sen­tado à mesa em frente ao magistrado.

— Lorde Wakelin deve estar satisfeito com as no­tícias, mas sei que há muito mais a se fazer — comentou Sebastian.

Sir William sacudiu a cabeça e comentou:

— Já quase sangramos a aldeia durante estes últimos dois anos, angariando dinheiro para as cru­zadas. E agora, com lady Ellen querendo todas essas mudanças no castelo, as despesas aumentarão em vez de diminuir.

Batendo a mão com força sobre o livro de conta­bilidade colocado diante de si, Sebastian respondeu:

— Caprichos de mulher. Ela está trazendo móveis da Normandia e encomendou uma tapeçaria que deve ser colocada em algum local do castelo, bem visível da estrada do litoral. Mandei chamá-la agora para discutirmos o assunto.

Sir William parecia agitado.

— Com o perdão de Vossa Senhoria, milorde, acho que ela tem o direito de fazer isso — ele comentou. — Não é verdade que lorde Wakelin concedeu à filha o título de herdeira de Lyonsbridge?

— Não sou um lorde, homem. Ainda não. — Sebastian respondeu, com um sorriso meloso. — Na­turalmente, são os interesses de meu primo que es­tou protegendo com essas medidas. Sendo ela mu­lher, não se pode esperar que entenda a importância e a gravidade do assunto.

Os dois homens sentavam-se na antecâmara dos aposentos de Sebastian, um cômodo pequeno e frio no terceiro andar do castelo, muito menos luxuoso que as demais dependências que rodeavam as suites principais, ocupadas pela própria lady Ellen.

A porta rangeu e se abriu. Ellen entrou com uma expressão petulante no rosto.

— Vim logo porque julguei humilhante os empre­gados presenciarem meu desprazer, Sebastian — El­len disse com voz gelada. — Mas quero que saiba, meu primo, que nunca mais desejo ser intimada dessa maneira. Você não é meu pai, nem meu guar­da, aqui. Sou maior de idade. Entende?

— Perdoe-me, prima — disse Sebastian, levan­tando-se com óbvia relutância. Seu olhar exibia uma expressão sombria. — Temos algo a discutir em par­ticular, e pensei que seria mais fácil aqui do que em seus aposentos ou no grande hall por onde os criados circulam constantemente.

— O que há, afinal? — Ellen perguntou, bem ir­ritada. Ela estava com uma terrível dor de cabeça e passara dois dias em constante mau humor, desde o passeio a cavalo com Connor Brand. E o chamado imperioso do primo naquela manhã concorrera para piorar seu estado de espírito, e para aumentar a dor de cabeça. Suas têmporas latejavam.

Sir William se levantara e oferecera sua própria poltrona para que ela se sentasse. Havia apenas duas no quarto, por isso permanecera em pé en­quanto Sebastian falava com voz calma, tendo sen­tado de novo.

— Como sabe, fui designado por seu pai para cuidar das finanças de Lyonsbridge. E venho ten­tando examinar a contabilidade com sir William. Parece-me que ainda há necessidade de se conse­guir dinheiro.

Ellen franziu a testa. Sebastian sentava-se de cos­tas para a única janela do aposento, e ela olhava diretamente para o primo. Sua vista doía por causa do sol que entrava pela janela.

— Conseguir dinheiro? Como? — Ellen perguntou. Sebastian abriu o livro de contabilidade e ficou examinando demoradamente uma das páginas.

— Antes de qualquer outra coisa, poderíamos ven­der quase todos os cavalos. É intenção de seu pai que os soldados venham com suas próprias montarias. Portanto, não temos necessidade desse enorme estoque de cavalos ingleses,

— São bons animais — Ellen protestou.

— Para arar o solo, talvez — comentou Sebastian, com um sorriso irônico nos delgados lábios.

— Não. Eu os vi correr.

Sebastian lançou um olhar de fúria à prima, dizendo:

— Fui informado de que, há dois dias, você saiu do castelo sem acompanhante, prima. E detestaria ter de mencionar tal comportamento a seu pai. Ellen endireitou-se na poltrona, tinindo de ódio.

— Cuide apenas de si, meu primo, e fique sabendo que esta é a última vez que o previno. Pode se ocupar das cifras... — Ela apontou para o livro de conta­bilidade. — Mas eu não estou a seu cargo. Meu comportamento é da conta de meu pai e de nin­guém mais.

— É sua segurança o que me preocupa, prima. Apenas isso. Lembre-se de que padre Martin mesmo nos preveniu sobre sua imprudência em...

Ellen levantou-se. Não poderia mais tolerar aque­la audiência, em parte por reconhecer que o primo tinha razão em admoestá-la. Se Sebastian soubesse o que se comentou quando ela saiu do castelo sozi­nha, entraria em contato com lorde Wakelin, seu pai, sem a menor dúvida.

— Cuide dos livros de contabilidade, primo, e dei­xe meu comportamento por minha conta. Não tenho intenção de me arriscar. Na realidade, já escolhi uma moça da aldeia como acompanhante e, quando eu quiser sair, ela estará a meu lado.

— Já soube. — Sir William fitou-a com ar de aprovação. — É Sarah Cooper, não é? Uma menina muito bondosa, de grande valor, milady.

Algo no modo como ele lambeu os lábios e sacudiu a cabeça enquanto falava deixou Ellen intrigada. Porém afastou o pensamento. Sir William não a preocupava. Era Sebastian quem a atormentava no momento.

— Não me sinto bem — Ellen enfim disse. — Se você tiver algo mais a discutir comigo, primo, faça-o na hora do almoço. E em meus aposentos — ela acrescentou com firmeza.

— Muito bem, prima — Sebastian respondeu, mas não se levantou.

Ela saudou os dois homens e saiu, inconsciente do rancor que brilhou nos olhos negros do primo, tão logo lhe deu as costas.

Ellen descobriu depressa que gostava muito da com­panhia de Sarah, muito mais do que apreciara a com­panhia das várias governantas que seu pai lhe arranjara no decorrer dos anos, na Normandia. Muitas delas eram velhas demais e cansativas nas conversas, ou exageradamente preocupadas em lhe prestar ho­menagem, por causa de sua posição na sociedade.

Sarah, ao contrário, uma vez vencida a timidez natural, era amorosa e cheia de calor humano. Gos­tava de ouvir as histórias românticas de Ellen sobre suas conquistas nas diversas cortes da Europa.

— Acho que nunca conhecerei um homem fora de Lyonsbridge. — Sarah suspirou, quando as duas terminaram de guardar nas gavetas as roupas que haviam colocado fora para arejar.

Ellen bateu palmas, contente como uma criança.

E disse:

— Sarah, eu a levarei à Normandia comigo logo que terminar meu trabalho aqui. Assim você conhe­cerá muitos homens, todos os tipos de cavalheiros. Talvez até se apaixone por algum.

— É muita bondade sua, milady, mas nunca dei­xarei minha mãe. Ela precisa de mim, ao menos até os gêmeos crescerem.

Nenhuma das duas expressou o pensamento que com certeza tiveram. Pois sabiam que os gêmeos iriam precisar de Sarah quando a viúva Cooper su­cumbisse em consequência da doença.

— Tem certeza de que sua mãe está bem, lá sozinha, com você aqui cuidando de mim? — Ellen perguntou.

— Tenho. Mamãe ficou tão contente com o convite de milady! E agora que o tempo esquentou, ela sen­te-se bem melhor.

— Que bom! Bom para você e bom para mim também. Aprecio demais sua companhia, Sarah.

— Muito obrigada por essas palavras, milady. Eu ficaria para sempre com a senhora se não me preocupasse tanto com minha família. Não sei se mamãe sobreviveria a este inverno sem o tônico que milady enviou.

Ellen fechou a gaveta da cômoda e esfregou as mãos no linho azul da saia. Pouco a pouco, ela co­meçara a usar vestidos mais simples. Parecia-lhe ridículo carregar-se de jóias, de pulseiras pesadas de ouro, quando as únicas pessoas de sua categoria a impressionar eram Sebastian e sir William. De fato, ela agora gostava mais das modestas roupas saxônias.

— Já pusemos em ordem todas as cômodas daqui — disse, olhando ao redor. — Pelo visto, os antigos lordes que ocupavam este lugar tinham uma fortuna em coisas lindas. Eu me pergunto, às vezes, onde foi parar essa família.

Sarah não disse nada.

Levantando-se, Ellen espreguiçou-se e perguntou:

— Devemos começar pelo outro quarto agora ou você acha que já trabalhamos bastante por um dia?

— Como milady desejar — Sarah respondeu, co­locando-se de pé também.

Ambas se assustaram ao ouvir uma pancada na porta. Era um dos pajens do castelo, um rapaz de nome Rolf, que olhou primeiro para Sarah, corando, e depois dirigiu-se a Ellen.

— Milady, o chefe dos cavalariços pede uma au­diência com Vossa Senhoria.

Ellen sentiu a boca seca.

— Master Brand? — ela perguntou.

— Sim, milady.

— O que ele deseja? — Era uma pergunta tola. Connor Brand não contaria a um pajem o assunto de sua conversa.

— Não sei nada, milady. Ele está esperando no solário.

Ellen olhou para Sarah. Uma das razões pela qual ela empregara a menina fora para não ficar sozinha com... Brand, ou com qualquer outro homem do castelo. Mas, de repente, sentiu-se relutante em incluir Sarah no encontro.

Após uma pequena batalha com seu bom senso, disse:

— Sarah, você está dispensada por hoje. Come­çaremos com o outro quarto amanhã.

Sarah pareceu não perceber a hesitação de sua senhora. Claro, estava muito ocupada em observar o pajem com o canto dos olhos. Seu rosto ficou rubro.

Ellen teve um impulso romântico, e disse:

— Rolf, você pode acompanhar a srta. Cooper à al­deia. — E sorriu consigo própria, ao mesmo tempo que as faces dos dois jovens se iluminaram de prazer.

O sorriso permaneceu nos lábios de Ellen até a metade da enorme escadaria, mas sumiu quando ela começou a lamentar sua decisão de ter mandado Sarah embora. Não vira Connor desde o dia da cor­rida, havia uma semana. Não tivera intenção de vê-lo de novo, e de forma alguma sozinha. Mas ele lhe pedira uma audiência..Seria aquilo alguma ar­timanha? Teria ele coragem de entrar no castelo e, no nariz dê seu primo, tomar o mesmo tipo de li­berdade que tomara na floresta?

Quando Ellen chegou às portas duplas do solário, as palmas de suas mãos estavam molhadas de suor.

Devia ter recusado vê-lo. Sem dúvida, devia. Ou mandá-lo voltar quando ela estivesse na companhia do primo. Por que não dar meia-volta agora o mais depressa possível, subir a escada correndo e encer­rar-se na segurança de seus cômodos?

— Santa Maria — ela sussurrou —, ajude-me. Afinal, o homem era seu criado. Cometeram uma loucura na floresta, porém ela tornara bastante claro que não haveria repetição do ocorrido. Era ridículo a dona daquele castelo ficar nervosa por ter de se encontrar com um de seus servos. Apesar do fato de que, passadas sete noites, a lembrança dos lábios dele nos seus ainda persistia.

Connor andava de um lado para o outro. Com suas longas pernas, cobria a distância de cada lado em quatro passadas. Ele preferiria roer um barril de unhas a encarar uma audiência com a senhora de Lyonsbridge. Felizmente o solário não era frio como o resto do castelo naquela época do ano. Lem­brou-se de sua infância, quando brincava lá, usu­fruindo o calor do sol.

Parou de andar e fechou os olhos. Enxergou então os três, ele, Geoff e Martin, transformando os fol­guedos inocentes nas inevitáveis lutas, para o de­sespero da mãe.

— Quer me ver, master Brand? — Ele ouviu uma voz da porta, interrompendo seu devaneio.

Connor abriu os olhos e imediatamente encontrou os dela. Uma semana de interrupção não suavizara o impacto. Sentia ainda qualquer coisa em sua gar­ganta, mais abaixo, mais abaixo, mais abaixo...

— Bom dia, miiady — ele conseguiu dizer. Ellen mantinha aquela sua atitude de rainha, de novo a rainha das fadas em vez do espírito da flo­resta que derretera em seus braços por um inter­minável momento.

— Fale o que deseja, master Brand. — Os olhos dourados nem pestanejaram.

Então, que seja assim, ele pensou.

Não haveria dúvida de que seria mais fácil para eles fingir que o encontro na floresta nunca houvera acontecido.

— Estão querendo vender meus cavalos — ele declarou, com voz firme.

— Os cavalos do lorde de Lyonsbridge, você quis dizer. — Os lábios dela se suavizaram na sombra de um sorriso.

Connor relaxou ligeiramente. Por qualquer motivo achava que, normanda ou não, ela seria sua aliada naquele negócio da venda de cavalos.

— Sim, seu primo quer vender os cavalos de Lyonsbridge. É uma bobagem fazer isso.

Uma delicada sobrancelha negra ergueu-se quan­do ela chamou atenção para um fato:

— Meu pai confiou a gerência da propriedade a Sebastian. Acredito que meu primo tenha suas razões.

— Não me importam as razões dele. A manada de Lyonsbridge é a melhor da Inglaterra. Crie esses ca­valos, se gostar. Venda alguns. Mas não os substitua pelos esqueléticos cavalos de sangue normando.

Connor achava que seus argumentos convence­riam melhor qualquer pessoa se pudesse apresentar o problema nas estrebarias, no ambiente dele. Sua língua como que tropeçava na presença de lady Ellen. Embora achasse que milady simpatizava com a causa, achou que fora um erro haver se dirigido a ela. Deveria ter exposto o caso ao próprio Phippen. Ellen foi para perto de Connor, no lugar onde ele estivera o tempo todo, junto à porta. Connor pôde ouvir o farfalhar da seda das saias, o ruído dos sapatos tocando o solo. Ellen trajava-se mais simplesmente agora, ele notou. Usava um simples vestido azul que modelava seus seios de maneira surpreendente.

— Se bem me recordo, minha esquelética égua normanda quase derrotou o garanhão de Lyonsbridge no outro dia. — Ela engoliu em seco quando aca­bou de falar, como se lamentasse ter trazido o in­cidente em cena.

Connor também não tivera intenção de mencionar o fato, mas era óbvio, considerando-se a tensão entre os dois, que o assunto estava na mente de ambos. Connor sorriu.

— Quase, milady. E devido, em grande parte, à habilidade da amazona.

O elogio suavizou a expressão de Ellen, e Connor começou a se sentir em terreno mais familiar. Ela era, afinal, uma mulher. Ele poderia ter pouca experiência com normandos, mas possuía bastante com mulheres.

Ellen sentou-se num banco perto da janela, mas sem olhar para ele.

— Você pode se surpreender, master Connor, pelo fato de eu concordar com você no caso da venda dos cavalos. É ignorância de meu primo trocá-los por dinheiro quando serviriam para melhorar a manada de meu pai em gerações futuras.

Connor fitou-a, ainda em pé, pois Ellen não o con­vidara a se sentar.

— Aplaudo sua inteligência, milady.

— Infelizmente, Sebastian é ávido por dinheiro. Se não conseguirmos o dinheiro que ele deseja, irá tentar obtê-lo tirando-o das pessoas.

— Não há mais nada a se tirar dos arrendatários. Só agora o condado está podendo recuperar o que per­deu nos anos de guerra. E cada vez que as coisas começam a melhorar, sir William aumenta os impostos.

Ellen sacudiu a cabeça, perdida em seus pensamentos.

— Não entendo por que homens têm tanto prazer em acumular mais e mais soldados e armas, a fim de partir nas cruzadas pelos confins da terra.

— É um movimento santo — disse Connor. Ele acreditava na causa, embora, apesar de pretender honrar os juramentos que fizera à mãe, esse jura­mento ser um que preferia esquecer.

— Acredito num Deus menos sanguinário — Ellen comentou. — As escrituras pregam paz e perdão.

Connor permaneceu silencioso. Tinha pouca ex­periência com teologia e nenhuma com mulheres que discutiam sobre esse assunto, domínio dos homens. Precisava lembrar-se de perguntar ao irmão a opi­nião dele acerca do caso.

Ellen levantou-se, enfim, e fitou-o.

— Contudo — prosseguiu —, meu primo obterá esse dinheiro sacrificando qualquer pessoa, animal ou coisa. Lutarei para encontrar uma solução. Por exemplo, que tal vendermos apenas um de cada cinco cavalos, e os outros quatro conservarmos para re­produção de nossos animais aqui em Lyonsbridge?

Boa solução, Connor admitiu para si mesmo. Encarou a linda normanda com respeito e quase agar­rou-a quando ela, de súbito, declarou a audiência terminada. E abandonou o recinto.

Lady Ellen tinha sobre os ombros uma cabeça que raciocinava, além de linda, ele concluiu, assim que as enormes portas se fecharam. A combinação das duas coisas foi duplamente perigosa para sua paz de espírito. Suspirou e saiu pela porta dos fundos do solário. Talvez Martin o aconselhasse com refe­rência ao assunto.

As discussões terminaram num verdadeiro show, num tipo de festa no campo. Muitos camponeses pararam de trabalhar e foram ao castelo, alguns levando cestas de comida. Sentaram-se na grama para um alegre piquenique. Observavam Connor, os rapazes da estrebaria, e um grande número de ajudantes recrutados para o dia, levando os cavalos ao pátio da estrebaria.

Os escolhidos para a venda seriam no dia seguinte conduzidos pelos homens de Sebastian Phippen ao mercado de York. Connor fora designado, contra a vontade, para o serviço da seleção. Não queria, mas resolveu ceder, pois poderia fazer sugestões acerca da escolha das montarias.

John Cooper estivera o tempo todo a seu lado, fazendo perguntas e avidamente observando Connor no exame dos animais, embora o chefe dos cavalariços os conhecesse um a um, como a palma de sua mão. Qualquer pessoa podia ver que cada decisão significava um sofrimento para ele.

Ao meio-dia haviam sido escolhidos apenas seis cavalos destinados à venda.

Connor mal levantou a cabeça do trabalho quando uma delegação apareceu nos portões do castelo, com­posta por lady Ellen, o primo e sir William. Pela primeira vez, a visão de Ellen não provocou a ace­leração de seus pulsos.

Esperava poder terminar o processo da seleção sem interferência dos normandos.

— Traga o próximo, John — ele pediu ao rapaz, dando as costas aos recém-chegados.

John trouxe um cavalo de pêlo branco com man­chas pretas. O animal tinha apenas um ano de vida mas Connor já decidira que ele nunca teria as qua­lidades de muitos outros paridos pela mesma égua. Seria um candidato para a manada à venda.

O animal foi colocado diante dele, corcoveando. Connor passou a mão pelo lombo do cavalo e disse algo em voz muito baixa. Ele parou de corcovear imediatamente.

— Viu o que eu lhe disse? — sussurrou sir Wil­liam, quando ainda estavam um tanto afastados. — Não sei como ele faz isso. Acalma-os transfor­mando-os em cordeiros. Mas são feras monstruosas cada vez que meus homens tentam montar. Eu ven­deria todos eles.

Connor continuou examinando a montaria que ti­nha a seu lado, ignorando a presença dos recém-chegados.

— O que está dizendo a ele, master Connor? — Sebastian perguntou. —Sir William insiste que você lança algum sortilégio nesses animais, do contrário seria impossível treiná-los.

Com relutância, Connor fitou-o.

— Estes cavalos foram treinados para caminhadas pesadas. Podem carregar um homem dia e noite durante uma semana, sem parar. Não há iguais nes­te mundo de Deus. Quanto a sortilégios, não sei nada do que sir William está falando. Apenas os treino, a serviço de meu senhor feudal.

Sebastian andava com cuidado no pátio, para não escorregar na lama.

— Eles não são selvagens, são? — perguntou a Connor, lançando um olhar desconfiado ao cavalo.

— De forma alguma.

Uma vez no mesmo plano, Connor, bem mais alto, pôde enxergar lady Ellen por cima da cabeça dele. Os olhos de ambos se encontraram. Os de Ellen zombeteiros.

— Eles apenas dão uma dentada quando perce­bem que a pessoa está com medo — ela falou, com ar de caçoada.

Phippen deu um passo atrás, mas parou logo ao notar a expressão divertida de Connor. E disse à prima, asperamente:

— Só porque seu pai permitiu que você fosse educada como uma menina qualquer, passando seus dias montada num cavalo, não precisa ser tão grosseira.

Ellen não se desculpou ao dizer:

— Oh, Sebastian, não se comporte como um burrinho. Os cavalos não morderão você, fique sossegado.

Sebastian afastou-se e a troca divertida de pala­vras entre os primos terminou. Phippen fitou-a com ódio e Connor se perguntou se lady Ellen tinha idéia da extensão da inimizade do primo.

— Cuide para já ter escolhido o número determinado por nós até o fim do dia — Sebastian ordenou a Connor. — Se não tiver, venderemos o que bem entendermos. Começando por aquele monstro. — Ele apontou para Thunder, que estava embaixo de uma árvore pastando calmamente.

— Estarão escolhidos até o fim do dia — Connor respondeu, apertando as pálpebras.

Sebastian saudou o grupo e tomou a direção do castelo, escorregando na lama grossa.

— Não há necessidade de ficarmos aqui sob este sol quente — ele disse, olhando para sir William.

William observava Sarah Cooper que não saía de perto de Ellen. A expressão dos olhos dele deixou Connor preocupado. Mas Sarah parecia não perce­ber nada, pois tinha olhos apenas para o jovem pajem do castelo, que permanecia discretamente na redondeza.

Sebastian limpou a garganta e declarou mais alto:

— Vou voltar.

— Eu também vou — disse William. — O trabalho está prosseguindo muito devagar.

Ambos os homens iniciaram a subida da ladeira, e Sebastian perguntou à prima:

— Você vai?

Ellen olhou para Sebastian, depois para o local cheio de cavalos e de camponeses. Em seguida fitou Sarah que ainda observava Rolf com o canto dos olhos, e disse, com toda a naturalidade:

— Eu e Sarah vamos ficar mais um pouco. Quero dizer adeus aos cavalos que vão embora.

— Como quiser — Sebastian resmungou, e con­tinuou subindo a rampa, sacudindo os ombros com irritação.

Por segundos ninguém falou nada, e Connor não reiniciou seu trabalho logo. Depois de algum tempo, ele perguntou:

— Quer que eu mande buscar uma liteira para milady?

Ela olhou os camponeses sentados na grama, e respondeu:

— Não, eu me sentarei no chão também. Connor sorriu e prestou atenção no vestido dela.

Era um daqueles muito trabalhados, não de algodão e simples como o que usara no outro dia no solário. E ele tinha certeza de que nunca antes Ellen se sentara no chão com um daqueles vestidos, em es­pecial não na lama como a que cobria o pátio agora. Connor pegou o banquinho em que estivera sentado e ofereceu-o a ela:

— Sente-se aqui. Não quero que suje seu vestido.

Ele colocou o pequeno banco sobre a lama, fir­mando-o bem. Em seguida estendeu-lhe a mão aju­dando-a a sentar.

— Obrigada — Ellen agradeceu com um sorriso. Não era ainda um sorriso tão doce como o que esboçara em seus lábios no dia da corrida, antes do beijo. Porém mil vezes mais doce do que a expressão imperiosa que adotara depois que ele a beijara.

Connor nunca tivera aquela conversa com Martin sobre Ellen, conforme planejara. Decidira que seu problema com a mulher normanda ficava além dos santos ensinamentos de seu irmão.

Era um dilema que ele precisava deslindar por si mesmo.

— Quer testar os animais, milady? — Connor lhe perguntou.

— Não, master Connor. Sou mera observadora. Talvez eu o surpreenda fazendo um daqueles sor­tilégios sobre os quais sir William falou. Mas finja que não estou aqui.

Ou finja que o céu é verde, pois seria a mesma coisa. Fácil? Claro que não, Connor sabia.

— Muito bem, milady — ele apenas disse.

 

Onde fora parar sua indignação?, Ellen se perguntava enquanto, com os olhos, seguia cada movimento do chefe dos cavalariços. Aquele empregado a beijara. As mãos que agora percorriam suave e eficientemente o lombo de um a um dos novos cavalos que lhe eram trazidos, fizera o mesmo com ela. Devia ter repulsa e ficar horro­rizada, mas sentia-se longe disso.

As mãos eram fortes mas não ásperas. O toque era firme mas não rude. Os cavalos pareciam felizes. Se fossem gatos, estariam arqueando o corpo e ron­ronando de prazer. Ela gostaria muito, também, de ter aquelas mãos em seu corpo. Corou à idéia.

Connor de certo levara a sério o pedido de igno­rá-la, pois parecia ter completamente se esquecido de sua presença no local.

— Que características você procura para selecioná-los, master Connor? Como escolhe os cavalos que deverão ser vendidos? — A voz de Ellen soou mais forte do que pretendera.

— Quero vender uma mistura de animais velhos e jovens, mas sempre os mais fracos — Connor res­pondeu, agora fitando-a.

— Porém noto que escolheu vários animais bas­tante grandes.

— Alguns cavalos, embora grandes, são fracos nos ossos e nos músculos, outros em espírito. Tal qual pessoas.                

E ele voltou ao trabalho, sem mais explicações.

Ellen suspirou. Estava acostumada à bajulação dos homens, sempre desejando a esmola de algumas palavras suas. E aquele criado era irritante, pois ousara tocá-la havia apenas uma semana, e agora mostrava-se totalmente desinteressado.

— Vai acabar com essa seleção hoje? — Ellen perguntou.

O olhar de Connor foi para ela de novo e depois ao cavalo, sem interromper o exame.

— Tenho de acabar. Os homens de seu primo estão prontos para ir a York amanhã.

Ellen fez mais duas ou três tentativas de puxar conversa, porém ele estava obviamente concentrado no trabalho das mãos. Quando não observava Connor, Ellen examinava os grupos de camponeses, a maioria deles tendo já terminado com o piquenique. As crian­ças subiam e desciam a rampa, sem dúvida encan­tadas com o feriado inesperado. As esposas recolhiam o que sobrara, e algumas já voltavam à casa. Por instantes, Ellen invejou a simples vida que levavam.

— Milady precisa tomar cuidado com o sol. Está muito quente e sua pele é bastante clara — Connor disse de repente, interrompendo os pensamentos dela.

Ellen encarou-o, surpresa. Imaginara que Connor havia se esquecido de sua presença por completo, mas a observação feita havia pouco provava o contrário.

— Minha pele está bem acostumada ao sol, master Connor. Nunca precisei usar cosméticos ou unguentos. Mas de qualquer forma obrigada por sua preocupação.

— Faz parte de minha profissão cuidar dos seres vivos sob minha responsabilidade. — Ele sorriu.

— Não sou uma de suas éguas reprodutoras. Sou? Tampouco estou a seus cuidados. — Ellen falava baixo, para que os rapazes da estrebaria não a es­cutassem. — Esquece-se novamente de sua posição, master Connor?

O sorriso que ele esboçou não foi de desculpas, e falou melhor do que palavras. Connor pensou no que acontecera na última vez em que se esquecera de sua posição.

Ellen levantou-se, dizendo:

— Vou dar uma volta pela redondeza. Não conheço este lugar muito bem.

Atrás dela, Sarah sentava-se na relva ao lado de Rolf. A menina ergueu-se com alguma relutância, mas Ellen falou:

— Fique onde está, Sarah, se preferir. Ou vá para sua casa. Não preciso mais de você hoje.

— Obrigada, milady — Sarah agradeceu, com o mais radiante de seus sorrisos.

— Se vai andar por aí sozinha — Connor reco­mendou, sem levantar o olhar da pata do cavalo que ele examinava —, não se afaste muito do pátio da estrebaria.

Ellen quis ignorar a recomendação, respondendo com aspereza. Porém, pelo fato de dois rapazes apa­recerem no momento trazendo o próximo animal, ela disse apenas:

— O que eu quero mesmo é ver a estrebaria. Nun­ca conheci uma tão grande. Além disso, trouxe um tablete de açúcar para Jocelyn.

Connor enfim encarou-a. — Jocelyn não é um bebê, milady é um animal.

A observação, talvez de censura, soou aos ouvidos de Ellen como uma carícia.

Havia ainda mais uns vinte cavalos no pátio aguardando o exame. Alguns seriam transportados ao mercado de York, outros levados de volta às baias. Ellen passou pelo meio deles se perguntando quais seriam os escolhidos para partir. Na realidade, para ela, todos eram maravilhosos, fortes na musculatura e no espírito. Sentiu-se muito feliz pela decisão da escolha não ser sua. E mais feliz ainda pela simples razão de Sebastian, após alguma discussão, haver concordado em limitar a venda a um quinto do total. Ellen sentiu-se bem assim que entrou na sombria estrebaria depois de ter estado sentada fora por tan­tas horas. O sol brilhara no céu o tempo todo, aque­cendo-a até os ossos.

Ela percorreu o corredor central da estrebaria exa­minando baia por baia de um dos lados, e voltou fa­zendo o mesmo do outro lado. Adorou o aroma do feno fresco, amontoado com cuidado num canto. Ja­mais vira uma estrebaria como aquela na Normandia. Naturalmente, também jamais vira um chefe de ca­valariços como Connor Brand, em lugar nenhum.

Na extremidade do corredor, do lado esquerdo, havia uma pequena escada em espiral que comuni­cava com o segundo andar. Ela recordou-se de que Connor lhe dissera que morava lá. A idéia fora tão absurda que, na ocasião, não soubera se acreditava ou não. Mas talvez aquela escada conduzisse aos aposentos dele. Pronta para uma travessura, olhou ao redor a fim de verificar se ninguém a observava. Depois ergueu as saias e subiu a escada correndo.

Assim que chegou em cima, ficou boquiaberta. Es­perara ver algo como um palheiro. Em vez disso, entrou numa sala muito bem mobiliada. Não, bem mobiliada não, ricamente mobiliada. Parou à porta, estática. Em que lugar e como aquele chefe de cavalariços adquirira coisas tão preciosas, e de tão bom gosto?

Uma grande mesa de carvalho, escura, coberta de manuscritos, ocupava o centro da sala. Armários e prateleiras forravam as paredes onde havia uma in­finidade de livros encadernados em couro com etique­tas em ouro ou prata, como as da biblioteca do castelo.

Atordoada, Ellen abriu uma porta e entrou no quarto. A cama era enorme, nada similar a uma maca de camponês, e na porta do guarda-roupa ha­via desenhos que só poderiam ter sido pintados por artista consagrado.

Numa pequena mesa ao lado da cama estava uma vela e um manuscrito igual aos que ela vira na mesa grande da outra sala. Escrito em latim, Ellen re­conheceu imediatamente, pareceu-lhe ser um livro de leis.

Em pé perto da mesa estava um alaúde. Ela tocou algumas cordas. A tonalidade era perfeita. Sacudiu a cabeça, estupefata. Sentou-se no colchão macio da cama e começou a executar uma melodia.

Seus professores de música, na Normandia, de­sistiram de lhe dar aulas, considerando-a um caso perdido. Mas isso porque insistiam que ela tocasse canções melancólicas, enfadonhas, que considera­vam adequadas à posição de uma lady. Mas final­mente um dia Ellen ouviu uma canção cigana numa feira da aldeia, e desde então, quando tinha tempo, secretamente tocava sozinha, escolhendo as notas agradáveis a seus ouvidos, sons suaves ou violentos, numa mistura interessante, conforme os ciganos to­caram naquela noite estrelada.

Ellen não saberia dizer quanto tempo ficara ali no quarto de Connor, mas quase derrubou o instru­mento quando ouviu a voz dele vindo da porta.

— Milady é uma mulher de muitos talentos — Connor disse suavemente.

Ellen deu um pulo, ainda segurando o alaúde. Seu rosto pegava fogo.

— Você me assustou, master Brand.

— Aposto que sim. Mas eu também me assustei ao ver uma linda mulher da classe nobre refestelada em minha cama.

Ellen colocou o alaúde no chão.

— Desculpe-me. Foi rude de minha parte vir aqui sem seu conhecimento e consentimento.

— Eu desculpo. Ainda mais porque — ele acres­centou, escorregando suavemente um dedo ao longo da face esquerda de Ellen —, o embaraço deixou-a mais linda, aumentando o corado de seu rosto.

Ellen não sabia de que jeito fugir daquela situa­ção. De repente se deu conta de como estava vul­nerável. Mandara embora sua acompanhante, e o resto dos homens enviados pelo primo já voltara ao castelo. Encontrava-se absolutamente só com o chefe dos cavalariços. E o pior, no quarto dele.

Ela ergueu a cabeça.

— Terminou seu dia de trabalho, master Connor? — perguntou, esperando que sua voz soasse como a da dona de tudo aquilo.

Connor sorria. Estava queimado de sol e os últi­mos raios de luz que penetravam pela janela davam a seus cabelos louros um tom avermelhado.

— Um homem talvez pense estar presenciando uma aparição ao deparar-se com tal quadro em seu quarto — ele sussurrou, ignorando tanto a pergunta de Ellen sobre se ele terminara com o dia de trabalho, como a tentativa de ela restabelecer a própria posição. Seu polegar demorava-se na base do queixo dela.

Ellen fechou os olhos e pensou que talvez fosse o veludo da voz de Connor o que fascinava os cavalos.

— Esse homem imaginário a que me referi pen­saria tratar-se de aparição enviada pelas fadas do bosque encantado — ele continuou, com o mesmo tom de voz.

E Ellen se deu conta de que Connor iria beijá-la.

Ele não acreditava em fadas, mas começava a se convencer de que Ellen de Wakelin o enfeitiçara.

Quando Sarah Cooper lhe contara que não vira milady sair da estrebaria, Connor se alarmara. O dia de trabalho chegara ao fim, faltando apenas le­var o restante dos cavalos às baias. Connor confiara a John Cooper e aos rapazes da estrebaria essa ta­refa, e fora procurar Ellen. Mas o último lugar onde pensara encontrá-la era seu próprio quarto.

Porém, no instante em que a viu da porta, os cabelos negros emoldurando-lhe o rosto, como os de uma cigana, teve certeza de que iria beijá-la de novo. Se isso tivesse como consequência ser enforcado na praça do povoado, paciência. Morreria feliz.

E beijou-a.

Os lábios de Ellen estavam quentes como os raios do sol, e igualmente generosos. Connor segurou-a pela cintura e abraçou-a com força, sussurrando:

— Oh, querida! Sinto-me verdadeiramente enfeitiçado.

Ellen aceitou o beijo e esperou por outros, abrindo os lábios e gemendo de paixão.

Connor colocou um joelho sobre a cama para que seus corpos pudessem rolar grudados, tentando en­contrar uma união mais íntima. Mas foi impossível conseguir por causa das roupas que usavam.

— Milady é de uma beleza rara — ele murmurou com voz entrecortada, enquanto acariciava-lhe os seios.

O sol se escondia no horizonte, deixando o quarto na semi-obscuridade. O corpo de Connor ardia de de­sejo. Ellen fitava-o, os olhos dourados refletindo a ima­gem dele. Então, com um profundo suspiro, Connor acomodou-a na cama, e deu um longo passo atrás.

— Foi imprudência de sua parte ter vindo aqui, mi­lady — ele disse, com voz mais áspera do que desejaria.

Ellen tremeu ao ser abandonada, sentiu um súbito frio. Levou algum tempo para focalizar o quarto es­curo, para perceber o que de fato acontecera, para acreditar que ele realmente a deixara. Não apenas a deixara, mas a censurava mais uma vez como se repreendesse uma menina mal comportada.

Ellen sentiu grande embaraço, ali deitada na cama de Connor, olhando para ele. Fez esforço para sentar-se. Seria aquele um outro teste para lhe pro­var que não devia andar sozinha pela área externa do castelo? Tremia por dentro e sentia náuseas.

Como pôde aquele homem beijá-la daquela ma­neira, torná-la quase inconsciente quanto ao mundo que a cercava, e depois simplesmente abandoná-la dando um passo atrás com nada mais do que pala­vras lacônicas, de censura? Ela deixara passar isso antes, na floresta, mas dessa vez Connor pagaria por sua safadeza.

Levantou-se da cama, o rosto tal qual máscara gelada.

— Você me subestima, master Brand. Pensa que não terei condições de puni-lo por suas ofensas para não chamar a atenção de meu primo? Mas está enganado.

Com voz forte, Connor respondeu:

— Milady, acredite-me, eu não estava pensando em seu primo ou em qualquer outra coisa minutos atrás. O que fiz foi errado, erro grave, e peço-lhe perdão por isso.

Ellen não esperava por aquele comportamento. Quando ele a beijara na floresta, não pareceu nada arrependido, tampouco pedira desculpas.

— Posso perdoar uma vez...

— Mas não duas, é o que quer dizer? — Connor sacudiu a cabeça. — E tem absoluta razão. Duas vezes é imperdoável. — Como na floresta, Connor recuperou o controle muito mais depressa do que ela. E teve a audácia de dizer, sorrindo: — Minha única defesa é que o primeiro beijo foi bom demais para ficar só nele.

E manteve o sorriso quando Ellen continuou a falar, censurando-o, brigando, e finalmente desistindo. O que poderia ela fazer com aquele treinador de cavalos, Connor Brand? Ele tinha razão, o primeiro beijo fora bom demais para ficar só nele. E a que conclusão isso a levava? Sim, sabia agora. Se o primeiro fora bom demais, o segundo havia sido miraculoso.

Ela levantou-se da cama e correu para a escada, evitando o contato da mão que Connor lhe estendia para ajudá-la.

— Espere! — Ele correu atrás. — Está escure­cendo rapidamente. Milady precisa de proteção até o castelo. Espere por mim.

— Sua sugestão é absurda, master Connor — ela protestou, enfatizando cada palavra —, uma vez que a única pessoa que me faz necessitar de proteção, desde que cheguei a Lyonsbridge, é você!

Em seguida desceu correndo até a estrebaria mer­gulhada em trevas.

Connor ficara com o coração partido, mais do que imaginara, ao ver os dezesseis cavalos sendo levados pelos soldados normandos. Ele escolhera bem, ne­nhum dos dezesseis era animal de primeira quali­dade. Contudo, haviam sido criados como seus filhos, os únicos que tivera. Há muito decidira não pôr os próprios filhos nesse novo mundo normando.

O jantar de sábado com a família Cooper seria para ele uma injeção de otimismo, Connor se convenceu. John o convidara depois do show dos cavalos, na vés­pera. Ele foi a pé até a aldeia, pois estava triste demais para infligir seu estado de espírito a Thunder. Tentou cantar um pouco, uma canção que em geral o fazia sorrir, mas as notas dessa vez saíram amargas.

Contudo, não era apenas por causa dos cavalos, ele admitiu a si mesmo quando chegou ao maciço de árvores, localizado exatamente a meio caminho entre o castelo e a aldeia. Era Ellen. Embora não tivesse medo das consequências caso o primo sou­besse sobre os beijos, sabia que seu comportamento fora além do permitido.

Ele não queria ter filhos, mas prometera ao pai cui­dar dos arrendatários. Tinha, portanto, uma família a zelar, o pessoal de Lyonsbridge, e não deveria ter ar­riscado sua posição por alguns momentos de prazer.

Os Cooper o receberam com alegria, e sem cons­trangimento como acontecia quando os visitava na companhia de lady Ellen. Os gêmeos atiraram-se a seus braços e Sarah sorriu.

— Alô, Abel — ele disse ao menino, que quase derrubou no chão o pacote que Connor carregava. — Você por pouco jogou fora seu jantar de domingo.

Connor pegou Abel no colo e entregou o pacote à sra. Cooper, agora bastante forte para andar quase normalmente pela casa. Ela perguntou:

— O que você trouxe para nós, Connor?

Ela abriu o pacote e deu uma exclamação de prazer quando tirou de dentro um gordo pato. Os Cooper tinham suficiente comida, graças à criação dos porcos, mas o pato seria algo muito especial na mesa deles. Os gêmeos observaram a ave com olhos arregalados.

— Onde você achou isso, Connor? — o menino perguntou.

Connor fez as duas crianças sentarem-se no chão, acomodou-se ao lado e disse:

— Eu passava perto do lago Milton no outro dia e escutei o ruído de tremendo mergulho. Depois vi um pato saindo das águas e vindo sentar-se em meu colo.

Abel olhou de Connor para seu irmão John, que ria muito.

— Verdade? — perguntou, um tanto desconfiado. Connor riu também e passou a mão pela cabeça de Abel.

— Mais ou menos isso, Abel. Mas o velho pato não é tão bondoso a ponto de se depenar sozinho. Quem você acha que vai ajudar a mamãe nesse trabalho?

— Posso, mamãe? — ele perguntou à mãe.

A sra. Cooper consentiu, e quando Karyn puxou a manga da camisa de Abel, ele perguntou de novo:

— E Karyn, também pode?

