Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM PASSO, OUTRO PASSO / Lou Carrigan
UM PASSO, OUTRO PASSO / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

De uma das janelas da faustosa mansão de Beverly Hills, a colina onde vivem os magnatas do cinema, o mordomo viu aproximar-se o táxi que lhe tinham anunciado pelo telefone interno, desde a entrada protegida de gradis. Viu-o percorrer a alameda, entre jardins magníficos, e deter-se diante da imponente escada de mármore.

Então, muito dignamente, afastou-se da janela. De nenhum modo teria ficado bem que quem chegava o visse espiando através da vidraça, como um vulgar criado. Dirigiu-se a um espelho e contemplou-se, muito satisfeito de seu aspecto. Um aspecto formidável. Afinal de contas, não era pouca coisa ser um mordomo e parecê-lo ao primeiro golpe de vista. Ouviu partir o táxi e, quase ao mesmo tempo, o carrilhão melódico indicativo de que alguém estava à porta.

Muito teso, expressão dignamente severa, foi abrir. Fê-lo mantendo alto o queixo, dando aos olhos aquela inexpressividade que a tantos e tantos visitantes havia constrangido.

Abriu e seu olhar dignou-se descer das nuvens para pousar-se no mísero mortal que se atrevia a bater à porta de um dos milionários mais milionários de Hollywood.

E então... buuummm! Ali terminou tudo. Deixou de levantar o queixo, de mostrar-se tão esticado e altivo, de parecer o mais solene dos homens... E até quase, quase, deixou de respirar, para, no instante seguinte, sentir que sua cabeça começava a dar voltas. Até que, por fim, pôde murmurar: — Santo Deus...

— É esta a residência de Mr. Carmody? — sorriu a visitante.

Quando ela sorriu, o mordomo teve a sensação de que o céu azul tornava-se cor-de-rosa e que os passarinhos cantavam mais alegremente.

 

 

 

 

Ainda atônito, esteve contemplando-a uns segundos. E não só atônito, mas incrédulo. No mínimo, estava sonhando... Claro, devia ser isso! Porque aquela visão só podia pertencer a um ponho.

 

Ele, que tantas e tantas belíssimas estrelas do cinema tinha visto, sabia que semelhante beleza não podia ser real. Diabo, afinal de contas, até a beleza tem um limite, que muito bem conhecia. Mas é bem verdade que o homem nunca acaba de aprender, que a qualquer momento pode ver o que nunca viu... E ali estava aquela jovem de maravilhosos olhos azuis!

 

Nunca tinha visto nada assim. Nunca nenhuma vedeta cinematográfica se igualara à beldade que estava à sua frente, segurando na mão esquerda uma graciosa maletinha vermelha ornada de flores azuis...

 

— Mr. Carmody mora aqui? — insistiu ela.

 

Plof! A fantástica bolha de dourados sonhos rebentou e o mordomo enrubesceu então, apanhado em cheio no incorreto mutismo causado pela maior admiração que já havia sentido na vida.

 

— Desculpe... — quase gemeu. — Sim, sim, com efeito...

 

Mora aqui.

 

— Faça o favor de dizer-lhe que chegou a pessoa cuja visita lhe anunciaram de Nova Iorque.

 

— Imediatamente. Tenha a bondade de entrar...

 

A jovem entrou e o mordomo, ao vê-la caminhar, esteve a ponto de sofrer um colapso cardíaco. Mas viu a maleta no chão, em frente à porta, e prontamente lembrou-se de suas obrigações. Quando a apanhou, só lamentava uma coisa: não ter nascido vinte anos depois. Ah, se tivesse agora trinta ou trinta e cinco... Mas o remédio era resignar-se. De qualquer modo, se Mr. Carmody estivera procurando uma nova estrela para seus filmes, já não teria que procurar mais...

 

— Seu nome, por favor...

 

— Diga-lhe, simplesmente, que fui enviada por Charles Pitzer, de Nova Iorque.

 

— Perfeito. Com licença...

 

Deixou a belíssima criatura olhando para todos os lados, com aprovação indiferente e encaminhou-se para a porta dupla, à esquerda. Bateu, entrou... e saiu segundos depois para retornar a ela, já bastante recuperado.

 

— Queira acompanhar-me. Mr. Carmody a espera.

 

— Obrigada.

 

Foi introduzida numa fantástica sala e a porta dupla fechou-se às suas costas. Um homem alto, atlético, de cabelos cinzentos e porte garboso aproximava-se dela, deixando atrás, sentada num sofá, uma dama elegantíssima, muito bonita, mas já madura, como ele mesmo. Os olhos também cinzentos daquele cavalheiro olhavam-na de frente, como se não quisessem perder um só detalhe de sua fisionomia.

 

Parecendo um pouco desconcertado, ele estendeu-lhe a mão.

 

— Sou Wilson B. Carmody — murmurou. — Permita-me apresentar-lhe minha esposa.

 

— Muito prazer... Como está, Mrs. Carmody?

 

— Bem, obrigada — sorriu a dama do sofá. — Fez boa viagem?

 

— Excelente. Têm uma casa maravilhosa.

 

— Agradeço-lhe a gentileza. Toma alguma coisa? Um aperitivo, talvez?

 

— Mais tarde, senhora, se não se importa. Acho que antes deveríamos conversar sobre o motivo de minha presença aqui. Não está de acordo, Mr. Carmody?

 

— Sim, evidentemente. Entretanto... Disse que Charles a enviou? Refiro-me a...

 

— A Charles Pitzer, naturalmente. Com efeito, fui por ele enviada. E entendi que o senhor estaria esperando.

 

— Bom... Esperava o enviado de Charles, claro. Mas...

 

pensava que seria um homem.

 

— Oh, sinto muito... O tio Char... Mr. Pitzer disse apenas que viesse aqui e que o senhor me poria ao corrente do assunto. Só isso.

 

— E a mim disse somente que ficasse tranquilo, que enviaria a pessoa capaz de resolver todos os meus problemas. Parece que houve uma confusão, miss... miss...

 

— Brigitte Montfort.

 

— A jornalista? — exclamou Mrs. Carmody.

 

— Exato. É muito amável em me identificar, senhora.

 

— Mas, querida...! Quem não ouviu seu nome nos Estados Unidos? Ora vamos, deve saber de sua fama não só neste país, mas em todo o mundo...

 

— Claro que sei — sorriu a visitante. — Mas não devo sair alardeando isso, não acha, senhora?

 

Mrs. Carmody pôs-se a rir, enquanto seu marido parecia ficar mais sério.

 

— Também sou um grande admirador de seus artigos, miss Montfort. Mais ainda, lembro-me que já foi coroada rainha. Naquela época estive tentado a procurá-la e oferecer-lhe um contrato para vários filmes de minha produtora. Quero dizer, quando abdicou, naturalmente. Mas pareceu-me que uma ex-rainha não se dignaria a trabalhar no cinema.

 

— Compreendo... Talvez espere que eu agora aceite um papel de starlet, Mr. Carmody?

 

— Não, não... Já lhe disse que aguardava um homem...

 

— Por que motivo? Também nós mulheres sabemos resolver problemas. Às vezes, melhor que os homens.

 

— Sim, claro... Mas dependendo dos problemas. Alguns não são apropriados para mulheres.

 

Baby, a mais astuta, audaz e perigosa espiã de todos os tempos, sorriu docemente.

 

— É possível que tenha razão — admitiu. — Bem... Já que, segundo parece, minha presença não lhe vai ser útil, procurarei um hotel...

 

— De maneira nenhuma! — enrubesceu Wilson B. Carmody. — É minha convidada, miss Montfort. Oh... Receio que tenha interpretado mal minhas palavras.

 

— Mr. Carmody, eu nunca interpreto nada mal. Entendo tudo e sei dizer tudo, pois minha profissão o exige. Mr. Pitzer me disse que o senhor era um seu grande amigo pessoal, que estava num apuro e que eu viesse ajudá-lo. Aceitei porque também sou grande amiga de Mr. Pitzer. Mas se não me considera apta para o assunto, tenho muito trabalho em Nova Iorque.

 

Os Carmody trocaram um olhar. Súbito, ele tornou a enrubescer.

 

— Nem sequer lhe pedi para sentar. Por favor, miss Montfort...

 

Brigitte sentou-se numa poltrona e aprovou a atitude de Carmody que pareceu encantado com suas pernas, mas sem expressá-lo de modo deselegante. Por alguns segundos os três permaneceram em silêncio. Ela acendeu um cigarro.

 

— Entendo que Charles tem uma floricultura em Nova Iorque — disse subitamente Carmody.

 

— De fato. Faz tempo que é meu fornecedor habitual.

 

— Ah... Estou me perguntando se não será uma... mulher-policial, ou algo assim, miss Montfort.

 

— Eu? Uma mulher-policial? Por que pensa isso?

 

— Porque suponho que Charles esteja metido em coisas assim. Consultor da polícia, ou algo parecido...

 

— Não sabe exatamente?

 

— Não. Ele sempre foi muito discreto. Um tanto esquisito... inclusive quando estivemos combatendo na Europa. Não sei se sabe que ambos pertencemos à USAF na Segunda Guerra Mundial.

 

— Sim, sei alguma coisa a respeito.

 

— Um homem esquisito, caladão, teimoso... — sorriu espontaneamente. — Claro que se trata de uma opinião pessoal e amistosa.

 

— O senhor acaba de descrevê-lo... Mas, Mr. Carmody, falamos sério ou não?

 

— Bem... Talvez já tenha lido nos jornais: faz algum tempo que vêm-se sucedendo importantes roubos de joias em Los Angeles, especialmente em Beverly Hills, Hollywood, Santa Mônica... Os roubos chegam a muitos milhões de dólares.

 

— Li, sim. E então?

 

— Há três noites fomos roubados, miss Montfort.

 

— Ah.

 

— Talvez o assunto não lhe pareça muito importante. As joias que nos roubaram, de minha esposa, estão avaliadas em oitocentos mil dólares.

 

— Uma importância digna de ser tomada em conta... — deslizou Brigitte — Mas suponho que estivessem seguradas.

 

— Certamente. A companhia seguradora já está processando o pagamento. Enquanto isso, a Polícia realiza toda uma série de investigações... que, como nos casos anteriores, receamos que não conduzam a nada.

 

— Ninguém é infalível. Por que a Polícia o seria?

 

— Compreendemos isso, miss Montfort. Mas...

 

desejamos recuperar nossas joias.

 

Brigitte olhou-o perplexa, depois pareceu dedicar sua atenção ao cigarro.

 

— Queria que Mr. Pitzer lhe enviasse alguém capaz de recuperar suas joias, Mr. Carmody?

 

— Sim. Por isso, penso que ele se enganou enviando-a.

 

Ela entrecerrou as pálpebras. Enganar-se o tio Charlie? Possível, claro. Mas estranho... Principalmente em se tratando de coisa tão simples. Formava sentido que o chefe do Setor Nova Iorque da CIA enviasse nada menos que a agente Baby para recuperar umas joias? E como favor pessoal, além disso?

 

— Que tinham de particular essas joias? — perguntou.

 

Novamente os Carmody se entreolharam.

 

— Eram joias comuns, de acordo com seu preço, entende-se — disse a dama. — Todas, exceto uma. Essa é a que Wilson quer recuperar. As outras não o preocupam, nem a mim. São apenas joias, miss Montfort.

 

— Temos o mesmo ponto de vista, senhora. Bem: e essa joia especial?

 

— É a Medalha de Honra do Congresso. Como sabe, a maior condecoração que se outorga em nosso país.

 

— Realmente. Recebeu essa medalha, Mr. Carmody?

 

— Bom, aconteceu há alguns anos...

 

— Mas isso não lhe tira a importância — sorriu Brigitte. — Fica bem ser modesto, mas sem exagero. Se lhe deram essa medalha, muito deve ter feito pela pátria.

 

— Fiz o que pude... — quase ruborizou-se Carmody. — Como outros muitos. Charles entre eles.

 

Baby ficou estupefata.

 

— Mr. Pitzer tem a medalha de Honra do Congresso? — exclamou.

 

— Naturalmente.

 

— Nunca me falou disso!

 

— Não é coisa para se sair dizendo por aí, acho. Além disso, já sabemos como é reservado...

 

— De fato... Mas devia ter dito a mim, alguma vez! Saberei me vingar... Bom, Mr. Carmody, segundo entendo, durante a Segunda Guerra Mundial, os dois foram heróis.

 

— Não devemos exagerar — enrubesceu novamente ele.

 

— Exagerar? Ora vamos, essa medalha não se dá a qualquer um. Por Deus, é muito modesto! Afinal, deve-se aceitar os elogios quando merecidos com risco de vida e em benefício da nação.

 

— Está vendo, Wilson? — exclamou Mrs. Carmody. — Sempre lhe disse que devia exibir mais essa medalha!

 

— Está bem, mulher, está bem... Você sabe como eu sou. Não gosto de exibi-la a qualquer pretexto, mas é minha. Como disse miss Montfort, ganhei-a com risco de minha vida em repetidas ocasiões. E eu a quero. Pouco me importam essas malditas joias, nem dinheiro da companhia de seguros. Posso comprar joias melhores e em maior quantidade. Mas nunca mais ninguém me dará outra Medalha de Honra do Congresso. Não sei se você pode entender isso, Wanda.

 

Mrs. Carmody parecia não saber o que dizer, mas Brigitte soube: — Ambas o entendemos muito bem, Mr. Carmody. Quer chamar para que me levem a meus aposentos?

 

Ele olhou-a vivamente.

 

— Vai ficar, então?

 

— Alguém tem que recuperar a sua medalha, não é?

 

— Espera mesmo conseguir isso?

 

— Mr. Pitzer acha que sim e eu não desejaria deixá-lo mal.

 

Extravagâncias do tio Charlie

 

Wilson B. Carmody ficou uns segundos olhando fixamente aqueles admiráveis olhos azuis. Súbito, dirigiu-se ao pesado cordão de seda, puxou-o e, quase ato continuo, a dupla porta se abriu, aparecendo o mordomo.

 

— Às ordens.

 

— Acompanhe miss Montfort a seus aposentos. Phil. Dos que dão para o jardim. Vai ficar conosco por tempo indeterminado... E advirta a criadagem que qualquer coisa que ela deseje, seja o que for, deve ser-lhe proporcionada. Qualquer coisa, Phil. Entendido?

 

— Perfeitamente, Mr. Carmody.

 

— Almoçamos à uma da tarde, miss Montfort, se essa hora lhe convém.

 

— Todas as horas me convêm, Mr. Carmody. Até logo.

 

O mordomo afastou-se para o lado, dando-lhe passagem.

 

Pegou a maleta e, pouco depois, depositava-a nos aposentos destinados a Brigitte, no primeiro andar. Abriu as cortinas, enquanto ela relanceava a vista pelo ambiente onde viveria “por tempo indeterminado”. Tudo era magnífico, em tons rosa, dos tapetes aos móveis. A categoria e o luxo daquela mansão eram surpreendentes. Havia um terraço que dava para o jardim, no qual via-se uma piscina de forma ovalada. Mais além, duas quadras de tênis...

 

— Deseja alguma coisa, miss Montfort?

 

Virou-se, sorrindo.

 

— Por ora não, Phil. Obrigada. Espero não incomodar muito.

 

— Será um prazer atendê-la.

 

— Você é muito amável, Phil. Pode se retirar.

 

— Sempre às suas ordens...

 

O mordomo retirou-se e ela ficou apreciando os belos jardins. Dois minutos depois, tornou a entrar, sorrindo à ideia de que ali pudessem ter colocado microfones. Uma ideia engraçada. Naturalmente, aquela ia ser uma das mais inofensivas aventuras de sua vida.

 

Estava colocando seus vestidos no armário, quando ouviu a discretíssima batida na porta.

 

— Quem é?

 

— Posso entrar, miss Montfort?

 

Ela mesma abriu, com um sorriso cortês nos lábios.

 

— Certamente, Mrs. Carmody: como se estivesse em sua casa.

 

A senhora entrou, rindo, e instalou-se numa poltrona da pequena sala.

 

— Já observei que possui um delicioso senso de humor, querida. Agradam-lhe seus aposentos? Se precisar de alguma coisa...

 

— Tudo está muito bem, senhora.

 

— Estimo saber. Oh, talvez a esteja interrompendo...

 

Desejará tomar um banho, sem dúvida...

 

— Sempre consigo ter tempo para tudo... Queria dizer-me alguma coisa?

 

A outra olhou-a como sobressaltada.

 

— Eu? — perguntou.

 

— Sim, a senhora.

 

— Bem... Oh, você é tão perspicaz! Posso ajudá-la em algo?

 

— Estava colocando minhas coisas no armário, Mrs.

 

Carmody — sorriu Brigitte. — Pode ajudar-me, se quiser.

 

— Oh, sim... Com muito prazer.

 

Passaram ao quarto e Brigitte continuou a guardar seus vestidos. Mrs. Carmody, que os ia passando cuidadosamente, comentou: — Vejo que não trouxe muita bagagem...

 

— Pareceu-me que seria suficiente.

 

— Mas talvez gostasse de ir a algumas festas, não? Esta mesma tarde poderíamos fazer um pouco de shopping no Wilshire Boulevard, se estiver de acordo. Naturalmente, todos os gastos que realize durante sua permanência aqui...

 

— ruborizou-se ao perceber o olhar frio de Brigitte. — Desculpe. Eu... esquecia que você é uma convidada que veio aqui para fazer um favor especial a Charles e a meu marido...

 

— Não tem importância, senhora. E embora pagando eu, gostarei muito de ir fazer compras no Wilshire Boulevard.

 

— Que linda maletinha... Guarda nela suas joias?

 

— Não — Brigitte abriu a famosa maleta vermelha com flores azuis. — Aqui só trago meu... toucador portátil.

 

— Oh, é um encanto... ‘‘Angel Face” ou “Hardin”?

 

— “Dubois”, de Paris. A maquilagem francesa é especialmente de meu agrado.

 

— Sim, compreendo... Ah, estas devem ser suas joias!

 

Brigitte abriu o estojo de veludo vermelho.

 

— Agora sim... — sorriu. — Pouca coisa, como vê. Não gosto de andar muito... carregada.

 

— Já estou compreendendo que seu gosto é refinado em tudo. Por outro lado, sendo tão jovem e bonita, com estas poucas joias terá mais que o suficiente para despertar a admiração de todos... Aliás, mesmo sem joia nenhuma.

 

— É muito amável, senhora. Bem... Parece que tudo está em ordem. Detesto a desarrumação. Que queria pedir-me?

 

— Espero que tenha desculpado o gênio um tanto...

 

impetuoso de Wilson. Embora já tenha mais de cinquenta anos, ele...

 

— Mrs. Carmody, a índole de seu marido me parece não só agradável, mas perfeita para um homem que há vinte e cinco anos conseguiu a Medalha de Honra do Congresso.

 

Não precisa desculpá-lo diante de mim, nem veio aqui para isso. Por que não falamos claro?

 

— Está bem... — suspirou Wanda Carmody. — Vim dizer-lhe que vai encontrar a medalha de meu marido.

 

Brigitte olhou-a atenta.

 

— Não sei se a compreendo... Ainda não comecei a procurá-la.

 

— Aconteça o que acontecer, você a encontrará, Brigitte.

 

— Não estou tão certa disso. Como pode a senhora estar?

 

— Bem, há quase trinta anos que Wilson e eu nos casamos, e, embora possa parecer uma tolice, eu... ainda o amo. Não, não devia ter dito “ainda”. Amo-o mais do que nunca, Brigitte.

 

— Não me parece nenhuma tolice — sorriu esta.

 

— Obrigada. Por isso, você vai encontrar a medalha... Eu explico — ergueu uma das mãos: — meu joalheiro é um artista, acredite. Estou certa de que realizaria um trabalho perfeito se eu lhe pedisse... Vai me compreendendo?

 

— Agora, sim. Quer encarregá-lo de fazer uma nova medalha e que, no momento oportuno, eu finja que a recuperei.

 

— Justamente.

 

O olhar de Brigitte se abrandou.

 

— É uma solução que tomaremos em conta, Mrs.

 

Carmody. Mas lamento ficar sabendo que seu esposo é tolo.

