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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM MÉDICO DIFERENTE / Frank Slaughter
UM MÉDICO DIFERENTE / Frank Slaughter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                 ACAMPAMENTO MILITAR

As sirenas anti-aéreas emitiam suas lamuriosas notas, assinalando fim do exercício simulado no momento em que Bruce cruzou o portão da plataforma da Union Station. Um momento antes, o enorme pátio parecia remoto como uma caverna mitológica, povoada de figuras congeladas no tempo. Agora, à medida que as luzes se acendiam gradualmente, pessoas piscavam os olhos como sonâmbulas e começavam a mover-se novamente.

Dois soldados a caminho de outro portão fizeram-lhe uma viva continência. Ainda inseguro sobre a parte que lhe cabia em tal rito - na noite passada ele titubeara de sono sobre o manual -, pensou em mudar a posição da sacola militar e retribuir a saudação, mas resolveu limitar-se a um aceno de cabeça. A praça fronteira à estação era agora inteiramente visível através dos arcos abobadados do pátio. Após uma dúzia de passos nessa direção, voltou-se abruptamente para reexaminar a sacola. Naquela noite, até mesmo o calor de verão em Washington parecia-lhe preferível, durante algum tempo, ao enigma do Acampamento Bruckner.

No lado de fora, ônibus carregavam e descarregavam nas plataformas reservadas aos militares. O transporte para seu próprio acampamento esperava entre a insípida frota de cor verde-oliva; uma vez subisse no veículo, o ato assinalaria o começo real de sua carreira no Exército. O pensamento foi suficiente para fazê-lo mudar novamente de direção - até que cruzou os trilhos dos bondes mais além e as Portas de um bar se fecharam sobre os seus agitados pensamentos.

Descobriu que o primeiro gole de bourbon não lhe aumentou a disposição de imaginar a nova vida que o aguardava. A moça, que se sentava no tamborete quase contíguo e pedira um traçado de gim num tom que sugeria não ser aquela sua primeira visita, constituía outra desculpa para deter-se à margem daquela nova vida antes de aventurar-se mais a fundo.

O espelho do bar informou-o de que ela não era muito mais moça do que ele. A sua figura esguia tinha pontos recomendáveis mas nem o melhor amigo lhe teria julgado pela face magra e séria. Estava sem chapéu e o cabelo castanho-avermelhado era usado curto, num curto mais prático do que elegante; manchas de tinta sujavam-lhe os dedos que se fechavam em torno do corpo. O vestido de linho estava também amarrotado. Inclinando-se para a frente para acender-lhe o cigarro com o isqueiro, ele concluiu que jamais a notaria numa multidão. Mas, quando ela levantou a vista... e ele lhe viu os olhos cinzento-esverdeados, mudou de ideia.

 

 

 

 

- Quando terminar essa bebida, posso pagar-lhe outra?

A moça continuou a examiná-lo com a mesma deliberada franqueza. O inventário foi suficientemente exaustivo para que ele se perguntasse se colocara mal algumas das insígnias de seu novo status.

- Depende do que o levou a fazer o oferecimento.

- Digamos que a necessidade de ouvir a própria voz após uma viagem.

A moça sorriu e ele observou que a boca era generosa e os olhos, cálidos.

- Veio de tão longe assim?

- Acabei de chegar de trem da Flórida.

- Quando um soldado se rende, ele dá o nome, posto e número de série.

- Bruce Graham. Major, Corpo de Saúde, ASN, 0.270106. Cirurgião, Exército dos Estados Unidos.

- Nenhuma inicial no meio do nome. Os seus ancestrais devem ter sido tão escoceses quanto seu nome.

- Não nos últimos séculos. Nasci e criei-me em Tampa.

- Você é um major novato como parece?

- Aparece tanto assim?

- Aposto um dólar que deu um polimento final nessas folhas de carvalho no toalete do vagão.

- Nas folhas de carvalho... e no caduceu. Vesti este uniforme há dois dias. Alguma outra pergunta?

- Pode dizer-me o que pretende da guerra, Major Graham?

A brusquidão das palavras deixou-o atónito.

- Por que meus objetivos na guerra deveriam interessá-la?

- Q senhor me acreditaria se eu lhe dissesse que estou colecionando citações para as minhas memórias?

- No Sul, um cavalheiro sempre acredita numa senhora. Onde quer que eu comece?

- Vejamos se posso facilitar o início - disse a moça. - No pátio, há pouco tempo, o senhor tomou a direção da praça, mudou de ideia e examinou a sacola. No lado de fora, depois de um desvio para evitar as plataformas dos ônibus, entrou aqui. Sherlock Holmes deduziria que o senhor está a caminho do seu primeiro posto... e que resolveu interromper a jornada.

- Sherlock Holmes deduziria também que você me seguiu.

- Contenha essa sua ira escocesa. Claro que o segui.

- Agora é minha vez de perguntar. Por quê?

- Eu lhe dei a minha desculpa. Agora, você contribui com uma frase para o meu livro de memórias... sobre a razão e a cura para a guerra. Não que eu não possa imaginar a resposta. Ela tem um brilho que vem de dentro. Como uma lâmpada numa janela.

- Tem certeza de que o brilho é autêntico?

- Eu o chamaria de devoção a algo externo a si mesmo. Evidentemente, o senhor interrompeu uma carreira para ingressar no Corpo de Saúde. Clinicava em Tampa?

- Até o mês passado, eu ensinava na Escola de Medicina Lakewood, em Baltimore. Entre as aulas, trabalhava com o Dr. Schoenfeld em pesquisas sobre cirurgia cardíaca.

- Eu diria que o senhor era um figurão muito importante se Abraham Schoenfeld precisava do senhor. Não foi por acaso considerado essencial pelo Serviço de Recrutamento?

- Fui, durante um tempo. Em princípios de julho, concluí uma série especial no laboratório. O ano escolar acabava de terminar... e eu decidi vestir este uniforme.

- Por que os escoceses são tão ousados quanto teimosos?

- Digamos que me pareceu uma boa ideia na ocasião.

- E ainda parece?

- Está insinuando que tenho dúvidas... e que vim aqui para fortificar-me?

- Se veio, trata-se de uma reação extremamente humana.

- Desde que você parece dotada de percepção extra-sensorial, diga-me o que me espera.

- Vai servir onde?

- Acampamento Bruckner.

- Fica a menos de uma hora daqui.

- Até ontem, eu jamais ouvira falar do local.

- Buckner faz parte do Baltimore PÖE.

- Pelo menos, sei que isto significa porto de embarque. Fica no Chesapeake ou no Potomac?

- Acho que fica distante do rio - respondeu a moça. - Pontos intermediários como Bruckner são os últimos pontos de reunião... antes que as unidades de combate sigam. O embarque é feito em Baltimore.

- O que transforma o Acampamento Bruckner em um porto no seco?

- Poderia chamá-lo assim. Quando estiver no Exército durante certo tempo, descobrirá que os rótulos podem ser obscuros.

- Se o meu acampamento faz parte de um PÖE, é possível que eu vá para o exterior. - Bruce não ficara perturbado com a aula sobre semântica militar. Havia muito concluíra que essa moça de cabelo castanho possuía recursos que se escondiam à primeira vista.

- Não acredito que o Exército faça um cirurgião de Lakewood esperar pela invasão na Inglaterra. Meu palpite é que foi designado para uma base. Ou talvez faça treinamento com uma unidade móvel para operar por trás das linhas inimigas. - Mais uma vez, o rosto da moça iluminou-se com o sorriso irónico que quase emprestava beleza às suas feições. - Estarei por acaso lhe provocando fadiga de combate com as minhas predições?

- Continue, por favor. Daqui a pouco reunirei coragem para subir naquele ônibus.

- Eu podia enganar-me, naturalmente. Até mesmo as melhores guerras precisam de tempo para começar... e os dentes das rodas às vezes deslizam. Milhares de médicos ingressam atualmente nas Forças Armadas. Nem todos eles recebem os cargos que poderiam desempenhar melhor.

- Fui avisado disso.

- Mas, o que quer que aconteça, não deixe que isso estrague o brilho interno que eu acabei de mencionar.

- Suponhamos que eu concorde em manter a lâmpada acesa. Você me examinará mais tarde... para ver como estou no tocante a combustível?

- Será que isso pode ser arranjado?

- Se eu ficar estacionado nesta área, ficarei praticamente à sua porta. Por falar nisso, estou nela agora mesmo. Posso levá-la até em casa?

- Um carro vem buscar-me aqui dentro de três minutos.

- Se for um encontro, você pode rompê-lo.

- Esse encontro é irrompível.

- Eu gostaria ainda de saber se devo ser franco? Ou alegar uma nobreza que você sabe muito bem que não possuo?

A moça ergueu o copo num brinde silencioso.

- Você pode ser um bom médico... É suficientemente honesto para inspirar confiança. Por esse cumprimento, exijo uma resposta à minha pergunta original. Quais são as suas finalidades nesta guerra?

- É sempre curiosa assim quando conversa com estranhos em bares?

- Sempre. No seu caso, minha curiosidade vai mais a fundo. Na verdade, é possível que você seja o exemplo que ando procurando para provar um argumento.

- Nada de estranho, espero.

- Tudo, menos isso, Major. Eu o chamaria de O Americano Típico... ainda um pouco estranho num novo uniforme. O soldado de trinta anos, despreocupado, solteiro...

- Quem é que lhe disse que sou solteiro?

- Você mesmo... com aquele ataque imediato à minha virtude. Você jamais teria pedido para levar-me a casa hoje à noite se tivesse uma esposa em Tampa.

- Você dificilmente pode culpar-me por tentar.

- Não o culpo. Isto lhe dá uma dimensão extra, que faltava quando a conversação começou... mas eu precisarei de mais. Apresentou-se como voluntário para fugir da monotonia do ensino? Está secretamente apaixonado pela guerra? Espera ver seu nome na lista de honra?

- Apresentei-me por que pensei que era meu dever. Sinto muito se for um motivo banal.

- Você acha que nossa atual cruzada é uma guerra para acabar com as guerras? Sem importar os erros que cometemos da última vez?

- Mal valeria lutar, se fosse de outra forma.

- Você ficaria surpreso ao descobrir quantos homens amam a guerra pela guerra. Alguns deles se lembrarão como o grande momento de suas vidas. Você é de raça diferente.

- Como médico, meu trabalho consiste em salvar vidas. Para mim a guerra é o mal supremo. Tenho, no íntimo, a esperança de que este país jamais se envolva em outra. Isto é devoção suficiente Para agradar-lhe? - Bruce voltou-se para a porta ao ouvir uma buzina na rua. As vidraças do bar eram translúcidas ao nível da vista, mas ele distinguiu a forma de um carro estacionado junto ao meio-fio.

- Serve-me perfeitamente, Major. - A moça ouvira também o som. - Como vê, eu não estava blefando.

- Mas eu não lhe paguei a bebida que prometi.

- Se não se importar, tomaremos a bebida em outra oportunidade.

- Você pode ainda ignorar aquele encontro.

- Não, depois de eu lhe dizer quem sou.

- Significa isto que nos vamos encontrar realmente outra vez?

- Se me permitir usar o que você acaba de dizer. Pode ter certeza que não o citarei erroneamente. Possuo capacidade total de recordação.

Ele olhou fixamente, mudo, para o cartão que a moça colocara sobre o bar. Na qualidade de interno em Lakewood, ele vira credenciais de repórteres. O cartão da Polícia identificava-a como Shane MacLendon, do International News Service. Era um nome que ele lera encimando artigos em centenas de jornais.

- Bem, Major?

- Você não pode ser Shane McLendon. Não tem idade suficiente.

- Vou fazer vinte e nove no mês que vem e sou repórter há oito anos. O carro lá fora é de minha agência. Vai levar-me até uma máquina de escrever para que eu possa enviar a coluna que será publicada amanhã.

- Aquela coluna é publicada com uma foto. Eu nunca a teria reconhecido.

- Examine com mais atenção na próxima vez - disse Shane McLendon. - Notará a semelhança. Eu não faço a devida justiça ao meu perfil depois de andar um dia inteiro em busca de matéria.

- Como está?

- Estive colecionando vinhetas de soldados na Union Station desde as oito da noite. Você foi o último. Boa, posso acrescentar, para dois parágrafos inteiros.

- Eu mal posso acreditar que mereça tanto espaço.

- O senhor tem valor jornalístico, Major Graham. Pode acreditar na minha palavra.

- Embora eu seja apenas um americano comum, com ilusões comuns?

- Nunca ouviu dizer que nada há mais estranho do que o homem comum? Especialmente quando, de quebra, ele é honesto?

Ela afastou-se rapidamente ao soar mais uma vez a buzina.

Retornando à Union Station, Bruce verificou que dispunha ainda de dez minutos antes da partida do ônibus seguinte para o Acampamento Bruckner. A espera serviu-lhe como desculpa para deixar-se ficarna plataforma e sorver pela última vez o ar da húmida noite, enquanto repassava na mente o encontro no bar. Shane McLendon, pensou, constituíra um antídoto poderoso para o estado de espírito em que descera do vagão. A despeito do modo casual com que lhe falara, ele ousava até mesmo esperar que a promessa de outro encontro fosse algo mais do que um consolo para seu orgulho.

Embora tarde, Washington parecia ainda inteiramente desperta e repleta de inquietos murmúrios. O som era distante, mas inescapável. Sugeria o monólogo de um neurótico, resolvido a abafar todas as outras vozes, ou o diálogo de um sabichão de coquetel, cuja voz constitui um berro perpétuo para impressionar os demais.

O conceito, naturalmente, era imaginoso... mas ele não podia afastá-lo da mente. A voz de Baltimore fora diferente. Numa noite como esta, quando podia roubar uma hora de Lakewood, ouvira-a com igual clareza. Respirar o ar úmido do Chesapeake e observar as escotilhas dos navios enferrujados nas docas foram uma de suas únicas distrações, durante os anos de aprendizado no hospital.

Ocasionalmente, antes que terminassem as perambulações, ele se perguntara se não estava dissipando a mocidade sem finalidade alguma, se permitia que o ignorassem aventuras em distantes lugares. À luz do sol, naturalmente, ignorara os pensamentos perturbadores. Como interno, cirurgião residente e, mais tarde, discípulo de um grande especialista, encontrara motivo para que lhe fosse negado o que tocava à maioria dos mortais. Compreendera, com grande clareza, que seus sonhos de meia-noite eram partes de uma canção de sereia, a que o Dr. Bruce Graham podia resistir. Logo que Abraham Schoenfeld oficializou sua nomeação como pesquisador, no momento em que percebeu que o estudo do coração e de suas delicadas válvulas podia constituir uma vida em si, fechara os pensamentos sobre o Taiti num aposento recluso no cérebro e lançara fora a chave.

À luz do sol, continuara a agradecer a Deus pela habilidade de seus dedos, pelo toque mágico que lhe permitira repetir uma complicada anastomose que, algum dia, poderia corrigir a carência de oxigénio e anormalidades cardíacas da infância - ou a dissecar um gânglio simpático cervical dez segundos à frente do recorde de Lakewpod. Finalmente, sabia, o impacto da autêntica maturidade trar-lhe-ia paz à mente. A sabedoria, nas palavras do sábio chinês, era o único caminho para a nirvana, para aquele reino altruísta em que homens como Schoenfeld pareciam entrar sem esforço.

O seu progresso na profissão fora bastante real; não precisou procurar mais quando Schoenfeld considerou-o essencial a sua pesquisa, Era fato que as carreiras combinadas do ensino e da cirurgia experimental pouco tempo deixaram para amizades duradouras. Aos trinta anos, o amor, no sentido do romance, continuava a ignorá-lo... mas ele jamais se poderia queixar de solidão. Naqueles anos ocupados em Baltimore não lhe faltaram o pôquer e os companheiros do iatismo. E houvera uma satisfatória coleção de romances com enfermeiras... que, descobrira interno ainda, podiam fazer suas próprias e argutas distinções entre a vida e a morte.

Por que, então, quando a vida em Lakewood estava tão bem organizada, apresentara-se no dia seguinte ao do domingo de Pearl Harbor? Havia Shane McLendon denunciado seus verdadeiros motivos quando lhe perguntara se a guerra era um jogo para ele, como fora para tantos outros? Seria o uniforme um substituto da armadura do cavaleiro errante, um passaporte para atos de ousadia além de seu alcance, antes que terminasse seu tempo de aventuras?

Não seja para sempre um tolo romântico, disse ele consigo mesmo. Esta não foi a primeira vez em que uma moça permitiu que um homem lhe oferecesse uma bebida para explorar-lhe os pensamentos. Observando o ônibus prestes a partir, subiu no veículo, procurou uma poltrona de janela e tirou as ordens do bolso.

 

NO DIA 30 DE JULHO DE 42 DIRIJA-SE AO ACAMPAMENTO BRUCKNER, EM COMPTON, MARYLAND, E APRESENTE-SE AO OFICIAL COMANDANTE DO HOSPITAL DA BASE.

                 Ulio The Ag

 

O estilo da prosa militar, refletiu Bruce, ajustava-se perfeitamente à ocasião. Como todas as ordens dignas desse nome, estas crípticas palavras supunham como coisa natural a obediência. Nada sugeriam das tarefas que realizaria no Acampamento Bruckner. Não havia indicação alguma, por mais remota que fosse, de que seu treinamento especial fora devidamente levado em conta pela organização que emitia tais comandos, assinados com iniciais cuja própria definição ignorava.

Vagamente, desconfiou que o AG na taquigrafia telegráfica significa Ajudante-Geral do Exército. Ainda mais vagamente, começou a compreender que cedera uma parte essencial de sua independência a esse AG. No seu caso, era uma sorte que pudesse trocar um conjunto de disciplinas por outro. O regime férreo do interno e do residente em que passara como lente de cirurgia certamente o condicionariam para o que porventura o aguardasse ao fim da viagem de onibus Ou assim raciocinava, enquanto descia a janela... e tentava resolutamente não parecer desligado demais do blablablá de conversas que o cercava agora, com o número sempre maior de soldados que entravam.

A ameaça permanecia, palpável como as colmeias fantasmagoricamente brancas dos prédios do governo que se erguiam do outro lado da praça da estação. Recordando-se do aviso de Shane McLendon, esforçou-se para dissipá-la. Seu tipo de Exército dos Estados Unidos, disse a si mesmo, seria algo diferente. Se, a partir daquele momento, seus atos ficassem sujeitos à vontade de estranhos, se o seu próprio êxito ou fracasso fossem por eles governados, o Corpo de Saúde seria, pelo menos, dirigido inteligentemente. Os seus talentos, afiados por anos de educação e treinamento, não seriam desperdiçados.

Foram usados eficazmente na Espanha, recordou-se, nos amargos meses finais da Guerra Civil, quando servira na famosa unidade médica do Dr. Juan Trueta. Esse o ano em que veio realmente a conhecer Schoenfeld, o ano em que aprendeu a combater a morte à margem de um campo de batalha com tanta calma como a combatera no anfiteatro cirúrgico em Lakewood. Agora, a experiência era coisa do passado e ele descobrira meios de afastá-la da mente. Mesmo naquela noite -, quando a moça no bar zombara de sua inocência - não sentira necessidade de mencionar o batismo de sangue.

Era ainda estranho que não encontrasse maneira fácil de comparar aqueles meses na Espanha com os testes muito mais vastos que o esperavam. Talvez fosse melhor esquecer o velho treinamento agora que os ventos políticos haviam mudado... Sentindo o ônibus ganhar velocidade, logo que as luzes do tráfego ao longo do círculo mudaram para o verde, cerrou os olhos e sucumbiu ao cansaço.

Dormiu durante a viagem até o Acampamento Bruckner e sonhou com a casa em Barcelona que lhe servira como último posto médico de comando... com as tempestades que rugiam pelo teto destruído pelos bombardeios e a chuva que açoitava a porta da sala de operações improvisada na adega. Ao acordar, outra chuva desenhava fios de agua nas janelas do ônibus e o pesado veículo acabava de cruzar o portão principal do campo... Agora, acordando pela segunda vez muito depois da meia-noite, compreendeu que o mesmo impiedoso aguaceiro quebrava-se contra as janelas de seu pequeno quarto na ala dos oficiais solteiros.

Até lhe clarearem os pensamentos, não pôde realmente acreditar que o Exército dos Estados Unidos já o possuía tão eficientemente como aqueles portões haviam-se fechado com um suspiro por trás do ônibus.

Recordando as primeiras impressões no sonolento momento, espantou-se com a decepção que sentiu quando viu, pela primeira vez, o novo habitat. Não esperara bandeiras ou bandas marciais - ou uma sentinela solitária numa ponte levadiça -, mas não estava preparado para o desolado vazio, para a alta cerca de arame em torno de uma área ainda mais vasta do que os abandonados parques com que se parecia. Ficara chocado com os modos gelados do PM que lhe pedira o cartão AGO... e telefonara para conferir-lhe o nome. O sentimento de que estava sendo encaminhado (tão casual e eficientemente como um novilho numa exposição de animais) persistiu quando um seco oficial de recepção conferiu pela segunda vez o cartão, antes de chamar um ordenança para levá-lo ao aquartelamento onde se encontrava agora.

Acostumado a enfermarias de cem leitos no mundo civil, não pôde abafar uma sensação de espanto ao primeiro vislumbre do hospital do acampamento: uma fila de edifícios térreos revestidos de papel alcatroado mais negro do que a noite. Como quartéis num pesadelo, eles pareciam marchar para o infinito entre paredes de pranchas de madeira, num mar de lama vermelha. Enquanto perdurava a melancolia, achou difícil acreditar que doentes pudessem ser tratados por trás daqueles muros escuros e muito menos que ele pudesse trabalhar ali como cirurgião.

Graças à convocação em Tampa, não lhe eram estranhos a nudez asséptica dos campos de recrutas ou o silêncio de sepultura que os enchia após meia-noite. Parte da confiança voltou-lhe ao despir-se... e o sono o envolveu novamente quase antes de poder deslizar para dentro dos lençóis do Exército. Desta vez, sonhou com Shane McLendon. Desde que todas as coisas são possíveis num reino em que o id é o rei, não teve dificuldade em repelir cada um dos seus golpes com finas e prontas jóias de humor...

Inteiramente desperto agora, compreendeu que não fora o aguaceiro que o despertara, mas um som no corredor. Ao repetir-se a batida na porta, sentou-se na cama e levantou o rosto para um tenente, com o caduceu de médico na gola e uma braçadeira de OD no braço.

- Sinto muito acordá-lo, Major Graham... mas eu preciso de ajuda.

A voz do oficial de dia era tão tensa quanto suas maneiras. Bruce compreendeu imediatamente que a necessidade era autêntica. Ele, também, fizera a mesma solicitação quando interno em ocasiões que espumosos problemas surgiam nesse adir entre a noite e o amanhecer.

- Espere um minuto até que eu me vista e o acompanharei. O senhor não me conhece... mas eu o conheço - disse o médico. - Eu estava na plateia, no ano passado, quando o senhor falou perante a convenção da Associação Médica Americana, em Filadélfia. Meu nome é Roger Snell.

- ótimo que me tenha encontrado. Até agora, não tenho

ideia de onde estou ou por quê.

- Essa sensação passará, Major. Eu também a senti, na minha primeira semana em Bruckner. - Snell tocou na braçadeira com um sorriso que era um misto de desculpa e de alívio pela suavidade da recepção. - Um dos nossos oficiais combatentes acaba de trazer três homens feridos num desastre de automóvel. O dispensário está tratando de dois deles... mas o terceiro está-me dando preocupação.

- Vocês não têm um cirurgião regular de serviço?

- O Major O’Reilly pediu o melhor que estivesse disponível.

- Nós ficamos sempre com falta de gente nos fins de semana. Por isso, arrisquei-me, na esperança de que não me repelisse.

- Longe disso. Mostre o caminho.

O dispensário, que servia como sala de tratamento de emergência e unidade de triagem, abria diretamente para as rampas das ambulâncias, a pequena distância da ala dos oficiais solteiros. A sala brilhantemente iluminada estava vazia, salvo por um técnico ocupado em uma máquina de escrever... e um oficial corpulento com as insígnias da infantaria e que se apresentou como o Major O’Reilly.

- Sinto muito acordá-los a esta hora, cavalheiros. Como o senhor vê, Major Graham, três dos meus rapazes estiveram apostando corrida na estrada e perderam a parada para a Marinha. O Sargento Gaither parece estar em estado grave.

Dois dos soldados, esperando dispensa na primeira sala de exame, já haviam sido tratados de pequenos ferimentos. O terceiro caso, um rapaz de rosto pálido com as divisas de sargento de Estado-Maior, repousava ainda sobre a mesa na segunda sala. O ferido tinha os joelhos puxados contra o corpo. Logo que Bruce tocou-lhe no baixo ventre, ele contorceu-se violentamente e puxou-os ainda mais para cima.

- O que é que o atingiu, Sargento?

- Uma moça no colo, senhor.

Bruce voltou-se para o oficial de dia.

- Cateterize-o, por favor. Isto nos deve informar o que precisamos saber.

Mesmo sem evidência ulterior, a situação era clara. No acidente, os ocupantes tinham sido arremessados para a frente. Parte da força fora amortecida pelo contato corporal. No caso de Gaither, o impulso para a frente fora detido pelo peso da moça que ele levava no colo. A área abdominal recebera todo o impacto do golpe, rompendo a bexiga mais ou menos como um saco de água explode ao ser lançado ao solo. Nada havia de excessivamente alarmante no prognóstico. A pressão arterial acusara 120/80, o que significava que não se iniciara ainda o estado de choque... e o sargento era do material de que são formados os jogadores de futebol das faculdades.

O cateter confirmou o diagnóstico com um jacto de fluido sanguíneo. Observando Snell nos olhos, Bruce notou que o jovem médico ficara quase tão pálido como o doente.

- Esse é o diagnóstico, Tenente. É melhor chamar seu urologista.

- Eu sou o cirurgião de serviço hoje à noite, senhor. O Major Denby está a caminho daqui, vindo de Nova York.

- Esta bexiga deve ser operada imediatamente.

- Nós não temos um especialista por aqui. A menos que o senhor concorde em operar.

Bruce tomou a direção do corredor.

- Isto pode ser feito, tendo em vista os regulamentos?

- As suas ordens o designaram para o hospital da base, Major. Eu tive apenas um ano de residência em urologia. E ele não incluiu laparatomias de rompimento de bexiga.

- Neste caso, para fins de registro, eu serei seu assistente.

A carranca de Snell desapareceu magicamente.

- Vou mandar prepará-lo imediatamente.

- A sala de operações já está pronta?

- Pronta e à espera, senhor. Nós mantemos sempre um grupo de serviço.

O’Reilly aproximou-se do som das vozes.

- Ouvi por acaso falar em sala de operações?

- Gaither irá para a mesa dentro de cinco minutos, Major - respondeu Snell. - O lema de nossa seção é serviço, com um sorriso.

- Isto não é uma decisão apressada demais?

Bruce controlou a impaciência. Era tranquilizador encontrar um oficial que sentia interesse autêntico pelos soldados.

- A operação imediata é a medida indicada num caso de rompimento da bexiga.

Gaither falou pela porta aberta, no momento em que uma nova crise de dor lhe contraía o corpo.

- Vou ficar bom, doutor?

- Claro. É uma operação simples.

O’Reilly voltou-se para o oficial de dia.

- Eu pensei que o chefe de sua seção fosse o urologista do hospital.

- O Major Graham ensinou cirurgia em Lakewood, senhor. Se o Major Denby estivesse aqui, concordaria com o diagnóstico.

- Neste caso - disse O’Reilly - parece que devo uma desculpa a alguém. Provavelmente ao Major Graham.

- Não tem importância - disse Bruce. - Tenho certeza de que o senhor não é o primeiro oficial a pôr em dúvida a competência dos médicos do Exército, nem será o último.

O cirurgião não esperara uma réplica ao seguir o Tenente Snell através da porta da sala de operações - mas ficou tranquilizado com o que viu.

O teatro estava inteiramente equipado. Uma enfermeira-assistente e um técnico, em trajos esterilizados e enluvados, já conferiam os instrumentos e as mesas de ataduras, enquanto uma WAC permanecia de prontidão para agir como enfermeira circulante. O doente já estava sob anestesia raquidiana, aplicada por um oficial do Corpo Médico, que parecia saber o que fazia. Observando Snell delimitar o campo cirúrgico e notando que o oficial de dia era rápido e exato, Bruce sentiu-se quase à vontade ao segurar o bisturi.

- A rigidez está bem acentuada - disse. - A ruptura provavelmente extravazou urina para a cavidade abdominal. Farei uma incisão baixa, de preferência ao emprego do método extraperitoneal.

A lâmina já cortara a pele imediatamente acima do púbis, passando pelo tecido subcutâneo e a gordura do baixo abdómen. Músculo algum era cortado com essa técnica e havia pouca hemorragia na área da linha central - uma vez que as camadas fibrosas que envolviam os músculos da parede abdominal fundiam-se numa faixa média dura que se estendia do umbigo ao osso púbico. O corte, ao ser completado, expôs o peritônio para outra profunda incisão, abrindo todo o campo operatório menos de dez minutos depois de delimitado o campo cirúrgico.

O rompimento, em forma de losango na bexiga, surgiu claramente à vista, na parte do órgão conhecido como domo, onde fora mais severo o impacto. O cirurgião fechou o corte com uma dúzia de suturas. Após ter sido a cavidade abdominal drenada dos fluidos que a haviam distendido, Snell irrigou-a pela segunda vez com uma solução salina com a finalidade de reduzir a irritação. O fechamento do corte requereu apenas alguns minutos mais, incluindo a pulverização, agora padronizada, com pó de sulfanilamida na ferida para diminuir a possibilidade de infecção.

Ao retirar as luvas, Bruce notou no relógio de parede que a operação consumira pouco mais de meia hora. Rotineira como tivesse sido a cirurgia, ele sentiu um calor de prazer ao voltar-se para agradecer à equipe. O Tenente Snell sorria ainda ao entrarem juntos no lavatório.

- Foi um belo trabalho, senhor.

- Facílimo de ponta a ponta, Tenente.

- O senhor deu a impressão de que era fácil, Major Graham. Se estivesse operando, eu teria suado sangue. Desde que cheguei a Bruckner, não tive muita oportunidade de estudar muito a minha especialidade.

- Eu pensaria o contrário, num acampamento deste tamanho.

- A maioria desses rapazes é forte como cavalo e igualmente sadio. Aqui, em urologia, o nosso principal trabalho é tratar de gonorréia.

O Major O’Reilly encontrava-se ainda na sala de triagem. Abriu os lábios num amplo sorriso quando leu os resultados no rosto dos médicos.

- O seu soldado sairá da cama depois de amanhã - assegurou-lhe Bruce. - Em duas semanas, ele deve estar novo em folha. Enquanto isso, veja se ele evita colocar moças no colo.

- Se o bar não estivesse fechado, eu lhe pagaria uma bebida - disse o major combatente. - Gaither é o melhor especialista de comunicações do meu batalhão. Sem ele eu não posso terminar o treinamento de combate.

No corredor do BOQ, Bruce descobriu satisfeito que podia localizar seu cubículo sem ajuda. A cama de pinho não parecia menos esquálida - mas a estranheza o deixara agora que vira uma equipe médica do Exército entrar em ação com tanta segurança como no seu próprio serviço em Lakewood. Era um bom augúrio para o que o esperava.

A corneta tocou para o rancho às sete. Encontrou Snell no espelho de barba contíguo no lavatório: o doente, soube o cirurgião, já estava pedindo o café da manhã...

A caminho do refeitório, passou pela mesa de triagem, onde um ordenança entregou-lhe um longo envelope oficial.

- Isto chegou por mensageiro, senhor.

O envelope trazia as armas da Câmara dos Representantes. Bruce sorriu ao tirar a nota do envelope. Era típico de Hal Reardon localizar-lhe o paradeiro dessa maneira.

Prezado Bruce:

Apenas uma palavra de cumprimento antes que você se instale.

O Senador Josselyn, que todos os bons filhos da Flórida respeitam, oferecerá um open house no domingo ao meio-dia. Em Five Oaks, a casa dele à margem do Severn. Oportunamente, você receberá um convite. Tenho certeza de que você aceitará quando souber que Janet ajudará o pai a receber.

O que o Senador fez por mim é um fato conhecido. Talvez ele possa fazer com que você progrida um pouco mais rapidamente no Exército. Na pior das hipóteses, posso prometer-lhe uma agradável mudança de ritmo.

A nota, observou Bruce, fora ”ditada, mas não assinada” por Harold Reardon, e constituía ainda impressionante evidência de que o representante do seu colégio eleitoral jamais vivia ocupado demais para ignorar o bem-estar de um eleitor - especialmente quando o eleitor fora colega de fraternidade escolar na Universidade da Flórida. Seria demais dizer que o Deputado Reardon era um amigo, mas Hal fora seu tutor autonomeado desde a formatura de ambos. Amigos comuns, disto Bruce tinha a certeza, haviam-lhe dado a notícia de sua convocação.

Aparentemente, era lógica a promessa de um convite para Five Oaks. Na opinião de todos os residentes dos municípios da Baía de Tampa, Lucius Josselyn era o Grande Velho do Senado. Na Flórida, a sua casa na Península Pinellas constituía a última palavra em grandiosidade barroca. Em Washington, a mansão de plantação que alugara às margens do Rio Severn, nas proximidades de Anápolis, era uma meça familiar de repórteres políticos e cronistas sociais. Josselyn fora a inspiração da carreira de Hal Reardon desde que o brilhante e jovem advogado disputara o primeiro cargo. Em Tampa e Washington, acreditava-se geralmente, que ele herdaria a cadeira senatorial - após casar-se com a filha do Senador.

Bruce conhecera Janet Josselyn sete anos antes: a ocasião, o baile do reinício das aulas na Universidade da Flórida. Desde aquela noite de gala, nenhum esforço fizera para restabelecer o contato. Janet fora apenas um meteoro no seu horizonte por motivos que ele sabia bem demais - e, embora ele pudesse visualizar sem maior dificuldade a reunião de domingo, quase ressentia a suposição de Hal de que ficaria ansioso para comparecer.

Naturalmente, como nativo de Tampa em pleno gozo de seus direitos, aceitaria o convite. Na própria Lakewood, ouvira os ecos da ascensão espetacular do colega de classe no mundo da política. Janet transformara-se numa espécie de lenda no mesmo mundo como anfitrioa do pai, dever que desempenhava desde a morte da mãe. Após sete anos, ele mal podia admitir que temia quase tanto como desejava a reunião.

A nota de Hal acrescentou uma dimensão nova - e muito necessária - ao seu dia. Entrou em passos ligeiros no refeitório dos oficiais, embora não pudesse notar sinal algum de boas-vindas na longa sala esfumaçada. Havia algumas mesas vagas. Escolheu a mais próxima, não desejando impor-se a grupos que pareciam formados de velhos amigos. Segundos depois de ter depositado a bandeja, aproximou-se um major de cabelo à escovinha, cuja aparência hostil era tão truculenta como o corte da cabeleira.

- Nick Denby é o meu nome - disse o recém-chegado. - Graças a Roger Snell, conheço-o mais ou menos. Ele mencionou um caso de lesão na bexiga, admitido ontem à noite.

- Nós tivemos sorte com aquele caso, Major. Operei menos de uma hora depois do acidente.

- Onde é que você fez treinamento em urologia?

- Fui interno durante seis meses numa clínica de urologia. Bruce teve o cuidado de não demonstrar ressentimentos com as maneiras bruscas do colega. Era inevitável que o urologista-chefe de um hospital militar não olhasse com bons olhos um intruso potencial em sua especialidade.

- Snell lhe disse que eu partira de Nova York à meia noite passada - prosseguiu Denby. - Não lhe ocorreu, por acaso, esperar?

- Eu operei porque ele pareceu hesitar em operar um caso de rompimento de bexiga. Um ferimento desses pode causar um bocado de problemas se penetra na área retroperitoneal. Por sorte, foi um caso de abrir e fechar, um ferimento estelar do domo. Eu o suturei e coloquei um cateter. Não havia provavelmente necessidade de drenagem, mas deixei duas feitas, apenas por precaução. Talvez o senhor queira extraí-las amanhã.

- O senhor parece conhecer um bocado sobre operações urológicas.

- Sou cirurgião, Major. Trabalhei durante dois anos como residente em Lakewood. Ensinei na escola de medicina de lá desde então.

A mão de Denby não estava muito firme no momento em que ele depositou a xícara na mesa. Bruce não tinha certeza se a reação originava-se do espanto ou de um resto de ira.

- Há quanto tempo está no Exército?...

- Três dias... contando a doutrinação.

- Recebeu diretamente a patente?

- Diretamente. E ainda não sei o que significa.

O sorriso de Denby, ao aparecer-lhe na face, desculpou-lhe a brusquidão.

- O senhor me pôs no meu lugar, Major Graham. Tenho a esperança de que desculpe um ligeiro ataque de maus bofes. Estou no Exército há dois anos. Recebi o meu posto de Major há um mês.

- O senhor deve ter entrado através da Reserva.

- E amaldiçoada seja a recordação da minha confusão mental... quando assinei aquela linha pontilhada. Eu devia ter ficado na minha especialidade e alegado trabalho de ensino, como motivo de isenção. Em vez disso, fiquei patriota. Em consequência, fui arrancado da clínica no exato momento em que começava a vida num distrito de renda alta de Manhattan. Está começando a ver por que fiquei mal-humorado há pouco?

- Não posso dizer que o censuro por isso.

- Este foi o melhor trabalho que tive desde que entrei para o Exército, e tenciono ficar por aqui. Talvez o senhor não conheça as vantagens de ser do Quadro Suplementar do Departamento de Guerra. É isso o que significa a estrela na minha ombreira.

- O que é que significa exatamente?

- Que eu, mais ou menos, estou sob a supervisão direta do Gabinete do Cirurgião-Chefe. Não é um cargo, no sentido civil, mas a ideia é quase essa. Naturalmente, fico uma fera quando ouço dizer que um major novinho em folha operou em meu campo. Tem alguma ideia do motivo por que foi mandado para aqui?

- Acho que fui escolhido para o exterior, desde que já tenho experiência de combate.

- Certamente, não no Pacífico.

Bruce hesitou. O Major Denby seria um guia útil nesse labirinto de egos conflitantes - mas ele não planejara mencionar o trabalho no estrangeiro.

- Estive na Espanha, no último ano da Guerra Civil. com uma equipe cirúrgica... organizada em Lakewood para trabalhar com o Dr. Trueta.

- Ficou até o fim?

-- Ficamos durante quase tempo longo demais. Logo que Barcelona caiu, descobrimos um atalho para a França, através dos Pirineus.

- Schoenfeld era o chefe de sua unidade?

- Essa é, habitualmente, a pergunta seguinte. Na ocasião, o Dr. Schoenfeld advertiu-nos de que chegaríamos às manchetes por motivos errados.

- Ele ocupou as primeiras páginas durante uma semana, quando prestou depoimento perante Jake Sanford, na Câmara dos Representantes. É verdade que ele simpatizava com os comunistas?

- Nós servimos os legalistas como médicos. Pelo mesmo motivo, o senhor deixou que a Reserva o convocasse, sem fazer um protesto. Nenhum de nós tinha inclinações políticas. Schoenfeld ainda menos do que os outros.

- Sanford contou uma estória diferente à imprensa.

- Sanford é um assassino nato de reputações. - Desta vez, Bruce não fez esforço para calar a amargura. - Desde que entrou para a Comissão de Atos Subversivos, ele tem sido um caçador de manchetes.

- Sanford é uma baixa forma de rato... mas pode criar um caso danado. A Espanha está nos seus assentamentos?

- Naturalmente, Major Denby. Foi uma experiência médica de primeira classe para todos nós.

- Se eu fosse o senhor, não mencionaria o fato, a menos que Britten o aborde.

- Quem é Britten?

- O Coronel Benson Britten, nosso oficial comandante - disse o urologista. - Não é minha intenção lançar uma sombra no seu primeiro dia de trabalho, mas um homem prevenido vale por dois. Boca fechada é a regra aqui, em assuntos delicados. Mais uma pergunta sobre Schoenfeld, e termino as minhas perguntas. Ele o recomendou ao Exército?

- Justamente o contrário. Logo que ouviu dizer que eu me apresentara como voluntário, pediu adiamento da convocação até que terminássemos uma série de pesquisas em cirurgia de coração aberto. Nossos experimentos e o ano académico terminaram na mesma ocasião... e eu apelei da decisão.

- E sua explosão de patriotismo foi premiada com o posto de major.

- Duvido que o apelo tenha influenciado o posto. A maioria dos especialistas começa atualmente como majores.

- É uma pena que essas normas não estivessem em vigor quando eu fui convocado - disse Denby. - Se estivessem, eu trocaria essas folhas douradas por prata antes do próximo ano. Não que um médico glorificado de doenças venéreas mereça chegar a tenente-coronel.

- É esse o seu título extra-oficial?

- Eu me acostumei a ele. Pelo menos, não me dá tempo de ficar aí sentado, matutando coisas. Não há homem mais ocupado do que eu neste acampamento. Pare o corrimento e mande-os embora. Esse é o lema do Corpo de Transporte. Na clínica, chamamos a isso de pecado, sofrimento e sulfadiazina.

- O seu trabalho parece um pouco monótono.

- Gaither foi o primeiro caso interessante que tivemos este mês... e era a sua vez de operar. - Denby levantou-se da mesa. - Não leve muito a sério o que eu digo, por favor. Falando do Serviço de Urologia, eu preciso ler o relatório de Snell de ontem à noite. Depois da liberdade da noite de sábado, deve ser mais comprido do que o braço dele.

- Eu me ofereceria para ajudar, se a sua especialidade não fosse diferente da minha.

- Não fique tão convencido disso. Eles podem decidir que faz parte de sua educação agregar-se à minha linha de recebimento. Se terminou, seria melhor que eu o acompanhasse. Britten chega sempre cedo ao gabinete e gosta de encontrar os recém-chegados à sua porta.

- Eu irei diretamente ao gabinete dele, se puder encontrá-lo.

- Comece pela Administração. Eles o encaminharão a partir de lá. Fica no meu caminho.

O urologista partiu em marcha rápida por um labirinto de corredores de comunicação. Após a terceira volta, Bruce descobriu que estava irremediavelmente perdido.

- Vou precisar de semanas antes de poder orientar-me.

- Não, depois de superar a sensação de que está numa prisão de compensados de madeira, em que todas as pranchas são iguais. Na verdade, o quadro aqui não tem nada de negro. No que interessa ao Corpo de Saúde, Bruckner é um posto mole. Fica perto de Washington e das garotas, se você não for casado... ou se sua esposa ficou em casa. Passe à vontade nos fins-de-semana e Nova York a apenas um salto. Mas eu quero mencionar outro perigo, antes de deixá-lo. Em todos os casos em que preparamos uma equipe médica para embarque e um oficial de seu posto e especialidade adoece, você pode receber ordens para assumir-lhe o lugar com o aviso de uma hora. Todo médico combatente que pode andar consegue um passeio rápido até a Inglaterra.

- Quando eu me apresentei, foi com esperança de ir para o exterior.

Denby pôs a mão no ombro de Bruce. Casual embora como tivesse sido o gesto, o cirurgião considerou-o como prova de aceitação.

- Você é um bom soldado, Graham. Simplesmente, não exagere. Há um bocado de guerra à frente.. É para todos nós. Desde que ela venha até você.

Os escritórios do hospital da base faziam parte de um edifício imponente, mas de má aparência, na ala sul do acantonamento. Bruce apresentou-se ao Ajudante, um major extremamente bem nutrido do Corpo Administrativo de Saúde. O Major Krock, por sua vez, encaminhou-o ao oficial executivo, que parecia imerso numa pilha de diários e telefones irritados, sem dar completa atenção a nenhum deles. Impressionado com a maior demonstração de energia que vira desde a chegada, Bruce esperou pacientemente até que o TenenteCoronel Whelton terminasse uma longa e resmungante discussão ao telefone, fechasse cuidadosamente cada livro e lhe desse um nervoso aperto de mão.

- Eis aqui alguns formulários. Logo que os tiver preenchido, eu o levarei ao Coronel.

As folhas mimeografadas que Whelton espalhou pela mesa eram bastante conhecidas. Bruce contraiu as sobrancelhas ao ler as páginas impressas, em espaço um.

- Eu recebi os mesmos formulários quando requeri minha patente senhor.

- O senhor teve sorte, Major. Eu preenchi cinco jogos antes de me arranjarem trabalho.

Os formulários exigiam detalhes infindáveis sobre sua educação, treinamento, diversões e línguas. Enquanto escrevia, o oficial executivo atirou-lhe outra folha contendo uma longa lista de organizações rotuladas de subversivas pelo Gabinete do Procurador-Geral - do Bund Germano-Americano à Associação Neurofisiológica Pavloviana. O ingresso, notou Bruce com alívio, podia ser negado bastando para isso a assinatura no fim da lista.

Terminado o trabalho burocrático, Whelton recolheu as fórmulas com um gesto experiente e colocou-as numa pasta de arquivo antes de entregar ao cirurgião um cartão menor, com espaço reservado apenas para as qualificações puramente profissionais. Isto, depreendeu Bruce, seria examinado pelo oficial comandante. A suspeita foi confirmada quando o coronel tomou a direção da porta na extremidade mais distante da sala.

- O Comandante o receberá agora, Major.

O gabinete era espaçoso, com uma vista para o Potomac e cadeiras de couro que apresentavam uma vaga semelhança com um salãode um clube campestre. No quadrado do tapete diante da escrevaninha atravancada, Bruce tomou posição de sentido e fez o que esperava fosse uma continência aceitável. O corpulento indivíduo que ocupava a cadeira giratória retribuiu a cortesia com dois dedos preguiçosos.

O Coronel Benson Britten, concluiu o cirurgião, era muito mais disciplinador do que esperara. Sem o uniforme, teria passado por um apático pequeno executivo, cochilando numa tarde monótona e sonhando com o primeiro coquetel do almoço. A camisa amarrotada, que o torso de Britten ameaçava romper nas costuras, aumentava o ar de contente indolência.

O oficial executivo fez também uma continência de acordo com o manual.

- O Major Graham apresenta-se ao serviço, senhor.

- Prazer em vê-lo, Graham. - Britten não fez esforço algum para levantar-se, embora estendesse uma frouxa mão depois que o oficial executivo colocou o cartão-sumário sobre o mata-borrão da mesa e desapareceu da sala. - Sente-se, enquanto examino este cartão.

Bruce sentou-se na cadeira dura como pedra no centro exato do tapete; as espreguiçadeiras, segundo pensou, eram reservadas para visitantes mais relaxados. Observando o Comandante sob as pálpebras semicerradas, teve a impressão de que Britten pouco esforço fazia para absorver a informação contida no cartão, embora continuasse a examiná-lo atentamente. O tédio no rosto pálido do Coronel era prova de que sua mente vagueava.

- Formado em Lakewood - disse ele, finalmente. - Nós não conseguimos muitos como vocês por aqui. Habitualmente, o Comando do Corpo de Saúde envia os génios para outros lugares.

- Eu dificilmente poderei ser considerado isso, senhor.

- Não cursou o Centro de Preparação dos Oficiais de Reserva, segundo vejo?

- Sinto muito. Quando eu era interno, nunca pensei que teríamos outra guerra.

- O senhor e um milhão de outras pessoas. Agora que sabe melhor, o que gostaria de fazer?

- O que o senhor achar melhor, senhor.

- Atualmente, estamos com o quadro completo. Vou designá-lo, no momento, para a reserva geral. É o melhor que posso fazer até embarcarmos o próximo destacamento.

- Posso perguntar-lhe quais serão os meus deveres?

- O senhor será médico de reserva de todos os serviços na base à medida que surgirem emergências. Enquanto isso, se precisar de conselhos, procure o Ajudante. É trabalho dele mantê-lo na linha.

Bruce compreendeu que terminara esse simulacro de entrevista. Esperara que suas notas em Lakewood lhe merecessem algum reconhecimento. Como civil, teria protestado contra a dispensa e insistido em que suas qualificações fossem estudadas detalhadamente. A disciplina do uniforme forçou-o, porém, a uma segunda e mais marcial continência antes de deixar o gabinete.

Whelton, ocupado ao telefone, disse-lhe para continuar com um aceno de mão quando ele passou - e isto com uma expressão abstrata a sugerir que já se esquecera do nome do novo médico. Na sua portinhola, o oficial do Serviço Médico Administrativo levantou a vista do mar de trabalho burocrático.

- Primeiro posto, Major?

- Como é que sabe?

- A maneira como fica em posição de sentido - respondeu o Major Krock. - Pode relaxar-se, agora que tudo terminou.

- Para onde é que eu vou agora?

- Faça seu seguro de vida e compre um bónus de guerra para mostrar que é bom patriota. Isto deve ajudá-lo até a hora das bebidas.

- Durante o dia inteiro?

Krock endereçou-lhe uma amistosa piscadela.

- Existem tradições sobre os primeiros contatos de um homem com Bruckner. Não cometa o erro de aterrar no Exército com ambos os pés. vou mandar um ordenança para iniciá-lo aqui na rotina.

Após três horas de processamento, Bruce compreendeu que fora válido o conselho do Ajudante. Os gabinetes que visitou não eram excessivamente numerosos, mas todos eles pareciam localizados nas extremidades opostas do vasto hospital. Os músculos das pernas lhe doíam muito antes que ele fizesse uma oneração de pagamento para adquirir uma apólice de seguro, autorizasse a compra de bónus de guerra e recebesse sua quota de injeções no dispensário. Finalmente, foram tiradas suas fotografias e impressões digitais para uma carteira de identidade e um passe padrão de Genebra. Este, disseram-lhe, era um cartão que jamais deveria deixar longe de si. Provava que ele era um oficial médico do Exército dos Estados Unidos. Como tal, dava-lhe direito à mesma consideração que o inimigo dispensava a uma patente equivalente do seu próprio serviço médico.

Soavam quase duas horas quando voltou ao refeitório para o almoço - Denby retirava-se na ocasião com um grupo de oficiais, mas afastou-se para acompanhar Bruce ao longo da mesa fumegante.

.- Posso pagar-lhe uma bebida às cinco horas, Graham?

- Nessa hora, eu certamente precisarei de uma bebida.

-. Não deixe que a tristeza da doutrinação o desanime. Todos nós passamos por isso e sobrevivemos. Foi designado para o quê?

.- O Coronel disse que me ia colocar na reserva de oficiais.

Denby assoviou baixinho.

- Ora, eu não pensava que Britten fosse tão longe assim.

- Ele não me deu a impressão de que era uma provação penosa demais.

- Eu estava pensando em voz alta... um procedimento mal visto por aqui. Esqueça-o.

Observando o oficial ainda moço de cabelos à escovinha afastar-se para reunir-se ao grupo, Bruce compreendeu que teria sido inútil interrogá-lo mais. Evidentemente, havia mistérios no Acampamento Bruckner que ele teria de descobrir por si mesmo. A observação de Denby fora um raio de luz nas trevas. Apagada a luz, as ameaças que o cercavam pareciam ainda mais agourentas.

Passou o que restava da tarde explorando o local. O quartel espalhava-se por centenas de rolantes hectares ao longo da estrada expressa Washington-Baltimore. Os mares de lama, ainda líquidos após a chuvarada da noite anterior, eram os únicos fatôres constantes na paisagem violentada. As passagens de pranchas entre as poças eram santuários duvidosos quando os caminhões passavam com um rugido dos motores. Embora andasse sem ser detido, Bruce não pôde evitar a sensação de que era um espião em território estrangeiro ou que estava sendo seguido por olhos ocultos.

Aqui e ali, deparava um campo de exercícios, asfaltado. Na extremidade mais distante do acampamento, parou numa barreira de segurança para observar um pelotão de infantaria percorrer uma pista de obstáculos - galgar paredes de três metros com a velocidade de um gato, vadear valas em que cada homem afundava até a cintura, ir rastejando centímetro por centímetro sob arame farpado até uma trincheira, enquanto balas reais assobiavam-lhe sobre a cabeça. A realidade mais nua da tarde confrontou-o no campo seguinte - um sargento instrutor moreno como mogno explicava os fundamentos do combate à baioneta a um círculo de atletas, nus da cintura para cima. O instrutor parecia quase desleixado enquanto recontava um a um os itens daquele medonho manual de armas, explicando-lhes as finalidades em duros detalhes e dando a cada golpe um número. O desleixo desapareceu quando ele traduziu os números em atos numa arremetida rápida contra um manequim de serragem.

O golpe cortante, derramando uma cascata de pó de serra no campo de instrução, teve a graça de um pas seul no ballet. Observando a baioneta ser retirada, Bruce compreendeu que vira finalmente, frente a frente, a face da guerra. Nos anos decorridos desde Barcelona esquecera o que tais armas podiam fazer ao corpo humano, quando empunhadas por um especialista.

A bebida que pediu no bar do clube dos oficiais mal poderia ser chamada de um prémio após um dia de trabalho, mas descobriu que precisava ainda mais dela. Estava pensando em pedir uma segunda quando Denby se aproximou.

- Tim O’Reilly vai a Baltimore buscar suprimentos. Se você quiser, podemos ir com ele comer camarões e tomar cerveja.

- Preciso de um passe?

- A nossa guarnição tem bastante liberdade para vaguear depois das cinco. Há restrições apenas na ocasião de alerta de movimento de tropas. Neste caso, ficamos presos aqui até que o transporte parta.

Naquela noite, O’Reilly dispensou o motorista do jipe. Deixando o portão principal com o acelerador baixado até a tábua, mergulhou na corrente de tráfego em direção a Baltimore. Reduzido como estava o tráfego civil pelo rígido racionamento de gasolina, pouca resistência encontraram na corrida alucinante. Os veículos do Exército quando em movimento, concluiu Bruce, andavam sempre em velocidade máxima, qualquer que fosse a missão. Agradou-lhe o ritmo, após os passos de caracol do dia.

O Sargento Gaither, segundo soube, estava-se recuperando sem problemas. Denby estava convencido de que ele podia voltar à unidade em tempo para embarque. Não mais falaram de assunto de serviço até que se instalaram numa das peixarias do cais. Sabendo que fora levado ali para instrução, o cirurgião teve o cuidado de não tomar a iniciativa até que O’Reilly ordenasse a segunda rodada de bebida.

- Nick me disse que o colocaram na reserva geral - disse o major combatente.

- Estou esperando ainda para ser útil.

- Talvez lhe arranjem trabalho amanhã nas minas de sal.

- Tim está-se referindo às filas de exames médicos - explicou Denby. - Faltando-lhe um emprego, é uma boa aposta que Britten o colocará nos exames físicos.

- Um médico recém-saído da escola pode fazer isso.

- A maior parte da reserva é formada de tenentes do Corpo de Saúde. E o que é mais, eles merecem o que ganham. Trata-se de um trabalho de rotina que não termina nunca - explicou O’Reilly. - Todo mundo que é examinado ao entrar deve ser examinado antes de tomar o navio. Você {^”’a surpreso ao saber quantos chegam até aqui apenas para perder todo o gás.

- Não reclame se lhe derem esse trabalho - aconselhou Denby. Você poderia acabar na inspeção das latrinas, o que é mais chato

- Mas certamente o hospital de uma base tem melhor trabalho para um cirurgião.

- Você acha que todos os especialistas em nosso serviço escolheram seu próprio trabalho? - perguntou-lhe o urologista. - Em Bruckner, nós temos um número embaraçoso de talentos médicos, por assim dizer. A situação não mudará até que uma segunda frente seja aberta na Europa.

- Nick tem razão - concordou O’Reilly. - No momento, o Corpo de Saúde deve inventar trabalho para o pessoal - e ignorar a tensão interna. Afinal de contas, o Exército tem muito em que pensar.

- Supondo-se que o Exército tenha uma mente - disse Denby.

- Alguns observadores acham que o Exército vive de acordo com um livro cuja edição foi esgotada há cinquenta anos. Dizem que não consegue ainda soletrar as palavras mais compridas.

- Você fala como um perfeito civil - respondeu O’Reilly. O Exército dos Estados Unidos não é perfeito, mas é o melhor que temos. Não espero que civis uniformizados mostrem por ele o devido respeito. O mínimo que vocês podem fazer é adaptarem-se ao sistema militar. Se isto significa trabalho nas minas de sal para o Major Graham, que seja. A menos que ele tenha amigos altamente colocados, deve aceitar a situação que lhe tocar.

Lembrando-se do Deputado Hal Reardon e da festa a que compareceria brevemente em Five Oaks, Bruce nada disse. Era fácil compreender os atritos entre os regulares e os reservistas. Discussões desse quilate, compreendia, podiam servir como válvulas de segurança após o expediente. No momento, parecia prudente continuar como ouvinte atento.

- Se você não usar suas amizades - disse o major combatente -, descobrirá que os melhores empregos foram há muito tempo ocupados em Bruckner. É uma lei da natureza quando a oferta excede a Procura.

- Tim quer dizer que Britten possui seu próprio estábulo - explicou Denby. - Ele está contente com as coisas como estão e não vai abrir novas cocheiras.

O camarão estava excelente e a cerveja era forte. Deixando que as vozes cinicamente preguiçosas continuassem, Bruce consolou-se como pôde com a maneira casual como os dois colegas de farda se desancavam mutuamente - e com a maneira ainda mais casual como o haviam esclarecido. Era cedo demais para nutrir a esperança de ter feito novos amigos - mais cedo ainda para pedir diretamente conselhos. Mas mal podia duvidar de que os motivos por trás da instrução eram cordiais.

De volta à base, pararam junto ao quadro de avisos, onde as ordens do dia seguinte acabavam de ser afixadas. Denby fungou e apontou o dedo para um dos itens.

- Você está nas manchetes, Graham... exatamente como previmos.

Bruce leu a ordem com os olhos apertados.

 

O MAJOR BRUCE GRAHAM TENDO-SE APRESENTADO A ESTA BASE DE ACORDO com O PARÁGRAFO 12 É PELA PRESENTE DESIGNADO PARA A SEÇÃO DE EXAMES FÍSICOS ONDE PASSARÁ A PRESTAR SERVIÇOS DEVENDO APRESENTAR-SE AO CHEFE DESSA SEÇÃO ÀS 0800.

 

- Não fique assim tão desanimado - disse o urologista. - É trabalho fácil e você pode fazer a maior parte sentado. Lembre-se do meu aviso sobre falar demais na companhia errada.

Era cedo ainda... e Bruce não sentiu desejo de retirar-se para o quarto, a despeito do acúmulo de impressões, que precisavam ser classificadas. Logo que os outros oficiais se afastaram, dirigiu-se para a sala de recreio - virtualmente vazia nestas últimas horas de fim-de- semana acantonado. Teve a atenção despertada por um exemplar do Star, de Washington, e sentou-se ao lado de um abajur para ler as manchetes. Encontrou o item que procurava na primeira página do segundo caderno - uma coluna composta de tipos especiais, juntamente com o rosto conhecido da autora:

AS COISAS, COMO AS VEJO Por Shane McLendon

As novecentas palavras de prosa consistiam de entrevistas de dois parágrafos com os soldados que a autora interpelara na Union Station. Todas as entrevistas observavam o mesmo modelo: um contraste entre o passado e o novo status do entrevistado, suas reações ao que o futuro lhes reservava e suas opiniões sobre os motivos da guerra. Shane McLendon conversara com um cabo de Utah, um guarda-marinha do Maine, um técnico da Força Aérea, natural de Nova York, e um pára-quedista do Texas. Nenhum dos homens fora identificado - mas era evidente que o Major do Corpo de Saúde que deixara para o fim chamava-se Bruce Graham.

Analisando a reprodução impressa de suas observações no bar, Bruce reconheceu que fora fielmente citado. Na frieza da matéria impressa, a estimativa que fizera do lugar que preencheria no serviço de cirurgia, além de suas esperanças sobre a conclusão da guerra, pareciam idealísticas era óbvio que a entrevistadora julgara que as opiniões dele logo depois precisariam de revisão. Apesar disso, de uma maneira que ele não sabia definir, ela utilizara cada um dos exemplos para assegurar aos leitores que a guerra estava em boas mãos... O fato de ele ter sido usado também - em apoio de determinado ponto de vista - deveria ter-lhe despertado irritação. Curiosamente, porém, sentiu-se mais divertido do que irritado. Ele daria um bocado para encurralar naquela noite a despachada moça e reiniciar a discussão.

com a mão no telefone público, lançou um novo olhar à coluna. O Star era o único órgão em Washington que publicava a matéria dessa repórter, cujos trabalhos tinham larga circulação: um telefonema para a redação provavelmente não resultaria na descoberta de seu paradeiro. Shane McLendon havia praticamente prometido que o encontraria novamente. Era melhor estratégia esperar pelo movimento seguinte, e não dar a impressão de estar excessivamente ansioso.

A necessidade de ouvir uma voz civil, porém, permaneceu. Antes de deixar a cabina telefónica, chamou o número de Hal Reardon pretendendo agradecer-lhe pelo communique que recebera naquela manhã. Na quarta chamada da campainha, obedeceu a um impulso ainda mais forte e desligou sem descobrir se o seu representante da Flórida estava em Washington. O bilhete de Hal, afinal de contas, não precisava ser acusado. Aqui, também, parecia mais prudente guardar discrição.

O envelope branco quadrado na caixa do correio constituía um convite formal do Senador Lucius Josselyn e da filha-anfitrioa para um open house no domingo seguinte, na propriedade à margem do Severn. O mapa incluído indicava que Five Oaks ficava a menos de uma hora de automóvel do acantonamento. Nenhum transporte foi mencionado, mas essa omissão não impediu Bruce de comunicar Pelo correio a aceitação do convite. Ele já observara que um vivo vendedor de automóveis abrira uma agência de aluguel do outro lado da estrada expressa.

O dia fora longo e cansativo - e sua incapacidade de estabelecer contato humano nas horas finais parecia parte da frustração geral. No acantonamento, permaneceu durante longo tempo sob o chuveiro na esperança de que o esguicho incessante da água dissipasse parte de sua perplexidade. De volta ao cubículo escassamente mobiliado, estava certo de que passaria uma noite insone logo que permitisse que seus pensamentos voltassem às deprimentes previsões de Denby e O’Reilly. Em vez disso, descobriu que estava sonolento demais até mesmo para vestir desajeitadamente o pijama.

No momento em que o sono o arrebatou, tudo foi puro esquecimento, sem sonhos.

A seção de exames médicos que servia ao Acampamento Bruckner estava localizada num grande celeiro. Situava-se, por razões que somente o Exército poderia explicar, a uns bons oitocentos metros do hospital propriamente dito. Na manhã seguinte, Bruce apresentou-se pontualmente no gabinete do chefe da seção... apenas para encontrar deserta a cavernosa área, e um sargento que lhe tomou o nome.

Pouco antes das nove, um Capitão entrou pela porta do celeiro, com sua postura militar apenas ligeiramente obscurecida pela tendência para a obesidade, que parecia endémica na base, e com o cenho franzido numa feroz carranca. A animação de Bruce atingira um novo ponto baixo quando foi convocado ao gabinete após uma espera de dez minutos. O apelido de mina de sal, concluiu ele, não devia ser encarado levianamente.

A placa sobre a mesa dizia que ele falava com o Capitão Calvin Pritchett. O capitão mal levantou a vista quando Bruce se aproximou.

- A administração enviou-me seu cartão, Major - disse ele com palavras mais latidas do que faladas. - O que é que o senhor sabe dos padrões físicos do Exército?

- Somente o que li.

Pritchett lançou um volume, com cantos de páginas dobrados, nas mãos do cirurgião.

- O senhor encontrará aqui os pontos essenciais. Sugiro que os releia. O senhor faz parte de um grupo de três. O sargento lhe dirá o que fazer.

O Capitão já mergulhara por trás de sua barreira de papel. Em dúvida se uma despedida de algum tipo era necessário, Bruce hesitou antes de voltar-se para deixar a sala - e apenas para ser detido pela voz seca de Pritchett, que se transformara agora num puro rosnado.

- Não, com tanta pressa assim, Major. É costume fazer continência no Exército quando se deixa a mesa de um oficial.

Bruce controlou a fúria. Reconhecia aí a voz do grosseirão, a esma em todo o mundo: naquele momento, estava impotente para reagir à altura. Fez uma perfeita continência, resistiu à tentação de Enfiar o polegar no próprio nariz e deixou o gabinete. Na ante-sala, obrigou-se a fechar mansamente a porta e reclinou-se contra o umbral até que o coração recuperou o ritmo normal. Surpreendendo um brilho no olho do sargento-burocrata, perguntou-lhe |aum sussurro:

.- Um major precisa alguma vez fazer continência a um capitão?

O sargento replicou numa voz tão sem expressão como a de um locutor de estação ferroviária.

- O regulamento diz que um oficial que se apresenta faz continência ao retirar-se.

- Sem importar o posto?

- Ele teve razão nesse caso. O senhor se apresentava para serviço.

- Obrigado pela correção, sargento. Parece que fui designado para um grupo de três. Onde o encontrarei?

- É a última fila, senhor. Na extremidade oposta do telheiro. O Capitão Seward é o encarregado.

Seward, um natural do Meio Oeste de fala macia e já na casa dos quarenta, recebeu-o com um caloroso aperto de mão que muito contribuiu para acalmar-lhe o temperamento irritado. O mesmo aconteceu com a deferência do Tenente Travis, o outro membro do grupo. A entrevista com Pritchett marcara o início do dia de trabalho da seção. Três filas de recrutas já apareciam numa área de vestiários à boca do pavilhão e desciam sobre os grupos de médicos à espera. Estavam nus como Adão e a maioria parecia resignada à nudez.

Seward emitiu um suspiro que se parecia com um gemido e pendurou o estetoscópio em torno do pescoço.

- Não deixe que o espetáculo o deprima - disse ele. - Essas filas apenas parecem que nunca terminam... e eles são homens, e não hipopótamos rosados. Entre nós, devemos fazer-lhes um exame completo.

- Eles não foram examinados antes?

- Em teoria, estão em condições para combate... mas o regulamento exige um exame final. É este. Logo que os aprovarmos, eles ficam prontos para entrega em Baltimore.

- Como é que são divididos os exames?

- Eu controlo as fichas e examino os casos duvidosos. Travis examinará tórax e coração. Você pode examinar hérnias, extremidades e doenças venéreas.

- À primeira vista, eu pensaria que tais defeitos teriam aparecido há muito tempo. Por que são necessários agora?

Seward sentou-se à escrivaninha e abriu a primeira pasta.

- É uma boa pergunta. Infelizmente, eu não tenho uma resposta imediata. Não se preocupe com pequenas luxações, varicoceles e pés chatos. Lembre-se de que cada homem na fila já convenceu o comandante da unidade de que pode galgar uma escada de embarque.

Bruce instalou-se num dos três cubículos de exame, enquanto o sargento ordenava às três colunas de homens nus em pêlo que se adiantassem. As observações de Seward, revelando mais do que o declarado, acrescentaram uma pungência adicional à realidade grotesca do que seguiu.

Após ter examinado cinquenta homens, o cirurgião ficou desalentado com a disparidade entre seu diagnóstico e as fichas que o capitão lhe entregava, por solicitação. Insistindo, nas entrevistas, descobriu dois fatos importantes que eram, em si mesmo, paradoxais. Muitos dos novos soldados haviam ocultado ou disfarçado defeitos para ingressar no Exército. Agora, cansados do treinamento de combate e diante da ameaça imediata de submarinos ao largo, pareciam dispostos a exagerar exatamente os mesmos defeitos que os teriam isentado da convocação.

As oportunidades de dispensas de última hora, descobriu Bruce, eram realmente remotas no Acampamento Bruckner. Antes do término do turno da manhã, vira praticamente todos os tipos de pequenas deformidades ou lesões: pés ligeiramente tortos em virtude de paralisia infantil, mandíbulas que mal se abriam em virtude de velhas fraturas, membros encurtados devido a luxações que haviam sarado mal, pequenas hérnias, pés chatos - e os milhares de sinais de doenças venéreas revelados pelo exame conhecido, na vulgata militar, por inspeção do pequeno braço.

No momento em que o toque de rancho soou ao meio-dia, ele já perdera a conta das ocasiões em que detivera a fila para protestar junto a Seward e isto apenas com o resultado de a ficha ser carimbada Aprovado - e o soldado mandado andar.

- Vamos almoçar no PX - disse o Capitão. - Fica mais perto do que o nosso refeitório.

Bruce notou que o oficial mais velho compreendia a confusão em que se encontrava - embora evitasse cuidadosamente o assunto até que trouxessem café fresco para o cubículo que ocupavam na congestionada cantina do posto.

- Ouvi dizer que Pritchett tratou-o mal esta manhã. __ Por não fazer continência ao deixar o gabinete. Como a maioria de soldados de quinta classe, Pritchett é um especialista de primeira classe em regulamentos. Todos os oficiais desta seção o odeiam.

- file tem um trabalho muito importante.

- Não o conseguiu por capacidade. Pritchett é aparentado da esposa do Comandante - e tem sido um bom sobrinho em tudo o que pode. As suas folhas douradas devem estar chegando a qualquer momento. Naturalmente, ele o odeia porque você já as usa.

- Você está-me aconselhando a tolerar isso?

- No seu lugar, eu daria a impressão de apavorado todas as vezes que ele ladrar. Não será para sempre. No momento em que ele for promovido, Britten lhe dará um cargo melhor.

- Mas por que um incompetente deve obter ainda mais poder?

Seward tinha os olhos presos no brilho cromático da vitrola automática. Aparentemente, estava extasiado com os ritmos quentes que emergiam das profundezas da máquina.

- Os seus assentamentos dizem que você tem quatro dias de serviço ativo. Você deve ter aprendido algo sobre a cadeia de comando... e que ela permanece intacta.

- Estou ansioso para aprender mais.

- Vamos começar com o nosso trabalho atual. Obviamente, você está insatisfeito com o gado que desfilou até agora.

- Será necessário considerar como gado os convocados?

- Há momentos, Major Graham, em que uma metáfora brutal é o que salva a sanidade de um médico. Penso que está imaginando como alguns desses homens conseguiram chegar até Bruckner. O mesmo me aconteceu quando cheguei aqui.

- Somente em nossa fila, contei mais de sessenta casos que um veterinário teria recusado.

- Em tempo de guerra, os que escolhem nem sempre são tão eficientes... ou exigentes. A junta local de recrutamento é obrigada a atingir uma cota. Se a cifra não é atingida, ela julga que prevaricou no cumprimento do dever. Supondo-se que o homem esteja ainda quente quando seu número é chamado, ele é examinado. Se não houver insanidade ou deformidade evidentes, ele é enviado a treinamento básico. De outra forma, o inimigo pode irromper por aqui e começar a matar civis. Ou Washington poderia elevar o limite de idade e os próprios examinadores terem de entrar na fila.

- A amostra de hoje é típica do que é aprovado pelos centros de recrutamento?

- A qualidade do gado não varia muito - disse Seward. Tocou um novo botão de controle da vitrola e o PX foi invadido pela nostalgia calmante de The Missouri Waltz. - Não deixe que esse fato estrague sua fé em nosso programa de recrutamento... ou nos procedimentos adotados pelo Corpo de Saúde. Afinal de contas, agora que eles estão de uniforme, devemos dar apoio aos soldados... através da Administração dos Veteranos, se terminarem em um hospital de convalescentes, ou excluí-los imediatamente por incapacidade.

- Fui informado de que um certificado de dispensa por incapacidade é mal visto em toda a fila.

- Aqui em Bruckner é algo a ser evitado. Pritchett geralmente descobre um meio.

- A dispensa por incapacidade não seria a única alternativa na maioria dos casos que aprovamos hoje?

- Não, da maneira como Pritchett encara as coisas. Se puséssemos em risco seu plano, ele correria atrás dos nossos escalpes.

O Tenente Travis atravessou o PX e curvou-se sobre o cubículo.

- Aguentariam os senhores, cavalheiros, ouvir algumas notícias desagradáveis? Ouvi dizer que a reserva de oficiais terá seis nomes a menos antes do fim-da-semana.

- Por causa do novo embarque? - perguntou-lhe Seward.

- É o que dizem, Capitão. Em todos os casos em que o número de um especialista combinar.

- Queira Deus que o meu não esteja entre eles.

- Isto significa uma viagem até a Inglaterra? - Indagou Bruce.

- Nós não temos outro lugar para ir, Major. Não pense que eu não quero servir o meu país. Simplesmente, não quero fazer parts do pelotão de saúde de um navio.

- O que é que há de tão mal nos navios?

- Nada... em teoria. Um pelotão de saúde de navio é um grupo médico auto-suficiente que serve a soldados em trânsito. Eventualmente, claro, eles planejam converter alguns desses navios em hospitais para trazer os feridos. Atualmente, quando um pelotão chega às Ilhas Britânicas, é depositado na praia. A maioria dos oficiais tem sorte quando consegue um mês de trabalho em três.

- Chame-o de os esquecidos do serviço - disse Travis. - Muitos bons médicos americanos estão atualmente na Inglaterra separando correspondência para sobreviver.

- Tudo isto mudará da noite para o dia quando a Europa for invadida.

- Nós estamos ainda muito longe do status de invasão - disse Seward. - Atualmente, o eixo Baltimore-Washington parece o céu quando comparado ao isolamento numa charneca escocesa. - Ele lançou um olhar ao relógio da parede e levantou-se. - Nós não precisamos subir naquela prancha de embarque até que ela seja arriada. Se um número suficiente de nomes for retirado, nossa situação aqui poderá melhorar. Nós podemos mesmo começar a trabalhar novamente como médicos, em vez de como enfermeiros. No momento, sugiro que voltemos às minas.

A tarde foi uma repetição da manhã, um turno que se estendia até a sepultura.

Ajustando-se a cada caso que aprovava, Bruce descobriu que era uma experiência significativa observar a corrente de carne que fluía a sua frente. Naquela ocasião, os corpos não pareciam mais do que abdómens, órgãos genitais, duas hérnias potenciais, pernas a serem examinadas em busca de veias vericosas, ou pés para serem sondados em busca de evidências de arcos caídos. Na melhor das hipóteses, pouco mais do que em minuto podia ser reservado a cada exame. Fossem eles brancos, pretos ou amarelos, consumidos pela pobreza, gordos de boa vida, musculosos como Hércules atrasados no tempo, não podia considerá-los como personalidades. Apesar disso, era inevitável a classificação aproximada.

O maior grupo era constituído dos extrovertidos - os jovens risonhos e brincalhões que haviam engrossado as fileiras desde que o primeiro exército marchava para a batalha. Poucos deles pareciam perturbados com a nudez, pela proximidade suada de outros corpos. Pensando em pouco mais do que na próxima debandada, na refeição seguinte ou na garota futura, haviam-se adaptado bem à vida do quartel. Finalmente, adaptar-se-iam ao batismo de fogo quase com a mesma facilidade com que às atividades externas.

A segunda classificação óbvia era a dos introvertidos. Menor do que o dos alegres marias-vão-com-as-outras (com seu heroísmo fingido e piadas grosseiras), este grupo era, ainda assim, excessivamente numeroso. Exibiam características significativas - o olhar furtivo, a vermelhidão da vergonha com que recebiam as sondas dos médicos, as mentes que pareciam alimentar-se do medo. Tratavam-se de homens cuja aceitação do uniforme fora, na melhor das hipóteses, parcial. Consumidos pela autocomiseração, incapazes de estabelecer contatos satisfatórios com os demais, rapidamente desenvolviam aqueles esgotadores tiques resumidos sob o rótulo da psiconeurose.

Era, amiúde, alto o quociente de inteligência desses homens. Se um lugar pudesse ser encontrado para eles -, um lugar onde compulsões não se chocassem com deveres -, esses convocados poderiam transformar-se também em bons soldados. O perigo era o colapso nos primeiros momentos do combate, o desastre que podiam infligir aos demais no momento em que comprovassem a verdade eterna de que corrente alguma é mais forte do que o elo mais fraco.

O terceiro grupo incluía os verdadeiros desajustados: os psicopatas nascidos sem consciência ou motivação, os mentalmente retardados, os paranóicos astuciosos que eram os simuladores conhecidos dos seus pelotões. Fracassado na vida civil, seriam fracassos ainda maiores no Exército - mas não constituía dever do examinador excluí-los. A tragédia de todos os programas militares em massa, ao que parecia, estava ali na fila dos exames médicos - uma ilustração viva de que apenas certo tipo podia adaptar-se ao molde do soldado. Aqueles que acalentavam o direito divino do homem de diferir dos seus concidadãos seriam os que mais sofreriam. E constituía a culminação da injustiça que os dissidentes fossem reunidos no mesmo grupo com os mentalmente perturbados, os simuladores, os totalmente incapacitados.

No fim, como sempre, a finalidade global do Exército prevaleceria. Não era época de pôr-lhe em dúvida o respeito férreo pelos regulamentos. Naquela época não havia lugar para piedade no pavilhão de Pritchett. Apenas um ligeiro toque para uma suspeita de hérnia, uma rápida avaliação dos resultados posteriores de uma doença venérea, a ignorância de uma deformidade não inteiramente mutilante - e um gesto para chamar o próximo a ser examinado.

Durante quatro vezes no curso da tarde, Bruce excluiu homens com a aprovação de Seward e enviou-os a Pritchett para reexame apenas para vê-los emergir com o carimbo de Aprovado nas suas fichas. Era tarde - e a fila chegava finalmente ao fim - quando uma voz nervosa sacudiu-o da letargia.

- O senhor não se lembra de mim, Major

O cirurgião levantou rapidamente o solhos. O rosto coberto de sardas que o olhava e o tufo de cabelos louros eram iguais a milhares de outros. Logo depois, ativando a memória, ele voltou à enfermaria de cirurgia de Lakewood - ao lado de uma cama equipada com uma armação de arame que prendia as cobertas para facilitar o exame desse mesmo doente.

- Sou eu, Tommy Thorpe. O senhor tratou-me em Baltimore há dois anos.

- Lembro-me, Tommy. Como vai você?

- Bem, senhor, muito bem.

Bruce recordou-se do caso agora, tão claramente como se as fichas médicas de Lakewood estivessem a sua frente. Os seus olhos desceram para as pernas de Tommy: a esquerda, a despeito da bravata do rapaz sobre a boa saúde, era mais grossa do que a direita. Aquela mesma perna fora responsável por sua recaída após uma apendicectomia - e pelas dificuldades de convalescença. Naquele dia, as vias superficiais estavam distendidas, um sinal certo de que alguma obstrução existia ainda na circulação venosa profunda.

Bruce operara pessoalmente Tommy Thorpe - removendo um apêndice gangrenado e supurado quase aos pedaços e lutara duramente para salvar a vida do rapaz durante a peritonite que se declarara, passaram-se dias antes que a infecção fosse debelada. Em seguida, ao começar a convalescença, vira-se à frente de uma nova complicação que cirurgião algum pode impedir - a ”perna de leite” de uma tromboflebite, assim chamada porque ocorre amiúde após o parto.

Usara um novo tratamento, injetando os gânglios nervosos situados em volta da espinha a fim de dilatar os vasos sanguíneos. Os resultados imediatos foram espetaculares, reduzindo a hospitalização do doente de semanas para dias. Agora, dois anos após a alta, parte das complicações originais reapareciam.

- Como é que você conseguiu ser aceito no Exército? - A pergunta fora automática - e desnecessária. O Capitão Seward dera a resposta no almoço.

- Como todo mundo, eu fui convocado.

- Passou no exame médico?

- Não, da primeira vez, senhor. Ao me apresentar novamente, havia novos médicos na junta. Disseram que eu servia e mandaram-me para treinamento básico.

- Fique de lado, Tommy. Eu gostaria de examiná-lo novamente.

A fila terminou cinco minutos depois. Bruce chamou o antigo

cliente ao cubículo. Desta vez examinou atentamente as pernas, medindo a circunferência de cada panturrilha, e descobrindo que a esquerda era três quartos de polegada mais grossa do que a direita. Isto em si constituía evidência indicadora de anormalidade. Um interno do primeiro ano sabia que a esquerda devia ser ligeiramente mais fina desde que não era tão usada como a direita.

- Este estado causou-lhe algum problema ultimamente?

- Eu disse que estou bem, senhor. Há alguma coisa

- Não sei ainda, apenas com este exame. Sentiu algum desconforto desde que veio para Bruckner?

- Apenas na marcha.

- Que marcha?

- Minha companhia fez uma marcha de cinco quilómetros esta Semana com equipamento completo. Senti algumas dores quando voltei ao quartel. Não parecia grave. Apenas uma pequena inchação e algumas cãibras. Muitos de nós ficaram em pior estado.

- Você pediu revista médica?

- Não sou nenhum simulador. Quero simplesmente ficar com a minha unidade.

- Eu não posso aprová-lo, Tommy. Não, até que tenhamos examinado essas veias que o incomodaram em Lakewood. - Bruce voltou para Seward, que se havia aproximado para descobrir o motivo do atraso. - O senhor confirmaria este diagnóstico, Capitão?

Enquanto Seward fazia seu próprio exame, Bruce folheou o livro que Pritchett lhe dera naquela manhã. Encontrou o que procurava no momento em que Seward saiu do cubículo.

- Qual a sua opinião, Major Graham?

- Eu chamaria a isso de um caso de tromboflebite crónica.

- É bem possível que seja.

Bruce abriu o manual de qualificações físicas.

- Este homem não pode ir para o exterior com tal incapacidade. Está aqui mesmo no livro. Ele não devia nem mesmo estar no Exército.

Seward tomou uma profunda respiração e olhou para os caibros do celeiro.

- Mantém esse diagnóstico... e essa decisão.

- Ambos são óbvios.

- Eu terei de submeter o caso a Pritchett, como sabe.

- Se ele quiser, mandarei buscar as fichas médicas em Baltimore.

- Quando é que você o operou?.,,(

- Há uns dois anos, mais ou menos.

- A saúde geral de Thorpe parece excelente. Não teria tido ele tempo de recuperar-se?

- As veias estão dilatadas, a perna está inchada, e ele sente dores ao andar. De que mais precisamos?

- Nada... se você está tentando convencer-me. Estou pensando é no chefe da seção.

- Se ele o aprovar, deveríamos levar o caso ao Comandante.

- A Benson Britten? Ele não distinguiria uma veia varicosa de uma hemorróida com trombo. E mesmo que o fizesse, ele apoiaria Pritchett.

- Defenderei meu diagnóstico diante de qualquer junta de inquérito.

- Não há necessidade de ser tão drástico assim - respondeu Seward. - Dê a este homem um talão de consulta. Mande-o voltar amanhã para um exame no hospital. Isto é o melhor que podemos fazer hoje à noite.

- Não acha que ele deveria ser internado imediatamente?

O oficial mais velho sacudiu a cabeça. Bruce sabia que em sua mente o desespero lutava uma batalha perdida com o protocolo.

- Pritchett é o único que pode ordenar a hospitalização de um homem retirado da fila de exames médicos - e ele já foi para o bar dos oficiais. A ficha diz que Thorpe é soldado burocrata. Ele não sofrerá uma recaída se esperarmos até amanhã.

- Eu me sentiria muito melhor se ele ficasse deitado.

- A unidade dele foi aprovada para operações de combate. Se pudermos confirmar seu diagnóstico amanhã, é possível que Pritchett permita que ele fique. Mas duvido.

- Não há nada simples no Exército?

- Não, quando se mede a compaixão do civil com a necessidade de ganhar uma guerra. Aceite essa lógica pelo avesso, se puder. É essencial à sua sobrevivência.

- Pelo menos salvamos hoje a vida de um soldado ao rejeitá-lo.

- Ele não foi salvo ainda, Graham. Lembre-se de mais uma coisa, enquanto estamos falando do assunto. Se Thorpe escapar de serviço ativo, Pritchett receberá no seu próximo relatório o crédito por um diagnóstico de mestre. Posso pagar-lhe uma bebida? Ou, para um único dia, já bebeu remédio de soldado demais?

Mais tarde, com as piores apreensões acalmadas pelo bourbon, Bruce deixou a sala-de-estar atendendo a um chamado da varanda do alojamento. Um conversível branco como leite parara em frente ao edifício, tendo por trás do volante o Deputado Harold Reardon. A moça ao lado - uma beleza morena tão deslumbrante como o carro

- usava um uniforme da Cruz Vermelha que formava um austero contraste com seus encantos.

- Aparentemente, ela ignorava os olhares que provocava.

Ao atender os visitantes, Bruce recuperara a calma. No tempo de colegas, o génio de Hal Reardon para as coisas imprevisíveis fora parte de seu penache. Era típico dele chegar ao Acampamento Bruckner sem aviso... e trazer Janet Josselyn. Bruce reconheceu-a imediatamente. A filha do Senador fora alvo predileto dos fotógrafos desde o começo da guerra.

- Que bom que o encontramos - disse Hal. - Janet estava com medo de que precisássemos de uma patrulha de busca.

Ele deu a volta ao carro com a mão estendida - um homem alto e agressivamente belo de trinta anos que poderia passar ainda pelo melhor zagueiro de sua universidade. Aí, pensou Bruce, estava um exemplo da capacidade de improvisar do caçador de votos, de criar drama numa situação comum. A maioria dos civis da idade de Hal, cercada de homens fardados, ter-se-ia sentido pouco à vontade. O Deputado Reardon poderia ter passado por um oficial disfarçado, por motivos particulares - um agente secreto, talvez, cujo incógnito deveria ser respeitado.

- Você, na certa, lembra-se de Janet, no nosso último baile de volta às aulas na Flórida - disse ele. - Por estranho como pareça, ela se lembra de você - e, por isso mesmo, espero que você esteja envergonhado.

A moça já estendera a mão.

- Não podemos esperar que a memória de um médico ocupado retroaja a tão longe - disse ela. - Sete anos formam um grande abismo... embora ele, realmente, tenha-me tirado três vezes para dançar.

O aperto de mão dela foi frio, mas firme, e, como o perfume que ela usava, despertou-lhe instantaneamente recordações.

- Se quiser - disse Bruce - posso dizer quais foram as músicas.

- Duvido.

- A valsa foi Weinerblut. Os fax trots foram Lady, Be Good e Stardust.

O Deputado Reardon lançou a cabeça para trás numa explosão de riso. Na universidade, Hal possuía um riso encantador e o timbre amadurecera com os anos.

- Eu lhe disse que a conquista foi permanente, minha querida. Pendure outro escalpo.

- O senhor realmente se lembra, Major Graham?

- Eu posso até mesmo dar o nome do maestro. - Bruce tinha a esperança de que sua tentativa de humor o houvesse salvo. Tinha havido mais verdade do que bravura em suas palavras. O toque da mão de Janet Josselyn havia-lhe trazido à memória um ginásio ornamentado com florões e bandeiras das fraternidades universitárias e um placar de contagem arrancado do Campo Fleming para celebrar uma vitória sobre Auburn. No baile, as músicas pareciam fluir das nuvens - e a namorada de Hal Reardon havia gravado uma imagem indelével no seu cérebro.

- Prove que está falando sério - disse a moça. - Prometa que irá a Five Oaks no próximo domingo.

- A minha aceitação já está no Correio, Senhorita Josselyn.

- O nome é Janet. Um homem com a sua memória merece algumas concessões. Além disso, Hal tinha razão. Eu me lembro de você com muita clareza. Depois do último pedido para dançar, você prometeu telefonar-me, o que não fez nunca. Esta é a sua oportunidade de expiação.

- Farei o possível para recuperar o terreno perdido. - Ouvindo a descrição de Hal do caminho mais curto para Five Oaks, os pensamentos de Bruce correram em tropelada. O silêncio após o baile fora uma medida de autoproteção. Estudante ainda, com anos de aprendizado à frente, Janet Josselyn estava - e isto era manifestamente claro - além de seu alcance. Mesmo sem o compromisso dela com Hal Reardon, mal podia arriscar-se a apaixonar-se por ela... O fato de que os acidentes da guerra a trouxessem à porta do seu quartel dificilmente seria motivo para júbilo - e ainda menos motivo para esperar que as coisas houvessem mudado.

- Até domingo.

- Não vai se esquecer?

Bruce emergiu dos pensamentos para apertar-lhe a mão pela segunda vez.

- Claro que não. Posso oferecer-lhe uma bebida?

- O Senador está-nos esperando para jantar - disse Hal. - Paramos aqui por um motivo apenas - segurá-lo. - Ele apertou-lhe a mão igualmente, com o vigor peculiar aos políticos. - Lembre-se do meu número de telefone se não gostar da maneira como o Exército o trata.

- Eu amo o Exército... e o meu amor é retribuído.

- A hipérbole tem os seus usos - disse Hal. - Mas não exagere. - Deslizou para trás do volante do conversível com um gesto casual que era uma meia continência. O gesto incluía o grupo de invejosos reunidos na varanda do clube dos oficiais. Bruce quase não se surpreendeu quando vários deles retribuíram a continência antes que o Jaguar branco como leite partisse com um rugido em direção ao portão do acampamento.

No bar, Nick Denby sentou-se no tamborete ao lado de Bruce.

- Um homem que conhece deputados deve possuir encantos ocultos - disse ele. - Por que não explicou?

- Eu não esperava que Hal aparecesse tão cedo.

- A presença de Janet Josselyn, tão perto assim, foi mais do que a maioria de nós podia suportar. Se ela estiver do seu lado, eu vou tomar cuidado para cortar caminho quando o vir. Lucius Josselyn é ativo em qualquer liga.

- Eu nunca encontrei o Senador.

- Não há necessidade de ser modesto, Graham. Incidentalmente, houve um telefonema de longa distância enquanto você estava lá fora. Eu respondi que você chamaria.

Bruce chamou a telefonista na cabina do lado de fora da sala-de-estar. Fez os movimentos automaticamente. Na imaginação, valsava ainda sob as bandeiras amarelas e azuis da universidade.

- Major Graham?

- Ele mesmo.

- Major Graham? Cirurgião, Exército dos Estados Unidos? Ainda gente... e não os dois parágrafos que eu inventei ao acampamento de um coquetel de gim?

- Sou inteiramente real, Senhorita McLendon. E você é?

- Depois de um dia passado na galeria da imprensa do Senado, não tenho absoluta certeza. Leu a minha coluna?

- Li. No Star de ontem.

- Esta sua pausa indica espanto... ou desaprovação?

- Eu gostei, Shane. Posso chamá-la de Shane, agora que faço parte do seu público?

- Claro. vou chamá-lo de Bruce... agora que vejo que você não só tem senso de humor como também senso de história.

- Receio que nenhum dos dois esteja funcionando, no momento.

- Foi tão difícil assim aceitar o Exército?

- Responderei logo que recobrar a respiração. - Até agora, ele falara descuidadamente. O encontro com Shane McLendon parecia fazer parte de outra existência - e ele não possuía uma imagem fiel da própria moça. Somente os travessos golpes de sua mente eram reais. - Quando é que podemos realizar um segundo seminário?

- Que tal na tarde de domingo?

- Infelizmente, já tenho compromisso para domingo.

- Você não pode estar já na cadeia. E ninguém no Acampamento Bruckner trabalha nos fins-de-semana.

- Acontece que vou almoçar com o Senador Josselyn.

- Eu, também. Hal Reardon disse que providenciaria para que você aparecesse sem falta.

- Você conhece Hal?

- Todos os repórteres em Washington conhecem o Deputado Reardon. Ele mantém comunicabilidade perfeita com a imprensa.

- Posso perguntar-lhe como surgiu o meu nome?

- Na noite de anteontem, Hal apareceu na redação do Star quando eu terminava minha coluna. Ele viu seu nome nas minhas notas... e resolveu que você devia ser apresentado à sociedade.

- Você tomou parte na decisão?

- Em termos gerais. Eu confio no julgamento do Deputado Reardon.

Bruce hesitou, sem motivo válido. Era lógico que Hal conhecesse uma repórter de agência de notícias numa redação em Washington e ainda mais natural que a repórter comparecesse à casa do Senador no domingo. Apesar disso, julgava que sua resposta seria um novo compromisso, cujo resultado não podia entrever claramente.

- Será um prazer encontrá-la novamente - disse, finalmente, Dessa vez, omitirei minha aula sobre a guerra.

- Diga o que quiser, Bruce. Posso ter minhas falhas, mas jamais o citarei erroneamente.

- Isso é uma promessa séria?

- Se você me prometer algo em troca. Não se apaixone logo pela filha do Senador.

- Por que deveria eu apaixonar-me por Janet Josselyn?

- Porque é a coisa a fazer no corrente ano - respondeu Shane.

O telefone foi desligado antes que lhe ocorresse uma resposta.

Quase ao meio-dia, Bruce recebeu ordens para comparecer ao gabinete de Pritchett. Como sempre, o Capitão eternamente mal-humorado estava barricado por trás de montanhas de papel. Desta vez, a reação dele à continência do cirurgião foi feita de acordo com a manual. Bruce viu a ficha de serviço de Tommy sobre o mata-borrão da mesa.

- Este homem foi provisoriamente rejeitado ontem - disse Pritchett. - Pode explicar-me o caso?

- O meu relatório está na pasta, Capitão - disse Bruce, tendo o cuidado de manter uma voz mansa. - Como vê, solicitei permissão para confirmar o diagnóstico com um exame geral.

- Continue, por favor.

- Há dois anos, o soldado Thorpe teve uma severa peritonite quando se encontrava aos meus cuidados. Seguiu-se uma tromboflebite> na perna esquerda. Estou razoavelmente convencido de que há ainda inflamação na veia.

- Baseia a sua opinião no que percebeu na fila de exames?

Inútil como fosse repetir fatos que já constavam do relatório, Bruce forçou-se a continuar:

- Meu diagnóstico baseia-se principalmente em conhecimento anterior do caso.

Pritchett deixou cair na mesa o papel que estudava e passou ambas as mãos pelo rosto gordo. A carranca desapareceu quando ele encarou o cirurgião nos olhos - mas era evidente que a sua paciência estava à flor da pele.

- É imensa a sua falta de experiência com os convocados, Major - disse ele. - Não se pode simplesmente confiar no que eles dizem. A saúde geral desse soldado é excelente. Ele fez o treinamento básico sem pedir revista médica. Agora, inesperadamente, pede para ser rejeitado.

- Fui eu quem o rejeitou.

-.- Há diferença importante do diâmetro das pernas?

- Quase uma polegada... e as veias superficiais estão dilatadas. Há ainda a inflamação depois da marcha que ele faz. Como cirurgião, eu aconselharia o prognóstico grave.

- Eu também sou cirurgião... e discordo inteiramente. Esse homem inventou uma desculpa para evitar missão de combate. Não posso permitir que o senhor engula essa história.

- Estou certo de que minha opinião será confirmada por um venograma de raios X.

- Se Thorpe for rejeitado, teremos que preencher-lhe o lugar com pessoal da base. O homem que chamaremos escreverá provavelmente a seu Deputado... e o Departamento de Guerra cairá como um louco em cima de nós.

- Eu rejeitarei Thorpe pessoalmente... se isto ajudar.

- Por que se lembra dele dos tempos de civil? Isto agravaria ainda mais o caso. vou dar-lhe uma oportunidade de cancelar essa rejeição. -- Pritchett lançou um lápis vermelho sobre o mata-borrão. - Escreva ”erro” no relatório e assine. Nós esqueceremos a sua equivocada bondade.

Bruce sentiu, finalmente, o temperamento explodir.

- A minha rejeição fica como está. Thorpe jamais deveria ter sido aprovado pela junta de recrutamento. Esse é o único erro a ser. corrigido.

- O senhor está-me forçando a dar parte sua, por insubordinação?

- Não dou a mínima bola para o que o senhor fará. O homem está incapacitado para o serviço Se ele for para o exterior, quem o enviará será o senhor... e não eu.

De volta à fila de exames, Bruce trabalhou sombriamente na meia hora seguinte. Sabia que Seward lera o veredicto de Pritchett nas suas maneiras. Mas não havia forma de confirmar a leitura até a hora do almoço.

- Eu poderia ter-lhe dito esta manhã qual seria a resposta - disse o oficial mais velho. - Mas não tinha certeza se você acreditaria ou não em mim-

- O que é que eu posso fazer agora?

- Nada, absolutamente. A solicitação de revisão foi negada por autoridade mais alta.

- Pritchett ameaçou dar parte de mim. Acha que ele o fará?