— Depois do jantar você, eu e Karyn faremos isso juntos — Connor disse ao menino. — Sarah será a supervisora.

Sarah e a mãe começavam a arrumar a mesa, mas a expressão da menina mais velha indicava que não tinha o mesmo entusiasmo dos irmãos mais moços em depenar a ave.

— Nós podemos fazer sua parte, Sarah — Connor corrigiu o que dissera antes.

— Sarah tem um namorado, sabe, Connor? — John declarou, para provocar a irmã.

Cantou em seguida uma balada de amor, meio desafinado, e parou quando a irmã fez cara feia.

Connor ficou surpreso. Vira Sarah na véspera com um rapaz. Porém, namorados? Carregara a menina nos braços quando bebê! Mas esquecia-se de que agora ela estava com treze anos, idade para se casar. De súbito, viu-se invadido por um sentimento de paternidade, como se de fato fosse o pai da menina-moça. Franzindo o sobrolho, indagou:

— É Rolf, não é?

O rubor do rosto de Sarah respondeu, não sendo necessário o aceno de cabeça.

— Talvez Rolf queira nos ajudar a depenar o pato. O que você acha? — ele perguntou.

Mas logo considerou sua sugestão ridícula. Ele também namorara na idade de Rolf e sabia que depenar um pato na casa da família da namorada não era o que um jovem rapaz tinha em mente. Connor era quinze anos mais velho do que Sarah mas sen­tia-se muito, muito mais velho.

A comida na casa dos Cooper era sempre deliciosa. Agnes ensinara à filha a arte de cozinhar que ela aprendera com a própria mãe, que fora a melhor cozinheira de vários condados, frequentemente cha­mada pela mãe de Connor para ir ao castelo em datas especiais.

Na sobremesa, Connor e John devoraram enorme quantidade de bolos de cevada, enquanto Sarah e as crianças pequenas comiam vagarosamente um pudim de frutas.

— Nunca pensei em me casar, Agnes, mas uma comida como esta é poderosa atração — brincou Con­nor, lambendo os beiços e piscando para Agnes. Di­rigindo-se a John, perguntou: — Você gostaria de ver sua mãe sair da viuvez?

John gargalhou. Agnes Cooper não era na verdade muito mais velha do que Connor, mas a vida dura que levara e a doença transformaram-na numa mu­lher idosa. Contudo, a brincadeira de Connor pro­vocou um colorido em suas faces dando um toque de juventude à velha senhora. Por instantes, o fan­tasma da beleza que vagava pela aldeia sorriu atra­vés dos lábios de todos os que se sentavam à mesa.

— Quer um pouco de pudim, Connor? — Agnes lhe perguntou.

— Não, obrigado. Vou ficar gordo como Harry, o pedreiro, se você ficar me alimentando assim, Agnes.

Os gêmeos riram muito, pois Harry Mason era o melhor amigo deles. E não deixava de ser absoluta verdade que o alegre homem era tão largo como as paredes que ele erguia.

— E melhor aproveitar agora, Connor. É minha última provisão de passas e especiarias. Não se pode conseguir mais isso na aldeia.

— Ninguém está indo ao mercado?

— Ninguém tem dinheiro para comprar nada no mercado.

— Os homens de sir William estão exigindo mais dinheiro de impostos. Levaram quase tudo que não estava cimentado nas construções de master Mason — explicou John.

— Que pretextos apresentaram dessa vez? — in­dagou Connor,

— Taxas para o rei, disseram — John respondeu com amargura misturada a raiva. — Mas o que sus­peito é que as taxas são para encher a bolsa de Sebastian Phippen.

— John — a mãe censurou-o —, tenha cuidado. Connor olhou da viúva para o filho.

— Sua mãe tem razão, John. Saxões não podem mais falar livremente nesta terra. Temos de medir as palavras, mesmo em reunião de família. Nunca se pode saber se alguém está nos escutando.

Como para confirmar essa observação, ouviu-se uma pancada na porta. Sarah deu um pulo.

— E Rolf— disse, elevando a voz com entusiasmo. Mas quando abriu a porta rústica de madeira viu que não era o jovem pajem que estava do outro lado, e sim sir William em carne e osso. Só depois que o magistrado examinou cada detalhe do corpo de Sa­rah é que notou Connor sentado à mesa dos Cooper. Lançou um olhar de fúria ao chefe dos cavalariços.

— O que faz você aqui, Brand? — perguntou. Connor levantou-se lentamente.

— Fui convidado, sir William. E o senhor, o que faz?

William baixou a cabeça, de súbito não se sentindo à vontade. Ninguém falou, todos esperaram pela res­posta dele. Enfim, erguendo a cabeça, o magistrado respondeu:

— Vim fazer uma visita de amigo. Não sabia que a família tinha convidados.

Uma visita de amigo?, Connor perguntou-se. Do magistrado do castelo? Estranho! Ele olhou de Wil­liam para Sarah e sentiu um frio na espinha.

Connor foi para perto do desprezível intruso,

— A viúva Cooper ainda não se recuperou da re­cente crise. Ia agora mesmo se recolher — ele disse ao homem, cuidando para conservar um tom de voz calmo. — Talvez seja melhor expor seu negócio logo, sir William.

Sir William passou a língua pelos lábios e mais uma vez olhou para Sarah e depois de volta a Connor.

— Se a sra. Cooper não se sente bem, voltarei qual­quer outro dia — ele respondeu após alguns segundos.

— Como quiser — Connor declarou.

O homem tomou a direção da porta, os olhos ainda observando Sarah furtivamente, como um animal rastreando a presa.

Connor correu para fechar a porta, e perguntou a Sarah assim que sir William se retirou:

— Ele tem incomodado você, Sarah? A moça estava muito perturbada.

— Não gosto desse homem, parece um rato — ela respondeu com ligeiro tremor na voz.

Connor não a pressionou mais.

— Fique sempre perto de lady Ellen quando estiver no castelo. Falarei com ela a respeito, se você quiser.

— Oh, por favor, não, master Brand — Sarah retrucou depressa. — Milady pode me proibir de ir ao castelo e, sendo assim, não mais verei...

Ela parou de falar abruptamente.

— Então diga a seu Rolf que fique de olho em você quando estiver no castelo, sempre andando de um lado para o outro. Precisamos arquitetar um plano a fim de mantê-la longe da vista de sir William.

— Mas não vai dizer nada a lady Ellen, vai? — Não, não direi nada a ela.

Sarah deu um suspiro, aliviada. Mas Connor não se sentiu nada aliviado. O incidente dera-lhe uma sensação desagradável, de tragédia até. Sarah era uma menina linda, e não seria a primeira vez que um magistrado de castelo decidia satisfazer suas necessidades sexuais com a virgindade da filha de um de seus arrendatários.

Na realidade, havia muitas coisas sobre as quais ele teria de pensar, Connor dizia a si mesmo en­quanto agradecia à viúva mais uma vez por sua hospitalidade, e já pronto para sair. Tinha uma grande família a proteger, e faria melhor uso de seu tempo para essa finalidade, em vez de sonhar insensatamente com os olhos cor de ouro da senhora do castelo.

 

Não era justo para com Jocelyn, Ellen enfim se convenceu. Ficara longe da estrebaria por aproximadamente dez dias, ocupada na arrumação do castelo que agora começava a ter um aspecto tão em ordem como sua própria casa na Normandia. Mas não deixara de ter saudade de seus passeios diários a cavalo.

Quase decidira esperar mais um dia antes de re­começar sua atividade costumeira, quando Sarah lhe pediu para sair mais cedo a fim de apanhar uma faca que deixara para consertar no ferreiro. Então resolveu que uma breve galopada antes do pôr-do-sol seria bastante agradável. E, com sorte, não veria o chefe dos cavalariços. Provavelmente ele terminara o trabalho do dia e era cedo demais para o jantar, caso saísse para comer com o irmão. Seus olhos se fixaram na estreita janela grudada ao telhado da estrebaria, a qual, ela sabia agora, era a da sala de Connor Brand. Talvez ele estivesse lá agora, folheando seus livros. No calor do encontro, Ellen não tivera chance de lhe perguntar como era possível que nos aposentos de um simples treinador de cavalos houvesse mais livros do que em qualquer outro lugar onde estivera, excetuando-se as abadias.

Seu pai lhe ensinara latim, grego e francês, mas era raro, até na Normandia, encontrar livros nessas línguas. Em toda parte, livros pareciam ser mais preciosos do que jóias. E, no entanto, seu chefe dos cavalariços tinha, pelo menos, uns vinte deles. Isso calculado rapidamente, numa única vista dolhos.

Ellen espiou pela porta da estrebaria antes de entrar. Dava a impressão de estar vazia, conforme de fato esperara. Com um sorriso nos lábios foi até a baia de Jocelyn. Ela jamais arreara um cavalo, mas vira alguém fazer esse serviço incontáveis ve­zes. Se os meninos que trabalhavam lá podiam ar­rear, ela poderia. E por que não?

Encontrou certa dificuldade de início, mas subindo num bloco de madeira que empurrara para o lado da égua, conseguiu pôr a sela no lugar e apertar a barrigueira. Jocelyn reconhecera o toque de sua dona e ficara imóvel, pacientemente esperando o tér­mino do processo.

Nem sinal de Connor ou de qualquer outra pes­soa enquanto ela montava Jocelyn e saía da es­trebaria, orgulhosa de sua façanha e ansiosa pelo passeio.

Faltavam mais ou menos três quartos de hora para o pôr-do-sol. Durante esses minutos usufruiria o prazer de andar pelos campos. Afastou-se da es­trada principal, desceu a rampa atrás da estrebaria e percorreu uma região desconhecida para ela. Fi­caria por lá alguns minutos e depois subiria a colina um pouco adiante. Voltaria e desencilharia a égua. Convenceu-se de que ninguém testemunhara sua aventura, pelo menos até o momento.

Jocelyn parecia também muito contente com o passeio da tarde. Havia no ar a umidade própria da primavera. Ellen respirou fundo e sorriu.

Connor blasfemou consigo mesmo ao observar um cavalo solitário descendo a rampa. Sentava-se perto da janela da sala aproveitando a claridade de fim de tarde para ler seus manuscritos. Eram os únicos legados remanescentes dos velhos tempos. Seus pais os trouxeram de todas as partes da Europa onde havia qualquer referência aos tesouros da família. E Connor guardava tudo aquilo com amor.

Cuidadosamente fechou um manuscrito precioso escrito num alemão arcaico, que ele podia apenas parcialmente decifrar. Com o auxílio ocasional de Martin, trabalhava nele durante um ano já. Era uma escapatória do mundo atual de Lyonsbridge, a única concessão que dava a sua antiga vida. Anos atrás escapava de outra maneira, indo ver as moças da aldeia. Mas essas fugas ficavam cada vez mais raras à medida que ele sentia aumentar o peso da responsabilidade que o pai pusera em seus ombros antes de morrer.

Era essa mesma responsabilidade que o impul­sionava agora, ele se convenceu. Lady Ellen talvez fosse mimada demais ou tola demais para enxergar o perigo, mas ele sabia que suas preocupações eram compreensíveis. A maioria dos homens de Lyons­bridge era boa, mas havia na Inglaterra muitos ele­mentos fora-da-lei, que abusariam de uma linda mu­lher cavalgando sozinha pelos campos.

Ele desceu a escada correndo, atirou uma sela sobre o lombo de Thunder, e partiu. Ellen não po­deria estar muito longe.

Thunder mostrava mais energia ainda do que a habitual, talvez pelo inesperado passeio àquela hora do dia. Connor sentiu seu corpo ir acordando aos poucos ao balanço do cavalo, sentiu a mente ir dei­xando vagarosamente a poeira dos livros para foca­lizar mais uma vez a imagem que o perseguira por muitos dias e noites, lady Ellen rindo para ele, os lábios polpudos e vermelhos como framboesas, os seios altos e salientes.

Respirou o ar gélido de fevereiro. Pareceu-lhe que iriam ficar sozinhos mais uma vez. E Connor se perguntava se aquelas provas contínuas seriam um tipo de penitência mandada por Deus por ter ele se afastado dos santos sacramentos.

— Você disse que rezaria por mim, Martin — resmungou. — Talvez seja esta uma boa hora.

Connor alcançou-a com facilidade, e Ellen, natu­ralmente, sabia que era ele. De certa maneira, sou­bera o tempo todo que Connor viria, por mais que dissesse a si mesma que desejava fugir.

Riu, desafiando-o a repreendê-la, mas Connor nem tentou.

Colocou Thunder par a par com Jocelyn sem dizer nada, e os dois animais iniciaram a corrida subindo a colina, as longas pernas queimando o solo, cavalos e cavaleiros estimulados pelo agonizante sol da tarde.

Os dois animais se alinhavam cabeça com cabeça, nenhum deles tentando vencer, como se adivinhas­sem que, no momento, não interessava quem seria o vencedor.

Finalmente, o globo luminoso escondeu-se atrás de uma colina no oeste, e Ellen fez Jocelyn parar.

Sem que Connor segurasse as rédeas, Thunder pa­rou ao lado da égua.

— É uma linda tarde — disse ela, quase sem fôlego devido à corrida.

— É verdade.

Ainda nada da censura esperada.

— Não monto Jocelyn há muito tempo — Ellen declarou. — Foi demais para ela a espera.

— Mas a montaria está sempre pronta a qualquer hora que milady deseje — Connor informou-a. — Vamos caminhar por alguns minutos antes de ini­ciarmos a volta.

Connor ajudou-a a apear. Colocou-a no chão to­mando bastante cuidado para tocá-la o menos pos­sível. Ellen escondeu um sentimento de desaponto.

Ele lhe entregou as rédeas de Jocelyn e começa­ram a descer a pé a colina que apenas haviam su­bido. Connor ia na frente, Ellen seguia-o, escorre­gando de quando em quando na relva úmida.

— Vamos chegar ao castelo só à noite? — ela perguntou, achando aquele silêncio estranho.

Connor olhou para o oeste, para a mancha vermelho-escura no horizonte. — Talvez... Mas acredito que não — ele respondeu.

— Você conhece o caminho, não é mesmo?

— Conheço.

Ellen concentrou-se em realizar sua descida sem tro­peçar. Connor não a fitava, mas sua expressão não parecia hostil. Enfim ela perguntou, com naturalidade:

— Está zangado comigo, master Connor? Ele parou, e agora fitou-a longamente.

— Eu a preveni que nunca cavalgasse sozinha. Mas percebi, dez segundos após a ter conhecido, que milady era uma mulher que fazia o que desejava.

— Está tentando dizer que sou mimada, é isso? Connor percorreu-lhe o corpo com o olhar, na es­curidão crescente.

— Talvez — disse. — Ou chame isso de teimosia, se preferir.

— Não sei bem se prefiro. — Ellen deu de ombros.

— Não foi minha intenção ofendê-la.

A voz dele vibrava com aquela ressonância que Ellen conhecia muito bem. Connor estava a apenas alguns centímetros distante dela. Cada um segurava ainda as rédeas da própria montaria, mas o resto do mundo, incluindo os animais, era como se hou­vesse desintegrado, deixando apenas os dois, face a face, sentindo mais uma vez aquilo que já acontecera entre eles.

— Qual era sua intenção, master Connor? — ela perguntou com voz rouca.

Connor largou as rédeas e agarrou-a.

— Esta — ele gemeu. E beijou-a como antes, só que desta vez na escuridão. Ellen sentiu o beijo tal qual um terremoto percorrendo-lhe o interior. Seus pés er­gueram-se do solo e ela colou o corpo no de Connor, como se os dois seres se transformassem em um só.

— Era esta sua intenção também, não era? — ele perguntou, ainda beijando-a. — Quando saiu de casa esta tarde, sabia que eu apareceria.

Naturalmente que ele estava certo. Ela soubera o tempo todo.

Os cavalos, esquecidos por seus donos, se afasta­ram um pouco e os dois deitaram-se na relva, pro­curando um contato mais íntimo, mais profundo.

— Eu te desejo, princesa — Connor sussurrou. — Trata-se de um tipo de loucura que milady pro­vocou em mim.

Ellen não pôde responder. Sua mente continuava envolvida em novas sensações enquanto Connor, com as mãos, executava círculos sensuais ao redor de seus seios e beijava-lhe os lábios, o queixo, o lobo da orelha.

Ellen começou a sentir uma dor penetrante nas virilhas, vinda em ondas a cada movimento dos dedos de Connor em seus seios. Teve uma neces­sidade urgente de tirar as roupas e sentir a pele dele contra a sua.

— Oh, master Connor, eu também te desejo — ela enfim conseguiu sussurrar.

Connor parou de acariciá-la, mas não a libertou de seus braços quentes. Parte do desejo sumira de sua expressão, dando lugar à súbita consciência dos fatos e à surpresa.

Não pare, não pare, ela repetia mentalmente, e as palavras surgiram sob a forma de um gemido.

Connor pareceu refletir, lutando contra si mesmo. Enfim ergueu-se e puxou-a para perto de si. Ellen fitou-o, com um olhar de sofrimento. Cada fibra sua protestava, porém ela era orgulhosa demais para transformar em palavras seu protesto.

E foi então que Connor declarou, quase solenemente:

— Princesa, princesa, eu sabia que isso aconte­ceria um dia entre nós dois, embora ambos tenhamos lutado contra as forças da natureza. Mas não a ama­rei neste chão frio.

Ellen estava confusa, apenas desejava que Connor não a deixasse ir. Queria que as deliciosas sensações continuassem. Mas agora só restava o ar gelado, esfriando seu corpo e cérebro.

Num segundo, Connor pegou o cavalo e montou, estendendo em seguida a mão para Ellen que pro­curava localizar Jocelyn.

— Não — ele disse —, milady vai cavalgar comigo, em meus braços. Não a quero longe de mim esta noite.

Então Connor a fez montar em sua frente, com as costas contra o tórax dele, conduzindo Jocelyn pelas rédeas, logo atrás. Ellen fechou os olhos e concentrou a mente apenas naqueles momentos ali na relva, com Connor sussurrando palavras afetuosas em seus ou­vidos, e movendo a mão bem devagar sobre seu ventre.

Grudados, ele ergueu-lhe os cabelos e beijou-lhe a nuca. Logo depois parou de cavalgar e, virando-a com o auxílio de ambos os braços, beijou-a demora­damente nos lábios.

Ela quase nem percebeu quando chegaram à estrebaria.

Seus olhos continuaram fechados no instante em que ele carinhosamente a fez apear. Prendeu-a entre seu corpo rijo e o lado da sela da montaria, enquanto a beijava mais uma vez com paixão.

— Espere-me aqui um momento, amor, enquanto coloco os animais em suas respectivas baias — ele pediu com voz cheia de carinho. — Voltarei logo a seu lado.

Ellen quase desmaiou no instante em que Connor retirou os braços de sua cintura, e um súbito vento frio refrescou-lhe as faces, diminuindo seu ardor. Abriu os olhos. A brisa a fez tremer, a consciência voltava lentamente,

Connor talvez decidira mudar o lugar onde iriam se amar, para um mais confortável e principalmente mais discreto, a fim de garantir sua segurança, Ellen dizia a si mesma. Um criado apanhado fazendo amor com a dona do castelo poderia facilmente ser con­denado à morte. Contudo, ela também admitia como possível a decisão de ele haver se afastado um pouco não por razões de segurança, mas para lhe dar chan­ce de considerar os próprios atos.

E se tivesse uma gota de bom senso, Ellen pensou, deveria fugir para o castelo o mais depressa que pudesse. Mas seus pés estavam como que grudados na lama mole do pátio da estrebaria.

— Tem certeza, Ellen? — A voz grave de Connor a fez dar um salto.

O som de seu nome saindo dos lábios de Connor era mais suave do que o carinho que lhe fora pro­digalizado antes. Ellen atirou-se aos braços dele.

— Tenho certeza, sim — sussurrou, e ofereceu-lhe os lábios.

— Vou levá-la para cima, ninguém nos perturbará lá, a menos que dêem por sua falta no castelo.

Ellen sacudiu a cabeça.

— Sebastian não tem idéia de como passo meus dias, e pouco se importa com isso. Janta cada noite com seus queridos livros de contabilidade.

Connor ficou evidentemente satisfeito. Sorriu, um sorriso tão jovem, tão charmoso, tão cheio de amor, que a fez gemer.

— Posso levá-la então ao meu ninho, princesa?

Lágrimas caíam pelas faces dela. Pensara num mo­mento como aquele, durante anos, mas jamais ima­ginara que pudesse ser assim, numa estrebaria, com um mero treinador de cavalos. Contudo, seu coração palpitava rápido e seu corpo vibrava por antecipação.

No dia seguinte lidaria com as consequências de sua loucura. Mas naquela noite queria se entregar totalmente ao milagre, pois se tratava de verdadeiro milagre. Aquela misteriosa e miraculosa força que ouvira tantas vezes cantada em baladas, e que ela também cantara tantas vezes, finalmente a aprisio­nava. Pela primeira vez em sua vida Ellen de Wakelin se apaixonava.

Ela sorriu para o companheiro.

— Não vou exauri-lo, master Connor, não se preo­cupe — disse, caçoando.

Ele carregou-a no colo como se se tratasse de um saco de plumas.

— Quero me exaurir em seus braços, doce cria­tura. E prometo não suplicar por misericórdia.

Connor começou a tomar a direção da escada que conduzia a seus aposentos, de repente com uma pres­sa louca. Ellen passou os braços em torno do pescoço dele, segurando-se com firmeza. Podia escutar as batidas do coração de Connor mesmo através da roupa pesada que ele usava.

— Master Brand! — Um grito ecoou no ar, vindo da estrada da aldeia.

Connor parou brevemente, depois continuou a an­dar, e mais depressa. Ellen levou algum tempo para se dar conta de que o apelo fora real, de que alguém de fora pedia para entrar no mundo privado deles, no mundo só deles.

— Alguém está chamando você — ela disse, num tom de voz muito baixo.

Connor praguejou, mas enfim parou e colocou-a no chão. Passou ambas as mãos pelos cabelos, sen­tindo-se terrivelmente frustrado.

Voltou para a entrada da estrebaria e, aper­tando as pálpebras, olhou para a estrada envolta na escuridão.

— Isso mesmo. Alguém me chamou pelo nome. Acho que é John Cooper.

Talvez não estivesse tudo perdido. Ele poderia fa­lar com o rapaz e voltar à estrebaria para retomar seus planos. Mas Ellen sentiu que a magia fora que­brada. Mesmo que a missão de Connor fosse trivial, seria difícil recuperar a sensação deliciosa que os dois haviam adquirido na colina.

Ficaram lado a lado, esperando que John se apro­ximasse. O rapaz corria. Quando chegou bem perto podia-se ver que estava exausto, com o peito arfante. O luar tornava visíveis as lágrimas que lhe caíam pelas faces.

— O que houve, John? — Connor perguntou, sem demonstrar seu aborrecimento pela interrupção.

John tropeçou ao dar os últimos passos e quase caiu. Connor estendeu-lhe a mão para segurá-lo.

— Aconteceu alguma coisa desagradável? — Con­nor acrescentou, mais preocupado agora.

— Foi com sua mãe? — Ellen quis saber. John sacudiu a cabeça num gesto negativo e abriu a boca para responder, mas tudo o que saiu foi uma série de soluços. Ellen caminhou para perto dele e pôs a mão nas costas magras do rapaz que tremia por causa do choro e do medo. Ela encarou Connor que fez um movimento de cabeça como se não sou­besse o que fazer.

Depois de alguns minutos, John segurou o pranto o suficiente para poder falar. Porém suas palavras foram mais alarmantes do que as lágrimas.

— Eu o matei — disse, com voz entrecortada. — Eu matei sir William.

 

No começo, eles mal puderam acreditar na história de John. Para início de con­versa, John era um rapaz franzino para enfrentar um bem preparado guerreiro como William Booth.

Mas John continuava com sua narrativa em meio a soluços.

— Foi o grito de Sarah que me conduziu para perto dos dois — ele explicou. — Sir William a en­costara contra uma árvore, com a saia erguida até a cintura e a blusa rasgada na frente.

Ellen cruzou as mãos no peito, o rosto pálido de pavor.

Connor tentava acalmar o rapaz.

— O que aconteceu depois, John? — perguntou.

— Quando eu gritei, sir William gargalhou e disse: Vá embora, menino, meu negócio é com sua irmã. Então, eu saltei no pescoço do homem. Mas ele deu um soco em meu rosto, que me atirou longe.

Foi aí que Ellen notou a marca de sangue perto da boca de John.

— Você está ferido? — ela indagou.

John sacudiu a cabeça com impaciência, nada preocupado com o próprio ferimento. Agora que parte da história fora contada, ele parecia ansioso em acabar com a narrativa.

— Enquanto sir William me atacava, Sarah ten­tava fugir. Porém ele agarrou-a e encostou-a nova­mente na árvore, usando de brutalidade. Apertava-lhe a garganta com o braço e eu notei que minha irmã ia ficando cada vez mais pálida. Havia uma faca no solo. Era nossa, eu a reconheci logo. Sarah com certeza a trouxera do ferreiro aonde a levara para ser consertada.

Ellen ia ficando mais e mais tensa. Connor teve impressão de que ela ia desmaiar. Segurou-a, e de­pois dirigiu-se de novo a John.

— E o que houve em seguida? Conte-me exatamente tudo, John. E importante.

— Eu gritei: Solte-a!. Sir William riu de novo, e seus olhos expeliam chamas. Então eu peguei a faca que estava no chão e ameacei-o. — Os olhos de John brilhavam como se estivesse revivendo o momento fatal.

— Você investiu contra ele? — Connor perguntou, calmamente.

— Não, mas sir William largou Sarah e ela caiu no chão. Achei que minha irmã estava morta. O maldito tirou uma faca da cintura e disse: Cuidarei de você antes, seu sapo metido.

— Quer dizer que ele tinha a própria arma e tentou usá-la?

— Certo. Apontou-a na direção de meu tórax, mas eu pulei de lado e ele caiu para a frente. — John aspirou uma boa quantidade de ar. Os soluços ha­viam passado. — Na queda, a ponta de minha faca penetrou fundo sob o queixo dele.

Ellen estremeceu, e Connor ficou estarrecido. John esfregou os olhos e falou, agora meio atordoado:

— Ele ainda arrancou a faca do queixo. E morreu. Assim simples. Assim depressa.

— Onde está a faca? John fitou-o, confuso.

— Que faca?

— Sua faca, rapaz.

— Não sei. Eu... Continua na mão dele, suponho.

— E Sarah?

— Ela recuperou-se logo. Disse-lhe que fosse de­pressa à casa e que contasse tudo à mãe. Eu vim para cá procurar você.

— Foi em defesa própria — observou Ellen. — Ou em defesa da honra da irmã.

— Isso não conta, nas condições em que vivemos. Mesmo que conseguíssemos provar o fato — Connor comentou —, se descobrirem que John fez isso, ele será enforcado.

Ellen sacudiu a cabeça.

— Precisamos contar já essa história a... Connor interrompeu-a, com um movimento impa­ciente de mão. E disse:

— Milady pode ser normanda, mas não sabe nada sobre a justiça normanda. Ao menos como funciona a justiça normanda na Inglaterra. — Ele virou-se para John. — Temos pouco tempo. Estarão procu­rando pelo culpado assim que descobrirem o corpo. Temos de encontrar essa faca.

— Vou ver meu primo e lhe contarei a verdadeira história. Ele não permitirá que se faça mal algum a John num caso desses — Ellen garantiu.

Connor fitou-a, com expressão gelada.

— Sinto muito — disse —, mas terei de lhe pedir que venha conosco.

— Ir com vocês? — Ellen achou que não havia entendido bem o que ouvira.

— Sim. Milady sabe demais sobre o incidente. Enquanto John e toda sua família não estiverem escondidos em algum lugar seguro, não poderemos arriscar que essa história seja ventilada. — Ellen começava a protestar mas Connor impediu-a. — Não temos tempo para discussões. Milady pode ir conosco em sua própria montaria ou comigo, em Thunder.

— Não vou a parte alguma — ela revidou, corando de indignação.

Ellen se compadecia de John mas sentia grande desaponto pelo fato de o incidente haver estragado o que iria acontecer entre ela e Connor. A chama de amor que existira dentro de si momentos atrás, fazendo-a atirar-se nos braços do homem que amava, sumira. Quanto a Connor, encarava-a como se ti­vesse à frente sua mais amarga inimiga. Ignorou-a, enfim, e disse a John:

— Vamos a sua casa. Levaremos toda sua família para o meio do mato. E bem depressa. Carregaremos só o que for absolutamente necessário. Assim que eu os deixar em lugar seguro, voltarei a fim de pro­curar a faca. Só assim teremos tempo antes que eles descubram que sua irmã esteve no ferreiro hoje, apanhando a faca.

— Muito bem, master Connor — John concordou, com voz confiante e mais firme agora. Só por ter con­tado sua história ao chefe dos cavalariços adquiriu mais confiança em si e recuperou seu autocontrole.

Mais uma vez dirigindo-se a Ellen, Connor disse, decidido:

— Quer que eu ajude milady a montar Jocelyn? Ou prefere ir comigo em Thunder?

— Não vou a lugar nenhum — ela repetiu, sem esconder a irritação. — Não precisa ter medo que eu revele alguma coisa do que se passou. Jamais causaria dissabores a Sarah ou a qualquer pessoa da família dela.

Acostumada a ter todas as vontades satisfeitas, Ellen não conseguia entender como um simples cria­do seu ousava contrariá-la.

Connor pareceu hesitar, mas enfim insistiu:

— Sinto muito, mas será bem mais seguro se mi­lady for conosco.

Ele estendeu a mão e, segurando-a, conduziu-a à baia onde estavam os cavalos. Ellen puxou o braço.

— Tem minha palavra, master Connor — ela qua­se gritou, furiosa. — Sugiro que continue com seus planos. Boa sorte, John. — E acrescentou, num tom de voz mais terno. — Assim que toda a família es­tiver bem escondida, entrarei em cena e verei o que posso fazer para que o caso seja resolvido da maneira a mais favorável possível para os Cooper.

Ela virou as costas e seguiu na direção do castelo. Connor alcançou-a em duas longas passadas. Car­regou-a no colo. Ele fizera a mesma coisa havia al­guns minutos, mas a tensão entre os dois agora era de natureza completamente diversa.

— Sinto muito, milady — Connor desculpou-se mais uma vez. E perguntou a John: — Você acha que pode montar Thunder? Lady Ellen e eu segui­remos na montaria dela.

— Claro — o rapaz respondeu, e segurou as rédeas do enorme garanhão, sem hesitar. — Mas posso tam­bém montar Jocelyn, se você preferir.

Connor sorriu brevemente para John, dizendo:

— Obrigado, amigo, mas prefiro fazer como falei antes. Thunder é menos arisco com novos cavaleiros do que a montaria de lady Ellen.

Durante essa troca de palavras sobre os cavalos, Ellen esperneava nos braços dele. Mas Connor ape­nas ignorou os protestos movimentados da castelã. Encarou-a, ameaçando-a:

— Se não ficar quieta, amarrarei um trapo em sua boca. Pode haver guardas na redondeza e não quero alarmá-los desmedidamente. Precisamos de todo o tempo possível.

— Deixe-me ir — ela pedia, ofegante, sempre lu­tando com pernas e braços. — Não pode me levar consigo, seria um ultraje muito grave.

Ela poderia ter gritado, pedindo socorro, mas não gritou. Embora estivesse furiosa com Connor, não queria ser a causa do aprisionamento de John.

— Vai montar como uma boa menina? — ele per­guntou, soltando-a parcialmente. Mas aproveitando o aperto menos firme das mãos de Connor, Ellen saiu correndo na direção do castelo.

Com um ronco de irritação Connor agarrou-a de novo e jogou-a no lombo da égua obrigando-a a ficar arcada, com o rosto para baixo, e montou atrás. Ellen dava pontapés nas pernas dele, em protesto.

— Calma, princesa — disse Connor conservando-a no lugar, sempre com mão firme nas costas dela. E fez sinal a John que o seguisse.

Ellen continuou lutando o tempo todo, mas sem gritar, até saírem do alcance dos guardas normandos. A verdade era que sua indignação diminuíra no momento em que Connor a chamara de prince­sa. Teve a impressão de que, apesar das divergên­cias, não seria fácil para ele esquecer-se do que qua­se acontecera entre os dois.

O corpo de Ellen doía muito, por ter sido sacole­jado a viagem inteira como se ela fosse um saco de cebolas. Suas costelas estavam doloridas ou talvez até quebradas, ela achou possível, passando as mãos nas costas. Cavalgaram durante horas, parando en­fim no meio de um matagal. Sem a menor cerimônia Connor a fez apear, e ordenou:

— Espere aqui. Não se mova deste lugar. — E desapareceu com a égua por trás de um arvoredo cerrado.

Ellen olhou a sua volta e para o céu, onde a lua quase cheia estava bem acima de sua cabeça. Era noite fechada e esfriara muito.

Massageou os braços, tremendo de frio. Teria o chefe dos cavalariços a abandonado no meio da flo­resta? Impossível. Mas, àquela altura dos aconteci­mentos, ela não tinha mais certeza de nada. Teria sonhado quando o ouvira chamá-la de princesa? A verdade era que a tratara rudemente depois da­quilo, sem misericórdia, deixando-a amordaçada por longo tempo até ela começar a tossir tanto que o obrigou a retirar o lenço fazendo-a prometer que não gritaria por socorro.

Nem por um minuto Connor relaxou sua vigilân­cia, não lhe dando oportunidade de fugir, nem mes­mo quando passara pela casa dos Cooper e conversara com todos e com alguns amigos da família, os quais se prontificaram a levar vários utensílios à floresta.

Na aldeia, Connor ajeitara melhor a sela e per­mitira a Ellen que viajasse com o corpo erguido, mas sempre na frente dele. Tomaram a direção do local da tragédia. Mas antes de chegarem lá ouviram o tropel de cavalos e gritos. O corpo de sir William, com certeza, já havia sido descoberto. Fora lá que Connor amarrara o lenço na boca de Ellen, antes de rumar na direção oposta.

Agora, no meio do mato, Ellen não tinha idéia do local onde se encontrava. Tudo o que podia ver eram um círculo de árvores de folhagem escura, e o céu acima. Por causa do gosto salgado que sentia na boca, imaginava estar perto do mar. Mas do lugar onde Connor a deixara não via nada de água, apenas florestas. Caso ele não voltasse, a única coisa que poderia fazer seria encolher-se junto ao tronco de uma árvore para se manter quente até o amanhecer.

Andou um pouco a fim de estimular a circulação do sangue nas pernas. Estava furiosa com Connor, claro, mas preocupada também com ele. Vira Sarah quando pararam na aldeia e o olhar angustiado da-menina a perseguia. Se o jovem John Cooper fosse condenado por ter salvado a irmã de um homem imundo, ela também nunca mais confiaria na justiça normanda.

A relva era macia e cobria o chão por completo. Não seria uma cama desagradável para se passar a noite, a não ser pelo frio intenso que fazia. Ajoelhou-se perto de uma árvore deslizando a mão em volta para ver se havia pedras. Ouviu ruído de pas­sos. Alguém se aproximava.

— Lady Ellen! — Era a voz de Connor. Deu um suspiro de alívio mas ao mesmo tempo sentiu que sua raiva voltava. Connor a assustara e abusara dela o suficiente por uma noite, e estava na hora de lhe dizer isso. Pôs a mão na cintura, e esperou-o.

— Afinal, aí está você! — exclamou.

Ele veio da direção oposta aos sons. Ellen virou-se com o fim de encará-lo melhor.

— Exijo que me leve de volta a Lyonsbridge — ordenou. — Foi uma noite trágica, mas já prometi a mim mesma não testemunhar contra você. Porém agora está indo longe demais. Leve-me de volta ago­ra, do contrário meu primo saberá sobre o trata­mento que tive. E isso agravará o problema.

Connor aproximou-se dela, com o bem conhecido sorriso de zombaria.

— E tarde demais, milady. Deixe-me levá-la a seus aposentos. Conversaremos acerca do assunto amanhã de manhã.

Ellen olhou para o espaço, confusa. — Meus aposentos? Estamos a quilômetros de dis­tância do castelo.

— Sei disso. Mas meus amigos amavelmente nos ofereceram abrigo por uma noite. — Connor deu uns passos à frente e Ellen pôde ver que algumas pessoas o acompanhavam e a observavam com cu­riosidade. — Os Cooper já se encontram instalados. Estão exaustos, pobrezinhos.

— Como vai Sarah? — Ellen perguntou, preocu­pada com a menina apesar de sua raiva.

O sorriso de Connor tornou-se mais amável.

— Ela está bem. Parece que... — ele hesitou —, o canalha foi interrompido a tempo.

— Graças à Virgem Maria — Ellen suspirou.

— E graças a John Cooper — Connor acrescentou secamente.

— É verdade. Foi uma sorte.

— Uma sorte que alterará a vida do rapaz para sempre. Ele será perseguido daqui por diante, sem piedade.

— Deve haver algo que possamos fazer. Connor sacudiu a cabeça.

— Pensaremos nisso amanhã — disse. — Venha. Pegou-a pela mão e Ellen obedeceu-o sem discutir, não vendo outra opção imediata. Nenhum dos acompanhantes de Connor, que estavam ali perto, falou. Assemelhavam-se a camponeses, pobremente vesti­dos e todos muito magros. Fariam parte de um bando de ciganos?, ela se perguntou.

— Que lugar é este?

— Nossa casa, por uma noite ao menos. Não tenha medo. Não lhe farão nenhum mal aqui.

Estavam no topo de uma rocha. Com a lua agora atrás das nuvens, a noite estava escura demais para se ver a distância, mas o cheiro do mar era inconfundível e se podia ouvir o barulho das ondas que­brando na praia. Um a um, os homens que acom­panharam Connor sumiram por trás da rocha.

— Você pode descer? — Connor lhe perguntou, com um sorriso na voz.

— Aonde vamos?

Ele ignorou a pergunta e ordenou:

— Siga-me.

Connor tomou-a pela mão e conduziu-a à beirada da rocha. A descida não era tão abrupta como lhe parecera de cima, e Ellen teve apenas um pouco de dificuldade porque seus sapatos escorregavam na pedra lisa.

Quando chegaram à base, ela olhou ao redor. Tudo o que conseguiu ver foi um conjunto de árvores dian­te de si e a outra face da rocha. Mas os homens que desceram antes haviam desaparecido.

Ellen fitou Connor, estarrecida. Ele simplesmente sorriu e caminharam juntos. De súbito, entraram numa enorme caverna iluminada por fogareiros acesos cujas chamas formavam um jogo de sombra e luz nas paredes de pedra.

Ellen observava tudo, atônita.

— Que lugar é este? — tornou a perguntar. Connor parou para que ela apreciasse tudo muito bem. Depois respondeu:

— Este lugar, princesa, é o que nos sobrou da Saxônia Inglesa livre.

— Seja bem-vinda, milady — um camponês mal­trapilho recebeu-a, com um sorriso sofrido.

— Você não deveria nunca tê-la trazido aqui, Con­nor — Walter Little censurou Connor, filho de seu antigo senhor feudal.

Walter havia sido um fazendeiro arrendatário sob o domínio do pai de Connor, e sua tarefa principal fora ensinar aos três meninos Brand a arte marcial. Mas quando Geoffrey Brand morreu, Walter se in­dispôs com Connor, não concordando com a decisão do rapaz em procurar fazer as pazes com os conquistadores normandos.

Walter então se tornara o líder de um grupo de descontentes que tentavam continuar com a luta e que, por isso, foram considerados indesejáveis, ou melhor, indivíduos fora-da-lei.

— Não tive outra opção, Walter. — Connor ex­plicou tudo pacientemente. Walter era um velho ago­ra, e Connor aprendera a ser tolerante com seu an­tigo professor. — Se ela voltasse ao castelo para dar o alarme, nós não poderíamos mais tirar a fa­mília Cooper da aldeia.

Ambos os homens olharam para um canto da ca­verna, onde Agnes Cooper e os filhos haviam armado seu acampamento. As paredes frias da caverna eram um terrível substituto ao acolhedor chalé da aldeia, mas ao menos lá eles estariam seguros da vingança pela morte de William Booth.

— Os normandos vão nos procurar ainda com mais intensidade, por causa do desaparecimento da jovem — Walter resmungou. — E agora, o que pretende fazer com ela?

Connor se perguntava a mesma coisa.