 

— Oh! Quer dizer que... que ele descobriria...?

 

— Temo que sim.

 

— Meu Deus... Ele está tão triste e tão zangado ao mesmo tempo... Ainda tem um revólver, que não sei de onde tirou... Receio que... que cometa algum ato desatinado...

 

Você não pode imaginar o que essa medalha significa para ele...

 

Brigitte pensou na medalha que tempos atrás lhe haviam entregado, enviada pelo próprio Presidente dos Estados Unidos. E sorriu mais uma vez.

 

— Procurarei compreender isso, senhora. Sabe o que mais me encanta neste quarto?

 

— Não... — Wanda Carmody ficou espantada. — Que é?

 

— Esse pequeno vaso de cristal. Espero que seja da Boêmia.

 

— É, sem dúvida. Se lhe agrada, pode ficar com ele.

 

— Assim farei, abusando de sua generosidade. Mas será quando lhe entregar a medalha de seu esposo.

 

— Eis uma troca em que eu sairei ganhando — murmurou Mrs. Carmody.

 

— Ambas ganharemos. Bem, creio que esta parte do assunto está esclarecida entre nós. Mmm... Poderiam conseguir-me um carro?

 

— Deixarei a seu dispor um dos meus.

 

— Não, não. Um carro que ninguém possa identificar como pertencente a esta casa. Um carro alugado seria melhor.

 

— Nosso chofer se encarregará disso. Terá o carro aqui depois da sesta.

 

— Deverá ser antes, senhora. E hoje não teremos sesta. Precisamos conversar muito, os três, depois do almoço, a fim de que eu fique ao corrente de tudo o que se relaciona com esses roubos.

 

— Como queira. Será melhor assim, pois poderemos ir fazer mais cedo o nosso shopping.

 

— Tampouco hoje haverá compras, senhora. Talvez amanhã. Necessito todo um dia para situar-me, para ambientar-me neste assunto — sorriu como divertida. — Asseguro-lhe que os roubos de joias não são exatamente minha especialidade.

 

— Mas espera recuperar a medalha de Wilson?

 

— Sem dúvida alguma.

 

— Bem. Faremos as coisas como você quiser — levantou-se, dirigindo-se para a saída do quarto. — Acho-a uma jovem um pouco estranha, querida.

 

— Isso é verdade — quase riu Brigitte.

 

Mrs. Carmody saiu daqueles aposentos e, pouco depois, a agente Baby metia-se na banheira, disposta a livrar-se da poeira da viagem, como se costuma dizer.

 

— Coisas do tio Charlie... — pensou, enquanto ensaboava seu esplêndido corpo. — Enviar a agente Baby para resolver um assunto tão inofensivo e simpático...

 

Bancando a boba...

 

Então, ainda não apareceu nenhuma das joias roubadas?

 

Carmody moveu negativamente a cabeça.

 

— Não. A Polícia mobilizou seus alcaguetes desta classe de assunto, pois podiam ter visto alguma dessas joias, ainda que desmontada, mas nenhum resultado foi obtido. Desde que começaram os roubos, foram detidos os... especialistas, interrogadas centenas de suspeitos. Nada. Parece que a pessoa ou pessoas responsáveis pelos roubos têm muita paciência e esperam para vender as joias quando lhes pareça prudente.

 

— Compreendo. A Polícia pensa que todos os roubos são obra da mesma pessoa ou do mesmo grupo?

 

— Sem dúvida.

 

— Por quê?

 

— Suponho que porque todos eles têm características idênticas.

 

Brigitte acendeu um cigarro, enquanto olhava com agrado a seu redor. Estavam no terraço, tomando café e licores, e o ambiente não podia ser mais aprazível. As grandes vidraças que fechavam o terraço circular anexo à sala de refeições estavam tão limpas, que pareciam não existir.

 

— Que características?

 

— Bem, normalmente, todos nós que residimos em Beverly Hills temos bons sistemas de alarma em casa. Isso foi sempre assim, mas todos extremamos as precauções depois do horrendo massacre de Sharon Tate e seus amigos...

 

Pois apesar desses formidáveis sistemas de alarma, o ladrão ou ladrões sempre conseguiram entrar, abrir o cofre e levar as joias.

 

— Compreendo. Dinheiro não?

 

— Também, claro. Dinheiro e joias.

 

— Valores realizáveis e coisas assim não levam nunca?

 

— Nunca.

 

— E como entram nas casas? A Polícia averiguou isso?

 

— Sim, mas sem que de nada lhe servisse. A ideia é que se o ladrão tivesse um sistema fixo, seria mais fácil montar o sistema de segurança. Mas não. Entra por qualquer parte: uma janela, a porta principal, o telhado...

 

— E nunca soa o alarma?

 

— Nunca.

 

— Tampouco esse ladrão jamais foi visto por ninguém?

 

— Tampouco.

 

— Então, devo entender que só rouba em casas em que ninguém está.

 

— Assim é. Bom, entende-se que não estão os donos da casa, mas sim a criadagem.

 

— E a criadagem nunca viu o ladrão, não se inteirou de nada, não pôde dar nenhuma pista...?

 

— Não. O ladrão entra na casa, rouba o que quer, vai embora e ninguém toma conhecimento de nada até que o dono abre o cofre.

 

— Puxa... É preciso ser um gato para conseguir isso, não lhe parece? Diga-me: por que não soa o sistema de alarma?

 

— Ele o desliga.

 

— Tão simples assim?

 

— Tão simples assim.

 

Brigitte ficou pensativa uns segundos. Por fim murmurou: — Um gato muito ágil e sabido... Suponho que aos roubados e, sobretudo à Polícia, já ocorreu que esse ladrão tem que ser um perfeito conhecedor das mansões onde rouba e que, talvez, esteja inclusive ao corrente de seus sistemas de alarma. Também deve saber onde estão os cofres, quando não estão os donos e os criados se retiraram para descansar...

 

Já lhes ocorreu isso, Mr. Carmody?

 

— Claro.

 

— E, ainda assim ninguém pôde suspeitar um pouco que fosse de ninguém?

 

— Não. Como é natural, a Polícia sempre diz que está na pista, mas... já não acreditamos. Que pista podem ter? Esse ladrão, esse gato, como diz, nunca deixa marcas de nenhuma espécie. É como se ninguém tivesse vindo. Sim, creio que encontrou-lhe o nome adequado: gato. Realmente, não sei de outro animal tão sigiloso.

 

— Eu sei: uma pantera. São como da mesma família... Só que a pantera é mais perigosa. Vejamos: estas são as listas que lhe pedi... Muito bem. As marcadas com uma cruz são as mansões que receberam a visita do ladrão. As marcadas com um círculo são as que ainda não tiveram essa honra.

 

Nenhuma foi omitida?

 

— Talvez sim. Há muitas mansões nas colinas.

 

Continuarei pensando e lhe proporcionarei outras listas se recordar mais algumas.

 

— Muito bem. Aqui nesta casa, por onde exatamente entrou o ladrão?

 

— Pelo telhado.

 

— Assombroso... E admirável. Não é fácil chegar ao telhado de uma casa como esta, vindo do jardim. Irei dar uma olhadela. Também ao seu cofre, se não faz objeção.

 

— Vou lhe mostrar onde está...

 

— Não se incomode. Eu o encontrarei... lamento tê-los privado de sua sesta — sorriu. — Mas assim estão despertos para receber a visita.

 

— Que visita? — surpreendeu-se Mrs. Carmody.

 

— A que está chegando num carro. Até já.

 

Brigitte afastou-se do casal, que ficou se olhando perplexo. Mas, com efeito, um carro cinza-pérola, imponente, aparecia na alameda, aproximando-se da casa.

 

— Essa jovem deve ser adivinha — murmurou Carmody.

 

— Naturalmente ouviu o carro.

 

— Ouviu? Ora vamos, querida... Isso é impossível!

 

— Talvez não o seja para ela. Bem... Creio que é Sheila quem chega. Nós a entreteremos, enquanto Brigitte inspeciona... o que queira.

 

Brigitte voltou ao salão meia hora mais tarde, sorridente e tranquila como se não tivesse escalado um telhado e aberto um cofre dos mais difíceis. Seu olhar foi primeiro à enjoalhada dama de idade madura que, tortamente, fazia esforços máximos para parecer mais jovem do que era.

 

 

Esforços que podiam ter sentido se reconsiderasse o elegante, atlético e bonito rapaz que tinha a seu lado no sofá, segurando-lhe a mão. Ao vê-la entrar, o rapaz levantou-se rapidamente, soltando a mão da dama, que lhe dirigiu um olhar torvo.

 

— Vou sair, Mr. Carmody — disse Baby. — E é muito possível que não esteja aqui à hora do jantar.

 

— Oh, bem... — Carmody tinha-se levantado, naturalmente. — Miss Montfort, permita-me apresentar-lhe miss O’Hara... Sheila O’Hara. Estou certo de que a terá visto em um de seus numerosos filmes.

 

— Realmente... — Brigitte pestanejou. — E fui uma grande admiradora sua, miss O’Hara.

 

— Já não é? — perguntou esta.

 

— Oh... A verdade é que faz tempo que não vou ao cinema. Temo que não esteja ao corrente das últimas produções.

 

— Vejo que é muito discreta — quase riu Sheila O’Hara.

 

— A verdade é que há anos não faço nenhum filme. O tempo não passa em vão... Agora sou parte integrante da produtora de Wilson. Somos algo assim como sócios. E creio que vou aborrecer-me com ele... — dirigiu-se a Carmody. — Por que não me avisou que tinha encontrado uma nova estrela de tanto... esplendor, querido?

 

Brigitte riu, divertida.

 

— Quanta amabilidade, miss O’Hara! Mas está cometendo um engano: não sou uma jovem que quer ser estrela, apenas uma jornalista que está aqui disposta a trabalhar. Coisas de meu chefe: teve a ideia de publicar uma série de reportagens sobre os milionários do cinema e enviou-me a Mr. Carmody, que gentilmente se prontificou a ajudar-me.

 

— Ah, sim! — exclamou Sheila. — Mas, querida, você está perdendo seu tempo com o jornalismo! Estou certa de que Wilson a transformaria na estrela mais famosa do mundo em pouco tempo... Não é verdade, Wilson?

 

— Sem dúvida — sorriu Carmody. — Mas miss Montfort não parece ter nenhuma vontade de ser estrela. Oh, este é Dino Moranti, um novo ator que dará muito o que falar: tem um grande futuro no cinema.

 

— Graças a mim — disse rapidamente Sheila.

 

Dino Moranti enrubesceu, enquanto estendia a mão a Brigitte.

 

— Muito prazer — murmurou.

 

— Igualmente — Brigitte olhou-o com ironia. — Bem, até outra vez, miss O’Hara...

 

— Por que tanta pressa? — protestou a madura atriz — Sente-se um pouco conosco: assim Dino poderá desfrutar... visualmente sua beleza. Quer um cigarro?

 

Brigitte olhou de relance o mortificado Moranti, cuja expressão não podia ser mais constrangida.

 

— Não, obrigada. Preciso ir.

 

— Mas, querida, estou lhe oferecendo um cigarro de marijuana! Acaso não gosta?

 

— Receio que não, miss O’Hara.

 

Esta olhou-a com irritação e acendeu um cigarro, após ter oferecido aos presentes, que recusaram com a cabeça. Seus olhos ainda belos tornaram a cravar-se em Brigitte.

 

— Parece-lhe imoral fumar marijuana! — perguntou.

 

— Em absoluto. O que parece é pouco saudável. É muito menos prejudicial fumar um cigarro comum, parece-me.

 

— Ah... E que me diz do câncer?

 

— Não sei. Não o conheço.

 

Dino Moranti riu ouvindo a resposta da linda jovem, mas seu riso foi bruscamente cortado pelo olhar frio de Sheila O’Hara, que murmurou: — Você é muito espirituosa Espero que venha à minha festa amanhã à noite: fará um grande sucesso entre meus convidados.

 

— Irei com prazer... se dispuser de tempo. Encantada por conhecê-la, miss O’Hara. Mr. Moranti... Até logo.

 

— Que grande personalidade tem essa garota! — exclamou Sheila, quando Brigitte saiu. — E é um bocado bonita, não acha, Dino?

 

— Acho que nunca se poderia encontrar outra mais bela.

 

— Sim? Pois esqueça-a, querido, em seu próprio benefício... Ou voltará a ser um simples eletricista do estúdio. Não sei se me explico bem.

 

— Perfeitamente bem — empalideceu Dino Moranti.

 

— Ótimo. Então, esqueçamos miss Montfort, pegue minha mão e continuemos preparando a festa de amanhã...

 

A perspectiva de uma festa na noite seguinte parecia formidável a Brigitte. Se havia festa, haveria convidados. Se havia convidados, haveria casas cujos cofres poderiam ser saqueados. Muitas casas. Muitos cofres. Demasiados para que pudesse ser tomada alguma medida. Certamente, os convidados para a festa receariam ser roubados aquela noite e, por conseguinte, teriam adotado as maiores precauções... que, afinal, nunca eram suficientes para impedir que o ladrão de joias atuasse.

 

Um astuto e agilíssimo ladrão, capaz de penetrar nos lugares mais difíceis abrir os mais complicados cofres. Ela abrira o dos Carmody, após encontrá-lo sem grande dificuldade, e passara a admirar mais ainda aquele ladrão, pois não fora exatamente fácil, e isso tomando em conta sua qualidade de espiã treinadíssima, capaz de arrombar não importa que fechadura. Tratava-se de um profissional, sem dúvida. Um competentíssimo profissional... Ou vários? Uma quadrilha de ladrões de joias? Por que não?

 

Suspirou, tomou as listas que Carmody lhe facilitara e marcou outro dos endereços. Era a oitava mansão que vigiava aquela tarde e continuava com a sensação desagradável de que perdia seu tempo examinando de longe, de fora, as mansões de Beverly Hills. Acaso tinha realmente a absurda esperança de, vendo-as, poder adivinhar qual seria a mais propícia, a escolhida pelo ladrão para o roubo seguinte? Todas aquelas que havia visto ofereciam idênticas dificuldades quanto a escalar o telhado ou desligar o alarma...

 

— É absurdo! — resmungou. — Estou bancando a boba.

 

Mas por alguma coisa devo começar...

 

Havia outra coisa, além disso: se visse as mansões antes do roubo, talvez pudesse encontrar algo interessante depois.

 

Seu olhar era pouco menos que fotográfico; sua memória a respeito de detalhes, simplesmente fabulosa. Sim. Depois do roubo talvez pudesse tirar conclusões que a ninguém ocorreriam.

 

Tornou a suspirar, deixou as listas no assento contíguo, empunhou o volante e pôs o carro em marcha, lidando suavemente pela ampla avenida. Ainda havia luz bastante para permitir-lhe examinar mais uma ou duas mansões. E na manhã seguinte, salvo se lhe ocorresse alguma ideia melhor, faria o mesmo. Na verdade, a única coisa que a alegrava um pouco era a perspectiva da festa de Sheila. Talvez no dia imediato pudesse trabalhar a sério, se fosse cometido algum roubo.

 

Por três vezes, seu olhar tinha subido rapidamente ao espelho retrovisor. Por fim, fixou-se neste. Contraiu as sobrancelhas e um sorriso apareceu em seus lábios.

 

Divertido. Muito divertido. Estava sendo seguida. Ou não?

 

Dobrou a primeira esquina, para a direita, enfiando por outra avenida onde, segundo a lista de Carmody, havia uma mansão que ainda não tinha sido assaltada. Passou por ela, rodeou-a, voltou à mesma avenida de antas, virou para a esquerda, depois tornou a voltar... e durante todo o percurso o escuro carro Ford, grandalhão, velho e sujo, esteve atrás dela, sempre à mesma distância.

 

Fantástico... Acelerou a marcha e o outro carro fez o mesmo. Não podia ver quem guiava, devido a um reflexo no para-brisa. Tornou a acelerar. E o outro também...

 

Finalmente, havendo já anoitecido, decidiu dar por terminada a brincadeira. Quer dizer, dar uma lição a quem durante aquele tempo a estivera seguindo de modo tão descarado e torpe. Dirigiu-se para o Hancock Park, deteve o carro muito perto, numa zonal discreta, após uma manobra que devia ter desorientado um pouco seu perseguidor, e saiu pela porta da direita, inclinada, levando as listas feitas por Carmody. Segundos depois, simplesmente, desaparecia entre os arbustos.

 

E dois minutos mais tarde, um homem alto, atlético, de longos cabelos escuros, chegava muito cautelosamente junto ao carro abandonado. À luz da avenida e do parque viam-se suas feições corretas, viris, um tanto crispadas numa expressão de raiva. Um bonito exemplar masculino, de ombros larguíssimos, vestindo uma camisa de malha cor de café e blue jeans. Esteve uns segundos olhando o interior do carro vazio, antes de decidir-se a entrar. Mas um simples golpe de vista pareceu convencê-lo de que não encontraria ali nada interessante. Viu o emblema da empresa alugadora e deu um resmungo. Por fim, sacou uma velha caderneta, anotou nome e endereço da empresa, a licença do carro e saiu deste.

 

Pouco depois se sentava ao volante do seu, parado uns cem metros mais além. Acendeu um cigarro, pôs o motor em marcha e afastou-se, cenho ainda carregado. Quase decidiu-se a ir à empresa que alugara aquele carro, mas uma ideia o deteve: e se o estivessem esperando por lá? Embora não parecesse provável, já que se tivessem querido atacá-lo poderiam tê-lo feito no parque... De qualquer modo, no carro alugado tinha visto apenas uma mulher, sendo muito provável que ela se tivesse atrevido a enfrentá-lo e, naquele momento, estivesse pedindo auxílio a alguém...

 

Decididamente, o melhor era regressar a seu domicílio e pensar no que convinha fazer.

 

E sempre seria menos perigoso pedir por telefone os dados que lhe interessavam que ir pessoalmente à empresa.

 

Uma hora mais tarde parava diante de um bangalô em frente da praia, apagava todas as luzes, descia e dirigia-se diretamente para a casa. Abriu a porta, acendeu a luz, entrou e foi ao telefone. Apanhou uma das listas que havia embaixo, na velha estante, folheando-a até encontrar o número da empresa em questão. Fechou a lista e começou a discar...

 

— Não se dê a esse trabalho — disse alguém atrás dele: — eu posso responder às suas perguntas. Se quiser fazê-lo, claro.

 

O suficiente para uma noite

 

O homem ficou petrificado diante do telefone, ainda com o dedo índex num dos orifícios do disco. Ouviu-se então só o rumor do mar, entrando pela janela aberta do pequeno bangalô modesto, desarrumado... A morada típica de um homem descuidado e que, naturalmente, não dispõe de grandes recursos. Um tugúrio de solteiro a quem pouco importam os detalhes agradáveis. O que mais se destacava ali, surpreendentemente, eram dezenas de fotografias do ocupante do bangalô, em trajos muito mais elegantes, acompanhado de belíssimas garotas. Numa delas aparecia vertido de cowboy, em outra de oficial de Marinha, em outra, paisana, em outras jogando tênis ou ao volante de um bonito carro esporte...

 

— Pode virar-se — disse aquela doce voz feminina.

 

Quando ele se virou, recebendo em cheio a luz, seu rosto atraente e viril destacou-se nitidamente. Tinha queixo forte, boca firme e olhos acinzentados, inteligentes. Uma espécie de magnífico Tarzan moderno, com seus longos cabelos e largos ombros. Ao ver a mulher seu rosto teve uma crispação de surpresa, e raiva ao mesmo tempo. Depois, seu olhar baixou para a pequena pistola que a encantadora criatura empunhava com a mão direita. Finalmente fixou os mais belos olhos azuis que já tinha visto.

 

— De acordo, irmã — resmungou: — atire. Eu perdi.

 

— Sente-se... — sorriu Brigitte. — E conversemos. Creio que poderia começar por dizer-me quem é e por que esteve seguindo-me.

 

— Menos conversa, boneca. Nós dois sabemos muito bem qual é a jogada. Embora eu ignorasse que ela dispunha de ajuda feminina.

 

— Ela... quem?

 

— A gata ladra.