- É muito provável. Calvin, o Grande, está certo agora do terreno onde pisa. A promoção dele acaba de ser anunciada.

- Tornando major aquele imbecil?

- Major, nada menos... e chefe de nosso serviço cirúrgico.

- Deve haver algo que eu possa fazer.

- Nós já discutimos isso, Graham. Sei que é uma lição difícil, mas você terá de aceitá-la.

Naquela mesma noite, o exame das ordens para o dia seguinte confirmou as notícias de Seward. O Capitão Calvin Pritchett acabara de ser promovido a major e fora nomeado chefe do serviço cirúrgico da base. Bruce leu, ainda, dois parágrafos abaixo - com alívio - que ao novo major fora concedida uma semana de licença.

Lia ainda com expressão vazia o boletim de serviço quando o assistente-chefe do serviço médico aproximou-se do quadro de avisos. O Capitão Leibowitz era um especialista em doenças internas, com excelente treinamento, que fizera reputação num famoso hospital de Nova York. Bruce ouvira dizer que tanto o trabalho como o pessoal da seção por ele dirigida eram de alta classe.

- Não fique tão arrasado, Major - disse o especialista. - A notícia me provoca náuseas, mas eu consigo controlar os sentimentos.

- Estou ainda procurando recuperar o fôlego.

- O patologista está fazendo um post mortem no dispensário. Quer dar uma espiadela?

- Gostaria, para mudar de rotina.

Parte do dispensário fora transformada em sala de autópsia improvisada. Naquela noite, estava cheia de oficiais. Em virtude do iminente embarque de tropas, as licenças haviam sido canceladas... e exames desse tipo não eram muito frequentes em Bruckner. O Capitão Hartmann, diretor dos laboratórios e patologista interino, postava-se de pé à cabeceira da mesa de autópsia. O corpo continuava sob o lençol no momento em que Bruce se sentou entre Seward e Leibowitz. Minutos depois, um ordenança puxou a coberta, revelando o corpo de Tommy Thorpe.

- Algo de errado, Major? - perguntou-lhe o patologista. - Eu conheci o rapaz. Foi meu doente em Lakewood. Apenas ontem, examinei-o no pavilhão de exames.

Hartmann, um médico de cabelos brancos cujos gestos exatos faziam parte de seu sistema de autoridade, ficou obviamente aborrecido com a interrupção sem sentido. Falou, com os olhos no corpo!

- Trata-se de um caso de morte súbita, cavalheiros. Ocorreu quase ao fim de um exercício especial...

- Ele foi internado no hospital? - perguntou Bruce.

- Não, Major. A comunicação chegada ao dispensário foi de morte acidental. O Tenente Drane, o cirurgião do batalhão, dar-nos-á os detalhes.

Drane, vestido ainda com um suado uniforme de campanha, levantou-se de um banco no outro lado da sala.

- Os deveres de Thorpe em nossa unidade eram principalmente burocráticos. Ontem, descobrimos que ele jamais havia feito a pista de obstáculos. Ele a fez ao meio-dia. Parte do exercício envolvia uma marcha através de um pântano, com equipamento completo...

- Ele não lhe disse que não estava bem? - perguntou Bruce.

- Este soldado jamais se queixou, Major. - Como o patologista, o cirurgião do batalhão parecia confuso com a interrupção. - Mais ou menos perto do fim do exercício, notei que ele mancava. Tombou... e morreu antes que eu pudesse chegar a ele. O incidente foi comunicado ao Chefe da Polícia Militar do quartel, que ordenou este exame post mortem.

Hartmann já estendia a mão para um curto bisturi de autópsia, de lâmina larga.

- Quando jovens morrem inesperadamente, é às vezes difícil determinar a causa - explicou. - Este caso poderia ser um deles.

Bruce adiantou-se até o espaço vazio em torno da mesa.

- Eu posso dizer-lhe qual a causa da morte, Capitão.

Quase no momento de efetuar a primeira e grande incisão, o patologista parou, com o escalpelo em meio do ar.

- Temos sempre prazer em ouvir a opinião de um oficial, Major. Mas...

- O que vou dizer é um fato, não uma opinião. O soldado Thorpe morreu de embolia pulmonar.

Hartmann depositou o bisturi na mesa, enquanto um murmúrio de riso levantava-se na sala congestionada.

- Isto não é ir um tanto longe demais?

- Eu conheço a história da doença desse rapaz. Posso tomar a palavra?

- Parece que o senhor já a tomou.

Bruce encarou a assembleia. Agora que o impulso o levara para palco, não podia hesitar mais.

- Há dois anos, o soldado Thorpe foi meu doente em Lakewood. Surgiu uma tromboflebite na sua perna esquerda em seguida à remoção de um apêndice supurado. Finalmente, demos-lhe alta, na esperança de que tivesse sido curado a sintomatologia vascular. Ontem, encontrei-o novamente na fila de exames médicos. Notei que havia ainda acentuada dilatação das veias superficiais da perna esquerda, que estava mais de meia polegada mais grossa do que a direita.

- Ele jamais se queixou - disse o cirurgião do batalhão.

- Tenho certeza de que não o fez. Ele queria entrar em combate.

- Isto é tudo, Major? - perguntou-lhe Hartmann.

- Ainda não. Eu estava virtualmente certo de que o soldado Thorpe padecia ainda de um processo inflamatório de baixo grau das veias profundas. Solicitei que fosse internado no hospital da base e feito um venograma de raios X para confirmar o diagnóstico. O Capitão - agora Major Pritchett - recusou-se a atender à minha solicitação. O resultado está diante dos senhores.

O silêncio caíra muito antes sobre a sala. Bruce continuou, antes que o patologista pudesse interrompê-lo:

- O que hoje aconteceu deve ser claro. A marcha de obstáculos foi mais do que suficiente para provocar uma crise. Formou-se um coágulo numa das veias profundas - se por acaso já não estava lá. Parte dele percorreu a distância até os pulmões, provocando uma embolia e ocasionando a morte.

Desta vez, um murmúrio encheu a sala enquanto Bruce voltava para sua cadeira. A voz de Drane, elevando-se acima das dos demais, deteve-o a meio caminho:

- Nada disto consta da ficha de Thorpe, Major.

O cirurgião do batalhão empurrou os papéis por sobre a mesa

- completa com fôlha-resumo, assinalada com as aprovações de cada seção do quartel que preparara a unidade de Tommy para serviço no exterior. Todas as especificações - desde a Intendência ao Material Bélico - haviam sido atendidas. Todas descritas na seca prosa do Exército. O soldado Thorpe fora aprovado em tudo para embarque, com exceção da pista de obstáculos. A seção de exames médicos, na parte superior da primeira folha, nenhuma menção fizera de anormalidade.

Como - perguntou-se Bruce, com expressão vazia - conseguira Pritchett fazê-lo? Uma segunda observação sugeriu a resposta. Desde que o estado físico de um soldado era o primeiro item examinado quando se o preparava para serviço ativo, uma nova folha fora aparentemente preenchida no centro de exames, onde Pritchett governava supremo. Teria sido coisa simples jogar fora as notas de Bruce. O próprio Pritchett provavelmente datilografara a folha, omitindo os motivos da rejeição de Tommy, juntamente com a solicitação de internamento no hospital.

O cirurgião voltou-se para Seward - que permanecera impassível durante toda a discussão - e, em seguida, encarou o Capitão Hartmann com um encolher de ombros. Seward era um administrador capaz. Agora que Pritchett fora promovido, ele seria indicado para assumir o cargo de chefe da seção de exames médicos, aguardando sua inevitável promoção. Nada disso aconteceria se lhe fosse solicitado que se levantasse em defesa do oficial novo em folha, que falara quando não devia.

- Não me pergunte como essa ficha foi aprovada, Tenente Drane - disse Bruce lentamente. - Asseguro-lhe que rejeitei ontem esse soldado. Esta manhã, disse ao Major Pritchett que jogava tudo nos resultados do exame geral no hospital. Agora, desde que o patologista sempre dá o diagnóstico final, louvar-me-ei no que o Capitão Hartmann descobrir.

Era uma manobra ousada - mas o cul-de-sac onde se metera não lhe dava alternativa. Bruce tinha certeza de que todos na sala compreendiam o risco que ele assumia - e que concluíram que ele era um pouco louco... Dez minutos depois, o bisturi da autópsia revelava a história. Como tantas revelações na medicina, foi algo como um anticlímax, embora confirmasse plenamente todas suas observações. A artéria pulmonar que conduzia ao lobo inferior do pulmão direito fora bloqueada por um coágulo maciço, ou êmbolo, o que explicava, destarte, a morte abrupta do soldado Thorpe. Descobriu-se a origem do coágulo numa veia profunda de panturrilha esquerda, onde a inflamação espessara o vaso na maior parte do seu comprimento descendente.

- O caso está encerrado, cavalheiros - disse o patologista. - Agradeço ao Major Graham por sua observação... mas a ficha médica permanece como está. Mais algum comentário?

Ninguém falou enquanto a sala de autópsia se esvaziava. No momento em que se afastou da mesa, o cirurgião notou que Seward fora um dos primeiros a cruzar a porta, seguido logo depois por Nick Denby.

Bruce sabia que Pritchett era antipatizado na seção. Agora, porém, conhecia o suficiente da vida do Exército para não esperar cumprimentos pela sua atitude na autópsia. Mas não esperara ser tratado como um leproso autoconfesso nos dias que se seguiram... Finalmente, Deteve Denby num canto vazio do alojamento.

- Parece que eu me transformei num intocável - disse ele. - Será que ainda há alguma esperança para mim?

- Você é bastante idoso para saber a resposta antes mesmo de perguntar, Bruce.

- Não me chame de Bruce se você faz parte da matilha.

.- Não há matilha alguma, salvo na sua mente.

- Então por que fui posto no ostracismo?

-- Os oficiais desta unidade estão obedecendo à lei da sobrevivência. O seu diagnóstico foi brilhante. Todos nós adoramos a maneira como você arrasou Calvin, o Grande. Mas você está ainda condenado ao cutelo. Mas nós não vemos motivo para sangrar também.

- Pritchett venceu. Por que deveria ele atacar-me novamente?

- Porque esta é a maneira do Exército. Você projetou um tentáculo. E não pode ficar impune, indefinidamente. Não me pergunte quem o amputará. Mas fique certo de que será amputado.

Naquela tarde, ao terminar o trabalho no pavilhão de exames... Bruce foi convocado ao gabinete que Seward agora ocupava como sucessor de Pritchett.

- Tenho certeza de que você me culpa por ter ficado calado durante a autópsia - disse ele. - Acredite-me, eu não podia, de maneira alguma, melhorar as coisas. Examinei rapidamente a pasta de Drane antes de você começar a falar. Não havia oportunidade de avisá-lo.

- Como é que Pritchett conseguiu fazer aquilo?

- Eu tinha uma boa ideia... mas não podia ter certeza de assumir este posto. O sargento pensou que você podia sentir interesse por esta relíquia. - Seward alisou sobre a mesa uma folha de papel amassada - uma folha de exame, com a parte do exame físico preenchida na parte superior, e o resto em branco. A rejeição de Bruce estava claramente visível, embora a palavra cancelado tivesse sido garatujada em tinta vermelha e assinada por Pritchett. Era evidente que o sobrinho do Comandante resolvera, mais tarde, abandonar toda a folha e datilografar outra.

- Ponha isto em seu arquivo particular - disse Seward. - Você talvez descubra que pode usá-la mais tarde.

Bruce colocou o papel amarrotado na carteira.

- Quando é que cairá o próximo golpe?

- Já caiu, nas ordens de hoje. A sua cópia está no seu escaninho no correio.

Seward empurrou-lhe cópias em papel de seda por sobre a mesa. A lista mimeografada era longa, graças aos preparativos para um embarque que chegaria naquela tarde de Baltimore. O nome de Bruce sobressaía no tipo sujo da máquina.

 

O MAJOR BRUCE GRAMAM 0.270106 me É DISPENSADO DO TDY PÖE E DESIGNADO PARA O 922 TSU TC NAVIOHOSPITAL PELOTÃO WP RUAT CO CONSEQUENTEMENTE NENHUM TVL ENVOLVIDO

EDCMR 3 AGO 42

 

- No que interessa à criptografia - disse ele - este não é muito esclarecedor.

- O essencial foi dito - respondeu Seward. - Reservaram-lhe uma passagem num cruzeiro pelo Atlântico.

- Quando?

- Logo que o pelotão médico do próximo navio for organizado aqui. Poderá ser dentro de dez dias. Talvez mais cedo.

- Eu ainda não consigo acreditar que o Exército me queira esperando cartas na Inglaterra.

- Britten quer, e isto é o que importa aqui.

- Deve haver melhor trabalho em outro lugar.

- Você não o encontrará em Bruckner. Posso garantir-lhe isso.

- O que é que você sugere que eu faça?

- Pense em todos os amigos que tem no tribunal e comece a procurar outro posto. Enquanto isso, você volta para a reserva de oficiais... mas não ficará inativo muito tempo. Denby está sempre pedindo ajuda extra no laboratório. Ele poderá usar outro par de mãos.

O covil do Major Nicholas Denby no acantonamento, embora não mais espaçoso do que os próprios aposentos de Bruce, tinha um ar de permanência. A cadeira espreguiçadeira, o abajur e a estante disfarçando o bar sugeriam que a célula desse nómade constituía uma ilha de repouso. O urologista recebeu o novo assistente com um firme aperto de mão e fechou a porta às suas costas.

- Relaxe-se na cadeira de honra - disse. - Agora que estamos a sós, posso oferecer-lhe um bourbon, um uísque, ou um gin’ ger-ale?

- No momento, eu preciso mais de informações do que álcool. Qual é a minha situação real?

- Seward deve ter-lhe explicado por que o seu número foi chamado.

- Há alguma remota possibilidade de que eu consiga aqui algum trabalho decente?

- Não, depois do que você fez a Calvin Pritchett - disse Denby. - O Exército cuida do seu próprio pessoal.

- O Exército portou-se muito mal no caso de Tommy Thorpe.

- Thorpe foi uma vítima do sistema. Os parentes serão avisados de que ele morreu no cumprimento do dever - e o parente mais próximo receberá dez mil dólares de seguro. Exatamente como se ele tivesse sido morto em combate.

- Pritchett matou aquele rapaz.

- Talvez sim, como as coisas lhe parecem agora. Diariamente, internamos psicopatas neste hospital, porque não temos certeza se a neurose que apresentam é real ou um aumento de pulsação decorrente do medo. Eu passo metade do tempo resolvendo o destino de desajustados e mortos-vivos que não podem sequer esperar para começar a sangrar o contribuinte. Você não pode classificar um oficial examinador de assassino simplesmente porque ele é duro e estúpido.

- Pritchett não tem o direito de considerar-se médico. Tentei salvar a vida de um homem e fui punido por isso.

- Exatamente. com a punição clássica do Exército, no lugar clássico. E o que é mais, merecida... pelos padrões do Exército.

- Por dizer a verdade?

- Por aplicar um padrão de justiça absoluta a um único caso, numa única área.

- Então você desculpa os Pritchetts e a maneira como eles agem?

- Longe disso... mas temos ainda de admitir-lhe a existência. No fim, o nosso serviço fará o seu trabalho. Os Estados Unidos liquidarão a Alemanha e o Japão, e Pritchett será reduzido, a bofetões, a seu tamanho normal. Da mesma forma que você encontrará o seu nível quando acabar de separar correspondência.

- Eu teria sido muito mais útil ensinando cirurgia em Lakewood.

- Talvez... mas resta o fato de que você pediu para tomar parte neste espetáculo. E está agora no Corpo de Saúde, contratado para a duração da temporada. Você será muito mais útil no Exército se começar a aceitar as coisas como elas são, e não como quer que elas sejam.

Bruce afundou-se na espreguiçadeira e sorriu lividamente a despeito da violência dos sentimentos que sentia.

- Qual o meu primeiro passo em direção à realidade?

- O primeiro passo é óbvio. Comece a puxar os cordões para sair da atual situação.

- Seward deu-me o mesmo conselho. Por onde é que eu começo?

- No único lugar em nosso serviço que funciona com lógica. No Gabinete do Cirurgião Geral.

- Onde é que estava o gabinete do Cirurgião Geral quando Britten me colocou na reserva dos oficiais? Quando ele me designou para o pelotão de saúde de um navio?

- O Gabinete do Cirurgião Geral faz o que pode para encontrar os melhores postos para os melhores médicos. E pode fazer muito para melhorar a política numa base intermediária. Filhos da... como o Grande Calvin podem ser nomeados chefes de cirurgia... e um especialista de Lakewood ser embarcado para um posto do correio do Exército na Inglaterra. Idealistas de sua formação serão sempre crucificados em um lugar como os Acampamentos Bruckners... até aprenderem a reagir. Exército algum pode funcionar na base de um sistema diferente.

- Mas você admite que o sistema é injusto?

- Danadamente injusto... e neste caso, inevitável. Nós tivemos um excelente chefe de cirurgia na base, antes de sua chegada. Um homem chamado Bob Anders, um excelente organizador. Viajou no último comboio, designado para trabalho especial num hospital em Londres. Bob mantinha abertos os canais de comunicação certos e imaginou que seria mais útil em outra parte. Do modo como estão hoje as coisas, nós somos apenas uma câmara de compensação de carne para canhões. Será diferente quando a maré mudar e nós nos transformarmos em centro de desembarque de feridos...

- Depois de aberta uma frente europeia?

- Quando esse dia raiar sobre Maryland, nosso hospital de três mil leitos começará a zumbir como uma colmeia. Nós precisaremos de um chefe de clínica cirúrgica que realmente conheça o trabalho. Na minha opinião, o Gabinete do Cirurgião Geral enviou-o aqui para organizar, tendo em vista essa emergência. Em outras palavras, para assumir o lugar de Bob Anders.

- Então por que Britten não me deu o posto?

- Porque você chegou no meio de uma conspirata para dar o cargo ao louro sobrinho. Como o cadáver nos romances policiais, você precisava ser enterrado em alguma parte e, assim, Britten colocou-o na reserva. Ninguém o teria notado ali daí em diante se você não tivesse falado quando não devia a respeito de um soldado incapacitado, ato este que pôs em perigo a promoção de Pritchett. Em consequência, você vai ser enterrado em lugar ainda mais fundo.

- Evidentemente, eu devo apresentar uma queixa diretamente ao Gabinete do Cirurgião Geral.

- A queixa será muito mais forte se feita através dos canais competentes. Que tal procurar seu professor em Lakewood?

- Acho que não. Ele ficou muito magoado quando apelei do adiamento da convocação. Eu devia iniciar um projeto especial no outono.

Denby olhou carrancudo para o copo.

- Alguma coisa sobre válvulas cardíacas, se bem me lembro da literatura.

- Schoenfeld tem esperança de criar métodos cirúrgicos práticos para tratamento de crianças com deformações congénitas. Coisas como a Tetralogia de Fallot e o septo aberto. Aquele trabalho é a vida dele.

- Não é de espantar que ele precise de sua ajuda - disse Denby.

- De qualquer modo, é melhor não falar no nome dele, depois do que ele fez na Espanha.

- Abram Schoenfeld é um cientista. Ele não tinha inclinações políticas quando nos levou a Barcelona.

- Certo ou errado, Jake Sanford chamou-o de comunista na primeira página de um jornal... e você terá de ignorá-lo. Alguém mais em Lakewood tomaria seu partido?

- Para dizer a verdade, não há ninguém a quem eu queira pedir. Desde que fui nomeado médico residente, meu trabalho real foi feito com Schoenfeld.

- Que me diz de sua família? ,

- Eu sou literalmente órfão. No dia em que ingressei em Lakewood, cortei os laços com a terra natal.

- Não todos. Que me diz de Reardon? Ou da filha do Senador?

- Hal e eu estamos distante há anos. E pouco conheço Janet Josselyn.

- Qualquer um deles poderia salvá-lo com um telefonema.

- Não me parece justo apelar para eles. Eu mesmo me meti nesta confusão. Cabe-me encontrar uma maneira de livrar-me dela.

- Você jamais conseguirá fazê-lo sozinho.

- Talvez eu mereça sofrer durante algum tempo, como você sugeriu. Não morrerei de separar correspondência.

O urologista ergueu as mãos em desespero.

- Desça desse pedestal e acabe com essas lamúrias. É duro como os diabos explicar o que é a vida a um idealista. Eu me recuso a ttumar o mártir cristão.

Bruce dirigiu-se até o bar escondido e serviu-se de um gole da primeira garrafa que encontrou. O gosto pungente do bourbon afrouxou o aperto que se formara em torno de sua mente enquanto absorvia as palavras de Denby.

- Talvez eu consiga que minhas ordens sejam mudadas e eu possa ficar como o seu assistente - disse.

- Podia ser pior, por falar nisso. Este cargo tem suas vantagens, quando você o compara com outros do Exército. Visito minha mulher dois fins de semana em cada quatro, e há bastante espaço para eu me mexer. Arranjei mesmo tempo para provar que você não é o único cérebro que existe em Bruckner. Se o produto final corresponder às minhas esperanças, conseguirei mesmo o meu par de folhas de prata.

- É mesmo Nicholas Denby quem está falando? O cínico médico de doenças venéreas? Ou você muda de personalidade ao anoitecer como o Sr. Hyde e o Dr. Jekyll?

- O mesmo médico de doenças venéreas... e o mesmo cínico. O fato de eu ser um urologista deu origem a uma pesquisa. Tropas que esperam a hora de embarque estão talhadas para uma farra de despedida. Logo no início, descobrimos que cada vez que os soltávamos, podíamos esperar quase uma epidemia de gonorréia antes do fim da semana.

- E qual a sua descoberta? Recomendar cintos de castidade?

- A segunda melhor coisa. A sulfadiazina é um antídoto bastante específico para o velho Diplococcus Neisser. Aconselhei aos cirurgiões dos batalhões que dessem um grama a cada soldado antes que ele recebesse um passe... e outro grama quando ele voltasse. Nem um único caso foi comunicado depois disso. Exceto em alguns pelotões, onde os médicos não podiam ficar sentados em cima dos soldados para terem certeza de que eles engoliam os comprimidos.

- Parece um tratamento prático. Como a maioria das grandes ideias, é bastante simples.

- Simples e eficaz. ,. mas há um aspecto que não consegui ainda solucionar. Os convocados mais vigorosos não gostam da ideia de medicação. Estão certos de que lhes diminui a potência.

- Os receios se justificam?

- Apenas na imaginação deles. E, enquanto discutimos coisas do sexo, você não precisa começar a trabalhar comigo senão amanhã. Tome meu jipe e arranje uma garota. Nada há como rolar na cama para afastar a mente dos altos custos da honestidade.

- com ou sem sulfadiazina?

- Ignore os comprimidos até amanhã - aconselhou Denby. Quando se está tão avacalhado como você, precisa-se de toda a potência.

Bruce não seguiu, porém, o conselho do urologista. Preferiu cair na cama e dormir até o toque de rancho. Como Denby havia sugerido, os deveres na clínica de urologia eram leves. Havia tempo de sobra para pensar nos seus problemas até o domingo, embora não estivesse mais perto de uma solução ao dirigir um carro alugado em direção a Anápolis e à open house do Senador Josselyn.

Tomara um caminho mais longo do que o sugerido por Hal, na esperança de que o luxuriante interior de Maryland lhe acalmasse a alma perturbada. Falhando a receita, tomou a primeira estrada que o levaria ao destino. Five Oaks, a propriedade que o Senador alugara para escapar da canícula de verão em Washington, era um dos mais belos lugares do vale do Severn: dos seus buxos esculpidos às moitas de jasmim-do-cabo no alto pórtico oriental tudo poderia ter sido tirado inteiro de um cenário da Velha Confederação.

Bruce notou que o local era um ambiente realmente apropriado para o open house do Senador. Um caminho de automóveis de cascalho conduzia à casa a partir da estrada, bordejando hectares de grama aveludada, que se estendia até a margem do rio. Fora armada uma barraca para refrigerantes. Uma banda de jazz (de nome famoso no rádio) fornecia a música a dezenas de casais que rodopiavam como sardinhas contentes na pista de dança de pedra, debruçada sobre a doca do Senador, enquanto quatrocentos outros convidados espalhavam-se como brilhantes borboletas pelos gramados.

Entrando no pátio de manobra ao lado da casa, viu-se no meio de fileiras de carros estacionados, a maioria ostentando as estrelas de generais ou os galhardetes do Corpo Diplomático. Ao notar que o manobreiro estava ocupado, Bruce manobrou o próprio carro até apontar-lhe a frente para a saída. Inútil como fosse, o ato de assegurar a retirada constituía um calmante prelúdio.

Esperara com ansiedade no Acampamento Bruckner a mudança de cenário. Mas agora que a primeira impressão correspondia às expectativas, sentiu uma estranha relutância em misturar-se com os convidados de Josselyn. Se pudesse acreditar em Nick Denby, uma libertação pronta e imediata aguardava-o no gramado imaculado. Alguns passos apenas o levariam até Hal Reardon, que já vira entre os buxos, parecendo embebido numa conversa com um almirante. Ou poderia apelar diretamente para o dono da casa: Josselyn, um legislador de juba leonina, cujo perfil não teria feito descrédito a um César, recebia os convidados no pórtico. A filha ao lado era o sonho transformado em realidade de qualquer jovem.

Seria a própria perfeição da reunião que o perturbava, a sensação de que cada ator estava pronto para desempenhar o papel que lhe cabia? Seria o momento quase apropriado demais para o que queria? Como algum Fausto atrasado no tempo, estaria ele prestes a pedir auxílio ao demónio, certo de que a ajuda viria, embora ao custo de sua alma?

Bruce sabia que essas perguntas eram absurdas: chega a ocasião de saltar do seda alugado e lembrar-se de suas boas maneiras. Ainda assim, deixou-se ficar no pátio, enquanto reexaminava os motivos de ter ido e a relutância em prosseguir.

Nick Denby sugerira que seu primeiro contato com o Exército constituíra, também, seu primeiro momento de verdade. Dificilmente podia negar que a vida até aquele momento, salvo pelos rigores da escola de medicina, correra-lhe tranquilamente. Até então, cada passo de sua carreira havia acontecido, sem outra necessidade do que a de Bruce Graham afirmar seus direitos. Em virtude dos talentos que possuía como cirurgião e das portas que aqueles dons haviam aberto, a marcha para a meta transcorrera sem obstáculos. Nem uma única vez - até a colisão com Pritchett - fora obrigado a pedir favores.

No subúrbio de Tampa onde crescera, fora filho normal de pais normais. O pai, um cavalheiro sulista cujos ancestrais haviam emigrado da Virgínia para a Flórida com a primeira estrada de ferro, ensinara matemática numa escola secundária local. A mãe fora uma ianque cujo bom-senso evitara que ele aceitasse um número excessivo de mitos familiares. Em meio dos estudos universitários, o falecimento de ambos o deixara cedo órfão, mas a dor não o marcara profundamente.

Na ocasião, já pusera os olhos na carreira de cirurgião e fora um dos membros mais estudiosos de sua classe. Os estudos do pré-médico na Flórida pouco tempo lhe davam para as escapadas de calouros, embora certo talento para as corridas rústicas lhe tivesse grangeado ingresso na equipe universitária, premiando-o com um distintivo da fraternidade Sigma Nu e estabelecendo amizade com outros deuses da universidade, como Hal Reardon... Em Lakewood, as compulsões da profissão escolhida haviam-no absorvido desde a primeira aula. A monotonia infindável da vida de interno fizera parte do noviciado, o preço necessário que prazerosamente pagaria por um diploma de médico concedido pela melhor escola do país.

As distinções que havia conquistado, juntamente com o diploma, a designação como médico residente e a nomeação para servir sob Schoenfeld chegaram com igual naturalidade. O grande especialista em cirurgia cardíaca insistira com ele para que servisse ao país em Lakewood, e não sob uma farda. Talvez tivesse havido lógica naquele argumento. Naquele dia - ganhando tempo ainda no caminho de automóveis de Josselyn - perguntava a seus botões se a reação ao domingo de Pearl Harbor não constituíra a sua primeira verdadeira cincada.

Mas não podia lamentar a atitude tomada nem mesmo naquele momento: os seus instintos mais profundos asseguravam-lhe de que fora válida a ânsia de romper as cadeias do claustro hospitalar. Outro instinto, não menos profundo, forçara-o a desafiar o Major Calvin Pritchett. Agora que ousara desafiar um sistema de autoridade que eliminara uma vida humana, agora que não conseguira salvar Tommy Thorpe, talvez fosse apropriada a expiação. Teria sido o destino, e não o nepotismo do Coronel Britten, que lhe dera uma missão no pelotão de saúde de um navio?

Até aquele momento, havia ainda tempo para escapulir antes que sua presença fosse notada - deixar que o destino decidisse o que melhor lhe serviria... Pôs a mão na chave de ignição quando ouviu uma voz chamá-lo. Um momento depois, Shane McLendon afundou-se no assento a seu lado.

- Eu pensei que você estava a ponto de ir embora.

- Eu estava realmente brincando com a ideia.

- Onde estaria hoje a Escócia se Robert Bruce tivesse obedecido ao mesmo impulso em Bannockbern?

- Como é que você soube que eu havia chegado?

- Dei dois dólares ao manobreiro para que ele me avisasse - respondeu Shane. - Logo que vi você brincando com a chave do carro, vim correndo.

- Se eu lhe disser os meus motivos, promete não contar a ninguém?

- Conheço seu motivo. Tendo vislumbrado a dona da casa a distância, você hesita em aventurar-se mais longe. Está com receio de acender uma lanterna de tamanho king-size para ela. A mesma lanterna que você apagou depois de um baile de volta às aulas na Flórida.

- Você também esteve naquele baile?

- Claro que não - disse Shane. - Mas isto acontece com tanta frequência, que já conheço a rotina de cor. Toda a vez que conheço um homem que vale o trabalho, ele se apaixona por Janet. Admito que nem todos eles são tão vivos como você. - Ela inclinou a cabeça em direção ao pórtico onde o Senador e a filha, ainda a receber os convidados, formavam um par impressionante. - Observe só a Beldade Americana Típica. Rica, poderosa... e tão boazinha como a filha da vizinha. Como é que uma ruiva magrela como eu pode concorrer?

- Mas você não parece tão invejosa assim.

- Aprendi há muito tempo a contentar-me com o que tenho - replicou Shane. - Além disso, acontece que gosto de Janet. Esperto ou não, não acho que seja justo você ir embora. Os problemas do amor não correspondido podem ser sempre resolvidos fora dos tribunais. No momento, os seus problemas no Exército são mais importantes.

- Como é que você soube dos meus problemas?

- Esta manhã lembrei-me de que você não tinha carro... e telefonei para oferecer-lhe uma carona até aqui. Você já havia saído, mas o Major Denby respondeu. Ele contou-me uma estória muito interessante.

- Não para publicação, espero.

- Definidamente, não para publicação. Os pais americanos têm motivos suficientes de preocupações nestes dias. Eu não tenho intenção de plantar nenhuma dúvida neles sobre os médicos do Exército.

- Você me censura por ter reagido a Pritchett?

- No seu lugar, eu teria dado um tiro nele.

- Isso dificilmente teria resolvido meus problemas.

- Há uma solução mais fácil... ficar no pórtico de Five Oaks.

- O Senador Josselyn?

- Lucius representa o seu Estado. Todo mundo espera que lhe dê uma mão quando um eleitor é maltratado.

- Eu dificilmente poderia pedir a ele que me tirasse do anzol.

- Você não precisa ser tão direto assim - disse Shane. - No seu lugar, eu chamava Janet para o lado, contaria a ela toda a história... e a deixaria continuar daí em diante. Ela adoraria fazer isso.

- Apenas para minha informação, você está lançando a dona da casa nos meus braços porque quer Hal para você?

- Que mente suja você tem, Bruce. Onde é que você aprendeu a pensar como uma mulher?

- Eu tive um bocado de clientes femininas. E não vou pedir favores a Janet Josselyn. A ideia me parece vagamente imoral.

- Eu esperava essa reação - disse Shane. - Foi por isso que eu conversei com Hal Reardon.

- Sobre mim?

- O Gabinete do Cirurgião Geral receberá um telefonema amanhã. Se um homem apropriado estiver aqui nesta festa, seus problemas poderão ser solucionados ainda mais cedo.

- Você poderia ter-me consultado.

- Apenas para ver você bancar o nobre e dizer que não? Queira Ou não queira, essas pessoas podem fazer-lhe o bem. Ou preferia acovardar-se novamente... e correr para seu laboratório?

Dado o ultimato, Shane deixou o carro e afastou-se tão rapidamente como chegara. Sacudido novamente pelo choque, Bruce alcançou-a no caminho que conduzia ao pórtico.

- Contenha esse seu temperamento irlandês, McLendon - disse ele. - Acredite que estou reconhecido pelo que você fez.

- Significa isto que você concorda que eu vá até o fim?

- Se você deixar-me agradecer-lhe pela ajuda. E estou perdoado?

Shane voltou-se para estudá-lo com a mesma finalidade de que ele se lembrava desde o primeiro encontro. A zanga morreu-lhe nos olhos cinzento-esverdeados e os lábios relaxaram-se no sorriso de molecote que a tornava quase bonita.

- Digamos que você está em livramento condicional Bruce. Nós, irlandeses, não nos entregamos imediatamente. Em primeiro lugar, vou apresentá-lo ao Senador... e, em seguida, iremos até o buffet. Estou morrendo de fome.

Um grupo de recém-chegados cercava o dono da casa no pórtico. Janet, porém, afastara-se para misturar-se com os dançarinos à margem do rio. Bruce sentiu a tentação de evitar o encontro ritual e segui-la, mas o fato de que tinham os braços enlaçados manteve-o ao lado da jornalista até chegarem ao grupo dos degraus... De perto, o Senador era ainda mais o velho estadista da lenda, mais presença do que homem. Não havia como resistir-lhe ao encanto quando ele estendeu a mão após a apresentação feita por Shane.

- Nunca me cansarei de conhecer os amigos de Hal Reardon, Major. Não existe hoje melhor deputado na Câmara.

- É o que me dizem, senhor.

-• Acompanhei cada passo da carreira dele... e orientei alguns. Dei-lhe o primeiro emprego em Washington, como meu secretário. Já naqueles dias, eu esperava que ele me sucedesse. - O riso de Josselyn fazia parte de seu porte de orador e o aparte convencional poderia ter sido endereçado a uma multidão. - Como colega de classe, tenho certeza de que continuaram a manter contatos.

- Não com muita frequência, receio. É bom saber que Hal merece sua confiança.

- Não se esqueça de falar-nos, se precisar de alguma ajuda.

- É muita bondade sua, senhor.

- Afinal de contas, é para isso que estou aqui. Certo, Shane?

Bruce teve o cuidado de ficar calado na conversa que se seguiu entre o político e a jornalista. Como convidado em Five Oaks, dificilmente poderia confessar que votara pelo menos uma vez no adversário republicano de Josselyn. Mas não esperara prosar tanto assim na linha dos convidados. Evidentemente, tendo uma colunista como patrocinadora, o dono da casa evidentemente concluíra que ele merecia atenção extra.

- Confio no seu instinto, Shane - disse o Senador com expressão risonha. - Apresente o Major Graham às pessoas indicadas.

- Às pessoas indicadas, Lucius? Ou a pessoas certas.

- Você sabe quem é quem, minha querida. - Josselyn pôs uma mão paternal no ombro de Bruce. - Chame-me ao telefone para um almoço quando estiver em Washington. Onde está destacado?

- No Acampamento Bruckner, Senhor.

- Neste caso, você terá tempo também para Hal. Tenho certeza de que vocês terão muito que conversar.

Atravessando o gramado, parando para curvar-se diante de viúvas e apertar as mãos de oficiais-generais de todas as Armas, Bruce continuou a admirar os diálogos de Shane com esses potentados. Ao se libertarem finalmente, à beira da barraca, a cena que vira sumariava bem a open house de Josselyn e a sua finalidade. As longas mesas onde era servido o buffet e a multidão de garçons indo e vindo entre os chefes e atendentes do bar pouca semelhança tinham com um campo de batalha. Somente os uniformes bem cortados lembravam que isto, também, era uma reunião de guerreiros, que haviam conquistado o direito de banquetearem-se ali sem preocupação com coisas como listas de baixas em combate ou número de pontos nos cartões de racionamento.

- Olhe entre a geléia de tomate e o presunto de Smithfield - disse Shane - e você terá uma boa visão do Deputado Reardon.

- Da última vez em que o vi, ele conversava com um Almirante.

- Desta vez é o Almirante Munger - disse a jornalista. Ele virá para aqui... depois de ter tranquilizado a Marinha sobre as verbas. - Ela tomou a frente até um grupo de mesas à margem do rio e fez sinal a um garçom. - Tenho a esperança de que ele tenha boas notícias para você. De qualquer modo, eu sugeriria que dançasse com a dona da casa... no momento em que puder aproximar-se dela. O que é que vai beber? Bourbon ou um martini?

- Um martini. Quaisquer outras instruções?

- Acho que não. Você agora pode tomar conta de si mesmo... se não deixar que suas suspeitas se mostrem muito abertamente. Elas não têm cabimento nesta tarde de domingo.

Os coquetéis estavam geladíssimos e extra-secos. Bruce, enquanto bebia, estudava a companheira. Os olhos dela moviam-se, buliçosos, enquanto cumprimentava outros convidados, embora ele soubesse que estava ainda sob observação.

- Não fique presa por minha causa se tem de escrever alguma reportagem - disse ele.

Os olhos cinzento-esverdeados deram-lhe toda a atenção.

- Observar os grandes se divertirem é a minha maneira de descontrair-me - respondeu Shane. - A minha coluna de amanhã está praticamente escrita.

- Você gosta deste tipo de festa?

- Extremamente... se a pessoa não se deixa envolver muito. Mas a festa parece ter o efeito oposto sobre você.

- Eu estou começando a me sentir aclimatado.

- Você foi realmente amigo de Hal na faculdade?

- Não muito íntimo, se sou obrigado a dizer a verdade.

- Eu desconfiei disso. Vocês foram colegas de quarto no último ano. Ele me disse isso.

- Eu era um dos quatro colegas... numa suíte em Buckman Hall. Nós éramos da mesma fraternidade universitária e jogamos futebol juntos. Não posso dizer que concordávamos sempre. Já nessa ocasião, nós visávamos diferentes alvos. Eu nunca pensei que nos encontraríamos desta maneira.

- A guerra cria estranhos companheiros de cama - disse Shane. - Você conhece bem o meio formativo dele?

- O suficiente para ficar espantado, às vezes.

- Continue.

- Os avós dele figuravam entre os dez homens mais ricos do Sul. O pai de Hal Reardon era um fazedor de reis enquanto eu crescia em Tampa. Já nessa ocasião, ele preparava o único filho para a política. Foi por isso que Hal frequentou a universidade estadual em vez de matricular-se nas grã-finas. Fazia parte de um plano, com a finalidade de estabelecer contatos locais. Ele equilibrou as coisas mais tarde com um diploma de Direito de Harvard.

- Você é contra diplomas de Direito concedidos por Harvard?

- Eu não estou sendo contra. Relato fatos, como os vejo. Desde o nosso ano de calouros, observei-o usar o encanto com a mesma facilidade com que a maioria das pessoas usa uma torneira...

- O encanto é uma qualidade rara em nossa cultura - observou Shane. - Não a menospreze.

- Talvez eu seja um tanto antiquado, mas acho que estadistas devem ser natos, e não feitos, do mesmo modo como os poetas e filósofos. Um número excessivo de políticos americanos parece construído de acordo com um plano. Não posso deixar de pensar que meu colega de fraternidade treinou para caçador de votos, da mesma forma que se treina um cavalo de corrida ou um jogador de beisebol das grandes ligas.

- Mas como é que podemos expulsar os patifes se os melhores não ingressam na política?

- Suponho que os Reardons são os melhores... e não apenas os mais ricos.

- Olhe só a folha de serviços de Hal. Ninguém fez mais do que ele pelo seu Estado ou pela guerra.

- Ele não está no Exército.

- Ele tem um posto na Reserva e pensa em entrar em ação mais tarde. O próprio Presidente pediu-lhe para permanecer em Washington.

- Como o passo seguinte na estória de sucesso?

- Por que não... se ele está fazendo valer sua influência?

Shane estendeu a mão para um cigarro, parecendo mais exasperada do que zangada. Oferecendo-lhe o isqueiro, Bruce notou surpreso que tinha o prato vazio. Não tinha a mínima ideia do que havia comido... Sabia que seu argumento fora apresentado sem oportunidade de sucesso. Era a jornalista, e não ele, que tinha razão.

- Não pense que estou duvidando do patriotismo de Hal - disse ele, cuidadosamente. - Se o que você diz é verdade, ele pode ajudar muito mais no Congresso.

- Os motivos dele são particulares... e válidos.

- Você está apaixonada por ele?

Os olhos de Shane ensombreceram-se com a estocada.

- A maioria dos homens me faz essa pergunta quando discutimos Hal Reardon.

- Você já me conhece o suficiente para respondê-la?

- Eu poderia apaixonar-me por ele... estranho como isso lhe possa parecer.

- Não me parece absolutamente estranho.

Mais uma vez, ele observou o sorriso lento e ligeiramente torto transformar-lhe as feições.

- Eu poderia estar também combatendo um impulso.

- Por que concorda mais ou menos com o que eu disse? Ou que quer permanecer livre ainda por algum tempo? Talvez eu compreenda que o casamento dele com Janet constitui parte essencial de sua carreira. Posso mesmo gostar deles o bastante para desejar-lhe boa sorte.

.- Apesar disso, você insiste em que eu me apaixone por ela. Será isso um bom exemplo de lógica feminina?

- Considere isso como outra prova de que eu exploro todos os ângulos - disse Shane. - Lá vem Hal. Vamos ver quem é o melhor juiz de caráter?

O caminho do Deputado Reardon foi interrompido por um embaixador, que Bruce reconheceu de fotografia, e por um membro do Gabinete que chegara às manchetes ao insinuar que pediria demissão se uma segunda frente não fosse aberta na Europa até fins do verão, O estilo de Hal em ambas as ocasiões revelou uma mistura de atenção total e esfuziante bom humor. Não era a primeira vez que Bruce via em ação a capacidade de empatia do colega de turma.

- Jane estava com medo que você não pudesse vir - disse Hal.

- Eu disse a ela que Shane o traria a reboque.

A jornalista levantou-se rapidamente.

- Estive ensinando a ele as técnicas da sobrevivência. Você talvez seja melhor professor. Além disso, é tempo de eu encurralar alguns possíveis, para o caso de ficar sem assunto.

Hal riu levemente ao sentar-se no lugar vago.

- Diga o que quiser acerca do quarto poder, Bruce, o fato é que Shane consegue resultados com o mínimo de incómodo.

- Aparentemente, ela o dispôs a trabalhar por mim...

- Por que não me contou que estava em dificuldade quando fomos a seu alojamento?

- Na ocasião, a água não fervia ainda.

- Pestes como Britten e Pritchett deviam ser destruídos a pauladas antes que pudessem criar casos - disse Hal. - Evidentemente, a primeira coisa a fazer é arranjar um posto digno de seus talentos. Larry Wilson esteve aqui um pouco mais cedo. Ele é o encarregado das designações no Gabinete do Cirurgião Geral. Nos casos em que o planejamento deles fracasse, Larry pode ser um administrador bastante rigoroso. Ele tomará conta do seu caso, agora que pus uma Pulga atrás da orelha dele.

- Não lhe ocorreu, por acaso, esperar um pouco... até que eu tivesse tido oportunidade de discutir a situação com você?

- Não há necessidade de discussão, Bruce. Um erro de rotina será corrigido... e outro oficial severo e respectivo sobrinho terão as orelhas puxadas.

- Não lhe ocorreu também que eu poderia preferir queixar-me pessoalmente?

- De fato, pensei nisso - disse Hal. - Larry agirá mais rapidamente, porém, agora que conversei com ele.

- O que acontecerá se eu recusar a ajuda do Coronel Wilson?

- É tarde demais para recusar. Você deixou de ser dono de si mesmo quando vestiu essa farda.

- Mas isso não significa que eu tenha de receber ordens suas.

- Aparentemente, você ainda usa uma camisa civil sob essa bela túnica. - A boca de Hal Reardon encrespou-se ligeiramente, antes que a máscara voltasse ao lugar. - Você é um homem bom num mundo estranho, Bruce. Como outros homens bons, a sua ingenuidade é maior apenas do que sua ingratidão.

- Eu não tive a intenção de parecer ingrato.

- Vermes como o Coronel Britten e o estúpido sobrinho abundam em todos os empreendimentos públicos, incluindo este que estamos lançando agora para salvar o mundo. É seu dever e o meu expulsá-los.

- Muito bem, fui salvo... e o esforço de guerra ganhou um impulso, de quebra. Mas não tenho certeza se gosto da maneira como você age.

- É assim que as coisas são feitas aqui... goste ou não. A explosão de impaciência de Hal era agora menos do que uma recordação. O bom humor borbulhante voltara com toda a força. Falando de favores, este foi insignificante. Eu nem mesmo espero agradecimentos.

- Eu me sentiria melhor se pudesse dar-lhe algo em troca.

- Eu me contento com o reatamento da amizade - disse Hal.

- Ela tem andado em calmaria por tempo longo demais.

- Você tem certeza de que não quer algo em troca? - A pergunta, Bruce sabia muito bem, fora deselegante, mesmo grosseira. Mas não a lamentou quando se reclinou na cadeira e aguardou a reação de Hal. O colega de turno encolheu os ombros e voltou-se para o terraço, ainda repleto de dançarinos. A banda conseguira finalmente abafar os metais e tocar o chorus pianíssimo de uma canção que era sucesso absoluto no rádio. O maestro, um negro magro com um atraente ar de timidez, cantava a letra num barítono quase tão famoso como o do Presidente:

Dorít sit under the apple tree With anyone else but me Till I come marching home!

- Desde que você insiste - disse Hal - eu tenho um pequeno favor em mente. vou à Inglaterra amanhã numa missão exploratória especial. Eu ficaria mais descansado se você tomasse conta de Janet.

- Isto dificilmente poderia ser considerado um favor.

- Poderá transformar-se num trabalho de seis semanas. Como você sabe, Janet é quase minha noiva. Eu gostaria de ter certeza de que ela está em boas mãos.

- Você acha que eu mereço confiança?

- Lembrando-me do seu caráter impoluto, não duvido nem por um minuto.

- O que é que o trabalho envolveria?

- Pelo menos, eu esperaria que você afastasse os conquistadores e lhe fizesse companhia todas as vezes que tivesse tempo. Gostaria de que ela se sentisse realmente importante. Para ela mesma e para os demais.

- Você está por acaso se referindo a Janet Josselyn?

- Não se deixe enganar pelo encanto superficial - disse Hal.

- Janet é como a princesa da fábula. A que teve mais pretendentes do que podia contar e que perguntava a si mesma se ela era real.

- Essa princesa me parece real.

- Neste momento, sim... porque está cumprindo bem seu trabalho. Ela possui o melhor salon de Washington, o pai mais imponente e o grande mundo como lista de convidados. Dirigir esse espetáculo pode ser uma carreira muito interessante... até um dia triste em que ela começa a perguntar-se se tudo isso vale a pena.

- Ela tem frequentemente essas crises?

- Mais do que você suspeitaria, vendo-a agora. Quando esses dias a atingem fortemente, ela começa a indagar-se se não é apenas outra parasita, aproveitando o esforço de guerra para extrair sensações. è nesses momentos que ela poderá utilizar seu espírito e sabedoria.

- Eu ainda não posso acreditar nisso a respeito de Janet.

- Você verá por si mesmo... muito antes de terminarem as Seis semanas. Foi esse um dos motivos por que a encorajei a representar.

- Eu não sabia que sua noiva era atriz.

- Representadora seria uma palavra mais exata - observou ele. - De qualquer modo, ela vai dar um giro pelos postos do USO. Essas viagens poderiam ser a salvação dela.

- O que é que ela faz?

- com a ajuda de microfones para projetá-la, ela pode imitar todo mundo, de Mussolini a Garbo. Até agora, não representou senão em suas próprias festas. Quando enfrentar a primeira plateia, talvez perca a coragem. com um amigo nos bastidores para encorajá-la -. alguém em quem ela possa confiar - penso que ela se sairá muito bem. Aceita o emprego?

- com muito prazer... contanto que eu esteja nesta parte do mundo depois de amanhã.

- Supondo-se que esteja, você será extremamente útil - disse Hal. - Janet precisa de umas férias dos tipos hipócritas que lhe cercam o pai. Ela não encontrou um número suficiente de homens com a sua fé na humanidade e a sua espinhosa consciência. Sei que ela vai achar a mudança muito revigorante. - Ele se ergueu com o famoso sorriso afivelado no lugar devido. Bruce sentiu que o último resto de suspeita derretia-se àquele calor. - Negócio feito?

- com as exceções mencionadas.

- Naturalmente. - O Deputado da Flórida apertou a mão do cirurgião com a empunhadura secreta da fraternidade universitária. - É tempo de dançar com a dona da casa. Shane e eu já lhe demos aulas suficientes.

O gesto fazia parte das maneiras fáceis de Hal. Era impossível pôr-lhe a sinceridade em dúvida depois que ele se afastou. Observando-o abrir caminho entre os convidados no buffet em busca de novos reinos a conquistar, Bruce perguntou a si mesmo por que não podia controlar um persistente ressentimento. ,

Em seguida, como se apenas para confirmar sua própria sinceridade, atravessou o gramado para pedir vez ao par de Janet Josselyn.

Janet cumprimentou-o com uma alegre inclinação de cabeça, enquanto ele se esquivava dos canais, para separá-la do brigadeiro de infantaria que se eriçou como um porco-espinho diante da interrupção.

- Eu teria pedido para tocarem Stardust se soubesse que você estava a caminho - disse ela. - Por que se demorou?

- Principalmente, o seu noivo.

- Eu não acho que tenha noivo, atualmente.

- O meu Deputado parece mais bem informado a esse respeito-

- O Deputado Reardon é um grande manipulador do futuro dos outros - disse Janet. - Como colega de turma, você devia saber disso.

- Ele ainda espera que você se case com ele. Não me diga que ele se engana.

- Você se importaria... se eu lhe avisasse que já me fizeram demais essa pergunta?

- Não me importaria, absolutamente - retrucou Bruce. - Agora, que mudamos de assunto, acho que você descobrirá que é muito mais fresco à margem do rio. - Ele já a impulsionara, dançando, do terraço até o gramado... e aos degraus que conduziam até a doca no Severn.

- Você está-me raptando?

- Apenas para seu próprio bem. Como médico, receito descanso... depois de tanto esforço na pista de dança.

Janet permitiu que ele a levasse até o ancoradouro. Até agora, ele não sabia se ela estava divertida ou irritada com sua ousadia.

- Então, eu estive sob observação?

- Constantemente, desde o momento em que cheguei.

- Mesmo quando estava conversando com Hal?

- Por que não? O assunto era você.

- A que conclusões chegaram?

- Que você precisa de proteção adequada enquanto ele estiver na Inglaterra. Posso tomar o lugar dele em sua agenda, se não em suas afeições?

- Por quanto tempo?

- Ele disse que ficará fora durante umas seis semanas.

- Isto é o que eu chamo de uma verdadeira viagem de serviço - disse Janet. - Você acha que aguenta?

- Acho que sim... com sua cooperação.

- A ideia de quem foi: sua ou de Hal?

- Poderemos chamá-la de acordo conjunto?

- Eu a considerarei despótica, da parte de ambos. Em todos os casos possíveis, gosto de escolher meus próprios acompanhantes.

- Naturalmente, a missão depende de sua aprovação.

Janet aproximou-se da borda do flutuante para observar a marcha de um barco no rio. Forçando-se a parar nos degraus, Bruce não explorou a vantagem. Até agora, essa fácil esgrima pouco mais fora do que uma demonstração de boas maneiras: a filha do Senador poderia ainda mandá-lo embora com uma única palavra.

- Diga-me mais uma coisa, Bruce. O acordo conjunto foi também um qui pró quo?

- Se me lembro do meu latim, isto significa, numa venda de cavalos, uma barganha satisfatória para ambos.

- Isto mesmo - disse Janet. - Ou, pondo as coisas no vernáculo, não tenho a certeza de gostar de ser a potra em disputa.

- Será que você pode ajudar a minha causa se eu lhe disser que os meus motivos são absolutamente irreprocháveis?

- Poderia... se eu acreditasse em você - disse Janet. - O que é que envolveria essas seis semanas?

- Prometi a um velho colega defendê-lo, com risco da própria vida. Eu dificilmente poderia fazer menos depois do que ele acabou de fazer por mim.

Os olhos de Janet continuavam fixados no barco.

- Hal não faz favores sem motivo. Como é que ele o ajudou?

- Graças aos contatos dele, parece que fui salvo da cadeia.

- Você não parece grato - observou Janet. - Ficou ressentido com a ajuda? ,

- Um pouco. Da mesma maneira como você se ressente da maneira como ele considera certo o casamento.

A dona da casa deu as costas ao rio. Esperando que a fácil esgrima continuasse, ele ficou atónito ao notar que o sorriso dela desaparecera.

- Talvez isto nos torne iguais - disse ela.

- Talvez torne. A possibilidade deve ser encorajada.

- É uma possibilidade que nem mesmo Hal poderia ter previsto.

- Que tal jantarmos no próximo sábado para verificar se você tem razão?

- No sábado próximo eu me apresento no USO, em Baltimore.

- Isto é melhor ainda. Você pode usar-me como claque de um homem só... na eventualidade remota de que precise disso. E podemos jantar depois.

- Podemos, sim - disse ela. - Virá buscar-me às seis?

Mais ou menos no meio da manhã, chegou ao Acampamento Bruckner uma mensagem dispensando o Major Bruce Graham do serviço naquele dia e ordenando-lhe que se apresentasse imediatamente ao Cirurgião Geral, em Washington. O Ajudante autorizou o uso de um carro oficial. Menos de uma hora depois, um sargento da recepção do Gabinete do Cirurgião Geral conduziu-o por um imponente corredor a um escritório com vista para a avenida... Logo em seguida, espigado na cadeira dos visitantes, observando fotografias de instalações médicas da Ilha do Governador à Austrália, achou que era impossível conservar o otimismo que a convocação despertara. O Coronel Lawerice Wilson, o oficial que assinara a ordem (e cujo nome era repetido a placa sobre a escrivaninha vazia), continuava a ser um agourento enigma enquanto os minutos se escoavam lentamente.

Mal haviam passado vinte e quatro horas desde a visita de Bruce a pive Oaks... embora o open house do Senador já parecesse tão remota como uma diversão das Mil e Umas Noites. As joviais promessas do Deputado Hal Reardon e o encontro iminente com Janet faziam parte da miragem. Somente o frio do gabinete do Coronel yyilson tinha importância. Nesse momento, uma porta lateral foi aberta impetuosamente... e um pequeno e vivo oficial dirigiu-se rapidamente para a escrivaninha, depositou com ruído uma pasta de arquivo no tampo nu de vidro e olhou inquiridoramente para Bruce antes de mergulhar no estudo do seu conteúdo.

A gelada inspeção destruiu os últimos resquícios de esperança. Compreendendo que devia ter-se levantado à entrada do oficial superior, Bruce fitou desconsolado o pomo-de-adão do Coronel, que subia e descia, e esperou que o cutelo caísse. Era evidente que algo saíra errado, e ainda mais claro que o Coronel Wilson continha-se com esforço.

- Parece, Major Graham, que alguns médicos são difíceis de contentar - disse o Coronel, com a vista presa à pasta.

- Receio não compreender, senhor.

- Ontem, fui informado por uma alta autoridade civil de que o senhor está insatisfeito com seu posto atual.

- Isto é inteira verdade, Coronel.

- Habitualmente, nós não designamos um cirurgião de alto gabarito para um hospital de base. Não obstante, o Exército considera os portos de embarque como áreas de alta prioridade. Há urgente necessidade neles de especialistas qualificados para tomar decisões finais sobre a aptidão do soldado para serviço no exterior.

- Naturalmente, senhor.

Wilson mergulhou ainda mais a fundo na pasta.

- Eis aqui uma lista parcial dos homens que servem na sua base. No serviço médico, temos o Major Ackerman, um especialista em moléstias internas de altas qualificações, de Chicago. O seu assistente, o Capitão Leibowitz, é um homem de grande futuro no mesmo campo. Na urologia, temos o Major Denby, um dos melhores de Nova York. com tais colegas, gostaria de saber por que o senhor não quer ser chefe do serviço de cirurgia do Acampamento Bruckner.

- Infelizmente, Coronel, tal não é o meu posto.

- Quais seus deveres atuais?

- Fui posto na reserva de oficiais logo ao chegar. Nos primeiros dias, fiz exames médicos de rotina. Desde então, tenho trabalhado com o Major Denby... à espera de serviço no exterior no pelotão de saúde de um navio.

- Se o senhor não é o cirurgião-chefe em Bruckner, quem diabo é?

- O Major Calvin Pritchett acaba de ser nomeado, senhor.

O coronel estendeu a mão para o intercomunicador e pediu secamente a pasta 201 sobre Pritchett. Não falou até que ela foi posta a sua frente por uma WAC quase sem fôlego.

- Por que não me comunicou imediatamente esses fatos?

- Era o meu primeiro posto, senhor. Não tinha ideia de quais seriam os meus deveres.

- Nunca foi a nossa intenção desperdiçar seus talentos e treinamento em serviço rotineiro. O antigo cirurgião-chefe de Bruckner, Major Anders, esteve à frente do serviço desde a criação do acampamento. Logo que foi mandado para Londres, o senhor foi escolhido para substituí-lo.

- Posso perguntar se o hospital da base conhecia sua decisão?

Wilson folheou a pasta.

- Isto, ao que parece, foi o erro fundamental de omissão. Mas ainda acho difícil acreditar que o Coronel Britten não tivesse compreendido nossa intenção. O senhor preencheu um questionário de classificação ao chegar?

- Foi incluído na minha pasta quando me apresentei.

Wilson emitiu uma curta mas violenta praga, uma palavra que contrastava estranhamente com seu aspecto empertigado.

- É claro que houve uma confusão fundamental na sua designação. Nas circunstâncias, posso compreender o seu descontentamento.

- Tenho a esperança de que compreenda, senhor, que o Deputado Reardon interferiu sem consultar-me.

- Eu queria que o senhor se tivesse queixado pessoalmente. Major Graham. Tal ato, de sua parte, teria sugerido que o senhor tinha alguma confiança na inteligência do Cirurgião Geral.

Bruce aceitou, sem palavra, a repreensão. Shane McLendon dissera que uma palavra nos ouvidos certos poderia mudar todo o futuro de um homem no Exército. Aí, ao que parecia, estava a prova de que seu rápido trabalho subterrâneo não fora desperdiçado.

- Eu não vou reiterar a sua designação original - disse Wilson-

- Dentro de breve, começaremos a organizar equipes cirúrgicas auxiliares para envio à frente de combate. Tal serviço interessaria ao senhor?

- Imensamente, Coronel.

- Todos os grupos serão dirigidos por um especialista, como o senhor, um homem que possa resolver todos os casos que surjam numa mesa de operações. Ele comandará um ou mais oficiais médicos menos graduados, um anestesista e um grupo de técnicos. Na maior parte das vezes, auxiliarão os hospitais de sangue nas áreas avançadas.

- Fiz esse tipo de operação na Espanha, senhor.

- Assim vejo, pela sua ficha. Quando estivermos plenamente organizados, eu mesmo providenciarei para que o senhor comande um desses grupos. Entrementes, podemos usar gente capaz no Scranton General, mesmo que o senhor tenha de servir como oficial de enfermaria...

A voz do coronel, a despeito da deliberada falta de calor, era quase tranquilizadora agora. Ouvindo a detalhada descrição dos seus novos deveres, Bruce descobriu que saboreava esse sonho acordado. O Scranton General, como sabiam todos os médicos, era um modelo em sua classe - um Éden de cirurgião, servido por especialistas das melhores escolas médicas e clínicas do país.

- As ordens de sua transferência serão transmitidas amanhã - disse Wilson. - Nós as chamaremos de deveres temporários até a sua primeira missão de combate. A organização das unidades que mencionei dependerá do que ocorrer no exterior... mas o senhor será o primeiro indivíduo qualificado a comandar uma delas.

- Não sei como agradecer-lhe, senhor.

- Não há necessidade de agradecimentos, Major. Trata-se de designações que deviam ter sido feitas antes, nada mais.

De volta a Bruckner e à rotina da enfermaria de urologia, Bruce poderia ter repetido de memória a maior parte do gelado discurso do Coronel Wilson, mas teve o cuidado de não compartilhar as notícias com pessoa alguma. A atitude do pessoal do hospital da base permanecia ainda cautelosa: uma convocação para comparecer ao Gabinete do Cirurgião Geral poderia significar numerosas coisas e o próprio Nick Denby teve o cuidado de parecer ocupado em outras coisas.

Na manhã seguinte, ainda no café da manhã, Bruce recebeu a esperada convocação para ir ao gabinete de Britten. Em hora tão matutina, o Comandante parecia ainda mais rabugento do que o habitual. Encontrou o novo cirurgião-chefe à janela, com o rosto transformado numa máscara de apreensão. O Major Krock, o Ajudante do Serviço Auxiliar de Saúde, sentava-se a uma mesa lateral, fingindo estudar uma pasta. Num canto, um cabo ajustava o rolo de papel de uma máquina de estenografia, sugerindo-lhe a presença que a reunião era, pelo menos, semi-oficial.

- Sente-se, Major. - A voz de Britten estava fria ao apontar para a cadeira colocada no centro geométrico do tapete. - Aí, onde eu posso vê-lo claramente.

Instalando-se no lugar conhecido, Bruce notou que dava o rosto para a luz. Britten assumira a pose de garboso inquiridor, ao passo que a atitude do Ajudante era de respeitosa expectativa. Graças ao que conhecia, o cirurgião quase saboreava essas solenes manobras preliminares. Constituía um capitoso prazer o compreender que o Comandante não podia saber que sua saída do Acampamento Bruckner estava assentada.

Britten voltou-se para o Ajudante:

- Pode começar, Major Krock.

- Foi o senhor quem convocou esta reunião, Coronel.

- Como quiser. Diga-me o seguinte, Major Graham: o que o levou a queixar-se, sem meu conhecimento, a uma autoridade superior? Até mesmo um civil fardado deveria saber que isto é contrário ao regulamento.

- A que queixa o senhor se refere, Coronel?

- O senhor visitou ou não Washington, sem informar-me?

Krock tomou a palavra de seu canto na mesa lateral:

- O gabinete do Cirurgião Geral chamou-me diretamente pelo telefone. Naturalmente, autorizei transporte imediato. Não havia tempo de avisá-lo, senhor.

- Posso saber o motivo de sua abrupta convocação, Major Graham?

- O Coronel Wilson queria interrogar-me a respeito dos meus deveres. Ele parecia estar sob a impressão de que eu era o chefe do seu serviço de cirurgia.

- O senhor explicou que o posto fora preenchido?

- Sim, Coronel. - Bruce olhou para a figura porcina à janela enquanto falava, sem a menor tentativa de ocultar o desprezo.

- Nós jamais fomos informados das intenções do Gabinete do Cirurgião Geral.

- O Coronel Wilson julgava que minhas qualificações tê-lo-iam convencido de que fui enviado aqui para preencher o cargo.

- O senhor esperava a nomeação?

Bruce voltou-se para o estenodactilógrafo e falou-lhe diretamente, ignorando o rosto afogueado do outro lado da escrivaninha e o indivíduo ainda mais furioso à janela:

- Ao chegar aqui, eu desconhecia inteiramente os procedimentos militares. Naturalmente, esperava que me fosse dado trabalho consentâneo com meu treinamento.

Krock interrompeu tranquilamente:

- O senhor viu o cartão das qualificações, senhor. Descrevia ele o Major Graham como membro do Colégio Americano de Cirurgiões

- a mais alta distinção do seu tipo neste país, segundo acredito. Como ele disse, o posto estava vago quando chegou. Nessa ocasião, o Major Pritchett era ainda capitão.

Desta vez, coube a Britten olhar para o estenodactilógrafo.

- Muito bem, cavalheiros. Se estava insatisfeito com sua designação, por que não disse isto na primeira entrevista?

- Quando o senhor colocou-me na reserva dos oficiais, senhor, nutri a esperança de que tivesse em mente um verdadeiro posto para mim - disse Bruce.

- Limite-se às perguntas, Major. O senhor estava insatisfeito, como disse. Em vez de queixar-se através dos canais normais, o senhor dirigiu-se ao Gabinete do Cirurgião Geral.

Krock retomou a palavra:

- Para que conste da ata, Coronel, o Major Graham não visitou o Gabinete do Cirurgião Geral por iniciativa própria e não apresentou queixa, oficial ou não. Acabei de falar com Washington ao telefone. As designações do Major foram investigadas por ordem superior.

- Se o sistema de designações do Cirurgião Geral desencaminhou-se, isto dificilmente seria assunto meu - disse Britten. - Mas pergunto ainda por que este oficial não apresentou a mim seu protesto, desde que se sentia insatisfeito aqui.

Ponderando a resposta, Bruce percebeu que o Comandante esforçava-se para sair de uma situação embaraçosa com alguma aparência de dignidade: o formalismo da última pergunta, a despeito do gelado fraseado, continha um apelo. Falou rapidamente, antes que a pena pudesse abrandar-lhe a indignação.

- Fui informado de que um novo oficial devia fazer o melhor possível para adaptar-se, senhor - disse ele. - Naturalmente, dado o meu treinamento, julguei que valia mais para o Exército do que fazer constatação de doenças venéreas num pavilhão de exames médicos. O que realmente me perturbou, porém, foi algo muito mais sério.

- E o que foi isso, Major Graham?

- O fato de que ninguém neste hospital, com exceção de mim, era especialista qualificado em cirurgia, e que nenhum especialista desse tipo tivesse sido chamado a preencher o posto. - Bruce olhou intencionalmente para Pritchett enquanto falava. Não pôde suprimir inteiramente um sorriso quando o sobrinho do Comandante assumiu uma cor de telha. - Dispensa dizer que o Coronel Wilson ficou ainda mais perturbado do que eu.

- O senhor está pondo em dúvida meu julgamento, Major?

- Não estou pondo em dúvida coisa alguma, senhor. Estou-lhe dizendo os motivos da minha confusão. Os fatos falarão por si mesmos depois que o assunto for submetido a uma autoridade mais alta. Nessa ocasião, estarei servindo em outro posto.

- Isto é uma esperança, Major, ou uma promessa? - perguntou-lhe Krock.

- Uma promessa firme... do Coronel Wilson.

- O senhor está sendo dispensado dos seus deveres em Bruckner?

- Eventualmente, deverei dirigir uma equipe cirúrgica de combate. Até então, serei designado para o Scranton General.

O Ajudante, notou Bruce, emitiu um suspiro de alívio - um som que foi ecoado, embora abafadamente, da escrivaninha do Comandante. O afogueado deixou as bochechas de Britten, quando ele se inclinou para a frente e retomou a palavra. Somente Pritchett parecia prestes a ter uma apoplexia.

- Posso desejar-lhe boa sorte nos seus próximos deveres, Major? Confio em que, na próxima vez, o senhor dará mais atenção ao regulamento.

O gesto era de rotina - o esforço de um oficial comandante para lançar óleo em águas revoltas sem abdicar à essência de sua autoridade. Bruce levantara-se para a continência de despedida quando Pritchett entrou pesadamente em ação, partindo do peitoril da janela.

- Se o coronel permitir...

- O que é que há agora, Calvin?

- Há ainda o problema de indisciplina, senhor. Refiro-me às falsas declarações que esse homem fez perante um grupo de oficiais no tocante à morte do soldado Thomas Thorpe. A apresentação de tais acusações constitui um crime segundo o regulamento.

O Ajudante levantou uma mão peremptória. A um gesto seu, o estenodactilógrafo desligou a máquina.

- O senhor tenciona levar avante esse assunto, Major Pritchett? - perguntou.

- É a minha intenção desde que as declarações foram feitas durante a autópsia de Thorpe.

Krock, com um gesto, despediu o estenodactilógrafo da sala e, em seguida, voltou-se para encarar Bruce.

- Constitui meu dever declarar que o senhor não é obrigado a responder a quaisquer perguntas nesta ocasião. Se o Major Pritchett apresentar queixa, um inquérito oficial será determinado, ficando tal procedimento pendente de corte marcial.

- Estou inteiramente disposto a discutir a situação agora repu’cou Bruce. - E estou certo de que todos ficaremos felizes por ter ela caráter informal - continuou, antes que Pritchett pudesse interrompê-lo. - No meu relatório, submetido antes da autópsia, declarei que o soldado Thorpe devia ser rejeitado para serviço de combate em virtude de tromboflebite crónica. A rejeição foi ignorada... pelo ivlajor Pritchett. No mesmo dia, Thorpe morreu numa marcha de obstáculos. A autópsia comprovou que a marcha foi a causa imediata da morte...

Pritchett levantou-se agora, com o rosto contorcido num riso de escárnio:

- Acontece que isso é uma mentira. Não há registro de rejeição no formulário de exame.

- A sua declaração é correta, até certo ponto - disse Bruce. - Infelizmente, não constitui toda a história. A pasta a que o senhor se refere foi alterada... após meu pedido de rejeição. Eu tenho o original na minha carteira.

Ninguém se mexeu quando ele tirou do bolso a página doada pelo sargento de Seward e a expôs à luz para que Britten e Krock a vissem claramente. Por trás deles, ouviu um rosnado abafado... e perguntou-se se Pritchett iria atacá-lo ali e naquele momento.

- Onde conseguiu o senhor essa folha? - perguntou-lhe o Ajudante.

- Isto tem importância? O senhor pode ver que é autêntica.

- Estou perguntando para minha informação. Os nomes podem ser omitidos.

- Numa cesta de papéis usados de escritório, Major Krock. Ela fala por si mesmo.

Pritchett encontrou novamente a voz.

- Isto é um ultraje, Coronel...

- Cale a boca, Calvin!

Bruce não fez objeção alguma quando Britten estendeu a mão para a folha de exame e estudou cada linha com míope atenção. No seu canto, o Ajudante acabara de converter um riso abafado profundo em tosse ainda mais profunda.

- Posso ficar com isto? - perguntou-lhe o Comandante.

- Se quiser, senhor.

- Muito obrigado, Major Graham. Não haverá queixa... e compreendo bem o seu desejo de deixar Bruckner.

Britten amassara já a folha de papel. Em seguida, colocou-a num cinzeiro e chegou-lhe o isqueiro. Caiu pesado silêncio no gabinete enquanto a prova, que teria condenado Pritchett era transformada em cinzas.

- A reunião está encerrada, cavalheiros - disse o Comandante. - Os Majores Graham e Krock estão dispensados. O senhor permanecerá, Major Pritchett.

- No seu lugar, eu teria apresentado oficialmente aquela folha de papel - disse Denby. - Por que enfraqueceu?

- Achei que Britten e Pritchett já haviam sido punidos o suficiente.

Os dois médicos bebiam um uísque com soda de despedida no clube, na meia hora que precedia a transferência de Bruce para o Scranton General. A erupção ocorrida no gabinete do comandante (e os boatos a que dera origem) haviam sacudido o hospital até os alicerces: no último momento, o urologista tinha-se constituído em comissão de um único homem para apressar a partida do cirurgião.

Denby fez um sinal ao garçom do bar, pedindo outra rodada e, em seguida, levou as bebidas para um canto da varanda. Embaixo, no asfalto enlameado, esperava o carro que levaria Bruce para o novo posto. O motorista acabara de entrar no edifício da administração para formalizar o passe que lhe daria passagem pelo portão. Denby acomodou-se numa das cadeiras espreguiçadeiras de junco e pôs os pés sobre o corrimão.

- Chame aqueles dois monstros quaisquer nomes que quiser - disse ele. - Eles merecem todas as notas desabonatórias que existem no livro.

- Concordo com o veredicto no tocante a Pritchett - disse Bruce. - Mas não estou tão certo no tocante ao velho.

- Britten é um entulho em qualquer lugar - disse Denby. -, Ele devia ser enterrado com todas as suas enferrujadas medalhas. Pritchett devia ser simplesmente esquartejado.

- Se as recordações servem para alguma coisa, Nick, você cantou outra música na última vez que discutimos o Exército.

- Naquela ocasião, eu estava esfregando pomada nas feridas que a sela lhe havia feito... esperando que você tirasse o melhor proveito de uma situação má. Na ocasião, parecia que você estava disposto a levar uma surra sem reagir. É assunto muito diferente agora que você pôs o Comandante em seu lugar.

- Ninguém foi ferido - disse Bruce. - Agora que Britten deixou de bancar o Grande Inquisidor, posso vê-lo a uma melhor luz- Ignore-se o nepotismo e o hábito de adiar decisões difíceis, e teremos um oficial comum. Pelo menos, ele passou um sabão em Pritchett jogo que abriu os olhos.

- Não me diga que pensa que a lição não será esquecida.

- O Exército é a vida de Britten. Nós somos soldados improvisados. Não exploramos demais as deficiências dele.

Denby tomou um longo gole.

- É fácil para você mostrar-se filósofo... com a designação para o Scranton General. Não se esqueça de que ele vai ser meu chefe ainda durante bastante tempo.

- Ele é suportável, no tocante a chefes. E você perderá Pritchett logo que as rodas começarem a girar no Gabinete do Cirurgião Geral.

- Exato. Calvin, o Grande, ser banido para o deserto, onde será muito menos perigoso. Mas eu ainda gostaria de vê-lo rebaixado. O mesmo acontece com todo mundo na base que ousa dizer o que pensa.

- O rebaixamento de Pritchett não trará Tommy Thorpe de volta. Nem o transformará num melhor cidadão. Estou disposto a viver e deixar viver, se o Exército permitir. Tenho mesmo a esperança de que os meus problemas com oficiais superiores tenham terminado.

- Bata em madeira quando disser isso, Bruce. Eles podem estar apenas começando.

- Fui designado para um hospital onde cirurgiões são realmente úteis. Amanhã, vou escoltar Janet Josselyn a seu primeiro espetáculo num acampamento. E, quando for aberta a frente europeia, terei oportunidade de fazer história médica. Você não se está babando de inveja?

- Eu mesmo gostaria de um encontro com Janet Josselyn, se fosse quinze anos mais moço. Estou razoavelmente convencido de que daria conta dela com o que aprendi nestes quinze anos. Você, talvez, não tenha essa sorte.

 

                                       WASHINGTON

Uma hora antes, ao acordar no elegante quarto, Bruce precisou de um segundo olhar aos uniformes no guarda-roupa para convencer-se de que esta era, realmente, uma instalação militar, e não seus aposentos em Lakewood. A suspensão entre os dois mundos durou - não desagradàvelmente - enquanto ele se dirigia à cafeteria para o café ligeiro que o manteria até a hora do almoço... Agora, diante do chefe de cirurgia no lavatório, sentiu o presente ajustar-se com um estalido, com tanta nitidez como se acabasse de ajustar as lentes de um microscópio. Mesmo agora, semanas após ter assumido o novo posto, havia momentos em que era difícil acreditar que o Acampamento Bruckner e o Scranton General Hospital faziam parte do mesmo Exército.

- Tem certeza de que quer que eu faça esta, Terry?

O Coronel Terente Miller, um homem imensamente alto cuja cabeça de bola de bilhar contrastava estranhamente com braços simiescos, abriu-se num grande sorriso do outro lado da pia esmaltada de branco e da solução de álcool em que ambos os médicos mergulhavam os braços até os cotovelos. A sua presença ali contribuíra para uma estranha sensação de Bruce de que passado e futuro poderiam ser idênticos. Em Lakewood, o Dr. Miller fora um dos residentes durante seu primeiro ano de interno antes de ir ensinar no Sul.

- Está ficando com medo porque o doente é um general?

- Mas este doente não é muito especial?

- Aqui em Scranton ele é apenas outra fístula arteriovenosa.

- E inteiramente meu?

- Enquanto tiver o braço direito de Abe Schoenfeld sob minhas ordens, ele operará todos os casos vasculares. A minha província, como você bem sabe, é o abdómen.

- Manejarei o bisturi, então, se você manejar os repórteres.

- É uma boa troca. Acho que o doente está pronto.

O General Porter Gaines já dormia sob anestesia, no momento em que os dois cirurgiões entraram na sala de operações. O resto da equipe estava a postos sob o brilho das luzes. Acima, no anfiteatro, uma plateia de dezenas de colegas, aumentada por oficiais recém-nomeados, passando pelo processo de doutrinação, havia-se reunido para observar a operação. A notícia da chegada do novo doente espalhara-se pelos corredores muito antes de ser marcada a operação. O General Gaines era um dos grandes nomes das Filipinas, um símbolo autêntico de uma nação sitiada e ainda profundamente necessitada de mais heróis.

A ferida que o trouxera à mesa de operação era antiga, infligida quando ele entrara na mira telescópica de um atirador inimigo em Bataan. Na ocasião, o ferimento parecera banal: a bala penetrara na coxa superior e produzira um orifício limpo que requerera apenas ataduras nos pontos de entrada e saída. A cicatrização, dizia a ficha, fora rápida... mas a perna começara a inchar depois, tornando-se as veias dilatadas e tortuosas. Um exame preliminar revelara outros agourentos sintomas: pulsação rápida, respiração rasa e dilatação do lado esquerdo do coração.

Mais tarde, o paciente fora transferido para a Califórnia e submetido a extensa observação. O quadro clínico inicial fora de falha cardíaca, embora a história e a sua própria observação tivessem convencido Bruce de que a verdadeira causa do problema era o percurso presumivelmente sarado da bala. Tratava-se de uma forma de trauma vascular que ele estudara intensamente em Lakewood. O caso que aguardava o cirurgião naquele dia não era o primeiro dos enigmas que ele solucionara desde que se apresentara ao Hospital do Exército, nos subúrbios de Washington.

Comprovara-se agora que a bala, perfurando a coxa, lesionara a artéria profunda e a veia correspondente. Após a ruptura, um estado anormal, conhecido como fístula, formara-se entre os dois vasos. Em consequência, o sangue que fluía sob alta pressão do sistema arterial fora desviado por esse atalho e entrava na área de pressão relativamente baixa das veias.

Duas coisas haviam acontecido em seguida - e Bruce passou-se em revista mentalmente enquanto esperava o sinal do anestesista para fazer a primeira incisão.

Em primeiro lugar, desde que não havia mais pressão suficiente para manter um fluxo adequado nas pequenas artérias, fora seriamente prejudicada a circulação em toda a perna. Em segundo, e ainda mais perigoso (em virtude da súbita liberação da pressão da artéria profunda), o coração fora forçado a trabalhar muito mais ativamente para assegurar o fluxo sanguíneo nas demais partes do corpo. Isto, por seu lado, ocasionara a dilatação do próprio órgão: desenvolvimento exagerado dos músculos básicos, dilatação das válvulas e ameaça de disfunção completa.

Preparativos rigorosos haviam sido feitos para a operação. A circulação do paciente fora verificada mediante pressão sobre a fístula, fechando o fluxo anormal e demonstrando o estado que seria atingido após ter sido eliminado o desvio. Sem tal demonstração seria impossível concluir se a cirurgia curaria a disfunção ou ocasionaria uma perda tão drástica de circulação que a gangrena se seguiria imediatamente. Conforme haviam esperado, a taxa de pulsação caíra depois do bloqueio e a pressão arterial voltara quase ao normal. Simultaneamente, a circulação abaixo da fístula melhorara realmente, mostrando que canais auxiliares poderiam atender às necessidades do pé e da perna.

Todos esses fatos interligados haviam configurado o quadro clínico autêntico, dando a Bruce a impressão de que era seguro operar. Removida a fístula, não haveria mais perigo, mesmo que fosse necessário fechar a artéria. Alta cirurgia era ainda indicada, desde que um subproduto inevitável da junção antinatural de veia e artéria era uma acentuada dilação dos vasos nos tecidos vizinhos. À medida que a operação prosseguisse, Bruce sabia que devia permanecer constantemente alerta para tais fenómenos. O momento não indicava uma incisão piedosamente curta. A exposição ampla do campo cirúrgico constituía necessidade incontornável para evitar que fosse prejudicada a operação por pequenas, mas debilitantes hemorragias.

- Pronto, Coronel?

- Quando o senhor estiver, Major.

Nenhuma outra troca de palavras foi necessária ao receber o bisturi. Enquanto realizava o dramático trabalho, Miller e dois cirurgiões menos qualificados moviam-se rapidamente para pôr em posição a colmeia de hemostatos que controlavam a miríade de pequenos vasos que a faca expunha. O abordamento inicial era tedioso e cauteloso. Nesse estágio, era impossível definir o tamanho exato da fístula: um corte em falso poderia arruinar a chance de sobrevivência do doente. Passou-se quase uma hora antes que a lesão fosse revelada em toda sua extensão. A anormalidade era de dimensões formidáveis a artéria, de espessas paredes, com a borda interior dilacerada pela bala, a veia de paredes finas imensamente dilatadas e a grotesca conexão tubular entre as duas.

- É um monstro - disse o Coronel Miller.

- Nós esperávamos isso, senhor.

- Quer ainda operar toda ela... nesta ocasião?

Bruce poderia ter-se ressentido da pergunta se algum dos dois tivesse dúvida da competência do outro. Conhecendo Terry Miller como conhecia, compreendeu que o colega de Lakewood estava sendo apenas realista. Uma operação prodigiosa desta natureza poderia ser feita em etapas, se assim quisesse o cirurgião encarregado...

A sugestão do oficial superior fora um oferecimento de retirada, se esta fosse indicada, sem perda de prestígio.

- Como é que ele está aguentando? - perguntou Bruce ao anestesista.

- Ainda confortável.

- Nós podemos fechar sem remover todo o complexo. Mas, quase certamente, não conseguiremos curá-lo... e demoraria quase tanto.

Miller, estudando a enorme incisão de todos os ângulos, inclinou lentamente a cabeça.

- É tudo ou nada, então?

- Eu preferiria muito mais esse método.

- Neste caso, concordo com seu julgamento.

A excisão da fístula, agora que o campo operatório fora precisamente definido e exposto em todos seus contornos, foi quase rotineira, a despeito do tamanho. Isolando a artéria e a veia em ambos os lados da anormalidade, Bruce dedicou-se à tarefa ainda mais demorada de ligar cada importante vaso nos tecidos vizinhos. O processo, embora infinitamente complexo, apresentou a recompensa final. No momento em que a seção, em forma de H, foi finalmente levantada de seu apoio, quase não houve hemorragia. Antes mesmo de colocar as suturas de fechamento, Bruce notou que a circulação colateral assumira o trabalho. A cor do pé e da parte inferior da perna melhorou acentuadamente. O mesmo ocorreu com o volume do pulso justamente na parte anterior do tornozelo.

- Três horas exatas - disse o Coronel Miller. - Estava com receio de que demorasse mais.

- Eu também, no início. - Bruce tirou as luvas e deixou-as cair no chão. - Que tal o estado dele agora?

- Ainda bom.

- Não havendo uma embolia, ele viverá para usar suas medalhas. O que será, em seguida?

- A imprensa, receio - respondeu o chefe da cirurgia.

- O senhor prometeu encarregar-se deles, Coronel.

- Eu os manterei fora de suas costas, sob minha palavra de honra. Mas eles esperarão algumas palavras do homem que salvou Porter Gaines. Afinal de contas, ele é um dos heróis de Bataan.

Fiel à promessa, o Coronel Miller conseguira reduzir o tempo de entrevista. Tempo, porém, foi ainda consumido revisando a nota à imprensa que o Departamento de Relações Públicas preparara para distribuição aos repórteres que aguardavam o resultado da operação. Mais tempo ainda foi necessário para enfrentar as explosões das luzes dos fotógrafos, e Bruce viu-se forçado a dedicar mais meia hora à entrevista sempre delicada que, descobrira, teria de dar pessoalmente em todos os casos em que o status de um paciente tornasse imperativa uma cobertura jornalística dessa natureza.

A nota distribuída pelo Departamento de Relações Públicas, observou, não omitira detalhe algum da dramática sequência de fatos que havia levado essa famosa baixa da linha de batalha nas Filipinas à triunfante recuperação. O fato de a própria cirurgia, a despeito de toda sua natureza delicada, nada ter tido de espetacular, não foi mencionado. O Dr. Abraham Schoenfeld, seguro no seu laboratório em Lakewood, sorriria com os floreados tecidos em torno do antigo discípulo, mas Schoenfeld podia dar-se ao luxo de viver acima da primeira página, no noticiário de rádio e da citação presidencial. Estes, afinal de contas, eram itens que o grande público americano, faminto de provas de sucesso nas frentes de guerra, exigia a cada divulgação de notícias... Naquele dia, a nota distribuída pelo Scranton General constituiu uma mistura razoável de fato e romance.

Duas outras operações continuavam na lista da manhã: a ligação de uma veia varicosa e uma recaída de hérnia. Bruce realizou ambas com a equipe do chefe da cirurgia, enquanto Miller se ocupava com a correspondência oficial. Somente depois da hora do almoço conseguiu tirar a bata de operação e correr apressadamente até o PX para um lanche antes de começar a ronda das enfermarias.

Como sempre, as extensas e iluminadas salas estavam cheias até as últimas camas, e bastou-lhe apenas uma rápida conferência com o encarregado da enfermaria para verificar que a maioria dos seus doentes, como a primeira operação da manhã, já ali estavam para tratamento pós-operatório... Os soldados aos seus cuidados não diferiam muito dos que ele tratara na Espanha - com uma diferença fundamental. Na adega de Barcelona ele lutara para salvar homens recém-saídos da batalha. Aqui, habitualmente, esperava-se que ele corrigisse antigos erros, curasse velhas feridas, que, de alguma forma misteriosa, haviam reaberto, e arrancasse quase moribundos do mergulho final.

A primeira cama na lista da tarde era outra lesão na perna, um ferimento que retroagia ao bombardeio da ilha de Wake. A ficha dizia que esse magro cabo, mortalmente pálido após meses em tração, penetrara em terreno contestado para salvar o comandante do seu pelotão, voltando pelo seu esforço com um ferimento mutilante. Ao contrário do General Gaines, o seu ato de heroísmo fora ignorado pela imprensa. Naquele dia, após tratamento de emergência no campo de batalha, evacuação por via aérea, cirurgia corretiva no Hawai e meses de convalescença nos Estados Unidos, o rapaz chegara a Scranton onde esperaria pacientemente o término de uma longa batalha para salvar um membro cuja circulação fora danificada quase além da possibilidade de tratamento.

A segunda cama era ocupada por um sargento do Exército permanente, cuja cavidade torácica fora aberta após a detonação acidental de uma granada em manobras de treinamento. Costelas, músculos e pleura haviam ficado expostos abaixo de uma omoplata estilhaçada e lesionado o pulmão por fragmentos de aço e pedaços de ossos. Em guerras anteriores, sem o polvilhamento com sulfanilamida e o envolvimento do pulmão quase exposto com largas ataduras de gaze, o sargento teria morrido no campo. Hoje - agora que ele havia combatido com êxito os efeitos secundários da empiema -, tinha possibilidade de sobrevivência. Graças ao renascimento do osso a partir do encaixe das costelas e aos bisturis mágicos que haviam posto faixas de músculos e enxertos de pele no lugar, o pulmão retraído poderia expandir-se finalmente e transformar-se num órgão parcialmente útil.

A cama seguinte contava uma estória diferente. Junto a ela, o cirurgião parou desanimado para estudar um soldado cujos lábios apresentavam o azulado da falta de oxigénio e cujos tornozelos e abdómen inchados apresentavam sinais adicionais de um coração em crise. Esta incapacidade não fora ocasionada por um ferimento. Uma Afecção reumática atacara a válvula mitral enquanto o doente ainda fazia manobras no Hawai.

O cirurgião-chefe entrou na sala de controle enquanto Bruce terminava suas notas.

- Você ainda quer manter aqui por mais tempo esse homem para ver se é indicada a cirurgia? Podemos transferi-lo para a clínica antes que o caso aumente nossas cifras de mortalidade.

- Receio que ele não tenha esperanças, Terry. Não enfrentamos ainda o problema da válvula mitral, nem mesmo experimentalmente.

- Pensa que jamais o conseguirão

- É inteiramente possível. Há dez anos, ninguém julgava que uma ductus arteriosas aberta pudesse ser isolada com sucesso... e, apesar disso, foi feito. Schoenfeld alega que dentro de breve estaremos fazendo operações de doenças cardíacas congénitas em crianças, e ele talvez tenha razão. Durante certo tempo, na última primavera, pensei que eu mesmo havia descoberto a solução. É por isso que ele está ainda furioso desde que apelei do meu aditamento. Ele queria que eu estivesse lutando naquela frente, e não nesta.

- Estou imensamente satisfeito porque você escapou dele, Bruce. Nós precisamos mais ainda de você. Ansioso ainda para juntar-se a uma unidade de combate?

- É esse o meu lugar... se quiser justificar a minha fuga do serviço de Schoenfeld.

- O que é que você preferia fazer? Salvar um homem como o General Gaines ou extrair um estilhaço num hospital de sangue?

- Deve haver outros consultores civis capazes de tratar esses tipos de casos vasculares.

- Se houver - disse Miller - posso contá-los pelos dedos das mãos. Na próxima vez que eu for à missa, vou rezar para que as unidades móveis de Larry Wilson demorem ainda muito para serem formadas.

O elogio do chefe de cirurgia, disto sabia, viera do fundo do coração. E contribuiu muito para que ele fizesse mais rapidamente as rondas da tarde. O mesmo, na sua forma extravagante, fizeram as manchetes que descreviam o êxito da operação que efetuara naquela manhã... Grande parte da animação, porém, evaporou-se quando se acomodou no seu escritório e pôs a mão no telefone para chamar Five Oaks e lembrou-se de que acabara de terminar a missão de seis semanas naquele local.

Observando o chuvoso crepúsculo de outono transformar-se em noite no gramado sob as janelas, perguntou-se o que faria com as noites livres, agora que o Deputado Harold Reardon havia voltado da Europa.

Cumprira fielmente a promessa feita, escoltando Janet Josselyn a espetáculos em acampamentos, onde ela estabelecera instantâneo e espontâneo contato com as plateias, acompanhando-a a comícios para venda de bónus de guerra e a danças de caridade. Às vezes, haviam jantado juntos em Anápolis ou numa cidade próxima onde o USO apresentava espetáculos. Ocasionalmente, quando lhe concederam o luxo de um passe de vinte e quatro horas, passaram tardes em Five Oaks, andando a cavalo pelos caminhos cheios de obstáculos de Maryland ou passeando de barco no Severn.

Inevitavelmente, à medida que dias se transformavam em semanas, compreendeu que apreciava cada vez mais a companhia de Janet. Embora jamais pudesse ter certeza se seu prazer era compartilhado na mesma medida, descobriu que ela se acostumara a confiar em sua presença. Ao descobrir que estava apaixonado por ela - e não ousava esperar que o amor fosse retribuído -, manteve sob férreo controle as emoções, recordando-se de que era um substituto de prazo definido... Voltando Hal e tendo recusado um jantar de reunião (sob a alegação fictícia de serviço à noite), localizara a pior dor na sua consciência, a certeza de que arremetera com os olhos bem abertos para o destino que o aguardava.

Desde o início, degustara essas delícias sabendo claramente que o seu amor, para nada dizer de desejos mais primitivos, era tão sem esperança como os sonhos da maioria dos homens com o paraíso. Apesar disso, mesmo agora, sabia que tomaria o mesmo caminho novamente, se lhe fosse oferecida a oportunidade.

Logicamente, não era a imagem de Janet que o perturbava enquanto se deixava ficar à escrivaninha. Em vez disso - por motivos que compreendia muito bem -, pensava no último encontro com o Senador Lucius Josselyn, na biblioteca de Five Oaks. À sua moda, a reunião sumariara o dilema que enfrentava: Josselyn tivera motivos suficientes para falar francamente.

A reunião ocorrera quase ao fim de outra tarde no rio. Janet devia comparecer a um acampamento entre Anápolis e Baltimore, onde ensaiaria um novo número. Deixaram o Severn uma hora antes do anoitecer para dar-lhe tempo de trocar de roupa. Não fora culpa de ninguém que ela tivesse tropeçado no saguão: o ato de tomá-la nos braços fora involuntário. O longo beijo que se seguiu, porém, tinha sido coisa diferente. Lembrando-se dele agora e corando profundamente com a recordação, ele se perguntou se ela não planejara a queda nos degraus. Houvera outros mudos abraços desde a partida de Hal para a Inglaterra: todos haviam começado assim, sem aviso.

- Isto é um consolo, enquanto me visto - murmurava ela. Limpe o batom antes de falar com papai.

- Não posso perturbá-lo agora. Ele está ao telefone.

- Espere até que ele termine e entre logo. Ele quer falar com você antes de partirmos.

Observando-a subir correndo a escada e controlando um desejo insano de segui-la, Bruce demorou-se no saguão enquanto a voz do Senador arrastava-se por trás da porta semi-aberta da biblioteca. Logo que ouviu o estalido do aparelho, tomou uma profunda respiração e bateu à porta. A permissão de Josselyn para entrar teve caráter sonoro o gesto de boas-vindas, como a presença pontifical e faziam parte do ambiente ligeiramente teatral de Five Oaks. O mesmo ocorria com o charuto que acabara de acender, o cálice facetado ao lado e o gesto que o convidara a servir-se numa mesinha lateral.

- O senhor chega no momento apropriado, Major. Seis horas é o momento inventado para a bebida.

- Não, obrigado, senhor. Janet e eu temos ainda dezesseis quilómetros de viagem.

- Qual o motivo, hoje à noite?

- Ela vai apresentar um novo número no Acampamento Carlisle.

- Não compreendi ainda por que você está sempre presente nesses espetáculos - disse Josselyn. - Faz também algum número?

- Tenho sido motorista dela desde que Hal se foi. E guardacostas, quando um número excessivo de admiradores a procura nos bastidores.

- Janet tem admiradores desde os quatorze anos. - O Senador soprou um anel de fumaça e observou-o desfazer-se no candelabro Waterford sobre a cabeça de ambos. - Até agora, ela conseguiu manejá-los sozinha.

- Os soldados em treinamento básico constituem um problema algo diferente, senhor. Acho que tenho sido útil, agora que os horizontes dela se expandiram.

- Tenho certeza que sim, enquanto Hal esteve longe. O senhor levaria a mal se eu sugerisse que sua utilidade cessará dentro de pouco?

Observando a mudança de tom, Bruce perguntou-se por que não ficou mais zangado.

- Hal pediu-me que servisse como acompanhante de Janet, Senador. O senhor está sugerindo que me excedi nessa missão?

- Não há necessidade de sentir-se ofendido, Major Graham. O senhor é um homem inteligente. Compreende o que eu quero dizer.

- Diga-me, de qualquer modo, para eu ter a certeza.

- Janet é uma excelente moça. Ela é também tão romântica como Branca de Neve era antes de entrar na floresta dos anões. Ou seria melhor dizer, o lado interno da frente de guerra? Naturalmente, eu estou satisfeito por ela dar uma contribuição pessoal. Mas não a quero envolvida demais, se puder evitar isso.

- Significa isto que o senhor tem dúvidas a meu respeito?

- Não estou fazendo julgamentos pessoais. Mas é ainda meu dever lembrar-lhe de que o futuro de Janet está assinado, selado e... virtualmente resolvido. Estou terminando meu último mandato no Senado. Dentro de dois anos, Hal Reardon assumirá minha cadeira. Por essa ocasião, se não antes, espero que eles estejam casados. Será um casamento ideal.

- Na qualidade de seu hóspede, senhor, eu dificilmente poderia pôr em dúvida tal julgamento.

- Quando considero Hal uma das melhores figuras da Câmara eu expresso o consenso dos meus colegas. Não concorda?

- Nada tenho a criticar na carreira de Hal. Mas eu seria menos do que honesto se não admitisse que ele me deixa intrigado... Compreendendo que expressava mal os pensamentos, Bruce forçou-se a ser específico. - Os inimigos dizem que ele entrou no Congresso sem fazer força, apoiado no dinheiro dos Reardons, no seu encanto, e num sentido soberbo de oportunidade. Até agora, dizem, ele não foi ainda realmente posto à prova. Lamento, mas concordo.