Na pressa de retirar John do cenário do acidente trágico, ele não fizera outros planos. Agora, pen­sando com a cabeça fria, admitiu que teria sido muito melhor ter deixado os Cooper a salvo na caverna e seguir levando Ellen para outro lugar, e fazê-la permanecer lá até quando fosse seguro conduzi-la de volta ao castelo. Em vez disso, na aflição de salvar os Cooper, acomodara a castelã dos normandos exatamente no coração do escon­derijo saxônio.

— Eu não devia tê-la trazido aqui — Connor con­cordou, fitando o rosto acusativo de Walter. — Mas agora é tarde demais para arrependimentos. Ela está aqui, mas duvido que encontre o caminho de volta se a deixarmos fugir.

Walter sacudiu a cabeça e semicerrou seu único olho. Perdera o outro num combate havia muitos anos. Isso e sua cara fechada, cinzenta, lhe davam uma aparência assustadora. Mas Connor não tinha medo de seu velho professor.

— Não podemos deixá-la ir, meu rapaz. Ela pode não reconhecer a estrada mas pode sentir o cheiro do mar e ouvir o barulho das ondas arrebentando na areia. Tudo o que os normandos terão a fazer será vasculhar a costa e, mais dia menos dia, nos descobrirão.

Maldição, Walter estava certo, Connor concluiu, furioso consigo mesmo. Quis blasfemar, mas segurou a língua. Walter sempre fora muito rigoroso quanto ao abuso da linguagem.

— Não acredito que milady revele nosso segredo — disse, apesar de não com muita convicção.

— Você é bastante seguro disso a ponto de arriscar ver todas essas pessoas penduradas numa forca?

Connor inclinou-se para esquentar as mãos no fo­gareiro ao lado. Suspirou e respondeu, agora convicto:

— Isso não acontecerá.

— Você enfrenta um dilema, meu rapaz. Se ma­tarmos a moça, poderemos começar uma guerra de novo — Walter insistiu.

— Não permitirei que mal algum aconteça a ela

— Connor declarou com uma firmeza que não usara até então.

O velho encarou-o com sua única vista, ainda aler­ta apesar das rugas de idade que a circundavam.

— 0 que essa moça é para você, Connor? — ele perguntou.

— Para simplificar a resposta, é a filha do senhor do castelo, Walter. Se danificarmos um fio de cabelo de sua cabeça, aí é que teremos uma nova guerra, sem a menor dúvida.

O velho soldado acomodou-se melhor no chão frio de pedra.

— Não tenho mais estômago para batalhas — sussurrou.

Uma chama de divertimento brilhou nos olhos de Connor, pela primeira vez desde que chegaram à caverna.

— Não acredito nisso, seu velho cavalo de guerra. Walter lançou o olhar para o local onde Connor colocara Ellen, envolvida em cobertores, aconse­lhando-a a dormir. Porém ela continuava acorda­da, sentada ereta sobre os meamos cobertores, as costas contra a parede. Observava os dois homens conversando.

— Ela é uma beleza — comentou Walter, — Ga­ranto que já provocou muitos conflitos em sua curta existência.

Connor esboçou um sorriso de ânimo a Ellen, po­rém a expressão dela permaneceu hostil. Virando-se para Walter, ele disse:

— Amanhã de manhã a levarei de volta a Lyonsbridge.

Walter deu um suspiro, parecendo muito triste.

— Estou velho demais para lutar, e velho demais para amar. Há dias em que dou graças ao bom Deus por essas duas formas de loucura estarem longe de minha vida.

— Eu farei com que milady me prometa que não revelará onde fica este lugar.

— Que tal se a fizer prometer também que trans­formará a palha de sua estrebaria em ouro? Ela é uma normanda, não se esqueça disso, meu rapaz.

Connor levantou-se.

— É quase dia, amigo — ele disse ao velho pro­fessor. — Mas ainda podemos dormir um pouco.

Walter sacudiu a cabeça com muita tristeza.

— Nenhum de nós dormirá em paz até que tudo isso seja resolvido, Connor — ele comentou com má­goa. — Mas vá ter com milady agora, pois vejo seu coração através de seus olhos e enxergo-a lá.

Connor esboçou um sorriso, depois atravessou a caverna com passos que ecoaram por toda parte, e foi ao encontro de Ellen.

Os olhos cor de ouro que sorriram para ele, apenas horas atrás, quentes e acolhedores, agora estavam brilhantes e duros como o próprio metal.

— Pensei que você fosse dormir — Connor disse, ajoelhando-se no cobertor ao lado dela.

— Não estou acostumada a dormir no chão.

Connor tivera muita pena de Ellen, mas o res­surgimento do tom imperioso da voz dela o exaspe­rou, fazendo-o retrucar num tom mais cáustico do que tencionara:

— Suponho que quase todas essas pessoas não estavam acostumadas a dormir no chão antes de serem forçadas a abandonar suas próprias casas, pela justiça dos normandos.

— Quem são essas pessoas? — Ellen via-as es­palhadas pelo recinto, sendo momentaneamente sua animosidade substituída pela curiosidade.

Connor encolheu os ombros.

— Apenas povo, famílias residentes em áreas in­vadidas. Muitos perderam entes queridos, o que in­fluenciou na decisão deles de lutar contra os normandos, mesmo depois que os inimigos já estavam firmemente entrincheirados. Foram considerados fora-da-lei pelo filho de William, e continuam sendo fora-da-lei até hoje. As famílias vieram para cá uma vez que suas propriedades tinham sido confiscadas.

Ellen arregalou os olhos.

— Quer dizer que vivem assim durante anos? — ela indagou.

— Alguns, sim.

— E como sobrevivem?

— Como os vê. As cavernas são sua moradia. Con­seguem comida pescando ou caçando em terra alheia, roubando, e recebem contribuições dos ha­bitantes de Lyonsbridge.

— Os camponeses de lá os ajudam?

— Sem dúvida — Connor respondeu. — Alguns são amigos, outros parentes, outros apenas conhe­cedores dos problemas desses refugiados.

Ellen ficou calada durante um tempo, parecendo se compadecer dos problemas dos fora-da-lei. Mas, após um momento, sua expressão altiva voltou, e ela disse a Connor:

— Nada disso explica por que você me trouxe para cá. Exijo que me leve de volta ao castelo, e já.

Conforme dissera a Walter, a intenção dele era levá-la ao castelo no dia que se iniciava. Mas olhando para Ellen agora, o rosto aristocrático como que desprezando aquele povo sofrido ali reunido, Connor começava a pensar que seu antigo professor talvez tivesse razão. Poderia ele em sã consciência arriscar a vida de tantas pessoas permitindo que milady vol­tasse à própria casa? Por outro lado, prendê-la lá, despertaria o ódio dos normandos. Ele tinha um dilema nas mãos, mas estava cansado demais para resolvê-lo naquela noite.

Levantou-se.

— Princesa — disse, com um sorriso —, Dê uma chance ao chão. Milady pode até gostar de dormir assim. Sempre ouvi falar que uma cama dura era boa para a coluna.

Em seguida saudou-a com ironia no olhar, e deixou-a.

 

Ela dormira, finalmente. Pretendera ficar acordada, esperando o momento propício em que pudesse fugir sem ser observada. Mas o homem de um olho só, que estivera conver­sando com Connor mais cedo, continuava sentado perto do fogo, vigiando-a o tempo todo. Enfim a exaustão a vencera, ela se enrolara em um dos co­bertores, pusera outro em cima, e dormira.

Ao acordar, a lúgubre caverna da véspera tinha um aspecto completamente diverso. Os fogareiros ain­da estavam acesos, mas a luz do dia penetrava pela entrada e pelas frestas das paredes de pedra. Uma cerração vinda do mar dava ao ar um aroma salgado que se misturava ao cheiro da carne de porco cozi­nhando nos fogareiros. Para sua surpresa, Ellen cons­tatou que estava com fome, seu estômago roncava.

Assim que se sentou e esfregou os olhos, Sarah apareceu dando a mão aos gêmeos, um de cada lado.

— Bom dia, milady — ela disse timidamente. Ellen olhou ao redor, mas nem sinal de Connor.

O velho soldado que a observara a noite inteira de­saparecera também.

— Bom dia — Ellen respondeu. Não descontaria sua irritação em Sarah, que não tinha culpa daquela situação difícil. Na realidade, a menina fora vítima também. — Como vai você, Sarah? Ainda sofrendo as consequências do ataque?

— Prefiro não falar no assunto, milady. — Sarah olhou para as crianças.

— Tem razão. Vamos considerar uma aventura ter de passar uns dias numa caverna grande como esta.

Quem tomou a palavra foi Abel.

— Karyn quer saber se é aqui que o dragão mora, milady. Aquele que milady prometeu levar para ela.

Ellen se esquecera completamente de sua promessa.

— Não, querida. Sinto muito, mas saí às pressas e não tive tempo de pensar no dragão. Aliás, todos nós saímos às pressas, e garanto que você e seus irmãos também deixaram muita coisa atrás. Mas o dragão que tenho para você é de madeira, não real, lembra-se? E não há dragões aqui nesta caverna.

— E se houvesse, Connor os mataria — Abel disse, com absoluta confiança.

Karyn olhou para Ellen, esperando uma confir­mação, o que ela fez, mas com um quê de ironia:

— Garanto que Connor mataria qualquer dragão que por acaso aparecesse.

A resposta de milady satisfez a menina que foi se sentar perto dela. Ellen a envolveu num abraço.

— Ela está gelada, Sarah — comentou. — Este lugar é tão úmido! Vamos nos sentar lá fora, para tomar um pouco ao sol?

Sarah mostrou-se temerosa.

— Sinto muito, milady, mas não podemos sair sem permissão.

Ellen levantou-se e procurou por Connor. Mas ain­da nem sinal dele.

— Permissão de quem? — ela perguntou, já pronta para se irritar. Além de a seu pai, jamais pedira permissão a ninguém, para coisa alguma.

— Permissão de Connor, de Walter ou dos outros homens — Sarah respondeu. — Mas viemos aqui com o fim de convidar milady para tomar o café da manhã conosco. Temos pão e gordura de porco, bem grossa.

Os moradores da caverna pareciam consistir numa mistura de gente de categoria baixa, a maioria ho­mens, soldados em decadência, a se considerar pela aparência de cada um deles. Contudo, aqui e ali havia grupos familiares, como os Cooper, todos em volta de fogareiros acesos. E ninguém prestava a mínima atenção a Ellen ou aos recém-chegados Cooper.

— Não vejo ninguém tomando conta de nos — Ellen disse após terminar uma inspeção. — Vamos nos sentar lá fora por alguns minutos para nos aque­cer um pouco. — Ela pegou Karyn pela mão. — Venham comigo. Não vai acontecer nada.

Abel segurou a mão livre de Ellen e disse,

— Eu quero ir.

— Muito bem então — Sarah consentiu, mas ain­da relutante.

Foram até a entrada da caverna, e ninguém fez menção de segurá-los. Abel deu um pulo de alegria ao sair ao lado de Ellen. Milady também se alegrou, e assim todo o grupo ficou feliz.

Havia uma cerração pesada mas o sol tentava atravessar o nevoeiro. O primeiro ato de Ellen e das crianças foi olhar para o céu. Por sorte não fazia muito frio.

— Podemos subir nas rochas? — Abel perguntou, apontando para a pedra mais próxima.

Ellen hesitou. Assim como não estava acostumada a pedir permissão para seus atos, tampouco estava acostumada a ser responsável pelos atos de outros, em especial de crianças. Abel era um menino forte, porém pequeno demais para aquele tipo de esporte, em sua opinião. Ela olhou para Sarah que pareceu desejosa de subir nas pedras.

Ellen foi então examinar a área. A alguns centí­metros do solo, uma beirada de pedra se projetava do resto do bloco, e um pontiagudo pinheiro crescia naquele lugar.

— Pode subir até aquela árvore, Abel, não mais do que isso — Ellen consentiu. — Vamos ficar olhan­do para você, e quando chegar lá, espero que são e salvo, puxará sua irmã pela mão.

A solução pareceu aceitável para ambas as crianças.

O menino chegou ao ponto determinado em alguns segundos, olhou triunfantemente para baixo, e disse:

— Venha, Karyn, eu puxo você. Não tenha medo. Com um gritinho, a menina seguiu o exemplo do irmão, subindo pela rocha. Sarah observava-os com certa inveja, como se desejasse ser ainda suficien­temente jovem para esse tipo de divertimento.

— O que estão fazendo? — Uma voz tenebrosa soou atrás deles.

Ellen virou-se e deparou-se com o velho soldado zarolho, em pé a menos de meio metro de distância, com ar furioso.

— Sua irresponsável! — Ele dirigia-se a Ellen. — Não foi suficiente o problema de aquele idiota ter matado um normando, e madame quer ainda causar danos a essas crianças?

Ellen sentia o sangue fugir-lhe das faces. Nunca, em toda sua vida, haviam falado com ela desse jeito. Ergueu a cabeça e disse:

— As crianças e eu queremos respirar um pouco de ar fresco. Não estamos causando mal a ninguém. Estamos?

O homem era bem mais alto que Ellen, uma altura suficiente para alcançar a beirada da rocha e pegar Karyn, Colocou-a no chão e fez o mesmo com Abel.

Ambos tremiam de pavor, o que concorreu para aumentar a fúria de Ellen.

— Largue-os! — Ellen gritou. — Não vê que os está assustando?

Walter nem olhou para os gêmeos, e dirigiu-se a Sarah.

— Pensei que você, ao menos, tivesse mais juízo, Sarah. Leve-os de volta à mãe.

Sarah não estava intimidada, mas apenas com remorso. Ela pegou os dois pela mão e levou-os de volta à caverna.

No instante em que todos desapareceram, Ellen dirigiu-se ao velho soldado.

— Como ousa? — berrou.

O ódio sumiu do olhar dele, sendo substituído por uma expressão de zombaria como a que muitas vezes ela vira no rosto de Connor.

— Perdão, milady — ele disse, com uma exage­rada saudação. — Mas ninguém sai da caverna sem minha ordem.

— Não estou acostumada a pedir permissão para tomar ar — ela retrucou, usando uma voz bem autoritária.

O velho soldado não se impressionou.

— Acredito — ele respondeu, — Mas vai ter de adquirir hábitos novos aqui.

— Não ficarei neste lugar o tempo suficiente para aprender novos hábitos. Na verdade, exijo ser levada a Lyonsbridge imediatamente. Onde está Connor?

Apesar de impressionado pelo fato de milady usar o nome de batismo dele, e sem o menor constran­gimento, o velho soldado respondeu:

— Ele voltou à aldeia a fim de verificar se a iden­tidade do assassino de Booth foi descoberta.

.— Não se tratou de um assassinato — Ellen pro­testou. — O rapaz agiu assim para salvar a irmã, e depois em legítima defesa própria.

Pela primeira vez um lampejo de admiração bri­lhou no olho do homem quando disse:

— Se vivêssemos num mundo justo, essa decla­ração salvaria o rapaz. Mas todos nós sabemos que aquele mundo dos normandos não é justo. Nossa única esperança é que não descubram a conexão do ato com a faca.

— Quando master Brand vai voltar? — ela perguntou.

— Quando ele puder. — O soldado sacudiu os ombros. — Nesse meio tempo, milady, eu, Walter Little, estarei a seu serviço. Não deixe de me infor­mar se nossa hospitalidade falhar em lhe conceder alguma coisa.

Ele ainda falava em tom de caçoada, porém com voz mais amistosa do que antes. E o rosto era menos assustador agora que a raiva passara.

— A única coisa que desejei foi um pouco de sol. Teria sido demais pedir isso?

Walter sorriu.

— Precisamos tomar cuidado para que os inimigos não nos descubram. E o único jeito de guardar nosso segredo é ficarmos dentro da caverna durante o dia.

— Crianças têm necessidade de brincar...

— Crianças têm necessidade de uma infinidade de coisas que não conseguiriam na Inglaterra de nossos dias, milady — ele interrompeu-a. — O que não podemos permitir é que brinquem nos rochedos e se machuquem. Uma caverna escura não é um lugar ideal para curar ferimentos.

A interrupção dos folguedos daquela manhã parecia a Ellen mais razoável agora do que fora antes. Porém ela ainda se ressentia pelo modo como Walter gritara com as crianças, assustando-as. Assustara-a também.

Ellen examinou a pequena área onde estiveram. Era perto da entrada da caverna, onde havia uma fileira de pinheiros tornando impossível qualquer pessoa ser vista, a menos que o espião estivesse bem acima do local. Não se podia divisar o oceano dali. Apenas ouvia-se um ruído vindo de algum lu­gar, sem que fosse possível determinar de onde.

— Esta região está a seu cargo, Walter Little? — Ellen perguntou. — Por certo deve haver algum líder.

— Constituímos um grupo independente, madame. — Walter sorriu. — Mas temos um líder. Ele não se encontra aqui no momento.

— Bem, então quero falar com essa pessoa. Meu primo deve estar procurando por mim agora. Nossos homens estarão por toda parte, e as coisas poderão ficar difíceis para vocês se eu continuar sendo uma prisioneira.

— Tem razão, madame.

— Pode me levar de volta ao castelo? — Ellen pediu, com muita esperança de ser atendida.

— Não! — Ele sacudiu a cabeça. — E vou pre­veni-la de uma coisa. Se milady, por mais bem nascida que seja, tentar sair da caverna sem minha permissão, eu a arrastarei de volta ao interior como fiz com as crianças.

Ellen tinha de admitir que a manhã passara agra­davelmente. Depois do encontro com Walter Little, entrara e aceitara o oferecimento da família Cooper para que tomasse o café da manhã com eles. As grossas fatias de pão com a gordura de porco tinham melhor sabor do que muitas das iguarias que ela comera nos banquetes da corte do rei Luís. Ellen sentiu que começava a recuperar o ânimo.

De certo, Connor voltaria logo, e ela poderia con­vencê-lo a terminar com tamanha loucura e levá-la de volta ao castelo. Sebastian já devia ter vasculhado a cidade a sua procura. Se aquela gente queria con­servar em segredo o precioso esconderijo, mantê-la aprisionada não era de forma alguma a maneira correta de conseguir isso.

Ellen se divertia agora observando os gêmeos dan­do cambalhotas no chão. Ela olhava com prazer para Sarah e John entretidos num jogo com pedras ob­tidas no chão da caverna. Não pareciam aborrecidos por terem sido obrigados a sair da própria casa às pressas, deixando tudo atrás.

A noite fria na caverna não afetara até agora a saúde de Agnes Cooper.

— Sua família é maravilhosa, sra. Cooper — disse Ellen.

— E verdade. São bons filhos. Eu não sei o que faria se algo acontecesse a qualquer um deles. — Uma sombra cobriu-lhe a face.

— Fico tão contente em saber que Sarah está bem! E triste em saber que foi um membro de nossa comitiva quem a pôs nessa situação.

— Não é culpa sua, milady. Eu e meus filhos sa­bemos disso. Milady tem sido muito bondosa conosco, Ellen se admirava pelo fato de a voz da mulher estar desprovida de amargor. O magistrado de Wakelin atacara sua filha, quase matara seu filho, e quase pusera a família toda em perigo de vida. Ape­sar disso, ela não a condenava.

Ellen olhou para as pessoas ali reunidas. Tivera pou­co contato com elas. Mas percebia que não comparti­lhavam da generosidade de espírito de Agnes, e tinha certeza de que havia várias que ficariam muito felizes se pudessem cortar a garganta de uma normanda.

Mais uma vez Ellen procurou por um sinal de Connor na caverna. Embora tivesse sido Connor quem a levara para lá, sentia-se mais segura com a presença dele.

Como em resposta a seu pensamento, Agnes Cooper de repente sussurrou:

— Vem aí uma turma repugnante.

Quatro homens que Ellen vira antes, falando com Walter Little, dirigiam-se agora ao lugar onde a fa­mília Cooper estava reunida. As crianças pararam de brincar e ficaram em silêncio.

Ellen ouvira Walter Little chamar de Humbert o homem que liderava o grupo. Esse Humbert parou na frente dela com um sorriso sarcástico. Os outros ficaram a um ou dois passos de distância.

— É a poderosa castelã de Lyonsbridge quem está sentada aí no chão? — Humbert perguntou.

Antes que Ellen pudesse responder, Agnes Cooper levantou-se e disse:

— Humbert White, onde foram parar suas boas maneiras? Sua falecida esposa deve estar se retor­cendo no túmulo.

Humbert hesitou por segundos, depois retrucou:

— Minha boa esposa deve estar se regozijando vendo isso.

— Marjorie morreu muito antes de a família de lady Ellen vir a Lyonsbridge, Humbert. E você terá de se haver com master Brand se a maltratar.

O sorriso de Humbert morreu-lhe nos lábios.

— O que pretende Connor fazer com ela? Ellen recuou ante os olhares atrevidos dos três homens que estavam atrás de Humbert White, olha­res esses que lhe percorriam o corpo de um jeito que nunca ninguém ousara fazer antes.

— Isso caberá a master Brand decidir — Agnes respondeu com firmeza.

— Talvez não. Brand não está aqui e achamos que o primo dela pagaria um bom dinheiro como resgate — ele afirmou.

Aqueles homens a levariam de volta ao castelo se ela lhes oferecesse alguma recompensa?, Ellen se questionou. Mas afastou a idéia logo. Estremeceu só em se imaginar sozinha na estrada, à mercê da­queles desclassificados.

— Deixe-nos em paz, Humbert — Agnes sacudiu a cabeça e fez um sinal com a mão ao homem para que ele se retirasse. — Nada será feito com lady Ellen até que Connor Brand decida. E você sabe bem disso.

Humbert olhou para os homens que o acompa­nhavam. Um deles resmungou qualquer coisa, os outros dois viraram a cabeça.

— Talvez estejamos cansados de obedecer a Brand — Humbert comentou. — Afinal, ele não é mais nosso senhor.

Mas depois de um último olhar a milady, os quatro homens se retiraram. Ellen deu um suspiro de alívio. Os homens a haviam amedrontado um pouco.

— Não se importe com eles — Agnes animou-a, dando algumas pancadinhas nas costas. — Eles não têm nada a fazer aqui, e isso convida-os a pensar em coisas condenáveis.

— O que quis Humbert dizer sobre Connor quando mencionou que não era mais o senhor deles?

— Coisas de Humbert. Ele sempre provoca de­sordens, e ficou pior depois que a mulher morreu.

— O que aconteceu com ela?

— Marjorie morreu de parto, e Humbert culpa os normandos. Perdoe-me por lhe dizer isso, milady. Aconteceu durante o pior da batalha e eles foram forçados a fugir da aldeia enquanto a criança estava quase nascendo. Humbert perdeu ambas, a mulher e a criança. Muitas pessoas dizem que ele nunca mais voltou a ser o mesmo.

Ellen seguiu com o olhar os quatro homens e notou que pararam na extremidade oposta da caverna onde outros homens que não tinham nada a fazer sentavam-se ao lado do fogo passando uma jarra de bebida de mão em mão. Agnes tinha razão, Ellen pensou, não era uma situação saudável homens se reunirem num lugar como aquele, dia após dia, sem ter em que se ocupar.

— Quando Connor master Brand voltará? — Ellen perguntou, esperando que Agnes pudesse lhe dar me­lhores informações do que Walter Little lhe dera.

Agnes esboçou um sorriso de compreensão, e disse:

— Connor é um homem muito atraente, não é? É uma pena que vocês dois pertençam a mundos diferentes, do contrário fariam um par maravilhoso.

O pensamento de Ellen voltou para o passado, para o momento em que ele a carregara nos braços no pátio da estrebaria. Naquele dia, no auge de sua paixão, unir-se a Connor fizera sentido. Mas agora, quando olhava para aquele grupo de saxônios mi­seráveis residentes na caverna, não podia imaginar nada mais absurdo do que uma ligação entre ela e um empregado encarregado de suas estrebarias.

— Estou interessada em saber quando master Brand vai chegar porque me parece que todos estão esperando pela chegada dele para saber o que vão fazer comigo.

— Tenha paciência, minha filha. E não fique com medo. Ninguém ousará lhe fazer mal algum sabendo que está aqui por ordens de Connor.

Agnes falou essas palavras com tanta convicção que Ellen mais uma vez se perguntou qual seria o relacionamento entre o chefe dos cavalariços e aque­la gente que se referia a ele com respeito. Deu um suspiro de irritação.

— Vou perguntar a Walter Little se podemos sair por alguns minutos. Se tiver de ficar mais tempo aqui, sem ver o sol, ficarei louca.

E, com as crianças atrás dela, Ellen foi à procura do homem de um olho só.

Depois de ter consultado uma série de vigias, Wal­ter Little deu permissão a Ellen para sair com as crianças.

— Nada de subir nos recifes, porém — ele preveniu-a. Ellen e as crianças seguiram a direção do som da água andando em volta do rochedo, e sentiram-se recompensadas ao emergir numa praia extensa. Os gêmeos bateram palmas de alegria ao ver a água se estendendo diante deles a perder de vista. Pas­saram uma boa hora brincando, correndo para fugir das ondas, antes de Walter aparecer para conduzi-los de volta à caverna.

Depois de uma breve liberdade, a caverna pareceu-lhes ainda mais sinistra. Como podia aquela gente continuar vivendo num lugar daqueles, ano após ano?, Ellen se perguntava. Seriam os Cooper condenados a tal sina? Esse pensamento a deixou triste durante a modesta ceia que dividiu com a família.

Connor não voltara, e Ellen não obteve resposta às perguntas que fizera sobre ele. Mais uma vez pensou em fugir. Não sabia como encontrar o ca­minho de volta a Lyonsbridge, mas uma vez fora daquele lugar, devia haver pessoas que a ajudariam a encontrar sua casa, em especial se lhes oferecesse uma boa recompensa.

Ellen notara que os homens haviam bebido cerveja o dia inteiro. Ela poderia fugir à noite, quando todos estivessem dormindo, talvez bêbados. Se ao menos Walter Little parasse de vigiá-la. Ela não vira o velho soldado beber nenhum gole da jarra que cir­culava livremente pelo grupo.

— Traga seus cobertores e venha dormir conosco, milady — Agnes convidou-a. — Não tenho muita confiança em alguns desses homens, depois de ter visto o show que Humbert apresentou.

Agnes tinha agora um aspecto doentio. Por isso Ellen lhe perguntou:

— Quanto tempo planejam ficar aqui, a senhora e as crianças?

Com olhar triste de início, mas logo depois com sua habitual serenidade, ela respondeu:

— Quanto tempo Deus quiser, minha filha. Sem­pre, se isso for necessário para salvar meu Johnny.

— Se eu pudesse ir para casa a fim de falar com meu primo, talvez daríamos um jeito nisso e a se­nhora voltaria a sua casa.

Agnes sorriu.

— Deus a abençoe, minha filha. Muitas vezes pensei que se os homens deixassem as coisas nas mãos das mulheres o mundo seria bem melhor. Mas temos de esperar por Connor. Ele dirá o que deveremos fazer.

Ellen olhou à volta. Walter Little estava encostado numa parede da caverna, parecendo dormir. Mas misteriosamente, quando o encarou, o olho bom se abriu e ele acenou com a mão.

— Quem pode saber se Connor voltará? — Ellen indagou. — Ele pode estar preocupado acerca da pró­pria posição no castelo. Por certo quer conservá-la.

— Ele voltará — Agnes afirmou, com uma con­vicção impressionante.

Ellen foi buscar os cobertores. Na verdade, sua idéia de fugir durante a noite e ir sozinha para o castelo pareceu-lhe absurda. Atravessou a caverna com cuidado a fim de não perturbar algumas pessoas que já dormiam. Connor voltará, Agnes lhe ga­rantira. Mas, quando?

O dia que se seguiu foi exatamente igual ao an­terior. Walter Little permitiu que Ellen e as crianças fossem dar um passeio de manhã e outro à tarde.

O resto do dia Ellen ficou perto de Agnes para evitar encontros indesejáveis.

A noite, Agnes começou a tossir de novo. Sarah observava a mãe com preocupação, e John andava na caverna de um lado para o outro.

— Por onde anda Connor? — ele perguntou. — Quero saber o que está acontecendo em Lyonsbridge. Talvez eu deva voltar para lá.

Agnes encarou o filho assustada, e Sarah protes­tou, com surpreendente energia:

— Não fale bobagem, John. É a pessoa que eles procuram. Qual a razão de nós continuarmos aqui se você se atirar nos braços deles?

Ellen imaginou que Agnes fosse dizer qualquer coisa para interromper a discussão entre seus dois filhos mais velhos. Porém ela parecia fraca demais até para falar.

— Sarah tem razão, John — Ellen interferiu. — Você, entre todos, é quem deve ficar escondido. Te­nho certeza de que master Brand voltará logo para nos informar o que está havendo por lá.

Mas veio o pôr-do-sol, depois um jantar silencioso com Agnes não comendo quase nada, e ainda nem sombra do chefe dos cavalariços. Walter Little in­formou que não tinha notícias da aldeia, tampouco do castelo.

Os gêmeos dormiram logo e Sarah insistiu que a mãe se deitasse, o que ela fez sob protesto. Falou que não precisava ser mimada. Ellen, John e Sarah fica­ram acordados, olhando para o fogo que se extinguia aos poucos. Ninguém falou. Havia tão pouco a se di­zer... E não havia nada a se fazer a não ser esperar...

Quase todos os fogareiros estavam apagados e os moradores da caverna dormiam quando John de re­pente deu um pulo e disse:

— Não posso mais aguentar isto. Vou-me embora. Está escuro e tomarei cuidado para que ninguém me veja.

— John, não — Sarah sussurrou. — Mamãe está pior, e se ela acordar e vir que você foi embora, quem sabe o que lhe acontecerá?

— Voltarei antes do amanhecer — disse ele. — Preciso saber o que está se passando.

Ellen passou uma vista dolhos ao redor e viu Walter Little estirado no chão sobre um cobertor. Parecia dormir. Se John quisesse mesmo partir, tal­vez a oportunidade fosse aquela.

— Se você for, eu vou com você — ela disse. John fitou-a, duvidoso.

— Não posso deixá-la ir, milady.

— Também não pode me impedir — Ellen revidou.

— Pretendo correr o tempo todo.

— E eu correrei também.

— Reflita um pouco, John — disse Sarah. — Isso é impossível. Por que não se deita um pouco e tenta dormir? Quem sabe master Connor chegue pela manhã.

— Não posso mais aguentar isto — queixou-se John, olhando para Ellen.

De súbito, Ellen ergueu-se e exclamou:

— Então vamos! Estaremos seguros sendo dois a observar a estrada. E se o pior acontecer e formos apanhados, eu estarei lá para que nada lhe aconteça.

— Mas, o que faremos quando chegarmos lá? — John perguntou, agora com medo.

— Irei ao castelo e começarei a trabalhar para esclarecer os fatos a fim de que você e sua família abandonem esta horrorosa caverna.

— Não sei o que master Connor diria — John sussurrou, preocupado.

Ellen estava cansada de ouvir as pessoas repetirem o que Connor Brand diria ou faria. Por isso insistiu:

— Não é saudável para sua mãe continuar aqui. A tosse voltou. Precisamos fazer alguma coisa para ajudá-la. Ao menos conseguir o tônico que lhe fez tanto bem antes.

Isso finalmente pareceu acabar por convencer John.

— Muito bem — ele disse. — Não acorde a mãe — acrescentou, dirigindo-se a Sarah. — Voltarei an­tes do amanhecer, prometo.

Os dois jovens saíram silenciosamente da caverna para a noite fria e úmida. John pôs um dedo nos lábios insistindo com Ellen para que se mantivesse calada, e o seguisse.

— Faremos um caminho mais curto subindo pelos rochedos — ele sussurrou.

Ellen ergueu as saias e segurou-as com uma das mãos, usando a outra como auxílio para galgar o rochedo e acompanhar John. A subida era quase vertical, e ela lançou mão de toda sua energia a fim de ficar junto do jovem rapaz. Sentia-se tão bem de se saber livre que não ligou ao fato de quase estourar os pulmões, e de ferir as mãos de pele de­licada. Ficou muito feliz quando deparou-sé com o topo do rochedo.

— Mais alguns passos, milady — murmurou John que desapareceu por um instante, para logo sua ca­beça reaparecer. Ele estendeu-lhe a mão.

Ellen aceitou a ajuda para os passos finais e de­pois quase desmaiou, pernas e braços tremendo pela exaustão.

— Muito bem, milady — ele disse, com uma nota de admiração na voz.

— Você fez tudo, John. O mérito é seu.

— Os dois estão completamente loucos! — Uma voz inconfundível se fez ouvir a alguns passos de distância, na escuridão.

— Master Brand! — John exclamou, e o entusias­mo de Ellen morreu.

 

A voz de Connor era gelada de tanta fúria. O que vocês dois pretendiam fazer? — perguntou. — Queriam por acaso quebrar o pes­coço no meio da noite, para que fossem achados ama­nhã, carregados pelas ondas?

John não ousava encarar o chefe dos cavalariços. Mas assim mesmo murmurou: — Você não voltava, e eu queria saber o que estava acontecendo.

— Imaginei que tivesse mais bom senso, John Cooper.

— Eu sei — o rapaz respondeu com tristeza.

— Mas eu não me arrependi — disse Ellen. — Nem peço desculpas.

— Sei que não se arrependeu, milady, sei muito bem, mas isso não quer dizer que não se tratou de uma proeza tola.

— A subida foi muito fácil — ela disse.

— Não! — Connor protestou com firmeza. — Não foi. — Em seguida, virando-se para John: — E você, rapaz, o que esperava fazer uma vez atingido o topo do rochedo? A aldeia está repleta de soldados normandos ansiosos em conseguir a recompensa por colocar você na forca.

— Eu só queria encontrá-lo, master Brand.

— Eles estão me procurando também — disse Connor.

— Você? — Ellen pareceu alarmada.

— Sim, eu. Meu desaparecimento, na noite do assassinato de sir William, foi notado. Consideram-me um fora-da-lei como John.

— Não podem acusá-lo, master Brand — protestou John. — Se isso acontecer, vou ter com eles e con­fessar tudo.

— Não seja idiota, rapaz. Ninguém vai a parte al­guma, e em especial hoje. Não durmo há duas noites já. — Connor assobiou e Thunder apareceu, vindo da escuridão. — Vou a cavalo, John. Será que posso con­fiar em você? Promete que voltará à caverna?

— Prometo. — Mas depois John olhou para Ellen, com ar de dúvida.

— Lady Ellen vai comigo. Milady, por favor — Con­nor disse, com um gesto na direção de sua montaria.

John desapareceu, começando a descer o rochedo.

— Volto em sua companhia para a caverna esta noite — Ellen explicou a Connor —, mas amanhã você terá de me levar ao castelo ou me liberar para eu partir sozinha. Os problemas aumentarão cada dia, se continuar aqui.

— As coisas já estão mais complicadas do que milady imagina. E não a deixarei ir, pondo em risco a vida de todos os habitantes deste lugar. Serão massacrados por seu pai.

— Meu pai?

— Sim. Lorde Wakelin em pessoa está atraves­sando o Canal a estas horas. Soldados desembar­carão aqui com ele, numa tropa enorme como não se viu desde os tempos do Conquistador.

— Por causa de sir William? — ela gaguejou, incrédula.

— Não. — A voz dele soou de repente exausta. — Por causa de milady.

— Eu lhe disse que havia sido um grande erro trazê-la para cá — comentou Walter Little.

Amanhecia, mas a maioria dos homens conversa­va na caverna, enquanto Connor, Walter, Humbert White e alguns outros discutiam sobre a chegada das novas tropas normandas. John Cooper estava presente, o rosto pálido, um olhar que não escondia preocupação.

Connor virou-se para o local onde Agnes, os outros filhos e Ellen ainda dormiam.

— Falem baixo — ordenou. — Não quero perturbar o sono das crianças e das mulheres, sem necessidade.

. — Sem necessidade? Todos ficaremos perturbados logo, quando os soldados normandos invadirem este local — Humbert White disse.

O grupo presente concordou com um murmúrio.

— Connor está com a razão — Walter declarou em tom conciliatório. — Os normandos não desco­briram este lugar durante anos, por que descobrirão agora? E por que assustar as crianças?

— Tudo isso por minha causa — John opinou, falando com esforço. — Voltarei para a aldeia ama­nhã e me entregarei.

Humbert White fitou-o com olhar de desaprovação.

— Isso só serviria para eles pegarem a primeira vítima com muita facilidade. E nós todos ainda con­tinuaríamos ameaçados.

— E não é apenas por sua causa, meu rapaz — Walter Little declarou, com carinho. — A verda­deira causa de tudo é a lady, isso eu garanto. Eu soube, no mesmo instante em que a vi, que tería­mos dificuldades,

Connor esfregou os olhos, que queimavam pela falta de sono e pela fumaça da caverna. E disse:

— Eu a levarei de volta hoje.

— Para que ela diga aos normandos exatamente onde vivemos? — alguém do grupo gritou, e outros adicionaram seus protestos, concordando com o descontente.

Walter encarou Connor.

— Eles têm razão, Connor. Você não pode levá-la de volta. Não até que encontremos um lugar para acomodar toda essa gente. Não podemos arriscar, continuando aqui.

Connor olhou para o grupo de homens, de um a um. Excetuando-se John, que o fitava com angústia, todos concordavam com Walter. Houve uma época em que aqueles mesmos homens o obedeceriam sem pestanejar, mas agora isso não acontecia. As coisas haviam mudado bastante.

— Muito bem — ele comentou. — Mas tudo deverá ser feito logo. Uma vez o pai dela chegando aqui, os soldados varrerão as matas ao longo da costa procurando por milady.

Walter apontou para dois homens do grupo.

— Godwin e Arthur, vocês conhecem esta costa me­lhor do que ninguém. Pensam que podem encontrar um novo santuário onde os normandos não nos achem?

Antes de se juntarem à turma dos procurados, os dois rapazes haviam sido pescadores. Agora se es­condiam na caverna como os demais, e apenas ocasionalmente arriscavam navegar num pequeno bar­co que escondiam numa gruta da proximidade.

— Não há nada ao norte. Teremos de ir para o sul — informou Godwin. — Mas imagino que é pos­sível encontrar esse lugar.

— É, sim — o companheiro concordou. — Para os lados de Lydey Cay há várias cavernas como esta. Talvez um pouco menores.

— Tudo bem, contanto que nos forneçam aloja­mento adequado por algum tempo — disse Connor aos homens. — Vão depressa e tragam-nos notícias assim que puderem. Os soldados de Wakelin não esperarão muito para iniciar a campanha de busca.

Humbert White deu um passo à frente, empur­rando Connor para o lado. E tomou a palavra:

— Eu acho que já está mais do que na hora de parar de morarmos em cavernas e de voltarmos a retomar o que é nosso por direito. Se lorde Wakelin é tão apegado à filha, podemos negociar com ele lhe dizendo que desocupe o castelo de Lyonsbridge em troca da vida de milady.

O homem fazia Connor perder a paciência. Mas, na verdade, as idéias de Humbert eram comparti­lhados por grande número dos outros homens. Por­tanto, seria prudente agir com calma.

— Isso parece, à primeira vista, uma solução — disse Connor. — Os Wakelin irão embora e o rei Henry enviará outro homem para tomar o poder, e quem sabe ainda mais tirânico do que sir William.

— O rei pensaria duas vezes antes de fazer isso, se tomássemos o castelo.

— Lyonsbridge não tem fortificações para bata­lhas, Humbert. É um lar, não uma fortaleza. E o rei mandaria dez homens para cada um dos nossos.

Quando Connor olhou para os esfarrapados fora-da-lei, tudo o que restara dos saxões rebelados, deu-se conta de que qualquer conflito com os bem ar­mados e bem treinados normandos seria suicídio.

— Um bom saxão vale muito mais do que qualquer normando — Humbert resmungou.

Os esforços de Connor com o fim de encerrar as discussões foram inúteis. As crianças e as mulheres acordaram e algumas destas últimas juntaram-se ao grupo dos homens. Chegara a hora de Connor testar se sua autoridade sobre aquele povo ainda existia.

— Tudo já foi decidido, Humbert — ele declarou. — Godwin e Arthur irão procurar um novo local para nós. Com sorte, poderemos nos mudar amanhã e eu levarei lady Ellen de volta ao castelo no instante em que todos saírem daqui.

Alguns homens pareciam decididos a continuar com as argumentações, mas os dois pescadores, obedien­temente, saudaram os presentes e saíram da caverna.

Walter Little sussurrou aos que estavam perto dele:

— É melhor nos abastecermos de alguma comida antes que a aldeia fique cheia de normandos.

Ele também saiu e foi logo seguido por outros homens.

Humbert ficou imóvel durante alguns segundos, ob­servando as pessoas que se retiravam. Depois olhou para Ellen sentada sobre os cobertores, pensativa. Ha­via um quê de desprezo em sua voz quando disse:

— Eu me pergunto se é realmente nossa salvação que o preocupa, Brand, ou se tem mais interesse do que confessa ter, pela mulher normanda.

