Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UM MILIONÁRIO EM LISBOA
Segunda Parte
O manto fosco do nevoeiro que se abatia sobre o Croydon Aerodrome ameaçava cancelar o voo e até fechar a pista. Embora devagar, a visibilidade diminuía inexoravelmente, mas o comandante da Imperial Airways, depois de sair para inspeccionar as condições meteorológicas, entrou no grande salão do terminal e fez sinal ao grupo que o esperava.
"Os senhores são os passageiros para Ostende, não é verdade?", perguntou aos quatro viajantes que aguardavam uma decisão. "Todos a bordo! Vamos aproveitar enquanto há tempo!"
De olhos mergulhados no The Times, que noticiava um golpe bem sucedido em Teerão e a ascensão ao trono do pavão de um tal general Khan, Kaloust levou uns instantes a digerir as palavras do comandante. Por momentos a notícia do triunfo do seu protegido deixou-o tonto de alegria; que perspectivas extraordinárias se lhe abriam! À luz destes acontecimentos, ainda bem que fora Van Tiggelen a apanhar Slava. Isso significava que o novo xá ficaria indisposto com a Royal Dutch Shell, deixando-o a ele, Kaloust, em posição privilegiada.
Contudo, depressa a prioridade da ordem do comandante da Imperial Airways se impôs na sua mente. Iam partir. Na verdade urgia seguir para Ostende, mas naquelas condições? Os elementos da comitiva encabeçada pelo arménio entreolharam-se com apreensão; estavam ali madame Duprés nas suas funções de secretariado, o jovem advogado Robert Cook, que o auxiliava no escritório, e Krikor, que queria manter longe da espanhola desmiolada. A melhor maneira de o fazer, concluíra, era atrair o filho para os negócios da família. De resto, estava mais que na altura de o rapaz se iniciar a sério na actividade profissional.
"Vamos a isto!"
Os passageiros do voo, um charter alugado por Kaloust para os levar até Ostende, pegaram nas malas de mão e, resignados, formaram fila até à porta. Encabeçando a comitiva, Kaloust saiu para a pista em direcção ao avião, o jornal a balouçar na mão, a alma dilacerada pela dúvida. Deveriam seguir caminho? Ou seria mais sensato fazer meia volta? Por um lado era impensável que não chegassem a Ostende nesse dia, decerto um dos mais importantes da sua vida profissional, mas por outro não podia ignorar o nevoeiro. Se viajar de avião o deixava sempre nervoso, o que dizer de um voo em tais condições meteorológicas?
Fazia frio no exterior e o punhado de passageiros caminhava num silêncio lúgubre ao longo da pista. Era necessário sair de Inglaterra para evitar os impostos caso houvesse um acordo entre os accionistas da Turkish Petroleum Company. Que podia Kaloust fazer? Conformado, lançou um olhar em redor. Vários aparelhos da Imperial Airways permaneciam estacionados na placa, como aves gigantescas adormecidas na neblina. O arménio sentiu um profundo calafrio percorrê-lo quando se aproximou do avião que alugara para a viagem.
Tratava-se de um Handley Page de duas asas, uma em cima da outra, e três motores, um de cada lado, entre as asas, e o terceiro no nariz. Que frágil lhe parecia a engenhoca! O comandante estava já instalado no cockpit, um cubículo aberto ao ar livre na parte dianteira do avião, e o pequeno passageiro, no auge do nervosismo, não resistiu ao impulso de lhe lançar uma pergunta no instante em que assentou os pés trémulos nas escadinhas e tomou balanço para entrar naquela máquina dos infernos.
"Senhor comandante, vamos seguros?"
O oficial da Imperial Airways virou a cabeça para trás e sorriu, o polegar a indicar as hélices no nariz do aparelho. "Isto é um motor Rolls-Royce, senhor Sarkisian", anunciou, como se a informação dissesse tudo. "Mantenha um stiff upper lip e verá que chegaremos sãos e salvos ao nosso destino." Kaloust corou, embaraçado por ter dado parte de fraco, e entrou obedientemente no engenho voador, sentindo-se talvez um cordeiro a alinhar-se para a matança. O interior lembrou-lhe um caixão e teve vontade de fugir dali, mas controlou os nervos e instalou-se no seu lugar. Havia catorze assentos em sete pares, separados pelo corredor central. Krikor sentou-se ao seu lado e madame Duprés e Robert Cook atrás; os restantes lugares ficaram vazios, no fim de contas tratava-se de um charter privado.
Enquanto tudo permaneceu tranquilo, os quatro passageiros conversaram aos repelões num murmúrio fingidamente despreocupado, por vezes soltando uma risada nervosa, o medo traído pelos mal disfarçados esgares intimidados. De repente ouviu-se um ronco, a aeronave começou a estremecer e todos se calaram. O arménio empalideceu e, lutando contra o pânico que dele se apossava, esboçou o sinal da cruz e murmurou uma oração com lábios trémulos.
Instantes depois já rolavam pela pista de Croydon. Sentiram o Handley Page ganhar velocidade, os motores a rugirem loucamente, o avião a sacudir-se com violência, os estômagos às voltas e os corações num batuque desenfreado. O aparelho deu um salto e voltou ao solo com um estrondo surdo, depois deu um novo salto e pareceu flutuar, deu a impressão de que ia tocar de novo na pista mas aguentou e elevou-se de novo. Voavam já. Apesar da aflição e das ave-marias que entoava sem cessar, Kaloust ainda logrou lançar uma espreitadela pela janela e ver o casario de Londres espraiar-se lá em baixo até desaparecer sob os tufos acinzentados que deslizavam rasteiros, como se as nuvens quisessem esconder a cidade.
Apesar dos receios, afinal naturais em todas as viagens de avião, o voo para Ostende foi de uma tranquilidade surpreendente. É certo que os copos a transbordar de Scotch e de Bordeaux Villages distribuídos pela hospedeira ajudaram os quatro passageiros a dominar os nervos, mais ainda quando uma tela baixou no corredor do aparelho e começou a ser projectado The Lost World, uma fita americana animada por dinossauros temíveis e grande êxito das salas de cinema londrinas uns anos antes.
Kaloust, porém, ocupava-se por esta altura com a análise das consequências do triunfo do general Khan na Pérsia. Era claro que o petróleo persa continuaria a ser um exclusivo da Anglo-Persian, até porque o general tinha chegado ao trono graças à ajuda das autoridades britânicas, que protegiam a empresa de William D'Arcy, mas talvez pudesse vir a colher frutos de outra maneira.
Pegou numa caneta e começou a anotar no seu bloco de apontamentos alguns conselhos que daria ao novo xá sobre a gestão do petróleo persa. Teria de lhe mostrar como a Anglo-Persian manipulava as receitas da sua concessão com artifícios contabilísticos que empolavam as despesas e encolhiam as receitas, de modo a reduzir a fatia que cabia à Pérsia. E, claro, chamaria a atenção para os preços de saldo a que o petróleo persa era vendido à armada britânica. Os seus rivais iriam ter vida difícil...
Chegaram a Ostende umas horas depois e dirigiram-se ao Royal Palace Hotel, local escolhido para a conferência e onde, logo à chegada, verificaram que o champagne jorrava sem limites. Apesar de contarem partir nesse mesmo dia, as comitivas tinham reservado quartos no hotel, pelo que Kaloust se recolheu à sua suíte.
"Venha buscar-me daqui a uma hora", recomendou a madame Duprés antes de fechar a porta.
Instalou-se na suíte e mudou de roupa. Como lhe sobrou algum tempo, saiu à varanda e, com um copo de Porto na mão, sentou-se numa cadeira de ferro e ficou a contemplar a praia, cobrindo com os olhos o mar de tendas coloridas que se estendiam pelo areal e as águas revoltas do mar do Norte que lambiam a orla em ondas sucessivas. Ainda pensou no general Khan, mas decidiu afastar o assunto da mente e, acossado pela impaciência, levantou-se e foi à pasta buscar as plantas do palacete.
Estendeu-as sobre a mesa da varanda. Havia adquirido três casas que faziam esquina entre três ruas em Paris. A ideia era deitá-las abaixo e no seu lugar erguer uma mansão na avenue d'Iena, muito perto do Arco do Triunfo. Suspirou de melancolia ao pousar os olhos nas linhas harmoniosas que rasgavam as plantas com arrojo. Ah, que casarão!, pensou com irreprimível vaidade. Os seus "filhinhos", como insistentemente apelidava as peças de arte que ia acumulando, teriam finalmente um poiso que os juntasse a todos sob o mesmo tecto. Um lar!
A divagação foi interrompida pela sineta da porta; era madame Duprés que o chamava. Guardou a planta da mansão e desceu com a sua secretária para o salão, onde ambos se juntaram a Krikor e a Cook. Os quatro fundiram-se então com os elementos das diversas comitivas, distribuindo cumprimentos e sorrisos à esquerda e à direita.
Conversaram animadamente com Jean-Marc Hertault, o velho senador que se tornara amigo dos Sarkisian e que presidia agora à Compagnie Française dês Pétroles; o francês mostrava-se especialmente arguto nas observações que ia tecendo sobre os rivais que deambulavam em redor.
"Olhem para o D'Arcy", disse em tom zombeteiro. "Parece um peru engalanado, lê pauvre!"
"Não o goze", aconselhou Kaloust. "O golpe na Pérsia é favorável aos interesses britânicos. Ele vai sair a ganhar."
"Ah, mon ami, mas ouvi dizer que o novo xá lhe é próximo..."
O arménio fez um gesto vago com a mão.
"Boatos sem fundamento..."
Trocaram uma saudação com William D'Arcy, o presidente da Anglo-Persian, que os cumprimentou com calor inusitado.
"Chere Sarkisian, meu caro amigo!"
Caro amigo? Não havia dúvida, os novos ventos que sopravam na Pérsia a favor de Kaloust haviam amansado D'Arcy.
Mas não seria isso que o impediria de informar o xá sobre a forma como a Anglo-Persian se aproveitava da concessão no país e abusava da ingenuidade dos seus anfitriões.
Já Hendryk van Tiggelen se mostrou mais frio. Além de uma equipa de advogados, o presidente da Royal Dutch Shell viera acompanhado da sua Slava, cujos cabelos de ouro dominavam as atenções masculinas. Kaloust sentiu um baque ao vê-la; estava mais bela do que nunca. Apesar do esforço para a ignorar, não conseguiu descolar os olhos dela. A russa separara-se definitivamente do general Khan e o arménio perguntou a si mesmo se estaria arrependida de o ter trocado por Van Tiggelen, agora que o ex-marido se tornara xá da Pérsia. Talvez por isso, e para mais sendo homem que jamais esquecia uma afronta, Hendryk fez gala em ignorar a comitiva do arménio, limitando-se a cumprimentar os franceses.
"Alorsf", admirou-se o senador Hertault. "Que se passa? Vocês já não são amigos?"
"Não se preocupe", limitou-se Kaloust a dizer. "É apenas um arrufo."
"Pois o seu ex-amigo anda pelos vistos bem rodeado", observou o francês enquanto apreciava as formas esculturais de Slava. "Mon Dieu, que deusa!"
"Que puta!, quer o senhor dizer", corrigiu-o o arménio. "Estão bem um para o outro. Não sei se sabe, mas esta mulher era casada com o novo xá da..."
Oh, lá lá!", interrompeu-o Hertault, fazendo sinal para a porta. "Voilà lês américains!"
Os presentes calaram-se quase em simultâneo e desviaram o olhar curioso e fascinado para os homens engravatados que nesse instante entraram no salão. Apesar dos sorrisos cordiais e dos interesses comuns na Turkish Petroleum Company, a verdade é que todos eram inimigos de todos e ninguém se revelara mais inimigo que os Americanos; não tinham eles andado décadas a torpedear a concorrência europeia com barragens de preços ruinosos que quase os tinham levado a todos à falência?
"O Rockefeller?", perguntou Krikor, perscrutando os recém-chegados. "Qual deles é o Rockefeller?"
O senador Hertault soltou uma gargalhada.
"Rockefeller? Não, mon Dieu, nem pensar! Esta conferência pode vir a tornar-se a mais importante reunião da história do petróleo, mas nem isso o demove. O grande homem não se mistura com a arraia-miúda!"
Kaloust interveio.
"Tenha dó", disse. "Não se esqueça de que Rockefeller tem quase noventa anos..."
Hertault apontou para um dos americanos, que parecia chefiar o grupo que acabara de entrar.
"Tem razão. Regardez! Em vez do velho veio o senhor Walter Peagle."
O executivo da Jersey Standard, uma das sucessoras da Standard Oil» era um homenzarrão alto e volumoso, decerto com mais de cem quilos, e dominava a sala com o seu corpanzil. Cumprimentou os presentes com um efusivo "Howdy!''? Dava a impressão de ser o próprio presidente Coolidge. Depois de trocar palavras de circunstância com os chefes de todas as delegações, incluindo o pequeno Kaloust, o gigante americano esfregou as mãos de impaciência.
"Polks, e que tal se começássemos?", desafiou-os no seu estilo expansivo e terra-a-terra. "Disseram-me que a sala de conferências já está a postos..."
A iniciativa foi acolhida com um murmúrio de assentimento no salão. Kaloust bebericou um trago do seu copo de champagne, no qual até então evitara tocar para manter a mente limpa e ágil, e fez sinal aos elementos do seu grupo para que o seguissem. "É hora."
Além das resmas de papéis e das canetas e lápis, os únicos objectos assentes sobre a longa mesa oval da sala de conferências do Royal Palace Hotel eram os copos e os jarros de água. As cadeiras arrastavam-se numa cacofonia de sons e os membros das diversas delegações falavam em voz baixa entre eles, talvez intimidados com a importância do acontecimento, quem sabe se preocupados com os ouvidos indiscretos dos adversários.
Kaloust acomodou-se junto a uma das pontas da mesa, com Krikor à direita e Cook à esquerda. Diante dele sentava-se a comitiva da Anglo-Persian, com D'Arcy no meio. À direita tinha os franceses e à esquerda encontravam-se primeiro os elementos da Royal Dutch Shell e depois os americanos, de longe o maior grupo, uma vez que juntava executivos de várias petrolíferas, a Jersey Standard, a Socony, a Gulf Oil, a Pan-American Petroleum e a Atlantic Refining, todas integrantes da Near East Development Company, o consórcio de tubarões criado para representar os interesses americanos na Turkish Petroleum Company.
Um som tilintante percorreu a sala; era William D'Arcy que batia com uma colher num copo, como se tocasse um sino para chamar as atenções. Um silêncio expectante abateu-se sobre a mesa.
"Gentlemens, agradeço a vossa presença nesta reunião", começou o inglês por dizer. "Conforme é do conhecimento de todos, os prospectores da Anglo-Persian detectaram no sítio designado Baba Gurgur, a noroeste de Kirkuk, o maior campo petrolífero jamais encontrado no nosso planeta. Esta descoberta torna imperativo que nos entendamos, uma vez que integramos a Turkish Petroleum Company, cujos estatutos incluem uma cláusula selfdenying, inserida por insistência do senhor Sarkisian, que nos obriga a partilhar a exploração do campo com os restantes membros do consórcio."
"Ou seja", lembrou Kaloust, "qualquer petróleo descoberto por uma das partes pertence a todos os membros da Turkish Petroleum Company e a distribuição dos lucros é feita consoante a percentagem que cada parte detém do consórcio."
"Assim é", reconheceu D'Arcy num tom resignado. "O que significa que, apesar de ter sido a minha Anglo-Persian a fazer a descoberta, o campo de Baba Gurgur pertence a todos."
A afirmação suscitou um leve sorriso a Kaloust; tanta mansidão era a confirmação de que D'Arcy devia estar informado das relações especiais que ele tinha com o novo xá. O controlo do comportamento da Anglo-Persian na Turkish Petroleum Company, pressentiu, seria a maior vantagem que colheria da mudança de poder em Teerão.
Walter Peagle fez uma careta de desagrado.
"Não sei se concorde com os termos do acordo em vigor", disse o americano. "Parece-me que ele é contrário ao espírito de livre iniciativa que orienta o mundo dos negócios na América. Acho que temos de ter uma política de porta aberta. Ou seja, liberdade total e igualdade de oportunidades. Cada um pode fazer prospecções onde entender e ficar com os lucros do que descobrir. É assim que um mercado saudável funciona!"
A intervenção do homem da Standard Jersey arrancou um gesto subtil de aprovação a D'Arcy.
"Parece-me bem", concordou o inglês. "A Anglo-Persian descobriu o campo de Baba Gurgur, a Anglo-Persian deve ficar com os proveitos da descoberta! São de facto essas as regras de um mercado livre."
"E nós podemos fazer prospecções onde muito bem entendermos", apressou-se Peagle a acrescentar. "Os nossos técnicos, aliás, dizem que a Mesopotâmia tem condições incríveis e que decerto haverá muitos outros campos petrolíferos por descobrir, uma vez que..."
O presidente da Anglo-Persian levantou a mão.
"Calma aí!", exclamou. "Não se entra na Mesopotâmia como quem vai dar um passeio ali a Piccadilly." Hesitou e corrigiu-se. "Ou, no vosso caso, a Times Square..."
"É a livre iniciativa", insistiu o americano. "Temos de ter uma política de porta aberta."
"Por decisão da Sociedade das Nações, a Mesopotâmia é um protectorado britânico, como estou certo que é do seu conhecimento. E nos protectorados britânicos mandam os Britânicos!"
"Ora essa!", protestou Peagle. "Tenho a vaga ideia de que a América também ganhou a guerra! Vocês não nos podem tratar como se não tivéssemos quaisquer direitos!"
O americano e o britânico engalfinharam-se numa troca de argumentos sobre quem tinha direito a quê, e a discussão só foi interrompida quando Kaloust bateu com uma colher no seu copo de água, a exemplo do que o próprio D'Arcy havia feito no início da reunião, e impôs o silêncio.
"Os senhores esquecem-se de que neste momento só existe uma entidade em todo o planeta que possui os direitos legais para explorar as riquezas minerais na região do Iraque, a antiga Mesopotâmia", disse num registo sereno, a face impassível. "A Turkish Petroleum Company."
Peagle desferiu um murro irritado na mesa.
"Fuck a Turkish Petroleum Company!", vociferou. "A economia mundial não avança com monopólios! Só uma política de porta aberta é aceitável!"
"Tem graça ouvir um homem da Standard Jersey queixar-se dos monopólios", observou o arménio, imperturbável. "Não foi a Standard Oil que andou anos e anos a sabotar a concorrência e a praticar uma política de monopólio?"
"Isso não é para aqui chamado!"
O rosto de Kaloust contraiu-se no esboço de um sorriso.
"Talvez", concedeu. "Mas, voltando à questão que nos juntou nesta reunião, permito-me repetir que apenas a Turkish Petroleum Company tem a concessão para explorar as riquezas minerais do território correspondente ao antigo Império Otomano, concessão confirmada na Mesopotâmia pelo novo governo do Iraque."
"E eu também repito", contra-atacou Peagle, os olhos frios cravados no arménio, "que cada um deve fazer prospecções onde quiser." Deu uma palmada na mesa para enfatizar a ideia. "Porta aberta!"
Em vez de responder de imediato, Kaloust respeitou uma pausa e passeou o olhar pela mesa, encarando um a um os chefes de cada delegação até se deter novamente no executivo da Standard Jersey.
"Então ninguém tem uma concessão."
Fez-se o silêncio mais absoluto na sala de conferências. A declaração do arménio, apesar de proferida quase num sussurro, constituiu uma bofetada que despertou os presentes para a realidade. Cada um ficou a digerir o significado profundo do que acabara de ser dito. Bem ou mal, a concessão da exploração petrolífera no território correspondente ao antigo Império Otomano fora entregue à Turkish Petroleum Company. Se uma empresa actuasse ao arrepio do conglomerado, a concessão não seria válida. Como era possível que uma evidência tão elementar lhes tivesse escapado?
Incapaz de argumentar contra o óbvio e sentindo-se encostado à parede, Walter Peagle respirou fundo e deixou descair os ombros numa postura de desânimo; também ele tomara enfim consciência de que não dispunha isoladamente da concessão.
"O senhor Sarkisian", disse com frustração, "é um homem impossível numa situação impossível."
Kaloust manteve-se impávido.
"Lamento, mas esta é a realidade", limitou-se a afirmar. "Só a Turkish Petroleum Company tem a concessão petrolífera dos territórios do antigo Império Otomano. Enquanto isto não for compreendido por todos, não iremos a lado nenhum. Não podemos embarcar no aventureirismo da porta aberta porque a porta está fechada e reabri-la levaria a anos e anos de discussões, com todos a lutarem contra todos, mais promessas e contrapromessas do governo iraquiano, acções de lobbying que custariam fortunas em subornos... eu sei lá! Esse caminho leva-nos de regresso à estaca zero." Deixou que a ideia assentasse naquelas mentes casmurras. "Assim, em vez de nos guerrearmos uns aos outros, sugiro que cooperemos. É o único caminho possível."
Peagle voltou-se para os membros da sua vasta comitiva e consultou os executivos das outras companhias americanas. Os homens da Socony e da Gulf Oil pareciam particularmente agitados e do burburinho ininteligível que entre eles se gerou escapava-se uma ou outra palavra que as restantes delegações conseguiram captar, como "impossível!", "inaceitável!" e outros termos igualmente veementes.
A altercação prolongou-se por cinco minutos, ao fim dos quais os americanos pareceram ter-se posto de acordo quanto à posição comum. Peagle reassumiu a palavra.
"Lamento, folks, mas não podemos aceitar", disse, abanando a cabeça. "Consideramos imperativo insistir na política de porta aberta."
Os membros das várias delegações reviraram os olhos, exasperados. Apenas Kaloust se manteve impassível.
"Não vêem que a porta aberta fará com que o processo se arraste durante anos, talvez décadas? A realidade é que a concessão petrolífera do Iraque está entregue à Turkish Petroleum Company e não há nada que vocês possam fazer para inverter esse facto. Só em conjunto dispomos de uma concessão. Isoladamente, ninguém tem legalmente direito a nada."
Os americanos voltaram a abanar a cabeça.
"O problema não é a Mesopotâmia", explicou Peagle. "Nós estamos também a negociar concessões no Kuwait e no Bahrain. Se aceitarmos que a Turkish Petroleum Company é o detentor exclusivo do petróleo encontrado em todo o território do antigo Império Otomano, perdemos tudo isso. Não podemos aceitar uma coisa dessas!"
A verdadeira causa da objecção da delegação americana tornara-se enfim clara. Kaloust avaliou por momentos a situação e, enquanto crescia um novo burburinho entre as várias delegações, fez sinal ao empregado do hotel que permanecia junto à porta da sala. O empregado aproximou-se e inclinou-se para o arménio.
"O hotel tem algum mapa?"
"Um mapa, senhor?", admirou-se o homem. "Mas... com certeza. Temos vários."
"Então arranje-me um que mostre a Turquia e o Médio Oriente", pediu. "E já agora traga também um expositor onde eu o possa assentar para que todos o vejam."
O empregado abandonou a sala em passo rápido e regressou uns minutos depois com uma grande folha colorida e um expositor sustentado num tripé. Instalou o expositor junto à mesa oval e assentou nele o mapa.
com movimentos deliberados, Kaloust levantou-se e pediu uma caneta aos elementos da sua comitiva. Krikor entregou-lhe um lápis vermelho. Nesse instante o burburinho morreu e fez-se um silêncio intrigado na sala, com os delegados a observarem o arménio enquanto ele desenhava uma linha vermelha grossa na superfície do mapa.
"Este é o Império Otomano que conheci em 1914", disse quando acabou. "E tenho obrigação de saber, uma vez que nasci lá, vivi lá e trabalhei lá." Fez um gesto vago com a mão que segurava ainda o lápis vermelho. "Se alguém souber mais, faça o favor."
Os Americanos perscrutaram o mapa. A linha vermelha contornava a Turquia, a Arábia e a Mesopotâmia. O Bahrain ficava no interior da linha, mas o Kuwait não.
O Kuwait não.
Isso significava que as petrolíferas ficavam com as mãos livres para operar individualmente no Kuwait, cujos campos se revelavam muito promissores. Os membros da delegação americana entreolharam-se e os homens da Socony e da Gulf Oil trocaram impressões e sussurraram palavras ininteligíveis a Peagle. O homem da Standard Jersey assentiu e virou-se então para as restantes delegações.
"Nestas condições", declarou em tom solene, "a porta aberta está fechada."
Um murmúrio de alívio percorreu a sala. Após mil peripécias e anos e anos de avanços e recuos, acabara finalmente de se chegar a um acordo. Os vários delegados levantaram-se e apertaram as mãos. William D'Arcy chegou mesmo a chamar o empregado e a pedir champagne, mas foi travado pelo presidente da Royal Dutch Shell. Até ali, Hendryk van Tiggelen havia acompanhado a discussão em silêncio, deixando para Kaloust as despesas da defesa da posição que mais lhe convinha. O arménio tinha acabado de enterrar a porta aberta, como Hendryk desejava. Chegara agora a hora de enterrar o arménio.
"Meus senhores", exclamou o holandês, erguendo a voz acima do burburinho que nessa altura enchia a sala. "Lamento ter de vos lembrar de que há ainda uma questão que permanece em aberto."
Um silêncio surpreendido abateu-se sobre a mesa.
"Que se passa?"
"Estou a referir-me à forma como os dividendos serão distribuídos aos accionistas. Conforme estarão recordados, tínhamos decidido fazer os pagamentos em petróleo." Lançou um esgar provocador na direcção de Kaloust. "É a melhor forma de evitarmos os impostos e estou certo de que ninguém se oporá."
Os olhares dos presentes convergiram para o pequeno arménio, como se aguardassem uma reacção. Sentindo-se o centro das atenções, no fim de contas aquela ideia punha-o em causa, o visado pegou no copo pousado diante dele e bebeu um gole de água. Depois pousou-o com suavidade e suspirou.
"Esse assunto já está entregue aos meus advogados", disse laconicamente. "Caberá à justiça pronunciar-se sobre quaisquer estratagemas inventados para negar aos pequenos accionistas os seus legítimos direitos." Fez uma pausa carregada de insinuações. "E, já agora, será interessante saber o que pensam os tribunais destes truques para fugir ao fisco..."
"O senhor não se atreveria!"
Kaloust atirou ao holandês um olhar de desafio.
"Então espere pela notificação do tribunal", avisou num tom sibilino. "Creio ser absolutamente ilegal obrigar um accionista de uma empresa a receber em géneros contra a sua vontade. Se um pequeno accionista da Ford não recebe os seus dividendos anuais em pneus ou volantes ou travões, porque tenho eu de receber os meus dividendos em petróleo? Não faz sentido! Os senhores sabem muito bem que não disponho de meios para refinar e distribuir petróleo. O que querem que eu faça ao petróleo que me depositarem à porta de casa? Sou apenas um pequeno accionista da Turkish Petroleum Company, não sou uma petrolífera! Ou os senhores revogam essa decisão absurda, ou os tribunais terão de intervir e repor a legalidade."
As palavras do arménio desencadearam um tumulto na sala, com os elementos das várias delegações a protestarem ruidosamente. O mais agitado era Walter Peagle. O americano abanava a cabeça e suspirava sem parar, como um touro diante da capa vermelha, o rosto colorido de indignação.
"O senhor Sarkisian está a tornar as coisas muito difíceis", queixou-se o homem da Standard Jersey. "Muito difíceis mesmo! Os tribunais não têm nada que meter o nariz nos nossos assuntos!"
"Então paguem-me em dinheiro."
"Mas o senhor não vê que o estado nos ficará com uma grossa fatia se os dividendos forem distribuídos em dinheiro? É um absurdo!"
"E o senhor Peagle não vê que não tenho uso a dar aos milhares de barris de petróleo que me venham a depositar à porta de casa? O que quer que lhes faça?"
"Não temos culpa de que o senhor não disponha de estruturas de refinação, armazenamento e distribuição. Esse problema é seu!"
"Ora essa! Desde quando é que os dividendos de uma empresa são pagos em géneros?"
Os elementos das diversas delegações entreolharam-se, embaraçados. A situação chegara a um impasse e o pequeno arménio revelava-se intratável. No entanto, a ideia de pagarem em dinheiro e verem o fisco ficar com uma parte dos lucros parecia-lhes insuportável. Cada um sentia que entregar de mão beijada tanto dinheiro ao estado era inaceitável, sobretudo tendo em conta que existia uma maneira simples de contornar o problema, o pagamento em géneros. Porém, todos tinham também consciência de que essa solução era pouco ortodoxa e provavelmente não prevaleceria em tribunal, o que seria catastrófico. Como convencer Kaloust?
Após uma pausa desconfortável, o chefe da delegação francesa, até aí em silêncio absoluto, pigarreou e inclinou-se sobre a mesa.
"Se me permitem, tenho uma solução a propor", disse o senador Jean-Marc Hertault. "Sugiro que m'sieur Sarkisian receba o petróleo que lhe cabe em dividendos e o venda de imediato à Compagnie Française dês Pétroles."
A ideia extraiu um esgar de Kaloust.
"A que preço?"
"Ao preço de mercado na altura da venda, bien sur."
O arménio virou-se para Robert Cook e para o filho, como se os consultasse. Não vendo inconvenientes, os dois acenaram afirmativamente com a cabeça. Kaloust estreitou os olhos e ponderou a proposta, procurando falhas ou armadilhas, mas levou apenas alguns segundos a dar a resposta.
"De acordo."
Um suspiro de alívio percorreu a sala de conferências e os sorrisos saltaram como espuma de champagne ao longo da grande mesa oval, prenunciando a chegada das garrafas de Dom Pérignon. Os advogados receberam ordens para transpor o acordado para o papel e o taque-taque-taque acelerado das máquinas de dactilografar irrompeu de imediato em vários pontos da mesa.
Enquanto o texto era formalizado, os delegados juntaram-se no salão nobre do hotel para celebrar o acontecimento. O champagne jorrava para os copos e os negociadores desfaziam-se em gargalhadas nervosas. Não era caso para menos. O Acordo da Linha Vermelha cristalizava o mais importante entendimento da história do petróleo.
"Sarkisian, mon vieu", ronronou Jean-Marc Hertault, "está de parabéns!"
O arménio mantinha a atenção centrada nas celebrações que enchiam o salão. Hendryk e Peagle abraçavam-se como se fossem velhos amigos e D'Arcy confraternizava com Krikor.
"Olhe para eles", disse. "Os homens do petróleo são como gatos. Quando os escutamos, nunca sabemos se estão a lutar uns contra os outros ou a fazer amor..."
O presidente da Compagnie Française dês Pétroles riu-se, divertido com a analogia.
"Acho que agora estão a fazer amor!", observou. "A amizade acaba sempre por ganhar, não lhe parece?"
Kaloust fitou o seu interlocutor. Era verdade que o senador Hertault o ajudara em momentos decisivos, incluindo aquele, mas não podia esquecer que o francês havia conspirado com os outros accionistas para que a distribuição de dividendos fosse feita em petróleo, não em dinheiro. Isto para não falar em Hendryk, que pelos vistos, e por causa de uma briga estúpida algumas semanas antes, apagara de uma assentada os anos de colaboração e até amizade que os haviam unido no percurso até àquele instante de consagração. Ou então D'Arcy, até ali um adversário de morte e que já lhe chamava "velho amigo" apenas porque Kaloust era próximo do novo xá da Pérsia.
"Neste negócio, senador Hertault", observou o arménio com acidez, "as amizades são tão escorregadias como o petróleo."
O francês percebeu que a estocada também lhe era dirigida, mas aguentou-a com galhardia. Colou o copo de champagne à boca e provou um trago. Depois pousou os olhos no seu pequeno interlocutor.
"Este momento não é próprio para amarguras, mon vieu", disse com um sorriso nos lábios. "Celebre! Este acordo fez de si uma coisa de que mais ninguém se pode gabar."
"Não me diga? O quê?"
O senador bebeu mais um gole de champagne e, quando acabou, ergueu o copo bem alto, acima da cabeça do seu velho parceiro, como se o homenageasse.
"Tornou-se o homem mais rico à face da Terra."
O vasto átrio coberto de mármores italianos e de um enorme tapete persa abria-se para uma magnífica escadaria, vasta e reluzente, curvada para a esquerda com um corrimão de ferro forjado e aos pés da qual assentava uma estátua de fêmea em pedra polida branca, tão alva e brilhante que parecia esculpida em marfim. Tratava-se de um dos maiores tesouros da colecção.
"Ah, a Diana de Houdon!", exclamou Sir Kenneth Bark, o primeiro a chegar, contemplando a escultura com uma taça de champagne na mão. "Está de parabéns, meu caro Sarkisian! É uma jóia, não há dúvida! Ainda me custa a crer que o Hermitage a tenha vendido."
O anfitrião ronronou de prazer.
"Já me ofereceram um milhão de dólares por ela, sabia? Mas não vendo. O lugar da Diana é aqui."
A construção da mansão na avenue d'Iena, número 51, levara dois anos e meio e a decoração mais cinco meses, mas a obra chegara enfim ao seu termo. Para comemorar o feito, Kaloust organizou uma recepção elegante, embora restrita, para a qual convidou apenas o curador da National Gallery e seu conselheiro para a aquisição de obras de arte, Sir Kenneth Bark, e ainda o ministro plenipotenciário da Pérsia em Paris, Reza Mossaed. Além do próprio filho, claro.
A sineta da porta tilintou e Nunuphar acorreu de imediato.
"Deve ser sua excelência!"
Tratava-se de facto do ministro Mossaed, um homem baixo e pálido com quem Kaloust se reunia sempre que o governo persa precisava de conselhos para uma negociação relativa às concessões petrolíferas. Apesar de ser muçulmano, o diplomata não era imune ao charme sedutor do champagne e foi a bebericar uma taça que se deixou conduzir pelo anfitrião pelos labirintos da mansão.
"Não há dúvida", exclamou o persa repetidamente. "Este casarão é digno do homem mais rico do mundo!"
"Não diga isso, senhor ministro", retorquiu Kaloust com fingido embaraço. "Não passa de um modesto tugúrio..."
"Pois deve sair-lhe caro, o seu tugúrio", ironizou Sir Kenneth Bark. "Imagino os impostos que não terá agora de pagar, logo o senhor que foge do fisco como o Diabo da cruz! Não era por isso que vivia num hotel? Como vai agora alegar que está apenas de passagem se já tem residência fixa?"
"Mas, meu caro, eu não vou pagar imposto nenhum."
"Ai não?" Indicou o espaço da mansão em redor. "Então e isto?"
O dono da casa apontou para a estátua de Diana e para os quadros que decoravam o átrio.
"Não vê todas estas obras de arte?", perguntou. "O edifício está declarado como museu." Soergueu uma sobrancelha. "Como sabe, os museus estão isentos de impostos..."
As gargalhadas ecoaram pela mansão. "Ah, meu caro! Não perdoa uma..."
Faltava ainda Krikor. Enquanto aguardavam a sua chegada, os anfitriões levaram os convidados a visitar alguns dos mais de cem quartos da mansão. As atenções centraram-se em particular nas salas de recepção que haviam sido transformadas em galerias, com luzes a incidirem nos quadros e a temperatura e a humidade ambiente preservadas por ar condicionado, pormenor que a todos maravilhou.
"Oh, c'est magnifique!", exclamou o ministro Mossaed quando se deparou com um Rubens sob um foco de luz. "Estas peças são dignas do Louvre!"
Os visitantes contemplaram o Retrato de Hélène Fourment, em cetim negro e com uma pluma nos braços, saído do pincel de Rubens e que se encontrava pregado na parede diante deles.
"com franqueza, senhor Sarkisian", atalhou Sir Kenneth Bark. "Tesouros destes não deviam estar assim escondidos. O senhor devia abrir as suas portas a visitantes. Conheço, aliás, uma mão-cheia de amantes de arte que decerto gostariam de apreciar estas belezas."
O rosto de Kaloust refulgia de orgulho.
"Sabe, meu caro amigo", acabou por responder, baixando o olhar com falsa modéstia. "Eu sou um oriental e nós, os orientais, não temos por hábito tirar o véu das mulheres do nosso harém para as exibir à cobiça alheia."
A observação provocou novas gargalhadas,
"Bem visto", disse o ministro persa, os olhos regressando ao Retrato de Hélène Fourment. "Mas diga-me uma coisa: o que lhe garante que esta pintura é mesmo de Rubens?"
O anfitrião trocou um olhar de cumplicidade com o curador da National Gallery.
"Sir Kenneth fez ele próprio a peritagem", revelou Kaloust. "E contratei dois outros especialistas que confirmaram a autenticidade da obra logo que ela chegou do Hermitage. Fique pois descansado. Este quadro é de facto de Rubens."
Mas Reza Mossaed não largou a sua hipótese.
"E se, mesmo assim, se viesse a descobrir que esta pintura é uma falsificação?" Baixou o tom de voz, como se fizesse um aparte. "Estou apenas a levantar uma possibilidade académica, claro." Retomou o tom normal. "Nessas circunstâncias, ainda gostaria do quadro?"
O arménio afagou a sua barba, os olhos pensativos a perderem-se na pluma branca pintada na tela.
"Se fosse uma falsificação? Nesse caso a obra perderia valor, é evidente."
"Mas continuaria a gostar dela?"
"com certeza que não."
"No entanto, é o mesmíssimo quadro", constatou o persa. "O que o senhor me está então a dizer é que a beleza do quadro depende da sua assinatura. Não acha isso um pouco excessivo?"
O olhar de Kaloust regressou a Sir Kenneth, mas desta feita com a urgência e o pânico de quem implorava socorro.
"Nesse caso a beleza do quadro não depende da assinatura", corrigiu o curador da National Gallery, vindo em auxílio do anfitrião. "Depende da autenticidade."
"Sim, mas a questão mantém-se", insistiu o ministro Mossaed. "Autêntico ou não, o quadro é exactamente o mesmo. O que faz com que num caso seja belo e no outro não? A pintura é a mesma..."
"O senhor está a suscitar uma questão interessante e muito pertinente", observou o inglês. Voltou-se para Kaloust. "Lembra-se, mister Sarkisian, de uma vez lhe ter dito que existe uma relação íntima entre a beleza e a bondade?"
"Então não lembro? É a história de o vulcão que me ameaça ser horrível e de o vulcão visto à distância ser belo."
"Esse exemplo mostra a ligação entre a beleza e a bondade", confirmou Sir Kenneth. "O que na altura não lhe disse é que a beleza também se relaciona com a verdade. Digamos que forma um triângulo com a bondade e a verdade. Ora a pergunta de sua excelência remete-nos directamente para essa questão da verdade. Por que razão um quadro genuíno é belo, mas uma falsificação não é? A resposta é de uma simplicidade desconcertante: o genuíno é verdadeiro e o falso é mentiroso. Ou seja, a beleza é intrínsecamente verdadeira, mesmo que a sua verdade seja apenas metafórica. Oliver Twist, de Charles Dickens, é um romance belo porque nos revela a verdade sobre os meninos de rua de Londres e O Processo de Kafka também é um livro belo porque nos expõe uma verdade profunda sobre o exercício da justiça quando os direitos das pessoas não são respeitados. A Pietà de Miguel Angelo é uma escultura de grande beleza porque nos apresenta com verdade a dor de uma mãe diante da morte do filho e o Requiem de Mozart é uma música bela porque exprime a verdade da tragédia da morte."
Kaloust desviou a atenção para o ministro plenipotenciário da Pérsia.
"É... é isso", disse, fazendo suas as palavras do seu conselheiro de arte. "Este Rubens é belo porque é genuíno. Se fosse falso, estaríamos perante uma mentira. A beleza do Retrato de Hélène Fourment está na sua verdade."
"É por efeito da verdade que a arte se associa ao bem", sublinhou Sir Kenneth. "É como se beleza, bondade e verdade fossem os três vértices do mesmo triângulo."
O anfitrião arrastou os convidados até ao primeiro andar e mostrou-lhes a sua suíte, decorada com opulência e à qual estava associado um quarto de banho concebido com mão de artista.
"Sabe quem me faz lembrar este estilo?", perguntou o curador da National Gallery, a cujo olhar conhecedor nenhum pormenor escapava. "Lalique."
O arménio sorriu como se irradiasse luz.
"Pois foi mesmo Lalique quem o criou."
"A sério?"
"Sarah Bernhardt apresentou-mo durante uma recepção organizada há uns tempos por Nunuphar e... voilà!"
A suíte abria-se para um vasto terraço pavimentado com mosaicos italianos e decorado com uma sebe de teixo que projectava uma grande sombra num longo lago rectangular pontuado por repuxos de água. Imponentes colunas de mármore sustentavam uma estrutura de jardins suspensos e, um pouco à frente, quase como se fizesse parte do perímetro da mansão, erguia-se o Arco do Triunfo. Parecia que Versalhes havia sido transferida para o centro de Paris.
Um chilrear incessante chamou a atenção dos convidados, que enxergaram ao fundo do terraço um espaço coberto por grades concêntricas.
"Tem aqui um aviário?"
Os olhos de Kaloust cintilaram em resposta. Conduziu-os até à estrutura e no seu interior viram faisões, pavões, pelicanos, periquitos e outras aves, numa orgia de cores e de pipilares musicais. O dono da casa abriu a porta da gaiola e retirou dois pavões ricamente emplumados, que largou no terraço perante o espanto dos convidados.
"O pavão é o símbolo do trono do xá da Pérsia, como sabem", disse o dono da casa. "Então, em homenagem a sua alteza, vamos esta tarde deixar os meus dois pavões em liberdade." Contemplou-os à solta. "Que maravilha, hem?"
As aves cirandaram por momentos pelo terraço a ziguezaguear entre os presentes, mas, talvez enervadas pela concentração de tanta gente num espaço tão exíguo, sacudiram as asas e deram um salto sobre a sebe, projectando-se no ar enquanto extraíam sucessivos "oh!" alarmados dos visitantes. Inclinaram-se todos sobre a sebe e viram os pavões planar sobre a rua até pousarem. Quase como se não passassem de meros peões, os pássaros puseram-se a calcorrear a avenue d'Iena e a depenicar o que encontravam perante a surpresa dos parisienses que por ali passavam.
"Oh, não!", exclamou Kaloust. Virou-se aflito na direcção do mordomo, que os acompanhava com o seu ar sempre solícito. "Gilbert, faz qualquer coisa!" Apontou para a rua. "Vai lá buscá-los, que diabo! Chama a polícia! Convoca os bombeiros! Mexe-te, homem!"
com ar atarantado, o mordomo deu meia volta e desapareceu no interior da mansão. O grupo ficou no terraço a ver os pavões a cirandarem pela avenue d'Iena, Gilbert espavorido lá em baixo a correr atrás deles, os gendarmes a surgirem de seguida para ajudar a capturar as aves, estas a esvoaçarem para aqui e para ali. Depois foram chamados outros funcionários da mansão para reforçarem o cerco; a certa altura já corriam também por ali o concierge, os quatro criados e a telefonista. O pandemónio instalara-se na rua mas depressa se transferiu para a rotunda da Étoile, ali a dois passos, para onde os pássaros fugiram, arrastando com eles a maior parte dos perseguidores.
A grande sala de jantar, no rés-do-chão, era a divisão em torno da qual a mansão havia na realidade sido concebida. Apreciaram a decoração requintada, afinal brilhavam nas paredes as tapeçarias em ouro e prata feitas no século XVI em Ferrara para o cardeal Mantua, mas a fome começava a apertar. Na verdade tinha sido a vontade de comer que os arrancara ao terraço, de onde seguiram com sentimentos contraditórios parte do espectáculo da apanha dos pavões que haviam fugido para a Étoile, os convidados divertidos e o anfitrião em cuidados.
"Que aborrecimento!", resmungou Kaloust. "Querem lá ver que ainda perco os meus ricos pavões?" Espreitou o relógio da sala e fez um estalo de impaciência com a língua. "Ah, este Krikor! Já está quase uma hora atrasado!"
"Pois, é melhor irmos começando", disse Nunuphar, batendo palmas em direcção aos empregados. "Sirvam o almoço!"
Sentaram-se à longa mesa de mogno da sala, já com o concierge e dois criados de regresso ao interior do casarão com notícias de que um dos pavões se empoleirara no alto do Arco do Triunfo. O feito do animal suscitou admiração e foi a comentar o assunto que começou a ser servido o primeiro dos quatro pratos do almoço, uma entrada de faisão com castanhas e ameixas que prometia.
"O faisão", gracejou Sir Kenneth Bark, "não é do seu aviário, pois não?"
A observação desencadeou uma gargalhada geral.
"Nesta casa", esclareceu Nunuphar, "não temos o hábito de comer os residentes."
A anfitriã envolveu-se em animada conversa com o curador da National Gallery, a quem pediu opinião sobre umas jóias que adquirira dias antes na Cartier, enquanto Kaloust dedicava a sua atenção ao ministro Mossaed.
"Então como estão a decorrer as negociações com a AngloPersian?", quis saber. "O D'Arcy tem-se portado bem?"
O diplomata riu-se.
"Oh, senhor Sarkisian, tem sido divertidíssimo! Graças aos seus bem informados conselhos, sua alteza imperial anulou a concessão de 1901 e negociou uma nova. A Anglo-Persian teve mesmo o descaramento de apresentar apenas trezentos mil dólares como lucros de 1931, veja só!"
"Eu avisei-vos, não avisei? Quando vi essas contas do ano passado percebi logo que os tipos andavam a disfarçar os lucros para vos pagar o menos possível."
"Sua Majestade ficou possesso, como deve calcular! De modo que a concessão foi anulada, como o senhor teve a bondade de nos sugerir, e renegociámo-la com uma percentagem mais interessante. Eles ameaçaram com os tribunais e a Sociedade das Nações e mais não sei o quê, mas lá acabaram por se conformar."
"E a área de concessão?"
"Reduzimo-la a um quinto, também como o senhor nos havia aconselhado. Ficamos agora com quatro quintos disponíveis para exploração por outras empresas. Tem alguma sugestão?"
"Talvez. Depois digo-lhe."
O ministro persa bebericou um trago de vinho tinto.
"O que acha o senhor Sarkisian da mudança de poder na Alemanha?", perguntou depois de pousar o copo. "Que lhe parece este senhor Hitler?"
A mudança do rumo da conversa intrigou o anfitrião, que se pôs de imediato a tentar destrinçar o motivo da pergunta.
"Desde os meus tempos em Constantinopla que desconfio dos Alemães", retorquiu Kaloust. "São uns abrutalhados sem escrúpulos, eficientes como máquinas mas frios como glaciares, como se não tivessem sentimentos. Basta, aliás, ver como os militares do Kaiser colaboraram passivamente com os Turcos no extermínio dos meus conterrâneos arménios durante a Grande Guerra. Gente sem coração, digo-lhe eu!" Inclinou-se na direcção do seu convidado. "Não me diga que sua alteza, o xá, está a considerar a possibilidade de entregar a essa gente algumas áreas da concessão que retirou à Anglo-Persian..."
O diplomata sorriu com embaraço.
"Como sempre, o senhor é muito perspicaz", afirmou. "Mas é apenas uma possibilidade. Sua Alteza gostaria de conhecer a sua opinião em relação ao senhor Hitler."
O dono da casa endireitou-se e reflectiu sobre a questão.
"Não se metam nisso", acabou por aconselhar. "A julgar pelas declarações que tem produzido desde que assumiu a chancelaria, o senhor Hitler é um aventureiro militarista que não augura nada de bom. A retórica que agora vem de Berlim lembra-me um pouco o discurso dos Alemães antes da Grande Guerra. É curioso que na altura o senhor Churchill era o Lorde do Almirantado e, não o esqueço, disse então que uma guerra com a Alemanha era inevitável. O que aconteceu? Houve guerra. Agora o mesmo senhor Churchill está a alertar para a possibilidade de o senhor Hitler conduzir a Alemanha no mesmo sentido. Se ele acertou na primeira previsão, quem sabe se não acertará na segunda?"
O ministro plenipotenciário da Pérsia esboçou uma careta céptica.
"Não bastou a Grande Guerra? Acha que haverá um novo conflito na Europa?"
"Ou o senhor Hitler muda ou isso, receio bem, tornar-se-á inevitável."
Os empregados retiraram da mesa as entradas de faisão e começaram a servir os pratos seguintes. No entanto, o ministro Mossaed quase nem deu pela mudança, de tal modo se encontrava absorto pela importante questão que discutia
nesse momento.
"Se não fosse o senhor a dizê-lo, eu não acreditaria", afirmou. "Na sua opinião, em que medida uma guerra na Europa poderá afectar a Pérsia?"
Kaloust abriu os braços, como se a resposta fosse óbvia.
"O petróleo, claro. Não se esqueça de que os Alemães não dispõem de acesso directo a campos de petróleo. Foram expulsos da Mesopotâmia depois da Grande Guerra e dependem do que nós lhes vendermos. Se quiserem crescer como império, têm de controlar algumas fontes de petróleo."
"Então decerto nos pagarão bem o acesso às nossas concessões..."
"Sem dúvida que sim", admitiu o arménio. "Mas, a longo prazo, será isso do interesse da Pérsia? Não se esqueça que o seu país tem a índia britânica como vizinha. Se houver guerra na Europa e vocês estiverem a abastecer a Alemanha de petróleo, os Britânicos terão de invadir a Pérsia para lhes cortar a fonte de combustíveis. Os Alemães contra-atacarão e o vosso país transformar-se-á num enorme campo de batalha." Apontou o dedo ao seu interlocutor, como se o avisasse. "Têm a certeza de que é isso que querem?"
O diplomata fitava-o, horrorizado.
"Acha que uma coisa dessas pode acontecer?"
O anfitrião cravou os olhos negros no persa para sublinhar as suas palavras.
"Não se metam com os Alemães", aconselhou com convicção. "De uma sementeira dessas não virão decerto boas colheitas."
O ministro Mossaed remeteu-se momentaneamente ao silêncio, a digerir o que acabara de escutar. Habituara-se a confiar naquele pequeno arménio que o xá tanto apreciava, pelo que estas palavras o deixaram abalado. Ao fim de uns instantes, todavia, recompôs-se. Meteu a mão ao bolso do fraque e voltou a encarar o anfitrião.
"Sabe que eu e Sua Alteza prezamos muito as suas opiniões", disse, elevando a voz e retirando do bolso um envelope decorado ao canto com o selo dourado do trono do pavão. "Assim, e em conformidade com esta missiva que me foi remetida por sua majestade, venho oferecer-lhe a cidadania persa e convidá-lo para conselheiro económico da nossa legação, e sobretudo da casa real."
Fez-se silêncio à mesa, imposto pelo momento inesperadamente solene. O diplomata ergueu-se do seu lugar e, com uma vénia adequada, entregou o sobrescrito ao dono da casa. Também de pé, Kaloust devolveu a vénia e abriu o envelope. Leu a carta que lhe era endereçada pelo xá a apresentar formalmente o convite. Depois dobrou a missiva e, hirto, fez nova vénia.
"Comunique a sua majestade, o xá, o quanto me sinto honrado pela confiança que em mim deposita e diga-lhe que me esforçarei por me mostrar à altura de tão elevada responsabilidade."
Nunuphar e os dois convidados aplaudiram e Kaloust, para celebrar a ocasião, ordenou que se servisse mais champagne. Os criados correram de imediato para a cozinha mas, no momento em que voltavam com as garrafas de Dom Pérignon nas mãos, tocou a sineta da porta.
"Deve ser o Krikor", exclamou o anfitrião. "Até que enfim!"
Uma vez que o mordomo ainda não tinha regressado da caça aos pavões, teve de ser o criado a abrir a porta. Ouviram-se então vozes no átrio e Krikor apareceu na sala de jantar. Atrás dele vinha uma figura de saias cuja silhueta o pai reconheceu com indisfarçável desagrado.
"Desculpem o atraso", saudou Krikor num tom jovial. "A Maria Silvia demorou-se com a toilette. Já sabem como são as mulheres, não é verdade? Primeiro que se despachem..."
Os dois recém-chegados cumprimentaram os convidados e o casal Sarkisian. Kaloust indicou-lhes os seus lugares à mesa mas, antes de se sentarem, Krikor puxou Maria Silvia .
pelo braço e encarou os pais. "Antes do mais, queria fazer um anúncio", disse o rapaz
com solenidade, voltando a face para a namorada. "Esta manhã pedi a mão da Maria Silvia em casamento." Voltou para os pais um sorriso gaiato. "Tenho o prazer de vos anunciar que ela aceitou."
Um silêncio absoluto acolheu estas palavras do noivo. Atónito com o que acabava de escutar, Kaloust abriu e fechou a boca sem emitir um som, parecia um peixe encarcerado num aquário, e só se libertou do estado catatónico em que por momentos mergulhou quando ouviu um grito e sentiu algo suceder ao seu lado. Virou-se atarantado e apercebeu-se de que alguém caíra no chão.
Era Nunuphar que desmaiara.
A nesga de sol espreitou pela janela e pousou sobre os recibos que se apinhavam no canto da secretária como se os quisesse iluminar. Depois de tomar o café turco que se tornara um hábito logo que chegava ao escritório de St Helen's Place, Kaloust pousou os olhos no monte de papéis, ganhando ânimo para os inspeccionar. Devido à sua natureza desconfiada, o arménio gostava de verificar todos os detalhes de qualquer transacção e assegurar-se de que ninguém o enganava. A inspecção das despesas do escritório era por isso um ritual de que não prescindia logo que ali chegava.
O problema é que nessa manhã não se sentia com forças para nada. Apesar da firme oposição que erguera àquele casamento disparatado, o facto é que o filho acabara mesmo por dar o nó com a espanhola desmiolada. A cerimónia decorrera três semanas antes no Gabinete de Registos de Prince's Row e a única testemunha tinha sido, ao que parece, a mãe da idiota. Até o pai dela, que pelos vistos possuía um mínimo de bom senso e se opunha a um casamento fora do catolicismo, se havia recusado a estar presente. Sentado à secretária, Kaloust abanou a cabeça. Como era possível que Krikor tivesse ido avante com um projecto daqueles? Casar com uma católica? Onde diabo tinha o filho a cabeça?
Esticou o pescoço e viu Krikor sentado no seu lugar a verificar contratos. A lua-de-mel em Deauville havia durado duas semanas e o rapaz voltara enfim ao serviço. Avaliou-lhe o rosto concentrado na tarefa em mãos. O filho parecia-lhe definitivamente recuperado das provações que passara às mãos dos Turcos, embora Nunuphar lhe tivesse dito que ele continuava a ter pesadelos relacionados com as estradas por onde passara e onde vira a matança e com a rapariga arménia por quem se enamorara e que por lá morrera. E isto apesar de já se terem passado mais de quinze anos! Coitado, a experiência devia ter sido terrível...
O pensamento amoleceu por momentos a irritação de Kaloust. No fim de contas o rapaz sofrera terrivelmente. Mas depressa lhe ocorreu a imagem da sua nora desmiolada e a fúria regressou com força redobrada. Ah, como era possível o seu Krikor ter casado com criatura tão detestável? Já não havia respeito? Que tempos! Onde já se vira os filhos atreverem-se a desobedecer aos pais? Não havia dúvidas, os valores andavam de pernas para o ar e o mundo parecia enlouquecer!
Agastado com o assunto, estendeu a mão e pegou nos recibos. Analisou o primeiro e depois o segundo e o terceiro; eram as despesas do escritório dos últimos dias, designadamente com um trabalho de manutenção do soalho, uma compra de papel e gastos com o envio de uma encomenda pelo correio. Estudou os recibos um a um, até parar numa folha que o intrigou. Tratava-se de uma factura do The George, um pub ali perto. Dizia "Almoço do senhor Krikor" e referia-se a uma despesa de dezoito xelins e seis pence.
"Ah, o malandro!"
Noutras ocasiões talvez deixasse uma coisa daquelas passar. Mas não nesse dia, não depois de o filho o ter desrespeitado, não depois de ele ter contraído um matrimónio que desaprovava e de lhe ter dado uma nora que evidentemente não era boa da cabeça! Ah, uma coisa daquelas não passaria impune!
com o sangue em ebulição, Kaloust ergueu-se do seu lugar e, em passos rápidos e bruscos, cruzou a porta e foi ter com o filho, a factura do The George a dançar-lhe entre os dedos.
"Que foi?", perguntou Krikor quando o viu plantar-se diante dele a fitá-lo com uma expressão furibunda. "Passa-se alguma coisa?"
O pai estendeu-lhe a factura com um gesto irritado.
"Que é isto?"
Krikor pegou no papel e leu-o várias vezes para tentar perceber o que estaria ali que suscitasse tantos nervos.
"Isto foi uma galinha com espargos em geleia que noutro dia encomendei ao pub", disse. "Tive de verificar os pagamentos que nos são devidos pela nossa quota na Turkish Petroleum Company e, como era coisa de responsabilidade, achei melhor não sair para almoçar." Ergueu os olhos e devolveu a factura. "Porquê?"
A explicação não convenceu o pai, que manteve o cenho carregado numa expressão acusatória.
"Não tens vergonha de remeter para o escritório as tuas despesas de alimentação?", rugiu. "O dinheiro que te dou não chega?"
O filho fitou-o com incredulidade, como se as palavras que acabava de ouvir não fizessem sentido.
"Eu estava a verificar os pagamentos e não tive tempo de ir comer lá fora."
"E porque não pagaste do teu bolso?", insistiu Kaloust, determinado a levar o assunto até ao fim. "O que andas a fazer ao dinheiro que te dou? A esbanjá-lo, não é?"
"Qual dinheiro? Eu nem recebo salário para trabalhar para si!"
"Mas eu cubro-te todas as despesas! Quem é que pagou a tua lua-de-mel em Deauville? Fui eu!" Indicou a janela. "Quem é que pagou o Hispano Suiza que tens estacionado lá fora? Fui eu!" Apontou-lhe para o fato que trazia vestido. "Quem te pagou esse fato Savile Row do Gieves & Hawkes? Fui eu! Eu paguei tudo!"
O tom acusatório irritou Krikor, que começou a sentir a indignação crescer-lhe no peito.
"Ainda bem que fala nisso porque acho que está na altura de me começar a pagar um salário!", retorquiu. "Não quero a sua caridade, quero apenas que me pague pelo trabalho que faço para si aqui no escritório."
"Ora essa!", exclamou Kaloust, fingindo espanto. "Acaso alguma vez te faltou alguma coisa? Visto-te, alimento-te, educo-te. Até a porcaria da tua lua-de-mel eu paguei!"
"Pois está na hora de começar a deixar de me dar esmolas! Não as quero! É humilhante andar sempre a pedir-lhe as coisas de que preciso! Sou adulto, tenho já quarenta anos, casei-me, trabalho aqui com afinco e mereço receber um salário. Viver da sua caridade não é coisa que me interesse!"
"O que queres dizer com isso?"
Krikor cruzou os braços e cravou no pai o olhar determinado; não havia planeado ter esta conversa nesse instante, mas quem escolhera a oportunidade fora o pai e não estava disposto a deixá-la escapar-se, sobretudo à luz do pretexto mesquinho a que ele recorrera para vir ali implicar com as suas despesas.
"Ainda não entendeu? Quero que me pague um salário."
Kaloust bateu com o indicador nas têmporas.
"Tem juízo, rapaz! Nunca te faltou nada nem é agora que vai começar a faltar."
O filho apontou-lhe um dedo acusador.
"O que o pai quer é controlar-me as despesas e ter-me dependente de si", exclamou. "Mas isto vai acabar e é agora. Já não sou nenhuma criança! Exijo um salário pelo meu trabalho!"