- Os Reardons constituem uma das melhores famílias do Sul. Hal é a flor de sua raça. Se os melhores não governarem o país, quem o fará?

- Senador, na primeira vez em que visitei Five Oaks, tive a mesma discussão com Shane McLendon. Perguntei-lhe o que significava melhor, e não fiquei muito feliz com a definição que ela me deu. Posso saber qual é a sua?

- Os melhores são os que nasceram para governar, Major Graham. Homens que conseguem que seja realizado o trabalho do mundo... homens que treinaram os filhos para usar o manto. O que Poderia ser mais simples?

- Isto depende de como o poder é usado, senhor. Se Hal deixar este país melhor do que quando o encontrou, ele justificará seus privilégios. Mas como acabei de dizer, espero ainda para ser convencido.

- Poder engendra poder - disse Josselyn com outro floreado oratório. - De modo geral, os poderes constituídos americanos justificaram sua existência. Em seu lugar, eu aceitaria o fato de que Reardon estará sempre aqui para dar ordens.

Absurdo como fosse, Bruce descobriu que saboreava a discussão, inútil em si mesma. Sabedor de que a franqueza encerrava seus perigos, prosseguiu, apesar disso.

- Se perdoar-me a observação, Senador, o senhor está dando a impressão de que Hal é uma espécie de sargento instrutor num campo de recrutas.

- A comparação é apropriada - disse Josselyn. - A maioria dos homens fica feliz quando o sargento instrutor marca o passo.

- Ou um ex-cabo chamado Hitler?

- Estou falando de disciplina sadia, não de lavagem cerebral. -, O Senador recebera a réplica sem perda de impulso e o seu baixo profundo continuava tranquilo. - Os nossos governantes sempre usaram o poder sabiamente, com suficiente divisão de autoridade para tornar inimaginável um ditador. Esse o motivo por que o senhor forçosamente encontrará Hal - ou seu equivalente - no assento do motorista.

- Supondo-se que ele seja a pessoa indicada para o cargo quando terminar a guerra.

- Posso garantir-lhe a aptidão, Major. O avô dele foi um grande americano. O mesmo aconteceu com o pai. Hal segui-los-á nas pegadas.

- Em outras palavras, o senhor espera que a estrutura de poder continue imutável quando terminarem os tiros?

- O senhor é contra a maneira como este país foi governado antes de Pearl Harbor?

- Sou, senhor. Na minha opinião, a nossa recusa em fazer valer nossa influência no exterior tornou Pearl Harbor inevitável.

- Receio que discordemos a respeito dessa burla esquerdista disse serenamente Josselyn. - Eu acredito que este país fez tudo o que podia para deter o Eixo, a não ser que tivesse partido para um ataque direto. Demais disso, acredito que Hal Reardon tem o cérebro e as conexões, para assegurar que tal traição não ocorrerá novamente. Algum dia, o senhor agradecerá a Deus por ele ser o seu Senador.

- A sucessão está, então, assegurada?

- com tanta certeza como eu respiro. E o que é mais, o Senado será apenas uma etapa. Talvez o senhor viva o suficiente para visitar seu colega da Flórida na Casa Branca.

- O senhor pode imaginar um sulista nesse posto, senhor?

Mais uma vez, Josselyn recebeu o golpe com grande bom humor.

- Acontece que Hal é um cidadão do mundo. Quantos congressistas contam com o apoio do mundo dos negócios e do operariado? Quantos podem chamar professores de Harvard pelos seus apelidos e jogar pôquer com Jake Sanford?

- O senhor inclui o Deputado Sanford no governo de elite?

- Sanford é um tipo difícil, concedo-lhe isso. Na Comissão de Atos Subversivos ele vai, amiúde, longe demais. Mas, em tempos como estes, agitadores como ele têm seus usos.

- Parece que estamos a pólos de distância, senhor... quando se trata de política. Talvez fosse melhor terminarmos esta discussão agora.

- Talvez fosse, Major Graham. Mas, deixe-me repetir, Hal Reardon será um dos homens mais importantes em Washington antes de chegar aos quarenta. Espero que Janet case com ele, como foi planejado, e suba com ele. E eu não quero que o senhor, ou qualquer outra pessoa, provoque-lhe dúvida. Está entendido?

- Perfeitamente, senhor.

- O senhor foi um ouvinte paciente - disse Josselyn. - Obviamente, o senhor me considera um homem do Neanderthal que já teve seu dia. Não me importo em absoluto... se o senhor compreender que sou eu quem manda. Mas não me deixe tomar mais o seu tempo de acompanhante.

Ao cruzar novamente o saguão, Bruce observou que Janet trouxera o carro para a frente do terraço. O seu radiante sorriso, ao afastar-se para ceder-lhe o volante, assegurou-lhe que coisa alguma poderia estragar-lhe a tarde.

- Vocês tiveram uma sessão bastante longa na biblioteca.

- O Senador e eu estivemos discutindo política.

- Foi o único tópico?

- Ele me lembrou de que Hal voltará brevemente para cuidar dos próprios interesses... o que quer dizer, você. A ocasião não era apropriada para eu dizer que estive contando os dias e desejando que houvesse mais deles.

- Eu também, Bruce. - Janet deixara cair já a chave de ignição. Isto era também um jogo que ela jogara antes no local em que o caminho de automóveis de Five Oaks entrava num túnel de árvores. Antes que o Jaguar pudesse parar pelo próprio impulso, ela envolveu-lhe o pescoço com os braços - e mais uma vez o beijo dela foi incontrolável como o braço. Enquanto os lábios se colavam um no outro, ele lutou valentemente para conter o desejo... Perdia rapidamente a batalha quando ela se libertou, e ele compreendeu que a respiração dela mal se acelerara.

- Se você quiser - disse Janet - repetirei a aula dele, palavra por palavra.

- Espero que você não tenha estado escutando às ocultas.

- Não havia necessidade. Ele usou-a antes quando Hal esteve longe, e eu saí com outros homens.

- Não sou excepcional, então?

- Tanto Hal quanto meu pai acreditam no direito divino dos reis. Consideram-me como um peão. Esse beijo foi a maneira de o peão vingar-se.

O tamborilar incessante da chuva despertou Bruce do devaneio. Voltando ao presente, percebeu que o quase aguaceiro inundara os gramados do Scranton General. Levantou-se para fechar as janelas. A análise daquele momento entre as árvores (antes de levar Janet ao ensaio do espetáculo que ela daria no acampamento) devia ter sido feita havia bastante tempo. Agora que podia avaliá-lo em perspectiva, percebeu que fora, no mais autêntico sentido, um portento.

Desde o primeiro encontro, compreendera que a filha do Senador ressentia a servidão: mas não era mais possível acreditar que a ressentisse demais agora. Janet, em suma, fora treinada para tornar-se a esposa leal de um político e isto com tanta inexorabilidade como Ha] Reardon havia-se preparado para tornar-se seu marido. Agora, naturalmente, o casamento se transformara, mais uma vez, em sua raison d’être. Quem era ele para espantar-se com a submissão dela ao inevitável quando não havia limites ao futuro que ela e Hal compartilhariam?

O beijo no caminho de automóveis de Five Oaks, repetiu para si mesmo, pusera um ponto final num interlúdio que agora era parte da história. Ninguém poderia ser censurado, salvo ele mesmo, se continuasse a caçar nos terrenos de outrem após ter sido convidado a retirar-se. Apesar disso, no próprio momento em que examinava a sombria convicção, sabia que os abraços compartilhados com a filha do Senador constituíram também sinais de uma necessidade íntima que Janet Josselyn encontrara a própria libertação em sua companhia.

Seria demasiado fantástico perguntar-se se as horas roubadas num Jaguar branco como leite foram os únicos momentos de felicidade que ela jamais conhecera? Teria Janet lhe dado mais do que beijos de escolar, se ele tivesse ousado romper a servidão em que a mantinha o pai?

Pequeno era o consolo de levar essas sombrias indagações para o quarto no Scranton General, mas elas contribuíam para salvar-lhe o orgulho.

Sargento James Lowell. Concord. Mass.

Bruce leu em voz alta as palavras escritas na ficha que lhe foi entregue pelo atendente da enfermaria de triagem. O nome e o endereço, Nova Inglaterra típica, despertaram-lhe um eco na mente, embora não lhe pudesse localizar a origem.

- Onde está ele agora?

- Na primeira sala de exame, Major.

Passara-se uma quinzena desde que renunciara a Janet Josselyii, e servia naquele momento como oficial-de-dia do Serviço de Cirurgia. Durante o turno de um dia inteiro, cumpria-lhe examinar os novos casos e encaminhá-los às enfermarias indicadas, ou, como no caso do Sargento Lowell, resolver problemas que haviam ocorrido em trânsito. A ficha de admissão do doente informou-o de que Lowell, até então recentemente internado no Letterman General Hospital, em São Francisco, recuperara-se havia pouco de um ferimento na perna, causado por um fragmento de bomba. Novas complicações haviam surgido quando ele viajava em direção à Costa Leste por ordens de uma alta autoridade, para um exame final no Scranton General.

O procedimento em si não era estranho no tocante a oficiais, desde que o diagnóstico de uma junta médica era necessário antes que pudessem ser excluídos do serviço. Praticamente todos os hospitais, porém, podiam fornecer a soldados e sargentos um certificado de dispensa por incapacidade. Apesar disso, havia um sargento, aparentemente recuperado de um ferimento, que recebera ordens de atravessar um continente para exames especiais no Scranton General.

O mistério esclareceu-se no momento em que Bruce examinou a folha de serviço do doente. O Sargento James Lowell fora o primeiro voluntário a ser ferido em Pearl Harbor.

De pé na soleira da sala de exame, o cirurgião não ficou excessivamente impressionado com o que viu. Pouco havia nesse rapaz emaciado para distingui-lo de outros casos de enxertos ósseos nas enfermarias ortopédicas - e nada a sugerir que ele era constituído de material de que eram feitas as lendas. Dois fatos, pelo menos, eram óbvios. O enxerto do sargento sarara muito bem. Mas ele era ainda um homem doente por motivos que não tinham ligação visível com o ferimento. A temperatura situava-se em trinta e oito graus e a pulsação em mais de cem, sinais seguros de que algo de nocivo ocorria-lhe no corpo.

Era óbvio que a situação o deixara calmo e que era Infinita a confiança que ele depositava na capacidade de obrar milagres do hospital do Exército. A maneira relaxada deu a Bruce confiança adicional de que ele era um doente modelo. E isto se confirmou com a fagulha que lhe viu nos olhos ao responder à primeira pergunta inevitável.

- Sou o Lowell cujas estórias o senhor leu. Isto consta de minha fé de ofício e eu não posso negá-lo.

- Alguém teria de ser o primeiro alvo japonês.

- Eu nunca pensei que mereceria essa honra... se a considera assim.

- Li também a respeito das condecorações que lhe concederam. Elas não incluem a Medalha de Honra do Congresso?

- Certo novamente, Major. E eu nem mesmo senti o cheiro de pólvora. Não me diga que eu mereci todos aqueles pedaços de metal.

- O Exército não concede medalha a todo mundo. - Bruce iniciara o exame preliminar: uma troca de palavras dessa natureza amiúde contribuía para relaxar o doente, embora a serenidade do rapaz tornasse dispensáveis essas táticas. - Vejo que pediu a volta ao serviço ativo.

- Eu não falo com suficiente rapidez para agradá-los... de modo que solicitei serviço limitado como instrutor numa Escola de Preparação de Oficiais em Miami.

- O que é que o incomoda agora?

- Eu tenho algum problema sob as costelas, no lado direito. Acho que é isso que me está dando febre.

- Como é que você foi ferido?

- Receio que a história nada tenha de sensacional, senhor. Mesmo que os jornais a tenham explorado muito. No dia anterior ao ataque japonês, eu havia sido enviado por via aérea das Filipinas com um ataque de disenteria...

- Como é que contraiu disenteria? - Os dedos de Bruce, apalpando suavemente a parte superior do abdómen, sob as costelas, provocaram uma contorsão de dor no doente.

- Aconteceu em Manilha, depois de uma festa com alguns amigos nativos, numa taverna de cais. Nós havíamos acabado de descarregar suprimentos para o Acampamento Clark e resolvemos almoçar comida local.

- Imagino que a taverna era proibida ao pessoal militar?

- Proibida, Major... e de mais de uma maneira. Eles ficaram furiosos conosco por causa disso.

- Você estava hospitalizado no Hawai quando começou o bombardeio?

- Eu era um caso de ambulatório. O pessoal estava ocupado demais do dispensário e me enviou a outro edifício para tomar uma dose de paregórico. Eu atravessava uma estrada quando a bomba caiu. Despertei em tração, cercado por máquinas fotográficas e repórteres.

- Como é que souberam que você foi a primeira baixa?

- Nunca saberei disso, senhor. Tentei explicar que fora apenas um acidente... mas já estava anotado oficialmente que eu fora o primeiro a chegar ao hospital. Talvez eles quisessem um soldado cujo nome era fácil de pronunciar e que lembrasse a história americana.

- Segundo sua ficha, você teve uma convalescença difícil.

- Foi uma fratura exposta, e eu precisava de um enxerto ósseo para poder andar novamente. Durante algum tempo, os médicos ficaram com receio de osteomielite. Os médicos de Letterman dizem que agora passou o perigo.

O exame da perna lesionada confirmou a estimativa do Sargento Lowell. O labirinto de cicatrizes em ziguezague havia sarado já e o osso parecia sólido à apalpação.

- Tiraremos umas chapas de raios X mais tarde. Parece que a perna está perfeitamente curada e isto é, provavelmente, uma doença sem relação com ela. - Exercendo uma suave pressão sob as costelas direitas, Bruce fez força com os dedos em direção ascendente contra os músculos da parede abdominal. A uns cinco centímetros abaixo da caixa torácica, notou o primeiro sinal de resistência, uma tensão que se estendia às denominadas costelas flutuantes, às faixas de cartilagem localizadas nas proximidades do centro do abdómen. Até mesmo a pequena pressão necessária para ocasionar um espasmo muscular produziu outra contorsão no paciente, enquanto o corpo procurava, instintivamente, proteger o órgão inflamado abaixo.

Invertendo a técnica, o cirurgião explorou o tórax com uma série de ligeiras pancadas, delineando a borda inferior do pulmão direito e marcando-lhe os contornos com um lápis de cera. A base do órgão, concluiu, estava na posição apropriada, indicando que não houvera dilatação ascendente do fígado e, provavelmente, não pneumonia basal. O método era básico desde que a irritação da parede pleural poderia causar sensibilidade reflexa na parte superior do abdómen. Numerosos médicos descuidados haviam operado nestes casos uma vesícula biliar ou outra situação abdominal suspeita... quando o problema tinha origem no pulmão.

Como precaução final, Bruce voltou à parte inferior, não afetada, do torso do sargento, usando a mesma técnica de percussão para assegurar-se de que cada órgão produzia o mesmo som oco e sonoro de saúde. Em contraste, a posição ocupada pelo fígado apresentava-se dura como pedra, com a borda inferior projetando-se uns três centímetros além da posição normal. Um profundo suspiro de dor emitido por Lowell, enquanto o médico delineava a inflamação com a última e final pressão, confirmou um diagnóstico agora muito mais do que provisório.

- Quando é que você comeu esse alimento nativo em Manilha?

- Mais ou menos há um ano. A disenteria começou logo depois.

- Foi tratado nas Filipinas... antes de ter sido enviado ao Havaí?

- Eles fizeram tudo para me curar, senhor. Deram-me emetina e carbonesona e outros remédios de que eu não me lembro. Parece que contraí uma ameba muito resistente.

- Parece que sim. Vê-lo-ei novamente amanhã. Enquanto isso, vamos fazer outros exames. E eu lhe darei alguma coisa para que você descanse bem.

O prognóstico, refletiu tristemente Bruce, era agora praticamente certo. Fora um quadro clínico estranho... e, a despeito da satisfação de tê-lo identificado imediatamente, não podia deixar de lamentar o que descobrira. Se o laboratório lhe confirmasse a opinião, pouca oportunidade haveria de salvar esse jovem, cujo nome já fazia parte da história.

Internou o doente em sua própria enfermaria, colocando-o em semi-isolamento até que pudesse reexaminar as atividades de um parasita denominado Entamoeba hlstolytica, que parecia ser o mortal inimigo do Sargento Lowell. Conforme esperara, o rapaz parecia melhor na manhã seguinte. A temperatura era habitualmente mais baixa nessa hora e o opiato que receitara garantira oito horas de sono profundo.

- Qual o veredicto, senhor? Uma recaída?

Fitando diretamente os olhos inteligentes e não lhes vendo medo, Bruce achou que não havia vantagem em ocultar parte da verdade.

- Parece que sim. Como disse ontem, você contraiu uma parasita difícil nas Filipinas. Mas não teremos certeza, naturalmente, até recebermos os resultados do laboratório.

- Tenho esperança de que isto não me mantenha aqui por muito tempo.

- Você já não teve o suficiente do Exército? com essa perna, poderia ter sido desligado há muito tempo.

- Sei disso, senhor. Ofereceram-me em Letterman uma dispensa por incapacidade.

Bruce sentou-se ao lado da cama. O caso encerrava uma ironia especial e um pathos muito próprio, mas não foram esses fatôres que o levaram a interromper o ritmo das visitas, e sim a nota de confiança na voz do jovem, o ar inquebrável de coragem.

- Como é que lhe chamam em casa, Sargento?

- Jimmie, senhor.

- Posso chamá-lo assim... e fazer algumas perguntas particulares?

- Acho que o senhor está espantado por eu continuar no serviço. Dois minutos depois de disparado o primeiro tiro no Hawai, fui posto fora de combate. Estive, desde então, em camas de hospital, recuperando-me de um enxerto ósseo para receber outro. Se eu pudesse, gostaria de fazer um pouco mais para ajudar a vencer esta guerra.

- Admiro seu patriotismo, Jimmie. Mas isto é tudo?

- É apenas o princípio. Tenho um irmão de nove anos, em Concord. Neste momento, ele pensa que me inveja as divisas de sargento... e minhas medalhas. Quando ele tiver minha idade, espero que conheça o suficiente sobre a guerra para querê-la proscrita.

- Você acha que a guerra pode ser proscrita algum dia?

- Se um número suficiente de pessoas bradarem contra ela... e forem ouvidas.

- Muitas pessoas falaram após a última.

- Mas aquilo foi uma guerra limitada na Europa, senhor... e não uma verdadeira guerra mundial. Desta vez, vamos ter de lutar muito mais. Temos de começar no ponto onde a chamada Liga das Nações desistiu.

- O que é que você fazia antes de entrar no Exército, Jimmie?

- Estudava em Harvard. Na metade do primeiro ano, desconfiei que esta ia acontecer e quis uma poltrona na primeira fila. Como o senhor vê, consegui o que queria. Apenas meu trabalho acabou cedo.

- Você acha que apresentar-se como voluntário foi ato de um pacifista?

- Eu não era pacifista naquela ocasião. Era um garoto querendo sensações... e tinha uma tradição a manter. A minha família lutou em todas as guerras em que este país tomou parte, começando com as guerras francesas e índias, quando éramos ainda ingleses. Houve Lowells em Valley Forge e Yorktown. Velejamos com Perry no lago Erie... e combatemos os mexicanos em Buena Vista. Havia Lowells no Estado-Maior de Grant quando Lee capitulou. E outros ainda em Cuba e na França.

- Por que não ficou na universidade e conseguiu uma patente de oficial?

- Eu estava no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da faculdade quando me apresentei como voluntário. Se eu quisesse, Podia ter esperado e saído como tenente. Não pense que estou bazofiando. Mas acho que tenho o direito de levantar-me e ser contado, agora que vou para o outro campo.

- A guerra para terminar as guerras?

- Chame a isso o que quiser. - A voz do Sargento Lowell não perdera a inflexão calma, mas os olhos brilhavam-lhe resolutos. A mão emaciada sobre o lençol contraiu-se num punho e relaxou-se novamente. - As coisas podem ser diferentes agora se os soldados se reunirem e entregarem as armas.

- O que é que você tem em mente? Uma Legião Americana mais numerosa?

- Pensei nisso, no início, mas não daria certo. Basicamente, a Legião é um júri de gladiadores. Quer conservar as coisas como são... como qualquer clube cujos membros envelhecem.

- Mas isso não é um defeito geral?

- Claro, senhor, e dá ainda mais motivo à pena. É por isso que precisamos de um grupo novinho em folha, com um novo método de enfrentar as coisas.

- E o nós, quem somos?

- O senhor e eu. Todos os veteranos da guerra que estamos travando agora. Nada seria mais fácil do que fundir esse grupo com a Legião. Uma vez conseguido isso, combateríamos um grupo que nunca foi uma influência eficaz em nome da paz. Lutaríamos pelo controle de todos os cargos, os velhos e novos veteranos.

- Tenho certeza de que você o faria.

- Nós nos suicidaríamos antecipadamente se dependêssemos dos grupos de pressão existentes. No fim, nós nos dividiríamos em facções. Alguns de nós continuariam liberais... e seriam chamados de intransigentes. A maioria seria atraída para a ideia de, em primeiro lugar, apoiar a América, tornando este país suficientemente forte para enfrentar a todos na III Guerra Mundial. Talvez mesmo começar essa guerra se os nossos inimigos não nos aceitassem o estilo de vida.

- Suponho que você tenha razão, haveria ainda o problema de organização.

- Todos os homens que lutaram nesta guerra teriam de romper com o passado, esquecer bichos-papões como fronteiras nacionais e honra nacional e trabalhar apenas pela paz. Significaria conjugar forças em toda a linha... incluindo veteranos na Alemanha e Japão.

- A Alemanha e o Japão são inimigos.

- Poderiam ser amigos amanhã.

- É uma ideia arrojada demais para ser engolida hoje.

- O mesmo aconteceu com a democracia quando Jefferson redigiu a Declaração da Independência. E também com o cristianismo, na Roma de Constantino.

- Não foi Shaw quem disse que o cristianismo era um conceito magnífico que precisava ser ainda experimentado?

- Chame de sonho, se quiser, a paz mundial. Mas é ainda uma esperança compartilhada por milhões, aqui mesmo na América. Quando esta guerra terminar, o mundo compartilhará dela.

- Onde é que começaria a sua organização?

- Nos hospitais militares. Entre homens que não deixarão mais suas camas... Ou suas cadeiras de rodas. Eles sabem que a guerra pode inverter a evolução humana. Uma vez estejam convertidos, entraremos em contatos com soldados em toda parte.

- Como os atingiria?

- Utilizando as folhas de chamada dos veteranos. com esses nomes como núcleo, nós nos chamaríamos de Veteranos Pela Paz... e apresentaríamos candidatos na próxima eleição. Nosso movimento se expandiria logo que a frente europeia fosse aberta e começaríamos a acrescentar famílias a cada nova baixa. Mais tarde, quando pudéssemos incluir pessoas no serviço ativo, apresentaríamos um candidato à Presidência.

- Você não pode cabalar votos fardado, Jimmie.

- Nossas famílias poderiam, usando a franquia postal dos veteranos.

- Você seria destruído antes que isso fosse longe demais.

- Mas antes que eu fosse, eu colocaria toda a campanha em outras mãos.

- E o que é que você conseguiria com isso, pessoalmente?

O sargento corou.

- Eu nada quero pessoalmente, Major. Somente a satisfação de saber que meu irmão jamais lutará numa guerra. Devo-lhe isso... porque fui o primeiro americano ferido em solo americano.

- Os obstáculos são enormes.

- O senhor não gosta de minha ideia?

- Gosto de cada detalhe dela, Jimmie. Mas ainda estou tentando enxergar além desses obstáculos. Veja a primeira coisa. Você não pode pôr em ação o seu plano numa cama de hospital. Não, enquanto fôr sargento.

- Eu poderia... com a ajuda apropriada.

- Você jamais poderia ser o seu próprio porta-voz.

- Eu não tentaria ser. Não tenho inteligência nem sei falar. É por isso que preciso de um patrocinador.

- Não será fácil encontrá-lo.

- Já encontrei. O Deputado Reardon resolveu apoiar-me.

Sabendo que pestanejara violentamente com a bomba lançada pelo sargento, Bruce forçou-se a falar calmamente.

- Quando é que conheceu o Deputado Reardon?

- No Letterman General, quando ele visitava os hospitais da Costa. Ele é um homem maravilhoso, senhor.

- Assim ouvi dizer - respondeu secamente Bruce. - Discutiu suas ideias em Letterman?

- Na minha própria cama. Ele se sentou a meu lado e nós conversamos, como estamos conversando agora. Parecia uma oportunidade pronta e acabada para conseguir o apoio de alguém importante.

- Isto aconteceu antes de sentir a dor no lado do peito?

- Semanas antes. Sofri a recaída em trânsito. Logo que disse ao Deputado Reardon que iria fazer serviço limitado, ele me prometeu transferir-me para o exame final aqui.

O padrão, refletiu Bruce, delineava-se. Hal era obviamente a ”alta autoridade” mencionada nas ordens do Sargento Lowell, e o sargento viera ao Scranton General com uma finalidade definida. O que Hal não esperara era a recidiva da doença do fígado que Jimmie contraíra em Manilha, ou que se transformasse em doente de Bruce.

- O Deputado Reardon enviou-o aqui para que pudessem manter contato?

- Foi exatamente isso, doutor. No exato minuto em que voltar ao Capitólio - e logo que tiver tempo - vamos ter uma conversa real sobre o Partido da Paz.

- Então, já tem um nome?

- É o título funcional. Acho que esta foi a melhor oportunidade que eu já tive na vida.

- Você discutiu suas ideias com mais alguém?

- Somente com amigos em Letterman. A maioria levou-me na troça. Ou me avisou que eu seria submetido à corte marcial se falasse com um médico ou um oficial. O Deputado Reardon foi diferente. No momento em que abri a boca, senti que ele estava do meu lado.

- Não seria melhor esperar um pouco antes de comprometer-se?

- Eu não posso esperar, Major. Não, com um homem importante a meu lado. O senhor acha que eu poderia telefonar para o gabinete dele amanhã? No caso de ele ter voltado... e ter esquecido.

- Eu darei o meu telefonema, Jimmie... se você está resolvido. Amanhã, por esta hora, devemos saber o que é que você tem. Espero que se sinta bastante bem para receber visita.

- Ponha-me logo bom, senhor. Tenho muita coisa a fazer... agora que as coisas estão em movimento.

Ao terminar as visitas - e ao descobrir que tinha meia hora antes da próxima operação - Bruce fez tentativas baldadas para falar com Hal e Shane McLendon. O Deputado, segundo soube, estava a caminho de Washington. A jornalista não pôde ser absolutamente localizada.

Bruce desligou na tentativa final, sentindo uma espécie de alívio. Chamara Shane impulsivamente, na vã esperança de que ela pudesse aconselhá-lo sobre o que deveria fazer em seguida: teria sido injusto lançar-lhe nos braços, sem aviso, o Sargento Lowell... Pensara em chamar Janet, mas abandonara imediatamente a ideia. Desde a volta de Hal, recusara todos convites para ir a Five Oaks. Dificilmente poderia intrometer-se agora, com problemas que Janet jamais solucionaria.

No dia seguinte, recebeu as chapas de raios X do sargento, juntamente com um bilhete do chefe de cirurgia, sugerindo uma conferência imediata. O Coronel Miller examinara o doente e concordara com o diagnóstico provisório. O acordo tivera nuanças sombrias: Miller ensinara em Nova Orleans e conhecia muito mais o comportamento da Entamoeba histolytica do que o colega mais jovem.

Os exames haviam eliminado a última dúvida. Jimmie sofria de um abscesso no fígado - uma consequência direta, embora tardia, da disenteria que contraíra em Manilha.

- É indicada a cirurgia, Terry?

- Receio que sim. Claro que começaremos pela drenagem da cavidade, além de injeções antiamebianas. Trata-se de um micróbio muito resistente e elas provavelmente não surtirão muito efeito. com a temperatura subindo e a alta contagem dos glóbulos brancos, é uma conclusão previamente determinada que enfrentamos uma infecção secundária. Tem alguma outra ideia?

Bruce sacudiu a cabeça. Desde o início, o prognóstico para o Sargento Lowell fora profundamente negativo, e tudo que acontecera desde então o confirmava. Miller, sabia ele, abordava o problema segundo a norma aceita. O primeiro estágio seria um procedimento simples - a aplicação de um irritante externo para limitar a área sobre o abscesso, além da drenagem do próprio abscesso e a aplicação de drogas antiamebianas. Mais tarde, um procedimento mais difícil ocorreria a tentativa de abrir o foco de infecção e drená-la inteiramente na esperança reconhecidamente desesperada de que o fígado lesionado pudesse regenerar-se, uma vez fossem removidos os microorganismos que o infestavam.

- Vamos marcar a data da operação no momento em que pudermos incluí-lo em nossa escala de trabalho - disse Miller. Entrementes, vamos fortificá-lo com transfusões. Ele está piorando sensivelmente desde que chegou.

- Você lhe explicou o que planeja fazer?

- Ele queria saber toda a verdade e eu lhe disse o que poderia esperar. Ele é um jovem notável.

- Deverei notificar a família?

- Ele também não queria isso... receoso de que a mãe se preocupasse. Pediremos à Cruz Vermelha que entre em contato com a família antes da segunda operação.

- Você permitirá visitantes após as transfusões?

O chefe de cirurgia fitou Bruce diretamente nos olhos.

- Ele disse que você me perguntaria isso. Já recebi dois pedidos... por telefonemas de longa distância.

- Um deles do Deputado Reardon?

- Ele está vindo para cá de avião... e espera vir aqui pela manhã. Autorizarei a visita, se Lowell estiver em condições de conversar. Ele está extremamente ansioso para entrar em contato com Reardon.

- Sabia que foi Hal quem providenciou a transferência dele de Letterman para aqui?

- O Deputado Reardon explicou-me isso ao telefone - disse Miller. - Ele acha que o rapaz tem ideias que vale a pena discutir.

- Tão dignas de discussão que Shane McLendon vem também aqui fazer uma entrevista com ele?

- Ela é a segunda visitante. Como é que adivinhou?

- Digamos que eu sei como Hal age. A autora de As Coisas, como as Vejo aparece sempre quando está prestes a surgir uma estória de primeira página.

- O primeiro homem a ser ferido em Pearl Harbor é certamente notícia... no momento em que luta para continuar a viver. Naturalmente, eu ainda posso recusar.

- Não, recuse, Terry. Doente ou bom, Jimmie mereceu o direito de conversar com ambos... se quiser. Eu simplesmente não esperava que as coisas acontecessem tão depressa.

- As coisas têm que andar depressa com o Sargento Lowell disse Miller. - Espero estar enganado, mas receio que não lhe reste muito tempo.

Conhecendo Hal Reardon como conhecia, Bruce não ficou muito surpreso ao saber que ele aparecera cedo na manhã seguinte e que passara uma hora conversando com Jimmie. Ficou ainda menos surpreendido quando, ao entrar no gabinete mais tarde, encontrou-o abancado em sua escrivaninha com o conteúdo de uma pasta espalhado sobre o mata-borrão.

- Não me diga, deixe-me dar um palpite - começou Bruce. - Você veio para aqui diretamente do Campo Bolling.

Hal levantou-se vivamente com a mão estendida. Mais uma vez, Bruce lembrou-se para controlar uma suspeita que não tinha ainda base sólida.

- Jimmie Lowel contou-me que vocês tiveram uma longa conversa ontem... e, portanto, eu não preciso explicar minha presença.

- A visita foi um sucesso?

- Completo.

- Então por que está ainda aqui se conseguiu o que queria?

- Isso dificilmente poderia ser chamado de uma recepção calorosa.

- Tenho certeza de que você possui um gabinete próprio no Capitólio.

- Francamente, Bruce, pareceu-me que valia a pena conversar com você... e botar em dia a correspondência enquanto esperava. Nós temos muito a conversar.

- vou operar dentro de vinte minutos.

- Vinte minutos serão suficientes se você acabar com essa prevenção - disse Hal. - Deixe-me começar agradecendo o bom cuidado que você teve com Janet.

- Você não precisava esperar aqui para me dizer isso.

- Era o meu principal motivo, em seguida ao meu encontro com o Sargento Lowell. Minha noiva está florescendo... em virtude dos seus bons ofícios e da terapia do USO. No momento, não tenho certeza de quem contribuiu mais.

- Você está-se referindo aos espetáculos de Janet nos acampamentos? Ou o fato de que ela existiu durante seis semanas sem você?

Hal lançou a cabeça para trás e soltou sua famosa gargalhada.

- Graças a você - se posso acreditar no próprio testemunho de Janet - ela teve coragem de subir num palco pela primeira vez. E graças aos aplausos, ela começou a ter confiança em si mesma. Tratam-se de fatos importantes, Bruce. Mais uma vez, aceite minha gratidão.

- Janet é que é atriz, não eu.

- Você esteve lá para aplaudir, quando o aplauso era importante - disse Hal. - O teste definitivo será hoje. Leo Brodski vai assistir ao novo espetáculo dela em Anápolis.

- Quem é Brodski?

- Um dos principais diretores da Costa do Pacífico. Se ele gostar dela, isto significará um teste para o cinema.

- Isso não será apressá-la demais?

- Não com os meus amigos apoiando-a - disse Hal. - Se ela se sair bem no teste, arranjarei o financiamento de um filme. Uma comédia para distribuição entre as Forças Armadas, baseada no trabalho que ela está fazendo. com a orientação de Leo, não poderá deixar de ser um sucesso.

- É sempre fácil assim bancar o Deus?

- Somente quando existe material de primeira classe - replicou Hal. - Você é contra o meu plano porque parece excessivamente otimista? Eu posso sê-lo.

- Por que eu deveria ser contra se é o que Janet quer?

- Vá até Anápolis hoje à noite e veja o resultado de minhas maquinações. Shane McLendon vai. Ela lhe dará carona.

- Depois de ter entrevistado meu doente?

- Ela pode dar conta das duas coisas... se você deixá-la escrever a reportagem aqui.

O cirurgião dirigiu-se para o arquivo. Incapaz de colocar em palavras suas apreensões, conservou-se calado até ter arquivado os relatórios da manhã.

- Os seus planos para Janet são estonteantes, para dizer o mínimo - começou. - Terei prazer em juntar-me aos aplausos de hoje à noite. Mas agora que tivemos a nossa luta preparatória, poderia explicar-me por que invadiu o Scranton General?

- Por causa do seu interesse por Jimmie Lowell... o que mais? Ele disse que você foi um ouvinte simpático.

- Você está disposto a ajudá-lo a fundar o Partido da Paz?

- Até agora, apenas exploramos a ideia. Eu me senti imensamente atraído pelos ideais...

- O que é que significa esse ”imensamente atraído?”

- Estou interessado, Bruce... mas não comprometido ainda. O Sargento Lowell teve uma ideia de primeiríssima classe. Como todos os grandes conceitos, precisa de verificação... e de amadurecimento.

- Começando com um teste na primeira página?

- Você pode sugerir um melhor foro do que As Coisas, como as Vejo?

- Acho que Shane gostou da missão.

- Jimmie vai conceder-lhe uma entrevista exclusiva, por solicitação minha. Ele ficou muito honrado com isso... e Shane, também.

- Mas o que é que uma entrevista pode conseguir nesta altura?

- Conforme lhe disse, por pura sorte descobri um patriota americano clássico...

- Eu chamaria Jimmie Lowell de cidadão do mundo.

- Ignorando-se a questão da nacionalidade, trata-se de uma visão que pode criar asas amanhã. Admiro que seja nebulosa, até agora. com toda probabilidade, nem desolará. Merece uma cobertura imparcial, do tipo que Shane pode dar. Pensei nisso desde que conheci Jimmie no Letterman Hospital.

- Eu gostaria de saber quem teve realmente sorte naquele dia em Letterman. Você, ou o Sargento Lowell?

- O Sargento, como acabei de observar, talvez seja simplesmente outro universitário ressentido contra este século e com necessidade de expressar-se. Por outro lado, o seu nome e o seu conceito poderiam ser os pontos focais de um dos maiores movimentos morais da História.

- com um político chamado Reardon como gerente do espetáculo?

- Suponho que a entrevista de Shane seja bem recebida, discutirei as ideias dele com as principais figuras do Congresso. No momento, não estou disposto a ir mais longe. Seria extremamente arriscado lançá-lo politicamente nesta fase da guerra.

- Por que o Partido da Paz não pode cabalar votos até que o seu lado comece a vencer?

Hal ignorou o sarcasmo.

- Qual a seriedade do estado de Jimmie?

- Nós temos esperança de salvar-lhe a vida numa operação em dois estágios. Na melhor das hipóteses, será muito arriscado.

- O problema dele é resultado do ferimento?

- O ferimento está sarado. Trata-se de uma recaída de uma disenteria amebiana latente que ele contraiu em Manilha.

Hal voltou-se para a janela e olhou para os terrenos do hospital. Não deu sinais de ter ouvido a observação de Bruce. Aparentemente, estava absorto num devaneio que não podia compartilhar.

- Ele morrerá se a operação falhar?

- Mesmo com cirurgia, as chances são medíocres.

- Significa isso que Shane deve adiar a entrevista?

- O Coronel Miller autorizou-a. Nós concordamos que é boa terapia para o doente.

- Fico satisfeito por terem chegado a essa conclusão - disse Hal. - Obviamente, temos de andar depressa se ele vai morrer amanhã.

- Esse é um argumento válido. Heróis mortos têm seus usos. Dificilmente você poderá promover um profeta morto a menos que lhe crie antes um público.

Hal afastou-se vivamente da janela. O fácil sorriso fora substituído por uma máscara de alabastro de que o cirurgião lembrava-se igualmente bem.

- Talvez você se distraia com essas pecuinhas - disse ele. Para mim, elas são de gosto duvidoso. Você simplesmente não pode ignorar o Sargento Lowell, considerando-o outro utopista.

- Não estou ignorando coisa alguma. Eu gostaria apenas de saber se as suas ideias têm um credo.

- Poderia ter, aproveitando-se bem as oportunidades - retrucou Hal. - Evidentemente, não podemos deixar que um Partido da Paz concorra com os nossos planos para as Nações Unidas. Eventualmente, ambos os conceitos poderão reforçar-se mutuamente.

- Você acha que este país está pronto para ingressar em uma nova Liga das Nações?

- Acho, Bruce... Logo que os eleitores estejam preparados.

- com poderes que a velha Liga nunca possuiu? Como uma força policial para reprimir os agressores?

- com um autêntico Partido da Paz, apoiado por um sindicato de veteranos e suas famílias, nós nos poderíamos transformar nos primeiros policiais internacionais.

- Somente se pudermos garantir a paz interna na América... e tornar a democracia mais do que um mero lema.

- Vejo que você pode ser simultaneamente cínico e defensor de um mundo só, Bruce.

- Eu me reservo o direito de ser cauteloso... até descobrir o que você quer de Jimmie Lowell.

- Eu nada quero, exceto dar-lhe oportunidade de expor suas ideias. Não será isso melhor do que deixar seu sonho morrer numa enfermaria de hospital?

- Em outras palavras, você pode abandoná-lo inteiramente se a coluna de Shane entrar pelo cano. Ou poderá usar-lhe o credo mais tarde... como futebol político.

- Eu lhe disse que acredito nele, sinceramente. Por que não deverei proclamar essa crença mais tarde se o país dela compartilhar?

Bruce lançou um olhar para o relógio de parede e levantou-se. O gesto ajudou, de certa maneira, a quebrar o encanto que as palavras de Hal haviam lançado.

- Você ganhou esta - disse ele. - Você está inocente... até que provada sua culpa.

- Bastante justo. Irá a Anápolis hoje à noite?

- Naturalmente, se Shane quiser levar-me. Meus votos de sucesso a Janet.

Passavam das cinco quando o cirurgião voltou ao gabinete. Encontrou Shane McLendon sentada à escrivaninha com uma máquina de escrever portável à frente. Um gravador de fita girava ao lado. com os fones em volta da cabeça, escrevia velozmente.

- A enfermeira encarregada disse-me que eu podia usar seu gabinete, Bruce. Expulse-me daqui se eu atrapalhar em alguma coisa.

- Continue, por favor. Terminei o trabalho por hoje.

- Uma página mais e eu me juntarei a você nesse feliz estado.

- Acho que conseguiu sua entrevista com Jimmie Lowell.

- Há horas, enquanto você operava. O seu doente estava disposto a falar e eu aproveitei ao máximo. - Shane ligou o gravador e, com absoluta concentração, voltou à máquina de escrever. O silêncio caiu sobre o aposento, salvo pelo matraquear ininterrupto. Pela primeira vez, Bruce via uma repórter de alta voltagem em ação. No momento em que ela desligou o botão da máquina e puxou a folha final, ele ainda se sentia como um intruso.

- Quando vai ser publicada? - perguntou.

- No Post, na hora do café da manhã.

- Eu pensei que o Star fosse seu jornal em Washington.

- Mudei na semana passada. Hal achou que a cobertura extra valia a pena.

- Você aceita o conselho dele nas reportagens?

- Por que não, quando ele me dá tantas?

- Não se esqueça de que eu deixei você visitar meu doente. Você bem podia deixar que eu a lesse antes.

- Habitualmente, ninguém, salvo o editor do meu sindicato, lê a matéria - disse Shane. Levantou uma página de cima do mataborrão, dizendo: - Você pode ler isto, se andar depressa. Um mensageiro está a caminho daqui para levá-la.

A página continha diversos parágrafos, todos eles batidos impecavelmente. Shane McLendon, compreendeu Bruce, era uma jornalista que planejava a matéria muito antes de sentar-se à máquina:

Os pragmatistas (e eles são legião) chamarão a isto de uma visão nebulosa. Ignorarão o sonho do Sargento Lowell como outra tentativa de um jovem de opor-se à infinita sabedoria - e crueldade - dos mais velhos, outro eco da ânsia que o coração do homem abriga e que jamais poderá ser traduzido em ação. Os pragmatistas, como sempre, dirão a palavra final. Mas nenhum leitor que acredita no futuro da humanidade pode fechar os ouvidos às palavras seguintes do Sargento Lowell:

”Antes que esta guerra termine - disse ele - pelo menos vinte e oito milhões de americanos, incluindo os que hoje vestem farda e suas famílias, terão sido atingidos de alguma maneira pela mão de Marte. A maioria desses vinte e oito milhões sairá marcada desse conluio. Se eles se prepararem para manter a paz, coisa alguma poderá detê-los - e esta ação unida forçosamente deflagrará movimentos idênticos entre nossos amigos e mesmo entre nossos inimigos.”

Acabo de deixar a enfermaria cirúrgica do Scranton General, onde nossa primeira baixa americana enfrenta ainda outra operação numa longa batalha para sobreviver aos ferimentos. Cada instinto que possuo diz-me que suas esperanças de uma paz duradoura estão condenadas. (Eu, também, pobre de mim, sou pragmatista!) Mas o meu coração, se não a minha mente, ficou profundamente comovido com as convicções e a coragem desse jovem.

Ficarão também comovidos os mudos e desconhecidos milhões com que ele conta?

Quando a maré mudar para o nosso lado na atual luta pela sobrevivência, levantar-se-ão esses milhões e exigirão que os heróis de amanhã sejam lutadores pela paz e não pela guerra?

Aprenderão os nossos filhos, e os filhos de nossos filhos, a livrar-se, de uma vez para sempre, da suja marca de Marte?

Abrirá uma geração ainda não nata os seus dicionários e descobrirá que a palavra guerra tornou-se obsoleta, um termo usado para descrever um atavismo que a humanidade superou, juntamente com o dodô e o dinossauro?

Os pragmatistas, naturalmente, responderão a essas perguntas com um sonoro ”Não”. Repetirão o velho e sombrio truísmo pelo qual vivem os homens. A guerra, dir-nos-ão, como os pobres, existirá sempre.

Talvez tenha chegado o momento para que os homens de boa vontade, em todo o mundo, calem os profetas da desgraça - ergam-se, como diria um poeta esquecido chamado Tennyson, sobre as pedras.) de suas personalidades mortas em direção a coisas mais nobres.

Ouviu-se uma batida na porta enquanto Bruce lia o último parágrafo. Shane tomou-lhe a folha de papel, dobrou-a, colocou-a num envelope e entregou-a ao mensageiro.

- Eu lhe disse para esperar até amanhã - disse ela. - Nada existe de mais faminto do que uma rotativa. ,,..

- Fico satisfeito em ver que você aprova as ideias de Jimmie. -• Você acha que essa página é um endosso?

- Eu a chamaria um ato de fé - disse Bruce. - E o que é mais, acho que você está convencida.

- Claro que estou convencida. A paz é imune à crítica. É como Deus, a maternidade e os Senadores, de Washington. Refiro-me ao time de beseibol e não aos Senhores Grisalhos de Capitol Hill.

- Você acredita no que disse naquela página. Não finja que não apoia a ideia em toda a sua coluna.

- Você leu o único comentário que fiz. O resto é composto de citações diretas - e o Sargento Lowell, como todos os jovens que acreditam em ideais, foi dolorosamente citável. - A jornalista fechou a caixa do gravador e puxou o fecho-éclair sobre a capa. - Mas, você ouviu a maior parte em primeira mão. Não vou cansá-lo passando novamente a fita.

- Por que eu ficaria cansado?

- A virtude é como a verdadeira beleza, Bruce... ou o amor altruísta. Na sua forma pura, é algo que o cérebro humano comum não pode compreender.

- Receio que essa sofística esteja além de minha compreensão.

- Não finja ser tão estúpido. O sonho de Jimmie é uma coisa bela. Conserve-se-a assim, e será uma alegria para sempre - parafraseando outro poeta. A ideia de um Partido da Paz para reformar-nos a todos enquadra-se nos ensinamentos de Buda e Sócrates... e no Sermão da Montanha. Infelizmente, nenhuma relação guarda com nosso século. Ou com qualquer século na triste história do homem.

- Então você acha que o homem não é capaz de auto-aperfeiçoamento?

- Nós permanecemos unidos quando nosso estilo de vida é ameaçado - respondeu Shane. - Jimmie Lowell encontra, somente em Washington, um milhão de idealistas como ele. Depois de amanhã, os mesmos idealistas precisarão de outro lema para mantê-los unidos. Um que esteja mais próximo do lar e do cifrão do dólar.

- Se pensa assim, por que o entrevistou?

- Acontece que sou uma repórter. O seu doente é novamente grande notícia, agora que está à morte.

- Quem é que lhe disse que ele ia morrer?

- Ninguém, assim com tantas palavras. Eu fui enfermeira voluntária antes de dedicar-me ao jornalismo. Posso notar uma febre galoPante. E não acho indigno examinar festivamente uma ficha médica.

- Nós não abandonamos ainda a esperança.

- Talvez ele sobreviva. Sei que você fará o possível para salvá-lo. Mas para ser franco, para o Partido da Paz ele vale mais morto do que vivo.

- Especialmente se Hal Reardon assumir o controle?

- Alguém deve assenhorear-se das grandes ideias... e reduzi-las a termos humanos.

- Mas você acabou de dizer que o ideal de Jimmie era impraticável.

- O ideal. Não a ideia. Ela pode ter êxito total, isto é óbvio. Nas mãos de Hal, pode transformar-se em filosofia política. Uma força para o bem, mesmo que apenas fortaleça as Nações Unidas em tempos de paz.

- Eu duvido que até mesmo Hal possa fazer esse milagre. No momento, a preocupação principal dele é promover a própria carreira.

- Por que não... se ele trouxer à terra as ideias do rapaz? Dê-lhe uma oportunidade, antes de condená-lo.

- Estranho como pareça, é justamente isso o que tenciono fazer.

- Você tomou uma boa decisão, Bruce. Afinal de contas, nós não podemos detê-lo agora. É apenas sensato deixá-lo agir... e ver o que acontece em seguida. Nós ambos já descobrimos que ele é útil.

- Nós?

- Ele não o colocou aqui no Scranton General? Não acaba de dar-me a mais tocante reportagem da guerra?

- Dificilmente posso negar os dois casos.

- Então, vamos deixar de discutir. A sorte está lançada para o Sargento Lowell. Na sua sala de operações amanhã. E no Post, de Washington.

- Ainda assim, não admito que você tenha inteira razão.

- Moça nenhuma esperaria isso de um homem. Você paga o meu jantar se eu o levar de carro a Anápolis?

Foram diretamente a Crabtownon-the-Bay na velha barata Singer LeMans que Shane usava para cobrir reportagens fora da cidade. Jantaram num restaurante terraceado sobre o Shesapeake, diante de uma bela vista da Academia. Uma garrafa de beaujolais e uma soberba terrapin casserole haviam contribuído para o estabelecimento de um armistício entre ambos após a batalha no Scranton General... Antes da sobremesa, Bruce havia-se desvencilhado de um número suficiente dos ressentimentos do dia para apreciar a noite por si mesma.. Tomando o café e o Strega, admitira que era muito menos cansativo discorrer sobre pontos específicos do seu próprio futuro do que sobre os imponderáveis de uma fraternidade mundial.

Fora ainda mais simples escutar a estória de Shane McLendon e perguntar-se se o estado de espírito autobiográfico não seria sinal de um armistício permanente.

Shane - soube espantado - nascera no bolsão de carvão de Virgínia Ocidental, uma armadilha quase clássica que tinha como principais aspectos a pobreza e o desespero. Mais jovem de cinco filhos e a única moça, suportara os lamentos de uma mãe irremediavelmente cansada do trabalho e que abandonara a filharada quando a filha contava dez anos. Shane fizera o possível para manter a casa - para o pai que morrera dois anos depois numa explosão na mina. Espalhados os irmãos, chegara a seu próprio momento decisivo quando um professor ajudou-a a conseguir uma bolsa de estudo em Oberlin. Obteve uma segunda bolsa na Escola de Jornalismo de Colúmbia. A formatura, à frente da classe, conseguiu-lhe um terceiro prémio um ano de viagem pelo exterior. Um cartão de polícia de um jornal de Nova York seguiu-se no momento oportuno. Aos vinte anos, ingressou numa das agências de notícia. Quatro anos depois, possuía uma coluna sindicalizada... Atualmente, As Coisas, como as Vejo eram publicadas em mais de trezentos jornais.

- Como é que você conseguiu sobreviver enquanto estudava?

- Peguei todos os empregos que pude encontrar, Bruce. Nessa ocasião, trabalhar à noite após as aulas tornou-se hábito. Trabalho em hospital foi uma das atividades. Servi à mesa em clubes campestres. Fui recepcionista num rancho de turistas em Montana. Durante dois anos ensinei a delinquentes juvenis em Long Island. Como vê, sobrevivi. O que é que você acha de minha estória?

- Eu a chamaria de um testamento de coragem.

- E eu o chamaria de um romântico incurável - disse Shane.

- Ninguém merece uma medalha por existir. Finalmente, um jeito para escrever acendeu pavio no meu foguete. Você poderia dizer que minha trajetória foi traçada antecipadamente, como a sua.

- Acho que há uma enorme diferença entre nós. Eu tive apoio sólido durante todo o caminho. Você teve de lutar desde o início.

- Não lutei tanto assim - replicou Shane. - E eu não estava blazonando quando lhe mostrei aquele mapa rodoviário de saída da pobreza. Queria apenas que você me aceitasse como sou... se não for um esforço muito grande.

- Eu me sinto orgulhoso de ser seu amigo. Isso foi uma oferta de amizade, não?

- Você não estava exatamente procurando amizade quando nos encontramos no bar da estação.

- Lembre-se de que eu me confessei culpado na ocasião.

- Confessou... para arranjar um jeito de retirar-se em ordem. Naturalmente, você ficou chocado ao encontrar uma repórter tortuosa disfarçada de Jezebel. Agora que se recuperou, acha que pode sobreviver ao fato de eu apoiar Hal? Mesmo que ele resolva tomar conta de Jimmie Lowell?

- Como lhe disse hoje à tarde, vou fazer força.

- Incluindo o conhecimento que nós somos amigos há muito tempo?

- Mais uma vez, isso dependeria do grau de amizade.

- Suponhamos que eu confessasse que rezei para que você conquistasse Janet enquanto Hal estava na Inglaterra... para que eu pudesse entrar depois com o meu jogo?

- Você se importaria se deixássemos de lado essas ideias indignas... para não estragar nossa noite?

- A noite está quase terminada, Bruce. Foi divertida... agora que deixamos de nos massacrar. Tem certeza de que não quer fazer mais perguntas? Eu estou em maré de confissão.

- Farei apenas uma, desde que deixamos de brigar. Onde é que tudo isto nos deixa... agora que é óbvio que eu falhei com Janet?

Shane levantou-se, dizendo:

- Se eu soubesse a resposta, não estaria aqui hoje à noite. Nem você. Vamos para o espetáculo da felizarda enquanto podemos ainda conseguir poltronas.

O espetáculo da noite da unidade da USO, informaram-nos nos portões da Academia, fora montado num campo especial de futebol nas proximidades do quartel dos guardas-marinha, uma estrutura de numerosos degraus com capacidade para quase três mil espectadores, com o palco localizado no centro do campo.

O espetáculo já começara quando Shane estacionou o carro. À primeira vista, cada lugar parecia tomado por homens de azul, embora o passe de imprensa da jornalista os levasse a dois lugares num degrau mais baixo, bastante perto para que vissem bem o palco. Uma fileira de coristas e um mestre-de-cerimônias cantavam barulhentamente uma enfiada de canções marítimas, culminando com a inevitável Anchors Aweigh. Logo que as três mil jovens vozes masculinas repetiram o estribilho, o efeito foi ensurdecedor.

- Hal está numa cadeira de pista, como sempre - disse Shane.

- com a maravilha da Costa Oeste. Se quer saber, o contrato de Janet já está praticamente assinado.

- Então aquele é o grande Leo Brodski?

- Completo com carranca e casaco de pêlo de camelo.

O Deputado Reardon e o diretor mantinham uma animada conferência quando o coro desceu do palco. Iluminado diretamente pelos holofotes acima, Bruce não pôde distinguir-lhe claramente as feições. Brodski parecia enorme num volumoso sobretudo. De colarinho virado para cima a despeito da noite quente, os ombros sob o casaco sugeriam um treinador de futebol cuja postura era tão desajeitada quanto a roupa.

- Como é que Hal conseguiu capturá-lo?

- O estúdio dele acabou de filmar uma nova epopeia da guerra - explicou Shane. - Poderão exibi-la logo se conseguirem a liberação do Exército.

- Não me diga que a entrada de Janet no cinema está sendo comprada.

- Não inteiramente, claro. Como você mesmo viu, ela sabe fazer diversos números. Eu chamaria a isso uma transação mutuamente vantajosa. Ela está bem talhada para a comédia militar que Brodski tem em mente.

O coro inicial foi seguido por um pianista de jazz, nacionalmente conhecido, cuja execução de Rhapsody in Blue e uma coletânea de canções da I Guerra Mundial ajustavam-se brilhantemente à plateia. Substituiu-o um cómico igualmente famoso, cujos números foram recebidos com a mesma alegria espontânea. Durante os números, Brodski continuou a conversar com Hal, ignorando totalmente o espetáculo.

- As maneiras dele são sempre tão más assim? - perguntou-lhe Bruce.

- Não leve a mal a falta de atenção dele. Leo é ele mesmo apenas quando sentado na cadeira de diretor. Ele ressuscitará quando Janet for anunciada.

- O programa diz que ela é o próximo número. - O cirurgião sentiu um aperto conhecido na garganta quando falou. Sabendo antecipadamente o que veria - e o efeito sobre a plateia - podia ainda assim conservar a ilusão de que observava Janet Josselyn pela primeira vez.

O acompanhante estava no palco agora - tirando arpejos no teclado, onde finalmente tocou os primeiros acordes de Cherokee Rose, a música que se tornara a sua assinatura musical nos acampamentos em todo o Leste. Logo que a mensagem alcançou a plateia, provocando uma trovoada de aplausos, o mestre-de-cerimônias deu a volta ao palco, erguendo no alto um cartaz onde se via escrita uma única Palavra: Imitações... O aviso provocou uma segunda reação, um silêncio profundo, quebrado apenas quando Janet apareceu nos degraus, dirigiu-se à curva do piano de cauda e levantou o chapéu de palha que lhe serviria como primeiro adereço.

Naquela noite, vestia o mesmo vestido de noite cor de vinho tinto de que Bruce tanto se lembrava. Usava o cabelo escuro em penteado alto... e o beijo que lançou sobre as gambiarras assegurou a plateia que ela amava a todos. Como sempre, bastava-lhe uma pirueta para integrar-se na figura do primeiro personagem. O chapéu já estava inclinado sobre o nariz. com as mãos estendidas, as palmas para cima e as pernas esguias numa postura de music hall, era uma imagem perfeita de Chevalier muito antes que o acompanhante tocasse o prelúdio de Valentina.

A música, com suas brilhantes double-entendres, foi recebida com uivos de êxtase. Janet acompanhou-a com imitações de duas outras estrelas: uma sedutora atriz do cinema estrangeiro e um Lothario tipicamente americano que acabara de comover o público ao alistar-se como marinheiro. O número culminou com uma série de baladas, acompanhadas ao piano num estilo tornado famoso por uma geração de cantores populares. Desta vez, Janet ousou representar em estilo próprio. O seu contralto de timbre doce pertencia mais a uma sala-de-estar do que um palco, embora fosse inteiramente apropriado ao ambiente graças a microfones em profusão. Ajudada pela mágica eletrônica, ela dava a impressão de que cantava individualmente para cada espectador. E esses jovens solitários, divorciados do passado e temerosos do futuro, reagiram com entusiasmo.

O programa formal de Janet terminou com a canção do grupo... mas a Marinha recusou-se a abrir mão dela. Após uma meia dúzia de bis - e depois de ter o mestre-de-cerimônias feito sua mesura pela última vez e ela ter descido correndo os degraus - Bruce compreendeu que se havia erguido com os demais, aplaudindo com tanto entusiasmo como qualquer marinheiro na multidão. A descoberta culminante ocorreu quando se inclinou para a frente para examinar o visitante de Hollywood, e viu que Brodski, também, juntara os seus à onda de aplausos.

- Isso resolve, acho - disse ele... e amaldiçoou a nota áspera na voz, que não conseguiu abafar.

- Resolve - disse Shane. - Olhe novamente para Brodski. Como é que ela pode perder... tendo o apoio de dois génios?

Sentindo a voz prender-se na garganta, o cirurgião não se arriscou a responder. Foi salvo quando as luzes da arena se acenderam assinalando um intervalo - e ouviu o seu nome ribombar nos alto-falantes com a solicitação de que chamasse a mesa telefónica da Academia.

- Será um chamado do Scranton General? - perguntou Shane.

- Receio que sim. Terry Miller já cancelou passes noturnos antes quando sabia onde eu me encontrava.

O palpite foi confirmado logo que conseguiu abrir caminho entre a multidão e chegar à cabina telefónica. No hospital, uma sala de operações estava sendo preparada para o tipo de operação de emergência que apenas um cirurgião vascular podia realizar. O Coronel Miller, conhecedor dos privilégios de seu posto, conseguira transporte em Anápolis. Uma ambulância esperava-o naquele momento no portão principal.

Shane, que se postara ao lado da cabina, estudou ansiosamente o rosto de Bruce logo que ele saiu.

- É tão grave como você dá a impressão de ser?

- Uma artéria femoral... inteiramente cortada após uma briga num bar.

- Parece muito sério.

- Nós temos boa chance de salvar o ferido. Na verdade, é apenas uma sutura rotineira de ponta a ponta. O tipo de trabalho de reparação que eu fiz no ano passado em Lakewood.

- vou levá-lo de carro.

- A sirena da ambulância levar-me-á mais rapidamente. Você pode voltar a Washington sem problema?

- Farei uma caravana, com Hal e Janet. Talvez eu consiga convencer Brodski a fazer também comigo um teste para o cinema.

- Mande ele falar comigo se precisar de uma recomendação. E, por favor, diga a Janet que lhe darei meus parabéns amanhã.

- Se quiser, digo-lhe que ela é uma estúpida danada em preferir Hal Reardon a você... mesmo que ele consiga abrir a pontapés a porta de um estúdio. Boa sorte com a artéria femoral.

Ele jamais saberia se Shane oferecera o rosto para o beijo... ou se fora ele que se adiantara e colocara o braço em torno dos seus magros ombros antes de dirigir-se rapidamente para o piscante olho vermelho da ambulância. Somente no momento em que, a alta velocidade, corria para Washington compreendeu que o carinho fora tanto uma homenagem como um consolo.

Verificou, como esperara, que a emergência era mero trabalho rotineiro. A despeito das dúvidas que ainda o perseguiam, dormiu Profundamente após a operação. Ao soar o despertador, restava-lhe ainda uma hora antes de ir ajudar Terry Miller no primeiro estágio da cirurgia marcada para o Sargento James Lowell. Dez minutos antes de enxaguar-se na ante-sala do teatro cirúrgico, tomou o telefone e chamou Five Oaks.

Ao ouvir a voz de Janet Josselyn do outro lado do fio, já conseguira pôr sob controle os pensamentos que lhe vinham em tropelada. A noite passada provara que ela estava prestes a receber uma justa recompensa de sua capacidade. Ele não tinha direito de estragar-lhe o primeiro êxtase no momento em que ela estava no limiar de uma aventura que seria invejada por todos os membros de seu sexo.

- Desculpe-me se chego tarde com meus aplausos.

- Shan disse-nos que você foi chamado ao hospital. Eu queria que você conhecesse Brodski.

- Ouvi dizer que ele veio para o Leste com o presente de um estrelato.

- É verdade, Bruce. Ofereceu-me um contrato na noite passada. E eu aceitei. Quem é que lhe contou?

- Hal mencionou um teste para o cinema quando estive com ele ontem. Depois daquele espetáculo em Anápolis, isto teria de acontecer.

- Dizem que os testes serão mera formalidade. Os advogados de Hal estão redigindo o contrato para um filme. Ele vai entrar com a maior parte do dinheiro... mas está certo de que vai recuperá-lo.

- Eu também. O que é que acha o Senador?

- Papai é um bocado antiquado... mas Hal convenceu-o de que eu mereço a experiência. Não posso ainda acreditar que ele tenha conseguido isso. Você pode?

- Quando Hal Reardon se atira, eu acredito em qualquer coisa. Qual o tipo de espetáculo que Brodski tem em mente para você?

Escutou pacientemente enquanto Janet descrevia a peça musical leve na qual seria a principal atração - um romance de rapaz e moça num campo de treinamento, com o título de Pierretíe. O roteiro, ao que parecia, já fora escrito e musicado. Contracenaria com dois atôres muito conhecidos. O diretor insistiria em que o papel fora criado apenas para ela.

- É uma lisonja descarada, mas adoro-a. Você acha que vou ser uma decepção grande demais para Brodski?

- Você é exatamente o que ele precisa para ter êxito com o filme.

- Talvez diversão e jogos sejam as coisas que o público quer em tempo de guerra. Nós saberemos antes de muito tempo.

- Quando é que vai começar a filmar?

- vou de avião depois de amanhã para os primeiros testes. Prioridade Classe Um, saindo do Campo Bolling... desde que é um projeto das Forças Armadas.

- Podemos encontrar-nos antes, então?

- Não vejo como, Bruce. Estou de saída para o bazar da Cruz Vermelha, em Philadelphia... e vou cantar nos acampamentos daquela área.

- Nesse caso, serei parte de sua entourage no aeroporto.

- Receio que não vá haver entourage.

- E seu pai... e seu noivo?

- O Deputado e o Senador estarão ambos participando de comissões. Por favor, tente comparecer ou eu me sentirei inteiramente abandonada.

- Se Terry Miller não me der um passe, eu desertarei.

- É uma promessa?

- Uma promessa solene. Alguém deve aplaudi-la no seu caminho para a glória.

Antes da primeira parte da operação em dois estágios que determinaria a possibilidade de sobrevivência do Sargento Lowell, uma aspiração preliminar confirmou o diagnóstico de abscesso - mas nem Bruce nem o Coronel Miller haviam esperado que a droga antiamebiana que haviam injetado pudesse deter a doença. Na hora seguinte, o bisturi do Coronel seguiu o padrão ditado pela situação desesperada, expondo as costelas inferiores no lado direito para que pudessem libertar uma seção do tórax sobre o espaço em forma de domo onde se localiza o fígado. A técnica era simples: cortava a própria caixa torácica mas deixava o periósteo em cada leito, de modo que as costelas pudessem regenerar-se depois, se o paciente sobrevivesse.

Foram removidos cerca de sete e meio centímetros de diversas costelas, juntamente com as costelas flutuantes mais moles, até ser aberto acesso ao órgão lesionado. Uma vez que a cavidade pleural às vezes estendia-se para baixo até essa região, a técnica destinava-se também a criar uma inflamação artificial nas bordas do campo operatório. Isto fecharia as duas camadas de membranas, impedindo a abertura acidental na cavidade peitoral quando a área fosse sondada mais tarde, numa tentativa de drenar o abscesso. A fim de assegurar o resultado, Miller revestiu o espaço com uma faixa de gaze embebida eili iodofórmio e, em seguida, prendeu a pele com suturas frouxas. Nos dois dias seguintes, o fraco anti-séptico produziria adesões suficientes para fechar o campo. O cirurgião poderia, em seguida, penetrar à vontade no fígado sem ameaça do abdómen embaixo ou da pleura em

cima.

Uma ligeira injeção com uma nova droga denominada sódio pentoral mantivera tranquilo o sargento durante o abordamento preliminar. Bruce deixara o Post sobre a mesinha de cabeceira, tencionando lê-lo à tarde, embora um afluxo de casos vindos de um acampamento de treinamento próximo, onde a explosão de um depósito de munições produzira uma reação em cadeia de ferimentos, o mantivesse ocupado até meia-noite.

Ao regressar na manhã seguinte ao quarto onde o Sargento Lowell era conservado ainda em semi-isolamento, observou que não houvera melhoramento no estado do doente. A temperatura subira e havia a anotação de calafrios durante a noite - outra indicação de que a infecção continuava violenta. O próprio paciente, sentado espigado na cama do hospital com o Post da véspera aberto sobre os joelhos, constituía acentuado contraste com os sinais de perigo. Embora manchas vermelhas de cada lado do rosto indicassem febre crescente, ele jamais parecera mais despreocupado.

- Obrigado por ter deixado o jornal aqui, senhor. Estou lendo ainda... embora eu pudesse recitar a maior parte da estória.

- Como é que se sente, agora que é novamente famoso?

- A Senhorita McLendon fez um trabalho maravilhoso. Já escrevi bilhetes agradecendo a ela... e ao Deputado Reardon. Por que é que o nome dele não consta da reportagem?

- Ele quis que você se apresentasse sozinho. Ele entrará na estória mais tarde, se houver uma reação autêntica à coluna.

- Já estão reagindo. O Oficial de Relações Públicas disse-me que recebeu mais de cem telefonemas ontem.

- Espero que você não tente respondê-los.

- O Coronel Miller resolveu essa parte. Eu pedi ao Oficial de Relações Públicas os nomes e os endereços. A minha segunda operação está marcada para amanhã?

- Foi marcada para as nove horas.

- Fiquei um pouco tonto depois que li essa coluna... mas nunca me senti tão bem em minha vida. É uma coisa maravilhosa saber que minha ideia está nas ruas.

Bruce hesitou antes de falar novamente. Era-lhe impossível desfechar um golpe mortal nas esperanças de James Lowell no momento em que o próprio rapaz apegava-se à vida por um fio.

- Acho que você compreende que o Partido da Paz não pode ser fundado amanhã - disse ele finalmente.

- Claro. O Deputado Reardon diz que não podemos pensar nem mesmo em cabalar votos até que a América comece a vencer a guerra.

- Neste caso, você lhe confia a sua revolução?

- Foi isso o que eu resolvi após nossa segunda conversa. Todas as revoluções precisam de um verdadeiro gerente. A paz não é coisa tão simples como o sonho de um primeiranista. Até mesmo um ex-primeiranista pode compreender isso.

- O Partido da Paz continua a ser uma grande ideia, Jimmie.

- Acho que é, senhor... e penso que o Deputado Reardon é o homem capaz de convencer o mundo. Já escrevi uma carta a minha mãe dizendo-lhe que aceite as decisões dele após minha morte.

- Não se despeça com uma carta, por favor. Nós temos todas as esperanças de curá-lo amanhã.

- Tenho certeza de que tem, Major Graham. Mas eu li um bocado sobre disenteria amebiana quando estive em Letterman e sei quais as minhas possibilidades.

- Nós podemos ter alguns truques de que você nunca ouviu falar.

- Tenho esperança de que sim... mas duvido. É por isso que estou satisfeito de o Deputado Reardon encarregar-se da realização do meu sonho. Mesmo que falhe, terá sido posto em palavras... e eu dele participei. Isto é algo que nenhum dos meus inimigos pode tirar-me. Até mesmo um inimigo chamado Entamoeba histolytica.

O gabinete de Hal Reardon na Colina do Capitólio era tudo menos particular, conforme descobriu Bruce uma hora depois. Dividido ao meio por uma grade com uma porta movediça, abria através de portas duplas abertas para o congestionado corredor externo. Desde a chegada do cirurgião, estivera cheio de visitantes, a maioria dos quais fora detida junto à divisão por um secretário que parecia combinar as funções de recepcionista informal com as de guarda-costas. Hal, ocupado nos telefones sobre a mesa sob as janelas, ainda assim encontrava tempo para cumprimentar cada pessoa que chegava enquanto atendia os compromissos do dia - uma torrente impressionante de advogados, grupos de pressão e colegas da câmara. Bruce julgou impossível classificar uma terceira onda de visitantes - homens pálidos, de fisionomia séria, que deslizavam para o local reservado aos visitantes, sussurravam mensagens ou recebiam instruções e partiam tão silenciosamente como haviam chegado.

Sentado numa espreguiçadeira num canto, fingindo folhear as Páginas de um exemplar do Congressional Record, Bruce continuou a a acompanhar em silencioso espanto o ritmo do dia de trabalho de Hal. O político, disse a si mesmo, deve forçosamente funcionar em numerosos níveis. Como o banqueiro e o ministro, é essencial que ele apareça ao máximo em público - mas a hipocrisia era um fantasma indesejável no seu sanctum. Era impossível acreditar que os gritos de boas-vindas, os calorosos apertos de mão e o riso provocado por piadas que só os dois conheciam eram menos do que sinceros. Mas era igualmente difícil acreditar que o verdadeiro Hal Reardon emergiria, agora que a porta do saguão fora fechada finalmente e o musculoso secretário havia desaparecido.

O último visitante de Hal, um homem magérrimo e impecavelmente vestido de uns trinta anos, acabara de partir por uma porta lateral - uma saída, concluiu Bruce, reservada para visitantes realmente importantes. Tardiamente, reconheceu no homem Hilary Manning, o advogado criminal de Chicago que renunciara a uma fortuna em honorários para servir como conselheiro pessoal do Deputado Jake Sanford, da Comissão de Atos Subversivos da Câmara, conhecido depreciativamente pelos jornalistas que cobriam a Colina como HOSAG. Parecia apropriado que Manning encerrasse o dia oficial de Hal. Flagelo por mérito próprio, ele era tão importante para a comissão como o próprio Sanford. O seu belo perfil, tão cruel e remoto como uma gravação numa ataúde de múmia, aparecera em centenas de fotografias da imprensa junto a seu empregador quando celebravam outro comp de grâce.

Hal levantou-se da escrivaninha e estirou as pernas.

- Você podia ter-me avisado de que ia aparecer, Bruce. Eu poderia ter reservado uma hora para você.

- A tarde foi instrutiva, mesmo assim. O que é que Manning queria?

- Sinto, mas a nossa conversa foi particular. Incidentalmente, devo ir ao plenário da Câmara às seis horas. Jake vai falar em favor do projeto de recuperação dos rios. Eu devo estar lá a tempo de votar.

- Apoiar-lhe a lei eleitoreira anual?

- Um bocado de meus próprios projetos estão nessa lei. É com a ajuda mútua que se faz o trabalho do Congresso. Não nos julgue com demasiado rigor.

- Não vim aqui como juiz, Hal.

- Que outro motivo poderia ter você?

- Estranho como pareça, eu ainda estou com a esperança de entendê-lo. Não tem sido fácil, ao longo de todos estes anos.

- Eu sempre tentei ser a própria imagem da franqueza.

- Talvez eu tenha mais sorte hoje... se você está falando sério.

- Comece, Bruce. Afinal de contas, você é meu eleitor.

O cirurgião hesitou, procurando a melhor maneira de lançar o ataque:

- Tenho duas perguntas a fazer-lhe. Talvez pareçam estranhas entre si, mas fazem parte do mesmo conjunto. Dê-me respostas diretas e eu o deixarei em paz.

Hal acomodou-se na cadeira giratória e colocou um pé imaculadamente calçado sobre o tampo da escrivaninha.

- Estive enfrentando canhonaços toda a tarde. Por que dois outros deveriam importar?

- A pergunta número um é fácil... segundo espero. Você pode fazer Janet feliz?

- A pergunta não é um tanto inesperada, mesmo para um velho colega de classe?

- Talvez seja... mas eu não vou pedir desculpas. Importa-se em responder?

- Eu serei abrupto também, desde que você insiste - respondeu Hal. - Você pode fazê-la mais feliz?

- Não negarei que entretive esse pensamento ultimamente. Você goza de vantagens, naturalmente. O Senador o quer para genro. Obviamente, você pode fazer muito por ela. A questão é a seguinte: fará o suficiente?

- Acho que sim, Bruce. Acho, realmente. Não direi nem mesmo que você é impertinente ao perguntar.

- Passemos então à pergunta número dois. Espero que a responda com igual franqueza. O que é que vai acontecer a Jimmie Lowell?

- Acho que essa é que é a sua preocupação, no momento.

- Você sabe o que eu quero dizer. Você vai tocar a música dele de ouvido e esperar que a América entre no coro?

- No momento, não sei. Atualmente - para variar sua metáfora - estou medindo a profundidade da água para verificar se o Partido da Paz do Sargento Lowell pode flutuar nela. Até agora, as sondagens são promissoras. A coluna de Shane causou sensação, como esperávamos. A ideia de Jimmie é nova. O eleitorado precisa urgentemente de uma novidade até que as notícias do exterior melhorem...

- Esqueça o eleitorado, Hal... Você não se está dirigindo a ele agora. O que é que você mesmo pensa de um partido político dedicado à paz?

- Alguém pode ser contra?

- O hospital está sendo inundado por telefonemas. Você fez uma amostragem no Congresso?

- A maioria dos meus amigos espera que ele se ajuste ao planejamento da Casa Branca. Nós preferimos aguardar e ver o que acontece. A ideia foi plantada na mente do público. Vamos deixá-la crescer aí durante algum tempo. Pelo menos, até começarmos a vencer a guerra.

- Então você a está tocando de ouvido?

- No momento, sim. Entrementes, Jimmie nomeou-me herdeiro presuntivo. Escreveu à mãe pedindo-lhe que me entregasse todas as suas cartas e diários...

- Você compreende que fala como se ele já estivesse morto? O que acontecerá a esse método de ação retardada se, por algum milagre... ele sobreviver?

- Neste caso, ele deixará que a coluna de Shane continue com seu credo... e ficará calado. Por causa da família, aconselhei-o a tirar o tempo no Exército. Se ele sobreviver e for desligado, poderá concorrer às eleições para a Câmara mais tarde, baseado na plataforma pacifista.

- Você o apoiaria?

- Naturalmente. Jimmie Lowell talvez não compreenda isso, mas ele é um grande homem a partir de hoje. Se você puder salvar-Lhe a vida, não pouparei esforço para transformá-lo em figura mundial. Se você o perder, farei do Partido da Paz um monumento a ele.

- Como?

- Usando a publicidade onde ela realmente faz efeito. Você viu o que uma única coluna pode fazer... desde que tenha a assinatura apropriada. Eu tenho outros escoadouros parecidos em todo o país tanto na imprensa como no rádio. Se decidirmos continuar, não terei problemas para lançar uma ofensiva.

- E será uma cruzada pela paz, Hal? Ou uma grande ópera moderna, fazendo você o papel de Maquiavel?

- Você não tem motivos para pôr em dúvida minhas razões ou os resultados que espero. A publicidade bem feita é essencial. Nenhum produto se vende por si mesmo.

- E se você falhar como vendedor?

O Deputado Reardon levantou-se. Embora suas maneiras cordiais permanecessem inalteradas, era claro que ele queria terminar a conversação.

- O fracasso é uma palavra que eu não emprego, Bruce.

- Você descobrirá que terá finalmente de usá-la.

- Não enquanto eu tiver os amigos certos... e permanecer no lado certo. Por minha causa, o Sargento Lowell morrerá realizado. Se minha carreira fora promovida como consequência, eu merecerei a promoção.

- Talvez mereça, pelo seu código. Eu não tenho certeza de que conseguiria viver de acordo com tais princípios.

- Eu me esforcei para ser honesto. O que mais pode você fazer por Jimmie Lowell? Ou por Janet?

- Como é que chegamos a Janet?

- Como o Sargento Lowell, Janet ainda é um negócio não concluído. Você disse que ela era um dos motivos de sua vinda aqui.

- Isso é verdade.

- Desde que o preocupa o futuro dela... por motivos que eu sou amigo bom demais para pôr em dúvida... deve agradá-lo saber que eu tenho a influência, e o dinheiro, para colocá-la numa produção de Brodski.

- Vamos supor que ela não tenha sucesso como atriz.

- Leo tirará dela o máximo naquele musical. Ele é um génio... e o filme foi feito sob medida para o estilo dela. Não me preocupei além disso.

- Significando que isto pode ser o princípio e o fim da carreira dela na tela?

- Se for assim, que seja. Ela desfrutará da aventura, enquanto durar.

- Você está apoiando financeiramente o filme, então... e esperando que ela não faça outro?

- Naturalmente. Não quero que Janet fique em Hollywood disse Hal. - Um jeito para imitações não significa que ela se transformará numa grande atriz amanhã. Na pior das hipóteses, ela ficará ocupada enquanto eu terminar meu período nas Forças Armadas. Se Brodski não lhe oferecer um segundo filme, ela poderá cantar novamente nos acampamentos... até que eu dispute a cadeira do pai dela. Não prejudicará em nada à esposa de um Senador ser conhecida como mulher que foi estrela de um filme. Não, se o nome dela é Josselyn.

- Você está convencido de que ela seguirá ao pé da letra esse plano?

- Ela se comportou até agora, Bruce.

- Tem certeza de que isto a fará feliz?

- Ela tiraria, por acaso, maior proveito como esposo de um professor de cirurgia em Lakewood?

- Isto é uma coisa que eu não perguntei a ela. Se o que você diz é verdade, eu jamais o farei. - Bruce parou com a mão na divisão que protegia o gabinete interno. - Pelo menos, é bom saber que você achou que valia a pena usar-nos. O Sargento Lowell, Janet, Shane. Até mesmo eu.

- Se eu o usei, Bruce, você recebeu o que merecia em troca. Todos vocês...

Hal falava ainda no mesmo suave tom oratório quando o cirurgião ganhou o corredor.

O bar do clube dos oficiais no Scranton General era um mero canto que se abria para uma meia-lua de mesas no terraço sobre a entrada de automóveis do hospital. Naquela tarde, bar e terraço estavam desertos com a exceção dos dois homens sentados numa mesa distante. Parando para tomar uma bebida, Bruce reconheceu o crânio rapado de Mick Denby - e desconfiou que a alta figura que ele tinha ao lado era o Coronel Otis Kirkland, Chefe de Cirurgia no Acampamento Bruckner, que sucedera ao não pranteado Major Pritchett.

Haviam ambos vindo ao hospital para a conferência semanal sobre patologia clínica, uma reunião que atraía médicos, fardados ou não, da área Washington-Baltimore. Bruce recordou-se de que os havia convidado a encontrá-lo no bar antes da volta ao acampamento e atravessou o terraço para explicar-lhes o aparecimento tardio.

- Se o bourbon for gratuito, você está antecipadamente desculpado - disse Denby. - Muito tempo passou desde que tomamos o último juntos, Bruce.

- Oito semanas, para ser exato.

- Como é que está indo o meu escore como profeta?

- Não tenho queixas, no momento.

- Está certo disso? Você parece um tanto preocupado.

- No momento, eu não podia estar mais relaxado. - Uma rápida bebida no bar, admitiu Bruce, tinha dado certa vitalidade à declaração. A segunda ajudara ainda mais. Forçou-se a beber mais lentamente enquanto examinava o superior do urologista.

O Coronel Kirkland era uma figura impressionante - de feições bem nítidas, profundamente queimado de sol, cabelos prateados, um atleta de cinquenta e tantos anos, em harmonia soberba com o uniforme. Havia em torno dele um ar de vida ao ar livre, e uma precisão de dicção que acentuava uma postura algo pomposa. As suas maneiras, ao trocarem um aperto de mão, foram profundamente formais e ele se recusou a sorrir diante das explosões de humor de Denby. Já era evidente para Bruce que o homem o colocara sob livramento condicional - se não em julgamento. Os motivos eram lógicos quando se recordava da nuvem de bisbilhotices que lhe cercara a saída de Bruckner.

- Que achou da conferência, senhor?

- Valeu realmente a viagem, Major. Terry Miller é um professor nato.

A discussão que se seguiu, em torno da patologia do linfoma abdominal, discutida pelo Coronel Miller naquela tarde, trouxe uma aparência de animação à fisionomia impassível de Kirkland. Os comentários dele, embora pronunciados em tom didáticos, eram pertinentes. Quaisquer que fossem seus preconceitos pessoais, não havia dúvida de que ele nutria profundo respeito pela profissão.

- Eu li a respeito do caso Lowell, Major Graham - disse ele.

- Qual o prognóstico, se não estou sendo indiscreto?

- Mau, no momento. Um abscesso no fígado, complicado por uma infecção secundária. Vamos tentar drená-lo amanhã, mas podemos perdê-lo.

- Não quero parecer cruel, mas a morte daquele rapaz poderia ser uma bênção disfarçada. Para ele e para o país.

- Por que, senhor? - perguntou-lhe Denby.

- Lowell é um caso óbvio da Seção Oito. O Oficial de Relações Públicas de Scranton jamais devia ter deixado que aquela estória fosse publicada.

O urologista encolheu os ombros... e lançou um olhar de advertência a Bruce.

- Foi a expressão dos pensamentos de um único soldado, Coronel. Ele não estava irradiando um apelo à insurreição.

- Sargentos devem guardar as suas opiniões. Esse sargento, pelo menos, não tem mais domínio sobre ela, supondo-se que seu amigo esteja certo sobre o estado dele. Se ele morrer amanhã, não terá de enfrentar uma corte marcial mais tarde.

Bruce terminara o segundo drinque sem recordar-se claramente de tê-lo bebido. Ignorando o sinal de Denby, fitou os olhos azuis gelados de Kirkland... e manteve baixa a própria voz.

- O Sargento Lowell pediu a paz quando a guerra terminar - disse ele. - Será que isso constitui um crime que mereça corte marcial?

- Não se esqueça de como ele a pediu, Major. Um subalterno não tem o direito de insistir com outros homens fardados para que votem contra a guerra.

-- Eles não estariam fardados quando votassem - disse Denby.

- Isso é um jogo de palavras, Nick. Esta guerra mal começou. Poderá durar cinco ou dez anos. Como é que poderemos cerrar fileiras se um soldado comum de infantaria começa a sonhar agora com armistício?

- Nós não podemos censurar o direito de um soldado de sonhar, senhor.

- Nós podemos e censuramos... quando o sonho é uma fantasia. - Obviamente irritado pela tentativa de Denby de abrandar a discussão, Kirkland voltou-se para Bruce. - O senhor acha que seu sargento tem um grama de bom-senso?

- Ele não é meu sargento.

- É seu doente, diabos o levem. O senhor não podia mantê-lo longe da primeira página?

- Outros convocados foram entrevistados por colunas sindicalizadas.

- O senhor votaria pela paz na próxima eleição?

- No momento, o Partido da Paz está no terreno das conjeturas. Na melhor das hipóteses, é algo que se pode esperar apenas amanhã.

- Eu o considero pura loucura. Em primeiro lugar, seu sargento supõe que oito milhões de homens neste país antipatizam com o serviço militar...

- Eu não chamaria a essa opinião de exagerada.

- Acontece que eu gosto do Exército, Graham. O mesmo acontece com grande número de oficiais que conheço. Nós, pelo menos, julgamos um privilégio servir nosso país. O senhor pensa por acaso de maneira diferente?

- Claro que não, Coronel. O senhor vai desafiar-me para um duelo, por uma questão de princípios... tendo Denby como padrinho?

Kirkland ignorou o oferecimento de trégua... e bateu na mesa com o copo.

- O senhor nega que a vitória é nosso principal objetivo? Que os dissidentes devem ser silenciados enquanto durar a guerra?

- Eu aprovo o objetivo, ou não estaria usando este uniforme. Mas o senhor não pode evitar que eu tenha esperanças de que haja um mundo melhor quando isto estiver acabado. Reconheço que um Partido da Paz americano é uma esperança exagerada. Mas ainda vale a pena ser explorada.

- Há quanto tempo o senhor está no Corpo de Saúde?

- Mais ou menos há dois meses.

- Eu me apresentei como voluntário para o serviço ativo há dois anos. O que é mais, renunciei a uma boa clientela em Little Rock para abrir mão de minha liberdade de opção. Acho que isto me dá o direito de dar-lhe uma aula... em seu próprio benefício.

Bruce ouviu meio desatento enquanto o oficial grisalho continuava, tão loquaz como se cada chavão constituísse uma peça de sabedoria recém-saída da rotativa. Algo no tom do homem cristalizou-lhe, porém, a irritação, dando um alvo às frustrações do dia. Do outro lado da mesa, Denby continuava a fazer-lhe frenéticos sinais, embora ele tenha sentido uma estranha liberdade ao ignorá-los.

- O senhor diz que é de Little Rock, Coronel? Não é esse o colégio eleitoral de Jake Sanford?

- É, realmente. O Deputado Sanford é um dos meus mais antigos amigos.

- O senhor acha que ele está ajudando a vencer a guerra?

- A contribuição de Jake Sanford tem sido inestimável, dentro e fora de Washington. Ele é um grande americano.

- Eu o chamaria de um doente que precisa de um psiquiatra.

Denby quebrou o silêncio pétreo um segundo tarde demais.

- Como, em nome de Deus, começamos a falar em Sanford?

- O Major Graham mencionou-lhe o nome - disse Kirkland em tom gelado. - Eu lhe acho o comentário absolutamente inaceitável.

Bruce levantou ambas as mãos.

- Minhas desculpas, senhor... se insultei um amigo seu. Afinal de contas, o senhor falou com bastante franqueza de um amigo meu. Que tal deixarmos os insultos e voltarmos ao linfoma abdominal?

Mais uma vez, o oficial mais idoso recusou o ramo de oliveira.

- Parece que nós nos movemos em círculos diferentes, Major. Até agora, eu não tinha ouvido um oficial caluniar Jake Sanford... ou a ajuda que ele tem dado ao Exército.

- E de que modo ele ajuda? Olhando embaixo das camas, procurando agentes inimigos?

- O senhor pode mencionar um serviço mais vital?

- Certamente o FBI e nosso próprio serviço de contra-informações podem caçar espiões sem a ajuda do Congresso.

- Quando o senhor tiver entrado em combate, Major, o senhor compreenderá melhor.

- O senhor já esteve em combate, senhor?

Kirkland ficou vermelho sob a pele morena.

- Ainda não, infelizmente? Nem, segundo penso, o senhor.

- Eu estive seis meses numa guerra sem quartel. com uma unidade voluntária médica na Espanha.

- De que lado?

- Nós éramos médicos, Coronel. Nossos doentes não usavam rótulos.

- Isto significa, naturalmente, que o senhor esteve ao lado dos chamados legalistas. Posso perguntar-lhe como foi à Espanha?

- Minha unidade foi enviada por Lakewood. Era dirigida pelo Dr. Abraham Schoenfeld.

- O médico nascido na Rússia que foi ferreteado como simpatizante comunista?

- Apenas por Jake Sanford. Mais tarde, foi inteiramente exculpado.

- Foi, e é uma pena. Parece que ele tinha bons advogados.

- O Dr. Schoenfeld é um cidadão no gozo de seus direitos. A sua lealdade a este país está acima de qualquer dúvida.

- Se é assim, por que ele não está no Exército?

- Ele tem mais de sessenta anos.

- Eu tenho cinquenta e seis e o Exército combina comigo. E combina com a maioria dos patriotas que preferem os Estados Unidos à União Soviética.

Denby interrompeu rapidamente: o olhar que lançou a Bruce foi de súplica.

- Nós todos estamos nesta guerra para vencê-la, Coronel. Isto não significa que teremos de gostar dela também.

Kirkland olhou carrancudo durante um momento para o urologista antes de voltar-se novamente para Bruce:

- vou dizer-lhe mais uma coisa, Graham. Pearl Harbor aconteceu no momento exato para salvar o americano comum de afogar-se na própria gordura. As disciplinas dos nossos campos de treinamento estão começando a dar resultado. Em outro ano, elas transformarão em homens milhões de jovens criminosos cheios de autocomiseração.

- Os jovens de hoje não podem ser casos tão perdidos assim, senhor - retrucou Bruce.

- Eu nunca disse que eram. O que precisam é de um bom sargento instrutor para mantê-los no passo... além de uma forte dose de realidade.

- Isso eles conseguirão dentro de breve.

- Conseguirão, mesmo. E foi algo que o Sargento Lowell ignorou completamente.

- Ele passou grande tempo no Exército, senhor.

- Antes de Pearl Harbor, não depois. Ele foi o primeiro soldado nesta guerra a conseguir uma papeleta de doente... e o primeiro a explorar a própria incapacidade. Até agora, tem sonhado numa cama de hospital, à custa do governo. Ele jamais compreenderá que um país deve liderar baseado na força ou aceitar um segundo lugar. Esta é a primeira lição que o Exército ensina.

Denby interrompeu mais uma vez, num último esforço para silenciar os rugidos de Kirkland:

- Uma correção, Coronel. A primeira lição do Exército é manter a boca fechada, os intestinos abertos... e jamais se apresentar como voluntário.

.- O momento não é de piadas, Nick. Logo que tenhamos vencido esta guerra, vamos fazer a Alemanha e o Japão pagarem. E pagarem tanto que jamais perturbarão novamente nosso sono. O mesmo acontecerá em dobro com outros inimigos.

- E nós temos outros inimigos no momento? - perguntou Denby.

- Stalin não ficará de nosso lado depois de o termos salvo. Ou agimos agora... ou terminaremos bombardeando-o antes que ele nos bombardeie.

- Como é que agiríamos? - indagou Bruce. - Como força policial mundial?

- Nós seremos os policiais, Graham. Um velho delegado da fronteira, com um revólver em cada mão. A Rússia se comportará logo que a convençamos de que atiraremos antes e discutiremos depois.

- Não me diga que acredita que o Kremlin aceitará ultimatos sem reagir.

- Terá de aceitar, se atirarmos primeiro.

- Atiraremos primeiro no quê, Coronel Kirkland? Pelo que sei, as Nações Unidas estão sendo organizadas para desencorajar dedos nervosos.

Kirkland aspirou o ar e manteve-o como num fole, pronto a explodir. Era claro que ele ultrapassara o ponto da raiva e que fazia um grande esforço para tratar um louco em termos racionais.

- O senhor é favorável a esse sonho absurdo?

- De que outro modo podemos evitar a III Guerra Mundial?

- O senhor aprovaria uma Organização das Nações Unidas apoiada pelo Partido da Paz do seu sargento?

- Por que não, quando é a nossa última esperança?

- Se essa é a sua filosofia política, Major, é claro que o senhor foi inteiramente desencaminhado na Espanha. É meu dever adverti-lo de que o senhor está fazendo pregação revolucionária.

- Será revolucionário nutrir a esperança de uma fraternidade mundial?

- Eu direi mais uma coisa, com o Major Denby como nossa testemunha. A paz Mundial não funcionará. Sem uma arma apontada Para a cabeça, o estrangeiro típico jamais se corrigirá. Logo que tivermos destruído o Eixo, deveremos ficar preparados para suprimir levantes onde quer que eles surjam.

- Mesmo que isso signifique manter o Exército em pé de guerra?

- A retaliação será apenas o começo. Devemos destruir todas as fábricas do III Reich e transformar os alemães em agricultores.

- Os Césares tentaram essa solução há quase dois mil anos. Foi um redondo fracasso.

- Nós estamos discutindo o futuro da América, e não história antiga.

- A história costuma repetir-se, Coronel. - Bruce voltou-se para Denby, a olhar para o copo vazio com o ar de um homem dilacerado entre lágrimas e riso. - Acho que você leu Gibbon, Nick... ainda que o Coronel não pareça ter ouvido falar nele.

O urologista falou, com os olhos baixos:

- Bruce refere-se a um experimento com as tribos teutônicas, senhor. Deoclécio dispersou-as entre as populações conquistadas ao sul do Reno... mas bárbaros ainda piores surgiram no lugar deles. Finalmente, eles saquearam Roma.

- Desta vez, nós os encadearemos aos arados. - Kirkland gritava realmente agora. - Manteremos os japoneses arrebanhados em suas ilhas, com uma supermarinha para mante-los lá. Faremos da China um Estado-tampão e deixaremos que a Rússia apodreça nas suas estepes...

- E o que acontecerá à Europa? - perguntou-lhe Bruce.

- A Europa será um grupo de nações de terceira classe, dependentes de nós para a sobrevivência.

- E a Inglaterra?

- Usaremos as Ilhas Britânicas como posto avançado. Se eles se comportarem, nós os transformaremos em nosso quadragésimo nono Estado.

- Então o que o senhor propõe é a dominação americana do mundo... sob a mira de canhões americanos.

- Há outra nação mais apta para ser a raça superior?

- Um feiticeiro austríaco convenceu a Alemanha de que ela era a raça superior. Não permita que ele lhe dê também lições de estadismo.

- Graham, o que você acaba de dizer é quase traição.

- Se é traição divergir de suas opiniões, eu sou culpado, Coronel. Pensei que isto era um debate livre, permitida uma pitada de ironia. O senhor não percebe que se colocou numa situação insustentável?

- Eu lhe digo o que eu percebo - rugiu Kirkland. - O senhor é uma vergonha para a farda que veste.

- Isso, também, é uma questão de opinião. Se o senhor não fosse meu convidado, eu retribuiria o cumprimento.

Kirkland levantou-se com os olhos em fogo. A seu gesto de cabeça, Denby levantou-se também com um salto, dando a Bruce um sorriso enviesado ao fazê-lo.

- É tempo de irmos embora, Nick.

- Talvez seja, senhor.

- Antes de ir embora, Graham, ofereço-lhe uma pitada de sabedoria extraída da Bíblia: Aquele que não está comigo, está contra mim.

- E eu lhe darei outra em troca, senhor - retrucou Bruce. - É extraída de Schiller - um poeta muito admirado pelo feiticeiro austríaco que vimos discutindo: Contra a estupidez, os próprios Deuses lutam em vão.

Desde que o estado do doente era grave, a segunda operação de Jimmie Lowell fora marcada para o início da manhã.

Todas as armas do arsenal da cirurgia haviam sido convocadas. Doadores de sangue tinham sido examinados para ficarem de prontidão caso se precisasse de transfusões diretas. O Coronel Miller requisitara um suprimento de penicilina: uma ordem de emergência fora telegrafada a Boston desde que a nova droga milagrosa era ainda produzida em pequena quantidade e fora estabelecido rígido controle sobre sua distribuição. Por solicitação de Bruce, um exame de protombina fora feito como índice da função do fígado: as cifras eram agourentas, um sinal seguro de que o órgão entrava em colapso.

No momento em que os dois cirurgiões aproximaram-se da mesa de operação, as pupilas do doente estavam amarelas de icterícia e ele murmurava num semidelírio. Ainda assim, conseguiu endereçar a Bruce seu conhecido e inocente sorriso, enquanto o médico mais jovem permanecia a seu lado e era aplicado o pentotal.

- Calma, Jimmie. Estamos esperando que isto resolva.