 

— A...? Oh, creio que entendo, ótimo: de modo que coincidimos nesse ponto? Claro... Uma gatinha. Uma astuta, silenciosa e cobiçosa gatinha. Mas receio que haja alguma confusão em nossas respectivas posições. Quem é você?

 

— Ora vamos...

 

— Quem é você?

 

— Alan Nash — disse ele, com certa irritação, indicando as fotos que os rodeavam. — E não me diga que já não o sabia.

 

— Não se trata do que eu saiba, mas do que saiba você.

 

Por que me esteve seguindo?

 

— Está querendo brincar comigo? Olhe, o que deve ser explicado é como chegou até aqui. O resto está dito.

 

— Não entendo nada de nada. Mas serei... amável com você, explicando-lhe algo que é óbvio, a fim de que explique outras coisas que para mim não são óbvias. Vejamos... Dei-me conta de que você me seguia, saí do carro depois de deixá-lo junto ao parque e meti-me na parte traseira do seu.

 

Você mesmo me trouxe até aqui. Deixei-o entrar, procurei a porta da cozinha e cá estou. Agora, vejamos como retribui minha gentileza: por que me seguia? Acha que tenho algo a ver com os roubos de joias? É isso?

 

— Ficou esperta de repente, hem?

 

— Sempre o fui. Sente-se, Nash. A conversa será longa, porque...

 

Aos ouvidos de Baby chegou, fraquíssimo, o som de uma freada. Nash também ouviu, pois empalideceu. Passou a língua pelos lábios, olhando sério para ela.

 

— Muito bem... — sussurrou. — Aí vêm seus amigos, boneca. Você foi muito viva.

 

Ela, com a pistolinha, indicou uma das portas.

 

— Entre aí, Nash. Vamos...

 

Nash tinha começado a erguer-se, mas, súbito, sua mão direita, que ficara sobre a almofada que havia na poltrona, moveu-se velozmente, com força. A almofada voou em direção a Brigitte, que simplesmente fez uma cara aborrecida. Parou a almofada com a mão esquerda, sem se mover sequer do lugar que ocupava, enquanto a pistolinha seguia Nash, que, aparentemente convencido do bom resultado de sua artimanha, corria para a janela aberta.

 

— Pare! — ordenou ela com voz contida.

 

Mas Alan Nash, evidentemente, não tencionava deixar-se matar sem resistência. Enquanto corria para a janela, e ainda quando estava no ar descrevendo um fantástico salto para o exterior, Brigitte podia ter-lhe metido nada menos que três balas no corpo, mas algo lhe dizia que não o fizesse: o senso comum. Se o havia entendido bem, não era ele quem merecia as balas de sua pistolinha...

 

Fora, ouviu o ranger da areia quando ele caiu sobre ela.

 

Depois suas pisadas, afastando-se a toda a pressa... Ia ser muito difícil alcançar um atleta como Nash. Além disso, assim que deixou do ouvir suas pisadas, começou a ouvir outras, aproximando-se da casa. Não eram exatamente sigilosas, claro...

 

— Você vai por trás — disse um dos homens. — Eu entrarei pela frente, com maus modos... e quando ele sair correndo pelos fundos, dispare. Para matar. Já bisbilhotou demais.

 

— Está bem. Deve nos ter ouvido, de modo que sairá por trás quando ouvir rumor na frente... Você teve uma boa ideia, Pien. Assuste-o bem.

 

Afastou-se, sorrindo cruelmente, para rodear o pequeno bangalô. Ao passar relativamente perto da luz, seu rosto oriental tomou-se visível por uma fração de segundo. Como o de Pien, que subiu ao pórtico, revólver na mão. Certificou-se de que o silenciador estava bem ajustado, depois bateu na porta com a culatra, rudemente.

 

— Nash! Sei que você está aí! Saia!

 

Dito isto, disparou duas vezes contra a fechadura.

 

Empurrou a porta, pensando que Nash já devia ter fugido pela parte de trás, para cair crivado de balas por seu companheiro... Mas seu companheiro Fuan apareceu segundos depois, arma na mão, testa franzida.

 

— Não saiu — disse, falando agora na língua de ambos.

 

— Então ainda está dentro. Olharei o quarto e você o banheiro. Precisamos acabar logo.

 

Cada um foi para a porta designada. Fuan entrou em primeiro, revólver na frente. Um sorriso seco apareceu em seus lábios ao ver contra a cortina do chuveiro, embora não se ouvisse rumor de água. Mau lugar para um homenzarrão como Nash se esconder... Levantou a arma e atirou três vezes.

 

A cortina de plástico agitou-se e, atrás, as balas partiram alguns ladrilhos... enquanto por diante do rosto de Fuan passava um fino fio metálico, que se incrustou em sua garganta. Só o princípio de um gemido pôde sair de sua boca, pois a pessoa que estava atrás dele sabia manejar aquele arame de um modo perfeito. Já o fizera muitas, muitíssimas vezes.

 

Teve que soltar o revólver, por simples instinto de conservação. Levou as mãos à garganta, em busca do arame.

 

Mas este era demasiado fino e de tal modo cravara-se em sua carne que era impossível arrancá-lo. Além disso, a força da bonita jovem que pôde ver pelo espelho, ao girar, era extraordinária. Com os olhos saindo das órbitas, ele estava morrendo tão silenciosamente que com toda a clareza puderam-se ouvir, fora, as pisadas de seu companheiro Pien.

 

Pôde-se também ouvir sua voz, sem dúvida esclarecendo que não encontrara ninguém no quarto. Depois, quando Fuan já estava morto, soaram os passos de seu companheiro, aproximando-se.

 

Rapidamente, Baby deixou o cadáver no chão, ainda com o arame incrustado na garganta. Sacou a pistolinha, agora que não precisava se preocupar pelo ruído levíssimo que fizesse, e colocou-se junto à porta.

 

Pien entrava então, falando em sua língua... Deteve-se em seco ao ver Fuan no chão, relanceou a vista ao redor... e recebeu a coronhada exatamente acima do polegar, sentindo tanta dor que deixou cair sua arma. Efetuou um movimento de agressão contra a mulher, que deu um passo atrás, movendo negativamente a cabeça.

 

— Recue — disse ela.

 

Pien apertou seus olhos orientais, chispeantes de raiva.

 

Mas soube captar bem a frieza daqueles olhos azuis que pareciam cravar-se nele, como pomas de gelo. Começou a recuar, saiu do banheiro caminhando de costas e, justamente quando Brigitte saía, saltou sobre ela, com tanta rapidez que, quando o tiro partiu da pistolinha, esta já havia ficado por trás de seu corpo, de modo que a bala foi cravar-se numa parede... enquanto ele, grunhindo, abraçava a inimiga e derrubava-a, ficando por cima. Brigitte moveu o braço, disposta a colocar a pistola no ventre do oriental e comprimir o gatilho, mas, evidentemente, Pien era um homem temível, pois pareceu adivinhar sua intenção e uma de suas mãos aferrou-lhe o pulso, começando a batê-lo contra o chão, até que a arma saltou...

 

Resmungando em sua língua, quis então agarrar com as duas mãos a garganta de Baby, mas justamente então a outra mão desta subia para a sua... O canto daquela mão golpeou-o, como se fosse um machado, em plena glote. Ele gemeu roucamente, ergueu a mão direita, crispada na posição de golpe de caratê, deixando-a cair sobre a testa de Brigitte.

 

Soltou um grito terrível quando sua mão, em vez de golpear a testa da inimiga, bateu contra o solo, pois ela afastara a cabeça. E ainda estava gemendo de dor quando Brigitte, ao compreender que naquela posição não poderia aplicar golpes eficientes, cravou-lhe os dedos justamente no lugar escolhido: o músculo esternoclidomastoideo.

 

Pien lançou um berro espantoso e retorceu-se como se dentro dele acabasse de explodir uma carga de dinamite. Seu berro ainda estava no ar, fazendo estremecer as vidraças do bangalô, quando Brigitte já corria para onde caíra sua pistolinha. Ao passar por Pien, este, tirando forças de sua fraqueza, segurou-a por um tornozelo e, fazendo-a cair de joelhos, lançou-lhe um munhecaço que a derrubou de bruços no chão, violentamente. E sem esperar mais, foi ele quem se arrastrou para a pistola. Seus dedos se crisparam na culatra da arma e ele começou a virar-se...

 

Crac!

 

O golpe ressoou em sua cabeça como um estampido mortal. Foi a última coisa que soube. Caiu fulminado, com o crânio fendido, enquanto, de pé junto a ele, a mais perigosa espiã do mundo permanecia ainda uns segundos na posição do feroz golpe de caratê com que havia sido encerrada a questão.

 

Arquejando, cabelos revoltos, mão dolorida, Baby deixou-se cair numa poltrona cheia de revistas. Permaneceu assim uns segundos, deixando que seu ritmo respiratório se normalizasse, enquanto olhava Pien, fazendo conjetura...

 

Asiático, sem dúvida. Talvez vietnamita, ou cambojano, ou tailandês, Tal como o outro do banheiro.

 

Por fim, levantando-se, arrumou o vestido e ajeitou os alvoroçados cabelos. Apanhou a pistolinha, foi ao banheiro, recuperou o arame com que estrangulara Pien e tornou a enfiá-lo na cintura do vestido, Durante uns segundos revistou o cadáver, nele não encontrando nada de interessante. Nem sequer documentos, o que fez com que franzisse a testa. Sua mente trabalhava a toda pressão, com aquela perfeita lucidez que a conduzira ao primeiro posto da espionagem mundial.

 

Os delinquentes comuns costumam portar documentos.

 

Quando um homem não carrega nada que possa identificá-lo, a dedução automática é que está na espionagem. Se morre “em serviço”, não há responsabilidade para ninguém. Sobretudo quando tal serviço consiste em assassinato.

 

Saiu do banheiro e revistou também o outro, que igualmente não tinha documentos. Mas Pien portava algo interessante: um rádio de bolso, de fabricação russa.

 

Conhecia-os bem. Mas estava tão assombrada que, durante uns segundos, não conseguiu raciocinar. Que significava aquilo? Analisou a situação: um caso de roubo de joias, vulgar e comum. Mas aparecem dois asiáticos, com armas munidas de silenciador, para quem assassinar já não é um delito, ou um desesperado desejo de sobrevivência, mas sim um... trabalho, ao qual evidentemente não davam maior importância, a julgar pelo modo como um deles havia disparado contra a cortina de plástico: sem raiva, sem satisfação... Um trabalho, simplesmente.

 

Depois, o rádio de bolso. Olhou-o uns segundos. Súbito, apertou o botão de chamada. E, ato contínuo, ouviu uma voz suave, de tom indecifrável e que falava numa língua absolutamente desconhecida. A voz sussurrou algo com acento de urgência, mas Brigitte permaneceu em silêncio, escutando...

 

Clic.

 

Do outro lado tinham decidido cortar a comunicação.

 

Levantou-se e arrastrou Pien para o banheiro. Quando saiu dali, os dois orientais estavam metidos na banheira, ocultos pela perfurada cortina. Recolheu os dois revólveres com silenciador, o radinho, depois saiu do bangalô. Não tardou nem dez segundos a encontrar o carro em que aqueles dois tinham chegado e sentou-se ao volante. Nele regressaria a Beverly Hills, até perto de onde havia deixado o seu, para regressar à mansão dos Carmody. Por aquela noite, era o suficiente...

 

Até demais.

 

Porque, embora não fosse dada a surpreender-se com facilidade, achava que naquele momento devia estar surpreendida. Ladrões de joias que usam radinhos fabricados na Rússia? Talvez...

 

Mas para ela aquele assunto estava tomando um rumo que parecia levar a um terreno em que Baby se encontrava à vontade, muito mais que procurando ladrões de joias.

 

Gatinha tailandesa e gato siamês

 

Sentia-se muito bem ali, apanhando sol junto à piscina.

 

Uma piscina esplêndida, naturalmente. Embora não menos esplêndido fosse o espetáculo daquela jovem estendida na grama, coberta apenas com a mínima expressão de um biquíni dourado, de cor tão parecida com a de sua pele que, a poucos passos de distância, podia-se pensar que estava nua.

 

Perto dela, também estendida, com um cotovelo apoiado na grama, Wanda Carmody olhava-a maravilhada. Estavam as duas sozinhas apanhando sol e, desde que Brigitte havia aparecido, não podia afastar os olhos dela. Possivelmente aquela garota não solucionaria o assunto das joias roubadas, mas de uma coisa não havia dúvida: se resolvesse dedicar-se ao cinema, seu brilho não tardaria a ocultar o das outras estrelas. Não só era muito bela, mas tinha algo especial, que nunca vira em mulher alguma...

 

Súbito, miss Montfort sentou-se e sorriu ao captar a admiração refletida nos olhos da outra.

 

— Mais uma visita, senhora — disse. — Prefere que eu me vá?

 

— Que...?

 

Tornou a sorrir. Acendeu um cigarro e, quando estava expelindo a fumaça, Mrs. Carmody virou a cabeça para a alameda, pela qual estava chegando um carro. Admirada, olhou para Brigitte, que via o carro chegar com os olhos semicerrados e um leve sorriso que lhe pareceu divertido.

 

— Ouviu mesmo esse carro se aproximar? — indagou!

 

Wanda.

 

— Tenho um ouvido finíssimo. Importa-se que eu fique aqui? Parece-me que valerá a pena...

 

Wanda tomou a olhar para onde havia parado o carro e sorriu ao ver o visitante, que se aproximava da piscina, com as mãos nos bolsos e um cigarro entre os lábios. Usava uma camisa castanha, de malha, e velhos blue jeans desbotados...

 

Um Tarzan moderno.

 

— Você não tem mau gosto, querida... Na verdade, há poucos homens assim.

 

— Muito poucos, com efeito. Mas conheço um que é ainda mais alto, mais forte e mais atraente que seu visitante.

 

E, sobretudo, muito mais varonil.

 

— Oh, sim? E quem é?

 

— Digamos que é... o número um.

 

— O número um... de quê?

 

— De tudo, senhora — sorriu Baby.

 

Mrs. Carmody ia dizer mais alguma coisa, mas naquele momento o moderno Tarzan chegava junto a elas, sorrindo.

 

— Bom dia, Wanda... e companheira.

 

— Alan querido, você se perdeu?

 

— Creio que não... — quase riu ele. — Não é esta a residência dos Carmody?

 

— Sente-se... — riu Mrs. Carmody. — Tal como está vestido, não creio que se importe de fazê-lo na grama.

 

— Um pouco. Tomarei cuidado para não desmanchar o vinco de minhas calças.

 

Wanda Carmody tornou a rir, enquanto Brigitte sorria simplesmente. O atleta sentou-se diante delas, olhou Brigitte uns segundos, como deslumbrado e, depois de pestanejar, murmurou: — Espero não estar incomodando.

 

— Não, não... Você não perturba o nosso banho de sol.

 

Veio falar com Wilson, afinal?

 

O olhar do visitante ensombreceu.

 

— Não creio que tenhamos muito o que falar.

 

— Ora vamos, Alan, não seja rancoroso... Você sabe como são estas coisas: um dia nas alturas e no dia seguinte, sem razão plausível, o público deixa de sentir interesse...

 

Wilson não teve culpa de nada. E, como você compreenderá, ele precisa atender a seu negócio.

 

— Sim, claro...

 

— Não deveria ser tão orgulhoso, meu amigo. Ou tudo ou nada... A vida nem sempre é assim. Oh, mas... Creio que ainda não conhece miss Montfort. É Alan Nash, querida.

 

— Prazer — sorriu Brigitte.

 

— O prazer é meu.

 

— Miss Montfort é jornalista. Uma simpática convidada que nos chegou de Nova Iorque. Se continuar vindo aqui a conhecerá bem... e não me surpreenderia que se apaixonasse por ela. Isso na hipótese de que ainda não o esteja.

 

— Não seria difícil, certamente — disse Nash. — Devo admitir que é muito formosa.

 

— Obrigada, Mr. Nash — riu Brigitte.

 

— Bem... Tenho uma ideia — disse Wanda, sorrindo maliciosamente. — Vou deixar os dois sozinhos e direi a Wilson que você está aqui. Já sabe que ele sempre tem algo para lhe oferecer, Alan.

 

— Estrelar um filme? — riu Nash.

 

— Temo que não... Mas seria um papel de certa importância. Justamente agora ele está escrevendo o roteiro de...

 

— Não me interessa. Podem me chamar de orgulhoso, mas não aceito papéis secundários.

 

— De orgulho não se vive, Alan.

 

— Eu vou me arranjando.

 

— Bem, de qualquer modo, vou dizer a Wilson que você está aqui. Já sabe que sempre será bem recebido.

 

— Sei — Nash baixou a cabeça. — Perdoe-me se lhe pareci brusco, mas é que... não mudei de ideia, Wanda.

 

— Você é um cabeçudo. Até já.

 

Mrs. Carmody afastou-se para a casa, enquanto Alan Nash, ainda de cabeça baixa, parecia querer passar o resto de sua vida contemplando a grama. Ergueu-a velozmente quando ouviu: — Parece que não teve muita sorte, Mr. Nash.

 

— Coisas do cinema. Fiz vários filmes bastante bons, galguei o primeiro posto... e subitamente, sem saber por que, deixei de ser um sucesso de bilheteria. Não fui o primeiro com quem isto aconteceu.

 

— Sei de algo a respeito. Limpou sua banheira?

 

Ele a olhou-a fixamente. Parecia assombrado... e incrédulo.

 

— Enterrei-os na praia, perto do bangalô, provisoriamente.

 

— Boa ideia. Depois lhes procuraremos acomodação definitiva, quando dispusermos de mais tempo.

 

— Eu... a princípio pensei que você mesma os tivesse liquidado, mas quando os vi naquelas condições... Bom, que se passou exatamente? Quem a ajudou?

 

— Tenho por aí uma dezena de guarda-costas — riu Brigitte. — Está convencido de que não deve temer nada de mim?

 

— Bem, pelo menos me livrou dos assassinos que ela me enviou Suponho que isso significa alguma coisa.

 

— Quem é ela?

 

— Olhe, miss Montfort, vou lhe ser sincero: oferecem dez por cento do valor das joias que forem recuperadas. Como já compreendeu, minha situação não é muito próspera, por isso desejaria essa recompensa. E não é uma miséria, garanto-lhe.

 

— Quanto?

 

— Se todas as joias fossem recuperadas, eu receberia entre oitocentos mil dólares e um milhão. Claro que ninguém sabe onde elas foram parar.

 

— Sim, ninguém sabe. Vou lhe dizer uma coisa, Nash: meu problema não é de dinheiro. Se quiser toda a recompensa, por mim não há nenhum inconveniente: já tenho tudo que a vida me poderia dar.

 

— Você é que é feliz. Mmm... Suponho que se surpreendeu vendo-me aparecer aqui.

 

— Estava à sua espera.

 

— Como? Estava... me esperando?

 

— Claro. Com a imaginação, segui todos os seus passos e pensamentos. Você dispunha do endereço da empresa que me alugou o carro e sabia o número da sua licença. Foi lá, deram-lhe o nome da pessoa a quem fora alugado e suponho que se surpreendeu ao saber que era o chofer dos Carmody. Disposto a esclarecer isso, veio aqui e... me encontrou.

 

— Diabo! — Nash acabou por sorrir. — E eu que me achava muito esperto...

 

— Quem é ela, Nash?

 

— Por que não me diz primeiro quem é você?

 

— Brigitte Montfort, de Nova Iorque. Jornalista.

 

— Jornalista... Já enviou notícias ao seu jornal sobre o que aconteceu esta noite?

 

— Ainda não.

 

— Não? Pois deixou escapar algo sensacional, não acha?

 

— Talvez.

 

— Ou talvez não seja uma jornalista.

 

Brigitte levantou a mão, rindo.

 

— Palavra de honra: sou jornalista.

 

— E o que mais?

 

— Estamos perdendo tempo, Nash. Mrs. Carmody vai voltar de um momento para outro com o marido. Tome uma decisão: ou me ajuda ou trabalhamos separados. Decida-se.

 

— Eu poderia... tirá-la da jogada, denunciando-a à polícia.