Pacifista ou não, Connor teve vontade de esmurrar a cara do homem.

— Controle sua língua, Humbert— disse, tenso. Depois afastou-se, indo para perto do fogareiro dos Cooper.

John alcançou-o, segurando-lhe o braço.

— Tem certeza de que eu não devo me entregar, master Brand?

— Tenho, John. Deixe as coisas como estão.

Connor agora só tinha olhos para Ellen, que con­tinuava sentada sobre os cobertores. Apesar dos três dias vividos sob condições primitivas na caverna, tinha o mesmo aspecto de rainha como quando a conhecera, galopando ao encontro dele, montada em Jocelyn. Sentiu uma onda de admiração por ela, e algo mais primitivo, mais carnal do que admiração.

— Bom dia, milady — ele cumprimentou-a.

— Não vejo nada de bom neste dia, chefe dos cavalariços. Estou pronta, esperando que me leve de volta.

Ao lado dela, Agnes Cooper não se levantou, mas observava-os com olhos bem abertos. Connor achou-a mais fraca do que quando a vira pela última vez. Ele dirigiu-se a Ellen:

— Espero poder satisfazer sua vontade amanhã. Por enquanto, peço que aceite nossa hospitalidade.

Ellen parecia esperar por essa resposta. Levan­tou-se, arrastando consigo o xale.

— Posso lhe pedir emprestado seu agasalho, sra. Cooper? — ela disse, ignorando a presença de Con­nor. — Está fazendo frio e não sei quanto tempo levarei passeando.

Agnes olhou de Ellen para Connor, mais uma vez de um para o outro, e suspirou. O esforço a fez tossir.

Connor arrancou o agasalho das mãos de Ellen.

— Não vai a parte alguma. — Ele enfrentou-a, decidido.

— Pretende me impedir pela força?

— Pretendo.

Sarah, John e os gêmeos observavam a troca de palavras, de olhos arregalados.

Ellen rangeu os dentes e sentou-se de novo.

— É óbvio que você é mais forte, chefe dos cava­lariços. E eu não teria chance de vencer numa guerra de músculos. Mas sairei deste lugar um dia e meu pai saberá do tratamento que recebi de suas mãos.

Os olhos dela brilhavam de ódio, os cabelos em desalinho emolduravam um lindo rosto. Connor con­centrou a vista nos lábios e sentiu seu corpo acordar à súbita lembrança dos beijos que lhe dera e que recebera. Inclinou o corpo e sussurrou:

— Tenho confiança de que dará a seu pai um relatório completo do tratamento que teve em mi­nhas mãos.

O rosto de Ellen pegou fogo. Connor saudou-a e retirou-se.

Os pescadores não voltavam e o temperamento de Connor piorava a cada minuto. Ele passara o dia tentando restabelecer seu relacionamento com os rebeldes renitentes, que permaneceram na ca­verna o dia todo. Mas, ao contrário dos habitantes da aldeia em Lyonsbridge, que ainda viam em Con­nor seu líder, aqueles homens tinham vivido como fora-da-lei tempo demais para reconhecer autorida­de em qualquer homem.

Connor mal tocara no jantar que Walter Little lhe trouxera. Já era noite e tinha dificuldade em dormir. Sentara-se com as costas apoiadas na parede da caverna e as pernas esticadas. Seus olhos esta­vam fechados no instante em que sentira alguém puxando a manga de sua camisa. Era Sarah Cooper.

— Master Brand? — ela sussurrou.

— O que houve, Sarah? — Connor quis saber, sonolento.

— Eu não tinha certeza se devia acordá-lo ou não. Mas não sei mais o que fazer com lady Ellen.

Connor endireitou o corpo. Pedira a Walter que tomasse conta de milady até meia-noite e que depois o acordasse para ele continuar com a guarda. Mas concluiu que talvez nunca devesse ter confiado no velho fazendeiro.

— Ela fugiu? — perguntou. Mas olhou à volta e relaxou ao ver Ellen, ainda sentada perto da viúva Cooper.

— Não. Milady está me ajudando a cuidar de ma­mãe, que parece cada vez pior, master Brand.

— Ouvi-a tossir. Precisamos conseguir aquele tônico pela manhã. Mas o que há com lady Ellen?

— Achei que devia lhe dizer. Ela não come nada.

— Não come?

— Não. Nem bebe. Recusou comer ou beber o dia inteiro. Diz que vai morrer, e que só assim master Brand levará seus ossos de volta a Lyonsbridge.

— A louca!

— Achei que devia lhe contar, master Brand.

Connor deu um suspiro e levantou-se, O que pre­cisava agora era de algumas horas de sono e não de uma mulher teimosa com quem_ lidar.

— Fez bem em vir falar comigo, Sarah — ele disse.

— Minha mãe talvez conseguisse fazê-la mudar de idéia, porém mamãe não esteve com a cabeça boa esta tarde toda.

— Sua mãe está delirando? — Connor perguntou.

— Acho que sim. Quase não falou, e quando fala, não diz coisa com coisa.

Céus! Ele não tinha agora apenas uma mulher teimosa para cuidar, mas uma seriamente doente também.

— Vamos ver sua mãe primeiro, Sarah, depois falarei com lady Ellen. Vá correndo chamar Walter Little e diga a ele que venha aqui.

Sarah saiu correndo e Connor foi para perto das duas mulheres. Ajoelhou-se ao lado de Agnes e tomou-lhe ambas as mãos.

— Pode me ouvir, sra. Cooper? Como se sente? A única resposta da mulher foi um ligeiro movi­mento de cabeça. Seu rosto estava rubro.

— Há quanto tempo ela está assim? — Connor per­guntou a John, que se ajoelhava agora ao lado da mãe.

— Desde o pôr-do-sol. Tossindo de novo. Cospe sangue o tempo inteiro.

— Precisamos parar com isso. — Connor sabia que o melhor a se fazer era levá-la a uma cama quente, seca, mas isso era impossível. — Há tanta fumaça aqui — ele acrescentou, com desânimo.

— E essas paredes úmidas! — Ellen entrou na conversa. — Venho repetindo isso o tempo inteiro nas últimas horas. Tentei convencer seu cão policial, o tal do master Little, de que temos de levá-la fora para tomar um pouco de ar fresco. Mas ele não quer me ouvir.

— Faz muito frio lá fora... — Connor protestava, porém Ellen interrompeu-o.

— Isso não importa. Podemos enrolá-la em cober­tores. O que está lhe fazendo mal é essa umidade e essa fumaça. A sra. Cooper necessita um pouco de mel também.

— Mel? — Connor repetiu.

— Temos cerveja — John sugeriu.

— Cerveja, então — Ellen disse. — Vá buscar.

Antes de Connor ter chance de pensar em pro­testos, Ellen recrutou dois homens para ajudar John a carregar Agnes para fora da caverna. Connor se­guiu-os, mais uma vez convencido de que sua au­toridade significava muito pouco no presente.

Walter Little apareceu.

— Aonde a estão carregando? — perguntou.

— Para tomar ar fresco — Connor respondeu. — Assim me comunicaram.

— Nunca pensei que você fosse um desses homens que deixam as mulheres usar as calças, Connor.

— Cale essa boca, meu velho, e ajude-me a en­contrar um lugar lá fora, bom para a doente, onde os normandos não nos vejam.

Eles encontraram um maciço de árvores perto do rochedo. Não era visível nem de cima e nem da praia abaixo.

Por não ser possível arriscar acender uma foguei­ra, enrolaram bem a doente a fim de protegê-la con­tra o frio da noite. Ela começou a respirar melhor quase imediatamente.

Por sorte, foi encontrado um pote de mel. Ellen misturou o mel com a cerveja e foi pondo a mistura em colheradas nos lábios de Agnes. A tosse parou o tempo suficiente para permitir que ela dormisse. E foi um sono profundo.

O sono de Connor sumira. Mas o pouco que dor­mira encostado à parede da caverna dera-lhe alguma força. Mandou Walter e as crianças para a cama, mas Ellen insistiu em ficar ao lado da sra. Cooper.

— Você podia ir dormir também — Sarah disse a ela enquanto se preparava para entrar. — Eu já vi mamãe desse jeito várias vezes. A tosse a deixa exaus­ta e depois dos acessos ela dorme a noite inteira.

— Eu fico com Agnes — Connor se ofereceu. — Milady é que deve ir dormir.

Ellen fitou-o friamente. Agora que a crise de Agnes passara, a tensão entre eles dois aumentara de novo.

— Não estou com sono — Ellen declarou.

— Pretende continuar sem dormir, como sem co­mer e sem beber?

— Talvez.

Connor rangeu os dentes. Jesus, aquela mulher era de enlouquecer qualquer um. Ele acenou para Walter e para as crianças, dizendo:

— Vão para dentro. Nós dois ficaremos aqui. Depois que todos se retiraram, não se ouviu mais barulho algum excetuando-se o som das ondas a distância e a respiração da doente. Ellen e Connor não falaram durante algum tempo.

Enfim Connor apanhou o frasco da cerveja que Ellen usara antes e tomou um longo gole. Ofereceu o frasco a ela:

— Com sede, milady?

— Não!

— Não comeu e nem bebeu desde o café da manhã, me disseram.

— Não estou com sede.

— Milady é uma mulher muito teimosa — ele resmungou.

Ellen encarou-o. Mesmo com a pouca luz Connor pôde ver o tremor dos longos cílios. Mais uma vez a lembrança dos beijos pulou espontaneamente em sua mente.

— Apenas quero ir para casa. Uma vez lá, tenho certeza de que poderei conseguir que Agnes e essas pobres crianças voltem ao lar. De meu ponto de vista, você é que é o teimoso, master Connor.

Ele levantou-se e andou de um lado para o outro. Não estava acostumado a dar satisfações de seus atos a ninguém, em especial a uma mulher. Mas Ellen de Wakelin não era uma mulher qualquer.

— Teríamos de enfrentar uma rebelião. Há os que têm medo de que milady revele este lugar aos homens de seu pai.

— Eu não faria isso — ela protestou, indignada. Connor encarou-a por algum tempo e depois respondeu:

— Acha que não faria agora, mas quando seu pai a pressionar para conseguir detalhes, quem pode saber o que milady dirá?

— Não sou uma idiota faladeira que não consegue controlar a própria língua, chefe dos cavalariços.

Ela levantara a voz e Connor pediu-lhe que falasse mais baixo apontando para a doente que, por sinal, ainda dormia pesadamente.

— Mesmo que eu quisesse levá-la, eles me impe­diriam — Connor explicou. — Sou um, e eles, muitos.

— Poderíamos sair agora e ninguém saberia de nada até amanhã de manhã.

— E deixar Agnes aqui sozinha? Exposta a qual­quer predador que pudesse aparecer? Lobos selva­gens, talvez?

Não houvera lobos naquela parte da Inglaterra por anos, mas Ellen não tinha conhecimento do fato. A verdade era que, mesmo que Connor quisesse acre­ditar nela, não podia arriscar a vida de tantas pes­soas. E tinha certeza de que a irritaria ainda mais se a deixasse saber que duvidava da palavra dada.

Ellen olhou para a mulher doente.

— Não — disse. — Não a deixarei aqui sozinha.

— Bem, agora entendeu, finalmente. — Connor sentiu-se aliviado. — E se insiste em ficar aqui co­migo a noite toda, faça isso confortavelmente. — Ele pegou o frasco de cerveja e deu-o a ela. — Mate sua sede, milady. Sentirá menos frio durante a noite.

Ellen resistiu um pouco de início, mas depois pe­gou a garrafa e tomou um longo, longo gole.

— Devagar — Connor preveniu-a, com olhar di­vertido. — Vai engasgar.

Ellen terminou de beber e, com um pouco mais de dignidade, tampou a garrafa e colocou-a ao lado do rochedo mais próximo.

— Sente-se melhor? — ele perguntou.

Ela fez um sinal afirmativo com um gesto de ca­beça, porém com certa relutância. E Connor pôde ver, surpreso, que por baixo do verniz aristocrático ela estava quase chorando.

Aqueles três dias deviam ter sido difíceis para Ellen, reconheceu. Fora arrancada de seu lar e car­regada para longe no meio da noite, forçada a dormir no chão e a comer mal, na companhia de homens rudes, inimigos de sua gente.

Connor havia sido arrancado de suas raízes tam­bém, mas anos atrás. Estava já acostumado a dias difíceis, enquanto que Ellen era uma mulher nobre que sem dúvida jamais tinha experimentado, nem de longe, algo como aquilo, em toda sua vida. Con­siderando-se isso, ela se comportara com coragem e dignidade, e não merecia sua zombaria.

Connor sentou-se mais perto dela e segurou-lhe a mão.

— Quer que eu vá buscar alguma coisa para milady comer? — perguntou. — Eu prometi que a le­varia para Lyonsbridge assim que pudesse. Não pre­cisa ficar com fome nesse meio tempo.

Ela não disse nada, mas sacudiu a cabeça em assentimento. Connor examinou-a mais de perto. Os belos olhos brilhavam à luz do luar, por causa das lágrimas. Ao ver isso encheu-se de compaixão pela moça sofrida, e sentiu um desejo incontroiável de confortá-la, desejo esse que esmagou qualquer outro vestígio de bom senso.

Com o polegar enxugou-lhe as lágrimas.

— Não estrague esses lindos olhos com lágrimas, princesa — ele murmurou com carinho.

— Não estou chorando — Ellen disse com firmeza, mas um soluço no fim da declaração provou que ela mentia.

Connor notou que Agnes ainda dormia profunda­mente. Então levantou-se, carregou Ellen nos braços e levou-a a alguns metros adiante, numa pequena área coberta de relva, na beirada do círculo de ár­vores. Ajoelhou-se e colocou-a no chão.

— Seus olhos estão molhados de orvalho, então — ele caçoou, com um sorriso de compreensão.

— Talvez — ela sorriu. Em seguida enxugou o nariz com a ponta da manga e espirrou. — Estou me portando como uma covarde — ela disse, com certa irritação.

— Não, querida. Comportou-se com mais coragem do que muitos soldados que conheci. Considero-a uma mulher maravilhosa, cheia de valentia.

As lágrimas desapareceram dos olhos de Ellen, e uma emoção diferente ocupava esses mesmos olhos quando ela o fitou. Connor respirou fundo. Sua ca­beça girava. Ele se esquecera por completo da mu­lher que dormia atrás deles, dos normandos que invadiam a cidade, dos homens revoltados que dor­miam na caverna ali perto.

Os olhos dele deviam estar revelando seu desejo, porque os dela de repente se arregalaram e ficaram fora de foco. Ellen deitou-se na relva macia e es­tendeu os braços para o chefe dos cavalariços.

— Eu acho você um homem maravilhoso, também.

 

Ellen não podia dizer o que enchia sua lalma de uma mistura de desejo e emo­ção ao mesmo tempo. Se conseguisse parar para ra­ciocinar, provavelmente perceberia que estava alte­rada pela tristeza de sua captura, pela falta de horas de sono, pelas condições miseráveis em que vivia no momento. Mas ao olhar para a cabeça alourada de Connor, delineada na escuridão da noite, tudo o que podia pensar era em seu desejo de sentir os lábios dele mais uma vez colados aos seus.

Maravilhosa, ele dissera. Sim, maravilhosa, Ellen pensou, enquanto Connor deitava-se a seu lado, tomando-a nos braços vigorosos. Os lábios de Connor eram suaves porém insistentes, e Ellen se entregava sem restrições a ele, sua capacidade de raciocínio parecia estar completam ente adormecida.

Deitava-se na relva macia, e Connor movia o pró­prio corpo sobre o dela, pressionando peito contra peito, perna contra perna. Com a língua ele lhe en­viava sensações eróticas, provocando gemidos em El­len e fazendo-a mover-se, inquieta e ansiosa.

Connor empurrou-a gentilmente para o lado a fim de que o luar lhe iluminasse a linda face.

— Milady é maravilhosa e também valente — Connor sussurrou, ofegante. — E sem dúvida me enfeitiçou. É uma loucura estarmos aqui, assim abraçados.

A essas palavras, Ellen ergueu a cabeça para ver a mulher que dormia perto deles.

— E Agnes? — perguntou. — E se ela acordar? Connor sacudiu os ombros e abraçou-a com força, fazendo-a calar-se com beijos.

— Você ouviu Sarah falar, não ouviu? Ela disse que a mãe dormiria até amanhã de manhã. Mas concordo que o que fazemos é loucura, de qualquer maneira.

A mão de Connor percorria-lhe o corpo, parando no lugar para onde toda a sensibilidade provocada pelos beijos dele se irradiara. Um calor violento queimava-a apesar das roupas grossas. Ellen queria prolongar as sensações eternamente, como não se lembrava de ter desejado isso antes, em toda sua vida de mulher mimada. Mas tinha medo também. Muito medo.

— Nunca conheci o amor de um homem desta maneira, chefe dos cavalariços — ela sussurrou.

Connor segurou-lhe o queixo e a fez encará-lo.

— Diga meu nome, Ellen.

— Connor.

O som foi quase inaudível, mas suficiente para Connor. Inclinou-se e roçou os lábios nos dela, des­cendo com os beijos pelo pescoço. Ellen sentia como se seus ossos fossem derreter.

— Isso é loucura — Connor repetiu. E Ellen con­cordou, com um aceno de cabeça. — Mas eu te quero, se você me quiser.

Ele parou de beijá-la e esperou. Porém Ellen de­sejava que Connor continuasse com aquela loucura que a conduzia às alturas. Não queria, de forma alguma, que ele lhe desse possibilidade de escolha, nem tempo de pensar. Mas Connor esperou.

Ellen sentiu um nó na garganta. As lágrimas que antes ameaçaram molhar suas faces, voltavam ago­ra, e caíam livremente. A dor que sentia por dentro era indescritível. Ela o desejava também. Porém aquilo não deixava de ser, como Connor bem dissera, loucura. Sentia-se prisioneira daquele homem, da­quele arrogante criado que insultava seu modo de vida, e desafiava as regras de seu povo.

Connor viu a resposta no rosto de Ellen, e sua expressão endureceu. Sentou-se, virou a cabeça para o outro lado, esfregou as mãos. E não falou.

—Sinto muito — ela disse enfim.

Connor deu de ombros, e continuou em silêncio.

— Vou ver como vai a sra. Cooper — Ellen murmurou.

Tentou se levantar, mas teve dificuldade por­que suas saias estavam embaixo dele, prenden­do-a no chão. Puxou-as, de repente desesperada para estabelecer uma distância entre si e um sim­ples empregado.

Connor moveu-se para o lado, ainda sem a encarar.

Ellen levantou-se, arrumou o vestido e foi para perto da sra. Cooper que dormia calmamente. Ajoe­lhando-se ao lado da mulher doente, disse a Connor:

— Ficarei com ela o resto da noite.

Ellen não podia ver o rosto dele por causa da escuridão. Porém a voz de Connor soou estranha quando respondeu:

— Como quiser. Mas eu dormirei aqui até ama­nhã. Contudo, se continuar com suas idéias de fugir, saiba que acordarei ao menor ruído.

— Não fugirei — ela disse. — Pelo menos, não esta noite.

Connor emitiu um som rouco, revirou-se no chão duro e preparou-se para dormir.

Ellen sentou-se, ficou ouvindo o ruído da respi­ração de Agnes e olhando para o espaço. Seu corpo começava a esfriar devagar, e ela sentia-se completamente vazia, oca. Queria alguma coisa diferente de Connor, e não apenas a satisfação de seus desejos carnais. Queria alguma coisa mais.

Toda sua vida tivera tudo o que desejara num mero estalar de dedos, numa elevação de voz. Nunca tivera de dar nada em troca. Pelo que podia se lembrar, recebera a admiração dos homens como normal, como se não pudesse ser de outra forma. Mas agora, quando mais uma vez a satisfação de seus desejos lhe era oferecida de maneira diversa, e através de um homem de condição social que não a sua, não conseguira ceder. Sabia de muitas mulheres nobres que aceitavam se satisfazer fisicamente com seus empregados. Na verdade, algumas damas da corte do rei Luís man­tinham criados para sua satisfação pessoal. Afinal, era costume nas cortes da Europa. Porém sabia que sua entrega a Connor requeria mais de sua alma do que na realidade desejava dar.

Agnes mexeu-se um pouco e gemeu. Ellen massageou-lhe os pulsos e teve a impressão de que acal­mara a velha senhora. A respiração voltava ao nor­mal. Ellen olhou para o lugar onde Connor dormia. Ele nem se movera.

Que estranha ironia era a vida. Ela fora à Ingla­terra esperando impor seu mundo normando a uma horda de selvagens saxônios, e agora sentia-se en­volvida com vários saxões, ali naquele lugar, numa caverna escura, de um modo como nunca imaginara possível e tampouco desejara.

Tremia de frio e passou os braços em volta dos joelhos. O vento sacudia as folhas das árvores pro­duzindo um ruído lúgubre. As lágrimas que brota­ram em seus olhos antes, agora caíam livremente. Lágrimas que não tivera em tanta quantidade desde a morte de sua mãe.

Agnes estava sem dúvida melhor na manhã se­guinte. Levaram-na para dentro ao clarear do dia, tendo sido mudado o local da família Cooper para perto da entrada onde o ar era mais puro. Todos se alegraram ao vê-la sorrir de novo, aquele sorriso amável, cheio de carinho. Porém no fim da tarde, quando não houve nem sinal dos dois pescadores, Godwin e Arthur, os temperamentos esquentaram de novo.

Ellen desistira de seu propósito de não comer, embora tivesse pouco apetite. Connor não fizera menção dos acontecimentos da noite anterior havido entre os dois, e evitara a companhia de milady por boa parte do dia.

Quando, finalmente, Ellen aproximou-se dele, no instante em que os raios do sol incidiam na abertura da caverna, Connor retesou o corpo.

— Você acha que meu pai já chegou à Inglaterra? — Ellen lhe perguntou.

— Acho.

— E por onde andam os pescadores?

— Não tenho idéia.

— O que você fará se eles não voltarem?

— Mandaremos outras pessoas à procura de alo­jamento. — Connor mal a fitava enquanto falavam.

Ellen suspirou, ressentida. Afinal, fora ele quem interrompera a noite de amor. Não ela. Se Connor tivesse sido persistente, agora seriam amantes. Te­riam ido até o final.

— Está aborrecido comigo, master Brand? — ela perguntou.

Essa pergunta chamou-lhe a atenção. Os olhos dele fixaram-se nela. Um olhar intenso, sim, mas com ex­pressão zangada também. A pergunta de Ellen provocou em Connor uma sensação perversa de satisfação.

— Aborrecido com você? — ele repetiu. — Por quê? Não, claro que não.

— Então, o que há?

— Estou aborrecido comigo mesmo, talvez. Foi um erro de minha parte o que aconteceu ontem.

A certeza de que afetara Connor com os beijos dela foi um bálsamo para Ellen. Por isso até lhe concedeu a esmola de um sorriso.

— Parte do que fizemos foi um erro — ela co­mentou, provocando-o.

— Sim — ele concordou. — Mas parte não foi. Agnes virou-se e deparou-se com os mesmos quatro homens que ela repreendera no outro dia, na caverna. O líder, Humbert White, falou com voz irritada:

— Godwin e Arthur ainda não voltaram.

— Sei disso, Humbert.

— Os outros homens e eu estivemos conversando, e querem pôr meu plano em ação.

— Seu plano?

Os cabelos de Humbert estavam em desordem, porém não pior do que o de muitos homens da ca­verna, E quando ele começou a falar, gesticulando, de repente Ellen comparou-o aos dementes que vá­rias vezes vira vagando pelas praças públicas, em sua cidade natal.

— Meu plano é sobre a moça. Vamos mandar um recado ao pai dizendo-lhe que, a menos que ele aban­done nosso território, receberá o corpo da filha num caixão. — Humbert falara calmamente, sorrindo para Ellen ao terminar.

Ellen esperou que Connor revidasse, que ficasse furioso com o homem. Mas ele continuou muito tranquilo.

— Qual de vocês vai levar o recado? — Connor perguntou. — Pois eu garanto que não restarão su­ficientes pedaços desse indivíduo recadeiro, para se­rem postos num caixão.

Os homens se entreolharam, nervosos e amedrontados.

— Poderemos mandar uma mulher. Que tal Sarah Cooper? — Humbert sugeriu. Mas os outros não pa­receram concordar.

Do fundo do grupo um rapaz de estatura baixa, de aparência um pouco melhor que a dos demais, disse:

— Você é ainda o lorde dos saxões, Brand. O que acha que devemos fazer?

Ellen olhou para Connor, cheia de surpresa. Ele fitou-a brevemente, em seguida dirigiu-se aos homens:

— Acho que devemos esperar por Godwin e Arthur mais um dia. Se eles não voltarem, irei à aldeia recrutar alguns homens e lhes darei a incumbência de encontrar um bom lugar para nós. Há outros que conhecem esta costa tão bem quanto os pescadores. O rapaz de baixa estatura disse:

— Os pedreiros que extraem blocos dessas pe­dreiras conhecem a região bastante bem.

A expressão de Humbert White era das piores quando se dirigiu aos companheiros, dizendo:

— Quanto tempo mais vamos ficar aqui sentados esperando que os homens de Wakelin nos achem? — Ele deu uns passos à frente e, pegando com brutali­dade no braço de Ellen, arrastou-a para tão perto de si que milady pôde sentir o cheiro fétido de seu hálito. — Insisto que a moça é nossa melhor esperança.

Num segundo Connor foi para o lado de Humbert, ergueu-o pelas axilas e atirou-o no centro da caver­na. Com voz soturna, berrou:

— Toque nela de novo, White. Quebrarei meu voto de paz e arrancarei sua cabeça dos ombros.

Humbert ficou esparramado no chão por alguns segundos. Depois levantou-se e respondeu:

— Ninguém é bastante bom para tocá-la exceto Vossa Senhoria. Não é, milorde? Mas reconsidere o que eu disse. Lembre-se de que não é mais o lorde de Lyonsbridge. Não é o senhor de nada a não ser de uma estrabaria cheia de esterco de cavalos. Se é bastante bom para a prostituta normanda, qual­quer homem daqui também o é.

Em seguida virou-se e foi embora. O resto dos homens não disse nada depois que Humbert saiu. Enfim, Connor comentou:

— A mente de Humbert está ficando cada vez mais instável. É melhor que vocês, homens, procu­rem por outro líder como modelo.

O rapaz de baixa estatura protestou:

— Você é ainda nosso líder, Connor Brand. Após uma pausa, todos bateram palmas em sinal de aceitação.

— Aconselho que fiquem longe dele. O tipo de veneno que Humbert destila atrai mais dificuldades do que as que já temos.

Com a saída de Humbert, toda a idéia de rebelião sumiu. Ellen tentava entender por que aquele homem odioso chamara Connor de milorde. Agora, olhando para o enorme e musculoso saxão, percebia com cla­reza que Connor Brand nunca tivera aspecto de um criado, simplesmente porque não era um criado.

— Quem é você, afinal? — ela lhe perguntou, de­pois que o último homem se retirou.

— Fizera-lhe a mesma pergunta logo depois que se co­nheceram. E ele não lhe dera uma resposta satisfatória. Mas agora estava decidida a obter essa resposta. Connor fixou nela seus olhos muito azuis.

— Sou o passado, milady — respondeu. — Sou o último Brand de Lyonsbridge. O último dos lordes que governou este lugar desde os dias em que a In­glaterra não era nada além do que lendas e geadas.

Depois retirou-se calmamente.

Connor sentava-se num rochedo, olhando para o mar. Começava a sofrer com a umidade da caverna e decidira assumir a guarda do esconderijo à tarde, até agora trabalho de Walter Little. Queria ficar mais tempo fora da caverna. Além disso, tinha tam­bém necessidade de solidão para pensar.

Quando os normandos invadiram a Inglaterra, a vida dele virara de pernas para o ar. Ficara perdido, siem saber o que fazer. Mas após a morte dos pais, tentara se habituar à nova existência. Resolvera vi­ver com os cavalos, solucionando as dificuldades dos camponeses, e cuidando para que não houvesse mais guerra em seu amado território.

E agora lhe parecia que tudo começava de novo, por causa da morte de William Booth. E mais ainda, do momento em que ele vira Ellen de Wakelin, o verme da insatisfação começara a roê-lo de novo.

Ele mudou de posição na pedra e deu uma gar­galhada de ironia. Um dia sentara-se num luxuoso salão, em poltronas estofadas. Hoje, numa pedra dura, e sua cama era o chão frio da caverna.

Recostou a cabeça na lateral do rochedo, tentando concentrar-se nos problemas que seu povo enfren­tava. Conforme dissera aos homens momentos atrás, se os pescadores não voltassem ele encontraria outro meio de procurar um abrigo, mas tinha a impressão de que não seria fácil. Os normandos haviam dei­xado os saxônios sossegados em função do tratado de paz. Mas agora que sir William fora assassinado, eles lançariam mão de todos os esforços para varrer as praias até encontrar o culpado.

Aí é que entrava Ellen. Os olhos dourados dança­vam diante dele, quando fechava os seus. Na noite da véspera quase fizeram amor. Em sua experiência Connor sabia muito bem que, se tivesse feito pressão, teriam ido até o fim. Mas ele não a queria nessas condições. Não queria em nenhuma condição, aliás, para dizer a verdade. Era loucura, como dissera antes. Connor abriu os olhos ao som de uma voz cha­mando-o pelo nome. A cabeça raspada de seu irmão apareceu junto à base do rochedo.

— O que está você fazendo aí trepado como uma ave marinha, pronta a levantar vôo? — padre Martin perguntou, irritado, a respiração ofegante quando começou a subir.

Connor não o recebeu com muito entusiasmo, não.

— Martin, o que o trouxe até aqui? — perguntou. Padre Martin acomodou-se com cuidado perto do ir­mão, na beirada estreita do rochedo. Depois, respondeu:

— Receio ter trazido mais más notícias, como se já não tivéssemos muitas.

A autopiedade de Connor se desvaneceu. Ele ficou de súbito alerta.

— Más notícias de Lyonsbridge?

— Sim. Lorde Wakelin instalou-se no castelo com uma quantidade enorme de soldados. Um verdadeiro batalhão.

— Procuram o assassino de William?

— Exatamente isso.

— Mas ninguém sabe deste lugar, não é mesmo, Martin?

— Não... Acho que não. — Houve hesitação na resposta do padre.

— O que está havendo, afinal, Martin? — Connor quis saber.

— Querem prender Johnny Cooper.

— Não podem prendê-lo se não puderem encontrá-lo.

— Eles dizem que os camponeses da aldeia o estão escondendo. Lorde Wakelin ordenou então que um habitante da aldeia por dia fosse açoitado até que o rapaz se rendesse e milady fosse levada para casa, sã e salva.

— Açoitado? — Connor sentiu-se como se o ar lhe faltasse.

— Harry Mason será o primeiro. O castigo terá lugar amanhã, ao meio-dia.

— Santo Jesus — Connor murmurou. Martin fez o sinal da cruz.

— Sim, é o que vai acontecer se não se tomar uma providência urgente.

Ambos os homens ficaram com o olhar perdido no mar azul. A distância, as ondas violentas pare­ciam apenas suaves elevações.

— Não sei o que posso fazer, Martin — Connor confessou com voz tremula, após longa pausa.

Martin sorriu gentilmente para o irmão.

— Talvez esteja na hora de você aproximar-se do bom Deus. Esteve afastado da igreja tanto tempo, não?

Connor não retribuiu o sorriso. Continuou olhando para as águas durante alguns minutos ainda, depois levantou-se apoiando o corpo na parede de pedra atrás dele.

— Se o bom Deus tivesse tempo para os saxões — disse —, não estaríamos agora tendo todas essas dificuldades. Mas está na hora é de nos pormos em ação, isso é certo. Não permitirei que a pele de meu povo seja brutalmente rasgada.

Ele esgueirou-se por trás do irmão forçando o pa­dre a se agarrar no rochedo para não cair, e desceu a rocha com impaciência.

— É a sua pele que será rasgada nesses rochedos se não tiver cuidado, Con — padre Martin preve­niu-o. Mas Connor não andou mais devagar, conti­nuou a descer quase correndo.

— Vou levá-la para casa, milady — disse Connor. Ellen ergueu a cabeça rapidamente. Estava ajoelhada perto de Agnes Cooper, ajudando-a a tomar uma sopa que ela e Sarah haviam preparado.

— Para casa? Agora? — Ellen perguntou.

— Sim. — Connor agachou-se perto da doente. — Sente-se melhor, senhora? — ele indagou gentilmente.

— Não se preocupe comigo, master Brand. Você tem coisas mais importantes com que se preocupar.

Connor virou-se para Ellen.

— Peça emprestado o agasalho da sra. Cooper. A noite está muito fria.

Ellen olhou para Agnes, que sorriu e disse:

— Vá depressa, minha filha. É bom desfazer essa coisa que nunca deveria ter começado.

Ellen entregou a vasilha de sopa a Sarah, que prosseguiu alimentando a mãe.— Rápido, milady — ela disse a Ellen.

— Rápido — Connor repetiu.

Ellen lançou uma vista dolhos à caverna. A maio­ria dos homens sentava-se em volta dos fogareiros, para o costumeiro drinque da noite. Sem discutir, ela seguiu Connor para sair da caverna.

Estavam quase fora quando Humbert White pas­sou por perto deles, trôpego, com certeza já bêbado.

— Aonde a está levando, Brand? — perguntou, enrolando a língua.

Connor empurrou-o e continuou na direção da saí­da. Mas Humbert agarrou-o pelo ombro e o fez girar, dizendo:

— Você não vai a parte alguma. A moça é nossa refém.

Connor suspirou e deu-lhe um tremendo soco, jo­gando-o no chão. E lá ele ficou, imóvel.

— Vamos — Connor disse a Ellen.

— Mas... — Ela apontou para o homem estirado no solo.

— Humbert ficará bom logo. Vamos sair daqui antes que eu tenha de fazer a mesma coisa com meia dúzia de companheiros dele.

Ellen relutava em obedecer.

— Mas ele não está se movendo...

Connor interrompeu-a agarrando-a pelo braço e empurrando-a para fora.

— Deixei Thunder aqui perto. Lá embaixo, na praia — disse.

Segurou-a pelo braço para forçá-la a caminhar a seu lado, e tudo o que Ellen pôde fazer foi segui-lo. Finalmente chegaram perto do cavalo. Enquanto Connor selava a montaria, ela teve tempo de read­quirir o ritmo normal de sua respiração e de lhe perguntar:

— Vai mesmo me levar ao castelo? Por que essa súbita mudança nos planos?

Ele terminou de encilhar a sela, depois montou e inclinou-se para puxá-la para cima, colocando-a atrás.

— Essa súbita mudança é porque estou tentando salvar vidas, milady, incluindo a sua.

— Aconteceu alguma coisa em Lyonsbridge?

— Seu pai está lá e se agitando furiosamente, pelo que ouvi dizer. A menos que algo seja feito, teremos uma outra guerra.

— Achei que você estava preocupado de que eu revelasse este lugar a meu pai.

— E estou. Mas vou acreditar em seu juramento de que não fará isso. — Ele virou-se na sela para trás, a fim de encará-la. — Vai prometer para mim? Jurar mesmo?

— Já lhe prometi, chefe dos cavalariços. Embora você não seja na realidade meu chefe dos cavalariços. Concorda que não é?

Ellen esperara o dia inteiro pela oportunidade de lhe perguntar sobre as revelações que tivera naquela manhã. A família de Connor era, no final as contas, a dos lordes de Lyonsbridge antes da chegada dos normandos. A descoberta a aliviara e a confundira ao mesmo tempo.

Ficou aliviada por pensar que, afinal, não se sen­tira atraída por um mero criado. Confusa porque, por razões que não conseguia entender, o conheci­mento do fato a entristecera.

Connor hesitou antes de responder.

— Minha posição, milady, é de chefe dos cavala­riços das estrebarias de seu pai. Ou melhor, era, antes do problema com John Cooper.

— Mas você não é na verdade um criado. Thunder subia uma rampa abrupta e Ellen teve de se agarrar com força na cintura de Connor para não escorregar da montaria.

— Você teria feito amor comigo ontem à noite se tivesse sabido que eu tinha sangue azul nas veias?

A observação fora cruel, e ferira Ellen mais pro­fundamente por estar ela pensando na mesma coisa. Ofendida, respondeu de maneira igualmente cáustica:

— Saiba que nenhum sangue saxônio é nobre aos olhos dos normandos.

Connor sorriu. E retrucou:

— Então, posso ficar tranquilo por não ter con­taminado milady com apenas alguns beijos saxônios. Poucos, por sinal.

— Isso foi muito bom. Foi muito bom mesmo.

Eles continuaram em silêncio por alguns minutos ainda, depois Connor disse, mas com relutância:

— Preciso fazer as pazes com milady.

— Deve lhe ter sido humilhante admitir isso. Mas não briguei com você, chefe dos cavalariços — ela respondeu.

— Seu pai ameaçou açoitar os homens da aldeia. E não fará isso a menos que John Cooper lhe seja entregue.

Ellen respirou fundo, e comentou:

— Não é bem de meu pai fazer uma coisa dessas.

— Talvez, contudo Martin me trouxe o recado esta tarde.

— Seu irmão esteve aqui?

— Esteve. Mas devo lhe pedir outro juramento: que não revele esse fato a ninguém.

— Não sou uma mulher sem coração, chefe dos ca­valariços. Tampouco idiota. Não comentarei nada sobre o esconderijo dos fora-da-lei, pode ficar sossegado.

— Seremos seus eternos devedores. E vai falar com seu pai sobre os açoites?

— Vou — ela respondeu, quase num sussurro.

— As vezes uma flagelação pode matar até um homem forte — Connor informou-a. — Lyonsbridge não precisa de mais viúvas e órfãos.

Ellen sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo, e se enrolou melhor no agasalho da sra. Cooper.

— Falarei com meu pai — ela repetiu. Connor deu um suspiro, aliviado. Depois esporeou Thunder, que disparou dentro da noite escura.

 

Brian,   barão   de Wakelin,   suspirou, olhando com tristeza para Ellen, sua única filha.

— O choque da captura mexeu com sua cabeça, minha filha — ele disse. — Eu nunca me perdoarei por tê-la exposto a esse tratamento indigno vindo dos fgra-da-lei. Agora é melhor que fique em seu quarto durante alguns dias e deixe o problema para mim e para seu primo Sebastian.

Ellen apertou as mãos e tentou se manter calma. Era verdade que não havia ainda se recuperado da experiência penosa pela qual passara nos últimos dias, mas sua exaustão era por causa da falta de horas de sono, não por causa do passadio sem conforto.

— De um modo geral fui bem tratada, papai — ela repetia pela décima vez.

Sentavam-se na enorme sala de jantar, depois de um café da manhã farto, composto de frango, bacon, e bolos de amêndoas que o pai trouxera da Normandia. Assim que se sentou à mesa do café, Ellen lembrou-se dos Cooper, ainda morando na escura caverna perto da praia, comendo pão com gordura de porco.

— Não queremos saber sobre os detalhes de seu tratamento, prima — Sebastian declarou, inclinan­do-se na mesa, bem em frente dela. — Mas pode­mos imaginar os horrores a que uma mulher linda como você esteve sujeita nas mãos daqueles saxões bárbaros.

O sorriso untuoso de Sebastian fez Ellen sentir-se como se ela não tivesse tomado banho.

— Não fui submetida a horror nenhum, Sebastian — Ellen disse de novo. — E lembre-se, foram os fora-da-lei, como você os chama, de que me trouxe­ram de volta à casa sã e salva.

— Após quatro dias — o pai enfatizou. Os olhos dele tinham expressão preocupada. — E isso só de­pois que se deram conta de que seus atos teriam repercussão negativa até junto do próprio povo. Ago­ra vamos continuar com o mesmo assunto, o de en­tregar o assassino de sir William à justiça.

— Sir William não foi assassinado. O rapaz agiu em defesa própria e da irmã.

— Bobagem — Sebastian protestou, com um sor­riso de desprezo. — Essa história foi inventada para encobrir um crime hediondo. William Booth não era um libertino, como querem insinuar.

— Eu mesma testemunhei o olhar que ele lan­çava à moça, no dia da seleção dos cavalos — ela argumentou.

Lorde Wakelin levantou-se e foi para perto da filha.

— Vá para seus aposentos, minha querida. — dis­se milorde com um sorriso. — Mandarei Sylvianne lhe levar um tônico e sentar-se perto de você até que durma.

O barão trouxera consigo uma das empregadas da Normandia, uma robusta mulher que provara ser leal ao patrão, e que nunca mimara Ellen como as demais.