"Nem pensar!"
Ficaram os dois a fitar-se por um longo momento, como se estivessem a medir-se em duelo. O impasse acabou por ser bruscamente interrompido por Krikor, que se ergueu num ímpeto e foi buscar o casaco que estava pendurado no cabide junto à janela. Vestiu-o enquanto se dirigia à porta, que abriu com rispidez. Antes de sair, porém, voltou-se para trás e encarou o pai com um esgar de desafio.
"Isto não vai ficar por aqui!"
E bateu com a porta.
Um frémito de excitação perpassava pela pequena multidão que se acotovelava na sala do trono, as conversas sussurradas e apenas interrompidas pelas gargalhadas nervosas das mulheres e pelas tosses secas. Todos os homens se apresentavam de uniforme, classificação em que se poderiam incluir os trajes coloridos dos marajás indianos, à excepção do embaixador americano e respectiva comitiva, estes de fraque e gravata negros. O único elemento verdadeiramente universal naquele espaço eram as luvas brancas, consideradas de rigueur na corte.
Fascinado com a fauna multicolorida concentrada no salão, Kaloust estudou as mulheres. Traziam longos tecidos sobre os ombros e com as pontas anichadas nos braços, mas o mais curioso eram as três penas e as tiaras que lhes enfeitavam as cabeças. Não pôde nesse instante deixar de admirar Nunuphar pelo facto de se manter tão actualizada quanto aos ornamentos adequados para essas ocasiões. Ao saírem de casa havia criticado toda aquela parafernália que ela trazia aos ombros e empinada sobre o cabelo, mas nesse momento percebeu que os ornamentos não eram afinal um mero capricho da mulher, mas a moda da corte.
"Não se esqueça do protocolo, senhor Sarkisian", soprou-lhe uma voz à esquerda. "Quando estiver diante de suas altezas reais, ao fazer a vénia tem de se dobrar só a partir do terceiro botão. É um imperativo do protocolo aqui em Buckingham."
Virou-se e encarou o homem que falara. Tratava-se de Reza Mossaed, o ministro plenipotenciário e chefe da delegação diplomática que o casal Sarkisian integrava nessa ocasião.
"O... o terceiro botão?"
"Sim. Tem de fazer a vénia do terceiro botão do seu uniforme para cima. A parte de baixo fica erecta."
A informação deixou Kaloust momentaneamente em pânico. Só agora é que lhe diziam uma coisa dessas? Afastou-se dois passos e viu um espelho numa parede. Alinhou-se diante dele e curvou ligeiramente o tronco numa vénia. Todo o uniforme se dobrou. Não podia ser. Na segunda tentativa inclinou apenas a cabeça e o pescoço; apenas o primeiro botão se dobrou, não o terceiro.
"Arre! Está difícil!"
Mordeu o lábio inferior e procurou concentrar-se. Precisava de chegar ao terceiro botão, que diabo! Seria assim tão complicado? Curvou a cabeça e o peito, mas desse modo toda a fileira de botões se dobrou. Ah, não conseguira! Lançou um olhar desesperado ao diplomata persa, como se pedisse socorro.
"Dobre o tronco só a partir do terceiro botão", repetiu à distância o ministro plenipotenciário, encorajando-o a prosseguir. "O terceiro botão, ouviu?" Fez um gesto rápido com a mão. "Exercite! Vá, exercite!"
O arménio voltou a contemplar-se ao espelho e retomou as tentativas, mas por mais que se esforçasse a coisa não estava a sair bem. Aquilo devia ter uma técnica especial, concluiu. Como a poderia desenvolver em apenas alguns minutos? No fim de contas, a qualquer momento...
"Minhas senhoras e meus senhores", troou uma voz, "Sua majestade o rei!"
O anúncio apanhou Kaloust de surpresa. Já? Deu três saltos e pôs-se ao lado da mulher, no meio da sua delegação. A expectativa era muito grande, uma vez que se tratava da primeira aparição do novo rei diante do corpo diplomático acreditado em Londres. Viu o camareiro-mor aparecer na companhia de outros três oficiais, todos com bastões brancos nas mãos e a caminharem de costas. Logo a seguir surgiu a figura jovem do rei Eduardo VIII, para quem convergiram os olhares fascinados. O seu pai, o rei Jorge V, tinha falecido meses antes, e sobre este novo monarca corriam rumores de que tencionava casar-se com uma americana divorciada. Seria verdade? E poderia uma coisa dessas ser tolerada?
As delegações estrangeiras formaram duas alas ao longo da passagem e todos os diplomatas e mulheres se curvaram numa vénia, as penas brancas nas cabeças a baixarem como espigas dobradas pelo vento num campo de trigo. O novo monarca passou, acenando à esquerda e à direita, e atrás dele vinha o resto da família e da corte, os sorrisos constrangidos, as expressões graves, os movimentos afectados. O rei sentou-se no trono e a família real posicionou-se de pé no estrado, como se fosse a guarda de honra.
"Sua excelência, o embaixador dos Estados Unidos da América, senhor David Samuelson."
O corpo diplomático começou então a desfilar diante do trono. O primeiro foi o embaixador americano, cujo nome foi anunciado com pompa e que fez uma vénia diante do monarca antes de apresentar em voz alta os membros da sua comitiva. Havia apenas um punhado de embaixadores, pelo que logo se passou para os ministros plenipotenciários. À medida que os elementos de cada missão diplomática iam desfilando e fazendo vénias, Kaloust estudava analisando com especial atenção a maneira como conseguiam dobrar-se a partir do terceiro botão, mas uma vez que estavam de costas não se pôde certificar do sucesso de nenhum deles.
Isso não o impediu de retomar discretamente os exercícios. Tentou durante vinte minutos fazer o movimento correcto e respondeu a cada falhanço com uma praga furiosa em voz baixa e em arménio, de modo a assegurar-se de que ninguém o entendia.
"Sua excelência, o ministro plenipotenciário do Irão", anunciou por fim o camareiro-mor, "senhor Reza Mossaed."
Só no momento em que ouviu o nome do seu ministro é que Kaloust percebeu que chegara a sua vez; ainda não se habituara à mudança do nome da Pérsia para Irão, decidida no ano anterior pelo xá. Parecia que o mundo havia sido varrido por uma epidemia de mudança de nomes. A delegação iraniana alinhou-se diante do trono e o arménio quase teve de correr para se pôr ao lado de Nunuphar. Viu o chefe da sua comitiva fazer a vénia ao monarca, o rei acenar sem conseguir disfarçar o ar entediado, e a seguir apresentar, um a um, os elementos da comitiva.
"Senhor Kaloust Sarkisian e esposa", disse então o ministro iraniano, "conselheiro económico."
O casal baixou-se, com Nunuphar a levantar as saias pelos lados e a dobrar os joelhos, enquanto o marido fazia a vénia protocolar. O problema é que Kaloust se esforçou tanto por se dobrar a partir do terceiro botão que se desequilibrou e quase caiu para o lado, desencadeando um breve bruá entre os presentes. Perguntaram-lhe se se sentia bem, corou de embaraço e assinalou que sim, retirou-se a caminhar para trás e, a face a arder de vergonha, quase se escondeu por detrás dos elementos da sua delegação. Que figura!
"Que te aconteceu?", perguntou-lhe Nunuphar num murmúrio. "Estás bem?"
"Tentei dobrar-me pelo terceiro botão e... e..."
A mulher respirou fundo e abanou a cabeça com uma expressão reprovadora.
"Às vezes és mesmo pateta, homem!", repreendeu-o. "Não vês que isso era uma peta do ministro?"
O olhar surpreendido de Kaloust desviou-se para o diplomata iraniano, que se retirara já do espaço diante do trono e que o fitava com uma indisfarçável expressão de troça, evidentemente satisfeito com o sucesso da sua partidinha. Ah, fora apanhado!
Após a procissão real que encerrou a cerimónia de apresentação de cumprimentos, o corpo diplomático foi dividido em dois grupos. O ministro plenipotenciário iraniano seguiu com os restantes embaixadores e chefes de legação para um banquete com o rei e a família real, enquanto os membros das delegações se concentraram noutro salão do Palácio de Buckingham para o almoço.
A atmosfera era de opulência, com a mesa decorada por vistosos candelabros de cristal, os pratos de ouro, os talheres de prata e os empregados a circularem de fraque, como lordes. Todo aquele esplendor era uma boa ideia, achou Kaloust; se calhar devia fazer o mesmo na sua mansão em Paris, sempre iria dar um ar chique às recepções de Nunuphar. A comida nas travessas da sala de banquetes revelou-se abundante e variada e as garrafas de champagne estavam por toda a parte, embora sem as tarjetas a indicar a marca. Movido pela curiosidade quanto à origem da bebida, se Veuve Clicquot se Moét et Chandon, o arménio questionou um empregado sobre o assunto e foi informado de que não se considerava apropriado que a família real se associasse, mesmo que indirectamente, a uma determinada marca.
Escutando as conversas que se cruzavam ao almoço, Kaloust rapidamente se apercebeu de que o tema que a todos preocupava era o que se passava na Alemanha.
"Estas leis contra os judeus parecem-me pouco cristãs", observou um adido americano ao seu lado esquerdo enquanto trincava uma empada. "Não há nada que se possa fazer para travar esse senhor Hitler?"
"São assuntos internos da Alemanha, receio bem", retorquiu um oficial inglês ligado à casa real e que se acomodara à direita. "Penso que não nos devemos meter neles."
"Mas esse homem precisa de ser controlado, goddam it!", insistiu o americano. "Começou a armar o país, repudiou o Tratado de Versalhes, ocupou as zonas desmilitarizadas do Reno, fez agora uma aliança com Mussolini, anda a piscar o olho aos Japas e ainda se pôs a vociferar contra os Checoslovacos." Baixou a voz, como se partilhasse um segredo. "Diz-se até que se prepara para enviar unidades militares para ajudar os revoltosos em Espanha."
"Ora aí está uma boa notícia!", devolveu o inglês. "É uma excelente maneira de suster o expansionismo dos bolcheviques sem que sujemos as mãos. Aliás, o governo de sua majestade já pediu discretamente aos Portugueses, nossos aliados, que colaborem com os Alemães e ajudem os revoltosos espanhóis no que for preciso. A prioridade é travar Estaline. Já viu o que seria termos de lidar com uma Espanha vermelha?"
O americano calou-se por momentos, como se digerisse a estratégia britânica.
"Temos de facto de enfrentar os bolcheviques", admitiu. "Isso é inquestionável. Interrogo-me, no entanto, se devemos deixar essa tarefa para o senhor Hitler."
"Não o incumbimos da missão. Mas se ele quiser travar Estaline em Espanha, porque haveremos de nos opor?"
Sentindo que o inglês tinha a mente fechada quanto ao assunto, e precisando de encontrar um aliado naquela conversa, o americano desviou o olhar para Kaloust.
"O senhor é persa, não é verdade? Que pensa a Pérsia disto?"
O arménio sorriu; ora aí estava outra pessoa que não se habituara ainda ao novo nome da Pérsia.
"Sou britânico, mas trabalho de facto para a legação iraniana e até adquiri recentemente a respectiva nacionalidade", esclareceu. "De qualquer modo sou suspeito nessa matéria porque tenho origem arménia e sofro de uma desconfiança natural em relação aos Alemães. Acho que eles nos andam a testar e nós, francamente, estamos a mostrar pouca firmeza. Isso dá-lhes confiança para se tornarem mais arrojados, não lhe parece? Nestas condições, temo que o pior se torne inevitável."
O oficial inglês esboçou uma careta.
"Explique-me o que entende por pior."
"Estou a falar de uma guerra europeia, claro. Não é o que nestes dias está na mente de toda a gente?"
O homem da casa real riu-se com sobranceria.
"Good Lord, onde isso já vai! Uma guerra? Francamente! Acha mesmo que vamos desencadear uma guerra por causa da ocupação alemã da zona desmilitarizada do Reno ou por o senhor Hitler denunciar o Tratado de Versalhes, que aliás é iníquo para os Alemães e nunca devia ter sido formulado nos termos em que foi? O secretário dos Negócios Estrangeiros, o senhor Éden, está a protestar, claro, mas daí a declararmos guerra... Repare, se as hostilidades eclodissem o que aconteceria? A França faria guerra à Alemanha. Como a União Soviética assinou no ano passado uma aliança com a França, o Exército Vermelho invadiria a Alemanha. Derrotada, a Alemanha tornar-se-ia então um país bolchevique. Acha que uma coisa dessas é tolerável? Acha?" Sacudiu enfaticamente a cabeça. "Não, ninguém se vai meter numa aventura dessas, meu caro senhor! Nem pensar! A nossa estratégia passa antes por conter o senhor Hitler e limitar os danos."
"Pois não é assim que pensa o senhor Churchill, que já considerou o senhor Hitler uma ameaça à paz mundial e disse que..."
"O senhor Churchill está, receio bem, gágá. O mundo mudou muito e o pobre diabo não tem a noção de como são complexas as coisas hoje em dia."
A tensão europeia dominava as conversas e foi ainda com todos a opinarem sobre o assunto que os preocupava que terminou o banquete e as diversas delegações diplomáticas abandonaram o Palácio de Buckingham. O casal Sarkisian despediu-se do ministro plenipotenciário iraniano e dos restantes elementos da delegação e seguiu no seu Rolls-Royce a caminho de casa.
De olhos perdidos nos passeios e o corpo a distender-se, Kaloust pensou que a manhã havia sido longa e cansativa, pelo que precisava de algo especial para se descontrair. Mas o quê? Na verdade não era necessária grande imaginação para saber o que tinha de fazer. Decidiu que iria de seguida ao Ritz para procurar diversão na cama com a sua sweetheart do momento, uma rapariguinha loira e curvilínea que tinha descoberto no ano anterior durante um passeio no pontão de Brighton. Ah, uma sessão terapêutica com Rebecca far-lhe-ia imenso bem!
O automóvel estacionou diante do número 38 de Hyde Park Gardens e Nunuphar saiu. Quando se preparava para ordenar ao motorista que prosseguisse até Piccadilly, porém, Kaloust apercebeu-se da inadvertida presença do mordomo junto à janela da viatura. Baixou a janela para saber o que se passava e Humphrey estendeu-lhe uma bandeja de prata com um envelope.
"É para si, sir", anunciou o homem no típico tom afectado do butler inglês. "Acabou de nos ser entregue por um funcionário judicial."
Kaloust pegou no envelope e abriu-o. Desdobrou o ofício que se encontrava no interior e passou a atenção pelo arrazoado legal até se deter no que realmente interessava. Foi nesse momento que arregalou os olhos estupefactos.
"Nunuphar!", berrou. "Nunuphar, anda cá!"
A mulher, que havia entretanto cruzado a porta de casa e desfizera já a tiara que levara sobre a cabeça, voltou para trás e abeirou-se do Rolls-Royce.
"Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"
"É o nosso filho!"
"O quê? Que foi? Ele está bem?"
com uma expressão atónita, Kaloust acenou com a folha ornamentada pelos símbolos da justiça de sua majestade.
"Processou-nos."
As notícias da invasão alemã da Polónia enchiam a primeira página dos jornais que Kaloust folheava no banco traseiro do seu Rolls-Royce. Como era habitual, comprara os matutinos durante o constitucional que fizera por Hyde Park pouco depois de acordar, mas não os lera de imediato; tinha decidido fazê-lo na primeira oportunidade, talvez quando estivesse no automóvel a caminho do tribunal. Pois era o que sucedia nesse momento, mas o facto é que não se sentia com disposição para se ocupar com aquelas desgraças; trazia a mente demasiado preenchida por uma preocupação muito mais imediata.
Consultou o relógio e suspirou de impaciência; eram quase nove da manhã. Girou a cabeça e encarou o homem de cabelos grisalhos sentado ao seu lado; conhecia-o havia já muitos anos mas era a primeira vez que reparava que ele envelhecera, o cabelo louro havia-se tornado branco e as rugas sulcavam-lhe os cantos dos olhos como rios secos.
"Diga-me, Sir Philip, quanto tempo acha que vai durar este maldito julgamento?"
Era estranho chamar-lhe Sir, mas o velho amigo fora recentemente condecorado cavaleiro pelos seus serviços no Foreign Office e tinha direito ao tratamento. A alegria pelo knighthood, no entanto, fora mitigada pela evolução dos acontecimentos na Europa e em parte alguma do rosto a angústia que o sufocava era tão evidente como nos olhos, duas bolas de um azul-pálido fixadas nos cabeçalhos dos jornais que Kaloust pousara no regaço.
Ao perceber que fora interpelado, Sir Philip Blake estremeceu como se regressasse à realidade.
"Ha?" Hesitou, recuperando a concentração. "Depende, não sei. Talvez umas horas, I daresay. Provavelmente o dia inteiro, old boy."
"E quantos dias?"
"Nunca menos de dois." Fez um cálculo mental. "Se calhar a semana inteira, quem sabe?"
Tudo muito vago, achou Kaloust, esforçando-se por conter a impaciência. Ergueu o The Times e indicou a notícia da invasão alemã na primeira página.
"Já viu isto?"
O amigo respirou fundo, claramente abatido pela evolução dos acontecimentos na Europa Central.
"Quem não viu?", perguntou. "Good heavens! Nunca pensei que a coisa chegasse a este ponto. Nunca pensei." Abanou a cabeça como se ainda tivesse dificuldade em digerir as notícias. "E os meus netos... os meus três rapazes vão decerto ser chamados ao serviço militar. Blast it! É uma bloody disgrace!"
Fez-se silêncio no banco traseiro do automóvel. A manhã nascera sombria e o céu de chumbo deslizava baixo, ameaçador e pesado; provavelmente ia chover. Olhando pela janela do carro, Kaloust apercebeu-se de que todas as pessoas que enchiam os passeios das ruas de Londres traziam jornais nas mãos e mais de metade liam-nos enquanto caminhavam; outras juntavam-se em torno de rádios ou conversavam com semblantes carregados em pequenos grupos junto às bancas com os matutinos. Duas guerras contra a Alemanha no espaço de pouco mais de vinte anos, reflectiu com amargura, era de facto demasiado.
Virou-se e pôs a mão no ombro do amigo, procurando consolá-lo.
"Deixe estar que também vamos ganhar esta."
Sir Philip Blake encarou-o com um esgar banhado de cepticismo e descrença.
"I say, o que o leva a dizer isso?"
O arménio sorriu sem vontade.
"O petróleo, o que mais haveria de ser?", observou. "A Inglaterra e a França estão devidamente abastecidas pelos campos petrolíferos do Iraque, como sabe. A concessão que obtivemos nos tempos do Império Otomano é preciosa. E o que têm os Alemães?" Abriu as palmas das mãos, mostrando-as vazias. "Nada. Como é que o senhor Hitler irá alimentar os seus tanques e os seus aviões quando se lhe acabar o combustível?"
O inglês não se mostrava inteiramente convencido.
"Se calhar é justamente por isso que temos guerra, old chap", observou. "Não me admiraria nada que esta invasão da Polónia fosse o prelúdio de uma invasão da União Soviética. Repare que os Alemães ficarão agora com acesso directo à fronteira russa. Os tolos dos bolcheviques assinaram aquele acordo de não agressão com os nazis, mas vai ver que um dos próximos passos de Hitler será entrar por ali dentro e tomar os poços petrolíferos do Cáucaso." Sacudiu a mão como se se tivesse queimado. "Good Lord! Se ele conseguir um golpe desses..."
A observação colheu o assentimento de Kaloust; se havia coisa que Sir Philip Blake conhecia em profundidade eram os meandros da política internacional, fruto da sua longa experiência no Foreign Office.
"Tem razão", admitiu. com o olhar fixo no vazio, como se a sua atenção estivesse longe dali, perguntou: "Acha mesmo que os Alemães vão vioiar ? acora? -
"Se esses chaps violaram o Tratado de Versalhes e se violaram o Acordo de Munique, old boy, o que os impedirá de violar o Tratado de Moscovo quando lhes convier? Receio bem que o senhor Estaline esteja algo iludido quanto à verdadeira natureza das intenções do senhor Hitler." Passou as pontas dos dedos pelo bigode grisalho, um lampejo a iluminar-lhe os olhos azuis. "Watt and see."
O automóvel imobilizou-se junto ao passeio e os ocupantes perceberam que tinham chegado. Lá fora estendia-se uma escadaria que conduzia a um edifício majestoso e austero de traça neoclássica, com grandes colunas e frontispício triangular O tribunal.
O processo intentado pelo filho durava já havia três anos e Kaloust recordava ainda a fúria que sentira quando recebeu a notificação judicial. Andou vários dias pelos corredores de casa e até do Ritz a jurar que ia destruir Krikor, ia deserdá-lo, esmagá-lo e levá-lo à miséria e mais não sabia o quê, mas Nunuphar conseguiu por fim acalmar os ânimos e evitou mesmo que despedisse o rapaz. Não tinha sido fácil engolir a afronta, mas, que demónio!, ele era o seu único filho! Que havia de fazer?
Ganhar o processo, claro.
Se não podia destruir Krikor, se nem sequer lhe era permitido despedi-lo, só lhe restava a última opção. Enfrentá-lo em tribunal e derrotá-lo com a lei do seu lado. O facto de ter consigo um dos mais prestigiados causídicos do Reino Unido também ajudava. Sir Philip Blake era um homem de estado que fizera carreira no Foreign Office, mas a sua principal fonte de rendimentos provinha de um célebre escritório de advogados na City, o Blake & Hawthorne. Como tinha uma vida política muito intensa, Sir Philip entregava habitualmente a condução dos processos a advogados que contratava, mas aquele caso era especial, uma vez que envolvia Kaloust. Tratando-se do seu amigo e protegido, além do seu cliente mais rico, o inglês decidira assumir ele próprio a condução do processo.
Graças a sucessivos artifícios legais, Sir Philip Blake havia conseguido prolongar a fase preliminar do processo de tal modo que só trinta e seis meses depois é que ele chegava à barra do tribunal. Kaloust havia apostado no arrastamento do caso na esperança de que Krikor repensasse a sua atitude e retirasse a acção, mas o rapaz persistira até ao fim. Isso, pareceu-lhe, era miserável.
Miserável e, porque não dizê-lo?, digno de admiração.
"Tem tomates", murmurou. "Sempre teve."
Estavam já ambos sentados dentro da sala de audiências. A seu lado o advogado remexia nos papéis que tirara da pasta, preparando-se para a primeira sessão.
"Perdão?"
"Nada, nada. Era apenas eu a tagarelar com os meus botões."
Inclinou-se e espreitou a bancada dos queixosos. Sentado no outro lado da sala de audiências, Krikor conferenciava em voz baixa com o seu advogado, acertando decerto os últimos pormenores do caso. Parecia confiante e senhor de si, o que inspirava novos sentimentos contraditórios ao pai. Por um lado, Kaloust sentia-se agradado por ver a segurança do filho, homem feito e assertivo, sem medo de enfrentar ninguém para fazer valer a sua posição. Sobrevivera às marchas da morte e, talvez por isso, tornara-se um colosso, frio e firme. Mas por outro lado essas qualidades não lhe pareciam convenientes para o êxito da sua defesa. Que trunfos guardaria o rapaz na manga?
com excepção dos queixosos e dos réus, os lugares da sala do tribunal estavam vazios. A imprensa manifestara muito interesse em assistir ao julgamento, no fim de contas o caso envolvia aquele que era nesse momento o homem mais rico do mundo e do qual pouco se conhecia, mas Kaloust detestava a publicidade e até ali lograra escapar às objectivas dos fotógrafos de Fleet Street. Pedira por isso que o julgamento decorresse à porta fechada. Sabia que havia poucas possibilidades de o juiz concordar, mas Krikor, sensível às preocupações do pai, tinha aceitado o pedido. com ambas as partes a solicitarem discrição, e tratando-se de um processo que não envolvia um crime público, o tribunal não teve outro remédio que não fosse aceder.
A porta do fundo abriu-se nesse instante e um funcionário judicial franqueou-a e pôs-se em sentido, quase como um soldado em parada.
"All rise!", entoou em voz alta. "O honorável juiz Lawrence Aylesbury vai presidir à sessão!"
Os litigantes puseram-se de pé e entrou na sala de audiências um homem de beca judiciária negra e peruca branca ao estilo setecentista, com caracóis horizontais que desciam até aos ombros; parecia uma personagem anacrónica, saída dos tempos de D'Artagnan e dos três mosqueteiros. O juiz instalou-se no seu lugar, uma cadeira alta e dominadora, pegou numa resma de folhas e ajeitou os óculos.
"Vamos portanto julgar o processo cível número 90747/39, intentado pelo senhor Krikor Sarkisian contra o senhor Kaloust Sarkisian sobre remunerações e outras compensações laborais." Pegou num pequeno martelo e bateu com ele na mesa. "Está iniciada a sessão!"
O julgamento prolongou-se o dia inteiro, com uma curta pausa para o almoço, servido numa sala privada, e culminou na apresentação de uma moção por parte dos queixosos a solicitar um conjunto de documentos considerados cruciais para determinar o valor de uma eventual indemnização e mensalidade salarial.
O advogado de defesa protestou nos termos mais enérgicos, como lhe competia, mas o juiz Aylesbury abanou a cabeça perante tais objecções.
"Nada posso fazer, Sir Philip", disse. "Como muito bem sabe, cada uma das partes em litigação tem pleno direito de acesso aos documentos na posse da outra parte que considere imprescindíveis para o seu caso."
"Mas, my Lord, estou certo de que não ignorará a dimensão documental em causa nesta moção!"
O juiz pegou no martelo.
"Estou ciente de tudo, e sobretudo da lei. A defesa tem uma semana para satisfazer o pedido dos queixosos." Bateu com o martelo na mesa. "Está suspensa a sessão!"
Os presentes arrumaram os papéis e Kaloust, apesar da fadiga que lhe entorpecia o raciocínio, reparou que o seu advogado estava com um semblante particularmente sisudo, como se a sentença tivesse acabado de ser proferida e não lhes fosse favorável. Achou a reacção estranha, mas apercebeu-se de que o filho e o respectivo advogado se aproximavam e voltou para eles a sua atenção. As duas partes em litígio cumprimentaram-se com cordialidade e saíram juntas do tribunal, como era adequado a gentlemen da sua condição. Só se separaram ao chegar à escadaria exterior, momento em que cada par foi para seu lado. Quando iam a meio dos degraus e a uma distância que os punha enfim ao abrigo de ouvidos indiscretos, Kaloust chegou-se a Sir Philip Blake.
"Que raio se passou ali dentro?", segredou-lhe ao ouvido por medida adicional de segurança. "Porque está tão aborrecido?"
O advogado mal continha a irritação.
"Good heavens, Sarkisian, não viu o golpe baixo?", perguntou. "Não percebeu o verdadeiro alcance da moção do seu filho? Blast it! Isto foi um low upper cut da pior espécie!
Kaloust fez um esforço de memória, tentando descortinar o que havia de tão significativo no pedido a que o juiz dera provimento apesar das insistentes objecções de Sir Philip.
"Bem, ele quer ter acesso aos documentos que permitem avaliar o montante de uma eventual indemnização. Em que medida uma coisa dessas o pode beneficiar?"
"Em termos de mérito de causa, nada." Lançou um olhar carregado de subentendidos. "Mas não é isso o que está verdadeiramente em questão, pois não?"
"Não?", admirou-se o cliente, ainda sem nada perceber. "Então é o quê?"
"São os documentos, old chap", devolveu o inglês. "Já reparou na..."
Um punhado de homens de chapéu e máquinas fotográficas cortou-lhes o caminho, impedindo-os de chegar ao carro.
Kaloust apercebeu-se, horrorizado, de que uma matilha de jornalistas o emboscara. Não tinha escapatória possível; ao fim de tantos anos a ludibriar as máquinas fotográficas, fora enfim apanhado.
"Senhor Sarkisian?", perguntou um dos fotógrafos. "Qual dos senhores é o senhor Sarkisian?"
Os dois homens imobilizaram-se num degrau, sem saber como proceder. O advogado ergueu a cana, preparando-se para correr com os jornalistas à bengalada, mas o cliente travou-o.
"Ah, como eu gostava de ser o senhor Sarkisian", exclamou Kaloust com um suspiro resignado. "Infelizmente não passo de um pobre contabilista a quem a miséria está a bater à porta..."
Os fotógrafos baixaram as câmaras, decepcionados.
"Não é o senhor Sarkisian?"
"Era bom, era!"
Os jornalistas viraram costas e afastaram-se, irritados por terem perdido o seu tempo. Voltaram a instalar-se no passeio e vasculharam a escadaria com o olhar, em busca do verdadeiro Sarkisian.
"Bloody hell!", praguejou um deles. "O diabo do homem é invisível!"
Ainda pregado ao degrau onde se imobilizara, Kaloust abriu os braços em contestação.
"Então?", protestou. "Ninguém me tira uma fotografia?"
Os fotógrafos atiraram-lhe um esgar de desprezo, como se ele não passasse de uma minhoca, e não se dignaram responder. Como poderia passar pela cabeça de um contabilistazeco insignificante aparecer nos jornais? Daí em diante ninguém lhe prestou a menor atenção, nem nenhum dos jornalistas reparou que os dois homens engravatados que haviam interpelado momentos antes, um deles alegadamente na miséria, tinham retomado o caminho e entrado num enorme automóvel
negro que os esperava.
Um Rolls-Royce, ainda por cima.
A limusina ia a meio de King's Way quando Kaloust retomou a conversa no ponto em que ela havia sido interrompida pela inoportuna aparição dos homens dos jornais.
"Ainda não me explicou o que tanto o apoquentou na moção submetida pelo meu filho..."
O amigo inglês encarava-o com uma expressão de admiração, claramente ainda impressionado com a reacção de Kaloust diante do assédio da imprensa, e em particular o sang frio de que dera mostras ao improvisar a fuga. De imediato, porém, retomou a postura que se esperava de um causídico de quem dependia o destino do cliente.
"O seu filho pediu toda a documentação referente à sua actividade profissional, I'm afraid."
"Sim, toda a documentação pertinente para o processo", confirmou o arménio. "E então?"
Sir Philip Blake afinou a voz e ergueu o indicador, como se fizesse uma ressalva.
"Atenção, ele não se limitou a pedir a documentação pertinente, old boy", sublinhou. "Ele considerou que toda a documentação da sua actividade é pertinente. Toda."
O esclarecimento perturbou Kaloust.
"Toda como?"
O advogado olhou-o fixamente.
"Quantos documentos tem o senhor referentes à sua actividade desde que começou a trabalhar?", perguntou. "Estou a referir-me a contratos, actas, ofícios, telegramas... até recibos e facturas. Tudo. Somada toda a papelada desde que iniciou actividade profissional em Constantinopla, estamos a falar de quantos documentos?"
"Bem, se isso até incluir recibos e facturas desde os tempos em que eu vivia no Império Otomano, acho que é uma coisa na ordem de... sei lá, de... de um milhão de papéis." Soltou uma gargalhada. "É impossível, claro!"
A risada prolongou-se um instante, mas morreu quando Kaloust percebeu que Sir Philip o fitava sem juntar as suas gargalhadas às dele.
"Um milhão?", interrogou-se o advogado inglês. Revirou os olhos, contrariado. "Good Lord, Sarkisian!"
O cliente engoliu em seco e alteou as sobrancelhas à medida que ia caindo em si.
"O senhor... está a brincar, não está?", titubeou, crescentemente espantado. "Não está a insinuar que... que temos de apresentar em tribunal um milhão de documentos, pois não?"
O amigo acenou afirmativamente.
"Right ho", confirmou. "Infelizmente é isso mesmo o que está em causa com esta moção. Percebe agora a minha irritação?"
Kaloust arregalou os olhos, atónito com a enormidade do que lhe estava a ser dito.
"Um milhão de papéis?"
Novo aceno afirmativo de Sir Philip.
"O juiz deu-nos uma semana para apresentarmos toda essa papelada em tribunal."
A revelação deixou o arménio boquiaberto. Atónito com a tarefa de que só então tomava consciência plena, deixou descair os ombros e encostou-se ao assento do automóvel, o olhar perdido nos passeios, nas fachadas e nas montras por onde passavam. Curiosamente as ruas estavam desertas, o que não era normal àquela hora, mas a estupefacção impediu-o de estranhar.
Permaneceu longos segundos em silêncio, a digerir a magnitude do problema, os olhos fixos no exterior sem o ver, a mente a girar em torno da tarefa ciclópica que tinha pela frente e do apertado prazo que lhe fora dado para a completar. Dispunha de apenas uma semana para apresentar um milhão de papéis ao tribunal. Um milhão de documentos. Uma semana. Um milhão.
"Estou tramado!"
Manteve o semblante consternado por um minuto, mas não passou disso. Um sorriso inesperado começou a formar-se no seu rosto e depressa degenerou em gargalhadas, tão ruidosas e contagiantes que deixaram o advogado perturbado e sem saber o que dizer ou fazer. As lágrimas corriam pela cara do arménio, que ria sem cessar, como se tudo aquilo não passasse afinal de uma boa piada.
"Folgo em saber que uma coisa destas o faz rir, old chap", observou Sir Philip com uma ponta de irritação, mal contendo a vontade de repreender o amigo em termos mais vigorosos. "Vamos passar uma semana inteira a juntar um milhão de papéis e o senhor... o senhor acha graça! Jolly good!"
com as costas das mãos, Kaloust limpou as lágrimas que lhe escorriam pelas faces e dominou enfim o ataque de riso.
"Não acha que o meu rapaz é esperto?", perguntou com manifesta boa disposição quando recuperou a compostura. "Não concorda que foi uma magnífica ideia?"
O advogado fez um estalo de impaciência com a língua.
"I say, julguei que o senhor queria enfrentar o seu filho", observou com secura. "Mas afinal, e pelos vistos, prefere elogiá-lo."
"Ele está a ficar duro", observou o arménio. "Só faz uma coisa destas quem tem dentes de aço, não lhe parece? Temos homem, Sir Philip! Temos homem!"
Sir Philip Blake não respondeu de imediato, preferindo dar tempo ao cliente para amadurecer o problema. Estava seguro de que, uma vez as consequências da moção devidamente ponderadas, Kaloust não sentiria tanta vontade de rir. Era só uma questão de o ver a revolver a casa e o escritório e os bancos em busca de todos os documentos requeridos na moção. Aí é que se ia ver quem se riria.
"O que tenciona fazer?"
Kaloust esboçou um gesto vago com as mãos.
"Temos de desistir, não é verdade?"
"Desistir?"
"Vê alternativa?"
A decisão da reconciliação estava já tomada quando chegaram a casa. Ao longo do resto do trajecto o arménio instruiu o advogado no sentido de contactar o filho para que chegassem a um acordo satisfatório para ambas as partes, o que naturalmente passava pelo estabelecimento de uma remuneração condigna pelo trabalho no escritório e um prémio pela retirada do processo em tribunal.
"O raio da galinha com espargos em geleia saiu-me cara..."
Quando chegaram ao destino, Kaloust convidou Sir Philip para um cálice de vinho do Porto; havia que assinalar a ocasião. Ao entrar em casa, contudo, o arménio deparou-se com Nunuphar a sacudir um leque em estado de grande excitação, afogueada e aos gritinhos histéricos, tão transtornada que sentia dificuldade em se exprimir.
"Ouviste o...? Ouviste o...? Ai meu Deus! Ai Jesus! Ouviste o...?"
"Que foi?", quis saber. "Que se passa?"
A mulher mal conseguia falar. Limitava-se a apontar para o aparelho de radiofonia que dominava a sala de estar.
"Foi o Chamberlain", disse por fim. "Não ouviste? Não ouviste? Ah, o Chamberlain..."
Os dois recém-chegados desviaram o olhar para a telefonia.
"O quê? Aconteceu alguma coisa ao primeiro-ministro?"
Nunuphar agitava o leque junto ao rosto, como se precisasse do ar que ele lhe projectava em vagas sucessivas.
"Ai meu Deus! Ai minha Nossa Senhora!"
"Que foi, mulher?"
A dona da casa sentou-se no sofá, tentando acalmar os nervos, o leque a dar a dar, e voltou a indicar o aparelho de radiofonia.
"Foi o Chamberlain... o primeiro-ministro", repetiu, esforçando-se por dominar os nervos. "Acabou de falar na telefonia, não ouviram? As ruas ficaram desertas, o país inteiro parou e... e vocês não ouviram?" Pôs as mãos na cabeça. "Ai meu Deus! E agora? Virgem Santíssima!"
Kaloust e Sir Philip entreolharam-se sem entender nada.
"O Chamberlain? Ele falou na rádio?"
Nunuphar fez um sim enfático com a cabeça, sufocada pelo pânico, aterrada com o abismo que se abrira aos pés do mundo.
"Estamos em guerra com a Alemanha."
Estava ainda escuro quando Kaloust, atormentado pelas insónias, vestiu o robe e passou pela cozinha antes de se instalar no terraço da sua mansão na avenue d'Iéna com uma chávena de café quente na mão. Uma brisa nocturna soprava por Paris, mas corria já o mês de Junho e mesmo as nortadas eram amenas. As aves na gaiola agitavam-se intermitentemente, embora no essencial permanecessem quietas, ainda envoltas no torpor do sono. A urbe estava mergulhada na mais completa escuridão, com os candeeiros públicos apagados e as janelas dos edifícios revestidas por cartões sombrios que travavam a passagem de luz interior.
Dois focos irromperam da treva, ao longe, para logo se desviarem; era um automóvel que contornava o Arco do Triunfo e se afastava. A escuridão absoluta depressa voltou, como se a cidade tivesse sido abandonada. Que triste lhe parecia Paris! Bebericou o café e pensou na trovoada distante dos últimos dias. Agora silenciara-se, sinal de que os canhões alemães haviam deixado de abrir fogo; até os aviões inimigos, que antes se afadigavam a cruzar o firmamento numa fúria de morte, tinham desaparecido. Depois do pânico que levara milhões de parisienses a acorrerem num tropel às gares de caminhos-de-ferro e às estradas, numa ânsia louca de fugirem ao boche, Paris foi declarada cidade aberta, os Alemães suspenderam os bombardeamentos e a população, resignada e derrotada, regressou cabisbaixa a casa.
O clarão da alvorada despontou para os lados da Opera, pintando o céu de um pastel azul-petróleo que arroxeava no horizonte. Sentado na borda do terraço, e beneficiando do bafo de luz matinal que espreitava sobre o casario adormecido, o arménio voltou a sua atenção para PÉtoile, a praça que a pequena distância abraçava o Arco do Triunfo. Não se via vivalma. Ao fim de alguns minutos, porém, apercebeu-se de um varredor solitário que apareceu com a alvorada e, diligente, se pôs a escorraçar as folhas secas caídas nos passeios e sobre o asfalto.
Um zumbido.
O som rasgou o silêncio da madrugada. Vinha da esquerda e cresceu até se transformar num ronco e materializar-se com aparato em duas figuras em verde-azeitona, ambas sobre rodas e cobertas de pó, que irromperam na Place de l'Étoile pela avenue Kleber. Eram motociclistas alemães. Os dois soldados com espingardas traçadas nas costas dobraram a esquina e aproximaram-se do varredor para lhe pedir direcções. Ao ver o inimigo dirigir-se a ele, o homem largou a vassoura e desatou a fugir num pânico desenfreado. Os alemães encolheram os ombros e, com um rugido profundo das motos, arrancaram e meteram pelos Champs Elisées. A vassoura ficou abandonada no passeio, abraçada pelas folhas que a brisa sacudia aos repelões, como se dançassem o requiem que um vento funesto soprava pela cidade.
A visão deixou Kaloust agitado.
"Deus nos proteja!", murmurou, levantando-se da cadeira. "Os Alemães chegaram!"
com o início da guerra, e apesar dos riscos, Kaloust havia decidido instalar-se em Paris. Na verdade, contudo, gozava de imunidade, devido ao estatuto diplomático que a sua ligação à legação iraniana lhe conferia. Como o Irão era um país neutral que os Alemães desejavam atrair à sua esfera de influência, sabia que dificilmente seria incomodado pelos invasores.
O problema é que, com a aproximação do inimigo e a declaração de Paris como cidade aberta, o governo francês se transferira para Bordéus e a legação iraniana, como de resto as restantes representações diplomáticas em França, acompanhara-o. Para quê ficarem em Paris se a cidade deixara de ser a capital? O arménio tencionava seguir-lhes os passos, mas primeiro precisava de se assegurar de que os Alemães não tocariam na sua mansão. Por isso ficara.
Atormentado pela visão dos dois motociclistas alemães, desceu ao quarto e foi-se vestir. Ainda bem que a família fora poupada àquela terrível provação! Nunuphar tinha seguido já para Bordéus, sob a protecção diplomática iraniana e integrada na comitiva do senador Jean-Marc Hertault, e Krikor ficara em Londres, para onde tinham sido remetidas as mais importantes peças da colecção de arte que Kaloust juntava desde a sua primeira compra no bazar de Constantinopla. Mas alguém tinha de garantir que a mansão de Paris permaneceria intacta; abandoná-la aos hunos não parecia boa ideia.
Bateram à porta do quarto. O dono da casa foi ver quem era e deparou-se com Gilbert. O mordomo exibia uma face fantasmagoricamente pálida e o olhar esgazeado.
"M'sieur Sarkisian, já viu o que se passa lá fora?" Foram até à sala e convergiram para a janela, para lá da qual se erguia uma sinfonia de roncos. Ao fundo da rua, na place de l'Étoile, Kaloust avistou uma coluna de automóveis e camiões verde-azeitona. À frente seguia um torpedo de capota recolhida, coberto de pó e lama, com grossos pneumáticos nas rodas. Ao lado do motorista sentava-se um oficial e atrás dois soldados. Um dos camiões deteve-se na berma do passeio e da carga saltou um soldado com uma bandeirola; o homem foi posicionar-se à entrada dos Champs Elisées para dirigir o tráfego militar.
Atrás das primeiras viaturas surgiram colunas militares ininterruptas. Carros abertos com oficiais, tanques, peças de artilharia, camiões carregados de infantaria ou munições, carros com metralhadoras, e ainda enxames de motos e side-cars, tudo e todos cobertos de pó e lama num contraste com a ordem e a disciplina com que se processava a entrada na cidade. Era uma visão desconcertante, os homens da Wehrmacht a desfilarem por Paris, e Kaloust tudo contemplou com a mão diante da boca, pasmado e chocado. Nos passeios viu aglomerarem-se pequenos grupos de parisienses igualmente abalados, a trocarem comentários em voz baixa e a observarem o inimigo de olhar sombrio e coração humilhado.
"Meu Deus!", exclamou o dono da casa. "É o fim!" O mordomo baixou a cabeça, lutando contra as lágrimas que as pálpebras trémulas não conseguiam conter. "Oui, m'sieur."
Recostando-se na cadeira, Kaloust releu a carta que acabara de redigir endereçada ao xá. O documento tecia considerações subtis sobre os desafios geoestratégicos que se punham ao Irão no delicado xadrez dos interesses mundiais do petróleo agora que a guerra alastrava pela Europa e pela Ásia, alertando para perigos e apontando caminhos. Satisfeito com o texto, o arménio respirou fundo e pegou na caneta. Quando ia pousar a ponta de aparo no papel para rabiscar o seu nome, porém, a porta do gabinete abriu-se com brusquidão.
"Os alemães!", exclamou Gilbert, o alarme a incendiar-lhe o olhar. "Os alemães!"
O anfitrião encarou o mordomo, perplexo.
"Então, Gilbert?", atirou-lhe num tom de repreensão. "Que modos são esses? Desde quando é que nesta casa se entra assim no meu gabinete, sem sequer bater à..."
"Raus!", gritou uma voz gutural do corredor. "Todos para a rua!"
Kaloust interrompeu a admoestação, sem perceber o que se passava. Gilbert atirou-lhe um esgar carregado de pânico.
"É justamente o que eu lhe tentava explicar, m'sieur! Os alemães! Eles... eles estão a entrar em casa! Eles..."
O vulto cinzento de um militar germânico, de calças de montar, águia Hakenkreuz ao peito e boné de oficial, apareceu à porta, afastando o mordomo.
"Heil Hitler!", berrou o oficial, estendendo o braço em saudação romana. "Sou o capitão Ritter e, em nome do Reich, venho requisitar esta mansão. Os senhores têm trinta minutos para se retirarem!"
O dono da casa ficou um longo instante em silêncio, a apreender o que acabara de escutar. Depois fechou o rosto, levantou-se devagar da cadeira, abriu uma gaveta da secretária, extraiu um documento do interior e, com passos lentos mas firmes, aproximou-se do intruso.
"com que autoridade vêm os senhores aqui incomodar-me?"
Como se esperasse a pergunta, o oficial retirou do bolso do casaco um documento que estendeu na direcção do seu interlocutor.
"A sua casa foi requisitada pela Kommandantur du GrossParis", anunciou com sobranceria. "Aqui está a requisição." Indicou um rabisco no fundo da folha. "Como pode constatar, encontra-se assinada pelo próprio general Von Choltitz."
Kaloust deitou um olhar ao documento escrito em alemão, mas não se dignou pegar nele. Em vez disso, mostrou ao oficial o papel que retirara da sua secretária.
"E isto é um documento a atestar que o senhor acabou de invadir um novo país", retorquiu em tom seco. "Como poderá verificar, senhor capitão, esta propriedade encontra-se sob protecção da legação diplomática iraniana, pelo que, para efeitos legais, deve ser considerada solo do Irão."
O alemão arregalou os olhos e pousou-os na folha, apanhado de surpresa pela resposta.
"Aber... aber..."
"Já viu que está a sujar o meu mármore com as suas botifarras?"
A atenção do capitão desceu para as botas.
"Was?"
Sem lhe dar tempo para replicar, o dono da casa levantou o braço e, com um gesto imperial, apontou para a entrada da mansão, para lá da qual se viam soldados da Wehrmacht a comportarem-se como se fossem os donos da propriedade.
"Feche a porta ao sair, se faz favor."
A rue de Rivoli estava transformada numa parada militar, com soldados alemães formados a meio da via e enormes bandeiras nazis, vermelhas com a suástica no meio, a esvoaçarem na elegante fachada do Hotel Meurice. Depois de passar por dois controlos, a limusina negra com a bandeira iraniana foi autorizada a estacionar ao lado de uma fila de automóveis parqueados junto às Tulherias.
Um oficial de farda verde-azeitona aproximou-se em passo rápido e, estendendo o braço, fez a saudação romana dos nazis ao pequeno homem que saía da porta traseira da viatura.
"Herr Sarkisian, da legação do Irão?", perguntou o militar num francês colorido por um forte sotaque alemão. "Heil Hitler!" Baixou o braço. "Sou o capitão Grass. Tenho ordens para o acompanhar até à Kommandantur." com um gesto indicou o edifício decorado com as bandeiras. "Par ici, s'il vous plait."
O Hotel Meurice havia sido transformado na sede da Kommandantur du Gross-Paris, a administração militar de ocupação de Paris e arredores. Além dos militares alemães que enxameavam o átrio, os salões e os corredores, por todo o interior do edifício multiplicavam-se as placas com indicações em língua germânica escritas em caracteres góticos, orientando os funcionários da Militàrbefehlshaber in Frankreich, a administração militar alemã em França.
As pessoas quase falavam por murmúrios, mas quando foi conduzido para o salão principal Kaloust começou a ouvir gargalhadas por entre o som de violinos numa melodia que julgou reconhecer.
"Strauss?"
O capitão Grass abanou a cabeça e arreganhou os dentes.
"Wagner."
Foram dar ao grande salão do edifício, uma divisão ricamente decorada ao estilo Luís XVI, como de resto todo o Lê Meurice. Decorria ali a recepção organizada pelas autoridades ocupantes em honra dos elementos da alta sociedade francesa e do corpo diplomático que haviam permanecido na cidade. O salão era ornamentado com candelabros de cristal, as paredes cobertas de espelhos antigos biselados e rasgadas por grandes janelas enquadradas por mármores raros.
O ambiente estava impregnado de uma estranha mistura de tensão e descontracção. Viam-se oficiais alemães a conversar e a rir-se com copos de champagne nas mãos, confraternizando com casais franceses provenientes dos estratos elevados da sociedade parisiense, em particular banqueiros e um punhado de políticos. O recém-chegado identificou junto aos músicos a figura esguia de Coco Chanel, em cujas boutiques da rue Cambon, de Deauville ou de Biarritz frequentemente Nunuphar se abastecia; como de costume, a estilista apresentava-se elegantíssima num característico vestido negro simples, enquanto sorria a dois oficiais alemães com quem conversava. Percorrendo a sala com o olhar, Kaloust reconheceu ainda alguns diplomatas que por um ou outro motivo haviam permanecido em Paris, ali o barão Johan Frisk, adido comercial da legação sueca, acolá o signore Romano Petri, embaixador de Itália.
O oficial que acompanhava Kaloust levou-o para uma ala do salão onde se concentrava a maior parte dos oficiais alemães e onde se fazia fila para os cumprimentar. O arménio sentiu-se pouco à vontade entre tantas fardas; era como se o tivessem arrastado para um covil de lobos. Trancou as emoções no rosto e aguardou na fila a oportunidade de cumprimentar a principal figura na sala, o comandante militar alemão de Paris, general Dietrich von Choltitz.
Quando chegou a vez do arménio, o capitão Grass segredou ao general a identidade do convidado.
"Ach so, o homem do petróleo!", exclamou o comandante, cumprimentando Kaloust com um sorriso forçado. "Têm-me falado muito de si..."
Um arrepio percorreu o corpo do convidado.
"Espero que bem."
O general Choltitz soltou uma gargalhada.
"Isso já não lhe posso garantir!" Fez sinal para as pessoas na fila atrás do arménio e baixou a voz, como se segredasse. "Falamos daqui a um bocadinho, pode ser?"
Quando se afastou e mergulhou entre os convidados, o arménio interrogou-se sobre o sentido das palavras do comandante militar alemão. O general conhecia-o, isso parecia-lhe evidente; não lhe chamara "o homem do petróleo"? Em bom rigor tal coisa não deveria ser surpreendente, afinal Kaloust era o homem mais rico do mundo. Como poderiam os Alemães ignorar esse facto quando o convidaram para a recepção no Lê Meurice? Se convidassem o recentemente falecido Rockefeller ou um Nobel, porventura ignorariam de quem se tratava? Então por que motivo não haveriam de saber quem era Kaloust Sarkisian? É certo que ele desenvolvia esforços de tal modo titânicos para passar despercebido que nem a imprensa alguma vez lhe conseguira captar um cliché; conseguira dar ao grande público a impressão de que o seu nome aludia a um fantasma, imaterial e fugidio, um apelido sem rosto. Os outros magnatas não logravam passar tão despercebidos; daí que, apesar de menos abastados, tivessem maior visibilidade pública.
Trocou umas palavras breves com Coco Chanel, a quem elogiou o vestido e prometeu uma visita para adquirir um perfume para a sua belle du jour, e pôs-se à conversa com o barão Frisk, velho parceiro de almoços no Ritz na companhia de Emanuel Nobel, o amigo que conhecera muitos anos antes quando visitara Baku. A conversa era banal, só um louco falaria de política no meio de tantos homens com a farda alemã, e nem sequer Kaloust prestava atenção às frivolidades que jorravam da sua própria boca. Pairava sobre o tempo ou sobre assuntos mundanos, mas a mente discorria em silêncio em torno das palavras do comandante militar alemão.
O general Choltitz dissera que pretendia falar com ele "mais tarde". O que lhe quereria? Seria um assunto desagradável? A questão suscitava-lhe desconforto. Os Alemães em geral deixavam-no inquieto; fora assim no tempo em que disputara com eles as concessões petrolíferas do Império Otomano, era assim agora. Além do mais, não podia esquecer o que Krikor e outros sobreviventes lhe tinham relatado sobre o comportamento dos militares alemães durante a matança dos Arménios na Grande Guerra. Como podia qualquer cristão permanecer indiferente à perseguição de outros cristãos pelos muçulmanos? E o que dizer desta nova guerra que os Alemães tinham imposto à Europa? O que estavam estes bárbaros a fazer em Paris? com que direito dispunham eles da sorte dos outros?
"Herr Sarkisian?", interpelou-o uma voz com sotaque gutural. "Herr Kommandant quer falar consigo."
Virou-se e viu o capitão Grass fazer sinal para que o acompanhasse. Despediu-se do barão Frisk e seguiu o oficial para fora do salão. Detiveram-se ao fundo de um corredor, Grass bateu a uma porta, uma voz mandou entrar e o alemão fez-lhe sinal para avançar.
"Bitte."
O arménio deu dois passos e penetrou num compartimento enorme, evidentemente uma sala que fora transformada em gabinete. Enxergou o general Choltitz imóvel junto à janela, o perfil iluminado por uma linha de luz desenhada pelo sol, a fachada imponente do Louvre plantada ao fundo como se o grande museu permanecesse indiferente às marés conturbadas da história.
Após um breve compasso de espera, o general rodou nos calcanhares, à maneira militar, e encarou-o.
"Ach, Herr Sarkisian!", exclamou com um esgar teatral. "Wunderbar!" Fez sinal para a cadeira instalada diante da secretária. "Sente-se! Por favor, sente-se!"
O arménio acomodou-se e aguardou que o anfitrião também ocupasse o seu lugar. O alemão extraiu do bolso uma caixa de havanos e estendeu-a na direcção do visitante, convidando-o a pegar num charuto.
"Não fumo, obrigado."
O general pôs um charuto na boca e acendeu-o com um isqueiro prateado. Uma nuvem roxa ondulou devagar diante do seu rosto duro; parecia um espectro a saracotear para cima até se desfazer no vazio, como se o próprio ar o engolisse.
"Temos um amigo comum", anunciou o alemão, os olhos azuis a dissecarem friamente o seu interlocutor. "Herr Hendryk van Tiggelen. Creio que o nome lhe diz alguma coisa..."
Kaloust sentiu ganas de engolir em seco, mas conteve-se. Desde que casara com Slava, Hendryk tornara-se visceralmente antibolchevique. A ascensão de Hitler na Alemanha, e em particular a sua retórica antibolchevique, aproximara perigosamente o holandês dos nazis. O problema é que Hendryk era agora seu inimigo pessoal; o que quer que tivesse dito aos seus amigos alemães não fora decerto coisa boa.
"Conheço-o bem."
O general Choltitz sorriu, talvez satisfeito com o desconforto que a referência ao presidente da Royal Dutch Shell tinha suscitado no seu convidado. Nada melhor do que o medo para pôr um homem no devido lugar.
"Pois o nosso amigo comum revelou-me que o senhor tem desenvolvido relações com os bolcheviques", disse num tom carregado de insinuações. "Relações estreitas, ao que parece."
"Sou um homem de negócios e relaciono-me com toda a gente", apressou-se Kaloust a esclarecer. "De resto, até vocês fizeram recentemente o mesmo. O que foi o recente Pacto Molotov-Ribbentrop senão um negócio desses?"
O comandante militar de Paris balançou afirmativamente a cabeça.
"Ach, Herr Sarkisian!", exclamou. "O senhor é muito forte, não há dúvida! De facto, também nós fazemos negócios com essa gente." Aspirou o seu havano e exalou uma abundante baforada. "E também podemos fazer negócio consigo."
A conversa entrava no seu ponto fulcral, percebeu o visitante. Teria de ser cuidadoso e mexer-se com prudência num terreno cujas regras não dominava na totalidade.
"Terei muito prazer em fazer negócio consigo, general. Em que lhe posso ser útil?"
O alemão pousou o charuto no cinzeiro, preocupado com evitar distracções que o desconcentrassem numa conversa tão delicada.
"O que nos preocupa é o petróleo, claro", disse sem subterfúgios. "Como sabe, o Reich não dispõe de campos petrolíferos e depende de importações que, com a eclosão da guerra, nos foram cortadas na sua maioria. Felizmente, e para além da nossa aposta na gasolina sintética, temos ainda o petróleo da Roménia, mas não escondo que esta dependência de uma única fonte de abastecimento nos parece assaz perigosa. O Reich precisa de acesso directo a fontes de abastecimento petrolífero mais variadas."
Kaloust percebia muito bem para onde a conversa o conduzia e decidiu lançar um contra-ataque decisivo; urgia depositar veneno onde ele mais pudesse fazer efeito.
"Os senhores são amigos de Hendryk van Tiggelen", lembrou com malícia. "Ele é o presidente da Royal Dutch Shell, neste momento a maior petrolífera do planeta. Está em excelente posição de vos ajudar, não é verdade?"
O general remexeu-se na sua cadeira, visivelmente desconfortável com a questão.
"Os camiões da Shell andam a transportar petróleo da Roménia até à Alemanha."
O arménio esboçou uma careta.
"Só isso? Pensava que ele era vosso amigo..."
O olhar do alemão pousou no charuto assente sobre o cinzeiro, contemplando o fio de fumo que se contorcia no ar como uma serpente encantada.
"Deve entender que Herr Van Tiggelen não pode fazer grande coisa", admitiu. "A Royal Dutch Shell é uma empresa britânica. Compreendemos as dificuldades que ele enfrenta e que o impedem de nos auxiliar da forma que decerto gostaria." Cravou os olhos no seu interlocutor. "Mas o senhor está numa posição diferente. Creio que nos poderá ser muito útil."
O arménio abanou a cabeça.
"Receio bem que os meus poderes sejam mais limitados do que os do senhor Van Tiggelen", disse. "A minha participação na Turkish Petroleum Company reduz-se aos dividendos referentes a cinco por cento dos lucros. Não tenho campos que sejam meus, não disponho de poços próprios, não possuo tanques de armazenamento nem refinarias. Não vejo bem como possa fazer chegar abastecimentos à Alemanha."
Os dedos do general Choltitz remexeram-se ao longo da madeira da secretária, como se eles próprios estivessem a reflectir no assunto.
"Mas o senhor é um diplomata iraniano..."
Foi nesse instante que Kaloust percebeu que não era a Turkish Petroleum Company que interessava aos Alemães. Era o petróleo do Irão.
"Posso dar uma palavrinha a sua alteza, o xá, a vosso favor", disse, esforçando-se por fingir sinceridade. "Mas não escondo que será difícil. Como sabe, os Britânicos e os Americanos dispõem das concessões iranianas. Se o Irão cedesse direitos à Alemanha sujeitava-se a ser invadido pelos Ingleses que se concentram na vizinha índia. Não creio que sua majestade, o xá, se queira sujeitar a uma coisa dessas."
O alemão sorriu.
"Se calhar os nossos aliados amarelos, os Japoneses, irão um dia destes tratar da saúde dos Britânicos na Ásia." Encolheu os ombros. "Quem sabe se os Ingleses não ficam kapput?"
Kaloust passou a palma da mão pela barba, ponderando esta observação. Os Japoneses estavam de facto muito agressivos na Ásia, com a invasão da Manchúria e a iminente ocupação da Indochina francesa. Corria que, se isso se concretizasse, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha iriam declarar um embargo petrolífero retaliatório contra o Japão, o que poria as duas partes em rota de colisão. Será que o general Choltitz estava apenas a conjecturar uma possibilidade ou saberia alguma coisa de concreto?
"Então esperemos por esse dia", acabou o visitante por dizer, contornando habilidosamente o problema. "Se os Britânicos forem neutralizados na Ásia, não vejo motivos para sua alteza, o xá, não fazer negócio com a Alemanha. Com certeza que o irei encorajar nesse sentido, pode o senhor ficar descansado."
O alemão perscrutou-o inquisitivamente, como se lhe tentasse dissecar a mente.