 

— Não diga tolices. Há alguma prova de minha presença em seu bangalô ontem à noite? Quanto aos dois homens mortos, dado seu aspecto, o mais provável seria pensarem que um homem os matou... Ou não? E nesse caso, que melhor suspeito que você mesmo? Vamos, não seja tolo, Nash. Colabore comigo, que lhe ofereço duas coisas. Primeira: toda a recompensa para você. Segunda: seu regresso ao estrelato.

 

— Como conseguiria esta última coisa?

 

— Você ficaria surpreso se soubesse quanta influência tenho nos Estados Unidos. Mas, além disso, me ocuparei de você em meu jornal. Numa semana, voltará a ser um astro, Nash: prometido.

 

— E que ganharia você com tudo isso, então?

 

— Um amigo.

 

Ele pestanejou. Subitamente decidido, levou a mão ao bolso posterior da calça, tirando algumas cédulas e um envelope branco, do qual extraiu uma foto que estendeu a Brigitte.

 

— Na verdade — murmurou —, quase estava decidido de antemão a me abrir com você. Cansei de estar sozinho na vida, acredite.

 

Brigitte assentiu com a cabeça, mas dedicando toda a sua atenção à fotografia. A beleza daquela jovem impressionou-a. Tinha grandes olhos negríssimos, exóticos... Seu rosto era o mais formoso que se poderia sonhar numa asiática.

 

Contemplá-lo devia deixar enlevado qualquer homem. Tinha o cabelo curto, usava um quimono com flores bordadas, e em seus braços aninhava-se um gato siamês, de olhar pérfido. O conjunto era verdadeiramente extraordinário.

 

— Muito bonita... — murmurou Brigitte. — E eu diria que é tailandesa, não?

 

— Realmente — Nash pareceu se surpreender.

 

— Bem... Deviam igualmente ser tailandeses aqueles dois homens, então. Mas, afinal, quem é esta encantadora criatura?

 

A surpresa de Nash foi agora definitiva.

 

— Como! Não sabe quem é?

 

— Não... — Brigitte pareceu intrigada. — Deveria saber?

 

— É Sakit Dien Bo! Pelo amor de Deus, não me diga que nunca ouviu seu nome, nem viu nenhum de seus filmes...!

 

— Ultimamente tenho estado muito ocupada. E não sou muito de cinema, francamente.

 

— Mas é incrível! Ela já se tornou famosa no mundo inteiro!

 

— Ah, sim? Darei mais atenção ao cinema daqui por diante.

 

— Deveria começar já. Ainda estão projetando seu último filme...

 

— Irei vê-lo quando puder. Mas entendamo-nos, Nash: esta jovem é a gata ladra?

 

— É.

 

— A que tem roubado joias em Beverly Hills?

 

— Exatamente.

 

— Está me dizendo que ela sabe abrir cofres, escalar telhados, desligar sistemas de alarme, roubar sem deixar rastro...?

 

— Sim.

 

— Tem certeza?

 

— Bem, eu...

 

Brigitte olhou-o com redobrada atenção.

 

— Não tem certeza?

 

— Quase. Olhe, ela mora em Beverly Hills, foi convidada para todas as casas, em todas as festas... Pôde ver tudo, saber tudo, traçar seus planos de entrada e saída... Outro detalhe: é sempre a última a chegar às festas.

 

— E que lhe sugere isso?

 

— Creio que é a última porque, antes de chegar, já assaltou a mansão escolhida para a mesma noite.

 

— Compreendo. Sim, é possível, naturalmente. Além disso, havia os dois homens de ontem... E sua voz pelo rádio de bolso.

 

— Do que está falando?

 

— Eu me entendo. Claro que era uma voz difícil de identificar, apenas sussurrada... Mas parece que tudo aponta para essa jovem tão linda. Como chegou a suspeitar dela, Alan?

 

— Conheço bem o terreno em que piso — sorriu ele. — Não faz muito tempo, eu tinha uma dessas mansões...

 

— Tornará a tê-la. Responda minha pergunta.

 

— Bom, são muitos detalhes... Há mais de três meses que me dedico a isto, vigiando muitas pessoas.

 

— Estava vigiando Sakit Dien Bo quando foi roubada esta casa?

 

— Estava.

 

— Mas ontem não. Como eu mesma, rondava por perto de outras mansões... — Brigitte pôs-se a rir. — Também pretendia adivinhar onde iria ocorrer o próximo roubo?

 

— Exato. Sei que esta noite há uma festa em casa de Sheila... Sheila O’Hara, que foi...

 

— Conheço-a. Fuma marijuana e tem um... amiguinho muito bacana, que parece mortificar constantemente. Bem, você me viu, pensou que eu podia ser uma cúmplice de Sakit e seguiu-me. Mas acontece que também o estavam seguindo e, se não fosse por minha intervenção, aqueles dois homens o teriam eliminado, depois de deixá-lo chegar ao seu bangalô... Inclusive, é possível que o estivessem esperando lá.

 

— Como não viram você, então?

 

— Sou muito difícil de controlar, às vezes — sorriu Brigitte. — E pode crer que nada tenho que invejar a uma gata. Mas voltemos um pouco atrás. Disse que na noite em que roubaram os Carmody estava vigiando a tailandesa do gatinho. Bem: que fez ela?

 

— Não sei.

 

Brigitte tornou a encará-lo.

 

— Explique isso melhor, Alan, por favor.

 

— Bem, eu vi sair seu carro e fui atrás com o meu. Resultado: o carro deu uma volta e regressou à mansão de Sakit. Aconteceu que...

 

— Não me diga mais. No carro que você seguiu ia apenas o chofer, e enquanto isso nossa tailandesa tinha ido à festa com outro de seus carros, talvez com tempo suficiente para dar um passeio por aqui. Correto?

 

— Isso foi o que pensei — resmungou Nash, aborrecido. — E o simples truque dos carros já implica culpa, não acha?

 

— Ela poderia dizer que faz assim para que seus admiradores não a importunem demais. Você está convidado para a festa de Sheila?

 

— Não me faça rir. Ninguém mais se lembra de mim.

 

— Ótimo — sorriu Brigitte. — Embora não me agrade tanta volubilidade, decerto. Os amigos devem sê-lo para sempre.

 

— Você pensa assim porque deve ter muitos.

 

— Alguns. Olhe, Alan, você vai alugar um carro que...

 

— Boa piada. Disponho de uns quinze dólares... e pergunto-me como será depois de ter comido hoje.

 

— Tão mal assim?

 

— Já ouviu que sou muito orgulhoso.

 

— Ouvi. Mas não o vai ser comigo. Quando chegarem os Carmody, eu me retirarei dizendo que já chega de apanhar sol. Será uma retirada discreta e eles compreenderão. Se lhe perguntarem de que estávamos falando, diga que do tempo e do cinema. Bem. Antes de partir, peça para ir ao banheiro de baixo, coisa que não creio possa surpreender ninguém. Feche-se por dentro. Na parte traseira do pé do lavatório, encontrará, presa à parede com esparadrapo cor de carne, uma bolsa de plástico. Dentro desta haverá dois mil dólares, um revólver com silenciador que pertenceu a um dos nossos amigos de ontem e um papel no qual estará anotada a placa de um carro...

 

— Não me agrada receber dinheiro de uma...

 

— Deixe de absurdos: estamos trabalhando e eu sou o sócio capitalista, simplesmente. Preste atenção, Alan: tenha sempre o revólver à mão e os olhos bem abertos. Naturalmente, nada de voltar ao seu bangalô: é uma loucura que não devia ter cometido ontem à noite ou esta manhã. Mas já está feita. Mantenha-se vigilante todo o tempo. Depois vá alugar o carro, que deve ser bem diferente do seu. Por fim, arranje-se como queira ou possa para conseguir averiguar a quem pertence o carro cujo número de licença encontrará escrito num papel dentro da bolsa. Entendido?

 

— É o carro que levava os dois de ontem à noite?

 

— É. Poderá conseguir essa informação?

 

— Creio que sim.

 

— Muito bem. Mas, sobretudo, não esqueça isto: a partir de quando tiver terminado esses assuntos, você vai transformar-se na sombra de Sakit Dien Bo. Okay?

 

— Okay. Mas Sakit me conhece bem. Se me vir...

 

— Ora vamos, Alan! Você é um ator. Não me diga que nunca se caracterizou.

 

— Claro que sim — ele animou-se visivelmente. — Magnífica ideia! Vou me caracterizar de tal modo, que nem você mesma poderá reconhecer-me.

 

— Esplêndido. Faça isso e tome muito cuidado. Ah... Vai encontrar outra coisa dentro da bolsa de plástico, Alan: um rádio de bolso, fabricado na Rússia... Isso lhe diz alguma coisa?

 

— A mim? Nem sequer entendo o que está tentando dizer...

 

— É um rádio pequeno, muito simplificado, mas eficientíssimo. Tem dois botões, um de chamada e outro de recepção. Só isso. O de cima é o de chamada. Aperte-o se tiver algo urgente para me dizer. E aperte o outro quando ouvir que o radinho emite um leve zumbido. Algo assim como “bip-bip-bip-bip...” Está tudo claro?

 

— Está. Não se preocupe.

 

— Aí vêm os Carmody... Procure alongar a conversa, pois preciso de tempo para colocar o rádio na mesma onda que o meu. Na verdade isso não lhe sugere nada, Alan?

 

— Isso o quê?

 

— Refiro-me aos rádios de bolso.

 

— Não sei... Parecemos espiões, não? — ele sorriu subitamente.

 

— Sim, parecemos.

 

Ele a olhou com atenção.

 

— Quem é você, realmente?

 

— Brigitte Montfort, de Nova Ior...

 

— Isso já sei. Mas você raciocina com tanta rapidez que...

 

— Meu caro Alan... — disse Carmody, chegando com a mão estendida. — Quanto me alegro por vê-lo!

 

Nash levantou-se, aceitando aquela mão cordial.

 

— Obrigado, Will. Pensei que podia ter algo bom para mim.

 

— Tenho dois ou três escritores preparando um roteiro sensacional, mas... Já vai, miss Montfort?

 

— Já. Apanhei sol suficiente por hoje. Gosto de dourar a pele, mas não de queimá-la.

 

— Aposto que você se encantou com ela, Alan — disse Wanda. — Tem uma estupenda maneira de ser, não achou?

 

— Achei tudo estupendo em miss Montfort — sorriu Nash.

 

— Exato! — aplaudiu Mrs. Carmody. — Você não gostaria de ser seu par esta noite, na festa de Sheila? Podia vir conosco... Oh, mas ignoro o que ela achou de você, claro... Que lhe pareceria Alan como seu par, querida?

 

— Uuupiii...! — exclamou Brigitte.

 

Todos riram e Wanda tomou Nash afetuosamente pelo braço.

 

— Vamos, decida-se: você nunca encontraria melhor par, rapaz.

 

— Eu agradeço muito a amabilidade de miss Montfort, mas... tenho um compromisso para esta noite, em San Diego.

 

— Pois vai muito longe, não?

 

— É que...

 

— Acho — disse Brigitte, com afetado ar de zanga — que depois disto não tenho nada que fazer aqui. Até logo.

 

Adeus, Mr. Nash: achei-o francamente antipático.

 

Brigitte Montfort rodeada de milhões

 

— Você é um tipo de sorte! — exclamou Wes Ferguson, diretor e maior acionista da “Califórnia Pictures”. — Diga-nos ao menos onde a encontrou!

 

Os outros produtores que rodeavam Wilson B. Carmody apoiaram este pedido com verdadeiro entusiasmo. Carmody ergueu as mãos, pedindo calma, sorrindo.

 

— Um momento, um momento... Vocês falam dela como se fosse um coelhinho e eu um prestidigitador. Não a tirei de lugar nenhum: repito-lhes que é uma jornalista, que me foi enviada por um amigo de Nova Iorque e veio aqui escrever uma série de artigos sobre...

 

— Oh, essa não! — reclamou Pat Stevenson. — Todos usamos pequenos truques para ocultar nossas descobertas até o momento de lançá-las, quando isso nos convém.

 

— Mais uma vez: ela é uma...

 

— Sim, uma jornalista! — cortou outro produtor. — Você já zombou de nós o suficiente, Will! Diga-nos a verdade: vai ser ela a protagonista do roteiro que você está preparando?

 

— Que roteiro? — perguntou ingenuamente Carmody.

 

— Você está insuportável esta noite! — concluiu categoricamente Ferguson. — Aposto que Bob está falando de “Os mil fogos do inferno”. Certo, Bob?

 

— Certo.

 

Carmody carregou o cenho.

 

— E como vocês sabem disso?

 

— Ora vamos, Will... — riu Stevenson. — Não faça perguntas tolas! Todos temos nosso serviço particular de espionagem em Hollywood e você sabe muito bem disso.

 

Mas voltemos a essa jovem...

 

— Essa jovem é uma jornalista... — suspirou Carmody.

 

— E se não me acreditam, perguntem a ela.

 

— A ideia não é má! Vamos a isso! Ah-ah-ah... E não pretenda escapar. Venha apresentar-nos!

 

Dois deles seguraram Carmody pelos braços e ele resignou-se a ser amistosamente empurrado para o grande salão com saída ao terraço. A festa de Sheila O’Hara estava-se revelando bastante divertida... especialmente naquela zona do salão onde a jovem dos cabelo, negros e olhos cor do céu mantinha a seu redor uma dezena de rapazes, que riam continuamente. Também havia grupos menores, pares que dançavam em qualquer parte, damas sentadas em poltronas, como sucumbidas ao peso das joias... No teto, um enorme lustre de cristal derramava sua luz brilhante por aquele ambiente opulento, refletindo-se nas pedras preciosas que superabundavam. A um canto, uma orquestra interpretando “My love goes to the sky”. Uma festa magnifica, sem dúvida.

 

Quando chegaram ao grupo maior, a jovem que despertara a atenção de todos aqueles produtores fora dançar com um dos que a cortejavam. Estava tão absolutamente elegante, tão deliciosa com seu vestido branco de noite e o fino colar de pérolas, que vê-la era o suficiente para perder o ritmo respiratório.

 

Carmody fez-lhe um sinal, ela assentiu com a cabeça e continuou dançando ante os olhos maravilhados de seus adoradores, que, à sua espera, dançavam também, embora sem sair do lugar, como se cada um deles o estivesse fazendo com ela.

 

Quando a orquestra silenciou, houve aplausos para os músicos... e para a bonita jovem, a qual, com um gesto de paciência para os que a esperavam, aproximou-se, sorrindo para o grupo de homens mais velhos.

 

— Que deseja, Mr. Carmody?

 

— Brigitte, estes são os senhores Stevenson, Grover Ferguson e Mc Ready, bons amigos meus, todos produtores cinematográficos, e que desejam conhecê-la. Cavalheiros: miss Brigitte Montfort, jornalista.

 

Ela foi estendendo a mão, sempre sorrindo, e cada vez seu olhar parecia atingir o fundo das pupilas do produtor de turno. Os cavalheiros murmuraram algumas frases galantes, atropeladamente, e, em seguida, um deles lançou o primeiro dardo: — Quando começa a rodar, miss Montfort?

 

— A rodar? Rodar... o quê?

 

— “Os mil fogos do inferno”, por exemplo.

 

— Oh... Temo que não gostaria de rodar nos mil fogos do inferno, Mr. Grover. E, além disso, imagino que no inferno haja mais de mil fogos.

 

Wilson Carmody sorriu e os outros soltaram uma gargalhada. Grover ficou atônito e um tanto mortificado.

 

Mas Stevenson se apressou a substituí-lo na tertúlia, lançando-se à carga: — Espero que seu contrato com Will não seja por muito tempo... Gostaria de ser o segundo.

 

— A que contrato se refere?

 

— Por favor, miss Montfort... Não me diga que não fizeram um contrato!

 

— De acordo.

 

— Ah! Então ele a tem sob contrato? — exclamou frontalmente Stevenson.

 

— Não.

 

— Mas acaba de dizer...

 

— O senhor disse que eu não dissesse que tínhamos feito um contrato e eu não o disse. Sou uma pessoa cordata. Mr. Stevenson... sempre que possível, claro.

 

— De modo que aprendeu bem a lição que Will lhe ensinou e vai por aí dizendo que é jornalista?

 

— Faz tempo que deixei de aprender lições, Mr. Stevenson: agora eu as dou.

 

— Então, insiste em que é jornalista? — perguntou Mc Ready.

 

— É o que sou.

 

— E diz que não tem nenhum contrato firmado com Will.

 

— Bom... sem ânimo de contestar Mr. Stevenson, sim: não há contrato.

 

— Formidável! Eu lhe ofereço um agora mesmo!

 

— Ai, ai, ai... — reclamou Grover. — Calma, amigo.

 

Somos vários a querer esse contrato.

 

— Claro — concordou Ferguson. — Trata-se apenas de que miss Montfort estude todos eles e, escolha o melhor.

 

— Um momento! — exigiu Mc Ready. — Eu estava falando com ela, não é assim? Pois esperem sua vez e...

 

Os outros, exceto Carmody, começaram a protestar. Até que Brigitte, rindo, chamou a atenção dos entusiasmados produtores.

 

— Cavalheiros, receio que estejam perdendo seu tempo: não tenciono trabalhar no cinema.

 

— Ora essa... Acaso prefere continuar sendo jornalista?

 

— Sem dúvida... Ah, obrigada, Ronnie: você é muito amável.

 

Recebeu a taça de champanhe que lhe estendia o rapaz com quem dançara por último e tomou um pequeno gole, enquanto os homens olhavam, como siderados, o beijo que seus lábios davam na taça. O rapaz que a oferecera deu um profundíssimo suspiro, que fez rir a todos. Brigitte arqueou as sobrancelhas, baixou a taça e perguntou candidamente: — Que foi?

 

— É encantadora... — murmurou Grover. — Só para vê-la tomar champanhe, os cinemas ficariam repletos... Ouça minha oferta inicial, miss Montfort: três milhões de dólares por um contrato de três anos com um máximo de quatro filmes...

 

— Quatro milhões — melhorou. Ferguson.

 

— Seis — aumentou Stevenson.

 

— Cavalheiros, estão me leiloando? Já lhes disse que penso continuar...

 

Calou-se de súbito, olhos fixos na entrada do salão. Os homens viraram a cabeça para lá, no momento em que se ouvia um forte murmúrio admirativo, que encobriu o som da orquestra. Inclusive o saxofonista perdeu o compasso.

 

— Aí está sua estrela, Wes... — murmurou Grover. — Não tem o suficiente com ela?

 

— Permitam-me... — desculpou-se Ferguson. — Não vá escapar, miss Montfort.

 

— Não se preocupe: considero-me prisioneira.

 

Algumas pessoas já se dirigiam ao encontro da recém-chegada, para a qual Ferguson se precipitava, sorrindo. A atenção de todos estava momentaneamente concentrada nela e com justa razão. A exótica, belíssima, suavíssima e delicadíssima Sakit Dien Bo usava um vestido que parecia feito de diminutas palhetas de ouro e descobria-lhe a metade do corpo através de aberturas losangulares. Tinha um fantástico colar de esmeraldas, longos brincos com as mesmas gemas e numa de suas mãos que sustinha o gato siamês contra o peito, brilhava também uma esmeralda soberba. Seus olhos obliquados, negríssimos, olhavam sorridentes ao redor, como se ela esperasse as homenagens de seus vassalos. Era uma admirável figura de porcelana, que dava a impressão de poder partir-se ao menor movimento brusco. Sua delicada beleza estava fora de toda discussão.

 

— Puxa... — murmurou Ronnie. — Será que existe mesmo uma criatura assim? E veja como o gato se parece com ela... Os dois combinam, não há dúvida.

 

— Acho-a lindíssima — comentou Baby.

 

— Sim, mas pelo jeito vão lhe faltar alguns: admiradores, esta noite. Continuamos dançando, Brigitte?

 

— Mais tarde, Ronnie. Obrigada. Gostaria que agora Mr. Carmody me apresentasse a ela... Afinal de contas, estou aqui para isto: trabalhar numa série de reportagens sobre Hollywood.

 

— Terei o maior gosto — sorriu Carmody.