- Eu conheço o escore agora, senhor. Obrigado por tentar.

- Comece a contar, por favor - disse o anestesista.

O Sargento Lowell levantou os olhos para o teto ao ser inserida a agulha numa veia superficial do braço esquerdo. À contagem de nove, a voz tornou-se pegajosa e morreu.

- Estou pronto quando o senhor estiver - disse o anestesista.

Reaberta a incisão operacional, era coisa simples remover a compressa de iodofórmio colocada dois dias antes. O Coronel Miller esperava, com uma seringa de pescoço longo. A ponta entrou profundamente através da camada de músculo que formava a parte inferior •da parede toráxica e a janela aberta com a remoção das costelas. Um fluido escuro e purulento encheu o tubo quando ele puxou o êmbolo.

- Queremos esfregaços deste material, imediatamente.

Um atendente à espera adiantou-se com as lâminas microscópicas que acabara de preparar. Enquanto trabalhava, a enfermeira circulante levava amostras extras da secreção a uma fileira de tubos de cultura onde a bactéria seria ulteriormente identificada. Bruce estudou o chefe de cirurgia do outro lado da mesa antes de aventurar um comentário:

- Isto é mais do que um simples abscesso.

- É o padrão nítido da infecção secundária. Podemos muito bem abri-la. O cautério, por favor.

O instrumento entregue ao coronel era uma alça de metal presa a um cabo isolado, ligado a um circuito elétrico que tornava a lâmina vermelha ao vivo no momento em que a enfermeira ligava o reostato. Sondando com cuidado, o cirurgião mais velho começou a usar a lâmina para isolar espaços sangrentos da superfície exterior do fígado sobre o abscesso principal, uma precaução essencial desde que não havia outra maneira de impedir uma hemorragia num órgão que não podia ser suturado.

Era um trabalho horrendo. Bruce sentiu pena quando viu o calafrio percorrer a enfermeira antes que ela pudesse afastar-se da mesa e do cheiro de carne queimada que flutuava no ar. Ele sentira a mesma náusea ao usar o cautério pela primeira vez. Da mesma forma que os rigores de uma amputação, a enucleação de um olho irreparàvelmente lesado, ou as técnicas maciças usadas para remover tumores malignos, eram partes do preço que o médico tinha de pagar para curar.

Neste caso, verificou-se logo que o preço seria, na melhor das hipóteses, proibitivo. Observando a lâmina cortar a parede de tecidos inflamados que revestiam a cratera letal, Bruce permaneceu ao lado com um manómetro de sucção e uma bacia até poder sifonar a última gota do fluido negro que enchia o abscesso. Sentiu profundo desânimo mesmo antes que um assistente pudesse medir o conteúdo da bacia. O laboratório já enviara o resultado do exame do esfregaço. Confirmava a primeira estimativa de uma infecção secundária causada por um dos mais virulentos estreptococos.

O chefe da cirurgia pôs de lado o cautério.

- Nós poderíamos sondar toda a área enquanto o temos aqui na mesa.

O sangue ainda fluía ligeiramente no momento em que Bruce tamponava suavemente a cavidade para controlar por pressão o sangramento até que a ação normal de coagulação assumisse o controle, estimulada pela transfusão que começara naquele instante. Apanhando outra seringa de agulha longa, o Coronel Miller explorou o resto do órgão em busca de focos adicionais de infecção - desde que abscessos desse tipo tendiam a multiplicar-se. Duas cavidades menores foram identificadas e sifonadas antes que ele deixasse a mesa.

Por essa altura, era claro que as possibilidades de Jimmie Lowell dependeriam de sua mocidade, de qualquer imunidade que tivesse adquirido durante o ano de ataque da infecção e da leve esperança do cirurgião de que a drenagem que acabara de terminar virasse os pratos da balança. A sondagem ulterior era impossibilitada pelo estado do doente. O anestesista avisara que subia a taxa de pulsação, dando origem já a uma segunda transfusão.

Os ombros de Miller pendiam de cansaço quando ele tirou as luvas.

- Duplicaremos a injeção de penicilina e vamos esperar pelo melhor - disse ele. - É o único recurso que ainda temos.

- Ficarei aqui até que tudo esteja terminado.

- Não há necessidade disso, Bruce. Você não tem um encontro no Campo Bolling?

- Eu o cancelarei, se desejar.

- Mantenha-o, de qualquer modo - respondeu o cirurgião mais velho. - Nós fizemos tudo o que era possível por este doente. Mas receio que menos do que o necessário.

Bruce não acreditara que a filha de um Senador pudesse voar até a Costa acompanhada apenas de uma empregada e sem um único amigo que fosse despedir-se. Viu a prova diante de si ao atravessar o hangar: Janet Josselyn contando as malas e correndo para abraçá-lo à sombra de um DC-3.

- Fiquei com receio de que você não viesse.

- Fiquei ocupado mais tempo do que esperava com uma operação. Quando vai partir?

- Dentro de cinco minutos.

Ele a manteve à distância de um braço, admirando-a com olhos que não podiam ocultar inteiramente o desejo. O beijo dela, reabrindo velhas feridas, havia-o advertido a pisar cuidadosamente em torno de mudos tabus.

- Quem é que está dentro do avião? Tenho certeza de que ouvi alguém cantando.

- Estou neste voo com um grupo de aviadores que se vai apresentar em San Pedro. - Janet ignorou o aceno de um oficial de rosto ousado que aparecera na porta do avião com um violão nas mãos. - Se eu puder acompanhar o Tenente Adams parece que cantarei durante toda a viagem.

- A sua combinação com Brodski está ainda firme?

- A menos que eu fracasse no teste.

- Dê-me seu espelho e eu lhe demonstrarei que isso é impossível.

- Obrigado, Bruce. Agora que você está aqui, sinto-me confiante novamente.

- Confiante, e não mais abandonada?

- Eu parecia abandonada quando você apareceu?

- Um pouco. É difícil dizer por quê... com vinte entusiásticos acompanhantes naquele avião e o melhor diretor da Costa Leste esperando para torná-la famosa. Há alguma remota possibilidade de que nos possamos encontrar novamente?

- Receio que não, se você continuar preso ao Scranton General.

- Você não voltará ao Leste antes do Ano Novo? Minha unidade será certamente ativada por essa ocasião para serviço na África.

- Na melhor das hipóteses, eu passarei pelo menos dezesseis semanas no estúdio.

- Então isto é realmente adeus.

Ele pronunciara as palavras em voz firme, sabendo que sua armadura continuava intata. Esperando uma reação apropriada de Janet, ficou abalado quando ela deu um passo inseguro em direção ao avião e, em seguida, voltou-se para ele com olhos úmidos.

- Você está odiando isto também, Bruce?

- Você sabe que estou.

- Este não é o lugar para dizer adeus. Sob a asa de um avião de transporte do Exército... com aqueles jovens selvagens lá dentro, cada um deles com um plano para seduzir-me.

- Confio em que você contrarie esses planos.

- Você não poderia realmente desertar e ir comigo?

- A perspectiva é tentadora... mas eu tenho apenas um passe de duas horas.

- Algo continua a separar-nos desde que nos conhecemos. Ou se chama Hal Reardon... ou Leo Brodski.

- Hal é o seu noivo, temporariamente ausente. Ele tornou possível esta viagem. Brodski é um mágico crente em si mesmo que está prestes a lançá-la numa grande carreira. Você devia ser grata a ambos.

- Sou, naturalmente. Mas isso não torna mais fácil este adeus.

O DC-3 aquecia os motores para decolagem quando o Tenente Adams reapareceu na porta do avião. Janet despediu-o com um encolher de ombros... e aconchegou-se apertadamente nos braços de Bruce.

- Nós, provavelmente, não nos encontraremos novamente até o fim da guerra - disse ela. - Posso dizer-lhe uma coisa muito importante?

- Desde que tenha a certeza de que devo ouvi-la.

- Foi preciso todo meu autocontrole, mas consegui evitar apaixonar-me por você. Mas, sapeca como sou, desconfio que você teria gostado de apaixonar-se por mim...

- Alegraria por acaso a sua viagem se eu reconhecesse que suas suspeitas têm fundamento?

- Prometa-me que se desapaixonará, Bruce. É melhor para nós ambos.

- Isso é pedir muito.

- Mas não demais... de sua parte. - Beijou-o rapidamente antes que ele pudesse falar novamente e subiu correndo os degraus da porta do avião. Abstendo-se de detê-la, ficou ali durante algum tempo enquanto o co-pilôto a fechava.

Pensara em esperar no hangar até que o avião de Janet decolasse. Em vez disso, dirigiu-se imediatamente para o jipe que o trouxera do parque de estacionamento dos visitantes. A partida do DC-3 foi apenas um rugido entre outros nas várias congestionadas pistas. Ele não conseguiu nem mesmo forçar-se a levantar a vista quando a sombra do avião passou por sobre sua cabeça.

Voltou-lhe um pouco de serenidade mental ao procurar a pista onde deixara o carro... embora a voz não fosse a mesma quando agradeceu ao auxiliar pela orientação e tenteou os bolsos da jaqueta, procurando a chave... Janet, pensou, dera-lhe o melhor prémio de consolação que pudera oferecer. Fora bastante bondosa para recuar apressadamente depois, deixando-lhe uma segura rota de escape. Era tempo de recordar que ele não era mais um rapaz romântico, que Hal Reardon ganhara o concurso, cujo desfecho jamais estivera em dúvida.

Abria a porta do carro quando ouviu alguém chamá-lo da pista mais próxima. A voz provinha de um seda Cadillac estacionado a duas vagas distantes. Somente depois que o homem que estivera ao volante saiu para o espaço intermediário, reconheceu Bruce que encarava Hilary Manning, o conselheiro especial do Deputado Jake Sanford.

O advogado, observou Bruce, não usava chapéu, embora uma coifa de cabelos escuros se colasse a seu crânio como laca. Naquele dia, ele abandonara o trajo de passeio e o substituíra por calça esporte ,e uma jaqueta Norfolk. As roupas informais em nada lhe diminuíam o encanto sinistro. Visto de perto, seus olhos sugeriam uma barracuda nadando à espreita.

- Acho que não são necessárias apresentações, Major. Vimo-nos recentemente no gabinete do Deputado Reardon.

- O que é que o senhor está fazendo aqui? - Bruce lamentou imediatamente a brusquidão do tom de voz. Por mais que tentasse,.sabia que não poderia jamais ter a segurança de Manning.

- Perguntei pelo senhor no hospital... e fui informado de que o senhor viera ao Campo Bolling. Pareceu-me lógico segui-lo. Afinal de contas, uma vaga vazia de estacionamento é um lugar ideal para uma conferência. Ou, devo dizer, uma discussão sobre seu futuro Imediato?

- Por que deveria meu futuro interessá-lo, Dr. Manning?

- Interessa ao meu cliente, o Deputado Jacob Sanford. Ele pediu-me para combinar um encontro.

- Eu não tenho desejo algum de encontrar-me com Jake Sanford.

- Compreendo sua relutância, considerando-se a comissão que ele lidera no Congresso. Mas eu o aconselharia a não recusar.

- O senhor está para me entregar uma citação? - perguntou-lhe Bruce. - Se foi por isso que me seguiu, estou pronto para recebê-la.

Mais uma vez, o advogado ignorou-lhe a brusquidão.

- A partir de agora, o Sr. Sanford nutre a esperança de que o senhor lhe responda às perguntas em sessões privadas.

- Que tipos de perguntas?

- Ele está profundamente perturbado, Major... com suas inclinações esquerdistas. Ele julga que o senhor devia esclarecer sua atitude.

- De que modo Jake Sanford define um esquerdista?

- O senhor negaria que nutre acentuadas simpatias pela causa comunista?

- Eu não sou comunista. Nem tive o menor contato com o partido.

- Nem mesmo na Espanha?

- Fui à Espanha como cirurgião, para salvar vidas. Esse foi o meu único motivo.

- As nossas informações são diferentes. Quando o senhor aceitou a patente, o FBI levantou certos fatos daquela visita.

- Fatos... ou suposições?

Com um encolher de ombros, Manning ignorou a distinção.

- Desde que recebemos o relatório, ele foi confirmado por dois acusadores separados.

- Quem?

- Não tenho autorização para revelar nomes.

- A Constituição não garante, por acaso, o direito do cidadão de conhecer seus inimigos... e enfrentá-los?

- Ninguém põe em dúvida seus direitos, Major Graham. Como acabei de dizer, o meu cliente preferiria muito mais um depoimento voluntário.

- Suponhamos que eu me recuse? Significará isso uma citação... e uma publicidade espetacular?

Os olhos de Manning - Bruce jamais teria certeza se eram verdes ou amarelos - continuaram a estudar a vítima tão impessoalmente como o carrasco que não estendeu ainda a mão para o machado.

- Não seria mais prudente encontrarmo-nos a meio caminho?

- Por que deverei responder até que tenha consultado um advogado?

- Os advogados não constituem grande ajuda nesta situação.

- A menos que estejam trabalhando para Sanford?

- O argumento tem peso - reconheceu Manning. - Mas, antes que o senhor tome uma decisão, é honesto dizer que temos provas suficientes para provocar-lhe a baixa do Exército... se decidirmos usá-las.

- O senhor pensa que eu sou comunista?

- O que eu penso não tem importância. Serviria para convencê-lo se eu indicasse quais são os acusadores?

- Não saberei até que o senhor tente - disse Bruce. - Até agora, o senhor comportou-se como um chacal que receia a presa. Naturalmente, o senhor tornou-me curioso.

Ofendera-o intencionalmente, esperando que Manning o ignorasse. No momento em que o advogado voltou ao carro para apanhar uma pasta de documentos, ele disse a si mesmo para evitar qualquer manifestação de emoção. O fato de que Manning estava prestes a indicar os caluniadores constituía uma forte indicação de que a barganha era possível.

- Seu primeiro acusador - disse o advogado - foi um colega do Acampamento Bruckner.

- Major Pritchett?

- O elenco de acusações inclui conduta imprópria de um oficial e opiniões radicais incompatíveis com seu posto no Exército. Ele está disposto a depor, se assim desejarmos.

- Pritchett foi rebaixado para um campo de treinamento no Oeste. O rebaixamento foi consequência de um choque comigo devido a sua incompetência. Essa calúnia é motivada por ressentimento, nada mais.

Manning sorriu, pela primeira vez... se aquela contorsão de lábios finos que lhe deformara o rosto podia ser chamado de sorriso.

- Sabemos que a credulidade pode constituir um problema. Resta o fato de que o serviço prestado pelo senhor na Espanha no lado errado - devia tê-lo impedido de receber uma patente.

- Na opinião de quem? De Jake Sanford?

- Seja como for, julgamos que prova adicional de suas simpatias esquerdistas serão valiosas. Ontem apenas obtivemos a prova... de outra testemunha.

- Do Coronel Otis Kirkland?

O advogado tirou uma segunda folha de papel da pasta.

- O Coronel Kirkland declarou que o senhor manifestou tais simpatias em sua presença. Dificilmente o senhor poderia pôr em dúvida a honestidade dele.

- Kirkland e eu tivemos uma discussão, que ele perdeu. Ele é um idiota e eu lhe disse isso na cara.

- O Coronel Kirkland é um dos cirurgiões mais preeminentes de Little Rock. O senhor terá dificuldade em fazer com que cole sua estimativa sobre ele.

- Significa isto que Sanford está planejando condenar-me... antes que eu apareça no tribunal?

- Isso poderia acontecer, como nós ambos sabemos.

- Faça o pior que pode, então, se quer usar essas acusações forjadas. O que é que falta para discutir?

- O seu caso não está inteiramente encerrado - disse Manning. - Há uma escapatória... se o senhor quiser ouvir a voz da razão.

- Como poderia seu cliente deixar-me continuar a viver... se ele se sente dessa maneira?

Mais uma vez, o advogado encolheu os ombros diante da zombaria. O sarcasmo, como os insultos, aparentemente não lhe fazia mossa.

- Ele espera que o senhor se corrija, naturalmente. Incluindo o hábito de insultar oficiais superiores. Suponhamos que concordemos em deixá-lo em paz... na dependência de sua boa conduta. O senhor nos ajudaria a condenar Abram Schoenfeld?

O oferecimento foi feito inesperadamente. Isto, também, fazia parte do método de Sanford. O comparecimento de Abram Schoenfeld perante a Comissão de Atos Subversivos da Câmara terminara numa das poucas derrotas sofridas pela dupla Sanford-Manning. O deputado fizera o possível para conseguir uma condenação. Houvera indícios de revelações sinistras nas manchetes dos jornais, onde a maioria de suas vítimas fora julgada antecipadamente. Testemunhas sem importância haviam sido caçadas; acusações sem fundamentos foram apresentadas como fatos... embora o cardiologista, na ocasião cidadão naturalizado no gozo de todos os direitos, tivesse permanecido firme como testemunha durante a provação. No fim, graças ao apoio unânime dos colegas de Lakewood e dos protestos de uma imprensa e de um público ultrajados, ele deixara as audiências sem que coisa alguma tivesse sido provada contra ele.

- Seu chefe é um mau perdedor, Manning - disse Bruce, finalmente. - De alguma maneira, eu não pensava que ele pudesse descer a tanto.

- A nossa investigação a respeito de Schoenfeld falhou devido à prova insuficiente. Nós não apenas acreditamos que ele continua a manter contato com Moscou... mas que está disposto a servir como espião logo que a guerra terminar. O fato de não estar no Exército constitui um ponto negativo contra ele. Eu diria o mesmo a respeito das entrevistas pacifistas que ele deu antes de Pearl Harbor, de sua recusa em falar em comícios para venda de bónus de guerra e de seu livro, A Imoralidade da Guerra...

- Acontece que o Dr. Schoenfeld é velho demais para o serviço ativo. As opiniões que sustenta são próprias... e as pesquisas que ele hoje executa em Lakewood são insubstituíveis. Os senhores não têm a mínima possibilidade de prejudicar-lhe a reputação.

- Pelo contrário, nossas possibilidades são excelentes. Coce o cérebro do americano comum e encontrará desconfiança da Rússia. Traga-me prova de que o seu professor manteve amizades na terra nativa, e nós teremos a cabeça dele.

Bruce hesitou enquanto controlava a necessidade de enfiar o braço no queixo do advogado. Acabara de pensar numa maneira de superar Sanford em esperteza. Arriscado como pudesse ser, parecia, ainda assim, valer a pena.

- Exatamente o que quer de mim? - perguntou.

- O senhor esteve com Schoenfeld em Barcelona. Enquanto esteve lá, estamos certos de que ele manteve contatos com comissários Políticos que serviam no Estado-Maior legalista. Alguns desses homens voltaram à Rússia, onde ocupam postos importantes. Dê-me pelo menos um dos nomes. Nós faremos o resto.

- Vamos dizer que eu concorde. O que eu ganharia com isso?

- Eu já lhe disse. Nós ignoraríamos seus próprios deslizes e confiaríamos em que o senhor se corrigiria.

- E se eu recusar?

- O senhor será convidado a depor perante a comissão plena. Logo que esses deslizes sejam revelados, é quase certo que o senhor será desligado do Exército.

- Por que servi na Espanha... e ousei levantar a voz para Kirkland? O senhor jamais conseguiria vencer essa.

- Não nos obrigue a fazer um teste, Major. Mesmo que não possamos rebaixá-lo, poderemos fazer pressão sobre o Cirurgião Geral. Poderíamos fazer com que sua atual nomeação fosse revogada. Poderíamos fazer com que fosse destacado para um depósito de lixo que o faria desejar estar ainda nos dias de interno. Acho que o senhor julgará que vale a pena estudar as alternativas.

- Quanto tempo tenho para estudá-las?

- O Deputado Sanford recebê-lo-á depois de amanhã... em seu gabinete no Capitólio. Onze horas será hora conveniente?

- Servirá. - Bruce notou que Manning estava confuso com a rapidez de sua aceitação. Era tempo de deixar o animal de presa antes que ele tivesse as suspeitas realmente despertadas. - A nossa conversação será informal?

- Informal... e sem registro.

- Eu imponho apenas uma condição. A menos que seja atendida, eu não comparecerei. Hal Reardon deve estar presente, também. Quero que ele ouça tudo o que eu disser.

Manning pensou durante um momento.

- O Deputado Reardon e meu cliente têm suas diferenças. Mas, de modo geral, sustentam opiniões idênticas sobre a conduta da guerra. Ele será bem-vindo... caso tenha tempo.

- Providenciarei para que ele tenha tempo - disse Bruce. Diga a Sanford que estou ansioso para conhecê-lo pessoalmente. Ele respira ar ou enxofre?

- Uma mistura de ambos, dependendo da ocasião - disse Manning com outro daqueles rapidíssimos sorrisos. - Eu darei a ele seu recado, Major Graham. Entrementes, posso desejar-lhe paz com sua consciência?

O carro de Estado-Maior que Bruce tomara emprestado possuía um poderoso motor. Uma vez fora de Washington, manteve uma velocidade de cento e vinte quilómetros horários a fim de chegar aos limites de Baltimore no meio da tarde.

Numa bomba de gasolina a alguns quarteirões da Escola de Medicina de Lakewood deu dois telefonemas. O primeiro à secretária de Hal a fim de certificar-lhe do encontro que havia combinado com Manning. O segundo, ao Coronel Miller, pedindo-lhe o prolongamento do passe durante algumas horas... desde que assuntos pessoais urgentes haviam-no levado até Baltimore.

Na grande rotunda do Lakewood Hospital, começara exatamente naquele momento a procissão costumeira de enfermeiras em aventais engomados e capas de cores variadas à medida que mudavam as turmas nas enfermarias. Bruce parou no limiar para respirar o ar conhecido, a que nenhum outro do mundo se assemelhava, e levantar novamente a vista para a enorme estátua de Cristo no poço da escada circular. Era difícil acreditar que haviam passado apenas alguns meses desde que pisara os mesmos degraus como assistente de pesquisas de cirurgia. Não ficou excessivamente chocado quando a recepcionista no saguão perguntou-lhe o que queria.

- Tenho um encontro com o Dr. Schoenfeld.

- O nome, senhor.

- Major Bruce Graham.

- Naturalmente, Major. Devia tê-lo reconhecido. Tenho certeza de que o senhor conhece o caminho.

O anexo cirúrgico era um dos edifícios mais novos de Lakewood, um alto retângulo de aço e vidro. Schoenfeld ocupava um gabinete privado no andar superior: o laboratório, onde amiúde trabalhava o dia inteiro, ficava no andar superior. Havia um elevador privativo entre eles e um pequeno quarto adjacente, o que lhe permitia descansar nas horas mais estranhas enquanto um dos experimentos estava em andamento. Viu a porta aberta ao percorrer apressadamente o corredor, um sinal seguro de que a secretária do médico já deixara o serviço.

O médico percorria o gabinete, tirando baforadas de um dos intermináveis charutos que pareciam quase um prolongamento da face barbada. com as roupas que vestia e com as mãos que pareciam presuntos, parecia mais talhado para manejar um arado do que um bisturi. O berro de boas vindas e o forte abraço com que recebeu o antigo aluno não ocultaram, porém, a preocupação que lhe luzia nos olhos.

- Você trouxe encrencas, Bruce - disse. - Eu as percebi pela sua voz quando você telefonou. Agora, tenho certeza.

- Foi muita bondade sua reservar-me uma hora. Eu sei como o senhor anda ocupado.

. - Jamais estou ocupado demais para ouvir os problemas de um antigo estudante, doutor.

A formalidade, compreendeu Bruce, era o tom que Schoenfeld reservava para as crises. Procurando um preâmbulo conveniente, dirigiu-se até a janela do escritório, de onde vislumbrou o passeio arborizado, as jaquetas brancas dos internos de folga entre as turmas, um local repleto de recordações.

- O senhor talvez seja a pessoa que está em dificuldades. Não terei certeza até saber exatamente quais as intenções de Jake Sanford.

- Então a víbora saiu novamente do lamaçal?

O cardiologista não o interrompeu enquanto Bruce descrevia o choque com Kirkland, a denúncia do Coronel e a meia hora passada com Manning.

- Certamente você imaginou que isso aconteceria?

- Eu não podia acreditar que fosse traição discutir política do pós-guerra com outro oficial... especialmente quando a conversa era feita com acompanhamento de bebidas. Agora, aprendi.

- Deixe-me ver se entendo realmente seu dilema. O advogado de Sanford ofereceu desistir da acusação se você lhe fornecer certas informações a meu respeito. Você lhe disse que não tinha informação alguma a dar?

- Não, inteiramente. Fingi que deixava a proposta em aberto até que pudesse conversar com o senhor. - Bruce interrompeu-se no momento em que Schoenfeld se afastou. A cabeça maciça, de linhas nítidas como uma moeda romana, curvara-se abruptamente; a cinza do charuto caíra, sem que ele percebesse, sobre o colete meio abotoado. Isso era suficiente para convencer o visitante de que uma cena daqueles meses na Espanha, evocada pelo oferecimento de peita de Manning, exigia explicação.

- Que recompensa têm eles em mente?

- Fui escolhido para fazer parte de um dos primeiros grupos cirúrgicos móveis. Se eu fizer o que eles querem, Manning deixará que a designação vá até o fim. Em caso contrário, dizem que me expulsarão do Exército.

- Isso é algo que Lakewood não permitirá.

- Talvez não, senhor. Mas, pelo menos, eu terminaria inspecionando latrinas em algum lugar esquecido de Deus. Isso já me aconteceu uma vez.

- O que é que aconteceria se eles o exilassem... para esse lugar esquecido? Pediria demissão do Exército e voltaria a Lakewood.

- Eu preferiria lutar.

- Você é urgentemente necessário lá embaixo. No próximo ano, se tudo correr bem, temos esperança de compreender algumas das anormalidades mais simples do coração. Talvez mesmo efetuar uma cura. A Tetralogia de Fallot, por exemplo.

- Isso seria um verdadeiro milagre, senhor.

- Milagres ocorreram antes, após numerosos fracassos experimentais. Pense só no que isso significaria em nossas enfermarias pediátricas, se pudéssemos corrigir a cianose em criancinhas, melhorando a circulação pulmonar. com sua ajuda, poderíamos atingir essas metas. Se não durante a minha vida, pelo menos durante a sua.

- Não posso permitir que Sanford me chame de covarde. Schoenfeld suspirou profundamente e apagou o charuto.

- O que acabei de dizer foi uma tentativa de tentação... sabendo antecipadamente que fracassaria. Enquanto isso, esse Deputado demente está pousado no seu ombro, como Sinbad, o Marujo. Desde que sou em grande parte responsável por tê-lo posto ali, estou disposto a enxotá-lo.

- O senhor não tem culpa. Afinal de contas, eu me apresentei voluntariamente para a equipe que o senhor levou à Espanha.

- O seu serviço na Espanha constituiu prova de seu idealismo... o que nos leva a um amargo fato. Você se teria sentido muito mais à vontade esta tarde se eu pudesse lhe dizer que não mantive contato algum com os russos?

- Não nego isso.

- ”Mas como posso eu... quando tenho certeza de que você me observou fazer um desses contatos?

Bruce voltou-se para a janela procurando esconder as lágrimas que lhe enchiam os olhos. Não esperara esse calmo reconhecimento do homem que fora seu modelo desde o primeiro dia em Lakewood.

- O lugar chamava-se Fonda Roja - disse Schoenfeld. - A ocasião, um mês antes de deixarmos a Espanha. O homem era Ivan Susov.

A calma declaração pôs novamente em foco a cena - a esfumaçada adega na Ramblas de Barcelona, o tonitruar da guerra do lado de fora, a multidão de soldados que procurara refúgio do destino incontornável... Como os demais, Bruce roubara uma meia hora de seus deveres para beber um copo de vinho. Num canto da mesa naquela noite, Schoenfeld mantivera uma profunda discussão com um homem fardado de legalista... embora as palavras ocasionais que lhe chegaram aos ouvidos fossem pronunciadas em russo.

- Quando levei a equipe hospitalar à Espanha meus motivos não eram inteiramente altruístas - disse Schoenfeld. - Eu planejara encontrar Susov... ou seu equivalente. O que é que você sabia dele na ocasião?

- Apenas que ele era mais ambicioso do que a maioria dos comissários.

- Atualmente, Susov é membro do Soviete Supremo. Em Barcelona, eu tinha a esperança de usá-lo como meu intermediário.

- Mas certamente o senhor jamais foi um deles.

- Fui contra a revolução desde o início - disse Schoenfeld. -- Como você sabe, fugi da minha terra nativa para clinicar nos Estados Unidos... onde tive sorte de tornar-me cidadão. Meu irmão não teve tanta sorte. Negócios de família mantiveram-no em Kiev até começarem os expurgos. Naquela ocasião, soube que ele estava prestes a ser denunciado. A reunião na Fonda Roja fora combinada para transferir um recibo de cinquenta mil dólares num banco suíço. Em troca do recibo, Susob deveria providenciar a fuga do meu irmão.

- Por que o senhor não contou essa estória à comissão de Sanford?

- Eu tinha outros parentes em Kiev. Se eu tivesse contado a verdade, ela teria sido estampada nos jornais americanos, juntamente com o nome de Susov. Na qualidade de membro prestigioso do Partido, ele teria sido forçado a destruí-los... se não por outro motivo, para convencer os camaradas que estava sendo vítima de uma conspirata judaica.

- Seus parentes estão ainda vivos?

- Foram eliminados quando Hitler invadiu a Rússia. Ninguém, senão eu, sofrerá agora por... um risco que corri em Barcelona.

- O senhor não sofreria... se toda a estória fosse divulgada.

- As coisas não são tão simples assim, Bruce. Se eu a contasse agora, anos após o fato, Susov ainda assim a negaria. Arranjaria testemunhas para provar que eu sou... o que Sanford pensa que eu sou. Um antigo agente russo que, desde então, mudou de lado.

- Qual o próximo passo, então?

O cardiologista sentou-se à escrivaninha e escreveu algumas palavras numa folha de memorando. Ao recebê-la, Bruce notou que continha o nome e o endereço do café de Barcelona, o nome do comissário e a data do encontro.

- Eis sua liberação, doutor. Use-a, com os meus melhores votos.

- O senhor pensa que eu daria isso a Manning?

- Que mal pode me fazer?

- O senhor será chamado de comunista. O tipo que se escondeu quando os nazistas atacaram.

- Eu sobreviverei à calúnia... e manterei meu atual cargo em Lakewood. A ciência está acima de ideologia. Sou valioso demais em minha especialidade.

- A sua reputação é igualmente valiosa. - Bruce rasgou em pedaços a folha do memorando e lançou-os na cesta de papéis usados. - Não permitirei que Manning o calunie... nem mesmo por insinuação.

- Manning talvez não use a calúnia - disse Schoenfeld. - Isto poderia ser um meio para promover seus interesses, através de chantagem. Ele usou-a antes.

.- Nem mesmo Sanford tomaria tal risco.

- Não diretamente, talvez. Fui informado de que o dinheiro excuso dele provém de fontes mais próximas de casa. Manning é advogado em Chicago. Tenho lá amigos altamente colocados. Homens cujos filhos operei e que se sentem gratos. É bem possível que eles dessem negócios à firma de advocacia de Manning para proteger-se.

- O senhor está fazendo Chicago parecer a Florença dos Medíeis.

- Chicago não é pior do que qualquer outra cidade. Nem jovens advogados inteligentes que utilizam uma sublevação mundial para promover suas carreiras. Não menospreze seu país, Bruce... porque descobriu térmites nas fundações. Milhares de médicos do Exército estão realizando o trabalho para o qual se adaptam melhor... e fazendo-o bem. Você deve ser um deles. Estes anos de guerra darão início a um dos períodos mais produtivos na história da medicina. Quero ver seu nome entre os pioneiros.

- Mas não posso colocá-lo nesse lugar, traindo-o.

- Mesmo que Manning o chame ao banco de testemunhas?

- A Espanha tornar-se-á subitamente nebulosa em minha memória. Descobrirei que não consigo lembrar-me de nomes, datas... ou das pessoas que lá encontrei.

- Isso poderia implicar em desacato ao Congresso. Eles poderiam enviá-lo à prisão.

- Ainda assim, prefiro lutar. Obrigado novamente, senhor... por ter tentado salvar-me. Vê-lo-ei novamente quando a fumaça passar.

- O seu lugar estará à espera. - A voz de Schoenfeld não estava mais tão firme quando envolveu a mão de Bruce em sua enorme pata. - Posso perguntar-lhe qual seu plano de batalha?

- Não foi aprimorado até agora. Mas asseguro-lhe de que será o que os franceses chamam de guerre à outrance.

Caíra já a noite quando Bruce chegou ao Scranton General. Precisou de duas horas inteiras para pôr em dia o trabalho rotineiro da enfermaria. A ficha médica de Jimmie Lowell confirmava o que temera. Mesmo com a operação, o paciente piorara cada vez mais.

Antes de meia-noite, o Sargento entrou em coma - parte da estranha depressão de todas as funções vitais ambiguamente denominada de ”morte do fígado”. Bruce dedicou-lhe horas adicionais num último e inútil esforço para inverter a tendência, em seguida às transfusões que o Coronel Miller determinara com plasma sanguíneo e injeções de córtex de supra-renais. Quase ao amanhecer, aplicou uma última injeção de penicilina, sem resultado. O paciente estava in extremis. Como último ato, consolou como podia a mãe dele, uma pequena mulher de fisionomia de traços bem delineados na casa dos sessenta, que viera de avião, na véspera, de Boston.

Estavam ambos juntos quando Jimmie Lowell passou da vida para a morte. Cansado embora como estava, o cirurgião foi até o gabinete e chamou o Post, de Washington, anunciando a morte do Sargento e informando ao editor da noite que a Sra. Lowell consentira em dar uma entrevista a Shane McLendon antes de voltar a Concord com o cadáver do filho.

Ao acordar, Bruce observou que os jornais da tarde já publicavam estórias sobre o Sargento Lowell, frisando os ferimentos recebidos em Pearl Harbor. A maioria dos jornais omitia qualquer referência ao Partido da Paz - a notícia que criara da noite para o dia uma sensação na coluna de Shane. Isto, compreendeu, era outro exemplo das pressões crescentes da guerra. As primeiras páginas estavam congestionadas com despachos enviados da recém-aberta frente do norte da África. Não havia espaço para a esperança de que a guerra pudesse, algum dia, ser tornada obsoleta.

Shane telefonara durante a noite, agradecendo-lhe pela entrevista que ele combinara com a Sra. Lowell. Deixara o número de seu apartamento em Washington e pedira que ele a chamasse às seis. Ele, porém, dobrou o papel com o número e colocou-o na carteira, sem usá-lo. Shane, pensou ele, trabalhara demais como sua confidente: a aventura na qual embarcaria na manhã seguinte constituía um esforço isolado, figurando Hal como cúmplice inocente. Ele aceitaria sozinho as condulências.

No jantar na cafeteria, o General Miller levou a bandeja para a mesa de Bruce.

- Nós fizemos o que foi possível pelo rapaz - disse.

- O caso provavelmente estava perdido desde o início. Mas, ainda assim, tive ódio de perdê-lo.

- O Sargento Lowell tinha ideias para um mundo melhor - disse Miller. - Eu, pelo menos, respeitava-as. Talvez ele tenha mais sorte do que pensa... deixando-nos com suas esperanças intatas.

- Você não acredita num mundo melhor quando esta guerra terminar?

- Olhe bem o nosso país, Bruce. Tente vê-lo através dos olhos dele; se ele tivesse começado a pregar aquele credo como civil. Ele teria partido o coração sem utilidade alguma.

- Os civis são tão maus assim?

- Eu conversei com centenas de Jimmie Lowells desde que entramos na guerra. Um soldado é ferido, talvez condecorado... pelo menos, com o Coração Púrpura. Em primeiro lugar, vai para casa, onde é herói durante um dia. Um pouco depois, descobre que os heróis podem ser maçantes para os parentes e para si mesmos. Logo depois, recebe sua cota de dificuldades - horas de trabalho nas fábricas de defesa, racionamento, impostos e vendedores de bónus de guerra. Se for um filósofo, ele, com um encolher de ombros, deixará que passe a tempestade de areia. Dirá a si mesmo que é suficiente estar com a namorada, a esposa... ou apenas vivo. Mais tarde ainda, quando a filosofia começa a evaporar-se, ele começa a perguntar-se se vale a pena a vida na frente interna.

- Eu não acredito que Jimmie se tivesse transformado num pessimista.

- Basicamente, é uma questão de contrastes - disse Miller. O soldado comum arrisca a vida por aquilo que o bem protegido amigo chamaria de milho para os pintos. Quando vai à cidade com os amigos, ele gasta mais em carne comprada no câmbio negro do que ele ganha num mês. Suponhamos que ele volte para casa com uma mão artificial. Ou uma lâmina de tântalo no crânio... e dores de cabeça dilacerantes, que não passam. Por que deve ele dar-nos parte de seu corpo quando operários industriais e empregados burocráticos nada dão? Por essa ocasião, basta um passo para perguntar-se se não deve absolutamente voltar.

- A maioria volta, apesar disso.

- De fato, Bruce... para um exame final no Scranton General ou em qualquer outra parte. A lesão foi feita, mesmo que possamos curá-la. Posso mostrar-lhe casos nos arquivos. Homens que julgamos curados e que mandamos de volta às unidades... apenas para vê-los voltar ainda piores do que antes.

- Suponhamos que tivéssemos salvo Jimmie Lowell. O senhor Pode imaginá-lo como um doente mental?

- Provavelmente, não. De qualquer modo, a questão é bizantina. Depois de amanhã vão sepultá-lo nas terras da família em Concord - um membro de sua geração que se comportou como os antepassados. Você sabe o que a mãe dele me disse hoje... antes de reclamar o corpo? Graças a Deus meu filho fez o que podia pelo seu país.

- Tinha ela razão?

- Penso que sim, Bruce. No lugar dele, eu preferia ser um herói morto.

- Eu não posso subscrever suas sombrias opiniões.

- Talvez eu as retire, depois de conhecermos os resultados. Você não pode negar que a situação é grave... com a guerra mal começada. Não tenho em mente as Seções Oito. Refiro-me aos rapazes americanos decentes que sobrevivem ao combate apenas para ter o espírito esmagado após o primeiro contato real com o lar.

- Os hospitais de veteranos têm mais do que sua cota agora - disse Bruce. - Eu também conheço as estatísticas.

- Nós lhe damos atebrina para malária. Combatemos a febre amarela e a cólera com novas vacinas... e consertamos corpos com uma percentagem de recuperação que não era sequer sonhada na I Guerra Mundial. Mas temos ainda de encontrar um tónico que restaure o espírito, uma vez tenha ele colidido com a cupidez humana - O Coronel levantou-se, deixando a refeição pela metade. - Você está de folga no fim-de-semana. Em seu lugar, eu tomaria um pileque homérico.

A coluna de Shane sobre o Sargento Lowell apareceu no Post de domingo, como Bruce esperava.

Constituía uma comovente homenagem. Mais uma vez, a autora endossava-lhe o plano de paz mundial. Desta vez, contudo, soava uma nota de reportagem direta ausente na coluna anterior - que fora, de certa maneira, um apelo por um despertar moral. Shane falava em termos calorosos da Sra. James Lowell Sénior e da orgulhosa maneira como ela aceitara a perda. A coluna mencionava a crónica da família Lowell em todas as guerras americanas; citava a inscrição que a rríãe de Jimmie escolhera para a lousa... Como aqueles sentimentos bem delineados, a prosa de Shane parecia um longo necrológio. O fato de ter sido colocada entre os editoriais resumia-lhe o menor valor jornalístico quando comparado com o ritmo dos acontecimentos no exterior.

Bruce leu a coluna no táxi que o levou à Colina do Capitólio, onde combinara avistar-se com Hal antes do encontro com Jake Sanford. Um elemento vital da reunião estava a seu lado no táxi, envolvido na capa militar. Comprara-o em Baltimore, na loja de ótica onde adquirira seu primeiro microscópio. Feitos os preparativos, sentia-se estranhamente calmo. O fato de domingo ter sido chuvoso, pensou, constituía um bom sinal. Pelo menos tornaria natural a capa de chuva quando entrasse no covil do inimigo.

Hal percorria em passadas a ante-sala deserta no momento em que o cirurgião bateu à porta apainelada de vidro. Ele saiu para o corredor com um rápido gesto de advertência.

- Nós estamos um tanto em cima da hora - disse ele. - Jake ficará furioso se você se atrasar um minuto para o encontro. Nesta manhã não fará mal algum que ele cozinhe um pouco.

- Eu estava com a esperança de que você chegasse mais cedo. Você vai precisar de alguns conselhos.

- Quando marquei este encontro - disse Bruce - eu lhe contei que queria uma testemunha e nada mais. Os métodos de Sanford são conhecidos. Ele não tem ideia dos meus métodos, de modo que começo com uma vantagem.

- Se você está pensando em levar a coisa na bruta, é melhor esquecer isso.

- Estranho como pareça, é exatamente assim que eu pretendo agir.

- Jake dispõe do poder da citação. Não aprenda à sua própria custa. - Hal já apressava Bruce pelo corredor até um elevador à espera. - É verdade que você conversou com Manning?

- O chacal-chefe e eu tivemos uma longa escaramuça.

- Isto significa que você foi chamado aqui para uma combinação. Se estiver disposto a ceder um pouco, poderá sobreviver.

- Vê-los-ei no inferno antes de ceder uma polegada.

- Mantenha essa atitude e quem acaba no inferno é você - disse Hal. - Dê-me alguma ideia do que pretende fazer e tentarei acalmar Jake.

- Pelo menos desta vez, eu falarei. Você não precisa nem mesmo tomar partido.

Hal levantou ambos os braços num gesto de resignação no momento em que o elevador se abriu com ruído.

- Aqueles que vão morrer te saúdam?

- Você não precisa morrer comigo. Lembre-se apenas das minhas últimas palavras. Elas poderão interessá-lo.

Pararam diante de uma porta imponente no último andar do edifício de escritórios da Câmara. De lado a lado do painel, altas letras douradas identificavam o gabinete como do Deputado Jacob Sanford. O portal constituía prelúdio apropriado à sala interna, uma antecâmara cuja nudez ia até o linóleo de couraçado no chão. Ao lado de uma porta interna havia uma pequena mesa de metal, de onde o recepcionista que gritara permissão para entrar olhou-os sorumbàticamente. Bruce não esperara encontrar guardada a entrada do covil do dragão. Ficou Interdito quando o homem se levantou para tomarlhe a capa.

- Eu a guardarei comigo.

- O major nem arranca olhos nem morde, Clint - disse Hal. - Garanto-lhe que ele não traz armas ocultas. Por que é que não tira uma folga?

O guarda, um brutamontes desalinhado que poderia ter saído de uma das cortes de justiça rural onde trabalhara Sanford, recebeu as amigáveis palavras com uma carranca ainda mais sombria antes de sair. Hal certificou-se de que a porta exterior fora fechada antes de dizer a Bruce num murmúrio.

- Clint não teria jamais saído se isto não fosse realmente particular. Talvez você tenha sorte, afinal de contas.

O gabinete interno tinha um alto teto abobadado como a ante-sala. A luz focalizava-se sobre a escrivaninha senhorial onde Sanford parecia absorvido no estudo de algumas notas, aparentemente inconsciente da presença dos visitantes. Turista em Washington certa ocasião, Bruce observara-o atuar na Câmara. A distância parecia a sátira caseira do político do interior, de voz estentórea e gestos largos. Naquele momento, contra um fundo de livros de direito, olhando por trás de óculos de aros de prata que tremiam ligeiramente enquanto lia, ele parecia muito menos imponente do que nas fotografias: o crânio, com raros cabelos avermelhados nos lados, parecia estranhamente frágil àquela luz. Quando ele falava era difícil ligar esse rústico nanico com a sala da comissão no andar térreo... onde seus caprichos paranóicos podiam assumir a coloração da justiça, sem oportunidade de apelação.

- Por favor, sente-se, Major. Você também, Hal. Foi muito gentil de sua parte vir também.

Dizendo a si mesmo para mover-se lentamente, Bruce tomou a cadeira dos visitantes em frente à escrivaninha e pôs a capa dobrada sobre os joelhos. Hal escolheu um sofá contra uma parede. Não se ouviu som na sala, salvo o arranhar da pena de Sanford. Ao falar novamente, ele conservava a voz ainda cortês.

- Bem, Major Graham? Meu advogado contou-me que o senhor está aqui para confessar seus pecados.

- De que pecados sou acusado?

- Tenho certeza de que Manning informou-o a esse respeito. Por que perder seu tempo, ou o meu? Ou do Deputado Reardon?

- Se isto inicia o interrogatório, não devíamos começar dizendo que a reunião está sendo gravada?

- Naturalmente que está sendo gravada. Tenho um gravador na gaveta desta mesa e vou ligá-lo dentro em breve. Dê-me respostas correias, Major. O senhor nos poupará a ambos uma viagem até o Capitólio.

- O senhor está-me pedindo que eu me condene?

- Sugiro que o senhor procure salvar o couro, enquanto pode. O Deputado Reardon explicará o que eu quero dizer com isso.

Hal falou cansadamente do sofá:

- Eu já pedi a ele que entrasse num acordo, Jake.

- O senhor jamais receberá melhor conselho - disse Sanford. Diga-me o que eu quero saber e seus problemas terminam. De outra maneira, seu julgamento já começou.

- Como é que posso estar sendo julgado se não fui notificado de minha prisão?

- O senhor serviu aos comunistas na Guerra Civil Espanhola. Temos depoimentos que mostram que o senhor é ainda subversivo. O senhor admite que essas acusações não apenas o envolvem... mas também o homem que o conduziu à Espanha?

- Penso que o senhor se refere ao Dr. Abraham Schoenfeld?

- Eu já demonstrei que Schoenfeld é um agente do Kremlin.

- Afirmou, Sr. Sanford, não demonstrou.

- Minha acusação consta da ata.

- Onde morreu... por falta de prova.

- O senhor pode fornecer essa prova. Logo que o fizer, estou disposto a ignorá-lo como um simplório a serviço de homens muito mais sábios - e muito mais perniciosos - do que o senhor.

- Onde começa sua acusação ao Dr. Schoenfeld?

- Na Espanha, onde ele recebia ordens dos comissários russos.

- O senhor nega que fez propaganda para ele naquela ocasião?

- Ao contrário. Estou orgulhoso da propaganda que disseminei ali. Se quiser, posso dar-lhe alguns exemplos.

Hal levantou-se parcialmente do sofá. O próprio Sanford pareceu aturdido, mas recuperou o equilíbrio com a rapidez de um relâmpago.

- Pode falar, Major.

Era a abertura que ele queria. Observando atentamente Sanford, dirigiu-se para o espaço entre a escrivaninha e o sofá, onde podia falar de frente para o gravador.

- Suponho que o senhor quer os fatos em ordem cronológica.

- Se fizer o favor.

- Começaremos com a chegada da unidade cirúrgica de Lakewood a Barcelona. - Desfechando o ataque que ensaiara com tanto cuidado, Bruce pronunciou nitidamente cada palavra. - O nosso primeiro bivaque teve lugar nos subúrbios. Desde que nascera em Tampa, eu falava fluentemente espanhol. De acordo com as ordens do Dr. Schoenfeld, passei a maior parte do primeiro dia e noite disseminando a campanha de propaganda que lhe era tão cara ao coração.

- Seja mais específico.

- As tubulações de água da cidade estavam contaminadas. Meu trabalho constituía em persuadir os habitantes a ferver a água, ou morrer de febre tifóide...

A mão de Sanford dirigiu-se como uma flecha para o botão do gravador... Mas Bruce já lhe havia cortado o caminho.

- Fique onde está... e deixe que eu termine.

O berro e o olhar que o acompanhou surpreenderam Sanford e o fizeram perder o equilíbrio. Recuando diante da fúria de Bruce, impulsionou para trás a cadeira, tão violentamente que ela colidiu com a estante atrás, caindo-lhe em cima uma cascata de tomos de direito. Enquanto durava o choque, ele não se mexeu. Olhando-o da mesma maneira serena, Bruce conseguiu evitar uma explosão de riso. Naquele momento, o incendiário da Comissão de Atos Subversivos da Câmara poderia ter passado por um furão encurralado.

- Minha segunda campanha foi semelhante à primeira, Sr. Sanford. Barcelona enfrentava também a ameaça do tifo. De acordo com as ordens do Dr. Schoenfeld, eu espalhei a notícia de que a doença era ocasionada por carrapatos e piolhos. Graças a essa propaganda, milhares de cidadãos, que não tomavam banho, usaram os inseticidas que havíamos trazido dos Estados Unidos. Como resultado, uma epidemia foi detida nas suas fases iniciais...

Sanford fez outra débil tentativa para levantar-se e, em seguida, acomodou-se logo que Bruce deu outro rápido passo entre a escrivaninha e a cadeira.

- O que disse até agora refere-se aos deveres da equipe fora das horas normais. A maior parte do nosso trabalho era feita em adegas, onde estabelecemos hospitais de sangue à medida que Franco avançava em direção à cidade. Fizemos também o que nos era possível para manter viva a população civil. Nossa sorte foi má neste último ponto. Uma única equipe cirúrgica pouco mais podia fazer do que compartilhar as suas próprias rações. As bombas de Hitler - e de Mussolini - haviam destruído a maior parte da comida disponível.

- Isso basta, Bruce!

Hal, ao que parecia, recuperara finalmente a voz. Bruce ignorou a interrupção e fechou o cerco em torno de Sanford. O idoso legislador continuava ainda acovardado na cadeira, com a cabeça encolhida entre as omoplatas.

- O senhor perguntou o que nossa equipe fez na Espanha - disse Bruce. - Eu não descreverei a evacuação dos hospitais de sangue quando Barcelona caiu. Ou como levamos feridos para a França e evitamos que fossem assassinados. Mas eu lembrarei ao senhor que técnicas de tratamento que criamos sob fogo foram adotadas por todas as unidades médicas do Exército. O que é mais importante, Sr sanford? Conhecimentos que salvam vidas? Ou inimigos que nunca existiram fora do seu cérebro confuso?

Sanford falou após algum tempo e sua voz era apenas um grasnido.

- O que é que quer este lunático, Hal?

Bruce respondeu rapidamente antes que Hal pudesse falar:

- Eu quero a verdade, na ata. O seu colega está aqui para escutar. Esta é a única função que lhe cabe.

Sanford interpusera a escrivaninha entre eles. Tremia violentamente no momento em que agarrou o telefone... mas parte de sua vitalidade voltara com o ato. Havia mesmo um vestígio de desafio ao falar novamente:

- Eu posso mandar prendê-lo por isso, Graham.

- O senhor não me mandará prender. Não com esta declaração na ata.

- O que é que o senhor espera, após esta explosão?

- Tudo que espero do senhor é bom senso. - Bruce podia falar tranquilamente agora. Logo que a mão de Sanford deixou o telefone, deu um passo atrás. - O senhor sabe muito bem que nada tem contra mim. O senhor sabe disso desde o começo. Tire Manning do caso e deixe-me em paz. Dê-me sua palavra de honra de que deixará de perseguir o Dr. Schoenfeld...

- Isso é tudo?

- Se o senhor se recusar, eu transmitirei cada palavra desta reunião à imprensa. E acrescentarei uma declaração, prestada em cartório, de que o senhor me ofereceu suborno para fornecer evidência falsa perante sua comissão. E pedirei ao Deputado Reardon que seja minha testemunha.

O desafio dera a Sanford tempo para recuperar a compostura, embora suas mãos ainda tremessem quando ele tirou o carretel do gravador oculto e colocou-o no bolso do paletó. Em seguida, assumindo uma expressão de dolorosa dignidade, caranguejou lentamente até a porta.

-- Por sua causa, Hal - disse ele - não chamarei Clint. Como você vê, estou ignorando a teatralidade de seu amigo. Manning citá-lo-á amanhã. Podemos provar sua traição diante da comissão plena...

Hal falou finalmente. Tinha o rosto sério, mas, ainda assim, Bruce pôde distinguir nele um traço de divertimento.

- Jake, não há.

- O que é que você está dizendo?

- Como membro da Comissão de Ética, eu serei obrigado a vetar tal ação.

Sanford alcançara a porta. Parou ali, com a mão na maçaneta.

- Por que motivo?

- O Major Graham tem razão. Você não tem provas.

- Deixemos que a minha própria comissão julgue isso.

- Até mesmo seus acomodados colegas recuarão se você tentar levar isso adiante. No seu lugar, eu procuraria reduzir os prejuízos. Não me force a retirar meu apoio num ponto onde realmente doeria.

- O Major Graham significa tanto assim para você?

- Desista... ou peça que eu mostre as cartas.

- Digamos que eu não faça a citação. Você garante que ele deixará Washington?

- O Major já está de partida.

- Você me dá sua palavra a esse respeito?

- Ele deixará a cidade depois de amanhã, no máximo. A sua compostura será salva, juntamente com a nossa amizade. Deixe as coisas como estão.

- Muito bem, Hal. Nada mais farei... se o seu amigo for devidamente disciplinado e transferido. - O Deputado saiu pomposamente do gabinete, arrastando como uma toga os frangalhos do seu orgulho.

Bruce dirigiu-se para trás da escrivaninha, endireitou a cadeira e pôs os livros nas prateleiras. O ato deu-lhe tempo para pensar na última e estranha troca de palavras entre os dois legisladores.

- Bem, meu amigo idealista?

- Por que disse a Sanford que eu estava de saída de Washington?

- Antes que eu responda, diga-me o que esperava conseguir aqui?

- Você viu o que eu consegui. Os métodos de Sanford são hoje assunto documentado.

- Ele levou a gravação. Na próxima hora, ele e Manning tocarão novamente aquele carretel, lançarão contra você durante algum tempo... e, em seguida, destrui-lo-ão.

- Você está pedindo que eu destrua o meu?

- O seu?

Bruce levantou a capa de chuva e revelou a arma secreta. Era uma duplicata do gravador portátil que Shane usara na entrevista com Jimmie Lowell. A fita girava ainda quando ele estendeu a mão para o botão. Gravara a entrevista desde o começo... incluindo a tácita admissão de suborno de Sanford e a combinação que fizera com Hal-

- Conforme você pode observar, este jogo pode ser jogado por várias pessoas.

- Não, com as cartas marcadas contra você - disse Hal. - Nossa reunião ocorreu no Edifício Administrativo da Câmara. Sanford tem direito à imunidade congressional.

- Suponhamos que eu leve este carretel à redação de um jornal?

- O Gabinete do Cirurgião Geral não permitiria, Bruce. Não, quando você está de partida para um acampamento na Flórida Ocidental.

-. Então era disso que você falava há pouco?

Hal estendeu ambas as mãos com as palmas viradas para baixo ignorando uma pergunta que somente um inocente nato faria.

- É uma sorte que você tenha um anjo guardião atrás de você - disse ele. - Logo que ouvi dizer que Jake e Manning estavam na sua pista, trabalhei rapidamente. Houve apenas tempo suficiente para entrar em contato com o Coronel Wilson e ter a certeza de que você seria transferido.

- De que modo poderá a minha transferência fazer qualquer diferença?    

- Notou como eu lidei com a situação? - perguntou Hal, pacientemente. - Jake sabia que eu falava sério quando o ameacei de lhe retirar meu apoio. Mas ele precisava ainda de uma saída honrosa. Por conseguinte, prometi que você deixaria Washington.

- Devo agradecer-lhe pela diplomacia?

- Acho que o fará, algum dia - disse Hal. - Por hora, eu sugeriria que me entregasse o gravador. Nas suas mãos constitui uma invenção perigosa.

Bruce levantou a caixa de metal com seu minúsculo e ultra-sensível microfone. Um momento antes, parecera uma potente bomba-relógio, armada para explodir a hipocrisia e restabelecer a justiça. Naquele momento, desanimado, compreendeu que era apenas um brinquedo inútil.

- Guarde-o, com os meus cumprimentos - disse ele lentamente. - Devo-lhe algo pelos seus serviços.

- Somente se você insistir, Bruce. Eu o devolverei quando a guerra terminar.

„ - Não se preocupe com isso, por favor. Tenho certeza de que lhe será muito mais útil do que a mim.

deixou apressadamente o gabinete antes que Hal pudesse responder. Mais uma vez sabia que sua partida fora uma retirada completa.

 

MAJOR BRUCE GRAHAM MÉDICO O.270106 DESIGNADO DESDE TÊRÇA-FEIRA 9205 PARA O SCRANTON GENERAL HOSPITAL SOLICITADO PARTIR DIA 24 TERÇA COMPANHIA NAVIO-HOSPITAL JEFFERSON DAVIS GULFNIEW FLÓRIDA PARA NOVOS DEVERES TDN TPA.

 

Bruce estendeu as novas ordens sobre o bar e releu-as pela décima vez, maravilhando-se de um jargão que podia ser simultaneamente terso e redundante.

O segundo highball fora posto a sua frente exatamente naquele momento e ele bebeu-o lentamente. Em certo sentido, não lamentava abandonar Washington, embora fosse sentir falta da sólida sensação de realização no Scranton General. Em outro sentido mais profundo não podia libertar-se da fúria impotente que o possuía - a convicção de que permitira que uma vitória visível se transformasse em derrota,, embora a recordação de Jake Sanford acovardado entre seus tomos de direito constituísse algo a ser sempre lembrado.

As energias primitivas do lutador estavam ainda ativas: mesmo naquele momento ansiava para entrar na redação de um jornal com a gravação e exigir a denúncia, na primeira página, de um fanático intrigante. A ânsia, pensou novamente, era inútil. Conforme Hal dissera, as cartas haviam sido marcadas: ele aceitara uma manobra desonesta - e era tarde demais para exigir que a partida fosse jogada novamente... Tivera sorte em escapar com a designação para o quadro de pessoal de um navio. Tais unidades, como um estudo dos boletins do Departamento Médico, haviam-no informado, eram selecionadas, hospitais completos com uma base flutuante que poderia levá-lo à ação em qualquer parte do mundo.

As ordens chegaram no dia seguinte. Nas vinte e quatro horas que se seguiram terminara as últimas rondas nas enfermarias, despedira-se do Coronel Terence Miller e transportara suas malas para Washington, onde iria confirmar o transporte. Soubera na Union Station que o Expresso Pelican, que partiria às sete na manhã seguinte, deixá-lo-ia em Pensacola, onde tomaria um trem local com destino a Gulfview e o Acampamento Jefferson Davis.

Saindo da estação, tomou um táxi até o Gabinete do Cirurgião Geral no momento em que saía o pessoal do turno de nove às cinco. Cedendo ao impulso que o levara lá, tomara o elevador até o andar do Coronel Wilson para solicitar uma tardia entrevista.

O Oficial de Designações não chegou a explodir inteiramente no momento em que Bruce fez a primeira pergunta.

- Major Graham, um bom oficial não discute ordens. Executa-as.

- Estou preparado para ir para Gulfview, senhor. Mas ainda não posso deixar de me perguntar o que aconteceu.

- Talvez lhe ajude o futuro no Exército se continuar na ignorância.

- Estou disposto a confessar que criei problemas em altas esferas... e pedir-lhe perdão.

- Se o senhor tem de tomar o meu tempo, entre logo no assunto. Em meu lugar, acho que o senhor teria feito o mesmo. Até agora, as duas melhores coisas que encontrei desde a doutrinação inicial foram o departamento do Coronel Miller em Scranton e a atitude deste departamento. Desde que as minhas ordens mais recentes tiveram origem aqui, eu fiquei naturalmente surpreso em descobrir que fui transferido sem aviso. Não posso deixar de sentir que levei novamente um pontapé.

- Permita-me que corrija essa impressão, Major Graham. O senhor não levou um pontapé deste departamento. Nós o designamos para treinamento no quadro de pessoal de um navio. Logo que sua unidade for inteiramente organizada, o senhor será o chefe do serviço cirúrgico e subcomandante. Esse posto exige um especialista qualificado, com patente de tenente-coronel, o que o senhor obterá provavelmente no devido tempo.

- Posso saber o motivo por trás dessas ordens?

- Anteontem o advogado de Sanford visitou-me e sugeriu que uma citação lhe poderia ser entregue. Obviamente, ele esperava que eu concordasse com seu desligamento do serviço. Eu não tenho intenção de sacrificar um oficial competente. Por conseguinte, o senhor foi transferido para a zona ocidental da Flórida, onde esses caçadores de feiticeiras não podem atingi-lo tão facilmente.

- Sinto muito ter-lhe tomado o tempo, Coronel Wilson.

- Dispus-me a esclarecê-lo... desde que esta reunião é particular. O senhor foi extremamente útil em Scranton. O senhor deverá achar sua nova designação ainda mais promissora. Simplesmente evite, no futuro, meter-se entre as rodas de moedores de carne políticos.

- Mais uma pergunta, por favor. Devo por acaso esta solução ao Deputado Reardon?

- O senhor vai para o Acampamento Jeff Davis pelos motivos mencionados. Reardon nada teve com a minha decisão. Ele ouviu falar de minhas ordens antes mesmo que eu as recebesse.

- Somente porque ele é um ativo membro de comissão da Cäa.

- Desde que ele controla os cordões da bolsa, por assim dizer, ele tem acesso aos nossos arquivos. Ele usou recentemente esse privilégio quando me pediu permissão para informar a Sanford que o senhor seria enviado para fora da área de Washington. Pareceu um atalho numa situação difícil.

- Obrigado, mais uma vez, senhor. Esta visita foi extremamente informativa.

- Nas circunstâncias, dificilmente podemos prolongá-la. Além disso, tenho outro encontro.

- Por falar nisso, Coronel, eu também.

Numa cabina telefónica na Avenida Constituição chamou o gabinete de Hal e soube que o Deputado Reardon partira em missão desconhecida para o Oeste. Numa outra cabina no bar da estação, chamou o número privativo de Shane... e desligou ao primeiro toque. Até que o ressentimento esfriasse, sabia que seria prudente adiar o contato. E pareceu-lhe ainda mais prudente pedir a segunda bebida antes de chamar pela segunda vez o número da jornalista...

Em seguida ao segundo highball, reentrou na cabina. Ao ouvir a voz de Shane, rouca e ligeiramente zombeteira, como sempre, sentiu que lhe desaparecia a lassidão. No mesmo fôlego, deu vazão ao pior de sua fúria contra Hal - e a sua ânsia incurável de posar de moderno deus ex machina.

- É muito gentil ser lembrada finalmente - disse Shane. - Não dou este número a todas as pessoas.

- Acho que fui um bocado empurrado... desde que você visitou o hospital.

- Foi mesmo? Onde está você agora?

- Matutando nas coisas... em um bar na frente da Union Station.

- Matutar é um passatempo destrutivo quando feito sozinho - disse Shane. - Suporta-se, quando feito em companhia.

- Tudo o que tenho é este número.

- Eu moro na Rua S, número 1129. O Singer Lê Mans está parado à porta. Gostaria que eu o fosse buscar?

- Um táxi é mais rápido. Fique onde está.

O apartamento de Shane situava-se no andar superior de um quarteirão de sobrados, que haviam sido remodelados e que foram outrora casas de cómodos. Ela atendeu imediatamente a campainha e debruçou-se no corrimão para vê-lo subir.

- Meu sótão deve ser o céu para que você suba tão rapidamente - disse ela. - Não quebre uma perna, agora que consegui atraí-lo finalmente para aqui.

Os aposentos dela, descobriu, eram mais ou menos inconvencionais. A maior parte do apartamento consistia de uma sala de estar-stúdio, completa com clarabóia. Utrillos combinando, um par de nus surrealistas e cenas de touradas de autoria de Juan Gris davam à sala um ar de boémia improvisada.

- Ninguém está-me sustentando - disse Shane. - Eu subloquei este poleiro do editor de minha coluna sindicalizada quando a Marinha o convocou. Tire a jaqueta, se quiser. Se eu passar mais tempo aqui, instalarei ar condicionado.

Parecia inteiramente natural lançar a blusa militar sobre a cama na alcova vizinha, enquanto a dona da casa dirigia-se para uma prateleira de garrafas por trás da prancha de desenho que lhe servia de escrivaninha. E era ainda mais agradável desfrutar da mistura de libertação e excitação que sentia na presença dessa estranha moça. A saia iluminada pela clarabóia já lhe parecia tão conhecida como seu semiesquecido lar - e, na mesma dupla visão, um limiar de aventura. Três bebidas numa hora, pensou ele, talvez fossem mais do que podia aguentar.

- O que é que você vai querer, Bruce?

- Eu passo esta roda, se você não se importar. Logo que me recobrar de sua escada, tomarei um bourbon. - Ainda na alcova, ele se estudou cuidadosamente no espelho de Shane e verificou que as suas feições estavam inalteradas. Somente os pensamentos pareciam incomodá-lo um pouco.

- Você ainda parece sombrio - disse Shane. - Teve problemas ultimamente?

- A estrada andou meio acidentada. Não parei ainda para contar os ferimentos.

Ao sair do quarto, encontrou-a empoleirada sobre o assento da janela com um highball na mão. A sua própria bebida esperava-o sobre a prancheta. Engoliu metade antes de lembrar-se de que se esquecera da recusa.

- Isto é adeus - disse ele. - Ou já sabe?

- Hal telefonou esta tarde, antes de viajar. Ele mencionou suas novas ordens.

- E arrogou-se o crédito por elas?

- Naturalmente. Não o toma ele... por tudo?

- Parece que você aprecia meu colega de classe quase tanto quanto eu.

- As possibilidades são de que o aprecie ainda mais - respondeu ela. - Quer ouvir mais?

- Por que é que ele voou de Washington hoje à noite?

- Janet vai fazer o teste este fim-de-semana. Ele acha que deve aplaudir das laterais quando Brodski botar as câmaras para funcionar. A noiva de Hal é uma moça muito emotiva. Ou será que não notou?

- Ele mencionou o teste para o cinema?

- Entre outros assuntos. Era sua maneira de sugerir que eu o esquecesse tão graciosamente quanto pudesse.

- Tenho certeza de que você conseguirá.

- Consegui muito bem... no início - replicou Shane. - No momento em que ele telefonou, eu estava ainda no Post escrevendo uma coluna. Enquanto eu trabalhava no artigo, não foi tão difícil aceitar o que ele me disse. No fim, naturalmente, fiquei sozinha aqui, olhando para esses malditos toureiros. Foi aí que quis que o telefone tocasse... e você respondeu à minha prece.

- Fico satisfeito por ter sido útil. Matutar sozinho é puro desperdício... conforme acabei de descobrir.

- Eu podia mencionar outros homens que poderiam ter-me chamado hoje à noite - disse Shane. - Isto lhe parece bravata?

- Ao contrário.

- Se eu disser que você era o primeiro na minha lista, você me entenderá mal?

- Eu já a entendi mal alguma vez?

- Não, até agora... e eu o submeti a um bocado de provas sérias.

Bruce depositou o copo vazio e resistiu ao desejo de tomar outro. Flutuando na euforia do álcool, sabia que todas as coisas eram possíveis, e válidas todas as filosofias. Incluindo o fato de que havia consolado Shane McLendon e sido consolado também.

- Diga-me uma coisa - começou ele. - Você tem realmente esperança em Hal?

- Uma moça pode sempre esperar. Mesmo uma moça que escreve para a imprensa diária e devia saber melhor. Você tem esperanças em Janet?

- Não muitas, acho. Neste momento, ela parece tão remota quanto a própria Hollywood.

- Se você pode dizer isso, suas possibilidades de sobrevivência são excelentes. Vamos esquecer por um momento essa estória de amor? Eu preferia ouvi-lo falar do seu choque com Sanford.

- Hal deve ter falado nisso quando telefonou.

- Eu gostaria também de ouvir sua versão.

Shane permaneceu imóvel enquanto ele descrevia o encontro na colina do Capitólio. Ao terminar, continuou calada até que ele reencheu os copos.

- Eu gostaria de ter estado dentro daquele gravador, Bruce.

.- Infelizmente, o Torquemada matuto saiu-se muito bem... com a ajuda de Hal. Não haverá outra maneira em que eu possa destruí-lo?

- Dê tempo a Jake - respondeu ela. - Ele será pregado à porta do celeiro e esfolado vivo por homens que sabem fazê-lo.

- Você está sugerindo que amadores como eu devem ficar de fora?

- Hal contou-lhe os fatos da vida política ao confiscar-lhe o gravador - replicou ela. - Você não tinha um lugar aonde pudesse levar a estória.

- Eu tinha uma vaga esperança de que você pudesse usá-la.

- Não com as leis sobre calúnia. A estória não passaria por qualquer redação nos Estados Unidos.

- Mas você publicou a estória sobre Jimmie Lowell.

- Ele era um autêntico herói... e até mesmo as ideias impraticáveis de um herói constituem notícia. Jake se esconderia por trás da imunidade congressional. Ele diria que você é que é o lunático. E o país inteiro acreditaria nele.

- O Coronel Wilson, então, teve razão... quando me disse para não insistir?

- Foi um conselho maravilhoso - disse Shane. - É uma estratégia maravilhosa mandá-lo para a zona ocidental da Flórida. Você esquecerá e perdoará?

- Farei o possível.

- Poderá esquecer também Janet, agora que está deixando Washington? Afinal de contas, ela é apenas uma pobre menininha rica que gosta de guardar o bolo e comê-lo também.

- E você poderá esquecer Hal? Ele é apenas um deputado que fingiu amá-la quando queria espaço na sua coluna.

- Isso não é inteiramente verdadeiro - retrucou Shane. Ele me usou, admito... mas eu o usei também. Nós tivemos excelentes momentos juntos. Talvez tenhamos novamente. Ele não casou ainda inteiramente com a filha do Senador.

- E ela também não casou com ele.

- Vamos viver dessa esperança amanhã... e ignorá-la hoje a noite?

- Será que podemos?

- Podemos experimentar - disse Shane. - Não é por isso que você está aqui?

Ela se levantou enquanto falava e deu um rápido passo na direção de Bruce. A bebida dele caiu no chão quando os lábios se encontraram num beijo que lhe consumiu o último escrúpulo.

Acordou num escuro amanhecer de outono, encontrando Shane adormecida ao lado. Era muito fácil deixar a cama sem acordá-la, e outra muito diferente achar as peças do uniforme. Não localizou as folhas de carvalho do seu posto. Vestiu-se inteiramente antes de encontrá-las na lapela do robe, onde as pregara numa homenagem de meio da noite.

Ao aprontar-se para partir, sentou-se à escrivaninha para compor um bilhete de despedida. A primeira tentativa foi a mais difícil.

Escreverei do acampamento. Obrigado pelo ”bourbon”... e pela filosofia. Eu precisava de ambos. com todo o meu amor.

Antes que a tinta secasse, rasgou em pedaços o bilhete. Shan perceber-lhe-ia instantaneamente a intenção por entre o floreado. Naquela manhã, sua única emoção era gratidão profunda. Ele não tinha o direito de usar uma palavra mais forte.

Ajudei-a a esquecer durante um momento? A mim, ajudou-me.

Mais uma vez, destruiu a débil tentativa para comunicar-se. Isto, igualmente, era um pseudodesespêro condescendente. Shane choraria novamente por Hal... e ele ansiaria por Janet. Ela planejaria sempre atrair novamente Hal... da mesma forma que ele construiria pontes para um estúdio na Califórnia.

Não lhe pedirei que me perdoe. Continuarei apenas a esperar que aquilo tivesse sido também sua ideia, que lhe agradeço, de todo o coração.

Assinou o nome por extenso na nota final - com o posto e número de série - antes de colocá-la exatamente na prancheta, sob os alfinetes de folhas de carvalho. Era uma expressão tristemente inadequada de seus sentimentos, mas não havia maneira de melhorá-la.

Ao descer na ponta dos pés as escadarias, o relógio marcava seis e meia. Havia apenas tempo suficiente para tomar o Expresso.

 

                                                   GULFVIEW

A doca de pernas esguias conduzia a um caminho através de moitas de palmeiras-anãs. O caminho subia por íngremes degraus até uma abertura nas dunas antes de serpentear até a praia onde seria realizado o piquenique daquela noite.

O Capitão Eric Badger, companheiro de quarto de Bruce no alojamento dos oficiais da Companhia 2419 do Navio-Hospital, tomara a frente para certificar-se de que a costa estava desimpedida para uma saída algo irregular. O próprio Bruce seguiu-o mais vagarosamente, deixando o improvisado ponto de desembarque. Afastando-se para o lado a fim de permitir que a tripulação do barco transportasse os sacos de carvão e as grelhas portáteis da baía para a praia, olhou novamente para a clareira na mataria de palmeiras e carvalhos-dágua. De ambos os lados, a praia da ilha Bonita permanecia intocada por mão humana, salvo por essa única cicatriz.

Desde a chegada ao Acampamento Jefferson Davis, quatro meses completos antes, Bruce sentira uma confortadora afinidade com o meio ambiente: uma impressão que compensava a sensação de animação suspensa que o acompanhara desde Washington. A região, afinal de contas, não era muito diferente da Flórida de sua mocidade; bastava-lhe fechar a mente ao presente para imaginar que se encontrava de volta à Baía de Tampa. O próprio temporal que se dissolvia numa onda de calor em direção ao oeste fazia parte das recordações: ele vira antes essas nuvens negras aproximarem-se e dissolverem-se nas vastidões do Golfo do México.

Quilómetro e meio de baía aberta estendia-se entre o ponto de desembarque e o acampamento. Naquele local, os retângulos dos quartéis (entremesclados de tendas que assinalavam a presença de unidades de treinamento básico) constituíam intrusos remotos. A unidade de Bruce estava acantonada num promontório que mergulhava profundamente na baía. Mal conseguia distinguir a estrada de terra que coleava sob uma tela de espirradeiras até os quarteirões que abrigavam o Regimento 2759 de Infantaria, uma unidade em treinamento para serviço na Europa, quando fosse aberta a frente italiana. A guarnição do navio-hospital alojara-se com o 2759 desde a chegada. O mesmo acontecera com os homens do 759 Aerotransportado, um regimento de elite ali temporariamente aquartelado até terminar o treinamento final no vizinho Campo Eglin.

A pequena cidade de Gulfview aninhava-se numa estreita baía por trás do promontório mais próximo do Leste. O telhado de chapas de cobre da Companhia Gulfview, no momento transformada em escola de enfermagem e local de pouso temporário de dignitários visitantes, estava praticamente oculto pelos quebra-ventos de pinheiros australianos. A estrada, reta como uma régua que corria em direção à Pensacola, estava escondida por uma cortina de ciprestes, como os limites da própria cidade. Uma vez tais intrusões fossem aceitas, essa região no Município de Escambia parecia tão vazia como no dia em que as caravelas de De Soto abriram o primeiro caminho marítimo para o Mississippi.

Naquele momento, com a miragem azul da baía no meio, era impossível acreditar que aqueles quartéis eram reais, que milhares de homens haviam sido arrebanhados para lá, onde aguçariam sua capacidade de destruição.

Naquela tarde, Bruce fora à ilha Bonita obedecendo a um impulso - e adiando o estudo do modelo do navio-hospital que o Coronel Stokes acabara de instalar na sala-de-estar do alojamento dos oficiais. Como pausa para respiração, não era demasiado diferente de outros interlúdios que conseguira roubar desde a chegada ao Jeff Davis no último outono...

O Comandante, que servira ao Corpo de Saúde durante vinte anos nos mais estranhos lugares do mundo, ficara deliciado ao receber o novo especialista. A unidade, explicara, não estava ainda completa: as enfermeiras, que seriam parte essencial da equipe de Bruce, não haviam chegado ainda e o único outro cirurgião na 2419 naquele momento, além do próprio Stokes, era o Capitão Eric Badger. Por enquanto, acrescentou o Comandante, o treinamento seria, por questão de necessidade, de natureza provisória. Finalmente, tomariam o navio no Porto de Embarque de Charleston.

As unidades dos navios-hospitais que ora se preparavam para servir em todas as frentes de luta, continuara o Coronel Stokes, seriam auto-suficientes. Como suas equivalentes em terra, funcionariam nos termos da Convenção de Genebra. Os navios seriam principalmente de passageiros, convertidos. O transporte da 2419 seria o outrora famoso navio de turismo Presidem Washington. Ainda moderníssimo, com ar condicionado, os seus espaçosos salões e cozinhas aerodinâmicas poderiam atender a mais de mil feridos e seria apropriado para Os teatros de guerra do Mediterrâneo ou do Pacífico.

Os navios seriam guarnecidos pela Marinha nos termos de um contrato com o Corpo de Transporte do Exército. como sempre, a segurança real a bordo dependeria do Comandante do navio, cujo domínio na ponte seria absoluto. Na qualidade de comandante da guarnição, Stokes seria o oficial de transporte mais graduado; como inferior imediato e chefe do serviço cirúrgico, o recém-chegado seria o subcomandante.

No outono anterior, durante as primeiras semanas da chegada a Gulfview, Bruce compreendera que tais assuntos poderiam ser deixados às decisões posteriores do Gabinete do Cirurgião Geral. Na ocasião, os oficiais da 2419 trabalhavam como clínicos gerais no hospital da base e nos vários dispensários da área. O próprio grupo de Stokes logo depois se resignara ao cultivo de um bronzeado no inverno, excursões de fim-de-semana à Pensacola e à exploração preliminar da ilha Bonita em companhia das enfermeiras já residentes.

Bruce ajustara-se ao ritmo de Jeff Davis com tanta facilidade como aceitara o fato de que sua equipe devia ser treinada na zona ocidental da Flórida, a uma distância de uma noite de jornada do ponto de embarque. No mesmo espírito, trabalhara longas horas na cirurgia do hospital, apresentando-se para trabalhos em outras enfermarias quando os novos conhecidos desejavam uma licença extra. Em consequência, fora instantânea sua popularidade no alojamento. Se continuava a ser um enigma para os colegas, culpava apenas sua reserva. Um homem em meio de seu dilema especial, pensava ele, faria bem em permanecer retraído até que os pensamentos se cristalizassem...

No início do novo ano, com o aparecimento da cota de tropas do Corpo de Saúde e oficiais menos graduados, fora lançado um programa de reorganização, ficando Bruce encarregado de planos e treinamento. Verificou que parte do novo pessoal, embora classificado como técnico, era menos do que proficiente. A sua comunicabilidade com o hospital da base solucionara o problema. Desde que as enfermeiras estavam sempre carentes de pessoal, os convocados da 2419 foram designados para treinamento até o meio-dia, quando voltavam para estudar as disciplinas especiais da unidade.

Na Espanha, o cirurgião aprendera que uma combinação de velocidade e precisão era essencial para que ajuda instantânea fosse proporcionada ao soldado combatente ferido. Seguindo essas técnicas duramente aprendidas e inventando outras à medida que prosseguia o treinamento, convencera Stokes de que o navio podia desempenhar os deveres combinados de hospital de sangue e evacuação, logo que cada enfermeira e técnico adquirissem proficiência nessas missões paralelas.

Utilizando os métodos padronizados de operação do Exército, da forma delineada no Manual Médico Militar, elaborara um sistema de treinamento, abrangendo tão exatamente quando o permitiam as condições em Jeff Davis cada fase do tratamento de doentes em zona de combate. com a cooperação do Batalhão de Engenharia, os transportes de múltipla finalidade conhecido como DUKWs foram tomados de empréstimo quando possível. Esses desgraciosos transportes serviam como barcas de transporte a um modelo de tombadilho de navio, construído no lago de água profunda do promontório onde a 2419 estava aquartelada. Chamados de patos por Exército e Marinha, os DUKWs podiam subir a terra sobre esteiras e deslocar-se na água com uma velocidade impressionante. Carregados até a amurada com falsos pacientes, revelaram-se inapreciáveis nos treinamentos de Bruce.

As manhãs eram dedicadas ainda aos pontos essenciais do treinamento de enfermaria no hospital da base. À tarde, todo o pessoal de Stokes passava no navio improvisado. com pernas em talas, braços em tração em ângulos que tornariam difícil o içamento para bordo, as falsas baixas eram transferidas da embarcação de desembarque para o cais e vice-versa, até que se previram todas as emergências e foram removidas todas as dificuldades.

Uma vez postos a bordo os feridos, o Capitão Badger e equipe de triagem liam as papeletas médicas de emergência e verificavam talas e ataduras. Os denominados casos graves eram levados apressadamente à sala de operações improvisada, para transferência rápida da padiola para a mesa; as baixas menos urgentes eram encaminhadas a uma tenda que servia como enfermaria para segundo exame pelas enfermeiras e oficiais subalternos encarregados.

O chefe de cirurgia temera que as simulações de crises de combate se tornassem tediosas, mas subestimara o orgulho de uma equipe ospitalar que começava a considerar-se útil após um começo vacilante. O reforço final do moral ocorrera com a chegada das enfermeiras __ fato que completou o pessoal da equipe. Uma vez que a maioria das moças se submetera a rigoroso treinamento próprio, era simples encaixá-las nas rotinas. A presença delas frisara a importância da tarefa que cada homem desempenhava e a necessidade de compartilhar fardos. E conquanto a confraternização de pessoal convocado e recém-chegados fosse olhada com reservas, porquanto cada enfermeira tinha patente de oficial, o exemplo que deram despertou em cada homem a ânsia de dar de si o máximo.

Pensando nas mulheres de branco - e no choque psíquico da chegada delas - Bruce julgou inteiramente natural o aparecimento do Capitão Eric Badger na crista da duna. O companheiro de quarto, um cirurgião de uma pequena cidade de Wisconsin, ajustara-se perfeitamente ao novo meio. Fora a mola propulsora do planejamento da área de recreação na ilha Bonita, e nenhum membro da 2419 fora mais caloroso nos boas vindas às eficientes e, ocasionalmente, graciosas moças na Companhia Gulfview.

Em teoria, se não em prática, a hospedaria era interdita ao pessoal do acampamento, salvo nas primeiras horas da tarde. Naquela noite, um sexto de enfermeiras fora incluído, sub rosa, no piquenique semanal, extraindo-se a sorte no alojamento, sob a supervisão de Badger. Naquela semana, o homem de Wisconsin e três tenentes do serviço médico haviam tirado a sorte. Dois capitães do 2759 de Infantaria conseguiram à custa do suborno de uma caixa de champanha ganha num jogo de pôquer em Fort Barrancas, entrar na festa.

Tendo um dos capitães partido de licença, Badger insistira em que Bruce tomasse o seu lugar, de preferência a fazer um sorteio especial. Considerando que o chefe de cirurgia já substituíra todos os homens da equipe, concordou-se que tal generosidade era bem merecida... Bruce concordara em ir até a ilha para verificar os preparativos do piquenique, embora já tivesse pedido para ser excusado. Voltando-se para Badger, percebeu que deveria formular cuidadosamente a recusa. Nesse mundo totalmente masculino, as necessidades da carne constituíam tópicos de alta prioridade. Retirada de qualquer tipo era automaticamente suspeita.

- As moças já chegaram, Eric?

- Devem chegar às seis horas - disse Badger. - Uma chegará antes do toque de recolher. Nós a receberemos com oito quilos de lombo de vaca de primeira qualidade, assado com o meu melhor olho de churrasco, Pol Roger no gelo... e uísque para os bebedores sérios. O que ocorrer depois não é da conta de ninguém, mas apenas da nossa.

- Você se importará se eu pedir para ser excusado?

- Claro que me importarei muito.

- Acredite-me, estou cansado demais para tomar parte da festa.

- Essa desculpa é muito fraca. Já é tempo de você abandonar essa contemplação noturna do próprio umbigo.

- Hoje à noite vou contemplar o manual do navio. Amanhã, vamos fazer um exercício de evacuação. Esses, igualmente, são projetos valiosos.

- Não tão valiosos como acalmar a libido.

- Acredite-me, esse é um trabalho que eu posso adiar.

- Você viu Alice Stacey em ação... no modelo do bom navio. Não finja que não viu o que está por baixo daquele uniforme de listrinhas.

- Pensei que a Tenente Stacey fosse sua pequena.

- Renunciarei a todos os meus direitos hoje à noite, se você deixar sua cela de eremita.

- Sinto muito, Eric. Hoje à noite tenho de escrever cartas que não posso adiar... e ler um livro chamado Ship Handling.

- Você está-me forçando a falar com franqueza - retrucou Badger. - Essa falta de interesse pelo outro sexo tem dado origem a falatórios. Metade da equipe pensa que você está casado secretamente... e que é desnecessariamente fiel. Outros dizem que você é um homem jataí, cultivando uma mágoa secreta. Alguns desbocados insistem em que você é pederasta. Qual é o seu motivo real?

- O motivo é simples. Estou apaixonado.

- Apaixonado... e noivo?

- Muito longe disso. Por uma moça com quem jamais casarei.

- Então que mal faz um passeio por essas dunas... com uma companheira como Alice? Ou Cindy Jordan, se você prefere morenas de pernas longas.

- Nenhum mal... mas não estou no estado de espírito para fazer justiça à situação. A Tenente Stacey merece coisa melhor. O mesmo ocorre com a Tenente Jordan.

- O Exército treinou-me bem - disse Badger. - Estou preparado para atitudes negativas durante o expediente. Mas é uma coisa diferente quando um amigo passa por eunuco. O barco parte em cinco minutos. É melhor que esteja a bordo, a menos que goste de nadar.

- Eu confessei que estou apaixonado por alguém com quem não me posso casar. Isso não o convence?

- Onde está esse modelo de virtudes... e por quê?

-- Exatamente agora, ela está terminando o seu primeiro filme na Costa.

.- Você está-me dizendo que se apaixonou por uma atriz de cinema?

- Ela pode tornar-se uma, depois de amanhã.

.- E ela o ignora porque o produtor pode fazer mais por ela?

Bruce sorriu.

- Estranho como pareça, você sumariou bem a situação.

- Você espera que eu conte essa estória hoje à noite... quando Aiice perguntar por que você amunhecou?

.- Acontece que é verdade, Eric. Naturalmente, não espero que acredite nela.

A Cabana de Pesca de Gulfview, na ocasião alojamento dos oficiais solteiros da guarnição do navio-hospital 2419, parecia uma estrutura imponente vista da baía, com uma larga varanda, revestimento externo de madeira e telhado à prova de furacão. A sua presença entre os cedros agitados pelo vento no cabo sugeria que era residência de milionários, cujas habilidades estavam à altura de seus apetrechos. Uma inspeção mais cuidadosa, porém, revelara que o revestimento de madeira começava a descascar... e era dolorosamente evidente que o teto perdera sua cota de telhas nas tempestades do último inverno. A cabana possuía ainda confortos, porém, e o quarto que o Major Graham compartilhava com o Capitão Badger era apenas menos espaçoso do que o do Comandante.

Lembrando-se de que Stokes fora ao Campo Eglin naquela tarde, Bruce atravessou ambas as portas em direção à sala-de-estar, um terraço envidraçado com espreguiçadeiras de encostos quebrados, uma mesa de bilhar e uma prateleira de revistas rasgadas. A mesa fora usada para demonstrar o novo modelo do navio, uma miniatura de dois metros e quarenta do President Washington construída sob escala, com o lado de bombordo removido para mostrar as instalações, da ponte de comando até os porões.

Bruce passou uma instrutiva meia hora examinando a disposição das enfermarias para mil leitos, os depósitos centrais de suprimentos do laboratório. Os anfiteatros cirúrgicos, notou, estavam localizados na meia-nau, onde seriam menos afetados por mares picados. A sala e recreação e os aposentos das enfermeiras eram muito mais espaçosos do que havia pensado: um rótulo especial assegurou-lhe que ele era camarote próprio, abrindo para que o que fora o convés de passeio do navio... Quatro enfermarias extras para casos ambulatoriais no convés inferior completavam o modelo. Desde que o President Washington era um navio de socorro, nada mais apropriado que fora rebatizado de Helen S. Peters, em honra da enfermeira que dera a vida em Corregidor.

O estado de espírito de Bruce não se tornou mais alegre ao voltar ao quarto. Este fora parte de uma suíte na cabana. As janelas abriam-se para a baía Bonita, a mobília estava coberta de chinto desmaiado pelo sol e havia escrivaninhas entre as janelas, reservadas ao inevitável trabalho burocrático dos oficiais. Têrça-feira, lembrou-se, era noite de correspondência e aquela parte de sua estória na ilha fora bastante exata. Havia cartas de Janet e Shane numa gaveta fechada e ele as leu cuidadosamente antes de estender a mão para a caneta.

Em seis páginas em letra miúda, Janet Josselyn contava a estória das provações e alegrias do cinema. Havia elogios para o diretor, que, na opinião de Janet, estava criando um entretenimento de sucesso certo. Acompanhava-os de esboços levemente maliciosos dos colegas de filme e detalhes divertidos sobre a vida em Hollywood durante a guerra, onde alugara uma casa na encosta de uma montanha, tendo uma tia como acompanhante.

O Senador, acrescentara Janet, estivera ocupado demais para visitá-la. Hal aparecera duas vezes no estúdio durante campanhas para vendas de bónus de guerra na Costa. A vida na Califórnia, deduziu Bruce, apresentava tédios próprios quando a filha do Senador não estava no estúdio. As festas haviam sido poucas, mesmo nos fins-de-semana... Mas não havia dúvida sobre a fascinação que Janet sentia pelo trabalho, ou o entusiasmo total pelo roteiro de seu primeiro filme.

Shane, igualmente, revelara-se fiel correspondente. Leu-lhe a carta lentamente, saboreando a mistura de bom-senso e humor que lançava uma luz própria sobre o meio algo esquálido em que vivia. Fora enviada da África do Norte, onde ela terminava uma série de reportagens sobre o sucesso dos desembarques, completa com vinhetas dos guerreiros em ação e de folga na Argélia, Oran e Casablanca... mais uma vez, nenhuma referência fez à noite que haviam passado um nos braços do outro.

Vagamente perturbado pela omissão, Bruce tomou da pena e escreveu o endereço da agência jornalística de Shane numa folha de papel aéreo, sabendo antecipadamente que sua mente se esvaziaria antes que pudesse compor a sentença inicial. Havia uma maneira fácil de evitar aquele bloqueio mental. Cedendo a ele imediatamente e censurando-se por aquela forma de escape, levantou o telefone e pediu à mesa do acampamento para fazer uma ligação com Washington.

O suspense de esperar enquanto telefonistas em Atlanta, Greensboro e Richmond retransferiam a chamada era quase tão frustrador como o impasse que acabara de evitar. Dez minutos, o secretário-guarda-costas do Deputado Harold Reardon informou-lhe de que ele estava no plenário da Câmara e que não podia ser perturbado. Bruce recebera respostas análogas às suas três primeiras chamadas: a garantia do secretário de que Hal logo depois o chamaria fazia parte da técnica de despedida.

Ao dependurar o telefone, esqueceu o fato de que deixara de estabelecer contato com o colega de classe. Hal, sabia ele, dificilmente apreciaria seu ressentimento contínuo com o jogo que fizera em Washington - o fingimento de que ele, e não o Gabinete do Cirurgião Geral, fora responsável pelo seu atual posto. Como políticos em todo o mundo, Hal presumira que ele o chamava de longa distância para pedir outro favor e usara meios consagrados pelo tempo para evitá-lo... Tomou da pena pela segunda vez para compor um parágrafo inicial endereçado a Shane, uma descrição muito pouco humorística do piquenique daquela noite e os motivos confusos que o levaram a recusa. Admitindo ser impossível definir exatamente os motivos, estava prestes a rasgar a folha quando notou um visitante à espera na porta

- o Major Walter Pierce, patologista e chefe do serviço laboratorial do hospital da base.

- Desculpe interromper-lhe a correspondência, Bruce. Mas Eric pediu-me que o substituísse no dispensário hoje à noite.

- O que é que houve, Walt?

- Receio que o mesmo problema. O seu oficial de dia quer que eu examine um dos seus técnicos, que pediu guia médica... com dor de cabeça e torcicolo.

Bruce levantou-se rapidamente. Não havia necessidade de que o Major Pierce se demorasse a discutir a importância dos sintomas que acabara de comunicar.

Como outros acampamentos que preparavam tropas vindas de todas as partes da nação, Jeff Davis tivera também sua parcela de epidemias de moléstias contagiosas. A maioria dos surtos fora de infecções banais como sarampo, catapora e caxumba. Na semana anterior, uma ameaça agourenta caíra sobre o quartel - uma incidência crescente de meningite cérebro-espinhal. Tratava-se, possivelmente, do germe mais perigoso conhecido dos epidemiologistas, porquanto o Perigo era multiplicado pela capacidade de transmissores sadios infeccionarem outros sem imunização.

Um dos casos, infelizmente, aparecera em Gulfview quando um so’dado desmaiara na Rua Principal. A estória provocara consternação em todo o município, e o comandante do posto já recebera numerosas solicitações para fechar os portões do acampamento e proclamar uma quarentena completa. Epidemias análogas durante a I Guerra Mundial haviam deixado uma marca na mente civil. Mesmo com todo o pessoal proibido de sair, o cidadão comum de Gulfview estava quase convencido de que os diplococos podiam atingir a cidade trazidos pela próxima brisa que soprasse do oeste.

- Vamos examiná-lo juntos, Walt.

- Essa foi minha ideia, também. Este é o primeiro caso suspeito de seu grupo. O seu oficial de dia queria que você ou o coronel conhecesse os fatos.

O dispensário era uma tenda de chão de madeira, armada no terreno limpo que separava os quartéis da 2419 dos escritórios administrativos. Seis visitas médicas eram feitas todas as manhãs e no fim de manobras. Cinco soldados sentados na grama do lado de fora esperavam a vez. No interior da tenda, o técnico de serviço passava uma esponja no rosto do sexto homem, deitado numa padiola. Por trás do dispensário, uma ambulância do hospital da base esperava com o motor em funcionamento.

Mesmo antes de descer do jipe de Pierce, Bruce percebeu que os soldados na fila estavam nervosos: sabia que eles fugiriam apressadamente sem comunicar as próprias doenças se a temida palavra meningite fosse pronunciada. Naqueles últimos dias em Jeff Davis os boatos de um começo de epidemia voavam ainda mais rapidamente do que em Gulfview.

O técnico comunicou que o paciente se queixara de dor de cabeça no polígono de tiro e que viera ao dispensário pedir uma aspirina. Alertado para o sintoma específico do torcicolo, pedira imediatamente ajuda qualificada. Pierce fez um curto exame antes de afastar-se para dar lugar a Bruce. Mesmo sem a leitura do termómetro, o afogueado no rosto do homem teria anunciado a febre que lhe queimava o corpo. A respiração penosa quando o cirurgião moveu-lhe suavemente a cabeça, além da acentuada rigidez do pescoço e dos músculos das espáduas tornavam o diagnóstico praticamente certo.

- Peguei-a, senhor?

- Você vai ficar bom. - Bruce falou em voz baixa para que os soldados na fila externa não o escutassem. - Tudo de que você precisa é de tratamento... e a ambulância está à espera. - Olhou interrogativamente para Pierce. Uma vez que o doente fosse para o hospital, não mais estaria sob a jurisdição da 2419.

- Nós a seguiremos em meu jipe - disse o patologista. - vou mandá-lo diretamente à Companhia Médica.

- Quer que lhe complete a ficha clínica, senhor? - perguntou-lhe o técnico.

- Está completa agora - respondeu Pierce. - Não a leia em voz alta. - Já escrevera cinco palavras sobre a ficha do doente: Meningite cérebro-espinhal; meningocemia aguda. - Diga alguma coisa aos homens lá fora, Major. Eles precisarão disso.

Bruce falou através da aba caída da tenda:

- Vocês todos desconfiam do que temos aqui. É o primeiro caso em nossa guarnição... e portanto não há motivo para pânico. Lembrem-se de que um doente tem excelente oportunidade de recuperar-se se pede logo visita médica. Avisem a todos que qualquer pessoa que aparecer com dor de cabeça deve comparecer imediatamente a este dispensário, de dia ou da noite. Não tentem curar-se com aspirina, a menos que ela seja receitada por um médico.

A caminho do hospital, o patologista fez a Bruce um sumário do problema que enfrentavam. Na qualidade de cirurgião, as informações eram quase estranhas à sua esfera de atividades, com exceção de alguns detalhes que recordava ter aprendido na escola de medicina.