"Ach! Nós próprios temos falado com o xá e ele tem mostrado simpatia para connosco. Mas sabemos que sua majestade o tem em grande conta e queremos ter a certeza de que o senhor não nos vai criar problemas."
O arménio abriu os braços.
"Estou aqui convosco, não estou? Poderia ter fugido de Paris, mas não o fiz para vos mostrar as minhas boas intenções. O problema é que o Irão é um país neutral e, apesar da simpatia do xá pela Alemanha, a verdade é que não tem razões para violar essa neutralidade. No momento em que estiver em condições de ajudar, fá-lo-á decerto."
Ou seja, pensou Kaloust, nunca.
Intuindo a duplicidade do seu interlocutor, o general Choltitz esmagou o charuto no cinzeiro e, com um gesto decidido, ergueu-se do seu lugar, dando a reunião por terminada; parecia-lhe evidente que, sem uma evolução decisiva no teatro de operações, nada de útil extrairia de Kaloust. Trocou com o arménio algumas palavras de circunstância e, já com uma ponta de impaciência a transparecer, acompanhou-o até ao corredor. Antes de chegar à porta, todavia, foi travado pelo seu convidado, que se deteve diante dele.
"Tenho uma questão a apresentar-lhe, se me permite", disse o visitante, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. "As autoridades de ocupação requisitaram quase todas as casas da rua onde eu vivo, a avenue d'Iena, e já por duas vezes tentaram entrar na minha residência."
"Assim é, de facto. Precisamos de alojar as nossas altas patentes e nem todos querem ficar instalados em hotéis.
Mas fui informado de que a sua mansão está abrangida pelo estatuto diplomático."
"Assim é, de facto. Acontece que vou em breve juntar-me ao resto da missão diplomática do Irão que está creditada junto do governo francês e... enfim, há sempre o risco de a situação internacional evoluir num sentido desagradável. Imagine que o Irão se incompatibiliza com a Alemanha..."
O general soergueu o sobrolho.
"O que está a insinuar?"
"É uma mera hipótese académica, claro. Mas temos de considerar todas as possibilidades. Numa tal situação, a casa perderia a imunidade diplomática. Assim sendo, eu estaria na disposição de.... digamos, de oferecer um... um prémio, está a ver?"
"Um prémio?"
"Sim, um prémio. Ou, se preferir, chamemos-lhe uma... como direi?, uma... garantia. Sim, uma garantia de que a mansão não será requisitada nem o seu recheio tocado. Não sei se me entende."
Os dados estavam lançados. Kaloust fitou o seu interlocutor com intensidade, medindo-lhe a reacção; chegara o momento da verdade. Viu o general olhar em redor, evidentemente a certificar-se de que ninguém os escutava; estavam a sós no gabinete, mas nunca se sabia.
"E... em que consiste tal garantia?"
Foi nesse instante que percebeu que tinha ganho a aposta. O anfitrião havia engolido o isco que lhe lançara; bastava puxá-lo com habilidade. Meteu a mão ao bolso do casaco e tirou três folhas de papel com um logotipo no topo e um texto dactilografado em alemão.
"Um milhão de francos suíços depositados nesta conta em Zurique", revelou. "O presidente do banco é um amigo meu com ordens para, no final da ocupação alemã de Paris, entregar a uma pessoa da minha escolha o valor em causa depois de se certificar de que a mansão e o seu recheio não foram tocados."
Os olhos do comandante militar de Paris saltitaram entre o documento e o rosto do seu interlocutor, como se avaliassem a proposta. Pegou por fim nas folhas do banco suíço e estendeu a mão ao visitante, despedindo-se com um sorriso.
"vou analisar o assunto, Herr Sarkisian, e dar-lhe-ei notícias em tempo oportuno", anunciou. "Mas creio que o senhor pode estar tranquilo quanto às nossas intenções. Somos alemães, não somos selvagens. Saberemos respeitar escrupulosamente a propriedade privada das pessoas de bem, como é sem dúvida o seu caso." Estendeu o braço na saudação romana. "Heil Hitler!"
Quando a porta se fechou atrás dele e começou a percorrer o corredor do Lê Meurice no encalço do capitão Grass, Kaloust sabia que podia partir de Paris tranquilo; não tinha de se preocupar mais com os seus bens na cidade. A mansão estava segura.
A vasta barriga do Short S23 Empire embateu na água e todo o avião estremeceu. Espreitando pela janela, Krikor viu a espuma escorregar pelo vidro como baba fugidia; o aparelho parecia prestes a afundar-se e ele teve de dominar um acesso de pânico. Os motores rugiram com intensidade; dava a impressão de que lutavam para evitar o pior, e na verdade esforçavam-se por estabilizar o hidroavião. O Empire começou a flutuar e, logo que os motores se calaram e as hélices se imobilizaram, um suspiro de alívio percorreu os passageiros. A viagem com partida de Bournemouth durara nove horas, sob ameaça de intercepção pelos temíveis Messerschmitt da Luftwaffe quando passaram ao largo da costa francesa, mas tinham chegado sãos e salvos ao destino.
"Senhores passageiros, amaramos em Lisboa", anunciou a voz da hospedeira pelo intercomunicador. "Vamos agora dar início aos procedimentos de desembarque. Obrigada por terem voado na British Overseas Airways Corporation e esperamos vê-los em breve de novo entre nós. Cheerio."
Minutos depois a porta para o exterior abriu-se e o casco foi lambido por pequenas ondas, que chapinhavam junto à abertura e salpicavam o interior do avião. Uma lancha com a bandeira portuguesa deslizou até junto da saída do Empire. com gestos cautelosos e agarrando-se aos tripulantes ingleses e aos marinheiros portugueses, Krikor cruzou uma pequena plataforma e instalou-se num lugar à proa da embarcação.
Percorreu o horizonte com olhos curiosos e a primeira coisa que percebeu foi que havia outros hidroaviões a balouçar na bacia do Tejo. A sua atenção fixou-se sobretudo num imponente Boeing B-314 Clipper com as cores da PanAmerican pintadas nas asas; o aparelho era de tal modo gigantesco que, sabia, até dispunha de espaço para sala de jantar. Como Lisboa ficava na ponta ocidental da Europa e Portugal não estava em guerra, a cidade tornara-se o destino europeu dos voos transatlânticos com a América, o que explicava a presença naquelas águas do magnífico gigante dos ares.
A lancha afastou-se do Empire e o olhar do passageiro desviou-se para o horizonte. O casario pitoresco da capital portuguesa recortava-se em fundo, os edifícios brancos com telhados vermelhos reflectidos no espelho de água ondulante, as gaivotas a grasnarem num coro desordenado e melancólico. Um odor picante a maresia enchia o ar suave e um sol brando acariciava com doçura as faces pálidas dos recém-chegados. Contemplando o enorme estuário, com a cidade a erguer-se em sucessivos promontórios, Krikor não deixou de se sentir surpreendido. Nunca o adivinharia, mas Lisboa parecia-se estranhamente com a velha Constantinopla e o Tejo dava-se ares de Bósforo; em vez dos minaretes das mesquitas, porém, a silhueta da cidade era dominada pelos campanários das igrejas.
"Ah!", murmurou. "O pai gostaria de ver isto!"
Ao chegar ao cais de Cabo Ruivo, e depois de despachadas as formalidades alfandegárias no recentemente inaugurado aeroporto marítimo, foi interpelado por um homem com uns cinquenta anos, de chapéu e rosto oval, com um maço de cigarros Swan na mão.
"Pardon, m'sieur", disse o homem, evidentemente um francês. "Tem lume?"
O recém-chegado reconheceu o maço.
"Acabei de chegar no hidroavião", respondeu. "Voei como uma pena."
O maço Swan e a expressão "voei como uma pena" eram as palavras de código combinadas para ser identificado e identificar o seu contacto em Lisboa. O homem sorriu e levantou o chapéu para o cumprimentar, descobrindo a cabeça calva.
"Chamo-me Jean Monnet e recebi uma comunicação telegráfica do Tio para o ajudar." Virou as costas e fez-lhe sinal. "Queira acompanhar-me, por favor."
O viajante seguiu o seu anfitrião, admirando a eficiência do pessoal de Bletchley Park. Sir Philip Blake, o velho amigo do pai, havia-o apresentado ao Tio, o nome de código de um chefe de secção dos serviços de espionagem britânicos da Estação X, em Bletchley Park. Depois de algumas conversas e umas semanas de treino, Krikor fora apressadamente recrutado para uma missão secreta em Vichy. Como o pai saíra de Paris e se transferira para a nova capital francesa, devido às suas obrigações junto da legação iraniana, isso constituía o pretexto perfeito para a viagem; os Alemães não desconfiariam dele e urgia aproveitar a oportunidade.
Ao sair do Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo atrás do seu guia, Krikor foi-se apercebendo de uma frota de RollsRoyce e Mercedes negros e poeirentos, carros de luxo cujo brilho se apagara sob um espesso manto de pó, estacionados ao longo da rua com um certo ar abandonado, como se tivessem sido esquecidos pelos donos.
"Os Portugueses deixam assim os Rolls-Royce?'", admirou-se. "Caramba, devem ser abastados!"
O francês soltou uma gargalhada.
"Estes carros pertencem a judeus ricos", explicou. "Atravessaram a Europa a fugir dos Alemães e vieram para Lisboa com a ideia de irem para a América. Largaram os carros por aí e foram a correr apanhar o Clipper.'"
"O Clipper voa para a América carregado de milionários judeus?"
"Milionários, mas não só. Artistas e intelectuais também. Ainda no outro dia vim aqui trazer o Chagall o Mareei Duchamp... sabe, aquele do urinol que..."
Krikor revirou os olhos; quantas vezes o pai não lhe falara naquele nome ao jantar, e nem sempre de forma apreciativa?
"Então não sei?"
Instalaram-se num Renault e Monnet levou o recém-chegado pelo centro de Lisboa, de modo a mostrar-lhe a cidade. Na grande praça central, o Rossio, Krikor avistou uma multidão ociosa; era um mar de gente carregada de malas e trouxas, a consumir cafés e cigarros nervosos, uns nas esplanadas, outros sentados sobre as malas, as expressões angustiadas, os olhares perdidos, as posturas derrotadas.
"São portugueses?"
"Judeus, mas neste caso a arraia-miúda. Chegam aos milhares, lês pauvres, e concentram-se aqui à espera de uma oportunidade para atravessar o Atlântico."
"No Clipper?"
O francês soltou uma gargalhada seca, sem humor.
"Qual Clipper! Isso é para ricos e artistas, mon cher!" Fez um gesto pela janela do automóvel. "Estes são uns desgraçados. Vieram de comboio com vistos para quinze dias, comem na Cozinha Económica Israelita e rezam para que um barco qualquer os leve para a América antes que os vistos caduquem." Suspirou. "Isto é uma desgraça. Portugal é praticamente o único país da Europa que lhes dá acolhimento. É inacreditável."
Depois de cruzar o Rossio, o carro meteu pelos Restauradores e subiu a pacata Avenida da Liberdade. Viam-se ainda alguns refugiados, uns sentados nos bancos públicos e outros a deslizarem pelos passeios como fantasmas tristes, a arrastarem malas ou a segurarem em crianças. Os ocupantes do Renault contemplaram-nos num silêncio impotente. Ao recém-chegado, a imagem trazia-lhe reminiscências do que vira em 1915 no Império Otomano.
"Coitados", murmurou por fim. "Parecem os Arménios a fugir dos Turcos..."
Jean Monnet mantinha igualmente os olhos cravados nos refugiados judeus.
"Quando esta guerra acabar", disse, "teremos de reconstruir a Europa de uma maneira diferente para que coisas destas não se repitam."
"Sonhos", observou Krikor. "A Europa não tem emenda."
Sentado ao lado do chauffeur, Monnet virou-se para trás e fitou intensamente o recém-chegado. Parecia que fazia uma promessa solene.
"On verra, mon cher."
Apesar de Krikor ter permanecido apenas vinte e quatro horas em Lisboa, a cidade começou por deixar nele uma viva impressão. Ao contrário do que se passava no resto da Europa, a capital portuguesa parecia uma cidade ordeira e tranquila. Luxo dos luxos que surpreendeu o visitante, dispunha até de iluminação nocturna, um feito num continente mergulhado na treva da guerra com receio dos bombardeamentos nocturnos.
Instalou-se no Hotel Aviz, recomendado por Monnet e cujas instalações e serviços o deixaram favoravelmente impressionado.
"Não é o Ritz, claro", observou o recém-chegado ao jantar enquanto esperavam pelos pratos que haviam encomendado, "mas parece muito satisfatório."
Jean Monnet sorriu e indicou com um movimento discreto dois homens sentados à conversa a uma mesa à janela, um louro e pálido e o outro moreno.
"Aqueles são o Fõrster e o Omerti, os chefes dos espiões alemães e italianos aqui em Lisboa", sussurrou. "Tenha cuidado com o que diz, isto é um antro de espionagem."
O maítre d'hotel apareceu nesse instante com a travessa fumegante. Depositou diante dos fregueses dois pratos de pargo aux champignons que Monnet havia previamente gabado.
"O pintainho saiu do ninho", disse o chefe de serviço de repente, lançando um olhar carregado de suspeita na direcção de Krikor. "Acha que já pode voar?"
O francês sorriu.
"O meu amigo é de confiança, Rapetti", disse. "Conte lá o que soube."
"Ouvi uma conversa daqueles dois", soprou o empregado do Aviz com uma expressão comprometida, espreitando o alemão e o italiano para se certificar de que não o viam aos segredinhos. "Parece que marcaram um jantar aqui no Aviz com o duque de Windsor."
"O duque de Windsor, Rapetti? Ouviste bem?"
"Sim, senhor. O duque de Windsor." Fez sinal com a cabeça, indicando Fõrster e Omerti. "Do que percebi, vão fazer-lhe uma proposta qualquer. Estão a conversar em italiano e deu-me a impressão de que lhe querem prometer o trono de Inglaterra para quando a Alemanha ganhar a guerra."
Voilá!
O francês deitou a mão ao bolso e extraiu da carteira uma nota de vinte escudos, que o empregado guardou com um movimento furtivo. Krikor quis interrogar o seu cicerone sobre o que acabava de testemunhar, mas Monnet fez um gesto para o silenciar e limitaram-se a comentar a gastronomia local e pormenores da vida em Lisboa desde que a guerra eclodira na Europa.
A seguir ao jantar, e depois de constatarem que o empregado conversava em tom conspirativo com Fõrster e Omerti, subiram ao quarto reservado para Krikor. Quando a porta se fechou, o arménio não se conteve.
"Que diabo aconteceu lá em..."
O seu guia colou o indicador aos lábios.
"Chiu!"
Monnet dirigiu-se à janela e abriu-a, deixando entrar o som do trânsito que circulava diante do hotel. Ouvia-se o roncar dos motores e a ocasional buzinadela.
"Que está a fazer?", quis saber Krikor. "Quer matar-me de frio ou quê?"
O francês sentou-se na borda da janela, as costas voltadas
para a rua.
"É mais seguro assim", disse. "Se houver microfones escondidos no quarto, o barulho do tráfego abafará a conversa." Fez sinal para o chão, indicando o piso inferior. "O mattre d'hotel dá informações a toda a gente e recebe dinheiro de todos. Conta-nos o que ouviu os alemães dizerem e depois vai-lhes contar o que nos ouviu dizer. Todos os dias apresenta um relatório à polícia portuguesa, a nós, aos americanos, aos alemães e aos italianos sobre quem se encontrou com quem e o que lhes ouviu dizer. Um perigo."
Krikor arregalou os olhos.
"Caramba!", exclamou. "Acha que ele inventou aquela conversa do duque de Windsor?"
"Não. O tipo recebe de toda a gente, todos o sabem, mas a informação é fidedigna."
"Bem, se assim é, estamos perante um escândalo. Já viu? Os alemães a conversarem com o duque de Windsor?"
"Não se preocupe com esse assunto, vou comunicar o caso ao Tio." Retirou uma folha do bolso e estendeu-a ao seu protegido. "Memorize o nome e o endereço que aqui estão e queime a folha."
"O que é isto?"
com um salto curto, Monnet abandonou a borda da janela e dirigiu-se à porta do quarto para sair.
"É o seu contacto em Vichy."
Após um passeio na manhã seguinte pelo Estoril e por Cascais, Krikor apresentou-se com a sua mala no recentemente construído aeroporto da Portela. O que mais o chocou quando espreitou a pista foi ver um avião alemão ao lado de um aparelho britânico, as respectivas tripulações a cruzarem-se sem se começarem a matar. Tanta normalidade parecia anormal!
Depois do check-in, despediu-se de Monnet e foi para a zona de embarque. Apanhou um voo da companhia aérea portuguesa com destino a Roma e paragens em Madrid, Barcelona e na Córsega. A Aero-Portuguesa era a única transportadora aérea de um país neutral autorizada a voar para os países beligerantes, o que lhe conferia enorme prestígio nas capitais europeias.
Saiu do Junkers B-52 da Aero-Portuguesa na cidade catalã e, como convinha a um Sarkisian, instalou-se no Ritz. O contraste com a tranquilidade de Lisboa não podia ser maior. Deparou-se em Espanha com uma situação caótica. A economia estava mergulhada no caos e uma legião de desempregados em trajos imundos enchia as ruas. Ninguém falava inglês ou francês e Krikor foi-se desembaraçando num castelhano rudimentar, cortesia do que Maria Silvia lhe ia ensinando em casa; as coisas não iam bem com a mulher, as loucuras dela deixavam-no a ele próprio louco, mas ao menos começara a aprender a língua.
Inquiriu junto do gerente do Ritz qual a melhor forma de entrar em França, mas o homem abanou a cabeça.
"A fronteira está cerrada", comunicou-lhe o gerente. "O mejor é aguardar."
Permaneceu alguns dias em Barcelona à espera de uma oportunidade para seguir viagem, embora as condições de vida que encontrou o tenham deixado exasperado. O próprio Ritz, supostamente um hotel de grande luxo, se apresentava degradado para além do aceitável, com a carpete suja e alguns móveis riscados. Ocupou a suíte presidencial, ou não fosse ele quem era, mas descobriu que o soalho estava manchado de tinta e as paredes tinham traços de gordura.
Além disso, a comida no restaurante do hotel revelou-se pavorosa, só havia sopa e vegetais, e depressa descobriu que na cidade era ainda pior. A baixa qualidade da comida no Ritz não parecia grave para quem tinha sobrevivido às marchas da morte arménias, mas era catastrófica para os elevados padrões da cadeia de hotéis que o pai ajudara a fundar.
Ao terceiro dia, contudo, o empregado do restaurante do Ritz aproximou-se dele com um sorriso.
"Tenho buenas notícias para si, senor", anunciou o espanhol. "Muy buenas!" Inclinou-se para o cliente como se quisesse partilhar um segredo. "Hoje temos carne!"
"Verdad?"
O rosto do empregado refulgia de orgulho.
"Si, senor. Excelente carne!" Voltou a inclinar-se, obsequioso. "Vai um bifezinho?"
Krikor esfregou as mãos uma na outra, a saliva já a encher-lhe a boca esfaimada.
"com certeza! Venha ele!" Imitou um trejeito que aprendera com a mulher. "Venga, venga!"
O homem reapareceu vinte minutos mais tarde na companhia de outros dois ajudantes; traziam uma travessa coberta por uma tampa de prata e aquecida pela chama branda de um fogão portátil. O empregado levantou a tampa com um floreado, como se a travessa contivesse caviar ou ouro, e exibiu um pedaço de carne de aspecto apetitoso, acompanhado por batatas assadas e umas folhas de alface. À luz do que tinha metido na boca nos últimos dias, tratava-se de uma refeição opípara. Sem perder tempo, depositou o bife no prato e cortou uma fatia.
"Hmm...", murmurou, saboreando a carne num deleite de olhos cerrados. "Ah, divinal!"
As pupilas dos empregados brilhavam de contentamento.
"Gracias, senor. Gracias, gracias!"
A carne tinha um ligeiro travo adocicado, diferente da que habitualmente comia em Inglaterra, mas era sem dúvida tenra e saborosa. Devorou-a em alguns minutos e, quando acabou, fez de novo sinal ao empregado.
"Onde arranjaram este bife? É touro ou quê?"
O homem arregalou os olhos, horrorizado.
"Touro? No, senor! No, no! Touro é muito duro. Nós respeitamos os clientes, nunca daríamos touro a ninguém! NÍ hablar!" Pousou os olhos no prato vazio. "Isso é um caballito."
"Um quê?"
"Um caballito, senor. Um belo cavalo."
Cansou-se de esperar em Barcelona e, depois de se aconselhar no consulado alemão, apanhou um comboio até à fronteira francesa. As composições iam carregadas de gente. Krikor não conseguia imaginar o que atraía os Espanhóis a um país que acabara de ser ocupado.
A linha férrea terminou a poucos quilómetros de Gerona, obrigando os passageiros a pegarem nas malas e a fazerem a caminhada até à cidade, onde a maior parte ficou. O arménio conseguiu alugar em Gerona um táxi com aspecto decrépito e preço exorbitante e seguiu para a fronteira de Port Bou. Preparou-se para uma árdua negociação com as autoridades fronteiriças francesas, mas as portas abriram-se logo que mostrou o passaporte diplomático iraniano que o pai lhe arranjara antes ainda de a guerra começar.
A França era um país em movimento. A ordem de desmobilização do exército francês tinha acabado de ser dada e as estradas enchiam-se de gente a pé de um lado para o outro; viam-se civis com trouxas e carroças e soldados franceses de uniforme mas com os botões e símbolos de patentes arrancados. Os refugiados do Norte que tinham fugido do avanço alemão queriam regressar a casa, enquanto muitas pessoas que se encontravam na zona ocupada tentavam deslocar-se para sul.
O serviço ferroviário parecia desregulado, mas ia funcionando. Depois de uma espera de três horas na estação de Port Bou, Krikor conseguiu apanhar um comboio para Perpignan, de onde obteve uma ligação em direcção a Montpellier. Desde que entrara em França que evitava abrir a boca, com receio de que o seu sotaque britânico o denunciasse, mas não lhe foi possível manter o silêncio nesta última viagem. Ocupou um assento num pequeno compartimento onde se apertavam três outros passageiros, dois soldados desmobilizados e uma matrona francesa que fazia tricot e tinha aos pés um cesto de onde espreitava a ponta de um garrafão de vinho tinto.
Um homem de uniforme entrou de repente no compartimento.
"Billets, s'il vous plait!"
Era o revisor, um homenzinho baixo de bigode carregado. Depois de inspeccionar o bilhete da francesa, pegou na passagem de Krikor.
"Qual é o seu destino?"
"Vichy."
"Este comboio não pára em Vichy."
A novidade surpreendeu o viajante.
"Oh, não me diga isso!", exclamou. "Então como poderei lá chegar?"
Ao ouvi-lo falar, o revisor estreitou as pálpebras e fitou-o com atenção, como se tentasse ler-lhe o rosto depois de lhe ter digerido o sotaque.
"M'sieur é inglês?"
Krikor corou; as suas palavras traíram-no. O problema é que não era um espião treinado para mentir, pelo que o Tio o tinha aconselhado em Bletchley Park a responder com a verdade na medida do possível sempre que fosse questionado; qualquer mentira que os seus interlocutores detectassem levantaria suspeitas inconvenientes.
"Sou um diplomata iraniano", disse. "Mas tenho educação inglesa e de facto venho de Londres."
Fez-se um silêncio profundo no compartimento. A revelação atraiu sobre ele a atenção de todas as pessoas que ali se encontravam, como se os olhos fossem imanes e Krikor um magneto.
"Ah, lês anglais!", rosnou por fim a matrona francesa, quebrando o silêncio e recomeçando a mexer os dedos nervosos no seu tricot interminável "São uns salauds, é o que são! Deixaram os nossos rapazes morrer e fugiram para Dunquerque para salvarem os seus ricos rabos! Hmpf! Uns cochons!" Parou de tricotar e esboçou um gesto na direcção da janela. "Agora até nos dão facadas nas costas! Viram o que eles fizeram à nossa frota em Mersel-Kebir? Viram? Afundaram-na toda, os bandidos!" Regressou com fúria ao tricot. "Ah, lês anglais..."
"Mas, minha senhora", argumentou Krikor. "A frota poderia cair nas mãos dos Alemães. Isso, como compreenderá, constituía um perigo inaceitável para Inglaterra."
"São salauds!", cuspiu ela, a língua a chispar veneno. "Salauds, salauds, salauds!"
Os dois soldados franceses entreolharam-se, ponderando se deveriam dizer alguma coisa.
"Enfim, a nossa queixa diz sobretudo respeito à forma como os Ingleses nos abandonaram em Dunquerque", acabou um deles por afirmar, como se o estrangeiro fosse um correio de recados para Londres. "Deixaram-nos sozinhos com os Alemães e pisgaram-se." Sacudiu a mão direita. "Oh Ia Ia!, isso criou ressentimento, se criou!"
Krikor ainda admitiu argumentar, fazer ver que a batalha estava perdida quando as forças britânicas fugiram e que foi melhor adiar o embate final para uma oportunidade mais conveniente do que resistir quando as circunstâncias eram tão desfavoráveis. Pensou tudo isso numa fracção de segundo, mas calou-se. Para quê discutir? Não seria melhor manter-se discreto? De que lhe servia tentar convencer aquelas almas humilhadas pela derrota e que a tentavam justificar com o falhanço de terceiros?
Vendo o estrangeiro sob fogo cerrado dos seus companheiros de viagem, o revisor pousou-lhe a mão no ombro e esboçou um sorriso encorajador.
"Quando regressar a Londres, mon ami, diga-lhes quanto admiramos a resistência deles", recomendou. Lançou um esgar de repreensão na direcção dos passageiros franceses. "Diga-lhes sobretudo que a maior parte dos Franceses está com eles." Fitou-o de novo. "Diz-lhes?"
"Bien sur."
O revisor deu meia volta e regressou ao corredor. Antes de se afastar, porém, atirou um último olhar a Krikor.
"Saia na estação de Saint Germain-des-Fossés", recomendou. "É a mais próxima de Vichy."
A atenção de Krikor desviou-se instantaneamente para o mapa onde se assinalava o percurso da linha férrea. Considerando o ritmo a que progrediam e as paragens que ainda tinham pela frente, raciocinou, Saint Germain-de-Fossés ficava a cerca de hora e meia de distância. Da estação telefonaria
aos pais e em breve estaria com eles em Vichy. merci."
"E se vir por lá o marechal Pétain", acrescentou o revisor após a pausa para deixar o passageiro consultar o mapa, "dê-lhe um pontapé no traseiro por mim!"
Piscou o olho e, afagando o bigode farfalhudo, decerto orgulhoso pela sua vontade, mergulhou sorridente pelo corredor e desapareceu no compartimento seguinte, o vozeirão a clamar por "billets, s'il vous plaít!"
O vozear irrequieto das crianças ao ar livre, intercalado amiúde por gargalhadas e gritos de brincadeira, transformou-se de repente num coro a que se seguiu uma prolongada ovação e uma salva de palmas. Os três Sarkisian cirandavam pelo rés-do-chão do Hotel du Pare, Nunuphar a espreitar a loja de Louis Vuitton, o marido e o filho à procura de um lugar no restaurante Chantecler.
Apercebendo-se da ovação, Kaloust virou-se para a porta do hotel, enquadrada por duas sentinelas e por uma grande bandeira francesa, e viu passar uma figura pequena e magra; tratava-se de um octogenário de fato escuro, gravata azul e chapéu de coco, com um espesso bigode branco na face ossuda, rodeado por oficiais e altos funcionários.
O arménio fez sinal a Krikor.
"Aí vai ele."
A atenção do filho desviou-se para os homens que atravessavam a rua nos seus melhores fatos ou em fardas de gala.
"Ele, quem?"
"O Pétain, quem haveria de ser?", indicou o pai. "É o pequenote que segue à frente."
Ficaram por momentos a observar o presidente francês a cruzar o parque por entre os aplausos das crianças e a curiosidade dos mirones, e a mergulhar numa igreja onde estava para começar a missa das onze. Passada a perturbação, os Sarkisian instalaram-se a uma mesa do Chantecler e pediram um café enquanto aguardavam que Nunuphar percorresse as lojas de luxo do Hotel du Pare.
"M'sieur Sarkisian, como está?"
Kaloust voltou-se e reconheceu o homem que se chegara à mesa e o interpelara.
"Ah, m'sieur Da Silva!", exclamou. "Já lhe apresentei o meu rapaz?" Voltou-se para o filho. "Krikor, este é m'sieur Manuel Nunes da Silva, secretário da legação portuguesa e um bom amigo aqui em Vichy."
Krikor levantou-se para apertar a mão do recém-chegado e arranjar-lhe um lugar à mesa.
"Que tal o portinho que lhe dei noutro dia?", perguntou o português a Kaloust logo que se acomodou. "Estava fino?"
"Ah, uma maravilha! Uma maravilha!", exclamou o arménio, a boca de repente a salivar com a memória do néctar que voltara a provar ainda na noite anterior. Inclinou-se para o seu interlocutor. "Será que me arranja mais? A minha Nunuphar também adora o vosso vinho do Porto e, infelizmente, a garrafa já vai quase no fim..."
"com certeza, m'sieur Sarkisian. A mala diplomática deve chegar esta semana de Lisboa com mais umas garrafitas para a minha adega. Terei muito gosto em oferecer-lhe uma delas."
"Excelente."
O empregado trouxe os cafés e pousou-os na mesa. Nessa altura apareceram mais três homens de fato e gravata que Kaloust apresentou ao filho como sendo dois altos funcionários franceses, seus vizinhos no Hotel Majestic, e um diplomata espanhol. Todos se instalaram à mesa, alargando para seis o número de homens ali sentados.
"Então veio de Londres?", perguntou um dos franceses, um homem obeso chamado Vallat. "Como está a Inglaterra a aguentar-se?"
"Para já tudo corre bem", retorquiu Krikor. "Os Alemães andam entretidos a bombardear-nos, mas os Spitfire estão a dar-lhes valente réplica. O nosso lema é 'keep smiling', we can take it!"
Vallat fez um gesto com a mão.
"Fanfarronices!", sentenciou. "A Inglaterra está derrotada e tem de o assumir de uma vez por todas. A guerra terminou e os Ingleses fariam bem em acabar com a fantochada!"
"Parecem Don Quijote", atalhou o espanhol. "Lutam contra moinhos de vento em vez de abraçarem os ventos da história! Hombre, sejam machos e assumam que perderam!"
"Parbleu, para que serve continuarem a combater?", questionou o segundo francês. "Chegou a hora de baixarem as armas!" Fez um gesto a indicar o espaço em redor. "Essa teimosia está a dificultar a vida a toda a gente! Mon Dieu, será possível que não percebam que a Inglaterra está de joelhos?"
Mantendo-se imperturbável, Krikor saboreou um travo do seu café. Depois pousou devagar a pequena chávena fumegante e, em jeito de desafio, passeou os olhos pelos homens que o fitavam.
"Se a Inglaterra está batida, meus caros, ninguém ainda nos informou", observou num tom irónico. "Acreditem ou não, nós vamos tenir lê coup!"
A ideia em França, e em Vichy em particular, era que a resistência britânica já não fazia qualquer sentido. Esta convicção perpassava em todas as conversas e deixava os Sarkisian incomodados. Beneficiando de uma intervenção da mãe, Krikor conseguira alojamento no sobrelotado Hotel dês Ambassadeurs, onde se concentrava a generalidade do corpo diplomático na cidade e onde tinha a todo o momento de ouvir comentários que lhe eram dirigidos sempre que alguém o identificava como "1'homme de Londres'".
Tornou-se também frequentador assíduo do Hotel Majestic, escolhido para sede do governo do marechal Pétain e onde os pais se conseguiram instalar a peso de ouro, juntamente com o cozinheiro, o mordomo, o massagista, o motorista e respectivas mulheres, e ainda madame Duprés. O problema é que igualmente aqui as conversas iam sempre dar ao mesmo ponto: a teimosia inglesa em adiar a derrota inevitável.
As excepções eram o embaixador americano e o encarregado de negócios canadiano. O almirante Leahy, que representava os Estados Unidos junto do governo de Vichy, revelou-se de tal modo favorável aos Britânicos que punha diariamente o aparelho de telefonia na janela dos seus escritórios diplomáticos e deixava-o sintonizado em altos berros na BBC em língua francesa, cuja escuta era proibida pelo governo do marechal Pétain.
"Um escândalo!", vociferavam os funcionários franceses que por ali passavam. "Uma provocação!"
Preocupado com manter o equilíbrio físico e mental em tempos tão difíceis, Kaloust fez questão de prosseguir os seus hábitos pouco ortodoxos de rejuvenescimento. No fim de contas, argumentava com frequência, se já ia nos setenta e um anos e continuava cheio de energia era porque as suas rotinas apresentavam resultados. Madame Duprés continuava a organizar-lhe a vida, e em particular tudo o que dizia respeito à "terapia". Para belle du four em Vichy o multimilionário arménio descobrira uma morena voluptuosa logo na primeira semana atrás da mesa de blackjack no Grand Casino da cidade e, como de costume, a fiel secretária adequadamente contratara-a, preparara-a e acomodara-a no Hotel Algerie.
É certo que o Algerie não se revelou do inteiro agrado de Kaloust, uma vez que estava aí instalado o Commissariat general dês questions juives, entidade criada por Pétain para "tratar da escumalha hebraica". A telefonia era frequentemente ligada em altos berros nos corredores do hotel, não para difundir a BBC, como fazia o embaixador americano, mas, ao que se dizia, para abafar os gritos dos judeus torturados no interior do edifício. Todavia, sempre que se queixava a madame Duprés da má reputação daquelas instalações e do barulho infernal da telefonia e dos rumores sobre tortura e dava sinais de querer mudar o poiso da morena voluptuosa, Kaloust enfrentava o mesmo argumento.
"Para onde quer o senhor ir?", perguntava-lhe a secretária com o seu sentido prático característico. "Para o Hotel du Lac, onde vive o marechal Pétain? Para o Hotel de Ia Paix, onde se instalou o Ministério da Informação e Propaganda? Para o Hotel dês Ambassadeurs, onde está o seu filho e todo o corpo diplomático? Acha esses lugares suficientemente discretos?"
"Bem..."
"O inconveniente da má fama do Algerie é também uma vantagem", lembrava-lhe ela repetidamente. "As pessoas evitam o hotel, é verdade, mas isso parece-me vantajoso para a sua... enfim, actividade terapêutica. Bem vê, gozará aqui da maior discrição, n'est-ce pás?"
O argumento era imbatível. Apesar de todas as suas reservas, e até da repugnância que o Hotel Algerie lhe causava, acabou por condescender. A belle du jour permaneceu no mesmo ninho.
A rua estava deserta, adormecida pela luminosidade indolente da tarde, como se um fino manto de neblina metálica se tivesse abatido sobre o casario silencioso. Depois de acender um charuto e se certificar de que não fora seguido, Krikor abandonou a sombra acolhedora de uma nogueira e deslizou até ao estabelecimento do outro lado do passeio. Uma tabuleta sobre a porta indicava Café du Marais.
"Salut!", cumprimentou quando cruzou a porta do estabelecimento e se encostou ao balcão. "O Armand está?"
Do outro lado do balcão encontrava-se um empregado de avental a lavar copos.
"Quem deseja saber?"
"Um dos três mosqueteiros."
Ao ouvir a senha, o empregado levantou a cabeça e perscrutou a face do cliente desconhecido, procurando avaliá-lo.
"D'Artagnan não se encontra de momento." O nome do herói de Alexandre Dumas era a contra-senha. "Sente-se ali ao canto", ordenou, indicando o ponto mais discreto do café. "Ele já vem."
O lugar situava-se numa esquina sombria e tinha uma porta ao lado, provavelmente de acesso ao quintal do café. Krikor instalou-se e pôs-se a tomar notas sobre tudo o que tinha visto até ali na chamada Zona Livre de França. A vida no país parecia-lhe difícil, bem diferente da folie de anos anteriores. Partes importantes da população haviam sido deslocadas pela guerra e o racionamento de combustíveis dificultava os transportes. Como homens do petróleo, porém, os Sarkisian dispunham de acesso fácil a gasolina e granjearam uma certa popularidade entre o corpo diplomático por distribuírem ocasionalmente uns bidões às figuras preeminentes da comunidade estrangeira. Tirando partido do estilo de vida do pai, Krikor permanecera uma semana descontraída e só naquele dia, convencido enfim de que ninguém suspeitava dele, decidira levar a cabo a missão de que o Tio o incumbira em Bletchley Park.
"Está à minha procura?"
A pergunta apanhou Krikor desprevenido. Deu um salto de susto na cadeira e, ainda abalado, encarou o homem que o fitava.
"Armand?"
"Chame-me D'Artagnan", confirmou o francês. "Quem é o senhor?"
Krikor olhou em redor, para se certificar de que ninguém os escutava. À parte um velhote que bebericava um copo de tinto ao balcão com olhos lacrimejantes, o café permanecia deserto.
"Um dos três mosqueteiros", disse, repetindo a senha. "Tenho instruções para si."
O francês também inspeccionou o café com o olhar antes de se sentar e encarar o visitante.
"Como vai o Tio? A perna deformada pela polio continua a dar-lhe problemas?"
A pergunta assustou Krikor. Ter-se-ia enganado na pessoa?
"Qual perna?", admirou-se. "Que eu saiba o Tio não teve polio nenhuma!"
Armand descontraiu-se e esboçou um sorriso seco.
"Era uma rasteirazinha para me certificar de que você o conhece mesmo", explicou. "Alors, que instruções são essas?"
"Dizem respeito à extracção de pilotos da RAF abatidos sobre a França", indicou Krikor. "Temos de os retirar pela fronteira espanhola e o Tio acha que você está em condições de o fazer."
"Ele conhece os meus talentos." Esfregou o polegar no indicador, num gesto característico. "Quanto pagam?"
"Quarenta libras por oficial e vinte por miliciano. Não há mensalidades, é tudo em função dos resultados. De acordo?"
"Talvez." Franziu o sobrolho, preocupado com os detalhes. "Como me farão chegar o dinheiro?"
"Não faremos. Será aberta uma conta em Inglaterra, onde depositaremos o que lhe é devido. Quando a guerra acabar, terá uma bela maquia à sua espera no banco. Que lhe parece?"
"Haverá uma décoration anglaise para mim no final da guerra?"
A pergunta apanhou Krikor de surpresa, mas reagiu de pronto.
"De certeza!"
com um gesto deliberadamente lento, o francês tirou um maço de Gitanes do bolso e acendeu um cigarro pensativo. Uma nuvem violácea de fumo serpenteante ergueu-se diante do seu rosto pálido; parecia que o fio de névoa dançava com movimentos sinuosos.
"D'accord."
O assentimento arrancou um suspiro de alívio a Krikor. A missão fora bem sucedida.
"Ainda bem!", exclamou. Bebeu um gole de cerveja e pousou a caneca, consciente de que só lhe faltava tratar de alguns detalhes. "Onde poderão os homens ir ter consigo?"
"A Perpignan. Existe uma grande garagem da Citroen na route de Frades. Eles que me procurem aí."
Levaram dez minutos a tratar dos pormenores. Concluído o trabalho, despediram-se e Krikor saiu de imediato à rua, temendo ser nesse instante preso pelos gendarmes. Mas não se via vivalma à porta do Café du Marais, apenas uma brisa forte que sacudia as folhas secas por baixo das nogueiras, atirando-as pelo ar como se ganhassem vida.
Tudo permanecia tranquilo. Dominando o nervosismo, Krikor meteu as mãos nos bolsos, segurou o chapéu sobre a cabeça para se proteger do vento e encaminhou-se em passo rápido para o Hotel Majestic.
Ao entrar no estabelecimento onde os pais estavam alojados, paredes meias com os funcionários do governo do marechal Pétain, Krikor estacou no átrio para verificar as horas. Havia um relógio pregado sobre a recepção, mas do sítio onde se encontrava não o via bem. Recuou por isso três passos e parou quando sentiu o seu calcanhar esmagar qualquer coisa atrás dele.
"Aghhh!"
Voltou-se para trás e percebeu que tinha pisado o pé de alguém. Era um homem com farda feldgrau. Um alemão. Pior do que isso, o militar tinha chapéu de oficial e calças de montar largas nas coxas, as botas negras de cano alto a reluzir de tão impecavelmente engraxadas.
"Oh, sorry!", balbuciou Krikor em inglês, à beira do pânico. "Foi sem querer!"
O oficial alemão saltitava ao pé-coxinho pelo átrio do hotel, um esgar dorido a marcar-lhe o rosto.
"Ac/?, o senhor é americano?", perguntou num francês gutural logo que se recompôs, embora fosse claro que as dores ainda o atormentavam. "Não faz mal, foi um acidente. Acontece."
O homem em farda feldgrau, acompanhado pelo seu séquito, despediu-se com um toque no chapéu e afastou-se a coxear. Krikor estava lívido de susto e, com o coração aos saltos, dirigiu-se ao elevador de ferro e meteu-se nele sem perda de tempo. com um solavanco, o elevador começou a lenta ascensão, levando Krikor e um outro passageiro.
"O senhor sabe quem acabou de espezinhar?", perguntou o seu companheiro de viagem, evidentemente um francês da administração de Pétain. "Tem alguma ideia?"
"Bem, um oficial alemão."
O francês passou os dedos pelo bigode revirado.
"Nem mais nem menos que o General feldtnarshall Brauchitsch, o actual Oberbefehlshaber dês Heeres", esclareceu. "O que o salvou, mon cher, é que ele pensou que o senhor era americano. Os Alemães não querem problemas com os yankees."
Saiu no segundo andar e dirigiu-se em passo rápido para a suíte do pai. A vida de agente secreto estava a dar-lhe cabo dos nervos, pensou. Já não tinha idade para aquilo! O Tio tinha-lhe recomendado em Bletchley Park que se esforçasse por não dar nas vistas. E o que fizera ele? Fora pisar precisamente um dos principais comandantes militares alemães! Haveria coisa mais desastrada?
Ao sair do elevador ouviu urros do outro lado do corredor e apercebeu-se de que vinham da suíte dos pais. Hesitou. Que diabo seria aquilo? Quem gritava daquela maneira? Concentrou-se e compreendeu que era o próprio pai que bradava descontroladamente. Que se passaria? Alguém lhe estaria a fazer mal? Os Alemães teriam começado a incomodá-lo?
Golpeou a porta com força.
Atravessara o corredor a correr, alarmado com o barulho, e plantara-se diante da entrada da suíte. Apesar da berraria, sentiu passos a aproximarem-se do outro lado e, após um barulho de metal a rodar na fechadura, a porta abriu-se. Deparou-se com a mãe, o rosto pálido e os olhos preocupados.
"Ah, o teu pai está possesso!", exclamou ela ao vê-lo. "Possesso, digo-te eu!"
"Que se passa?"
A mãe fez-lhe sinal para que entrasse.
"Foi uma carta que recebeu há meia hora. Teve um ataque de fúria logo que a leu e desde então que não se cala. Credo, parece que tem o Demónio no corpo!"
Os berros não cessavam. Passaram à sala e Krikor deu com o pai a gesticular diante da janela, os punhos cerrados de revolta e indignação, a face enrubescida de irritação. Tinha até traços de espuma no canto da boca.
"Bandidos!", vociferava. "Fazerem-me isto a mim! A mim, que fiz tudo por eles! Gatunos! Escumalha! É assim que me agradecem? É assim que me tratam? Ladrões! Porcos!"
"Que se passa, pai?"
Kaloust parou momentaneamente de gritar e virou-se para encarar o filho, os olhos com um brilho alucinado.
"Já viste o que me fizeram aqueles pulhas?", perguntou. "Já viste como eles me agradecem todos os serviços que lhes prestei?"
"Está a falar de quê?"
O pai pegou numa folha de papel amarfanhado e exibiu-a no ar, como um trofeu.
"Estou a falar disto! Desta vergonha que eles me mandaram! Olha para isto! Olha só!"
com um gesto brusco, Kaloust estendeu a folha e o filho pegou nela. Atingida pela fúria, a folha estava amassada e até rasgada em algumas partes. Endireitou-a e aproximou-se da janela para a ler. O cabeçalho trazia o leão britânico e o símbolo do Foreign Office. Olhando para a última linha, reconheceu a assinatura.
"É de Sir Philip Blake."
"O que interessa é o conteúdo!", apressou-se o pai a dizer. "Ora lê o que esses animais decidiram!"
Krikor afinou a voz.
"'Meu caro amigo'", disse, os olhos pregados às linhas dactilografadas. "'Lamento ter de lhe comunicar que a sua fatia de cinco por cento da Turkish Petroleum Company, bem como a fatia correspondente à Compagnie Française dês Pétroles, foi considerada propriedade inimiga.'"
Ergueu os olhos surpreendidos, como se pedisse ao pai que lhe explicasse o significado daquela notícia.
"Lê o resto!"
Voltou a centrar a atenção na carta de Sir Philip Blake.
"Também o senhor foi declarado inimigo. 'Em conformidade, o curador britânico de propriedade inimiga decretou a confiscação das suas acções. Não posso deixar de lhe dizer quanto lamento e quanto lutei, fazendo uso de todas as minhas forças e influências, para impedir esta...'"
"Vês?", interrompeu-o Kaloust. "Vês? Aqueles bandidos, aqueles energúmenos declararam-me inimigo! A mim, que sempre ajudei a Inglaterra! A mim, que lhes pus nas mãos uma fortuna colossal! A mim, a quem tanto devem! Agora tratam-me como escumalha, como se os tivesse traído, como se..."
"Acalme-se, pai", atalhou Krikor. "Qual é a sua surpresa? Uma coisa destas era previsível..."
Kaloust arregalou os olhos, incrédulo com o que acabava de escutar.
"Previsível? Era previsível que a Inglaterra me declarasse inimigo? Mas que... que disparate vem a ser esse? Que estás tu a insinuar?"
O filho apontou para a janela, indicando o casario de Vichy que se estendia a perder de vista.
"O pai já viu onde está a viver? Isto é a França do marechal Pétain, que anda todo delicodoce com Hitler! Os Alemães ocuparam metade do país e têm a outra metade à sua mercê. O que significa que o pai está sujeito às pressões do inimigo. Nestas condições, como poderia a Inglaterra manter tudo na mesma?"
"Os Alemães podem andar por aí, mas eu mantenho-me um homem livre!", retorquiu Kaloust. "Como pode a Inglaterra duvidar do meu patriotismo? Como pode a Inglaterra chamar-me inimigo? Além do mais, estão a usar tudo isto como um pretexto para me expulsarem da Turkish Petroleum, o verdadeiro objectivo desta manobra. Isso é inaceitável!"
Ainda com a folha de papel na mão, Krikor acenou com ela.
"É um requisito legal!", explicou. "Não leu o que disse Sir Philip nesta carta? A Inglaterra tinha de o declarar inimigo e confiscar as suas acções para o proteger dos actos a que os Franceses do Pétain ou os Alemães o pudessem obrigar. Enquanto estiver em Vichy, quer queira quer não, estará sujeito à influência inimiga. Mas com as suas acções da Turkish confiscadas pelo curador, o inimigo já não terá qualquer vantagem em pressioná-lo!"
"Que disparate! A minha condição de diplomata iraniano garante a minha protecção! Se eu não estivesse protegido, não estaria aqui!"
"Eu sei, mas a Inglaterra não tem a certeza de nada. Lembre-se de que o xá anda a namorar os nazis..."
"Eu travo-o."
"Acha que a Inglaterra pode confiar na sua influência sobre o xá? Não se esqueça de que é imperativo negar aos Alemães o acesso ao petróleo, daí a necessidade de confiscar as suas acções da Turkish Petroleum Company. Tem de compreender essa evidência!"
"Compreender? O que há a compreender é muito simples: a Inglaterra traiu-me!"
"A Inglaterra protegeu-se", corrigiu Krikor. "com o pai à mercê do inimigo, que estava à espera que a Inglaterra fizesse?"
A pergunta deixou Kaloust momentaneamente calado. Lançou um olhar de despeito ao filho e, com um movimento teatral, saiu da sala e dirigiu-se ao quarto. Parou junto da porta e voltou-se uma última vez para trás.
"Olha lá, andas a trabalhar para os serviços secretos ingleses?"
Foi a vez de Krikor ficar sem palavras, estarrecido com a pergunta. O coração começou a bater-lhe com força e o rosto empalideceu. Seria assim tão inepto como agente secreto? Como podia o pai lê-lo com tanta transparência? Que erro cometera? Tê-lo-ia mandado seguir até ao café onde se encontrara com D'Artagnan?
"Eu? Agente de... de Inglaterra?" Forçou uma gargalhada. "Que disparate, pai! Onde foi buscar essa ideia?"
"Então porque te deixaram sair do país? Tanto quanto sei, desde que a guerra começou que não se pode sair de Inglaterra sem mais nem menos." Ergueu o dedo à maneira de um tribuno a reforçar um ponto. "E muito menos para vir a Vichy!"
"Ora essa, deixaram-me sair porque o pai é diplomata do Irão!"
Abanando a cabeça como a mostrar que a ele não o enganavam, Kaloust pôs a mão na borda da porta e preparou-se
para encerrar a conversa.
"Pois enquanto viver nunca mais porei os pés em Inglaterra!", sentenciou antes de bater a porta com estrondo. C'est finit.
Um raio de Sol espreitou pela janela, iluminando a pele trigueira de Reza Mossaed. Não fazia calor, mas duas gotas de transpiração deslizaram pelas têmporas do ministro plenipotenciário do Irão em Vichy no momento em que encarou Kaloust no quarto do Hotel dês Ambassadeurs que as circunstâncias haviam transformado em legação do Irão em França. Na parede estava pregada uma fotografia do xá em uniforme de gala e pose austera, enquanto em baixo um calendário francês sobre a mesinha-de-cabeceira assinalava Agosto de 1941.
"As notícias de Teerão são muito graves", murmurou Reza Mossaed, passando as costas da mão pelas lágrimas de suor. "Os Ingleses e os Russos invadiram o país e apresentaram um ultimato a sua alteza, o xá. Querem que sua alteza abdique do trono."
Fez-se silêncio no quarto. Os ponteiros de um relógio de parede moviam-se em saltos precisos, com um tiquetaque que conferia um ambiente acolhedor àquele lugar.
"Não se pode dizer que seja uma surpresa", observou por fim Kaloust. "Eu avisei que o namoro de sua majestade com os Alemães era um jogo perigoso!"
"Pois avisou. Mas o mal está feito."
Nova pausa na conversa.
"E sua majestade?", quis saber o arménio. "Que vai fazer?"
O ministro plenipotenciário ergueu as mãos num gesto de impotência e respirou fundo.
"Por Alá, que pode ele fazer? Os infiéis afundaram os nossos navios, abateram a nossa força aérea e até já dividiram o país em três partes. Eles têm a força."
"Sim, eu sei. Mas o que vai sua majestade fazer?"
Novo suspiro do diplomata iraniano.
"Vai abdicar, claro. O trono será ocupado pelo príncipe herdeiro e, se Alá quiser e isso lhe for permitido, sua alteza irá exilar-se num país qualquer da América do Sul."
O olhar de Kaloust elevou-se para a fotografia do xá fixada na parede, atrás do seu interlocutor.
"Ajudá-lo-ei no que puder", disse. "Apesar de estarmos em Vichy, tentarei contactar o..."
"Temos de sair de Vichy", cortou Reza Mossaed. "A nossa presença já não será tolerada aqui."
A declaração extraiu uma expressão surpreendida do arménio.
"Sair de Vichy? A que propósito?"
"Quando o novo xá subir ao trono, o Irão irá juntar-se aos Aliados e declarar guerra ao Eixo. Isso significa que os Franceses deixarão de poder aceitar a nossa presença diplomática." Atirou um olhar fugidio à porta. "Aliás, até já me mandaram esta manhã um recado discreto."
"Mas acha que isso também se aplica a mim?"
O ministro plenipotenciário juntou as palmas das mãos e enlaçou os dedos.
"Qual é a sua nacionalidade?"
"Bem... neste momento, e como sabe, sou súbdito da Grã-Bretanha e do Irão."
O rosto seco de Reza Mossaed contraiu-se no esboço do seu primeiro sorriso desde que acordara com as notícias.
"Dois países em guerra com a Alemanha, portanto", constatou. "Há alguma coisa que não tenha entendido?"
Não foi preciso questionar muita gente da administração francesa no Hotel Majestic para obter a confirmação das palavras do ministro plenipotenciário iraniano. O seu velho amigo Jean-Marc Hertault, o senador que presidia à compagnie Française dês Pétroles, mostrou-se profundamente embaraçado quando se encontraram para um café no bar do hotel.
"vou falar com o senhor ministro, mon vieux", prometeu Hertault, visivelmente perturbado. "Falarei com o marechal Pétain, se necessário for!" Fez um gesto de frustração. "Mas, hélas!, a situação é a que é! A França está de joelhos, à mercê dos Alemães. Que podemos nós fazer se eles exigem a saída dos diplomatas de todos os países que estão em guerra com o Eixo? Que alternativa temos senão obedecer?"
Os contornos da situação tornaram-se claros para Kaloust. Agradeceu ao amigo, pedindo-lhe que não se incomodasse com o seu caso, e dirigiu-se para a suíte que mantinha reservada no Majestic, a mente a fervilhar com as opções diante dele. Tinha de facto de abandonar a França. Mas para onde iria? A Inglaterra estava fora de questão, à luz da desfeita sofrida no ano anterior. Como se tinham aqueles miseráveis atrevido a considerá-lo inimigo e a confiscar-lhe as acções da Turkish Petroleum Company? A dor e a humilhação não o haviam largado. Que afronta! Ah, àquele país de ingratos é que jamais voltaria!
Uma vez recolhido à suíte expôs a situação a Nunuphar. Alimentava esperanças de que a mulher tivesse alguma ideia, mas o facto é que se mostrou tão desconcertada quanto ele.
"Se nos expulsam daqui", observou Nunuphar, "temos de voltar a Inglaterra!"
O marido cortou o ar com a mão, num gesto peremptório.
"Nem pensar!", exclamou. "A Inglaterra, nunca! O que nos fizeram não tem perdão!"
"Mas então vamos para onde? Queres voltar a Constantinopla?"
"E viver outra vez sob a bota dos Turcos, sobretudo depois de tudo o que eles fizeram aos Arménios e ao nosso filho?" Sacudiu a cabeça. "Jamais!"
A mulher suspirou de frustração.
"A França expulsa-nos por causa dos Alemães, não queres a Inglaterra, recusas a Turquia..." Abriu os braços num gesto de perplexidade. "Para onde iremos nós, Santo Deus?"
"Ora, a Europa é vasta!"
"A Europa está em guerra, homem!", lembrou Nunuphar. Apontou para um mapa do continente que tinham pousado sobre a escrivaninha. "Olha para ali e o que vês? Guerra, guerra, guerra! Para onde poderemos nós ir de modo a escapar a este inferno?"
O mapa atraiu a atenção de Kaloust. Aproximou-se da escrivaninha e estudou-o com atenção, analisando as fronteiras e medindo as forças em presença. De facto quase todo o continente estava mergulhado na guerra. Passou o dedo pelos contornos da Europa, registando os países envolvidos no conflito. França, Alemanha, Áustria, Holanda, Bélgica, Itália, Polónia, Checoslováquia, Grécia, Albânia, Jugoslávia, Bulgária, Hungria, Roménia, União Soviética, Dinamarca, Noruega, Finlândia...
O dedo imobilizou-se sobre um país minúsculo.
"Este não tem guerra", constatou. "É para aqui que iremos!"
Nunuphar acercou-se do marido e inclinou-se sobre o mapa para identificar o pequeno estado em cima do qual o dedo dele assentava.
"A Suíça?"
Os dias seguintes foram passados no restaurante e no bar do Hotel dês Ambassadeurs, onde se concentrava o corpo diplomático creditado junto do governo da Zona Livre de França. Pediu uma reunião com o ministro plenipotenciário da Suíça, um homem baixo de face arredondada que se mostrou reservado e pouco falou. Kaloust pensou mesmo assim que a conversa havia corrido bem e confiou que as coisas estavam razoavelmente encaminhadas. Parte das suas empresas encontrava-se sedeada na Suíça, pelo que esse teria de ser o seu destino.
No sábado seguinte estava a vestir-se diante do espelho quando alguém bateu à porta da suíte. Era o senador Hertault.
"O senhor tem intenção de ir para a Suíça?"
O arménio arregalou os olhos, apanhado de surpresa pela pergunta disparada de chofre, e sobretudo por a informação ser do conhecimento do seu amigo da Compagnie Française dês Pétroles.
"De facto. Como sabe?"
O francês fez um gesto vago com a mão, como se indicasse que a pergunta não era pertinente.
"Posso entrar?"
"Ah, sim", exclamou Kaloust, caindo em si e percebendo a descortesia de ter deixado o visitante plantado à porta. "Claro, faça o favor!"
O senador Hertault instalou-se no sofá e afinou a voz, como se ganhasse coragem para dizer ao que ia.
"Sabe, tive agora uma informação que me foi confiada por um amigo da Sécurité que... enfim, acho que lhe poderá interessar", revelou, baixando a voz. "Parece que os Alemães estão a considerar seriamente a possibilidade de invadirem a Suíça."
Kaloust arregalou as sobrancelhas numa expressão de choque.
"O quê?!"
O francês olhou em volta, quase assustado com a sua própria sombra.
"Chiu, mais baixo!", implorou, falando num sussurro. "Por favor, peço-lhe a maior discrição sobre este assunto. É matéria muito delicada, como decerto compreenderá."
O arménio controlou a voz para níveis mais compatíveis com a natureza da conversa e inclinou-se para a frente, de modo a aproximar-se mais do seu amigo e falar em confidência.
"Mas porquê?", soprou. "Para que querem os Alemães a Suíça?"
"Dizem que o senhor Hitler está enojado por existirem na Suíça falantes de alemão que nutrem sentimentos de afinidade e lealdade para com falantes de francês e quer acabar com isso."
"O homem é louco!", exclamou Kaloust, abanando a cabeça. A seguir estreitou as pálpebras, numa expressão de perplexidade, e fitou o seu interlocutor. "O senhor tem a certeza do que está a dizer? É que já li declarações dele a garantir que a Alemanha irá sempre respeitar a soberania e a neutralidade da Suíça..."
"Tudo aldrabices para a assegurar a passividade dos Suíços durante a guerra", retorquiu o senador Hertault. "Mas estou em condições de lhe assegurar que, em privado, o senhor Hitler descreveu a Suíça como uma borbulha na cara da Europa e um inimigo mortal da nova Alemanha. Consta que houve até conversas sobre o assunto com Mussolini, a quem o senhor Hitler terá confidenciado que removerá a borbulha suíça na altura própria."
Fez-se por momentos um silêncio pesado no quarto; apenas se escutava o crepitar nervoso da lenha que ardia na lareira.
"Essa... essa altura já chegou?"
"Ainda não. A minha fonte diz-me que estão de facto em marcha os preparativos para a Operação Tannenbaum, embora a luz verde final ainda não tenha sido dada. Parece que os Alemães hesitam perante a possibilidade de combater nas montanhas, até porque os Suíços têm reputação de ser ferozes. Mas já se sabe como são os Alemães..."
Kaloust recostou-se no seu assento e desviou o olhar para as chamas amarelas que revoluteavam na lareira como bailarinas esquivas, reflectindo no que acabara de escutar. Na verdade não havia muito para pensar, a situação era clara. Levantou-se devagar e cravou os olhos hipnóticos no senador.