Ellen levantou-se e encarou o pai, dizendo:

— Se o senhor der ordem para que aquele homem seja chicoteado na aldeia hoje, sairei desta casa para nunca mais voltar.

O sorriso de Wakelin se apagou.

— Não sabe o que está dizendo, minha filha. Ficou alterada...

Ellen interrompeu-o.

— Sei perfeitamente bem o que estou dizendo. Talvez eu esteja alterada, mas não pelo motivo que o senhor pensa. Suspenda essa punição já ou nunca mais me verá. Entrarei para um convento, se for necessário. Não duvide de mim nesse particular.

Lorde Wakelin ficou branco. Mas antes que ele pudesse continuar com sua conversa, Ellen levan­tou-se e foi para a porta.

— A moça está confusa — Sebastian comentou, levantando-se também.

Lorde Wakelin olhava para a filha que partia.

— Ela estará melhor amanhã — observou Sebastian.

— Não tenho muita certeza disso, não — observou lorde Wakelin.

— E quanto mais depressa prendermos o rapaz e o enforcarmos para vingar a morte de William, mais depressa Ellen voltará ao normal.

Depois de longa pausa Wakelin falou, e bem devagar:

— Adie a flagelação por enquanto.

— Mas, milorde... — Sebastian começou a protestar.

— Adie! — Wakelin berrou. — Continue com o interrogatório na aldeia. Ofereça uma recom­pensa pela informação, mas não castigue nin­guém fisicamente.

Sebastian saudou o barão, seu rosto um verda­deira máscara.

— Será feita sua vontade, milorde — ele murmurou. Esperou até que lorde Wakelin saísse da sala para pegar uma carcassa de frango que estava so­bre a mesa e atirá-la contra a parede, por pouco atingindo um lacaio que entrava na sala para tirar a louça.

O café da manhã que Ellen acabara de tomar ficou rolando no estômago por algum tempo. E sua mente estava igualmente agitada. As últimas pala­vras que dissera ao pai não haviam sido planejadas. Na realidade, não podia imaginar sair daquela casa para sempre, nem se entregar a uma vida de sa­crifícios num convento. Mas não se lembrou de outro meio para impedir que se abusasse dos camponeses. E o tempo corria rápido.

Sylvianne, sua antiga babá, tentou lhe dar um remédio para dormir, porém ela recusou e mandou a criada embora do quarto. Contudo, a mulher in­sistiu em ficar ao lado de sua menina.

— São ordens de lorde Wakelin — Sylvianne re­petia até Ellen, cansada da resistência da babá, de­cidir deixá-la ficar.

A mulher sentou-se num canto do quarto, as mãos no colo, os olhos fixos na pessoa sob sua responsabilidade.

— Não tem um trabalhinho para fazer? — Ellen lhe perguntou finalmente. — Uma tapeçaria, um bordado?

— Não, milady, estou aqui para servi-la apenas. Como Ellen trabalhara muito desde o primeiro dia em que chegara a Lyonsbridge, se esquecera do tempo em que ela e as criadas viviam ociosamente na Normandia, sem atividade produtiva alguma.

— Não preciso de nada, Sylvianne, como pode ver. Meu pai quer que eu durma, e para isso não necessito assistentes.

— Mas e se Vossa Senhoria acordar e precisar de alguma coisa...

— Se eu precisar de alguma coisa, sou bem capaz de levantar a voz e chamar alguém, ou talvez possa usar minhas pernas e obter o que desejo.

A criada olhou para Ellen como se pensasse que a patroa houvesse perdido a razão. Enlouquecido, talvez.

— Vamos, Sylvianne, vá procurar alguma coisa para fazer.

Ainda que relutantemente, a mulher levantou-se com a intenção de sair do quarto. Mas Ellen chamou-a.

— Primeiro, quero que você procure um escudeiro que trabalha aqui. O nome dele é Rolf.

— Rolf, milady?

— Sim. Mande-o falar comigo.

Sylvianne saiu do quarto abanando a cabeça, mas alguns minutos mais tarde ouviu-se uma suave pan­cada na porta. Ellen abriu-a para receber Rolf.

Rolf saudou-a várias vezes, e esperou que milady falasse.

— Entre, Rolf — disse ela, segurando a porta.

Rolf arregalou os olhos, mas obedeceu. Quando Ellen fechou a porta, encarou o rapaz e disse:

— Não tenha medo, Rolf. Eu só quero saber se você tem notícias de Sarah Cooper.

Foi como se uma bomba tivesse estourado no rosto dele.

— Não, milady — respondeu, um pouco depressa demais.

Ellen sorriu.

— Sarah é minha amiga, Rolf — ela declarou, surpresa ao constatar como dissera aquilo tão es­pontaneamente, o que enfim era a verdade. Não pen­sava mais nos Cooper como arrendatários, mas como amigos, — Estive com ela e a família toda até ontem à noite, e não falei nada sobre o esconderijo e nem o revelarei jamais.

Ela pôde notar que Rolf relaxava os ombros.

— Sarah ficou livre daquele canalha — o rapaz observou. — E isso é o que importa.

— Livre de sir William?

— Sim. O homem andava atrás dela havia meses,

— Sarah lhe contou que ele a perseguia?

— Contou. E eu vi com meus próprios olhos. Quase todo o mundo em Lyonsbridge viu.

Ellen guardou essa informação na cabeça, mas tinha algo mais importante a tratar no momento.

— Você sabe alguma coisa sobre a flagelação na aldeia?

— Sei, milady. Mas não vai mais haver.

— Quem lhe falou isso?

— Todos estão falando. Por ordem de lorde Wakelin, disseram.

— Graças ao bom Deus! — Ellen deu um longo suspiro de alívio.

— Graças ao bom Deus mesmo, milady — Rolf repetiu.

Ellen examinou o escudeiro por segundos. Parecia ser um rapazinho inteligente, e bonito também, como Sarah lhe confiara, corando. Os dois fariam um lindo par, se os Cooper pudessem um dia voltar à vida normal.

— Quer dizer que você sabe onde os Cooper se escondem? — ela lhe perguntou.

O rapaz baixou a cabeça, parecendo relutante em responder.

— Não estou lhe pedindo que revele o local, Rolf. Mas quero que vá lá e informe todos que os açoites foram cancelados.

Rolf ergueu a cabeça.

— Mas... e meu trabalho aqui...

— Eu cuidarei de tudo aqui no castelo, caso seja necessário. E não se preocupe. Fique lá quanto tem­po quiser, mas não se esqueça de falar com master Brand sobre os açoites. E diga-lhe também... — Ela hesitou.

O que exatamente queria que o rapaz dissesse a Connor? Que recado explicaria bem o tipo de sen­timentos confusos que a dominavam desde o mo­mento em que o saxão a deixara sozinha, na noite da véspera, nos portões do castelo? Sim, e se pu­desse, de uma maneira ou de outra, fazer com que Connor soubesse de seus sentimentos, de que adian­taria? Ele estava sendo considerado um fora-da-lei, e caçado por esse motivo, tal qual John Cooper. Era bem provável que nunca mais o visse.

— Diga-lhe apenas que cheguei bem — Ellen falou afinal.

O rosto de Rolf se iluminara à idéia de poder ver sua namorada. Aceitou com entusiasmo a incum­bência que Ellen lhe dava.

— Sim, milady, darei a master Brand seu recado. Ela abriu a porta para Rolf, fechou-a, e depois sentou-se na cama. O rapaz era inteligente e confiável. Connor sem dúvida receberia o recado. O úni­co problema, Ellen pensou ao se deitar de novo, era que não se tratava do recado que ela quisera na verdade enviar.

Ellen ficou no quarto o dia inteiro. Sylvianne trou­xe-lhe o almoço ao meio-dia e depois a refeição da noite. Porém ela sabia que não conseguiria comer. Seus pensamentos estavam com os Cooper, ainda na caverna perto do mar. Teria a pequena Karyn se acostumado à escuridão da noite? Agnes conti­nuava tossindo?

Ellen mandara a empregada embora ambas as vezes com as bandejas cheias, certa, contudo, de que sua falta de apetite seria comunicada ao pai. Muito bem. Ele que soubesse. Não se importaria a mínima. Ao menos ele a deixaria mais em liberdade para seus passeios a cavalo, pois não ignorava a paixão da filha pelas cavalgadas diárias.

Ellen decidiu então ir à aldeia sozinha na manhã seguinte. Queria que os habitantes de lá soubes­sem que os dias de medidas abusivas decretadas pelos normandos haviam terminado. Ela não po­deria aguentar aquilo. E tinha certeza de que, uma vez resolvido o caso da morte de William Booth, eles poderiam trabalhar juntos para que a paz vol­tasse ao lugar.

Com essa esperança otimista, Ellen trocou-se para dormir, sem pedir o auxílio de Sylvianne. Cansara-se da companhia obsequiosa da mulher, embora a cria­da só tivesse ficado lá um dia.

A própria milady acendeu o fogo, A pequena la­reira do quarto consistia num luxo, e Ellen se de­liciara ao descobrir que havia uma em seus aposen­tos em Lyonsbridge.

Na Normandia, apenas se construíam lareiras nos salões e nas cozinhas. Pela primeira vez na vida vira pequenas lareiras em quartos, fáceis de acen­der, e sorrira de satisfação pela sua independência ao constatar que os gravetos haviam se transfor­mado em chamas num abrir e fechar de olhos.

Na gelada Inglaterra, aquilo era não apenas um luxo como uma necessidade. Ellen às vezes se per­guntava como os pobres sobreviviam naquele clima. Jamais pensara que as matas forneciam gravetos, e tampouco pensara na possibilidade de uma pessoa viver sem criados à volta.

Quando os galhos mais grossos começaram a quei­mar, ela deitou-se na cama alta, enrolou os pés na barra da camisola, e ficou olhando as chamas.

As línguas de fogo dourado fizeram-na se lembrar da cor dos cabelos de Connor aos raios do sol poente. Connor! Por onde andaria ele àquela hora?

— Vim para lhe agradecer, milady. — Uma voz veio das sombras.

Era a voz dele, e por um segundo Ellen imaginou que o chamara através do fogo, por qualquer estra­nha bruxaria. Mas logo se deu conta de que ele estava mesmo lá, naquele quarto, em pé perto da janela, observando-a.

— Como entrou aqui? — perguntou, quase sem fôlego, cobrindo-se até o queixo.

— Este é meu quarto — ele respondeu, caminhan­do até um local mais iluminado. — Ou melhor, era meu quarto. Como entrei? Subi agarrando-me às janelas, tal qual fiz incontáveis vezes em minha ju­ventude, depois de o castelo ter sido fechado para a noite. — Connor sorriu, um sorriso triste, talvez recordando-se da adolescência que havia muito se fora e comparando-a à sua vida atual, tão diferente...

— Você subiu pelo muro? — Ellen insistia na pergunta, agora ainda mais atônita.

— Subi. — Connor fez um movimento com a mão, parecendo querer mostrar que não realizara nada de tão notável, e chegou mais perto dela. — As circunstâncias forçaram-me a deixá-la nos portões do castelo ontem à noite, em vez de acompanhá-la até a porta, como um cavalheiro faria. Foi assim que minha mãe me ensinou.

— Mas você sabia que eu tinha chegado bem, não sabia? Rolf não apareceu na caverna? Mandei-o...

— O rapaz chegou esta manhã — ele interrom­peu-a. — Levou o recado de que os açoites haviam sido cancelados, o que tive certeza de que fora o resultado da interferência de milady. Vim aqui para ver com meus próprios olhos que milady estava bem e também para lhe agradecer pessoalmente.

— Não precisava me agradecer. Em primeiro lu­gar, eu tinha certeza de que meu pai jamais daria uma ordem daquele tipo. Sebastian às vezes exerce má influência nele, e exorbita em seus poderes.

Connor deu um passo, chegando mais perto.

— Mas, em compensação, a filha exerce muito boa influência — ele comentou, sorrindo.

Depois de raciocinar por alguns segundos, Ellen respondeu:

— Confesso que nunca fiz algo semelhante antes.

— Mas como conseguiu que ele mudasse de idéia? John Cooper continua sendo procurado.

— Isso não é importante — ela disse. — O im­portante é que a ordem para os açoites foi cancelada.

Ellen sentiu, de repente, uma onda fria.

As cobertas da cama escorregaram enquanto fa­lava e Connor apanhou um cobertor colocando-o so­bre os ombros dela.

— Eu não devia ter permitido que continuasse sentada na cama. Vai pegar um resfriado.

—Não estou com frio — ela sussurrou.

Connor fitou-a por longo tempo, e Ellen sentiu voltar seu muito conhecido nó na garganta. Os olhos azuis dele brilhavam mais do que o fogo.

Connor apoiou um joelho na cama e passou os braços pela cintura de Ellen. Num movimento ins­tintivo ela enlaçou-lhe o pescoço e ofereceu os lábios para o beijo.

— Não vim com essa intenção, juro — ele murmurou.

Mas a união dos dois fora predestinada pelos deu­ses, Ellen concluiu ao se deitar contra os travessei­ros. Era como se a neblina daquele país selvagem lhe invadira o cérebro e roubara sua capacidade de raciocinar, deixando-lhe apenas a possibilidade de sentir o prazer do cavaleiro saxão em seus braços, dos lábios dele queimando-lhe a pele.

Connor levantou-se brevemente para se despir, depois ficou ao lado dela, nu e atraente, iluminado pelas chamas da lareira. Ela vira homens sendo des­providos de suas roupas, prisioneiros ou outros quaisquer. Contudo, o espetáculo nunca lhe causara aquele colorido no rosto, aquele latejar ao longo das pernas.

— Agora você, meu amor — ele pediu. — Quero ver seu lindo corpo nu.

Com surpreendente calma, ela deixou que as enor­mes e ásperas mãos despissem sua camisola, e dei­tou-se sob o olhar vagaroso de Connor. Ele mordeu-lhe o lábio inferior e depois fitou-a. Disse:

— Oh, meu amor, minha Ellen de Wakelin, juro que estou diante da mulher mais linda do mundo.

Em seguida deitou-se sobre ela, enfim pele so­bre pele, a sua quente, a dela gelada. Ellen sentiu a aspereza das pernas cabeludas de Connor con­tra suas coxas macias, sensíveis. O tórax rijo com­primia suavemente os seios intumescidos, e a boca de Connor juntava-se a sua numa longa união acetinada.

Ellen movia-se sob ele, inquieta e desejosa de contato mais profundo. Apesar de sua pouca expe­riência em amor, sabia existir algo mais que lhe proporcionaria tranquilidade, sabia existir uma sa­tisfação que apagaria o fogo que a consumia. Um bálsamo, enfim.

— Jura que nunca conheceu um homem na ple­nitude do ato do amor? — Connor sussurrou-lhe ao ouvido.

— Juro. — E ela virou o rosto por uns segundos. Mas a necessidade foi mais forte do que o embaraço, e quando os lábios de Connor procuraram os seus, Ellen entregou-se sem restrições. — Nesse caso devemos ir bem devagar, meu amor — Connor murmurou —, embora meu corpo deseje correr como uma flecha.

Ele a fez erguer os braços e segurou-os acima da cabeça para imobilizá-la, enquanto a beijava do quei­xo aos seios. Depois suavemente sugou um dos ma­milos. Ellen ergueu a cabeça, pois queria vê-lo. Con­nor fitou-a também, os olhos dele com expressão sensual, convidativa. E Ellen sentiu imediatamente qualquer coisa nova, diferente, no baixo ventre, na junção das pernas.

Assim que um dos mamilos intumesceu, Connor passou para o outro. Ela deitou então a cabeça para trás e concentrou-se no torvelinho de suas sensações, centralizadas agora nas duas pequenas protuberâncias.

— Ah, saxão, saxão! — Ellen gemeu após alguns minutos. — Veja o que fez de mim.

Connor encarou-a de novo, agora com um sorriso sensual.

— Saxão? Será que ouvirei meu nome de batísmo saindo de seus lábios, minha fada normanda, antes de nos tornarmos amantes?

— Não somos ainda amantes? Estarei por acaso sonhando estar nua em seus braços?

Connor sacudiu a cabeça vagarosamente, em se­guida dobrou a perna para que sua coxa roçasse a parte mais sensível do corpo da mulher.

— Apenas começamos, amor, mas quero ouvir meu nome antes. Diga. Diga, faça amor comigo, Connor.

Iria ser o reconhecimento de uma rendição, e ambos sabiam disso. Ele não mais seria um servo, tam­pouco um saxão conquistado. Mas seria Connor, seu amante, seu igual, seu dono até, de acordo com o velho costume de que sempre o homem dominada a mulher.

Ellen refreou-se durante longo tempo enquanto a voz grave de Connor sussurrava palavras de amor em seus ouvidos, e a língua caminhava pela orelha e pelo pescoço dela. Em seguida, bem devagar mas com firmeza, Connor acariciou-lhe o ventre, depois mais abaixo, mais abaixo, enviando ondas eróticas por todo o corpo de Ellen.

— Connor, faça amor comigo — ela balbuciou enfim. A lentidão da carícia terminava, sendo substituída por um frenesi. Os movimentos dos dedos de Connor ficaram mais rápidos, mais firmes, e ela abriu as pernas suplicando-lhe que desse um alívio a sua excitação. Ele penetrou-a então, pedindo-lhe, num sussurro, desculpas pela pressa. Mas o corpo da mu­lher amazona era forte e estava bem preparado. O breve incomodo transformou-se logo em sensação de­liciosa, depois numa urgência que a fez enterrar as unhas nas costas dele enquanto o ritmo dos movi­mentos se tornava frenético.

Enfim, ele retesou o corpo e deixou escapar um gemido rouco. Ellen sentiu uma pulsação forte em seu interior, que se transformou em espasmo con­vulsivo, deixando-a trêmula e fraca.

Connor caiu para o lado, igualmente fraco. Mas foi o primeiro a se mover, virando-se de lado e abraçando-a.

— Machuquei-a, querida? — perguntou, beijan­do-lhe o pescoço.

— De forma alguma.

— Que maravilha, então — ele declarou. — Con­fesso que nosso amor foi violento demais para uma primeira vez. Você fez com que eu me perdesse.

— Mas não ficou totalmente perdido, não, chefe dos cavalariços — disse Ellen, com um sorriso bre­jeiro. — Eu sabia onde estava seu pensamento o tempo todo.

Ele soltou uma gargalhada e gentilmente deu-lhe um tapa no traseiro.

— É sorte sua eu gostar de mulheres atrevidas. Mas já lhe disse para me chamar pelo nome, não disse?

— É o preço por eu me ter tornado sua amante? Agora, o que foi feito, foi feito. Não podemos voltar atrás. Verdade?

— Está por acaso pensando que eu voltarei para as estrebarias, e que as coisas serão como antes? — O tom de voz dele era meio sério, meio de brincadeira.

Aquela troca de palavras fora feita em tom de pilhéria, mas tanto a observação de Ellen, como a resposta de Connor, pareceram esfriar o ambiente. Ellen virou-se para ver se o fogo se apagara. Não, a madeira queimava lindamente.  

— As coisas nunca mais serão como antes — ela comentou, falando vagarosamente. — Mas, para ser franca, não sei como serão.

Connor ficou calado por bastante tempo. Quando Ellen ergueu a cabeça para ver-lhe o rosto, ele olhava para o quarto todo, dando a impressão de que se lembrava de quando aquele lugar fora seu por direito legal e por nascimento.

— Connor? — Ellen chamou-o.

Ele finalmente virou a cabeça a fim de encará-la, com um esboço de sorriso.

— Nós dois concordamos que foi loucura o que fi­zemos. O que aconteceu foi que nos esquecemos de tudo por um momento, e mergulhamos na loucura.

— Acho que sim — Ellen concordou. Connor já havia começado a se vestir.

— Já vai embora? — ela perguntou, não acredi­tando no que via.

— Minha presença aqui põe minha vida em perigo. Se eu for apanhado onde estou, seu pai mandará me degolar. As coisas são assim simples. Entende?

Por qualquer razão que Ellen não saberia explicar, tinha certeza de que o medo de Connor de perder a vida não era o motivo de sua súbita mudança de humor. Ele podia ser tudo, menos um covarde. Sem dúvida não tivera medo ao galgar três andares para chegar ao quarto. Algo mais motivava a par­tida dele agora.

De súbito envergonhada de sua nudez, ela cobriu-se com os cobertores enquanto Connor acabava de se vestir.

— Quando o verei outra vez? — Ellen quis saber, logo reconhecendo-se fraca por ter feito a pergunta.

Connor percorreu-a com um olhar de expressão estóica.

— Gostaria de morar numa caverna, milady? Está por acaso ansiosa de viver comigo naquele abrigo romântico, úmido, perto do mar?

Ellen não conseguiu responder.

Depois de um minuto, ele sacudiu a cabeça.

— Penso que não. — Connor lançou um último olhar ao quarto, e acrescentou: - Foi loucura o que acabamos de fazer. Sim, foi loucura, sem dúvida Forem a mais maravilhosa das loucuras... — Connor disse suavemente, como se falasse consigo mesmo Logo depois Ellen sentiu nova onda de ar frio quando as janelas se abriram e ele foi embora.

 

Ellen mudou de idéia no mínimo uma dúzia de vezes durante a noite. Um momento dava socos no colchão, furiosa, dizendo a si mesma que a primeira coisa a fazer pela manhã seria dizer ao pai onde os saxões se escondiam, para que os soldados pudessem acabar com eles todos começando pelo líder.

No momento seguinte admitia ir ter com o padre Martin na Abadia e pedir-lhe que a levasse até Connor.

Não podia se lembrar de quando sua mente es­tivera tão confusa. E ficou se revirando na cama até quase de madrugada. Dormiu então um sono profundo, de exaustão, sentindo ainda os vestígios dos dedos de Connor em sua pele.

A manhã já andava alta quando ela acordou, e só porque Sylvianne batera à porta para saber se podia cuidar da patroa. Mas Ellen mandou a criada embora e vestiu-se sozinha, ainda indecisa quanto ao que iria fazer.

O mais sensato seria tirar por completo a noite de amor da cabeça, e o chefe dos cavalariços junto. Classificaria aquilo como um acesso de loucura, o que Connor tornara bem claro com seu desaparecimento. Devia esquecer-se de que algo acontecera. Mas como banir da memória os olbos dele carregados de desejo? Os beijos, que deixavam seus membros trêmulos?

Connor estivera certo sobre uma coisa. Se seu pai soubesse o que ele lhe fizera, mandaria degolá-lo. E se soubesse um pouco mais, como o fato de Connor tirar-lhe a virgindade e depois descartá-la como um cristal quebrado, ordenaria que lhe arrancassem braços e pernas antes.

Ellen deu um profundo suspiro enquanto descia a escada para ir à sala de refeições. Havia muito passara a hora do café da manhã, e o local estava vazio. Mas na despensa, onde fora a fim de pegar uma bebida que a aquecesse, encontrou-se com Sebastian enchendo um copo de cerveja para si.

Ele ergueu o copo, como em uma comemoração.

— Então decidiu voltar à sociedade, prima, agora que desvirilizou seu pai com caprichos de menina mimada?

— Não vejo nada de viril num líder que manda chicotear seus vassalos. Se foi meu ponto de vis­ta que fez meu pai mudar de idéia, sou grata por isso.

— Você não conhece o mundo dos homens, Ellen. Um líder que ameaça e não cumpre suas ameaças é considerado impotente.

— Um líder que tem a hombridade, a grandeza de caráter de reconhecer seu erro, é considerado nobre — ela refutou.

— Com franqueza, prima, acho que o úmido ar inglês prejudicou seu cérebro. Na. França você nunca se meteu nas atividades masculinas. Um lorde que permite ao assassino de seu magistrado ficar impu­ne, não merece o sal que come.

— Sir William não foi assassinado.

— Assim falam os saxões que você tanto admira. Vai ouvi-los em vez de ouvir seus parentes? — Sebastian apertou as pálpebras e fitou-a intensamente. — Mas talvez você esteja ouvindo um saxão muito especial.

— Ouço a voz da justiça — Ellen insistiu. Mas não pôde evitar o rubor das faces.

— O chefe dos cavalariços, não é? Como as mu­lheres são facilmente influenciáveis pelo rosto e cor­po atraentes de um homem! — ele caçoou. — Caso você não saiba, prima, Connor Brand foi também declarado fora-da-lei.

— Mas ele não fez nada — ela protestou. Nada além de ter dilacerado seu coração havia menos de doze horas.

Um reflexo de alegria dançou nos olhos de Sebastian.

— Acho que lorde Wakelin tem de saber isso, mi­nha cara prima. Você precisa de proteção contra más companhias.

Ellen sentiu um aperto no estômago, mas recusou permitir que o primo fizesse uso da arma poderosa que tinha contra ela.

— Diga a meu pai o que quiser, primo. Ele nunca dará mais crédito a você do que a sua própria filha.

— Vamos ver em quem ele irá acreditar mais, pri­ma. — Sebastian esboçou um sorriso maldoso. — E veremos quão decidido ele ficará ao descobrir que sua idolatrada filha mantém um caso com o chefe dos cavalariços, tal qual uma rameira de aldeia.

 

Os dois pescadores finalmente voltaram, cansados e a pé, pois o barco fora de encontro a umas rochas no extremo sul, onde se aventuraram ir à procura de uma caverna suficientemente grande para todos os saxões refugiados. No fim decidiram dividi-los em grupos e espalhá-los por cavernas menores. Des­sas havia enorme quantidade ao longo da costa.

— Talvez seja melhor assim. E mais difícil aos normandos achar várias pequenas do que uma grande — Walter Little dissera, para consolar os pescadores.

Connor mantivera-se em silêncio a manhã toda, justo quando sua liderança era mais necessária que nunca.

Humbert White e os companheiros, como também várias outras famílias, já haviam se retirado carre­gando suas coisas. Os Cooper ficaram, esperando por Connor, e grande número de outros fora-da-lei, fiéis a seu antigo lorde. Com os Cooper estava o escudeiro do castelo, Rolf, que preferira se unir aos fora-da-lei em vez de voltar a servir os normandos que poderiam prejudicar John e Sarah. Connor parou de olhar para o fogo, e disse: — É melhor assim. Na realidade, está na hora de terminar com esse negócio de se esconder em cavernas e nas florestas. Essas pessoas pertencem a Lyonsbridge. Precisam voltar para lá a fim de criar seus filhos de maneira decente, de retomar suas atividades, de ter uma vida normal. Walter mostrava-se cético.

— Sim — disse. — E de afundar os normandos no mar. Mas duvido que isso aconteça.

Connor apagou o fogo com um balde de areia.— Vamos sair deste buraco imundo — declarou de repente.

Walter chutou alguns gravetos que caíram do fogo, observando Connor com olhar preocupado.

— Vamos apenas trocar um buraco por outro. Milorde não pode voltar à aldeia, tampouco os Cooper. As vezes preocupo-me com sua falta de medo, Con­nor. É absurda.

Medo? Sim, Connor pensou, sentindo um frio na espinha. Ele tinha medo. Não dos homens de lorde Wakelin. Ele os enfrentaria. Mas não poderia res­ponder por sua valentia se pusesse os olhos na filha dele mais uma vez.

Quando seus pais morreram deixando-lhe a incum­bência de cuidar dos habitantes do local, Connor acre­ditara que seu destino estava traçado. Nunca olhara para além disso, nunca pensara em outro tipo de vida. Contudo apenas um quente, um mágico encontro, mu­dara tudo. Naquela manhã, depois de ter passado uma noite acordado, deu-se conta de que desistiria da pro­messa que fizera aos pais, de que abandonaria tudo inclusive a Inglaterra, se pudesse ter Ellen para si. Esse pensamento o sacudira mais profundamente do que qualquer outra coisa, desde que sepultara a mãe.

— Não sou tolo, Walter — ele disse. — Os Cooper e eu encontraremos outra caverna para nos escon­der, como os ratos em que nos transformamos. E você será bem-vindo se quiser morar conosco.

Eles ajudaram os Cooper a juntar seus pertences, deixando o que não podiam carregar, e partiram. Miraculosamente, o enorme grupo de pessoas que morava na caverna parecia ter derretido nas areias da costa, como flocos de neve.

Connor, Walter, os Cooper, Rolf e os quatro fora-da-lei que optaram ficar com eles, instalaram-se numa pequena caverna a três quilômetros de dis­tância da original. Walter queria ir para uma mais distante, porém Connor achou que Agnes Cooper não aguentaria, e determinou que acampassem lá, ao menos por algum tempo.

John passara horas ouvindo Humbert e outros descontentes, e quase decidira seguir com eles. Mas Sarah dissera que a mãe precisava dele. E agora, uma vez na incômoda caverna nova, estava de ter­rível mau humor. Finalmente Sarah repreendeu-o:

— Foi para salvar sua vida que saímos de casa e viemos para este lugar, John. O mínimo que pode fazer é ser agradável, meu irmão.

— Sei muito bem, irmã, mas foi para salvar sua virtude que pus minha vida em risco — ele replicou, irritado. — Não quero ser castigado por...

Agnes ergueu as mãos trêmulas com o fim de fazer os filhos pararem de discutir.

— Já temos suficientes problemas com os normandos para precisarmos de mais alguns com vocês — disse ela, com sua costumeira serenidade.

Sarah ficou constrangida, mas John saiu da ca­verna resmungando.

Connor observou-o indo, mas não fez menção para impedi-lo. O rapaz o fez lembrar de si mesmo, quan­do jovem, na época em que ainda acreditava poder governar seu povo, antes de os normandos invadirem sua adorada terra.

Havia muito perdera toda a esperança de ser feliz. Martin talvez houvesse encontrado paz, voltando-se para Deus, mas ele tinha apenas uma idéia fixa: salvar seu povo. Jurara mantê-los seguros e longe das guerras. Porém a última noite no castelo com Hllen consistira numa traição a seu voto. Fora um erro que não tinha intenção de repetir.

— São verdadeiras as palavras de seu primo, mi­nha filha? .— lorde Wakelin perguntou, num tom de voz de que não acreditava. — Está apaixonada pelo chefe dos cavalariços?

Ellen teve vontade de dizer ao pai que Connor era muito mais do que um simples chefe de cava­lariços, mas qualquer tentativa que fizesse para de­fendê-lo seria uma confirmação do que Sebastian dissera.

— Meu primo sempre teve uma imaginação fan­tasiosa— disse ela, olhando para Sebastian com desprezo.

Ele a observava por trás dos ombros do lorde, como um abutre pronto a atacar.

Wakelin virou-se para poder encará-lo.

— O que lhe deu essa idéia, meu sobrinho?

— É conhecido entre os camponeses, milorde, que esse homem já dormiu com todas as donzelas da aldeia.

— E por que você iguala minha filha às donzelas da aldeia? Ellen não é uma moça da aldeia. E tem os melhores pretendentes a seus pés em toda a Eu­ropa. Que interesse pode ter ela por um rude saxão?

Ellen permaneceu calada.

Sebastian mudou de lugar para ficar frente a fren­te com o tio. E declarou, com um sorriso irônico nos lábios:

— Talvez se trate de uma das fantasias de Ellen. E espero que sim, pois os homens que escolhi para investigar o assassinato de Booth garantiram a cumplicidade do chefe dos cavalariços no ato. Talvez no referente à instigação ao crime.

— Isso é mentira! — protestou Ellen, erguendo a voz.

O pai dirigiu-se a ela.

— Filha? — interrogou suavemente.

Ellen tentou se manter calma e baixou a voz.

— Eu estava com alguns cavalariços na estreba­ria, pai, logo após o incidente. Connor Brand não sabia de nada sobre a morte até John Cooper apa­recer lá para lhe contar. O rapaz agiu sozinho, e apenas em defesa da irmã.

— Sempre houve desentendimentos entre Connor e Booth — Sebastian insistia. — E o chefe dos ca­valariços fugiu imediatamente após o assassinato, o que consiste em boa prova de culpabilidade.

— Connor apenas ajudava a família Cooper a sair da aldeia, por medo da vingança dos homens de Booth antes que a história toda fosse ventilada — Ellen disse ao pai.

Lorde Wakelin empurrou sua cadeira para trás, deu um suspiro e declarou:

— Cabe ao Tribunal decidir. Ambos, John e Con­nor, serão julgados pela Justiça.

— Muito bem — Sebastian concordou com um sorriso sarcástico dirigido a Ellen. — E se minha linda prima não tiver nenhum interesse no rapaz, não irá interferir se oferecermos uma recompensa em troca da cabeça dele.

— Tudo precisa ser esclarecido — observou Wakelin. — Você tem minha permissão, Sebastian, de oferecer essa recompensa. Ponha um anúncio na al­deia. O pessoal de lá deve saber muito mais do que nossas tropas.

— Pai, o senhor-não pode...

Mas Wakelin interrompeu-a com o braço estendido.

— Deixe isso conosco, minha filha. Não é assunto para você. E, se continuar insistindo, a mandarei de volta à Normandia, onde deveria ter ficado, para início de conversa.

Sebastian lançou um olhar de triunfo a Ellen, an­tes de responder:

— Cumprirei suas ordens, tio.

Wakelin continuou a examinar os papéis que es­tavam sobre a mesa, considerando a audiência ter­minada, e não dando à filha outra chance além de se retirar da sala restando a ela apenas a esperança de que a amizade existente entre os saxões resistisse à tentação do ouro de Judas oferecido por Sebastian.

No fim da tarde daquele mesmo dia, a preocupa­ção, juntamente com a falta de horas de sono na noite anterior, concorreram para que Ellen tivesse violenta dor de cabeça. Pensava num jeito de saber o que estava se passando nas cavernas, mas o es­cudeiro Rolf não voltara a suas atividades no castelo.

Considerou até a possibilidade de ir a cavalo, mas teve certeza de que o pai jamais consentiria nisso enquanto houvesse tropas vasculhando a redondeza. Ficou então no quarto, andando de um lado para o outro, brigando com Sylvianne e tentando afastar da cabeça latejante o pensamento dos beijos de Connor.

Era quase noite quando Sylvianne bateu timidamente à porta, falando num tom de voz como se pedisse desculpas.

— O que você quer agora? — Ellen perguntou.

— E o padre, milady, que deseja lhe falar.

— O padre Martin?

— Sim, ele a aguarda na capela...

Antes que a pobre mulher terminasse de falar, Ellen empurrou-a para lhe dar passagem. Desceu a escada correndo, atravessou o hall e foi direto à capela que ficava na outra extremidade do castelo.

Padre Martin ajoelhava-se ao altar, os olhos fe­chados em prece fervorosa. Ellen hesitou e tossiu para chamar-lhe a atenção.

Após alguns segundos o padre fez o sinal da cruz e fitou-a.

— Boa tarde, milady.

— Minha camareira informou-me que o senhor queria falar comigo — Ellen disse, gaguejando um pouco.

A precária luz das velas o padre parecia-se muito, com Connor. O mesmo olhar intenso, o mesmo nariz, a mesma linha do maxilar.

Martin foi ao encontro dela. Perto, a semelhança com Connor desaparecia. A estrutura arredondada do padre sob sua roupagem não tinha nada a ver com o corpo forte, enxuto, que ela vira sobre si à claridade das chamas da lareira na noite anterior, em seu quarto. Corou ao se lembrar. O padre saudou-a e disse:

— Sim, mandei que a camareira lhe comunicasse meu desejo de lhe falar. Os soldados de seu pai estão vasculhando todas as cavernas ao longo da costa à procura de saxões refugiados. Com certeza encontrarão John Cooper. Acho que o rapaz não fu­girá e deixará assim a família enfrentar a ira dos normandos.

Ellen desapontou-se terrivelmente. Quereria aqui­lo dizer que os habitantes da aldeia não resistiram à tentação de ganhar um dinheiro fácil? Após haver testemunhado como eles trabalhavam juntos para se ajudar mutuamente, estava certa de que nenhum deles revelaria o esconderijo dos fora-da-lei

— Quem contou aos normandos sobre as caver­nas? — ela perguntou.

— Nenhum saxão, tenho certeza absoluta, milady. Um dos homens de Phippen descobriu a grande ca­verna onde eles moraram antes. É fácil deduzir que encontrarão outras ao longo da praia.

Ellen suspirou, aliviada. Era bom saber que não fora a recompensa de seu pai que concorrera para isso. Contudo, padre Martin tinha razão. Se os sol­dados examinassem caverna por caverna, encontra­riam a ocupada por John e Connor.

— O senhor me levaria a essas cavernas? — ela pediu ao padre.

— Como, milady? — Martin perguntou.

— O senhor me levaria ao lugar onde está seu irmão agora, para que possamos preveni-lo?

Padre Martin encarou-a fixamente e disse:

— Os soldados chegarão lá muito antes de nós. E, de qualquer maneira, não acho que ajudaria em nada meu irmão ser encontrado com a filha do lorde dos normandos.

Ellen virou o rosto para evitar o olhar penetrante do padre. Mas ele continuou:

— O que há entre os dois, milady?

Tratava-se de um homem de Deus, e ela sentiu que não poderia mentir. Mas ele não lhe pedira de­talhes. Não seria mentira dizer que não havia nada entre eles, pois Connor tornara bem claro através de sua rejeição naquela mesma noite que o encontro fora apenas paixão de momento, nada mais.

— Poderemos facilmente provar que Connor é ino­cente no caso da morte de Booth. Mas qual será o destino de meu irmão se for provado que ele, um humilde servo, lançou olhares para a filha do lorde?

— Não há nada entre mim e seu irmão, padre — ela insistia, agora fitando-o calmamente.

— Milady jura que está falando a verdade?

— Juro. Juro que não há nada entre nós agora, e nem haverá no futuro.

Padre Martin deu um suspiro de alívio.

— Se John e Connor forem presos, suplico a mi­lady que use sua influência para que eles não sejam maltratados.

— É claro que cuidarei disso.

— E eu começarei a procurar evidências que pro­vem a inocência dos dois. Não será fácil no caso de John. Embora Booth tenha sido um conhecido li­bertino, temos apenas a palavra da moça que ele atacou, e a do acusado. Não foram encontradas equi­moses no corpo de Sarah.

Ellen levantou-se, indignada.

— Precisa uma mulher ser agredida fisicamente para ter direito a defesa? Acho que não, padre Martin.

O padre sorriu.

— Concordo com milady — ele disse. — Apenas espero que os juizes escolhidos por seu pai também concordem conosco.

Quando apareceu na manhã seguinte para servir sua patroa, Sylvianne informou-a, com um sorriso desdenhoso, que talvez as coisas voltariam ao nor­mal no castelo agora que os canalhas haviam sido presos e jogados numa masmorra.

Ellen pressionou a mulher para obter detalhes, e ela contou que a família inteira do assassino, como também o chefe dos cavalariços, haviam sido acor­rentados no subterrâneo do castelo.

— Acorrentados? — perguntou Ellen, horrorizada. — Não a viúva, com certeza? Não os gêmeos? São ainda bebês.

Sylvianne sacudiu os ombros e, quando Ellen re­cusou seus serviços para ajudá-la a se vestir, ela saiu do quarto com ar de insultada.

Ellen levou menos de dez minutos para se vestir e se dirigir ao subterrâneo do castelo, bem embaixo do hall, onde um labirinto de despensas era usado ocasionalmente para celas de prisão.

Era uma área do castelo que Ellen ainda não ha­via visitado em sua campanha de limpeza. O local cheirava a fezes de animais e a comida podre. A luz filtrava por pequenas janelas, mas em alguns lugares a escuridão era quase completa. Santo Deus, ela esperava que a pequena Karyn não estivesse na escuridão.

Um dos homens que fizera parte do séquito que a conduzira e a Sebastian, da Normandia à Ingla­terra, estava de guarda no fim do estreito corredor. Ergueu o tocheiro e segurou-o no alto para verificar a identidade do recém-chegado. Quando viu Ellen, saudou-a, dizendo: — Milady não pode entrar. Temos prisioneiros.

— Por isso estou aqui. Vim vê-los — ela respon­deu, sem maiores explicações.

O homem encarou-a, sem saber o que fazer. Mas não se moveu do lugar.

— São ordens de seu primo, milady. Não posso deixar ninguém chegar perto deles.

— Como é seu nome, soldado?

— DeGuerre, milady.

— Está ciente de que sou a senhora deste castelo, DeGuerre?

— Sim, milady, mas seu primo disse...

— Meu primo está aqui por ordem de meu pai, não por direito de nascimento. Se você quer pôr em risco sua posição no castelo negando direitos à ver­dadeira dona, sofrerá as consequências de seus atos.

Indeciso, DeGuerre afastou-se para dar passagem a Ellen. Ela arrancou o tocheiro das mãos dele e seguiu pelo corredor.