Como todos os médicos, sabia que o meningococo penetrava no corpo através das passagens nasais, onde podia desenvolver-se de modo que não prejudicava o hospedeiro, mas, ainda assim, constituía uma ameaça mortal para aquele que fosse atingido pela respiração, espirro ou tosse. Essa situação - conhecida como estado de portador contrastava drasticamente com o comportamento do germe logo que ele atravessava a barreira das mucosas das passagens nasais e penetrava na corrente sanguínea.

No sangue, por motivos que a ciência não explicou ainda, o germe ataca as meninges - os revestimentos membranosos do cérebro e espinha dorsal - bem como o corpo em geral através do sangue. Trata-se da infecção conhecida como meningocemia. Febre, toxide/, torcicolo devido às membranas inflamadas, coma logo que a doença se estendia ao próprio cérebro, convulsões - eram sintomas que assinalavam o progresso inexorável da doença. Disso resultava alta taxa de mortalidade em casos não diagnosticados precocemente. Era de esperar-se danos sérios ao sistema nervoso mesmo que não ocorresse morte.

Menos ainda se conhecia dos métodos de transmissões nem os médicos podiam explicar como esses ardilosos diplococos escolhiam o que atacavam e ignoravam outros. Transmitidos com tanta facilidade como o resfriado comum, seguiam um padrão esporádico, disseminando-se como fogo de palha através de um campo de treinamento e pulando inteiramente um acampamento adjacente. Até pouco tempo o soro fora a única proteção contra os ataques, embora com resultados muito pouco eficazes. Na ocasião, com o emprego geral do sulfadiazol - e, mais recentemente, da sulfadiazina - podiam ser usados tratamentos adicionais. Mas até mesmo esses medicamentos específicos não podiam deter um surto epidémico geral a menos que cada caso fosse diagnosticado logo no início.

Ao chegarem ao hospital, o soldado da 2419 já se encontrava numa maca de rodas a caminho do isolamento. Bruce teve tempo apenas de pronunciar algumas palavras de encorajamento antes de seguir o patologista até o hospital. Dentro de vinte minutos, surgiu o Coronel Alford, chefe do serviço médico, conduzindo um pequeno tubo de ensaio. Isto, compreendeu Bruce, continha o resultado de uma punção espinhal no doente. Um olhar rápido mostrou-lhe um tubo esbranquiçado, cujo conteúdo deveria ter sido cristalino.

- Você encontrará provas suficientes neste, Walt - disse Alford.

- Nas circunstâncias, Major Graham, aconselho-o a não me apertar a mão.

Bruce permaneceu de lado enquanto o oficial mais velho lavava cuidadosamente as mãos e as enxugava com álcool. Na mesa do microscópio, Pierce preparava o primeiro esfregaço do tubo.

- O senhor teve a impressão de que ele estava prestes a ter uma convulsão, Coronel?

- O diagnóstico era tão seguro que já comecei a aplicar sulfadiazina sem esperar pela sua comunicação. Nos velhos dias, não o teríamos conseguido tratar até que o fluido espinhal estivesse purulento. Se esperássemos por isso, metade dos doentes nos isolamentos estaria morta agora.

- Isolamentos, senhor?

- Abrimos o terceiro esta tarde. Até quarta-feira, a incidência média era de um caso por dia. Desde então, está duplicando. Acabei de avisar o General Ludwing de que estamos no limiar de um verdadeiro pesadelo. Ele está interditando todo o posto a partir de meianoite. com trinta e cinco mil homens acantonados aqui, a ordem somente aumentará a histeria. Amanhã teremos quinhentos soldados sentindo dores de cabeça de puro medo. E, se Deus não intervier, teremos cinquenta mais... com sintomas suficientes para indicar uma punção espinhal.

- Quantos seriam positivos? - perguntou-lhe Bruce.

- Não mais da metade, se tivermos sorte - respondeu Alford-

- Vocês cirurgiões conseguem o melhor de tudo. Precisam preocupar-se apenas com um doente de cada vez. Eu estarei trabalhando em cem casos potenciais antes do fim da semana.

Pierce levantou os olhos do microscópio.

- O senhor teve razão, Coronel. A lâmina está cheia de diplococos intracelulares.

- vou duplicar aquela dose de sulfa - disse Alford. - Boa noite, Major. O senhor deve dormir mais tranquilamente do que a maioria de nós. Afinal de contas, sua unidade é a mais isolada do acantonamento.

Pierce levantou os olhos do microscópio.

- Quer dar uma olhada, Bruce, agora que veio aqui tão longe?

- Talvez eu deva, por falar nisso. Não vi um meningococo desde a minha última aula de patologia.

- Eles não mudam.

No visor, o cirurgião fez os delicados ajustamentos até que o esfregaço, corado, ganhou nitidez. Pelo menos metade continha o invasor - germes duplos em forma de biscoito, nítidos na tintura azulclara como estrelas no céu noturno.

- Como é que está a imagem? - perguntou o patologista.

- Perfeita. Mas, se você me entregasse a lâmina sem a identificar, eu teria imaginado um caso de gonorréia aguda.

- Excluindo qualquer outra condição que não uma epidemia de meningite, você estaria certo na maioria dos casos. Os gonococos e os meningococos são idênticos, salvo no comportamento. Aqui em Jeff Davis adotamos uma regra empírica. Se o corrimento ocorre na uretra do convocado, ele vai para a enfermaria de doenças venéreas. Se na coluna espinhal, é meningite.

Bruce continuou a estudar a lâmina. Um pensamento formava-se em sua mente, embora um fator esquivo recusasse a entrar em foco.

- É estranho que um desses micróbios ataque a uretra... enquanto o outro dirije-se para o cérebro e a coluna vertebral.

Pierce suspirou e voltou-se para a bandeja de lâminas que classificava.

- Lembro-me do tempo em que eu tinha tempo para essas especulações. Num laboratório do Exército tem-se sorte quando se consegue fazer o trabalho rotineiro. Quer que o leve de volta?

- Eu usarei um carro da garagem. Vá dormir um pouco, Walt. Eu substituirei Eric.

. No saguão, quase à porta que levava à garagem, Bruce mudou de ideia e seguiu o corredor até a biblioteca do hospital. Após ter telefonado ao oficial de dia para dizer-lhe onde estava, passou uma hora estudando atentamente uma obra de consulta sobre bacteriologia. Ao fechar o livro, nada aprendera sobre os organismos gémeos conhecidos como meningococo e gonococo, mas o pensamento que lhe perpassara pela mente ganhara nitidez.

Não havia necessidade de pensar mais enquanto atravessava o complexo em direção ao PX, onde uma bateria de telefones atendia às chamadas de longa distância. Havia troco na mão do caixa, embora ele parecesse levemente ultrajado com o volume que ele pediu. A noite não descera ainda quando conseguiu ligar com o Acampamento Bruckner; Gulfview situava-se no fuso horário central, mas ele nutria ainda esperança de falar com Nick Denby antes que o urologista deixasse o gabinete.

Quinze minutos de instrução de parte de Nick deixaram Bruce cinco dólares mais pobre, mas lhe deram a informação exata de que necessitava. Na garagem, após ter requisitado um carro para uma viagem curta até o promontório, descobriu-se pela primeira vez cantarolando desde que chegara a Jeff Davis. Hal Reardon, pensou, o teria censurado violentamente pelo risco que estava prestes a assumir. Diante das vidas de trinta e cinco mil homens em perigo, ele se sentia justificado em dizer que os torpedos que se danassem.

Mesmo antes de chegar ao alojamento, porém, sentiu-se oprimido pelo silêncio que reinava na rua da companhia. Naquela noite nenhum acorde subia dos terraços dos quartéis; não havia luzes acesas na sala de estar dos oficiais. No cais do alojamento, notou amarrado o bote que Eric havia requisitado. Ao entrar no quarto, encontrou o colega na cama com uma brochura policial.

- A festa fracassou?

- As moças não apareceram. Espalhou-se a notícia de que a base seria interditada à meia-noite. Onde diabo andou você?

- No hospital. Um dos nossos T-38 está doente com aquilo que você sabe.

O homem de Wisconsin ficou instantaneamente sério.

- Ele se apresentou ao dispensário? Pierce estava-me substituindo lá.

- Walt fez o que devia. O mesmo fizeram todas as pessoas interessadas. Ele me chamou porque era o nosso primeiro caso.

- É grave?

- Alford não esperou por uma contagem de células antes de aplicar sulfadiazina intravenosa.

- Isso pode significar que o micróbio está aumentando a virulência.

- Alford nada disse... mas imagino que foi por isso que ele convenceu o General Ludwig a fechar o acampamento.

-- Ouvi dizer que existem cento e cinquenta casos nos isolamentos atualmente.

Bruce sacudiu negativamente a cabeça. Já esperava que as bisbilhotices dessem um matiz sombrio à nuvem que pairava sobre JeEf Davis.

- Alford disse que havia cinquenta. E nenhuma morte, até agora.

- Graças a Deus por isso. De que modo você pensa que seremos interditados?

- Se a epidemia seguir o curso habitual, deve aumentar noutra semana e, em seguida, diminuir.

Badger escutava agora com profunda atenção.

- Desde quando você se tornou epidemiologista?

- Desde sete e trinta de hoje à noite... graças à biblioteca do hospital. O que é realmente perigoso é a fase da corrente sanguínea da doença.

- Os meningococos percorrem sempre o sangue para chegar ao cérebro. Eu sei disso sem visitar a biblioteca.

- Certo... mas numa epidemia grave logo ocorre, às vezes, que é análogo à forma pneumônica da peste. As vítimas contraem o micróbio através do ar... isto literalmente sob a forma de infecção por perdigotos. Podem morrer horas antes que comece a febre, antes que apareçam os sintomas típicos da meningite. Até mesmo uma punção lombar talvez não identifique o germe.

- Acha Alford que nos estamos aproximando dessa fase?

- Meu palpite é que não... ainda. Nos próximos dias, veremos qual a tendência. Uma nova divisão chegou na segunda-feira. Se começarem a ficar com torcicolos, poderemos esperar o pior.

- Mas não há ainda meios de identificá-los... a menos que o germe atravesse a barreira das mucosas.

- Nós poderíamos tirar culturas nasais se fosse necessário. Logo que crescessem - digamos, dois dias - até mesmo os negativos poderiam ter contraído o germe e morrido.

- Você me parece maravilhosamente calmo a respeito do caso - disse Badger. - Os livros lhe mostraram por acaso uma maneira de inverter a tendência?

- Tudo o que os livros fizeram foi trazer o problema à terra. Um telefonema para Maryland talvez possa solucioná-lo. Quando é que o Coronel volta de Eglin?

- Viu-o no chuveiro faz pouco. Ele também soube das más notícias.

- Neste caso, vamos procurá-lo agora.

- Quer que eu participe de sua tempestade cerebral para que eu compartilhe também da culpa?

- Sou um técnico em dar o pescoço ao cutelo. Você será mais sabido se permanecer fora disso. Amanhã, por essa hora, você poderá estar dizendo a todo mundo que desconfiou que eu era um rematado tolo.

O Coronel Gerald Stokes, de tamancos e bermudas, passeava pelo quarto. O velho cachimbo tirou fagulhas quando ele se voltou para observar os visitantes. O Comandante da 2419, um amadurecido cinquentão, ainda conservava a aptidão atlética que lhe valera taças de ténis em postos do Exército em todo o mundo. Normalmente, era homem de equilíbrio inalterável. Naquela noite, o cumprimento que endereçou aos jovens oficiais foi quase que rosnado enquanto se sentava atrás da escrivaninha.

- Eu ia mandar chamá-lo - disse ele. - O motorista que me foi buscar no campo sabia a respeito do nosso T-3, de modo que parei no hospital. O rapaz já está melhor graças à maneira como atacaram o micróbio. Mas dez outros foram internados hoje... e a metade é da nova divisão.

- Eu não sabia disso, Coronel.

- Todo o acampamento está em tumulto. Vi o que a meningite pode fazer ao moral quando estive estacionado em Honolulu. Não apenas ao Exército, mas à região em geral. O General Ludwig já recebeu telefonemas de Washington. A maioria do Congresso, pedindo a cabeça de alguém.

- Que outra providência será tomada, senhor... além da quarentena?

- O Serviço de Saúde Pública está enviando uma equipe de avião. Infelizmente, ela não pode chegar antes de sábado. Alguns deles estiveram na África do Norte.

- Isso não causará um tumulto ainda maior?

- O Comandante não pode negar os boatos para sempre. Dentro de vinte e quatro horas, no máximo, teremos de reconhecer que existe um estado de epidemia.

- Posso sugerir um método antes que a Saúde Pública seja chamada?

- Como cirurgião?

- Não, Coronel. Como estudante de medicina que fez seus deveres escolares... após um relâmpago de inspiração no laboratório-

O Comandante saltou da cadeira para encher o cachimbo. Bruce achou que a temperatura do quarto descera uns dez graus.

.- O que é que eu devo ouvir primeiro, Bruce? A inspiração, ou a cura?

- Tenho certeza de que o senhor sabe que a bactéria que causa a meningite e a gonorréia são gémeas quase idênticas.

.- Se eu sabia, esqueci há muito tempo.

- O mesmo me aconteceu... até que trabalhei na enfermaria de doenças venéreas do Acampamento Bruckner. Qualquer que seja o organismo, o bacteriologista não pode distingui-los sem usar um meio de cultura especial. Mais importante ainda, os gémeos são iguais de outra maneira. Ambos reagem rapidamente à sulfadiazina.

- Continue, por favor.

- Uma das piores dores de cabeça nas áreas de embarque como o senhor sem dúvida sabe - é a gonorréia na escala do navio. O Major Denby, Chefe do Serviço de Urologia de Bruckner, descobriu uma solução especial para o problema. Pediu aos comandantes de unidades que prescrevessem sulfadiazina a todos os soldados que passavam a noite fora com um passe. Uma dose quando deixavam o acampamento; outra, quando voltavam. Nenhum caso de gonorréia foi comunicado por essas unidades.

- Mas como é que esse interessante fato se relaciona com o nosso problema?

- Acho que existe uma relação clara, senhor. Já sabemos que o meningococo é ainda mais sensível à sulfadiazina do que o gonococo. Não poderia a mesma medicação liquidar a epidemia... se cada homem em Jeff Davis recebesse a mesma dosagem, antes de ficar exposto à epidemia?

O fósforo que Stoks levou ao cachimbo foi consumido enquanto ele escutava.

- Essa ideia é sua... ou do Major Denby?

- Ninck Denby inventou uma profilaxia para a gonorréia. A possibilidade de usar-lhe o método foi minha ideia exclusiva.

- Você a discutiu com seu amigo?

- Não, senhor. Se o mesmo tratamento for usado em Jeff Davis - e falhar - eu prefiro que o nome dele não seja envolvido.

O Comandante voltou-se para Badger.

- Você é nosso oficial de suprimentos médicos no momento, Eric. Poderia todo o acampamento ser tratado?

- Dependeria do volume, senhor. Que dosagem você tem em mente, Bruce?

- Dois gramas para começar. Dois mais ao fim de uma espera de vinte e quatro horas.

- O posto tem sulfadiazina suficiente para a dose inicial. A segunda pode ser mandada de avião de Atlanta. - Badger voltou-se para o Coronel. - Posso fazer uma sugestão rápida, senhor?

- É para isso que você está aqui.

- Existem quase cinquenta mil homens no acampamento hoje à noite, incluindo a nova divisão. Antes de iniciarmos a medicação, não deveríamos usar nossa própria unidade como cobaias?

- O que é que você acha, Bruce?

- Acho que não podemos esperar, senhor. Nem mesmo um dia mais. Da maneira como a coisa está aumentando, poderemos ter cinquenta novos casos amanhã, talvez mais. Estando o germe aumentando de virulência, alguns deles serão forçosamente fatais.

Stokes inclinou lentamente a cabeça.

- Se Alford e seu pessoal não estivessem aplicando a medicação correta, muitos dos doentes já teriam morrido.

- Tenho outra pergunta, Bruce - disse Eric. - O método já foi usado antes?

- Segundo a biblioteca, houve experimentos em pequenos postos no Novo México e no Alasca. Os resultados foram encorajadores, embora muito pequeno o número de casos para conclusões estatísticas.

- Nesse caso, estaríamos correndo um risco próprio - disse Stokes.

- Implica isso, Coronel. O importante é: podemos deixar de corrê-lo?

O Comandante estendeu a mão para o telefone.

- Isso, felizmente, é uma decisão para uma autoridade mais alta.

- Posso perguntar de que importância?

- Começaremos com Jim Alford e lhe pediremos que procure o General. Ele provavelmente a passará ao Corpo de Exército... ou a Washington.

- O senhor sabe o que isso significa, senhor. Em alguma parte ao longo da escada, a autoridade mais alta recuará. E o Coronel Alford abrirá outra enfermaria de meningite amanhã.

Stokes largou o telefone.

- O que é que você sugere?

- Acho que o comandante do posto deve ser informado de que existe aqui uma situação real de emergência. No lugar do Coronel Alford, eu pediria a ele que agisse imediatamente. Por sua própria decisão... começando com a alvorada. Nessa ocasião, eu daria a cada homem neste acampamento dois gramas de sulfadiazina. E repetiria a dosagem doze horas depois.

- Isso colocaria Alford numa situação difícil. Estando fora o Comandante do hospital, ele é também o cirurgião do posto.

- Acho ainda que a profilaxia deveria começar com a alvorada senhor. Eu serei o bode expiatório, se isso ajudar.

Stokes olhou de cara amarrada para o telefone antes de sentar-se. Ao levantar a vista, a carranca começara a transformar-se num sorriso.

- Obrigado pela sugestão, Bruce - disse. - É muito provável que eu a use. Estou começando a compreender sua reputação de procelária.

- A expressão oficial, senhor, é ”figura controversa”. De qualquer modo, serei o primeiro a ser decapitado.

Nas vinte e quatro horas seguintes Bruce descobriu como funcionava o Exército quando uma autêntica crise destacava-lhe as melhores qualidades.

O Coronel Alford, o cirurgião em comando do posto, entrou em ação minutos após ter o General Ludwig aprovado a profilaxia simples e drástica. Os estoques foram esgotados do último comprimido de sulfadiazina. Um telefonema para o Quartel-General do Corpo de Exército na área fora recebido com firme promessa de ajuda. Em meados da manhã, um avião partiu para o Campo Eglin com um amplo estoque de reserva.

No interior dos portões cerrados de Jeff Davis, todas as unidades e o pessoal da base receberam ordem de se dirigirem à alvorada às equipes médicas dos batalhões ou aos dispensários que lhes atendiam as necessidades. Trabalhando durante toda a noite, o depósito de suprimento fornecera à cada estação uma cota de vidros rotulados. Antes que as filas pudessem formar-se nas abas das tendas, um técnico já esperava para atender a cada pessoa, ignorada a questão de posto, até que cada um engolisse quatro comprimidos de meio grama de sulfadiazina.

Durante o dia foram cumpridas apenas missões de rotina. A Maioria dos soldados ficou confinada aos quartéis, interrompendo-se todos os treinamentos especiais e recebendo cada homem instruções para se apresentar às seções médicas ao fim da noite, pouco antes do toque de recolher. O procedimento inicial foi repetido sem uma falha.

Enfermeiras da Companhia Gulfview e o pessoal da WAC aquartelado nas proximidades receberam a mesma medicação - e a mesma advertência de não estabelecer o mínimo contato com os civis. Durante todas as horas do dia e durante quase toda a primeira noite, os oficiais de saúde permaneceram à disposição do centro telefónico do hospital para atender a pedidos de informação de Gulfview e outras cidades, informadas dos mesmos sombrios boatos que emanavam de Jeff Davis!

Até meio-dia, os pedidos de informação ameaçaram esgotar a capacidade de trabalho dos telefonistas. Logo que o dia começou a morrer e o mundo externo compreendeu que a quarentena era rigorosa, diminuiu o volume de chamadas. Ao anoitecer, momento em que nenhum médico da área vizinha comunicara casos de meningite, o pessoal do hospital emitiu o primeiro autêntico suspiro de alívio.

Inevitavelmente, a nova medicação e as longas e calorentas esperas nas estações de ajuda produziram as habituais queixas. Bruce permanecera no hospital durante todo o dia, alternando com Pierce e Badger. Entre si, os cirurgiões da 2419 haviam visitado todas as estações em inspeções pessoais. Conforme esperara o Coronel Alford, houve alguns casos de eczemas em doentes sensíveis a certas alergias. Um homem com um passado de asma precisara tomar uma injeção de adrenalina antes de poder respirar normalmente. De outro modo, evidenciava-se à noite que Jeff Davis tinha a situação sob controle.

Na segunda manhã, no momento em que quase cinquenta mil homens saíram cambaleando de suas camas ao toque de alvorada incluída a divisão recém-chegada que ocupava uma cidade especial de tendas distante do acampamento propriamente dito - oficiais de olhos alertas de cada pelotão comunicaram que desaparecia gradualmente o receio da véspera. A ameaça, no entanto, permanecia: a misteriosa Némesis, pairando junto ao cotovelo de cada soldado, era ainda real. Mas o fato de que a maioria desses confusos civis uniformizados permanecia de robusta saúde constituía um maciço contrapeso ao terror. A cada hora que se passava, o resíduo de medo tornava-se menor.

Visitas médicas em todo o acampamento acusaram dez novos casos na primeira manhã, elevando a mais de oitenta os internamentos nos isolamentos. Houvera duas mortes - casos que durante tempo longo demais não foram comunicados sem virtude de ignorância dos doentes sobre os sintomas. Na segunda manhã, os internamentos caíram para quatro. Outro caso foi trazido ao anoitecer, embora a segunda noite passasse sem um único diagnóstico positivo. Nas vinte e quatro horas seguintes, as fichas de internamento permaneceram em branco.

Por essa altura, cada homem nas enfermarias de isolamento reagia às doses regulares de sulfadiazina - tão dramaticamente como os milhares de sadios reagiram ao programa muito mais suave da dosagem de profilaxia. Não ocorreram novas mortes, e evidenciou-se que a medicação improvisada de Nick Denby para os jovens infeccionados com doenças venéreas era aplicável a uma ameaça mais mortal.

Na terceira noite do programa de emergência, Bruce recolheu-se cedo, rezando para que a noite passasse sem incidentes.

Acordando num enevoado amanhecer, meia hora antes da alvorada - e sabendo que não dormiria mais - enfiou-se num roupão de banho e desceu o corredor principal até o salão de estar dos oficiais, onde preparou o primeiro café do dia. Observava o quente sol da primavera queimar os últimos vestígios do nevoeiro na baía de Bonita quando ouviu passadas no terraço e reconheceu a silhueta familiar do Coronel Alford.

- Eu tampouco consegui dormir, Bruce - disse o vice-cirurgião-chefe da base. - Além disso, pareceu-me apropriado trazer pessoalmente as notícias.

- Boas ainda?

- Terei a primeira resposta amanhã por essa hora. Hoje, eu diria que estamos livres.

- Nenhum caso novo?

- Acabei de entrar em contato com o último posto médico. Nas últimas trinta e seis horas não tivemos um único caso de febre psicossomática... ou torcicolos. Você deteve a epidemia.

- Eu não, senhor, foram os comprimidos de sulfadiazina... e planejamento de alta eficiência em todos os níveis.

- O planejamento foi do SOP. Foi sua a ideia que salvou o acampamento.

- A profilaxia foi prescrita pela primeira vez no Acampamento Bruckner, senhor.

- Mas você ousou sugerir que fosse aplicada à meningite. Esse tipo de assunção de risco é tão raro no Exército que o põe numa classe especial.

- Os diplococos podem ter apenas se escondido.

- Não acredito nisso - respondeu Alford. - Nem tampouco Walt Pierce. Não com cinquenta mil hospedeiros humanos para provar o contrário. Não com ausência de todas as demais doenças. Você sabe que as doenças comuns caíram a quase nada nos últimos dois dias?

- Mas certamente o senhor não atribui isso à sulfadiazina.

- Talvez, não inteiramente. Se eu fosse psiquiatra, chamaria a isso de prova do desejo do homem de viver. Ou que é duro demais toma-la antes do café da manhã.

- Nada é difícil de aceitar, senhor... depois dessa notícia. Posso dar-lhe meus parabéns por uma vitória mais importante do que a maioria das batalhas?

O Coronel Alford corou de prazer.

- Você é o único a merecer congratulações, Bruce. Amanhã por essa hora, o General Ludwig enviará uma nota à imprensa atribuindo-lhe todo o crédito.

- O Major Denby deve compartilhar dele também.

- Ele será citado como criador do método. Mas o homem que assume o risco merece a recompensa. No seu caso, tenho certeza de que serão manchetes de primeira página em todos os Estados Unidos.

Eric barbeava-se no momento em que Bruce voltou ao quarto. O riso alegre que brilhou através da espuma era prova de que ele ouvira a conversa na varanda.

- Que tal sente-se famoso, senhor?

- Por que a formalidade?

- Agora que seu status de Pessoa Muito Importante está assegurado, Major, eu acho que devo manter distância.

- Tudo o que eu fiz foi olhar por um microscópio binocular e fazer uma comparação óbvia.

- Teria sido Leeuwenhoek tão modesto assim quando inventou aquele microscópio? Ou Semmelsweis quando descobriu a causa da febre puerperal? Ehrlich não aceitou todo o crédito pelo seu remédio mágico? Você é o herói de Jeff Davis, meu amigo... e todas as mães desta terra estão puxando-o para o seio, agora que você tornou os campos de treinamento seguros para os filhinhos delas. Na próxima têrça-feira, você provavelmente casará com aquela sereia do cinema sobre quem andou matutando. Em seu lugar, eu estaria dando cambalhotas.

Dois dias mais tarde, depois de terem os oficiais de Relações Públicas de Jeff Davis divulgado a estória da epidemia, Bruce compreendeu que a previsão do colega de quarto fora modesta.

Comparado com outras notas à imprensa que lera, o relato da profilaxia parecia bastante modesto, embora os fatos se revestissem de um caráter dramático próprio. A estória recebeu ampla cobertura - nas primeiras páginas do país, nas cadeias de rádio, nos comentários dos suplementos dominicais. Equipes de fotógrafos de duas revistas de circulação nacional desceram em Gulfview armadas com máquinas de escrever e câmaras. Oferecimentos foram recebidos de birôs de distribuição de artigos bem como súplicas de editores para que Bruce descrevesse a derrota da epidemia em suas próprias palavras.

Felizmente para sua paz de espírito, a 2419 fora já escalada para Uma série de manobras, baseadas na válida teoria de que um grupo prestes a guarnecer um hospital flutuante beneficiar-se-ia com o condicionamento padrão da infantaria. Graças ao novo status que desfrutava no acampamento, poderia ter ficado aquecendo-se à luz da ribalta. Em vez disso, porém, apresentou-se voluntariamente para toda a série de exercícios, sabendo que o bivaque nas vastidões cobertas de pinheiros o poria fora do alcance da imprensa e do rádio.

O elogio final recebeu-o na volta, depois de ter passado longo tempo pendurado no telefone do hospital numa longa e alegre palestra com Nick Denby, ainda envaidecido com a própria glória no Acampamento Bruckner. Antes que pudesse deixar o escritório, o telefone chamou novamente. O secretário de Alford surgiu à porta para detê-lo.

- Outro telefonema, senhor.

- Quem quer que seja, diga que estou em manobras no campo.

- É do Deputado Reardon... de Washington.

Recordando-se do trabalho para falar com Hal a longa distância, Bruce suspirou... e estendeu a mão para o telefone. Hal falou em tom de voz cordial e descuidado. A despeito do timbre macio, sua voz parecia encher a sala de madeira de pinho, ignorando tempo e distância.

- É bom ouvi-lo novamente, Bruce.

- É uma surpresa ouvi-lo.

- Lamento chegar atrasado com meus aplausos. Você tem sido um tipo esquivo ultimamente.

- Não são precisos aplausos.

- O Gabinete do Cirurgião Geral pensa de modo diferente - disse Hal. - A sua recompensa sairá dentro de pouco tempo... se minhas informações são corretas.

- Saber que estamos livres do perigo aqui constitui recompensa suficiente. Qualquer técnico de laboratório poderia ter feito o mesmo.

- Não há necessidade de ser modesto toda a vida - disse Hal.

- Pelo que li nos jornais, você se arriscou muito. Se você tivesse tido um palpite errado naquele microscópio, seria um pato morto hoje, em vez de uma celebridade viva.

- Omita a preleção, por favor. Se você é tão onipotente como parece - o que duvido - pode responder a apenas uma única pergunta. Tem alguma ideia de quando partiremos para o exterior?

- Fui informado de que sua unidade estará de partida antes do fim do mês.

- O seu amigo Sanford não objetará se eu for incluído?

- Você deve ler as notícias com maior frequência - replicou Hal. - Jake está sendo seriamente acusado de fraude nas declarações de renda. A Comissão de Ética pediu-lhe que renunciasse ao mandato.

- Estou finalmente exculpado, então? Suficientemente exculpado para não haver perigo em chamar-me de longa distância?

- É sempre uma honra ouvir sua voz - disse Hal. - Eu teria feito esta chamada... mesmo que não fôssemos Sigma Nus.

- Pode omitir os berros da faculdade, juntamente com a preleção. Qual foi a recompensa que você acabou de mencionar?

- Sinto muito, Bruce... mas é um caso especial demais para discutir. Shane dará os detalhes quando o visitar amanhã.

- Shane McLendon está a caminho daqui?

- A convite dos altos oficiais - disse Hal. - A confirmação chegará aí a qualquer momento. Você não pode fugir dessa entrevista partindo em manobras. - A voz foi suspensa com um fantasmagórico risinho, e desligado o telefone em Washington.

A chamada chegou ao escurecer da tarde seguinte enquanto Bruce conferia o relatório do Coronel Alford - um relato detalhado do surto em Jeff Davis e das medidas de controle agora aprovadas, que serviriam de orientação às outras bases. Reconheceu a voz do Capitão Rodney, oficial mais graduado de Relações Públicas do acampamento.

- A Senhorita McLendon acaba de chegar à estalagem, Major. Ela me disse que o senhor foi avisado antecipadamente.

- O Gabinete do Cirurgião Geral informou-me para esperá-la. Noite passada, por telegrama.

- Ela irá tomar o trem de meia-noite para Nova Orleans e não poderá visitar-nos aqui. Poderá jantar com ela?

- O Cirurgião-Geral colocou-me à disposição da Senhorita McLendon. Ela não quer conhecer o acampamento?

- A epidemia é matéria sem interesse agora. Ela me contou que está escrevendo o que, na profissão, é conhecido como uma estória de interesse humano.

- Não a meu respeito, espero.

- O senhor será a figura principal. A vida e os tempos de um cirurgião de navio-hospital às vésperas da grande aventura. - Rodney parou e riu de sua própria exuberância. - Afinal de contas, todo mundo sabe que a 2419 viajará dentro de breve.

A viagem até à estalagem era curta para os oficiais que podiam usar o desvio de Gulfview. Perturbado como estivesse com a perspectiva de reencontrar Shane - vívidas ainda as recordações da noite da Rua S - Bruce sentiu-se suficientemente calmo ao estacionar o jipe tomado de empréstimo por trás do outrora famoso hotel e ao ler à luz mortiça um segundo telegrama que acabara de chegar de Washington.

Da mesma forma que o telegrama anunciando a chegada da jornalista, a nova mensagem contribuíra muito para pôr em perspectiva os fatos correntes.

Ao subir os degraus, viu Shane sentada num canto da varanda, bebericando gim e prosando com diversas enfermeiras com que trabalhara durante todo o dia - todas elas de bermudas e suéteres, que constituíam vestimenta padrão dos piqueniques na ilha Bonita. Aproximando-se, elas se dispersaram para se reunir a seus acompanhantes no bar. Shane já lhe dera um sorriso que o pusera à vontade.

- Você ouviu as notícias - disse ela. - Posso ver isso em seu rosto.

- O senso de oportunidade de Hal foi exato, como sempre. Bruce sentou-se no divã de vime ao lado dela e aceitou um coquetel servido por um garçom. - Minha unidade seguirá para o porto de embarque de Charleston na segunda-feira. Na semana seguinte, tomaremos o Helen S. P. éters para um cruzeiro de familiarização.

- Essas ordens deviam ter chegado antes.

- A unidade está esperando há semanas a ordem de embarque. O que eu não sabia era que iria amanhã de avião a Los Angeles para fazer uma curta-metragem de propaganda de venda de bónus de guerra, dirigido pelo grande Leo Brodski. E com o Deputado para falar a maior parte do tempo e a estrela de Pierrette para apresentar-nos. Que mágico conseguiu isso?

Shane olhou para a bebida com o conhecido sorriso caçoador tão seu.

- Mesmo no Exército sabe-se de coisas que acontecem às vezes com rapidez. O que parece levar a vida toda é fazê-lo começar.

- Isso foi coisa de Hal... ou sua?

- De nenhum de nós, para dizer a verdade. Neste exato momento, você é o sinónimo de felicidade para o Gabinete do Cirurgião Geral... e querem explorá-lo enquanto puderem. Esse o motivo do voo a Los Angeles. Hal vai também na viagem... principalmente porque não existe melhor vendedor de bónus na estrada. Janet foi incluída Para emprestar cor local.

- De onde é que saiu a ideia?

- Da cabeça de algum especialista em publicidade de Madison Avenue que está também servindo ao país.

- Tem certeza de que Hal não tomou parte na coisa?

- Ele só foi convidado ontem. Discutimos o assunto tomando coquetéis... depois que eu havia combinado esta entrevista.

- Aparentemente, ele não foi seu único informante em Washington.

- Antes de encontrar-me com Hal eu tive uma conversa com o Coronel Wilson. Larry e eu somos velhos amigos. Ele violou os regulamentos e mostrou-me uma cópia antecipada de suas ordens. De modo geral, acho que o Gabinete do Cirurgião Geral o tratou bem.

- Eles me deixaram enlanquescendo aqui desde novembro.

- Apenas por causa de Jake Sanford. Você pode começar a reaparecer agora que ele está deixando a Câmara. Além disso, eu dificilmente acharia que você enlanguesceu em Gulfview.

- O Capitão Rodney disse que você não falaria sobre os meningococos.

- É a minha intenção. Minha coluna concentrar-se-á no Major Graham, o homem... uma pitoresca ilustração de observação de Shakespeare sobre a doçura da adversidade.

- Por que espiei num microscópio... e compartilhei de um palpite maluco com meu Comandante?

- No último outono você estava sendo lançado de um lado para outro como uma batata quente. Agora conseguiu uma das melhores designações do Corpo de Saúde, além de uma viagem a Hollywood. Você será notícia durante muito tempo. Enquanto for, eu o explorarei ao máximo.

- Tenho certeza de que ficarei mudo diante de uma câmara.

- Não com Leo Brodski para dirigi-lo.

- Por que o grande homem está rodando um curta-metragem de venda de bónus?

- Todos os diretores dão a sua cota - disse Shane. - Segundo o pessoal da imprensa, noblesse oblige. Na verdade, é uma maneira de os estúdios se tornarem credores das Forças Armadas... para que lhes possam usar as cenas de batalha quando a guerra acabar.

- É bom saber que Brodski não nos dirigirá por motivos altruístas.

- Tenho outra notícia - disse Shane. - Segundo as bisbilhotices, Janet acha o cinema mais interessante do que a perspectiva de matrimónio. Ela não tem pressa de anunciar o noivado com Hal. Ao lhe perguntar ontem sobre tais boatos, ele reconheceu que eram procedentes.

A imprensa metropolitana raramente chegava a Gulfview, embora Bruce tivesse visto mais de uma menção de Janet nas colunas de Nova York. As reportagens haviam sugerido um adiamento dos sinos matrimoniais em virtude das pressões no estúdio e houvera insinuações de que o noivo em perspectiva fora contrário a um prolongamento da carreira da atriz... Ele falou rapidamente, procurando esconder um crescente sentimento de júbilo.

- Quando me telefonou, Hal sabia que íamos para a Califórnia. Ele poderia ter mencionado isso.

- Dê a seu colega de classe o que ele merece - disse Shane. A informação era sigilosa até que você recebesse as ordens. Além disso, faz parte da mística dele conservar-se calado enquanto acompanha sua carreira no Exército.

- Em agosto último ele falou ao Coronel Wilson em meu nome. Isto dificilmente o transforma em meu mentor.

- Segundo ele interpreta as coisas, aquele foi o momento decisivo. Ele considerará uma grande ingratidão de sua parte... se você não lhe aceitar os conselhos.

- Eu lutei quando ele tentou usar Jimmie Lowell. Lutei novamente quando ele insistiu em proteger Sanford. Por que deveria aceitar-lhe os conselhos agora... ou mais tarde?

- Procure lembrar-se de sua carreira - disse Shane. - Tente vê-la através dos olhos de Hal. Meses de brilhante cirurgia no Scranton General. Manchetes como o médico que fez o possível para salvar um ídolo nacional chamado Sargento Lowell. Fama privada como o São Jorge que derrotou o dragão chamado Sanford. Mais manchetes em Jeff Davis, quando você deteve uma epidemia. Um encontro com a mais nova favorita do cinema, que acaba de proclamar sua independência do passado. Finalmente, um trabalho que qualquer médico invejaria - num navio-hospital guarnecido por enfermeiras de seios protuberantes e sundaes de morango. Obviamente, uma divindade, em alguma parte, está modelando seu destino. Pode você, por acaso, censurar o Deputado Reardon por compartilhar do crédito?

- Por que não diz apenas que eu tive muita sorte... incluindo a feliz oportunidade que a trouxe aqui hoje à noite?

- É assim que namoram no Sul? Ou você fala sério?

- É uma declaração de fato. Que tal terminarmos a entrevista durante o jantar?

- A entrevista já terminou - respondeu Shane. - Apenas para ter certeza de que causarei inveja a todas as mulhers da América, vou titulá-la de Meu Encontro com o Major Graham. O jantar já foi resolvido, também. Fomos convidados para o piquenique.

- A 2419 sente-se honrada. O mesmo acontece com seu acompanhante. Tome a frente, mon general. Estou às suas ordens.

Na ilha Bonita, um pôr-do-sol vermelho profundo fora dissipado pela Lua. Os carvões nas grelhas haviam muito tempo antes se transformado em cinzas; os bifes e as almôndegas haviam desaparecido assim como as bebidas. O violão de Alice Stacey fornecia fundo musical ao último coro enquanto oito enfermeiras da unidade e oito oficiais saíam aos pares, de mãos dadas, para um passeio entre as dunas.

Os dois convidados haviam passeado com os demais. Acompanharam as vigorosas vozes - abafadas um pouco quando a noite avançou - numa reprise de The Streets of Laredo, uma balada do Oeste, repleta da habitual dolência da fronteira... Em seguida, ao aumentar a distância entre os casais, viram que se encontravam muito longe, numa língua branca de terra, de mãos dadas como os outros e apenas ligeiramente surpresos ao se descobrirem sozinhos.

A noite até aquele momento fora incrivelmente livre de tensões: Shane integrara-se no grupo desde o início e o par que fizera com ele fora parte de um ajustamento espontâneo. Apertando-lhe a mão enquanto desciam para outra meia-lua de praia, Bruce perguntou-se quanto tempo duraria ainda a relaxação... Esperaria ela que ele a tomasse nos braços, agora que estavam realmente sozinhos? Ficara magoada porque o movimento fora retardado?

Ao sopesar as notícias que acabara de receber da Califórnia e os planos que fazia para a jornada, a necessidade de abraçar Shane McLendon - e o fato de que a compulsão era tão real como a fome - parecia-lhe monstruosa. A tentativa de reunir os pensamentos errantes foi subitamente interrompida quando ela o deixou abruptamente e desapareceu entre um bosque de palmeiras. Imaginando-lhe a intenção, teve o cuidado de esperar à beira de água. A respiração prendeu-se-lhe na garganta quando ela reapareceu, nua como Eva e igualmente despreocupada. Enquanto ele permanecia preso ao chão, ela mergulhou na primeira onda preguiçosa e emergiu com água à altura do ombro.

- Luto sozinha com os tubarões... ou você vem também?

Ele deixou as roupas na praia e correu para a água rasa num mergulho plano. Shane já entrara na réstea da luz da Lua. Robusto nadador desde a mocidade em Tampa, ele precisou de toda a habilidade para ultrapassá-la a uns duzentos metros ao largo.

- Onde é que você aprendeu a nadar assim?

- Nadar foi a primeira coisa que aprendi quando pude pagar as lições.

Uma certa reserva voltou quando ela nadou ao lado dele num crawl gracioso, usando leves batidas de pernas para equilibrar o movimento rítmico dos braços. A distância, vozes levantaram-se novamente numa canção. A música lembrava que a ilha Bonita era um Éden comunal graças ao espírito de iniciativa do Capitão Eric Badger uma terra de lótus onde o amanhã era uma ameaça sem sentido e onde duravam as alegrias do presente.

- Você tem certeza de que não há tubarões, Bruce?

- Os tubarões ficam habitualmente longe de um fundo de areia branca quando a Lua brilha.

- O que é que habitualmente significa hoje à noite?

- Os tubarões também costumam evitar o nadador se ele continua a mover-se.

- Nesse caso, vamos mover-nos logo.

Nadaram durante algum tempo em silêncio, colocando ainda mais água do Golfo do México entre eles e a terra. Agora que se ajustara à proximidade dela, podia manter a distância. Somente quando o corpo esguio de Shane subia numa onda num banho de fosforescência ele perdia o controle do pulso.

- O que é que você está pensando? - perguntou-lhe Shane. - Responda sem pensar, por favor... mesmo que não lhe fique bem.

- Você me chamaria de sentimental se eu dissesse que esta noite trouxe de volta minha juventude?

- Por que deveria eu? Trouxe também a minha. Incluindo um tipo de diversão que eu pensei que nunca teria.

- E o que é que você está pensando... desde que estamos brincando de verdade e consequências?

- Estou de volta numa piscina... no Hotel Imperial, em Viena, quando cobria o Anschluss. Recebia minha primeira lição em Schwimtnen. O professor não sabia inglês, mas conseguimos entender-nos.

- Estou de volta a outro piquenique... no meu ano de calouro na escola secundária.

- Incluindo nadar nu assim? - perguntou-lhe Shane.

- Foi meu primeiro crime. Desde que estamos sendo francos, foi também a primeira vez que fiz amor.

- Quem era a moça?

- Inez de Vega. Ou era o que ela dizia. Era uma piranha de Ybor City. Mais velha do que eu... e muito mais sabida. Você poderia dizer que eu aprendi com a experiência.

- Aparentemente, você tem sorte com as piranhas... se digo o que não devia dizer.

- Você nunca foi uma piranha, Shane. Você fingiu apenas.

- Você quis que eu fosse, naquela noite no bar da Union Station. Isso tornou o querer-me muito mais simples.

- Eu a quero agora... desde que estamos dizendo tudo. E Vou pedir a Janet que se case comigo quando for à Califórnia. Em que é que isso me transforma? Num sátiro marinho?

- Mostra simplesmente que você é humano - disse Shane..

Um pouco de deboche pouco importa... depois de meses de resistência a tentações como as da Tenente Alice Stacey.

- Como é que você sabe que eu resisti a Alice?

- Eu sabia... pela maneira como ela o mencionou hoje à noite

- Você me censura por ter levado uma vida de eremita depois da Rua S?

- Absolutamente, não - replicou Shane. - Na verdade, estou lisonjeada ao descobrir que suas recordações são mais fortes do que seus instintos.

- As recordações são apenas uma parte. Se eu disser que você me salvou de ficar ligeiramente louco naquela noite, você me entenderá.

- Eu sempre o entenderei, Bruce. Especialmente em momentos como este, quando você não se compreende lá muito bem. Aliviaria sua mente excessivamente ativa... se eu confessasse que precisava muito mais de você naquela noite do que você precisava de mim?

- Então, eu tive um palpite certo... quando deixei aquele bilhete?

- A nota sumariou a situação. Evidentemente, a necessidade não existe agora... com o que o espera em Hollywood e com Hal Reardon em circulação. Voltamos à praia?

- Talvez seja melhor. Nós temos apenas uma hora antes de você tomar aquele trem.

Shane estivera nadando em círculos preguiçosos tendo Bruce no centro. Naquele momento, com um risinho, ela aproximou-se e beijou-o rapidamente antes de tomar a direção da praia em um crawl batido. A sensação do breve contato permaneceu durante muito tempo depois de ele ter-se voltado para segui-la - cuidadoso mesmo naquela ocasião em manter uns seguros três metros de mar enluarado entre eles.

A volta tomou mais tempo do que esperava. Perdera inteiramente o fôlego quando as ondas fortes se transformaram novamente em marulhar suave... e viu que Shane havia-se deixado boiar na fossa entre duas ondas até que ele pudesse alcançá-la.

- Dê-me três minutos para vestir-me - disse ela. - Desta vez, é melhor que você olhe para o outro lado. Eu fiquei subitamente tímida.

Ele manteve cuidadosamente os olhos na Lua enquanto ela deixava o raso; não arriscou nem mesmo um rápido olhar para a praia até que a ouviu chamá-lo. Inteiramente vestida à beira dágua, ela tirava um cigarro do bolso dele.

.- O vestiário está livre. Esperarei... a uma distância decente.

Pondo o uniforme enquanto Shane retirava-se para a duna próxima, Bruce julgou que terminara a noite com honra. De certa maneira, porém, o pensamento tinha um som oco - como o eco de um sermão excessivamente seco, cuja moralidade estava além de qualquer dúvida. Ressentia ainda o eco quando galgou a vala profunda da colina de areia.

- Pelo meu relógio, temos cinco minutos para chegar até o ponto de embarque - disse-lhe. - Se não exagerarmos, podemos fingir um passeio de amantes.

- Vamos fingir, de todo jeito - respondeu Shane. - O Capitão Badger esperará isso.

Bruce temera que a volta ao continente gerasse problemas. Na verdade, a travessia até a Companhia Gulfview foi tranquila e apenas demasiado curta. A mão de Shane continuava na sua e sua consciência e errática taxa de pulsação estavam em harmonia novamente, quando desceram do carro na plataforma que servia ao cruzamento. Chegaram com apenas segundos de adiantamento. O farol do trem de meianoite para Nova Orleans acabara de piscar através de uma parede de ciprestes a leste.

- Obrigado, novamente, Bruce... por tudo.

- Espero que sua coluna passe pela censura.

- Passará, com elogios - disse Shane. - E atribua isso às boas maneiras do meu acompanhante.

- Somos então ainda amigos?

- Claro. Por acaso não nos elevamos acima de nossos sonhos juvenis para prová-lo?

Os freios de ar silvaram quando o trem parou relutantemente no cruzamento: um carregador desceu os degraus do único vagão Pullfflan para carregar as malas de Shane. Durante outro instante ela se deteve à sombra do caminhão de bagagem.

- Dê o máximo de si mesmo quando ficar diante das câmaras de Leo Brodski - disse ela. - Ele é um velho cínico... mas você se sairá bem.

- Quando a verei novamente?

- Não é melhor deixar isso ao destino... agora que demonstramos que podemos lidar com qualquer situação que surja?

Ninguém mais esperava o trem no cruzamento. A voz do condutor no vagão da frente dava ordem urgente para que ela subisse quando «ruce descobriu que Shane estava em seus braços. As luzes traseiras do Pullmann haviam desaparecido sobre a passagem elevada antes que ele compreendesse que fora ela que começara aquele abraço cegamente passional - e que ele o havia retribuído com igual calor.

Mas não estava apaixonado por Shane McLendon. O beijo procurou convencer-se, fora a homenagem de despedida de uma companheira - o que lhe tranquilizava a mente para a reunião com Janet Josselyn e para o pedido de casamento que faria, com cada célula do seu ser. Sem vontade de voltar a Jeff Davis e à última noite na cabana, enfiou a mão na túnica procurando um cigarro e descobriu que a companheira de piquenique ali deixara uma recordação, as insígnias duplas do seu posto, que ele pregara no robe na Rua S.

As folhas de carvalho dourado estavam embrulhadas num telegrama do Gabinete do Cirurgião Geral contendo ordens para dirigir-se ao Campo Eglin, onde apanharia o transporte para Los Angeles. Lendo-as com a ajuda do isqueiro, observou que Shane escrevera uma nota no verso.

Divirta-se com a sua estrela de cinema, Bruce. Você merece uma jarra depois da surra Que levou do Exército.

O quadro mental que Bruce formara da capital mundial do cinema fora um tanto extravagante: uma fotomontagem de palmeiras, piscinas, mulheres de grandes olhos escuros, um potpourri de canções e epopeias, onde a ilusão era a rainha e cada desejo parecia prestes a realizar-se. O bom-senso havia-lhe assegurado que a realização de filmes era um negócio e não uma arte. Mas somente quando observou Leo Brodski em ação compreendeu o quão pouco essa fábrica de sonhos correspondia às ideias do leigo sobre o faz-de-conta - ou como pode ser simples a manufatura de ilusões logo que o turista penetra no primeiro palco de gravações.

Partiu do Campo Eglin num avião que fez uma única escala em Denver. Hal embarcou nesse ponto, acompanhado por um grupo de oficiais graduados. Deram ao solitário major a bordo uma recepção delicada... e ignoraram-no até que o avião desceu em Los Angeles.

Durante o voo Bruce nenhuma oportunidade teve de uma conversa pessoal com Hal. Tampouco a houve na agitada semana que se seguiu. O Deputado Reardon, compreendeu, era constantemente solicitado como orador. O Deputado fora diretamente para sua suíte no Los Angeles Baltimore, aparecendo no estúdio apenas o tempo suficiente para dizer algumas palavras no curta-metragem de três minutos com que Brodski contribuía para as Forças Armadas.

Janet recebera o avião em meio a uma fanfarra de publicidade que incluía dois agentes da imprensa enviados pelo estúdio para suplementar o Serviço de Relações Públicas do Exército. Beijara Hal e pruce, embora a pressão na sua mão tivesse sugerido ao cirurgião que maiores intimidades poderiam estar à frente logo que ela dispusesse de tempo. Ele teve o cuidado de falar apenas em tópicos banais durante os breves momentos que os agentes de publicidade concederam à estrela. E, da mesma forma que Hal, fez apenas uma ligeira aparição diante das câmaras.

De certa maneira, Bruce esperara que a filmagem fosse do mesmo material de que é feito o drama, realizada num cenário que combinasse um ato no Pacífico Sul com o harém de um paxá. Na verdade, o filme foi filmado num palco vazio contra um pano de boca neutro, em lugar do cenário. Era retrospecto, a provação de uma hora parecia um pesadelo ambulante, desempenhada com uma máscara de maquilhagem, envergando um uniforme embebido de suor, ritmado pelos diques dos obturadores que gravavam cada cena para a sala de corte.

Os assistentes de Brodski haviam lidado com os detalhes... incluindo um ensaio preliminar e a colocação de quadros-negros longe da câmara, garatujados com o diálogo. O grande homem apareceu pessoalmente para dirigir as tomadas de cena com uma voz descuidada e calma de comando - de um assento numa lança da câmara nas tomadas longas e de uma cadeira de lona sob outra lente de grande ângulo quando filmava close-ups dos principais atôres.

Após ordenar que a última tomada fosse revelada, Brodski saiu impetuosamente do palco^ parando apenas o suficiente para sugerir a Bruce que passasse na sala de projeção na tarde seguinte para ver o produto final. Janet já fora levada apressadamente para outro palco sonoro, onde reiniciaria o trabalho no seu próprio veículo para o estrelato, agora no dia final de produção. Hal, que parecera ainda mais preocupado do que o habitual, fora às pressas realizar outra campanha de venda de bónus de guerra em San Diego.

A própria agenda de Bruce estivera congestionada no penúltimo dia em Los Angeles. Utilizando ao máximo seu valor publicitário, o Exército marcara palestras sobre o combate à meningite em acantonamentos próximos; fora o convidado de honra de um jantar de levantamento de fundos em Glendale, onde falou sobre as técnicas de cirurgia de campo, aperfeiçoadas durante a Guerra Civil Espanhola.

Era tarde demais para telefonar a Janet ao terminar o jantar, mesmo que ele lhe possuísse o número privado da casa na Sierra Madre. Percebendo que cabia a ela o movimento seguinte, aceitou com prazer transporte para outro alojamento de oficiais em San Pedro... Pareceu-lhe isso um mudo anticlímax da agitação infindável do dia... mas estava cansado demais para se aborrecer quando cambaleou em direção à cama, onde dormiu pesadamente, de puro esgotamento.

Acordando recuperado ao meio-dia, com um passe de entrada no estúdio e um encontro às duas horas com Brodski na Sala de Projeção Número Três, dirigiu-se a Hollywood em outro carro alugado. Um dos auxiliares do diretor esperava-o no portão principal. A caminhada pelas ruas do complexo, através de réplicas de um forte de muralhas de barro da África, a Torre de Londres e o convés de um destróier preparado para a ação, convenceu-o de que a Hollywood de sua fantasia existia, afinal de contas, agora que estava prestes a deixá-la.

A Sala de Projeção Número Três era um cinema em miniatura, acrescido de divãs na primeira fila e equipado com escrivaninhas e ditafones para servir aos deuses desse estranho reino. A entourage de Brodski sentou-se a uma distância respeitosa. O diretor, enrodilhado num dos tronos de couro, tinha um roteiro aberto diante de si. À meialuz, a sua silhueta parecia a de uma desalinhada baleia. Os irritados sons inarticulados que emitia - enquanto marcava a lápis azul a página - pareciam um mau augúrio.

Bruce, porém, verificou que seus receios não tinham fundamento: para espanto seu, o curta-metragem em que representara tão penosamente parecia uma pequena jóia de espírito. Janet, pensou ele, jamais parecera tão encantadora. As ressoantes afirmações de Hal sobre as virtudes da democracia jamais pareceram mais convincentes. As suas próprias observações haviam-se misturado sem dificuldade com o hábil jogo cénico de Brodski. Até mesmo a seus olhos duvidosos, ele parecia um médico realmente devotado, satisfeito em abandonar a fama e Lakewood para dar sua contribuição à vitória...

Acendendo-se as luzes - e no momento em que Brodski reclinava-se relaxadamente no divã para acender um charuto - Bruce descobriu que era um choque a volta à realidade diária. Já percebera que não fora chamado para expressar opiniões sobre o cinema. O fato de o cameraman ter-se afastado apressadamente e a entourage se dissolvido sem ordens constituía evidência de que o encontro tinha outra finalidade.

- Quando voltará ao Exército, Major?

- Voltarei de avião ao Leste amanhã, às nove.

- O seu navio já está pronto?

- Devemos partir de Charleston na próxima semana para um cruzeiro de familiarização. Logo que estivermos em condições, receberemos as ordens finais.

- A sua reunião com a Senhorita Josselyn será curta.

- Ainda assim, foi mais do que eu esperava.

- Ela diz o mesmo - continuou o diretor. - Em semanas recentes, ela se convenceu de que as circunstâncias os reuniriam. Isto faz parte da crença dela de que a sua estrela sobe... de que o senhor é um símbolo de boa sorte para ela.

- Ela não ficará decepcionada mais tarde?

Brodski inclinou-se para estudar o visitante através de pesadas pálpebras.

- O senhor se refere ao trabalho no estúdio ou ao seu interesse pessoal pelo bem-estar dela?

- O senhor supõe que estamos apaixonados?

- Isso dificilmente seria uma suposição. O senhor esteve diante de minhas câmaras. Como todos os amadores, suas emoções eram plenamente visíveis.

- Estou disposto a fazê-la feliz, se ela quiser.

- Então direi a verdade, como a vejo. O filme que acabamos de terminar é uma diversão para militares... tão encantadora e natural como os próprios espetáculos de Janet nos acampamentos. Terá sucesso em todas as ocasiões em que os militares tiverem uma noite livre. O que virá depois é outra estória. Janet deu tudo o que tinha. Ao estúdio e a mim.

- O senhor já disse isso a ela?

- Até começar o próximo filme dela estou reservando para mim as más notícias.

- Mas o senhor confiou em mim.

- Porque o senhor guardará meu segredo. De certa maneira, tenho certeza de que todos os senhores concordam que Janet Josselyn é uma pessoa excepcional. Ela jamais se tornará uma grande atriz... mas não há a menor dúvida sobre o seu entusiasmo pela vida. Se ela puder encontrar a finalidade apropriada, penso que será capaz de dedicação completa. Hoje, naturalmente, o trabalho. Amanhã, poderá ser a felicidade do marido.

- Suponhamos que o senhor esteja enganado a respeito do talento dela?

- Janet tem aptidão, não talento. Um jeito para imitação, uma agradável voz de contralto de salão e uma presença encantadora. combinado com a farsa que criei como veículo, um elenco de coadjuvantes de primeira classe e uma bela partitura musical, ela passará. Mas dificilmente poderemos repetir a fórmula.

- Suponhamos que seus receios sejam confirmados...

- Não os chame de receios. São certezas.

- O senhor está-me pedindo que a console se lhe cancelar o contrato?

- A menos que julgue a tarefa pesada demais.

- Segundo penso, amar significa compartilhar do bom e do mau. Eu casaria com ela amanhã, se ela quisesse... mas não tenho certeza de que ela esteja pronta.

Os olhos de Brodski estavam presos à tela escura como se esperasse que lá aparecesse um milagre.

- Janet Josselyn é filha de um homem rico e poderoso. Desde a infância ela teve o melhor que o mundo pode oferecer... incluindo o sucesso que eu dirigi. Ela espera fazer outros sucessos de bilheteria e casar com o homem que escolheu. Conforme vejo as coisas, o senhor chegou no momento ideal para conquistá-la - transbordante de honras próprias, prestes a partir numa romântica missão de combate, cheio de planos para a felicidade dela.

- O senhor está fazendo com que a vida dela - e a minha pareçam um dos seus roteiros.

- Acredite-me, Major, a vida seria suportável se imitasse a arte com mais frequência.

- Não discutirei esse ponto, Sr. Brodski. Afinal de contas, o senhor constitui uma demonstração dessa tese.

O diretor aceitou o cumprimento com um sorriso.

- Hoje, com a minha câmara mágica para sustentá-la, Janet está vivendo plenamente. Ela enfrentará o primeiro teste real quando a próxima fita fracassar - e ela será forçada a encontrar outra raison d’être. Se o senhor puder fornecê-la, ótimo.

- O senhor parece esquecer que ela está noiva de Hal Reardon.

- O Deputado Reardon é um homem prático, como eu. Ele já compreendeu que Janet tenciona prolongar a estada aqui a despeito da oposição dele. Se ela se voltar para o senhor, tenho a certeza de que ele não intervirá.

- O senhor então está-me aconselhando a tomar a noiva de outro homem... num momento em que ela é vulnerável?

- Para cunhar uma frase, Major Graham, vale tudo no amor e na guerra. Se deseja essa moça, lute para conquistá-la. Se ela, por seu turno, desejá-lo, ela se beneficiará com o esforço, qualquer que seja o resultado.

- vou pensar no seu conselho. Sei que foi oferecido de boa-fé.

- O senhor não pode pensar por tempo longo demais, se o seu avião parte amanhã. Às seis horas darei uma festa no palco para comemorar o fim da produção. É em honra de Janet e, portanto, espero que compareça.

- Hal quer que eu o encontre às cinco. No Baltimore.

- Podem vir juntos, se quiserem. - Mais uma vez o diretor inclinou-se para examinar Bruce friamente. - Não que isso importe... mas como um homem como o senhor e esse príncipe dos trapaceiros entraram em contato?

- Eu lhe poderia fazer a mesma pergunta.

Brodski levantou-se e o acompanhou até a porta. A despeito dos ombros gigantescos e andar pesado, a sua maneira foi estranhamente gentil.

- Acontece que sou um dos acionistas desta fábrica de sonhos. Descobrimos em uma ou outra ocasião que o Deputado Reardon era útil, e vice-versa. Às vezes - e o curta-metragem sobre bónus de guerra é um exemplo - fazemos ilusões sob encomenda, como um favor a Washington. Favores são feitos em troca.

Haviam penetrado na rua principal do estúdio. A luz incandescente da tarde californiana, pondo em nítido relevo os cenários exteriores, tornou a cena ainda mais extravagante, incluindo a meia centena de extras vestidos de cavalarianos e índios sioux, tomando Coca-Cola nos portões do Forte Laramie antes de voltarem às posições de combate.

- Respondi a sua pergunta, Major - disse Brodski. - O senhor responderá a minha?

- Hal e eu fomos da mesma fraternidade na faculdade. No campus, ele habitualmente conseguia dizer a última palavra. Ao vestir esta farda, insistiu em supervisionar minha carreira no Exército. Isso faz parte de uma compulsão de apresentar-se como profeta, com raios e tudo.

- O senhor é violentamente contra tal compulsão?

- Às vezes julgo-a bastante irritante.

- Posso perdoar-lhe a impaciência - disse o diretor. - Afinal de contas, trata-se de um traço que eu compartilho com Reardon. Ambos somos mercadores do faz-de-conta, cada um à sua moda. A mercadoria é muito potente, Major Graham; não a rejeite com demasiada ligeireza, por favor. Hoje, com a sobrevivência em perigo, o homem está ansioso para encontrar um clima em que suas mais profundas esperanças frutifiquem. Enquanto meus filmes criarem esse clima, ganharei o suficiente para viver. O mesmo acontece com o político que nos promete vitórias e uma paz perfeita.

- O senhor, então, acha que Hal serve a uma finalidade?

- Hal está em preparo para o papel. No fim, talvez se transforme num dos líderes deste país. Mais de uma vez eu mesmo vi um grande papel transformar um ator num grande homem - Brodskj moveu as mãos num largo arco, abraçando o estúdio e o céu sem jaca acima. - Paz e felicidade são sonhos duradouros. Importa, por acaso, se forem inatingíveis, enquanto forem procurados? Nos meus roteiros, o bem usualmente derrota o mal. Na projeção de amanhã do Deputado Reardon o senhor encontrará a mesma promessa. Mesmo que ele não seja capaz de realizá-la, merece a oportunidade.

- Eu ficaria mais à vontade se ele estivesse ajudando o senhor... em vez de planejar um mundo melhor.

- Em benefício do mundo, esperemos que sua preocupação não tenha fundamento - replicou Brodski. - Não se esqueça de que o espero na festa. Agora farei sua fortuna nesta parte do mundo levando-o até o portão.

No saguão de Baltimore, Bruce fez uma ligação para a suíte de Reardon com uma meia esperança de que não houvesse resposta. A voz de Hal respondeu imediatamente.

- Você chegou exatamente na hora. Que tal o filme?

- Macio como seda. Você devia tê-lo visto.

- Confiei em Leo e Janet. Por que não lhe deveria confiar o meu perfil público? Afinal de contas, ele é o melhor em atividade.

- Posso endossar essa opinião agora que lhe vi o produto.

- Suba logo. Sabem que o estou esperando.

O andar superior era tudo aquilo que o cirurgião esperava, incluindo tapetes grossos nos corredores, fileiras de pesadas portas de carvalho e uma recepcionista que o estudou atentamente quando ele deu o nome. A suíte de Hal fazia parte do luxo geral, com uma enorme sala de estar decorada com mobiliário estilo império. Um panorama imenso das terras baixas de Los Angeles era emoldurado pelas altas janelas.

Surpreso ao encontrar a porta entreaberta Bruce entrou sem bater. Não viu sinais de Hal - e o estranho que se adiantou em sua direção parecia parte da decoração. Magro como um galgo e com a mesma nervosa alerteza, ele poderia passar por um cortesão do próprio Rei Sol - ou líder da revolução que transformava Versalhes em mera recordação.

- Sou Mike Derwent, Major - disse ele. - Posso preparar-lhe uma bebida?

- Obrigado, não. - O recuo fora instintivo. Michael Derwent

- um incansável membro dos grupos de pressão em Washington era presidente de uma das mais ativas firmas de publicidade de Nova York. Desconfiando dele à primeira vista, Bruce manteve inalterável a máscara. Hal, recordou-se, chamara-o com uma finalidade. A presença de Derwent sugeria vagamente o que era.

- O seu Deputado esteve abrindo uma caixa de Brooks Brothers - disse o publicitário. - Acredite-me, ele é um cartaz de alistamento que ganhou vida.

Bruce voltou-se ao ouvir um estalo de saltos na porta que acabara de abrir-se na extremidade do salão. Hal Reardon - em uniforme de Tenente-Coronel com a passadeira de oficial de EstadoMaior enrolada num ombro - postou-se em rigorosa posição de sentido à porta. A pose foi dissolvida numa explosão de riso no momento em que ele atravessou a sala. «

- Não me denuncie por exibicionismo, Bruce - disse ele. Trata-se de um mero ensaio.

- Quando é que você entra em serviço ativo?

- Dentro de uma semana, a partir de têrça-feira. Curiosamente, mandaram-me para o Jeff Davis e a 759 Aerotransportada. Logo que tenha feito o curso de pára-quedismo passarei para o Estado-Maior do General Leonard, na Argélia. - Hal dirigiu-se até o bar onde se serviu e elevou o copo aos heróis ausentes. - Agora que a guerra na África engrenou, poderei chegar ao Mediterrâneo antes de você.

Derwent soltou um risinho e sentou-se num dos sofás de namorado que flanqueavam a lareira.

- Notou como ele fala bem gíria, Major?

- Eu não gostei, absolutamente - disse Hal. - Afinal de contas, eu estou na Reserva.

- Da Reserva ou da ativa, eu o aconselharia a voltar a ser civil - disse Derwent. - Essas passadeiras estão pondo nervosa a visita.

- Neste caso, divirta o Bruce enquanto mudo de roupa.

- Farei o pouco de que sou capaz.

- Dê-lhe a dica, enquanto faz isso - disse Hal. - Escutarei daqui de dentro. - Levando o copo, dirigiu-se para o quarto. Observando Derwent levantar-se para preparar outro uísque com soda, Bruce teve certeza de que a entrada e a saída - como a brincadeira - haviam sido bem ensaiadas.

- Nós dois fomos convidados à suíte de Hal por um motivo, Major Graham - disse o publicitário. - Naturalmente o senhor se sente um pouco indignado.

- Não, até que o senhor me diga a causa.

- Afinal de contas, o senhor veio aqui para dar expressão pública a uma queixa...

- Por que supõe isso?

- A pessoa habitualmente supõe, quando se trata de Hal... E é para isso que existem os servidores públicos. Em vez disso, descobre que estou prestes a lançar meu próprio ataque. Não acho que indignação seja palavra forte demais.

- Eu não poderia negar que estou confuso.

- Poderei então começar a minha dica... para usar a palavra do dono da casa?

- Faça-o, por favor.

- vou usá-lo como um tribunal irregular. Esperemos que o senhor seja imparcial. - O agente publicitário abriu uma pasta e tirou uma folha com cabeçalho impresso. - Chame a isto de a minha primeira prova, se quiser. Ela explica muita coisa.

Bruce estudou o papel timbrado superiormente bem impresso. Mesmo antes que sua importância fosse plenamente percebida, o motivo da presença de Derwent se esclareceu imediatamente:

 

           SOCIEDADE JAMES LOWELL

           247 Park Avenue, Nova York

 

A margem esquerda da página estava repleta de nomes, listados em ordem alfabética e dignificados por uma única palavra: PATROCINADORES. Era uma imponente folha de chamada, um corte dos líderes das profissões liberais e dos negócios da nação. A carta em si, mimeografada sem um senão, continha cinco parágrafos:

Querido Amigo,

O primeiro homem a ser ferido em Pearl Harbor, o Sargento James Lowell, tornou-se para todos nós um símbolo na vida e na morte. Os seus admiradores juntaram-se a mim com o intuito de formar uma fundação filantrópica, sem finalidade lucrativa, levando-lhe o nome - e cujo objetivo é perpetuar os princípios e esperanças pelos quais ele deu a vida.

Tivesse vivido, era intenção do Sargento Lowel organizar todos os americanos empenhados na atual luta pela liberdade, e, através deles, contribuir para assegurar a paz mundial quando cessasse o conflito. Não podemos pensar em melhor homenagem à sua memória do que reunir forças para concretizar essa esperança.

Os nomes constantes da lista impressa constituem apenas uma pequena fração de homens e mulheres que se orgulham de serem conhecidos como primeiros membros da Sociedade James Lowell - um nome que algum dia terá significação universal em todos os lugares em que homens conjugam forças para construir um mundo melhor.

O abaixo-assinado foi encarregado pelos membros fundadores de convidá-lo a alistar-se em nossa causa comum. A filiação, neste momento, não envolve obrigação alguma salvo a devoção aos princípios citados acima. As contribuições são - e serão - voluntárias.

À medida que amadurecerem nossos planos, você será informado de sua natureza. Enquanto isso, precisamos de sua ajuda. Solicitamos sua opinião sobre a manutenção da paz mundial. E pedimos as suas orações pelo nosso sucesso.

Sinceramente, MICHAEL DERWENT

Bruce leu duas vezes a carta antes de devolvê-la ao agente publicitário. Tentara ao máximo concentrar-se nas palavras doces como mel que prometiam tanto e diziam tão pouco, mas não pôde impedir que seus olhos se desviassem para a lista de nomes à margem.

- Posso saber onde começou isso?

- O nome e o endereço estão à sua frente. Acabamos de fundá-la de acordo com as leis de Nova York.

- O endereço, segundo penso, é também o do seu escritório.

- Por ora. Sou também o secretário encarregado das atas.

- O senhor escreveu esta carta, Sr. Derwent?

- Foi escrita pelos meus redatores... por solicitação do meu cliente.

- Entendo que o senhor solicitou também os patrocinadores.

- Solicitar é uma das minhas principais atividades - disse o agente. - Neste caso, não foi difícil encontrar patrocinadores.

Hal falou através da porta aberta do quarto e havia no tom de voz uma ponta de malícia.

- Diga a Mike que é uma jogada fraudulenta, se quiser, Bruce. Você não o pode magoar.

- O Major Graham jamais seria tão rude assim - disse Derwent.

- O Major Graham tem uma reputação de franqueza.

Derwent ignorou a interrupção com um rápido movimento da mão para trás - tal como um diretor que repreende um ator por omitir uma deixa.

- Não posso acreditar que o senhor nos condene assim de pleno, Major. Os fundadores da Sociedade Lowell, conforme viu, constituem um corte do que de melhor existe neste país. Nós estamos pedindo convertidos, não contribuições...

- Um momento, por favor. - Ouvindo sua voz interromper a bem modulada recitação, Bruce percebeu que não havia meio de disfarçar a cólera. O que o perturbava mais era a certeza de que ela carecia ainda de um alvo. - O senhor está ensaiando uma promoção de Vendas? Ou quer a minha reação a esta carta, como está?

- Dê-me sua opinião sincera, por favor.

- Eu não gosto de uma única palavra nela. Na minha opinião, é escorregadia, com frases bem construídas... e sem sentido.

- Gostaria de saber que reação provocou, somente em termos de dinheiro?

- Tenho certeza de que o senhor arrecadou bastante. Quem é que o senhor está planejando explorar? O público americano? A memória do Sargento Lowell? Ou ambos?

- Ninguém está sendo explorado. Os objetivos da Sociedade James Lowell são irreprocháveis. O mesmo acontece com os patrocinadores e o financiamento.

- O senhor aceitou donativos de veteranos... ou de suas famílias?

- Naturalmente. Os resultados, somente dessa origem, foram espantosos.

- E o que acontecerá aos donativos... enquanto o senhor estiver ainda na fase oratória?

- Cada centavo foi submetido à auditoria e posto sob a guarda de terceiros. No final, o grosso da soma será usado para construir um centro de reabilitação em Concord, o local de nascimento de Jimmie Lowell.

- Quem lhe paga as despesas?

- Nossos membros fundadores, cujos nomes o senhor viu na lista impressa. A maioria é de milionários muitas vezes. São também sinceros americanos, ansiosos para contribuir para a paz mundial...

A voz de Hal penetrou na sala vinda do quarto. O tom era mais remoto... e ligeiramente divertido.

- Nós podemos provar essa bravata, Bruce. Há dinheiro para queimar nas mãos dessa gente. Todo ele voluntário... e dedutível do Imposto de Renda.

- Você é também contribuinte?

- Estou inteiramente fora disso. Por favor, ouça Mike até o fim. Ele não o enganará.

Mais uma vez, o agente publicitário calou Hal com um gesto.

- Um homem que está prestes a engajar-se num regimento aerotransportado dificilmente poderá ter seu nome no cabeçalho. Chamemos o Coronel Reardon de observador simpático, e nada mais.

- Mas o senhor já admitiu que ele é seu cliente.

- Hal tem sido meu cliente desde que entrou no Congresso. O mesmo aconteceu com o pai dele. Ajudei a organizar a Sociedade James Lowell a pedido dele. A ligação termina aí.

Sufocado pela maré da prosa de Derwent, Bruce hesitou na resposta. Até aquele momento reagira ao instinto, a um desprezo que não podia controlar. Era outra questão pôr a desconfiança em palavras, ferretear Derwent como uma ave de rapina, com um ninho próprio a construir.

- Por que não deixa que as ideias do Sargento Lowell se desenvolvam naturalmente?

- Responderei a essa pergunta com outra, Major. O que é mais vital em nosso dia e época - o herói em si... ou a imagem do herói?

- Eu prefiro a substância à sombra.

- Quem não prefere? Mas resta o fato de que os produtos devem ser pré-vendidos antes que o público os compre seja uma nova pasta de dentes, um novo carro, ou um novo código de ética.

- Acho que uma boa causa vende-se por si mesma.

- O senhor talvez mude de ponto de vista quando nossa causa estiver praticamente lançada.

- Então, já escolheu a data de lançamento?

- Naturalmente, devemos ser orientados pelo sucesso de nossas armas no exterior. Até esse momento, podemos dar-nos ao luxo de marcar tempo com esses nomes em nosso papel timbrado. O senhor não concordaria que se trata apenas de prudência comezinha?

- Como é que podemos concordar a respeito de alguma coisa... quando não tenho nem mesmo certeza do que o senhor está vendendo?

- Perdoe-me por contradizê-lo... mas os meus argumentos de venda não podiam ser mais claros. Em minha opinião, é o senhor a vítima de pensamento confuso.

A voz de Hal flutuou mais uma vez para dentro da sala.

- Você já cantou sua ladainha, Mike. Vá pegar seu trem enquanto pode.

O agente publicitário depositou o copo na mesa.

- Boa sorte com esses uniformes, Hal. Tenho certeza de que vai usá-los com distinção. Compreendo suas reservas, Major Granam e tenho certeza de que as superará. Entrementes, espero que nos despeçamos sem rancor.

, - Até agora estou mais confuso do que zangado. : - Não me julgue com excessivo rigor, por favor... até que a Sociedade Lowell esteja bem iniciada. Sei que é difícil de acreditar, mas eu sirvo a uma finalidade em nossa ordem social. O senhor aplaudirá o meu último produto... quando Jimmie Lowell for parte tão integrante do lar americano como o Sabão Holandês.

Passeando sobre o tapete que cobria o salão de ponta a ponta, Bruce conseguiu sufocar o pior do nojo que Derwent lhe inspirara. A apresentação feita pelo homem, disse a si mesmo, fora franca: ele nada disfarçara na manifestação de intenções. O Sargento James Lowell e seu sonho - estavam para ser mercantilizados - tão impiedosa e brilhantemente como uma nova emissão de debêntures... A sua própria reação, sabia, baseara-se em simples e visceral pressentimento: restava o fato de que as crenças do Sargento Lowell precisavam de revisão antes de poderem ser oferecidas ao público. Quem era ele para pôr em dúvida os nomes constantes do papel timbrado? Para insistir que o credo do Sargento e sua memória estavam a ponto de ser fatalmente enlameados?

No momento em que Hal saiu do quarto num bem cortado trajo civil, Bruce voltou-se para ele com alívio. Comparado com o latão de Derwent, Hal parecia um antagonista com quem podia lidar... e conhecido.

- Você demorou um bocado para mudar de roupa.

- Estava-lhe dando tempo para recobrar-se da surpresa. é sempre um choque quando um modus operandi nos cai nas mãos sem aviso.

- De que outra forma queria você que eu reagisse?

- Conhecendo-o como conheço - disse Hal - eu estava preparado para o inevitável. Mas ainda achava que devia ouvir Mike antes de embarcar naquele navio. Afinal de contas, Jimmie era seu protege quase antes de ser meu.

- É muito gentil de sua parte admitir que eu conheci Jimmie. Pensei que havia esquecido.

- Dê a Mike o valor que ele merece - disse Hal. - Ninguém mais poderia ter criado essa fundação com tal rapidez. Se não perdermos o nosso senso de oportunidade, o céu é o limite... quando a guerra acabar. Não era isso o que Jimmie queria?

- Não tenho certeza de que ele teria reconhecido as próprias ideias quando terminar a venda macia de Derwent.

- Não será justo esperar e conferir? A sociedade mal foi lançada ainda. Se os assuntos mundiais tomarem uma direção errónea, ,a sociedade poderá transformar-se em outro sonho, desfeito da noite para o dia. Nesse caso, nada perderemos ficando na moita. Se eu estiver certo - e Mike puder vender a ideia - iremos a plenário, não podemos perder de maneira alguma.

- Em outras palavras, você tenciona apoiar a Sociedade Lowell se ela tiver dez milhões de sócios no pós-guerra. E abandoná-la se os patrocinadores ficarem sem gás?

- Esse é o meu direito, como agente livre. Especialmente, quando estou pagando a Mike uma bela soma pelo experimento.

- Juntamente com trinta outros cautelosos milionários em busca de novas deduções do Imposto de Renda?

- Bem, agora por que está todo amargurado? - Havia uma nota seca na voz de Hal. - Suponhamos que eu lhe oferecesse um papel importante na Sociedade Lowell?

- Eu declinaria, sem agradecer.

- Não seja um idealista obstinado a vida toda, Bruce. Nós mereceremos o que obtivermos desta guerra. Quando ela acabar, nós dois seremos provavelmente heróis, com metros de fitas de serviço no peito e constelações de estrelas de batalha. Quem poderia representar melhor os veteranos do que um Coronel pára-quedista? E um cirurgião cujo nome já é conhecido de milhões de americanos?

- Que papel tinha você em mente para mim?

- Que tal ser o nosso primeiro vice-presidente no pós-guerra? E diretor do Centro de Reabilitação que construiremos em Concord?

- Existem poucas coisas de que eu goste menos.

- Por que não pode afastar a convicção de que estou promovendo meus próprios interesses?

- Eu me recuso a acreditar naquele publicitário que você contratou como porta-voz. Não me diga que ele pode disseminar o credo de Jimmie sem destorcê-lo.

- Você manterá essa opinião para si mesmo até que Mike demonstre que você está enganado?

- Nada prometo agora. Em primeiro lugar, terei de chegar a uma conclusão de se você realmente apoia a paz mundial. Convença-me disso, e eu entrarei na sociedade sem suborno. Eu nem mesmo me queixarei da maneira como você me preparou como figura de proa.

- Quem é que lhe deu ideias tão maldosas? - perguntou Hal.

- A reunião com Derwent contribuiu. A maneira como você lhe deu a palavra... e a maneira como vocês dois tentaram enganar-me. E, agora que estamos falando no assunto, acho também que o curtametragem que fizemos para Brodski faz parte da promoção.

- Você se importa em dividir sua glória com um colega de turma... e um amigo?

- Não, absolutamente... se ajudar a vender bónus de guerra Simplesmente, não suponha que passei para seu lado.

- Talvez esta não seja a ocasião de mencioná-lo - disse Hal

- Mas acho que você deve fazer um esforço... por questão de lealdade para comigo.

- Por que você evitou que eu fosse mandado separar correspondência na Inglaterra?

- Não esqueça a maneira como o salvei de Jake Sanford.

- Foi o Cirurgião Geral quem fez esse trabalho de salvamento, e não você, e que, igualmente, enviou-me ao estúdio de Brodski e me colocou num navio-hospital. É verdade que você me salvou a vida no Acampamento Bruckner, e eu já lhe agradeci por isso. Os seus serviços terminaram aí. No momento, nada lhe devo... e, portanto, deixe de alegar coisas.

Hal encolheu os ombros.

- Prevejo que você ainda se reunirá a nós quando a Sociedade Lowell tornar-se parte da vida americana. Você faz parte dela.

- Como é que posso entrar em alguma coisa... quando estou prestes a pedir a Janet que se case comigo?

Hal voltou-se para as janelas francesas e a vasta cidade lá embaixo pontilhada pelo fulgor dos poços de gás em chamas, agora que o entardecer começara a lhe obscurecer os duros contornos.

- Todos nós somos civilizados demais para perder o sono em virtude de um compromisso adiado - disse ele. - Janet disse-me que quer experimentar o cinema antes de pensar em casamento. Se ela escolher experimentá-lo como o mais novo candidato, eu dificilmente farei objeções.

- Nem mesmo um político pode ser assim tão tolerante.

- Será que ouço, mesmo agora, uma nota de sarcasmo em sua voz? - perguntou Hal. - Está resolvido a desconfiar de mim até o fim?

- Não nos precisamos separar dessa maneira. Por que não declararmos simplesmente um armistício até que eu esteja seguro de suas intenções?

- Muito bem, Bruce. Desde que você nada mais me concede, aceitarei a bandeira de armistício.

No momento em que Hal estendeu a mão, o cirurgião observou que o sorriso nada perdera de sua potência. O vigor do aperto de mão, igualmente, continuava o mesmo. Os seus dedos doeram com a pressão.

- Inimigos cordiais até aviso prévio - disse Hal. - Se você tenciona comparecer à festa no estúdio de Brodski, deve ir logo para Hollywood.

- Você não vai também?

- vou fazer um discurso em São Francisco hoje à noite. Parto de avião dentro de uma hora. Receio que isto seja o adeus... até que nos encontremos na África.

- Por que pensa que nos encontraremos?

- Os nossos caminhos estão destinados a se cruzar Bruce... e eu providenciarei para que isso aconteça. Se estiver ainda em dúvida sobre o nosso caminho para a Idade de Ouro, mantenha-se em contato com Shane McLendon. com aquela placa verde no uniforme, ela pode ir a qualquer lugar.

- Shane também é sua agente de publicidade? Isso eu recuso a crer.

- Shane tem ideias próprias - disse Hal. - Às vezes, quando tenho sorte, ela serve como minha consciência. Mas não me diga que a minha consciência precisa de ajuda no momento, por favor. Você já me magoou hoje o suficiente.

Bruce esperara que a festa no estúdio fosse uma bacanal completa. Em vez disso, era um eco na memória - mais exótica a sua maneira do que a festa de open house de Josselyn em Five Oaks, mas estranhamente semelhante.

Brodski pusera o buffet e o bar em um dos cenários meio demolidos de Pierrette. Havia a mesma inevitável exibição de convidados fardados, os mesmos risos que subiam em ondas misturando-se com o ritmo da orquestra. A banda que aparecia no filme tocava-lhe a música naquele momento, animada pelo champanha do diretor. Os atôres constituíam a única nota bizarra. A maioria viera de fantasia e maquilhagem. Pareciam todos alegres, como se a festa fosse uma cópia das partes que acabavam de representar. A mais animada, observou Bruce, era a estrela da película.

Janet estava à frente de uma linha de conga no momento em que ele entrou no palco: a fila de dançarinos acabara de serpentear pelo cenário para saudar o diretor, que se sentava como um deus na sua cadeira pessoal, sob uma bateria de câmaras. Enquanto Bruce observava, a orquestra deslizou para a canção que servia de tema ao filme e Janet saiu rodopiando para a pista de dança do cenário - uma réplica do Moulin Rouge... Iniciou uma alegre paródia de uma canção com Peter Vernon, o cantor-dançarino que era sinónimo de sucesso certo nas marquises dos cinemas do país e do exterior.

Vernon, que aparecera como ator convidado no filme recém-completado, estava reagindo à altura e seu sorriso mundialmente famoso brilhava sob as luzes. A dança de ambos, compreendeu Bruce fora um dos pontos altos de Pierrette. A casaca branca usada por Vernon e o vestido cor de tijolo de Janet, com o ousado decote e as saias de ruge-ruge, ajustavam-se perfeitamente ao momento. O estúdio vibrava ainda com os aplausos quando ela cantou o coro da canção em francês de pé quebrado.

A reprise foi curta. Terminado o coro, a banda iniciou o ritmo saltitante de Tuxedo Junction e a pista encheu-se de dançarinos. Vernon aproximou-se da estrela. Janet condescendeu em ser capturada pelo personagem juvenil - e o próprio Brodski levantou-se, numa onda de aplausos, para levar uma soubrette até a pista... Valia a pena atravessar o continente para ver aquele espetáculo, refletiu Bruce. Mas por que continuava ele pensando naquele domingo em Five Oaks? Por que lutava com a mesma ânsia de partir que o empolgara naquela tarde às margens do Severn?

O desânimo desapareceu no momento em que Janet o viu finalmente e lhe fez um cumprimento sobre o ombro do par. com aquele gesto de boas vindas, a moça que amara em Washington recuperou a personalidade: as lentejoulas que a cercavam pareciam ter tanta importância como uma mascarada de Véspera de Todos os Santos. Insistindo em sua memória em que a imagem era verdadeira, ele atravessou os portões do Moulin Rouge e tomou nos braços a estrela de Pierrette.

- Você chegou atrasado, Bruce.

- Para dizer a verdade, estive observando-a há bastante tempo.

Janet encostou o rosto no dele, deixando que ele a girasse à vontade pela pista.

- Por que não me tirou para dançar antes?

- Se quer saber, eu me senti como um intruso.

- Nunca se sinta dessa maneira novamente, por favor.

- Agora que a capturei, aonde levarei o meu prémio?

- Através da pista até aquelas mesas com tampo de mármore.

Guiando-a através dos dançarinos, Bruce sentiu os receios diminuírem. Isso, também, era um eco de Five Oaks - uma saída rápida da pista, com perspectivas de recompensas de natureza especial. Para que o estado de espírito não fosse estragado, não arriscou outros comentários até chegarem ao bar e levarem os copos para uma das mesas que cercavam a pista. Dois atôres de pontas - uma poule ordinaire e um apache de músculos de gorila - saltaram dos seus lugares para dar espaço à estrela... A exibição de cerimonial ajustava-se ao momento.

Sentando-se numa cadeira numa nuvem de babados, Janet apertou-lhe a mão sobre a mesa. O sorriso dela, como a comunicação instantânea entre eles, jamais fora mais caloroso.

- O que é que o fez demorar desta vez, Hal?

- Como é que soube?

- Ele telefonou, apenas para dizer adeus - respondeu Janet. - Ele se mostrou muito difícil?

- Não, realmente.

- Tenho certeza de que ele ainda pensa que nós somos peões no seu tabuleiro particular. Você se importa muito com isso?

- Não, se você não se importar. Afinal de contas, ele pensará assim até morrer.

Janet escutou com total atenção enquanto Bruce repetia os pontos principais do entrevero no Biltmore. Conservava ainda os dedos enlaçados nos dele. Os seus olhos, a despeito da agitação de alegria artificial que os cercava, dirigiam-se apenas para ele.

- Hal precisava de uma lição havia muito tempo - disse ela. - Obrigado por tê-lo esmurrado tão duramente.

- Mas foi como esmurrar um travesseiro... e tenho certeza de que ele voltará para receber mais. Ele já está planejando seguir-me até a África.

- Nós enfrentaremos a ameaça quando chegar a hora - disse Janet. - Pelo menos, ele nos deixou em paz no momento.

- Parece bom demais para ser verdade.

- Vou-lhe contar um segredo, Bruce. Pedi a ele que não viesse a esta festa. Pelo menos por uma vez, eu queria desfrutar devidamente de sua companhia.

- Então você rompeu realmente o noivado?

- Serei honesta e direi apenas que foi adiado.

- Até mesmo essa informação me dá esperanças. Por que o meio-têrmo?

- Tive de entrar em acordo para apaziquar o meu severo pai. Ele tem andado resmungando desde que ouviu dizer que eu faria um segundo filme. Se eu lhe dissesse que estava também rompendo com Hal ele me teria deserdado.

- Quando é que o rompimento se tornará oficial?

- Não decidi ainda.

- Será que eu posso lhe apressar a decisão?

- Estará você, por acaso, propondo-me casamento?

- Aqui e agora... num cenário de cinema, com seu diretor olhando. Naturalmente, eu teria preferido outro ambiente. Mas não tenho alternativa, agora que vamo-nos separar novamente.

Janet retirara os dedos enquanto ele falava e, naquele momento tinha-os enlaçados sob o queixo. O ar de sonho parecia apropriado a uma moça que recebia uma proposta de casamento. Somente o brilho nos olhos assegurou-lhe que isso não fazia parte de um papel.

- Eu me sinto honrada pela sua sugestão - disse ela, finalmente.

- Será esta a melhor resposta que me pode dar?

- É a melhor que tenho hoje. Nada posso dizer até me conhecer um pouco melhor.

- Você ficaria ofendida se eu lançasse um pouco de luz na sua confusão?

- Você não poderia me ofender, nem que tentasse, Bruce. É uma dessas coisas encorajadoras a seu respeito.

- O que está acontecendo é muito simples. No dia em que você escapou para a Califórnia, deixou o passado. Não encontrou ainda um modelo para o futuro. Enquanto isso, fez um filme de sucesso e outro está a caminho. Por que não continua a aprender a respeito de si mesmo?

- Isso é um cheque em branco para que eu faça o que quiser?

- Até que o seu futuro se consolide. Por que não?

Janet pensou na declaração enquanto seus olhos se voltavam para a pista de dança, onde Brodski dançava uma valsa surpreendentemente graciosa com uma soubrette num círculo de atôres que aplaudiam cada volta.

- Leo ajudou, naturalmente - disse ela. - Ele dita leis próprias neste mundo de sonhos. Até agora, ao que parece, correspondi a elas.

- E se sentiu viva, enquanto o fazia?

- Inteiramente viva... pela primeira vez.

- Estar vivo e saber disso - é um privilégio que poucos de nós desfrutamos. No seu caso, significa liberdade de seu pai... e de Hal. No cenário de Brodski você é rainha por direito próprio. E não apenas um peão no tabuleiro de Washington. Não perca jamais essa sensação. Se eu puder, ajudá-la-ei a mantê-la.

- Promete, Bruce?

- Prometo não apressar as coisas até que você esteja certa a meu respeito. A liberdade pode ser uma dádiva embriagadora se usada imprudentemente.

- Há um momento, você me disse para gozar a vida como pudesse. Agora me aconselha a tomar cuidado.

- Isso era a minha consciência escocesa falando, e não o Major Graham. Ele vai para a guerra hoje à noite... rezando para que você o envie feliz à batalha.

- Ousando amá-lo?

- Você me tirou as palavras da boca.

- Quando é que você parte?

- O nosso cruzeiro de familiarização começa na próxima semana.

- E você precisa viajar de avião, amanhã, para o Leste?

- Diretamente para Charleston.

- Então isto é um verdadeiro adeus.

- É o que parece. Agora que você ouviu tudo o que eu tinha a dizer - e me colocou em livramento condicional - apresento-lhe minhas despedidas. Não devo mantê-la longe de seus convidados.

- Essas pessoas não são minhas convidadas, Bruce. São atôres representando um papel numa festa para aumentar o cartaz com o diretor. E, por falar nisso, eu também. Dê-me outra hora. Irei procurá-lo onde você estiver.

- Eu dificilmente poderia convidá-la a ir para um alojamento de oficiais em San Pedro.

- Por que não vai a Puerta dei Sol e espera por mim.

- O que é Puerta dei Sol?

- A propriedade que aluguei quando vim para o Oeste. Eu lhe darei as chaves.

- A sua tia não estará esperando por você?

- Tia Hester foi a São Francisco para ouvir o discurso de Hal. Eu dei aos empregados uma noite de folga. Teremos a nossa Porta do Sol para nós até amanhã. - A estrela de Pierrette tirou do corpinho duas chaves numa corrente de ouro. - A maior é a do portão - explicou. - Corta o olho elétrico que me protege contra ladrões.

- E a segunda?

- A segunda é a da porta da frente. Há champanha no bar. Você não terá tempo de sentir-se sozinho.

 

                                 GELA

As inspeções semanais, um rito canónico no Exército, foram aspectos rotineiros da vida a bordo do Helen S. Peters desde que a 2419 Companhia de Navio-Hospital se fizera ao mar. Reconhecendo-lhes a absoluta necessidade como médico e oficial, o Major Bruce Graham descobrira que era a vida militar o que mais o desagradava.

O primeiro motivo, naturalmente, era puramente físico, uma sensação de claustrofobia, acentuada por um ligeiro enjoo que aumentava a cada descida aos conveses inferiores. Nesses locais, o sistema de ventilação de um navio de turismo de antes da guerra não podia remover os eflúvios de petróleo que subiam das praças de máquinas e porões enquanto os inspetores passavam de enfermaria a enfermaria, nem mesmo os odores hospitalares podiam ocultar o fato de que estavam a bordo de um navio a caminho de uma zona de combate. Uma vez tendo descido àquilo que - por falta de palavra mais estética - podia ser denominado apenas de os intestinos do navio, Bruce não mais conseguiu evitar aquele lembrete. Esses mesmos conveses, a despeito de todos os seus anteparos de aço e vigias, poderiam ser inundados por água salgada se a sorte os desertasse amanhã.

O segundo motivo ia mais fundo. Poucos dos homens e mulheres que entravam em posição de sentido nas manhãs de inspeção haviam sido experimentados em combate. Até que tivessem sobrevivido a esses testes, era forçoso considerá-los como tropas verdes a despeito de todo o treinamento recebido. Aqueles meses rigorosos - nos modelos em Jeff Davis, em Charleston e na travessia do Atlântico - haviam sido apenas pálidas pré-estréias da agonia que enfrentariam quando as primeiras ^padiolas esperassem vez nas escadas das escotilhas. Ensaios para aquele momento haviam sido exaustivos, mas nada havia que substituísse o esguicho de sangue numa garganta aberta, a aspiração torturada de um pulmão perfurado, as fezes que saltavam de um intestino rasgado.

Involuntariamente, as palavras de uma prece lhe subiram aos lábios antes de o ordenança abrir a porta da primeira enfermaria cirúrgica. Até agora, não tivera ainda tempo de pronunciar as palavras acima do nível de murmúrio. O treinamento da 2419 nada deixara a desejar: no momento, na manhã seguinte, em que homens na praia estivessem dando a vida, era injusto solicitar a proteção divina para um hospital ao largo, ou pedir que seu pessoal realizasse milagres.

De certa maneira, porém, julgava que essas enfermeiras, técnicos e cirurgiões treinados em universidades sair-se-iam com honra da primeira batalha. De alguma forma, sabia que estariam prontos com a morfina calmante para a dor insuportável, o tubo de sucção para evitar que um ferimento na garganta afogasse o doente no próprio sangue, o olho vivo que identificava pressão intracraniana num ferimento de cabeça, o sinal indicador de hemorragia no interior de um molde de gesso.

O ordenança berrou uma seca ordem de sentido. Bruce acompanhou-a com a segunda ordem ritual de ”à vontade”.

Seguido pela sua entourage (Capitão Eric Badger e EnfermeiraChefe Alice Stacey, cujas barras de Capitão, novas em folha, brilhavam no colarinho do uniforme) penetrou na primeira enfermaria cirúrgica e encontrou duas enfermeiras e seis técnicos convocados que constituíam o pessoal. Um olhar de relance mostrou-lhe que cada sapato apresentava um brilho deslumbrante, todos os botões estavam nas casas e cada fio de cabelo em seu lugar. As maçanetas eram espelhos de latão. O seu dedo enluvado de branco não conseguiu encontrar um vestígio de poeira na parte superior dos arquivos no escritório da enfermaria - e as tabelas colocadas em prateleiras mostravam-se tão preciosas como problemas não solucionados de geometria.

Desde que a enfermaria abria-se para os anfiteatros cirúrgicos no centro do navio e destinava-se a casos graves, os beliches eram colocados dois a dois e havia espaço bastante para que o pessoal desempenhasse suas funções. As camas estavam feitas com lençóis claramente vincados a ferro, cobrindo, a parte superior, exatamente doze centímetros do cobertor. Fazendo o esperado elogio e recebendo um estonteante sorriso da enfermeira encarregada, Bruce perguntou a seus botões se aquele rosto estaria tão radiante no dia seguinte, depois de ela ter atendido cem doentes gravemente feridos naquele mesmo aposento. Nutria a esperança de que o sorriso persistisse. O sorriso poderia ser melhor remédio para um moribundo do que as drogas armazenadas nos armários bem abastecidos.

