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UM REFÚGIO PARA A VIDA / Nicholas Sparks
UM REFÚGIO PARA A VIDA / Nicholas Sparks

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM REFÚGIO PARA A VIDA

 

Katie, uma jovem reservada e bonita, vai viver para a cidade de Southport, na Carolina do Norte, onde todos se interrogam sobre o seu passado. Que mistérios esconderá aquela mulher que parece determinada em encobrir os seus encantos e evitar novos laços afectivos? No entanto, e apesar de todas as suas reservas, Katie começa a criar raízes naquela pequena comunidade, à medida que uma nova amizade e um novo amor lhe vão fazendo baixar as defesas. Nicholas Sparks traz-nos uma protagonista fragilizada por um amor que se desvirtuou e que tem de aprender a lidar com as suas sequelas se quiser voltar a amar.

 

Katie ia abrindo caminho por entre as mesas, a sentir a brisa vinda do Atlântico a ondular-lhe o cabelo. Carregada com três pratos na mão esquerda e um quarto na direita, usava calças de ganga e uma T-shirt com os seguintes dizeres: “Ivans. Só pelo Linguado, o Nosso Peixe Merece Ser Provado.” Colocou os pratos diante de quatro indivíduos vestidos com camisolas pólo; o que estava mais próximo olhou para Katie e sorriu-lhe. Apesar de ele fingir que estava apenas a ser simpático, ela pressentiu-lhe o olhar cravado nas suas costas à medida que se afastava. Melody mencionara-lhe que os indivíduos tinham vindo de Wilmington e que andavam à procura de locais de filmagens.

Depois de ir buscar o jarro de chá adoçado, tornou a encher-lhes os copos e regressou ao balcão dos empregados de mesa. Varreu a sala com um olhar rápido. Estavam em finais de Abril, a temperatura rondava valores próximos dos ideais e o céu azul estendia-se a perder de vista. Atrás dela, a Intracoastal estava calma apesar da brisa, e parecia espelhar a tonalidade do céu. Havia uma dúzia de gaivotas empoleiradas na vedação, à espera de que alguém deixasse cair algum resto de comida para se precipitarem para debaixo das mesas.

Ivan Smith, o proprietário, nem as podia ver. Chamava-lhes “ratazanas com asas” e já era a segunda vez que patrulhava a vedação, armado dum desentupidor de canos com cabo de madeira para as tentar afugentar. Melody chegara-se ao ouvido de Katie e confessara-lhe que a preocupava mais onde o desentupidor pudesse ter estado que as próprias gaivotas. Katie não lhe respondera.

Pôs outra cafeteira de chá ao lume e aproveitou para limpar o balcão. Passado um instante, deu por alguém que lhe tocava no ombro. Virou-se e deparou com a filha de Ivan, Eileen. Era uma rapariga bonita, de dezanove anos, que usava rabo-de-cavalo e trabalhava no restaurante a tempo parcial como recepcionista.

- Katie... Não te importas de ficar com mais uma mesa?

Katie varreu as mesas com o olhar, contando-as para si própria.

- Claro que não. - Assentiu com a cabeça.

Eileen desceu a escada. Katie ia ouvindo fragmentos de conversa que lhe chegavam das mesas ao redor: clientes que falavam de amigos ou de familiares, do tempo ou da pesca. Viu duas pessoas sentadas a uma mesa de canto a fechar as ementas. Apressou-se a ir ter com elas e a tomar nota do pedido, mas não se demorou a tagarelar, como era hábito de Melody. Não tinha jeito para fazer conversa, mas era eficiente e educada, e, como tal, nenhum dos clientes se mostrava incomodado com isso.

Trabalhava no restaurante desde o princípio de Março. Ivan contratara-a numa tarde fria e soalheira em que o céu estava da cor dos ovos dos picos-de-peito-ruivo. Quando ele lhe dissera que poderia começar a trabalhar na manhã seguinte, teve de recorrer a todas as suas forças para não desatar a chorar à sua frente. Na altura, estava sem um tostão e não comia havia dois dias.

Tornou a encher copos de água e de chá adoçado e dirigiu-se à cozinha. Ricky, um dos cozinheiros, piscou-lhe o olho como sempre. Dois dias antes, convidara-a para sair com ele, mas Katie explicara-lhe que não queria sair com ninguém do restaurante. Tinha o pressentimento de que ele se preparava para insistir e ansiava por que a sua intuição estivesse enganada.

- Alguma coisa me diz que isto hoje não vai abrandar - comentou Ricky. Era louro, alto e esgalgado, talvez um ou dois anos mais novo que ela, e ainda morava em casa dos pais. - Sempre que achamos que temos o serviço quase em dia, lá nos cai mais em cima.

- Está um dia bonito.

- Então, o que é que as pessoas aqui estão a fazer? Num dia como o de hoje, deviam estar na praia ou aproveitar para ir à pesca. Que é precisamente o que tenciono fazer mal ponha os pés daqui para fora.

- Parece-me uma óptima ideia.

- Queres que, depois, te dê boleia para casa?

Ricky oferecia-se para a levar a casa mais ou menos duas vezes por semana.

- Obrigada, não vale a pena, eu moro aqui perto.

- Não tem importância - insistiu ele. - Eu teria todo o prazer nisso.

- Andar a pé faz-me bem.

Entregou-lhe o talão com o pedido, e Ricky afixou-o na parede e preparou-se para lhe dar seguimento. Katie levou o pedido para a área por que era responsável e pousou-o em cima duma mesa.

O Ivans era uma instituição da zona, um restaurante que se achava em funcionamento havia quase trinta anos. com o tempo, Katie fora aprendendo a reconhecer os clientes habituais e, à medida que atravessava a sala, o seu olhar foi-os percorrendo até chegar às pessoas que nunca vira no restaurante. Casais a namorar, casais a ignorar-se mutuamente. Famílias. Embora ninguém lhe parecesse deslocado nem tivesse perguntado por ela, ainda havia momentos em que as mãos lhe tremiam e até hoje dormia com a luz acesa.

Tinha o cabelo curto, dum tom castanho-escuro; estivera a pintá-lo no lava-loiças da cozinha do chalé minúsculo que alugara. Não usava maquilhagem e sabia que acabaria por ficar bronzeada, talvez até de mais. Lembrou-se de comprar protector solar, contudo, depois de pagar a renda e de comprar alguns utensílios para o chalé, não lhe sobrava muito dinheiro para luxos. Um simples protector solar já sairia fora do seu orçamento. Ivan era bom patrão, e Katie estava satisfeita por estar a trabalhar no restaurante, mas os pratos eram em conta e isso implicava que as gorjetas também não fossem muito generosas. Quatro meses a alimentar-se à base de arroz e feijão, massa e farinha de aveia tinham-lhe feito perder peso. Sentia as costelas por debaixo da camisola e, até escassas semanas atrás, tinha umas olheiras tão profundas que receara nunca mais se livrar delas.

- Quer-me parecer que aqueles tipos ali te estão a controlar - disse-lhe Melody, inclinando a cabeça na direcção da mesa a que estavam sentados os quatro indivíduos. - Sobretudo o de cabelo castanho. O mais giro de todos.

- Oh - disse Katie. Pôs outra cafeteira ao lume. Fosse qual fosse a resposta que desse a Melody, poderia ter a certeza de que haveria de circular pelos empregados e, por conseguinte, em geral Katie fazia por dizer o menos possível.

- O quê!? Não me digas que não o achas giro?

- Para ser franca, nem reparei.

- Como é possível que não repares que um tipo é giro? - Melody fitou-a com ar de perfeita incredulidade.

- Não sei - respondeu-lhe Katie.

À semelhança de Ricky, Melody também era alguns anos mais nova que ela, teria talvez uns vinte e cinco. Moça espevitada, de cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes, namorava com um rapaz chamado Steve, que fazia entregas para a loja de artigos de bricolage, situada no outro lado da cidade. À semelhança de todos os outros empregados do restaurante, nascera e fora criada em Southport, que considerava ser um paraíso para as crianças, as famílias e os idosos, mas o sítio mais desolador do mundo para os solteiros. Pelo menos uma vez por semana, dizia a Katie que tencionava mudar-se para Wilmington, que tinha bares, clubes e muito mais lojas a oferecer. Parecia saber tudo a respeito de toda a gente. A bisbilhotice, pensava Katie às vezes, era a verdadeira profissão de Melody.

- Eu ouvi o Ricky convidar-te para sair - comentou ela, mudando de assunto -, mas tu não aceitaste.

- Não gosto de sair com colegas de trabalho. - Katie fingiu que estava absorvida na arrumação dos tabuleiros dos talheres.

- Nós podíamos sair os quatro. O Ricky e o Steve costumam ir pescar juntos.

Katie interrogou-se se teria sido Ricky a convencê-la ou se a ideia partira de Melody. Talvez ambas as coisas. Ao serão, depois de o restaurante encerrar, a maior parte dos funcionários demorava-se um bocado por lá, a conversar enquanto saboreava umas cervejas. À excepção de Katie, todos eles trabalhavam no Ivans havia anos.

- Não me parece que seja boa ideia - obstou ela.

- Então, porquê?

- Em tempos, já tive uma má experiência - justificou-se Katie. - Numa saída com um colega de trabalho, quero eu dizer. Desde então adoptei a regra de não tornar a cair no mesmo erro.

Melody revirou os olhos e apressou-se a ir atender uma das mesas. Katie entregou duas contas e levantou mesas vazias. Andava sempre ocupada, como era seu hábito, esforçando-se por ser eficiente e por passar despercebida. Mantinha a cabeça baixa e fazia o possível por que o seu balcão estivesse sempre impecável. Era uma maneira de o dia passar mais depressa. Não incentivou os avanços do rapaz do estúdio e, quando este se foi embora, nem sequer olhou para trás.

Katie fazia os turnos do almoço e do jantar. À medida que o dia cedia lugar à noite, adorava ver o céu a passar de azul a cinzento, de laranja a amarelo na orla ocidental do mundo. Ao pôr do Sol, a água cintilava e os barcos à vela adernavam ao sabor da brisa. As agulhas dos pinheiros pareciam brilhar. Mal o Sol se escondia por detrás do horizonte, Ivan ligava os aquecedores a gás propano, e os tubos em espiral iluminavam-se como abóboras no Halloween. Katie tinha a cara ligeiramente vermelha do sol, e as ondas de calor radiante provocavam-lhe ardor.

Abby e Big Dave substituíam Melody e Ricky ao jantar. Abby era uma finalista do secundário que passava a vida na risota, e Big Dave havia quase vinte anos que trabalhava na cozinha no Ivans. Era casado, tinha dois filhos e um escorpião tatuado no antebraço direito. Pesava perto de cento e cinquenta quilos e, quando estava na cozinha, a sua cara estava sempre reluzente de transpiração. Tinha o hábito de pôr alcunhas a toda a gente; a dela era Katie Kat.

A hora de maior afluência do jantar prolongou-se até às nove. Quando o serviço começou a abrandar, Katie tratou do fecho e limpou o balcão. Enquanto os últimos clientes não se despachavam, auxiliou os ajudantes a levar pratos para o lava-loiças. Entre aqueles, estava um jovem casal, e, quando deram as mãos por cima da mesa, Katie reparou-lhes nas alianças. Eram atraentes e felizes, e ela teve uma sensação de dêjà-vu. Em tempos havia muito idos, também fora assim, ainda que por um instante fugaz. Ou pelo menos ela acreditara que assim era, até descobrir que tudo não passara duma ilusão. Katie desviou a atenção do casal feliz, ansiosa por apagar aquelas recordações para sempre e nunca mais voltar a ter a mesma sensação.

 

Na manhã seguinte, Katie saiu para o alpendre com uma caneca de café na mão, ouvindo as tábuas do soalho a ranger debaixo dos seus pés, e debruçou-se sobre o parapeito. Reparou nos lírios a brotar entre as ervas daninhas naquilo que em tempos fora um canteiro e ergueu a caneca, saboreando o aroma enquanto bebia um gole.

Gostava de ali morar. Southport era completamente diferente de Boston, de Filadélfia ou de Atlantic City, com o barulho incessante do trânsito, os cheiros e as pessoas apressadas pelos passeios, e era a primeira vez na vida que tinha um lar a que podia chamar seu. O chalé era uma de duas estruturas idênticas situadas ao fundo dum carreiro de gravilha, antigos pavilhões de caça com paredes de pranchas de madeira, aninhados contra um pequeno arvoredo de carvalhos e pinheiros na orla duma floresta que se estendia até ao litoral. A sala de estar e a cozinha eram pequenas, e o quarto não tinha roupeiro, mas o chalé estava mobilado, cadeiras de baloiço no alpendre da frente incluídas, e a renda era uma pechincha. A casa não estava degradada, mas cheia de pó de anos ao abandono, e o senhorio oferecera-se para comprar os materiais necessários se Katie se comprometesse a pô-la impecável. Desde que se mudara para ali, passara grande parte do tempo de gatas ou empoleirada numa cadeira, a fazer precisamente isso. Esfregara a casa de banho até ficar um brinco; lavara o tecto com um pano húmido. Limpara as janelas com vinagre e passara horas de joelhos, a fazer o possível por arrancar a ferrugem e a fuligem do linóleo da cozinha. Enchera os buracos nas paredes com silicone e em seguida aplicara-lhes uma lixa até ficarem lisos. Pintara as paredes da cozinha duma tonalidade de amarelo-cereja e os armários de branco acetinado. O quarto dela era agora azul-claro, a sala de estar bege e, na semana anterior, pusera uma capa nova no sofá, e este ficara praticamente como novo.

com o grosso do trabalho já para trás das costas, gostava de passar as tardes sentada no alpendre da frente a ler livros que requisitara na biblioteca. Para além do café, a leitura era o seu único capricho. Não tinha televisão, nem rádio, nem telemóvel, nem microondas, nem tão-pouco automóvel, e os seus pertences cabiam todos dentro dum saco. Estava com vinte e sete anos, uma antiga loura de cabelo comprido que não tinha verdadeiros amigos. Mudara-se para ali praticamente de mãos a abanar e, meses volvidos, continuava a não ter quase nada de seu. Poupava metade do que ganhava em gorjetas e, todas as noites, guardava as notas enroladas dentro duma lata de café que escondia no vão por debaixo do alpendre. Tinha aquele dinheiro de parte para uma situação de emergência e preferia passar fome a tocar-lhe. Só o facto de saber que ali estava era suficiente para ela respirar de alívio, pois o passado andava sempre por perto e poderia regressar a qualquer momento. Deambulava pelo mundo à procura dela, e Katie sabia que, a cada dia que passava, ele ia ficando mais colérico.

- bom dia - cumprimentou uma voz, interrompendo-lhe o curso dos pensamentos. - Deve ser a Katie.

Katie deu meia-volta. No alpendre abaulado da casa vizinha, viu uma mulher com uma cabeleira castanha rebelde a acenar-lhe. Aparentava trinta e poucos anos e usava calças de ganga e uma camisa abotoada com as mangas arregaçadas à altura dos cotovelos. Trazia uns óculos escuros aninhados no emaranhado de caracóis no alto da cabeça. Tinha um pequeno tapete na mão e parecia hesitante entre sacudi-lo ou não, até que por fim o pôs de parte e se acercou de Katie. Movimentava-se com a energia e a desenvoltura dalguém habituado a praticar desporto.

- O Irv Benson contou-me que agora somos vizinhas.

“O senhorio”, pensou Katie.

- Não me apercebi de que essa casa tinha sido ocupada.

- Acho que ele também não. Quando eu lhe disse que aceitava ficar com ela, pouco faltou para cair da cadeira. - Entretanto, já chegara ao alpendre de Katie e estendeu-lhe a mão. - Os meus amigos tratam-me por Jo - disse-lhe.

- Olá - cumprimentou-a Katie, estendendo-lhe por sua vez a sua.

- Já viu este tempo? Está maravilhoso, não acha?

- Está uma linda manhã - concordou ela, deslocando o peso dum pé para o outro. - Quando foi que se mudou para cá?

- Ontem à tarde. E depois, alegria das alegrias, passei a noite quase toda a espirrar. Dá ideia de que o Benson andou por aí a apanhar o pó todo que conseguiu e o encafuou em minha casa. Nem imagina o estado em que aquilo está.

Katie acenou com a cabeça em direcção à porta.

- A minha casa estava na mesma.

- Pois olhe que ninguém diria. Desculpe, mas, quando estava na minha cozinha, não resisti a dar uma espreitadela pelas suas janelas. A sua casa tem um aspecto alegre e asseado. Eu, por outro lado, aluguei uma masmorra poeirenta e cheia de teias de aranha.

- Mister Benson deu-me autorização para a pintar.

- Não duvido! Desde que Mister Benson não tenha de mexer uma palha, aposto que também me autoriza a pintar a minha. Ele fica com uma casa bonita e limpa, e eu arco com o trabalho todo às costas. - Rasgou um sorriso. - Há quanto tempo é que aqui mora?

Katie cruzou os braços diante do peito, sentindo o sol matinal a começar a aquecer-lhe a cara.

- Vai para dois meses.

- Não sei se aguentarei tanto tempo. Se continuar a espirrar como espirrei a noite passada, o mais provável é que a cabeça me caia antes disso. - Pegou nos óculos escuros e começou a limpar as lentes à camisa. - E está a gostar de Southport? É um mundo completamente à parte, não acha?

- À parte, como?

- Pelo seu sotaque, não me parece que seja daqui. Veio donde, talvez do Norte, não?

Após uma leve hesitação, Katie assentiu com a cabeça.

- Foi a impressão que me deu - prosseguiu Jo. - E é preciso um certo tempo para nos habituarmos a Southport. Quero dizer, eu sempre adorei esta terra, mas sou suspeita, porque sempre gostei de cidades pequenas.

- É daqui da zona?

- Cresci aqui, fui-me embora e acabei por regressar. A mesma velha história de sempre, não é verdade? Para além do mais, não sei em que outro lugar poderia arranjar uma casa tão poeirenta como esta.

Katie esboçou-lhe um sorriso, e as duas quedaram-se algum tempo em silêncio. Jo parecia contentar-se em olhar para ela, à espera de que fosse ela a tomar a iniciativa. Katie bebeu um gole de café, de olhar perdido no bosque, até que se lembrou das boas maneiras.

- Aceita um café? Acabei de preparar uma cafeteira.

Jo tornou a empoleirar os óculos escuros no cocuruto, prendendo-os entre os caracóis. - Confesso que estava à espera de que me oferecesse. Um café saber-me-ia lindamente. Ainda tenho as coisas da cozinha todas encaixotadas, e o meu carro está na oficina. Faz ideia de como será enfrentar o dia sem cafeína?

- Sim, faço.

- bom, fique desde já sabendo que sou viciada em cafeína. Sobretudo num dia que vai ser passado a desencaixotar coisas. Por acaso já lhe terei dito que detesto desencaixotar coisas?

- Creio que não.

- Deve ser a tarefa mais deprimente à face da terra. Termos de descobrir onde é que havemos de encafuar cada coisa, sempre a batermos com os joelhos contra tudo. Não se preocupe... Não sou o género de vizinha capaz de pedir ajuda para isso. Embora, quanto ao café, já não possa dizer o mesmo...

- Esteja à vontade. - Katie fez-lhe sinal para que entrasse. - Só lhe peço que tenha em consideração que a maior parte da mobília já cá estava antes de mim.

Atravessou a cozinha, tirou uma caneca do armário e encheu-a até acima. Estendeu-a ajo.

- Peço desculpa, mas não tenho natas, nem açúcar.

- Passo bem sem eles - tranquilizou-a Jo, aceitando a caneca. Soprou o café antes de beber um gole. - Pronto, já é oficial - acrescentou ela. - A partir de agora, és a minha melhor amiga no mundo inteiro. Isto está tãããão bom!

- Não tens de quê - disse Katie.

- Então, segundo o que o Benson me contou, trabalhas no Ivans?

- Sou empregada de mesa.

- E o Big Dave ainda lá trabalha? - Quando Katie acenou com a cabeça em resposta afirmativa, ela prosseguiu: - Lembro-me de o ver lá ainda eu andava no secundário. Continua a ter a mania de pôr alcunhas a toda a gente?

- Continua - disse ela.

- Então, e que é feito da Melody? Ainda não perdeu o hábito de reparar na aparência dos clientes?

- Todo o santo dia.

- E o Ricky? Continua a meter-se com as empregadas novas?

Ao ver Katie assentir novamente com a cabeça, Jo soltou uma gargalhada.

- Aquele restaurante há-de ser sempre o mesmo.

- Já lá trabalhaste?

- Não, mas a cidade é pequena, e o Ivans é uma instituição. Para além do mais, quanto mais tempo cá morares, mais te irás aperceber de que segredos é coisa que aqui não existe. Toda a gente está a par da vida de toda a gente, e algumas pessoas como, digamos... a Melody... fizeram da bisbilhotice uma arte. Eu costumava ir-me aos arames com isso. Está claro que metade dos habitantes de Southport é tal e qual a mesma coisa. Aqui não há muito mais que fazer para além de coscuvilhar.

- Mas, apesar disso, voltaste.

Jo encolheu os ombros.

- Pois, lá isso foi. O que queres que te diga? Talvez goste de malucos. - Bebeu outro gole de café e acercou-se da janela. - Sabes, enquanto cá morei, nunca dei pela existência destas duas casas.

- O senhorio disse-me que eram pavilhões de caça. Antes de ele se decidir a arrendá-las, faziam parte da plantação.

Jo abanou a cabeça.

- Ainda me custa a acreditar que te mudaste para um sítio destes.

- bom, não fui a única - salientou Katie.

- Lá isso é verdade, mas só porque sabia que não seria a única mulher a viver ao fundo duma estrada de gravilha perdida no meio de nenhures. Isto aqui é um bocado isolado.

“Razão pela qual eu fiquei mais que satisfeita ao vir para cá morar”, pensou Katie para consigo.

- Não é assim tão mau quanto isso. Eu habituei-me depressa.

- Espero bem que também me consiga habituar - disse Jo. Tornou a soprar o café para o arrefecer. - Então, e o que foi que te trouxe até Southport? A perspectiva duma carreira brilhante no Ivans não deve ter sido com certeza. Tens família na zona? Pais? Irmãos?

- Não - respondeu-lhe Katie. - Só me tenho a mim.

- Vieste atrás dalgum namorado?

- Não.

- Então, apeteceu-te vir morar para cá... Assim, sem mais nem menos?

- Foi.

- E por que carga-dágua haveria alguém de se lembrar de tal coisa?

Katie escusou-se a responder-lhe. Já ouvira precisamente as mesmas perguntas a Ivan, a Melody e a Ricky. Sabia que não escondiam segundas intenções, que se tratava de mera curiosidade, mas mesmo assim, nunca sabia bem que resposta lhes havia de dar que não fosse a verdade.

- Precisava dum sítio onde pudesse começar de novo.

Jo bebeu outro gole de café, com ar de quem matutava no que acabara de ouvir, mas, para grande surpresa de Katie, não insistiu, limitando-se a assentir com a cabeça.

- Faz sentido. Há alturas na vida em que começar de novo é tudo quanto uma pessoa precisa. E, a mim, parece-me uma decisão admirável. Há muito boa gente que não tem coragem para isso.

- Achas que sim?

- Não acho, tenho a certeza - frisou ela. - Então, e qual é o teu programa para hoje? Enquanto eu vou passar o dia a lamuriar-me, a desencaixotar e a esfregar até ficar com as mãos em carne viva?

- vou ficar a trabalhar até tarde. Mas, para além disso, pouco mais. Tenho de passar pelo armazém para trazer meia dúzia de coisas.

- Vais passar primeiro pelo Fishers ou vais directamente para a cidade?

- vou primeiro ao Fishers.

- Já alguma vez viste o proprietário? Um fulano de cabelo grisalho?

Katie assentiu com a cabeça.

- Uma vez por outra.

Jo acabou de beber o café, pousou a caneca no lava-loiças e soltou um suspiro.

- Está bem - disse, num tom que de entusiástico pouco tinha. - Já chega de estar para aqui a adiar. Se não começar já, nunca mais me despacho. Deseja-me boa sorte.

- Boa sorte.

Jo acenou-lhe em despedida.

- Foi um prazer conhecer-te, Katie.

Pela janela da cozinha, Katie viu Jo a sacudir o tapete que havia pouco pusera de parte. Parecia-lhe ser bastante simpática, mas Katie não sabia se estava preparada para ter uma vizinha. Embora talvez fosse agradável ter uma pessoa que pudesse visitar de quando em vez, acostumara-se a estar sozinha.

A verdade, porém, era que o facto de morar numa cidade pequena implicava que o seu isolamento voluntário tinha os dias contados. Teria de ir para o emprego, às compras e de andar pela rua; alguns dos clientes do restaurante já a cumprimentavam quando passavam por ela. E, para além do mais, tinha de admitir que gostara de conversar com Jo. Sem saber precisar ao certo porquê, pressentia que havia qualquer coisa em Jo que escapava à primeira vista, qualquer coisa... digna de confiança - porquê, não sabia explicar. E também era solteira como ela, o que era uma vantagem indiscutível. Katie não sabia qual teria sido a sua reacção caso tivesse sido um homem a mudar-se para a casa vizinha, e perguntou-se por que fora que nunca considerara essa possibilidade.

Lavou as canecas no lava-loiças e tornou a guardá-las no armário. O gesto era-lhe tão familiar - guardar duas canecas depois do café matinal - que se sentiu momentaneamente tragada pela vida que deixara para trás. As mãos começaram a tremer-lhe e, entrelaçando-as com firmeza, respirou fundo algumas vezes até elas tornarem a sossegar. Dois meses atrás, não teria sido capaz de fazer isto; mesmo duas semanas antes, pouco ou nada poderia ter feito para as conseguir aquietar. Apesar de estar satisfeita por se saber capaz de controlar os acessos de ansiedade, isso também significava que se estava a acomodar à casa. E isto era para ela motivo de apreensão, pois colocava-a em risco de baixar a guarda, e esse era um luxo a que nunca mais na vida se poderia dar.

Apesar de tudo, estava contente por ter ido parar a Southport. Tratava-se duma pequena cidade histórica com escassos milhares de habitantes, localizada na foz do rio Cape Fear, precisamente no local onde este se cruza com a Intracoastal. Era uma cidade com passeios, árvores frondosas e flores que desabrochavam no solo arenoso. As barbas-de-velho pendiam dos galhos das árvores, enquanto o kudzu trepava pelos troncos encarquilhados. Já vira crianças a andar de bicicleta e a jogar kickball na rua e ficara impressionada com a quantidade de igrejas, uma em quase todas as esquinas. À noite, ouviam-se os grilos e as rãs, e Katie lembrou-se uma vez mais de que, logo nos primeiros tempos, tivera a impressão de estar no lugar certo. Southport transmitia-lhe uma sensação de segurança que ela não sabia explicar, como se havia muito chamasse por ela, um refúgio cheio de promessas.

Katie calçou o único par de sapatos que tinha, uns ténis Converse muito gastos. A cómoda estava praticamente vazia e não havia quase comida nenhuma na cozinha, contudo, mal transpôs a porta da rua e se viu ao sol a caminho do armazém, pensou: “Estou em casa.” Ao inalar profundamente uma lufada de ar perfumado de jacinto e de relva acabada de cortar, sentiu que havia anos não era tão feliz.

 

O cabelo encanecera-lhe tinha ele vinte e poucos anos, dando azo a algumas piadas prazenteiras por parte dos amigos. Nem sequer se tratara duma mudança gradual, com uns cabelos brancos a aparecer aqui e ali. Muito pelo contrário, num mês de Janeiro tinha o cabelo todo preto e, em Janeiro do ano seguinte, já não lhe restava praticamente nenhum fio de cabelo preto. Os dois irmãos mais velhos haviam sido poupados, embora, nos últimos anos, lhes tivesse aparecido um ou outro pêlo grisalho nas suíças. Nem a mãe nem o pai tinham explicação para aquilo; ao que sabiam, Alex Wheatley era uma excepção em ambos os lados da família.

Por estranho que pudesse parecer, esta fatalidade não o incomodara. Aliás, enquanto estivera no Exército, suspeitava de que até contribuíra para o ajudar a progredir na carreira. Estivera integrado na Divisão de Investigação Criminal, estacionada na Alemanha e na Geórgia, e passara dez anos a investigar crimes cometidos no Exército, crimes estes que incluíam desde soldados que se ausentavam sem permissão oficial, passando por roubos, violência doméstica e violações e chegando mesmo a homicídios. Fora sendo promovido a um ritmo regular, retirando-se finalmente aos trinta e dois anos, quando era major.

Depois de dar por encerrada a carreira no Exército, mudara-se para Southport, cidade natal da esposa, Carly. Na altura, era recém-casado e tinha o primeiro filho a caminho e, embora a sua intenção inicial fosse candidatar-se a um emprego nas forças de segurança, o sogro propusera-se a vender-lhe o negócio da família.

Era um armazém de província antiquado, com paredes de ripas de madeira, persianas azuis, o telhado do alpendre abaulado e um banco corrido à entrada, o género de armazém que tivera o seu auge havia muito e que entretanto já praticamente desaparecera. A família residia no primeiro andar. Uma magnólia imponente proporcionava sombra a metade da casa, e à frente havia um carvalho. Apenas metade do parque de estacionamento era asfaltado - a outra metade era de gravilha -, mas raramente estava vazio. O sogro montara o negócio antes de Carly nascer, numa época em que, ao redor, pouco mais havia para além de terras de cultivo. Todavia, o sogro orgulhava-se de ser um bom conhecedor da natureza humana e fizera questão de ter disponível tudo quanto os moradores pudessem precisar, o que veio proporcionar uma certa organização desordenada ao estabelecimento. Alex era da mesma opinião e mantinha a loja mais ou menos nos mesmos moldes. Cinco ou seis corredores ofereciam artigos de mercearia e de higiene, enquanto, ao fundo, havia arcas frigoríficas cheias até à borda de tudo, desde bebidas gaseificadas a água, cerveja e vinho, e, a exemplo de todas as lojas de conveniência, não faltavam as tradicionais batatas fritas, guloseimas e todo o género de porcarias a que os clientes tinham tendência a deitar a mão quando passavam pela caixa registadora. Contudo, as semelhanças começavam e acabavam aqui. As prateleiras estavam também recheadas de material de pesca, engodos frescos, e havia ainda um grelhador a cargo de Roger Thompson, que em tempos trabalhara em Wall Street e que fora morar para Southport em busca duma vida mais pacata. O grelhador oferecia hambúrgueres, sanduíches e cachorros-quentes. Havia DVD para alugar, munições de vários tipos, impermeáveis e chapéus-de-chuva, bem como uma pequena oferta de romances clássicos e best-sellers. O estabelecimento vendia velas de ignição, correias de ventoinhas e latas de gasolina, e nas traseiras Alex tinha uma máquina que lhe permitia fazer duplicados de chaves. Tinha três bombas de gasolina, e outra no embarcadouro para o caso de algum barco precisar de abastecer, o único local à excepção da marina onde isso era possível. Junto ao balcão, viam-se fileiras de frascos de picles de endro, de amendoins fervidos e cestos cheios de fruta fresca.

Por surpreendente que pudesse parecer, não tinha dificuldade em manter-se a par do inventário. Alguns artigos eram escoados com regularidade, outros não. À semelhança do sogro, bastava um cliente entrar no armazém para Alex fazer logo uma ideia do que ele vinha à procura. Sempre reparara e fixara na memória coisas que escapavam à atenção dos demais, uma característica que lhe fora extraordinariamente útil ao longo dos anos em que trabalhara na DIC. Hoje em dia, estava constantemente a dar voltas à mercadoria, sempre atento às inovações no que tocava aos gostos da clientela.

Nunca na vida lhe passara pela cabeça que acabaria a fazer aquilo, mas a decisão revelara-se acertada, quanto mais não fosse porque lhe permitia ter os filhos debaixo de olho. Josh já andava a estudar, mas Kristen só entraria para a escola no Outono seguinte e passava os dias com o pai no armazém. Ele instalara um espaço para ela brincar atrás da caixa registadora, e a filha, que era uma criança inteligente e comunicativa, parecia estar nas suas sete quintas. Apesar de só ter cinco anos, sabia mexer na caixa registadora e fazer trocos, servindo-se dum banco com degraus para chegar às teclas. Alex deliciava-se com as caras que os forasteiros faziam quando a menina lhes registava os artigos.

Não obstante, e apesar de não conhecer outra realidade, não era a infância ideal para ela. Se fosse sincero consigo próprio, ver-se-ia forçado a admitir que tomar conta dos filhos e do armazém lhe consumia todas as forças. Havia dias em que mal aguentava preparar o almoço de Josh e ir deixá-lo à escola, fazer encomendas aos fornecedores, reunir-se com os vendedores e atender os clientes, isto tudo enquanto mantinha Kristen entretida. E isto era só um aperitivo. Por vezes, tinha a impressão de que os serões ainda eram mais movimentados. Fazia o possível por participar nas brincadeiras dos filhos - dar passeios de bicicleta, lançar papagaios e pescar com Josh, mas Kristen gostava de brincar com bonecas e de fazer trabalhos manuais, e ele nunca tivera jeito para essas coisas. Acrescentasse-se a preparação do jantar e a lida da casa, e podia dizer-se que raramente tinha tempo para respirar. Mesmo depois de finalmente meter os filhos na cama, era-lhe quase impossível descontrair porque havia sempre alguma coisa que fazer. Chegava a duvidar se ainda saberia descontrair de todo.

Depois de deitar os filhos, passava o resto dos serões sozinho. Apesar de conhecer quase toda a gente da cidade, tinha poucos amigos a sério. Os casais a casa de quem ele e Carly costumavam ir comer churrascos tinham-se, lenta mas definitivamente, afastado. Parte da culpa cabia-lhe a ele próprio - o trabalho no armazém e a educação dos filhos ocupavam-lhe a quase-totalidade do tempo -, contudo, havia alturas em que tinha a sensação de que os deixava pouco à vontade, como se os lembrasse de que a vida era imprevisível e assustadora e que podia dar uma reviravolta quando menos se esperava.

Era um estilo de vida esgotante e por vezes solitário, mas Alex fazia o possível por se concentrar nos filhos. Embora agora fossem cada vez mais raros, depois da morte de Carly, tanto Josh como Kristen tinham tido tendência a pesadelos. Quando acordavam a meio da noite, num pranto inconsolável, o pai abraçava-os e sussurrava-lhes que não tivessem medo, até que eles voltavam finalmente a adormecer. Nos primeiros tempos, tinham recebido ajuda duma terapeuta; as crianças tinham feito desenhos e desabafado acerca do que sentiam. A terapia não dera os resultados que Alex esperava. Os pesadelos tinham-se prolongado durante quase um ano. Por vezes, quando estava a colorir desenhos com Kristen ou a pescar com Josh, os filhos ficavam muito calados, e ele percebia que sentiam saudades da mãe. Kristen chegava a confessar isto mesmo, com voz trémula e infantil, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. De cada vez que isto acontecia, Alex sentia o coração despedaçar-se-lhe, pois sabia que não havia nada que pudesse dizer ou fazer para melhorar a situação. A terapeuta garantira-lhe que as crianças eram resistentes e que, desde que estivessem seguras de que eram amadas, os pesadelos acabariam por desaparecer e as lágrimas por abrandar. O tempo veio dar-lhe razão, mas agora Alex enfrentava outro tipo de perda, uma vez que as recordações que os filhos tinham da mãe começavam a desvanecer-se a um ritmo lento mas seguro. Eram tão novinhos quando tinham ficado sem ela - três e quatro anos, respectivamente - que chegaria o dia em que a mãe seria para ambos mais uma ideia que propriamente uma pessoa. Era inevitável, claro estava, contudo, Alex sentia pena de que eles nunca se fossem lembrar das gargalhadas de Carly, ou da ternura com que lhes pegava ao colo quando eram bebés, ou do amor profundo que em tempos lhes tivera.

Nunca fora muito dotado para a fotografia. Fora sempre Carly quem se encarregara de pegar na máquina fotográfica e, por conseguinte, tinha dúzias de retratos dele próprio com os filhos. Raros eram os que incluíam Carly e, embora Alex fizesse questão de folhear o álbum diante de Josh e de Kristen enquanto lhes falava a respeito da mãe, suspeitava de que as suas histórias começavam a não passar disso mesmo: de meras histórias. As emoções associadas às fotografias eram como castelos de areia na maré cheia, lentamente arrastados para o mar. O mesmo destino estava a ter o retrato de Carly pendurado no seu quarto. No primeiro ano de casados, e mesmo contra a vontade dela, mandara que lhe tirassem o retrato. Ainda bem que tomara essa decisão. Na fotografia, estava bonita e com um ar independente, a mulher voluntariosa que o conquistara, e havia noites em que, depois de deitar os filhos, se deixava ficar a olhar para o retrato da mulher, sentindo as emoções tumultuadas. Josh e Kristen, porém, mal reparavam na fotografia.

Pensava muito nela e sentia a falta do companheirismo e da amizade em que se alicerçara o casamento de ambos. E, se fosse sincero, reconhecia que era algo que desejava recuperar. Sentia-se sozinho, por muito que lhe custasse a admitir. Durante meses e meses depois da morte da mulher, nem sequer se conseguia imaginar a ter outro relacionamento, quanto mais considerar a possibilidade de se tornar a apaixonar por alguém. Mesmo um ano decorrido, era o tipo de pensamento que se obrigava a afastar. O golpe ainda estava muito fresco, a recordação do luto, demasiado viva. Todavia, uns meses atrás, levara os filhos ao aquário e, quando estavam diante do tanque dos tubarões, entabulara conversa com uma rapariga atraente que se encontrava a seu lado. Tal como ele, também estava acompanhada dos filhos e, tal como ele, também não usava aliança. Os filhos dela eram das mesmas idades de Josh e de Kristen, e, enquanto os quatro se entretinham a apontar para o tubarão, ela rira-se de qualquer coisa que Alex dissera e este sentira uma faísca de atracção que lhe trouxera à memória a vida que em tempos tivera. A conversa acabara por ficar por ali, e fora cada um para seu lado, mas, à saída, ele tornara a vê-la. Ela acenara-lhe e, por um breve instante, Alex ainda pensara em ir a correr até ao carro dela para lhe pedir o número de telefone. Nunca mais a tornara a ver.

Nessa noite, ficara à espera de ver surgir uma onda de auto-recriminação e de arrependimento, contudo, por estranho que pudesse parecer, isso não acontecera. Nem tão-pouco lhe parecera que houvesse algum mal nisso. Ao invés, sentia-se... bem. Nem confiante, nem eufórico, mas bem, e, sem saber explicar como nem porquê, percebeu que estava finalmente a começar a ultrapassar o luto. Isto não queria obviamente dizer que se sentisse preparado para se lançar de cabeça na vida de solteiro. Aconteceria o que tivesse de acontecer. E se,não acontecesse? Quando lá chegasse, logo se veria. Estava disposto a esperar até conhecer a pessoa certa, alguém que, não apenas lhe devolvesse a alegria perdida, mas que também gostasse dos filhos tanto quanto ele próprio. Reconhecia, porém, que naquela cidade as probabilidades de encontrar uma pessoa assim eram quase nulas. Southport era uma terra muito pequena. Quase todos os seus conhecidos eram ou casados, ou reformados, ou frequentavam uma das escolas da zona. As mulheres solteiras não abundavam, e as que estivessem dispostas a aceitar um homem com filhos muito menos ainda. E isso, escusado seria dizer, era fundamental. Por muito sozinho que se sentisse, por muito desejoso de companhia que estivesse, não iria sacrificar os filhos a troco disso. Já tinham tido sofrimento que chegasse, e seriam sempre a sua principal prioridade.

Ainda assim... existia uma possibilidade, acreditava Alex. Havia uma mulher que lhe interessava, embora não soubesse quase nada a respeito dela, para além do facto de ser solteira. Desde o início de Março que vinha ao armazém uma ou duas vezes por semana. Da primeira vez que a vira, estava pálida e com aspecto doentio, tão magra que até fazia impressão. Em circunstâncias normais, não teria olhado duas vezes para ela. Era frequente as pessoas de passagem pela cidade pararem no armazém para comprarem bebidas gaseificadas, gasolina ou qualquer coisa para comer; Alex raramente as tornava a ver. Ela, porém, não comprara nenhuma destas coisas; ao invés, fora de cabeça baixa até às prateleiras dos artigos de mercearia, como se tentasse passar despercebida, um fantasma com contornos humanos. Infelizmente para ela, não estava a dar resultado. Era bonita de mais para não dar nas vistas. Deveria ter vinte e muitos anos, calculava ele, com o cabelo castanho mal cortado acima do ombro. Não usava maquilhagem, e as maçãs do rosto proeminentes e os olhos grandes e redondos conferiam-lhe uma aparência elegante ainda que ligeiramente frágil.

Uma vez na caixa, reparou que, ao perto, era ainda mais bonita que lhe parecera ao longe. Os olhos eram dum tom esverdeado de avelã, com laivos de dourado, e o sorriso ténue e abstraído que lhe esboçou desapareceu tão depressa quanto surgira. Em cima do balcão, pousou apenas artigos de primeira necessidade: café, arroz, farinha de aveia, massa, manteiga de amendoim e produtos de higiene. Alex pressentiu que ela não estava à vontade para conversar e, por conseguinte, registou os artigos em silêncio. Nesse momento, ouviu-lhe a voz pela primeira vez.

- Não tem feijões secos? - perguntou-lhe ela.

- Lamento - respondeu-lhe ele. - Em geral não os tenho em stock.

Enquanto lhe guardava as compras dentro dum saco, reparou que ela olhava fixamente para a janela, mordendo abstraidamente o lábio inferior. Sem saber explicar porquê, teve a estranha impressão de que a rapariga estava quase a chorar.

Clareou a voz.

- Se acha que vai precisar deles com regularidade, terei todo o gosto em mandá-los vir. Só preciso de que me diga qual a qualidade que deseja.

- Não lhe quero dar maçada - respondeu-lhe ela, a sua voz pouco mais que um sussurro.

Pagou-lhe em notas pequenas, pegou no saco e abandonou o armazém. Alex ficou admirado por a ver sair a pé do parque de estacionamento e foi só nessa altura que se apercebeu de que ela não viera de automóvel, o que contribuiu sobremaneira para aumentar a sua curiosidade.

Na semana seguinte, havia feijões secos no armazém. Mandara vir de três variedades, embora apenas um saco de cada uma: feijão-pinto, feijão-vermelho e feijão-de-lima, e da vez seguinte em que ela lá esteve, fez questão de a informar de que os poderia encontrar na última prateleira, ao canto, ao lado do arroz. A rapariga trouxe os três sacos para a caixa e perguntou-lhe se por acaso não teria uma cebola. Alex apontou para um pequeno saco dentro dum cesto que se encontrava à porta, mas ela abanou a cabeça.

- Só preciso duma - murmurou ela, com o sorriso hesitante de quem pede desculpa. Contou as notas com as mãos trémulas e, uma vez mais, foi-se embora a pé.

Desde então, havia sempre feijões em stock, cebolas avulso e a rapariga tornara-se parte da clientela regular. Embora continuasse reservada, com o decorrer do tempo, foi-lhe parecendo menos frágil, menos nervosa. As suas olheiras foram gradualmente desaparecendo e, durante a recente vaga de bom tempo, ganhara boas cores. Aumentara de peso - não muito, mas o suficiente para lhe atenuar as feições delicadas. A sua voz também estava mais forte e, embora isso não fosse sinal de que estivesse interessada nele, sustinha-lhe o olhar durante mais tempo antes de por fim se ir embora. Pouco tinham passado do tipo de conversa: “Encontrou tudo quanto procurava?”, “Encontrei, sim, obrigada”, mas, ao invés de debandar do armazém como um veado perseguido, havia dias em que deambulava pelos corredores e chegara mesmo a conversar com Kristen numa ocasião em que estavam as duas sozinhas. Foi a primeira vez em que a viu baixar as defesas. A sua atitude descontraída e expressão sincera eram sinal de que gostava de crianças, e a primeira coisa que ocorreu a Alex foi que acabara de vislumbrar a mulher que ela em tempos fora e que, nas circunstâncias adequadas, poderia voltar a ser. Kristen também dera mostras de reparar que uma qualquer mudança se dera na rapariga, porque, depois de esta se ter ido embora, informara o pai de que fizera uma nova amiga e que ela se chamava Miss Katie.

Isto, porém, não significava que Katie se sentisse à vontade com ele. Na semana anterior, depois de ter conversado animadamente com Kristen, vira-a a ler as contracapas dos romances que tinha no armazém. Não comprou nenhum e, quando, à saída, Alex de repente se lembrou de lhe perguntar qual era o seu autor predilecto, detectara-lhe um rasgo do antigo nervosismo. Ocorreu-lhe então que não deveria ter deixado transparecer que a estivera a observar.

- Deixe lá - apressou-se a acrescentar. - Não tem importância. - Ao transpor a porta, porém, ela deteve-se momentaneamente, o saco preso na dobra do cotovelo. Virou-se ligeiramente na direcção dele e balbuciou:

- Gosto de Dickens. - Dito isto, abriu a porta e desapareceu pela estrada acima.

Desde então que se apanhava com frequência a pensar nela, mas eram pensamentos vagos, incitados pelo mistério e coloridos pelo desejo de a conhecer melhor. Não que soubesse o que fazer para o concretizar. À excepção do ano que passara a cortejar Carly, nunca fora muito dado a namoros. Na faculdade, entre as aulas e a natação, pouco tempo lhe sobrava para sair. No Exército, dedicara-se de alma e coração à carreira, fazendo horas extraordinárias e sendo transferido de posto a cada nova promoção. Apesar de ter saído com algumas mulheres, eram namoros passageiros, que em geral começavam e terminavam na cama. Havia alturas em que fazia uma retrospectiva da sua vida, mal reconhecendo o homem que em tempos fora, e sabia que a responsável pelas mudanças operadas nele fora Carly. Era verdade que por vezes era duro, tal como era verdade que se sentia sozinho. Tinha saudades da mulher e, embora nunca confessasse isto a ninguém, havia momentos em que seria capaz de jurar que sentia a presença dela, a velar por ele, a tentar fazer o possível por que a vida lhe corresse bem.

Devido ao tempo magnífico, o armazém estava mais movimentado que seria de esperar num domingo. Quando, eram sete da manhã, Alex veio destrancar a porta, já havia três barcos ancorados no embarcadouro à espera de que a bomba abrisse. Como era hábito, enquanto pagavam a gasolina, os donos dos barcos aproveitaram para se abastecer de refeições leves, bebidas e sacos de gelo para a viagem. Roger - que, como sempre, estava a trabalhar no churrasco - não tinha tido descanso desde que vestira o avental, e as mesas estavam cheias de pessoas a comer biscoitos de salsicha e hambúrgueres de queijo enquanto lhe pediam palpites a respeito do mercado bolsista.

Em geral, Alex ficava à caixa até ao meio-dia, hora em que passava a pasta a Joyce, que, à semelhança de Roger, era o género de empregada que lhe facilitava em grande medida o trabalho no armazém. Joyce, que, até à reforma, trabalhara no tribunal, viera, por assim dizer, “incluída no negócio”. O sogro contratara-a dez anos atrás e agora, na casa dos setenta, ela continuava sem dar sinais de querer abrandar. O marido falecera havia uns anos, os filhos tinham saído de casa, e ela via nos clientes a sua verdadeira família. Joyce era tão essencial ao armazém como os artigos à venda nas prateleiras.

Melhor ainda, compreendia que Alex precisava de ter tempo disponível para os filhos fora do armazém e não ficava contrariada se lhe pedissem para trabalhar aos domingos. Mal chegava, aparecia sorrateiramente junto à caixa e dizia a Alex que já se podia ir embora, num tom que, quem a ouvisse, julgaria tratar-se da patroa e não duma empregada. Joyce também fazia as vezes de baby-sitter, a única pessoa a quem ele era capaz de confiar os filhos quando se via obrigado a viajar. Não acontecia com frequência - apenas duas vezes nos últimos dois anos, quando se fora encontrar com um antigo camarada do Exército a Raleigh -, mas considerava Joyce uma das maiores bênçãos que tinha na vida. Sempre que precisara dela, mostrara-se pronta para o ajudar.

Enquanto esperava pela chegada de Joyce, aproveitou para dar uma vista de olhos pelas prateleiras do armazém. O sistema informático era excelente a tratar do inventário, mas Alex sabia que os números nem sempre chegavam. Por vezes, sentia que, de modo a verificar o que se vendera na véspera, ficava mais bem informado se fizesse uma vistoria às prateleiras. O êxito do estabelecimento dependia em grande medida da actualização constante dos inventários, e isso significava que, com frequência, havia artigos que só estavam disponíveis no seu armazém. Vendia compotas e geleias caseiras; condimentos feitos a partir de “receitas secretas” para temperar a carne de vaca e de porco; bem como um variado sortido de frutos e vegetais enlatados da região. Mesmo os clientes regulares de supermercados do género do Food Lion ou do Piggly Wiggly costumavam passar pelo armazém a caminho de casa a fim de adquirir as especialidades locais que Alex fazia questão de ter em stock.

Mais importante ainda que o volume de vendas dum dado artigo, era o momento em que era vendido, um facto que não aparecia necessariamente nos números. Descobrira, por exemplo, que os pães para cachorro-quente tinham imensa saída aos fins-de-semana, mas que pouco se vendiam durante a semana; com os pães de forma passava-se exactamente o contrário. O facto de reparar nisso permitira-lhe ter uma maior quantidade de reserva quando era necessário, e as vendas subiram. Não representava um grande lucro, mas sempre era alguma coisa e permitira a Alex manter o seu armazém em funcionamento numa época em que as grandes superfícies estavam a obrigar o pequeno comércio a fechar portas.

Enquanto vistoriava as prateleiras, ia tentando imaginar o que faria com os filhos da parte da tarde, acabando por se decidir por um passeio de bicicleta. Não havia nada que agradasse mais a Carly que instalá-los na cadeira para bebé da bicicleta e levá-los a passear pela cidade. Todavia, um passeio de bicicleta não chegava para preencher a tarde. Talvez pudesse levar as bicicletas para o parque... Os filhos seriam capazes de gostar.

Deitou uma espreitadela à porta da rua a fim de ter a certeza de que não vinha ninguém a entrar, atravessou rapidamente a divisão dos fundos onde guardava os stocks e espreitou lá para fora. Josh estava a pescar no embarcadouro, de longe a sua actividade predilecta. Alex não gostava de ver o filho ali sozinho - não tinha qualquer dúvida de que haveria quem o julgasse um mau pai por isso -, mas Josh mantinha-se sempre dentro do raio de acção do ecrã de vídeo instalado por detrás da caixa registadora. Era uma regra, e Josh nunca a infringia. Kristen, como era hábito, estava sentada à sua mesa, por detrás da caixa. Separara as roupas da sua boneca American Doll em diversas pilhas e estava muito satisfeita a experimentar-lhe as várias indumentárias. De cada vez que acabava uma, olhava para o pai com uma expressão feliz e inocente e perguntava-lhe se gostava de ver a boneca assim vestida, como se fosse possível ele dizer-lhe que não.

Meninas pequenas. Eram capazes de derreter até o mais empedernido dos corações.

Alex estava a endireitar uns condimentos quando ouviu a campainha da porta da rua a tilintar. Espreitou por cima do corredor e viu Katie a entrar no armazém.

- Olá, Miss Katie - chamou-a Kristen, aparecendo por detrás da máquina registadora. - Gosta de ver a minha boneca assim vestida?

Do sítio onde estava, Alex mal via a cabeça da filha acima do balcão, mas ela segurava na mão quem... A Vanessa? A Rebeca? Fosse lá qual fosse o nome da boneca de cabelo castanho... alto o suficiente para Katie a conseguir ver.

- Está muito bonita, Kristen - respondeu-lhe ela. - Esse vestido é novo?

- Não, já o tenho há algum tempo, mas ultimamente ela não o tem usado.

- Como é que ela se chama?

- Vanessa - disse-lhe a menina.

“Vanessa”, pensou Alex. Quando chegasse a sua vez de elogiar a Vanessa, esforçar-se-ia por ser um pai muito mais atencioso.

- Foste tu que lhe puseste esse nome?

- Não, ela já vinha com ele. Não se importa de me ajudar a calçar-lhe as botas? Não consigo enfiar-lhas até acima.

Alex viu Kristen entregar a boneca a Katie e esta a começar a puxar pelas botas de plástico maleável. Alex sabia por experiência própria que era um processo mais espinhoso que se poderia pensar à primeira vista. Uma menina não teria nem por sombras força para as calçar à boneca. O próprio Alex se vira em dificuldades, embora, feita por Katie, parecesse tarefa fácil. Devolveu-lhe a boneca e perguntou-lhe:

- Então, que tal?

- Está óptima - respondeu-lhe Kristen. - Acha que eu lhe deveria vestir um casaco?

- Não está frio lá fora.

- Eu sei, mas às vezes a Vanessa constipa-se. Acho que é melhor vestir-lho. - A cabeça de Kristen desapareceu atrás do balcão e tornou a espreitar logo de seguida. - Qual é que acha que fica melhor? O azul ou o roxo?

Katie encostou um dedo à boca e afivelou uma expressão muito séria.

- A mim, parece-me que o roxo ficaria melhor.

Kristen assentiu com a cabeça.

- Também me parece que sim. Obrigada.

Katie sorriu-lhe antes de se afastar, e Alex concentrou a sua atenção nas prateleiras não fosse ela apanhá-lo a vigiá-la. Puxou boiões de mostarda e de tempero para a parte da frente da prateleira. Pelo canto do olho, viu Katie a pegar no cesto das compras pequeno antes de se dirigir para outro corredor.

Alex voltou para junto da caixa registadora. Quando ela o viu, acenou-lhe com a mão para a cumprimentar.

- bom dia - disse-lhe.

- Olá. - Ela tentou prender uma madeixa atrás da orelha, mas o cabelo não tinha comprimento que chegasse para isso. - Ainda me falta ir buscar umas coisas.

- Se não encontrar alguma coisa de que precise, já sabe que é só dizer. Às vezes mudamos as coisas de sítio.

Katie assentiu com a cabeça e passou ao corredor seguinte. Quando se postou atrás da caixa, Alex deitou uma espreitadela ao ecrã. Josh estava a pescar no mesmo sítio, e vinha um barco a entrar vagarosamente no ancoradouro.

- O que é que achas, paizinho? - Kristen puxou-lhe pela perna das calças enquanto lhe mostrava a boneca.

- Uau! Está muito bonita. - Alex acocorou-se ao lado da filha.

- E o casaco fica-lhe a matar. A Vanessa tem tendência a constipar-se, não é?

- Pois é - assentiu Kristen. - Mas ela disse-me que quer ir andar de baloiço, por isso, se calhar, vai ter de mudar de roupa.

- Parece-me boa ideia - concordou Alex. - E se mais logo fôssemos todos ao parque? Isto, se tu também quiseres ir andar de baloiço.

- Quem quer ir andar de baloiço não sou eu, é a Vanessa. E é só a fingir, paizinho.

- Oh - disse ele -, nesse caso, está bem. - Tornou a levantar-se. “Esquece a ida ao parque”, pensou.

Perdida no seu mundo, Kristen começou uma vez mais a despir a boneca. No preciso momento em que Alex deitava uma olhadela ao ecrã para ver como estava Josh, entrou um adolescente no armazém, trajado apenas com uns calções de praia pelo joelho. O rapaz entregou-lhe um maço de notas.

- Para pagar a gasolina da bomba do ancoradouro - disse-lhe ele antes de sair a toda a pressa.

Alex registou o dinheiro e accionou a bomba enquanto Katie se dirigia à caixa. Os mesmos artigos do costume, com o acréscimo duma bisnaga de protector solar. Quando ela espreitou por cima do balcão para ver Kristen, Alex reparou que a cor dos seus olhos se modificava consoante a luz.

- Encontrou tudo de que precisava?

- Encontrei, obrigada.

Ele começou a pôr-lhe as compras dentro do saco.

- O meu romance preferido de Dickens é Grandes Esperanças - comentou ele, fazendo o possível por adoptar um tom amistoso. - E o seu, qual é?

Ao invés de lhe responder de imediato, Katie mostrou-se surpreendida por ele ainda se lembrar que ela lhe dissera que gostava de Dickens.

- Um Conto de Duas Cidades - disse-lhe por fim num fio de voz.

- Também gosto desse, embora seja triste.

- Pois é - concordou ela. - É por isso que me agrada.

Uma vez que Alex sabia que ela iria a pé para casa, enfiou o saco das compras dentro doutro a fazer de reforço.

-- bom, visto que já conhece a minha filha, acho que é altura de eu me apresentar. Chamo-me Alex - disse ele. - Alex Wheatley.

- O nome dela é Miss Katie - palrou Kristen por detrás do balcão. - Mas eu já te tinha dito, não te lembras? - Alex deitou-lhe uma olhadela por cima do ombro. Quando se tornou a virar, Katie entregou-lhe o dinheiro com um sorriso.

- Katie basta - disse ela.

- É um prazer conhecê-la, Katie. - Girou as chaves, e a gaveta da caixa registadora abriu-se com um tinido. - Calculo que more aqui por perto?

Ela nunca lhe chegou a responder. Em lugar disso, quando olhou para ela, Alex reparou que os seus olhos se tinham arregalado de medo. Ao dar meia-volta repentina, percebeu o que ela vira no ecrã atrás dele: Josh dentro de água, completamente vestido e em pânico, a esbracejar. Alex sentiu um aperto súbito na garganta e deixou-se guiar pelo instinto, largando a correr de detrás do balcão e precipitando-se pelo armazém até aos fundos. Ao transpor a porta de rompante, foi contra um caixote de toalhas de papel, atirando-as pelos ares, mas nem assim abrandou.

Abriu a porta das traseiras, sentindo a adrenalina a afluir-lhe ao corpo enquanto saltava por cima duns arbustos, cortando caminho para o ancoradouro. Chegou à plataforma de madeira num abrir e fechar de olhos. Ao mergulhar do ancoradouro, Alex reparou em Josh a engasgar-se com a água, a dar aos braços com todas as forças que tinha.

com o coração a bater violentamente contra a caixa torácica, Alex precipitou-se pelo ar, atingindo a água a curta distância de Josh. O rio não era muito fundo - não chegaria a dois metros de profundidade -, mas, quando os seus pés tocaram no lodo macio e instável do leito, ficou enterrado até à barriga das pernas. Debateu-se para voltar à superfície, acusando o esforço nos braços esticados a tentar chegar a Josh.

- Já te agarrei! - gritou-lhe. - Já te agarrei!

Josh, porém, esbracejava e tossia, incapaz de recuperar o fôlego, e Alex viu-se em dificuldades para o controlar enquanto o puxava para uma zona com pé. Então, a grande custo, içou o filho e levou-o para a margem relvada, à medida que as diversas alternativas lhe afloravam sucessivamente ao pensamento: reanimação cardiorrespiratória, lavagem ao estômago, respiração boca a boca. Tentou deitar Josh no chão, mas o filho resistiu. Continuava a debater-se e a tossir, e, apesar do pânico que o afligia, Alex teve presença de espírito suficiente para perceber que isso significava que Josh iria certamente recuperar.

Não soube dizer quanto tempo passou - provavelmente apenas alguns segundos, embora lhe tivesse parecido uma eternidade até Josh soltar uma tossidela ruidosa, vomitando água e conseguindo finalmente recuperar o fôlego. Inspirou fundo e tossiu uma vez mais, voltou a inspirar e a tossir, até que a tosse foi acalmando para algo semelhante a um pigarro. Respirou fundo algumas vezes, ainda tomado de pânico, e foi só então que o rapaz deu mostras de se aperceber do que sucedera.

Chegou-se ao pai, e Alex aconchegou-o nos seus braços. Josh começou a chorar, os ombros a estremecerem-lhe, e Alex sentiu-se nauseado só de pensar no que poderia ter acontecido. Qual teria sido o destino do filho caso ele não tivesse reparado em Katie de olhar fixo no ecrã? E se tivesse sido tarde de mais? As respostas a estas perguntas deixaram-no tão trémulo quanto o próprio filho.

A seu tempo, os soluços de Josh foram abrandando e ele começou a balbuciar as primeiras palavras desde que Alex o tirara da água.

- Desculpa, paizinho - disse ele com a voz estrangulada.

- Eu é que tenho de te pedir desculpa - sussurrou-lhe Alex em resposta, ainda abraçado ao filho, com receio de que, se o largasse, o tempo começasse a andar para trás e, desta feita, o resultado fosse diferente.

Quando finalmente teve coragem para largar o filho, Alex deparou com uma multidão nas traseiras do armazém. Viu Roger e todas as pessoas que tinham estado sentadas às mesas. Outros dois clientes, provavelmente dois recém-chegados, espreitavam-nos de pescoço empertigado. E, como não podia deixar de ser, Kristen também lá estava. Subitamente, ao ver que a sua menina, apesar de estar ao colo de Katie, chorava, cheia de medo e a sentir a falta dele, teve noção de que era um péssimo pai.

Foi só depois de ele e de o filho terem mudado de roupa que Alex conseguiu compreender na totalidade o que se passara. Roger cozinhara dois hambúrgueres com batatas fritas para as suas crianças, e estavam todos sentados a uma mesa na zona dos churrascos, embora nenhum deles desse mostras de grande apetite.

- A linha da minha cana de pesca ficou presa num barco que ia a partir, e eu não quis ficar sem a cana. Julguei que a linha se fosse rebentar logo, mas ela arrastou-me e eu engoli imensa água. Depois não conseguia respirar e tive a sensação de que havia uma coisa a puxar-me para o fundo. - Dito isto, Josh hesitou. - Acho que deixei cair a cana de pesca no rio.

Kristen estava sentada junto do irmão, os olhos ainda vermelhos e inchados. Pedira a Katie que ficasse um bocadinho a fazer-lhe companhia, e esta continuava a seu lado, sem nunca lhe largar a mão.

- Não tem importância. Daqui a pouco eu vou até lá dar uma vista de olhos e, se não a conseguir encontrar, compro-te uma nova. Mas, da próxima vez, largas logo a cana, está bem?

Josh fungou e assentiu com a cabeça.

- Estou muito arrependido - disse ele.

- Foi um acidente - tranquilizou-o Alex.

- Mas agora o pai nunca mais me vai deixar ir pescar sozinho.

“E tornar a correr o risco de ficar sem ti?”, pensou Alex. “Nem pensar.”

- Depois conversamos sobre isso, está bem? - disse ele ao invés.

- E se eu prometer que da próxima vez largo logo a cana de pesca?

- Já disse que depois conversamos. E agora, se comesses qualquer coisa?

- Não estou com fome.

- Eu sei. Mas é hora do almoço e tens de comer.

Josh pegou numa batata frita e deu uma dentada tímida, mastigando de forma mecânica. Kristen seguiu-lhe o exemplo. Quando estavam à mesa, tinha tendência a imitar tudo quanto o irmão fazia. Josh perdia as estribeiras com isso, mas naquele momento não teve forças para protestar.

Alex voltou-se para Katie. Engoliu em seco, tomado por um nervoso súbito.

- Não se importa de que lhe dê uma palavrinha?

Ela levantou-se da mesa, e ele levou-a para um sítio onde as crianças não os ouvissem. Quando teve a certeza de que era seguro, pigarreou.

- Queria agradecer-lhe por aquilo que fez.

- Mas eu não fiz nada - protestou ela.

- Ai isso é que fez - insistiu ele. - Se não tivesse olhado para o ecrã, não sei o que poderia ter acontecido. É bem possível que eu não chegasse a tempo. - Interrompeu-se momentaneamente. - E também lhe quero agradecer por ter tomado conta da Kristen. Não há no mundo criança mais meiga que ela, mas é muito sensível. Foi para mim um alívio saber que não a deixou sozinha. Mesmo enquanto nós fomos lá acima mudar de roupa.

- Eu fiz o que qualquer outra pessoa teria feito - salientou Katie. Durante o silêncio que se seguiu, pareceu ganhar consciência súbita da proximidade de ambos e recuou ligeiramente. - É melhor ir andando.

- Espere - pediu-lhe Alex. Dirigiu-se às vitrinas frigoríficas ao fundo do armazém. - Gosta de vinho?

Ela abanou a cabeça.

- Às vezes, mas...

Sem lhe dar tempo a acabar a frase, Alex deu meia-volta e abriu a vitrina. Empoleirou-se em bicos de pés e tirou uma garrafa de chardonnay da última prateleira.

- Por favor - insistiu ele. - Faço questão de que fique com ela. É um óptimo vinho. Eu sei que ninguém esperaria encontrar um bom vinho num armazém como este, mas quando eu estava no Exército, tinha um amigo que me iniciou em questões vinícolas. Ele é uma espécie de especialista amador e é ele quem escolhe os vinhos que eu tenho na loja. Espero que goste.

- Não precisa de fazer isso.

- É o mínimo que posso fazer. - Rasgou-lhe um sorriso. - É uma maneira de lhe agradecer.

Pela primeira vez desde que se conheciam, ela susteve-lhe o olhar.

- Então, está bem - acedeu por fim.

Pegou no saco das compras e abandonou o armazém. Alex regressou à mesa. À custa de mais alguns incentivos, Josh e Kristen lá comeram o almoço até ao fim, e Alex dirigiu-se ao ancoradouro a ver se descobria a cana de pesca. Quando regressou, Joyce já estava a vestir o seu avental, e Alex aproveitou para ir dar um passeio de bicicleta com os filhos. Depois, levou-os a Wilmington, onde assistiram a um filme e foram comer uma pizza, os velhos recursos quando se tratava de passar tempo em família. Quando chegaram a casa, estavam exaustos, e o Sol já se pusera. Tomaram um duche e vestiram o pijama. Alex deitou-se na cama com um filho de cada lado, a ler-lhes histórias, até que por fim, uma hora decorrida, apagou as luzes.

Foi para a sala de estar e ligou o televisor, percorrendo os vários canais durante um bocado, mas não estava com disposição para ver nada. Os seus pensamentos voltaram-se novamente para Josh e, embora soubesse que o filho estava em segurança no quarto, sentiu um arrepio de medo idêntico ao que sentira antes, a mesma sensação de fracasso. Apesar de estar a fazer o melhor que podia pelos filhos e de não lhes poder ter mais amor que aquele que tinha, sentia que não era suficiente.

Mais tarde, muito depois de Josh e de Kristen terem adormecido, foi até à cozinha e tirou uma cerveja do frigorífico. Sentou-se no sofá com a lata pousada em cima dos joelhos. As recordações do dia insistiam em aflorar-lhe ao espírito, mas, desta feita, eram da filha e da maneira como se agarrara a Katie, a sua carita aninhada no pescoço da rapariga.

A última vez a que assistira a uma cena idêntica, reflectiu, ainda Carly estava viva.

 

Abril cedeu lugar a Maio, e os dias foram passando. O restaurante foi ficando cada vez mais concorrido, e o dinheiro que Katie tinha escondido na lata do café foi crescendo a um ritmo tranquilizador. Já não entrava em pânico de cada vez que pensava que lhe poderiam faltar os meios para abandonar aquela casa, caso necessário fosse.

Pela primeira vez em anos, mesmo depois de pagar a renda e os bens de primeira necessidade, ainda lhe sobrava dinheiro. Não muito, mas o suficiente para lhe permitir sentir-se leve e livre. Na sexta-feira de manhã, decidiu passar pela Anna Jeans, uma loja especializada em artigos de vestuário em segunda mão. Levou a manhã quase toda a vasculhar as roupas disponíveis, mas acabou por comprar dois pares de sapatos, vários pares de calças e de calções, três T-shirts elegantes e ainda algumas camisas, quase todos artigos de marca e praticamente novos. Katie admirava-se de que existissem mulheres que tinham tanta roupa bonita que se podiam dar ao luxo de dar aquilo que provavelmente custara uma pequena fortuna num centro comercial.

Quando Katie chegou a casa, encontrou Jo a pendurar um espanta-espíritos. Desde o primeiro encontro de ambas que praticamente não tinham voltado a conversar. O trabalho de Jo, fosse lá qual fosse, parecia ocupar-lhe muito do seu tempo, e Katie fazia o maior número possível de turnos no restaurante. Reparara que, à noite, Jo tinha as luzes acesas, mas já era muito tarde para passar por casa dela e, no fim-de-semana anterior, a vizinha ausentara-se.

- Há quanto tempo não falamos uma com a outra - cumprimentou-a Jo enquanto lhe acenava. Tocou ao de leve no espanta-espíritos para o fazer tilintar e em seguida atravessou o pátio.

Katie entrou no alpendre e pousou os sacos das compras.

- Por onde é que tens andado?

Jo encolheu os ombros.

- Já sabes como é. Deitar tarde, acordar cedo, sempre dum lado para o outro. Passo metade da vida sem saber para onde me hei-de virar, de tanto que tenho de fazer. - Apontou para as cadeiras de baloiço. - Não te importas? Preciso de fazer um intervalo. Andei toda a manhã em limpezas e acabei de pendurar aquele espanta-espíritos que ali vês. Sabes, gosto do som que faz.

- Está à vontade - disse-lhe Katie.

Jo instalou-se numa das cadeiras e rodou os ombros a fim de os libertar da tensão.

- Andaste a apanhar sol - comentou ela. - Foste à praia?

- Não - respondeu-lhe Katie. Afastou um dos sacos para o lado de modo a arranjar espaço para os pés. - Na semana passada, consegui que me dessem alguns turnos a mais e estive a trabalhar na esplanada.

- Sol, mar... e que mais? Trabalhar no Ivans deve ser como estar de férias.

Katie riu-se.

- Olha que nem por isso. Então, e tu?

- Ultimamente não tenho tido sol. - Apontou com a cabeça para os sacos. - Hoje de manhã, ainda fui bater à tua porta para te pedinchar um café, mas já tinhas saído.

- Fui às compras.

- Isso vejo eu. Encontraste alguma coisa que te agradasse?

- Acho que sim - admitiu Katie.

- bom, então não fiques para aí sentada, mostra-me o que compraste.

- Tens a certeza de que queres ver?

Jo soltou uma gargalhada.

- Moro num chalé ao fundo duma estrada de gravilha no meio de nenhures e passei a manhã toda a lavar os armários da cozinha. com que queres tu que me distraia?

Katie retirou um par de calças de ganga do saco e estendeu-lho. Jo segurou-as ao alto, mirando-as dum lado e doutro.

- Uau! exclamou ela. - Até aposto que compraste isto na Anna Jeans. Adoro aquela loja.

- Como é que sabes que fui à Anna Jeans?

- Porque é muito pouco provável que qualquer outra das lojas daqui venda roupas tão bonitas. Isto veio do guarda-roupa dalguém. Do guarda-roupa duma mulher rica. A maior parte das coisas está praticamente nova. - Jo pousou as calças no colo e fez deslizar os dedos pelo pespontado dos bolsos. - São giríssimas! Adoro estes motivos! - Deu uma espreitadela para dentro do saco. - Que mais compraste tu?

Katie foi-lhe passando os artigos para a mão, ouvindo Jo a deliciar-se com cada um que via. Quando o saco ficou vazio, Jo soltou um suspiro.

- Pronto, é oficial. Estou com inveja. E, deixa-me adivinhar, não ficou mais nada que prestasse na loja, pois não?

Katie encolheu os ombros, tomada por um acanhamento repentino.

- Peço desculpa - disse. - Ainda estive lá bastante tempo.

- bom, fico contente por ti. Isso que aí tens são tesouros.

Katie inclinou a cabeça na direcção da casa de Jo.

- Já começaste com as pinturas?

?- Ainda não.

- Tens andado ocupada com trabalho?

Jo fez uma careta.

- Para ser franca, depois de desfazer as malas e de limpar a casa duma ponta à outra, faltaram-me as forças. Ainda bem que és minha amiga, porque assim sempre posso vir até cá de vez em quando e ver a tua casa, que é alegre e vistosa.

- Estás à vontade para cá vires sempre que quiseres.

- Obrigada. Fico-te muito agradecida. Mas o malvado do Mister Benson ficou de me mandar entregar umas latas de tinta amanhã. Motivo a que também se deve a minha vinda. Fico horrorizada só de pensar em passar o fim-de-semana toda salpicada de tinta.

- Não é tão mau quanto possas pensar. Sai com facilidade.

- Estás a ver estas mãos? - disse Jo, esticando-as ao alto. - Estas mãos que aqui vês foram feitas para acariciar homens jeitosos e para ser enfeitadas com unhas bonitas e anéis de diamantes. Não foram feitas para rolos e borrifos de tinta, nem para trabalhos manuais do género.

Katie riu-se à socapa.

- Já percebi que queres que te vá dar uma ajuda.

- Nem pensar numa coisa dessas. Posso ser especialista em protelação, mas a última coisa que quero que penses é que, ainda por cima, sou incompetente. Porque a verdade é que me aplico afincadamente em tudo o que faço.

Um bando de estorninhos debandou repentinamente das árvores, deslocando-se a um ritmo quase musical. O movimento das cadeiras de baloiço arrancava um ligeiro rangido ao alpendre.

- E o que é que fazes, afinal? - interpelou-a Katie.

- Dou uma espécie de aconselhamento.

- Aos alunos do secundário?

- Não - disse ela, abanando a cabeça. - A pessoas enlutadas.

- Oh - disse Katie. Fez uma pausa. - Confesso que não estou a ver bem como isso funcionará.

Jo encolheu os ombros.

- Eu visito as pessoas e procuro ajudá-las. Em geral é porque sofreram a morte duma pessoa próxima. - Fez uma pausa e, quando tornou a falar, foi em voz mais baixa. - As pessoas reagem de maneiras muito diferentes, e o meu papel é descobrir uma forma de as ajudar a aceitar o que aconteceu... uma palavra que, a propósito, detesto, pois ainda estou para conhecer alguém disposto a “aceitar”... mas a minha função resume-se basicamente a isto. Porque no final, por muito difícil que a situação possa ser, a aceitação ajuda as pessoas a levar a vida por diante. Embora haja alturas...

A voz esmoreceu-lhe. Aproveitou o silêncio que se seguiu para arrancar uma lasca de tinta da cadeira de baloiço.

- Há alturas em que estou com alguém e vêm outros problemas à tona. É dum caso desses que tenho andado a tratar ultimamente. Porque há ocasiões em que as pessoas necessitam doutro tipo de ajuda.

- Deve ser um trabalho gratificante.

- Sem dúvida. Embora apresente os seus desafios. - Virou-se para Katie. - Então, e tu?

- Já sabes que trabalho no Ivans.

- Mas não me contaste mais nada a teu respeito.

- Não há muito que contar - retorquiu Katie, na esperança de desviar o rumo da conversa.

- Está claro que há. Toda a gente tem uma história. - Fez nova pausa. - Por exemplo, qual foi o verdadeiro motivo da tua vinda para Southport?

- Já te contei - disse Katie. - Queria começar uma nova vida.

Jo perscrutou-a com olhar atento enquanto avaliava a resposta.

- Muito bem - disse finalmente em tom ligeiro. - Tens razão. Não tenho nada que ver com isso.

- Não foi isso que eu disse...

- Ai isso é que foi. Só que disseste duma maneira simpática. E eu respeito a tua resposta porque tens razão; não é da minha conta. No entanto, só para que saibas, quando dizes que queres começar uma nova vida, a minha faceta de terapeuta interroga-se a que se deve essa tua necessidade de começar uma nova vida. E, acima de tudo, o que foi que deixaste para trás.

Katie sentiu a tensão a acumular-se-lhe nos ombros. Ao pressentir-lhe a inquietação, Jo prosseguiu.

- Então, e se fizéssemos o seguinte? - propôs ela em tom amável. - Esquece que eu te fiz esta pergunta. Só quero que saibas que, se precisares de conversar, eu estarei disponível para te ouvir, está bem? Sou boa ouvinte. Sobretudo no que toca aos amigos. E, quer acredites, quer não, há ocasiões em que falar ajuda.

- E se eu não puder falar sobre isso? - disse Katie num murmúrio involuntário.

- Então, e se fizéssemos assim: esquece que eu sou terapeuta. Somos apenas amigas, e os amigos podem falar sobre tudo e mais alguma coisa. Como, por exemplo, onde nasceste ou duma boa recordação que guardes da infância.

- E que importância tem isso?

- Nenhuma. E é precisamente aí que eu quero chegar. Se não me quiseres contar nada, não contes.

Katie assimilou as suas palavras e em seguida mirou-a de esguelha.

- És muito boa naquilo que fazes, não és?

- Faço o possível por isso - admitiu Jo.

Katie entrelaçou os dedos no colo.

- Sendo assim, está bem. Nasci em Altoona - informou-a.

Jo recostou-se na cadeira de baloiço.

- Nunca lá estive. É um sítio bonito?

- É uma daquelas cidades antigas que surgiram graças aos caminhos-de-ferro - explicou-lhe -, não sei se estás a ver o género. Uma cidade cheia de gente decente e trabalhadora cujo único objectivo é construir uma boa vida. E também é bonita, sobretudo no Outono, quando as folhas começam a amarelecer. Em tempos, achei que não havia sítio mais bonito no mundo. - Baixou os olhos, vagamente perdida em recordações. - Tive uma amiga chamada Emily, e as duas tínhamos o hábito de pôr moedas nos carris do comboio. Depois de o comboio ter passado, púnhamo-nos a andar por ali às voltas, a ver aonde tinham caído, e, quando por fim as encontrávamos, ficávamos muito admiradas por as gravações terem desaparecido completamente. Havia ocasiões em que as moedas ainda estavam quentes. Lembro-me que duma vez por pouco não queimei os dedos. Quando penso na minha infância, é quase sempre sobre prazeres deste género.

Katie encolheu os ombros, mas Jo permaneceu em silêncio, encorajando-a a continuar.

- bom, foi lá que frequentei a escola. Do primeiro ao último ano. Acabei por concluir o secundário lá, mas nessa altura, não sei... Acho que já estava farta... farta de tudo aquilo, entendes-me? A vida numa cidade pequena, onde os fins-de-semana são todos iguais. As mesmas pessoas a irem às mesmas festas, os mesmos rapazes a beberem cerveja nas traseiras das carrinhas. Eu queria mais que aquilo, mas não consegui entrar na universidade e, resumindo, acabei por ir parar a Atlantic City. Trabalhei lá durante uns tempos, andei dum lado para o outro e agora, uns anos decorridos, cheguei aqui.

- A outra cidade pequena onde está tudo sempre na mesma.

Katie abanou a cabeça.

- Aqui é diferente. Faz-me sentir...

Ao vê-la hesitante, Jo concluiu a frase por ela.

- Segura?

Quando o olhar espantado de Katie se fixou no seu, Jo mostrou-se admirada.

- Não foi assim tão difícil de lá chegar. Tal como disseste, estás a começar uma nova vida, e haverá sítio melhor para isso que este? Uma terra onde nunca acontece nada? - Fez outra pausa. - bom, não é exactamente verdade. Ouvi dizer que, aqui há umas semanas, houve um leve rebuliço. Foi num dia em que tu foste ao armazém, não foi?

- Ouviste falar nisso?

- Estamos numa cidade pequena. Seria impossível não ouvir. O que foi que aconteceu?

- Foi assustador. Eu estava muito bem a falar com o Alex quando olhei para o ecrã, e ele deve ter reparado logo na minha expressão, porque, de repente, passou disparado por mim. Largou a correr pelo armazém fora como se fosse uma flecha, e depois a Kristen também olhou para o ecrã e entrou em pânico. Eu peguei nela ao colo e fui atrás do pai. Quando lá cheguei, o Alex já tinha tirado o Josh da água. Ainda bem que não foi nada de grave.

- Sem dúvida. - Jo assentiu com a cabeça. - E o que é que achas da Kristen? Não a achas uma ternura de miúda?

- Trata-me por Miss Katie.

- Eu adoro aquela criança - confessou Jo, aconchegando os joelhos junto ao peito. - Mas não me surpreende nada que vocês as duas se dêem bem. Nem tão-pouco que ela se tenha chegado a ti quando se viu com medo.

- Por que é que dizes isso?

- Porque ela é uma criança extremamente perspicaz. Já percebeu que tens bom coração.

Katie afivelou uma expressão céptica.

- Talvez ela estivesse apenas com medo por causa do irmão e, quando o pai se foi embora, eu era a única pessoa disponível para a ajudar.

- Não te menosprezes. Tal como te acabei de dizer, ela é perspicaz. - Jo insistiu com ela. - Então, e o Alex? Depois disso, quero eu dizer?

- Ele ficou bastante abalado, mas, fora isso, pareceu-me bem.

- Tens conversado muito com ele desde então?

Katie encolheu os ombros como quem evita comprometer-se.

- Nem por isso. Ele é sempre simpático quando eu vou ao armazém e faz o possível por ter em stock as coisas que eu costumo comprar, mas não passa daí.

- Ele tem jeito para esse tipo de coisas - reconheceu Jo em tom convicto.

- Quem te ouvir falar julga que o conheces muito bem.

Jo embalou-se ligeiramente na cadeira.

- E acho que conheço mesmo.

Katie ficou à espera de mais, mas a amiga quedou-se em silêncio.

- Apetece-te falar sobre isso? - interpelou-a Katie em tom de inocência. - Porque falar às vezes ajuda, sobretudo com uma amiga.

Os olhos de Jo cintilaram.

- Sabes, sempre suspeitei de que eras muito mais astuciosa que aquilo que dás a entender. A virar as minhas próprias palavras contra mim... Devias ter vergonha.

Katie sorriu, mas escusou-se a comentários, tal como Jo lhe fizera a ela. E, para sua grande surpresa, deu resultado.

- Não sei ao certo o quanto te poderei adiantar - acrescentou Jo. - Mas duma coisa podes ter a certeza: ele é um bom homem. É o tipo de pessoa de quem se pode esperar que tome sempre a atitude mais correcta. Vê-se isso pelo amor que tem aos filhos.

Katie comprimiu momentaneamente os lábios.

- Vocês já alguma vez saíram juntos?

Jo deu a impressão de escolher as palavras com cuidado.

- Sim, mas talvez não no sentido em que possas estar a pensar. E que fique desde já bem claro: foi há muito tempo, e entretanto cada um foi à sua vida.

Katie não soube bem que interpretação dar à resposta dela, mas preferiu não insistir.

- Então, e qual é a história dele? Calculo que seja divorciado, não é?

- Devias perguntar-lhe.

- Eu? Por que carga-dágua é que eu lhe haveria de querer perguntar semelhante coisa?

- Porque me perguntaste a mim - ripostou Jo, arqueando uma sobrancelha. - O que quer dizer, claro está, que estás interessada nele.

- Não estou nada interessada nele.

- Então, por que haverias tu de querer saber a respeito da vida dele?

Katie franziu o sobrolho.

- Olha que, para quem se diz minha amiga, estás a ser manipuladora.

Jo encolheu os ombros.

- Eu limito-me a dizer às pessoas aquilo que elas próprias já sabem, mas que têm medo de admitir.

Katie reflectiu no que acabava de ouvir.

- Só para que não restem dúvidas, retiro oficialmente a oferta que fiz para te ajudar a pintar a casa.

- Mas já tinhas prometido.