Encontrou os prisioneiros num cubículo no fim do corredor. O pequeno espaço estava abarrotado de barricas. Karyn e Abel, sentados lado a lado em duas delas, tinham os olhos arregalados de medo.

Amarrados juntos, encostados à parede, encon­travam-se Sarah, Agnes, John, Rolf e Connor. Não eram correntes, mas cordas, graças aos céus, Ellen logo pensou. Contudo, a vista da cena deixou-a pálida.

— Milady! — Sarah exclamou, num grito de alegria. Mas Ellen foi primeiro falar com Karyn, que caiu em pranto ao ver sua querida amiga. Ellen largou o tocheiro e abraçou a menina.

— Isso é uma vergonha — disse, assim que con­seguiu falar, tal sua emoção.

— Essa é a justiça normanda da qual milady fa­lava com tanto orgulho — disse John Cooper, com amargor.

— Controle sua língua, John — Sarah repreendeu-o. Karyn parou de chorar ao encostar a cabeça no ombro de Ellen.

— Ela tem medo do escuro — Abel comentou, interpretando como sempre o pensamento da irmã. — E pensou que os soldados fossem dragões.

Ellen beijou a menina e disse:

— Não há dragões aqui em Lyonsbridge, Karyn. Nem animais selvagens.

— Além de seu primo, milady — Connor falou enfim, com seu velho tom de caçoada, apesar da gravidade das circunstâncias.

Agnes não dissera nada. E agora que Karyn não lhe apertava o pescoço tão desesperadamente, Ellen dirigiu sua atenção a ela. Agnes de repente adquirira o aspecto de uma mulher muito velha, mais velha do que na realidade era.

— A senhora está bem? — Ellen lhe perguntou. Agnes estava fraca demais para responder, mas esboçou um de seus amáveis sorrisos.

Ellen colocou Karyn de novo em cima do barril, dizendo:

— Fique aí um minuto, querida, enquanto con­verso com sua mamãe.

Abel, no outro barril, estendeu a mão à irmã e sussurrou, num tom de voz solene:

— Eu tomo conta de você, querida.

Ellen foi para perto de Agnes. Connor não tirara os olhos dela o tempo todo. Era a primeira vez que se viam depois da noite em que fizeram amor, mas Ellen procurava o tempo inteiro afastar o pensa­mento daquela noite. Não era o momento adequado para pensar na rejeição de Connor.

Ela examinou a grossa corda que envolvia cada prisioneiro, juntando-os num sinistro nó.

— Sra. Cooper, a senhora vai ficar doente de novo. Temos que tirá-la daqui, custe o que custar — disse Ellen. E olhando com desânimo para a grossa corda, acrescentou: — Tirá-los todos daqui.

— Exatamente no que eu pensava — Connor con­cordou. E, antes que Ellen se desse conta, a corda pareceu se dissolver e ele levantou-se ficando ao lado dela. Ellen quase caiu de tanta surpresa.

— Como? O quê?

Connor esfregou os pulsos onde a corda os esfolara.

— Tenho habilidade com nós, querida. Consegui livrar-me dos nós durante a última hora, mas ainda não tive tempo de pensar num plano de livrar Agnes e os filhos. Ao menos um plano que não envolva a morte do guarda que se intrometer em nossa frente.

— Eu os mataria todos — John murmurou —, pelo que fizeram a minha família.

— Mais mortes nos levariam a mais vinganças e a mais derramamento de sangue, John. — Connor lançou um olhar de reprovação ao rapaz. — Você é jovem, ainda não aprendeu essa lição. — Depois di­rigiu-se a Ellen: — Quantos guardas você encontrou no caminho vindo para cá?

— Apenas um. E o nome dele é DeGuerre.

— E deixou você passar livremente?

— Mais ou menos.

Connor presenteou-a com um sorriso de aprovação.

— Então isso quer dizer que o homem é meio bobo e que não deve ser difícil passar por ele de novo. O problema é o que fazer depois que sairmos desta catacumba nojenta. Com certeza encontrare­mos mais guardas, e talvez alguns não tão facil­mente convencíveis por uma linda cara. Ellen pensou durante um longo tempo.

— E que tal se os guardas todos fossem se ocupar de outra missão? — ela sugeriu.

— Que missão? Agora que já nos pegaram, ces­saram de caçar o resto dos fora-da-lei. Não se inte­ressam mais por aquele grupo de maltrapilhos.

— Não, mas se interessariam pela filha do lorde se ela fosse sequestrada pelos fora-da-lei remanescentes.

Agnes ergueu a cabeça da parede, o suficiente para protestar.

— Não permitirei que arquitete planos perigosos, milady. Não trocaria nossa liberdade por algo peri­goso para milady.

— Não correrei risco algum. Apenas sairei a cavalo, desaparecerei, e quando meu pai receber o recado de que fui sequestrada, mandará todos os soldados a mi­nha procura. Uma vez que vocês estiverem a salvo em algum lugar, voltarei e direi que fui solta e sem ferimentos, e que desejo me esquecer do incidente.

Connor sacudiu a cabeça.

— Não quero que se envolva nisso de novo, milady.

— Não me envolverei. Apenas irei dar um passeio a cavalo, como fiz dúzias de vezes. Trata-se apenas de uma tática diversiva, nada mais.

Connor sorriu ao ouvi-la usar aquela terminologia de batalha, mas disse:

— Eu já lhe disse antes que não aprovava esses seus passeios a cavalo sozinha.

Ellen olhou primeiro para as crianças. O pequeno rosto de Karyn estava abatido e com expressão de medo. Abel tinha nos lábios um sorriso valente. Em seguida Ellen lançou um olhar a Agnes, que se en­costara na parede parecendo um saco vazio.

Com um sorriso resoluto, voltou-se para Connor.

— Chefe dos cavalariços, você não está na posição de ter muita escolha no assunto — disse.

 

C onnor discutiu por uns bons cinco mi­nutos, mas Ellen não cedeu. Enfim, vendo que ela era tão teimosa quanto linda, con­cordou, e começaram a conversar sobre os detalhes da fuga. Ambos acharam que deveria ter lugar logo, antes que Agnes Cooper ficasse fraca demais para fugir.

De fato, a viúva estava cada vez mais pálida e já respirava com dificuldade.

— Escapar deste lugar não resolve o dilema — comentou Connor, bastante frustrado. — Eles irão atrás de nós de novo. Não nos darão paz nunca.

Ellen contou-lhe então sobre o plano de Martin de ir à procura de evidências sobre a libidinagem de sir William, e falou acerca da necessidade do tempo suficiente a fim de que ela pudesse falar com o pai. Quando já prontos para sair, Ellen disse:

— Não importando o que você possa pensar da justiça normanda, Connor, meu pai é um ho­mem justo. Quanto a isso não há a menor dúvida, acredite-me.

— Se for igual à filha, porei meu destino nas mãos dele, e sem medo.

Em seguida, Connor agarrou-a pelos ombros e pu­xou-a para bem perto de si, dando-lhe um rápido mas violento beijo que deixou ambos atordoados.

O gosto do beijo permaneceu na boca de Ellen até ela chegar à estrebaria.

Assim que saiu do subterrâneo com os prisionei­ros, começou a preparar a encenação. Deixou a carta num lugar visível onde Sylvianne a encontraria quando aparecesse no quarto a fim de ajudá-la a se preparar para o jantar. Tudo o que Ellen teria de fazer depois era sair do castelo sem ser vista, para que ninguém imaginasse que se fora de livre e espontânea vontade.

Jocelyn como que a aguardava em sua baia, e relinchou ao reconhecer o perfume da dona. Iriam os sequestradores imaginários deixá-la levar o pró­prio cavalo? Ela se perguntou, de repente. Esperava muito que o pai e Sebastian acreditassem nessa pos­sibilidade, pois não teria outro meio de ir para longe, para um lugar onde não seria encontrada facilmente, sem sua montaria.

Ela começou a colocar a sela em Jocelyn, olhando para todos os lados com receio de que algum cava­lariço estivesse por lá e a observasse. Foi quando enxergou a escada em espiral que conduzia ao apar­tamento de Connor.

Ela devia ter concluído, assim que vira os apo­sentos daquele homem, que não se tratava de um mero treinador de cavalos. Embora sem o luxo do castelo, Connor mobiliara seu apartamento com con­forto, tornando-o bastante similar aos seus antigos cômodos do castelo, quando sua família era ainda a dos lordes de Lyonsbridge.

Ellen lembrava-se de como ficara chocada no dia em que ele lhe dissera que morava na estrebaria. Como podia um ser humano morar numa estrebaria? Ninguém que o visse trabalhando, dia após dia com os cavalos, imaginaria que ele vivesse no andar de cima com relativo luxo.

Ellen segurava a sela erguida no ar. De repente, achou-a pesada demais para seus braços. Ninguém imaginaria..., pensou.

— Naturalmente — disse logo após em voz alta.

Foi nesse instante que mudou seus planos de fuga. Por que deveria cavalgar por ali a esmo, brincando de esconde-esconde pelas matas com as tropas de seu pai, quando tinha um perfeito esconderijo em frente de seus olhos? Todos sabiam que Connor abandonara o antigo lar e, de qualquer maneira, os guardas jamais pensariam em procurá-la ali mesmo, no nariz deles.

Ellen tornou a colocar a sela no gancho ao lado da baia, agradou Jocelyn e correu na direção da escada. Poderia ficar lá em cima por horas, até o dia seguinte, caso fosse necessário. Teria bebidas à vontade, livros para ler, até uma cama se ficasse cansada.

Pensando com prazer em sua engenhosidade, su­biu a escada o mais depressa que pôde.

O apartamento de Connor continuava como sem­pre. Agradável, em ordem, um ambiente de pessoa bem nascida. Agora Ellen entendia por que aquilo era possível.

Finalmente o grupo de prisioneiros fugiu com a maior facilidade do mundo. Até DeGuerre, o guarda que Ellen vira na entrada ao chegar, sumira. Ao anoitecer, Connor conduzira o bando pelos corredo­res do subterrâneo, e todos saíram por uma porta que ele e os irmãos usaram muitas vezes, quando crianças.

Passaram a maior parte da tarde discutindo aonde iriam para poder ficar escondidos dos soldados até que Martin viesse com as evidências, ou até que Ellen pudesse cumprir sua promessa de convencer o pai.

Agnes e Sarah estremeceram quando John suge­riu que voltassem às cavernas. Na verdade, o rapaz não via outra opção.

— Posso levá-los à casa de meus pais em Baintry — Rolf oferecera. — São dois dias de viagem. Po­demos andar durante toda a noite e nos esconder durante o dia.

Sarah olhara para seu escudeiro como se ele hou­vesse oferecido matar um dragão para oferecê-lo a Karyn, E Connor ficara duvidoso. De pronto, não soubera o que responder.

— Não tenho certeza se a sra. Cooper e as crianças aguentarão essa viagem — ele dissera enfim.

— Sou mais forte do que pareço, meu filho — respondera Agnes. E, de fato, em seu olhar havia uma chama de determinação que hão se poderia ignorar.

— Rolf e eu poderíamos carregar as crianças quan­do ficarem cansadas — John acrescentara, pondo imediatamente Abel nos ombros.

Connor garantira a todos que concordava com o plano, mas dissera também que ele não iria, que ficaria em Lyonsbridge.

— Assim verei quando lady Ellen voltar sã e salva e saberei logo que evidências Martin obteve.

Connor andara com os fugitivos os primeiros três quilômetros para se assegurar de que Agnes aguen­taria, depois recomendara que se escondessem bem durante a noite, ensinando-lhes alguns truques. E, aos primeiros raios do sol da manhã seguinte, ru­mara para Lyonsbridge.

Havia apenas uma vela queimando sobre sua mesa de cabeceira. Um dos cobertores tinha sido pendurado na janela, para que a fraca chama da vela não fosse vista do lado de fora, caso alguém entrasse no pátio da estrebaria. E lá estava ela, no meio da cama, encolhida como uma criança ador­mecida. Mas as curvas de seu corpo não eram nada parecidas às de uma criança.

Connor ficou na porta do quarto, observando-a durante muito tempo. Os cabelos escuros de Ellen, agora revoltos, emolduravam-lhe o lindo rosto, um rosto agora tranquilo, sem nada da arrogância que ele vira no dia em que ela entrara cavalgando pela primeira vez em sua estrebaria, e que entrara pela primeira vez em sua vida.

Sentira-se um pouco culpado no instante em que deixara os Cooper na estrada, recusando acompa­nhá-los ao destino. Mas agora, ao observar a suave descida e subida dos seios de Ellen, concluiu que subconscientemente esperara o tempo todo por aque­le encontro com a corajosa moça normanda. Suas vidas seguiriam caminhos diferentes, claro, mas an­tes disso queria estar junto dela mais uma vez.

Foi para perto da cama, bem devagar, porém sem tirar os olhos dela. Já estava terrivelmente excitado. Contudo, além da excitação física, havia uma emoção diferente que o fazia respirar ofegante.

Com cuidado, com carinho talvez, passou o dedo pelo rosto dela. Ellen se mexeu, porém não acordou. Embora seu próprio corpo pedisse mais aproxima­ção, Connor resolveu não se apressar. Apanhou o alaúde que estava ao lado da cama e levou-o para a outra sala. Havia meses que não tocava. Confes­sara a Martin que a invasão dos normandos matara a música em sua alma. Quem sabe aquela mulher normanda a trouxera de volta?

Sentou-se perto da janela. Dedilhou algumas no­tas e lembrou-se dos longos dedos de Ellen tocando o instrumento no dia em que a surpreendera em seu quarto. Aqueles mesmos dedos percorreram seu corpo, timidamente de início, mais ousados depois, durante a noite de amor. A recordação o fez respirar ofegante mais uma vez. Porém ele ainda esperou, e pôs-se a cantarolar uma canção. Era uma balada sobre uma ninfa da floresta que se encontrara com um ser mortal e fizera amor com ele. A união dos dois não poderia prosseguir, mas as fadas da floresta concordaram em dar aos amantes mais uma noite de amor antes de eles se separarem.

Connor aprendera essa balada com um trovador ambulante que afirmava com insistência que ele era o homem da balada.

O alaúde parecera criar vida à medida que a his­tória se desenvolvia, e o atraente trovador deixara todas as mulheres de Lyonsbridge, incluindo a mãe de Connor, desmaiando de emoção por causa do con­to romântico.

Connor sorriu ao se lembrar de tudo aquilo. Foram dias alegres, isso antes dos problemas com os normandos, dias em que seus pais esperavam viver até idade avançada reinando no castelo e nas terras adjacentes, vendo os filhos se casarem e lhes dando netos saudáveis.

Mas não era para ser assim. O destino fora outro. Seus pais e Geoffrey morreram, Martin entregara-se à igreja, e ele, Connor, como filho mais velho, dedicara-se ao povo. Porém, como na canção do tro­vador, lhe fora dada mais uma noite de encanta­mento, de amor.

A música pareceu fazer parte do sonho de Ellen. Ela havia ido para a cama inquieta, com a cabeça cheia da imagem das cavernas, de indivíduos fora-da-lei, e de John Cooper sendo chicoteado. Mas, de repente, seu sonho mudara para uma clareira na floresta, para um lugar cheio de fadas, o mesmo local onde Connor a beijara pela primeira vez. E seu corpo vibrava à lembrança.

As fadas estavam lá, dançando ao som do alaúde. E ela acordou de súbito, constatando que a música não fazia parte de um sonho, não.

Continuou deitada por ainda algum tempo, ou­vindo, embora sabendo que não poderia ser outra a pessoa que tocava além de Connor. Sorriu e es­preguiçou-se com sensualidade. Sabia que Connor a acharia. Subconscientemente também, esperara-o a tarde toda.

A música parou, e ele apareceu à porta, como um gigante surgindo das trevas, iluminado pela única vela. Ellen sentiu um nó na garganta assim que ele surgiu. Fez esforço para pensar sobre o mundo exis­tente fora daquele paraíso que ela encontrara.

— E os Cooper? — perguntou, sentando-se na cama.

— Estão longe, sãos e salvos. Não vou lhe contar onde. — Quando Ellen franziu a testa, Connor acres­centou: — Não porque não confie em milady, mas porque assim pode afirmar a quem quer que seja, e sem mentir, que não sabe nada sobre os fugitivos.

— Você não devia estar com seus amigos?

— Talvez. Mas quis ter certeza de que milady estava bem.

— Sei que os homens de meu pai me procuram por toda parte, mas nunca saí de casa — Ellen sorriu.

— Foi um plano muito bem arquitetado. — Connor olhou ao redor. — Amanhã pode voltar ao castelo e dizer a seu pai que os fora-da-lei a soltaram.

— Sim. — Ela engoliu em seco enquanto Connor continuava observando-a com seus olhos azuis, nos­tálgicos, mas não fez menção de se aproximar. — Amanhã... — ela sussurrou.

Na última vez em que estiveram juntos, só os dois, ele a rejeitara. E viera agora apenas para ver se ela estava bem. E depois? Iria juntar-se aos amigos?

Mas ele sorriu vagarosamente, um sorriso sen­sual, e Ellen sentiu o rosto pegar fogo.

— Amanhã — ele repetiu. — Só amanhã. — Levantou o alaúde que ainda segurava nas mãos e perguntou: — Será que milady gostaria de ouvir um pouco de música para o tempo passar mais depressa?

— Talvez — ela respondeu com a boca seca. Connor sentou-se ao lado dela, na cama, e arran­cou algumas notas do instrumento.

— Prefere baladas sobre aventuras ou canções de amor?

— Faça a escolha por mim, sir Menestrel.

Ele puxou mais algumas cordas, de maneira vi­gorosa, selvagem, vibrante.

— Se a escolha for minha, milady, a musica sem dúvida envolverá sedução. — As palavras dele eram tão melodiosas quanto a música propriamente dita.

Ellen fechou os olhos e acompanhou a melodia balançando a cabeça, tendo a impressão de que cada nota penetrava fundo em sua alma. Uma música de sedução, Connor dissera. Ellen lembrava-se das palavras de Sebastian sobre o efeito do chefe dos cavalariços nas moças da aldeia. Quantas seduzira ele com seus dedos mágicos?

Contudo, no momento, não importava. Aquela seria a única noite de amor entre ela e o saxão. Não pensaria em nada além daquilo, não pensaria no passado e nem no futuro. Haveria apenas aquela noite, apenas as cordas do alaúde, apenas o bruxulear de uma vela... Ela deitou-se e estendeu os braços.

— Venha a mim, Connor Brand — disse.

Os dedos dele escorregaram para uma nota fora de tom, mais uma, mais uma, e pararam. Colocou o instrumento cuidadosamente no chão e sussurrou, com um sorriso.

— Estou às suas ordens, milady.

Ondas de prazer percorrerem o corpo de Ellen só em ouvir o som da voz de Connor. Ele segurou-a pelos ombros, pressionando-a contra os travesseiros, e beijou-a nos lábios. A chama da paixão foi instan­tânea. Não houve tempo para preâmbulos, para ternuras. Ellen abriu a boca e gemeu, impaciente.

Com urgência ambos despiram-se, numa confusão de roupas masculinas e rendas, e deitaram-se pele contra pele, já prontos para o amor. As mãos de Connor, quentes, faziam círculos em torno dos seios dela, não parando de beijar-lhe a boca.

— Estou desesperado por seu amor — ele mur­murou. — Estou pronto desde o instante em que entrei aqui e a vi dormindo em minha cama. Não sei se posso esperar muito mais.

Ellen abriu as pernas. Ela não tinha experiência nenhuma do ato do amor, mas os movimentos lhe vieram naturalmente, e logo corpos jovens e fortes rolavam na cama, em êxtase. Ele penetrou-a, e um orgasmo violento sobreveio de súbito, para os dois juntos.

Em seguida a cabeça de Connor caiu pesadamente sobre os seios ainda túrgidos de Ellen, que passou os dedos pelos suaves cabelos louros dele. Possuída de violenta emoção, Ellen teve vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo, tal sua felicidade. E chorou. E riu.

Connor não se moveu durante muito tempo. Por fim, sussurrou o nome dela.

Quando levantou a cabeça, eram as faces dele que brilhavam com as lágrimas, à luz da vela.

— Eu te amo, Ellen de Wakelin. — A voz de Connor soava trêmula de emoção.

Ellen não conseguiu responder, emocionada também.

— Estou pesando muito sobre seu corpo, querida — ele comentou. E deitou-se ao lado.

Ellen puxou-o mais para perto de si e sacudiu a cabeça. Quando conseguiu falar, disse:

— Gosto de sentir seu peso sobre mim.

Ele voltou então a apoiar a cabeça no peito dela e ficaram assim durante um longo tempo, até Ellen perguntar, com voz cheia de ternura:

— Foi mesmo aquilo que você quis dizer?

— O que foi que eu disse?

— Você falou que me amava. Ele riu muito.

— Ah, sua diabinha. É verdade, sim. Pode agora acrescentar meu nome em sua lista de conquistas, se isso lhe dá prazer. Quando voltar a sua terra, diga aos grandes lordes que se ajoelharem a seus pés para adorá-la, que não são nada melhores do que um humilde treinador de cavalos saxão que você conheceu um dia.

O sarcasmo de Connor foi uma alfinetada, após a emoção do momento anterior.

— Eu não mencionaria humildade como uma de suas qualidades, chefe dos cavalariços — Ellen retrucou.

— Então não diga humilde. — Ele sorriu. — Diga pobre.

Ellen pensou um pouco, antes de responder:

— Penso que pobre não seja também uma boa descrição de seu caráter. Você tem livros, tem mú­sica, e possui um lindo campo para cavalgar mon­tado em seus magníficos animais. E quanto a mim, irei de volta para a cansativa corte do rei Luís, onde terei de conversar com as senhoras da nobreza e bordar tapeçarias o dia todo. — Ela apoiou-se num cotovelo a fim de poder encará-lo, e prosseguiu: — Você acha Sarah mais pobre do que eu, tendo ela uma mãe inteligente que lhe dá conselhos, tendo irmãos e uma irmã que lhe dão amor? E mais ainda, tendo a devoção de um lindo jovem que a está dei­xando louca de felicidade?

— Sarah, a mãe e os irmãos estão fugindo da lei com a barriga vazia, nestes últimos dois dias. Não muitas pessoas os considerariam ricos, ou felizes.

— Eu os considero, sim — Ellen respondeu com determinação.

— Eu te amo ainda mais por isso, querida. Embora me considere definitivamente louco por te amar.

E ela o amava também. Soubera desse amor havia muito, já. Talvez desde o dia em que ele a beijara no jardim das fadas. Mas algo a impedia de confessar.

Não houvera, da parte de Connor, a garantia de uma devoção eterna, não houvera conversa alguma sobre o futuro, ou, pior ainda, nada fora estabelecido além de uma única noite de amor. E mesmo que seu pai cedesse, Connor nunca concordaria com um casamento. Afinal, ela era um dos odiados normandos que lhe roubaram um direito de nascença, e muito mais que isso. Na verdade, apesar das afir­mações de que a amava, era possível que a aceitação de um casamento fosse apenas, para ele, uma chance de satisfazer um tipo de vingança pessoal.

— O que fazem os saxões quando amam uma mu­lher? — Ellen perguntou, mantendo- a voz cuidado­samente neutra.

Connor sentou-se, apoiando o corpo na parede da cabeceira da cama. Em seguida puxou-a para cima, pondo-a em seu colo.

— A mesma coisa que os normandos fazem, acho — ele respondeu, começando por beijar-lhe o pescoço.

— Mais ou menos isto.

Ellen sentiu que Connor estava de novo pronto para fazer amor. O desejo aumentava nela também, por isso liberou-se dos braços dele para se entregar novamente à paixão. Porém, mesmo que tivesse imenso prazer nos beijos de Connor, bem no fundo sentia o começo de uma dor,

Connor Brand era um homem notável. Ele a seduzira com sua música suave, com seu corpo firme e com um ato de amor de grande perito no assunto. Porém ela descobriu que queria mais. Os normandos talvez hou­vessem conquistado Connor e os demais saxônicos, mas foi Connor quem tomara posse de seu coração.

Ele a deixara de madrugada, quando a emoção da noite sumira à luz do amanhecer. Ellen podia quase acreditar que imaginara ter visto lágrimas no rosto dele.

Connor tocara-a uma vez com seus dedos caleja­dos, e a fitara longamente como se quisesse memo­rizar-lhe os traços. Depois se fora, em silêncio, tal qual os fantasmas da floresta de suas canções.

Ellen esperou a manhã toda, andando de um lado para o outro, da sala para a cama que comparti­lharam durante a noite. Ela tentou se interessar por um dos compêndios em latim, mas sua mente não conseguiu se concentrar no assunto.

Ao meio-dia decidiu que seu estratagema já se pro­longara o suficiente. Espiou pelajanela do quarto para ver se o pátio da estrebaria estava vazio. Então desceu a escada e se esgueirou para fora. Ao atingir os portões do castelo, o guarda gritou da torre, e quase imedia­tamente outros gritos se juntaram ao dele. Um grupo de soldados correu ao encontro de Ellen, dando ex­clamações de alegria por seu feliz retorno.

Ellen soube, sentindo-se culpada, que o pai ca­valgara a noite inteira a sua procura. Sebastian fi­cara no castelo a fim de supervisionar tudo. Assim a informara o guarda da torre.

— Mais para não perder uma noite de sono, do que para supervisionar — ela sussurrou. Depois pediu ao guarda: — Diga ao pai que o espero em meu quarto.

E recusou ser acompanhada aos aposentos do pri­mo. Não tinha a mínima vontade de ver Sebastian, e menos ainda de ouvir suas insinuações pegajosas, e em especial quando os ataques dele sobre seus sentimentos para com Connor talvez fossem corretos. Não se importava com a opinião do primo, mas amava o pai e não queria decepcioná-lo.

Mas uma vez em seu quarto, Ellen quase lamen­tou não ter esperado o pai no grande hall do castelo onde seus pensamentos não retornariam mais uma ou duas vezes às horas em que ela e Connor viveram juntos. Na realidade, a vista de seu quarto, de sua cama, eram como sal em suas feridas. Fora lá que Connor a iniciara no conhecimento dos prazeres sen­suais entre um homem e uma mulher.

Ela deitou-se e suspirou. Fora à Inglaterra com a idéia de levar cultura e disciplina de uma terra mais civilizada, mas em vez disso encontrara a força de um povo que ia além das ricas tapeçarias e das danças intricadas da corte. E tomava conhecimento agora do que seria sentir uma dor profunda no co­ração ao ser privada da presença, do som da voz, do toque de um homem.

Pois sabia que jamais poderia fazer parte de uma família como a dos Cooper. Em sua opinião, conti­nuaria sendo sempre a senhora feudal à qual deviam deferência e respeito, mas nunca afeto. Connor tor­nara bem claro que, embora se amassem, o amor deles ficaria sempre insatisfeito. Os deveres e o co­ração de Connor estavam com seu povo, e ela não passaria de uma intrusa, de uma usurpadora desse mesmo povo.

Ellen enterrou o rosto no travesseiro, cobriu a cabeça, e fez esforço para dormir.

 

Pela lei do país, o senhor feudal é obrigado a manter um tribu­nal e procurar evidências ou provas em caso de crime — padre Martin informou o irmão.

Connor estava reclinado na cama dura da cela nua do padre, na Abadia.

— A lei inglesa atual é, na verdade, uma criação normanda — padre Martin continuou. — E a igreja tem papel importante na decisão da justiça. Mas, sem dúvida, o conceito do que é crime e do que não é crime depende em grande parte do depoimento das testemunhas.

— Duvido que lorde Wakelin acredite no depoimen­to de dois jovens saxões, caso testemunhem contra a reputação de seu falecido e lamentado magistrado.

— Entendo — padre Martin concordou. — Mas acontece que não se trata apenas da palavra dos Cooper. Há outras pessoas na aldeia que foram ví­timas das investidas de Booth, ou que testemunha­ram várias delas. É verdade que a conquista nor­manda, que data de 1.066, acabou com as leis saxônicas, exceto no que se refere a alguns costumes. Igreja e Estado se separaram, mas ambos têm au­tonomia nas decisões.

Connor sacudiu os ombros. Sabia que deveria en­corajar o irmão e, na realidade, que deveria tomar parte ativa nas investigações tanto quanto sua con­dição de fora-da-lei o permitisse, mas não estava tão entusiasmado assim com o caso para despender tamanho esforço.

Na verdade, não queria pensar na situação dos Cooper, tampouco na perfídia de Booth, ou na busca incessante de Martin, que por toda lei queria encontrar testemunhas confiáveis. Connor, ao contrá­rio, desejava fechar os olhos e mais uma vez ver o rosto de Ellen como o vira no auge da paixão. Os olhos úmidos e extasiados.

Esse pensamento sacudiu-lhe o corpo mais uma vez. Assustado com sua reação, sentou-se no leito de celibato do irmão, encostando o corpo contra a parede fria da cela esperando que sua excitação não causasse embaraço nem a si e nem a Martin.

— Vale a pena tentar, suponho — Connor res­pondeu finalmente a Martin — embora eles não organizem um tribunal sem um acusado, o que sig­nifica que John teria de ser trazido sob custódia novamente. Acho que tenho mais fé nas chances dele se abandonar o país definitivamente, ou até que possamos ter confiança na justiça.

— John é jovem e muito capaz. E o resto da fa­mília? E você, Con? Está preparado a passar o resto de sua vida em exílio, longe de Lyonsbridge? Longe de todos nós?

Melhor no exílio do que viver aqui tal qual um servo e esperar que Ellen chegue um dia como uma esposa mimada de algum nobre francês, Connor pensou.

— Perdoe minha resposta incoerente a seus esforços, Martin — ele finalmente confessou. — Acho que os dias de viver em esconderijos e em prisões me cansaram. Chega. Sem a menor dúvida, chega!

— O que vejo em você, meu irmão, é um cansaço de alma, não de corpo, e não sei que remédio lhe prescrever além daquele que sugeri e que você re­jeitou, o de aproximar-se mais de Deus.

Connor forçou um sorriso.

— Esse negócio de se aproximar de Deus é seu caminho, não o meu, Martin. Se minha alma está cansada é apenas pela dor de ver o povo de Lyonsbridge continuar sofrendo injustiças depois de acre­ditarmos ter deixado isso para trás. Os Cooper são pessoas honestas, e não merecem tal tratamento.

— Então ao menos levante-se dessa cama e aju­de-me a arrumar tudo, Con.

O desafio na voz de Martin fez Connor lembrar-se do irmão com quem competira em criança, antes de ele receber o hábito e tornar-se irritantemente sereno. Antes de os normandos terem virado o mundo deles de perna para o ar. Antes de a linda mulher normanda ter ocupado sua mente e seu coração, transformando tudo o mais em algo sem importância.

Connor levantou-se, declarando com súbito entusiasmo:

— Tudo bem, irmão, você tem razão como sempre. Está mais do que na hora de arrumarmos as coisas.

— Não tenho outros argumentos, filha — lorde Wakelin disse, com firmeza. — Não quero arriscar outra aventura terrível como a que acabamos de experi­mentar. Você voltará à Normandia amanhã sem falta. Sebastian a acompanhará e eu ficarei aqui para pros­seguir com o caso do assassinato de Booth.

Ellen suplicara, insistira, ameaçara mais uma vez entrar num convento. Mas, considerando-se que a segurança da filha seria arriscada se ela ficasse, lorde Wakelin manteve-se irredutível.

Sebastian assistira a tudo, mantendo nos lábios um sorriso de satisfação. Garantiu ao tio que en­tregaria a querida prima em casa sã e salva, e que voltaria logo para ajudar a pôr nas mãos da justiça os fora-da-lei, que por infelicidade ainda continua­vam livres.

Sylvianne, morosa e calada como sempre, entrara no quarto a fim de ajudá-la a preparar as malas. As únicas palavras da empregada foram de gratidão pela maravilhosa chance de acompanhar a patroa à Normandia.

— Finalmente sairei deste lugar infernal onde até os guarda-roupas cheiram a porcos — ela comentou. Ellen estava com violenta dor de cabeça e pensou em uma dezena de possibilidades que poderia pôr em ação, mas não se decidiu por nenhuma. Talvez fugir mais uma vez, porém o pai pusera guardas à porta de seu quarto. E que tal se fugisse na estrada, a caminho da costa? Jocelyn corria mais do que qual­quer montaria do primo, disso ela não duvidava. Mas, e depois? O pai a procuraria de novo e não apenas a acharia como, na caçada, acharia também a família fugitiva dos Cooper.

Ellen tinha uma pequena esperança de que, no caso de uma fuga, encontraria Connor. Os dois, en­tão, fugiriam para uma terra distante onde não teria importância ele ser um servo e ela uma lady, ele um saxão e ela uma normanda. Porém, assim que a fantasia cedeu lugar à realidade, afastou a idéia de fuga. Connor já tornara bem claro que ele não fugiria do país, que não abandonaria seu povo nas mãos do que considerava injustiças aceitas pela lei normanda.

E então, apesar de refletir muito, Ellen não che­gara a nenhuma decisão até a madrugada do dia seguinte, quando ela e Sebastian partiram, escolta­dos por pesada guarda, de absoluta confiança de lorde Wakelin.

Ellen mal falou com o pai ao se despedir. E o rosto triste do querido pai permaneceu com ela du­rante todo o trajeto da viagem. Foi uma das poucas vezes em que sentiu vergonha de si mesma. Não fora culpa de seu pai, afinal de contas, ela ter mu­dado de idéia após haver chegado à Inglaterra. Não fora culpa dele ter se apaixonado por um saxão e, por uma falta de sorte, esse saxão ter se tornado um fora-da-lei.

— Não faça essa cara tão triste, prima — disse Sebastian, cavalgando ao lado dela. — Logo voltará a frequentar suas festas e a entreter seus namora­dos. Esquecerá tudo sobre este lugar.

Ellen quis ignorá-lo, mas a culpa que sentia por ter tratado mal o pai naquela manhã, a fez dar uma resposta amável ao primo.

— Não tenho nenhum entusiasmo em voltar à vida de ociosidade da Normandia, Sebastian, nem de rever os homens da corte do rei Luís.

— Talvez por ter se acostumado a homens mais rústicos, mais selvagens? Não estou ainda conven­cido de que não esteja com a mente perturbada pelo aspecto atraente do rude saxão que trabalhava em nossas estrebarias.

— Não me interessa se você está convencido ou não, pois não me interessa seu ponto de vista, primo.

— Pelo que vejo, a convivência com os camponeses de Lyonsbridge alterou também suas maneiras. Mal falou com seu pai esta manhã, quando partimos.

— Meu pai sabia que eu estava descontente com a decisão que ele tomara de me mandar para casa. — Ellen sacudiu os ombros.

Sebastian não falou nada por algum tempo. De­pois observou-a com o canto do olho e disse:

— Espero que você, minha prima, não venha a se arrepender pelo sofrimento que infligiu a lorde Wakelin se alguma coisa acontecer com ele.

Ellen endireitou o corpo na sela.

— O que quer dizer com isso, Sebastian?

— Nada — ele respondeu. Mas Ellen pôde ver uma chama de triunfo nos olhos do primo. — Eu apenas quis enfatizar que filhos devem sempre res­peitar os pais.

Sebastian esporeou sua montaria deixando Ellen atrás, sozinha, e com expressão perturbada.

O pai ordenara que uma escolta de muitos homens a acompanhasse até a Normandia, mas ainda con­servara a maioria da guarda com ele. E, em qualquer eventualidade, Ellen sabia que Connor teria a me­lhor intenção e o máximo interesse em resolver os problemas do momento sem derramamento de san­gue. Não, seu pai não estaria em perigo.

Contudo, não pôde evitar de pensar que, se algo acontecesse a ele, seria de grande vantagem para Sebastian. Estando ela na Normandia, o domínio sobre Lyonsbridge ficaria apenas com o primo, e, na verdade, isso lhe daria uma chance de se apo­derar de toda a herança em terra dos Wakelin.

Ellen sempre tivera o primo como um homem fra­co. Jamais o considerara capaz do tipo de traição que às vezes acontecia em famílias nobres com gran­des fortunas em jogo. Mas nos últimos dias apren­dera a ser menos despreocupada com tudo o que referia à vida, e desde a chegada à Inglaterra o primo mostrara um lado de seu caráter o qual ela jamais suspeitara existir.

Sebastian cavalgava agora na frente com dois dos guardas, contando-lhes qualquer coisa muito diver­tida, pois os três riam. De repente um dos guardas olhou para trás, encarando-a com olhar perturbado. Era DeGuerre, o homem que tomara conta dos pri­sioneiros no subterrâneo do castelo.

Ellen teve um tipo de premonição. E um vento que soprou de repente levou ate ela algumas palavras:

— Nós lhe devemos lealdade, milorde. Não deve­mos? — DeGuerre dizia a Sebastian. — E quando isso terá lugar?

Em seguida o vento mudou de direção e ela não escutou nada mais.

Ellen acomodou-se melhor na sela. Aquilo podia não significar nada, pensou. Estava se preocupando à toa. Mas DeGuerre chamara seu primo de milorde. Quanto a isso não havia dúvida.

Por que milorde? Estaria Sebastian armando qualquer conspiração contra seu pai? Ela recordou-se das palavras que o primo lhe dissera antes e ficou terrivelmente alarmada. Talvez não devesse ir de volta à Normandia naquele momento.

Tentou ouvir o resto da conversa mas foi impos­sível devido à direção do vento. Ela então mudou de posição na sela e pôs-se a observar o campo para ver se havia possibilidade de fuga. Montada em Jocelyn, sabia que poderia escapar da escolta se quisesse, mas não saberia para onde ir uma vez livre. Com súbita determinação, porém, teve ab­soluta certeza de a quem recorrer. A Connor, claro.

Esperou chegarem à costa. Os soldados relaxaram a guarda e até Sebastian parecia não mais prestar muita atenção à prima. Ellen achou que deviam es­tar muito perto do local onde Connor a levara na noite da morte de Booth. Mas chegara lá no escuro e não reconhecia nada.

Contudo, o ar salgado lhe dizia que logo veriam o mar e ela escolheu para fugir o momento em que a estrada fazia uma curva. Ficara fora do alcance da vista do grupo.

Jocelyn parecia tão descansada como quando saíra da baia. E, como sempre, obedeceu prontamente às ordens de Ellen que saiu da estrada tomando a di­reção das rochas. A égua não hesitou, subindo a colina depressa como se demónios estivessem atrás dela. Ellen segurou-se bem e deixou que Jocelyn fizesse todo trabalho.

Passaram-se alguns segundos antes que a comi­tiva notasse seu desaparecimento. Mas, a um berro furioso de Sebastian, todos esporearam suas mon­tarias para segui-la. Alguns cavalos fraquejaram no terreno perigoso, mas três homens que montavam pesados animais de guerra acompanharam facil­mente a velocidade de Jocelyn.

Ellen olhou por cima dos ombros e rezou para que quando chegasse ao topo do rochedo avistasse um terreno onde sua égua ligeira pudesse deixar todos bem atrás.

Jocelyn galgou a última etapa sem diminuir a marcha e Ellen suspirou, sentindo grande alívio ao ver uma grande extensão de terra coberta de relva semelhante ao local onde ela e Connor apostaram a corrida, logo que chegara a Lyonsbridge. Isso acon­tecera havia uma eternidade já.

Ellen soltou as rédeas e deixou Jocelyn correr. O campo se estendia a alguns quilômetros, e terminava em densa floresta. Se ela pudesse penetrar pelo meio das árvores, provavelmente enganaria os guardas. Mas, se eles a alcançassem na faixa aberta, não teria onde se esconder, não teria chance de fugir. Jocelyn galopava lindamente mas Ellen podia ou­vir atrás dela o tropel dos três poderosos cavalos. Faltava ainda metade do campo para ela chegar ao refúgio da floresta. O que mesmo Connor lhe dissera naquele dia? Meio caminho feito com facilidade ga­rante um final feliz. Ela acariciou o pescoço da égua e disse: — Calma, amiga! Calma!

Jocelyn diminuiu a marcha quase imperceptívelmente, tomando posição. Continuou assim por al­gum tempo, minutos aflitivos enquanto as patas atrás dela produziam ruído cada vez mais alto. De repente, Ellen sussurrou ao ouvido de Jocelyn: — Agora, amiga. Voe comigo. E Jocelyn irrompeu em corrida violenta, como El­len nunca a vira fazer antes. A égua parecia voar acima do solo, e em segundos alcançaram as árvores. Ellen puxou as rédeas, e entraram na floresta densa. O céu encoberto não fornecia luz suficiente para cla­rear o terreno no meio de árvores frondosas. A dis­tância ela ouviu gritos de seus três perseguidores que pararam na entrada da mata. Discutiam talvez qual seria o próximo passo.