"Tenho de repensar tudo."
A chegada de Krikor a Vichy, em mais uma das suas viagens suspeitas, constituiu uma oportunidade para discutir o assunto com uma pessoa em quem confiava. Apesar de por vezes o esquecer, o filho já não era miúdo nenhum. Tinha quarenta e cinco anos e uma experiência de vida que não podia ignorar. Não escapara ele aos Turcos durante o genocídio arménio? Quem vivera uma experiência dessas tinha forçosamente de dispor de uma mente forte.
O casal Sarkisian foi esperar o filho à gare de Saint Germain-des-Fossés. Krikor trouxe a notícia de que iniciara o processo para se divorciar de Maria Silvia, o que desencadeou dos pais uma previsível rajada de "nós bem te avisámos!" e "devias ter-nos dado ouvidos!" e "topei essa maluca desde o início!", pelo que Kaloust só lhe explicou o seu problema quando se recolheram à privacidade da suíte do Majestic.
Irritado com as recriminações que ouvira por causa do seu casamento, Krikor ouviu-o com manifesta impaciência e, já perto do final da narrativa, não se conteve e interrompeu-o.
"Mas para que queria o pai ir para a Suíça?"
A pergunta arrancou um esgar de surpresa a Kaloust.
"Bem... a Suíça é um país neutral, não é verdade?", observou. "Pelo menos ainda não está em guerra."
"Também a Holanda e a Dinamarca e a Noruega eram neutrais e não estavam em guerra e pelos vistos não foi isso que dissuadiu os Alemães de as invadir..."
"Eu sei, eu sei..."
"Não, a Suíça está fora de questão. Sei que o pai tem lá empresas e que é um sítio civilizado e confortável, mas o risco é muito grande."
Parecia a Kaloust que entrara num beco sem saída. Lançou a Nunuphar um olhar carregado de impotência e respirou fundo, como se o simples acto de respirar fosse tudo o que naquelas circunstâncias lhe era permitido.
"Pois, não sei o que faça..."
Um silêncio pesado abateu-se sobre os três. Krikor conhecia suficientemente bem a obstinação do pai para se atrever a sugerir que ele engolisse o orgulho e voltasse à Grã-Bretanha. Foi até à janela e contemplou Vichy, consciente de que, tendo em conta a evolução dos acontecimentos, aquela era a sua última visita à cidade durante a guerra. Quando o pai partisse perderia o alibi para ali se deslocar ao serviço do pessoal de Bletchley Park e deixaria de ser autorizado a sair de Inglaterra. Era uma pena, considerando que se afeiçoara às suas viagens recentes. com tantas privações em Londres e em Vichy, ganhara um certo gosto às suas passagens por Lisboa, cidade que parecia passar incólume às agruras da guerra. Ainda três noites antes se divertira imenso no casino que havia no Estoril, onde assistira ao espectáculo da orquestra de jazz de Willie Lewis e que... que...
"Já sei!"
Apanhados de surpresa, os pais deram um salto de susto e lançaram-lhe um olhar interrogativo.
"Que se passa? Já sabes o quê?"
Sem conter a excitação, Krikor dirigiu-se em passo rápido para a escrivaninha, ergueu o mapa da Europa que ali se encontrava e, voltando-o para os pais, apontou para o extremo mais ocidental do continente.
"Portugal", exclamou. "Portugal é a solução!"
O croupier levantou a cabeça e encarou com fria impassibilidade os jogadores que cercavam a grande mesa colorida; a maior parte eram diplomatas ou altos funcionários franceses, muitos deles acompanhados de belas mulheres jovens, de face maquilhada e jóias preciosas a cintilarem nos pescoços e nos pulsos. Colunas esguias de fumo violáceo serpenteavam sensualmente pelo ar, fundindo-se na nuvem difusa de tabaco e cinzas que flutuava sobre a mesa, os dedos manicurados a brincar com os cigarros, com as fichas ou com os copos de champagne dourado.
"Faites vos jeux!"
Uma chuva de fichas caiu sobre a mesa, espalhando-se sobre diversos números impressos no grande quadrado. Uma rapariga loira soltou uma gargalhada nervosa e fez-se um silêncio expectante na mesa quando o croupier rodou a roleta. A roda rubro-negra girou veloz, a bolinha branca a saltitar caprichosamente de um lado para o outro, parecia que ia ficar numa casa mas logo pulava para outra e outra ainda, até que a girândola perdeu velocidade e a bola assentou enfim num número.
"Noire. Dix-sept."
Levantou-se um burburinho em torno da mesa, os que tinham apostado no negro ganharam alguma coisa, os que puseram as fichas no vermelho perderam. Ninguém havia investido no dezassete, pelo que o grande prémio ficou em casa.
"Ah, azar!", exclamou Kaloust com uma careta, fazendo sinal ao seu companheiro de jogo para se afastarem da mesa da roleta. "Hoje não é o nosso dia."
Dirigiram-se para o sector da sala onde se jogava baccarat e ficaram a observar as apostas, desta vez sem meterem qualquer ficha no jogo, como se quisessem avaliar primeiro a tendência da sorte naquela mesa. O companheiro de apostas do arménio acendeu um cigarro, enervado por não perceber bem as regras do baccarat, mas sem coragem para perguntar ou sequer o confessar. Não era todas as noites que tinha uma oportunidade daquelas, até porque não passava do secretário da legação portuguesa em Vichy, peixe talvez demasiado miúdo para fazer companhia a um tubarão daquele calibre.
"O senhor Sarkisian é muito amável em ter-me convidado a jogar no casino", afirmou Manuel Nunes da Silva, inchado com a importância que o magnata parecia conferir à sua recente amizade. "Confesso que nunca tive sorte ao jogo. Quem sabe se isso hoje não muda?"
"E ao amor? Tem tido sorte?"
O diplomata português corou.
"Ah, as francesas..."
"Que têm elas? Não me diga que são diferentes das portuguesas..."
Nunes da Silva riu-se.
"São mais... chiques", indicou, devorando com o olhar uma ruiva sinuosa que massajava as costas de um velho na mesa do baccarat. "E atrevidas." Sacudiu a mão direita. " se são atrevidas!"
A observação arrancou um sorriso conhecedor a Kaloust, pouco habituado aos jogos de sedução genuína. As suas belles du jour eram pagas a peso de ouro, o que dispensava o arriscado jogo da conquista e a sempre presente possibilidade do fracasso. O dinheiro e o trabalho prévio de madame Duprés garantiam o êxito da sedução. Mas se havia coisa que estava incluída no preço era decerto o atrevimento.
"Estou certo de que existem mulheres belas no seu país", sondou o arménio. "De resto, dizem-me que Portugal é um encanto. O meu filho passou agora por Lisboa e conta-me maravilhas."
"com certeza", confirmou o diplomata. "Não se esqueça de que Portugal ergueu o primeiro império europeu à escala planetária. Fala-se português nos cinco continentes. Tudo isso está de certo modo reflectido em Lisboa. Além do mais, lembre-se que o país até agora escapou à guerra e, embora haja muitas dificuldades, não sofre o que a Europa está a sofrer."
A conversa entrava enfim no que verdadeiramente interessava Kaloust.
"Acha Lisboa um sítio bom para viver? Não acredito..."
"Neste momento? Ah, não tenha dúvida! Não há melhor em toda a Europa!"
"Melhor que a Suíça?"
"Claro. Já viu o clima da Suíça? Brrr... horrível! Em Portugal a temperatura é muito mais amena. E a luminosidade é diferente, as cores são mais vivas. Ainda por cima temos o mar, as praias, a comida..."
"É o que me diz o meu filho. E alojamento? Há bons hotéis em Lisboa?"
Foi nesse instante que Manuel Nunes da Silva emudeceu. Até aí conversara distraidamente, a atenção concentrada no baccarat e o desejo na ruiva sinuosa, a boca a discorrer pelo fio da conversa conduzida com subtileza pelo seu interlocutor. Esta última pergunta, no entanto, fê-lo reflectir sobre o sentido de todo o diálogo. Para quê tantas perguntas sobre Lisboa e Portugal? O que queria o magnata exactamente? Porque o questionava sobre os hotéis de Lisboa? Seria possível que...
Arregalou os olhos e fitou Kaloust com intensidade, a luz do entendimento a cintilar-lhe na íris como se lhe quisesse dissecar os pensamentos mais profundos.
"Não me diga que o senhor está a contemplar a possibilidade de... de..." Estreitou as pálpebras. "Quererá porventura conhecer Portugal?"
Sentindo o olhar do seu interlocutor pousado com sôfrega expectativa sobre ele, como um garoto de respiração suspensa na ânsia de saber se teria a tão ansiada friandise, Kaloust prolongou o mutismo com calculismo deliberado. Fingiu concentrar-se no jogo de baccarat, como se o que ali se passasse fosse afinal a coisa mais interessante do mundo, mas acabou por balouçar afirmativamente a cabeça.
"É uma hipótese a considerar."
Os acontecimentos precipitaram-se no dia seguinte. Tomando consciência da inesperada oportunidade que se abrira, o secretário da legação portuguesa foi logo pela manhã falar com o seu ministro plenipotenciário, o embaixador Caeiro da Mota. Como os diplomatas portugueses estavam alojados no Ambassadeurs e Krikor também, foi fácil articularem-se para combinarem um almoço no restaurante do Hotel du Pare com a família Sarkisian.
"Devo dizer, senhor embaixador, que tenho apreciado sobremaneira as minhas passagens por Lisboa", declarou Krikor logo que se sentaram à mesa do restaurante Chantecler. "É o melhor sítio para se viver na Europa, considerando as circunstâncias. Tenho, por isso, sido muito insistente junto do senhor meu pai no sentido de que Portugal me parece o ninho perfeito para ele."
O embaixador mal continha o entusiasmo.
"Bien súr! Bien súr!", exclamou. "Em Lisboa estará longe da guerra, sem dúvida. Além disso, no país vive-se ordem e tranquilidade, paz e progresso! Não há melhor cidade na Europa!" Hesitou e corrigiu-se de imediato, talvez achando que não tinha sido suficientemente patriótico. "Na Europa, não. No mundo! Sim, não há melhor cidade no mundo!"
Mantendo um semblante impenetrável, Kaloust engoliu um trago de água; planeara fazer-se difícil e dar a entender que mantinha a outra opção.
"Mas a Suíça é a Suíça..."
"Ah, o que é a monótona Suíça ao pé do pitoresco Portugal?", interrogou-se o embaixador. "A Suíça é boa para quem gosta de apanhar frio e beber leite de vaca."
A observação suscitou sorrisos à mesa.
"O clima em Portugal é incomparavelmente melhor", sublinhou Krikor. "E as pessoas são mais simpáticas, sem a menor dúvida."
Os olhos pequenos de Kaloust vagabundearam entre os dois diplomatas sentados diante dele.
"Como são os impostos?"
O embaixador fez um gesto com a mão, como a indicar que não tinha de se preocupar com isso.
"Relativamente baixos", disse. "E, no caso dos ricos e dos estrangeiros, praticamente inexistentes. O nosso regime fiscal é muito benevolente para as classes mais abastadas."
A revelação pareceu animar Krikor ainda mais; era ele claramente o mais entusiasmado com a ideia.
"Está a ver? Uma maravilha!", exclamou. "Além do mais, lembre-se que a Suíça está rodeada de guerra. Portugal não."
Sempre com um rosto inexpressivo, velho truque de negociante de bazar, o magnata do petróleo pousou o copo na mesa e inclinou-se para a frente, como se quisesse sublinhar a importância da sua pergunta seguinte.
"E se os Alemães decidirem invadir Portugal?"
"Ah, que tolice!", devolveu de imediato o embaixador. "Sejamos razoáveis! Porque o fariam?"
O arménio tirou do bolso um pequeno mapa que trouxera para a ocasião e desdobrou-o sobre a mesa. com a folha estendida, indicou um ponto no Sul da Península Ibérica.
"Por causa de Gibraltar, claro", declarou. "Se os Espanhóis se aliarem aos Alemães e invadirem Gibraltar para controlar o acesso ao Mediterrâneo, medida que decerto está a ser considerada com muito interesse em Madrid e em Berlim, o que farão os Ingleses? Desembarcarão tropas na costa do seu velho aliado, Portugal, para acudir a Gibraltar. Isso arrastará o vosso país inevitavelmente para a guerra, não é verdade? Provavelmente os Alemães invadirão Portugal como medida preventiva de um ataque a Gibraltar."
Aquele cenário era bem conhecido nos meios diplomáticos e o embaixador calou-se, apanhado desprevenido pela constatação de que Kaloust estava anormalmente bem informado.
Tornava-se evidente para os dois portugueses sentados à mesa que o seu interlocutor não descurava os pormenores; se havia algo para saber, ele pelos vistos sabia-o. Em boa verdade tal coisa nem deveria ser surpreendente. Não chegara ele onde chegara? Uma pessoa que conseguira acumular tamanha riqueza só podia ser extraordinariamente meticulosa e bem informada. Que esperavam eles?
"Até por isso Lisboa é vantajosa", observou Krikor, vindo em socorro dos diplomatas. "Diria mesmo, perfeita!"
O pai franziu o sobrolho.
"Perfeita como? Que queres dizer com isso?"
Inclinando-se sobre o pequeno mapa da Europa, Krikor pousou o indicador sobre a capital portuguesa.
"Sabe o que existe em Lisboa?"
"Não."
O filho sorriu, muito satisfeito consigo mesmo, e arqueou as sobrancelhas.
"O Clipper para a América."
Os olhos de Kaloust desceram para o mapa.
"Não estou a entender..."
"Lisboa é o destino do Clipper oriundo de Nova Iorque", explicou. "Se as coisas correrem mal, pode perfeitamente apanhar o hidroavião para a América. O voo é seguro e em algumas horas estará são e salvo do outro lado do Atlântico."
A atenção de Kaloust dançou por momentos entre o mapa e o filho enquanto a sua mente meticulosa ia digerindo a informação. Estudou a posição de Lisboa e contemplou o vasto oceano diante da cidade. Depois olhou para a Suíça e analisou a sua longa fronteira com a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini e a França de Pétain. De seguida voltou-se para a mulher.
"Que achas?"
Nunuphar apertou os lábios, indecisa.
"Enfim... não conheço Portugal, não me posso pronumciar", acabou por balbuciar. "Mas o que o Krikor diz não parece disparate nenhum."
Também vacilante, até porque no fundo mantivera sempre em aberto a hipótese da Suíça, Kaloust assentou os cotovelos na mesa e juntou as palmas das mãos à boca enquanto ponderava os prós e contras. Suíça ou Portugal? Queijo ou vinho do Porto? Montanhas ou mar? Carne ou peixe? Frio ou calor? Frieza ou simpatia? Alemanha ou América? Mercedes ou Clipper? Depois dobrou o mapa, como se enfim o assunto não lhe oferecesse mais dúvidas, e devolveu-o ao bolso.
"Está decidido", sentenciou. "Vamos até Lisboa."
Exílio
Trata cada dia como se fosse uma vida.
SÉNECA
O grande Rolls-Royce negro, um Phantom in com o chassis lambido pela lama e o brilho empalidecido pelo pó após tantos quilómetros a devorar estrada, contornou a grande rotunda do Marquês do Pombal e meteu em direcção ao Saldanha. Atrás dele vinha um Cadillac igualmente sujo e onde se acotovelava o resto da comitiva. Ao chegarem a Picoas, os dois automóveis viraram para a Avenida Fontes Pereira de Melo, cruzaram um portão alto e imobilizaram-se diante de um palacete de três andares com uma grande águia negra impressa na fachada.
"Chegámos!", anunciou o embaixador Caeiro da Mota. "Belo hotel, hem?"
Abrindo a porta do Rolls-Royce, Kaloust saiu da viatura e contemplou a mansão. Doíam-lhe as costas por ter passado tanto tempo sentado no banco traseiro do carro, no fim de contas era já um septuagenário e a viagem havia sido longa, mas poucas coisas o entusiasmavam tanto como conhecer um novo hotel de luxo.
"É então este o famoso Aviz?"
Os paquetes do hotel, fardados a rigor, acorreram aos dois automóveis e ajudaram os motoristas a descarregar as malas. Os três passageiros do Rolls-Royce, Kaloust, Nunuphar e o diplomata português, aproveitaram para desentorpecer as pernas e trocar as primeiras impressões sobre a cidade; tinham a sensação de que a viagem fora interminável, sobretudo quando cruzaram a devastada Espanha, mas algo no ar de Lisboa lhes parecia revigorante. O sol que os acolhera em Portugal com um sorriso de luz e uma brisa tépida mostrou-lhes que a Primavera, ou pelo menos a de 1942, era de facto temperada por essas paragens.
"Que sítio tão simpático", observou madame Duprés, que viera no Cadillac. "Não acha, madame Sarkisian?"
Nunuphar torceu o nariz com desconfiança.
"Será que eles têm por aqui boas lojas?", questionou-se. "Haverá alguma boutique com os produtos de madame Chanel? A Cartier terá por cá algum representante?" Fez uma careta. "Hmm, não sei. Quer-me parecer que isto não passa de uma terriola perdida nos arrabaldes da Europa civilizada..."
Por esta altura já os restantes ocupantes do Cadillac organizavam com os paquetes do hotel a distribuição da bagagem. Além da inevitável madame Duprés, que apesar de ser já uma septuagenária se dirigira à recepção para tratar dos registos e das restantes formalidades, o segundo automóvel trouxera o cozinheiro privativo e massagista da família, um russo acompanhado da sua mulher francesa. Toda a comitiva foi instalada no primeiro andar do hotel, com a melhor suíte do Aviz, a cinquenta e dois, também designada D. Filipa de Lencastre, reservada ao casal Sarkisian.
Quando Kaloust entrou no palacete não conteve um suspiro de alívio. Temera que o Aviz não estivesse minimamente à altura dos grandes hotéis a que se habituara pela Europa desenvolvida, mas verificou que não havia motivo para preocupações. Podia não estar alojado no Ritz da Place Vendôme ou no de Piccadilly, mas o requinte e o bom gosto pareciam-lhe assegurados. A própria suíte deixou-o bem impressionado, com o quarto, a sala e o quarto de banho de óptimas dimensões. A decoração com a austera mobília portuguesa podia ser um pouco antiquada, é certo, mas até a isso achou graça. O mais agradável era o terraço, que lhe fazia lembrar o da mansão da avenue d'Iena, coberto por uma estrutura de estufa e sobretudo com uma magnífica vista para o jardim. Só lhe faltava a gaiola gigante e o Arco do Triunfo ao fundo da rua para completar a ilusão de que regressara à sua mansão parisiense.
"Madame Duprés!", chamou logo que a gaiola lhe veio à mente. "Madame Duprés!?"
A secretária espreitou pela porta do terraço.
"Oui, m'sieur Sarkisian?"
"Não se esqueça de mandar um telegrama ao Gilbert", recomendou, referindo-se ao mordomo do casarão da avenue d'Iena. "Ele que dê de comer aos pássaros, coitadinhos!"
"Muito bem, m'sieur Sarkisian."
"Já agora, envie também um telegrama para Londres. O Krikor que vá visitar o Museu Britânico para verificar se as minhas antiguidades egípcias se encontram bem." Hesitou, lembrando-se de outros dos seus tesouros. "Ele que aproveite e vá igualmente à National Gallery para se assegurar junto de Sir Kenneth de que os meus enfants, sobretudo os Rubens e os Rembrandts, estão devidamente protegidos das bombas dos Alemães." Afinou a voz. "E da humidade, claro."
O resto desse primeiro dia foi passado a repousar no Aviz. A viagem havia de facto sido desagradável, em particular a longa travessia da Espanha destroçada pela guerra civil, e a comitiva dos Sarkisian optou por passar a primeira jornada encerrada no hotel. A única excitação ocorreu à noite, quando a iluminação pública se acendeu e todos acorreram às janelas para apreciar o espectáculo.
"É de pasmar!"
Foi nesse instante que Kaloust caiu em si quanto ao ponto a que haviam descido os seus padrões de vida. Não frequentara ele o Pêra Palace de Constantinopla, o primeiro hotel de grande luxo do Império Otomano? Não se hospedara ele no Savoy de Londres, o primeiro hotel do mundo com toda a iluminação a electricidade? Não tinha sido graças a ele que haviam sido construídos os Ritz, a primeira cadeia de hotéis de grande luxo do planeta? Como era possível ter ficado de tal modo embasbacado com uma banalidade como a iluminação pública? Sim, as ruas da cidade estavam iluminadas à noite! E depois? Qual a admiração?
A verdade é que se desabituara já de uma visão assim. Em parte alguma da Europa as cidades se apresentavam desse modo iluminadas como um presépio, sem temerem a noite, sem recearem um raid da aviação, destacando-se do manto da treva com bravata inaudita. Lisboa acendera-se e fazia gala nisso, como numa declaração. A cidade parecia querer mostrar ao mundo que o império português não temia a carnificina que devastava o resto da Europa. Que jactância aquilo lhe pareceu! E que ingenuidade. Sim, que doce ingenuidade...
Olhou em redor e estudou os criados portugueses que circulavam no átrio do hotel. Eram homens baixos. Baixos, reflectiu, como ele próprio. Isso fazia-lhe sentir uma estranha afinidade com eles, como se aquela gente fosse também a sua. Mas havia algo de surpreendente na forma aberta como sorriam, na candura dos seus gestos, na franqueza dos seus olhares castanhos. Não se via coisa assim no resto da Europa, apercebeu-se. Um travo de inocência perpassava por aquelas expressões. Inocência e ingenuidade, plácida mistura de quem vivera uma vida inteira ao abrigo dos horrores do mundo. Nunca haviam experimentado a bota dos Turcos, nem sentido as grilhetas da escravidão nem o horror das perseguições e das grandes matanças. Vendo-os assim, entregues aos seus afazeres, contentes e mergulhados no seu pequeno mundo, não pôde deixar de pensar que os Portugueses se assemelhavam aos Arménios. Era como se esta gente fosse a sua gente, Arménios em estado puro, parecia o seu povo antes de ter sido manchado pela úlcera do sofrimento.
"Sabem que mais?", murmurou Kaloust, os olhos regressando ao cintilar hipnótico das lâmpadas públicas que iluminavam a Fontes Pereira de Melo. "Acho que vou gostar de Lisboa..."
O pequeno-almoço foi servido na manhã seguinte no enorme restaurante do Aviz por Ivan, o chef privativo dos Sarkisian, que já se articulara com os cozinheiros do hotel. O diálogo entre eles não estava a ser fácil, uma vez que o russo não falava português e o pessoal do hotel de serviço nessa manhã mostrava-se menos à vontade com as línguas estrangeiras. Havia vários empregados que falavam inglês ou francês, mas ainda era cedo e, por mau planeamento dos seus horários, nesse dia os que dominavam idiomas estrangeiros só entravam ao serviço pelas dez horas.
"Como te tens entendido com esta gente, Ivan?", quis saber Kaloust. "Linguagem gestual?"
O russo forçou um sorriso; o patrão comia habitualmente sozinho, mas desta feita sentara-se à mesa para lhes fazer companhia.
"Os gestos ajudam", admitiu. "Mas descobri que existem semelhanças entre o português e o italiano. Como m'sieur sabe, vivi dois anos na Toscana e desembaraço-me em italiano."
A conversa ia sendo acompanhada por Nunuphar, que mexia a sua chávena de café.
"Se assim é, bem se podia mandar vir o pão. Como se diz pão em português?"
"Em francês é pain e em italiano é pane. O português também é uma língua latina, pelo que deve ser uma palavra parecida..."
A senhora Sarkisian ergueu a mão para chamar a atenção do empregado que passava perto da mesa.
"Garçon, pane!"
"Perdão?"
"Pane! Pane!"
"Ah, pão!" Fez um gesto a pedir à hóspede que aguardasse. "Sim, madame. Tout de suite!"
Tout de suite era quase todo o francês que o empregado era capaz de pronunciar. O rapaz desapareceu para lá da porta, na cozinha, e voltou segundos depois com uma cesta cheia de pão. Ao ver que se fizera entender, o rosto de Nunuphar abriu-se num imenso sorriso luminoso.
"Estão a ver?", perguntou aos seus parceiros de mesa, o marido e madame Duprés. "Estão a ver? Eles já me compreendem!"
"Bravo!"
Nunuphar retirou um papo-seco do topo do cesto e experimentou-lhe a superfície com a ponta dos dedos. A farinha estalou com um ruído crocante, quebradiça e fofa.
"Este pão português tem ar de ser bom", constatou. Passou os olhos pela mesa e fez uma careta. "Ah, que aborrecimento! Falta-me a manteiga." Levantou os olhos para o empregado português, que aguardava diante dela. "Não tem beurre?"
"Perdão?"
Era evidente que o homem não entendia francês para além do tout de suite. Sem desarmar, Nunuphar voltou-se para Ivan, transformado no tradutor de serviço.
"Como se diz beurre?"
"Em italiano é burro, madame", esclareceu o russo, sempre solícito. "Como em francês é beurre, presumo que seja semelhante em todas as línguas latinas."
Convencida, Nunuphar cravou os olhos no português.
"Garçon, burro!"
"Perdão, senhora?"
"Burro! Burro para mói.'"
O empregado fez uma careta horrorizada.
"Um burro, senhora? Quer um burro?"
O olhar de Nunuphar acendeu-se; mais uma vez fora compreendida.
"Isso, isso! Um burro! Traga-me um burro! Tout de suite!"
O português esboçou um esgar desconcertado e hesitou, como se tivesse relutância em obedecer, mas perante a insistência peremptória da cliente acabou por dar meia volta e afastar-se. Nunuphar irradiava satisfação, exuberante por não haver obstáculo que a travasse quando queria alguma coisa. Nem a barreira da língua se interpunha entre ela e a sua vontade férrea.
"Acho que me vou dar bem por aqui", sentenciou. "A língua, como vêem, não é problema." Olhou em redor, admirando a decoração e o jardim para lá das janelas. "E o hotel é simpático, não há dúvida. Não sei porquê, mas tem um certo ar familiar."
"É natural", retorquiu o marido. "Há dez anos era um palacete de família. Parece que pertencia ao director de um importante jornal português. O homem morreu e a mansão ficou nas mãos da filha, que casou numa família de estrangeiros. Ruggerioni ou Ruggeroni, não sei bem. Foram eles que a transformaram neste hotel."
Nunuphar soergueu a sobrancelha, inquieta com o nome dos proprietários.
"Ruccaleone? São italianos? Meu Deus, deve ser um hotel afecto ao Eixo!" Disparou o olhar alarmado em todas as direcções. "Ouvi dizer que Lisboa está cheia de espiões e se calhar é aqui que se hospedam os alemães e os italianos e que..."
Kaloust e madame Duprés sorriram.
"Tem calma!", atalhou o marido. "Os Ruggeroni não são de Itália, são de Gibraltar. Ou seja, têm nacionalidade britânica. Disseram-me que, quando a guerra começou, até interditaram o hotel aos hóspedes provenientes dos países do Eixo."
Quando ouviu a explicação, Nunuphar suspirou de alívio e descontraiu-se.
"Ufa, ainda bem! Para covil de nazis e fascistas já me chegou o que vivi em Vichy..."
"Não quer dizer que não ande por aí rapaziada do Eixo", ressalvou Kaloust. "O Krikor contou-me que, na sua primeira passagem por Lisboa, viu almoçar aqui no Aviz os chefes dos espiões alemães e italianos. Mas o principal poiso dessa gente não é aqui, é num tal Avenida Palace, na Baixa da cidade."
A referência à Baixa extraiu um olhar sonhador à mulher.
"Ah, a Baixa! Temos de passar hoje por lá! Sempre quero ver se há por aqui boutiques de jeito." Voltou-se para a outra mulher à mesa. "O que acha, madame Duprés?"
"Tenho cá as minhas dúvidas", alvitrou a secretária. "Quer-me parecer que o charme desta cidade não está nas boutiques, mas na história, no clima, na comida, no trato gentil e na tranquilidade. Sempre sonhei viver num sítio destes! Acho até que me vou pôr a aprender português..."
A face de Nunuphar contraiu-se de novo numa careta.
"Ai que horror! Para que quer você aprender português, mulher? Isso serve de alguma coisa?"
"Bem, se estamos aqui a viver..."
"É só até a guerra acabar!", sentenciou Nunuphar. "Logo que venha a paz, allez, allez!, aí vamos nós de volta para Paris!" Voltou-se para o marido, como se buscasse confirmação. "Não é verdade?"
"Claro", assentiu Kaloust. "Mas para já é melhor ficarmos por aqui. Apesar de a Europa estar em guerra, a vida continua. Aliás, vou ver se falo hoje com o embaixador Caeiro da Mota para me arranjar um advogado em condições. Desde que os Ingleses me declararam inimigo e me apreenderam as acções da Turkish Petroleum Company que estou com umas ganas de lhes dar uma lição que eles nunca mais vão..."
O empregado do Aviz reapareceu junto à mesa e interrompeu a conversa.
"Dá licença?", perguntou. "O burro já cá está, madame."
"O burro?", exclamou Nunuphar, ansiosa já pela manteiga para barrar o pão. "Têm o burro?'"
"Sim, madame. Já cá está. Tout de suite."
"Já não era sem tempo!" Bateu com o indicador na mesa. "Traga-o, homem."
O português arregalou os olhos.
"Para aqui, madame?" Abanou a cabeça. "Não, não pode ser!" Apontou para a entrada do edifício. "Na porta. O burro está na porta."
A palavra porta não era difícil de entender, dada a sua semelhança com a francesa porte.
"Na porta?", admirou-se a arménia. "Não estou a entender..."
"O burro está na porta", insistiu o empregado, indicando de novo a entrada. "O burro. Na porta." Inclinou-se para a frente, como se quisesse soletrar a palavra. "Por-ta. Bu-rro na por-ta."
"Traga-o cá."
"Não pode ser. Está na porta, madame. Na porta."
Nunuphar olhou com perplexidade para os seus companheiros de mesa, também eles confusos com o que queria o empregado dizer.
"Ele tem a manteiga na porta?", questionou-se ela. "Mas que raio de disparate vem a ser este?" Voltou a encarar o empregado e apontou para a mesa. "Traga-o cá tout de suite!"
"Aqui não, madame", repetiu ele em português. "Pode fazer coco no chão e é um problema."
"Quot?"
No desespero de se fazer entender, o empregado contraiu a face no esgar de quem está com cólicas e simulou que fazia força nos intestinos.
"Uhmm!...", gemeu. "Uhmm!..." Apontou para o chão. "Coco. O burro pode fazer coco no chão do restaurante."
Nunuphar lançou um olhar inquisitivo na direcção de Ivan, que ainda nada entendera, e depois de Kaloust.
"O que raio está este palerma a fazer? Terá diarreia?"
"É melhor ires lá ver", aconselhou o marido, encolhendo os ombros. "Pode ser que neste país se tenha de comprar a manteiga na rua, sei lá. Há costumes tão estranhos..."
Soltando um estalido impaciente com a língua, Nunuphar levantou-se da mesa a sussurrar impropérios contra a qualidade do serviço naquele hotel supostamente de luxo e, embora contrariada, seguiu o empregado em direcção à entrada. O português abriu a porta da rua e, fazendo uma vénia triunfal, convidou-a a espreitar para o exterior. Lá fora, fitando-a com uma expressão indolente e imbecil, estava um animal a ruminar palha.
Um burro, claro.
A tarde foi gasta em passeio pela cidade. O embaixador Caeiro da Mota passou pelo Aviz para levar o casal Sarkisian e madame Duprés e os quatro palmilharam Lisboa de automóvel e a pé, sempre escoltados por Ivan, o cozinheiro que também servia de motorista e guarda-costas. A cidade tornou-se o tema dominante da conversa, com o diplomata a gabar os seus encantos e os visitantes a emitirem sons de concordância.
Numa pausa do diálogo dentro do Rolls-Royce, todavia, Kaloust lembrou-se das suas prioridades profissionais e pediu ao diplomata um advogado de qualidade.
"Quero alguém que seja suficientemente experiente para não se deixar ludibriar pelos alçapões da lei e suficientemente jovem para ser ambicioso e conquistador", indicou. "Mas não tão experiente que isso o faça velho nem tão jovem que isso o faça inexperiente, não sei se me entende."
"Entendo muito bem e garanto-lhe que terá o melhor", prometeu o embaixador. "O melhor!"
A promessa era encorajadora e Kaloust decidiu tirar total proveito da boa vontade do seu guia para resolver uma outra questão que o apoquentava.
"Temos também o problema do automóvel", disse, indicando o motorista com o polegar. "Estive a pensar que o Rolls-Royce me fica proibitivamente caro."
"Caro? Que quer dizer com isso?"
"Quem o está a conduzir é o Ivan, como vê, mas na verdade ele não é chauffeur, é massagista e chef. O meu chauffeur ficou em França, não quis vir, e agora tenho de tomar uma decisão. Ou contrato um chauffeur novo e continuo a usar este carro, pagando a sua manutenção e os litros de gasolina que ele me consome numa altura em que não há muito combustível no mercado, o que representa uma verdadeira fortuna, ou arrumo o Rolls-Royce e contrato um táxi."
"Espero que opte pelo Rolls-Royce. Seria uma pena as ruas de Lisboa ficarem privadas de um carro tão magnífico..."
"Talvez, mas se há coisa que detesto é deitar dinheiro fora", retorquiu o arménio. "Além do mais, há sempre problemas para resolver. São as avarias, são as folgas do chauffeur, são as dificuldades no abastecimento de combustível... enfim, uma maçada! Prefiro na realidade alugar um táxi, parece-me mais sensato. Sabe se existe aí alguma empresa de confiança?"
O embaixador Caeiro da Mota coçou o queixo, pensativo.
"Conheço uma pessoa que o pode ajudar." Fez um gesto com a mão, como se o quisesse tranquilizar. "Eu trato disso, deixe estar."
Percorreram a Avenida da Liberdade e no Rossio saíram do Rolls-Royce para passearem pelo Bairro Alto. Depois atravessaram a praça para o outro lado e escalaram as ruas íngremes e estreitas até ao castelo. Uma vez lá em cima, Kaloust encostou-se à muralha recentemente reconstruída e contemplou com ar sonhador o casario que ondulava pelas colinas com os seus telhados vermelhos e paredes brancas, a linha do horizonte pontuada pelos campanários das igrejas.
A larga bacia resplandecente do Tejo estendia-se em frente à cidade, à esquerda, como um vasto piso de mármore espelhado por onde os cacilheiros da Parceria dos Vapores Lisbonenses deslizavam com preguiça de tartarugas, enquanto Almada espreitava na outra margem. O Sol deitava-se já num prenúncio de crepúsculo, rasgando o céu em aguarelas vermelhas e lilases e arrancando ao arménio um suave suspiro de nostalgia.
"Ah!", exclamou ele, quase em êxtase. "Agora percebo por que razão o Krikor queria tanto que viéssemos para aqui..."
A observação atraiu um olhar inquisitivo de Nunuphar.
"Não era para fugirmos à guerra?"
Ignorando a pergunta, o marido estendeu o braço e indicou a cidade e o rio.
"Olha para isto! O que te faz lembrar?"
Nunuphar não era uma alma poética. Mirou por isso a paisagem com uma certa indiferença e acabou por encolher os ombros.
"Sei lá."
O dedo indicador de Kaloust passeou pelas colinas.
"Aqui é Pêra, ali é o Serralho." Apontou para o estuário. "Este é o mar de Mármara." Indicou a margem sul, e em especial Almada. "Do outro lado a parte asiática, com Scutari ali." Voltou o dedo para a língua de rio que descia dos lados de Alverca. "E acolá é o Bósforo."
Os olhos da mulher estreitaram-se, absorvendo a cidade à luz daquelas observações.
" Constantinopla ?"
Um sorriso subtil desenhou-se no rosto habitualmente impenetrável do magnata arménio.
"Constantinopla", murmurou, quase comovido. "com a vantagem de que não temos os Turcos a infernizar-nos a vida."
Nunuphar contemplou Lisboa devagar, a memória a viajar pela grande cidade da sua infância e juventude, até que acenou afirmativamente.
"Tens razão, esta cidade parece Constantinopla..."
Era uma descoberta inesperada e maravilhosa. Admirando Lisboa com uma expressão hipnotizada, Kaloust sentiu-se transportado para a sua meninice. Onde havia cacilheiros via o vapor que todas as manhãs atravessava o Bósforo para o levar para o Robert College, o Bairro Alto parecia-lhe a zona do Serralho, a estação do Rossio era o telhado do Grande Bazar. Os aromas da infância inebriavam-lhe os sentidos, a lembrança dos primeiros anos submergia-o de emoção. Havia magia naquela transfiguração da cidade, era como se o tempo tivesse completado o grande círculo da vida e regressado enfim às origens.
"Estamos em casa."
A relação do casal Sarkisian nada tinha de ortodoxa, sobretudo à luz dos muitos anos que Kaloust e Nunuphar haviam vivido existências separadas, ele sempre alojado na suíte de um qualquer Ritz, ela entrincheirada na mansão de Londres ou na de Paris. Haviam-se, por isso, desabituado da vida conjugal e o convívio forçado no Aviz começou ao fim de uma semana a gerar problemas.
Depois de alguns pequenos incidentes preliminares, Kaloust explodiu de irritação por causa de uma escova cheia de cabelos que encontrara fora do lugar, ela queixou-se do que dizia serem as preocupações mesquinhas do marido, ele começou a protestar contra a tagarelice incessante da mulher, Nunuphar pôs-se a descrever os hábitos rotineiros do marido como "a coisa mais entediante que Deus alguma vez pôs à face da Terra". Tornaram-se dois velhos rabugentos, ambos em guerra permanente um com o outro, um implicativo e a outra implacável.
"Está visto!", vociferou Nunuphar após mais uma discussão matinal, esta sobre se as cortinas da suíte deveriam estar corridas ou não. "Não se consegue estar ao pé de ti, credo!" Encarou-o com o olhar incendiado de fúria mal contida. "Olha, aqui neste hotel não fico nem mais um dia! Aliás, nem mais um minuto!"
"Aleluia!", exclamou o marido, erguendo os braços para o céu num gesto teatral de agradecimento. "Finalmente vais desaparecer-me da vista! Graças a Deus pelo silêncio que aí vem!" Atirou um olhar a Nunuphar, que abrira a mala sobre a cama e a preparava com gestos irritados. "Irra, que chata! Pareces uma gralha, sempre a falar, a falar, a falar!"
Discutiram ao almoço com o embaixador Caeiro da Mota qual o melhor hotel para Nunuphar, alegando que ela "não se sente bem aqui no Aviz". Preocupado com esta observação, o diplomata inquiriu prontamente se haveria algum problema que pudesse resolver ou se não estariam bem instalados, mas o casal não quis entrar em pormenores e o português, intuindo que o assunto era do foro doméstico, não insistiu. Ponderou o caso e, enquanto comiam, acabou por sugerir o Avenida Palace, lembrando que este hotel estava localizado em plena Baixa, onde se concentravam as boutiques que tanto agradavam às senhoras e em particular a Nunuphar.
"Ah, esse não", rejeitou ela com um gesto enfático mal ouviu o nome do Avenida. "É o hotel dos boches, não é?"
"Sim, é lá que está hospedada a maioria dos agentes alemães, dizem até que no quarto andar há um corredor que liga à estação do Rossio para permitir que os espiões entrem no hotel incógnitos, mas..."
"Nem pensar!", exclamou Nunuphar, eliminando de vez essa possibilidade. "O meu Krikor disse-me que da última vez que por cá passou esteve alojado num hotel muito bom ao lado de um casino qualquer. Parece-lhe familiar?"
"Só pode ser o Hotel Palácio do Estoril", alvitrou o embaixador. "Foi inaugurado há uns dez anos e está ao lado do Casino Estoril. É de facto uma categoria."
"Tem boches?"
Caeiro da Mota soltou uma gargalhada, divertido com a obsessão da sua interlocutora, sempre tão preocupada com manter-se o mais longe possível dos nazis.
"Não, fique descansada, madame", sossegou-a. "A clientela é civilizada."
Uma luz cristalina banhava o Tamariz de tonalidades suaves, tornando mais intenso o azul do mar e mais brilhante o dourado da areia. Os toldos coloridos em listas vermelhas e brancas enchiam a praia e os banhistas em maillot cobriam o areal ou chapinhavam à borda da água, mas a atenção dos Sarkisian centrou-se sobretudo no ambiente cosmopolita e sofisticado do Estoril.
"Oh, lá lá!", exclamou Nunuphar, visivelmente agradada com a atmosfera de veraneio que encontrou. "Não imaginava uma coisa destas num país tão provinciano!"
"Parece Biarritz", concordou Kaloust. "Ou um qualquer recanto da Cote d'Azur."
A mulher esquadrinhou os espaços cuidadosamente arranjados diante da praia do Tamariz. Viu o casino ao fundo do jardim e os hotéis que bordejavam a alameda, mais os ocasionais Bentley e Mercedes que por ali circulavam. As pessoas que enchiam os passeios tinham um aspecto sofisticado e vestiam-se com requinte e elegância, algumas de laço e outras com flores nos bolsos dos casacos. Não se viam na rua burros nem carroças, como se avistavam com frequência em Lisboa, nem sequer gente descalça ou com aspecto indigente.
"Será que têm por aqui boutiques de Paris?"
A observação de Nunuphar arrancou um coro de gargalhadas dentro do Rolls-Royce. O embaixador Caeiro da Mota, que seguia à frente ao lado do condutor, voltou-se para trás e mostrou o rosto sorridente.
"Isso é algo para descobrir mais tarde", disse. "Querem ver agora o Hotel Palácio?"
"com certeza. É mesmo o melhor?"
O diplomata virou-se para a janela e pôs-se a indicar direcções.
"Temos ali o Hotel Atlântico e acolá, ao lado do Palácio, o Hotel do Parque, mas são ambos ocupados pelos agentes alemães e presumo que não interessem." O carro começou a subir a alameda do casino e Caeiro da Mota indicou um grande edifício à direita. "O vosso hotel é este."
Os Sarkisian fixaram a atenção na fachada que lhes era apontada. Tinha uma traça alta e elegante, com um bloco central e o espaço dianteiro aberto para o estacionamento das viaturas. Havia ao canto um pequeno jardim de estilo francês, repleto de formas geométricas e sebes cuidadosamente aparadas. Sobre o telhado do bloco central do edifício erguiam-se duas palavras em billboard, uma em cima da outra.
Palácio Hotel.
"Ah, o Krikor é que tinha razão..."
Visto da rua, o luxo do hotel de cinco estrelas não deixava dúvidas. A visita ao interior do edifício não passou por isso de uma formalidade que todos cumpriram com adequado zelo. Os visitantes percorreram os salões ricamente decorados a mármore, lustres de cristal e tapeçarias e inspeccionaram a sala do brídege, forrada de madeira e aberta para o terraço. Passearam ainda pelo espaço com vista para o casino antes de regressarem ao interior do hotel para Nunuphar formalizar a sua decisão. "vou fazer o check-in."
Enquanto a mulher e madame Duprés tratavam das formalidades na recepção, Kaloust acomodou-se ao balcão do bar e pediu um café. Ficou a observar dois homens, obviamente ingleses, que conversavam em voz baixa a um canto enquanto folheavam o The Times e o The Daily Telegraph, até que foi interrompido pelo embaixador Caeiro da Mota. O diplomata entrou no bar na companhia de um homem alto e corpulento, na casa dos quarenta anos, com gravata roxa e pose austera; num país de gente baixa, o desconhecido parecia-lhe anormalmente alto.
"Senhor Sarkisian, quero apresentar-lhe um dos profissionais de topo em Portugal", anunciou o embaixador, fazendo um gesto para o seu acompanhante. "Trata-se do doutor Azevedo Passarão, que acredito lhe será muito útil."
Kaloust endireitou-se e fez uma vénia com a cabeça, mas não estendeu a mão.
"Muito prazer", disse. "Que parte do corpo humano é a sua especialidade?"
Uma expressão desconcertada perpassou pela face do embaixador Caeiro da Mota e do seu acompanhante.
"Perdão?"
"O senhor Passarão não é doutor?", observou o arménio. "Ando justamente à procura de médico e gostaria de saber a sua especialidade para ver se me pode ser útil."
O ar espantado dos dois portugueses transformou-se numa cachinada algo embaraçada.
"O doutor Passarão não é médico", explicou o diplomata. "É advogado."
Kaloust esboçou uma careta.
"É um advogado e é doutor? Mas os doutores são os médicos!"
"Assim é pela Europa", reconheceu Azevedo Passarão, quebrando o seu silêncio. "Mas em Portugal todas as pessoas que tiram um curso superior são chamadas doutores. É uma idiossincrasia nacional, não se apoquente."
O embaixador desferiu uma palmadinha nas costas do advogado.
"O doutor Passarão é um dos melhores causídicos de Portugal", gabou. "Os grandes processos dos últimos dez anos neste país passaram-lhe todos pelas mãos e tem fama de ser implacável na barra do tribunal." Baixou a voz. "O inconveniente é ser pago a peso de ouro."
A observação foi acolhida com aparente indiferença pelo magnata arménio.
"Noblesse oblige", sentenciou num tom monocórdico, o rosto impassível e os olhos inescrutáveis a luzirem como pérolas negras. "Não me importo de pagar bem. Desde que o trabalho assim remunerado me gere um valor superior àquele que despendi, claro. Não há nada mais estúpido do que deitar dinheiro à rua."
O embaixador retirou-se alegando que ia verificar se Nunuphar e madame Duprés estavam a ser bem sucedidas nas formalidades do check-in, embora na verdade apenas quisesse deixar o advogado a sós com o seu novo cliente.
Azevedo Passarão instalou-se ao balcão do bar, mesmo ao lado de Kaloust, e depois de pedir um café entabulou uma conversa sobre assuntos mundanos, perguntando ao seu interlocutor como se estava a sentir em Portugal e observando em voz baixa, a título de curiosidade, que os dois ingleses sentados no bar a ler os jornais eram os senhores Darling e Fleming, ambos espiões ingleses. A revelação atraiu para o duo o olhar inquisitivo de Kaloust, mas o arménio nada disse a propósito dos dois britânicos e a conversa depressa derivou para o estado do tempo e o maravilhoso sol do Estoril. Claramente o advogado tencionava deixar o cliente tomar a iniciativa no instante que considerasse mais oportuno.
Não teve de esperar muito.
"Encontro-me neste momento em contencioso com o governo de sua majestade", revelou o magnata, entrando enfim no assunto. "Uma vez que eu estava a viver em Vichy, a Grã-Bretanha declarou-me inimigo e confiscou-me as acções que eu detinha numa empresa petrolífera que criei para explorar as riquezas naturais da Mesopotâmia. Acontece que resido agora num país neutral, Portugal, e quero iniciar uma litigação para recuperar essas acções. Logo que aqui cheguei mandei um telegrama para Londres a dar instruções aos meus advogados britânicos para que formalizem o processo judicial. Esse assunto está entregue e não será da sua esfera. Porém, eu próprio, a minha família e colaboradores precisamos de protecção jurídica que nos enquadre enquanto estrangeiros a viver em Portugal. Tenho preocupações especiais no que diz respeito ao pagamento de impostos e preciso de conselhos profissionais sobre como lidar com esta questão no quadro das leis em vigor neste país. Além do mais, é necessário também tratar de quaisquer contratos que sejam necessários neste país. Enfim, há muita coisa na minha vida que requer mão jurídica e a sua ajuda será com certeza preciosa enquanto eu aqui estiver". Fez enfim uma pausa e fitou o seu interlocutor com uma expressão interrogadora. "Está tudo claro para si?"
"Muito claro."
"Naturalmente, gostaria de saber quanto é que isso me vai custar, pelo que lhe solicitava que fizesse o obséquio de me esclarecer sobre essa questão."
O advogado contraiu os olhos, como se fizesse um cálculo mental.
"Dez contos de réis por mês."
Foi a vez de Kaloust fazer contas de cabeça. Sabia o câmbio da libra esterlina em relação ao escudo e converteu dez mil escudos em moeda inglesa. O resultado não o deixou inteiramente satisfeito, mas decidiu não regatear; sabia que na vida havia certas coisas caras que acabavam por sair baratas.
"Por esse preço", decidiu, "exijo que vá uma vez por semana ao meu hotel a despacho comigo."
"Mas, senhor Sarkisian, e com o devido respeito, no meu país não são os advogados que vão ter com os clientes." Apontou para o seu interlocutor. "São os clientes que vêm ter com os advogados."
A observação arrancou de Kaloust um esgar sobranceiro, como se achasse que o advogado ainda não percebera quem tinha pela frente. Estreitou as pálpebras e olhou com intensidade para o português.
"Sabe uma coisa, caro Passarão?", limitou-se a perguntar em tom retórico. "Não tenho dúvidas de que o seu escritório é maravilhoso, mas não conte que eu o vá visitar."
"Porquê?"
com um movimento rápido, ergueu a chávena e sorveu todo o café que restava. Depois saltou do banco e pôs-se de pé, preparando-se para ir ter com a mulher e madame Duprés.
"Porque não sou um cliente qualquer."
"... de modo que essas teorias clínicas sempre me apaixonaram. Aliás, desde os tempos de Galeno que a medicina se tem preocupado sobretudo..."
Percebendo que o seu interlocutor falava sem fazer pausas e que não havia modo de o interromper, Kaloust ergueu a mão e chamou a atenção de Alberto Rapetti, o maitre d'hotel do Aviz.
"Rapetti, traga-me os meus dois morangos e a maçã, por favor."
"Tout de suite, signore."
"... com outro tipo de questões, aliás muito mais interessantes do que aquelas de que se anda para aí a falar. De resto, ainda noutro dia dizia eu ao senhor presidente do Conselho que..."
O arménio encarou o homem ao lado dele.
"Doutor Coelho."
"... deveríamos justamente trazer aqui a Lisboa o autor daquele magnífico artigo publicado no..."
"Doutor Coelho!"
Vendo-se interpelado, o visitante fez por fim uma pausa.
"Sim, m'sieur Sarkisian?"
"O que acha o senhor da ingestão diária de dois morangos e de uma maçã no final do almoço?"
O doutor Coelho hesitou, apanhado em contrapé pela estranha pergunta.
"Morangos? Maçã? Não vejo relevância na sua ingestão. Além do mais os morangos têm a sua época própria, como sabe. Ora as terapias alimentares não se compadecem com a sazonalidade."
"É justamente por isso que mando vir caixas de morangos da África do Sul e maçãs de um pomar em Inglaterra em frigidaires transportadas por aviões. O meu médico em Paris, o doutor Kemhadjian, recomendou-me o consumo diário de dois morangos e uma maçã como prescrição para prolongar a vida."
O seu interlocutor revirou os olhos.
"Ah, que disparate! O que o senhor precisa mesmo é de comprimidos de vitaminas, digo-lhe eu. Aliás, ainda no outro dia li um artigo do célebre doutor Racine, não sei se conhece, tem um escritório finíssimo por detrás dos Champs Elysées, a aconselhar o..."
"Ah, doutor Coelho!", exclamou Kaloust, pondo-se de pé com vigor. "Receio bem que me veja forçado a dispensar a sua presença devido a um assunto de grande urgência. Lamento muito."
"Mas... mas..."
O magnata fez uma vénia.
"Foi um prazer conhecê-lo. Passe um bom resto de dia."
Vacilante, sem perceber bem o motivo da repentina mudança de humor do arménio, o doutor Coelho levantou-se e, devolvendo a vénia com um movimento atabalhoado, retirou-se da mesa e atravessou o salão do restaurante em passos humilhados.
A sala de jantar do Aviz era um espaço gigantesco, com o tecto muito alto e sustentado por enormes colunas; quase parecia uma catedral. Todo o salão se apresentava bem iluminado e finamente decorado, com vasos de cerâmica e dominado por uma grande escadaria, cuja balaustrada era constituída por ferro forjado com águias incrustadas em sucessão.
Sentado a uma mesa na base da escadaria que desembocava no restaurante, Azevedo Passarão viu o médico abalar da mesa do canto e levantou-se. com movimentos rápidos, cruzou o salão e abeirou-se do lugar de canto onde o seu cliente estava instalado.
"Então?", quis saber. "Gostou dele?"
Kaloust ajeitou o guardanapo; não apreciava as conversas às refeições, mas por vezes tinha de abrir uma excepção.
"Um fala-barato", sentenciou. "O homem não tem o menor interesse em ouvir o paciente. Só quer exibir os seus conhecimentos e fala sem cessar. Insuportável."
"Mas o doutor Eduardo Coelho é o médico pessoal do próprio senhor presidente do Conselho!", respondeu o advogado, como se o argumento fosse arrasador e final. "Trata-se de um dos melhores clínicos do país."
"Admito que o seja. Porém, fala de mais. Não tolero tagarelas. Arranje-me outro, por favor."
Passarão abriu os braços num gesto de exasperação.
"Mas qual outro?", questionou, o corpo alto e longilíneo a contorcer-se num ponto de interrogação. "Levei-o ao mais célebre médico que existe em Portugal, o distinto doutor Pulido Valente, e o senhor não o quis."
"Esse tem a mania de que é bom e mostrou uma frieza que me desagradou. Não serve."
"Agora apresentei-lhe o médico do senhor presidente do Conselho, um clínico de alto gabarito que..."
"Um fala-barato, quer antes dizer."
"Talvez, mas no mundo ninguém é perfeito, m'sieur Sarkisian. Por vezes temos de nos habituar à imperfeição."
"Não deve estar a falar comigo. Para mim só o melhor é suficientemente bom."
O jurista preparava-se para responder, mas foi interrompido por Rapetti, que aparecera a segurar uma bandeja com um prato onde cintilavam dois morangos e uma maçã.
"Voilà, signore Sarkisian. A fruta."
O maitre d'hotel do Aviz, bolachudo e sorridente, pousou os frutos sobre a mesa.
"Passe-me a lista."
O maitre d'hotel mostrou uma lista e Kaloust, depois de estudar a maçã, cortou um número que constava na folha. Rapetti recolheu a lista e fez uma vénia.
"Grazie, signore."
A seguir Kaloust olhou para os morangos e esboçou uma careta de desagrado.
"Olhe lá, ninguém me anda a roubar os morangos, pois não?"
O italiano soltou uma gargalhada nervosa.
"com certeza que não, signore Sarkisian. Está tudo comme ilfaut."
O magnata apontou para a porta de acesso à cozinha, do outro lado do salão do restaurante.
"Traga-me cá os pés."
"Qui, signore."
Como se tivesse acabado de receber ordens para uma missão que poria fim à guerra, Rapetti afastou-se em passo rápido, deixando Passarão abismado com o que acabara de ouvir.
O advogado viu Kaloust fixar-se no seu lugar e, muito quieto, contemplar o salão; aquele canto era perfeito para controlar com o olhar as pessoas que desciam a grande escadaria para irem comer ao restaurante.
"Peço desculpa, mas o que se passou aqui? Porque riscou o senhor aquela lista?"
"É a relação das maçãs. Quando elas chegam de Inglaterra, madame Duprés faz uma lista a numerar as peças de fruta em função da sua cor, manchas e forma. É posto o algarismo correspondente em cada maçã e, quando me trazem uma delas, verifico o seu número e risco-o da lista, assinalando assim que a consumi."
"E... e os pés que pediu?"
"Referia-me aos pés dos morangos, evidentemente. Quero ver se eles estão lá."
"Mas... para quê todo esse trabalho?"
O arménio permanecia em imobilidade absoluta, quase como se fosse feito de pedra, e apenas os dedos se mexiam num tiquetaquear incessante em redor do prato com os dois morangos e a maçã.
"Para que não me roubem a fruta, ora essa!"
Uma avaria no Rolls-Royce tornou premente a necessidade de resolver o problema do automóvel. O chefe dos mecânicos na garagem do Restelo indicou que era preciso importar uma peça de Inglaterra e que o processo levaria meses, uma vez que a guerra dificultava a circulação de bens. Nessas circunstâncias, o embaixador Caeiro da Mota apareceu no Aviz num DeSoto que apresentou a Kaloust.
"Este automóvel é de uma empresa de táxis que por vezes trabalha com o Serviço de Protocolo de Estado", explicou. "Penso que responde às suas necessidades."
O magnata contemplou o carro. Era suficientemente grande, como a maioria dos automóveis americanos, mas não ostentoso.
"Parece-me perfeito!", aprovou. "O Rolls-Royce dá muita despesa e maçada, vamos mas é guardá-lo na garagem." Espreitou da janela o tablier do táxi. "Como são os pagamentos?"
Para responder à questão, o diplomata apresentou o motorista do DeSoto, um jovem de bigode fino chamado Estêvão. O chauffeur, genro do proprietário da companhia de táxis, beliscava razoavelmente o francês, razão pela qual de resto tinha sido seleccionado para o trabalho, de modo que ele próprio apresentou o preço.
"São quatrocentos escudos até aos cem quilómetros por dia", explicou. "A partir dessa distância, m'sieur terá de pagar dez escudos por cada quilómetro adicional."
A sobrancelha de Kaloust arrebitou-se de desconfiança.
"E como sei que não me aldrabará nas contas?"
O rosto de Estêvão contraiu-se numa expressão ofendida.
"Eu não aldrabo ninguém, m'sieur!", exclamou em tom magoado. "A nossa companhia é séria. O estado é um dos nossos clientes, tal como algumas das famílias de bem neste país. Bem vê, temos uma reputação a defender."
"Sim, talvez", devolveu o cliente no registo de quem não estava convencido. "Mas, como decerto compreenderá, o seguro morreu de velho. Gostaria de ter uma maneira de controlar diariamente a distância percorrida pelo carro."
O problema foi resolvido por um caderninho. Estêvão comprometeu-se a registar todos os dias a quilometragem do DeSoto, assentando o valor indicado no mostrador do tablier no início e no fim da jornada. Ficou combinado que o caderno ficaria guardado numa bolsa no assento traseiro do carro, de modo que o passageiro o pudesse inspeccionar sempre que quisesse, o que lhe permitia assegurar-se de que os quilómetros estavam correctamente registados.
Um toque no vidro chamou a atenção de Kaloust. O magnata afastou as cortinas cinzento-pérola do DeSoto e deparou-se com a figura esguia de Azevedo Passarão inclinada sobre a janela do automóvel.
"M'sieur Sarkisian!", interpelou-o o advogado, a voz abafada pelo vidro. "Deixe-me apresentar-lhe o seu novo médico."
Agora que a noite caíra e não havia nuvens no céu, o arménio planeara dar um passeio até Monsanto na companhia de madame Duprés e espreitar as estrelas no seu telescópio, actividade que o apaixonava desde que na faculdade estudara física com Lorde Kelvin e que também interessava à sua secretária, mas aquele assunto tinha prioridade. com um suspiro resignado, abriu a porta e apeou-se.
"Escute, meu caro Passarão", disse em tom afirmativo, erguendo um dedo para enfatizar as suas palavras. "Espero que não seja como os outros que me mostrou. Uns pavões, uns tiranos, uns palradores!" Ganhou balanço e a voz tornou-se mais contundente. "Que raio de médicos têm os senhores por cá? Onde diabo pode uma pessoa..."
"Tenha calma, m'sieur Sarkisian", cortou com voz tranquila o homem que se encontrava atrás do advogado. "Não sabe que, quanto mais adrenalina se descarrega no sangue, mais o cálcio se desgasta? Se o senhor se exalta ainda perde os dentes e debilita os ossos. Além do mais, a irritação fragiliza o coração."
Kaloust arregalou os olhos, assustado.