A inspeção estendeu-se a áreas análogas no mesmo nível, incluindo os três principais anfiteatros cirúrgicos e as salas de emergência, menores e contíguas. Passou do tombadilho A para o B e do B para o C, continuando pelos depósitos de suprimentos gerais, as farmácias e as fileiras infindáveis de camas beliches de três níveis, reservadas aos casos menos graves no tombadilho D. Prosseguiu pelo tombadilho inferior, onde o Tenente Slade, oficial do Serviço Sanitário, esperava com o seu pessoal na cozinha do hospital, flanqueado por congeladores que permitiam a entrada de um homem, imaculadas mesas de trinchar, bem esfregados lavadores de pratos e fileiras de panelas de cobre organizadas em geometria própria.

No comissariado, como sempre, Bruce sentiu aquele medo desconhecido aumentar: a sensação de enjoo, de borboletas no estômago, no Tombadilho A era agora tão clara como o mal de mer. Havia algo nessas toneladas de alimentos e fileiras de ajudantes de aventais brancos que lhe atordoava os sentidos. Essa reluzente cozinha - onde flutuava um leve odor de cebolas - constituía um lembrete irretorquível de que multidões de feridos dentro de breve dependeriam para a sobrevivência com tanta certeza do chefe da higiene quanto do bisturi curador... Perguntou-se se o Tenente Slade sentia o mesmo mal-estar quando espiava pelas portas de um anfiteatro cirúrgico.

No tombadilho abaixo, a inspeção prosseguiu rapidamente sobre as grades de aço dos porões, onde as pulsações dos diesels do navio constituíam evidências tangíveis de que o Helen S. Peters movia-se incessantemente para seu destino. Nesse nível, a corrente de ar que saía dos ventiladores estava impregnada de um forte cheiro de óleo combustível... Não havia necessidade de demorar-se na praça de máquinas. A navegação estava fora das preocupações do chefe da cirurgia, uma vez tivesse ele verificado as bombas que lhe abasteciam as enfermarias e os dínamos que serviam aos tombadilhos acima.

A marcha ritual nada revelou de novo: Bruce não esperara sinal algum de negligência em qualquer nível. A excursão terminou com a revista dos aposentos dos oficiais e enfermeiras - e passou pelo espaço residencial destinado aos técnicos de laboratório, soldados do corpo sanitário e Polícia Militar. Agradou-lhe observar a mesma meticulosa atenção aos detalhes que notara embaixo. Isto, igualmente, era sinal de um navio bem organizado.

A sala-de-estar dos oficiais - onde o grupo debandou - conservava ainda as bandeirolas da dança da noite anterior, embora as mesas tivessem sido empilhadas e coberto o piano miniaturizado. Na última noite, essa longa sala à meia-nau saltitara com música de jazz: ouvira-a claramente enquanto lia no beliche do convés inferior. Ambos os membros do grupo de inspeção haviam feito parte dos farristas... Quase a ponto de comentar a festa, forçou-se a dispensar o Capitão Badger e a Enfermeira-Chefe Stacey, com o mesmo tipo de continência com que respondera ao ordenança.

Os testes que aguardavam a guarnição do hospital tinham sido praticamente visíveis naquela manhã - tão reais, à sua moda, como a pulsação dos diesels ou seu próprio ritmo cardíaco. Como a prece que deixara na enfermaria cirúrgica, parecia mais prudente ignorá-los nessa véspera de batalha.

O trabalho burocrático, que é o tormento do oficial-médico embarcado ou em terra, manteve-o ocupado até terminar quarto do meio-dia. Sabendo que não teria outra oportunidade de limpar a escrivaninha em futuro próximo, permaneceu ocupado com a avalancha de pastas até assinar o último relatório. Morria a tarde quando saiu para o convés de passeio, onde respiraria o primeiro hausto de ar salgado desde a inspeção.

O enorme navio pintado de branco cortava ainda um mar vazio. Os ventos de través haviam diminuído de força e o Mediterrâneo mostrava-se mortalmente tranquilo num banho de luar de julho. Na véspera, o tombadilho e cada espaço disponível foram congestionados por gente tomando banho de sol, interessada em dar um toque final no bronzeado adquirido na travessia do Atlântico. A essa hora, a maioria dos heliófilos havia-se recolhido. Marinheiros retiravam as lonas dos holofotes que iluminariam o navio de popa à proa ao cair a noite. Lâmpadas especiais haviam sido montadas no tombadilho dos botes salva-vidas para delinear as cruzes vermelhas pintadas nas chaminés e na superestrutura e a larga faixa verde que envolvia todo o casco, identificando o Helen S. Peters como navio de socorro para os bombardeiros de mergulho, submarino e as barcaças que trouxessem da praia os feridos.

O fato de o Comandante do navio navegar isoladamente não o surpreendeu. Mesmo quando serviam a uma flotilha de invasão, os navios-hospitais navegavam sozinhos para seus pontos de encontro. O método fazia parte de um padrão, distinguindo-os das unidades de combate e identificando-o durante dia e noite. O paradeiro exato da frota de invasão, tal como seu objetivo eram segredos conhecidos apenas pelo Capitão na ponte. Mas o fato de o navio ter sido reabastecido em Argel e o fato associado de seu presente curso ser aproximadamente de norte por nordeste eram suficientes para definir-lhe a missão.

Tal como os demais a bordo, Bruce sentiu a primeira e inevitável contração de tensão visceral logo que a missão foi revelada em letras que até mesmo um leigo podia compreender. Como os demais, encontrara consolo na não muito duvidosa garantia, transmitida como adrenalina psíquica pelo cérebro, de que as normas da Convenção de Genebra prevaleceriam no combate que se avizinhava e que as tarefas que desempenharia no interior do navio desenvolver-se-iam com tanta suavidade como nos alertas de emergência em Lakewood. Ao contrário dos demais, ele julgara necessário expulsar da mente certos conhecimentos especiais, incluindo os meses passados em Barcelona, época em que o inimigo usara as cruzes vermelhas de outro navio-hospital como alvo de referência e sua unidade médica fora forçada a forrá-las com camuflagem para sobreviver...

No corrimão de estibordo, olhando para a névoa de calor que obscurecia o encontro entre céu e mar, sentiu vontade de ter algum tipo de escolta nessa viagem. Embora perdida na imensidão azul, a Itália não estava muito longe no horizonte oriental. Não precisava dos instrumentos na sala de mapas do Comandante para traçar o curso que seguiam - ou calcular que avistariam a costa da Sicília antes do amanhecer. As apostas haviam cessado muito antes: o consenso, do castelo da proa ao castelo da popa, havia-se fixado naquela ilha como destino.

Somente o local do projetado assalto era assunto de conjectura. A maioria dos apostadores preferia uma cabeça-de-ponte no Golfo de Gela, figurando o porto de Siracusa como segunda alternativa.

A Sicília, colocada como informe bola de futebol na ponta da bota italiana, tinha a seu favor o peso da logística desde a retirada do Exército alemão do Norte da África. Uma vez em mãos aliadas, talvez se transformasse em uma pointe d’appui, de onde pressão poderia ser aplicada ao próprio continente - inicialmente mediante ataques aéreos e, em seguida, por invasão direta através do Estreito de Messina. Bruce vira o suficiente da fôrça-tarefa em Argel para saber que o assalto seria maciço. No dia seguinte, ao mais tardar, a guerra pela Fortaleza da Europa teria finalmente começado.

Entrementes, era ainda possível ignorar aquela terrível certeza e olhar para os tombadilhos do Helen S. Peters e insistir em que o tempo era um sonho em um mar mediterrâneo morto, que tivera sua parcela de morte e glória. Enquanto a ilusão durou, não teria ficado muito surpreso se uma galera romana tomasse forma no horizonte em ardente perseguição a uma trirreme grega. Ou, para descer ainda mais fundo, a vela preta de uma gaoul fenícia numa viagem de Tiro a Cartago, novecentos anos antes da era cristã.

Versos lhe vieram à mente, saídos daquela miragem azul e ele os pronunciou em voz alta:

Quinquireme de Níneve, procedente da distante Ofir, Remando para o lar e para o abrigo na ensolarada Palestina, com uma carga de marfim, Sândalo, cedro, e vinho branco doce.

- Não pare, por favor.

Bruce voltou e viu à frente uma descalça Alice Stacey. Na tarde de folga, a Enfermeira-Chefe mudara o uniforme pelo mais sumário dos maiôs, um trajo que lhe realçava ao máximo a figura de modelo de Rubens. O sorriso que lhe deu - ao achegar-se no corrimão - era um audacioso lembrete de que a guerra e a morte constituíam prelúdios dos ritos de Eros.

- Mande-me embora se eu for demais - disse ela. - Mas você não pode censurar-me por investigar quando um chefe de cirurgia fala em verso. Você compunha... ou recitava?

- Recitava. Um trecho de Cargas, de John Masefield. Uma das rebarbas que ficaram presas à memória desde os dias de faculdade.

- Há mais alguma coisa?

- O resto é na mesma veia. Muda somente a geografia:

Majestosos galeões espanhóis procedentes do Istmo, Mergulhando as proas nos trópicos, ao largo de praias de palmeiras,

com uma carga de diamantes, Esmeraldas, ametistas, Topázios, canela e ”moidores” de ouro.

- Acho isso ainda melhor.

- Ouça o verso seguinte. Tenho esperança de sabê-lo ainda de cor.

Sujos costeiros britânicos de chaminé incrustada de sal Abrindo caminho duramente pelo Canal nos tempestuosos dias de março, com uma carga de carvão do Tyne,

Trilhos, lingotes,

Cavacos de madeira, artigos de ferro e bandejas baratas de

estanho. ’

- É essa sua maneira de trazer-me de volta a terra?

- Espero que o solavanco não tenha sido muito forte.

- Esta tarde eu preferiria ignorar o presente.

- Eu também, Capitão Stacey. Conforme observou, eu fazia um grande esforço. Infelizmente, devemos ambos lembrar-nos de que está na hora do exercício de salva-vidas.

- Vim perguntar-lhe a esse respeito. Eric diz que o pessoal de folga deve participar. Isso significa uniforme completo?

- Certamente. O destacamento que fosse tomar o barco ficaria enredado nas cordas se a visse como está agora.

- Você compreende que acaba de me fazer um cumprimento? À mulher e não à enfermeira?

- Talvez a poesia o tenha provocado.

- Pensei que fosse eu mesma, Bruce. Não esperarei demais, cedo demais.

- Você sabe que foi você, Alice... e você sabe muito bem por que. Agora, quer fazer o favor de trazer seu destacamento ao tombadilho, depois de vestir-se decentemente.

- Nós nos apresentaremos em tempo, Major. Obrigado pelo vislumbre por trás da armadura. É ótimo saber que o senhor é vulnerável... embora eu admita que minhas esperanças são altas demais. A Capita Stacey colocou um pé na escada para o tombadilho A, num movimento, aliás, que não constitui um desserviço a seu embonpoit.

- Principalmente agora, quando todo mundo sabe que o senhor é amigo de Shane McLendon... e de uma estrela do cinema. Isso é concorrência demais para uma pobre moça do ulterior.

- Churchill chama a frente mediterrânea de o macio ventre da Europa - disse Badger. - De certa forma, jamais consegui engolir essa metáfora.

- Por que não... quando estamos a ponto de mostrar que ele tem razão - perguntou Alice Stacey.

- Eu tenho a impressão de que o ventre é muito mais duro do que Winnie pensa - disse o Capitão Owen.

Bruce levantou a vista ao ouvir a troca de palavras. Phil Owen, o novo chefe do serviço clínico, acabara de chegar após ter prestado serviço de Estado-Maior em Londres. Tomara o navio em Gibraltar. Mais velho do que a maioria dos oficiais da reserva a bordo e duas vezes mais misantropo, constituíra um valioso contrapeso ao otimismo.

- Você acha que vamos dar uma topada amanhã, Phil?

- Não, na Sicília... com todos aqueles blindados que estamos desembarcando. Mais tarde, talvez a estória seja diferente.

O exercício terminara. Os três oficiais e a Capita das enfermeiras haviam-se dirigido para a sala de estar a fim de comparar notas antes do jantar. Badger, que acabara de acrescentar rum ao café - extraído do piano miniatura onde escondia a garrafa - adiantou-se para aceitar o desafio.

- Aposto qualquer coisa que a guerra italiana termina em um mês.

- Aceito a aposta - disse Owen. - Diga quanto, Eric.

- Todo mundo diz que eles pedirão a paz agora que expulsamos Rommel da África. Mussolini abdicará logo que cruzarmos o mar em direção ao continente.

- É verdade que o Duce está vivendo de tempo tomado de empréstimo - concordou Owen. - Espero que os italianos se rendam até o outono. Quando isso acontecer, a Wehrmacht simplesmente entrará no país. Teremos sorte se tomarmos Roma no próximo 4 de julho.

- Aposto cinco dólares que você está errado.

- Feito. Quer arriscar uma aposta, Alice?

A Capita Stacey sacudiu negativamente a cabeça.

- Você tem ganho demais de mim, Phil.

- Que tal você, Bruce?

O cirurgião reencheu a xícara com o café de um bule tirado da prateleira. Um rápido olhar pela vigia revelou um tranquilo pôr-do-sol. A despeito da aura abaixo dos tombadilhos e do total realismo do exercício de salvamento, era incrível que tivessem entrado numa zona de combate - ou que uma das maiores armadas a atravessar o Mediterrâneo estivesse justamente abaixo do horizonte.

- Vamos deixar as dores de cabeça para o Alto Comando disse ele. - Nós teremos um grande cruzeiro, o que quer que aconteça na Itália.

- É verdade que escreveremos amanhã uma página na História da Medicina? - perguntou Alice.

- Será esta a primeira vez em que um navio do Exército apoia um desembarque.

- Não pense que ficaremos perto demais - disse Owen. - Pelo que sei da Convenção de Genebra, lançaremos ferro a uns dez quilômetros da praia. - Como sempre, o chefe da clínica falava com a autoridade de um homem que acabava de sair de uma sala de Alto Comando. Bruce estava convencido de que a onisciência do colega era uma pose destinada a atrair apostas dos outros oficiais. Até aquele momento, os ganhos do Capitão tinham sido fenomenais.

- Suponhamos que os peritos atiradores de Goering não saibam ler? - perguntou Badger.

- Nada ganharemos com preocupações - disse Bruce. - Você não vê que está perturbando Alice?

- Alice está cansada demais para preocupar-se - disse a Enfermeira-Chefe. - Se nos desculpar, Phil e eu temos de conferir a farmácia do Tombadilho D antes do jantar. Vamos deitar âncoras lá embaixo, Capitão Owen?

- Sem dúvida alguma, Capitão Stacey... se sua linguagem é náutica, e não pessoal.

Badger olhou sombriamente para a nova xícara de café após terem os outros partido.

- Fale claramente, Bruce - disse ele. - Você esteve numa guerra. Phil é apenas um comando de Grosvenor Square. Você acha que precisaremos de um ano para ocupar a Itália?

- Talvez... se os alemães chegarem à conclusão de que vale a pena defender as fábricas em torno de Génova e Milão. Boa ou má, esta invasão tirará a pressão da frente russa. Mesmo que se transforme num impasse, Moscou verá que estamos falando sério.

- Bolas, já era tempo de termos prova das intenções deles disse Badger. - Admito que estamos, no momento, entalados com eles no mesmo barco. Mas eu ainda gostaria de podermos procurar aliados num mercado melhor.

Bruce estudou atentamente o homem de Wisconsin antes de responder. A reação era conhecida. Ouvira-o também de outros no navio.

- Phil estava justamente citando Churchill. Lembra-se do que ele disse no ano passado, quando Stalin e Hitler romperam? Que estava disposto a receber o próprio demónio... - se ele o ajudasse a matar nazistas?

- Churchill chamou Stalin pelo nome correto quando disse aquilo. Se o Grande Joe está ao nosso lado, por que não enviou um representante à Conferência de Casablanca? E por que não podemos ser informados do que acontece realmente na frente oriental?

- Quem é que diz que não estamos sendo informados?

- Ambos os pontos foram comentados no último Boletim, da Sociedade Lowell. Deixei meu exemplar na sua escrivaninha. Desta vez, faz sentido total.

Bruce suspirou e estendeu a mão para a garrafa de rum, sessenta gramas de Jamaica escuro, misturados com o café ainda mais escuro de bordo, pareciam-lhe, naquele momento, o antídoto necessário... No mês transato, boletins enviados por Derwent começaram a saturar o helen S. Peters. Endereçados originariamente ao pessoal convocado, começavam agora a ser enviados também aos oficiais subalternos. Assinados pelo agente publicitário de Hal Reardon - e contendo a mesma imponente lista de patrocinadores - constituíam notícias resumidas da guerra, contrabalançadas por sermões sobre as virtudes da paz garantida pela boa vontade universal. Badger - que era habitualmente um sombrio observador da cena corrente - aceitava a maioria dos lemas de Derwent com a mesma pugnaz aprovação. O mesmo acontecera com numerosos oficiais da guarnição.

- Aparentemente, você pensa que Derwent tem razão outra vez, Eric.

- Aquele homem não é nenhum tolo. Nós derrotaremos a Alemanha muito mais rapidamente se os russos começarem a confiar em nós... da mesma maneira que temos de confiar neles.

As notas do toque de rancho puseram um ponto final na dogmática afirmação. Bruce depositou a xícara na mesa e voltou-se para a escada da escotilha.

- Você acredita realmente no que acaba de dizer? Ou está deixando que um publicitário pense por você?

- Derwent talvez seja um supervendedor. Mas o que é que há de mal com a arte de vender quando vale a pena comprar o produto?

- Paz? Ou uma ameaça de intervenção armada?

- Talvez não se possa conseguir uma sem a outra. Enquanto eles usarem de bom senso, dou meu apoio a um grupo que pode evitar que meus filhos lutem noutra guerra.

O último Boletim da Sociedade Lowell, endereçado ao ajudante de Badger, fora enfiado sob o mata-borrão na cabina de Bruce. Horas depois, fortificado pelo jantar e advertindo-se para controlar o mau humor, leu-o no ritmo que supunha fora adotado pelo imediato e em seguida - no seu próprio ritmo, numa busca deliberada de armadilhas entre as linhas. Por essa altura, a experiência era conhecida. E, embora tivesse dito a si mesmo que suas reservas eram pessoais, Persistiam as mesmas dúvidas quando amassou a folha de papel aéreo e lançou-a por uma das vigias.

- O Boletim, deflectido de curso por uma corrente oposta de ar» voltou flutuando para o mata-borrão. Enrugado como estava, destacava os parágrafos que ele julgara mais ofensivos:

Um Pensamento para Esta Semana: Os objetivos da Sociedade James Lowell são a harmonia entre as nações e a paz na terra. De que modo paz e e harmonia podem ser alcançadas - a menos que exista absoluta confiança entre os nossos líderes?

Atualmente, com os objetivos americanos na guerra claramente delineados na Conferência de Casablanca, nossos estrategistas estão preocupados - angustiados talvez fosse uma palavra mais apropriada - pelo fato de Moscou, por motivos que conhece melhor do que ninguém, ter resolvido abster-se.

Em consequência, nosso planejamento - no campo de batalha, bem como na diplomacia - é prejudicado nas suas origens.

Corolário do Que Foi Dito Acima: De que modo explica Moscou o silêncio quase total a respeito dos fatos que ora ocorrem na frente oriental?

Os fundadores da Sociedade James Lowell - e temos certeza de que o nosso crescente quadro social compartilha desta opinião - acreditam que o primeiro pré-requisito da paz mundial deve ser uma livre circulação de informações entre todas as nações que se opõem ao Eixo.

Sugerimos que todo o peso da opinião pública nos Estados Unidos seja aplicado a fim de assegurar tal circulação.

Eric, ao que parecia, citara a preleção de Derwent com bastante exatidão. Vista a esta luz, parecia sincera. Bruce sabia que provocaria uma reação favorável entre os numerosos leitores da Sociedade, da mesma forma que fizera prosélitos a bordo do Helen S. Peters. Quem era ele para sugerir (na base da desconfiança instintiva que sentia de Derwent) que essas frases bem equilibradas, com o leitmotif de suave sensatez, eram tão vazias como os canos de um órgão de circo? Ou que Derwent meramente explorava os dois lados de um argumento

- ou necessidade de paz mediante entendimento e uma sugestão velada de que a Rússia, mais cedo ou mais tarde, preparava-se para uma das maiores traições da História?

Um segundo lançamento pela vigia teve mais êxito. Sentia-se melhor quando viu a bola de papel cair no mar.

Pensando nas implicações por trás daquele objeto voador aparentemente inócuo, Bruce descobriu-se ponderando o enigma de Hal Reardon e a parte que ele desempenhara na reação em cadeia que tornara possível a Sociedade James Lowell. De alguma maneira, o Boletim constituíra uma abertura apropriada das atividades de Hal, no momento empenhado em intensas manobras com a 759 Divisão Aerotransportadora, aquartelada não muito distante de Argel.

Hal, pensou, estaria sempre entre as primeiras filas nos locais onde notícias estivessem para eclodir: a 759 fora designada para o assalto a Sicília, embora Bruce tivesse ouvido dizer que estava sendo reservada para a invasão ainda mais importante do continente… Pelos mesmos motivos, o deputado-virado-coronel de pára-quedistas podia desaparecer quando as dúvidas envolviam um problema, deixando que agentes como Mike Derwent trabalhassem em seu nome enquanto se colocava a um mundo de distância. O choque de vontades de ambos no Los Angeles Biltmore fora um exemplo perfeito de Hal, o fantasma. Desde aquele momento, Bruce suspeitara de que a recusa de Hal de comparecer à festa no estúdio de Janet tivera mais do que o motivo alegado.

Mais uma vez, forçou-se a disciplinar os pensamentos: era perigoso matutar sobre Hal e ainda mais perigoso recordar-se de Hollywood numa hora tão matutina. Nos últimos meses, reservara aquelas recordações da terra do nunca como um tipo de prémio, um travesseiro para o cansaço do fim do dia. Naquela noite, apenas para servir de antídoto ao Boletim de Derwent, abriu a pasta para reler a última carta que Janet lhe enviara da Puerta del Sol.

Postada na Califórnia com data de duas semanas antes, a carta fora já ultrapassada pelos fatos. Era curta, resfolegante e cálida de amor. Os primeiros esboços para a segunda película, confidenciava ela, foram jogados no lixo: Brodski ordenara uma revisão completa do roteiro e nova seleção do elenco masculino. O pai de Janet passara parte do mês anterior em Los Angeles em outra inútil tentativa de persuadi-la a regressar a Washington. Hal partira tempestuosamente para o Acampamento Jeff Davis, onde receberia a instrução inicial, sem mesmo pedir-lhes que anunciasse o noivado...

As melhores notícias haviam sido reservadas para o fim: Pierrette já estava sendo exibida na América com grande sucesso e, logo depois, seria mostrada nas bases da África do Norte. A estrela, por solicitação do Serviço de Relações Públicas do Exército, faria uma aparição especial em cada exibição. Inevitavelmente, a excursão chegaria a Argel. Logo que ela tivesse apurado o itinerário do navio de Bruce, agiria através de certos canais para promover a reunião de ambos.

Lendo por alto as palavras que conhecia de cor, sentindo o esperado aperto do desejo na garganta, Bruce guardou a carta e deixou o camarote para seu quilómetro e meio de passeio no convés. Isto, igualmente, fazia parte das disciplinas que lhe pautavam o dia. Durante a travessia do Atlântico fora essa a hora preferida - a brancura sobrenatural do navio iluminado, as baixas vozes de comando na ponte, a renda dos mastros e paus de carga balançando-se contra as estrelas... Naquela noite, seu encontro com os deuses da guerra era alvo de prioridade máxima, a exigir todas suas reservas. Até que a missão fosse cumprida com honra, sabia que precisava controlar a imaginação.

Um resumo da sessão de informações a que acabara de comparecer constituía uma fuga conveniente dos passeios pelos desvãos da memória. Enquanto continuava a medir a milha, forçou a mente a reexaminar cada item que o Coronel Parker, o oficial de ligação com a Fôrça-Tarefa do Teatro de Guerra, descrevera na sala dos mapas.

A cobertura baseara-se num mapa da costa que a força de invasão atacaria. Somente dois outros oficiais além de Bruce estiveram presentes: o Coronel Stoks e o Comandante do navio, um veterano marinheiro cujos comentários haviam acrescentado o necessário fermento à recitação de Parker.

O Capitão Swenson considerava a tarefa do dia seguinte como missão de rotina, condicionada apenas pelo estado da cabeça-de-praia que o Exército tencionava estabelecer pouco antes do meio-dia. Stokes pareceu igualmente calmo... Bruce, comparecendo à sessão de informações como vice-comandante, estava agudamente consciente do privilégio. Tivera o cuidado de tratar o Coronel Parker com a deferência que merecia um veterano companheiro de campanhas.

”Força de Tostão” fora o nome dado ao desembarque. Tinha por objetivo o Golfo de Gela, na costa sul da Sicília, um ponto que ficava diretamente em frente a Malta. Parker advertira os oficiais de que a ação na cabeça-de-praia seria provavelmente violenta demais, nas primeiras horas, para dar lugar às unidades hospitalares. Logo que as barcaças de desembarque chegassem à praia, esperava-se, mas não fora prometido, que as baixas seriam transportadas das unidades médicas dos batalhões para o navio. Poder-se-ia esperar que no início da batalha, o Helen S. Peters servisse como hospital de sangue flutuante, recebendo e tratando diretamente os feridos. Logo que as linhas penetrassem em terra, seriam desembarcadas as unidades médicas regulares que apoiavam cada divisão. O navio, à medida que suas enfermarias se enchessem de doentes, reassumiria suas funções básicas o transporte de feridos de um porto para outro, neste caso de Gela para os hospitais gerais em Argel.

A atual posição do navio fora anunciada no rádio naquela noite em um circuito aberto acessível a amigos e inimigos. Isto, igualmente, constituía um procedimento padrão nos termos da Convenção de Genebra. O oficial de ligação recebera com um encolher de ombros tais medidas de proteção, considerando-as supérfluas: na sua opinião, o inimigo fora informado com grande antecedência de cada fase do próximo ataque. Tais filtragens de informações haviam sido verificadas durante os desembarques na África. Documentos capturados revelaram que o Afrika Korps soubera a identidade de cada unidade participante

- e, em alguns casos, do nome de seus comandantes.

A armada reunida para a invasão da Sicília era algo de formidável; a operação em conjunto, intitulada de Husky, envolveria mais de dois mil navios. O VII Exército americano invadiria as praias meridionais, atacando de Licato ao Cabo Scalambri, tendo a cidade de Gela como centro. O VIII Exército britânico, incluindo a I Divisão canadense, desceria na costa oriental da ilha, cobrindo a zona do Cabo Passero, ao sul de Siracusa.

Treze divisões seriam desembarcadas antes de completar-se a invasão. Desde que se calculavam as forças do Eixo em doze divisões, a Fôrça-Tarefa do Teatro de Guerra não esperava um piquenique. Não obstante, em virtude do grande número de tropas italianas envolvidas, julgava-se que as vantagens pertenciam aos invasores. Desde o início, os italianos haviam demonstrado uma acentuada falta de interesse pela guerra quando forçados a lutar ao lado da Wehrmacht.

Na opinião do Coronel Parker, o inimigo se concentraria na evacuação dos campos de aviação logo que a maré virasse. Transferida a Luftwaffe, ele se retiraria através do Estreito de Messina. Durante a ação de retaguarda - uma tática de atacar e fugir pelo qual os alemães eram famosos - Husky consolidaria as cabeças-de-praia, estenderia o perímetro com tanta rapidez quanto o justificasse a situação e, em seguida, prosseguiria metodicamente com a ocupação total da Sicília e a criação de uma base vital para ataque à própria região continental da Itália.

Voltando aos problemas imediatos, o oficial de ligação repetiu a advertência: uma demora, talvez de horas, devia ser esperada, logo que o Helen S. Peters tivesse tomado posição ao largo. Desde que o Mediterrâneo era um mar quase sem marés, suas praias pouco se prestavam à guerra anfíbia. Descontos tinham de ser dados pela velocidade lenta das barcaças de desembarque e das barcaças de assalto, os eficientes monstros que haviam desembarcado tantos blindados nas ilhas do Pacífico. Haveria congestionamento de tráfego com as barcaças de desembarque da infantaria, menores, que levariam os soldados às praias. Na pior das hipóteses, Parker calculava que o último hospital de sangue desembarcaria ao meio-dia, funcionando com o máximo de eficiência. Havendo uma cadeia de comando eficaz, o navio poderia mesmo iniciar a viagem de volta a Argel antes do cair da noite.

Os procedimentos a bordo foram mais uma vez passados em revista antes do término da sessão. Bruce ficaria em comando na parte inferior, trabalhando com a equipe de cirurgiões, técnicos laboratoristas convocados e pessoal de enfermagem. No tombadilho, à medida que os casos graves fossem içados a bordo, um oficial de admissão e dois assistentes, a equipe de triagem tornada famosa pela Guerra Civil Espanhola, separaria os feridos. Os julgados graves seriam imediatamente encaminhados a Bruce. Outros seriam postos na cama a fim de aguardar vez nas salas de operações. Os casos ambulatoriais seriam •tratados no convés antes de ingresso nas enfermarias do tombadilho D.

O Capitão Badger seria encarregado da triagem essencial: na qualidade de substituto de Bruce, fora intensamente treinado tanto em Jeff Davis quanto no mar. As enfermeiras, sob o comando de Alice Stacey, desempenhariam suas funções tradicionais em todos os níveis, trazendo aquele indefinível toque de compaixão que era a maior dádiva que as herdeiras de Florence Nightingale podiam oferecer.

Tudo que pudera ser previsto fora levado em conta, disse Bruce a si mesmo, ao terminar a sua milha noturna e voltar ao camarote. Restavam apenas os imponderáveis: a altura das ondas nas praias se o vento crescesse de força antes do amanhecer, a exatidão da cortina de fogo destinada a proteger a primeira onda, a suposição de que o próprio hospital seria reconhecido como nave de socorro, e não como um alvo estacionário... Tais preocupações, acrescentou, eram infrutíferas agora que a peleja se iniciava. Como ele mesmo dissera a Eric Badger, a previsão podia distinguir bagagem excessiva em um navio a caminho do teatro de guerra.

Deitado no beliche, com uma lâmpada de leitura pendente sobre o travesseiro, pensou numa carta para Janet e abandonou a ideia. Em vez disso, apagou a luz e prendeu os olhos na vigia aberta - e na dança lenta das estrelas à medida que o Helen S. Peters jogava, colhido pelo vento de través que reaparecera ao anoitecer. Nessa hora era inútil combater a maré montante das recordações. Era a hora em que ele podia entregar-se sem pudor à recriação de sua última noite na Califórnia, desde o momento em que deixara a festa de Brodski a fim de esperar por Janet na casa que ela alugava na Sierra Madre.

A visão era nítida. A despeito de continuamente relembrada, conservava o encanto de uma experiência em que ele não podia acreditar inteiramente, embora a memória insistisse em que a vivera plenamente.

Naquela noite na Califórnia ele penetrara nas colinas de Holywood tirando o máximo de velocidade do carro alugado em curvas arrepiantes que conduziam sempre a um lugar mais alto. A uns oitocentos metros do destino, ultrapassou um caminhão de entrega numa curva e chegou com um rugido à vila de Janet, uma casa alta e imaculadamente branca que poderia ter passado por um castelo de Espanha.

A alta velocidade como aquele breve namorico com a morte foram deliberados - e, do ponto de vista prático, inteiramente inúteis. Janet não podia deixar o estúdio cedo demais e não havia motivo para tanta pressa. Ainda assim, ele sabia que a pressão por trás dos seus olhos e a agitação de sua pulsação afogariam todos os pensamentos coerentes até que abrisse os portões desse incrível paraíso.

A primeira chave abriu a fechadura do que parecia o portão de um cárcere - um mecanismo engenhoso que levantava a barreira, do tipo levadiço, dando entrada a um pátio fechado. A porta da casa constituía um enorme retângulo de sequóia canadense emoldurado por trepadeiras: abria-se para um alto saguão, onde uma luz azul de emergência constituía a única iluminação. À frente, uma balaustrada de ferro fundido conduzia a uma sala-de-estar de quinze metros de comprimento, que ganhou vida instantânea no momento em que ele pressionou um botão... O resto da Puerta del Sol acompanhava a mesma escala grandiosa: um comedor com capacidade para doze convidados e que podia ter sido tirado inteiro do Escoriai, um estúdio com uma escrivaninha de pernas caprinas, uma cadeira-trono trabalhada, paredes recobertas de couro e um terraço de onde se descortinavam o amontoado de colmas embaixo e os pontos de luzes que delimitavam Sunset Strip.

A sensação de que tudo aquilo era parte de um sonho acordado persistiu no momento em que o anoitecer se transformou em noite interrompida a intervalos por uma Lua que mostrava a face entre bancos de nevoeiro. Cada passo que dava no castelo alugado de Janet acentuava-lhe o vazio. A paisagem vista do terraço parecia destituída de vida - as luzes de Hollywood distantes demais para serem reais, a Sierra Madre tão extravagante como as montanhas da Lua. Somente a casa isolada no cume da colina mais próxima, remota como o esconderijo de um bandido, assegurou-lhe que ele estava num ambiente perfeito para um encontro de amantes.

Uma segunda vista ao saguão apresentou-lhe prova adicional de que não estava sozinho: o bilhete pregado numa cadeira fora, obviamente, escrito pelo mordomo, lembrando à Senhorita Josselyn de que o champanha estava no estúdio e agradecendo-lhe pela folga. Perguntando-se se era cedo demais para abrir o vinho de Janet, voltou à sala revestida de couro para procurar a geladeira. Abrindo o receptáculo habilmente escondido e disfarçado como uma cassone, e girando as garrafas na cama de gelo salgado, chegou à conclusão de que seria mais prudente esperar. Tenteou pelas paredes procurando outro comutador de luz... Parecia grotesco fazer os movimentos da leitura, mas precisava urgentemente de alguma ocupação para provar que existia.

A única estante, aberta, existente no estúdio, era uma peça antiga, recheada de coleções encadernadas em couro. Todos os volumes tinham gravados em ouro o nome de um clássico - embora o Dom Quixote, da mesma forma que as Voyages, de Hakluyt, e o Decameron, de Boccacio, resistissem a todos seus esforços para tirá-los dos lugares. Somente no momento em que examinou detalhadamente a coleção percebeu que ela constituía uma decoração, e nada mais.

Ria ainda da descoberta quando a casa encheu-se com os acordes de Siboney. Saindo do estúdio, encontrou a dona da casa de pé ao lado do consolo de uma rádio-vitrola ainda envolvida no mesmo vestido grisette que usara no estúdio.

- Quer dar-me a honra desta dança, senor mayor?

Mesmo depois de ter ela caído rodopiando nos seus braços, ele duvidava ainda de que aquela moça fosse Janet Josselyn. A reação dela ao tango foi ligeiramente caçoadora enquanto dançavam bem juntos, e triste ao ponto de desespero quando se afastaram nos rituais do duelo amoroso posto em música. Após um momento, ele compreendeu que ela representava ainda, que o brilho das saias sobre as longas e esguias pernas e o bater de sobrancelhas escuras faziam parte de outra personificação - o gesto e aparência exatos de Chita Miranda, a estrela do cinema mexicano cujas conquistas amorosas constituíam o deleite dos bisbilhoteiros... A imitação, sabia, era deliberada, um toque de humor para combater a estranheza da Puerta del Sol. Abençoando-a pela intuição, levou-a, girando, da casa para o terraço.

- Por que os livros não são lidos? - A pergunta dificilmente constituía uma abertura de dueto amoroso, mas, ainda assim, era apropriada à ocasião.

- Coisa alguma é real aqui - respondeu Janet. - As violetas são grandes como girassóis e há música em todas as paredes. É mais ou menos como estar no estúdio depois do expediente. Finalmente, aprendi a me ajustar.

- Não se sente às vezes solitária?

- Poderia sentir... sem tia Hester. Ela adorou este Alhambra forçado desde o início. Gostou tanto que começo a suportá-lo também.

- Ela não está aqui hoje à noite?

- Titia está em São Francisco. Como eu lhe disse, no estúdio. Hoje à noite, o Alhambra é todo nosso.

- Isto é ainda difícil de acreditar.

- Isto, Bruce? Ou o fato de que ela somente voltará amanhã?

- Não posso afastar a impressão de que estamos representando outra cena para Brodski.

- Talvez estejamos. - Janet segurou-lhe a mão às costas enquanto se desenrolava ao longo do comprimento do braço de Bruce e, em seguida, voltava para o abraço rítmico seguinte. - Nada existe que eu adore mais do que fazer um papel. Especialmente, quando sei que o meu parceiro não ignorará uma deixa.

- Tia Hester aprovaria, se estivesse na plateia?

- Tenho certeza de que não. Incidentalmente, estando os empregados de folga, ela pensa que vou passar a noite no Ambassador. Hal pensa assim, também. Por isso mesmo, você terá de me levar até lá dentro de alguns momentos.

- Depois de terminarmos esta dança... e o champanha que seu mordomo deixou no gelo?

- Queria que você visse como eu vivia aqui - disse Janet. Como pode ser tolo... e excitante. Há dias em que tenho a certeza que estou também sonhando.

- Talvez esteja. Isto pode ser um autêntico castelo de Espanha. Ao chegar a manhã, talvez eu descubra que ele não existe.

- Um astro do cinema construiu-o há trinta anos - disse Janet..- Enquanto ele viveu, era o máximo em esplendor. Você sabe, por acaso, que estamos num dos pontos mais altos dos sopés da Sierra Madre? Ou que a casa no penedo mais próximo é conhecida como Ninho da Águia?

- Qual era o nome da águia?

- Rodolfo Valentino. Era para o ninho da águia que ele ia quando queria ficar a sós. Não finja que é moço demais para lembrar-se dele.

- Valentino foi a inspiração de minha mocidade. Você está fazendo com que eu me sinta um tanto parecido com ele hoje à noite.

- É assim que deve ser, Bruce. Por que será que você nunca me decepciona? ,

- Porque eu a amo... e você me ama.

- Você está falando sério, não está?

- Claro que estou.

- Vamos esquecer tudo, então... enquanto a música durar. Incluindo o fato de que você vai tomar um avião para Charleston... e que eu devo estar no estúdio às oito.

- Por quanto tempo a música continuará?

- Até que desliguemos a vitrola. É outra das características da Puerta del Sol. Acho que o tango está quase acabando.

- Acabou - disse ele. - Seguiremos a tradição e o terminaremos com um beijo?

- Nós o estragaríamos se não o fizéssemos.

A representação foi esquecida enquanto os lábios se colaram e eles se prenderam nos braços um do outro. Ele sentiu a cabeça rodopiar quando a soltou. Mas ainda naquele instante, percebeu que devia aguardar a deixa final.

- Muy buenos, senor mayor - disse Janet.

- Muy buenos, senorita. Continuamos?

- O número seguinte não é de dança.

Ele se voltou para a música que continuava a emanar da casa -, em tom suficientemente alto para despertar ecos nas colinas vizinhas. O tom mudara para o Liebestraum, de Lizst, tocado por um pianista de concerto.

- Você escolheu também os discos?

- Naturalmente.

- Este faz parte de nosso papel?

- Se você puder executá-lo - respondeu a estrela de Pierrete...

A noite de amor começara naquela nota. Terminara horas depois num amanhecer de nevoeiro úmido na entrada de automóveis do Hotel Ambassador, antes de ele atravessar Los Angeles em direção a San Pedro, exatamente na hora de apanhar o avião que o levaria à guerra. Iniciado com o faz-de-conta de um castelo chamado Puerta del Sol, a noite terminara com um beijo final e arrebatado à luz crescente do dia e com promessas que ele tinha toda intenção de cumprir... Por que ele se perguntaria ainda em que ponto a representação se confundira com o verdadeiro êxtase? Como podia ele perguntar-se, até mesmo naquele momento, se aquela noite não fora uma criatura de sua imaginação?

Centenas de vezes nos meses que se seguiram, a perturbadora pergunta atormentara-o e fizera-o calar os pensamentos. Não era menos perturbadora agora com a última carta de Janet ainda vívida na mente e a certeza de que a reunião em Argel - na eventualidade de ele sobreviver à ação da manhã seguinte - seria apenas uma questão de contatos, de canais há muito tempo abertos...

Em outra e mais tranquila meia-noite no mar a recordação da cena no terraço de Hollywood tê-lo-ia suavemente mergulhado no sono. Naquela noite, o cansaço do longo dia fez mais ainda para embotar-lhe o cérebro. Os nervos, tensos desde a manhã, relaxaram-se lentamente quando ele mergulhou no esquecimento. A queda, porém, não foi suficientemente profunda para abafar o rugido dos bombardeiros que vinham na primeira onda procedente da África.

Ao despertar, haviam parado os motores do navio - e ele sabia que era artificial o trovão que ribombava no horizonte. A guerra para a 2419 Companhia de Navio-Hospital começara finalmente.

- É muito menos italiana do que eu esperava - disse o Capitão Owen. Baixou o binóculo e passou-o ao Capitão Badger. - Daqui, poderia passar pelo sul da Califórnia num dia claro.

O homem de Wisconsin ajustou as lentes e estudou atentamente a linha da costa.

- Você provavelmente terá a mesma reação diante dos portões dos céus - disse ele. - No que me interessa, poderia passar pelo paraíso... se esquecêssemos a fumaça.

- Você descobrirá que a Sicília é coisa muito diferente do céu quando desembarcarmos - disse Bruce.

- Suponho que o façamos algum dia.

- Você leu o folheto do Coronel Parker. Temos a nossa frente uma das terras mais pobres do globo.

- Não é esse o motivo real por que estamos lutando? - perguntou Owen. - Duvido que houvesse guerras se as pessoas ficassem à altura de suas paisagens.

- Eu, pelo menos, estou caindo fora desta discussão abstrata disse Badger. - Um bote está vindo para cá. Talvez estejamos prestes a começar a comportar-nos como médicos.

Bruce dirigiu-se com o binóculo para uma das extremidades da ponte, focalizou-o no barco a gasolina que tentava - até então em vão - desembaraçar-se da corrente do tráfego da invasão.

- É melhor você descer com Eric, Phil - disse ele. - vou procurá-los dentro de um momento.

Tanto quanto mostrava o olho nu, o Mediterrâneo estava coalhado de navios escuros. Os transportes continuavam a vomitar tropas a uma distância segura das baterias costeiras - enquanto a artilharia naval prosseguia despejando salvas na praia para obliterar os últimos defensores. A praia estava obscurecida por um nevoeiro cinza-branco de fogo de armas de pequeno calibre, embora sua posse não constituísse mais questão de dúvida... No que diz respeito a batalhas, esta se desenrolava bem, embora lentamente. A julgar pelos comunicados de rádio nas últimas horas, o Golfo de Gela estaria firmemente em mãos das forças aliadas antes da caída da noite.

Desde o amanhecer, o Helen S. Peters permanecera na estação designada a uns dez quilómetros ao largo, enquanto a 2419 aguardava as primeiras baixas. Até meados da manhã, a ação fora violenta, oferecida resistência muito mais vigorosa do que esperavam os táticos amadores. Em fins da tarde, com o inimigo em retirada, a batalha apresentava um curioso ar de coisa remota, como se navios e homens fossem peças numa partida jogada por mãos ocultas.

A Sicília em si constituía uma sólida presença no fulgor da tarde: Bruce compreendeu por que Owen a comparara às glórias excessivamente louvadas da Califórnia. O binóculo mostrava nitidamente os Mesmos quilómetros de praias brancas, as mesmas colinas acachapadas, as mesmas fileiras leprosas de eucaliptos ao longo das estradas - e,, ao norte, as mesmas esgalgadas serras silhuetadas contra o azul.

A cidade de Gela, cercada por trigais e bosques de oliveiras, erguia-se num platô bem acima do nível da água. Não possuía porto, e sim apenas um longo cais de aço praticamente destruído antes que o inimigo se retirasse para o interior. Desistindo em desespero da tentativa de formar um quadro em meio à confusão, Bruce voltou-se para o Capitão Swenson. O Comandante permanecera no posto durante horas, mas parecia incansável e inteiramente relaxado.

- O senhor parece confuso, Major - disse ele. - Será que as coisas pareceram mais simples em nossa seção de instrução?

- O Coronel Parker tinha a esperança de que o senhor traçasse um curso para a África hoje à noite. Aparentemente, ele foi otimista.

- As guerras raramente seguem os horários estabelecidos pelos generais.

- O que é que o senhor pensa que saiu errado?

- As coisas habituais, acho. Tais como barcaças de desembarque encalhando e baterias que atiram além dos alvos.

- Poderemos manter essa posição indefinidamente?

- Se o bom tempo permanecer e a Luftwaffe procurar outros alvos.

- Eu gostaria de ter a sua paciência.

- Um marinheiro que transporta cargas para viver acostuma-se a esperar - disse Swenson. - Pouco importa se a carga é composta de homens ou de máquinas. Eu levei gasolina de aviação para o Pacífico e desembarquei-a sob bombardeio. Comparada com tais cruzeiros, a ação de hoje parece uma chateação agradável. É claro que o quadro pode mudar a qualquer momento.

- Suponho que haja uma confusão, eu gostaria de saber o motivo.

- A maior parte das batalhas é constituída de cincadas - até que assumem uma conformação. De modo geral, esta está-se desenvolvendo em direção ao alvo.

- Mas nós devíamos receber os primeiros feridos ao meio-dia.

- Seus feridos virão finalmente a bordo. O senhor salvará o que puder - e eu transportarei os sobreviventes para Argel. Amanhã por esta hora - ou no dia seguinte, se a sua carga for pesada - a nossa contribuição a este holocausto será uma obscura nota de pé de página na História.

- Mesmo que esta seja a primeira vez em que um navio-hospital apoia o Exército?

- Os que combatem são os primeiros a ser mencionados na» reportagens - respondeu Swenson. - Os que tratam dos sobreviventes são esquecidos mais facilmente. - Ele elevou o próprio binóculo para estudar o barco de patrulha que se esquivava da fileira de transportes e finalmente se aproximava do navio. - Há um oficial a caminho daqui e, pelo menos, dois feridos a bordo. Talvez ele o possa esclarecer alguma coisa.

Bruce chegou ao tombadilho a tempo de reunir-se ao grupo na amurada de bombordo, cujas escadas e paus de carga estavam à espera desde o amanhecer para receber os feridos. Logo que o visitante subiu a bordo, a estória que contou - na saraivada de palavras interrompidas de um homem lívido de fadiga - tornou ainda mais espessa a cortina de fumaça que cobria a praia.

O Coronel Meighan, do Corpo de Saúde, adido ao Estado-Maior do VII Exército, figurara entre os primeiros médicos a desembarcar. Supervisionara a localização das unidades médicas dos batalhões meia hora depois de estabelecida a cabeça-de-praia; organizara comboios de padiolas para trazer os feridos de uma linha de batalha em rápida expansão. No início da tarde, fora estabelecida uma cadeia de comando exequível - e ele voltara à praia para descobrir que as congestionadas vias marítimas abriam-se apenas gradualmente. Surgiram novas dificuldades quando ordenou o fornecimento de transporte marítimo para os feridos, descobrindo que a maioria das barcaças continuava ainda ao largo, esperando o momento de desembarcar as tropas de reserva. DUKWSs extras e alguns LCIs excedentes foram finalmente confiscados. Seguiriam na esteira do barco de patrulha todas as vezes que conseguissem desviar-se do tráfego de invasão.

Escutando-lhe o relato feito com a rapidez de uma metralhadora, enquanto Eric Badger, ao lado dos paus de carga observava as primeiras baixas alcançarem o tombadilho, Bruce perguntou-se se essa experiência era típica. A despeito do cansaço, o Coronel do Corpo de Saúde parecia ansioso para voltar à praia, agora que se havia certificado de que existia o melhor tratamento possível para seus feridos.

- As coisas estavam correndo bem quando deixei a praia - disse ele. - Nós esperávamos demora. Gela é a chave de toda a operação nesta costa, eles começaram a rebucar... mas ouvi dizer que uma divisão Panzer está escondida nas montanhas para defender as passagens.

- O senhor acha que conseguirão? - perguntou-lhe Bruce.

- Não, quando os atacarmos novamente do ar.

- Quantas baixas poderemos esperar antes do anoitecer?

- Bastantes, Major Graham. Está em condições de tratá-las?

- Estamos prontos desde que deixamos Charleston - disse Stokes.

Meighan lançou um olhar para o tombadilho, onde os doentes de padiola começavam a ser examinados, rotulados com os títulos das respectivas seções e levados apressadamente aos elevadores.

- Pelo que vejo, este navio não é ocioso, cavalheiros. Um ferimento no quadril de um daqueles homens pode ter-lhe afetado o rim. Acontece que ele é o meu sargento-ajudante.

- O Major Grahan opera-lo-á imediatamente - disse Stokes. Dez minutos depois, com as mãos gotejantes sobre uma pia na Sala de Operações Número Dois, o chefe da cirurgia observou o grupo tomar posição. Enluvado e envolvido numa bata, saiu do lavatório para avaliar a área operatória, inclinando a cabeça em sinal de aprovação quando viu que as garras renais estavam em posição, no caso de o órgão ter sido lesionado além da possibilidade de tratamento. Ali, a despeito da confusão na praia, o último precioso segundo seria arrancado dos horários.

- Eu gostaria que ele nos tivesse sido enviado antes... mas as possibilidades parecem boas. Faremos uma incisão transversa para exposição máxima do campo.

Somente ao empunhar o bisturi, compreendeu que o relato do Coronel Meighan não o deixara mais esclarecido do que antes no que interessava aos acontecimentos que tinham lugar na praia. A omissão parecia destituída de importância, agora que iniciava sua própria batalha.

Terminada a intervenção, Bruce descobriu que duas impressões subordinavam as demais. A primeira, a sensação de profundo alívio que o envolvera ao dar o primeiro corte, como uma porta que se fecha sobre o caos. A segunda, a descoberta de que seu comando não era absoluto. Um mundo em que a morte era rainha - o mundo da guerra - fora substituído por um universo cujo lema era salvação e cujos instrumentos estavam à altura da tarefa.

Ele imaginara operar em zona de combate, cercado de relâmpagos de drama que correspondessem àqueles meses na Espanha - o rugido de canhões, o cheiro fétido da pólvora, um pedido das linhas para salvar homens sob fogo. Logo que o ritmo das salas de operações se consolidou ele não lhe pareceu muito diferente do que reinava em Lakewood.

Logo que terminou realmente, lembrou-se do que a invasão de Gela lhe lembrava uma emergência geral em Baltimore durante o ano de internato, quando uma explosão nos pátios da ferrovia coincidira com um incêndio violento, congestionando as enfermarias com dezenas de casos e levando todo pessoal à beira da exaustão.

Algumas das crises a bordo do hospital flutuante submeteram-lhe a teste máximo as habilidades: inevitavelmente houve fracassos que lhe contrabalançaram os sucessos. A primeira operação - o ferido no quadril levado aos tombadilhos inferiores - fora assunto delicado, até que ele pôde salvar o sargento de Meighan sem maior dano do que um quarto de rim. Naquela mesma tarde, uma laceração cerebral requerera as técnicas combinadas da equipe e uma dose de pura sorte para salvar o doente. No segundo dia (ocasião em que lhe pareceu que estivera toda vida operando) recebeu dentro de uma hora dois casos de perfurações intestinais múltiplas, perdeu o primeiro e salvou o segundo com uma ressecção instantânea, anastomose e três litros de sangue integral. De modo geral, sentia-se à vontade novamente - funcionando com a mesma precisão, recebendo a mesma ajuda de mãos dispostas que apareciam, desapareciam e reapareciam dentro do círculo branco das luzes do campo de trabalho.

Ao diminuir a agonia de sangue e suor, no momento em que a última veia fora pinçada, a última incisão fechada e o último soldado ferido caíra num nirvana induzido pelas drogas, os totalizadores indicavam os mesmos resultados previsíveis. Graças à ajuda recebida a bordo, dezenas de homens foram retomados dos braços da morte. Outros morreram sob os bisturis dos cirurgiões. Muitos outros, variando de feridos ambulatoriais e casos de padiola não classificados de urgente, recuperar-se-iam com o mínimo de dor e voltariam às suas unidades em outro campo de batalha.

Uma vez por outra, recordava-se de que trabalhava no limiar de uma grande batalha. Aproveitando um momento na segunda alvorada, ocasião em que o mau tempo retardara as barcaças, observou uma luta aérea selvagem entre caças inimigos e caças baseados em porta-aviões, enviados para proteger uma nova onda de bombardeiros que voava sobre a Sicília.

Recordou-se das graças de Eric Badger quando outras demoras na praia reduziram a um fio a chegada de feridos e obrigaram as equipes do tombadilho a marcar passo. O Coronel Stokes, operando incessantemente casos de rotina, emergira ocasionalmente do nevoeiro para murmurar palavras de elogio. Mais de uma vez, ele levantou a vista para os olhos do Coronel Meighan e leu a mesma mensagem no momento em que outro caso deixava a sua mesa de operações...

Desde o início, a 2419 funcionou de acordo com os planos. Uma vez que a chegada de feridos fora constante - com a exceção de uma ocasional obstrução - a equipe funcionara com o máximo de eficiência. Uma vez a bordo, os feridos eram rapidamente classificados, incluindo um reexame das papeletas descritivas dos ferimentos. Casos menos sérios eram conduzidos a uma área de descanso no tombadilho, onde grandes toldos os abrigavam do sol. Trabalhando à luz de holofotes ao cair a noite, enfermeiros e enfermeiras examinaram cada homem em busca de sinais de tétano, mudaram as ataduras nos casos necessários e borrifaram mais sulfa nos ferimentos.

Feridos em estado de choque eram levados a uma enfermaria especial, onde podiam ser administrados plasma e sangue congelado, preservando-se o calor corporal com cobertores e berços elétricos. Os que podiam suportar cirurgia imediata eram levados aos anfiteatros, onde outras equipes os preparavam para a mesa. Salas de operação auxiliares foram abertas antes que a carga de casos pudesse encher os corredores, chamando-se do trabalho no tombadilho uma das equipes cirúrgicas de reserva para participar da luta pela vida que se travava embaixo.

Em nenhum momento nos dois longos dias as linhas se soltaram das mãos. O êxito constituía um tributo aos projetistas do navio-hospital e ao treinamento da guarnição no mar.

Após anos de emergência em Lakewood e das revelações brutais na Espanha pouco havia para surpreender Bruce no movimento incessante de feridos. Alguns casos se destacaram - entre eles, um marinheiro lançado doze metros no ar quando um obus direto destroçara a barcaça que dirigia. O doente revelara sinais irrefutáveis de lesão interna, embora não se visse uma única marca em seu corpo. Abrindo o abdómen com uma longa incisão, Bruce pôs a nu um intestino dilacerado, cortado tão eficazmente pela concussão como se um fragmento de obus lhe tivesse penetrado no corpo.

Ajudado por Alice Stacey - cujos dedos hábeis amiúde auxiliavam-nos em suturas difíceis - ele fechara cada corte com categute e uma única linha de seda. A cavidade peritoneal fora limpa com uma solução salina - pó cristalino de sulfa fora borrifado no interior antes que um fechamento sem dreno completasse a operação em tempo recorde... com um mínimo de choque pós-operatório, o diagnóstico instantâneo tornara as possibilidades de recuperação superiores a cinquenta por cento, embora um suprimento adequado de penicilina, a nova droga milagrosa louvada em cada número do Military Surgeon, não existisse ainda para assegurar a vitória.

Ainda mais grave foi o caso de um soldado de menos de vinte anos, cuja mandíbula fora cisalhada - com tanta perfeição como por um bisturi. O doente fora trazido à mesa em estado de semicoma, quase sufocado nos próprios fluidos corporais, com sangue e saliva borbulhante no que fora a boca. Empurrando para baixo a cabeça do rapaz para inverter o fluxo mortal, Bruce inserira um tubo traqueal - a fim de assegurar um canal respiratório aberto aos pulmões esgotados - antes de dar início ao trabalho de recuperação... Acostumado embora ao desperdício insensato da guerra, não pôde deixar de notar que era o rosto mais belo que vira -sob as luzes.

No momento, somente reparação rotineira de vasos seccionados podia ser tentada: a boca seria deixada a hábeis cirurgiões plásticos num hospital geral. Curiosamente, a ferida era menos trágica do que parecia. Em virtude de circulação extra-rica na área, existiria ainda tecido quando o cirurgião plástico assumisse o comando. A boa aparência do rapaz estava perdida para sempre; dentaduras e uma mandíbula sob medida seriam substitutos práticos dos originais, deixados na Sicília.

Como sempre na cirurgia de guerra, os membros eram os que mais sofriam. Ao serem coletados os resultados gerais, o grupo do tombadilho comunicou que havia listado quase quatrocentas fraturas simples e compostas. As técnicas empregadas eram sempre as mesmas, de lancinante semelhança - um corte do bisturi para remover tecidos irreparàvelmente lesionados, o ranger da serra a cortar ossos estilhaçados, o alinhamento das fraturas ainda operáveis, antes que a ferida fosse enfaixada com gaze vaselinada, o gessamento conhecido na ocasião como tratamento de molde fechado...

Havia recordações ainda mais terríveis desses dias no interior do navio, mas Bruce expulsou a maior parte da sua mente. Ao terminar a crise, uma carga inteira de doentes convalescia nas enfermarias. Nos tombadilhos e nas escadas, em cada canto em que um dos seus auxiliares podia armar uma rede, casos menos sérios aguardavam transferência. A maioria dos doentes se recuperaria graças aos esforços combinados da 2419. Ele sabia que o treinamento que lhe proporcionara fora, em grande medida, responsável por tal resultado.

Era um bom pensamento para levar ao camarote, um estoque precioso a classificar enquanto se acomodava no beliche. Três dias inteiros depois de ter ouvido o primeiro trovão artificial no horizonte, podia perguntar-se ainda se estivera à beira de uma guerra. Dúvida alguma havia de que ele desempenhara o papel que lhe cabia para salvar mais de mil guerreiros.

A certeza estava gravada na mente, mas não no coração. Tivesse o coração permanecido aberto às realidades da guerra, ele se teria Partido muito antes.

Dez horas mais tarde, Bruce abriu os olhos e notou que a luz do sol penetrava pela vigia. No lado de fora, o ar estava calmo. No navio, os alto-falantes, através de vários pontos, acabavam de transmitir badaladas, anunciando o início do quarto de meio-dia. Relaxando-se um instante mais na deliciosa sensação do nada, sentiu uma mão no ombro. Levantou a vista e viu os olhos inteiramente despertos de Eric Badger.

- Eu não faria isto ao meu pior inimigo, Bruce... mas nós temos problemas.

O cirurgião sentou-se com um enorme bocejo. Esperando sentir a vibração dos diesels do navio, percebeu que o Helen S. Peters continuava imóvel.

- Nós não podemos receber outro doente a menos que você o ponha na cesta do vigia.

- Parece que há algum problema na praia.

- Por que é que não estamos indo para Argel?

- Três outros navios nos passaram à frente. Não podemos descarregar até que eles sejam despachados.

- Onde estamos agora?

- Ancorados ao largo. Diretamente em frente ao cais destruído. Stokes quer que você suba para admirar a paisagem.

- Você não pode me dizer o que está acontecendo?

- Não, Bruce. Nas raras ocasiões em que nosso Comandante cospe fogo eu não faço perguntas.

Após dias vestido de aventais empapados de sangue, era agradável voltar a usar o caqui do Exército. Levando Badger a reboque, encontrou Stokes no tombadilho aberto, olhando furioso para o mar. O barco de patrulha de Meighan corria para a terra numa patina de borrifos dágua que formava seu próprio pequeno arco-íris.

- Dê uma olhada naquela praia - disse ele. - Neste momento, devem ter desembarcado umas doze divisões. Por que, então, pedem ajuda a mim?

Bruce aproximou-se da amurada. O navio estava atracado a bóias a menos de dois mil metros da praia, onde continuava a agitação que se segue à guerra. A maior parte da atividade concentrava-se em trabalhos tais como reparos das estradas e remoção dos escombros. Diretamente à frente na desimpedida pista entre o Helen S. Peters e o cais destroçado, um trio de DUKWs seguia pesadamente na esteira de Meighan para convergir sobre um LCI que acabara de ser amarrado à doca num ponto em que uma série de passadiços improvisados ligavam-lhe os restos com a terra.

- Aquele enferrujado barco chegou de Licata ao amanhecer disse Stokes. - Nas últimas sete horas estivemos convertendo-o em outra unidade hospitalar... e doando todos os abastecimentos excedentes que temos lá embaixo.

- Nós, senhor?

- Meighan meteu-se também, naturalmente. Até ordens posteriores, servirá como ponto de concentração das baixas.

- Quem é o encarregado, Coronel?

- Você... com ajuda de Phil e Eric. Se você tiver sorte, virei buscar sua carga de doentes antes do fim-de-semana.

- Devemos sentir-nos honrados, senhor?

- Se quer saber - respondeu Stokes - é uma vergonha. É melhor entrar e verificar se o seu equipamento já foi reunido.

- O senhor não nos acompanhará?

- Não tenho tempo, Bruce. E o que é mais, eu não confio no meu temperamento.

Um segundo barco de patrulha aguardava junto às escadas de bordo; um guarda-marinha permanecia nas braçolas para ajudar os dois médicos a subir. Na amurada acima, o Comandante da 2419 berrou uma última praga corrosiva de despedida quando Bruce e Eric se afastaram. Ao chegarem ao semidestruído cais, o LCI fora seguramente atracado; suas rampas haviam sido baixadas para receber uma fila de técnicos cada um dos quais trazia sua cota de suprimentos. Graças à visão desimpedida, Bruce notou que o barco já fora equipado para a missão.

Da escada a meia-nau notou que catres extras haviam sido acrescentados aos que já contornavam o casco. Outros foram montados no tombadilho, onde toldos marcados com cruzes brancas protegiam do sol o cavernoso interior. Duas mesas de operação e o equipamento ancilar eram iluminados por baterias de holofotes, dando ao porão do veículo estranhamente proporcionado o aspecto de uma câmara de tortura surrealista.

Grande número de doentes já repousava nos catres. Em uma das mesas, um farmacêutico mudava as ataduras no antebraço de um sargento da Marinha, que observava o trabalho em meio a uma nuvem de fumaça de charuto e parecia apenas ligeiramente aborrecido com a dor. !

- Quem é que está em comando aqui, marinheiro? - perguntou Badger.

- O Coronel Meighan, senhor. Ele poderá ser encontrado no convés da ré.

- Este espetáculo é do Exército, ou da Marinha?

- Logo que levar este doente para a praia, Capitão, é inteiramente seu.

Phil Owen emergiu de um armário à vante com uma prancheta de notas nas mãos. A um sinal seu, os recém-chegados dirigiram-se para a escada que conduzia ao congestionado convés de ré, onde a voz do Coronel do Estado-Maior trovejava ordens.

- A transferência está completa - disse ele. - O nosso novo chefe espera-os para descrevê-la em detalhe.

- Você pode por acaso explicar como isto aconteceu, Phil?

- Nada podia ser mais simples. A companhia deu um espetáculo de gala na primeira noite. Na verdade, tão notável que Meighan convocou três dos artistas para a sua companhia ambulante. Não fique tão arrasado, Eric... é apenas trabalho temporário. Stokes providenciará nesse sentido.

- Você acha que estamos operacionais? - perguntou-lhe Bruce.

- O equipamento atual é adequado. Há mais a caminho, enviado pela divisão de Meighan... incluindo pessoal extra. Ficaremos ocupados, mas não morreremos de trabalhar.

- Como é que você se sente ao ser sequestrado pelo VII Exército?

- Espero sobreviver, se não houver mau tempo. Eu odiaria estar a bordo de um LCI numa tempestade, com os doentes vomitando

os intestinos.

- Talvez isso não aconteça - disse Bruce. - Vamos deixar

esta cena de Dante e informar-nos do pior.

Depois de ter-se acostumado a operar num casco de aço, abaixo da linha dágua, Bruce reconheceu que a nova missão não era realmente desagradável. Dias ensolarados foram seguidos por noites de calmaria na semana seguinte. Os especialistas que mandara buscar a bordo, auxiliados por uma experiente equipe cirúrgica enviada pela própria unidade de Meighan, eram mais do que capazes para lidar com os casos trazidos a bordo.

O número de baixas continuou a subir nos primeiros dias de missão temporária. Houve ocasiões em que as filas, serpenteando pelas estradas apressadamente reparadas, ameaçavam engolfar os flancos enferrujados do navio de desembarque. Após ter chegado um segundo LCI para atender os casos ambulatoriais, os cirurgiões puderam revesar-se em vigílias de quatro horas.

Mas, ainda mesmo ali, a pouca distância da terra, Bruce sentia-se isolado da guerra, um gnomo que se contentava em pendurar a rede sob as estrelas e mergulhar num sono sem sonhos ao terminar o dia. Na quarta manhã, na ocasião em que feridos recém-chegados comunicaram que os alemães e seus relutantes aliados haviam sido expulsos do perímetro, não sentiu vontade alguma de aplaudir. No quinto dia, quando os cascos dos dois LCIs foram abalados por explosões de bombas e ele percebeu que os Stukas faziam uma passagem final para cobrir a retirada das unidades Panzer nas montanhas, ele estava ocupado com uma fratura difícil. Não havia tempo para perguntar-se se as cruzes brancas nos toldos constituíam proteção suficiente. Logo que o aparelho suicida foi abatido, ou se retirou para a Itália, ele escutou relatos de testemunhas de vista com um quase nada de ressentimento (como um transeunte que perde uma briga de rua) e com deleite íntimo porque ele, pelo menos, não bloqueara um daqueles golpes alucinados.

No sexto dia, Meighan apareceu pessoalmente e equilibrou boatos com fatos. A Sicília, conquanto ainda não conquistada, sucumbia aos golpes dos aliados. O golfo de Gela fora um dos locais mais arduamente defendidos. Os britânicos tiveram tempo mais calmo em Siracusa e toda a estrada costeira estava agora aberta para os movimentos das tropas.

- Não lhe posso agradecer o suficiente pela contribuição - disse o Coronel de Estado-Maior. - Se eu pudesse, eu o sequestraria permanentemente... mas isto dificilmente seria justo para com Jerry Stokes.

- Significa isto que nosso dever temporário está terminado, senhor?

- Termina oficialmente amanhã... quando Jerry os reclamar.

- Nós teremos apenas meia carga.

- Já radiografamos o fato ao Quartel-General do Teatro de Operações. O navio irá a Siracusa para encher as enfermarias e partirá, em seguida, para a África.

- Significa isto que não botarei os pés na Sicília?

- Um comboio de caminhões e jipes levará suprimentos amanhã pela estrada costeira. O regulamento diz que um oficial médico deve acompanhá-lo. com a permissão do seu Comandante, posso prolongar por mais um dia sua missão temporária e lhe dar esse trabalho. Ao chegar a Siracusa, receberá ordens para apresentar-se à sua unidade.

- Posso levar Badger comigo?

- Sinto muito... mas o regulamento fala apenas em um médico por comboio. Esta é uma ocasião em que eu espero que você faça valer seu posto.

No momento em que o silvo de um apito acordou-o ao amanhecer, o Helen S. Peters aproximava-se do novo ancoradouro, a menos de quatrocentos metros do cais. Havia tempo ainda para um café na despensa antes de tomar a primeira barcaça e supervisionar a transferência dos feridos.

Stokes esperava-o na amurada - parecendo descansado e muito menos mal-humorado. _.

- Parece que você foi uma dádiva de Deus ao VII Exército - disse ele. - O seu cartaz com Meighan não podia ser mais alto.

- Fico satisfeito em termos sido úteis.

- Em primeiro lugar, ele radiografou um elogio para que conste de sua fé de ofício. Agora, ouvi dizer que arranjou um passeio pela Sicília.

- com sua permissão, senhor.

- Você mereceu um dia de folga, Deus sabe. Simplesmente, não deixe de subir a bordo em Siracusa.

- Como é que foi a travessia?

- Tranquila, tranquila. O X Hospital Geral transferiu três quartos dos nossos doentes diretamente para a área de convalescença. Não precisaram nem mesmo fazer uma revisão.

- Isso é o que eu chamo de uma boa notícia.

- Desça até o Camarote C. Encontrará notícias ainda melhores à espera.

A notícia se chama, por acaso, Janet Josselyn/

Stokes observou o Subcomandante com sobrancelhas erguidas.

- Esta foi muito além do alvo, Major. A Senhorita Josselyn esta fazendo o circuito dos acampamentos... mas dificilmente terá permissão para visitar a Sicília. A nossa passageira é uma jornalista chamada Shane McLendon. Ela diz que você é um velho amigo.

Shane sentava-se à mesa do camarote do tombadilho de luxo, com uma máquina de escrever em frente e um gravador ao lado. com os fones do aparelho colados ao ouvido, trabalhava com a habitual concentração. Era a primeira vez em que Bruce a via com o uniforme de correspondente de guerra e as placas verdes de identificação nos ombros. Tivessem eles se despedido uma hora antes, o sorriso dela não poderia ter parecido mais descuidado.

- Entre, Major - disse ela. - Estou dactilografando a última linha...

- Não podíamos arranjar um cumprimento mais pessoal.

- Poderíamos, se tivesse a certeza de que estamos a sós.

- Neste momento, o tombadilho está deserto.

Shane ofereceu os lábios a um beijo. O contato foi sem pressa... e impessoal. Ele percebeu que a mente dela vagueava por outras paragens.

- Bem-vindo a bordo, Bruce.

- Eu é que devia dizer isso.

- Não importa, se ambos somos sinceros. Você está com boa aparência para um homem que acaba de sobreviver à primeira praia de invasão.

- Como é que você conseguiu este passeio de barca?

- De modo muito simples, logo que convenci o Relações Públicas do Teatro de Guerra de que a luta, vista do ângulo feminino, seria boa publicidade na frente interna.

- Esteve muito tempo em Argel?

- O suficiente para esgotar a cobertura do quartel-general. O Helen S. Peters constitui novo enfoque. A reportagem sobre um naviohospital no mar será meu primeiro furo. Logo que tiver entrevistado os doentes, darei outro.

- Se você se mostrar devidamente grata - disse Bruce - poderei fornecer-lhe o terceiro.

- Não tente contrabandear-me para a zona de combate. Jurei que não faria isto nesta viagem. O Comando da Fôrça-Tarefa tem ideias antiquadas sobre mulheres metidas em trincheiras.

- Supondo que meu Comandante esteja de bom humor, gostaria de ir à praia... em um comboio de jipes até Siracusa?

- Você faria parte do comboio?

- Naturalmente. Por que outro motivo eu a convidaria?

- O que é que você esperaria em troca?

- Atualizar-me sobre o que eu perdi nos Estados Unidos.

- Quando é que parte o comboio?

- Às onze. Você terá tempo de entrevistar meus pacientes. E eu não preciso dizer-lhe que teremos de viajar com pouca bagagem.

- Minha máquina de escrever é portátil - disse Shane. - Se o seu oferecimento inclui uma cama, posso levar escondida uma escova de dentes.

- Ficarei alojado na Pensionare Margherita. Enviaremos um rádio reservando um quarto para minha assistente. Desembarcarão o seu gravador em Siracusa com sua bagagem.

- Eu tinha pensado em deixá-lo... como um pequeno presente para o Coronel. Você verá que não ocupa muito espaço.

Estudando a figura esbelta da correspondente de guerra, Bruce afastou um segundo pensamento, como de pouca importância. O convite fora espontâneo. Um pouco tardiamente, compreendeu que poderia ter sido imprudente.

- Nós daremos um jeito para incluir você - disse ele. - Mas, antes de ir falar com o Coronel, tenho sua palavra de que você não sairá voando para o norte?

- Dei minha palavra em Argel. Preciso dá-la pela segunda vez?

- Receio que sim... para minha paz de espírito. De outra maneira, a combinação está desfeita.

- Ficarei com o comboio, Bruce... e confio em que você me protegerá. - Shane levantou-se vivamente ao ouvir o guincho de um pau de carga à meia-nau. - Estão começando a içar os feridos. Graças a amigos mútuos, parece que terei um dia ocupado.

Fazendo um círculo em torno dos arrabaldes de Gela - onde a única habitação de pé era a exceção que confirmava a regra - o comboio tomara um cauteloso rumo através dos escombros com a intenção de alcançar a fita poeirenta da estrada costeira. A viagem foi acidentada na primeira hora, embora turmas de reparação tivessem aterrado cada cratera no lado direito da estrada. Uma vez fora do perímetro da cabeça-de-praia, a velocidade aumentou. Ao meio-dia, o sargento que guiava o jipe dianteiro - um vaqueiro de um metro e noventa e dois do Wyoming - virou para uma campina fronteira ao mar, flanqueada por trigais e sinalizou ao comboio para que o seguisse.

- Esta é a metade do caminho, Major - gritou para o veículo de transporte de tropas onde viajava Bruce. - Não há lugar melhor para almoçar.

Shane já descera para a grama com uma exclamação de alegria. Da campina divisava-se um panorama de costa, mar e fazendas ingrememente terraceadas. À direita, um regato transformava-se em corrente à borda de um penedo. À esquerda, outro bosque de oliveiras habitado por cabritos soltos. Mais além, uma aldeia cercada por um pequeno e acolhedor porto: redes de pesca estendidas sobre suportes e paredes desmaiadas de cor pastel que pareciam mais velhas do que o tempo ao sol ardente.

Durante a viagem, a jornalista ocupara-se tirando instantâneos do comboio. Naquele momento, levantou a Leica para um close-up do rapaz de Wyoming antes de passar aos cabos encarregados do fogão portátil. Bruce notara a facilidade com que ela estabelecera contato com o pessoal do comboio... e a maneira como mudava de transporte em cada parada. Isto, compreendeu, fora medida essencial, permitindo-lhe cobrir a jornada de diversos ângulos. Supondo que sua vez estava prestes a chegar, apanhou uma marmita no fogão e levou-a até a borda do penhasco, onde se acomodou entre as raízes de um contorcido cedro que parecia ali desafiar a gravidade.

A comida, descobriu, era mais substancial do que inspiradora -- pão e presunto e uma caneca do quente e corrosivo café feito apenas nos fogões do Exército. Olhava-o ainda em dúvida quando Shane atravessou a campina para reunir-se a ele, fechando a câmara em caminho.

- Sei que você está sendo exclusivo por uma boa razão disse ela. - Podemos provavelmente arriscar-nos a almoçar juntos... se ficarmos à vista de todo o comboio.

- O Sargento Drury é um romântico. Tenho certeza de que ele pensa que estamos tendo uma lua-de-mel de uma noite.

- Digo a ele que você está apalavrado com uma estrela de cinema?

- Quem foi que lhe disse que estou apalavrado com alguém?

- Uma boa jornalista jamais revela suas fontes de informação.

- Foi Hal quem lhe disse?

- Não nego que o encontrei em Argel. Ele vai muito à cidade... quando não está praticando saltos de pára-quedas no bled.

- Poupe-me as ações de Hal, por favor. Tenho certeza de que são pitorescas.

- Há três horas, você me pediu para atualizá-lo - disse Shane.

- Nós não podemos evitar o passado para sempre.

- Não quis dar a impressão de amargura. Esteve muitas vezes com ele?

- Três vezes, para ser exata. Discutimos longamente sua situação, bem como a nossa.

- Você tem uma situação, no que diz respeito a Hal Reardon?

- Lá em Gulfview eu lhe disse que tinha esperanças. Ele precisava de um par para dançar e eu fiquei satisfeita por ter um acompanhante. Argel é uma grande cidade, agora que o Exército tomou conta. Não se esqueça de visitá-la em companhia de Janet quando vocês tiverem sua reunião.

- Isto está-se tornando cada vez mais familiar a cada minuto que passa.

- Janet está ainda no Norte da África com Pierrette. Mais cedo ou mais tarde, vocês se encontrarão.

- Espero ansioso o momento de revê-la.

- O mesmo acontece com um milhão de soldados saudosos. Nenhum deles, porém, terá sua facilidade de acesso.

- Você está tentando encurralar-me?

- Absolutamente. Como espectadora interessada, estou-lhe conferindo os planos de casamento, se por acaso existem.

- Eu nem fui aceito nem rejeitado. A questão foi posta no arquivo das coisas sobrestadas. Que tal abandonarmos agora o assunto?

- Mas, por que, tão bruscamente? Estou disposto a discutir meus planos com Hal.

- Discuta-os, então... por favor.

- Somente se você acabar com o mau humor.

- Acabou... palavra de honra.

- Em primeiro lugar e mais importante... não é segredo que estou disposta a apostar no seu colega de classe como o homem de amanhã.

- Eu faria mesmo, se fosse melhor jogador.

- Ele tomará parte no primeiro salto na Itália, antes do fim do verão. Se sobreviver à guerra - e ele tem um jeito especial para sobreviver - forçosamente substituirá Lucius Josselyn no Senado. Mesmo que a filha do Senador torne oficial o caso amoroso de vocês dois...

- Nós estamos discutindo Hal, não Janet.

Shane ignorou a interrupção com um movimento da mão.

- Não profetizarei que Hal Reardon está a caminho da Casa Branca. Mas suponho que ele saia da Itália como herói - e use devidamente a Sociedade James Lowell - ele poderia fazer uma tentativa para alcançar o cargo. Na primeira ou segunda eleição após a guerra.

- Agora, quem é que está sendo oportunista?

- A política é a ciência da oportunidade.

- O emprego legítimo de casos controversos é uma questão. Outra, muito diferente, modificar as ideias de um homem para fazer com que elas sirvam aos nossos fins.

- Hal avisou-me de que você não gostava da maneira como a Sociedade Lowell está-se desenvolvendo.

- Fui contra desde o dia em que Mike Derwent mostrou-me a primeira carta-circular. Os Boletins pioram a cada número. Quantos você leu?

- Li-os todos. Quando tive tempo, ajudei Mike a escrevê-los.

- Não me diga que você aprova o tipo de palavras de duplo sentido que ele usa.

- O duplo sentido tem seu valor. Na verdade, é essencial à maioria das carrekas.

- Evidentemente, Hal não pensa seriamente que os russos estão procurando ganhar tempo... com metade do país ocupado e os nazistas abatendo-os aos milhares.

- Um bocado de bons americanos acha que sim - disse Shane.

- A História talvez o justifique. Entrementes, as opiniões da Sociedade Lowell estão registradas.

- Se Hall compartilha dessas opiniões, por que não as apoia abertamente?

- Um oficial fardado deve manter-se longe da política.

- O Boletim é distribuído entre soldados fardados.

- Nada há de ilegal nesse fato... enquanto ele apoiar a guerra.

- Acho que Derwent conseguiu a lista de endereços através de Hal, não?

- O que é que tem, se conseguiu? Hal é o herdeiro oficial do credo de Lowell. Foi ideia de Jimmie começar no nível de quartel.

- O tom de Derwent nem mesmo se relaciona remotamente com a paz mundial. Não da maneira como o Sargento Lowell a entendia.

Shane pôs uma apaziguadora mão no braço de Bruce, num gesto que pedia antecipadamente tolerância. O calor que lhe viu nos olhos advertiu-o a abafar a ira. Nela, afinal de contas, tinha uma amiga que provara a amizade nos termos os mais fortes possíveis.

- Mike Derwent é um homem hábil, Bruce. Mas, às vezes, admito, ele é hábil demais. Mas você dificilmente pode negar que ele consegue resultados. Nesta fase, ele é imensamente útil.

- Para Hal... sim.

- O que foi que Hal fez até agora contrário aos interesses do país?

- É correto fazer com que os americanos duvidem dos aliados antes que a guerra termine?

- Se você está-se referindo ao último Boletim, o argumento é válido. Mike foi longe demais dessa vez. Na maior parte, as críticas dele foram razoáveis... e elas contribuíram para formar a Sociedade. Você sabe quantos membros ela tem hoje?

- A última cifra que ali falava em três milhões... o que não é lá grande coisa. Um país tão grande como o nosso pode produzir esse número de desequilibrados quase sem fazer força.

- Atualmente, as cifras aproximam-se mais de cinco do que de três milhões - disse Shane. - Muitos entre esses cinco milhões são pessoas decentes que querem construir um mundo melhor. Não os ignore desde agora simplesmente porque elas resolveram escolher uma orientação diferente.

- E onde é que isso nos deixa? Você diz que Hal é um patriota com planos de efeitos certos. Acho que ele está explorando ambos os lados da questão até ter certeza do solo onde pisa. Vamos passar para um tópico mais seguro... como nós dois?

- Tem certeza de que somos o tópico mais seguro do mundo?

- Tenho certeza de que fomos bons um para o outro. Pelo Menos, até que começamos a discutir Hal.

- Ou Janet?

- Ou Janet, se você insiste. Vamos voltar a você e a mim e ver aonde isso nos leva. Está gostando deste passeio na Sicília pelo menos a metade do que estou gostando?

- Apreciei cada momento - disse Shane. - Obrigada, mais uma vez, por tê-lo tornado possível. Por esta altura, o meu débito deve andar na casa dos dez mil dólares. Espero apenas poder resgatá-lo algum dia.

- Eu não sabia que você me devia alguma coisa.

- Não foi você quem me lembrou que eu sou mulher... com uma certa atração para os machos errantes?

- Se você se refere a uma noite na rua S...

- E a uma noite no oeste da Flórida - disse Shane. - A ocasião em que seus escrúpulos lhe dominaram os instintos. Mas, mesmo naquela ocasião, você foi um tónico para meu ego... num momento em que eu precisava urgentemente dele.

- Você não precisará de tónico amanhã, com Hal em Argel.

- Assim, estamos de volta a Hal e Janet. Daqui de onde estou, você também parece recuperado. Congratulemo-nos mutuamente pela boa saúde e vamos para Siracusa.

Descobriram que a Pensionare Margherita era uma esparramada estalagem de paredes côr-de-rosa numa elevação a cavaleiro da baía, ocupada, na maior parte, por oficiais de Estado-Maior do VIII Exército.

Bruce e Shane chegaram ao anoitecer a tempo de participar do jantar coletivo - um repasto surprendentemente bem servido, considerando-se o fato de que Siracusa mal saíra do estado de guerra. Houve brindes - acompanhados de Asti spumante - ao sucesso das armas aliadas. Seguiram-se discussões acaloradas sobre os objetivos de guerra dos aliados, regadas por outras garrafas de Asti, após terem os convivas passado ao jardim. Soara já meia-noite antes de os dois americanos se dirigirem aos quartos - e Bruce admitiu que seus sentidos estavam equilibrados entre recordações pertinentes e um esquecimento de pura intoxicação ao subirem a estreita escadaria.

Shane (lembrou-se, sem muito ressentimento) parecera bastante sóbria ao se despedirem à porta da moça. Haviam concordado em levantar-se a tempo de despedirem-se: o navio chegaria ao amanhecer e Shane tivera a promessa de uma viagem bem cedo de avião até Argel.

No embotador calor de meados de verão, acomodou-se de cuecas no leito matrimonial, uma estranha nota de luxo na alta e desnuda câmara. A última recordação coerente que teve foi um ruge-ruge de lençóis. Shane, não menos do que ele, estava julgando também evasivo o sono no quarto vizinho, cuja divisão parecia mais uma ilusão fantasmagórica do que uma parede.

Finalmente, caiu num cochilo inquieto. Logo depois, despertando em meio à profunda escuridão, compreendeu que fora acordado pelo mesmo trovão que ouvira em Gela.

Os ponteiros luminosos do relógio indicavam que dormira menos de uma hora - e ele identificou o trovão antes mesmo de sentar-se na grande cama. Durante o jantar, os oficiais haviam reconhecido que a Luftwaffe, embora tivesse recuado para campos mais seguros no continente, não fora ainda expulsa dos céus. Era evidente agora que os bombardeiros inimigos haviam retornado para martelar o campo de aviação ao norte de Siracusa.

Na extremidade do quarto, portas de vidro abriam-se para um terraço escondido por trás de buganvílias. Mais além, sob o guardachuva de pinheiros do jardim, vislumbrou o porto com uma planície mal iluminada sob as estrelas. Mais longe ainda, distinguiu explosões alaranjadas nos céus no momento em que uma bateria antiaérea entrou em ação. A salva foi seguida pela explosão de bombas que caíam.

Até aquele momento, a ameaça parecia remota. Naquela tarde, deixando Ragusa para aproximar-se da cidade pelo oeste, notara que o campo sob ataque ficava a pelo menos oito quilómetros da estalagem. De pé junto à amurada do terraço, concluiu que o inimigo viera do norte para atacar o alvo do lado oposto. O burburinho de vozes no jardim informou-lhe que os britânicos continuavam a beber vinho: a julgar pelos comentários que faziam, a incursão não resultara em grandes danos graças à alerteza dos defensores. Debruçava-se ainda sobre a amurada e amaldiçoava um banco de nuvens que lhe obscurecia a visão... quando Shane apareceu no terraço.

Envolvia-a um lençol, como uma toga. Percebeu que ela estava apenas semi-acordada e compreendeu que o procurara apenas por um motivo - a necessidade primitiva que todos os seres humanos compartilham de aproximarem-se quando um som que encerra perigo em qualquer idioma os arranca do sono.

- Eles estão se aproximando, Bruce?

- Acho que sim. Mas é difícil dizer com certeza.

Uma salva disparada do solo, bastante próxima para torturar-lhes os tímpanos, culminou na detonação de um tanque de gasolina nas alturas acima da estalagem. Shane aproximou-se rapidamente dele no momento em que o relâmpago delineou claramente cada folha do dossel de trepadeiras que os cobria. Pareceu a coisa mais natural do mundo pôr um braço em torno dos ombros dela e ignorar o fato de que ela usava um lençol em lugar da camisola.

- Estão-se aproximando - disse ela. - Deve ser a rota de escape deles.

- Provavelmente não bombardearão civis... agora que já perderam a Sicília.

- Quem é que sabe o que fará o piloto de um bombardeiro expulso do alvo.

- Acho que este não é o seu primeiro ataque aéreo.

- Nós tivemos nosso quinhão em Londres. De alguma maneira, este é diferente. Você está com medo?

- Claro que estou. Você, não?

- Eu estaria tremendo dentro dos sapatos se tivesse parado para me vestir.

Nenhum dos dois se moveu quando o segundo tanque de gasolina, a menos de quilómetro e meio, pintou um arco escarlate na noite. Já percebera que Shane tinha razão. Tendo encontrado o campo de aviação bem defendido, os atacantes na fuga escolhiam outros alvos. Voando baixo para não errar a pontaria, fugiam em direção ao porto como objetivo final. Mesmo do limitado ponto de visão onde estava, Bruce notou que seria um voo suicida, agora que dezenas de canhões navais apontavam para o céu.

- Lá vem ele - disse Shane. - Se conhece alguma oração, diga-a.

- Talvez seja mais seguro entrarmos.

- Se a minha hora chegou, eu gostaria de saber da notícia do lado de fora.

Outra bomba, caindo num jardim a um quarteirão de distância, enviou em cascata uma onda verde de ramos sobre o muro. com a explosão, Shane aconchegou-se em seus braços - e, uma vez mais, seus lábios pareceram encontrar-se por instinto. No beijo havia a mesma fome que haviam compartilhado em Gulfview - uma fome que não podiam mais ocultar.

- Há maneiras piores de morrer - sussurrou ela contra seus lábios.

- Ninguém vai morrer hoje à noite. Eles tomarão o rumo das docas.

O prognóstico, ao que parecia, fora exato: a explosão no jardim fora a ameaça mais próxima à estalagem, e a ala suicida da Luftwaffe já descera para a baía onde a esperava uma enfiada de canhões. Uma explosão final, quando um bombardeiro avariado chocou-se com a beira dágua sacudiu apenas suavemente o edifício, embora prendesse Shane ainda mais fortemente nos seus braços.

- Eu perdi meu lençol, Bruce. Você se importa?

Não falaram novamente quando ele a carregou do terraço para o quarto.

Na manhã seguinte, depois de ter acertado contas com a padrona, observou as cicatrizes da incursão da noite anterior. O navio estava atracado no cais abaixo da Ospedale Maggiore. Durante um momento permaneceram à borda do terraço e, em seguida, de mãos dadas, desceram as escadas que conduzia à passagem de automóveis da estalagem - e ao jipe que a levaria ao campo de aviação antes de deixá-lo no porto.

- O motorista esperará - disse ele... e parou à sombra do último guarda-chuva de pinheiros.

- É tempo de ir, Bruce.

- Nós temos mais um minuto. Talvez dois.

- Todas as nossas despedidas parecem apressadas - disse Shane. - Eu gostaria de saber por quê.

- Talvez possamos encontrar-nos em Argel. O navio deverá chegar lá na sexta-feira.

- Eu vou ficar lá o suficiente para liberar a minha matéria. Em seguida, partirei para Londres.

- Eu gostaria que pudéssemos voar juntos de volta.

- Assim é melhor - disse Shane. - Não se esqueça de que agora eu sou a outra.

- Não precisa dizer isso.

- Mesmo se for verdade?

- Não foi verdade à meia-noite.

- A meia-noite passada pertence à Sicília. Esta manhã, estamos voltando ao continente.

- Você pode-me dizer o que foi que aconteceu?

- Nós estávamos a sós... e com medo. Uma bomba nos aproximou.

- A maioria das bombas separa.

- Aquela desempenhou uma função especial. Lembrou-nos que ainda estávamos vivos.

- É bom saber que o serviço foi mútuo.

- Claro que foi mútuo - disse Shane. - Você tem vivido solitário como o demónio… desde que disse adeus à Pierrette na Califórnia. O mesmo me aconteceu. Houve momentos - como à meia-noite de ontem - em que você nem mesmo tinha certeza de que ela existia. Por que não deveria aceitar uma substituta no momento em que os Stukas apareceram?

- Dificilmente constitui uma desculpa usá-la para ignorar a morte.

- Eu o usei também, Bruce. Enquanto estivemos juntos, foi menor o nosso medo. E muito menos solitário. Não é melhor deixar as coisas assim?

- Muito melhor, se você me deixa tão facilmente.

- Vamos dizê-lo de outra maneira - sugeriu Shane. - Na noite passada, uma dívida foi saldada... e a conta-corrente está liquidada. Agora, quer fazer o favor de levar-me ao aeroporto?

De mãos dadas ainda, desceram as escadas até a passagem de automóveis - e o círculo de ferro que lhe bloqueava os pensamentos deixou de apertar-lhe o cérebro. A voz da consciência não fora abafada. Ouvi-la-ia novamente logo que a tivesse deixado no campo de aviação... embora o momento da partida, que temera, fosse magicamente tranquilo. Como sempre, Shane McLendon dispusera do futuro com o menor número de palavras possível.

Era um dom inapreciável - mas ele não soube como agradecer-lhe quando a fez subir ao jipe, sentou-se a seu lado e disse ao motorista para correr.

Em Argel, o navio de Bruce descarregou a segunda carga completa de feridos no X Hospital Geral antes de atravessar o porto para receber suprimentos nas docas da Intendência. Nela encontrou uma mensagem de Janet. Ela dera espetáculos em acampamentos fora da cidade. Daria outro naquela noite na área do porto... esperava que ele fosse procurá-la.

A certeza de que ainda vivia um sonho - uma visão dupla febril acompanhada de perigos próprios - persistira durante o desembarque dos pacientes; e não diminuíra enquanto permanecera no cais na tarde escaldante conferindo o embarque dos medicamentos. Argel fazia parte disso, uma cidade de brancos ofuscantes e marrons-escuros cor de lama, coroada pelo famoso Casbah - o Alto, que fora outrora uma fortaleza e era agora o núcleo do quarteirão muçulmano... Quatro horas depois, vestido com o melhor ”worsted” tropical, chegou ao Grand Hotel para escoltar a estrela de Pierrette ao espetáculo.

A apresentação de Janet foi uma repetição do triunfo em Anápolis até mesmo no tocante aos assobiios de dez mil felizes jovens guerreiros.

A plateia apreciara o filme que precedera o espetáculo, um musical feito segundo o melhor estilo Brodski. Adorara ainda mais Janet quando ela aparecera no palco com outros membros da equipe para repetir os números de maior sucesso.

Observando-a da pista de aviação que desembarcava no palco improvisado, Bruce amara-a mais do que ninguém. Aplaudira-a entusiasticamente com os demais, embora o crítico latente no fundo de seu cérebro estivesse ainda mais ocupado, explicando-lhe que aquela noite era a consumação do talento de Janet Josselyn e que a carta que recebera naquele dia do diretor dela constituía uma autêntica profecia do futuro que a aguardava...

Ao fim da tarde, nada dissera a respeito de Brodski. Tivera o cuidado de calar as dúvidas enquanto tomavam um táxi - um minúseulo Renault especialmente projetado para as vielas do quarteirão nativo - a caminho de um jantar no Café Rif.

O famoso restaurante, localizado no topo de Casbah, estava congestionado. Ele, porém, já subornara o maitre d’hotel para conseguirlhes uma mesa no terraço; este insistira em que Janet provasse o cuscus e o aromático ragout de carneiro, especialidades da maison. Uma segunda garrafa de Pommerey dissolveu-lhe os piores receios. Mas somente com a chegada do espesso café árabe e um soberbo conhaque, ousou fazer a primeira pergunta significativa da noite.

- Você já encontrou Hal desde que chegou?

- Ele me chamou no hotel na noite passada. Foi tudo o que pôde fazer. O general dele é um homem muito ocupado estes dias.

- Vocês estão ainda em bons termos?

- Hal e eu sempre estaremos em bons termos.

- O que é que ele disse a meu respeito?

Janet girou o cálice de conhaque entre os dedos, com os olhos pousados na cidade de telhados brancos lá embaixo. Jamais parecera mais bela do que naquela noite - e a julgar por todos os sinais externos, jamais tão confiante na sua meta. Recordando o papel que desempenhava na criação de tal confiança, Bruce perguntou-se por que não se sentia mais culpado - e por que lhe era fácil calar a respeito de Shane McLendon e de um certo interlúdio siciliano.

- Hal sabe que eu quero casar com você - disse ela. - Ele sabe que você prometeu jamais interferir na minha carreira de atriz... como ele teria feito.

- Como é que ele recebeu a notícia?

- com tanta bravura como você esperaria.

- Ele lhe disse, por acaso, que eu tinha mais sorte do que merecia?

Janet sorriu novamente para o cálice.

- Nenhum candidato rejeitado poderia omitir essa observação.

- Fico satisfeito em ver que ele se acostumou à ideia de perdê-la. No lugar dele, eu não teria sido tão tolerante.

- Afinal de contas, ele terá Shane para consolá-lo.

- Você sabia a respeito de Shane?

- Todo mundo sabe. Ele a encontrou frequentemente... quando estavam em Washington. Shane fez muito para promover a carreira dele. Aparentemente, ela espera fazer ainda mais no futuro.

- E se fizer, você se importará?

- Por que deveria eu... agora? E você?

- Claro que não... se foram feitos um para o outro.

Janet estudou-o durante um momento antes que o sorriso dela afastasse a última de suas dúvidas: a troca de palavras aproximara-se demais da verdade para ser agradável.

- Ouço, por acaso, uma nota de desaprovação em sua voz, Bruce? Na verdade, é um direito que Shane tem de ajudar.

- Para falar francamente, eu preferia que ela tivesse escolhido outro político. O fato de ela apoiar Hal - e as ideias dele - é algo que não consegui ainda compreender.

- Nada podia ser mais simples - disse Janet. - Ela o ama. - O amor será palavra que tudo explica?

- Geralmente, sim - respondeu Janet. - Mesmo quando aplicada a uma jornalista prática. Você não está apaixonado por ela, espero.

- Estou apaixonado por você. E sou muito mais felizardo do que mereço.

- Hal contou-me que ela tem grandes planos - disse Janet. - Apoiado na coluna dela, ele espera mesmo ser Presidente algum dia.

- Eu me teria contentado com uma poltrona no Senado se tivéssemos permanecido juntos.

- E o que é que você espera de mim?