Ellen deixou que sua querida Jocelyn fizesse cir­cunvoluções por entre as árvores, calma e cuidado­samente, como se estivesse numa pista de dança. Estariam os soldados seguindo-a? Não podia mais ouvir os gritos, tampouco o som das patas pela es­cura floresta.

Ela fez Jocelyn parar um segundo, para ver se escutava algum som. O silêncio era absoluto. Talvez os soldados houvessem voltado a fim de relatar a Sebastian que milady escapara com habilidade e as­túcia. Ellen sorriu ao imaginar a expressão de ódio no rosto do primo.

Deixou que Jocelyn encontrasse sozinha o cami­nho. A floresta fechada servira para escondê-la de seus perseguidores, mas temia agora que essa mes­ma floresta a desorientasse. Não sabia mais de que lado ficava o mar. Na verdade, não sabia como sair da floresta. Achou que estava cavalgando em círcu­los, sempre nos mesmos lugares.

Suspirou e disse a Jocelyn:

— O que acha, minha amiga? Você me trouxe até aqui. Tire-me daqui agora.

— Jocelyn com certeza pensa que sua dona é uma tola, e ela é que está certa — uma voz sussurrou praticamente em seu ouvido.

Ellen virou-se na sela e deparou-se com Connor montado em Thunder, bem atrás dela.

— Como... como chegou até aqui? — perguntou. — Não ouvi nada...

— Thunder pode se mover como um guio do mato quando eu ordeno — Connor respondeu com um sorriso. — Mas permita que eu faça as perguntas. O que, em nome de Deus, faz aqui? Toma por acaso alguma poção estranha que a faz se expor constantemente ao perigo?

Sentada na sela, Ellen não tirava os olhos do atraente rosto de Connor, dos lábios, que provoca­ram um frenesi em seu corpo, das fortes mãos, que a conduziam facilmente onde ele desejasse. Ellen acreditara nunca mais vê-lo.

— Milady? — Connor sussurrou, vendo que ela não falava.

— Duas noites atrás você me chamou de Ellen.

— Duas noites atrás milady fora sequestrada pe­las fadas da floresta. Lembra-se? Estávamos inde­fesos e sujeitos à magia delas.

— Sim. Então, foi magia? — ela perguntou, re­tesando o corpo.

— Foi. Se bem que no mundo real as mesmas coisas aconteceriam. Agora conte-me, lady Ellen, o que faz aqui, perdida nesta floresta?

— Talvez tenha vindo à procura dessas mesmas fadas às quais você se referiu há pouco. — Ellen esboçou um sorriso triste. E ele lhe devolveu o sor­riso com um igualmente triste.

— Verdade?

— Não. Eu estava a caminho de casa, na Normandía, por ordens de meu pai. Ele acha a Inglaterra um lugar muito perigoso para sua única filha viver.

— Não o culpo por desejar tornar segura jóia tão preciosa.

Ellen corou, mas disse a si mesma que não era hora de se deixar levar mais uma vez pelo charme fácil de Connor Brand.

— Fugi de Sebastian e de seus homens — ela explicou.

— Com que finalidade? Por quê? — Connor in­dagou, surpreendido.

Ellen respirou fundo. Agora que tudo fora feito, ela não tinha muita certeza se poderia explicar com mais detalhes-sua desconfiança para com Sebastian, explicar até a ela própria. O primo não dissera nada em definitivo. Não poderia acusá-lo só por causa de algumas palavras que ouvira, carregadas pela brisa. E seria mesmo Sebastian o único motivo de sua fuga? Ou fugira por não estar ainda pronta a aban­donar a terra saxônica e, em particular, um especial indivíduo dessa terra, que lhe roubara o coração?

— Não tenho certeza quanto a minha finalidade — ela respondeu, mas sabia que jamais admitiria a Con­nor que o desejo de vê-lo de novo tivesse tido algo a ver com sua decisão. — Tenho receio de que Sebastian esteja planejando qualquer coisa contra meu pai.

— Sabe que coisas são essas?

— Não com clareza, mas depois de me despedir de meu pai esta manhã, ele insinuou sutilmente que poderia ser a última vez que eu o veria.

Connor franziu o sobrolho. Ellen esperava que ele não a considerasse uma mulher histérica. Mas con­cluiu logo que não, pelo modo como lhe perguntou:

— O que acontecerá com Lyonsbridge após a mor­te de seu pai?

— Meu pai pretende deixar seus bens para mim, mas por ser eu mulher, a herança em terras poderá ser discutida e decidida em Tribunal.

— A pedido de seu primo?

— Sim.

— Talvez seja interessante milady voltar e contar a seu pai isso. Para preveni-lo, claro.

— Não ainda — Connor respondeu finalmente.

— Primeiro precisamos ver se ê verdade que Sebastian tem planos contra o pai dela. A fuga de Ellen pode forçá-lo a tomar uma atitude precipitada.

Padre Martin ergueu a sobrancelha ao ouvir Con­nor usar o nome de batismo de lady Ellen, mas irmão Augustine pareceu não notar nada.

Os dois religiosos continuaram conversando sobre os arranjos durante ainda alguns minutos. Final­mente Connor se impacientou.

— Será que vocês pretendem esperar que a tem­pestade caia e nos deixe ensopados para tomarem uma decisão? — ele perguntou, apontando o céu cheio de nuvens negras.

Irmão Augustine sacudiu a cabeça nervosamente, e afastou-se da porta para deixar que Connor en­trasse e conduzisse Ellen ao interior da Abadia. Um dos monges acabava de arrumar um quarto para ela. Ellen agradeceu-lhe com um sorriso que deixou o religioso embaraçado. Ele desapareceu imediata­mente no longo corredor escuro do convento.

—Acha que ficará bem aqui? — Connor perguntou a Ellen, olhando para a cela de paredes nuas.

— Fadas não aparecerão por aqui, tenho certeza — ela disse, com um sorriso triste.

— Tampouco essas paredes ouviram baladas de amor — Connor observou.

Eles ficaram se entreolhando por algum tempo.

— Assim sendo, é o lugar perfeito para mim no momento — Ellen murmurou aereamente.

— Não! — ele retrucou com seriedade. — Milady não pertence a este local. Sua beleza foi feita para o amor, e o terá algum dia, muito em breve.

— Não vai mais me chamar de Ellen? Connor deu um passo à frente para chegar mais perto e inclinou-se junto ao ouvido dela.

— Ellen — sussurrou. — Ellen do meu coração. Lágrimas umedeceram os olhos dela e Connor en­xugou-as com o polegar.

— Não chore, linda Ellen. Meu coração é apenas um troféu para sua coleção. Mas dei-o a milady de livre e espontânea vontade.

Connor beijou-lhe os lábios trêmulos, saboreando o gosto do sal. Em seguida afastou-se e falou, num tom de voz que procurou fazer com que soasse normal:

— Fique escondida aqui, milady. Não arrisque sair por nada neste mundo, a não ser que meu irmão esteja junto.

Ela saudou-o, encarando-o com olhos brilhantes de silenciosa prece.

Connor deu-lhe as costas e saiu depressa.

 

Ellen passou o dia na pequena cela, inquieta, reconsiderando sua decisão de fugir do primo. Talvez devesse tê-lo enfrentado no local, e pedido explicações sobre os planos que ele tinha em mente. E agora, talvez tivesse sido melhor voltar ao castelo para prevenir o pai. Enfiada na­quela cela como um ovo no galinheiro, não poderia fazer nada. Sentia-se impotente e insegura, ambos os sentimentos estranhos a sua natureza ativa.

Padre Martin levou-lhe uma modesta torta de car­ne no jantar. E além dele Ellen não viu ninguém mais durante todo o dia. Enfim, a monótona cadên­cia dos cânticos dos monges deixou suas pálpebras pesadas e ela deitou-se no catre para dormir.

Quando acordou, tudo estava escuro como breu. Por momentos não soube onde estava, mas o rústico cobertor lhe trouxe as lembranças do dia. Continua­va em sua cela, e a vela se apagara.

O cântico dos monges cessara, o silêncio era com­pleto. De súbito, uma sensação de medo apertou-lhe a garganta. Qualquer coisa se mexia na escuridão. Preto no preto, o objeto ou pessoa movia-se no ar em volta dela, como um fantasma. Ellen ficou paralisada grudada na cama, não desejando se movi­mentar até que o espírito saísse do quarto.

De súbito o corpo estranho começou a descer sobre ela. Ellen sentou-se e estendeu os braços para em­purrá-lo. Porém seus braços foram agarrados e presos ao lado do corpo não por um espírito, mas por um homem mortal.

— Querida — disse Connor —, eu não queria as­sustá-la. Pensei que você estivesse dormindo.

Uma onda de alívio apoderou-se dela, seguida por algo mais, uma súbita alegria ao som de voz tão familiar.

— Connor — Ellen gemeu, e atirou-se nos braços dele.

Connor abraçou-a e ambos caíram juntos na cama.

— Você está bem? — ele perguntou num sussurro. — Foi bem tratada?

Ellen mal ouviu a pergunta, tão interessada es­tava em sentir o corpo de Connor junto ao seu.

— Estou bem, meu amor — ela disse enfim, a resposta saindo de seus lábios inconscientemente. E Connor reagiu com um beijo que, apesar da es­curidão, caiu exatamente nos lábios dela.

— Onde esteve você o dia todo? — Ellen perguntou com ansiedade. — Tem notícias do castelo? Tem no­tícias de meu pai?

Connor a fez calar com outro beijo, e depois res­pondeu carinhosamente:

— Seu pai estava decidido a mandar um rela­tório ao rei sobre seu desaparecimento, o que traria para cá legiões de soldados. Resolvemos então que seria melhor irmão Augustine contar-lhe que você se encontrava na Abadia, num retiro voluntário de dez dias, e inviolável. E preveniu que ninguém poderia visitá-la.

— E Sebastian?

Ellen ainda não podia ver o rosto de Connor, mas havia satisfação na voz dele quando respondeu:

— Talvez a fé de lorde Wakelin em Sebastian esteja finalmente sendo testada. Seu primo conven­cera-o de que você fugira para meus braços. Quando irmão Augustine chegou ao castelo para lhe contar sobre sua presença aqui, Sebastian foi apanhado em mentira.

— Quem sabe não tenha sido propriamente uma mentira — Ellen admitiu. — Não tinha muita certeza do que eu ia fazer quando fugi dele, mas acho que meu coração sabia que era para você que eu corria.

— É melhor que guarde para si essa suposição, querida.

— Sim... — Ellen desapontou-se. Na outra noite, no quarto dele, Connor dissera que a amava, mas, agora parecia firmemente contra a aceitação da legitimidade da união entre os dois.

— Não posso enxergá-la neste escuro — disse Con­nor com um sorriso brejeiro. E suas mãos fizeram o trabalho que os olhos não podiam fazer, afagan­do-lhe as faces e descendo até os seios.

— Não estou nada diferente do que estava na última vez em que me viu.

— Do que quando chegou aqui, com o vento re­volvendo-lhe os cabelos e seus lindos olhos brilhando como fogo? Essa é a imagem que guardo em minha mente. Ou melhor ainda, a imagem de quando fi­zemos um amor vagaroso, preguiçoso... Recorda-se, não? — Connor sussurrou.

Eles poderiam não ter um futuro, porém mais uma vez Ellen se convencia de que tiveram momen­tos mágicos, maravilhosos, inebriantes. Lutou para afastar da mente pensamentos tétricos, e venceu. Logo esses pensamentos cederam lugar ao prazer dos dedos e lábios de Connor em seu corpo.

— Ao menos você poderia ser um pouco mais dis­creto em seus namoricos — padre Martin resmungou.

Connor deu uma machadada em outra acha, que­brando-a em mil pedaços, para o uso da cozinha da Abadia.

— Não se trata de namoricos.

— E como chama a isso, então? Aposto que não entra às escondidas no quarto da moça noite após noite, só para ensinar-lhe catecismo.

Connor partiu em dois pedaços outra acha.

— Ellen não é uma prostituta, Martin, e não faltei com o respeito a ela, nunca.

— Por Deus, Con, mas não se trata de uma união abençoada pelos laços do matrimônio, concorda? — padre Martin censurou-o. — E nunca será. Namorico é uma palavra amável comparada à que outras pes­soas usariam.

Connor enxugou a testa molhada de suor.

— Outras pessoas como os bons frades que, tendo se privado dos prazeres terrenos, condenam qual­quer homem que não hesite em desembainhar a es­pada quando a ocasião o requer?

— Acho melhor você não zombar deles, Con. Os frades têm conservado sua presença aqui em segre­do, arriscando a própria liberdade.

— Oh, Martin, perdoe-me. Aprecio muito sua bondade e a deles. E se tenho sido rude, talvez seja meu complexo de culpa que me faz agir assim.

— Tudo foi um erro desde o início, Con. — Padre Martin sacudiu a cabeça.

— Talvez...

— Talvez? Que coisa boa pode resultar disso? Você não tem terras. No momento, é um declarado fora-da-lei. Não tem status e nem fortuna para uma união com pessoa da categoria de Ellen Wakelin.

Connor voltou sua atividade para o pedaço de ma­deira que acabara de cortar e, com violentos golpes, partiu-o em mil gravetos.

— Não precisa me falar isso, irmão — ele disse, enquanto amontoava a lenha.

Padre Martin acalmou-se e seu olhar foi de pena ao encarar Connor.

— Você precisa encontrar uma moça da aldeia, Con, que lhe traga conforto e que possa assegurar sua liderança entre o povo saxônio.

— Não preciso de moça nenhuma, Martin. Quando Ellen for ter com o pai, ele a mandará de volta à Normandia. E será o fim de tudo. As coisas retor­narão ao normal automaticamente.

Padre Martin lançou-lhe um olhar duvidoso.

— Nunca pensei ver meu obstinado irmão mais velho com o coração partido.

Connor apoiou-se no machado e pensou durante longo tempo. Depois fitou Martin, sorriu com tristeza e disse:

— Nem eu.

Agora que a presença dela não era mais um se­gredo no mosteiro, irmão Augustine dera a Ellen permissão para ir à capela e andar peio pátio. Exceto nas horas de silêncio, ela podia conversar com os monges enquanto eles trabalhavam na cozinha ou no jardim atrás do edifício principal da Abadia.

No início os monges evitavam-na, desviavam o olhar, e tomavam outra direção ao ver que ela se aproximava, como se se tratasse de uma nuvem de chuva que iria molhá-los. Mas, após dois dias, os mais ousados encaravam-na e até a cumprimentavam.

Lá pelo terceiro dia, Ellen já reconhecia ao menos uma meia dúzia deles e chamava-os pelo nome. Um era o supervisor da cozinha, que pessoalmente lhe servia as refeições na cela. Irmão Alphonso, baixo e gordo, levava a missão culinária muito a sério. Na verdade, depois de duas vezes em que Ellen elo­giara sua comida, o monge começara a ficar na com­panhia dela enquanto comia, fazendo-lhe perguntas sobre os pratos sofisticados servidos nos círculos so­ciais da Normandia.

Ellen fizera amizade também com os monges que cuidavam do jardim, e mantinha conversas demo­radas com padre Martin sobre teologia, evitando sempre o assunto do relacionamento entre ela e Con­nor. Contudo, já se tornara conhecido por todos que Connor a procurava todas as noites na pequena cela, depois que os religiosos já se haviam recolhido.

Ellen se deu conta, de repente, de que estava sen­do mais feliz agora do que o fora em qualquer outra ocasião de sua vida. Passava seus dias na companhia de monges simples, charmosos, em vez de com o pessoal pretensioso da Normandia, e longe das in­trigas políticas. Mas, ela reconhecia, os dias prazerosos eram nada comparados com as noites. Esquecendo o resto do mundo, um nos braços do outro, ela e Connor se amavam, sendo cada noite mais encantadora do que a anterior.

Ellen recusava pensar no que aconteceria quando os dias de seu suposto retiro acabassem. Tampouco Connor mencionara o assunto. Nas longas horas das noites em que passavam juntos, às vezes tinham sérias discussões sobre as respectivas infâncias e influência dos pais. Outras vezes conversavam acer­ca de assuntos menos complicados como os pratos de que mais gostavam ou sobre a paixão mútua pelos cavalos. Mas não falavam do futuro que os aguar­dava além da cela escura que compartilhavam.

Na manhã do sexto dia na Abadia, Ellen acordou só. Connor, como sempre, saíra antes do amanhecer, mas naquele dia não a beijara antes de ir embora, cemo de costume. Ela franziu a testa enquanto pas­sou a mão pelo travesseiro que deixara a marca da cabeça dele. Haviam usufruído não muitas noites juntos, mas já sentia um vazio dentro de si ao pensar na infinidade de outras noites sem o calor do corpo de Connor a seu lado.

De repente, ela resolveu não esperar irmão Alphonso chegar com o café, e saiu da cela indo pro­curá-lo na cozinha para dispensá-lo do trabalho de ir ao encontro dela.

Era um dia lindo, de temperatura amena, pre­núncio da primavera. Do pátio interno vinha o som dos cânticos dos monges na igreja. Ellen parou e ergueu a cabeça. Misturado à cantoria monótona sobressaía-se um som diferente, de crianças.

Parecia vir da direção da cozinha, talvez de fora. Ellen tomou essa direção depressa.— Lady! — Era uma voz de criança. E num se­gundo ela viu-se agarrada por braços infantis. Abel e Karyn.

Ellen ajoelhou-se e deixou que a segurassem pelo pescoço.

— Ah, queridos! — exclamou. — Tive tanta sau­dade de vocês.

— Eu tive saudade de milady — Abel sussurrou-lhe ao ouvido. — E Karyn também.

A menina sacudiu a cabeça, confirmando. Ellen notou que os cabelos louros dela, que adquiriram uma cor embaçada na caverna, estavam outra vez limpos, brilhantes, sedosos.

— E a senhora vai bem? — Ellen perguntou a Agnes, que vinha atrás dos filhos com um sorriso como se pedisse desculpas pela exuberância deles.

— Vou bem, milady, obrigada — Agnes respondeu. — Estamos sendo bem tratados pela família de Rolf, em Baintry.

— Mas o que fazem aqui? — Ellen indagou. — Não estão em perigo, estão? Por onde anda John?

Agnes sorriu e respondeu:

— Master Brand diz que tudo vai bem. Temos confiança nos juizes do Tribunal, e principalmente em Deus.

Sarah estava em pé à porta da cozinha, com uma vasilha na mão. Ellen fitou-a, e ela explicou:

— John entregou-se a lorde seu pai, milady, con­fiando na justiça do rei.

— Foi preso de novo? Agnes tomou a palavra:

— Master Connor e padre Martin têm provas a favor de John. Eles nos pediram que voltássemos a fim de que Sarah pudesse estar disponível para re­latar sua história, no dia do julgamento.

Connor não lhe dissera nada sobre isso, e Ellen sentiu-se magoada pela exclusão. Ele podia dar-lhe amor na escuridão da noite, mas durante o dia cui­dava de suas próprias obrigações como senhor ab­soluto daquele povo, e não confiava em ninguém mais. Nem nela.

Ellen tirou o braço de Abel de seu pescoço, para poder respirar. Depois perguntou:

— Haverá um tribunal? — Ela tentava esconder seu ressentimento pela falta de informação.

Sarah colocou numa mesa a vasilha que carrega­va, e fez Abel afastar-se de Ellen.

— Sim, milady — respondeu —, haverá um jul­gamento na praça do mercado, daqui a três dias. Master Connor pensa que são boas as chances de o caso ser considerado de legítima defesa. Então, John será livre.

Os olhos de Sarah mostravam preocupação, e quando Ellen olhou dela para a mãe, notou que a expressão de Agnes era idêntica à da filha.

Karyn observou Abel quando ele enfiou o dedo na vasilha que Sarah trouxera, e saiu com ele co­berto de pudim. A menina beijou Ellen antes de sair correndo para fazer o mesmo que o irmão fizera.

Ambas as crianças riam felizes lambendo o dedo, mas Ellen olhava para mãe e filha, bastante preo­cupada. Nenhuma das duas disse: Se eles conside­rarem o caso de legítima defesa, John ficará livre. Mas, e se o considerarem culpado?

— O que acontecerá se o julgarem culpado? —

Ellen perguntou a Connor naquela mesma noite. Apesar da luz da única vela, podia-se ver que os olhos dele tinham expressão de cansaço.

— Então estaremos no limiar de novo derrama­mento de sangue, porque os moradores da aldeia não deixarão facilmente que se enforque um dos seus, em especial um rapaz tão jovem como John. — A voz de Connor soou preocupada, e ele mostrava-se ainda mais distante do que nas noites anteriores.

Ellen não lhe perguntou por que não a informara sobre os planos relativos aos Cooper, mas esperou que ele lhe explicasse algo espontaneamente. Em vez disso, Connor pareceu relutante em falar.

— Eu apenas gostaria de saber o que posso fazer para ajudar no caso — ela disse, tentando quebrar a súbita reserva.

— Pode dizer a seu pai que mande os juizes em­bora para a terra deles. Mas suspeito que isso não seja possível. — O tom de voz dele era amável, porém com aquele toque do antigo azedume que ela espe­rara ter acabado entre eles dois para sempre.

— Eu gostaria de ajudar os Cooper, se pudesse

— Ellen repetiu. — Se você acha que seria interes­sante eu ir até meu pai, irei esta noite mesmo para suplicar pelo caso de John.

— Sei de melhor uso para seus lábios no momento — ele disse, e inclinou-se a fim de beijá-la, afastando qualquer dúvida quanto ao uso que ele tinha em mente.

Mas Ellen empurrou-o, insistindo em continuar com o assunto.

— Eu não poderia aguentar que alguma coisa acontecesse com John, Connor. Só de olhar para Sarah e Agnes hoje, eu...

Connor desistiu do esforço em conseguir beijá-la e retesou o corpo.

— Não há nada que você possa fazer, exceto cau­sar mais complicações, Ellen — Connor falou com determinação.

Magoada, ela protestou:

— Da mesma forma que compliquei sua vida, lorde Saxão?

Connor refletiu sobre a ternura que usufruíram nas últimas noites, e explicou-se:

— Complicamos nossas vidas, um complicou a vida do outro, querida, como você muito bem sabe. Lembra-se de que dissemos desde o início, que nosso amor era uma forma de loucura? Não se lembra? — Foi uma loucura e agora chegamos ao fim dessa loucura? E isso? — Ellen sentiu um desespero pro­fundo, mas seu orgulho não permitia que demons­trasse como esse rompimento a afetava. Connor respirou fundo.

— Nós dois sabíamos que o fim estava próximo, não é mesmo, querida? Se você quiser que seja agora, farei sua vontade.

Como puderam ter chegado àquele ponto?, Ellen se perguntava, sofrendo súbita angústia. Devia ter ficado quieta deixando que Connor a beijasse, que fizesse amor com ela. Mas, de contra partida, se ele não desejava dividir sua vida além de na cama, por que continuar juntos? Talvez Connor tivesse razão.

Se o coração dela fosse ser despedaçado, que o fosse depressa e com determinação.

Connor esperou por uma resposta, E ela deu-a, num sussurrou:

— Então que seja agora.

— Quer que eu saia? — Não houve nenhuma sua­vidade na voz dele ao perguntar.

— Quero — Ellen respondeu.

Sem um segundo de hesitação, Connor saudou-a e saiu do quarto. Ellen esperou que o eco dos passos dele sumisse no corredor, para derramar a primeira lágrima.

Connor tinha grande número de informantes nas fileiras dos guardas do castelo, a maioria deles sa­xões que haviam sido recrutados antes de Lyonsbridge passar para as mãos de lorde Wakelin, Al­guns possuíam famílias que ainda moravam na al­deia. Quando foram falar com Connor, durante os piores dias do governo de sir William, dizendo que queriam desistir de seus postos, Connor os conven­cera a ficar. Sabia que ajudaria à causa dos saxões ter amigos do outro lado, mesmo que os homens se vissem às vezes forçados a agir contra a própria vontade.

Connor podia assim entrar e sair do castelo com relativa facilidade, e continuava com esse procedi­mento apesar de seu status de fora-da-lei. Ele era familiar a todas as modalidades do complexo castelo, e sabia que portões usar, dependendo da hora.

Nos dias tensos em que Connor e Martin prepa­raram a defesa de John Cooper, ele passava sosse­gadamente do castelo para a Abadia, depois fazia uma visita secreta à aldeia ou ia até a costa com o fim de visitar os fora-da-lei que ainda habitavam nas cavernas. Isso tudo sem problemas.

Foi apenas durante as longas noites com Ellen, enquanto ele e a linda normanda perdiam-se nos braços um do outro em paixão sem limites, que ele conseguiu se esquecer da nova crise que seu povo enfrentava.

Agora, a fase de paixão terminava. Connor sou­bera o tempo todo que seus dias de amor estavam contados. Contadas estavam as poucas e preciosas horas em que suas vidas divergentes se cruzavam. Não poderia haver nada além daquilo. Ele tinha suas responsabilidades em Lyonsbridge, e o destino de Ellen residia em outro lugar, na Europa Conti­nental, com um nobre rico, quiçá um príncipe.

Contudo, ele não fora preparado para fim tão abrupto, tampouco para a dor que sentia no peito. E essa dor o acompanhara o dia todo começando pela boca do estômago e subindo até o rosto.

Escondido agora numa construção raramente usa­da, que um dia servira de arsenal, Connor esperava por um soldado chamado Werrold, primo do escu­deiro namorado de Sarah, Rolf. Pedaços de armas enferrujados estavam espalhados por toda parte em volta dele. Deviam ser desenferrujados, derretidos e usados para outras finalidades, ele pensou, de re­pente envergonhado ao ver como o castelo fora ne­gligenciado nos anos que se seguiram à morte dos pais. Ellen tivera razão sobre isso, e sua campanha em limpar tudo e remodelar o local fora louvável. Talvez uma vez terminado o caso da morte de Booth, ela concordasse em ficar lá para terminar com sua tarefa, embora achasse que seria doloroso para ele tê-la tão perto de si, porém não sua, jamais sua de novo.

Connor pegou um pedaço de metal e torceu-o, ana­lisando a ponta da arma. Como deviam ser bárbaros aqueles homens para usar tais coisas uns contra os outros, ele refietiu. Mas logo surpreendeu-se com seus pensamentos. Ele sempre achara que seu desejo de paz tinha como fundamento a promessa que fizera à mãe, mas de repente se deu conta de que isso provinha do íntimo de seu ser.

Não se tratava apenas de um juramento feito em leito de morte. A guerra não trazia benefícios a nin­guém. Ele desejava ardentemente que normandos e saxões vivessem juntos, em paz, naquela terra, para vê-la crescer e se transformar num lugar onde os jovens pudessem viver um tempo suficientemente longo para que pudessem acalentar seus netos nos joelhos.

A porta rangeu quando Werrold entrou com cuidado.

— Milorde? — ele chamou num sussurro. Connor levantou-se, esfregou as mãos a fim de limpar as aparas de ferro.

— Não milorde para você, rapaz. Chame-me de Connor, se quiser.

O jovem soldado entrou. Parecia nervoso, como se não visse a hora de transmitir a informação que trouxera, e sair.

— Master Brand, então — ele disse, recusando ser menos respeitoso do que aquilo.

— Como vão as coisas no castelo? — Connor per­guntou. — Sebastian Phippen continua ameaçando derrubar a Abadia para tirar Ellen de lá?

— Milorde Wakelin não está muito preocupado com isso, mas Sebastian berra o tempo todo — o soldado explicou. — Na verdade, às vezes penso que o homem não regula bem da cabeça. Outro dia, por exemplo, espancou o coitado de um guarda do castelo porque o homem não se apressou em segurar-lhe as rédeas do cavalo. Afinal, não era esse Um trabalho do guarda.

— Sempre tive cá minhas dúvidas acerca da saúde mental de Sebastian. Admira-me Wakelin ignorar os defeitos do sobrinho.

— Algumas pessoas dizem que isso é porque ele não tem filho. Arranja sempre desculpas para o sobrinho, pois não possui outro herdeiro de quem depender.

— Ele tem a mais valiosa das herdeiras do mundo

— Connor protestou.

— Sim... — Werrold concordou, mas sem parecer muito convencido.

Connor não tinha intenção de gastar mais tempo enaltecendo as virtudes de Ellen. Por isso perguntou:

— Como vai o rapaz?

Os dois sabiam que ele se referia ao atual prisio­neiro mais guardado do castelo, John Cooper.

— Bem, master Brand. Está muito bem alimen­tado, mas nervoso, pensando no julgamento.

— Claro, como todos nós. O que falam sobre o assunto os habitantes do castelo?

— Para ser franco, sir, todos falam mais sobre a feira que acompanha o julgamento do que sobre o destino do pobre John. — O rosto do soldado ani­mou-se um pouco. — Ouviu falar que haverá uma corrida de obstáculos?

— Ouvi — Connor suspirou.

No tempo em que seus pais governavam Lyonsbridge, ele e os irmãos sempre tomavam parte nessa tradicional corrida de obstáculos. Fora um evento anual de sua juventude, juntamente com a feira. E era verdade que, na mesma época, organizavam-se tribunais para o julgamento dos ladrões e malfeito­res locais. Os castigos eram atrozes, mas nunca obs­cureciam as festividades.

Nos últimos anos não houvera corrida de obstá­culos e Connor se surpreendera ao ouvir dizer que lorde Wakelin revivia o costume em meio a toda a agitação do caso John Cooper.

— Disseram que foi Sebastian quem planejou o evento — comentou Werrold. — Estranho, pois ele é péssimo cavaleiro.

Connor, também, achava aquilo estranho.

— Ele pretende correr? — Connor perguntou. Nos anos passados, era sabido que apenas rapazes muito jovens tomavam parte, pois somente esses não tinham medo de quebrar o pescoço na corrida desenfreada.

— Pretende. Não unicamente ele — Werrold acrescentou —, mas lorde Wakelin também. Sir Se­bastian insiste que isso mostraria como normandos e saxônios poderiam competir em paz.

Essa informação deixou Connor atônito. Desde quando Sebastian Phippen se interessara em incen­tivar o relacionamento entre normandos e saxônios?

Como ele não fizesse comentários, Werrold acrescentou:

— Eu pensei em entrar nessa corrida também. O prêmio consiste em cinco soberanos de ouro.

— Linda soma — Connor observou. — Lorde Wa­kelin está despendendo uma boa quantia.

— Não é ele. Ouvi dizer que foi sir Sebastian quem ofereceu o dinheiro de seu próprio bolso.

Depois de mais algumas perguntas, Connor dispensou o rapaz e saiu do castelo. Ficou andando pelo campo, tomando cuidado para se manter longe da estrada. As notícias sobre a atitude de Sebastian com referência à corrida ficaram em sua cabeça até a volta à Abadia. Werrold tinha razão, Sebastian não era bom cavaleiro, nem a pessoa adequada para estabelecer a paz entre normandos e saxônios. Algo estava errado. Pareceu de súbito a Connor que o julgamento de John Cooper não seria sua única preo­cupação na feira que teria lugar no dia seguinte.

 

Durante a vida dos pais de Connor a corrida de obstáculos era uma competição que se empreendia apenas em função da honra e da glória. O único prêmio consistia num leão de bronze, já bem estragado, que passava pelas mãos de campeão em campeão. Esse trofeu se per­dera nos dias de guerra.

Agora, erguidas as fronteiras, a competição pare­cia adquirir maior valor. Durante dois dias, cava­leiros e outros homens dos condados vizinhos vi­nham chegando, juntando-se aos camponeses das aldeias que vieram para a feira anual. Os campos em volta do castelo estavam agora cobertos de bar­racas coloridas e de toldos que balouçavam ao sabor das brisas de março, como lençóis sacudindo num varal gigantesco de lavanderia.

Os julgamentos teriam início de madrugada, para que pudessem terminar antes do horário do entre­tenimento, que tradicionalmente incluía trovadores e acrobatas e que, neste ano, culminaria com a cor­rida de obstáculos.

Connor passara uma noite inquieta no chão da cela de Martin, que fez esforço para não lhe perguntar por que ele não fora passar a noite no quarto de Ellen como geralmente fazia. Para distrair o ir­mão, Martin lhe contara como os gêmeos Cooper haviam transformado uma austera Abadia em playground animado.

Connor forçou um sorriso com o fim exclusivo de agradar o irmão, mas seus pensamentos estavam em Ellen, sozinha em sua cela a apenas alguns me­tros de distância da dele.

Não desejando perder um minuto que fosse do evento, todos na Abadia se levantaram de madru­gada juntando-se ao verdadeiro rio de pessoas que vinham de Lyonsbridge e das aldeias vizinhas.

Ellen insistira em ir a pé com os Cooper, embora irmão Augustine lhe tivesse oferecido um dos cavalos do convento. Ela caminhava ao longo da estrada pela madrugada ainda escura, segurando um gêmeo em cada mão, e cuidadosamente evitando o olhar penetrante de Connor.

A única troca de palavras que tivera com ele fora no instante em que saíram da Abadia naquela mes­ma manhã.

— Eles não prenderão você caso apareça abertamen­te no castelo? — perguntara, tendo sido forçada, por sua preocupação, a quebrar o silêncio entre os dois.

— Meu suposto crime foi ter ajudado John. Se ele conseguir ser inocentado hoje, meu crime deixará de existir.

Como as três mulheres, Connor recusara comen­tar sobre o que aconteceria se John não fosse con­siderado inocente.

As crianças escaparam das mãos de Ellen e pulavam alegremente pela estrada, sem dar importân­cia ao que poderia acontecer com a própria família. Na realidade, não sabiam e não entendiam nada.

Rolf caminhava ao lado de Sarah. O escudeiro arriscava expor-se daquele jeito, mas insistira estar junto da mulher que amava, aceitando o que desse e viesse.

Arquibancadas haviam sido construídas ao norte do castelo, onde pela manhã teriam lugar os julga­mentos. A tarde as mesmas arquibancadas seriam ocupadas pelos espectadores das competições.

O espaço em frente à estrutura de madeira já estava todo ocupado quando os Cooper, Rolf, Ellen, Connor e padre Martin chegaram. Ellen olhou para a multidão, desanimada.

— Como poderemos chegar até a frente? — ela perguntou. — Sarah talvez precise contar sua pró­pria versão da história.

— Há muito tempo — Connor insistiu. — Não há razão de irmos para a frente antes que o julga­mento de John comece, e até chamarem as teste­munhas. Talvez seja melhor milady juntar-se ao pai, para não ter de ficar no meio da multidão — Connor sugeriu. — Eu abrirei espaço para milady passar.

Ellen fitou-o. Quis ver se havia ironia no olhar de Connor. Mas ele estava impassível. Impenetrá­vel, mesmo.

— Prefiro ficar com os Cooper — ela respondeu com muita firmeza. — Ficarei com eles durante o julgamento, e faço questão que meu pai me veja aqui.

Connor lançou-lhe um olhar de aprovação.

— Boa menina — disse, e prosseguiu sua conversa com padre Martin e com alguns habitantes da aldeia.

Manhã alta, o sol estava forte e muitos dos es­pectadores já haviam se recolhido nas barracas. Po­rém Ellen e os Cooper continuavam esperando pa­cientemente ao ar livre, sendo que os gêmeos exi­giam a atenção dela o tempo todo,

Karyn não era mais a menina tímida de antes. Na realidade, parecia mais apegada a Ellen do que à própria irmã e mãe, um fato que não preocupava nenhuma das duas. Sarah estava ocupada demais com o namorado Rolf, e Agnes confessara a Ellen que se sentia muito feliz em ver a pequena filha interessada nela, mulher tão bondosa.

— Houve uma época em que pensei nunca mais a ver sorrir, cara milady — disse Agnes, olhando para a menina que brincava com Abel e com outras crianças da aldeia. — Agora, se pudéssemos persuadi-la a falar de novo, minha felicidade seria completa.

— Existiu alguma razão que talvez a tivesse obri­gado a parar de falar? — Ellen perguntou. Ela fizera a mesma pergunta várias vezes antes, mas Agnes sempre relutara em responder.

— Foi num dia horrível — Agnes disse agora, afinal, sacudindo a cabeça e evitando o olhar de Ellen. — Havia maldade no ar. E desde esse dia minha filha não tornou a falar.

— Quando foi que isso aconteceu? — Ellen per­sistia em saber.

— Quase há um ano, milady. Mas é melhor não falarmos sobre o assunto.

Se algo sinistro acontecera no dia em que Karyn parara de falar, havia mais ou menos um ano, Ellen queria saber o que fora esse algo sinistro. Ela não era autoridade em doenças da mente, tampouco em problemas de fala, mas achava que descobrir o se­gredo, que os Cooper pareciam esconder, poderia ser a única chance de a menina poder recuperar a fala.

— Acho, sra. Cooper, que a senhora devia falar sobre o assunto, para o bem de Karyn — Ellen observou.

Mas, antes que se pudesse continuar a discutir sobre o assunto, Connor apareceu ao lado delas, o rosto tenso.

— Está na hora — ele disse. — Estão trazendo John. Ellen sentiu o coração partido ao ver os braços finos de John presos por algemas. Ele tinha o rosto pálido e seus olhos, em geral brilhantes, estavam opacos.

Karyn e Abel pararam de rir ao ver o irmão. Karyn agarrou-se a Ellen que a carregou sussurrando pa­lavras de conforto no ouvido da menina.

A multidão abriu passagem e grande número de pessoas abraçou as duas mulheres Cooper. A atenção de Ellen foi logo desviada ao ver o pai ao lado de Sebastian, na arquibancada. Ele levantou-se e se encaminhou na direção dela quando a viu.

Abraçou-a, mas surpreendeu-se ao ver Karyn nos braços da filha. Ellen apresentou-a.

— Bom dia, papai. Esta é minha amiguinha Ka­ryn. E o irmão dela que está sendo injustamente acusado, e vai ser julgado hoje.

Lorde Wakelin sorriu para a menina e beijou a filha na testa.

— Ouviremos o que o rapaz terá a dizer — ob­servou lorde Wakelin. — E justiça será feita, minha filha. Quer se sentar comigo?

— Não. Ficarei aqui com meus amigos — ela res­pondeu sem pestanejar.

Sem mais comentários, lorde Wakelin subiu novamente na arquibancada, deixando-a com Agnes. Ellen procurou por Connor, mas ele sumira.

Sebastian, de onde estava, encarava a prima com olhar de desafio.

O capitão da guarda levou John para a frente da arquibancada e apresentou-o:

— Eis o réu John Cooper, acusado do assassinato de William Booth, fiel súdito de milorde.

Assim que o capitão pronunciou o nome de Booth, Karyn agarrou-se ao pescoço de Ellen. Foi difícil a milady soltar-lhe os braços. Lágrimas caíam pelo rosto da menina, e o pequeno corpo tremia.

— Não fique assustada — Ellen consolou-a. — O homem fala grosso só porque é capitão. Ele é bom, Karyn.

Karyn sacudiu a cabeça, mas o súbito pânico pa­receu ser mais do que um medo causado pela voz do capitão. Ellen não teve tempo, contudo, de ana­lisar a situação, pois as acusações começaram a ser lidas pelo secretário. Lorde Wakelin inclinava o cor­po um pouco para frente, apoiando-se num cotovelo, escutando com muita atenção.

Ellen tentava acalmar a menina. Ela aconselhara que os gêmeos ficassem em casa, mas por qualquer razão Agnes insistira em levá-los.

Como castelão de Lyonsbridge, Sebastian foi quem fez as acusações contra John. O suor escorria-lhe pelas faces, umedecendo a pesada túnica de lã que vestia, pois o sol era intenso. Ele gesticulava acu­sando o rapaz, com dramaticidade teatral. — Em resumo, milorde — Sebastian terminava, apontando para John —, Vossa Senhoria tem a pa­lavra de dois jovens saxões que mentiram para encobrir o crime hediondo praticado contra nobre normando, leal servidor de seu rei.

Padre Martin pediu permissão para fazer a defesa do réu. Suas maneiras eram diametralmente opostas às de Sebastian. A multidão ficara cansada da aren­ga de Sebastian, mas quando o padre foi à frente, todos se calaram para ouvi-lo.

— Milorde — padre Martin começou, os olhos azuis fixos na face de lorde Wakelin — Vossa Se­nhoria tem uma oportunidade única hoje. Depen­dendo da decisão de Vossa Senhoria aqui esta ma­nhã, milorde terá chance de mostrar ao bom povo deste condado, e definitivamente, que a justiça normanda não foi feita só para os normandos, mas para o bem de todos, normandos e saxões igualmente.

Ellen notou que o pai endireitara o corpo, pare­cendo interessado nas palavras do padre, enquanto Sebastian franzia a testa.