"Deveras?"
"Está provado cientificamente. O senhor deve procurar manter a serenidade em todas as circunstâncias."
As palavras do desconhecido tiveram o condão de o acalmar de imediato. Aproveitando a pausa, Passarão identificou o médico.
"M'sieur Sarkisian, tenho a honra de lhe apresentar o doutor Fernando Fonseca, dono da maior clínica privada em Portugal. Acabou de ficar em primeiro lugar na cátedra da Faculdade de Medicina e tornou-se regente da disciplina de Propedêutica Médica. É o médico perfeito para si."
Os olhos do magnata fixaram-se no homem de cabelo liso penteado para trás e um bigode ralo que, apesar da pose distinta, lhe dava um certo ar de Cantinflas, o actor mexicano que por esses dias animava as salas de cinema. Kaloust tirou o chapéu de coco e fez uma vénia, à otomana.
"Enchanté."
O médico ainda estendeu a mão, mas retirou-a ao perceber que os costumes do seu interlocutor eram outros.
"Talvez fosse útil o senhor começar por me indicar as maleitas de que padece", disse o doutor Fonseca. "É sempre importante conhecermos o historial das..."
"Não sofro de nenhuma maleita", cortou o magnata. "Gostaria apenas de saber o que pensa o doutor do consumo de dois morangos e uma maçã ao almoço."
O seu interlocutor dominou de imediato um breve esgar espantado; a pergunta poderia à primeira vista parecer despropositada, mas percebeu o seu alcance. Era um teste.
"Nada contra e tudo a favor. A fruta, não sei se sabe, é o melhor amigo da saúde. No caso das maçãs até encontra uma boa variedade ao longo do ano, a nacional Gala entre Fevereiro e Maio, a nacional Fuji entre Setembro e Dezembro e a Granny Smith também em Dezembro. A fruta e o exercício físico, meu caro senhor, fazem maravilhas pelo corpo."
Kaloust esfregou as mãos, satisfeito com a resposta.
"Ah, folgo em ouvi-lo dizer isso pois é justamente o que penso", exclamou. "Já vi que o senhor me agrada. Sabe, o meu avô viveu até aos cento e cinco anos e faço tenções de o superar, se Deus me conceder essa graça. Cumpro diariamente a minha ginástica sueca, dou passeios, tomo banho de água gelada e respeito uma rigorosa dieta que inclui o consumo de peças de fruta em quantidades cientificamente calculadas. Posso ter setenta e três anos, mas disponho de uma saúde de ferro e estou empenhado em viver muitos e bons anos." Esboçou uma careta. "Gostaria, porém, que o doutor me fizesse todos os dias um check-up de rotina porque tenho uns achaquezinhos que merecem acompanhamento permanente."
"Muito bem. Terá então de vir ao meu consultório ali na Avenida da Liberdade."
"Estou certo de que o seu consultório é um estabelecimento de grande categoria, caro doutor, mas fica já o senhor informado de que não faço tenções de o visitar. As consultas decorrerão no meu quarto de hotel à hora do almoço. Alguma dúvida?"
"Quer que eu venha todos os dias vê-lo ao Aviz?", admirou-se o médico. "Não acha que é de mais?"
"Será naturalmente remunerado de forma condigna pelo incómodo", esclareceu Kaloust. "Setecentos escudos por visita parece-me uma quantia generosa e suficiente. Espero também que seleccione especialistas nas mais diversas áreas para me acompanharem. Preciso de um dentista, de um urologista, de um gastroenterologista, de um cardiologista... enfim, de uma panóplia dos melhores médicos que existem no país."
O doutor Fonseca arqueou as sobrancelhas.
"Caramba, para quem tem uma saúde de ferro, o senhor precisa de muitos médicos!"
"Até o ferro enferruja, caro doutor." Fez uma nova vénia. "Foi um prazer conhecê-lo. Vemo-nos então amanhã à uma da tarde no meu quarto. Passe bem."
Estendeu a despedida a Azevedo Passarão, devolveu o chapéu de coco à cabeça, rodou pelos calcanhares e meteu-se de novo no DeSoto, onde madame Duprés o aguardava. Quando fechou a porta, o chauffeur espreitou pelo retrovisor.
"Para onde vamos, m'sieur?"
O doutor Fonseca caíra-lhe no goto, mas as preocupações de saúde eram um tormento e, agora que pensara nelas, sentia-se deprimido. Fixou o olhar em Estêvão, que o fitava pelo pequeno espelho do automóvel à espera de uma resposta, e libertou a irritação que de repente se apossara dele.
"Já vi que gosta de me ver pelo retrovisor", disparou. "Estará o senhor porventura a espiar-me?"
O chauffeur arregalou os olhos, chocado com a sugestão.
"Perdão?
O magnata ignorou-o por momentos e acenou uma derradeira vez pela janela para se despedir do advogado e do médico portugueses. A seguir correu as cortinas que mandara instalar na viatura de modo a garantir a privacidade que tanto prezava e, depois de acariciar o telescópio deitado aos pés do assento traseiro, pousou os olhos na nuca do chauffeur.
"Vamos ver as estrelas, rapaz!"
Impulsionado por Nunuphar, que permanecia ágil nas ligações sociais, Kaloust passou a frequentar as recepções diplomáticas em Lisboa e no Estoril. O casal Sarkisian começou a ser visto com frequência nos cocktails das legações e estabeleceu amizade com os embaixadores dos Estados Unidos e do Egipto, que visitava com alguma frequência.
Os contactos mais intensos fora do seu círculo mais próximo decorriam, porém, com portugueses. Os mais importantes eram com o seu advogado, com quem se reunia uma vez por semana para despachar papelada relacionada com questões legais, e ainda com o médico.
Outra pessoa que o via todos os dias era naturalmente o chauffeur. com o DeSoto de Estêvão sempre ao dispor, Kaloust passou a incluir na sua rotina diária um passeio de descoberta de Lisboa e arredores.
"Leva-me à floresta, rapaz", ordenava o cliente nos primeiros tempos, quando ainda não conhecia bem as principais atracções. "Leva-me ao mar e a tudo o que a natureza tem para nos oferecer nesta terra."
Não era um pedido difícil de satisfazer. Ao contrário de Ivan, que nada conhecia da região, Estêvão revelou-se um verdadeiro mapa de Portugal. De retrovisor voltado ao contrário para evitar desconfianças, o chauffeur levou o seu novo cliente no trilho de verdadeiras pérolas verdes e o país pareceu desabrochar aos olhos do arménio, como se as estradas fossem pétalas que se abriam com pudor relutante para desvendar segredos nunca antes contemplados.
com as suas paisagens intocadas, Portugal parecia apelar ao amor de Kaloust pela natureza. As comparações com aquilo a que estava habituado em Inglaterra ou França tornavam-se irresistíveis, mas sem desvantagem para o seu novo país de residência. O cenário de conto de fadas de Sintra não perdia perante os mais pitorescos recantos do Kent e a magnífica praia do Guincho fazia Deauville parecer um areal ridículo; o Estoril dava-lhe a impressão de ter Biarritz a uns meros vinte minutos de distância e a jovem floresta de Monsanto não ficava atrás do bois de Boulogne em qualidade e variedade, com as importantes vantagens de ser mais pacata e possuir um recanto que Estêvão identificou com um nome que depressa se tornou mágico.
"Montes Claros."
Os Montes Claros tornaram-se o lugar de eleição de Kaloust. O chauffeur levava-o com regularidade para uma clareira de onde o magnata, sentado por baixo de uma acácia, permanecia horas a contemplar o estuário do Tejo em toda a sua largura por cima da copa das árvores, com as colinas da outra margem recortadas a cinzento acima do horizonte azul. O motorista não percebia o que tinha aquela paisagem assim de tão especial e foi madame Duprés quem, à terceira visita ao local, o elucidou sobre o que se passava ali.
"Isto é exactamente igual a Constantinopla."
O mistério estava desfeito. Kaloust ia para os Montes Claros sonhar com a infância.
Terminado o exame desse dia, o doutor Fonseca sentou-se à longa escrivaninha da suíte, uma peça que o seu anfitrião tinha mandado trazer de França, e consultou as anotações.
"Ora bem, a tensão anda nos vinte, quando há três dias era de dezanove e meio. Volto a recomendar-lhe que controle o temperamento. Não se irrite, se quiser preservar o coração. Vai tomar o Ronicol durante dez dias e depois intercala com outros dez dias de vitamina E."
O médico agarrou na caneta e pôs-se a rabiscar um papel, alheio ao paciente que se vestia junto à janela.
"Sabe o que me impressiona em Portugal?", perguntou Kaloust enquanto abotoava a camisa e prendia os olhos sonhadores num carvalho do jardim do hotel. "Sabe o que torna o país verdadeiramente irresistível?"
A pergunta surpreendeu o doutor Fonseca, que levantou a cabeça e fitou o paciente, tentando perceber se com aquelas palavras Kaloust se referia a algum pormenor do assunto clínico que nesse instante tinha em mãos.
"Perdão?"
A atenção do arménio permanecia retida no carvalho.
"Quando vivia em Paris e queria ver o mar ou apreciar uma paisagem de província, tinha de andar horas", disse. "A costa do canal da Mancha situa-se a centenas de quilómetros de distância. E se queria visitar a Cote d'Azur levava um dia inteiro de viagem."
"Ah, sim, com certeza. A França é enorme."
O magnata largou por fim os olhos da janela e encarou o seu médico, a camisa já abotoada.
"Mas aqui tudo é perto", observou. "Meto-me na estrada e, ao fim de uns meros dez minutos, estou na província ou na serra ou a ver o mar. Além disso, a luminosidade é desconcertante. O vermelho é mais vermelho, o azul mais azul, o verde mais verde." Suspirou com melancolia e abanou a cabeça, como se já tivesse saudades de Lisboa. "Paris nunca terá nada assim."
A manhã acordara de tal modo aprazível que, depois do pequeno-almoço e da massagem de Ivan, Kaloust optou por fazer um constitucional. Ainda passou pela recepção para efectuar uma reserva em nome de Sir Philip Blake, mas depois pegou na pasta e, fazendo um sinal ao massagista russo de que o acompanhasse, saiu à rua. Em vez de se meter no DeSoto, que o aguardava à porta do Aviz, contudo, fez um gesto a Estêvão e virou à direita, deixando o carro para trás.
"Hoje vou a pé."
O motorista já sabia o que aquilo significava. Saltou para o seu lugar, ligou o automóvel e seguiu o cliente em marcha lenta, o ritmo da progressão ditado pela velocidade das pernas de Kaloust e de Ivan, que seguia no seu encalço. A rua estava quase deserta. Na verdade havia poucos carros em Lisboa e ver um deles rolar à velocidade de uma carroça de bois parecia natural.
Quinze minutos mais tarde chegaram à Rotunda e o arménio começou a subir o Parque Eduardo VII, sempre com o automóvel no encalço, até atingir o topo do grande jardim inclinado. Estêvão parou o carro no meio da relva, como fazia sempre que ali iam, e tirou do porta-bagagem uma cadeirinha desmontável que assentou debaixo de um plátano frondoso, as folhas amarelas e alaranjadas do Outono espalhadas pela relva como um tapete colorido a fogo. Uma brisa fresca percorria o parque e sacudia as folhas secas, enquanto o ar transportava as gargalhadas despreocupadas de crianças que cabriolavam na relva não muito longe dali.
Devidamente acomodado na cadeira, e com Ivan a abanar um espanador para afastar as moscas, Kaloust abriu a pasta e consultou as cartas que tinha recebido de Londres. Agora que estava a viver num país neutral havia muita coisa que precisava de resolver e contactos que urgia reatar. Uma das prioridades era Sir Philip Blake, o seu amigo e advogado, que permanecia activo no Foreign Office e se tornara também conselheiro do rei Jorge VI. Nos últimos tempos trocara intensa correspondência com ele. Na última missiva, e como o arménio se recusava a ir a Londres, o inglês concordara deslocar-se a Lisboa para conversarem sobre assuntos de interesse mútuo. Era pois necessário dar sequência à questão.
Uma gargalhada juvenil obrigou Kaloust a levantar a cabeça. As crianças que brincavam no parque tinham vindo fazer tropelias a uns meros dez metros de distância; davam cambalhotas na relva e corriam umas atrás das outras em jogos da apanhada. O arménio sentia um enorme prazer em trabalhar no Parque Eduardo VII, tão pacato e pitoresco como Hyde Park, mas a barulheira incomodava-o. Fixou a atenção nos garotos e percebeu que, se quisesse recuperar a concentração, teria de arranjar maneira de os calar.
"Pssst! Pssst!"
A criança mais próxima, um rapazinho de dez anos, viu o septuagenário chamá-lo e hesitou, sem perceber se a interpelação lhe era dirigida.
"Eu, senhor?"
Kaloust confirmou com um movimento afirmativo da cabeça e fez com o braço um gesto a pedir-lhe que fosse ter com ele.
"Viens ici!"
Apesar de não perceber o que o velho dissera naquela língua estranha, o rapaz entendeu o gesto e aproximou-se com passos cautelosos.
"O que é?"
O arménio meteu a mão ao bolso e extraiu uma moeda de cinco escudos. Depois apontou para todas as crianças em redor e fez "shhh" com a boca, erguendo a moeda como se a prometesse. Havia evidentemente algo de universal na linguagem dos gestos, uma vez que o garoto percebeu de imediato que, se não fizessem barulho, ganhariam a moeda de cinco escudos. E cinco escudos, tinha perfeita consciência, davam para muitas guloseimas.
De olhos arregalados de entusiasmo, o rapaz foi ter com os companheiros e explicou-lhes a proposta. com um burburinho de excitação, o grupo aproximou-se do plátano e, sentando-se no relvado, caiu no mais absoluto silêncio. A paz regressara ao Parque Eduardo VII.
Depois de varrer a verdura com o olhar, e sempre com Ivan a afastar as moscas, Kaloust soltou um suspiro melancólico e voltou a concentrar-se na papelada e nos problemas que a ela diziam respeito. A questão do confisco das acções da Turkish Petroleum Company tinha de ser resolvida, uma vez que ele já não se encontrava em Vichy à mercê dos Alemães e pretendia retomar o mais depressa possível a plena posse dos seus bens. O assunto parecia bem encaminhado, mas havia um problema que os advogados em Londres não estavam a conseguir superar. Tratava-se da questão das compensações.
Ouviu a risada solta de uma criança e um coro de "chiu!" a mandá-la calar-se. Ergueu a cabeça e percebeu que os garotos que o observavam em silêncio se haviam já encarregado de silenciar uma rapariguinha que aparecera ali perto a puxar um papagaio. Sorriu. A sua guarda pretoriana juvenil era pelos vistos eficiente.
Mergulhou mais uma vez nos papéis e na questão das compensações. Como durante dois anos Kaloust se vira privado do usufruto da sua quota de cinco por cento, mas nesse tempo a Turkish Petroleum Company continuara a laborar e a vender petróleo, o magnata queria que lhe fosse paga a fatia em atraso a que se achava com direito. O problema é que havia muito dinheiro em jogo e era preciso ainda considerar as despesas de guerra, pelo que o Tesouro de Sua Majestade começou a arrastar o processo. Tornou-se gradualmente evidente que as autoridades britânicas não tencionavam resolver o problema com a celeridade desejável e que por isso seria preciso actuar de forma enérgica.
Nestas circunstâncias, percebera Kaloust, nada melhor que um tête-à-tête com o seu advogado e conselheiro. À sombra do plátano, o arménio redigiu um telegrama endereçado a Sir Philip para lhe dar conta de que, na sequência da correspondência que ambos haviam trocado, fizera nessa manhã uma reserva no Aviz em seu nome para a quinta-feira da semana seguinte, pelo que bastava o amigo adquirir o seu bilhete nos escritórios da British Overseas Airways Corporation e voar nessa data até Lisboa.
A seguir consultou a restante correspondência. Duas cartas trouxeram-lhe novidades desagradáveis. Uma era de Sir Kenneth Bark a anunciar-lhe que tinha abandonado a National Gallery; tratava-se de uma importante contrariedade para Kaloust, uma vez que alimentara durante algum tempo a ideia de depositar os seus enfants no grande museu de Trafalgar Square. Paciência, teria de encontrar outra solução! Sentia saudades dos seus quadros e angustiava-se com o que lhes aconteceria quando já não os pudesse proteger. A segunda era uma missiva de Istambul a dar-lhe conta da morte de Salim Bey. Murmurou uma oração em memória do velho amigo e protector turco da família e redigiu uma missiva a endereçar sentidas condolências à família. Mas não lhe pareceu que isso fosse suficiente para testemunhar a sua gratidão para com o velho turco e decidiu sondar um dos filhos sobre a possibilidade de se tornar o seu prospector artístico na Turquia; era uma maneira airosa de saldar a sua imensa dívida para com Salim Bey.
O trabalho da manhã estava terminado. Arrumou a papelada na pasta e levantou-se, fazendo sinal a Estêvão para recolher a cadeira e a Ivan para continuar a protegê-lo do sol com a sombrinha. As crianças silenciosas ergueram-se também, na expectativa da recompensa. O arménio pegou na moeda de cinco escudos e estendeu-a na direcção do rapazinho a quem a havia prometido. O miúdo aproximou-se com ar muito compenetrado e pegou nela. De imediato explodiu uma algazarra e a criançada desatou a correr e a saltar e a completar piruetas sobre o relvado e entre as árvores.
com um sorriso a aflorar-lhe aos lábios finos, Kaloust ficou um instante a observá-los, quase com inveja daquela vida despreocupada. Só quando os garotos desapareceram para lá dos arbustos é que respirou fundo e se meteu enfim no carro.
"É para o Aviz."
O Short Sunderland da BOAC amarou no Tejo junto ao Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo e Sir Philip Blake apareceu no cais de gabardina clara e guarda-chuva na mão. Fazia um sol radioso, o céu abria-se num anil vasto e profundo e o dia estava talvez mais quente e abafado do que o habitual na cidade, o que tornava algo absurdas aquelas precauções, mais adequadas para o clima londrino.
"What ho, Sarkisian!", cumprimentou Sir Philip com a sua inconfundível fleuma quando viu o amigo à espera dele no cais. "Você está na mesma, old boy..."
Kaloust riu-se.
"Ah, Sir Philip. Pois o meu caro amigo parece-me mais velho!"
Convergiram para o DeSoto alugado com Estêvão atrás deles a carregar as malas. Meteram-se no carro e atravessaram Lisboa em ritmo de passeio, Kaloust a mostrar ao amigo as principais atracções da cidade.
"O seu processo para obter as compensações está bem encaminhado ", observou Sir Philip. "Vai receber dinheiro ao longo de muito tempo."
"Quanto acha que vou conseguir em vinte e três anos?"
O advogado inglês tentou fazer as contas de cabeça mas depressa desistiu.
"Muitas centenas de milhões de libras, calculo eu. Mas porquê vinte e três anos?"
"O meu avô viveu até aos cento e cinco", devolveu Kaloust. "Acontece que estou em melhor forma do que ele com a minha idade, pelo que conto viver até 1975."
Ao chegarem ao destino, depararam-se no átrio do Aviz com um movimento maior que de costume. Perante a admiração do arménio, o paquete explicou que se tratava de uma delegação do governo espanhol que estava de visita e que ocupara os poucos quartos livres do hotel.
Esse damn Franco anda mortinho por entrar na guerra ao lado de Hitler", observou Sir Philip com acidez. "Deve ter mandado os seus esbirros pedir a opinião aos Portugueses."
"Para que querem os Espanhóis saber a opinião dos Portugueses? Não pensam por si próprios?"
"O nosso embaixador em Madrid diz-nos que Salazar exerce forte ascendente sobre Franco, thank God", explicou o inglês. "Parece que está a aconselhá-lo a não se meter em trabalhos e a dizer-lhe que a guerra vai acabar empatada. Espero que o convença."
"Como raio sabe o senhor tudo isso?"
Um sorriso sibilino desenhou-se na face do recém-chegado.
"Sarkisian, old chap", murmurou. "Ao fim de tantos anos ainda não me conhece? As minhas funções no Foreign Office e no Palácio de Buckingham permitem-me andar a par de certas coisas..."
Enquanto Sir Philip Blake tratava na recepção do seu check-in, Kaloust foi ao bar e pediu um whisky on the rocks, a bebida preferida do seu velho amigo. Instalou-se numa cadeira e aguardou que o inglês arrumasse a bagagem no quarto e fosse ter com ele, mas ao fim de meia hora começou a achar que o atraso se tornara demasiado longo e, já impaciente, saiu para o átrio para ver se Sir Philip se tinha perdido nos corredores do hotel. Para sua surpresa, viu-o ainda colado ao balcão da recepção com a mala pousada aos pés.
"Ainda aqui? Que se passa?"
Ao ver Kaloust surgir atrás dele, o homem do Foreign Office soltou um suspiro de alívio.
"Ah, old boy, ainda bem que apareceu!", exclamou. "Veja bem que me estão a dizer que a minha reserva foi anulada!"
"O quê?"
"É como lhe digo." Bufou. "Most annoying, indeed!"
O arménio aproximou-se do balcão e cravou os olhos surpreendidos no empregado.
"Desculpe, deve haver engano", disse. "Fiz a reserva em nome de Sir Philip na semana passada."
O empregado era um português de porte distinto, o cabelo grisalho a nascer-lhe nas têmporas, e que se mostrava fluente em francês.
"É verdade, m'sieur Sarkisian", confirmou o recepcionista. "Acontece que recebi ordens superiores para anular essa reserva e para..."
"Anular? Está a brincar comigo?"
"Não, m'sieur Sarkisian. Asseguro-lhe que estou a falar muito a sério. Peço imensa desculpa por este mal-entendido, mas pensei que tinham falado consigo em tempo oportuno. Receio bem que a reserva de m'sieur Blake tenha sido anulada."
"Em primeiro lugar, não é m'sieur, mas Sir. Sir Philip foi feito cavaleiro do reino pelo rei."
"Peço desculpa."
"Em segundo lugar, a que propósito foi a reserva cancelada? Quem deu essa ordem?"
"Foi a gerência."
Kaloust desferiu uma palmada impaciente e ruidosa no balcão.
"Então chame-me a gerência, se faz favor!" Nova palmada no balcão, para transmitir urgência. "Imediatamente!"
Alarmado, o recepcionista retirou-se e deixou os dois hóspedes a sós. O magnata pediu ao amigo que não se apoquentasse que ele resolveria o problema, mas Sir Philip não parecia preocupado; dava até a impressão de começar a encarar todo aquele episódio como se se tratasse do que disse ser uma practical joke. O inglês desviou até a conversa para outros temas, comentando os últimos boatos que corriam em Whitehall e dizendo que iria aproveitar a visita a Portugal para se encontrar com dois amigos no Estoril e tratar de assuntos confidenciais. Conhecendo-o e às suas actividades, Kaloust presumiu que os amigos em questão eram espiões e não teceu comentários; sabia que havia assuntos em que não se podia envolver.
Alguns minutos volvidos, o recepcionista regressou acompanhado de um homem que o arménio reconheceu como sendo o proprietário do hotel, um gibraltino cheio de salamaleques com quem por vezes trocava palavras de circunstância no restaurante, à hora do jantar.
"Peço imensa desculpa, mister Sarkisian", disse o recém-chegado em inglês. "Alguém se esqueceu de o avisar, mas acontece que a reserva de Sir Philip Blake foi cancelada por ordens superiores."
"Ordens superiores, senhor Ruggeroni? Mas que eu saiba o senhor é que é o chefe desta chafarica! Acaso haverá por aqui alguém superior a si?"
O dono do Aviz apontou para cima.
"Deus é superior a mim", disse. "E Salazar também."
A referência ao ditador que governava Portugal suscitou a estranheza de Kaloust.
"Salazar? Que quer dizer com isso?"
Ruggeroni fez um gesto a indicar o átrio do hotel. O arménio e o inglês viraram-se para trás e viram um punhado de homens à conversa em pequenos grupos, uns com farda militar, outros à civil; pela maneira como se exprimiam, ciciando com a ponta da língua, perceberam que falavam castelhano.
"Deu hoje entrada aqui no hotel a delegação do conde de Jordana, o ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros", explicou o proprietário. "A comitiva é muito grande e o subchefe do Serviço de Protocolo do Estado pediu-nos um quarto próximo da suíte do senhor ministro para instalar a secretária dele. Como o único..."
"Ou seja", atalhou Kaloust com veneno, "o que está em causa é a amante do senor ministro!"
O dono do Aviz hesitou, atrapalhado com a sugestão.
"A senhora em causa foi-me apresentada como secretária do senhor ministro", esclareceu, cioso de manter a discrição apropriada às suas funções. "Acontece que o hotel está cheio e o único quarto ainda por ocupar perto da suíte do senhor ministro era justamente aquele que estava reservado para Sir Philip. O subchefe do protocolo insistiu na necessidade de satisfazermos os desejos do senhor ministro, exigência reforçada por uma solicitação da Polícia de Vigilância, a PVDE, no mesmo sentido, pelo que não tive alternativa que não fosse ceder o quarto à senhora em causa."
"Mas então e Sir Philip? Fica na rua?"
com gestos tranquilos, como se seguisse um guião há muito delineado, Ruggeroni folheou um livro pousado diante dele e consultou um endereço.
"Tomei a liberdade de reservar um quarto num apartamento aqui perto, na Duque de Loulé", disse. "As condições são excelentes e verá que Sir Philip ficará muito bem insta..."
"Nem pensar!", vociferou o magnata, voltando a cortar a palavra ao seu interlocutor. "A reserva está feita e tem de ser respeitada! Façam o favor de devolver o quarto a Sir Philip! Isto é um hotel de cinco estrelas ou é alguma espelunca? Onde já se viu uma coisa destas?"
O proprietário arregalou os olhos, entre surpreendido e embaraçado.
"Mas, mister Sarkisian, eu não..."
com o sangue a começar a ferver, Kaloust desferiu uma nova palmada irritada no balcão da recepção.
"Aqui não há mas nem meio mas", disparou, a cara rubra. "Faça o favor de respeitar a reserva!"
"Mister Sarkisian, compreenda por favor", implorou Ruggeroni. "Não posso desrespeitar as instruções do Protocolo de Estado nem da PVDE! Eles podem suspender-me a licença se..."
"Não quero saber! Devolva o quarto, se faz favor!"
"Receio que, nas circunstâncias, isso seja impossível. Bem vê, o quarto até já foi ocupado. Não tenho modo de dizer à senhora que nele se alojou que faça as malas e se retire, não é verdade? Estamos a falar da secretária do ministro!"
Os protestos de Kaloust subiam de tom à medida que se ia tornando mais claro que o gerente não ia ceder às exigências do hóspede. Sir Philip Blake ainda tentou acalmar os ânimos e dizer que não via inconveniente em instalar-se nos aposentos que o hotel lhe oferecia, mas o seu amigo arménio nem quis ouvir falar em semelhante hipótese. Para Kaloust a situação era simples: o hotel aceitara uma reserva, ao fazê-lo assumira um compromisso e tinha de o cumprir; tudo o resto eram desculpas inaceitáveis. Mas Ruggeroni insistiu uma e outra vez na impossibilidade de desobedecer às instruções que recebera.
"Chame a polícia!", berrou a certa altura Kaloust, já fora de si. "A polícia! Imediatamente! Isto é um roubo e eu quero aqui a polícia!"
Perante a insistência do hóspede, que vociferava e esbracejava e exigia a intervenção das autoridades, o proprietário deu instruções para que se ligasse à PVDE, que emitira as ordens. Os homens da Polícia de Vigilância apareceram alguns minutos mais tarde e deram com Kaloust aos berros no átrio, totalmente descontrolado e lançando perdigotos e insultos na direcção do gerente; uma pequena multidão de espanhóis observava a cena com curiosidade divertida e, no meio de tudo aquilo, viram um idoso inglês que se mostrava constrangido.
"O que se passa aqui?", quis saber o agente que respondeu à chamada, cortando pela multidão para chegar ao balcão. "Que algazarra vem a ser esta?"
O dono do Aviz começou a dar em português uma explicação sobre o caso, mas foi interrompido por Kaloust em francês. O magnata quis explicar o seu ponto de vista, a palavra scandale presente em cada frase, e a confusão era tal que o capitão ergueu a mão direita para os travar.
"Alto aí, assim ninguém se entende!", exclamou, enunciando o óbvio. "Um de cada vez." Virou-se para o proprietário. "Comecemos pelo senhor. Faça o favor de me explicar o que se está a passar."
"Pois bem", recomeçou Ruggeroni. "Como lhe dizia, nós tínhamos aqui uma..."
"M'sieur, c'est un scandale!", insistiu Kaloust em tom alterado, sem deixar o gerente continuar a falar. "Un véritable scandale! Imaginez-vous que mon ami est arrivé cê matin-là et..."
O agente da PVDE, que aprendera algum francês na Escola do Exército, voltou-se para o arménio.
"Alors, m'sieur, tenha calma e..."
"Eu não tenho de ter calma!", protestou o hóspede do hotel com grande irritação. "O senhor é que tem de pôr ordem nesta barafunda! Fiz uma reserva e estou a ser roubado pelo hotel!"
"Mas, m'sieur, assim ninguém se entende e não..."
"O que há para entender? O hotel tirou-me um quarto que é meu e entregou-o a um espanhol qualquer, ou à amante dele, o que é a mesma coisa. Onde é que já se viu isto? E o senhor, em vez de fazer o seu trabalho, está para aí a falar, a falar, a falar..."
O polícia enrubesceu e colou o indicador aos lábios.
"Taisez-vous!"
Era a primeira vez em muitos anos, na verdade desde a adolescência, que alguém mandava Kaloust calar-se.
"Perdão!?", escandalizou-se o arménio, mal acreditando no que acabara de escutar. "O senhor mandou-me calar? A mim? A mim? Mandou-me calar a mim!?"
"Oui", confirmou o agente. "Taisez-vous!"
"A mim ninguém me manda calar, ouviu?", explodiu Kaloust de novo, desta vez tendo o polícia como alvo. "O senhor sabe quem eu sou? Faz a mínima ideia com quem se está a meter? Sabe quem eu sou? Sabe?"
O homem da PVDE fitou o hóspede do hotel com uma expressão fria, como se lhe tirasse as medidas; tinha já a paciência no limite e aquilo fora a última gota.
"Sei muito bem quem tu és, sim senhor!", disse num tom subitamente tenso. "És um caramelo que vai de cana e é já!" Estendeu o braço e abriu alas entre a multidão de mirones, convidando Kaloust a segui-lo. "Faça o favor de me acompanhar."
Um silêncio pesado abateu-se nesse instante sobre o átrio do hotel. O agente falara em francês e o significado das palavras foi imediatamente apreendido pelos presentes. O polícia estava a deter Kaloust Sarkisian. O assombro era geral. Recuperando da surpresa, o gerente ainda tentou intervir.
"Oiça, senhor capitão", disse Ruggeroni no tom mais sereno de que foi capaz. "Tudo isto é um lamentável mal-entendido que facilmente se poderá resolver se..."
"Silêncio!"
"Mas, oiça, tenho a certeza de que..."
O agente colou-se ao balcão e inclinou-se na direcção do dono do hotel com um gesto ameaçador.
"Caluda! Se disseres mais uma palavra que seja também vais dentro, ouviste? Eu cá não pactuo com desrespeitos à autoridade. Neste país, e que eu saiba, ainda vigora a lei e a ordem. Manda quem pode, obedece quem deve!"
Intimidado, Ruggeroni remeteu-se de imediato ao silêncio. Por esta altura já Kaloust se tinha recomposto. Havia muito tempo que ninguém o afrontava como aquele polícia português e, após digerir a ordem de detenção, percebeu que seria mais avisado acalmar-se.
"Devo então presumir que estou detido?"
"Presume bem. Acompanhe-me, se faz favor."
"Sendo assim, vou mandar vir o meu carro para me levar onde os senhores entenderem."
O arménio rodou sobre os calcanhares e buscou os rostos de Ivan ou de madame Duprés na multidão que os cercava no átrio do Aviz, mas não os vislumbrou. com um gesto enfático, o capitão indicou o carro celular estacionado diante do hotel.
"Se não se importa, o senhor virá no nosso automóvel", ordenou. "Não é nenhum Cadillac, mas a ramona não envergonha ninguém. Estou certo de que sobreviverá à experiência."
O oficial levou Kaloust para a viatura prisional e sentou-o na caixa traseira, com as janelas gradeadas. A seguir instalou-se no lugar ao lado do condutor e a ramona arrancou instantes depois perante o olhar atónito de Sir Philip e do pessoal do hotel e os esgares divertidos do resto da clientela. Custava-lhes acreditar na evidência, mas tinham acabado de testemunhar uma coisa impensável, talvez impossível em qualquer outra parte do mundo.
A polícia portuguesa detivera o homem mais rico do planeta.
A cela era um buraco sombrio escondido nas traseiras da sede da PVDE, na António Maria Cardoso, com a parede substituída por grades do chão até ao tecto. Fazia lembrar a gaiola dos pássaros na mansão da avenue d'Iena, mas em ponto grande. O graduado de serviço meteu a chave na fechadura e abriu a porta.
"Sirv'ó puré", disse em português, satirizando o s'il vous plaít francês. "O nosso palacete está à disposição de vossa excelência."
O magnata entrou na cela e estacou, horrorizado com o que encontrou no interior. Sentados lado a lado num beliche estavam dois homens. Um tinha cara de poucos amigos e o outro... o outro era negro. Um negro! Kaloust nem queria acreditar. Tinham-no metido numa cela com gente da pior estirpe! Como era aquilo possível? Aos pés deles encontrava-se um penico de aspecto repelente e no ar pairava um fedor a fezes e urina.
"Meu Deus!", sussurrou, reprimindo um vómito. "Que é isto?"
Sentiu ganas de se beliscar, de se certificar de que tudo aquilo não passava de um pesadelo e em breve despertaria na sua suíte de luxo no Aviz, mas não havia maneira de fugir à realidade. Fora detido e encarcerado nos calabouços da Polícia de Vigilância. Tinha de encarar os factos como eles eram e não valia a pena iludir-se. A única coisa que podia fazer era esperar. Decerto que a essa hora Sir Philip já prevenira madame Duprés e ela se pusera em campo para resolver o caso. Provavelmente o seu advogado português fazia nesse instante telefonemas e mexia cordelinhos. Era uma questão de paciência.
Os seus dois parceiros de cela afastaram-se um palmo e abriram espaço no beliche, convidando-o a sentar-se entre eles. Kaloust hesitou, receando as verdadeiras intenções por detrás de tanta generosidade, mas sentiu que uma recusa poderia ser entendida como uma afronta e, como um menino obediente, acomodou-se no espaço que lhe era indicado. O recluso negro começou a fazer-lhe perguntas, mas o arménio respondeu-lhe em francês, indicando-lhe assim que não o compreendia. O homem não desarmou e, por gestos, deu-lhe a entender que queria saber por que motivo fora ele detido.
"Blá, blá, blá!", retorquiu Kaloust, simulando protestos.
O companheiro de cela riu-se; havia percebido. O negro apontou então para si próprio e simulou que rabiscava num papel.
"Ah, escreveste coisas inconvenientes."
O negro apontou então para o outro recluso, um português silencioso. Encostou os dedos à cabeça de Kaloust, simulando uma pistola, e disse "pam!".
Um assassino.
Horrorizado, o magnata tomou consciência de que o verdadeiro problema não era partilhar a cela com um negro revolucionário, mas o facto de se encontrar ali também um homicida. Estava sentado ao lado de um carniceiro! Sem se atrever a voltar a cara, rodou os olhos e estudou-o de soslaio, cheio de medo, observando-o sem dar a impressão de o estar a fazer, e apercebeu-se com surpresa de que ele se mostrava tristonho, de ar perdido e expressão abatida. Podia ser um assassino, mas não tinha um ar muito ameaçador.
A espera prolongou-se e a noite caiu, envolvendo com a sua sombra a cela silenciosa. O negro adormecera encostado à parede e o assassino permanecia calado, decerto a revolver na mente o acto que ali o trouxera. Kaloust suspirou pela centésima vez desde que entrara na cela. Quando o tirariam daquele inferno? Porque demónio estavam a levar tanto tempo? Teria de passar a noite naquele espaço imundo? Sentia o ventre apertar e, com horror, percebeu que não tinha outro remédio que não fosse usar o penico repugnante.
Às primeiras horas da madrugada sentiu movimento no corredor para lá das grades. Dormitava nessa altura, mas abriu os olhos ensonados e apercebeu-se de que o graduado se aproximava da cela. Escutou o tilintar metálico das chaves a rodarem na fechadura e, já totalmente desperto, a esperança a sorrir-lhe, viu a porta abrir-se.
"M'sieur", disse o guarda. "Acompanhe-me."
O polícia conduziu-o pelo corredor e indicou-lhe uma porta à direita, um fio de luz horizontal traçado por baixo. Lá dentro deparou-se com Azevedo Passarão e madame Duprés sentados junto à parede no que parecia uma sala de espera. Levantaram-se os dois de pronto, o olhar exprimindo um misto de alegria, apreensão e expectativa, e acolheram-no com um abraço aliviado.
"Sente-se bem?", quis ela saber. "Trataram-no como deve ser?"
"Precisa de alguma coisa?", atirou o advogado quase ao mesmo tempo. "Se calhar temos de apresentar queixa, este comportamento da polícia é intolerável!"
Ainda a cair em si, o recluso balançou a cabeça.
"Estou bem."
O graduado mantinha a porta aberta e, impacientando-se, fez sinal ao recluso.
"Faça o favor de me seguir", ordenou. "O senhor director quer dar-lhe uma palavrinha."
Regressaram ao corredor e meteram por uma porta que conduziu ao átrio, o magnata a imaginar o chorrilho de pedidos de desculpa que ia ouvir. Viram um guarda acompanhar um homem de aspecto desleixado e barba por fazer, decerto outro recluso, antes de chegarem diante do gabinete do chefe da esquadra. O guia fez sinal a madame Duprés e Passarão para aguardarem à entrada e, desviando o olhar para Kaloust, apontou-lhe a porta entreaberta.
"Entra."
Ao cruzar a porta, o recluso deparou-se com um oficial de cabelo curto e bigode grisalho. O homem permaneceu sentado atrás da secretária a escrevinhar uns papéis, ignorando-o ostensivamente. Ao fim de um longo minuto, levantou enfim a cabeça e fitou-o com ar de mestre de escola, como se se preparasse para um ralhete.
"Vossa excelência passou bem a noite?"
A pergunta em francês apanhou Kaloust desprevenido.
"Já conheci melhores alojamentos."
O director da PVDE fez um esgar com os lábios rosados.
"Imagino que sim", disse num tom neutro. "Sabe, o senhor tem sido acolhido neste país com apreço e simpatia. Mas quer-me parecer que não esteve à altura da hospitalidade que lhe estendemos. Foi malcriado e descortês com os meus homens e dá-se ares de prima donna. Espero que esta noite na nossa companhia o tenha ajudado a perceber que, por muito dinheiro que tenha, nem tudo está à venda." Apontou para a porta. "É um homem livre. Pode ir-se embora."
O ar na rua soprava fresco e húmido, no fim de contas era noite cerrada, mas exalava uma pureza que encheu Kaloust de paz. Que contraste com o cheirete que infestava a cela! Estacionado na berma da António Maria Cardoso estava o DeSoto alugado e, encostado à viatura, o motorista português fumava distraidamente um cigarro. Ao vê-los aparecer, Estêvão atirou-o para o chão e correu a abrir-lhes as portas. Os três instalaram-se no automóvel e olharam uns para os outros, sem saber o que dizer perante as circunstâncias.
Foi Kaloust quem quebrou o silêncio constrangido.
"Estes Portugueses são totalmente loucos", observou. "Mas ninguém os pode acusar de não terem tomates."
E riu-se.
A mesa do canto do restaurante, assente sobre um estrado ali colocado para lhe elevar a posição, tornou-se o poiso habitual de Kaloust à hora do almoço no Aviz. Na verdade não era bem a hora do almoço, uma vez que o hóspede do hotel impusera aos empregados e ao cozinheiro um velho hábito de vida, o de se sentar à mesa pontualmente às três da tarde para a refeição.
O mais carismático dos empregados, o oleoso Alberto Rapetti, que espiava toda a gente e a toda a gente vendia segredos, aproximou-se com uma bandeja.
"Quer ver o peixe, m'sieur Sarkisian?"
Kaloust pegou na bandeja e aproximou o nariz do exemplar; era um robalo e ainda cheirava a mar de tão fresco. Passou as mãos pelo peixe e com um movimento furtivo que escapou à atenção do empregado fez um pequeno corte no canto da cauda. Acenou afirmativamente e devolveu a bandeja.
"Está bom", confirmou. "Pode mandar grelhar."
Rapetti afastou-se e o magnata arménio recostou-se na cadeira e passeou os olhos pelo restaurante. Havia já três anos que Kaloust se instalara no Aviz e certos hábitos tornaram-se instintivos, como a necessidade de dominar o espaço em redor. Nesse princípio de tarde, e como acontecia todos os dias à mesma hora, aproveitava a posição mais elevada da sua mesa para estudar os outros fregueses no restaurante.
Não sendo gordo, a cara tornara-se abolachada e o cabelo escasso, o que conferia um aspecto oval à cabeça e uma certa esfericidade ao corpo. Parecia de certo modo um Buda, capaz de permanecer absolutamente imóvel e sem pestanejar ao longo de vários minutos - à excepção dos dedos largos e sapudos, que não paravam quietos e tamborilavam sem cessar.
Já do seu canto no restaurante tinha observado o deposto rei Juan, de Espanha, com a mulher e os filhos. O mais velho, Juan Carlos, adorava andar a cavalo e nadar, mas era sobretudo conhecido por ser um grande traquinas; dele se dizia que gostava de pregar partidas a toda a gente, embora Kaloust nada tivesse testemunhado. Havia ainda os antigos reis Umberto de Itália e Carol da Roménia, ambos hospedados no mesmo hotel e com quem trocava por vezes palavras de circunstância; não lhe pareceram pessoas particularmente interessantes, mas era agradável partilhar o espaço com gente de tanto pedigree.
Daquele grupo a pessoa que mais lhe despertou a atenção foi a mulher do rei Carol, a plebeia madame Lupescu, que o casamento transformara em princesa Helena e cuja visão lhe atiçava a libido. Também oferecera flores à grande estrela portuguesa, Beatriz Costa, que fazia tenções de cortejar. Mas nenhuma mulher lhe interessou tanto como a actriz americana Ava Gardner, que viera no Clipper e se alojara no Aviz em trânsito para Inglaterra. Enquanto a mirava, distraía-se a fantasiar sobre se ela aceitaria ser a sua belle du jour por uma noite. Se aceitasse, considerara, decerto exigiria uma bela maquia em troca dos seus favores. Mas, caramba, devia valer bem a pena! Será que gritaria no auge?
A curiosidade de Kaloust, porém, incidia sobretudo nas faces anónimas, embora de aparência abastada, que frequentavam o estabelecimento. Sabia que os rostos das figuras que realmente contavam não eram conhecidos do grande público e sentia um desejo profundo de os identificar a todos. Quem sabe se um dia não lhe seriam úteis. Havia os políticos e os monarcas no exílio, claro, mas o que de facto importava era quem manietava os que detinham as rédeas do poder. Ou seja, quem verdadeiramente mandava eram os homens do dinheiro. E esses, sabia-se de ciência certa, passavam obrigatoriamente pelo Aviz.
Nessa tarde, contudo, apenas via dois homens loiros sentados junto à janela a conversarem em voz baixa, ambos com expressões conspirativas estampadas na cara; pareciam preocupados, talvez até algo amedrontados. Apontou o dedo ao empregado e chamou-o.
"Oui, signore Sarkisian?", disse o homem, solícito. "Quer que lhe traga já o robalo?"
"com certeza, Rapetti." Indicou os dois homens loiros cujos perfis se recortavam diante do clarão de luz na janela. "Já agora, quem são aqueles senhores? Nunca os vi por cá."
"Ah, são os senhores Kramer e von Wussow."
"Alemães?"
Rapetti baixou a voz.
"Pertencem à antiga Abwehr, agora assimilada pelas SS." Arqueou as sobrancelhas. "Uns tubarões."
"Não têm um ar muito contente..."
"E como haveriam de estar contentes, m'sieur' Pois se os Aliados já entraram na Alemanha e se há combates nas ruas de Berlim..."
O empregado retirou-se para ir buscar o prato. Enquanto aguardava, Kaloust permanecia totalmente imóvel no seu lugar, como um monge recolhido em meditação. Apenas os olhos mexiam, colados à conversa sussurrada dos dois alemães. Imaginou que estivessem a discutir a derrota iminente e a fazer planos para fugir. Iriam para o Brasil ou para a Argentina? Kaloust já ouvira rumores de uma fuga em massa de nazis para a América do Sul e já nada o surpreendia. Se havia coisa que aprendera, e apesar da excepção que testemunhara três anos antes numa esquadra portuguesa, era a não subestimar o poder do dinheiro. com a fortuna saqueada aos judeus, não faltariam meios àquela gente para escapar à justiça dos vencedores. A vida não era justa, já o sabia desde os tempos do Império Otomano. Como sempre, os responsáveis escapariam e a arraia-miúda ficaria para pagar a factura.
Rapetti reapareceu com uma bandeja fumegante.
"Voilà, signore Sarkisian!", exclamou o empregado com satisfação, pousando a bandeja na mesa. "Eis o seu robalo."
Num acto quase reflexo, o magnata olhou para a cauda do peixe e arregalou as sobrancelhas, chocado.
"Este peixe não é o meu!"
O empregado mostrou-se surpreendido com a observação.
"Asseguro-lhe que é o robalo, signore Sarkisian!"
"Pode ser um robalo, mas não é o meu!"
"com certeza que é."
"Não é!"
A firmeza do cliente desconcertou Rapetti. Estudou o tamanho e o formato do robalo, em busca de quaisquer traços distintivos, e, como nada visse de anormal, levantou os olhos para o magnata.
"Mas... mas como pode ter a certeza disso, signore Sarkisian?"
Kaloust apontou para a cauda do robalo e cravou os olhos furiosos em Rapetti.
"Eu fiz uma marca aqui no rabo e este robalo não tem marca nenhuma!", vociferou, a voz tensa de irritação. "Os senhores estão a tentar ludibriar-me! Mostraram-me um peixe fresco e depois trouxeram-me outro! É um escândalo! É um..."
Rapetti engoliu em seco, visivelmente embaraçado.
"Deve... deve haver engano", titubeou com manifesta atrapalhação. "vou ver o que se passa!"
"... abuso! É um embuste!"
Sem dar tempo ao cliente para lhe atirar novos protestos, até porque o calibre do arménio quando se zangava era espectáculo por demais conhecido e temido no Aviz, Rapetti pegou na bandeja e saiu a correr do restaurante, mergulhando na porta que dava acesso à cozinha.
Sentado no seu lugar, Kaloust fervia de frustração. A fuga do empregado impedira-o de dizer tudo o que pensava sobre a aldrabice que lhe tinham querido impingir. Mas aquilo não ficaria assim, olaré que não! O Rapetti haveria de o ouvir, o cozinheiro também e o dono do Aviz, o senhor Ruggeroni, esse então teria de o aturar durante pelo menos meia hora aos gritos! Ah não! Uma coisa daquelas não passaria em branco! Olha, olha! Quem pensava aquela gente que ele era? Não saberiam porventura com quem estavam a lidar? Pois se não sabiam, depressa aprenderiam! A ele ninguém o enganava! Ele, que aprendera todos os truques no bazar de Constantinopla! Onde já se vira uma coisa...
"Signore Sarkisian! Signore Sarkisian!"
O empregado de mesa irrompeu na sala do restaurante, desaustinado e frenético, e plantou-se diante de Kaloust, os olhos esbugalhados e o rosto alterado.
"Que se passa, Rapetti?", quis saber. "Que bicho te mordeu?" Tanto espalhafato só poderia significar que algo de grave sucedera. "Não me digas que o meu robalo desapareceu!"
O homem parecia transtornado e apontou insistentemente para a porta da cozinha, como se uma coisa de importância transcendente se passasse para além dela.
"A telefonia! A telefonia! Não ouviu a telefonia?"
"Eu não, Rapetti." Fez um gesto a indicar a sua mesa. "Estou aqui à espera do meu robalo, como sabes. Que se passa? A telefonia caiu em cima do peixe?"
"Há festa em Londres! Festa da grossa! Dizem que o Churchill, o Roosevelt e o Estaline... eles vão todos discursar amanhã à mesma hora na telefonia!"
"Todos ao mesmo tempo? A que propósito?"
Os olhos de Rapetti ferviam de arrebatamento. A excitação era tanta que atraiu até os olhares dos dois alemães, intrigados com toda aquela perturbação, mas o empregado ignorou-os. O homem saltitava diante da mesa de Kaloust, irrequieto e nervoso; parecia um garoto a quem acabara de ser prometido um sorvete.
"A guerra... a guerra...", conseguiu enfim balbuciar. "Estão a dizer que a guerra acabou!"
A agitação nas ruas de Lisboa era evidente, com uma multidão a convergir em estado de euforia para a legação da Grã-Bretanha para celebrar a vitória aliada. Não se podia dizer que o fim da guerra tivesse sido uma surpresa, até porque com a batalha de Estalinegrado já começara a tornar-se evidente que a maré havia mudado, tendência confirmada pelo desembarque na Normandia e na costa italiana, mas isso não impediu a explosão de alegria no momento em que o termo das hostilidades na Europa foi formalizado.
Embora profundamente magoado com a atitude tomada pelo governo britânico de o considerar inimigo quando ele estava em Vichy, Kaloust assinalou o fim da guerra com um copo de vinho do Porto que saboreou na companhia de madame Duprés, de Ivan e dos empregados do Aviz. O ambiente era festivo, encharcado por um irreprimível sentimento de alívio. Ninguém sabia se as coisas voltariam ao que eram antes da guerra, intuía-se até que não, mas decerto daí em diante tudo evoluiria para melhor.
Pelas quatro da tarde, e como era hábito, Nunuphar apareceu no Aviz para tomar café com o marido. Desta vez apeou-se do automóvel com um sorriso rasgado na cara, evidentemente já a par das notícias.
"Que dia extraordinário!", exclamou ela logo que se sentou à mesa. "O ambiente no Estoril é de festa, vocês haviam de ver!"
"Aqui também ninguém anda triste", observou o marido. Indicou a mesa à janela, que os dois homens da antiga Abwehr tinham acabado de deixar à pressa. "com excepção dos alemães, claro. Devem estar a deitar contas à vida e a ver onde se poderão esconder."
As três chávenas de café chegaram na bandeja de Rapetti e foram distribuídas com um floreado, duas depositadas diante do casal e a terceira pousada frente a madame Duprés, que permanecera no seu lugar.
"Acho que está na altura de partirmos para Paris", sentenciou Nunuphar. "Estou farta desta parvónia! Aqui não se aprende nada, as boutiques vendem coisas do século passado e esta mentalidade retrógrada e bafienta faz-me uma grande confusão!" Bufou como se libertasse anos de tensão acumulada no corpo. "Ufa, já era tempo de esta maldita guerra acabar! Estava a ver que o dia nunca mais chegava!"
"Ah, sem dúvida!", concordou o marido. "Não há nada como a grande civilização!"
Desde que viera para Portugal que também Kaloust fantasiava amiúde com o regresso a Paris. Os seus advogados haviam já resgatado da coroa britânica as acções da Turkish Petroleum Company que tinham sido confiscadas no início do conflito e esforçavam-se por obter compensações pelas vendas de petróleo decorridas durante a guerra. Restava-lhe recuperar os seus queridos enfants, os quadros que tinha espalhado pelas galerias de Inglaterra para fugir às pilhagens de guerra, e regressar a França para reocupar a bela mansão na avenue d'Iena. Será que a passarada no terraço tinha sentido a sua falta?
"Além do mais", acrescentou a mulher, "temos de ir a Londres ver o Krikor."
Ao ouvir o nome da capital britânica, Kaloust deu um salto na cadeira e corou de fúria contida.
"A Londres?", questionou num tom indignado. "Nem pensar! Depois do que aqueles safados me fizeram?"
Nunuphar inclinou a cabeça na direcção do marido e pousou a mão sobre a dele, para o acalmar.
"Foi a guerra, mon cher. Agora tudo vai voltar à normalidade, graças a Deus."
Mas Kaloust não desarmou.
"A Inglaterra nunca mais!", sentenciou, a veia no pescoço a palpitar de irritação. "Chamaram-me inimigo, confiscaram-me os bens e eu agora finjo que não se passou nada!?"
"Foi a guerra, não te enerves. Agora volta tudo ao normal, fica descansado."
A mulher tinha uma maneira de falar que o tranquilizava, pelo que Kaloust depressa conteve o assomo de irritação. O casal não se dava bem no convívio permanente do dia-a-dia, mas Nunuphar conhecia o marido melhor do que ele se conhecia a si mesmo e sabia o tom e as palavras certas para o dominar sempre que era preciso. Em conformidade, pôs-se a planear a viagem para Paris e a falar sobre o que fariam quando daí a algumas semanas chegassem à capital francesa. Kaloust aproveitou o embalo para imaginar o seu primeiro jantar no restaurante do Ritz da place Vendôme e magicar um passeio a Deauville e uma temporada em Monte Carlo. Falava com entusiasmo e a cada passo ia acrescentando uma nova ideia, uma outra fantasia, um capricho ainda mais premente.
A certa altura, contudo, apercebeu-se de que madame Duprés permanecia calada à mesa, vendo-os a falar sem participar na conversa, uma sombra de certo modo triste no olhar. A expressão de desalento que se lhe desenhara no rosto intrigou o magnata.
"Que se passa?", quis saber. "Porque está com essa cara de caso? Aconteceu alguma coisa?"
A secretária suspirou.
"Não sei se isso me agrada..."
Kaloust arregalou os olhos, sem perceber a observação.
"O que não lhe agrada?"
"Voltar a França", respondeu ela com uma rispidez surpreendente. "Ir viver para Paris, ter de andar sempre na moda, estar constantemente preocupada com a toilette, enfrentar o frio, a chuva, os Invernos sombrios, a antipatia dos parisienses..."
"Mas... o que quer dizer com isso?", admirou-se o arménio. "Tem de voltar a França, não é verdade?"
Ela atirou-lhe um olhar enigmático.
"Tenho?"
"Sim... quer dizer, suponho que sim. Qual é a alternativa?"
A secretária fez um gesto em redor, exibindo o restaurante do Aviz e o que estava para além das janelas.
"A alternativa é isto."
A observação suscitou pasmo à mesa. O casal Sarkisian ficou a olhar para madame Duprés como se nunca a tivesse visto, atónitos os dois com o que ela acabara de dizer, como se tal possibilidade não passasse na verdade de uma impossibilidade, coisa de loucos, ideia de quem decerto não batia bem da cabeça.
Nunuphar foi a primeira a reagir.
"Não pode estar a falar a sério!", exclamou, forçando uma risada. "Quer ficar na parvónia?"
A secretária susteve o olhar zombeteiro.
"Porque não?"
"Porque... porque isto é a parvónia! Vejamos, não há aqui nada de jeito, isto não passa de uma terra atrasada. Não percebo esta língua de doidos, peço manteiga e trazem-me um burro! E a vida social? Apesar da presença de todas estas famílias reais europeias que se vieram abrigar neste país, Portugal é demasiado pequeno e confinado. A vida aqui, ma chérie, é um inferno. Um verdadeiro inferno!"
"Um inferno onde há paz e onde se respira ordem", apressou-se madame Duprés a acrescentar com uma pitada de sarcasmo a apimentar-lhe a voz. "Um inferno onde a comida é boa, o clima agradável, as pessoas simpáticas e o ambiente acolhedor. Sim, não há dúvida: este inferno é mesmo insuportável!"
O tom ácido da resposta da secretária emudeceu Nunuphar, que, agastada, se voltou para o marido. Não estava habituada a ser escarnecida daquele modo, sobretudo por uma assalariada, e esperava que Kaloust pusesse a secretária na ordem. No entanto, surpreendeu-lhe uma expressão pensativa no rosto, como se o que acabara de escutar da boca da francesa o tivesse deixado a pensar.
"Está a falar a sério?", perguntou ele por fim à secretária. "Quer mesmo ficar cá?"
Madame Duprés assentiu com a cabeça.
"Portugal é um país muito agradável", disse ela. "Estou aqui muito bem e até já aprendi a língua. Além do mais, interrogo-me sobre o que encontraremos se voltarmos a França. Repare, o país foi humilhado, andou a colaborar com o inimigo e acabou devastado. Dizem-me que os cortes de energia e de água são constantes em Paris. Há falta de bens essenciais e parece-me que será preciso muito tempo para nos erguermos dos escombros. O que vou eu fazer para França?"
"Vem trabalhar comigo, como sempre."
A secretária encarou o patrão com intensidade; apesar das relações profissionais, eram já na verdade velhos amigos.
"O que vai o senhor para lá fazer?"
"vou... quer dizer, vou..."
"Vai encontrar tudo feito em cacos e haverá uma multidão de oportunistas a bater-lhe à porta e a pedir dinheiro para isto e para aquilo, a exigir a sua colaboração para financiar milhentas coisas, a propor-lhe os mais variados negócios, a importuná-lo de todas as maneiras e feitios." Inclinou a cabeça para a frente, os olhos sempre cravados nele. "É mesmo isso que quer?" Fez um gesto a indicar o interior do Aviz. "A tranquilidade que aqui tem, este clima ameno, a simpatia destas gentes... deseja assim tanto ver-se livre de tudo isto?"
A firmeza com que madame Duprés exprimiu o seu pensamento e os seus desejos colheu Kaloust de surpresa. Nunca lhe passara pela cabeça a possibilidade de se fixar em Portugal. Tal como acontecia com os monarcas depostos que se encontravam alojados no Aviz, também ele fizera de Lisboa um porto de abrigo temporário enquanto a tempestade devastava a Europa. Mas os primeiros raios de Sol espreitavam sobre o continente e sempre dera como certo que, quando o momento chegasse, voltaria à sua velha vida em Paris. A secretária, porém, raciocinava de outra forma e isso desconcer tou-o. A hipótese era assombrosa. Ficar em Lisboa? Porque sim?
E porque não?
"Quer mesmo ficar cá?"
"com certeza."
Virou-se para a mulher.
"Que dizes tu a isto?"
"Eu?!", exclamou Nunuphar, quase escandalizada com a dúvida. "Eu vou para Paris, claro! E quanto mais depressa melhor!" Semicerrou os olhos, de repente desconfiada. "E tu? Não vens?"
Vendo-se interpelado, Kaloust hesitou. Parecia-lhe evidente que voltaria também a Paris, sempre tivera essa intenção, mas por alguma estranha razão madame Duprés plantara-lhe na mente uma hipótese bizarra e isso impedia-o de ser categórico. Tinha de pensar, amadurecer as possibilidades, medir o pulso à situação, estudar as alternativas, pesar os prós e os contras. Em suma, precisava de tempo.
"Eu também vou", decidiu. "com certeza que vou, isso nem se discute."
"Ah, bom."
A mulher parecia aliviada e de certa forma Kaloust não a queria decepcionar. Mas olhando para a sombra que toldara de súbito o rosto de madame Duprés percebeu que também não desejava apartar-se da sua velha amiga. Além do mais, ela tinha razão; com o clima suave, a comida saborosa e a afabilidade das pessoas, mais o mar e a floresta e o campo a dez minutos de distância, e ainda as semelhanças com a Constantinopla da sua infância, parecia-lhe inegável que Lisboa possuía de facto os seus encantos. Como poderia ignorá-lo? "vou voltar para Paris", repetiu, desta vez arrastando as palavras. "Mas não agora."