- Uma clientela florescente em Los Angeles e serviço de escolta em todas as minhas premières. Nós teremos uma boa vida juntos, Bruce, isso eu lhe prometo.

A carta de Brodski, dobrada no bolso, queimava com uma chama própria - mas ele lhe ignorou a existência. Evidentemente, a ocasião não era propícia para sugerir que o tempo de Janet em Hollywood estava prestes a esgotar-se. Ou perguntar-lhe se ela se contentaria em compartilhar da vida de um especialista em pesquisas cirúrgicas em Baltimore.

- Obrigado por essa visão em sua bola de cristal - disse ele.

- Vou-me esforçar para que ela se realize.

- Por que não se deveria realizar? Você ouviu os aplausos hoje à noite.

- Ninguém aplaudiu mais do que eu. O seu diretor deveria ter estado na plateia.

- Leo está ocupado demais com meu novo roteiro para vir à África. Ele quer que eu volte no próximo mês para começar a filmagem.

- Como é que está indo a revisão do roteiro?

- Bastante bem, segundo ele me disse. - Janet fez um rápido gesto como que para ignorar o assunto. - Não me faça falar de cinema, gruce. Não fiz outra coisa nos últimos meses. Vamos falar a seu respeito.

- Receio que o assunto seja muito monótono.

- Não para mim. Você vai tomar parte na invasão da Itália? Ou o assunto é altamente secreto?

- O cruzeiro do Helen S. Peters é um livro aberto. Se o Exército desembarcar no continente, ficaremos a dez quilómetros ao largo... e no seguinte desembarque.

- Poderia contar-me mais alguma coisa?

- Receio que nenhuma praia de invasão seja igual à outra... se vista de uma vigia de navio. Tem certeza de que não quer mais conhaque?

- Apenas se você não puder passar sem ele.

- Se você quiser, podemos tomar nosso próximo drinque no Cabaret de L’Enfer. É o dernier cri em Argel.

- Você me julgaria uma completa desavergonhada se eu lhe pedisse que me levasse ao hotel? Tomaremos lá a nossa bebida seguinte.

Na manhã seguinte, em um dos novos campos de aviação militares ao sul da cidade, ele observou outro DC-3 inclinar as asas para a torre de controle antes de tomar o rumo de Oran. O avião levava Janet Josselyn e a troupe para um espetáculo final de Pierrette antes que ela voltasse aos Estados Unidos. Os beijos de despedida - no duvidoso abrigo de uma árvore cortada onde estacionara o carro - encerraram o mesmo calor, a promessa levemente desesperada de uma manhã em que as coisas seriam mais fáceis para ambos.

Dirigindo-se lentamente para o carro, levantou os olhos novamente para o céu vazio e amaldiçoou a sua própria fluência, mesmo que lhe apreciasse o sucesso aparente. A memória assegurou-lhe que tivera comportamento impecável nas longas horas noturnas - no Café Rif, mais tarde, no quarto da Suíte Berbere do Grand Hotel... O êxtase que compartilhara com Janet fora autêntico. Nada de importância fora calado: nenhuma promessa fora feita que não estivesse disposto a cumprir se Janet exigisse mais tarde. Haveria tempo de sobra para outro debate com a consciência.

Nos céus acima, uma cunha de Spiftires rugia, de volta de uma patrulha matutina. O som recordou-lhe que tinha deveres a desempenhar a bordo de um hospital flutuante, decisões que não podia mais adiar, mas estava ainda despreparado para enfrentar os colegas a bordo. Já podia prever as caçoadas de Eric Badger, os olhares de esguelha de Alice Stacey e a recusa de Phil Owen em acreditar que ele jantara na noite passada com uma estrela do cinema. Mais despreparado ainda estava para desculpar-se com o Coronel Stokes pela ausência de uma noite inteira.

Sentado ao volante, retardou o momento de ligar a ignição. Em vez disso, abriu a carteira e tirou a carta que tão cuidadosamente ignorara durante a noite passada em companhia de Janet.

A prosa de Brodski, como a conversação do diretor, inclinava-se, para o aforístico:

Ao ler esta carta. Quase com certeza você terá assistido a ”Pierrette” no exterior. Sei que lhe aplaudirá os méritos, incluindo meus truques de bravura e a habilidade da estrela de imitar seus melhores de uma maneira que as plateias julgarão encantadora.

Infelizmente, a mímica pode ser explorada apenas até certo ponto pela câmara.

Afim de consolidar meu argumento - e de dar à própria Janet uma oportunidade de entendê-lo - estou, por assim dizer, ”produzindo” o segundo veículo dela ao estrelato. Aqui, como no Exército, temos nossos altos escalões, cujas estúpidas ordens devem ser obedecidas. No momento, nosso Comando Supremo exige em altos brados uma comédia musical que repita o sucesso da primeira - e, portanto, devo atacá-los com o óbvio. A primeira tentativa, como talvez tenha ouvido, foi abandonada. Estou prestes a começar de outro ângulo, sabendo que a tentativa está destinada ao fracasso. Janet Josselyn é, na melhor das hipóteses, uma superamadora, e não uma atriz. Logo que ela fizer essa descoberta, confio em que o orgulho a forçará a pedir rescisão do contrato. Ao ver nossos novos esforços, estou igualmente confiante em que a direção do estúdio ficará mais do que satisfeita em deixá-la ir.

Daí em diante, Janet necessitará urgentemente de consolo. Faço-lhe esta advertência prévia na esperança de que possa proporcioná-loSe minhas antenas psíquicas estão em bom estado, esta garota encantadora, embora rasa, já lhe ofereceu toda a devoção de que é capaz. Devidamente treinada, ela poderá tornar-se uma boa esposa para você. Quando a crise a atingir e ela fôr forçada a procurar realização em outras paragens, fará você o possível para que a busca seja compensadora?

Bruce levantou os olhos no momento em que uma sombra caiu sobre o papel. Matutar sobre o impasse em que se encontrava Janet e ele, também - não serviria a fim válido algum, agora que Brodski confirmara o próprio julgamento... Sentiu-se grato porque a corrente dos pensamentos fora despedaçada, embora a causa da interrupção fosse o Coronel Harold Reardon.

Em Los Angeles, ajeitando-se num espelho de hotel, o Deputado Reardon parecera um herói de uma idade mais nobre na túnica e escarlates da Brooks Brothers. Naquele dia, usando a farda de oficial de serviço, completa com cinto de pára-quedista, botas de cano alto e cadarços, que brilhavam como castanhas, o Coronel Reardon integrava-se na paisagem africana. Estendendo a vista pelo pátio de manobras, Bruce observou que ele chegara no carro do general. O veículo habilmente pintado, ostentando o galhardete da 759 Aerotransportada, estacionara a uma distância respeitosa.

- Até agora, perdemos contato - disse Hal. - Você podia fingir, pelo menos, que está satisfeito em me ver.

- O que é que você está fazendo aqui? - no exato momento em que fazia a irritada pergunta, Bruce sentiu a pele contrair-se num arrepio de recordação. No Campo Bolling usara as mesmas palavras para manifestar sua indignação com Hilary Manning: naquele dia, o advogado de Jake Sanford e o ajudante do General Leonard exibiam afinidades que ele não podia ignorar. A maneira de Hal, o ar de superior cordialidade, possuía a mesma aura; os olhos de Hal estreitaram-se nas mesmas gretas opacas, ao ouvir-lhe a reação hostil... Embora usassem o mesmo uniforme, não havia dúvida de que eram inimigos potenciais.

- Tenho direito de visitar o campo Boukhalf sem um passe disse Hal. Passado o relâmpago de raiva, a voz saiu tão cuidadosamente medida como o sorriso. - Obviamente, você veio aqui para despedir-se de Janet. Eu tencionava fazer o mesmo.

- Você está um pouco atrasado. Ela está voando há mais de quinze minutos.

- Como você vê, estive dando recados para o meu general.

- O seu senso de oportunidade é habitualmente melhor.

- Para ser franco, eu sabia que perdera Janet quando telefonei para o Grand Hotel. Vim a Boukhalf, apesar disso... na esperança de encontrar-me com você. Nós devíamos ter-nos encontrado há bastante tempo.

- Nós não resolvemos tudo em Los Angeles?

Hal deu a volta em torno do jipe e pôs um pé lustroso no párachoque. Visto desse ângulo, ele parecia enquadrar-se ainda mais no ambiente. As águias de prata no colarinho lembravam sua primeira promoção, obtida no campo antes de provar o combate; o rosto profundamente moreno sob o capacete de pára-quedista poderia ter pertencido a um veterano mais velho do que Aníbal.

- Velhos amigos jamais esgotam o assunto, Bruce.

- Temos nós por acaso esse status?

- Em Los Angeles, concordamos em estabelecer um armistício... até descobrirmos em que posição estávamos. Eu, de minha parte, não tenciono rompê-lo.

- Eu ainda me pergunto o que você quer realmente.

Hal empurrou o capacete para trás, revelando uma testa enrugada.

- Pode levar-me até o polígono de treinamento? Fica no bled, a menos de oito quilómetros. Meu ordenança pode seguir-nos... e poderemos conversar no caminho.

- Eu devo estar no navio ao meio-dia.

- Você conseguirá isso, facilmente. Esta talvez seja nossa última oportunidade de concordar sobre pontos fundamentais. A 759 parte para manobras na Líbia amanhã.

- Você não vai para a Sicília?

- Nossa missão é sigilosa - disse Hal. - Apesar disso, não é segredo que somos os bombeiros. Estamos treinando para servir de ponta-de-lança ao espetáculo no continente.

- Meu trabalho não é tão misterioso... ou tão importante. vou para Siracusa amanhã buscar outra leva de feridos.

- Então devemos conversar agora, ou nunca?

- Se o General Leonard puder conceder dez minutos de seu tempo.

- Não precisarei de dez minutos desde que você insiste em aparar arestas - disse Hal. - Como você provavelmente sabe, Shane e eu decidimos que podemos promover nossas respectivas carreiras trabalhando juntos. Pode dizer o mesmo a respeito de Janet... e de você?

- Acho que sim, Hal.

- Já se perguntou o que acontecerá quando ela terminar o contrato que tem com Brodski?

- Quem é que lhe disse que ela vai romper com Brodski?

- Eu sempre soube que Janet estaria acabada para o cinema... logo que terminasse Pierrette.

- Tenciono fazê-la feliz, com uma carreira ou sem ela. Afinal de contas, estou apaixonado por ela.

- Tente pensar claramente, Bruce... em benefício de nós todos. Esqueça palavras românticas como amor e felicidade. Quanto tempo teria você durado como marido de uma estrela de cinema... se Janet tivesse aprovado na Costa? Por quanto tempo Janet suportaria Baltimore... servindo chá nas reuniões da congregação, ouvindo cantar seus triunfos no laboratório?

- Você está insinuando que nosso casamento não terá êxito?

- Janet jamais tencionou realmente casar com você - disse Hal. - Não era parte dos planos dela, nem dos meus.

- Você não tem o direito de dizer isso.

- Sou o homem que o pai de Janet escolheu como marido dela depois que ela tivesse tido experiência com cavaleiros andantes como você. Sou o homem que dará a ela a vida e o prestígio para os quais ela foi treinada. Você jamais jogará em nossa Liga. Volte para um jogo que possa jogar.

- Você espera que eu siga esse conselho?

- Você será forçado a segui-lo antes de terminar o ano.

- Janet rompeu com você para casar-se comigo.

- Nosso entendimento jamais foi rompido. - Hal falava em voz absolutamente serena, no tom de um relaxado homem do mundo a instruir um bárbaro em palavras que ele podia entender. - Foi meramente adiado... em virtude de minhas obrigações com a 759 Aerotransportada. Podemos retomar os fios no momento em que quisermos.

- O que é que você diz de Shane? Ou está planejando tornar-se bígamo?

- Shane compreende que eu tenho certas obrigações para com os Josselyns. Podemos ainda ajudar-nos mutuamente.

- Ela também espera casamento.

- Talvez tivesse esperado, até algum tempo atrás. Logo que compreender como é profundo meu compromisso, ela aceitará a situação.

- E continuará a ajudar sua carreira?

- com todos os consideráveis talentos que possui... porque acha que o serviço vale a pena. ’

- Você, portanto, acha que não pode perder... não importa qual o resultado do jogo?

- Eu sempre estive destinado a ganhar, Bruce.

- Não, quando se brinca de bancar o Deus.

- Essa, igualmente, é uma velha acusação. Por que não me aceita como um mero mortal... intensamente preocupado com seus melhores interesses?

- Qualquer dia destes você vai descobrir que não pode dar nós nas vidas das pessoas... e esperar que elas fiquem quietinhas.

- Eu não estou dando nós em ninguém - replicou Hal. Estou apenas mencionando algumas verdades que você, cego demais, não quer ver. Espero que as aceite, a tempo de evitar magoar-se demais.

O pé de Hal deixou o pára-choque um segundo antes de Bruce lançar o jipe em desabalada carreira que, por centímetros, deixou de colidir com o carro do general.

Meia hora depois, ao atravessar o cais da Intendência que servia ao X Hospital Geral em Argel - e distinguir a silhueta do navio na agitação do porto - não se lembrava da corrida desde Boukhalf. Sentia apenas o alívio de um homem prestes a ingressar num santuário, cujas tarefas familiares o esperavam, e deixar no limiar as confusões do mundo.

 

                                                  SALERNO

O ferido, tinha esperança, viveria. Se tivesse tempo, poderia mesmo salvar-lhe a perna a despeito do ferimento infligido pela explosão.

com ambos os polegares inseridos profundamente na virilha do marinheiro para deter o esguicho da artéria dilacerada, nenhuma tentativa fez de avaliar os danos a bordo. Levantou os olhos quando o Capitão Swenson cruzou o tombadilho para dizer-lhe que ia encalhar o navio a fim de evitar-lhe o afundamento - e perguntou-se por que o comandante tivera tanto trabalho em vir comunicar-lhe pessoalmente o fato... Somente no momento em que encarou Eric Badger do outro lado da mesa, compreendeu a importância daquele desvio e da tensa declaração.

O Coronel Stokes estivera no tombadilho de vante observando a instalação de um toldo destinado a abrigar os feridos ambulatoriais. Bruce acabara de subir a fim de conferenciar com o grupo que esperava os novos doentes nas escadas de embarque. O que aconteceu daí em diante permaneceu confuso em sua mente: asas cortando o ar quando um bombardeiro avariado passou pela proa do navio e uma detonação de estourar os tímpanos logo que o aparelho colidiu com um LST a uns cem metros de distância.

O avião e o LST, sabia, explodiram juntos numa nuvem de chamas e fragmentos voadores. Antes que a fumaça descesse, percebeu que o Helen S. Peters havia também recebido parte do castigo. Mais uma vez, os fatos ficaram ocultos a seus olhos. Ouviu apenas uma Segunda explosão, muito mais perto, após ter-se lançado de bruços no tombadilho para evitar um géiser de pedaços de aço.

À primeira vista, todo o tombadilho de vante parecia dobrado sobre si mesmo; a proa, envolvida em vapor logo que os extintores automáticos esguicharam água nos anteparos, constituía uma cratera de metal retorcido. A única baixa visível era um marinheiro, lançado num embornal pela explosão, com o sangue esguichando da coxa ferida. Stokes e o grupo de três homens que armavam o toldo haviam simplesmente desaparecido.

A turma de emergência entrara em ação antes que Bruce pudesse ajoelhar-se ao lado do ferido. Não levantou a vista até que os padioleiros apareceram em resposta a seu chamado. Graças à disciplina férrea de bordo, sabia que devia confiar o controle da situação - se ainda possível - a outras pessoas.

As palavras do Capitão Swenson, pronunciadas do outro lado da padiola, chegaram-lhe tardiamente ao cérebro pouco antes de empunhar o bisturi. A explosão que destroçara a proa matara o Coronel Gerald Stokes. Na qualidade de Subcomandante, era ele agora o encarregado da 2419 Companhia do Navio-Hospital.

Mesmo depois de colocado o torniquete, fora formidável o trabalho de localizar o vaso sanguíneo profundamente dilacerado. Eric trabalhava duramente para manter aberto o campo e Bruce fazia uma sutura difícil quando sentiram o tombadilho vibrar no momento em que as hélices foram embandeiradas. O leve solavanco após ter o casco feito contato com o fundo ligeiramente inclinado mal foi sentido no ulterior do navio. A compreensão de que o tombadilho permanecera, graças a Deus, plano, retirou um peso de cada mente no anfiteatro cirúrgico.

Outra hora passou antes que o paciente fosse julgado fora de perigo. O cirurgião permaneceu à mesa até que a vital artéria femoral e a grande veia acessória foram fechadas. Somente então afastou-se do cone da luz, deixando o fechamento da ferida a outras mãos.

- Vá até a ponte, Eric. Diga ao Capitão que salvamos a vida do marinheiro Hebard e pergunte a extensão dos danos na proa. Eu gostaria também de um relato sobre a situação na praia desde que agora parece que fazemos parte dela.

- Mataram Jerry Stokes?

- Receio que sim.

- Eu estava no Tombadilho D quando ouvi a explosão. O que foi que a ocasionou?

- É isso o que você vai descobrir... enquanto eu me certifico de que esta parte do navio está intata.

Durante a emergência, os relatórios que chegaram à mesa foram tranquilizadores - embora Bruce precisasse da evidência dos próprios olhos. Verificou que os trezentos pacientes - embarcados durante o assalto inicial a Salerno - estavam razoavelmente tranquilos em seus beliches, agora que as notícias do encalhe foram confirmadas. Num anfiteatro cirúrgico adjacente, uma fratura composta estava sendo levada à conclusão. Em outro, um marinheiro ferido no ombro mergulhava no sono sob o efeito de gotas de sódio pentotal que lhe eram injetadas numa veia do braço. Ambos os trabalhos constituíam evidência tangível de que os meses de treinamento produziam resultados. Os procedimentos operacionais padronizados prevaleceram no interior do navio mesmo quando o Helen S. Peters se dirigia para terra com a proa destroçada.

A redução da fratura, observou, estava virtualmente terminada. No caso do marinheiro, dois dos assistentes haviam iniciado a necessária cirurgia. Numa alcova, um laboratorista convocado sentava-se ao lado do gravador de Shane McLendon, anotando as palavras indistintas do paciente em taquigrafia para posterior comparação com a gravação... Desde a partida do navio de Gela, fora seguida amiúde essa rotina com feridos que sofriam da reação ao trauma conhecido como choque neurogênico. O valor das gravações fora ocasionalmente negativo. Às vezes, haviam proporcionado valiosas intuições sobre o estado mental do doente no momento em que ocorrera o ferimento e a possibilidade de complicações pós-operatórias no cérebro e sistema nervoso.

Badger esperava-o no escritório do Tombadilho A, que servia de posto de comando do Coronel Stokes. O homem de Wisconsin fora cuidadosamente informado. Acompanhado de um membro da turma de socorro, descera aos destorcidos anteparos da proa para avaliar os danos. A sua história confirmou as estimativas de Bruce.

- Um avião inimigo, aparentemente fugindo da refrega que continuava ao norte e leste da praia de invasão, aparecera como um indesejável fantasma e fizera sua última e fatal passagem antes que os motores falhassem. Somente o acaso cego impedira uma colisão direta à meia-nau. Alguns observadores na ponte julgavam que tal fora a intenção original do piloto. De qualquer forma, o avião passara raspando pela antena de rádio antes de chocar-se com o centro do LST.

O Navio de Desembarque de Tanques estivera transportando munição para a praia. A dupla explosão ocorreu por contato.

Opiniões diferiam sobre a causa exata das avarias recebidas pelo Helen S. Peters na proa. O Capitão Swenson estava razoavelmente convencido de que um obus a bordo do LST, lançado ao ar pela explosão, atingira-lhe o convés de vante. O imediato insistia em que uma bomba inimiga, lançada no momento em que o Stuka passara por cima desempenhara a mesma função... Toda a ponte concordava que o encalhe imediato fora o que salvara o navio. Felizmente, as bombas haviam controlado a invasão da água durante a corrida para a praia. Nesta, a navegação hábil de Swenson mergulhava profundamente a proa destruída num banco de areia, nivelando o barco - e permitindo o lançamento das âncoras de emergência até que uma equipe de peritos da Marinha pudesse subir a bordo.

- Flutuaremos novamente? - perguntou Bruce.

- O Comandante sofreu danos piores no Pacífico e completou sua missão. Desta vez, ele diz que tivemos sorte.

- Não, se perdemos Jerry Stokes.

- Não há o menor traço dos que estavam na proa. A turma de salvamento diz que eles foram incinerados quando caíram na cratera.

- E o que é que aconteceu com o LST?

- Afundou como uma pedra. Como o Stukas, era uma bola de fogo quando afundou. Graças a Deus, esse problema está fora de nossa alçada.

- Estamos em condições de receber feridos?

- Eles não nos podem atingir diretamente. Estamos num braço pantanoso, com um lamaçal entre nós e a praia. Mas há água limpa a estibordo. Logo que mudarmos os paus de carga, as barcaças podem encostar novamente.

- Exatamente, onde encalhamos, Eric?

- Diretamente em frente a Paestum, na extremidade sul do golfo de Salerno.

- Phil está ainda em terra?

- Ele acaba de radiografar informando que não poderá voltar antes do anoitecer. Aparentemente, ele teve um dia difícil nas colinas. Tem algumas ordens especiais para a seção dele?

- Por que deveria ter?

- Você está em comando, agora que Stokes desapareceu.

- Talvez não fique por muito tempo.

- Esta não é uma ocasião para modéstia - disse Badger. Vi seu último relatório de eficiência. Jerry Stokes era um ótimo Comandante... mas você será ainda melhor.

O homem de Wisconsin, com suas reações práticas, contribuíra para pôr a situação em perspectiva: Bruce descobriu que os pensamentos formavam-se com clareza suficiente ao sentar-se para preparar um relatório de avaliação de danos, destinado ao Comando da FôrçaTarefa.

Um fato se fixou em sua mente ao começar a escrever e nenhuma concentração em fatos e cifras pôde apagá-lo. Não fora testemunha de vista do grotesco infortúnio que destruíra quatro vidas, mas podia recordar com grande clareza a parte que lhe coubera nos acontecimentos. Naquela manhã, ao deixar as enfermarias para uma inspeção da escada de desembarque, fora sua intenção supervisionar a armação do toldo. Em vez disso, continuara com uma tarefa mais importante e o Comandante fora observar o trabalho do grupo. Excluída a mudança de papéis, Jerry Stokes estaria sentado naquela noite em seu posto de comando. O seu subcomandante teria sido apenas cinzas perdidas no Mar Tirreno.

Anoitecia no momento em que Bruce voltou ao tombadilho. A equipe da Marinha havia muito tempo antes examinado as avarias e estabelecido prioridades para o reparo. O oficial encarregado assegurava ao novo comandante da guarnição que o hospital poderia fazer-se novamente ao mar - com tempo de sobra para cumprir sua atual missão de levar uma carga completa de feridos de Salerno para o cais do hospital em Argel.

Um serviço religioso fora marcado em homenagem aos quatro homens que haviam perdido a vida - as primeiras baixas da Marinha Mercante e do pessoal do Corpo de Saúde a bordo em mais de dois meses de navegação de misericórdia. À beira da cratera isolada por cordas, Bruce parou um momento para murmurar uma oração por Jerry Stokes e os três marinheiros que o haviam acompanhado na morte naquela manhã de setembro. As palavras, disse para si mesmo, teriam parecido sentimentais aos rudes marinheiros a bordo. Ficou satisfeito porque a pausa passou despercebida quando subiu à ponte para varrer a praia com o binóculo.

Tal como a primeira impressão de Gela, a paisagem nas lentes apresentava a mesma afinidade com uma lâmina de enciclopédia que ganhara vida. Excetuados o pântano e os trechos enlameados entre o navio e a praia, era a Itália da lenda - um golfo de azul-índigo, praias em forma de foice, terras agrícolas verdes estendendo-se ao norte o sopé das montanhas. A despeito da agitação dos navios e sinais luminosos, era difícil acreditar que uma invasão em grande escala chamada ”Avalancha” acabara de rolar em direção às montanhas. Ou que as tropas aliadas estavam duramente empenhadas em batalha com um inimigo que havia cedido as praias, parara e lutava novamente em uma nova frente que se estendia entre o golfo e Nápoles.

Salerno, na extremidade do arco, era a única presença branca na escuridão da tarde a cidade menor de Agropoli, no lado oposto da baía, estava oculta à vista. A guerra em si, um duelo de canhões ao norte, parecia remota como um trovão de verão... Ouvindo uma lancha chocar-se com a escada de abordagem, Bruce baixou o binóculo. Desceu até o tombadilho inferior antes que o Capitão Philip Owen se apresentasse na recepção, parecendo cansado demais para continuar de pé após o serviço de ligação na praia.

- É bom vê-lo em segurança, Phil.

- Neste momento - disse o chefe do serviço clínico - não tenho certeza se estou vivo ou morto.

- Você deve ter tido um dia pavoroso.

- Pelo que ouvi dizer, vocês também.

- As coisas podiam ter sido piores. Se quiser, pode apresentar o relatório pela manhã.

- Prefiro fazê-lo agora. Talvez ajude a me descontrair. É verdade que você é o nosso novo Comandante?

- O Quartel-General do Teatro de Guerra confirmou o comando. Eu ainda não acredito que Jerry Stokes tenha morrido.

- Eu acho fácil acreditar, depois do que vi.

- As coisas estão indo mal?

- Não se deixe enganar por causa da calma no perímetro da praia - disse Owen. - A estória é muito diferente nas montanhas.

- Você esteve na frente?

- Não fui tão longe... mas até mesmo os hospitais de sangue estão perto demais para a gente se sentir à vontade. Aparentemente, a Wehrmacht deixou que a Avalancha rolasse durante algum tempo... e então atacou com tudo o que tinha.

Bruce estudou na escuridão o rosto contraído do chefe da clínica. Recordando a tendência dele de posar de estrategista, estava disposto a dar um desconto pelas notícias. Naquela noite, porém, havia na voz de Phil uma nota que compelia à crença.

- Pelo menos a Itália está saindo da guerra.

- Não acho que os nazistas se importem muito com isso. De agora em diante, podem dirigir as coisas à sua maneira. - Phil estendeu as mãos trémulas para um cigarro. - Nossos amigos de Jeff Davis foram os que levaram o pior. Tudo começou antes mesmo dos saltos.

- A 759 Aerotransportada?

- Os famosos bombeiros... - Owen inclinou-se para o fósforo oferecido por Bruce. Naquele exato instante, o navio brilhou da popa à proa dilacerada: tivesse o novo Comandante premido um botão, o efeito não poderia ter sido mais espantoso... Compreendendo o recuo do oficial médico, Bruce amparou-o com uma mão no cotovelo e levou-o até a antiga cabina de Stokes. Phil acomodou-se numa espreguiçadeira e continuou a olhar fixamente para o tombadilho exterior brilhantemente iluminado.

- Você tem certeza de que devemos acender todas as luzes, Bruce, quando estamos quase na praia?

- Nós somos um hospital, no mar ou em terra. Qualquer risco é melhor do que um tiro cego na escuridão.

- Espero que tenha razão. Eu poderia tomar um drinque, até ter certeza.

- Você encontrará conhaque no armário de Jerry. Que estória é essa sobre a 759 Aerotransportada? Fato ou boato?

- Informação certa - disse Phil. - Esperava-se que eles ocupassem uma passagem e a bloqueassem. O salto errou inteiramente o local de pouso. E o que é pior, alguns deles foram massacrados pela nossa artilharia antiaérea ao largo.

- Há sempre essa estória depois de todos os saltos. O Exército gosta de culpar a Marinha pelas suas cincadas.

- Quem quer que seja o culpado, houve uma confusão dos diabos... e os resultados são danados de sangrentos. Vi alguns exemplos nas estações de depuração de feridos.

- Por que é que eles não foram evacuados há mais tempo?

- Não podiam ser alcançados até que nossa infantaria se dirigisse ao norte e os desenterrasse. A operação toda está dispersa entre as montanhas. Os felizardos receberam os primeiros socorros dos enfermeiros de combate. Muitos outros morreram antes de chegarem às estações de depuração.

- Você tem alguma ideia das baixas?

- Como nossa cota, devemos receber pelo menos uns cem. Estão sendo trazidos à praia por comboio especial. Alguns oficiais foram feridos, incluindo um Coronel de Estado-Maior. Um ex-Deputado chamado Reardon.

- Hal Reardon?

- Falei com o ordenança dele no hospital de sangue. Reardon não foi gravemente atingido. Um pé ferido, além de exposição a choque. - O chefe da clínica pousou o copo na mesa. - O que é que há, Bruce? Viu algum fantasma?

-- Conheci Hal Reardon durante toda minha vida.

- Esqueci-me de que ele é o seu deputado.

- E meu colega de turma.

- Quer ouvir mais alguma coisa?

- Não, se o caso não for grave. Se você não se importar, nós o examinaremos mais tarde quando ele vier a bordo. Você pode terminar seu relatório amanhã.

Deixando Owen no convés de               passeio, Bruce não voltou imediatamente ao camarote. Agora que absorvera as notícias, não se sentia tão surpreso. Na guerra como na paz, amigos e inimigos apareciam na soleira de nossa porta sem aviso: agora que admitira a capacidade de Hal de aterrar sobre os pés como um gato, recebê-lo-ia a bordo sem esforço excessivo... Apesar disso, era inteira verdade que acabara de olhar nos olhos um fantasma - a última e fantasmagórica esperança de que pudesse conquistar Janet Josselyn.

Hal Reardon, como Coronel pára-quedista fora concorrência mais do que suficiente. Hal a caminho de ser herói na frente interna, pronto para reconquistar a noiva após o rompimento com Hollywood, era um adversário sem par.

Passava muito das dez quando as primeiras unidades do comboio de ambulâncias apareceram na praia. Alertado da chegada pelo rádio, a 2419 aprontara todos os anfiteatros de operação. A precaução fora prudente: o primeiro içamento trouxe a bordo um caso grave de hemorragia, um cabo da 759 Aerotransportadora quase exangue ao chegar à mesa de Bruce.

Os principais ferimentos envolviam um fémur fraturado e um profundo corte adjacente à fratura. Somente à meia-noite pôde tamponar a ferida e afastar-se um pouco para avaliar o valor da última transfusão. A despeito da longa demora, estava razoavelmente certo de que havia salvo o paciente.

A emergência, enquanto durou, afastou-lhe os demais pensamentos do espírito. O restante das equipes de reserva funcionara de acordo com os planos: desta vez, infelizmente, a taxa de mortalidade fora muito mais alta do que a usual devido a defasagem temporal numa frente de combate altamente fluida. Conferida a última tabela e após ter conferenciado com Alice Stacey sobre a acomodação dos feridos ambulatoriais, saiu à procura de Eric. Encontrou-o no tombadilho vazio, à mesa de recepção.

- Tudo sob controle, ao que parece.

- Resolvemos tudo facilmente - disse Badger. - Trata-se da mesma unidade que Phil viu ser reunida na estação de depuração. Pelo que ouvi dizer, eles passaram pelo próprio inferno.

- O Coronel Reardon figura na lista?

- O seu colega estava no segundo barco - disse Badger. - Subiu a bordo às onze da noite. - Durante um momento, ele olhou fixamente para o livro de internamento sem pronunciar palavra. - Eu o coloquei num camarote particular e dei início a tratamento de choque. Você mesmo quer-se encarregar do caso?

- Qual a gravidade do choque?

- Bem grave... mas provavelmente não fatal.

Algo no tom do Subcomandante soara com uma nota de aviso. Bruce hesitou e, em seguida, sentou-se à mesa da recepção.

- Muito bem, Eric... Fale.

- Ele está no que eu chamaria de choque catatônico agudo. É cedo demais para ter a certeza, naturalmente, mas a minha impressão é de que ele constitui uma baixa psíquica.

- Desde quando você se estabeleceu como psiquiatra?

- Eu aprendi um bocado com as nossas gravações de casos agudos. Logo que o vir, você concordará.

- Catatonia é uma palavra muito forte.

- Não para Reardon. Eu formei um quadro clínico completo... com informações que os soldados dele me deram. Retroage ao treinamento dele em Jeff Davis. Mesmo naquela ocasião, parece que ele tinha pavor aos saltos...

- Hal distinguiu-se nos esportes na universidade. Por que não deveria um excelente atleta ser um ótimo pára-quedista?

- Nenhuma razão, absolutamente... especialmente quando acrescenta um toque de drama a sua fé de ofício. Daí em diante, infelizmente, a saga de Reardon começa a desenvolver alguns ângulos absolutamente fantásticos.

- Você estava lá para os ver desenvolverem-se?

O homem de Wisconsin lançou um olhar pelo tombadilho para certificar-se de que estavam a sós.

- Eu fiquei céptico... até que falei com os pára-quedistas que estiveram no local. Um deles era o próprio ordenança de Reardon. O outro, um sargento do Estado-Maior. Ambos saltaram atrás de um herói que não podia nem esperar para gritar ”Gerônimo!”

- Eles foram atingidos pelo fogo antiaéreo da Marinha?

- O avião deles passou, após ação evasiva. Caíram no meio de uma companhia avançada alemã com treinamento de comando. Metade dos soldados foi morta a faca antes do amanhecer. O restante entrincheirou-se.

- Incluindo Hal?

- Os homens que entrevistei perderam-no na escuridão. Pela manhã, quando os alemães se retiraram, encontraram-no sob uma árvore. Ferido no pé e inconsciente. A equipe de emergência descreveu-lhe os ferimentos como concussão cerebral, além de ferimento a bala. Uma fratura composta metatarsiana.

- Você está sugerindo que foi auto-inflingida?

- Era o que uma quarenta e cinco do Exército faria a uma distância de noventa centímetros - disse Badger. - Em vez de concussão, leia catatonia... e você terá o elo perdido. Obviamente, nenhum cirurgião de batalhão colocaria uma etiqueta de caso psíquico em um dos seus próprios oficiais de Estado-Maior.

- O cirurgião do batalhão anotou o que viu. Você está chegando a conclusões apressadas.

- Não me diga que vai deixar que aquela etiqueta fique, Bruce.

- Terei que deixar... a menos que esse paciente confirme o que você conjeturou.

- Por quê? Por que ainda se sente devedor?

- Não, Eric. Porque o quadro clínico, como você o chama, não pode ser aceito sem provas.

- Do que mais você necessita? O salto foi o grande teste de Reardon. Ele não passou. Pela primeira vez - desde que fez aquelas passagens vistosas nos exercícios - não havia ninguém para aplaudi-lo. O melhor que ele pôde fazer foi ficar quieto na árvore enquanto o inimigo apunhalava seus soldados no solo. Pouco antes de os alemães se retirarem, ele resolveu que já tivera o suficiente do pára-quedismo, cedeu aos nervos e disparou o seu único tiro nesta guerra - em direção a um alvo fácil. Logo que viu ajuda a caminho, cambaleou para fora do esconderijo. Sabia que teria baixa honrosa se ninguém fizesse perguntas. Coisa alguma podia ser mais simples e mais bem feita.

- Você alega que a catatonia foi também auto-inflingida?

- A catatonia é uma consequência lógica da covardia. Chame-a se quiser, de um estado de fuga, de uma retirada da realidade. Nós já tratamos de casos idênticos neste navio.

- É essa toda sua acusação?

- Selada e assinada. E eu a repetirei perante um tribunal de investigação.

- Espero que tenha interrompido sua análise o suficiente para tirar uma chapa de raios X.

Eric corou.

- Você a encontrará presa à ficha dele. Uma perfuração de bala de um lado a outro do pé direito, inflingida de cima.

- Trouxeram a pistola, juntamente com os outros pertences dele?

- O coldre estava vazio quando o encontraram. Um revólver de serviço era um item que ele não podia arriscar-se a conservar.

- Você está esquecendo uma coisa - disse Bruce. - Poderia ter disparado acidentalmente quando ele caiu da árvore.

- Querendo isso dizer que você vai dar uma interpretação favorável ao caso... e o diabo que leve as acusações?

- Significando que você esquecerá o que disse hoje à noite... a menos que descubramos outras provas. E isto é uma ordem direta.

- Como queira, Major Graham. O Coronel Reardon constitui lançamento de ferimento leve em nosso livro de internamento, e nada mais. Está correto, senhor?

- Está correto, Capitão.

- Eu o coloquei na cabina F. Quer examiná-lo?

- Farei o exame agora.

No tombadilho superior, onde os camarotes de luxo do navio de turismo eram reservados a doentes que precisavam de atenção especial, Bruce apanhou a ficha médica de Hal e despediu o soldado do Corpo de Saúde sentado ao lado. Preparado embora pelo relato de Badger, ficou atónito com o que as luzes da cabina revelaram. Serviço em zona de combate havia-o acostumado à maioria dos ferimentos de que o corpo humano é capaz de sofrer. Apesar disso, ao iniciar o exame, teve a incómoda certeza de que a própria morte iria a seu lado.

A respiração de Hal era quase rasa demais para perturbar a caixa torácica. Sob uma atadura anti-séptica na têmpora direita, um ferimento. O rosto dele parecia tão descarnado como o crânio por trás e as mãos que repousavam sobre a coberta lembravam as garras curvas de uma ave. Em Argel, no uniforme engomado de trabalho, Hal fora uma figura a guardar na lembrança, um centurião atrasado no tempo e maduro para as primeiras honras. Ali, no camarote desnudo de um navio-hospital, ele parecia já destinado à sepultura, embora o coração e a respiração estivessem quase normais, juntamente com o calor corporal e o pulso.

A aparência encovada, sabia Bruce, constituía um efeito secundário comum do estado catatônico. O mesmo acontecia com os olhos inteiramente abertos que nada fixavam - e não reagiam à luz da lanterna de bolso que ele acendeu sobre eles. A possibilidade de hemorragia cerebral estava praticamente excluída. O ferimento não se fazia acompanhar de fratura, e qualquer concussão que existisse sararia por si mesma.

Um exame neurológico completo produziu apenas resultados negativos. O cirurgião realizou-o, embora absolutamente certo de que nada encontraria que contrariasse as anotações na ficha médica. Isto, em si, não seria grave. O raios X revelava que a bala havia aberto caminho entre o segundo e terceiro ossos metatarsianos, passando pela parte superior do pé e saindo pela sola. Pequenas partes dos ossos estavam fragmentadas, mas havia todos os motivos para esperar que sarassem sem deformidade. Um exame mais atento revelou que o buraco da bala estava limpo de sujo e fragmentos de tecidos, os companheiros de viagem mais perigosos das feridas desse tipo. A hemorragia, notara a equipe médica de emergência, fora mínima. Não houve necessidade de torniquete - o que poderia ter prejudicado a circulação durante o tempo em que Hal estivera em trânsito.

Badger recomendara que o paciente fosse submetido a pequena cirurgia antes da aplicação de um molde de gesso. Quase no momento de assinar o nome como médico encarregado, Bruce deixou o espaço em branco e contentou-se em rubricar a ficha.

No camarote finalmente, acomodando-se no beliche, não podia ajustar-se ainda à presença de Hal Reardon a bordo ou à certeza persistente de que Eric diagnosticara corretamente o caso. Naquela noite, pelo menos, receberia bem o cansaço que excluiria antecipadamente tais problemas segundos depois que sua cabeça tocasse o travesseiro.

Oito horas de sono ininterrupto pouco contribuíram para aliviar o manto de depressão que lhe envolvera o espírito - embora constituísse ainda um choque entrar no refeitório dos oficiais e encontrar vazia a cadeira de Jerry Stokes. No tombadilho, foi recebido pela banda das brocas de um destacamento de reparos da Marinha que coalhava os costados do navio suspenso de jaús na proa, instalando aço novo nos anteparos danificados. A velocidade com que trabalhavam parecia excelente augúrio. Sentiu-se quase alegre ao descer novamente a fim de informar-se das atividades transcorridas durante a noite.

Quarenta novos casos - todos transferidos de um hospital de sangue onde cirurgia inicial fora feita nos casos aconselhados haviam chegado a bordo enquanto dormia. O livro de internamentos mostrava que permaneciam vagos menos de cem leitos - e a experiência lhe dizia que o navio estaria repleto ao anoitecer. Lendo o registro de operações, observou que Badger fizera uma anotação rotineira no caso do pé ferido de Hal. A cirurgia prosseguira sem complicações... Estendeu a mão para o telefone com a intenção de chamá-lo, quando o próprio Eric assomou à porta da Secretaria com a boca entreaberta num sorriso de escolar.

- Nós decidimos deixá-lo dormir esta manhã, senhor.

- Deixe de lado a formalidade e a cortina de fumaça - disse Bruce. - Eu queria operar o Coronel Reardon.

- Por que deveria você ser acordado para operar um ferimento rotineiro de pé? Phil e eu fizemos o trabalho entre nós dois. - O homem de Wisconsin abriu a porta do camarote para deixar passar o Capitão Owen, que entrou com um sorriso ainda mais amplo, trazendo o gravador de Shane.

- Como vê, Major, nossa técnica foi estritamente oficial - disse ele. - Incluindo as observações verbatim de um paciente em estado de severo choque neurogênico.

- Vocês fizeram uma gravação?

- com absoluta clareza, Bruce. Enquanto ele estava sob anestesia. - Owen colocou a máquina sobre a escrivaninha. - Desta vez, dispensamos o estenógrafo... e a enfermeira, desde que não tínhamos praticamente coisa alguma a fazer no ferimento. Eric preferiu operar com uma única testemunha. Eu.

- Nós ambos confirmamos as informações que o paciente ofereceu voluntariamente enquanto se encontrava em estado de narcose - disse Badger. Inclinou a cabeça para o chefe da clínica, que fechou e aferrolhou a porta.

- O que é que os convenceu de que ele falaria? - perguntou Bruce.

- Trata-se de uma tentação a que político algum resiste - respondeu Owen. - Mesmo quando está supostamente em coma. Ele tinha a mão no botão de reprodução. - Trata-se provavelmente do discurso mais sincero que ele fez até hoje.

- Eu não tenho certeza que queira ouvi-lo.

- Faz parte do meu relatório - disse Badger. - Desde que apoia as conclusões que alcancei ontem à noite, merece sua atenção.

- Você concorda, Phil?

- Inteiramente. Nós seguimos procedimentos idênticos em todos os demais casos de choque. Os carretéis fazem parte do arquivo do hospital. Por que deveria um deputado constituir exceção? Fardado ele não pode alegar imunidade.

Bruce acomodou-se na cadeira por trás da escrivaninha com um gesto de resignação. Imaginando o que estava prestes a ouvir, sentiu um calafrio descer-lhe pela espinha ao som que emergiu do gravador, que girava com um ligeiro chiado - um alto grito de horror, tão velho como o primeiro uivo do homem da caverna à luz da Lua.

- Conforme você observará - disse Badger - isto prosseguiu durante um bom tempo. Poderíamos chamá-lo de introdução à atração principal.

Òwen deu uma casquinada e empoleirou-se na beira da escrivaninha para ajustar o volume.

- Enquanto durou, fomos necessários nós dois para manter a agulha do pentotal na veia dele. Você notará uma mudança extraordinária logo que ele começar a adormecer.

O gemido morreu à medida que o carretel se desenrolava. Foi substituído por um pairar incoerente que mudou gradualmente e se transformou em algumas frases berradas. Estas, por seu turno, foram substituídas por uma declamação em voz baixa, embora apaixonada, como se Hal estivesse fazendo sua defesa perante um júri. Sentindo os dedos coçarem de desejo de desligar o aparelho, mas, ainda assim, sabendo que escutaria até o fim, Bruce ouviu o ferido passar em revista os eventos que precederam a perda de sentidos: o salto na noite, a inesperada e dura queda nos ramos da árvore, a certeza de que mergulhara num ninho de inimigos mortais... A recitação sussurrada subia e descia de tom à medida que o doente recordava o pânico crescente, a determinação de sobreviver a todo custo - e, finalmente, a necessidade incontrolável de escapar do terror.

- Ele acrescentou mesmo a estória da arma - disse a voz de Eric interrompendo a recitação. - Até a pontaria que fez em cima do pé... e o momento em que apertou o gatilho.

- Ele teve sorte até o fim - disse Owen. - Amanhecia quando terminou... e o inimigo começou a retirar-se. Dois minutos depois, ele caiu da árvore e bateu com a cabeça.

- Desligue, por favor. Já ouvi o suficiente.

- Nós dois seremos sua testemunha se isto for a uma corte geral - disse Badger.

Bruce inclinou-se sobre a escrivaninha e abriu o gravador. O fio estava enrolado no carretel entre o microfone reversível e o amplificador. Tirando o carretel da máquina, lançou-o sobre o tampo da mesa. O movimento provocou um triste eco em sua memória e ele reviu com grande clareza o gabinete de Jake Sanford em Washington.

- Conforme vejo a situação - disse tranquilamente - eu tenho duas alternativas... graças aos esforços de vocês dois. A primeira e simples: destruir o carretel e deixar que o diagnóstico final permaneça em nossos registros. A segunda consiste em enviar as nossas descobertas ao Comando da Fôrça-Tarefa. Francamente, acho que nenhum de vocês dois pensou no que isso envolveria.

- Desmascarar um covarde é sempre um prazer - disse Owen.

- Os fatos da vida no Exército não são tão simples assim, Phil. O Coronel Reardon é uma figura nacional. É amigo do Presidente e herdeiro presuntivo de uma cadeira no Senado. Suponhamos que ele negue cada palavra contida na gravação? Vocês estão dispostos a contestá-lo numa corte marcial?

- Por que não... se a prova sustenta-se medicamente!

- Esta prova, como você a chama, é ainda experimental. A corte marcial deve ser precedida por uma junta de investigação. Suponhamos que eles joguem fora a gravação? Restará a palavra de vocês contra a do Coronel.

- Eu ainda penso que vale a pena - disse Badger.

- E eu os estou advertindo de que as possibilidades são mínimas. Uma coisa é certa. Ganhem, percam ou empatem no tribunal, as cabeças de três oficiais médicos irão para o cutelo.

- Você está-nos fazendo sentir culpados, Bruce.

- Apenas indiscretos.

- Talvez tenhamos uma terceira alternativa - persistia Badger.

- Chamemos a este carretel de uma bomba-relógio, enfiada num arquivo de botar lá e esquecer... e reservada para uso posterior.

- Qual seria sua decisão se estivesse no meu lugar?

- Eu consideraria a número dois a mais excitante.

- Phil?

- Arquive para referência futura, Bruce. É a solução mais fácil.

O cirurgião sopesou o carretel na palma da mão antes de lançá-lo no colo de Badger.

- Agradeço-lhes pela ajuda... e pelas intenções que a inspiraram. O Capitão Badger destruirá essa parte do arquivo especial pentotal no momento em que deixar este gabinete. Faremos o possível pelo Coronel Reardon enquanto ele estiver a bordo... e esperaremos que ele permaneça em terra no futuro.

A voz do Subcomandante ao falar novamente estava sem expressão. Falou no tom de um homem que acaba de atravessar uma sala cheia, apenas para descobrir um estranho.

- Nós vimos aqui de boa-fé, Bruce...

- Tenho certeza de que sim.

- Nós estávamos pensando em seus interesses no que diz respeito àquele tipo. Em seu lugar, eu o atingiria com todo o Regulamento.

- Eu lhe expliquei por que não podemos, Eric. Minha ordem foi dada como Comandante desta guarnição. Execute-a.

- Você pensaria de modo diferente como civil?

- A pergunta não tem sentido. Eu não posso imaginar uma situação análoga na vida civil.

- A covardia não se confina à guerra - observou Owen.

- Você já teve medo algum dia, Phil?

- Fiquei azul de medo um bocado de vezes. Mas ainda não desmaiei nem atirei no pé.

- E você, Eric? Como é que você reagiu quando recebemos aquela bomba na linha dágua?

Badger sorriu ao levantar o gravador.

- Se quer saber, quase fiz xixi nas calças.

- Suponhamos que você tenha caído na copa de uma árvore, com lobos embaixo. Suponhamos que tenha ficado dependurado até o amanhecer, esperando sentir aqueles caninos na garganta. O que você teria feito com um quarenta e cinco na cintura... e ajuda a caminho? Não teria sido uma maneira tentadora de sair da guerra?

- Isto é algo que homem algum pode responder, Bruce. Não, até que veja qual a cor do seu fígado. O de Reardon, ao que parece, é branquinho como papel.

- Este verão eu estive num terraço em Siracusa enquanto bombas caíam na casa ao lado. Não tenho certeza de que rota de fuga teria escolhido... se estivesse sozinho.

- Você não se feriu nem correu, Bruce.

- Certo... porque tinha alguém com quem compartilhar o medo... e o bombardeio cessou logo. - Lembrando-se daquela noite na Pensionare Margherita, Bruce perguntou-se se os outros haviam notado a vermelhidão do seu rosto. - A maioria de nós tem companhia quando está frente a frente com o pavor. Não é comum que nosso teste ocorra na solidão, durante horas. O Coronel Reardon estava sozinho na copa daquela árvore. E teve um bocado de tempo para pensar.

- Isso por acaso o desculpa?

- Não, inteiramente. Mas é um ponto a favor... e um daqueles que vocês não devem esquecer. Após o salto, ele ficou numa posição irremediável durante só Deus sabe quantas horas, olhando de frente para a morte. Finalmente, cedeu. Em seu lugar, não tenho certeza de que teria agido de modo diferente. E desde que estou em dúvida, recuso-me a condená-lo.

Após ter dispensado os dois assistentes, Bruce levantou o telefone e chamou Alice Stacey. Por sua solicitação, uma enfermeira foi designada para observar o Coronel Reardon, com instruções para chamá-lo imediatamente se o doente lhe solicitasse a presença. Nenhuma chamada recebeu naquela tarde ao terminar os trabalhos rotineiros e parar à porta do Camarote A. Uma enfermeira mudava a roupa de cama.

- Eu ia chamá-lo, senhor. Ele parece estar finalmente saindo do estado de choque.

- Ele disse alguma coisa?

- Apenas algumas palavras que não compreendi. Mas está-se mexendo... e abriu os olhos há pouco. Estava suando muito e eu pensei em torná-lo mais confortável.

A ficha médica não acusava mudança significativa, salvo a observação de que o doente tivera períodos intermitentes de consciência, e que tomara alguns líquidos. O gessamento, observou Bruce, fora colocado habilmente. A contagem do pulso estava normal, bem como outros sinais vitais.

- Ficarei com ele durante algum tempo. Acho que ele não precisará mais de tratamento de figurão após o dia de hoje.

- Por que ele está levando tanto tempo a recuperar a consciência? Será uma consequência da concussão?

Bruce examinou novamente a ficha. Eric - de acordo com as ordens - deixara de pé o diagnóstico da equipe médica de emergência. Isto significa situação sob controle, pelo menos até o momento em que Hal acordasse todo agitado.

- Pode ser um efeito secundário - disse ele, cuidadosamente.

- Meu palpite é que ele melhorará rapidamente de agora em diante. Nada há que sugira complicações intracranianas.

- Espero que não. Precisamos de mais homens como o Coronel Reardon no Congresso.

- Então você acha que ele deve voltar a Washington?

- Acho que ele fez o que lhe cabia, Major. O senhor também não pensa assim?

- Ele passou por uma experiência difícil. Não há dúvida a esse respeito. - Bruce afastou-se para que a enfermeira deixasse o quarto. Logo que a porta foi fechada, inclinou-se sobre o homem adormecido e beliscou-lhe a pele por trás da orelha.

- Tempo de acordar, Hal. Pode fazê-lo?

Os olhos do paciente abriram-se lentamente. O olhar vazio de cego desaparecera quase inteiramente. Restava apenas uma ligeira expressão de cautela. Dentro de momentos, até mesmo esse resíduo de medo desapareceu e os lábios de Hal relaxaram-se num sorriso sonolento.

- É você realmente, Bruce?

- Eu, mesmo.

- Pelo menos, não preciso perguntar: ”Onde estou?”. Desde que você está aqui, devo estar a bordo do Helen S. Peters.

- Você foi trazido na noite passada. Foi ferido no salto por trás da praia.

- Na perna? Estou sentindo o gesso.

- No pé direito.

- Grave?

- O ferimento é insignificante. Dois ossos metatarsianos fraturados. Devem estar em inteira forma dentro de alguns meses.

- Alguns meses? Significa isto que eu não posso voltar para minha unidade?

- Receio que sim. Lembra-se de como isso aconteceu?

- Somente o início. Tínhamos seguido o plano de voo... e estávamos ainda aquém do objetivo. Arrumamo-nos em fila para o salto quando granadas antiaéreas começaram a explodir em torno de nós. - Hal fechou os olhos e reclinou-se no travesseiro. - Sei que é ridículo... mas foi aí que perdi os sentidos.

- Inteiramente?

- Até que o reconheci, agora mesmo. Pode contar-me o que aconteceu?

Hal escutou com atenção total enquanto o cirurgião descrevia os resultados do salto por trás de Salerno.

- Eu não me lembro nem mesmo de ter deixado o avião. A julgar pela sua estória, devemos ter saltado em todas as direções. Você disse que eu tinha este ferimento no pé quando os enfermeiros me encontraram... e este ferimento na cabeça?

- É apenas uma pequena concussão.

- Aparentemente foi bastante grave para apagar minha memória.

- Esses casos não são raros. Incluindo uma perda temporária de sentidos.

- Você tem certeza de que é temporária, Bruce?

- Você sabe quem é e onde está. Isto é sempre um bom sinal. O resto deve voltar mais tarde.

- Não há maneira de ativar meu cérebro?

- Você se ajudará mais relaxando-se completamente. Eu lhe darei uma injeção para que durma até amanhã.

Hal não se mexeu quando Bruce injetou a morfina.

- Pode enviar um cabograma em meu nome?

- Naturalmente. Para sua família?

- O que resta de minha família não tem importância. Ela saberá logo que eu saí vivo deste espetáculo. Eu gostaria de que o Senador Josselyn fosse informado imediatamente.

- Radiografaremos a Argel hoje à noite.

- Ele informará Janet - disse Hal. - Teve alguma notícia dela ultimamente?

- Recebi uma carta na semana passada. Está fazendo ainda o segundo filme.

- Claro que está - disse Hal. A voz começou a ficar pegajosa sob o efeito da morfina. - Algumas ilusões custam a morrer, Bruce. Não tenho intenção de destruir as dela antes do tempo. Nem, tenho certeza, você.

- Brodski talvez esteja enganado sobre o talento dela.

- Leo até hoje não deu um palpite errado sobre uma estrela.

- Não lhe ensinaram que o médico nunca discute com o doente?

- Pensei que fosse o oposto. Quer que envie um cabograma separado a Shane?

- Não sei como alcançá-la. Além disso, não há necessidade. Shane sabe que eu sou difícil de matar.

- Estamos de acordo nesse ponto. Acalme-se. Virei aqui antes do meio-dia, amanhã.

Na sala de rádio, Bruce enviou uma mensagem ao gabinete do Senador Josselyn em Washington, juntamente com uma dezena de telegramas análogos que a Cruz Vermelha retransmitiria para Argel. Não havia necessidade de perguntar-se por que Hal escolhera o endereço de Janet através do pai... ou por que não fizera tentativa de avisar Shane McLendon. Mesmo numa cama de hospital, ele já tinha certeza do terreno em que pisava e preparava-se para dar o tom da música seguinte.

Eric Badger esperava-o no gabinete quando Bruce regressou do café da manhã. Logo que o novo Comandante acomodou-se à escrivaninha, o visitante fez questão de fechar a porta... e puxar o ferrolho.

- Alguma outra reflexão após as últimas ordens?

- Nenhuma, absolutamente. O nosso paciente mais famoso está melhorando, de acordo com o relatório da noite.

- Acabo de visitá-lo. Ele me disse que uma boa noite de sono era tudo de que necessitava para voltar à forma. No momento em que eu saía, ele pedia um bife no almoço.

- Como está a memória dele?

- Ele está deixando essa parte do prognóstico para você. Quer que o examinemos juntos?

- Trata-se de uma consulta?

- Eu ganhei o direito de ouvir a explicação dele. Afinal de contas, sou o cirurgião que está assinando a ficha.

- Venha comigo, então. Mas lembre-se apenas de que seu nome é Badger, e não Freud.

Encontraram Hal prosando com Alice Stacey. Logo que a Enfermeira-Chefe saiu, Bruce sentou-se à beira do beliche para examinar a ficha do doente. Notou que a melhora trazida pelo sono e o alimento sólido fora espantosa.

- Quando é que eu posso sair deste camarote, Bruce?

- As coisas estão indo bem, reconheço. Mas você poderia descansar mais um pouco.

- Eu preferiria ficar com os casos ambulatoriais.

- Se você estiver em boa forma amanhã, poderemos permitir-lhe algumas horas numa cadeira de tombadilho. Prefiro mantê-lo aqui até que todos os testes estejam normais. Especialmente sua memória.

- Ela voltou e está funcionando a todo vapor.

- Pode dizer-nos o que aconteceu durante o salto? - perguntou-lhe Badger.

- Em detalhes algo dolorosos, Capitão. Incluindo meu fiasco particular. Pelo menos, acho que tenho em ordem os pontos principais.

- Há ainda hiatos?

- Aqui e ali. Começarei com as explosões de fogo antiaéreo?

- Você se lembrou disso ontem - disse Bruce.

- O salto está apagado na minha memória... e o que aconteceu depois. Você atribuiu isso à concussão. - Hal pensou cuidadosamente antes de falar. - De início, nenhum de nós podia acreditar que aquelas salvas eram disparadas pelos nossos próprios canhões. Logo que compreendemos, o melhor que pudemos fazer foi saltar rapidamente.

- O senhor comparou sua experiência com a de outras pessoas no avião? - perguntou Badger.

- Claro que não. De que modo poderia?

- Dois desses homens estão a bordo, Coronel Reardon. O seu ordenança e seu sargento de Estado-Maior. Eu os interroguei.

- Espero que meu relatório confira com o deles - disse Hal despreocupadamente. - O resto aconteceu rapidamente. Tão rapidamente que não espero que vocês me sigam, a menos que tenham saltado também.

- Experimente, Coronel. Permaneceremos a seu lado.

Hal deu ao homem de Wisconsin um longo e frio olhar antes de voltar-se para Bruce.

- Na verdade, minha estória é comum. Aterrei na copa de uma árvore - um fato que me salvou a vida. Cortei o pára-quedas e fiquei escondido até o amanhecer. Por essa ocasião, eu estava cansado demais para continuar pendurado... e caí, perdendo os sentidos. Minha recordação seguinte é acordar neste beliche.

- De que modo foi o senhor ferido? - perguntou Badger.

O sorriso de Hal, notou Bruce, tornou-se um pouco forçado, mas a voz conservou a fácil lhaneza

- Se perdoar o jogo de palavras, Capitão, o senhor é tão persistente como o animal cujo nome leva.

- Eu preciso dos fatos para meu relatório, senhor.

- Conforme talvez saiba - disse Hal - eu sou membro do Estado-Maior do General Leonard, um dos vários oficiais que se apresentaram voluntariamente para o salto em Salerno. Nessa qualidade eu, também, devo fazer registros. Antes de sua chegada, eu estava preparando uma carta pessoal para o General, com ajuda da enfermeira Stacey. O senhor a encontrará na última página da ficha. Use dela o que quiser.

Bruce tirou a prancheta e leu a última página até o fim antes de passá-la a Badger. Vasada na mais pura prosa do Exército, descrevia a primeira experiência de combate do Coronel Reardon nas próprias palavras do militar.

Da forma que Hal reconstruíra o episódio, ele saltara pouco depois de meia-noite com a unidade que comandava. Manobrara o pára-quedas em direção à encosta de uma colina, planejando abrigar-se ali até que pudesse reconhecer o terreno. Aterrando na copa de uma árvore ouvira uma seca detonação no momento do impacto; seu revólver de serviço, arrancado do coldre pelos ramos que se agarravam a ele, disparara de alguma maneira. Isto, tanto quanto sabia, explicava o ferimento de bala no pé.

Imediatamente após a aterragem, cortara o pára-quedas com a faca de campanha, libertara-o dos ramos e lançara-o voando pela escuridão. Durante essa manobra vital ouvira tiros no solo e compreendera que o grupo caíra perto de uma posição fortificada inimiga. Tratara o pé como melhor pudera com um pacote de primeiros socorros - e esperara horas na escuridão pela retirada do inimigo ou um contra-ataque. Ao amanhecer, já meio tonto com a dor do ferimento, caíra duas vezes - a primeira para ramos mais baixos e, em seguida, para o próprio solo, onde batera com a cabeça numa pedra.

A última recordação clara de Hal - segundo o relato - fora uma saraivada de fogo na encosta abaixo sugerindo que o inimigo se retirava, sob pressão. A concussão provocara depois uma perda total de consciência até acordar a bordo do navio-hospital.

- A sua pistola foi encontrada, Coronel? - perguntou Badger.

- Não tenho maneira de saber disso.

- O senhor tem certeza de que foi ela que causou o ferimento... e não o fogo inimigo?

- Se o inimigo me tivesse visto naquela árvore eu dificilmente lhe estaria contando esta estória agora.

- Não havia atiradores peritos na própria árvore?

- Claro que não. Por que pergunta?

- A bala penetrou no seu pé vindo de cima. O seu relatório não menciona esse fato.

- O senhor está insinuando que eu devo preparar-me para uma corte geral em virtude de um ferimento auto-infligido?

Os olhos do Capitão e do Coronel se chocaram. Bruce sabia que os do Capitão seriam os primeiros a baixar - agora que Badger provara sua competência como médico e detetive.

- Nós cobrimos todos os pontos da situação, Eric - disse ele.

- Talvez você deva desculpas ao Coronel Reardon.

- Não espero desculpa alguma - disse Hal. - O seu colega é do tipo cuidadoso... mas eu aprecio o amor ao detalhe. Os fatos ocorreram como disse. A pistola foi arrancada do coldre quando bati na árvore... e disparou acidentalmente.

- Meu registro está completo, senhor - disse Badger. - Se minha linguagem foi grosseira, sinto muito. com sua permissão, acrescentarei este relatório aos nossos arquivos, verbatim.

- Naturalmente, Capitão Badger.

Mais uma vez, Bruce assumiu o controle. Eric, sabia, disparara já sua flecha, embora fosse ainda palpável a tensão.

- Eu sugeriria que deixássemos nosso doente descansar, Capitão. Nós concordamos em tornar breve esta provação.

No corredor externo, o Subcomandante marchou até o tombadilho sem pronunciar palavra. Naquele local, voltou-se para Bruce com um gesto de puro desespero.

- Por que chamou aquilo de provação? Ele adorou cada momento.

- Você estava derrotado desde o início. Nenhum simples capitão pode massacrar um coronel e continuar vivo. Fiquei satisfeito porque você desistiu a tempo.

- Eu ainda desejaria tê-lo pressionado um pouco mais.

- Entendeu por que eu me recusei a deixar que espalhasse a estória?

- Entendi bem demais. Nenhum ferido, que eu saiba, recuperou-se tão rapidamente. O homem do Camarote, F é coisa muito diferente do caso psíquico que tivemos ontem... no gravador da Senhorita ivlcLendon.

- Você tem certeza de que era Hal Reardon? O paciente que acabamos de interrogar está desperto há muito mais tempo.

- Não me diga que o aceita pelo seu valor aparente.

- Você mesmo acaba de admitir que se trata de uma imagem pública que não pode destruir.

- Eu gostaria de saber se o próprio Reardon sabe onde a figura pública sai... e ele entra.

- Acho que não, Eric. Se a sorte dele durar, jamais saberá.

- Nem mesmo ele pode acreditar nessa versão de escoteiro sobre o que aconteceu em Salerno.

- Dê-lhe tempo. Ele apagará o que realmente aconteceu da mente consciente... e viverá com tecido cicatricial. Este jamais aparecerá.

- Somente porque você lhe deu a última palavra - disse Badger.

- Os coronéis dão habitualmente a última palavra neste Exército masculino. De outra maneira, como poderá ele continuar a servir a seu Comandante? Ou ao eleitorado... quando receber uma baixa honrosa? Ele não será o primeiro homem a sair mais forte do que antes de uma crise.

- com o eleitorado... ou consigo mesmo? - perguntou Badger.

- com ambos, talvez. Todos nós vivemos com cicatrizes.

Desde a última visita do Helen S. Peters a Argel, o cais do X Hospital Geral fora ampliado, permitindo que o navio desembarcasse diretamente os feridos nos transportes que os aguardavam. Em consequência, graças à chegada no começo da manhã, o navio descarregara toda a leva humana em meados da tarde.

Enquanto prosseguia o desembarque, um enxame de engenheiros da base de reparos navais investigava a situação abaixo dos tombadilhos, considerara adequado os reparos de emergência feitos em Salerno e liberara o navio para a travessia do Atlântico após juntar-se a um comboio em Gibraltar. Os boatos de regresso aos Estados Unidos para reparos mais extensos lavravam intensamente no navio já havia algum tempo. Ao meio-dia, tendo Bruce ao lado na ponte, o Capitão Swenson oficializara o boato no sistema de alto-falantes. Viajariam para Charleston logo que os mil convalescentes e os necessários suprimentos fossem embarcados.

Hal Reardon, que mudara de cadeira para muletas antes de o navio deixar a Itália, foi quase a última baixa a descer. O último dia a bordo fora uma ronda de visitas de despedida: como Bruce esperara ele se transformara no paciente favorito a bordo. No momento em que foi levado numa cadeira de rodas do navio para o cais somente a bem implantada disciplina da guarnição impediu que uma procissão o acompanhasse.

Bruce conseguira despedir-se despreocupadamente enquanto o Coronel ferido estava ainda cercado por enfermeiras e enfermeiros dirigira-se à ponte para observar de uma distância segura a partida de Hal. O herói ainda não-oficial de Salerno descera à prancha com a ajuda de um soldado do Corpo de Saúde. No cais, apoiou-se em muletas e dirigiu-se com surpreendente rapidez para o automóvel de EstadoMaior que o aguardava. O aperto de mão que deu ao soldado na prancha de embarque fora a essência da democracia. A continência que trocou com o sargento que saltou para abrir a porta do carro fazia parte do equilíbrio bem-criado de um oficial nascido para comandar.

- Venha comigo para a casa do leme, Major... se isto for mais do que o senhor consegue suportar.

Bruce voltou-se ao ouvir a voz do Comandante. O Capitão Swenson, parecendo ainda mais queimado do sol do que habitualmente, estava de pé à porta que abria para a ponte.

- O meu sofrimento mostrava-se tanto assim, senhor?

- Sofrimento não é exatamente a palavra. Seria mais exato dizer que o senhor não acredita que o Coronel Reardon mereça aquela popularidade... mesmo que se tenha treinado para aceitá-la?

O Comandante da guarnição sabia que sorria ao seguir o Capitão até a reclusão da casa do leme. A sua confiança em Swenson fora completa desde o primeiro encontro. Naquele dia, como sempre, sabia que não havia perigo em ser franco na presença desse moderno viking.

- Então o senhor tampouco gosta do Coronel Reardon?

- Deixe-me confessar, em particular, que eu também desconfio dele. O Coronel e eu tivemos uma prosa bem demorada na noite passada. Antes de terminar, ele me tinha dado a essência de sua filosofia. O senhor poderia chamá-lo de um desses discursos pré-testados. Acho que ele o pronunciou muitas vezes neste cruzeiro.

- Algo como a missão da América quando terminar a guerra?

- Exatamente, Major. Uma Pax Americana a ser observada com os meios de que dispusermos.

- Em outras palavras, a atual política dos Boletins Lowell.

- Eu mencionei a analogia, naturalmente. Ele negou qualquer conexão... mesmo que pregue o mesmo evangelho.

- Paz mundial com sotaque americano?

- O Coronel Reardon acha que sairemos desta guerra como a mais forte nação do mundo desde os dias de Roma. Ele acha que devemos usar essa força como um porrete para manter o mundo na linha.

- A falácia é bem conhecida, senhor.

- Eu lembrei isso a ele - replicou Swenson. - Roma, afinal de contas, centralizava-se no Mediterrâneo, onde suas armas eram supremas. Ao estender-se longe demais, as legiões fracassaram. Da mesma forma que a chamada Pax Brittanica está fracassando agora, desde que se baseia em uma força que não mais existe. Admito que é tentador pensar na América como o futuro pacificador mundial. Mas nenhuma nação é suficientemente poderosa para agir amanhã como policial global. A paz deve ser um projeto universal, ou nada será.

- Ele admitiu por acaso o argumento?

- Em princípio, sim - respondeu Swenson. - Mas insistiu ainda em que a voz da América deve ser dominante. Na sua opinião, este é o ideal para o qual viveu e morreu o Sargento Lowell.

- Coisa alguma podia estar mais longe da verdade. Jimmie renegaria totalmente a Sociedade Lowell se estivesse vivo hoje.

- Tenho certeza disso - replicou Swenson. - Infelizmente, o Coronel Reardon pensa de outra maneira... e ele, e não nós, pode fazer-se ouvir. O que nos leva ao próprio homem, àquilo que julga ser uma missão confiada por Deus. O Coronel Reardon viverá sempre convencido de que sua lógica é suprema. Na sua opinião, o credo que defende - em toda orelha que pode encontrar - é a única salvação da humanidade.

- Já na faculdade ele era um polemista que nunca perdeu um debate.

- Esses homens às vezes são uns felizardos no tocante a senso de oportunidade e objetivos - disse Swenson. - Naturalmente, esperam que o mundo lhes aprove os objetivos à primeira vista. É um traço que os ditadores compartilham com os messias.

- Talvez ele ganhe o segundo título antes de morrer. Já pensou nisso?

- Tudo é possível, Major. Se ele o conseguir, nós mereceremos ser banidos para as mais densas trevas.

- Por mim, recuso-me a ser banido sem reagir.

- Tenho a impressão de que vocês foram inimigos cordiais na faculdade, quando o molde ainda tomava forma. Mesmo nessa ocasião o senhor se recusava a adorar o Deus do campus?

- Mais ou menos. A maioria dos meus colegas pensava que eu era mais maluco.

- Naturalmente, a sua desconfiança ressurgiu a bordo do meu navio... onde ele conquistou todo seu pessoal com o uso simples daquele encanto que possui.

Bruce encolheu os ombros numa concordância silenciosa. Durante um momento, desejou que Swenson tivesse escutado a gravação. Perguntou-se qual teria sido a reação do Comandante.

- Eric não foi conquistado. Nem Owen.

- Os seus assistentes são cínicos para consumo local. Uma raça teimosa que acha prazer na dissensão. São exceções à regra. A menos que as coisas sejam diferentes do que foram no passado, os seus compatriotas emergirão desta guerra ansiosos para engolir uma cura pronta e acabada para todos os males.

- Figurando Hal como promotor de vendas?

- Ele já tem correligionários convincentes. Incluindo a maravilhosa mulher que viajou conosco no nosso segundo cruzeiro a Gela. Conforme pode ver, ela veio recebê-lo. Desta altura, as boas-vindas parecem calorosas.

Acompanhando o gesto do Comandante, Bruce dirigiu-se para a janela de estibordo da casa do leme, um largo painel de vidro que permitia uma visão panorâmica do cais. O carro de Estado-Maior de Hal, observou, fora detido por um resplendente Almirante, que acabara de voltar para o couraçado ancorado na vaga seguinte. Shane McLendon irrompera de um táxi correndo impetuosamente para o carro do Estado-Maior antes que ele pudesse afastar-se. Hal, com um trovejante berro de boas-vindas, abrira a porta para recebê-la.

A vinheta, breve como fora, exerceu um impacto atordoante sobre Bruce. Voltou-se antes de presenciar o encontro real, mas viu o suficiente para notar a alegria que coroava a cabeça de Shane como um halo e a compreender, com o coração pesado, que Hal aceitara-o como se lhe fosse devido... Pela última vez, disse a si mesmo que o colega de turma ganhara. E já começava a amaldiçoar a tolerância que o forçara a rejeitar a gravação de Eric Badger. Ainda assim, mesmo naquela ocasião, sabia que não poderia ter usado um meio tão cruel para destruir a felicidade de Shane.

- Não é nunca agradável observar a mulher que se ama fazer uma escolha errada - disse Swenson. - É ainda mais perturbador perguntar-se se ela verá a luz a tempo.

- Eu não amo a Senhorita McLendon. Mas estou pesaroso porque ela não pode ver o que existe atrás da bela fachada.

- Por que deveria ela? As mulheres sempre foram medíocres juízas de homens. Tem certeza de que não está apaixonado por ela?

- Tenho uma namorada na América, Capitão. Ainda tenho esperança de casar-me com ela agora que vamos para os Estados Unidos.

- É uma pena que o senhor não seja marinheiro - disse Swenson. - A tradição nos concede uma pequena em cada porto. Por isso mesmo, pode entender por que preferimos o mar à terra.

Em Charleston, dois meses exatos após o interlúdio em Argel, Bruce sentava-se na sala de estar de um outro alojamento de oficiais com um jornal nos joelhos. Observando uma chuvarada de novembro vergastar as janelas, ele descobriu - uma vez mais - que podia sobreviver a uma manhã sem recordação clara de tê-la visto passar... Até aquele momento, os dois meses tinham sido bastante ocupado, mas ele se recordava apenas de uma confusão de experiências repetidas, uma coleção de fatos que não pareciam mais significativos naquele dia do que as paisagens obscurecidas de sua mocidade.

A mente consciente assegurava-lhe que ele completara uma missão importante, o transporte de quase mil feridos - de um hospital de base na África para cuidados especializados nos Estados Unidos - sem perder um único paciente. Naquele dia, a viagem de volta era uma mancha indistinta de rotina sob o tombadilho, enquanto o Helen S. Peters jogava em direção a oeste em meio às tempestades de outono. As horas de folga tampouco foram mais claras. A maioria ele as passara a sós - olhando para o vento e a chuva, fechando os olhos para obliterar uma imagem que não podia esquecer, de um cais poeirento em Argel, um carro de Estado-Maior afastando-se do alcance de sua visão e Shane McLendon no assento traseiro falando entusiasticamente com Hal Reardon...

Pouco o consolava a certeza de que não pudera impedir o encontro, que não podia ter denunciado Hal sem razões muito mais fortes do que as que possuía no momento. Se Shane estava resolvida a colaborar com a carreira de Hal, se acreditava realmente ser ele a voz do amanhã, não lhe restava alternativa senão omitir-se.

Logo que o navio entrou na doca seca no Porto de Embarque de Charleston, especialistas em Engenharia Naval descobriram que as chapas dos anteparos de vante haviam sido forçadas pela dura travessia. Um dos diesel precisava ser substituído - e durante a revisão fora decidido que um sistema de ventilação mais eficiente deveria ser instalado. Todos esses fatos, na opinião do Capitão Swenson, significavam que o Helen S. Peters seria destinado a serviço no Pacífico, embora os planos do Corpo de Transporte estivessem ainda velados. Bruce não insistiu nos detalhes.

Poram ativas as primeiras semanas em Charleston. Em virtude ’de sua experiência na Itália, fora convidado a falar perante grupos de treinandos destinados aos mesmos deveres. Ao chegar um navio gémeo ’de Norfolk, tomara parte no cruzeiro de familiarização, instruindo os técnicos nos conveses inferiores e aconselhando o Comandante da guarnição sobre seus deveres... Mais uma vez, contentara-se em viver o dia-a-dia, desempenhando as tarefas que lhe destinavam, apresentando-se voluntariamente para trabalhos extras, e caindo num sono de puro esgotamento quando concluía os deveres. Até mesmo a notícia de que fora promovido a Tenente-Coronel - a promoção lhe fora comunicada diretamente por intermédio do Comando do Corpo de Transporte no Teatro do Mediterrâneo - deixara-o indiferente.

Eric Badger, Phil Owen e a maioria dos demais oficiais sob seu comando haviam viajado de licença - mas ele se recusara a fazer o mesmo. Como o Comandante do navio, preferira passar o tempo na base, esperando por um telefonema que não vinha. Uma sensação de mudança iminente jamais o abandonava desde o dia em que entrevira a costa de Carolina levantar-se do mar cinzento. Até que recebesse aquele telefonema, sabia que persistiria o estado de inércia.

Nas últimas semanas, teria sido fácil levantar seu próprio telefone e fazer um de vários contatos que lhe apaziguariam as dúvidas. O orgulho sustivera-lhe a mão desde que as primeiras tentativas de alcançar Janet Josselyn haviam colidido com um muro de silêncio.

Quanto a Hal e Shane, era-lhe ainda mais fácil recordar-se de que queimara as pontes. Eles, pelo menos, não deixaram dúvida sobre as intenções que tinham. Silêncio era o preço que ele pagava por ter respeito próprio.

Mais uma vez, olhou para o jornal sobre os joelhos, um exemplar do News and Courier, de Charleston, retirado de uma pilha de números atrasados numa mesa de leitura. O jornal tinha oito semanas. A coluna assinada por Shane McLendon constituía uma réplica de outra que ele lera pela primeira vez no Times, de Londres, no dia em que o Helen S. Peters tocara em Gibraltar. Se a relia novamente, era apenas para esfregar sal em velhas feridas e usar uma página de jornal como desculpa para amaldiçoar novamente Hal Reardon.

A coluna era ainda intitulada As Coisas, Como as Vejo - figurando ainda o perfil de Shane como uma decoração ao lado do título costumeiro. Abaixo, em tipos quase tão grandes, a submanchete que anunciava a estória:

Saltei Para o Nada

Enviada de Argel dois meses antes, a coluna constituía uma reprodução da passagem da 759 Aerotransportadora sobre Salerno, figurando Hal Reardon como narrador e principal ator. O relato de Hal foi feito com suas próprias palavras - e com comentários suficientes de Shane para tornar a coluna um clássico de jornalismo de guerra, um fiel retrato de um pára-quedista civil que arriscara a vida pelo país.

Shane focalizara o terror insondável do próprio salto, a aterragem não planejada na copa de uma árvore - com alguns segundos apenas para cortar o pára-quedas que lhe teria revelado a presença aos alemães. Continuara com a reprodução hora a hora do calvário entre as folhas, enquanto ele se apegava ao precário refúgio e lutava contra a dor do ferimento. Descrevia-lhe o delírio ao anoitecer, quando os sentidos haviam-no finalmente traído e ele tombara do poleiro na árvore... Finalmente, contara o mudo desespero de Hal ao descobrir-se numa cama de hospital e ao compreender que sua contribuição à guerra terminara horas depois de ter começado.

A coluna terminava numa nota de dignidade simples, no momento em que o Coronel Reardon - condecorado com o Coração Púrpura e uma Estrela de Prata pelo seu general-comandante - concordara a voltar aos Estados Unidos para servir à causa em outros campos. Confiando no impacto do eufemismo, deixando que o drama inerente brilhasse pelos próprios méritos, Shane conseguira realizar uma tour de force de reportagem. No trabalho, em sóbria verdade, alteava-se o herói na sua forma mais pura, o típico americano que transcendera o medo da escuridão solitária para solucionar o problema da sobrevivência.

A coluna fora reproduzida dezenas de vezes, no país e no exterior; aparecera em uma das antologias de jornalismo de guerra, com uma venda garantida de um milhão de exemplares. A autora já estava sendo mencionada como candidata ao Prémio Pulitzer, com a estória coroando-lhe a carreira. E o tema do assunto, percorrendo a América naquele exato momento, em outra campanha de venda de bónus de guerra, crescia de estatura a cada dia.

Em Gibraltar (lendo as mesmas palavras no Times de Londres de pés na escada de embarque), Bruce lançara o jornal ao mar com um imprecação abafada. Enquanto o navio permanecia ancorado, escrevera uma carta furiosa a Shane - e destruíra-a depois de recordar-se ”e que não tinha motivo visível para ira nem direito algum para censurar-lhe o desejo de celebrar o batismo de fogo de Hal - ou, se quisesse, adorar falsos deuses...

Janet Josselyn, naturalmente, constituía estória diferente. O longo silêncio dela tornara-lhe completo o isolamento - e ele recusara-se até então rompê-lo pelos seus próprios esforços.

Na viagem de Argel a Gibraltar, compusera uma longa e carinhosa missiva, reiterando o pedido de casamento e suplicando-lhe que o encontrasse tão logo possível em Charleston. Enviara a carta via Zona Internacional de Tanger, com prioridade especial, por via aérea. Esperando uma resposta ao chegar ao porto de Carolina, ficara chocado ao nada encontrar. O desânimo crescera depois que um telefonema de longa distância à Califórnia baldara-se também.

Parte do mistério resolveu-se por si mesmo durante a primeira semana em Charleston, quando uma coluna de bisbilhotices de Nova York informou que Janet Josselyn deixara o estúdio de Brodski após rescindir o contrato por consentimento mútuo. Bruce convenceu-se ainda mais quando uma notícia de Tampa confirmou o boato acrescentando que Janet voltara para casa a fim de cuidar do pai doente, que sofrera um ataque de coronárias no plenário do Senado e fora para a Flórida recuperar-se.

Hesitando em fazer uma segunda chamada de longa distância ao persistir a falta de notícias diretas, Bruce enviara um curto bilhete a Tampa, indagando a Janet se recebera a sua carta de Tanger e expressando pesar com as más notícias. A sensação de ruína persistira quando os dias passaram sem resposta à segunda carta. E aprofundou-se quando viu um exemplar do Herald, de Miami, uma fotografia do Coronel Reardon e da filha do Senador, juntos num comício para venda de bónus de guerra na cidade.

Uma semana antes, recebera um telegrama de Janet dizendo que a doença do pai ocupara-a exclusivamente e prometendo comunicação direta logo que a situação melhorasse. Nada mais ouviu da parte dela.

Dois péssimos meses num limbo onde esperava sem planos e sem o menor raio de esperança. Naquele momento, numa chuvosa manhã em Charleston, sentiu que o tempo de indecisão passara ao ouvir seu nome chamado do bar contíguo ao alojamento... Perversamente, relutou em atender à chamada do garçom.

- O senhor está aí, Coronel Graham?

- Estou indo. É um telefonema de longa distância?

O garçom já aparecera à porta com um envelope.

- Um telegrama, senhor. Foi enviado para aqui pelo quartel” general.

Bruce amaldiçoou sua capacidade de previsão ao rasgar o envelope. Em virtude das crises contínuas a bordo do navio, os telegramas não constituíam novidades... Este último, descobriu, era algo diferente: uma carta diurna de Tampa pedindo-lhe que chamasse um número naquela área entre meio-dia e três da tarde. Salvo pelas iniciais J.J., não havia identificação do remetente.

O gabinete do Capitão Swenson no porto era uma meia-água contígua à doca seca de onde se descortinava uma vista distante do Forte Sumter e que possuía um agradável ar de isolamento. Conforme Bruce esperava, estava deserto na hora do almoço. Colocando o telefone num ombro enquanto se acomodava na cadeira do Capitão, fez a chamada de longa distância para Tampa - e descobriu ser absurdamente simples evitar pensamentos conscientes enquanto esperava que a ligação fosse concluída.

No momento em que uma voz estranha respondeu - uma voz feminina, aguda e petulante - teve quase esperança de ter errado a ligação.

- Pediram-me que chamasse a Sra. Josselyn neste número...

- Quem é que está falando?

- O Coronel Graham.

- A Senhorita Josselyn estava esperando um major.

- Quer fazer o favor de dizer-lhe que eu tive uma promoção?

Janet falou tão abruptamente que ele teve a certeza de que ela escutava numa extensão.

- É você, Bruce?

- Estou respondendo a seu telegrama. Onde está você?

- Quem estava falando era tia Hester. Estou na casa dela na ilha Davis para evitar os repórteres. - A voz de Janet soou estranhamente indistinta, como se tivesse acordado naquele momento. - Você ouviu as notícias, naturalmente.

- Receio que não.

- Papai morreu dormindo na noite de ontem. Foi por isso que enviei aquele telegrama para evitar que você me chamasse em casa.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? - Não era a troca de palavras que imaginara nas semanas de espera. Apesar disso, agora que compreendera a importância do estranho telegrama, cada uma de suas palavras parecia inteiramente natural. Era como se ouvisse a voz de Janet Josselyn pela primeira vez - como se a visse, a despeito dos quilómetros que os separavam, mais claramente do que nunca.

- Você tem feito tanto por mim até agora, Bruce. Fará mais um favor?

- Claro, se puder.

- Ouça cuidadosamente - disse Janet. - Tente compreender meu problema.

- Farei o possível.

- Só há uma maneira de dizer-lhe isto. Eu vou casar com Hal Reardon.

- Por causa de seu pai? - Ele fez a pergunta mecanicamente: o choque fora surpreendentemente leve. Dois meses de silêncio haviam-no preparado suficientemente para isso.

- Papai é parte da decisão, naturalmente. Antes de ele morrer, prometi que lhe respeitaria os desejos... e vou manter a promessa. Mas você é o motivo real desta decisão. Enquanto eu estava tendo o que Leo Brodski chamava de minha carreira cinematográfica, eu honestamente esperava fazê-lo feliz. Agora, não tenho mais carreira alguma, e não poderia jamais ficar à altura dos seus talentos...

- Você sabe que está dizendo tolices?

- Por favor, não seja galante, Bruce. Acontece que é verdade. Às vezes, o fracasso num campo dá perspectiva à pessoa em outro. Quando eu era o sucesso do circuito dos acampamentos, eu pensava que não havia papel que eu não pudesse representar. Podia mesmo fingir que merecia um médico como marido depois que Leo me transformou em estrela. Isso foi parte da ilusão. Estou satisfeita por ter superado essa fase e...

Ouvindo-a continuar - tão volúvelmente como se fosse um discurso preparado, a experimentar perante uma plateia cuja aprovação estava garantida - Bruce sentiu-se forçado a protestar.

- Não acredito que essa decisão tenha-se baseado exclusivamente em considerações de meu bem-estar.

- Você deve-se lembrar que meu pai nunca o aprovou inteiramente - disse Janet. - Lutei contra ele enquanto tive esperanças no estúdio. Comecei a escutar novamente... depois que rompi com Brodski. O casamento com Hal fez parte de minha vida desde o início. Não posso fingir que foi feito no céu... mas forçosamente terá êxito.

- Quando é que vai torná-lo oficial?

- Naturalmente, não poderá haver uma comunicação formal agora. Tia Hester vai anunciá-lo na primavera... quando Hal estiver de volta a Washington.

- Eu pensei que ele havia renunciado à cadeira na Câmara.

- O Governador vai nomeá-lo para concluir o mandato do meu pai. Isto estava também escrito nas estrelas.

- Provavelmente estava, agora que você o menciona. Hal é um homem de sorte. - Mais uma vez, Bruce ficou atónito com a facilidade com que aceitava o caso. Agora que as palavras haviam sido pronunciadas, sabia que as ensaiara tão diligentemente como Janet. Os beijos que haviam trocado em Five Oaks, os líricos amores numa hacienda em Hollywood e num hotel em Argel foram todos parte da mesma commedia del arte - um roteiro que a própria Janet havia composto a fim de adiar o dever que cumpria agora. Ele, igualmente, desempenhara um papel no roteiro - e um desempenho mais do que adequado. Jamais esperara deixar o cenário tão tranquilamente logo que chegasse o momento de esquecer o faz-de-conta.

- Tentei escrever-lhe esta manhã - disse Janet. - Pareceu-me mais justo... contar-lhe desta maneira. Pense o que quiser de mim, eu não sou covarde.

- Você nunca foi.

- No momento em que ouvi sua voz, soube que você compreenderia. - A voz de Janet parecia vir de uma longa distância, embora soasse bastante clara.

- Claro que compreendo. E desejo-lhe todas as felicidades.

- Deseje a nós ambos. A Hal e a mim.

- Isso não é pedir demais?

- Shane o fez... e ela esteve apaixonada por ele durante muito tempo.

- Talvez nós dois devamo-nos consolar mutuamente.

- Ela está em Nova York. Gostaria de saber o número?

- Tomarei nota, se você quiser.

- O número é Murray Hill 1-5890. Adeus, Bruce. Sinto que as coisas tenham terminado assim.

- O mesmo digo eu, Janet.

Olhou fixamente durante um momento para o telefone de Swenson depois de tê-lo desligado. Em seguida, obedecendo a um impulso que não se deteve em examinar, levantou-o novamente e pediu o número de Nova York que Janet lhe dera... A luz branca em seu cérebro permanecia cegamente, mas ele continuava a ajustar-se ao fulgor.

Era estranho que tivesse necessitado de todo o impacto dessa rejeição para abrir finalmente os olhos, para reconhecer que era Shane que desejava com todo seu ser, que a amara desde o momento em que ambos tentaram enganar a solidão mútua naquele apartamento de sobrado na Rua S. E, era ainda mais estranho que sentisse a necessidade de conter-se mesmo naquele momento. Hesitaria porque a própria Shane não lhe pedira que a chamasse? Ou, perguntar-se-ia ele se havia encontrado sua verdadeira razão de ser apenas para perdê-la?

O coração lhe batia pesadamente no peito enquanto o número era Processado pela central telefónica. Algo o alertou instantaneamente ao ouvir o seco ting duplo em Nova York. Muito antes de a voz de outra mulher responder, ele sabia que suas piores apreensões haviam-se realizado.

- Sociedade James Lowell.

- Talvez eu tenha me enganado no número. Posso perguntar-lhe o endereço?

- Park Avenue, nº 247, senhor.

- Vocês fazem parte da empresa de Michael Derwent?

- Ficamos num andar acima do Sr. Derwent. Quem está falando, por favor.

- Uma certa Senhorita McLendon trabalha aí por acaso?

- A Senhorita McLendon trabalha aqui num projeto especial. Quem está falando?

- Pode fazer o favor de dizer-lhe que o Coronel Bruce Graham estará em Nova York amanhã?

- Se quiser, Coronel, posso ligá-lo com ela agora.

- Amanhã servirá perfeitamente.

Permaneceu sentado durante longo tempo à escrivaninha de Swenson antes de levantar o telefone pela última vez, discar o Serviço de Transporte da base e pedir hospedagem por uma noite em Nova York. Desde aquela noite em Washington - quando entrara num bar para tomar um gole de coragem artificial antes de subir no ônibus para o Acampamento Bruckner - não se sentira tão sozinho.

- Se você não se descontrair um pouco - disse Shane - não tenho certeza de que poderemos conversar absolutamente.

- Nós sempre pudemos conversar antes.

- Até agora, nossas mentes se encontraram... mesmo quando colidiram. Por que não recuamos e começamos tudo novamente?

Haviam-se acutilado nessa veia, em absoluto suavemente, desde o momento em que Bruce entrara no gabinete de Shane. Desde que se sentara na cadeira dos visitantes - olhando-a do outro lado da mesa de tampo de vidro - julgara-a mais desejável do que nos seus sonhos mais loucos. Apesar disso, após as primeiras trocas de palavra, jamais se sentira tão profundamente hostil. A necessidade de declarar-lhe seu amor a despeito das barreiras que os separavam era igual apenas à necessidade de magoá-la - de mostrar, além de qualquer dúvida, que havia chegado aos limites da paciência.

- Deixe de comportar-se como se eu fosse seu pior inimigo disse Shane. - Como é que eu posso explicar o que estou fazendo aqui se você nem mesmo finge escutar?

Bruce levantou-se e dirigiu-se até a janela. Do lado de fora, os canyons de Manhattan começavam a ser envolvidos pelas sombras. Ele falou com os olhos pousados na massa de concreto envolvida pela escuridão.

- É verdade, então? - perguntou. - Isto aqui é o centro nervoso da Sociedade James Lowell?

- Esta é a sede nacional. Gostaria de uma visita conduzida?

- Eu abominaria isso.

- A Sociedade se expandiu e hoje ocupa um andar inteiro. Somente o Boletim emprega dez redatores. Temos um psiquiatra da Colúmbia que lhe dá o tom...

- Poupe-me os detalhes pavorosos. Explique apenas onde você se enquadra.

- Mike está ocupado com outro trabalho este mês - disse Shane. - Concordei em substituí-lo enquanto estiver sem matéria.

- De que modo está ajudando?

- Para dizer a verdade, é um projeto especial... uma brochura para a campanha de Hal. Ele quer que eu lhe consiga a divulgação na imprensa.

- Hal foi nomeado apenas esta tarde para ocupar o lugar de Josselyn. Ele tem ainda um ano para servir. Não é cedo demais para iniciar a campanha?

- Não, para uma cadeira no Senado. Sabíamos que a nomeação ’viria depois que Lucius adoeceu. Eis aqui o resultado de nosso pensamento. - Shane abriu a gaveta da escrivaninha e tirou um panfleto em papel lustroso. Possuía uma capa interessante, mostrando o perfil de Hal contra um fundo de bandeiras aliadas, uma montagem cromática na qual a bandeira americana apoucava todas as demais.

- Isso foi impresso antes do evento?

- Naturalmente - respondeu Shane. - O Senador ter-se-ia aposentado de qualquer maneira antes da reabertura do Congresso. O formato é ainda provisório. Nós o melhoraremos mais tarde.

- Começando com a arte da capa, penso.

- A capa é um pouco teatral - admitiu Shane. - Mas está no rumo certo. Pelo menos, transmite uma mensagem... a de Hal.

- América para sempre... com um bom homem como portabandeira e morte instantânea para os meus caracteres?

- Sim... se você quer simplificar demais a questão.

Bruce tomou o panfleto e folheou-lhe as páginas profundamente ilustradas.

- Você compôs isto?

- Os leiautes são do pessoal de Mike - disse Shane. - Eu escrevi a maior parte do texto.

Passando as páginas, ficou ligeiramente enojado com o que leu. O estilo de Derwent era conhecido, afinal de contas. A brochura contava, em forma resumida, a vida de Hal: o grande estudante do campus universitário, o enérgico jovem promotor público, o deputado que tanto fizera para engrenar a máquina de guerra americana. Duas páginas de frente mostravam Hal em uniforme: a seção tinha seu clímax na agora famosa coluna de Shane descrevendo o salto sobre Salerno. As páginas finais mostravam Hal e o Senador Josselyn no último comício de venda de bónus de guerra a que o Senador comparecera. Eram seguidas por um resumo das notícias do dia, anunciando a morte de Josselyn e a nomeação de Hal para ocupar a cadeira vaga.

- Como você deve ter observado - disse Shane - há diversos claros a preencher antes que o espetáculo ganhe a estrada.

- Parece completo, como anúncio.

- Mike está planejando distribuí-lo esta primavera. Um dia depois de Hal anunciar que se candidatará ao mandato completo.

- Não há menção de qualquer ligação com a Sociedade James Lowell.

- Nenhuma ligação foi planejada, Bruce. A Sociedade permanecerá inteiramente fora da política.

- Mas ela está certamente endossando o Senador Reardon.

- Dificilmente poderia fazer menos. Ela tem objetivos muito mais vastos do que uma eleição para o Senado.

- E você finge ainda que não há ligação entre Hal e os lowellistas?

- Os lowellistas estão dedicados à paz mundial... com uma forte América apoiando-os. O mesmo acontece com Hal. A conexão termina aí.

- Ouvi esse argumento ad nauseam. Admito que o apoio da sociedade James Lowell é valioso para um político. O que eu não consigo engolir é sua convicção de que o método do porrete vai funcionar.

- Você está certo que está contra os lowellistas e não contra Hal?

- Estou contra ambos... desde que ele foi o líder da sociedade desde o início.

- Eu apoio ambos - disse Shane. - Estou dando a Hal Reardon o melhor que tenho porque ele merece o melhor. Acho que ele ganhará disparado a eleição no outono - e tornar-se-á uma figura significativa na América do pós-guerra.

- Contanto que Mike Derwente o lance devidamente.

- Homens e ideias precisam ser comercializados para alcançar o público. Escrevi aquela brochura para oferecer à América um cidadão-soldado que acredita poder proscrever a guerra. Eu chamaria a isso um comentário justo... e esperaria que ele justificasse cada palavra.

- Mesmo que ele e Janet cheguem à Casa Branca? O único lugar aonde você não pode segui-lo?

Bruce usara a pergunta como um trunfo. Esperando uma explosão, ficou inteiramente desconcertado ao ouvir a gargalhada de Shane.

- Você está ainda com a ilusão de que estou prestes a tornar-me amante de Hal? Em expediente integral ou parcial?

- O que é que eu poderia pensar depois do que aconteceu em Argel?