 

— Mas está vamos conversando sobre o contrato... — começou a reclamar Mc Ready.

 

— Continuaremos nossa conversa em outro momento, senhores. Espero que me perdoem. Quer levar minha taça, Ronnie? Depois nos veremos.

 

— Okay. Já não sou mais um admirador de Sakit.

 

— Você é muito gentil... Até depois.

 

Carmody tomou-a por um braço, levando-a até a tailandesa, ao redor da qual já se iam abrindo claro. Fez um sinal a Ferguson, que interpretando-o exatamente trouxe Sakit Dien Bo para perto deles. A exótica jovem, sempre sorrindo para todo o mundo, chegou junto de Brigitte e Carmody. Sorriu para este.

 

— Ah, Mr. Carmody... Como vai?

 

— Bem... Quero apresentar-lhe miss Montfort, uma jornalista de Nova Iorque interessada por todos nós.

 

Sakit Dien Bo olhou amavelmente para Brigitte e só esta pôde captar a rápida centelha em seus olhos negríssimos.

 

Compreendeu que estava sendo avaliada e que aquelas pupilas orientais havia um certo antagonismo.

 

— Muito prazer... — sorriu Sakit. — Que espécie de interesse sente por “todos” nós, miss Montfort.

 

— Oh... por suas vidas, seus costumes, seu trabalho...

 

Coisas normais que interessam ao público.

 

— Sim, compreendo. Espero que encontre pessoas interessantes aqui, para realizar suas entrevistas.

 

— Já encontrei muitas... — sorriu Brigitte. — Mas creio que acabo de encontrar a mais interessante de todas.

 

— Muito obrigada. Para que jornal trabalha?

 

— O “Morning News”, que distribui meus artigos por todo o mundo.

 

— Que ótimo! Naturalmente, em tal caso, é uma jornalista mais ou menos famosa.

 

— Sim... Mais ou menos — Brigitte ampliou seu sorriso.

 

— Miss Montfort foi rainha em certa ocasião — interveio Carmody, com ar divertido.

 

— Oh, sim? Que espécie de concurso ganhou, miss Montfort?

 

— Não foi exatamente um concurso. Um cérebro eletrônico elegeu-me para governar um país, como rainha.

 

Tal escolha foi imediatamente referendada por toda a nação.

 

Digamos que fui rainha de verdade, com cetro e coroa.

 

Sakit Dien Bo contemplava-a agora muito atentamente.

 

Por fim, perguntou: — Refere-se aos sucessos de dois anos atrás em Atlantic Kingdom[1]?

 

— Justamente. Surpreende-me que se lembre disso.

 

— Oh, li alguma coisa a respeito. Aconteceram fatos terríveis naquele país, não é verdade? Parece que pesava uma maldição sobre as rainhas, ou algo assim... Já não existe tal maldição?

 

— Deixou de existir. Lá estive não faz muito tempo, de passagem. Agora só existem a paz, a prosperidade é a alegria de viver.

 

— Interessante. Gostaria de saber mais coisas sobre Atlantic Kingdom.

 

— Terei muito prazer em informá-la, quando pudermos conversar tranquilamente. Entretanto — Baby sorriu, — lembro que a jornalista sou eu, miss Bo.

 

— É verdade! — riu a tailandesa. — Aceitaria tomar chá comigo amanhã?

 

— Horário inglês?

 

— Horário inglês! — tornou a rir. — Estarei à sua espera às cinco. Até logo.

 

Afastou-se, acompanhada por Ferguson. Enquanto acendia um cigarro, Carmody olhava para Brigitte.

 

— Sente interesse por Sakit? — perguntou.

 

— E por seu gato... É um animal esplêndido. Ela o carrega sempre?

 

— Chama-se “Mongkut”. Creio que é o nome de um antigo rei do Sião... da Tailândia. Sim, ela o leva a toda parte. Gosta imensamente de caviar.

 

— Sakit?

 

— O gato — riu Carmody. — É muito refinado.

 

— Ela também parece refinada. E está muito ao corrente de fatos que não deveriam interessar a uma atriz de cinema, penso eu. Aposto que amanhã me servirá chá da Tailândia.

 

— Com certeza. Está ganhando tanto dinheiro com seus filmes, que segundo consta até o Fisco perdeu o controle.

 

Bem, não sei se vou parecer-lhe impaciente, Brigitte, mas...

 

— Creio que irei dançar com Ronnie e meus poucos admiradores... — cortou ela, sorridente. — Quanto à sua medalha, será recuperada amanhã. Até logo.

 

Carmody ficou estupefato, mas reagiu rapidamente, segurando-a por um braço.

 

— Amanhã? — sussurrou. — Eu tinha a impressão de que não estava fazendo nada...

 

— Sou muito correta em meus trabalhos. Disse amanhã...

 

Talvez depois de amanhã.

 

— Mas...

 

Ela afastou-se, após dar um tapinha na mão que lhe segurava o braço. Foi recebida no grupo pouco menos que com “vivas”... enquanto, um pouco mais longe, Sakit Dien Bo dava ao seu gato um diminuto sanduíche, de caviar naturalmente. O animal comia com raro refinamento, lambendo-se a cada bocado.

 

— Bicho repugnante, não acha? — comentou Ronnie.

 

— Não, não... Pelo contrário. Os gatos são os animais mais limpos que existem. São muito ciosos de seu belo aspecto e não se lambem por prazer, mas para limpar os bigodes.

 

— A quem interessam os gatos? — cortou outro admirador, rindo. — Vamos sacudir o esqueleto!

 

[1] Ver SUA MAJESTADE BRIGITTE, número 96 desta coleção. (N.R.)

 

Uma esticada cheia de surpresas

 

À uma da noite, por fim, Brigitte pôde romper o cerco de seus jovens fãs, deslizando sozinha para o terraço. De teve-se junto a um maciço de hortênsias e, olhando ao redor, abriu a pequena bolsa que pendia de seu pulso, dela tirando o radinho. Apertou o botão.

 

Ao cabo de uns segundos, ouviu a voz de Alan Nash, tensa, indecisa: — Alô... Quem chama?

 

— Quem pode ser? Aconteceu alguma coisa com você?

 

— Não, não... Tudo vai bem. É que... me sobressaltei ao ouvir o “bip-bip-bip”. Que há?

 

— Nada. Sakit chegou faz tempo, a última, como de costume. E então?

 

— Sinto muito. Ela saiu de sua mansão e foi diretamente para a festa. Só isso.

 

— Tem certeza?

 

— Completa. Estive seguindo-a bem de perto. Esta vez não me fiei só no carro: vi a nossa amiga dentro dele.

 

— Está bem... contanto que ela não tenha visto você.

 

— Talvez me tenha visto — riu Nash —, mas duvido que me pudesse reconhecer. Combinamos que eu me caracterizaria, não?

 

— Ótimo. E a respeito do carro?

 

— Tenho um amigo que está me ajudando nisso, mas ainda não sabemos nada. Mas saberemos, acredite.

 

— Um conselho, Alan: não faça nada sem minha supervisão.

 

— Mas...

 

— Escute bem isto, pois em seguida fecharei o rádio: você se meteu num vespeiro onde há algo mais que ladrões de joias. Proteja sua vida e consulte-me sobre qualquer ação que pense empreender. Entendido?

 

— Sim, claro. Mas...

 

Clic.

 

Ela fechou o radinho, guardou-o na bolsa e Permaneceu ali, imóvel, fumando pensativa. Esperava não ter exagerado nas últimas palavras ditas a Nash. Se sua intuição servia de alguma coisa (e havia servido de muito em dezenas de ocasiões), tudo podia ter um final muito diferente do que se pudesse ter previsto. Quanto a Sakit Dien Bo...

 

Suas delicadas orelhas pareceram mover-se para trás.

 

Virou a cabeça e arqueou as sobrancelhas ao ver aproximar-se, lentamente, Dino Moranti, o amiguinho de Sheila O’Hara. Ele sorriu ao ver-se descoberto.

 

— Olá! — saudou. — Aborrecendo-se?

 

— Não.

 

— Tem certeza.

 

— Absoluta.

 

— Pois diz isso no mesmo tom com que poderia dizer que adora ir ao dentista... Soube do último mexerico?

 

— Qual é?

 

— June Templeton toma drogas.

 

— Ah... E quem é June Templeton?

 

— Como! Não sabe? Bom... é uma espécie de múmia, como Sheila. Foi famosa em seu tempo. Agora tem muito dinheiro, mas nenhum amante. O último a abandonou ontem para fugir com sua camareira. Não é divertido?

 

— Muito. Ela usa drogas por isso?

 

— Empanturra-se de “coca”! Mas parece que já o fazia antes.

 

— Algo assim como Sheila, não? — sorriu Brigitte. — Acha que ela fumará marijuana num cachimbo quando você a deixar?

 

Dino Moranti pôs-se a rir.

 

— Você é formidável! Ouça, acabo de ter uma ideia: por que não fugimos os dois, para ver se Sheila arranja um cachimbo?

 

— Eu o faria com gosto — sorriu Brigitte. — Mas não sou uma camareira. E com homens como você, o que lhes serve é isso: ou velhotas endinheiradas, ou camareiras. Até logo.

 

Começou a afastar-se, mas Moranti agarrou-a bruscamente por um braço, fazendo-a dar meia volta, disposto a beijá-la na boca. Para isso, puxou-a com força.

 

Mas algo lhe aconteceu: sentiu o chão fugir sob seus pés e um instante depois estava sentado no brilhante mosaico do terraço, mais atônito que dolorido.

 

— Mas, Dino, que lhe aconteceu? — perguntou amavelmente Baby, como se não tivesse sido ela quem lhe aplicara a chave de perna do judô. — Está se sentindo mal?

 

— Não... Eu...

 

— Não me diga que também usa drogas?

 

— Não...

 

— Dino! Que faz sentado aí? Está bêbado?

 

Os dois olharam para a porta do terraço, de onde vinha rapidamente Sheila O’Hara. Moranti levantou-se com vivacidade, passando a mão pelos fundilhos, cara amarrada.

 

— Diabo... — resmungou. — Sempre me vigiando!

 

— Que fazia sentado no chão? — insistiu Sheila.

 

— Ele estava me ensinando uma posição de ioga — disse Brigitte. — Parece que relaxa muito. A propósito. Sheila: você fuma marijuana em cachimbo?

 

— Que tolice... Claro que não!

 

Brigitte deu-lhe uns tapinhas na mão carregada de anéis.

 

— Tudo chegará, querida...

 

Entrou no salão, sorrindo divertida, deixando a cargo de Dino Moranti a explicação de sua aterrissagem no mosaico do terraço...

 

— Diga adeus a miss Montfort, “Mongkut”.

 

— Miau...

 

Ela se virara rapidamente, a tempo de ver o gato siamês lançar seu miado de despedida, sempre nos braços de sua dona, a exótica e belíssima Sakit.

 

— Que bichinho tão bem educado... — sorriu. — Já se retira, miss Bo?

 

— Já. A verdade é que venho a estas festas para não parecer pouco sociável, mas não as aprecio. É também esse o seu caso?

 

— Mais ou menos.

 

— Pois se esta não lhe agrada muito, venha comigo — riu a tailandesa. — Não se aborrecerá.

 

— Ótima ideia... E aonde iremos?

 

— À minha casa. Hoje me toca a vez. Eu e alguns amigos sempre nos retiramos, antes que os ambientes se tornem insuportáveis, para a casa de um de nos.

 

— E o que se faz lá?

 

— Dança-se um pouco, bebe-se, conversa-se... Não inventamos nada de novo, mas, como escolhemos uns aos outros, sempre há companhia agradável.

 

— É uma medida inteligente — aprovou Brigitte.

 

— Isso quer dizer que virá comigo.

 

— Por que diz assim?

 

— Bom... Se é uma ideia inteligente, deve vir... Não acredito que tenham selecionado uma tola para rainha de um país.

 

— De acordo! — riu Brigitte. — Aceito.

 

— Veio no carro de Carmody?

 

— Naturalmente... Como o sabe?

 

— Oh, interessei-me um pouco por sua pessoa e sei que é hóspede dos Carmody. Mas pode vir no meu e, depois, qualquer de meus amigos a levará de volta. Está bem?

 

— Perfeito. Escapemos daqui agora mesmo.

 

— Mas discretamente — riu Sakit.

 

Saíram ao terraço, cruzando com Sheila O’Hara e Moranti, que voltavam ao salão, discutindo azedamente.

 

Sakit cumprimentou-os sorrindo, desceram ao jardim e puseram-se a correr para os carros, estacionados numa ampla esplanada circular, em cujo centro havia uma fonte luminosa.

 

Em mais dois carros havia pessoas esperando e a tailandesa fez-lhes um sinal. Imediatamente, aqueles veículos se puseram em marcha. As duas entraram no de Sakit, que era forrado de pele de tigre. Ao volante estava um homem, com outro a seu lado. Atrás iam apenas as duas.

 

— Escapamos já? — perguntou, rindo, o do volante.

 

— A toda a marcha, Andrew... — riu também Sakit, — Já conhece miss Montfort, não é?

 

— Um pouco. Olá, beleza!

 

— Olá — sorriu Brigitte.

 

O que estava junto a Andrew virou a cabeça e Baby ficou a ponto de dar um salto ao ver suas feições orientais, tão idênticas às dos dois que havia liquidado no bangalô de Alan Nash.

 

— É Dong Penh... — disse Sakit — Como vê, meu compatriota. E bom amigo. Pena que nos filmes só apareça como vilão, embora eu sempre peça a Wes que modifique o roteiro. Mas certamente ele tem mesmo cara de mau, não acha?

 

Andrew pôs-se a rir, enquanto Dong Penh, olhando para Brigitte, sorria amavelmente.

 

— Tenho cara de mau? — perguntou ele.

 

— Não muito — murmurou Brigitte. — Embora também não se possa dizer que sua cara seja amistosa...

 

Todos riram. Ela olhou a mão de Sakit, que acariciava seu gato, fazendo-o ronronar de prazer. Na obscuridade do carro os olhos do felino brilhavam, fosforescentes.

 

— É autêntico — a tailandesa pareceu adivinhar-lhe o pensamento. — Foi-me mandado há dois anos por admiradores siameses. Quando pequenino era um encanto.

 

— Ainda é.

 

— Porém menos. Tornou-se sisudo, já não gosta de brincar muito e, em compensação, afeiçoa-se demais a suas esposas. É muito... romântico.

 

— Quantas esposas tem?

 

— Seis. Vindas também do Sião, claro. Elas costumam brigar muito entre si, suponho que por amor de “Mongkut".

 

— Oh... E o que faz ‘‘Mongkut” então?

 

— Vai apanhar sol. É um gato inteligente.

 

— Sem dúvida. E parece tão manso...

 

— “Mongkut”? Não faria mal nem a um passarinho! É um verdadeiro gentleman... Espero que se divirta conosco, miss Montfort.

 

Andrew olhava-a pelo retrovisor e Dong Penh continuava virado para ela, escrutando seu rosto. Sakit acariciava sempre seu gato... O carro seguia a alta velocidade por avenidas vazias e Brigitte pensou que nunca haveria de aprender: uma vez mais, estava desarmada e nem sequer poderia dispor dos truques de tua maletinha, que deixara na mansão dos Carmody.

 

— Sim — murmurou. — Também o espero, miss Bo.

 

Quando o carro se deteve, os outros dois já estavam esperando diante do portão, para o qual dirigia-se naquele instante o sonolento porteiro. Ao fundo avistava-se a casa, branca, enorme... Estava completamente rodeada de jardins e, recortando-se contra as estrelas, Brigitte viu algumas canas de bambu... Muito apropriado, sem duvida.

 

Sakit disse ao porteiro que não avisasse aos criados pelo telefone, pois se arranjariam sozinhos, e que fosse dormir. O homem, também de raça asiática, agradeceu lhe com um cansado sorriso e retirou-se, após fechar o portão, enquanto os carros rociavam pela alameda em direção à casa, quase em silêncio, com as luzes apagadas.

 

A mansão estava completamente às escuras, exceto quanto à luz do pórtico de belas colunas. Sakit foi a primeira a descer e levou um dedo aos lábios, sorrindo.

 

— Psit... Respeitemos o descanso dos que trabalham.

 

Houve algumas risadas e o grupo de doze pessoas dirigiu-se para a casa, sorrateiramente, com risinhos abafados. Por certo, sua consideração duraria muito pouco e os servos teriam que aguentar gritos, risos, música...

 

Sakit abriu a porta, esperou que todos passassem e riu baixo quando um de seus amigos mostrou os sapatos na mão.

 

Todos, caminhando na ponta do pé, foram atrás da dona da casa, que se dirigia para a grande porta dupla a um lado do vestíbulo. Ela abriu a porta, empurrou-a e exclamou: — Já estamos em casa! Todo o mundo deve...

 

Tinha acendido a luz e, enquanto ela calava bruscamente, os outros lançaram uma exclamação de espanto e surpresa... enquanto um homem completamente vestido de negro, a cabeça coberta por um capuz da mesma cor, afastava-se do cofre aberto e apanhava uma metralhadora, apontando-a imediatamente, com um movimento preciso, para o grupo.

 

Durante dois ou três segundos, o silêncio foi total, até que se ouviu gemer uma das amigas de Sakit: — Oh, meu Deus...!

 

Brigitte olhou de relance para a tailandesa e viu-a como petrificada, fixando seus olhos arregalados no homem, que naquele momento fazia um gesto expressivo com a metralhadora.

 

— Quietos. — ordenou ele com voz rouca. — Se alguém se mover, disparo contra todos.

 

Ninguém se moveu. O homem manteve-se uns segundos expectante, movendo velozmente os olhos de um a outro.

 

Por fim, aproximou-se outra vez do cofre embutido, que estivera oculto atrás de uma cabeça dissecada de tigre. Meteu a mão dentro, começando a tirar joias e dinheiro, nervosamente, sempre atento ao grupo, no qual já ninguém ria. Brigitte tomou a olhar para Sakit e viu-a tensa, crispada, sobrancelhas contraídas numa expressão quase cruel... Decerto nenhuma mulher gosta que lhe roubem as joias.

 

Olhou depois para todos os lados, indiferente. Tudo muito exótico, figuras e decoração geral em estilo tailandês, a tal ponto que o escasso mobiliário americano, mais confortável, destoava um pouco ali...

 

— Fiquem onde estão. Se tentarem me seguir, atiro.

 

Olhou para o ladrão de joias, procurando não sorrir, embora não o conseguindo totalmente. Claro, não seria ela quem se movesse. E quando a dominar os nervos, não havia ali ninguém que o pudesse fazer melhor.

 

O ladrão acabou de meter as joias roubadas num pequeno saco de couro negro, sempre sem perder de vista o atemorizado grupo. Deixou uns segundos a metralhadora, para fechar o saco. Estava evidentemente crispado, alterado, mas enfrentava bem a situação, não havia dúvida...

 

Sobretudo, tendo em conta que a agente Baby não pensava mover nem uma pestana e que era ela a única pessoa ali capacitada a fazer alguma coisa. Mas tudo o que fazia era contemplar o ladrão, completamente coberto de negro, inclusive as mãos enluvadas, a cabeça... Tudo. Dele não se viam mais que os olhos, pelas estreitas fendas do capuz.

 

Quantas precauções para um gatuno tão sigiloso, que até então ninguém havia podido ver! Além disso, devia ser bastante surdo... Sim, bem surdo, pois de outro modo teria ouvido a chegada dos carros, os risos do grupo ao entrar na casa... Tinha que ser completamente surdo.

 

— Para lá — ele fez um gesto com a metralhadora. — Todos para aquele canto.

 

A primeira a mover-se foi Brigitte e os outros a seguiram docilmente. O ladrão foi a uma janela, abriu-a, passou uma perna por sobre o peitoril e, súbito, com grande agilidade, saltou para fora... Andrew avançou um passo, excitado.

 

— Vamos...!

 

O ladrão reapareceu de repente na janela, as mulheres gritaram... e a rajada obrigou todos a se atirar no chão, aterrados, enquanto as balas perfuravam quadros, espedaçavam jarrões...