O silêncio não era necessariamente uma coisa anormal quando Kaloust se encontrava a sós com a mulher, mas o semblante carregado de Nunuphar nesse momento constituía sinal seguro de que havia caso. A mulher pedira-lhe que a levasse de regresso ao Hotel Palácio do Estoril, mas manteve-se num mutismo absoluto até entrarem na marginal por alturas de Paço d'Arcos.
"Não acho normal que não queiras vir para Paris", disse por fim, num tom gélido. "Não acho nada normal."
"Claro que vou para Paris."
"Não vais nada."
"vou, já te disse. Porém, acho melhor permanecer aqui mais algum tempo, até porque a situação em França vai demorar a estabilizar. Quando tudo voltar ao normal, regressarei."
Ela mergulhou de novo no silêncio e manteve-o uns minutos. Só quando chegaram a Oeiras quebrou o mutismo.
"É tudo por causa dela, não é?"
"Quem?"
Nunuphar virou para ele os olhos furiosos; pareciam chispar relâmpagos.
"Não te faças desentendido!", vociferou. "Estou a falar daquela mulher!"
"Madame Duprés? O que tem ela?"
"Deixaste-a há bocado fazer pouco de mim e agora... e agora ficas com ela aqui em Lisboa. Quero-te lembrar que estás casado comigo, não com essa fulana!"
"Estás com ciúmes de madame Duprés? Não sejas ridícula. Não se passa nada com ela."
A mulher fitou-o com intensidade, como se o avisasse de que se mentisse seria apanhado.
"E nunca se passou?"
A pergunta atrapalhou Kaloust. O marido hesitou, na incerteza sobre o que deveria dizer sobre o assunto.
"Quer dizer... há muito tempo, ainda não te conhecia", acabou por confessar. "Mas tudo isso já lá vai."
Nunuphar explodiu de fúria. Soltou um grito quase selvagem que fez sobressaltar o chauffeur de susto, e bateu sucessivamente com a sombrinha em Kaloust.
"Maldito!", gritou a chorar. "Maldito sejas por assim me desrespeitares!"
O marido levantou os braços para se proteger.
"Então, Nunuphar? O que é isso?"
A mulher continuava a bater-lhe com a sombrinha. Não o fazia com força; a violência estava nas lágrimas, na fúria, nas palavras, não na sombrinha que espatifava contra Kaloust.
"vou partir para Paris e tu vais ficar com essa desavergonhada aqui em Lisboa! Maldito sejas por me desgraçares e desonrares!"
"Calma, Nunuphar! Calma!"
Ela largou a sombrinha já esfarrapada e mergulhou a cara nas mãos a chorar convulsivamente.
"Essa indecente só quer o teu dinheiro, não percebes?" disse num gemido por entre lágrimas e soluços. "Ela quer manter-te aqui porque sabe que em Paris te perderá! A fulana pretende reter-te nesta parvónia porque tem consciência de que a família nunca a aceitará e que, quando um dia desapareceres, ficará sem nada! É isso e só isso o que essa desavergonhada tem na cabeça."
A mulher mergulhara num pranto inconsolável, mas ao fim de um par de minutos o choro foi substituído por um soluçar cada vez mais intervalado.
"Ouve, Nunuphar", disse o marido, vendo-a mais calma e percebendo que só agora a conseguiria fazer ver a razão. "Tu conheces-me há muitos anos e sabes que não sou mentiroso. Nada se passa com madame Duprés para além de uma amizade que conta já muitos anos. Mas mesmo que assim não fosse, gostaria de saber se já viste alguém conseguir manipular-me. Alguma vez viste isso?"
Nunuphar fungou e abanou a cabeça.
"Não."
Kaloust recostou-se no seu assento e deixou o olhar vadiar pelas ondas que embatiam nas rochas com um fragor que ressoava pela Marginal; a maresia penetrava pela frincha da janela do seu lado e enchia o DeSoto de aroma a sal e iodo.
"Admito que madame Duprés me influenciou", disse com solenidade, como se se confessasse na igreja. "Mas a decisão de ficar cá é minha e só minha. Tomei-a porque, acredites ou não, gosto de aqui estar."
Despediram-se de Nunuphar duas semanas mais tarde na estação do Rossio, onde ela foi apanhar o comboio para Madrid; dali seguiria para a fronteira francesa e depois para Paris. A mulher acenou da janela da composição em movimento, Kaloust e madame Duprés disseram também adeus e ficaram a ver a composição rolar sobre os carris no seu ruminar ritmado. Quando as carruagens serpentearam pela curva e por fim desapareceram ao longe, os dois fizeram meia volta e abandonaram a plataforma.
"Mais uns meses e se calhar também vou", observou Kaloust. "Paris será sempre Paris, n'est-ce pás?"
Ciente de que os actos eram mais relevantes do que as palavras, a secretária nada respondeu. Ele ficara em Lisboa, não ficara? Isso parecia-lhe tudo o que realmente interessava. E, na verdade, Kaloust sentia-se bem com a rotina diária que estabelecera desde que tinha chegado a Portugal.
Acordava às oito da manhã, submetia-se às massagens de Ivan e fazia ginástica sueca durante vinte minutos. Depois do banho ia para a sala tomar o pequeno-almoço. Era um animal de hábitos, pelo que a primeira refeição do dia se repetia sem variações: iogurte, vegetais cozidos e compotas, tudo pesado ao grama para respeitar as suas necessidades nutricionais diárias, nem mais nem menos. A seguir lia os jornais e o correio até às dez e meia. Descansava até ao meio-dia, hora a que se vestia e ia dar um passeio com Estêvão até ao Parque Eduardo VII ou a Montes Claros, umas vezes só, outras acompanhado por madame Duprés e sempre com Ivan para lhe afastar as moscas. Rodeado pela natureza, e depois de devidamente subornadas as crianças para manterem o silêncio, sentava-se à sombra de uma árvore e anotava ideias ou redigia cartas relacionadas com o negócio do petróleo
ou com as artes.
Na verdade eram as artes que lhe ocupavam por esta altura a maior parte do tempo. Mantinha uma legião de "olheiros" espalhados pela Europa à cata de oportunidades para aquisição de uma ou outra peça para as suas várias colecções. Recebia diariamente de todas as capitais europeias uma mão-cheia de missivas com propostas e tinha de lhes dar andamento, respondendo sim ou não, ou, como acontecia muitas vezes, remetendo o assunto para o parecer técnico de um avaliador em Londres ou Paris, de modo a assegurar-se da autenticidade e do valor de cada peça.
"Verificar, verificar, verificar", repetia com frequência, entoando assim aquele que se tornara o seu lema. "Temos de ter a certeza que ninguém nos engana."
A distância de Lisboa a Londres e a Paris não lhe era antipática. Encontrava-se suficientemente afastado para não ser demasiado importunado, mas adequadamente próximo para dar instruções que o correio aéreo fazia chegar ao destino em apenas um ou dois dias. A capital portuguesa tornara-se assim um ninho acolhedor, a meio caminho entre os centros de decisão europeus e a América, um refúgio confortável a que gradualmente se afeiçoava.
A jornada de Inverno nascera carregada de melancolia; chovia lá fora e era como se as nuvens despejassem lágrimas de tristeza. Deixou o olhar vaguear em abandono pela paisagem para além da janela e contemplou o céu cerrado que sufocava Lisboa, emprenhando a cidade numa luminosidade de prata sem lustro. Detestava a sombra e a cor que ela roubava ao dia.
Havia já mais de um ano que a guerra acabara e, como a manhã insistia em mostrar-se desagradável, cancelara o passeio e mandara Estêvão à Rua da Prata, onde se situavam os escritórios de Azevedo Passarão, pedir-lhe que passasse mais cedo pelo hotel. Quando à hora combinada o advogado chegou, fecharam-se ambos no quarto do primeiro andar que transformara em escritório e sentaram-se a estudar o assunto que o preocupava naquele momento, a questão dos mecanismos jurídicos previstos pela lei portuguesa para escapar aos impostos. O problema é que só o advogado parecia realmente interessado em concentrar-se no problema. com os olhos pousados no exterior e a mente a vaguear por outras paragens, Kaloust deixou escapar um pensamento que havia algum tempo lhe aflorava em segredo à mente.
"E se eu construísse ou comprasse uma casa aqui em Portugal?", perguntou em jeito de quem explorava o caminho. "Isso seria benéfico em termos fiscais?"
O advogado parou de escrevinhar e levantou os olhos, duvidando do que acabava de escutar.
"Perdão?"
"Quais as vantagens fiscais de se adquirir uma casa em Portugal?"
O jurista português pestanejou, abalado pela importância da pergunta. Aquelas palavras, tinha perfeita consciência, representavam um salto extraordinário na maneira de pensar do seu cliente. Pela primeira vez ouvia-o cogitar em voz alta na possibilidade de a sua presença no país se tornar algo mais do que uma mera passagem episódica. Uma coisa dessas era inaudita.
"Uma casa?", perguntou Passarão, apalpando o terreno com prudência. "Está a pensar num negócio de imobiliário?"
"Não. Estou a referir-me a uma casa para viver." Fez um movimento a exibir o quarto onde se encontravam. "Não posso passar a vida inteira num hotel, não é verdade?"
O advogado desabotoou o botão da gola da camisa e soltou a gravata, como se precisasse de ar para respirar. Não acreditando no que acabara de concluir, reviu mentalmente as palavras de Kaloust. Não havia dúvida, o seu cliente estava mesmo a considerar a possibilidade de se instalar definitivamente em Portugal.
"Em que tipo de casa está a pensar?"
O magnata esboçou um gesto vago com a mão direita.
"Sei lá, um palacete", disse. "Sabe, Sintra parece-me encantadora. Noutro dia descobri uma propriedade mesmo no meio da serra, sobre a vila, uma coisa chamada Quinta da Amizade. Tem lá uma mansão degradada e poderia reabilitá-la ao estilo das antigas igrejas arménias. Seria magnifique, hem?"
"Mas para que precisa o senhor de uma casa tão grande? Porque não compra uma coisa mais pequena?"
Afogado em melancolia, talvez influenciado pelo dia triste, Kaloust exalou um longo suspiro.
"Porque tenho saudades dos meus enfants", disse. "Está a ver, sou dono de uma das melhores colecções de arte do mundo e há já alguns anos que não a vejo. Não parece normal, não acha? A arte é para ser fruída, não para ser esquecida."
O advogado recostou-se na sua cadeira e guardou a caneta no bolso do casaco, revelando assim a sua disponibilidade para estudar a hipótese com mais vagar. O cliente levantara uma possibilidade que abria horizontes amplos e era preciso atenção para os explorar devidamente.
"De facto, não faz sentido essa colecção permanecer tão distante de si", considerou. "Porque não a traz para cá?"
"É justamente por isso que ando a pensar em construir um palacete." Fitou o interlocutor. "Que vantagens é que uma coisa dessas me poderia trazer em termos fiscais?"
Os lábios de Passarão curvaram-se num esgar céptico.
"Em boa verdade, não existe nenhuma vantagem nesse aspecto em particular", disse. "Teria de pagar o imposto sobre a propriedade e não estou a ver maneira de usar isso para obter qualquer tipo de isenção fiscal. Um imóvel é um imóvel, não é verdade?"
"Não há nada de nada?"
O advogado inspirou fundo e, de pulmões cheios, concentrou-se no problema. Como se poderiam extrair vantagens fiscais da construção de um imóvel? Que soubesse, tal coisa não existia na lei portuguesa. A não ser que conseguisse convencer o estado a conceder isenções de impostos ao seu cliente em troca de... de... de quê? Do petróleo? Era evidente que Kaloust não transferiria o seu negócio para Portugal. Que moeda de troca teria então o seu cliente? Bem, havia a colecção de arte. E se ela viesse para Portugal? Que contrapartidas se poderiam arrancar do estado português? A ideia iluminou-se nesse instante na mente de Azevedo Passarão com uma intensidade tal que quase o encandeou. Caramba, e porque não?
Fitou o cliente.
"Pode haver maneira."
O arménio franziu o sobrolho, na dúvida sobre se deveria ter esperança ou refugiar-se no cepticismo.
"Como?"
"Se o senhor trouxer para cá a sua colecção de arte, acho que serei capaz de convencer o estado português a conceder-lhe regalias especiais nos impostos. "
A observação do jurista paralisou Kaloust; surpreendera ali de repente o gérmen de um conceito. O arménio tornou-se uma estátua de tão imóvel; como sempre, apenas os dedos irrequietos se movimentavam enquanto a mente fervilhava de possibilidades perante os horizontes que inesperadamente se lhe abriam.
"E se...? E se...?"
Vendo-o transfigurado, Passarão assustou-se.
"M'sieur Sarkisian? Sente-se bem?"
Mas o magnata nem o escutou, tão mergulhado estava nos seus pensamentos. A ideia parecia-lhe demasiado extraordinária para a deixar escapar. Não era ele que se sentia atormentado com o destino dos seus queridos quadros? Não pensava ele amiúde no que sucederia aos seus lindos "enfants" quando um dia já não os pudesse proteger? Não se questionava ele com frequência sobre qual a instituição mais adequada para os receber? Se Rockefeller o fizera, se Ford o fizera... porque não ele? com os olhos em fogo, Kaloust hesitou um instante, quase com medo de que o seu raciocínio sofresse de falhas estruturais que não tivesse notado e que tudo fizessem desmoronar. Mas não, concluiu após uma rápida revisão dos principais pontos. O esquema encaixava. Claro que seria preciso lidar com inúmeros pormenores, havia questões que precisavam de ser clarificadas e outras negociadas, mas o conceito geral parecia-lhe sólido.
"Sabe como se enquadra este assunto?", perguntou. "Através de uma instituição."
O advogado fez uma careta inquisitiva.
"Que tipo de instituição? Um museu?"
Uma luzinha vadia cintilou no olhar intenso do magnata. Quanto mais pensava na ideia mais genial ela lhe parecia. Como diabo era possível que uma coisa daquelas nunca lhe tivesse ocorrido?
"Uma fundação."
A noite terminara tarde no Aviz, era sempre assim no réveillon, mas logo pela manhã já não se viam em parte alguma vestígios dos confetti usados na festa nem das garrafas de cbampagne esvaziadas às dezenas, apenas um cartaz sobre a recepção a desejar feliz 1947 aos hóspedes. Passando pelos empregados que tinham apagado os últimos traços da folia da passagem de ano, Azevedo Passarão atravessou o átrio e foi dar com o seu cliente a tomar sozinho o pequeno-almoço na mesa do costume, sobre o estrado montado ao canto do grande restaurante.
"Feliz ano novo!", saudou o advogado ao aproximar-se da mesa. "Foi boa a festa?"
"Normal", devolveu Kaloust sem grande entusiasmo. "Aproveito para lhe desejar a maior prosperidade este ano."
O recém-chegado puxou de uma cadeira e sentou-se ao lado do magnata. Depois lançou um olhar na direcção do empregado e fez um gesto para atrair a sua atenção.
"Faz favor!", chamou. "Será que me pode..."
"Gosto de tomar as minhas refeições sozinho", cortou Kaloust. "Se faz tenções de comer ou de conversar agradecia que tivesse a fineza de ir para outra mesa."
O advogado arregalou os olhos e abriu a boca, surpreendido com a ordem de despejo.
"Perdão?"
"Espero que não se ofenda. Um estudo científico revelou há uns anos que comer na companhia de pessoas é prejudicial para o processo digestivo. Desde então que tomo as minhas refeições sozinho e só ocasionalmente, e por razões ponderosas, quebro nessa regra." Arqueou as sobrancelhas. "Como sabe, faço questão de bater um velho recorde da minha família e viver até aos cento e seis anos..."
Azevedo Passarão manteve os olhos incrédulos fixados no seu cliente.
"Mas... mas em que é que o processo digestivo é prejudicado pela presença de outras pessoas à mesa? Qual a relação entre as duas coisas? Não entendo."
"É porque as outras pessoas nos obrigam a conversar."
"E...?"
O arménio despejou uma colher de cereais sobre o iogurte fresco que Ivan lhe havia preparado nessa manhã. Eram três gramas de cereais, a quantidade exacta que o doutor Fonseca lhe tinha dito ser a adequada para as suas necessidades nutricionais do dia e que o doutor Kemhadjian lhe havia confirmado por carta remetida de Paris. A seguir tomaria trinta e cinco centilitros de sumo de laranja natural, a quantidade rigorosa que lhe fora receitada pelo médico para a primeira refeição do dia.
"Engole-se muito ar."
Kaloust apareceu no lobby do Aviz logo que terminou o pequeno-almoço. O advogado conversava com madame Duprés e, com olhar analítico, avaliou o fato que o cliente trazia vestido. Era cinzento-escuro, com listas verticais tão acentuadas que pareciam feitas a giz; não tinha o ar discreto de Savile Row, mas a elegância exuberante da linha francesa.
"Já vi que está trajado a rigor." Estendeu o braço e consultou o relógio. "Pronto para sair?"
Kaloust meteu o chapéu de coco na cabeça.
"Vamos a isso!", disse com energia. Atirou um olhar de despedida à secretária. "Então até logo!"
Madame Duprés acompanhou-os até à porta, viu-os entrar no DeSoto e acenou quando o automóvel arrancou. Passaram pelo Marquês do Pombal e viraram para o Rato para se meterem em direcção à Assembleia Nacional. Sem conter o nervoso miudinho, o arménio inspeccionou o próprio fato e sacudiu o que lhe pareceram grãos de pó sobre os ombros; fazia questão de se apresentar absolutamente impecável.
"Ele fala inglês?"
O advogado soergueu a sobrancelha.
"Quem? Salazar?" Sacudiu a cabeça. "Francês."
"Fluente?"
"Parece que sim." Pousou-lhe a mão sobre o ombro e sorriu. "Fique descansado, vai correr tudo bem."
Os olhos de Kaloust desviaram-se para a escadaria que conduzia ao grande edifício que aparecera à direita, a Assembleia Nacional. O carro chegou ao cruzamento e virou à direita, começando a subir a rua lateral ao grande edifício do parlamento.
"Tem piada", observou o magnata. "Já vi o czar, o Kaiser e o sultão. Conheci vários reis ingleses, incluindo o actual, Jorge VI, e diversos presidentes de França. Sou amigo do anterior xá do Irão, que ajudei a ascender ao trono, e privei com os homens mais ricos do planeta, incluindo os Nobel e os Rothschild." Riu-se de si próprio. "No entanto, estou nervoso com este encontro."
"Porquê?", admirou-se Passarão. "Não me diga que Salazar o intimida!"
O automóvel imobilizou-se diante do portão e o guarda aproximou-se da janela do condutor. Estêvão disse-lhe que os seus passageiros vinham "apresentar cumprimentos ao senhor presidente do Conselho pelo novo ano", o guarda inquiriu os nomes e consultou a lista que lhe havia sido fornecida nessa manhã; os nomes de Kaloust Sarkisian e Azevedo Passarão encontravam-se de facto registados para visita. Depois de fixar os rostos dos dois homens que seguiam no banco de trás do DeSoto, deu ordens aos seus homens e os portões abriram-se.
"Sabe o que é?", murmurou Kaloust no momento em que o automóvel franqueou a entrada e penetrou no recinto do Palácio de São Bento. "Desta vez não sei que tipo de pessoa vou encontrar."
A porta do palacete abriu-se e, para surpresa dos visitantes, não era o mordomo que os aguardava junto à entrada, mas um homem seco e austero de fato claro e gravata ultrapassada, inclinado numa postura falsamente deferente e os olhos pequenos e escuros num rosto familiar. Tratava-se do próprio presidente do Conselho.
"Bonjour, m'sieur Sarkisian", saudou Salazar com um sotaque francês aceitável, estendendo a mão. "Soyez bienvenu! Agradeço a gentileza da sua visita e aproveito, se me permite, para lhe desejar um feliz ano novo."
Recuperado do espanto momentâneo, não só pela aparição do ditador a recebê-los à porta como pela sua desconcertante voz aflautada, Kaloust apertou-lhe a mão e, de calcanhares colados, fez uma vénia curta, à maneira otomana.
"O prazer é meu, excelência", disse com solenidade. "E sou eu quem lhe deseja um bom ano. Vim aqui para lhe apresentar respeitosos cumprimentos e sinto-me superiormente honrado pela fineza de tão amável recepção."
O anfitrião convidou os dois recém-chegados a entrarem e conduziu-os à sala situada à direita do corredor. As janelas davam para o jardim do palacete, mas os vidros permaneciam fechados; fazia frio e no firmamento amontoavam-se nuvens escuras a anunciar chuva. Salazar indicou aos visitantes que se instalassem no sofá, junto à lareira apagada; o ar estava tão gelado que tornava a sala desagradável. Encolhido no sofá, Kaloust não resistiu a lançar um olhar inquisitivo à lareira adormecida.
"O senhor presidente do Conselho não tem frio?"
"Não se pode gastar lenha", sentenciou o anfitrião. "Temos de ser poupadinhos." Estudou o seu interlocutor e apercebeu-se de que tremia. "Por Deus, está enregelado. Já lhe resolvo isso." Virou-se para a porta e esticou o pescoço. "Ó dona Idalina! Dona Idalina?! Traz aqui umas escalfetas e umas mantas para estes senhores, se faz favor?"
"Por favor, não se incomode", apressou-se Kaloust a dizer. "Estou bem, não vale a pena..."
"Não incomoda nada", atalhou o ditador num tom peremptório, como se o assunto não tivesse discussão. "Desejam tomar alguma coisa?"
Os dois visitantes entreolharam-se, sem saber se a resposta correcta seria recusarem ou aceitarem.
"Um café", acabaram ambos por dizer, receando ferir susceptibilidades.
A ordem foi transmitida à empregada, que apareceu entretanto com as escalfetas e as mantas. As escalfetas foram pousadas no chão, para os visitantes nelas assentarem os pés, e as mantas assentes no regaço. O arménio sentiu-se ridículo naquela figura, dir-se-ia um provinciano de uma aldeia perdida no planalto da Arménia. Parecia-lhe até que tinha regredido aos tempos de infância e estava instalado diante do tonir da sua casa em Trebizonda.
"Sabe, sempre tive curiosidade de o conhecer", confessou Salazar, cruzando a perna e encarando o magnata. "Bem vê, não é costume instalar-se em Portugal o homem mais rico do mundo, não é verdade?"
Kaloust sorriu mas, no momento em que ia responder, hesitou. Os seus olhos haviam descido inadvertidamente para a perna cruzada do ditador e, como um íman que se cola ao magneto inconveniente, fixaram-se na bota dele. Tinha a sola rota.
"Pois... uh... enfim, compreendo", titubeou, sacudindo a cabeça e esforçando-se por retomar a concentração. "Mas, tanto quanto me apercebi da leitura dos livros de história, durante uns dois séculos viveram aqui em Lisboa os homens mais abastados do planeta. Portanto isto não é propriamente novidade por estas bandas..."
A observação arrancou um leve sorriso dos lábios finos, quase cruéis, de Salazar.
"Outros tempos!", exclamou com um esgar fingidamente nostálgico. "Hoje somos uma nação pobre." Ergueu o dedo, como se fizesse uma ressalva. "Pobre, mas honrada. Aqui há uns anos os republicanos deixaram este país numa confusão, falavam em liberdade mas puseram tudo a saque, gastos sumptuosos, a dívida pública descontrolada, tumultos nas ruas... olhe, um fartar de vilanagem! Felizmente consegui pôr ordem nisto. Não foi fácil, digo-lhe já. Teve de se dar uns valentes safanões a uns senhores que para aí andavam com ideias de voltar ao antigamente, mas lá chegámos a bom porto. E a verdade é que, com pulso forte e vontade férrea, este país dispõe de óptimas condições para se pôr de novo em pé. Temos um império que cobre a Europa, a África, a Ásia e até a Oceânia, o que não é coisa de desprezar." Mudou o tom de voz, tornando-o mais sombrio. "O maior problema foram, confesso-lhe, estas guerras terríveis, a de Espanha e esta que devastou o nosso continente." Pressionou os lábios e apontou para cima. "Graças à Divina Providência, consegui manter a nação à margem do caos."
"Ah, sim!", assentiu Kaloust com fervor. Tratava-se de um ponto que lhe era caro. "Dou-lhe os parabéns por isso, excelência! Transformou Portugal num porto de abrigo enquanto o mundo era abalado pela tormenta. Esse papel ninguém lho poderá alguma vez tirar!"
"E não foi só isso! Estancámos o cancro do comunismo que nos ameaçava de Espanha e, a cereja em cima do bolo, arranjei maneira de convencer o Franco a não se aliar a Hitler." Abriu as mãos a simular uma prece. "Deus sabe como foi difícil! Oh, se foi! O homem é um impulsivo dos demónios, achava que Hitler era imparável e queria a todo o custo juntar-se a ele, mas depois da derrota alemã em Estalinegrado lá me deu razão, graças a Deus." Sorriu. "Sabe o que lhe digo? Ele devia erguer-me uma estátua, é o que é! Se não fosse eu, o Franco tinha-se metido num sarilho dos demónios." Recostou-se na sua cadeira, descontraindo-se. "Mas já passou! Agora temos de pensar no futuro, não é verdade? com trabalho, seriedade e fé em Deus, saberemos reerguer-nos e afirmar de novo o papel de Portugal no mundo."
"Não duvido, não duvido."
Apercebendo-se de que o olhar do seu interlocutor deslizava intrigante e insistentemente para a sola da sua bota, Salazar descruzou a perna direita e juntou os pés. Estava na altura de abordar o tema que de facto lhe interessava.
"Não escondo que vejo com muito bons olhos a sua presença no nosso país", disse, apontando para o interlocutor. Rodou o indicador no ar, junto à orelha esquerda. "Até porque me chegaram uns zunzuns de que o senhor estaria a considerar a possibilidade de trazer para cá as suas colecções."
"É uma possibilidade, de facto."
"Dizem-me de resto que tem coisas fabulosas. Uns Rembrandt, uns Rubens, uns Velázquez, uns Van Dyck, uns Renoir, uns Monet... que sei eu? Tanta coisa!"
Kaloust forçou um sorriso.
"Assim é, excelência. Estou, com efeito, na posse de algumas peças de grande valor de que muito me orgulho e confesso nutrir por elas algumas... como é a palavra que vocês utilizam aqui em Portugal? Saudades, não é?" Fez um suspiro teatral. "Voilà, j'ai saudades de mês enfants..."
"Então porque não os manda vir?"
"Oh, tenho pensado muito nisso!", retorquiu o visitante com uma expressão de comiseração desenhada no rosto. "Sabe, excelência, mandei a maior parte da minha colecção para vários museus e galerias em Inglaterra e nos Estados Unidos. Não queria os meus enfants à mercê dos Alemães em Paris, como deve compreender. Uns selvagens, aqueles nazis! Tive até de os subornar para não me saquearem a casa, veja lá! Agora preciso de decidir o que fazer à minha colecção. Devolvo todos os meus enfants ao meu palacete na avenue d'Iena? Mando-os para a América? Trago-os para aqui?" Abanou a cabeça e exalou um gemido. "Ah, a minha indecisão é grande!"
O olhar de Salazar desviou-se para o advogado, que permanecia em silêncio ao lado do cliente.
"Estou certo de que o seu advogado o poderá ajudar. O senhor contratou, de resto, um jurista de nomeada."
"Assim é, excelência."
O ditador esboçou um esgar.
"Pena é que o doutor Passarão seja um bocadinho vermelhusco..."
Vendo-se descrito desta maneira, o jurista corou, o rosto apimentado a confirmar inadvertidamente a suspeita cromática que o ditador sobre ele acabara de lançar.
"Não sei o que quer dizer com isso, senhor presidente do Conselho", apressou-se o advogado a responder, quebrando o seu mutismo. "Tenho simpatia pelas democracias ocidentais, é tudo."
"Pois era justamente a isso a que me referia", esclareceu o anfitrião, divertido com a atrapalhação que a sua boutade provocara no visitante. "Mas não se apoquente, isso não me incomoda nada. Até porque os tempos mudaram e vamos ter umas eleiçõezinhas por cá, como deve ser do seu conhecimento. Estava apenas a mostrar-lhe que estou a par da sua reputação, nada mais."
Kaloust viu-se na obrigação de intervir.
"Asseguro-lhe, excelência, que o senhor Passarão não tem mostrado a menor inclinação pelos vermelhos."
Salazar fez um gesto com a mão, como se indicasse que passassem adiante.
"Estou seguro que sim", disse. "Compreenderá porém que tive de me informar sobre o seu advogado, até porque ele tem andado a sondar o meu governo sobre o acolhimento que o estado português reservaria à eventual abertura de uma instituição que albergasse essas suas colecções..."
O arménio anuiu com um leve movimento da cabeça.
"Uma fundação", precisou, aproveitando a mudança de direcção da conversa para fugir à política. "Sabe, excelência, essa ideia agrada-me, apesar de não passar de uma mera possibilidade. O Rockefeller também abriu uma fundação na América e dizem-me que ela tem sido excelente. O mesmo se passa com a Fundação Ford. Ora, pensei eu com os meus botões, porque não fazer o mesmo? Poderá ser uma óptima maneira de perpetuar o legado da minha vida, não é verdade? Não era Hipócrates que dizia que a arte é longa, a vida é breve? O que acontecerá à minha arte quando a minha vida se esgotar?"
O ditador massajou o queixo com a palma da mão, numa pose meditativa, enquanto avaliava a ideia e as suas potencialidades.
"Uma fundação, hem?"
"Estou neste momento a adquirir uma propriedade em Sintra", acrescentou o magnata. O rosto contraiu-se-lhe numa careta. "Mas a verdade é que a casa própria acarreta sempre uma quantidade de aborrecimentos, como vossa excelência sabe. São as burocracias, é a questão do pessoal, é o problema da manutenção... enfim, uma maçada. A propriedade de Sintra será apenas um retiro, porque me parece mais confortável continuar instalado no Aviz. Sempre é mais prático e não tenho de me preocupar com nada." Respirou fundo. "Por outro lado, tenho saudades dos meus enfants e gostaria de os ter junto a mim. Como ainda não tomei uma decisão definitiva sobre se ficarei aqui ou se voltarei a França, não sei ainda o que faça."
Vendo a conversa chegar a este ponto, Azevedo Passarão forçou a tosse para abrir espaço à sua intervenção.
"Bem vê, senhor presidente do Conselho", disse, assumindo pose profissional. "Há a questão dos impostos..."
"Que quer dizer com isso?"
"O senhor Sarkisian tem interesse em permanecer no nosso país, no qual se sente bastante bem, e está até aberto à possibilidade de instituir por cá uma fundação cultural que albergue as suas colecções de arte. Sucede, porém, que anda meio mundo atrás do mesmo, como compreenderá." Deixou fugir por momentos o olhar para o cliente, como se buscasse confirmação. "Eu diria que a questão fiscal poderá ser decisiva. Considerando a sua apreciável fortuna, o senhor Sarkisian mostra-se legitimamente preocupado com a voracidade da máquina fiscal dos diversos países, sobretudo em períodos tão difíceis como este. As economias europeias foram devastadas pela guerra e agora todos se querem apropriar da máxima fatia possível do dinheiro que o senhor Sarkisian acumulou ao longo de uma vida de trabalho."
O arménio revirou os olhos e suspirou.
"Ah, uma arreliação!"
"Há também o problema do imposto sucessório. No dia em que o senhor Sarkisian... enfim, no dia em que Deus o chame para a Sua direita, o fisco irá abocanhar uma importante fatia da herança. Naturalmente que uma postura de compreensão para com essa realidade, e quando falo em compreensão estou naturalmente a referir-me a benefícios e isenções fiscais, poderia ser decisiva para a opção final do senhor Sarkisian." Voltou a desviar os olhos para o cliente. "Não é verdade, senhor Sarkisian?"
O magnata assentiu, satisfeito por o advogado o ter poupado aos pormenores menos agradáveis da conversa.
"É mesmo assim como diz", confirmou. "De resto, os americanos já me sinalizaram que me dariam isenções fiscais se eu instalasse por lá a minha fundação, como é normal no caso destas instituições de filantropia, pelo que gostaria de saber qual a disposição de Portugal nesta matéria. Uma atitude de compreensão fiscal mostraria empenho e amizade da parte do estado português para comigo, coisa que, como deverá vossa excelência compreender, não desdenharei quando chegar o momento de tomar uma decisão final sobre o destino dos meus bens. Será sempre a minha mulher quem encabeçará a instituição, evidentemente, mas a sua localização permanece em aberto."
Salazar voltou a cruzar a perna, exibindo de novo a Kaloust a sola furada da bota.
"Estou a ver", disse, torcendo os lábios numa expressão meditativa. "Claro que as nossas Finanças não diriam que não a um reforço da sua receita, os tempos são difíceis e o estado precisa de dinheiro, mas..."
O ditador deixou aquele "mas" prolongar-se no tempo e ficar em suspenso, como obra à espera de ser completada. Azevedo Passarão conteve a respiração, aguardando a conclusão do raciocínio, mas a frase permaneceu incompleta. Salazar parecia saborear o suspense que ele próprio criara.
"Mas... senhor presidente do Conselho..."
Os lábios finos do anfitrião curvaram-se num sorriso ténue.
"Mas... admito que outros valores se levantem."
Era isto, embora não apenas isto, que Kaloust e Passarão queriam ouvir. A frase fora completada, mas faltava a conclusão lógica. Qual a consequência do que o seu anfitrião acabara de dizer? Ia ou não ia facilitar as coisas? Não bastava insinuar, era preciso concretizar. A decisão que o magnata tinha de tomar não se compadecia com promessas vagas ou insinuadas.
"E...?"
O sorriso ténue de Salazar rasgou-se mais e o rosto do ditador tornou-se franco, caloroso até.
"De acordo", anunciou por fim, a decisão tomada. "Podem contar com as isenções."
A reunião com Salazar correra tão bem que, quando o automóvel saía já do palácio para os levar de volta ao Aviz, Kaloust inclinou-se para Passarão e mostrou-lhe o seu mais aberto sorriso; parecia uma criança a sonhar diante da vitrina de uma pastelaria.
"Simpático, hem?"
"Salazar? Sim, também me pareceu."
"E viu que ele foi receber-nos e levar-nos à porta?", observou o arménio. "Não há muitos ditadores que façam coisas dessas, posso garantir-lhe."
"Se o visitante for o homem mais rico do mundo, porque não?"
O magnata fez um gesto impaciente com a mão, desvalorizando a observação.
"Oh, lá está você!", repreendeu-o. "Se calhar ele é que tem razão. O senhor é vermelhusco!"
"Pois, pois."
Inclinando-se, Kaloust enquadrou o rosto com o espelho retrovisor do motorista e certificou-se de que o seu já escasso cabelo estava bem penteado e a gravata correctamente alinhada.
"Reparou que ele tinha a sola da bota rota?"
A pergunta suscitou um esgar incrédulo do advogado.
"Está a brincar!"
O arménio riu-se.
"A sério! Não sabia que era tão forreta..." Recostou-se no assento e deixou o olhar distraído vagabundear pelas fachadas dos edifícios que corriam paralelas ao carro. "Justamente o que este país precisa."
"Hmm..." murmurou Passarão. "Parece-me que está aí implícita a vontade de ficar por estas bandas..."
com os olhos ainda perdidos no exterior, o cliente optou por ignorar a observação; não se queria comprometer. Tantas vezes quisera já voltar a Paris, prometera a si mesmo que o faria "na próxima semana", mas fora sempre travado por madame Duprés e por uma certa familiaridade que desenvolvera com Portugal. Era como se o país o retivesse com braços invisíveis.
"Sabe, eu e ele temos algumas coisas em comum", disse, voltando a Salazar. "Uma mão de ferro para gerir o negócio, por exemplo, e uma profunda relutância em gastar mal o dinheiro."
O advogado olhou-o de soslaio com ar zombeteiro.
"O senhor Sarkisian tem por hábito ir à porta receber as visitas de sua casa?"
"Bem... não."
"Então não são propriamente parecidos, não é verdade?"
O magnata calou-se. Touché!, pensou. Mas tal não impedia que partilhasse algumas coisas com Salazar. Isso fazia-o sentir-se mais à vontade e dava-lhe confiança para permanecer no país.
Remexeu-se no assento do carro, subitamente inquieto.
"Tenho de celebrar!"
"O quê? O encontro com Salazar?"
"Não foi apenas o encontro, foi o facto de a conversa ter corrido tão bem. Apetece-me uma celebraçãozita."
"Se faz questão...", exclamou o advogado, divertido com o entusiasmo do cliente. "Quando chegarmos ao hotel irei ao bar pedir uma garrafa de champagne."
"Não era bem esse tipo de celebração que eu tinha em mente."
"Não? Então o que era?"
Contornavam já o Marquês de Pombal e o olhar de Kaloust desviou-se para a grande estátua plantada no meio da rotunda. As pombas esvoaçavam em torno da figura do grande estadista que reconstruíra Lisboa, os pipilares melancólicos a pontuarem o ambiente bucólico daquele dia cinzento e frio de Janeiro.
"Eu cá me entendo."
O automóvel imobilizou-se na esquina daquele prédio em plena Avenida da Liberdade e, sem perder tempo, Estêvão saiu para abrir a porta traseira aos passageiros. Primeiro apeou-se madame Duprés e, logo atrás dela, Kaloust. O magnata ergueu os olhos para o edifício Art déco com a porta plantada exactamente no vértice da esquina e contemplou os néones entre o topo da entrada e o varandim redondo do primeiro andar a assinalarem o nome do edifício.
Odéon.
"Qual é a fita?"
A secretária apontou para um cartaz com a pintura de uma femme fatale vestida de negro cintilante e o cabelo descaído para a frente a tapar-lhe um olho. Por baixo, o título do filme.
"Gilda", esclareceu ela. "com Rita Hayworth."
"Já começou?"
"Há quinze minutos."
O arménio assentiu, agradado por chegar tarde; não apreciava misturar-se com a plebe e o atraso garantia-lhe que quase ninguém lhe poria os olhos em cima. Cruzaram a entrada e madame Duprés, que já ali tinha ido nessa tarde para inspeccionar a sala de espectáculos e adquirir os bilhetes nos lugares mais apropriados, retirou-os da mala e entregou-os ao funcionário que controlava os ingressos. Um paquete fardado a rigor apareceu de imediato e, com uma pequena lanterna, conduziu-os ao segundo andar e instalou-os nos seus assentos, dois lugares dianteiros no balcão lateral suspenso.
A acção do filme ia adiantada e madame Duprés de imediato colou ao ecrã a sua atenção; já dominava razoavelmente o português, mas o facto de o som original ser preservado tornava o esforço desnecessário. Kaloust ainda espreitou a imagem e viu Rita Hayworth, vestida num cetim negro reluzente que lhe dava um ar de gata selvagem, a cantar Put tbe Blame on Mame com olhares lânguidos atirados a Glenn Ford, mas depressa se desinteressou e começou a passear o olhar pelo interior do Odéon. O frontão do palco mantinha o estilo Art déco do edifício e do tecto em madeira caía um lustre de néones.
Não se tinha, contudo, deslocado ali para apreciar a arquitectura do local, e muito menos para ver o filme. A atracção encontrava-se lá em baixo, em plena plateia. O problema é que a sala estava muito escura e a luz projectada pelo grande ecrã mal dava para iluminar o rosto dos espectadores. Viu-se por isso forçado a aguardar o intervalo.
Quando as luzes por fim se acenderam colou os binóculos aos olhos e esquadrinhou a plateia, fixando a atenção aqui e ali. com madame Duprés atenta, indicou por fim o que desejava.
"Aquela de cabelos pelos ombros, aquela dos caracóis e... e aquela com o algodão doce."
No momento em que as luzes se apagaram de novo a tarefa já estava concluída, pelo que se despediu da secretária, que queria ver o resto do filme e cujo trabalho só começaria verdadeiramente no final da película, e abandonou a sala. Kaloust convergiu para a rua e para a porta aberta do DeSoto, e minutos mais tarde estava de regresso ao Aviz.
"Voltas agora ao cinema", disse ao motorista quando abandonou o automóvel. "Quando o filme acabar, trazes madame Duprés."
Já se sabia que Lisboa não oferecia, em termos de boutiques, as mesmas opções, em quantidade e qualidade, que Paris. Mesmo assim, e recorrendo a modistas a quem entregou modelos inseridos em exemplares de 1942 da Marie Claire que tinha trazido de França, madame Duprés lá conseguiu vestir adequadamente a adolescente portuguesa que acabara por seleccionar no Odéon, não sem dificuldades.
"Ufa, estas miúdas aqui são umas católicas duras de roer", queixou-se a secretária quando Kaloust a questionou sobre o êxito da sua missão. "As duas primeiras escolhas recusaram terminantemente, mesmo quando lhes acenei com trinta contos de réis."
"E a terceira?"
A secretária soltou um sorriso.
"Ah, essa agarrou a oportunidade."
A oportunidade envolvia, além dos vestidos e dos perfumes, lições de francês e de etiqueta. Madame Duprés alugou um apartamento no Saldanha, convenientemente perto do Aviz, e durante várias semanas preparou a sua pupila nos moldes habituais em que formara as belles du jour em Paris e em Londres, com o trabalho acrescido de ter de a pôr a falar uma língua que o seu patrão entendesse.
A tarefa foi dada por concluída ao fim de dois meses, já a Primavera sorria sobre Lisboa. No final de um almoço, e depois de ter passado a manhã no apartamento do Saldanha, a secretária sentou-se ao lado de Kaloust e deu-lhe a notícia.
"A missão está cumprida", anunciou, como tantas vezes fizera no passado. "A rapariga parece-me pronta para o ajudar na sua terapia."
O patrão quase ronronou de prazer.
"Excelente! Excelente!", exclamou, esfregando as mãos. "Acha mesmo que ela se encontra au point?"
"com certeza." Fez uma pausa e mudou o tom de voz, como se fizesse uma ressalva. "Embora o seu domínio do francês deixe ainda algo a desejar, bien súr. Não se esqueça de que ainda há dois meses ela não falava uma única palavra da língua!"
Nada que demovesse o arménio. A transbordar de entusiasmo e quase incapaz de conter a excitação, mandou reservar para essa noite uma mesa no Tavares, reputado como o melhor restaurante da cidade. A seguir pegou em madame Duprés e foram nessa mesma tarde a uma ourivesaria da Rua do Ouro, onde, depois de auscultar a opinião da secretária sobre os gostos da sua pupila, escolheu um colar de rubis que mandou embrulhar no melhor papel.
"Ah, a minha portuguesinha vai derreter-se toda..."
O magnata chegou ao restaurante vinte minutos antes da hora marcada, preocupado com assegurar-se de que estava tudo comme il faut. Verificou a mesa, situada na zona reservada do restaurante, e mandou apagar as luzes eléctricas e acender as velas; no fim de contas era fundamental criar um ambiente acolhedor e íntimo, adequado à ocasião. Tinha por hábito comer sozinho, mas dessa vez, em homenagem à sua portuguesinha, iria abrir uma excepção. Pediu uma garrafa de vinho francês, um Châteaux Margaux vintage de 1940, e instalou-se no seu lugar. Mirou os espelhos que forravam as paredes e certificou-se de que se encontrava apresentável. Depois pegou no Lê Monde que chegara essa tarde e mergulhou na leitura.
Às oito da noite em ponto apercebeu-se de uma rapariga morena de vestido lilás aos folhinhos a entrar na sala com os olhos castanhos caídos e os dedos nervosos a remexerem uns nos outros. Era uma das moças que vira na plateia, na altura com um ar indigente que traíra a sua condição humilde. Congratulou-se a si mesmo pela perspicácia que revelara ao seleccioná-la; devidamente tratada parecia ainda mais encantadora, uma verdadeira coquette.
Pousou o jornal e levantou-se de pronto. com um floreado, puxou uma cadeira e fez sinal à recém-chegada.
"Asseyez-vous, s'il vous plait", disse, convidando-a a acomodar-se. "Je suis enchant´!"
A moça obedeceu e sentou-se na cadeira.
"Merci."
A sua vozinha tímida revelava um sotaque sofrível, natural em quem apenas aprendera francês nos últimos dois meses. O mais complicado, sabia Kaloust, era a sua postura; tinha o corpo tenso e os olhos sempre baixos, evidentemente constrangida pela situação. Estava informado de que madame Duprés ensaiara aquele momento com ela nas últimas semanas, fazendo teatrinhos a simular o encontro com o seu "protector", mas uma coisa eram os ensaios e outra a vida real. Teria de ser paciente e conduzir a dança com pé de mestre.
"Contou-me madame Duprés que a menina se chama Odete e tem dezasseis anos", disse Kaloust. "Mas não me revelou mais nada porque ela sabe que gosto de desembrulhar os meus presentes aos bocadinhos." Abriu o guardanapo sobre o regaço. "A menina ainda anda na escola?"
A rapariga abanou a cabeça.
"Non."
"Mas sabe ler..."
"Oui."
"Porque deixou a escola?"
"A minha mãe morreu quando nasci", murmurou num francês hesitante, apesar de ter ensaiado várias vezes esta resposta com madame Duprés. "O meu pai é marinheiro e anda muito tempo no mar, pelo que fiquei ao cuidado da minha avó. Fiz a escola até à quarta classe e depois ela pôs-me na modista a costurar. É lá que trabalho agora."
"E gosta?"
Odete encolheu os ombros.
"Mais ou menos." Permaneceu um instante calada e depois acrescentou, como se tivesse reflectido melhor na questão: "Não me queixo."
com um gesto discreto na direcção do empregado, o magnata mandou servir o jantar. Uma travessa fumegante foi colocada no meio da mesa e o recheio, cabrito assado com batatas e cebolas, distribuído pelos pratos dos dois comensais. A conversa decorreu em ritmo sincopado, entre garfadas e com Kaloust a fazer as mais diversas perguntas. A rapariga respondia quase em monossílabos e era difícil perceber se isso acontecia por se sentir intimidada ou por não dominar bem o francês. Mas quando ele mencionou o cinema onde a avistara e a questionou sobre os seus gostos, Odete mostrou-se mais loquaz e falou com um certo entusiasmo sobre Clark Gable, de quem evidentemente era fervorosa admiradora.
No final do jantar Kaloust estendeu-lhe o presente com uma vénia curta. A portuguesa mostrou-se surpreendida com o gesto e deliciada quando desembrulhou a caixa e descobriu o colar de rubis no interior. O arménio fez questão que ela o pusesse de imediato ao pescoço e o admirasse nos espelhos embotados nas paredes do Tavares.
"Ah, que bela!", elogiou ele. "Que princesa!"
O colar pareceu exercer um efeito mágico em Odete, que de um momento para o outro venceu parcialmente a timidez e, soltando uma risada juvenil, lhe agradeceu com um beijo na face.
"Merci!"
O DeSoto acolheu-os à porta do restaurante e, deslizando pelas ruas quase desertas de Lisboa à noite, levou-os para o Aviz. Usando uma porta de serviço, Kaloust introduziu a sua nova belle du jour no hotel e encaminhou-a para a suíte que ocupava no primeiro andar. A rapariga, que emudecera a meio da viagem de automóvel, dava sinais de nervosismo.
"Pronto, pronto", sussurrou-lhe ele quando a começou a beijar ao longo do pescoço. "Vai correr tudo bem..."
O facto é que madame Duprés a preparara com cuidado para esta ocasião e, a dado momento, quando Kaloust a começou a despir como se ela fosse o verdadeiro presente a desembrulhar, o treino tomou conta de Odete. Vencendo a repulsa por tocar e ser tocada por um homem que nunca antes vira, sessenta anos mais velho e ainda por cima longe dos ares vistosos de um Clark Gable, usou as mãos e a boca e os seios e todo o corpo para o massajar e acariciar e excitar.
O problema é que não estava a resultar.
A rapariga começou a ficar preocupada e, quase já fazendo da questão um ponto de honra, renovou esforços para lhe despertar o vigor. Vendo que não conseguia, mudou de táctica, tentou coisas novas, recorreu a tudo o que madame Duprés lhe ensinara, e quando isso também não resultou usou o instinto e a imaginação, tentou e tentou até Kaloust soltar um derradeiro gemido de frustração e a repelir enfim.
"Não adianta", disse ele com absoluto desalento. "Tenho setenta e oito anos e não adianta."
"Vamos tentar outra vez", implorou ela. "Outra vez!"
O arménio abanou a cabeça e puxou os lençóis, cobrindo-se até à cabeça e assumindo a posição fetal, como se assim se protegesse da terrível realidade que sobre ele desabara.
"Estou acabado."
O empregado ziguezagueou entre os convidados com a bandeja equilibrada na ponta dos dedos, o líquido borbulhante dourado a balouçar nos copos altos e esguios. Vendo o homem passar por perto, Kaloust estendeu o braço e apanhou um copo; estava-lhe mesmo a apetecer um trago de champagne para o ajudar a passar a hora seguinte.
A vontade de comparecer à recepção na embaixada dos Estados Unidos não era muita, na verdade os acontecimentos sociais nunca haviam feito o seu género, mas sabia que tinha muito a ganhar com manter bons contactos. Além disso, o embaixador Baruch tornara-se seu amigo e pedira-lhe pessoalmente que comparecesse. Como lhe poderia recusar uma coisa tão simples?
Sentiu uma mão agarrar-lhe o cotovelo e virou-se; era o diplomata americano que o interpelava.
"Mister Sarkisian, tenho uma coisa a dizer-lhe", murmurou Baruch. "Uma coisa importante."
Pelo semblante carregado do amigo, o magnata percebeu que não se tratava de mera conversa de circunstância, típica daquele tipo de eventos sociais, mas de algo de substância. Negócios, decerto.
"Que se passa?", perguntou. "Aconteceu alguma coisa?"
O embaixador pôs o braço sobre os ombros do seu convidado e puxou-o para um canto discreto da sala.
"Presumo que tenha tido conhecimento do encontro que o meu querido e falecido presidente teve com o rei dos Árabes, um tal Ibn qualquer-coisa..."
"Está a referir-se a Abdul Aziz bin Abdul Rahman ibn Faisal ai Saud?", questionou o arménio em tom jocoso, metralhando o nome do líder árabe sem uma pausa. "Sim, claro. Roosevelt e Ibn Saud encontraram-se há três anos a bordo de um navio americano. Creio que foi no Grande Lago Amargo, em pleno Canal do Suez, quando o vosso presidente regressava de lalta. Estou a par de tudo."
"Então está também a par dos nossos desígnios em relação ao território que esse Ibn... uh... Ibn não-sei-quê controla."
"com certeza que estou", disse, de repente muito sério. O assunto era sensível e tocava num nervo crucial da sua área de negócio. "As vossas Texaco e Socal andam para lá a meter o nariz. Mas, que eu saiba, a conversa de Roosevelt com Ibn Saud versou questões políticas, como a emigração judaica para a Palestina."
O embaixador Baruch olhou de relance para os lados, certificando-se de que ninguém os ouvia.
"Houve uma parte confidencial da conversa", revelou tão baixo que quase sussurrava. "Foi assinado um acordo secreto ao abrigo do qual, e em troca de protecção e assistência militar dos Estados Unidos, o rei Ibn... uh... enfim, o rei nos concede acesso seguro a todo o petróleo que seja encontrado no seu território. Parece que os nossos prospectores suspeitam que as areias do deserto da Arábia escondem importantes campos petrolíferos. A Standard Oil Jersey e a Socony meteram-se também ao barulho e..."
"Vocês não podem fazer isso!", cortou Kaloust, subitamente irritado. "O Acordo da Linha Vermelha prevê que uma descoberta petrolífera dentro das fronteiras do antigo Império Otomano pertence obrigatoriamente à Turkish Petroleum Company. Eu próprio inseri essa cláusula self-denying nos estatutos da empresa e desenhei essa linha vermelha numa reunião em Ostende. Não há acordo secreto nenhum, meu caro Baruch, que possa revogar tal realidade, como estou certo que qualquer tribunal lembrará às vossas companhias petrolíferas."
O diplomata americano calou-se e fitou o seu amigo com uma expressão comprometida, como se soubesse alguma coisa que não podia partilhar. Depois respirou fundo e recuou um passo, preparando-se para regressar ao convívio com os restantes convidados.
"O presidente da Standard Oil Jersey vem cá a Lisboa na próxima semana", anunciou de forma críptica. "Está plenamente mandatado pelo meu governo e só lhe peço uma coisa, mister Sarkisian. Receba-o e fale com ele."
"Falar com ele? Sobre quê?"
O embaixador Baruch deu uma palmada amigável no ombro do arménio, encorajando-o a aceitar a sugestão.
"Olhe que é do seu próprio interesse."
O encontro decorreu no restaurante do Aviz, hotel onde o americano, decerto não inocentemente, também se alojara. Eram três da tarde, hora em que o restaurante ficara já quase deserto e estavam mais à vontade para falar. Walter Peagle desceu a grande escadaria e avistou Kaloust no seu canto tradicional. O estrado montado para dar altura à mesa rangeu dolorosamente quando, com os seus mais de cem quilos de peso, o americano o calcorreou.
"Howdy, mister Sarkisian!", saudou o enorme Peagle, estendendo a mão sapuda ao pequeno arménio. "Já não nos víamos desde Ostende, hem?"
Como era seu hábito, Kaloust recusou a mão mas levantou-se e fez uma vénia.
"Foi em 1928", lembrou com a face inexpressiva. "Na altura em que, se bem me lembro, assinámos o Acordo da Linha Vermelha."
O presidente da Standard Oil Jersey recolheu a mão que o seu interlocutor recusara e gemeu no momento em que assentou o volumoso corpanzil numa cadeira. Apesar dos modos dominantes, era visível que estava nervoso. Para se acalmar, acendeu um charuto.
"Ah, há quanto tempo!", suspirou, expirando a primeira nuvem de fumo aromático de havano. "Pois olhe, é justamente por causa desse acordo que venho a Lisboa falar consigo!"
O arménio pestanejou, algo surpreendido com a forma rápida como o visitante entrara no assunto. Sabia que os Americanos tinham o hábito de ser directos, mas aquilo parecia-lhe um exagero. O seu treino de negociador estava impregnado das artes subtis praticadas no Grande Bazar de Constantinopla, pelo que os modos rudes de compra e venda característicos de Wall Street lhe suscitavam uma certa repulsa. Que falta de finesse!
"Veio, presumo, pôr à disposição da Turkish Petroleum Company as descobertas que a Socai e a Texaco estão a fazer na Arábia", disparou num tom sibilino. Se era para tirar já as luvas, mostraria ao americano que também sabia jogar aquele jogo. "Como não ignora, a Turkish detém a exclusividade dos achados petrolíferos no território do antigo Império Otomano, princípio reiterado no nosso entendimento em Ostende. Ora, e que eu saiba, a Arábia pertencia a esse império. Consequentemente, e nos termos do Acordo da Linha Vermelha e da cláusula self-denying que vocês subscreveram, a descoberta de petróleo por um dos membros da Turkish nesse território tem obrigatoriamente de ser partilhada com os restantes membros."
Apanhado em contrapé por este ataque rápido, Peagle soltou uma risada nervosa.
"Pois, mister Sarkisian, o problema é que... enfim, o Acordo da Linha Vermelha já não é válido."
Kaloust estreitou as pálpebras.
"Não me diga! Desde quando?"
"Desde que o senhor e a Compagnie Française dês Pétroles foram declarados inimigos dos Aliados e as vossas acções na Turkish se viram apreendidas pelo curador britânico."
"Lamento desapontá-lo, mas essa questão já está ultrapassada", apressou-se o arménio a esclarecer. "O governo de sua majestade reestabeleceu os meus direitos na Turkish pouco depois de eu vir viver aqui para Lisboa e até já me concedeu compensações referentes aos negócios ocorridos quando a minha quota na empresa se encontrava suspensa."
"Admito que sim, mas o facto é que, na interpretação dos nossos consultores jurídicos e do attorney general dos Estados Unidos, a suspensão das acções, as suas e as dos Franceses, mesmo que temporária, dissolveu automaticamente o Acordo da Linha Vermelha. Além do mais, esse acordo viola as leis antitrust dos Estados Unidos." Afinou a voz. "Ou seja, já não há exclusividade e não somos forçados a partilhar as nossas descobertas na Arábia com os restantes parceiros da Turkish Petroleum Company."
O arménio agitou-se na sua cadeira, assumindo a postura de quem se preparava para a luta.
"Isso é que era bom!"
Sentindo um tom venenoso na voz do interlocutor, Peagle levantou as mãos para o acalmar.
"Peço-lhe, mister Sarkisian, que não dificulte as coisas", disse no tom mais razoável que lhe foi possível usar. "A América ganhou a guerra. É natural que se sinta com direito aos despojos, não é verdade?"
"Ora essa!", exclamou Kaloust com um esgar contrariado. "Se a América quer despojos, que vá aborrecer os Alemães! Eu é que não tenho nada a ver com isso! Que eu saiba não estive em guerra com a América! Então porque me vêm bater à porta?"
"Não estamos a bater unicamente à sua porta. Lembre-se que a Turkish tem outros accionistas e o senhor só dispõe de cinco por cento da quota da empresa."
"Devo então presumir que já falou com os restantes accionistas?"
O volumoso americano colou o charuto à boca e libertou uma nova baforada, que se ergueu como neblina violeta.
"A Anglo-Persian e a Royal Dutch Shell asseguraram-nos que não levantarão obstáculos aos nossos negócios na Arábia."
"A troco de nada?"
"Bem... quer dizer, houve umas compensaçõezitas."
"Ah."
"Compensações que, de resto, estamos dispostos a conceder-lhe também a si."
Kaloust abanou a cabeça.
"Agradeço-lhe, mas não quero", retorquiu com secura. "A única compensação que me interessa é o respeito pelo Acordo da Linha Vermelha. Os senhores são livres de explorar a Arábia... desde que me paguem cinco por cento do petróleo que de lá retirarem, claro."
"Está fora de questão."
"Então sugiro que, em alternativa, criem uma empresa com os Árabes e ponham a Turkish Petroleum Company como um dos accionistas. Isso resolveria o problema."
"Já estamos a criar essa empresa. Vai chamar-se Aramco, mas o rei Ibn Saud não quer britânicos lá metidos." Largou uma nova nuvem de fumo e pareceu olhar para o vazio, como se reconsiderasse o que havia acabado de dizer. "E, mesmo que quisesse, não queremos nós. A Aramco é um projecto americano de interesse estratégico para os Estados Unidos. Não vamos abrir mão dele."
"Isso significa que vocês ficam com o monopólio da exploração do petróleo da Arábia", observou o arménio. "Uma coisa dessas não viola a lei antitrust dos Estados Unidos, com a qual o senhor estava há pouco tão preocupado? Ou vocês só aplicam essa lei quando vos convém e esquecem-na no primeiro momento em que vos dá jeito?"
Apanhado em flagrante contradição, o presidente da Standard Oil Jersey corou.
"Apenas queremos liberdade e competição."
"Então porque só exigem essa competição no Iraque? Porque não a praticam também na Arábia?" As perguntas eram retóricas e ficaram no ar até ser o próprio Kaloust a responder-lhes. "Porque não vos interessa, claro. Essa conversa da competição não passa de um pretexto para expandirem a produção da Arábia e deliberadamente restringirem a do Iraque. Isso não aceito!"