- Quem é que lhe contou o que aconteceu em Argel? Qual é a origem dessa calúnia... além de sua imaginação romântica?

- Você não pode negar que foram vistos juntos em toda parte.

- Claro que fomos. Habitualmente, a caminho de um jantar com oficiais do Comando do Teatro de Guerra. Em Argel, o Coronel Reardon estava ocupado demais para pensar em me amar... mesmo que tivesse sentido tal inclinação. As suas energias fora de serviço eram usadas para reconciliar-se com Lucius Josselyn.

- Você está fingindo que suas relações com Hal foram sempre platónicas?

- Eu nada disse nesse sentido, Bruce. Não é nada de sua maldita conta, mas eu realmente esperei provocar uma fagulha... antes que ele se concentrasse no objetivo real. A situação mudou inteiramente, agora que os planos de casamento dele são oficiais.

- Você renunciou a todas as reivindicações pessoais?

- Eu nunca tive reivindicações pessoais. Da mesma forma que você não tinha opção sobre o futuro de Janet. Daqui de onde estou sentada, eu diria que você começou a superar essa ilusão. Eu tive bom-senso suficiente para renunciar à minha.

- Então está apoiando o Senador Reardon sem esperança de recompensa?

- Segundo penso, ele é o que este rico e confuso país necessita. Admito que ele possa ser um poseur quando a situação pede. Admito também que ele tem uma vontade que parece um jug-gernaut. Que grande homem não a tem?

- Você pensa honestamente que ele é da estirpe dos grandes?

- Penso que será... algum dia. Se eu tiver razão, minha recompensa será a certeza de que ajudei a colocá-lo lá.

Bruce tomou uma profunda respiração antes de lançar a brochura sobre a escrivaninha.

- Sinto muito que tenhamos chegado a uma encruzilhada disse ele. - Se eu pudesse, eu compraria o que você tem a vender. Mas o esforço está além de minhas forças.

Shane estendeu a mão para tocar-lhe o braço num gesto de advertência... estranhamente tocante.

- Você conheceu Jimmie Lowell... e admirou-o. Há uma coisa que você pode fazer para manter viva a memória dele. Concorde ou não com a Sociedade.

- É difícil de acreditar, mas estou escutando.

- Tenho certeza de que ouviu falar dos planos para fundação de um centro de reabilitação nas proximidades de Concord. O Sanatório Lowell. Se a Sociedade continuar a crescer à taxa atual, a pedra fundamental será lançada no ano que vem. Você aceitaria o cargo de diretor?

- Isso é ideia sua ou de Hal?

- Hal pediu-me que lhe falasse. Aparentemente, ele lhe fez oferecimento análogo em Los Angeles.

- De fato. Eu quase havia esquecido.

- Logo que o centro estiver em funcionamento, ele ajudará muito mais veteranos do que você pode salvar no Exército. com a sua folha de serviço de guerra, você seria o homem ideal para dirigi-lo...

- E o testa-de-ferro ideal dos lowellistas? Ou deveria dizer, do monstrengo criado pela mente de Derwent?

- Você, pelo menos, pensará no assunto?

- Posso dar-lhe a resposta agora, Shane. Prefiro lutar esta guerra fardado... e voltar a Lakewood quando ela terminar.

- Então é adeus?

- Um longo adeus.

- Não, se você vir a luz - disse Shane.

Não se falaram novamente quando os olhos se encontraram e ficaram presos uns nos outros. A ânsia de tomar Shane McLendon nos braços - e de apagar com beijos as rugas de infelicidade que lhe via na testa - jamais fora maior. Mas a fúria e o desapontamento eram ainda maiores ao voltar-se para a porta que dava acesso ao corredor.

Ao entrar no elevador, notou que o painel de vidro partiu-se com a força com que fechou a porta.

 

                                             SÃO FRANCISCO

Bruce não estivera no tombadilho no momento em que o navio passara sob a grande e nova ponte que formava o Golden Gate. Utilizando redes de lona para suplementar os beliches regulares, trouxera quase mil e quatrocentas baixas na viagem aos Estados Unidos. Tarefas de última hora haviam-no retido à escrivaninha... Ouvira as notícias da rendição alemã durante as rondas matutinas. Ao acercar-se do Capitão Swenson na ponte, o Helen S. Peters havia cruzado a baía de São Francisco a caminho do cais. A cidade e as colinas onde ela se assentava estavam envolvidas pelo nevoeiro. Maio na Califórnia parecia quase frio após a travessia iniciada em Okinawa.

O desembarque transformara-se numa segunda natureza da 2419 após dezoito meses de viagens de misericórdia. Em lugares distantes do Pacífico, em Sídnei, em Auckland e em Manilha, Bruce vira filas idênticas de casos de padiola e ambulatoriais descerem do navio para a terra. Não fora muito diferente em Pearl Harbor, São Pedro e Seattle quando viajava em rotas que lhe pareciam agora tão conhecidas como os sulcos das palmas da mão.

Naquela manhã, as ambulâncias e ônibus mostraram-se ainda mais eficientes do que o habitual; em outra hora, os pacientes começariam a fase seguinte da recuperação no famoso hospital militar Letterman e outras instalações na área da baía. O tranquilo orgulho do cirurgião com esse fato era muito mais real do que sua última visão de uma América envolvida em vapor branco-acinzentado. Durante longo tempo o país nativo estivera distante das rondas diárias, se não de suas preocupações. Não sentia grande ânsia de restabelecer contato.

- Os jornais da manhã estão a bordo - disse o Capitão Swenson. - Quer lê-los agora ou mais tarde?

- Mais tarde... quando acreditar que estou em casa novamente. Eu ainda não posso crer que o futuro do mundo está sendo resolvido naquele banco de nevoeiro.

- Nem eu tampouco, se você se refere aos arquitetos das Nações Unidas. Você está pensando em comparecer à Conferência?

- Eu gostaria.

- Deve valer a pena observar-lhes os métodos - disse o Comandante. - O que ora acontece em São Francisco poderia ser mais significativo do que as notícias hoje chegadas do exterior. - Ele olhou para o movimento que diminuía no cais e para os raios de sol que começavam a delinear as ruas distantes. - Eu gostaria, porém, de ser mais otimista sobre os resultados.

- Os aliados acabam de concluir uma das fases da guerra. Desta vez, talvez tenham sorte na mesa de conferência.

- Talvez tenham, Coronel. Na minha opinião, é irrealista tratar de paz tão rapidamente.

- Até mesmo criar um parlamento da humanidade?

- A guerra não terminou ainda. O Japão está vivo ainda. Os próprios pacificadores estão longe de acordo, se podemos acreditar nas notícias.

- As notícias de hoje talvez sejam melhores.

- Duvido - disse Swenson. - A América perdeu sua forte voz quando Roosevelt morreu. Os britânicos estão divididos e há uma mudança de governo iminente. Os russos jamais se mostraram mais truculentos...

- Pelo menos, estão conferenciando.

- Qual sua verdadeira opinião, Coronel Graham? Neste estágio da evolução humana a paz mundial é um lema piegas... ou uma esperança?

Bruce sacudiu a cabeça - e voltou-se para a escada da ponte.

- Não tenho opiniões esta manhã. Antes de estabelecer um curso, terei de ficar no alto durante algum tempo e me orientar.

- São Francisco é um bom lugar para isso - disse o Capitão Swenson. - Na minha opinião, é uma das cidades mais civilizadas do mundo. Aproveite para desfrutá-la antes de viajar novamente. Você descobrirá que é um excelente remédio.

Passava das doze quando o cirurgião deixou a Secretaria, com o diário da viagem encerrado.

Acabara de pôr outra estrela ao lado da ata da guarnição: outra travessia oceânica sem perda de um único doente. Como sempre, um trabalho de primeira classe encerrava sua própria penalidade. Acabara de ser informado que o navio recebera ordens para dirigir-se novamente para o Oeste logo que novos suprimentos pudessem ser embarcados a fim de servir em um teatro de guerra a meio mundo de distância.

Sabendo que não poderia mais adiar o contato, apanhou exemplares do Chronicle e do Examiner na sala-de-estar e levou-os para o camarote, fechando a porta para evitar interrupções. A coluna de Shane McLendon saltou-lhe aos olhos na primeira página do Examiner. Ele vira tais exemplos de reportagem em todas as ocasiões em que jornais americanos chegavam ao navio. Sentira uma ilusão de continuidade ao ler-lhe a cobertura jornalística da guerra na Europa antes e depois do Dia D. Mais tarde, como a primeira jornalista a desembarcar nas Filipinas e uma das primeiras em Okinawa, parecera ainda mais próxima.

Durante a última campanha nacional, ocasião em que Hal Reardon disputara um mandato completo no Senado, Shane voltara para apoiá-lo. Acompanhara-o durante toda a campanha. Bruce esperava que, naquele dia, ela estivesse fazendo a cobertura de São Francisco, onde Hal servia na delegação americana à Conferência do Tratado das Nações Unidas. Tratava-se de uma honra merecida - como democrata de prol, ilustre veterano e estadista cujas ideias sobre os assuntos exteriores despertavam enorme atenção. Reconduzido ao Senado no último outono por votação esmagadora, percorrera desde então o país expondo suas opiniões. O As Coisas, como as Vejo daquele dia constituía uma reprodução do credo do Senador - e um vibrante endosso.

Superficialmente, a fórmula de paz proposta por Hal, de paz com honra, parecia inteiramente razoável. Bruce estava convencido de que fora assim recebida por uma poderosa minoria do eleitorado - incluindo a Sociedade James Lowell, que dera ao Senador apoio irrestrito nas urnas. A América, na opinião de Hal, deveria dominar a nascente união de nações, em virtude de seu poderio atual e de sua contribuição à vitória na Europa. Mais uma vez, insistira em que o projetado Conselho de Segurança - o núcleo de poder da ONU, um corpo de onze nações em que as cinco grandes potências seriam membros permanentes - deveria ser organizado de modo a tornar decisivo o voto americano.

Desde que era improvável que uma Força Internacional de Polícia emergisse da Conferência das Nações Unidas, Hal repetia a sua exigência, agora familiar, de que o poderio americano fosse usado como substituto prático - pelo menos até que a paz mundial fosse mais do que o sonho de um idealista. Por último e mais importante - no que interessava à reunião de São Francisco - Hal lançava uma severa advertência, uma citação direta que formava o clímax da coluna de Shane A menos que houvesse algum acordo sobre o poder de veto do Conselho de Segurança, ele votaria pelo boicote americano.

Como as Vejo teve o cuidado de observar que o Senador Reardon falava apenas por si mesmo e pelo grupo da opinião pública que o apoiava: de modo geral, sua posição contrariava a Casa Branca... embora ele sentisse todo o desejo de permanecer leal ao novo Presidente nesses tempos difíceis. Não obstante, considerando-se a força do apoio público que possuía, a rejeição direta de suas opiniões poderia encerrar consequências funestas... Shane insinuava que tais consequências seriam detalhadas mais tarde... se os elaboradores do tratado recusassem a encontrar a meio caminho o incendiário americano...

O Chronicle, como o Examiner, abundava em manchetes proclamando o colapso da resistência alemã. Mas havia espaço para anunciar que a esposa do Senador Reardon (a antiga Janet Josselyn) chegara a São Francisco para reunir-se ao marido no Mark Hopkins. Naquela tarde, ela receberia os participantes da conferência para coquetéis.

Bem perto desse item o jornal estampava uma coluna ainda mais conhecida do que a de Shane - World Beat, de Lewis Carleton, distribuída por um sindicato jornalístico. Antigo agente de relações públicas de teatro, Carleton fizera enormes progressos no jornalismo graças aos novos horizontes que a guerra lhe abrira. Ao longo dos anos, o seu peçonhento humor afinara-se mais - e embora ainda discutisse os assuntos mundiais com o mesmo vocabulário que usara para descrever a cena mutável da Broadway, conquistara milhões de leitores. Batalhador incansável de qualquer causa que lhe revelasse ao máximo a habilidade, estava também em São Francisco. A sua coluna naquele dia explorava um ângulo oposto ao de Shane.

Escrevendo de dentro da conferência, a World Beat admitia que as possibilidades eram sombrias. Não obstante, lembrava ao público que a maioria dos participantes julgara mais fácil colidir do que concordar - especialmente quando dissidentes como o Senador Reardon estavam a mão para falar. Segundo a opinião de Carleton, as propostas feitas por Reardon mereciam total rejeição não apenas dos colegas na conferência, mas também dos seus correligionários no país. A exigência que fazia de um poder de polícia americano, dizia Carleton, serviria apenas para criar inimigos entre os atuais aliados. A sua atitude como guardião do direito americano constituía um eco de um passado isolacionista, tão grotesco como o empavonamento dos ditadores europeus que haviam afogado o contingente em sangue.

A coluna, como a maioria dos trabalhos de Carleton, provocara mais calor do que luz. Bruce percebeu que esse polemista, evitando a calúnia por um fio de cabelo, fora inspirado mais pelo despeito do que por autêntico desacordo. A World Beat, embora demolisse a fórmula de Reardon, nada apresentava em seu lugar: a sugestão de Gotterdammerung fora incluída para criar uma impressão favorável. Constituía uma contrafação da lógica que esse antigo bisbilhoteiro falasse com a língua dos anjos numa primeira página - enquanto Shane McLendon ecoava o jingoísmo de Hal em outra.

Lançado o Chronicle até o outro lado do camarote, onde se reuniu ao Examiner, Bruce acomodou-se no beliche. Havia muito tempo não se sentia tão desamparado ou exausto. Já desejava estar no mar novamente - deixando um mundo perturbado do outro lado do horizonte, afastando da mente o longo duelo com Hal Reardon... Apesar disso, no momento em que procurou o sono, compreendeu que a fuga era inútil. Nebulosa como estava a sua mente naquele momento, percebeu que aquele cruzeiro a São Francisco fora inevitável.

Antes que o navio virasse a proa novamente para o Oeste, ele resolveria o duelo de uma vez para sempre. A despeito da longa separação, o seu amor por Shane jamais fora mais profundo. Até que se convencesse de que Hal Reardon era a autêntica estrêla-guia da moça, não lhe restava outro curso.

Caíra a noite quando despertou - com a cabeça clara, se não suficientemente recuperado - e respondeu à batida de Eric Badger à porta. O Subcomandante entrou alegremente no camarote trazendo uma batedeira de coquetéis.

- Alice Stacey e eu vamos jantar em Oakland... no Trader Vic’s. Por que não vem também?

- Se você não se importar, prefiro adiar isso para outra ocasião.

- O registro está encerrado, Bruce. Acabei de vir da Secretaria.

- Nós receberemos carga amanhã. Não deixe de chegar pela alvorada, em estado razoável. Phil Owen saiu com um passe de dois dias. Nós dois teremos de fazer a lista da farmácia.

- Não me diga que vai ficar sentado aí, pensando... simplesmente porque está na mesma cidade que Hal Reardon.

- Desculpe-me... mas não estou em condições de discutir o Senador Reardon.

- Não há nada que eu queira mais evitar... como você sabe muito bem - disse o homem de Wisconsin. - Mas ainda acho que é meu dever informar-lhe que ele falará na Rede Azul às oito da noite.

- Qual o motivo, desta vez?

- Um jantar de cem dólares - a assinatura em benefício da filial local da Sociedade James Lowell.

- Deve haver alguma maneira de se poder evitar isso.

- Você pode tentar Oakland conosco. Ele será retransmitido pelos alto-falantes se você ficar a bordo. A maior parte da guarnição está querendo ouvi-lo.

- Mesmo os que discordam dele?

- A maioria gosta do tom da voz dele - disse Badger. -. O mesmo acontece com a maioria, em São Francisco. Esta manhã, no Letterman, eu o discuti com três oficiais médicos. Dois deles pensavam que ele fazia mais sentido do que qualquer outro político desde o falecido Presidente. O terceiro - sem estímulo de minha parte chamou-o de advogado do diabo disfarçado por trás da máscara de americano típico.

- Que pena que a percentagem não tenha sido o contrário.

- Mas isso não foi tudo - disse Badger. - De volta, o motorista do táxi informou-me de que Reardon fez mais para libertar a Europa do que a maioria dos nossos generais. Precisei de todo o meu autocontrole para esquecer a Operação Copa de Árvore em Salerno.

- Salerno é um assunto enterrado, Eric. É melhor ir buscar a sua companhia antes que alguém o faça.

Logo que o imediato saiu, Bruce tirou o melhor uniforme, embora não tivesse em mente destino algum e seu estado de espírito pudesse ser tudo menos festivo. Muito depois das oito, desceu o tombadilho em direção à sala de rádio. Esperando que aquele rico barítono lhe arrepiasse os cabelos, preparara-se para o impacto. Mas não estava pronto para os aplausos que recebeu a proclamação de Hal sobre a missão sagrada da América de tornar a guerra digna de pelejar - um dever mais solene do que nunca agora que se encerrava a fase europeia.

Ao parar à sombra de um pontalête, percebeu uma densa multidão de ouvintes agrupados em frente à porta da sala do rádio, onde a irradiação podia ser ouvida mais claramente. Sentindo o espírito afundar no poço negro da dúvida, maravilhou-se novamente com o feitiço com que Hal Reardon podia tercer, sem esforço aparente - em pausas bem sincronizadas -, o crescendi tonitruante e o senso global de retidão. Comparado com esses talentos forenses, as palavras reais do orador pareciam destituídas de importância. Não havia dúvida sobre a profunda emoção do orador quando admoestava severamente os homens de pouca fé, em Washington e no exterior, que já pareciam dispostos a aceitar uma paz de segunda classe.

Minutos após ter descido a escada do convés de passeio, Bruce esquecera o fio do discurso de Hal. Uma explosão final de aplausos no momento em que ele concluiu o último e altaneiro desafio aos inimigos do país constituía irrefutável prova de que a comunhão com a plateia fora completa.

A necessidade de deixar o navio tornou-se insopitável. Na escada de desembarque, ouviu uma voz chamar-lhe o nome. O operador de rádio dirigia-se apressadamente para ele com uma mensagem na mão.

- Eu não sabia que o senhor estava a bordo. Isto chegou agora mesmo. Estava ouvindo a irradiação do discurso do Senador e quase a esqueci.

Levando o telegrama à escrivaninha de recepção, Bruce engoliu a reprimenda: o navio estava no porto e o lapso do operador era perdoável. Acabara de ver cinquenta pessoas - muitas das quais inteligentes e, algumas, altamente educadas - fascinadas por Hal Reardon.

O telegrama era de Shane. Ela estaria no Top, do Mark, às nove e trinta e esperava que ele a encontrasse lá.

Dispondo ainda de uma hora, tomou um táxi até o Embarcadero e vagueou entre as garagens dos barcos, onde estivadores suavam sob luzes de arco voltaico carregando suprimentos para os couraçados da Frota do Pacífico. A sensação de que fazia parte dessa atividade restaurou-lhe a indiferença. Sentiu-se bastante calmo ao deixar o cais e entrar num bar em Powell Street - um oásis cuja parede externa, construída para lembrar a viga-mestra de um baleeiro, sugeria tratar-se de um ponto de encontro local.

O Snug Harbor estava vazio àquela hora, salvo pela presença do botequineiro de ombros largos, o qual, para surpresa do visitante, estava embebido na leitura de um livro colocado junto à registradora. Orelhas de couve-flor e um nariz pessimamente reconstruído sugeriam o quadrilátero do boxe. Formavam estranho contraste com o volume, Teoria das Classes Ociosas, de Veblen.

- O que é que vai ser, Cavalheiro?

- Bourbon e água, por favor.

Os olhos do homem, vivos como mica preta entre as pálpebras empapuçadas de pardal, estudaram atentamente o único freguês enquanto o servia. O exame inclui a fita dupla de fitas de campanha e as águias de prata que Bruce recebera no mês anterior.

- O senhor viu um bocado desta guerra, Coronel?

- Mais do que o suficiente.

- Essas cobras aí significam que o senhor é médico? Eu nunca tenho certeza.

- Sou o Comandante de um navio-hospital.

- Aquele grande atracado no armazém Doze? Se não estivéssemos ainda lutando contra os japoneses, eu juraria que era o Lurline.

- Você não está muito longe da verdade. O Helen S. Peters era um navio de turismo.

- De onde é que vem o senhor... se isso não for segredo?

- Nada que fazemos é segredo. Vimos diretamente de Okinawa.

- É verdade que vocês são pintados de branco para evitar os submarinos?

- Essa é a ideia geral. Funcionou até agora... salvo por um tiro perdido em Salerno.

- O que é que o senhor diz desses aviões suicidas? Os kamikazes?

- Dois deles fizeram passagens sobre nós em nossa última viagem... e, em seguida, desviaram-se. - Bruce descobriu que se relaxava um pouco; o interesse do homem era profundo demais para ser artificial. - No caso de hospitais, a maioria das nações respeita os direitos de cada uma.

- O senhor não acha que elas deviam tentar respeitar os demais, de todas as maneiras?

- A Conferência das Nações Unidas está explorando esse ângulo.

- É o que o jornal diz, Coronel. Naturalmente, isso depende do jornal que se lê.

- Alguns colunistas dizem que não se pode abolar a guerra com uma sociedade de debates.

- As Nações Unidas farão mais do que isso - disse o garçom.

- Escutei as sessões no Edifício dos Veteranos... onde estão redigindo a Carta. Talvez consigam resultados se permanecerem fiéis às regras.

- Espero que o senhor tenha razão. Parece uma coisa difícil para um homem que acaba de desembarcar.

- Redigir um tratado de paz é uma dor de cabeça em qualquer língua - disse o botequineiro. - Especialmente, se começam a discutir agora sobre quem é que vai acabar com a primeira briga.

- Parece que o senhor andou fazendo uma amostragem de opiniões sobre o Senador Reardon.

- Ouviu o discurso que ele fez hoje à noite?

- Somente o fim. Acho que já ouvi aquele discurso antes.

Mais uma vez, Bruce surpreendeu-se com a sensação de tranquilidade que sentia. A bordo, julgara as explosões de retórica de Hal mais do que podia suportar. Num bar da Rua Powell parecia-lhe natural falar francamente.

- O senhor lhe aprova as ideias?

- Reardon está certo quando diz que vamos ter problemas com a Rússia. Apesar disso, temos de viver no mesmo mundo com Moscou... mesmo que eles estejam com os dedos coçando para nos apunhalar pelas costas. Mas enquanto permanecermos os dois dentro das Nações Unidas, teremos uma possibilidade de arrancar aquela faca.

- Reardon acha que nós devemos dirigir o espetáculo... no Conselho de Segurança.

- Eu sei o que ele acha, Coronel... mas ele está errado. Atualmente, nenhum país pode fazer o mundo comportar-se. Da mesma forma que não há dono de bar suficientemente forte para servir também como seu próprio leão-de-chácara.

- O senhor fala por experiência própria?

- Sou o dono do Snug Harbor e não devo nada a ninguém. Logo que o Embarcadero fechar, teremos aqui estivadores no balcão, fazendo fila. Na maior parte das vezes, eu tenho amigos na multidão que começam a apartar a briga antes que seja derramado sangue. Em seguida, a casa paga uma rodada... e varre os dentes quebrados. É um sistema duro, mas até agora não perdi minha licença.

- Como é que você explica isso?

- O senhor poderia dizer que eu tive treinamento especial. Quando era mais moço, fui um bom lutador - um dos pesos-médios mais rápidos da cidade. Ao chegar aos vinte e cinco, resolvi deixar o jogo antes de ser derrotado. Eu já comprara meio interesse neste bar e resolvi dedicar-me ao negócio o tempo todo. Desde então, descobri que nada melhor existe do que vender bebida em balcão. Coisa alguma no mundo torna as pessoas melhores companhias - até que elas bebem demais.

- Acho que neste caso, o Snub Harbor é um bom investimento.

- Cuidar de um bar pode ser divertido... se a pessoa não perder o senso de humor. Quando o movimento diminui, eu leio livros que nunca tive tempo de ler e finjo que os entendo. Quando o movimento cresce, eu não trocaria esta visão panorâmica da raça humana por emprego algum - contanto que eu fique no meu lado do balcão e não tenha de apartar brigas.

- Como é que você fazia nos velhos dias?

- Eu agia como um treinador de escola secundária apaziguando discussão no vestiário. Se era uma briga de dois, pegava ambos pela nuca e batia uma cabeça na outra. Geralmente, eles se acalmavam depois. Às vezes, chegaram mesmo a trocar um aperto de mão.

- Essa não é a fórmula de Reardon, se formos eleitos policiais do mundo?

- Se nos oferecerem o emprego - e se aceitarmos - seremos o bode expiatório do mundo... Os rapazes em Washington conseguiriam apenas galos na cabeça... como eu os consegui.

- O que é que aconteceu?

- Foi uma briga não programada, Coronel. Um dos homens era quase tão alto como eu. O outro era pequenino. Bati a cabeça de um no outro com força extra para ter certeza de que eles se comportariam. Ficaram mansos depois disso... ou, pelo menos, pensei. Quando fechei à noite, ambos esperavam por mim na viela. Quebraram-me o braço e afundaram-me o rosto com uma tampa do esgoto. Logo que saí do hospital, resolvi deixar de ser pacificador.

- Talvez o Senador Reardon pudesse aproveitar-lhe o exemplo.

- Acho que podia. Agora ele pensa que se pode meter em qualquer briga daqui até Zanzibar e sair vivo... se lhe derem um porrete bastante grande. Talvez pudesse apartar algumas brigas entre os nanicos. Mais cedo ou mais tarde, porém, os nanicos se reuniriam contra ele e o Senador terminaria como eu - deitado de costas no esgoto.

- Infelizmente, Reardon não tem sua experiência - disse Bruce.

- Não houve ainda uma discussão que ele não pudesse vencer.

- Vamos esperar que ele perca esta, e perca logo. Do modo que vejo as coisas, temos apenas um curso a seguir - entrar nesse parlamento mundial como igual e não como chefão.

- Nem mesmo como irmão mais velho?

- Naturalmente que queremos nossa parcela justa no futuro, mas isso ainda significa um voto para cada país. E Deus nos ajude se um número grande demais de desordeiros ficar lá na viela.

- Um voto por país faz sentido hoje - disse Bruce. - As Nações Unidas não terão muito mais de cinquenta países para começar. Mas o que acontecerá daqui a dez anos, ou vinte? Logo que as coisas ficarem realmente congestionadas?

- Esse problema poderá ser resolvido... se houver Nações Unidas dentro de vinte anos. Nós resolvemos impasses piores no Congresso e as leis certas estão hoje nos livros.

Bruce depositou o copo vazio no bar e sacudiu a cabeça negativamente ao oferecimento de outra dose.

- Já lhe ocorreu que o senhor poderia passar por filósofo?

- Todos os botequineiros são filósofos, Coronel. De que outro modo poderíamos atender os fregueses sem engasgar?

- com exceção da atual companhia, espero.

- A companhia atual é sempre exceção. É por isso que continuamos a trabalhar.

- Você se importaria se eu tentasse publicar suas ideias?

- Não me importaria absolutamente. Como o senhor vê, sinto-me feliz em falar com qualquer pessoa. Alguns dos meus melhores amigos são repórteres.

- Eu me refiro a uma repórter muito especial. Eu gostaria de mandá-la até aqui, se ela quisesse. O nome dela é Shane McLendon.

- A Senhorita McLendon é uma das minhas favoritas. Nós tivemos algumas boas conversas neste bar... antes que ela começasse a recomendar Reardon em altas vozes.

Bruce estendeu a mão.

- Meu nome é Graham.

- Henry Morgan, Coronel. O mesmo nome do famoso pirata. Fui batizado como Henrique Martinez... mas mudei de nome quando abri meu primeiro bar. Não ajuda a ninguém ser mexicano na Califórnia. Não, se a pessoa vende bebida.

- Guardarei seu segredo, Sr. Morgan. E obrigado por tudo.

- O que é que eu fiz... além de torcer-lhe a orelha?

- Você me recolocou no meio da corrente. O que quer que isso signifique.

O Top do Mark, no último andar do famoso hotel, era uma vasta sala circular de cujas janelas podiam-se ver os quatro quadrantes do horizonte. Naquela noite, uma das paisagens mais espetaculares do mundo estava envolvida pelo nevoeiro - embora a multidão que congestionasse cada centímetro do espaço, decidida a celebrar as notícias recebidas da Europa, parecesse despercebida da escuridão cada vez maior. Detido pela multidão à porta, Bruce viu Shane imediatamente em uma mesa ao lado de uma janela panorâmica sobre um estrado que a destacava das demais.

Esperara encontrá-la mudada após a longa separação, embora o primeiro vislumbre constituísse um grande choque. Estava muito mais magra do que se lembrava. Os planos encovados da face eram acentuados pela iluminação. Suas maneiras pareciam quase febris enquanto ela discutia alguma coisa com um homem ao lado. A mudança, sabia Bruce, fora trabalho de Hal Reardon. Isto, pensou ele sombriamente, era a recompensa que ela colhera às mãos de um trapaceiro, que nenhuma distinção estabelecia entre meios e fins.

A revelação era tudo de que necessitava para cristalizar-se a resolução. Conseguiu mesmo sorrir ao abrir caminho através da multidão, subir na plataforma e curvar-se para beijá-la.

- Não me diga que faz um longo tempo - começou ele..

- Minha sorte esteve má até hoje à noite.

Absorvida na discussão, Shane não lhe notara a aproximação. O afogueado que lhe subiu ao rosto constituiu uma confirmação adicional do diagnóstico - e um motivo, ligeiro embora, para esperar uma possível cura. Dizia-lhe que a moça que amava esperara - e temera - a reunião tanto quanto ele.

- Ele é Lewis Carleton, Bruce.

O colunista ajustava-se bem à lenda. Era bastante baixo para passar por um jóquei aposentado. A gravata berrante que usava, os óculos enormes de aros de tartaruga e a expressão de sorridente enfado completavam a estranha figura. Mesmo após o úmido aperto de mão, Bruce precisou de um segundo olhar para perceber que o homem estava caindo de bêbedo.

- Dê-me tempo, Coronel - disse Carleton em voz baixa, num meio rosnado e um meio ronronar que combinaram o pior de ambos os sons. - Sei que seu nome é conhecido.

- Dezenas de pessoas o têm, Sr. Carleton.

O colunista bateu nas têmporas com ambas as mãos: a cabeça em forma de domo era lívida, sugerindo o fato que ele funcionava muito longe do Sol.

- O senhor é o cirurgião do Scranton General... que teve uma briga com Jake Sanford em quarenta e dois. Estou certo, Shane?

- Geralmente você está, Lew.

- A estória que Hal Reardon abafou por motivos lá dele disse Carleton. - Que foi que realmente aconteceu?

Bruce lançou um rápido olhar a Shane, cujo rosto tinha uma expressão de paciente vazio.

- Nada de importância, asseguro-lhe - respondeu. - Sanford estava planejando uma das suas conhecidas perseguições. O senhor poderia dizer que a luta terminou empatada.

- Jake morreu - disse Shane. - Que descanse em paz.

- Quando é que ele morreu?

- Na semana passada, na Penitenciária Federal de Atlanta... onde cumpria pena por fraude nas declarações de Imposto de Renda - disse Carleton. - Posso garantir-lhe que poucos de nós derramaram uma lágrima. Desculpe-me, Shane. É evidente que seu amigo não me esclarecerá... e tenho certeza de que vocês têm coisas melhores a discutir do que caçadores de feiticeiras.

- Você tem toda razão, Lew.

- O reformador que perdeu contato com a realidade continua a ser um tópico fascinante. Concorda, Coronel?

Sabendo o que estava a caminho, Bruce respondeu serenamente:

- Se quer minha opinião como médico, repetirei o que disse certa vez a um admirador de Sanford. O homem precisava de um psiquiatra.

- Exatamente o que penso - replicou Carleton. - Ainda assim, duvido que um psiquiatra pudesse tê-lo ajudado muito. Não há cura conhecida para a elefantíase do ego. Homens assim conduzem as sementes da própria destruição. Seja chamado de Sanford seja de Reardon.

Shane recebeu calmamente a barragem de artilharia.

- Você não pode deixar de caluniar Hal nem por um minuto?

- Nem por um minuto, querida. Mesmo que você recuse a aceitar o desafio.

- Eu já lhe pedi que fosse embora, Lew.

O colunista ergueu-se com a dignidade dos bêbedos.

- vou indo, antes que comecemos a trocar sopapos. Eu planejava tomar a última aqui... com um homem que viu a guerra pessoalmente. Em vez disso, vou para o Snug Harbor. Adeus, Coronel.

Bruce aceitou um segundo e demorado aperto de mão.

- O senhor conhece o Snug Harbor?

- E também seu loquaz proprietário, Henry Morgan.

- Eu acabo de vir de lá.

- Henry é famoso em Prisco. Repórteres visitantes chamam-no ,- de o Platão da Rua Powell.

- Eu ia pedir a Shane que o entrevistasse.

- Não peça. Nestes dias ela tem outros usos para a coluna. Não vou explicar o que é... desde que o senhor faz parte do leal público dela.

- Não bote fora as boas-vindas com que foi recebido, Lew - disse Shane.

- Antes de eu ir embora, Coronel Graham... o senhor me concederá uma entrevista?

- Receio não ter estória alguma que mereça ser citada.

- Não tenha tanta certeza disso. Chame-me neste hotel amanhã se mudar de ideia. - Carleton deu um passo rápido para trás logo que Shane levantou ainda mais o queixo. - Desligue o congelador, querida. Desta vez, estou indo mesmo. Obrigado pela visita... embora você fosse companhia melhor nos dias anteriores à fase Reardon. - Desceu da plataforma, abrindo caminho entre as mesas com a penosa habilidade dos embriagados.

- Eu nunca pensei em apresentá-lo a tal beberrão - disse Shane. - Às vezes, ele é ainda mais grosseiro.

- Eu gostaria que ele tivesse ficado. Por mais que eu odeie concordar com Lewis Carleton, ele pode ter razão.

- A meu respeito? Ou a respeito de Henry Morgan?

- Para dizer a verdade, eu estava pensando numa moça que conheci há três anos... em um bar de Washington. Ela teria saltado com a possibilidade de entrevistar um homem como Henry. O que foi que aconteceu com ela?

Os lábios de Shane se comprimiram.

- Eu pedi que você viesse aqui para descobrir se falamos a mesma língua, Bruce. Não me apure demais.

- Pelo menos há esperança para nós... se isto é uma reunião.

- Se você encontrar a meio caminho, será.

- Aquele dono de bar na Rua Powell é um cidadão americano. Um homem comum que se pergunta que forma a paz está tomando. Ele não merece uma coluna? Ou você perdeu contato com o cidadão comum?

- Tenho conversado frequentemente com Henry. Conheço-lhe de cor as ideias. Elas não têm muita relevância para você ou para mim.

- Por que ele discorda de Hal Reardon? Isso já é crime?

- Estava-me perguntando quando voltaríamos a falar de Hal.

- Nós nunca deixamos de falar. Ele é o motivo real da minha vinda até aqui.

- Nós queremos você do nosso lado, Bruce. Nós dois. Você esteve longe por tempo longo demais.

- Que uso possível pode ter Hal para mim agora?

- Ele quer continuar a ser seu amigo. Você tem dezoito meses para chegar a uma conclusão a respeito dele... e de suas ideias. É tempo suficiente para formar uma opinião.

- É mais do que suficiente... graças aos Boletins Lowell e às suas colunas.

- A História está ao nosso lado - disse Shane. - E os eleitores, também.

- Quantos eleitores, e de que tipo? A Sociedade Lowell tem uma raça diferente de patrocinadores nestes dias, como você sabe muito bem.

- Eu também estava esperando por essa objeção.

- Vale a pena apresentá-la, Shane. Examine hoje em dia os nomes do papel timbrado de Derwent. Fósseis que queriam que me Kinley ainda estivesse na Casa Branca. Gatos rechonchudos que dão o dólar isento de impostos para manter o status quo. Eu esperava encontrá-la em melhor companhia.

- Você não pode ser justo... e deixar que Hal responda às suas dúvidas?

- Viajaremos depois de amanhã. A julgar pelos jornais e pelo rádio, o Senador Reardon é o homem mais ocupado de São Francisco. Duvido de que ele tenha tempo para um médico de navio-hospital.

- Hal espera-o agora, num andar abaixo deste.

- Então foi ele quem enviou aquele telegrama?

Bruce começou a levantar-se a essas palavras. Sentou-se novamente ao notar o gesto de súplica de Shane.

- Este é o último favor que eu lhe peço - disse ela. - É também nossa última oportunidade de estabelecer contato. Deixe que Hal defenda o tipo de América em que acredita. Ou vá embora e não me procure mais.

- Em outras palavras, tolere ou vá embora.

- Falando sem meias palavras... sim.

- Escutarei... se você me pedir.

- Descemos logo?

- O Senador Reardon, pode esperar. Está na suíte que alugou para Janet?

- Ela vai-se demorar ainda, se você prefere evitá-la. No momento, está fazendo as honras da casa na filial da Califórnia da Sociedade Lowell, em São Francisco. Hal foi o convidado de honra, mas saiu depois do discurso.

- Janet não devia estar presente, desde que este é o esforço final para converter-me?

- Ela tem sido uma boa esposa... mas não adota a política de Hal. Não tenho a certeza de que até mesmo a compreenda.

- Você tem certeza de que compreende?

As vozes não haviam alcançado ainda o estágio dos berros mas Bruce sabia que cabeças se voltaram para ouvir a discussão. Forçando-se a permanecer calmo, inclinou-se sobre a mesa e tomou a mão de Shane. Agora que estava certo de si mesmo - e de sua missão - podia conceder algum terreno.

- Desde que é o que você quer, descerei num momento - disse, tranquilamente. - Mas antes de fazê-lo, é meu dever como médico dizer que você tem-se comportado como uma rematada idiota.

- Se você pensa que estou emocionalmente enredada com Hal, está enganado. Eu lhe disse em Nova York que aquilo estava acabado.

- Eu acreditaria mais prontamente se você lhe retirasse o apoio.

- Você já pensou por acaso que a carreira de Hal Reardon é parcialmente, criação minha? Que eu posso orgulhar-me da criação mesmo depois de ter renunciado ao homem?

- Eu não acredito que mulheres renunciem a homens assim tão facilmente.

- Acredite no que quiser, então. Prometa apenas ouvir com a mente aberta.

- Eu me arriscarei, Shane... por sua causa. Mas penso ainda que você é um calhambeque envenenado a caminho de um desastre.

- E eu penso que o Senador Reardon está a caminho do cume. Se me enganar, posso sempre desembaraçar-me da ferragem.

- Não, se descobrir que faz parte dela.

- O que é que significa essa observação enigmática?

- Olhe-se num espelho se quer uma resposta. Você verá o que esse demagogo fez com você.

- Hal não é um demagogo. Nunca foi. Por que você o odeia tanto?

- Por que eu amo você. E amando, dói como o diabo ver você cair aos pedaços.

Shane tomou uma súbita respiração.

- Você podia ter-me dito isso antes.

- Como é que eu podia quando a sua obra-prima política estava sempre no meio do caminho?

- Posso perguntar-lhe quando começou essa grande emoção?

- Não me pergunte datas. Num bar na Union Station... no seu apartamento na Rua S... isso importa, por acaso? E você disse mais de uma vez que eu sou um escocês teimoso. Custou-me muito esclarecer as coisas. Admitir que fora derrotado por um oportunista que outrora chamei de amigo. E por uma moça marcada desde o nascimento para ser minha esposa. O que dói realmente é a maneira como você se confundiu com a sombra dele. Eu não posso ficar de lado e vê-la morrer assim.

- Isso significa que não descerá comigo?

- Eu já lhe prometi que iria. Quer ir na frente?

No andar residencial abaixo, Shane tomou a entrada que servia à suíte de Reardon e entrou sem bater. O saguão, um retângulo de mármore e ouro, abria-se para um salão envolto na penumbra. Lançando o quepe sobre a mesa, Bruce notou uma fotografia em tamanho natural de Jimmie Lowell, emoldurada em vinhedos heráldicos, pendurada numa parede. O rapaz, vestido no oliva desbotado da companhia de infantaria, reluzindo com a inocência da mocidade, parecia um estranho intruso no ambiente. Uma fotografia idêntica, recordava-se Bruce, era agora usada como frontispício de todos os números do Boletim da Sociedade Lowell. Não havia identificação além de uma legenda em vermelho cor de sangue:

O Primeiro Sacrifício Americano em Pearl Harbor

- Hal leva esse ícone em suas viagens? - perguntou ele.

Shane que entrara no salão falou com gélida precisão antes de apertar o interruptor:

- Deixe de morder e prepare-nos um uísque com soda. Hal está ao telefone. Direi a ele que você está aqui.

Era a primeira palavra que pronunciava desde que haviam deixado o Top do Mark. Desnorteado com a reserva que ela mostrava, inseguro se ela fora tocada, embora levemente, por sua declaração, Bruce nada disse quando ela tomou a direção dos quartos interiores da suíte. Ouviu claramente a voz de Hal, dirigindo-se a um personagem importante, que ele tratava pelo apelido... No bar, servindo dois drinques sem parar para medi-los, teve a sensação de dar uma cambalhota para o passado, em um saguão em Five Oaks, onde, diante de outra porta, ouvira outro Senador usar o mesmo tom de voz.

Pensava ainda carrancudo na recordação quando Shane apareceu vinda do quarto e tomou o seu copo. Hal seguiu-a tão rapidamente que era impossível duvidar de que a entrada fora planejada.

- Eu lhe disse que ele viria, Shane. Isso não mostra que ele nos ama?

O Senador continuava vestido a rigor, um trajo que sentava bem na sua esbelteza de galgo. Na lapela esquerda usava a roseta da Legião de Honra. Sobre ela, uma fita menor indicava que lhe fora concedida a Estrela de Prata por um governo grato: Bruce recordava-se de que todos os membros de sua unidade haviam recebido a mesma condecoração após Salerno. No momento em que Hal atravessou a sala com a mão estendida, era evidente que ele puxava ligeiramente pelo pé direito. O coxear não lhe debitava a graça. Até mesmo o olho treinado do cirurgião não podia ter certeza se o arrastar era ou não fingido.

Muito mais tarde, reconstruindo a primeira impressão, Bruce compreendeu que o esplendor de Hal pusera a última pedra na sua resolução: - As linhas da casaca perfeitamente cortada e o brilho de uma condecoração militar tão preciosa quanto imerecida. A sua reação foi primitiva, o recuo do caçador ao ouvir o chocalho da cascavel. Engolindo uma bebida que não saboreava e ignorando a mão estendida. do dono da casa, voltou-se para a janela, ciente, mesmo enquanto se movia, de que parecia uma criança mal-humorada rebelando-se contra a sabedoria tolerante dos mais velhos.

- Esse coxear é uma recordação da Itália? - perguntou.

- Somente quando o tempo está húmido - disse Hal. - Você está desperdiçando bom uísque, Bruce.

- Eu mudei de ideia sobre a bebida.

Hal foi até atrás do bar para servir-se de conhaque.

- Não comecemos com uma briga - disse ele, equânime. - Estamos aqui hoje à noite para fazer a paz.

Mais uma vez, Bruce forçou-se a ignorar o colega de classe quando se voltou para Shane.

- Prometi ouvir mais um discurso do seu alegado estadista disse ele. - Manterei a palavra. Mas, em primeiro lugar, quero fazer algumas perguntas.

- Isso é um direito seu - disse Shane. - Mas, ajudaria se você se lembrasse dos seus bons modos.

- Os modos do nosso visitante são irreprocháveis - disse Hal.

- Ele sabe que estou a serviço dele.

- A questão número um é a mais difícil - disse Bruce. Qual é o seu jogo aqui?

- Se você se refere à Conferência das Nações Unidas, a resposta é simples. Estou trabalhando noite e dia... para levar um tratado que o Senado possa ratificar.

- Segundo a última coluna de Shane, você quer a última palavra no Conselho de Segurança.

- Isso sempre foi minha finalidade - concordou Hal, - Somente a América pode manter a paz.

- E levar à boca o apito do policial?

- As Nações Unidas entrarão em colapso a menos que os arruaceiros sejam mantidos na linha.

- Incluindo a União Soviética?

- Naturalmente, Bruce. Milhões de pessoas perturbadas compartilham dessa crença.

- Você não se refere a membros desorientados da Sociedade Lowell?

- É muito fácil mandar para o inferno reações de que não se gosta - disse Hal serenamente. - Fácil... e um tanto juvenil.

- Você tem apoio real da delegação americana?

- Naturalmente.

- Quem... e quantos?

- Os nomes constituem segredo.

- Por que acontece que eles são seus títeres? E por que Deríwent descobriu sujeira suficiente para mantê-los na linha?

Hal encolheu os ombros, mas não respondeu.

- Entrementes, você está procurando amedrontar os demais e tprovocar o estouro da boiada.

- Não admito essa descrição dos meus métodos - disse Hal. - Naturalmente, estou usando de toda persuasão de que sou capaz.

- Não é verdade que seu programa redundaria em fracasso, se você perdesse o apoio dos superpatriotas? Os fanáticos que votariam em qualquer coisa desde que embrulhada no lema apropriado? Em uma palavra, nos lowellistas?

- O meu apoio não se limita à Sociedade Lowell - respondeu Hal. - Neste momento, expresso a melhor esperança da América do amanhã. O tempo e a evolução social mostrarão que eu tenho razão.

- Você está dizendo palavras vazias e sabe disso. Sem os lowelj listas você seria simplesmente outro conservador sulista.

Hal levantou ambas as mãos pedindo silêncio.

; - Certamente poderíamos poupar a Shane essa invectiva absurda.

? - Você pensa que é absurda, Shane?

- Penso que você está cego com seus preconceitos - disse Shane, lentamente, com os olhos pousados no copo. - À sua maneira, eu o julgaria tão unilateral como Lew Carleton.

- Por que eu lhe disse quem está apoiando Hal... e por quê?

- Porque você nada fez senão chamar nomes ao dono da casa desde que pôs os pés aqui. Afinal de contas, você foi convidado para escutar.

- A tribuna é sua, Senador - disse Bruce tranquilamente. - Você se considera um político-messias. Eu o chamei de político-estadual. Evidentemente, um de nós está enganado.

Hal inclinou-se sobre o bar. Mesmo nesse momento, o sorriso era tão caloroso como as maneiras.

- Suponhamos que deixamos de lado as personalidades e atemo-nos aos fatos. Você compreende que a Polónia e a Roménia já estão prestes a se transformar em satélites soviéticos? Que outros, sem dúvida alguma, seguirão o mesmo caminho?

- Ouvimos essas notícias em Okinawa. Não é de surpreender. O comunismo é um devorador. Deve continuar a devorar para sobreviver.

- E você admite monstros desse tipo nas Nações Unidas como iguais?

- Uma organização mundial deve incluir o mundo.

- Moscou será o nosso próximo inimigo mortal... agora que liquidamos Hitler e estamos prontos para liquidar o Japão. Devemos conservar as melhores cartas. Isso faz parte da lógica da sobrevivência

- Reconheço que os russos estão um século atrás de nós. Mas ainda assim, merecem ingresso nas Nações Unidas. Constitui missão de todos os membros fazer com que eles se comportem. Não podemos lidar com eles sozinhos.

- Na minha opinião, a força bruta é o único argumento que uma fera respeita.

- E por isso você exige que os americanos manejem o porrete? E o apito do policial?

- Alguém terá que usá-los. Não há outro caminho para a paz.

- Não é verdade que você os quer para si mesmo?

- Então voltamos a você e eu, novamente - disse Hal. - Eu lhe disse que recuso aceitar um segundo lugar para meu país. Isto me transforma, por acaso, num ditador?

- Você dará um passo gigantesco nessa direção se conseguir chegar lá. - Mais uma vez, Bruce voltou-se para Shane. Desta vez, não fez esforço para calar o desespero. - Você não pode me ouvir? Nem mesmo tentará?

Shane conservou os olhos no copo.

- Você disse o que tinha a dizer, duas vezes. Se perdeu todo o sentido de proporção, é melhor que vão embora.

- A sua mente está, então, tão fechada como a dele?

- Eu apoio Hal e o programa dele.

- Posso levá-la até seu hotel?

- É um pouco tarde para ser cavalheiresco. Eu estou hospedada também no Mark Hopkins... e tenho de esperar por Janet. Ela prometeu arranjar-me uma entrevista com a mãe do Sargento Lowell.

A voz de Hal interrompeu suavemente. Atordoado embora pelo completo fracasso, Bruce pôde maravilhar-se ainda com o sang-froid do inimigo.

- Fique mais um pouco, Bruce. Janet ficará inconsolável se não o vir.

- Shane acha que eu devo partir... e tem razão. Minhas recordações a Janet.

- Como quiser. vou levá-lo até a porta.

Bruce voltou-se para Shane - ainda sentada na espreguiçadeira» olhando para a bebida.

- Se eu pensasse que você me acreditaria - disse ele - eu lhe diria que sinto muito. Foi uma perda de tempo trazer-me aqui. Um terrível desperdício... para todos nós.

Não esperando resposta, ficou surpreso quando lhe viu o rostobanhado de lágrimas. Acalentando esse pequeno triunfo, saiu rapidamente da sala, temeroso, mesmo naquele momento, de que pudesse ceder à muda súplica de paz.

No saguão, Hal abrira um armário para retirar um objeto estranho, mas de forma conhecida: uma caixa em forma de sacola, recoberta de couro.

- Lembra-se do gravador que levou ao gabinete de Sanford? Eu andei com ele por toda parte desde que voltei da guerra. Janet chama-o de minha mascote.

- Você não precisa de mascotes. Você fez a própria sorte desde o começo.

- Eu prometi devolvê-lo quando a guerra terminasse.

- A guerra não terminou ainda.

- A nossa guerra terminou, espero. Eu não bravatearei pelo fato de dizer que ganhei a última batalha.

Bruce voltara-se já para a mesa do saguão para apanhar o quepe. Olhando para a fotografia gigantesca do Sargento James Lowell, sentiu a convicção estranha de que os lábios do rapaz se moviam levemente e lhe transmitiam uma mensagem. Antes que a fantasia morresse, sentiu o cérebro iluminar-se com um pensamento que não podia compartilhar com pessoa alguma - ainda menos com o homem do mundo metido num trajo de rigor que continuava a olhá-lo, com um gravador de fita estendido como um ramo de oliveira.

- Sinto muito contradizê-lo mais uma vez - disse Bruce. Mas a nossa guerra está apenas começando.

Apanhando o gravador, ganhou o corredor. Antes de a porta fechar, teve um último vislumbre da suíte. Shane McLendon continuava na espreguiçadeira com a cabeça ainda curvada.

Esta foi a única recordação que levou para a noite. O Senador calouro da Flórida confundira-se com a mobília - naquele momento em que, acidentalmente, havia descoberto uma manera de reduzi-lo à sua devida estatura.

O relógio marcava meio-dia no momento em que Bruce acordou no camarote, sentindo a cabeça mais clara do que nunca.

A única coisa confusa era a sacola recoberta de couro que deixara sobre a escrivaninha na volta do Mark Hopkins. Olhou-a solenemente antes de levantar-se: de certa maneira, a caixa sumariava a arrogância de Hal Reardon... Naquela manhã lamentava que a dinamite que podia ter detonado não existisse mais devido à ordem que deram em Salerno. Mas agora que dispunha de outra arma, a falta não parecia excessivamente importante.

Dava quase uma hora e ele terminava uma conferência rápida das listas de suprimentos quando o Subcomandante apareceu para anunciar um visitante.

- É Lew Carleton, senhor. Identifiquei-o pelo cartão fornecido pela Polícia. Ele diz que tem um encontro marcado para o meio-dia

- Deixei uma nota no hotel pedindo-lhe que passasse por aqui. Leve-o a meu camarote. Irei lá dentro de um momento.

O colunista media as passadas nos aposentos de Bruce com a atenção presa ao gravador. No banho de sol do porto, ele parecia mais do que nunca a criatura da noite, embora o aperto de mão fosse firme e os olhos injetados de sangue não se desviassem.

- O senhor chegou atrasado, Sr. Carleton.

- Minhas ressacas precisam de tempo para passar, Coronel. A que eu tive esta manhã teria envergonhado Nero. O senhor tem algum grande segredo naquele gravador?

- O gravador está vazio. A estória que lhe prometi começa em Washington há quase três anos. Pode ser facilmente apurada com os contatos que o senhor tem por lá.

- Posso usar sua escrivaninha para tomar notas?

- Naturalmente. Espero que seja taquígrafo.

- Eu fui taquígrafo antes de resolver ser escritor.

Bruce deu uma volta pelo camarote enquanto o colunista se acomodava na cadeira. Nítido embora estivesse seu plano, estava incerto sobre a maneira de começar.

- O objetivo desta entrevista é deter o Senador Reardon. Até que o conheça um pouco mais, não tenho certeza ainda se lhe fornecerei os fatos.

- Minhas opiniões são um livro aberto, Coronel Graham. Admito que algumas páginas são algo sombrias.

- O senhor apoia realmente os conceitos das Nações Unidas? Não estava simplesmente provocando a Senhorita McLendon na noite passada?

- Provocar Shane é sempre um prazer... mas o meu argumento era sincero. Sou pelo governo mundial, mesmo que isso jamais aconteça.

- Nações Unidas de um país, um voto? O tipo que está tomando forma na conferência?

- É a única combinação que tem alguma possibilidade esportiva. Coronel.

- Posso saber suas razões?

- Não pense que isto é um non sequitur... mas elas se ajustam à minha análise.

- De alguma maneira, não consigo imaginá-lo num divã de psicanalista.

- A estória retroage ao primeiro ano do World Beat. Todo mundo me amava quando eu era agente publicitário. Depois que comecei a arrancar-lhes o coração, essas mesmas pessoas que chamam os piores nomes. Fui então procurar um psicanalista. Disse-lhe que gostava de ser estúpido... e perguntei-lhe se valia a pena curar-se.

- Não finja que ele o impediu de ser um deles.

Carleton reclinou-se na cadeira com uma profunda gargalhada.

- Pelo contrário. O Dr. Krantz é o máximo na profissão. Após três meses, ele convenceu-me de que eu estava destinado a ser o máximo na minha... e, eu por acaso, achei a salvação. Em outras palavras, ser um bastardo de primeira classe era minha profissão natural.

- E o senhor se esforçou nela mais do que nunca... até que é o maior.

- O senhor me entendeu, Coronel Graham. Todas as vezes que sinto um impulso destrutivo subir dentro de mim, incluo-o na minha coluna... e minhas tensões desaparecem. Repita minha experiência em escala global e terá as Nações Unidas. Convensam cinquenta e tantas nações a se reunirem sob um único teto, deixe que elas ladrem umas contra as outras em público, e queimaremos parte do excesso de bile que conduz à guerra. Vale a pena tentar, mesmo que o espetáculo fracasse na primeira noite.

- Hal Reardon tem ideias diferentes a esse respeito.

- O Senador Reardon é um bastardo ainda maior no campo dele do que eu no meu. Um cavalo de carroça do interior que pensa | que pode correr no Kentucky Derby. Um indivíduo que não apareceu ainda com uma ideia que não fosse de segunda mão.

- Há pessoas que pensam que ele fez bom trabalho no Congresso.

- Apenas porque é bastante sabido para ganhar a confiança das pessoas certas... e bastante escorregadio para brilhar em todas as comissões em que toma parte. Naturalmente, ele está tentando brilhar neste piquenique em São Francisco. Até agora, ele fez progresso demais para minha paz de espírito. O senhor tem realmente uma maneira de detê-lo?

- Penso que sim, Sr. Carleton... com sua ajuda. Veremos. Outra pergunta. Hal quer que a América governe o mundo depois de finda a guerra. Por que tem ele tanta certeza de que pode?

- Posso dar um palpite bem informado - disse o colunista.

- O senhor esteve fora do país durante algum tempo. Talvez não tenha ouvido falar da arma decisiva que o nosso governo tem de reserva.

- Boatos assim surgem em todas as guerras.

- Originariamente, era a Alemanha que possuía a grande bomba. Agora, pensa-se que somos nós. Se a estória é verdadeira, Hal está por dentro... através das Comissões das Forças Armadas em ambas as casas.

- O argumento do porrete tem, então, fundamento?

- Se ele vencesse esse jogo de força na Conferência das Nações Unidas, a bomba poderia ser seu grande argumento. O senhor poderia mesmo dizer que ele tem ao lado uma lógica insana.

- Insana, por quê?

- Porque se houver uma grande bomba em nosso arsenal e nós a usarmos para terminar a II Guerra Mundial - outros países copiarão a fórmula para a III Guerra Mundial. Se isso acontecer, precisaremos mais do que nunca desse clube mundial de debates para que não comecemos a lançá-la uns sobre os outros.

Estudando a expressão amuada de Carleton e seus olhos firmes, Bruce tomou rapidamente uma decisão. O homem era um instrumento enferrujado para a operação que tinha em mente, mas serviria.

- O senhor passou no teste - disse ele. - Acho que o senhor compreende Hal... e o mal que ele pode fazer se não for violentamente derrubado.

- Dê-me as informações, Coronel. Farei o trabalho.

- Na verdade, o próprio Hal não deve ser mencionado na sua estória.

- Por que não, se eu devo presidir à execução?

- O senhor não está sendo solicitado a executar o Senador Reardon. Apenas arrancar-lhe as presas.

- Dê-me o alicate, então. Sou também um bom dentista... com ou sem novocaína.

- Eu quero que o senhor destrua o grupo que o apoia. A Sociedade James Lowell.

- O senhor tem dados sobre aquela turma de desequilibrados.

- Tudo de que precisamos, tenho a certeza. O senhor pode começar a tomar notas logo que eu fechar a porta do camarote.

Após a partida do colunista, Bruce postou-se a bombordo para vê-lo deixar o cais - e serviu-se da primeira bebida do dia. Engoliu a segunda quando Badger entrou.

- A lista da farmácia está pronta. Vamos examiná-la juntos?

- Você terá de fazer o trabalho sozinho, Eric. Estou pensando em ficar sossegadamente bêbado.

- Espere até às seis e eu bebo com você.

- Sinto muito. Este pileque eu vou tomar sozinho.

- Sem me dizer por quê?

- Você saberá por quê, dentro de pouco tempo. Bruce serviu-se do terceiro bourbon, descobriu que, afinal de contas, não o queria e pousou o copo na mesa. - De que modo você se sentiria se tivesse acabado de lançar na lama um ídolo americano?

- Isso dependeria do ídolo. Alguns deles constituem alvos naturais.

- Suponhamos que você tivesse chamado Lew Carleton para ajudá-lo. Poderia ficar sóbrio tendo-o na equipe?

- Estive-me perguntando o que ele fazia a bordo.

- Eu o chamei porque precisava de um abutre para tratar dos detalhes. Aqui entre nós, acabamos de destruir a Sociedade James Lowell.

- Não é de espantar que você esteja-se embebedando. Quer começar do princípio?

- Tudo começou em Manilha, meses antes da guerra. No dia em que um ótimo rapaz de uma companhia de infantaria cometeu o único erro sério de sua carreira no Exército.

- Um garoto chamado Lowell?

- Você está-me entendendo perfeitamente. Para fazer o trabalho corretamente, eu tive de enlamear o ídolo da sociedade. Tive de denunciar o melhor momento da vida de Jimmie e mostrar que é uma fraude colossal.

- Ele não foi um herói, afinal de contas?

- Foi um caso de erro de identidade, Jimmie não se importará, naturalmente. Ele está morto há bastante tempo. Vai ser uma estória inteiramente diferente para a mãe dele.

- Os jornais dizem que ela foi a convidada de honra na Conferência.

- Ela é uma excelente mulher. Espero que consiga sobreviver ao choque depois de ler a verdade na coluna de Carleton. Agora entende por que tive de chamá-lo aqui?

- Não, até que você me diga.

- Hal Reardon é a resposta. Na noite passada, resolvi reduzi-lo a sua justa estatura - com a ajuda de um jornalista bisbilhoteiro que publicará qualquer coisa. Infelizmente, no processo, tive de destruir a imagem do Sargento Lowell. Não havia outra maneira.

- Então foi uma manobra para bloquear Reardon... na Conferência das Nações Unidas.

Bruce ergueu o copo.

- O seu cérebro está funcionando, finalmente, Eric. Hoje, Hal alega ter o apoio de dez milhões de lowellistas. Amanhã por essa hora os lowellistas desaparecerão... porque não mais existirá o ídolo deles. com os eleitores desaparecidos e os patrocinadores em retirada, o Senador Reardon será apenas outro isolacionista num mundo que quer reunir-se.

- Eu ainda não percebo como o rótulo será aplicado.

- Leia o seu Boletim, da Sociedade... com o herói na capa. O primeiro homem a ser ferido em Pearl Harbor. A primeira baixa na II Guerra Mundial.

- Isso faz parte do folclore deles.

- O folclore cheira mal... como a confusão que fizeram do credo de Jimmie. O Sargento Lowell não morreu de seus ferimentos. Morreu de um abcesso amebiano no fígado, por ter comido em zona interditada nas Filipinas muito antes de disparar-se um único tiro.

O homem de Wisconsin assoviou baixinho.

- Mas isso é uma mancha negra na folha de serviço de qualquer herói. Onde é que começou o boato?

- Não é um boato. É um fato. Jimmie foi meu doente no Scranton General. O diagnóstico faz parte dos registros do hospital e foi confirmado pela cirurgia. Eu assinei a certidão de óbito.

- Deu uma cópia dela a Carleton?

- O investigador de Carleton em Washington localizou-a. Uma cópia fotostática da certidão de óbito fará parte da coluna dele amanhã. Os membros da Sociedade Lowell a verão na primeira página de todos os diários das grandes cidades, incluindo o Chronicle de São Francisco. A manchete será Herói por Acidente.

- Você tem certeza de que pode deter Reardon com uma manchete?

- Eu o deterei na Conferência das Nações Unidas. Isso é o que me interessa.

- Reardon nunca admitiu uma ligação oficial com os lowellistas. Ele negará logo qualquer conexão.

- Que o faça. Sem aquela máquina de propaganda, ele não pode ficar sozinho sob o holofote fazendo ruídos como se fosse o americano máximo em algum campo. Eu chamaria a isso de um bom dia de trabalho em qualquer língua.

- Eu também, Bruce. Parabéns.

- Você pensa que eu estou feliz com isso?

- Em seu lugar, eu não ficaria tão abatido - disse Badger. Se eu tivesse sabido há mais tempo, eu teria me oferecido para ajudar.

- Este é um trabalho para um homem só. Arcarei com a culpa amanhã.

- Por que deverá ser culpado?

- Os destruidores de ídolos jamais recebem agradecimentos pelo trabalho que fazem. Agora que sabe o pior, posso beber em paz?

Saindo o seu substituto, Bruce descobriu que perdera a vontade de tomar outro bourbon. A tentativa de empurrar para o lado a realidade fracassara, agora que confessara sua infâmia. Em meados da tarde, vendo que não podia suportar mais a solidão que se impusera, envolveu-se numa capa militar e deixou o navio para percorrer as ruas da cidade.

Não se lembrava bem do passeio sem destino. Durante algum tempo andou em volta de Nob Hill e olhou fixamente para as janelas do hotel de Shane, perguntando-se qual seria o quarto dela. Teria dado muito para pedir-lhe antecipadamente perdão, embora a prudência aconselhasse que ele se mantivesse a distância... No fim, contentou-se com um ligeiro olhar ao pátio calçado com lajes, onde limusines diplomáticas de todas as partes do mundo esperavam seus proprietários. Ao anoitecer, recuou para um lugar abrigado no momento em que viu Janet Reardon emergir do saguão entre um hindu de turbante e uma beldade vestida de sari.

Mais tarde ainda, consciente de que estava prestes a desmaiar de fome, mas ainda recusando-se a procurar alimento, subiu ao Telegraph Hill, de cujo parapeito olhou para as íngremes ruas embaixo. Mesmo naquela ocasião nada sentiu, além de um vazio asco pela manobra que usara para derrubar Hal do pedestal.

Mais tarde ainda, desceu até o começo da Rua do Mercado e entrou na estação das barcas para a primeira de várias travessias até Oakland. De pé no tombadilho superior entre as gaivotas ckculantes, deixando que o sol lhe clareasse o espírito, conseguiu estabelecer certa compostura antes de voltar ao Helen S. Peters. A fome era agora algo tangível, mas ele ignorou-a. Um bourbon duplo garantiria horas de sono ininterrupto: e ele sabia que a bebida seria muito mais potente num estômago vazio... Na manhã seguinte, após ter lido a primeira página no Chronicle, reconheceria as exigências do corpo.

O último choque da noite atingiu-o quando parou em frente ao espelho do camarote e riu em voz alta da esmaecida figura que o encarava. Era bom saber que o esquecimento já começava a envolvê-lo lentamente graças ao uísque que havia ingerido: não poderia ter suportado nem mais por um instante a companhia do intruso.

Na manhã seguinte terminava a segunda xícara de café - e lutava com a necessidade de subir para o tombadilho - quando a porta do camarote foi aberta com um repelão. Esperando o ordenança para recolher a bandeja do café, viu-se à frente de Phil Owen. O jornal dobrado que o chefe da clínica trazia anunciava bem a que viera.

- Eric estará fora o dia todo, Bruce. Ele me pediu que lhe mostrasse isto.

- Leu-o?

- Palavra por palavra. Tenho de examinar um caso de urticária na enfermaria, senão o desfrutaria em sua companhia.

A coluna de Carleton, como esperara Bruce, era matéria de primeira página. Escrita na prosa florida preferida pelo antigo agente publicitário, revelava-lhe os talentos na forma mais perfeita. Duas ilustrações proporcionavam os arremates finais. Uma delas, uma cópia fotostática da ficha hospitalar do Sargento Lowell, assinada pelo próprio Bruce, completa com diagnóstico. A pergunta: Em ação? era respondida por um não, dentro de um círculo. Embaixo da coluna havia a reprodução da fotografia estampada no Boletim e a legenda agora condenatória: O Primeiro Sacrifício Americano em Pearl Harbor?

O ponto de interrogação fora uma inspirada segunda reflexão de Carleton: a coluna em si era um exposé detalhado do mito do Sargento Lowell, contraponteado pela análise ferina de Carleton sobre os objetivos da própria Sociedade Lowell - que, sugeria, estava tão infeccionada como o fígado de seu ex-herói. Entrevistas resumidas haviam sido solicitadas a membros mais conservadores da Sociedade, que haviam sabido, pela primeira vez, que a morte do Sargento não resultara de ferimentos numa das encruzilhadas da História, mas simplesmente de disenteria amebiana. O colunista explicava também como Jimmie havia contraído a doença, salientando o fato de que o crime - não tivesse havido clemência dos superiores - poderia ter resultado em corte marcial.

Dois patrocinadores da Sociedade Lowell, ambos magnatas da indústria de alimentos do Oeste, já haviam remetido seus pedidos de demissão. Outros declararam que enviariam uma petição à junta de governadores da Sociedade, sugerindo-lhe a dissolução, de preferência a continuar a marcha sob uma bandeira tão manchada... Carleton trabalhara bem. Bruce levantou os olhos do jornal no momento em que Phil Owen voltou ao camarote.

- É sempre um prazer observar um matador em ação - disse ele. - Contanto, naturalmente, que a caça valha a pena. Hoje o Letal Lew ultrapassou-se a si mesmo.

- Qual foi a reação no navio?

- Você acaba de ser votado um valioso servidor público, pela contagem de dez a um. Você não encontrará muitos Boletins Lowell a bordo hoje.

- Você acha que a sociedade se dissolverá?

- Meu palpite é que os sócios meterão simplesmente a viola no saco. Os ricaços já se fecharam, agora que Reardon perdeu a claque.

- Nesse caso, consegui o que queria.

- O próprio Reardon não foi seriamente prejudicado. Afinal de contas, ele foi bastante sabido para manter-se ao largo dos lowellistas. Não seria engraçado fazê-lo sangrar um pouco também?

- Não estou neste negócio para me divertir, Phil.

- Eric pensava de outra maneira.

- Eu já disse a Eric para não se meter na minha vida.

- Ele não podia lavar as mãos desta, Bruce. Nem eu, tampouco. O motivo está sobre a sua mesa. Nós o pusemos aí enquanto você dormia. Que tal uma reprodução?

- Uma reprodução do quê?

- De uma gravação especial que fizemos em Salerno. Uma que resolvemos guardar para a posteridade.

Bruce não se moveu enquanto o médico ajustava o volume do gravador ao ponto mais baixo e, em seguida, ligava o botão de partida. O efeito foi destruidor - a volta a este mesmo navio no dia em que a estória da automutilação de Hal por trás das linhas inimigas emergira de um microfone idêntico... Owen nenhuma tentativa fez de tocar todo o carretel. Notando o rosto duro de fúria de Bruce, cortou a voz em meio do discurso.

- Concordo com sua reação - disse ele. - Foi chocante em Salerno. É chocante hoje.

- Dei ordens a Eric para destruir esse carretel.

- Ele desobedeceu-o, Bruce... por um excelente motivo. Em Salerno, você relutou em manchar a reputação de um brilhante oficial de Estado-Maior e arriscar, no processo, as nossas carreiras. Agora que o Coronel é civil, esta prova pode ser útil em outros círculos.

- O que é que você tem em mente... uma reprodução para o Senador Reardon? Ou para a esposa dele?

- Tenho certeza de que o Senador há muito tempo obliterou da memória aquela noite negra. Dificilmente eu poderia aconselhá-lo a estragar o melhor casamento de Washington. Mas outra plateia de uma única mulher aproveitaria bastante a reprodução.

- Se você se refere a Shane McLendon.

- A julgar pelas últimas colunas, ela poderia usar uma boa dose de verdade. De que outra maneira poderia ela saber que seu ídolo tem um coxear auto-infligido?

- É justo ferretear um homem para toda a vida porque ele cedeu a um momento de pânico?

- Neste caso, é apenas justiça comum - disse Owen. - Reardon negociou o coxear por uma Estrela de Prata. Deu-lhe um mandato completo no Senado... e uma cobertura na coluna de sua namorada que a faz perder leitores todos os dias. Se você quer salvar-lhe a carreira, faça-a escutar.

Bruce levantou a vista rapidamente.

- Que estória é essa de Shane estar perdendo leitores?

- Ela tem andado tão ocupada em elogiar Reardon ultimamente que quase se esqueceu de ser repórter. Aqui mesmo neste navio, o público dela caiu para a metade.

- Carleton deteve Hal na Conferência das Nações Unidas. Isso era tudo o que eu queria.

- Se você ainda ama Shane McLendon é seu dever salvá-la do maior fraudulento que já apareceu desde o Gigante de Cardiff. - O médico levantou o gravador e colocou-o aos pés do beliche de Bruce. - Ela considera Reardon um estadista mundial. Este carretel prova que ele é um mentiroso e um covarde. Tome meu conselho, Bruce. Use essa prova onde ela poderá ser realmente útil.

- Eu duvido que Shane me receba, agora que leu a coluna de Carleton.

- Ela o receberá, sem dúvida alguma... se apenas para dizer-lhe o que pensa. Vá até o Mark Hopkins agora. E leve a prova com você. Se não o fizer, lamentará isso toda a vida.

- Talvez eu tenha renunciado a Shane. Você pensou nisso por acaso?

Owen encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta da cabine.

- Vá para o inferno no seu próprio carrinho de mão, se insiste. Mas se eu conhecesse uma moça como Shane McLendon eu faria o possível para salvá-la de si mesma. Afinal de contas, ela é a primeira mulher da História a apostar no cavalo errado - ou em parte dele.

Partindo o oficial médico, Bruce fixou os olhos durante longo tempo na caixa coberta de couro enquanto pensava no conselho do amigo. A recordação do rosto magro e tenso de Shane e das lágrimas que lhe corriam pela face estava ainda vívida. Vívida ainda estava também a fúria em que se voltara para deixar o Mark Hopkins, quando olhava o retrato de Jimmie Lowell no saguão e descobrira, na undécima hora de desespero, uma maneira de infligir a primeira derrota jamais experimentada por Hal.

Phil dissera que a prova em seu beliche poderia salvar Shane McLendon de si mesma: ele sabia que Phil tinha a lógica a seu lado. Dez minutos depois, vestido para o dia húmido, embrulhou o gravador na capa militar e deixou o navio. Continuava ainda oculto o aparelho quando saltou do elevador no Mark Hopkins e bateu à porta de Shane.

O som de uma máquina de escrever no interior sugeria que sua presença passara despercebida. Prestes a bater novamente, experimentou a maçaneta, descobriu que a porta estava aberta e entrou rapidamente. Esperando um quarto de hotel, notou que a suíte de Shane era pouco menor do que a de Reardon atravessando o vestíbulo, entrou na sala-de-estar e encontrou-a à mesa, junto à janela... As calças compridas e a camisa aberta no peito que ela usava eram toques familiares, tal como a nuvem de fumaça de cigarro que a envolvia. Esses toques acalmaram-no um pouco enquanto colocava o gravador, ainda envolvido na capa, sobre uma cadeira junto à porta.

Shane acabara de puxar uma folha da máquina. Não lhe notara a chegada - mas ele esperara isso. Porém, logo que lhe viu, as mãos tremeram, e Bruce compreendeu que ela usava os instrumentos de seu ofício para disfarçar a agitação, sentiu subir dentro de si uma grande onda de ternura.

- Bem, Bruce? - A voz dela estava mais firme do que as mãos. - Você teve de usar um sapo para fazer a sua sujeira?

- Não havia alternativa - respondeu ele lentamente. - Meu tempo era curto demais... de modo que tomei emprestado a própria arma de Hal. Publicidade, onde ela realmente importa.

- Por que Lew Carleton, entre todas as pessoas?

- Você nunca teria usado a minha estória. Ele era a segunda alternativa.

- Por que dá-la a alguém?

- Porque eu precisava colocar um político medíocre em seu lugar.

- Você o odeia o suficiente para destruí-lo?

- Não destruí-lo - detê-lo. Ninguém foi destruído, salvo Jirnmie. Hal e Derwent já começaram o trabalho de demolição. Esta manhã, com a ajuda de Carleton, eu presidi ao enterro.

- Você precisa ver o que aquela coluna fez à carreira de Hal.

- A carreira dele que se dane. Hal é indestrutível, nós dois sabemos disso. Ele nada perdeu salvo um bloco de eleitores. E uma oportunidade de flexionar os músculos... numa Conferência de Paz onde quis morder mais do que podia engolir.

- Mesmo que o que você diz seja verdade, que direito tinha você de interferir?

- Amando você, eu tinha todo o direito. Eu não podia ficar de lado vendo-a ser reduzida a pedaços.

- O que é que você quer dizer com isso?

- Concordo que meus métodos foram mais do que desprezíveis, Shane. No momento que forneci os fatos a Carleton eu me portei como um rústico e um patife. Gerações de Graham estão provavelmente se contorcendo nos seus túmulos diante da maneira como traí o nome da família. Eu posso sobreviver à censura delas - e a minha própria

- se minha finalidade real for alcançada.

- E qual é ela, se posso perguntar?

- Ajudá-la a ver Hal Reardon claramente. Convencê-la a renunciar ao apoio a ele de uma vez para sempre.

- Você acha que uma coluna de um agente publicitário de terceira classe poderia levar-me a abandonar Hal?

- Você, pelo menos, admitirá que ele está liquidado na Conferência das Nações Unidas.

- Claro que está, graças a você - disse Shane. - O mesmo acontece com a Sociedade Lowell desde que você está contando suas vitórias. Está orgulhoso desse trabalho de destruição?

- Eu lhe disse que sinto tudo, menos orgulho.

- Pensou por acaso o quanto esse exposé vai magoar a mãe de Jimmie?

- Pensei nisso constantemente. Talvez ela compreenda que Jimmie teria feito o mesmo... se tivesse vivido para ver seu sonho ser pervertido.

Shane sentou-se à mesa de trabalho e introduziu uma nova folha de papel na máquina.

- Muito bem, Bruce. Eu aprecio seus motivos... mas eles não me impressionam. Leve suas desculpas a outra parte. Tenho trabalho a fazer.

- Não estou aqui para desculpar-me... ou para sentir pena da mãe de Jimmie. Estou aqui por sua causa. O que é que você vai fazer agora?

- Terminar minha coluna, naturalmente.

- Ainda apoiando Hal?

- Ele precisa hoje mais de apoio do que nunca. Você gostaria de ler o que eu escrevi antes de eu levar a matéria até lá em cima?

- Nos velhos dias você jamais mostrou a matéria a alguém. Desde quando Hal lhe diz o que escrever? - Ele fora propositadamente rude, esperando chocá-la: o afogueado súbito que lhe subiu ao rosto disse-lhe que acertara. - Não é de espantar que você esteja perdendo leitores ultimamente.

- Quer fazer o favor de sair?

- Você diz que vai liberar a matéria com Hal. Não estiveram em contato desde que apareceu a coluna de Carleton?

- Ele esteve ocupado demais para falar comigo.

- Não me diga que esteve sentada aqui sozinha... escrevendo no vácuo.

- Falei com ele esta manhã... ao telefone.

- Você não merece mais para o Senador Reardon do que um telefonema?

- Mike Derwent chegou hoje cedo de avião. Estão em conferência desde então.

- Se Derwent está na cidade, Hal deve estar realmente desesperado. O Presidente não vai chegar hoje para discursar perante a Conferência?

- Ele vai falar às oito da noite. O que é que tem isso?

- Quanto é que você aposta que Hal decidiu mudar de lado? Ou que anunciará a mudança ao chefe do Partido?

No momento em que Shane voltou-se para um lado, Bruce soube que, finalmente, conseguira atingi-la. Continuou sem piedade: era tarde demais para compaixão.

- Telefone para a suíte dele. Pergunte se ele tem um encontro com o Presidente antes que este fale hoje à noite. Aposto e dou vantagem que ele está pronto a aderir, agora que está perdido em São Francisco.

- Você disse o que queria, Bruce. Você esfregou meu nariz na lama. Por que não volta para seu navio e deixa de atormentar-me?

- Porque estou esperando que você reconheça que eu tenho razão.

- Nós não dissemos já o suficiente?

- Mais do que o suficiente. Mas eu não deixarei esta sala até saber que você está livre.

Enquanto falava, Bruce voltou-se para apanhar o gravador. Os olhos de Shane arregalaram-se quando ele o colocou na mesa e abriu a caixa.

- É o meu?

- Na verdade, é igual à máquina que você deixou a bordo, em Gela. Eric Badger chamá-lo-ia de meu argumento definitivo. A prova de que Hal Reardon pode transformar qualquer coisa em vantagem.

- Como é que mo pode dizer a respeito a Hal?

- Foi uma gravação feita pelo meu pessoal a bordo, durante uma operação. Enquanto o doente estava sob anestesia de uma droga chamada sódio pentotal. Eu não preciso dizer-lhe o nome do paciente.

- Isso aconteceu depois de Hal ser ferido?

- Depois que ele ”saltou para o nada” para citar sua famosa coluna. Não diga uma única palavra. Apenas escute.

Ele premira o botão de reprodução: o grito agudo de Hal encheu a sala antes que ele pudesse recuar. Um momento depois, a voz tensa de Hal, tão diferente do habitual tom oratório, contava a estória do salto em Salerno.

De costas para a máquina, Bruce manteve os olhos baixos. Não havia meio de escapar da tensão que envolvia Shane enquanto o microfone bidirecional ecoava com a última maldição do ferido, segundos antes de ele cair sob o efeito do pentotal...

Bruce não se moveu quando o fio girou até o fim. Foi Shane quem se moveu para desligar o aparelho.

- Acredite em uma coisa mais, e terminarei - disse ele. Em Salerno, eu ordenei que o carretel fosse destruído. O Capitão Badger conservou-o, sem meu conhecimento. Trouxe-o hoje aqui como último recurso.

- É a coisa mais horrível que já ouvi até hoje - Shane apoiou-se na escrivaninha: ele observou que ela tremia, como se ela também tivesse emergido de um pesadelo de que não podia libertar-se. Movendo-se por instinto para colocar um braço em torno dela, parou em tempo.

- Ninguém mais ouvirá isto - disse ele. - Eu destruirei imediatamente o carretel. Quer que eu deixe o gravador?

- Eu não quero ver essa coisa horrenda novamente.

- Procure não o julgar com severidade demais, Shane. Todos nós tivemos medo... e cedemos a nosso medo. Todos podem ceder, se a tensão for grande demais. O que você não pode perdoar, segundo espero, é a maneira como ele explorou esse ato de covardia, a maneira como ele fez de si mesmo um herói... e, de quebra, vendeu-lhe mercadoria falsa.

Acrescentou a crueldade final tendo em vista a possibilidade de que ela entrasse em colapso, finalmente. No momento em que ela mergulhou o rosto nos braços e prorrompeu em pranto, ele teve certeza de que a visita servira à sua finalidade, embora tivesse usado a última arma do seu arsenal.

- Não é fácil ver um ídolo cair aos pedaços - disse ele. E pode ser ainda mais difícil para o iconoclasta.

Não ouvindo sinal de que ela escutara, apanhou o gravador e deixou a sala.

Chegando ao cais Bruce lançou o gravador e o carretel na baía de São Francisco e observou-os girarem na corrente antes de afundar. O guincho dos paus de carga informou-lhe de que os últimos suprimentos estavam sendo embarcados. O som era agradável. Após a mágoa que infligira a Shane McLendon ficaria satisfeito em pôr um oceano entre ambos.

Trocando continência com o oficial-de-dia ao subir a escada de desembarque, notou um embrulho na escrivaninha da recepção. Viu seu nome garatujado no envoltório em letras bem finas.

- Quando é que isto chegou?

- Há meia hora, senhor. A senhora trouxe-o pessoalmente. Disse que o nome dela era Lowell.

Bruce sentiu um súbito aperto de medo no coração. Esperara que a mãe de Jimmie estivesse a caminho de Concord.

- Ela perguntou por mim?

- Não, Coronel. Disse que isso se explicaria por si mesmo.

Na escada da escotilha ele parou para romper o barbante. Durante um atónito momento olhou para a medalha na caixa de veludo e a nota dobrada embaixo. Ao chegar ao camarote, sentou-se durante algum tempo no beliche antes de ler a mensagem que a mãe do Sargento James Lowell entregara pessoalmente.

Coronel Graham:

Esta é a Medalha de Honra do Congresso, de Jimmie. Tenho certeza de que ele não quereria que eu conservasse algo que não mereceu.

Talvez o senhor queira acrescentá-la aos seus outros trofeus desta guerra.

CONSTANCE LOWELL (Sra. James Lowell, Sr.)

 

                                                 WASHINGTON

A voz do orador chegou-lhe aos ouvidos claramente antes que pudesse galgar os últimos degraus: parecia tão ressonante como sempre e igualmente sincera. Desabotoando o casaco militar, tomou o último assento vazio no fundo da galeria do Senado... Três meses completos haviam passado desde a conclusão da guerra no Pacífico: entrara impulsivamente no Capitólio após ter terminado o negócio que o levara a Washington nesse frio dia de novembro. Ouvindo o Senador Harold Reardon iniciar a peroração, não pôde deixar de lamentar o desvio.

Todos os Solons estavam em suas bancadas na câmara romanesca. A caminho da Colina, Bruce comprara uma edição matutina do Star, anunciando que Hal falaria na sessão da tarde em apoio do projeto de lei que implicava o pagamento da taxa de ingresso do país na primeira reunião plenária das Nações Unidas. Naquele outono, o nome do Senador Reardon aparecera amiúde na primeira página como batalhador incansável da equipe do governo. No Ano Novo, ele seria um dos membros da Câmara Alta designados como observador nas Nações Unidas.

Bruce precisou de um momento mais para separar o tema do discurso das notas de órgão do seu enunciado. O Senador descrevia as cerimónias que haviam assinalado o lançamento formal das Nações Unidas - um evento que tivera lugar seis meses antes no Teatro da Ópera de São Francisco. Hal - convertido da noite para o dia, tão dramaticamente como qualquer pecador levado de volta ao rebanho por Billy Sunday - permanecera ao lado de outros delegados americanos e observara os representantes de cinquenta e uma nações participantes subirem ao palco e assinarem seus nomes nas cópias gravadas a ouro da Carta.

A maioria dos assinantes, disse Hal à plateia, manifestara os sentimentos apropriados. Todos eles, tinha a certeza, haviam falado com o coração - embora a brevidade não tivesse sido a alma do humor naquele dia em São Francisco. O próprio coração de Hal ficara ocasionalmente pesado em um mar de tédio. Seria essa eloquência empolada uma previsão do próprio futuro das Nações Unidas? Sufocar-se-ia a nova liga em truísmos - como as outras que haviam batido sua poeirenta marcha para o esquecimento, em banalidades que celebravam o que poderia ter sido?

O seu espírito revivera com o aparecimento do General Rômulo, o soldado-jornalista das Filipinas. Solicitado a observar um limite de dois minutos quando assinasse pelo seu país. Rômulo prometera transmitir sua mensagem em segundos: fez um discurso de sete palavras no momento em que assinou o nome com gestos rápidos:

- O Homem da Galiléia Hoje Esteve Aqui.

Hal parou para que a importância da anedota penetrasse no espírito dos ouvintes.

O Homem da Galiléia, resumiu ele, estivera presente naquele dia de junho no Teatro da Ópera de São Francisco: estivera sempre presente em cada divisor de águas na ascensão do homem desde a lama primeva... Cristo era ainda o maior revolucionário da História na súplica pela fraternidade entre os homens. Por certo, Ele teria abençoado esta última tentativa de Homo sapiens de dar-se as mãos e procurar uma melhor manhã.

A paz mundial, disse Hal, fora um ideal nebuloso. Naquele dia, com os horrores de Hiroshima e Nagasaki ainda vívidos na memória, a paz mundial era, muito simplesmente, o sine qua non da sobrevivência humana. Graves como pudessem ser suas falhas, perplexa como estava com promessas descumpridas, a Carta das Nações Unidas expandira enormemente o campo de ação dos demais tratados. Até que a dedicação a ela se revelasse vã, até que as esperanças que inspirara estivessem mortas além de qualquer recuperação, a Carta merecia tudo o que os seus membros pudessem conceder-lhe em dinheiro, dedicação e paciência.

A Câmara, acrescentou Hal, votara com alguns cortes o primeiro projeto de lei relativo à contribuição americana às despesas das Nações Unidas. Ele, de sua parte, tencionava apoiar o projeto tal como subira ao Senado. E ergueria suas preces para que tais verbas - vultosas como pudessem parecer àqueles que tinham mentalidade de guardalivros - fossem o melhor investimento que Washington poderia fazer no futuro...

Embora houvesse mais, Bruce deixara de escutar. Levantou-se no momento em que Hal voltou à bancada no plenário e a galeria prorrompeu em aplausos. Na seção reservada aos parentes dos membros, notou que a esposa do Senador Reardon aplaudia tão entusiasticamente como os demais.

Bruce voltara a Washington após uma reunião com o Dr. Abram Schoenfeld em Lakewood. Concordara em voltar ao campus para novo período - como instrutor e pesquisador em cirurgia cardíaca. Durante a visita, soube com satisfação que não recomeçaria exatamente onde havia interrompido o trabalho três anos e meio antes. O Dr. Schoenfeld fizera consideráveis progressos durante os anos da guerra: o lugar de seu assistente no mundo académico seria não só confortável mas também excitante.

A viagem de trem de Baltimore a Washington seguira-se a um voo precedente de San Pedro, onde, apenas na véspera, apertara pela última vez a mão de cada um dos membros da 2419 Companhia de Navio-Hospital após a dissolução da unidade. Atravessara o continente a pedido do General - outrora Coronel - Lawrence Wilson, do Gabinete do Cirurgião Geral, que determinara na última ordem de trânsito de Bruce que seu desligamento oficial tivesse lugar no Acampamento Bruckner... Duas horas antes, em uma curta cerimónia no gabinete do General, recebera a tardia recompensa de uma Estrela de Prata. A medalha estava ainda presa à jaqueta, sobre a fileira dupla de fitas de serviço.

Os elogios que haviam acompanhado a condecoração, como os adeuses que havia trocado com os colegas na Califórnia, constituíam ecos de um outro mundo no momento em que desceu os degraus do Capitólio e tomou um táxi em direção à Union Station. Em semanas, sabia que fariam parte de uma miragem mais ampla. A maioria dessas vinhetas da guerra logo depois seria tão destituída de sentido, e tão irónica, como a cena que acabara de presenciar no plenário do Senado. Aquela recordação, igualmente, obliterava-se rapidamente entre as pressões inexoráveis do presente.

Naquele momento nem se sentia satisfeito nem triste com o fim da carreira no Exército - e com a viagem de ônibus ao acampamento que fora sua residência e que era agora um centro de baixa. Era bom saber que havia necessidade urgente dos seus serviços no laboratório de Schoenfeld e que um futuro compensador e talvez brilhante o aguardava ali. Mas não podia sentir satisfação real com a volta do nativo, desde que o fazia sozinho.

Se podia julgar pelo que acabara de ouvir na Colina do Capitólio, Hal e Janet Reardon haviam correspondido aos prognósticos que ele fizera seis meses antes. Hal emergira do debate da Sociedade James Lowell cheirando como uma rosa - e desde que jamais permitira que seu nome figurasse no papel timbrado, ignorara o desastre sem que um fio de cabelo lhe saísse do lugar. Desde a rendição em São Francisco transferira-se para o campo majoritário sem sequer diminuir o galope. Janet, fiel aos ensinamentos do pai, faria a sua parte para que a história do clã dos Reardons se repetisse à medida que o marido continuava a servir ao governo com eloquência, espírito e vigor.

Shane McLendon havia deixado com os talentos intatos aquele dia de revelações no Mark Hopkins para cobrir jornalisticamente os últimos meses da guerra. Figurara entre as primeiras a anunciar a bomba atómica; estivera a bordo do Missouri na baía de Tóquio na hora da rendição nipônica. A julgar pela origem de sua coluna, ela escrevia agora de Washington.

No fundo do coração, Bruce esperara que ela estivesse presente entre os demais jornalistas naquela tarde - no momento em que o General Wilson pregara a Estrela de Prata em sua jaqueta. O bom-senso lembrou-lhe que a guerra transformara Shane em uma das maiores jornalistas da América... Dificilmente poderia esperar que ela perdesse uma tarde na condecoração de um obscuro Coronel médico, mesmo que lhe tivesse perdoado as feridas que lhe infligira.

O táxi deu uma volta e entrou no oval em frente da estação. Detido num congestionamento de tráfego, Bruce olhou para o outro lado da praça, para a plataforma onde começara a odisseia; no mesmo olhar, distinguiu o bar onde conhecera a primeira das três pessoas destinadas a remodelar-lhe a vida. Em certo sentido, disse a si mesmo, a reforma não fora muito profunda. Comparada com a ascensão meteórica do Senador Reardon, o lugar que Janet conquistara na sociedade de Washington e as honras que Shane McLendon acumulara com a máquina de escrever, a sua própria folha de serviço era modesta.

As duas promoções, de Major a Tenente-Coronel e Coronel, nenhum valor teriam na pesquisa cardíaca que iniciaria no mês seguinte em Lakewood, embora aceitasse a mesma patente na Reserva, se não por outro motivo, pelo menos, por um sentido de dever. A sua habilidade cirúrgica precisaria de polimento após aqueles últimos longos cruzeiros no Pacífico, onde seu navio pouco mais fora do que uma ambulância flutuante. Embora sua volta à vida civil fosse mais fácil ao que a da maioria, ele era forçado a reconhecer que três anos e meio de serviço no Corpo de Saúde, julgados em termos práticos, não conseguiram aumentar-lhe em coisa alguma a competência profissional.

Apesar disso, a despeito das crueldades casuais que presenciara, a despeito da estupidez em altos e baixos círculos e de cincadas que desafiavam a credulidade, não lamentava a experiência. O Exército, a despeito de toda sua estrutura monolítica, a despeito de seu pensamento anquilosado e insistência em credos superados, cumprira a missão que lhe fora atribuída. E ele fora parte de tal realização.

A conclusão, embora longe de original, parecia digna de ser compartilhada. Sentiu o coração bater mais rápido quando entrou numa cabina telefónica e chamou o número de Shane na Rua S - e desligou quando não ouviu resposta.

O tempo era novamente sonho quando atravessou a praça da estação e entrou no bar. Era natural encontrar de serviço o mesmo garçom por trás do balcão, pedir a mesma marca de bourbon e ver no espelho o oficial mais velho, embora dificilmente mais sábio, que se sentara no mesmo tamborete e se perguntara como começaria sua grande aventura.

Um pouco mais tarde, depois de um longo gole de Jack Daniel ter-lhe embotado o gume do desespero, era ainda mais natural olhar para aquele espelho uma segunda vez e descobrir uma moça no tamborete ao lado - uma moça um quê magra demais e cujo rosto era ainda anguloso demais para ser chamada de bela. Olhos cautelosos encontraram os seus no espelho.

- Você demorou muito para vir - disse Shane McLendon.

- Certas pessoas insistiram em me dar uma medalha.

- Foi o que ouvi dizer... pelo General Wilson. Eu quase fui à cerimónia. No último minuto, decidi observá-lo a distância.

- Não me diga que me seguiu até aqui.

- A resposta é sim e não. No momento em que você entrou no Gabinete do Cirurgião Geral eu estava estacionada na rua em minha Singer.

- O mesmo carro que usou para levar-me ao espetáculo de Janet em Anápolis?

- A baratinha trinta e cinco. Acredita ou não, ela funciona ainda. - Shane inclinou a cabeça num cumprimento ao encarregado do bar, que acabara de colocar-lhe um gim não solicitado na mão.

- Vi que você ia para a Colina... e compreendi que você queria ver o espetáculo de Hal. Afinal de contas, você o colocou onde ele está hoje. Você tinha todo o direito de observar o trabalho de suas mãos.

- Falando sem cerimónias, eu diria que Hal Reardon foi nossa criação conjunta.

- Na verdade, acho que nenhum de nós pode reclamar muito crédito pela obra.

- Algumas pessoas nasceram para cair com o nariz na manteiga. Ou, deveríamos dizer, no Senado dos Estados Unidos?

- O diabo leve o Senado dos Estados Unidos - disse Shane.

- E nós?

- Dediquei algum pensamento ao assunto. Até agora, não cheguei a uma conclusão.

- Eu fiz a mesma pergunta há seis meses - disse Shane. Nas mesmas palavras. Por que não respondeu?

- Sua pergunta nunca me chegou às mãos.

- Eu a enviei a sua caixa postal no dia seguinte a sua partida de São Francisco.

- Um ”kamikaze” afundou um navio-correio naquele mês ao largo de Okinawa. A sua carta devia ter estado a bordo.

- Isso é uma estória improvável, Coronel Graham.

- Coisas assim acontecem em todas as guerras.

- De qualquer modo, eu resolvi não escrever novamente - disse Shane. - Parecia muito mais apropriado reservar a pergunta para o bar da Union Station.

- Como é que você soube que eu terminaria vindo aqui?

- Era uma esperança razoável - disse Shane. - Apenas para ter certeza, perguntei a um amigo no gabinete de Larry Wilson quando você teria baixa... e onde?

Os olhos se encontraram ao espelho e ficaram presos uns nos outros. Ele notou que ela sorria - o sorriso irónico, destorcido, que a fazia quase bela.

- Por essa hora, amanhã, sairei do Acampamento Bruckner como um homem livre. Pode esperar-me no portão?

- Na Singer?

- Na Singer... com as malas.

- Isso será, por acaso, um pedido de casamento?

- Não é uma proposição retórica. Tenho um mês de férias após a baixa, antes de voltar a Lakewood. Poderíamos passá-lo em Gulfview.

- Poderíamos - disse Shane. - Tenho certeza de que, agora, a estalagem foi devolvida aos civis.

- Se o tempo estiver como deve, poderíamos mesmo compensar as oportunidades perdidas na ilha Bonita.

- Você achará a Singer um pouco gasta. O mesmo acontece com a moça.

- E, por falar nisso, com o rapaz. Se nos apoiarmos um no outro, acho que poderemos encontrar um juiz em Maryland.

- Tenho certeza de que poderemos - disse Shane. Indiferente aos olhares no bar congestionado, ela se inclinou para beijá-lo.

- Seja bem-vindo, soldado.  

 

                                                                  Frank Slaughter

 

 

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