Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UM PRESENTE DO DESTINO
Era um hotel à beira-mar muito requintado: portas automáticas, toalhas e prataria impecáveis na sala de refeições e uma moça extremamente simpática na recepção.
Enquanto passava a maleta de jóias da sra. Damien de uma mão para a outra, Lilian olhava em volta desanimada, pensando que aqueles hotéis eram sempre iguais. Seria mais interessante se a sra. Damien escolhesse, ao menos uma vez, uma casa de campo ou uma velha estalagem com janelinhas no sótão e telhados de sapê!
Pode ser que Lama Damien tivesse imaginação para escrever, era a autora de vinte e nove best-sellers românticos, mas Lilian vivia continuamente impressionada com sua falta de imaginação para viver.
Num gesto teatral, Laura assinou o registro. Perguntou pretensiosamente à recepcionista:
— Tem alguém importante hospedado aqui?
Passou o registro para Lilian, que assinou, observando disfarçadamente a expressão de espanto da moça, surpresa com a pergunta e impressionada com a absurda e colorida maquiagem que tornava aquele rosto uma máscara.
Antes que ela pudesse responder, Laura tinha dado meia-volta e olhava para um homem que se dirigia para o elevador, um cigarro entre os lábios e uma capa de chuva jogada nos ombros.
— Deus meu! — exclamou. No mesmo instante, correu em direção a ele, chamando em voz estridente! — Burke! Burke Ryeland!
O homem virou-se, tirando o cigarro dos lábios. Lilian, atrás de Laura, viu que a expressão dele tornou-se sombria, quando contemplou aquela mulher obesa, as mãos gorduchas estendidas para ele.
— Meu rapaz, pensei que estivesse morto! — Agarrou-lhe o braço e o sacudiu. — Todos nós pensamos que estivesse morto e enterrado naquela assustadora selva peruana!
Ele a olhou, querendo se lembrar de onde a conhecia. Laura percebeu e deu numa sonora gargalhada.
— Talvez eu tenha engordado um pouco, meu querido, mas com certeza se lembra de Laura Damien! Eu estava sempre naquelas festas de Shaw Lacey, em Richmond. Festas malucas! Com Shaw, garoto travesso declamando poemas, e sua mulher Letty, dançando sempre. Lembra-se? — Sacudiu-lhe o braço outra vez — Tem que se lembrar!
— Lógico... Shaw Lacey... e Letfy! — exclamou, afinal. Lawrence no jantar e sanduíches de pão dormido no café! — Seu rosto, a princípio indiferente, abriu-se num leve sorriso. — Éramos todos um tanto birutas naquele tempo, não?
Laura concordou e um súbito olhar de nostalgia varreu o ar de auto-suficiência do rosto redondo.
Seis ou sete anos atrás, mais ou menos... — disse ela. Olhou para Burke Ryeland, o rosto traindo curiosidade. — Tenho certeza de ter lido em algum lugar que foi considerado perdido nas selvas do Peru.
Fui, mesmo — respondeu, lacônico. Depois seu olhar desviou-se de Laura e pousou em Lilian, cuja juventude e elegância contrastavam fortemente com a decadência e gordura da outra. Novamente seu semblante se fechou, enquanto Laura continuava a falar.
Esta é minha pequena Lilian Glyn. Ela bate à máquina para mim. Eu realmente não conseguiria! Continua escrevendo aqueles seus maravilhosos livros sobre viagens, Burke?
Ele sacudiu a cabeça e Laura fez uma exagerada expressão de tristeza, segurando seu braço.
— Olhe, vamos jantar juntos. Quero que me fale sobre o Peru. Tenho certeza de que viveu aventuras interessantíssimas. Preciso saber como foi que se perdeu na selva.
A sugestão não foi recebida com entusiasmo. Ele livrou o braço das unhas imensas e apertou o botão do elevador.
Sinto, mas já tenho um compromisso para jantar.
Então, que tal amanhã? — insistiu ela, tentando uma expressão coquete. — Pelos velhos tempos, meu querido?
Ele olhou para Laura, taciturno. - Não estou mais interessado nos velhos tempos, sra. Damien. Eles não têm nenhum encanto para mim. — Deu meia-volta, ao ouvir o elevador se abrindo e, sem olhar para trás, entrou.
Laura Damien ficou imóvel. Lilian percebeu que o sangue avermelhava o rosto pintado.
— Não precisava ser tão grosseiro! — exclamou a mulher, ajeitando a gola de pele no pescoço. — Mas foi realmente muito grosso.— Virou-se para Lilian. — Pegue as chaves. Quero descansar um pouco antes do jantar. Minha cabeça está estourando por causa da viagem.
Laura tinha reservado uma suíte para ela e um quarto para Lilian. Depois de desfazer as malas, a moça encostou-se na janela. O quarto dava para a avenida Hastings. Embora uma garoa fina envolvesse a paisagem, Lilian teve um súbito desejo de estar lá fora, de se libertar daquele quarto e de mais um jantar em companhia de Laura, da noite jogando cartas com Laura, da conversa opressiva de Laura.
Suspirou. Ficar livre daquele trabalho! Ter dinheiro para ir aonde quisesse! Ir à China ou Japão! E, quem sabe, ao Peru.
Passou o dedo no vidro embaçado, sonhando. Mas foi repentinamente trazida à realidade quando a porta se abriu e Laura entrou num négligé de náilon laranja revelando o corpo gordo. Tinha uma expressão exagerada de sofrimento.
— Querida, tem alguma aspirina? Minha cabeça está me matando e não tenho nada para tomar.
Lilian procurou na bolsa, mas não encontrou nada que pudesse ajudar.
— Gostaria que eu comprasse alguma coisa?
Laura concordou, mergulhada em autopiedade.
— Poderia me fazer esse favor, querida? Positivamente não tenho condições de agüentar esta dor por muito tempo!
Lilian pegou o casaco e a bolsa e saiu para o corredor. Correu pela escada como uma menina, os cabelos castanhos soltos voando. Mais parecia ter quinze do que seus dezenove anos, o rosto revelando a alegria que sentia por poder escapar por alguns minutos daquele hotel deprimente.
Sorriu ao sentir a chuva fina no rosto. Tinha um cheiro gostoso de mar. Caminhou com passos largos, as mãos nos bolsos do casaco, feliz por exercitar as pernas, depois da longa viagem de trem.
Laura era engraçada. Estavam no meio do Um Amor de Outono, quando subitamente declarou que a história era insípida, que se sentia insípida e que uma rápida estadia à beira-mar faria bem para sua cabeça.
— Vamos levar a máquina portátil — anunciou. — No caso de a inspiração voltar. Vamos para Hastings. Quando era jovem, era um lugar muito especial!
Lilian descobriu uma farmácia e comprou um vidro grande de aspirinas. Fez o caminho de volta reparando num carro prateado estacionado em frente ao hotel. Ficou fascinada, imaginando como seria maravilhoso passear nele. Sem querer, deu um encontrão num homem que saía do hotel. Quase caiu, mas ele a segurou.
— Tenha cuidado, Lilian Glyn!
Por um breve instante, ela enfrentou uns olhos intensamente azuis. Ele a soltou e seguiu pela calçada, entrando no carro prateado.
Lilian ficou ali parada, os olhos assustados ainda, vendo-o sumir na neblina.
As aspirinas solucionavam o problema, e logo Laura estava pronta para o jantar. Desceu em companhia de Lilian.
Entrou majestosa no salão, resplandecente em um vestido de seda verde, um comprido colar de pérolas e um anelão no dedo indicador. Enquanto seguia o maitre, olhava com superioridade os outros hóspedes, consciente de estar causando alvoroço e claramente contente com isto. Segurou afetadamente o menu e comentou:
— Estou me sentindo abandonada esta noite, querida... e isto exige champanhe.
Ordenou o champanhe, enquanto Lilian reparava num homem com vastos bigodes, sentado numa mesa próxima, observando Laura. Lilian sorriu.
Está de bom humor? — perguntou Laura. O sorriso da jovem acentuou-se.
E que estou me sentindo feliz. Acho que gosto de Hastings.
Você é uma menina estranha — observou Laura, enquanto seus olhos percorriam a sala, à procura de alguém. — Acho que ele foi jantar fora — murmurou. — Gostaria de saber por que está tão arisco.
Burke Ryeland?
E quem mais? O que achou dele?
Lilian não sabia o que responder. Não achava nada, a não ser que tinha um belo carro esporte prateado e uma bela voz.
— Achou-o atraente? — insistiu Laura.
Dá uma impressão de força e energia, mas não sei se é atraente.
Forte e viril, hein? — disse Laura, arqueando as sobrancelhas. — Atraente também, minha cara, pode acreditar em mim. Letty Lacey nos velhos tempos era louca por ele. Foi uma sorte que aquele seu marido idiota nunca soubesse, pois teria matado Burke. Não que acredite ter realmente existido um caso entre Letty e Burke... Naquela época parece que andava com uma jovem bailarina. — Laura calou-se um instante, pensando, e continuou em seu monólogo: — Gostaria de saber em que deu aquele caso. E também o que está fazendo aqui em Hastings, depois de todos os lugares por onde andou. Peru, imagine! Deve ter acontecido alguma coisa muito estranha para que não queira falar sobre o assunto.
Para falar a verdade, acho Burke Ryeland uma pessoa muito convencida.
E por que não? — Laura sorriu. — Sua família é uma das mais ricas e antigas da Inglaterra. A casa do avô em Somerset, é uma beleza. Você nunca ouviu falar de King’s Beeches?
Lilian sacudiu a cabeça.
— King’s Beeches, minha cara, é considerada um dos monumentos de Somerset — contou Laura, com uma espécie de reverência na voz. — Estou surpresa por nunca ter ouvido falar dela, ou visto alguma foto.
— Pois não ouvi, nem vi — respondeu Lilian, aborrecida.
Laura tinha um interesse tão grande por homens! Várias vezes a deixara sozinha em companhia de seus jovens amigos. Mas não tinha nada a dizer àqueles homens cínicos e pretensiosos, descrevendo-a como um "pequeno duende com complexo de freira".
Seus lábios tremiam ao lembrar-se destes fatos. Pouco se importava que os amigos de Laura a achassem engraçada! Não ligava. Recostou-se ao se lembrar do pai dizendo:
— A coisa mais importante da vida, minha filha, é ser sempre coerente consigo mesma. Seja sempre assim, querida. Não vá atrás das idéias dos outros, fazendo isto ou aquilo, porque é moda ou por que vão rir de você. Siga seu próprio caminho, sempre!
Olhou para Laura à sua frente, muito à vontade acendendo um cigarro. Tão segura de si! Provavelmente nunca havia sido bonita, nem mesmo quando jovem, mas era inegavelmente popular entre os homens. Era uma espécie de poder, uma coisa que transcendia o rosto, o corpo, mesmo a idade.
— Pare de olhar para mim — protestou Laura de repente. — Esses seus olhos grandes me dão nos nervos! O que está tentando descobrir? A minha alma? — Riu. — Minha conta no banco é grande demais para que eu ainda tenha alma, querida.
— A senhora é muito cínica.
— A gente deve ser. É nossa armadura moderna, minha cara. Este mundo é imenso e cruel e a gente tem que ser dura, ou aprender a ser, se quiser chegar lá em cima. Olhe só Burke Ryeland. E um sujeito duro como aço. Atraente, muito rico, e encantador quando quer. Mas não acredito que alguma vez na vida se preocupou com alguém. Mesmo aquela dançarinazinha com quem costumava andar. Tenho fortes suspeitas de que não passava de uma bela distração nos intervalos de suas andanças pelo mundo. Ela era apaixonadíssima por ele, naturalmente, mas ele mantinha uma atitude fria e distante com todas as mulheres. Se bem que quando um homem tem o encanto especial e o dinheiro que ele tem as mulheres aceitam qualquer arrogância. E parecem até apreciáveis. — Laura sorriu. — Mas você não tem experiência nesses assuntos, não é?
Lilian sacudiu a cabeça.
Pois acho que elas devem ser doidas. Serem mimadas como gatinhos e, depois, abandonadas sem nem um olhar!
Como você é estranha, menina. Vai me dizer que não gostaria de ser mimada e mimada por Burke Ryeland? Ou, como um gatinho, você o arranharia, marcando aquele rosto bronzeado e belo com suas unhas afiadas?
Ora, sra. Damien!
Ora, srta. Glyn! — zombou Laura. — Mas não é provável que Burke sinta algum interesse por você, menina, com esta cara de besta. Portanto, não fique preocupada. Você não é o tipo dele, a não ser que as florestas peruanas tenham deixado o seu sangue ralo. Não, eu não acredito que ele perderia tempo com você. Nunca foi beijada, foi?
Não — respondeu a moça, muito vermelha. — Não gosto de beijar qualquer um.
Guardando-se para o homem certo, hein? Mas só olhar para um homem não vai ajudá-la a saber se é o tal, menina. Precisa chegar um pouco mais perto, antes de ter certeza...
Na manhã seguinte, como se o champanhe lhe tivesse trazido novo ânimo, Laura informou Lilian de que pretendia destruir os seis primeiros capítulos de Um Amor de Outono e começar tudo outra vez.
Jogou sobre a mesa um maço de papéis, dizendo, com um sorriso complacente:
— Estive escrevendo desde as cinco e meia da manhã. Minha mão está me matando. Comece a datilografar estas páginas depois do café.
— Sim, sra. Damien — respondeu Lilian, renunciando ao passeio que pretendia fazer por Hastings.
Se Laura tinha esquecido seu mau humor chegando ao ponto de pegar a caneta e começar a trabalhar às cinco da manhã, sabia que a máquina de escrever seria sua única companheira nos próximos dias.
E foi o que aconteceu. Nos seis longos dias que se seguiram, Lilian alimentou a máquina com laudas e laudas, datilografando sem parar. A chuva que caiu no domingo em que chegaram tinha desaparecido e um sol claro iluminava a histórica cidadezinha. Mas, só no sábado à tarde, Lilian teve permissão para um pequeno descanso.
Caminhou até o quebra-mar. Era um dia lindo. Uma pequena multidão aproveitava o sol. Uns espichados em cadeiras, outros passeando pelas calçadas. Lilian caminhou por toda a extensão do quebra-mar e depois apoiou-se na amurada, respirando avidamente o ar marinho, sentindo-o passar pelos cabelos castanhos, dando-lhe novo rigor. A sua volta, as pessoas conversavam, apreciando a espuma das ondas batendo contra as pedras lá embaixo.
— Então, finalmente escapou! — uma voz baixa e agradável subitamente segredou-lhe ao ouvido.
Ela estremeceu e afastou os olhos das ondas para encarar o homem alto a seu lado.
A sra. Damien tem trabalhado feito louca em seu novo livro — respondeu ela, olhando para Burke Ryeland com surpresa e inquietação. Aquele homem tinha um ar de distinção e autoconfiança que a fazia sentir-se desajeitada e criança. Sem saber como agir, puxou os cabelos embaraçados pelo vento, sentindo as faces coradas e quentes.
Você gosta mesmo de trabalhar naquela máquina terrível para a sra. Damien?
Ela não é uma pessoa desagradável para se trabalhar — respondeu, na defensiva.
Ela me lembra uma cobra gigante — comentou o homem, enquanto atirava preguiçosamente seu cigarro no mar. — E tenho a impressão de que aquela mulher toda pintada está esmagando você, Lilian Glyn, e tirando toda a sua juventude. Até quando vai permitir que isso continue?
Eu... eu não estou compreendendo — respondeu, um pouco nervosa com o sorriso enigmático dele.
Que idade tem?
Dezenove.
Tudo isso? — Pareceu surpreso observando-a dos pés à cabeça, sem perder um detalhe daquele corpinho franzino. — E sua mãe sabe como Laura Damien a obriga a trabalhar?
Não tenho mãe.
Nem pai?
Ela mordeu o lábio. Ainda sentia a morte do pai e falar sobre ele a fazia sofrer.
Meu pai morreu há nove meses, quando teve uma anemia perniciosa e nada mais pôde ser feito.
Fala como se sentisse muito a falta dele — disse Burke Ryeland com surpreendente doçura. — E está trabalhando com Laura Damien desde então?
Ela fez que sim.
— Eu estava sem dinheiro. E... tive muita sorte em conseguir esse emprego. Costumava datilografar para meu pai. Ele escrevia artigos para revistas de jardinagem... Era um ótimo jardineiro. E a sra. Damien achou que eu servia.
E acha que teve sorte? Você se contenta com bem pouco!
Não estava em condições de escolher — respondeu, irritada com o rumo da conversa. — E estou muito grata à sra. Damien. Uma mulher na posição dela poderia exigir qualquer uma com experiência anterior. Acho que foi extremamente bondosa em me escolher.
Oh, desconfio de que a sra. Damien sabia o que estava fazendo — disse Burke Ryeland. Essa garota provavelmente trabalharia dia e noite, sem fazer questão de folgas, sem se queixar. Uma qualidade importante para Laura Damien. — Então ela continua a mesma insensível e predatória, abusando de você sem um pensamento de piedade!
Eu... eu pensei que o senhor fosse amigo da sra. Damien — disse Lilian, com um toque de dignidade que o fez sorrir.
Na verdade, nós fomos apresentados — corrigiu. — Ela não é uma pessoa que me interesse muito. Você não tem nenhuma revolta nesta alma jovem, Lilian Glyn?
Eu... acho que não. Na verdade, eu me rebelo! Como gostaria de arrebentar minhas cadeias... mas preciso comer!
Bravo! — aplaudiu ele, rindo. — Estou contente com essa explosão. Aceitaria um convite para jantar comigo, Lilian?
J antar? Mas... mas a sra. Damien está me esperando.
Que a sra. Damien vá para o inferno! — Suas mãos grandes e fortes agarraram os ombros de Lilian e a obrigaram a dar meia-volta. — Você merece um descanso daquela mulher horrível. Ela a aprisionou naquele hotel abafado uma semana inteira!
Bem, eu estava trabalhando.
E agora a semana de trabalho terminou e você precisa se distrair. Vamos! — Segurou-a pela mão e levou-a para longe do quebra-mar, andando tão apressadamente que Lilian precisava correr para acompanhar seu ritmo. Ao chegarem ao carro, ele a fez entrar amavelmente. — Pare de se preocupar. Eu lhe asseguro que não sou um conquistador barato de mocinhas inocentes. Já ultrapassei esse estágio há muitos anos.
O carro arrancou e Lilian olhou disfarçadamente para o rosto de Burke Ryeland. Estava completamente atônita por tê-la convidado para jantar, pois não parecia ser uma pessoa muito sociável pelos comentários de Laura naquela semana. Os olhos de Lilian brilharam: Laura ficaria furiosa se soubesse que sua insignificante datilografa tinha recebido um convite para jantar do cobiçado Burke Ryeland.
Seus olhos pousaram nos fios prateados das têmporas de Ryeland. Imaginou que devia ter uns trinta e cinco ou trinta e sete anos, não mais. Quinze minutos depois, o carro parou em frente a um restaurante.
Estavam livres das multidões barulhentas. Quando Lilian entrou, acompanhada de Burke, ficou encantada com a classe e a elegância do lugar. Ela se voltou em pânico para Burke:
Mas não estou vestida para... para isto!
Deixe que eu julgue esse detalhe — respondeu, conduzindo-a para uma mesa. — Espero que todo aquele trabalho tenha aberto seu apetite. A comida aqui é muito boa. Gosta de lagostas?
Ela concordou com um movimento nervoso. Ele dirigiu-se ao garçom:
— Vamos querer de entrada maionese de lagostas. Depois, peito de perdizes com pâté de fois gras, trufas e suflê de batatas.
O garçom inclinou ligeiramente a cabeça e afastou-se. Burke observava Lilian com um sorriso nos lábios. Seus cabelos estavam completamente despenteados por causa da corrida e ela tentava recolocá-los no lugar, enquanto admirava a elegância do ambiente.
Você está bem apresentável, minha pequena. Portanto, pare de se preocupar — murmurou.
A sra. Damien não costuma comer em lugares como este — comentou.
Mas eu não sou a sra. Damien!
Ela teria um chilique se soubesse que estou aqui com o senhor.
Por quê?
Acha que tenho medo de homens.
E tem mesmo, não tem? — Suas sobrancelhas se juntaram sobre os olhos azuis penetrantes. — Não está, por acaso, meio trêmula?
Ele riu e Lilian baixou os olhos, confusa, o rosto corado.
Eu... desconfio de que sou desajeitada e um pouco engraçada. Por isso, os outros caçoam de mim — murmurou, infeliz.
Deus do céu! Eu não a trouxe aqui para me divertir às suas custas! Mas que idéia!
Por que... por que me trouxe, então?
Depois de jantarmos, eu lhe digo.
Lilian sentia uma revolta. Era tímida com os homens, sim, mas não era uma idiota. Sabia muito bem que aquele homem rico elegante e bonito não tinha visto nada especial na datilografa de Laura Damien.
Quero saber agora — insistiu, levantando o rosto.
Quer? — Ele sorria. — Ainda desconfiada de mim, Lilian Glyn?
E por que não? Mal o conheço, sr. Ryeland.
— Então, a cobra venenosa não comentou sobre a minha família?
Desviou o olhar dela, quando o garçom chegou com a lista de vinhos. Escolheu e ficou em silêncio, até serem servidos. Em seguida, fez um brinde:
— Beba e fique alegre, Lilian, porque dentro de cinco minutos vou pedi-la em casamento.
Lilian olhou-o estarrecida. A cor desapareceu de seu rosto. Aquele homem era maluco! Mentalmente transtornado por causa do longo tempo nas selvas do Peru! Por que, afinal, tinha vindo com ele?
Não estou louco, Lilian.
Deve estar! Pedir... pedir alguém que mal conhece... em casamento!
Pedindo a alguém em que acredito poder confiar para casar comigo — corrigiu.
Mas... por quê? Isto é loucura... loucura!
Não tanto assim, minha cara. Tenho um motivo perfeitamente lógico para precisar de uma esposa, pode acreditar. Vamos conversar sobre isso depois do jantar, está bem?
Depois do café, Burke começou a explicar a Lilian a razão de sua absurda proposta. Apoiou os cotovelos na mesa e encarou-a, muito sério. Subitamente, pareceu mais velho e cansado.
Como já lhe disse, Lilian, não a trouxe aqui para me divertir às suas custas. Acredita em mim?
Eu... não sei em que acreditar. E a coisa mais extraordinária que já me aconteceu.
Acredito. Uma proposta de casamento de um estranho é mesmo extraordinária. Mas espero que, depois de explicar a situação, não ache assim tão absurdo. — Recostou-se na cadeira e pegou a cigarreira. — Você fuma?
Lilian sacudiu a cabeça. Ele acendeu um cigarro.
Por alguns minutos, ficou calado, fumando, os olhos acompanhando a dança da fumaça azulada. Depois, começou a falar:
— Tenho um avô muito antiquado. Ele pertence a um tempo que já passou. Um tempo em que o orgulho familiar e devoção total ficavam acima de todas as outras coisas. Acredita que o fato de alguém nascer um Ryeland acarreta uma série de obrigações... Obrigações que não estou disposto a aceitar. Em resumo, Lilian, ele espera que eu case com o único fim de produzir um herdeiro. Meu avô tem oitenta e cinco anos e uma saúde delicada. Como me colocou diante desta obrigação, por razões sentimentais, acredito que devo ceder.
Com cuidado, sacudiu o cigarro no cinzeiro, os olhos cravados no rosto delicado e atento de Lilian.
— Eu tinha um irmão mais novo, que meu avó adorava. Todas as suas alegrias e esperanças estavam nele, mas Phil... há um ano, enquanto trabalhava em uma de nossas fazendas, morreu esmagado por uma colheitadeira. O choque quase matou meu avô. Mas, além dessa tragédia, uma coisa muito grave tinha acontecido, que o teria aniquilado completamente se descobrisse. Desde meninos, eu e Phil éramos amigos da filha de um dos fazendeiros da região, Dani. Era linda e alegre. Seus pais tinham planos ambiciosos para ela. Estudou dança e, aos dezesseis, anos, saiu da fazenda e foi viver em Londres com uma tia para poder freqüentar uma escola de bale. Era talentosa e realizou o sonho dos pais, tornando-se uma bailarina famosa. Durante este tempo, eu estava viajando pelo mundo e Phil trabalhava na fazenda. Então, recebi, no Peru, a notícia de que Phil tinha morrido.
Burke desviou o olhar do rosto de Lilian e sombriamente voltou a observar a fumaça.
— Naturalmente, voltei para a Inglaterra, encontrando meu velho avô muito doente e uma carta da tia de Dani, que hoje vive aqui em Hastings. Aquela carta foi outro choque para mim: Dani estava morta. Morreu ao dar à luz o filho de meu irmão. Apenas a tia sabia que os dois eram amantes. Os pais de Dani não tinham condições para cuidar da criança e a tia pretendia embarcar para o Canadá e morar com a irmã. Em resumo, queria saber se eu estava disposto a receber a criança. Se recusasse, teria de colocá-la num orfanato. Fiquei horrorizado com a idéia. O garoto é meu sobrinho, filho de Phil, um Ryeland! Desde então, a criança está sob minha responsabilidade. — Sorriu, amargo. — Com esse menino, metade dos sonhos de meu avô poderão se tornar realidade. Mas para dar um cunho de veracidade a tudo isso, preciso arranjar uma mãe para o bebê. Portanto, estou-lhe pedindo, com toda a seriedade, que examine esta proposta. Posso lhe garantir que é um trabalho bem mais agradável do que o que tem agora. Não terá que ficar presa a uma máquina de escrever ou se sujeitar ao matraquear de Laura Damien dia e noite. Moro em Somerset, no meio de pomares e campos, tudo que lhe peço é que case comigo... só no nome, claro.
Lilian suspirou, agitada, olhando para aquele homem, que lhe fazia uma incrível proposta. Ele tinha prometido explicar a verdade, mas ela se sentia enveredando para um sonho!
Eu... não acho direito. Enganar um velho assim!
Um velho que está com a saúde abalada e que ficaria encantado em segurar nos braços um neto. Seu verdadeiro neto, não se esqueça!
Mesmo assim, não é direito — respondeu Lilian, os olhos brilhando no rosto pálido. — E se descobrisse? O que aconteceria com ele? Acreditaria que, deliberadamente, tínhamos espezinhado seu orgulho.
Não acho que tenha alguma chance de descobrir. Em King's Beeches, estamos completamente isolados do mundo. Mesmo assim, quem irá contra a minha palavra, se jurar que o filho é meu?
Encarou profundamente os olhos de Lilian. — Se lhe interessa, saiba que já o considero meu filho. Peter é meu, pois a mãe representou muito para mim. — Burke esmagou o cigarro, com raiva.
Nessas circunstâncias, você aceita a minha proposta? Que mal há nisso? Tornará um velho muito feliz e será mãe de um bebê desprotegido.
Lilian estava em pânico. Sentia-se nadando em águas turvas. Tinha vontade de sair correndo dali e voltar ao seu mundo normal e calmo. Mas Burke segurava-a com a força dos seus olhos.
Não sei o que dizer... Não sei...
Olhe, vamos encerrar a conversa até que você conheça Peter. Amanhã eu a levo até lá. Está na casa da tia de Dani. — Acenou para o garçom, pedindo a conta. — Você irá comigo?
Ela hesitou, olhando para aquele rosto preocupado. Era um estranho. Nada sabia sobre ele, a não ser as coisas que Laura Damien havia contado, que não pesavam a seu favor. Duro, arrogante, incapaz de amar!
E ela... também uma estranha para ele.
Por que está pedindo isso a mim? — perguntou, aflita. — Tudo que sabe a meu respeito é que trabalho para Laura Damien.
Não concordo! Sei que tem dezenove anos, é sozinha no mundo e tem uma imensa paciência. Paciência é uma grande virtude, não concorda? — disse, sorrindo. — Você é exatamente o que eu preciso, Lilian Glyn. Então, vem comigo amanhã para conhecer Peter?
Está bem, sr. Ryeland, eu irei — respondeu impulsivamente.
Lilian e Laura estavam tomando café, quando de repente Laura levantou os olhos do jornal de domingo e perguntou:
— O que pretende fazer hoje?
— Se não se importar, sra. Damien, vou dar uma volta por aí. A mulher olhou-a, intrigada.
— Com algum conquistador de praia? — Lilian corou. — Estou vendo que não perdeu tempo. Não se envolva com ninguém. Resolvi voltar a Londres amanhã.
A exclamação abafada da moça foi reveladora e Laura sorriu, irônica. Subitamente, o tempo para tomar sua decisão tinha diminuído. Se aceitasse a proposta de Burke Ryeland, uma nova vida se abriria para ela, livre de hotéis, de dias monótonos grudados a uma máquina, aturando os humores variados dessa mulher pretensiosa e cansativa. Se recusasse, ficaria sujeita a essa vida talvez para sempre!
Burke Ryeland tinha-lhe dito que a apanharia às duas. E às duas em ponto o esperava, envolvida num casaco de pêlo de camelo, o último presente de seu pai.
Burke buzinou e Lilian sorriu para ele. Ele abriu a porta do carro e ela entrou, sentando-se a seu lado. O coração repentinamente disparou.
Então, você veio... — murmurou ele, colocando o carro em movimento.
Pensou que talvez não viesse, sr. Burke?
Na verdade, eu não sabia o que pensar. Será que conseguiria me chamar de Burke? Acho, com toda a segurança, que já chegamos a esse grau de intimidade — acrescentou, com uma ponta de ironia.
Está bem.
Aquela cobra venenosa tentou descobrir aonde ia?
Ela meteu na cabeça que estou de namoro com algum rapaz da praia. E já me aconselhou a não me envolver muito. Ela... nós... vamos voltar a Londres amanhã.
Burke virou rapidamente o rosto para Lilian.
— Você também vai?
Ela baixou os olhos, visivelmente confusa.
Eu... eu não sei...
Quer voltar?
Não respondeu. Ele tentou controlar a impaciência ao perceber o olhar preocupado da jovem, que mordia o lábio rosado.
Não faça isso. Vai ferir o lábio.