"Lembre-se que foi a América que ganhou a guerra, mister Sarkisian!"
A conversa repetia-se e parecia conduzir a um beco sem saída. Kaloust pressentia que a lógica do mais forte se impunha, mas não desarmou.
"Notei que não mencionou ainda a Compagnie Française dês Pétroles", observou num registo cáustico. "Devo presumir que não tem ainda o acordo dos Franceses?"
A referência à companhia petrolífera francesa arrancou um suspiro agastado de Walter Peagle, cujo corpanzil pareceu encher-se de exasperação.
"Sim, eles estão a resistir", rabujou. "Os safados não fizeram frente aos Alemães, mas opõem-se aos seus aliados e esquecem quem os ajudou. Fuck them!"
A imagem do senador Jean-Marc Hertault a bater o pé aos Americanos deixou o arménio divertido.
"Está a ver?"
Descontraindo-se de repente, Peagle soltou uma gargalhada sonora e, com gestos despreocupados, mordeu o havano e libertou mais uma nuvem aromática.
"Não se iluda, meu caro", exclamou com aparente boa disposição, como se nada daquilo fosse realmente relevante. "O presidente Truman está já a apertar o general De Gaulle e a lembrar-lhe certas realidades da vida." Riu-se de novo. "Fique descansado, a resistência francesa vai desmoronar-se mais depressa do que a Linha Maginot!"
"Então se assim é, porque veio aqui falar comigo?"
O presidente da Standard Oil Jersey tirou o charuto da boca e esmagou a ponta no cinzeiro pousado sobre a mesa. Depois alçou os olhos e, estreitando as pálpebras, fitou o seu interlocutor como se quisesse dissecá-lo.
"Porque o senhor é, receio bem, de outra estirpe."
A visita de Walter Peagle desencadeou um correio frenético entre Lisboa, Londres e Paris e longas reuniões no Aviz com advogados vindos expressamente de Inglaterra para tratar de múltiplas formalidades desencadeadas pelo processo.
Kaloust usava os seus passeios pelo Parque Eduardo VII, por Montes Claros ou pelo Guincho para escrever longas cartas a Sir Philip Blake e ao senador Hertault, discutindo ao mais ínfimo pormenor todos os aspectos jurídicos da questão suscitada pelos Americanos.
Tal como iam, as cartas também vinham. Eram lidas sofregamente logo que o carteiro dos CTT as trazia, normalmente por volta da hora do pequeno-almoço. O magnata passava a manhã inteira a digerir o seu conteúdo e a maquinar as respostas, que pouco depois, a meio do passeio, vertia em texto de carta.
Os acontecimentos precipitaram-se, todavia, ao fim de três meses. Numa manhã chegou a meio do pequeno-almoço uma nova missiva do presidente da Compagnie Française dês Pétroles. Como se tornara seu hábito, Kaloust interrompeu o consumo do iogurte, pediu licença a madame Duprés, que se sentava a seu lado, e de imediato rasgou o sobrescrito e leu a folha dactilografada que vinha no interior.
"C'os demónios!", vociferou quando ia ainda a meio do texto. "Os Franceses capitularam!"
"Que aconteceu?", quis saber a secretária, imaginando já que os Alemães tinham voltado a invadir o seu país. "A França capitulou? Que se passa?"
O arménio sacudiu furiosamente a folha que segurava entre os dedos.
"Foi o De Gaulle!", protestou. "Apesar das suas fanfarronadas, o maricas baixou as calças perante os Americanos!" Sacudiu a cabeça. "Ah, o Peagle tinha razão! Como é possível?!"
Ao perceber do que realmente se tratava, madame Duprés pareceu mais aliviada; a França estava salva, os boches permaneciam sob a bota dos Aliados.
"Ah, são coisas do petróleo..."
"Claro que é o petróleo!", insistiu Kaloust, frustrado com o que lera e irritado com a reacção da secretária. "Os Americanos apertaram com o De Gaulle e ofereceram-lhe um rebuçado: o aumento da quota de mercado da Turkish. E o imbecil aceitou! Que parvo! Troca todo o petróleo do deserto da Arábia por um rebuçado!"
A francesa franziu o sobrolho, entendendo enfim o verdadeiro alcance das notícias contidas naquela carta.
"Então o senhor ficou sozinho..."
"Pois claro que fiquei!", exclamou Kaloust, esforçando-se por dominar uma explosão de nervos. "Eu, sozinho, contra a América!"
Fez-se um silêncio súbito à mesa, pasmado e estranhamente solene. O magnata, percebera madame Duprés, era tudo o que separava a maior superpotência do planeta de um mar quase inesgotável de petróleo. Como poderia ele fazer frente a tão incomensurável força? Como opor-se a tão descomunais interesses? O que impediria o elefante americano de esmagar a minhoca arménia?
"E agora?", perguntou num fio de voz, intimidada já com a desproporção de forças. "O que vai fazer?"
com um movimento rápido e inesperado, Kaloust desferiu na mesa um murro de tal modo violento que fez saltar os pratos, tilintar os talheres e pular os copos, provocando um susto a madame Duprés e aos vários hóspedes que em redor tomavam o pequeno-almoço na ilusão de que o Aviz era o hotel mais tranquilo de Lisboa.
"vou para a guerra!"
Não foi preciso esperar muito até ser disparado o primeiro tiro. O processo judicial foi redigido em Londres pela equipa do escritório de advogados Blake & Hawthorne, sob supervisão directa de Sir Philip Blake, e tinha como alvos as petrolíferas americanas que criaram a Aramco, acusando-as de violação de direitos legítimos de concessão e da cláusula self-denying da Turkish Petroleum Company.
Uma cópia foi remetida a Kaloust, que a leu várias vezes em pormenor antes de dar a luz verde final. O documento lembrava que, ao abrigo da concessão dos Otomanos a Kaloust Sarkisian, antes ainda da Primeira Guerra Mundial, e confirmada em 1928 pelo Acordo da Linha Vermelha assinado em Ostende, todas as descobertas de petróleo em território que pertencera ao antigo Império Otomano pertenciam contratualmente à Turkish. O texto sublinhava que a cláusula self-denying obrigava os membros da empresa a partilharem todos os seus achados nesse território com os parceiros que integravam a Turkish, disposição que a Aramco violara.
"Quero ver o que vão agora os yankees fazer", rosnou o arménio em tom de desafio no momento em que mandou o telegrama com a ordem para formalizar o processo. "Se calhar vão mandar os marines invadir Lisboa!"
O processo deu entrada nos Law Courts de Londres e, como esperado, desencadeou um vendaval. Chegavam ao Aviz telegramas sucessivos, endereçados a Kaloust com a informação de que o governo americano acusava a Turkish Petroleum Company de comportamento de cartel e a justificar a anulação do Acordo da Linha Vermelha com as leis antitrust dos Estados Unidos.
"Estes Americanos são uns cómicos", observou Kaloust, pouco impressionado com a argumentação. "Criaram a Aramco como um cartel e fingem que a Turkish é que é um cartel." Esmagou o telegrama, transformando-o numa pequena bola disforme. "Salauás!"
O que Kaloust não esperava foi o que descobriu quando, nos dias seguintes, abriu os jornais que lhe trouxeram ao quarto e que tinham sido remetidos pelos seus muitos agentes espalhados pela Europa e pelos Estados Unidos. As primeiras páginas estavam repletas de notícias sobre o processo a decorrer em Londres. Lê Monde, The Times, Lê Figaro, The New York Times, The Daily Telegraph... todos davam grande destaque ao embate entre o homem mais rico do mundo e o país mais poderoso do planeta. O attorney general americano, um tal tom Clark, vociferava contra ele e chamava-lhe "o sinistro poder oculto do mundo da alta finança", enquanto o secretário de Estado, George Marshall, o acusava de pôr em causa os interesses vitais da América. Até Hendryk van Tiggelen, que pelos vistos nada esquecera dos velhos rancores, aproveitara para lhe dar uma alfinetada em nome da Royal Dutch Shell.
"Um acordo é o melhor para todos", aconselhou-o o embaixador Baruch durante um jantar na embaixada americana. "Nem imagina a pressão que recebo de Washington para lhe dar a volta. É um horror! Querem a todo o custo que eu resolva esta questão! Eu, Salazar, o rei Jorge VI, o general De Gaulle, o papa... eu sei lá!"
"Mas qual é o vosso problema?", quis saber Kaloust, agastado com todo aquele circo. "O assunto está entregue aos tribunais, não está? Vocês acreditam que têm razão e eu acredito que tenho razão. Então vamos ver o que os tribunais decidem."
O diplomata respirou fundo e olhou o amigo nos olhos, indeciso sobre o que poderia ou não dizer a respeito do assunto; tinha consciência de que qualquer passo em falso em matéria tão delicada poderia custar-lhe o lugar, mas na sala estavam apenas a sua mulher e madame Duprés, evidentemente ambas de confiança, pelo que não resistiu.
"Sabe qual é o problema, meu caro Sarkisian?"
"Elucide-me, por favor."
O embaixador inclinou-se sobre a mesa e, com uma expressão deliberadamente conspirativa, com medo de ser escutado para além da sala de jantar e desconfiando até da própria sombra, baixou a voz.
"Washington sabe que nos tribunais vai perder."
A gota de água que fez transbordar o pequeno copo da paciência de Kaloust caiu uma semana mais tarde, no momento em que o arménio descia do seu quarto para dar o habitual passeio de final da manhã. A meio das escadas deparou-se com o chefe de mesa do restaurante, Rapetti, a interceptar-lhe o caminho.
"Ah, senhor Sarkisian!", exclamou o homem, o alarme a incendiar-lhe os olhos. "É melhor não sair hoje!"
A declaração foi tão inesperada que deixou o hóspede atónito. Kaloust suspendeu a perna entre dois degraus e atirou um olhar inquisitivo ao empregado.
"Ora essa! Qual é o problema?"
"São os jornalistas, senhor. Quiseram entrar, mas pusemo-los na rua!" Revirou os olhos e bufou. "Ufa! Um inferno, só lhe digo! Nunca vi coisa assim neste hotel!"
A revelação era tão surpreendente que o arménio levou algum tempo a compreendê-la.
"Que jornalistas?"
O empregado pegou-lhe no braço e puxou-o de volta ao primeiro andar. Percorreram o corredor em passo acelerado e só pararam diante de uma pequena janela que dava para
a rua.
"Veja ali!"
Kaloust espreitou na direcção indicada e, diante do DeSoto preparado para o levar para o habitual giro até Monsanto, vislumbrou uma pequena multidão. Os homens estavam concentrados no passeio do outro lado da Avenida Fontes Pereira de Melo e de início o arménio não percebeu bem de quem se tratava. Fixou o grupo com mais atenção e começou a descortinar câmaras fotográficas com grandes flashes redondos nas mãos dos desconhecidos. Estudando-lhes os rostos, tomou consciência de que não se tratava de portugueses, mas de ingleses ou americanos, todos vestidos de gabardina e chapéu à Humphrey Bogart e de olho na porta do hotel ou no automóvel de Estêvão.
Tinham ar de matilha à caça.
"Meu Deus!", exclamou o magnata, caindo finalmente em si. "Está aqui a imprensa inteira!"
Durante vários dias Kaloust permaneceu entrincheirado na sua suíte, com medo até de descer ao restaurante para as refeições; dizia-se que o átrio, o grande salão e o restaurante estavam infestados de repórteres estrangeiros. Se havia coisa que detestava era a publicidade e sempre dissera que "a melhor coisa que o dinheiro pode comprar é a invisibilidade". Mas havia claramente sido transposta uma fronteira e a ameaça ao seu anonimato tornara-se muito real.
com a situação a tornar-se insustentável, Krikor apareceu em Lisboa com uma carta de Sir Philip Blake. A missiva dava conta de uma tentativa das petrolíferas americanas de negociarem uma solução para o conflito antes de o julgamento começar em Londres. O seu advogado e velho amigo terminava a carta a solicitar-lhe instruções.
"O pai tem de perceber que não consegue travar sozinho os Americanos", argumentou Krikor. "É preciso solucionar este problema de uma vez por todas!"
"A solução é muito simples", retorquiu o velho magnata. "Eles que cumpram os acordos que assinaram."
"Parece evidente que eles não os vão cumprir, pai. Não é realista. Ninguém pode esperar que, depois de terem levado o caso até este ponto, após terem torcido o braço a colossos como a Royal Dutch Shell, a Anglo-Persian e o De Gaulle, os tipos batam em retirada diante de um velhote teimoso. Estamos a falar dos Estados Unidos da América! Veja se compreende: eles não podem ser assim humilhados por um septuagenário! É preciso uma solução que lhes salve a face!"
"O que propões tu?"
"Aceite um compromisso." Arqueou as sobrancelhas. "Precisamos de resolver isto."
Não que a ideia não tivesse já ocorrido a Kaloust. O multimilionário do Aviz tinha perfeita consciência do imenso poder do seu antagonista e da impossibilidade de ganhar em toda a linha, sobretudo tendo em atenção o que estava em jogo. Mas se não podia ter uma vitória completa, porque não uma meia vitória? Pensou na sua idade e no mar de problemas que se avizinhavam caso persistisse, lembrou-se dos jornalistas apinhados à porta do hotel, reflectiu na ameaça que pendia sobre o seu tão estimado anonimato, e sobretudo recorreu ao seu instinto de negociante de bazar e artista do compromisso.
Ao fim de dois dias a amadurecer o assunto, com o Aviz sempre cercado pela imprensa internacional, convocou enfim o filho para o seu quarto e comunicou-lhe a decisão.
"Vais voltar amanhã a Londres com instruções para Sir Philip", anunciou-lhe num tom taciturno. "Ele que nos arranque um bom acordo, ouviste?"
O filho soltou um longo suspiro; parecia aliviado.
"Ufa!", suspirou. "Finalmente!"
Mas Kaloust ainda não tinha terminado. Manteve os olhos cravados em Krikor, para se certificar de que ele entendia bem a mensagem, e concluiu o raciocínio.
"Os Americanos que paguem... e bem!"
Os escritórios da Blake & Hawthorne deram conta às petrolíferas americanas da disponibilidade do seu cliente para negociar o fim do Acordo da Linha Vermelha. As conversações, que se iniciaram uma semana mais tarde, prolongaram-se por vários meses. O tom foi amistoso e por vezes as conversas decorriam à hora de jantar, com Kaloust, sempre desconfiado, a dar instruções para que os seus representantes nunca bebessem mais vinho do que os seus adversários. Como garantia adicional envolveu Krikor no processo, transformando-o num pombo-correio entre Londres e Lisboa; trazia ao Aviz as propostas dos Americanos e levava para Londres as exigências do pai, que tinham de ser analisadas e discutidas ao pormenor. As exigências que eram aceites pelos Americanos tinham de ser transformadas em texto jurídico e as que não eram aceites voltavam a Lisboa para serem reiteradas ou reformuladas.
O método revelou-se moroso e as negociações começaram a arrastar-se penosamente. O problema é que o processo judicial avançado pelos advogados britânicos de Kaloust não tinha sido travado e percorria os seus trâmites normais na justiça britânica. Esse pormenor foi negligenciado durante algum tempo, mas quando os Law Courts marcaram enfim uma data para o julgamento soaram as campainhas de alarme nas sedes das diversas petrolíferas.
"Eles querem que o pai cancele imediatamente o processo", anunciou Krikor na visita seguinte ao Aviz. "Dizem que não faz sentido estarem a ser processados enquanto negoceiam uma solução para o problema. Alegam que é má-fé."
O argumento não impressionou Kaloust. O magnata tomava chá no terraço da sua suíte e não perdeu nem um segundo a ponderar o ponto de vista dos Americanos.
"Essa gente julga que nasci ontem", devolveu num tom de desprezo. "O que não faz sentido é suspender o processo enquanto não for encontrada uma solução."
"Seria um gesto de boa-fé da sua parte..."
"Qual boa-fé qual carapuça! O que eles não querem é ver os tribunais a vasculhar-lhes nas contas!"
Percebendo que não seria fácil demover um negociador como o pai, na dúvida até sobre se seria desejável fazê-lo, Krikor sentou-se ao lado dele e, descontraindo-se, pegou no bule para encher também uma chávena.
"Claro que esse é o problema", reconheceu. "A primeira sessão está marcada para o próximo mês nos Law Courts e eles ficaram em pânico quando receberam as notificações. Se o julgamento começar, as petrolíferas vão ter de mostrar os seus negócios ao tribunal e a imprensa irá noticiar tudo." Soltou uma gargalhada baixa. "Já viu a coisa? Se as pessoas virem os lucros fabulosos das petrolíferas e os baixos impostos que elas pagam, será um escândalo. Sobretudo agora, com a Europa reduzida a escombros e com tanta gente na miséria. É isso o que verdadeiramente os preocupa. Um escândalo desses poderá forçar os governos a taxarem pesadamente a indústria. Isso eles querem evitar a todo o custo..."
Se havia pessoa que detestava impostos era Kaloust. O problema, contudo, não parecia atormentá-lo; sabia que naquele caso a pressão de evitar o início do julgamento jogava a seu favor. Manteve por isso o semblante impassível e, com ar absolutamente despreocupado, bebericou o chá.
"Está tudo nas mãos das petrolíferas", sentenciou. "Têm um mês para chegar a acordo comigo. Os Americanos sabem que a situação se resolve de uma forma simples."
"Como?"
"Basta pagarem."
Pressionados pela aproximação da data do início do julgamento e pela intransigência de Kaloust nos pontos cruciais, as petrolíferas americanas que haviam criado a Aramco renderam-se. Os seus advogados comunicaram a Sir Philip Blake que aceitavam as exigências ainda pendentes e solicitaram que fosse marcada o mais urgentemente possível uma reunião para assinar os contratos, designados Stroke 54. Era imperativo, insistiram, que tudo estivesse concluído antes da primeira sessão em tribunal.
Questionado por telegrama sobre quando chegaria a Londres para a cerimónia de assinatura, Kaloust retorquiu que nunca mais iria a tal cidade e informou que tinha já reservado uma sala no Hotel Aviz para a conclusão do negócio. Esta resposta suscitou alguma confusão em Nova Iorque, pois, e com excepção de Walter Peagle, ninguém alguma vez tinha ouvido falar num hotel com tal nome e houve até um executivo da Texaco que questionou os escritórios de Sir Philip sobre se se estaria a referir a alguma pensão de charme em Paris, Deauville ou na Cote d'Azur, regiões a que o nome do misterioso multimilionário arménio aparecia frequentemente associado.
A informação de que o Aviz se localizava em Lisboa, Portugal, desencadeou a mais viva das incredulidades. Os Americanos estranharam a escolha, embora não tivessem verdadeiramente objecções a apresentar; iam conhecer uma cidade nova e, olhando para o mapa, era fácil perceber que o clima devia ser mais agradável que os de Londres ou Paris. Os maiores obstáculos foram levantados pelo presidente da Royal Dutch Shell, o já velho Hendryk van Tiggelen, que considerou "inaceitável" que o forçassem a atravessar a Europa "só porque o senhor Sarkisian se dá ares de prima dona e não quer pôr o seu rabo merdoso em Inglaterra".
Como se tornara habitual, foi Krikor quem se encarregou de dar a má notícia ao pai.
"O Van Tiggelen disse que não contem com ele para vir a Lisboa", anunciou na visita seguinte ao Aviz. A escolha do local parecia-lhe a questão menos importante de todas e não se coibiu de partilhar a sua opinião. "Oiça, pai, depois de eles terem cedido tanto em tanta coisa, acho que pelo menos neste ponto pode ser o senhor a ceder. Não custa nada e até..."
"Ou se assina o acordo aqui no Aviz ou não se assina", devolveu Kaloust com ar de quem tinha a decisão final tomada, custasse o que custasse. "É pegar ou largar."
"Mas, pai, não vê que eles já cederam demasiado?"
O velho carregou as sobrancelhas com uma expressão chocada; dir-se-ia que nunca escutara coisa mais ultrajante.
"Cederam demasiado?", questionou em tom escandalizado. "Essa gente quer destruir uma maravilha da arquitectura empresarial, o Acordo da Linha Vermelha, que tanto trabalho me deu e tanta arte exigiu! Além disso vão ficar com o exclusivo dos campos petrolíferos de toda a Arábia! Achas que eles é que cederam demasiado?" Sacudiu a cabeça. "A assinatura far-se-á aqui em Lisboa ou não se fará. Eles que escolham!"
Este tom peremptório era já demasiado conhecido de Krikor, pelo que optou por não persistir. Na verdade, porque o faria? O pai é que estava a trautear a melodia; se os outros queriam a sua colaboração, teriam de dançar ao seu ritmo. Desceu à recepção e minutos depois estava a enviar um telegrama para Londres a indicar a Sir Philip que a assinatura do acordo Stroke 54 teria mesmo de ser feita no Aviz. Ainda pensou em alegar que o velho Sarkisian se sentia demasiado frágil para viajar, mas reconsiderou.
Não, não haveria desculpas. Tudo seria feito nos termos escolhidos pelo pai.
A azáfama das últimas vinte e quatro horas nos corredores do Aviz só acalmou quando os membros das várias delegações se instalaram à volta da grande mesa plantada a meio da sala de estar do hotel. Walter Peagle viera em representação das petrolíferas americanas simultaneamente ligadas à Turkish e à Aramco, enquanto o senador Hertault representava os Franceses e William D'Arcy presidia à delegação da AngloPersian; cada um deles tinha sentado ao seu lado ou atrás vários adjuntos e advogados, que completavam as respectivas comitivas.
Instalado ao canto da mesa, e emparedado por dois advogados britânicos da Blake & Hawthorne, Krikor estudou os rostos enrugados dos chefes de cada delegação. Lembrava-se que todos eles haviam estado vinte anos antes em Ostende para a negociação que culminara no Acordo da Linha Vermelha; a idade começava a pesar-lhes e um deles, Hertault, já precisava de uma bengala para caminhar. Permaneciam contudo nos seus postos; eram os tubarões do negócio do petróleo e impressionava perceber que, ao fim de tanto tempo, a indústria continuava nas mãos dos mesmos homens. O cheiro do dinheiro confirmava-se inebriante. A única novidade era a presença de um director da Royal Dutch Shell em vez de Hendryk van Tiggelen, que teimara até ao fim em não se deslocar a Lisboa.
Um burburinho feito de conversas murmuradas, tosse e gargalhadas enchia a sala de estar. Todos sabiam que o acordo tinha de ser fechado nessa noite, uma vez que no dia seguinte começaria em Londres o julgamento da acção intentada por Kaloust, pelo que Peagle, impaciente por resultados e no seu estilo de cowboy impertinente, inclinou-se para Krikor com o charuto fumegante preso entre os dentes.
"O seu pai? Quando desce?"
"Não desce", esclareceu Krikor. "A reunião decorrerá sem ele." com uma baforada densa, o americano retirou o havano da boca e soergueu o sobrolho.
"Não me diga! Está doente?"
"Não."
"Então? Que se passa?"
Krikor encolheu os ombros, como se a questão não lhe parecesse importante.
"Está com falta de paciência para acompanhar a reunião", limitou-se a dizer. "Quando tivermos o texto, levá-lo-ei para aprovação final."
O rosto do presidente da Standard Oil Jersey ficou crispado numa expressão atónita; não havia dúvida de que o seu adversário arménio era um homem difícil. Depressa, porém, recuperou do choque e esforçou-se por mostrar o seu melhor sorriso; era a primeira vez que alguém não se reunia com ele por "falta de paciência", justificação que lhe pareceu roçar o insulto, mas fez questão de não dar parte de fraco e de provar que a afronta não o incomodava. Engoliu em seco e, encarando as pessoas sentadas à mesa, bateu com a base do copo na madeira para chamar a atenção. Fez-se um silêncio abrupto na sala.
"Meus senhores, penso que está na hora de começarmos a reunião", começou por dizer. "Temos de fechar o acordo dos documentos Stroke 54 e proponho que lidemos imediatamente com os dois pontos ainda em aberto. Penso que o primeiro tem a ver com as datas dos pagamentos dos royalties do senhor Sarkisian, não é verdade?"
O essencial do acordo estava de facto concluído, após vários meses de negociações que se intensificaram consideravelmente depois de marcada a data do julgamento. O que iam fazer nessa reunião no Aviz era acertar os derradeiros detalhes e formalizar o entendimento. A negociação final não ultrapassaria um par de horas, acreditavam, e Peagle tinha já reservado a sala de jantar e doze garrafas de Moèt et Chandon para celebrar a ocasião. Krikor ainda manifestou alguma apreensão quanto à possibilidade de as coisas se atrasarem, mas o americano nem queria ouvir falar nessa hipótese.
"Piece of cake!", retorquiu Peagle com um sorriso confiante, o charuto sempre pregado à boca. "Fechar este acordo é uma brincadeira de crianças!"
O americano tinha razão. A conversa nem duas horas chegou a durar e o documento ficou finalizado antes da hora do chá. Daria perfeitamente para o grupo recolher aos quartos e dar um passeio por Lisboa antes de se juntar para o jantar e o champagne final. A boa disposição era generalizada, agora que todos se haviam entendido e se perspectivava mais dinheiro para todas as partes.
Enquanto as restantes delegações se dispersavam, Krikor pegou nos documentos dactilografados e, conforme ficara previamente combinado, subiu ao primeiro andar para os levar ao pai; era a derradeira verificação antes da assinatura final. Como ainda fazia sol, Kaloust instalou-se no terraço da suíte e, com uma chávena de chá ao lado, consumiu com minúcia cada palavra, cada frase, cada ideia do texto que tinha nas mãos. O filho já se sentia saturado daquele assunto, sobretudo depois da reunião com as petrolíferas para discutir exaustivamente as entediantes questões técnicas, e preferiu descontrair-se enquanto folheava uns exemplares da revista Flama; não entendia português, mas as fotografias distraíam-no.
A revisão do texto do acordo levou meia hora, ao fim da qual Kaloust realinhou a resma de folhas e a estendeu a Krikor.
"Não assino."
A declaração colheu o filho de surpresa; num primeiro instante chegou a julgar que ouvira mal.
"Perdão?"
"Nos termos em que este acordo está redigido, não assino."
Foi um choque perceber que tinha ouvido bem à primeira. Permaneceu um longo momento de boca aberta, sem saber o que dizer, fitando o pai e incapaz de articular o que lhe ia na cabeça. Não assinava? Não assinava?!
"Mas... mas... o que está aqui escrito já tinha merecido o seu acordo!", exclamou por fim, exibindo as folhas dactilografadas como se fossem a prova do que acabara de dizer. "Este documento salvaguarda os nossos direitos de aquisição previstos pelo Acordo da Linha Vermelha e, ainda por cima, estabelece quotas mais elevadas para a produção no Iraque, o que implica que vamos ganhar ainda mais dinheiro. Além disso, concede-nos uma fortuna em compensações e entrega-nos enormes quantidades de excedentes para além da nossa quota na Turkish, o que significa que vamos ficar com centenas de milhares de toneladas de petróleo adicional. Tudo isto foram exigências suas! Como é que pode agora dizer que... que..."
"Quero uma garantia de que a minha fatia de petróleo será vendida nos próximos quinze anos", disse. "E em dólares, ouviste?"
"Mas só agora é que diz isso?"
Kaloust lançou um gesto na direcção das folhas que o filho segurava nas mãos.
"A forma como esse texto está redigido permite que eles me passem a perna e me ponham os barris a que tenho direito à porta de casa", explicou. "Nessa eu não caio. Além do mais, quem me garante que não me farão os pagamentos em francos, por exemplo?" Abanou a cabeça com a ênfase de quem tinha a decisão tomada. "Não. Quero garantias de venda a quinze anos e tudo pago em dólares."
"E se eles não aceitarem?"
A possibilidade suscitou um leve sorriso na face de Kaloust. Pôs-se em pé e, com ar de quem não fazia tenções de continuar a falar no mesmo assunto, virou as costas e encaminhou-se para a suíte.
"Não assino."
O único chefe de delegação que se encontrava no hotel era o velho senador Hertault, demasiado frágil já para dar passeios pela cidade. William D'Arcy, Walter Peagle e o homem da Royal Dutch Shell que viera em representação de Van Tiggelen tinham saído, pelo que foi preciso aguardar a hora do jantar para lhes comunicar a notícia.
"Gentlemen, o meu pai não assina."
Sentados à mesa na sala que lhes fora reservada, os magnatas do petróleo ficaram perplexos com o anúncio. Passada a surpresa inicial, ergueu-se um clamor, com uns a desfazerem-se em protestos e outros a exigirem explicações. As vozes cruzavam-se no ar e só quando o vendaval amainou é que Krikor lhes apresentou as exigências do pai, justificando-as com as possibilidades abertas no texto para se torpedear o espírito do acordo. Os representantes das petrolíferas renovaram os protestos e a vozearia regressou, tão viva como antes, mas ao fim de algum tempo acabaram por se conformar com a nova realidade.
"O problema é que a primeira sessão do julgamento começa já amanhã", constatou Walter Peagle. "Se as nossas contas chegam aos tribunais, é uma catástrofe. A imprensa vai estar toda lá e... e... nem quero pensar nisso!"
"Então o que fazemos?"
Os homens do petróleo entreolharam-se e perceberam nesse instante que não tinham alternativa.
"Se é preciso alterar a porcaria deste texto, altere-se!", resignou-se o americano. "Metam lá as novas exigências! Temos é de pôr fim a isto o mais depressa possível!"
Os presidentes da Anglo-Persian e da Compagnie Française dês Pétroles concordaram, mas o representante da Royal Dutch Shell abanou a cabeça.
"Receio não ter poderes para tal", revelou. "Terei de remeter o assunto ao meu presidente."
O desânimo instalou-se à mesa. A possibilidade de se falhar um entendimento naquele dia era demasiado grave para ser encarada com seriedade, uma vez que implicaria o início do julgamento nos Law Courts, mas era essa a situação que enfrentavam. Walter Peagle parecia exasperado e foi Krikor quem o acalmou quando sugeriu ao britânico da Shell que entrasse prontamente em contacto com Van Tiggelen para obter a luz verde. Sem perder mais tempo, o homem redigiu um longo telegrama a explicar o problema e entregou-o na recepção com ordens de envio imediato para Londres.
O ambiente ao jantar foi taciturno, tão sombrio que apenas se abriu uma garrafa de Moét et Chandon e à mesa só se escutava o tilintar metálico dos talheres no labor da refeição; ninguém falava e todos tinham a mente bem longe dali. O único que quebrou o mutismo geral foi o representante da Royal Dutch Shell, que se sentiu na obrigação de esclarecer que havia pedido a Londres a máxima urgência na resposta, garantia que em boa verdade nem era necessária uma vez que todos sabiam que Hendryk van Tiggelen não era louco e tinha perfeita consciência do desastre que seria a primeira sessão do julgamento ir por diante e as contas das petrolíferas acabarem expostas aos olhares indiscretos dos repórteres.
Deixaram-se ficar na sala depois da refeição, saboreando um cálice de vinho do Porto ou um copo de whisky numa atmosfera de recolhimento. Cruzavam-se no ar algumas conversas em voz baixa e os olhares ansiosos desciam amiúde para os pulsos ou erguiam-se para o relógio de parede, como se o simples acto de consultar os ponteiros fosse suficiente para apressar o processo de decisão em Londres. Mas tocou a meia-noite e continuou a não haver notícias. O desespero começou a instalar-se na sala e o fracasso delineava-se com certeza inexorável.
Passava já da uma da manhã quando o recepcionista apareceu na sala com uma bandeja de prata na mão.
"Telegrama para o senhor Thompson."
Os olhares convergiram para o pequeno envelope pousado sobre a bandeja. Thompson era o representante da Royal Dutch Shell. A sala pareceu despertar e um burburinho excitado percorreu as pessoas que nela se acomodavam. com a ansiedade espelhada no olhar, Thompson dirigiu-se ao recepcionista e pegou no sobrescrito. Rasgou-o de um lado e extraiu o telegrama, que leu com uma expressão ávida. Depois girou a cabeça pela sala e, com um gesto eufórico, desferiu um murro no ar.
"Van Tiggelen concordou!"
As duas secretárias que davam apoio às delegações sentaram-se de imediato a dactilografar o acordo com as novas cláusulas. Matraqueando as teclas com os dez dedos como se tocassem piano, o taque-taque-taque ininterrupto a encher o ar como um ronco prolongado. Levaram uma hora a passar todo o texto à máquina.
Uma vez concluído o trabalho, Krikor correu para o primeiro andar e entregou o documento ao pai. Kaloust gastou vinte minutos a reler o texto, dedicando especial atenção às novas cláusulas. O filho permaneceu plantado à beira dele, desta feita sem se deixar distrair pela Flama, procurando ler-lhe no rosto impenetrável qualquer centelha de luz que revelasse o que ele pensava. Mas o velho magnata não traiu a sua inclinação a não ser no momento em que terminou a leitura e lhe devolveu a resma de folhas.
"Aprovado."
Emergindo da sua auto-imposta reclusão, Kaloust desceu à sala de estar e, depois de cumprimentar os presentes, sentou-se à mesa e assinou por fim os documentos Stroke 54, ladeado pelo filho e por madame Duprés. Eram três da manhã. Os representantes das petrolíferas puseram a seguir as suas assinaturas no papel e no fim alguém gritou "hurrah!" e seguiu-se um prolongado aplauso.
"Conseguimos tornar o texto absolutamente ininteligível", exclamou Peagle com uma risada nervosa. "Ninguém será capaz de iniciar um processo judicial com base nestes documentos porque não há uma pessoa que seja capaz de entender o que está aqui escrito!"
Sentindo um alívio generalizado pelo fim daquela maratona, Krikor percebeu que se impunha uma celebração. Foi por isso à procura dos empregados para que servissem uma refeição e as onze garrafas de champagne que haviam sobrado.
"A esta hora, m'sieur?", admirou-se o ensonado recepcionista. "Já cá não está ninguém! Os empregados foram para casa e não há ninguém no serviço de restaurante nem no bar."
A noite acabou numa cervejaria dos Restauradores que estava aberta toda a noite. Não havia caviar nem lagosta, apenas sanduíches de fiambre e queijo e presunto e chouriço, que devoraram como se de uma refeição no reputado Procope parisiense se tratasse. No final, Walter Peagle levantou-se e, convidando os restantes convivas a imitá-lo, ergueu a sua caneca de cerveja na direcção de Kaloust.
"A si, mister Sarkisian, as nossas mais sinceras vénias", proclamou já algo tocado pelo álcool. "com este acordo, o senhor superou o próprio Rockefeller como o homem mais rico do século!"
As persianas estavam corridas, bloqueando os raios de Sol que irradiavam pela manhã. Desde que cruzara a barreira dos oitenta anos, Kaloust sentia maior dificuldade em acordar tarde, apesar de o colchão macio e os lençóis de seda aveludada do Aviz o convidarem a prolongar o sono. Quantos homens da sua idade se poderiam gabar de dormir bem?
Ouviu um toque suave na porta.
"Quem é?", perguntou, estremunhado.
Sentiu a porta abrir-se com um movimento suave e, içando a cabeça da almofada, viu o doutor Fernando Fonseca à espreita.
"Posso?"
O olhar surpreendido de Kaloust desviou-se para o relógio na mesinha-de-cabeceira. Eram oito da manhã.
"A esta hora, doutor?", estranhou. "Não tínhamos marcado à uma da tarde?"
O médico que todos os dias o visitava no Aviz para o check-up entrou no quarto e, caminhando quase em bicos de pés, abeirou-se da cama.
"Venho medir-lhe a tensão."
O magnata encarou-o, sem perceber o que se passava.
"Agora?"
"Sim, agora. Estenda o braço, se faz favor."
Kaloust obedeceu, apesar de continuar confuso quanto aos motivos que ditavam a alteração da rotina.
"Porquê agora? Não podia vir às onze?"
O doutor Fonseca não respondeu. Mediu-lhe a tensão e depois pegou no estetoscópio e auscultou-lhe o coração. Quando se deu por satisfeito, endireitou-se e respirou fundo.
"Parece-me muito bem de saúde", disse. "Está capaz de receber as notícias."
O coração de Kaloust deu um salto.
"O quê? O que se passa?"
Em vez de responder, o médico virou-se para a entrada. A porta permanecera entreaberta, um hálito de luz a recortar-lhe os contornos escuros.
"Está pronto."
Um vulto entrou no quarto e o magnata levou alguns segundos a reconhecê-lo à meia-luz. Era o filho.
"Krikor!", exclamou. "Que aconteceu?"
O médico afastou-se dois passos e o filho sentou-se na borda da cama, o rosto fechado, uma expressão pesarosa a pingar-lhe dos olhos tristes.
"Recebi esta madrugada um telefonema de Paris e receio que as notícias não sejam boas", murmurou com o queixo trémulo e a voz embargada pela emoção. "A mãe... a mãe faleceu."
A encenação a que assistira momentos antes, com o médico a medir-lhe a tensão e a auscultá-lo e a entrada do filho com ar consternado tinham servido de aviso. Kaloust pressentira que algo de grave acontecera, mas não imaginara, ou não quisera imaginar, que se tratava de Nunuphar.
"Mas... mas como?", balbuciou, atarantado. "Que aconteceu?"
"Ela deu uma recepção ontem à noite e parece que se sentiu indisposta. Chamaram o médico e a mãe... enfim, deixou-nos esta madrugada."
A primeira reacção foi de absoluta estupefacção. Foi como se tivesse levado uma bofetada e a face ficado dormente, os sentidos embotados e a emoção suspensa, anestesiada pelo choque. Mas à medida que ia caindo em si o coração parecia ir-se desfazendo. Lembrou-se da primeira vez que vira Nunuphar, tão miúda e inocente na casa dos seus pais em Londres, e do dia do casamento em Constantinopla, a noiva esplendorosa no seu vestido; reviu a fuga de ambos pela capital otomana com o filho dentro de um tapete enrolado, recordou a imagem da mulher a animar as recepções londrinas e parisienses que tantos contactos lhe haviam proporcionado no mundo da alta finança, lembrou os conselhos que ela lhe dera e a protecção quase maternal com que o envolvera nos momentos mais difíceis. Teve vergonha. Vergonha de não lhe ter permanecido fiel, vergonha de não ter sido o marido de que ela precisava e que merecia, vergonha por não ter sido mais paciente e carinhoso com a mulher.
E saudade. Ah, a saudade dos que partem e que ao partir se tornam tão insuportavelmente imprescindíveis... Lembrou-se da última vez que a havia visto, três anos antes, a acenar-lhe em despedida da porta da mansão da avenue d'Iena. Nesse verão de 1949, quando completara oitenta anos, Kaloust tinha regressado a Paris pela primeira vez desde a guerra; ficara uns meses a matar saudades, mas no Outono as saudades eram já de Portugal pelo que regressara a Lisboa e ao seu Aviz.
Esmagado pela enormidade da notícia da morte da mulher, Kaloust sentiu primeiro um nó apertar-lhe a garganta e, quase sem dar por isso, como se uma onda inesperada o submergisse contra a sua vontade, as lágrimas a embaciaram-lhe a visão e escorreram-lhe quentes pela face. Um gemido longo e profundo cresceu-lhe no peito e derramou-se pelo corpo inteiro, na vertigem cega de quem se sabia perdido.
Nunca imaginara que a morte de Nunuphar lhe pudesse infligir semelhante dor.
A verdura melancólica de Sintra tinha o condão de o serenar. Sabendo-o, e precisando de se reequilibrar, uma semana depois de ficar viúvo convidou madame Duprés para um passeio pela povoação no sopé da serra. O filho deslocara-se a Paris para tratar das formalidades ligadas ao óbito e o magnata queria reflectir sobre a sua vida e o que faria para homenagear Nunuphar como ela merecia.
Ao saírem do hotel, perto já do meio-dia, depararam-se com um alarido no passeio do outro lado da rua, para lá dos portões. Voltaram para ali o olhar admirado e viram um grupo de pessoas a acenar. Parecia que o faziam na sua direcção, mas claro que uma coisa dessas não podia ser. Sem saber o que pensar, Kaloust mergulhou apressadamente no carro e só se sentiu abrigado quando a secretária se acomodou ao lado dele e Estêvão fechou a porta.
"Quem é esta gente?"
"Não faço a mínima ideia", devolveu madame Duprés com um trejeito da boca. "Nunca os tinha visto por aqui."
O motorista, que dera a volta pela traseira do carro e se instalou no seu lugar ao volante, respondeu sem olhar para o retrovisor virado para o outro lado, de modo a não ser acusado de espiar o seu cliente.
"São turistas."
A informação espantou o magnata.
"E o que estão aqui a fazer? Vieram ver o Aviz?"
Estêvão sorriu.
"Vieram vê-lo a si, m'sieur Sarkisian."
Kaloust arregalou os olhos incrédulos.
"A mim?"
"O senhor tornou-se uma atracção de Lisboa, não sabia?", disse o chauffeur. "Lembra-se daquele processo com os Americanos? A imprensa estrangeira fartou-se de noticiar tudo, como sabe. Pois desde então que muitos turistas vêm aqui ao Aviz na esperança de o ver. Nunca tinha reparado?"
Tudo aquilo era novidade para Kaloust e madame Duprés, e não se podia dizer que fosse agradável. Ele que sempre lutara pelo anonimato e que dele gozara em Lisboa tornara-se uma atracção da cidade?
"Você já viu isto?", atirou para a secretária, a voz indignada. "Os turistas vêm ver-me ao hotel?! Estará tudo louco?"
O automóvel arrancou, cruzou o portão e passou pela multidão sorridente que não parava de acenar.
"Do que estava à espera?", argumentou madame Duprés. "O senhor é o homem mais rico do mundo! Uma coisa destas acaba por ser inevitável, não lhe parece? Sobretudo depois de toda aquela publicidade por causa do processo... Não se lembra que a Life o descreveu como o homem mais misterioso do nosso tempo? Uma afirmação assim atrai as atenções."
O arménio abanou a cabeça.
"Ah, não! Isto não posso tolerar!"
"Mas o que haveremos de fazer? Quer que chame a polícia para expulsar os turistas dali?"
"Claro que não, mas assim também não pode ser. Se é para isto, olhe, mais vale voltar para Paris. E o mais depressa possível!"
"Oh, não diga disparates."
"A sério! Estou a ser tratado como uma atracção de circo, não percebe? Só falta atirarem-me bananas ou amendoins!" Sacudiu mais uma vez a cabeça. "Não, isto não pode ser! Voltamos para Paris e é já na próxima semana!"
O caso enervara-o, mas madame Duprés já o conhecia muito bem e, com uma mistura de palavras doces e postura firme, que a levaram até a ameaçar mais uma vez abandoná-lo se ele regressasse a França, acabou por acalmá-lo. Um cenário desses era para o arménio impensável; depois de ter perdido a mulher, estava fora de questão perder a secretária.
A verdade é que, dez minutos mais tarde, na altura em que percorriam a marginal para o Estoril, de onde virariam para a serra, já Kaloust esquecera o incidente dos turistas. Madame Duprés distraíra-o com a visão do mar, do forte do Bugio no horizonte azul e do areal dourado da praia de Carcavelos. Quando daí a pouco mergulharam na floresta e chegaram a Sintra, o velho arménio tinha a mente de novo ocupada pelo assunto que nos últimos tempos verdadeiramente o preocupava. Os planos para o funeral de Nunuphar.
O magnata tomara a decisão de erguer um monumento grandioso em memória da mulher. Não sabia o quê, mas algo faria. Escolheria o melhor arquitecto, se fosse preciso contrataria Picasso para fazer uma escultura, encomendaria um requiem ao próprio Sibelius, erigiria uma obra de arte inesquecível em nome da mulher. Tinha de arranjar maneira de se livrar do terrível sentimento de culpa que lhe apunhalava a consciência.
"Sempre lhe fui fiel", murmurou com um copo de vinho de Colares na mão. "Sempre, sempre."
Foi no instante em que contemplavam a floresta para além do palácio real de Sintra, talvez inspirado pelo ambiente bucólico que o inclinava para a nostalgia, que decidiu abordar o que lhe ia na cabeça.
"Como disse?"
"Sabe muito bem que essas raparigas todas que tive não passaram de terapia, não sabe?" Pousou a mão no peito. "O que interessa é a fidelidade do coração e, a esse respeito, o meu nunca teve dúvidas."
Ao perceber que o patrão se referia à mulher, a secretária hesitou, roída de vontade de replicar. A prudência, todavia, acabou por se impor.
"Eu sei", condescendeu. "Eu sei."
O olhar de Kaloust manteve-se perdido num ponto indefinido da floresta de pinheiros e carvalhos, mergulhando na natureza que subia pela encosta fronteira ao palácio, os lábios molhados pelo néctar vigoroso do vinho, uma expressão sonhadora a serenar-lhe o rosto.
"Sabe o que vou fazer?", perguntou com voz sonhadora. "Embalsamá-la!"
"Desculpe?"
"vou embalsamar a Nunuphar para que o seu corpo não se corrompa", disse, o tom a agitar-se com súbito fervor. "E vou construir-lhe o maior dos mausoléus, com mármores de Ferrara e decorações a ouro e estátuas encomendadas aos melhores artistas." Esboçou com as mãos um gesto grandiloquente. "Uma coisa em grande, um monumento onde, mais tarde, eu também possa ser sepultado. Será a nossa morada final e ficaremos aí juntos para sempre."
"Onde planeia fazer uma coisa dessas?"
O magnata desviou a atenção da floresta e, bebericando o Colares, fitou madame Duprés.
"Talvez aqui em Sintra", disse. "Já viu como Sintra é bonita?" Fez um gesto a indicar a floresta diante deles. "Notou esta variedade de verdes? É única no mundo. Que melhor palco para o nosso mausoléu?"
A secretária contemplou a orgia de verdes que a neblina azulada de Sintra tornava sombrios. O manto cerrado de nuvens rasgou-se nesse instante e um feixe de luz desceu para iluminar a floresta, acendendo a tonalidade das folhas. Era de facto um cenário de apertar o coração, impregnado de uma melancolia bela a que o sol inesperado emprestava um brilho alegre.
"É... é extraordinário", concordou. "O problema é que tenho a impressão de que a sua mulher não escolheria Sintra para derradeiro poiso."
Kaloust assentiu com um movimento suave da cabeça.
"Tem razão", admitiu. "Mas não me importo de erguer o mausoléu em Paris, por exemplo. Ficaríamos no Père Lachaise, ao lado do túmulo de Oscar Wilde, ou de Balzac, ou de Chopin. Ou então na Arménia."
"Afinal em que ficamos? Sintra, Paris ou Arménia?"
Indeciso, o velho arménio mirou a floresta uma última vez e, engolindo o resto do vinho de um só trago, virou-se para regressar ao carro e encolheu os ombros.
"Sei lá, tenho de pensar nisso."
O filho sentou-se com um suspiro na cadeira à beira da janela, o rosto iluminado pelo sol que banhava o terraço.
Acabava de regressar a Lisboa depois de uma semana de ausência e parecia estranhamente taciturno.
Aquela postura reservada não incomodou Kaloust, que atribuiu o mutismo ao luto pela mãe. Como Krikor não falava, o velho magnata preencheu o silêncio com as suas próprias palavras. Explicou-lhe os projectos que tinha em mente e disse que começara já a seleccionar os arquitectos que se poderiam encarregar da obra. A principal dúvida dizia respeito ao local onde o mausoléu seria erguido, pelo que lhe pediu opinião.
"Sintra, Paris ou Arménia?"
Krikor começou por manifestar a maior das relutâncias em abordar o assunto, era evidente que sentia grande desconforto com o tema da morte e do funeral da mãe, mas a insistência do pai fê-lo perceber que não havia modo de o evitar.
"Nice."
A forma lacónica e ao mesmo tempo final como respondeu à questão, dando a impressão de que queria evitar o tema mas a decisão estava tomada, suscitou estranheza a Kaloust.
"Nice?", admirou-se. "Porquê Nice?"
"Foi a vontade da mãe."
"Como sabes isso? Falaste com ela, porventura?"
O filho emudeceu. Como bom fisionomista, o magnata percebeu com espanto que acabava de tocar num qualquer ponto sensível. Estava fora de questão não esclarecer o assunto.
"A que propósito vem Nice para a conversa?", insistiu. O filho permaneceu calado. "Como sabes que a mãe queria ser enterrada lá? Fala, rapaz!"
Nesse ano de 1952 Krikor já não era nenhum rapaz, mas um homem de cinquenta e seis anos que se agastava quando ouvia o pai tratá-lo como se não passasse de um garoto.
Sentiu aquele "rapaz" como um insulto e, tomado por um impulso irresistível, não se conteve.
"Sei porque foi o que ela deixou escrito numa carta!"
As sobrancelhas de Kaloust altearam-se de espanto.
"Uma carta? Ela deixou uma carta?"
"Deixou", anuiu o filho, já arrependido do que acabara de revelar. "Escreveu que queria ser enterrada em Nice, na campa ao lado do irmão. E pediu que fosse construída uma escola para os órfãos da Arménia."
O velho Sarkisian estava embasbacado com a novidade.
"Onde está essa carta?"
"Tenho-a guardada."
"Mostra-ma. Quero lê-la."
O filho abanou negativamente a cabeça.
"Não posso. Ela pediu expressamente que o pai não a lesse."
O olhar de Kaloust endureceu, os lábios contraíram-se e as suas pupilas dilatadas pareceram chispar fogo.
"Mostra-me a carta!"
"Não posso, já lhe disse. A mãe escreveu lá coisas desagradáveis sobre si. Além do mais, foi muito clara a respeito de o pai não poder ler a carta."
O magnata ergueu-se num salto, o corpo hirto, as mãos a tremerem de fúria, a face enrubescida pela dor que se transformara em cólera. Uma coisa daquelas era uma afronta, não a podia tolerar.
"Mostra-ma!"
Krikor recuou um passo, perturbado com a emoção que via crescer no pai.
"Não vê que não posso?", perguntou, quase numa súplica. "Seria uma traição violar as últimas vontades da mãe!" Baixou a cabeça. "Isso não farei."
"Farás porque to ordeno!"
"Nunca. Seja qual for o preço."
Fez-se um silêncio pesado na suíte do Aviz, feito de cólera e tensão, pai e filho de olhar preso um no outro, ferro contra ferro, um duelo de vontades, o orgulho a enfrentar o dever, o amor dividido pela honra.
"Mesmo que o preço seja deserdar-te?"
A pergunta foi formulada em voz baixa, quase num sopro, em flagrante contraponto com a gritaria ocorrida ainda momentos antes. A suavidade contida das palavras escondia um aviso velado, prenhe de insinuações, uma ameaça, na verdade. De olhos perdidos numa tristeza lassa, desapontado por terem chegado àquele ponto mas incapaz de ceder ao compromisso e sentindo que teria de levar a sua intransigência até ao amargo fim, Krikor balançou afirmativamente a cabeça.
"Sim."
com um longo suspiro, Kaloust afastou-se dois passos e, com os gestos lentos mas deliberados de quem toma uma decisão difícil e faz uma escolha que sabe o irá destruir a si próprio, voltou-se para o filho com um olhar de gelo e apontou para a porta do quarto.
"Vai", ordenou. "Vai e não voltes."
A morte pareceu envolver Kaloust sob o seu manto denso e sombrio; o velho arménio não a via, mas sentia-lhe o fedor a podre e percebia que ela já o rondava, como um abutre a farejar putrefacção. Dava sinais de se aproximar inexoravelmente, o que se confirmou semanas depois da ruptura com Krikor.
"Chegou um telegrama de Londres", anunciou madame Duprés quando apareceu pelas três e meia da tarde para lhe fazer companhia para o café. "É da Blake & Hawthorne."
Como se tratava do seu escritório de advogados em Londres, Kaloust pensou que havia novidades relativas a qualquer processo de aquisição de uma obra de arte. Mas as notícias eram de outra natureza. Sir Philip Blake, informava o telegrama, falecera na véspera e a família e o escritório tinham muita honra em que um dos seus mais prestigiados clientes e amigos estivesse presente nas cerimónias fúnebres, marcadas para a Abadia de Westminster.
O magnata ficou em Lisboa. Isso não o impediu de se deslocar à igreja do Mosteiro dos Jerónimos à hora em que decorriam as exéquias em Londres e de acender uma vela em memória do seu velho amigo. Apesar de se encontrar num santuário católico, ajoelhou-se diante do altar e rezou em arménio.
Quando nessa tarde regressou ao Aviz deparou-se com a bandeira a meia haste e grande agitação no átrio. Viu o proprietário do hotel de faixa preta no braço a distribuir ordens pelos empregados e interpelou-o sobre o motivo daqueles procedimentos.
"Então não ouviu a telefonia?", admirou-se o senhor Ruggeroni. "Morreu sua majestade."
"Quem? Salazar?"
O dono do Aviz pestanejou, surpreendido com o raciocínio do hóspede.
"Por Deus, não!", exclamou. "O rei Jorge VI."
No mês seguinte foi de Paris que chegou outro telegrama com mais uma facada. Desta feita fora Jean-Marc Hertault que falecera. Tinha-o visto pela última vez alguns anos antes no hotel, quando da assinatura dos documentos Stroke 54, e lembrava-se que já na altura o velho senador não lhe parecera muito bem, o corpo curvado sobre uma bengala e o rosto pálido a trair a degeneração irreversível.
Que diabo estava a acontecer? Chegara a uma idade em que, para onde se virasse, apenas via a morte. Onde iria aquilo acabar? Num punhado de meses tinham sido Nunuphar, Sir Philip e o senador Hertault. Além disso rompera com o filho e uma ruptura dessa magnitude constituía também uma espécie de morte. Eram demasiados golpes em tão pouco tempo. A dúvida começou a persegui-lo e o medo a assombrá-lo. De onde viria a facada seguinte?
A força vital que o mantinha activo pareceu esvair-se como um encantamento que se quebra e a sua saúde deu os primeiros sinais de se deteriorar. O corpo perdeu energia e tinha a impressão de que as massagens de Ivan já não produziam grande efeito. Uma fadiga generalizada apossou-se de si e as costas começaram a doer-lhe, obrigando-o a curvar-se ligeiramente para caminhar. O doutor Fonseca prescreveu-lhe uns medicamentos para atenuar os problemas, mas não havia remédios que solucionassem o envelhecimento.
A ginástica sueca, um hábito de toda a vida, transformou-se num conjunto de movimentos simbólicos, levados a cabo mais por teimosia do que por convicção, e o mesmo se passou com os constitucionais no Parque Eduardo VII e em Monsanto, reduzidos a uns passeios de cinco minutos em passo hesitante e com o DeSoto sempre atrás. Nem mesmo a matilha de turistas que todos os dias lhe acenavam à distância parecia já incomodá-lo.
O magnata definhava.
Uma neblina cerrada, alva e tentacular, impregnava a floresta de uma estranha atmosfera surreal, quase mística, colando-se à encosta como se a colina de Sintra exalasse um hálito de vapor gélido. Uma língua de bruma descia das copas das árvores e enrodilhava-se pelo torreão da casa, parecia que o próprio bosque reclamava como sua a estrutura ali erguida.
Exalando um longo suspiro de satisfação, Kaloust virou a cara para a sua secretária social.
"Ficou bela, não acha?"
Madame Duprés assentiu, sem tirar os olhos da mansão.
"É diferente de tudo o que alguma vez vi. Recua ao século XII, disseram-me."
A atenção do magnata regressou à casa, construída totalmente em pedra com um toque mourisco. Tinha três pisos, com as janelas enquadradas por duplas colunas de mármore e protegidas por grelhas de ferro medievais.
"Era um antigo pavilhão de caça da Casa Real portuguesa que um rei qualquer ampliou no século passado. Aproveitei esse edifício e reabilitei-o à maneira das igrejas arménias do século iv. Está a ver ali o telhado? É ao estilo bizantino."
"O que vai fazer com a mansão? Vem para cá viver?"
"Eu? De modo nenhum. Estou muito bem no hotel, graças a Deus. Aliás, já me convenci de que o Aviz é o melhor hotel do mundo, melhor ainda do que o Ritz..."
A francesa virou-se para ele, intrigada.
"Então para que comprou esta propriedade e mandou fazer as obras?"
Kaloust meteu a mão ao bolso e extraiu um objecto prateado. Pegou com delicadeza no braço dela e meteu-lho na palma da mão; era metálico e frio. Uma chave.
"É sua."
Madame Duprés olhou com incredulidade para a chave.
"Perdão?"
"A Quinta da Amizade é um presente meu. Comprei-a e restaurei-a para lha oferecer. É sua."
Após uma curta pausa para digerir a notícia, o rosto da francesa iluminou-se e, num acto espontâneo, abraçou Kaloust e beijou-o.
"Merci, merci", agradeceu, as lágrimas a espreitarem-lhe do canto das pálpebras. "Mon petit chéri, nunca imaginei..."
Num gesto de ternura, o magnata devolveu-lhe os beijos e deixou-se ficar abraçado, o rosto mergulhado no cabelo dela, o nariz a sentir-lhe as fragrâncias de Chanel, os corpos colados como se nunca se tivessem apartado desde os dias em que se conheceram em Marselha, ambos velhos, ambos frágeis.
"És o meu suporte, o meu pilar", murmurou-lhe ele ao ouvido enquanto a estreitava com força. "Quem senão tu para me compreender, para meu apoiar, para sentir e aplacar este tumulto que me arrebata a alma?"
O abraço prolongou-se por alguns minutos e só se desfez quando a curiosidade foi mais forte e quiseram ver o interior da mansão agora reabilitada. Franquearam a porta de mão dada e só se detiveram no quarto do terceiro andar, onde derramaram em carícias e palavras doces a ternura que os unia com a idade. Kaloust perdera já o vigor masculino e madame Duprés o interesse pela vertente física do amor, pelo que só os sentimentos contavam.
Quando por fim aplacaram a fome dos afectos, foram para a janela e em silêncio ficaram a contemplar o Palácio de Sintra a seus pés, lá em baixo onde as grandes chaminés brancas se erguiam como se quisessem agarrar o céu, iluminadas pela faixa de luz que entretanto rompera por entre o manto baixo de nuvens.
Havia já muito tempo que a leitura do correio se tornara um dos momentos altos do dia de Kaloust no Aviz. Como de costume depois do pequeno-almoço, um empregado levou-lhe o pacote de cartas à suíte D. Filipa de Lencastre e o hóspede instalou-se no terraço para as encetar. Passou primeiro revista à correspondência do dia e a sua atenção prendeu-se de imediato num envelope com os Arms of Dominion, um escudo com um leão coroado de um lado e um unicórnio do outro, uma legenda em baixo a proclamar Dieu est mon droit.
"Cos diabos!"
Era o brasão da casa real britânica. A missiva fora remetida do Palácio de Buckingham e indicava como origem Her Majesty's Office, ou seja, vinha do gabinete da própria rainha. A constatação deixou Kaloust intrigado. O que lhe quereria a nova monarca? O pai, o rei Jorge VI, morrera no início do ano e ela tinha subido ao trono alguns meses antes. Que interesse poderia Isabel II ter nele?
Arreganhou os lábios, desconfiado, e humedeceu o sobrescrito com o hálito, esforçando-se por abri-lo sem o rasgar. Estava fresco no terraço, mas o sol acariciava-lhe a pele e pairava no ar um perfume melífluo a flores. O envelope descolou-se enfim, libertando o seu conteúdo como uma pétala que se abre ao mundo. Kaloust desdobrou a folha da carta e, depois de contemplar o texto dactilografado, desceu os olhos para a assinatura.
Elizabeth R.