 

Cessou a rajada e Brigitte ergueu a cabeça, olhando para a janela e sorrindo ironicamente. Estendidas no chão, as outras jovens soltavam gritos agudos, histéricos. Nos fundos da casa soavam vozes, passos precipitados...

 

Brigitte se levantou e disse tranquilamente: — Ele já foi. Não há mais perigo.

 

A porta dupla se abriu com violência e os servos da casa entraram precipitados, todos em roupas de dormir, olhos muito abertos. Um deles se dirigiu a Sakit e ajudou-a a levantar-se, falando precipitadamente em sua língua. Ela reagiu de maneira um tanto brusca e indicou o telefone, para o qual o servo se encaminhou, manipulando o disco sem hesitação.

 

— Polícia? — falou quase aos gritos. — Aqui é da residência de...

 

Brigitte olhava os empregados um a um, sem se interessar em absoluto pelo que o do telefone pudesse dizer à polícia.

 

Todos eram tailandeses, evidentemente. Ninguém parecia saber o que fazer e os elegantes rapazes do grupo consolavam seus pares como podiam. O servo terminou seu telefonema e disse qualquer coisa, olhando para Sakit, que se deixou cair numa poltrona c pôs-se a contemplar com expressão grave seu cofre aberto e recém-saqueado. Outro servo chegou a toda a pressa e deteve-se no umbral, olhando para todos os lados. Brigitte dirigiu lhe um olhar tranquilo contendo novo sorriso. O homem tinha a testa molhada de suor, respirava agitadamente. Seu nariz era diminuto e tão chato que as fossas nasais pareciam abertas em pleno rosto.

 

Sakit olhou-o e murmurou: — Tieh, uísque para todos. Por uma vez, precisamos realmente de um trago. Temos que nos acalmar para quando chegar a polícia...

 

— Alguma pista?

 

O tenente Maxwell virou-se ao ouvir a pergunta e olhou a jovem que a tinha formo lado.

 

— É possível, miss... miss...

 

— Montfort.

 

— Oh, sim: Montfort. Bem, como lhe disse, é possível que tenhamos alguma pista. Mas não o saberemos com segurança até que meus homens tenham terminado o trabalho aqui. Não deveria estar dentro, com os outros?

 

— Muito abafado aquele salão, tenente. Pensei que não incomodava ninguém tomando um pouco de ar.

 

— Claro que não... Parece muito menos assustada que as outras.

 

Brigitte sorriu e olhou para o jardim, onde, com luzes, os policiais estavam procurando marcas da passagem do ladrão, enquanto, dentro da casa, os técnicos em impressões digitais dedicavam-se ao cofre e suas proximidades.

 

— Por que deveria estar assustada? — sorriu ela.

 

— Bom... Dispararam-lhes uma rajada de metralhadora, não? Felizmente passou muito alto, do contrário é possível que tivéssemos agora mais de um cadáver na casa.

 

— Isso seria na verdade lamentável. Mas, como o senhor bem disse, dispararam tão alto, que ficamos todos vivos. Sorte, não acha?

 

— Poderia ter sido outra coisa? — Maxwell apertou as pálpebras.

 

— Certamente que não. Eu... não quero parecer-lhe impertinente, mas receio que estejam perdendo tempo aí dentro. Não encontrarão nada: o gatuno estava de luvas.

 

— Está pretendendo me ensinar meu trabalho? — grunhiu o tenente.

 

— De modo algum! Faça o seu, que eu farei o meu. Só queria...

 

— Qual é o seu trabalho?

 

— Jornalismo.

 

— Oh... Não me disse isso antes.

 

— Porque não me perguntou sobre minha profissão.

 

— Pensei que fosse uma... uma... garota dessas do cinema, creio que me entende.

 

— Uma convidada, nada mais. Vim aqui porque pensei que me divertiria.

 

Os olhos de Maxwell cintilaram, com expressão jocosa.

 

— E se divertiu?

 

— Hum... Pelo menos tenho um bom artigo para escrever. Mas se o senhor assim o desejar, não escrevo nada.

 

Maxwell abriu tanto os olhos, que pareceram a ponto de saltar das órbitas.

 

— Estarei sonhando? — exclamou. — Uma jornalista que me diz...? Ora vamos, certamente quer brincar comigo! — concluiu com um resmungo.

 

— Garanto que não... Já sabem por onde entrou o gatuno?

 

— Muito esperta, hem? Diz que não vai publicar nada, mas está me interrogando com uma habilidade demoníaca. Pois saiba... Que é?

 

O detetive, que tinha parado a dois passos, aproximou-se.

 

— Entrou pelo telhado, tenente. Por um dos respiradouros, que servem também para serviços de limpeza e reparos.

 

— Está bem — resmungou Maxwell, captando o sorrisinho de miss Montfort. — E por onde saiu?

 

— Não sabemos. Nenhum rastro...

 

— Como? — bradou o tenente.

 

— Bom, quero dizer que... que não encontramos seu rastro no jardim...

 

— Pois tem que estar lá! Ou não?

 

— Claro, deveria estar, mas... Bom, já investigamos todo o terreno e não pudemos... Quero dizer que... que não está lá o rastro que deveria estar...

 

— Ah... Ele saiu voando, então. Compreendo.

 

O detetive corou ao perceber o sarcasmo de seu chefe.

 

— Continuaremos procurando — disse num murmúrio.

 

— Uma grande ideia, Granger... Uma ideia formidável!

 

O homem se afastou, mastigando uma imprecação, e Brigitte olhou sorridente para Maxwell.

 

— Não foi um pouco duro com esse rapaz, tenente?

 

— Escute, miss Montfort, não costumo ser grosseiro, mas vou lhe pedir um favor: ocupe-se de seus assuntos, que me ocuparei dos meus, tal como falamos antes. Está claro?

 

— Como queira. Posso ir, ou vão me revistar antes, para ver se as joias estão comigo?

 

— Muito espirituosa! Tinha mesmo que ser jornalista, claro... Pode ir: não parece provável que esteja com as joias.

 

— Por que não?

 

— Ouça: deixe de me irritar... Estou há meses atrás desse ladrão de joias, de modo que já perdi todo senso de humor. Mas se quer uma explicação, aí tem: as joias não podem estar com você nem com pessoa alguma da casa, pois o ladrão as levou. Não lhe havia ocorrido isso?

 

— Devo ser idiota... Então, posso ir?

 

— À vontade.

 

— Há inconveniente em que deixe minhas impressões no telefone para pedir um táxi? Não quero incomodar meus amigos nestas circunstâncias.

 

Maxwell olhou-a, já francamente irritado.

 

— Há uma cabina telefônica a duzentos metros daqui.

 

Use-a... Assim não deixará suas impressões.

 

— O senhor é muito rancoroso, tenente. Adeus.

 

Ele soltou um grunhido e viu-a afastar-se rumo ao portão, até que subitamente se deu conta de que estava sorrindo e que, diante dele, olhando-o com ar maroto, estava um de seus homens, que, ao se ver olhado, comentou: — Que gostosura, hem, tenente? Eu daria qualquer coisa para...

 

— Sossegue, Moore: você já não está em idade de semelhantes assanhamentos. Alguma coisa de novo?

 

Enquanto isso, a agente Baby saía da mansão, cuja frente, na solitária avenida, estava apenas um carro da Polícia, com as luzes apagadas e um agente vigiando nem ele mesmo devia saber o quê.

 

Já chegando à cabina telefônica, ela cruzou com um indivíduo barbudo e cabeludo, de autêntica má catadura e pessimamente vestido, que, encurvado e andando aos boléus, tinha uma garrafa no bolso de seu surrado paletó. Sorrindo, ela entrou na cabina, abriu a bolsa... e deu um suspiro. Nem uma só moeda.

 

Tornou a sair e dirigiu-se ao inquietante indivíduo, que estava plantado junto à parede, olhando as estrelas.

 

— Fiquei sem moedas e tenho que telefonar pedindo um táxi — disse-lhe. — Você me empresta uns centavos, Alan?

 

O sujeito deu um pulo e olhou-a com olhos arregalados.

 

— Diabo! — exclamou. — Agora sei a causa do meu fracasso: incapacidade para me disfarçar!

 

— Não, não... Você está muito bem. Dê-me as moedas.

 

— Bom, já que me descobriu, posso levá-la no carro que aluguei, não?

 

— Prefiro voltar de táxi, pois o tenente Maxwell pode querer investigar meus passos.

 

— Puxa, você é mesmo esperta... Estive esperando que me chamasse pelo radinho, mas suponho que não pôde. O que aconteceu exatamente lá dentro?

 

— Roubaram as joias de Sakit Dien Bo.

 

— Que... ? — Nash pareceu não entender.

 

Brigitte explicou-lhe tudo rapidamente e ele ficou boquiaberto.

 

— Mas... não é possível Se ela foi roubada, então nada tem a ver com tudo isto!

 

— Sim, parece. O ladrão é o homem que escapou saltando o gradil, suponho.

 

— O gradil da mansão? Mas... Estou seguindo Sakit desde que saiu da festa, não perdi a casa de vista um só momento: homem nenhum saltou o gradil, Brigitte!

 

— Eu sei, Alan.

 

— Sabe? Bem, então não entendo...

 

— Tudo terminou... para você. Direi o que tem que fazer agora: vá dormir em qualquer parte... que não seja seu bangalô, claro. E amanhã trate de localizar o carro dessa gente. Se o conseguir, me chame pelo rádio. Depois desapareça: fique quieto num lugar seguro, até que eu o chame. É só.

 

— Mas eu quero...

 

— Psit... Aí vem um policial.

 

Alan Nash virou-se sobressaltado, ouvindo atrás de si a voz do agente que vira Brigitte sair da casa de Sakit: — Posso ajudá-la em alguma coisa, miss?

 

Olhou severamente para Nash, mas Brigitte sacudiu a cabeça, sorrindo.

 

— Não, obrigada... Fiquei sem moedas e pedi troco a este cavalheiro, que parece ter dificuldade para encontrá-la em seus bolsos...

 

— Aqui estão as moedas — resmungou Nash. — pode guardar a sua nota, boneca. Encantado por servir a tão formosa criatura...

 

— Está bem — disse o policial. — Andando. Não creio que esta seja a sua zona... Andando.

 

Nash hesitou, mas finalmente resmungou alguma coisa e afastou-se, seguido pelo olhar torvo do policial, que mudou totalmente de expressão ao virar-se para Brigitte.

 

— Nunca se sabe o que podem tentar tipos como esse... E não é bom que estejam por Beverly Hills a estas horas. Não precisa de mais nada, miss?

 

— Não. Fico-lhe muito grata. Pedirei um táxi que me levará para casa. Espero que o que aconteceu esta noite não me tire o sono, pois do contrário estarei de olheiras amanhã e isso será terrível, não acha?

 

Eis que chega uma pomba

 

Devia ter dormido muitíssimo bem, pois não apresentava o mínimo sinal de olheiras no dia seguinte. Ao contrário, às seis da tarde estava bela como uma rosa recém-desabrochada. Tinha alugado um carro por sua conta, sem o mencionar aos Carmody, munira-se de um binóculo e havia quase quatro horas que estava postada perto da mansão de Sakit Dien Bo, vigiando-a, sem resultado até o momento.

 

Mas isto não a impacientava em absoluto. O que a mantinha inquieta, e muito, era que Alan Nash respondesse seus repetidos chamados pelo rádio. Naturalmente, considerando que o ator não tinha experiência em manipulá-lo, era possível que tivesse estragado o aparelho, mas este pensamento não conseguia afugentar completamente o negro presságio de que algo lhe ocorrera.

 

Chamou uma vez mais, com resultado idêntico: silêncio.

 

Deixou o radinho no assento contíguo e tomou o binóculo, olhando por ele para o gradil da mansão de Sakit.

 

— Ah... O homenzinho suarento e arquejante — murmurou. — Por fim se move... O que é uma imprudência, estando tão próximo o roubo das joias... Entretanto, deve ter muito bom motivo para não perder tempo.

 

O homem que tinha saído da casa era o chamado Tieh, o que chegara em último lugar ao salão de Sakit, depois de cometido o roubo. E afastava-se da casa, a pé... Brigitte deixou o binóculo e olhou-se no espelho retrovisor. Perfeito: não era provável que a reconhecessem, com a peruca loura, as lentes de contato, os recheios nas bochechas... Pôs o carro em marcha e começou a seguir Tieh, que caminhava sem pressa, aparentemente distraído.

 

Dez minutos mais tarde, perto do Wilshire Boulevard, ele aproximou-se de um carro estacionado e, sem hesitação, meteu-se nele. Brigitte tornou a usar o binóculo. Sorriu ao ver o outro homem dentro do carro, ao volante. Mas não era o carro que já conhecia... Que deviam estar pensando aqueles tailandeses a respeito dos seus dois companheiros e do outro carro?

 

Evidentemente, não tinham encontrado o veículo e, sem notícia dos outros dois, deviam estar alarmados. Talvez por isso se moviam, tomavam decisões. Fosse pelo que fosse, aquela gente estava precipitando os acontecimentos.

 

O carro dos dois tailandeses abandonou Beverly Hills, rumando para Santa Mônica. E durante meia hora, a espiã internacionalíssima o seguiu, sempre mantendo a distância.

 

Não era provável que ele se desse conta de que eram seguidos.

 

Finalmente, após deixar atrás Santa Mônica, tomaram pela Seaside Road, para o norte, e pouco depois viravam à esquerda, por um estreito caminho de terra que descia para a praia. Compreendendo que seria o fim da viagem, pois não era provável que continuassem rodando pela areia, Brigitte saiu da estrada e deteve seu carro junto a um grupo de árvores. Apanhou rapidamente a maletinha, apeou e cruzou a estrada, rumo à praia. Olhando para esta, ainda pôde ver que o carro dos tailandeses se detinha diante de um grupo de velhos chalés, que pareciam abandonados. Evidentemente, não fora feliz a ideia de construí-los ali, pois as marés deviam chegar até eles. Mau negócio.

 

Os dois saltaram e Brigitte se encolheu ao perceber que iam virar-se e olhar para cima, para a estrada... Quando espiou novamente, ambos caminhavam para uma das casas.

 

Todas eram muito juntas, como querendo aproveitar o mais possível o espaço. Nos telhados vermelhos faltavam muitas telhas e todo o conjunto oferecia um aspecto descuidado, melancólico... Talvez porque começava a escurecer.

 

— Um pouco mais de escuridão virá a calhar... — pensou. — Mas antes me certificarei de que esse chalé fica sob meu controle.

 

Naquele momento, os dois homens subiam ao pórtico da casa e a porta se abria antes que tivessem batido.

 

Desapareceram no interior.

 

E então? Estava claro que o tal Tieh fazia seu próprio jogo naquele assunto. A pergunta lógica era: fazia também seu jogo próprio a exótica Sakit? Estava a par de tudo aquilo, de modo que Tieh era um de seus cúmplices? Ou simplesmente um grupo de tailandeses estava tramando algo à sombra da jovem beldade oriental?

 

Deslizou para o chalé, escondendo-se junto às paredes dos outros. Todos estavam silenciosos. Muito perto, quase tocando os primeiros pórticos, o mar lambia a areia...

 

Chegou à casa, examinou as janelas da frente, a porta e viu luz debaixo desta. Mas não nas janelas, que deviam estar tapadas com qualquer coisa espessa. Era fácil compreender que havia alguém atrás da porta, de modo que se entrasse utilizando uma de suas gazuas, seria ouvida... e não lhe fariam uma recepção amistosa.

 

Olhou para o alto da casa, na dúvida. Viu a parreira seca num dos lados e aproximou-se sem hesitar. Levou uma das mãos a ela e puxou-a suavemente, mas com força. Resistiria, sem dúvida. Passou a alça da maleta pelo pulso, segurou a parreira com ambas as mãos e empreendeu a difícil escalada.

 

Tinha que subir, mas ao mesmo tempo, evitar movimentos bruscos que produzissem ruído, ou, pior ainda, o desprendimento da parreira, com o que viria ao chão.

 

Entretanto, uma vez mais, seus músculos responderam ao esforço. Lentamente, mas com firmeza e segurança surpreendentes, foi subindo até chegar à beira do telhado.

 

Aferrou-se às primeiras telhas e, quando ia realizar uma flexão para guindar-se ao nível do telhado, uma delas se soltou, ficando em sua mão esquerda. O corpo de Brigitte, privado de um ponto de apoio, começou a descair para um lado...

 

Mas a queda não se consumou. Pendurada por um só braço, ela jogou a telha para trás, por cima do ombro, com toda a força, e, enquanto sua mão livre novamente se cravava na borda do telhado, a telha fortemente lançada caía na areia, em silêncio, lá onde chegava a água das ondas já mortas.

 

Um lento e profundo suspiro brotou de seu peito.

 

Novamente flexionou os braços, agora com ambas as mãos agarradas a lugares sólidos, e assim pôde efetuar a difícil torção de corpo que a colocou em cima do telhado, paralelamente à borda. Devagar, foi engatinhando para o vértice, onde via uma claraboia. Avançava às polegadas, deslocando-se sempre a pulso, sobre as pontas dos pés e as mãos, experimentando antes a solidez de cada telha...

 

Quando chegou junto à claraboia, estava com o rosto brilhante de suor.

 

Sentou-se de pernas cruzadas, abriu a maletinha e sacou a escova para cabelo. Apertou o cabo, fazendo aparecer a fina lâmina de aço, que brilhou na já quase completa escuridão da noite. Introduziu-a no encaixe da claraboia e, durante dois minutos, esteve procurando O fecho. Por fim, sempre suavemente, fez um esforço com o pulso e ouviu um estalido.

 

Experimentou a claraboia, verificou que se abria, guardou rapidamente a escova e, com a alça da maleta em torno do pulso, levantou-a completamente. Dentro, tudo escuro...

 

Introduziu-se pela abertura, tornou a baixar a claraboia e ficou encolhida, sem se mover. Segundos depois acendeu sua pequena lanterna, fazendo uma cara de desagrado. Estava num sótão de teto baixíssimo, cheio de coisas velhas e especialmente teias de aranha... Ouviu um ruído abafado e baixou a luz, a tempo de ver o rato esconder-se atrás de umas caixas.

 

— Psit... — fez sorrindo.

 

Dirigiu a luz para a pequena porta que havia a um canto.

 

Chegou tranquilamente até lá. Estava fechada por fora, mas segundos depois abriu-a, ficando outra vez diante de uma zona escura. Acendeu a lanterna e viu uns degraus de madeira. Embaixo, a cozinha. Desceu sigilosamente, sem que os degraus rangessem uma só vez.

 

Por baixo da porta da cozinha havia luz, e através da mesma chegavam-lhes vozes. Um destas, vibrante de raiva, soava mais forte que as demais.

 

Aproximou-se da porta, pistola na mão, e, ajoelhando-se, procurou uma fresta por onde olhar; justamente no momento em que ouvia um profundo gemido de dor.

 

O infeliz Alan Nash, já sem a barba e a desgrenhada peruca, gemeu ao receber o pontapé no ventre e, uma vez mais, caiu no chão, encolhendo-se.

 

Tinha as mãos amarradas nas costas, sangue no peito, lábios partidos e sangrava pelo nariz. Em todo o seu rosto havia medonhas pisaduras.

 

Estendido de lado, cravou os olhos no homem que acabava de golpeá-lo outra vez, enquanto os outros dois permaneciam na expectativa, revólver na mão, sorrindo friamente. As janelas estavam hermeticamente fechadas, cobertas inclusive por escuras cortinas, de modo que nenhum som sairia da casa. E fazia tanto calor ali dentro, que não era somente Nash quem suava...

 

— Em poucos minutos ela chegará, Nash — disse o tailandês —, e então tudo vai ficar muito pior. Você não sabe do que é capaz... Acredite, quando lhe digo que fale agora estou-lhe dando um bom conselho.

 

— Prefiro... esperá-la...

 

— Não seja louco. Ela o fará em pedaços. Sou um homem, sei bater, mas... minha imaginação é pobre. A dela é riquíssima em refinamentos que você nem sequer pode imaginar. Olhe, poupe-se uns quantos golpes agora e o que ela lhe pode fazer quando chegar. Você matou dois de nossos companheiros, mas talvez não o tenha feito sozinho.