— Prossiga com sua evidência, padre Martin — disse lorde Wakelin —, e pode ter certeza de que justiça será feita, conforme deseja nosso chefe supremo, o rei Henry.

Padre Martin relatou então brevemente a história do que acontecera na noite da morte de Booth. Ele chamou as quatro moças da aldeia que trouxera consigo, nenhuma delas mais velha do que Sarah. Cada uma contou, com voz trêmula, que fora importunada por sir William Booth. Na opinião de Ellen, o relatório das moças foi bastante convincente, e ela quase lamentou o fato de o homem estar morto. Adoraria vê-lo algemado como John estava agora.

Depois que a quarta moça falou, Sebastian pulou do banco que ocupava e disse:

— Protesto, milorde. Sir William Bootti era um ho­mem cuja honra jamais fora posta em dúvida até esses saxões chegarem aqui hoje numa tentativa de manchar essa mesma honra. Obviamente, estão em conspiração com o fim de proteger um de seus compatriotas.

Para horror de Ellen, seu pai pareceu ter dado credibilidade às palavras do primo. Ela então atra­vessou a multidão e foi até a frente da arquibancada.

— Pai, eu também quero depor — disse. Lorde Wakelin fitou-a, surpreendido.

— O que sabe você disso, minha fílha? — perguntou, Ellen fez menção de colocar Karyn no chão. Mas a menina agarrou-se a seu pescoço, ainda tremendo. Então, ainda com a menina no colo, Ellen aproxi­mou-se da plataforma.

— Eu passeava a cavalo com master Brand nessa noite — ela disse. — Estava com ele quando John apareceu contando o que acontecera. E vi logo depois como Sarah tremia, nervosa. Não foi uma história inventada, pai, garanto.

— A cabeça de minha prima estava influenciada demais por essa gente, tio — Sebastian declarou, indo para bem perto de lorde Wakelin a fim de que suas palavras não fossem ouvidas pela multidão. — Ela falará o que Connor lhe disser para falar. Minha prima não sabe nada do que possa ser considerado como sólida evidência no caso.

Lorde Wakelin dirigiu-se à filha.

— Você viu sir William muitas vezes em sua vida, filha? — perguntou gentilmente, com muita calma.

— Sim, mas...

— E alguma vez viu o homem fazendo avanços à menina Cooper ou a alguma outra moça?

— Não — ela respondeu após certa hesitação. De­pois ergueu a cabeça, e falou bem alto: — Acredito em cada palavra que essas moças disseram. E espero que, a estas horas, sir William esteja queimando no fogo do inferno.

De repente, para surpresa de todos, Karyn balbuciou:

— William é um homem mau.

Ellen ficou tão assustada que quase derrubou a menina no chão.

— Ela faloul — exclamou.

Agnes foi para perto da filha, e tirou-a dos braços de Ellen. Em seguida disse com dificuldade, a voz trêmula:

— Sir William a molestou, da mesma maneira como fez com Sarah. Mas não quisemos que ninguém soubesse.

— Booth molestou essa criança inocente? — Ellen sussurrou, agora sentindo-se mal.

— Nós o apanhamos em flagrante, mas ele jurou que se vingaria de todos se falássemos sobre o caso. Por isso dissemos a nossa pobre menina que não poderia falar nada do que se passara. E, desse dia em diante, ela se recusou falar qualquer coisa.

Ellen olhou para o pai, que parecia confuso. Se­bastian ergueu os braços, dizendo:

— Chega de teatro! Eles organizaram muito bem esta conspiração para livrar um dos seus.

— William é um homem mau — Karyn não parava de falar.

— Ele fez algo de mau para você, querida? — Ellen lhe perguntou.

— Fez — a menina respondeu, as lágrimas cain­do-lhe pelas faces.

— Acha, meu pai, que esta criança inocente tam­bém faz parte da conspiração? — Ellen perguntou.

— Quanto tempo mais vai ouvir as mentiras de Sebastian?

Um dos soldados normandos que guardavam John deu uns passos à frente e declarou:

— Peço-lhe licença, milorde, mas não posso me calar. É verdade o que as moças estão dizendo, Sir William perseguia moças bem jovens, constantemente. E quanto mais jovens, melhor. Isso era bem co­nhecido entre nós aqui.

Ellen lançou um olhar de agradecimento ao rapaz. — O que diz a isso, Sebastian? — ela perguntou, dirigindo-se agora ao primo. — Será que precisamos interrogar cada soldado das tropas de William para testemunhar a perfídia do homem, para que você acredite neste jovem que apenas quis defender a honra da irmã, como qualquer bom normando o faria? Lorde Wakelin levantou-se e declarou: — Acho que o que ouvi foi suficiente. A história do rapaz me pareceu verdadeira e declaro que ele de fato agiu em legítima defesa. Sebastian começou a protestar:

— Tio, Vossa Senhoria não pode...

Mas lorde Wakelin cortou-lhe as palavras.

— Eu faço minhas regras, sobrinho. Agora sugiro que chame seus homens para soltar o rapaz e que vão todos se divertir com os jogos.

Lorde Wakelin trocou algumas palavras com o secretário a seu lado e começou a se retirar, andando como um velho. Ellen se compadeceu dele, mas mes­mo assim resolveu apresentar-lhe outro problema.

— Pai, mais uma coisa. Connor Brand, o nosso chefe dos cavalariços, foi considerado fora-da-lei ape­nas por ter ajudado John Cooper naquela noite. Ago­ra que John foi considerado inocente, acredito que master Brand deva ser liberado dessa designação. Sebastian tomou a palavra, aproveitando para in­criminar Connor ainda mais:

— E como comuniquei a milorde antes, a prima está intoxicada pelo homem.

Lorde Wakelin olhou para o lugar onde a filha celebrava a vitória de seus novos amigos saxões. Com expressão perturbada, ele disse após um longo momento:

— E considerado ofensa capital ajudar um fugitivo da justiça real. Os resultados do julgamento não alteram em nada esse particular.

E antes que Ellen continuasse a argumentar, ele retirou-se.

A família Cooper foi o centro das atenções o resto da manhã, enquanto todos comemoravam a liber­dade de John. Ele e a mãe agradeceram efusiva­mente ao soldado normando que fez a defesa. Vários outros guardas do castelo juntaram-se, indo cum­primentar os Cooper. E, quando convidados a tomar parte nas festas dos saxões, aceitaram com prazer.

Ellen ficou muito contente ao observar a união dos dois grupos. Toda aquela desgraça poderia ser consi­derada uma bênção se servisse como um começo para que normandos e saxônios vivessem em harmonia.

Apenas esperava que tanta emoção não fosse de­mais para a pequena Karyn. A menina não saíra de perto da mãe durante todo o julgamento e, quando Ellen lhe perguntou se estava pronta a ver os cavalos correndo, Karyn lhe deu a resposta com um sorriso nos lábios:

— Sim. Milady vai montar em Jocelyn? Agnes não cabia em si de contente ao ouvir filha falando de novo.

— Não, querida — Ellen respondeu. — Essa é uma corrida de obstáculos só para homens, embora eu ache que poderia bater muitos deles, se me dei­xassem tomar parte.

— Eu não tenho a menor dúvida de que bateria — alguém murmurou atrás dela.

Ellen não vira Connor desde o início do julga­mento. Imaginou que ele tivesse ouvido a recusa de lorde Wakelin quanto a suspender seu status de fora-da-lei e decidira ser melhor continuar escondido. Contudo, ela procurara-o o tempo todo no meio da multidão, enquanto passeava com os Cooper pelas pequenas barracas de vendedores de comidas, de roupas, de panelas, e produtos do Leste.

Ao som da voz de Connor ela vírou-se, com o co­ração aos saltos.

— Oh, Connor! — exclamou. — Você ouviu tudo? John foi absolvido! E a pequena Karyn está falando.

— Ouvi tudo, princesa. — Ele sorriu, — É um dia feliz para a Inglaterra saxônia.

— Ah, é mesmo. E para a Inglaterra normanda também. — Ellen apontou os grupos de soldados normandos e habitantes da aldeia que conversavam como bons amigos.

— Concordo — disse Connor.

De súbito, ela lembrou-se de que nem tudo correra bem naquela manhã.

— As coisas vão melhorar no seu caso também, Connor, eu prometo. Meu pai precisa de tempo para pensar no assunto, mas sei que mudará de idéia. Ele é um homem muito justo. Connor esboçou um sorriso triste.

— Sinto que ele é apenas um homem que se preo­cupa com sua única filha, e não o culpo por isso.

— Sebastian envenenou a mente dele, falando bobagem.

Connor lhe perguntou, então, agora com um sor­riso irônico:

— Nesse caso foi mentira o que seu primo disse, que você estava intoxicada por mim?

O mal-entendido da outra noite pareceu esquecido no momento em que ele ficou bem perto de Ellen, os olhos de repente famintos. E a atração física que surgiu entre os dois, a partir do instante em que se encontraram ali, não sofrera alterações por causa das circunstâncias.

Pelo visto, Connor não parecia preocupado pelo seu status de fora-da-lei, tampouco frustrado pelo rigor de lorde Wakelin em sua desaprovação quanto aos sentimentos da filha para com o treinador de cavalos. E por isso Ellen concluiu que seu amante saxônio não tinha esperança e nem desejo de um futuro para os dois, juntos.

Que seja assim então. Ela deu um passo à frente e respondeu:

— Não foi de fato uma mentira, como você muito bem sabe, chefe dos cavalariços, mas uma circuns­tância irrelevante no enorme esquema dos fatos.

— Ah! Irrelevante — ele sussurrou, conservando o sorriso irônico.

Mais uma vez, Connor parecia estar caçoando dela, e Ellen começou a ficar irritada. Olhando à volta comentou, com impaciência:

— Não está se arriscando demais em ficar aqui? Se não se importa por sua segurança, devia levar em consideração todos nós. As pessoas estão se di­vertindo. Não acha que as festividades acabariam se seus amigos tivessem o desprazer de testemunhar a prisão do antigo milorde?

— E seu prazer também acabaria, princesa? — ele perguntou, chegando bem perto e falando num tom de voz baixo, grave, que sempre fazia o coração dela palpitar mais forte.

— Não tenho o menor desejo de ver você algemado - Ellen retrucou.

Ele sorriu e disse:

— Gosto de ouvir isso. — Mas não fez menção alguma de ir embora.

— Quando a corrida começar, todos os soldados que não fizerem parte dela estarão aqui para as­sistir. Você com certeza será reconhecido.

— Já terei ido para meu lugar a essas horas — ele respondeu com irritante indiferença. — Vim aqui agora só para ver como iam os Cooper e para passar alguns minutos com você.

— E depois? Irá de volta às cavernas?

— Não. Estou cansado de me esconder, Ellen pôs a mão na testa dele,

— Connor, você precisa dar tempo para eu falar com meu pai. Não posso fazer isso agora, porque ele vai tomar parte na corrida. Vá embora por esta noite ao menos, e veremos o que acontecerá amanhã.

Ele inclinou-se e beijou-a rapidamente nos lábios.

— Você ficará surpresa com o que o amanhã lhe trará, princesa. Agora, deixe-me apreciar mais uma vez esses seus olhos cor de ouro antes de eu tomar meu lugar.

— Seu lugar?

— Naturalmente.

— Vai tomar parte na corrida de obstáculos? — ela perguntou, um tanto incrédula.

— No passado, tomei parte nessas corridas inú­meras vezes. Mas este ano, como posso dizer... Pre­tendo ser um tipo de concorrente não convidado.

Ele pôs a enorme mão atrás da cabeça dela e segurou-a firme. Sem dar a menor importância à multidão que se movia em volta, deu-lhe outro beijo, dessa vez profundo, e úmido, e demorado.

Quando a largou, Ellen pegava fogo. Mas antes que ela pudesse pronunciar uma palavra sequer de protesto, Connor desapareceu mais uma vez no meio da multidão.

 

Nos velhos tempos, o povo da aldeia frequentemente passava o inverno construindo a pista para a corrida de obstáculos. Terminado o trabalho, às vezes a área onde se rea­lizaria a competição assemelhava-se a uma pequena aldeia, com imitação de casas, paredes de pedra, e pequenas árvores derrubadas na mata e trazidas ao local para criar florestas em miniatura.

A corrida revivida pelos normandos não se parecia em nada à que existira no passado. Levara algum tempo para os organizadores convencerem os antigos habitantes da aldeia a auxiliá-los com sua experiên­cia. E, uma vez conseguido, ficara tarde demais para planos muito elaborados.

O mais importante em habilidade exigido este ano dos concorrentes era fazer curvas fechadas em volta dos postes colocados ao longo da pista, para a mar­cação dos pontos. Havia quatro obstáculos feitos com troncos, cada um pouco mais alto do que o anterior. O quarto salto terminava num pequeno lago.

Mas naquele ano, o maior trabalho dos constru­tores se concentrara no término da corrida, uma inovação que agradara a muitos e que tornara a competição a mais complexa de todos os tempos. Esse último obstáculo era uma imitação de pequeno castelo, feito de madeira e pedra, mas com suficiente resistência para dar uma ilusão de solidez ao espec­tador. Fora colocado na pista de certa maneira que o concorrente teria de descer uma rampa de relva, para depois virar abruptamente na direção da ponte levadiça que conduzia ao castelo. Antes de atravessar a ponte, alguém disparava um gatilho que elevava um portão que dava passagem ao cavalo e ao cavaleiro, os quais, em disparada, iriam atingir a imitação de castelo e emergir do outro lado para o final da prova.

Connor duvidara da segurança desse último obs­táculo desde que ouvira alguns informantes dizerem que a idéia partira de Sebastian, idéia que ele tirara de uma competição a que assistira em Paris.

Houvera, sem dúvida, obstáculos mais perigosos nas corridas em que ele, Connor, tomara parte no passado. Os irmãos Brand eram cavaleiros deste­midos, não tinham medo de nada. Mas Connor, mais velho e por isso mais prudente agora, achou que poderiam surgir vários problemas com o mirrado castelo. A curva fechada talvez fizesse com que um animal inexperiente escorregasse na estreita ponte e, consequentemente, quebrasse uma perna.

E mais ainda. Havia o tal portão móvel. Fora feito de toras como as que ele vira no velho arsenal, amar­radas com tiras de couro. Qualquer problema com o rudimentar mecanismo, para baixar e erguer o portão, poderia provocar a queda do mesmo em cima do ca­valeiro enquanto ele passasse. Queda total ou em parte.

— Não acredito que lorde Wakelin tenha concordado em participar da corrida — Connor comentara com Martin na véspera, quando os dois discutiam secretamente sobre como a pista fora desenhada. — É uma competição para jovens..

— Sem dúvida — padre Martin concordara, es­tremecendo. — Esta é uma das ocasiões em que dou graças aos céus por minhas vestes de ministro da igreja que me dispensam dessas atividades mun­danas. Também ouvi dizer que o velho lorde fora instigado pelo sobrinho a aceitar o desafio.

— O mesmo sobrinho que fez ressuscitar o evento, para começo de conversa — Connor acrescentara.

— Sim, o mesmo.

— Agora é melhor que você volte à Abadia antes que todos perguntem por onde andou — Connor o aconselhara.

— Você não vai comigo?

Connor pensara em Ellen, naquele instante com certeza preparando-se para dormir, vestindo a ca­misola transparente que, à luz da vela, delineava cada detalhe de seu corpo tentador.

— Não — ele respondera ao irmão. — Quero ficar bem perto da miniatura de castelo planejada por Sebastian Phippen.

E agora, enquanto observava os espectadores pro­curando os melhores lugares para apreciar a próxi­ma competição, Connor estava a par de todas as elevações do terreno, como também Firestorm estava a par. Firestorm era a montaria puro-sangue com a qual Connor passara a maior parte da noite.

Junto com o conhecimento da pista, Firestorm aprendera vários truques que não conhecia antes da longa noite com o chefe dos cavalariços. Agnes estendera o cobertor num barranco atrás da parte principal do campo onde a corrida teria lugar. Ela preferiu ficar com os gêmeos um pouco longe da disputa. Mas, quando os mais jovens, Sarah, Rolf, John e Ellen chegaram, forçaram-na a ir um pouco mais para a frente a fim de apreciarem melhor a corrida.

E, à medida que os demais espectadores chegavam e viam que lady Ellen fazia parte do grupo, iam se afastando respeitosamente para que ela não tivesse ninguém a sua frente, tapando-lhe a vista.

A maioria dos competidores era composta de normandos. Muito poucos dentre os habitantes da aldeia possuíam condições físicas para competir, e, os que as possuíam, não tinham confiança em exibir seus próprios cavalos, usados na lavoura, ao lado das mon­tarias dos normandos, treinadas para batalhas.

Ellen viu o pai no fim da fila, montado em Fi­restorm. O enorme garanhão provara ser montaria confiável nos últimos cinco anos, mas Ellen sentiu arrepios de apreensão ao ver os cabelos grisalhos do pai no meio dos ousados jovens que ocupavam o resto do campo.

— É loucura meu pai fazer essa tentativa — ela disse a John que se encontrava a seu lado, procu­rando protegê-la da multidão.

— Talvez não, milady. Na verdade, isso aumentou a estima dos rapazes da aldeia para com lorde Wakelin.

Ellen sacudiu a cabeça.

— Não entre as mulheres, garanto. Elas sem dú­vida estão pensando na insensatez do velho louco. E não as culpo.

John riu muito.

— Homens pensam diferente das mulheres. Enquanto eu estava preso, ouvi os guardas dizeren que fora o primo de milady quem persuadira lorde Wakelin a correr.

Essa notícia aumentou a preocupação de Ellen. Ela procurou por Sebastían na fila dos competidores.

— Meu primo não vai tomar parte?

— Acho que sim. Foi o que disseram, pelo menos.

— Mas ele não está lá.

Ambos olharam, e não viram nem sombra do es­belto cavaleiro normando.

— Talvez ele tenha mudado de idéia, milady — John disse finalmente, sacudindo o ombro.

— Talvez, deixando meu pai com sua loucura — ela murmurou.

Não houve mais tempo para conversas, pois os - competidores se alinharam. Ellen contou-os. Eram quatorze, incluindo seu pai.

Ela sentiu um aperto no estômago quando o juiz deu o sinal de largada. Seu pai sentava-se teso em Firestorm, os olhos fixos na pista em frente. O forte sol da tarde punha em evidência todas as rugas do rosto envelhecido, Ellen notou com pavor. De súbito desejou ter insistido se reconciliar com ele naquela manhã. Sentiu-se doente e culpada por não o haver abraçado e lhe desejado boa sorte na corrida.

Mas era tarde agora. Tudo o que poderia fazer seria observar e rezar enquanto a bandeira que as­sinalava a partida baixava e os quatorze cavalos entravam em ação ao mesmo tempo, como dentes de engrenagem duma gigantesca roda dágua.

Em volta deles a multidão gritava, excitada. Os mais ovacionados eram os quatro corredores saxônios e lorde Wakelin, este último sem dúvida devido ao status e à idade.

Os cavalos correram lado a lado durante muito tempo, mas, quando atingiram o primeiro obstáculo, começaram a se separar. Ellen sentiu-se aliviada e secretamente orgulhosa de ver que o pai estava se saindo bem. Havia apenas quatro cavalos na frente dele, e esses montados pelos quatro mais experientes guardas do palácio.

— Seu pai monta bem, milady — disse John, as­sobiando. — Agora sei de quem milady herdou a habilidade.

Ellen ficou na ponta dos pés para ver melhor. Mas... onde estava Connor, afinal? Seu orgulho de família a fazia esperar que ele estivesse vendo a corrida de algum lugar e, como John, reconhecendo a eficiência de seu pai.

Passado o terceiro obstáculo, quatro corredores desistiram da competição depois que suas montarias erraram o salto, felizmente sem ter caído. O quarto salto era o que terminava na água, um obstáculo que eliminou mais três dos competidores.

Embora sete tendo sido desqualificados, Ellen sur­preendeu-se ao constatar que havia ainda oito, e não sete competindo para o final, na direção do castelo improvisado. Ela devia ter contado errado, concluiu. Lorde Wakelin era o sétimo da fila. Ellen prome­teu dizer uma prece a santa Thereza na capela, no dia seguinte, se o pai terminasse a competição in­teiro. Duas preces, acrescentou depressa, se não fos­se o último.

O primeiro da fila chegou ao castelo. E a multidão explodira em aplausos desde o instante em que o estrondo das patas do cavalo ecoou na ponte, e o portão subiu.

Ellen apertou o braço de John, emocionada. E ele gritou:

— Não foi uma maravilha, milady?

— Foi — ela concordou.

Os pontos ganhos pelo vencedor brilharam nos pos­tes no instante em que o portão se fechou de novo.

O segundo corredor foi tão rápido quanto o primeiro, e mais uma vez o portão subiu e desceu de novo, ime­diatamente depois que cavalo e cavaleiro passaram.

— Isso me parece perigoso — Ellen comentou com John.

— Não é. Apenas parece, milady — o rapaz lhe garantiu. — As cordas são fortes e há um guarda em cada lado para garantir que o portão permaneça - aberto enquanto o cavaleiro estiver passando.

Pela primeira vez Ellen notou que havia mesmo dois homens segurando grossas cordas em cada lado do portão. Apesar do escuro do local ela pôde ver que estavam com farda normanda, mas não conse­guiu reconhecer a identidade dos mesmos.

Ficou muito contente ao constatar que se tomavam precauções, mas seus joelhos tremiam quando quatro outros corredores passaram, emergindo do outro lado do castelo sob tremenda salva de palmas da assistência. Lorde Wakelin continuava no sétimo lugar, e seria o próximo a passar. Ellen prendeu a respiração. Seu pai a viu e sorriu para ela. Em seguida inclinou-se sobre o cavalo e agarrou as rédeas em preparação à curva aguda da ponte. Firestorm executou a ma­nobra com perícia e a multidão aplaudiu-o enquanto o portão subia. Atravessar a ponte levaria apenas alguns segundos, e ele chegaria ao pequeno castelo logo. Ellen suspirou, aliviada.

A distância, o primeiro corredor chegava ao fim da competição ao som de tremendo aplauso. Ellen olhou naquela direção momentaneamente, depois voltou a vista para o pequeno castelo, esperando ver seu pai fazer o mesmo que os outros candidatos fizeram.

O portão erguido, o caminho para o castelo estava aberto. Mas, ainda na ponte, Firestorm diminuiu a marcha. Lorde Wakelin estava preparado para cor­rer e não podia entender a razão de sua montaria esmorecer. Ellen ficou igualmente atônita.

Lorde Wakelin instigava Firestorm a seguir em frente. Atrás dele, o oitavo e último competidor qua­se alcançava a ponte. A cabeça de Firestorm já es­tava praticamente na entrada do castelo quando, de repente, mais alto que o ruído da multidão, ou­viu-se o som de um assobio agudo. O cavalo de seu pai parou e, para enorme espanto de Ellen, começou a empinar, indo para trás. Naquele exato instante o portão caiu, tendo Firestorm e lorde Wakelin es­capado da morte por questão de segundos. A mul­tidão gritou, horrorizada.

Lorde Wakelin olhava para o portão, estarrecido, depois para seu cavalo que, após dançar para trás até a entrada da ponte, parou, pelo visto incons­ciente do tumulto que reinava em torno dele. O oi­tavo corredor parou perto de lorde Wakelin.

Ellen desceu o barranco e foi até o pai, não se im­portando com as saias que voavam ao sabor do vento. Uma vez na ponte, correu ao encontro de lorde Wakelin, que ainda sentava-se em Firestorm, petrificado.

Ellen prestara pouca atenção ao oitavo corredor.

Observando o traje dele, podia ver que era da aldeia, um saxão que, com certeza, entrara na última hora. Mas, ao se aproximar, o homem tirara o gorro re­velando inconfundíveis cabelos louros.

— Connor! — ela gritou.

A expressão de lorde Wakelin foi assustadora. Ele olhou da fílha para o saxão montado ao lado dele, e vociferou:

— Que diabos significa isso?

Um guarda que estivera na via lateral correu para a margem da ponte levadiça e segurou a montaria de lorde Wakelin, embora Firestorm não se tivesse movido.

— Isto é um complô dos saxões, milorde — o guar­da disse. — Não tivesse o animal se sobressaltado, Vossa Senhoria teria sido esmagado por este portão.

Ellen chegara à mesma conclusão. Olhou para -   Connor, duvidosa.

— Você sabia algo sobre isso? — perguntou. Connor respondeu a lorde Wakelin em vez de a ela.

— Não foi complô dos saxões, milorde. Com sua permissão...

Enquanto pai e filha o observavam, Connor as­sobiou e seu cavalo, Thunder, começou a andar para trás, exatamente como Firestorm fizera. E assim Connor voltou de costas ao longo de toda a ponte. Depois pediu à multidão, que se aglomerava ten­tando ver o que sucedera, que abrisse espaço.

Cavalo e cavaleiro moveram-se devagar. Um mi­nuto mais tarde Connor apareceu desmontado, em­purrando na frente dele um dos guardas do portão. O homem tentou atirar-se da ponte, subindo na gra­de. Mas Connor agarrou-o pelos ombros e o pôs de volta no chão.

Ellen quase perdeu o fôlego ao constatar que o guarda que Connor erguera nos braços como um saco de batatas era ninguém nem mais nem menos do que seu primo Sebastian.

— Acho que este cavalheiro é o criminoso, Lorde Wakelin — disse Connor, segurando firme o homem que esperneava.

— O que significa isso? — lorde Wakelin pergun­tou, encarando a filha.

Para Ellen, o significado daquela sucessão de fatos tornou-se bem claro. Ela não tinha idéia de como Connor soubera do perigo, tampouco como Connor fizera o cavalo de seu pai ir para trás do potencial­mente fatal portão. Mas sabia que, de uma maneira ou de outra, tudo fora obra dele.

Ela enfrentou a ira do pai com voz firme:

— Tentei prevenir você contra Sebastian, papai. Agora talvez esteja pronto a me ouvir. Não foi um saxão quem soltou essas cordas para o portão cair sobre você. Foi seu próprio sobrinho.

Lorde Wakelin olhou na direção da extremidade da ponte onde Connor jogara Sebastian no chão e o segurava com um pé no meio das costas.

— Vamos ver isso já — ele resmungou, apeando. Andou ao longo da ponte, com largas passadas, furioso. Ellen seguiu-o. Quando chegaram perto dos dois, Sebastian virou a cabeça e gritou,

— É tudo mentira, tio. Posso explicar... Connor apertou mais o pé sobre o homem cativo, impedindo-o de falar.

— Acho que ele tem direito de se explicar — ob­servou lorde Wakelin, fitando Connor com olhar ir­ritado. — E você pode começar a esclarecer que diabos de magia usou com meu cavalo.

Dando um passo à frente, Ellen protestou: — Magia ou não magia, é melhor você dar graças aos céus, papai. Porque, em mais um segundo, você seria dividido em dois por aquele portão.

Connor sorriu para ela antes de se dirigir a lorde Wakelin:

— Quando soube por seus guardas que Sebastian iria manobrar o portão do castelo, decidi que seria melhor esse magnífico cavalo seu escolher outra rota.

— Indo para trás?

— Sim, milorde, indo para trás.

O peito de lorde Wakelin vibrava de ódio. E ele parecia ainda confuso.

— Isso salvou sua vida, papai. — Ellen apontou para Sebastian. — Se não acredita em mim, por que não pergunta a ele por que motivo manobrava o mecanismo, disfarçado em guarda, quando dissera que iria tomar parte na corrida?

Lorde Wakelin olhou para o sobrinho, finalmen­te quieto sob o pé de Connor. De súbito a raiva desapareceu do olhar do velho lorde que ficou tris­te, como se entendesse, enfim, e só agora, coisas que havia muito soubera mas que jamais quisera admitir.

Ele fez sinal para alguns guardas que o haviam seguido mas que guardavam respeitosa distância. E ordenou:

— Levem sir Sebastian a seus aposentos e con­servem-no sob guarda até que eu possa me entender com ele.

Connor levantou o pé, mas Sebastian não se mo­veu. Os guardas tiveram de pô-lo de pé. Os olhos dele estavam embaciados quando se fixaram no tio, e dessa vez não houve mais dúvida de que tinham um quê de loucura.

Lorde Wakelin observava-o com expressão preocu­pada quando os guardas arrastaram-no através do portão erguido e desapareceram no interior do castelo improvisado. Em seguida dirigiu-se a Connor:

— Como minha filha insiste em me fazer ver, parece que lhe devo a vida, meu rapaz.

— E eu me senti feliz em servi-lo, milorde. — Connor saudou-o.

Ellen segurava a respiração enquanto os dois ho­mens que ela mais amava ficaram face a face, como que medindo forças. Após um tempo relativamente longo, lorde Wakelin perguntou:

— Como você conseguiu que meu cavalo fizesse aquela proeza?

Sorrindo e piscando para Ellen, Connor respondeu:

— Digamos que conversei com ele, convencendo-o, milorde.

— Quero saber mais sobre isso, porém não agora. Não desejo estragar as festividades. Temos ainda um campeão a coroar.

De fato, a maioria da multidão já se havia dirigido ao local onde os três finalistas aguardavam para receber seus prêmios.

— Um momento, pai — disse Ellen. — Esta ma­nhã você declarou que Connor era ainda um fora-da-lei. Com certeza agora que ele salvou sua vida, vai voltar atrás, não vai?

— Ah, mulheres, sempre escravas de detalhes, não é mesmo? — Lorde Wakelin sorriu para a filha e dirigiu-se a Connor: — Parece que sou seu devedor, sir. A ordem de proscrição será cancelada. Na realidade, eu não a conservaria por muito tempo uma vez que o jovem Cooper foi julgado inocente do crime. Mas, diga-me, que dádiva você quer de mim em pagamento por me ter salvado a vida?

Ellen respirou ofegante enquanto esperava pela resposta de Connor. Mas quando ele falou, ela re­tesou o corpo, terrivelmente desapontada.

— A única dádiva que lhe peço, milorde, é sua cooperação no sentido de providenciar para que normandos e saxônios, que agora compartilham da mes­ma terra, vivam e prosperem em paz.

Lorde Wakelin olhou fixamente para a filha, e Ellen pôde perceber que o pai estava consciente da reação dela ao pedido de Connor. Mas o velho lorde virou-se para o alto saxão, estendeu-lhe a mão e disse:

— Tem meu aperto de mão e minha palavra sobre o que me pede, sir.

Apertaram-se as mãos e Connor declarou:

— Assim que milorde se for, levarei seu cavalo e o meu para a estrebaria, e prometo que serão bem recompensados pelo trabalho que realizaram hoje.

Quando Connor pegou as rédeas de ambos os ani­mais, sorriu para Ellen e piscou. Ela também sorriu, mas ao vê-lo levar Firestorm pela ponte, teve impressão de que seu coração se esfacelava.

— Minha filha! — Agnes chamou, e depois levan­tou-se da cadeira para tocar a mão de Ellen. Segu­rou-a por alguns minutos. — Espero que você não me considere desrespeitosa por chamá-la de filha, mas ficou tão querida para mim como qualquer um de meus filhos.

Ellen mordeu o lábio e seus olhos encheram-se de lágrimas. Observou o movimento do pequeno cha­lé. Karyn e Abel sentavam-se em frente à lareira, brincando com as duas miniaturas de dragões de madeira que ela levara como presente de despedida. A pequena casa estava mais barulhenta nos últimos dias, com duas crianças tagarelando em vez de uma.

— Como vocês ficaram queridos para mim! — res­pondeu Ellen.

— Nesse caso, aconselharei você como aconselha­ria minha própria filha. Quando o amor chega, é uma coisa tão preciosa que não deve ser descartada facilmente. Tem certeza de que quer desistir de tudo e voltar àquela terra longínqua, sabendo muito bem que está deixando seu coração atrás?

— Ah, Agnes, não sou eu que estou desistindo. Con­nor teve a chance de pedir a meu pai qualquer coisa que ele quisesse. E não pediu coisa alguma para si, mas para seu povo. É onde está o coração dele. Não há lugar na vida de Connor para nada mais.

— Se for assim, então ele está muito mais errado do que você. Connor tem sido um excelente líder para os saxônios, nos auxiliou em tempos difíceis. Mas agora chegou a hora de planejar a própria vida. — Agnes olhou para os gêmeos. — Talvez seja des­tino dele, e seu também, estabelecer um tipo de aliança mais permanente entre normandos e saxô­nios, vivendo neste território.

Ellen acompanhou a direção do olhar de Agnes, corou, e disse, acremente:

— Sei muito pouco sobre esse assunto de fazer filhos, mas acredito que requeira participação ativa de ambas as partes. Mal tive chance de ver Connor nestes dois dias depois da corrida. Meu pai ocupou cada minuto do tempo dele fazendo-o demonstrar aqueles infernais truques com os cavalos.

A resposta de Ellen, Agnes recostou-se melhor na poltrona e sorriu de satisfação.

— Um fato que prova que você se irritou muito — ela disse.

— Não, não me irritei, apenas esperava poder dizer adeus a ele antes de partir para a Normandia. Mas não tive chance.

—Acho que terá essa chance agora—Agnes falou, exatamente na hora em que se ouviu uma pancada na porta.

Abel correu para abri-la, e quando viu quem che­gava, orgulhosamente mostrou-lhe o dragão.

— Veja, Connor — o menino disse —, este é um dos ferozes, não acha? O de Karyn é manso, mas o meu é feroz, e dei-lhe o nome de Gorgon. Connor sorriu e cumprimentou o dragão.

— Como vai, Gorgon? Por favor, não me dê uma mordida.

— Não, Gorgon não vai tirar um pedaço de você. Eu direi a ele que é nosso amigo.

Connor já tinha voltado sua atenção às duas mu­lheres sentadas na sala. Cumprimentou Agnes com um gesto de mão e depois disse a Ellen:

— Estive a sua procura.

Ellen brincava nervosamente com a sacola dos presentes que levara às crianças, agora vazia em seu colo.

— Não estive me escondendo — respondeu. Connor irritou-se com o tom gelado da voz dela.

E protestou com firmeza:

— Sra. Cooper, não é minha intenção encurtar essa visita, mas vou acompanhar lady Ellen ao castelo.— Talvez eu não esteja pronta para ir embora — Ellen protestou secamente.

— Vá, minha filha — disse Agnes. — Eu a verei mais uma vez antes de... — ela olhou para Connor —, antes de você partir para a Normandia.

Sem o auxílio da sra. Cooper, nada teria aconte­cido. Disso Ellen teve certeza momentos depois.

Eles partiram. Seguiram pela estrada na direção do castelo. Mas, quando chegaram ao campo, Connor virou-se na sela e perguntou:

— Que tal uma disparada pela planície?

Ellen olhou para Thunder que pinoteava com im­paciência, talvez prevendo que receberia logo ordem de correr.

— Será a última oportunidade para Jocelyn se vin­gar, acho — ela concordou, mas sem muita confiança.

Lado a lado, iniciaram a corrida. Seguiram juntos quase o tempo todo. Mas, aproximando-se o fim, Connor inclinou-se e sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Thunder, que deu um salto para a frente. Ellen murmurou para Jocelyn:

— Voe, amiga.

Após segundos, Connor deitou a cabeça para trás e deu uma gargalhada ao ver que os dois animais ficavam pescoço com pescoço o caminho todo, até a entrada da floresta.

— As árvores! Cuidado! — Connor gritou, quando a vegetação forçou-os a parar. — Siga-me.

A passagem estreita obrigou os animais a segui­rem um atrás do outro. Ellen imaginou que sabia para onde Connor a levava, mas não tinha muita certeza se desejava voltar àquele lugar.

Ela reconheceu a clareira imediatamente. Connor parou, pulou da montaria e virou-se logo estenden­do-lhe os braços.

— Sei que pode cuidar de si, princesa, mas per­mita-me que a ajude, sim?

Ellen escorregou então para os braços de Connor, mais ou menos esperando que ele aproveitasse a chance para beijá-la. Porém Connor meramente co­locou-a no chão. Lutando contra uma sensação de desaponto, disse:

— Esperei que conseguisse cavalgar melhor do que você antes de voltar para minha terra, chefe dos cavalariços. Mas, pelo visto, acho que devo me contentar em me considerar sua igual.

— Você cavalga tão bem quanto qualquer homem do condado. Não, melhor — ele se corrigiu.

— Mas não melhor do que você.

— Ora, bem, mas eu sou o chefe dos cavalariços, lembra-se? Esse é meu meio de vida. — Connor amar­rou ambas as rédeas num galho de árvore e deu-lhe a mão. — Vamos ver se há fadas na floresta hoje?

Eles andaram até o centro da clareira. Mais uma vez Ellen maravilhou-se com a atmosfera mágica do lugar. A relva macia era como um tapete de ve­ludo sob seus pés, e os raios de sol pareciam dançar por baixo e fora da sombra das árvores.

— Quase acreditei que elas estavam de fato aqui — ela disse, com tristeza.

— Acredite, princesa. Elas estão preparando seus truques outra vez e quase me fazendo beijá-la.

— Você precisa que fadas o forcem a me beijar? Imaginei que meu chefe dos cavalariços fosse mais ousado do que isso.

— Talvez ele tenha ouvido falar que lady Ellen decidira, sem razão, voltar para suas danças da corte, para seus namorados membros da realeza e para seus vestidos elegantes. Talvez ele pense que as fadas se­jam tolas em acreditar que lady Ellen abandone tudo isso por uma vida simples nas florestas da Inglaterra. Pela primeira vez desde que o conhecera, Connor Brand demonstrara insegurança. Essa convicção deixou Ellen cheia de ternura e, estranhamente, de súbito liberada de suas dúvidas. Uma vida simples nas florestas da Inglaterra, ele dissera.

— Talvez essa tal de lady Ellen considere as fadas da Inglaterra muito mais divertidas do que todas as cortes da Europa — ela murmurou.

— Verdade, amor? — Connor disse, com voz rouca. Beijaram-se. Foi um longo, demorado beijo.

— Vou lhe dizer a verdade, chefe dos cavalariços. Gosto de fato das florestas da Inglaterra, mas não são as fadas que me divertem.

— Não será fácil, amor, uma união entre nós dois. Serei seu amante apaixonado, seu servo, mas não conseguirei mudar minha personalidade para me adaptar a essa nova vida.

— Você já poderia ter encontrado seu lugar se me tivesse pedido em casamento a meu pai no dia da corrida, quando ele lhe perguntou o que desejava.

— Não queria ganhá-la dessa forma. — Connor sacudiu a cabeça.

— E eu pensei que não me quisesse.

Connor carregou-a e levou-a para o mesmo lugar onde se deitaram muito tempo atrás.

— Ah, minha tola beldade normanda! Ainda não sabe que qualquer homem a desejaria, e eu muito em particular? Se não tivesse jurado me tornar um homem pacífico, passaria o resto de minha vida me batendo em duelo para vencer meus rivais.

Ellen sorriu quando ele a deitou na grama. Mas antes de qualquer coisa, ela disse:

— Meu pai voltará para a Normandia. E, sem Sebastian, Lyonsbridge não terá castelão. Tenho certeza de que ele seria facilmente convencido a escolher você para essa posição. — Quando Connor começou a protestar, Ellen colocou um dedo nos lábios dele, e continuou: — Não por minha causa. Os arrendatários aqui ainda o vêem como seu líder. Você era o lorde de Lyonsbridge antes até de meu povo saber da exis­tência deste lugar. Que escolha poderia ser melhor?

— E acha que seu pai daria a um saxão o devido valor para ocupar posto tão elevado?

— Não apenas lhe daria esse valor como o con­sideraria o candidato mais apropriado. Como já ten­tei dizer a você, meu pai é um homem justo e de mente muito aberta.

— Terá ele mente assim tão aberta quando descobrir que esse mesmo saxão quer se casar com sua filha?

— Terá, se a filha for em favor dessa idéia.

— E a filha é em favor dessa idéia? — Connor sorriu, um sorriso brejeiro.

— Talvez... — ela respondeu, com o mesmo tipo de sorriso. — Embora possa pedir algum tempo para pensar.

Connor ergueu-a nos braços e rolou na relva com ela. Os corpos de ambos ficaram intimamente pressionados.

— Princesa — ele sussurrou. — É melhor que comece a pensar desde já, pois pretendo fazer amor com você até que me dê essa resposta.

— Mas, sabe, posso... levar... algum tempo — ela explicou, as palavras saindo entre suspiros.

— Use o tempo que for necessário, milady. As fadas da floresta prometeram segurar você aqui o tempo que for preciso.

Ellen olhou para os profundos olhos azuis antes de oferecer seus lábios ao beijo. O vento gemia por entre as árvores e, no roçar das folhas, ela teve quase certeza de ter ouvido as gargalhadas das fadas.

 

                                                                                Ana Seymour  

 

                      

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