O nome estava sublinhado e o R significava Regina. Ou seja, era mesmo uma carta da rainha. Ou, pelo menos, alguém a escrevera e a monarca assinara.
O texto começava com um Dear Mr. Sarkisian, seguindo a fórmula habitual. Apresentava os pêsames pelo falecimento da senhora Sarkisian e formulava o desejo de que a missiva encontrasse o seu destinatário bem de saúde. Depois de algumas considerações de ordem geral, a carta mencionou a vontade de atribuir a Kaloust um K. B. E., a sigla de Knight Commander Order of the Empire, uma das mais prestigiadas condecorações do Império Britânico. Parecia ser essa a razão para a carta, mas no parágrafo seguinte a rainha acrescentava esperar que, na altura própria, ele não se esquecesse das galerias britânicas, decerto o lugar ideal para albergar os grandes tesouros de arte que acumulara ao longo dos anos.
"A miúda!", vociferou Kaloust, incapaz de dominar a cólera que dele se apossou ao ler aquelas palavras. "Que atrevimento! Como se atreve ela a... a..."
"Que se passa?", quis saber madame Duprés, assomando à porta. Apesar da Quinta da Amizade, continuava a viver num quarto do Aviz contíguo à suíte D. Filipa de Lencastre. "Aconteceu alguma coisa?"
O magnata amarrotou a carta, reduzindo-a a uma bola disforme, e atirou-a ao chão num gesto de desprezo e fúria.
"Passa-se que esta garota, a nova rainha, resolveu escrever-me uma carta cheia de artimanhas!"
Os olhos incrédulos da secretária, amante em segredo, desviaram-se para a bola de papel que rolava pelo terraço e se foi imobilizar junto de um vaso. Abriu e fechou a boca como um peixe, parecia em estado de choque, até conseguir por fim emitir um som.
"Aquilo é uma carta da rainha?" perguntou, na dúvida sobre se teria ouvido bem. "A rainha de Inglaterra?"
"Sim, é da rainha! E então? Qual é o espanto? Que eu saiba ela também se senta na retrete para cagar, como nós todos!"
"Mas o que lhe quer a rainha?"
A francesa lançou ao patrão e amante um olhar inquisitivo, dir-se-ia de censura. Tornara-se todavia evidente que o estatuto da monarca não o impressionava.
"Veio oferecer-me uma condecoração."
Dessa vez madame Duprés não se limitou a arregalar os olhos. Escancarou a boca também. A sua perplexidade não conhecia limites.
"E o senhor... o senhor ficou furioso por a rainha o querer condecorar?!"
"Não percebe que a miúda me está a comprar?", perguntou ele com despeito, quase exasperado por a secretária se deslumbrar com o facto de a remetente ser a rainha e não ver o que a ele parecia óbvio. "Oferece-me uma condecoração, um qualquer título de cavaleiro que não passa afinal de uma reles esmola, mas deixa implícito que exige a minha colecção de arte em troca. Ou seja, a desavergonhada está à espera da minha morte para ficar com o que é meu! Foi por isso, e apenas por isso, que esta flausina me escreveu a oferecer o K. B. E.!
A garota está-se pouco marimbando para a minha saúde ou para a morte de Nunuphar ou para os serviços que prestei a Inglaterra ou para o que quer que seja. O que verdadeiramente lhe interessa, a ela e à corja de conselheiros que a rodeiam, é a minha colecção, percebe? São os meus enfants!"
A atenção de madame Duprés dançava entre a carta amarrotada e o seu patrão, quase como se estivesse dividida entre ambos. Pareceu enfim decidir-se, porque atravessou o terraço em passo rápido e foi buscar a missiva jogada para perto do vaso. Acocorou-se para pegar nela e, obedecendo ao instinto amanuense de qualquer boa secretária, começou a desdobrá-la. Uma carta daquelas não podia ser tratada como lixo; tinha de ser arquivada.
"O senhor enlouqueceu?", questionou. "Diga o que disser, isto é uma carta da rainha de Inglaterra a oferecer-lhe uma condecoração!"
"Os Ingleses querem condecorar-me? A mim, a quem chamaram inimigo durante a guerra? A mim, a quem ultrajaram apesar de todos os serviços que lhes prestei?"
"Mas olhe que, com a condecoração, o senhor ganha o título de cavaleiro..."
"Sir Kaloust? Pff, que pindérico!"
"Sir Kaloust não soa nada mal."
O magnata levantou-se da sua cadeira e contemplou a folha que ela aplanava já com as mãos, na tentativa desesperada de a salvar e recuperar.
"Sabe o que respondo à senhora rainha de Inglaterra?", perguntou em tom retórico. "Vá bugiar, madame!"
com um gesto preciso, Kaloust rodou o manípulo do velho samovar russo de prata batida, uma das preciosidades da mansão da Quinta da Amizade, e despejou a água quente na chávena. Mergulhou nela o saquinho com folhas secas de tília e arrastou-se para a sala em passos curtos porque as costas voltaram a doer-lhe. Deteve-se um instante diante do espelho veneziano e inspeccionou as narinas; sangrara abundantemente do nariz nessa manhã, como muitas vezes lhe sucedia, mas parecia que a hemorragia estancara. Teria de voltar a falar do assunto ao doutor Fonseca. O médico arranjara-lhe soluções engenhosas para mitigar o problema e Kaloust aprendera tanto a confiar nele que deixara de pedir o parecer do velho doutor Kemhadjian.
Madame Duprés saíra para dar um passeio pela vila de Sintra, pelo que se instalou à janela da sala e ficou a aguardá-la enquanto bebericava o chá. A paisagem vista dessa janela era deslumbrante e os seus olhos passearam pela vegetação luxuriante, com a encosta pejada de palmeiras e enormes cedros por entre bosques de laranjeiras e limoeiros, as plantas mediterrânicas nas partes mais baixas, a flora nórdica no topo do terreno. Magnólias gigantes coloriam a verdura, o mesmo acontecendo com as camélias e as centúrias, e a floresta enchia-se do chilrear melodioso dos pássaros e do gorgolhar límpido das múltiplas fontes que jorravam pela serra da Lua, por onde se estendiam os doze mil metros quadrados da propriedade.
Ah, como aquilo lhe parecia o paraíso! Viera ali passar o fim-de-semana com madame Duprés, atraído pelas tonalidades de verdes que existiam em Sintra, na sua opinião únicas no mundo. E depois havia as longas muralhas dentadas do Castelo dos Mouros mesmo por cima da mansão e, lá em baixo, os telhados pitorescos da vila que...
Um guincho metálico atraiu-lhe a atenção para a entrada junto ao parque das Merendas, no sopé da encosta. Viu um vulto níveo a cruzar a pequena porta de ferro e suspirou de saudades; era ela que voltava. O sorriso melancólico que se lhe formou nos lábios desfez-se, contudo, quando se apercebeu de um segundo vulto, este cinzento, do lado de fora da entrada. Apurou o olhar e, com surpresa, identificou a figura.
"Passarão...?"
Viu os dois despedirem-se junto à entrada e madame Duprés subir a escadaria da encosta agarrada a um arranjo amarelo e carmesim; era um bouquet. Abriu a boca de estupefacção. Que diabo vinha a ser aquilo? O seu advogado andava a conversar com a sua secretária e amante e oferecia-lhe flores? O que se estava a passar ali?
Inquieto, afastou-se da janela para não ser visto e foi acomodar-se numa cadeira diante da lareira de granito da sala do rés-do-chão. Fingiu que se interessava pelas colunas portuguesas setecentistas que ladeavam a lareira e pelos azulejos que narravam a história daquela propriedade, e assim permaneceu até a amante entrar na mansão e surpreendê-lo ali.
"Salut, mon trésorV', cumprimentou-o ela com ternura. "Já fez o seu constitucional da manhã?"
Kaloust forçou um sorriso.
"com certeza que sim. Fui até ao limite mais alto da propriedade, junto à muralha do Castelo dos Mouros, e contemplei a paisagem. O mar vê-se muito nitidamente, tal como o Palácio da Pena."
"Ah, oui", assentiu ela, inserindo o bouquet num vaso. "A vista é realmente magnífica."
"Onde arranjou essas flores?"
"Colhi-as pelo caminho. Não são lindas?"
Mentirosa, pensou o arménio. O doutor Fonseca suplicara-lhe repetidamente que não se exaltasse, para proteger o coração, e Kaloust sabia que o médico tinha razão e que teria de dominar o seu temperamento. Porém, precisava de tirar o assunto a limpo, até porque madame Duprés era a pessoa de quem mais dependia, e em quem mais confiava neste mundo. Seria possível que ela o traísse? A dúvida tinha de ser substituída pela certeza. Se havia jogo duplo por parte dela, porque o fazia? No fim de contas a amante era velha como ele e o que os unia parecia-lhe ser uma ternura feita de cumplicidades amadurecidas pelo tempo, não a paixão nem a volúpia, estavam já ambos bem para lá disso. Ou... ou seria o dinheiro? Teria Nunuphar razão? A possibilidade perturbou-o. Sabia melhor do que ninguém que o dinheiro fazia rodar o mundo e transtornava as pessoas, dividindo amigos e famílias, pelo que encarou essa hipótese com muita seriedade. Tudo na vida tinha a ver com sexo ou dinheiro, pensou. Se naquela idade já não era o sexo que motivava a amante, só restava de facto o dinheiro.
Teria de a testar.
"Estive aqui a pensar no meu testamento", disse, lançando o isco para ver se o peixe o mordia. "Deverei deixar o meu dinheiro ao Krikor?"
"Claro que deve deixar dinheiro ao Krikor", respondeu ela. "Mas não se esqueça de que ele lhe foi desobediente e não cumpriu consigo todos os seus deveres filiais. Não o vai premiar por isso, pois não?"
"com certeza que não."
A francesa aproximou-se dele e passou-lhe os dedos pelo rosto, num gesto ternurento.
"A fundação será o seu verdadeiro testamento, mon chou."
"Tem razão. Os Franceses prometem-me uma galeria no Louvre para os meus enfants e os Americanos estão a revelar-se muito insistentes e apresentaram-me propostas fabulosas." Respirou fundo. "Hesito na escolha final."
"Porque não... aqui em Portugal?"
"Os Portugueses abastados não dão nada a ninguém, ma chérie. Do que me apercebi, não é hábito por aqui as pessoas
legarem as suas fortunas para efeitos de filantropia. Eles nem sequer têm enquadramento legal para as isenções fiscais de que normalmente gozam as fundações, veja lá!"
"Ah, mas o seu advogado disse-me que isso já está tratado com Salazar."
Kaloust pousou a sua chávena de chá e cravou os olhos em madame Duprés. Em atenção às recomendações do doutor Fonseca teria de lidar calmamente com a questão, mas o facto é que chegara a hora de se tirarem as máscaras.
"Já vi que anda muito íntima de Passarão..."
A francesa corou e teve notoriamente de fazer um esforço para não desviar o olhar.
"O que... o que quer dizer com isso?"
O magnata esboçou um gesto na direcção das flores que ela pusera no vaso e endureceu a expressão do rosto.
"Quero dizer que esse bouquet não foi colhido pelo caminho, como falsamente me disse, mas oferecido por esse tubarão!", disparou num tom ríspido e o dedo acusatório. "Quero dizer que a senhora tem conversas com ele de que não me dá conhecimento! Quero dizer que se estão a passar coisas nas minhas costas!"
As pálpebras de madame Duprés tremeram e os grandes olhos verde-garrafa cintilaram; a secretária e amante estava à beira das lágrimas.
"Eu... eu não fiz nada."
"O que lhe quer o Passarão?", pressionou Kaloust, aproveitando a fragilidade emocional que lhe detectava. "Porque anda ele a oferecer-lhe flores? O que se está a passar?"
A francesa baixou a cabeça para esconder as lágrimas que lhe brotavam dos cantos dos olhos.
"Tenho medo."
A resposta deixou o arménio atónito.
"Medo? Medo de quê?"
"Do que me vai acontecer quando... quando o senhor já aqui não estiver."
Kaloust ficou por momentos sem palavras. Noutros tempos teria explodido ou dito para ninguém se preocupar porque viveria até aos cento e seis anos, mas não agora, não depois da quebra que sentira com a morte de Nunuphar e de Sir Philip e do senador Hertault, não quando os achaques o atingiam com mais força, quando o corpo se abatia sob uma sensação de fadiga geral e as dores nas costas o afectavam e sentia formigueiro no braço esquerdo e o nariz por vezes sangrava com abundância. Desde a morte da mulher que o sentimento de imortalidade se volatilizara, deixando no seu lugar um travo sinistro a morte iminente. O fim rondava-o e, por mais que não quisesse pensar nisso, sentia que o dia mais temido se aproximava.
"Claro que lhe vou deixar alguma coisa", disse, compadecido com as lágrimas dela. "Não lhe dei eu esta mansão? Fique descansada que nada lhe faltará depois da minha morte." Apontou pela janela da sala para o pequeno portão de ferro lá em baixo, junto ao parque das Merendas. "Mas gostaria que me explicasse o que se passa com o Passarão."
A francesa enxugou as lágrimas com um lenço que tirou da mala.
"Ele oferece-me flores e sussurra-me coisas bonitas, diz que sou bela, que sou o anjo de Portugal e... e coisas assim."
"Mas o que raio lhe quer o homem? Não deve ser a sua mão, com certeza. Além de ser muito mais novo do que a senhora, sei que é muito dedicado à mulher."
"Está preocupado com a ideia da fundação", titubeou madame Duprés. "Insiste que é muito importante que a traga para Portugal, pediu-me para o convencer e... e deu a entender que, se isso acontecesse, haveria um lugar para mim."
Não era propriamente uma surpresa para Kaloust. Havia algum tempo que intuía as manobras em torno de si e da sua considerável fortuna, ouvia a todo o momento insinuações e sugestões, percebia os movimentos que tinham origem em Salazar e envolviam Passarão e toda uma rede de supostas influências e contactos. Pelos vistos a rede chegara à sua própria secretária e amante, a pessoa em quem mais confiava. Sentiu-se por momentos vergado pela tensão, como se toda aquela teia o amarrasse e asfixiasse, mas libertou-se com um encolher de ombros. Vendo bem, nada daquilo verdadeiramente importava.
Quando decidisse, fá-lo-ia em consciência.
Dando um jeito final à algália, o doutor Fernando Fonseca recuou um passo, acocorou-se e ficou a contemplar o tubo e o saco que acabara de instalar. Aguardou apenas um instante, porque de imediato viu as gotas deslizarem pelo tubo e pingarem na bacia entre as pernas do paciente.
"Ufa!"
Deitado na cama com os olhos fixos no tecto da suíte, Kaloust estranhou o suspiro de alívio.
"Algum problema, doutor?"
"Afinal é mesmo urina o que o senhor deita cá para fora..."
O arménio ergueu a cabeça e fitou inquisitivamente o seu médico particular, sem entender a admiração.
"Claro que é urina. Do que estava à espera que fosse?"
"Petróleo."
Soltaram ambos uma gargalhada.
"Só o senhor para me fazer rir numa situação destas", disse o paciente. Voltou os olhos para o tecto e o sorriso morreu-lhe nos lábios. "Sabe uma coisa, doutor? Acho que vou falhar o grande objectivo da minha vida."
O médico observava ainda a urina a correr pelo tubo.
"E qual é ele, pode-se saber?"
"Viver para sempre."
O doutor Fonseca desviou a atenção da urina e encarou o seu paciente.
"Ah, disso pode estar certo. Esse seu objectivo está mesmo destinado ao fracasso."
"É uma coisa terrível, doutor", murmurou Kaloust num queixume. "Passei a vida inteira a pensar que a imortalidade era possível. Relacionei-me com meninas jovens para lhes extrair a vitalidade e prolongar a minha juventude, fiz ginástica sueca e um longo passeio todas as manhãs, tomei todos os dias banho em água gelada, até tudo o que comia era devidamente pensado e pesado, a cada refeição só consumia não sei quantos gramas de iogurte e de fruta e de peixe e de tudo o mais que me prolongasse a vida. Quis fazer da minha própria existência qualquer coisa de único... sei lá, uma obra de arte." Abanou a cabeça. "Tudo isto para quê?" Fez um gesto a indicar o seu corpo débil e quase acabado. "Para estar aqui deitado a vê-lo tirar-me a urina porque já nem a maldita da minha bexiga consigo controlar..."
O silêncio voltou por momentos à suíte. Após certificar-se de que a algália estava correctamente aplicada, o médico levantou-se e sentou-se à borda da cama.
"Deixe-me explicar-lhe uma coisa, senhor Sarkisian", disse, ciente de que um médico não servia apenas para cuidar do corpo dos pacientes e que havia males que eram da alma. "É preciso que o senhor saiba que não há finais felizes. Se a vida fosse um rosto, a sua expressão seria de tristeza." Desenhou um arco no ar. "Começamos cá em baixo, subimos na vida, atingimos um pico em que estamos na plenitude das nossas capacidades e principiamos a descer, primeiro devagar e depois mais e mais depressa, até terminarmos de novo cá em baixo, como a curva de uma boca triste na cara de uma pessoa. A vida é isso."
"Então para que aqui estamos, doutor? Porque vivemos?"
O doutor Fonseca encolheu os ombros.
"Não tenho resposta para essa pergunta", reconheceu. "O que importa talvez seja o que fazemos enquanto cá estamos e o que deixamos aos que cá ficam. Não vivemos para morrer, vivemos para fazer algo que perdure. Talvez o verdadeiro sentido da nossa existência esteja no nosso legado."
Ainda deitado na cama, Kaloust abanou a cabeça.
"Ah, o nosso legado", sussurrou, ecoando as últimas palavras que escutara. "vou confessar-lhe uma coisa. A minha ideia era deixar tudo o que tenho a uma fundação e entregá-la à minha Nunuphar. Talvez não tenha sido um marido exemplar, mas amava-a à minha maneira. Porém, ela morreu antes de mim e não sei agora o que faça à fundação. Sinto-me perdido."
"Não me diga que vai desistir dessa ideia..."
O arménio respirou fundo.
"Claro que não", retorquiu. "Mas agora que a minha mulher morreu, terei de mudar de planos. Podia deixá-la ao meu filho, claro, mas incompatibilizei-me com ele."
"Não tem mais ninguém em mente?"
"Não. E há outro problema."
"Qual?"
"Escolher o melhor sítio para a albergar", disse Kaloust. "A Inglaterra está fora de questão, após o que me fizeram durante a guerra. Bem pode esta miúda, esta rainha da treta, vir acenar-me com condecorações e mais não sei o quê. De mim os Ingleses nada receberão. Assim sendo, restam-me os Estados Unidos, a França e Portugal. Reconheço, no entanto, que estou mais inclinado para a América ou para a França."
"Porquê?"
"São países organizados, onde impera a lei e onde existe uma tradição de apoio à filantropia. Gosto muito de Portugal, mas não sei se este país estará à altura de uma fundação como a minha. É verdade que emprestei uns quadros ao Museu Nacional de Arte Antiga e fiquei agradado com a forma como eles foram tratados e valorizados. Porém, estamos perante um país demasiado pequeno, demasiado periférico..."
"Como a sua Arménia."
"Sim, de certo modo."
O médico voltou a acocorar-se para verificar se a extracção da urina decorria bem. Tudo lhe pareceu normal, pelo que regressou à borda da cama.
"A decisão é sua e não o quero influenciar", disse. "O importante é o seu legado. A vida física tem um termo, mas o que o senhor deixar pode perdurar."
"Se o doutor estivesse no meu lugar, que decisão tomaria?"
"Sou português, pelo que deixaria a fundação a Portugal. Este país talvez pareça pequeno e acanhado à primeira vista, mas encerra uma grandeza insuspeitada."
"Abstenha-se da sua nacionalidade. Se estivesse no meu lugar, o que faria?"
O doutor Fonseca cruzou os braços e, alçando uma sobrancelha, esboçou um ar pensativo.
"Se eu fosse a si, faria esta pergunta a mim próprio: onde seria o meu legado mais valorizado? Em países onde já existem imensos museus de grande qualidade e muitas fundações incrivelmente ricas... ou num país onde nada há? Quero ser um entre muitos ou quero ser único? Qual destes três países me daria a imortalidade?"
Eram excelentes perguntas. Kaloust cerrou as pálpebras e reflectiu nas palavras do médico, passando em revista os vários argumentos a favor e contra cada uma das hipóteses e consciente de que urgia tomar uma decisão. As recentes mortes à sua volta e os crescentes problemas de saúde de que padecia tornaram dolorosamente palpável a sua própria mortalidade. Não era já um octogenário? O fim não devia andar muito longe e sentia a lucidez fugir-lhe, o que o sujeitaria a todo o tipo de manipulações. com realismo, quanto tempo mais poderia esperar viver? Cinco, dez anos? Tinha de escolher e precisava de o fazer o mais depressa possível. No momento da decisão, porém, foi a última pergunta formulada pelo doutor Fonseca, e sobretudo ela, que mais pesou.
"Não sou de facto imortal", reconheceu ao tomar a decisão. "Mas serei imortal em Portugal."
O sol batia no terraço envidraçado anexo à suíte D. Filipa de Lencastre quando o advogado se sentou ao lado de Kaloust e abriu a pasta. O magnata contemplava o jardim do Aviz de olhar perdido para além da verdura; parecia fitar a fachada da Maternidade Alfredo da Costa, do outro lado da rua, mas na verdade estava abstraído nos seus pensamentos. Ao fim de quase um minuto, estremeceu e voltou-se para o recém-chegado como se só nesse instante se tivesse apercebido da sua presença.
"A morte da minha mulher e uma série de acontecimentos fizeram-me ver que já não posso adiar o inadiável", anunciou o arménio. "Por conseguinte, acho que chegou a altura de escrever o meu testamento."
Ao ouvir estas palavras, Azevedo Passarão endireitou-se, subitamente tenso.
"E... e pode saber-se qual a sua decisão final?"
Kaloust colou o lenço ao nariz e depois analisou-o; tinha pingos de sangue. Sentiu o formigueiro voltar a atacar-lhe o braço esquerdo e a fadiga invadi-lo.
"Será em Portugal, claro."
O advogado assobiou com alívio e aprovação.
"Parece-me muito bem!", exclamou. Apercebendo-se de que tinha sido talvez excessivamente entusiástico, pigarreou e corrigiu-se de imediato. "Quer dizer, o senhor está de excelente saúde e decerto viverá ainda muito tempo. Tem hábitos saudáveis e faz exercício diário. Isso garante-lhe uma longa vida, sem dúvida." Esboçou uma expressão resignada. "Mas, lá dizem os Portugueses, o seguro morreu de velho, não é verdade? Penso por isso que seria de toda a prudência deixar formalizadas certas disposições para evitar mais tarde confusões e conflitos desnecessários e desagradáveis."
O cliente tossiu, como se quisesse demonstrar que a sua saúde já não estava assim tão magnífica.
"Pois, é isso", concordou. "Em primeiro lugar, não quero deixar muito dinheiro directamente ao meu filho."
O advogado alçou uma sobrancelha.
"Deveras?"
"Acho que a experiência que ele viveu durante o genocídio arménio o deixou sem o equilíbrio necessário para gerir tanto dinheiro. Além do mais, desrespeitou-me enquanto pai."
"Então o que tem em mente para ele?"
"Prefiro criar um trust, não sei se vocês em Portugal conhecem esse conceito. Quero toda a minha herança e os meus negócios transferidos para o trust. O trust será o recipiente dos meus contratos, em particular os do mundo do petróleo, e caber-lhe-á a responsabilidade de gerir toda a minha fortuna. Quanto ao meu rapaz, receberá um milhão de libras, não mais. O trust fica depois encarregado de lhe atribuir mensalmente uma fatia, quase como se fosse um salário."
"Ah, muito bem."
"O essencial da fortuna, todavia, irá para a instituição de que temos falado", disse. "A fundação."
Os olhos de Azevedo Passarão brilharam.
"Que terá o seu nome, claro. Fundação Sarkisian."
"Precisamos de um documento das autoridades portuguesas a confirmar a isenção fiscal à fundação", sublinhou o magnata. "Sem essa garantia nada feito, percebeu?"
"Já tivemos a promessa verbal do senhor presidente do Conselho. Vamos agora pedir que ela seja passada para o papel."
"Quando o tiver na mão, quero que formalize no meu testamento a criação da fundação em Lisboa. Será uma instituição internacional aqui sedeada. Quero-a gerida pelo trust e dedicar-se-á à promoção da arte, a paixão da minha vida. O dinheiro do petróleo será utilizado em reinvestimentos na área do petróleo, de modo a gerar mais dinheiro. Já os rendimentos resultantes das minhas aplicações financeiras irão para a fundação financiar projectos artísticos, educativos e de saúde."
"E quem irá gerir o trust e a fundação?"
O olhar de Kaloust desviou-se para o horizonte. Do terraço do Aviz vislumbravam-se as copas alinhadas das árvores da Avenida da Liberdade, os telhados da Baixa e o rio ao fundo, numa mistura desconcertante de verdes, vermelhos e azuis.
"Estive a pensar na minha mulher, em Sir Philip Blake ou no senador Hertault", disse num tom amargo. "O problema é que ela, Sir Philip e o senador faleceram e deixaram-me órfão de uma solução. E o meu filho está fora de questão, pelas razões que lhe expliquei."
Fez-se uma pausa. O advogado aguardou que o cliente completasse o raciocínio, mas Kaloust calou-se, os olhos colados à paisagem urbana que se desenhava diante deles.
"Então quem poderá assumir a chefia da fundação?"
A atenção do magnata desviou-se da cidade e cravou-se enfim no seu interlocutor, como se a resposta fosse óbvia.
"Sir Kenneth Bark, claro."
A cerimónia de assinatura do testamento foi realizada dois meses mais tarde na suíte de Kaloust no Aviz. Azevedo Passarão tinha-lhe entregue na semana anterior o manuscrito redigido em português e francês, para que o lesse com vagar, tarefa a que o arménio se dedicou com afinco durante dois dias. Três cláusulas suscitaram-lhe dúvidas, que esclareceu junto do advogado; uma manteve-se como estava, as outras foram alteradas para ficarem em consonância com os seus desejos. E acrescentou um artigo, o vigésimo, a estabelecer que o seu filho perderia todos os direitos e regalias que o testamento lhe concedia se o impugnasse, mesmo que o tribunal viesse a dar-lhe razão.
Apesar de decorrer em ambiente íntimo, a cerimónia revestiu-se de uma certa formalidade, como convinha a um acontecimento daquela natureza e importância. Kaloust vestiu o seu melhor Savile Row e, acompanhado de madame Duprés e de Ivan, recebeu o notário, o advogado e as duas testemunhas requeridas por lei e escolhidas por Passarão. A todos ofereceu um cálice de vinho do Porto de boas-vindas e com eles trocou alguns ditos espirituosos em francês.
"Se não se importa", disse por fim Azevedo Passarão quando os cálices ficaram vazios, "seria melhor passarmos à assinatura."
O ambiente descontraído de imediato se evaporou e cada um assumiu o seu papel. No meio do silêncio mais absoluto, Kaloust foi buscar o testamento, que relera uma última vez na noite anterior, e depositou-o na escrivaninha da sala de estar da suíte. Depois sentou-se e pegou na caneta. Passou os olhos pelos presentes, de modo a certificar-se de que estavam todos atentos, e começou a rubricar cada página do manuscrito. O ruído da ponta de aparo a deslizar sobre o papel e o farfalhar contido das respirações eram os únicos sons audíveis na sala. Quando chegou à última folha, o arménio voltou a erguer os olhos, como se quisesse ganhar um derradeiro fôlego, e arqueou as sobrancelhas espessas. Questionou-se se Sir Kenneth Bark aceitaria presidir à fundação estando ela submetida à lei portuguesa, mas venceu a hesitação.
"Chegou a hora."
Debruçou-se mais uma vez sobre o texto e assinou o nome. Uma salva de palmas dos presentes assinalou o momento. O notário pegou então no manuscrito e no passaporte do cliente e procedeu ao respectivo reconhecimento. Quando deu a tarefa por concluída, um novo aplauso encheu a salinha e Kaloust içou-se do seu lugar.
"Ivan", chamou. "Agora o champagne!"
Uma bandeja com copos estreitos repletos de líquido borbulhante amarelo materializou-se diante dos presentes. Um burburinho despreocupado ergueu-se do grupo, agora descontraído depois do longo mutismo a que se remetera durante a assinatura do testamento. A certa altura, porém, Azevedo Passarão bateu com a base do copo na madeira da escrivaninha, atraindo a si as atenções.
"Minhas senhoras e meus senhores, queria fazer um anúncio da mais elevada importância", declarou em tom solene. Percorreu os presentes com um olhar imperial até se deter no rosto expectante do cliente. "Encarregou-me sua excelência, o senhor presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, de comunicar a vossa excelência, distinto senhor Kaloust Sarkisian, que a nação portuguesa, orgulhosa e reconhecida, decidiu retribuir-lhe com a mais distinta condecoração desta pátria." Fez uma pausa, para acentuar a importância do anúncio. "A Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo!"
Seguiu-se uma nova salva de palmas, a que Kaloust correspondeu com um sorriso embaraçado. O advogado proferiu mais algumas palavras de circunstância, que incluíram até uma tirada galvanizada em português de Os Lusíadas, e por fim a cerimónia foi dada por concluída e o grupo desceu para um almoço no restaurante do Aviz.
Depois do café, o magnata acompanhou os convidados à porta do hotel e despediu-se deles com uma vénia, como era seu costume antigo, mas travou Passarão pelo braço quando o advogado se virou para também se ir embora, dizendo que precisava de lhe dar uma palavra em privado.
"Que história é essa da condecoração?", interrogou-o logo que ficaram a sós na suíte. "De onde veio essa ideia?"
O advogado foi colhido de surpresa pelo tom levemente contrariado que pressentiu nas perguntas do cliente.
"Foi o senhor presidente do Conselho, ora essa", respondeu. "Ele está naturalmente a par deste testamento, até porque teve de formalizar as garantias de isenção fiscal, e quis expressar-lhe o reconhecimento de Portugal por o país ter sido escolhido para albergar a sua magnífica fundação." Estreitou as pálpebras, como se tentasse ler o seu interlocutor. "Porquê? Prefere porventura outra condecoração? A Ordem do Infante, por exemplo?"
Kaloust abanou a cabeça com impaciência.
"Claro que não, que disparate!", esclareceu. "Na verdade não quero condecoração nenhuma! A única coisa que quero é que me deixem em paz e sossego. O senhor sabe muito bem que odeio ajuntamentos."
A observação colheu Passarão de surpresa. Esperava que o seu cliente se sentisse agradado, até lisonjeado, mas não era isso o que manifestamente estava a suceder. A sombra de uma suspeita passou-lhe de repente pelo espírito inquieto.
"Não me diga que vai recusar a condecoração..."
O magnata encolheu os ombros com indiferença.
"Qual é o problema? Já declinei uma condecoração que os Franceses me quiseram dar e até rejeitei um K. B. E. que me foi recentemente oferecido pela rainha de Inglaterra."
"Mas o senhor presidente do Conselho não é a rainha de Inglaterra!"
"Ainda bem para ele. E então?"
"Não vê que a sua recusa vai ser encarada como um insulto?"
Estas palavras pareceram abalar o magnata. Recuou um passo, como se absorvesse o impacto de um golpe violento, e fitou o seu advogado.
"O senhor acha?"
"com certeza! Então o senhor presidente do Conselho faz-lhe um gesto simpático e o senhor responde com um grandessíssimo manguito? Como pensa que uma coisa dessas vai ser interpretada?"
Kaloust hesitou, avaliando o argumento.
"Então o que devo fazer?"
O rosto do advogado, até aí fechado e preocupado, abriu-se numa gargalhada bem-humorada.
"Faça lá o sacrifício e aceite a condecoração!"
Fazia calor e um cheiro a rega fresca e a estrume enchia o jardim do Palácio de São Bento. Kaloust ajeitou a gravata, abotoou o casaco e preparou-se para avançar. A cerimónia tinha sido transferida para o jardim em sua honra, uma vez que os Portugueses estavam bem a par do seu amor pela natureza, mas interrogou-se sobre a sensatez do gesto. No fim de contas, calor e fatos apertados eram coisas que não combinavam bem.
"M'sieur Kaloust Sarkisian", chamou Salazar na sua voz desafinada. "Tenha a fineza de se aproximar."
O arménio deu três passos e abeirou-se do anfitrião. O ditador tinha acabado de fazer o seu discurso, como parecia habitual em Portugal sempre pontuado por exuberantes citações de Os Lusíadas a enaltecer a gesta lusitana pelos mares do planeta, e retirava de um estojo a faixa escarlate com a cruz dos Descobrimentos em cobre.
Ciente de que chegara o momento, Kaloust curvou-se.
"Excelência", murmurou. "É uma honra!"
O ditador segurava já a condecoração; estava tão solene e cerimonioso que mais parecia um bispo a preparar-se para depositar hóstias na boca pecaminosa de um crente.
"Por serviços relevantes prestados à pátria portuguesa", anunciou Salazar num português pomposo e altivo, "condecoro o senhor Kaloust Sarkisian com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo!"
O anfitrião inseriu nesse momento a faixa pela cabeça do homenageado e assentou-a sobre os ombros, a cruz a colar-se ao peito, uma ovação a percorrer o jardim. Sempre a interpretar o seu papel, Kaloust endireitou-se e voltou a agradecer com uma nova vénia na direcção de Salazar e outra voltado para as testemunhas, antes de recuar e regressar ao seu lugar.
Uma dorzinha irrompeu-lhe na testa, como uma pequena picada dentro da cabeça. Sentia-se cansado e pensou que não tardaria nada estaria de volta ao Aviz. Não tinha paciência nenhuma para aquelas cerimónias, detestava estar no meio de muita gente, mas sabia que não podia fugir às suas responsabilidades. O que valia era que o suplício estava já no fim.
"Vai agora falar sua excelência, o senhor director do Secretariado Nacional de Informação, doutor José Manuel da Costa."
"Oh, não!"
O gemido de Kaloust era bem o sintoma da contrariedade que sentiu ao escutar o anúncio de que haveria mais um orador, neste caso o responsável do regime pelas actividades culturais. Como gostavam estes Portugueses das discursatas! E quanto mais palavrosas melhor... Atirou um olhar carregado de ressentimento ao homenzinho que viu avançar para junto de Salazar e, com ansiedade, perscrutou-lhe a resma de folhas que levava nas mãos. O que viu deixou-o desanimado. Eram com toda a certeza mais de uma vintena! Se levasse minuto e meio a ler cada página, estava ali paleio para durar meia hora.
A coisa prometia.
"Serei breve nesta singela alocução", declarou o director do Secretariado Nacional de Informação, evidentemente a preparar-se para quebrar a promessa que acabara de fazer. "Já dizia o poeta, na sua imorredoira sapiência, que os arautos de tempos vindoiros..."
O arménio revirou os olhos e preparou-se para permanecer mais trinta minutos de pé, como uma sentinela plantada no seu posto a enfrentar a fúria da tempestade. Ah, como tudo aquilo era insuportável! Aquelas cerimónias tendiam a tornar-se intermináveis, pontuadas por uma hemorragia verbal carregada de insondável prosápia. Se ao menos ele pudesse...
"Agh!"
A dor na testa voltara, mas de tal modo forte que a visão se encheu de luzinhas, como estrelas a salpicarem os olhos e a toldarem-lhe o discernimento. Sentiu o chão oscilar e fugir-lhe no momento em que um manto de sombra densa lhe cobriu por completo a consciência.
Uma aragem quente e seca arquejou pela colina nua, levantando uma nuvem de areia que, como um fantasma cambaleante, atravessou a estrada e foi expirar do outro lado. Peguei na garrafa de água e engoli um trago, os olhos sempre fixos no cruzamento diante de mim. O pano de uma tenda de beduínos numa esquina e dois camelos a cirandarem na encosta árida de uma duna eram, além da areia e da erva rasteira que dançava ao sabor do vento, as únicas coisas que mexiam naquele lugar perdido no fim do mundo.
"Ela deve estar a chegar."
Olhei para o homem sentado ao volante do jipe. Mehmet Bey era um turco da minha idade, homem bem nutrido e de tez trigueira lavada de transpiração. Conhecera-o dois dias antes no Pêra Palace de Istambul, onde nos encontrámos depois da morte do meu pai. Contou-me que se tratava do filho mais novo de Salim Bey, o grande amigo e protector dos Sarkisian em Constantinopla, o antigo governante otomano que me salvou quando escapei das estradas do inferno da Anatólia e cuja verdadeira história só conheci em toda a sua plenitude quando acabei de ler O Homem de Constantinopla e Um Milionário em Lisboa, a autobiografia em dois volumes que o meu pai escrevera em segredo na terceira pessoa.
Depois do falecimento de Salim Bey, e em gesto de agradecimento pela amizade e inestimável ajuda do velho amigo turco, o meu pai contratou o seu filho, Mehmet, encarregando-o de localizar tapetes persas que lhe interessavam para a sua colecção. Foi justamente no decurso de uma expedição à Síria em busca de alguns desses tapetes que Mehmet se cruzou acidentalmente com o paradeiro daquela que eu perdi.
Uma pequena nuvem de poeira elevou-se no horizonte, parecia um vulcão a expelir vapor ao fundo da estrada. O meu novo amigo turco virou para ali o olhar arguto de pisteiro e esticou o pescoço, como se desse modo pudesse destrinçar melhor o objecto distante.
"É o primeiro carro a aparecer na estrada em mais de uma hora", observou Mehmet. "Deve ser ela."
Fazia um silêncio opressivo naquele recanto amarelado do deserto sírio, apenas quebrado pelo marulhar ocasional do vento, que ora soprava com inesperada violência, ora esmorecia e se deixava morrer. Mantive o olhar colado ao ponto distante atrás do qual a nuvem de areia se agitava e percebi que a minha longa busca chegara ao fim. Os Turcos tinham-me condenado a percorrer as estradas da Anatólia para morrer numa berma a caminho dos desertos da Síria. Pois era justamente num desses desertos que eu nesse momento me encontrava, depois de um longo desvio de trinta e nove anos que me livrara da marcha da morte e afinal me reconduzira ao mesmo destino, mas por outros caminhos.
Como estaria ela? A interrogação acompanhava-me desde que me encontrei com Mehmet em Istambul e com ele voltei a atravessar a Anatólia, desta feita de comboio, até entrar na Síria e desembarcar em Damasco. Alugámos um jipe e ali estávamos, neste cruzamento perdido no meio do deserto a mirar um ponto longínquo da estrada. Sim, como estaria ela? Como sobrevivera, o que acontecera à mãe, o que acharia de mim? Tantas perguntas, que profunda angústia, quanto sofrimento!
O ponto da estrada cresceu, balouçando entre as ondas dançarinas de calor rasteiro, até que se tornou uma viatura e por fim uma furgoneta. Desci do jipe e caminhei pelo centro da estrada na direcção do cruzamento onde o encontro fora combinado. Senti a garganta seca e tive vontade de beber mais água, mas lembrei-me que tinha deixado a garrafa no assento e resignei-me à sede.
Cheguei ao centro do cruzamento e estaquei, encarando o veículo em aproximação. O uivo longínquo do motor cresceu sobre a terra batida até se tornar um bramido de esforço. Reparei então que a furgoneta era vermelha, mas a tinta quase se escondia por baixo de camadas sucessivas de terra, ferrugem e pó amarelado. A viatura abrandou e, sempre a roncar, deteve-se por fim ao lado da tenda dos beduínos.
O vulto ao volante desligou o motor e fez-se silêncio. A paz regressou à colina, a areia ainda enfeitiçada pelo bafo cálido que soprava rasteiro ao longo do deserto. O vento sacudia as minhas roupas e o pano da tenda e soprava para longe a nuvem de poeira que o veículo recém-chegado havia levantado. À parte isso, a imobilidade era total.
Ouvi um rangido e verifiquei que uma porta da furgoneta se abria. Uma figura escura apeou-se da viatura. Procurei destrinçar-lhe as feições mas apenas vislumbrei um borrão indefinido, quase espectral. Levei um longo instante a perceber que se tratava de uma mulher; tinha o corpo coberto por um chador negro, os olhos escondidos atrás de uma grelha. Após uma breve hesitação, a figura avançou em passo vacilante, cambaleando, trôpega, mas pareceu ganhar confiança e, de passada já firme, encaminhou-se na minha direcção.
Imobilizou-se a três metros de mim. Como não lhe conseguia ver os olhos por detrás da grelha do chador, presumo que tenha gasto aquele longo momento a estudar-me.
"Olá, Krikor."
A voz foi uma bofetada saída do tempo que me atingiu onde menos esperava, atirando-me sem piedade para um passado que tanto me esforçara por enterrar, uma outra vida que agora regressava com toda a força à tona, implacável e irresistível, inebriando-me com o aroma dos carvalhos que decoravam as margens do Reno, envolvendo-me com o perfume suave dos salgueiros que descia pelo crepúsculo sobre a casa de Kayseri, agredindo-me com o fedor ácido dos excrementos que conspurcavam as estradas da Anatólia naquele Verão maldito em que me perdi depois de a perder.
"Marjan..."
Ah, como era bom saborear de novo nos lábios este nome feito de encanto e magia!
O mais incrível, contudo, era a extraordinária sensação de a ter à minha frente, de lhe falar e de a ouvir. Duvidei por momentos, pensei que talvez fosse um sonho, admiti até a hipótese de se tratar de um embuste, um qualquer truque de ilusionismo montado por este Mehmet que me dizia ser filho de Salim Bey mas que na realidade eu nunca vira na vida. A verdade, porém, é que escutei a mulher diante de mim e a voz, tanto quanto sei, não muda. Nem amordaçada pelo tecido áspero de um chador.
"Afinal conseguiste escapar, Krikor", disse ela num tom meigo, em arménio. "Sabes, não houve dia em que não pensasse em ti..."
Senti a dor esfaquear-lhe as palavras e a voz tremer-lhe na angústia ansiosa do reencontro, dilacerada por quase quarenta anos de sofrimento. Quarenta anos! Meu Deus, ela devia somar já uns cinquenta e muitos! Que torturas, que provações, que rosto envelhecido aquele chador não esconderia? E seria isso realmente importante?
Abri os braços.
"Porque não me abraças?"
Ela hesitou. Virou a cabeça para trás e espreitou a furgoneta imobilizada ao lado da tenda dos beduínos. O veículo permanecia quieto, ameaçadoramente silencioso, como se por detrás do seu mutismo se escondesse uma agressão velada. Uma hostilidade latente emanava daquela máquina imóvel. Depois Marjan voltou a encarar-me, os olhos sempre ocultados pela grelha negra.
"Não posso", murmurou com evidente tristeza. "Quero, mas não posso."
"Porquê?"
"Porque a minha vida mudou, Krikor. Porque a Marjan que conheceste morreu naquela estrada do inferno, porque renasci noutro lugar, noutro tempo, noutra cultura. O que Deus fez não podem o homem e a mulher desfazer."
Senti o amargo veneno da dor que aquelas palavras encerravam e percebi que, se a queria reaver, se havia alguma possibilidade de uma coisa dessas suceder, teria de saber o que acontecera. Que queria ela dizer quando afirmava que havia renascido? Renascido como? O chador mostrava que a cultura islâmica era a roupagem de que se vestia agora, mas deixara ela de ser a arménia e a cristã que sempre fora?
Teria renegado a sua identidade e o seu passado? Seria isso sequer possível?
"Conta-me", pedi-lhe. "Conta-me o que aconteceu naquela estrada depois de eu ter escapado."
Ela inclinou a cabeça como se tivesse baixado os olhos.
"O que há para contar?"
"Tudo", exclamei. "Diz-me para onde vocês foram, o que é feito da tua mãe, como conseguiste escapar. Conta-me tudo."
Marjan manteve a cabeça baixa, evidentemente dividida. Era manifesto que se sentia dilacerada; temia despertar velhos demónios, mas tinha consciência de que, se havia momento em que precisava de o fazer, era aquele. Foi talvez essa evidência que lhe deu a coragem que lhe faltava porque, ao fim de alguns segundos de indecisão, lutando contra os seus instintos mais profundos, endireitou-se, encheu o peito de ar e respirou fundo para ganhar balanço.
"Depois de te terem atirado ao rio, caminhámos até chegar a Aleppo", começou por revelar numa voz quase inaudível, como se receasse as próprias palavras ou os fantasmas que a assombravam. "Pensámos que nos tínhamos salvo, mas os Turcos meteram-nos num comboio em direcção ao deserto e largaram-nos num sítio árido e quente, onde tudo era amarelo e não crescia qualquer vegetação. Nessa altura avistámos um mar de tendas de todas as cores a encher a encosta de uma colina distante."
"Como se chamava esse lugar?"
Um breve silêncio respondeu à pergunta, como se Marjan ainda tivesse medo de pronunciar o nome maldito.
"Ras-al-Ayn", acabou por sussurrar, a voz a pingar horror. "O campo da morte."
A mulher de chador voltou a calar-se; não conseguia ver-lhe o rosto, mas tornara-se evidente que precisava de renovar a coragem para ir mais longe. O mutismo, contudo, prolongou-se e percebi que dificilmente continuaria sem ajuda minha.
"Era aí que matavam as pessoas?"
Ela levou ainda alguns instantes a responder à minha pergunta, como se considerasse a melhor forma de descrever o que viu.
"Era aí que morriam as pessoas."
"Não é a mesma coisa?"
Marjan abanou a cabeça.
"As doenças e a fome eram endémicas. Cólera, disenteria, difteria, tifo... tudo isso tornou a mortalidade incrivelmente elevada. Ficámos aí uns meses, mas uma manhã os soldados apareceram sem aviso e levaram-nos em fila indiana pelas estradas fora. Caminhámos durante semanas e à medida que marchávamos iam morrendo mais e mais pessoas. A certa altura percebi que nos estavam a obrigar a andar em círculos à volta de Ras-al-Ayn com o único fito de nos matarem de fadiga e fome. Certo dia, no entanto, o percurso alterou-se. Começámos a ver braços e pernas amputados e montes e montes de cadáveres, todos eles com enxames de moscas à volta. Percebemos que a hora se aproximava."
"Era o local das execuções..."
Marjan assentiu com um gesto de cabeça. Neste ponto a sua voz tornara-se já monocórdica, quase maquinal. Percebi que se tratava de um mecanismo de defesa que construíra dentro de si para se proteger da loucura. Tinha encerrado os sentimentos num compartimento perdido atrás do coração e transformara a narrativa numa sequência de palavras anestesiadas e proferidas de forma mecânica, decerto a única maneira que encontrara de levar a história até ao fim.
"Levaram-nos para cima de uma colina. Vimos lá em baixo..." A voz de Marjan falhou neste ponto. "Oh, não consigo!"
Percebi que tinham chegado ao local da matança e que, se havia ponto em que ela precisava de ajuda para narrar os acontecimentos que testemunhara, era ali.
"Que foi que viste?"
O vulto de chador negro diante de mim baixou a cabeça e permaneceu alguns segundos em silêncio. Lutava consigo mesma para enfrentar os acontecimentos daquele dia.
"Não consigo descrever", murmurou com a voz a desfazer-se de dor. "É demasiado horrível."
"Viste-os a matar pessoas?"
Marjan balançou afirmativamente a cabeça.
"O pior eram os gritos das crianças", gemeu. "Os adultos estavam em choque, não sei se anestesiados se resignados, mas as crianças gritavam desesperadas a pedir ajuda aos pais quando eram levadas para... para..."
A voz dela voltou a quebrar-se. Devido ao chador não lhe conseguia ver o rosto, mas era evidente que chorava em silêncio. Quis abraçá-la e cheguei a dar um passo em frente, mas ela recuou e olhou de relance para trás. Percebi a mensagem. Quem quer que estivesse na furgoneta ao lado da tenda dos beduínos estava a observar-nos e a controlá-la. Teria de ter mais cuidado.
"Levaram-vos lá para baixo?"
Abanou negativamente a cabeça.
"Mandaram-nos sentar enquanto... enquanto... enfim, enquanto faziam as coisas lá em baixo. Sabíamos que íamos a seguir e estávamos paralisadas de terror. Foi nessa altura que me apercebi de um grupo de beduínos ali posicionados para escolher mulheres. Um deles veio ter comigo, deu-me um iogurte e quis levar-me. Disse-lhe que não, que preferia morrer, mas a mamã insistiu comigo que aquela era a única salvação. E era. Pus então como condição que a mamã tambem viesse. O beduíno aceitou e, com o acordo dos guardas, levou-nos dali para fora e desapareceu. De repente ouvi um barulho de cascos e senti puxarem-me e dei comigo em cima de um cavalo. Gritei pela mamã e apercebi-me de que os guardas a levavam. Tínhamos sido traídas. Vi-os arrastarem-na de volta ao sítio da... da..."
O choro de Marjan tornou-se convulsivo, um longo uivo interrompido por soluços consecutivos, a voz embargada de lágrimas, o corpo sacudido no abandono do pranto mais profundo. Percebi que ela tinha ido o mais longe que podia e que para além deste ponto seria crueldade pedir-lhe que avançasse. Nem era de resto necessário. O que Marjan tinha narrado até ali tornara fácil perceber o que já não se atrevia a descrever. Deixei-a acalmar-se e ficámos talvez dois minutos sem falar.
"Presumo", acabei por dizer, "que tenhas casado com esse beduíno..."
Ela fez que sim com a cabeça e respirou fundo, ganhando fôlego para retomar a narrativa.
"Levou-me para a caravana dele, obrigou-me a converter-me ao islão e casou comigo. Vivo com ele desde 1917 e tem-me tratado bem."
Fiz um sinal com os olhos, a indicar a furgoneta estacionada na esquina do cruzamento.
"É ele que está ali?"
"Sim", confirmou Marjan, manifestamente pouco à vontade. "E tu? Como sobreviveste?"
"Tive sorte. Os turcos não me conseguiram afogar. Saí vivo do rio e depois fui ajudado por austríacos e alemães, que arranjaram maneira de me fazer chegar a Constantinopla." Não sei explicar, mas nesse momento senti culpa e vergonha por me ter salvo com tanta facilidade. "Durante anos andei à tua procura e... nada. Tinhas desaparecido sem deixar rasto."
"E Khenarig? Onde está ela?"
"A tua irmã? Também a procurei, acredita. O problema é que nunca consegui descobrir o local onde a deixámos. É como se essa estrada nem sequer tivesse existido."
Calámo-nos os dois. Tínhamos tanto para dizer, coisas que queríamos partilhar, sentimentos que ansiávamos por expor um ao outro, mas era como se a furgoneta ali perto, o chador que a cobria e os quarenta anos que nos separavam tivessem erguido uma barreira invisível e intransponível entre nós.
Marjan soltou um suspiro longo e profundo, carregado de melancolia e resignação.
"Foi bom ver-te."
Disse-o como se se despedisse. Senti um baque no coração. Não a queria perder, não agora que a tinha encontrado. Nem pensar.
"Vem comigo."
Ela levou um momento a responder.
"Não posso."
"Porquê? O que te trava?" Desviei o olhar para a furgoneta atrás dela. "Tens medo do tipo?"
Em vez "do tipo", deveria ter dito "do teu marido", mas não fui capaz de pronunciar a palavra; era como se o insultasse e ao mesmo tempo fingisse assim que nada era definitivo na vida de Marjan, mantendo aberta a possibilidade de ela voltar para mim.
O vulto à minha frente fez uma pausa. A seguir abanou de novo a cabeça.
"Não posso."
"Não tenhas medo dele, eu protejo-te." Indiquei o jipe atrás de mim. "O meu amigo veio armado. Anda comigo, não tenhas medo. O tipo não pode fazer nada."
"Não posso, já te disse."
A voz dela foi aqui mais peremptória e deixou-me à beira do pânico. Sabia que a poderia levar, não havia beduíno nenhum no mundo que me pudesse travar, mas era imprescindível que Marjan concordasse. A firmeza com que ela falou desta última vez, contudo, deixou-me inseguro quanto à sua real vontade.
"Porquê? O que te impede?"
Marjan atirou um novo olhar de soslaio para a furgoneta, não sei se com receio dela se a procurar assegurar-se de que ela ainda a esperava. Depois voltou a encarar-me.
"Seis filhos e dois netos", declarou num tom seco, a voz despida de emoção, a render-se à realidade. "Se for contigo, deixo seis filhos e dois netos para trás. Isso está fora de questão."
Percebi nesse instante que a tinha perdido. Se fosse uma ou duas crianças, ainda se poderia considerar a questão. Mesmo sendo oito, entre adultos e crianças, não me parecia inteiramente impossível montar uma operação que os resgatasse a todos. Mas a forma como ela falara, como se a decisão estivesse tomada e fosse irreversível, mostrava que uma coisa dessas, por razões que só Marjan conhecia, não passava da mais delirante fantasia. Talvez ela achasse que os filhos não quereriam abandonar o pai ou se recusariam a mudar de vida ou outra coisa qualquer. Não sei. O facto é que Marjan não viria comigo e quanto mais depressa eu aceitasse essa realidade melhor para ambos.
"Não sei o que dizer", titubeei.
"Talvez adeus?"
Custava-me a despedida. Andei quase quarenta anos à procura dela e, depois de a encontrar, conseguiria eu contentar-me com uma conversa de uma dezena de minutos num cruzamento perdido no meio do deserto? Seria possível que tanta coisa acabasse em tão pouco? Mas, em bom rigor, o que poderíamos fazer? Eu queria levá-la comigo, ela não podia vir. A realidade impunha-se, a separação era inevitável. Não quis partir sem um abraço, um beijo, um toque, uma carícia de despedida, um gesto que nos revelasse como seres humanos que éramos, uma palavra que exprimisse o afecto que nos unia e que circunstância alguma poderia quebrar.
"Custa-me dizer-te adeus..."
Tentei adivinhar-lhe a tristeza nos olhos, mas a única coisa que via era aquela terrível grelha no chador, inexpressiva e distante, um muro de tecido a separar-me dela.
Marjan levantou o braço e acenou devagar com a palma da mão.
"Adeus, Krikor", disse. "Que Deus cuide de ti."
Virou as costas devagar e começou a caminhar de regresso à furgoneta. Um torvelinho de poeira cruzou a estrada à frente dela, como se um pião invisível para ali tivesse sido jogado; seria decerto o destino a rir-se da minha desgraçada impotência. Vi-a afastar-se e não pude deixar de admirar a coragem das mulheres, tão mais fortes que os homens quando é preciso que o sejam.
"Marjan!", chamei. "Marjan!"
Ela deteve-se e virou-se para mim.
"Sim, Krikor?"
A figura dela, uma mancha fugidia recortada a negro diante do azul do céu e do amarelo-torrado do deserto, tornava-a uma espécie de miragem. Era como se Marjan não fosse Marjan, mas uma entidade longínqua, etérea e impessoal. Tinha falado com ela e dela não vislumbrara uma linha da face, uma madeixa de cabelo, o castanho achocolatado dos olhos. Nada.
Sem lhe contemplar a alma, sabia que Marjan nunca passaria de um fantasma.
"Posso ver-te o rosto?"
Tremi quando lhe fiz o pedido, querendo e não querendo que ela respondesse afirmativamente, mas na verdade nunca me perdoaria se não o tivesse feito. Não me seria possível sair dali sem ver Marjan, captar-lhe a essência, perder-me no seu olhar para me poder reencontrar. Aquele espectro, mesmo tendo a voz dela e expressando as suas memórias e os seus sentimentos, não me bastava. Tinha de a ver para saber que a vira.
Ela pareceu compreender a minha angústia porque, depois de espreitar de novo a furgoneta que a aguardava, deitou as mãos ao chador e, com gestos lentos e precisos, retirou o capuz que a cobria.
Vi-a.
Sorriu para mim, um sorriso doce a derreter-se de melancolia trágica. Depois, e sempre com os mesmos gestos pausados e tranquilos, voltar a pôr o capuz do chador, virou-me as costas e recomeçou a caminhar de regresso ao destino que a vida lhe escolhera. E eu fiquei pregado ao chão, desamparado, a respiração suspensa, o coração a ribombar com inopinada violência, os olhos marejados de lágrimas amargas de saudade, a alma esfaqueada pela perda que sabia ser definitiva.
Só quando a furgoneta desapareceu sob a densa nuvem de poeira que os seus pneus levantaram na estrada de terra batida é que fiz meia volta e retomei o caminho de regresso ao jipe. Na mente levava cravada a ferro em brasa a cara de Marjan, não aquela que a minha memória fixara no tempo em 1916, mas esta nova, na verdade velha, gasta pelos anos e carcomida pela violência em Ras-al-Ayn e pela dureza da vida nestes desertos da Síria.
Foi precisamente nesse instante, enquanto me encaminhava para o jipe e revia na memória o novo rosto de Marjan, que tive a epifania da resposta à velha interrogação do meu pai, aquela que ele formulou no vapor matinal para Constantinopla e nos bancos da escola e que o perseguira a vida inteira em museus e galerias e antiquários e florestas até a levar enfim para o leito da morte.
O que é a beleza?
Havia muitas maneiras de responder a esta pergunta muito mais fundamental do que nos atrevemos a pensar. Poderia dizer, e não estaria necessariamente errado, que a beleza é a harmonia das coisas perante os sentidos. Ou que a beleza é uma qualidade subjectiva intuída por qualquer ser humano. Ou que a beleza é tudo o que provoca prazer.
Ver o rosto envelhecido de Marjan, todavia, abriu-me uma janela para uma resposta muito mais profunda do que tais banalidades. Não se podia dizer que, para um desconhecido que nunca a tivesse visto antes, Marjan fosse agora uma mulher bela. De modo nenhum, não! Ia a caminho dos sessenta, não passava de uma velha que vira a juventude destruída nas estradas intermináveis da Anatólia, na tenda escura onde os gendarmes a violaram repetidamente, no campo de morte de Ras-al-Ayn, nas areias deste deserto quente e inóspito que me rodeava agora, acontecimentos e lugares que a moldaram e fizeram dela o trapo que é hoje.
Para mim, contudo, Marjan continua a ser bela. Não há rugas, não há cabelos brancos nem olhar gasto que apaguem a chama que ainda vibra dentro de mim. Não há dúvida de que a amo e a amarei até morrer. Isso não deixa de me espantar. Como é tal coisa possível se da rapariga que conheci apenas resta uma carcaça velha e decadente? Como se explica que eu ainda veja beleza num rosto e num corpo que o tempo e a vida deformaram?
A realidade, a profunda realidade, é que por detrás daqueles olhos cansados e daquela face enrugada e daqueles cabelos brancos e daquele corpo entumecido destrincei a verdadeira Marjan, a moça alegre e bela que há quarenta anos me enfeitiçou nas margens verdejantes do Reno, a rapariga que a estrada um dia me roubou e que só agora me devolveu para ma roubar de novo. Amo-a porque amo a verdade que há nela e é ela que me faz ver a beleza.
O que é então a beleza?
Passaste a vida inteira, pai, à procura da resposta a esta pergunta eterna, rodeaste-te de quadros e de esculturas e de tapetes e de mansões e de florestas, procuraste-a nos pincéis de Rembrandt e nos bosques de Sintra, nos tapetes de Isfahan e na mansão da avenue d'Iena, e fui eu, eu e não tu, que a vim encontrar neste cruzamento poeirento, perdido algures numa colina árida do deserto da Síria, vergastado pela areia que o vento teimava em acicatar contra mim. Vim encontrar a resposta, imagina, por debaixo de um chador.
A beleza é a cor de que se pinta a verdade.
José Rodrigues dos Santos
O melhor da literatura para todos os gostos e idades