 

Fia pensa que alguém está lhe ajudando nisto... Diga-me onde estão Fuan e Pien, e quem é que lhe ajuda. Só isso, Nash, e morrerá rapidamente. Que responde?

 

— Não.

 

— Você é um estúpido. Não sabe em que enrascada se meteu... Dela só sairá a caminho do cemitério. Mas pode fazer isto sem dor. Quem lhe ajuda? Quem mais está com você? Não quer dizer?

 

— Não.

 

O tailandês aproximou-se, furioso, e aplicou um pontapé no fígado de Nash, que o deixou como petrificado, lívido, quase sem poder respirar.

 

— Quem lhe ajuda? — repetiu o espancador. — Quem quer que seja, deixou você sozinho e numa situação que só tende a piorar se persiste em seu silêncio. Você não entende destas coisas. Nash: tarde ou cedo, sabemos que falará, que dirá tudo o que quisermos. Assim, você terá sofrido em vão.

 

É apenas um passarinho que se meteu a voar entre águias...

 

— Eu diria: entre abutres — ouviram uma voz por trás deles. — E aqui chega uma pomba.

 

Mais um numa longa lista de amigos em todo o mundo

 

Os três tailandeses viraram-se como raios para a porta da cozinha e os dois que empunhavam revólveres moveram-nos significativamente para lá, já prontos a abrir fogo.

 

Plop.

 

Plop.

 

Os dois tiros da pistolinha de coronha de madrepérolas soaram quase juntos, como suavíssimos estalidos. A primeira bala cravou-se justamente no meio da testa de um daqueles homens, que deu uma cambalhota para trás e caiu de cara contra o chão, instantaneamente morto. O outro teve melhor sorte: recebeu a bala no ombro direito, lançou um grito soltando o revólver, girou e foi cair de joelhos diante de Nash, que olhava com expressão entre aliviada e angustiada para a belíssima jovem de curtos cabelos louros.

 

A qual tinha se voltado para o homem que o estivera golpeando, a pistolinha firmemente apontada para onde ele estava levando a mão: o sovaco esquerdo.

 

— Pense bem, Dong Penh... — disse ela. — Mostre como é esperto.

 

Ele ficou imóvel, a mão como grudada ao peito. Seu olhar foi para Tieh, que gemia, de joelhos, mão esquerda crispada sobre a ferida do ombro direito. Por fim, baixou a mão, endireitou-se e olhou fixamente para Baby.

 

— É bastante esperto — sorriu esta —, admito. Embora espere que não vá dizer-me que isto é um filme em que você, uma vez mais, desempenha o papel de vilão... Eu não acreditaria, claro.

 

Dong Penh apertou as pálpebras, através das quais reluziu uma centelha de assombro, de incredulidade.

 

— Miss Montfort? — perguntou, adiantando-se um passo.

 

O sorriso pareceu congelar-se nos lábios de Brigitte.

 

Olhou de cima a baixo o pequeno, porém maciço tailandês, que parecia capaz de dobrar uma barra de ferro entre suas poderosas mãos.

 

— Se der mais um passo, eu o frearei para sempre.

 

— Não fique nervosa... — sorriu Dong Penh. — Foi só a surpresa. Poderia ter pensado em qualquer pessoa, menos em você.

 

— Pois já vê como a vida é surpreendente.

 

— Sim... Diga-me: é quem está ajudando Nash neste assunto?

 

— De fato, trabalhamos juntos. Mas Nash não permitiu que eu colaborasse muito, já que não quis seguir meus conselhos. Disse-lhe que se mantivesse afastado.

 

— Sábio conselho... — murmurou Dong Penh; — Por que o deu? Preferia receber sozinha a recompensa que oferecem pela recuperação das joias?

 

— Joias? — tornou a sorrir Brigitte. — Ah, mas... este é um assunto de roubo de joias, Dong Penh?

 

Os olhos do tailandês quase se fecharam completamente.

 

— Pensa que não? — perguntou.

 

— Com efeito, é o que penso. Estou enganada?

 

— É possível. Vejamos... Que procura em tudo isto?

 

Dinheiro?

 

— Você vai rir. Sabe qual será minha recompensa quando tudo terminar?

 

— Qual?

 

— Um pequeno vaso de cristal da Boêmia.

 

Dong Penh mostrou um sorriso quase simpático.

 

— Mas haverá algo mais, não?

 

— Oh, sim... Claro. Também ganharei um amigo — indicou Nash. — Mais um na minha longa lista de amigos em todo o mundo. Ou não será você meu amigo, Alan?

 

— Amigo? — balbuciou o ator. — Serei seu escravo!

 

— Não é preciso tanto. Que lhe parece? Esperamos Sakit Dien Bo... para pedir-lhe um autógrafo?

 

Nash soltou uma risada, mas em seguida seu rosto se crispou de dor. Dong Penh estalou os dedos com certa impaciência.

 

— Sua conversa é agradável, miss Montfort, mas parece-me que não estamos falando com a clareza que o assunto requer.

 

— Nisso estou de acordo. Falemos claro então... Que têm a ver os russos com tudo isto?

 

— Os russos?

 

— O rádio que um de seus companheiros tinha no bolso era de fabricação russa. Não tinha marca alguma, naturalmente, mas eu identifico o material soviético com um simples olhar.

 

— Pois sua vista é muito boa. Tiramos aquele rádio de um agente do MVD que estava... metendo o nariz em certos círculos da Tailândia, meses atrás.

 

— Compreendo. Ossos do ofício... Do ofício de espião, quero dizer.

 

— E que sabe dessas coisas? — disse desdenhosamente o tailandês.

 

Brigitte Montfort sorriu encantadoramente.

 

— Estou aprendendo — disse. — E você será um de meus mestres. Levante seu gemebundo companheiro, coloque-o numa poltrona e diga-lhe que se cale. Você ficará de costas para mim, jogará sua arma para o infortunado Mr. Nash, sentará junto ao seu companheiro e, então, serei eu quem dirigirá um novo interrogatório. Primeiro, com boas maneiras, Dong Penh.

 

— E depois?

 

— Se chegarmos a esse “depois”, eu lhe demonstrarei que, por muito que Sakit entenda de refinamentos persuasivos, não é mais que uma... gatinha ladra.

 

Compreende? Pois faça o que lhe disse. Primeiro, jogue o revólver. Okay, vilão?

 

Dong Penh passou a língua pelos lábios. Havia algo de...

 

aterrador naqueles belos olhos castanhos. Ele obedeceu exatamente a ordem, jogando sua arma para Nash, que deu um puxão nas cordas e tomou a gemer.

 

— Quieto, Alan. Logo o soltarei. Quando nosso amigo se tenha sentado... E ponha-se a cômodo, Dong Penh: é bom para conversar. Ajude primeiro esse chorão.

 

Dong Penh aproximou-se de Tieh e ajudou-o a levantar-se. Girou, como disposto a levá-lo para a poltrona, mas, com uma rapidez assombrosa, tornou a girar, ao mesmo tempo em que atirava o ferido contra Brigitte. O choque foi violento e ela caiu sentada. Nash lançou um grito de aviso, mas já o miúdo e maciço tailandês estava voando, diretamente para ela, num salto incrível. Caiu de bruços sobre a adversária caída, que fez com que a cabeça desta batesse no chão, ao mesmo tempo em que a pistolinha lhe escapava dos dedos.

 

Com um grito de alegria, ele estendeu a mão para seu pescoço, sem encontrá-lo. Alan Nash, impossibilitado de ajudá-la, assistiu, atônito, à mais espetacular demonstração de habilidade física que já tinha visto. Quando as mãos vigorosas do tailandês dirigiam-se ao pescoço de Baby, esta desviou-as com um tapa, enquanto seu corpo girava, debaixo do dele, projetando-o para um lado e fazendo-o rolar. Então, ela pôs-se de pé.

 

Nash gritou uma advertência: — O outro...!

 

Brigitte virou-se, viu Tieh inclinado para apanhar a pistolinha e lançou um pontapé que o atingiu em cheio no queixo. Tieh abandonou o solo, deu uma volta no ar e caiu de cabeça, ficando imóvel. Brigitte, que gastara nisto uma fração de segundo, voltou-se para Dong Penh, que começava a levantar-se. Aplicou-lhe também um pontapé, que ele esquivou quase perdendo o equilíbrio, e outro, contra os rins, por trás, que o fez tombar de cara contra o chão.

 

Mas o homem levantou-se, rugindo, para avançar com os braços estendidos. Crac! Seu nariz estalou ao entrar em contato com a aresta da mão de Baby e ele foi de encontro à parede. Pareceu ser repelido por esta e rolou até onde estava sua arma, junto de Nash, empunhando-a freneticamente...

 

Crac! Ficou ajoelhado, imóvel, com estrabismo convergente em ambos os olhos, como se quisesse ver o efeito causado pelo golpe dentro de sua cabeça.

 

Já sem lhe fazer caso, Brigitte se aproximou de Tieh, que fazia esforços para levantar-se. Agarrou-o pela gola, ajudando-o a pôr-se de pé e levando-o aos empurrões para uma poltrona, onde o jogou com um gesto seco.

 

Por fim, virou-se para Nash, que a contemplava boquiaberto.

 

— Que barbaridade... — sorriu ela. — Quase perco a peruca.

 

Realmente, a peruca estava um pouco de lado. Tirou-a, tirou também as lentes de contato com a ponta umedecida do dedo e dirigiu-se à cozinha. Regressou ato contínuo, trazendo sua maletinha vermelha com flores azuis, e olhou sorridente para Nash.

 

— Um cigarro? — ofereceu.

 

O que em espionagem se chama “coquetel”

 

Ajudou Nash a sentar-se numa poltrona, colocou-lhe entre os lábios um cigarro aceso, depois olhou-o carinhosamente.

 

— Que aconteceu com o radinho?

 

— Eles o rebentaram com um balaço... que me teria acertado no coração. Perdi os sentidos e, quando despertei, estava aqui, pés e mãos atados. Ocorreu que...

 

— Que não quis me fazer caso. Localizou quem havia alugado o carro, veio aqui buscá-lo sozinho e deram-lhe uma lição. Isto não é para você, Alan, Acredite-me: dedique-se a fazer filmes.

 

Nash resmungou alguma coisa, enquanto Brigitte limpava-lhe o rosto ensanguentado e examinava com expressão critica o pequeno ferimento, à base de cortes poucos profundos, que lhe produzira no peito o rádio ao rebentar sob o impacto da bala.

 

— Isto não é nada. Um esparadrapo provisório... e pronto.

 

Assim fez, enquanto Nash olhava o ferido Tieh, que permanecia na poltrona, como paralisado, contemplando com espanto a sensacional espiã.

 

— Como você chegou até aqui? — perguntou de súbito.

 

— Montada numa vassoura — sorriu ela.

 

— Não precisa repetir tanto que me considera um tolo.

 

— Está bem... Ontem roubaram na mansão de Sakit, mas desde o princípio tudo me pareceu muito estranho. O ladrão tinha que ser surdo, mas evidentemente não o era. Então, pensei que tudo aquilo tinha sido preparado: se também roubassem a bela tailandesa, nunca ninguém suspeitaria dela.

 

Além disso, era preciso deixar bem demonstrado que o ladrão era muito perigoso, com sua metralhadora e tudo. Só que, quando ele atirou, foi muito alto: não se podia arriscar a ferir Sakit. Esta havia preparado tudo muito bem e queria que o homem fosse visto, que não houvesse dúvidas de nenhuma espécie. E ele mesmo fez com que o vissem, pois esperou que todos entrassem no salão, tal como fora combinado. Depois escapou, mas sem se afastar da mansão: subiu ao telhado por uma corda ou escada previamente disposta. De lá, enquanto os outros servos precipitavam-se para ver o que ocorria, chegou ao seu quarto, cuja janela estava aberta, tirou as roupas pretas e, de pijama, apressou-se a descer também, após ocultar as joias... Chegou ao salão por último, suarento, ainda ofegante... Não é verdade, Tieh?

 

O tailandês olhou-a, mas não respondeu. Brigitte limitou-se a sorrir.

 

— Compreendi tudo isto — prosseguiu —, de modo que já não havia dúvidas sobre a intervenção de Sakit em todo o assunto. Mas, ao mesmo tempo, a exótica beldade me... intrigava. Falava de certas coisas com um interesse que não condizia com uma triunfante estrela de cinema. Além disso, o rádio de bolso de fabricação russa, os homens com armas munidas de silenciador, a frieza com que atuava e também um pouco de intuição de minha parte fizeram-me compreender que o assunto verdadeiro não era o roubo de joias. Estou certa, Tieh?

 

Este permaneceu mudo, como antes. Só que esta vez Brigitte não sorriu.

 

— Já matei quatro homens de seu bando, Tieh. Mais um não terá a menor importância para mim. Vejamos: qual é o assunto verdadeiro? Algum tipo de espionagem, não?

 

— Não.

 

Brigitte plantou-se diante dele, apontando-lhe a pistolinha.

 

— Tieh — murmurou —, estou há muitos anos familiarizada com a espionagem e suas muitas derivações. Já são poucas as coisas capazes de surpreender-me, mas sempre pode surgir algo novo, embora não surpreendente. Quero saber a verdade. De acordo?

 

— Não tenho nenhuma verdade a explicar — arquejou o tailandês.

 

Ela assentiu com a cabeça, sombriamente.

 

— Você pode caminhar, Alan?

 

— Sim, claro...

 

— Vá à cozinha e traga-me um facão. O maior que encontrar.

 

Tieh olhou-a sobressaltado e viu-lhe o frio sorriso.

 

— Não se assuste — disse ela amavelmente. — Só quero extrair a bala que tem no ombro. Como sou muito brincalhona, entretanto, não começarei pelo ombro, mas pelo ventre. Quem sabe? É bem possível que ela tenha descido...

 

Não acha?

 

O rosto de Tieh perdeu um pouco mais de cor.

 

— Não vai fazer isso comigo — balbuciou.

 

— Aqui está o facão — disse Nash, voltando da cozinha e estendendo-o a Brigitte.

 

— Obrigada, querido. Sente-se, não se canse. Isto eu posso fazer sozinha. Se o amigo Tieh não começar a responder minhas perguntas com legítimo desejo de cooperação, procurarei essa bala à minha maneira... É que nada entendo de cirurgia, infelizmente. Prepare-se, Tieh.

 

— Não... não pode fazer isso comigo!

 

— Já ouviu falar da agente Baby, Tieh?

 

Um relâmpago de alarma fulgurou nos olhos do tailandês, enquanto em seu rosto bronzeado desaparecia qualquer vestígio de cor. Seus lábios começaram a tremer.

 

— Pois aqui a tem, diante de você — prosseguiu. — E eis a primeira pergunta: onde estão as joias roubadas?

 

Tieh apertou as mandíbulas, com esforço, enquanto a ponta do facão de Brigitte pousava sobre seu peito, como prestes a atravessá-lo. Nash recordou, inquieto: — Sakit vai chegar a qualquer momento, segundo eles disseram...

 

— Eu sei. Por isso não perderemos mais tempo.

 

Aponte o revólver para ele, Nash. Vou lhe extrair a bala...

 

Inclinou-se um pouco mais sobre Tieh, calcando a ponta do facão contra seu peito. O grito do tailandês fez vibrar a casinha, enquanto um suor de angustia escorria-lhe pelo rosto. O coitado era a própria imagem do pânico.

 

— Não, não... — tartamudeou. — Eu lhe direi tudo...

 

Direi tudo!

 

Brigitte endireitou-se, facão em riste, olhos frios como gelo.

 

— Onde estão as joias? — repetiu.

 

— Estão... aqui mesmo, debaixo... dessas tábuas... Podem ser levantadas...

 

Olhou para onde ele apontava. Afastou a poltrona colocada sobre aquele ponto, meteu o facão na juntura de duas tábuas e, segundos depois, um quadrado de madeira se levantava. Enfiou a mão, todo o braço, metade do corpo por aquela abertura, até tocar em alguma coisa. Quando se endireitou, segurava um volumoso saco preto, que parecia muito pesado. Depositou-o sobre uma mesinha, abriu-o completamente e milhares de cintilações pareceram iluminar o ambiente. Alan Nash estava estupefato.

 

— As joias... As joias estão aqui!

 

Precipitou-se para ela, enquanto Baby tomava a encarar Tieh.

 

— Por que...? Não. Farei a pergunta de outro modo: qual é o destino destas joias?

 

— Tailândia.

 

— Compreendo. Que farão com elas?

 

— Pagar uma partida de armas que está sendo esperada faz tempo.

 

— Para que são as armas?

 

— Para uma revolução. Vários assassinatos estão preparados e há um plano para a tomada de todos os centros de comunicação e abastecimento de Bangcoc.

 

— Continuo compreendendo. Quem são as vítimas?

 

— Não sei.

 

— Tieh...

 

— Não sei! Sakit sabe isso, mas eu não! Também Dong Penh sabia... Não sei mais do que estou dizendo. Há uma revolução preparada, esperando somente as armas que seriam pagas com estas joias. Não sei nada mais!

 

— Sakit é quem sabe?

 

— Sim, ela sim!

 

— Vamos esperá-la — murmurou Brigitte. — Embora já bem pouco importe o que ela possa dizer-me, Tieh. Sempre detestei as revoluções armadas. Compreendo que às vezes é necessária uma mudança num país, mas há melhores caminhos que matar inocentes. Porque sempre quem paga tudo isto é o povo, a gente que nada vai ganhar com a revolução, salvo uma troca de chefes. Não, não me importa saber mais, nem sequer que ambiciosos planos tem Sakit, nem quem a enviou aqui faz tempo como espiã, ladra ou o que seja. Ela é uma gata ladra, apenas. E seus planos falharam. Não haverá revolução, não haverá mortes. Alan, leve as joias.

 

— Quê? — espantou-se ele. — Nem me fale nisso!

 

— Acaso não estão todas?

 

— Não sei... Penso que sim... E isto é o estranho, não acha?

 

— Sim, um pouco... Por que não enviaram as joias, Tieh?

 

— O pagamento só deverá ser feito dentro de cinco semanas. Sakit disse que era melhor guardá-las aqui, pois a operação de enviá-las à Tailândia devia ser feita uma só vez.

 

— Muito esperta... Tem razão, claro. Como está planejando o envio?

 

— Um helicóptero virá buscá-las, levando-as até um iate que seguirá viagem para Honolulu. Antes de lá chegar, outro helicóptero as recolherá e...

 

— Entendo, entendo. De salto em salto, o lote completo teria chegado clandestinamente, é claro, à Tailândia. Tudo está bem planejado. Quando é que Sakit virá?

 

— Não sei. Ela me mandou para ajudar Fao e Dong Penh a eliminar Nash e preparar as joias.

 

— Para enviá-las já?

 

— Sim.

 

— Ah, está assustada. Por isso fez com que roubassem suas joias ontem, para enviá-las também a fim de que servissem à causa revolucionária, sem que se pudesse suspeitar nada. Assustou-se, sabe que o desaparecimento de seus amigos significa alguma coisa e quis concluir a operação. É isso?

 

— É — murmurou o tailandês.

 

— Neste Caso, virão esta mesma noite buscar as joias com o helicóptero?

 

— Exato.

 

— Diabo! — exclamou Nash. — Estamos perdendo tempo escutando-o, metidos nesta ratoeira, enquanto ele espera que cheguem seus amigos e nos matem!

 

— Sim — sorriu Brigitte. — É muito astuto. Mas nós não somos tolos: leve as joias, Alan.

 

— Se você fica, eu fico. E garanto-lhe que nada do que diga ou faça me forçará a desistir... a não ser que me mate.

 

— Não me agrada perder idiotamente um amigo — sorriu Brigitte. — Vá pensando no que dirá. Alan, porque eu, quando terminar o assunto, desaparecerei daqui e não quererei saber mais nada dele.

 

— Não deverei mencioná-la?

 

— Em nenhum sentido.

 

— Então... você é realmente uma espiã?