- Eu sei, mas volto com a palavra atrás.

Jo riu-se.

- Está bem - cedeu ela. - Olha, quais são os teus planos para esta noite?

- Daqui a pouco, tenho de ir para o emprego. Aliás, o melhor é ir-me arranjando.

- Então, e hoje à noite? Também vais trabalhar?

- Não, tenho o fim-de-semana de folga.

- Então, e se eu te viesse fazer uma visita e trouxesse uma garrafa de vinho? Tenho a certeza de que vou estar a precisar e não quero ficar em casa a inalar o cheiro a tinta. Parece-te boa ideia?

- Parece-me uma excelente ideia.

- Óptimo. - Jo pousou os pés no chão e levantou-se da cadeira. -- Está combinado.

 

Sábado amanheceu com céu limpo, mas as nuvens não tardaram a acumular-se. Cinzentas e espessas, redemoinhavam e serpenteavam ao vento crescente. A temperatura começou a descer a pique e, quando Katie saiu de casa, teve de levar uma sweat-shirt. O armazém ficava a menos de três quilómetros de distância do chalé, sensivelmente meia hora de caminhada a um ritmo regular, e sabia que, se não quisesse ser surpreendida pela tempestade, teria de se apressar.

Mal chegou à estrada principal, ouviu o primeiro trovão a ribombar. Estugou o passo, sentindo o ar a adensar-se à sua volta. Um camião passou por ela a grande velocidade, deixando uma nuvem de poeira no seu rasto, e Katie desviou-se para a berma arenosa da estrada. O ar ressumava a maresia. Por cima da sua cabeça, um búteo-de-cauda-vermelha elevava-se a custo no céu contra a correnteza do vento, testando-lhe a força.

O ritmo regular das suas passadas abstraiu-a, e Katie deu por ela a reflectir na conversa que tivera com Jo. Não nos episódios que esta lhe contara, mas nalgumas coisas que a vizinha dissera a respeito de Alex. Jo, concluiu ela, não sabia do que falava. Aproveitando-se do facto de Katie estar apenas a tentar fazer conversa, deturpara as suas palavras e dera-lhes um sentido que não correspondia totalmente à verdade. Que Alex parecia ser uma excelente pessoa, e que, tal como Jo dissera, Kristen era uma ternura de miúda, não estava obviamente em causa, mas daí até Katie estar interessada nele ia um grande passo. Se mal o conhecia! Desde que Josh caíra ao rio, não tinham trocado mais de meia dúzia de palavras, e a última coisa que ela desejava era um relacionamento amoroso, fosse ele de que género fosse.

Então, por que seria que ficara com a sensação de que Jo os pretendia juntar?

Não sabia e, para ser sincera, não lhe dava grande importância. Estava contente por Jo ter ficado de passar por sua casa nessa noite. Apenas duas boas amigas, a saborear um belo copo de vinho... Não era nada por aí além, sabia-o. As outras pessoas, as outras mulheres, faziam o mesmo constantemente. Franziu o sobrolho. Pronto, talvez não constantemente, mas supunha que a maioria poderia fazer isso quando muito bem entendesse, e era essa a principal diferença entre elas e Katie. Havia quanto tempo não fazia qualquer coisa que lhe parecesse normal?

Desde a infância, reconheceu. Desde os tempos em que punha moedas nos carris dos comboios. Todavia, não fora completamente sincera com Jo. Não lhe contara que, muitas vezes, ia para a via-férrea para se alhear das discussões dos pais, as suas vozes pastosas a insultarem-se mutuamente. Não contara a Jo que, em mais que uma ocasião, se encontrara no meio do fogo cruzado, nem tão-pouco que, aos doze anos, fora atingida por um globo de neve que o pai atirara à mãe. Abrira-lhe um lenho na cabeça que sangrara horas a fio, mas nem a mãe nem o pai tinham dado mostras de a querer levar ao hospital. Não contara a Jo que, quando estava embriagado, o pai era mau, nem que nunca convidara ninguém, nem sequer Emily, para ir a sua casa, nem que não conseguira entrar na universidade porque os pais estavam convencidos de que era um desperdício de tempo e de dinheiro. Nem que a tinham posto na rua no dia em que concluíra o secundário.

Talvez, cogitou, se decidisse a contar estas coisas a Jo. Ou talvez não. Não era de importância vital. Que diferença fazia que não tivesse tido uma infância idílica? Era verdade que os pais eram alcoólicos e que estavam quase sempre desempregados, mas, à excepção do acidente com o globo de neve, nunca lhe tinham batido. Também era verdade que nunca lhe tinham oferecido um automóvel nem dado nenhuma festa de anos, mas também nunca fora para a cama com fome e, no Outono, por pouco dinheiro que houvesse em casa, sempre tivera roupa que estrear para a escola. O pai poderia não ser o ideal, mas nunca lhe entrara sorrateiramente no quarto à noite para abusar dela, coisa que ela sabia que acontecia às amigas. Aos dezoito anos, não se considerava uma rapariga marcada. Um pouco desiludida por causa de não poder ir para a universidade, talvez, mas não irremediavelmente traumatizada. E conseguira vencer na vida. A experiência em Atlantic City não fora tão má quanto isso. Conhecera alguns rapazes simpáticos e tinha memória de, em várias ocasiões, ter estado na risota e na conversa com as amigas do emprego até altas horas da madrugada. Não, recordou a si própria, a infância não a definia, nem tão-pouco estava relacionada com o verdadeiro motivo da sua vinda para Southport. Embora Jo fosse a pessoa naquela localidade que mais próxima estava de ser sua amiga, não sabia rigorosamente nada a seu respeito. Nem ela, nem ninguém.

- Olá, Miss Katie - cantarolou Kristen da sua mesinha. Hoje não era dia de bonecas. Em lugar disso, estava debruçada sobre um livro de colorir, entretida a pintar uma gravura com unicórnios e arco-íris a lápis de cor.

- Olá, Kristen. Estás boa?

- Bem, obrigada. - Levantou a cabeça do livro de colorir. - Por que é que vem sempre para cá a pé?

Após uma breve hesitação, Katie contornou o balcão e acocorou-se ao nível de Kristen.

- Porque não tenho carro.

- E porquê?

“Porque não tenho carta de condução”, pensou ela. “E, mesmo que tivesse, não teria dinheiro para comprar um carro.”

- Já sei o que vamos fazer. Eu vou pensar em arranjar um, está bem?

- Está bem - acedeu a menina. Mostrou-lhe o livro de colorir.

- O que é que acha do meu desenho?

- Está muito bonito. Estás a sair-te lindamente.

- Obrigada - disse ela. - Quando estiver pronto, ofereço-lho.

- Não precisas de fazer isso.

- Eu sei - declarou ela com uma autoconfiança irresistível.

- Mas eu quero. Pode pendurá-lo na porta do seu frigorífico.

Katie sorriu-lhe e levantou-se.

- Era precisamente nisso que eu estava a pensar.

- Precisa de ajuda para fazer as compras?

- Acho que hoje sou capaz de me desenvencilhar sozinha. E, assim, podes acabar de colorir o desenho.

- Está bem - concordou ela.

Quando foi buscar um cesto, reparou que Alex se aproximava. Ele acenou-lhe e, embora isso não fizesse sentido para ela, Katie teve a sensação de que o estava a ver pela primeira vez. Apesar de ter o cabelo grisalho, Alex não tinha praticamente rugas nos cantos dos olhos, para além de que, ao invés de o envelhecerem, estas contribuíam para a sua aparência geral de vitalidade. Os ombros largos afunilavam-se numa cintura esguia, e ela ficou com a impressão de que ele era um homem comedido tanto na bebida como na comida.

- Olá, Katie, como tem passado?

- Bem, obrigada. E você?

- Não me posso queixar. - Rasgou-lhe um sorriso. - Ainda bem que apareceu por cá. Tenho uma coisa que lhe quero mostrar.

- Alex apontou para o ecrã, e ela viu Josh sentado no ancoradouro com a cana de pesca na mão.

- Deixou-o voltar para lá? - admirou-se Katie.

- Já reparou no colete que ele tem vestido?

De olhos semicerrados, ela aproximou-se mais do ecrã.

- Um colete de salvação?

- Demorei algum tempo até encontrar um que não lhe prendesse os movimentos nem lhe fizesse muito calor. Mas aquele ali é o ideal. E, na verdade, não tive outra alternativa. Nem imagina como ele andava abatido por não poder ir pescar. Perdi a conta às vezes que me suplicou para que o deixasse ir. Já não o podia ouvir e esta pareceu-me ser a melhor solução.

- E ele não se importa de o usar?

- Temos uma regra nova: ou o usa, ou não vai pescar. Mas estou convencido de que não se importa.

- E ele costuma apanhar muitos peixes?

- Não tantos quantos gostaria, mas, sim, costuma apanhar alguns.

- E comem-nos?

- Às vezes. - Alex assentiu com a cabeça. - Embora, em geral, o Josh os torne a atirar à água. Ele não se importa de estar constantemente a apanhar os mesmos peixes.

- Ainda bem que conseguiu arranjar uma solução.

- Se eu fosse um pai mais atento, provavelmente ter-me-ia precavido de antemão.

Katie encarou-o pela primeira vez.

- Eu tenho a impressão de que é um pai bastante atento.

Sustiveram o olhar durante uns momentos até que ela se obrigou a desviar a cara. Alex, pressentindo-lhe o embaraço, começou a vasculhar atrás do balcão.

- Trabalho com uma pequena quinta, e eles têm uma estufa onde cultivam vegetais que os outros produtores não têm. Ainda ontem passaram por cá e me deixaram ficar alguns vegetais: tomates, pepinos e algumas variedades de abóbora. Talvez gostasse de as experimentar. A minha mulher jurava a pés juntos que eram as melhores que provara na vida.

- A sua mulher?

Alex abanou a cabeça.

- Peço desculpa. Há alturas em que me esqueço. Refiro-me à minha falecida esposa. Ela morreu vai para alguns anos.

- Lamento saber disso - murmurou Katie, lembrando-se repentinamente da conversa que tivera com Jo.

“Qual é a história dele?”

“Devias perguntar-lhe”, ripostara Jo.

Era óbvio que Jo sabia que a mulher de Alex falecera e, no entanto, não lhe dissera nada a esse respeito. Que estranho!

Alex não reparou que os seus pensamentos estavam longe dali.

- Obrigado - disse-lhe em voz sumida. - Era uma óptima pessoa. A Katie teria gostado dela. - Uma expressão nostálgica perpassou-lhe pelo rosto. - Mas, a verdade é que - acrescentou ele por fim - ela depositava toda a confiança naquela quinta. A família de proprietários pratica agricultura biológica e faz as colheitas à mão. Em geral, os produtos desaparecem mal chegam às prateleiras, mas eu reservei-lhe alguns, para o caso de os querer experimentar. - Sorriu-lhe. - Para além de que a Katie é vegetariana, não é? É o tipo de produtos que não pode deixar de agradar a uma vegetariana. Confie em mim.

Ela olhou-o de soslaio.

- O que é que o leva a pensar que sou vegetariana?

- Não é?

- Não.

- Oh! - exclamou ele, enterrando as mãos nos bolsos. - Foi confusão minha.

- Não faz mal - tranquilizou-o ela. - Já me acusaram de coisas piores.

- Duvido.

“Se fosse a ti, não duvidava”, pensou ela para com os seus botões.

- Está bem - acedeu. - Eu levo os vegetais. E obrigada por mos ter guardado.

 

Enquanto Katie andava a fazer as compras, Alex ficou de volta da caixa registadora, a espreitá-la pelo canto do olho. Arrumou o balcão, deitou uma olhadela a Josh, viu o desenho que Kristen estava a colorir, tornou a arrumar o balcão, fazendo o possível por se mostrar ocupado.

Katie mudara nas últimas semanas. Tinha um leve bronzeado de Verão, e a sua pele apresentava uma frescura radiosa. Começava também a mostrar-se menos assustadiça ao pé dele, sendo hoje um exemplo claro disso mesmo. Era verdade que não tinham feito um grande furor com a sua conversa animada, mas sempre era um princípio, não era?

Mas o princípio de quê?

Logo desde os primeiros tempos, Alex pressentira que ela se encontrava numa situação difícil, e a sua reacção instintiva fora dispor-se a ajudá-la. E, apesar do cabelo mal cortado e das roupas desenxabidas, não havia dúvida de que era bonita. Todavia, fora ao ver Katie a consolar Kristen, depois de Josh ter caído à água, que se sentira genuinamente comovido. E a maneira como a filha reagira a Katie ainda o comovera mais. Kristen agarrara-se a ela como uma criança se agarra à própria mãe.

Alex sentira um nó na garganta que lhe recordara que, tal como ele sentia a falta duma mulher, os filhos também sentiam a falta duma mãe. Sabia que ambos sofriam com a perda dela e fazia tudo ao seu alcance por os compensar, mas fora só no momento em que vira Katie e Kristen juntas que compreendera que a tristeza era apenas uma das faces da moeda. A solidão dos filhos era um reflexo da sua própria solidão.

Censurou-se intimamente por só então ter dado por isso.

Quanto a Katie, ela representava um mistério para ele. Havia algures um elemento em falta, algo que o vinha a atormentar. Deixou-se ficar a observá-la, interrogando-se quem seria de facto e o que a motivara a vir para Southport.

Achava-se ao pé das vitrinas frigoríficas, um sítio onde era a primeira vez que a via, a examinar os artigos através do vidro. Tinha o sobrolho franzido e, enquanto decidia o que haveria de comprar, Alex reparou que contorcia os dedos da mão direita em volta dos da esquerda, a brincar com um anel que não existia. O gesto despertou nele algo familiar e havia muito esquecido.

Era um hábito, um tique em que reparara ao longo dos anos em que trabalhara na DIC e que por vezes observara em mulheres que haviam sido vítimas de maus-tratos e estavam desfiguradas. Costumavam ficar sentadas diante dele, a remexer nas alianças de forma compulsiva, como se fossem algemas que as acorrentavam ao marido. O mais das vezes, negavam que este as tivesse agredido e, nas raras ocasiões em que admitiam a verdade, em geral insistiam em que a culpa não fora dele, que tinham sido elas a provocá-lo. Justificavam-se dizendo que tinham queimado o jantar, ou que não tinham lavado a roupa, ou que o marido tinha andado a beber. E, de todas as vezes sem excepção, estas mesmas mulheres juravam a pés juntos que aquilo nunca antes sucedera e diziam a Alex que não queriam apresentar queixa do marido porque a carreira deste ficaria destruída. Era do conhecimento geral que o Exército não se compadecia dos soldados que maltratavam as esposas.

Algumas havia, porém, que assumiam outro tipo de atitude - pelo menos, a princípio - e que decidiam apresentar queixa. Alex abria então um processo e ouvia-as queixarem-se de que a burocracia parecia ser mais importante que a detenção efectiva. Mais importante que fazer cumprir a lei. Alex elaborava mesmo assim o relatório e lia-lho antes de lhes pedir que assinassem. Era neste momento que a coragem por vezes lhes faltava, e ele vislumbrava a mulher amedrontada que se escondia por detrás da indignação aparente. Muitas acabavam por não assinar, e aquelas que o faziam mudavam rapidamente de ideias logo que o marido era convocado. Estes processos tinham seguimento independentemente da posição que a mulher assumisse. Todavia, quando, mais tarde, a mulher se recusava a depor em tribunal, o marido escapava quase sempre sem castigo. com o tempo, Alex foi constatando que apenas as mulheres que apresentavam queixa se libertavam verdadeiramente, pois, ainda que a maioria tivesse relutância em admiti-lo, a vida que levavam em tudo se assemelhava a uma prisão.

Havia, porém, outra forma de conseguirem escapar ao terror em que viviam, embora, em todos aqueles anos, só tivesse visto uma que o fizera de facto. Numa ocasião, interrogara uma mulher, e esta começara por enveredar pelo caminho habitual de negação e auto-responsabilização. Contudo, uns meses decorridos, descobriu que ela fugira de casa. Não para junto da família ou dos amigos, mas para outro lugar, um lugar onde nem sequer o marido seria capaz de a encontrar. Este, completamente desvairado com a fuga da esposa, passara uma noite entregue à bebida e agredira um membro da Polícia Militar. Acabara na prisão de Leavenworth, e Alex ainda se lembrava da satisfação que sentira no momento em que recebera a notícia. E, de cada vez que pensava na esposa do soldado, sorria e dizia para consigo: “Mas que grande sorte a tua.”

Agora, ao ver Katie a brincar com um anel que não tinha, sentiu o seu velho instinto de investigador a entrar em acção. Ela tivera um marido, concluiu; o marido era o elemento que faltava. Independentemente de Katie ainda continuar casada com ele ou não, Alex teve o pressentimento indesmentível de que ela ainda lhe tinha medo.

O céu explodiu no instante em que Katie se preparava para pegar num pacote de bolachas-dágua-e-sal. Os relâmpagos rasgaram o firmamento e, não tardou, os trovões começaram a crepitar até finalmente se acomodarem a um ribombar barulhento e tempestuoso. Josh correu para dentro do armazém antes de o aguaceiro se abater sobre eles, bem agarrado à sua caixa de apetrechos e à sua cana de pesca. Vinha muito corado e ofegante, como um corredor que corta a linha da meta.

- Olá, pai.

Alex olhou para ele.

- Apanhaste alguma coisa?

- Só o peixe-gato, o mesmo que apanho sempre.

- Daqui a pouco já vamos almoçar, está bem?

Josh desapareceu em direcção às traseiras, e Alex ouviu-o a subir os degraus que conduziam a casa.

Lá fora, a chuva caía em bátegas, e o vento vergastava lençóis de água contra os vidros. Os galhos vergavam-se ao vendaval, curvando-se diante dum poder superior. Os relâmpagos iluminavam o céu escurecido, os trovões ribombavam tão alto que faziam estremecer as janelas. Alex viu Katie a retrair-se ao fundo do armazém, o rosto contraído numa máscara de surpresa e de terror, e deu por ele a perguntar-se se fora assim que o marido em tempos a vira.

A porta do armazém abriu-se e um homem entrou apressado, deixando um rasto de água no velho pavimento de madeira. Sacudiu a água das mangas, cumprimentou Alex com um aceno de cabeça e em seguida dirigiu-se à zona dos grelhados.

Katie virou-se novamente para a prateleira das bolachas-dágua-e-sal. Alex não tinha um sortido muito variado, apenas Saltines e Ritz, as únicas marcas que vendia com regularidade, e ela estendeu a mão para pegar num pacote destas últimas.

Escolheu os artigos habituais e levou o cesto para a caixa. Quando Alex acabou de os registar e de lhos guardar dentro de sacos, apontou para o saco que tinha posto de parte.

- Não se esqueça dos seus vegetais.

Katie deitou uma olhadela ao total indicado na caixa registadora.

- Tem a certeza de que já os registou também?

- Claro.

- Porque o total é praticamente o mesmo do costume.

- Eu fiz-lhe um desconto de lançamento.

Katie franziu o sobrolho, sem saber se haveria de acreditar nele ou não, até que por fim enfiou uma mão dentro do saco. Retirou um tomate e aproximou-o do nariz.

- Cheira bem.

- Eu comi uns quantos ao jantar de ontem. Ficam óptimos com uma pitada de sal, e os pepinos nem precisam de tempero.

Katie assentiu com a cabeça, mas o seu olhar estava fixo na porta. O vento fustigava-a com rajadas violentas de chuva. A porta abriu-se uma nesga com a força da água que se debatia para entrar no armazém. Para lá do vidro, o mundo era uma mancha desfocada.

As pessoas reuniam-se em volta da grelha. Alex ouvia-as a resmungar baixinho que era melhor esperarem que a tempestade amainasse.

Katie respirou fundo para ganhar coragem e preparou-se para pegar nos sacos das compras.

- Miss Katie! - chamou-a Kristen, quase em pânico. Levantou-se repentinamente, mostrando-lhe o desenho que acabara de colorir. Já arrancara a página do livro. - Não se esqueça do seu desenho.

Katie estendeu a mão para pegar nele, ganhando ânimo à medida que o examinava.

Alex reparou que, ainda que por breves instantes, ela parecia completamente alheada do mundo.

- Está muito bonito - murmurou. - Estou desejosa de o pendurar no frigorífico.

- Da próxima vez que cá vier, eu pinto-lhe outro.

- Eu faria muito gosto nisso - disse ela.

Radiante, Kristen tornou a sentar-se à mesa. Katie enrolou a página, tendo o cuidado de não a amarrotar, e em seguida guardou-a dentro do saco. Os relâmpagos e os trovões tornaram a irromper, desta feita quase em simultâneo. Chovia torrencialmente, e o parque de estacionamento era um oceano de poças de água. O céu estava tão escuro como os mares do Norte.

- Sabe se a tempestade está para durar? - perguntou ela a Alex.

- Ao que ouvi dizer, não vamos ter outro dia - respondeu-lhe ele.

Ela fitou a porta. Enquanto tentava decidir o que havia de fazer, ia brincando com o anel inexistente. No silêncio, Kristen puxou pela camisa do pai.

- O papá devia levar a Miss Katie a casa - sugeriu-lhe ela. - Ela não tem carro. E está a chover a potes.

Alex olhou para Katie, ciente de que ela ouvira o que a filha acabara de dizer.

- Aceita uma boleia até casa?

Katie abanou a cabeça.

- Não, não se incomode.

- Mas então, e o desenho? - insistiu Kristen. - Pode ficar molhado.

Ao ver que Katie hesitava, Alex saiu detrás da caixa registadora.

- Venha. - Fez-lhe sinal com a cabeça. - Não há necessidade nenhuma de ficar encharcada. O meu carro está nas traseiras.

- Não quero causar incómodo...

- Não causa incómodo nenhum. - Apalpou o bolso e retirou as chaves antes de pegar nos sacos. - Deixe estar que eu levo-lhos - prontificou-se. - Kristen, minha querida, não te importas de ir num instante lá acima dizer ao Josh que estarei de volta daqui a dez minutos?

- Claro que não, papá - disse ela.

- Roger? - dirigiu-se ele ao empregado. - Deita uma olhadela ao armazém e aos miúdos que eu não me demoro, está bem?

- Pode ficar descansado. - Roger acenou-lhe com a mão.

Alex inclinou a cabeça para as traseiras do armazém.

- Está pronta? - perguntou ele a Katie.

Lançaram-se numa corrida até ao jipe, munidos de chapéus-de-chuva para se protegerem dos ventos ciclónicos e das bátegas de água. Os relâmpagos continuavam a rasgar o céu, fazendo cintilar as nuvens. Uma vez instalados dentro do automóvel, Katie começou a limpar a condensação dos vidros com a mão.

- Quando saí de casa, nunca pensei que o tempo fosse ficar assim.

- Nunca ninguém pensa, pelo menos até a tempestade começar. Nós estamos constantemente a ouvir no boletim meteorológico que “o céu vai desabar” e, por isso, quando um temporal acontece mesmo, as pessoas são sempre apanhadas desprevenidas. Se é mais forte que as previsões diziam, queixamo-nos; e, se é tão forte como se previa, também nos queixamos, porque os meteorologistas enganam-se com tanta frequência que não havia maneira de sabermos que desta vez tinham acertado. É apenas mais um pretexto que as pessoas arranjam para se poderem queixar.

- Como aquelas que estavam de volta do grelhador?

Alex assentiu com a cabeça e rasgou um sorriso.

- Mas olhe que são quase todos boa gente. Na sua grande maioria, são pessoas trabalhadoras, honestas e generosas. Qualquer uma delas aceitaria de bom grado ficar a tomar conta do armazém se eu lhe pedisse, e não me faltaria um único cêntimo. É assim que as coisas funcionam aqui. Porque, lá no fundo, toda a gente sabe que, numa cidade pequena como esta, todos precisamos uns dos outros. E é óptimo que assim seja, embora eu tenha precisado dalgum tempo para me adaptar.

- Não é de cá?

- Não. A minha mulher é que era. Eu sou de Spokane. Quando me mudei para cá, recordo-me de pensar que seria incapaz de ficar a morar num sítio destes. Afinal, é uma terra tão pequena! Uma cidade do Sul que não quer saber da opinião do resto do mundo para nada. A princípio, custa-nos um bocadinho a adaptarmo-nos. Mas depois... aprendemos a gostar. Obriga-me a manter-me concentrado no que é de facto importante.

A voz de Katie transbordava de suavidade.

- E o que é que é de facto importante?

Alex encolheu os ombros.

- Isso varia de pessoa para pessoa, não é? Neste momento, para mim, são os meus filhos. A casa deles é aqui e, depois de tudo por quanto passaram, precisam de estabilidade. A Kristen precisa dum sítio onde possa colorir os seus livros, e o Josh, dum sítio onde possa pescar, e ambos precisam de saber que, sempre que for necessário, eu estarei disponível para eles. Esta cidade e o armazém proporcionam-lhes isso mesmo e, neste momento, é o que eu quero. É do que eu preciso.

Fez uma pausa, sentindo-se constrangido por ter falado tanto.

- A propósito, para onde é que eu devo ir?

- Siga sempre em frente. Mais adiante, vai ver uma estrada de cascalho e é aí que deve virar. Fica um bocadinho depois da curva.

- Está a referir-se à estrada de cascalho ao pé da plantação?

Katie assentiu com a cabeça.

- Essa mesma.

- Eu nem sequer sabia que essa estrada ia dar a algum lado. - Franziu a testa. - Ainda é um valente estirão - observou. - Serão o quê, uns três quilómetros?

- Não é nada por aí além - objectou ela.

- com bom tempo, talvez não. Mas, num dia como o de hoje, teria de ir a nadar até casa. Seria impossível fazer este caminho. Para além de que o desenho da Kristen teria ficado estragado.

Alex detectou-lhe um leve sorriso ao mencionar o nome da filha, mas Katie não disse nada.

- Ouvi dizer que trabalha no Ivans - comentou ele.

Ela assentiu com a cabeça.

- Comecei em Março.

- E gosta de lá trabalhar?

- Não é mau de todo. É só um emprego, mas o dono tem sido amável comigo.

- O Ivan?

- Conhece-o?

- Toda a gente conhece o Ivan. Sabia que ele, todos os Outonos, se veste de general da Confederação para recriar a famosa batalha de Southport? Quando o general Sherman deitou fogo à cidade? O que até seria engraçado, claro... O único problema é que nunca houve uma batalha de Southport na Guerra Civil. À época, Southport nem sequer tinha este nome: chamava-se Smithville. E o Sherman nunca aqui pôs os pés.

- A sério? - admirou-se Katie.

- Não me interprete mal. Eu gosto do Ivan... É um bom homem, e o restaurante dele é um ex-líbris da cidade. A Kristen e o Josh adoram os hushpuppies que ele lá serve, e o Ivan recebe-nos sempre bem. Há alturas, porém, em que me pergunto o que será que o motiva. A família do Ivan chegou cá nos anos cinquenta, vinda da Rússia. Por outras palavras, imigrantes de primeira geração. O mais provável é que nunca ninguém na família dele tenha ouvido falar na Guerra Civil. E, apesar disto, o Ivan é capaz de passar um fim-de-semana inteiro de espada em punho e a gritar ordens mesmo no meio da rua diante do tribunal.

- Por que será que eu nunca ouvi falar nisso?

- Porque não é um assunto que as pessoas daqui gostem de comentar. Ele é um tanto ou quanto... excêntrico, está a ver? Mesmo os moradores da cidade, as pessoas que gostam verdadeiramente dele, fazem o possível por ignorá-lo. Quando vêem o Ivan em plena baixa, viram-lhe as costas e fazem comentários do género: “Já viram como aqueles crisântemos à entrada do tribunal estão bonitos?”

Katie soltou uma gargalhada pela primeira vez desde que entrara no jipe.

- Não sei se hei-de acreditar em si.

- Não tem importância. Se estiver cá em Outubro, há-de ver com os seus próprios olhos. Mas mais uma vez lhe peço que não me interprete mal. Ele é um tipo simpático, e o restaurante é óptimo. Depois dum dia de praia, costumamos passar quase sempre por lá. Da próxima vez que lá formos, hei-de perguntar por si.

Katie hesitou.

- Está bem.

- Ela gosta de si - observou Alex. - A Kristen, quero eu dizer.

- E eu dela. É uma criança cheia de vida... Tem imensa personalidade.

- Eu digo-lhe que disse isso. E obrigado.

- Que idade tem ela?

- Está com cinco. Quando, no próximo Outono, entrar para a escola, não sei como me irei arranjar. O armazém vai ficar um sossego.

- Vai ter saudades dela - concluiu Katie.

Alex anuiu com a cabeça.

- Muitas, mesmo. Eu sei que ela vai gostar da escola, mas eu também gosto de a sentir por perto.

Entretanto, a chuva continuava a fustigar as janelas. O céu cintilava intermitentemente, a fazer lembrar um estroboscópio, acompanhado por um ribombar quase contínuo.

Perdida nos seus pensamentos, Katie espreitou pela janela do passageiro. Alex aguardou, com a certeza inexplicável de que seria ela a romper o silêncio.

- Quanto tempo é que esteve casado? - interpelou-o ela por fim.

- Cinco anos. Antes disso, namorámos durante um ano. Conheci a minha mulher quando estive colocado em Fort Bragg.

- Esteve no Exército?

- Durante dez anos. Foi uma boa experiência e não me arrependo dela. Mas, por outro lado, também estou contente que tenha acabado.

Katie apontou através do pára-brisas.

- Tem de virar ali à frente - indicou ela.

Alex virou para a estrada que conduzia a casa dela e abrandou a velocidade. A superfície de cascalho grosseiro ficara inundada durante a enxurrada, e a água esparrinhou para as janelas e para cima do pára-brisas. Enquanto se esforçava por conduzir o jipe por entre as poças fundas, ocorreu-lhe subitamente que, desde que a esposa falecera, era a primeira vez que se encontrava sozinho com uma mulher dentro dum automóvel.

- Em qual deles mora? - perguntou-lhe ao avistar os contornos de dois pequenos chalés.

- No da direita - disse ela.

Ele virou para o acesso improvisado e estacionou o mais próximo possível da casa.

- Eu levo-lhe as compras até à porta.

- Não se esteja a incomodar.

-- Nem faz ideia de como eu fui educado - ripostou ele, levantando-se dum pulo antes que ela tivesse oportunidade de objectar. Alex agarrou nos sacos e correu para o alpendre. Quando os pousou e começou a sacudir a água da chuva, Katie vinha a correr atrás dele, com o chapéu-de-chuva que ele lhe emprestara na mão.

- Obrigada - gritou-lhe ela para se fazer ouvir acima do barulho da carga-dágua.

Quando lhe devolveu o chapéu-de-chuva, ele abanou a cabeça.

- Fique com ele mais algum tempo. Ou para sempre. Não tem importância. Uma vez que se farta de andar a pé pelas redondezas, vai precisar dele de certeza.

- Eu posso pagar-lho... - prontificou-se ela.

- Não se preocupe com isso.

- Mas isto pertence ao armazém.

- Não faz mal - insistiu ele. - A sério. Mas, se fica contrariada, da próxima vez que passar por lá, fazemos contas, está bem?

- Alex, sinceramente...

Ele não a deixou terminar. - A Katie é uma boa freguesa, e eu gosto de ajudar os meus fregueses.

Ela hesitou momentaneamente antes de responder.

- Obrigada - disse por fim, com os olhos, agora verde-escuros, cravados nele. - E obrigada pela boleia.

Alex inclinou ligeiramente a cabeça.

- Sempre às ordens.

O que fazer com os filhos: era esta a pergunta inesgotável, por vezes sem resposta, que Alex todos os fins-de-semana enfrentava, e, como de costume, não fazia a mais pequena ideia.

com o temporal em plena actividade e sem dar sinais de abrandar, qualquer programa ao ar livre estava completamente fora de questão. Poderia levá-los ao cinema, mas não havia nenhum filme em cartaz que despertasse o interesse de ambos. Poderia simplesmente deixar que se entretivessem durante algum tempo. Conhecia muitos pais que funcionavam assim. Por outro lado, os filhos ainda não tinham idade para poderem ser deixados por sua conta e risco. Mais grave ainda, já passavam muito tempo sozinhos, sempre a arranjar maneiras novas de se distraírem, apenas porque o pai ficava a trabalhar até tarde no armazém. Foi cogitando nas várias opções enquanto preparava tostas de queijo, mas os seus pensamentos não tardaram a divagar para Katie. Apesar de ela fazer o possível por manter uma atitude discreta, Alex sabia que, numa cidade como aquela, isso seria tarefa quase impossível. Era demasiado atraente para passar despercebida e, logo que as pessoas começassem a perceber que ela se deslocava a pé para todo o lado, o inevitável falatório e as perguntas a respeito do passado dela não tardariam a seguir-se.

Alex não queria que isso acontecesse. Não por motivos egoístas, mas porque Katie tinha o direito de levar o tipo de vida de que viera ali à procura. Uma vida normal. Uma vida pautada por prazeres simples, o tipo de vida que a maior parte das pessoas tomava por certo: a possibilidade de ir aonde queria quando queria e de morar numa casa onde se sentisse em segurança. Tal como precisava de dar uns passeios.

- Olhem, meninos - disse ele, pondo-lhes as tostas em pratos.

- Tive uma ideia. E se fizéssemos qualquer coisa com a Miss Katie?

- Boa! - concordou Kristen sem demora.

Josh, sempre pronto a alinhar em tudo, limitou-se a assentir com a cabeça.

 

A chuva batida a vento fustigou impiedosamente os céus carregados da Carolina do Norte, fazendo deslizar rios de água pelas janelas da cozinha. Ao início da tarde, enquanto Katie tratava da roupa no lava-louça e, depois de ter afixado o desenho de Kristen na porta do frigorífico, o tecto da sala de estar começara a pingar. Colocara um tacho por baixo da goteira e, entretanto, já o esvaziara duas vezes. Tencionava telefonar a Benson na manhã seguinte, mas duvidava de que o senhorio se dispusesse a consertá-la de imediato. Isto, partindo do princípio de que se disporia a consertá-la de todo.

Na cozinha, partiu um naco de queijo cheddar em pequenos cubos, que foi petiscando enquanto andava dum lado para o outro. Num prato de plástico amarelo, colocara bolachas-dágua-e-sal e fatias de tomate e de pepino, embora não lhes tivesse conseguido dar o efeito que pretendia. Nada estava consoante os seus desejos. Na sua antiga casa, tivera uma bonita tábua de madeira e uma faca para queijos de prata com uma ave gravada, assim como um conjunto completo de copos de vinho. Tivera uma mesa de jantar de cerejeira e cortinas transparentes nas janelas; ali, porém, a mesa abanava, as cadeiras não condiziam umas com as outras, as janelas estavam despidas, e tanto ela como Jo teriam de beber o vinho por canecas para café. Por muito má que a sua vida tivesse sido, em tempos Katie adorara tratar da sua casa. Todavia, e à semelhança de tudo quanto deixara para trás, encarava-a agora como um inimigo que desertara para o campo do adversário.

Pela janela, viu uma das luzes de Jo a apagar-se. Katie dirigiu-se à porta da rua. Ao abri-la, deparou com Jo a chapinhar pelas poças de água a caminho de sua casa, com um chapéu-de-chuva numa mão e uma garrafa de vinho na outra. Outra meia dúzia, de chapinhadelas, e a amiga chegou ao alpendre, o impermeável amarelo a escorrer água por todos os lados.

- Agora percebo como o Noé se deve ter sentido. Estás a ver este temporal? Tenho a cozinha cheia de poças de água.

Katie olhou por cima do ombro.

- A minha goteira é na sala de estar.

- Lar, doce lar, não é como se costuma dizer? Aqui tens - disse-lhe entregando-lhe a garrafa de vinho. - O prometido é devido. E acredita que bem hei-de precisar dela.

- Tiveste um dia difícil?

- Nem tu fazes ideia.

- Entra, entra.

- Deixa-me só pôr aqui o casaco, senão ainda ficas com a sala de estar cheia de poças de água - disse ela enquanto despia o impermeável. - Bastaram-me os instantes que levei a chegar cá para ficar encharcada.

Jo deixou o impermeável e o chapéu-de-chuva em cima da cadeira de baloiço e foi atrás de Katie para a cozinha.

Katie pousou o vinho imediatamente na bancada. Enquanto Jo se encaminhava para junto da mesa, ela abriu a gaveta ao lado do frigorífico. Do fundo, retirou um canivete suíço enferrujado e puxou do saca-rolhas.

- Está tudo com óptimo aspecto. Eu estou faminta; ainda não comi nada hoje.

- Serve-te à vontade. Como é que correram as pinturas?

- bom, consegui despachar a sala de jantar. Mas, depois disso, o dia não correu lá muito bem.

- O que foi que aconteceu?

- Depois conto-te. Primeiro tenho de beber o meu vinho. Então, e tu? Como foi que passaste o dia?

- Não fiz nada de especial. Fui às compras, arrumei a casa, lavei a roupa.

Jo sentou-se à mesa e pegou numa bolacha-dágua-e-sal.

- Resumindo e concluindo, material digno de figurar nas tuas memórias.

Katie riu-se e começou a girar o saca-rolhas.

- Ah, pois, deveras emocionante.

- Queres que eu te dê uma ajuda? - ofereceu-se Jo.

- Acho que já lhe apanhei o jeito.

- Óptimo. - Jo arreganhou um sorriso afectado. - Porque a convidada sou eu e estou à espera de ser estragada com mimos.

Katie prendeu a garrafa entre as pernas, e a rolha saltou com um estampido.

- Agora a sério, obrigada pelo convite. - Jo soltou um suspiro. - Nem imaginas o quanto tenho ansiado por um momento como este.

- Ai sim?

-- Não faças isso!

- Não faço o quê? - indagou Katie.

- Fingires-te de surpreendida por eu te querer vir visitar. Por querer confraternizar enquanto saboreio um bom vinho. É isso que os amigos fazem. - Arqueou uma sobrancelha. - Ah, a propósito, antes de te começares a perguntar se seremos de facto amigas ou não e até que ponto nos conhecemos uma à outra, confia em mim quando te digo que sim, sem dúvida alguma. Considero-te uma amiga. - Esperou que estas palavras assentassem e em seguida continuou: - Então, e que tal se agora passássemos ao vinho?

A tempestade amainou finalmente ao cair da noite, e Katie abriu a janela da cozinha. A temperatura descera, e havia uma sensação de limpeza e de frescura no ar. À medida que as bolsas de neblina se elevavam do solo, as nuvens arrastadas pelo vento ocultavam momentaneamente a Lua, trazendo luminosidade e sombra em igual medida. As folhas passavam de prateado a negro e novamente a prateado enquanto tremeluziam à brisa do anoitecer.

Katie deixou-se levar sonhadoramente pelo vinho, a brisa nocturna e o riso fácil de Jo. Deu por si a saborear gulosamente bolachas-d’água-e-sal amanteigadas, o queijo bem apaladado, a recordar-se da fome que havia pouco passara. Tempos houvera em que ela fora magra como uma tira fina de vidro soprado.

Os seus pensamentos começaram a deambular. Recordou-se dos pais, não dos momentos difíceis, mas dos bons, quando os demónios estavam adormecidos: quando a mãe fazia ovos com bacon, e o aroma perfumava a casa, e ela via o pai a entrar na cozinha e a aproximar-se sorrateiramente da mãe. Afastava-lhe o cabelo e beijava-a no pescoço, atrás da orelha, e ela ria-se de cócegas. Numa ocasião, ainda se lembrava, o pai levara-as às duas a Gettysburg. Dera-lhe a mão e andara a passear com ela, e Katie ainda se recordava da rara sensação de força e de doçura que lhe transmitira. Era alto e espadaúdo, com cabelo castanho-escuro, e tinha uma tatuagem de marinheiro no braço. Estivera alistado na Marinha durante quatro anos, num contratorpedeiro, e visitara o Japão, a Coreia e Singapura, embora pouco ou nada lhes contasse a respeito dessa experiência.

A mãe era loura e franzina e em tempos participara num concurso de beleza, ficando classificada em segundo lugar. Adorava flores e, na Primavera, plantava bolbos em vasos de cerâmica que colocava no pátio. Tulipas e narcisos, peónias e violetas irrompiam em cores tão vivas que quase lhe faziam doer a vista. Quando mudavam de casa, instalavam os vasos no assento traseiro do automóvel, presos com cintos de segurança. A mãe tinha o hábito de, quando andava a fazer a lida da casa, cantar para si própria, melodias da sua infância, algumas em polaco, e Katie, sem que ninguém desse por ela, punha-se à escuta noutro quarto, a tentar decifrar-lhes a letra.

O vinho que Jo e Katie estavam a beber tinha um toque de carvalho e de alperce e era uma verdadeira delícia. Katie acabou de beber o que tinha na caneca, e Jo tornou a encher-lha. Quando uma borboleta nocturna começou a dançar em redor da lâmpada sobranceira ao lava-loiça, esvoaçando com determinação confusa, desataram ambas na risota. Katie cortou mais queijo e deitou mais bolachas no prato. Conversaram acerca de filmes e de livros, e Jo riu-se a bom rir quando a amiga lhe confessou que o seu filme predilecto era Do Céu Caiu Uma Estrela, explicando-lhe que também era o seu. Katie ainda se recordava de, em criança, ter pedido à mãe que lhe arranjasse um sino a fim de poder ajudar os anjos a recuperar as asas. Terminou a segunda caneca de vinho sentindo-se leve como uma pena à brisa estival.

Jo fez-lhe poucas perguntas. Em lugar disso, preferiram ater-se a tópicos superficiais, e Katie sentiu-se uma vez mais feliz por estar na companhia da amiga. Quando o mundo para lá da janela se iluminou de prateado, foram as duas para o alpendre da frente. Katie sentiu-se cambalear ligeiramente e agarrou-se ao parapeito. Foram saboreando o vinho à medida que as nuvens continuavam a abrir e, de repente, o céu ficou constelado de estrelas. Katie apontou para a Ursa Maior e a Estrela Polar, as únicas estrelas que era capaz de localizar, mas Jo começou a identificar dúzias doutras. Katie contemplou o céu, absolutamente maravilhada, atónita com os conhecimentos de Jo a respeito das constelações, até que reparou nos nomes que a amiga estava a citar.

- Aquela ali chama-se Pernalonga e além, mesmo por cima do pinheiro, está o Pato Donald. - Quando Katie por fim se apercebeu de que Jo sabia tão pouco sobre estrelas quanto ela própria, a amiga começou a rir-se como uma criança travessa.

De regresso à cozinha, Katie serviu o resto do vinho e bebeu um gole. Sentiu-o a acalentar-lhe a garganta e a provocar-lhe uma tontura súbita. A borboleta continuava a dançar em volta da lâmpada, mas, quando se tentava concentrar nela, tinha a impressão de ver duas. Estava feliz e segura, a desfrutar em pleno dum agradável serão.

Tinha uma amiga, uma amiga a sério, uma pessoa bem-disposta que brincava com os nomes das estrelas, e havia tanto tempo que não tinha uma experiência tão calma e descontraída que nem sabia se haveria de rir ou de chorar.

- Está tudo bem contigo? - perguntou-lhe Jo.

- Estou óptima - sossegou-a Katie. - Estava só a pensar que estou muito contente por me teres vindo visitar.

Jo examinou-a com olhar atento.

- Acho que és capaz de estar alegre.

- E eu acho que és capaz de ter razão - admitiu ela.

- bom, então, está bem. O que é que queres fazer? Uma vez que estás nitidamente alegre e pronta para a diversão...

- Não percebo aonde é que queres chegar.

- Queres fazer qualquer coisa especial? Ir até à cidade, descobrir um sítio animado?

Katie abanou a cabeça.

- Não.

- Não queres conhecer gente nova?

- Estou melhor sozinha.

Jo fez deslizar o dedo em volta da beira da caneca antes de lhe responder.

- Acredita no que te digo: ninguém está melhor sozinho.

- Eu estou.

Depois de reflectir na resposta de Katie, Jo chegou-se mais a ela.

- Então, o que tu me estás a querer dizer é que... partindo do princípio de que tinhas do que comer, um tecto para te abrigares, roupa e tudo o mais que fosse indispensável à tua sobrevivência... preferias ficar perdida numa ilha deserta no meio de nenhures, completamente sozinha, para o resto da vida? Não podes estar a falar a sério.

Katie pestanejou, a tentar focar Jo.

- O que te leva a pensar que eu não esteja a falar a sério?

- bom, toda a gente é capaz de mentir. Faz parte da vida em sociedade. Não me interpretes mal... Eu estou convencida de que é necessário que assim seja. A última coisa que desejaríamos seria viver numa sociedade onde imperasse a sinceridade absoluta. Imaginas o tipo de conversas? “Você é baixa e gorda”, poderia alguém dizer, ao que outra pessoa responderia: “Eu sei. Mas você cheira mal.” Não daria resultado. É por isso que as pessoas estão constantemente a mentir por omissão. Em geral, contam-nos a história quase toda... e eu já percebi que, muitas vezes, a parte que omitem é a mais importante. As pessoas ocultam a verdade porque têm medo.

As palavras de Jo atingiram Katie no seu íntimo. Subitamente, começou a ter dificuldade em respirar.

- Por acaso estarás a referir-te a mim? - indagou ela por fim com voz embargada.

- Não sei. Estarei?

Katie sentiu-se a empalidecer ligeiramente, mas, antes de ter tempo de reagir, Jo sorriu-lhe.

- Na verdade, estava a pensar no meu dia de hoje. Disse-te que foi difícil, não disse? bom, aquilo que acabei de te dizer é um dos motivos disso. É uma frustração quando as pessoas se recusam a dizer a verdade. Afinal, como é que eu poderei ajudá-las quando elas me sonegam informações? Quando não estou a par do que realmente se passa?

Katie começou a sentir um aperto no peito.

- Talvez elas gostassem de falar sobre isso, mas saibam que não há nada que tu possas fazer para as ajudar - sussurrou ela.

- Alguma coisa sempre se pode fazer.

À luz do luar que entrava pela janela, a pele de Jo emitia uma luminosidade branca, e Katie ficou desconfiada de que a amiga nunca apanhava sol. O vinho dava-lhe a sensação de que a cozinha se movimentava, de que as paredes cediam. Katie sentia as lágrimas a virem-lhe aos olhos e pestanejou para as afastar. Tinha a boca seca.

- Nem sempre - murmurou ela.

Virou-se para a janela. Do outro lado do vidro, a Lua pairava logo acima das árvores. Katie engoliu em seco, com a sensação súbita de se estar a observar a si própria do fundo da cozinha. Via-se sentada à mesa com Jo e, de cada vez que falava, tinha a impressão de que a sua voz pertencia a outra pessoa.

- Em tempos, tive uma amiga. Tinha um casamento que era um autêntico martírio e ninguém com quem desabafar. O marido batia-lhe e, a princípio, ela ameaçava-o de que, se ele tornasse a agredi-la, o deixaria. Ele jurava a pés juntos que nunca mais faria isso, e ela acreditava nele. Mas as coisas foram piorando cada vez mais: ou era o jantar dele que estava frio, ou era um vizinho que passava com o cão pela trela e ela mencionava que o fora visitar. Nessa ocasião, ela estava apenas a conversar com ele, mas o marido enfureceu-se e atirou-a contra um espelho.

Katie baixou o olhar para o chão. O linóleo estava a levantar nos cantos, mas ela não soubera o que fazer para o arranjar. Ainda tentara colá-lo, mas a cola não pegara e os cantos tornaram a encarquilhar.

- Ele pedia-lhe sempre desculpa e havia alturas em que, quando via as nódoas negras que lhe fizera nos braços, nas pernas ou nas costas, chegava mesmo a chorar. Dizia que lamentava imenso o que lhe fizera, mas logo de seguida dizia-lhe que ela merecera; que, se tivesse sido mais cuidadosa, aquilo não lhe teria acontecido; que, se tivesse prestado atenção ao que fazia ou não tivesse sido tão estúpida, ele não teria perdido as estribeiras. Ela esforçou-se por mudar. Empenhou-se a fundo em ser melhor esposa e em fazer as coisas da maneira que ele queria, mas ele nunca se dava por satisfeito.

Katie sentiu as lágrimas a ameaçar brotar e, embora tentasse contê-las, elas acabaram por lhe deslizar pelas faces. Jo continuava sentada à mesa, a observá-la sem se mexer.

- E tu nem imaginas a adoração que a minha amiga lhe tinha! No princípio, ele era tão meigo para ela. Proporcionava-lhe uma sensação de segurança. Na noite em que se conheceram, ela tinha estado a trabalhar e, quando acabou o turno, foi perseguida por dois homens. Quando contornou uma esquina, um deles agarrou-a por um pulso e pôs-lhe uma mão em volta da boca e, apesar de ela ter feito todo o possível por se libertar, foi tudo em vão porque eles eram muito mais fortes que ela. Quem sabe qual poderia ter sido o resultado se o futuro marido não tivesse aparecido nesse instante e agredido um deles na nuca, atirando-o ao chão. Em seguida, agarrou no outro e encostou-o contra a parede, e foi remédio santo. Assim, num abrir e fechar de olhos. Ele ajudou-a a levantar-se, acompanhou-a a casa e, no dia seguinte, convidou-a para irem tomar um café. Era amável e tratava-a como uma princesa, isto, até à lua-de-mel.

Katie sabia que não deveria contar nada disto a Jo, mas não foi capaz de se conter.

- A minha amiga ainda tentou fugir duas vezes. Duma delas, voltou de sua própria iniciativa, porque não tinha para onde ir. Mas, da segunda vez que fugiu, chegou mesmo a pensar que se vira livre dele duma vez para sempre. Ele, no entanto, foi atrás dela e obrigou-a a voltar para casa. Quando lá chegaram, bateu-lhe, encostou-lhe uma pistola à testa e ameaçou-a de que, se algum dia tornasse a fugir, a mataria; que mataria qualquer homem por quem ela se interessasse. E a minha amiga acreditou nele, porque nessa altura já tinha percebido que ele não regulava bem da cabeça. Mas estava encurralada. Ele nunca lhe dava dinheiro, nunca a deixava sair de casa. Tinha o hábito de andar a circundar a casa quando devia estar no emprego, só para ter a certeza de que ela lá estava. Verificava os registos das chamadas, estava constantemente a telefonar-lhe e não a deixava tirar a carta de condução. Numa ocasião, ela acordou a meio da noite e foi dar com ele em pé junto à cama, a olhar fixamente para ela. Estava embriagado e tinha a pistola na mão, e ela ficou tão amedrontada que a única coisa que conseguiu dizer foi que se fosse deitar. Mas foi nesse momento que ela percebeu que, se continuasse naquela casa, o marido acabaria por matá-la.

Katie limpou os olhos, e o sal das lágrimas ficou-lhe agarrado aos dedos. Mal conseguia respirar, mas não podia conter o desabafo.

- Ela começou a roubar-lhe dinheiro da carteira. Nunca mais dum dólar ou dois, porque, caso contrário, ele daria por isso. Em geral, à noite ele escondia a carteira, mas por vezes esquecia-se. Nem imaginas o tempo que ela levou a juntar dinheiro que lhe chegasse para fugir. Porque era esta a única alternativa que lhe restava. Fugir, Tinha de ir para um lugar onde o marido nunca fosse capaz de a encontrar, porque sabia que ele não descansaria enquanto não a apanhasse. E, por isso, ela amealhava todas as moedas a que conseguia deitar a mão: na carteira dele, entre as almofadas do sofá, na roupa que ia para a máquina de lavar. Escondia-as num saco de plástico debaixo dum vaso de flores, e, de cada vez que o marido ia lá fora, ficava cheia de medo de que ele o descobrisse. Levou imenso tempo a juntar dinheiro porque tinha de ter o suficiente para ir para um sítio onde ele nunca a conseguisse descobrir. Um sítio onde pudesse começar uma nova vida.

Katie não se apercebera de quando acontecera, mas via agora que Jo lhe dera a mão e de que já não se estava a observar a si própria do fundo da cozinha. Sentia o sabor a sal nos lábios e imaginava que tinha a alma a vazar. Estava desesperada por adormecer.

No silêncio, Jo continuou a suster-lhe o olhar.

- A tua amiga foi muito corajosa - comentou ela em voz baixa.

- Não - obstou Katie. - A minha amiga vive sob um medo constante.

- É a isso que se chama coragem. Se ela não tivesse medo, não precisaria de coragem para nada. Eu admiro a atitude que ela tomou. - Jo apertou-lhe a mão. - Quer parecer-me que iria simpatizar com a tua amiga. Ainda bem que me falaste nela.

Katie desviou o olhar, sentindo-se completamente exausta.

- Se calhar, não te devia ter contado nada disto.

Jo encolheu os ombros.

- Se fosse a ti, eu não me preocupava com isso. Uma coisa que hás-de aprender sobre mim é que, comigo, os segredos ficam em segurança. Sobretudo quando se trata de pessoas que não conheço, não é?

Katie assentiu com a cabeça.

- É.

Jo fez-lhe companhia durante mais uma hora, mas desviou a conversa para terrenos menos pantanosos. Katie falou-lhe do seu trabalho no Ivans e dalguns dos clientes que vinha a conhecer. Jo perguntou-lhe se sabia como retirar a tinta entranhada debaixo das unhas. Uma vez o vinho acabado, as tonturas de Katie foram desaparecendo, deixando atrás de si uma sensação de extremo cansaço. Jo também começou a bocejar, e as duas acabaram por se levantar da mesa. Jo ajudou Katie a arrumar a cozinha, embora não houvesse senão uns pratos para lavar, e Katie foi levá-la à porta.

Quando Jo chegou ao alpendre, deteve-se momentaneamente.

- Acho que tivemos uma visita - disse ela.

- O que te leva a dizer isso?

- Está uma bicicleta encostada à tua árvore.

Katie foi ter com ela. Para lá da luminosidade amarelada do candeeiro do alpendre, o mundo estava imerso na escuridão, e os contornos dos pinheiros distantes recordaram-lhe a beira irregular dum buraco negro. Os pirilampos imitavam as estrelas, num cintilar constante, e, ao semicerrar os olhos, Katie constatou que Jo tinha razão.

- De quem é aquela bicicleta? - perguntou ela à amiga.

- Não faço ideia.

- Ouviste alguém a chegar?

- Não, mas acho que, quem foi, a deixou cá para ti. Estás a ver? - Jo apontou para o guiador. - Aquilo que ali está não é um laço?

Sempre com os olhos semicerrados, Katie localizou o laço.

Era uma bicicleta para mulher, com um cesto de arame de cada lado da roda traseira, assim como outro à frente. Via-se uma corrente pendurada em volta do selim, com a chave ainda no cadeado.

- Quem se lembraria de me oferecer uma bicicleta?

- Mas por que é que me perguntas isso a mim? Eu sei tão pouco a respeito disto como tu.

Katie e Jo desceram os degraus do alpendre. Apesar de a maior parte das poças de água já ter desaparecido, infiltrando-se no saibro arenoso, a relva continuava molhada e encharcou-lhe as biqueiras dos sapatos. Tocou na bicicleta, em seguida no laço, acariciando a fita entre os dedos como se fosse um mercador de tecidos. Sentiu um cartão preso por baixo e retirou-o.

- Foi o Alex - disse ela, tomada de surpresa.

- O Alex do armazém ou outro Alex?

- O do armazém.

- E o que é que ele diz?

Katie abanou a cabeça, a tentar compreender o que dizia antes de o mostrar à amiga. “Pareceu-me que era capaz de lhe agradar.”

Jo apontou para o cartão.

- Acho que isto quer dizer que ele está tão interessado em ti quanto tu nele.

- Eu estou lá agora interessada nele!

- Ora essa! - Jo piscou-lhe o olho. - Por que haverias tu de estar?

 

Alex estava a varrer o chão junto às vitrinas frigoríficas quando Katie entrou na loja. Já calculava que ela iria aparecer por lá logo pela manhã para falar sobre a bicicleta. Encostou a vassoura à vitrina, tornou a enfiar a camisola dentro das calças e passou uma mão apressada pelo cabelo. Kristen estivera toda a manhã à espera dela e, ainda Katie não fechara a porta, e já ela estava a espreitar por cima do balcão.

- Olá, Miss Katie! - cumprimentou-a Kristen. - Viu a bicicleta?

- Vi, obrigada - respondeu-lhe ela. - É por isso mesmo que aqui estou.

- Estivemos imenso tempo a arranjá-la.

- E saíram-se lindamente - elogiou ela. - O teu pai está por aí?

- Está, sim. Está mesmo ali. - Apontou. - Já aí vem.

Alex viu Katie voltar-se na direcção dele.

- Olá, Katie - saudou-a.

Quando ele se aproximou, ela cruzou os braços diante do peito.

- Não se importa de vir comigo lá fora para termos uma conversa?

Alex detectou-lhe a frieza na voz e percebeu que estava a fazer o possível por conter a indignação diante de Kristen.

- com certeza - acedeu ele, estendendo a mão para abrir a porta. Empurrou-a para lhe dar passagem e, à medida que seguia atrás dela, deu por ele a admirar-lhe a figura.

Katie parou junto à bicicleta e voltou-se para ele. No cesto da frente, estava o chapéu-de-chuva que Alex lhe emprestara na véspera. com uma expressão muito séria, assentou uma palmada no selim.

- É capaz de me explicar a que propósito é que isto veio?

- Gosta dela?

- Por que é que ma comprou?

- Eu não lha comprei - disse ele.

Katie pestanejou.

- Há dois anos que estava na garagem a apanhar pó. Acredite no que lhe digo: a última coisa que eu faria era comprar-lhe uma bicicleta.

Os olhos dela dardejaram.

- Não é isso que está em causa! Está constantemente a oferecer-me coisas, e isso tem de acabar! Eu não quero nada seu. Não preciso de nenhum chapéu-de-chuva, nem de vegetais, nem de vinho. E muito menos duma bicicleta!

- Então, dê-a a alguém. - Alex encolheu os ombros. - Porque eu cá também não a quero para nada.

Katie calou-se, e ele viu-lhe a perplexidade a ceder lugar à frustração e por fim à desistência. Por fim, ela abanou a cabeça e deu meia-volta para se ir embora. Quando ela se preparava para dar um passo, ele clareou a voz.

- Antes de se ir embora, não se importa de, pelo menos, me fazer o favor de me deixar explicar?

Katie deitou-lhe uma olhadela furiosa por cima do ombro.

- Isso é irrelevante.

- Talvez seja irrelevante para si, mas, para mim, não é.

Ela susteve-lhe o olhar, vacilou e por fim baixou a cabeça. Ao ouvi-la soltar um suspiro, Alex deslocou-se para o banco corrido que havia à entrada do armazém. Quando o instalara ali, encafuado entre a máquina de fazer gelo e uma grade com botijas de gás, fizera-o mais por brincadeira, a pensar que nunca ninguém haveria de se sentar ali. Quem se lembraria de se pôr a olhar para o parque de estacionamento e a estrada em frente? Para sua grande surpresa, quase todos os dias o banco estava ocupado; só estava vazio naquele momento porque ainda era muito cedo.

Katie hesitou se havia de se sentar ou não, e Alex entrelaçou os dedos no colo.

- Eu não menti quando disse que a bicicleta esteve a apanhar pó durante estes últimos dois anos. Era da minha mulher - justificou-se ele. - Ela adorava aquela bicicleta e ia nela para todo o lado. Uma vez, chegou mesmo a ir até Wilmington, mas, como seria de prever, quando lá chegou, estava tão cansada que tive de a ir buscar, mesmo sem ter ninguém que me ficasse a tomar conta do armazém. Vi-me obrigado a fechá-lo por umas horas. - Fez uma pausa. - Foi o último passeio que deu nela. Nessa noite, teve a primeira crise e tive de a levar a correr para o hospital. Depois disso, a doença foi-se agravando cada vez mais, e ela não voltou a andar de bicicleta. Eu guardei-a na garagem, mas, sempre que a vejo, lembro-me daquela noite horrível. - Endireitou-se. - Eu sei que já me deveria ter livrado dela, mas não a podia dar a uma pessoa que andasse uma ou duas vezes nela e depois a pusesse de parte. Queria que fosse parar às mãos de alguém capaz de a apreciar tanto quanto ela; a alguém que a usasse. Teria sido esse o desejo da minha mulher. Se a tivesse conhecido, perceberia o que quero dizer. Se ficasse com ela, seria um favor que me fazia.

Quando Katie falou, a voz saiu-lhe num fio.

- Eu não posso aceitar uma bicicleta que era da sua mulher.

- Então, ainda ma quer devolver?

Ao vê-la assentir com a cabeça, Alex inclinou-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos.

- Nós os dois somos muito mais parecidos que imagina. Se estivesse no seu lugar, eu teria feito exactamente a mesma coisa. Não quer ficar com a sensação de que deve alguma coisa a alguém. Quer provar a si própria que é capaz de singrar pelos seus próprios meios, não é?

Katie abriu a boca para lhe responder, mas acabou por não dizer nada. Alex prosseguiu:

- Depois da morte da minha mulher, eu era tal e qual assim. Durante muito tempo. As pessoas passavam pelo armazém e muitas delas diziam-me para lhes telefonar se precisasse dalguma coisa. A maior parte sabia que eu não tinha cá família e era bem intencionada, mas eu nunca telefonei a ninguém porque simplesmente não era do meu feitio. Mesmo que precisasse dalguma coisa, não saberia como pedir, embora raras fossem as vezes em que sabia de facto o que queria. Tudo o que sabia era que me sentia na corda bamba e, para dar seguimento à metáfora, durante muito tempo estive em risco de me ir abaixo. De repente, dei por mim com dois filhos para criar e o armazém para gerir, e naquela altura os miúdos eram mais pequenos e ainda precisavam de mais atenção que agora. Até que um dia, sem eu esperar, a Joyce apareceu. - Alex olhou para Katie. - Já conhece a Joyce? Trabalha cá umas quantas tardes por semana, incluindo os domingos, uma senhora já idosa, que gosta de falar com toda a gente? O Josh e a Kristen adoram-na.

- Não tenho bem a certeza.

- Não tem importância. Mas, adiante... Ela apareceu por cá uma tarde, deviam ser umas cinco horas, e limitou-se a dizer que iria ficar a tomar conta dos meus filhos para eu poder ir passar uma semana à praia. Já me fizera uma reserva num hotel e disse-me que eu não tinha voto na matéria, porque, na opinião dela, estava à beira dum esgotamento nervoso.

Apertou a cana do nariz, a tentar afastar as recordações daquela época.

- A princípio, fiquei indignado. Afinal de contas, tratava-se dos meus filhos, não era verdade? E que espécie de pai era eu para levar as pessoas a pensar que não sabia ser bom pai? Contudo, ao contrário das outras pessoas, a Joyce não me disse que lhe telefonasse se precisasse dalguma coisa. Ela sabia aquilo por que eu estava a passar e tratou de resolver o problema como melhor lhe parecia. Quando dei por mim, estava a caminho da praia. E ela tinha razão. Nos primeiros dois dias, ainda me continuei a sentir de rastos. Todavia, ao longo dos dias seguintes, fui dando grandes passeios, comecei a ler alguns livros, fiquei a dormir até tarde e, quando voltei, apercebi-me de que havia muito tempo que não me sentia tão descontraído...

Ao sentir-se observado por Katie, a voz acabou por lhe esmorecer.

- Não percebo por que é que me está a contar isso.

Alex virou-se para ela.

- Ambos sabemos que, se eu lhe tivesse perguntado se queria uma bicicleta, me teria dito que não. E, por isso, tal como a Joyce me fez a mim, eu limitei-me a fazer o que muito bem entendia porque era o melhor para si. Porque aprendi que não faz mal aceitarmos ajuda de vez em quando. - Assentiu com a cabeça para a bicicleta. - Fique com ela - insistiu. - A mim, não me serve para nada, e tem de admitir que lhe facilitaria em muito as idas e as vindas para o emprego.

Foram precisos alguns instantes para ele lhe ver a tensão a desaparecer dos ombros e Katie se virar para ele com um sorriso forçado.

- Andou a ensaiar esse discurso?

- Obviamente. - Esforçou-se por fazer um ar contrito. - Mas sempre fica com ela?

Katie hesitou.

- Uma bicicleta era capaz de me fazer jeito - reconheceu ela por fim. - Obrigada.

Quedaram-se ambos num silêncio demorado. Ao observá-la de perfil, tornou a reparar como era bonita, embora estivesse desconfiado de que ela própria não fosse dessa opinião. O que só contribuía para a tornar ainda mais atraente.

- Não tem de quê - disse Alex.

- Mas acabaram-se os brindes, está bem? Já fez mais que o suficiente por mim.

- Muito bem. - Apontou com a cabeça para a bicicleta.

- Teve facilidade em andar nela? Por causa dos cestos, quero eu dizer.

- Correu tudo bem. Porquê?

- Porque a Kristen e o Josh estiveram ontem a ajudar-me a montá-los. Um daqueles programas para os dias de chuva, sabe como é? Foi a Kristen quem os escolheu. Só para que saiba, ela também foi da opinião de que a Katie iria precisar duns manípulos novos para o guiador, mas aí foi a minha vez de me impor.

- Eu não me teria importado de ter uns manípulos novos para o guiador.

Alex riu-se.

- Fique descansada que eu digo-lhe.

Katie hesitou.

- Está a sair-se muito bem, sabia? com os seus filhos, quero eu dizer.

- Obrigado.

- Estou a falar a sério. E eu sei que não tem sido fácil.

- É o que tem a vida: raramente é fácil. A nós, cabe-nos apenas tirar o melhor proveito dela. Compreende aonde eu quero chegar?

- Sim - assentiu ela. - Julgo que sim.

A porta do armazém abriu-se e, quando se debruçou, Alex viu Josh a inspeccionar o parque de estacionamento, com Kristen logo atrás. O filho tinha o cabelo todo desgrenhado, e Alex percebeu que acabara de se levantar da cama.

- Estamos aqui, meninos.

Josh arrastou-se até junto dos dois, enquanto coçava a cabeça. Kristen rasgou um sorriso radiante e acenou a Katie.

- Papá? - chamou-o Josh.

- O que foi?

- Nós queríamos perguntar-te se afinal sempre vamos à praia hoje. O papá prometeu que nos levava.

- A minha intenção é essa.

- E levamos grelhados?

- Claro.

- Está bem - disse ele. Esfregou o nariz. - Olá, Miss Katie.

Katie acenou a Josh e a Kristen.

- Gostou da bicicleta? - palrou esta última.

- Gostei, sim. Obrigada.

- Eu ajudei o papá a arranjá-la - informou-a Josh. - Ele não se ajeita lá muito bem com as ferramentas.

Katie deitou uma olhadela travessa a Alex.

- Não me contou isso.

- Não tem importância. Eu sabia o que era preciso fazer, mas ele teve de me ajudar a pôr uma câmara-de-ar nova.

Kristen cravou o olhar em Katie.

- Também vem connosco à praia?

Katie endireitou-se no banco.

- Acho que não.

- E porquê? - indagou a menina.

- Se calhar, tem de ir trabalhar - sugeriu Alex.

- Por acaso, não vou - justificou-se ela -, mas tenho umas coisas a tratar em casa.

- Então, tem de vir connosco - gritou Kristen. - Vai ser mesmo divertido.

- É o tempo que vocês têm para estar em família - insistiu ela. - Eu não vos quero impor a minha presença.

- Não impõe nada. E vai ser muito divertido. Vai poder ver-me a nadar. Venha lá, por favor - suplicou-lhe Kristen.

Alex não interferiu, relutante em fazer mais pressão ainda. Partiu do princípio de que Katie iria recusar o convite, mas, para sua surpresa, esta assentiu ligeiramente com a cabeça. Quando falou, foi com voz sumida.

- Está bem - disse por fim.

 

De regresso do armazém, Katie estacionou a bicicleta nas traseiras do chalé e foi a casa mudar de roupa. Não tinha fato de banho, mas mesmo que tivesse, não o usaria. Por muito natural que fosse para uma adolescente desfilar diante de estranhos com o equivalente a umas cuecas e um sutiã vestidos, não se sentia à vontade em apresentar-se assim a Alex durante um passeio com os filhos. Ou, para dizer a verdade, mesmo sem os filhos.

Embora resistisse à ideia, tinha de admitir que ele lhe despertava uma certa curiosidade. Não por tudo quanto fizera por ela, por muito comovente que fosse. Tinha mais que ver com o sorriso triste que ele por vezes fazia, a expressão que assumira quando lhe contara o que acontecera à mulher ou a forma como tratava os filhos. Tinha no seu íntimo uma tristeza que não era capaz de disfarçar, e Katie sabia que, sob certos aspectos, era comparável à sua.

Sabia que Alex estava interessado nela. Já tinha idade suficiente para saber quando um homem se sentia atraído por ela; o empregado da mercearia que se punha a falar pelos cotovelos, ou um desconhecido que a olhava de relance, ou um empregado de mesa que vinha ver se ela precisava dalguma coisa com solicitude em demasia. com o tempo, aprendera a fingir que não reparava na atenção que os homens lhe dispensavam; noutras ocasiões, dava mostras de desprezo óbvio, pois sabia o que lhe aconteceria caso não desse. Depois. Quando chegassem a casa. Logo que estivessem sozinhos.

Não obstante, essa vida pertencia agora ao passado, recordou a si própria. Foi abrindo as gavetas e escolheu uns calções e as sandálias que comprara na Anna Jeans. Na noite da véspera, estivera a saborear vinho com uma amiga e agora ia à praia com Alex e os filhos. Eram acontecimentos normais numa vida normal. A ideia parecia-lhe estranha, como se estivesse a aprender os hábitos dum país estrangeiro, e provocava-lhe uma sensação simultânea de euforia e de desconfiança.

Logo que acabou de se vestir, viu o jipe de Alex a subir a estrada de gravilha e respirou fundo quando ele parou à sua porta. Era agora ou nunca, disse para consigo ao sair para o alpendre.

- Tem de pôr o cinto de segurança, Miss Katie - disse-lhe Kristen, sentada no assento traseiro. - Se não puser, o papá diz que não vamos a lado nenhum.

Alex deitou-lhe uma olhadela, como quem diz: “Está a ver o que eu sou obrigado a aturar?” Katie rasgou-lhe o sorriso mais corajoso que conseguiu.

- Pronto - disse ele -, vamos embora.

Chegaram à cidade costeira de Long Beach, recheada de casas com dois pisos na frente e um único nas traseiras e amplas vistas para o mar, em menos duma hora. Alex estacionou o jipe num pequeno parque aninhado contra as dunas. Ali perto, as ervas ciperáceas ondulavam ao sabor da brisa marítima agreste. Katie desceu do carro e inspirou fundo, o olhar fixo no oceano.

As crianças saíram de jipe e dirigiram-se imediatamente para o carreiro entre as dunas.

- vou ver como está a água, papá! - gritou-lhe Josh, empunhando a máscara de mergulhador e o tubo de respiração.

- Eu também! - acrescentou a irmã, seguindo na sua peugada.

Alex estava ocupado a descarregar o porta-bagagens do jipe.

- Esperem aí! - ordenou-lhes. -Já não demora muito!

Josh soltou um suspiro, transferindo o peso dum pé para o outro num sinal de impaciência óbvia. Alex começou a puxar a geleira.

- Quer ajuda? - ofereceu-se Katie.

Ele abanou a cabeça.

- Eu cá me arranjo sozinho. Mas, se não se importasse de pôr protector solar nos miúdos e de os manter debaixo de olho enquanto eu trato disto, agradecia-lhe. Sabe que estão todos entusiasmados de aqui estar.

- Tudo bem - acedeu ela, virando-se para Kristen e para Josh. - Estão prontos?

Alex passou os minutos seguintes a descarregar o jipe, instalando as suas coisas na mesa de piquenique mais próxima das dunas, onde a maré cheia não os alcançaria. Embora já houvesse mais algumas famílias na praia, tinham aquela zona quase exclusivamente por sua conta. Katie descalçara as sandálias e estava agora à beira-mar, enquanto os dois irmãos andavam a chapinhar na água rasa. Tinha os braços cruzados diante do peito e, mesmo de longe, Alex detectou-lhe uma rara expressão de felicidade.

À medida que se aproximava, foi pendurando algumas toalhas ao ombro.

- Até custa a acreditar que ontem tivemos um temporal, não acha?

Katie virou-se ao ouvir a sua voz.

- Já me tinha esquecido das saudades que tinha do mar.

- Foi assim há tanto tempo?

- Demasiado - salientou ela, escutando o movimento ritmado das ondas a rebentar na praia.

Josh andava a saltar entre as ondas, enquanto, ali perto, Kristen estava acocorada à procura de conchas na areia.

- Por vezes deve ser difícil para si educá-los sozinho - observou Katie.

Alex hesitou, ponderando na resposta. Quando falou, foi num tom calmo:

- A maior parte do tempo, até não é tão difícil quanto se possa pensar. Nós acabamos por entrar numa rotina, sabe? Na vida quotidiana? É precisamente quando fazemos actividades como a de hoje... quando saímos fora da rotina... que por vezes as coisas se complicam. - Deu um ligeiro pontapé na areia, rasgando um pequeno sulco diante dos pés. - Quando eu e a minha mulher considerámos a hipótese de termos um terceiro filho, ela avisou-me de que isso implicaria passarmos duma atitude de sinceridade e de abertura para uma postura defensiva. Ela costumava meter-se comigo dizendo que não sabia se eu estaria à altura da situação. Mas aqui estou, todos os dias sem excepção na defensiva... - A voz esmoreceu-lhe e ele abanou a cabeça. - Desculpe, não devia ter dito isto.

- Dito o quê?

- Parece que, sempre que converso consigo, acabo a falar na minha mulher.

Katie virou-se para ele pela primeira vez.

- E por que não haveria de poder falar na sua mulher?

Alex pôs-se a arrastar a areia para a frente e para trás, alisando o sulco que acabara de abrir.

- Não quero que julgue que eu não sei falar doutra coisa. Que não faço senão viver no passado.

- Gostava muito dela, não gostava?

- Gostava - reconheceu ele.

- E ela era uma pessoa muito importante na sua vida e mãe dos seus filhos, não era?

- Era.

- Então, é perfeitamente natural que fale nela - tranquilizou-o Katie. - Até acho que deve falar nela. Ela faz parte da pessoa que o Alex é.

Alex rasgou-lhe um sorriso agradecido, mas não lhe ocorreu nada que dizer. Katie parecia ler-lhe os pensamentos e, quando falou, a sua voz deixava transparecer ternura.

- Como foi que se conheceram?

- Conhecemo-nos num bar, veja só. Ela estava lá com umas amigas, a celebrar o aniversário duma delas. Fazia imenso calor lá dentro, estava cheio de gente, as luzes baixas e a música alta, e ela... destacava-se. Quero dizer, as amigas estavam todas um bocadinho descontroladas, era óbvio que se estavam a divertir à grande, mas ela era a serenidade em pessoa.

- E calculo que também devia ser bonita.

- Isso é escusado dizer - respondeu-lhe ele. - E, então, engoli em seco para acalmar o nervoso e fui ter com ela, recorrendo a todos os meus poderes de sedução.

Quando fez uma pausa, Alex reparou num sorriso a bailar-lhe nos cantos dos lábios.

- E? - indagou ela.

- E levei três horas para conseguir que se dignasse a dizer-me como se chamava e a dar-me o número de telefone.

Katie riu-se.

- E deixe-me adivinhar. No dia seguinte, telefonou-lhe, não foi? E convidou-a para sair consigo?

- Como é que adivinhou?

- Parece-me ser o seu género.

- Quem a ouvir falar, ainda pensa que já a tentaram engatar muitas vezes.

Ela encolheu os ombros, deixando a interpretação ao critério dele.

- E depois, o que foi que se passou?

- Tem a certeza de que está interessada em ouvir?

- Tenho - admitiu ela. - Não sei porquê, mas a verdade é que estou.

Alex examinou-a com um olhar atento.

- Então, de acordo - disse ele por fim. - bom, tal como a Katie, por algum milagre que escapa à minha compreensão, já sabia, convidei-a para almoçar comigo e passámos o resto da tarde a conversar. Nesse fim-de-semana, disse-lhe que, um dia, nós os dois nos haveríamos de casar.

- Está a brincar comigo.

- Eu sei que parece um disparate. E pode crer que ela também achou o mesmo. Mas eu... eu sabia, e pronto. Ela era inteligente, bondosa e nós tínhamos imensa coisa em comum e desejávamos o mesmo da vida. Estava sempre a rir-se e a fazer-me rir a mim... Para ser sincero, de nós os dois, o felizardo fui eu.

As ondas continuavam a cavalgar a brisa marítima, empurrando os tornozelos de Katie.

- Mas olhe que ela também se deve ter considerado uma felizarda.

- Isso foi só porque eu a consegui levar à certa.

Ela riu-se.

- Não me parece.

- Só me está a dizer isso porque somos amigos.

- Acha que somos amigos?

- Acho - confirmou ele, sustendo-lhe o olhar. - A Katie não acha?

Pela expressão dela, Alex percebeu que a ideia a apanhara de surpresa, mas, sem lhe dar tempo a responder, Kristen veio a chapinhar até eles, com uma mão-cheia de conchas.

- Miss Katie! - gritou ela. - Descobri umas lindas!

Katie debruçou-se à altura dela.

- Posso vê-las?

Kristen mostrou-lhe as conchas, deixando-as cair na mão de Katie e virando-se em seguida para o pai.

- Papá! - chamou-o ela. - Podemos começar já a fazer o churrasco? Estou cheia de fome.

- Claro, minha querida. - Deu uns passos em frente, atento ao filho a mergulhar nas ondas. Logo que Josh veio à tona da água, Alex fechou as mãos em concha para o chamar. - Josh! - gritou-lhe. - vou pôr o carvão a aquecer. Não achas que já está na altura de vires cá para fora?

- Já? -- gritou-lhe Josh em resposta.

- É só por um bocadinho.

Mesmo ao longe, reparou nos ombros do filho a descair. Katie também deve ter reparado, pois não tardou a intervir.

- Se quiser, eu não me importo de ficar aqui - prontificou-se ela.

- Tem a certeza?

- A Kristen quer mostrar-me as conchas dela - explicou-lhe.

Alex assentiu com a cabeça e virou-se novamente para Josh.

- A Miss Katie fica a tomar conta de ti, está bem? Vê lá se não te afastas muito!

- Esteja descansado! - prometeu-lhe o filho, todo sorridente.

 

Passado um bocado, Katie conduziu uma Kristen trémula de frio e um Josh muito entusiasmado para uma toalha de praia que Alex deixara estendida. O grelhador já se achava montado, e os briquetes já estavam incandescentes nas bordas.

Alex abriu a última cadeira de praia em cima da toalha e ficou a vê-los aproximarem-se.

- Que tal estava a água, meninos?

- O máximo! - respondeu-lhe Josh. O cabelo do rapaz, já quase seco, estava todo espetado. - O almoço já está pronto?

Alex deitou uma olhadela ao carvão.

- Dá-me mais uns vinte minutos.

- Eu e a Kristen podemos voltar para a água?

- Acabaram de sair da água. Não achas que seria melhor descansarem um bocadinho?

- Nós não queremos ir nadar. Queremos construir castelos na areia - explicou ele ao pai.

Alex reparou que Kristen estava a bater o dente de frio.

- Tens a certeza de que é mesmo isso que queres? Estás roxa.

Kristen acenou com a cabeça num gesto veemente.

- Eu cá não tenho frio - disse ela, a tremer. - E nós combinámos construir castelos na areia.

- Então, está bem. Mas têm de vestir uma camisola. E não saiam do alcance da minha vista - recomendou-lhes ele, apontando.

- Eu sei, pai. - Josh soltou um suspiro. - Já não sou nenhuma criança.

Alex vasculhou o interior duma mochila e ajudou Josh e Kristen a vestir uma camisola. Quando terminou, o filho agarrou num saco cheio de brinquedos e de pás de plástico e largou a correr, detendo-se a uns passos da beira-mar. Kristen foi no encalço do irmão.

- Quer que vá para junto deles? - perguntou-lhe Katie.

Alex abanou a cabeça.

- Não, não há problema. Eles já estão habituados a isto. Quando eu estou a cozinhar, quero dizer. Sabem que não podem ir para dentro de água.

Dirigiu-se à geleira, acocorou-se e levantou a tampa.

- Também está a ficar com fome? - indagou ele.

- Mais ou menos - admitiu ela, apercebendo-se nesse momento de que não comera nada depois do queijo e do vinho da véspera. Nem de propósito, ouviu o estômago a protestar e cruzou os braços por cima da barriga.

- Óptimo, porque eu também estou esganado. - Enquanto Alex remexia dentro da geleira, Katie reparou-lhe nos músculos vigorosos do antebraço. - Eu tinha pensado em cachorros-quentes para o Josh, um hambúrguer para a Kristen e, para nós os dois, bifes. - Retirou a carne, colocou-a de parte e debruçou-se sobre o grelhador, soprando o carvão.

- Posso ajudá-lo nalguma coisa?

- Não se importa de pôr a toalha na mesa? Está na geleira.

- Claro - acedeu Katie. Retirou um saco de gelo e ficou a olhar embasbacada. - Há aqui comida que chegue para uma dúzia de famílias - observou ela.

- Pois, sabe, com os miúdos, é sempre preferível trazer a mais que a menos, uma vez que nunca sei bem quanto comem. Nem imagina a quantidade de vezes em que aqui cheguei, reparei que me tinha esquecido dalguma coisa e lá tive de ir recambiado com os miúdos para o armazém. Hoje quis evitar que isso acontecesse.

Katie desdobrou a toalha de plástico e, seguindo as instruções de Alex, prendeu os cantos com os pisa-papéis que ele, sem perceber bem como, se lembrara de trazer.

- E que mais? Quer que eu ponha mais alguma coisa na mesa?

- Ainda temos de esperar uns minutos. E não sei se será o seu caso, mas eu estou pronto para uma cerveja - disse ele. Enfiou uma mão na geleira e tirou uma garrafa. - Também quer?

- Aceito uma bebida com gás.

- Pode ser uma Diet Coke? - sugeriu ele, tornando a enfiar a mão lá dentro.

- Está óptimo.

Quando lhe passou a lata, a mão de Alex aflorou a dela, mas não teve a certeza de Katie dar por isso.

Apontou para as cadeiras.

- Não se quer sentar?

Ela hesitou, mas acabou por se instalar ao lado dele. Quando as montara, Alex deixara entre cada uma espaço suficiente para que eles não se tocassem sem querer. Desenroscou a tampa da cerveja e bebeu um gole.

- Não há nada melhor que uma cerveja fresca num dia quente de praia.

Katie sorriu, ligeiramente desconcertada por se encontrar sozinha com ele.

- Confio na sua palavra.

- Não gosta de cerveja?

A sua memória retrocedeu instantaneamente ao pai e às latas vazias de Pabst Blue Ribbon espalhadas pelo chão em volta da poltrona onde ele se costumava sentar.

- Nem por isso - admitiu ela.

- Só de vinho, não é?

Demorou uns instantes a lembrar-se de que Alex lhe oferecera uma garrafa de vinho.

- Por acaso, ainda ontem à noite estive a bebê-lo. com a minha vizinha.

- Ai sim? Ainda bem.

Katie procurou um assunto seguro.

- Disse-me que era de Spokane?

Alex esticou as pernas à sua frente, cruzando-as à altura dos tornozelos.

- Nado e criado. Até ir para a faculdade, morei sempre na mesma casa. - Deitou-lhe uma olhadela de viés. - Universidade de Washington, já agora. Força, Huskies!

Ela esboçou um sorriso.

- E os seus pais ainda lá moram?

- Ainda.

- Deve ser difícil para eles virem visitar os netos.

- Acho que sim.

Houve qualquer coisa no tom dele que despertou a atenção de Katie.

- Acha que sim?

- Não são o género de avós que visitassem os netos, mesmo que morassem nas proximidades. Só viram os miúdos duas vezes, da primeira vez quando a Kristen nasceu e, da segunda, no funeral. - Abanou a cabeça. - Não me peça que lhe explique porquê - prosseguiu ele -, mas os meus pais não mostram qualquer interesse neles, para além de lhes enviarem um postal pelo aniversário e presentes pelo Natal. Preferem andar a viajar ou lá o que é.

- Ha?

- O que quer que eu faça? E, para além do mais, nem sequer posso dizer que me tivessem tratado de forma muito diferente, apesar de eu ser filho único. A primeira vez que me foram visitar à universidade foi no dia da entrega dos diplomas e, embora eu fosse tão bom nadador que até ganhei uma bolsa que me cobria todas as despesas relativas aos estudos, só me viram competir duas vezes. Mesmo que eu morasse na casa em frente à deles, duvido de que quisessem ver os netos. Foi esse um dos motivos que me levaram a ficar aqui. Foi o melhor que tive a fazer, não acha?

- Então, e os avós do outro lado?

Alex começou a arrancar o rótulo da garrafa de cerveja.

- Isso ainda é mais complicado. Eles têm mais duas filhas que foram viver para a Florida e, depois de me venderem o armazém, mudaram-se para lá. Vêm cá uma ou duas vezes por ano para passar uns dias connosco, mas é sempre difícil. E nunca ficam hospedados em nossa casa, porque acho que lhes traz recordações da Carly. São recordações a mais.

- Por outras palavras, está praticamente por sua conta.

- É mais o contrário - retorquiu ele, acenando com a cabeça em direcção aos filhos. - Tenho-os a eles, não se esqueça.

- Mas há com certeza momentos em que deve ser difícil. Ter de gerir o armazém, de educar os miúdos.

- Não é assim tão mau quanto possa parecer. Desde que me levante todos os dias às seis da manhã e não me deite antes da meia-noite, aguenta-se bem.

Katie soltou uma gargalhada.

- Acha que o carvão já está quente?

- Deixe-me verificar - disse ele. Pousou a garrafa na areia, levantou-se da cadeira e acercou-se do grelhador. Os briquetes estavam completamente incandescentes, e o calor elevava-se em ondas trémulas. - Acertou em cheio - observou ele. Foi pondo os bifes e os hambúrgueres no grelhador enquanto Katie se dirigia à geleira e começava a trazer o sortido infindável de comida para a mesa: caixas de plástico cheias de salada de batata, salada de couve e cenoura, salada de vegetais verdes, picles, gomos de fruta, dois pacotes de batatas fritas, queijo fatiado e uma ampla variedade de temperos.

Katie abanava a cabeça à medida que os ia dispondo em cima da mesa, a pensar que Alex parecia esquecer-se de que os filhos ainda eram pequenos. Havia ali mais comida que a que ela tivera em casa desde que se mudara para Southport.

Alex virou os bifes e o hambúrguer, e em seguida adicionou os cachorros-quentes. Entretanto, deu pelo seu olhar a desviar-se para as pernas de Katie a movimentarem-se de volta da mesa, observando uma vez mais como ela era bonita.

Ela deu sinais de reparar nisso.

- O que foi? - inquiriu.

- Nada - respondeu ele.

- Estava a pensar nalguma coisa?

Alex suspirou.

- Estou contente por ter aceitado o nosso convite - confessou ele por fim. - Porque estou a ter um dia óptimo.

Enquanto Alex se atarefava de volta do grelhador, foram conversando em tom descontraído. Alex traçou-lhe uma panorâmica do que era gerir um armazém de província. Contou-lhe como fora que os sogros tinham instalado o negócio e descreveu-lhe afectuosamente alguns dos fregueses habituais, pessoas que poderiam ser consideradas excêntricas, e Katie perguntou-se para consigo se teria sido incluída naquela descrição caso ele tivesse trazido outra companhia para a praia.

Não que isso lhe causasse grande transtorno. Quanto mais conversavam, mais ela se apercebia de que ele era o género de homem que se esforçava sempre por ver o melhor em cada pessoa, o género de homem que não gostava de se queixar. Tentou em vão imaginar como teria ele sido em jovem e, aos poucos, foi dirigindo a conversa nesse sentido. Alex falou-lhe dos seus tempos de rapaz em Spokane e dos longos fins-de-semana ociosos que passava a andar de bicicleta com os amigos pelo Centennial Trail; contou-lhe que, mal descobrira a natação, se tornara uma obsessão para ele. Nadava quatro ou cinco horas por dia e alimentava sonhos olímpicos, mas uma ruptura na coifa dos rotadores do ombro quando andava no segundo ano da universidade pusera-lhes fim. Falou-lhe das festas nas repúblicas de estudantes que costumava frequentar e dos amigos que fizera na universidade, reconhecendo porém que quase todas essas amizades se tinham gradualmente afastado. À medida que o ouvia, Katie constatava que Alex não tentava romancear nem minimizar o passado, nem tão-pouco mostrava uma preocupação excessiva com a opinião dos outros a seu respeito.

Ainda lhe via vestígios do atleta de elite que ele em tempos fora, reparando nos seus gestos graciosos e desenvoltos e no seu sorriso fácil, como se estivesse habituado tanto à vitória como à derrota. Quando ele se quedou em silêncio, Katie receou que se preparasse para lhe fazer perguntas a respeito do seu próprio passado, mas ele pareceu pressentir que isso a deixaria pouco à vontade e preferiu enveredar por outro assunto.

Quando os grelhados ficaram prontos, Alex chamou os filhos e eles vieram logo a correr. Estavam todos sujos de areia, e o pai obrigou-os a afastarem-se da mesa para os sacudir. Ao vê-lo, Katie compreendeu que ele era muito melhor pai que aquilo que dava a entender; um bom pai, suspeitava ela, sob todos os aspectos fundamentais.

Quando as crianças se sentaram à mesa, a conversa mudou de rumo. Katie ficou a ouvi-los tagarelar sobre os seus castelos de areia e um dos programas do Canal Disney a que ambos gostavam de assistir. Quando começaram a fazer perguntas acerca das guloseimas que lhes estavam destinadas depois do almoço - marshmallows, chocolates e bolachas integrais aquecidas até derreter - tornou-se-lhe óbvio que Alex criara tradições familiares originais e divertidas para os filhos. Era diferente, concluiu ela, dos homens que conhecera no passado, diferente de qualquer outra pessoa que tivesse conhecido até à data, e, à medida que a conversa prosseguia, quaisquer vestígios do nervoso que ela anteriormente sentira se foram desvanecendo.

A refeição estava uma delícia, uma quebra bem-vinda na austera rotina alimentar que vinha a seguir nos últimos tempos. O céu continuava limpo, a vastidão azul só era interrompida por uma ocasional ave marinha que passava lá no alto. A brisa soprava apenas o suficiente para os refrescar, e o ritmo regular das ondas contribuía para a sensação geral de tranquilidade.

Quando acabaram de comer, Josh e Kristen ajudaram a levantar a mesa e a arrumar os alimentos que tinham sobrado na geleira. Uns quantos que não se estragavam - os picles e as batatas fritas - continuaram em cima da mesa. Os miúdos quiseram ir jogar raquetes para a beira-mar e, depois de lhes aplicar nova dose de protector solar, Alex deixou-os ir. Sentou-se ao lado de Katie e ficaram calmamente a conversar enquanto iam observando as crianças. Quase se esqueceram do tempo, até que, passadas cerca de duas horas, Josh e Kristen regressaram radiantes e desafiaram o pai a ir fazer bodyboard. Alex despiu a camisola e foi com eles para dentro de água.

Katie levou a cadeira para a beira-mar e passou a hora seguinte a vê-lo a ajudar os filhos a cavalgar as ondas, colocando-os alternadamente na posição adequada para as conseguirem apanhar. Os miúdos guinchavam de euforia, obviamente muito divertidos. Admirou a capacidade de Alex de fazer com que cada um deles se sentisse o centro das atenções. Via-se claramente a ternura com que os tratava, com uma paciência infinita de que ela não estava à espera. À medida que a tarde foi chegando ao fim e as nuvens se começaram a acumular, Katie deu por si a sorrir perante a ideia de que, pela primeira vez em muitos anos, se sentia completamente descontraída. E, como se isso não bastasse, sabia que se estava a divertir tanto quanto as crianças.

 

Quando saíram da água, Kristen queixou-se de que tinha frio e Alex levou-a a uma casa de banho para a ajudar a mudar de roupa. Katie ficou com Josh na toalha, admirando a luz do Sol a cintilar nas ondas, enquanto Josh se entretinha a empilhar areia com a pá.

- Olhe, quer vir lançar um papagaio comigo? - perguntou-lhe o rapaz de repente.

- Não me lembro dalguma vez ter lançado um papagaio...

- É fácil - insistiu ele, vasculhando o monte de brinquedos que o pai trouxera e retirando um pequeno papagaio. - Eu posso ensinar-lhe como se faz. Venha lá.

Desatou a correr pela praia fora, e Katie ainda tentou acompanhá-lo, mas acabou por desistir e por se contentar em andar a passo rápido. Quando o alcançou, Josh já estava a desenrolar o fio e entregou-lhe o papagaio.

- Basta que o segure acima da cabeça, está bem?

Ela acenou-lhe em concordância, e Josh começou a recuar devagar, continuando a desenrolar o fio com uma desenvoltura experiente.

- Está pronta? - gritou-lhe ele quando finalmente parou.

- Logo que eu começar a correr e a avisar, só tem de o largar!

- Estou pronta! - gritou-lhe ela em resposta.

Josh começou a correr e, quando Katie sentiu a tensão no papagaio e o ouviu gritar, largou-o de imediato. Não tinha a certeza de que a brisa fosse forte o suficiente, mas o papagaio não tardou a projectar-se em direcção ao céu. Josh deteve-se e deu meia-volta. À medida que ela se aproximava dele, o rapaz foi dando mais linha.

Quando chegou ao lado dele, Katie escudou os olhos e ficou a ver o papagaio a elevar-se lentamente no ar. Preto e amarelo, o Batman era visível mesmo a uma boa distância.

- Eu tenho muito jeito para lançar papagaios - disse Josh, a olhar para ele. - Como é que nunca lançou nenhum?

- Não sei. Não era uma coisa que eu costumasse fazer em miúda.

- Pois devia ter feito. É muito divertido.

Josh continuou de olhos postos no céu, com uma expressão extremamente concentrada. Katie reparou pela primeira vez como ele e a irmã eram parecidos.

- E tu gostas de andar na escola? Estás na primária, não é?

- É giro. Gosto mais do recreio. Fazemos corridas e essas coisas.

“Nem outra coisa seria de esperar”, pensou ela. Desde que tinham chegado à praia que ele não tinha estado quieto um instante.

- E a tua professora é simpática?

- Muito simpática, mesmo. É parecida com o meu pai. Ele não grita nem nada disso.

- O teu pai nunca grita?

- Não - disse ele com grande convicção.

-- Então, o que é que ele faz quando se zanga?

- Ele nunca se zanga.

Katie deitou um olhar atento a Josh, a tentar avaliar se ele estava a falar a sério, e acabou por concluir que sim.

- Tem muitos amigos? - interpelou-a ele.

- Nem por isso. Porquê?

-- Porque o meu pai diz que é amiga dele. Foi por isso que a convidou para vir connosco à praia.

- E quando foi que ele disse isso?

- Quando andávamos nas ondas.

- E que mais disse ele?

- Perguntou-nos se nos importávamos por ele a ter trazido.

- E importam-se?

- Por que haveríamos de nos importar? - Josh encolheu os ombros. - Toda a gente precisa de ter amigos, e estar na praia é divertido.

O assunto estava resolvido.

- Lá nisso, tens razão - concordou ela.

- A minha mãe também costumava vir connosco para aqui, sabia?

- Ai sim?

- Era, mas depois morreu.

- Eu sei. Lamento muito. Deve ser difícil para ti. Deves ter muitas saudades dela.

Josh assentiu com a cabeça e, por um instante, pareceu em simultâneo mais novo e mais velho que de facto era.

- Às vezes o meu pai fica triste. Ele julga que eu não percebo, mas percebo.

- No lugar dele, eu também ficaria triste.

O rapaz quedou-se em silêncio, a pensar na resposta que haveria de dar.

- Obrigado por me ajudar com o papagaio - disse-lhe.

- Parecem estar muito divertidos os dois - comentou Alex.

Depois de Kristen ter mudado de roupa, Alex ajudou-a a lançar o seu papagaio e em seguida foi juntar-se a Katie na areia molhada à beira-mar. Katie sentia o cabelo a ondular ao sabor da brisa.

- Ele é uma ternura de miúdo. É mais comunicativo que me pareceu à primeira vista.

Enquanto Alex observava os filhos a lançarem os respectivos papagaios, Katie teve a impressão de que nada lhe passava despercebido.

- Então, é isto que costuma fazer aos fins-de-semana depois de sair do armazém? Fazer companhia aos seus filhos?

- Sempre - confirmou ele. - Considero que é fundamental.

- Mesmo dando a ideia de que os seus pais não eram assim?

Alex hesitou.

- Essa seria a resposta mais fácil não é? Que eu me senti até certo ponto negligenciado e que jurei a mim próprio que comigo seria diferente? Parece-me fazer sentido, mas não sei se corresponderá completamente à verdade. O facto é que eu gosto de passar o tempo na companhia deles. Gosto de estar com eles. Gosto de os ver crescer e quero participar disso.

Ao ouvir a resposta dele, Katie deu por ela a recordar-se da sua própria infância, a tentar em vão imaginar os sentimentos de Alex reflectidos no pai ou na mãe.

- Por que é que se alistou no Exército depois de concluir a licenciatura?

- Na altura, pareceu-me a atitude mais correcta. Estava preparado para assumir um novo desafio, queria ter uma experiência diferente e o Exército deu-me um pretexto para sair de Washington. À excepção dum ou outro campeonato de natação, nunca tinha saído do estado.

- Alguma vez assistiu a algum...?

Ao ouvir a voz esmorecer-lhe, Alex concluiu a frase por ela.

- Combate? Não, não era esse tipo de exército. Eu especializei-me em direito criminal na faculdade e acabei por ir parar à Divisão de Investigação Criminal.

- O que é isso?

Quando Alex lhe explicou, ela voltou-se para ele.

- Uma espécie de polícia?

Ele assentiu com a cabeça.

- Eu era investigador - afirmou ele.

Katie não fez comentários. Ao invés, deu meia-volta abrupta, a sua expressão a fechar-se como um portão a bater com toda a força.

- Disse alguma coisa que não devia? - perguntou-lhe Alex.

Ela abanou a cabeça sem lhe dar resposta. Alex ficou a olhar para ela, admirado com a sua reacção. As suspeitas que tinha relativamente ao passado de Katie vieram à tona quase de imediato.

- O que é que se passa, Katie?

- Nada - salientou ela, mas bastou Alex ouvir estas palavras para perceber que lhe estava a mentir. Noutras circunstâncias, ele teria insistido no assunto, mas, por enquanto, preferiu pô-lo de parte.

- Não é obrigada a falar nisso - tranquilizou-a. - E, para além do mais, eu já não sou investigador. Pode crer que sou muito mais feliz a dirigir um armazém que vende de tudo um pouco.

Katie assentiu com a cabeça, mas ele pressentiu-lhe um laivo de ansiedade. Percebeu que ela precisava de espaço, mesmo não sabendo o motivo. Apontou com o polegar por cima do ombro.

- Ouça, esqueci-me de pôr mais briquetes no grelhador. Se os miúdos não têm as sanduíches de marshmallows deles, nunca mais se calam. Volto já, está bem?

- Claro - respondeu-lhe ela aparentando descontracção. Quando ele se afastou a correr, Katie respirou de alívio, com a sensação de que escapara impune a alguma coisa. “Ele já foi polícia”, pensou para consigo, esforçando-se por se convencer de que não tinha importância. Ainda assim, foi preciso quase um minuto de respiração pausada para recuperar um certo autodomínio. Kristen e Josh continuavam no mesmo sítio, embora a menina se tivesse acocorado para apanhar outra concha, esquecida do seu papagaio.

Ouviu Alex a aproximar-se nas suas costas.

- Eu avisei-a de que não me demoraria - disse ele em tom afável. - Depois de comermos o lanche, acho que serão horas de nos irmos embora. Adorava ficar para ver o pôr do Sol, mas o Josh tem escola amanhã.

- Quando se quiser ir embora, por mim esteja à vontade - disse ela, cruzando os braços diante do peito.

Ao reparar-lhe na rigidez dos ombros e na brusquidão com que falara com ele, Alex franziu o sobrolho.

- Não faço ideia do que terei dito para a incomodar, mas peço desculpa, está bem? - acabou ele por dizer. - Só quero que saiba que, se precisar de desabafar, pode contar comigo.

Katie acenou com a cabeça em silêncio e, embora Alex ficasse à espera de que dissesse alguma coisa, teve de se contentar com isso.

- É assim que as coisas vão funcionar connosco? - interpelou-a ele.

- Que coisas?

- De repente, fiquei com a sensação de que tenho de ter mil cuidados com o que lhe digo e não percebo porquê.

- Eu gostaria muito de lhe explicar, mas não posso - respondeu-lhe ela. A sua voz mal se ouvia acima do barulho das ondas.

- Pode pelo menos explicar-me o que foi que eu disse? Ou o que foi que fiz?

Katie virou-se para ele.

- O Alex não disse nem fez nada de mal. Mas, neste momento, não lhe posso adiantar mais nada, está bem?

Ele examinou-a com olhar atento.

- Muito bem - cedeu. - Desde que continue bem disposta.

Embora a certo custo, Katie lá conseguiu esboçar um sorriso.

- Há muito tempo que não passava um dia tão agradável quanto este. Um fim-de-semana, aliás.

- Ainda está zangada por causa da bicicleta, não está? - indagou ele, semicerrando os olhos a fingir-se de desconfiado. Nem a tensão que sentia impediu Katie de se rir.

- com certeza. vou precisar de muito tempo para ultrapassar isso - declarou ela fingindo-se de amuada.

Alex dirigiu o olhar para o horizonte com ar aliviado.

- Não se importa de que lhe faça uma pergunta? - disse-lhe Katie, ficando séria outra vez. - Se não quiser, não é obrigado a responder.

- Esteja à vontade.

- O que foi que aconteceu à sua mulher? Contou-me que ela teve uma crise, mas não me explicou qual era a doença de que ela sofria.

Alex suspirou, como se já estivesse à espera daquela pergunta, mas mesmo assim precisasse de ganhar coragem para lhe responder.

- Teve um tumor no cérebro - começou ele em tom pausado. - Ou, para ser mais exacto, teve três tipos diferentes de tumor cerebral. Na altura não sabia, mas depois vim a descobrir que é bastante vulgar. Aquele que se desenvolveu mais devagar era o que já estavam à espera; tinha sensivelmente o tamanho dum ovo, e os cirurgiões conseguiram extrair-lho quase na totalidade. Mas os outros não eram tão simples. Eram do género de tumores que se desenvolvem com ramificações, e a única forma de os extrair era extraindo também uma parte do cérebro. Para além de que também eram cancerígenos. Os médicos fizeram o melhor que puderam, mas, logo que saíram da sala de operações e me comunicaram que tinha corrido tudo bem dentro do possível, eu percebi exactamente o que isso significava.

- Não me estou a imaginar a ouvir uma coisa dessas. - Katie baixou o olhar para a areia.

- Confesso que tive dificuldade em acreditar. Foi tudo tão... inesperado. Afinal, na semana anterior, éramos uma família normal e, quando dei por mim, ela estava a morrer e não havia nada que eu pudesse fazer para o evitar.

Ali perto, Kristen e Josh continuavam concentrados nos seus papagaios, mas Katie percebeu que Alex mal os via.

- Depois da operação, ela demorou algumas semanas a conseguir andar a pé, e eu quis convencer-me de que estava tudo a correr bem. Contudo, depois disso, a cada semana que passava, eu ia dando por pequenas alterações. Começou a perder a força do lado esquerdo do corpo e a fazer umas sestas cada vez mais compridas. Foi duro, embora, para mim, o pior tivesse sido vê-la a afastar-se dos filhos. Como se não quisesse que eles se lembrassem de a ver doente; queria que eles a recordassem como em tempos fora. - Alex fez uma pausa e em seguida abanou a cabeça. - Desculpe. Não lhe devia ter contado isto. A Carly foi uma mãe extremosa. Basta olhar para os miúdos para se perceber logo isso.

- Acho que o pai também deve ter alguma coisa que ver com isso.

- Eu bem me esforço. Embora, a maior parte do tempo, fique com a sensação de que não sei o que estou a fazer. É como se estivesse a fingir.

- Estou convencida de que todos os pais se sentem assim.

Alex voltou-se para ela.

- Os seus eram assim?

Katie teve um momento de hesitação.

- Acho que os meus pais fizeram o melhor que podiam. - Não se podia dizer que fosse um elogio retumbante, mas era a verdade.

- Ainda mantém o contacto com eles?

- Morreram num acidente de automóvel quando eu tinha dezanove anos.

Alex fitou-a.

- Lamento profundamente ouvir isso.

- Eu tinha arcaboiço - assegurou-lhe Katie.

- Tem irmãos?

- Não - disse-lhe ela. Virou-se para o mar. - Sou filha única.

Uns minutos decorridos, Alex ajudou os filhos a rebobinar os papagaios e regressaram à zona dos piqueniques. O carvão ainda não estava suficientemente quente, e Alex aproveitou para passar as pranchas de bodyboard por água e para sacudir a areia das toalhas antes de ir buscar o que precisava para o lanche.

Kristen e Josh ajudaram-no a arrumar quase todas as suas coisas, e Katie guardou o resto da comida na geleira enquanto ia transportando o que já não era necessário para o jipe. Quando acabou, só sobravam uma toalha e quatro cadeiras. Os filhos dispuseram-nas em círculo, e o pai foi distribuindo garfos compridos e o saco dos marshmallows. Tal era a excitação que Josh o rasgou ao abri-lo, espalhando uns quantos em cima da toalha.

Katie seguiu o exemplo das crianças e enfiou três marshmallmws no garfo, e postaram-se os quatro de volta do grelhador, revirando os garfos, enquanto os cubos açucarados iam adquirindo uma tonalidade castanho-dourada. Katie aproximou o seu garfo demasiado do lume e dois dos marshmallows começaram a arder, mas Alex apressou-se a apagar o fogo.

Quando acabaram, Alex ajudou os filhos a finalizar a receita: chocolate em cima da bolacha integral, seguido dum marshmallow e doutra bolacha. A guloseima era doce e peganhenta, e havia muito tempo que Katie não se lembrava de ter comido nada tão delicioso.

Sentado entre Kristen e Josh, reparou que Alex estava em dificuldades com a sua sanduíche, sujando-se todo, e, quando tentou limpar a boca com os dedos, o resultado ainda foi pior. Os filhos acharam a situação hilariante, e Katie também não conseguiu conter o riso, sentindo-se inundar por um súbito e inesperado arroubo de esperança. Apesar da tragédia que se abatera sobre eles, eram uma família feliz; aquilo, pensou ela, era o que uma família unida fazia quando estava junta. Para eles, não era senão um dia de fim-de-semana igual a tantos outros; para ela, porém, havia qualquer coisa de revelador na ideia de que momentos como aquele existiam. E talvez, talvez apenas, lhe fosse possível viver dias semelhantes no futuro.

 

- Então, afinal, como é que correu?

Jo estava sentada diante dela à mesa, na cozinha, envolta na luminosidade amarela proveniente da lâmpada sobranceira ao fogão. Quando dera pelo regresso de Katie, decidira fazer-lhe uma visita e trazia o cabelo salpicado de tinta. Katie pusera uma cafeteira ao lume e duas canecas em cima da mesa.

- Não foi nada de especial. Quando acabámos o lanche, demos um último passeio pela praia e depois metemo-nos no jipe e voltámos para casa.

- Ele acompanhou-te à porta?

- Sim.

- E tu convidaste-o a entrar?

- Ele tinha de levar os filhos para casa.

- Deste-lhe um beijo de boas-noites?

- Está claro que não.

- E por que não?

- Será possível que não tenhas ouvido o que acabei de dizer? Ele tinha de levar os filhos para casa. Não foi um encontro amoroso.

Jo levantou a caneca.

- Pois, cá a mim, quer-me parecer que foi.

-- Foi apenas um dia passado em família.

Jo reflectiu na resposta dela.

- Dá a impressão de que vocês os dois passaram muito tempo à conversa.

Katie recostou-se na cadeira.

- Acho que tu querias que tivesse sido um encontro amoroso.

- Por que haveria eu de querer uma coisa dessas?

- Não faço ideia. Mas desde que nos conhecemos que arranjas sempre maneira de trazer o nome dele à baila. É como se estivesses a tentar... sei lá... fazer todo o possível por que eu repare nele.

Jo revirou o conteúdo da sua caneca e tornou a pousá-la em cima da mesa.

- E tens reparado?

Katie levantou as mãos ao céu.

- Estás a ver aonde eu quero chegar?

Jo riu-se e em seguida abanou a cabeça.

- Está bem. Então, e que tal se for assim? - Hesitou momentaneamente antes de prosseguir. - Já conheci muitas pessoas e, com o tempo, fui desenvolvendo a minha intuição e aprendendo a confiar nela. Tal como é do conhecimento de ambas, o Alex é uma óptima pessoa e, à medida que te fui conhecendo, fui ficando com a mesma impressão a teu respeito. Para além de que não tenho feito senão provocar-te em relação a isso. Não se pode dizer que te tenha arrastado para o armazém nem que vos tenha apresentado. Nem sequer estava presente quando ele te convidou para ir à praia, um convite que, ao que me consta, não te fizeste rogada em aceitar.

- Quem me convidou foi a Kristen...

- Eu sei. Tu contaste-me - admitiu Jo, arqueando uma sobrancelha. - E estou certa de que foi esse o único motivo por que foste.

Katie repreendeu-a:

- Tu tens uma maneira curiosa de deturpar as coisas.

Jo riu-se uma vez mais.

- Nunca te passou pela cabeça que seja assim por estar com inveja? Ah, não por teres ido com o Alex, mas por teres ido para a praia num dia belíssimo, enquanto eu fiquei encafuada em casa de volta das pinturas... pelo segundo dia seguido. No que depender de mim, nunca mais na vida haverei de pôr as mãos num rolo de tinta. Tenho os braços e os ombros que nem os sinto...

Katie levantou-se da mesa e dirigiu-se à bancada. Encheu outra caneca de café para si própria e empunhou a cafeteira.

- Queres mais?

- Não, obrigada. Estou a precisar duma noite bem dormida, e a cafeína tira-me o sono. Acho que vou encomendar comida chinesa. Queres alguma coisa?

- Não estou com fome - disse Katie. -- Fartei-me de comer o dia todo.

- Não estou a ver como isso seja possível. Mas apanhaste muito sol. Fica-te bem, mas vais acabar por ficar com rugas.

Katie soltou uma gargalhada desdenhosa.

- Obrigada pelo incentivo.

- Afinal, para que servem os amigos? - Jo levantou-se da mesa e espreguiçou-se como se fosse um gato. - E quero que saibas que gostei muito da noite passada. Embora me veja forçada a admitir que esta manhã paguei a factura.

- Foi divertido - concordou Katie.

Jo avançou meia dúzia de passos e em seguida deu meia-volta.

- Ah, já me esquecia de te perguntar. Vais ficar com a bicicleta?

- vou - respondeu-lhe Katie.

Jo ponderou no assunto.

- Fico contente por ti.

- O que queres tu dizer com isso?

- Apenas que acho que não a devias devolver. Salta à vista que te faz falta e que ele queria que ficasses com ela. Por que haverias de lha devolver? - Encolheu os ombros. - O teu problema é que tens tendência a ver segundas intenções em tudo.

- Como no caso da minha amiga manipuladora?

- Achas mesmo que eu sou manipuladora?

Katie reflectiu na pergunta.

- Talvez um bocadinho.

Jo sorriu.

- Então, e como é que está o teu horário esta semana? Vais trabalhar muito?

Katie assentiu com a cabeça.

- Seis turnos do jantar e três do almoço.

Jo fez uma careta.

- Que horror!

- Não faz mal. Preciso de dinheiro e já estou habituada.

- E, claro está, tiveste um óptimo fim-de-semana.

Katie fez uma pausa.

- Pois - concordou ela -, pois tive.

 

Os dias seguintes decorreram sem nenhum acontecimento digno de nota, o que fez que ainda custassem mais a passar a Alex. Não falava com Katie desde que a deixara em casa ao fim da tarde de domingo. Não foi completamente inesperado, uma vez que sabia que ela teria uma semana muito ocupada no emprego, mas por mais duma vez deu por si a sair do armazém, de olhar perdido no fundo da estrada, sentindo-se vagamente desapontado quando não a via.

Foi quanto bastou para deitar por terra a ilusão de que a deslumbrara ao ponto de ela não conseguir resistir a passar por lá. O que o surpreendeu, porém, foi o entusiasmo quase adolescente que sentia perante a perspectiva de a tornar a encontrar, mesmo suspeitando de que ela não se sentia da mesma maneira. Imaginava-a na praia, o cabelo castanho-escuro a esvoaçar à brisa, as suas feições delicadamente ossudas, e os olhos que pareciam mudar de cor de cada vez que os via. Pouco a pouco, ela fora descontraindo ao longo do dia, e Alex ficara com a sensação de que a ida à praia contribuíra para lhe atenuar a resistência.

Interrogava-se não apenas acerca do passado de Katie como também acerca de tudo o mais que ainda não sabia a respeito dela. Tentou imaginar que género de música apreciaria, ou qual era a primeira coisa que lhe vinha ao pensamento mal acordava, ou se alguma vez assistira a um jogo de basebol. Perguntou-se se dormiria de barriga para cima ou de lado, e, se lhe fosse dado a escolher, se preferiria tomar duche ou banho. Quanto mais Alex indagava, maior era a sua curiosidade.

Tinha pena de que ela não lhe confiasse os pormenores do seu passado, não porque sofresse da ilusão de que fosse capaz de a resgatar ou tão-pouco julgasse que ela precisava de ser resgatada, mas porque dar voz à verdade sobre o passado era uma maneira de abrir as portas ao futuro. Significava que seriam capazes de ter uma conversa a sério.

Na quinta-feira, começou a cogitar se seria boa ideia passar pelo chalé de Katie. Estava ansioso por isso e chegou mesmo a pegar nas chaves do jipe, mas acabou por desistir porque não fazia a mais pequena ideia do que haveria de dizer quando se visse diante dela. Nem sequer podia prever qual seria a reacção dela. Sorrir-lhe-ia? Ficaria nervosa? Convidá-lo-ia a entrar ou mandá-lo-ia embora? Por muito que se esforçasse por imaginar o que iria acontecer, não conseguia e, assim, acabou por pôr as chaves de parte.

Era uma situação espinhosa. Mas, recordou a si próprio, não havia dúvida de que Katie era uma mulher enigmática.

Não foi preciso muito tempo para Katie reconhecer que a bicicleta fora um presente enviado pelos deuses. Não apenas lhe permitia vir a casa nos intervalos entre os turnos nos dias em que fazia dois, como também, pela primeira vez, lhe dava a oportunidade de começar a explorar a cidade a fundo, e ela não tardou a aproveitá-la. Na terça-feira, visitou uma série de antiquários, apreciou as aguarelas marinhas numa galeria de arte da localidade e percorreu os diversos bairros, admirando os amplos alpendres e pórticos que adornavam as residências históricas situadas na zona costeira. Na quarta-feira, foi à biblioteca e passou algumas horas a vasculhar as prateleiras e a ler as badanas dos livros, enchendo os cestos da bicicleta com romances do seu interesse.

À noite, porém, quando estava estendida na cama a ler os livros que requisitara, havia momentos em que dava pelos seus pensamentos a deambular para Alex. Ao percorrer as recordações que tinha de Altoona, constatou que ele lhe fazia lembrar o pai da sua amiga Callie. Quando Katie frequentava o segundo ano do secundário, Callie morara ao fundo da rua dela e, embora não se conhecessem muito bem, pois Callie era uns anos mais nova, Katie ainda se lembrava de se ir sentar nos degraus do seu alpendre todos os domingos de manhã. com uma pontualidade britânica, o pai de Callie abria a porta da garagem, assobiando enquanto punha o corta-relva a postos. Tinha um grande orgulho no seu jardim - não havia dúvida de que era o mais bem cuidado de todo o bairro e Katie costumava ficar a vê-lo a empurrar o corta-relva para a frente e para trás com uma precisão militar. Parava de quando em vez para afastar um galho caído do caminho e aproveitava aqueles momentos para limpar a cara com um lenço de assoar que trazia dentro do bolso de trás das calças. Quando terminava a tarefa, encostava-se ao capot do Ford que deixava no acesso à garagem, a saborear um copo com limonada que a mulher nunca se esquecia de lhe trazer. Havia ocasiões em que ela se encostava a seu lado, e Katie não conseguia disfarçar um sorriso sempre que o via a afagar a anca da mulher quando queria que esta lhe desse atenção.

Havia qualquer coisa na maneira como ele saboreava a sua limonada e tocava na mulher que a levava a concluir que era um homem de bem com a vida e cujos sonhos se tinham, na medida do possível, concretizado. com frequência, enquanto o observava, Katie tentava imaginar como teria sido a sua vida caso tivesse nascido naquela família.

Alex ostentava o mesmo ar de satisfação quando estava com os filhos. Dava a sensação de não apenas ter conseguido ultrapassar a tragédia da morte da mulher, como ainda de ter tido forças suficientes para ajudar os filhos a ultrapassá-la também. Quando ele lhe falara a respeito da mulher, Katie ficara à espera de lhe detectar sinais de amargura ou de autocompaixão, mas não vira nada disso. Sentira que ele estava pesaroso e solitário, o que era perfeitamente natural, mas, apesar disto, ele conseguira falar-lhe da mulher sem lhe transmitir a sensação de que as estava a comparar a ambas. Dava a impressão de a aceitar como era e, embora Katie não soubesse ao certo quando isso acontecera, apercebera-se de que se sentia atraída por ele.

Para além disso, os seus sentimentos complicavam-se. Desde os tempos de Atlantic City que não baixava a guarda para permitir que um homem se aproximasse dela àquele ponto, e isso acabara por se revelar um pesadelo. Todavia, quanto mais se esforçava por manter a distância, mais tinha a impressão de que, de cada vez que via Alex, acontecia alguma coisa que os juntava. Às vezes por casualidade, como na ocasião em que Josh caíra ao rio e ela ficara a fazer companhia a Kristen, outras parecia quase predeterminado. Como quando a tempestade deflagrara. Ou quando Kristen aparecera e insistira com Katie para que fosse à praia com eles. Até à data, ela tivera bom senso suficiente para não entrar em pormenores acerca da sua vida, mas o problema residia precisamente aqui. Quanto mais convivia com Alex, mais ficava com a sensação de que ele sabia muito mais que dava a entender, e isso amedrontava-a. Fazia-a sentir-se exposta e vulnerável, e era um dos motivos por que ela evitara ir ao armazém ao longo de toda a semana. Precisava de tempo para pensar, tempo para decidir o que iria fazer para resolver a situação, se é que faria alguma coisa.

Infelizmente, perdera demasiado tempo a reparar na maneira como as rugas finas que ele tinha ao canto dos olhos se contraíam sempre que sorria ou na maneira graciosa como emergia da rebentação. Lembrava-se de Kristen a dar-lhe a mão e da confiança absoluta que via naquele simples gesto. Logo nos primeiros tempos, Jo fizera um comentário qualquer a respeito de Alex ser um bom homem, o tipo de homem que tomava sempre a atitude mais correcta, e, apesar de Katie não poder dizer que o conhecia bem, a sua intuição dizia-lhe que se tratava duma pessoa digna de confiança. Que, independentemente do que ela lhe contasse, ele iria dar-lhe o seu apoio. Que iria guardar os seus segredos e que jamais os usaria contra ela para a magoar.

Era irracional, ilógico, e ia ao arrepio de todas as promessas que fizera a si própria quando se mudara para ali, mas apercebia-se agora de que desejava que Alex a conhecesse. Desejava que ele a compreendesse, quanto mais não fosse porque alimentava a sensação curiosa de que ele era o tipo de homem por quem se poderia apaixonar mesmo contra a sua vontade.

 

Caça às borboletas.

A ideia ocorrera-lhe pouco depois de acordar na manhã de sábado, mesmo antes de ter descido a escada para abrir o armazém. Por estranho que pudesse parecer, à medida que cogitava no que haveria de fazer com os filhos nesse dia, recordara-se dum projecto que elaborara no sexto ano. A professora mandara os alunos coleccionar insectos. Alex recordou-se subitamente de andar a correr por um campo relvado à hora do recreio, à caça de tudo um pouco, desde zangãos a gafanhotos. Tinha a certeza de que Josh e Kristen haveriam de gostar e, cheio de orgulho em si próprio por se ter lembrado duma actividade tão emocionante e original para ocupar uma tarde de sábado, pôs-se a vasculhar entre as redes de pesca que tinha guardadas no armazém, escolhendo três dum tamanho que lhe pareceu adequado.

Quando, ao almoço, comunicou a ideia aos filhos, estes não se mostraram lá muito entusiasmados.

- Eu não quero fazer mal às borboletas - protestou Kristen.

- Eu gosto de borboletas.

-- Nós não precisamos de lhes fazer mal. Podemos deixá-las ir em liberdade.

- Então, para que é que as vamos apanhar?

- Porque é divertido.

- Cá a mim, não me parece nada divertido. Parece-me uma maldade.

Alex abriu a boca a fim de lhe responder, mas não soube ao certo o que adiantar. Josh deu mais uma dentada na sua tosta de queijo.

- Já está muito calor, papá - salientou ele, falando enquanto mastigava.

- Não faz mal. Depois podemos ir nadar para o ancoradouro. E vê lá se mastigas com a boca fechada.

Josh engoliu.

- Então, e por que é que não vamos já nadar para o ancoradouro?

- Porque vamos à caça de borboletas.

- Não podemos antes ir ao cinema?

- Boa! - exclamou Kristen. - Vamos ao cinema!

Havia alturas em que, pensou Alex, ser pai era de exasperar.

- Está um dia lindo, e nós não vamos passá-lo fechados dentro de casa. Vamos à caça de borboletas. E não só vamos como, ainda por cima, vocês vão gostar, estamos entendidos?

Depois do almoço, Alex meteu-os no jipe e levou-os para um campo nos arredores da cidade que estava repleto de flores silvestres. Entregou-lhes as respectivas redes e mandou-os à caça, deixando-se ficar a ver Josh a arrastar a rede enquanto Kristen levava a sua ao colo, um pouco à semelhança do que fazia às bonecas.

Alex decidiu tomar o assunto em mãos e foi a correr à frente de ambos, com a rede a postos. Mais adiante, a esvoaçar por entre as flores silvestres, observou dúzias de borboletas. Quando se aproximou o suficiente, oscilou a rede e capturou uma. De cócoras, começou a remexer na rede, de modo a que as tonalidades alaranjadas e castanhas da borboleta se destacassem.

- Uau! - exclamou ele no tom mais entusiástico que conseguia. - Apanhei uma!

Quando deu por ele, Josh e Kristen estavam a espreitar-lhe por cima do ombro.

- Tenha cuidado com ela, papá! - gritou Kristen.

- Está descansada, filhota. Olha como as cores dela são bonitas.

As crianças debruçaram-se ainda mais.

- Que fixe! - exclamou Josh e, não tardou, estava a correr pelo campo, a agitar a rede com desembaraço.

Kristen continuou a examinar a borboleta.

- De que espécie é?

- É uma skipper - explicou-lhe Alex. - De que espécie, não sei ao certo.

- Acho que ela está assustada - observou a filha.

- Não te preocupes com ela. Mas agora vou libertá-la, está bem?

Kristen assentiu com a cabeça enquanto Alex virava a rede do avesso com todo o cuidado. Uma vez ao ar livre, a borboleta agarrou-se à rede antes de levantar voo. Os olhos de Kristen arregalaram-se de espanto.

- Não se importa de me ajudar a apanhar uma? - pediu-lhe ela.

- com todo o gosto.

Passaram pouco mais duma hora a correr por entre as flores. Capturaram cerca de oito tipos diferente de borboletas, incluindo uma btickeye, embora a grande maioria fossem skippers semelhantes à primeira. Quando a caçada chegou ao fim, as crianças estavam coradas e a transpirar e, assim, Alex decidiu levá-las a comer um gelado de cone antes de irem nadar para o rio nas traseiras de casa. Os três saltaram do ancoradouro ao mesmo tempo (Josh e Kristen equipados com coletes de salva-vidas) e deixaram-se levar pela correnteza lenta. Era um dia igual aos da sua infância. Quando saíram de dentro de água, sentiu-se satisfeito ao pensar que, à excepção da ida à praia, havia muito tempo que não passavam um fim-de-semana tão agradável.

Mas não deixava por isso de ser cansativo. Mais tarde, depois de os filhos terem tomado um duche, pediram-lhe para ver um filme, e Alex pô-los a assistir a Regresso a Casa, uma película que já tinham visto uma dúzia de vezes, mas que estavam sempre dispostos a repetir. Da cozinha, via-os sentados no sofá, muito quietos, de olhar fixo no televisor com o ar entorpecido típico das crianças exaustas.

Alex limpou as bancadas da cozinha e meteu os pratos sujos dentro da máquina de lavar louça, pôs uma carga de roupa a lavar, deu uma arrumadela à sala de estar, uma boa limpeza à casa de banho dos filhos e, por fim, foi sentar-se junto deles no sofá. Josh estava enroscado numa das extremidades, Kristen, na outra. Quando o filme terminou, Alex sentiu os olhos a ameaçar fechar-se. Depois de trabalhar no armazém, de brincar com os filhos e de arrumar a casa, sabia-lhe bem ficar a descontrair.

A voz de Josh acordou-o de sobressalto.

- Ei, pai?

- O que foi?

- O que é que vai ser o jantar? Estou esfomeado.

Do balcão das empregadas de mesa, Katie espreitou para a esplanada e voltou a entrar de imediato, ficando embasbacada a ver Alex e os filhos a seguir a recepcionista até a uma mesa ao ar livre junto ao parapeito. Kristen sorriu-lhe e acenou-lhe mal a viu, e foi uma questão de segundos até começar a ziguezaguear por entre as mesas e correr disparada para junto dela. Katie baixou-se para receber o abraço da menina.

- Nós queríamos fazer-lhe uma surpresa! - exclamou Kristen.

- bom, e conseguiram. O que é que aqui estão a fazer?

- O meu pai disse que não nos fazia o jantar.

- A sério?

- A história é mais comprida que isso - anunciou Alex -, pode crer.

Katie, que não o ouvira a aproximar-se, endireitou-se.

- Oh, olá - disse ela, corando mesmo sem querer.

- Como tem passado? - perguntou-lhe Alex.

- Bem, obrigada. - Ela assentiu com a cabeça, sentindo-se ligeiramente afogueada. - Atarefada, como deve calcular.

- É o que parece. Tivemos de ficar à espera antes de nos podermos sentar a uma das suas mesas.

- Tem sido assim o dia todo.

- bom, não a empatamos mais. Anda, Kristen. Vamos para a mesa. Vemo-nos dentro de instantes, logo que nos possa atender.

- Adeus, Miss Katie. - Kristen acenou-lhe uma vez mais.

Katie ficou a vê-los encaminharem-se para a mesa, curiosamente entusiasmada com aquela visita. Viu Alex a abrir a ementa e a debruçar-se para ajudar Kristen a escolher e, por um momento, teve pena de não estar sentada junto deles.

Ajeitou a camisola dentro do cós das calças e deitou uma olhadela ao reflexo que a cafeteira de aço inoxidável lhe devolvia. Não conseguiu distinguir grande coisa para além duma imagem desfocada, mas foi quanto bastou para a impelir a passar uma mão pelo cabelo. Em seguida, após uma breve revista a fim de verificar que não tinha nódoas na camisola (não que lhes pudesse dar remédio, claro estava, mas sempre era preferível saber), dirigiu-se à mesa de Alex.

- Olá, meninos - cumprimentou-os. - Ouvi dizer que o vosso papá se recusou a fazer o jantar.

Kristen riu-se à socapa, e Josh limitou-se a assentir com a cabeça.

- Ele disse que estava cansado.

- Foi isso que me pareceu ter ouvido - comentou ela. Alex revirou os olhos. - Atraiçoado pelos meus próprios filhos. Mal posso crer!

- Nós não seríamos capazes de o atraiçoar, papá - salientou Kristen com um ar muito sério.

- Obrigado, minha querida.

Katie sorriu-lhes.

- Estão com sede? Querem que vos traga alguma bebida?

Pediram chá adoçado para todos, juntamente com um cesto de hush puppies. Katie trouxe as bebidas para a mesa e, à medida que se afastava, sentiu o olhar de Alex pousado nela. A grande custo, conteve um impulso para espreitar por cima do ombro.

Passou os minutos seguintes a tomar nota de pedidos e a levantar outras mesas, entregou alguns pratos e regressou finalmente com o cesto de hush puppies.

- Tenham cuidado - avisou-os ela - que ainda estão quentes.

- É quando eles sabem melhor - opinou Josh, estendendo uma mão para o cesto. Kristen seguiu-lhe o exemplo.

- Hoje fomos à caça de borboletas - declarou ela.

- A sério?

- Sim. Mas não lhes fizemos mal. Deixámo-las ir embora.

- Deve ter sido engraçado. Divertiram-se muito?

- Foi o máximo! - exclamou Josh. - Eu apanhei para aí umas cem! E depois fomos nadar.

- Mas que belo dia - comentou Katie com sinceridade. - Não admira que o vosso pai tenha ficado cansado.

- Mas eu cá não! - declararam Josh e Kristen quase em uníssono.

- Talvez não - admitiu Alex -, mas não é por isso que se irão deitar tarde. Aqui o vosso pobre e velho pai precisa duma boa noite de sono.

Katie abanou a cabeça.

- Não seja tão duro consigo próprio - disse ela. - Você de pobre não tem nada.

Quando, uns instantes decorridos, Alex percebeu que ela se estava a meter com ele, riu-se. A gargalhada foi alta o suficiente para atrair os olhares dos fregueses sentados na mesa ao lado, mas ele não se mostrou incomodado com isso.

- Venho aqui para descontrair e saborear um bom jantar e acabo por ser enxovalhado pela empregada.

- A vida é dura.

- Nem me diga. Quando der por mim, estará a dizer-me que, tendo em conta que estou a engordar, é melhor pedir um prato da ementa das crianças.

- bom, eu não quis dizer nada - retorquiu ela deitando um olhar contundente à cintura dele.

Alex riu-se uma vez mais e, quando olhou para ela, Katie detectou-lhe um brilho de agrado nos olhos, recordando-a de que a achava atraente.

- Acho que já estamos prontos para pedir - disse ele.

- O que querem que vos traga?

Alex fez o pedido dos três, e Katie anotou-o. Susteve-lhe o olhar momentaneamente antes de se afastar da mesa e ir entregar o pedido na cozinha. À medida que continuava a atender as mesas que lhe competiam (mal uns clientes saíam, chegavam logo outros), foi arranjando pretextos para passar pela mesa de Alex. Tornou a encher-lhes os copos de água e de chá, foi levantar o cesto quando acabaram de comer os hush puppies e trouxe outra faca a Josh quando ele deixou cair a primeira ao chão. Foi conversando descontraidamente com Alex e com os filhos, desfrutando de cada momento, até que finalmente lhes trouxe o jantar.

Mais tarde, quando terminaram a refeição, levantou a mesa e deixou ficar a conta. Nessa altura já o Sol se estava a pôr e Kristen começava a bocejar, mas o restaurante parecia cada vez mais movimentado. Katie só teve tempo para uma despedida rápida antes de as crianças se lançarem degraus abaixo, mas, quando viu Alex hesitar, teve o pressentimento de que ele queria convidá-la para sair. Não sabia ao certo qual seria a sua reacção, mas, antes de ele ter tempo de abrir a boca, um dos seus fregueses entornou cerveja. O homem levantou-se repentinamente da mesa, dando-lhe um solavanco e atirando mais dois copos ao chão. Ao ver a oportunidade perdida, Alex recuou, sabendo que ela tinha trabalho à espera.

- Até breve - despediu-se ele, acenando-lhe enquanto seguia no encalço dos filhos.

No dia seguinte, Katie empurrou a porta do armazém escassa meia hora depois da abertura.

- Hoje veio mais cedo - comentou Alex, apanhado de surpresa.

- Levantei-me cedo e achei que mais valia despachar logo as compras.

- O movimento abrandou depois de nos virmos embora?

- Já não era sem tempo. O problema é que esta semana estamos com falta de pessoal. Uma empregada foi ao casamento da irmã, a outra deu parte de doente. Tem sido uma loucura.

- Isso vi eu. Mas, apesar de o serviço estar um pouco demorado, a refeição estava uma delícia.

Ao ver a expressão furiosa que Katie lhe dirigia, Alex riu-se.

- É para que saiba, depois de se meter comigo a noite passada. - Abanou a cabeça. - A chamar-me velho... Pois fique sabendo que, aos trinta anos, já tinha o cabelo todo branco.

- É muito sensível no que toca a isso - comentou ela num tom de leve troça. - Mas pode acreditar em mim quando lhe digo que lhe fica bem. Dá-lhe um certo ar de respeitabilidade.

- E isso é bom ou mau?

Katie sorriu-lhe, mas escusou-se a responder-lhe e foi buscar um cesto.

- Na próxima semana também tem muito trabalho?

- Não tanto.

- Então, e no fim-de-semana que vem?

Ela reflectiu uns instantes.

- Estou de folga no sábado. Porquê?

Alex deslocou o peso do corpo dum pé para outro antes de a encarar.

- Porque estava a pensar em convidá-la para ir jantar comigo. Desta vez, só nós os dois. Sem os miúdos.

Katie percebeu que tinham chegado a uma encruzilhada, a partir da qual a relação entre ambos tomaria outro rumo. Em simultâneo, fora este mesmo motivo que a encorajara a vir ao armazém tão cedo. Queria descobrir se avaliara bem a expressão de Alex na noite da véspera, porque era a primeira vez que tinha a certeza de que queria que ele a convidasse para sair.

No silêncio que se seguiu, contudo, ele deu a impressão de interpretar mal os seus pensamentos.

- Deixe lá. Não tem uma importância por aí além.

- Tem sim - retorquiu ela, sustendo-lhe o olhar. - Adorava ir jantar consigo. Mas só com uma condição.

- E qual é ela?

- Já fez tanta coisa por mim que, desta vez, preferia ser eu a fazer alguma coisa por si. E se fosse eu a cozinhar-lhe o jantar? Em minha casa?

Alex rasgou um sorriso de alívio.

- Parece-me uma óptima ideia.

 

No sábado, Katie acordou mais tarde que era seu hábito. Passara os últimos dias atarefadíssima a fazer compras e a decorar a casa - uma cortina de renda transparente para a janela da sala de jantar, algumas reproduções baratas para as paredes, uns poucos tapetes, e individuais e copos a preceito para a mesa. Na sexta-feira, ficara a trabalhar até à meia-noite, a encher as almofadas novas para o sofá e a dar uma última limpeza à casa. Apesar do sol que entrava de viés pela janela e lhe incidia sobre a cama, só acordou quando ouviu alguém a martelar. Deitou uma olhadela ao relógio e constatou que já passava das nove.

Depois de se levantar da cama a certo custo, Katie soltou um bocejo e em seguida encaminhou-se para a cozinha a fim de ligar a cafeteira. Saiu então para o alpendre, semicerrando os olhos à luz intensa do sol matinal. Jo achava-se no seu alpendre, de martelo em punho a preparar-se para nova pancada, quando reparou em Katie.

Jo pousou o martelo.

- Não te acordei, espero bem?

- Acordaste, mas não faz mal. Já eram horas de me levantar. O que é que estás a fazer?

- Estou a ver se evito que a persiana caia. Quando cheguei a casa ontem à noite, fui dar com ela de esguelha e tive a certeza de que durante a noite acabaria por cair. Como seria de esperar, o medo de que ela caísse mesmo e o barulho me acordasse foi quanto bastou para não me deixar dormir como devia ser.

- Precisas de ajuda?

- Não, já estou quase despachada.

- Então, e se for um café?

- Parece-me uma óptima ideia. Não demoro nada.

Katie foi ao seu quarto, despiu o pijama e vestiu uns calções e uma T-shirt. Lavou os dentes e deu uma escovadela ao cabelo, apenas o suficiente para o desembaraçar. Pela janela, viu Jo a dirigir-se a sua casa e a abrir a porta da rua.

Katie encheu duas canecas de café e estendeu-lhe uma mal a amiga entrou na cozinha.

- A tua casa está a ficar um mimo! Adoro os tapetes e as gravuras.

Katie encolheu os ombros de modéstia.

- Pois, bem... Acho que me estou a começar a adaptar a Southport. Pareceu-me que estava na altura de dar a esta casa um aspecto mais permanente.

- Está fantástico, sem dúvida. É como se finalmente estivesses a fazer o teu ninho.

- E a tua casa, como é que vai?

- Está a começar a melhorar. Quando estiver pronta, eu convido-te para lá ires.

- Por onde é que tens andado? Ultimamente não te tenho visto muito.

Jo acenou com a mão num gesto depreciativo.

- Estive uns dias para fora a tratar de negócios e depois, no fim-de-semana passado, fui visitar uma pessoa e, por fim, estive a trabalhar. A mesma rotina de sempre.

- Eu também tenho andado a trabalhar no duro. Ultimamente estou farta de fazer turnos.

- Trabalhas logo à noite?

Katie bebeu um gole de café.

- Não. vou ter uma pessoa a jantar cá em casa.

O olhar de Jo iluminou-se.

- Queres que eu adivinhe quem poderá ser?

- Tu já sabes quem é. - Katie tentou conter o rubor que lhe estava a subir pelo pescoço.

- Eu sabia! - exclamou Jo. - Assim é que é, Katie. Já decidiste o que é que vais usar?

- Ainda não.

- bom, seja lá o que escolheres, vais ficar bonita, não tenho qualquer dúvida. E vais ser tu a cozinhar?

- Por estranho que te possa parecer, até sou uma cozinheira razoável.

- E o que é que vais preparar?

Quando Katie lhe contou, Jo arqueou as sobrancelhas.

- Deve ser uma delícia - comentou ela. - Que bom. Fico muito feliz por ti. Por ambos, na verdade. Estás entusiasmada?

- É só um jantar...

- vou tomar isso por um sim. - Piscou-lhe o olho. - Pena é que eu não possa ficar por aqui a espiar-vos. Adorava assistir ao desenrolar dos acontecimentos, mas, infelizmente, vou ter de sair outra vez da cidade.

- Pois - ripostou Katie -, é realmente uma pena que não possas ficar aqui.

Jo riu-se.

- Só para que saibas, o sarcasmo não condiz contigo. Mas fica desde já avisada de que não te vou deixar em paz. Logo que voltar, vou querer saber tudo o que se passou, tintim por tintim.

- É só um jantar - insistiu Katie.

- O que significa que estarás perfeitamente à vontade para me contar tudo o que se passar.

- Acho que estás a precisar de arranjar outro passatempo.

- És capaz de ter razão - admitiu Jo. - Neste momento, porém, e uma vez que a minha vida amorosa é praticamente inexistente, estou a divertir-me à grande a viver por interposta pessoa. Uma rapariga precisa de ter os seus sonhos, não é verdade?

A primeira paragem de Katie foi no cabeleireiro. Aí, uma jovem chamada Brittany aparou-lhe e penteou-lhe o cabelo, sem se calar um minuto sequer. Do outro lado da rua, ficava a única boutique de senhora de Southport, e Katie decidiu ir até lá. Embora já tivesse passado várias vezes à porta, nunca chegara a entrar. Era uma daquelas lojas em que nunca se imaginara a querer ou a precisar de ir, mas, à medida que começou a vasculhar, foi ficando agradavelmente surpreendida não apenas com os artigos disponíveis como também com os preços. bom, pelo menos dos artigos que estavam em saldo, que foi para onde Katie dirigiu a sua atenção.

Fazer compras sozinha numa loja como aquela era para ela uma experiência estranha. Havia muito tempo que não fazia aquilo e, à medida que mudava de roupa no provador, ia-se sentindo invadir por uma descontracção pouco habitual nela.

Comprou alguns artigos em promoção, incluindo uma blusa castanho-clara ajustada ao corpo e com um ligeiro decote, nada de muito exuberante, mas o suficiente para lhe salientar a figura. Descobriu também uma saia de Verão com um lindo padrão que não podia condizer melhor com a blusa. A saia estava um bocadinho comprida de mais, mas sabia que seria capaz de lhe subir a bainha. Depois de pagar as compras, avançou mais duas portas em direcção àquela que sabia ser a única sapataria da cidade e comprou um par de sandálias. Estavam também em saldo e, embora em circunstâncias normais Katie se tivesse afligido só de pensar em gastar dinheiro, nos últimos dias as gorjetas tinham sido generosas, e decidira fazer uma extravagância. Dentro dos limites do razoável, claro estava.

Da sapataria, foi primeiro à farmácia aviar algumas coisas de que precisava e finalmente atravessou a cidade de bicicleta a fim de ir ao supermercado. Levou o seu tempo, satisfeita por andar a vasculhar as prateleiras, sentindo as mesmas velhas recordações de sempre a tentar apoquentá-la em vão.

Quando terminou, regressou a casa de bicicleta e deu início aos preparativos para o jantar. Decidira servir camarões recheados com miolo de caranguejo e condimentados com molho de manteiga e alho. Teve de fazer a receita de memória, mas já a confeccionara várias vezes ao longo dos anos e estava confiante de que não se esqueceria de nada. Para acompanhamento, decidiu-se por pimentos recheados e broa de milho e, como entrada, optou por queijo brie enrolado em bacon e coberto com molho de framboesa.

Havia muito tempo que não preparava uma refeição tão elaborada, mas sempre adorara recortar receitas das revistas, mesmo em pequena. A culinária fora a única paixão que tivera oportunidade de partilhar ocasionalmente com a mãe.

Passou o resto da tarde numa roda-viva. Misturou a massa do pão e meteu-a no forno e em seguida preparou os ingredientes para os pimentos recheados, que guardou no frigorífico juntamente com o brie enrolado em bacon. Quando a broa de milho ficou cozida, deixou-a a arrefecer em cima da bancada e começou a preparar o molho de framboesa. Não tinha nada de especial - levava apenas açúcar, framboesas e água -, mas, quando ficou pronto, a cozinha cheirava que consolava. Guardou-o também no frigorífico. Tudo o mais poderia esperar.

Foi para o quarto, subiu a bainha da saia até mesmo acima do joelho e depois foi dar uma última vista de olhos à casa para ver se estava tudo no seu devido lugar. Por fim, começou a despir-se.

Mal se pôs debaixo do chuveiro, começou a pensar em Alex. Visualizou o seu sorriso fácil e a agilidade com que se movimentava, e esta recordação foi-lhe despertando uma sensação de ardor no ventre. Mesmo contrafeita, imaginou se ele estaria também nesse momento a tomar duche. A ideia continha um certo pendor erótico, a promessa dalgo novo e emocionante. Era só um jantar, salientou uma vez mais a si própria, mas sabia que não estava a ser completamente sincera.

Havia ali outra força em jogo, uma força cuja existência ela vinha a fazer o possível por ignorar. Sentia-se mais atraída por Alex que estava disposta a admitir e, ao sair do duche, percebeu que teria de ser cautelosa. Era o género de homem por quem sabia que se poderia apaixonar, e a ideia amedrontava-a. Não se sentia preparada para isso. Ainda não, pelo menos.

Mas também ouvia uma voz no seu íntimo a sussurrar-lhe que talvez, afinal, até estivesse.

Depois de se secar com uma toalha, massajou a pele com um creme de corpo perfumado, vestiu a sua indumentária nova, sandálias incluídas, e finalmente foi buscar os produtos de maquilhagem que comprara na farmácia. Não carregou na pintura, aplicando apenas um pouco de batom, de rímel e um leve toque de sombra para os olhos. Escovou o cabelo e em seguida pendurou nas orelhas umas argolas que comprara por capricho. Quando deu a tarefa por terminada, recuou uns passos do espelho.

“Pronto”, disse a si própria, “não preciso de mais nada.” Virou-se para um lado, depois para o outro, dando um jeito à blusa, até que por fim rasgou um sorriso. Havia muito tempo que não se punha tão bonita.

Embora o Sol já se tivesse deslocado para o céu a ocidente, a casa ainda estava quente, e Katie decidiu abrir a janela da cozinha.

A brisa que corria era suficiente para a refrescar enquanto estava sentada à mesa. No início da semana, quando se vinha embora do armazém, Alex perguntara-lhe se queria que levasse uma garrafa de vinho, e Katie foi buscar alguns copos ao armário. Colocou uma vela no centro da mesa e, quando recuou para avaliar o resultado, ouviu o motor dum carro que se aproximava. Pelo relógio, verificou que Alex chegara mesmo à hora combinada.

Respirou fundo, a tentar acalmar os nervos. Em seguida, atravessou a sala e abriu a porta da rua, saindo para o alpendre. Trajado com calças de ganga e uma camisa arregaçada à altura dos cotovelos, Alex estava junto à porta do condutor, debruçado para o interior do veículo, obviamente à procura dalguma coisa. Ainda trazia o cabelo húmido em volta do colarinho.

Alex pegou em duas garrafas de vinho e deu meia-volta. Quando a viu, deu a impressão de ficar paralisado, com ar de quem não acreditava no que via. Katie estava envolta nos derradeiros raios do sol poente, absolutamente radiosa, e Alex ficou momentaneamente embasbacado a olhar para ela.

O espanto dele era óbvio, e Katie deixou-se inundar por aquela sensação, desejosa de que durasse para sempre.

- Conseguiu chegar a horas - disse-lhe.

O som da sua voz foi quanto bastou para quebrar o feitiço, mas Alex nem por isso desviou o olhar. Sabia que se esperava que fizesse um qualquer comentário espirituoso, que dissesse qualquer coisa agradável para desfazer a tensão, mas ao invés, deu por ele a pensar: “Estou metido em sarilhos. Grandes sarilhos, mesmo.”

Não sabia precisar ao certo quando fora que acontecera. Nem tão-pouco como acontecera. Talvez tivesse sido na manhã em que vira Kristen agarrada a Katie depois de Josh ter caído ao rio, ou na tarde chuvosa em que a viera trazer a casa, ou mesmo no decorrer do dia que tinham passado na praia. Tudo o que sabia com certeza era que, naquele momento e naquele lugar, estava a ficar perdidamente apaixonado por aquela mulher e só lhe restava rezar para que ela sentisse o mesmo por ele.

Por fim, lá conseguiu clarear a voz e dizer:

- Sim, acho que sim.

 

O céu do entardecer refulgia num prisma de cores quando Katie e Alex atravessaram a pequena sala de estar em direcção à cozinha.

- Não sei quanto a si, mas, a mim, apetecia-me um copo de vinho - disse ela.

- Boa ideia - concordou ele. - Eu não sabia ao certo o que iria ser o jantar e, por isso, trouxe um sauvignon branco e um zinfandel. Tem preferência por algum deles?

- Deixo que seja o Alex a escolher - disse-lhe Katie.

Uma vez na cozinha, ela encostou-se à bancada, as pernas cruzadas à altura dos tornozelos, enquanto Alex revirava o saca-rolhas. Por uma vez sem excepção, ele parecia o mais nervoso dos dois. com uma série de movimentos rápidos, abriu a garrafa de sauvignon. Katie pousou os copos junto dele na bancada, consciente da proximidade entre ambos.

- Eu sei que deveria ter dito isto mal aqui cheguei, mas está muito bonita.

- Obrigada - agradeceu ela.

Alex serviu uma pequena dose de vinho e, em seguida, pôs a garrafa de lado e estendeu-lhe o copo. Quando ela o aceitou, sentiu o aroma a coco do creme que ela aplicara no corpo.

- Julgo que irá gostar do vinho. Pelo menos, é o que espero.

- Tenho a certeza de que vou adorar - afirmou Katie, erguendo o copo. - À nossa saúde! - acrescentou, encostando o seu copo ao dele.

Katie bebeu um gole, sentindo-se extraordinariamente satisfeita com tudo: a sua aparência e boa disposição, o sabor do vinho, o aroma persistente do molho de framboesa, a maneira como Alex a mirava e que fazia o possível por disfarçar.

- E se nos fôssemos sentar no alpendre? - sugeriu ela.

Alex concordou com um aceno de cabeça. Lá fora, sentou-se cada um na sua cadeira de baloiço. Ao ar que ia refrescando lentamente, os grilos deram início ao seu coro, acolhendo a chegada da noite. Katie saboreou o vinho, apreciando o travo frutado que lhe deixava na língua.

- Como é que a Kristen e o Josh passaram o dia?

- Passaram bem. - Alex encolheu os ombros. - Levei-os ao cinema.

- Mas esteve um dia tão bonito.

- Eu sei. Mas, uma vez que o Memorial Day calha na próxima segunda-feira, acho que ainda nos sobram uns dias para passar ao ar livre.

- O seu armazém está aberto no feriado?

- Claro. É um dos dias mais concorridos do ano, uma vez que toda a gente quer passar o feriado dentro de água. É provável que eu trabalhe até à uma da tarde, mais ou menos.

- Eu gostaria de poder dizer que lhe lamento a sorte, mas a verdade é que também vou trabalhar.

- Talvez demos outra saltada ao restaurante para a incomodar.

- Não me incomodam rigorosamente nada. - Espreitou por cima da beira do copo de vinho. - bom, pelo menos os seus filhos não me incomodam. Se bem me lembro, ouvi-o a queixar-se da qualidade do serviço.

- Não ligue; é coisa de velhos - ripostou ele.

Katie riu-se e em seguida fez baloiçar a cadeira.

- Quando não tenho de ir trabalhar, gosto de me sentar aqui fora a ler. É tão calmo, sabe? Há alturas em que tenho a sensação de ser a única pessoa num raio de vários quilómetros.

- A Katie é a única pessoa num raio de vários quilómetros. Mora no meio do mato.

Ela fingiu que lhe assentava uma palmada no ombro.

- Veja lá como fala. Olhe que eu gosto muito da minha casinha.

- E tem todos os motivos para isso. E está em melhores condições que eu julgava. É acolhedora.

- Já falta pouco para lá chegar - admitiu ela. - É um projecto em andamento. E, acima de tudo, é minha e ninguém ma pode tirar.

Alex voltou-se então para Katie. Reparou-lhe no olhar fixo para lá da estrada de cascalho, no campo relvado que se estendia à sua frente.

- Está tudo bem consigo? - interpelou-a.

Ela demorou algum tempo a responder-lhe.

- Estava a pensar que estou muito contente por o Alex aqui estar. Nem sequer me conhece.

- Acho que conheço o suficiente.

Katie não fez comentários. Alex viu-a a baixar o olhar.

- Pode achar que sim - sussurrou ela -, mas na verdade não conhece.

Alex pressentiu que ela tinha medo de adiantar mais alguma coisa. Por entre o silêncio, ouviu o alpendre a ranger ao ritmo do baloiço da cadeira.

- Então, e que tal se eu lhe contar aquilo que acho que sei a seu respeito, e a Katie me disser se estou certo ou errado? Parece-lhe bem?

Ela assentiu com a cabeça, os lábios comprimidos. Quando Alex prosseguiu, foi com voz suave.

- Acho que é inteligente e encantadora, e que tem um coração bondoso. Sei que, quando quer, é capaz de se pôr mais bonita que qualquer outra mulher que eu tenha conhecido na vida. É uma pessoa independente, dotada de sentido de humor e duma paciência infinita para lidar com as crianças. Tem razão quando afirma que eu não sei pormenores acerca do seu passado, mas, a menos que mos queira revelar, não me parece que isso seja uma coisa imprescindível. Toda a gente tem um passado, mas isso... pertence ao passado. Podemos aprender com ele, mas não podemos modificá-lo. Para além de que eu nunca cheguei a conhecer essa pessoa. A pessoa que eu conheci é aquela que desejo conhecer ainda mais a fundo.

À medida que ele falava, Katie esboçou um sorriso ténue.

- Quem o ouvir, ainda vai pensar que é simples - observou ela.

- É possível.

Ela fez girar o pé do copo de vinho entre os dedos, a reflectir nas palavras dele.

- Mas, e se o passado não pertencer ao passado? Se ainda estiver a acontecer?

Alex continuou a fitá-la, sustendo-lhe o olhar.

- Quer dizer... se ele vier no nosso encalço?

Katie retraiu-se.

- O que foi que disse?

- Ouviu-me bem - insistiu ele. Manteve um tom de voz regular, quase em tom de conversa, um hábito que herdara dos seus tempos na DIC. - Calculo que em tempos tenha sido casada... e que talvez ele esteja a tentar descobrir o seu paradeiro.

Katie ficou petrificada, de olhos arregalados. Sentiu uma súbita falta de ar e levantou-se dum pulo da cadeira, entornando o resto do vinho. Recuou um passo de Alex, a fitá-lo, sentindo o sangue a esvair-se-lhe da cara.

- Como é que sabe tanta coisa a meu respeito? Quem foi que lhe contou? - interrogou-o, a mente num torvelinho, a tentar dar sentido ao que ouvia. Não havia forma de Alex ter descoberto aquilo. Não era possível. Ela não contara a ninguém.

A ninguém, excepto a Jo.

Esta tomada de consciência foi quanto bastou para a deixar ofegante, e Katie deitou uma olhadela ao chalé adjacente ao seu. A vizinha, concluiu, atraiçoara-a. A amiga atraiçoara-a.

Por muito rápido que fosse o seu raciocínio, o de Alex não lhe ficava atrás. Detectava-lhe o medo na expressão, mas não era a primeira vez que isso acontecia. Nem por sombras. E, decidiu, se quisessem que a relação seguisse em diante, era chegada a altura de se deixarem de subterfúgios.

- Ninguém me contou - tranquilizou-a ele. - Mas a sua reacção é suficiente para provar que estou certo. Mas não é isso que está em causa. Eu não conheço essa pessoa, Katie. Se me quiser falar sobre o seu passado, estou disponível para a ouvir e para a ajudar por todos os meios ao meu alcance, mas não lhe vou fazer perguntas a respeito de nada disso. E, se não me quiser contar, também não tem importância, porque, digo e repito... eu nunca cheguei a conhecer essa pessoa. Deve ter um motivo forte para fazer segredo disso, e, como tal, eu também farei. Independentemente do que aconteça, ou não aconteça, entre nós. Esteja à vontade para inventar uma história, se quiser, que eu aqui estarei para a sustentar palavra a palavra. Pode confiar em mim.

Katie não tirava os olhos dele à medida que o ouvia, tomada por um misto de confusão, medo e raiva, mas assimilando cada palavra.

- Mas... como foi?

- Eu aprendi a reparar em coisas que passam despercebidas à maioria das pessoas - prosseguiu ele. - Houve um período da minha vida em que não fazia senão isso. E a Katie não é a primeira mulher que conheço na sua situação.

Ela continuou a fitá-lo, dando voltas à cabeça.

- Quando estava no Exército - concluiu.

Alex assentiu com a cabeça, sustendo-lhe o olhar. Por fim, levantou-se da cadeira e avançou um passo cauteloso na direcção dela.

- Quer que lhe sirva outro copo de vinho?

Ainda conturbada, não foi capaz de lhe responder, todavia, quando ele estendeu a mão para lhe tirar o copo, não ofereceu resistência. A porta do alpendre abriu-se com um rangido e fechou-se atrás de Alex, deixando-a sozinha.

Acercou-se do parapeito, os pensamentos num caos. Conteve o impulso para fazer uma mala, agarrar na lata cheia de dinheiro e abandonar a cidade o quanto antes.

Mas, e depois? Se Alex era capaz de adivinhar a verdade apenas olhando para ela, outra pessoa também poderia fazer o mesmo. E talvez, quem sabe, essa pessoa não fosse como Alex.

Ouviu a porta a ranger novamente nas suas costas. Alex saiu para o alpendre e postou-se ao lado de Katie junto ao parapeito. Pousou o copo diante dela.

- Já chegou a alguma conclusão?

- A alguma conclusão a respeito do quê?

- Se vai partir para parte incerta logo que a oportunidade lhe surja?

Katie voltou-se para ele com uma expressão de choque.

Alex estendeu as mãos.

- Em que mais poderia estar a pensar? Mas, só para que saiba, a minha curiosidade deve-se sobretudo ao facto de começar a estar com uma certa fome. Detestaria que se fosse embora antes de jantarmos.

Katie demorou um instante a perceber que ele se estava a meter com ela e, embora tivesse dificuldade em acreditar que tal coisa fosse possível depois dos últimos minutos de conversa, deu por ela a sorrir de alívio.

- Eu espero pelo jantar - assegurou-lhe ela.

- E amanhã?

Ao invés de lhe responder, ela estendeu a mão para pegar no vinho.

- Quero saber como foi que descobriu.

- Não foi por nada em concreto - explicou-lhe Alex. Mencionou alguns pormenores em que reparara até que finalmente abanou a cabeça. - A maior parte das pessoas não teria dado por nada.

Katie examinou o fundo do copo.

- Mas o Alex deu.

- Não consegui evitar. É um hábito que já tenho entranhado.

Ela reflectiu nestas palavras.

- Então, isso quer dizer que já sabe há algum tempo. Ou que pelo menos suspeita.

- Sim - admitiu ele.

- Motivo pelo qual nunca me fez perguntas a respeito do meu passado.

- Sim - reiterou ele.

- E, mesmo assim, quis sair comigo?

Alex afivelou uma expressão séria.

- Quis sair consigo desde a primeira vez em que a vi. Só precisei de esperar até a Katie estar preparada para isso.

Os últimos raios de Sol desapareceram no horizonte e cederam lugar ao crepúsculo, conferindo ao céu sem nuvens uma tonalidade pálida de violeta. Ficaram junto ao parapeito, com Alex a ver a brisa meridional a fazer-lhe ondular ao de leve madeixas teimosas de cabelo. A pele dela adquiriu um tom de pêssego; ele reparou-lhe no peito a subir e a descer ao ritmo da respiração. Katie estava de olhar perdido na distância, a sua expressão indecifrável, e Alex sentiu um aperto da garganta à medida que tentava imaginar o que lhe iria no pensamento.

- Não chegou a responder à minha pergunta - disse ele por fim.

Katie manteve-se em silêncio durante alguns momentos até que um leve sorriso lhe aflorou aos lábios.

- Acho que vou continuar em Southport durante algum tempo, se é isso que quer saber - tranquilizou-o.

Alex sentiu-lhe o perfume nas narinas.

- Pode confiar em mim, já sabe.

Ela encostou-se a ele, sentindo-lhe a força enquanto ele lhe passava um braço em redor da cintura.

- Acho que não tenho outro remédio, não é?

Uns minutos decorridos, voltaram para a cozinha. Katie pôs o copo de vinho de lado a fim de meter as entradas e os pimentos recheados no forno. Ainda desorientada por causa da avaliação certeira que Alex fizera do seu passado, acolheu de bom grado tarefas capazes de a manter ocupada. Era-lhe difícil conceber que ele, apesar de tudo, ainda quisesse passar um serão na companhia dela. E, sobretudo, que ela própria quisesse passar um serão na companhia dele. No seu íntimo, não tinha a certeza de ser merecedora da felicidade, nem tão-pouco dalguém que parecia ser... normal.

Era esse o segredo sórdido inerente ao seu passado. Não tanto o facto de ter sido maltratada, mas sobretudo de achar que merecera porque permitira que isso acontecesse. Ainda hoje tinha vergonha disso, e havia momentos em que se sentia medonhamente feia, como se as cicatrizes que a marcavam estivessem à vista de todos.

Todavia, aqui e agora, tinha menos importância que em tempos tivera, pois suspeitava de que Alex compreendia até certo ponto a sua vergonha. Compreendia-a e aceitava-a.

Tirou do frigorífico o molho de framboesa que preparara de antemão e, com a ajuda duma colher, começou a deitá-lo para dentro dum pequeno tacho para o aquecer. Não demorou muito tempo e, depois de o pôr de parte, retirou do forno o brie enrolado em bacon, cobriu-o com o molho e levou o queijo para a mesa. Lembrando-se subitamente do vinho, foi buscá-lo à bancada e reuniu-se a Alex à mesa.

- Isto é só para começar - avisou-o. - Os pimentos ainda vão demorar mais um bocadinho.

Ele inclinou-se sobre a travessa.

- Isto cheira que consola.

Serviu-se duma fatia de brie e deu-lhe uma dentada.

- Uau! - exclamou.

Katie rasgou-lhe um sorriso.

- Está bom, não está?

- Está uma delícia. Onde foi que aprendeste a fazer isto?

- Em tempos, fui amiga dum chefe de cozinha. Ele garantiu-me que isto seria suficiente para deixar qualquer pessoa rendida.

Alex cortou outra fatia para o prato.

- Fico contente por teres decidido continuar em Southport - comentou ele. - Não tenho qualquer dificuldade em imaginar-me a comer isto com regularidade, nem que, para isso, tenha de dar em troca mercadoria do meu armazém.

- A receita não é complicada.

- Ainda não me viste a cozinhar. Tenho imenso jeito para fazer comida para crianças, mas, mais que isso, já é pedir muito.

Estendeu a mão para o copo e bebeu um gole de vinho.

- Acho que o queijo era capaz de ficar melhor com tinto. Não te importas de que eu abra a outra garrafa?

- De maneira nenhuma.

Alex dirigiu-se à bancada e abriu o zinfandel enquanto Katie foi buscar mais dois copos ao armário. Alex deitou-lhe vinho e entregou-lhe um. Estavam tão próximos um do outro que quase se tocavam, e Alex teve de conter o impulso para a puxar para junto dele e a envolver nos seus braços. Ao invés, clareou a voz.

- Há uma coisa que te quero dizer, mas sem correr o risco de que me interpretes mal.

Katie hesitou.

- Por que será que a conversa não me está a agradar?

- Só te quero dizer o quanto tenho ansiado por esta noite. Isto é... não tenho pensado noutra coisa a semana toda.

- E por que haveria eu de te interpretar mal?

- Não sei. Talvez por seres mulher? Porque dá a ideia de que eu estou desesperado, e as mulheres não gostam de homens desesperados?

Katie riu-se com vontade pela primeira vez nessa noite.

- Não me parece que estejas desesperado. Tenho a sensação de que há alturas em que ficas um bocadinho desorientado por causa do armazém e dos miúdos, mas não se pode dizer que me andes a telefonar todos os dias.

- Mas isso é só porque tu não tens telefone. Mas, seja lá como for, eu queria que tu soubesses que isto significa muito para mim. Não tenho muita experiência nestas coisas.

- Em jantares?

- Em encontros a dois. Já lá vai algum tempo.

“Junta-te ao clube”, pensou ela para consigo. Mas nem por isso se deixou abater.

- Vá lá - disse-lhe, apontando para o queijo. - Se arrefece, perde a graça.

Quando acabaram de comer a entrada, Katie levantou-se da mesa e dirigiu-se ao forno. Deitou uma espreitadela aos pimentos antes de lavar o tacho de que se servira. Foi buscar a manteiga e o alho para o molho e preparou-o, começando de seguida a saltear os camarões. Estes e o molho ficaram prontos em simultâneo. Dispôs um pimento em cada prato e acrescentou-lhe os camarões com o molho. Diminuiu então a intensidade da luz e acendeu a vela que colocara no centro da mesa. O aroma do alho e da manteiga e a luz da vela a tremeluzir contra a parede inundaram a velha cozinha de promessas renovadas.

Foram saboreando a refeição e conversando enquanto, lá fora, as estrelas saíam do seu esconderijo. Alex elogiou-lhe os dotes culinários por mais que uma vez, confessando que nunca na vida provara algo tão bom. À medida que a vela se ia esgotando e a garrafa de vinho ia ficando vazia, Katie foi-lhe revelando um pormenor ou outro da sua infância em Altoona. Apesar de se ter refreado de contar a Jo toda a verdade a respeito dos pais, contemplou Alex com a versão sem verniz: as mudanças constantes de casa, o alcoolismo dos pais, o facto de estar por sua conta desde os seus dezoito anos. Alex manteve-se sempre em silêncio, a escutá-la sem a julgar. Apesar disto, Katie não fazia ideia do que pensaria ele do seu passado. Quando finalmente a voz lhe esmoreceu, deu por si a perguntar-se se teria falado de mais. Foi nesse momento, porém, que ele estendeu uma mão e a pousou em cima da dela. Embora não tivesse coragem para o encarar, ficaram de mãos dadas por cima da mesa, ambos relutantes em separar-se, como se não houvesse mais ninguém no mundo para além dos dois.

- Se calhar, é melhor começar a arrumar a cozinha - disse Katie por fim, quebrando o feitiço. Empurrou a cadeira para trás a fim de se poder levantar. Alex ouviu a cadeira dela a arrastar no chão, consciente de que o momento passara e ansioso por recuperá-lo.

- Quero que saibas que passei um serão maravilhoso - começou ele.

- Alex... Eu...

Ele abanou a cabeça.

- Não precisas de dizer nada...

Ela não o deixou terminar.

- Eu quero, está bem? - Postou-se junto à mesa, os olhos a cintilar-lhe duma emoção desconhecida. - Eu também passei um serão óptimo. Mas sei aonde é que isto vai levar e não te quero magoar. - Soltou o ar dos pulmões, ganhando coragem para o que vinha a seguir. - Não te posso fazer promessas. Não te posso dizer onde estarei amanhã, quanto mais daqui a um ano. Quando fugi, achei que seria capaz de pôr o passado para trás das costas e começar uma nova vida, compreendes? Estava decidida a viver a minha vida e a fingir que nunca se passara nada. Mas como é que eu serei capaz de fazer isso? Tu achas que me conheces, mas nem eu própria sei ao certo se ainda me conheço. E, por muito que saibas a meu respeito, também há outro tanto que não sabes.

- Isso não tem importância - insistiu Alex.

- Como é que podes pensar assim?

No silêncio que se seguiu, Alex ouviu o leve sussurro do frigorífico. Do outro lado da janela, a Lua erguera-se e ficara suspensa acima das copas das árvores.

- Porque já me conheço - disse ele por fim, apercebendo-se de que estava apaixonado por ela. Adorava tanto a Katie que se lhe dera a conhecer como a que nunca tivera oportunidade de encontrar. Levantou-se da mesa e acercou-se dela.

- Alex... isto não pode...

- Katie... - murmurou ele e, por um instante, quedaram-se ambos imóveis. Por fim, Alex assentou-lhe uma mão na anca e chegou-a a ele. Katie expirou, como a livrar-se dum fardo velho de séculos, e, quando ergueu o olhar para ele, não teve dificuldade em perceber que os seus receios eram infundados. Que Alex a iria amar independentemente do que lhe dissesse, e que era o género de homem que já a amava e a amaria para sempre.

E foi então que também se apercebeu do amor que lhe tinha.

Posto isto, permitiu-se encostar-se a ele. Sentiu os corpos de ambos a aproximarem-se quando Alex lhe levou uma mão ao cabelo. O toque dele era suave e delicado, diferente de tudo quanto conhecera antes, e ficou maravilhada ao vê-lo fechar os olhos. Alex inclinou a cabeça para o lado, e os rostos dos dois uniram-se.

Quando os seus lábios finalmente se juntaram, Katie saboreou-lhe o vinho na língua. Entregou-se a ele, deixando que lhe beijasse a face e o pescoço, e reclinou-se para trás, deleitada com a sensação. Sentia-lhe a humidade nos lábios à medida que lhe afloravam a pele, e enlaçou-lhe os braços em volta do pescoço.

“É assim que nos devemos sentir quando amamos alguém, e essa pessoa retribui o nosso amor”, pensou ela, sentindo as lágrimas a virem-lhe aos olhos. Pestanejou, num esforço para as conter, mas foi em vão. Amava-o e desejava-o, mas, acima de tudo, queria que ele amasse a pessoa que de facto era, com todos os seus defeitos e segredos. Queria que ele soubesse toda a verdade.

Beijaram-se demoradamente na cozinha, bem encostados um ao outro, as mãos de Alex a afagarem-lhe as costas e o cabelo. Katie arrepiou-se ao sentir um leve restolho de barba nas faces. Quando ele lhe deslizou um dedo pela pele do braço, Katie deu por um fluxo de líquido quente percorrer-lhe o corpo.

- Tenho vontade de estar contigo, mas não posso - murmurou ela por fim, na esperança de que Alex não ficasse zangado.

- Não faz mal - sussurrou-lhe ele em resposta. - Nada poderia tornar esta noite mais maravilhosa que foi até aqui.

- Mas estás desapontado.

Ele afastou-lhe uma madeixa de cabelo da cara.

- É impossível tu desapontares-me - disse-lhe.

Katie engoliu em seco, a tentar conter as lágrimas.

- Há uma coisa que deves saber a meu respeito - murmurou ela.

- Seja lá o que for, tenho a certeza de que serei capaz de aguentar.

Ela inclinou-se para junto dele.

- Não posso passar esta noite contigo - confessou-lhe - pela mesma razão de que não me posso casar contigo. Tenho um marido.

- Eu sei - respondeu-lhe ele num sussurro.

- E isso incomoda-te?

- Não é a situação ideal, mas podes ter a certeza de que eu também não sou perfeito e, como tal, talvez seja melhor levarmos as coisas com calma. E quando estiveres preparada, se algum dia estiveres preparada, eu cá estarei à tua espera. - Aflorou-lhe a face com a ponta do dedo. - Amo-te, Katie. Talvez tu não te sintas preparada para me dizer o mesmo neste momento, e até pode ser que nunca te venhas a sentir preparada para o dizer, mas isso não altera os meus sentimentos por ti.

- Alex...

- Não preciso de que me digas nada - interrompeu-a ele.

- Deixas-me explicar? - pediu ela, afastando-se por fim.

Alex não se coibiu de mostrar a curiosidade que sentia.

- Quero contar-te uma coisa - disse ela. - Quero contar-te uma coisa a meu respeito.

 

Três dias antes de Katie ter abandonado a Nova Inglaterra, um vento agreste de inícios de Janeiro veio congelar os flocos de neve, obrigando-a a caminhar de cabeça baixa enquanto se dirigia ao salão de beleza. com o cabelo louro a ondular ao vento, sentia as picadelas do gelo contra as faces. Usava sapatos de salto alto, ao invés de botas, e tinha os pés sempre congelados. Atrás dela, Kevin vigiava-a do interior do automóvel. Embora não se voltasse, ouvia o motor em ponto morto e imaginava-lhe os lábios crispados numa linha dura e fina.

As multidões que tinham enchido o centro comercial durante a época natalícia haviam desaparecido. De cada lado do salão de beleza, havia, respectivamente, uma loja de electrónica da cadeia Radio Shack e outra de animais, ambas desertas àquela hora; ninguém queria sair de casa num dia como aquele. Quando Katie empurrou a porta, esta abriu-se de rompante com a força do vento e foi um custo para a tornar a fechar. O ar frio acompanhou-a para o interior do salão, e as ombreiras do seu casaco estavam cobertas com uma fina camada branca. Descalçou as luvas e despiu o casaco, voltando-se em simultâneo. Acenou a Kevin com a mão e sorriu-lhe. Ele ficava satisfeito quando ela lhe sorria.

Tinha uma marcação para as duas horas com uma cabeleireira chamada Rachel. A maior parte das cadeiras já estava ocupada, e Katie ficou na dúvida para qual se deveria dirigir. Era a primeira vez que ali ia, e sentia-se pouco à vontade. Nenhum dos cabeleireiros parecia ter mais de trinta anos, e a maioria usava o cabelo todo espetado, com madeixas vermelhas ou azuis. Passado um instante, acercou-se dela uma rapariga de vinte e poucos anos, bronzeada e com uma tatuagem no pescoço.

- É a minha cliente das duas horas? Para pintar e cortar? perguntou-lhe ela.

Katie assentiu com a cabeça.

- Eu sou a Rachel. Acompanhe-me, por favor.

Rachel deitou uma espreitadela por cima do ombro.

- Está um frio de rachar lá fora, não está? - comentou ela com Katie. - No caminho do carro até aqui, ia morrendo congelada. Eles obrígam-nos a estacionar ao fundo do parque. Não me dá jeito nenhum, mas que posso eu fazer contra isso, não é?

- Está mesmo frio, não há dúvida - confirmou Katie.

Rachel conduziu-a a uma cadeira junto ao canto. A cadeira era de vinil roxo, e o pavimento, de ladrilhos pretos. “Um local destinado a jovens”, pensou Katie. “Solteiros que querem dar nas vistas. Não para mulheres casadas com cabelo louro.” Katie instalou-se o mais confortavelmente possível enquanto Rachel lhe vestia uma bata. Contorceu os dedos dos pés a ver se os aquecia.

- É nova aqui na zona? - perguntou-lhe Rachel.

- Moro em Dorchester - esclareceu ela.

- Isso fica um bocado fora de mão. Foi alguém que lhe indicou o nosso salão?

Katie passara por lá havia duas semanas, quando Kevin a levara a fazer compras, mas escusou-se a mencionar isso. Ao invés, limitou-se a abanar a cabeça.

- Então, acho que tive sorte em ser eu a atender o telefone. - Rachel sorriu-lhe. - Em que cor é que está a pensar?

Katie abominava ver-se ao espelho, mas não teve outro remédio. Tinha de conseguir obter o efeito desejado. Não tinha alternativa. No espelho à sua frente havia uma fotografia entalada de Rachel com alguém que Katie presumiu ser o namorado. Ainda tinha mais piercings que ela e usava um penteado à moicano. Por baixo da bata, Katie contorceu as mãos uma na outra.

- Eu queria dar-lhe um ar natural, talvez umas nuances para o Inverno. E pintar as raízes, para a cor não ficar desigual.

Rachel assentiu com a cabeça ao espelho.

- Quer que fique mais ou menos da mesma cor? Mais claro, mais escuro? A cor de base, não as nuances, quero eu dizer.

- Mais ou menos na mesma.

- Não se importa de que use papel de alumínio?

- Não - respondeu-lhe Katie.

- Não tem dificuldade nenhuma - tranquilizou-a Rachel. Dê-me só uns minutos enquanto vou preparar as coisas e já volto, está bem?

Katie assentiu em concordância. Ali perto, reparou numa mulher com a cabeça recostada no lavatório, com outra cabeleireira a atendê-la. Ouvia a água a correr e as conversas murmuradas das outras clientes. Uma música de fundo pairava no ar.

Rachel regressou com o papel de alumínio e com a tinta. Uma vez ao lado dela, misturou a tinta a fim de se certificar de que tinha a consistência necessária.

- Há quanto tempo é que mora em Dorchester?

- Há quatro anos.

- E onde é que nasceu?

- Na Pensilvânia - respondeu-lhe Katie. - Antes de vir para cá, morava em Atlantic City.

- Foi o seu marido quem a veio cá pôr?

- Foi.

- Tem um belo carro. Eu reparei nele quando lhe disse adeus. Que modelo é? Um Mustang?

Katie assentiu uma vez mais com a cabeça, mas não lhe respondeu. Rachel ficou algum tempo a trabalhar em silêncio, aplicando a cor e dobrando o papel de alumínio.

- Há quanto tempo é que é casada? - inquiriu Rachel enquanto pintava e envolvia em papel uma madeixa de cabelo especialmente rebelde.

- Há quatro anos.

- Então, foi por isso que se mudou para Dorchester, não foi? - concluiu ela.

?- Foi.

Rachel insistiu no interrogatório.

- Então, e o que é que faz?

Katie fixou o olhar em frente, a tentar abstrair-se da sua imagem no espelho. Desejosa de ser outra pessoa. Tinha uma hora e meia para estar ali antes da chegada de Kevin e rezava para que ele não chegasse adiantado.

- Eu não trabalho - respondeu-lhe.

- Eu ficava maluca se não trabalhasse. Não que as coisas sejam sempre fáceis. O que era que fazia antes de se casar?

- Era empregada de mesa.

- Num dos casinos?

Katie assentiu com a cabeça.

- Foi lá que conheceu o seu marido?

Katie confirmou com um aceno de cabeça.

- Então, e o que é que ele está a fazer agora? Enquanto a senhora arranja o cabelo?

“O mais certo é que esteja num bar”, pensou Katie.

- Não faço ideia.

- Então, e por que é que não veio a conduzir? Tal como já disse, para si, isto fica um bocado fora de mão.

- Eu não tenho carta de condução. Quando preciso de ir a algum lado, o meu marido leva-me.

- Eu não sei o que faria sem um carro. O meu não é nada por aí além, mas pelo menos sempre me permite ir aonde preciso. Detestaria ficar dependente doutra pessoa a esse ponto.

Katie sentia o cheiro a perfume no ar. O radiador por debaixo da bancada começou a dar sinal de vida.

- Nunca aprendi a conduzir.

Rachel encolheu os ombros enquanto aplicava outra prata no cabelo de Katie.

- Não tem nada que se lhe diga. Basta praticar um pouco, fazer o exame e ficamos prontas para nos fazermos à estrada.

Katie fitou o reflexo de Rachel no espelho. Esta parecia-lhe saber o que estava a fazer, mas era jovem, estava a começar, e ela preferia ser atendida por alguém mais velho e com mais experiência. O que não deixava de ser estranho, uma vez que pouco mais velha seria que Rachel. Talvez até fossem da mesma idade. Katie, porém, sentia-se velha.

- Tem filhos?

- Não.

Talvez a rapariga pressentisse que tocara num ponto sensível, pois passou os minutos seguintes a trabalhar em silêncio, enquanto a cabeça de Katie, cheia de folhas de papel de alumínio, se parecia cada vez mais com as antenas dum extraterrestre. Por fim, levou-a para outra cadeira e ligou uma lâmpada de infravermelhos.

- Daqui a pouco já volto para ver como está, está bem?

Rachel deixou-a e foi falar com outra cabeleireira. A vozearia que reinava no salão impedia de ouvir o que estavam a dizer uma à outra. Katie deitou uma olhadela ao relógio. Faltava menos duma hora para o regresso de Kevin. O tempo estava a passar depressa, demasiado depressa.

Rachel voltou para ver como estava a ficar o cabelo dela.

- Só mais um bocadinho - disse ela em tom chilreado, retomando a conversa com a colega, sempre a gesticular. Animadas. Jovens e despreocupadas. Felizes.

Passaram-se mais uns minutos. Um quarto de hora. Katie fez o possível por não olhar para o relógio. Por fim, a espera acabou e, depois de lhe retirar o papel de alumínio, Rachel conduziu-a ao lavatório. Katie recostou-se na cadeira, apoiando o pescoço na toalha. Rachel abriu a torneira, e Katie sentiu um salpico de água fria na cara. Rachel massajou-lhe o champô no cabelo e no couro cabeludo, passou-o por água, aplicou o amaciador e passou-o também por água.

- Agora vamos cortar, está bem?

De volta à primeira cadeira, Katie teve a impressão de que a cor tinha ficado boa, mas só poderia ter a certeza quando estivesse seco. Teria de ficar bem, caso contrário, Kevin daria por isso. Rachel começou a penteá-la, desembaraçando-lhe o cabelo. Dispunha de quarenta minutos.

Rachel olhou para o reflexo de Katie no espelho.

- Quanto é que quer que eu tire?

- Não muito - indicou-lhe ela. - Só o suficiente para acertar as pontas. O meu marido gosta de me ver com ele comprido.

- E como é que quer o penteado? Se quiser experimentar um corte novo, tenho aqui uma revista.

- Pode manter o mesmo corte.

- Tudo bem - disse Rachel.

Katie ficou a observar a cabeleireira enquanto esta, com a ajuda dum pente, lhe deslizava os dedos pelo cabelo e aparava as pontas com a tesoura. Primeiro, a parte de trás, depois os lados. E, por fim, o alto da cabeça. Rachel arranjara uma pastilha elástica algures e estava agora entretida a mascá-la, os maxilares a deslocar-se para baixo e para cima enquanto trabalhava.

- Está tudo bem até aqui?

- Sim, acho que já chega.

Rachel foi buscar o secador e uma escova circular. Fez deslizar a escova pelo cabelo de Katie, o barulho do secador a incomodar-lhe os ouvidos.

- com que frequência é que costuma vir ao cabeleireiro? - perguntou-lhe Rachel, a fazer conversa fiada.

- Uma vez por mês - respondeu-lhe Katie. - Mas há alturas em que venho só acertá-lo.

- Deixe-me que lhe diga que tem um óptimo cabelo.

- Obrigada.

Rachel continuou a trabalhar. Katie pediu-lhe que lhe desse uma ligeira ondulação, e ela foi buscar o ferro de frisar. Este levou alguns minutos a aquecer. Ainda tinha vinte minutos livres.

Rachel foi enrolando e escovando até ficar satisfeita com o resultado, posto o que observou Katie ao espelho.

- Então, e que tal?

Katie examinou a cor e o penteado.

- Está óptimo - congratulou-se.

- Deixe-me mostrar-lhe atrás - prontificou-se Rachel.

Deu meia-volta à cadeira de Katie e entregou-lhe um espelho. Ela contemplou o duplo reflexo com um aceno de cabeça aprovador.

- Pronto, nesse caso, já está despachada - concluiu a cabeleireira.

- Quanto é que lhe devo?

Rachel disse-lhe quanto era, e Katie procurou a carteira dentro da mala, entregando-lhe a quantia, gorjeta incluída.

- Não se importa de me dar um recibo?

- Claro - disse Rachel. - Só preciso de que venha comigo à caixa.

Rachel passou-lhe o recibo. Uma vez que Kevin lho iria pedir e exigir-lhe que lhe devolvesse o troco quando tornasse a entrar no carro, pediu a Rachel que incluísse a gorjeta. Deitou uma olhadela ao relógio. Doze minutos.

Kevin ainda não voltara, e, enquanto vestia o casaco e calçava as luvas, Katie sentia o coração alvoroçado. Nem esperou que Rachel acabasse de falar com ela para sair do salão de beleza. Na loja do lado, a Radio Shack, pediu ao empregado um telemóvel descartável e um cartão válido para vinte horas. Sentiu as forças a faltar-lhe ao dizer isto, ciente de que, daí em diante, não haveria retrocesso possível.

O empregado tirou um telemóvel de debaixo do balcão e começou a registá-lo enquanto lhe explicava como funcionava. Katie trazia dinheiro escondido no estojo dos tampões, pois sabia que Kevin nunca se lembraria de ir lá vasculhar. Retirou-o e estendeu as notas amarrotadas em cima do balcão. O tempo continuava a passar, e ela tornou a olhar para o parque de estacionamento. Começava a sentir-se desorientada, com a boca seca.

O empregado levou uma infinidade de tempo a registar o artigo. Apesar de Katie pagar em dinheiro, pediu-lhe o nome, a morada e o código postal. Inútil. Ridículo. Queria pagar e desaparecer dali o quanto antes. Contou até dez, e o empregado não se cansava de digitar. Lá fora, o semáforo fechara. Havia automóveis à espera. Interrogou-se se Kevin estaria nesse momento a entrar no parque. Interrogou-se se ele a veria a sair da loja. Só a muito custo conseguiu recuperar o fôlego.

Tentou abrir a embalagem de plástico, mas foi impossível: mais resistente que aço. Grande de mais para lhe caber na mala de mão, grande de mais para lhe caber no bolso. Pediu ao empregado que lhe cedesse uma tesoura, e ele levou um minuto precioso a desencantar uma. Só lhe apetecia gritar, dizer-lhe que se despachasse porque Kevin estava quase a chegar. Ao invés, virou-se para a vitrina.

Quando por fim conseguiu retirar o telemóvel da embalagem, encafuou-o no bolso do casaco juntamente com o cartão pré-pago. O empregado ofereceu-se para lhe dar um saco, mas ela saiu sem sequer lhe dar resposta. O telemóvel pesava como chumbo, e a neve e o gelo dificultavam-lhe o equilíbrio.

Abriu a porta do cabeleireiro e tornou a entrar. Tirou o casaco e as luvas e deixou-se ficar à espera junto à caixa. Bastaram trinta segundos para ver Kevin a entrar no parque de estacionamento, a dirigir-se para o salão de beleza.

Katie apressou-se a sacudir a neve do casaco quando Rachel veio ter com ela. Entrava em pânico só de pensar que Kevin poderia ter dado por isso. Concentrou-se, obrigando-se a manter o autodomínio. A agir com naturalidade.

- Esqueceu-se dalguma coisa? - indagou Rachel.

Katie soltou o ar dos pulmões.

- Ainda tentei esperar lá fora, mas o frio é insuportável - justificou-se. - E depois apercebi-me de que não fiquei com um cartão seu.

A expressão de Rachel iluminou-se.

- Ah, tem toda a razão. Espere só um instante. - Dirigiu-se ao seu posto e retirou um cartão-de-visita da gaveta. Katie sabia que Kevin a estava a observar do interior do automóvel, mas fingiu que não reparava.

Rachel regressou com o cartão e entregou-lho.

- Em geral, não trabalho ao domingo e à segunda-feira - informou-a.

Katie anuiu com a cabeça.

- Eu telefono-lhe.

Ouviu uma porta abrir-se nas suas costas, e Kevin surgiu à porta. Era raro entrar, e o coração de Katie teve um sobressalto. Tornou a vestir o casaco, a esforçar-se por controlar as mãos que lhe tremiam. Em seguida, deu meia-volta e sorriu.

 

Nevava com intensidade quando Kevin Tierney entrou no acesso à garagem. Kevin agarrou em três dos sacos das compras que trazia no banco traseiro e encaminhou-se para a porta. Não abrira a boca durante o regresso do salão de beleza, pouco ou mal lhe falara no supermercado. Limitara-se a andar ao lado de Katie enquanto esta vasculhava as prateleiras à procura de artigos em promoção, a tentar não pensar no telemóvel que levava no bolso. O dinheiro mal chegava para as despesas, Kevin zangar-se-ia se ela se excedesse nos gastos. A hipoteca da casa levava-lhes quase metade do salário dele, e as contas do cartão de crédito, outro tanto. Era raro saírem para jantar fora, mas ele gostava de refeições como as que se serviam nos restaurantes, com dois pratos principais, dois acompanhamentos e por vezes ainda salada. Recusava-se a comer restos, e era difícil esticarem o orçamento. Katie era obrigada a planear a ementa com todo o cuidado e recortava os cupões de descontos que vinham nos jornais. Quando Kevin pagou as compras, ela entregou-lhe o recibo do cabeleireiro e o troco. Kevin contou o dinheiro a fim de ter a certeza de que não faltava nada.

Uma vez em casa, Katie esfregou os braços para se aquecer. A casa era velha, e o ar gélido penetrava pelas frestas das janelas e por baixo da porta. Apesar de o pavimento da casa de banho ser tão frio que chegava a fazer doer os pés, Kevin queixava-se do custo do óleo do sistema de aquecimento e não a deixava subir o termostato. Quando ele saía para o emprego, Katie vestia uma sweat-shirt e calçava uns chinelos, mas, quando o marido estava em casa, queria que ela tivesse uma aparência sedutora.

Kevin pousou os sacos das compras em cima da bancada da cozinha. Quando ele se dirigiu ao frigorífico, Katie pousou os seus sacos ao lado dos dele. Kevin abriu a porta e retirou uma garrafa de vodca e meia dúzia de cubos de gelo. Deitou os cubos para dentro dum copo e em seguida a vodca. Só parou quando o copo estava quase cheio. Deixou-a na cozinha e foi para a sala de estar, donde Katie começou a ouvir o barulho do canal desportivo ESPN na televisão. O apresentador estava a falar dos New England Patriots, dos jogos de desempate e das hipóteses que tinham de conquistar outra Super Bowl. No ano anterior, Kevin fora assistir a um jogo dos Patriots; desde miúdo que era adepto desta equipa de futebol americano.

Katie despiu o casaco e enfiou uma mão dentro do bolso. Dispunha ainda, calculava, dalguns minutos e esperava que fossem suficientes. Depois de deitar uma espreitadela à sala de estar, apressou-se a dirigir-se ao lava-louça. No armário de baixo, havia uma caixa cheia de esfregões da loiça. Escondeu o telemóvel no fundo da caixa e pôs os esfregões por cima. Fechou a porta do armário sem fazer barulho e pegou no casaco, esperando que não estivesse corada, rezando para que ele não a tivesse visto. Respirou fundo para se armar de coragem e enfiou o casaco debaixo do braço, atravessando a sala de estar em direcção ao armário da entrada. À medida que percorria a sala, teve a impressão de que esta se esticava, como se a estivesse a ver reflectida na casa dos espelhos duma feira popular, mas fez o possível por ignorar a sensação. Sabia que bastaria o marido olhar para ela para ser capaz de se aperceber das suas intenções, de lhe decifrar os pensamentos e de adivinhar o que ela tinha feito, mas Kevin nunca desviou a atenção do televisor. Só quando se viu de regresso à cozinha conseguiu recuperar o controlo sobre a respiração.

Começou a tirar as compras dos sacos, ainda desorientada, mas ciente de que tinha de agir normalmente. Kevin gostava da casa arrumada, sobretudo da cozinha e das casas de banho. Katie guardou o queijo e os ovos nos respectivos compartimentos do frigorífico. Retirou os vegetais murchos da gaveta e limpou-a com um pano antes de guardar lá dentro os que entretanto comprara. Pôs de parte umas quantas vagens de feijão-verde e foi buscar uma dúzia de batatas novas a um cesto que tinha no chão da despensa. Deixou um pepino em cima da bancada, juntamente com uma alface e tomate para a salada. O prato principal era bifes marinados.

Tinha deixado os bifes a marinar de véspera: vinho tinto, sumo de laranja, sumo de toranja, sal e pimenta. A acidez dos sumos deixava a carne tenra e acentuava-lhe o sabor. Estavam dentro duma caçarola na última prateleira do frigorífico.

Guardou o resto das compras, puxando os alimentos mais antigos para a frente, e em seguida dobrou os sacos e pô-los debaixo do lava-louça. Retirou uma faca duma gaveta; foi buscar a tábua de cortar carne que estava debaixo da torradeira e pousou-a junto do bico de gás. Cortou as batatas ao meio, apenas as suficientes para os dois. Untou uma assadeira, ligou o forno e temperou as batatas com salsa, sal, pimenta e alho. Iriam ao forno antes dos bifes, que teriam de ser grelhados, e seria preciso reaquecê-las.

Kevin gostava dos vegetais das saladas miudinhos, salpicados com aparas de queijo roquefori, pedaços de pão torrado e molho italiano. Cortou o tomate em dois e um quarto do pepino e em seguida envolveu o restante em película aderente e guardou-o no frigorífico. Quando ia a abri-lo, reparou em Kevin atrás dela na cozinha, encostado à ombreira da porta que dava acesso à sala de jantar. O marido bebeu um grande gole de vodca para acabar com o que restava no copo e continuou a observá-la, a sua presença a dominar o ambiente.

Kevin não sabia que ela saíra do cabeleireiro, recordou a si própria. Não sabia que ela comprara um telemóvel. Caso contrário, já teria dito alguma coisa; já teria feito alguma coisa.

- Vamos ter bifes para o jantar? - interpelou-a por fim.

Katie fechou a porta do frigorífico e continuou a mexer-se, fazendo o possível por se mostrar atarefada, procurando afastar os receios que a afligiam.

- Sim - confirmou ela. - Acabei de ligar o forno e, por isso, ainda vai demorar uns minutos. Primeiro tenho de assar as batatas.

Kevin pôs-se a olhar para ela.

- O teu cabelo está bonito - comentou ele.

- Obrigada. A cabeleireira fez um bom trabalho.

Katie voltou para junto da tábua e começou a cortar o tomate em fatias compridas.

- Não as cortes tão grandes - disse-lhe o marido, assentindo com a cabeça na direcção dela.

- Eu sei - respondeu-lhe ela. Sorriu-lhe quando ele se tornou a dirigir ao frigorífico. Katie ouviu os cubos de gelo a tilintar contra o copo.

- E sobre o que é que conversaram enquanto ela te estava a arranjar o cabelo?

- Nada de especial, apenas o costume. Sabes como são as cabeleireiras. Nunca lhes falta assunto de conversa.

Kevin abanou o copo. Katie tornou a ouvir os cubos a tilintar contra o vidro.

- Conversaram a meu respeito?

- Não - assegurou-lhe.

Ela sabia que isso não teria sido do agrado do marido, que anuiu com a cabeça. Foi buscar novamente a garrafa de vodca e, depois de a pousar na bancada ao lado do copo, acercou-se dela por trás. Ficou postado nas suas costas, a espreitá-la por cima do ombro enquanto Katie cortava os tomates. Em cubos minúsculos, pouco maiores que uma ervilha. Ela sentia-lhe o hálito no pescoço e fez um esforço por não se retrair quando ele lhe assentou as mãos nas ancas. Sabendo de antemão o que tinha a fazer, pousou a faca e virou-se para ele, enlaçando-lhe os braços em volta do pescoço. Beijou-o e enfiou-lhe a língua ligeiramente na boca, ciente de que era esse o seu desejo, e só deu pela bofetada quando a sentiu atingi-la na face. Ardeu-lhe, quente e inflamada. Como a ferroada duma abelha.

- Fizeste-me perder a tarde toda! - gritou-lhe ele. Agarrou-lhe os braços com toda a força e apertou-lhos. Tinha a boca contorcida num esgar, os olhos já raiados de sangue. Katie sentia-lhe o cheiro a álcool no hálito, e os borrifos de saliva dele salpicaram-lhe a cara. - O meu único dia de folga, e tu foste logo escolhê-lo para ires ao cabeleireiro no centro da cidade! E depois, ainda por cima, ao supermercado!

Ela contorceu-se num esforço por se libertar, e o marido acabou por largá-la. Abanou a cabeça, os músculos dos maxilares a latejar.

- Alguma vez paraste para pensar que eu poderia querer passar o dia descansado? Ficar em paz e sossego no meu único dia de folga?

- Desculpa - disse ela, levando a mão à face. Escusou-se a acrescentar que lhe perguntara duas vezes no início da semana se ele não se importava, nem tão-pouco que fora ele que a obrigara a mudar de cabeleireiro porque não queria que ela travasse amizades nas redondezas. Não queria que ninguém se metesse nas suas vidas.

- Desculpa - imitou-a ele. Fitou-a momentaneamente e em seguida abanou uma vez mais a cabeça. - Santo Deus! - bradou. - Será possível que não penses senão em ti própria?

Kevin estendeu uma mão para a tornar a agarrar, mas Katie deu meia-volta para fugir. Estava prestes a agredi-la, e ela não tinha para onde ir. Atingiu-a com força e rapidez, o punho disparado como um pistão à zona lombar dela. Katie arquejou, a visão a toldar-se-lhe nos cantos dos olhos, sentindo-se como se a tivessem apunhalado. Caiu ao chão, com o rim a arder, as dores a propagarem-se-lhe pelas pernas e pela coluna. O mundo começou a rodopiar à sua volta e, quando se tentou levantar, o movimento ainda a deixou mais estonteada.

- Toda a vida hás-de ser uma cabra egoísta! - gritou-lhe Kevin, avultando sobre ela.

Katie não lhe respondeu. Não conseguia dizer nada. Não conseguia respirar. Mordeu o lábio para conter os gritos e perguntou-se se no dia seguinte iria urinar sangue. As dores eram como uma lâmina que lhe golpeava os nervos, mas não podia chorar, pois isso ainda deixaria o marido mais colérico.

Ele continuou a avultar sobre ela até que por fim soltou um suspiro de desdém. Antes de sair da cozinha, estendeu a mão para pegar no copo vazio e agarrou na garrafa de vodca.

Katie precisou dum bom minuto para conseguir reunir forças para se levantar. Quando recomeçou a cortar o tomate, as mãos tremiam-lhe. A cozinha estava fria, e tinha dores atrozes nas costas, latejando a cada pulsação. Na semana anterior, agredira-a com tanta força no estômago que passara o resto da noite a vomitar. Tombara no chão, e ele agarrara-a pelo pulso para a obrigar a levantar-se. A nódoa negra que lhe ficara no pulso tinha a forma dos dedos dele. Ramificações do inferno.

com as lágrimas a correr-lhe pelas faces, Katie teve de estar constantemente a deslocar o peso do corpo dum pé para o outro para afugentar as dores até acabar de cortar o tomate. Em seguida, cortou o pepino em cubos. Cubos minúsculos. A alface, também, cortada e picada. Tal qual ele queria. Limpou as lágrimas com as costas da mão e aproximou-se devagar do frigorífico. Retirou uma embalagem de roquefort e foi à procura dos pedaços de pão torrado no armário.

Na sala de estar, Kevin subiu novamente o volume do televisor.

O forno aquecera entretanto, e ela cobriu a assadeira com uma folha de papel de alumínio e programou o cronómetro. Quando o calor lhe atingiu o rosto, reparou que ainda sentia a pele a arder, mas duvidava de que ele lhe tivesse deixado uma marca ali. O marido sabia exactamente até que ponto podia usar da força, e ela admirava-se onde seria que aprendera isso, se era uma coisa que todos os homens sabiam, ou se havia aulas especiais com instrutores especializados naquela matéria. Ou se o problema era apenas de Kevin.

As dores nas costas começaram por fim a abrandar para uma moinha. Voltou a conseguir respirar normalmente. O vento soprava por entre as frestas da janela, e o céu estava escuro como breu. A neve tamborilava delicadamente contra o vidro. Katie espreitou para a sala de estar, viu Kevin sentado no sofá e foi encostar-se à bancada. Descalçou um sapato de salto alto e esfregou os dedos dos pés, a tentar activar a circulação, a tentar aquecê-los. Depois de fazer o mesmo ao outro pé, tornou a calçar os sapatos.

Lavou e cortou o feijão-verde e deitou um fio de azeite na frigideira. Começaria a refogar os feijões quando os bifes fossem para a assadeira. Tentou uma vez mais afastar do pensamento o telemóvel debaixo do lava-loiça.

Estava a retirar o papel de alumínio do forno quando Kevin voltou à cozinha. Trazia o copo meio vazio na mão. Já tinha os olhos vidrados. Já lá iam umas quatro ou cinco doses de vodca. Katie não sabia dizer ao certo. Tornou a pôr o papel de alumínio na assadeira.

- Só falta mais um bocadinho - disse, o tom de voz indiferente, a fingir que não se passara nada. Já percebera que, caso se mostrasse zangada ou magoada, só iria contribuir para o enfurecer ainda mais. - É só os bifes ficarem prontos que já vamos jantar.

- Desculpa - disse-lhe Kevin. Cambaleava ligeiramente.

Ela sorriu-lhe.

 - Eu sei. Não tem importância. As últimas semanas têm sido duras para ti. Tens tido muito trabalho.

- Essas calças de ganga que trazes vestidas são novas? - A voz saiu-lhe arrastada.

- Não - respondeu-lhe Katie. - Já não as usava há algum tempo.

- Ficam-te bem.

- Obrigada - respondeu-lhe ela.

Kevin avançou um passo na direcção dela.

- És tão bonita. Sabes que te amo, não sabes?

- Eu sei.

- Não gosto nada de te bater, mas há alturas em que tu não pensas.

Ela assentiu com a cabeça, desviando o olhar, a tentar desencantar qualquer coisa que fazer, ansiosa por se manter ocupada, até que por fim se lembrou de que precisava de pôr a mesa. Acercou-se do armário junto ao lava-louça.

O marido aproximou-se dela por trás quando Katie se estava a estender para chegar aos pratos e obrigou-a a dar meia-volta, chegando-a a ele. Ela respirou fundo antes de soltar um suspiro de satisfação, pois sabia que Kevin gostava de a ouvir fazer aquele tipo de ruídos.

- Estou à espera de que digas que também me amas - murmurou ele. Beijou-a na face, e ela pôs os braços ao redor dele. Sentia-o comprimir-se contra ela, sabia o que ele queria.

- Amo-te - respondeu-lhe.

As mãos dele deslizaram-lhe para os seios. Katie ficou à espera de que lhos apalpasse com força, mas, ao invés, o marido acariciou-lhos com delicadeza. Mesmo contra a sua vontade, o seu mamilo começou a endurecer. Katie não suportava isso, mas não havia nada que pudesse fazer para o impedir. O hálito dele estava quente. Ébrio.

- Santo Deus, que bonita que tu és. Sempre te achei bonita, logo desde a primeira vez que te vi. - Encostou-se ainda mais a ela, e Katie sentiu-lhe a erecção. - Não metas já os bifes no forno - disse-lhe. - O jantar pode esperar.

- Julguei que estivesses com fome. - Deu à frase uma entoação trocista.

- Estou com fome, mas é doutra coisa - sussurrou-lhe ele. Desabotoou-lhe a camisa e puxou-lha para fora antes de passar ao botão das calças.

- Aqui não - pediu-lhe ela, inclinando a cabeça para trás, deixando que ele a continuasse a beijar. - No quarto, está bem?

- Então, e que tal em cima da mesa? Ou da bancada, para variar?

- Por favor, amor - murmurou ela, a cabeça inclinada para trás enquanto Kevin lhe beijava o pescoço. - Não acho isso lá muito romântico.

- Mas é erótico - ripostou ele.

-- E se alguém nos vê pela janela?

- És uma autêntica desmancha-prazeres - protestou o marido.

- Por favor? - suplicou ela uma vez mais. - Por mim? Tu sabes como me excitas na cama.

Ele tornou a beijá-la, as mãos a deslizarem-lhe para o sutiã. Desapertou-o à frente; não gostava de sutiãs que tinham o fecho atrás. Katie sentiu o ar frio da cozinha nos seios; viu-lhe o desejo na expressão à medida que ele a fitava intensamente. Kevin lambeu os lábios e em seguida levou-a para o quarto.

Mal lá chegou, entrou num autêntico frenesim, a puxar-lhe as calças pelas ancas e até aos tornozelos. Apertou-lhe os seios, e ela teve de morder um lábio para não gritar. Por fim, tombaram na cama. Katie começou a arquejar, a gemer e a chamar pelo nome dele, sabendo que eram coisas de que ele gostava, porque não queria vê-lo zangado, porque não queria que ele se lembrasse de lhe dar alguma bofetada, ou algum murro, ou algum pontapé, porque não queria que ele descobrisse que ela tinha comprado um telemóvel. Ainda cheia de dores no rim, fez os possíveis por transformar os gritos em gemidos, por dizer as coisas que sabia que Kevin queria ouvir, por o excitar até o corpo dele começar a entrar em espasmos. Quando chegou ao fim, Katie levantou-se da cama, vestiu-se, deu-lhe um beijo e voltou para a cozinha a fim de acabar de preparar o jantar.

Kevin foi até à sala de estar para beber o resto de vodca e em seguida sentou-se à mesa. Falou-lhe do trabalho e depois, enquanto ela foi arrumar a cozinha, entreteve-se outra vez a ver televisão. Quando ela acabou, o marido disse-lhe que lhe viesse fazer companhia na sala de estar até serem horas de deitar.

Uma vez no quarto, foi uma questão de minutos até ele começar a ressonar, alheio às lágrimas silenciosas de Katie, alheio ao ódio que ela lhe tinha, ao ódio que tinha a si própria. Alheio ao dinheiro que ela vinha a amealhar havia quase um ano ou à tinta para o cabelo que tinha guardada no roupeiro, alheio ao telemóvel escondido no armário por baixo do lava-louça. Alheio ao facto de que, daí a escassos dias, se tudo corresse consoante as expectativas dela, Kevin nunca mais lhe poria a vista nem a mão em cima.

 

Katie continuava sentada ao lado de Alex no alpendre, o céu sobranceiro a ambos uma vastidão negra constelada de luz. Passara meses a esforçar-se por bloquear as recordações concretas, concentrando-se apenas no medo do que deixara para trás. Não se queria lembrar de Kevin, não queria pensar nele. Queria obliterá-lo por completo da sua memória, fingir que ele nunca existira. Mas ele viveria para sempre com ela.

Alex escutara-a no mais absoluto silêncio, a cadeira virada para ela. Katie contara-lhe a sua história por entre lágrimas, embora duvidasse de que ele tivesse reparado que estava a chorar. Falara com ele sem emoção na voz, quase em transe, como se os acontecimentos se tivessem passado com outra pessoa. Quando a voz dela por fim esmoreceu, Alex sentia-se nauseado.

Katie não teve coragem de olhar para ele enquanto falava. Alex já anteriormente ouvira versões da mesma história, mas desta feita era diferente. Katie não era uma simples vítima, era sua amiga, a mulher por quem ele se apaixonara, e prendeu-lhe uma madeixa solta de cabelo atrás da orelha.

Ao sentir o seu toque, ela começou por se retrair ligeiramente e só depois descontraiu. Ouviu-a soltar um suspiro, um suspiro cansado. Cansada de falar. Cansada do passado.

- Fizeste bem em te ires embora - disse-lhe ele. O seu tom de voz era suave. Compreensivo.

Ela demorou um instante a responder-lhe.

- Eu sei - disse-lhe.

- Não tinha nada que ver contigo.

Katie estava de olhar perdido na escuridão.

- Tinha - retorquiu ela. - Tinha, sim. Fui eu quem o escolhi, recordas-te? Casei-me com ele. Deixei que acontecesse uma, duas vezes e, quando dei por mim, já era tarde de mais. Continuei a cozinhar para ele e a limpar-lhe a casa. Ia para a cama com ele sempre que lhe apetecia, fazia tudo o que ele queria. Levei-o a pensar que gostava daquilo.

- Fizeste o que precisavas de fazer para sobreviver - salientou ele com voz firme.

Katie quedou-se uma vez mais em silêncio. Os grilos cricrilavam e os gafanhotos sussurravam das árvores.

- Nunca me passou pela cabeça que semelhante coisa pudesse acontecer, sabes? O meu pai era um bêbado, mas não era violento. Era apenas... fraco. Não sei por que foi que permiti que acontecesse.

Alex falou-lhe em voz baixa:

- Porque a dado momento o amaste. Porque acreditaste nele quando te prometeu que não tornaria a suceder. Porque, com o decorrer do tempo, ele foi ficando cada vez mais violento e controlador, e foi tudo tão gradual que tu te convenceste de que ele acabaria por mudar, até que finalmente te tiveste de dar por vencida e perceber que isso não iria acontecer.

Ao ouvir estas palavras, ela inspirou repentinamente e baixou a cabeça, os ombros a oscilar para cima e para baixo. Ao ouvir a angústia dela, Alex sentiu um aperto de raiva na garganta pela vida que ela vivera, bem como de tristeza por ainda a estar a viver. Apetecia-lhe abraçá-la, mas sabia que, naquele momento, não era disso que ela precisava. Katie estava frágil, nervosa. Vulnerável.

Foram precisos alguns minutos para que o choro dela acalmasse. Tinha os olhos vermelhos e inchados.

- Lamento ter-te contado tudo isto - disse, a voz ainda embargada. - Não foi boa ideia.

- Ainda bem que contaste.

- O único motivo por que contei foi por tu já saberes.

- Eu sei.

- Mas não precisavas de ficar ao corrente dos pormenores a respeito do que eu era obrigada a fazer.

- Não tem importância.

- Eu odeio-o - desabafou ela. - Mas também me odeio a mim própria. Já te tentei fazer ver que estou melhor sozinha. Não sou quem tu julgavas que eu era. Não sou a mulher que tu julgas conhecer.

Ao vê-la outra vez à beira das lágrimas, Alex acabou por se levantar. Puxou-lhe pela mão, a pedir-lhe que se levantasse também. Katie acedeu, mas continuava a recusar-se a olhar para ele. Alex tentou conter a raiva que sentia do marido dela e manteve a voz baixa.

- Ouve o que te digo - pediu-lhe. com a ajuda dum dedo, ergueu-lhe o queixo. Katie começou por resistir, mas depois lá cedeu, olhando por fim para ele. Alex prosseguiu. - Nada do que me possas dizer é capaz de alterar os meus sentimentos por ti. Nada. Porque não és tu quem está em causa. Não és nem nunca foste. Tu és a mulher que eu conheci. A mulher que eu amo.

Ela observou-o atentamente, ansiosa por poder acreditar nele, sabendo, sem saber porquê, que ele estava a dizer a verdade, e sentiu qualquer coisa dar de si no seu íntimo. Mesmo assim...

- Mas...

- Não há mas nem meio mas - interrompeu-a ele. - Tu vês-te como uma pessoa incapaz de escapar. Eu vejo a mulher corajosa que conseguiu escapar. Tu vês-te como uma pessoa que deveria sentir vergonha ou culpa por deixar acontecer o que aconteceu. Eu vejo uma mulher bonita e generosa que deveria estar orgulhosa de si própria porque conseguiu impedir que voltasse a acontecer. Poucas mulheres possuem a força para fazer o que tu fizeste. É isso que eu vejo neste momento e é isso que sempre tenho visto quando olho para ti.

Katie sorriu-lhe.

- Acho que estás a precisar de óculos.

- Não deixes que os meus cabelos brancos te enganem. A minha vista não podia estar melhor. - Ele acercou-se dela, certificando-se de que estava receptiva a um beijo seu. Foi breve e delicado. Carinhoso. - Só lamento que tenhas sido obrigada a passar por tudo isso.

- Eu ainda estou a passar por isso.

- Porque tens medo de que ele ande à tua procura?

- Eu tenho a certeza de que ele anda à minha procura. Anda e sempre andará. - Fez uma pausa. - Ele tem um problema qualquer. É... demente.

Alex reflectiu nesta possibilidade.

- Eu sei que não te devia perguntar, mas alguma vez pensaste em chamar a polícia?

Os ombros dela descaíram subitamente.

- Pensei - admitiu. - E numa ocasião chamei mesmo.

- E os polícias não fizeram nada?

- Foram lá a casa e conversaram comigo. Convenceram-me a não dar parte dele.

Alex ponderou uma vez mais.

- Isso não faz qualquer sentido.

- Para mim, fez todo o sentido. - Encolheu os ombros. - O Kevin avisou-me desde logo que não valeria de nada chamar a polícia.

- E como é que ele sabia?

Katie soltou um suspiro, a pensar que, já que ali chegara, mais valia contar-lhe tudo.

- Porque ele é da polícia - esclareceu ela por fim. Ergueu o olhar para ele. - É investigador no Departamento da Polícia de Boston. E ele não me tratava por Katie. - Os olhos dela deixavam transparecer desespero. - Tratava-me por Erin.

 

No Memorial Day, centenas de quilómetros para norte, Kevin Tierney encontrava-se no jardim das traseiras da sua casa, em Dorchester, trajado com calções e uma camisa estilo havaiano que comprara quando ele e Erin tinham passado a lua-de-mel em Oahu.

- A Erin voltou para Manchester - anunciou ele.

Bill Robinson, o seu comandante, virou os hambúrgueres no grelhador.

- Outra vez?

- Eu disse-lhe que a amiga dela tem um cancro, não disse? Ela sente-se na obrigação de estar lá para apoiar a amiga.

- Um cancro é sempre um problema muito sério - comentou Bill. - E como é que a Erin se está a aguentar?

- Bem. Embora se note que está cansada. É duro andar sempre para trás e para diante como ela tem vindo a fazer.

- Bem posso imaginar - disse Bill. - A Emily passou por uma experiência semelhante quando a irmã teve lúpus. Esteve dois meses encafuada num apartamento minúsculo de Burlington, em pleno Inverno. Iam dando as duas em malucas. No fim, a irmã acabou por lhe fazer as malas e por lhas pôr à porta, dizendo-lhe que preferia estar sozinha. Não que eu não a compreenda, claro está.

Kevin bebeu um gole de cerveja directamente da garrafa e, dado que era isso que se esperava dele, sorriu. Emily era a esposa de Bill, e os dois estavam casados havia quase trinta anos. Bill gostava de dizer às pessoas que tinham sido os seis anos mais felizes da sua vida. Toda a gente na esquadra já conhecia esta piada de cor e salteado, desde que Bill para lá fora, havia oito anos, e muitas dessas pessoas encontravam-se presentes. Bill organizava um churrasco em sua casa todos os anos pelo Memorial Day e quase todos os polícias que não estavam de serviço tinham comparecido, não apenas porque se sentiam na obrigação disso, mas porque, uma vez que o irmão de Bill ganhava a vida como distribuidor de cerveja, cerveja era coisa que ali não faltava. Maridos e respectivas esposas, casais de namorados, crianças reuniam-se em grupos, alguns na cozinha, outros no pátio. Quatro investigadores estavam entretidos a atirar ferraduras, e via-se a areia a levantar em redor dos pinos.

- Da próxima vez que ela cá vier - acrescentou Bill -, por que é que não a trazes a jantar cá a casa? A Emily tem perguntado por ela. A menos, claro está, que queiras recuperar o tempo perdido. - Piscou-lhe o olho.

Kevin interrogou-se se o convite seria bem intencionado. Em ocasiões como aquela, Bill gostava de fingir que era apenas mais um polícia igual a tantos outros, ao invés do comandante. Mas era um indivíduo severo. Astuto. Tinha mais de político que de polícia.

- Eu falo-lhe nisso.

- Quando é que ela se foi embora?

- Hoje de manhã. A esta hora, já lá chegou.

Os hambúrgueres já crepitavam no grelhador, os pingos de gordura a fazer dançar e saltar as chamas.

Bill espalmou um hambúrguer para lhe extrair o sangue. O chefe não percebia nada de churrascos, pensou Kevin para consigo. Sem sangue, os hambúrgueres iriam ficar secos, insípidos e duros como pedra. Resumindo e concluindo, intragáveis.

- Então, e o caso do Ashley Henderson - disse Bill, mudando de assunto. - Acho que vamos finalmente poder acusá-lo. Tu fizeste um bom trabalho.

- Já não era sem tempo - disse Kevin. - Já há uns tempos que me parecia que eles tinham provas que chegassem para isso.

- Também eu. Mas eu não sou delegado do Ministério Público. - Bill espalmou outro hambúrguer, estragando-o por completo. - E também ando para falar contigo a respeito do Terry.

Terry Canton fora o parceiro de Kevin ao longo dos últimos três anos, mas sofrera um ataque cardíaco em Dezembro e ainda não regressara ao trabalho.

- O que é que se passa com ele?

- Já não volta. Deram-me a notícia esta manhã. Os médicos aconselharam-no a reformar-se e ele decidiu acatar o conselho. Ele calcula que já deve ter uns vinte anos de serviço e já pode contar com a pensão.

- E que consequências terá isso para mim?

Bill encolheu os ombros.

- Temos de te arranjar outro parceiro, mas por agora não, porque o orçamento do município está congelado. Talvez quando o novo orçamento for aprovado.

- Talvez ou provavelmente?

- Está descansado que vais ter o teu parceiro. Embora o mais certo será teres de esperar até Julho. Eu sei que isso representa trabalho acrescido para ti, mas não há nada que eu possa fazer contra isso. vou fazer o possível por não te sobrecarregar muito.

- Fico-lhe agradecido.

Um bando de crianças de cara suja atravessou o jardim a correr. Duas mulheres saíram de casa com taças cheias de batatas fritas, provavelmente na bisbilhotice. Kevin detestava bisbilhoteiras. Bill apontou a espátula para o parapeito do alpendre.

- Chega-me aquela travessa que ali está se não te importas. Acho que estes aqui estão quase prontos.

Kevin foi buscar a travessa. Era a mesma onde trouxera os hambúrgueres crus para o grelhador, e ele reparou que tinha manchas de gordura e restos de carne. Um nojo. Sabia que, se fosse Erin, teria ido buscar uma travessa limpa, que jamais usaria uma que estivesse suja de gordura ou com bocados de hambúrguer agarrados. Kevin pousou a travessa junto ao grelhador.

- vou buscar outra cerveja - disse Kevin, empunhando a garrafa. - Quer que também lhe traga uma?

Bill abanou a cabeça e destruiu outro hambúrguer.

- Ainda tenho com que me entreter aqui. Mas obrigado, de qualquer das maneiras.

Kevin dirigiu-se a casa, sentindo a gordura da travessa agarrada à ponta dos dedos. A entranhar-se-lhe na pele.

- Ei! - gritou-lhe Bill atrás dele.

Kevin deu meia-volta.

- A geleira está ali, já te esqueceste? - Bill apontou para um canto do alpendre.

- Eu sei, mas quero lavar as mãos antes de comer.

- Então, vê lá se te despachas. Mal eu pouse a travessa, vai ser um ver se te avias.

Kevin parou junto à porta das traseiras para limpar os pés no tapete antes de entrar. Na cozinha, contornou um grupo de mulheres tagarelas e dirigiu-se ao lava-louça. Lavou as mãos duas vezes, de ambas com sabão. Pela janela, viu Bill a pousar a travessa com cachorros-quentes e hambúrgueres em cima da mesa de piquenique, ao lado do pão, dos temperos e das taças com batatas fritas. Foi quanto bastou para que as moscas lhes sentissem o cheiro e se abatessem sobre o banquete, zumbindo por cima da comida e aterrando nos hambúrgueres. Os convivas correram a enfileirar-se, aparentemente indiferentes aos insectos. Contentaram-se em afugentar as moscas, ignorando-as, e a encher os respectivos pratos.

Hambúrgueres estragados e um enxame de moscas.

Ele e Erin teriam feito as coisas doutra maneira. Kevin não teria espremido os hambúrgueres com uma espátula, e Erin teria deixado os temperos, as batatas fritas e os picles na cozinha, onde não havia mosquedo, para que os convidados se servissem aí. As moscas eram nojentas, e os hambúrgueres estavam duros como pedra, e Kevin recusava-se a comê-los porque, só de pensar nisso, era quanto bastava para se sentir maldisposto.

Esperou que a travessa dos hambúrgueres ficasse vazia antes de voltar para o jardim. Encaminhou-se então para a mesa com ar de desapontamento simulado.

- Eu preveni-te para que te despachasses - disse-lhe Bill com um sorriso rasgado. - Mas não te preocupes que a Emily tem outra travessa no frigorífico e, não tarda, temos a segunda rodada. Traz-me outra cerveja enquanto eu a vou buscar, está bem?

- Claro - acedeu Kevin.

Quando a segunda dose de hambúrgueres ficou pronta, Kevin encheu um prato de comida e deu os parabéns a Bill, dizendo-lhe que estava tudo com óptimo aspecto. As moscas não os largavam, e os hambúrgueres estavam secos e, aproveitando um momento em que apanhou o chefe de costas, Kevin deitou a comida para o caixote do lixo metálico junto à casa. Em seguida, disse a Bill que a carne estava uma delícia.

Ainda ficou mais algumas horas no churrasco. Conversou com Coffey e Ramirez. Eram investigadores, tal como ele, embora comessem hambúrgueres e não se importassem com as moscas. Kevin não queria ser o primeiro a ir-se embora, nem sequer o segundo, porque o chefe gostava de fingir que pertencia à pandilha, e ele não queria melindrar o chefe. Não gostava de Coffey nem de Ramirez. Havia ocasiões em que bastava Kevin aparecer para os dois se calarem abruptamente, e ele percebia que tinham estado a falar dele pelas costas. Bisbilhoteiros.

Todavia, Kevin era um bom investigador e tinha noção disso. E o mesmo se aplicava a Coffey e a Ramirez. Trabalhava nos homicídios e sabia como falar com as testemunhas e os suspeitos. Sabia quando devia fazer perguntas e quando devia escutar; percebia quando lhe mentiam e punha os assassinos atrás das grades porque na Bíblia se dizia: “Não matarás”, e ele acreditava em Deus e, quando punha os culpados atrás das grades, estava a servir a Deus.

De regresso a casa, Kevin atravessou a sala de estar. Resistiu à tentação de chamar por Erin. Se Erin ali estivesse, a consola da lareira não teria pó, e as revistas estariam dispostas em leque numa das extremidades da mesa, e não haveria uma garrafa vazia de vodca em cima do sofá. Se Erin ali estivesse, as cortinas estariam abertas para deixar a luz do Sol espraiar-se pelas tábuas do soalho. Se Erin ali estivesse, a louça estaria lavada e arrumada, e o jantar estaria à sua espera na mesa, e ela ter-lhe-ia sorrido e perguntado como lhe correra o dia. Depois, fariam amor, porque ele a amava e ela o amava a ele.

Subiu ao primeiro andar e postou-se diante da porta do roupeiro do quarto. Ainda sentia um leve toque do perfume que ela costumava usar, aquele que ele lhe oferecera pelo Natal. Kevin vira-a a levantar a badana duma das suas revistas e a cheirar a amostra de perfume com um sorriso. Quando ela se fora deitar, arrancara a página e enfiara-a dentro da carteira de modo a saber exactamente que perfume deveria comprar. Recordava-se da delicadeza com que ela aplicara um pouco atrás de cada orelha e nos pulsos quando ele a levara a sair na véspera de Ano Novo e de como estava bonita, com um vestido de cerimónia preto. Uma vez no restaurante, Kevin reparara nos olhares que os outros homens, mesmo os que estavam acompanhados, deitavam na direcção dela enquanto passava por eles a caminho da mesa. Mais tarde, de volta a casa, tinha feito amor a brindar a chegada do Ano Novo.

O vestido continuava dentro do armário, pendurado onde ela o deixara, a obrigá-lo a reviver aquelas recordações. Uma semana atrás, Kevin lembrava-se de o ter retirado do cabide e de o ter estendido na beira da cama, desfeito em lágrimas.

Lá fora, ouvia o murmúrio ritmado dos grilos, mas nem isso o acalmou. Apesar de ter sido supostamente um dia descontraído, sentia-se exausto. Fora ao churrasco contrariado, com receio de que lhe fizessem perguntas sobre Erin e se visse obrigado a mentir. Não porque isso o incomodasse, mas porque tinha dificuldade em continuar a fingir que Erin não o deixara. Inventara uma história e havia meses que se mantinha fiel a ela: que a mulher lhe telefonava todas as noites, que viera passar uns dias a casa, mas que entretanto voltara para o New Hampshire, que a amiga estava a fazer quimioterapia e precisava da ajuda dela. Sabia que não poderia prolongar aquela mentira indefinidamente, que não tardaria muito para a desculpa de “ajudar a amiga” começar a soar a falso e para as pessoas se começarem a perguntar por que seria que nunca a viam na igreja nem no supermercado ou mesmo no bairro e por quanto tempo mais ela continuaria em casa da amiga. Começariam a tecer comentários nas costas dele e a dizer coisas do género: “A Erin deve tê-lo deixado”, e Acho que o casamento deles não era tão perfeito quanto eu julgava que era”. Esta ideia provocou-lhe um aperto no estômago, recordando-o de que estava em jejum.

O frigorífico estava praticamente vazio. Erin tinha sempre fiambre de peru, presunto, mostarda de Dijon e pão fresco de centeio, que comprava na padaria, contudo, a única alternativa que lhe restava agora era aquecer o bife tártaro que trouxera do restaurante chinês uns dias atrás. Na última prateleira, viu umas manchas de comida que lhe deram vontade de começar a chorar outra vez, porque lhe lembraram os gritos de Erin e o ruído que a cabeça dela fizera ao embater na beira da mesa quando ele lhe dera um empurrão na cozinha. Estava a agredi-la ao pontapé e à bofetada porque encontrara manchas de comida no frigorífico e agora interrogava-se por que se zangara por uma coisa tão insignificante.

Kevin foi para o quarto e deitou-se na cama. Quando deu por ele, era meia-noite e o silêncio reinava nas casas vizinhas. Do outro lado da rua, viu luz acesa em casa dos Feldman. Ao contrário dos outros vizinhos, Larry Feldman nunca lhe acenava a cumprimentá-lo se por acaso estivessem nos respectivos jardins, e quando a mulher, Gladys, o via, virava-lhe as costas e voltava para dentro de casa. Estavam ambos na casa dos sessenta anos e eram o género de casal que era capaz de vir à rua ralhar com um miúdo que lhes tivesse pisado a relva para ir buscar um disco voador ou uma bola de basebol. E, apesar de serem judeus e de acenderem a menorá à janela nos dias festivos, também enfeitavam a casa com luzes natalícias. Eram para ele uma incógnita, e não lhe parecia que fossem bons vizinhos.

Tornou a deitar-se, mas não conseguiu conciliar o sono. De manhã, ao acordar com a luz do Sol a entrar no quarto, pareceu-lhe que a vida dos demais continuava igual ao que sempre fora. A única vida que estava diferente era a sua. O irmão, Michael, e a mulher, Nadine, estariam nesse momento a arranjar os filhos para irem para a escola antes de se dirigirem aos respectivos empregos no Boston College, e os pais estariam provavelmente a ler o The Globe enquanto tomavam o pequeno-almoço. Teriam sido cometidos crimes, e haveria testemunhas na esquadra. Coffey e Ramirez estariam a bisbilhotar à custa dele.

Tomou um duche e comeu uma torrada com vodca ao pequeno-almoço. Na esquadra, foi chamado para investigar um homicídio. Uma mulher dos seus vinte anos, muito provavelmente uma prostituta, fora morta à punhalada e atirada para um contentor do lixo. Passou a manhã a falar com curiosos enquanto se procedia à recolha de provas. Quando deu as entrevistas por concluídas, regressou à esquadra para fazer o relatório enquanto ainda tinha a memória fresca. Era um bom investigador.

Havia grande movimento na esquadra. O final dum fim-de-semana com feriados. O mundo ensandecera. Os investigadores falavam ao telefone, e escreviam à secretária, e falavam com testemunhas, e ouviam as vítimas relatar as injúrias a que haviam sido sujeitas.

- Está tudo bem? - interpelou-o Coffey. Era um indivíduo na casa dos quarenta, com excesso de peso e a ficar calvo. -- Estás com péssimo aspecto.

- Passei mal a noite - justificou-se Kevin.

- Eu sem a Janet também não consigo dormir bem. Quando é que a Erin volta?

Kevin manteve uma expressão impassível.

- No próximo fim-de-semana. Eu tenho uns dias de folga, e decidimos ir até Cape Cod. Há anos que lá não vamos.

- Ai sim? A minha mãe mora lá. Exactamente para que sítio de Cape Cod?

- Provincetown.

- É precisamente onde ela mora. Vocês vão adorar. Eu nunca perco uma oportunidade de lá ir. Onde é que vão ficar hospedados?

Kevin perguntou-se qual seria o propósito do interrogatório de Coffey.

- Não sei bem - respondeu-lhe. - Quem está a tratar de tudo é a Erin.

Kevin dirigiu-se à cafeteira e, embora não lhe apetecesse, serviu-se dum café. Teria de desencantar o nome duma pensão e duns quantos restaurantes, a fim de estar precavido caso Coffey se lembrasse de se pôr outra vez com perguntas.

Os seus dias seguiram a mesma rotina de sempre. Trabalhava, falava com testemunhas e por fim voltava para casa. Tinha um trabalho exigente e precisava de descontrair quando chegava a casa, no entanto, uma vez aí chegado, tudo estava diferente e não se conseguia abstrair dos problemas do emprego. Em tempos acreditara que se acabaria por acostumar a ver vítimas de homicídio, no entanto, os seus rostos macilentos e inertes ficavam-lhe gravados na memória e por vezes as vítimas visitavam-no em sonhos.

Não gostava de voltar para casa. Quando acabava o turno, não encontrava uma mulher bonita à porta para o receber. Erin fora-se embora em Janeiro. Agora a casa estava suja e desarrumada, e tinha de ser ele a lavar a roupa. A princípio, não sabia pôr a máquina a funcionar e, da primeira vez, pusera detergente a mais e a roupa ficara com um aspecto encardido. Não tinha refeições caseiras nem velas acesas em cima da mesa. Ao invés, comprara qualquer coisa para comer a caminho de casa e comia no sofá. O HGTV, o canal por cabo de casa e jardinagem, fora um dos preferidos de Erin e, de cada vez que Kevin agora o via, sentia um vazio quase insuportável a instalar-se no seu âmago.

De cada vez que chegava a casa, já não se dava à maçada de guardar o revólver do serviço no estojo que lhe estava destinado dentro do roupeiro; dentro do estojo, tinha também um segundo Glock para seu uso pessoal. Erin já tinha medo de armas mesmo antes de ele lhe encostar o Glock à testa e de ameaçar matá-la se ela algum dia tornasse a tentar fugir. Ela gritara e chorara ao ouvi-lo jurar que daria cabo de qualquer homem com quem ela fosse para a cama, qualquer homem por quem se apaixonasse. Fora tão estúpida, e ele ficara tão zangado por ela ter fugido que lhe exigira que lhe confessasse o nome do homem que a ajudara a fim de poder matá-lo. Erin, porém, gritara, chorara e suplicara que a poupasse, jurando a pés juntos que não havia homem nenhum, e Kevin acreditara nela porque era sua mulher. Tinham trocado votos na presença de Deus e da família, e na Bíblia dizia: “Não cometerás adultério”. Nem mesmo nessa ocasião acreditara que Erin lhe pudesse ser infiel. Não acreditara que houvesse outro homem envolvido. Enquanto estavam casados, assegurara-se sempre disso. Durante o dia, fazia telefonemas para casa quando ela menos esperava e nunca a deixava ir sozinha ao supermercado, ao cabeleireiro ou à biblioteca. Ela não tinha automóvel nem sequer carta de condução e, sempre que estava nas redondezas, ele dava um salto a casa, só para ter a certeza de que ela não saíra. Erin não se fora embora porque queria cometer adultério. Fora-se embora porque estava farta de levar socos e pontapés e de ser atirada pelas escadas da cave abaixo. Kevin sabia que não lhe devia fazer estas coisas e, sempre que agia assim, sentia-se culpado e pedia-lhe perdão, mas nem isso servia de desculpa à mulher.

Ela não devia ter fugido, ponto final. Partira-lhe o coração porque lhe tinha mais amor que à própria vida e sempre tomara conta dela. Comprara-lhe uma casa, e um frigorífico, e uma máquina de lavar e secar roupa, e mobília nova. A casa sempre estivera num brinco, mas agora o lava-louça estava cheio de pratos sujos e o cesto da roupa suja transbordava.

Sabia que devia limpar a casa, mas não tinha forças. Ao invés, foi até à cozinha e tirou uma garrafa de vodca do congelador. Uma semana atrás, houvera uma dúzia de garrafas; agora restavam-lhe quatro. Sabia que andava a beber de mais. Sabia que se devia alimentar melhor e parar de beber, mas tudo o que lhe apetecia era pegar na garrafa e ficar sentado no sofá a emborcá-la. A vodca era boa porque não deixava hálito e, assim, na manhã seguinte, ninguém iria perceber que ele estava de ressaca.

Encheu um copo de vodca, bebeu-o até ao fim e tornou a enchê-lo antes de começar a deambular pela casa vazia. A ausência de Erin provocava-lhe uma grande mágoa e, se por acaso ela de repente lhe aparecesse à porta, Kevin sabia que lhe pediria desculpa e que acabariam por se reconciliar e fazer amor no quarto. Estava desejoso de a abraçar e de lhe dizer o quanto a adorava, mas sabia que ela não iria regressar e que, mesmo amando-a como amava, havia alturas em que ela o zangava a sério. Uma esposa não se ia embora de casa assim sem mais nem menos. Uma esposa não abandonava um casamento assim sem mais nem menos. Só lhe apetecia esbofeteá-la, dar-lhe pontapés e puxar-lhe o cabelo por ser estúpida àquele ponto. Por não pensar senão nela própria. Queria mostrar-lhe que não lhe valia de nada fugir.

Bebeu uma terceira e uma quarta doses de vodca.

Era tudo tão confuso. A casa estava uma autêntica desordem. Havia uma embalagem vazia de pizza no chão da sala de estar e o caixilho da casa de banho estava lascado e a abrir fendas. A porta já não fechava completamente. Kevin assestara-lhe um pontapé numa ocasião em que Erin se trancara lá dentro, a ver se lhe conseguia escapar. Ele estivera a agarrá-la pelos cabelos e a esmurrá-la na cozinha, e ela fora esconder-se na casa de banho. Kevin fora no encalço dela e abrira a porta ao pontapé. Agora, porém, já nem se lembrava de qual fora o motivo da zanga.

Não se lembrava de quase nada que se passara nessa noite. Não se lembrava de lhe ter partido dois dedos, embora isso fosse óbvio.

Estivera uma semana sem a deixar ir ao hospital, à espera de que as nódoas negras que ela tinha na cara pudessem ser disfarçadas com maquilhagem, e Erin fora obrigada a cozinhar e a limpar a casa com uma única mão. Ele comprara-lhe flores para lhe pedir desculpa, jurara-lhe que a amava e que aquilo não tornaria a acontecer e, quando ela tirara o gesso, levara-a a Boston para jantarem no Petronis. Era caro, e Kevin sorrira-lhe enquanto estavam sentados à mesa. Depois do jantar, tinham ido ao cinema e, no caminho de regresso a casa, ele recordava-se de ter pensado no quanto a amava e na sorte que tinha em ter uma mulher assim como esposa.

 

Alex ficara a fazer companhia a Katie até depois da meia-noite, a ouvi-la narrar a história da vida que deixara para trás. Quando o cansaço e o desânimo não lhe permitiram continuar a falar, ele envolveu-a nos seus braços e deu-lhe um beijo de boas-noites. No trajecto de jipe para casa, reflectiu que nunca conhecera ninguém mais corajoso, forte e cheio de recursos que ela.

Passaram grande parte das semanas seguintes juntos - pelo menos, tanto quanto o tempo lhes permitia. Entre o trabalho dele no armazém e os turnos dela no Ivans, em geral isto resumia-se a escassas horas por dia, mas Alex aguardava as visitas que lhe fazia em casa com um entusiasmo que não sentia havia anos. Por vezes, levava Kristen e Josh com ele. Noutras, Joyce punha-o porta fora com uma piscadela de olho, recomendando-lhe que aproveitasse bem o tempo.

Raramente se encontravam em casa de Alex e, quando lá iam, nunca se demoravam. Alex queria convencer-se de que isso se devia à presença dos filhos, que queria levar as coisas com calma, mas, no fundo, apercebia-se de que também tinha que ver com Carly. Embora tivesse a certeza de que amava Katie - e a cada dia que passava essa certeza era maior -, ainda não se sentia preparado para isso. Katie parecia compreender a relutância dele sem lhe dar grande importância, quanto mais não fosse porque era mais fácil estarem sozinhos em casa dela.

Mesmo assim, ainda não tinham feito amor. Apesar de Alex muitas vezes dar por si a imaginar como seria bom, sobretudo nos instantes antes de adormecer, sabia que Katie ainda não estava preparada para isso. Ambos davam mostras de perceber que isso assinalaria o início duma nova fase no seu relacionamento, um certo tipo de estabilidade auspiciosa. Por agora, contentava-se em beijá-la, sentir os braços dela ao seu redor. Adorava o aroma do champô de jasmim que ela usava e a maneira como a mão dela se aninhava na perfeição na sua; a expectativa deliciosa que se criava entre ambos a cada novo toque, como se se estivessem a guardar um para o outro. Alex não tivera relações com ninguém desde a morte da mulher e sentia que, mesmo sem ter consciência disso, estivera à espera de Katie.

Gostava de lhe mostrar as redondezas. Passeavam pela zona costeira e pelas casas históricas, atentos aos pormenores arquitectónicos, e houve um fim-de-semana em que ele a levou aos Orton Plantation Gardens, onde deambularam por entre um sem-fim de roseiras floridas. Depois, foram almoçar num pequeno restaurante com vista para o mar em Caswell Beach, onde deram as mãos por cima da mesa como dois adolescentes.

Desde o jantar em casa dela que Katie não tornara a falar no seu passado, e Alex também se escusara a tocar no assunto. Sabia que, no seu íntimo, ela ainda tinha questões a ultrapassar: até que ponto fora sincera com ele e quanto teria ainda para lhe contar, se seria capaz de confiar nele ou não, o peso que o facto de ela ainda ser casada tinha na relação entre ambos e o que aconteceria se Kevin porventura lhe conseguisse encontrar o paradeiro. Quando tinha a impressão de a ver matutar nestas coisas, recordava-lhe delicadamente que, acontecesse o que acontecesse, com ele, o seu segredo estaria sempre a salvo. Jamais o revelaria a quem quer que fosse.

Havia ocasiões em que olhava para ela e se sentia dominar por uma fúria inexcedível contra Kevin Tierney. O instinto masculino para torturar ou perseguir alguém era-lhe tão estranho como a faculdade de respirar debaixo de água ou de voar; acima de tudo, ansiava pela vingança. Clamava por justiça. Queria que Kevin sentisse a angústia e o terror que Katie sentira, os acessos intermináveis de sofrimento físico atroz. Durante o período que passara no Exército, matara um homem, um soldado que se achava sob o efeito de metanfetaminas e que estava a ameaçar um refém com uma arma. O indivíduo era perigoso e estava fora de controlo e, uma vez a oportunidade surgida, Alex não hesitara em puxar do gatilho. Aquela morte levara-o a reflectir profundamente sobre a sua profissão, mas, no fundo, sabia que havia momentos na vida em que era necessário recorrer à violência. Sabia que, se Kevin algum dia lhe aparecesse pela frente, iria proteger Katie independentemente das consequências. No Exército, fora chegando à conclusão de que havia pessoas que contribuíam para fazer do mundo um lugar melhor e outras que viviam para o destruir. No seu espírito, a decisão para proteger uma mulher inocente como Katie dum psicopata como Kevin era nítida como preto contra branco - uma escolha simples.

Contudo, eram mais os dias em que o espectro do passado de Katie não se intrometia entre ambos, e passavam-nos num ambiente crescente de intimidade descontraída. As tardes na companhia dos filhos eram-lhe particularmente caras. Katie tinha um dom natural para lidar com crianças - quer fosse a ajudar Kristen a dar de comer aos patos do lago, quer a jogar à apanhada com Josh, parecia sempre capaz de se adaptar ao seu ritmo sem qualquer esforço, alternadamente brincalhona, meiga, irrequieta ou tranquila. Sob este aspecto, era muito parecida com Carly, e Alex tinha o pressentimento de que era a uma mulher como Katie que a falecida esposa em tempos se referira.

Nas derradeiras semanas de vida de Carly, Alex mantivera uma presença constante à sua cabeceira. Embora ela passasse a maior parte do tempo a dormir, ele não queria perder os raros instantes em que estava acordada, por muito efémeros que pudessem ser. Nessa altura, o lado esquerdo do corpo dela já estava praticamente paralisado, e ela tinha dificuldade em falar. Contudo, certa noite, durante um breve momento de lucidez quando o dia se preparava para começar a raiar, Carly dirigira-se a ele.

- Quero que faças uma coisa por mim - pediu-lhe ela a custo, humedecendo os lábios gretados. Tinha a voz rouca de estar muito tempo sem falar.

- Tudo o que quiseres.

- Quero que sejas... feliz. -- Nesse instante, Alex vislumbrou-lhe um laivo do seu antigo sorriso, do sorriso confiante e seguro de si que o cativara logo no primeiro encontro.

- Eu sou feliz.

Carly abanou ligeiramente a cabeça.

- Eu refiro-me ao futuro. - Os olhos brilhavam-lhe com a intensidade de dois tições de carvão incandescente no rosto encovado. - Ambos sabemos bem do que estou a falar.

- Eu não sei.

Ela ignorou a resposta dele.

- Casar-me contigo... estar contigo todos os dias e ter filhos teus... foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. És o melhor homem que eu algum dia conheci.

Alex sentiu um nó a apertar-lhe a garganta.

- Eu também - disse ele. - Eu sinto o mesmo.

- Eu sei - tranquilizou-o ela. - E é por isso que isto me custa tanto. Porque tenho consciência de que fracassei...

- Não fracassaste nada - interrompeu-a ele de imediato.

Carly assumiu uma expressão triste.

- Eu amo-te, Alex, e amo os nossos filhos - murmurou ela. - E sinto um desgosto enorme só de pensar que nunca mais irás ser completamente feliz.

- Carly...

- Quero que conheças outra mulher. - Respirou fundo com dificuldade, a caixa torácica frágil a acusar o esforço. - Quero que seja uma pessoa inteligente e generosa... e quero que tu te apaixones por ela, porque não podes ficar sozinho para o resto da vida.

Alex estava incapaz de se pronunciar, mal a conseguia ver por entre as lágrimas.

- Os miúdos precisam duma mãe. - Aos seus ouvidos, isto soou quase como uma súplica. - Alguém que os ame tanto quanto eu, alguém que os trate como se fossem seus próprios filhos.

- Por que é que me estás a falar nesse assunto? -- indagou ele, a voz a faltar-lhe.

- Porque - justificou-se ela - quero acreditar que é possível. - Os dedos ossudos agarraram-se-lhe ao braço com uma intensidade desesperada. - É a única esperança que me resta.

Agora, enquanto via Katie a correr atrás de Kristen e de Josh na margem relvada do lago dos patos, sentiu uma pontada agridoce ao pensar que, afinal, talvez Carly tivesse o seu último desejo satisfeito.

Katie gostava demasiado dele para o seu próprio bem. Sabia que estava a enveredar por um rumo perigoso. Contar-lhe o seu passado parecera-lhe no momento a decisão mais acertada e desabafar permitira-lhe até certo ponto libertar-se do fardo pesado dos seus segredos. Todavia, na manhã seguinte ao seu primeiro jantar juntos, sentiu-se dominar de ansiedade pelo que fizera. Afinal de contas, Alex fora investigador, o que significava que, muito provavelmente e não obstante as promessas que lhe fizera, lhe bastaria fazer um ou dois telefonemas para a denunciar. Poderia entrar em contacto com alguém que, por sua vez, entraria em contacto com outra pessoa e a notícia acabaria por chegar aos ouvidos de Kevin. Katie não lhe contara que o marido era dotado duma capacidade quase sinistra para associar informações aparentemente aleatórias; não lhe mencionara que, de cada vez que um suspeito fugia, Kevin sabia quase sempre onde encontrá-lo. Só de pensar no que fizera era suficiente para a deixar nauseada.

Aos poucos, porém, à medida que as semanas iam passando, sentiu os seus receios a aquietar. Ao invés de lhe fazer mais perguntas quando estavam os dois sozinhos, Alex comportava-se como se as revelações que lhe fizera não tivessem qualquer relação com a vida que levavam em Southport. Os dias foram passando com uma espontaneidade desenvolta, livres de sombras do passado de Katie. Era mais forte que ela: confiava nele. E, quando se beijavam, o que acontecia com uma frequência surpreendente, havia alturas em que sentia os joelhos trémulos e mal se conseguia conter de lhe agarrar na mão e de o levar para o quarto.

No sábado, duas semanas volvidas sobre o primeiro encontro, achavam-se no alpendre fronteiro à casa, os braços de Alex à volta dela, os lábios dele contra os dela. Josh e Kristen tinham ido a uma festa de fim de ano organizada numa piscina pelos pais dum colega de escola de Josh. Mais para o fim do dia, Alex e Katie tencionavam levá-los à praia para um churrasco, mas ainda tinham umas horas por sua conta.

Quando finalmente desfizeram o abraço, Katie suspirou.

- É melhor parares com isso.

- Parar com o quê?

- Tu sabes muito bem o que é que andas a fazer.

- Não consigo evitar.

“Conheço a sensação”, pensou ela.

- Sabes o que é que mais me agrada em ti?

- O meu corpo?

- Sim, também é isso. - Riu-se. - Mas também acho que me fazes sentir especial.

- Tu és especial - salientou ele.

- Estou a falar a sério - insistiu ela. - Mas admira-me que nunca tenhas encontrado outra pessoa. Uma vez que a tua mulher faleceu, quero eu dizer.

- Não andei à procura - justificou-se ele. - Mas, mesmo que houvesse outra pessoa, eu tê-la-ia deixado para poder estar contigo.

- Isso não é bonito de se dizer. - Katie deu-lhe uma cotovelada.

- Mas olha que é verdade. Podes crer que sou esquisito.

- Pois - retorquiu ela -, muito esquisito. Tu só sais com mulheres emocionalmente perturbadas.

- Tu não és emocionalmente perturbada. És forte. És uma sobrevivente. E isso até tem os seus atractivos.

- Acho que só me estás a bajular a ver se eu te arranco a roupa.

- E está a dar resultado?

- Já faltou mais - admitiu ela e, ao ouvir a gargalhada de Alex, lembrou-se uma vez mais do quanto ele gostava dela.

- Estou feliz por teres vindo parar a Southport - confessou ele.

- Hum, hum. - Por um instante, ela deu a impressão de desaparecer dentro de si própria.

- O que foi? - Alex perscrutou-lhe o rosto, subitamente alerta.

Katie abanou a cabeça.

- Foi por um triz... - Soltou um suspiro, entrelaçando os braços em volta do corpo perante aquela recordação. - Por pouco não conseguia.

 

Uma neve quebradiça cobria os jardins de Dorchester, formando uma camada reluzente sobre o mundo para lá da janela. O céu de Janeiro, cinzento na véspera, passara a uma tonalidade de azul-gélido e a temperatura descera abaixo de zero.

Era domingo de manhã, o dia a seguir a Erin ter ido ao cabeleireiro. Deitou uma olhadela à sanita à procura de vestígios de sangue, com a certeza de o ter visto ao urinar. Ainda sentia o rim a latejar, e a dor irradiava-lhe pelo corpo até às omoplatas e à barriga das pernas. Roubara-lhe horas de sono enquanto Kevin ressonava a seu lado, mas, felizmente, não fora tão grave quanto receava. Depois de fechar a porta do quarto atrás de si, foi a coxear até à cozinha, lembrando a si própria de que, daí a alguns dias, o seu tormento chegaria ao fim. Todavia, tinha de agir com cautela a fim de não despertar as suspeitas do marido, tinha de fazer tudo como devia ser. Se ela ignorasse a tareia que lhe pregara na noite da véspera, Kevin ficaria desconfiado. E uma atitude exagerada da sua parte surtiria sobre ele o mesmo efeito. Ao fim de quatro anos de inferno, Erin aprendera as regras.

Kevin entraria ao serviço ao meio-dia, mesmo sendo domingo, e ela sabia que não tardaria a levantar-se. A casa estava fria, e ela vestiu uma sweat-shirt por cima do pijama; de manhã, o marido não se importava, pois em geral a ressaca era tão grande que nem reparava nela. Erin pôs a cafeteira ao lume e o leite e o açúcar em cima da mesa, juntamente com a manteiga e a geleia. Retirou os talheres da gaveta e pousou um copo com água gelada ao lado do garfo. Em seguida, pôs duas fatias de pão dentro da torradeira, embora ainda não fosse altura de as torrar. Pousou os ovos em cima da bancada, onde lhes poderia chegar rapidamente. Posto isto, deitou meia dúzia de fatias de bacon na frigideira. Estavam a crepitar e a estalar quando Kevin entrou finalmente na cozinha. Sentou-se à mesa vazia e bebeu a sua água enquanto ela lhe trazia uma chávena de café.

- Esta noite dormi que nem uma pedra - comentou ele.

- A que horas é que te deitaste?

- Por volta das dez - respondeu-lhe ela. Pousou-lhe o café ao lado do copo vazio. - Não era tarde. Tu tens trabalhado muito, e eu sei que andas cansado.

Kevin tinha os olhos raiados de vermelho.

- Peço desculpa pelo que se passou ontem à noite. Ultimamente, tenho andado sob imensa pressão. Desde que o Terry teve o ataque cardíaco, tenho sido obrigado a trabalhar por dois, e o caso Preston começa esta semana.

- Não tem importância - disse ela. Ainda lhe sentia o álcool no hálito. - O teu pequeno-almoço está quase pronto.

Ao fogão, Erin virou o bacon com a ajuda dum garfo e um borrifo de gordura queimou-lhe o braço, levando-a a esquecer-se temporariamente da dor nas costas.

Quando o bacon ficou estaladiço, colocou quatro fatias no prato de Kevin e duas no seu. Escorreu a gordura para uma lata de sopa, limpou a frigideira com uma toalha de papel e tornou a untá-la com spray para cozinhar. Tinha de se despachar para o bacon não arrefecer. Ligou a torradeira e partiu os ovos. Kevin gostava dos seus nem bem nem mal passados, com a gema intacta, e Erin tornara-se perita na matéria. A frigideira ainda estava quente, e foi um instante enquanto estrelou os ovos. Virou-os uma vez e em seguida fez deslizar dois para o prato dele e um para o seu. O pão saltou da torradeira, e ela pôs duas torradas no prato do marido.

Sentou-se diante dele à mesa porque Kevin gostava de que tomassem o pequeno-almoço juntos. O marido barrou a torrada com manteiga, acrescentou-lhe geleia de uva e em seguida partiu os ovos com o garfo. A gema derramou-se como sangue amarelo, e ele molhou a torrada nela.

- O que é que estás a pensar fazer hoje? - perguntou-lhe ele.

Cortou outro pedaço de ovo com o garfo. Mastigou.

- Estava a pensar lavar as janelas e tratar da roupa - disse-lhe ela.

- Os lençóis estão a precisar de ser lavados, não achas? Depois de tanta brincadeira ontem à noite! - observou ele de olhos arregalados. Tinha o cabelo todo espetado e o canto da boca sujo de ovo.

Katie fez o possível por disfarçar a repulsa. Decidiu então mudar de assunto.

- Achas que vais conseguir uma condenação no caso Preston? - questionou-o ela.

Kevin recostou-se e rodou os ombros antes de se tornar a debruçar sobre o prato.

- Isso vai depender do delegado do Ministério Público. O Higgins é bom, mas nunca se sabe. A Preston arranjou um advogado duvidoso, e ele não vai perder a oportunidade para deturpar todos os factos que puder.

- Tenho a certeza de que te vais sair bem. Tu és mais esperto que ele.

- Veremos. O pior de tudo é que vai ser em Marlborough. O Higgins quer-me preparar na terça-feira à noite, depois do fecho do tribunal.

Erin já estava a par do assunto e limitou-se a assentir com a cabeça. O caso Preston tinha sido alvo de ampla divulgação, e o início do julgamento estava previsto para a segunda-feira seguinte em Marlborough, não em Boston, como seria de esperar. Lorraine Preston era acusada de ter contratado um homem para matar o marido. Douglass Preston era um gestor de fundos de risco bilionário, e a mulher, um membro destacado da alta sociedade, empenhada em obras de mecenato que abrangiam desde museus de arte e orquestras sinfónicas até escolas de bairros degradados. A cobertura mediática prévia ao julgamento fora assombrosa; durante semanas a fio, não passara um único dia sem que surgisse um artigo nas primeiras páginas dos jornais e uma reportagem de destaque nos noticiários nocturnos. Dinheiro a rodos, sexo sórdido, drogas, traição, infidelidade, homicídio e um filho ilegítimo. O julgamento fora transferido para Marlborough precisamente por causa do assédio dos órgãos de comunicação. Kevin fora um dos vários polícias encarregues de investigar o caso, e todos eles teriam de testemunhar na quarta-feira. À semelhança de toda a gente, Erin também vinha a acompanhar as notícias e, de quando em vez, aproveitava para sondar o marido a respeito do caso.

- Sabes o que é que te fazia bem quando o julgamento terminar? - sugeriu-lhe ela. - Uma noite fora. Devíamos vestir-nos a preceito e ir jantar fora. Vais estar de folga na sexta-feira, não vais?

- Fizemos isso no Ano Novo - resmungou Kevin, tornando a molhar a torrada na gema do ovo. Tinha os dedos sujos de geleia.

- Se não quiseres sair, podemos fazer um programa especial aqui em casa. O que te apetecer. Podemos tomar um vinho e talvez acender a lareira, e eu posso vestir uma roupa sexy. Uma coisa mesmo romântica. - Ao ver Kevin levantar o olhar do prato, ela prosseguiu. - O que eu quero dizer é que estou aberta a sugestões - ronronou ela -, e tu precisas dum descanso. Não me agrada nada que andes a trabalhar tanto. Até parece que estão à espera de que resolvas todos os casos que aparecem.

Kevin bateu ao de leve com o garfo no prato, mirando-a com um olhar atento.

- O que é que te deu para estares para aí com essa lamechice toda? O que é que se passa afinal?

Dando uma reprimenda a si própria para se manter fiel ao guião, Erin empurrou a cadeira para trás e levantou-se da mesa.

- Esquece, está bem? - Pegou no prato, e o garfo escorregou, batendo com estrépito na mesa e depois no chão. - Eu só estava a tentar ser compreensiva, uma vez que vais para fora. Mas se não gostas, por mim, tudo bem. Fazemos antes assim... Tu decides o que queres fazer e depois dizes-me, está bem?

Dirigiu-se apressadamente ao lava-louça e abriu a torneira com força. Sabia que o apanhara de surpresa, sentia-o a vacilar entre a cólera e a perplexidade. Pôs as mãos debaixo de água e em seguida levou-as ao rosto. Fez várias respirações curtas, ocultando a cara com as mãos e emitindo um som abafado. Permitiu que os ombros arqueassem ligeiramente.

- Estás a chorar? - inquiriu o marido. Ela ouviu a cadeira dele arrastar para trás. - Mas por que diabo é que estás tu a chorar?

Erin estrangulou a fala, fazendo o possível por que a voz lhe saísse entrecortada.

- Já não sei que mais te hei-de fazer. Não sei o que é que tu queres. Eu sei que este caso é muito importante e que andas sob grande pressão...

Interrompeu-se abruptamente, pressentindo a aproximação dele. Quando o sentiu a tocar-lhe, estremeceu.

- Ora, não se passa nada - disse ele, contrariado. - Não é caso para estares para aí a chorar.

Ela virou-se para ele, fechando os olhos com força, encostando-lhe a cara ao peito.

- Eu só te quero fazer feliz - balbuciou. Limpou o rosto molhado à camisola dele.

- Nós vamos arranjar qualquer coisa gira para fazer, está bem? Vamos ter um belo fim-de-semana. Prometo. Para te compensar pela noite passada.

Erin pôs os braços à volta dele, chegando-o mais a ela, ainda a fungar. Fez outra inspiração ruidosa.

- Peço imensa desculpa. Eu bem sei que dispensavas isto hoje; eu para aqui com esta choradeira toda sem motivo nenhum. Já tens tanto com que te preocupar.

- Não te preocupes que com isso posso eu bem - disse-lhe.

Inclinou a cabeça para o lado, e ela empertigou-se para o beijar, os olhos ainda fechados. Afastou-se momentaneamente para limpar a cara com os dedos e tornou a chegar-se ao marido. Quando se encostou novamente a ele, deu por que começava a ficar com uma erecção. Conhecia bem o poder que a sua vulnerabilidade tinha para o excitar.

- Ainda temos um bocadinho antes de serem horas de eu ir para o emprego - disse ele.

- Eu devia arrumar a cozinha primeiro.

- Isso pode esperar - insistiu Kevin.

Uns minutos decorridos, com o marido a mexer-se em cima dela, Erin emitiu os sons que ele desejava enquanto contemplava a vista para lá da janela do quarto com outros assuntos a ocupar-lhe o pensamento.

Vinha a ganhar aversão ao Inverno, com o frio interminável e o jardim meio submerso na neve, porque não podia sair de casa. Kevin não gostava de a saber a passear pelo bairro, mas deixava-a jardinar nas traseiras porque a casa tinha uma vedação alta. Na Primavera, plantava sempre flores em vasos e vegetais num pequeno canteiro nas traseiras da garagem, onde o sol batia em cheio, sem a sombra dos áceres. No Outono, vestia um pulôver e ia para o jardim ler livros requisitados na biblioteca, à medida que as folhas caídas, castanhas e estaladiças, iam sendo arrastadas pelo vento.

Todavia, o Inverno fazia da sua vida uma prisão, fria, pardacenta e triste. Um suplício. A maior parte dos seus dias eram passados sem pôr os pés fora de casa, pois nunca sabia quando Kevin poderia aparecer. Só sabia o nome duns vizinhos, os Feldman, que moravam em frente a eles. No seu primeiro ano de casada, Kevin raramente lhe batia e por vezes Erin ia passear sem ele. Os Feldman, um casal de idosos, gostavam de fazer jardinagem e, durante esse primeiro ano, era frequente ela deter-se a conversar com ambos. Kevin foi fazendo o possível por pôr fim a esses encontros amigáveis. Agora só via os Feldman quando o marido andava ocupado no emprego e sabia que ele não poderia vir a casa inesperadamente. Assegurava-se de que não havia outros vizinhos a ver e atravessava a rua disparada até à porta deles. Sentia-se como uma espia de cada vez que os visitava. Eles gostavam de lhe mostrar fotografias da infância e da juventude das filhas. Uma falecera e a outra fora morar para longe, e Erin tinha a sensação de que o casal se sentia tão solitário quanto ela própria. No Verão, fazia-lhes tartes de mirtilo e passava o resto da tarde a lavar o chão da cozinha para que Kevin não desse por isso.

Depois de o marido ir para o emprego, limpou as janelas e fez a cama de lavado. Aspirou a casa, limpou o pó e arrumou a cozinha. Enquanto se atarefava, foi ensaiando um tom de voz grave que desse a ideia de que era um homem a falar. Esforçou-se por desviar o pensamento do telemóvel que deixara a carregar durante a noite e em seguida tornara a esconder debaixo do lava-louça. Embora soubesse que talvez nunca mais viesse a ter outra oportunidade melhor que aquela, sentia-se aterrorizada, pois tinha noção da quantidade de coisas que ainda poderiam correr mal.

Na segunda-feira de manhã, fez o pequeno-almoço ao marido, como de costume. Quatro fatias de bacon, ovos nem bem nem mal passados e duas torradas. Kevin estava rabugento e desatento e leu o jornal quase sem abrir a boca. Quando ele se estava a preparar para sair de casa, vestiu um sobretudo por cima do fato, e Erin disse-lhe que ia tomar um duche.

- Deve ser agradável - resmungou ele - acordar todas as manhãs e saber que temos o dia todo por nossa conta.

- Queres alguma coisa especial para o jantar? - inquiriu ela, a fingir que não o tinha ouvido.

Ele ponderou no assunto.

- Lasanha com pão de alho. E uma salada - declarou.

Quando Kevin se foi embora, Erin foi postar-se à janela, a ver o carro dele contornar a esquina. Mal o perdeu de vista, foi buscar o telemóvel, atordoada só de pensar no que viria a seguir.

Quando ligou para a operadora, reencaminharam-na para o serviço ao cliente. Passaram-se cinco minutos, depois seis. Kevin demoraria uns vinte minutos a chegar ao emprego, e ela tinha a certeza de que lhe iria telefonar logo que lá chegasse. Ainda dispunha de tempo. Por fim, um assistente atendeu a chamada e pediu-lhe o nome, a morada de facturação e, como prova de identificação, o apelido de solteira da sogra. A conta estava em nome de Kevin, e Katie assumiu um tom de voz grave para prestar as informações, o tom de voz que andara a ensaiar. Não parecia Kevin, talvez nem sequer uma voz masculina, mas o assistente estava com pressa e não reparou.

- É possível fazer o reencaminhamento de chamadas a partir desta linha? - interpelou-o ela.

- Há um custo adicional, mas fica também com acesso às chamadas em espera e ao voice mail. São apenas...

- Não tem importância. Mas será possível ter o serviço disponível ainda hoje?

- Sim - garantiu o assistente. Ouviu-o a começar a digitar. Demorou bastante tempo até ouvir novamente a voz dele. Avisou-a de que o custo adicional seria cobrado na próxima factura, que seria enviada daí a uma semana, mas que ainda iria corresponder ao montante total do mês, embora o serviço ficasse activo naquele mesmo dia. Erin disse-lhe que aceitava. Ele pediu-lhe mais algumas informações e em seguida disse-lhe que o assunto já estava resolvido e que ela poderia aceder de imediato ao serviço. Erin desligou e deitou uma olhadela ao relógio. O telefonema demorara dezoito minutos.

Kevin ligou-lhe da esquadra três minutos decorridos.

Logo que despachou o telefonema do marido, ligou para o Super Shuttle, um serviço de transporte de passageiros para o aeroporto e para a estação de caminhos-de-ferro. Fez uma reserva para o dia seguinte. Em seguida, foi buscar o telemóvel e activou-o. Ligou para um cinema da zona, que sabia ter gravador de chamadas, a fim de ter a certeza de que estava tudo a funcionar devidamente. Posto isto, activou o serviço de reencaminhamento de chamadas do telefone fixo e transferiu-as para o número do cinema. Como teste, marcou o número de casa no telemóvel. Foi com o coração num alvoroço que ouviu o telefone fixo a chamar. Ao segundo toque, o telefone calou-se, e ela ouviu o atendedor de chamadas do cinema. com a sensação de qualquer coisa a libertar-se dentro dela e as mãos trémulas, desligou o telemóvel e tornou a guardá-lo dentro da caixa dos esfregões. Voltou a estabelecer a linha do fixo.

Kevin telefonou-lhe novamente quarenta minutos mais tarde.

Passou o resto da tarde num estado de aturdimento, sempre ocupada numa tentativa de se abstrair das preocupações. Passou-lhe duas camisas a ferro e foi buscar duas malas à garagem. Tirou peúgas lavadas da gaveta e engraxou-lhe o outro par de sapatos pretos. Escovou-lhe um fato, o preto que ele usava nos julgamentos, e escolheu-lhe três gravatas. Esfregou a casa de banho até o chão ficar a brilhar e limpou os rodapés com vinagre. Limpou o pó a todos os bibelôs de porcelana que tinha numa vitrina e em seguida começou a preparar a lasanha. Cozeu a massa, fez um molho à base de carne picada e pôs uma camada de queijo por cima. Pincelou quatro pães de fermento com manteiga, alho e orégãos e partiu todos os ingredientes de que precisava para a salada em pedaços miúdos. Tomou um duche, vestiu uma roupa sensual e, às cinco horas, levou a lasanha ao forno.

Quando o marido chegou a casa, tinha o jantar à sua espera. Comeu a lasanha e conversou sobre o dia que tivera. Quando lhe pediu uma segunda dose, Erin levantou-se da mesa e foi buscar-lha. Depois do jantar, ele bebeu a sua vodca e viram Seinfeld e Eu, Ela e o Pai na televisão. A seguir, havia um jogo dos Celtics contra os Timberwolves, e Erin foi sentar-se ao lado do marido, com a cabeça encostada no seu ombro, a assistir ao jogo. Kevin acabou por adormecer diante do televisor, e ela foi para o quarto. Estendeu-se em cima da cama, o olhar cravado no tecto, até que o marido finalmente acordou e entrou a cambalear no quarto, deixando-se cair pesadamente em cima da cama. Adormeceu de imediato, com um braço estendido por cima dela, e o ressonar dele soou-lhe aos ouvidos como um aviso.

Na terça-feira de manhã, preparou-lhe o pequeno-almoço. Kevin arrumou a roupa e os artigos de higiene dentro da mala e ficou finalmente pronto para ir para Marlborough. Levou a mala para o automóvel e depois voltou à porta da rua, onde tinha Erin à sua espera. Despediu-se dela com um beijo.

- Chego a casa amanhã à noite - avisou-a.

- vou ter saudades tuas - disse-lhe ela, inclinando-se para junto dele e pondo-lhe os braços em redor do pescoço.

- Lá pelas oito já deverei estar em casa.

- vou cozinhar qualquer coisa que dê para aquecer quando chegares a casa - lembrou-se ela. - E se fosse um chili?

- O mais certo é jantar pelo caminho.

- Tens a certeza? Achas que ficas bem com comida rápida? Faz-te tão mal.

- Logo veremos - disse Kevin.

- Eu faço, em qualquer dos casos - teimou ela. - Só por via das dúvidas.

O marido beijou-a quando ela se chegou a ele.

- Eu ligo-te - disse-lhe, as mãos a deslizarem-lhe pelas pernas.

- Eu sei - respondeu ela.

Uma vez na casa de banho, despiu a roupa, colocou-a em cima da sanita e em seguida enrolou o tapete. Tinha posto um saco do lixo no lavatório e, uma vez despida, observou-se ao espelho. com a ponta dos dedos, aflorou as nódoas negras que tinha no peito e no pulso. Tinha as costelas salientes, e as olheiras profundas davam-lhe um aspecto encovado. Sentiu-se inundar por uma onda de fúria misturada com tristeza só de o imaginar a chamar por ela pela casa quando regressasse. A gritar pelo nome dela enquanto se encaminhava para a cozinha. A procurá-la no quarto, na garagem, no alpendre das traseiras e na cave. “Onde é que tu estás?”, gritaria ele. “Onde é que te meteste?”

Desvairada, começou a cortar o cabelo com a tesoura. Dez centímetros de cabelo louro caíram no saco do lixo. Apanhou outro bocado e, com ele bem apertado entre os dedos, a dizer a si própria para ver bem a medida, cortou-o. Sentia um aperto no peito.

- Odeio-te! - sibilou ela, com a voz trémula. - Sempre a rebaixares-me! - Continuou a cortar o cabelo, os olhos toldados de lágrimas alimentadas a raiva. - A bater-me porque eu tive de ir às compras! - Lá se foi mais cabelo. Esforçou-se por se acalmar, por acertar as pontas. - Obrigaste-me a roubar-te dinheiro da carteira e encheste-me de pontapés só porque estavas bêbado!

Tremia agora dos pés à cabeça. Madeixas irregulares de cabelo reuniam-se em volta dos seus pés.

- Obrigaste-me a esconder-me de ti! Bateste-me com tanta força que até vomitei!

Fechou a tesoura com um estalido.

- Eu amava-te! - confessou por entre soluços. - Tu prometeste que nunca mais me irias bater e eu acreditei em ti! Eu queria acreditar em ti! - Ia cortando e chorando ao mesmo tempo e, quando o cabelo ficou todo da mesma altura, tirou a tinta do esconderijo por debaixo do lavatório. Castanho-escuro. Em seguida, meteu-se debaixo do chuveiro e molhou o cabelo. Verteu o conteúdo da embalagem para o cabelo e começou a massajar a tinta no cabelo. Passou o tempo de actuação de olhar cravado no espelho, num pranto incontrolável. Quando o tempo terminou, tornou a enfiar-se debaixo do chuveiro e passou o cabelo por água. Aplicou o champô, depois o amaciador e viu-se ao espelho. com todo o cuidado, aplicou rímel nas sobrancelhas para as escurecer. Pôs bronzeador na pele para a deixar mais morena. Vestiu umas calças de ganga e um pulôver e contemplou a imagem que o espelho lhe devolvia.

Viu uma desconhecida de cabelo curto e escuro a olhar para ela.

Limpou a casa de banho escrupulosamente, assegurando-se de que não ficava nem um cabelo no lavatório ou no chão. Deitou as madeixas que restavam no saco do lixo, juntamente com a embalagem da tinta. Esfregou o lavatório e a bancada e atou o saco. Por fim, aplicou colírio nos olhos, a tentar disfarçar os vestígios de lágrimas.

Não tinha tempo a perder. Arrumou os seus pertences dentro duma mochila. Três pares de calças de ganga, duas sweat-shirts. Cuecas e sutiãs. Meias. Escova e pasta dos dentes. Uma escova de cabelo. Rímel para as sobrancelhas. As poucas jóias que possuía. Queijo, bolachas-dágua-e-sal, nozes e passas. Um garfo e uma faca. Foi até ao alpendre e desenterrou o dinheiro que escondera dentro do vaso das flores. Foi buscar o telemóvel à cozinha. E, por fim, os documentos de identificação de que precisava para começar uma nova vida, documentos que roubara a pessoas que confiavam nela. Detestara ver-se obrigada a fazer aquilo e sabia que era reprovável, mas não tivera outro remédio e rezara a Deus por que lhe perdoasse. Agora era tarde de mais para voltar atrás.

Revira mentalmente aquele cenário mil e uma vezes e despachou-se rapidamente. A maioria dos vizinhos estava no emprego. Tivera o cuidado de os vigiar pela manhã e conhecia-lhes as rotinas. Não queria que ninguém a visse ir-se embora, não queria correr o risco de que alguém a pudesse reconhecer.

Enfiou um chapéu, vestiu um casaco, pôs um cachecol e calçou umas luvas. Amassou e moldou a mochila até ficar redonda e encafuou-a por debaixo da sweat-shirt. Até ficar com aspecto de grávida. Vestiu o sobretudo, que era avantajado o suficiente para lhe disfarçar a barriga.

Fitou o seu reflexo no espelho. Baixa, cabelo escuro. Pele acobreada. Grávida. Pôs uns óculos e, a caminho da porta, ligou o telemóvel e activou o reencaminhamento das chamadas para o telefone fixo. Saiu de casa pela cancela lateral. Enveredou pela ruela estreita que separava a sua casa da dos vizinhos, seguindo a vedação, e depositou o saco do lixo no caixote deles. Sabia que ambos trabalhavam, que não estavam em casa àquela hora. E o mesmo se aplicava à casa situada nas traseiras. Atravessou o jardim e ladeou a parede lateral da casa, chegando por fim ao passeio gelado.

Entretanto, começara uma vez mais a nevar. No dia seguinte, recordou-se, os vestígios de pegadas já teriam desaparecido.

Ainda lhe faltava percorrer seis quarteirões, mas estava quase. com a cabeça sempre baixa, foi seguindo em diante, esforçando-se por ignorar o vento cortante, tomada por uma sensação simultânea de atordoamento, liberdade e medo. Na noite do dia seguinte, tinha a certeza, Kevin iria percorrer a casa, a chamar por ela, e não iria encontrá-la porque já não estaria lá. E, nessa mesma noite, daria início à sua caçada.

com flocos de neve a revolutear à sua volta, Katie achou-se num cruzamento, mesmo à porta dum restaurante barato à beira da estrada. Ao longe, viu a carrinha azul da Super Shuttle a contornar a esquina e sentiu o coração a alvoroçar-se-lhe no peito. Foi então que o telemóvel tocou.

Sentiu-se empalidecer. Os automóveis passavam por ela a grande velocidade, os pneus a galgarem ruidosamente a neve lamacenta. Ao longe, a carrinha mudou de faixa, virando para a berma da estrada. Tinha de atender a chamada; não lhe restava outra alternativa. Mas a carrinha estava a chegar e fazia muito barulho na estrada. Se atendesse agora, ele iria perceber que saíra de casa. Adivinharia que o tinha deixado.

O telemóvel tocou uma terceira vez. A carrinha parou num sinal vermelho. A um quarteirão de distância.

Katie deu meia-volta, entrou no restaurante, onde, apesar de abafado, mesmo assim ainda havia ruído - uma sinfonia de pratos a tinir e de gente a falar; mesmo à sua frente, ficava o balcão da recepcionista, onde um cliente estava a pedir uma mesa. Sentiu uma agonia súbita. Rodeou o telemóvel com as mãos em concha e voltou-se para a janela, a rezar para que ele não ouvisse a agitação nas suas costas. Quando premiu a tecla de atender, sentiu a força a faltar-lhe nas pernas.

- Por que é que demoraste tanto a atender? - interrogou-a ele.

- Estava no duche - respondeu-lhe ela. - O que é que se passa?

- Fiz-me à estrada há uns dez minutos - disse ele. - Como é que estás?

- Estou bem - disse ela.

Kevin teve um momento de hesitação.

- A tua voz está esquisita - observou ele. - Há algum problema com o telefone?

Ao fundo da estrada, o semáforo abriu. A carrinha da Super Shuttle fez sinal a indicar que se preparava para encostar. Katie rezou por que esperasse por ela. Nas suas costas, o restaurante quedara-se num silêncio inesperado.

- Não faço ideia, mas eu estou-te a ouvir bem - afirmou ela. - Deve ser alguma falha da rede daí onde estás. Como é que está a correr a viagem?

- Desde que saí da cidade até não tem corrido mal. Embora nalguns sítios ainda se veja gelo na estrada.

- Isso é perigoso. Tem cuidado.

- Não há problema - tranquilizou-a ele.

- Eu sei - respondeu ela. A carrinha estava a estacionar na berma, o motorista de pescoço empertigado à procura dela. - Detesto ter de fazer isto, mas não te importas de me ligar daqui a pouco? Ainda tenho amaciador no cabelo e quero tirá-lo.

- Pronto, está bem - resmungou ele. - Então, já te ligo.

- Amo-te - disse-lhe Katie.

- E eu a ti.

Esperou que ele desligasse antes de carregar na tecla do seu telemóvel. Posto isto, abandonou o restaurante e apressou-se a dirigir-se à carrinha.

No terminal das camionetas, comprou um bilhete para Filadélfia, repugnada com a insistência do indivíduo que vendia os bilhetes em meter conversa com ela.

Ao invés de esperar no terminal, atravessou a rua para ir tomar o pequeno-almoço. O custo do transporte na carrinha e do bilhete de camioneta consumira-lhe quase metade das poupanças que levara um ano a amealhar, mas estava com fome e decidiu pedir panquecas com salsichas e leite. Alguém deixara um jornal esquecido no cubículo, e Katie forçou-se a lê-lo. Kevin telefonou-lhe enquanto estava a comer e, quando se tornou a queixar de que a voz dela lhe parecia estranha, ela sugeriu-lhe que devia ser da tempestade.

Vinte minutos depois, subiu para a camioneta. Uma senhora de idade apontou-lhe para a barriga quando ela vinha a descer a coxia.

- Quanto tempo é que ainda lhe falta? - perguntou-lhe a senhora.

- Mais um mês.

- É o primeiro.

- É - respondeu-lhe Katie, mas tinha a boca tão seca que lhe custava a falar. Seguiu em diante e foi sentar-se mais para o fundo da camioneta. Os lugares à sua frente e atrás dela foram sendo ocupados. Do outro lado da coxia, estava um jovem casal. Adolescentes, abraçados um ao outro, ambos a ouvir música. As suas cabeças oscilavam para cima e para baixo.

Fixou o olhar para lá da janela à medida que a camioneta abandonava o terminal, com a sensação de que estava a viver um sonho. Na auto-estrada, Boston começou a desaparecer ao longe, cinzenta e fria. Doía-lhe a zona lombar enquanto a camioneta avançava pela estrada fora, aumentando os quilómetros que a separavam de casa. Continuava a nevar, e os automóveis salpicavam lama à medida que ultrapassavam a camioneta.

Sentia necessidade de conversar. Queria poder dizer a alguém que estava a fugir de casa porque o marido lhe batia e que não podia chamar a polícia porque a polícia era ele. Queria poder dizer a alguém que estava quase sem dinheiro e que nunca mais poderia usar o seu verdadeiro nome. Se usasse, ele acabaria por encontrá-la, levá-la para casa e bater-lhe, só que daquela feita não iria parar. Queria poder dizer a alguém que estava aterrorizada porque não sabia onde iria dormir nessa noite nem o que iria comer quando ficasse sem dinheiro.

Sentia o ar frio na janela à medida que as cidades iam passando por eles. O tráfego na auto-estrada abrandou e depois tornou a adensar. Não sabia o que haveria de fazer. Os seus planos tinham terminado na camioneta e não tinha ninguém a quem telefonar a pedir ajuda. Estava sozinha e não tinha nada para além dos pertences que levava consigo.

Quando faltava uma hora para chegar a Filadélfia, o telemóvel tocou outra vez. Katie envolveu-o na mão em concha e falou com ele. Antes de desligar, Kevin prometeu que lhe tornaria a telefonar antes de adormecer.

Chegou a Filadélfia ao final da tarde. Fazia frio, mas não nevava. Os passageiros foram descendo da camioneta, mas ela deixou-se ficar para trás, à espera de que todos saíssem. Nos lavabos, retirou a mochila e em seguida foi para a sala de espera, onde se sentou num banco corrido. Sentiu o estômago a protestar e cortou um pedaço de queijo, que comeu com bolachas-dágua-e-sal. Sabia que tinha de poupar na comida e, por isso, apesar de ficar com fome, guardou o resto. Por fim, comprou um mapa da cidade e saiu para a rua.

O terminal não estava localizado numa zona perigosa da cidade. Katie viu o centro de conferências e o Teatro Trocadero, que lhe transmitiram uma sensação de segurança, mas também a certeza de que um quarto de hotel ali estava completamente fora das suas posses. O mapa indicava que estava próximo de Chinatown e, à falta dum plano melhor, encaminhou-se nessa direcção.

Três horas decorridas, encontrou finalmente um sítio onde pernoitar. Era sórdido e tresandava a tabaco, e o quarto dela mal chegava para a pequena cama que lá tinham instalado. Não havia nenhum candeeiro, apenas uma lâmpada solitária pendurada no tecto, e a casa de banho comum ficava ao fundo do corredor. As paredes estavam pintadas de cinzento e manchadas de humidade, e as janelas tinham grades. Nos quartos adjacentes, ouvia pessoas a falar numa língua que lhe era desconhecida. No entanto, era o máximo que a sua carteira lhe permitia. Tinha dinheiro que chegasse para ficar ali três noites, quatro se porventura fosse capaz de se contentar com a pouca comida que trouxera de casa.

Sentou-se na beira da cama, a tremer, com medo daquele lugar, com medo do futuro, a mente num turbilhão. Tinha vontade de urinar, mas não queria sair do quarto. Tentou convencer-se de que estava a viver uma aventura e de que acabaria tudo bem. Por muito absurdo que pudesse parecer, deu por ela a interrogar-se se teria feito bem ao fugir de casa; esforçou-se por afastar do pensamento a sua cozinha, o seu quarto e tudo quanto deixara para trás. Sabia que podia comprar um bilhete de regresso a Boston antes de Kevin dar pela sua partida. Contudo, aparecer-lhe-ia à frente com o cabelo curto e castanho-escuro, e não havia nenhuma justificação para isso.

Lá fora, o Sol já se pusera, mas as luzes da rua brilhavam através do vidro sujo. Ouviu buzinas a apitar e espreitou pela janela. Ao nível da rua, todos os letreiros estavam em chinês e alguns estabelecimentos ainda estavam abertos. Ouvia conversas a elevarem-se no escuro, e havia sacos de plástico cheios de lixo empilhados na rua. Achava-se numa cidade estranha repleta de gente estranha. Não era capaz de fazer aquilo, pensou. Não tinha força para tanto. Daí a três dias, a menos que arranjasse um emprego, deixaria de ter um sítio onde dormir. Se vendesse as jóias, poderia pagar mais uma noite, mas, e depois?

Estava exausta e sentia as costas a latejar de dores. Deitou-se na cama e adormeceu quase de imediato. Kevin telefonou-lhe mais tarde, e ela acordou com o toque do telemóvel. Teve de recorrer a toda a coragem que tinha para manter a voz calma, para não se atraiçoar, mas não conseguiu disfarçar o cansaço da voz e sabia que Kevin a julgava na cama de ambos. Quando ele desligou, não tardou a adormecer outra vez.

De manhã, ouviu pessoas a andar no corredor, em direcção à casa de banho. Deparou com duas chinesas diante dos lavatórios; viu bolor esverdeado nas juntas entre os azulejos e papel higiénico molhado no chão. A porta do cubículo da sanita não fechava no trinco, e Katie teve de a segurar com a mão.

De volta ao quarto, comeu queijo com bolachas-dágua-e-sal ao pequeno-almoço. Quis tomar um duche, mas apercebeu-se de que se esquecera de trazer champô e gel de banho e, como tal, não valia a pena. Mudou de roupa e escovou os dentes e o cabelo. Tornou a arrumar a mochila, relutante em deixá-la no quarto na sua ausência, pô-la a tiracolo e desceu a escada. Encontrou o mesmo recepcionista que lhe entregara a chave ao balcão e perguntou-se se ele passaria a vida ali. Pagou outra noite e pediu que lhe reservasse o quarto.

Lá fora, o céu estava azul e as ruas estavam secas. Reparou que já quase não sentia dores nas costas. Fazia frio, mas não tanto como em Boston e, apesar dos receios que a afligiam, Katie deu por ela a sorrir. Conseguira, recordou a si própria. Fugira, e Kevin achava-se a quilómetros de distância, sem fazer a mais pequena ideia do seu paradeiro. Nem sequer sabia que ela se viera embora. Haveria de lhe telefonar mais algumas vezes, posto o que ela se livraria do telemóvel e nunca mais na vida tornaria a falar com ele.

Endireitou-se e inspirou o ar fresco. O dia parecia-lhe quase novo, repleto de possibilidades infinitas. Hoje, disse a si própria, iria arranjar um emprego. Hoje, decidiu, iria começar a viver o resto da sua vida.

Já fugira em duas ocasiões anteriores e agradava-lhe pensar que aprendera à custa dos seus erros. Da primeira vez, estava casada havia pouco mais dum ano, depois de Kevin lhe dar uma tareia com ela agachada a um canto do quarto. As facturas tinham chegado, e ele zangara-se com ela por ter subido o termostato para aquecer a casa. Quando por fim se cansara de lhe bater, agarrara nas chaves e saíra de casa para ir comprar mais álcool. Sem pensar duas vezes, Katie pegara no casaco e saíra porta fora a coxear. Horas volvidas, debaixo de neve e sem ter para onde ir, acabara por telefonar ao marido, e este fora buscá-la.

Da vez seguinte, ele só a conseguira alcançar já ela ia em Atlantic City. Roubara-lhe dinheiro da carteira e comprara um bilhete de camioneta, mas Kevin descobrira-a uma hora após a sua chegada à cidade. Conduzira o automóvel a uma velocidade vertiginosa, com a certeza de que ela tinha fugido para o único sítio onde ainda tinha amigos. Trouxera-a todo o caminho de volta algemada ao banco traseiro do veículo. Parara uma vez, estacionando nas proximidades dum edifício de escritórios fechado, e agredira-a. Fora dessa vez que a arma fizera a sua aparição.

Depois disso, dificultou-lhe qualquer hipótese de fuga. Guardava o dinheiro num cofre fechado à chave e começara a seguir-lhe o rasto de forma obsessiva. Katie sabia que ele seria capaz de fazer tudo ao seu alcance para a encontrar. Tinha tanto de alienado como de persistente e zeloso, e em geral a intuição não o enganava. Haveria de acabar por descobrir para onde ela fora, disso tinha a certeza; iria a Filadélfia à procura dela. Katie tinha um certo avanço, mas mais nada. Sem dinheiro para começar uma nova vida noutro lugar, só lhe restava manter-se atenta não fosse ele aparecer-lhe pela frente. Não poderia ficar muito mais tempo em Filadélfia.

Arranjou trabalho como empregada de mesa ao seu terceiro dia na cidade. Inventou um nome e um número da segurança social. Sabia que acabariam por desmascará-la, mas nessa altura já ela estaria longe dali. Alugou um quarto na zona mais afastada de Chinatown. Trabalhou durante duas semanas, amealhou algum dinheiro de gorjetas até arranjar outro emprego e foi-se embora sem se dar à maçada de ir buscar o cheque do salário. Não valia a pena: sem um documento de identificação, não poderia levantá-lo. Trabalhou mais três semanas num restaurante barato e acabou por se mudar de Chinatown para um motel decrépito que alugava quartos à semana. Embora estivesse localizado numa zona ainda mais degradada da cidade, o quarto era mais caro, mas tinha casa de banho e chuveiro privativos, e Katie achou que valia a pena, quanto mais não fosse porque assim gozaria dalguma privacidade e teria um sítio onde deixar as suas coisas. Poupara algumas centenas de dólares, mais que a quantia que tinha quando partira de Dorchester, mas ainda não chegava para começar uma nova vida. Uma vez mais, foi-se embora sem receber o cheque do salário, sem sequer se despedir. Uns dias decorridos, arranjou mais um emprego em mais um restaurante barato. Aí, disse ao gerente que se chamava Eriça.

As mudanças constantes de emprego e de residência tinham-lhe aguçado a atenção, e foi ali, apenas quatro dias depois de ter para lá entrado, que contornou uma esquina a caminho do emprego e deparou com um automóvel que lhe pareceu algo deslocado daquele cenário. Deteve-se.

Até hoje estava sem saber como fora que se apercebera disso, para além do facto de que o veículo estava luzidio o suficiente para reflectir a luz matinal. Foi então que reparou em movimento no lugar do condutor. O motor não estava a trabalhar, e Katie estranhou ver alguém sentado dentro dum automóvel sem o aquecedor ligado numa manhã tão fria. As únicas pessoas que faziam isso, sabia ela, eram as que estavam à espera dalguém.

Ou a vigiar alguém.

Kevin.

Soube de imediato que era ele, soube-o com uma certeza que a surpreendeu, arrepiou caminho e escondeu-se à esquina, a rezar para que ele não tivesse olhado para o espelho retrovisor. A rezar para que ele não a tivesse visto. Logo que perdeu o automóvel de vista, desatou numa correria de volta ao motel, o coração a martelar-lhe no peito. Havia anos que não corria tão depressa, mas tinha as pernas fortalecidas de andar a pé e movimentava-se com desenvoltura. Um quarteirão. Dois. Três. Olhava constantemente por cima do ombro, mas Kevin não veio no seu encalço.

Não fazia diferença. Ele sabia que ela ali estava. Sabia onde ela trabalhava. Iria descobrir se ela faltasse ao trabalho. Numa questão de escassas horas, iria descobrir onde estava hospedada.

Uma vez no quarto, atirou os seus pertences para dentro da mochila e, uns minutos volvidos, estava a sair porta fora. Encaminhou-se para o terminal das camionetas. Mas iria levar uma eternidade a lá chegar. Uma hora, talvez mais, a pé, e não tinha tempo. Seria o primeiro lugar aonde Kevin se dirigiria quando percebesse que ela faltara ao emprego. Deu meia-volta, regressou ao motel e pediu ao recepcionista que lhe chamasse um táxi. O táxi demorou dez minutos a chegar. Os dez minutos mais longos da vida dela.

No terminal das camionetas, consultou apressadamente os horários e optou por uma camioneta para Nova Iorque. Tinha partida marcada para daí a meia hora. Enquanto esperava pelo embarque, foi esconder-se nos lavabos das senhoras. Quando entrou na camioneta, acocorou-se no assento. Não demorou muito a chegar a Nova Iorque. Consultou uma vez mais os horários e comprou um bilhete para Omaha.

Ao anoitecer, desceu da camioneta algures no Ohio. Dormiu no terminal e, na manhã seguinte, dirigiu-se a um local de paragem de camiões. Ali conheceu um camionista que ia entregar materiais a Wilmington, na Carolina do Norte.

Uns dias decorridos, após vender as poucas jóias que tinha, foi vagueando até Southport e encontrou um chalé. Depois de pagar o primeiro mês de renda, ficou sem dinheiro para comprar comida.

 

Estavam em meados de Junho, e Katie vinha a sair do Ivans depois dum turno da noite muito agitado quando deparou com uma presença familiar à porta.

- Ora viva! - Jo acenou-lhe do candeeiro da rua onde Katie prendera a bicicleta.

- O que é que estás aqui a fazer? - indagou ela, acercando-se da amiga para a cumprimentar com um abraço. Era a primeira vez que encontrava Jo na cidade e, sem saber explicar ao certo porquê, estranhou o facto de a ver fora do contexto habitual.

- Vim cá para te ver. Por onde é que tens andado, miúda?

- Eu poderia fazer-te a mesma pergunta.

- Tenho estado por cá o suficiente para saber que há algumas semanas que andas a sair com o Alex. - Jo piscou-lhe o olho. - Mas nunca fui o género de amiga que gosta de impor a sua presença. Achei que os dois estavam a precisar de ficar a sós.

Katie não se conseguiu impedir de corar.

- Como é que descobriste que eu aqui estava?

- Não descobri. Mas, quando não vi nenhuma luz acesa em tua casa, decidi arriscar. - Jo encolheu os ombros e em seguida deitou uma olhadela para trás das costas. - Tens alguma coisa planeada? Apetece-te ir tomar uma bebida antes de voltares para casa? - Ao dar pela hesitação de Katie, decidiu insistir. - Eu sei que já é tarde. Só uma bebida, prometo. Depois deixo-te ir para a cama.

- Só uma bebida - acedeu ela.

Uns minutos decorridos, entraram nopub, um dos locais privilegiados pelos moradores da zona, revestido com painéis de madeira escura que apresentavam as marcas de anos de utilização e com um espelho muito comprido atrás do balcão. Era uma noite sossegada; havia apenas umas mesas ocupadas, e as duas optaram por se sentar a um recanto ao fundo da sala. Ao constatar que não havia nenhum empregado a servir à mesa, Katie pediu dois copos de vinho ao balcão e trouxe-os para junto de Jo.

- Obrigada - disse-lhe a amiga, pegando no seu copo. - Da próxima vez, fica por minha conta. - Recostou-se na cadeira.

- Então, tu e o Alex, ha?

- Tens a certeza de que é sobre isso que queres conversar comigo? - inquiriu Katie.

- bom, tendo em conta que a minha vida amorosa está uma autêntica desgraça, vejo-me obrigada a vivê-la por interposta pessoa. Mas parece que as coisas te estão a correr bem. Na semana passada, ele esteve em tua casa, o quê... umas duas ou três vezes? E na semana anterior, foi a mesma coisa, não foi?

“Por acaso, foram mais”, pensou Katie.

- Sim, deve ter sido isso.

Jo revirou o pé do copo de vinho entre os dedos.

- Quem diria!

- Quem diria o quê?

- Se eu não soubesse o que sei, ainda iria pensar que o caso era sério. - Arqueou uma sobrancelha.

- Nós ainda estamos na fase de nos conhecermos um ao outro - salientou Katie, sem saber exactamente aonde Jo pretendia chegar com aquele raciocínio.

- É assim que todas as relações começam. Ele gosta de ti, tu gostas dele. E, a partir daí, as coisas seguem o seu curso natural.

- Foi para isso que quiseste vir até aqui? - interpelou-a Katie, a esforçar-se por conter a impaciência. - Para ouvir todos os pormenores?

- Todos, todos, não. Só os mais picantes.

Katie revirou os olhos.

- E que tal se conversássemos antes a respeito da tua vida amorosa?

- Porquê? Apetece-te ficar deprimida?

- Quando foi a última vez que saíste com um homem?

- com um homem que valesse a pena? Ou só com um homem?

- com um homem que valesse a pena.

Jo teve um momento de hesitação.

- Vejo-me forçada a confessar que já lá vão uns bons anos.

- Então, e porquê?

Jo molhou a ponta do dedo no vinho e em seguida deslizou-a pela beira do copo, produzindo um zumbido. Por fim, ergueu o olhar.

- É difícil encontrar um homem que valha a pena - observou ela com ar pesaroso. - Nem toda a gente tem a mesma sorte que tu.

Sem saber ao certo como haveria de reagir às palavras da amiga, Katie acariciou-lhe a mão ao de leve.

- O que é que se passa? - indagou ela com voz meiga. - Por que é que quiseste conversar comigo?

Jo varreu o pub vazio com o olhar, a procurar inspiração no ambiente ao redor.

- Nunca te sentas a pensar no significado da vida? Se não existe mais nada para além do que vemos ou se haverá algo mais vasto? Ou se não estarás destinada para algo melhor?

- Acho que toda a gente faz isso - respondeu-lhe Katie com curiosidade crescente.

- Quando eu era miúda, costumava fingir que era uma princesa. Uma princesa boa, quero eu dizer. Uma daquelas pessoas que fazem sempre o que está certo e que têm a capacidade para melhorar a vida dos outros à espera de que, no fim, todos vivam felizes para sempre.

Katie assentiu com a cabeça. Ainda se recordava de fazer o mesmo, contudo, uma vez que continuava sem perceber aonde Jo pretendia chegar, não disse nada.

- Acho que é por isso que eu escolhi esta profissão. Quando comecei, o meu único desejo era ajudar as pessoas. Via-as debaterem-se com a perda dalgum ente querido... um pai, um filho, um amigo... e sentia o meu coração transbordar de compaixão por elas. Tentava fazer tudo ao meu alcance para as ajudar a superar a perda. Contudo, à medida que o tempo foi passando, fui-me apercebendo de que o meu poder era muito limitado. Que, no final, têm de ser as próprias pessoas a querer seguir com a vida em diante... que o primeiro passo, a centelha motivadora, tem de vir do seu íntimo. E, quando isso acontece, abre portas inesperadas.

Katie respirou fundo, à procura duma lógica nas palavras de Jo.

- Não percebo o que é que me estás a tentar dizer.

Jo fez rodopiar o vinho, examinando o pequeno redemoinho que se formava dentro do copo. O seu tom de voz assumiu então uma gravidade inesperada.

- Estou a falar de ti e do Alex.

Katie não foi capaz de disfarçar a surpresa.

- De mim e do Alex?

- Sim - confirmou ela. - Ele contou-te que a mulher faleceu, não contou? A dificuldade que ele... que toda a família... teve em ultrapassar a morte dela?

Katie desviou o olhar para o fundo da sala, sentindo um desconforto súbito.

- Sim... - hesitou ela.

- Então, peço-te que tenhas cuidado com eles - disse Jo, a sua voz muito séria. - com todos eles. Não lhes dês nenhum desgosto.

No silêncio constrangido que se seguiu, Katie deu por ela a recordar a primeira conversa de ambas a respeito de Alex.

“Vocês já alguma vez saíram juntos?”, recordava-se de ter perguntado à amiga.

“Sim, mas talvez não no sentido em que possas estar a pensar. E que fique desde já bem claro: foi há muito tempo e entretanto cada um foi à sua vida.”

Na altura, partira do princípio de que isso significava que Jo e Alex tinham saído juntos no passado, agora, porém...

De repente, a conclusão tornou-se-lhe óbvia. A terapeuta que Alex mencionara, que o atendera a ele e aos filhos no seguimento da morte de Carly... deveria ter sido Jo. Katie sentou-se mais direita.

- Tu acompanhaste o Alex e os filhos, não foi? Depois da morte da Carly, quero eu dizer.

- Prefiro não responder a isso - afirmou Jo. O tom da sua voz era calmo e comedido. Tal e qual uma terapeuta. - Só te posso dizer que todos eles... representam muito para mim. E, se não pretendes vir a ter um eventual futuro com eles, acho que te devias afastar já. Antes que seja tarde de mais.

Katie sentiu o rubor a subir-lhe às faces. Parecia-lhe incorrecto... arrogante, mesmo... da parte de Jo falar com ela assim.

- Não creio que isso seja da tua conta - retorquiu ela, a voz tensa.

Jo reconheceu o ponto de vista dela com um assentimento relutante da cabeça.

- Tens razão. Não é da minha conta... e é verdade que estou a ultrapassar certos limites cruciais. Mas acho sinceramente que eles já sofreram que chegue e a última coisa que eu quero é que se prendam a uma pessoa que não faz tenções de ficar em Southport. Talvez o meu receio se deva ao facto de que nunca nos conseguimos libertar completamente do passado e que tu te decidas ir embora, independentemente da mágoa que possas deixar no teu rasto.

Katie estava muda de espanto. Aquela conversa apanhara-a tão de surpresa, era tão constrangedora e não havia dúvida de que as palavras de Jo tinham vindo lançar o caos nas suas emoções.

Quer tenha reparado na falta de à-vontade de Katie, quer não, Jo continuou a insistir.

- Se não estivermos dispostos a assumir um compromisso, o amor não significa nada - afirmou ela -, e tu tens de pensar não apenas nos teus desejos, mas também nos desejos dele. Não apenas no presente, mas também no futuro. - Continuou de olhar fixo em Katie, os olhos castanhos resolutos. - Estás pronta para seres mulher do Alex e uma mãe para os filhos dele? Porque é isso que o Alex quer. Talvez não para já, mas no futuro sem dúvida. E se tu não estiveres disposta a assumir um compromisso, se te vais limitar a brincar com os sentimentos dele e dos filhos, então não és a pessoa de que ele precisa na vida.

Antes de Katie ter oportunidade de responder, Jo levantou-se da mesa e prosseguiu.

- Talvez não seja correcto da minha parte dizer-te tudo isto, e talvez isto represente o fim da nossa amizade, mas eu não me sentiria bem comigo própria se não fosse sincera contigo. Tal como frisei desde o início, o Alex é um bom homem... um homem raro. Ele entrega-se profundamente e, quando o faz, é para sempre. - Esperou que estas palavras assentassem e em seguida prosseguiu: -- Eu acho que tu és o mesmo tipo de pessoa, mas eu senti necessidade de te lembrar de que, se gostas dele, tens de estar disposta a assumir um compromisso com ele. Independentemente do que o futuro vos reserve. Independentemente do medo que possas ter.

Dito isto, deu meia-volta e foi-se embora, deixando Katie sentada à mesa num silêncio atónito. Foi só quando se levantou para sair que se apercebeu de que Jo não tocara no vinho.

 

Kevin Tierney não foi a Provincetown no fim-de-semana em que dissera a Coffey e a Ramirez que iria. Ao invés, ficou em casa com as cortinas corridas, a matutar na fatalidade de não a ter apanhado em Filadélfia por um triz.

Não lhe teria conseguido seguir o rasto até tão longe, não fosse Erin ter cometido um erro na ida para o terminal das camionetas. Kevin sabia que era o único meio de transporte que ela poderia apanhar. Os bilhetes eram baratos e não era necessário apresentar identificação e, embora não soubesse precisar quanto dinheiro ela lhe roubara, sabia que não poderia ter sido muito. Desde o primeiro dia de casados que era ele quem controlava o dinheiro. Sempre a obrigara a guardar os recibos e a devolver-lhe o troco, contudo, depois de Erin ter fugido a segunda vez, começara também a trancar a carteira dentro do estojo onde tinha as armas antes de se ir deitar. Ocasiões havia, porém, em que adormecia no sofá e não tinha dificuldade em imaginá-la a surripiar-lhe a carteira do bolso e a roubá-lo. Imaginava-a a rir-se dele à socapa enquanto fazia isso e depois, na manhã seguinte, a preparar-lhe o pequeno-almoço como se não tivesse feito nada de mal. Cumprimentava-o com um sorriso e um beijo, mas, lá no fundo, estava a rir-se. A rir-se dele. Roubara-o, e Kevin sabia que isso estava errado, porque na Bíblia dizia: “Não roubarás.”

No escuro, mordeu os lábios, recordando-se da sua esperança inicial de que Erin acabasse por voltar. Estava a nevar e não poderia ir longe; da primeira vez que fugira também fora numa noite fria e agreste, e telefonara-lhe umas horas mais tarde a suplicar-lhe que a fosse buscar porque não tinha para onde ir. Quando chegara a casa, pedira-lhe desculpa pelo que fizera e, ao vê-la a tremer no sofá, ele preparara-lhe uma chávena de cacau quente. Trouxera-lhe um cobertor e ficara a vê-la embrulhar-se nele, a tentar aquecer-se. Erin sorrira-lhe e ele sorrira-lhe também, todavia, mal ela parara de tremer, Kevin atravessara a sala e esbofeteara-a até a pôr a chorar. Quando, na manhã seguinte, ele se levantara para ir para o emprego, ela limpara o cacau entornado no chão, embora ainda houvesse uma nódoa no tapete que não conseguia tirar, e havia alturas em que, só de olhar para ela, Kevin se sentia enfurecer.

Na noite de Janeiro último em que dera pela falta de Erin, Kevin bebera duas doses de vodca enquanto esperava que ela voltasse para casa, mas o telefone não tocou e a porta da rua continuou fechada. Sabia que não poderia ter ido longe. Falara com a mulher havia menos duma hora, e ela dissera-lhe que estava a fazer o jantar. Mas não havia jantar nenhum no fogão. Nenhum sinal da presença dela em casa, na cave ou na garagem. Foi até ao alpendre, à procura de pegadas na neve, mas era óbvio que Erin não saíra pela porta da rua. No entanto, a neve no jardim das traseiras apresentava-se igualmente imaculada e, por conseguinte, por ali ela também não saíra. Dava a impressão de que se fora embora a voar e que se evaporara. O que significava que tinha de estar em casa... Mas não estava.

Mais duas doses de vodca e meia hora decorrida, já Kevin estava tão enfurecido que pregou um murro na porta do quarto e lhe abriu um buraco. Saiu de rompante de casa e foi bater à porta dos vizinhos, a perguntar se tinham dado pela partida dela, mas ninguém lhe pôde adiantar nenhuma informação. Meteu-se dentro do carro e passou as ruas do bairro a pente fino, à procura de vestígios de Erin, a esforçar-se por perceber como fora que ela conseguira sair de casa sem deixar pistas atrás de si. Nessa altura, imaginava que lhe levava duas horas de avanço, mas estava a pé e, com um tempo daqueles, não poderia ter ido longe. A menos que alguém a tivesse vindo buscar. Alguém de quem ela gostasse. Um homem.

Carregou no acelerador a fundo, o rosto contorcido num esgar de fúria. Seis quarteirões mais adiante, ficava a zona comercial. Foi percorrendo as lojas, a mostrar uma fotografia tipo passe e a perguntar se alguém a vira. Ninguém vira. Disse-lhes que poderia estar acompanhada por um homem, mas as cabeças continuavam a abanar em negação. Os homens que questionou não estiveram com rodeios. “Uma loura bonita como essa?”, diziam-lhe eles. “Eu teria dado por ela de certeza, sobretudo numa noite como a de hoje.”

Percorreu todas as artérias num raio de dez quilómetros duas ou três vezes, até que, por fim, desistiu. Eram três da madrugada, e não encontrou ninguém em casa. Após mais uma dose de vodca, chorou até adormecer.

De manhã, quando acordou, novamente dominado pela fúria, pegou num martelo e desfez os vasos que Erin tinha no jardim das traseiras. com a respiração ofegante, telefonou para o emprego a dar parte de doente e em seguida foi sentar-se no sofá a cogitar como seria que ela conseguira fugir. Alguém a deveria ter vindo buscar com certeza; alguém a deveria ter levado para algum lugar. Alguém conhecido dela. Um amigo de Altoona? De Atlantic City? Era possível, calculava, não fosse ele verificar todos os meses os registos das chamadas nas facturas. Ela nunca fazia telefonemas de longa distância. Então, teria de ser alguém da zona. Mas quem? Erin nunca ia a lado nenhum, nunca falava com ninguém. Ele próprio se assegurava de que assim fosse.

Foi até à cozinha e estava a aviar nova dose de vodca quando ouviu o telefone tocar. Precipitou-se para o atender, na esperança de que fosse a mulher. Por estranho que pudesse ser, porém, o telefone tocou uma única vez e, quando Kevin levantou o auscultador, ouviu o sinal de marcar. Ficou a olhar para ele embasbacado, a tentar perceber o que se passava, até que acabou por pousá-lo.

Como fora que ela fugira? Havia ali qualquer coisa que lhe estava a escapar. Mesmo que alguém da zona a tivesse vindo buscar, como fora que conseguira chegar à rua sem deixar pegadas? Dirigiu o olhar para a janela, a tentar reconstituir a sequência dos acontecimentos. Havia qualquer coisa que não fazia sentido, embora não conseguisse identificar do que se tratava. Desviou o olhar da janela e deu por ele concentrado no telefone. Foi então que, subitamente, as peças do quebra-cabeças se encaixaram. Sacou do telemóvel. Ligou para o número de casa e ouviu-o tocar uma vez. O telemóvel continuava a chamar. Quando levantou o auscultador do fixo, ouviu o sinal de marcar e percebeu que Erin reencaminhara as chamadas para um telemóvel. O que significava que, quando lhe ligara na noite da véspera, ela já não se encontrava em casa. O que também explicava as dificuldades de captação que tivera nos últimos dois dias. E, como não podia deixar de ser, a ausência de pegadas na neve. Erin fora-se embora, percebia Kevin agora, na terça-feira de manhã.

No terminal das camionetas, Erin cometera um erro, apesar de ser um erro inevitável. Deveria ter comprado o bilhete a uma mulher, uma vez que era bonita, e os homens nunca se esqueciam duma mulher bonita. Não fazia diferença que tivesse cabelo comprido e louro ou curto e escuro. Nem tão-pouco que fingisse que estava grávida.

Kevin dirigiu-se ao terminal. Mostrou o distintivo e levou uma fotografia maior da mulher. Das primeiras duas vezes em que lá esteve, nenhum dos vendedores de bilhetes a reconheceu. À terceira vez, porém, um deles hesitou e disse que era possível que a tivesse visto, só que tinha o cabelo escuro e curto e estava grávida. Todavia, não se lembrava do destino que tomara. De regresso a casa, Kevin encontrou uma fotografia dela no computador e, com a ajuda do Photoshop, mudou-lhe o cabelo de louro para castanho e em seguida encurtou-lho. Na sexta-feira, deu novamente parte de doente. É ela”, confirmou o vendedor de bilhetes, e Kevin sentiu-se inundar por uma súbita vitalidade. Erin julgava que era mais esperta que ele, mas era estúpida, desleixada e cometera um erro. Na semana seguinte, tirou uns dias de férias e continuou a vaguear pelo terminal das camionetas, a mostrar a fotografia nova aos motoristas. Chegava lá de manhã e só se ia embora à noite, pois os motoristas iam e vinham ao longo de todo o dia. Levava duas garrafas de vodca no carro, que vertia para um copo de esferovite e bebia por uma palhinha.

No sábado, onze dias depois de Erin o ter deixado, encontrou o motorista. O motorista conduzira-a a Filadélfia. Recordava-se dela, disse-lhe, porque era bonita, estava grávida e não levava bagagem.

Filadélfia. Dali, poderia ter seguido para parte desconhecida, mas era a única pista de que Kevin dispunha. Para além de que sabia que Erin não tinha muito dinheiro.

Fez uma mala, meteu-se no automóvel e dirigiu-se a Filadélfia. Estacionou no terminal das camionetas e esforçou-se por adoptar o raciocínio dela. Era um bom investigador e sabia que, se conseguisse acompanhar-lhe o raciocínio, acabaria por encontrá-la. A natureza humana, ensinara-lhe a experiência, era previsível.

A camioneta chegou faltava pouco para as quatro da tarde, e Kevin deixou-se ficar no terminal, a olhar dum lado para o outro. Erin estivera ali alguns dias atrás, reflectiu, perguntando-se o que faria ela numa cidade desconhecida, sem dinheiro, sem amigos e sem um sítio para onde ir. Moedas de dez e de vinte e cinco cêntimos e notas dum dólar não lhe dariam para ir muito longe, sobretudo depois de comprar o bilhete da camioneta.

Estava frio, recordou a si próprio, e não tardaria a escurecer. Ela não haveria de se querer distanciar muito e haveria de precisar dum sítio onde passar a noite. Um sítio que aceitasse pagamentos em dinheiro. Mas onde? Não ali, naquela zona. Demasiado cara. Para onde iria ela? Não haveria de querer correr o risco de se perder ou de tomar a direcção errada, o que significava que, muito provavelmente, teria consultado a lista telefónica. Regressou ao terminal e procurou em hotéis. Páginas e mais páginas, verificou. Erin poderia ter escolhido um, mas e depois? Teria de ir até lá a pé. O que significava que precisava dum mapa.

Dirigiu-se à loja de conveniência do terminal e comprou um mapa. Mostrou a fotografia dela ao empregado, mas este abanou a cabeça. Não trabalhara na terça-feira, disse-lhe. Kevin, porém, tinha a certeza de estar na pista certa. Fora assim que ela agira. Abriu o mapa e localizou o terminal. Confinava com Chinatown, e ele calculou que a mulher se tivesse dirigido para lá.

Tornou a meter-se no carro e percorreu as ruas de Chinatown, uma vez mais com a sensação de que estava na pista certa. Foi bebendo a sua vodca e passando as ruas em revista. Começou pelos estabelecimentos mais próximos do terminal e foi mostrando a fotografia. Ninguém admitia saber de nada, mas ficou com a sensação de que havia quem lhe mentisse. Deparou com quartos baratos, sítios para onde jamais a teria levado, sítios sujos com lençóis sujos, geridos por indivíduos que mal sabiam falar inglês e que só aceitavam pagamentos em dinheiro. Deu a entender que ela corria perigo caso não a localizasse. Descobriu a primeira pensão onde ela ficara hospedada, mas o proprietário não sabia qual o rumo que tomara. Kevin apontou uma arma à cabeça do homem, mas, apesar de este ficar desfeito em lágrimas, não lhe pôde adiantar mais nada.

Na segunda-feira, Kevin viu-se obrigado a regressar ao trabalho, furioso por ela o ter conseguido despistar. Contudo, no fim-de-semana seguinte, estava de volta a Filadélfia. E no outro também. Ampliou a sua busca, mas tinha uma infinidade de lugares onde procurar, ele era um só e nem toda a gente estava disposta a confiar num polícia vindo de fora.

Todavia, armado de zelo e paciência, continuou a ir até Filadélfia e tirou mais uns dias de férias. Passou-se outra semana. Alargou ainda mais o seu raio de acção, ciente de que Erin haveria de precisar de dinheiro. Foi parando em bares e restaurantes. Falaria com toda a gente naquela cidade se preciso fosse. Por fim, no Dia dos Namorados, encontrou uma empregada de mesa chamada Tracy que lhe disse que Erin estava a trabalhar num restaurante barato, com a única diferença que dava pelo nome de Eriça. Ficara de vir trabalhar no dia seguinte. A empregada de mesa confiou nele porque era investigador da polícia e chegou mesmo a namoriscá-lo, entregando-lhe o número de telefone antes de Kevin se ir embora.

Alugou um carro e, na manhã seguinte, antes de o Sol raiar, pôs-se à espera dela a um quarteirão de distância do restaurante. Os empregados entravam por uma porta que dava para a viela lateral. Sentado no lugar do condutor, sugou a palhinha do seu copo de esferovite, a ver quando era que ela aparecia. Por fim, avistou o proprietário, acompanhado por Tracy e por outra mulher, a descer a viela. Erin, no entanto, não chegou a aparecer, nem naquele dia nem no dia seguinte, e ninguém sabia onde ela morava. Nunca veio buscar o cheque do salário.

Descobriu-lhe a morada umas horas mais tarde. Ficava a curta distância do restaurante, um hotel decrépito. O proprietário, que só aceitava dinheiro à vista, só sabia que Erin saíra na véspera, regressara e tornara a ir-se embora a toda a pressa. Kevin revistou-lhe o quarto, mas não encontrou qualquer indício e, quando finalmente correu ao terminal das camionetas, só lá havia mulheres a vender os bilhetes e nenhuma delas se lembrava de ter visto Erin. Nas últimas duas horas, tinham partido camionetas rumo a norte, sul, este e oeste, para todos os destinos e mais algum.

Ela desaparecera uma vez mais e, mal se viu novamente dentro do carro, Kevin gritou e deu murros no volante até ficar com os punhos feridos e inchados.

 Nos meses que se seguiram ao desaparecimento de Erin, a dor que consumia Kevin foi ficando cada vez mais venenosa, propagando-se dia a dia como um cancro. Ao longo das semanas, regressara por diversas vezes a Filadélfia e fora interrogando os motoristas das camionetas, mas sem grandes resultados. Acabou por descobrir que Erin fora para Nova Iorque, contudo, a partir daí, perdeu-lhe completamente o rasto. Camionetas a mais, motoristas a mais, passageiros a mais; dias a mais passados desde essa data. Opções a mais. Ela poderia estar em qualquer lugar, e a ideia de que desaparecera não lhe dava sossego ao espírito. Tinha acessos de cólera em que partia tudo ao seu redor; chorava até adormecer. Andava perdido de desespero e chegava a recear ter enlouquecido.

Não era justo. Amava-a desde a primeira vez que a vira em Atlantic City. E tinham sido felizes, não tinham? Nos primeiros tempos de casados, Erin costumava cantar sozinha enquanto se maquilhava. Ele levava-a à biblioteca, e ela requisitava uns oito ou dez livros. Por vezes, ela lia-lhe excertos em voz alta, ele ficava deliciado a ouvir a voz dela, a vê-la debruçada sobre a bancada da cozinha, a pensar para consigo que era a mulher mais bonita do mundo.

Kevin fora um bom marido. Comprara-lhe a casa que ela queria, e as cortinas que ela queria, e a mobília que ela queria, embora isso representasse para ele um sacrifício. Nos primeiros tempos de casados, comprava-lhe flores aos vendedores da rua quando ia a caminho de casa, e Erin metia-as dentro duma jarra em cima da mesa, juntamente com velas, e os dois tinham um jantar romântico. Havia ocasiões em que acabavam a fazer amor na cozinha, as costas dela encostadas à bancada.

Nem tão-pouco algum dia a obrigara a trabalhar, e ela nem sabia dar valor à sorte que tinha. Não compreendia os sacrifícios que Kevin fazia por ela. Era uma mulher mimada e egoísta, e isso era quanto bastava para o fazer perder as estribeiras. Erin era incapaz de perceber até que ponto a vida dela era fácil. Arrumava a casa, preparava uma refeição e tinha o resto do dia por sua conta, a ler os livros disparatados que ia buscar à biblioteca, a ver televisão e a fazer a sesta, sem nunca ter de se preocupar com uma factura que fosse, nem com o pagamento da hipoteca, nem com gente que falava dela pelas costas. Nunca tivera de ver as caras de pessoas que tinham morrido assassinadas. Kevin poupava-a a isso tudo porque lhe tinha amor, mas não fizera diferença. Nunca lhe falara nas crianças que eram queimadas com ferros de engomar ou atiradas dos telhados das casas, nem de mulheres que eram mortas à punhalada e abandonadas em contentores. Nunca lhe dissera que havia ocasiões em que tinha de raspar o sangue da sola dos sapatos antes de entrar no carro, nem que, quando olhava nos olhos dos assassinos, sabia que se achava cara a cara com o mal, porque na Bíblia dizia que “matar uma pessoa é matar um ser vivo feito à imagem e semelhança de Deus”.

Ele amava-a, e ela amava-o a ele, e ela tinha de voltar para casa porque ele não era capaz de a encontrar. Ela poderia retomar a vida feliz que tivera até então, e ele não lhe iria bater, nem corrê-la ao murro, à bofetada ou ao pontapé porque sempre fora um bom marido. Amava-a, e ela amava-o a ele, e ainda se lembrava de, no dia em que a pedira em casamento, ela o recordar da noite em que se tinham conhecido à porta do casino, quando vinham dois homens a segui-la. Indivíduos perigosos. Nessa noite, ele impedira que eles a magoassem e, na manhã seguinte, tinham ido passear os dois para o paredão e ele levara-a a tomar um café. Ela dissera-lhe que era claro que se queria casar com ele. Amava-o, dissera-lhe. Ao lado dele, sentia-se segura.

Segura. Fora essa a palavra que usara. Segura.

 

A terceira semana de Junho foi uma sucessão de magníficos dias estivais. A temperatura subia ao longo da tarde trazendo atrás de si humidade suficientemente pesada para condensar o ar e ofuscar o horizonte. Então, como por magia, formavam-se nuvens pesadas, e tempestades violentas arrastavam fortes enxurradas. Os aguaceiros, porém, nunca duravam muito tempo, deixando no seu rasto apenas folhas a pingar e uma camada de neblina rasteira.

Katie continuou a trabalhar até altas horas no turno da noite do restaurante. Quando regressava a casa, estava cansada e, de manhã, era frequente doerem-lhe os pés e as pernas. Guardava metade do dinheiro das gorjetas dentro da lata do café, que estava agora quase cheia. Tinha mais dinheiro que algum dia julgara ser capaz de amealhar, mais que suficiente para fugir, caso fosse necessário. Pela primeira vez, perguntou-se se não seria altura de parar de juntá-lo.

Enquanto acabava de saborear o pequeno-almoço, o seu olhar dirigiu-se para a janela de casa de Jo. Não falava com ela desde o encontro de ambas e, na noite da véspera, depois do turno, vira luzes acesas na cozinha e na sala de estar da vizinha. Logo pela manhã, ainda cedo, ouvira o carro a arrancar e os pneus a trilharem a terra e o cascalho à medida que ela se afastava. Não sabia o que havia de dizer a Jo, se era que tinha alguma coisa a dizer-lhe. Não conseguia sequer decidir se estava zangada com ela ou não. Jo gostava de Alex e dos filhos; preocupava-se com eles e manifestara as suas apreensões a Katie. Era difícil levar-lhe fosse o que fosse a mal.

Alex, sabia ela, passaria por sua casa mais logo. As visitas dele tinham-se tornado rotineiras e, de cada vez que estava com ele, Alex nunca deixava de a recordar de todos os motivos que a tinham levado a apaixonar-se por ele. Aceitava os seus silêncios e variações de humor ocasionais e tratava-a com uma delicadeza que a deixava tão estupefacta quanto comovida. Todavia, desde a conversa que travara com Jo que se perguntava se não estaria a ser injusta com ele. Afinal de contas, o que aconteceria se Kevin aparecesse? Como iriam Alex e os filhos reagir se Katie desaparecesse e nunca mais voltasse? Estaria ela disposta a abandoná-los aos três e nunca mais falar com eles?

Sentia aversão às questões que Jo levantara porque não estava preparada para as enfrentar. “Tu nem fazes ideia do martírio por que passei”, sentira-se tentada a confessar-lhe depois de ter tido tempo para reflectir. “Tu nem fazes ideia de como o meu marido é.” Todavia, até ela sabia que isso era fugir ao assunto.

Deixou a louça do pequeno-almoço no lava-louça e percorreu o chalé acanhado, a pensar no quanto tinha mudado nos últimos meses. Não tinha praticamente nada, mas sentia-se mais rica que nunca. Apaixonara-se pela primeira vez em anos. Nunca fora mãe, mas dava por ela a preocupar-se com Kristen e com Josh nos momentos mais despropositados. Apesar de saber que não podia prever o futuro, teve a certeza súbita de que deixar aquela nova existência para trás das costas lhe era de todo inconcebível.

O que fora que Jo lhe dissera em tempos? “Eu limito-me a dizer às pessoas aquilo que elas próprias já sabem, mas que têm medo de admitir.”

Ao reflectir nestas palavras, percebeu exactamente o que tinha a fazer.

- Claro - acedeu Alex de imediato ao seu pedido. Percebeu que ficara surpreendido, mas também parecia encorajado. - Quando é que queres começar?

- E se fosse hoje? - sugeriu ela. - Se estiveres disponível.

Alex olhou em redor do armazém. Só havia um cliente a comer na zona do churrasco, e Roger estava debruçado sobre o balcão a conversar com ele.

- Escuta, Roger? Achas que és capaz de ficar atento à caixa durante uma hora?

- Esteja descansado, patrão - respondeu-lhe ele. Deixou-se ficar onde estava; Alex sabia que só sairia dali por um motivo de força maior. Todavia, na manhã dum dia de semana, depois da afluência inicial, não esperava muitos fregueses no estabelecimento e, por conseguinte, não se incomodou com isso. Saiu de detrás da caixa registadora.

- Estás preparada?

- Nem por isso. - Abraçou-se nervosamente. - Mas é uma coisa com que eu deveria saber lidar.

Saíram do armazém e dirigiram-se ao jipe. Quando iam a entrar, Katie sentiu o olhar dele pousado nela.

- A que se deve essa pressa tão súbita de aprender a conduzir? - interrogou-a ele. - A bicicleta já não te chega? - provocou-a.

- Chega-me e sobra-me - afirmou ela. - Mas quero tirar a carta de condução.

Alex estendeu a mão para pegar nas chaves do carro e deteve-se momentaneamente. Virou-se uma vez mais para Katie e, ao vê-lo a fitá-la, ela vislumbrou o investigador que ele em tempos fora. Estava de sobreaviso, e ela pressentiu-lhe a prudência.

- Aprender a conduzir é apenas uma parte do processo. Para arranjar uma carta, o estado exige documentos de identificação. Certidão de nascimento, cartão da segurança social, coisas desse género.

- Eu sei - admitiu ela.

Ele escolheu as palavras com cuidado.

- E é possível seguir a pista dessas informações - salientou ele. - Se obtiveres uma carta de condução, alguém pode conseguir localizar-te.

- Eu já estou a usar um número da segurança social seguro - disse ela. - Se o Kevin soubesse, a esta hora já me teria seguido até aqui. E, se quiser continuar em Southport, é uma coisa que não posso deixar de fazer.

Alex abanou a cabeça.

- Katie...

Ela chegou-se a ele e pregou-lhe um beijo na face.

- Não faz mal - tranquilizou-o. - Eu não me chamo Katie, ou já te esqueceste?

Ele fez deslizar um dedo pelo contorno duma face dela.

- Para mim, hás-de sempre ser a Katie.

Ela sorriu-lhe.

- Eu tenho um segredo - confessou. - O meu cabelo não é castanho por natureza. Eu sou loura.

Alex recuou um passo, a processar esta nova informação.

- Tens a certeza de que me queres contar isso?

- Creio que, se não fosse eu a contar-te, tu acabarias por descobrir. Quem sabe? Talvez um dia eu volte a ser loura.

- Mas o que é que se passa contigo? A querer aprender a conduzir, a disponibilizar informações?

- Tu garantiste-me que eu podia confiar em ti. - Katie encolheu os ombros. - E eu acreditei.

- É só por isso?

- Sim - reiterou ela. - Eu tenho a sensação de que seria capaz de te revelar todos os meus segredos.

Ele observou as mãos de ambos, entrelaçadas em cima da divisória entre os assentos, e em seguida olhou para ela.

- Nesse caso, vou directo ao assunto. Tens a certeza de que os teus documentos serão aceites? Não podes apresentar cópias. Têm de ser obrigatoriamente originais.

- Eu sei - confirmou ela.

Alex sabia que era preferível não insistir mais. Levou a mão às chaves, mas não ligou a ignição.

- O que foi agora? - indagou Katie.

-- Uma vez que queres aprender a conduzir, mais vale começarmos já. - Abriu a porta do jipe e saiu. - Toca a passar para trás do volante.

Trocaram de lugar. Mal Katie ficou ao volante, Alex indicou-lhe os aspectos essenciais: acelerador e travão, como fazer marcha atrás, pisca-piscas, luzes e limpa-pára-brisas, indicadores no painel de instrumentos. Era sempre melhor começar pelo princípio.

- Estás preparada? - perguntou-lhe ele.

- Acho que sim - respondeu-lhe Katie, concentrando-se.

- Uma vez que o jipe não tem transmissão manual, só precisas de usar um pé. Está ou no acelerador, ou no travão, certo?

- Certo - confirmou ela. Deslocou o pé esquerdo para mais próximo da porta.

- Agora, carrega no travão e liga o motor. Quando estiveres pronta, continua a carregar no travão enquanto fazes marcha atrás. Não carregues no acelerador e, devagar, vai soltando o travão. Depois vira o volante para a direita, continuando a carregar ao de leve no travão.

Katie fez tal e qual o que Alex lhe dizia e, com todo o cuidado, foi fazendo marcha atrás com o jipe, posto o que ele lhe indicou como deveria proceder para sair do parque de estacionamento. Ela deteve-se então pela primeira vez.

- Tens a certeza de que é boa ideia eu ir para a estrada principal?

- Se houvesse muito trânsito, eu dir-te-ia que não. Se tivesses dezasseis anos, eu dir-te-ia que não. Mas acho que estás à altura da situação e, se for preciso, eu estarei aqui para te ajudar. Estás pronta? O que tens a fazer é virar à direita e depois seguimos sempre em frente até à próxima curva. Aí, tornamos a virar à direita. Quero que te vás habituando ao carro.

Passaram a hora seguinte a percorrer estradas secundárias. À semelhança da maioria dos principiantes, Katie teve dificuldade em fazer as curvas, por vezes guinava para a berma e demorou algum tempo a aprender a estacionar, mas, fora isso, saiu-se melhor que qualquer dos dois certamente esperaria. Quando estava quase a terminar o passeio, Alex pediu-lhe que estacionasse o jipe numa das ruas da baixa.

- Aonde é que vamos?

Ele apontou para um pequeno café.

- Lembrei-me de que talvez quisesses comemorar. Saíste-te lindamente.

- Não sei - hesitou ela. - A sensação que tive foi que não sabia o que estava a fazer.

- Isso com a prática resolve-se - tranquilizou-a ele. - À medida que fores conduzindo, irás ganhando naturalidade.

- Deixas-me voltar a conduzir amanhã? - pediu-lhe.

- com certeza - acedeu ele. - Mas, se não te importares, preferia que fosse logo de manhã. Agora que o Josh já acabou as aulas, ele e a Kristen vão passar as próximas semanas num campo de férias diurno. Regressam a casa por volta do meio-dia.

- As manhãs são ideais para mim -- disse ela. - Tens a certeza de que te dá jeito?

- Mais uns dias de prática, e serás seguramente capaz de passar o exame de condução. Está claro que depois também terás de fazer o exame de código, mas, para isso, só precisas de te aplicar um pouco a decorá-lo.

Katie chegou-se a ele e deu-lhe um abraço espontâneo.

- Obrigada, já agora.

Alex retribuiu-lhe o abraço.

- Fico muito contente por te poder ajudar. Mesmo não tendo carro, é uma daquelas coisas que vale sempre a pena saber. Por que é que não...?

- Aprendi a conduzir quando era mais nova? - Katie encolheu os ombros. - Quando eu morava com os meus pais, só tínhamos um carro e, em geral, quem o usava era o meu pai. Mesmo que tivesse tirado a carta, não teria oportunidade de conduzir e, como tal, não dei grande importância a isso. Quando me vim embora, não tinha dinheiro para comprar um carro e, portanto, também não me dei a essa maçada. E depois, quando me casei, o Kevin não queria que eu conduzisse. - Voltou-se para ele. - E aqui estou eu. Vinte e sete anos e só sei andar de bicicleta.

- Tens vinte e sete anos?

- Tu já sabias, não já?

- Por acaso, não sabia.

- E então?

- Ninguém te daria mais de trinta.

Katie fingiu que lhe assentava um soco no braço.

- Só por causa dessa, agora vou obrigar-te a pagares-me um croissant.

- Parece-me justo. E já que estás com disposição para revelações, gostaria de ouvir o resto da história sobre a tua fuga.

Após uma breve hesitação, ela acedeu:

- Está bem.

Numa pequena mesa na esplanada, Katie fez-lhe o relato da sua fuga - as chamadas reencaminhadas, a viagem até Filadélfia, a mudança constante de emprego e de pensões sórdidas, a derradeira viagem até Southport. Ao contrário da primeira vez, estava agora em condições de descrever as suas experiências com calma, como se estivesse a mencionar outra pessoa. Quando chegou ao fim, Alex abanou a cabeça.

- O que foi?

- Estou só a tentar imaginar como te deverás ter sentido depois de desligares o telefone ao Kevin pela última vez. Quando ele ainda te julgava em casa. Aposto que deve ter sido um alívio enorme.

- Sem dúvida, mas não deixava por isso de me sentir aterrorizada. E, nessa altura, eu ainda não tinha emprego e não fazia a mínima ideia do que haveria de fazer.

- Mas conseguiste.

- Pois foi - confirmou ela -, consegui. - O seu olhar estava concentrado num ponto distante. - Não é o tipo de vida que eu algum dia tenha imaginado que pudesse vir a ter.

Alex assumiu um tom de voz suave.

- Não me parece que exista alguém cuja vida tenha correspondido exactamente ao que imaginou. O máximo que podemos fazer é aproveitá-la o melhor possível. Mesmo que nos pareça difícil.

- Amo-te - sussurrou Alex por fim.

Katie inclinou-se para ele e tocou-lhe no rosto

- Eu sei. E eu também te amo.

 

No final de Junho, os jardins floridos de Dorchester, que tinham resplandecido de cor durante a Primavera, começaram a murchar, as flores a ficarem acastanhadas e reviradas para dentro. A humidade fora aumentando sub-repticiamente, e as ruelas da baixa de Boston começavam a cheirar a comida estragada, a urina e a decomposição. Kevin comunicou a Coffey e a Ramirez que iria passar o fim-de-semana em casa com Erin, entretidos a ver filmes e a fazer um pouco de jardinagem. Coffey perguntara-lhe como fora que correra a viagem a Provincetown, e Kevin mentira-lhe, falando-lhe da pensão em que tinham ficado hospedados e dos restaurantes aonde tinham ido. Coffey respondera-lhe que já estivera em todos aqueles locais e quisera saber se num deles provara rissóis de caranguejo. Kevin dissera-lhe que não, mas que da próxima vez não se esqueceria de o fazer.

Erin fora-se embora, mas Kevin continuava à procura dela por todo o lado. Não se conseguia conter. De cada vez que percorria as ruas de Boston de carro e vislumbrava uma mulher de cabelo louro pelos ombros, tinha a sensação de que o coração lhe ficava entalado na garganta. Procurava sinais do seu nariz delicado, dos olhos verdes e do andar gracioso. Havia ocasiões em que se ia pôr à porta da padaria, a fingir que estava à espera dela.

Mesmo tendo ela ido para Filadélfia, já deveria ter conseguido encontrá-la. As pessoas deixavam pistas. O papel deixava pistas. Em Filadélfia, Erin adoptara um nome e um número da segurança social falsos, mas essa situação não se poderia prolongar indefinidamente, a menos que ela tencionasse continuar a morar em pensões de segunda categoria e a mudar de emprego de mês a mês. Até à data, porém, ainda não usara o número da segurança social. Kevin pedira a um polícia doutra esquadra que tinha contactos lá que lhe verificasse essas informações. E esse polícia era o único que sabia que Erin se fora embora, mas não havia perigo de divulgar a notícia, pois Kevin sabia que ele tinha um caso amoroso com a baby-sitter dos filhos e que esta era menor de idade. Sentia asco de cada vez que era obrigado a falar com o indivíduo, porque era um pervertido sexual e o lugar dele era na prisão, uma vez que na Bíblia dizia: “Que não haja imoralidade sexual entre vós”. Contudo, nesse momento, precisava dele para conseguir localizar Erin e trazê-la de volta a casa. O marido e a mulher tinham o dever de permanecer ao lado um do outro porque tinham jurado fidelidade mútua diante de Deus e da família.

Em Março, sentira-se seguro de que a iria encontrar; em Abril, tivera a certeza de que ela acabaria por voltar. E, em Maio, de que o nome dela viria à tona, mas a verdade era que a casa continuava vazia. Estavam agora em Junho, e era frequente dar por si próprio perdido em pensamentos, havendo dias em que mal conseguia dar conta do recado do emprego. Tinha dificuldade em concentrar-se, a vodca parecia ter deixado de fazer efeito, via-se obrigado a mentir a Coffey e a Ramirez e bastava-lhe virar costas para os dois começarem a falar mal dele.

Duma coisa tinha a certeza: Erin já não andava fugida. Não haveria de passar o resto da vida a mudar de poiso e de emprego. Não era o género dela. Apreciava coisas bonitas e desejava ver-se rodeada delas. O que significava que teria obrigatoriamente de estar a usar a identidade doutra pessoa. A menos que estivesse disposta a levar uma vida em fuga permanente, precisava duma certidão de nascimento e dum número da segurança social autênticos. Nos tempos que corriam, os patrões exigiam documentos de identificação aos empregados, mas onde e como teria ela assumido a identidade doutra pessoa? Sabia que a maneira mais corrente era descobrir alguém sensivelmente da mesma idade que tivesse falecido recentemente e em seguida adoptar a sua identidade. A primeira parte do processo ainda era admissível, quanto mais não fosse porque Erin se deslocava com frequência à biblioteca. Conseguia imaginá-la a percorrer os obituários em microficha, à procura dum nome de que se pudesse apropriar. Enquanto fingia vasculhar as prateleiras da biblioteca, ia maquinando e fazendo planos, e, para cúmulo, depois de ele ter roubado tempo ao seu dia sobrecarregado de trabalho para a levar lá. Kevin fora generoso com ela, e ela pagara-lhe atraiçoando-o, e bastava-lhe imaginá-la a rir-se dele pelas costas para perder por completo as estribeiras. A sua fúria era tal que pegou num martelo e destruiu o serviço de porcelana que lhes tinham oferecido pelo casamento. Depois de ter descarregado a raiva, lá se conseguiu concentrar no que tinha a fazer. Durante os meses de Abril e Março, Kevin passou horas na biblioteca, à semelhança do que Erin deveria ter feito, a tentar descobrir a sua nova identidade. Contudo, mesmo que tivesse conseguido desencantar um nome, como fora que se apropriara dos documentos de identificação? Onde estaria ela nesse momento? E por que seria que não voltava para casa?

Eram estas as perguntas que o atormentavam, e havia alturas em que se sentia tão confuso que não era capaz de controlar as lágrimas, pois tinha saudades dela, queria que ela voltasse para casa e não suportava estar sozinho. Noutras ocasiões, porém, a ideia de que Erin o abandonara punha-o a matutar no quanto ela era egoísta, e a sua única vontade era matá-la.

Julho chegou e trouxe atrás de si o sopro dos dragões: quente e húmido, com horizontes que tremeluziam como as miragens ao longe. O fim-de-semana do feriado passou dando lugar a outra semana. O ar condicionado de sua casa avariara-se, e Kevin não chamara o técnico para o consertar. Todas as manhãs ia para o emprego cheio de dores de cabeça. A experiência ensinara-lhe que a vodca era mais eficaz que os analgésicos, mas as dores nunca o largavam, provocando-lhe um latejar constante nas têmporas. Desistira de ir à biblioteca e, quando Coffey e Ramirez lhe tornaram a perguntar pela mulher, limitou-se a responder-lhes que estava boa e a mudar de assunto. Foi-lhe atribuído outro parceiro, um colega chamado Todd Vannerty, que acabara de ser promovido. Não levantava objecções a que fosse Kevin a encarregar-se dos interrogatórios às testemunhas e às vítimas, e Kevin também preferia que assim fosse.

Explicou-lhe que, na maior parte dos casos, o homicida era conhecido da vítima. Na maior parte, mas não em todos. Ao fim da primeira semana de colaboração, foram chamados a um apartamento situado a menos de três quarteirões de distância da esquadra, onde depararam com um rapaz de dez anos que fora morto com um tiro. O culpado era um indivíduo que emigrara recentemente da Grécia e que, ao comemorar a vitória duma equipa de futebol grega, disparara a arma acidentalmente para o chão. A bala atravessara o tecto do apartamento de baixo e matara o rapaz no preciso momento em que este estava a levar uma fatia de pizza à boca. A bala penetrara-lhe no cocuruto, e o rapaz tombara com a cara em cheio em cima da pizza. Quando o viram, tinha a cara toda suja de queijo e de molho de tomate. A mãe passara duas horas aos gritos e a chorar e tentara atirar-se ao grego enquanto este, algemado, era conduzido pela escada abaixo. A mulher acabara por tropeçar e cair pelos degraus, e fora preciso chamar uma ambulância.

No final do turno, Kevin e Todd dirigiram-se a um bar. Todd quis fingir que era capaz de esquecer o que vira, mas emborcou três cervejas em menos de quinze minutos. Confessou a Kevin que chumbara uma vez no exame para investigador e só fora aprovado à segunda tentativa. Kevin bebeu vodca, mas, dado que estava acompanhado, pediu ao barman que lhe juntasse umas gotas de sumo de mirtilo.

Era um bar frequentado por polícias. Muitos polícias, preços baixos, luzes difusas e mulheres que gostavam de andar com polícias. O barman autorizava os clientes a fumar, mesmo indo ao arrepio da lei, pois a maioria dos fumadores eram polícias. Todd não era casado e era um freguês habitual. Kevin nunca lá tinha estado antes e não sabia ao certo se lhe agradava, embora também não estivesse com vontade de voltar para casa.

Todd foi aos lavabos e, quando regressou, chegou-se a Kevin.

- Acho que aquelas duas ali ao fundo nos estão a galar.

Kevin virou-se. À semelhança dele próprio, as mulheres pareciam estar na casa dos trinta. A morena reparou nele a olhar para ela e virou-se para a amiga ruiva.

- Que azar que és casado, não é? Não são nada maljeitosas.

Tinham um aspecto cansado, pensou Kevin. Muito ao contrário de Erin, que tinha a pele fresca e cheirava a limão e a menta e ao perfume que ele lhe oferecera no Natal.

- Vai lá falar com elas se é isso que queres - sugeriu ele ao parceiro.

- Pois olha que sou capaz de ir mesmo - disse Todd. Dito isto, pediu outra cerveja e dirigiu-se ao fundo do bar com um sorriso rasgado. Deveria ter dito um disparate qualquer, mas foi o suficiente para pôr as mulheres a rir. Kevin pediu uma dose dupla de vodca, desta feita sem sumo de mirtilo, e observou o reflexo dos três no espelho do bar. A morena fitou-o através do espelho, e ele não desviou o olhar. Dez minutos volvidos, ela veio a saracotear-se até ele e ocupou o banco onde Todd estivera sentado.

- Não estás com vontade de conviver? - perguntou-lhe ela.

- Não tenho jeito para conversa fiada.

A morena fez um ar de quem reflectia.

- Chamo-me Amber - apresentou-se ela.

- Kevin - respondeu-lhe ele, ficando uma vez mais sem saber o que dizer. Bebeu um gole de vodca, a pensar que lhe sabia praticamente a água.

A morena chegou-se mais a ele. Cheirava a almíscar, não a limão e a menta.

- O Todd contou-me que vocês os dois trabalham nos homicídios.

- É um facto.

- E é difícil?

- Tem dias - disse-lhe. Acabou a bebida e levantou o copo. O barman trouxe-lhe nova dose. - E tu, o que é que fazes?

- Sou gerente da padaria do meu irmão. Ele fabrica pão e produtos de panificação para os restaurantes.

- Parece ser interessante.

Ela afivelou-lhe um sorriso cínico.

- Ai isso é que não parece. Não parece, nem é, mas eu tenho contas a pagar. - Os dentes brancos cintilaram-lhe na penumbra. - Nunca te tinha visto por aqui.

- Foi o Todd quem me trouxe.

Ela apontou com a cabeça na direcção de Todd.

- A ele, já o tenho visto. Mete-se com tudo o que tenha saias e respire. E começo a pensar que a parte da respiração é opcional. A minha amiga adora este bar, mas eu raramente o suporto. Se não fosse ela obrigar-me, não punha cá os pés.

Kevin assentiu com a cabeça e ajeitou-se no banco. Interrogou-se se Coffey e Ramirez costumariam frequentar aquele local.

- Estou a maçar-te? - interpelou-o ela. - Se quiseres, vou-me embora.

- Não me estás a maçar nada.

Amber sacudiu o cabelo, e Kevin reparou que era mais bonita que julgara à primeira vista.

- Não me queres pagar uma bebida? - sugeriu-lhe.

- O que é que te apetece beber?

- Um cosmopolitan - disse ela, e Kevin fez sinal ao barman. O cosmopolitan chegou.

- Não tenho grande jeito para isto - confessou ele.

- Jeito para o quê?

- Isto.

- Estamos só a conversar - tranquilizou-o ela. - E estás a sair-te lindamente.

- Sou casado.

A morena sorriu-lhe.

- Eu sei. Reparei na aliança.

- Não te importas?

- Tal como acabei de dizer, estamos só a conversar.

Ela fez deslizar um dedo pela beira do copo, e Kevin reparou-lhe na ponta do dedo molhada.

- A tua mulher sabe que aqui estás? - perguntou-lhe Amber.

- A minha mulher está para fora - justificou-se ele. - Tem uma amiga doente e está a ajudá-la.

- Então, e tu lembraste-te de vir a um bar? A ver se encontravas alguma mulher?

- Eu não sou desse tipo - retorquiu ele com voz brusca. - Eu amo a minha mulher.

- E não fazes mais que a tua obrigação. Afinal de contas, casaste com ela, não foi?

Apetecia-lhe outra dose dupla de vodca, mas, dado que já pedira uma anteriormente à frente dela, conteve-se. Todavia, como se lhe lesse os pensamentos, Amber fez sinal ao barman e este trouxe-lhe a vodca. Kevin emborcou um gole enorme, ainda a pensar que lhe sabia a água.

- Fiz bem em pedir-te outra dose? - questionou-o ela.

- Fizeste - confirmou ele.

Amber fitou-o com uma expressão cheia de malícia.

- Se eu fosse a ti, não contava à tua mulher que cá estiveste.

- E por que não? - inquiriu ele.

- Porque és bonito de mais para uma espelunca destas. Nunca se sabe quem se poderia lembrar de se fazer a ti.

- Porquê, tu estás a fazer-te a mim?

Ela hesitou um instante antes de responder.

- Porquê, levarias a mal se eu dissesse que sim?

Kevin rodopiou o copo lentamente em cima do balcão.

- Não - assegurou-lhe. - Não levaria nada a mal.

Ao fim de mais duas horas passadas a beber e a namoriscar, decidiram ir para casa dela. Amber percebeu que Kevin queria manter a discrição e deu-lhe a sua morada. Depois de ela e de a amiga se terem ido embora, Kevin demorou-se mais cerca de meia hora no bar com Todd, até que por fim lhe disse que tinha de ir para casa, pois ficara de telefonar a Erin.

Pelo caminho, sentiu o mundo a turvar-se ao seu redor. Tinha os pensamentos confusos e conturbados, e sabia que estava a guinar para o lado, mas era um bom investigador. Mesmo que a polícia o mandasse parar, não seria detido, porque os polícias não se prendiam uns aos outros, e, afinal de contas, o que eram umas quantas bebidas?

Amber morava num apartamento a uns quarteirões de distância do bar. Bateu à porta e, quando ela veio atender, não trazia nada vestido para além do lençol em que vinha embrulhada. Beijou-a, levou-a para o quarto e sentiu os dedos dela a desapertarem-lhe a camisa. Deitou-a na cama, despiu-se e apagou a luz porque não se queria lembrar de que estava a enganar a mulher. O adultério era pecado e, agora que ali estava, não lhe apetecia ter relações com ela, mas estivera a beber, e o mundo estava turvo, e ela não tinha nada vestido por baixo do lençol, e era tudo tão confuso.

Amber não era como Erin. O corpo dela era diferente, as formas eram diferentes e o aroma dela também era diferente. Tinha um cheiro picante, quase animalesco, e as mãos mexiam-se sem parar, e tudo em Amber era para ele novidade, e ele não gostava, mas também não se conseguia conter. Ouviu-a chamar pelo nome dele, e dizer coisas indecentes, e teve vontade de lhe dizer que se calasse para poder pensar em Erin, mas custava-lhe concentrar-se porque era tudo tão confuso.

Apertou-lhe os braços e ouviu-a arquejar e dizer: “com tanta força não”, e afrouxou as mãos, mas depois tornou a apertá-la porque era isso que lhe apetecia fazer. Desta feita, ela não lhe disse nada. Pensou em Erin, e onde ela estaria, e se estaria bem, e lembrou-se uma vez mais das saudades que tinha dela.

Não deveria ter batido em Erin, porque era uma criatura meiga, bondosa e delicada e não merecia que lhe dessem murros e pontapés. A culpa de ela se ter ido embora era dele. Fora ele quem a afastara, apesar de a amar. Andara à procura dela e não a conseguira encontrar, e estivera em Filadélfia, e agora estava com uma mulher chamada Amber que não sabia o que havia de fazer às mãos e que fazia uns barulhos esquisitos, e estava tudo a correr mal.

Quando acabaram, Kevin quis ir-se logo embora. Levantou-se da cama e começou a vestir-se. Ela acendeu o candeeiro e sentou-se na cama. Ao vê-la, lembrou-se de que não era Erin e sentiu uma náusea súbita. A Bíblia dizia: “O homem que cometer adultério é um perfeito idiota, pois destrói a sua alma.”

Tinha de se afastar de Amber. Não sabia por que para ali fora e, só de olhar para ela sentia o estômago às voltas.

- Estás-te a sentir bem? - perguntou-lhe ela.

- Eu não devia estar aqui - disse-lhe ele. - Não devia ter vindo.

- Agora é um bocadinho tarde para te arrependeres - lembrou-lhe ela.

- Tenho de me ir embora.

- Assim, sem mais nem menos?

- Sou casado - reiterou ele.

- Eu sei. - Esboçou-lhe um sorriso abatido. - E não tem importância.

- Ai isso é que tem - insistiu ele e, logo que acabou de se vestir, saiu do apartamento dela, correu pelas escadas abaixo e entrou rapidamente no carro. Conduziu depressa, mas não guinou porque a culpa que o atormentava exercia um efeito estimulante sobre os seus sentidos. Ao chegar a casa, viu a luz dos Feldman acesa e teve a certeza de que eles iriam espreitar pela janela quando o ouvissem meter pelo acesso à garagem. Os Feldman eram maus vizinhos, nunca o cumprimentavam e estavam sempre a enxotar as crianças do seu relvado. Iriam adivinhar o que ele fizera porque eram más pessoas, e ele fizera uma coisa má, e aves da mesma pena juntam-se no mesmo bando.

Mal entrou em casa, sentiu necessidade de tomar uma bebida, mas só de pensar em vodca era suficiente para ficar agoniado, e tinha as ideias num turbilhão. Enganara a mulher, e a Bíblia dizia: “A sua vergonha não conhecerá fim.” Faltara a um mandamento de Deus, e faltara ao compromisso que assumira com Erin, e sabia que a verdade acabaria por vir à tona. Amber sabia, Todd sabia e os Feldman também sabiam, e eles iriam contar a alguém que, por sua vez, contaria a outra pessoa e Erin acabaria por descobrir o que ele fizera. Pôs-se a passarinhar pela sala de estar, a respiração cada vez mais acelerada porque sabia que não seria capaz de se explicar a Erin em termos que ela pudesse entender. Era sua mulher e nunca haveria de lhe perdoar. Zangar-se-ia com ele e mandá-lo-ia dormir no sofá e, na manhã seguinte, iria olhar para ele com ar desapontado, porque ele era um pecador, e ela nunca mais poderia confiar nele. Teve um arrepio e sentiu-se nauseado. Fora para a cama com outra mulher, e a Bíblia dizia: “Afasta-te do pecado sexual, da impureza, da luxúria e dos desejos indignos.” Era tudo tão confuso, e ele queria parar de pensar, mas não era capaz. Queria beber, mas não era capaz e teve a sensação de que Erin iria nesse momento entrar-lhe pela porta.

A casa estava suja e desarrumada, e Erin acabaria por descobrir o que ele fizera, e, mesmo com os pensamentos numa desordem total, sabia que estas duas coisas estavam ligadas. Passarinhava pela sala de estar como um desvairado. A sujidade e a traição estavam ligadas, porque trair era sujo, e Erin iria descobrir que ele a andara a trair porque a casa estava suja, e uma coisa estava ligada à outra. Subitamente, deteve-se, dirigiu-se à cozinha e foi buscar um saco do lixo debaixo do lava-louça. De volta à sala de estar, deixou-se cair de joelhos e começou a andar de gatas, enchendo o saco com embalagens vazias de comida, e revistas, e utensílios de plástico, e garrafas vazias de vodca, e caixas de pizza. A meia-noite já ia bem adiantada e, uma vez que Kevin não tinha de trabalhar na manhã seguinte, ficou acordado até tarde a limpar a casa, a lavar a louça e a aspirar com o aspirador que oferecera a Erin. Limpou tudo para que ela não descobrisse, porque sabia que a traição e a sujidade estavam ligadas. Pôs a roupa suja na máquina de lavar e, quando a roupa ficou pronta, secou-a e dobrou-a e em seguida tornou a pôr outra carga de roupa na máquina, a secá-la e a dobrá-la. O Sol nasceu, e Kevin retirou as almofadas do sofá e aspirou-as até não restar sinal de migalhas. Enquanto se atarefava, ia olhando de relance pela janela, sabendo que Erin não tardaria a chegar a casa. Esfregou a casa de banho, limpou as nódoas de comida do frigorífico e lavou o pavimento de linóleo com a esfregona. A alvorada cedeu lugar à manhã e depois à hora do almoço. Lavou os lençóis, abriu as cortinas e limpou o pó da moldura que tinha a fotografia do casamento de ambos. Cortou a relva, deitou as aparas no caixote do lixo e, quando se despachou, foi comprar peru, presunto e mostarda de Dijon e passou pela padaria para trazer pão de centeio. Comprou flores e colocou-as numa jarra em cima da mesa. Acendeu velas. Quando acabou, estava ofegante. Encheu um copo alto de vodca gelada e foi sentar-se à mesa da cozinha, à espera de Erin. Estava satisfeito porque limpara a casa, e isso significava que Erin nunca haveria de descobrir o que ele fizera e que teriam o tipo de casamento que ele sempre ambicionara. Iriam confiar um no outro e ser felizes, e ele iria amá-la para sempre, e nunca mais a iria enganar, porque, afinal, por que diabo haveria ele de fazer uma coisa tão repugnante como essa?

 

Katie obteve a carta de condução na segunda semana de Julho. Nos dias anteriores ao exame, Alex levou-a a conduzir com regularidade e, apesar dalguns nervos naturais, passou com um resultado quase perfeito. A carta chegou-lhe por correio poucos dias depois e, quando abriu o envelope, Katie sentiu uma ligeira tontura. Ali estava uma fotografia sua associada a um nome que nunca se imaginara a usar, mas, de acordo com o estado da Carolina do Norte, eram tão verídicos como os de qualquer outro residente.

Nessa noite, Alex levou-a a jantar a Wilmington. Depois, foram passear para as ruas da baixa de mãos dadas, a espreitar as montras das lojas. De quando em vez, dava por Alex a mirá-la com ar divertido.

- O que foi? - acabou ela por lhe perguntar.

- Estava aqui a pensar que não tens nada cara de Erin. Tens muito mais cara de Katie.

- E ainda bem que assim é - retorquiu ela. - É esse o meu nome e tenho uma carta de condução para o comprovar.

- Eu sei que sim - disse ele. - Agora só precisas dum carro.

- E para que é que eu preciso dum carro? - Encolheu os ombros. - A cidade é pequena, e eu tenho a minha bicicleta. E, quando estiver a chover, há uma pessoa que está sempre disposta a levar-me aonde eu precisar de ir. É quase como se tivesse um motorista.

- A sério?

- Nem mais. E tenho quase a certeza de que, se lhe pedisse, ele até me emprestava o carro. Tenho-o na palma da mão.

Alex arqueou uma sobrancelha.

- Não me soa a grande homem.

- É bom rapaz - provocou-o ela. - A princípio, parecia-me um bocadinho desesperado, sempre a dar-me amostras de tudo e mais alguma coisa, mas acabei por me habituar.

- Tens um coração de ouro.

- Isso ninguém discute - salientou ela. - Sou uma num milhão.

Alex riu-se.

- Ando cá desconfiado de que estás a começar a sair da casca e que só agora é que começo a vislumbrar-te como na realidade és.

Katie avançou meia dúzia de passos em silêncio.

- Tu conheces-me como na realidade sou - afirmou ela, detendo-se para o fitar.

- Melhor que qualquer outra pessoa.

- Eu sei - reconheceu Alex, puxando-a para junto dele.

- E é por isso que estou convencido de que, fosse lá de que maneira fosse, estávamos destinados a encontrar-nos.

Embora o movimento no armazém fosse o mesmo de sempre, Alex decidiu tirar férias. Já lá ia algum tempo, e passou quase todas as tardes na companhia de Katie e dos filhos, desfrutando dos dias ociosos de Verão como não fazia desde a infância. Pescou com Josh e construiu casas de bonecas a Kristen; levou Katie a um festival de jazz em Myrtle Beach. Quando os pirilampos fizeram a sua aparição em força, apanharam dúzias deles com a ajuda de redes e enfiaram-nos dentro dum frasco; nessa noite, observaram-lhes o brilho fantasmagórico com um misto de espanto e de fascínio, até que Alex finalmente os libertou.

Deram passeios de bicicleta e foram ao cinema e, nas noites em que Katie não trabalhava, Alex gostava de acender o grelhador. As crianças comiam e nadavam no rio até quase ao anoitecer. Depois de tomarem duche e de irem para a cama, Alex sentava-se com Katie no pequeno ancoradouro das traseiras, as pernas de ambos a baloiçarem sobre a água, enquanto a Lua cruzava lentamente o céu. Saboreavam vinho e conversavam de tudo um pouco, e Alex foi apreciando cada vez mais aqueles momentos tranquilos a dois.

Kristen, em especial, adorava a companhia de Katie. Quando saíam os quatro para passear, a menina gostava de lhe dar a mão; quando caía no parque infantil, era a Katie que ela recorria. Apesar de estas cenas lhe acalentarem o coração, Alex nunca deixava de sentir também uma pontada de tristeza, pois lembrava-se de que, por muito que se esforçasse, nunca poderia ser para a filha tudo o que ela precisava. Ainda assim, de cada vez que Kristen vinha a correr ter com ele a pedir-lhe se podia ir às compras com Katie, Alex não tinha coragem de lhe dizer que não. Embora nunca deixasse de a levar às compras uma ou duas vezes por ano, tinha tendência a encarar essas saídas mais como um dever parental que como uma oportunidade de distracção. Katie, pelo contrário, parecia deliciar-se com a ideia. Depois de lhe dar algum dinheiro, Alex entregava-lhe as chaves do jipe e ficava a acenar-lhes em despedida enquanto as via sair do parque de estacionamento.

Por muito feliz que Kristen se sentisse com a presença de Katie, os sentimentos de Josh não eram tão óbvios. Na véspera, Alex fora buscá-lo a casa dum amigo depois duma festa numa piscina e Josh não abrira a boca para falar nem com o pai nem com Katie o resto da noite. Durante a manhã, passada na praia, mostrara-se igualmente abatido. Alex sabia que havia qualquer coisa a preocupá-lo e, quando o crepúsculo se estava a instalar, sugerira-lhe que fossem os dois buscar as canas de pesca. As sombras começavam a projectar-se sobre a água enegrecida, e o rio estava tranquilo, um espelho escuro a reflectir as nuvens que vogavam lentamente ao sabor da brisa.

Ficaram a pescar durante cerca duma hora enquanto o céu passava a violeta, em seguida a índigo, os engodos a deixar atrás de si uma ondulação circular depois de embaterem na água. Josh manteve um silêncio pouco habitual. Noutras circunstâncias, Alex poderia ter apreciado a tranquilidade do quadro, agora, porém, tinha a sensação incomodativa de que alguma coisa não estava bem. Todavia, quando se preparava para perguntar ao filho o que se passava, Josh voltou-se repentinamente para ele.

- Pai?

- O que foi?

- Costumas pensar muito na mãe?

- Nunca me sai do pensamento - confessou-lhe ele.

Josh assentiu com a cabeça.

- Eu também penso muito nela.

- E fazes tu muito bem. Ela gostava muito de ti. E o que é que te lembras dela?

- Lembro-me de que ela nos fazia biscoitos. Deixava-me aplicar a cobertura de glacê.

- Também me lembro disso. Tu ficavas com a cara toda suja de glacê cor-de-rosa. Numa das vezes, ela tirou-te uma fotografia. Ainda está na porta do frigorífico.

- Acho que é por isso que me lembro. - Segurou a cana no colo. - Tens saudades dela, papá?

- Está claro que tenho. Eu gostava muito dela - assegurou-lhe Alex, sustendo o olhar do filho. - O que é que se passa, Josh?

- Na festa de ontem... - Josh esfregou o nariz, hesitante.

- O que foi que aconteceu?

- Quase todas as mães ficaram lá até ao fim. A conversar umas com as outras, e isso assim.

- Se me tivesses pedido, eu também não me importaria de lá ter ficado.

Josh baixou o olhar e, por entre o silêncio, Alex percebeu subitamente o que o filho deixara por dizer.

- Eu deveria lá ter ficado, não era? Era uma espécie de encontro entre pais e filhos? - O seu tom tinha mais de afirmativo que de indagador. - Mas tu não me quiseste dizer porque eu teria sido o único pai a aparecer por lá, não era?

Josh assentiu com a cabeça, fazendo um ar culpado.

- Não quero que te zangues comigo.

Alex enlaçou o braço em volta do filho.

- Não estou zangado - aquietou-o.

- Tens a certeza?

- Absoluta. Seria incapaz de me zangar contigo por uma coisa dessas.

- Achas que a mãe teria ido? Se ainda aqui estivesse?

- Está claro que sim. Não teria perdido a festa por nada deste mundo.

Na extremidade mais afastada do rio, um salmonete deu um pulo, e a leve ondulação que se formou ao seu redor foi-se aproximando de ambos.

- O que é que fazes quando vais sair com a Miss Katie? - questionou-o ele.

Alex ajeitou-se para se pôr mais à vontade.

- Mais ou menos o mesmo que fizemos hoje na praia. Comemos, conversamos e, às vezes, damos um passeio.

- Ultimamente tens passado muito tempo com ela.

- É verdade.

Josh reflectiu por uns instantes.

- E sobre o que é que conversam?

- Só de assuntos banais. - Alex inclinou a cabeça ligeiramente de lado. - E conversamos também a teu respeito e da tua irmã.

- E o que é que dizem?

- Dizemos que nos divertimos imenso quando estamos com vocês, e que tu tens óptimas notas na escola, e que tens o teu quarto sempre muito bem arrumado.

- E vais contar-lhe que eu não te avisei de que devias ficar na festa?

- Queres que eu lhe conte?

- Não - respondeu ele.

- Nesse caso, não lhe direi nada.

- Prometes-me? Porque eu não quero que ela se zangue comigo.

Alex empunhou os dedos.

- Palavra de escuteiro. Mas fica desde já sabendo que, ainda que eu me zangasse contigo, ela não se zangaria de certeza. Ela acha que és um miúdo fantástico.

Josh sentou-se mais direito e começou a enrolar a linha.

- Óptimo - congratulou-se ele. - Porque eu também acho que ela é fantástica.

A conversa que travara com Josh manteve Alex acordado toda a noite. Deu por ele a examinar o retrato de Carly que tinha no quarto enquanto saboreava a terceira cerveja dessa noite.

Nesse dia, Kristen e Katie tinham regressado a casa, mostrando-lhe, cheias de energia e de entusiasmo, as roupas que tinham comprado.

Para sua grande surpresa, Katie devolveu-lhe quase metade do dinheiro, limitando-se a dizer-lhe que tinha muito jeito para desencantar artigos em promoção. Alex sentou-se no sofá, a ver Kristen a desfilar para ele com uma das suas indumentárias novas e a voltar-lhe costas de seguida para tornar a aparecer com outra coisa completamente diferente vestida. Até mesmo o irmão, que, em circunstâncias normais, não lhe teria prestado a mínima atenção, pôs o Nintendo de parte e, aproveitando Kristen ter saído da sala, chegou-se a Katie.

- Não se importa de também me levar às compras? - perguntou-lhe, a voz que mal se ouvia. - É que estou a precisar dumas camisolas e dumas coisas assim.

Mais tarde, Alex encomendou comida chinesa e sentaram-se à mesa, a comer e a rir. A dada altura do jantar, Katie retirou uma pulseira de cabedal do pulso e virou-se para Josh.

- Esta pulseira pareceu-me bastante fixe - disse ela entregando-lha. Ao pô-la, a surpresa dele cedeu lugar à satisfação, e Alex reparou que o filho passou o resto do serão embevecido a olhar para Katie.

Por irónico que parecesse, era em momentos assim que mais sentia a falta de Carly. Embora a mulher nunca tivesse desfrutado de serões como aquele em família, uma vez que, quando morrera, os filhos ainda eram muito pequenos, não teve dificuldade em imaginá-la à mesa.

Talvez fosse este o motivo por que não conseguiu dormir, mesmo muito depois de Katie ter voltado para casa e de Kristen e de Josh terem ido para a cama. Afastou os lençóis, dirigiu-se ao roupeiro e abriu o cofre que ali instalara uns anos atrás. Era ali que guardava os documentos mais importantes relativos às finanças e aos seguros, empilhados ao lado de tesouros que amealhara no decorrer do casamento. Eram objectos que Carly fora coleccionando: fotografias da lua-de-mel de ambos, um trevo de quatro folhas que tinham encontrado durante umas férias passadas em Vancouver, o ramo de peónias e de copos-de-leite que ela levara no dia do casamento, ecografias de Josh e de Kristen enquanto ainda estavam na barriga da mãe, assim como as roupas que cada um tinha usado no regresso da maternidade. Negativos de fotografias e CD com fotografias, crónicas dos anos que tinham passado juntos. Aqueles objectos estavam carregados de significados e de recordações e, desde a morte de Carly, Alex não depositara mais nenhum no cofre à excepção das cartas que Carly escrevera. Uma delas fora-lhe endereçada a ele. A segunda, porém, não tinha nome e continuava por abrir. Nem Alex a poderia abrir - afinal de contas, uma promessa era uma promessa.

Retirou a carta que lera uma centena de vezes, deixando as restantes dentro do cofre. Só ficara a par da existência das cartas quando Carly lhe entregara os envelopes menos duma semana antes de morrer. Nessa altura, já estava confinada à cama e só consumia líquidos. Quando ele a levava ao colo para o quarto, sentia-a leve como uma pena, como se alguém a tivesse esvaziado. Alex passava as escassas horas em que a mulher estava acordada à sua cabeceira, em silêncio. Em geral, ela tornava rapidamente a adormecer, e ele deixava-se ficar a olhar para ela, dividido entre o receio de se ir embora, não fosse Carly precisar dele, e o receio de continuar ali e de lhe perturbar o descanso. No dia em que a mulher lhe entregou os envelopes, reparou que estes haviam sido enfiados entre os lençóis e aparecido como por um passe de mágica. Só mais tarde ele viria a saber que Carly escrevera as cartas dois meses antes e que as tinha deixado ao cuidado da mãe.

Alex abriu então o envelope e retirou a carta já muito manuseada. Estava redigida numa folha de papel A4 amarelo. Ao aproximá-la das narinas, sentiu o aroma do creme que ela costumava usar. Recordava-se da surpresa que revelara nesse momento e do olhar dela a suplicar a sua compreensão.

- Queres que eu leia primeiro esta? - recordava-se ele de ter perguntado. Apontou para a que lhe estava endereçada, e Carly confirmou-lhe com um ligeiro aceno de cabeça. Descontraiu ao vê-lo retirar a carta de dentro do envelope, a sua cabeça a enterrar-se na almofada.

Meu querido Alex,

Há sonhos que nos visitam e que nos deixam realizados ao acordar, há sonhos que fazem que a vida valha a pena. Tu, meu querido marido, és esse sonho, e entristece-me ser obrigada a pôr por palavras o que sinto por ti.

Escrevo-te esta carta neste momento, enquanto ainda me restam forças, mas, apesar disso, não tenho a certeza de ser capaz de transmitir o que quero dizer. Não tenho o dom da escrita, e as palavras parecem-me agora tão desadequadas. Como poderei eu descrever o quanto te amo? Será de facto possível descrever um amor assim? Não sei, contudo, aqui sentada de caneta na mão, sei que não posso deixar de tentar.

Bem sei que gostas de contar a história de como eu me fiz de difícil, contudo, quando me lembro da noite em que nos conhecemos, julgo que logo nesse instante me apercebi de que estávamos destinados a ficar juntos. Recordo-me claramente dessa noite, tal como me recordo perfeitamente da sensação da tua mão na minha e de todos os pormenores da tarde nublada passada na praia em que te apoiaste num joelho e me pediste em casamento. Só quando surgiste na minha vida é que me apercebi do muito que andava a perder. Não fazia ideia de que um toque poderia conter tanto significado nem que uma expressão pudesse ser tão eloquente; não fazia ideia de que um beijo me pudesse tirar literalmente o fôlego. Tu és, e sempre serás, tudo aquilo que eu sempre desejei num marido. És bondoso e forte, atencioso e inteligente; tens o dom de me levantar o ânimo e és muito melhor pai que possas imaginar. Tens um jeito inato para lidar com crianças, para as. levar a confiar em ti, e nem tenho palavras para te descrever a alegria que sinto quando as vejo adormecer com a cabeça encostada no teu ombro.

A minha vida é infinitamente melhor por tu teres entrado nela. E é precisamente isso que torna este momento tão difícil; é por isso que me custa tanto encontrar as palavras necessárias. Assusta-me saber que tudo isto irá acabar em breve. Os meus receios, porém, não se prendem apenas comigo - prendem-se também contigo e com os nossos filhos. É para mim um enorme desgosto saber que vos vou causar tanto sofrimento, mas não sei o que posso fazer, para além de te recordar dos motivos que me levaram a apaixonar-me por ti e de expressar o meu pesar por te ir magoar a ti e aos nossos lindos filhos. Dói-me saber que o amor que me tens irá ser também a fonte de tanta angústia.

Contudo, estou firmemente convicta de que, apesar de fazer sofrer, o amor também é capaz de curar... e é por isso que decidi escrever outra carta.

Por favor, não a leias. Não é dirigida a ti, nem às nossas famílias, nem sequer aos nossos amigos. Tenho sérias dúvidas de que algum de nós dois já tenha conhecido a mulher a quem tu irás entregar esta carta. Sabes, ela destina-se à mulher que acabará por te curar, à mulher que irá tornar a fazer de ti um ser completo.

Neste momento, sei que esta ideia é impensável para ti. Poderá levar meses, anos até, mas chegará o momento em que irás entregar esta carta a outra mulher. Confia na tua intuição, tal como eu confiei na primeira noite em que tu vieste ter comigo. Saberás quando e onde fazer isso, tal como saberás qual será a mulher que a merece. E, quando isso acontecer, acredita em mim quando te digo que algures, dalguma maneira, eu estarei a sorrir a ambos.

com amor,

Carly

Depois de ler a carta uma vez mais, Alex tornou a metê-la dentro do envelope e a guardá-la no cofre. Para lá da janela, o céu estava repleto de nuvens iluminadas pela Lua e transmitia uma incandescência fantasmagórica. Dirigiu o olhar para o alto, a pensar em Carly e em Katie. Carly aconselhara-o a confiar na sua intuição; Carly garantira-lhe que saberia que destino dar à carta.

E Carly, apercebeu-se ele subitamente, tivera toda a razão, pelo menos em parte. Alex sabia que queria entregar a carta a Katie. Só não tinha a certeza se ela estaria preparada para a receber.

 

- Ei, Kevin. - Bill apontou para ele. - Não te importas de vir aqui num instante ao meu gabinete?

Kevin estava quase a chegar à sua secretária, e Coffey e Ramirez seguiram-no com o olhar. O seu novo parceiro, Todd, já estava sentado no seu posto e rasgou-lhe um sorriso tímido, contudo, ainda ele não tinha voltado costas e já o sorriso tinha desaparecido.

Kevin sentia a cabeça a latejar e não estava com disposição para falar com Bíll logo pela manhã. Não que estivesse preocupado. Tinha jeito para lidar com as testemunhas e com as vítimas, percebia quando os criminosos estavam a mentir, fazia imensas detenções e os criminosos eram condenados.

Bill fez-lhe sinal para que se sentasse numa cadeira e, embora contrafeito, acedeu, admirado por o chefe lhe dizer para que se sentasse, pois, quando falavam, em geral ele ficava de pé. Doía-lhe a cabeça como se lhe estivessem a cravar um lápis, e, durante uns instantes, Bill limitou-se simplesmente a olhar para ele. Por fim, o comandante da esquadra levantou-se para fechar a porta e empoleirou-se na beira da secretária.

- Como tens passado, Kevin?

- Está tudo bem - respondeu-lhe. Apetecia-lhe fechar os olhos para aliviar as dores, mas percebia que Bill o estava a avaliar.

- O que é que se passa?

O chefe cruzou os braços diante do peito.

- Chamei-te aqui para te informar de que recebemos uma queixa contra ti.

- Que espécie de queixa?

- O caso é sério, Kevin. A Administração Interna está implicada e, a partir deste momento, estás suspenso até ao final da investigação.

As palavras soaram-lhe confusas, sem qualquer sentido discernível, pelo menos a princípio, mas, à medida que se concentrava, ia reparando na expressão de Bill e desejando que não tivesse acordado cheio de dores de cabeça e não precisasse de tanta vodca.

- De que é que está para aí a falar?

Bill levantou meia dúzia de páginas de cima da secretária.

- O homicídio Gates - declarou ele. - O rapazinho que foi alvejado através do tecto? No início deste mês?

- Estou lembrado - assentiu Kevin. - Tinha a testa suja de molho de pizza.

- Desculpa?

Kevin pestanejou.

- O rapaz. Foi assim que fomos dar com ele. Foi horrível. O Todd ficou bastante abalado.

Bill franziu a testa.

- Chamaram uma ambulância - afirmou ele.

Kevin inspirou e expirou. A tentar concentrar-se.

- Foi para a mãe - explicou ele ao chefe. - Ela estava transtornada, como é natural, e foi a correr atrás do grego que disparou a arma. Engalfinharam-se um no outro, e ela tombou pela escada abaixo. Nós chamámos imediatamente a ambulância... Ao que sei, foi levada para o hospital.

Bill continuou a fitá-lo, até que por fim pôs as páginas de lado.

- Então, falaste com ela antes de isso acontecer?

- Eu bem tentei... mas ela estava completamente histérica. Tentei acalmá-la, mas começou a disparatar comigo. Que mais quer que lhe adiante? Está tudo no relatório.

Bill tornou a pegar nos papéis que tinha em cima da secretária.

- Eu li o que tu escreveste. Mas a mulher alega que foste tu quem a mandou atirar o culpado pela escada abaixo.

- O quê!?

Bill leu o que dizia nas páginas.

- Ela alega que tu começaste a falar em Deus e que lhe disseste, cito: “O homem era um pecador e merecia ser castigado porque a Bíblia diz: "Não matarás."“ Ela afirma ainda que tu lhe disseste que o mais certo seria o fulano ser posto em liberdade condicional, mesmo tendo morto o miúdo, e que, por isso, o melhor seria ela encarregar-se de lhe tratar da saúde. Porque os malfeitores merecem ser castigados. Alguma coisa disto faz sentido para ti?

Kevin sentia o sangue a subir-lhe às faces.

- Isso é ridículo - indignou-se ele. - Sabe que ela está a mentir, não sabe?

Ficou à espera de que o chefe concordasse prontamente com ele, que lhe garantisse que a Administração Interna o iria ilibar. Bill, porém, não fez nada disto. Ao invés, inclinou-se para a frente.

- O que foi exactamente que lhe disseste? Palavra a palavra.

- Eu não lhe disse nada. Perguntei-lhe o que se passara, e ela explicou-me, e eu vi o buraco no tecto e fui lá acima e prendi o vizinho depois de ele ter confessado que disparara a arma. Quando dei por mim, ela estava a atirar-se a ele.

Bill mantinha-se em silêncio, o olhar cravado em Kevin.

- Nunca lhe falaste em pecado?

- Não.

Levantou a folha de papel donde estava a ler.

- Nunca lhe disseste: “A vingança é minha, haverá de mas pagar, diz o Senhor.”

- Não.

- Nada disto te soa dalguma forma familiar?

Kevin sentiu a fúria a crescer no seu íntimo, mas obrigou-se a conter-se.

- Nada. É tudo mentira. O chefe já sabe como são as pessoas. O mais certo é ela querer processar o município para embolsar uma bela maquia.

O queixo de Bill tremia, e ele demorou muito tempo a responder.

- Estiveste a beber antes de falares com a mulher?

- Eu não faço ideia a que propósito vem isto. Não. Eu não faço isso. Seria incapaz de fazer isso. O chefe sabe que tenho a folha de serviços limpa. Sou um bom investigador. - Kevin estendeu os braços, quase cego da dor latejante que sentia na cabeça. - Vá lá, Bill. Há anos que trabalhamos juntos.

- E é esse o único motivo que me leva a falar contigo ao invés de te despedir. Porque a verdade é que há meses que deixei de te reconhecer. E tenho ouvido rumores.

- Que rumores?

- Que vens trabalhar bêbado.

- Isso não é verdade.

- Então, se eu te pedisse para soprares no balão, não iria acusar nada, é isso?

Kevin sentia o coração a martelar-lhe no peito. Sabia mentir de forma convincente, mas não podia permitir que a voz lhe vacilasse.

- Na noite passada, estive acordado até tarde com um amigo e estivemos a beber. É possível que ainda haja vestígios de álcool no meu organismo, mas não estou bêbado e não bebi antes de vir trabalhar esta manhã. Nem naquele dia, tão-pouco. Nem em dia nenhum, já agora.

Bill olhou-o atentamente.

- Conta-me o que é que se passa com a Erin - disse-lhe ele.

- Já lhe contei. Ela está a ajudar uma amiga em Manchester. Ainda há umas semanas estivemos em Cape Cod.

- Tu disseste ao Coffey que levaste a Erin a um restaurante de Provincetown, mas a verdade é que o restaurante fechou há seis meses e não há registo de teres estado na pensão que mencionaste. E há meses que ninguém põe a vista em cima da Erin, nem tão-pouco ouve falar nela.

Kevin sentiu o sangue a subir-lhe à cabeça, aumentando-lhe ainda mais as dores.

- Andou a investigar-me?

- Tu tens vindo bêbado para o emprego e tens andado a mentir-me.

- Eu não...

- Deixa-te de mentiras! - gritou-lhe o chefe abruptamente. - O teu hálito tresanda tanto que me chega aqui! - Os olhos dele chisparam de fúria. - E, a partir deste momento, estás suspenso do serviço. Aconselho-te a contactares o teu representante sindical antes de te reunires com a Administração Interna. Deixa a arma e o distintivo em cima da minha secretária e volta para casa.

- Por quanto tempo? - ainda conseguiu Kevin crocitar.

- Neste momento, a suspensão é a menor das tuas preocupações.

- Pois fique desde já sabendo que eu não disse nada àquela mulher.

- Eles ouviram-te! - gritou-lhe Bill. - O teu parceiro, o médico-legista, os investigadores presentes na cena do crime, o namorado. - Fez uma pausa, nitidamente a tentar recuperar a calma. - Toda a gente te ouviu - declarou ele em tom conclusivo e, de repente, Kevin teve a sensação de que perdera o controlo das rédeas da sua vida e sabia que a única culpada disso era Erin.

 

O mês de Agosto chegou e, apesar de Alex e de Katie estarem a desfrutar dos dias quentes e ociosos de Verão, as crianças começavam a dar sinais de tédio. Na tentativa de arranjar um programa original, Alex levou Katie e os filhos a ver o rodeio de macacos em Wilmington. Para total incredulidade de Katie, correspondia exactamente ao que o nome indicava: macacos, trajados de cowboys, que, montados em cães, andavam durante quase uma hora a arrebanhar carneiros. A isto seguiu-se um fogo-de-artifício digno de fazer inveja ao do 4 de Julho, o Dia da Independência. À saída, Katie virou-se para ele com um sorriso.

- Foi o espectáculo mais absurdo a que assisti na vida comentou ela, abanando a cabeça.

- E tu que pensavas que nós, aqui no Sul, não tínhamos cultura.

Ela soltou uma gargalhada.

- Aonde é que as pessoas vão desencantar estas ideias?

- Não sei. Mas ainda bem que soube da notícia. Eles só se vão demorar uns dias por cá. - Varreu o parque de estacionamento com o olhar à procura do jipe.

- Sem dúvida, é difícil imaginar a pobreza que não teria sido a minha vida se nunca tivesse visto macacos montados em cães.

- Os miúdos gostaram! - protestou Alex.

- Os miúdos adoraram! - acrescentou Katie. - Mas não me parece que os macacos tenham gostado. Ao que pude ver, não estavam nada satisfeitos.

Alex mirou-a de soslaio.

- Não estou a ver como é que se percebe se um macaco está satisfeito ou não.

- E é precisamente aí que eu quero chegar - ripostou ela.

- Olha, a culpa de ainda faltar um mês para começarem as aulas não é minha, e já não sabia aonde é que havia de levar os miúdos.

- Eles não precisam de fazer um programa diferente todos os dias.

- Eu sei. Nem tão-pouco fazem. Mas não quero que passem o dia todo diante da televisão.

- Os teus filhos não vêem muita televisão.

- Isso é porque os levo aos rodeios de macacos.

- E na semana que vem, o que será?

- Isso é fácil. Vai estar uma feira popular na cidade. Uma daquelas feiras itinerantes.

Katie sorriu-lhe.

- Aqueles carrosséis que lá há põem-me sempre o estômago às voltas.

- Mas os miúdos adoram-nos. O que, a propósito, me lembra duma coisa: vais trabalhar no próximo sábado?

-- Não sei bem. Porquê?

- Porque estava com esperança de que viesses à feira connosco.

- Queres que eu fique com o estômago às voltas?

- Se não quiseres, não és obrigada a andar nos carrosséis. Mas gostaria de te pedir um favor.

- Do que se trata?

- Se podias ficar a tomar conta dos miúdos nessa noite. O avião em que vem a filha da Joyce chega a Raleigh a essa hora, e a Joyce pediu-me se eu não me importava de a levar ao aeroporto para trazer a filha. A Joyce não gosta de conduzir de noite.

- Terei todo o gosto em ficar a tomar conta deles.

- Terá de ser em minha casa, para que eles possam ir para a cama a horas decentes.

Katie olhou para ele.

- Em tua casa? Mas eu nunca me demorei em tua casa.

- Pois, bem...

Ao ver que Alex estava sem saber o que dizer, ela sorriu-lhe.

- Não há problema - tranquilizou-o. - Promete ser divertido. Talvez vejamos um filme juntos enquanto comemos pipocas.

Alex percorreu uns passos em silêncio e por fim perguntou-lhe:

- Tencionas algum dia ter filhos?

Katie hesitou.

- Não tenho a certeza - disse-lhe. - Nunca pensei no assunto a sério.

- Nunca?

Ela abanou a cabeça.

- Quando morava em Atlantic City, ainda não tinha idade para isso, enquanto estive com o Kevin não suportava a ideia e nos últimos meses tenho tido outro tipo de preocupações.

- Mas, e se pensasses? - insistiu ele.

- Continuava sem ter a certeza. Creio que dependeria de muita coisa. E, tal como já sabes, não me posso casar.

- A Erin não se pode casar - corrigiu-a Alex. - Mas a Katie provavelmente poderia. Não te esqueças de que ela já tem carta de condução.

Katie deu alguns passos em silêncio.

- Talvez pudesse, mas só faria isso se conhecesse o homem certo.

Alex riu-se e envolveu-a nos seus braços.

- Eu sei que, quando para cá vieste, não tiveste outro remédio senão aceitar o emprego no Ivans, mas nunca pensaste fazer outra coisa?

- Como o quê, por exemplo?

- Não sei. Voltares para a faculdade, tirares uma licenciatura, arranjares um emprego que realmente te agrade.

- O que é que te faz pensar que eu não goste de servir à mesa?

- Nada. - Ele encolheu os ombros. - Só estava curioso quanto ao que te possa interessar.

Katie reflectiu um pouco.

- Na juventude, à semelhança de todas as raparigas minhas conhecidas, eu gostava de animais e pensava vir a ser veterinária. Mas, neste momento, já não faz sentido voltar para a faculdade para estudar isso. Levaria demasiado tempo.

- Há outras maneiras de trabalhar com animais. Podias treinar macacos de rodeio, por exemplo.

- Não me parece. Ainda não cheguei à conclusão de que os macacos se divertem.

- Tens um fraquinho por aqueles macacos, não tens?

- No meu lugar, quem não teria? Afinal de contas, quem será que se foi lembrar de semelhante ideia?

- Corrige-me se estiver enganado, mas tenho a impressão de te ter ouvido a rir.

- Não quis que vocês se sentissem culpados.

Alex soltou nova gargalhada e chegou-a ainda mais a ele. Mais adiante, Josh e Kristen já estavam encostados ao jipe. Katie percebeu que o mais certo seria adormecerem antes de regressarem a Southport.

- Não chegaste a responder à minha pergunta - disse-lhe Alex. - Acerca do destino que queres dar à tua vida.

- Talvez os meus sonhos não sejam assim tão complicados. Talvez eu ache que um emprego é apenas um emprego e pronto.

- E o que quer isso dizer?

- Talvez não queira ser definida pela profissão que tenho.

Ele ponderou na resposta dela.

- Está bem - disse por fim.

- Então, o que é que queres ser?

- Queres mesmo saber?

- Se não quisesse, não te teria perguntado, não achas?

Katie deteve-se e encarou-o.

- Gostava de ser esposa e mãe - confessou ela por fim.

Alex franziu o sobrolho.

- Mas eu julguei que tivesses dito que não querias ter filhos.

Ela inclinou a cabeça para o lado, mais bonita que ele algum dia a vira.

- E o que tem isso que ver para o caso?

As crianças adormeceram ainda não tinham chegado à auto-estrada. O trajecto não foi demorado, talvez meia hora, mas Alex e Katie mantiveram-se em silêncio para não correrem o risco de os acordar. Ao invés, seguiram de mãos dadas até Southport.

Quando Alex se preparava para estacionar à porta de casa dela, Katie reparou em Jo sentada nos degraus do seu alpendre, como se estivesse à espera dela. No escuro, não teve a certeza de que Alex reconhecera a amiga, contudo, nesse momento Kristen mexeu-se e ele virou-se para ver se a filha acordara. Katie chegou-se a ele e deu-lhe um beijo.

- Se calhar, é melhor eu ir falar com ela - murmurou Katie.

- com quem? com a Kristen?

- Não, com a minha vizinha. - Katie sorriu, apontando com a cabeça por cima do ombro. - Ou melhor, ela é que deve querer falar comigo.

- Oh! - Alex assentiu com a cabeça. - Está bem. - Depois de deitar uma olhadela ao alpendre de Jo, tornou a concentrar-se nela. - Passei uma noite óptima.

- Também eu.

Alex beijou-a antes de ela abrir a porta e, quando ele começou a fazer marcha atrás, encaminhou-se para casa de Jo. Ao vê-la sorrir-lhe e acenar-lhe, Katie sentiu-se descontrair ligeiramente. Não falavam desde a noite no bar e, à medida que ela se aproximava, Jo levantou-se e foi postar-se junto ao parapeito.

- Para começar, quero pedir-te desculpa pela maneira como falei contigo - disse ela sem rodeios. - Eu não tinha nada que me intrometer no assunto. Foi um erro da minha parte e não se tornará a repetir.

Katie subiu os degraus do alpendre e sentou-se, indicando a Jo que se instalasse a seu lado no primeiro degrau.

- Não tem importância - disse ela. - Eu não fiquei zangada contigo.

- Sinto-me péssima de cada vez que penso nisso - confessou Jo, deixando transparecer claramente os remorsos que sentia.

- Não sei o que foi que me passou pela cabeça.

- Pois eu cá sei - retorquiu Katie. - É óbvio. Tu preocupas-te com eles e fazes o possível por protegê-los.

- Eu não devia ter falado contigo daquela maneira. É por isso que te tenho andado a evitar. Fiquei envergonhada e com medo de que não me perdoasses.

Katie afagou-lhe o braço.

- Agradeço o pedido de desculpas, mas não é necessário. Na verdade, obrigaste-me a tomar consciência dalgumas coisas fundamentais a respeito de mim própria.

-- Ai sim?

Katie confirmou com um aceno de cabeça.

- E fica desde já sabendo que tenciono permanecer em Southport durante algum tempo.

- Um dia destes vi-te a conduzir.

- Até custa a crer, não custa? Ainda não me sinto completamente à vontade ao volante.

- Isso virá com o tempo - assegurou-lhe a amiga. - E sempre é melhor que a bicicleta.

- Eu continuo a andar de bicicleta todos os dias - disse ela. - Não tenho dinheiro para comprar um carro.

- Eu oferecia-me para te emprestar o meu, mas está outra vez na oficina. Aquela geringonça passa a vida a avariar-se. Se calhar, com uma bicicleta ficava mais bem servida.

- Tem cuidado com o que desejas.

- Já pareces eu a falar. - Jo apontou com a cabeça em direcção à estrada. - Fico feliz por ti e pelo Alex. E pelos miúdos também. Não sei se já reparaste, mas tu fazes-lhes bem.

- Como é que podes ter tanta certeza?

- Porque já percebi a maneira como ele olha para ti. E a maneira como tu olhas para todos os três.

- Nós passamos muito tempo juntos - justificou-se ela em tom evasivo.

Jo abanou a cabeça.

- É mais que isso. Basta olhar para vocês para ver que estão apaixonados. - Ficou um tanto ou quanto embaraçada ao ver Katie corar. - Pronto, confesso. Embora não tenhas dado por isso, digamos que vi a maneira como vocês se beijam quando se despedem.

- Tu andaste a vigiar-nos? - Katie fingiu-se de escandalizada.

- Está claro que sim. - Jo soltou uma gargalhada. - Afinal, com que mais é que tu esperas que eu ocupe o meu tempo? Não se pode dizer que este sítio seja fértil em acontecimentos. - Fez uma pausa. - Tu gostas mesmo dele, não gostas?

Katie assentiu com a cabeça.

- E dos filhos dele também.

- Fico muito feliz por isso. - Jo uniu as mãos como se estivesse a rezar.

Após uma breve hesitação, Katie perguntou-lhe:

- Chegaste a conhecer a mulher dele?

- Sim - confirmou Jo.

Katie dirigiu o olhar para o fundo da rua.

- E como é que ela era? Quero dizer, o Alex já me falou dela, e eu sou mais ou menos capaz de imaginá-la...

Jo não a deixou concluir.

- com base naquilo que vi, era bastante parecida contigo. E digo isto como um elogio. Adorava o Alex e adorava os filhos. Eram o que de mais importante tinha na vida. É tudo quanto precisas de saber a respeito dela.

- Achas que ela teria gostado de mim?

- Acho - respondeu Jo. - Tenho a certeza de que ela teria gostado imenso de ti.

 

Era Agosto, e fazia um calor sufocante.

Kevin recordava-se vagamente de ter visto uma ambulância à porta dos Feldman, mas não dera atenção a isso porque os Feldman eram maus vizinhos, e ele não queria saber deles para nada. Só agora se apercebia de que Gladys Feldman morrera e que havia automóveis estacionados de ambos os lados da rua. Kevin recebera uma suspensão de duas semanas e não gostava de ver carros estacionados diante de sua casa, mas as pessoas estavam ali para o funeral, e Kevin não tinha forças para lhes pedir que fossem estacionar noutro lado.

Desde que fora suspenso, raramente tomava banho. Ficou sentado no alpendre, a beber directamente pela garrafa, a ver um corrupio de gente a entrar e a sair de casa dos Feldman. Sabia que o funeral se iria realizar nessa tarde e que aquelas pessoas estavam em casa dos vizinhos porque iriam todas juntas para o funeral.

Nunca mais falara com Bill, nem com Coffey, nem com Ramirez, nem com Todd, nem com Amber, nem sequer com os pais. Não havia embalagens de pizza no chão da sala de estar nem restos de comida chinesa no frigorífico porque não lhe apetecia comer. A vodca chegava-lhe e bebeu-a até a casa dos Feldman não passar duma mancha indistinta. Do lado oposto da rua, viu uma mulher sair de casa para fumar um cigarro. Trazia, um vestido preto, e Kevin perguntou-se se saberia que os Feldman tinham o hábito de gritar com os miúdos da vizinhança.

Pôs-se a olhar para a mulher porque não queria ver o canal de casa e jardinagem na televisão. Erin costumava ver esse canal, mas ela fugira para Filadélfia, e passara a chamar-se Eriça, e depois desaparecera e ele fora suspenso do emprego, mas antes disso fora um bom investigador.

A mulher de preto acabou de fumar o cigarro, atirou a beata para a relva e pisou-a. Varreu a rua com o olhar e reparou nele sentado no alpendre. Após uma breve hesitação, ela atravessou a rua para se acercar dele. Kevin não a conhecia; nunca a vira na vida.

Apesar de não fazer a mais pequena ideia do que ela queria, pousou a garrafa, e desceu os degraus do alpendre. Ela deteve-se no passeio à porta de sua casa.

- Você é o Kevin Tierney? - interpelou-o a mulher.

- Sou - confirmou ele, e a sua própria voz soou-lhe estranha aos ouvidos porque havia dias que não falava.

- Sou a Karen Feldman - apresentou-se ela. - Os meus pais moravam em frente a sua casa. Larry e Gladys Feldman? - Fez uma pausa, mas, ao ver que Kevin mantinha a reserva, prosseguiu: - Estava aqui a pensar se a Erin tenciona ir ao funeral?

Kevin ficou a olhar para ela embasbacado.

- A Erin? - disse ele por fim.

- Sim. Os meus pais gostavam imenso das visitas que ela lhes fazia. Ela costumava fazer-lhes tartes e às vezes ajudava a minha mãe na lida da casa, sobretudo depois de a minha mãe adoecer. Cancro dos pulmões. Foi horrível. - Abanou a cabeça. - A Erin anda por aí? Estava com esperança de a encontrar. O funeral começa às duas.

- Não, não está. Está a ajudar uma amiga em Manchester.

- Oh... bom, então, está bem. Tenho muita pena. Peço desculpa pelo incómodo.

A mente dele começou a desanuviar e reparou que ela se preparava para ir embora.

- Os meus pêsames, já agora. Eu informei a Erin, e ela ficou cheia de pena de não poder comparecer. Entregaram-lhe as flores?

- Oh, é provável que sim. Não verifiquei. A casa funerária está a abarrotar delas.

- Não tem importância. Quem me dera que a Erin aqui estivesse.

- Também a mim. Sempre tive vontade de a conhecer. A minha mãe costumava dizer que ela lhe fazia lembrar a nossa Katie.

- A vossa Katie?

- A minha irmã mais nova. Faleceu vai para seis anos.

- Lamento saber disso.

- Também eu. Todos sentimos a falta dela... sobretudo a minha mãe. Era por isso que ela se dava tão bem com a Erin. Até fisicamente eram parecidas. Da mesma idade e tudo. - Se Karen reparou na expressão atónita de Kevin, não deu sinais disso. - A minha mãe costumava mostrar à Erin o álbum de recortes que fizera da Katie... A sua mulher tinha sempre imensa paciência para a minha mãe. É uma mulher encantadora. Você é um homem cheio de sorte.

Kevin obrigou-se a sorrir.

- Pois, eu sei.

Sempre fora um bom investigador, mas na verdade havia ocasiões em que as soluções vinham ter com ele por mera sorte. Novas provas que vinham à tona, uma testemunha desconhecida que aparecia, uma câmara de filmar na rua que apanhava uma matrícula. No seu caso, a pista chegara-lhe por intermédio duma mulher vestida de preto chamada Karen Feldman, que atravessara a rua numa manhã em que Kevin estivera a beber e lhe falara na falecida irmã.

Apesar de a dor de cabeça ainda não lhe ter passado, deitou a vodca pelo cano e pôs-se a cogitar em Erin e nos Feldman. Erin conhecia-os e costumava visitá-los, embora nunca lhe tivesse mencionado que estivera em casa deles. Kevin telefonava-lhe e passava lá por casa inesperadamente, mas, sem perceber bem como, nunca descobrira. Erin nunca lhe contara e, quando se queixara de que eram maus vizinhos, nunca se dignara a responder-lhe.

Erin tinha um segredo.

Havia muito tempo que não sentia a mente tão lúcida. Tomou um duche e em seguida vestiu um fato preto. Preparou uma sanduíche de presunto e de peru com mostarda de Dijon, comeu-a e depois preparou outra e comeu-a também. A rua estava cheia de automóveis, e viam-se pessoas a entrar e a sair da casa. Karen veio cá fora e acendeu outro cigarro. Enquanto esperava, Kevin enfiou um pequeno bloco de notas e uma caneta dentro do bolso.

Ao início da tarde, as pessoas começaram a encaminhar-se para os respectivos veículos. Kevin ouviu os motores a pegar e, um a um, os automóveis foram-se afastando. Já passava da uma da tarde e dirigiam-se ao serviço fúnebre. Quinze minutos decorridos, já todos se tinham ido embora, e ele viu Karen a ajudar Larry Feldman a entrar para o carro. Karen sentou-se ao volante e arrancou e, por fim, deixou de haver automóveis na rua ou no acesso à garagem.

Aguardou mais dez minutos a fim de ter a certeza de que todos se tinham ido embora e saiu de casa. Atravessou o relvado, deteve-se momentaneamente ao chegar à rua e dirigiu-se à residência dos Feldman. Não se apressou nem tentou disfarçar a sua presença. Reparou que muitos vizinhos tinham ido ao funeral e aqueles que não tinham lembrar-se-iam simplesmente dum indivíduo vestido de luto. Acercou-se da porta da rua, mas estava trancada. Decidiu então contornar a casa e experimentar as traseiras. Aí, encontrou uma porta e, vendo que estava no trinco, abriu-a e entrou.

Lá dentro, reinava o silêncio. Fez uma pausa, à espera de ouvir vozes ou passos, mas estava tudo sossegado. Havia copos de plástico em cima da bancada da cozinha e pratos com restos de comida em cima da mesa. Percorreu a casa. Tinha tempo, mas não sabia ao certo quanto, e decidiu começar pela sala de estar. Foi abrindo e fechando as portas dos armários, deixando tudo tal como estava. Vasculhou a cozinha e o quarto e, por fim, chegou ao escritório. Deparou com prateleiras cheias de livros, uma cadeira reclinável e um televisor. Ao canto, havia um pequeno arquivo.

Dirigiu-se ao arquivo e abriu-o. Passou uma breve revista às etiquetas. Encontrou uma pasta intitulada Katie. Puxou por ela, abriu-a e examinou-lhe o conteúdo. Era um artigo de jornal - ela morrera afogada quando tentara atravessar um lago ali próximo em pleno Inverno e o gelo se partira - e fotografias dos seus tempos de escola. Na fotografia de finalista do secundário, apresentava muitas semelhanças com Erin. No fim da pasta, encontrou um envelope. Abriu-o e deparou com um antigo boletim de notas. Foi então que reparou num número da segurança social escrito no envelope e anotou-o no bloco que levava dentro do bolso. Não encontrou o cartão da segurança social, mas estava de posse do número. A certidão de nascimento era uma cópia e estava gasta e enrugada, como se alguém tivesse amarfanhado o papel e em seguida tornado a endireitá-lo.

Já tinha tudo quanto precisava e podia ir-se embora. Mal chegou a casa, entrou em contacto com o polícia da outra esquadra, aquele que andava a levar a baby-sitter para a cama. No dia seguinte, recebeu um telefonema.

Katie Feldman tirara recentemente a carta de condução e dera uma morada de Southport, na Carolina do Norte.

Kevin pousou o auscultador sem mais uma palavra, ciente de que a encontrara.

A Erin.

 

Os resquícios duma tempestade tropical varreram Southport, e a chuva caiu durante quase toda a tarde até ao anoitecer. Katie fez o turno do almoço, mas o mau tempo prejudicou o movimento no restaurante, e Ivan deixou-a sair mais cedo. Ela tinha pedido o jipe de Alex emprestado e, após uma hora passada na biblioteca, foi entregar-lho ao armazém. Quando Alex a foi levar a casa, Katie convidou-o a ir lá jantar com os filhos.

Passou o resto da tarde mergulhada numa profunda ansiedade. Fez o possível por se convencer de que isso se devia ao mau tempo, contudo, postada à janela da cozinha a ver os galhos a vergarem-se ao vento e a chuva a cair em bátegas, Katie percebeu que o seu estado de espírito se prendia mais com a sensação inquietante de que, ultimamente, a vida lhe parecia demasiado perfeita. O seu relacionamento com Alex e as tardes que passava com os filhos dele preenchiam-lhe um vazio por cuja existência não tinha dado, mas havia muito que aprendera que nada que valia a pena durava para sempre. A felicidade era fugaz como uma estrela cadente que cruzava o céu nocturno, pronta a extinguir-se a todo o momento.

Nessa tarde, quando estava na biblioteca, acedera à edição digital do The Boston Globe num dos computadores e deparara com o obituário de Gladys Feldman. Mesmo antes de partir, já sabia que Gladys estava doente, que sofria dum cancro em fase terminal. Apesar de andar havia algum tempo a consultar os obituários de Boston, a breve descrição da sua vida e dos herdeiros atingiu-a com uma intensidade inesperada.

Sentira uma relutância extrema em retirar a identificação do arquivo dos Feldman, sendo que só considerara de facto essa possibilidade quando Gladys fora buscar a pasta para lhe mostrar a fotografia da cerimónia de formatura de Katie. Reparara na certidão de nascimento e no cartão da segurança social ao lado da fotografia e reconhecera a oportunidade que se lhe apresentava. Da vez seguinte em que estivera lá em casa, aproveitara a desculpa de ter de ir ao quarto de banho e, em lugar disso, dirigira-se ao arquivo. Mais tarde, enquanto, na cozinha, saboreava uma tarte de mirtilo na companhia do casal, tivera a sensação de que os documentos lhe queimavam os bolsos. Uma semana decorrida, depois de tirar uma fotocópia da certidão na biblioteca e de a dobrar e amarrotar para lhe dar um aspecto envelhecido, tornou a guardar o documento no arquivo. Tencionara fazer o mesmo ao cartão da segurança social, mas não conseguira fazer uma boa cópia e tinha a esperança de que, caso dessem pela sua falta, julgassem que se perdera ou estava no sítio errado.

Recordou a si própria que Kevin jamais seria capaz de descobrir o que ela fizera. Ele não gostava dos Feldman, e o sentimento era mútuo. Katie suspeitava de que o casal sabia que o marido lhe batia. Detectava-lhes isso mesmo nos olhos sempre que a viam a atravessar a rua a correr para os visitar, ou quando fingiam não reparar nas nódoas negras que ela tinha nos braços, ou as suas expressões se retesavam de cada vez que mencionava Kevin. Agradava-lhe pensar que não lhe levariam a mal o acto que cometera, que até aprovariam que ela se tivesse apropriado dos documentos, porque sabiam que precisava deles e queriam que ela fugisse ao marido.

Eram as únicas pessoas de Dorchester de quem sentia saudades e perguntava-se como estaria Larry. Tinham-lhe dado provas de amizade num momento em que não tinha mais ninguém, e ela gostaria de poder dizer a Larry que lamentava a perda que este sofrera. Gostaria de poder chorar a seu lado, conversar com ele acerca de Gladys e dizer-lhe que, graças a ambos, levava agora uma vida muito melhor. Gostaria de lhe poder dizer que conhecera um homem que a amava, que era feliz pela primeira vez em muitos anos.

No entanto, não poderia fazer nada disto. Ao invés, limitou-se a sair para o alpendre e, com a vista toldada de lágrimas, ver a tempestade a arrancar as folhas das árvores.

- Tens estado muito calada esta noite - observou Alex. - Está tudo bem?

Katie preparara um guisado de atum para o jantar, e Alex estava a ajudá-la a lavar a louça. As crianças estavam na sala de estar, ambas entretidas com a consola dos videojogos; ela ouvia os bipes e os zunidos por entre o barulho da água a correr da torneira.

- Faleceu uma amiga minha - explicou-lhe ela, estendendo-lhe um prato para ele secar. - Eu já estava preparada, mas não deixo por isso de ficar triste.

- Ficamos sempre tristes - concordou Alex. - Os meus pêsames. - Conhecia Katie o suficiente para não insistir com ela para que entrasse em pormenores. Em lugar disso, ficou à espera de que fosse ela a fazê-lo; Katie, porém, passou outro copo por água e mudou de assunto.

- Achas que a tempestade está para durar? - indagou ela.

- Não me parece. Porquê?

- Estava aqui a pensar se a feira popular de amanhã não será cancelada. E o voo também, já agora.

Alex olhou de relance para a janela.

- Até lá, o tempo deve melhorar. O vento já está a levá-la para longe. Tenho quase a certeza de que já deve estar no fim.

- Vem mesmo a calhar - observou Katie.

- Claro. As forças da natureza não se atreveriam a estragar os planos dos organizadores da feira. E os da Joyce muito menos.

Ela esboçou um sorriso.

- Quanto tempo é que achas que vais levar a ir buscar a filha dela?

- Umas quatro ou cinco horas, é bem provável. Raleigh não fica propriamente à mão de semear.

- Por que é que ela não comprou um bilhete para Wilmington? Ou alugou um carro, por exemplo?

- Não faço ideia. Não lhe perguntei, mas acho que deve ter sido por assim lhe sair mais barato.

- É um gesto bonito da tua parte, ajudar a Joyce.

Alex encolheu os ombros com ar desprendido, indicando que não era nada por aí além.

- Amanhã vais divertir-te à grande.

- Na feira ou com os miúdos?

- Ambos. E, se me pedires com jeitinho, sou bem capaz de te levar a comer um gelado frito.

- Gelado frito? Deve ser nojento.

- Pelo contrário, é muito saboroso. “

- Mas vocês, nesta terra, fritam tudo?

- Se alguma coisa puder ser frita, acredita que alguém arranjará maneira de o fazer. No ano passado tivemos uma barraca que servia manteiga frita.

Katie por pouco não vomitava.

- Só podes estar a brincar comigo.

- Nem por sombras. Pode parecer-te horrível, mas havia quem fizesse fila para a comprar. Mais valia que se pusessem logo na fila dos ataques cardíacos.

Ela lavou e passou por água o último copo e em seguida estendeu-lho.

- Achas que os miúdos gostaram do jantar que eu fiz? A Kristen quase não tocou na comida.

- A Kristen não é de grande apetite. O que interessa é que eu gostei. Achei que estava uma delícia.

Katie abanou a cabeça.

- Claro, afinal de contas, o que interessa a opinião dos miúdos? O que importa é que tu fiques satisfeito.

- Peço desculpa. Sou narcisista por natureza.

Ela ensaboou um prato com a ajuda do esfregão e passou-o por água.

- Estou ansiosa por me demorar algum tempo em tua casa.

- Porquê?

- Porque vimos sempre para aqui, nunca para lá. Não me interpretes mal... Eu compreendo que foi a decisão mais correcta tendo em conta as crianças. - “E tendo em conta a Carly”, pensou ainda, mas preferiu calar-se. - Vai ser uma oportunidade para ver como tu vives.

Alex pegou no prato.

- Já lá estiveste anteriormente.

- Pois estive, mas só por pouco tempo e não passei da cozinha e da sala de estar. Não se pode dizer que tenha tido ocasião de ver o teu quarto ou de te ir espreitar o armário dos medicamentos.

- Se eu fosse a ti, não faria isso. - Alex fingiu-se de escandalizado.

- Olha que seria bem capaz, bastar-me-ia que me surgisse a oportunidade.

Ele secou um prato e guardou-o no armário.

- Estás à vontade para passar no meu quarto todo o tempo que te apetecer.

Ela riu-se.

- Mas que grande macho me saíste!

- Estou só a dizer que não me importaria. E também estás à vontade para ir espreitar o armário dos medicamentos. Não tenho segredos.

- Isso quem o diz és tu - provocou-o ela. - Não te esqueças de que estás a falar com uma pessoa que não tem senão segredos.

- Para mim, não.

- Pois não - concordou ela com uma expressão séria. - Para ti, não.

Lavou outros dois pratos e entregou-lhos, sentindo uma onda de satisfação a inundá-la à medida que o via secá-los e guardá-los no respectivo sítio.

Alex pigarreou.

- Não te importas de que te pergunte uma coisa? - disse ele. - Não quero que me interpretes mal, mas a verdade é que tenho andado com curiosidade.

- Força.

Secou as mãos e os braços a uma toalha, não deixando ficar nem uma gota, a tentar ganhar tempo.

- Tenho andado a pensar se chegaste a reflectir no que te disse no fim-de-semana passado. No parque de estacionamento, à saída do rodeio dos macacos?

- Tu disseste muitas coisas - observou ela em tom circunspecto.

- Já não te lembras? Disseste-me que a Erin não se podia casar, e eu respondi-te que a Katie provavelmente podia.

Katie sentiu-se retesar, não tanto por causa da recordação, mas mais pela voz séria de Alex.

- Eu lembro-me - admitiu ela com leveza forçada. - Parece-me que te respondi que, para isso, teria de conhecer o homem certo.

Ao ouvir isto, Alex comprimiu os lábios, como se estivesse a ponderar se haveria de continuar ou não.

- Só queria saber se reflectiste no assunto ou não. De nos podermos vir a casar no futuro, quero eu dizer.

Uma vez que a água ainda estava quente, Katie aproveitou para lavar os talheres.

- Antes disso, terias de me pedir em casamento.

- E se eu pedisse?

Ela pegou num garfo e esfregou-o.

- Suponho que te diria que te amo.

- E aceitarias?

Katie fez uma pausa momentânea.

- Não me quero voltar a casar.

- Não queres mesmo ou achas que não podes?

- Que diferença é que isso faz? - A expressão dela mantinha-se obstinada, fechada. - Tu sabes que eu ainda sou casada. E a bigamia é ilegal.

- Mas tu já não és a Erin. És a Katie. Tal como tu própria salientaste, tens uma carta de condução que comprova isso mesmo.

- Mas eu também não sou a Katie! - ripostou ela, virando-se de súbito para ele. - Será possível que não percebes isso? Roubei esse nome a pessoas de quem gostava! Pessoas que confiavam em mim. - Cravou o olhar nele, sentindo a tensão dessa tarde novamente a dominá-la, recordando-se com uma intensidade renovada da amabilidade e da compaixão de Gladys, da sua fuga, dos anos de tormento que passara ao lado de Kevin. - Por que é que não te contentas em deixar as coisas como estão? Por que é que insistes tanto comigo para que eu seja a pessoa que tu desejas e não me aceitas como na verdade sou?

Alex retraiu-se.

- Eu adoro a pessoa que tu és.

- Mas estás sempre a impor condições!

- Ai isso é que não estou!

- Estás, sim senhora! - teimou ela. Percebeu que estava a levantar a voz, mas não foi capaz de se conter. - Tens uma ideia predeterminada do que desejas na vida e queres obrigar-me a encaixar nela!

- Isso não é verdade - protestou Alex. - Limitei-me a fazer-te uma pergunta.

- Mas estavas à espera de que te desse uma resposta concreta! Querias a resposta certa e, se não a obtivesses, farias tudo ao teu alcance para me convencer a mudar de ideias. Para que eu fizesse o que querias! Para que eu fizesse tudo o que tu querias!

Pela primeira vez desde que se conheciam, Alex fitou-a de olhos semicerrados.

- Não digas isso - pediu-lhe.

- Não digo o quê? A verdade? O que sinto? Porquê? O que é que vais fazer? Bater-me? Experimenta lá!

Alex retraiu-se como se ela lhe tivesse pregado uma bofetada. Katie sabia que as suas palavras o tinham atingido em cheio, contudo, ao invés de se zangar, ele pousou o pano da louça e recuou um passo.

- Eu não faço ideia do que se passa aqui, mas peço desculpa por ter tocado no assunto. Não tive a intenção de te colocar numa situação desagradável nem de te tentar convencer de coisa nenhuma. O meu único desejo foi ter uma conversa contigo.

Fez uma pausa, à espera de que ela dissesse alguma coisa, mas Katie continuou em silêncio. A abanar a cabeça, preparou-se para sair da cozinha, detendo-se à porta.

- Obrigado pelo jantar - murmurou-lhe.

Na sala de estar, ela ouviu-o dizer aos filhos que se estava a fazer tarde, ouviu a porta da rua ranger ao abrir-se. Alex fechou-a delicadamente nas suas costas e, de repente, a casa ficou mergulhada em silêncio, deixando-a sozinha com os seus pensamentos.

 

Kevin estava a ter dificuldade em conduzir a direito na auto-estrada. Fizera o possível por manter a mente lúcida, mas, mal a cabeça lhe começara a latejar e sentira o estômago às voltas, vira-se obrigado a passar numa loja de bebidas alcoólicas a fim de comprar uma garrafa de vodca. O álcool entorpecia-lhe as dores e, enquanto a ia bebendo por uma palhinha, não pensava senão em Erin e na maneira como ela mudara o nome para Katie.

A auto-estrada interestadual era uma mancha de contornos indistintos. Os faróis dianteiros, pequenos pontos duplos brancos, aumentavam de intensidade à medida que se aproximavam em sentido contrário para logo de seguida desaparecerem. Um a seguir ao outro. Milhares. Pessoas que se dirigiam a algum lugar, com algum objectivo em vista. Kevin seguia para a Carolina do Norte, rumo a sul em busca da mulher. Partira do Massachusetts, atravessara Rhode Island e o Connecticut. Nova Iorque e Nova Jérsia. A Lua nasceu dum tom de laranja inflamado antes de passar a branco e cruzou o céu escurecido sobranceiro a ele. As estrelas cintilavam lá no alto.

Uma rajada de vento quente entrou pela janela, e Kevin segurou o volante, os seus pensamentos um quebra-cabeças de peças desencontradas. A cabra deixara-o. Abandonara o casamento, deixara-o a apodrecer e estava convencida de que era mais esperta que ele. Mas ele conseguira encontrá-la. Karen Feldman atravessara a rua, e Kevin descobrira que Erin guardava um segredo. Guardara, melhor dizendo. Sabia onde ela vivia, sabia onde ela se acoitava. Tinha a morada escrevinhada num papel no banco do lado, com o Glock que trouxera de casa em cima para que não voasse. No assento traseiro, levava uma mochila cheia de roupa, algemas e fita adesiva. Quando se preparava para partir, parara numa caixa multibanco e levantara umas poucas centenas de dólares. Mal se visse frente a frente com ela, iria encher-lhe a cara de murros, fazê-la num bolo sanguinolento. Iria beijá-la, abraçá-la e suplicar-lhe que voltasse para casa. Ao atestar o depósito próximo de Filadélfia, recordou-se de lhe ter seguido o rasto até ali.

Ela fizera-o passar por parvo, levando uma vida secreta com que ele nem sonhava. A visitar os Feldman, a cozinhar para eles e a limpar-lhes a casa enquanto urdia, maquinava e mentia. A respeito de que mais, interrogava-se ele, mentira ela? Dum homem? Talvez não no passado, agora, porém, teria de haver um homem metido pelo meio. A beijá-la. A acariciá-la. A despi-la. A fazer troça dele. O mais certo seria nesse preciso momento estarem na cama. Ela e o homem. Ambos a fazerem troça dele pelas costas. “Eu preguei-lhe uma valente lição, não preguei?”, dizia ela enquanto se ria. “Apanhei o Kevin completamente desprevenido.”

Bastava-lhe pensar nisto para ficar furioso. Colérico. Havia horas que Kevin estava na estrada, mas não parava para descansar. Bebia a vodca pela palhinha e pestanejava rapidamente para desanuviar a vista. Não acelerava, não queria que a polícia o mandasse parar. Não quando levava uma arma no banco a seu lado. Erin tinha medo às armas e pedia-lhe sempre para guardar o revólver fechado à chave quando chegava do emprego, e Kevin fazia-lhe a vontade.

Ela, porém, nunca se dava por satisfeita. Podia comprar-lhe uma casa, mobília, roupas bonitas e levá-la à biblioteca e ao cabeleireiro que nem assim se dava por satisfeita. Haveria alguém que entendesse uma coisa assim? Seria assim tão difícil arrumar a casa e cozinhar o jantar? Não lhe batia porque isso lhe desse prazer, só quando não tinha alternativa. Quando ela se portava como uma estúpida, uma desleixada, uma egoísta. Ela fazia por merecer.

O motor zumbia-lhe aos ouvidos com um ruído monótono. Ela agora tinha carta de condução e era empregada de mesa num restaurante chamado Ivans. Antes da partida, andara a pesquisar na Internet e fizera, uma série de telefonemas. Não tivera dificuldade em localizá-la porque a cidade era pequena. Demorara menos de vinte minutos a descobrir onde ela trabalhava. Bastara-lhe ligar para lá e perguntar pela Katie. À quarta chamada, alguém dissera que sim. Kevin desligara sem dizer mais nada. Ela estava convencida de que poderia passar o resto da vida escondida, mas ele era um bom investigador e acabara por encontrá-la. “Estou a caminho”, pensou para consigo. “Sei onde moras e onde trabalhas, e não me voltas a escapar.”

Passou por painéis publicitários e por rampas de saída e, ao chegar ao Delaware, começou a chover. Fechou a janela e sentiu o vento a empurrar o veículo para o lado. Viu o camião que seguia à sua frente começar a guinar, as rodas do atrelado a pisar os traços. Ligou os limpa-pára-brisas, e a visibilidade melhorou. A chuva, porém, caía cada vez com mais força, obrigando-o a debruçar-se sobre o volante, mantendo os olhos semicerrados para os proteger dos faróis dianteiros desfocados que vinham em sentido contrário. Quando o seu bafo começou a embaciar o vidro, ligou o radiador. Passaria a noite ao volante e no dia seguinte encontraria Erin. Depois, trá-la-ia para casa e dariam início a uma nova vida. Marido e mulher, a viver lado a lado, tal como devia ser. Felizes.

Eles tinham sido felizes. Divertiam-se juntos. Nos primeiros tempos de casados, recordava-se, costumavam visitar casas para venda ao fim-de-semana. Erin andava entusiasmada com a ideia de comprarem uma casa, e ele ficava a ouvi-la falar com os agentes imobiliários, a sua voz a trinar como música nas assoalhadas vazias. Ela gostava de percorrer demoradamente as divisões, e ele sabia que estava a imaginar onde haveria de colocar a mobília. Quando foram visitar a casa de Dorchester, bastara-lhe ver os olhos dela a cintilar para perceber que Erin queria ficar com ela. Nessa noite, estavam os dois já deitados, ela descrevera-lhe pequenos círculos no peito enquanto lhe suplicava que fizesse uma oferta, e Kevin lembrava-se de ter pensado que estaria disposto a fazer tudo quanto ela lhe pedisse porque a amava.

Excepto ter filhos. Erin dissera-lhe que queria ter filhos, que queria constituir família. No primeiro ano de casados, não falava noutra coisa. Kevin esforçara-se por ignorá-la, sentira-se relutante em dizer-lhe que não a queria ver gorda e inchada, que as mulheres grávidas ficavam feias, que não a queria ouvir a lastimar-se que estava muito cansada e que lhe doíam os pés. Não queria ver um bebé irrequieto ou choroso quando chegasse do emprego, não queria brinquedos espalhados pela casa. Não queria que ela ficasse flácida e desmazelada, nem ouvi-la perguntar-lhe se achava que ela estava a ficar com o rabo descaído. Casara com ela porque queria uma mulher, não uma mãe. Erin, porém, estava sempre a bater na mesma tecla, todos os dias lhe vinha com a mesma conversa, até que ele não tivera outro remédio senão pregar-lhe umas boas bofetadas e mandá-la calar-se. Depois disso, ela nunca mais voltara a tocar no assunto, mas agora Kevin perguntava-se se não teria sido melhor dar-lhe o que ela queria. Se tivesse um filho, Erin não se teria ido embora de casa, não teria tido condições de fugir logo à partida. E, seguindo o mesmo raciocínio, nunca mais poderia voltar a fugir.

Iriam ter um filho, decidiu, e os três iriam morar em Dorchester, e ele iria ser investigador. Todas as noites, regressaria para casa para junto da sua linda esposa e, quando as pessoas os vissem na mercearia, comentariam com ar de admiração: “Ora ali está uma família tipicamente americana!”

Interrogou-se se o cabelo dela já estaria louro outra vez. Tinha esperança de que estivesse louro e comprido para que pudesse deslizar os dedos por ele. Ela gostava que lhe fizesse isso, sempre a sussurrar-lhe, a dizer-lhe as palavras que ele gostava de ouvir, a excitá-lo. Mas nem nisso fora sincera, não quando andava a fazer planos para o abandonar, não quando não voltara para ele. Mentira-lhe, passara o tempo a mentir-lhe. Semanas. Meses, até. A esgueirar-se para casa dos Feldman, a comprar um telemóvel à socapa, a ir-lhe à carteira. A urdir e a maquinar, e ele sem fazer a mais pequena ideia, e agora havia outro homem a partilhar a cama com ela. A deslizar-lhe os dedos pelo cabelo, a ouvir-lhe os gemidos, a sentir o toque das mãos dela. Kevin mordeu o lábio e soube-lhe a sangue. Odiava-a, só lhe apetecia corrê-la ao murro e ao pontapé, atirá-la escada abaixo. Bebeu outro gole da garrafa a seu lado, a ver se tirava o sabor metálico que sentia na boca.

Ela levara-o à certa porque era bonita. Tudo nela era bonito. Os seios, as ancas, até o traseiro. No casino, em Atlantic City, onde ele a conhecera, achara-a a mulher mais bonita que vira na vida e, ao longo dos seus quatro anos de casamento, nada mudara. Erin sabia que ele a desejava e aproveitava-se disso. Vestia roupas sensuais. Arranjava o cabelo. Usava lingerie rendada. Levava-o a baixar a guarda, a pensar que ela o amava.

Mas ela não o amava. Nem sequer se ralava com ele. Não se ralava com a porcelana nem com os vasos de flores partidos, não se ralava com o facto de ele ter sido suspenso do emprego, não se ralava que ele havia meses chorava até adormecer. Não se ralava que a vida dele estivesse a ir por água abaixo. Só se ralava com o que lhe interessava, mas sempre fora egoísta e agora andava a rir-se à custa dele. Amava-a e odiava-a ao mesmo tempo, e já nada tinha lógica. Sentiu as lágrimas a ameaçarem-no e pestanejou para as conter.

Delaware. Maryland. Os arredores de Washington, DC. Virgínia. Horas perdidas para a noite interminável. A princípio, debaixo duma forte enxurrada, depois a chuva lá amainara. De madrugada, parou nas proximidades de Richmond e tomou o pequeno-almoço. Dois ovos, quatro fatias de bacon e uma torrada de pão de trigo. Bebeu três chávenas de café. Tornou a atestar o depósito e regressou à interestadual. Atravessou a Carolina do Norte debaixo de céu azul. Tinha insectos colados ao pára-brisas e começavam a doer-lhe as costas. Teve de pôr os óculos escuros para não semicerrar os olhos e começava a sentir comichão nas suíças.

“Estou a chegar, Erin”, pensou. “Não tarda, estarei aí.”

 

Katie acordou exausta. Passara horas às voltas na cama, a recordar as coisas horríveis que dissera a Alex. Não sabia o que lhe passara pela cabeça. Era verdade que estava transtornada por causa dos Feldman, mas, por muito que se esforçasse, não se conseguia lembrar de como fora que a discussão começara. Ou melhor, lembrar, lembrava-se, mas não fazia sentido. Sabia que ele não tentara pressioná-la nem forçá-la a fazer fosse o que fosse para que não se sentisse preparada. Sabia que ele não era, nem de perto nem de longe, parecido com Kevin, mas afinal o que fora que lhe dissera?

“O que é que vais fazer? Bater-me? Experimenta lá!”

O que lhe teria passado pela cabeça para dizer semelhante disparate?

Acabou por cair num sono leve cerca das duas da manhã, no momento em que o vento e a chuva começavam a abrandar. Ao amanhecer, o céu estava limpo, e as melodias dos pássaros chegavam-lhe das árvores. Do alpendre, avaliou os estragos causados pela tempestade: galhos partidos espalhados diante da casa, uma carpete de pinhas a revestir o jardim e o acesso. O ar já estava carregado de humidade. O dia prometia ser abrasador, talvez o mais quente do Verão até à data. Tomou mentalmente nota para lembrar Alex para que não deixasse os filhos apanhar muito sol, e só então se apercebeu de que talvez ele não a quisesse na companhia deles. De que talvez ainda estivesse zangado com ela.

Talvez, não, emendou-se. Estava quase seguramente zangado com ela. Zangado e magoado. Na noite anterior, nem sequer deixara que os filhos se despedissem dela.

Sentou-se nos degraus do alpendre e voltou-se de frente para a casa de Jo, a perguntar-se se a amiga já andaria a pé. Era cedo, provavelmente demasiado cedo para lhe ir bater à porta. Não sabia o que lhe haveria de dizer, nem tão-pouco se retiraria daí algum proveito. Não estava disposta a contar-lhe o que dissera a Alex - era uma recordação que já obliterara por completo da memória -, mas talvez Jo a pudesse ajudar a dar sentido à ansiedade que a afligia. Mesmo depois de Alex se ter ido embora, continuava a sentir os ombros tensos e, na noite anterior, deixara a luz acesa, algo que não acontecia havia semanas.

A intuição dizia-lhe que alguma coisa se passava, mas não conseguia precisar o que era, para além de que os seus pensamentos insistiam em dirigir-se para os Feldman. Para Gladys. Para as alterações inevitáveis em casa da família. O que aconteceria se alguém desse pela falta dos documentos de Katie? Bastava-lhe imaginar esta hipótese para sentir o estômago às voltas.

- Vai ficar tudo bem - ouviu ela subitamente. Ao dar meia-volta repentina, deparou com Jo ali perto, equipada com ténis de corrida, as faces coradas e a camisola manchada de transpiração.

- Donde é que apareceste?

- Fui dar uma corrida - explicou-lhe Jo. - Estava a ver se fugia ao calor, mas, como é óbvio, não deu resultado. O ar está tão abafado que mal conseguia respirar e cheguei a pensar que iria ter um ataque cardíaco. Ainda assim, acho que sempre estou melhor que tu. Pareces-me mesmo na mó de baixo. - Acercou-se dos degraus, e Katie chegou-se para o lado para a deixar sentar.

- Ontem à noite eu e o Alex tivemos uma discussão medonha.

- E?

- Eu disse-lhe uma coisa horrível.

- E já lhe pediste desculpa?

- Não - admitiu Katie. - Ele nem me deu tempo para isso. Devia ter pedido, mas não pedi. E agora...

- O que foi? Achas que é tarde de mais? - Jo apertou-lhe um joelho. - Nunca é tarde de mais para fazer o que está certo. Vai falar com ele.

Katie hesitou, dando sinais de nítida ansiedade.

- E se ele não me perdoar?

- Nesse caso, não é a pessoa que tu pensavas que era.

Katie encostou os joelhos ao peito, apoiando o queixo em cima deles. Jo descolou a camisola da pele e sacudiu-a a ver se refrescava.

- Mas ele perdoa-te de certeza. Tu sabes que sim, não sabes? É possível que se tenha zangado e que ainda se sinta magoado, mas é um bom homem. - Sorriu. - Para além de que todos os casais precisam duma discussão de tempos a tempos. Quanto mais não seja, para provar que a relação é forte o suficiente para lhe resistir.

- Mais pareces uma terapeuta a falar.

- Pois pareço, mas não deixa por isso de ser verdade. As relações duradouras... aquelas que verdadeiramente interessam... não são senão uma luta contínua para vencer os altos e os baixos. E tu ainda estás a pensar em ter uma relação duradoura com ele, não estás?

- Estou. - Katie assentiu com a cabeça. - Estou. E tens toda a razão. Obrigada.

Jo deu umas palmadinhas na perna e piscou-lhe o olho à medida que se levantava dos degraus.

- Afinal, para que servem os amigos?

Katie ergueu a cabeça de olhos semicerrados.

- Queres um café? Estava mesmo a pensar em pôr uma cafeteira ao lume.

- Hoje não. Está calor a mais. O que eu preciso é dum copo de água gelada e dum duche frio. Sinto-me a derreter.

- Vais à feira popular logo?

- Talvez. Ainda não me decidi. Mas, se for, irei à tua procura - comprometeu-se ela. - Agora vai já a correr ao armazém antes que mudes de ideias.

Katie deixou-se ficar mais uns minutos sentada nos degraus antes de voltar para dentro de casa. Tomou um duche e preparou uma caneca de café. Mas Jo tinha razão, estava demasiado calor para o conseguir beber. Ao invés, vestiu uns calções, calçou umas sandálias e foi buscar a bicicleta às traseiras.

Apesar da enxurrada da véspera, a estrada de cascalho já estava a secar, permitindo-lhe pedalar sem grande esforço. Do mal o menos. Não fazia ideia de como Jo fora capaz de correr debaixo daquele calor, mesmo logo pela manhã. Todos os seres vivos, parecia-lhe a ela, faziam o possível por fugir ao calor. Em geral, encontrava esquilos e pássaros, mas, quando virou para a estrada principal, não detectou o mais pequeno sinal de movimento.

O trânsito também era escasso. Um ou outro carro passou por ela a grande velocidade, deixando uma nuvem de gases no seu rasto. Katie continuou a pedalar enquanto descrevia a curva, momento em que avistou o armazém. Já havia meia dúzia de veículos estacionados à porta. Clientes habituais que lá iam comer biscoitos. Ainda se sentia ansiosa, mas isso prendia-se mais com o que haveria de dizer a Alex que com os Feldman ou com outras recordações perturbadoras. Ou melhor, com o que ele lhe diria em resposta.

Deteve-se à entrada. Ao encaminhar-se para a porta, reparou nuns quantos idosos sentados nos bancos corridos, a abanar-se para se refrescarem. Encontrou Joyce à caixa, a atender um cliente, e dirigiu-lhe um sorriso.

- bom dia, Katie - cumprimentou-a Joyce.

Katie varreu a loja com o olhar.

- O Alex está por aqui?

- Está lá em cima com os miúdos. Conhece o caminho, não conhece? Pelas escadas das traseiras?

Katie saiu do armazém e contornou o edifício. No ancoradouro, já havia barcos enfileirados, à espera de encher o depósito.

Após uma breve hesitação, bateu à porta. Ouviu passos a aproximar-se lá dentro. Quando a porta se abriu, viu-se diante de Alex.

Presenteou-o com um sorriso tímido.

- Olá - disse-lhe.

Ele respondeu-lhe com um aceno de cabeça, a sua expressão insondável. Katie pigarreou.

- Queria pedir-te desculpa pelas coisas que te disse. Não tive razão.

A expressão de Alex continuou imperturbável.

- Está bem - respondeu-lhe. - Aceito as tuas desculpas.

Estiveram uns instantes sem dizer nada, e Katie teve um súbito arrependimento de ter vindo até ali.

- Posso ir-me embora, se quiseres. Só preciso de saber se ainda queres que esta noite tome conta dos teus filhos.

Alex continuou sem dizer nada e, no silêncio que se seguiu, Katie abanou a cabeça. Quando se preparava para dar meia-volta e arrepiar caminho, ouviu-o dar um passo na direcção dela.

- Katie... espera - disse-lhe. Espreitou por cima do ombro para verificar que os filhos estavam em segurança e em seguida fechou a porta. - O que tu me disseste ontem à noite... - começou ele. A voz esmoreceu-lhe, indecisa.

- Não fiz por mal - justificou-se ela em voz baixa. - Não sei o que foi que me passou pela cabeça. Estava transtornada com outra coisa e descarreguei em cima de ti.

- Reconheço que me... aborreceu. Não tanto o que tu disseste, mas mais o facto de me imaginares capaz de... daquilo.

- Eu não te acho capaz daquilo - afirmou Katie. - Seria incapaz de pensar isso de ti.

Alex deu mostras de acreditar, mas ela sabia que a conversa não se ficaria por ali.

- Quero que saibas que dou muito valor à relação que temos neste momento e que o que mais desejo é que te sintas à vontade. Peço desculpa por te dar a sensação de que te estava a pressionar. Seja lá o que isso for. Não foi essa a minha intenção.

- Ai isso é que foi. - Ela rasgou-lhe um sorriso sagaz. - Um bocadinho, pelo menos. Mas não faz mal. Afinal, quem poderá dizer o que o futuro nos reserva, não é? Como a noite de hoje, por exemplo.

- Porquê? O que é que vai acontecer esta noite?

Katie encostou-se à ombreira da porta.

- bom, depois de os miúdos estarem a dormir e dependendo das horas a que tu voltares, talvez seja tarde de mais para me levares a casa. És bem capaz de me encontrar na tua cama...

Quando Alex percebeu que ela não estava a brincar, levou uma mão ao queixo a fingir que reflectia.

- Mas que dilema...

- Embora também seja possível que haja pouco trânsito e que tu voltes a tempo de me levar a casa.

- Costumo ser bastante cuidadoso ao volante. Em geral, não gosto de velocidades.

Ela inclinou-se para junto dele e sussurrou-lhe ao ouvido.

- É uma atitude muito conscienciosa da tua parte.

- Faz-se o que se pode - murmurou-lhe ele por sua vez, antes de os lábios de ambos se encontrarem. Quando se afastaram, Alex deparou com meia dúzia de proprietários de barcos de olhares cravados em ambos. Não fez caso disso. - Quanto tempo é que levaste a ensaiar esse discurso?

- Não ensaiei. Saiu-me...

Ainda a sentir nos lábios os resquícios do beijo, perguntou-lhe em voz sussurrada:

- Já tomaste o pequeno-almoço?

- Não.

- Queres comer flocos de cereais comigo e com os miúdos? Antes de irmos para a feira popular.

- Adoro flocos de cereais.

 

A Carolina do Norte era feia, uma faixa de estrada enfiada entre duas extensões monótonas de pinheiros e colinas ondulantes. Ao longo da auto-estrada, viam-se aglomerados de autocaravanas, casas de quintas e celeiros decrépitos rodeados de ervas daninhas. Saiu duma interestadual, enveredou por outra, rumo a Wilmington, continuando a ser brindado com aquela monotonia pura.

À medida que percorria a paisagem sempre igual, ia pensando em Erin. Pensava no que lhe faria mal se descobrisse onde estava. Esperava encontrá-la em casa à sua chegada, mas, mesmo que estivesse no emprego, seria apenas uma questão de tempo até ao seu regresso.

A interestadual serpenteava por cidades desinteressantes com nomes que a memória não retinha. Às dez horas, chegou a Wilmington. Atravessou a cidade e meteu por uma pequena estrada de província. Seguia em direcção a sul, com o sol a incidir directamente na janela do condutor. Pousou a arma no colo, voltou a colocá-la no assento a seu lado e continuou em diante.

E, por fim, lá chegou, à cidade onde ela morava. Southport. Atravessou vagarosamente o local, contornando um mercado de rua, consultando ocasionalmente o mapa que imprimira antes de partir. Retirou uma camisa da mochila e escondeu a arma debaixo dela.

Era uma cidade pequena, com casas elegantes e bem cuidadas. Algumas eram tipicamente meridionais, com grandes alpendres, magnólias e bandeiras americanas a ondular em mastros, outras faziam-lhe lembrar as casas da Nova Inglaterra. Havia mansões viradas para o rio. O sol matizava a água nos intervalos que as separavam, e estava um calor insuportável. Parecia uma sauna.

Minutos decorridos, encontrou a rua onde ela morava. À esquerda, mais acima, havia um armazém que vendia um pouco de tudo, e Kevin estacionou à porta para ir meter gasolina e comprar uma lata de Red Bul. Postou-se na fila atrás dum indivíduo que estava a comprar carvão e combustível próprio para churrascos. Quando chegou a sua vez, pagou à velha que estava na caixa. Ela sorriu-lhe, agradeceu-lhe a visita e, intrometida como todas as velhas, comentou que era a primeira vez que o via por ali. Kevin disse-lhe que estava ali por causa da feira popular.

Quando se tornou a fazer à estrada, lembrou-se de que já estava quase a chegar ao seu destino e sentiu a pulsação a acelerar. Descreveu uma curva e abrandou o carro. Ao longe, avistou a estrada de gravilha. O mapa indicava-lhe que deveria virar, mas não parou. Se Erin estivesse em casa, reconheceria imediatamente o veículo, e Kevin não queria que isso acontecesse. Não antes de ter tudo pronto.

Deu meia-volta com o carro, à procura dum lugar isolado onde pudesse estacioná-lo. Não havia muito por onde escolher. O parque de estacionamento do armazém, talvez, mas e se alguém reparasse na sua presença? Tornou a passar pelo armazém, vistoriando a área. As árvores que bordejavam a estrada poderiam funcionar como esconderijo... ou não. Não queria despertar as suspeitas alheias deixando um automóvel abandonado entre as árvores.

A cafeína estava a deixá-lo agitado e, por isso, optou pela vodca para acalmar os nervos. Por mais voltas que desse, não conseguia desencantar um sítio onde enfiar o carro. Mas, afinal, que diabo de terra era aquela? Tornou a arrepiar caminho, começando a sentir a fúria a crescer. Não estivera à espera de encontrar tantos obstáculos. Deveria ter alugado um automóvel, mas não alugara, e agora não conseguia arranjar maneira de se aproximar de Erin sem despertar a atenção dela.

Visto que o armazém era a única opção que lhe restava, tornou a entrar no parque, estacionando o carro junto à parede lateral do edifício. Ficava a um bom quilómetro e meio de distância da casa, mas não estava a ver outra alternativa. Ficou uns instantes a matutar, até que acabou por desligar o motor. Quando abriu a porta, sentiu o calor abrasador a envolvê-lo. Esvaziou a mochila, espalhando a roupa no assento traseiro. Guardou lá dentro o revólver, as cordas, as algemas, a fita adesiva... e uma garrafa, de vodca para as eventualidades. Atirou a mochila por cima do ombro e deitou uma olhadela ao redor. Não havia ninguém à vista. Calculou que poderia deixar ali o carro por mais uma hora ou duas sem levantar suspeitas.

Saiu do parque de estacionamento e, enquanto seguia pela berma da estrada, sentiu o ameaço duma dor de cabeça. O calor era insuportável. Parecia uma criatura viva. Continuou em diante, olhando fixamente para os automobilistas que passavam por ele. Não viu Erin, nem sequer nenhuma mulher de cabelo castanho.

Chegou à estrada de gravilha e meteu por ela. A estrada, poeirenta e cheia de buracos, parecia não conduzir a lado algum. Por fim, a menos dum quilómetro mais à frente, avistou dois chalés. Sentiu o coração alvoroçado. Erin morava numa daquelas casas. Desviou-se para a berma da estrada, cosendo-se com as árvores, fazendo o mais possível por disfarçar a sua presença. Viera com esperança de encontrar uma sombra, mas o Sol estava alto, e o calor teimava em não abrandar. Tinha a camisa encharcada, o suor escorria-lhe pela cara e colava-lhe o cabelo ao couro cabeludo. com a cabeça a latejar de dores, parou para beber um gole de vodca, directamente pelo gargalo.

Vistos de longe, nenhum dos chalés parecia estar ocupado. Que diabo, nenhum deles parecia habitável. Não se comparavam à casa de ambos em Dorchester, com persianas, mísulas e a porta da rua pintada de vermelho. No chalé mais próximo dele, via-se a tinta a descascar, e as tábuas estavam podres nos cantos. Avançou mais uns passos e observou as janelas, à procura de sinais de movimento. Não viu nenhum.

Não sabia qual dos chalés era o de Erin. Deteve-se a examiná-los com atenção. Ambos estavam degradados, mas um deles estava praticamente ao abandono. Encaminhou-se para o que lhe parecia melhor, desviando-se da janela.

Demorara meia hora a chegar ali desde o armazém. Quando apanhasse Erin de surpresa, sabia que ela haveria de tentar fugir. Não iria com ele de livre vontade. Iria tentar fugir, poderia mesmo dar-lhe luta, e ele teria de a amarrar com as cordas, de lhe tapar a boca com fita adesiva e só depois levá-la para o carro. Uma vez aí chegados, iria enfiá-la no porta-bagagens e só a tiraria de lá quando estivessem muito longe daquela cidade.

Alcançou a parede lateral da casa e coseu-se com ela, sempre afastado da janela. Pôs-se à escuta de sinais de movimento, do barulho de portas a abrir-se, de água a correr ou de pratos a estrepitar, mas não ouviu nada.

Ainda lhe doía a cabeça e estava cheio de sede. Estava uma brasa insuportável, e tinha a camisa molhada. Tinha a respiração ofegante, mas agora já estava quase a chegar a Erin. Tornou a lembrar-se de que ela o abandonara e não quisera saber do sofrimento dele para nada. Ficara a rir-se nas costas dele. Ela e o homem dela, fosse lá quem fosse. Tinha a certeza de que havia um homem metido pelo meio. Ela não teria capacidade para fazer aquilo sozinha.

Espreitou para as traseiras da casa e também não viu ninguém. Seguiu em diante a passo furtivo, sempre atento. Mais à frente, havia uma pequena janela. Kevin arriscou olhar para dentro de casa. Não havia luzes acesas, mas estava limpa e arrumada, com o pano da louça pendurado do lava-louça. Tal qual o que Erin costumava fazer. Aproximou-se da porta sem fazer barulho e experimentou rodar a maçaneta. Não estava trancada.

De respiração suspensa, abriu a porta e entrou no chalé, detendo-se novamente à escuta. Não ouviu nada. Atravessou a cozinha e entrou na sala de estar... depois no quarto e na casa de banho. Praguejou em voz alta, já ciente de que ela não estava em casa.

Isto, partindo do princípio de que acertara na casa, obviamente. Dirigiu-se ao quarto, reparou na cómoda e abriu a primeira gaveta. Ao deparar com uma pilha de cuecas, começou a revirá-las, esfregando-as entre o polegar e o indicador, mas já lá ia bastante tempo e não conseguiu ter a certeza de que eram as mesmas que ela costumava usar em casa. Não reconheceu as outras roupas, embora fossem do tamanho dela.

Todavia, reconheceu o champô e o amaciador, reconheceu a marca da pasta dos dentes. Na cozinha, vasculhou as gavetas, abrindo-as uma a uma até encontrar uma factura. Estava passada em nome de Katie Feldman. Kevin encostou-se ao armário, fitando o nome com a sensação de ter atingido o alvo.

O único problema era ela não estar em casa, e ele não fazia ideia da hora a que voltaria. Sabia que não podia deixar o carro indefinidamente estacionado no armazém, mas, de repente, sentiu-se dominar pelo cansaço. Apetecia-lhe dormir, precisava de dormir. Passara toda a noite ao volante e tinha a cabeça a latejar. Instintivamente, foi deambulando de volta ao quarto. Erin fizera a cama e, quando ele puxou a colcha para trás, sentiu o aroma dela nos lençóis. Estendeu-se na cama, respirando fundo, inalando o cheiro dela. com as lágrimas a virem-lhe aos olhos, apercebeu-se das saudades que tinha dela, do amor que sentia por ela, concluindo que não fosse ela egoísta como era, e poderiam ter sido felizes.

Incapaz de se manter acordado, disse a si próprio que iria dormir só um bocadinho. Não muito. Apenas o suficiente para lhe permitir que, quando ela chegasse a casa nessa noite, tivesse a mente lúcida e não fizesse asneiras; para que ele e Erin pudessem voltar a ser marido e mulher.

 

Alex, Katie e as crianças foram de bicicleta para a feira popular, pois estacionar na baixa da cidade era praticamente impossível. E regressar a casa logo que os automóveis começassem a partir, então, seria pior ainda.

Havia barracas com artesanato à venda enfileiradas de cada lado da rua, e cheirava a cachorros-quentes e a hambúrgueres, e pipocas e a algodão-doce. No palco principal, uma banda da zona tocava “Little Deuce Coupe”, dos Beach Boys. Havia corridas de sacos e uma faixa a prometer um concurso para ver quem conseguia comer mais melancia para o final da tarde. E também jogos de azar - atirar dardos a balões, enfiar aros em volta de garrafas, fazer três tentativas com uma bola de basquetebol ao cesto para ganhar um boneco de peluche. A roda gigante ao fundo do parque alcandorava-se acima da feira, atraindo as famílias como um farol.

Alex foi para a fila dos bilhetes enquanto Katie seguia atrás com as crianças, encaminhando-se para os carrinhos de choque e as cadeiras giratórias. Por todo o lado se viam longas filas. As mães e os pais levavam os filhos bem agarrados pela mão, os adolescentes deslocavam-se em grupos. Por todo o lado se ouvia o barulho dos geradores e o estrépito das atracções em movimento constante.

Por um dólar, era possível ver o cavalo mais alto do mundo. Outro dólar franqueava o acesso à tenda adjacente, que acolhia o cavalo mais pequeno. Viam-se póneis amarrados a uma roda e a andar em círculos, exaustos e cheios de calor, de cabeça baixa.

As crianças mostravam-se impacientes e queriam andar em tudo e mais alguma coisa, obrigando Alex a gastar uma pequena fortuna em bilhetes. E, uma vez que a maior parte das atracções exigia três ou quatro, estes desapareciam num instante. A despesa era absurda, e Alex esforçou-se por fazê-los render insistindo com os filhos para que experimentassem também outras coisas.

Viram um homem a fazer malabarismo com pinos de bowling e aplaudiram um cão que sabia andar na corda bamba. Comeram pizza ao almoço num dos restaurantes da feira, refugiando-se lá dentro para escapar ao calor, e ouviram uma banda de música country interpretar uma série de canções. Depois, assistiram a uma corrida de jet ski no rio Cape Fear e só então regressaram às atracções. Kristen quis comer algodão-doce, e Josh pediu para que o deixassem fazer uma tatuagem lavável.

E assim as horas foram passando, num misto de calor, barulho e prazeres duma cidade de província.

Kevin acordou duas horas mais tarde, o corpo pegajoso da transpiração, o estômago cheio de cãibras. Os sonhos induzidos pelo calor tinham sido vívidos e coloridos, e a princípio teve dificuldade em lembrar-se donde estava. Tinha a sensação de que a cabeça estava prestes a abrir-se-lhe ao meio. Saiu do quarto a cambalear e dirigiu-se à cozinha, saciando a sede directamente da torneira. Tinha tonturas e sentia-se mais fraco e cansado que quando se deitara.

Mas não podia dormir mais; nem sequer se deveria ter deitado. Foi ao quarto e fez a cama de modo a que Erin não percebesse que ali estivera. Já se preparava para se ir embora quando se lembrou do guisado de atum que vira no frigorífico quando andara a vasculhar na cozinha. Estava esganado de fome e recordou-se de que havia meses que ela não lhe fazia o jantar.

Deviam estar mais de quarenta graus dentro daquele casebre abafado. Quando Kevin abriu a porta do frigorífico, deixou-se ficar algum tempo a saborear o ar fresco. Pegou no guisado de atum e remexeu dentro das gavetas até encontrar um garfo. Retirou a película aderente e levou uma garfada à boca, e em seguida outra. A comida não contribuiu em nada para lhe aliviar as dores de cabeça, mas sentiu-se melhor do estômago, e as cãibras começaram a acalmar. Seria capaz de acabar com o guisado, mas obrigou-se a contentar-se com uma garfada e tornou a guardá-lo dentro do frigorífico. Erin não poderia suspeitar de que ele ali estivera.

Lavou o garfo, secou-o e tornou a metê-lo na gaveta. Endireitou o pano da louça e foi dar uma nova olhadela à cama, certificando-se de que a deixava tal e qual como quando chegara.

Satisfeito, saiu do chalé e encaminhou-se pela estrada de gravilha em direcção ao armazém.

O tejadilho do carro escaldava ao toque e, quando abriu a porta, o interior estava um forno. O parque de estacionamento estava deserto. O calor afugentava as pessoas da rua. Abrasador, sem uma nuvem ou um sopro de ar. Santo Deus, quem se lembraria de ir morar para um sítio daqueles?

Entrou no armazém para ir buscar uma garrafa de água e bebeu-a ao pé das vitrinas frigoríficas. Pagou a garrafa vazia, e a velha deitou-a fora. Perguntou-lhe se gostara da feira popular. Kevin respondeu à velha intrometida que sim.

De regresso ao carro, bebeu mais vodca, sem se importar de que entretanto ficara da temperatura duma caneca de café. O que interessava era que lhe aliviasse as dores. O calor era tanto que mal conseguia pensar. Não fosse Erin não estar em casa e, àquela hora, já estaria a caminho de Dorchester. Talvez depois de ele levar Erin de volta para casa, Bill reparasse como os dois eram felizes juntos e o admitisse novamente no emprego. Kevin era um bom investigador, e Bill precisava dele.

Enquanto bebia, a dor latejante que sentia nas têmporas foi regredindo, embora começasse a ver tudo a duplicar. Precisava de conservar a mente lúcida, mas as dores e o calor deixavam-no maldisposto, e ficou sem saber o que fazer.

Ligou o motor e seguiu para a estrada principal, regressando à baixa de Southport. Muitas ruas estavam fechadas ao trânsito, e teve de fazer um sem-fim de desvios até conseguir encontrar um lugar onde estacionar. Não havia uma única sombra num raio de quilómetros, apenas o sol e um calor insuportável e sufocante. Sentiu-se capaz de vomitar.

Pensou em Erin e onde ela poderia estar. No Ivans? Na feira popular? Deveria ter telefonado para o restaurante a perguntar se ela trabalhava nesse dia, deveria ter pernoitado num hotel. Não havia motivos para pressas, uma vez que ela não estava em casa, mas na altura ele não soubera disso e, só de pensar que ela se poderia estar a rir à sua custa por este deslize, era suficiente para o enfurecer. A rir-se que nem uma perdida à custa do pobre Kevin Tierney enquanto o atraiçoava com outro homem.

Mudou de camisa e enfiou o revólver no cós das calças de ganga, encaminhando-se em seguida para a beira-rio. Sabia que seria ali que encontraria o Ivans porque andara à procura da localização na Internet. Estava consciente do risco que corria se lá fosse uma vez e tornasse a voltar, mas tinha de a descobrir, tinha de ter a certeza de que Erin ainda existia. Já estivera em casa dela e já lhe sentira o cheiro, mas ainda não era suficiente.

Havia gente por todo o lado. As ruas recordavam-lhe uma feira de província, com a diferença de que não tinha porcos, cavalos ou vacas. Comprou um cachorro-quente e tentou comê-lo, mas sentiu o estômago a rebelar-se e deitou-o fora quase intacto. Enquanto abria caminho por entre aquele mar de gente, vislumbrou a beira-rio ao longe e depois o Ivans. As pessoas atrasavam-lhe a marcha, e a caminhada mais parecia um martírio. Quando alcançou a porta do restaurante, tinha a boca seca.

O Ivans estava à cunha, com os clientes a fazer fila à porta à espera duma mesa. Kevin arrependeu-se de não ter trazido um chapéu e óculos escuros, mas não se lembrara. Sabia que ela o reconheceria de imediato, mas nem isso o impediu de se dirigir à porta e de entrar no restaurante.

Viu uma empregada de mesa, mas não era Erin. Viu outra, mas também não era Erin. A recepcionista era jovem e atarefava-se a tentar descobrir onde haveria de sentar o grupo seguinte de clientes. O ambiente estava muito barulhento: gente a falar, garfos a bater contra pratos, copos a oscilar nos lava-louças. Barulhento, confuso e as malditas dores de cabeça que teimavam em não lhe dar tréguas. Sentia o estômago a arder.

- A Erin veio trabalhar hoje? - perguntou ele à recepcionista, erguendo a voz acima da algazarra.

Ela pestanejou-lhe, desorientada.

- Quem?

- A Katie - emendou-se ele. - Enganei-me, queria dizer a Katie. Katie Feldman.

- Não - gritou-lhe ela em resposta. - Está de folga. Mas amanhã já vem trabalhar. - Inclinou a cabeça na direcção das vitrinas. - Deve andar algures lá por fora, como toda a gente. Parece-me que há bocado a vi passar à porta.

Kevin deu meia-volta e foi-se embora, aos encontrões às pessoas. Sem querer saber. Uma vez na rua, parou junto a um vendedor ambulante. Comprou um boné de basebol e uns óculos de sol baratos. E em seguida retomou a sua marcha.

A roda gigante girava sem parar, levando Alex e Josh numa cadeira e Kristen e Katie noutra, a sentirem o vento quente a bater-lhes na cara. Katie tinha um braço em volta dos ombros de Kristen, ciente de que, apesar de sorridente, a menina estava com receio das alturas. À medida que a cadeira chegava ao topo, desvelando uma vista panorâmica da cidade, Katie apercebeu-se de que, embora também não se pudesse dizer que estivesse deliciada por se ver tão longe do chão, os seus receios se prendiam mais com a roda gigante que consigo própria. Apesar de ter, supostamente, passado na inspecção dessa manhã, a geringonça tinha aspecto de se aguentar em pé à custa de ganchos de cabelo e rede de arame.

Interrogou-se se Alex estaria a falar verdade acerca da inspecção ou se mencionara aquilo por a ter ouvido dizer em voz alta que talvez fosse perigoso andar na roda. Agora, porém, era tarde de mais para estar com preocupações e, por conseguinte, dirigiu a sua atenção para as multidões lá em baixo. A afluência fora aumentando ainda mais no decorrer da tarde, mas a verdade era que, para além de passear de barco, não havia muito mais que fazer em Southport. Era uma cidadezinha modorrenta, e Katie calculou que um acontecimento daquela natureza constituísse o ponto alto do ano.

A roda gigante foi abrandando até parar por completo, deixando-os à deriva no ar a fim de permitir a saída duns passageiros e a entrada doutros. A roda deslocou-se ligeiramente, e Katie deu por ela a examinar a multidão mais de perto. Kristen parecia mais descontraída e seguia-lhe o exemplo.

Reconheceu nalgumas pessoas a saborear gelados de cone clientes habituais do Ivans e perguntou-se quantos mais ali estariam. Os seus olhos começaram a deambular de grupo em grupo e, sem saber ao certo porquê, recordou-se de que costumava fazer aquilo quando fora trabalhar para o Ivans. Nos tempos em que andava com medo de que Kevin a descobrisse.

Kevin passou pelas barracas enfileiradas de cada lado da rua, limitando-se a vaguear e a seguir o raciocínio que achava que Erin poderia seguir. Arrependia-se agora de não ter perguntado à recepcionista se teria visto Erin na companhia dum homem, pois estava certo de que ela não iria para a feira popular sozinha. Tinha dificuldade em estar constantemente a lembrar-se de que ela tinha o cabelo castanho e curto. Deveria ter pedido ao pedófilo da outra esquadra que lhe arranjasse uma cópia da fotografia da carta de condução, mas na altura não se lembrara disso e agora já não tinha importância porque sabia onde ela morava e haveria de lá voltar.

Sentia a arma presa no cós das calças, a fazer-lhe pressão contra a pele. Era uma sensação desconfortável tê-la a trilhar-lhe a carne, e o boné de basebol fazia-lhe calor, sobretudo desde que o enterrara na cabeça e lhe puxara a pala para baixo. Parecia-lhe que a cabeça lhe iria explodir a qualquer instante.

Foi-se deslocando por entre os grupos de pessoas, as filas que se iam formando. Artesanato. Pinhas decoradas, vitrais emoldurados, espanta-espíritos. Brinquedos antiquados esculpidos em madeira. As pessoas atafulhavam-se de comida: rosquilhas e gelados, nachos, pães de canela. Viu bebés dentro de carrinhos, e recordou-se uma vez mais de que Erin queria ter um filho. Decidiu que lhe haveria de fazer um. Uma menina ou um rapaz, era indiferente, embora ele preferisse um rapaz, porque as raparigas eram egoístas e não seriam capazes de dar valor à vida que ele lhes proporcionaria. As raparigas eram assim mesmo.

A todo o redor ouvia gente a falar e a sussurrar, e teve a sensação de que havia quem estivesse de olhos cravados nele, como Coffey e Ramirez costumavam fazer. Ignorou os olhares e concentrou-se na sua busca. Famílias. Casais de adolescentes abraçados. Um fulano de sombrero. Reparou nuns quantos funcionários da feira reunidos junto a um candeeiro de rua, a fumar. Magros e tatuados, com os dentes podres. Muito provavelmente drogados, com longos cadastros. Causaram-lhe má impressão. Era um bom investigador e sabia decifrar o carácter alheio. Apesar da sua desconfiança, os funcionários não reagiram quando passou de raspão por eles.

Ia-se desviando para a esquerda e para a direita, abrindo caminho por entre a multidão, estudando as expressões das pessoas. Deteve-se quando um casal de obesos passou por ele a bambolear-se, a comer salsichas panadas com farinha de milho, as caras vermelhas e manchadas. Abominava gente gorda, achava que eram uns fracos sem disciplina, pessoas que se queixavam de que sofriam de diabetes, de hipertensão e de problemas cardíacos, que se lastimavam do preço dos medicamentos, mas que não eram capazes de pousar o garfo. Erin sempre fora magra, mas tinha os seios avantajados, e agora estava ali com um fulano que lhos apalpava à noite, e essa ideia punha-o em brasa por dentro. Odiava-a. Mas também a queria. Amava-a. Era-lhe difícil chegar a uma conclusão. Andara a beber de mais, e estava um calor dos diabos. Por que raio se lembrara ela de ir morar para um sítio infernal daqueles?

Foi deambulando por entre as atracções da feira e reparou na roda gigante lá no alto. Aproximou-se mais, dando um encontrão a um indivíduo de camisola de alças, sem fazer caso do seu murmúrio de indignação. Examinou as cadeiras da roda, o seu olhar a deter-se momentaneamente em cada cara. Erin não estava lá, nem tão-pouco na fila.

Seguiu em diante, caminhando debaixo do calor lado a lado com os gordos, à procura da Erin magricela e do fulano que lhe apalpava os seios à noite. A cada passo que dava, pensava no Glock.

Os baloiços, a girar no sentido horário, faziam as predilecções das crianças. Já tinham andado neles duas vezes nessa manhã e, depois da roda gigante, Kristen e Josh pediram encarecidamente ao pai que os deixasse andar mais uma vez. Já tinham poucos bilhetes, e Alex concordou, fazendo-lhes ver, porém, que depois iriam logo para casa. Queria ter tempo para tomar um duche, comer e, eventualmente, descansar um pouco antes da partida para Raleigh.

Por muito que tentasse, não conseguia tirar do pensamento o comentário sugestivo que Katie lhe fizera nessa manhã. Ela parecia pressentir-lhe o rumo dos pensamentos, pois por diversas vezes a apanhou de olhos postos nele, um sorriso provocador a bailar-lhe ao canto dos lábios.

Ela achava-se agora a seu lado, a sorrir aos filhos empoleirados lá no alto. Acercou-se dela, enfiando-lhe um braço em volta da cintura, e sentiu-a encostar-se a ele. Não disse nada, pois não havia necessidade de palavras, e Katie seguiu-lhe o exemplo. Ao invés, inclinou a cabeça de lado, apoiando-a no seu ombro, e Alex teve a nítida certeza de que não havia nada melhor no mundo.

Erin não estava nas cadeiras giratórias, nem no labirinto de espelhos, nem na casa assombrada. Foi pôr-se na fila para os bilhetes, a tentar passar despercebido, decidido a vê-la antes de ela o ver a ele. Estava em vantagem porque sabia que ela estava na feira e ela não o fazia ali, mas havia ocasiões em que a sorte pregava a partida e aconteciam coisas estranhas. Recordou-se subitamente de Karen Feldman e do dia em que esta lhe revelara o segredo de Erin.

Arrependeu-se de ter deixado a vodca no carro. Não havia nenhum sítio onde pudesse comprar mais, nem nenhum bar à vista. Nem sequer uma barraca que vendesse cerveja ele vira. Não era bebida que apreciasse, mas, à falta de melhor, ter-se-ia contentado com ela. O cheiro a comida provocava-lhe náuseas e fome em simultâneo, e sentia a transpiração a colar-lhe a camisa às costas e às axilas.

Passou pelos jogos de azar, dirigidos por vigaristas. Um desperdício de dinheiro, porque os jogos estavam viciados, mas os imbecis amontoavam-se à sua volta. Perscrutou as caras. Nem sinal de Erin.

Encaminhou-se para as outras atracções. Havia crianças nos carrinhos de choque, gente impaciente nas filas. Mais adiante achavam-se os baloiços, e Kevin rumou nessa direcção. Contornou um aglomerado de gente, semicerrando os olhos para apurar a visão.

Os baloiços já tinham começado a abrandar, mas Kristen e Josh ainda sorriam, radiantes de entusiasmo. Alex tinha razão em querer dar o dia por findo; Katie estava esgotada de calor e seria agradável tirarem uns momentos para se refrescarem. Se o chalé tinha alguma desvantagem - bom, na verdade, até tinha várias, reconhecia ela - era a falta de ar condicionado. Habituara-se a deixar as janelas abertas à noite, mas não surtia grande efeito.

Os baloiços pararam por completo, e Josh desprendeu a corrente e saltou. Kristen demorou um pouco mais a conseguir desenvencilhar-se, mas, passado um instante, os dois corriam em direcção a Katie e ao pai.

Kevin viu os baloiços a parar e um monte de miúdos a saltar para o chão, mas não foi aí que ele concentrou a sua atenção. Esta, ao invés, dirigiu-se aos adultos aglomerados em redor do perímetro da atracção.

Continuou a andar, o seu olhar a deslocar-se duma mulher para a seguinte. Loura ou morena, tanto fazia. Procurou a silhueta esguia de Erin. Visto que o sítio onde estava não lhe permitia ver as caras das pessoas mesmo à sua frente, mudou de posição. Numa questão de segundos, logo que os miúdos chegassem à saída, a multidão tornaria a dispersar.

Estugou o passo. Deparou com uma família, com bilhetes na mão, todos a falar ao mesmo tempo, hesitantes quanto ao sítio onde ir de seguida. Idiotas. Contornou-os, esforçando-se por ver as caras de volta dos baloiços.

Havia uma única mulher magricela. Uma morena de cabelo curto, ao lado dum indivíduo de cabelo grisalho, com o braço em volta da cintura dela.

Era inconfundível. As mesmas pernas compridas, o mesmo rosto, os mesmos braços bem tonificados.

Erin.

 

Alex e Katie foram de mão dada durante todo o caminho até ao Ivans, acompanhados pelas duas crianças. Arrumaram as bicicletas junto à porta das traseiras, o poiso habitual de Katie. À saída, Alex comprou uma garrafa de água para Josh e Kristen, e regressaram todos a casa.

- Um belo dia, não acham? - interpelou-os Alex, debruçando-se para abrir o cadeado das bicicletas.

- Foi um dia óptimo, papá - respondeu-lhe Kristen, a carita vermelha do calor.

Josh limpou a boca com o braço.

- Podemos voltar amanhã?

- Talvez - contemporizou o pai.

- Por favor, papá! Eu quero ir andar outra vez nos baloiços.

Logo que ficou despachado dos cadeados, Alex pendurou as correntes ao ombro.

- Veremos - concluiu ele.

Nas traseiras do Ivans, havia um beiral que proporcionava alguma sombra, mas a temperatura continuava alta. Depois de, ao passar pela vitrina, ver o restaurante apinhado de gente, Katie ficou aliviada por ter tirado o dia de folga, mesmo que isso significasse que teria de fazer dois turnos no dia seguinte e na segunda-feira. Valera a pena. O dia estava a correr às mil maravilhas e, nessa noite, enquanto Alex ia ao aeroporto, ela teria oportunidade para descansar e assistir a um filme com as crianças. E depois, mais tarde, quando ele voltasse...

- O que foi? - perguntou-lhe Alex.

- Não foi nada.

- Estavas a olhar para mim como se me quisesses devorar.

- Acho que estava distraída - esquivou-se ela com uma piscadela de olho. - Devem ser efeitos do calor.

- Pois, pois. - Ele assentiu com a cabeça. - Como se eu não te conhecesse... Gostaria de te lembrar que há umas orelhas infantis que se estão a arrebitar neste preciso momento, por isso, se eu fosse a ti, tinha cuidado com o que dizia. - Pregou-lhe um beijo e em seguida afagou-lhe o peito.

Nenhum dos dois reparou na presença do indivíduo de boné de basebol e de óculos escuros que os vigiava da esplanada do restaurante vizinho.

Kevin sentiu uma tontura ao ver Erin e o fulano do cabelo grisalho a beijarem-se, ao vê-la namoriscá-lo. Viu-a baixar-se e sorrir à menina. Viu-a a despentear o cabelo do rapaz. Viu o fulano do cabelo grisalho a acariciar-lhe o traseiro, aproveitando um momento de distracção das crianças. E Erin - a sua mulher - deixava-se ir na conversa. Estava a gostar. Encorajava-o. A atraiçoá-lo com a sua nova família, como se Kevin e o casamento de ambos nunca tivessem existido.

Montou cada um a sua bicicleta e começaram a pedalar, contornando o edifício, afastando-se de Kevin. Erin seguia lado a lado com o fulano do cabelo grisalho. Estava de calções e de sandálias, com as pernas à mostra, a exibir-se para outro indivíduo que não ele.

Kevin lançou-se no seu encalço. Viu o cabelo dela louro, comprido e ondulante... até que pestanejou, e ele voltou a ficar castanho e curto. A fingir que não era a Erin, a andar de bicicleta com a sua nova família, a beijar outro homem e a sorrir, a sorrir, sem uma única preocupação neste mundo. Não podia ser verdade, disse a si próprio. Não passava dum sonho. Dum pesadelo. Barcos ancorados baloiçavam no cais à sua passagem.

Contornou a esquina. Apesar de irem de bicicleta e de Kevin estar a pé, seguiam devagar a fim de que a menina lhes conseguisse acompanhar o ritmo. Foi encurtando a distância até ficar tão próximo que ouviu Erin rir-se com um ar muito satisfeito. Levou a mão ao Glock enfiado no cós das calças e retirou-o, escondendo-o debaixo da camisa, mantendo-o bem comprimido contra a pele. Tirou o boné de basebol da cabeça e encostou-o ao peito de modo a disfarçar a presença da arma.

Os seus pensamentos faziam ricochete como bolas de pachinko, saltando a toda a velocidade, para a direita e para a esquerda, para baixo, para baixo. Erin a mentir-lhe e a atraiçoá-lo, a maquinar e a urdir contra ele. A fugir de casa para ir ter com o amante. A sussurrar ao fulano do cabelo grisalho, a dizer-lhe coisas porcas, as mãos do homem a apalpar-lhe os seios, a respiração dela ofegante. A fingir que não era casada, a desprezar todos os sacrifícios que Kevin fizera por ela, a ignorar que ele tinha de raspar o sangue dos sapatos, e que Coffey e Ramirez passavam a vida a falar mal dele pelas costas, e que havia moscas de volta dos hambúrgueres, porque ela fugira, e ele tivera de ir ao churrasco sozinho, e ela não podia dizer ao comandante Bill que ele não era um polícia igual a tantos outros.

E ali estava ela, a pedalar com toda a descontracção, o cabelo curto e pintado, tão bonita como sempre, sem um único pensamento para o marido. Sem se ralar minimamente com ele. Esquecida dele e do casamento de modo a poder levar uma vida ao lado do fulano do cabelo grisalho, e afagar-lhe o peito, e beijá-lo com uma expressão sonhadora. Feliz e tranquila, sem uma única preocupação neste mundo. A ir à feira popular, a andar de bicicleta. O mais certo seria ter andado a cantar no chuveiro enquanto ele estivera a chorar e a lembrar-se do perfume que lhe oferecera pelo Natal, e nada disso importava porque ela era egoísta e julgava que o casamento era uma coisa que se podia deitar fora, como se fosse uma caixa de pizza vazia.

Estugou involuntariamente o passo. A multidão estava a atrasá-los, e Kevin percebeu que poderia empunhar a arma e matá-la nesse preciso momento. Levou o dedo ao gatilho e, discretamente, destravou-o, porque na Bíblia dizia: “Que o casamento seja honrado por todos, e que a cama não seja conspurcada.” Foi então que se apercebeu de que isso implicaria ter de matar também o fulano do cabelo grisalho. Poderia matá-lo à frente dela. Bastava-lhe puxar o gatilho, embora se visse forçado a admitir que era quase impossível atingir alvos em movimento com um Glock, e, para além do mais, havia gente a toda a volta. Iriam reparar na arma, e começar aos guinchos e aos gritos, e seria quase impossível acertar. Assim, decidiu afastar o dedo do gatilho.

- Pára de guinar para cima da tua irmã! - disse o fulano do cabelo grisalho mais adiante, a sua voz quase a perder-se na distância. As suas palavras, no entanto, eram reais, e Kevin imaginou as coisas porcas que ele sussurraria a Erin. Sentia a fúria a crescer dentro dele. Foi então que, de repente, as crianças contornaram uma esquina, e Erin e o fulano do cabelo grisalho foram atrás delas.

Kevin interrompeu a marcha, ofegante e agoniado. Quando ela virara a esquina, apanhara-lhe o perfil à luz do Sol, reparando uma vez mais na sua beleza. Sempre lhe fizera lembrar uma flor delicada, tão bonita e requintada, e recordou-se de que a salvara de ser violada por uns facínoras quando vinha a sair do casino e de que ela lhe costumava dizer que lhe transmitia uma sensação de segurança, mas nem isso fora suficiente para evitar que ela o abandonasse.

Pouco a pouco, começaram a chegar até ele as vozes das pessoas que o iam ultrapassando. A tagarelar a despropósito, sem um destino em vista, mas acabaram por ser elas a impeli-lo a passar à acção. Começou a correr a trote, a tentar atingir o local onde os quatro tinham virado, a sentir-se prestes a vomitar de cada vez que um pé lhe assentava no chão sob a torreira do sol. Sentiu a palma da mão escorregadia e pegajosa em volta da arma. Chegou à esquina e espreitou para o fundo da rua.

Não se via vivalma, mas, dois quarteirões mais adiante, a rua estava bloqueada ao trânsito por causa da feira popular. Deviam ter virado na rua anterior. Não havia outra alternativa. Calculava que tivessem virado à direita, a única maneira de sair da zona da baixa.

Kevin, porém, tinha alternativa. Persegui-los a pé e arriscar-se a ser detectado ou voltar o quanto antes para o carro e tomar a mesma direcção. Esforçou-se por seguir o raciocínio de Erin e concluiu que deveriam ter ido para a casa onde morava o fulano do cabelo grisalho. O chalé de Erin era acanhado e quente de mais para os quatro, e Erin haveria de querer uma casa bonita com mobília cara, porque estava convencida de que merecia uma vida assim, ao invés de dar valor à vida que tinha.

Era tudo uma questão de escolha. Ir a pé ou de carro. Ficou onde estava, a pestanejar enquanto reflectia, mas o calor deixava-o confuso, sentia a cabeça a latejar e não pensava senão em Erin na cama com o fulano do cabelo grisalho, uma ideia que por si só lhe provocava náuseas.

O mais provável seria ela se vestir de renda e se pôr a dançar para ele, a sussurrar-lhe ao ouvido para o excitar. A suplicar-lhe para que a deixasse dar-lhe prazer, para poder ficar a morar em casa dele rodeada de coisas bonitas. Transformara-se numa prostituta, vendia a alma a troco de luxo. Vendia a alma a troco de pérolas e de caviar. O mais certo seria dormir agora numa mansão, depois de o fulano do cabelo grisalho a levar a jantar em restaurantes finos.

Sentia-se agoniado só de imaginar. Magoado e traído. A fúria ajudou-o a desanuviar os pensamentos e nesse momento apercebeu-se de que continuava no mesmo sítio enquanto eles se iam afastando cada vez mais. Tinha o automóvel estacionado a vários quarteirões dali, mas deu meia-volta e desatou a correr. Na feira popular, foi abrindo caminho a eito, ignorando os gritos e os protestos de quem empurrava. “Saiam da frente, saiam da frente!”, gritava-lhes, e quem não saía levava um encontrão. Chegou a um local desimpedido, mas estava ofegante e viu-se obrigado a vomitar junto duma boca-de-incêndio. Ao ver um grupo de adolescentes começar a fazer troça dele, a sua única vontade foi corrê-los logo a tiro, contudo, depois de limpar a boca, limitou-se a sacar da arma e a apontar-lha para eles de imediato se calarem.

Avançou aos tropeções, com a sensação de que tinha um picador de gelo a cravar-se-lhe na cabeça. Punhalada e dor, punhalada e dor. A cada maldito passo, sentia uma punhalada dolorosa, e, a essa hora, o mais certo seria Erin estar a dizer ao fulano do cabelo grisalho as coisas provocadoras que os dois iriam fazer na cama. A falar de Kevin ao fulano do cabelo grisalho e a rir-se, a sussurrar-lhe: “O Kevin nunca me conseguia satisfazer como tu”, mesmo não sendo verdade.

Levou uma eternidade a conseguir encontrar o carro. Quando lá chegou, pareceu-lhe um forno. O calor era tanto que lhe embaciava os vidros, e o volante escaldava ao toque. Um autêntico inferno. Erin escolhera ir morar para um inferno. Ligou o motor e abriu as janelas, dando meia-volta em direcção à feira popular e buzinando para afastar as pessoas da rua.

Mais desvios. Impedimentos ao trânsito. Só lhe apetecia levar tudo pela frente, desfazer as barreiras em cacos, mas o problema era que ali também havia polícias e poderiam prendê-lo. Estúpidos polícias, polícias estúpidos e gordos. Polícias imbecis. Lorpas. Nenhum deles prestava para investigador, mas tinham armas e distintivos. Kevin seguiu pelas ruas secundárias, a tentar concentrar-se na direcção que Erin tomara. Erin e o amante. Ambos adúlteros, e a Bíblia que dizia: “Quem quer que olhe para uma mulher com cobiça comete adultério em pensamento.”

Gente por todo o lado. A atravessar a rua ao calhas. A obrigá-lo a parar. Debruçou-se sobre o volante, a esforçar-se por ver através do pára-brisas, até que finalmente os avistou, silhuetas minúsculas ao longe. Tinham acabado de ultrapassar mais uma barreira, em direcção à estrada que conduzia a casa dela. Estava um polícia à esquina, mais um lorpa.

Lançou-se em frente, sendo forçado a parar de repente quando um homem lhe apareceu pela frente, aos murros ao capo. Um rústico com o cabelo curto no cocuruto e comprido dos lados, caveiras na camisola e tatuagens. Mulher gorda e filhos com aspecto seboso. Falhados, todos eles.

- Vê lá se tens atenção à estrada! - gritou-lhe o rústico.

Kevin alvejou-os mentalmente a todos, pum, pum, pum, pum!, mas conteve-se porque o polícia à esquina não tirava os olhos dele. “Pum!”, pensou Kevin.

Contornou uma esquina e foi acelerando através do bairro. Virou à esquerda e tornou a acelerar. Virou novamente à esquerda. Mais barreiras ao fundo. Kevin arrepiou novamente caminho, meteu pela direita e virou à esquerda no quarteirão seguinte.

Mais barreiras. Estava preso num labirinto, como uma cobaia sujeita a uma experiência. A cidade a conspirar contra ele enquanto Erin fugia. Fez marcha atrás e recuou. Voltou à estrada e virou, precipitando-se a toda a velocidade para o cruzamento seguinte. Já não podia estar longe. Kevin voltou novamente à esquerda, viu automóveis mais adiante, a deslocarem-se no sentido que pretendia. Virou, encafuando o carro entre dois camiões.

Queria acelerar, mas não podia. À sua frente, estendia-se uma fila de carros e de camiões, alguns com autocolantes com bandeiras da Confederação, outros com grelhas para transportar armas no tejadilho. Rústicos. As pessoas na rua impediam completamente o trânsito, a andar como se nem dessem pelos carros. Gente que passava por ele a bambolear-se, que avançava mais depressa que ele. Gente gorda, entretida a comer. E que o mais certo seria ter passado o dia inteiro a comer e que agora atrasava o trânsito enquanto Erin se afastava cada vez mais.

O carro dele avançava uns metros e tornava a parar. Mais uns metros e tornava a parar. Um pára-arranca constante. Só lhe apetecia desatar aos berros, desancar o volante ao murro, mas havia gente por todo o lado. Se não tivesse cuidado, alguém ainda chamaria a atenção dalgum polícia lorpa e este, ao ver que a matrícula dele não era daquele estado, não hesitaria em prendê-lo só porque não era da terra.

Pára-arranca constante, cada metro conquistado a pulso, até que chegou à esquina. O trânsito tinha de desanuviar, pensou, mas não desanuviou, e, lá ao fundo, Erin e o fulano do cabelo grisalho tinham desaparecido. À sua frente, não via senão carros e camiões numa estrada que conduzia a todo o lado e a lado nenhum em simultâneo.

 

Havia uma dúzia de automóveis estacionados à entrada do armazém quando Katie e as duas crianças subiram as escadas que davam acesso à casa. Josh e Kristen tinham vindo a queixar-se de que lhes doíam as pernas durante quase todo o caminho de regresso, mas Alex não fizera caso deles, recordando-lhes com regularidade que já faltava pouco. Quando viu que não dava resultado, limitou-se a observar que também começava a ficar cansado e que já estava farto de os ouvir.

Os queixumes terminaram mal chegaram ao armazém. Alex deixou-os ir buscar chupa-chupas e Gatorade antes de subirem para casa, e a rajada de ar frio que os atingiu quando abriram a porta da vitrina frigorífica soube-lhes lindamente. Alex conduziu Katie à cozinha, e ela ficou a vê-lo a molhar a cara e o pescoço no lava-louça. Entretanto, na sala de estar, as crianças já se tinham refastelado no sofá, diante do televisor ligado.

- Desculpa - disse-lhe Alex. - Há dez minutos que estava com medo de que me desse uma coisa.

- Não disseste nada.

? - Não disse porque sou duro - retorquiu ele, a fingir que enfunava o peito. Retirou dois copos do armário, deitou-lhes cubos de gelo e em seguida água dum jarro que tinha no frigorífico. - Até me admiro de tu não te queixares - comentou ele, estendendo-lhe um copo. - Isto aqui mais parece uma sauna.

- Nem imagino a quantidade de pessoas que terão ficado na feira - disse ela, bebendo um gole de seguida.

- Sempre me admirei de eles não mudarem a data para Maio ou Outubro, mas a verdade é que as pessoas acorrem sempre aos magotes.

Katie deitou uma olhadela ao relógio de parede.

- A que horas tens de te ir embora?

- Daqui a uma hora, mais coisa menos coisa. Mas antes das onze já cá devo estar.

Cinco horas, pensou ela.

- Queres que eu faça qualquer coisa em especial para o jantar dos miúdos?

- Eles gostam de massa. A Kristen gosta da dela com manteiga, o Josh, com molho marinara... Acho que tenho um frasco no frigorífico. Mas, como passaram o dia todo a petiscar, é possível que não tenham grande apetite.

- E a que horas é que eles vão para a cama?

- Não têm uma hora certa. Obrigatoriamente antes das dez, mas às vezes são oito horas e já estão deitados. Terás de ser tu a decidir.

Katie encostou o copo de água gelada à face e varreu a cozinha com o olhar. Nunca se demorara muito em casa deles e, agora que ali estava, reparava em vestígios dum toque feminino. Coisas aparentemente insignificantes: as cortinas pespontadas a vermelho, porcelana em nítido destaque numa vitrina, versículos da Bíblia nos azulejos de cerâmica pintada junto ao fogão. A casa estava repleta de provas da vida de Alex ao lado doutra mulher, mas, para sua surpresa, isso não a incomodou.

- vou num instante tomar um duche - anunciou Alex. - Não te importas de ficar uns minutos por tua conta?

- Está claro que não - disse ela. - Posso aproveitar para dar uma espreitadela à tua cozinha e pensar no que hei-de fazer para o jantar.

- A massa está naquele armário ali - indicou-lhe Alex.

- Mas, escuta, se, quando eu sair, quiseres que te leve a tua casa para que possas tomar um duche e mudar de roupa, terei todo o gosto nisso. Ou então podes tomar duche aqui. Faz como entenderes.

Ela afivelou uma expressão provocante.

- Isso é um convite?

Os olhos de Alex arregalaram-se e desviaram-se instantaneamente para os filhos.

- Estava a brincar. - Katie riu-se. - Eu tomo duche depois de te ires embora.

- Não queres ir primeiro buscar roupa lavada? Se não quiseres, posso emprestar-te umas calças de fato de treino e uma T-shirt... As calças vão-te ficar grandes, mas podes apertar o cordão.

Sem saber bem explicar porquê, a ideia de vestir a roupa dele afigurou-se-lhe extremamente sensual.

- Tudo bem - tranquilizou-o ela. - Não sou esquisita. Não te esqueças de que vou só ver um filme com os miúdos.

Alex bebeu o resto da água e pousou o copo no lava-louça. Chegou-se a ela e pregou-lhe um beijo, posto o que se dirigiu ao quarto.

Mal ele se retirou, Katie virou-se para a janela. Observou a estrada lá fora, sentindo uma ansiedade indefinível a dominá-la. Já nessa manhã tivera essa sensação e presumira que fosse do abalo da discussão que travara com Alex; agora, porém, dava por ela a pensar uma vez mais nos Feldman. E em Kevin.

Lembrara-se dele quando estava na roda gigante. Enquanto percorria a multidão com o olhar, percebera que não estivera à procura de clientes do restaurante. Não propriamente. Andara à procura de Kevin. Convencida, por algum motivo que não conseguia explicar, de que ele se poderia encontrar entre aquele mar de gente. Convencida de que ele lá estava.

Mas isso era apenas a sua paranóia a manifestar-se uma vez mais. Kevin não tinha forma possível de saber onde ela estava, nenhuma maneira de descobrir a sua identidade. Era impossível, lembrou a si própria. Ele nunca seria capaz de a associar à filha dos Feldman; se nem sequer falava com o casal. Mas, então, por que fora que estivera o dia inteiro com a sensação de que andava alguém a persegui-la, mesmo depois de se terem vindo embora da feira popular?

Não era médium, nem tão-pouco acreditava em fenómenos dessa natureza. No que acreditava, sem dúvida alguma, era no poder da mente subconsciente para encaixar peças que poderiam passar despercebidas à mente consciente. Ali, na cozinha de Alex, porém, as peças ainda estavam misturadas, sem forma ou ordem de qualquer espécie, e, depois de ver meia dúzia de carros a passar na estrada em frente, acabou por se desviar da janela. Seriam muito provavelmente apenas os seus velhos medos a vir à superfície.

Katie abanou a cabeça e pensou em Alex debaixo do chuveiro. A ideia de ir ter com ele deixou-a ruborizada de expectativa. E no entanto... não era assim tão simples quanto pudesse parecer, mesmo que os filhos não estivessem em casa. Ainda que Alex visse nela a Katie, a Erin ainda era casada com Kevin. Oxalá fosse outra mulher, uma mulher que se pudesse entregar nos braços do amante sem hesitações. Afinal de contas, quem infringira todas as regras do casamento fora Kevin ao levantar-lhe a mão. Katie tinha a certeza absoluta de que, quando Deus lhe perscrutasse a alma, concordaria que não estava a cometer nenhum pecado. Não era?

Soltou um suspiro. Alex... não era capaz de o tirar do pensamento. Nem a ele, nem à promessa que essa noite encerrava. Alex amava-a e desejava-a, e Katie ansiava mais que tudo por lhe mostrar que os seus sentimentos por ela eram correspondidos. Queria sentir o corpo dele contra o dela, queria tê-lo todo para si enquanto ele também a quisesse. Para sempre.

Katie obrigou-se a parar de se imaginar com Alex, a parar de sonhar com o que estava para vir. Abanou a cabeça a fim de clarear as ideias e dirigiu-se à sala de estar, onde se instalou ao lado de Josh. Ele e a irmã estavam a assistir a um programa do Canal Disney que ela não conhecia. Ao fim dalgum tempo, olhou para o relógio e constatou que só se tinham passado dez minutos. Parecera-lhe uma hora.

Logo que acabou de tomar duche, Alex preparou uma sanduíche e sentou-se ao lado dela no sofá a comê-la. Cheirava a limpo e ainda tinha as pontas do cabelo molhadas, agarradas à pele duma forma que lhe deu vontade de fazer deslizar os lábios por elas. As crianças, coladas à televisão, ignoravam-nos, mesmo depois de ele pousar o prato na beira da mesa e começar a fazer deslizar um dedo pela coxa dela.

- Estás muito bonita - sussurrou-lhe Alex ao ouvido.

-- Estou com péssimo aspecto - retorquiu ela, a tentar ignorar a linha de fogo que lhe ardia pela coxa acima. - Ainda nem banho tomei.

Quando chegou a altura de se ir embora, despediu-se dos filhos com um beijo na sala de estar. Katie acompanhou-o à porta e, ao dar-lhe um beijo de adeus, deixou a mão deambular para baixo, descendo pela cintura, os lábios a aflorar delicadamente os dela. Obviamente apaixonado por ela, obviamente ávido dela, sem deixar lugar a dúvidas no espírito dela. Estava a deixá-la maluca e parecia estar a divertir-se com isso.

- Não me demoro - disse ele, afastando-se.

- Tem cuidado na estrada - murmurou-lhe Katie. - Está descansado que os miúdos ficam bem.

Quando ouviu os passos dele a descer os degraus exteriores, encostou-se à porta e respirou de forma lenta e profunda. “Santo Deus”, pensou. “Santo Deus.” com votos ou sem eles, com culpa ou sem ela, concluiu que, mesmo que Alex não estivesse para aí virado, ela estava de certeza.

Tornou a espreitar para o relógio, ciente de que seriam as cinco horas mais longas da sua vida.

 

- Raios! - praguejava Kevin sem cessar. - Raios! - Estava havia horas ao volante. Parara, numa loja ABC para comprar quatro garrafas de vodca. Uma delas já estava quase no fim e, a menos que conduzisse com um olho fechado, via tudo a dobrar.

Andava à procura de bicicletas. Quatro, incluindo uma com cestos. Mais valia andar à procura dum filamento específico de plâncton no oceano. Subia por uma rua e descia pela seguinte, e assim a tarde foi chegando ao fim e cedendo lugar ao crepúsculo. Olhava para a esquerda e para a direita e depois voltava para trás. Sabia onde Erin morava, sabia que acabaria por encontrá-la em casa. Entretanto, porém, o fulano do cabelo grisalho andava à solta com ela, a rir-se dele, enquanto dizia: “Deixa lá o Kevin, que eu sou muito melhor que ele, miúda.”

Gritava pragas dentro do automóvel e esmurrava o volante. Destravou o gatilho do Glock e tornou a travá-lo, imaginando Erin aos beijos a ele, o braço dele em volta da cintura dela. A recordar-se de como haviam sido felizes, a pensar que ela tinha conseguido ludibriar o marido. Atraiçoar o marido. A gemer e a murmurar por baixo do amante enquanto ele ofegava montado nela.

Mal via um palmo diante do nariz, só com um olho aberto para evitar as imagens desfocadas. Um carro começou a segui-lo pelas ruas do bairro, mesmo colado a ele, até que lhe fez um sinal de luzes. Kevin abrandou a marcha e encostou à berma, de arma em punho. Detestava gente mal-educada, gente que se julgava dona da estrada. Pum!

O crepúsculo transformava as ruas num labirinto sombrio, dificultando a visão dos contornos delgados das bicicletas. Quando passou pela estrada de gravilha pela segunda vez, deixou-se levar por um impulso e decidiu fazer nova visita à casa, só por via das dúvidas. Estacionou o mais próximo do chalé sem que ficasse visível e saiu do carro. Um falcão andava a circundar lá no alto, e Kevin ouviu o zunir das cigarras, contudo, à excepção disto, o local parecia deserto. Encaminhou-se para a casa, mas viu logo que não havia nenhuma bicicleta à porta. Nem tão-pouco luzes acesas. Todavia, como ainda não escurecera por completo, dirigiu-se a passo furtivo à porta das traseiras. No trinco, tal como da primeira vez.

Erin não se achava em casa, e Kevin calculou que ela não tivesse lá ido depois da sua primeira visita. O chalé estava um forno, todas as janelas bem fechadas. Ela tê-las-ia aberto, disso tinha ele a certeza, teria bebido um copo de água, talvez tivesse tomado um duche. Nada. Saiu pela porta das traseiras e fixou a sua atenção na casa vizinha. Uma espelunca. Provavelmente abandonada. Melhor assim. Contudo, o facto de Erin não estar em casa implicava que estaria seguramente na companhia do fulano do cabelo grisalho, que fora para casa dele. A atraiçoá-lo, a fingir que não era casada. A esquecer-se da casa que Kevin lhe comprara.

A cabeça latejava-lhe ao ritmo da pulsação, uma faca sempre a entrar e a sair. Facada. Facada. Facada. Quando fechou a porta atrás de si, já mal era capaz de se concentrar. Por milagre, estava mais fresco lá fora. Ela morava numa sauna, suava com o fulano do cabelo grisalho. Estavam nesse preciso momento a suar, algures, a contorcer-se em cima dos lençóis, os corpos entrelaçados. Coffey e Ramirez estavam a fazer troça dele por causa disso, a assentar palmadas nas coxas de tanta que era a risota, a divertir-se à grande e à francesa à sua custa. “Quem sabe se ela não me deixaria comê-la também”, estava Coffey a dizer a Ramirez. “Ai mas tu não sabes?”, retorquia-lhe Ramirez. “Ela deixou que metade da esquadra a comesse enquanto o Kevin esteve para fora.” Bill a acenar-lhe do seu gabinete, com os papéis da sua suspensão na mão. “Eu também andei a comê-la, todas as terças-feiras durante um ano. Ela é uma gata assanhada na cama. Só diz coisas porcas.”

Foi todo o caminho até ao carro aos tropeções, o dedo sempre no gatilho. Uns filhos-da-mãe, todos eles. Odiava-os, imaginava-se a entrar na esquadra de Glock em punho, a esvaziar o carregador, a mostrar-lhes como era. A mostrar-lhes a todos. Erin incluída.

Parou e debruçou-se sobre si próprio, vomitando na berma da estrada. Cheio de cãibras no estômago, a sentir os intestinos como se houvesse um rato preso lá dentro a arranhar-lhos. Tornou a vomitar, depois arrancos secos e, quando se tentou levantar, o mundo girou à sua volta. Ao ver o carro ali próximo, cambaleou na sua direcção. Agarrou na garrafa de vodca, bebeu um gole e esforçou-se por pensar como Erin, mas só se conseguia ver no churrasco com um hambúrguer infestado de moscas na mão, e toda a gente de dedo apontado para ele, a rir-se à sua custa.

Voltou para o carro. Nalgum lado a cabra tinha de estar. Iria obrigá-la a assistir à morte do fulano do cabelo grisalho. Iria assistir à morte de ambos. Que fossem arder para o inferno. Arder até não restar nada, todos eles. com cuidado, instalou-se ao volante e ligou a ignição. Ao fazer marcha atrás, chocou contra uma árvore e, depois, a praguejar, arrancou pela estrada de gravilha fora, fazendo saltar as pedras.

Não tardaria, seria noite. Ela vinha naquela direcção, tinha de estar por ali. As crianças não conseguiram fazer grandes distâncias de bicicleta. Uns quatro ou cinco quilómetros, talvez seis. Ele já percorrera todas as estradas que desembocavam ali, examinara todas as casas. Nem uma bicicleta para amostra. Podiam estar dentro das garagens, podiam estar estacionadas por detrás das vedações dos jardins. Decidiu esperar. Algum dia ela teria de vir a casa. Nessa noite. No dia seguinte. Na noite do dia seguinte. Quando a apanhasse, iria enfiar-lhe o revólver na boca, fazer pontaria aos seios. “Diz-me quem ele é”, ordenar-lhe-ia. “Eu só quero ter uma conversa com ele.” Iria encontrar o fulano do cabelo grisalho e mostrar-lhe o que acontecia aos homens que iam para a cama com a mulher do próximo.

Tinha a sensação de estar havia semanas sem dormir, semanas sem comer. Não percebia por que é que estava escuro e interrogava-se quando fora que isso acontecera. Não se lembrava exactamente quando fora que ali chegara. Recordava-se de ver Erin, recordava-se de a tentar seguir e de andar a conduzir, mas nem sequer sabia ao certo onde se achava.

Um armazém avultou à sua direita, idêntico a uma casa com um alpendre na fachada. GASOLINA COMIDA, dizia o letreiro. Recordava-se de o ter visto anteriormente, quando, não sabia precisar. Abrandou instintivamente o carro. Precisava de se alimentar, precisava de dormir. Tinha de arranjar um sítio onde passar a noite. Sentia o estômago às voltas. Agarrou na garrafa e inclinou-a, sentindo o ardor na garganta a acalmá-lo. Contudo, mal tornou a baixar a garrafa, as náuseas voltaram.

Entrou no parque de estacionamento do armazém, a esforçar-se por manter a bebida no estômago, a saliva a vir-lhe à boca. O tempo estava a esgotar-se. Enfiou-se num lugar ao lado do edifício e saltou do carro. Correu para a dianteira e vomitou para a escuridão. O corpo tremia-lhe, as pernas oscilavam-lhe. O estômago ameaçava sair-lhe pela boca. O fígado. As entranhas. Sem dar por isso, ainda trazia, a garrafa na mão, esquecera-se de a pousar. Inspirou e expirou fundo e levou o gargalo à boca, lavando a boca com a vodca, engolindo-a. Acabando com outra garrafa.

E foi então que, como uma imagem saída dum sonho, nas sombras escuras atrás da casa, viu quatro bicicletas estacionadas lado a lado.

 

Katie ajudou os dois irmãos a tomar banho e a vestir o pijama. Depois foi ela tomar um duche, demorando-se debaixo do jacto de água e desfrutando da sensação deliciosa do champô e do sabonete a retirarem-lhe a transpiração salgada do corpo ao fim dum dia passado ao sol.

Cozinhou a massa das crianças e, depois do jantar, foram vasculhar a colecção de DVD, a tentar encontrar um que ambos gostassem de ver, até que, por fim, se decidiram por A Procura de Nemo. Katie sentou-se no sofá entre Josh e Kristen, com uma taça com pipocas no colo, e as mãozinhas de ambos estenderam-se automaticamente para ela. Tinha vestido umas calças de treino confortáveis que Alex lhe dispensara e um pulôver já coçado dos Carolina Panthers, e estava de pernas dobradas encostadas ao peito, sentindo-se completamente à vontade pela primeira vez nesse dia.

Lá fora, o céu resplandecia como um fogo-de-artifício, exibindo as cores vivas do arco-íris que se iam esbatendo para tonalidades pastel antes de, finalmente, passarem a azul-acinzentado e a índigo. À medida que as derradeiras ondas de calor se libertavam da terra, as estrelas começaram a cintilar lá no alto.

Kristen começara a bocejar ao longo do filme, no entanto, de cada vez que a Dory surgia no ecrã, ainda tinha forças para palrar:

- Ela é a minha preferida, mas não me consigo lembrar porquê!

Do outro lado de Katie, Josh fazia o possível por não adormecer. Quando o filme chegou ao fim e Katie se debruçou para desligar o televisor, Josh levantou a cabeça e deixou-a abater-se no sofá. Uma vez que ele era muito pesado para o levar ao colo, sacudiu-lhe o ombro e disse-lhe que eram horas de ir para a cama. O rapaz resmungou e gemeu, mas lá acabou por se sentar direito. Soltou um grande bocejo, pôs-se de pé e, com Katie a seu lado, foi a cambalear até ao quarto. Meteu-se na cama sem protestar, e ela deu-lhe um beijo de boas-noites. Sem saber se ele precisava de uma luz, deixou a do corredor acesa e uma fresta da porta aberta.

Kristen foi a próxima. Pediu a Katie que ficasse um bocadinho deitada a seu lado, e esta assim fez, de olhar fixo no tecto, a começar a acusar os efeitos do calor do dia. Kristen não tardou a adormecer, e Katie, fazendo um grande esforço por não lhe seguir o exemplo, saiu do quarto pé ante pé.

Depois, foi arrumar a louça do jantar e guardar as pipocas que tinham sobrado. Bastou-lhe deitar uma olhadela à sala de estar para detectar vestígios das crianças por toda a parte: uma pilha de caixas de quebra-cabeças numa prateleira, um cesto cheio de brinquedos a um canto, sofás confortáveis de cabedal à prova de líquidos. Examinou os ornamentos dispostos pela sala: um relógio antiquado a que todos os dias era necessário dar corda, uma enciclopédia antiga em diversos volumes numa prateleira junto à cadeira reclinável, uma jarra de cristal em cima duma mesa próxima do parapeito da janela. Nas paredes, havia fotografias estilizadas a preto e branco de celeiros de tabaco em ruínas. Eram construções tipicamente meridionais, e Katie recordava-se de ter visto muitas daquelas cenas rústicas durante a sua viagem através da Carolina do Norte.

Havia também sinais da vida caótica que Alex levava: uma nódoa vermelha no tapete diante do sofá, mazelas no soalho de madeira, pó nos rodapés. Contudo, à medida que examinava a casa, não pôde deixar de sorrir, porque aquilo também era um reflexo do próprio Alex. Era um pai viúvo, a esforçar-se o mais possível por educar os filhos e manter a casa asseada, ainda que os resultados não fossem perfeitos. A casa era um instantâneo da sua vida, e Katie sentia-se bem naquele ambiente descontraído e confortável.

Apagou as luzes e deixou-se abater no sofá. Pegou no comando da televisão e começou a percorrer os vários canais, à procura de qualquer coisa interessante, sem ser demasiado exigente. Reparou que eram quase dez horas. Ainda tinha uma hora de espera pela frente. Recostou-se no sofá e começou a ver um programa no Canal Disney a propósito de vulcões. Deu por um reflexo no ecrã e levantou-se para apagar o candeeiro na mesa de apoio. Tornou a recostar-se. Assim estava melhor.

Deixou-se ficar a ver o programa durante alguns minutos, mal se apercebendo de que, sempre que pestanejava, os seus olhos se mantinham fechados por um instante mais demorado. A sua respiração foi abrandando, e ela começou a enterrar-se entre as almofadas. Os pensamentos começaram a afluir-lhe ao espírito, a princípio desconexos, imagens das atracções da feira popular, a vista do alto da roda gigante. Pessoas aglomeradas em grupos fortuitos, novas e velhas, adolescentes e casais. Famílias. E, algures ao longe, um indivíduo de boné de basebol e óculos escuros, a abrir caminho por entre a multidão, a deslocar-se com um objectivo em vista, até que ela acabou por perdê-lo de vista. Alguém que tivera a impressão de reconhecer: pelo passo, pelo queixo proeminente, pela maneira como oscilava os braços.

Foi-se deixando ir à deriva, completamente descontraída, perdida nas suas recordações, as imagens a começarem a esfumar-se, o som da televisão a desvanecer-se. A sala ia ficando cada vez mais escura, mais silenciosa. Continuava à deriva, a vista da feira do alto da roda gigante a insistir em manifestar-se no seu espírito. E, como não podia deixar de ser, o homem que despertara a sua atenção, um homem que se movimentava qual caçador furtivo através do mato, à procura da sua presa.

 

Kevin fixou o olhar nas janelas, com a garrafa meio vazia de vodca bem apertada na mão, a terceira que bebia nessa noite. Ninguém deu sinais de reparar na sua presença. Encontrava-se no ancoradouro nas traseiras da casa; mudara de roupa e usava agora uma camisa preta de manga comprida e umas calças de ganga escuras. Só se lhe via a cara, mas mantinha-se à sombra dum cipreste, escondido atrás do tronco. A observar as janelas. A observar as luzes, à procura de Erin.

Durante muito tempo não aconteceu nada. Foi-se entretendo a beber até esvaziar a garrafa. Havia sempre gente a entrar no armazém, e muitos clientes pagavam a gasolina da bomba com cartão de crédito. Sempre com pressa, com muita pressa, até mesmo ali, no meio de nenhures. Deslocou-se para a parede lateral do armazém, sempre atento às janelas. Reconheceu o clarão trémulo e azulado dum televisor. Os quatro a ver televisão, a fingir que eram uma família feliz. Ou talvez os miúdos já estivessem na cama, cansados da feira, cansados do passeio de bicicleta. Talvez Erin e o fulano do cabelo grisalho estivessem os dois sozinhos, aconchegados no sofá, a beijar-se e a acariciar-se enquanto a Meg Ryan ou a Julia Roberts se apaixonavam no ecrã.

Tudo lhe doía, estava exausto e sentia o estômago constantemente às voltas. Poderia ter subido a escada e arrombado a porta ao pontapé, já teria tido tempo para os matar meia dúzia de vezes, e estava desejoso de despachar o assunto, mas ainda havia gente no armazém. Carros no parque de estacionamento. Empurrou o seu automóvel com o motor desligado para um lugar entre uma árvore e as traseiras do armazém, fora do alcance da vista dos veículos que passavam na estrada. Estava ansioso por empunhar o Glock e disparar o gatilho, ansioso por os ver morrer, mas sentia em simultâneo uma vontade imensa de se deitar a dormir, porque nunca estivera tão cansado na vida, e, quando acordasse, queria ver Erin a seu lado e pensar para consigo que ela nunca o abandonara.

Mais tarde, detectou uma silhueta de perfil à janela, viu-a a sorrir à medida que dava meia-volta e percebeu que estava a pensar no fulano do cabelo grisalho. A pensar em sexo, e a Bíblia que dizia: “Aqueles que se entregam à fornicação e à carne de estranhos são apontados como exemplo e condenados a sofrer a vingança do fogo eterno.”

Ele era um anjo do Senhor. Erin pecara, e na Bíblia dizia: “Ela será atormentada com fogo do inferno na presença dos anjos sagrados.”

Na Bíblia estava sempre a aparecer fogo porque o fogo purificava e condenava, e isso era algo que Kevin era capaz de compreender. O fogo era poderoso, a arma dos anjos. Acabou a vodca que tinha na garrafa e, com um pontapé, atirou-a para debaixo dos arbustos. Um automóvel parou junto às bombas da gasolina, e o condutor saiu. Enfiou o cartão de crédito na ranhura e começou a encher o depósito. O aviso junto à bomba informava os clientes de que era proibido fumar porque a gasolina era inflamável. No interior do armazém, havia combustível apropriado para acender o carvão dos churrascos. Kevin recordava-se do indivíduo que estivera à sua frente na fila nessa manhã para comprar uma lata.

Fogo.

Alex endireitou-se no assento e ajeitou as mãos em redor do volante, a tentar pôr-se mais confortável. Joyce e a filha seguiam no banco traseiro, numa conversa ininterrupta desde que tinham entrado no jipe.

O relógio no painel de instrumentos indicava-lhe que começava a ficar tarde. Os filhos ou já estavam na cama, ou estavam a preparar-se para isso, e Alex também estava ansioso por fazer o mesmo. No caminho de regresso, comprara uma garrafa de água, mas ainda estava com sede e hesitava entre tornar a parar ou não. Tinha a certeza de que nem Joyce nem a filha se importariam, mas não se queria demorar. Estava ansioso por chegar a casa.

Enquanto conduzia, sentiu a mente a vaguear. Lembrou-se de Josh e de Kristen, de Katie, e foi percorrendo algumas recordações que tinha de Carly. Tentou imaginar qual seria a opinião de Carly a respeito de Katie e se desejaria que ele lhe entregasse a carta. Recordou-se do dia em que vira Katie a ajudar Kristen a calçar as botas à boneca e de como estava bonita na noite em que o convidara para jantar. A ideia de que ela se achava em sua casa à espera dele deu-lhe vontade de carregar no acelerador.

Do lado oposto da auto-estrada, pontos de luz distantes iam aflorando no horizonte, separando-se e aumentando pouco a pouco até formarem os faróis dianteiros dos automóveis que vinham em sentido contrário. Iam ficando cada vez mais brilhantes e acabavam por desaparecer a toda a velocidade. No espelho retrovisor, luzes vermelhas perdiam-se ao longe.

A sul, relâmpagos de calor rasgavam o céu, piscando como uma projecção de diapositivos. À direita avistou a casa duma quinta, as luzes do rés-do-chão acesas. Ultrapassou um camião com matrícula da Virgínia e rodou os ombros, a tentar afugentar o cansaço. Passou pelo letreiro que indicava quantos quilómetros ainda faltavam para chegar a Wilmington e suspirou. Ainda tinha um longo caminho pela frente.

As pestanas de Katie agitaram-se à medida que ela sonhava, o seu subconsciente em grande actividade. Peças soltas, fragmentos que se tentavam encaixar.

O sonho chegou ao fim e, uns minutos volvidos, ela aconchegou as pernas dobradas ao peito e voltou-se de lado, não acordando por um triz. A sua respiração começou novamente a aquietar.

Às dez horas, o parque de estacionamento estava praticamente deserto. Ao ver aproximar-se a hora do fecho do armazém, Kevin dirigiu-se à entrada, semicerrando os olhos à luz que saía pela porta. Abriu a porta e ouviu uma campainha a tilintar. À caixa estava um indivíduo de avental. Kevin teve uma vaga ideia de que o conhecia, mas não sabia donde. O avental era branco e tinha ROGER impresso à direita.

Kevin passou pela caixa, esforçando-se por não entaramelar a fala.

- Fiquei sem gasolina na estrada.

- Os bidões de gasolina estão ali ao fundo - respondeu-lhe Roger sem levantar a cabeça. Quando finalmente olhou para ele, pestanejou. - Está tudo bem consigo?

- É só cansaço - disse-lhe Kevin, já no corredor, a tentar passar despercebido, mas ciente de que o empregado o tinha sob a sua mira. Trazia o Glock enfiado no cós das calças, e o melhor que Roger tinha a fazer seria meter-se na sua vida. Ao fundo, Kevin viu três bidões de plástico de cinco galões e retirou dois da prateleira. Levou-os para a caixa registadora e pousou o dinheiro em cima do balcão. - vou só enchê-los e já venho fazer contas consigo - disse.

Uma vez na bomba, encheu um bidão de gasolina a ver os números a desfilar diante dos seus olhos. Encheu o segundo e tornou a entrar no armazém. Roger tinha o olhar cravado nele, relutante em fazer-lhe o troco.

- Olhe que leva aí muita gasolina.

- A Erin precisa dela.

- Quem é a Erin?

Kevin pestanejou.

- Posso comprar o raio da gasolina ou não?

- Tem a certeza de que está em condições de conduzir?

- Isto é só uma indisposição - resmungou Kevin. - Passei o dia todo a vomitar.

Apesar de Roger não se mostrar muito convencido, após uns momentos de hesitação, acabou por aceitar o dinheiro e fazer-lhe o troco. Kevin deixara os bidões junto das bombas de gasolina e foi buscá-los. Pesavam como chumbo. Fez um esforço, a sentir o estômago às voltas, uma dor latejante nas têmporas. Encaminhou-se estrada acima, deixando para trás as luzes do armazém.

Uma vez envolto pela escuridão, escondeu os bidões entre a erva alta à beira da estrada. Em seguida, deu meia-volta e regressou ao armazém. À espera de que Roger fechasse o estabelecimento, à espera de que as luzes se apagassem. À espera de que lá em cima todos estivessem a dormir. Foi buscar outra garrafa de vodca ao carro e bebeu um gole.

Em Wilmington, Alex começou a arrebitar, sabendo que estava quase a chegar a casa. Já não deveria faltar muito, talvez uma meia hora, para alcançar Southport. Mais uns minutos para ir deixar Joyce e a filha a casa e depois seguiria directamente para o armazém.

Interrogou-se se iria encontrar Katie acordada, à sua espera na sala de estar, ou se ela decidira cumprir a sua ameaça e entretanto se teria ido enfiar na sua cama.

Carly era dada ao mesmo género de provocações. Podiam estar a falar sobre o armazém ou sobre se os pais dela estavam a gostar de morar na Florida, quando, sem que nada o fizesse prever, ela declarava que estava farta daquela conversa e o desafiava a irem dar umas cambalhotas para o quarto.

Olhou para o relógio. Dez e um quarto, e Katie à sua espera. Na berma da estrada, Alex vislumbrou meia dúzia de veados aninhados na erva, os seus olhos a reflectirem os faróis dos automóveis, a resplandecer como se fossem sobrenaturais. Alucinados.

Kevin viu as luzes fluorescentes sobranceiras às bombas de gasolina começarem a tremeluzir e a apagarem-se. A seguir, foi a vez das luzes do armazém. Da posição estratégica que o seu esconderijo lhe proporcionava, viu Roger a trancar a porta. Deu-lhe um puxão, a fim de ter a certeza de que ficava bem fechada, e em seguida virou costas à loja. Dirigiu-se a uma carrinha castanha de caixa aberta estacionada na extremidade oposta do parque de gravilha e entrou.

O motor emitiu um gemido e um guincho. Era a correia da ventoinha que estava solta. Roger embalou o motor, ligou os faróis dianteiros e depois fez marcha atrás. Virou para a estrada principal, tomando o sentido da baixa da cidade.

Kevin aguardou cinco minutos até ter a certeza de que Roger não voltaria atrás. A estrada diante do armazém estava agora tranquila, desimpedida de automóveis e de camiões em ambos os sentidos. Foi a correr até aos arbustos onde tinha escondido os bidões. Deitou mais uma olhadela à estrada e em seguida levou um deles para as traseiras do armazém. Fez o mesmo ao segundo bidão, pousando-os ao lado duns caixotes do lixo metálicos cheios de restos de comida. O fedor era nauseabundo.

Lá em cima, a televisão continuava a banhar uma das janelas num clarão azulado. Não havia mais nenhuma luz acesa, e Kevin teve a certeza de que estavam os dois nus. Sentiu a fúria a trepar por ele acima. “Agora”, decidiu. Era chegado o momento. Quando estendeu a mão para os bidões de gasolina, viu quatro. Fechou um olho e tornou a ver apenas dois. Tropeçou ao dar um passo e deu um solavanco para a frente, sem equilíbrio, oscilando enquanto se tentava agarrar ao canto da parede. Falhou e acabou mesmo por cair, tombando com força no chão, a cabeça a bater na gravilha. Estrelas e faíscas, uma dor acutilante. Tinha dificuldade em respirar. Tentou pôr-se de pé e tornou a cair. Rebolou sobre as costas e deixou-se ficar a contemplar as estrelas no céu.

Não estava bêbado, porque ele nunca se embebedava, mas havia ali qualquer coisa que não batia certo. Via luzinhas a piscar à volta da sua cabeça, apanhadas num tornado cada vez mais rápido. Fechou os olhos com força, mas ainda foi pior a emenda que o soneto. Rebolou para um dos lados e vomitou na gravilha. Alguém lhe deveria ter metido droga na comida porque pouco ou nada bebera em todo o dia e nunca se sentira tão maldisposto na vida.

Procurou o caixote do lixo às cegas. Agarrou-se à tampa para o ajudar a equilibrar-se, mas fez força a mais. A tampa abriu-se de repente, deixando entornar um saco do lixo e provocando um estrondo ensurdecedor.

No primeiro andar, Katie estremeceu com o barulho dalguma coisa a cair. Estava perdida no seu sonho, e as suas pálpebras demoraram uns instantes a abrir-se. Estremunhada, pôs-se à escuta, mas sem saber bem do quê, sem saber se tinha sonhado com o barulho ou não. Mas não ouviu mais nada. Tornou a recostar-se, entregando-se novamente ao sono e retomando o sonho no ponto onde fora interrompido. Estava na feira popular, a andar na roda gigante, mas já não era Kristen que seguia sentada a seu lado.

Era Jo.

A grande custo, Kevin lá se conseguiu levantar e manter-se em pé. Não fazia a mínima ideia do que se estava a passar com ele, porque seria que estava sempre a tropeçar e a perder o equilíbrio. Concentrou-se em recuperar o fôlego, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Avistou os bidões de gasolina e deu um passo na sua direcção, não caindo por um triz.

Mas não caiu. Ergueu um bidão e em seguida foi a cambalear em direcção às escadas nas traseiras da casa. Estendeu um braço para se segurar ao corrimão e falhou, tentou uma segunda vez. Desta feita, conseguiu agarrá-lo. Arrastou o bidão de gasolina escada acima, em direcção à porta, qual xerpa nos Himalaias. Por fim, lá conseguiu alcançar o patamar do cimo, ofegante, e baixou-se para desenroscar a tampa do bidão. Sentia o sangue a subir-lhe à cabeça, estava quase a desfalecer, mas, com a ajuda do bidão, foi capaz de se manter de pé. Demorou bastante tempo para conseguir tirar a tampa porque esta teimava em escorregar-lhe dos dedos.

Uma vez o bidão aberto, pegou nele e encharcou o patamar, atirando a gasolina contra a porta. A cada arremesso, o bidão ia ficando mais leve, a gasolina a verter em arco, a encharcar a parede. A tarefa começava a ficar mais fácil. Foi deitando para a esquerda e para a direita, a tentar apanhar ambos os lados do edifício. Começou a descer a escada, sempre a entornar a gasolina. O cheiro estava a deixá-lo agoniado, mas nada o fazia desistir.

Quando chegou ao fundo da escada, o bidão já estava quase vazio, e Kevin decidiu fazer um intervalo. Tinha dificuldade em respirar e estava a ficar outra vez agoniado com o cheiro da gasolina, mas voltou ao trabalho, desta feita com mais afinco. com mais determinação. Atirou o bidão vazio para o chão e foi buscar o outro. Não conseguiu encharcar as zonas mais altas das paredes, mas fez o melhor que podia. Encharcou um lado e em seguida contornou as traseiras em direcção ao outro lado. Acima dele, a luz da televisão continuava a bruxulear pela janela, mas de resto estava tudo sossegado.

Esvaziou o bidão do outro lado do edifício e ficou sem gasolina para a fachada. Observou a estrada; não vinha nenhum automóvel em nenhum dos sentidos. Lá em cima, Erin e o fulano do cabelo grisalho estavam nus e a rir-se dele, e Erin tinha fugido, e ele por pouco não a apanhara em Filadélfia, mas nessa altura já ela se chamava Eriça e agora fingia que se chamava Katie.

Deteve-se diante do armazém, a pensar nas vitrinas. Talvez tivessem alarme ou talvez não. Precisava de combustível para churrascos, óleo para motores, terebintina, qualquer coisa que ardesse. Todavia, mal partisse uma vitrina, o tempo começaria a escassear.

Despedaçou a vitrina com o cotovelo, mas não ouviu qualquer alarme. Começou a retirar os fragmentos de vidro partido, mal dando pelos golpes e pelo sangue nos dedos. A vitrina foi-se desconjuntando aos poucos. A dada altura, achou que o orifício já era suficiente para lhe permitir a passagem, mas o braço ficou-lhe preso num bocado de vidro aguçado que se lhe enterrou na carne. Deu-lhe um puxão, rasgando um golpe profundo. Agora, porém, já não podia voltar atrás. O sangue começou a cair-lhe do golpe do braço, pingando e misturando-se com o dos dedos.

com a luz proveniente dos frigoríficos ao longo da parede do fundo, Kevin foi deambulando pelos corredores, perguntando-se se os Cheerios também serviriam para provocar um incêndio, ou os Twinkies, já agora. Ou os DVD. Encontrou o carvão e o combustível para churrasco - só dois bidões, não era grande coisa. Não chegava. Pestanejou, olhando ao seu redor à procura de alternativa. Foi então que reparou no grelhador ao fundo do armazém.

Gás natural. Propano.

Encaminhou-se para a zona dos grelhados, levantou a divisória e viu-se frente a frente com o dito cujo. Ligou um bico do gás, depois o outro. Tinha de haver uma válvula algures, mas não sabia onde procurá-la e não tinha tempo, porque entretanto podia chegar alguém, e o Coffey e o Ramirez estavam a falar mal dele pelas costas, a rir-se e a perguntar se tinha comido rissóis de caranguejo em Provincetown.

Viu o avental de Roger pendurado num cabide e atirou-o para o lume. Abriu a lata de combustível para churrasco que tinha na mão e borrifou as paredes laterais do grelhador. Ao sentir a lata escorregadia, Kevin admirou-se donde teria vindo aquele sangue todo. Saltou para cima do balcão, esguichou mais combustível para o tecto e tornou a descer. Verteu uma linha de combustível ao longo da fachada do armazém, reparando que o avental já começara a arder. Esvaziou a lata e pô-la de parte. Abriu a segunda e esguichou-a em direcção ao tecto. As labaredas do avental começaram a saltar para as paredes e para o tecto. Dirigiu-se à caixa registadora à procura dum isqueiro e descobriu uns quantos dentro dum balde de plástico, ao pé dos cigarros. Esguichou combustível para cima da caixa registadora e da mesinha que se encontrava atrás. Entretanto, a segunda lata também chegou ao fim, e Kevin foi a cambalear até à vitrina por onde entrara. Saiu, pisando os vidros partidos, ouvindo-os a fender e a estalar. Dirigiu-se à parte lateral do edifício, acendeu o isqueiro e encostou-o à parede encharcada de gasolina, a ver a madeira a incendiar-se. Uma vez nas traseiras, levou a chama às escadas, e as chamas não tardaram a inflamar-se, alcançando a porta e trepando em direcção ao telhado. Depois foi a vez da outra parede lateral.

O fogo medrava por toda a parte, as labaredas a propagar-se pelo exterior do edifício, e Erin era uma pecadora, e o amante dela era um pecador, e na Bíblia dizia: “Eles irão sofrer o castigo da danação eterna.”

Recuou uns passos e ficou a ver o fogo a começar a consumir o armazém, limpando a cara e deixando rastos de sangue. À luz alaranjada e incandescente, mais parecia um monstro.

No sonho de Katie, Jo, sentada ao seu lado na roda gigante, não sorria. Parecia estar a perscrutar a multidão lá em baixo, a testa franzida numa expressão concentrada.

“Ali”, disse ela, apontando. “Ali ao fundo. Estás a vê-lo?”

“O que é que estás aqui a fazer? Onde é que está a Kristen?”

“Está a dormir. Mas agora tens de te lembrar.”

Katie bem olhava, mas via tanta gente, tanto movimento. “Onde?”, indagou ela. “Não estou a ver nada.”

“Ele está ali”, insistiu Jo. ..

“Ele, quem?”

“Quem tu sabes.”

No seu sonho, a roda gigante deteve-se com um solavanco. O estrondo foi enorme, com o vidro a despedaçar-se, e parecia assinalar uma mudança. As cores da feira começaram a esbater-se, o cenário lá em baixo a esfumar-se em bancos de nevoeiro surgidos como por artes mágicas. Como se o mundo estivesse a ser gradualmente apagado e, de repente, tudo se desvanecesse. Katie viu-se rodeada por uma escuridão impenetrável, interrompida apenas por um estranho bruxulear na periferia da sua visão e pelo som duma voz humana.

Katie tornou a ouvir Jo a falar, quase num sussurro.

“Não te cheira a nada?”

Katie fungou, ainda atordoada. Pestanejou, abriu os olhos e, sem compreender o motivo, sentiu ardor ao tentar desanuviar a vista. O televisor ainda estava ligado, e apercebeu-se de que deveria ter adormecido. O sonho já estava a esmorecer, mas ela continuava a ouvir a voz de Jo com nitidez.

“Não te cheira a nada?”

Katie respirou fundo à medida que se endireitava e começou de imediato a tossir. Foi quanto bastou para perceber que a sala estava envolta em fumo. Apressou-se a levantar-se do sofá.

Fumo implicava fogo, e agora já via as chamas do lado de fora da janela, cor de laranja, a dançarem e a entrelaçarem-se umas nas outras. A porta estava a arder, o fumo encapelava-se da cozinha em nuvens espessas. Ouviu um estrondo ribombante a fazer lembrar um comboio, ouviu estalidos e estilhaços, a sua mente a fazer um esforço enorme para assimilar tudo à sua volta.

“Ó meu Deus! Os miúdos!”

Saiu disparada para o corredor e ficou em pânico ao ver ondas de fumo intenso a sair de ambos os quartos. Uma vez que o quarto de Josh era o mais próximo, Katie precipitou-se para o seu interior, agitando os braços para afastar o fumo preto e pungente.

Chegou à cama e agarrou em Josh por um braço, obrigando-o a levantar-se.

- Josh! Acorda! A casa está a arder! Temos de fugir!

O rapaz já se preparava para resmungar, mas ela deu-lhe um valente puxão para o levantar, e ele calou-se logo.

- Anda! - gritou-lhe ela.

Josh começou de imediato a tossir, dobrando-se sobre si próprio à medida que Katie o arrastava dali para fora. O corredor era uma muralha impenetrável de fumo, mas ela lançou-se em frente de qualquer maneira, levando Josh a reboque. Às apalpadelas, encontrou a ombreira do quarto de Kristen do lado oposto do corredor.

Não havia tanto fumo como no quarto do irmão, mas Katie sentia o calor abrasador que se formava do outro lado da parede. Josh continuava a tossir e a gemer, aflito para a conseguir acompanhar, mas nem lhe passava pela cabeça largá-lo. Precipitou-se para a cama de Kristen e abanou-a, arrastando-a para fora da cama com a outra mão.

O rugido das labaredas era tão alto que Katie mal conseguia ouvir o som da sua própria voz. Quando, meio a arrastar as crianças, meio com elas ao colo, chegou ao corredor, deparou com um clarão alaranjado, que mal se via por entre o fumo, junto à entrada. As chamas trepavam pela parede, pelo tecto, avançavam na direcção dos três. Não tinha tempo para pensar, só tinha tempo para reagir. Deu meia-volta e começou a empurrar os dois irmãos pelo corredor fora, em direcção ao quarto de Alex, onde o fumo era menos denso.

Precipitou-se para o interior e acendeu o interruptor. Ainda havia luz. A cama de Alex estava encostada a uma parede, a cómoda, à parede oposta. Mesmo em frente, havia uma cadeira de baloiço e janelas, que, abençoadamente, ainda não tinham sido atingidas pelas chamas. Fechou a porta nas suas costas com força.

Atormentada por violentos acessos de tosse, foi avançando aos tropeções, arrastando Josh e Kristen atrás de si. Os dois irmãos choramingavam e tossiam alternadamente. Katie tentou libertar-se para abrir a janela do quarto, mas as crianças recusavam-se a largá-la.

- Preciso de abrir a janela! - gritou-lhes, sacudindo-os para se desenvencilhar deles. - É a única saída que temos! - Tomados de pânico, eles não compreendiam, mas Katie não tinha tempo para explicações. Desvairada, começou a puxar pelo fecho antiquado da janela e tentou subir o caixilho pesado. Recusava-se a sair do sítio. A um exame mais atento, Katie verificou que havia uma camada de tinta a prender o caixilho e que o mais provável seria a janela estar fechada havia anos. Não sabia o que fazer, contudo, ao ver as duas crianças a olhar para ela perfeitamente aterrorizadas, recuperou a presença de espírito. Olhou rapidamente ao seu redor e acabou por pegar na cadeira de baloiço.

Apesar de ser pesada, ela, sem saber bem como, conseguiu içá-la acima do ombro e atirá-la contra a janela com todas as suas forças. O vidro rachou, mas não se partiu. Fez nova tentativa, soluçando por entre um derradeiro acesso de adrenalina e de medo, e desta feita a cadeira de baloiço saiu disparada pela janela, embatendo no beiral de baixo. Sem hesitar, Katie correu para a cama e arrancou o edredão. Enrolou-o em volta de Josh e de Kristen e começou a empurrá-los pela janela.

Foi então que ouviu um enorme estilhaço nas suas costas enquanto uma parte da parede irrompia em chamas e as labaredas lambiam o tecto. Katie, voltou-se em pânico, demorando-se apenas o suficiente para reparar no retrato pendurado na parede. Fixou o olhar nele, ciente desde logo de que se tratava da mulher de Alex, uma vez que não podia ser de mais ninguém. Pestanejou, julgando estar perante uma ilusão, uma distorção ocasionada pelo fumo e pelo medo. Avançou um passo na direcção do rosto estranhamente familiar, mas nesse momento ouviu um rugido por cima da sua cabeça e viu o tecto a começar a ceder.

Deu meia-volta repentina e saiu janela fora, envolvendo as crianças nos seus braços e rezando para que o edredão as protegesse dos estilhaços de vidro. Teve a impressão de que ficaram suspensos no ar durante uma imensidão de tempo, Katie a contorcer-se para que, quando caíssem, Josh e Kristen aterrassem em cima dela. Tombou de costas no beiral com um estrondo. Não era uma grande altura, talvez um metro e meio, mas o impacte deixou-a ofegante e não tardou a sentir as dores a irradiar pelo corpo todo.

Josh e Kristen soluçavam de medo, choramingavam e tossiam. Mas estavam vivos. Pestanejou, a esforçar-se por não perder os sentidos, com receio de ter partido a coluna. Mas não partira; mexeu uma perna, depois a outra. Abanou a cabeça para desanuviar a visão. Josh e Kristen debatiam-se em cima dela, a tentar libertar-se do edredão. As chamas grassavam agora por todo o lado, por cima da casa, e Katie percebeu que ou conseguia reunir forças para se mexer, ou não lhe restariam mais que uns instantes de vida.

Durante o regresso de casa de Joyce, Alex reparou num clarão alaranjado a resplandecer no céu mesmo acima dos contornos negros das árvores na zona limítrofe da cidade. Não dera por aquilo aquando da chegada a Southport nem durante o trajecto até casa de Joyce. Agora, porém, ao virar naquela direcção, sentiu-se apreensivo. A sua intuição dizia-lhe que o perigo o esperava, e foi apenas uma questão de instantes até carregar no acelerador.

Josh e Kristen já se estavam a sentar quando Katie rebolou sobre si própria. O chão ficava a uns três metros de distância do beiral, mas tinha de arriscar. O tempo estava a esgotar-se. Josh continuou a soluçar, mas ouviu sem protestar a explicação resumida de Katie sobre o que se iria passar a seguir. Ela agarrou-lhe os braços, esforçando-se por manter a voz calma.

- vou baixar-te o mais que puder, mas depois vais ter de saltar.

Ele assentiu com a cabeça, em estado de choque aparente, e ela precipitou-se rapidamente para a borda, arrastando Josh atrás de si. Ele aproximou-se da borda, e Katie segurou-lhe na mão. O beiral começara entretanto a tremer, as chamas a treparem por ambas as colunas de sustentação. Josh deixou-se escorregar pelo beiral, os pés à frente, segurando-se com quanta força tinha, e Katie estendeu-se de barriga até à borda. Começou então a baixá-lo... Santo Deus, as dores nos braços... um metro e vinte, no máximo, disse a si própria. Josh não daria uma grande queda e iria aterrar em pé. Largou-o quando sentiu o beiral a dar um estremeção. Kristen rastejou para junto dela, a tremer de medo.

- Pronto, minha querida - encorajou-a Katie. - Agora é a tua vez. - Dá-me a tua mão.

Procedeu da mesma maneira com Kristen, sustendo a respiração ao largá-la. Passado um instante, os dois irmãos estavam de pé, de olhar fixo em Katie. Estavam à espera dela.

- Fujam! - gritou-lhes. - Fujam depressa!

As suas palavras foram engolidas por outro acesso de tosse, e percebeu que não se podia demorar. Agarrou a borda do beiral e pôs uma perna de fora, depois a outra. Ficou momentaneamente suspensa a baloiçar até que as forças lhe faltaram.

Atingiu o solo e sentiu os joelhos a ceder, indo a rebolar até à entrada do armazém. Sentia dores atrozes nas pernas, mas tinha de pôr as crianças a salvo. Aproximou-se rapidamente de ambas e agarrou-as pela mão para as arrastar dali para fora.

As labaredas dançavam, saltavam, irrompiam em direcção ao céu. O incêndio propagou-se às árvores próximas, os galhos mais altos a faiscar como fogo-de-artifício. Subitamente, deu-se um estrondo, tão alto que lhe ecoou nos ouvidos. Arriscou deitar uma olhadela por cima do ombro, mesmo a tempo de ver as paredes do edifício a desmoronar para o interior. Seguiu-se o barulho ensurdecedor duma explosão, e Katie e as crianças foram atiradas ao chão por uma rajada de ar abrasador.

Quando por fim recuperaram o fôlego e se voltaram para ver, o armazém estava reduzido a um gigantesco cone de fogo.

Mas tinham conseguido fugir. Katie chegou-os a ambos para junto dela. Ouviu-os gemer quando os envolveu nos seus braços e lhes beijou o cocuruto.

- Está tudo bem - murmurou-lhes. - Já estão a salvo.

Foi só no momento em que uma sombra surgiu diante dela que Katie se apercebeu de que estava enganada.

Era ele, avultando sobre os três, com uma arma na mão. Kevin.

No jipe, Alex não tirou o pé do acelerador, cada vez mais preocupado. Apesar de o incêndio ainda estar demasiado distante para o conseguir localizar com precisão, começou a sentir o estômago às voltas. Não havia muitos edifícios naquela direcção, na sua maioria casas de quintas. E, obviamente, o armazém. Debruçou-se sobre o volante, como a incentivar o carro a andar mais depressa. Mais depressa.

Katie teve dificuldade em digerir a cena que tinha diante dos seus olhos.

- Onde é que ele está? - interpelou-a Kevin com voz rouca. Tinha a fala entaramelada, e a cara semioculta em sombra, mas ela reconheceu-lhe a voz. O inferno ardia nas suas costas, e a cara dele estava coberta de sangue e de fuligem. A camisa também tinha manchas do que ela julgava ser sangue. O Glock cintilava-lhe na mão, como se tivesse sido mergulhado num barril de petróleo.

“Ele está aqui”, dissera Jo no sonho.

“Ele quem?”

“Quem tu sabes.”

Kevin empunhou a arma e apontou-lha.

- Eu só quero ter uma conversa com ele, Erin.

Katie levantou-se. Kristen e Josh agarraram-se logo a ela, o medo gravado nas expressões de ambos. Os olhos de Kevin eram ferozes, os seus movimentos, bruscos. Avançou um passo na direcção dos três, não perdendo o equilíbrio por um triz. O revólver oscilava para a frente e para trás. Vacilante.

Estava disposto a matá-los, constatou Katie. Já os tentara matar num incêndio. Mas também estava bêbado, podre de bêbado. Mais bêbado que ela algum dia o vira. Estava fora de controlo, perdera o juízo por completo.

Tinha de conseguir tirar as crianças dali, tinha de lhes dar a oportunidade de fugir.

- Escuta, Kevin - ronronou ela. Obrigou-se a sorrir. - Por que é que tens essa arma na mão? Vieste-me buscar? Está tudo bem contigo, meu querido?

Kevin pestanejou. A voz, suave e sensual, meiga. Ele gostava de a ouvir falar assim e julgou estar a viver um sonho. Mas não era um sonho, e Erin achava-se de facto diante dele. Sorriu-lhe e deu um passo em frente.

- Eu amo-te, Kevin, e sempre tive a certeza de que acabarias por me vir buscar.

Kevin ficou embasbacado a olhar para ela. Ora via duas, ora via uma só. Andara a dizer às pessoas que ela estava no New Hampshire a ajudar uma amiga doente, mas não havia pegadas na neve, e as chamadas dele eram reencaminhadas, e um rapazinho fora morto a tiro, e tinha molho de pizza na testa, e agora Erin estava ali, a dizer-lhe que o amava.

“Mais perto”, pensou Katie. “Estou quase lá.” Avançou mais um passo, levando as crianças a reboque.

- Não me queres levar para casa contigo? - A voz dela era suplicante, pedia-lhe encarecidamente como Erin costumava fazer, mas ela tinha o cabelo castanho e curto, e estava cada vez mais próxima, e ele admirava-se de ela não ter medo, e apetecia-lhe puxar o gatilho, mas amava-a. Se ao menos conseguisse parar com as marteladas que lhe estavam a dar dentro da cabeça...

De súbito, Katie lançou-se em frente, empurrando a arma para o lado. Esta disparou, um estampido que mais parecia uma bofetada violenta, mas ela continuou a avançar, agarrada ao pulso dele, recusando-se a largá-lo. Kristen desatou aos gritos.

- FUJAM! - gritou-lhes Katie por cima do ombro. - Josh, pega na tua irmã e fujam os dois! Ele está armado! Corram o mais que puderem e escondam-se!

O pânico na voz de Katie exerceu um efeito estimulante em Josh, e ele agarrou na irmã pela mão e lançou-se numa corrida. Dirigiram-se para a estrada, precipitando-se para casa de Katie. A fugir para salvar a vida.

- Cabra! - berrou-lhe Kevin, a fazer o possível por libertar o braço, mas Katie continuou a agarrá-lo e mordeu-o com quanta força tinha. Kevin soltou um grito feroz. Ao tentar soltar o braço, bateu-lhe com o outro pulso na têmpora. Katie viu logo clarões de luz branca. Ferrou-lhe outra dentada, desta feita no polegar, e ele gritou, deixando cair o revólver. Este tombou com estrépito, e Kevin deu-lhe outro soco, que lhe apanhou uma maçã do rosto e a deitou ao chão.

Começou a pontapeá-la nas costas, e ela arqueou-se de dores. Mas continuava a mexer-se, agora em pânico, incentivada pela certeza de que ele pretendia matá-los, a ela e às crianças. Tinha de lhes dar tempo para fugir. Pôs-se de gatas e começou a rastejar o mais depressa que podia, cada vez mais rápido. Por fim, levantou-se, qual velocista que se lança do bloco de partida.

Correu a toda a velocidade, obrigando-se a seguir em frente, mas sentiu o corpo dele a embater no dela e ficou novamente estendida no chão, ofegante. Kevin agarrou-a pelo cabelo e tornou a agredi-la. Segurou-a por um braço e torceu-lho, a tentar atingi-la pelas costas, mas estava sem equilíbrio, e ela conseguiu escorregar-lhe e virar-se de frente para ele. Esticou os braços e atirou-se-lhe aos olhos, apanhando um no canto, arranhando-o com quanta força tinha.

A lutar pela vida, com a adrenalina a afluir-lhe aos membros. A lutar agora por todas as ocasiões em que não o fizera. A lutar por dar às crianças tempo para fugirem e se esconderem. A gritar-lhe pragas, a odiá-lo, a recusar-se a deixar que ele lhe tornasse a bater.

Kevin agarrou-lhe os dedos, mas perdeu o equilíbrio, e ela aproveitou a oportunidade para se contorcer e fugir de baixo dele. Sentiu-o a tentar agarrar-lhe as pernas, mas faltaram-lhe as forças e ela conseguiu libertar uma perna. Aproximou um joelho da cara e assestou-lhe um valente pontapé, apanhando-o em cheio no queixo e deixando-o atordoado. Deu-lhe outra dose e, desta feita, ficou a vê-lo a tombar para o lado, os braços a agarrarem o vazio.

Apressou-se a pôr-se de pé e desatou uma vez mais a correr, mas Kevin não tardou a imitá-la. Katie viu o revólver ali perto e lançou-se em frente para o apanhar.

Alex conduzia agora a toda a velocidade, a rezar por que Kristen, Josh e Katie estivessem sãos e salvos, murmurando os nomes dos três em pânico.

Passou pela estrada de gravilha e descreveu a curva, e, quando viu os seus receios confirmados, o coração caiu-lhe aos pés. À sua frente, o cenário estendia-se em toda a sua amplitude, um autêntico retrato do inferno.

Reparou em movimento mais adiante, na berma da estrada. Duas pequenas silhuetas, trajadas de pijamas brancos. Josh e Kristen. Travou a fundo.

Ainda o jipe não tinha parado por completo, e já ele descera e corria na direcção de ambos. Os filhos lançaram-se ao seu encontro, gritando por ele, e Alex baixou-se para os tomar nos seus braços.

- Já passou - sussurrou-lhes repetidas vezes, envolvendo-os num abraço apertado. - Já passou, já passou.

Kristen e Josh soluçavam tanto que, a princípio, o pai teve alguma dificuldade em entender o que diziam porque não se referiam ao incêndio. Gritavam que havia um homem com uma pistola, e que Miss Katie andava à luta com ele, e só então Alex percebeu com uma lucidez assustadora o que se estava a passar.

Empurrou-os para dentro do jipe e apressou-se a arrepiar caminho, seguindo na direcção da casa de Katie enquanto os seus dedos carregavam insistentemente na tecla de marcação rápida do telemóvel. Uma Joyce apavorada atendeu ao segundo toque, e Alex disse-lhe de imediato que pedisse à filha que a levasse a casa de Katie, que se tratava duma emergência, que tinha de chamar a polícia sem demora. E, dito isto, desligou.

A gravilha saltou por todos os lados quando o carro resvalou até parar diante da casa de Katie.

Disse aos filhos que saíssem e que corressem a refugiar-se lá dentro, que os viria buscar logo que pudesse. Foi a contar os segundos que deu meia-volta e se lançou disparado em direcção ao armazém, a rezar por que não fosse demasiado tarde.

A rezar por que Katie ainda estivesse com vida.

Kevin viu a arma no mesmo instante que Katie, lançou-se em frente para a apanhar e conseguiu lá chegar primeiro. Deitou a mão ao revólver e apontou-o a ela, enraivecido. Agarrou-a pelo cabelo e encostou-lhe o cano à cabeça, começando a arrastá-la pelo parque de estacionamento fora.

- Deixar-me? Mas tu podes lá deixar-me!

Nas traseiras do armazém, por debaixo duma árvore, Katie avistou o carro dele, com a matrícula do Massachusetts. O calor do incêndio fazia-lhe arder a cara, chamuscando-lhe os pêlos dos braços. Kevin vociferava com ela, a sua voz pastosa e áspera.

- Tu és minha mulher!

Ao longe, Katie distinguia o barulho ténue de sirenas, mas pareciam-lhe ainda muito distantes.

Quando chegaram ao carro, ela tentou dar-lhe novamente luta, mas Kevin atirou-lhe com a cabeça contra o tejadilho e por pouco não perdeu os sentidos. Abriu o porta-bagagens e tentou obrigá-la a entrar. Sem saber bem como, Katie conseguiu voltar-se e enfiar-lhe uma joelhada entre as pernas. Ouviu-o sufocar um grito e sentiu as mãos dele afrouxar momentaneamente.

Empurrou-o às cegas, libertou-se dos braços dele e desatou a correr o mais que podia. Sabia que Kevin não tardaria a disparar, que estava prestes a morrer.

Kevin não era capaz de compreender a que se devia a resistência dela, as dores eram tantas que mal lhe permitiam respirar. Nunca se virara a ele, nunca lhe arranhara os olhos, lhe dera pontapés ou o mordera. Não se comportava como a sua mulher e tinha o cabelo castanho, mas a voz parecia-lhe a de Erin... Foi-se arrastando no encalço dela, de arma em punho, a fazer pontaria, mas havia duas Erins e estavam ambas a correr.

Puxou o gatilho.

Katie abafou um grito ao ouvir o tiro, à espera da pontada de dor, mas não sentiu nada. Continuou a correr e, de repente, apercebeu-se de que a pontaria dele falhara. Foi correndo em ziguezague pelo parque de estacionamento, desesperadamente à procura dum lugar onde se pudesse abrigar. Mas nem um à vista. Kevin ia-se arrastando aos tropeções atrás dela, as mãos escorregadias de sangue, os dedos pouco firmes no gatilho. Sentia-se prestes a vomitar outra vez. Ela ganhava-lhe cada vez mais terreno, sempre a desviar-se dum lado para o outro, e ele não a conseguia manter sob a sua mira. Estava a ver se lhe fugia, mas não iria levar a sua avante porque era sua mulher. Iria levá-la de volta para casa porque a amava, e depois iria matá-la a tiro porque a odiava.

Katie viu os faróis dianteiros dum automóvel na estrada, a deslocar-se à velocidade dum carro de corrida. Lembrou-se de correr para a berma, de fazer sinal ao condutor para que parasse, mas sabia que não chegaria lá a tempo. Para sua surpresa, o veículo começou a abrandar e, subitamente, reconheceu o jipe à medida que este adernava para o parque, reconheceu Alex ao volante.

E passava disparado por ela, em direcção a Kevin.

As sirenas estavam agora a aproximar-se. Havia gente a chegar. Katie sentiu um arroubo de esperança.

Kevin viu o jipe a precipitar-se sobre ele e empunhou o revólver. Começou a disparar, mas o condutor não se deixou intimidar. Desviou-se dum pulo quando o veículo passou lançado por ele, mas aquele ainda lhe apanhou a mão, partindo-lhe os ossos e arremessando a arma algures para a escuridão.

Kevin gritou, aflito de dores, segurando instintivamente a mão e levando-a ao peito enquanto o jipe continuava em frente, passando pelos escombros do armazém em chamas, derrapando na gravilha e embatendo em cheio no telheiro onde a mercadoria era armazenada.

As sirenas continuavam a fazer-se ouvir ao longe. Queria lançar-se em perseguição de Erin, mas, se ficasse ali, seria preso. Dominado pelo medo, Kevin, meio a coxear, meio a trotar, foi-se encaminhando para o carro, ciente de que tinha de conseguir fugir dali e surpreendido por as coisas lhe terem corrido tão mal.

Katie viu Kevin arrancar do parque de estacionamento, a gravilha a saltar de ambos os lados, e dirigir-se para a estrada principal. Deu meia-volta e deparou com o jipe de Alex enfiado no telheiro, o motor a vomitar gases de escape, e precipitou-se para ele. As labaredas projectavam a sua luminosidade trémula na retaguarda do jipe, e Katie sentiu o pânico a avolumar-se-lhe no peito, a rezar por que Alex desse sinal de vida.

Estava quase a chegar junto dele quando o pé lhe ficou preso em qualquer coisa dura e ela caiu ao chão. Ao ver que tropeçara no revólver, pegou neste e continuou em direcção ao jipe.

Lá mais adiante, a porta do veículo abriu-se ligeiramente, mas os escombros de ambos os lados impediam a saída do ocupante. Sentiu-se inundar de alívio ao constatar que Alex estava vivo, mas, em simultâneo, deu pela falta de Josh e de Kristen.

- Alex! - gritou ela. Acercou-se da traseira do jipe e desatou aos murros. - Tens de sair daí! Os miúdos andam por aí perdidos... Temos de ir à procura deles!

A porta continuava encravada, mas ele conseguiu baixar a janela. Quando Alex espreitou para fora, Katie reparou que sangrava da testa e que tinha a voz fraca.

- Eles estão a salvo... Eu levei-os para tua casa.

O sangue congelou-lhe nas veias.

- Ó meu Deus! - exclamou em voz sumida, a pensar: “Não, não, não!” - Despacha-te! - Assentou outro murro na retaguarda do jipe. - Sai daí para fora! O Kevin foi-se embora agora mesmo! - Ouvia o medo instintivo na sua própria voz. - Seguiu nessa direcção!

As dores na mão eram piores que quaisquer outras que tivesse sentido na vida, e a perda de sangue provocava-lhe tonturas. Nada fazia sentido, e, ainda para mais, tinha a mão inutilizada. Ouviu as sirenas a chegar, mas decidiu esperar por Erin em casa, pois sabia que, mais tarde ou mais cedo, ela teria de passar por lá.

Estacionou nas traseiras do outro chalé, o que estava abandonado. Para sua surpresa, viu Amber atrás duma árvore, a perguntar-lhe se não lhe queria oferecer uma bebida, mas a imagem acabou por se desvanecer. Recordou-se de que arrumara a casa e cortara a relva, mas que nunca aprendera a lavar a roupa e que agora Erin dizia que se chamava Katie.

Já não tinha nada que beber e estava muito cansado. Tinha as calças manchadas de sangue e reparou que também estava a sangrar dos dedos e dos braços, embora não se lembrasse de como isso acontecera. Precisava tanto de dormir. Precisava de descansar um bocado porque a polícia deveria andar já no seu encalço, e tinha de estar fresco para a receber.

O mundo ao seu redor começava a ficar cada vez mais vago e distante, como se o estivesse a observar pela extremidade contrária dum telescópio. Ouvia as árvores a oscilar dum lado para o outro, mas não sentia o mais leve sopro de brisa, apenas o ar quente do Verão. Começou a tremer, mas também estava a transpirar. Tanto sangue, sangue que lhe escorria das mãos e dos braços e que não dava sinais de querer estancar. Precisava de descansar, não se conseguia manter acordado, e foi então que as pálpebras se lhe começaram a fechar.

Sem demora, Alex pôs o jipe em marcha atrás e embalou o motor, a ouvir os pneus a rodar, mas o carro recusava-se a sair do sítio. Saber Kristen e Josh em perigo era para ele um autêntico tormento.

Retirou o pé do acelerador, accionou a tracção às quatro rodas, e fez nova tentativa. Desta feita, o jipe obedeceu-lhe e começou a deslocar-se, os espelhos laterais a serem arrancados, os escombros a riscarem-lhe e a amolgarem-lhe o chassis. Mais um solavanco, e o jipe libertou-se. Katie puxou em vão pela porta do passageiro, até que Alex girou sob o seu próprio eixo e lhe assentou um pontapé, abrindo-a de rompante. Katie apressou-se a entrar.

Alex deu meia-volta ao veículo e acelerou a fundo, fazendo-se à estrada no momento em que as viaturas dos bombeiros chegavam. Seguiram em silêncio, ele sempre com o pé no acelerador. Alex nunca na vida tivera tanto medo.

Depois da curva, a estrada de gravilha. A traseira começou a fugir, e ele tornou a acelerar. Mais adiante, avistou os chalés, as luzes acesas nas janelas de Katie. Nenhum vestígio do carro de Kevin. O alívio foi tanto que Alex soltou o ar mesmo antes de se aperceber de que tinha a respiração suspensa.

Kevin acordou sobressaltado ao ouvir o barulho dum motor a subir a estrada de gravilha.

“A polícia”, pensou ele, estendendo a mão aleijada automaticamente para o revólver. Soltou um grito de dores e de espanto ao verificar que não tinha a arma consigo. Deixara-a no banco da frente, mas agora não estava lá e já nada fazia sentido.

Saiu do veículo e dirigiu o olhar para o fundo da estrada. O jipe surgiu no seu campo de visão, o mesmo do parque de estacionamento do armazém, o mesmo que por um triz não o matara. O carro parou, e Erin saiu. A princípio, nem queria acreditar na sorte que estava a ter, mas foi então que se lembrou de que ela morava ali e que era esse o motivo da sua vinda.

com a mão em bom estado a tremer de forma incontrolável, abriu o porta-bagagens e retirou o pé-de-cabra. Viu Erin e o amante a correrem direitos ao alpendre. Manco, começou a arrastar-se para a casa, relutante e incapaz de parar, porque Erin era sua mulher, e ele amava-a, e o fulano do cabelo grisalho tinha de morrer.

Alex deteve-se abruptamente diante do chalé, e os dois saltaram do jipe em simultâneo e correram para a porta, chamando pelas crianças. Katie ainda levava o revólver na mão. Chegaram à porta no preciso momento em que Josh a abriu, e, mal viu o filho, Alex envolveu-o nos seus braços. Kristen saiu do seu esconderijo atrás do sofá e precipitou-se para eles. Alex abriu os braços para a receber, apanhando-a com facilidade quando a filha lhe saltou para o colo.

Katie manteve-se à porta, a observá-los com os olhos inundados de lágrimas de alívio. Kristen estendeu-lhe uma mão, e Katie chegou-se a ela, aceitando o seu abraço com um arroubo cego de felicidade.

Perdidos numa onda gigantesca de emoções, nenhum deles deu pela chegada de Kevin, o pé-de-cabra pronto a atacar. Investiu-o com toda a força, e Alex estatelou-se no chão, empurrando os filhos, que caíram de costas, num estado de perfeito horror e choque.

Kevin ouviu com satisfação a pancada do pé-de-cabra, sentiu a vibração a subir-lhe pelo braço. O fulano do cabelo grisalho estava estendido no chão, e Erin, aos gritos.

Dominada pela certeza de que não havia nada mais importante para ela que Alex e as crianças, Katie arremeteu instintivamente contra Kevin, obrigando-o a recuar porta fora. O alpendre só tinha dois degraus, mas foi quanto bastou para Kevin se desequilibrar e tombar na terra.

Katie deu meia-volta repentina.

- Tranca a porta! - gritou ela, e desta feita foi Kristen a primeira a reagir.

O pé-de-cabra estava caído no chão, e Kevin rebolou sobre si próprio para se levantar. Katie empunhou o revólver, apontando-o a Kevin quando este finalmente se conseguiu pôr de pé. Cambaleou, por pouco não voltou a perder o equilíbrio, a cara dum branco cadavérico. Parecia completamente desorientado, e Katie sentiu as lágrimas a toldarem-lhe a vista.

- Em tempos, eu amei-te - disse-lhe ela. - Casei contigo por amor.

Ele lembrou-se de Erin, mas o cabelo dela estava curto e castanho, e o de Erin era louro. Um pé vacilou-lhe, e ele por um triz não voltou a cair. Por que estaria ela a dizer-lhe aquilo?

- Por que é que me começaste a bater? - gritou ela. - Nunca consegui compreender por que é que não te deixaste disso nem mesmo depois de me teres prometido. - A mão tremia-lhe, e o revólver pesava-lhe insuportavelmente. - Até na nossa lua-de-mel me bateste porque me esqueci dos óculos de sol à beira da piscina...

A voz era a de Erin, e Kevin perguntou-se se não estaria a sonhar.

- Eu amo-te - balbuciou ele. - Sempre te amei. Não percebo por que é que me abandonaste.

Katie sentia os soluços a avolumarem-se no peito, a sufocá-la. As palavras saíam-lhe em catadupa, imparáveis e disparatadas, o resultado de anos e anos de sofrimento reprimido.

- Tu não me deixavas tirar a carta, não me deixavas ter amigos, escondias o dinheiro e obrigavas-me a suplicar-te para que mo desses. Eu gostava de saber que direito tinhas tu de me fazer isso? Eu era tua mulher e amava-te!

Kevin mal se sustinha em pé. O sangue pingava-lhe dos dedos e do braço para o chão, escorregadio e incómodo. Queria falar com Erin, queria encontrá-la, mas aquilo não era real. Ele estava a dormir, Erin achava-se a seu lado na cama, e estavam ambos em Dorchester. Foi então que os seus pensamentos se catapultaram, e ele deu por si num apartamento decrépito com uma mulher a chorar.

- Ele tinha molho de pizza na testa - murmurou ele, tropeçando para a frente. - Na testa do rapaz que levou um tiro, mas a mãe dele caiu pelas escadas abaixo e nós prendemos o grego.

Katie não via lógica alguma no que ele dizia, não compreendia o que ele queria dela. Odiava-o com uma fúria que vinha a crescer havia anos.

- Eu cozinhava-te o jantar, eu arrumava-te a casa, mas tu não davas valor nenhum a isso! Não sabias senão embebedar-te e bater-me!

Kevin cambaleava e parecia prestes a cair a qualquer momento. As palavras saíam-lhe entarameladas, ininteligíveis.

- Não havia pegadas na neve. Mas os vasos estão partidos.

- Tu devias ter-me deixado vir embora! Não tinhas nada que vir atrás de mim! Não tinhas nada que vir para cá! Por que é que não me deixaste ir à minha vida? Tu nunca me amaste!

Kevin avançou a passo vacilante na direcção dela, mas, desta feita, estendeu a mão para a arma, a tentar arrancar-lha das mãos. Todavia, já lhe faltavam as forças, e Katie conseguiu segurá-la. Kevin ainda tentou agarrá-la, mas gritou de dores quando a mão aleijada lhe assentou no braço. Num gesto instintivo, arremessou um ombro contra ela, empurrando-a para a parede do chalé. Estava decidido a apropriar-se do revólver e a encostar-lho à têmpora. Fitou-a com uns olhos arregalados e eivados de ódio, chegando-a ao seu corpo, estendendo a mão ilesa para a arma, comprimindo-a sob o seu peso.

Sentiu as pontas dos dedos a aflorar o cano e procurou instintivamente o gatilho. Tentou empurrar o revólver contra ela, mas este estava agora apontado em sentido contrário, para baixo.

- Eu amava-te! - soluçou ela, a lutar com toda a cólera e força que lhe restava, e Kevin sentiu qualquer coisa a ceder, uma lucidez momentânea a manifestar-se.

- Se isso é verdade, nunca me devias ter deixado - sussurrou-lhe, o hálito a tresandar a álcool. Puxou o gatilho, o tiro ecoou com um estampido violento, e ele percebeu que estava quase terminado. Ela ia morrer porque ele a ameaçara de que, caso algum dia tornasse a fugir, iria atrás dela para a matar. A ela e a qualquer homem que se apaixonasse por ela.

Contudo, para sua surpresa, Erin não caiu, nem sequer vacilou. Ao invés, fitou-o com uma expressão de ferocidade nos seus olhos verdes, sustendo-lhe o olhar sem pestanejar.

Foi então que Kevin sentiu qualquer coisa a queimar-lhe o estômago, um fogo no seu âmago. A perna esquerda cedeu e ele esforçou-se por se manter em pé, mas o corpo já não lhe pertencia. tombou no alpendre, levando as mãos ao estômago.

- Volta comigo - suplicou-lhe em voz murmurada. - Por favor.

O sangue começou a jorrar-lhe da ferida, passando-lhe por entre os dedos. Sobranceira a ele, Erin aparecia-lhe alternadamente focada e desfocada. Loura e depois morena. Kevin viu-a na lua-de-mel, vestida de biquini, antes de ela se ter esquecido dos óculos na piscina, e estava tão linda que ele nem percebia por que fora que aceitara casar-se com ele.

Linda. Fora sempre tão linda, pensou ele, sentindo-se outra vez muito cansado. A respiração começou a sair-lhe entrecortada, e depois começou a ficar com frio, muito frio, todo ele a tremer. Expirou uma vez mais, um som a fazer lembrar o ar a soltar-se dum pneu. O peito já não se voltou a mexer. Tinha os olhos arregalados, atónitos.

Katie postou-se acima dele, a tremer enquanto o observava. “Não”, pensou ela. “Jamais voltarei contigo. Jamais desejei voltar.”

Kevin, porém, não lhe podia ler os pensamentos, porque Kevin partira entretanto, e foi então que Katie constatou que estava tudo, definitiva e verdadeiramente, acabado.

 

Katie foi levada para o hospital, onde ficou sob observação durante quase toda a noite até que por fim recebeu alta. Posto isto, decidiu permanecer na sala de espera, relutante em ir-se embora sem ter a certeza de que Alex não tinha nada de grave.

A pancada de Kevin por um triz não lhe provocara um traumatismo craniano, e Alex ainda não recuperara os sentidos. A luz matinal iluminava as janelas estreitas e rectangulares da sala de espera. Chegou um novo turno de enfermeiras e de médicos, e os doentes começaram a acorrer à sala: uma criança com febre, um homem com dificuldades respiratórias. Uma mulher grávida e o marido em pânico irromperam pelas portas giratórias adentro. De cada vez que ouvia a voz dum médico, Katie levantava o olhar, na esperança de que a deixassem ver Alex.

Tinha a cara e os braços cheios de equimoses, e um joelho tão inchado que estava quase do dobro do tamanho normal, contudo, depois dos exames e das radiografias regulamentares, o médico de serviço limitara-se a receitar-lhe gelo para as nódoas negras e um analgésico para as dores. Era o mesmo médico que estava a atender Alex, mas não lhe soube dizer quando este recuperaria a consciência, limitando-se a adiantar que os resultados da TAC tinham sido inconclusivos. “As lesões na cabeça podem ser graves”, avisara-a. “Esperemos que dentro dumas horas já possamos ter mais dados à nossa disposição.”

A aflição dela era tão grande que a deixava incapaz de pensar, de comer ou de dormir. Joyce fora buscar as crianças ao hospital e levara-as para sua casa, e Katie esperava que não tivessem pesadelos.

Esperava que não tivessem pesadelos para o resto da vida. Esperava que Alex recuperasse na totalidade. Rezava por tudo isto.

Estava com receio de fechar as pálpebras porque, de cada vez que isto acontecia, Kevin lhe aparecia pela frente. Via-lhe a cara e a camisa manchadas de sangue, o seu olhar desvairado. Sem saber bem como, ele conseguira descobrir o seu paradeiro. Deslocara-se a Southport para a levar para casa ou para a matar, e estivera a um passo de concretizar o seu objectivo. Numa única noite, conseguira destruir a frágil ilusão de segurança que ela fora construindo desde a sua chegada à cidade.

As visões aterrorizadoras de Kevin teimavam em assaltá-la, manifestando-se sem cessar com variações, por vezes sob uma aparência completamente diferente; havia momentos em que se via a esvair-se em sangue no alpendre, de olhar fixo no homem que odiava. Quando isto acontecia, levava as mãos ao estômago num gesto instintivo, à procura de ferimentos que não existiam, mas depois acabava por regressar ao hospital, sentada à espera sob a luz das lâmpadas fluorescentes.

Estava preocupada com Kristen e com Josh. Em breve estariam de volta ao hospital; Joyce iria trazê-los para visitarem o pai. Interrogou-se se os dois irmãos lhe poderiam ganhar ressentimento por tudo quanto sucedera, e a ideia trouxe-lhe as lágrimas aos olhos. Ocultou a cara com as mãos, desejosa de se enfiar num buraco tão fundo que nunca mais ninguém a haveria de encontrar. Para que Kevin nunca a conseguisse encontrar, pensou, até que se lembrou de que o vira a morrer no alpendre. As palavras “Ele está morto” ecoaram como um mantra de que não se podia abstrair.

- Katie?

Ergueu a cabeça e deparou com o médico encarregado de Alex.

- Se quiser, pode acompanhar-me - disse-lhe. - Ele acordou há cerca de dez minutos. Ainda está nos cuidados intensivos e, por isso, não se poderá demorar muito, mas ele pediu para a ver.

- O Alex está bem?

- Neste momento, está o melhor que se poderia esperar dentro das circunstâncias. Levou uma pancada violenta.

A coxear ligeiramente, Katie seguiu o médico em direcção ao quarto de Alex. Respirou fundo e corrigiu a postura antes de entrar, a prometer a si própria que não iria chorar.

A unidade de cuidados intensivos estava repleta de aparelhos e de luzes a piscar. Alex achava-se numa cama ao canto, com uma ligadura em volta da cabeça. Virou-se para ela, os olhos ainda semicerrados. Um monitor apitava regularmente a seu lado. Katie aproximou-se da sua cama e pegou-lhe na mão.

- Como é que estão os miúdos? - indagou ele num murmúrio. Pronunciou estas palavras de forma lenta. Laboriosa.

- Estão bem. Estão com a Joyce. Ela levou-os para casa dela.

Um sorriso ténue, quase imperceptível, aflorou-lhe aos lábios.

- E tu?

- Estou bem. - Acenou-lhe com a cabeça.

- Amo-te - disse ele.

Katie teve de recorrer a todas as suas forças para não se desfazer num pranto.

- E eu também te amo, Alex.

As pálpebras dele descaíram, o olhar abstraído.

- O que foi que aconteceu?

Katie apresentou-lhe um relato abreviado das últimas doze horas, mas, a meio, reparou que os olhos dele se fechavam. Quando tornou a acordar, mais para o final dessa manhã, esquecera-se de partes do que ela lhe contara e, como tal, Katie repetiu-lhe a história, esforçando-se por se mostrar calma e objectiva.

Joyce trouxe Josh e Kristen para verem o pai e, embora em geral as crianças não estivessem autorizadas a entrar na UCI, o médico deixou-os fazerem-lhe uma breve visita. Kristen ofereceu-lhe um desenho dum homem deitado numa cama de hospital, acompanhado pela legenda: “Fica bom depressa, papá”; Josh trouxe-lhe uma revista de pesca.

com o decorrer do dia, Alex foi recuperando a coerência. À tarde, já não cabeceava e, apesar de se queixar duma dor de cabeça descomunal, recuperara grande parte da memória. A sua voz estava mais forte e, quando o ouviu dizer à enfermeira que estava com fome, Katie soltou um suspiro de alívio, finalmente com a certeza de que ele iria ficar bem.

Alex recebeu alta no dia seguinte, e o xerife foi visitá-los a casa de Joyce para registar o seu depoimento oficial. Informou-os de que o nível de álcool no sangue de Kevin era tão elevado que lhe provocara a morte por envenenamento. A juntar à perda de sangue que sofrera, era de admirar que se tivesse conseguido manter consciente, quanto mais coerente. Katie escusou-se a comentários, mas não pôde deixar de pensar que o xerife não conhecia Kevin nem compreendia os demónios que o instigavam.

Depois de o xerife se ter ido embora, Katie foi até ao jardim e pôs-se ao sol, a tentar esclarecer os seus sentimentos. Apesar de ter posto o xerife ao corrente dos acontecimentos dessa noite, não lhe contou tudo. Tal como também não contou tudo a Alex... Como poderia, quando mal faziam sentido para ela própria? Não lhes contou que, nos instantes posteriores à morte de Kevin, quando se achava junto de Alex, chorara por ambos. Parecia-lhe impossível que, enquanto revivia o terror daquelas derradeiras horas com Kevin, se recordasse em simultâneo dos raros momentos que haviam passado juntos - quando se riam de piadas que eram só dos dois ou se refastelavam tranquilamente lado a lado no sofá.

Não sabia como reconciliar estes aspectos contraditórios do seu passado e o horror que acabara de vivenciar. Havia, porém, algo mais, algo que escapava à sua compreensão: continuava hospedada em casa de Joyce porque tinha medo de voltar para casa.

Ao fim desse dia, Alex e Katie dirigiram-se ao parque de estacionamento e ficaram a observar os escombros calcinados do que em tempos fora o armazém. Aqui e ali, ia identificando a presença dalguns objectos: o sofá, meio ardido, inclinado no meio do entulho; uma prateleira que outrora exibira artigos de mercearia; uma banheira chamuscada de preto.

Viram alguns bombeiros a vasculhar nos escombros. Alex pedira-lhes que procurassem o cofre que tinha guardado no quarto. Já retirara a ligadura, e Katie reparou no sítio onde lhe tinham rapado o cabelo para lhe aplicar os pontos e que estava agora negro e inchado.

- Peço desculpa - murmurou-lhe ela. - Por tudo.

Alex abanou a cabeça.

- A culpa não foi tua. Não foste tu que fizeste isto.

- Mas o Kevin veio cá à minha procura...

- Eu sei - admitiu ele. Quedou-se momentaneamente em silêncio. - A Kristen e o Josh contaram-me que tu os ajudaste a fugir de casa. O Josh disse-me que, depois de conseguires agarrar o Kevin, os mandaste fugir. Disse-me que tu o distraíste. Ainda não te agradeci por isso.

Katie fechou os olhos.

- Não tens nada que me agradecer. Se alguma coisa lhes tivesse acontecido, a consciência haveria de me pesar até ao resto da vida.

Alex assentiu com a cabeça, mas não teve coragem de olhar para ela. Katie deu um pontapé num montículo de cinzas que o vento soprara para o parque de estacionamento.

- E o que é que pensas fazer agora? A respeito do armazém?

- Reconstruí-lo, calculo eu.

- E onde é que vais morar?

- Ainda não sei. Vamos ficar alguns dias em casa da Joyce, mas tenciono arranjar um sítio tranquilo, que tenha uma boa vista. Uma vez que não posso trabalhar, mais vale aproveitar bem o tempo livre.

Katie tinha náuseas só de pensar.

- Nem consigo imaginar como te deves sentir neste momento.

- Atordoado. Triste pelos miúdos. Chocado.

- E zangado?

- Não - assegurou-lhe. - Não estou zangado.

- Mas ficaste sem nada.

- Sem nada, não - emendou-a Alex. - O mais importante, não. Os meus filhos estão sãos e salvos. Tu estás sã e salva. E isso é o que mais me interessa. Isto - apontou ao seu redor - são apenas objectos. A maior parte podem ser substituídos. É apenas uma questão de tempo. - Dito isto, estreitou os olhos para qualquer coisa entre os escombros. - Espera só um instante - pediu-lhe.

Dirigiu-se a um monte de detritos calcinados e retirou uma cana de pesca entalada entre duas tábuas de madeira enegrecida. Estava coberta de fuligem, mas, para além disso, parecia em bom estado. Pela primeira vez desde que ali tinham chegado, Alex sorriu.

- O Josh vai ficar todo satisfeito com isto - comentou ele.

- Oxalá consiga encontrar uma das bonecas da Kristen.

Katie cruzou os braços diante do ventre, sentindo as lágrimas a virem-lhe aos olhos.

- Deixa estar que eu compro-lhe uma.

- Não é preciso. Eu estou coberto pelo seguro.

- Mas eu faço questão. Se não fosse por mim, nada disto teria acontecido.

Alex olhou para ela.

- Quando eu comecei a sair contigo, já sabia no que me estava a meter.

- Mas não podias prever nada disto.

- Lá isso não - admitiu ele. - Isto não. Mas tudo acabará por se compor.

- O que é que te leva a dizer isso?

- O facto de ser verdade. Nós sobrevivemos, e isso é o que mais importa. - Alex pegou-lhe na mão, e Katie sentiu os seus dedos a entrelaçarem-se nos dela. - Ainda não tive oportunidade de te dizer o quanto lamento.

- Lamentas o quê?

- A perda que sofreste.

Ela percebeu que ele se referia a Kevin e ficou sem saber que resposta lhe haveria de dar. Alex parecia compreender que ela sentia um misto de amor e de ódio pelo marido.

- Eu nunca desejei a morte dele - confessou ela. - A única coisa que eu queria era que ele me deixasse em paz e sossego.

- Eu sei.

Ela virou-se a medo para ele.

- E entre nós, vai ficar tudo bem? Quero eu dizer, depois disto tudo?

- Acho que isso vai depender de ti.

- De mim?

- Os meus sentimentos por ti não se alteraram. Continuo a amar-te, mas tu tens de decidir se ainda sentes o mesmo por mim.

- Claro.

-- Nesse caso, teremos de arranjar maneira de ultrapassar isto juntos porque eu tenho a certeza de que quero passar o resto da vida ao teu lado.

Sem lhe dar tempo a responder, um dos bombeiros chamou-os e ambos se voltaram na direcção dele. Estava a esforçar-se por libertar qualquer coisa e, quando se levantou, trazia um pequeno cofre na mão.

- Achas que está danificado? - indagou Katie.

- Não deveria estar - respondeu Alex. - É à prova de fogo. Foi por isso que o comprei.

- E o que é que tem lá dentro?

- Sobretudo registos, mas que me vão fazer falta. Umas fotografias em CD e uns negativos. Coisas que eu queria salvaguardar.

- Nesse caso, ainda bem que o encontraram.

- Sem dúvida - disse ele. Fez uma pausa. - Porque está lá uma coisa dentro que é para ti.

 

Depois de deixar Alex em casa de Joyce, Katie encaminhou-se finalmente para o chalé, relutante em regressar, mas ciente de que não podia adiar o inevitável para sempre. Mesmo não fazendo tenções de lá ficar, precisava de arrumar uma mala com alguns artigos de primeira necessidade.

Uma nuvem de poeira levantou-se da gravilha à medida que ia passando por cima dos buracos da estrada até parar diante de casa. Ficou sentada dentro do jipe - que, apesar dos riscos e das amolgadelas, ainda funcionava na perfeição - e fitou demoradamente a porta, recordando-se de Kevin a esvair-se em sangue no alpendre, o olhar dele cravado nela.

Não queria ver as manchas de sangue. Estava com receio de que, ao abrir a porta, lhe viesse à memória a imagem de Alex depois de Kevin o ter agredido. Ainda ouvia os gritos histéricos de Josh e de Kristen, agarrados ao pai. Não se sentia preparada para reviver todas estas emoções.

Em lugar disso, decidiu ir fazer uma visita a Jo. Na mão, levava a carta que Alex lhe entregara. Quando lhe perguntara por que motivo lha escrevera, ele abanara a cabeça. “Não foi escrita por mim”, esclarecera-a. Katie ficara a olhar para ele embasbacada. “Assim que a leres, irás compreender”, assegurara-lhe ele.

À medida que se dirigia para casa de Jo, sentiu uma vaga lembrança a querer vir à tona. Qualquer coisa que se passara na noite do incêndio. Alguma coisa que vira, mas que não conseguia identificar. No preciso momento em que estava quase a agarrá-la, a recordação fugiu-lhe. À medida que se aproximava da casa de Jo, foi abrandando o passo, a sentir uma ruga de perplexidade a crispar-lhe a testa.

Havia teias de aranha nas janelas, e uma persiana soltara-se do caixilho e desconjuntara-se ao cair na relva. O parapeito do alpendre estava partido, e viam-se ervas daninhas a espreitar por entre as tábuas de madeira. Os olhos de Katie assimilaram tudo, mas ela não foi capaz de dar sentido ao cenário que tinha à sua frente: uma maçaneta enferrujada quase a desprender-se da porta, fuligem nas janelas como se houvesse anos que não eram limpas.

Não havia sinal de cortinas...

Nem do tapete à porta...

Nem do espanta-espíritos...

Hesitou, a tentar compreender o que via. Sentia-se esquisita, surpreendentemente leve, como se estivesse a sonhar acordada. Quanto mais se acercava do chalé, mais decrépito este lhe parecia.

Ao pestanejar, reparou que a porta estava estalada de alto a baixo e tinha uma tábua pregada ao comprido, a segurá-la ao caixilho bambo.

Tornou a pestanejar e verificou que uma parte da parede, lá no alto, junto a um canto, tinha apodrecido, deixando um buraco irregular.

Pestanejou uma terceira vez e constatou que a metade inferior da janela estava rachada e partida; havia cacos de vidro espalhados pelo chão de madeira.

Incapaz de conter a curiosidade, Katie subiu os degraus do alpendre. Chegou-se à janela e espreitou para o interior escurecido do chalé.

Poeira e sujidade, mobília partida, montes de lixo. Paredes por pintar, casa por arrumar. Katie recuou instintivamente para o alpendre e foi por um triz que não tropeçou no degrau partido. Não. Não era possível, de todo. Que destino levara Jo e onde estavam os arranjos que ela fizera no chalé? Katie vira-a a pendurar um espanta-espíritos. Jo estivera em sua casa, a queixar-se das pinturas e das limpezas que tinha de fazer. Tinham bebido café e vinho e comido queijo juntas, e Jo metera-se com ela por causa da bicicleta. Jo fora esperá-la à saída do emprego e tinham ido a um bar. A empregada de mesa vira-as juntas. Katie pedira vinho para ambas...

“Embora a jo não tenha tocado no vinho”, recordou-se ela.

Katie massajou as têmporas, a mente num turbilhão, à procura de respostas. Lembrava-se de ter visto Jo sentada nos degraus quando Alex a fora deixar em casa. Até Alex a vira...

“Ou será que não viu?”

Katie afastou-se do chalé em ruínas. Jo era autêntica. Era de todo impossível que se tivesse tratado duma partida da sua imaginação. Katie não a inventara.

“Mas a Jo gostava de tudo quanto tu fazias; bebia o café que tu bebias, gostava das roupas que tu compravas; as opiniões dela a respeito dos empregados do Ivans condiziam com as tuas.”

À medida que uma série de pormenores aleatórios lhe começavam subitamente a afluir ao espírito, ouvia duas vozes a degladiar-se na sua mente...

“Ela morava aqui!”

“Ai, sim? Então, por que é que a casa está ao abandono?”

“Nós contemplámos as estrelas juntas!”

“Tu contemplaste as estrelas sozinha, e é por isso que até hoje continuas sem as conheceres pelo nome.”

“Nós estivemos a beber vinho em minha casa!”

“Tu bebeste a garrafa inteira sozinha, e foi por isso que ficaste completamente zonza.”

“Ela falou-me do Alex! Ela queria que ficássemos juntos!”

“Ela só mencionou o nome dele depois de tu já o saberes, e tu sempre estiveste interessada nele.”

“Ela foi terapeuta dos miúdos!”

“Essa foi a desculpa a que tu recorreste para nunca falares nela ao Alex.”

“Mas...”

“Mas...”

“Mas...”

Uma a uma, as respostas foram-lhe surgindo: o motivo por que nunca chegara a descobrir o apelido de Jo nem a vira conduzir... o motivo por que Jo nunca a convidara a ir a sua casa nem aceitara a sua ajuda para pintar as paredes... o momento em que Jo, como por artes mágicas, lhe aparecera à frente vestida para ir fazer jogging...

À medida que as peças se iam encaixando no seu devido sítio, Katie sentia qualquer coisa ceder no seu íntimo.

Jo, apercebeu-se ela subitamente, nunca estivera ali.

 

Ainda com a sensação de se achar mergulhada num sonho, Katie encaminhou-se para sua casa. Sentou-se na cadeira de baloiço e fixou o olhar no chalé de Jo, a perguntar-se se não teria perdido o juízo por completo.

Sabia que a criação de amigos imaginários era frequente no caso das crianças, mas ela já não era uma criança. Embora também não houvesse dúvida de que chegara a Southport sob grande tensão. Sozinha e sem amigos, em fuga e sempre de atalaia, aterrorizada com a ideia de Kevin se poder estar a aproximar... Quem não ficaria ansioso? Mas seria isso motivo suficiente para justificar a criação dum alter ego? Talvez houvesse psiquiatras que dissessem que sim, mas Katie não podia ter a certeza.

O problema punha-se dada a sua relutância em acreditar nisso. Não acreditava porque tudo se lhe afigurara tão... real. Lembrava-se das conversas que travara com Jo, ainda lhe via as expressões, ainda ouvia as suas gargalhadas. As recordações que Jo lhe deixara pareciam-lhe tão autênticas como as que guardava de Alex. Apesar de, por aquele andar, o mais certo seria ele não ser autêntico, não passar também dum produto da sua imaginação. E o mesmo se aplicaria a Kristen e a Josh. O mais provável seria ela estar nesse momento presa a uma cama num manicómio qualquer, completamente perdida num mundo da sua própria criação. Abanou a cabeça, mais frustrada e confusa que algum dia se sentira...

Para além de que havia ainda mais qualquer coisa a incomodá-la, qualquer coisa que não conseguia identificar. Estava a esquecer-se de qualquer pormenor. Um pormenor importante.

Por muitas voltas que desse à cabeça, não era capaz de perceber do que se tratava. Os acontecimentos dos últimos dias tinham-na deixado exausta e nervosa. Ergueu o olhar. O crepúsculo estendia-se agora no céu, e a temperatura estava a descer. Em volta das árvores, a neblina começava a formar-se.

Katie desviou a atenção da casa de Jo - e haveria de se referir a ela sempre assim, independentemente do que isso pudesse dizer acerca da sua sanidade mental -, pegou na carta e deu-lhe uma vista de olhos. O envelope não tinha nada escrito.

Aquela carta transmitia-lhe uma sensação inquietante, porquê, não sabia ao certo. Talvez isso se devesse à expressão de Alex no momento em que lha entregara... Intuitivamente, Katie percebera que o conteúdo era não apenas sério, como também representava muito para Alex, e admirava-se de ele não ter feito nenhum comentário a seu respeito.

Contudo, não tardaria a anoitecer, e ela sabia que o tempo se estava a esgotar. Virou o envelope ao contrário e abriu-o. À luz do crepúsculo, fez deslizar um dedo pelo papel amarelo e em seguida desdobrou as folhas. Por fim, deu início à leitura.

À mulher que o meu marido ama,

Se ler estas palavras lhe causa uma sensação de estranheza, por favor, acredite em mim quando lhe digo que a minha própria estranheza ao escrevê-las não terá sido menor que a sua. A verdade, porém, é que esta carta não tem nada de usual. Tenho tanto para lhe dizer, tanto para lhe contar, e, quando peguei na caneta e no papel, parecia-me que tinha as ideias tão claras. Agora, no entanto, dou por mim hesitante e sem saber por onde hei-de começar.

Posso começar dizendo o seguinte: a experiência ensinou-me que, na vida de todos nós, há um momento indiscutível de mudança, um conjunto de circunstâncias que, subitamente, vem alterar tudo. Para mim, esse momento aconteceu quando conheci o Alex. Embora eu não saiba quando ou onde irá ler esta carta, sei que isso significa que ele está apaixonado por si, que deseja partilhar a vida consigo e, quanto mais não seja, isso será algo que nós as duas haveremos de ter sempre em comum...

O meu nome, como provavelmente já sabe, éCarly, embora, durante grande parte da minha vida, os meus amigos me tenham tratado por Jo...

Katie interrompeu a leitura e olhou fixamente para a carta que tinha entre as mãos. Respirou fundo e releu as seguintes palavras: “durante grande parte da minha vida, os meus amigos me tenham tratado por Jo”.

Apertou as folhas com firmeza, sentindo a recordação que a vinha a incomodar a ganhar finalmente nitidez. De repente, viu-se uma vez mais no quarto de Alex na noite do incêndio. Sentia a tensão nas costas e nos braços no momento em que arremessara a cadeira de baloiço pela janela, sentia a vaga de pânico que a inundara quando estava a embrulhar Josh e Kristen no edredão e ouvia a parede a desmoronar-se nas suas costas. com uma clareza súbita, lembrou-se de nesse instante se ter virado e visto o retrato pendurado na parede, a fotografia da mulher de Alex. Na altura, estava confusa, os nervos em curto-circuito num inferno de fumo e medo.

Mas não deixara por isso de reparar no rosto. Sim, chegara mesmo a avançar um passo para ver melhor.

“É parecidíssima com a jo”, recordava-se de ter pensado, embora a sua mente não estivesse em condições de assimilar. Agora, porém, sentada no alpendre com o crepúsculo a instalar-se lentamente ao seu redor, teve a certeza de que se enganara. Que se enganara a respeito de tudo. Tornou a dirigir o olhar para o chalé de Jo.

Era parecida com Jo, constatou subitamente, porque era Jo. Deu por outra recordação a manifestar-se sem ser solicitada, desta feita, relativa à primeira manhã em que Jo viera a sua casa.

“Os meus amigos tratam-me por Jo”, dissera-lhe ela à laia de apresentação.

“Ó meu Deus!”

Katie empalideceu.

...Jo...

Jo não fora um produto da sua imaginação, compreendeu de repente. Katie não a inventara.

Jo estivera de facto ali. Sentiu um nó a formar-se-lhe na garganta. Não porque não acreditasse, mas porque subitamente se consciencializava de que a sua amiga Jo - a sua única verdadeira amiga, a sua sábia conselheira, seu amparo e sua confidente - nunca mais haveria de voltar.

Nunca mais tomariam café juntas, nunca mais dividiriam uma garrafa de vinho, nunca mais se encontrariam no alpendre uma da outra. Nunca mais iria ouvir as gargalhadas de Jo nem vê-la a arquear uma sobrancelha. Nunca mais ouviria Jo a queixar-se de ter de fazer tarefas manuais. Começou a chorar pela perda da amiga maravilhosa que nunca tivera a oportunidade de conhecer na vida real.

Não soube ao certo quanto tempo passou antes de se sentir em condições de retomar a leitura. Estava a ficar escuro e, com um suspiro, Katie levantou-se e abriu a porta da rua. Entrou e foi sentar-se à mesa da cozinha. Jo, ainda se lembrava, estivera ali numa ocasião, na cadeira à sua frente, e, sem saber porquê, Katie deu por ela a descontrair.

“Pronto”, pensou para consigo, “estou preparada para ouvir o que me tens a dizer.”

... embora, durante grande parte da minha vida, os meus amigos me tenham tratado por Jo. Por favor, sinta-se à vontade para me tratar como bem entender e posso adiantar-lhe desde logo que já a considero uma amiga. Espero que, quando chegar ao fim desta carta, possa dizer o mesmo de mim.

A morte é um acontecimento estranho, e vou poupá-la aos pormenores. Quando soube que não me restavam mais que umas semanas ou, no máximo, uns meses de vida, embora seja um cliché, é verdade que muitas das coisas a que eu antes atribuía importância, entretanto deixaram de a ter. Já deixei de ler os jornais, de me importar com as cotações na bolsa ou se vai chover ou não quando eu estiver de férias. Ao invés, dou por mim a reflectir nos momentos cruciais da minha vida. Penso no Alex e em como ele estava bonito no dia do nosso casamento. Recordo-me da alegria exausta que senti quando tive ojosh e a Kristen pela primeira vez nos meus braços. Eram uns bebés maravilhosos, e eu costumava deitá-los no meu colo e ficar a olhar para eles enquanto dormiam. Era capaz de passar horas assim, a tentar descobrir se os olhos ou o nariz deles eram parecidos com os meus ou com os do Alex. Às vezes, quando estavam a sonhar, enroscavam as mãozinhas em volta do meu dedo, e lembro-me de pensar que nunca na vida tinha sentido uma alegria tão pura.

Foi só quando tive filhos que descobri o verdadeiro significado do amor. Não me interprete mal. Eu amo profundamente o Alex, mas é um amor diferente daquele que sinto pelo Josh ou pela Kristen. Não sei como explicar a diferença e também não sinto necessidade disso. Tudo o que sei é que, apesar da minha doença, me continuo a sentir abençoada, porque tive a oportunidade de conhecer estas duas espécies de amor. Tive uma vida feliz e plena e vivenciei o amor duma forma que está vedada a muitas pessoas.

Contudo, o prognóstico da minha doença assusta-me. Esforço-me por me mostrar corajosa diante do Alex, e os miúdos ainda não têm idade para compreenderem o que de facto se passa, mas nos momentos tranquilos de solidão, não consigo conter as lágrimas e chego a perguntar-me se algum dia voltarei a sorrir. Embora saiba que isso não me traz qualquer proveito, dou por mim a matutar que nunca mais haverei de levar os meus filhos à escola, nem de testemunhar o entusiasmo deles na manhã do dia de Natal. Nunca irei ajudar a Kristen a comprar o vestido para o baile de finalistas, nem tão-pouco assistir a um jogo de basebol do Josh. São tantas as coisas que nunca os verei fazer nem poderei fazer com eles, e há momentos em que entro em desespero só de pensar que, quando eles se casarem, eu não serei para ambos mais que uma recordação distante.

Como lhes poderei dizer que os amo quando já não estiver presente?

E depois há o Alex. Ele é o companheiro com que sempre sonhei, o meu amante e o meu amigo. E um pai dedicado, mas, acima de tudo, é o meu marido ideal. Não tenho palavras para descrever o conforto que sinto de cada vez que ele me abraça ou a ansiedade com que espero pelo momento de me deitar a seu lado todas as noites. É uma pessoa extraordinariamente humana, dotado duma fé profunda na vida, e condói-me imaginá-lo sozinho. Foi este motivo que me levou a pedir-lhe para lhe entregar esta carta; encaro-a como uma forma de o obrigar a cumprir a promessa que me fez de que iria fazer por encontrar uma pessoa especial - alguém que o ame e que ele, por sua vez, também se sinta capaz de amar. Ele precisa disso.

Tive a sorte de estar casada com ele ao longo de cinco anos e de criar os meus filhos, embora durante um período mais curto. Agora a minha vida está quase a chegar ao fim e você vai ocupar o meu lugar. Você é a mulher ao lado da qual o Alex irá envelhecer e a única mãe que os meus filhos irão conhecer. Nem imagina o horror que é estar deitada na cama, a olhar para a minha família e ciente de tudo isto, de que não há nada que eu possa fazer para alterar a situação. Há ocasiões em que sonho que vou conseguir regressar, arranjar maneira de garantir que eles vão ficar bem. Gosto de acreditar que irei ficar a zelar por eles no céu ou que os poderei visitar em sonhos. Gosto de fingir que a minha jornada ainda não acabou e rezo por que o amor incomensurável que lhes tenho seja suficiente para assegurar a realização destes desejos.

É aqui que você entra. Gostaria de lhe pedir que faça uma coisa por mim.

Se ama o Alex neste momento, então, ame-o para sempre. Devolva-lhe o sorriso e estime o tempo que passarem juntos. Andem a pé e dêem passeios de bicicleta, enrosquem-se no sofá e vejam filmes aconchegados debaixo duma manta. Faça-lhe o pequeno-almoço, mas não o estrague. Deixe que ele lhe faça o pequeno-almoço a si também, de modo a que lhe possa mostrar o quanto é especial para ele. Beije-o, faça amor com ele e considere-se uma felizarda por tê-lo conhecido, pois ele é o género de homem que jamais a decepcionará.

Peço-lhe ainda que ame os meus filhos tanto quanto eu. Ajude-os a fazer os trabalhos de casa e beije-lhes os cotovelos e os joelhos arranhados sempre que caírem. Faça-lhes deslizar a mão pelo cabelo e garanta-lhes que eles serão capazes de alcançar todos os objectivos em que se empenharem. Aconchegue-os na cama à noite e ajude-os a fazer as suas orações. Prepare-lhes o almoço; ajude-os a cultivar amizades. Adore-os, ria-se com eles, ajude-os a transformarem-se em adultos bondosos e independentes. Todo o amor que lhes der, eles haverão de lhe retribuir a decuplicar, quanto mais não seja por serem filhos do Alex.

Por favor, peço-lhe encarecidamente, faça isto por mim. Afinal de contas, agora eles são a sua família, não a minha.

Não sinto ciúmes ou ressentimento por você ter ocupado o meu lugar; tal como já referi, considero-a uma amiga. Faz o meu marido e os meus filhos felizes, e gostaria muito de lhe poder agradecer pessoalmente. Assim, a única garantia que lhe posso dar é que pode contar com a minha eterna gratidão.

Se o Alex a escolheu, então, quero que fique com a certeza de que eu também a escolhi.

A sua amiga em espírito, Carlyjo

Quando Katie acabou de ler a carta, enxugou as lágrimas e fez deslizar um dedo pelas páginas antes de as tornar a guardar no envelope. Ficou sentada em silêncio, a pensar nas palavras de Jo, ciente desde logo de que haveria de fazer de tudo ao seu alcance para cumprir os seus desejos.

Não por causa da carta, pensou, mas porque sabia que, ainda que isso pudesse parecer estranho, Jo fora quem a incentivara discretamente a dar uma oportunidade a Alex.

Katie sorriu.

- Obrigada pela confiança que depositaste em mim - murmurou, percebendo que Jo tivera razão desde o primeiro momento. Apaixonara-se por Alex e pelos filhos e sabia que não conseguiria imaginar o futuro sem eles. Era altura de regressar a casa, pensou, era altura de regressar para junto da família.

Lá fora, a Lua era um disco branco e brilhante que a guiava enquanto se encaminhava para o jipe. Todavia, antes de entrar, deitou uma olhadela por cima do ombro para casa de Jo.

As janelas do chalé estavam todas iluminadas. Viu Jo junto à janela da cozinha pintada. Embora a distância não lhe permitisse ver muito mais, Katie teve a impressão de que Jo lhe sorria. A amiga ergueu a mão para lhe dizer adeus, e ela recordou-se uma vez mais de que por vezes o amor é capaz de alcançar o impossível.

Quando Katie pestanejou, porém, o chalé voltou a ficar às escuras. Apesar de não haver uma única luz acesa e de Jo ter desaparecido, teve a sensação de ouvir as palavras contidas na carta a vogarem ao sabor da suave brisa.

“Se o Alex a escolheu, então quero que fique com a certeza de que eu também a escolhi.”

Katie sorriu e deu meia-volta, ciente de que não se tratava de nenhuma ilusão nem de nenhum produto da sua imaginação. Estava certa do que vira.

Estava certa das suas convicções.

 

                                                                                            Nicholas Sparks

 

 

                      

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