O quê? — perguntou, virando-se para Burke.
Ele percebeu que ela o olhava do mesmo jeito que na véspera: um olhar de corça procurando forças para escapar da fera dominadora.
Você ficou com insônia ontem à noite, virando na cama e desconfiando de que tinha jantado com um maluco?
Como adivinhou? — Tentou falar descontraída, mas sua agitação e um forte rubor a traíram. Na verdade, permaneceu acordada, lembrando-se da história de Burke, temendo as mentiras que tinha que dizer dali para a frente, se concordasse em fazer parte daquele plano.
Eu sabia que ficaria preocupada. É natural. Mas sabe que deve considerar tudo isto como um novo emprego, não? Providenciarei para que tenha uma renda semanal, ou mensal, deixando-a completamente independente neste aspecto. Se nós encararmos tudo isto como uma transação comercial, acho que será menos embaraçoso para você; principalmente a cerimônia de casamento. Isto me lembra que ontem à noite esqueci de perguntar se tem algum namorado. Tem?
Ela sacudiu a cabeça. Depois viu que ele sorria. Porque seria muito complicado, se de repente aparecesse algum Romeu reclamando a sua Julieta.
Diga-me, Lilian, gosta de crianças?
Nunca tive muito contato com elas. Mas acho que gosto.
Gostará de Peter. E um lindo bebê.
Quantos meses tem?
Cinco. — Burke deu um sorriso malicioso. — Deve estar pensando como vou explicar um filho de cinco meses a meu avô?
Ela assentiu.
Bem, se concordar em casar comigo, mentirei sobre a data do casamento. É por uma boa causa.
Tem mesmo que agir assim? Não poderia dizer a verdade?
Meu avô não aceitaria Peter se soubesse a verdade. O maldito orgulho arruína tudo — comentou amargo.
Mas você disse... disse que adorava o seu irmão.
Sim. E o considerava um modelo de virtude — disse Burke com cinismo. — O velho não aceitaria reconhecer que Phil era... bem, que era tão tolo quanto qualquer um de nós. Assim, invento a história e o pequeno Peter ficará no lugar a que tem direito.
Neste momento, encostou o carro na guia e estacionou. Tinham parado em frente a uma casinha simples. Um portão de ferro abria para um jardinzinho. Lilian seguiu Burke até a porta, esperando silenciosamente enquanto ele batia. Já estava envolvida nesta trama fantástica, meio comprometida com este homem, que estava pronto a enganar seu próprio avô, a fim de que o filho de uma dançarina se tornasse o herdeiro da antiga e bela King’s Beeches.
A porta se abriu e uma mulher morena e baixinha, com olhos escuros, apareceu.
Alô, querido — disse sorrindo. Ao ver Lilian, ficou séria e visivelmente surpresa.
Esta é Lilian Glyn, Polly — explicou Burke, enquanto se soltava das mãos nervosas da mulher. — Acho que vou me casar com ela.
Vai se casar? Agora? — A mulherzinha recuou para dentro da casa, dando espaço para que entrassem. Foram até a cozinha, e ela virou-se e examinou Lilian. — Então acha que vai se casar com ela, Burke? Você tem certeza?
Ele deu uma risada e apertou a mão de Lilian.
Ela quer pedir a permissão de Peter — gracejou. — Vá buscá-lo, Polly.
Então sabe que vai ter um bebê já prontinho em seus braços?
— Peter na verdade é a maior atração.
Polly Wilmot olhou longamente para Lilian.
Muitas moças se interessariam antes por King's Beeches. Você não? — perguntou com certa rudeza.
Nunca estive lá — respondeu, enrubescendo.
— Nunca esteve... — Os olhinhos da mulher se apertaram ainda mais. — Esta não é a tal com quem seu avô quer que se case?
Não, Polly — respondeu Burke secamente. — Agora, por favor, vá buscar o garoto. Quero que Lilian o veja.
Antes vou pôr uma chaleira de água no fogo para o chá — disse Polly, e virou para Lilian: — Sente-se menina.
Burke riu, ao ver o nervosismo de Lilian.
Polly late mas não morde — disse ele. — Eu a conheci há anos atrás. O que não altera o fato de que me sentirei bem melhor quando souber que estará logo bem longe daqui, no Canadá. Assim, nosso pequeno embuste ficará sem testemunhas. Ah, aqui está ela, com o bebê!
Vá com calma, rapaz — disse a velha. — Ele está dormindo.
Ele dorme demais, não é, Polly? — disse Burke enquanto pegava o garoto, com cuidado.
Pois garanto que você fazia o mesmo na idade dele. — Polly deu uma piscada para Lilian e exclamou: — Homens!
Lilian sorriu timidamente quando Burke chegou perto dela e colocou Peter em seus braços, afastando o chalé azul para que ela pudesse ver melhor o rostinho. Tinha os cabelos muito negros, encaracolados, e um rosto bem corado.
— Mas ele é realmente lindo! — Lilian gaguejou, fascinada, com o bebê em seu colo.
— Ele é perfeito! — disse Burke, com a voz emocionada.
Lilian instintivamente descobriu que ele devia estar pensando na mãe da criança. Como era mesmo que Laura a havia descrito? Indomável como uma águia e adorável como uma borboleta... Lilian inclinou mais a cabeça para o bebê, sentindo-se embaraçada, como se tivesse espionando os sentimentos de Burke.
— Vou fazer o chá — disse Polly Wilmot e afastou-se. Ao chegar à porta, ela se virou: — Quando pretendem se casar?
Burke estava encostado na lareira com as mãos nos bolsos, ao lado de Lilian.
— Se Lilian concordar, gostaria que fosse na próxima sexta. Lilian levantou o olhar, subitamente agitada.
— Tão... tão cedo? — murmurou.
Burke riu e levantou as sobrancelhas escuras, enquanto comentava com Polly, ligeiramente contrafeito:
Minha futura esposa não parece muito entusiasmada, não é? Será que ela está com medo?
Todas as noivas ficam com medo — Polly respondeu imediatamente. — É parte de seu encanto.
E desapareceu pela porta. Logo escutaram o barulho de louça e o apito da chaleira.
— Então, Lilian, aceita ser minha esposa legal e se casar na próxima sexta? — Seus olhos azuis observavam atentamente o rosto assustado. — Minha cara, por que está assim? Eu pensei que ficaria aliviada por poder se livrar daquela insuportável Laura Damien. Não acha que eu sou bem mais agradável que aquela cobra venenosa? — sorriu complacente. — Por favor, diga que sim, Lilian. Eu ficaria muito decepcionado se recusasse, sabe disso.
Mas Lilian não retribuiu ao sorriso. Inclinou-se sobre o bebê, o centro inconsciente de todo aquele drama.
Não acha que devia se casar com alguém em quem confiasse mais? — perguntou insegura. — Eu sou uma estranha para você... uma pessoa que não tem nada a ver com sua vida. Sou totalmente... inadequada... Será que não enxerga isto?
Estou completamente satisfeito com o que estou enxergando
— respondeu paciente. — Acho que se conseguiu suportar Laura Damien por nove meses inteiros, pacientemente, você está longe de ser inadequada.
— Mas casamento... — Lilian estremeceu involuntariamente. — Eu aceitaria, sem vacilar, ser a governanta de Peter...
— Vai ter que se casar comigo. — As palavras agora eram ríspidas. Tem que se tornar mãe de Peter e minha esposa. A situação não tem nada de complicada. — Riu. — É até uma ótima oferta. Você vai ter tempo para viver, enquanto eu vou conseguir de meu avô sua bênção por ter-me tornado finalmente um homem sério. Chegou a hora de decidir, Lilian. Ou vem comigo ou volta com Laura Damien. Eu posso lhe dar a liberdade, mesmo se tornando minha esposa. Mas ela a amarrará àquela máquina de escrever nos próximos vinte anos. Ótimas perspectivas, hein?
Ele se curvou sobre o bebê. Tocou os cabelos escuros com carinho.
— Você disse que ele é bonito. E é mesmo. Eu quero levá-lo para King's Beeches porque lá é o lugar dele. Ajude-me a fazer isso, Lilian.
Burke acariciou a cabecinha do bebê, que acabou acordando com um ligeiro murmúrio, agitou os bracinhos e se espreguiçou no colo de Lilian. O coração dela deu um salto quando ele abriu os olhinhos espantados para ela. Eram tão azuis e com as pestanas tão escuras, quanto os olhos de Burke Ryeland... o homem que lhe tinha pedido para se tornar sua esposa, mas que nunca beijaria.
— Na próxima... sexta? Foi o que disse? — perguntou quase num sussurro.
Os dedos que acariciavam Peter ficaram parados. Vagarosamente, ele virou a cabeça e encontrou os olhos confusos e assustados de Lilian. Observou-os atentamente. Ela não vacilou e ele moveu a cabaça vagarosamente, confirmando.
O que pretende dizer a Laura? — perguntou Burke quando voltavam ao hotel.
O que quer que eu lhe diga?
Não se importaria de dizer simplesmente que conseguiu um novo emprego? Acho que quanto menos aquela língua de trapo souber sobre os nossos planos, melhor.
Por que você antipatiza tanto com ela... Burke? — perguntou, enrubescendo ao dizer o nome dele. Embora estivesse agora seriamente comprometida com este assustador projeto de casamento, ainda sentia-se inibida na presença dele, desajeitada, jovem e terrivelmente intimidada.
Eu não tenho raiva de Laura Damien — disse. — Nem este tipo de sentimento eu chego a ter. Ela simplesmente polui o ambiente. Como menino criado no campo, eu aprecio a beleza e a tranqüilidade e a sra. Damien não possui nenhuma das duas qualidades. E um paquiderme predatório, sempre faminto e sempre na caça.
Lilian deu uma gargalhada, mas em seguida protestou:
— Está exagerando! Ela é barulhenta, eu sei, mas não é completamente insuportável. A gente acaba admirando toda a sua energia. E escreve bem: tem que admitir isto.
Ele encolheu os ombros.
Não sou admirador de seu estilo, mas reconheço que ela consegue que os corações românticos batam mais depressa — respondeu, olhando de relance para Lilian. — Você gosta deste tipo de livro, Lilian? Gosta de sonhar ao luar?
Não sou do tipo romântico — disse, sorrindo levemente.
Não é mesmo, Lilian? Quem sabe não foi por isto que esteve com tantas dúvidas para aceitar um casamento tão pouco romântico? Mas me confesse uma coisa. Agora que viu o pequeno Peter abandonou todas as dúvidas, mão?
Eu... eu gostei dele demais — respondeu nervosa. Conversar sobre este casamento ainda lhe trazia um nó na garganta. Teria que dizer as mentiras, inventar fatos e odiava isto. Haveria também um velho orgulhoso e surpreso a quem iria enfrentar. Onde encontrar forças para isto? E se ele descobrisse a mentira de Burke? E se a desprezasse, não a achando digna de ser a esposa de Burke?
Ainda preocupada com a reação de meu avô quando eu aparecer por lá com uma esposa e um filho?
O que você pretende dizer? Como vai explicar tudo?
Acho que a situação em si será a melhor explicação, Lilian.
Mas que explicação? — insistiu.
Bem, o que importa é que já anda suspeitando que eu tenha uma ligação de algum tipo, porque me ausento sistematicamente de casa durante os fins de semana. Na verdade, são minhas visitas a Peter. Portanto, agora, farei o papel de libertino arrependido. — Burke sorriu. — O velho sempre me considerou um mulherengo, portanto fique sossegada. Não tentará verificar porque resolvi me casar desta maneira. Na opinião dele, eu passei para as fileiras dos condenados desde que publiquei meu primeiro livro há anos atrás. Eu era um Ryeland, imagine! Era perfeitamente aceitável que eu recolhesse o feno, semeasse nabos ou auxiliasse as vacas a terem seus rebentos em intervalos dos acontecimentos sociais, onde era um partido desejável, mas não ficava bem que sujasse meus dedos nas máquinas de escrever ou mergulhasse meus pés nas águas do Nilo... E, assim, desde o dia em que eu insisti em ambas as coisas, deixando a administração das terras nas mãos de meu irmão, cada uma de minhas ações tomou-se suspeita aos olhos dele.
Lilian olhou-o com simpatia.
E agora renunciou às suas viagens e livros? — perguntou docemente.
Phil amava vacas e nabos. Adorava as terras e Somerset. Eu amo Somerset... Espero que o resto venha com o tempo. Uma coisa é certa: eu não teria condições de me entregar completamente aos interesses de King's Beeches. Por isto foi boa esta idéia de casamento. Meu avô consegue o que sempre quis e eu deixo de ser olhado como o grande partido da região, sem um bando de mulheres me perseguindo. E você, minha pequena, fica livre da pobreza. Assim, as poucas mentiras que seremos obrigados a dizer, na minha opinião, valerão a pena.
Naquela noite, logo depois do jantar, Lilian disse a Laura que não pretendia voltar para Londres com ela na manhã seguinte. A mulher ficou enfurecida.
— Como ousa me abandonar assim, de um momento para o outro? Uma porcariazinha como você? Você vai embora somente quando eu permitir!
Lilian procurou evitar uma discussão neste nível.
— Eu sinto muito, sra. Damien — disse. — Mas me ofereceram outro emprego... e me convém mais. Eu sinto avisá-la assim tão repentinamente, mas não tenho outra alternativa.
O olhar de Laura estava cheio de suspeitas.
— Mas que diabo! Quem você encontrou? Quem lhe ofereceu outro emprego?
Lilian enfrentou-a calada, o rosto pálido, os olhos muito abertos, demonstrando temor e determinação.
Laura chegou perto dela e agarrou seus ombros, sacudindo-a.
Sua garota falsa e sem-vergonha — grunhiu. — Você andou indo com algum homem por aí, não é?
Não! Isto não é verdade! Eu estou... estou cansada de ser datilografa, é só isto. Quero fazer outra coisa. Vou trabalhar no campo e tomar conta de um garotinho.
A boca carnuda e grande de Laura expressou sua desconfiança.
Não é um garotinho, mas um garotão. Estou vendo na sua cara!
A senhora está... está me insultando — respondeu Lilian, os nervos à flor da pele. Queria era sair correndo e fugir das insinuações daquela mulher grosseira. — Eu lhe disse a verdade — insistiu. — Vou para o campo cuidar de um garotinho. Não tem o direito de pensar... o que está pensando...
E mesmo? — Laura começou a observar Lilian da cabeça aos pés, vagarosa e maliciosamente. — Pois vou lhe dizer qual é o direito que eu tenho. Uma semana de aviso prévio, no mínimo!
Por quê? A senhora não me paga há três semanas! Não pode me obrigar a cumprir um contrato que a senhora mesma quebrou.
Laura olhou espantada para ela e depois soltou uma gargalhada estridente.
Não sei quem é o tipo, mas a verdade é que a tornou vingativa. Preciso reconhecer que é mérito dele. — Depois aproximou-se da cama, abriu a mala e tirou algumas notas da carteira. Aproximou-se de Lilian e colocou o dinheiro na sua mão, sorrindo com superioridade.
Aceite esta gorjeta, garota, faça a sua farrinha, mas não chore quando o dia amanhecer... Isso sempre acontece.
Lilian olhou para o dinheiro.
— O que está pensando não é verdade! — murmurou.
— É mesmo? — Laura riu outra vez. — Olhe minha cara, pensa que consegue me enganar! Sou Laura Damien, não se esqueça: conheço a vida! Sei que está envolvida com um homem, conheço os sintomas. E daí? Tenho uma mente aberta e até acho que já estava na hora, mesmo me deixando numa enrascada.
Abruptamente, avançou a mão rechonchuda e segurou o queixo e Lilian.
— Você trabalhou depressa, não beleza? Eu não desconfiava que neste lugar esquecido houvesse homens à disposição. Você é uma dissimulada! Com aquela conversa puritana de que não se interessava por homens! Pois divirta-se. Coma seu bolo, mas, já avisei, não chore quando acordar numa bela manhã e perceber que tudo que sobrou foi a lembrança do bolo... Os bolos têm a particularidade de sumirem pela madrugada. Reconheço que, enquanto dura, é muito agradável. Espero que ao menos este bolo seja gostoso, macio e bem recheado... Este bolo ao menos é recheado?
Lilian não respondeu, mas no íntimo não podia deixar de se divertir. Burke Ryeland certamente era o que chamaria de bolo de primeira... Recheado e até com chantilly!
O carro de Burke passou pelos portões de ferro. Um guarda em seguida trancou-o novamente.
Este é um grande dia para todos nós — disse o homem, esfregando as mãos encardidas nos lados das calças, não tirando os olhos de Lilian.
Sim, Simon, é um grande dia — respondeu Burke sorrindo. O carro fez a curva no caminho e o homenzinho sumiu. — Nosso primeiro encontro com a curiosidade, Lilian.
O coração de Lilian batia desesperadamente. O pequeno Peter se mexeu em seus braços e ela o aconchegou mais perto de si, encontrando a força que precisava naquele corpinho rosado e gorducho. Era realmente adorável. Um bebê tranqüilo e risonho.
Parecia compreender que aqueles novos braços protegendo-o já o amavam sem reservas.
Aquele pensamento tranqüilizou-a e um pouco da tensão que a . dominara durante todo o dia cedeu. Agora já não havia mais possibilidade de voltar atrás. Já era a esposa legal de Burke e estava com ele neste jogo de mentiras e dissimulações. Não eram mentiras desprezíveis, repetia a si mesma incessantemente. Burke só desejava dar amor e segurança ao pequeno Peter. Era realmente o Ryeland que seu velho avô tanto desejara. Aquele que asseguraria a continuação da família...
— Estamos em casa, Lilian — disse Burke, interrompendo seu pensamentos.
Ela levantou o olhar e soltou uma exclamação de alegria. King's Beeches estava a sua frente, sua beleza iluminada pelo sol poente.
A casa era tão bela que Lilian quase perdeu o fôlego. Estava no meio de extensos gramados, contornada pelos Montes Mendip. Um cenário de extraordinária magnificência.
O carro estacionou em frente aos degraus de pedra que levavam porta de entrada. Burke voltou-se sorrindo para Lilian:
Como é? — perguntou irônico — preparada para ser possuída por esta massa antiga de tijolos e cimento?
Oh, não fale assim! — protestou. — King’s Beeches é maravilhosa! — Os olhos puros e ingênuos encontraram os dele. — Certamente você ama esta casa! Como poderia não amar?
Eu a vejo como uma bela e indestrutível construção, Lilian, mas me recuso a ser possuído por ela... como fez com meu avô e com meu irmão. — Logo seu sorriso tornou-se terno ao observar a imagem comovente da jovem mãe, compenetrada e dedicada. — Devo reconhecer que você e Peter não perderam tempo e se apaixonaram um pelo outro totalmente.
Bem, nós dois temos muito em comum — respondeu. — Somos dois órfãos, profundamente gratos por termos a sua proteção.
Burke alto e forte, ao lado deles parecia confirmar suas palavras. Embora aquele casamento fosse um arranjo entre eles, mesmo assim, não deixava de existir: ela agora usava o nome de Burke, estava ao seu lado, ia chamá-lo de marido. Ao pensar nisto, seu coração deu um salto. Este desconhecido era realmente seu marido. Seu marido!
A enorme porta da mansão se abriu e Burke sorriu para o homem parado em frente.
Tenho surpreendentes novidades, Tolliver. Trouxe minha esposa para esta casa.
Realmente, senhor? — falou o imperturbável mordomo, enquanto descia os degraus e educadamente segurava as malas que Burke ia tirando do carro. Depois cumprimentou Lilian, sem trair sua curiosidade nem por um instante.
Como está o meu avô? — perguntou Burke, voltando ao carro e pegando o bebê dos braços de Lilian para que ela pudesse descer.
O senhor seu avô está bem. Seu reumatismo pouco o incomodou nestas duas ultimas semanas. Possivelmente devido ao bom tempo que tem feito. — Afastou-se para dar passagem a Lilian, que entrou no saguão.
O saguão era imenso, com enormes arandelas de bronze presas às paredes forradas de carvalho. De um lado, uma lareira e, ao fundo, a escadaria com balaústres de madeira entalhada.
Lilian teve a sensação de ter voltado no tempo. Saíra de um mundo moderno e agitado para entrar naquela casa pertencente a épocas passadas, onde a vida era presa a valores e tradições.
O sr. Philip está na biblioteca, senhor — informou o mordomo.
Vamos, Lilian — disse Burke. Ela seguiu a seu lado, gelada, movendo-se automaticamente. Assoprou a leve franja que lhe caía na testa, enquanto o marido batia na porta antes de entrar orgulhosamente, segurando Peter num braço e empurrando Lilian para a frente com o outro.
A única luz na sala era uma lâmpada de leitura ao lado de uma poltrona. Uma fumaça espessa de cachimbo pairava no ar. Sentado ao lado da lareira estava um velho de cabelos inteiramente brancos, lendo sossegadamente.
Ele levantou os olhos lentamente, tirando o cachimbo da boca. Seus olhos eram do mesmo azul dos de Burke. O rosto ainda conservava alguns traços do belo homem que devia ter sido, mas o olhar era orgulhoso e frio. Olhou com arrogância para Lilian, que instintivamente procurou proteção na proximidade de Burke.
Então, afinal voltou para casa! — disse o homem. Depois seu olhar caiu no bebê, que Burke carregava.
Eu trouxe para casa o seu bisneto — disse com calma. — Tudo... tudo bem?
O homem ficou imóvel, dominado pela surpresa. Sua imobilidade paralisou Burke e Lilian, deixando imune só o pequeno Peter, que continuava com seu blá-blá-blá.
Finalmente o homem estremeceu e respirou profundamente.
Você tem realmente nervos, rapaz, entrando porta adentro e orgulhosamente apresentando seu pirralho. E quem é esta?
Minha esposa —respondeu decidido, levantando a cabeça com ousadia.
Sua esposa? — Os pálidos olhos azuis examinaram com desprezo a figurinha delicada e juvenil de Lilian, tão tensa ao lado de Burke, os olhos dourados muito abertos. Em contraste com Burke, alto, forte e muito bronzeado, ela parecia ainda mais jovem. Nunca uma esposa! Nunca uma mãe!
Pelos santos óleos, Burke! O que andou aprontando?
Obedeci às suas ordens, meu prezado avô. Casei-me... e tenho um filho. — Atravessou a sala com o bebê no colo e sem dizer palavra depositou-o no colo do avô — Diga que está satisfeito — murmurou. — Eu cumpri o meu dever como o senhor desejava.
As sobrancelhas grossas e brancas do velho senhor se juntaram. Philip Ryeland ficou ali, assustado, com o bebê nos braços.
— Um menino, hein? — disse afinal. Depois apalpou o rosto de Peter como se quisesse se certificar de que a criança era real. Olhou irritado para o neto: — Por que você não consegue fazer as coisas de uma maneira sensata? O problema é que você tornou-se cosmopolita demais. Muito parecido com aquela tolinha francesa que seu pai teimou em desposar.
— Pode ser, senhor — respondeu Burke, imperturbável. — Mas acho que não fiz um mau trabalho com este garoto, não concorda?
Ele falava meio brincando. Lilian estava abismada com a facilidade com que ele convencia o avô que o filho era dele. Admirou à sua frente três gerações dos Ryeland e sentiu-se uma intrusa. O velho senhor a olhou com tanto desprezo! Ela estremeceu, querendo fugir daquele lugar, e dos olhos daquele homem, que tão claramente a hostilizavam.
A chegada da criança causou sensação na casa. Duas criadas foram imediatamente despachadas para arrumarem os quartos para Lilian e Peter, enquanto na cozinha uma velha empregada esterilizava mamadeiras sob a vigilância competente de Burke. Depois Burke voltou com a mamadeira para a biblioteca, onde Lilian fora instalada com o bebê no colo.
— Espero que saiba o que fazer — disse disfarçadamente para ela enquanto observava sua tentativa de aproximar o bico da boca faminta do garoto. — Vá com calma, e deixe que ele respire de vez em quando.
Lilian ouviu e ficou rígida quando o avô voltou à sala para avisar que o jantar seria servido depois que o bebê tivesse sido alimentado. Moira, uma das criadas, o colocaria na cama para Lilian.
O senhor está sendo muito compreensivo, vovô — exclamou Burke, enquanto o velho se aproximava da poltrona onde Lilian alimentava o bebê.
E tinha alguma dúvida quanto a isto? — respondeu o velho irritado. — Envolveu-se com uma menina e achou que eu não aprovaria, não é?
Burke estava representando perfeitamente o papel do libertino arrependido. Um violento rubor tomou conta de Lilian.
— Eu ficaria profundamente agradecido se o senhor estendesse sua benevolência a Lilian também, senhor — disse com um vago sorriso. — Afinal de contas, ela não é somente a minha esposa, mas mãe de Peter também.
O olhar do velho senhor pousou novamente em Lilian. Agora sem casaco, ele percebia o quanto ela era franzina. Parecia que qualquer ventinho poderia arrastá-la. para longe! Não, não conseguia fingir que estava satisfeito com esta menina magricela. Mas o garoto era maravilhoso! Um verdadeiro Ryeland... e incrivelmente parecido com o seu querido Philip! Suspirou fundo.
Philip Ryeland olhou duramente para ela. Ele claramente não compreendia que Burke pudesse ser atraído por ela, mas o pequeno Peter em seus braços era a prova disto. O bebê sadio e forte, agora com seus luminosos olhos azuis abertos enquanto sugava gulosamente o leite que ela lhe oferecia.
Neste instante Burke aproximou-se do encosto da poltrona e acariciou levemente seus cabelos.
Você parece exausta, querida — disse.
Estou me sentindo bem — replicou ela, confusa por aquele interesse súbito.
Acho bom que vá para a cama logo depois do jantar — recomendou Burke.
O quarto que lhe tinham destinado era enorme. A luz de dois lampiões era suficiente para iluminá-lo, e o fogo, que crepitava na lareira, projetava figuras fantásticas pelas paredes.
O berço de Peter, que Burke tinha trazido, estava ao lado de sua cama, que era imensa, com quatro colunas e um dossel rosado. As colunas eram todas entalhadas, combinando com as vigas do teto de madeira escura.
Lilian sentou-se na cama e olhou para Peter. Dormia profundamente. Aquela casa estranha não o perturbava. Ela estremeceu e andou até a janela. A hera que subia pelas paredes balançava com a brisa. Não havia lua no céu, que estava negro, e Lilian sentiu-se muito só, muito distante do mundo agitado que partilhara com Laura Damien.
Lembrou-se do pai, da casinha onde tinha vivido em Chingford. Tão diferente desta! Aquelas enormes árvores, aqueles imensos gramados, aquele cheiro de cidra que entrava pela janela. Levavam uma vida rotineira e tranqüila, ele saindo para trabalhar pela manhã e ela indo para a escola. Mas bruscamente tudo desabou. O mundo de amor em que seu pai a envolvia sumiu para sempre. Agora só lhe restava a lembrança daqueles tempos sem sombras.
Um soluço morreu em sua garganta e apressadamente fechou a janela, preparando-se para dormir. Mas a tristeza não a abandonou. Apagou um dos lampiões e baixou a luz do outro, no caso do pequeno Peter acordar. E, trêmula de frio, meteu-se entre as cobertas.
Estava quase adormecida quando a porta do quarto se abriu e a figura alta de Burke apareceu. Ele sorriu carinhosamente.
Vim ver se está bem — sussurrou. — Algum problema?
Estou me sentindo perdida — murmurou ela.
Estou vendo. Amanhã vamos providenciar um quarto para o jovem cavalheiro. Moira poderá tomar conta dele. Ela sabe lidar com crianças, tem uns sete ou oito irmãos.
Oh, não será preciso — protestou Lilian. — Não me importo de tomar conta de Peter. Eu... eu gosto até!
Bobagem. Eu não a trouxe aqui para transformá-la em criada... Isto irritaria meu avô. Ele tem a crença antiquada que as mães estragam os filhos.
Você... acha que ele acreditou que sou a mãe de Peter? — perguntou angustiada.
Burke sentou-se na cama e segurou as mãos delicadas dela entre as suas.
Ainda é um pouco cedo para sabermos o que achou. Ele não é uma pessoa expansiva, como deve ter notado. Mas gostou do garoto, disto eu tenho certeza. Ainda muito preocupada?
Eu não consigo evitar — queixou-se. — Acho que o seu avô não simpatiza comigo. Fui uma decepção para ele.
Muito provavelmente — concordou Burke, de bom humor. — Você tem uma aparência pura, minha querida. Ele sem dúvida desconfia que nestas circunstâncias deve ser um caso de dissimulação. Esconde uma natureza explosiva sob um exterior falsamente tranqüilo. Você se abala por ser considerada um jade tranqüilo?
Lilian levantou os olhos para ele.
Eu na verdade me sinto como uma estátua de jade. Laura Damien se divertiria com isto! Achava que eu era uma pessoa muito insignificante.
E ela aceitou facilmente sua desculpa, de ter sido convidada para outro emprego? — perguntou Burke, subitamente curioso. Desconfiava que Laura tinha ficado furiosa ao perder esta criança tão paciente e meiga.
Lilian deu uma risadinha.
— Não, ela não acreditou. Ela achou que eu estava tendo uma aventura com um homem. Desejou felicidades e me disse para não chorar quando... — Lilian calou-se, muito vermelha ao se lembrar das suas palavras maldosas.
Continue — pediu Burke.
Não é nada. Ela achou que eu pretendia fazer algo desaconselhável, só isso.
Entendo — disse, enquanto rodava a aliança que ele mesmo colocara no dedo dela naquela manhã.
Caía uma chuva fina naquela manhã. No cartório, silencioso e solene, Lilian tinha respondido às perguntas protocolares com voz vagamente audível. Quando ele colocou a aliança em seu dedo, teve a impressão que explodiria em lágrimas. Enquanto iam buscar Peter, ele acalmou-a:
Lilian, este casamento foi somente uma formalidade necessária. Não deve deixar que o fato de ser seu marido a perturbe tanto.
E que... me sinto culpada — respondeu timidamente. Ela temia a série de mentiras em que tinha enveredado. Para ele, o casamento era um meio para conseguir que Peter fosse aceito em King's Beeches. Mas, para Lilian, era um passo dado no escuro, nada fácil.
Uma prova de sua natural delicadeza, minha pequena, é que permaneceu assim depois de nove meses na companhia daquela mulher — disse Burke enfim. Depois soltou a mão dela e se levantou. — Está contente com este quarto, Lilian? — perguntou olhando à sua volta.
Sim, obrigada.
Dentro de uma semana estará acostumada. Não deve deixar que o meu avô ou os criados a irritem. Não vai deixar, promete?
Vou tentar — disse sorrindo timidamente. Aquela aliança brilhando em seu dedo não significava nada. Nunca se sentiria dona daquela casa enorme, nem a verdadeira esposa deste homem bonito, charmoso, sorridente e seguro de si... este estranho! — Espero não decepcioná-lo.
Novamente Burke inclinou-se para ela, fazendo com que o encarasse.
— Tudo vai dar certo, minha pequena. Agora durma. Boa-noite.
E deixou-a, saindo silenciosamente do quarto.
Reconfortada, Lilian aconchegou-se nos travesseiros e adormeceu.
Peter acordou Lilian na manhã seguinte. Chorou muito e ela pulou da cama. Levantou-o do berço e olhou para o rostinho vermelho e zangado.
— O que há, meu garotinho? — sussurrou. — Gostaria que pudesse falar! Eu sou uma droga de mãe, não é? Está com fome, meu filhinho?
O menino soluçou sentido e ela sentiu seu coração pesado no peito. Será que Moira estava de pé? Ela saberia o que fazer!
Em seguida, Lilian embrulhou-o no cobertor e saiu do quarto. Parou no corredor olhando para os lados. Qual seria o caminho da cozinha? Indecisa, tentando acalmar o faminto Peter, Lilian ficou sem saber o que fazer. Estava tudo muito quieto e o dia mal tinha amanhecido.
Neste instante, uma porta se abriu atrás dela. Voltou-se e enfrentou a figura de cabelos brancos do dono de King's Beeches. Ele a olhava irritado, vestido num robe cor de vinho.
Esse garoto está fazendo uma algazarra terrível, moça! O que há com ele?
Ele... está com fome... eu acho — Lilian não conseguia esconder o pavor que sentia. — Eu estava indo até a cozinha...
Existe uma campainha em seu quarto — interrompeu-a. — Volte e toque-a. Uma das criadas virá atendê-la. — Depois deu meia-volta e entrou no quarto, fechando a porta atrás de si.
Com o rosto queimando e os olhos cheios de lágrimas, Lilian voltou ao quarto. Encontrou a campainha e pressionou-a. Dentro de instantes, Moira, agitada, entrava no quarto.
Bom-dia, madame — cumprimentou-a, pegando Peter nos braços.
Mas ele está todo molhado! — exclamou, olhando para Lilian, como se adivinhasse sua incompetência. — Vou levá-lo comigo, madame, e logo darei um jeito. O sr. Ryeland disse que eu devo ficar à sua disposição e ajudá-la com o bebê.
E muito gentil — sorriu Lilian.
Obrigada, madame — respondeu a criada, caminhando decidida para a porta com Peter nos braços. — O chá será trazido dentro de minutos, madame.
A porta fechou-se e Lilian ficou sozinha no imenso quarto. Abriu as janelas. O quintal estava apinhado de galinhas brancas e marrons, fugindo de dois cachorros. Mais adiante, depois do muro, os campos ainda mergulhados na neblina da manhã.
Seu ânimo começou a voltar. O lugar era lindo e o ruído dos animais dava mais vida a tudo. Mais tarde, poderia dar uma volta pelo campo.
Uma copeira logo trouxe o chá. Era menos intrometida que Moira, mas não menos curiosa. Os olhos escondidos sob a touca branca observavam Lilian atentamente. Percebendo isto, decidiu dizer alguma coisa:
Espero que Moira tenha conseguido acalmar o meu... meu filho — disse, aproximando-se da mesinha e provando um biscoito. — Ele é um bebê muito calmo. Mas desconfio que ele estranha a casa.
Muito provavelmente, madame — respondeu, repentinamente intimidada. Lilian sorriu para ela.
A que horas é o café da manhã?
Oito e meia, madame. Mais alguma coisa, madame?
Pode me explicar como chego à sala de jantar? Esta casa é tão grande!
Pois não, madame. E a primeira porta à direita, descendo a escada do lado esquerdo.
Obrigada — agradeceu Lilian, começando a tomar o chá. Sem dúvida, ela repetiria a conversa com madame lá na cozinha, pensou. E provavelmente ainda comentaria: "Mas que moça mais sem graça! Como o patrão quis se casar com ela?" E todos se divertiriam muito às suas custas.
Burke não apareceu para o café e Lilian sentiu-se muito mal, sozinha com o sr. Ryeland. Ele propositalmente ignorou-a, por trás de um jornal. Embora quisesse perguntar onde estava Burke, não ousou dirigir-se a ele.
A sala tinha imensas janelas que davam para um terraço, onde um cachorro passeava. De vez em quando, o cachorro batia as patas no vidro. Repentinamente, o homem gritou:
Pare com isso! — O cachorro imediatamente obedeceu e deitou-se, desanimado.
Como se chama? — Lilian perguntou timidamente.
O velho senhor agitou o jornal, dando a impressão que hesitava se devia ou não responder. Lilian mordeu os lábios ao sentir tanta hostilidade.
— O nome é Rafe — disse, finalmente. — Mas tenha cuidado com ele, moça. Parece amigo, mas não gosta de palmadinhas e tapinhas. Não está acostumado com isto. — Pôs o jornal de lado e começou: — Seu marido, se quiser saber, foi verificar algumas coisas para mim e só estará de volta à tarde. Ele disse alguma coisa sobre uma mobília do bebê que vai chegar. Quer que coloque no quarto que foi dele e do irmão. Pegue uma das criadas para ajudá-la nisto.
Ela assentiu, corando sob o olhar implacável do velho senhor.
— É inacreditável! — exclamou ele afinal, seus olhos azuis desbotados examinando-a dos pés à cabeça com visível desprezo. — O rapaz quis me pregar uma peça! — Depois levantou-se e saiu para o jardim.
Lilian ficou sozinha até que Tolliver entrou silenciosamente na sala.
Tolliver... — ele voltou-se e ela hesitou antes de continuar: — Tolliver, quando voltar à cozinha, quer por favor dizer a Moira que venha até aqui? Quero que ela me ajude a desocupar o antigo quarto de meu marido. A mobília nova chegará hoje de Tauton e quero tudo em ordem.
Sim, madame. — Um sorriso iluminou seu rosto: — E muito agradável ter uma criança em casa, se madame permite que eu diga. Nós os empregados, estamos realmente encantados.
Verdade mesmo, Tolliver? — perguntou Lilian, surpresa com aquelas palavras. — Trabalha há muitos anos com a família?
Aquele rosto tão ingênuo e puro, ignorando a vida do marido, fez com que Tolliver sentisse uma simpatia especial por ela. O sr. Burke tinha trazido coisas estranhas de suas andanças pelo mundo, mas nada tão estranho quanto aquela pequenina esposa já com um filho nos braços.
— Desde jovem, madame. A mãe deles faleceu quando o sr. Philip nasceu. Eram ótimos garotos, madame, embora o sr. Philip tivesse sido o mais sossegado dos dois. Acho o pequeno sr. Peter muito parecido com o tio.
É mesmo, Tolliver? — Por um instante o coração de Lilian assustou-se. — Meu marido e o irmão não eram parecidos?
Somente os olhos, madame. O sr. Philip parecia com a avó.
Entendo. A morte dele deve ter sido um grande golpe para o avô. Meu marido me contou que eram muito chegados.
É verdade, madame. O sr. Philip desde menino adorava King’s Beeches.
É uma bela casa. E tão grande! Sei que vou me perder muitas vezes aqui dentro. Mas estou atrapalhando seu serviço, Tolliver. Por favor, mande Moira, sim? Estarei no jardim.
Ele inclinou a cabeça, adiantando-se até a porta para abri-la para Lilian. Ela foi para o jardim. O sol estava mais quente, tornando as flores mais luminosas.
Parou diante de um relógio de sol, no meio do gramado, e leu a inscrição: "O tempo caminha à minha frente e o destino segue os meus passos". Sorriu ao se lembrar do velho Ryeland. Ele não a suportava. Sua tensão só diminuía quando Burke estava a seu lado. Mas, longe dele, se sentia a intrusa deselegante e ridícula.
Mas se não fosse por sua discrição e timidez, não estaria ali. Eram estas qualidades que agradavam Burke. Ele a tinha tornado a sra. Burke Ryeland, de King's Beeches, mas nunca exigira nada dela. Continuaria a ser para sempre a pequena Lilian Glyn, que ele conheceu como datilografa num hotelzinho à beira-mar.
De repente, Lilian virou-se e viu uma moça dirigindo-se a ela. Estava vestida numa elegante roupa de montaria. Os cabelos castanhos eram cortados muito curtos, o que lhe dava uma aparência de impecável elegância. Não era exatamente bonita, mas tinha a aparência extremamente requintada.
Quem é você? — perguntou com arrogância.
Eu... eu sou Lilian Glyn... isto é, sou a esposa de Burke. Nós... nós chegamos ontem à noite.
Deus do céu! — a moça exclamou incrédula. — Ora essa! Burke não se casaria com um bebê como você!
Bem... mas... casou... — respondeu Lilian sentindo-se infantil e ridícula diante daquela mulher. Devia ser a moça com quem o avô de Burke queria que ele se casasse.
Burke gosta de gracinhas, eu sei — disse a outra com desprezo. — Mas nunca chegou a este ponto! Explique esta história senhorita...
Neste instante, Moira apareceu com toda a sua energia, trazendo o pequeno Peter nos braços.
— O bebê não agüenta mais ficar longe de madame — disse rindo. — Olhe como esperneia em meus braços!
Lilian imediatamente aconchegou a criança junto a si. Depois virou-se, com os olhos brilhando:
Este é o filho de Burke. Não é mesmo lindo?
Filho de Burke! — A moça fitou atônita a criança, o rostinho sadio e risonho, enquanto tentava com a mãozinha rechonchuda segurar a blusa de Lilian. — Filho de Burke! — ela repetiu. — Pois não acredito!
Chegou mais perto, observando a criança que olhava para ela, os olhos azuis como os de Burke. Mas aquela moça não estava com disposição de se encantar com o pequeno Peter.
Quantos meses ele tem?
Cinco — respondeu Lilian.
Na verdade, sentia-se realmente mãe daquela criança que a segurava tão avidamente. Peter lhe deu forças e ela não mais temia aquela moça arrogante.
Está querendo me convencer que Burke está casado há... mais de um ano? — Os olhos dela enfrentavam Lilian mostrando toda a sua frustração. — Pois eu não acredito! Ele não teria deixado de me contar, não teria escondido de mim! Ele... — Subitamente lembrou-se da presença de Moira. — O que quer? — perguntou irritada.
Madame deseja que eu a ajude a preparar o quarto do pequeno Sr. Peter, senhorita — respondeu Moira com decisão.
Ah! — A moça batia o chicote regularmente nas calças de montaria. Depois, sem dizer mais nenhuma palavra, deu meia-volta e subiu correndo os degraus de pedra, entrando na casa.
Lilian estremeceu. Aquela moça, muito mais do que ela, pertencia a King's Beeches.
Quem é ela? — perguntou a Moira.
Srta. Íris Mollary, madame, de Mallory Court. Ela está sempre por aqui. O velho sr. Ryeland gosta muito dela.
Compreendo... — disse enquanto olhava as portas por onde a srta. Mallory havia entrado. Era uma moça assim que o sr. Phillip Ryeland queria como esposa de seu neto. Bela e arrogante. Nascida para administrar uma casa como King’s Beeches e dar à luz meia dúzia de belos rebentos.
Baixou os olhos para Peter aninhando-o no colo. Certamente ele não estava incluído no ódio do velho. Então as lágrimas, que tinha segurado tanto, caíram soltas por seu rosto.
— Oh, Peter! Como eu adoro você! — E o menino sorriu, como se tivesse compreendido. — Ele não é lindo, Moira? — Lilian exclamou, o rosto molhado pelas lágrimas.
— Lindo e rosado como uma maçã de setembro, madame — concordou Moira, sorrindo comovida.
Quando Lilian sorria, aquele rostinho delicado se iluminava e um intenso charme a envolvia. Seus enormes olhos castanhos brilhavam. Quem sabe o sr. Burke tinha se apaixonado por aquele sorriso? Por que tinha mantido aquele casamento em segredo? A srta. Mallory tinha ficado furiosa. Todos sabiam que ela esperava um dia ser a senhora de King’s Beeches. Mas esta menina, simples e tímida, tinha conseguido ganhar a parada.
Moira pensava admirada. Esta criaturinha tinha muito mais do que se via à primeira vista. Íris Mallory podia ser elegante e bonita, mas o sr. Burke tinha preferido esta mocinha suave e doce.
A mobília infantil e um verdadeiro zoológico de bichos de pelúcia chegaram naquela tarde. Lilian e Moira passaram horas ocupadas arrumando tudo no enorme quarto que um dia fora de Burke e Phil.
Depois de pronto, o quarto parecia ter saído de um conto de fadas.
Lindo, não é Moira? — exclamou Lilian animada.
Muito lindo, madame — disse Moira. — O pequeno Sr. Peter tem muita sorte.
Sim, sim, Moira, muita sorte.
Bem, agora vou levá-lo para dar um passeio pelo jardim em seu novo carrinho, madame. — Antes de sair, ainda se voltou para mais uma olhada, sentindo-se orgulhosa em ser agora a pajem do bebê.
Lilian continuou ali, abraçada ao elefantinho, olhando sonhadora o belo jardim. Era uma tarde ensolarada e quente. Estava apreciando os jardins quando Burke entrou no quarto. Estava com botas e calças de montaria, a camisa aberta no peito. Aquelas roupas acentuavam a sua virilidade.
Ele aproximou-se da janela.
— Gostou dos brinquedos, Lilian? — perguntou amável.
Ela balançou expressivamente a cabeça. Cuidadosamente pôs o elefante de lado.
Peter vai adorar todos eles! Parecem saídos de um conto de fadas!
Brinquedos devem encantar — respondeu sorrindo, tornando mais sedutor seu rosto másculo. — O que fez o dia todo? Ainda não ficou amiga do meu avô?
Ela sacudiu a cabeça, sorrindo levemente.
Espera que ele goste de mim? Como poderia? Uma águia nunca aprecia um passarinho.
E que tal uma pomba?. — perguntou Burke, pegando Lilian pela mão. — Venha comigo. Quero mostrar uma coisa a você.
Puxou-a para fora do quarto, fazendo-a seguir seus passos largos pelo corredor: abriu uma porta e Lilian arregalou os olhos admirada. Não lhe deu tempo para parar e levou-a até uma enorme lareira, sobre a qual estava o brasão dos Ryeland: uma pomba branca pousada no cabo de uma espada. Embaixo estava o lema em latim: Fortes Fortuna Juvat.
Sabe o que quer dizer, Lilian?
"A sorte favorece os fortes" — respondeu. — Eu nunca arrepiarei minhas penas sobre a espada de seu avô. E muita pretensão. Eu não sou... Íris Mallory...
Imediatamente ele largou sua mão e, afastando-se um pouco, resmungou alguma coisa que ela não conseguiu ouvir. Virou-se exclamando.
Então conheceu a terrível Íris? Parece que ficou impressionada.
Achei-a muito bonita.
Escute uma coisa, Lilian, ao contrário do que as pessoas dizem, eu nunca dei a Íris Mallory nenhuma razão para que tivesse esperanças de se casar comigo. Sei que meu avô gostaria que isto acontecesse e possivelmente isto influenciou Íris. Estou dizendo isto porque não quero que tenha a impressão que eu agi mal com ela. Fiz isto uma vez na vida e até me arrependo terrivelmente.
Foi até a janela e apoiou os ombros nela, o rosto sombrio.
— Você acredita, Lilian, que a gente paga pelos erros cometidos? Será que a gente tem que pagar durante a vida inteira?
Aquelas palavras abalaram-na. Olhou para ele, aquele homem orgulhoso, de repente tão abatido. Teve um impulso de se aproximar dele mas a timidez impediu-a.
Não, se os erros não forem propositais, Burke.
O problema é este — disse, encarando-a. — Meu erro foi proposital. — Mas logo deu uma risada, tentando afastar a melancolia. Convidou-a para dar uma volta no pomar. O ar lá fora estava perfumado pelas árvores carregadas de maçãs de cidra. Colheu uma para Lilian. — Para uma boa menina — gracejou.
Andaram lado a lado. Burke a olhou e riu.
— Você parece que tem quatorze anos! Acho que vou lhe comprar um velocípede para brincar no jardim...
— Não diga isto! — protestou. — Tenho certeza que sou o assunto preferido dos empregados. Moira me olha de um jeito!
— E como Íris Mallory olhou para você? — Ele soltou aquele seu sorriso radiante.
— Deve ter pensado que eu era um moleque da vizinhança. Tive a impressão que queria me pegar pelo pescoço e me expulsar daqui. Mas Moira salvou a situação... trazendo Peter para mim.
— E a prova do crime fez a bela e insuportável Íris reconhecer o seu lugar! — comentou Burke, bem-humorado. — Eu gostaria de ter visto a cena! Oh, Lilian, não tem jeito mesmo! Esta situação toda é muito engraçada!
Pode ser que para Burke tudo fosse muito divertido, mas não para ela. Lilian parecia embaraçada.
— Preciso dizer que conheço o Peru? Nunca estive lá e não sei nada sobre aquele país!
— É quente, úmido e primitivo — disse Burke, divertindo-se. — Vamos dizer a Íris que eu encontrei você debaixo de uma figueira, vestida com folhas tingidas!
— Vou dizer muito pouco, e só o que eu quiser. Não se deixe intimidar por Íris. Pode ser que ela seja o encanto de meu avô, mas sabe muito bem que eu não vou admitir que se meta com o que é meu! — Passou o braço pelos ombros dela, e levou-a de volta à casa. — Íris é uma boa pessoa, realmente. Mas foi estragada pelo pai.
Lilian tinha dois vestidos, mas nenhum deles era apropriado para jantar na luxuosa sala de King's Beeches. E ambos estavam em Londres no apartamento de Laura Damien! Assim, mais uma vez, sentou-se à mesa com sua roupa de linho azul-marinho. Íris estava presente, elegantíssima e sedutora. Lílian sentiu-se mais desajeitada e apagada.
Comeu em silêncio, sentindo os olhos de Íris pregados nela.
— Eu vi o seu filho, Burke. Já sabia? — disse Íris. Ele levantou lentamente os olhos para ela.
— Com quem acha que ele se parece?
— Com você, naturalmente, querido.
— Bobagem! — protestou o velho senhor. — O garoto é a cara do meu Phil!
— Verdade? — a moça perguntou arregalando muito os olhos.
— Vou ter que olhar outra vez para ele.
— Sim, faça isto, Íris — disse Burke. — Peça a Lilian para levar você até o quarto depois do jantar. Vai adorar os brinquedos... ele tem um zoológico lá em cima, não é mesmo, Lilian? — disse, dirigindo-se carinhosamente a Lilian. — Mostre o elefante cor-de-rosa, aquele com que você gosta de brincar.
— Ah, então ela usa os brinquedos também? — caçoou Íris. — Que coisa... cômica...
— E mesmo, não? — Burke respondeu. Tomou um gole de vinho e comentou com o avô: — Esse vinho é realmente suave. E italiano?
— Tab Gresham me recomendou e eu comprei uma caixa para experimentar. Ele entende de vinhos. Mas, como todo médico, não sabe jogar bridge.
— O senhor e o seu bridge — disse Íris sorrindo, dando um tapinha na mão de seu velho amigo. — Que tal nós quatro fazermos um joguinho esta noite?
— Eu... eu não sei jogar... — interrompeu Lilian, aflita.
— Não precisa ficar assim triste, minha queridinha. Eu gosto de você exatamente como você é, sem nenhum vício — disse Burke.
— Mas ela não tem nem um pequenino, para fazer a sua vida mais excitante? — provocou Íris. — Você monta?
Lilian sacudiu a cabeça.
— Nunca tive oportunidade de aprender.
— Que extraordinário! Burke vive em cima dos cavalos quando está em King’s Beeches. — E virando-se para ele: — Onde foi que encontrou sua esposa, Burke? Num convento?
O coração de Lilian deu uma cambalhota. Seus olhos ficaram grudados no rosto de Burke.
— Bem, nós nos encontramos no estrangeiro. Lilian era secretária de uma conhecida minha. Eu a libertei. — Sorriu para Lilian.
— Depois da sobremesa, querida, leve Íris lá em cima para ver o bebê. — E voltou-se para Íris: — Quase não se pode acreditar que ela tem um filho, não é? Ela mesma parece ainda um bebê!
— Não sei não — retrucou Íris. — Águas paradas escondem perigos terríveis!
— E águas agitadas, muita mediocridade.
Lilian percebeu que Íris tinha ficado tensa. Ama Burke, pensou, e ele sabe disto. Até aquele instante, Burke só tinha mostrado bondade para ela, mas e se um dia usasse sua língua ferina contra ela? Estremeceu. Era o seu único amigo naquele mundo estranho.
Discretamente, observou-o conversando com o avô. Conhecia tão pouco dele! Laura Damien tinha dito que era implacável, que nunca se importou com ninguém em toda a sua vida. Mas estava convencida que havia amado a mãe de Peter. Não era por Peter ser um Ryeland que o tinha trazido para King’s Beeches, mas porque de alguma forma havia ferido a mãe dele. A moça chamada Dani.
Que coração estranho, ansiando por horizontes mais vastos, mas renunciando a tudo para passar o resto de seus dias ali.
O comentário de Burke tinha deixado Íris sem ação, chocada. Foi amável com relação a Peter. E olhou sem interesse os bichinhos que enfeitavam o quarto.
Vai descer? — perguntou a Lilian.
Acho que vou ler um pouco — respondeu a moça. — Por favor peça desculpas a Burke e ao sr. Ryeland por mim.
Está bem — respondeu a outra secamente. Parou um instante para olhar Lilian que novamente se aconchegava no banco ao lado da janela. Parecia encantadoramente, jovem, frágil e suave. O ódio que tinha sentido ao saber da noticia do casamento renasceu mais forte ainda. Aquela era a esposa de Burke! E explodiu:
Você não está fazendo o terrível erro de imaginar que Burke está apaixonado, não é? Ele é incapaz de amar, sabia? Ele queria um filho para King's Beeches... não uma esposa! Você é perfeita. Plácida, apagada! Deu-lhe um filho e a qualquer instante vai-se livrar de você! Não sei se você o ama, mas que Deus a proteja se amar!
Deus... me proteja?
Sim, que Deus a proteja, porque Burke Ryeland, sua boba, adora destruir quem o ama. Detesta o amor. Simplesmente porque pode tirar sua preciosa liberdade! Como deve ter odiado Phil por ter morrido... e como deve odiar você porque teve que se casar e ficar aqui! Ele teve que se casar, entendeu? Foi por causa disto que você o agarrou!
Irritada, Íris virou-se e saiu, deixando no quarto um pesado silêncio.
Lilian ficou no mesmo lugar. Seu coração disparou. Estava aprendendo muito sobre Burke... até demais... e estava assustada.
Resolveu deitar e manter-se calma.
Estava lendo quando alguém bateu na porta. Em seguida, Burke entrou e a realidade voltou amarga para Lilian.
— Oh... alô...
Mas por que não desceu? — perguntou ele, chegando perto da cama e examinando o livro que ela estava lendo. — Íris assustou você?
Oh, não! Eu queria estar com Peter, só isso. Eu... eu gosto muito dele.
— E com ele se sente segura. Não pode com perguntas não é? — Ele a olhou com atenção. — Notei que você quase morreu quando Íris quis saber como nos conhecemos. Ela voltou a perguntar alguma coisa, aqui em cima?
— Não. — Lilian enrubesceu, lembrando-se do que Íris tinha dito.
Burke percebeu que alguma coisa estava errada.
Está com medo do quê? De mim? — Seus olhos a examinavam atentamente. — Não precisa ter medo de mim, Lilian. Eu não faria nada que a ferisse, como não faria com Peter. Vocês dois agora são minha família, sabe disto?
Nós dois? — Seus olhos mostravam sua surpresa. — Você pensa em mim como... como uma filha?
Os olhos de Burke se abriram, atônitos. Depois estudaram o rosto tão jovem, tão sem malícia, levantado esperançosamente para ele.
Bem, Lilian, uma coisa assim. Por que não? — E sorriu. — Certamente eu tenho idade para ser seu pai, pensando que eu poderia ser bastante precoce para me casar com dezessete anos.
Burke, você era precoce? — ela perguntou impetuosamente, sorrindo para ele, esquecendo todos seus receios.
Ele segurou seu queixinho e respondeu:
Deve fazer esta pergunta a meu avô. Lembro que costumava escrever para o jornalzinho da escola. Eu era meio bolchevista naquele tempo, e me expulsaram. Meu avô ficou furioso comigo. Daquela época em diante fui considerado a ovelha negra da família. Sim, pensando bem, acho que fui precoce, Lilian. Você gosta de ler?
Gosto, gosto muito de Dickens. O livro de que mais gosto é o Conto de Duas Cidades. Você leu? Eu sempre choro quando leio.
Você me acha um pouco cínico, não? — perguntou Burke.
Eu... eu não sei. — Passou a mão nervosa nos cabelos. — Acho que deve ser uma mistura. Você fala da vida de um jeito cínico, mas às vezes é muito romântico.
É a minha cabeça de escritor.
Por que não escreve outro livro?
Não. Não daria certo, minha querida. Eu ficaria descontente com... com as coisas como são agora. E melhor não. Esta página da minha vida está virada... Agora é melhor que durma. Quer que apague os dois lampiões?
Não, um só. Este quarto é grande demais e escuro....
Sua menininha... — comentou, carinhoso. — Está bem assim?
Sim, obrigada.
Vai dormir? Não vai ficar acordada pensando? Amanhã, vou levar você para conhecer melhor Somerset. — Depois riu alegre. — Quer que eu compre um elefante rosa para você?
Não devia ter dito a Íris que eu brinco com os brinquedos de Peter. Eu me senti uma idiota!
Ele deu uma risada bem-humorada e dirigiu-se para a porta.
— Pobre Íris. Ficou muito espantada. Vai dizer por aí que achei minha esposa numa creche. Vou ter que comprar umas roupas bem sofisticadas para você. Vamos fazer umas compras assim que eu tiver algum tempo... — E fechou a porta.
Lilian ficou ali, sozinha, pensando nas coisas extraordinárias que tinham acontecido naqueles dois dias.
O avô de Burke irritado na hora do desjejum... Mas entendeu-o melhor, ao se comparar com a orgulhosa Íris. Sentia-se uma moça insignificante, sem nenhum encanto. Como poderia ter-se casado com Burke? Burke Ryeland, tão atraente, tão bonito e inteligente, tão rico!
Esposa de Burke! Mas que piada! .
No entanto, Íris não tinha achado graça. Tinha sentido um ciúme terrível. Suas palavras cruéis lhe voltavam à lembrança:
— Burke destrói quem o ama!
E sabia, com certeza, que era isto o que tinha feito com Dani Larchmont.
O tempo logo mudou e as chuvas começaram a cair. Muitas vezes com violência, entrando pelas enormes chaminés de King’s Beeches e chiando ao cair sobre as toras de cidra que ardiam nas lareiras.
Lilian adorava ficar lendo, toda encolhida, no escritório de Burke. Ele trabalhava muito na fazenda, mas, no fundo, ainda era um viajante.
— A administração de uma fazenda poderia ser bem mais fácil — disse uma vez à Lilian. — Mas é necessário uma papelada imensa: Formulários e mais formulários! Olhe só para isto!
Quando Burke trabalhava no escritório, Lilian lia ou trazia Peter com alguns brinquedos. Brincava com ele sobre o tapete, em frente à lareira.
— Já está se acostumando com a vida aqui, não está? — perguntou Burke um dia.
Ela concordou... mas sabia que estava apenas sendo protegida dos problemas, ao lado de Peter e Burke, com cortinas cerradas isolando-a das montanhas lá fora e a porta fechada, sem perigo do avô de Burke aparecer.
Nunca ia lá. Ele parecia se irritar com o fato daquele salão ser o refúgio de Burke.
Apareceu uma manhã, com seu cão. Para desgosto do dono, o cão tinha se afeiçoado a Lilian. Mas o velho senhor permanecia hostil.
— Soube que ficou acordada, ontem à noite, com o menino — disse, ríspido. — Ele está doente?
— Os dentes estão rompendo — explicou Lilian. — Espero que ele não tenha incomodado o senhor.
— Não , não... Mas pensei que seria uma boa idéia chamar Tab Gresham para examiná-lo. Não quero que o garoto fique doente por nada neste mundo!
Lilian olhou admirada para o velho. Então, sob aquela capa de indiferença, se importava com Peter! Sentiu uma imensa alegria.
Para dizer a verdade — disse ela, procurando vencer a natural timidez — gostaria muito. Estou... muito contente que tenha sugerido. Com este tempo, pode apanhar uma bronquite. E eu não quero que isto aconteça.
Não, não! — exclamou. — Não queremos nada disso. Como diz, é uma criança gorducha. — Vou mandar um dos criados com um bilhete para Tab. O que Burke acha? Não disse que o garoto precisa ter um médico?
Ele disse que chamaria o dr. Gresham se Peter não melhorasse até a hora do almoço.
Pois bem, vou mandar chamar Tab agora. — Olhou-a daquela maneira hostil e saiu do quarto, com Rafe atrás.
Tab Gresham chegou em uma hora.
Lilian surpreendeu-se, pois pensava tratar-se de um homem de meia-idade. Mas ele regulava com Burke. Um homem magro, de cabelos muito louros, espertos olhinhos azuis e uma cicatriz na face esquerda. Era uma pessoa simpática, um homem simples e confiável.
Cumprimentou Lilian com amabilidade e comentou enquanto subiam até o quarto:
Já deveria ter vindo antes para conhecê-la, sra. Ryeland, mas estive descansando nestas últimas três semanas. Fui até a Escócia, pescar.
Então o senhor é um traidor — gracejou. — Burke costuma dizer que o melhor lugar para se pescar na Inglaterra é no Barle.
Ah sim, mas Burke é um homem de Somerset. Soa escocês, sra. Ryeland.
Compreendo — disse ela sorrindo, tão à vontade que chegou a ficar surpresa. Era difícil que conversasse com estranhos. Tinha sempre em mente aqueles amigos de Laura Damien, radicalmente diferentes deste homem encantador.
Entraram no enorme quarto. Moira estava sentada com Peter no colo, tentando distraí-lo. Normalmente ele adorava aqueles brinquedos, mas hoje estava infeliz, chorando muito.
Tab Gresham começou a examiná-lo, comentando:
— Mas ele é ótimo! O que o avô acha dele? — depois riu.
Aposto que o adora! Quem não adoraria? — Apalpou o pescoço do garoto. — Hum... os dentes estão rompendo. Além disso, está com uma inflamação na garganta e uma pequena dor de ouvido. Pobrezinho!
Os pulmões estão bem? — perguntou Lilian, preocupada.
Este chiado é por causa da garganta — explicou. — Eu trouxe um remédio comigo para aliviar as dores nas gengivas.
É amargo?
Tab riu. Estava achando Lilian encantadora.
— Posso lhe garantir que não. Eu não ousaria dar a seu bebê um remédio amargo.
Quando desceram, o lanche estava servido. Lilian, Tab e o velho Ryeland já estavam na mesa quando Burke chegou.
Alô, Tab — cumprimentou alegre. — Esteve examinando o garoto? Ele está bem?
Muito bem. São os dentes, Burke. E está com uma dorzinha de ouvido e inflamação de garganta. Mas já dei à sra. Ryeland um remédio. Ficará bom dentro de um ou dois dias.
Que alívio! — exclamou Burke. — Não ficou com inveja? Acho que está na hora de você assentar também.
Nunca pensei que viveria para escutar isto — disse o outro, sinceramente espantado. Depois virou-se para Lilian: — Foi a senhora quem fez este milagre! Sabe disto?
O sorriso de Lilian não foi espontâneo. Ela sabia... e só ela, o desesperado esforço de Burke, para parecer convincente.
Então o menino não tem nada sério? — interrompeu o velho senhor.
Nada que uma boa noite de sono não conserte, senhor.
E um garoto e tanto, não?
Sem dúvida — concordou o médico. — É forte como o pai.
Você fala como se eu fosse um estivador — reclamou Burke. — Não pode se esquecer que sou um poeta, viajante e escritor aposentado. — O avô fez uma careta, mas Lilian comentou risonha:
Tenho tentado convencer Burke para escrever outro livro, dr. Gresham. Ele poderia ditar e eu bateria à máquina depois.
Mas que idéia esplêndida! — disse Tab. — Não desperdice seu talento, Burke. Sei que agora é fazendeiro, mas como bom profissional, deve fazer tudo.
— Também penso assim. Seu campo de imaginação, se continuar abandonado, vai ficar cheio de pedras e pragas.
Burke riu.
Vou deixar mais um ou dois anos e depois...
Burke, não fale assim — protestou Lilian, assustada com o cinismo que lia em seus olhos.
Burke está certo — afirmou o velho senhor. — Agora é um fazendeiro. E esqueceu essas bobagens de literatura. — Olhou com rancor para Lilian. — Lembre-se disto, moça, e deixe de atormentá-lo.
Lilian enrubesceu.
Mas não é justo que...
Pare com isto, moça! — disse o homem, dando um soco na mesa, fazendo as louças pularem. — Não quero mais ouvir estas idiotices!
Burke levantou o olhar, as narinas dilatadas.
— Não há necessidade de falar com Lilian neste tom, senhor. Estas "idiotices", como diz, ainda representam muito para mim, embora eu tenha renunciado a elas. Sinto-me grato a Lilian por sua oferta, embora não possa aceitá-la.
Verdade? — retrucou o velho. — E também acha que eu sou grato... por você fazer o que me desagradaria?
Se nossas simpatias, finalidades, gostos e desgostos sempre foram opostos, não foi proposital de minha parte, pode acreditar. Tinha que seguir o meu caminho, como Philip tinha que seguir o dele. E se o caminho dele coincidia com o meu, também acho que não era proposital.
Não fale de Philip! — berrou o avô. — Philip foi tudo que você nunca pôde ser! Ele deu muito mais a esta casa do que você sequer pode dar! Deu seu coração, seu sangue! — empurrou a cadeira para trás e levantou-se tremendo, o rosto branco de raiva. — Desculpe-me Tab, sei que é grosseiro discutir em frente de hóspedes mas... diabo! Ele nunca escutou a voz da razão. Nunca! — E saiu da sala, batendo a porta com violência.
Deus... — murmurou Burke. — Nós dois não conseguimos diminuir nossas diferenças ou controlar nossos gênios! Não adianta mesmo! — Serviu-se com uma mão ligeiramente insegura. — O diabo é que estou amarrado a esta casa! Por causa de minha maldita consciência. Você não sabia que eu tinha uma, não é, Tab? — Burke estava melancólico. Levantou-se, deu a volta na mesa e segurou os ombros frágeis de Lilian: — Pare de achar-se culpada por toda esta discussão. — Beijou-a levemente nos cabelos. — Nós sempre brigamos assim. A vida inteira. Não se preocupe.
Não posso deixar de me preocupar — disse, olhando para ele com amargura. — Não é justo que ele pense que é... Não é justo!
As pessoas dificilmente são justas quando perdem o que mais amam e ficam com o que desprezam. É muito simples, minha querida. Simples e cruel!
Embora a tarde estivesse cinzenta, Lilian resolveu dar um passeio para escapar do sentimento de opressão que sentia naquela casa.
Assim, depois de se despedir do dr. Gresham, assegurou-se de que Peter estava dormindo, vestiu seu casaco de pêlo de camelo e foi dar uma volta pelo bosque, além das campinas.
As enormes faias lançavam seus galhos formando uma cúpula majestosa, depois apareciam os verdes olmos e os carvalhos. Tinha já andado uns vinte minutos, quando o bosque começou a rarear. Lilian achou-se diante de um caminho cheio de curvas, ladeado de amoreiras. Começou a caminhar mais depressa, apreensiva. Tinha a estranha convicção de que alguma coisa a empurrava.
Então, abruptamente, achou-se diante de uma porta branca, num muro de mais ou menos nove ou dez metros de altura. Aproximou-se lentamente da porta, atraída por ela. Encostou nela e ela imediatamente se abriu. Lilian atravessou o portal e entrou em um pátio em frente a uma velha casa da fazenda. Tinha várias chaminés. Era encantadora em sua solidão, fazendo com que ela parasse, extasiada. Subitamente, alguém gritou:
— Fique parada, moça! Fique parada agora!
Ela parou aterrorizada. Um homem forte, de cabelos grisalhos, se aproximou com um bull-terrier numa coleira. Ao chegar mais perto, disse: — Isto é propriedade particular, moça.
Eu... eu estou muito envergonhada por ter entrado em sua casa! — gaguejou Lilian. — Eu... eu não pensei...
É um hábito perigoso este, moça, não pensar antes de agir. O cachorro poderia ter atacado a senhora, se eu não estivesse por perto. — Sério, ele examinou-a da cabeça aos pés. — E acho que sei quem é a senhora. É a mocinha de King’s Beeches, não é? Eu a vi no outro dia no carro com o jovem sr. Ryeland.
Ela confirmou com a cabeça, nervosamente.
Sim, eu sou a sra. Ryeland.
Ah... — o homem ficou pensativo, e abriu um sorriso tímido.
— Estava pensando, senhora, já que está aqui, não aceitaria uma xícara de chá? Minha mulher recebe poucas visitas. Ela é paralítica, e as pessoas não gostam de gente doente. Entre. A casa fica muito triste assim isolada. — Depois sorriu e estendeu a mão para Lilian: — Sou James Larchmont, senhora, um dos arrendatários do sr. Ryeland.
Seus olhos brilharam.
Eu gostaria demais de tomar um xícara de chá com sua esposa, sr. Larchmont.
Então venha por aqui, senhora.
Passaram pelas imensas nogueiras e pelo pátio, até a porta da frente da casa. James Larchmont a abriu convidando Lilian a entrar. No mesmo instante, ela sentiu um aperto no coração, adivinhando que alguma coisa terrível a esperava naquela casa assustadora. Ficou parada, sem conseguir se mexer.
Tem certeza de que sua esposa não se importará?
Tenho toda a certeza — falou ele com convicção, percebendo sua hesitação. — Venha comigo, não fique assim nervosa. Minha esposa é uma amável criatura. Lilian entrou com ele para uma sala, onde encontrou a figura delicada de uma mulher de cabelos prateados, recostada num sofá.
Logo imaginou que aquela mulher um dia fora belíssima. Mas seus olhos foram mais além, pousando num quadro em cima da lareira onde uma linda moça, com um tipo cigano, de olhos e cabelos negros a olhava com ousadia.
Lilian sentiu o coração lhe pesar dentro do peito. Nunca tinha visto uma mulher tão bela assim! E sabia quem era ela... sabia!
Eu trouxe uma visita para você, minha querida — disse James Larchmont, gentilmente fazendo com que Lilian se adiantasse até onde estava sua esposa. — Esta é a jovem sra. Ryeland, de King's Beeches.
— Sra... Ryeland? — Os olhos, fixos em Lilian. Então exclamou:
— Oh, naturalmente! Jim contou-me que Philip tinha se casado. Que bom para ele! — Voltou os meigos e apagados olhos para o marido: — Ponha uma cadeira para a sra. Ryeland aqui perto, Jim. Não a deixe em pé. Sei que deu uma longa caminhada.
— Eu... eu vim pelo bosque — explicou Lilian, um pouco agitada.
— Não levou tanto tempo.
Pelo bosque? — os olhos se arregalaram. — Mas não é um lugar seguro para se andar sozinha, minha querida. E muito escuro e assombrado! Não devia... não devia mesmo ter andado por ali!
Oh... mas não me importei — disse Lilian sentando-se na cadeira colocada ao lado do sofá. — Havia somente árvores e pássaros.
Nunca gostei do bosque — disse a mulher. — Não gostei mesmo, não é Jim? Quando cheguei aqui, recém-casada, não tinha coragem de ir lá. Jim costumava rir muito de minhas maneiras da cidade... eu era de Londres... — Estendeu uma mão muito branca e segurou o pulso de Lilian. — Você veio de Londres, não veio?
Lilian abanou a cabeça, concordando silenciosamente.
Que estranho Philip ter-se casado com uma moça de Londres... ele com todo o seu amor por Somerset!
Mas não sou casada com... — Lilian calou-se ao notar que James Larchmont tinha apertado seu ombro, com força, seus dedos firmes pedindo que se calasse. Levantou os olhos para ele, confusa...
King's Beeches é uma casa maravilhosa, não é? — comentou a sra. Larchmont. — Deve gostar de viver lá, não é? Sempre achei que parecia uma casa de contos de fada... Você não acha? Aquele clima de sonho, que só ela tem... — Olhou para Lilian, a cabeça levemente inclinada: — Sim, vejo que você ama King’s Beeches. Philip iria querer isto, ele que também a ama tanto, não? Agora, o irmão dele... Espero que tenham falado dele para você... Falaram? Pois ele é tão insatisfeito, tão sem sossego! King's Beeches não o prendia. Foi embora, sabe? — Depois ficou séria e seu olhar desviou-se do rosto de Lilian, enquanto passava as mãos pelos cachos prateados de seus cabelos. — Sim, ele foi embora... os dois foram embora...
Os dois? — O coração de Lilian saltou no peito e novamente os dedos fortes de James em seus ombros a fizeram calar.
Vera — disse ele —, vou até a cozinha fazer um bule de chá. Quero que mostre à sra. Ryeland ás rendas que você faz. Vou buscar, está bem?
Mas... está bem, Jim. Estão no armário, ao lado da cama. Tome cuidado para não amassar as minhas sedas.
Ele saiu da sala e o silêncio caiu entre as duas. A mulher parecia ter perdido todo o interesse na conversa, os olhos se voltando lentamente para o retrato sorridente, em cima da lareira, sonhadores. Lilian teve a impressão que ela esperava por aquela moça, que um dia se chamara Dani... a filha que nunca voltaria. Tão linda para ter sido abandonada, tão linda para estar morta!
Lilian estremeceu, percebendo mais uma pessoa naquela lúgubre sala. Virou-se assustada e encontrou dois olhos negros exatamente iguais aos do retrato. Soube que aquele homem insolente e risonho era o irmão de Dani. Tinha tanta certeza disto como se alguém lhe tivesse dito. Eram iguais, mas o que havia de alegria na face da moça, nele estava transformado em insolência. Ele se parecia, pensou Lilian, com um cigano perigoso!
— Uma visitante, hein? — disse ele então, entrando na sala. A sra Larchmont afastou os olhos do retrato e voltou-se para o rosto arrogante do filho.
— Ah... é você, Jack... — disse sem entusiasmo.
— Sim, mãe, sou eu. Black Jack. — E sorriu cruelmente, enquanto se aproximava, parando à frente de Lilian. — A casa de Larchmont sente-se muito honrada... sra. Ryeland. — Os olhos negros dominaram diabolicamente o olhar dourado de Lilian, que estava fascinada.
— Permita que me apresente. Sou Jack, o filho desta encantadora dama e do estimável cavalheiro que está agora trazendo o chá.
James Larchmont passou por ele como se não estivesse ali e colocou a bandeja numa mesinha ao lado do sofá da esposa. Depois olhou para o filho:
Jack — disse —, eu deixei alguns trabalhos de renda de sua mãe na cozinha. Por favor, vá buscá-los.
Imediatamente, senhor. — Jack Larchmont dirigiu-se para a porta e, de lá, lançou o mesmo olhar zombeteiro para Lilian, percorrendo-a de alto a baixo.
Aceita açúcar? — perguntou o sr. James a Lilian.
Jack trouxe uma peça de renda cuidadosamente dobrada e colocou-a no colo da mãe.
— Posso ficar para o chá também, não?
A mulher não respondeu. O marido interferiu:
— Pare com isto, Jack. Sei muito bem que não gosta de chá. Vá agora tratar de sua vida e traga as vacas para dentro. Já são quase quatro horas.
— Quem sabe a sra. Ryeland quer que eu fique — insistiu Jack.
Lilian ergueu o rosto corado para ele.
Eu não me atreveria a afastá-lo de seu trabalho, sr. Larchmont! — exclamou.
Mas poderia... facilmente! — disse ele. O rosto fascinante e belo abriu-se num sorriso. — Então está me expulsando para as cocheiras?
Desapareça, rapaz — ordenou o velho. — Esta jovem senhora não está acostumada à sua maneira de falar. Pode sentir-se ofendida.
É mesmo, jovem senhora? — perguntou Jack insolentemente. — Está se sentindo ofendida com o pobre Jack, quando ele não lhe deseja mal algum?
Lilian desviou o olhar fugindo daqueles olhos magnéticos, tomando um gole de chá. Ainda com os olhos baixos, ela sacudiu a cabeça em resposta. Ouviu-o rir. Deliberadamente, Jack veio se colocar a sua frente, aproximou tanto seu rosto do dela, que Lilian não teve outra saída senão olhar para ele.
— Eu sou terrivelmente malvado, menina, como todos por aqui vão logo lhe dizer. Gosto de beber, sou vadio quando deveria estar ordenhando as vacas... mas gostaria de ser seu amigo. Posso ser seu amigo?
Naturalmente — respondeu Lilian. Sentia-se dolorosamente abalada... mas ao mesmo tempo sentia uma imensa piedade. Não entendia por quê. Ele parecia a última pessoa no mundo que precisasse de pena. Era um homem excepcionalmente bonito, obviamente bem-educado e, pelo modo como ele falava com ela, era evidente que tinha sucesso com as mulheres. Entretanto, olhando bem dentro daqueles olhos impiedosos, não podia deixar de sentir uma piedade intensa! A desgraça daquela casa não tinha poupado Jack Larchmont. Ele podia rir dela, mas, no fundo de seu coração, aquela infelicidade o estava consumindo.
Quer realmente tornar-se minha amiga? — perguntou ele. — Não vai ter medo de mim, ou virar o rosto quando me encontrar na cidade?
Ela sacudiu a cabeça e sorriu.
Você não parece ser um monstro — disse.
Eu escondo meus chifres e meus cascos durante o dia, sra. Ryeland. Algum dia nos encontraremos à luz da lua e a senhora me verá como sou na verdade.
Depois levantou-se e saiu da sala. A sra. Larchmont pareceu enfim acalmar-se. Então mostrou a Lilian seu trabalho. Era realmente um trabalho delicado e paciente, verdadeira obra de arte.
Eu mesma desenho os padrões — contou, orgulhosa.
Uma beleza, realmente lindo! Que paciência a senhora deve ter! — Lilian comentou.
Vera é uma pessoa muito paciente, senhora — disse o marido, acariciando os ombros da esposa com amor. — E também me ensinou a sê-lo, Deus a abençoe.
Bobagem, Jim — disse rindo. — Ele é a pura imagem, da paciência... e do sofrimento. Ele tem sofrido muito. — Os olhos desbotados se fixaram em Lilian. — Se encontrou um amor como o que este homem me dedica, encontrou um tesouro. — Apertou a mão dela. — Gosto de você, criança. Acho que Philip teve muita sorte em descobri-la.
Meia hora depois, Lilian saía com James Larchmont da casa. Enquanto se dirigiam para a porta do muro, ele falou:
— Eu não podia deixar que explicasse que está casada com o sr. Burke. Ela não compreenderia. Desde que caiu doente... a morte de nossa filha que causou isto... ela está com a cabeça confusa. Mas lhe faz muito bem ver uma jovem como a senhora.
Lilian segurou o braço dele com simpatia.
— Eu achei-a adorável — disse Lilian. — Não há nada que se possa fazer por ela?
Ele sacudiu a cabeça desanimado.
— Ela recebeu um golpe. Não sabíamos que a nossa menina estava doente, nem em perigo de vida. Até que chegou um telegrama enquanto eu estava trabalhando no campo. Quando voltei, minha esposa estava atirada como uma morta. Tive que ficar aqui com ela... Eu a teria perdido se a abandonasse. E nossa garotinha... bem, ela foi enterrada enquanto eu estava preso à cabeceira de minha esposa. — Suspirou profundamente e olhou para Lilian. — Existem coisas que nós dois sabemos, sra. Ryeland... é melhor nem mencionarmos, mesmo entre nós. Mas estou grato pela responsabilidade que seu marido tomou sob seus ombros, e que não tive coragem ou caridade de assumir.
— O senhor... sabe? — sussurrou ela.
Ele sacudiu lentamente a cabeça e fitou-a.
— Sim, sei que o menino que estão criando é meu neto. Eu sei que a minha Dani entregou-se sem amor ao jovem Philip Ryeland! O que está feito não pode ser desfeito... — Abriu a porta branca e Lilian encontrou-se novamente na tranqüila alameda. Ele continuou: — Não volte pelo bosque, senhora. Não é que exista alguma coisa errada por lá; mas vai se lembrar do que a minha esposa lhe disse e ficará nervosa. — Apontou para o outro lado e recomendou: — Siga por aqui, senhora. Este caminho a levará até sua casa.
— Está bem — disse sorrindo. — Obrigada por ter-me levado até sua esposa, sr. Larchmont.
— Obrigado por ter desejado conhecê-la, senhora. — Elevou a mão até o chapéu num cumprimento rápido e desapareceu pela porta branca. Lilian seguiu pela alameda.
O vento estava mais forte e no céu as nuvens ficavam mais pesadas. Lilian enfiou as mãos nos bolsos, caminhando apressada. Como Burke pudera ferir aquela moça tão encantadora? Ela o tinha amado! Na verdade, Laura Damien tinha dito que ela era louca por ele.
A chuva começou a cair, gelada. Lilian imaginou que por trás do sorriso bondoso de Burke podia existir uma incrível crueldade. Era carinhoso com ela e com Peter, mas desconfiava que só agia assim porque fora cruel um dia. E, mesmo, o que custava ser amável com dois... dois bebês? Exigiam dele apenas alguns sorrisos, alguns brinquedos e uma ou duas horas de seu dia.
Mas Dani Larchmont ousara exigir seu coração...
Deixou a alameda e logo encontrou-se na estrada principal que levava a King's Beeches. Corria já, fugindo da chuva. O vento fustigava seu rosto e despenteava os cabelos, que caíam grudados à testa lisa.
De repente, escutou o galope de um cavalo aproximando-se. Soltou uma exclamação assustada e, quando viu quem era, o cavaleiro parou. O rosto moreno a olhava de cima do cavalo.
— Sou eu, sou eu, Lilian — exclamou.
— Eu sei que é você.
— Minha pobrezinha encharcada! — disse Burke sorrindo, enquanto o cavalo sacudia a cabeça, indócil. Inclinou-se na sela e estendeu o braço para Lilian: — Não vou deixá-la aí. Suba comigo.
Ela hesitou um instante, mas percebendo a impaciência dele, abandonou-se em seus braços. Os músculos de seu peito e de seus ombros se retesaram sob o casaco enquanto ele a puxava para cima, colocando-a à sua frente.
— Não está com medo de Rebelde, está?
— Não, não.
— Mas parecia estar, agora mesmo.
— Não, está tudo bem.
— Nós dois a assustamos, não? — disse ele sorrindo, e depois esporeou levemente o animal, que partiu a galope.
Envolvida pelos braços de Burke, com a cabeça apoiada em seu ombro, Lilian observou seu perfil. Repentinamente achou-se comparando-o com o rosto forte e duro de Jack Larchmont. Um rosto que poderia ser gravado numa moeda romana!
Lilian mordeu os lábios ao pensar no olhar doce e amargo daquele rosto, que notou quando Jack se ajoelhou diante dela, pedindo sua amizade.
Deveria contar a Burke que tinha conhecido os Larchmont?
No mesmo instante esqueceu-se deles, pois Burke falou:
Vou a Londres neste fim de semana, Lilian. Tenho que assinar os últimos papéis da adoção de Peter. — Depois olhou carinhosamente para aquele rostinho molhado pela chuva. — Quer vir comigo, minha carinha de fada? Afinal, tinha prometido levá-la para algumas compras, não é?
Mesmo? — Seu coração bateu mais depressa ao pensar em Londres. — Oh, seria bom ver Londres outra vez...
Você é uma garota estranha — comentou. — Sabe muito bem que sim! — Achou graça numa gota d'água em sua face e com o dedo afastou-a. — Pensei que poderíamos comprar alguma coisa realmente sensacional para você usar no aniversário de Íris. Ela vai dar uma grande festa.
Eu adoraria viajar para Londres — exclamou. — Mas e Peter? Não gosto da idéia de deixá-lo aqui.
Ele ficará em boas mãos, querida. Moira é dedicadíssima e, se nós não estivermos em casa, meu avô passará grande parte do tempo com ele.
Então está combinado, Burke, eu não quero ir só para comprar coisas. Não quero que gaste muito dinheiro comigo. Não há necessidade.
— Há necessidade sim, minha pequena, porque quero fazer isto! — Olhava para ela completamente encantado com aquela ingenuidade. — Não quer ofuscar a sofisticada Íris?
Oh! Burke — exclamou. — Eu nunca conseguiria ofuscar Íris! Ela é linda!
Muito linda, muito linda... — caçoou Burke. — Ela é, na verdade, a personificação de todas as virtudes que os habitantes do condado esperam para seus filhos e filhas! — Seus olhos azuis brilhavam ironicamente. — Lilian, minha menina com tantos problemas de consciência... quando vai deixar de se sentir culpada por causa de nosso casamento? Nós estamos indo maravilhosamente bem. E conseguimos enganar a todos muito satisfatoriamente.
Conseguimos mesmo?... — Com um movimento ingênuo, ela escondeu o rosto no casaco de tweed de Butke. Nunca teve coragem de lhe contar que se sentia uma intrusa, uma hóspede indesejada toda vez que ele ficava longe dela.
Nunca lhe contou as horas que passara se escondendo nas poltronas ao lado das janelas, atrás de pesadas cortinas, em cantinhos no pomar. Ele não desconfiava de seu embaraço, quando o avô a chamava para tomar o chá com algum visitante que, ela sabia, tinha vindo até ali examiná-la. Nunca lhe disse de como automaticamente emudecia nestas situações, sentindo-se insegura e desajeitada.
Eu gostaria que... que você tivesse se casado com Íris... com qualquer outra pessoa, menos eu! — exclamou, impetuosa.
Ei! Não queira empurrar Íris para mim! — protestou.
O seu... seu avô gosta muito dela. Eles conversam muito, quando ela vem visitar. Ela toca piano para ele. Eles... eles se entendem. E eu acho, Burke, que ele teria perdido boa parte da amargura que sente por você se você tivesse se casado com ela.
Eu aprendi a aceitar, embora não consiga sempre tolerar, a amargura de meu avô, Lilian. E mais fácil para mim, do que se tivesse que aturar uma esposa possessiva e apaixonada demais.
Você não quer... não quer ser amado? — perguntou Lilian, com a voz embargada.
Ele ficou em silêncio e Lilian afastou o rosto de seu casaco para encará-lo. Ele imediatamente riu, ao olhar o rostinho molhado, uma face vermelha por causa do contato com o tweed áspero.
Burke, o que faria se me tornasse possessiva e apaixonada?
Você? — ele riu e fez um carinho na franja molhada. — Eu a devolveria ao reino das fadas.
Por coincidência Íris Mallory estava visitando a casa quando os dois chegaram, montados no cavalo de Burke.
Estava em companhia do sr. Ryeland, na sala das armas. A sala tinha janelas que davam para o pátio e Íris ficou irritada ao ver os cabelos negros de Burke contrastando com a cabecinha loura da moça em seus braços. E os dois estavam rindo... rindo na chuva...
— Meu Deus como eu a odeio! Como a odeio! — exclamou.
O velho Ryeland levantou os olhos da espada que examinava e olhou para ela. Foi até a janela e, ao lado dela, olhou para fora. No pátio, Burke desmontou e levantava Lilian para colocá-la no chão.
O velho e arrogante dono de King’s Beeches olhava com desdém aquele rostinho miúdo.
Ele parece que gosta de gnomos, minha querida. Mas melhor ela do que aquela menina Larchmont! Isto eu não conseguiria agüentar. O sangue daquela gente é selvagem! Olhe só o rapaz Jack. Passa metade de seu tempo pelas tavernas.
Ela... morreu — disse Íris, os olhos fixos no chão molhado do pátio, agora vazio, pois Burke e Lilian tinham ido acomodar o cavalo. Sabia que Burke gostava de escovar o animal e provavelmente Lilian estaria sentada vendo-o trabalhar.
Dani Larchmont morreu... — repetiu.
Sei — respondeu o velho, lacônico. — Enquanto Burke estava no Peru, ela esteve aqui. Teve o desplante de vir aqui! Queria que eu desse o endereço dele. Na verdade eu não tinha, mas ao invés disto, eu respondi que ele tinha deixado recomendações para que não dessem seu endereço a ninguém. Ela pareceu estranha, muito estranha, quando disse isso a ela. Saiu da casa chorando. Era evidente que tinham tido uma discussão antes dele viajar.
As unhas compridas de Íris estavam ferindo a palma de suas mãos enquanto escutava, pois Dani Larchmont era mais um dos seus motivos de sofrimento.
— E o senhor... o senhor a viu novamente?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não vi nem queria ver! Depois houve aquele boato de que todos da expedição tinham morrido. Encontrei Jim Larchmont na cidade uma manhã e ele me parou para indagar se era verdade. Lógico que ficou decepcionado, pois gostaria que aquela filha com cara de feiticeira se casasse com um Ryeland. Mas, pelo que todos sabiam, Burke estava morto. E, assim, livre para sempre das garras daquela cigana. Eu não estava triste, e disse isto a Larchmont.
O senhor... disse isto a ele? — perguntou Íris, chocada. — Não se importaria se Burke tivesse morrido? Burke...
O meu Philip estava vivo naquele tempo — respondeu rudemente. — Burke nunca se importou com isto aqui. Tudo o que ele queria era estar longe, conhecendo outros lugares. Ele nunca foi um autêntico Ryeland — continuou, deixando transparecer todo o seu ódio. Escrevendo livros, se envolvendo com gente como esta menina Larchmont! Andou com ela durante anos, certamente preferia vê-lo morto a vê-lo casado com ela! Eu costumava dizer a Philip que se ele se casasse com aquela selvagem o proibiria de entrar nesta casa. E preferia queimar tudo a deixar que ele trouxesse um filho dela para cá...
Então o velho engoliu em seco, e agitou a mão, amargurado.
Mas as coisas felizmente não aconteceram assim, e ele teve um filho que, graças a Deus, não é dela.
Mas o senhor não sabe nada sobre esta Lilian!
Eu sei o que meus olhos me dizem. — Os ombros magros, que apesar da idade não se curvavam, se levantaram num gesto expressivo. — Ela é pequena e miúda, concordo com você. Mas é muito bem educada, sem dúvida. E teve um belo filho, o pequeno Peter.
Ao ouvir estas palavras, Íris perdeu o controle.
Não precisa atirar isto em meu rosto! — exclamou, os olhos verdes brilhando de revolta. — O senhor me faz sofrer, dizendo uma coisa destas!
Minha cara...
Mas ela continuou a falar, aturdida pela dor.
— Durante anos, o senhor bem sabe, eu vivi com a esperança de um dia dar filhos a Burke. Eu... eu renunciaria a qualquer coisa por isto! Eu o amo... como sempre amei. — Calou-se, vendo a chuva caindo constante lá fora. Escondeu o rosto nas mãos, torturada pela visão de Lilian nos braços de Burke... torturada pelo pensamento daquele bebê de olhos azuis lá em cima.
O velho sr. Ryeland bateu levemente em seu ombro.
— Era a minha esperança também, minha querida, desde que ele voltou do Peru, Que vocês dois formassem um casal feliz. Mas não era para ser assim. Ele já tinha esta moça. Já estava casado...
— Casou para dar ao senhor o que o senhor desejava! Só se casou para assegurar a herança de King's Beeches. Realmente pouco se importa com esta moça. Nós dois sabemos muito bem disto... e esta coisa insignificante fica aí pelos cantos, fingindo não estar presente. Ela não exige nada dele, contentando-se com migalhas de afeição que recebe de vez em quando. Dormem em quartos separados. Um corredor inteiro a separa de Burke. E suponho que agora que ele conseguiu um filho...
Mas o velho sr. Ryeland era antiquado e não queria discutir a vida íntima de Burke com ninguém.
— Agora chega, Íris — disse secamente. — Está esquecendo de si mesma!
— Está querendo dizer que esqueço que sou uma lady? — retrucou nervosa. — Como desejaria não ser! Se fosse uma camponesa ou uma datilógrafa ordinária, quem sabe Burke se interessaria por mim! — Íris estava ofegante. — Tenho vontade de matá-lo... ele e sua estúpida e insignificante mulherzinha!
— Íris, seja uma boa menina. Você precisa crescer! — disse o velho senhor.
— Eu já sou bem crescidinha, obrigada! — disse irritada. Depois deu meia-volta e foi embora.
Lilian e Burke partiram para Londres na manhã de sábado, bem cedo. Lilian estava radiante. Sua alegria estava estampada nos olhos. Ficou aliviada por poder ficar longe de King's Beeches por alguns dias, longe de todo aquele fingimento. Agora podia ser ela mesma.
Chegaram em Paddington Station por volta de uma da tarde e tomaram um táxi até o hotel.
Já no quarto, Lílian tomou um banho. Estava penteando os cabelos em frente ao espelho, quando Burke bateu ligeiramente na porta que ligava seus dois quartos.
— Nao vamos almoçar aqui no hotel — Eu conheço um ótimo restaurante espanhol Piccadilly, perto do Atelier de Madame Baum, onde a deixarei esta tarde, Lílian.
— Madame Baum? — perguntou Lilian intrigada, enquanto se virava para olhar o marido. — É uma loja de... vestidos?
— É onde Íris compra as roupas dela. E Íris, tem que reconhecer, é muito elegante.
Mas eu não sou do tipo de Íris! — protestou. — Ela é muito sofisticada. Eu ficaria um horror se usasse roupas parecidas com as dela!
Ele riu e levou-a para a porta.
— Madame Baum não vai vestir você com lantejoulas nem cetim, lhe prometo. Ela vai olhar para esta sua carinha engraçada e escolher alguma coisa como as fadas usam...
Na verdade, Madame Baum escolheu roupas para Lilian que ficariam ridículas em Íris. A própria Lilian admitiu que a mulher não lhe deu um ar sofisticado e sim de algo etéreo, como se tivesse saído de alguma história fantástica e romântica.
Um vestido era de cores nacaradas e contrastava suavemente com o forro lilás. Os outros eram creme, quase amarelo, branco e um florido. Mas o que mais encantou Lilian foi um vermelho, de seda com reflexos dourados. A pequena e ativa Madame Baum o havia batizado de "crisântemo".
Lilian, olhando-se no imenso espelho da sala de provas, estava admirada. Tinha transformado de tal maneira sua aparência, e acrescentando uma luminosidade à sua pele clara, realçando o dourado de seus cabelos, e acrescentando nela um mistério de mulher adulta, que nunca suspeitou possuir!
Seu coração batia feliz.
Era este vestido que usaria no dia do aniversário de Íris Mallory.
Muitas outras roupas foram separadas. Lilian não sabia se devia possuí-las, mas Burke havia pedido a Madame Baum que suprisse sua esposa com um guarda-roupa completo. Lilian sentia-se embaraçada. Mas a sra. Baum estava encantada com ela e recebeu-a de braços abertos.
— Minha queridinha — disse, movimentando-se graciosamente. — Acho que tem um marido encantador. Agradeça a ele... e deixe que gaste seu dinheiro. — Deu uma risadinha. — Pense só em seu prazer quando a vir vestida assim! — E levantou uma camisola de seda rosa-chá, divertindo-se muito ao ver o rubor cobrindo o rosto de Lilian.
As roupas deveriam ser enviadas diretamente para King's Beeches. Mas como sabia que Burke tencionava sair com ela naquela noite, resolveu levar para o hotel um elegante vestido de lã amarelo e um casaco combinando. Madame Baum ainda aconselhou um pequenino chapéu preto, sapatos de camurça, bolsa e luvas. Lilian olhava maravilhada para tudo aquilo. Nunca tinha possuído coisas tão lindas!
Madame foi com Lilian até o elevador. Ao cruzarem as pesadas portas do ateliê, através das quais entravam diariamente as mulheres mais elegantes de Londres, madame pensou que raramente uma moça assim modesta e com uma natureza tão verdadeiramente aristocrática entrava em sua casa. O marido daquela menina era rico e bem nascido. Oh, sim, madame já tinha ouvido falar de King's Beeches! Entretanto não havia nenhum sinal de arrogância na moça. Aquela menina era genuinamente boa.
— Sra. Ryeland — disse sorrindo, ao se despedir. — Quando usar sua bela toalete esta noite, use um pouco de batom que eu coloquei em sua bolsa. Só um pouquinho, para que seus lábios brilhem. Vai ficar realmente muito atraente. Faça isto por seu marido. Promete?
Lilian riu, confusa.
— Madame Baum, a senhora está me encorajando a ser leviana... — acusou.
Mas a mulher insistiu, carinhosa.
— Isto nunca acontecerá, minha pequena. É o que torna o seu generoso marido um homem de muita sorte.
Lilian ficou pensando nesta afirmação em seu caminho até o hotel.
Era muito natural para pessoas como Madame Baum aceitar belos vestidos e luxuosas camisolas como provas de amor por um homem. Mas ao olhar para as caixas em seu colo, Lilian sentiu uma profunda depressão. Havia adorado os vestidos, mas o que a magoava um pouco é que Burke só queria que ela lhe agradecesse formalmente. Todas aquelas coisas não eram, como Madame Baum pensava, provas de amor.
Tudo aquilo era mais uma defesa contra a suspeita que brilhava nos olhos rancorosos de Íris Mallory. E muito possivelmente alimentaria o orgulho de Burke. Era um homem rico e Lilian reinava como a senhora de King’s Beeches. E agora tinha proporcionado a ela um guarda-roupa digno de sua posição.
Lilian olhou para as caixas em seu colo.
Sedas para Lilian Glyn, a esposa de Burke Ryeland...
Lilian olhava a imagem do espelho, um pouco assustada com o que via. Não tinha escutado Burke bater à porta, e não sabia que ele estava no quarto até vê-lo refletido atrás dela. Estava parada, quieta, olhando a figura esguia vestida com lã amarela e ficou tensa quando ele segurou seus ombros e fez com que se virasse para vê-la melhor.
E um lindo vestido, não é? — perguntou insegura. — São todos lindos! Estou tão contente, Burke, que tenho vontade de chorar!
Não ouse! — exclamou brincando. — Lágrimas e vestidos sofisticados não combinam.
É mesmo sofisticado, não é? — Ela olhou outra vez para o espelho. — Eu não estou parecendo boba, estou?
Olhe bem para o espelho e me conte o que está vendo.
Ela olhou para o espelho, mas não para sua figura. Sorriu para Burke, alto e impecável, em um terno escuro.
Como você parece assustador — murmurou.
Eu não sou assustador. — Passou os dedos pelo rosto suave.
Pelo menos agora, minha querida, estou bonzinho e inofensivo...
Depois, olhando em volta, pegou o casaco e ajudou Lilian a vesti-lo. — Tenho também um chapeuzinho — disse Lilian apanhando a caixa ainda em cima de um móvel.
Ele a olhava sério, enquanto Lilian ajeitava o chapéu preto na cabeça, com uma elegância que o surpreendeu. Ela estava realmente encantadora. Uma criança fingindo ser adulta...
Está gostando de sua imagem agora, Lilian?
Não parece que sou eu — respondeu ela. — Tenho a impressão de que... de que fui levada, como um dos personagens de H. G. Wells. E acho que vou acordar e me encontrar novamente no ancoradouro de Hastings.
Será que isto ajudará a fortalecer o encantamento ou o quebrará? — Burke tirou a mão do bolso e aproximou-se dela. Depois segurou sua mão direita e colocou ali um delicado relógio de ouro, em forma de losango. — Gosta?
Oh, Burke! Não posso aceitar! — olhou, extasiada, o relógio.
Provas de uma sincera admiração, Lilian. Você fez bem mais do que vir para King's Beeches e assumir uma posição desagradável. Aceitou Peter em seu coração. E isto assegurou o lugar dele em King’s Beeches, muito mais do que a minha afeição teria feito. Já percebeu como meu avô está impressionado por seu carinho pelo filho?
Ele... ele disse isto a você...?
Burke ainda rindo, abraçou-a levemente.
— Sim, minha querida. Agora, depressa, vamos sair e procurar o restaurante mais elegante de Londres para jantarmos.
E como era luxuoso! Todo decorado em prata, com candelabros enormes de cristal sob um teto de vidro translúcido turquesa. Havia uma orquestra tocando. O garçom tinha a dignidade de um bispo!
Ele é incrível — comentou Lilian sorrindo. — Lembra-me Tolliver.
Tolliver, minha querida, não gostaria nada de ser comparado a um garçom. É considerado o mais perfeito mordomo de Somerset.
Adora Peter, sabe? Gosta de levá-lo para passear no carrinho, mas não perde seu ar de dignidade. Eu gosto dele. Pelo menos não me faz sentir uma... intrusa...
Ora, você não é uma intrusa. Você é dona de King’s Beeches!
Não! — Lilian sacudiu a cabeça protestando. Odiava quando diziam que era... aquilo! A palavra certa era intrusa. Burke nunca conseguiria mudá-la para "dona" somente com um sorriso e belas roupas. — Burke, não vamos fingir quando estivermos sozinhos.
Mas eu não estou fingindo, sua tolinha! Eu sei que tem um voto secreto de me amarrar a Íris Mallory, mas Íris devora homens... pele... ossos... pés!...
Oh... você! — Lilian não pôde deixar de rir.
Você escolheu um vestido bem sensacional para usar na festa de Íris?
Escolhi — disse, acompanhando com um gesto de cabeça. — Mas vou escondê-lo até a noite da festa. Não vou mostrar nem mesmo para você.
— Mas que maldade! Estou pensando em não lhe dar mais champanhe só para me vingar...
Ele apertou carinhosamente a mão dela, mas, seu sorriso morreu quando viu alguém atrás dela. A mulher aproximava-se rapidamente de onde eles estavam, os olhos quase saltando das órbitas. Burke já estava carrancudo antes dela falar.
— Eu nunca poderia imaginar! Mas é mesmo Lilian Glyn!
Lilian virou a cabeça e sua boca ficou aberta, completamente atônita. Atrás dela, olhando-a com seus olhinhos azuis curiosos, estava Laura Damien. Foi Burke quem respondeu:
— Não quer fazer companhia a mim e a minha esposa e tomar um copo de champanhe, sra. Damien?
Levantou-se e, educadamente, afastou uma cadeira para Laura sentar. A mulher estava excitada, vermelha, cheia de perguntas para fazer, mas Burke preparava-se para enfrentá-la, chegando até a se divertir com isto.
Então era você! — explodiu ela.
Era eu. — Serviu-se do champanhe e reclinou-se na cadeira, tomando pequenos goles da bebida com evidente satisfação.
Você podia ter-me dito! — reclamou Laura, olhando para Lilian. — É quase inacreditável! Há quanto tempo estão casados?
Exatamente depois de duas semanas de nos conhecermos — disse Burke. — Romântico, não?
Laura deu uma risada grosseira:
Você é um homem calculista, Burke. Aposto que foi você quem recomendou a Lilian que não me dissesse nada. Por que o segredo?
Por que gosto das coisas a meu modo.
Você sabia que eu faria perguntas — Laura afirmou. — Sabia que eu me interessaria em saber por que você, entre todos os outros, poderia querer se casar com a minha pequena Lilian. Afinal de contas, meu caro, nós dois concordamos que ela exatamente não brilha, não é? Uma criança meiga e doce... mas... — Ela sorriu para ele, através da borda do copo. — Sabemos que um homem sofisticado e experiente como você... exige bem mais do que isto.
Uma criança meiga e doce — Burke repetiu. Sorriu maquiavelicamente para Laura. — Não acha que sou um homem de sorte?
Ela me disse que ia morar no campo e tomar conta de um menino — disse Laura com ironia. — Foi você quem mandou que ela dissesse isto?
Para falar a verdade, não mandei nada — respondeu. — Que esperteza a dela!
Oh, admito que foi esperta — disse Laura significativamente. Tomou mais um gole do champanhe e acrescentou: — É uma ótima datilografa, mas não consigo vê-la comandando o exército de empregados em King's Beeches. Sabe de uma coisa? Costumava quase tropeçar na língua quando tinha que dar ordens ao rapaz no hotel.
Verdade, minha querida? — perguntou, cravando os protetores olhos em Lilian.
Se é verdade? — perguntou Lilian confusa, vermelha até a raiz dos cabelos. Baixou os olhos para o copo de champanhe em sua mão. A alegria que sentira havia instantes atrás desaparecera, deixando-a friamente deprimida. — Se é verdade? — repetiu. E repentinamente levantou a cabeça, enfrentando Laura. Com uma nota de desafio, continuou: — Eu não era uma idiota? Acho que continuo idiota, porque ainda fico "estupidamente vermelha" como a senhora costumava dizer.
Oh, mas que gênio! — exclamou Laura abrindo os olhos espantada.
Aborrecido Burke interveio:
Sinto muito interromper a comemoração, sra. Damien, mas Lilian e eu temos entradas para o Covent Garden. Vamos chegar atrasados se não sairmos agora. — Deu a volta na mesa e quase arrancou Lilian da cadeira. Apressadamente, ajudou-a a vestir o casaco.
Então vocês ainda vão ao balé? — perguntou Laura levantando-se também. — Foi sempre uma fraqueza sua, não é meu querido? Nunca me esqueci do belíssimo rosto daquela dançarinazinha de balé tão íntima sua. O que aconteceu com ela? Aposentou-se?
Lilian sentia que perdia o fôlego, pois as mãos de Burke a apertavam com dedos de aço, embora ele não tivesse consciência disto. Puxou-a para trás, fazendo com que se apoiasse em seu peito e respondeu seco:
Ela morreu.
Coitadinha! — exclamou Laura, os olhos espantados. — Tão jovem e talentosa! Tão linda! Que perda trágica! Você nunca, nunca... poderá substituí-la! Você precisava ver aquela moça, Lilian, era tão feliz e tão doce! Sempre sorridente. Viva, atraente! — Lílian parecia encolher cada vez mais, pálida e humilhada. — Burke, do que foi que ela morreu? Era tão jovem!
Tinha vinte e sete anos — respondeu. — Provavelmente trabalhou mais do que devia. A vida de uma bailarina não é fácil, você sabe.
Sei sim. — O olhar de Laura pousado no rosto sério de Burke voltou ao de Lilian, segura como se fosse um escudo contra o peito de Burke. — Sabe, mal posso acreditar no que vejo. Você e a pequena Lilian... casados!
Se eu tivesse comigo a certidão de casamento a exibiria agora, para acalmar suas dúvidas, sra. Damien — retrucou Burke, com deliberada violência.
Oh, eu não estava insinuando nada disso. Quis dizer que é uma combinação surpreendente. Você e a pequena Lilian. É uma criança tão retraída e tímida! — Então, como Burke não respondesse nada, disse: — Preciso ir. Meus amigos estão me esperando. — Laura riu e pousou seu olhar em Lilian. — Vai me convidar para conhecer King’s Beeches, minha pequena? Eu adoraria!
Mas sra. Damien — respondeu Burke. — Nós ainda estamos em lua-de-mel e seríamos uma companhia muito maçante para a senhora. Ficamos de mãos dadas o dia inteiro.
É mesmo? Mas que gracinha! Pois bem — disse sorrindo contrafeita. — Espero o convite mais tarde, meu caro rapaz. Assim poderemos falar dos velhos tempos.
Dos velhos tempos? Eles fazem parte de um livro que não leio mais, sra. Damien.
Por causa daquela linda moça! — Laura insistiu. — Compreendo, compreendo! O que tem agora realmente não compensa a perda, não é mesmo? Preciso ir, realmente, queridos! Que bom vê-los novamente.
E ela afastou sua volumosa figura passando entre as mesas, deixando atrás de si um rastro de perfume e silêncio. Lentamente Burke soltou os braços de Lilian.
— Que pesadelo, encontrá-la novamente — ele corrigiu.
Lilian, no escuro, estava deitada com os olhos abertos, pensando. Descobriu que já estava habituada com o conforto de sua imensa cama em King's Beeches... Virou-se para um lado e para o outro. A lembrança das coisas que ouviu naquele dia não a deixavam. O luxuoso perfume do atelier de Madame Baum, Laura Damien agre-dindo-a, a leveza das dançarinas do Covent Garden.
Não agüentava aquilo! Tantas sensações novas e contrastantes! Sentou-se na cama e acendeu o abajur da mesa de cabeceira. Se ao menos tivesse um livro! Qualquer coisa para acalmar sua cabeça que rodopiava loucamente! Suspirou e cruzou os braços em volta dos joelhos encolhidos.
Que horrível ter encontrado Laura outra vez! Tinha estragado a noite. Burke tinha ficado taciturno. E, durante todo o espetáculo de balé, Lilian via à sua frente a figura de Dani Larchmont. Cada pirueta era feita por Dani, cada gesto, cada passo!
Burke não fez comentário algum quando saíram do espetáculo e sua fisionomia preocupada conseguiu reforçar a timidez de Lilian. Ela encolheu-se muda no táxi. Sentiu que sua presença era um peso para ele... Se a simples reaparição de Laura Damien tinha reacendido as lembranças de Dani, então realmente se aborrecia com ela.
Lilian mordeu os lábios, infeliz. Burke perguntou de repente:
— A gente um dia pára de pagar pelos nossos erros?
Devia estar querendo Dani em seus braços... mas agora era tarde demais. Os braços de Lilian se apertavam mais em volta dos joelhos. Como gostaria de poder ajudá-lo...
Então sua cabeça se levantou e ela olhou para a porta. Burke tinha acabado de abri-la.
— Eu acordei... e vi luz em seu quarto por baixo da porta — explicou. — Você está bem?
— Não consigo dormir — respondeu: — Sinto muito se a luz o acordou.
— Não, não foi a luz. Eu estava preocupado. — Sentou-se ao lado da cama dela, passando a mão pelos cabelos castanhos despenteados. — Por que não consegue dormir?
— Oh... acho que estou com saudade de Peter. Fiquei pensando se ele não sentiu a minha falta. — Seu olhar tornou-se sonhador ao se lembrar do bebê tão rechonchudo sorrindo com os grandes olhos azuis para ela. — Peter se parece com a mãe?
Burke sacudiu a cabeça.
— Não. Ele tem o nariz e a boca de Phil e, por sorte, os olhos azuis dos Ryelands.
— Os olhos dela eram escuros, não é? Negros como os de uma cigana.
Sim, como é que você sabe? — perguntou subitamente sério.
Vi o retrato dela. Eu estava passeando... naquele dia em que você me apanhou com Rebelde. Encontrei o sr. Larchmont por acaso, fui até sua casa conhecer a sra. Larchmont. Eu vi o retrato na sala. — Depois olhou para Burke e sorriu. — Compreendo por que a ama tanto!
Só porque viu o retrato e achou que era bonita? — perguntou irritado.
Sim. Ela deve ter sido tão cheia de vida! Eu até posso imaginá-la rindo.
Sim... costumava rir muito. — Abruptamente, Burke se levantou e começou a andar pelo quarto.
Lilian, o meu avô nunca poderá saber que Peter é metade Larchmont. Odeia aquela família. E Dani foi um dos motivos de suas queixas contra mim. Pensou que queria me casar com ela.
E não queria? — perguntou suavemente.
Eu nunca quis me casar com ninguém! Este era o problema, o grande problema! — Olhou para Lilian, pensativo. — Sempre fui muito egoísta, Lilian! O fato de ter nascido um Ryeland me deu muitos privilégios muito cedo na vida. Eu sempre tirei das pessoas e nunca dei nada em troca. Phil era diferente. Eu só queria a minha liberdade e vagar pelo mundo, sem me sentir ligado a nada nem a ninguém. Queria o riso e a alegria de uma moça como Dani, mas não queria dar nada em troca. Queria que ela me divertisse! Meu Deus... quando olho para trás e penso em toda a minha arrogância! Se Dani não tivesse me conhecido, estaria viva agora.
Oh, não! — protestou Lilian. — Não deve pensar assim, Burke. E isto não é verdade!
Você é fatalista, hein? Acredita que um Poder mais alto traça o nosso destino na terra, não é?
Acho que acredito nisto — respondeu vagarosamente.
Porque isto diminui o golpe, Lilian — retrucou. — Porque torna as coisas menos terríveis, menos assustadoras e a gente pode dizer a si mesmo: "esta pessoa morreu porque sua hora tinha chegado". Bem, não consigo pensar assim, Lilian. Não consigo.
Então seu coração nunca deixará de doer, Burke! Você sempre carregará mágoa.
Eu sei — riu amargamente. — Meu coração está sofrendo, agora. — Aproximou-se da cama e ficou olhando para ela. — Como você é criança — disse.
Você acha? Tenho dezenove anos. Não sou mais criança!
Você é um bebê... e eu a deixei triste. Maldito coração o meu! Não quero que se preocupe mais com isto! Quero que seja feliz.
Eu sou feliz quando estou com você e com Peter.
Lilian, quero que me prometa ficar longe da família Larchmont. É um lugar sombrio e triste.
E seu avô se aborreceria se soubesse que estive lá — Lilian acrescentou. — Mas é uma pena! A sra. Larchmont recebe tão poucas visitas. Tenho tanta pena dela!
Mesmo assim, fique longe daquele lugar, Lilian. — Subitamente os braços de Lilian o abraçaram.
Burke, você é tão bom para mim. Sou muito grata a isto! — E sem que ele tivesse tempo de recuar, deu-lhe um beijo rápido no rosto.
No mesmo instante, sentiu que ele ficava tenso. Encolheu-se nos travesseiros, sentindo-se como se tivesse ultrapassado os limites.
Por que... por que você está me olhando assim? Está zangado comigo?
Está é uma hora perigosa da noite... ou da madrugada... para beijos — respondeu irônico. Depois, cuidadosamente soltou os braços dela e que ainda rodeavam seu pescoço. — Estou contente porque gostou dos vestidos, minha pequena. Agora deve dormir, como uma boa menina. — Olhou-a escorregar para debaixo das cobertas...
Apagou a luz do abajur ao lado da cama e foi embora.
Mas Lilian não dormiu imediatamente.
A noite envolveu-a e sentiu aroma de um cigarro. Pensou que nunca conhecera nada mais solitário do que o aroma do cigarro de Burke chegando até ela no silêncio da noite.
Suspirou, virando de lado.
Seu rosto queimava contra o travesseiro. Burke tinha pensado... oh, ela sabia o que tinha pensado! Mas ela não tinha intenção de seduzi-lo com aquele beijo!
Seduzir Burke... Seu coração sangrava naquela noite por causa da bela Dani Larchmont?
Tolliver mal havia aberto a porta e Lilian entrava ansiosa.
— Alô, Tolliver! Que bom voltar para casa... preciso ver Peter.
— E deixou o mordomo e Burke olhando para ela, partilhando divertidos de sua espontânea impaciência.
Lilian abriu a porta do quarto... e parou.
Íris Mallory, muito elegante num fino vestido de chiffon estava sentada perto da janela com Peter nos braços, sorrindo para Tab Gresham. O velho sr. Ryeland estava sentado na cadeira de balanço de Moira.
O aborrecimento que transpareceu nos olhos de Lilian, ao ver Íris carregando Peter, logo cedeu lugar à preocupação vendo Tab.
— Por que está aqui, Tab? — perguntou. — Peter está doente?
— Atravessou o quarto com a ansiedade de uma jovem mãe, para segurar o filho. Mas Íris deliberadamente apertou-o nos braços, rindo maliciosamente para Lilian.
Então, a mãe pródiga retornou.
Peter está muito bem, sra. Ryeland — disse Tab sorrindo. — Fui convidado para o jantar, só isso.
Ah! — Lilian acalmou-se. — Ao vê-lo aqui pensei que a garganta dele tivesse piorado outra vez. — Depois inclinou-se para o bebê. — Alô, meu garotinho! Sentiu a minha falta?
É melhor que tenha, meu velho — disse Burke sorridente atrás dela. — Sua mãezinha quase morreu de saudade! — Olhando os outros, comentou: — A festa é comemoração pela nossa volta?
O avô deu uma risada, enquanto Íris respondia:
— Como estava Londres, meu caro? Aproveitou sua folga dos deveres rurais... quando a sua esposa não estava chorando por causa do filho?
— Oh, eu dei um jeito para que ela não chorasse o tempo todo — retrucou Burke, atravessando o quarto até onde Íris estava e tirando o bebê dos braços dela. — Alô, meu garotão! — disse ele, sem se importar com Íris. Com o filhinho nos braços, formava um quadro comovente. Íris sentiu o coração na garganta. Como o amava! Não era justo... na verdade era grotesco que este homem maravilhoso pertencesse àquela... datilógrafa medíocre... esta menina insignificante! O olhar inconsciente de ódio de Íris varreu Lilian da cabeça aos pés.
ilian — exclamou Burke. — Já se pode ver dois dentinhos quando ele ri!
Verdade mesmo? — Lilian segurou os bracinhos rechonchudos de Peter. — Ria para mim, meu filhinho. — Ele bem-humorado riu e ela enxergou os dentinhos. — Parecem duas pequenas pérolas! — exclamou — Dr. Gresham, o senhor viu os dentinhos de Peter? Viu?
— Sim... querida... nós vimos — respondeu Íris, que se levantou com a habitual elegância e segurou o braço do velho sr. Ryeland:
— Vamos descer agora?
Mas não tinha dito que queria ver o banho do garoto? — perguntou o avô.
Não agora, meu amigo. — E saiu do quarto, majestosamente.
Tenho vontade de atirar uma coisa nessa mulher! — comentou Tab.
E por que não atira? — gracejou Burke, sentando-se na cadeira que o avô acabara de deixar e brincando com Peter em seus joelhos. — Ela poderia recobrar seu juízo e se apaixonar por você. Não é o que sempre quis?
Tab enrubesceu ligeiramente.
Ela nunca olhará para mim — disse. — E, mesmo que olhasse, eu não tenho condições de dar a ela a vida a que está acostumada.
Não? Ela o pegaria pelo pescoço e o obrigaria a clinicar em Harley Street. E dentro de seis meses você seria o médico mais badalado do lugar.
Prefiro não ter Íris a isso!
Os dois ficaram com Lilian para ver o banho de Peter e desceram. Ela estava toda molhada. Foi então trocar de roupa no quarto. Já ia pegar no armário o vestido azul-marinho quando se lembrou do belo vestido de lãzinha amarela. Hoje à noite, não precisava ser ofuscada pelo belo vestido negro de Íris.
Sim, aquele vestido caía impecavelmente. Não ficava parecendo mais um garoto ou uma menina de escola. Um sorriso feliz dançava em seus lábios, enquanto escovava os cabelos castanhos.
Sentindo-se elegante e luminosa, desceu as escadas.
Escutou o som do piano antes de chegar à sala. Quando entrou, seus olhos se arregalaram ao ver o velho sr. Ryeland sentado ao piano.
Afundou sem ruído numa das poltronas, reprimindo um sorriso ao sentir que Íris a examinava da cabeça aos pés.
Tab Gresham aproximou-se por trás da poltrona de Lilian e murmurou em seu ouvido:
Estamos tomando xerez, sra. Ryeland? Quer também?
Eu prefiro sidra — sussurrou de volta. E, depois, segurando a manga de seu casaco: — E, por favor, me chame de Lilian.
Se prometer me chamar de Tab — retrucou em outro sussurro.
Prometo.
Viu-o afastar-se, servir a bebida para ela no bar. Tinha se surpreendido ao saber de sua paixão por Íris. Ele parecia tão sólido e sensato, tão diferente de Íris! E Íris estava apaixonada por Burke. Era evidente. Estava sentada a seu lado, a mão esquerda tocando o ombro dele e seus olhos verdes admirando seu perfil. Lilian estava abismada como Íris externava seu amor. Um amor que não recuaria diante de nada, nem mesmo diante da esposa e do filho que ele trouxera para King’s Beeches.
Tab trouxe-lhe o cálice e sentou-se a seu lado.
— Gosta de música? — perguntou.
— Gosto. Toco um pouco de piano. De ouvido. Sorriu para ela, amável.
Depois do jantar, Íris sugeriu uma mesa de bridge.
— Somos quatro.
— Somos cinco — emendou Tab, calmo.
Oh, mas eu não jogo — disse Lilian, depressa. — Vocês podem jogar. Eu não me incomodo de ficar assistindo.
Tem certeza, Lilian? — perguntou Burke, olhando para ela através da fumaça do cigarro. — Não é uma coisa muito estimulante assistir aos outros jogando cartas.
Não gosta de costurar, minha cara?... ou fazer tricô? — perguntou Íris com ligeiro desdém na voz.
Gosto de ler — disse Lilian ficando de pé. — Não vou atrapalhar ninguém. Vou pegar a minha sidra e ir até a biblioteca. Espero que a lareira ainda tenha fogo.
Traga seu livro para cá — sugeriu Burke.
Não, vocês vão me atrapalhar — ela respondeu com um leve sorriso, e, servindo-se da sidra, afastou-se decidida.
Uma meia hora depois, a porta da biblioteca se abriu inesperadamente. Lilian estava confortavelmente sentada no sofá. Levantou os olhos e encontrou Tab Gresham.
Estou fora enquanto arrumam as cartas — explicou. — Vim conversar com você. Estava louco para vir até aqui desde o começo do jogo.
Que afirmação galante, doutor... quero dizer... Tab.
Posso lhe fazer companhia? — Deu a volta e sentou-se no enorme sofá, ao lado dela. — Permita que lhe diga que gosto muito da cor de seu vestido, Lilian? É linda.
É mesmo, não? — Passou os dedos pelo vestido, admirando-o. — Burke comprou uma porção de vestidos maravilhosos! Eu nunca tive coisas tão lindas! — Os olhos dela brilhavam. Depois levantou o pulso para ele. — E ganhei isto também.
Muito bonito — disse Tab, segurando o pulso dela entre suas mãos. — Conte-me uma coisa, Lilian, você não está preocupada com Íris, está? Quero dizer... deve ter notado que não procura esconder o que sente por Burke. Ela sempre teve esperança de um dia se casar com ele. Você entende, não é do tipo que desista das coisas que deseja. Na verdade, quero dizer que não deixe que a atitude dela a aborreça. Se ela não conseguiu atraí-lo para sua teia enquanto Burke era solteiro, agora que está casado... e muito feliz, não conseguirá nada.
Você acha mesmo? — perguntou muito ansiosa. — Acha que ele é feliz? Como gostaria de fazê-lo feliz!
Mas você já o fez! — Tab a olhou surpreso. — Você deu-se a ele... e também lhe deu o pequeno Peter!
S-sim, eu sei — respondeu, afastando os olhos de Tab. — Mas talvez isto não seja o bastante — disse confusa. — Acho que ele ainda gostaria de poder viajar. Parece difícil que ele fique atrelado aqui em King's Beeches quando seu coração anseia por lugares diferentes... Você acha isto também?
Não, realmente não acho — respondeu com convicção. — Em minha opinião, uma vida feliz no lar é a melhor coisa para um homem. Talvez isto soe estranho vindo de um solteirão como eu, mas posso garantir que Burke está bem mais feliz com este casamento do que se podia imaginar. Imagine-o com Peter esta noite.
— Sim, ele ama Peter — concordou Lilian, mas ainda mantinha os olhos desviados de Tab. Ele a observava, cada vez mais intrigado. E engraçado, pensou, como ela se fechava numa concha sempre que a conversa recaía em seu casamento. Parecia assustada... sim, assustada de falar sobre seu casamento.
Tab afastou o olhar para a lareira. Era evidente que havia algum mistério no encontro de Burke com esta jovem e com esta decisão surpreendente de casar com ela. Tab não acreditava que ele a tivesse encontrado no Peru. De fato, desconfiava que ela nunca tinha saído da Inglaterra.
E se isto fosse verdade... se fosse verdade, onde tinham se conhecido... e quando?
Era certo que Burke tinha estado no Peru. Fora uma dificuldade entrar em contato com ele quando Phil morreu. Sua expedição estava espalhada. Levou alguns meses até que Burke voltasse à civilização e fosse informado da morte do irmão. Voltou para a Inglaterra, imediatamente, mas não mencionou uma esposa e um filho.... que já tinha que ter àquela altura.
Tab estava profundamente concentrado, pensando. O que o avó de Burke dissera? "Peter é igualzinho ao meu Philip. O meu garoto parece com Philip outra vez". Tab estremeceu violentamente. Meu Deus, o que estava imaginando? A criança era de Burke. De Burke e desta menina. Era só ver os dois com Peter para ter certeza que eles o adoravam.
Tab afastou aqueles pensamentos e voltou-se para Lilian, uma graciosa figura dourada. Íris podia dizer que esta menina era uma anã descolorida. Mas Íris era uma mulher e não podia ver em Lilian o que um homem, um homem com sensibilidade, podia enxergar. Lilian era uma pintura em pastel, suave e doce, e suas cores nunca desbotariam.
Imagino que pretenda ir à festa que Íris vai dar na próxima semana.
Se me convidar — gracejou Lilian. — Será que ela convida esposas para suas festas de aniversário?
E depois as usa como lenha na fogueira que acendem no pátio da entrada da casa. Vai cair bem na noite de Guy Fawkes, você sabia?
Sim, Burke me contou.
Reserva algumas danças para mim, Lilian? Quase sempre chego tarde e não encontro mais ninguém para dançar.
Claro, Tab... se conseguir convencer Íris a não me atirar na fogueira. — Descontraída, se mexeu no sofá e o livro que estava lendo caiu no chão. Tab abaixou-se para apanhá-lo e leu o título.
— Ah, mais um livro de Burke! — exclamou. — Eu me lembro de quando ele escreveu este. Nunca tinha escrito um romance antes. Está gostando?
Lilian olhava atenta para Tab. Ele lia a dedicatória do livro: "A dois olhos feiticeiros sobre uma boca de anjo". Aquilo não era um mistério para Lilian, pois vira o retrato de Dani. Depois se recompôs, e respondeu com calma:
É muito bem escrito, naturalmente, mas me deixa triste.
Burke vê os sonhos sempre pelo outro lado, Lilian, e fica fascinado com isto. Não gosta de pensar que Paul nunca terá sua Caprice, não é?
Lilian sorriu, sacudindo a cabeça.
Está me dando uma opinião terrivelmente machista, Tab. Você acha que as mulheres são tão bobas e querem que sempre tudo dê certo?
Não, Lilian — respondeu Tab fechando o livro. — Homens, até mesmo médicos, desejam que seus sonhos se tornem realidade. Somos todos vulneráveis neste aspecto. Se não pudéssemos ter esperanças a vida perderia a graça — Tab afastou o olhar do rosto atento de Lilian e observou a porta que se abria. — Não vamos mais conversar sobre sonhos, Lilian. Eles são nossos segredos.
Pelo barulho dos saltos, percebeu que Íris tinha entrado e riu, enquanto ela se aproximava deles.
Uau, isto aqui está aconchegante — disse Íris e virou-se para Burke: — Olhe só estes dois aqui juntinhos no sofá! — e virando para Lilian, disse com malícia: — Então é por isto que você nunca aprendeu a jogar?
É sim. Não acha que é esperta? — respondeu Tab, encarando Íris com firmeza.
Bruke passou pelo sofá e aproximou-se da lareira, olhando com bom humor a figura delicada de Lilian, encolhida entre as almofadas, e Tab a seu lado.
— Você tem pés absurdamente pequenos, Lilian — comentou.
Imediatamente Lilian curvou-se e procurou afobada seus sapatos. Aquele tom! Ele falava com ela com a mesma voz que usava lá em cima quando conversavam com Peter. E agora falava com ela da mesma maneira, em frente de Íris!
— Meus pés absurdos combinam com o resto absurdo de meu corpo — respondeu, as faces queimando, aflita porque não conseguia achar o sapato direito, que estava enfiado em baixo do sofá.
Íris deu uma risada estridente.
Você também acha que ela é absurda, querido... toda absurda?
E lógico que é — respondeu Burke, os olhos azuis brilhando agora com uma estranha chama, causada pela irritação de Lilian, tão difícil nela. Com um movimento rápido levantou-a nos braços, trazendo-a para perto de seu peito. — É tão absurda quanto o elefante rosa de Peter, não é? — Lilian esperneava, seu rosto expressando todo o embaraço... ou confusão... ou... raiva. Burke estava fazendo tudo aquilo deliberadamente para impressionar Íris. Sentia-se ferida, principalmente porque lembrava que ele tinha rejeitado seus braços, exatamente na noite anterior, por não ter uma platéia para assistir.
Ponha-me no chão, Burke! Oh, me largue! — reclamava dando socos em seus ombros. — Não sou Peter... ou sequer um elefante rosa!
Pois não largo! Você é minha para que eu faça o que quiser!
Por Deus, Tab! Não parece um. homem das cavernas? — comentou Íris.
Tab sabia que o ciúme a estava corroendo, deixando seus nervos em pedaços, e por isso resolveu vir em seu socorro!
Já está ficando tarde, Íris. Acho que seria uma boa idéia irmos agora. Eu já estou de carro e posso levá-la para casa.
Está bem.
Estamos indo então, Burke — ele disse.
Certo! — Rindo ainda, Burke pôs Lilian no chão. — Pronto, meu amor, agora pode desempenhar suas funções de anfitriã.
Com o rosto corado e os cabelos em desalinho, Lilian foi até a porta, seguida por Íris. Íris olhou de lado o vestido de Lilian.
Então Burke levou você para fazer algumas compras em Londres? O que achou de Madame Baum? Seu vestido é de lá.
Gostei dela. É muito amável.
Oh, tinha que ser! — disse Íris rindo maliciosa. — Madame gosta de clientes ricos. Naturalmente, Burke não permitiria que você andasse sempre como uma colegial. Ele aprecia roupas elegantes. — Seus olhos varreram o corpo de Lilian. — E uma pena que você seja tão magra, Lilian. Você mal tem busto, embora eu tenha que admitir que não está nada mal nesse vestido. E bem cortado e isto faz a diferença. — Seus olhos caíram no pulso de Lilian. — E jóias também! Estou vendo que Burke é um marido generoso!
S-sim... — respondeu timidamente Lilian, sem saber como agir com a curiosidade de Íris. Entraram no quarto de Lilian e Íris vestiu com graça o casaco de peles, amarrando um lenço em volta dos cabelos. Depois voltou-se para Lilian, que estava apoiada numa das colunas da cama, parecendo irremediavelmente perdida naquele imenso quarto.
Para alguém que diz não saber jogar cartas, jogou as suas magistralmente bem, minha cara. Vocês, balconistas ou datilógrafas, devem ser muito espertas... embora o gosto de Burke sempre fosse meio ordinário. Antes era uma camponesa...
Isso é uma coisa muito cruel de se dizer!
Entretanto é a verdade, minha cara. — Íris alisou despreocupada uma das mangas de seu casaco. — Entretanto, é a verdade!
Dani Larchmont não era uma camponesa — retrucou Lilian. — Ela era lindíssima! Se Burke a amou, quem pode culpá-lo?
Não você, evidentemente — respondeu Íris, surpreendida ao ver a reação de Lilian. — Então Burke não faz nada errado a seus olhos? Não me admira que este casamento convenha a ele! Não somente uma esposa acomodada, mas alguém que se atira a seus pés em adoração! Bem, aproveite bastante enquanto puder. Com seu temperamento inconstante ninguém sabe quanto tempo durará esta viagem dele pelas terras das ninfas e dos gnomos. Sabia que parece um gnomo, querida? A gente logo se lembra daquela gentinha sentada em cima dos chapéus dos cogumelos.
E a sua, pensou Lilian, profundamente ressentida, me faz lembrar a de uma gata ciumenta!
Tab e Burke já tinham saído da biblioteca e esperavam Íris ao pé da escada.
O sr. Ryeland já foi deitar-se, Íris, e eu me despedi dele por você — disse Tab.
Então vamos indo. Boa-noite, crianças. Nós os deixamos para poderem brincar à vontade. — E desceu as escadas animadamente segurando a mão de Tab. — Vamos, caro doutor, vamos admirar a estrelas e o silêncio da noite.
Mas que convite, meu velho! — Burke exclamou rindo.
— Não se impressione. Íris sabe que meu carro é tão velho que eu tenho que guiar com as duas mãos — gritou Tab de volta. Ajudou-a a entrar no carro e lá se foram eles numa nuvem de fumaça.
A noite estava agradável apesar de já ser quase inverno. Tab falava sobre o tempo, mas Íris não respondia. Ele a olhou intrigado percebendo-a imóvel.
Desista, Íris — disse. — Burke não quer você. Nunca quis. Aprenda a aceitar esta verdade e conseguirá ultrapassar essa sua paixão. Talvez possa perceber que existem outros homens no mundo, prontos para darem a você o amor que nunca terá de Burke Ryeland. Ele pertence a Lilian... a Lilian, escutou?
Não... não fique repetindo isto! — respondeu, dolorosamente. — Você é cruel, Tab, muito cruel!
Gostaria de ser bom. Como eu gostaria de ser bom com você, Íris. Se ao menos me deixasse...
Houve um instante de silêncio e depois Íris deu uma risada nervosa.
Mas você é Tab Gresham e por mim poderia até estar no Pólo Norte. — Deu uma palmadinha no seu braço. — Vou dar uma olhada por aí e ver se encontro para você um belo bichinho... Existe Lilian Ryeland... não serve? E caseira e ronrona quando alguém ri para ela e lhe faz um carinho.
Lilian Ryeland é a garota mais adorável que eu já conheci! É boa e sincera.
Sincera? Pois eu não acho. Acho que existe alguma coisa muito, muito estranha na esposa de Burke.
Estranha? — perguntou Tab, olhando Íris de relance. — Por que diz isso?
São várias coisas. Tem a metade da idade de Burke, é sem graça, e fica de todas as cores do arco-Íris quando alguém menciona o Peru... Por que age assim? Por favor, me diga, Tab. Estou curiosa.
As mãos de Tab seguraram o volante com mais força. Então Íris também estava duvidando da história de Burke, de que ele e Lilian tinham-se conhecido no Peru? Meu Deus, era melhor que Íris não ficasse curiosa demais! Desejava Burke e era inescrupulosa.
Está dizendo bobagens e sabe muito bem disto — respondeu então, procurando desviar o Peru da cabeça de Íris. — Lilian não é uma moça sem graça. Tem a delicadeza de porcelana, de Chelsea.
Porcelana de Chelsea! Meu caro Tab, você perdeu o juízo! — Íris recostou-se na poltrona e deu uma risada. — Aquela anãzinha ridícula é muito sem graça! — disse com maldade. — E é perfeitamente óbvio porque Burke casou-se com ela. Queria alguém que não se intrometesse em sua vida. Maldito! E ainda se atreve a brincar de bobo feliz na minha frente!
Ele é casado com ela...
Por enquanto! — retrucou Íris. — Por enquanto!
Íris! Você é uma mulher linda, tem o mundo inteiro a seus pés! Esqueça Burke... por você!
E o mesmo que me pedir para não respirar mais... — respondeu apaixonadamente.
Os galhos do centenário teixo arqueavam-se fantasticamente até o chão, emoldurando o portãozinho que se abria para o caminho até a igreja local.
Era um caminho quase particular, pois ia desde King's Beeches. Raramente Lilian cruzava com alguém por ali. Naquele dia, Lilian admirava a beleza da árvore. Ouviu então passos firmes atrás de si e virou-se.
A sua frente estava Jack Larchmont. Ele parou, belo e misterioso, com aquele seu ar de atrevimento, um leve sorriso nos lábios. Apontou para a árvore.
Parece um velho broxo, não acha? — Depois apoiou o pé no portãozinho. — Não vai me dizer alô?
Alô... — disse Lilian, as mãos fechadas dentro dos bolsos. Desviou os olhos de Jack. — É mesmo uma árvore fantástica, não é? Eu... eu acho que me impressiono com estas coisas por sair de Londres.
Um pequeno pardal de Londres... — disse Jack suavemente e Lilian recuou assustada. — Eu gosto de Londres, mas não tenho muitas ocasiões para ir até lá. Eu sou um trabalhador do campo, muito ocupado.
Não parece estar muito ocupado no momento — disse Lilian.
Verdade, grande verdade. — O sorriso de Jack se acentuou. — Fiquei acordado a noite toda, bancando a parteira de vaca! Parece que não tem uma opinião muito boa a meu respeito...
Bem, disse-me que tinha chifres e cascos...
Ah, disse. Mas mesmo assim, menina, é verdade o que eu disse sobre a vaca. Ela é muito meiga e eu gosto de coisinhas meigas e doces, que dificilmente se encontram. E quando a gente as encontra, já pertencem a outras pessoas. Triste, não?
Acha? — Lilian, com os olhos baixos, não entendia bem o que ele estava querendo dizer.
Terrivelmente triste! Naturalmente, a gente sempre pode estender a mão e agarrar o que quer, sem se importar com o dono. Acha que devo fazer isto, Lilian?
Ela ficou tão surpreendida por ele saber seu nome que não reparou na pergunta.
Como sabe o meu nome?
Ora, eu conheço a sua criada — explicou. — A pequena Betty. Ela nunca lhe falou de mim? Pois ela fala muito sobre você e me conta coisas muito interessantes.
Betty? — Lilian olhou para ele espantada. — O que foi que disse?
Oh... coisas muito surpreendentes. Empregados são pessoas muito observadoras, Lilian. Seus olhos não perdem nada.
Mas o que ela não perde? — Lilian estava começando a se irritar. — Você não tem o direito de perguntar sobre a minha vida. O que ela andou dizendo?
Disse que seu marido é um homem muito esquisito.
Esquisito? Burke? — Ela agora estava começando a se assustar. Na verdade, empregados eram pessoas muito curiosas. E Betty, com aquela cara de sonsa, gostava de bisbilhotar.
Sim, esquisito. Acho muito esquisito que um homem não partilhe da cama da esposa.
As palavras caíram duras entre eles e Lilian enrubesceu violentamente.
— Como ousa dizer uma coisa destas? Como ousa discutir a minha vida e a do meu marido com uma criada?
Jack Larchmont deu uma risada debochada.
Por que não? Ele é uma espécie de divindade? Seu nome não deve estar na boca do povinho?
Você é desprezível! — exclamou Lilian. — Escutando as fofoca de Betty... Interpretando, a seu modo, as coisas que ela diz? É claro que ela não sabe de nada! — Ficava cada vez mais revoltada ao ver o brilho de zombaria nos olhos de Jack. — Eu tenho um filho, não se lembra? Será que a curiosa Betty acha que eu achei Peter num repolho?
Ele não é nem seu Peter... nem de Burke! — afirmou Jack. Depois agarrou os pulsos de Lilian e chegou mais perto dela. — Eu escutei o que meu pai disse a você naquele dia em que foi até minha casa, mas sabia antes de todos que Philip Ryeland não era o modelo de virtudes que todos diziam... Um corvo reconhece outro corvo, eu acho. — Tinha Lilian completamente sob seu domínio. — Não nos encontramos à meia-noite, Lilian, mas os cascos e os chifre estão aqui! Eu lhe disse que os veria, não disse?
E verdade — respondeu. — E fui tola demais sentindo piedade por você no outro dia. Odeio você. Acho que se alegra fazendo maldades.
Oh, mas vai depender só de você — disse ele, rindo. Seus dedos apertavam com mais força os pulsos delicados de Lilian. — Não quero que me odeie, Lilian. E pretendo guardar os segredos dos Ryeland se prometer ser... minha amiga.
O que quer dizer com isto? Diga abertamente o que pretende.
E ofender sua modéstia, minha menina? Você não sabe nada da vida, não é? Esposa e mãe! Só rindo! O galante Burke casou mesmo com você?
E lógico que casou!
E lógico que casou! Emprestar alguma verdade à grande mentira, hein? Seria terrível se a verdade aparecesse, não? O velho expulsaria vocês três do lar ancestral. Porque Burke está fazendo isto? Pela casa ou pelo dinheiro?
Acha que todos os homens são ordinários como você? Burke ama Peter e o avô. E está fazendo isto por eles!
Que nobre! Não seria porque aprontou uma sujeira com minha irmã e com isto acalma sua consciência?
Ele estava perigosamente perto da verdade e Lilian assustou-se.
Não deve contar nada! Não vai contar, vai? — pediu. — Burke só quer fazer o bem! Adora Peter e o sr. Ryeland. Se ele descobrisse a verdade, seu coração se despedaçaria... E nada do que disser poderá trazer sua irmã de volta... Só manchará seu nome e provavelmente matará sua mãe. Pense ao menos nela, se não consegue pensar em mais ninguém! Você a ama, eu sei que a ama!
Mas o amor é uma emoção vazia quando não é correspondida, Lilian. Isto dói, torna amargo e só estimula a maldade. — Pressionou a mão de Lilian sobre seu coração. — Ele bate, Lilian, bate. E sente coisas que não devia sentir. Sente que deseja a esposa de outro homem... e sabe que vai consegui-la. Pode ficar chocada, tenha todas as reações possíveis, mas não se esqueça que tenho nas mãos a reputação de todo o clã Ryeland. Depende de você revelar ou não o que sei. Não me importo com o coração de minha mãe, pois não se quebra o que já está quebrado. Abruptamente Jack soltou-a.
— Pense bem no que eu disse — continuou. — Nós nos encontraremos novamente. — Depois deu meia-volta e afastou-se.
Lilian tremia muito quando voltou para King's Beeches. Jack Larchmont sabia! O que ela podia fazer agora?
Tomou o chá no quarto de Peter, com ele e Moira. O pesadelo daquela tarde apagou-se um pouco de sua mente. Mas na hora do jantar, sentada à frente de Burke, e vendo-o conversar com o avô sobre a fazenda, tudo voltou. E principalmente a afirmação de Jack: "Acho esquisito um homem que não partilha da cama da esposa".
Lilian baixou os olhos para a torta de cerejas. Como ele se atrevia a dizer uma coisa destas? O que o avô pensaria destes boatos de cozinha, se chegassem até seus ouvidos?
Então estremeceu ao perceber que Burke tinha lhe feito uma pergunta.
O que disse? — perguntou aflita, sem ter a menor idéia do que ele tinha dito.
O que há com você, Lilian? Por que está assim?
Assim como? — perguntou pousando o garfo desajeitadamente no prato.
Bem, minha queridinha, está parecendo assustada como se eu a surpreendesse roubando a prata da família... Agora termine seu vinho, se não pretende passar o resto da noite na mesa — disse Burke bem-humorado.
Ela pegou o cálice e deu um grito de susto. A delicada haste escorregou de seus dedos nervosos e espatifou-se no chão... o copo de cristal veneziano!
Lilian pulou da cadeira com os olhos fixos no rosto transtornado do velho Ryeland.
Eu sinto! Eu sinto tanto! — gaguejou. E logo lágrimas lhe caíam dos olhos, enquanto catava os cacos espalhados pelo chão.
Deixe isto, Lilian! — ordenou Burke, que tinha dado a volta na mesa e agora a erguia. Viu que um de seus dedos estava ferido e soltou uma exclamação abafada. — Sua tolinha, porque tinha que pegar esses cacos? — Tirou um lenço do bolso e começou a limpar o ferimento, enquanto a voz seca do avô se fez ouvir:
Sabe, moça, que você quebrou uma peça insubstituível dos cristais da família?
Lilian engoliu em seco. As lágrimas corriam pelo rosto.
Eu sinto! Sinto muito! — repetiu.
Sentir muito não vai substituir o copo! — ele insistiu.
Estamos perfeitamente cientes do fato, senhor — disse Burke, enquanto amarrava o lenço em torno do dedo de Lilian. — Lilian não fez isso de propósito.
odia aprender a tomar mais cuidado — o avô respondeu. — Não está mais morando num subúrbio qualquer, bebendo água em copos de vidro barato.
Burke levantou os olhos para o velho.
Este comentário é inteiramente desnecessário.
Mas mesmo assim, muito verdadeiro, não é? — Um ar de desprezo tomou conta daquele rosto autocrático. — Temo que seja seu sangue francês que seja responsável pelos gostos tão plebeus.
Então agradeço a Deus por isto, pois senão poderia ser igual ao senhor! — E, passando o braço pela cintura de Lilian, saiu da sala.
Burke acendeu a luz de seu escritório e Lilian foi se sentar no chão, ao lado da lareira.
— Um copo tão lindo! — lamentou. — Eu devia mesmo ter sido mais cuidadosa... e ele tem razão quando fala de copos de vidro. Papai e eu não podíamos nos dar ao luxo de usar copos de cristal veneziano ou vinhos importados! — Durante algum tempo ficou olhando para as toras de madeira queimando. — Não devia ter me trazido para cá, Burke. Eu não combino com este lugar! Eu sabia disto.
Burke a observou um instante, atravessou a sala, e chegou perto do tapete e segurou-a nos braços, sentando-se com ela numa poltrona. Era muito leve em seus braços, e subitamente ela o abraçou pelo pescoço, como uma criança necessitando desesperadamente de apoio. Não era Burke quem estava ali, era seu pai, consolando-a como quando esfolava os joelhos. Encostou-se nele, sentindo todo o vigor daquele peito forte. Depois de algum tempo, murmurou:
Eu sou um bebê muito manhoso, não? Pior ainda do que Peter quando os dentinhos nasceram.
Você é uma garota muito sensível, só isso. — Burke segurou seu queixo e fez com que levantasse os olhos para ele. — Talvez eu não devesse mesmo ter trazido você, Lilian. Viver uma mentira não está sendo fácil, não é?
O que aconteceria se seu avô descobrisse?
— O choque poderia matá-lo — respondeu. — Mas é um risco que preciso correr. A felicidade de um menino de um lado e a possibilidade de meu avô descobrir minha mentira do outro. Eu pesei tudo muito cuidadosamente e decidi pela felicidade de Peter. Foi o orgulho dos Ryelands que causou este nascimento, e nada mais justo que agüentem a carga.
Lilian estremeceu ao sentir a dureza na voz de Burke. Ela não tinha nenhum orgulho, mas um coração aflito e assustado. Não podia enfrentar com a mesma calma de Burke a destruição da vida do velho avô, se um dia descobrisse que o seu adorado Philip não era digno do orgulho que sentia. Peter era a prova viva de que Philip não hesitara em aviltar um nome que dizia adorar e respeitar. Jack Larchmont não atrasaria a vida deles como tinha ameaçado, não se isto dependesse dela. Lembrando-se daquele rosto arrogante, tremeu incontrolavelmente.
Burke assustou-se, e pôs a mão em sua testa, ansioso.
Acho que está ficando resfriada — disse.
Eu... eu estou bem. E por causa daquele copo. Estou com um pouco de dor de cabeça.
Coitadinha! — Burke acariciou-a e trouxe-a mais para perto de si.
Lilian, gostaria de ir embora de King's Beeches? — perguntou lentamente.
Embora? — abriu os olhos assustada, seus braços involuntariamente apertando seu pescoço. — Para longe de você... e de Peter? Oh! Não!
Tem certeza? — deslizou um dedo pelo rostinho pálido, marcado pelas lágrimas. — Não parece estar feliz e acho que não tenho o direito de prendê-la aqui.
Eu... eu sou feliz bastante. Amo Peter. Não agüentaria ter que me separar dele! — abraçou-o aflita. — Você não quer que eu vá embora quer, Burke?
E lógico que não! — Deu-lhe um rápido beijo na testa. — Eu sentiria terrivelmente a sua falta!
Sentiria mesmo? Nunca achei que reparasse em mim. Vai reparar em mim quando formos à festa de Íris, no sábado?
Quando estiver toda elegante com seu novo vestido? Mas eu pensei que não quisesse ofuscar Íris...
Oh, não espere que a ofusque! — disse imediatamente. — Mas acho que você vai gostar do meu vestido. E lindo! Ele... ele ruge...
Ruge, hein? — Burke achou graça. Seus olhos pousaram nos cabelos dourados. — Você é uma boa menina.
Não sou uma menina! — Sentou-se ereta em seu colo e teve a impressão que não fazia outra coisa senão dizer a ele que não era mais uma criança.
Nem um elefante rosa para se brincar, não é? Minha queridinha, eu sou tão mais velho que só posso achá-la uma criança.
Tem trinta e seis anos e não é velho. Eu gostaria de ter trinta e seis anos!
Para quê?
Eu... eu teria mais... dignidade e mais... mais conhecimento do mundo. — Baixou os olhos pensando em todas as coisas que Jack Larchmont tinha dito.
Nem sempre a idade traz sabedoria, minha querida. Muitas vezes traz a desalentadora noção de como fomos idiotas. — Então levantou-se e soltou-a. — Agora pegue seu livro. Eu tenho que trabalhar um pouco esta noite.
Tão bom... mas tão distante! Acariciando-a sempre distraidamente. Sem saber que o medo nos olhos dela aquela noite era por causa da repulsa que sentia pela paixão de outro homem. Lembrou-se dos olhos negros de Jack — ousados, oblíquos de desejo. Sua respiração ficou ofegante. Tinha vontade de pedir socorro a Burke, nas não ousava...
Jack não hesitaria em espalhar tudo o que sabia sobre o nascimento de Peter se ela tentasse se proteger, deixando Burke sem defesa. Assim como o sr. Ryeland, a sra. Larchmont e Dani!
Todos à mercê de outros, desprezados e desonrados...
Lilian estremeceu.
O olhar sempre plácido de Betty desapareceu. Olhava Lilian com surpresa e admiração.
— A senhora está bonita demais! — exclamou, enquanto olhava a patroa. — Está mesmo parecendo uma fada!
Lilian deu um risinho alegre, enquanto girava dentro de seu vestido novo.
Olhou-se no espelho com alegria infantil. A pele nua dos ombros e dos braços parecia de cetim em contraste com a seda flamante. Os lábios tinham somente um toque de batom e os olhos brilhantes de felicidade refletiam o dourado do vestido.
— Pegue a capa, Betty — pediu ela. A empregada trouxe um elegantíssimo casaco de veludo e ajudou-a a vesti-lo.
— Não vai usar nenhuma jóia, madame? — perguntou.
Lilian sacudiu a cabeça, sorrindo levemente.
— Eu só tenho o relógio, Betty, e não posso usá-lo com este vestido. — Depois caminhou para fora do quarto.
— Divirta-se bastante, madame — disse a empregada, timidamente.
— Obrigada — respondeu Lilian, virando-se para ela. Repentinamente a figura tenebrosa de Jack Larchmont veio à sua cabeça, e o sorriso de Lilian sumiu dos lábios. Passou pelo quarto de Peter, pois queria que Moira a visse antes de sair.
— A senhora será a mais bela do baile! — exclamou juntando as mãos. — Verdade! Nunca vi um vestido mais lindo, nem mesmo em Íris Mallory!
Lilian divertiu-se com o comentário, e depois despediu-se de Peter.
— Boa noite, meu tesouro. Diga boa-noite para a mamãe...
Ele deu uma gargalhada alegre.
— O jovem sr. Ryeland vai ficar orgulhoso da senhora — disse Moira.
Lilian desceu as escadas radiante. Já estava na metade quando alguém a observava lá de baixo.
Viu Burke, estupendo num elegantíssimo smoking, os olhos azuis brilhando intensamente, enquanto a esperava.
Quando chegou mais perto, estendeu a mão e ajudou-a a descer os últimos degraus. Com mãos frias e firmes, ele a fez tirar o casaco. Depois afastou-a um pouco, ainda segurando suas mãos para vê-la melhor.
Não acha que este vestido arrebatador merece um presente?
Oh, não! Não, Burke! — protestou, confusa.
Oh, sim, sim! — respondeu rindo, enquanto a fazia girar, deixando-a de costas para ele. Sentiu então as mãos frias em seu pescoço e, baixando os olhos, viu que tinha colocado nela uma corrente de ouro, de onde pendia um pequeno camafeu.
Oh, Burke! Mas é lindo! Onde conseguiu esta jóia?
Encontrei numa loja de antigüidades aqui perto em Tauton, na semana passada. Não pude resistir, porque se parecia com você: delicada, inocente, meiga. — Sorriu ao ver as faces coradas de Lilian. — Por que está envergonhada? Não gosta de receber elogios?
Gosto, mas me deixam embaraçada.
A maioria das mulheres gosta de elogios. — E Burke ajudou-a a vestir o casaco novamente. — Vamos só nós dois hoje. Meu avô resolveu ficar em casa. Está com as dores nas pernas outra vez.
Que pena! — exclamou Lilian.
Foram até o carro, Burke carregando o sobretudo no braço. A noite estava fria e o céu estrelado e limpo. Lilian aconchegou-se melhor em seu casaco, olhando preocupada para Burke.
— Não vai vestir o sobretudo? — perguntou.
Ele sacudiu a cabeça e jogou o sobretudo no banco de trás. Depois virou-se sorrindo para ela e segurou-lhe a mão:
— Não estou sentindo frio. Vamos, entre.
A enorme fogueira já estava crepitando quando chegaram à festa, soltando fagulhas e espalhando sua luz milhas à volta. Burke estacionou o carro e acompanhou-a entre a pequena multidão de convidados que já se comprimia nos jardins da casa, cumprimentou os conhecidos, sempre com o braço enlaçando a cintura de Lilian. Ela invejava sua autoconfiança e calma, pois sentia os nervos tensos, sabendo que as pessoas a examinavam o tempo todo. Chegaram até onde Íris estava recebendo os convidados. O pai, orgulhoso da bela filha a seu lado, sorria contente.
Íris nunca estivera mais bela, pensou Lilian ao vê-la. Seu vestido, de seda de um verde profundo, simples, realçava os maravilhosos olhos, que refletiam as milhares de luzes daquela noite. A única jóia que usava era um colar de ouro, encrustado com jade, exatamente da cor de seus olhos.
— Vá entrando, minha cara — disse a Lilian. — Ache o lugar para guardar seu agasalho. Enquanto isso, vou distrair o seu marido, se não se importa.
Os olhos de Lilian refletiram imediatamente sua aflição. A idéia de ser abandonada sozinha, no meio de toda aquela gente, a fez ter ímpetos de se atirar a Burke, desafiando qualquer um a tirá-la dali.
— Tudo bem, Lilian — disse ele, percebendo imediatamente o que estava acontecendo com ela. — Passe um pente no seu cabelo que eu a espero aqui.
Lilian estava no toalete arrumando os cabelos despenteados pelo vento, quando sentiu que alguém a observava pelo espelho. Era uma mulher grandalhona e muito queimada de sol, com os cabelos curtos e grisalhos. Lilian sorriu.
— Preciso tirar um pouco o brilho — a mulher explicou. — Para dizer a verdade, sinto-me uma verdadeira idiota. Prefiro estar em cima de uma sela a ter de cavalgar pelos salões. Meu nome é Rita Coe. Por que Burke ainda não levou você para me visitar? Ele tem medo que ache meus cavalos melhores do que os dele?
Rita Coe? Mas naturalmente! A mulher que tinha uma escola de montaria. Burke já tinha falado dela. O sorriso encantado de Lilian foi tocante. A boa mulher logo percebeu como ela estava se sentindo sozinha no meio de tantos estranhos.
Burke me contou que a senhora tem um garanhão quase tão veloz quanto Rebelde — disse sorrindo.
Quase tão veloz! O meu Talleyrand pode ultrapassar o arisco Rebelde de Burke em qualquer dia da semana. Meu cavalo tem estilo, ah, isto ele tem! O de Burke é simplesmente um cavalo temperamental. — Riu e recolocou o porta-pó na bolsa. — Acho que Burke sabe montar muito bem. Você gosta de montar, menina?
Lilian sacudiu a cabeça, explicando que não montava. A sra. Coe olhou para ela, espantada.
— Mas precisa aprender, minha filha! Todos por aqui gostamos muito de andar a cavalo. Vou conversar com Burke para que a mande para mim. Você é magrinha, não tem muita força, mas vai ficar perfeita em cima de uma égua negra. Hum... você é uma menina linda! Bem que Burke me falou.
— Burke falou-lhe a meu respeito? Que era bonita? — exclamou Lilian, logo se arrependendo da pergunta.
Rita olhou para ela intrigada.
Ele não diz estas coisas para você? — Depois com pena do embaraço de Lilian, mudou de assunto: — Venha, vamos nos juntar aos outros. — Saíram em direção ao salão de baile. — O que acha de Íris? Gatinha bonita, não? Nós demos de presente a ela um corte de tweed irlandês, autêntico. Eu e meu marido Bill... você precisa conhecê-lo. O que deram a ela?
Uma sela. Burke trouxe ontem.
Você não deixa que ele venha aqui sozinho sempre, deixa? — perguntou. — Não deixe, minha filha! Íris gosta de Burke. Não sabia?
Sabia sim — Lilian respondeu com um sorriso travesso.
Tenho que reconhecer que Íris não a abala. Está com o rapagão enrolado no dedinho, hein?
Não é isso — Lilian respondeu rindo. — Mas ele é muito apegado ao nosso filho. Não me preocupo.
Boa menina! Vai ser uma ótima amazona!
Chegaram ao salão e atravessaram as portas de vidro que davam para os jardins. A enorme fogueira soltava fagulhas para o alto, sua luz alegrando a fachada sóbria de Mallory Court.
— Mas onde será que Bill se meteu? — reclamou Rita. — Aposto que está por aí jogando cartas com os rapazes ou experimentando o gim do coronel. Está vendo Burke?
Lilian sacudiu a cabeça, olhando ansiosamente à sua volta.
Bem, fique aqui que vou procurar meu marido — disse a mulher. — Tenho de encontrá-lo antes que ele se encharque de gim. Voltarei logo... com ele! — E lá se foi ela, arrastando a cauda do vestido de veludo vermelho escuro. Lilian não se conteve e começou a rir.
Concordo que ela é irresistivelmente engraçada — comentou alguém atrás dela. Lilian deu meia-volta e lá estava Jack Larchmont, olhos negros magnéticos, um cigarro preso aos lábios. A luz fugidia iluminou o rosto belo e duro. Estava com um elegante terno escuro, e seus cabelos negros brilhavam à luz da fogueira. Olhou com insolência e prazer para o rosto assustado de Lilian e deu uma risada:
— Por que não? Eu me misturo com a elite, do mesmo modo como me misturo com os criados. É uma vantagem das ovelhas negras...
De repente agarrou o braço de Lilian.
— Vamos fugir desta gente — disse, sem se importar se alguém os visse, forçando-a a ir para um pequeno bosque ao lado da casa. Lilian deixou-se levar, gelada e trêmula. Tinha vontade de gritar, mas não se atrevia...
Jack atirou longe o cigarro e abraçou-a, chegando o rosto moreno perto de seu pescoço claro.
— Eu te adoro! — sussurrou. — Não consigo deixar de pensar em você nem um só minuto! Não tem pena de mim? Não tem pena de me deixar acordado a noite inteira desejando-a desesperadamente? Oh, Lilian, você me enlouquece! Eu nunca amei assim antes! Tem que ser minha!
Os lábios agora acariciavam o rosto dela. Ela estremeceu violentamente quando se uniram aos seus.
Por alguns segundos não reagiu, mas depois o medo foi mais forte e Lilian começou a se debater, apavorada.
E naquele momento, exultante para Jack Larchmont, mas de terror para ela, escutaram os passos de alguém que se aproximava.
— Faça o favor de largar a minha mulher, Larchmont, a não ser que queira que lhe quebre o pescoço! — exclamou Burke.
Imediatamente Jack soltou-a. Depois virou-se para Burke e passou a mão pelos cabelos, sorrindo.
Não quebre o meu pescoço, Burke. Sua mulher não gostaria disto. Meu pescoço é muito precioso para ela.
Seu porco insolente! — gritou Burke avançando para ele. Jack não recuou. Enfiou as mãos nos bolsos e ficou parado, no mesmo lugar, provocando-o. Assustada, Lilian se pôs entre eles, com as mãos no peito de Burke.
Não faça isto, Burke — imploro.
Ele baixou os olhos e olhou-a por algum tempo. Depois respondeu com desdém:
— Pode poupar suas lágrimas, minha cara. Não vou privá-la do precioso pescoço dele. — Deu meia-volta e largou Lilian pregada ao chão, branca e desesperada. Quando Jack Larchmont tentou segurá-la, encolheu-se enojada.
Eu devia ter deixado que ele o matasse! — murmurou.
E por que não deixou, doçura? — disse irônico. — Ficou com medo que eu o matasse? Não se apegue muito a ele, pois o seu destino já está traçado ao meu lado!
Só consigo sentir ódio por você! — exclamou, fugindo do bosque para o movimento da festa.
Parou perto da porta, procurando por Burke entre os pares que dançavam. Quando o encontrou quase desmaiou. Estava com Íris nos braços, sorrindo encantado para ela, sem traço algum do desdém e da raiva de poucos minutos. Seus olhos só revelavam admiração pela bela moça.
Virou-se e deu um encontrão exatamente em Tab Gresham.
— Puxa vida! — ele exclamou. — Aonde estava indo assim depressa?
Ela levantou o rosto pálido para ele, tentando responder alguma coisa coerente. Não queria que ele percebesse que alguma coisa estava errada, pois explodiria em lágrimas... Tinha medo de acabar lhe contando alguma coisa.
Eu... eu estava indo ver a fogueira — mentiu.
Para se atirar nela? — ele brincou. Olhando um pouco mais longe descobriu Íris com Burke. A pobrezinha estava com ciúme! Entendeu o que estava sentindo, pois sentia o mesmo.
Íris estava maravilhosa naquela noite, mas só se importava com a atenção de um homem... que estava com ela naquele minuto. Desprezava o amor de Tab, embora estivesse usando o colar de jade que ele lhe tinha enviado.
— Exijo a minha valsa agora, Lilian — disse Tab corajosamente. — Venha.
Fiuuuu! O primeiro foguete cortou os ares e explodiu barulhento no ar, formando uma chuva de estrelas coloridas. Como se fosse um sinal para o começo do caos... O coronel Mallory e meia dúzia de amigos apareceram correndo, trazendo um boneco de palha, o Guy Fawkes, uma espécie de judas.
Onde está Íris? Ela precisa ver o velho Fawkes se queimar na fogueira.
Onde está Íris? — outra pessoa perguntou.
Tab Gresham, ao lado de Lilian e dos Coes, assistia à cena, enquanto as vozes chamando Íris estavam cada vez mais altas. Íris tinha sumido na última meia hora... assim como Burke. A idéia que os dois tivessem procurado um canto mais discreto fazia o sangue de Tab ferver. Como Íris ousava fazer uma coisa destas? E Lilian?
Tirou o lenço e enxugou o suor da testa.
O que há rapaz? — perguntou Rita Coe. — Está com calor? — Depois ergueu os olhos para o céu: — Que maravilha! Viu este agora, Lilian?
O quê? — perguntou Lilian, interrompendo os pensamentos sombrios e voltando à festa.
Aqui está ela! — alguém gritou quando Íris surgiu. — Vamos queimar o boneco agora!
Os braços e pernas recheados de palha passavam de mão em mão, dando cambalhotas no ar, até ser definitivamente atirado no fogo. Lilian assistia a tudo ao lado de Tab muito tensa. Seus dedos procuraram o camafeu. Onde Íris tinha estado, pensou desesperada. Como seus olhos verdes brilhavam!
E... onde estaria Burke?
Ele não tinha chegado perto dela, nem mesmo olhado para ela, depois da cena no bosque, e após dançar inúmeras vezes com Íris. O olhar de triunfo da outra era insuportável para Lilian. Burke estava propositalmente devotando a noite a ela. E quanto a ela... sentia-se só, apesar de ter despertado a atenção de muitos. A valsa que dançara com Tab fez com que todos reparassem nela. Vários homens ficaram à sua volta exigindo uma dança.
Agora, ali fora, fria apesar do calor da fogueira, sozinha como nunca se sentira antes, apertava o camafeu que Burke lhe tinha dado e lágrimas de desespero borravam a imagem de vencedora de Íris.
Íris Mallory atravessava o jardim e se aproximava dela. Enquanto andava, lembrava da conversa que tinha tido com Burke instantes atrás. As palavras feriam seu orgulho ao voltar à mente:
— Oh! Burke, pensa mesmo que me enganou? Sei que não ama esta insignificante Lilian... como poderia amá-la? Você olhou para ela com desprezo a noite toda. Livre-se dela, Burke! Poderemos então ficar juntos. Fomos feitos um para o outro. Fazemos parte do mesmo chão, do mesmo ar. Se você se livrar dessa menina idiota, podemos ficar juntos para sempre!
Sabendo quanto era bela, Íris tinha quase certeza da resposta dele... e apoiou-se em seus ombros.
Mas, ao contrário, ficou abalada e humilhada, quando Burke afastou-a de si. Mal podia acreditar que a tivesse recusado.
Sempre fomos amigos, Íris, e isso não deve mudar. Não desejo o seu corpo. Nunca desejei.
Mas eu estou lhe oferecendo o meu coração... o meu coração!
Os dois são certamente a mesma coisa para uma mulher — respondeu ele, dando meia-volta e deixando-a sozinha, para odiar Lilian ainda mais!
Observou Lilian, tão delicada e adorável em seu vestido carmesim, depois seu olhar caiu sobre Tab, ao lado dela, inclinando a cabeça para comentar qualquer coisa. Estava tão perto que até ouviu a risada de Lilian. Nenhum dos dois a tinha visto. E Íris pegou um foguete e acendeu-o, esticando o braço na direção de Lilian.
Talvez só desejasse assustá-la, mas a saia foi envolvida em fogo. Os primeiros gritos de alarme vieram de Rita Coe, que viu horrorizada o fogo subindo pelo belo vestido. No mesmo instante, uma figura escura pulou perto dela, agarrou-se em Lilian e com as mãos começou a apagar o fogo que a ameaçava. Lilian viu o rosto de seu salvador: Jack Larchmont. E desmaiou. Alguém correu até a sala de jogo.
— Ryeland! Ryeland, é melhor que venha depressa! Houve um acidente! Sua mulher... a roupa dela pegou fogo!
— O quê? — exclamou Burke derrubando a cadeira ao se levantar.
Sua mulher... o vestido dela pegou fogo!
O vestido... meu Deus! — jogou as cartas longe e saiu correndo.
O corredor parecia inacabável, até que conseguisse chegar ao jardim e depois até onde Tab Gresham e Rita Coe estavam abaixados, ao lado de Lilian.
Ela parecia uma flor esmagada, um casaco de homem cobrindo o vestido em trapos. Tab levantou os olhos para ele.
Graças a Larchmont — disse ele. Jack, com as mãos queimadas fora da vista, olhava desolado para Lilian. — Ele apagou o fogo com as próprias mãos. Ela não está muito ferida.
Como aconteceu? — perguntou Burke, ajoelhando-se ao lado da esposa, uma veia latejando em seu pescoço, enquanto carinhosamente afastava os cabelos do rosto de Lilian. Ela não se mexeu, continuando com os olhos fechados. Burke olhou desesperado para Tab. — Meu Deus, como aconteceu? Alguém sabe? — perguntou, olhando à sua volta. Tab fez o mesmo e durante um segundo seus olhos pousaram em Íris, abraçada ao pai. E teve a certeza! Sabia o que tinha acontecido, apesar de seu coração não querer acreditar. Mas não conseguia esquecer a pressão dos olhos dela no instante em que Rita Coe tinha gritado. O rosto de Íris, no meio de toda aquela gente, revelou-se como a própria máscara de ódio.
Eu acho... acho que ela chegou perto demais do fogo. Ah... ela está acordando... — Segurou a mão de Lilian entre as suas e depois falou-lhe suavemente: — Está tudo bem, Lilian, tudo bem. Burke está aqui. Vai levá-la para casa.
A minha casa está à disposição da sra. Ryeland — ofereceu o coronel. — Ela pode ficar aqui, Tab.
Mas ele sacudiu lentamente a cabeça, sem levantar os olhos, para não ter que enfrentar os de Íris.
— Não, Lilian ficará melhor em sua própria casa. Mas gostaria que emprestassem alguns cobertores. E se tiver um pouco de conhaque...
— Naturalmente, naturalmente! — respondeu o coronel apressadamente se afastando para providenciar a bebida e terminar com aquele episódio desagradável. Pobrezinha, pensou ele, podia ter morrido! Logo voltou com o conhaque.
Tab colocou uma generosa dose no copo de Lilian e a fez beber. Ela estremeceu em seus braços, mas logo começou a voltar à realidade, e lembrou-se do terror que sentiu com as chamas envolvendo-a. Um soluço sacudiu seu corpo frágil, e mais outro, até que repentinamente livrou-se de Tab e atirou-se cegamente para o calor dos braços de Burke. Então ele a carregou através das pessoas que assistiram a tudo, penalizadas.
Foi direto para o carro. Impaciente com a demora dos cobertores, embrulhou-a em seu sobretudo. Levantou a gola para protegê-la sentindo as lágrimas quentes caindo em suas mãos. Depois sentou-se atrás do volante, deu a partida, fez a manobra e saiu.
As rodas chiavam pela estrada vazia. Ainda abalada, Lilian olhava a noite escura. Só começou a sair de seu torpor quando o carro parou em frente aos degraus de pedra de King's Beeches. Burke deixou-a um instante para tocar a campainha e chamar Tolliver. Voltou e carregou-a no colo pelos degraus. Não suportando mais o seu silêncio, Lilian murmurou em pânico:
Por favor, por favor, Burke, não fique zangado comigo! Não posso agüentar!
Zangado? Mas eu não estou zangado, Lilian! — seu olhar não dizia nada.
Então... então por que está olhando assim para mim?
Não estou zangado — repetiu. A porta se abriu e ele passou por Tolliver, com Lilian nos braços. Tolliver fechou a porta e depois virou-se para Burke, muito pálido com a esposa nos braços.
Houve um pequeno acidente — explicou Burke. — Nada grave. Mas quero que traga algumas garrafas com água quente para o quarto da sra. Ryeland. E alguma bebida quente.
Depois atravessou o hall, sem dar a oportunidade de o criado dizer nada, subindo os degraus de dois em dois.
Lilian não podia mais pensar coerentemente. Burke empurrou a porta e finalmente colocou-a na cama. Acendeu as luzes, avivou o fogo da lareira e ficou ao lado dela.
Com uma infinita delicadeza, tirou o que restava do belo vestido, a combinação e vestiu-lhe a camisola. Sorriu e puxou as cobertas até o queixo.
— Que tal me acha como camareira? — caçoou.
— Você... você é muito bom.
Ela ficou pensando nas mãos queimadas de Jack Larchmont, a cena terrível das chamas subindo pelo seu vestido. Mas corajosamente sorriu para Burke, observando-o quando foi até a porta atender à discreta batida de Tolliver.
Quando voltou estava carregando garrafas com água quente, e uma caneca de prata com uma bebida fumegante. Colocou a bandeja na mesinha e as garrafas entre as cobertas.
— Não estão muito perto dos pés, estão?
Ela sacudiu a cabeça. Estava começando a sentir-se melhor.
— Agora vai-se sentar um pouquinho. Quero que tome o leite quente. — Sentou-se ao lado da cama e envolveu-a nos braços, segurando a caneca enquanto ela tomava aos golinhos.
O braço dele tocava levemente seu seio esquerdo. Percebia agora, sem sombra de dúvidas, que amava aquele homem. Amava-o não como uma criança ama seu protetor, mas com o coração dolorido e apaixonado de mulher. Mas, de repente, Jack invadiu seu pensamento e ela estremeceu de horror. Baixou os olhos para a mão forte de Burke. Como ela o amava! Não podia esquecer Jack, mas cada nervo de seu corpo vibrava por Burke. Não queria que Jack a tocasse outra vez, nunca! Amava a Burke, embora ele não quisesse o amor de ninguém!
— Eu... eu não quero mais — ela disse afinal.
Ele colocou a caneca sobre a mesa. Acomodou-a nos travesseiros e viu seus olhos cheios de lágrimas.
— Não precisa mais chorar, Lilian — exclamou, curvando-se e secando-lhe as lágrimas. Mas elas continuavam a cair e, num súbito impulso, tomou-a novamente nos braços, embalando-a docemente. — Vai acabar doente. Por favor, pare de chorar! Por favor, menina!
Acalmou-se um pouco, os olhos ainda vermelhos prenderam-se em Burke.
— Sinto muito, Burke, mas precisava chorar. Não pude evitar.
— Pobrezinha, eu compreendo. Teve um medo horrível. — E então pensou do que ela havia escapado e abraçou-a. Por algum tempo os dois ficaram em silêncio. Ela pôde sentir o coração agitado dele contra o seu peito. Depois, ela afastou o rosto ainda marcado pelas lágrimas e ergueu os olhos para ele:
— Obrigada por ser tão bom, Burke.
Ele sorriu e acariciou seus cabelos.
— Você está mesmo uma coitadinha. Quer dormir agora?
Ela concordou e ele mais uma vez acomodou-a entre as cobertas.
Está mais quente agora?
Estou ótima — respondeu, o rosto revelando a exaustão que a dominava. Lentamente baixou as longas pestanas e a boca foi se relaxando. Como Peter, pensou Burke, quando adormece. Lilian mergulhou rapidamente num sono profundo, enquanto Burke examinava aquele rosto tão suave com uma ponta de cinismo. Como esta mocinha tão inocente podia ter estado havia poucas horas abandonada nos braços de Jack Larchmont?
Burke levantou-se da cama, desalentado. Bem, a vida era dela e tinha o direito de fazer o que quisesse. Não tinha nenhum direito sobre ela. Se queria Larchmont, como poderia proibir? Afinal de contas, Larchmont fora o homem que ferira as mãos para salvá-la do fogo.
Burke baixou a luz do lampião, pois lembrou-se que Lilian não gostava da escuridão daquele imenso quarto.
Tab Gresham desceu as escadas, atravessou o hall e bateu na porta do escritório de Burke. Suas sobrancelhas arquearam-se ao encontrar a sala envolta numa pesada nuvem de fumo.
Está querendo se matar de tanto fumar, homem? — reclamou, aproximando-se de Burke jogado numa poltrona.
Como está ela, Tab?
Exausta. Exausta e infeliz. Ela me disse que você não subiu para vê-la, e que manda Moira ver como está. Acho isto uma crueldade, Burke. Aquela menina lá em cima quase morreu na noite passada.
E o nosso precioso galã, Larchmont? — perguntou Burke, irônico. — Como está?
Tem queimaduras bem sérias — respondeu Tab, intrigado com a atitude de Burke. — O que está acontecendo com você?
Nada — respondeu Burke com ar de surpresa. — Não acontece nada mesmo.
Pensa que sou bobo? Estava-se portando estranhamente ontem à noite, ignorando Lilian, desaparecendo com Íris...
Fazendo o quê?
Não tente negar! — exclamou subitamente irritado. — Vocês dois sumiram um pouco antes dos fogos começarem!
Ah, então estava espionando? — respondeu Burke, os olhos brilhando perigosamente. — Tab, eu sou um homem casado e não quero saber de outras mulheres e muito menos de Íris. Pode ser que isto o surpreenda, Tab, mas Íris me deixa completamente frio.
Então, por quê?
Por que ela me carregou para o terraço? Queria me mostrar as lanternas chinesas.
Tab fez um gesto de impaciência.
Não costumo espionar ninguém. Sabe disso muito sem, Burke. É que... que não gosto de ver nada que possa estragar o seu casamento. Lilian... Lilian é uma ótima moça.
É mesmo? Ora, Tab, isto se chama julgar um livro por sua capa. Eu fiz o mesmo erro.
O que está querendo dizer?
Estou querendo dizer que eu pensei que ela fosse uma criança. Pensei que a tinha tirado do berço. Fiz isto deliberadamente e agora tenho que pagar o preço por fazer loucuras assim... o preço das ilusões despedaçadas. — Levantou os olhos para o rosto atônito de Tab. — Lilian apaixonou-se por outra pessoa, meu velho. Eu sabia que isto podia acontecer, mas eu pensei que ainda demoraria séculos. Parecia tão... tão imatura, como se estivesse debaixo de um encanto. Acho que estou condenado a fazer erros no julgamento sobre pessoas... não, com as mulheres com quem me envolvo.
Não com Lilian! — Tab insistiu teimosamente. — Nunca diga que Lilian seria capaz de trair sua confiança. Ela é completamente pura! Eu apostaria minha vida nela!
Mas Tab, não estou falando do que poderia acontecer! Estou falando do que realmente aconteceu. — O sorriso de Burke estava agora ainda mais amargurado.
Eu não acredito! Não acredito que Lilian faça alguma coisa errada! — Inclinou-se para o amigo: — É Larchmont? Está pensando que ele...
Larchmont e Lilian estão apaixonados. Não sei até onde eles chegaram, mas conhecendo-o como conheço, não tenho muitas dúvidas.
Meu Deus! — lamentou Tab. Lembrou-se do rosto agoniado de Jack, enquanto apagava com as próprias mãos as chamas que ameaçavam Lilian. E esta manhã, quando fora fazer seu curativo encontrara o rapaz com humor sombrio. Nada dos comentários cínicos de sempre. Tab tinha atribuído o silêncio à dor nas mãos... mas agora... agora Burke tinha revelado a provável razão. Tab estava chocado e confuso.
Peter é realmente seu filho, Burke? — perguntou repentinamente.
Burke levantou a cabeça surpreso, os olhos semicerrados.
— É uma pergunta muito estranha, Tab.
— Eu sei. — Tab passou a mão pelos cabelos, embaraçado. Não era de sua natureza intrometer-se na vida dos outros. Entretanto, lembrando-se de Lilian — perdida lá em cima, tentando segurar as lágrimas quando se queixava que Burke não viera vê-la —, sentia-se compelido a ir até o fim naquele mistério. — Eu sei, Burke. Mas o caso é que... certos aspectos de seu casamento são realmente intrigantes. Não posso engolir esta história que Lilian esteve realmente no Peru.
— E não esteve — respondeu. — Lilian e eu nos conhecemos há dois meses, em Hastings... eu tinha uma forte razão para querer uma esposa depressa.
— Peter?
— Isto mesmo. Ele é filho de Philip.
Tab não sentiu nenhum choque. Na realidade, aquela súbita conversão de Burke à vida familiar soara falsa desde o princípio. Casamento, bebês... e Burke! Burke, que sempre seguira livremente seu caminho... Mesmo Dani Larchmont, tão linda e atraente, não tivera condições de prendê-lo.
Dani Larchmont! Os olhos de Tab repentinamente se arregalaram. Somente alguns meses separaram sua morte da de Philip. E por que uma criatura jovem morreria assim? Um acidente ou uma doença fatal. Ou o nascimento de uma criança!
— Dani Larchmont foi a mãe de Peter, não foi, Burke?
Burke abanou a cabeça concordando.
— Chocante, não? Eu pelo menos tive a decência de me contentar com alguns beijos. E, mesmo assim, aqueles poucos beijos a atiraram nos braços de Philip. Foi por culpa minha que isso tudo aconteceu. Eu fui embora, fugi dela, porque confessou que me amava. Mas eu não queria amor. Amor aprisiona um homem, pensei. E por mais alegre e bela que fosse não queria me prender. Fui para. o Peru e deixei-lhe uma carta, dizendo que nunca poderia me casar com ela, friamente disse que procurasse alguém que lhe pudesse oferecer casamento. Desconfio... desconfio que, depois disto, procurou Phil. Ambos agiram sem escrúpulos. O resto você já sabe. Phil morreu e me casei com Lilian para que Peter pudesse vir para cá como meu filho. Agora é meu filho. Eu o adotei legalmente. — Levantou-se e foi até a escrivaninha, onde pegou outro cigarro e acendeu. — O meu casamento é uma fraude, Tab. Eu não tenho vida conjugal com Lilian. E quando vier me pedir sua liberdade, tenho que lhe dar.
— Porque acha que ela ama Larchmont?
Exatamente por causa disto.
Mas... mas como pode ter tanta certeza?
Burke deu meia-volta e seus olhos azuis, agora duros e frios, enfrentaram o amigo.
Eu os surpreendi juntos. Eu a vi nos braços daquele sujeito. Não são alucinações, pode acreditar. Sei do que estou falando.
Lilian? Pois eu mal consigo acreditar!
Pois é verdade. Estava nos braços de Larchmont e ele beijava seu pescoço. A princípio pensei que estivesse agarrando-a à força. Queria até dar uma surra nele, mas Lilian impediu, chegou a implorar para que eu não fizesse nada. — Os olhos refletiam sua mágoa. — E deixei seu namoradinho intacto.
Levantou os olhos para Tab.
— Acho que foi sábio se apaixonar por Íris. Ela pelo menos não finge ser nenhum anjo. Se algum dia a conquistar, saberá exatamente o que esperar. Não alimentará ilusões vazias. Ilusões perdidas machucam. Machucam como o diabo!
Tab não sabia o que responder. Também tinha recebido um golpe.
Estou de saída, homem. Ainda tenho algumas visitas a fazer. Disse a Lilian para passar o dia deitada. Não deixe que se levante.
Ela... está bem?
Está ótima. Mas precisa de repouso. — Tab ainda ficou um instante na porta: — Burke, nunca lhe ocorreu que talvez Jack Larchmont saiba o que Peter é de Dani e Phil?
Burke olhou para Tab surpreso, depois sacudiu a cabeça:
— Polly Wilmot, a tia de Dani, me garantiu que Jim Larchmont era a única pessoa que sabia sobre Peter. Ele não pôde estar presente ao funeral porque sua esposa Vera teve uma crise, mas logo que conseguiu, deu um pulo até Hastings e ela lhe contou sobre Peter. Mas não teve coragem de levar a criança de volta com ele, pois temeu que o choque matasse a esposa. Vera sempre fez planos ambiciosos para a filha, querendo que se tornasse uma Ryeland.
Mesmo assim, eu ainda acho que Jack pode ter descoberto.
Não é possível — contestou Burke, com convicção. — Ele não estava vivendo em casa quando Dani morreu. Estava na Irlanda, ajudando a treinar cachorros de caça. E só voltou para Somerset uma semana depois da morte de Dani quando foi despedido de seu emprego. Não, Tab, não sabe de nada. Se soubesse ele se teria aproveitado disto. Ele não é do tipo que recue diante de chantagem.
Belo caráter... E ainda assim acha que Lilian...
— Oh! Deus, não vamos falar novamente sobre isto! — protesto Burke. — Larchmont não presta, mas Lilian o quer. Quem sabe... fará dele um homem melhor? O que fez ontem à noite, poucos homens fariam.
— Isto é verdade. — Tab pensou nas graves queimaduras que Jack sofrera nas mãos e nos braços por Lilian, e também notara que ele estava abalado e mudado. Amor... o que é o amor? Seu amor por Íris sempre lhe parecera eterno e imutável, entretanto tinha ficado reduzido a cinzas na noite anterior, no mesmo instante em que Jack Larchmont salvava a vida de Lilian.
Terminado... reduzido a cinzas... tudo o que sentia agora por ela era repulsa. Sentia-se aliviado ao perceber que Burke não tinha idéia de que fora Íris quem tinha causado o acidente.
Então, Tab deu um fundo suspiro e abriu a porta, despedindo-se de Burke.
Lilian olhava para o dossel de sua cama, os olhos ainda maiores no rostinho pálido, refletindo um medo bem diferente do que tinha sentido na noite anterior.
A fogueira em Mallory Court fora um verdadeiro pesadelo, mas seu medo agora era ainda pior.
— Acho melhor a senhora ir, madame. — Falou Betty. — Jack disse que se a senhora não for ele vem até aqui. Disse que vai esperar no bosque pela senhora a tarde toda...
Lilian mexia-se agitada. Como poderia ir? Era domingo e Burke estava em casa. Burke! Não tinha vindo vê-la. Em vez disto, mandava Moira perguntar como estava passando, assim como Jack mandava Betty. Mas Jack tinha dito que precisava vê-la! Que queria vê-la!
Cada vez que o relógio batia os quartos de hora, Lilian ficava mais angustiada, sentindo que seu tempo estava acabando. Logo a tarde terminaria...
Subitamente escutou o relincho de Rebelde. Ficou paralisada. Seria mesmo Rebelde? Levantou-se, apoiando-se nos cotovelos, e escutou nitidamente os relinchos de Rebelde, quando Burke o montava.Os cascos de Rebelde se chocavam com o chão de pedra. Os ruídos ficando mais distantes até sumirem completamente.
Vestiu-se apressadamente e passou um pente nos cabelos, com as mãos trêmulas.Cinco minutos depois, saiu da casa e correu pela alameda.
Entrou na floresta. Agarrou o camafeu que Burke lhe presenteou na véspera, como se pudesse protegê-la.
— Então veio? — disse uma voz quente atrás dela.
Lilian virou-se e viu Jack Larchmont. O camafeu escapou de suas mãos, escorregando de volta ao pescoço.
Está pálida, minha querida — murmurou ele. — Conseguiu dormir?
Eu... eu estou bem. — Seu olhar caiu sobre as mãos enfaixadas, e um vinco de preocupação surgiu em sua testa. — Eu... espero que suas mãos não estejam doendo muito. Por que... por que fez aquilo?
— Você sabe o porquê — disse, os olhos subitamente brilhantes.
Lilian sentiu o sangue queimando seu rosto e, sem pensar, gemeu assustada, as mãos levantadas.
Não! Por favor!
Por quê? Ainda me odeia?
Não, não — respondeu, sacudindo a cabeça. — Eu não o odeio. Você me salvou a vida. Não posso odiá-lo.
E pode me amar?
Eu... não posso! — Afastou-se dele, encostando a testa no tronco de um carvalho. — Não posso! Eu amo Burke. Ele é tudo para mim!
E o que acha que é para ele? Um pequenino parafuso em sua infernal máquina de mentiras... nada mais. Quando for conveniente se livrar de você, não tenha dúvidas que o fará! Ele só vive para seus interesses egoístas, ainda não descobriu isso? Oh, é amável e delicado, mas não se iluda, Lilian. Eu o considero responsável pela morte de minha irmã. Envolveu-a, fez com que se apaixonasse por ele e depois abandonou-a. E diz que o ama! Como consegue?
Sempre... sempre foi muito bom para mim. Uma vez me falou sobre sua irmã, disse-me como era linda. Não queria destruir a vida dela...
Não me venha com essa! — Jack protestou irritado. — Dani foi mais um brinquedo de que ele se cansou. Largou-a e foi embora!
Não é assim! — disse Lilian na defesa de Burke. — Burke garantiu que Peter vai herdar King's Beeches. Não está preocupado que, se algum dia tiver seu próprio filho, virá em segundo lugar.
E quem lhe dará este filho... você? Não venha me dizer que é seu amante! Você nunca teve um amante!
Não — respondeu, afastando o olhar de Jack. — Nunca tive um amante.
Mas agora terá um, Lilian. No começo virá comigo forçada, mas depois se apaixonará por mim. O fogo do meu amor também a consumirá, Lilian!
Oh, não! Não quero que me fale estas coisas! Eu nunca poderia amar você! Nunca... nunca... nunca!
Tudo pode terminar num minuto, Lilian. Então? Quando posso ir conversar com seu marido? Esta noite? Quanto mais cedo conseguir o divórcio, melhor.
Divórcio! Do que está falando?
Do seu divórcio, amor. Eu quero me casar com você. O que pensou que eu queria?
Lilian olhou para ele. Casamento? Com este homem?
Deve estar louco! Eu prefiro morrer a me casar com você!
Isto não é nada lisonjeiro, minha querida. Mas nunca fui homem de apreciar conquistas fáceis. Por que tem tanta repugnância pelo amor? Não acredita que a ame?
Acho que... pensa que me ama. O verdadeiro amor não é exigente e insensível. O amor é querer dar, não tomar!
Deve entender disto, apaixonada por Ryeland como está. Mas vai ter que esquecê-lo. E vir comigo!
Não! Eu... eu não posso! Por favor, Jack...
Por favor, Jack... — imitou. Depois chegou mais perto dela, excitado pelo medo nos seus olhos. — Malditas mãos! — exclamou. — Eu quero beijá-la, Lilian, preciso de você!
Não, não!
Ela virou-se e fugiu correndo, soluçando. Quando chegou à alameda, suas pernas mal agüentavam o corpo. Só desejava chegar em casa, voltar para seu quarto. Lá estaria protegida. Jack não a alcançaria lá... Olhou para trás, não a seguia. Mas o alívio durou pouco. Ao chegar ao pátio, Rebelde trotava vindo do outro lado da casa e Lilian encarava Burke.
Seu coração batia loucamente, quando ele desmontou e com a mão agarrou-a com força. Seu rosto estava severo e, nos longos momentos em que a fitou, Lilian ficou sem saber o que fazer.
— Sei onde esteve, naturalmente — Burke disse, afinal. — Foi ver Jack Larchmont. — Fixou as mãos nos ombros frágeis. — Deve ter sido uma terrível agonia ter de esperar que eu saísse. — Soltou-a. — Vá até o meu escritório. Lá poderemos conversar.
Obedeceu sem discutir. Ele chegou lá dez minutos mais tarde. Lilian estava encolhida no chão, perto do fogo, muito pálida.
Burke encostou as costas na porta, os olhos frios, fixos nela. Aquele seu ar infantil e ingênuo tornava seu desprezo ainda mais profundo.
— Quero que saiba, Lilian, que não vou tolerar uma esposa vivendo comigo e tendo um caso com uma criatura desclassificada como Jack Larchmont, aproveitando-se de minha ausência para encontrá-lo. Se está assim tão louca por ele, acho melhor ir para lá de uma vez. Tem toda a liberdade para ir com ele, Lilian. Vá agora. Nossa mentira ridícula... está cancelada. Não vai precisar se contentar com alguns minutos apenas para dedicar a seu amor. Está livre... e eu prefiro que vá esta noite mesmo.
Deu as costas para ela e acendeu um cigarro. Lilian levantou-se e saiu silenciosamente, fechando a porta atrás de si. Neste instante, a máscara caiu. O orgulho ferido sumiu e só restou a lembrança dela na noite anterior, tão frágil, aconchegada em seus braços. Tragou e soltou a fumaça, lentamente. Então isto... isto é que era um amor não correspondido, que despedaçava o coração, deixando-o ferido e humilhado? A sala estava vazia, na penumbra, e uma chuvinha fina começava a cair lá fora. Um gemido surdo saiu de seu peito. Sabia naquele momento que estava pagando plenamente o amor desesperado e não correspondido que Dani Larchmont lhe devotara.
O jantar terminou e Burke recusou secamente o convite do avô para um jogo de cartas. O velho senhor levantou-se enquanto observava o neto com olhos atentos. Lilian não apareceu. O sr. Ryeland perguntou por ela. Burke explicou, frio, que havia deixado King's Beeches, provavelmente para sempre. Não explicou a causa. Mas parecia estar sofrendo muito.
Que é isto, Burke, não vai se importar com aquelazinha, vai? — perguntou com sua arrogância costumeira. — Acho que teve sorte de se livrar dela.
Tive mesmo? — perguntou Burke, com ironia.
Lógico que sim. Nunca entendi o que viu nela. Ela nem sabe conversar!
Quem sabe não era sua conversa que eu admirava — retrucou, apertando as mãos.
Mas ainda tem o menino — disse o avô. — Lembrou-se das vezes em que o vira risonho no colo dela, tão doce e meiga. — Ora, Burke, se queria tanto a menina, por que a deixou ir?
Porque o que quero não coincide com o que ela quer.
O que há com você, rapaz? — perguntou o avô espantado. — Está de miolo mole? Se a quer, vá atrás dela, dê-lhe uma boa sacudida e a traga de volta. Ela adora aquela criança lá em cima. Não voltaria por ela?
Burke não respondeu. Acendeu um cigarro, com gestos bruscos, tão diferente de sua habitual calma.
— Lilian não voltará — respondeu afinal. — Não há nada aqui que ela deseje. — Mas o senhor pode ficar satisfeito, pois conseguiu o que queria. — Levantou-se e saiu da sala, dirigindo-se para seu escritório, mas a voz de Tolliver o segurou. — Sim, Tolliver? — disse irritado.
— O sr. Jack Larchmont está aqui, senhor — disse o mordomo. — Levei-o para a biblioteca.
— Jack Larchmont! — Depois de leve hesitação, Burke caminhou com passos largos para a biblioteca.
Jack estava sentado no sofá, com as mãos enfaixadas. Olhou para ele com insolência.
Boa-noite, Ryeland.
O que está fazendo aqui?
Vim pedir-lhe que liberte Lilian.
Burke teve ímpetos de torcer o pescoço de Jack, mas controlou-se.
Mas já disse a Lilian que lhe daria o divórcio. Ela não precisava mandá-lo aqui.
Mandar-me, aqui? — Jack perguntou sem compreender. — Ninguém me mandou aqui, meu velho. Do que está falando?
Bem, ela está em sua casa, não está, Jack? Naturalmente eu pensei que...
Em minha casa? Na fazenda? — Jack ficou tenso e seus olhos pousaram desconfiados em Burke: — Que história é esta, Burke? Lilian não está em minha casa.
Mas tem de estar! Tem de estar! Eu disse a ela que era livre e que podia ficar com você!
Você fez isto? E pode me dizer quando?
Há duas horas e meia. — Sem querer Burke perdeu o controle e colocou a mão no ombro de Jack. — Não venha com brincadeiras comigo, Larchmont! Eu sei muito bem que Lilian está em sua casa. Onde mais ela poderia ir?
Este é o problema. Para onde poderia ir, Ryeland? Sim, porque juro que não está em minha casa.
Burke olhou para o rival, examinando o belo rosto insolente.
Larchmont, não estou disposto a me comportar como idiota.
Posso ser muitas coisas, Ryeland, mas não sou mentiroso. Não tenho a menor idéia onde Lilian possa estar... se não está aqui!
Ela... não está aqui. — Burke largou o ombro de Jack e explicou: — Disse a ela para ir, para sair daqui. Pensei naturalmente que iria para junto de você... que é amante dela.
Eu sou o quê? E isto realmente o que pensa?
Eu vi vocês dois juntos.
Ah, sim, no bosque, em Mallory Court. E queria quebrar meu pescoço, não é? Teria feito isto, sem dúvida, se Lilian não tivesse impedido. Ela tem um coração sensível. Jack olhou para Burke, com ódio.
— Então teve uma discussão com Lilian e expulsou-a do lar de seus ancestrais? — Agitou as mãos enfaixadas para as janelas, onde a chuva fina batia. — Devo reconhecer que escolheu uma bela noite, Ryeland. Lilian está lá fora, na chuva, sabe-se lá onde...
Meu Deus, acha que eu não sei disso? — Burke estava atormentado, chegando perto da janela. — Eu... tinha certeza que ela correria para você, Larchmont. — Depois deu meia-volta e Jack viu, completamente pasmo, a máscara de imenso sofrimento em que se transformou o rosto de Burke. — Será que fui injusto com ela? Eu precisava saber, Larchmont. Preciso saber o que você significa para Lilian!
Mas você sabe, meu velho — respondeu Jack com cinismo, conseguindo reacender o ciúme que sentiu naquela mesma tarde.
Maldição, Larchmont, não serve para ela! Você a envolveu...
Eu a envolvi... — Jack olhava para Burke, seus olhos negros revelando todo o ódio que sentia. Nenhum dos dois percebeu que a porta tinha sido aberta. — Você é quem sabe como se faz para se envolver uma moça, não é Ryeland? Agiu assim com a minha irmã... e depois a abandonou! Ela também não servia. O sangue camponês não podia se misturar ao seu, não é? Meu Deus, Phil não hesitou em se aproveitar da fascinação que os Ryelands tinham sobre ela. Esta criança é de Dani e Phil!
Neste instante um gemido abafado interrompeu o diálogo e os dois viram o velho sr. Ryeland na porta. Então era isto! Ele sabia sobre Peter!
Isto não é verdade! É uma infâmia contra o meu rapaz! — exclamou o velho. — Vou expulsá-lo de King's Beeches por causa do que disse, Larchmont!
Mas é verdade — insistiu Jack, a coragem insolente não o abandonou. O velho se aproximou dele, Jack continuou sorrindo desafiadoramente e foi esbofeteado uma, duas vezes.
Não há necessidade disso, senhor — disse Burke, segurando o avô pelos ombros. — Não deve se importar com o que ele diz.
Para o diabo com isto! — protestou Jack, com a boca machucada pelos golpes do sr. Ryeland. — Está na hora de este orgulho idiota e cego ser eliminado desta casa! E que a verdade enfim apareça! Este garoto, Peter, não é filho de Burke. É de seu precioso Philip... e de minha irmã.
Cale a boca, maldito! — exclamou Burke.
É... de... minha irmã! — Jack repetiu devagar, sem se importar com Burke. — Minha irmã, Dani Larchmont! E quer saber de mais coisa? Philip casou-se com minha irmã! Sim, se casou com ela! E tinha tão pouca certeza do seu afeto que implorou a Dani para manter segredo. Sabia que o expulsaria de King's Beeches, se descobrisse que ele era bastante humano para se apaixonar. Ele sabia que tinha que dar corpo e alma para esta casa maldita...
Está falando a verdade, Larchmont? — perguntou Burke. — A tia de Dani não me disse nada sobre o casamento entre ela e Phil.
Ela não sabia. Tia Polly é muito linguaruda e Dani achou melhor esconder dela. Eu só descobri a verdade porque passei alguns dias com Dani em Londres. Fui remexer as gavetas à procura de dinheiro e encontrei a certidão de casamento. Ficou histérica quando falei sobre isto. Ela não queria Phil, queria você! — exclamou Jack com ódio. — Sabe o que ela fez? Arrancou a certidão de minha mão e jogou no fogo! E disse que não se incomodaria de manter aquele miserável casamento em segredo.
E permaneceu em segredo — disse Burke. Os ombros de seu avô tremiam incontrolavelmente sob suas mãos. — Não fique culpando Phil. Dani Larchmont era uma moça adorável. Phil era bastante jovem para se impressionar com isto. Eu também... — disse ao avô.
Você! — Com um safanão, o velho se libertou das mãos de Burke. — É ainda mais desprezível do que Philip e esta menina Larchmont... me enganando desta maneira! Por que não podia me dizer que o menino era de Philip?
Não me atrevi! A única coisa que eu achava correto era que Peter viesse para King’s Beeches, mas eu sabia que ele teria pouca chance se soubesse que era filho de Dani Larchmont... e de Phil, fora do casamento. Não sei porque odiava tanto aquela moça!
E eu não sei por que tinha que se apaixonar por ela! Uma dançarina cigana!
Eu, apaixonado por Dani? Eu nunca amei Dani!
Andava com ela por todos os lados. Pensa que não sabíamos sobre isto? A mãe dela vivia contando do namoro de sua preciosa filha...
Eu nunca amei Dani! Admirava sua beleza, mas nunca quis mais de que sua amizade! Quando percebi que ela queria mais do que isto, resolvi me afastar. Naquela época o meu egoísmo não me deixava acreditar que existia amor!
Por algum tempo Burke ficou calado olhando o fogo. Seus olhos se levantaram para o avô e ele continuou:
Não podia deixar que o filho de Dani fosse atirado num orfanato. E foi muito bom encontrar Lilian... Havia nela uma aura de inocência que tornaria qualquer farsa real. Assim, achava que aceitaria Peter sem restrições, se o visse... nos braços de Lilian.
Muito esperto de sua parte! — protestou o velho. — Sempre se achou, não é? Mais esperto que um mero fazendeiro. Bem, este lugar não precisa de você. Posso empregar um gerente para fazer o que faz. King's Beeches não precisa de você... assim como aquela menina... e nem eu! — Sacudindo o dedo no nariz de Burke, repetiu:
— Nem eu!
E o menino? Pela lei, agora é meu filho. E se eu o levar embora? O que vai sobrar para o senhor a não ser um amontoado de tijolos? Por mais que o ame, pode segurá-lo nos braços e escutá-lo rir? Pode me dizer, com toda a sinceridade, que odeia Peter?
Eu... eu — o velho orgulhoso vacilou. — É filho de Philip...
Sim, é filho de Philip. Pode odiá-lo ao saber que o sangue de Philip corre em suas veias?
Fique quieto! — ordenou o avô em voz alta.
Então faria isso? Teria coragem de expulsar Peter e eu para fora desta cidadela de orgulho onde vive? Se é isto mesmo o que quer, vamos embora esta noite mesmo!
Os olhos azuis desbotados, cheios de raiva e dor encararam os de Burke.
— Não! — disse afinal, os ombros perdendo um pouco da rigidez.
— Somos um par de idiotas, gritando um com o outro. O garoto fica, é lógico que fica! Vocês dois ficam, você também! Disse coisas absurdas agora há pouco. Estava revoltado porque não tinha me contado a verdade. Mas não quero perder Peter!
Dani era a mãe dele — disse Burke. — Se não tivesse resolvido detestá-la somente porque era bela, rebelde e porque dançava para viver, estas cenas nunca precisariam ser vividas e Philip não teria achado melhor manter seu casamento em segredo. Se aceita Dani, eu e o menino ficaremos. Não quero feri-lo mais do que já foi ferido.
Você me mataria se levasse o garoto embora. Eu não sou feito de pedra. Não quero passar o pouco tempo que ainda me resta mergulhado em solidão e remorso... embora seja isto que mereça. Aqui é o seu lar. Será herdeiro e pode proteger o garoto.
Aqui, o meu lar? — repetiu Burke com desalento. — Só se tivesse conseguido deter Lilian.
Mas o casamento não foi uma farsa também?
Sim.
Seu tolo, idiota. Não me admiro que ela o tenha abandonado! Este sangue francês em suas veias!
Jack Larchmont deu uma gargalhada e imediatamente o velho Ryeland virou-se para ele, os olhos soltando chispas.
Fora de minha casa, antes que eu chame os cachorros!
Eu já vou, não se preocupe — respondeu Jack. Na porta, voltou-se para Burke: — Estava mesmo surpreso por eu saber que não era pai do garoto?
Naturalmente — respondeu Burke. — Pensei que faria chantagem se soubesse. O que o fez hesitar?
Talvez eu não tenha hesitado! — respondeu o outro enigmaticamente. Depois saiu da biblioteca deixando a porta aberta.
Burke ficou ali parado, as palavras de Jack martelando sua cabeça. Lembrou-se do rosto de Lilian naquela tarde, pálido, ferido, atormentado. Meu Deus, será que ele tinha cometido um erro?
"Talvez eu não tenha hesitado", disse Jack.
Então Burke estremeceu violentamente quando o avô pôs a mão em seu ombro.
Rapaz, para onde foi a menina? Se foi para Londres, vá atrás dela. O próximo trem sai às oito e quarenta e cinco.
Eu... eu não acho que ela me ama, senhor. Eu lhe disse para ir embora e ela foi. Acho que ela gostou de escapar das mentiras... Odiava todas estas mentiras! Ela sempre disse que eu devia contar-lhe a verdade. Meu Deus, será que algum dia vou deixar de cometer tantos erros?
Vá para a estação — insistiu o velho. — Se não for, cometerá o pior erro de sua vida!
Aquele velho, pensava Jack saindo de King's Beeches, falando como se Deus recompensasse as pessoas pelas perdas. Já estava perto dos portões quando o carro de Burke passou por ele e freou.
Entre! — convidou Burke. — Eu o deixarei na fazenda.
Não, obrigado...
Mas é caminho para mim...
Caminho para a estação? — O sorriso de Jack era amargo.
— E acha que pode ser generoso com um chantagista?
É isto mesmo, Larchmont. Gostaria de quebrar o seu pescoço!
Mas depois se lembra que salvei a vida de Lilian e volta a ser generoso — disse Jack, o belo rosto cínico molhado pela chuva.
— Pois eu pensei na estação há mais de meia hora... mas o fato é que eu tinha todos os fatos e você não...
— Você não presta — gritou Burke batendo a porta.
Levou vinte minutos para chegar à estação. Entrou pela sala de espera, irritado consigo mesmo por causa da teia de intrigas em que tinha envolvido Lilian. Olhou em volta. A sala estava vazia, a não ser por um fazendeiro esperando. Nada de Lilian...
Deu meia-volta e dirigiu-se para o balcão, batendo impaciente na janela. O funcionário levantou a portinhola e olhou zangado para ele.
Por que todo este barulho? Para onde deseja ir? — perguntou
Olhe, achei que o trem para Londres só passasse às quinze para as nove. Mas já passou...
Não passou não! — O homem olhou para o relógio pendurado na parede: — O senhor ainda tem dez minutos. Quer uma passagem?
Não — respondeu Burke. — E que eu pensei que uma jovem senhora deveria estar esperando o trem. O senhor não viu uma mocinha comprando passagem para Londres? Por favor, é muito importante!
Bem... — O homem esfregou o nariz e olhou desconfiado para Burke. — Havia uma mocinha sim... pequena, magrinha, com olhos muito grandes...
E ela! É Lilian! — Os olhos de Burke se iluminaram e seu grito ecoou pela sala. — Quando foi isto? Por que ela não esperou?
Calma, calma, não fique tão nervoso — exclamou o funcionário. — Acontece que o dr. Gresham apareceu por aqui para buscar um pacote há uma hora atrás. Falei-lhe sobre a moça, porque parecia estar doente quando comprou o bilhete. Ele foi até a sala de espera e logo depois ele a levou embora daqui.
Obrigado! Muito obrigado!
— Tudo bem — respondeu o homem, mas Burke já estava longe.
Burke guiou até a casa de Tab, que ficava do outro lado da cidade. A sra. Jarret, governanta de Tab, atendeu à porta.
O doutor não está em casa. Teve de atender ao chamado da mulher do ferreiro, que vai ter gêmeos. — Logo reconheceu Burke. — O senhor!
Sra. Jarret, minha mulher está aí? — perguntou Burke com ansiedade.
No sofá desbotado de Tab, toda encolhida, Lilian olhava desalentada para o fogo. Ainda não tinha tido oportunidade de conversar com Tab, pois, logo que chegara, a sra. Jarret informara que era esperado com urgência. Antes de sair, Tab fez Lilian prometer que o esperaria. Cansada e com frio, emocionada com o interesse de Tab, estava esperando-o. Fugir para Londres não adiantaria nada... e ela sabia que não teria coragem de subir naquele trem.
Com um gemido, escondeu o rosto no encosto do sofá. O que faria com Jack?
Escutou então a porta da rua se abrir. Levantou a cabeça e olhou para a porta.
Tab — começou a dizer, mas as palavras gelaram em sua boca ao ver Burke. Burke, com os cabelos molhados e em desordem, tinha os olhos fixos nela enquanto atravessava a sala. Ela encolheu-se mais, mas não havia maneira de escapar dele. Ele inclinou-se, estendeu os braços e abraçou-a com paixão.
Não tenha medo de mim, Lilian — pediu, aflito. — Oh! Minha querida, por que não me contou que Larchmont estava chantageando você? Por que deixou que dissesse as coisas cruéis que lhe disse esta tarde? Estou num verdadeiro inferno, pensando...
— Você... você sabe, Burke? — perguntou, tocando o seu rosto como para certificar-se de que era real.
— Eu sei, Lilian. E meu avô também. A história toda e mais ainda. Todas as mentiras se acabaram.
Rapidamente ele contou tudo o que tinha acontecido e o que tinha sido descoberto. Quando a história toda terminou, Lijian estava abraçada a ele.
Lilian, Lilian — murmurou. — Será que consegue me perdoar por ter duvidado de você?
Eu perdoaria qualquer coisa... perdoaria tudo! — respondeu. — Se tivesse matado por ódio, ainda assim o perdoaria!
Eu a amo! Eu a amo! — explodiu ele, enquanto seus lábios beijavam o rosto dela, seu pescoço, até cobrirem os lábios palpitantes. Quando finalmente levantou a cabeça, seus olhos azuis estavam brilhantes.
Será que conheço você? — ela perguntou incrédula.
Sou o homem com quem se casou... mas gostaria de ser seu marido...
Gostaria mesmo? — riu feliz. — Acho que isto pode ser providenciado...
Verdade, Lilian? — despenteou ainda mais os cabelos castanhos de Lilian. Seus olhos não eram mais os de uma criança, pensou. Olhava-o como uma mulher. — Eu te amo, Lilian, e muito, muito. Talvez mais ainda porque o amor chegou tão tarde para mim.
Mas Burke... e Dani Larchmont? Pensei que a tinha amado.
Dani? Ela era minha amiga... você é meu amor. Eu a feri porque não a amava. E na sua dor, ela se voltou para Phil.
Oh, Burke, você não teve culpa por não a amar. Acho que ela não gostaria que sofresse tanto por ela. Eu não gostaria!
Mas você é só amor, só coração. Lilian, será que não sou velho demais para você? Uma vez você pediu para ser minha filha...
Eu não era uma tolinha? — perguntou, sorrindo. Depois sentiu-se novamente tímida, pensando que o amor torna as meninas mulheres, e os homens meninos... — Não quero mais ser sua filha. Estou bem crescidinha...
Quando foi que você cresceu, Lilian?
Acho que foi naquela noite em Londres — disse. — Beijei você, lembra-se? Depois tentei me convencer de que tinha beijado por gratidão. Mas meu coração sabia a verdade, e doeu a noite toda. Oh, Burke! Eu gosto tanto de você que não sonharia em impedir que fizesse o que gosta. Eu nunca... nunca prenderei você!
Sei disto, Lilian. Mas nunca mais me separarei de você. Estou tranqüilo e a sede de procurar terminou. Agora posso sossegar e me tornar um verdadeiro fazendeiro inglês a seu lado.
E também de Peter.
Peter! Gostaria que Peter herdasse King's Beeches, se não se importar. Pode ser que nós dois tenhamos um menino.
Um garoto que vai querer percorrer os sete mares, e que não vai querer ficar preso a um monte de tijolos e cimento!
Depois de algum tempo, ficaram calados, abraçados, até que uma voz falou atrás deles:
Muito bem, meus filhos, acertaram as diferenças?
Alô, Tab — cumprimentou Burke sem qualquer embaraço. — Já acertamos tudo. Até o fim!
Ótimo! — Tab aproximou-se da lareira e deu uma mexida no carvão. Depois acendeu calmamente o cachimbo. Sorriu para os dois: — A propósito, encontrei o coronel Mallory esta tarde. Contou que ele e a filha estão de partida para a América.
E você lamenta? Bem que tinha um fraco por Íris...
Hum, mas isso foi há algum tempo. — Tab sorriu para Lilian, aconchegada entre os braços de Burke. — Você parece estar muito à vontade. Conte-me uma coisa. Falaram também sobre Jack Larchmont?
Pobre Jack — ela murmurou. Ele se queimou tanto! De repente, Tab caminhou até o bar.
Acho que devemos beber ao futuro. O que acham?
— Meu futuro depende de Lilian, portanto vamos beber em sua homenagem — disse Burke, olhando para ela encantado. Os lábios delicados se abriram então num delicioso sorriso e ele curvou-se e beijou-a.
Violet Winspear
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