 

— Sou — sorriu mais uma vez. — Não é tudo assombroso? Uma espiã que, sem o saber, mete-se num assunto de espionagem, um ator que voltará a ser famoso, uma jovem exótica com magnífico futuro no cinema que deixa tudo para servir a uma revolução com uma série de assassinatos políticos... É o que nós, espiões, chamamos um “coquetel”. E quase nunca tem bom sabor.

 

— Vamos esperar Sakit?

 

— Você faça o que quiser. Eu a espero, claro. Talvez consiga alguns dados de utilidade para meus companheiros no Sião. Embora não creia que essa beldade saiba grande coisa... Oh, mais uma pergunta, Tieh: quem roubou todas essas joias? Você?

 

— Não... Eu só atuei ontem à noite. Era Sakit quem ia aos outros lugares. Ela é capaz de passar por qualquer orifício, ou fenda... O que seja.

 

— Claro: a gatinha ladra.

 

— Eu lhe disse que era ela — observou Nash.

 

Brigitte olhou-o, sorriu e acendeu um cigarro. Depois sentou-se numa poltrona, pensativa. Era dona de toda a paciência do mundo, quando necessário.

 

As seis esposas de “Mongkut”

 

Habitualmente, O ouvido de Baby captava o mais leve som, prevenindo-a da chegada de alguém. Aquela vez, entretanto não foi assim e a batida na porta encontrou-a relaxada, ainda pensativa.

 

Teve um sobressalto, levantou-se e olhou para Nash, que se virara para a porta, mais sobressaltado ainda, revólver na mão. Antes que ele pudesse reagir, Brigitte levou um dedo aos lábios. Indicou Tieh, que se endireitara em sua poltrona, depois a si mesma e por fim a porta.

 

Foi até esta, abriu-a, pôs-se de um lado e Sakit Dien Bo entrou no chalé, com seu gato siamês nos braços, rosto alterado.

 

— É preciso...

 

A tailandesa emudeceu. Tinha visto Nash empunhando o revólver e, com fino e rápido instinto, virou-se para a porta, junto à qual estava Brigitte, que naquele momento a fechava com suavidade, mas cortando a possível fuga da exótica atriz-espiã.

 

— Olá! — sorriu Baby. — Seja bem-vinda, Sakit.

 

Esta olhou para a mesinha onde estava o saco preto com as joias que durante meses tinha roubado aos magnatas cinematográficos de Beverly Hills. Somente um cego teria deixado de ver aquela faiscante fortuna. Olhou depois para Tieh e entrecerrou as pálpebras.

 

— Então eu estava certa... — murmurou. — Tieh não passa de um cúmplice dos ladrões de joias...

 

Brigitte riu divertida.

 

— Fantástico! — exclamou. — A isto chamo autêntica rapidez mental, querida. Agora, vejamos se adivinho o resto: você vai dizer que recebeu uma... confidência, que veio sozinha em seu carro até aqui, que o deixou na estrada e desceu para ver se descobria os ladrões de joias.... Uma heroína! Adivinhei?

 

— Sim... — sorriu a jovem. — Isso mesmo! Oh, estou muito surpreendida de encontrá-la aqui, miss Montfort.

 

— Acredito. O que talvez não a tenha surpreendido tanto é que eu deixasse de ir à sua casa para tomar chá, atendendo ao seu convite. Aposto que isso a deixou bastante intranquila. Mas, de qualquer modo, você tinha que vir aqui, não é verdade?

 

— Bom, eu não sabia...

 

— Ora vamos! Esqueceu? O helicóptero, as joias, a revolução, o assassinato de Nash Não é possível que tenha esquecido tudo isso, querida! Quando virá o helicóptero?

 

— Que helicóptero?

 

— Sakit, você é uma gata ladra que, por sua magnífica atuação, admiro, no fundo. Saiba que Tieh fez-nos a gentileza de contar tudo, de modo que há pouco mais a dizer.

 

Agora só resta detê-la e enviá-la à Central da CIA em Washington. Deste modo, através de seus informes, não duvido que meus companheiros no Sião recebam dados suficientes para fazer uma limpeza entre certos revolucionários. Por outro lado, sem as joias, essa revolução deu em nada.

 

— Nem sequer sei do que está falando...

 

— Minha querida, seja boazinha. Sente-se, esperemos a chegada do helicóptero, acabemos com esses indivíduos que devem ser tão assassinos como os seus outros amigos e depois você, vivinha e sorridente, será enviada a Washington. De acordo?

 

— Uma de nós duas está doida, miss Montfort.

 

— Sem dúvida devo ser eu: sempre ouvi dizer que genialidade é manifestação de loucura. A não ser que se dê o contrário: que a loucura seja uma forma de genialidade...

 

Você que acha?

 

— Não sei. Estou tão assombrada... Não entendo coisa alguma...

 

— E seu gatinho tampouco. Lamento não ter caviar para oferecer-lhe.

 

— Oh, “Mongkut” não come apenas caviar...

 

— Não! Será possível que tão magnífico bichano coma vulgares sardinhas, por exemplo? Bom, menina, sente-se nessa poltrona junto à do seu criado e tome as coisas com calma. Esperaremos o helicóptero. Quantos homens vêm nele?

 

Sakit não respondeu e Brigitte soltou um gracioso suspiro de resignação.

 

— Está bem. Sente-se e esperemos juntas. Se tudo é um erro, do que duvido, logo lhe devolverei as joias que o malandro do Tieh lhe roubou ontem à noite. Mas se não é um erro... Oh, que maus pensamentos tenho às vezes!

 

— Eu me sentarei — disse Sakit. — Estou tão assustada...

 

Dirigiu-se para a poltrona que Brigitte lhe indicara, mas, súbito, virou-se com incrível rapidez e lançou contra ela o gato que tinha nos braços, ao mesmo tempo em que gritava uma ordem em sua língua.

 

Então, todos entraram em movimento. Tieh gritou, levantou-se e correu para a porta. Sakit continuou gritando ordens ao gato, Nash virou-se para Tieh, erguendo o revólver... Tudo aconteceu num segundo escasso: Nash disparou contra Tieh, metendo-lhe uma bala no coração, pelas costas, antes que chegasse a porta, e Sakit começou a correr para a cozinha, enquanto seu gato “Mongkut”, ainda no ar, bufava furiosamente, estendendo as patas armadas de unhas afiadíssimas, terríveis, em direção aos olhos da agente Baby...

 

Lívida, esta girou sobre si mesma, esquivando a acometida do felino, que caiu sobre o montão de joias, enterrando nelas suas unhas com fúria inaudita, lombo arqueado, pelos eriçados. Brigitte virou-se, apontou-lhe a pistolinha e disparou. Inútil. O animal estava de novo no ar, investindo contra ela. Entretanto, conseguiu furtar-se à sua segunda arremetida e o bicho caiu de quatro patas no chão, de onde saltou novamente para ela, que estava aterrada.

 

Mas agarrou-o com ambas as mãos, antes que ele a tocasse, procurando prendê-lo pelo pescoço. O gato lançava unhadas à direita e à esquerda, mas só uma de suas unhas chegou a lacerar a dourada pele de Brigitte, que girando como um lançador de martelo enviou-o contra a parede, com a vã esperança de matá-lo. “Mongkut” pareceu absorver o impacto, caiu de pé no chão e voltou à carga... Só ver seus olhos era suficiente para gelar o sangue de qualquer um. E suas garras tomaram a aparecer quando saltou uma vez mais em busca dos olhos mais belos do mundo...

 

Como numa visão de flash, Baby viu Alan, revólver na mão, movendo-se indeciso, em busca de uma oportunidade.

 

— Não atire, Alan! — gritou-lhe. — Não atire...!

 

Plop.

 

Ordem desobedecida. Nash tinha disparado. O gato lançou um miado espantoso, encolheu-se no ar, deu duas voltas e caiu, praticamente sem cabeça, destruída pelo projétil de grosso calibre.

 

Brigitte ficou de joelhos, ocultando o rosto entre as mãos durante uns segundos, enquanto Alan Nash, parecendo atônito, olhava o gato morto, o revólver, novamente o gato, novamente o revólver...

 

— Eu acertei! — exclamou por fim. — Acertei-lhe em cheio a cabeça! Ninguém acreditará quando eu contar!

 

Brigitte pareceu reagir então. E correu para a porta da cozinha, enquanto Nash continuava admirado da pontaria que demonstrara possuir. Mal entrou na cozinha, Brigitte se deu conta de que a porta dos fundos não tinha sido tocada.

 

Olhou para cima, para os degraus de madeira, e lançou-se por eles a toda a velocidade. Subiu ao sótão com ratos e teias de aranha, atravessou-o às escuras, saiu ao telhado... e teve que aferrar-se com ambas as mãos à abertura da claraboia, para não rolar até a borda e desta ao chão. Ainda não tinha recuperado o equilíbrio quando viu Sakit saltando daquele telhado para o da casa vizinha. Um salto fabuloso, sem dúvida. Viu-a depois correr pelo outro telhado, afastando-se, escapando.

 

Sem se deter para pensar na dificuldade que tudo aquilo implicava, Baby pôs-se de pé e lançou-se atrás da tailandesa. Várias telhas partiram-se sob seus pés, complicando-lhe a marcha. Alcançou o fim do telhado e viu o vazio à sua frente. Fez o que podia fazer: saltou... E quando atingiu o outro telhado percebeu que Sakit se dispunha a saltar outra vez, que o fazia sem aparente esforço, chegava ao terceiro telhado e prosseguia a fuga...

 

Compreendendo a inutilidade de ameaçar ou dar ordens à tailandesa, seguiu pelo mesmo caminho, efetuando outro salto como nunca havia dado em sua vida. Na noite negra, com o rumor das ondas ressoando em seus ouvidos, voou para o telhado seguinte, resvalou ao chegar a este e começou a rolar para baixo, até que suas mãos cravaram-se não soube onde. Completamente apavorada, pôs-se de pé, ao mesmo tempo em que viu Sakit dirigindo-se para ela, muito à vontade sobre aquele plano inclinado, como uma gata em seu passeio noturno. Antes que ela chegasse, soube o que ia fazer.

 

Por isso, quando Sakit lançou seu pontapé, ela já se tinha afastado. Ajoelhou-se esquivando um novo pontapé, tornou a erguer-se e desferiu um golpe, com os dedos rígidos. A tailandesa deu um grito, levou as mãos ao rosto, fez meia volta e continuou sua fuga, levando atrás de si a mais audaz espiã de todos os tempos.

 

Estava a ponto de alcançá-la, quando Sakit se voltou, erguendo a perna. Esta vez o pontapé alcançou-a em pleno ventre. Ficou encolhida, cambaleando. Novamente a perna de Sakit levantou-se e, embora o golpe não a atingisse, Brigitte quase rolou telhado abaixo. Súbito, compreendeu o que estava ocorrendo: sua inimiga recorria ao silat, uma luta em que nem sequer é preciso tocar o adversário para derrubá-lo. Basta iludi-lo com ágeis movimentos de corpo, desorientando-o, desequilibrando-o... Outra vez a perna de Sakit passou junto a Baby que se agachou, lançando em seguida a sua, violentamente.

 

Sakit deu outro grito, ao ser atingida no baixo-ventre.

 

Deixou de dançar para investir, unhas em riste, mas foi segura firmemente pelos pulsos.

 

— Quieta, gata, quieta! — arquejou Brigitte.

 

Foi quando Sakit recuou de um salto, desvencilhando-se e despencando da beira do telhado, onde ambas lutavam. Seu grito subiu no ar, seguido de um baque surdo, lá embaixo, contra o solo.

 

Ainda ofegante, Baby inclinou-se por sobre a borda do telhado, para olhar. Viu o corpo da tailandesa estendido de costas e, ao lado, uma silhueta conhecida.

 

— Nash? — chamou.

 

Ele ergueu a cabeça e sua voz soou tensa: — Está... está morta...

 

Com absoluto desprezo pela lei da gravidade e coisas parecidas, Brigitte saltou do telhado, fletindo corretamente as pernas ao tocar o chão e rolando por este para amortecer a queda, como um paraquedista. Levantou-se e, aproximando-se de Sakit, tomou-lhe o pulso.

 

— Sim, está morta. Uma gatinha sem os sete fôlegos regulamentares... — comentou.

 

— Oh... você não parece humana, Brigitte... — balbuciou Alan Nash.

 

— Sou humana, querido. E ela também era, por isso morreu. Uma gata de verdade sempre cai de pé.

 

— Mas... é horrível... Tudo isto é horrível!

 

— Sinto pelas seis esposas de “Mongkut”: terão que procurar outro marido. Agora, voltemos para a casa. Ainda não terminou este assunto.

 

Puxou-o pela mão, levando-o para o chalé.

 

— Entre... Ainda há coisas por fazer. Procure no vão onde estavam as joias, que encontrará algo muito bom.

 

Como um autômato, Nash obedeceu. Tirou do esconderijo uma metralhadora, depois outra... Brigitte acendeu dois cigarros, colocou-lhe um entre os lábios e tomou uma das metralhadoras.

 

Abriu-a, sorrindo ironicamente.

 

— Estão carregadas — disse. — Poste-se a uma das janelas, Alan, e... Não está me ouvindo? Alan!

 

— Meu Deus...

 

— Vamos, você é um tipo másculo, um atleta... Reaja: imagine que isto é um filme. Você é o herói.

 

Dentro em pouco virá um helicóptero com inimigos. Sabe o que se deve fazer com os inimigos da paz? Eu lhe direi: aponta-se para eles e aperta-se o gatilho. Compreende, Alan?

 

— Compreendo.

 

— Então poste-se à janela...

 

Brigitte emudeceu bruscamente, avisada por seu ouvido.

 

Um helicóptero se aproximava.

 

— Perfeito... — murmurou. — Estamos perfeitamente sincronizados. Ouça-me bem, Alan: vou sair com o saco das joias. Serei vista, confundida com Sakit e eles descerão. Não espere que toquem a areia. Quando estiverem a distância de tiro, dispare. Entendeu?

 

— Mas... assim os mataremos...

 

— Pois é justamente do que se trata. Essa espécie de gente não vale nada, Alan, compreenda-o: são assassinos, traidores, covardes, ambiciosos, descontentes por não serem eles que governam o mundo. Não são bons, nem honrados, nem nobres... Não valem nada. Nada! Mate-os!

 

Apanhou o saco com as joias, uma das metralhadoras e saiu do chalé. Aproximou-se da praia e, erguendo um braço, fez um sinal amistoso. No helicóptero brilhou rima luz e ele começou a descer.

 

Quando o aparelho já estava a uns dez metros da areia, ela virou-se para a casa.

 

— Alan! — gritou. — Atire!

 

Nenhum tiro. O helicóptero começou a elevar-se, evidentemente disposto a se afastar...

 

Brigitte não gritou outra vez: simplesmente ergueu a metralhadora, apontou um segundo e abriu fogo.

 

Imediatamente o helicóptero transformou-se numa bola vermelha, violácea e negra, chamejante. Deu duas estranhas voltas antes de explodir em miríades de fagulhas que tinham todas as cores do arco-íris. Minúsculos fragmentos de metal incandescente saltaram para todos os lados, enquanto seu núcleo, envolto em furiosa labareda, precipitava-se no mar, levantando uma coluna de vapor de água.

 

Da praia, Baby esteve contemplando os restos do aparelho, antes que afundassem, a tão pouca profundidade que a Polícia facilmente os encontraria mais tarde.

 

Voltou ao chalé e aproximou-se de Alan Nash, que estava imóvel junto à janela. Virou-o suavemente e colocou-lhe a metralhadora nas mãos, após atirar a dele a um canto.

 

— Você o fez... — murmurou. — Adeus, Nash.

 

— Mas...

 

— Nash, isto era espionagem, não roubo de joias, nem tolices parecidas. Não é a primeira vez que me acontece, como se meu destino fosse viver a espionagem, dedicar-lhe minha vida... É longo de contar, mas talvez em outra ocasião isso seja possível. Mas agora tenho que partir. Diga à Polícia o que quiser, arranje-se como lhe parecer, receba sua recompensa, escreva um roteiro cinematográfico com tudo o que aconteceu... Você voltará a triunfar, prometo-lhe. Mas, Alan, por nada no mundo me mencione. Compreende?

 

— Sim... Sim, miss Montfort...

 

— Apenas Brigitte, para os amigos — beijou-o nos lábios e apanhou sua maletinha. — Vou tirar alguma coisa desse saco de joias, Alan. O resto, devolva-o você. Adeus.

 

— Adeus...

 

Quando a agente Baby saiu daquele chalé, a toda a pressa, como uma sombra entre as sombras, em cima, na estrada, já soavam as sirenas da Polícia.

 

Mas não a encontrariam; somente à gata ladra.

 

Uma ideia amalucada

 

— Então... vai embora? — perguntou Wilson B. Carmody.

 

— Vou — sorriu Brigitte. — Ao que parece, seu amigo Alan Nash resolveu todo o assunto e, como todas as joias foram recuperadas, segundo dizem os jornais, já não tenho nada que fazer aqui.

 

— Sim, claro...

 

— Um grande sujeito esse Nash, não é verdade? — tornou a sorrir Brigitte. — Parece que vai escrever o roteiro para um filme sobre o assunto. Tenho a impressão, Mr. Carmody, de que virá oferecê-lo ao senhor. E espero que, por sua vez ofereça-lhe o papel principal.

 

— Da maneira como estão as coisas, temo que deva pedir a Alan que trabalhe para mim... Em todo o caso, tentarei.

 

— Oh, ele aceitará, estou certa. Inclusive penso que, enquanto se prepara seu roteiro, ele poderia protagonizar “Os mil fogos do inferno”. Que acha?

 

— Uma excelente ideia! Em poucas horas, ele atingiu o pináculo da popularidade...

 

— Quer algum recado para Mr. Pitzer?

 

— Oh... Não sei... De qualquer modo, diga-lhe que agradeço a ajuda que quis me prestar.

 

— Ajuda...? Por Deus! Quase esquecia minha recompensa...

 

Dirigiu-se para o pequeno vaso de cristal da Boêmia, tomou-o cuidadosamente e, ainda mais cuidadosamente, meteu-o em sua maleta, ante o olhar atônito de Wanda Carmody. Olhou a seu redor, sorriu outra vez e exclamou: — Pronto! Não estou deixando ficar nada! De modo que posso voltar a Nova Iorque agora mesmo. Vejamos... Tenho a passagem, já telefonei a meu apartamento para que Peggy me espere... Tudo está bem. Ah! — estalou os dedos. — Outra coisa que ia esquecendo...

 

Apanhou um envelope que estava sobre a cama, abriu-o, tirou dele a Medalha de Honra do Congresso e prendeu-a ao peito de Carmody, que parecia a ponto de desmaiar de puro assombro. A mais bela espiã do mundo fechou enfim sua maleta e puxou o cordão para que o mordomo Phil viesse buscá-la.

 

— Bem... Só nos resta dizer adeus, não é?

 

— De... de onde... saiu esta medalha?

 

— Sua medalha? Não sei... Talvez um passarinho a trouxesse... Mas aí a tem. De onde se depreende que, se cobro uma recompensa, é porque a ganhei. Não está de acordo. Mrs. Carmody?

 

— Sim, sim... Mas não compreendo... Se foi Alan quem...

 

Oh, não compreendo isto, Brigitte!

 

— Que importa, senhora? Pense somente que, em minha opinião, os amigos de meus amigos são amigos meus. E como são amigos do tio Char... de Mr. Pitzer, aí está. Tenho certeza de que me expliquei bem. Ou não?

 

— Não muito, na verdade...

 

— Não? — entristeceu-se graciosamente Baby. — Isto é uma catástrofe! Imaginem... Uma jornalista que não sabe se explicar bem! Terei que dedicar-me a outra coisa, então.

 

— Por que não se dedica ao cinema? — propôs Wanda Carmody.

 

— Oh, que horror! Todo o mundo me olhando...! Não, não... já sei! Terei que dedicar-me à espionagem!

 

Os Carmody soltaram uma gargalhada.

 

— Como você é divertida! — comentou Wanda. — Pena que não fique mais tempo conosco. Dedicar-se à espionagem...! Acho-a divertidíssima, Brigitte!

 

— Pois não sou? — riu também a agente Baby. — Pelos menos, tenho as ideias mais amalucadas!

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades