Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Um Punhado de Vida
O ativador celular deixado em Velander emite sinais — muitos querem apoderar-se dele!
Estamos no ano 2.326 do calendário terrano. Depois dos acontecimentos descritos no volume 149, muita coisa mudou nos setores conhecidos Via Láctea.
A partir de 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou ao cargo de Imperador de Árcon, o Império Solar e o Império de Árcon deixaram de existir. Foram substituídos pelo Império Unido, governado pelo Grande Administrador Perry Rhodan, enquanto o arcônida Atlan iria exercer as funções de chefe da United Star Organizations (USO), cujos especialistas formam uma espécie de polícia galáctica.
Sempre que surge algum problema ou perigo que não seja de natureza puramente planetária, podendo estender seus efeitos pela Galáxia, a USO, criada e dirigida pelo lorde-almirante, entra em ação.
A fuga precipitada do Ser espiritual do planeta artificial Peregrino e a distribuição da vida eterna multiplicada por vinte e cinco, sob a forma de ativadores celulares, criaram tumultos entre todos os povos da Via Láctea. As espaçonaves correm de planeta para planeta, mas via de regra são as tripulações das naves terranas que são bafejadas pela sorte e pelo êxito na busca da imortalidade relativa. Afinal, a frota do Império Unido é a maior de toda a Galáxia.
Será que o homem que encontra Um Punhado de Vida realmente pode dar-se por feliz...?
Vouner ocupava o camarote que ficava mais próximo aos compartimentos da tripulação. Por isso toda vez que desejava ir ao setor recreativo e cultural, onde ficava a biblioteca, o bar e as salas de banho, tinha de passar pelos outros quatorze camarotes destinados aos passageiros. E, como também o era, não tinha permissão de penetrar na parte da nave reservada aos tripulantes.
O camarote 7, ocupado por Mr. Buchanan, constituía o motivo básico da hesitação de Vouner, quando este não conseguia decidir-se a ir ao setor recreativo. Para Vouner, Buchanan era um possesso, que devia ser evitado sempre que possível. Buchanan só tinha um motivo para estar a bordo da Olira. Corria atrás de um fantasma: a vida eterna!
Buchanan era velho, avarento e não muito rico. Era provável que na Terra tivesse armado intrigas contra tudo quanto era gente que não fosse da mesma opinião que ele. E era muito difícil concordar com as opiniões de Buchanan.
Este homem andava possuído da idéia obsessiva de que lhe seria possível encontrar um ativador celular. Suas idéias sobre Astronáutica eram infantis. Até se chegava a acreditar que Mr. Buchanan se contentava em estar no espaço cósmico, pois, evidentemente, em sua opinião, por lá suas chances de encontrar um ativador seriam muito maiores.
Toda vez que Vouner passava pelo camarote de Buchanan, o velho estava com a porta aberta e o chamava.
Hendrik Vouner sorriu ao sair do pequeno recinto que lhe fora destinado. Lançou os olhos pelo corredor. O revestimento das paredes da Olira não exibia o esplendor de uma nave de passageiros. A Olira era uma nave mista, destinada ao transporte de passageiros e de carga. Transportava colonos e emigrantes.
Vouner trancou a porta de seu camarote. Era um homem alto e magro de trinta e dois anos. Seus movimentos davam-lhe um ar de certa tranqüilidade. Em comparação ao resto do corpo, o rosto quase chegava a parecer grosseiro, mas os olhos claros e inteligentes conferiam-lhe certa vida.
Vouner chegou à altura do camarote. Como de costume: porta entreaberta. Buchanan estava sentado tranqüilamente sobre sua cama estreita. Seu olhar só adquiria vida quando falava no ativador celular.
Se Vouner fosse outro, teria passado sem dizer uma palavra. Mas não procedeu assim, pois, em sua opinião, qualquer pessoa tinha o direito de ser tratada com cortesia.
Vouner o cumprimentou. Buchanan interpretou seu aceno de cabeça como um sinal.
— Aonde vai, Hendrik? — perguntou. Vouner sorriu.
— Vou tomar banho — disse.
Buchanan levantou-se.
— A ducha de massagem pneumática ainda não foi consertada — disse.
— Não faz mal — respondeu Vouner. — Só quero tomar um banho de vapor.
Uma expressão assustada surgiu no rosto de Buchanan. Via-se que refletia intensamente para encontrar um meio de fazer com que Vouner ficasse com ele.
— Acho que devemos reclamar ao comandante por causa do defeito — disse. — Desde que a nave decolou a ducha parou de funcionar.
— Os tripulantes têm trabalho de sobra — disse Vouner, em tom amável. — Afinal, esta não é uma nave de passageiros.
Buchanan engoliu em seco.
— Entre um pouco — pediu a Vouner. — Gostaria de bater um papo com o senhor, Hendrik.
Vouner entrou a contragosto. Buchanan convidou-o a sentar. Vouner ficou espantado ao notar que Buchanan não começou a falar imediatamente no ativador celular.
— O que o trouxe para bordo desta nave, Hendrik? — perguntou com um interesse que evidentemente era fingido.
— Sou um emigrante — respondeu Vouner.
Sem que o quisesse, seu rosto assumiu uma expressão mais séria. Fazia votos de que o velho não prosseguisse com suas perguntas. O que aconteceu na Terra fora há muito tempo. Vouner decidira apagar este capítulo da sua memória.
Hendrik Vouner era especialista na moldagem energética do aço. Colaborara na criação de várias ligas de excelente qualidade, lançadas no mercado pela SSC. Mas seu trabalho não lhe trouxera vantagens pessoais ou financeiras, pois não sabia fazer previsões... Foi por isso que seus colaboradores colheram a maior parte dos resultados a que Vouner faria jus.
Vouner sabia que não fora suficientemente duro para impor-se face à injustiça. Decidira sem o menor ressentimento procurar outro campo de atividade. Soube que em Sphinx, o planeta central dos acônidas estavam procurando especialistas em moldagem energética do aço e logo se candidatou.
Em algum dia do mês de abril do ano de 2.326, a Olira pousaria em Sphinx, largando Vouner no mundo que lhe serviria de residência.
Vouner não esperava muita coisa de seu novo campo de trabalho. Sabia que, além dos serviços práticos, teria que desincumbir-se de tarefas diplomáticas, pois, por certo, trabalharia com uma equipe de acônidas, o que não seria nada fácil. Apesar disso Vouner ansiava para iniciar a nova atividade. Não deixara no planeta Terra qualquer pessoa com a qual mantivesse relações mais estreitas. Continuava solteiro, pois era de opinião que, para casar, deve-se ter uma base financeira sólida.
— Emigrante? — irrompeu a voz de Buchanan em meio aos seus pensamentos. Um sorriso contrariado surgiu no rosto do velho. — Será que o senhor também teve azar, Hendrik?
— Não — respondeu Vouner. Buchanan nem parecia notar o tom de reserva na voz de Vouner.
— A Terra transformou-se numa prisão transparente, Hendrik! — exclamou com a voz estridente. — Procuram manter-nos presos a ela até a morte. Não querem que participemos das maravilhas do cosmos. Basta pensar nos ativadores celulares espalhados por toda parte. — Buchanan sacudiu a cabeça calva. — Como é que um homem que não seja importante pode chegar a possuir um aparelho desse tipo? Dificilmente terá uma chance. Os grandes pegam tudo... Certo?
— Na minha opinião os vinte e cinco ativadores pertencem a Rhodan e aos homens de seu grupo — respondeu Vouner, com a maior calma.
Uma alteração bem perceptível surgiu no rosto de Buchanan.
— Pois estou cansado de bancar o homem submisso! — exclamou e deu um passo em direção a Vouner, fitando-o com uma expressão insistente.
— Hendrik, não foi por nada que andei lhe falando todo este tempo nos meus planos. Acho que é o homem indicado para ajudar-me. É jovem, ponderado e inteligente.
Buchanan pretendia prosseguir nos seus elogios, mas Vouner interrompeu-o com um gesto.
— Desista, mister Buchanan. O senhor sabe perfeitamente que não tem a menor possibilidade de participar da caça aos ativadores. Para isso precisaria de uma nave.
Um brilho febril surgiu nos olhos de Buchanan.
— E se eu tivesse uma nave, Hendrik? — perguntou.
Vouner soltou um suspiro. A obsessão de Buchanan tornava-se cada vez mais grave.
— Então, Hendrik? — insistiu Buchanan.
Vouner não conseguiu livrar-se de uma sensação desagradável.
— Não sei — disse em tom hesitante. Num gesto de triunfo, Buchanan apontou para o corredor.
— Nossa nave é esta! — exclamou.
Vouner fitou o velho. Estava apavorado.
Será que aquilo era mais uma das suas delirantes idéias, ou estaria falando sério?
— A Olira? — perguntou. Buchanan confirmou com um gesto.
— Isso mesmo: a Olira — respondeu. — Obrigarei os tripulantes a se submeterem ao meu comando. Iniciarão, sob a minha direção, as buscas destinadas a localizar o ativador.
As idéias do velho começavam a tornar-se perigosas. Vouner chegou à conclusão de que deveria agir imediatamente, para evitar que Buchanan pudesse concretizar suas intenções absurdas.
— Hendrik, o senhor desempenha um papel muito importante nos meus planos — disse Buchanan em tom grave. — A única coisa que teremos de fazer é colocar o comandante fora de ação. O resto será apenas um golpe psicológico. — Pigarreou. — Assim que tiver eliminado o comandante, prometerei aos tripulantes que sairemos à procura do ativador celular. Qualquer pessoa gostaria de viver eternamente, Hendrik. A possibilidade de atingir esse objetivo fará com que os homens se esqueçam da disciplina e da obediência. Seguirão prontamente as nossas instruções, pois todos eles esperarão encontrar o seu ativador celular...
— Não conte comigo, mister Buchanan — disse Vouner, com a maior tranqüilidade. — O que o senhor pretende fazer é um crime!
Buchanan segurou Vouner pela gola da jaqueta.
— Pense bem, Hendrik — pediu.
— Solte-me! — exigiu Vouner.
Num movimento rapidíssimo, Buchanan largou-o e correu em direção ao armário. Antes que Vouner tivesse tempo de fazer qualquer coisa, o velho abriu a porta, tirou uma arma, que parecia bastante antiquada, e apontou-a para o emigrante.
— Acha que sou um velho idiota que não sabe o que faz?
De repente havia um tom de ódio na voz de Buchanan... A arma tremia ligeiramente, mas permanecia apontada ininterruptamente para o peito de Vouner.
— Mister Buchanan! — A voz de Vouner tinha um tom insistente. — Não faça isso!
O velho acenou com a arma.
— Tranque a porta, Hendrik!
Vouner hesitou, mas acabou obedecendo. A loucura daquele velho era tamanha que realmente seria capaz de atirar nele, se não agisse com prudência.
— Sente-se — ordenou Buchanan. — E fique bem quietinho. Já andei pensando bastante sobre como fazer desaparecer um cadáver a bordo da Olira.
Vouner sentou-se na borda da cama.
— O senhor só tem duas alternativas, Hendrik — disse Buchanan. — Ou participa dos meus planos, ou eu o mato.
Naquele momento Vouner compreendeu que Buchanan estava falando sério. O velho idiota parecia não recuar diante de nada, de tão obstinado que estava na sua idéia. Vouner não se preocupou tanto com o perigo imediato com que se defrontava. Devia encontrar um meio de sair do camarote e prevenir o comandante da Olira.
Buchanan fitava-o com uma expressão de astúcia.
— E se eu concordar? Como saberá que não estou mentindo? — perguntou Vouner.
— Afinal, sempre poderei manifestar-me de acordo com seus planos apenas para sair daqui.
— Um homem que se encontra na minha situação não pode assumir nenhum risco — disse Buchanan.
Pôs a mão atrás das costas e tirou uma caixa que se encontrava no armário. Atirou-a sobre a cama, ao lado de Vouner.
— Nessa caixa há três comprimidos — informou. — Agora mesmo o senhor vai tomar um deles, Hendrik.
Vouner permaneceu imóvel. Sentia que, apesar de sua loucura, aquele velho era perigoso.
— Esses comprimidos contêm uma substância tóxica — disse Buchanan. — Mas não se preocupe, Hendrik. A ação do veneno é muito lenta. Nos primeiros três dias o senhor não sentirá absolutamente nada. Depois disso já teremos realizado nosso plano, e eu lhe darei o antídoto.
Vouner olhou para a caixa.
— Escolha, Hendrik! — pediu Buchanan, em tom firme. — Ou o senhor toma os comprimidos, ou então... — Levantou a arma, num gesto que falava por si.
Vouner sentiu crescer a vontade de resistir. Era possível que o velho estivesse blefando e que os comprimidos fossem inofensivos. Mas Vouner não teve a menor vontade de experimentar para descobrir se realmente era assim. Além disso Buchanan talvez nem possuísse o antídoto.
Vouner ergueu-se num movimento resoluto.
— Não quero — disse. — Procure outra pessoa.
Por um momento teve a impressão de que Buchanan se precipitaria sobre ele numa fúria cega. Mas o velho logo voltou a controlar-se e levantou a arma de cano curto.
— Está bem, Hendrik — resmungou. — Se é isso que o senhor quer.
Naquele momento alguém bateu à porta do camarote. Buchanan virou-se abruptamente e pôs-se a praguejar. Vouner saltou sobre o velho. Os dois caíram ao chão.
— Aconteceu algum coisa, mister Buchanan? — perguntou uma voz feminina no corredor.
Era a senhora Grey, que ocupava o camarote 3. Bem que Vouner gostaria de saber o que desejava de Buchanan.
Buchanan deu um pontapé na direção de Vouner e procurou mordê-lo. Vouner aplicou-lhe um golpe com a mão aberta. O louco caiu ao chão. A arma escapou-lhe da mão.
— Mister Buchanan! — gritou a senhora Grey, levantando a voz.
Vouner pegou a arma e escondeu-a sob a jaqueta. Levantou-se. Buchanan gemia baixinho. Vouner foi até a porta e abriu-a.
— É o senhor! — exclamou a senhora Grey, perplexa.
Olhou para dentro do camarote e viu Buchanan estendido no chão.
— O quê... — gritou nervosa — o que é isso, mister Vouner?
— Mister Buchanan sofreu um ataque cardíaco — respondeu Vouner, com a maior tranqüilidade. — Dei-lhe um dos meus comprimidos. — Sorriu como quem pede desculpas, voltou ao aposento e pôs no bolso os comprimidos de Buchanan.
Mrs. Grey acompanhou-o com o rosto pálido.
— Por que não o coloca na cama? — perguntou.
— A senhora tem razão — concordou Vouner. — Acho que não demorará a recuperar os sentidos.
A senhora Grey era uma mulher um tanto gorda, envolta nos odores de um perfume pouco discreto. Escondia as pernas curtas e grossas sob uma saia que quase lhe chegava aos tornozelos. Vouner sabia que pretendia visitar o filho que se encontrava em Central VL.
Pegou Buchanan e arrastou-o até a cama.
— Ele prometeu contar-me alguma coisa a respeito dos ativadores celulares.
Foi por isso que vim — disse a senhora Grey. — Mister Buchanan está muito bem informado sobre isso.
A ânsia de recuperar a juventude chamejava em seus olhos envelhecidos. Provavelmente daria qualquer coisa em troca de um ativador.
A senhora Grey estendeu um cobertor em cima de Buchanan. Vouner fitou-a sem dizer uma palavra. De repente Buchanan abriu os olhos.
— Como se sente? — perguntou a senhora Grey.
Buchanan não lhe deu atenção. Fitou Vouner com uma expressão sombria.
— Vai avisar o comandante? — perguntou em tom áspero.
Vouner fez que sim. Buchanan virou o rosto em sua direção. Não procurou dissimular o ódio. Vouner sentiu pena daquele velho. Seguindo um impulso repentino, disse:
— Escute, mister Buchanan. Se o senhor prometer que vai ficar quieto, não direi nada.
Buchanan ficou de lado, apoiando-se num dos cotovelos. Estava com os maxilares salientes.
— Está bem — disse.
— Eu o observei — disse Vouner em tom de advertência, olhando para a senhora Grey que ouvira tudo sem compreender.
— Vamos, senhora Grey. Mister Buchanan precisa descansar um pouco.
— Fique comigo, senhora Grey — pediu Buchanan, em tom apressado.
Vouner saiu do camarote. Quando o som de seus passos se afastou pelo corredor, Buchanan deixou-se cair novamente e soltou um suspiro.
— Mister Vouner foi bastante grosseiro — observou a senhora Grey, em tom severo.
Buchanan sorriu.
— Isso não vai continuar assim — disse com uma ponta de ameaça na voz.
Oliver Buchanan olhou para o pequeno relógio que estava perto da cama. O descanso geral a bordo da Olira já durara três horas. Só dali a quatro horas a sala de comando ligaria a luz dos camarotes dos passageiros. Satisfeito, Buchanan apagou sua lanterna portátil. Provavelmente todos os passageiros e a maior parte dos tripulantes dormiam.
Pelos cálculos de Buchanan, a Olira se encontrava aproximadamente na periferia da área central da Via Láctea. Era uma nave cargueira equipada com o sistema de propulsão linear. A próxima escala da nave seria no Sistema Azul. Buchanan colhera suas informações. Sabia que Hendrik Vouner pretendia desembarcar no planeta Sphinx. Além disso os porões abrigavam cargas destinadas a vários importadores acônidas.
Buchanan chegou à conclusão de que não deveria esperar mais. O comportamento inexplicável de Vouner obrigara-o a modificar seus planos. Deveria impedir de qualquer maneira que a Olira chegasse ao Sistema Azul. No momento do desembarque, o senso de responsabilidade de Vouner o obrigaria a avisar o comandante.
Buchanan foi até a porta e pôs-se a escutar. Não havia ninguém no corredor. Abriu e saiu cautelosamente. Viu-se envolvido por uma escuridão total. Trancou cautelosamente a porta de seu camarote. Fora do mesmo logo sentiu o cheiro característico de um veículo espacial. Buchanan sabia que o ar que estava respirando era fresco, limpo e filtrado, mas faltava-lhe o ozônio, o perfume quase imperceptível das folhas em decomposição ou da areia quente, que constituíam os traços característicos de uma atmosfera de oxigênio dos planetas semelhantes à Terra.
Buchanan lamentou-se pois a reclamação que ele sozinho pretendia levar avante até conseguir transformá-la em motivo de motim não era tão boa assim. Pensava ele em queixar-se da aeração existente a bordo...
Não tomou a direção das salas de estar, mas foi andando sorrateiramente para o lado onde ficavam os alojamentos dos tripulantes. Lamentou-se por ter de passar pelo camarote de Vouner. Não acreditava que o emigrante ficasse acordado nas horas de descanso para observá-lo, mas ficou bastante desconfiado ao aproximar-se do ponto crítico.
A porta do camarote de Vouner estava fechada. Buchanan soltou um suspiro de alívio. Parou por um instante. De repente lembrou-se de que talvez houvesse um sistema de alerta entre os alojamentos dos passageiros e os dos tripulantes, e esse sistema daria aviso imediato de sua penetração à sala de comando. Mas essa preocupação não tinha razão de ser. Se esse sistema realmente existisse, ele poderia alegar ter errado o caminho. Costumava-se perdoar muita coisa aos velhos.
Buchanan prosseguiu. Deixou para trás o camarote de Vouner. Havia uma barreira simples que dividia o corredor em duas partes. Buchanan não hesitou. Soltou o gancho de segurança preso à parede e abriu a barreira. Não aconteceu nada.
Os alojamentos dos tripulantes também estavam às escuras. Mais adiante o corredor descrevia uma curva, e por lá penetrava uma luminosidade. Buchanan acenou com a cabeça. Nesse lugar encontraria o poço do elevador antigravitacional que levava a um lugar situado bem em cima da sala de comando. Nas horas de descanso não havia por lá mais que quatro ou cinco tripulantes, que cuidavam dos trabalhos de rotina.
Buchanan não tinha uma idéia muito clara sobre o que faria a partir do momento em que penetrasse na sala de comando, mas contava com a possibilidade de praticar um ato de sabotagem.
Assim que fosse descoberto, pretendia entrar correndo na sala de comando e destruir cegamente tudo aquilo em que conseguisse pôr as mãos.
Buchanan estava tão obcecado que nem compreendia a falta de lógica dos seus planos. Seu subconsciente já brincava com as imagens fantásticas do que faria quando conseguisse apoderar-se de um dos ativadores celulares. Sempre sentira inveja das pessoas imortais como Rhodan e Bell. À medida que a idade aumentava, sentia-se cada vez mais injustiçado por ser privado do benefício da longevidade. A velhice martirizava Buchanan, e ele não conseguia libertar-se desse estado.
Com o passar dos anos o ressentimento foi se acumulando em sua mente. Procurara desesperadamente por uma possibilidade de conservar a juventude. Mas teve de reconhecer que, apesar de todos os avanços da indústria farmacêutica, o processo de envelhecimento não podia ser detido.
Quando a amargura chegou ao auge, o misterioso Ser espiritualizado de Peregrino resolveu espalhar os vinte e cinco ativadores celulares. Buchanan resolveu sair para o espaço a fim de arranjar um desses aparelhos.
E ali estava ele, um velho dominado por uma obsessão, que já deveria ter sido confiado a um psiquiatra.
Buchanan acompanhou a curva do corredor. A entrada do elevador gravitacional derramava uma luz profusa pelas proximidades. Buchanan observou o local por alguns segundos. No lugar em que se encontrava, ouvia um leve zumbido. Provavelmente vinha da sala de comando.
Buchanan saiu da escuridão.
Nesse momento a mão de alguém pousou em seu ombro. Assustou-se.
“É Vouner!”, pensou.
Mas ao virar-se lentamente viu a senhora Grey. Buchanan ainda tremia sob o efeito do choque.
— Senhora Grey! — sussurrou. — O que está fazendo aqui? Esta área é reservada à tripulação.
A mulher idosa tinha uma “máscara” de maquilagem aplicada no rosto. Trazia uma manta muito folgada sobre o ombro.
— Poderia fazer-lhe a mesma pergunta, mister Buchanan — cochichou. — O que está fazendo por aqui?
Buchanan esteve a ponto de perder o controle e começar a berrar, mas a mulher colocou o dedo sobre os lábios.
— Seja lá o que o senhor veio fazer por aqui, isso tem algo a ver com os ativadores celulares, não é mesmo?
— É verdade — admitiu Buchanan a contragosto.
Uma expressão gulosa surgiu no rosto dela, que lançou um olhar penetrante para seu interlocutor.
— Sabe onde estão os ativadores? — perguntou em tom apressado.
— Sei — disse Buchanan, mentindo descaradamente. — E pretendo apoderar-me deles.
A senhora Grey aproximou-se com a manta esvoaçante.
— Talvez eu seja uma parceira melhor que mister Vouner — disse.
Buchanan olhou-a com uma expressão indecisa.
— Talvez — repetiu em tom pensativo.
Aquela mulher escutara junto à porta enquanto discutira com Vouner. Buchanan recriminou-se pela falta de cuidado.
— O senhor não contou a Vouner que conhece o esconderijo dos ativadores celulares — lembrou a senhora Grey.
— É claro que não — respondeu Buchanan, com um sorriso. — Queria que Vouner só fizesse o trabalho sujo. Depois disso pretendia eliminá-lo.
A senhora Grey não demonstrou a menor emoção.
— Não sei se o que o senhor diz é verdade, mister Buchanan. De qualquer maneira existe a possibilidade de que realmente consiga chegar aos ativadores. Não tenho motivo para perder esta chance.
— Para termos uma chance precisamos da nave — disse Buchanan. — Não se esqueça de que não se trata de um veículo espacial destinado a fins militares. Por isso a seleção dos tripulantes não é tão rigorosa como, por exemplo, nas naves da Frota do Império. Isso facilitará nosso trabalho.
Ela não deixou entrever o que achava da idéia de conquistarem em dois toda uma nave cargueira.
— Como pretende agir? — perguntou. Buchanan apontou para o poço do elevador antigravitacional.
— Este poço leva diretamente à sala de comando — disse. — Praticarei um ato de sabotagem. Haverá, então, necessidade de reparos que por enquanto impedirão a nave de seguir viagem.
— O que espera alcançar com isso? — perguntou a senhora Grey, em tom cético.
— Talvez consiga escapar em meio à confusão — disse Buchanan. — Nesse caso poderei espalhar o boato de que o comandante é culpado do incidente. Direi que apenas encenou aquilo para apoderar-se de um ativador celular que pode ser encontrado nesta área.
— E depois? — perguntou ela.
— De qualquer maneira os tripulantes desconfiarão. Para qualquer homem um ativador celular é um objetivo tentador. A desconfiança será o fermento de um motim. — Buchanan soltou uma risadinha áspera. — É claro que teremos de desenvolver um trabalho psicológico junto à tripulação. Deve haver outros incidentes.
— E se pegarem o senhor? — perguntou a senhora Grey, em tom indiferente.
— Nesse caso direi que agi assim por ordem do comandante, que recorreu a promessas para me levar a fazer isso.
A senhora Grey soltou uma risadinha abafada.
— Seu imbecil caduco — disse em tom grosseiro. — O senhor realmente acredita que conseguirá apoderar-se de uma nave com meios tão primitivos?
— Preciso tentar! — respondeu Buchanan.
— Devemos agir de forma diferente — afirmou a mulher, em tom decidido. — Avançaremos juntos até a sala de comando. No momento há poucos homens por lá.
Quando chegar, gritarei por socorro. Dessa forma os astronautas que estiverem de serviço sairão correndo para ver o que aconteceu. O senhor deverá aproveitar esse momento para provocar alguma avaria no interior da sala de comando, que impeça a nave de prosseguir viagem. Terá de andar depressa. Contarei aos homens que ouvi uma conversa entre o comandante e um desconhecido, e que, durante essa conversa, o comandante pediu ao seu interlocutor que praticasse o ato de sabotagem. Fiquei com tanto medo que fiquei mais algum tempo no camarote, antes de atrever-me a ir até ali. Ouvi o comandante prometer um ativador celular ao seu cúmplice. Os tripulantes não devem saber disso.
Buchanan refletiu por algum tempo.
— O comandante Fredman está deitado calmamente em sua cama — disse.
— Tanto melhor — respondeu a senhora Grey.
Buchanan sentiu que o comando lhe escapara das mãos. Essa mulher resolvia como deveriam agir. Isso nem era tão ruim assim, pois se algo saísse errado, poderia pôr a culpa nela. A embriagues de que Buchanan se sentia possuído, depois de ter iniciado a caça à vida eterna, não permitia que raciocinasse claramente. Disse a si mesmo que também perante a senhora Grey deveria agir com cuidado, mas achava que sua superioridade mental era tamanha que reconheceria no nascedouro qualquer tentativa de enganá-lo.
— Está bem — disse. Caminharam em direção ao poço antigravitacional.
O elevador estava vazio. A luz indireta era suficientemente forte para que pudessem ver a plataforma na parte inferior.
— Tudo calmo — constatou a senhora Grey, em tom satisfeito. — Vamos entrar.
No interior do poço do elevador fora eliminada quase completamente a gravitação, artificialmente mantida em 1 G a bordo da Olira. Só da plataforma irradiava um campo gravitacional pouco intenso, que faria com que qualquer objeto descesse suavemente. Bastaria uma inversão dos controles para utilizar o poço do elevador em sentido oposto.
Buchanan e sua companheira flutuaram em direção à plataforma. A mulher pousou em primeiro lugar. Olhou em torno e fez um sinal para Buchanan.
— Tudo bem. — Apontou para a entrada da sala de comando. — Fique escondido entre estas colunas. Irei para o outro lado da plataforma. Quando começar a gritar, os homens sairão correndo. Quando isso acontecer, o senhor terá de agir muito depressa.
— O que devo fazer se nem todos os homens saírem da sala de comando?
Um sorriso de deboche surgiu no rosto da senhora Grey.
— O senhor ainda não me ouviu gritar.
Buchanan fitou-a com uma expressão de dúvida, mas deu-lhe as costas sem dizer uma palavra e enfiou-se entre as colunas. A mulher esperou até que ele estivesse bem escondido. Muito tenso, Buchanan viu-a caminhar para o outro lado da plataforma. Movia-se sem fazer o menor ruído e a manta dava-lhe um aspecto fantasmagórico. Em algum lugar, no subconsciente de Buchanan, surgiram as primeiras dúvidas. Aos poucos começou a dar-se conta da irregularidade da situação. Comprimiu o corpo contra o material duro das colunas e pôs-se a refletir.
A mulher começou a gritar.
Buchanan estremeceu. Já não poderia voltar atrás. Agachou-se entre as colunas enquanto o coração disparava.
Quatro homens saíram da sala de comando. Ela soltou mais um grito e caiu. Buchanan não teve tempo para admirar a demonstração de arte dramática que a mulher acabara de oferecer. Saiu apressadamente do esconderijo. Ouviu os astronautas falarem com a senhora Grey. No mesmo instante, Buchanan chegou à entrada da sala de comando da Olira.
Havia um homem sentado na poltrona do piloto. Estava de costas para Buchanan.
O rosto do velho transformou-se numa horrível careta... Não viu nenhum objeto solto com que pudesse abater o homem! Era exatamente o que ele receara.
Lembrou-se que sempre se costumava evitar objetos soltos no interior das espaçonaves.
Buchanan sabia que teria de agir imediatamente se quisesse ter uma possibilidade de ser bem-sucedido. Aproximou-se sorrateiramente do piloto, vindo de trás. O zumbido dos controles e o ronco suave dos propulsores abafava o ruído de seus passos.
Reunindo todas as forças de que dispunha, golpeou o pescoço do homem que não desconfiava de nada. Não teve necessidade de golpear pela segunda vez.
Buchanan dirigiu os olhos para os controles. Uma confusão inextricável de chaves, alavancas, botões e luzes de controle estendeu-se à sua frente. Com um ronco abafado pegou duas alavancas e começou a puxá-las. Depois pegou tudo quanto era chave que estava ao seu alcance, e começou a sacudi-las que nem um louco, tentando arrancá-las dos suportes.
Só deu conta de si quando as sereias de alarma começaram a uivar. Nem ele nem a senhora Grey se havia lembrado desse detalhe.
O equipamento de segurança da Olira estava funcionando a plena potência!
Buchanan, que estava com o corpo abaixado, tirou os olhos dos controles e, apavorado, virou o rosto para a entrada da sala de comando.
Viu Hendrik Vouner entrar ao lado do comandante Fredman. Estacou em meio ao movimento. O rosto de Fredman estava pálido que nem cera. Vouner parou e disse em tom desesperado:
— Deveria ter cuidado melhor dele.
Fredman nem parecia tê-lo ouvido.
— Saímos do vôo linear — constatou, apavorado.
— O ato de sabotagem fez com que retornássemos para o Universo normal.
O dedo trêmulo e encurvado de Buchanan apontou para Fredman. Os homens que haviam sido atraídos para fora da sala de comando pela senhora Grey reuniram-se atrás do comandante.
— Foi ele que me instigou a fazer isso — gritou Buchanan.
Fredman era um homem baixo, mas robusto. Seu corpo entesou-se. Buchanan recuou. Ficou preso no assento do piloto.
— Cachorro! — gritou Fredman, indignado.
— A culpa é minha... — disse Vouner, com a voz triste.
A senhora Grey entrou. Era a única pessoa que se deleitava com a situação. Seus olhos chamejavam. A máscara de maquilagem parecia estar derretendo.
— Fredman sabe perfeitamente onde encontrar os ativadores celulares — disse. — Uniu-se a esse sujeitinho — acrescentou, apontando para Buchanan. — Logo reconheci o cúmplice de Fredman pela voz.
— Isso é uma insolência — gritou Fredman, em tom exaltado. — A senhora será chamada a juízo por isso.
Ela soltou uma gargalhada.
— Espere para ver qual de nós vai ser chamado a juízo, comandante.
— Um instante — disse Hendrik Vouner. — As acusações que estão sendo formuladas contra o comandante Fredman não têm base. Sei perfeitamente que essa idéia maluca nasceu na cabeça de mister Buchanan. Ele me quis convencer a tomar parte nisso.
A senhora Grey cruzou os braços sobre o peito.
— Até parece que ele também é da gangue — afirmou e fitou Vouner com uma expressão de desprezo.
O comandante recuperou o autocontrole.
— Chega! — disse. — Levem todas as pessoas que não têm nada a fazer na sala de comando. Mister Buchanan e a senhora Grey ficarão trancados em seus camarotes. Estão presos. Irradiaremos um pedido de socorro para solicitar uma nave que possa ajudar-nos. Provavelmente as avarias causadas por mister Buchanan não poderão ser reparadas com os recursos de que dispomos.
— Submeto-me às suas ordens sob protesto — gritou a senhora Grey. — E chamo a atenção de todos os tripulantes para o fato de que são responsáveis pelos erros que forem cometidos daqui em diante.
— Também protesto — gritou Buchanan, exaltado. — Exijo a constituição imediata de uma comissão de inquérito que investigue os acontecimentos. O comandante está usando seu poder para prender inocentes.
Não teve oportunidade de prosseguir em suas queixas. Dois tripulantes agarraram-no de forma pouco suave.
Naquele instante o radio operador disse:
— Estamos recebendo impulsos, sir. Parece que vêm de um sistema solar que fica nas imediações. — Inclinou-se sobre o equipamento de rádio. — Os sinais estão sendo transmitidos pelo hiper-rádio e pelas faixas comuns.
Os dois astronautas que pretendiam levar Buchanan pararam na entrada.
— O que houve, Togray? — perguntou Fredman, em tom de contrariedade.
O radioperador fitou o comandante com uma expressão de dúvida.
— Os sinais que estamos recebendo são bem simples — disse.
— O que significam? — perguntou Fredman.
Os olhos de Togray chispavam. Seu corpo entesou-se. De repente sua postura parecia exprimir certa teimosia diante de Fredman.
— Não conhece estes impulsos, sir? — perguntou, em tom irônico.
Pegou um lápis e bateu num dos aparelhos que se encontravam à sua frente.
Breve-breve-longo-breve-breve...
Buchanan desvencilhou-se.
— São os impulsos emitidos por um ativador celular! — gritou.
Depois das palavras de Buchanan houve um momento de silêncio. Até parecia que as pessoas que se encontravam na sala de comando precisavam de alguns segundos para compreender o significado da notícia. Em meio a esse silêncio nasceu a desconfiança.
— É uma coincidência extraordinária — disse o comandante Fredman, que foi o primeiro a recuperar o autocontrole. — Naturalmente verificaremos imediatamente onde se encontra o ativador celular. Devemos recolhê-lo para que vá ter às mãos de quem de direito.
A senhora Grey saiu de trás dos astronautas. Parou bem à frente de Fredman.
— Sem dúvida o senhor acha que a pessoa que deverá receber o ativador é o senhor, não é mesmo? — perguntou em tom irônico.
Hendrik Vouner, que se encontrava ao lado do comandante, foi surpreendido pela súbita mudança da situação. Ao constatar que Buchanan havia saído do camarote, dirigira-se imediatamente a Fredman. O comandante estava mergulhado num profundo sono, e só depois de muita insistência concordara em acompanhar Vouner à sala de comando. Vouner não acreditava que Fredman estivesse fazendo parte do jogo sujo. Mas, no fundo, restou uma pequena desconfiança, pois a coincidência entre o momento do ato de sabotagem de Buchanan e os sinais goniométricos não poderia ter resultado de um puro acaso...
— Sugiro que convoquemos imediatamente uma reunião na sala de estar — disse Fredman.
Pliatsikas, o imediato, concordou com um aceno de cabeça.
— Vamos esclarecer imediatamente o assunto, sir.
Vouner notou o tom estranho na voz do oficial, mas se Fredman se sentiu atingido, não deu a perceber nada.
— Exijo que os passageiros também participem da reunião — disse a senhora Grey. — Pelo menos três deles estão envolvidos no caso: Vouner, Buchanan e eu.
Fredman esteve a ponto de esbravejar, mas Pliatsikas apressou-se a dizer:
— Naturalmente, senhora Grey. Nesse meio tempo os tripulantes já se haviam reunido. O piloto, que já recuperara os sentidos, desligou o alarma.
— Togray, verifique de que sistema estão sendo irradiados os sinais — ordenou Fredman. — Depois disso encontre-se conosco na sala de reuniões.
O radioperador pôs-se a trabalhar.
O pequeno grupo saiu da sala de comando, passou pelos tripulantes, que abriram alas em silêncio, e aproximou-se do elevador antigravitacional. A senhora Grey caminhava ao lado do comandante como se aquilo fosse a coisa mais natural deste mundo. Buchanan foi logo atrás dela. Vouner manteve-se numa posição mais afastada. Os acontecimentos lhe davam o que pensar, mas por enquanto ainda não se sentia preocupado. Tinha certeza de que um homem como Fredman não demoraria a dominar a situação.
No corredor de cima encontraram-se com os outros passageiros, que haviam sido postos em alvoroço pelas sereias de alarma. Assediaram o comandante com perguntas, mas Fredman não lhes deu atenção.
— Façam o favor de acompanhar-nos — gritou a senhora Grey. — Ouvirão coisas muito interessantes.
Um homem de certa idade cujo nome era Permant acompanhou Vouner.
— O que houve, mister Vouner? — perguntou com a voz áspera.
Usava um robe colorido. Pelo que Vouner ouvira dizer, Permant vendia nas colônias sementes de flores da Terra. O negócio não era muito rendoso, mas Permant parecia satisfeito.
— A nave saiu do semi-espaço e voltou a mergulhar no Universo normal — informou Vouner. — Mister Buchanan praticou um ato de sabotagem.
Permant fitou-o de lado como quem não compreende nada. Atrás de Vouner, várias pessoas cochichavam em tom exaltado. Provavelmente dentro de alguns segundos todos os passageiros estariam informados sobre os acontecimentos.
— Que motivo tinha ele para fazer uma tolice dessas? — perguntou Permant, em tom de espanto.
— Acreditava que com isso teria uma oportunidade de apoderar-se de um ativador celular — respondeu Vouner.
Houve uma estranha modificação em Permant. A expressão de seu rosto alterou-se. Procurou colocar-se ao lado da senhora Grey. Vouner sacudiu a cabeça. Até parecia que a simples alusão a um ativador deixava essa gente completamente louca. Será que isso acontecia porque eram mais velhos que ele?
Vouner notou que Permant se esforçava para entabular uma conversa com a mulher.
Fredman abriu a porta da sala de estar e ligou as luzes. Hershnan estava dormindo numa das confortáveis poltronas. Aquele homem, que afirmava ser um indiano de raça pura, mostrara um estranho comportamento desde o momento em que subira a bordo da Olira. Vivia retraído e sempre era encontrado em algum canto afastado, debruçado sobre um livro. Naquele momento o livro estava aberto em seu colo.
A senhora Grey passou por Fredman e sacudiu o ombro de Hershnan. O indiano abriu os olhos e sorriu como quem quer pedir desculpas.
— O que veio fazer na sala de estar durante as horas de descanso? — perguntou Fredman, indignado.
No mesmo instante parecia lembrar-se de que a infração cometida por Hershnan representava uma insignificância em comparação com os acontecimentos que se desenrolavam. Fez um gesto de indiferença.
Hershnan levantou-se, todo confuso, e olhou em torno com uma expressão de indecisão. Vouner apressou-se em colocar-se ao lado do indiano.
— Não se incomode — disse. — O comandante está nervoso.
O comandante subiu na pequena tribuna. A senhora Grey, Buchanan, Pliatsikas e mais três tripulantes estavam bem à sua frente.
Fredman levantou o braço. No mesmo instante, o silêncio passou a reinar na sala.
— Acho que a esta hora todos já sabem que a nave saiu do semi-espaço — principiou o comandante. — A sabotagem praticada por mister Buchanan fez com que vários conjuntos do sistema de propulsão linear deixassem de funcionar. Se quiséssemos fazer os reparos com os recursos de que dispomos, levaríamos alguns dias. Por isso chamamos uma nave da frota que nos ajudará. Neste meio tempo descobrimos que nas proximidades da Olira deve existir um sistema solar no qual se encontra um ativador celular. Provavelmente já tiveram conhecimentos das acusações que foram formuladas contra mim.
Alguns tripulantes murmuraram um protesto. Fredman prosseguiu com um sorriso:
— Não vale a pena discutir sobre se essas acusações são justificadas. A única coisa que importa no momento é o ativador celular. Deve ser recolhido e entregue a Perry Rhodan, o mais depressa possível.
Vouner ficou surpreso ao notar que essas palavras foram recebidas por várias pessoas com aplausos calorosos, mas duvidava que esses aplausos tinham sua origem numa sincera concordância.
Com um movimento ágil a senhora Grey subiu à tribuna, colocando-se ao lado de Fredman, que a fitou com uma expressão sombria.
— Todos os passageiros me conhecem — disse ela. — Durante o descanso, interrompido de repente, ouvi por acaso uma conversa entre o comandante e mister Buchanan. Os dois decidiram a sabotagem para encontrar um pretexto para um pouso de emergência. Dessa forma pretendiam apoderar-se do ativador sem que ninguém soubesse. — Levantou a voz. — Não acredito que o comandante jamais tenha tido a intenção de entregar o ativador, ou os ativadores, pois talvez seja mais de um, a quem de direito. Por isso exijo a constituição de uma comissão que assumirá o comando da Olira e dirigirá as operações de busca do ativador, para que as mesmas se realizem em ordem. Só assim se poderá ter certeza de que o aparelho realmente chegará às mãos de quem de direito.
— Muito bem! — exclamou Permant.
Vários passageiros animaram a mulher a prosseguir em sua explanação. Mas Fredman interrompeu a torrente de palavras dela. Apontou para Hendrik Vouner.
— Acho que mister Vouner tem algo de interessante a contar — disse com a voz tranqüila. — Faça o favor de dizer como mister Buchanan o quis obrigar a participar da sabotagem.
Vouner via perfeitamente qual era o jogo do comandante. Fredman pretendia colocá-lo no centro dos acontecimentos, para ganhar tempo. Não se sentia muito contente por ter recebido de repente uma solicitação de subir à tribuna.
Depois de algum tempo Fredman estendeu-lhe a mão.
— Venha logo! — exclamou num tom que quase chegava a ser de súplica.
A insistência com que Fredman lhe pedia que o ajudasse deixou-o embaraçado. Empertigou-se e colocou-se ao lado da senhora Grey, que o fitou prolongadamente.
Vouner ofereceu um breve relato dos acontecimentos que se haviam desenrolado no interior do camarote de Buchanan. Os ouvintes não perdiam uma palavra do que dizia. Vouner viu muitos olhos cintilantes e rostos vermelhos. A maior parte dos presentes fora atingida pela febre... pela febre provocada pela idéia da imortalidade.
— Os senhores ouviram o que ele acabou de dizer — gritou Fredman, assim que Vouner se retirou. — Sem dúvida mister Buchanan estava planejando a sabotagem há muito tempo. A senhora Grey, que foi sua cúmplice, começou a gritar para atrair os homens para fora da sala de comando. — Sua voz abafou os gritos de protestos de Buchanan. — Não sei como, mas mister Buchanan deve ter descoberto como teria de fazer para que a nave ficasse nesta posição, ou melhor, retornasse ao Universo normal.
Buchanan começou a gritar furiosamente. Dois tripulantes retiraram-no da sala. Insultou o comandante e Vouner com palavras de baixo calão, até que o arrastassem ao corredor.
O rosto anguloso de Fredman continuou impassível até o momento em que não se pudesse ouvir mais as palavras de Buchanan.
— Peço que qualquer pessoa que acredite que não pode confiar em mim se retire — disse.
Seguiu-se um silêncio tenso. Ninguém fez o menor movimento. De repente a senhora Grey desceu da tribuna e dirigiu-se à porta. Fredman seguiu-a com os olhos sem dizer uma palavra.
— Tranquem-na em seu camarote — ordenou depois de algum tempo.
Vouner ficou satisfeito porque o comandante abafara no nascedouro o motim que se esboçava. Dali em diante tudo voltaria ao normal. O ativador celular seria recolhido e colocado em lugar seguro.
Vouner percebeu o perigo que esses aparelhos representavam. A tentação da imortalidade abafava qualquer outra idéia. Vouner perguntou a si mesmo por que ainda não se sentira atingido por essa tentação. Será que sua vida era tão pouco importante que nem pensava em prolongá-la?
Togray, o radioperador, entrou e interrompeu os pensamentos de Vouner.
— É o sistema de Velander — disse em tom contrariado. — Tem três planetas. Acho que o do meio é mais interessante para nós, sir.
— A quantos anos-luz fica o sistema? — perguntou Fredman.
— Pouco menos de dois, sir — respondeu Togray. — Não há dúvida de que os impulsos vêm de lá. Provavelmente o ativador encontra-se em um dos três planetas.
O comandante desceu da tribuna. Colocou a mão no ombro de Pliatsikas.
— Acho que não precisaremos de auxílio para chegar ao sistema de Velander — disse. — O pouso não deverá ser nenhum problema. Temos o dever de colocar o ativador em lugar seguro, antes que uma pessoa não autorizada capte os sinais goniométricos e saia à procura do precioso aparelho.
— Está bem, sir — disse Pliatsikas. — Encontraremos um meio de levar a Olira a esse sistema solar.
— Façam o favor de voltar aos seus camarotes — disse Fredman, dirigindo-se aos passageiros.
Vouner saiu andando, mas Fredman segurou-o pelo braço.
— Obrigado — disse em tom amável. Vouner ia dizer que não havia motivo para agradecer, mas Fredman logo prosseguiu:
— O senhor me ajudou bastante, mister Vouner. — Fitou prolongadamente o emigrante. — Quem sabe se não pode ficar de olho nos passageiros? — perguntou em tom confidente. — Sempre é possível que alguém volte a interessar-se pelo ativador. Se tiver qualquer desconfiança, por menor que seja, faça o favor de avisar.
Vouner gostaria de dizer ao comandante que não estava ali para realizar serviços de espionagem, mas não conseguiu proferir essas palavras. Fredman parecia notar a hesitação de Vouner.
— Sei que posso confiar no senhor — disse, para reforçar seu pedido.
Vouner concordou a contragosto. Fredman despediu-se com uma pancada amiga no ombro.
Ao sair da sala de estar, Vouner sentiu certa desconfiança de Fredman. Achou que a idéia representava uma injustiça contra Fredman, mas não conseguia livrar-se dela. Provavelmente teria agido da mesma forma se estivesse no lugar do comandante. Fredman queria garantir-se contra novos desmandos dos passageiros. Numa situação como aquela o comportamento da tripulação era imprevisível. Era bem possível que surgissem pequenos grupos que tentariam apoderar-se do ativador. Vouner começou a desconfiar de que tempos agitados o esperavam a bordo da Olira.
Quando se dirigia ao seu camarote, viu mister Permant parado no corredor.
— O senhor demonstrou muita iniciativa e circunspeção — disse Permant. — Se não fosse sua intervenção, poderíamos esperar o pior.
Vouner sorriu como quem quer formular uma objeção. Sabia perfeitamente que Permant desejava falar sobre um assunto bem diverso.
— Há uma coisa que não compreendo — disse Permant, aos cochichos.
Fez uma pausa para espicaçar a curiosidade de Vouner e prosseguiu:
— Por que o comandante não usa o rádio para chamar uma nave da Frota Imperial a fim de que esta possa recolher o ativador?
— Mandará expedir um pedido de socorro, pois na sala de comando terão de ser realizados reparos — respondeu Vouner, em tom contrariado. — Enquanto a nave não chegar, poderá cuidar do ativador.
— Como podemos saber se o pedido de socorro realmente será transmitido? — perguntou Permant.
— O senhor poderá olhar por cima do ombro do comandante enquanto estiver fazendo isso — aconselhou Vouner.
Permant não deixou que a observação irônica o perturbasse.
— Como cidadãos do Império temos o dever de cuidar dos interesses do mesmo — disse. — Se o comandante pretende apoderar-se do ativador, teremos de fazer alguma coisa.
Vouner começou a ficar com raiva, se bem que Permant apenas estava dizendo aquilo de que ele mesmo já desconfiara.
— O que poderíamos fazer contra os tripulantes? — perguntou.
— O mais importante é que fiquemos unidos. Não devemos permitir que se formem grupos distintos. Nosso objetivo primordial deverá consistir em...
— ...em fazer com que o ativador celular chegue às mãos de quem de direito — completou Vouner, em tom irônico.
Permant fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— Naturalmente — disse. — Vejo que estamos de acordo.
Vouner não respondeu. Passou por Permant. Já não havia á menor dúvida. A maior parte dos passageiros alegava só estar interessada em que o ativador tivesse a aplicação prevista, mas na verdade cada um deles entretinha a esperança de apoderar-se do aparelho para seu uso.
Não havia motivo para supor que, entre os tripulantes, as condições fossem diferentes. Afinal, também o comandante Fredman era apenas um ser humano e estaria disposto a assumir certos riscos para alcançar a imortalidade.
Não poderia confiar mais em nenhuma das pessoas que se encontravam a bordo. A idéia deixou Vouner apavorado. O que adiantava trancar Buchanan e a senhora Grey em seus camarotes? Não se poderia transformar toda a nave numa prisão!
Ao entrar em seu camarote, Hendrik Vouner estava mergulhado em pensamentos sombrios. Não sabia o que poderia fazer, pois estava sozinho. Sentou-se na cama e lembrou-se de que era absurdo suspeitar de todas as pessoas que se encontravam na nave. Entre os passageiros e os tripulantes devia haver pessoas cujas intenções eram tão honestas quanto as suas. Era nessas pessoas que deveria depositar suas esperanças.
Quando começava a mudar de roupa para dormir algumas horas, alguém bateu à porta. Jogou as roupas em cima da cama.
— Quem é? — perguntou.
— Pliatsikas, o imediato — disse uma voz vinda do corredor.
Vouner foi até a porta e abriu. O homem alto entrou imediatamente.
— O comandante Fredman me mandou. Lembrou-se de que a arma de mister Buchanan ainda se encontra em seu poder. Quer evitar novos aborrecimentos. Outros passageiros poderiam sentir-se ameaçados. Por isso manda pedir-lhe que me entregue a arma.
Pliatsikas fitou Vouner com uma expressão de expectativa. O emigrante abriu o armário e tirou a arma.
— É uma velha arma térmica — disse.
Pliatsikas ergueu as sobrancelhas.
— Pouco importa que seja velha ou nova — disse. — Sempre é perigosa.
Vouner refletiu por um instante.
— Entregarei a arma ao comandante em pessoa — disse.
O rosto de Pliatsikas ficou vermelho de raiva. A situação começava a ficar desagradável para Vouner, mas este não pretendia cometer outro erro.
— O que espera conseguir com isso? — perguntou o oficial.
Vouner enfiou a arma no cinto. Fitou Pliatsikas de frente.
— Dessa forma terei certeza de que Fredman realmente pediu a arma e a receberá.
Pliatsikas virou-se abruptamente e saiu do pequeno recinto. Bateu a porta. Vouner desconfiou de que, a partir daquele momento, conseguira arranjar mais um inimigo, e isso o deixava deprimido. Por que o imediato não queria compreender? Estava decidido a levar o assunto até o fim, e por isso acompanhou Pliatsikas até a sala de comando.
Fredman aguardava-o com o rosto impassível.
— O senhor é um homem muito cauteloso, mister Vouner — disse. — Via de regra, meus homens merecem confiança.
Pliatsikas fitou Vouner com uma expressão ameaçadora.
Vouner tirou a arma do cinto e entregou-a ao comandante.
— Estes homens são seus subordinados, não meus — disse em tom tranqüilo.
Fredman pegou a arma e colocou-a sobre a mesa de navegação. Nos fundos da sala vários homens estavam trabalhando para reparar as avarias causadas por Buchanan.
— Retire-se — disse Pliatsikas, em tom grosseiro.
A atmosfera da sala de comando estava tensa. Vouner não gostou dos rostos contrariados dos homens. Virou-se lentamente e foi saindo.
Tomou o elevador antigravitacional e chegou ao corredor comprido que levava aos camarotes. As paredes refletiam o eco de seus passos. Sem que o quisesse deu determinado ritmo ao som.
Breve-breve-longo-breve-breve...
Era um sinal goniométrico muito simples.
E estava sendo transmitido pela hiper-faixa e pela faixa de ondas ultracurtas.
Dificilmente haveria um homem adulto que não conhecesse o sentido desse sinal. O mesmo representava uma promessa de imortalidade.
Vouner chegou ao seu camarote. Como se sentiria se fosse imortal? Seria mais feliz, mais satisfeito ou mais rico que os homens comuns? De que forma lidaria com os problemas da vida?
Vouner balançou a cabeça. Estava pensando demais nos ativadores celulares. Não queria que a febre generalizada o contaminasse.
Quando a Olira chegasse ao sistema de Velander, seria muito bom que seus desejos estivessem sob controle. De certa forma Vouner sentia-se orgulhoso por não participar da corrida. Assim guardava certa distância mental em relação ao assunto.
Afinal, havia mais de dez bilhões de terranos e os ativadores eram apenas vinte e cinco.
Por que ele, Vouner, haveria de acreditar na idéia absurda de que conseguiria adquirir um desses aparelhos?
O comandante Fredman e os tripulantes da nave levaram sete horas para reparar as avarias causadas por Buchanan a fim de que a Olira pudesse acelerar de novo. Fredman explicou aos passageiros que os propulsores lineares estavam em condições de funcionamento, mas que dificilmente conseguiria levar a nave além do sistema de Velander. Uma vez chegando lá, precisaria de outros reparos. O comandante não disse se havia pedido o envio de uma nave que os ajudasse.
Vouner teve a nítida impressão de que a bordo da nave não havia ninguém que desejasse a vinda de outra nave...
A Olira penetrou no semi-espaço e tomou a direção do sistema de Velander. Os passageiros mantiveram-se calmos — calmos demais, segundo a impressão de Vouner. Dificilmente alguém ia à sala de estar, pois parecia que todos tinham medo de terem de trocar palavras entre si. Buchanan e a senhora Grey tinham de permanecer em seus camarotes. Apenas vez ou outra Fredman lhes permitia a utilização dos banheiros.
Vouner encontrara-se com Hershnan na sala de estar, mas o indiano retirou-se com um sorriso embaraçado. Dali em diante, Vouner já não tinha a menor dúvida de que os passageiros o evitavam. Desconfiavam dele. Vouner não podia fazer nada para modificar esse estado de coisas, mas gostaria de esclarecer a situação. Sentiu que estava sempre sendo evitado sem que tivesse culpa de nada. Provavelmente estavam zangados porque se colocara do lado do comandante.
Fredman e os tripulantes também mantinham uma atitude estranhamente reservada. Os tripulantes mantinham-se afastados dos passageiros, a não ser quando realizavam as rondas de rotina. Dali resultou um ambiente nada agradável. Vouner ouviu dizer que Fredman não podia acelerar muito a Olira. Demorariam pelo menos mais três dias para chegar ao sistema de Velander.
Vouner foi à biblioteca e supriu-se de material de leitura. Depois disso trancou-se em seu camarote. Encontrou um relato com várias alusões ao Sistema Azul. Teria conseguido esquecer quase completamente os ativadores, se Buchanan não tivesse feito uma tentativa de fuga.
O confinamento involuntário deixara o velho totalmente perturbado. De repente Vouner o ouviu soltar um grito. Levantou-se de um salto e foi até o corredor. Buchanan conseguira arrombar a porta de seu camarote. Vouner viu-o sair cambaleante. O velho parecia totalmente esgotado.
Vouner interpôs-se em seu caminho e segurou-o. Outros passageiros saíram para o corredor e observaram o doente, mas não fizeram nada.
— Procure ser razoável — disse Vouner, em tom insistente. — Volte.
Buchanan não parecia reconhecê-lo. Procurou golpeá-lo, mas Vouner não teve nenhuma dificuldade em esquivar-se. Os olhos do velho brilhavam numa expressão de loucura.
— Fredman escondeu o ativador — balbuciou Buchanan. — Quer ficar com ele.
— Tolice — respondeu Vouner. — Não é verdade. Acalme-se. Vá para a cama.
Fredman apareceu juntamente com um tripulante. Empurravam Vouner para o lado. Vouner viu uma seringa de injeção à luz das lâmpadas. De repente o corpo de Buchanan amoleceu.
Fredman estava com olheiras. Parecia ter passado muito tempo sem dormir. Pegou Buchanan juntamente com seu companheiro e arrastou-o para o camarote.
— Está tudo em ordem — disse Fredman, com a voz pouco amável. — Voltem aos seus compartimentos.
Logo depois disso os dois homens foram embora.
Vouner hesitou um pouco, mas logo chegou à conclusão de que não adiantaria discutir com o comandante. Retirou-se. O procedimento pouco gentil de Fredman deixara-o aborrecido.
Dali a pouco entrou sem bater. Ao ver a expressão de cansaço no rosto do comandante, Vouner lembrou-se da responsabilidade que pesava sobre o mesmo. Ali, no espaço cósmico era o chefe absoluto da nave e de seus tripulantes.
— Nas últimas horas constatei certa inquietação entre os passageiros — disse Fredman. — O que acha?
— Não se preocupe — respondeu Vouner. — Não acho que quinze passageiros representem um perigo para o senhor.
Se Fredman notou o tom de voz de Vouner, ele não deixou que este o percebesse. Prosseguiu em tom indiferente:
— Como sabe, qualquer pessoa que entregue um ativador a Rhodan receberá uma recompensa de dez milhões de solares. Assim que tivermos recolhido o ativador, faremos com que esse dinheiro chegue às nossas mãos. Diga aos passageiros que a soma será corretamente partilhada entre eles e os tripulantes. A senhora Grey e mister Buchanan serão os únicos que não receberão nada.
— Isso parece razoável — admitiu Vouner.
— Fico satisfeito em saber que o senhor concorda com meus planos — disse Fredman.
Saiu sem despedir-se. Vouner deitou-se e pôs-se a refletir. Dez milhões de solares eram uma soma nada desprezível. A parte que lhe caberia seria suficiente para que concretizasse muitos desejos antigos. No seu íntimo arrependeu-se das suspeitas que tivera para com Fredman. O comandante não estava interessado no ativador, mas na recompensa. E não havia nada de errado nisso.
Dali a trinta minutos, as irradiações mentais do ativador atingiram pela primeira vez a nave Olira e provocaram o caos e o pânico...
Hendrik Vouner acordou com o coração acelerado. Não saberia dizer o que o despertara em meio ao sono. Quando se vestia, a voz de Fredman começou a sair do pequeno alto-falante instalado em cima da mesa.
— Atenção! Todos devem permanecer em seus camarotes! Atenção!...
Vouner assustou-se com o tom exaltado da voz de Fredman. Não sabia o que deveria fazer. A proibição de sair dos camarotes não parecia ter nenhuma lógica.
No corredor teve início o tumulto. As portas dos camarotes eram abertas ruidosamente e trocavam-se palavras acaloradas. Uma ânsia inexplicável levou Vouner a abrir a porta para ver o que estava acontecendo nos compartimentos dos outros passageiros.
Provavelmente, há algumas horas o quadro teria causado pavor a Hendrik Vouner. Os passageiros, alguns dos quais estavam precariamente vestidos, se haviam equipado com armas primitivas e caminhavam em direção à parte da nave ocupada por Fredman e os tripulantes. A senhora Grey caminhava à frente do grupo, com uma faca na mão direita.
Vouner voltou a olhar para o corredor. Um tripulante estava estendido no chão. Fora impiedosamente abatido pelos homens desvairados.
Por estranho que pudesse parecer, Vouner experimentou um sentimento de satisfação. Os comparsas de Fredman, que queriam apoderar-se do ativador, bem que mereciam o castigo...
O ativador celular!
A lembrança do mesmo fez com que Vouner se esquecesse de vez do seu caráter equilibrado. Sentiu-se dominado por uma ânsia selvagem e incontida de possuir o aparelho. Teria de apoderar-se do mesmo. Antes de mais nada, era necessário evitar que Fredman pusesse as mãos neles. Um sorriso de desprezo pelos passageiros que corriam à sua frente surgiu no rosto de Vouner. Por enquanto ainda precisava deles para destruir Fredman. Depois teria de eliminá-los para conseguir o ativador.
A faca brilhou na mão da senhora Grey quando esta gritou:
— Vamos atacar esse bando!
Essas palavras foram seguidas de gritos de entusiasmo. Hershnan, o indiano que costumava ser tão retraído, caminhava ao lado da senhora Grey. Seus olhos brilhavam que nem brasas. Gesticulava furiosamente com os braços. Vouner reconheceu Permant e Hargreaves, Buchanan e Van Hargreaves. Todos acompanhavam o grupo desvairado.
A senhora Van Wesen estava armada com o pé metálico de uma mesa, enquanto seu marido segurava uma pistola muito pequena.
— Sigam-me! — gritou a senhora Grey, com a voz estridente.
Nesse momento Permant virou a cabeça e olhou para Vouner. Arregalou os olhos.
— Olhem o traidor! — gritou.
Estava armado com um velho taco de golfe e avançou sobre Vouner. A multidão parou. Vouner abaixou-se e ficou à espera do ataque. Permant brandiu o taco de golfe de cima para baixo, mas só atingiu o ante-braço que Vouner levantara para aparar o golpe. A dor quase deixou o emigrante louco.
— Vamos à frente — disse a voz da senhora Grey. — Não se incomodem com eles.
Permant procurava vibrar outro golpe e o taco de golfe passara rente. Vouner quase fora atingido. Naquele momento já estava correndo em direção ao velho e lhe deu uma cabeçada no peito. Permant dobrou os joelhos, soltou um gemido e caiu. A idéia de que o grupo dirigido pela mulher pudesse passar à sua frente levou Vouner a agir depressa. Assim que Permant procurou erguer-se, atirou-se sobre ele e lhe deu um soco no estômago. O taco de golfe caiu ao chão. Por enquanto mister Permant fora excluído da luta pelo ativador. Vouner pegou o taco de golfe e levantou-se. A senhora Grey e seus fanáticos acompanhantes já haviam desaparecido atrás da curva do corredor. Vouner saiu correndo. Quem sabe se Fredman não mentira? Era possível que a Olira já tivesse pousado.
Vouner imaginou o ativador pendurado ao peito da senhora Grey. Soltou uma praga e correu mais depressa. Mas logo viu que não havia motivo para tanta pressa. Os passageiros estavam reunidos junto ao elevador antigravitacional pelo qual se podia descer à sala de comando. Vouner compreendeu imediatamente o que acontecera. Fredman previra que os passageiros se amotinariam e desligara o elevador.
Ninguém notou quando Vouner chegou perto do elevador. As pessoas ali reunidas gritavam pesados insultos para dentro do poço. Vouner segurava firmemente o taco de golfe, pronto para defender-se. Devia haver outro acesso para a sala de comando.
Vouner passou discretamente pelas pessoas enfurecidas. Quando já tinha percorrido certo trecho no corredor, alguém gritou atrás dele. Virou-se e viu Van Wesen acenar com a pequena pistola. Pouco depois a multidão entrou em movimento com um ruído ensurdecedor.
Vouner começou a correr. Receava que os outros pudessem alcançá-lo e abatê-lo.
— Espere por nós, Vouner! — gritou a senhora Grey.
Vouner soltou uma risada de deboche. Aquela gorduchona nunca conseguiria correr tão depressa como ele.
Não conhecia a parte da nave em que se encontrava. O ruído dos perseguidores tornava-se cada vez mais fraco. Sua dianteira estava aumentando. Vouner sorriu. O corredor descreveu uma curva ampla. Entrou nela sem hesitar.
Assim que chegou do outro lado da curva, viu quatro tripulantes que o encaravam com as armas apontadas. Vouner estacou. Sentiu-se dominado por uma amarga decepção. Os homens soltavam risadas de deboche. O emigrante olhou em torno, apavorado. Não havia a menor possibilidade de passar pelos quatro homens armados. Vouner lembrou-se de um pequeno corredor secundário junto ao qual acabara de passar. Virou-se abruptamente e saiu correndo na direção da qual viera. Um dos astronautas atirou, mas não o atingiu. Vouner começou a transpirar de medo e nervosismo. Chegou ao corredor secundário antes dos passageiros. O novo caminho de fuga estava às escuras. Orientou-se pela débil luminosidade vinda do corredor principal. Apalpou as paredes e descobriu um pequeno nicho. Soltou um suspiro de alívio e enfiou-se ali.
Dali a pouco a senhora Grey e seus seguidores passaram pelo corredor principal. Vouner ficou satisfeito ao lembrar-se de que a confrontação entre os passageiros e os homens armados que obedeciam a Fredman seria inevitável. Sem dúvida na luta seriam eliminados mais alguns concorrentes. A ânsia de apoderar-se do ativador obrigou Vouner a avançar de novo. Não tinha sossego. Ele e os outros tripulantes eram completamente dominados pelos impulsos do ativador celular escondido em algum lugar, no segundo planeta do sistema de Velander.
À medida que Vouner avançava pelo corredor estreito, a escuridão aumentava. Depois de algum tempo, a luz vinda de fora tornou-se insuficiente para iluminar os arredores. Apesar disso, Vouner prosseguiu, pois achava que teria de sair em algum lugar. Ouviu gritos vindos de longe, mas não se importou.
Deu mais um passo e pisou no vazio. Sentiu-se dominado pelo pânico, pois caiu para a frente e as mãos esforçaram-se em vão para encontrar um apoio. Foi tombar num lugar relativamente macio. Abriu os olhos e notou que o lugar em que se encontrava estava iluminado.
Hendrik Vouner estava deitado numa pilha de sacos, no compartimento de carga da Olira. Viu uma escotilha acima de sua cabeça. Estava fechada. Provavelmente pertencia a um dispositivo de carregamento e abria-se automaticamente.
O gigantesco recinto estava abarrotado de cargas de todos os tipos. Não se via nenhum tripulante. Vouner ergueu-se e foi engatinhando cautelosamente até a borda da pilha de sacos. Estava a uns sete metros. Os sacos estavam bem empilhados e poderiam proporcionar um sólido apoio. Com as pernas, Vouner procurou e encontrou um ponto saliente. Apoiou os pés no mesmo. Segurou-se com uma das mãos, enquanto a outra procurava a ponta de um saco mais embaixo. Dessa forma foi descendo lenta mas seguramente. A pilha balançou, mas não cedeu.
Apesar disso Vouner viu-se aliviado quando sentiu novamente chão firme sob os pés. Num gesto automático bateu nas vestes para limpar o pó. Olhou em torno, à procura de uma saída. As mercadorias empilhadas em toda parte impediam a visão. Não teve outra alternativa senão sair à procura de um lugar por onde pudesse sair.
Era possível que a nave já estivesse pousando. Vouner praguejou baixinho. Nunca fizera isso. Mas o Hendrik Vouner que estava sob a influência do ativador não poderia ser comparado sob qualquer aspecto com o homem que subira a bordo da Olira.
Vouner abriu caminho entre a carga. Fredman aproveitara praticamente todo o espaço disponível. Boa parte da carga destinava-se a mundos coloniais. Isso fez com que Vouner tivesse uma débil lembrança de seu destino anterior, o Sistema Azul.
“Bem, um imortal não terá necessidade de pedir trabalho aos acônidas”, pensou, sorrindo.
Depois de algum tempo encontrou a eclusa de carga. Por ali não poderia sair. Desesperado, o emigrante continuou a procurar. Devia haver uma possibilidade de chegar a outro setor da nave.
A escotilha de carregamento! Vouner parou. Bastaria empilhar duas ou três fileiras de sacos em forma de escada para atingi-la.
Voltou ao lugar em que iniciara a busca. A escotilha ficava uns quatro metros acima de sua cabeça. Pegou o primeiro saco e compreendeu que teria de fazer um trabalho extremamente pesado. Dificilmente concluiria a subida antes que a nave pousasse. Cada saco pesava cerca de cem quilos.
Sentou-se na pilha. Estava decepcionado, pois não havia mais nada que ele pudesse fazer: não participaria da caça ao ativador.
A tentativa de alcançar a imortalidade tivera, para ele, um fim abrupto no compartimento de carga da Olira.
Quando a nave se preparava para pousar, o motim começou. Fredman previra, mas não havia nada que pudesse fazer para evitar... Ele mesmo pilotava a Olira. Recorrera à determinação goniométrica realizada por Togray e aos cálculos do computador positrônico de bordo para levar a Olira ao ponto aproximado onde devia estar o ativador celular.
Quando Pliatsikas entrou na sala de comando, acompanhado de três homens, Fredman desviou os olhos da tela panorâmica. O comandante fez um gesto aborrecido.
— Dei ordem para que os senhores mantivessem os passageiros afastados — gritou.
— Só assim o senhor poderia tomar todos os preparativos para apoderar-se do ativador, não é mesmo? — gritou Pliatsikas, e apontou o cano curto do fuzil de radiações para Fredman.
O comandante ergueu-se lentamente.
— O que é isso?! — perguntou espantando.
Naquele momento a ânsia incontida de Pliatsikas era mais forte que a vontade de obedecer.
— O senhor acaba de ser deposto — disse em tom furioso.
Togray disparou um tiro contra o imediato. Até parecia que aquilo era um sinal secreto para que os homens caíssem uns em cima dos outros.
— A Olira! — gritou Fredman. — Temos de cuidar do pouso.
Quis voltar ao assento do piloto, mas um dos homens que acompanhavam Pliatsikas caiu sobre ele, vindo de trás, e derrubou-o. A tela panorâmica esfacelou-se sob o efeito do tiro de uma arma térmica. Fredman soltou um grito e alguém golpeou-o na cabeça. Rolou para baixo da mesa de navegação, enquanto seu inimigo se agarrava a ele como se fosse um felino. Um par de mãos começou a comprimir seu pescoço. Teve de fazer um esforço louco para respirar. Debatia-se furiosamente. A mesa desprendeu-se dos suportes e caiu. Os homens gritavam. Tinha-se a impressão de que ninguém sabia quem lutava contra quem. Fredman sentiu que a pressão no pescoço diminuía. Empurrou para longe o inimigo e levantou-se.
Naquele momento a senhora Grey entrou correndo, acompanhada de mais quatro passageiros. Atordoado, Fredman fitou o quadro caótico. Tirou a arma e apontou-a para a senhora Grey. Naquele momento foi atingido por um tiro.
Caiu sobre a mesa de navegação e perdeu os sentidos.
Seu último pensamento foi: “A Olira está caindo!”
A pressão foi tão súbita que Vouner foi atirado de volta para junto dos sacos. O estômago se rebelou contra a estranha sensação. Procurou erguer-se, mas uma carga pesada parecia cobrir seu corpo. Os ouvidos começaram a retumbar, enquanto os olhos lacrimejavam.
A Olira devia estar acelerando loucamente, ou então — Vouner ficou apavorado diante da idéia — estava caindo. A muito custo arrastou-se um pedaço por cima dos sacos. Será que Fredman saíra num barco espacial? Talvez fizesse com que a Olira se despedaçasse de encontro à superfície do planeta, a fim de apoderar-se do ativador. Vouner soluçou de tão decepcionado que se sentia.
O ativador iria ter às mãos de Fredman!
Ao sentir a compressão, Togray baixou a arma. Lançou um olhar para os controles e compreendeu que a queda da Olira era inevitável. Fredman estava deitado, completamente imóvel, sob os destroços da mesa de navegação. Restavam poucos tripulantes que lutavam uns contra os outros. Os passageiros, que não estavam acostumados a essa espécie de pressão, jaziam no chão, reduzidos à impotência.
Togray refletiu instantaneamente. Para sobreviver teria de sair o mais depressa possível da Olira. Encontrou um meio de passar pelas pessoas que lutavam e atingir o lugar em que estavam pendurados os trajes pressurizados. Num movimento apressado tirou deles. Um disparo passou perto dele com um chiado. Togray ligou o neutralizador do traje e, no mesmo instante, notou que a pressão cessava. Prendeu os suportes o mais depressa que pôde.
Estava pronto para sair. Segurou firmemente a arma. Dirigiu-se à entrada da sala de comando, mas alguém interpôs-se em seu caminho. Togray abateu o agressor com a coronha da arma e saiu correndo.
O corredor que se abriu à sua frente estava vazio e desolado. Togray conhecia perfeitamente o caminho que levava ao hangar. Seguiu o caminho normal, pois provavelmente os elevadores antigravitacionais não estavam funcionando. A Olira estava sendo arrastada inexoravelmente pela gravitação do planeta e não demoraria a penetrar nas camadas superiores da atmosfera.
Togray entrou no hangar e, ao notar que os três barcos de salvamento continuavam no mesmo lugar, sentiu-se aliviado. Ninguém mais conseguira chegar até lá. Sua pulsação acelerou-se diante da idéia de que seria ele que dali a pouco estaria de posse do ativador celular. Entrou no hangar e subiu num dos pequenos veículos espaciais. Ligou imediatamente os propulsores. Passou os olhos pelos controles. Assim que a pressão no interior do barco de salvamento chegou ao normal, soltou um suspiro e abriu o capacete. Sua mão trêmula acionou o contato da eclusa do hangar. Um pedaço do casco da Olira parecia desaparecer. Togray lançou os olhos para fora da cúpula transparente do barco espacial. A sucção provocada pelo vácuo já havia retirado todo o oxigênio do hangar. A pessoa que o seguisse sem envergar um traje espacial não teria a menor chance de sobreviver.
A mão de Togray segurou a chave, a fim de desprender o barco espacial dos suportes. Os propulsores emitiram um zumbido intenso e os controles mostraram que o veículo espacial se encontrava sobre os deslizadores, pronto para decolar.
Togray moveu a chave para baixo, mas o barco não deslizou, conforme esperara, para o espaço.
Os suportes não se haviam desprendido.
Revoltado, Togray pôs-se a praguejar. Os propulsores urraram e lançaram suas energias contra a parede dos fundos do hangar. Togray aumentou a força de empuxo, apesar do grande perigo que isso representava no interior do hangar. O barco estremeceu, mas não saiu do lugar.
Togray olhou pela eclusa aberta do hangar e viu faixas de nuvens brancas. Choramingou baixinho. Sacudiu fortemente as alavancas dos suportes. De repente, deixou de lado todas as cautelas e continuou a aumentar a força do empuxo.
A parte traseira do barco foi arrancada dos suportes. O veículo caiu para a frente. O hangar em cujo interior reinava o vácuo estremeceu. Togray perdeu por completo a noção das coisas. Tateou ao acaso à procura dos controles.
De repente o barco empinou e, desenvolvendo uma tremenda velocidade, precipitou-se em direção à eclusa. Mas o deslizador estava completamente empinado. O barco atingiu a borda da eclusa exatamente com sua parte central e foi cortado ao meio. Togray foi levantado do assento. Ondas invisíveis pareciam carregá-lo em direção à fenda. Os movimentos furiosos dos braços eram apenas uma ilusão provocada pela força de sucção.
Togray morreu no instante em que o barco espacial foi atirado contra a eclusa lateral.
A Olira caiu obliquamente ao longo da encosta de uma grande montanha coberta de enormes árvores. Só assim escapou à destruição total. O casco incandescente de aço de Árcon chamuscou as copas das árvores. A Olira deixou atrás de si uma trilha de fogo; um caminho chamejante assinalou a trajetória para a qual fora arrastada.
Quando a nave bateu no chão, sua velocidade já se havia reduzido o suficiente para impedir que se despedaçasse. O casco da Olira ficou deformado, mas sua estrutura continuou intacta. Porém nunca mais poderia sair numa viagem pelo espaço.
Enormes labaredas consumiam a floresta que cercava a nave. As árvores começaram a tombar. O local da queda apresentava um espetáculo de devastação total. Parecia que nunca mais a vida surgiria por ali.
Mas, dali a algumas horas, um homem sairia rastejando pelos destroços, para escapar ao desastre.
Este homem não seria outro senão Hendrik Vouner, o único sobrevivente da queda da Olira.
Naquele momento Vouner ainda estava mergulhado num estado de profunda inconsciência, com o corpo quase soterrado sob uma pilha de sacos.
As mãos esguias de Hefner-Seton alisaram cuidadosamente o mapa. O ara atirou sobre a cadeira a manta que trazia nas costas.
— Olhe — disse. — Este será nosso próximo destino.
Além de Hefner-Seton havia mais quatro aras na sala de comando da Kotark. Todos eles eram altos e finos, isto é, muito magros; seus corpos pareciam até quebradiços. Dois deles eram calvos, enquanto os outros tinham uma cabeleira rala, cuidadosamente repartida. Suas mantas coloridas contrastavam com o ambiente simples.
— O sistema de Velander — disse Hefner-Seton, com um sorriso. — Todos os especialistas o classificam entre os sistemas pouco interessantes. São apenas três planetas que gravitam em torno de um pequeno sol amarelo. O mundo interno percorre sua órbita tão próximo da estrela que quase chega a ser uma massa de lava, enquanto o mundo exterior não passa de um rochedo frio em que dificilmente se encontrará algo que valha qualquer coisa. Só o planeta central é um mundo de oxigênio. Acho que os senhores não se sentirão muito entusiasmados se eu lhes disser que é um mundo selvagem coberto de gigantescas matas virgens, enormes pântanos e grandes oceanos.
Hefner-Seton lançou um olhar sarcástico para os colegas e prosseguiu:
— Politicamente essa estrela, que traz o nome de seu descobridor, pertence ao Império, ao qual — o ara ergueu os cantos da boca — também estamos ligados. Até hoje não foi feita nenhuma tentativa de colonizar esse mundo, pois ainda existem muitos lugares bem mais favoráveis para a fixação dos terranos.
Trotin, que era o mais velho dos homens presentes, confirmou com um gesto.
— Muito obrigado pela explanação, amigo. Não pense que equipamos esta nave especial para correr atrás de fantasmas. Acreditamos que, no ambiente tropical do segundo planeta de Velander, conseguiremos descobrir certas bactérias que poderão ser úteis aos nossos trabalhos de pesquisa. Poderemos trabalhar neste mundo sem receio de que os terranos nos perturbem.
Hefner-Seton lançou um olhar rápido para os controles.
— Os senhores ainda têm algum assunto importante a tratar? Gostaria de chamar meus homens de volta à sala de comando.
Para os médicos altamente treinados que se encontravam ali, Hefner-Seton não passava de um simples trabalhador, cuja tarefa consistia unicamente em comandar uma equipe de pesquisa. A opinião que Hefner-Seton formara a respeito dos médicos não lhes era muito favorável, mas ao contrário destes não se esforçava para esconder ò que pensava. Era bem verdade que, tal qual todos os aras, Hefner-Seton possuía conhecimentos de Medicina, mas a ênfase principal de sua educação fora colocada na Astronáutica. Naquele momento estava a caminho com a nave de pesquisa, a fim de levar os quatro cientistas a Velander.
— Acho que é só isto — disse Trotin. — Não queremos interromper seu trabalho por mais tempo, comandante.
Os quatro cientistas retiraram-se e Hefner-Seton deu ordem para que os tripulantes que estavam de serviço voltassem à sala de comando. A tripulação da Kotark era composta por trinta homens; além disso havia os quatro passageiros cujo destino era o sistema de Velander.
Hefner-Seton colocou a mão no ombro do radioperador, no momento em que o mesmo entrou.
— Encerrei a conferência antes do tempo, pois notei que estamos recebendo sinais goniométricos. — Apontou para o aparelho de hiper-rádio. — Faça o favor de cuidar disso.
Seguindo um traço de sua mentalidade, Hefner-Seton não achou necessário informar os quatro cientistas sobre os acontecimentos que se desenrolavam na sala de comando. Se a Kotark estava recebendo uma mensagem pelo rádio, isso dizia respeito exclusivamente a ele. Hefner-Seton jamais toleraria que outras pessoas se imiscuíssem em seu trabalho.
— Deve ser uma mensagem de Aralon — disse Jassi-Petan, o representante de Hefner-Seton.
Hefner-Seton nunca achara que fosse necessário fazer qualquer comentário sobre as observações dos seus subordinados. Também desta vez manteve-se calado e esperou até que o radioperador concluísse seu trabalho.
— São simples sinais goniométricos, comandante — disse este depois de algum tempo. — Parece que não é nenhum código. Sem dúvida vêm do segundo planeta, para o qual estamos voando.
O rosto de Hefner-Seton exprimiu surpresa.
— Os impulsos vêm em intervalos regulares — disse o radioperador. — A seqüência é sempre a mesma: breve-breve-longo-breve-breve.
— É um ativador celular! — exclamou Jassi-Petan, em tom de surpresa. — São os impulsos típicos de um ativador celular.
Hefner-Seton fez um gesto e todos ficaram em silêncio.
— Deixem-me refletir um pouco — ordenou. — É claro que pode ser um ativador celular. Mas também é possível que seja um truque ou uma cilada.
— Pesquisas bacteriológicas! — disse Jassi-Petan, em tom zangado. — Já vejo por que nossos quatro amigos estão tão interessados nisso.
Hefner-Seton sacudiu a cabeça.
— O senhor está fazendo um juízo apressado. Acho que nem sabem da existência desse ativador. O alcance das transmissões de um aparelho desse tipo não é superior a três anos-luz. A Kotark acaba de penetrar no raio de alcance. Não há nada que indique que nossos passageiros desconfiem da existência desse ativador.
— Vamos perguntar-lhes, comandante — sugeriu o radioperador.
O comandante ara refletiu por um instante.
— Por quê? — perguntou.
Por algum tempo a pergunta ficou no ar, enquanto os homens ficaram mergulhados em reflexões.
— Sim, por quê? — repetiu Hefner-Seton. — Deixemos que nossos médicos procurem tranqüilamente as suas bactérias. Nós temos de cuidar do ativador celular.
— Haverá briga — disse Jassi-Petan no tom de quem prevê os acontecimentos.
Um sorriso matreiro surgiu no rosto de Hefner-Seton.
— Naturalmente — disse. — Mas acho que o objeto bem vale uma briga.
Naquele momento todos compreenderam que Hefner-Seton queria o ativador para si e tinha bastante inteligência para saber que não o conseguiria sem luta.
Qualquer pessoa que quisesse o ativador teria de lutar por ele!
Hendrik Vouner foi recuperando a consciência. A primeira sensação que experimentou foi a de um calor escaldante. Quis fazer um movimento instintivo, mas o peso que comprimia seu corpo impediu-o. Abriu os olhos, que estavam grudados de sujeira e fuligem. A poucos metros do lugar em que se encontrava, havia chamas. A fraqueza e as dores quase fizeram com que Vouner voltasse a perder os sentidos. Com um tremendo esforço conseguiu levantar a cabeça.
Não sobrava quase nada daquilo que antes fora o porão de carga da Olira. Um quadro de destruição estendia-se diante dos olhos de Vouner. As pilhas de sacos haviam escorregado e quase todos os volumes encontravam-se abertos. O conteúdo dos mesmos cobria o chão.
Vouner compreendeu que tivera uma sorte incrível. Estranhou que os sacos não o tivessem soterrado ao caírem de cima das pilhas. Estava deitado em posição oblíqua numa espécie de cova. Acima de sua cabeça as chamas quase chegavam a formar uma parede compacta. Só atrás de si descobriu uma área que ainda fora tomada pelo fogo.
O ar que respirava cheirava a tecidos queimados e plástico derretido.
Vouner lutou ferozmente para vencer a debilidade. Se continuasse onde estava, fatalmente haveria de morrer queimado.
Começou a tirar o braço direito de sob os sacos. Quando conseguiu, constatou que o antebraço estava ferido. Quase não sentia dor, mas Vouner sabia que a ferida precisava ser tratada sem demora.
O braço esquerdo estava coberto por uma carga muito mais pesada, mas com o auxílio da mão livre conseguiu libertá-lo. Depois disso ficou esgotado e permaneceu deitado por alguns minutos, ofegante.
Aos poucos, foi tomando consciência da situação em que se encontrava.
A Olira naufragara. Caíra sobre o segundo planeta do sistema de Velander.
Vouner não sabia se havia outros sobreviventes. Em caso afirmativo, era perfeitamente possível que os mesmos já tivessem iniciado a busca do ativador celular.
Vouner resmungou, contrariado, e usou as mãos para afastar os sacos que cobriam seu corpo. A lembrança do ativador deu-lhe forças novas, de que nem desconfiara. Trabalhou que nem um doido, sem poupar suas forças.
Depois de algum tempo conseguiu erguer o tronco. Depois disso o trabalho de salvamento foi mais fácil. Afastou rapidamente os últimos obstáculos e viu-se de pé no interior da cova.
Farrapos queimados foram tangidos em sua direção. Partículas incandescentes foram parar sobre os sacos onde continuaram a arder. Vouner fitou o fogo que lhe barrava o caminho para a liberdade. Fez um grande esforço para refletir calmamente. O pior erro, que poderia cometer, seria sair correndo ao acaso.
Os passos que quisesse dar teriam de ser bem pensados. Vouner passou a mão pelo rosto e saiu rastejando da cova. Uma vez chegando à parte superior da mesma, pôde ver toda a extensão das destruições sofridas pela nave cargueira. Soltou um gemido.
Estava quase completamente cercado pelo fogo. Levantou os olhos e viu o céu límpido através de uma fresta. Por ali saía a fumaça, mas essa saída estava impedida para Vouner.
Viu-se arrancado das suas reflexões pelo ruído de uma explosão. Tinha de seguir adiante. Tomou a única direção que o fogo lhe permitia. Precisava ter muita cautela, pois, em alguns lugares, os sacos estavam bem soltos uns em cima dos outros e ameaçavam cair. Vouner andou como quem caminha sobre gelo. O suor cobria seu rosto e ardia nos olhos.
Sentiu os joelhos trêmulos, mas nem ligou.
Quando chegou ao fim do caminho que havia tomado, sofreu outro choque. Não havia fogo, mas uma verdadeira montanha de carga, formada em virtude do impacto da Olira, fechava-lhe o caminho. A montanha era formada por peças sobressalentes de algum tipo de máquina. Eram peças de aço pontudas, que se haviam prendido umas entre as outras. Fechavam o caminho de Vouner como se fossem uma muralha. Vouner examinou a ferida do braço. Provavelmente fora atingido durante a queda por uma dessas peças.
Olhou para trás. O fogo avançava lenta mas inexoravelmente.
O emigrante segurou uma peça metálica saliente que se encontrava acima de sua cabeça e puxou-se para cima. Seus pés encontraram um apoio. Subiu quase três metros, rasgando o blusão e a calça em vários lugares. Sofrera algumas escoriações.
Esteve a ponto de soltar um suspiro de alívio, quando a pilha sobre a qual se encontrava começou a ceder. Soltou um grito, segurou-se desesperadamente e sentiu uma ponta de aço penetrar na barriga da perna. Contudo resistiu detendo sua queda.
Continuou a avançar com o maior cuidado, para fugir ao fogo. Examinava cada saliência em que pretendia segurar-se, antes de confiar em sua firmeza.
Finalmente, quando já acreditava que a montanha de metal nunca teria fim, chegou ao topo. Ali conseguiu segurar uma das vigas mestras da Olira, que se havia desprendido. Agarrou-se nas lingüetas existentes em intervalos regulares e foi avançando em direção à fenda aberta no casco da nave. Nuvens de fumaça passavam por ele, obrigavam-no a tossir e impediam sua visão. Mas, depois de algum tempo, o ar começou a tornar-se mais puro. As labaredas estavam, agora, dez metros abaixo dele.
Perto da fenda, a viga mestra apresentava uma dobra e avançava para o interior do porão de carga. Vouner equilibrou-se cuidadosamente sobre o estreito passadiço. Uma eternidade parecia ter-se passado quando finalmente conseguiu segurar a borda da fenda e puxou-se para fora do compartimento de carga.
A Olira se rompera abaixo do compartimento de carga e, por isso, do lugar em que se encontrava, Vouner pôde ver toda a área. Os destroços da nave cobriam uma superfície extensa em meio a uma selva fechada. Num raio de algumas centenas de metros, as árvores haviam sido consumidas pelo fogo. Durante a queda a nave arrancara raízes, tombara e rachara troncos. Do outro lado a floresta continuava a arder. A Olira tinha o aspecto de uma fruta despedaçada. Apenas a parte próxima ao compartimento de carga conservara a forma antiga.
A nave incandescente e consumida por dentro pelas chamas penetrara no solo e explodira. Não era possível que nesse caos houvesse vida. Vouner era o único sobrevivente, a não ser que os tripulantes tivessem conseguido soltar os barcos de salvamento.
Vouner sabia que não valia a pena procurar descobrir as causas do desastre. Devia ser uma conseqüência da sabotagem praticada por Buchanan, ou então Fredman cometera um erro.
Vouner lançou um olhar para a sala de comando totalmente destruída. Não viu o menor sinal de vida humana.
O emigrante saiu de vez. A selva fechada envolvia os destroços da nave. Para Vouner a mata impenetrável representava um novo obstáculo. Teve uma sensação deprimente. Como sobreviver nesse ambiente estranho? Não tinha nenhuma experiência sobre a vida neste planeta. Estaria indefeso diante de qualquer animal selvagem ou planta venenosa.
Vouner fez um grande esforço para controlar-se. Em algum lugar, o ativador celular estava à sua espera. Quando estivesse de posse deste, seria outro... Já sentia as irradiações mentais do aparelho, palpitando em seu peito... A vida eterna!
Vouner desceu à superfície do mundo desconhecido. O chão era macio e cedia sob seus pés. Sentiu-se abandonado em meio aos destroços.
Bastante deprimido, foi-se arrastando em torno da nave destruída a fim de procurar uma arma. Encontrou algumas carabinas de radiações. Mas nenhuma delas estava em condições de funcionamento. Abriu caminho à força para uma parte relativamente bem conservada do corredor principal. Os rombos no casco deixavam penetrar bastante luz. Fazia muito calor.
De repente deparou-se com Buchanan. O velho estava morto. Apesar disso assustou-se. Os olhos muito abertos do cadáver ainda pareciam refletir a ânsia incontida de possuir vida eterna.
O fogo não havia penetrado nesse lugar, e por isso o cadáver de Buchanan podia despertar a impressão de um corpo vivo. Vouner notou que o velho não morrera na queda. Em seu peito aparecia o orifício de penetração do projétil de uma arma... Vouner imaginou que, durante o pouso, tripulantes e passageiros haviam caído uns sobre os outros. Talvez fosse este o motivo da queda.
Buchanan estava jogado sobre sua carabina de radiações. Vouner deu um passo hesitante em direção ao cadáver e pegou a arma. Examinou o mecanismo e fez um disparo de experiência. O radiador estava intacto.
Vouner saiu apressadamente do corredor. Quando voltou a respirar o ar puro, sentiu-se feliz.
A busca de alimentos representava outro problema. Não havia a menor chance de encontrar em meio aos destroços alimentos concentrados pertencentes às provisões da Olira. Por certo, tudo — até mesmo a água potável — fora atingido pelas chamas.
A mata virgem oferecia a única possibilidade de encontrar algo que fosse comestível.
Vouner lançou um olhar para o céu. A camada de nuvens era tão densa que não conseguiu determinar a posição do sol. Sem dúvida, a noite desceria sobre o planeta, trazendo todos os perigos da selva.
Vouner segurou obstinadamente a arma. Será que teria de desistir agora, que estava tão próximo do êxito? Para encontrar o ativador celular, bastaria acompanhar as emanações mentais do mesmo!...
Sorgun, o radioperador da Kotark, fez girar tão rapidamente seu assento que Hefner-Seton estremeceu.
— Desapareceu! — exclamou, em tom exaltado.
O ara alto e esbelto levantou-se que nem uma sombra. Toda a sua tessitura nervosa parecia ter sido esticada ao máximo. Inclinou-se por cima de Sorgun e examinou o rádio.
— Os sinais goniométricos do ativador celular foram interrompidos — disse o radioperador, em voz baixa. Cessaram de repente.
— Daqui a pouco iniciaremos o pouso. Será que é por isso?
— Não — respondeu Sorgun. — Se fosse assim, teríamos notado alguma interferência. Na minha opinião os sinais simplesmente foram suspensos.
— Por que será? — perguntou Jassi-Petan.
Sorgun ergueu os ombros estreitos.
— Só existe uma explicação. Alguém apoderou-se do ativador celular. Alguém que chegou antes de nós.
Jassi-Petan foi o único que notou a pressão que os dedos de Hefner-Seton exerciam no encosto da poltrona de Sorgun. Quanto ao mais, o comandante da Kotark controlava perfeitamente seus gestos.
— Será que mais alguma nave de Aralon partiu com destino a este planeta? — perguntou.
Jassi-Petan sacudiu a cabeça.
— Examinei por acaso a lista de decolagens do porto espacial de Grolturno, comandante. No dia em que partimos, a Kotark foi a única nave que decolou. Nos dias anteriores só havia registros de naves cargueiras. Para o dia seguinte ao da nossa decolagem, estava sendo aguardada a nave terrana que levava o revezamento para uma base do Império, situada em Doun.
Hefner-Seton passou a mão pela testa.
— Se pudermos acreditar nas informações dos cientistas que exploraram este planeta, e não há motivo para não acreditarmos, no segundo planeta do sistema Velander não existe nenhuma raça nativa inteligente. Se é que algum ser vivo encontrou o ativador, dali só se pode concluir que há uma espaçonave neste mundo. — Hefner-Seton recostou-se ligeiramente. — Nunca lamentei tanto como agora a falta de equipamento bélico da Kotark.
— Talvez seja conveniente informarmos nossos passageiros — sugeriu Jassi-Petan.
— Não! — disse Hefner-Seton.
Kruz, que se encarregara da pilotagem da nave, gritou por cima do ombro:
— Estamos penetrando na atmosfera, comandante.
— Prossiga! — ordenou Hefner-Seton.
— Os aparelhos da rastreamento estão indicando alguma coisa?
Jassi-Petan passou os olhos bem treinados pelos controles.
— Há uma reação muito fraca, comandante. Se essa reação é causada por uma nave, esta deve ser muito pequena.
— É uma nave ou não é? — gritou Hefner-Seton.
— Sinto-me inclinado a dizer que não — respondeu Jassi-Petan, em tom cauteloso.
Sem dizer uma palavra, Hefner-Seton voltou para junto do rádio.
— Encontramo-nos aproximadamente acima do lugar de onde provinham os sinais goniométricos? — perguntou.
— Exatamente, comandante — confirmou Sorgun.
As linhas pouco acentuadas do rosto de Hefner-Seton pareciam aprofundar-se.
— Por que o sistema de transmissão de imagem não está funcionando bem? — perguntou. — Só se reconhecem algumas sombras escuras.
— Há uma espessa camada de nuvens, comandante — respondeu Sorgun. — Com certeza as sombras indicam a existência de grandes florestas.
A Kotark penetrou mais profundamente na atmosfera densa do planeta. Hefner-Seton deu ordem para que as duas torres de canhões da nave fossem guarnecidas e preparadas para abrir fogo. Depois disso mandou que seu imediato fosse ao camarote dos quatro médicos.
— Diga-lhes que esperamos encontrar problemas neste mundo — ordenou a Jassi-Petan. — Transmita-lhes nossas suspeitas, mas em hipótese alguma faça qualquer alusão ao ativador celular.
Jassi-Petan apressou-se em abandonar a sala de comando. Hefner-Seton encarregou-se pessoalmente da vigilância dos instrumentos que faziam o rastreamento da superfície. Enquanto fitava as telas com os olhos semicerrados, seu imediato batia à porta do camarote de Trotin.
Entrou sem aguardar um convite. Os quatro médicos estavam reunidos no camarote de Trotin. Jassi-Petan sorriu e fechou a porta.
— O que deseja? — perguntou Trotin, em tom pouco amável.
Jassi-Petan caminhou até o centro do camarote e apoiou as mãos na pequena mesa que havia ali.
— Tenho uma grande novidade para os senhores — anunciou.
Depois disso relatou com todas as minúcias os acontecimentos das últimas horas. Disse inclusive que Hefner-Seton lhe proibira falar no ativador celular.
Quando concluiu, os quatro médicos mantiveram-se em silêncio.
— O senhor está traindo seu comandante! — respondeu Trotin, depois de algum tempo.
O astronauta esboçou um sorriso indiferente.
— Foi o próprio Hefner-Seton quem disse que iríamos lutar pelo ativador. Pois bem, acabo de dar início à luta. Achei que seria mais conveniente que os senhores tivessem conhecimento disso. Quem sabe se sua experiência não nos ajudará a resolver o problema?
— É claro que o senhor não nos deu essa informação de graça, não é mesmo? — perguntou Trotin, sarcástico.
— Perry Rhodan paga dez milhões de solares por cada ativador — disse Jassi-Petan. — Isso representa uma bela soma para cada um de nós.
Trotin abanou a cabeça. Parecia espantado.
— O senhor não quer o ativador celular?
— Naturalmente — confessou Jassi-Petan sem a menor cerimônia. — Mas acho que tanto os senhores como eu somos pessoas inteligentes. Sempre é possível que um de nós não consiga afastar os outros... Então, é melhor fazermos um acordo. E acho que para isso a soma de dez milhões de solares é perfeitamente adequada.
Um dos colaboradores de Trotin adiantou-se.
— E se recusarmos sua proposta e informamos o comandante sobre a traição que acaba de cometer?
— Nesse caso serei fuzilado — respondeu o representante do comandante da Kotark, em tom seco.
Depois ergueu-se e acrescentou:
— Mas os senhores não terão nada a ganhar com isso, pois, em hipótese alguma, Hefner-Seton permitirá que participem disso.
— Retire-se. Vamos pensar sobre isso — disse Trotin, em tom áspero.
Jassi-Petan saiu sem dizer uma palavra. Espicaçara a ambição dos cientistas e enfiara uma cunha entre eles e o comandante.
Fora o primeiro lance de seu jogo contra Hefner-Seton. Outros se seguiriam.
Quando entrou na sala de comando, o comandante estava à frente das telas do sistema de rastreamento de superfície e conversava animadamente com Sorgun.
— O que houve? — perguntou Jassi-Petan.
Hefner-Seton apontou para a tela.
— Olhe — pediu ao seu representante.
A Kotark já rompera a camada de nuvens. O equipamento de localização estava funcionando perfeitamente. Jassi-Petan viu que a nave descrevia círculos sobre uma grande floresta.
De repente descobriu os destroços da nave caída.
— Pelos sete planetas! — exclamou. — Uma nave caída. Ainda está ardendo em alguns lugares.
Hefner-Seton acenou com a cabeça.
— É uma nave cargueira terrana — disse. — Já constatamos que não pertence às forças armadas do Império. Não se nota o menor sinal de torres de canhões.
— Caiu bem perto do ativador celular — acrescentou Sorgun.
— Há sobreviventes? — perguntou Jassi-Petan.
— Não se vê o menor sinal — respondeu Hefner-Seton. — Mas deve haver, pois um deles apoderou-se do ativador celular. Até chego a imaginar por que essa nave caiu! Provavelmente devem ter brigado pelo ativador, enquanto a nave pousava. Muitas vezes as naves cargueiras levam passageiros, e é claro que estes não resistiram à pressão mental do ativador, então...
Jassi-Petan levou alguns segundos para adaptar-se à nova situação.
— Vamos pousar? — perguntou. Hefner-Seton fitou-o de lado.
— Sem dúvida. Será que o senhor pensava que eu iria deixar que esse sujeito escapasse com o ativador?
A tensão cresceu de forma quase imperceptível no interior da sala de comando. Jassi-Petan sentiu a irritação com que os homens se entreolhavam. Dali em diante cada um deles acompanharia os passos dos outros com uma grande dose de desconfiança. Hefner-Seton deixava perceber claramente que queria o ativador para si. O comandante era muito esperto, e seria um erro subestimá-lo. Jassi-Petan resolveu assumir uma atitude discreta e aguardar sua chance. Mas, naquele momento, já compreendia que seria muito difícil agüentar essa posição. A tentação representada pelo ativador era muito forte.
Hefner-Seton fez a Kotark descer em direção aos destroços da nave terrana em círculos cada vez menores. Não havia o menor sinal de sobreviventes nas proximidades da nave caída. Provavelmente haviam fugido para a mata.
— Soltar as colunas de apoio — disse Hefner-Seton.
O sistema de propulsão antigravitacional foi ligado, e a nave pousou suavemente junto aos destroços da Olira. Os olhos eletrônicos da Kotark espiaram os arredores. Não se via o menor movimento.
— Parece que abandonaram o local do desastre — informou Sorgun. Hefner-Seton ligou o interfone.
— Ninguém sairá da nave sem minha ordem expressa — disse, em tom penetrante. — Ao menor sinal de desobediência, o responsável será fuzilado imediatamente. Espero a obediência irrestrita dos tripulantes.
Baixou o microfone. Os homens da sala de comando esquivaram-se ao seu olhar.
— Traga os passageiros para a sala de comando — ordenou, dirigindo-se a Jassi-Petan.
Esperou pacientemente que o oficial voltasse com os quatro cientistas.
Assim que entrou, Trotin dirigiu-se diretamente a Hefner-Seton.
— Antes de mais nada devo lembrar que o senhor tem a obrigação de consultar-nos sempre que haja algum problema — disse em tom contrariado. — Decisões importantes foram tomadas por aqui, enquanto nós fomos deixados nos camarotes.
— Pare com isso — interrompeu o comandante. — Apenas procuramos certificar-nos se a nave se encontra em perigo. Por enquanto ninguém saiu da Kotark. Manifestem sua opinião, se desejarem.
Trotin pigarreou.
— Sugiro que os quatro cientistas saiam, enquanto o senhor cuida da Kotark — disse.
Hefner-Seton soltou uma estrondosa gargalhada.
— Cuidar da Kotark? Por quê? A sugestão é recusada. Lá fora os senhores precisarão de apoio. Deixaremos três homens a bordo da Kotark. É mais que suficiente.
Trotin lançou um olhar de perplexidade para Jassi-Petan. O comandante não notou. Jassi-Petan olhou para outro lado.
— Darei uma olhada lá fora — anunciou Hefner-Seton.
Escolheu três homens para acompanhá-lo. Os outros olharam o grupo com uma expressão sombria.
Quando chegaram à eclusa, o comandante mandou que os homens que o acompanhavam parassem.
— Não pensem que iremos realizar uma ação isolada — disse em tom irônico. — Se os terranos estiverem andando por essas matas, será muito perigoso procurá-los com um pequeno grupo. Apenas examinaremos as áreas mais próximas à Kotark.
Abriu a eclusa e o grupo saiu.
Nos lugares em que não se fizera sentir a fúria das chamas, as folhas das árvores estavam úmidas. A vegetação rasteira era tão densa que Vouner teve dificuldade em penetrar na mata. Usou a coronha da carabina para afastar os arbustos. Vinda de enormes folhas afuniladas, a água da chuva pingava sobre ele. Um bando de minúsculas aves passou por ele. Talvez fossem apenas insetos. Os cipós enrolavam-se em suas pernas e as vestes ficavam presas à casca grudenta de algumas árvores.
Acima de sua cabeça animais com o aspecto de uma abóbora estavam sentados nos galhos. Receberam o intruso com assobios zangados. Vouner orientava-se exclusivamente pela intensidade com que recebia as emanações mentais do ativador celular.
Quando apenas havia percorrido alguns metros, já não viu mais os destroços da Olira. A mata virgem não permitia uma visão mais ampla.
Vouner abriu caminho sem hesitar. Nem se lembrou de que talvez fosse difícil encontrar o ativador em meio à selva. Tinha certeza de que, quanto a isso, não haveria nenhum problema.
Chegou a uma clareira e resolveu fazer uma pausa. Deitou no musgo, com a carabina engatilhada presa entre os braços.
Só neste momento de calma absoluta notou com que intensidade estavam trabalhando seus nervos tensos. Seu sistema nervoso estava totalmente alterado. As excitações das últimas horas o haviam afetado bastante. De uma hora para outra chegara ao fim a vida tranqüila que Vouner levara até então.
Um bando de animais-abóbora desceu das árvores e cercou-o numa atitude curiosa. Os assobios incessantes deixaram-no nervoso. Apontou a carabina para os animais.
Mas antes que disparasse descobriu um “pedestal”...
Levantou-se de um salto e correu em direção à pedra!
O ativador celular estava dentro de uma depressão. Era oval e estava preso a uma pequena corrente. Vouner sentiu-se tão abalado que parou, perplexo. Seu coração produzia sons abafados. A única coisa que conseguiu fazer foi ficar parado e contemplar o achado formidável. Parecia-lhe impossível que justamente ele conseguisse apoderar-se de um ativador.
Estendeu cautelosamente a mão trêmula em direção ao pedestal. Não tinha pressa. O que significavam alguns segundos para um imortal? Tocou o aparelho com as pontas dos dedos, que ficaram pousadas por muito tempo sobre a superfície lisa e fria.
Teve a impressão de que um fluxo bem perceptível penetrava em seu corpo. Num movimento lento, Vouner pegou a corrente e tirou o ativador da depressão. O objeto vivificante preso entre seus dedos descreveu movimentos pendulares. Vouner descansou a carabina na pedra e abriu a camisa.
Provavelmente, mais tarde, Hendrik Vouner nunca seria capaz de descrever a sensação que experimentou ao colocar a corrente do ativador em torno do pescoço. Sentiu as energias do aparelho fluírem em seu interior. Num movimento involuntário entesou o corpo. Sentiu uma força e um poder que nunca imaginara. De repente o cansaço abandonou-o.
Seu corpo parecia fundir-se com o pequeno objeto que trazia sobre o peito. As vibrações o inundavam suavemente. Vouner fechou a camisa e voltou a pegar a carabina.
Era um imortal!
Olhou em torno com uma expressão de triunfo. Só agora compreendia em toda extensão a força e o poder representados pelo ativador celular. A vida já vivida parecia ser um lampejo sem sentido, um pequeno suspiro num espaço infinito.
Trinta e dois anos! Era um nada em comparação com o que o esperava!
Só agora começara a viver de verdade. Vouner soltou uma gargalhada. Poderia fazer muita coisa e não tinha necessidade de apressar-se. Já não se sentia atormentado pela pressa do homem comum, sempre preso ao laço da existência. Sempre vivendo a pensar no ponto final...
Vouner aspirou profundamente o ar. Poderia gastar um século num ato sem sentido. Nem por isso estaria mais velho. A idéia fascinou-o, pois envolvia perspectivas imensas para um homem dotado de imaginação.
Não seria apenas imortal; também teria o poder.
Inúmeras pessoas se reuniriam em torno dele para alcançar um pouco do brilho que o cercava. A cada ano sua experiência cresceria.
Seria um dos vinte e cinco portadores do ativador, se quisermos deixar de lado Perry Rhodan e Atlan, o lorde-almirante. Portanto, seria um dos homens mais importantes entre bilhões.
Hendrik Vouner, 32 anos, moldador de aço, solteiro e sem fortuna, um emigrante com destino ao Sistema Azul. Até então podia ser descrito com essas palavras lacônicas. Vivera como um nada; nem tinha nome na História. Nem sequer chegara a ser uma partícula de pó em meio à comunhão humana. Vivera uma vida simples e procurara convencer-se a ficar satisfeito com isso.
Mas esse trecho de vida pertencia ao passado.
Dali em diante, Hendrik Vouner passaria para a História.
Para a História Cósmica!
Fredman, Buchanan, Permant, Hershnan e Togray. Todos eles quiseram apoderar-se do ativador celular. Estavam mortos. A idéia fugaz à qual davam o nome de vida tinha passado.
Por enquanto Vouner era um prisioneiro do planeta em que se encontrava. Mas a idéia já não o assustava. Pouco importava que tivesse de esperar mil anos ou mais até que chegasse uma nave terrana. O planeta era um mundo de oxigênio. Um dia seria colonizado.
Vouner sorriu. Dispunha de muito tempo, de um tempo incrivelmente longo.
Ergueu a carabina de radiações, fez pontaria e destruiu a pedra sobre a qual acabara de encontrar o ativador. Via nisso um ato simbólico.
Nunca mais o aparelho ficaria ali. Sairia desse mundo preso ao peito de Vouner.
Aos poucos, a embriagues foi diminuindo. Vouner começou a raciocinar logicamente. Antes de mais nada teria de encontrar um lugar seguro para abrigar-se. Não tinha dúvida de que conseguiria erguer uma construção primitiva com algumas peças da Olira. Instalaria seu quartel-general no lugar em que caíra a nave.
Teria de sepultar Buchanan. Depois disso dormiria provisoriamente na parte do corredor principal que estava praticamente intacta.
A idéia de que podia estender a execução de seus planos por um tempo muito longo tranqüilizou Vouner. Conferiu-lhe uma segurança que nunca julgara possível. Poderia refletir por dias seguidos sobre problemas que deixariam desesperados os outros homens, e dessa forma evitaria a menor possibilidade de erro.
Vouner levou algum tempo para compreender a imortalidade em toda sua extensão. Sua autoconfiança cresceu. E isso exprimiu-se em seu aspecto exterior. Caminhava ereto, orgulhoso, e havia um desafio em seu olhar.
O ativador celular que trazia sobre o peito valia dez milhões de solares. Vouner sabia que esta importância nunca seria sua. A imortalidade não tinha preço. Nenhum tribunal do Império lhe negaria o direito ao ativador. Era o legítimo possuidor do aparelho.
Passou por uma fileira de pequenos arbustos nos quais se viam frutos em forma de garrafa. O estômago deu sinal de sua presença. Vouner arrancou um dos frutos. Não sabia se o ativador também o protegeria contra o envenenamento.
Examinou o fruto e constatou que estava envolto numa casca dura. Colocou-o num lugar em que o solo era duro e bateu com a coronha da carabina.
A casca abriu-se e um líquido amarelo saiu da mesma. Vouner tirou um pouco da polpa com os dedos. Era amarga, mas perfeitamente comestível. Comeu até saciar-se. Ficou satisfeito ao notar que o estômago aceitava o alimento.
Arrancou mais quatro frutos para ter uma reserva e foi seguindo. Mais dia menos dia sairia para caçar. Sem dúvida por ali existiriam animais cuja carne lhe poderia servir de alimento.
Quando Vouner chegou aos destroços, seus problemas praticamente haviam chegado ao fim. A única coisa que teria de fazer era aguardar a chegada de uma nave terrana.
Abriu mais a entrada que dava para a parte ainda conservada da nave. Carregou o cadáver de Buchanan para fora. Depois disso procurou uma peça metálica que tivesse o formato de uma pá, a fim de abrir o túmulo.
Quando a encontrou e se pôs a trabalhar, uma nave desconhecida surgiu no céu!
O ruído dos propulsores deixou Vouner sobressaltado. Olhou para cima e atirou fora a pá primitiva. Passou a agir instintivamente. Num movimento rápido pegou a carabina e com alguns saltos desapareceu sob a proteção da selva.
A nave desceu rapidamente. Vouner viu que não era de origem terrana. Refletiu sobre como poderia ter encontrado o lugar. Lembrou-se dos sinais goniométricos transmitidos pelo ativador celular. Qualquer raça inteligente do Império os conhecia. O ativador transmitira os sinais até o momento em que Vouner o pendurara ao pescoço. Provavelmente os tripulantes da nave captaram os sinais, e agora fariam todos os esforços possíveis para apoderar-se do aparelho. Não havia necessidade de dizer que esses esforços não se restringiriam aos meios legais. Qualquer pessoa que quisesse o ativador celular teria de lutar pelo mesmo.
Muito tenso, Vouner acompanhou o pouso da nave. Era pouco maior que a Olira, com uma pequena reentrância na popa; seu formato era cilíndrico. Tinha a impressão de que as naves cilíndricas dos mercadores galácticos, que vira em fotografias, eram muito maiores.
Quem seriam os tripulantes dessa nave?
Vouner lançou um olhar triste para o cadáver de Buchanan. O túmulo que acabara de ser cavado falava por si. Qualquer pessoa que o visse saberia o que significava.
Vouner viu as colunas de apoio da nave recém-chegada serem escamoteadas e penetrarem no chão macio. O corpo metálico da espaçonave tremeu um pouco e parou. Todo o ser de Vouner ansiava para fugir ao acaso, isto é, para a selva. Mas disse a si mesmo que não poderia ser descoberto imediatamente. Só quando visse quem eram as pessoas da nave que acabara de pousar, ele fugiria.
Por muito tempo tudo permaneceu imóvel na nave desconhecida.
Quando Vouner já começava a espantar-se com a cautela exagerada dos desconhecidos, uma pequena eclusa abriu-se.
Quatro homens saíram da mesma. Vouner percebeu imediatamente que não eram terranos. Os desconhecidos usavam mantas coloridas. Eram altos e muito magros. Tinham rostos ossudos e olhos inteligentes. Vouner teve a impressão de já ter visto algo semelhante. Refletiu intensamente.
Os desconhecidos ficaram parados por algum tempo no interior da eclusa. Finalmente desceram cuidadosamente pelo passadiço, com a arma em punho. Vouner acompanhou ansiosamente seus movimentos. Os quatro homens pareciam caminhar levemente pelo chão mole.
De repente a memória de Vouner voltou.
“São aras, médicos galácticos!”, concluiu mentalmente.
Vouner lembrou-se de ter visto alguns deles por ocasião de uma visita dessa raça ao porto espacial de Terrânia. Os homens à sua frente caminhavam com a mesma arrogância. Hendrik Vouner já lera muito sobre essa raça, que descendia dos mercadores galácticos, mas cuja evolução seguira por uma linha diferente. Em tempos passados haviam causado grandes problemas ao Império Solar. Atualmente estavam ligados ao Império, mas qualquer pessoa que entendesse de Política sabia que, para os médicos galácticos, essa aliança resultará apenas da necessidade. Haviam-na aceito por conveniência, não por convicção. Continuavam a seguir seus próprios caminhos.
Vouner começou a desconfiar de que teria de lutar pelo ativador celular. Os aras haviam encontrado a pista do aparelho. Prosseguiriam obstinadamente nas buscas. Praguejou contra a leviandade com que agira ao cavar o túmulo de Buchanan num lugar tão exposto. Dali a alguns instantes, os aras saberiam que havia sobreviventes.
Bastante deprimido, Vouner perguntou a si mesmo qual seria a superioridade numérica dos estranhos. De qualquer maneira, a mata virgem oferecia um sem-número de esconderijos. Além disso tinha uma vantagem, pois conhecia a posição do inimigo, enquanto este tinha de procurá-lo.
Enquanto essas reflexões lhe passaram pela cabeça, Vouner concebeu um plano fantástico. Talvez houvesse uma possibilidade de usar essa nave para sair do segundo planeta do sistema de Velander. Bastaria atrair grande parte da tripulação para fora da nave. Dessa forma conseguiria dominar os homens que se encontravam em seu interior e obrigá-los a levar a nave ao lugar que ele desejasse.
Um dos aras soltou um grito estridente. Vouner estremeceu, mas logo percebeu que não era ele o motivo daquele nervosismo.
Os quatro aras haviam descoberto o cadáver de Buchanan. Dali em diante tinham certeza de que naquele mundo havia ao menos um sobrevivente.
E o ativador celular só podia encontrar-se em poder deste sobrevivente.
As coisas não seriam diferentes do que haviam sido a bordo da Olira. Cada um dos aras tentaria apoderar-se do ativador. Os conflitos seriam inevitáveis.
Era ali que estava a chance de Vouner.
Travaria uma luta dura contra esses compridões. Não estava disposto a desfazer-se daquilo que conseguira.
— Não faz muito tempo que este homem morreu. Ainda não se nota a rigidez cadavérica.
Para provar o que acabara de dizer, Hefner-Seton bateu com o cano de sua arma no corpo mole de Buchanan.
O cheiro do fogo que mal acabara de apagar-se cobria o lugar. A atmosfera parecia pesada.
— Alguém quis enterrar o morto — disse um dos homens que acompanhavam Hefner-Seton.
O comandante da Kotark guardou a arma.
— Provavelmente nós o perturbamos no trabalho — conjeturou. — Seja lá quem for a pessoa que andou cavando por aqui, essa pessoa está com o ativador.
Os olhos dos três aras chamejavam na ânsia de sair em disparada atrás desse homem, mas Hefner-Seton reprimiu um desejo idêntico.
— Provavelmente o sobrevivente está armado — disse. Olhou em torno. Não parecia sentir-se muito à vontade. — Nesta área descoberta nos oferecemos como um ótimo alvo. Vamos voltar para a Kotark e formar equipes de busca.
Hefner-Seton notou que seus acompanhantes o fitavam atentamente. Pareciam desconfiar de que desejava ficar só do lado de fora, a fim de apoderar-se do ativador.
O comandante ficou irritado. Naturalmente acabaria usando o ativador, mas o aparelho iria vir às suas mãos de forma diferente da que esses idiotas imaginavam. Hefner-Seton sabia que o único adversário que tinha de ser levado a sério era Jassi-Petan. Era claro que os quatro cientistas também criariam problemas, a não ser que se conseguisse evitar que estes tivessem conhecimento da existência do ativador.
Por que o comandante da Kotark iria assumir um risco desnecessário? Formaria quatro grupos que fariam caça ao portador do ativador e acabariam por abatê-lo. Esses homens se vigiariam mutuamente a tal ponto que nenhum deles conseguiria apoderar-se do ativador. E, de qualquer maneira, não poderiam deixar de voltar para a Kotark.
Hefner-Seton guardaria o valioso objeto, no interior da nave, longe de todos os perigos. Sem dúvida haveria sérias divergências. Hefner-Seton já tinha um plano bem definido. Ofereceria aos tripulantes uma sugestão que ninguém poderia deixar de aceitar, pois era a solução mais conveniente para todos.
Hefner-Seton depositaria o ativador num lugar que conviesse a sua tripulação, até que a Kotark voltasse a Aralon. Dessa forma teria tempo para fazer valer suas pretensões legais ao aparelho. Em Aralon, nenhum dos seus tripulantes poderia arriscar-se a usar violência contra ele. Era claro que mais dia menos dia descobririam o truque, mas como ninguém confiava em ninguém, fariam de conta que a sugestão apresentada pelo comandante era a ideal.
O plano de Hefner-Seton foi elaborado nos detalhes mais insignificantes. Mas deixou de dar o merecido valor a um único fator: o terrano, que trazia o ativador sobre o peito.
O ara cometeu o mesmo erro que já fora cometido por tantos outros homens que se sentiam escorados por uma grande superioridade numérica... E não levou o inimigo a sério.
Quando voltaram à sala de comando da Kotark, o comandante sentiu imediatamente o nervosismo que se apoderara da tripulação. Ninguém pudera dizer nada, pois Trotin e seus companheiros ainda se encontravam no recinto. No íntimo, Hefner-Seton felicitou-se pelo lance.
Jassi-Petan foi o único a demonstrar uma calma surpreendente. Hefner-Seton ainda teria de pensar sobre os planos de seu imediato. Jassi-Petan não possuía uma inteligência extraordinária, mas tornava-se perigoso em virtude da esperteza que trazia do berço.
— Então? — indagou Jassi-Petan, assim que Hefner-Seton se acomodou em sua poltrona.
Com esta pergunta lacônica chegou aos limites da liberdade que as normas disciplinares permitiam ao representante do comandante. Mas Hefner-Seton não deixou que isso o levasse a fazer uma afirmativa apressada.
— Acredito que só haja um sobrevivente — disse. — Provavelmente fugiu e não demorará a voltar.
— Deveríamos fazer alguma coisa para aliviar seu medo — sugeriu Trotin. — Não podemos deixá-lo desamparado. Poderá viajar a bordo da Kotark. Quando chegarmos a Aralon, poderemos entregá-lo ao comandante da base.
Hefner-Seton não teve alternativa. Viu-se obrigado a aceitar, pelo menos aparentemente, a sugestão do médico. Mas não tinha a menor intenção de ajudar o terrano. O possuidor do ativador não deveria sair vivo do planeta, pois o Império só reconhecia a posse legal do aparelho. Se os agentes de Rhodan descobrissem que Hefner-Seton recorrera à violência para apoderar-se do ativador, não haveria em toda a Galáxia nenhum lugar em que o ara pudesse sentir-se seguro.
— Isso mesmo — disse o comandante, dirigindo-se a Trotin. — Acontece que, conforme todos sabem, os terranos são desconfiados. Levaremos algum tempo para encontrá-lo. — Refletiu por um instante. — Designarei alguns tripulantes para acompanhar cada um dos senhores. Poderão apoiá-los no trabalho e procurar localizar o sobrevivente.
— De acordo — disse Trotin, prontamente.
Hefner-Seton distribuiu os homens entre os grupos. Jassi-Petan foi incluído num deles.
— Qual é o seu grupo, comandante? — perguntou Trotin, assim que Hefner-Seton concluiu o trabalho.
— Ficarei a bordo da Kotark — informou Hefner-Seton.
— O senhor?! — repetiu Jassi-Petan.
— Isso o surpreende? — perguntou o comandante, em tom irônico.
O rosto de Jassi-Petan transformou-se numa máscara. De repente seus movimentos pareciam forçados.
— Sem dúvida — disse em tom contrariado.
— Dirigirei a operação a partir da Kotark — anunciou Hefner-Seton. — Dessa forma poderei manter contato em todos os grupos e estarei em condições de intervir assim que eu julgue necessário.
Jassi-Petan acenou várias vezes com a cabeça.
— Compreendo — disse.
— Sorgun e Fertrik também ficarão a bordo — decidiu o comandante.
Hefner-Seton sentiu crescerem as resistências mentais dos homens. Teria de mostrar-se forte, a fim de que qualquer motim fosse abafado no nascedouro. Os homens deveriam ficar ocupados uns com os outros, para que não tivessem tempo de preocupar-se com os superiores.
Lá fora, na selva, teriam tempo de sobra para seguir suas inclinações. Hefner-Seton compreendia perfeitamente a ânsia de alcançar a imortalidade. Ele mesmo sentia-se atingido por ela.
Pouco lhe importava que os homens investissem uns contra os outros, depois de terem encontrado o ativador celular.
O portador do aparelho, fosse ele quem fosse, não teria alternativa senão voltar para bordo da Kotark.
Hefner-Seton estaria à sua espera.
As esperanças do comandante se cumpririam, mas de forma completamente diferente da que imaginava naquele instante.
Hefner-Seton contemplou os homens em silêncio, à medida que saíam da nave. Na tela viu os astronautas passarem por sobre os destroços da nave terrana e penetrarem na floresta.
Na mente de Hefner-Seton não havia lugar para qualquer tipo de compaixão pelo sobrevivente da nave cargueira terrana. Fosse esse quem fosse, a imortalidade só seria dele por pouco tempo.
Haveria de chegar a hora em que um pequeno objeto metálico estaria pendurado ao peito de um ara... Hefner-Seton pôs a mão no coração. Não havia dúvida de que o ativador celular seria seu. Quase chegava a senti-lo. Diante dessa idéia, um sorriso frio surgiu em seu rosto.
O sorriso frio continuou preso aos lábios do ara. Sorgun, que fitara seu comandante de lado, virou o rosto. Não se sentia muito à vontade.
Desde o início, Hendrik Vouner baseou sua fuga num sistema. Quando viu mais de trinta homens saírem da espaçonave, compreendeu que a caçada a ele e ao seu ativador celular acabara de ter início. Esperou até que se formassem quatros grupos, que penetraram na selva, tomando direções diferentes.
Não sabia se possuíam rastreadores individuais. Não era impossível que a bordo da nave cilíndrica houvessem alguns desses valiosos instrumentos, mas seu uso seria difícil. Uma pessoa isolada como Vouner não irradiava vibrações facilmente perceptíveis. Além disso, qualquer animal de grande porte provocaria uma reação no aparelho.
Vouner resolveu esperar até que os aras avançassem pela floresta. Faziam tamanho barulho que Vouner podia determinar sua posição sem ficar constantemente de olho neles.
Deveria partir do pressuposto de que cada um dos grupos faria tudo para capturá-lo antes dos outros. Se alguns dos aras suspeitasse de que cairia nas mãos de um outro grupo, ninguém mais os seguraria. Todos os homens que haviam saído para caçá-lo se concentrariam no ponto em que supunham ele estar.
Vouner devia tirar proveito da ânsia de possuir o ativador celular. No momento em que saiu do seu posto de observação já havia concebido um plano bem definido.
Vouner avançou rapidamente. Os ruídos provocados pelos aras se tornava menos intenso; eles se afastavam. A selva estendia-se num silêncio apavorante. Quem a visse lá do alto nem desconfiaria do que se passava em seu interior. Vouner avançou ininterruptamente em meio à vegetação. Os insetos picavam seus braços e seu rosto, mas Vouner quase não os sentia. De repente viu-se enlaçado por uma trepadeira gosmenta e teve que debater-se furiosamente para libertar-se. O ar quente e úmido pesava sobre ele. Não chovia, mas a camada de nuvens continuava a encobrir o céu.
Vouner descansou um pouco. Uma ave colorida chilreou no galho mais alto de uma árvore. A vegetação rasteira farfalhava com os movimentos de pequenos animais, e os seres em forma de abóbora soltavam assobios nervosos.
Durante a caminhada, Vouner descobriu um arbusto com frutos do mesmo tipo dos que já havia comido. Como tivesse perdido sua reserva de alimentos, resolveu reabastecer-se. Para evitar que os frutos se perdessem de novo, cortou-os em pedacinhos que enfiou nos bolsos.
Teve a impressão de que o solo estava ficando pantanoso. O chão era macio e elástico. A vegetação também modificou-se. A cor verde que até então predominava foi substituída por um marrom sombrio. As raízes das árvores erguiam-se para o céu como se fossem monstros de muitos braços. Vouner sentiu-se envolvido pelo cheiro de podre. O silêncio era cada vez maior. Os últimos seres-abóbora foram ficando para trás.
Vouner entrara em terra morta! Ouviu o ruído borbulhante do gás que subia à superfície. Árvores velhíssimas estavam jogadas umas sobre as outras, com os galhos mortos entrelaçados. Troncos apodrecidos cobertos por inúmeras plantas parasitas interpunham-se no caminho de Vouner. Teve de passar por cima deles, enfrentando constantemente o risco de escorregar e cair. Dali a pouco atingiu o pântano propriamente dito. Era um imenso lago negro que se estendia à sua frente. Os troncos nus das árvores que haviam sucumbido na luta pela vida erguiam-se que nem dedos gigantescos, numa muda advertência.
Bolhas enormes subiam à superfície e estouravam, produzindo estalos. Mais ou menos no centro do lago, uma samambaia solitária resistia ao poder do pântano. O cheiro da matéria orgânica em decomposição cobria a área como se fosse um véu.
Vouner sentou-se na bifurcação de dois galhos que tinham a grossura de um braço humano e recostou-se.
Teria de atrair os aras para este lugar. Naquele exato momento a superfície de pântano rompeu-se bem à frente de Vouner e dela saiu um gigantesco crânio, negro e gotejante. Vouner levantou-se de um salto e soltou um grito de pavor. O pântano parecia fervilhar e entrou em movimento. O tronco sobre qual o terrano se acomodara começou a balançar.
Vouner teve a impressão de ver dois olhos gigantescos naquela cabeça gigantesca. Um cheiro insuportável espalhou-se. Depois do crânio, um pescoço mais largo que os ombros de Vouner veio à superfície.
O animal, ou fosse lá o que fosse aquilo, foi saindo do pântano, enquanto erguia lentamente o tronco. Vouner segurou-se desesperadamente. O tronco começou a escorregar e finalmente parou sobre as costas do monstro. Louco de medo, Vouner apontou a carabina. Mas antes que pudesse abrir fogo, o monstro fez outro movimento, e levantando-se bruscamente.
O tronco perdeu o apoio, escorregou pelas costas do gigante e caiu no pântano. Vouner sentiu as pernas afundarem. Soltou um grito. A cauda do animal chicoteou o ar acima de sua cabeça e rachou o tronco em duas partes. A madeira podre arrebentou e as lascas choveram sobre Vouner. Um lago de lama putrefata parecia derramar-se sobre sua cabeça.
O corpo do animal passou por Vouner. Parecia uma parede escura. Mais uma vez a cauda, com uma leveza extraordinária, chicoteou o pântano. Finalmente o monstro foi se afastando. Os galhos quebravam sob o peso de seu corpo e o chão parecia tremer.
Vouner percebeu que a parte do tronco sobre a qual se encontrava foi afundando lentamente. Enfiou a carabina entre os galhos e puxou-se para cima com as mãos. Conseguiu libertar as pernas e acomodou-se melhor. A lama fez um ruído borbulhante ao cobrir a parte inferior do tronco.
O gigantesco animal ganhou a floresta, do lado oposto do pântano. Vouner ouviu que abria caminho, ofegante. Provavelmente era algum herbívoro inofensivo. Apesar disso representara um grande perigo para Vouner. O terrano encontrava-se sobre um tronco de árvore que afundava lentamente, a pelo menos cinco metros da margem. O monstro arremessara Vouner com uma força selvagem, sem notar sua presença.
Vouner não se atreveu a erguer o corpo, pois receava que o tronco pudesse rolar ou balançar. Riu da ironia do destino. Nenhum ativador celular seria capaz de evitar que morresse afogado...
O tronco continuou a afundar lentamente. Vouner viu a lama subir pela parte inferior, como se fosse um ser vivo. Estremeceu.
Será que teria de morrer nesse lugar desolado? Não seria destruído pelos aras, pois sua vida chegaria ao fim em virtude dum acaso infeliz.
E agora, que possuía a chave da vida eterna, a morte parecia muito mais apavorante!
Hefner-Seton podia imaginar perfeitamente como Jassi-Petan estaria parado em plena selva, enquanto falava para dentro do microfone com o rosto zangado.
— Ainda não descobrimos o menor sinal do sobrevivente, comandante — disse a voz de seu imediato, saída do pequeno alto-falante. — Até parece que nos enganamos.
— Se quiser, pode interromper as buscas com seu grupo — disse Hefner-Seton, com a maior tranqüilidade.
Por um momento reinou o silêncio. O ara ouviu a respiração nervosa de Jassi-Petan.
— Continuaremos a procurar — disse este, depois de algum tempo.
— O terrano ou os terranos não podem ter ido muito longe — ponderou Hefner-Seton. — Fique atento às pistas.
— Os outros grupos já conseguiram alguma coisa?
— Não — respondeu Hefner-Seton.
Jassi-Petan não disse mais nada. O comandante recostou-se em seu assento. Lançou um olhar para o relógio de bordo.
— O tempo está passando muito devagar — disse Sorgun. — Ainda não faz muito tempo que os homens saíram da nave.
— Se não conseguirmos o ativador celular antes que escureça, dificilmente o conseguiremos — disse Hefner-Seton, muito nervoso.
— Quando começará a anoitecer neste mundo? — perguntou Fertrik.
— Por enquanto nem pensamos nisso — respondeu Hefner-Seton. — Vamos fazer as medições. Assim, enquanto os outros estão procurando, não ficaremos parados.
O comandante, Sorgun e Fertrik começaram a trabalhar. Quando os dados começaram a ser introduzidos, o computador positrônico da Kotark emitiu um zumbido.
Depois de algum tempo, Jassi-Petan voltou a chamar pelo rádio.
— O que houve? — perguntou Sorgun.
— Quero falar com o comandante — disse Jassi-Petan, contrariado.
Sorgun virou a cabeça para Hefner-Seton, que estava inclinado sobre os resultados da interpretação com computador.
— Parece que só quer falar com o senhor, comandante.
Hefner-Seton caminhou lentamente até o rádio. Colocou o microfone junto à boca.
— Pode falar — disse.
— Parece que encontramos uma pista — disse Jassi-Petan. — Os aparelhos registraram uma emanação energética muito débil. Provavelmente seus efeitos chegaram até a Kotark...
— É possível — disse Hefner-Seton. — E daí?
— Alguém deve ter disparado uma arma energética — disse Jassi-Petan.
— Será que poderia determinar o lugar aproximado em que foi feito o disparo?
— Isso já foi feito.
Os chefes dos outros grupos chamaram a pequenos intervalos e comunicaram a mesma observação a Hefner-Seton. O comandante não lhes proibiu que seguissem todos na mesma direção.
Acabariam por defrontar-se em algum lugar. Quando isso acontecesse, um dos homens se apoderaria do ativador. No seu íntimo, Hefner-Seton alegrou-se com a idéia. Imaginou como estariam correndo pela selva, para chegar antes dos outros. Quase se penalizava da pessoa que estivesse com o ativador. Seria morta. Com isso a única testemunha teria sido eliminada. O fato de Hefner-Seton se ter apoderado por um ato criminoso nunca chegaria à luz do dia.
Hefner-Seton ligou o rádio. Não havia necessidade de que o informassem sobre os acontecimentos que se seguiriam. Sua fantasia traçou o quadro perfeito do que viria depois.
Voltou a dedicar-se ao trabalho já iniciado. O nervosismo crescente de Sorgun e Fertrik dava na vista. Hefner-Seton acenou com a cabeça. Teria de ficar de olho neles.
— Vamos à última interpretação — anunciou e enfiou uma fita de programação na fenda da calculadora.
Depois disso contemplou em silêncio o jogo das luzes do controle.
Dali a pouco tinha em mãos os resultados da interpretação.
— Então, quando vai escurecer? — perguntou Sorgun, em tom de curiosidade.
Hefner-Seton enfiou o resultado no bolso da manta e respondeu sorrindo:
— Daqui a pouco — disse. — Daqui a pouco.
Quando a lama atingiu seus joelhos, Vouner entrou em atividade. Era indiferente que mergulhasse passivamente no pântano ou só desistisse depois de defender-se violentamente.
O tronco já estava bem preso à lama, e por isso praticamente não havia perigo de que virasse. Acima dele, a cerca de um metro de sua cabeça, um cipó pendia de uma árvore que avançava obliquamente sobre o pântano. Tinha a grossura de um dedo.
Vouner não sabia se era firme. Talvez nem estivesse bem presa e por isso qualquer pressão a soltaria.
Vouner levantou a carabina e balançou-a de um lado para outro, até que a ponta da trepadeira se entrelaçasse no cano da arma. Embaixo dele, o tronco afundou mais um pedaço na lama borbulhante. As bolhas de ar e de gases subiram à superfície, formando um tapete reluzente.
Vouner puxou o cipó para perto. A haste encharcada dobrou-se levemente na direção oposta. Quando a ponta se encontrava mais ou menos na altura do rosto de Vouner, o cipó não cedeu mais. Vouner deu um puxão mais forte. A planta agüentou.
Colocou a carabina a tiracolo e por pouco não tropeçou. A sola de seu sapato havia lambuzado a parte do tronco ainda seca, tornando-a escorregadia.
Com a arma sobre o ombro, Vouner segurou o cipó com ambas as mãos. Parecia úmido, mas firme. Subiu mais um tanto e levantou as pernas. No mesmo instante a trepadeira afastou-se do tronco e levou-o pelo pântano a dentro. Enquanto procurava executar um movimento pendular, o coração de Vouner batia fortemente.
Houve um solavanco, e Vouner soltou um grito. Imaginou que iria tombar na lama, mas o cipó agüentou seu peso. Balançou na direção da qual havia vindo, pairou por um instante em cima do tronco sobre o qual ficara de pé e executou mais um movimento pendular em direção à margem.
Quando se encontrava a dois metros desta, teve início o movimento em sentido contrário. Vouner voltou a ser levado pelo pântano a fora. A força de seus braços estava diminuindo. Não agüentaria mais por muito tempo.
Quando atingiu o ponto do movimento pendular, Vouner arriscou-se a esticar as pernas, pois acabara de alcançar o ponto mais elevado de sua trajetória. Quando voltou a deslocar-se em direção à margem, deu ao cipó todo o impulso de que era capaz. Quando atingiu o ponto central de sua trajetória teve de encolher as pernas, pois, do contrário, ficariam presas no pântano.
Desta vez a trepadeira levou-o até a margem. Vouner soltou-se imediatamente e o impulso atirou-o mais um tanto para a frente. Finalmente seu corpo atingiu o chão. Num movimento instintivo cobriu o rosto com as mãos. Executou um rolamento e por pouco não quebra o pescoço.
Levantou os olhos e viu que o pântano não ficava a mais de um metro de seus pés. O cipó voltara ao lugar em que estivera antes.
O tronco sobre o qual permanecera em pé desaparecera de vez. Vouner soltou um suspiro de alívio. A seu lado, o rastro do monstro penetrava na floresta.
Naquele momento teve tempo para voltar a pensar nos aras. Teria de executar seu plano primitivo. Vouner não perdeu tempo. Pegou sua carabina de radiações e fez um disparo para o pântano.
Dessa forma atrairia os inimigos. Quando estes estivessem procurando por ali, já deveria estar na nave. Pôs a mão no bolso e tirou um pedaço de polpa de fruta. Estava suja e molhada; mesmo assim a comeu.
Sem dúvida os aras acabariam dando com o rastro do gigantesco animal. Talvez acreditassem que a vítima morrera afogada no pântano ou fora apresada e carregada pelo monstro.
Vouner sentiu a coragem renascer em sua alma. Afastou-se do pântano e penetrou na floresta.
Dali a trinta minutos encontrou-se com o grupo de Jassi-Petan!...
Jassi-Petan parou. Estava banhado em suor.
“É sempre essa maldita selva!”, pensou. “Ainda bem que os aparelhos estão corretos, pois, do contrário, seria capaz de jurar que eu e os seis homens que me acompanham estamos andando em círculo...”
Animais estranhos assobiavam em cima das árvores. Jassi-Petan fez sinal para que o homem que carregava o aparelho de localização se aproximasse.
— Ainda falta muito? — perguntou.
O homem respondeu que não. Jassi-Petan enxugou o suor do rosto com a manta. Já começava a compreender por que o comandante não participava das buscas. Hefner-Seton queria poupar suas forças...
Qualquer pessoa que encontrasse o ativador teria de voltar para a Kotark. A única coisa que Hefner-Seton teria de fazer era pegar o ativador!
Jassi-Petan pôs-se a praguejar. A segurança com que Hefner-Seton dirigia a operação fazia seu ódio crescer ainda mais. Ao que parecia, para o comandante era apenas natural que, mesmo na busca do ativador celular, suas ordens fossem cumpridas sem discussão. Naturalmente Hefner-Seton sabia que não poderia confiar muito nos tripulantes, mas fazia de conta que não estava percebendo nada. Aquele homem era de uma esperteza diabólica.
Mas nem por isso, ele, Jassi-Petan, deixaria de querer o ativador.
— Vamos à frente! — ordenou. Os rostos magros e cobertos de suor viraram-se em sua direção. Sem dúvida os homens o odiavam, desconfiavam dele, acompanhavam seus movimentos e esperavam a chance de apoderar-se do ativador. A idéia da imortalidade transformara-os em inimigos. Ninguém estava disposto a renunciar à mesma.
“Isso é perfeitamente compreensível”, pensou Jassi-Petan. “Afinal, para um mortal não existe alvo mais tentador que a vida eterna.”
Ofegante, afastou um arbusto. As folhas bateram em seu rosto. Ansiava por uma chuva refrescante, mesmo que, com esta, a caminhada se tornasse ainda mais difícil.
De repente, a apenas dez metros de Jassi-Petan, um homem saiu de trás de uma árvore.
Era um terrano. Tinha uma corrente pendurada ao pescoço e sua mão segurava uma velha carabina de radiações.
Jassi-Petan ficou tão surpreso que não conseguiu agir com a necessária rapidez.
O terrano atirou antes dele.
Jassi-Petan cambaleou e foi de encontro ao homem que vinha atrás dele. Tudo ficou preto diante de seus olhos. Seus dedos crisparam-se desesperadamente em torno da manta do companheiro, mas este o afastou com um movimento brutal.
Jassi-Petan ainda sentiu outro tiro passar próximo a ele. Depois disso tudo ficou escuro. A caça ao ativador celular acabara de fazer mais uma vítima.
O primeiro tiro disparado por Vouner resultou antes de reação instintiva que de ação refletida. Quando viu as mãos do ara se moverem em direção à arma, o simples instinto de autoconservação o fez atirar. Viu o inimigo tombar para trás. O homem que vinha depois dele desvencilhou-se e também pôs a mão na arma.
Vouner deu um salto para o lado e voltou a atirar. Depois disso abrigou-se imediatamente atrás de uma árvore. Fora leviano. Durante todo o tempo sua mente estivera ocupada com o ativador celular. Não ouvira os ruídos produzidos pelos aras que se aproximavam. Quando o homem surgiu repentinamente à sua frente, já não havia tempo para fugir.
Ofegante, Vouner comprimiu o corpo contra a árvore. Na melhor das hipóteses tinha mais quatro inimigos pela frente. Diante de tamanha superioridade qualquer tipo de defesa parecia inútil.
Vouner pôs-se a escutar. Ouviu os inimigos avançarem pela vegetação. Não poderia continuar no mesmo lugar. Muito tenso, olhou para trás, à procura de um abrigo. O tronco mais próximo ficava pelo menos a dez metros.
O primeiro tiro de radiações iluminou o ambiente. Abriu um sulco escuro na casca da árvore e incendiou os arbustos que ficavam atrás de Vouner.
— Saia daí, terrano! — gritou uma voz.
Eles o matariam. Eles o matariam, mesmo que se entregasse. Enquanto Kendrik Vouner estivesse vivo, não poderiam tirar-lhe o ativador.
— Vão para o inferno! — gritou Vouner fora de si.
A resposta consistiu num verdadeiro bombardeio. Folhas e pedaços de casca de árvore turbilhonaram pelo ar e os ouvidos de Vouner ressoavam com o chiado produzido pelas armas térmicas. Atrás dele, o chão abriu-se em sulcos. As descargas energéticas produziam um ruído crepitante e o fogo avançava cada vez mais.
Os aras acabariam por dividir-se para atacá-lo pelos flancos. Não poderia permitir que as coisas chegassem a este ponto. O medo de perder o ativador deixou Vouner furioso. Viu-se envolvido pela fumaça dos arbustos incendiados. Os animais-abóbora executaram uma música infernal. Nuvens de insetos fugiam do fogo. A fumaça encheu de lágrimas os olhos de Vouner. Tossiu e comprimiu a mão contra a boca.
Naquele momento viu a manta colorida de um ara. O médico aproximara-se do lado. Vouner precipitou-se pela fumaça. Sentia-se irado e não recuaria diante de nada. Para o inimigo não passava de uma sombra cinzenta, movendo-se em meio à fumaça.
O ara atirou!
O chão pareceu explodir bem à frente de Vouner. O terrano foi atirado para o lado pela pressão. Durante a queda Vouner, respondeu ao fogo. Saiu engatinhando. Um tiro disparado ao acaso passou acima de sua cabeça. Em algum lugar, um homem praguejava em intercosmo.
Vouner compreendeu que o haviam perdido de vista. Ainda não estava em segurança. Provavelmente já haviam descoberto seu plano de contorná-los e chegar à nave.
Para ter uma chance, deveria atingir a espaçonave enquanto estivessem à sua procura. Sentiu as forças vindas do ativador celular fluírem por seu corpo.
Um besouro negro de cinco centímetros de diâmetro zumbiu e pousou em seu ombro. Vouner afastou o inseto com a mão e saiu correndo. A vegetação densa não permitiu que avançasse muito depressa. Mas disse a si mesmo que os aras teriam de enfrentar idêntico problema.
Vouner passou por uma planta de folhas gigantescas, que se abriam quase como um telhado. Verdadeiros enxames de insetos andavam sobre as mesmas. O terrano passou embaixo de uma dessas folhas. Sentiu-se agarrado e atirado ao solo. A folha inclinara-se para baixo e enrolara-se em seu corpo. Um líquido gosmento cobriu seu rosto.
Vouner debateu-se desesperadamente para escapar à folha. Caíra na armadilha de uma planta carnívora. Estremeceu ao ver inúmeros ossos no centro da planta. Quanto mais se debatia, mais firmemente era enlaçado pela folha. Vouner foi levantado como se estivesse numa gangorra. A folha que lhe enrolava o corpo aproximava-se inexoravelmente da boca do monstro.
Uma fileira de espinhos cercava a abertura onde Vouner entraria...
A folha continuava a cobri-lo com o líquido repugnante. Vouner lutava e se debatia, mas não conseguiu libertar-se. Alguns pingos do caldo venenoso entraram em seus olhos, que começaram a arder violentamente. Vouner soltou um grito de dor.
Com um esforço quase sobre-humano Vouner libertou a carabina de radiações. Segurou o gatilho com ambas as mãos e abriu fogo contra a boca da criatura que o martirizava. Um raio de energia chamejante penetrou na planta. Esta começou a executar movimentos convulsivos. Vouner teve a horrível impressão de sentir milhares de ventosas grudadas à sua pele. A carabina escapou-lhe das mãos. O caule em que estava presa a folha esticou-se, arrastando Vouner para cima.
De repente o caule quebrou-se, e Vouner caiu. O veneno quase o cegara. Estendeu os braços. Dores lancinantes fustigavam seu corpo. De repente a grande folha que ainda o prendia soltou-se. Vouner despencou. Atordoado, saiu do alcance do monstro moribundo.
Ficou deitado por algum tempo, incapaz de fazer qualquer movimento. Aos poucos sentiu as forças voltarem ao seu corpo. Fez um esforço e levantou-se. Suas vestes estavam esfarrapadas.
O perigo pelo qual acabara de passar reforçou sua decisão de conquistar a nave dos aras. Até mesmo para um imortal, este mundo não oferecia muita coisa boa. Mais dia menos dia acabaria por sucumbir a algum perigo. Nas últimas horas encarara a morte de frente por duas vezes. Só fora salvo graças à sorte e à resolução.
A idéia de que iria anoitecer deixou Vouner apavorado. Se resolvesse passar a noite na mata virgem, estaria assinando sua sentença de morte. E o caminho que levava aos destroços da Olira, onde poderia abrigar-se no corredor intato, representava um risco de vida por causa da presença dos aras.
Só havia uma chance de sobrevivência. Tinha de encontrar um meio de entrar na nave dos médicos galácticos.
Trotin lançou os olhos pelo pântano e disse:
— Deve ter estado aqui há pouco tempo.
Apalpou com os pés o rastro do monstro, que se destacava nitidamente no chão macio e acrescentou:
— Aliás, o grupo de Jassi-Petan deveria ter chegado antes de nós.
Gornas, um dos astronautas, disse em tom constrangido:
— Sugiro que voltemos antes que a coisa que produziu este rastro retorne.
— Está com medo? — perguntou Trotin, em tom sarcástico.
— Provavelmente o terrano foi morto por este animal — disse Gornas em sua defesa.
Trotin fez um gesto de pouco-caso.
— Vamos avisar o comandante. Malsag, chame a Kotark.
Ficaram parados, enquanto Malsag lidava com o rádio.
— O rádio da Kotark está desligado — anunciou Malsag, depois de algum tempo com os olhos chamejando. — Não compreendo.
“Você compreende perfeitamente”, pensou Trotin. “Acontece que nenhum de vocês quer mencionar o ativador, pois todos acreditam que não sei nada a este respeito.”
— Está desligado?! — espantou-se Gornas. — Temos de voltar imediatamente. Deve ter acontecido alguma coisa.
Trotin levantou os braços.
— Um momento! Basta de drama, se pensam que ainda estou acreditando que apenas vamos ajudar um náufrago, enganam-se. Todos estão atrás do ativador. E agora vocês têm medo de que Hefner-Seton já se tenha apoderado do aparelho e pretenda deixar-nos aqui. Além disso vocês desconfiam de que Jassi-Petan já tenha estado aqui e levado o ativador.
— Por que fica parado por aqui, se está tão bem informado? — perguntou Gornas, em tom de deboche.
Trotin leu o ódio e a perplexidade no rosto dos companheiros.
— Sou um velho e estou muito cansado para lutar — disse. — É claro que assim mesmo gostaria de possuir o ativador, apenas por interesse científico.
Gargalhadas nojentas surgiram à sua frente. Trotin esperou calmamente os ânimos serenarem.
— Meus conhecimentos médicos dão-nos uma boa chance de conseguirmos o ativador — disse. — Sou capaz de fazer desmaiar toda a tripulação da Kotark. Depois disso poderíamos providenciar calmamente tudo que se tornasse necessário.
— Para isso o senhor teria de estar a bordo da nave — objetou Malsag.
— É verdade. Se vocês acreditam que Hefner-Seton já tem o ativador, estão muito enganados. O comandante quer deixar-nos nervosos e apressar aqueles, ou aquele, que tenham encontrado o ativador, para que não se esqueçam de voltar à Kotark. O não-funcionamento do rádio da nave é apenas um truque. Se voltarmos logo, ainda encontraremos a Kotark no mesmo lugar.
— O senhor tem idéia de quem poderá estar com o ativador?
Trotin fitou os astronautas um após o outro.
— Só existe uma possibilidade — disse. — É Jassi-Petan! O imediato de Hefner-Seton encontrava-se mais próximo ao pântano que os outros grupos. Quando foi disparado o tiro, reagiu imediatamente. Por que não está aqui?
Os homens confabularam ligeiramente e resolveram que Trotin os levaria de volta à Kotark. Concordavam plenamente com ele: só de lá poderiam acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.
Depois de algum tempo encontraram o cadáver de Jassi-Petan e de outro ara. Trotin fez parar o grupo.
— Parece que já andaram brigando pelo ativador... — conjeturou, Gornas, ironicamente.
Sem dizer uma palavra, Trotin inclinou-se sobre o morto. Seu rosto contraiu-se numa feroz expressão de surpresa. O tiro que abatera o ara fora disparado por uma arma desconhecida.
— Ainda está vivo? — perguntou Malsag.
O cientista abanou a cabeça.
— Alguém o assassinou! — disse a voz estridente de Jossat-Prug.
Trotin ergueu-se e saiu caminhando. Não tinha nenhum motivo para dizer que estava inclinado a acreditar que Jassi-Petan não tivesse sido assassinado, mas morto em legítima defesa.
Hefner-Seton parecia hipnotizado pela figura esfarrapada reproduzida com toda nitidez na tela. Não havia a menor dúvida de que o homem que estava saindo da mata era um terrano. Aproximou-se da Kotark, caminhando de ombros caídos. Sua mão direita segurava uma carabina de radiações de fabricação terrana. Os movimentos daquele homem pareciam cansados, mas não deixavam de revelar certa resolução.
Aquele homem marcado pelas lutas ásperas vinha só, mas Hefner-Seton sentiu um pouco de medo. Esse sentimento misturou-se com a admiração. Sim, admiração por aquele homem solitário, que certamente conhecia o perigo que teria de enfrentar...
Sorgun inclinou-se sobre o ombro do comandante.
— Está chegando! — disse.
— Onde estão nossos homens? — perguntou Fertrik, que se encontrava em ponto mais afastado.
Ouviram-no examinar a carga de sua arma térmica. Hefner-Seton virou lentamente a cabeça.
— O que pretende fazer? — perguntou, dirigindo-se a Fertrik num tom áspero e impiedoso. — Será que pretende matá-lo como se mata um animal selvagem?
Fertrik ajeitou o cinto e com um movimento resoluto enfiou a arma no mesmo.
— Esse homem é perigoso — ponderou. — Conseguiu enganar nossas equipes de busca.
— Vamos deixar que entre na Kotark — decidiu Hefner-Seton.
Fertrik retirou-se sem dizer uma palavra. A tensão parecia comprimir os aras que continuaram na sala de comando. Sorgun evitava fitar o comandante.
— Ligue os alto-falantes e o sistema de escuta externos — ordenou Hefner-Seton.
O radioperador cumpriu a ordem sem nada comentar. Hefner-Seton pegou o microfone. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Fertrik entrou na área alcançada pelas objetivas.
— Desobedeceu às minhas ordens; saiu da Kotark! — exclamou Hefner-Seton. — Que idiota!
O terrano estava parado, numa atitude de expectativa. Mantinha a carabina na altura dos quadris, pronta para disparar.
— Atire-me o ativador celular! — disse a voz de Fertrik.
Hefner-Seton, soltou uma risada de desprezo. A ânsia de alcançar a vida eterna fazia com que até mesmo um homem inteligente deixasse de agir razoavelmente.
O terrano não fez menção de obedecer à ordem que acabara de ser dada. Girou o cano da arma de radiações e apontou-a para o peito de Fertrik.
Os dois aras que se encontravam no interior da Kotark ouviram uma voz muito baixa.
— Saia do meu caminho!
O desejo irracional de alcançar a imortalidade, a fúria cega com que Fertrik queria conseguir o impossível fez com que usasse a arma.
Fertrik foi rápido, muito rápido. Antes que o terrano tivesse tempo para atirar, disparou. Mas Fertrik errou o alvo e não teve uma segunda chance. O terrano atirou calmamente, quase a contragosto. Fertrik caiu para a frente e ficou deitado. O estranho olhou para a Kotark como quem espera alguma coisa.
— A eclusa ainda está aberta — disse Sorgun, com a voz apagada.
— Esconda-se — ordenou Hefner-Seton. — Deixe-o entrar. Assim que me atacar, mate-o.
Sorgun lançou um olhar desconfiado para o comandante, mas acabou por esconder-se atrás do computador de bordo.
Hefner-Seton virou a poltrona de tal forma que olhava diretamente para a entrada da sala de comando.
Desde o início, Vouner não contava com a possibilidade de encontrar a nave dos aras desguarnecida. Era bem verdade que o ataque pouco hábil o surpreendera. Em vez de armar-lhe uma cilada o ara saíra da eclusa para atirar contra ele.
Vouner passou pelo cadáver e caminhou em direção à eclusa aberta. Tinha certeza de que havia outras pessoas a bordo. Até fazia votos de que fosse assim, pois se não pudesse contar com o auxílio de alguns astronautas experimentados nunca conseguiria levar a nave à Terra.
A cada segundo Vouner esperava ver um raio incandescente disparado por uma das torres de canhões ocultas no corpo da nave, mas nada aconteceu.
Será que a ânsia de alcançar a imortalidade fizera com que todos os aras, com exceção do que acabara de ser abatido, saíssem da nave? Ou será que eles o espreitavam de algum lugar?
Mas disse a si mesmo que, se quisessem matá-lo do lado de fora, já o teriam feito. O ataque do ara só podia ser produto de uma ação isolada.
Assim que alcançou o ativador celular, Vouner viu-se livre de todas as inibições. Já não tinha nada daquele homem calmo e ponderado, que resolvera emigrar para o Sistema Azul. As paixões ocultas nas profundezas de seu ser o haviam transformado num combatente resoluto, que pretendia lançar mão de todos os recursos para defender a imortalidade que acabara de alcançar. Se ainda havia uma parte do caráter antigo de Vouner escondida nas profundezas de sua mente, sua força era quebrada por completo pelo poder do ativador.
Provavelmente Hendrik Vouner nunca teria sido capaz de disparar um tiro contra um inimigo, mas o homem que carregava o ativador sobre o peito não hesitava em proteger sua vida... sua vida eterna!
Vouner chegou à eclusa e olhou para trás. Não viu nenhum dos seus perseguidores. Segurou firmemente a carabina e entrou na nave. O corredor que levava da eclusa à sala de comando estava muito bem
Iluminado. Nada indicava que já estava sendo esperado.
Vouner parou e pôs-se a escutar. Sentiu-se cercado por um estranho silêncio. Olhava constantemente para trás, pois a sensação de que alguém o observava tornava-se cada vez mais forte. Passou por diversos compartimentos, mas preferiu não abrir as portas para ver o que havia atrás das mesmas.
Finalmente chegou à sala de comando, cuja entrada estava aberta.
Vouner entrou com a arma levantada.
Viu um homem esbelto sentado numa poltrona. Tinha os braços cruzados sobre o peito o encarava-o.
— O melhor meio de obter um ativador celular é esperar que alguém o traga — disse Hefner-Seton.
Vouner deu três passos para trás, fechou a porta e apontou a carabina para o ara.
— Feche a eclusa! — ordenou. — Vamos logo!
Hefner-Seton obedeceu. Vouner observava-o atentamente. Não deixou de notar que o ara parecia sentir-se muito seguro. Por que esse homem o aguardara desarmado?
— Está com o ativador? — perguntou o ara.
— Estou — respondeu Vouner. — E vou ficar com ele.
Hefner-Seton acomodou-se na poltrona.
— Sou o comandante desta nave — disse, e mencionou seu nome. — Dentro de alguns instantes, a tripulação da Kotark deverá chegar. Acha que assim mesmo poderá conseguir alguma coisa?
— Qual é o número mínimo de tripulantes necessários para que a nave possa decolar? — perguntou Vouner, em tom ansioso.
— Com dez homens talvez se consiga — disse Hefner-Seton.
Vouner sabia que o ara pretendia enganá-lo. Uma nave moderna podia perfeitamente ser dirigida por um número menor de homens.
— De qualquer maneira vamos tentar — decidiu.
— O que pretende fazer? — perguntou Hefner-Seton.
— O senhor me levará à Terra com esta nave — anunciou Vouner.
— E se eu me recusar?
Vouner ergueu ligeiramente a carabina.
— Não tenho nada a perder — lembrou.
Naquele momento sentiu na nuca o cano frio de uma arma.
— Solte seu brinquedo — ordenou Sorgun.
Vouner fechou os olhos. Abriu as mãos e a arma caiu ruidosamente ao chão. Vouner tremia. Era o fim. Arriscara demais no jogo pela imortalidade e... perdera. Os aras o haviam enganado. Encontrara a vida eterna no segundo planeta do sistema de Velander, apenas para perder a vida curta e miserável que já lhe pertencia.
Vouner sentiu que a pressão diminuía um pouco.
— Muito bem — disse Hefner-Seton, elogiando seu radioperador.
Vouner viu o comandante levantar-se e caminhar lentamente em sua direção.
— Pare! — gritou Sorgun.
Hefner-Seton parou. Seu rosto exprimia surpresa. Sorgun recuou apressadamente até a porta. Havia um brilho de loucura em seus olhos.
— Terrano! — chiou. — Empurre sua arma para cá com o pé.
— O que é isso, Sorgun? — gritou Hefner-Seton.
O radioperador soltou uma risada nojenta.
— Isso o senhor não esperava, não é mesmo? Na sua arrogância nem pensava na possibilidade de que alguém pudesse contestar seu direito ao ativador. Pense mais uma vez na imortalidade, comandante, pois o senhor não terá mais muitas oportunidades para isso. Ficarei com o ativador celular!
Vouner engoliu em seco. Os acontecimentos tomavam um rumo cada vez mais perigoso.
— Sorgun! — disse Hefner-Seton, em tom enfático. — O senhor sabe perfeitamente que dessa forma não conseguirá nada.
— Cale a boca! — gritou o radioperador. — A única coisa que tem a fazer é cumprir minhas ordens. Se não fizer isso, eu o mato. — Voltou a dirigir-se a Vouner. — Passe para cá a arma, terrano.
Vouner levantou o pé e empurrou a carabina para junto do ara. Hefner-Seton acompanhou os movimentos com o rosto zangado. Sorgun pegou a arma de Vouner e pendurou-a no ombro.
— Abra a blusa e atire-me o ativador — ordenou.
— Não faça isso! — disse o comandante, em tom insistente. — Assim que o aparelho estiver em suas mãos, ele nos matará.
Vouner refletiu intensamente. Se o ara atirasse nele, arriscar-se-ia a destruir o ativador.
— Ande logo — insistiu Sorgun. — Não deixe que esse homem o influencie.
Vouner soltou a corrente que prendia o ativador ao seu pescoço.
— O senhor se arrependerá! — disse Hefner-Seton.
Em sua voz já havia um tom de resignação.
Sorgun olhou em torno que nem um animal enjaulado. Vouner tirou o ativador do peito e pesou-o cuidadosamente na mão. Sentiu os olhares dos dois astronautas presos a esse objeto, que protegia a vida contra a doença e a degenerescência das células.
— Passe para cá! — disse Sorgun, com a voz rouca.
De repente Vouner soube o que fazer... Num movimento instantâneo atirou o ativador para Hefner-Seton, que o segurou instintivamente. Sorgun soltou um grito furioso e atirou. Mas Vouner já dera um salto que o colocara em segurança. Um pedaço de soalho derreteu-se no lugar em que estivera pouco antes.
Hefner-Seton procurou salvar o objeto que tão inesperadamente lhe viera às mãos, mas Sorgun correu em sua direção. O grito de advertência de Vouner encheu a sala de comando. Dali em diante, Sorgun já não sabia o que estava fazendo. Por um lado, todas as fibras de seu ser desejavam a imortalidade. Mas, por outro lado, teria de matar seu comandante. O setor do cérebro de Sorgun que ainda funcionava logicamente disse-lhe que, depois de ter cometido um assassínio como este, não estaria seguro em nenhum planeta do Império. E essa advertência entrava em conflito com a ânsia de apoderar-se do ativador.
Sorgun estava de pé em frente do comandante, com a arma erguida. Hefner-Seton comprimiu o ativador contra o peito. Vouner arriscou-se a dar um salto para fora da proteção proporcionada pelo computador de bordo.
Sorgun virou-se abruptamente e esteve a ponto de disparar contra o terrano. Nesse momento, Hefner-Seton deu-lhe uma pancada que o fez cair para a frente. Vouner desviou-se para o lado e pegou a arma do ara. Conseguiu arrancá-la da mão do inimigo. Recuou imediatamente. Sorgun girou o corpo e procurou tirar a carabina de Vouner do ombro. Hefner-Seton também procurou alcançar a arma, mas Vouner ficou de olho no comandante e fez sinal para que recuasse.
Sorgun conseguiu segurar a carabina de Vouner e fez pontaria. Mas Vouner estava de sobreaviso. Deu um golpe no ombro de Sorgun, que estava ajoelhado. Sorgun caiu para trás e o tiro atingiu o teto. Hefner-Seton recuou.
— A carabina! — ordenou Vouner.
A voz deste parecia acalmar o ara. Com um movimento cansado, Sorgun atirou a arma para Vouner. Este levantou a carabina sem tirar os olhos dos dois aras.
Sorgun levantou-se. Olhava ora para Vouner, ora para o comandante.
— Por que não o mata? — perguntou Hefner-Seton.
— É um cosmonauta — respondeu Vouner, em tom seco.
O ara contemplou o ativador celular. Parecia triste.
— Coloque isso no chão e recue cinco passos — ordenou Vouner.
O comandante hesitou.
— Não sofro dos mesmos complexos que este sujeito — advertiu o terrano.
O ara largou o ativador. Vouner esperou que ele se retirasse e foi apanhar o aparelho. Voltou a colocá-lo no pescoço e lançou um olhar ligeiro para a tela.
— Seus homens chegarão dentro de instantes — lembrou. — Até lá a nave deverá ter decolado.
— Já lhe disse que isso é impossível — respondeu o ara.
Vouner levantou a arma.
— Será que o senhor realmente acredita que esperarei até que seus homens atravessem a eclusa e me desarmem? — perguntou. — Se não iniciar imediatamente a decolagem, não viverá o suficiente para ver seus tripulantes regressarem.
— Acho que está falando sério — observou Sorgun, assustado.
Hefner-Seton não deu atenção ao diálogo. Pôs-se a trabalhar nos controles.
— O que acontecerá depois que tivermos pousado na Terra? — perguntou.
— Mandarei prendê-los — informou Vouner. — Os senhores procuraram apoderar-se por meios ilícitos de um ativador celular. — Fez um sinal para o rádio-operador. — Vamos logo! Ajude.
Os dois aras prepararam a decolagem. Vouner fitou a tela com uma expressão tensa.
— Depressa! Se retardarem a decolagem, os prejudicados serão os senhores. Assim que os tripulantes começarem a aparecer na orla da floresta, atirarei.
Hefner-Seton redobrou seus esforços. O suor começou a porejar na testa de Sorgun.
— Não tentem nenhum truque — advertiu Vouner. — Acelerem a nave de forma razoável. Seus corpos sofrerão os efeitos da pressão tanto quanto o meu. Quando recuperarem os sentidos, já estarei com a arma na mão. Repito: não tentem nenhum truque!
— Pronto — anunciou o comandante, dali a pouco.
— Decole! — ordenou Vouner.
Dirigiu-se apressadamente a uma poltrona. Não tirava os olhos dos dois. Hefner-Seton ligou o propulsor principal. Um tremor sacudiu a Kotark e esta se ergueu do solo. Por alguns instantes o corpo da nave ficou envolto em poeira e fumaça. Enquanto isso, Vouner não via nada do mundo exterior nas telas que se encontravam à sua frente. Quando a visão voltou a ficar livre, a nave já havia penetrado na camada de nuvens.
Vouner recostou-se, um tanto atordoado. Conseguira o impossível. O segundo planeta do sistema de Velander estendia-se embaixo dele. Estava viajando para a Terra. Não havia mais nada que pudesse detê-lo. Sua imortalidade estava garantida...
De repente Trotin ouviu o rugido dos propulsores. Parou como se tivesse esbarrado numa parede. Empalideceu.
— É a Kotark! — exclamou em tom de incredulidade.
Gornas bateu com as mãos nas coxas e gritou que nem um doido:
— Estão decolando sem nós! Estão decolando sem nós!
Depois disso saiu correndo pela floresta.
— Já é tarde — disse Trotin. — Você não alcançará a nave.
Foi caminhando devagar, sem procurar certificar-se de que os outros o seguiam. De repente a idade avançada parecia comprimi-lo. Quando chegaram à clareira aberta pela Olira, não viram mais o menor sinal da Kotark. Gornas se achava ajoelhado nas proximidades do lugar em que esta estivera pousada. Malsag soltou uma risada de louco.
Os aras permaneceram em silêncio. Depois de algum tempo todos os grupos voltaram. Encontraram o cadáver de Fertrick.
— Hefner-Seton e Sorgun decolaram — disse Kruz, que exercera as funções de co-piloto da Kotark. — Por que será?
Jossat-Prug apontou para o cadáver de Fertrik.
— Aí está a resposta — disse. — Enquanto estávamos caçando o terrano, este chegou à Kotark. Houve luta. Provavelmente o terrano também se encontra a bordo da Kotark.
— Para nós, isso não interessa — interveio Trotin. — Temos de conformar-nos com a situação. Estamos num mundo selvagem, que se encontra no início de sua evolução. Não será fácil sobreviver aqui.
— Para que sobreviver? — perguntou Malsag.
A decepção, o ódio e a raiva haviam levado os homens à resignação. Trotin sabia que seria difícil instigá-los.
— Seus covardes — disse em tom de desprezo. — Será que, depois de terem corrido atrás do fantasma da imortalidade, suas vidazinhas já não valem a pena serem vividas? Não se iludam. O instinto de autoconservação nos obrigará a lutar pela sobrevivência. Faço votos de que Hefner-Seton envie uma nave para resgatar-nos.
— Será que ele está interessado em que todos saibam que é um criminoso? — perguntou Kruz.
Trotin fitou-o de frente.
— Será que nós agimos de forma diferente? Qualquer um teria matado o terrano para possuir o ativador. Será que não teríamos caído sobre Hefner-Seton, se soubéssemos que o ativador estava em seu poder. Afirmo categoricamente que teríamos feito isso. O ativador celular traz consigo uma maldição. Qualquer pessoa dominada por tal maldição transforma-se numa criatura inescrupulosa, que não pensa em outra coisa senão em alcançar a imortalidade.
— É assim que ele pretende livrar-se da decepção! — exclamou Gornas. — Só falta dizer que a imortalidade é uma coisa má.
— É uma coisa anormal — disse Trotin. — Só deveria ser confiada a pessoas que têm um destino a cumprir e são guiadas por um elevado senso de responsabilidade.
— Como o senhor, não é, Trotin? — perguntou Malsag, em tom irônico.
O velho médico sacudiu a cabeça.
— Não — disse. — Eu não seria capaz de suportar essa carga. Nenhum de nós seria. Acho que o fato de terem sido espalhados apenas vinte e cinco desses aparelhos encerra um sentido mais profundo. Talvez o Ser espiritual de Peregrino saiba que em toda a Via Láctea só existem vinte e cinco inteligências predestinadas a escapar dos efeitos da degenerescência celular.
Trotin não deu mais atenção às objeções que os outros começaram a fazer. Deixou a tripulação exaltada entregue a si mesma. Enquanto desaparecia entre os destroços da nave terrana, perguntou a si mesmo se o ser do planeta Terra que encontrara um ativador nesse mundo seria uma das vinte e cinco criaturas escolhidas...
Trotin não conhecia o homem. Mas este deixava atrás de si uma trilha de luta e destruição, de ódio e violência. Será que essas qualidades garantiam a imortalidade?
Trotin sentou-se numa pedra. Será que toda vida não participava de uma imortalidade incompreensível, que abrangia todo o Universo? O velho ara fechou os olhos. No curso da vida acumulara muitas experiências e uma quantidade enorme de conhecimentos.
Mas nunca esses ingredientes conseguiram modificar seus sentimentos. Não teria ele captado parte da imortalidade, uma parte espiritualizada da mesma, que pertencia ao seu ser?
Um sorriso sábio surgiu nos lábios de Trotin. Será que um aparelhozinho que evitava a desagregação do corpo poderia oferecer algo de semelhante?
Tivera de percorrer um longo caminho para alcançar a compreensão desse fato.
Mas talvez isso não passasse de mentira...
Por mais profundamente que Trotin perscrutasse sua mente, não conseguiu descobrir se estava, ou não, mentindo a si mesmo...
Alguns minutos depois da decolagem, Hendrik Vouner descobriu que nem mesmo um imortal consegue resistir por muito tempo ao cansaço. A tepidez da sala de comando, o zumbido monótono dos aparelhos e a perfeita adaptação da poltrona pareciam narcotizá-lo. Sabia que os dois aras cairiam sobre ele no momento em que fechasse os olhos.
O comandante observava-o discretamente. Vouner percebeu seus olhares. Sorgun trabalhava ininterruptamente no computador de bordo, a fim de calcular a rota da Kotark. Vouner não entendia disso, mas achava que se mostrara tão resoluto que os dois aras não se atreveriam a enganá-lo.
Depois de algum tempo, Sorgun entregou os dados ao comandante. Não disse uma palavra. Os dois aras dirigiram-se à mesa de navegação, enquanto o piloto automático conduzia a Kotark em segurança pelo espaço.
— Quando chegaremos à Terra? — perguntou Vouner.
— Daqui a sete horas — respondeu Hefner-Seton, sem levantar os olhos.
Vouner assustou-se. Não sabia como faria para ficar acordado mais sete horas.
Vouner levantou-se e colocou-se à frente da tela do sistema de rastreamento espacial.
— Ligue isto! — ordenou.
A Kotark desenvolvia algumas dezenas de vezes a velocidade da luz. Por isso o quadro que se ofereceu a Vouner foi decepcionante. Viu inúmeros fios incandescentes. Eram estrelas distantes. O efeito luminoso era provocado pela enorme velocidade.
Ouviu Sorgun cochichar alguma coisa ao ouvido do comandante. Vouner virou-se, furioso.
— Silêncio! — gritou. — Nada de conversas em voz baixa. Se alguém tiver algo a dizer, que fale em voz alta e em intergaláctico.
— Por que não vende o ativador celular a Rhodan? — perguntou Hefner-Seton. — Ele lhe pagará dez milhões de solares. É uma soma tão elevada que o senhor dificilmente conseguiria gastá-la.
Vouner não teve a menor dúvida em responder às palavras do ara. Dessa forma seria mais fácil continuar acordado.
— O senhor estaria disposto a vender o aparelho?
Um sorriso enigmático surgiu no rosto de Hefner-Seton.
— Eu lhe ofereço o dobro desse preço — disse. — Venda o ativador aos médicos galácticos, e o senhor receberá vinte milhões de solares.
— O aparelho não está à venda — disse Vouner.
O comandante voltou para o assento do piloto.
— Como imagina que seja a vida de um imortal, terrano? — perguntou.
— Ainda não tive tempo para pensar nisso. — O rosto de Vouner assumiu uma expressão sombria. — Não vale a pena fazer essa pergunta.
Na verdade Hendrik Vouner não pensava em outra coisa senão no futuro que tinha pela frente. Seus pensamentos giravam em torno da imortalidade. Levaria algumas semanas para acalmar sua mente revolta. Vouner nem percebia que se estava transformando num homem diferente. O ativador exercia uma influência cada vez mais poderosa sobre ele. Os instintos e as paixões que acreditava ter dominado há muito tempo foram despertados de novo...
E a desconfiança de Vouner tornou-se mais forte. Naquele momento estava refletindo sobre como faria para defender-se dos invejosos que encontraria na Terra. Seria conveniente criar uma guarda pessoal? Ou seria preferível invocar a proteção do governo? Um belo dia teria bastante dinheiro para construir uma casa que lhe oferecesse segurança. Quando isso acontecesse, poderia descansar por dias sem fim. Imaginou-se sentado no terraço da casa, refletindo sobre uma porção de coisas para as quais nunca tivera tempo. Poderia entregar-se à vontade a esse cansaço infinito.
Sorgun deu um salto em sua direção. Vouner sentiu instintivamente o movimento e abriu os olhos. O corpo do ara estava quase em cima dele. Vouner segurou o cano da carabina e golpeou com toda força. Sorgun foi atingido no peito e soltou um grito.
— Para trás! — gritou Vouner e levantou-se de um salto. — Para trás, senão atiro!
O rádioperador, cujo rosto estava desfigurado pela dor, voltou ao seu lugar.
— Nunca mais tente uma coisa dessas.
— Havia um tom de ameaça na voz de Vouner. — Tenho um sono muito leve. Hefner-Seton estava furioso.
— Por que não esperou mais um pouco? — perguntou.
— Daqui em diante atirarei em qualquer pessoa que saia do seu lugar sem pedir licença — disse Vouner.
O incidente despertara-o de vez. Com o rosto sombrio acompanhou o trabalho dos dois aras. Depois de algum tempo começou a andar lentamente pela sala de comando.
O tempo passava com uma incrível lentidão. A Kotark corria ininterruptamente em direção ao destino distante. Atrás de suas paredes de aço, três homens que no fundo eram inimigos encarniçados espreitavam-se mutuamente. Entre Hefner-Seton e Sorgum havia um armistício, que só chegaria ao fim no exato momento em que um dos aras conseguisse subjugar Vouner.
— Será que o senhor não pode deixar de caminhar de um lado para outro? — perguntou Sorgun, depois de algum tempo.
— Não — limitou-se Vouner a responder.
O nervosismo dos homens crescia constantemente. Dentro em breve desprezariam o perigo representado pelas armas de Vouner e se precipitariam sobre o terrano. Sorgun mal conseguia controlar-se.
O sistema de rastreamento espacial continuava a transmitir o mesmo quadro. Vouner pôs-se a contar seus passos...
Uma vez chegando à Terra, não seria difícil provar que era o legítimo possuidor do ativador celular. Oferecer-lhe-iam dez milhões de solares, mas ninguém o obrigaria a desfazer-se do aparelho.
Quando Hefner-Seton apontou para uma pequena estrela amarela mostrada pela tela, Vouner não sabia quanto tempo tinha passado.
— É o Sol, terrano — disse.
A sensação de alívio fez Vouner tremer. Mandou que o comandante lhe desse um pouco de alimento concentrado. A fome era um bom sinal. Seu corpo tenso voltava a reagir normalmente. Não tirou mais os olhos da tela.
Ali estava o Sol, a estrela-mãe da Humanidade. Como era imortal, ainda o veria muitas vezes. Dali a alguns milênios, seu aspecto praticamente não mudaria. Era uma idéia fascinante. Vouner nunca sentira tão intensamente o poder que lhe era conferido pelo ativador.
— Temos de enviar uma mensagem — disse a voz de Hefner-Seton, em meio aos seus pensamentos.
— Por quê? — perguntou Vouner, em tom áspero.
— Para acalmar os homens de sua raça, que são tão cautelosos — disse o ara em tom de escárnio. — Será que o senhor pensa que poderemos pousar na Terra sem sermos detectados pelos controles sofisticados que cercam o Sistema Solar?
Vouner refletiu por um instante.
— Não mencione o ativador — ordenou.
— Diga que a Kotark é uma nave de pesquisas médicas, que quer pousar na Terra a fim de realizar um intercâmbio científico.
— A mentira será descoberta o mais tardar por ocasião do pouso — disse Hefner-Seton.
— Provavelmente o senhor tem razão — disse Vouner. — Só quero evitar que o comandante de alguma nave de patrulhamento fique sabendo da existência do ativador.
O ara soltou uma risada.
— Até parece que o senhor está com medo de que alguém lhe tire o aparelho no último instante — disse em tom irônico.
Vouner ficou aborrecido por o ara ter descoberto seus pensamentos. Com uma expressão de desconfiança, acompanhou o trabalho de Sorgun no aparelho de rádio.
— Por que não está havendo transmissão de imagem? — perguntou.
— Pergunte aos seus amigos — respondeu Sorgun, em tom irritado. — O senhor pensa que alguém vai liberar um canal para uma navezinha dos aras?
Vouner era leigo no assunto, e por isso não sabia se Sorgun estava mentindo. Mas disse a si mesmo que, nas proximidades do Sol, o ara não arriscaria nenhum truque.
Depois de algum tempo, Sorgun apresentou ao terrano uma fita com símbolos que não significavam nada para Vouner.
— É a permissão de pouso — disse.
A desconfiança de que estava sendo enganado crescia cada vez mais em Vouner.
— Se alguma coisa não der certo, eu os mato — disse em tom de ameaça.
O sentimento de insegurança tornava-se cada vez mais forte. Por que os aras nem pensavam em resistir às suas ordens? Teriam tanta certeza de que ainda conseguiriam enganá-lo?
— Olhe! — disse Hefner-Seton, apontando para a tela. — A Terra.
Vouner viu uma pequena esfera verde projetada na tela. A mesma cresceu rapidamente. Vouner teve a impressão de que já conseguia distinguir os mares e os continentes.
O quadro abalou-o até as profundezas de seu ser. Nunca acreditara realmente que um dia voltaria a pisar na Terra. Por um instante voltou a transformar-se no velho Hendrik Vouner. Durante alguns segundos escapou à influência maléfica do ativador. Nesse momento era apenas um terrano que voltava ao seu mundo; um homem solitário, que mal conseguia controlar o sentimento de alegria que enchia todas as fibras de seu ser.
Mas sua mente logo se fechou a todo e qualquer sentimentalismo. Afinal, era Hendrik Vouner, o imortal.
Dali a pouco, Sorgun transmitiu outras mensagens. Todas elas foram redigidas em símbolos incompreensíveis.
— Por que não conversa com as estações de superfície? — perguntou Vouner.
— Como é que eu posso conversar com robôs? — Sorgun deu uma risada arrogante.
— Todas as estações estão inteiramente positronizadas. Só em casos especiais recorre-se a terranos. Os robôs já chegaram à conclusão de que não somos perigosos e encarregaram-se de conduzir-nos sãos e salvos até o porto espacial.
Isso parecia lógico, mas assim mesmo Vouner não se sentia muito à vontade. Teve a sensação desagradável de que alguma coisa não estava em ordem.
Dali a alguns minutos, a Kotark penetrou nas camadas superiores da atmosfera.
— O senhor se sente muito orgulhoso? — perguntou Hefner-Seton.
Por estranho que pudesse parecer, não havia nenhum rancor em sua voz. Parecia conformado com a derrota.
Vouner não respondeu. Seu nervosismo crescia cada vez mais. Como seria recebido na Terra? Seria festejado ou condenado?
Vouner não acreditou na possibilidade de ser rejeitado. Afinal, era o homem humilde da rua, que conseguira alcançar a felicidade suprema. Isso o tornaria popular. Transformar-se-ia num herói nacional.
Voltou a olhar para a tela. Viu parte do campo de pouso. Admirou-se de que o pouso fosse tão normal. Será que as estações de rádio positrônicas da Terra realmente eram infalíveis? Será que a Kotark fora controlada sem que seus ocupantes o percebessem?
Vouner sentiu-se dominado por uma dúvida angustiante. Havia algo de errado...
Teve a impressão de que havia uma divergência evidente, mas não conseguia provar que os aras tivessem aplicado algum truque.
A Kotark desceu lentamente em direção ao campo de pouso. Era só o que importava.
Hefner-Seton escamoteou as colunas de apoio. Logo depois a nave cilíndrica tocou o solo.
O comandante levantou-se.
— O senhor está em casa — disse, dirigindo-se a Vouner.
— Não saia desta sala — ordenou Vouner. — Se tentar fugir com a nave, tomarei providências para que a ataquem.
Dirigiu-se à saída.
— Abra a eclusa!
Vouner virou-se abruptamente e saiu da sala de comando. Disparou pelo corredor comprido que levava à eclusa. Quando chegou lá, o ara já a havia aberto. Vouner sentiu o contato do ar puro. Respirou profundamente e parou...
O passadiço saiu da nave. Vouner foi descendo lentamente pelo mesmo. Olhou em torno. A Kotark não estava pousada no campo de pouso propriamente dito, pois Hefner-Seton a colocara na periferia do mesmo. Mais ao longe, Vouner viu outras naves cilíndricas. Do outro lado estendia-se um parque gigantesco.
Naquele momento Vouner percebeu que seu sentimento não o enganara.
— O senhor caiu na nossa armadilha, terrano — disse nesse instante a voz de Hefner-Seton, vinda do passadiço.
Vouner virou-se abruptamente é viu o ara descer lentamente em sua direção.
O comandante fez um gesto convidativo:
— Seja bem-vindo em Aralon, o mundo central dos médicos galácticos.
O ódio, a decepção e um cansaço infinito transformaram o rosto de Vouner numa máscara rígida. Levantou a carabina e apontou-a para Hefner-Seton.
— Não desistirei — disse em tom resoluto. — Volte para o interior da nave antes que eu me esquente.
Hefner-Seton soltou uma risada.
— Será que o senhor pensa em fugir, terrano? Está bem, vá andando. Mas não se esqueça de que um planeta inteiro fará caça ao senhor. Assim que se espalhar a notícia de que carrega um ativador celular, todo mundo correrá atrás do senhor. Acossá-lo-ão implacavelmente. Não terá amigos, nem sossego, nem qualquer lugar para abrigar-se!
O ara alto e magro virou-se e desapareceu no interior da eclusa.
Vouner levantou os olhos para o sol, que não iluminava seu mundo.
Depois correu o mais depressa que suas pernas agüentavam em direção ao parque não muito distante...
Willian Voltz
O melhor da literatura para todos os gostos e idades